Tese - Eduardo Jaime Bata - 2018
Tese - Eduardo Jaime Bata - 2018
Tese - Eduardo Jaime Bata - 2018
Goiânia
2018
TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR
VERSÕES ELETRÔNICAS DE TESES E DISSERTAÇÕES
NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
Assinatura do autor2
Ciente e de acordo:
1 Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. A extensão
deste prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão
disponibilizados durante o período de embargo.
Casos de embargo:
- Publicação da dissertação/tese em livro.
2 A assinatura deve ser escaneada.
Goiânia
2018
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do
Programa de Geração Automática do Sistema de Bibliotecas da UFG.
Bata, Eduardo Jaime
Entre estatais e transnacionais, quantos ais: [manuscrito] : efeitos
espaciais dos megaprojetos de mineração do carvão em Moatize,
Moçambique. / Eduardo Jaime Bata. - 2018.
565 f.
CDU 911
Aos meus irmãos,
DEDICO!
AGRADECIMENTOS
Ndatenda!
(Expressão em Nyungwe. É o mesmo que dizer Obrigado)
RESUMO
In Moatize, extraction of coal is an ancient activity, dating back to the early 19th
century. Its development occurred concomitant consolidation of Moatize, primarily
focus on coal mining in Mozambique. In fact, the coal basin of Moatize is the subject
of research and mineral exploration, since the period of effective occupation. With
independence and the process of building the State, mostly from the early 1990, the
mining goes on to be one of the key sectors for the development of the country;
Hence, all the conditions have been created for its growth. The new phase of coal
extraction process that accompanied the changes underway in the world, especially
since the 1970, have repercussions on the social structure, since the insertion of the
capital involved arrangements of all kinds. In Moatize, the implementation of
megaprojects demanded the space refunctionalization to meet the demands of the
productive capital, a process that culminated with the compulsory displacement of
the population. In this context, the research sought to understand the spatial effects
of megaprojects of coal extraction in Moatize, from its contradictions, regarding the
forms of spatial organization, in order to meet its needs. The proposition of this thesis
is that there is a new geopolitical strategy that seeks to shift production, concentrated
in Europe to New Territories, rich in natural goods, with tax incentives, weak labor
and environmental legislation on the rights humans. This process strengthens the
productive restructuring of capital and is characterized by the performance of large
transnational corporations. Internally, this process relies on the actions of the State,
creating the (legal, institutional and ideological) conditions to check rationality and
visibility to megaprojects. So, considering the space as a system of systems and
dialectical and historical materialism, as a method of research and interpretation of
the phenomena; the qualitative research, secondary data collection, as well as field
research, enabled the understanding of current arrangements in Moatize, as well as
its effects on the spatial structure. With the implementation of megaprojects in
Moatize, in addition to the pressure on State institutions to organize themselves, on
the basis of these, there were also environmental degradation and, especially, the
social disorganization – as a result of compulsory displacement and destruction of
livelihoods. Thereby, the curtailment of collective goods, the difficulties of regular
access to food in the resettlement, particularly, in Mwaladzi, the lack of land for
production, lack of work, as well as the increased morbidity and mortality, are aspects
that lead to the impoverishment of the resettled and exacerbate socio-environmental
conflicts. In the meantime, the integration of megaprojects generated insignificant
advantages for the local communities; However, this integration created and/or
strengthened a small bourgeoisie connected to national political power – the capital
partners.
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Foto 1 - Vista parcial do Jardim das Memórias, local de partida dos escravos no período
colonial, Ilha de Moçambique 64
Foto 2 - Igreja de São José - Missão de Boroma (Distrito de Changara, Tete), símbolo da
presença cristã portuguesa no interior de Moçambique 65
Foto 3 - Ponte sobre o Rio Moatize na época seca, outubro de 2016 158
Foto 4 - Jovens no leito seco do Rio Moatize; extraem areia para vender, outubro de 2016
159
Foto 5 - Vista lateral da Ponte Kassuende que estabelece a ligação entre o Distrito de
Moatize e o Município de Tete 166
Foto 6 - Vista parcial do terminal marítimo do carvão mineral em Nacala- a- Velha, Província
de Nampula, Moçambique 285
Foto 7 - Alguns trabalhadores das minas em Moatize no período da CARBOMOC 331
Foto 8 - Vista parcial de uma das ruas do reassentamento 25 de setembro, ao fundo parte
das casas fornecidas aos reassentados 408
Foto 9 - Rachaduras nas paredes de uma das casas dos moradores reassentados no bairro
25 de setembro 412
Foto 10 - Placa de cimento (A) que indica a distância entre Cateme e Moatize e, sinal
vertical (B) que indica uma passagem de nível com circulação de trens em Cateme 414
Foto 11 - Tipo de moradia fornecida aos reassentados em Cateme, no meio a casa principal,
à esquerda a cozinha e ao fundo o banheiro 416
Foto 12 - Parte das infraestruturas construídas no reassentamento de Mwaladzi 420
Foto 13 - Tipo de moradia fornecida à população reassentada em Mwaladzi, Moatize 423
Foto 14 - Tipo de terras fornecidas aos reassentados em Mwaladzi 428
Foto 15 - Mapa da comunidade de Capanga antes do reassentamento, Moatize 437
Foto 16 - Vista traseira do caminhão carregado de carvão mineral de Chirodzi para Moatize,
outubro 2015 444
Foto 17 - Terminal de carvão de Moatize; ao fundo as residências da população do bairro da
Liberdade, outubro 2015 445
Foto 18 - Caminhão da transportadora Lalgy no interior do Terminal de carvão em Moatize,
ao fundo o carvão estocado, outubro 2015 448
Foto 19 - Interior de uma residência adjacente ao Terminal de carvão; à direita o relógio de
energia (Credelec) e ao fundo a fiação elétrica e as paredes com sinais de carvão 452
Foto 20 - Algumas residências adjacentes ao Terminal de carvão; ao fundo é notável a
presença de poeiras nas paredes e o solo em a tonalidade escura, outubro 2016 453
Foto 21- Algumas residências adjacentes à mina de Moatize II, bairro de Bagamoyo, ao
fundo é notável a cerca que separa a área de mineração e residencial, outubro 2016 469
Foto 22- Tipo de moradia para trabalhadores estrangeiros dos projetos da Vale Moçambique
496
Foto 23 - Condomínio para alguns trabalhadores moçambicanos, equipado com aparelhos
de ar condicionado, outubro 2016 496
Foto 24 - Bloqueio da ferrovia que transporta o carvão mineral; Cateme, janeiro 2012 511
Foto 25 - Manifestação protagonizada pela população de Chirodzi contra a mineradora
Jindal África, maio 2016 513
LISTA DE MAPAS
LISTA DE TABELAS
Gráfico 1- Fluxo do IDE para Moçambique (milhões de US$) no período entre 2002 e 2014
243
Gráfico 2- Total de investimentos no setor da mineração (em milhões de US$) entre 2004 e
2011, Moçambique 254
Gráfico 3- Consumo mundial do carvão mineral (em quadrilhões de Btu) por Regiões entre
1980 e 2014 270
Gráfico 4- Comércio mundial do carvão mineral (em milhões de toneladas) por tipo entre
1995 e 2014 272
Gráfico 5- Satisfação com os critérios usados pela Vale Moçambique para a separação das
famílias reassentadas em Moatize 401
Gráfico 6- Opinião dos moradores sobre a realização ou não da consulta pública antes do
reassentamento em Moatize 402
Gráfico 7- Principais atividades da população antes do reassentamento em Moatize 430
Gráfico 8- Percepção dos moradores em relação à melhoria da vida com a chegada dos
megaprojetos no Distrito de Moatize 433
Gráfico 9- Percepção dos moradores reassentados sobre os elementos simbólicos que mais
lembra a sua antiga aldeia, Moatize 436
LISTA DE ACRÔNIMOS, ABREVIATURAS E SIGLAS
1 INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------------------- 22
1.1 NEM TUDO QUE BRILHA É OURO: as origens da Vale S.A. ------------------ 316
1.2 RUMO À ÁFRICA: o carvão mineral de Moatize na órbita da Vale S.A. ------ 328
1.3 LUCRO À CUSTA DE VIOLAÇÕES: somos uma Vale de todos? ------------- 348
1.4 NO RASTRO DA VALE: tantas Companhias na rota do carvão mineral de
Moatize ---------------------------------------------------------------------------------------------- 357
1.4.1 International Coal Venture Limited (ICVL) --------------------------------------- 364
2 EFEITOS ESPACIAIS DA EXPLORAÇÃO DO CARVÃO MINERAL EM
MOATIZE: o desenraizamento e a desestruturação social das comunidades ------ 388
1 "A MINHA CASA ERA DE PALHA, MAS VIVIA BEM": notas para o
prolongamento do debate ------------------------------------------------------------------------- 516
1 INTRODUÇÃO
3 FRELIMO é o acrônimo que significa Frente de Libertação de Moçambique. Ela foi fundada a 25 de
junho de 1962 em Dar-es-Salaam, a partir da fusão de três movimentos: a União Democrática
Nacional de Moçambique (UDENAMO), a União Nacional Africano de Moçambique Independente
(UNAMI) e a União Nacional Africana de Moçambique (MANU). Foi a Frelimo quem organizou e
comandou a luta de libertação nacional contra o regime colonial que culminou com a independência
de Moçambique.
23
4 Palavras de Manmohan Singh, ministro da Fazenda da Índia; Margaret Thatcher, primeira ministra
processo, que teve início logo após a independência, ganha fôlego e corporeidade
com a realização do III Congresso da Frelimo5 e a adoção formal do socialismo do
tipo marxista-leninista como política de orientação do Estado.
Em alta nos primeiros anos da década de 1980, fruto da retomada do
crescimento econômico, até então em queda livre, o discurso da elite política
frelimista e do Estado moçambicano era otimista, alimentando, inclusive ilusões
como, por exemplo, a ideia de declarar a década de 1980, como a década da vitória
sobre o subdesenvolvimento. Na verdade, tal aconteceu ou porque a força dos
ideários revolucionários não deixava enxergar para além das questões internas ou,
então, o risco que os problemas internos, regionais e mundiais representavam para
a continuidade do socialismo era propositadamente ignorado.
Assim, entre calamidades naturais (cheias, inundações e secas), aumento da
violência armada, isto é, o alastramento da guerra civil (1976-1992), a redução do
apoio econômico e financeiro até então fornecido pelos países do Leste europeu,
isto é, uma espécie de desengajamento; foi sendo tecida a crise que empurrou para
o abismo o sonho do socialismo em Moçambique. Do resto, havia quase nada, pois
o único trunfo que ainda sobrava fora descartado, com a não admissão de
Moçambique ao estatuto de membro pleno do Conselho para Assistência Econômica
Mútua (COMECON)6 em 1981.
Portanto, sem ou com pouca margem de manobra, o Estado moçambicano
inicia, a partir das deliberações do IV Congresso da Frelimo, um verdadeiro
engajamento em busca de apoio financeiro e da ajuda alimentar para responder aos
imperativos da crise em todas as dimensões. Numa altura em que a própria União
Soviética tinha iniciado o desengajamento (ainda que de forma tímida, até pelo
menos 1985), no horizonte eram poucas as saídas para o país, senão a virada para
o Ocidente, culminando com a introdução dos Programas de Ajuste Estrutural (PAE).
Com início dos PAE, que em Moçambique foram denominados Programa de
Reabilitação Econômica (PRE) e Programa de Reabilitação Econômica e Social
(PRES), sendo que o último se alastrou até aos meados da década de 1990,
paralelamente ao processo de reconstrução nacional iniciado em 1993, o país
começou a sua longa marcha de reconciliação com o Ocidente, mediada pelo Banco
5Na primeira parte é feita a discussão e as principais deliberações de alguns congressos da Frelimo.
6 O COMECON foi fundado em 1949 e objetivo principal era a integração das nações do Leste
europeu. Este bloco político econômico, surge como resposta ao Plano Marshall idealizado e
implementado pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
26
7
Para Chesnais (1996, p.55), o IDE designa-se o investimento que visa adquirir um interesse
duradouro em uma empresa cuja exploração se dá em outro país que não o do investidor, sendo o
objetivo deste último influir efetivamente na gestão da empresa em questão.
8 Inicialmente, a teoria de coalizão foi aplicada aos estudos sobre a formação de governos em
sistemas parlamentares. Atualmente, tem sido também aplicado em estudos de outros processos,
inclusive no contexto das relações e negociações internacionais.
Na pesquisa o termo coalizão é usado para designar os acordos/pactos que o governo faz com as
transnacionais em diversas escalas e frentes de atividades.
Cf. OLIVEIRA, Amâncio J; OLIVEIRA, Emanuel e ONUKI, Janina. Coalizões Sul - Sul e o
multilateralismo: Índia, Brasil e África do Sul. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, v. 28, n. 2. p.
465-504. Jul./dez. 2006.
27
transnacionais9, mas sem abandonar o seu papel de criador de facilidades (de toda
ordem) para a inserção do capital.
Sem dúvidas, as empresas do setor extrativo mineral e energético têm sido a
preferência do Estado, o que não exclui, de forma alguma, sua participação em
outros segmentos e negócios. Portanto, é no interior dessas mudanças e alianças
que diluem e confundem significativamente o papel do Estado e, cujos
desdobramentos já são notáveis, tanto na estrutura espacial, como na estrutura
econômica e política, que situamos a nossa pesquisa intitulada, Entre estatais e
transnacionais, quantos ais: efeitos espaciais dos megaprojetos de mineração do
carvão em Moatize, Moçambique.
O título foi inspirado no poema de Carlos Drummond de Andrade10 e
adaptado à realidade e ao perfil das Companhias que atuam em Moatize. No poema,
Drummond desvela os efeitos deletérios da mineração do ferro e, de forma enfática,
na segunda estrofe, o poeta expõe a dor que esses consórcios causam para as
comunidades ditas "hospedeiras". De fato, o verso quantos ais, não só representa a
rima, isto é, os sons idêntico-rítmicos no final dos três versos que compõem a
estrofe, mas também sinaliza a gravidade da dor. Na verdade, a interjeição ai
(singular) e ais (plural) exprimem a dor, a desaprovação, o sufoco pelo qual passam
as comunidades dilaceradas pelos empreendimentos de mineração batizados como
projetos de desenvolvimento. Por isso, acredita-se que o poema de Drummond é
apropriado para retratar também o cenário vivido pela população afetada pelos
megaprojetos de extração do carvão mineral em Moatize
Santos (1997) ao descrever as fases de inserção do capital em novas regiões,
destaca dois momentos de atuação das forças externas: a primeira etapa tem por
objetivo inserir a região ou o país no sistema mundial, e o segundo momento, por
sua vez, acrescenta novos dados de origem externa às situações preexistentes.
Com efeito, se situarmos essas etapas dentro das reformas realizadas em
Moçambique, fica evidente que o primeiro impacto refere-se às pré-reformas
boa parte da infância na fazenda da família, "sozinho, entre mangueira", como diria, mais tarde, em
seu poema infância, publicado em Alguma poesia. Drummond é um dos maiores poetas que o Brasil
já teve, comparado aos maiores poetas estrangeiros. Redator do diário de Minas e dono de uma
vastíssima coletânea de poemas, como por exemplo, no Meio do Caminho, O Avesso das coisas, O
amor natural, Moça deitada na grama, entre outros.
Cf. Universidade Estadual de Campinas. A dialética iluminada de Drummond. 2002.
28
BRIC11, mas sem incluir a África do Sul, Moyo (2013), acredita que o PIB combinado
dos BRIC tenha crescido de US$ 2,5 milhões, no começo de 2000, para perto de
US$ 9,0 trilhões em 2010. Longe de constituir uma história de sucesso e transições
bem sucedidas de alguns países, como por exemplo, a Índia, a China, mas também
o Brasil, após a crise da dívida de 1980, esse crescimento transborda em seus
poros, o aumento da demanda pelo complexo de commodities que inclui água, terra
arável, energia e bens minerais para suprir as necessidades de consumo crescente.
Dito de outra forma, manter os atuais níveis de conforto ou aumentá-los, por
menor que seja sua percentagem, pressupõe a extração de mais bens naturais por
todo lado, mas, especialmente, na África, em algumas partes da Ásia e na América
Latina. Para demonstrar essa tendência, Moyo (op.cit., p.27) toma como referência,
"os prognósticos de que a demanda global por alimentos e água aumentará em 50%
e 30%, respectivamente, no ano de 2030".
Cientes das limitações internas para suprir suas demandas, os países
investem em tecnologias, ao mesmo tempo que expandem seus negócios para
outros países. É exemplo dessa expansão, o engajamento chinês, indiano e
brasileiro, tanto na África, como na Europa (embora com as devidas ponderações),
mas, principalmente, na América Latina. E no caso de Moçambique, o apetite
brasileiro pelos bens minerais nacionais não é tão recente assim, apesar da sua
maior significância, a partir de 2004, quando a Vale S.A pagou US$ 122,8 milhões
para a compra mina de carvão de Moatize.
Portanto, há registros desse interesse, já desde 1982, quando a Companhia
de Pesquisa e Recursos Minerais (CPRM) do Brasil liderou as pesquisas geológicas
e a fotointerpretação da seção de Mucanha - Vuzi, um depósito de carvão situado a
240 km de Moatize, local onde se concentram as operações de extração do carvão
(a céu aberto) mineral da Vale Moçambique, subsidiária da Vale S.A.
Localizado quase no centro da Província de Tete, região Noroeste de
Moçambique, o Distrito de Moatize, recorte espacial da pesquisa, cuja capital é a
Vila homônima, situa-se a NE da cidade de Tete, capital da Província com o mesmo
nome. Lar de uma das maiores reserva de carvão mineral em nível mundial (cerca
de 2,5 bilhões de toneladas, das quais 850 milhões estão na área de concessão da
11 O acrônimo criado pelo economista Jim O’Neill do banco Goldman Sachs, no estudo Building
Better Global Economic BRICs, para designar o grupo de países que integra o Brasil, Rússia, Índia e
China, economias emergentes que disputam uma posição de crescente relevância na economia
mundial. BRICS resulta da incorporação da África do Sul ao grupo da BRIC.
30
betuminoso obtém-se o carvão metalúrgico e o carvão térmico. Ambos exportados para Índia e China,
além de alguns países europeus e africanos. Ver parte 3.
31
pelo controle das reservas ou, então, pela sua extração apressada, à semelhança de
outros minérios, como o petróleo (mãe da petropolítica), do cobre, da prata, do ouro,
do paládio, da platina (presentes em aparelhos celulares, carros e aeronaves), além
da terra e da água, exemplos de alguns bens minerais que atiçam o apetite das
transnacionais e de seus países, conforme explica Moyo (2013).
Para compreender esse complexo processo, é preciso tal como lembra
Sousa-Santos (2005), entender o significado da governança neoliberal com todas
suas objetivações; temos que prestar atenção não apenas naquilo que ela diz, mas
também no que ela silencia. Partindo desse raciocínio, é possível notar que a
velocidade com que as transnacionais se expandem por todos os lados, sobretudo
naqueles fracos e desguarnecidos, no dizer de Chesnais (1996), reflete o
entendimento de seus países sobre a importância estratégica desses bens naturais.
Essa corrida que, na versão neoliberal, conta com o aval dos Estados nacionais, não
vê limites, barreiras sociais /ou morais para sua contínua expansão, aliás, é como
disse Marques (2015), que não há nada de amoral na atuação dos diretores ou
mandatários das transnacionais.
Portanto, acompanhando a tendência expansionista do capital sustentada
pela adição de novos espaços, geralmente distantes dos "centros" do sistema-
mundo, mas fartos de bens minerais, terras virgens (a África dispõe de 7,6%13 do
total da terra arável em nível mundial), água potável e outros suprimentos, é
coerente dizer que está em curso uma estratégia geopolítica que busca deslocar a
produção, até então concentrada na Europa, para novos territórios, ricos em bens
naturais, com incentivos fiscais e com fraca legislação ambiental, trabalhista e sobre
os direitos humanos. Tal processo, que se fortalece com a reestruturação produtiva
do capital, é caracterizado, sobretudo, pela atuação das grandes corporações
transnacionais.
Assim, visibilizar como esse processo definido à escala global se articula e
materializa-se à escala nacional e à local, isto é, em nível do Distrito de Moatize e,
sobretudo, os atores envolvidos nesses rearranjos é o que se busca demonstrar, ao
longo da pesquisa, enfim, é a tese.
Um ponto de partida nessa direção é compreender o papel do Estado
moçambicano. Ele, além de regulador e, por vezes, "investidor", sua tarefa principal,
14A pesquisa parte do conceito de megaprojeto apresentado por Castel-Branco (2002; 2008; 2010) e
Mosca e Selemane (2011).
Na parte 3 é feita a discussão sobre os megaprojetos.
33
15É uma joint venture constituída por empresas indianas do setor energético e metalúrgico. A ICVL
comprou a mina e todas as licenças do Projeto de carvão de Benga em Moatize. Ver a parte 4.
34
sem dúvida, este espaço já tinha uma história antes do primeiro impacto das
forças externas (SANTOS, 1997, p. 33).
Mas
tenho amor para dar às mãos-cheias.
Amor do que sou
e nada mais.
E
tenho no coração
gritos que não são meus somente
porque venho de um País que ainda não existe.
Ah! Tenho meu amor a rodos para dar
do que sou
Eu!
Homem qualquer
cidadão de uma Nação que ainda não existe.
________________________________________________________________
naturais (rios, montes) ou artificiais (estradas, sebes, demarcações com outras machambas) que se
destina a produção agrícola (INE, 2011).
42
políticos. Mas, também o fizemos por acreditar que tais excertos fornecem pistas
para compreensão de uma parte da história de Moçambique.
Pinheiros (1965), por exemplo, reconhece que, apesar das estratégias
acionadas (a cruz, o missionário e a linguagem da fé e do amor) pelos portugueses,
suas incursões pelo atual território moçambicano enfrentaram tenazes resistências
dos Mwenemutapas, do império de Gaza, o que fortalece a ideia de que, antes da
chegada do colonizador, já existiam formações sócio-políticas, com certo grau de
organização e centralização do poder, as quais Portugal teve de combater e/ou lidar.
Corrêa e Homem (1977), por sua vez, assinalam alguns aspectos da história
do país, principalmente os interesses que motivaram a fixação colonial portuguesa
em Moçambique. Ao dizer que não era só a terra e as riquezas naturais que
interessavam aos brancos, mas também os homens para o cultivo e a exploração
das minas, os autores denunciam um dos prodigiosos e perniciosos negócios (tráfico
de escravos) que fez ricos na Europa e na América e arrasou a estrutura societal
africana. Eles expõem, também, o objetivo inconfessado e inconfessável19 de todo o
projeto colonial português: a obtenção de commodities20 minerais e agrícolas, com
os quais Portugal participava no comércio internacional.
A partir desses pressupostos, buscou-se, nessa parte, "reconstituir" os
principais fatos e etapas que marcaram/marcam o complexo processo de formação
territorial e social de Moçambique. Para isso, recuou-se no tempo e no espaço e
"resgatou-se" a história pré-colonial, pois se acredita que esse processo em curso se
inicia nesse período. De fato, nesse exercício, tentamos demonstrar, sempre que
possível, de que forma a mineração participou/participa na formação territorial do
país, desde o período pré-colonial até aos dias de hoje. Enfim, procurou-se
evidenciar que a mineração e a constituição territorial de Moçambique são duas
faces do mesmo processo histórico.
21 A concepção de território utilizada na tese é baseada em Claude Raffestin. Para Raffestin (1993,
p.143, grifo do autor), o território “é resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator
que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreto ou
abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço.
22 Moçambique é um país da costa oriental africana banhada em toda a sua costa Leste pelo Oceano
Índico. Segundo Muchangos (1999, p.9), o país situa-se no hemisfério meridional. Seu território
enquadra-se no fuso horário dois possuindo assim, duas horas de avanço em relação ao tempo
médio universal. Ele é atravessado pelo trópico de capricórnio.
44
23 Daqui em diante usaremos o termo Moçambique de forma indiscriminada, ou seja, para referir-se a
origem no Sudeste da Nigéria e Sul do Congo. Com o tempo, esse grupo foi migrando e margeando o
Saara até a atingir a África Austral. Portanto, a palavra Bantu não se refere a alguma raça ou tribo em
específico, mas ao nome de grupos linguísticos.
25 Não existem informações precisas sobre quem foi esta figura, porém sabe-se que Mussa Al
Mbique ou Mussa bem - Biki foi o chefe religioso em Kilwa litoral da Tanzânia. Ele se estabeleceu em
Muhipiti (nome pelo qual é conhecida a Ilha de Moçambique entre os macuas) no século XI. Era o
senhor da Ilha na altura em que Vasco da Gama passou em direção à Índia.
45
ao Sul do continente por volta do ano I d.C. Os Bantu eram caçadores e coletores de
frutos do mato.
Segundo a Frelimo (1978), os primeiros habitantes do extremo Sul do
continente africano, incluindo Moçambique, foram os Khoisan, povo de baixa
estatura e composto por pequenos grupos. Os Khoisan eram caçadores, pescadores
e também recolhiam frutos nas grandes florestas para suprir as suas necessidades
alimentares.
A UNESCO (2013) situa o povoamento do atual território de Moçambique,
sobretudo a sua parte central, como o resultado de uma expansão gradual dos
povos de língua Bantu expulsos pelo dessecamento do Saara, o que fez com que se
deslocassem, gradualmente, para o Sul do Sahel.
Azevedo (2014, p.34, grifo do autor), por sua vez, descreve que os
Povos primitivos de Moçambique eram bosquímanos (homens do mato,
designados também Khoisan) caçadores e coletores que se viram obrigados
a fugir para regiões mais pobres em recursos, em virtude das grandes
migrações entre 200/300 DC dos povos Bantu, de hábitos guerreiros e
oriundos da região dos Grandes Lagos26.
ter sido forçada a migrar por diversas razões como, por exemplo, a fome, já que esta
vivia da coleta de frutos e da caça. Então, a escassez de animais para caçar, por
exemplo, poderia ter empurrado os Bantu para regiões mais adequadas e menos
hostis à sua sobrevivência e, assim a sua expansão gradual pelo continente.
Além do mais, o desenvolvimento da agricultura foi um processo lento que
progressivamente foi se corporificando como uma atividade sólida capaz de
substituir a economia fundante das sociedades Bantu, isto é, a caça e a coleta. É
bem provável que o crescimento da agricultura e, sobretudo a sua participação mais
direta na economia societal Bantu tenha resultado dos contatos que foram se
estabelecendo com os árabes, indianos e chineses na época das trocas comerciais.
Para a Frelimo (1978), mesmo não sendo possível determinar, com precisão,
as datas e a duração da expansão Bantu, é possível afirmar que, por volta do ano
1.000 d.C, os macuas e os ajauas tivessem alcançado as áreas nas quais se
encontram, atualmente, isto é, as províncias de Nampula, Zambézia e Niassa. Por
sua vez, os Chonas e os Ndaus das províncias de Manica, Sofala e parte Leste do
Zimbabwe alcançaram o Sul do continente por volta de 1.500 d.C. E por volta do ano
1.600 d.C, os Zulos e os Xosas (da atual África do Sul) chegaram à costa do Natal.
Diante disso, é possível identificar três etapas dos movimentos migratórios no
processo de ocupação do atual território de Moçambique: (i) a chegada dos Khoisan,
primeiros habitantes da região austral de África, incluindo Moçambique; (ii) a vinda
dos hotentotes, mais alto e forte do que os Khoisan, criadores de gado que
usurparam as terras dos Khoisan já estabelecidos na região e (iii) a chegada dos
Bantu que, no seu percurso desde a região dos Grandes Lagos até ao Sul do
continente, tiveram de se confrontar com os Hamitas e outros povos.
Na figura 1, nota-se que a expansão Bantu começou provavelmente do
interior da atual Nigéria e Camarões, região Oeste de África em direção ao Sul e
dispersando-se, tanto para o Leste, possivelmente para a atual Uganda, Burundi,
quanto para o Sul. Na imagem, observa-se que a migração Bantu abrangeu uma
vasta área, desde os Grandes Lagos africanos até ao extremo Sul do continente, na
atual região do Cabo.
48
27 A palavra Rodésia foi usada a partir de 1953 para designar a Federação constituída pela Rodésia
do Norte (atual Zâmbia) e Rodésia do Sul (atual Zimbabwe). A designação Rodésia foi à forma
encontrada pelo império britânico para homenagear um dos insaciáveis representante do capitalismo
colonial na África, sir Cecil John Rhodes (1853-1902). Além de ser o rei dos diamantes; de pretender
anexar Becthonalândia (atual Botsawana), Rhodes desejava construir uma ferrovia que ligasse a
região do Cabo ao Cairo, projeto que não se materializou. Rhodes fundou a Bristish South African
Companhy (BSAC) responsável pela colonização do Zimbabwe, Malawi e Zâmbia (MINILLO, 2011).
28 O grupo étnico Ngoni ou Nvangunes, são procedentes do Norte da região dos Grandes Lagos
africanos. Estes eram pastores e criadores de gado bovino, daí a sua constante migração em busca
de boas terras para o pastoreio. No seu movimento em direção ao Sul do continente estabeleceram-
se na atual região da África Austral provavelmente há cinco séculos.
Disponível em:<http://lifestyle.sapo.mz/moda-e-beleza/casamentos/artigos/o-velho-casamento-nguni-
e-a-tradicao-do-lobolo>, Acesso em: 20. abr. 2017.
50
Portanto, esses e outros exemplos são pistas que nos permitem afirmar que o
culto aos antepassados também tem lugar de destaque no processo da formação
territorial de Moçambique, mesmo que aparentemente ameaçado pelas atuais
práticas perturbadoras da ação capitalista no país, principalmente em Moatize. Na
verdade, é justamente essa resistência demonstrada pelos moradores reassentados
em Moatize, em relação a alguns aspectos simbólicos, como rio, local de lazer e,
sobretudo o local onde invocava os antepassados, que apesar de eles estarem
distante deles, os mesmo permanecem como referências para pensar as antigas
aldeias. Retomar-se-á essa discussão na parte 5.
30 Na tese, o termo primitivo não está sendo usado no sentido de oposição ao evoluído ou moderno
como pretendem as pesquisas do viés eurocêntrico, mas para se referir as sociedades que
precederam aos povos que habitam essas regiões na atualidade.
54
31 A designação de Sofala, Sufãla al-Zandj, isto é, Sofala dos negros; Sufãla al- dhahab, ou seja,
Sofala de ouro, ou mesmo Sufãla al- tibr, portanto, Sofala das areias auríferas, era a nomenclatura
geralmente usada pelos mercadores indianos e persas para designar Sofala e diferenciá-la da cidade
de indiana de Sofala, próximo a Bombaim (MASAO e MUTORO, 2011).
Segundo Souza Cruz (2008), é provável que a designação Sofala, Bilãd al- Sufãla provenha de
Sophira e por aférese e apócope das letras iniciais e final, deu origem a Ophir ou Ofir, uma lenda
relacionada com antiga rainha de Sabá, sito em Ofir. Na tradição oral, diz a lenda que desde o Rei
Salomão esta rainha mandava carregar os barcos de Salomão com ouro e pedras preciosas.
Seja como for, fica evidente para nós que o termo Sofala, hoje Província de Sofala, seu nome está
intimamente ligada à presença árabe e persa em busca do ouro, o que equivale dizer que esse nome
está relacionado à opulência aurífera dessa região, que não só abarcava o atual território de
Moçambique, mas também as terras do Zimbabwe.
57
Pate, Sena e Tete, por sua vez, constituíam os entrepostos que funcionavam
no interior do continente, sobretudo no atual território da Província de Tete. A
fundação da estação de Tete, particularmente, foi de vital importância para a fixação
de comerciantes, aventureiros e desertores portugueses que, sendo mandatários do
rei ou agindo por conta e risco próprio, estabeleceram-se na região do vale do
Zambeze32, em busca das minas de ouro da rainha de Sabah. Mais tarde, esses
aglomerados deram lugar aos prazos33 da coroa (ISAACMAN e ISAACMAN, 1991,
MASAO e MUTORO, 2011).
De acordo com Ferreira (1982), os entrepostos comerciais são produto direto
da procura do ouro relacionado com o expansionismo que caracterizou as dinastias
persas dos Sassanidas (226-640 d.C), durante a qual a ourivesaria atingiu
considerável desenvolvimento. Somente a partir desse período, a dinastia
Sassanidas passou a controlar efetivamente a produção na costa oriental africana.
Segundo o mesmo autor, o dinar de ouro encontrado em Kilwa, as descrições
feitas pelo viajante Al-Masudi sobre o Zanzibar ou terra de Zanj, ao descrever a rota
Sul de Sofala, por exemplo, comprovam os contatos comerciais entre a costa
oriental da África e os povos asiáticos. Os grandes ou pequenos centros comerciais,
criados nessa época para facilitar a troca de ouro, marfim, peles de animais, prata e
cobre por especiarias asiáticas: canela; cravo; panos; missangas, porcelanas e
outros objetos de valor, possibilitaram a formação de uma aristocracia africana que,
com o tempo, foi se consolidando e povoando as regiões do interior do continente.
Esse intercâmbio foi responsável também pela ocupação do interior da
Província de Tete, o avanço gradual em direção à atual região Sul de Moçambique,
a formação na região Sul da Província de Nampula, do sultão de Angoche, um dos
focos de resistência à ocupação colonial portuguesa entre os séculos XIX e XX.
32 O vale de Zambeze corresponde a uma extensa área inundada pelas águas do rio Zambeze que
vai desde o Zumbo, na fronteira com a Zâmbia, passando pela cidade de Tete e por Sena até atingir
o Oceano Índico. Essa região constituiu o principal bastião dos colonos portugueses e dos
comerciantes árabes.
Cf. MAIA, António A. Mudanças sócio-culturais entre os nyungwe do vale do Zambeze: resistências,
rupturas e continuidades na estrutura social. 2015. Tese de Doutorado em Antropologia Social,
Universidade de São Paulo.
33 O sistema de prazos se constituiu como uma forma de administração e sistema de colonização
que consistia no arrendamento da terra pelo prazo de três gerações (daí a designação) ficando o
prazeiro responsável e senhor das terras e das populações residentes nessas terras. A tarefa
fundamental do prazeiro era submeter às populações e organizar forças militarizadas para defender
os interesses da Coroa portuguesa (CABAÇO, 2007).
58
Todavia, foi somente a partir de 1498, no início do século XV, que atuação
imperialista europeia iniciara a sua longa marcha na configuração territorial do atual
Moçambique. A passagem de navegadores portugueses pela costa índica e o
estabelecimento de bases navais de apoio à circulação, em direção as Índias,
marcou o inicio das relações entre a costa oriental africana e o mundo europeu.
Relações essas que, nos séculos seguintes, seriam garantidas, tanto pela
compulsória retirada de africanos para serem vendidos como escravos, no Brasil, em
São Tomé e Príncipe, Cuba e em outros países, como pelo saque indiscriminado de
matéria-prima para dinamizar o projeto de industrialização europeia na fase inicial.
Essa etapa inicial da ação imperialista europeia na África representa, em todos os
sentidos, aquilo que Karl Marx denominou de acumulação primitiva do capital.
Para Marx (1977, p.102)
A descoberta do ouro e da prata na América, a aniquilação, escravização e
enfurnamento da população nativa em minas, os primórdios da conquista e
da pilhagem da Índia e a transformação da África em uma reserva para a
caça comercial a peles negras, todas essas coisas caracterizam a aurora da
era da produção capitalista.
José Luís Cabaço relaciona a mudança nas ralações com o conflito que
deflagrou entre os portugueses e os mercadores swahilli pelo controle do comércio e
das rotas comerciais. Para Cabaço (2007, p. 28, grifos do autor),
No Oceano Índico, até então dominado por navegadores e mercantes
swahilli, árabes e indianos, novos interlocutores se inseriram na disputa por
rotas marítimas vitais de acesso ao Oriente e por posições privilegiadas
para o comércio de produtos locais (produtos agrícolas "exóticos", marfim,
penas de avestruz, ouro, prata, especiarias) e, mais tarde, para o tráfico
humano, que se tornaria atividade dominante.
Portanto, em função do que foi apresentado, é bastante claro que foi o ouro e
outros metais preciosos que obrigaram a Europa, sobretudo Portugal, a estender
seus tentáculos além de suas fronteiras, o que, em parte, condizia com a corrente
econômica dominante na Europa do século XV a XVIII. Foi à procura do ouro; da
prata; do cobre, do estanho e de outros metais preciosos que povoavam o
imaginário da riqueza europeia da época, que levou os portugueses e os espanhóis
a aventurarem-se, por exemplo, pelo continente americano e africano.
Por isso, o ingresso dos portugueses como novos atores, no secular comércio
à longa distância, com a costa oriental africana, anuncia uma nova etapa na história
da mineração no que seria Moçambique atual, assim como na configuração de seu
território. A partir desse período, a extração do ouro passa a ser uma atividade mais
intensa, consistindo não só na coleta das pepitas de ouro à jusante dos rios, mas
também na abertura de poços e a exploração de novas frentes, mesmo que de
forma bastante rudimentar. A mineração do ouro passa a ser controlada não só
pelos chefes africanos, mas também por comerciantes e aventureiros portugueses,
às vezes em aliança com os chefes locais, ou agindo por conta própria, já que os
primeiros passaram a controlar algumas feiras de ouro localizadas no interior de
Sofala e Tete.
Nesse período, enormes quantidades de ouro foram adquiridas e enviadas
para as Índias; foi construído um considerável número de fortificações com vista a
repelir os ataques protagonizados pelos árabes, ou mesmo as resistências infligidas
aos portugueses pelos chefes locais para impedir o acesso destes às regiões
auríferas. Desse modo, a construção e a destruição deste ou daquele forte; a
ocupação da Ilha de Moçambique pelos portugueses, o envio de ex-prisioneiros,
degredados, aventureiros, delinquentes para o interior de Tete que criaram uma das
mais importantes feiras de ouro, bem como a nomeação de capitães, preenchem o
64
Foto 1 - Vista parcial do Jardim das Memórias, local de partida dos escravos
no período colonial, Ilha de Moçambique
34 Para Santos (2008) a interdisciplinaridade deve ser pensada a partir da aglutinação de diversas
disciplinas em torno de um mesmo fim. Ou seja, a interdisciplinaridade não deve ser confundida com
a multidisciplinaridade, pois, enquanto a primeira se refere a uma ligação entre conteúdos ou
disciplinas diversas em torno de um mesmo objetivo de estudo, a segunda diz respeito a uma
possível colaboração multilateral de diversas disciplinas sem, contudo, se assegurar a integração
entre essas disciplinas.
65
Por outro lado, a criação das feiras no interior (Massapa, Luanze e Manzovo),
nas atuais províncias de Manica e Tete; a derrota infligida aos portugueses pela
tropa do império de Mwenemutapa em 1571 e 1574; demonstra o interesse de
Portugal em conquistar por via da força e submeter os africanos, com vista a ter o
acesso às fontes de ouro, do marfim e o monopólio na captura de escravos.
Por sua vez, a aquisição de direitos sobre as terras e minerais na Zambézia,
em Tete e Manica em 1607 e sua posterior retomada em favor dos chefes africanos;
a oficialização dos designados prazos da Coroa e as várias tentativas de sua
dissolução; a crescente inserção e povoamento de Tete, a partir do casamento entre
os prazeiros e as mulheres nativas, fortalecem a ideia de que a ocupação colonial e,
sobretudo o acesso às regiões com riqueza mineral, foi um processo que envolveu
sangrentas batalhas e sutis jogos de diplomacia entre os portugueses e os lideres
africanos. O quadro 2 apresenta a síntese das características desse período.
métodos que Portugal usou para monopolizar o comércio e se apossar das fontes de
obtenção do ouro, do marfim, da madeira e da caça aos escravos, comprovam a
vitalidade desse negócio para a manutenção do status de Portugal no cenário
político e econômico da Europa.
Fruto disso e, acrescido à forma de atuação de outras potências europeias na
região Austral de África (Inglaterra, França, Holanda), bem como a intensificação da
caça aos escravos, houve um progressivo avanço em direção ao Sul de
Moçambique, portanto, ao Norte do Transvaal. A par disso, a derrota de
Soshangane e a migração Nguni do Natal para as terras mais ao Norte, possibilitou
a ocupação da Baía de Maputo e a fundação de Lourenço Marques, atual Maputo.
Com efeito, o fim do império de Mwenemutapa, o surgimento do império de
Gaza e a transferência da capital da Ilha de Moçambique para Manjacaze, atual
Província de Gaza, garantiu a incorporação do Sul de Moçambique que, até então,
era pouco disputado. Portanto, as sucessivas batalhas entre os portugueses e os
guerrilheiros do império de Gaza, anunciam uma nova etapa, que se caracterizou
pelo aumento da presença colonial em Moçambique, resultando em disputas mais
abertas pelo controle do território. Essas disputas preencheram o mapa da
configuração territorial de Moçambique, ato que se enceraria após a Conferência de
Berlim.
As palavras escritas por um líder tribal numa carta enviada a Von Wissmann,
alemão que liderava as campanhas de espoliação de terras na região oriental,
provavelmente na atual Tanzânia, demonstram a relutância e o rígido
posicionamento de não submissão com que alguns chefes africanos afrontavam o
sistema colonial. Essas e outras formas de insubordinação dos líderes africanos
68
35 Para Marx (1977, p.11) a mais-valia é obtida a partir da dedução do custo das matérias- primas,
das máquinas e do salário, o restante do valor da mercadoria constitui a mais- valia, na qual estão
contidos todos os lucros.
71
continental do globo foi distribuído ou redistribuído, como colônia, entre meia dúzia
de Estados.
Embora seja certo que a pauta principal da Conferência de Berlim eram
questões relativas ao comércio e a navegação, é preciso notar que, implícito a esse
imperativo da regulamentação do comércio, estava à necessidade de determinar os
limites de atuação de cada país europeu presente no continente, como forma de
evitar possíveis conflitos entre eles. No cerne dessa reunião, subjazia, portanto, a
necessidade de proceder à divisão territorial de África entre os países europeus,
configurando, desse modo, colônias e colonizador, o capitalismo monopolista,
gênese do colonialismo, conforme assinala Hobsbawm (1988).
Para Cabaço (2007), a realização da Conferência de Berlim visava evitar as
áreas de atrito entre os interesses das potências imperiais, isto é, uma nova
iniciativa para um acordo sobre a dominação do continente africano. Seja como for,
o certo é que, depois dela, ficou estabelecida a obrigação dos países europeus com
possessões na África, procederem à ocupação efetiva, isto é, a presença política e
administrativa, inaugurando assim, a era da diplomacia dos recursos africanos, em
função do estabelecimento dos limites entre as possessões coloniais.
Portanto, coube a Conferência de Berlim regulamentar, entre outros aspectos,
o livre comércio e a navegação na bacia do rio Congo e do Níger, principal canal de
acesso ao interior do continente africano. Contudo, nessa regulamentação, aspectos
como a sobreposição de interesses coloniais em alguns territórios adjacentes,
parece não terem sido tratados adequadamente, fato que quase sempre resultou em
conflitos opondo dois ou mais países europeus.
Por isso, pouco tempo depois dessa Conferência, alguns países com
territórios coloniais na África continuavam dialogando com vista a construir
consensos em relação às áreas de contato entre seus territórios. Tais diálogos nem
sempre tinham desfecho amigável e, com frequência terminaram em disputas ou
conflitos que exigiam a mediação de outros países europeus. É exemplo disso, a
disputa entre Inglaterra e Portugal, primeiro pela posse da Baía de Lourenço
Marques e, segundo no contexto do Projeto Mapa cor de rosa.
Com o avanço do imperialismo britânico na África Austral, Cecil John Rhodes
pretendia construir uma ferrovia que ligasse as colônias do Cabo (África do Sul) e do
Cairo (Egito); enquanto isso, Portugal almejava construir também uma linha férrea
que ligasse as colônias de Moçambique e Angola, portanto, o chamado Projeto
72
Mapa cor de rosa (Figura 3). Os dois projetos, símbolos do imperialismo europeu na
África, além de representar áreas de fricção, em razão do choque de interesses
coloniais, eram projetos mortíferos, no sentido de que sua construção implicaria a
retirada compulsória da população nas áreas do traçado, bem como o recrutamento
compulsivo de homens, mulheres e crianças para trabalharem na construção desses
empreendimentos.
Fonte: http://knoow.net/wp-content/uploads/2016/02/mapa_cor_de_rosa.jpg
Não obstante essa observação, foi, a partir do tratado luso-britânico (que mais
significou a imposição dos interesses ingleses aos portugueses, do que
propriamente um acordo entre as partes) que se passa a falar da colônia de
Moçambique e, consequentemente, do território de Moçambique, tal como ele é
conhecido atualmente. Ou seja, foi, com base nesse tratado, que Portugal passou a
reconhecer as suas possessões e abandonando, assim, aquelas áreas que os seus
interesses conflitavam com os interesses do imperialismo britânico.
A partir daí, o território de Moçambique passa a ser, delimitado ao Sul, pela
Baía de Maputo, ao Norte, pela margem Sul do rio Rovuma, a Leste, pelo canal de
Moçambique e ao Oeste, pelo Zimbabwe (Mapa 1). Atualmente, Moçambique possui
onze províncias divididas em Distritos, Postos Administrativos e Localidades.
Conforme, se disse no início, o traçado dessas fronteiras simbolizou a concretização
dos interesses europeus e não efetivamente a vontade dos povos africanos
subjugados. Esse processo foi, sem dúvidas, fruto da chamada corrida imperialista,
marcada por tensões entre os principais atores do imperialismo europeu (UEM,
1988).
74
Além disso, o traçado das fronteiras não produziu por si um Estado, nem
delineou os caminhos, tampouco o tipo de sociedade que seria erigido.
Abrahamsson e Nilsson (1994, p. 249) ao analisar a complexidade e as tramas
desse processo, explicam que "as fronteiras geográficas dos estados africanos do
presente não refletem qualquer desenvolvimento histórico africano. Quase todos os
estados africanos são artificiais e o seu aparecimento formal não tomou em atenção
às realidades africanas".
Assim, a artificialidade dos Estados africanos justifica, em parte, um
significativo número de conflitos étnicos ou de guerras civis que deflagraram após a
independência de alguns países africanos. Tais conflitos, embora rotulados de
guerras étnicas, sabe-se que tem no seu bojo a ação imperialista do ocidente que
busca o tempo todo manter o controle das regiões produtoras de commodities
necessárias ao processo de reprodução ampliada do capital.
Para Newitt (1997, p. 321), o traçado das fronteiras foi uma ação falida, visto
que não houve critérios ou mecanismos claros que foram considerados. Portanto, no
desenho das
Fronteiras de África mostraram muitas vezes mais boa vontade do que
conhecimento do terreno africano. As linhas de fronteira seguiam por vezes
os rios ou bacias hidrográficas, quando se conheciam, mas com maior
freqüência os desenhadores nos Ministérios dos Negócios Estrangeiros
tinham de recorrer às linhas retas para preencherem as lacunas nos parcos
conhecimentos reais.
75
37 De acordo com Cabaço (2007, p. 91), o mussuco era a contribuição tradicional que as famílias
pagavam anualmente ao mambo, o chefe das terras, e que, após a ocupação, passou a designar o
"imposto de palhota", imposto de capitação pago ao prazeiro e, mais tarde, ao Estado colonial.
81
38 De acordo com AIE (2016) a África do Sul ocupa a nona posição na lista dos 15 países do mundo
com maiores reservas de carvão mineral. Estima-se que este país tenha um total de 30.1 milhões de
toneladas de carvão mineral, ou seja, 3,5% das reservas mundiais. Segundo o mesmo Instituto, o
carvão será a fonte de energia mais usada nos próximos dez anos superando o petróleo. Essas
previsões nos instigam a pensar os conflitos socioambientais que ocorreram em alguns países como
Moçambique, gerados pela busca dessa fonte de energia.
89
elemento chave para analisar o capitalismo no século XXI. Além do mais, a greve
que envolveu não só trabalhadores sul africanos, mas também de outras
nacionalidades, revela que o caráter heterogêneo da classe trabalhadora não inibe a
formação da consciência política de classe.
A mobilidade do trabalho para as minas e plantações na África do Sul carrega
consigo tempos históricos distintos, mas sempre atravessado por uma forte carga
simbólica em relação a esse tipo de trabalho. No Sul de Moçambique, a migração
para a África do Sul foi e de fato, ainda continua sendo, uma das formas pelas quais
os homens conseguem amealhar os consensos sociais (MENDONÇA, 2004)
necessários para a constituição de famílias. Ela é parte da prática cotidiana e
também elemento fundamental na formação social e territorial dessa região.
Talvez seja por essas razões, portanto, a "predisposição" do Sul de
Moçambique para se proletarizar que fez com que Portugal apostasse mais nessa
atividade e pouco menos em relação à migração para a Rodésia do Sul, embora
também tenha sido objeto de tantos regulamentos, conforme assinalamos. Com
efeito, os governos coloniais de Moçambique e da África do Sul assinaram várias
convenções que tinham por objetivo regular e aproveitar ao máximo as reservas de
mão de obra disponíveis.
Com o Modus Vivendi, por exemplo, ficou garantido o recrutamento da força
de trabalho, bem como o compromisso de que 50% da mercadoria e do tráfego do
Transvaal, ou de outras regiões mineiras deveria ser feito através do Porto de
Lourenço Marques. Com base nesse acordo foi introduzido também o sistema de
pagamento diferido39 do salário do trabalhador das minas, que, no entender do
governo sul africano, deveria ser voluntário e não compulsória, conforme propôs
Portugal.
De fato, na sua atuação Portugal sempre procurou extrair o máximo de
vantagens, bem como atenuar e/ou evitar possíveis disputas entre as duas
concorrentes pela mão de obra moçambicana. Portanto, antes da mecanização da
agricultura rodesiana, a concorrência pela força de trabalho, era tal que, em 1901 a
Rhodesian Labour Board (RLB) negociou junto da WNLA a partilha das áreas de
recrutamento em Moçambique. De acordo com Neves (1991), à luz desse contrato,
39O sistema de pagamento deferido consistia no pagamento em divisas ao governo colonial, de 50%
do salário do trabalhador das minas, e o resto seria pago em escudos, após o regresso a
Moçambique e descontados os valores referentes ao imposto do contratado (HEDGES, 1999).
90
40 Escudo é a moeda portuguesa usada durante muito tempo na colônia de Moçambique. Antes de
1930, a circulação do Escudo era feito em paralelo com a Libra e o Xelins, porém, a partir desse ano,
a circulação de outras moedas passou a ser interdito no território de Moçambique.
92
41 O Brado Africano jornal do movimento Grêmio africano fundando em 1919, pelos irmãos João
Albasini e José Albasini, inicialmente não se identificou muito com a luta do povo moçambicano,
sobretudo o proletariado presente em Lourenço Marques. No entanto, a partir de 1933, o Brado
Africano passou a tomar partido e a considerar legítima a greve e as reivindicações da classe
trabalhadora. Na edição do dia 9 de setembro desse ano, por exemplo, escreveu: "tinham e tem
razão para se revoltar contra esse corte, que outra coisa não representa senão o fazerem economias
à custa do preto. Bom seria irem pensando muito bem no que sucederá amanhã, quando o preto
estiver mais unido, instruído e conhecendo os seus direitos e os seus deveres. Nesta altura o fechar
as portas será o pior serviço que se poderá fazer aos que, cheios de razões e com barriga vazia, se
encontrem frente a frente com os patrões da ponte cais, agaloados, bem comidos e cheios de
dinheiro" (CHILUNDO et al,1993, p. 54).
93
44 "O trabalho é a missão mais moralizadora, a escola mais instrutiva, a autoridade mais
disciplinadora, a conquista menos exposta a revoltas, o exército que pode ocupar os sertões ínvios, a
única polícia que há- de reprimir o escravismo, a religião que rebaterá o maometanismo, a educação
que conseguirá metamorfosear bruto em homens. O selvagem que pegou no trabalho rendeu-se
cativo à civilização; ela que o discipline" (ANTÓNIO ENES, 1971 citado por CABAÇO, 2007, p.145).
97
45 Cabaço (2007) explica que o recolher obrigatório passou a vigorar a partir de 1960. E essa era
forma de controle introduzida para vigiar os negros nas cidades. Portanto, depois das 21 horas
qualquer individuo africano que circulasse pelas ruas era parado pelos policiais e tinha de provar a
sua condição de assimilado ou justificar sua situação.
46 Joseph Ki-Zerbo ou Ki-Zerbo, nasceu em junho de 1922 na Burkina Faso e faleceu em dezembro
de 2006. Político, historiador, professor e militante pelo Parti pour la Democratie et Le Progrèss
(PDP). Após graduar-se em História na Universidade de Sorbonne em Paris em 1955, regressou a
Conakry, capital de Burkina Faso onde foi politicamente ativo até a data da sua morte.
Ki-Zerbo deu grande contribuição na elaboração da história da África Negra, ou seja, a história dos
povos africanos do Sul do Saara. De entre as suas publicações destaca-se: A história da África Negra
em 1972 reeditado em vários volumes e traduzido em várias línguas, inclusive em Português.
98
sistema vigente. Por exemplo, a expressão Nyungwe "azungu ndi madzi, ife ndife
ncenga", ou seja, os brancos (europeus) são como água que passa e nós como
areia que fica representava entre os Nyungwes o entendimento sobre o caráter
passageiro do colonizador. Tal provérbio exortava também a união entre os nativos
por forma a desbaratar as tentativas de divisão e sujeição, como práticas coloniais.
Na mesma pesquisa, Maia questiona a natureza dos azungu metaforicamente
designada água que passará e diz
Mas que tipo de brancos é esse metaforizado? São os do sistema colonial
que chegaram e dividiram as populações, apropriaram-se das terras e dos
seus habitantes tornando-os objetos de compra e venda no sistema
escravagista e no fim foram embora deixando um desequilíbrio na estrutura
social local (MAIA, 2015, p.102).
47 O Nyau também conhecido por Gule Wankulo ou grande dança, é uma dança praticada por vários
grupos étnicos das regiões limítrofes entre Moçambique, Malawi e Zâmbia. Sua origem remota à
formação do Estado Undi no século XVI e foi desde cedo associada à manifestação da insatisfação
popular em relação ao povo conquistador. Disponível em: <http://mozambique-
music.com/sites/pages/articles/mmm049_noticias.htm>, Acesso em: 18 maio 2017.
100
48 Domingues (2005) propõe que a negritude na sua fase atual deve compreendida a partir de três
dimensões: política, na qual a negritude serve como subsídio para a ação do movimento negro
organizado; ideologia, entendida como processo de aquisição de uma consciência racial e cultural,
vista como tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz africana.
101
De fato, foi nesse congresso que ficou definida a linha de orientação político-
ideológica da FRELIMO que, até então, se situava somente no ódio ao colonialismo
e à necessidade de destruir a estrutura colonial. No que diz respeito à linha de
orientação do partido, Newitt (1997, p.466) entende que, no início, não se verificou
nenhuma orientação concreta da Frelimo.
Quando tomou o poder em 1975, a Frelimo dispunha já de uma série de
políticas e de uma análise da tarefa a realizar que refletia as ideologias
revolucionárias da década de 1960. Porém, somente em 1977, no seu III
congresso é que se declarou um partido marxista-leninista.
Moçambique. Depois da morte de Mondlane, Samora Machel passou a dirigir a FRELIMO e a luta de
libertação nacional. Machel conhecido entre os moçambicanos como o "homem do dedo" era um
homem integro, coerente e eloquente em seus discursos. Entre vários slogans desse carismático e
eterno defensor das causas do povo pode-se citar "as crianças são flores que nunca murcham".
Cf. Biografia de Samora Moises Machel. Notícias de outubro de 1986. Disponível em:
<https://www.caicc.org.mz/.../Ano%20Samora%20Machel/.../Biografia%20Samora%20...> Acesso em:
18 maio 2017.
105
52 O homem é um elemento concreto, isto é, com uma existência empírica. Sendo assim, a análise
do conceito de homem deve partir da premissa única e irrefutável de que o homem existe, ou seja,
"os indivíduos são reais, ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já
encontram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são, pois
verificáveis por via puramente empírica. A primeira condição de toda história humana é, naturalmente,
a existência de seres humanos vivos." Estes seres humanos sendo seres naturais, com vida são
regidos por leis naturais, são essas que regulam o funcionamento de seu corpo e independem da sua
vontade e opinião. Cf. MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.10.
108
53 De acordo Genro (1982, p. 45) a política das nacionalizações visava entre outros objetivos: a
liquidação de uma base econômica importante do poder da burguesia; a liquidação do racismo e da
discriminação social, permitindo o povo tomar a cidade e viver nela; dar início à materialização do
principio fundamental do direito à habitação e organizar no seio da cidade, uma verdadeira vida
coletiva, criando a base para o exercício do poder democrático popular que é o alicerce político da
nossa sociedade.
109
países eram responsáveis por cerca de 40% das exportações e 31% das
importações do país. Portanto, essa subordinação resultava principalmente do fato
de que grande parte das receitas para o funcionamento do Estado colonial vinha dos
contratos de fornecimento de mão de obra para as minas sul - africanas.
Por isso, a inversão dessa ordem era uma questão central para o Estado e
entre as lideranças da Frelimo, conforme se pode notar no discurso seguinte
Recusamo-nos a ser eternos fornecedores de matéria-prima. Recusamo-
nos que permaneçam as velhas relações coloniais, ainda que com nova
roupagem.
Recusamo-nos a participar da divisão internacional do trabalho numa
posição subordinada, pagando mais por produtos industrializados e
vendendo a nossa força de trabalho a preços cada vez mais baixos
(MACHEL citado por HALON, 1984, p. 82).
que têm sido sistematicamente debatidos, tanto entre os acadêmicos como pelas organizações da
sociedade civil. Em 2015, por exemplo, a dependência externa do país em relação à ajuda externa
era de aproximadamente 25% do OGE. Ou seja, 25% das despesas do Estado seriam financiados
pela ajuda externa. De fato, com o corte da ajuda externa para o Orçamento do Estado verificado no
início de 2016 devido à descoberta das dívidas contraídas pelo governo sem autorização da
Assembleia da República, o Estado tem funcionado com algumas dificuldades. Grande parte dos
projetos diretamente financiados pelo orçamento do Estado foi interrompida e mesmo o pagamento
dos salários dos funcionários públicos é feito com algumas dificuldades, porém, tem sido pago.
Disponível em: <http://www.voaportugues.com/a/orcamento-mocambicano-continua-muito-
dependente/2826236.html> Acesso em: 10 maio. 2017.
111
55 Assim como o PPI, o PEC que mais tarde passou a denominar-se Plano Económico e Social (PES)
era um instrumento importante para a política externa comercial do país. Era ele que garantia as
relações, os acordos de cooperação com os países socialistas e buscava incessantemente pelas
linhas de crédito com taxas de juro mais baixo e com boas condições de pagamento (MOSCA, 2005).
112
56 Curandeiro nome atribuído a pessoa que faz remédios para diversas doenças geralmente em
regiões de difícil acesso aos cuidados médicos. Os remédios são fabricados com cascas e folhas de
plantas de forma artesanal.
Atualmente, há uma tendência deliberadamente ocidental de considerar o curandeiro charlatão, falso
ou mentiroso. Mas, como se disse, tais práticas são parte da vida cotidiana do povo africano,
inclusive o povo moçambicano. São anteriores à chegada da medicina dita moderna e o
conhecimento ou prática é transmitido de geração em geração.
114
casamento. No início, geralmente essa gratificação era pago com cabeças de gado bovino e,
atualmente ele é pago em dinheiro. O lobolo é majoritariamente praticado no Sul e Centro de
Moçambique, sobretudo, em famílias patrilineares.
115
uma vez que dependia dos Portos moçambicanos para suas exportações e
importações. Portanto, razões para se opor à consolidação desse sistema na região.
Apesar dos potenciais elementos de conflito, o que colocava barreiras em
médio prazo para o crescimento nacional, o país registrava assinalável crescimento,
como resultado do esforço combinado entre os países do Leste e o Estado. Prova
disso, a economia começou a estabilizar-se e, entre 1978 e 1981, os níveis de
produção e exportação voltaram a aumentar. Nesse período, a produção e as
exportações nacionais cresceram 80%; o número de ingressos nas escolas duplicou
e cresceram as campanhas de alfabetização e educação de adultos
(ABRAHAMSSON e NILSSON, 1994; CHICHAVA, 2003).
No setor da educação, o número de alunos matriculados aumentou de
700.000 para 1.276,000 alunos nas escolas primárias e de 20.000 para 135.000
alunos no ensino secundário. Portanto, esse aumento revela, em parte, que "as
campanhas de alfabetização e de educação de adultos alcançaram resultados
significativos e encorajadores. De fato, só em 1981, estavam inscritos nesse
subsistema de ensino meio milhão de pessoas, dos quais 40% eram mulheres"
(NEWITT, 1997, p. 471).
Na saúde, o Estado privilegiou a medicina social e preventiva e em 1979 foi
realizada uma das campanhas de vacinação mais bem sucedidas de sempre. Com
efeito, a campanha nacional de vacinação contra a varíola, o tétano e o sarampo
realizada nesse ano, abrangeu perto de 90% da população. Paiva (2000, p. 30),
assinala que a "Frelimo conseguiu progressos nas áreas de saúde e da educação. A
taxa de analfabetismo regrediu em 20% entre 1975 e 1982; a cobertura sanitária
aumentou e os programas de vacinação que decorreram em todo o país foram
apontados como programas modelo para muitos países africanos".
Portanto, os avanços registrados nos setores de educação e da saúde
refletem os esforços do Estado, o engajamento popular, bem como o apoio fornecido
pelos países do Leste. Abrahamsson e Nilsson (1994) destacam principalmente os
avanços verificados na alfabetização de adultos. Para eles, a Frelimo e o Estado
lograram resultados positivos em vários setores econômicos e sociais. Por exemplo,
o sistema educacional expandiu-se com o aumento de número de professores de
10.000 para 20.000 até 1982. E em cinco anos, o analfabetismo regrediu de 93%
para cerca de 70%.
116
60 Christian Geffray (1954-2001) produziu uma vasta bibliografia sobre Moçambique e Brasil. No país,
Geffray trabalhou no período entre 1982 a 1986, exatamente na época do reinício da crise econômica
e política, bem como do recrudescimento da guerra civil. É provável que o interesse dele pela
antropologia do povo mácua tenha se forjado nesse tempo, por sinal um dos mais turbulentos do
Moçambique pós-colonial.
Geffray buscou explorar outras dimensões que pudessem ajudar na compreensão da guerra civil
(1976-1992) moçambicana. Ou seja, transpôs a leitura clássica da guerra fundada na confrontação
Leste- Oeste, explorando também a dimensão antropológica da mesma que foi a que em parte
contribuiu para o avanço do conflito no território nacional.
Baseando-se no conhecimento sobre as sociedades matrilineares no Distrito de Eráti, em Nampula,
estudou a relação entre o parentesco e a organização social do qual resultou a sua tese de doutorado
intitulado Travaill et Symbole em Pays Makhuwa em 1987 (FLORÊNCIO, 2002).
119
a incompetência, a burocracia, a indisciplina e, preguiça, quer dos agentes do Estado, quer do setor
privado- quase inexistente. Portanto, "após visitas relâmpagos a instituições de Estado, fábricas,
comércio geral e mesmo alguns restaurantes, Samora Machel decidiu tomar algumas medidas de
visão. Por exemplo, as lojas do povo foram liberalizadas (FERRÃO, op.cit., p.47, grifo do autor)".
Cf. FERRÃO, Virgílio. Compreender Moçambique. Maputo: DINAME, 2002.
62 Metical é a unidade de moeda em uso nas transações internas em Moçambique, seu símbolo é MT.
A moeda nacional foi criada no dia 16 de junho de 1980 em substituição do escudo português que até
então era a moeda em circulação. A criação do metical foi antecedida pela criação do Banco de
Moçambique em maio de 1975. Assim, US$ 1 equivale a 60.80MT, referente à taxa média de câmbio
no dia 19 de maio de 2017 (BANCO DE MOÇAMBIQUE, 2017).
121
63 Nesse período foi criado o Imposto de Rendimento de Pessoas Singulares (IRPS), o Imposto
sobre o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), além do Imposto de Pessoal Autárquico (IPA) que
já vinha sendo cobrado antes do PRE e do PRES.
123
Num contexto mais amplo e de longo prazo, além do elevado fardo social e a
desarticulação social subjacente, em função do caráter anti-social do PRE, sua
implementação concomitante ao processo de privatização, lançou a semente de um
dos maiores problemas, que assola a sociedade moçambicana atual - a corrupção.
Tais esquemas, com frequência, aconteceram sob as ordens das IFIs. É exemplo
disso, o processo de privatização do Banco Comercial de Moçambique, bem como a
imposição da desregulamentação na indústria do caju (HALON e SMART, 2008).
Portanto, com o aumento das convulsões sociais, como resultado da
degradação das condições de vida, tanto no campo, assim como na cidade
aumentaram também as críticas sobre os efeitos sociais do PRE. Pesquisas
realizadas no âmbito do PRE como, por exemplo, a Dimensão Social do
Ajustamento (DSA), destacam o caráter anti-social do PRE e sua relação com a
degradação social. Ou melhor, o PRE não foi capaz de melhorar as condições
sociais da população urbana principalmente, enfim, é o designado crescimento
empobrecedor, no dizer de Oppenheimer (2001).
Diante disso, foram feitos alguns reparos, bem como a introdução de
questões sociais nos escopos do PRE. Portanto, buscou-se com essa medida,
"humanizar" o PRE e, assim surgiu o Programa de Reabilitação Econômica e Social
(PRES).
124
evidente que a componente social nos programas de ajuste estrutural não é genuína
deles e, sim emenda, arranjos incorporados nos escopos iniciais.
Desde então, criaram-se instituições e programas para assistência dos grupos
mais carenciados, sobretudo na cidade de Maputo. Com efeito, definiram-se metas e
grupos alvos desses programas. Por exemplo, no Policy Framework Paper (PFP),
destaca-se o combate à pobreza durante a década de 1990, como o eixo central do
PRES. A partir dele, criou-se a rede de segurança para assistência à população
urbana. Tal rede tinha como objetivos: (i) o fornecimento de milho amarelo
subsidiado por meio do sistema de racionamento alimentar; (ii) o fornecimento de
recursos financeiros complementar destinado à compra de alimentos para às
famílias com mais de seis membros do Agregado Familiar (AFs)64 e dispondo de um
só salário, (iii) o fornecimento de pensão garantindo o mínimo de segurança
alimentar destinada às famílias sem rendimento salarial, cujo chefe de família é
mulher, idoso ou deficiente (OPPENHEIMER, 2001).
Dada a heterogeneidade dos grupos sociais afetados nas principais cidades
do país, sobretudo em Maputo, requeria que os programas de ajuda alimentar
fossem o mais eficiente possível. Para isso, foi criado o Gabinete de Apoio aos
Grupos Vulneráveis (GAPVU); foram realizadas pesquisas com o uso de diversas
matrizes que buscavam a identificação dos grupos alvos, ou seja, os mais
carenciado e vulneráveis. Dentre elas, destaca-se, por exemplo, a pesquisa de
Schubert realizada em 1990 e ampliado nos anos subsequentes, isto é, 1991, 1992
e 1993, cujo objetivo era determinar a linha da pobreza em Moçambique. Portanto, o
levantamento feito pelo GAPVU permitiu o mapeamento dos estratos sociais
considerados vulneráveis e, facilitou sobremaneira o direcionamento da ajuda
alimentar para esses grupos sociais.
Em função dessas reformas, os níveis de carência nas cidades reduziram
relativamente. Oppenheimer (2001) e Mosca (2005) consideram que houve
melhorias em alguns indicadores sociais no período entre 1991 e 1997. Assim,
considerando os resultados dos primeiros dois Inquéritos dos Agregados Familiares
(IAF) realizado entre 1991 e 1997, conclui-se que com o início do PRES a pobreza
64 Conjunto de pessoas que residem no mesmo alojamento, tenham ou não relações de parentesco,
podendo ocupar a totalidade ou parte do alojamento e cujas despesas para a satisfação das
necessidades essenciais são suportadas parcial ou totalmente em conjunto.
Portanto, quando se fala em chefe do agregado familiar refere-se à pessoa responsável pelo
agregado familiar ou aquela que para efeitos, por exemplo, de inquérito ou recenseamento é
indicado-conhecida como tal pelos restantes membros (INE, 2013).
126
65 O conceito de pobreza urbana e sua mensuração exigem várias ponderações. Santos (2009)
chama atenção para a necessidade de compreender que a definição e a mensuração da pobreza
urbana especificamente, é permeada de vários equívocos.
(i) porque os métodos e as estatísticas elaboradas sobre a pobreza, principalmente nos países
pobres refletem uma adaptação dos modelos aplicados nos países centrais, o que nem sempre
condizem com a realidade da periferia; (ii) os próprios critérios de definição dos limites urbanos são
tão numerosos tanto quantos os países que se referem o que não permite qualquer tipo de
generalização; (iii) a repartição setorial, isto é, a divisão da economia em setores primário, secundário
e terciário torna difícil também a mensuração da pobreza urbana.
E, por fim, ele lembra que os diversos conceitos elaborados para explicar o crescimento urbano,
sobretudo, a partir da década de 1950 devem ser analisados a partir das suas raízes, ou seja, com
base "nas condições nas quais os países que comandam a economia global exercem sua ação sobre
os países da periferia, criam uma forma de organização da economia, da sociedade e do espaço,
uma transferência da civilização, cujas bases principais não dependem dos países atingidos. As
raízes dessa crise urbana encontram-se no sistema mundial. É, portanto, nesse nível que se
encontram explicações válidas" (SANTOS, op.cit., p. 30- 32).
127
________________________________________________________________
PARTE 2 DELINEANDO A PESQUISA
_________________________________________________________________
128
Para os materialistas, por sua vez, a matéria tem existência objetiva e, a partir
da prática social pode se chegar à verdade ou ao conhecimento dela. Além disso,
eles acreditavam também que o mundo é cognoscível, porém seu conhecimento é
restrito a um determinado tempo histórico. Portanto, "estas ideias básicas
caracterizam, essencialmente, o materialismo dialético", conforme assinala Triviños
(2009, p. 23). A partir desses campos de pensamento conflitante, nasceram vários
paradigmas interpretativos que embasaram pesquisas e possibilitaram o
desenvolvimento da ciência.
De fato, do positivismo clássico ao neopositivismo; a fenomenologia e
materialismo histórico, a evolução dos paradigmas científicos representa rupturas e
continuidades no edifício da ciência. Kuhn (1975) explica que os paradigmas
orientam as pesquisas, seja modelando-as diretamente, seja por meio de regras
abstratas, daí que sua ruptura significa uma mudança mais ou menos consciente na
direção e na fundamentação de todo o arcabouço teórico, conceitual e técnico.
A partir desse entendimento, fica claro que os debates e os embates teóricos
no caminho da construção do conhecimento científico, ao longo dos tempos,
possibilitaram a constituição de um corpo teórico metodológico mais ou menos
denso que, aglutinando aspectos filosóficos e da prática social, que permite
interpretar a sociedade. Com rastros do idealismo clássico, mesclado com o
socialismo utópico e com forte componente da crítica à economia política, o
materialismo dialético não pretende ser apenas "uma dimensão ontológica, mas
também gnosiológica, uma vez que estuda o conhecimento e a teoria do
conhecimento como expressões históricas" (TRIVIÑOS, 2009, p. 53).
Portanto, amparado nesses pressupostos, buscou-se nessa parte esclarecer
os caminhos metodológicos; as categorias escolhidas; os conceitos utilizados e o
método de interpretação, isto é, apresentamos o "chão" a partir do qual foi
construída a pesquisa que tal como assinala Mendonça (2004) não é uma escolha
vazia de significados. Mas, uma seleção que reflete a prática política e o
comprometimento social do pesquisador; a maneira de ver e interpretar as coisas e
as possibilidades de intervir no mundo por meio da pesquisa.
Partindo desse entendimento, procuramos, sempre que possível, justificar o
porquê da priorização de uma determinada categoria em detrimento de outra ou da
escolha de um conjunto de autores, em vez de outros.
130
66 Ver o item 3.4. Multinacionais e Transnacionais: aspectos conceituais, decifrar para avançar...
132
sociedade civil e, investidores que estabelece mecanismos e níveis de transparência e gestão das
contas do Estado em países ricos em recursos.
68 São componentes das areias pesadas a ilmenite, o rutilo- minerais de titânio e o zircão, sendo esse
último composto do silicato de mineral de zircônio. O rutilo e a ilmenite são usados como matéria-
prima para a produção de dióxido de Titânio (TiO2), metais de titânio e elétrodos para a soldadura.
O zircão é usado como matéria-prima importante na indústria de cerâmica, portanto, usado como
opacificador e componente para a decoração de azulejos de parede, soalho e loiça sanitária. Ele é
também usado na indústria de refração e fundição e para produzir derivados de zircônio de ampla
aplicação (KENMARE, 2011).
133
69 Entre 2008 e 2013 Moçambique recebeu um total de US$ 1, 673 milhões de investimento
estrangeiro, colocando o país no ranking dos cem maiores destinos do IDE em todo o mundo. Desse
montante, perto de US$ 800 milhões foram investidos na pesquisa, desenvolvimento e/ou produção
de recursos minerais incluindo o gás e o petróleo na bacia do Rovuma (WORLD BANK, 2015).
135
portanto, um esforço para a construção daquilo que Bassey (2015, p.12) denomina
lealdade cívica, na qual quem "é contra ou critica as empresas [ou o modelo], é
contra o desenvolvimento e o progresso do país".
Furtado (1978), por sua vez, assinala que o discurso de progresso
apresentado pelos governos, inclusive o de Moçambique, visa satisfazer os grupos
que tutelam a estrutura do poder, sem, no entanto, se distanciarem das aspirações
de todos os grupos sociais. Ou seja, há um esforço no sentido de fazer crer que, a
acumulação por essa via permitirá satisfazer as necessidades das massas e o
contrário implicaria a desarticulação do sistema econômico em baixa de
produtividade e o desemprego em massa. É por isso que Furtado (op.cit. p.64, grifo
do autor) acredita que "a ideia de progresso se constitui numa célula mater de um
tecido ideológico que serve de ligadura entre grupos antagônicos".
Com efeito, a vitalidade da mineração em Moçambique é também justificada
pela ideia de geração de empregos em larga escala, sobretudo para a população
das regiões "hospedeiras" dos megaprojetos. Segundo o governo, a inserção desses
projetos no país permitirá a abertura de mais postos de trabalho e a absorção de
muitos jovens até então, desempregados. Embora isso possa acontecer, é
pertinente lembrar que, dada à natureza intensiva desses projetos (quantidade de
internacional, nas bolsas de valor de Londres e Dublin desde 1994. Até 1987 a empresa designava-
se Kenmare Oil Exploration e sua atividade principal era a exploração do petróleo e do gás. Em
Moçambique, a Kenmare está presente desde 1987, período em que adquiriu a licença para a
exploração do depósito de areias pesadas de Congolone, localizado no litoral Sul da Província de
Nampula.
A exploração dos depósitos de Namalope, Mualadi e Pilivili, nos quais se extrai o minério de titânio do
qual se obtém a ilmenite, rutilo e o zircão, é realizada pela empresa Kenmare Moma Mining
(Mauritius) e, o processamento à jusante é feito pela empresa Kenmare Moma Processing (Mauritius),
todas subsidiárias da Kenmare Resources plc (KENMARE, 2012).
137
72 Sobre as credencias que as empresas apresentam para legitimar sua presença, ver o item 3.4.
138
vinte e cinco anos de estudos moçambicanos, 1980/81 - 2006. Porto: Centro de Estudos Africanos da
Universidade do Porto, 2008.
142
Por esse motivo, acreditamos que essa é uma proposição inicial que terá
desdobramentos futuros. Cabe sublinhar que o levantamento feito reflete, em muitos
aspectos, o que foi possível abarcar e, sobretudo as limitações em realizar
pesquisas em temáticas nas quais a grande parte da produção científica remonta do
tempo colonial ou foi realizada por consórcios transnacionais, estrangeiros ou pelos
órgãos governamentais, como a Direção Nacional de Geologia (DNG). Portanto,
parcela significativa da informação produzida por esses órgãos é de pouca
acessibilidade ou quase não é do domínio público.
No geral, as pesquisas sobre a mineração em Moatize concentram-se em
dois grandes enfoques: geológico (41,1%) e econômico (30,1%) num universo de
setenta e três estudos analisados. Desse universo, 20,5% das pesquisas adota o
enfoque socioambiental, ou seja, aglutina tanto aspectos socioeconômicos quanto
ambientais. O restante adota enfoques que não se enquadram em nenhuma das três
categorias previamente enunciadas; são pesquisas que seguem, por exemplo, a
perspectiva etnográfica.
A partir desse levantamento, foi possível notar o nascimento de um corpo de
pesquisadores moçambicanos das mais diversas escolas de formação, com ênfase
para a escola brasileira, que busca a partir de categorias, como território, espaço e
lugar questionar o status e a validade do padrão de desenvolvimento baseado na
mineração, a partir dos seus efeitos socioambientais negativos e seu potencial para
gerar conflitos. No âmago dessas análises, salientam-se processos como a
Territorialização (Des) territorialização e a (Re) territorialização (TDR)75 dos sujeitos
impactados pela mineração, fruto da ação combinada entre o Estado e os
consórcios transnacionais e como esse pacto interfere no cotidiano e nos meios de
subsistência dessas comunidades.
Portanto, parte dessas pesquisas aponta, por um lado, a necessidade de
superação da visão dominante sobre o desenvolvimento, enviesada, pois ela oculta
as incongruências do modo de produção capitalista. Por outro, ressalta-se que o
neoextrativismo, como modelo de desenvolvimento econômico baseado na
apropriação dos bens naturais cumpre as objetivações do capital, enquanto modo
específico de controle sociometabólico (MÉSZÁROS, 2011).
77 Dados do INE (2016) apontam que dos 26,4 milhões de habitantes, população total de
Moçambique, 17,9 milhões reside no meio rural e vive da agricultura de autoconsumo.
78 A ligação Mwaladzi e Cateme é irregular, sobretudo na época chuvosa. Nesse trecho de
aproximadamente 4 km, o transporte é feito por moto taxistas e cada viagem custa entre 25 e 30
meticais, portanto, o mesmo valor pago no trecho Cateme - Vila de Moatize.
149
79Dissemos exploração industrial, pois entendemos que a população de Moatize, também extrai o
carvão mineral ainda que de forma artesanal. Esse carvão é usado, tanto nos fogões caseiros, como
nos fornos de produção de tijolos, uma das fontes de rendimento da população, sobretudo em
Chipanga e Benga, antigos bairros da população reassentada em Cateme e 25 de Setembro e
Mwaladzi.
153
Doce (CRVD), hoje Vale S.A. "ganhar" o concurso internacional para a exploração
do carvão mineral em Moatize.
Do ponto de vista geomorfológico, o Distrito é caracterizado por um vasto
complexo gnaisse- granítico do chamado cinturão de Moçambique (Mozambique
Belt), do qual sobressaem, em forma de inselbergs, as rochas do pós karoo. De
acordo com Real (1966), esses depósitos do sistema Karoo são constituídos por
uma série tilítica e uma série produtiva, paralelos aos andares Dwyka e a de Ecca,
pertencentes ao karoo inferior. E, as formações sedimentares localizadas nas partes
Oeste da bacia do Karoo de Chicoa e Zumbo, conhecidas por Grés do Cadzi e Grés
do Caramacafuè, compõe o Karoo superior.
Vasconcelos (2005) e Manharage (2014) notam que, a partir do povoado de
Zumbo extremo Oeste da Província de Tete (ver mapa 4), os sedimentos contatam-
se por uma estrutura de falha com as formações cristalinas e cristalofílicas do pré-
câmbrico, formando assim, uma faixa estreita ao Norte do Rio Zambeze.
Assim sendo, a geologia do Distrito de Moatize pertence às formações do
supergrupo do Karoo que no vale do Zambeze, estão localizados em bacias
tectônicas (grabens) dispostos ao longo de todo o Rio. Essas ocorrências estão
relacionadas às bacias sedimentares afins e a superestrutura do Gondwuana, que
constitui um dos registros geológicos de grande importância para o país (GTK
CONSORTIUM, 2006). No mapa 4, observa-se que as formações do grés, silitito,
marga e argilito estão geralmente associados à ocorrência de camadas de carvão e
ocupam a parte Sul do Posto Administrativo de Zobué (PAZ), a parte central do
Posto Administrativo de Moatize (PAM) e toda a faixa Leste do Posto Administrativo
de Kambulatsitsi (PAK).
154
Tete, com destaque para Zumbo, Mutarara, Changara, Cahora Bassa (no qual se
localiza a hidrelétrica de Cahora Bassa)80, Mágoe, Distrito de Tete e Moatize, onde
há maior concentração do carvão, portanto, a bacia carbonífera de Moatize- Minjova.
Nesse sentido, a bacia de Moatize é a maior e a mais importante jazida de
carvão mineral do país, cujas reservas são estimadas em aproximadamente 2,5
bilhões de toneladas; dessas, 850 milhões estão localizadas dentro da concessão
mineira da Vale Moçambique, o que lhe torna o maior projeto estruturante frente a
todos os projetos de mineração que operam na Província de Tete.
Assim, as reservas de carvão mineral, identificadas nessa bacia, colocam o
país numa posição privilegiada, em nível dos países detentores deste recurso
energético no mundo, conforme assinalam Afonso (1993); MAE (2005), José e
Sampaio (2012). Além do carvão, cuja ocorrência é, relativamente, bem conhecida,
em Moatize ocorrem também jazidas de ouro; anortosito; urânio; ágatas; calcite,
chumbo e ferro (magnetita, hematita e apatita); jazidas de coríndon; fluorite;
titanomagnetitas vanadíferas e filões de quartzo carbonatados (sílica).
Portanto, a opulência mineral de Moatize e da Província de Tete justifica, em
parte, o fato de no período entre 2010 e 2014, por exemplo, a Província ter recebido
investimentos estimados em US$ 2.739, 225 mil, dos quais US$ 1.500.000 milhões
foram investidos no setor do carvão, de acordo com o Centro de Promoção de
80 Segundo Tembe (2008) a expressão Cahora Bassa ou Cabora Bassa é mais um dos equívocos
lusos, a partir da palavra nativa Kahoura- Bassa, que significa o trabalho terminou. Essa barragem
erguida sobre o vale do Rio Zambeze na Província de Tete, sua área alagada forma um lago com
uma extensão de 2.700 km² e com profundidade média de 26 metros.
A hidrelétrica tem a capacidade para produzir cerca de 2.000 Megawatts, dos quais 250 são
adquiridos pela empresa pública moçambicana Eletricidade de Moçambique (EDM), 1.100 megawatts
são vendidos para África do Sul, e 400 megawatts para o Zimbabwe. É interessante notar que, essa
hidrelétrica embora se localize dentro do território nacional, todavia, ela não foi pensada para
satisfazer os interesses nacionais, mas para atender as necessidades do capital britânico na África do
Sul. Portanto, mais uma razão para dizer que Moçambique foi desde cedo pensado de dentro para
fora, no sentido de, suas infraestruturas terem sido organizadas para servir os interesses capitalistas
regionais, conforme assinalamos na parte 1.
Deve se notar também que, essa hidrelétrica construída entre 1964 e 1974, isto é, nos dez anos da
guerra de libertação dirigida pela FRELIMO, após a Independência nacional ela continuou sendo
controlada majoritariamente pelo Estado português com 82% das ações e Moçambique com 18%. O
Processo de reversão dessa barragem para Moçambique iniciou em 2005 com a assinatura do
memorando de entendimento e terminou em 2007. À luz desse acordo, o governo português vendeu
65% das ações para o Estado moçambicano, uma operação que custou US$ 1. 074 milhões. E por
via dessa compra, o país detém atualmente 85% do total das ações da hidrelétrica.
Cf. TEMBE, Ademar Arlindo G. Barragem de Cahora Bassa- Relação Portugal/Moçambique:
implicações ambientais e jurídicas. 2008. 172f. Mestre em Ciência Jurídica (Dissertação de
Mestrado). Universidade do Vale do Itajaí, Santa Catarina. 2008.
156
81 O CPI é uma instituição criada à luz da Lei n. 3/93 legislação sobre o Investimento em
Moçambique. Ele é tutelado pelo Ministério da Economia e Finanças, e tem a missão de coordenar os
processos de promoção de investimento em nível nacional.
157
Como dito, os rios que correm no Distrito de Moatize são, na sua maioria, de
regime temporário, ou seja, apresentam grande volume de água na época chuvosa
(entre dezembro e fevereiro) e ficam quase secos na estação seca. Nesse último
período, por exemplo, a população aproveita o leito dos rios para extrair areia que é
vendida aos caminhoneiros que abastecem a cidade de Tete e a Vila de Moatize,
pivôs da expansão urbana que se vivencia nos últimos anos, sobretudo a partir de
2008, fruto da demanda introduzida pelos megaprojetos de mineração. As fotos 3 e
4 mostram como se apresentava o leito do rio Moatize em outubro de 2016, assim
como a extração da areia no leito desse rio.
Já dissemos que desde 2008 Moatize vive um período inusitado em toda a
sua narrativa existencial. O inicio da construção da base logística e a montagem da
planta de processamento do carvão mineral através de um processo clássico de
mineração conhecido como strip mining82, transformou bruscamente a economia, a
82 A mineração é uma atividade que exige métodos e técnicas adequadas a cada tipo de jazida
mineral que se pretende explorar. Isso significa dizer que, o tipo de mineração (subterrânea ou a céu
aberto) é definido pela natureza e, sobretudo a localização do minério. No caso, do Strip mining uma
da variedade da mineração a céu aberto, ela consiste de acordo com Ferreira (2013) em lavra por
tiras, camadas horizontais ou stratabound, com espessuras de minérios menores em relação às
158
paisagem física e social de Moatize, bem como das áreas adjacentes como, por
exemplo, a cidade de Tete. O encontro do "mundo" em Moatize e na cidade de Tete
como resultado do movimento migratório, sobretudo a migração para o trabalho, não
só acelerou a expansão da mancha urbana com todos os efeitos e defeitos para as
duas cidades, mas também agravou o já deficitário acesso ou provimento dos
serviços básicos, como hospital, escola, mercados, entre outros. Por outro lado,
estimulou o aparecimento de infraestruturas e serviços que, embora não sendo de
fácil acesso, por parte da população mais carenciado, contudo, conseguem
minimizar o déficit na oferta desses serviços.
grandes dimensões laterais. Nele o capeamento ou solo superficial não é transportado para um bota-
fora ou pilhas de estéril, mas depositado diretamente nas áreas adjacentes já lavradas.
E no caso de Moatize, a camada Chipanga, principal área de concentração das atividades da Vale
Moçambique e as camadas Bananeira, Chipanga e Sousa Pinto 1, consessionados à ICVL Minas de
Benga, apresentam-se verticalmente o que também poderia ser possível a mineração por bancadas.
Cf. FERREIRA, Leonardo A. Escavação e exploração de minas a céu aberto. 2013. 134f. TCC
(Engenheiro civil), Universidade Federal de Juiz de Fora. 2013.
Cf. DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÂO MINERAL (DNPM). Importância econômica da
mineração no Brasil. Brasília. 2011.
159
Foto 4 - Jovens no leito seco do Rio Moatize; extraem areia para vender, outubro de
2016
83A igreja católica Romana serviu e de fato ainda serve os interesses imperialistas ocidentais. Na
colonização da África, por exemplo, ela foi o carro-chefe desse processo, porque, de um lado,
pregava a fé, o amor e a concórdia, estratégia para converter e tornar o negro dócil e servil, mas por
outro, a mesma igreja autorizava a caça, a captura dos negros por quaisquer que fossem os métodos
para serem vendidos como escravos no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos da América.
160
moçambicanos das suas terras, forçando-lhes a seguir viagens das terras do além,
para os mares do sem fim. Essas viagens, assombrosas, letíferas, dolorosas e
espantosas do capitalismo em sua gênese, conforme assinala Marx (1977),
engendraram povoamentos dispersos ou isolados e uma estrutura social flutuante.
Com efeito, o meio rural moçambicano distingue-se também pelos baixos
índices de acesso a rede sanitária e educacional (a taxa de analfabetismo em todo o
país é de 50,4%); uma estrutura familiar nuclear, isto é, composto por pai, mãe e
filhos, dirigido por homens, cuja atividade econômica e de reprodução social é a
agricultura; os Agregados Familiares (AFs) são majoritariamente compostos por até
7 pessoas e uma percentagem considerável (27,3%) da população não professa
nenhuma religião. Esse panorama, embora se refira ao ambiente rural do país como
um todo, reflete, peculiarmente, a estrutura e as formas de reprodução social das
famílias no meio rural de Moatize, conforme veremos a seguir. A tabela 1 apresenta
alguns dados referentes à composição sócio demográfica da Província de Tete e do
Distrito de Moatize.
Nela, é evidente que no Distrito de Moatize 31,7% dos AFs são chefiados por
mulheres. O tipo de AFs predominante é a família nuclear (43,3%) e a família
alargada representando esse último, 34,5% do total dos AFs. Esses dados não só
alertam que, em Moatize, a população ainda preserva a estrutura familiar de origem
linhageira, ou seja, a família ainda contempla o pai, a mãe e os filhos, os avôs e
outros parentes diretos. Essa composição difere-se substancialmente da estrutura
familiar que se verifica no Brasil, por exemplo, em que expressivo número de
famílias, sobretudo urbanas, é constituído apenas pelo núcleo central, isto é, pai,
mãe e filhos.
Portanto, tendo em conta essa composição podemos dizer que a separação
das famílias no âmbito do reassentamento realizado pela Vale Moçambique e Rio
Tinto, com certeza não só dividiu antigos vizinhos com laços fecundos de interação e
sociabilidade, mas também decompôs AFs inteiros, portanto, famílias alargadas, que
A carta do papa Romanus Pontifex (1455) é bastante elucidativa dessa atuação mortífera da Igreja,
pois ela concede "A plena e livre faculdade, entre outras de invadir, conquistar, subjugar quaisquer
sarracenos e pagãos, inimigos de cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo aplicar
em utilidade própria e dos seus descendentes". Assim, a igreja participou ativamente na (des)
construção de toda estrutura societal africana cujos efeitos negativos espelham em parte atual
dependência cíclica, bem como algumas disputas dentro do continente.
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=3GUukK4SMl8> Acesso em: 1. jun. 2017.
161
Notas:
* Constituída apenas por uma pessoa;
** Constituído pelo pai e um filho ou mais filhos;
*** Constituído por um casal (homem e mulher) e um ou mais filhos;
**** Constituído por uma família nuclear ou monoparental com ou sem filhos e um ou mais
parentes;
***** Agregados familiares com qualquer composição sem que sejam as anteriores.
84 Usamos a projeção de 2017, pois entendemos que os dados de 2007 já não condizem com a
realidade atual da população em Moatize. Em Moçambique o Recenseamento Geral da população
ocorre a cada 10 anos. Nesse contexto, o primeiro recenseamento geral da população foi realizado
em 1980 e o último em 2017, cujos resultados definitivos serão publicados em junho de 2018.
85 Essas informações são referentes à síntese dos dados apresentados pelo INE (2013), que
assinala entre outras coisas, o rápido crescimento da população moçambicana. Em menos de 60
anos cresceu cerca de 6.5 milhões e a perspectiva é que ela atinja os 46 milhões em 2040.
162
86 Segundo Agadjanian (1999), a igreja zione, também denominada (ma) zione (zionista) pertence ao
grupo das igrejas pentecostal. De origem Norte - americana, na cidade de Zion City, Illinios através do
Christian Apostolic Catholic Church fundado por J. Dowie em 1896, a igreja zione penetra no tecido
social moçambicano por meio dos mineiros e outros trabalhadores moçambicanos que até então,
trabalhavam na África do Sul. Sua propagação no período pós- colonial se deu em parte, devido a
certa impunidade de que gozavam as igrejas consideradas menos tradicionais como a zione, ao
contrário da católica visto como símbolo e vestígio da dominação colonial.
A propagação da zione church em Moçambique é a reação à profunda transformação do tecido social
no país, sobretudo nas zonas urbanas. Seus crentes e/ou aderentes (vakhongeli, vapfumeli)
163
da população que declarou não professar nenhum credo religioso seja maior, isto é,
39%, isso não equivale dizer que seu mundo não esteja encapsulado de crenças e
cosmovisão que pautam a sua vida cotidiana. Pois, grande parte dessa população
crê e pratica o culto aos antepassados, elementos simbólicos que foram dilacerados
e condenados à ruptura pelos afamados projetos de desenvolvimento, idealizados
de fora para dentro, num processo que configura a "nova partilha de África e de
Moçambique", mesclando velhos e novos atores do capitalismo mundial (SARAIVA,
2008).
No geral, a população de Moatize encontra-se irregularmente distribuída pelos
três Postos Administrativos do Distrito (mapa 4), nomeadamente: Moatize - Sede
com 78.634 habitantes distribuídos pelos bairros 25 de setembro, Bagamoyo, 1º de
maio, liberdade e bairro urbano central; Posto Administrativo de Kambulatsitsi com
29.298 habitantes e Posto Administrativo de Zobué com 107.160 habitantes.
Conforme já assinalamos, estes números são referentes aos resultados do Censo
de 2007, a sua apresentação visa elucidar a base, a partir da qual faremos nossas
reflexões ao longo desse trabalho. Isso porque os dados referentes à população do
PAK, por exemplo, não abrangem a população reassentada pela Rio Tinto no âmbito
do Projeto de carvão de Benga. E o mesmo acontece, com a população de Cateme
e do bairro 25 de Setembro, ambos no PAM, reassentados pela Vale no contexto do
Projeto de carvão de Moatize.
Seja como for, não restam dúvidas de que o vetor principal para o afluxo
populacional em Moatize e na cidade de Tete tem sido o aumento das esperanças
no imaginário da população, sobretudo os mais jovens que olham para Moatize e
cidade de Tete87 como uma espécie de um novo El dorado. Desse fato resulta que
parte das esperanças e dos sonhos idealizados sobre o trabalho e o "fausto" em
Moatize se desmancha no ar e tornam-se frustrações, pois, conforme dissemos, a
produção industrial do carvão mineral é intensiva, tanto em capitais investidos, como
geralmente composto por gente humilde, de baixa renda e residente nas periferias das cidades como
Maputo, por exemplo, busca nessa igreja, a cura através da fé e de milagres e a aceitação social que
lhes é negada devido à sua condição financeira e social.
Cf. AGADJANIAN, Victor. As igrejas ziones no espaço sociocultural de Moçambique urbano (anos
1980 e 1990). Lusotopie, 1999. p. 415- 423.
87 Embora o foco dessa pesquisa seja o Distrito de Moatize, dialogamos permanentemente com a
cidade de Tete por entender que, ela é a capital política e administrativa de Tete. É nela que também
ocorrem as grandes transformações e arranjos de toda a natureza para satisfazer a demanda
produtiva megaprojetos de mineração.
164
88 Entrevista com o vereador para área da urbanização no município de Tete; outubro 2015.
165
89 Dissemos aparentemente, porque o trabalho nas firmas mineradoras não pára e, nem deve parar,
conforme os ditames de rentabilidade e da caça incessante pelo lucro, fim último de todo processo
produtivo capitalista. Isso quer dizer que, há um movimento contínuo de trabalhadores a todo o
momento, ou seja, tanto de dia, como durante a noite. Um operador de máquina com quem prosamos
afirmou que na Vale o trabalho, sobretudo nas minas é feito em regime de turnos contínuos.
90 Nome de um antigo local histórico localizado no Distrito de Marávia, Província de Tete. No decurso
da luta de libertação nacional foi transformado na base logística e estratégica militar para atender a
frente de Manica e Sofala, abertas em 1972.
166
Fonte: Diallosb.blogspot.com.br.
Nas entranhas dessa demanda cujo vetor foi a "febre do carvão" configuram-
se novas contradições, em função da introdução de meios técnicos em áreas
remontas, estrutural e socialmente pouco preparadas para lidar com esses eventos.
De fato, além da expropriação/desterritorialização empreendida pelos grandes
projetos de mineração em coalizão com o Estado, o surto do carvão mineral de
Moatize trouxe também novos sabores e odores, dos quais, a especulação fundiária
e imobiliária, os problemas de saúde, problemas ambientais, entre outros efeitos
dessa atividade, cuja discussão detalhada é feita na parte 4.
Portanto, diante do intenso metabolismo que caracteriza o Distrito de Moatize
e a cidade de Tete, pautamos nosso olhar para a busca de novas sínteses
explicativas do objeto de estudo. Em função dessas transformações, os
instrumentos de pesquisa, as estratégias de trabalho no caminho das "pedras da
pesquisa", repetidas vezes foram alteradas, reformulados e refinados para atender à
realidade dos fenômenos em ebulição em Moatize. Traçar esses caminhos e
estabelecer diálogos de fora para dentro e vice-versa, constituiu a estratégia
dominante durante a pesquisa.
167
91 Lofland (1971) oferece uma síntese do que ele considera fenômeno social frente ao ser caráter
geral, impreciso e vago. Desse modo, o fenômeno social deve ser considerado, a partir de seis
categorias que se interconectam mutuamente: atos, atividades, significados, participação, relação e
situações. A partir dessas dimensões, o fenômeno social deixa de ser vago e o pesquisador pode
usar cada uma delas para questionar e dirimir os conflitos que surgem ao longo da pesquisa.
Cf. LOFLAND, John. Analysing social settings aguide to qualitative observation and analysis.
Belmont, C.A: Wodsworth publishing, 1971.
170
explica Moreira (1982), está cada vez mais complexa, entrelaçada e urdida nas
relações sociais de classes.
Enfim, podemos afirmar que cada pesquisador é chamado a assumir uma
responsabilidade para com os homens e as mulheres, principalmente nos países
periféricos, como Moçambique, no qual o tipo de propriedade, as relações de
produção e o modelo de desenvolvimento vigente criam o arcabouço necessário
para que, a população seja expropriada, empurrada e, no limite confinado a espaços
"inertes"; impróprios para a sua realização social, conduzindo dessa forma, ao
empobrecimento das comunidades, tal como acontece nos reassentamentos em
Moatize.
De fato, as objetivações desse processo em curso na Província de Tete
respaldado no discurso de desenvolvimento do Estado, denunciam estarmos
perante um movimento que conta com novos vetores e atores do capitalismo.
Ambos e atuando em coalizão impactam direta e decisivamente as formas de
realização social das comunidades atingidas pelos grandes empreendimentos de
mineração. Essa realidade, até certo ponto movediça, no sentido de que, a fronteira
da mineração é definida ou redefinida, em função da (ir) racionalidade que cada ciclo
de acumulação impõe, clama por novas leituras inspiradas em novos olhares. Tais
leituras devem pautar pela crítica à economia e ao modelo de desenvolvimento
adotado pelo Estado e, não pura e simplesmente uma aceitação deliberada e
religiosamente glorificada, como o caminho para o fim da pobreza absoluta, principal
mercadoria com a qual os países pobres participam no mercado estratégico da
expansão e da realização do capital, cuja estratégia básica é a destruição e adição
de novos territórios à roda de acumulação (LUXEMBURG, 1976).
Portanto, frente à atual configuração do capitalismo enquanto modo
específico de controle sociometabólico, no dizer de Mészáros (2011) e, com todas
suas objetivações espaciais somos convidados a adotar uma postura crítica e radical
diante do padrão e da propaganda do Estado e, sobretudo perante uma espécie de
estranhamento que caracteriza alguns pesquisadores. Nesse sentido, Guerra (2013,
p.236) demonstra preocupação com a construção da subjetividade e diz
A atual crise do capital, seus antigos e reatualizados modelos de
produção/reprodução e de acumulação incidem na construção das
subjetividades, constituindo um sujeito que adere, acriticamente, ao fetiche
oriundo do processo de financeirização do capital, não apenas
respondendo, mas incorporando sua racionalidade como de ser, pensar e
agir.
171
Por isso,
É preciso entender a dialética objetiva da contingência e da necessidade,
assim como do histórico e do trans- histórico no contexto do modo de
funcionamento do sistema do capital. Esses são os parâmetros
categorizadores que ajudam a identificar os limites relativos e absolutos
dentro dos quais o poder sempre historicamente ajustado do capital se
afirma trans- historicamente, através de muitos séculos. Sujeito a essas
determinações categóricas e estruturais, o capital- na qualidade de modo de
controle sociometabolico- pode afirmar, acima de todos os seres humanos,
as leis funcionais que emanam de sua natureza, sem levar em conta a boa
ou má disposição que pudessem ter em relação ao impacto dessas leis sob
determinadas circunstâncias históricas (MÉSZÁROS, 2011, p.184-185,
grifos do autor).
92 Frigoto (2000) entende que o materialismo histórico enquanto postura ou concepção do mundo,
parte da admissibilidade da existência da realidade objetiva, ou seja, uma realidade cuja existência
independe das ideias e do movimento do pensamento. A dialética como método interpretativo situa-
se no plano da realidade, na perspectiva histórica, sob a forma de trama de relações contraditórias,
conflitantes, leis de construção, desenvolvimento e de transformação dos fatos.
172
93 Na teoria crítica, a palavra crítica assume pelo menos dois sentidos distintos: primeiro se refere à
crítica interna, isto é, à análise rigorosa da argumentação e do método. Focaliza-se aí o raciocínio
teórico e os procedimentos de seleção, coleta e avaliação dos dados.
O segundo e mais importante sentido da palavra crítica diz respeito à ênfase na análise das
condições de regulação social, desigualdade e poder. Desse modo, os teóricos críticos enfatizam o
papel da ciência na transformação da sociedade (ALVES-MAZZOTTI, 2002, p.139).
Esse último sentido da crítica é o que pauta a nossa pesquisa.
174
substanciais ganhos, como: casa nova e algum valor monetário, fruto da chamada
(in) justa indenização.
Nesse esforço, o governo procurou vender o progresso, contando para tanto,
com estratégias como a intimidação ou silenciamento; a cooptação ou compra de
lealdade das lideranças tradicionais, visando possibilitar o avanço desses projetos,
conforme será discutido na parte 4. Por esse caminho, acreditamos que a pesquisa
qualitativa crítica é o caminho adequado, pois como explica Alves-Mazzotti (2002, p.
139) a sua preocupação é,
Compreender o que ocorre nos grupos e instituições relacionando as ações
humanas com a cultura e as estruturas sociais e políticas, tentando
compreender como as redes de poder são produzidas, mediadas e
transformadas. Parte do pressuposto de que nenhum processo social pode
ser compreendido de forma isolada, como uma instância neutra acima dos
conflitos ideológicos da sociedade.
De fato, as relações e as crenças, por exemplo, não podem ser captados por
meio de modelos matemáticos apresentados como o único axioma para a ciência.
A partir dessa compreensão, buscamos, ao longo da pesquisa, principalmente
durante o trabalho de campo, observar, registrar, interpretar, isto é, dar significado
às percepções e às aspirações dos sujeitos sociais, sobretudo aqueles que foram
diretamente atingidos94 pelos megaprojetos. Ou seja, procurou-se examinar como a
apropriação de cada um dos seguintes elementos simbólicos: o rio; a machamba; o
lugar; o mercado; o cemitério; a casa; local de sacralização das relações espirituais;
a igreja e a terra (morada, sustento e vida) pelos megaprojetos afetou as relações
sociais, o modo de vida, isto é, a prática social.
94 O termo atingido utilizado na pesquisa é teoricamente baseado na concepção de Vainer (2008, p.
40). Para ele "a noção de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, leia-se, legitimação de
direitos e de seus detentores. Ou seja, estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo
é, ou foi atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legítimo- e em alguns casos
como legal- seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização reabilitação ou reparação não
pecuniária".
Na prática adotamos o conceito apresentado pelo MAB (2008) que considera como atingidos "todos
aqueles que sofrem modificações nas condições de vida, como conseqüência da implantação das
usinas hidrelétricas, independentemente de ser atingidos diretos ou indiretos".
Cf. MAB. A luta dos Atingidos pro Barragens contra as transnacionais pelos direitos e pela soberania
energética. Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). São Paulo:
Cartilha Pedagógica. 2008.
177
Na verdade,
Nenhum método pode se arrogar a pretensão de responder sozinho às
questões que a realidade social coloca. Por isso, exercitando-se um esforço
de integração metodológica, pode-se iluminar a realidade a partir de vários
ângulos, o que permite confluências, discordâncias, perguntas, dúvidas,
falseamentos, numa discussão interativa e intersubjetiva na construção e
análise de dados (MINAYO e MINAYO-GÓMEZ, 2003, p.136).
95De acordo com Trivinõs (2009) designa-se paradigma ao sistema de crenças, princípios e
postulados que informam ou dão sentido e rumos às práticas em pesquisa.
178
96 Em Por uma Geografia nova: da crítica da Geografia a uma Geografia crítica, Milton Santos
apresenta uma profunda reflexão que perpassa, questões como a interdisciplinaridade, a Geografia
chamada teórica, entre outras questões, para depois deter-se na análise do objeto da Geografia. Para
Santos (2002) a Geografia é viúva do espaço por causa do atraso na definição do seu objeto de
estudo, o que a tornou pobre teórica- metodologicamente.
Santos (2002, p.153) considera que o espaço "deve ser considerado como um conjunto de relações
realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história
escrita por processos do passado e do presente. Isto é, o espaço se define como um conjunto de
formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura
representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se
manifestam através de processos e funções. O espaço é, então, um verdadeiro campo de forças cuja
aceleração é desigual".
180
Buque (2013) corrobora a ideia expressa por Rivera (2012) e destaca que o
saber geográfico da época colonial em Moçambique tinha por objetivo responder aos
interesses da Europa. O conhecimento, mais ou menos detalhado dos bens naturais
existentes na colônia, era fundamental e a formação potenciava essa dimensão de
conhecimentos. Por isso, priorizou-se a descrição detalhada, o trabalho de campo, a
localização e o mapeamento das áreas estudas. Portanto, na chamada época da
revolução quantitativa, a pesquisa e a produção do conhecimento geográfico em
Moçambique refletiam o desejo de um conhecimento mais detalhado da colônia com
vista a viabilizar os interesses extrativistas da metrópole.
Buque (2013), explica que a corrente inicial da Geografia em Moçambique foi
a Geografia regional. Porém, com o processo de renovação em curso, na Europa, a
partir da década de 1970, a pesquisa nessa ciência e, por conseguinte, o seu ensino
aproximou-se mais à Geografia quantitativa. Essa aproximação se deu pela
introdução gradual de métodos e teorias condizentes com essa corrente do
pensamento geográfico.
Conforme foi dito, a denominada Geografia quantitativa foi encarregada de
produzir instrumentos de gestão territorial para otimizar o uso do espaço em função
das novas exigências de estruturação da economia capitalista em expansão. Santos
(2002) aponta como maior fraqueza da Nova Geografia, o fato dela ter estreitado
seus horizontes, empobrecendo sua interdisciplinaridade, justamente no momento
em que havia várias ciências que poderiam ajudar na elaboração teórica da
Geografia. Por isso,
A New Geography representa uma involução. Baseada na economia
neoclássica terminou por suprimir o homem, despersonalizando o homo
sapiens, substituindo- o pelo homo economicus, que é nada mais que uma
média: e o homem médio não existe. A chamada "nova geografia" também
excluiu o movimento social e dessa forma eliminou de suas preocupações o
espaço das sociedades em movimento permanente. A geografia tornou-se
viúva do espaço. Sobretudo, a New Geography matou o futuro. A análise de
sistemas não enxerga as tendências, pois não pode ver além do repetitivo;
187
Foi assim que, em meados da década de 1970, uma nova forma de olhar e
pensar o espaço surge entre alguns geógrafos que passam, desde então, a adotar
uma postura mais crítica e radical frente à geografia tradicional e pragmática. A partir
desse momento, os fenômenos passam a ser considerados, como estruturas em
188
97Apesar da polêmica que esse livro suscitou após sua publicação em 1976, a edição de 1985, busca
fundamentalmente dissipar alguns dos equívocos presentes na edição de 1976.
189
98 Em 2015, por exemplo, a tonelada do carvão metalúrgico estava entre os US$ 70 a 90 contra os
US$ 200 a 250 a tonelada em 2013 (IEO, 2016).
99 Entrevista com o gestor da área social na Jindal África; outubro de 2015.
194
pautará tal análise, significa de acordo com Eco (2012) expor as condições sobre as
quais podemos falar, a partir de certas regras estabelecidas ou que estabelecemos.
Por isso, definir os conceitos fundamentais utilizados na construção da
pesquisa é expor para o leitor o significado semântico e filosófico atribuído a esses
conceitos. Desse fato, decorre a necessidade de "dissecar", isto é, explicitar o
conceito, apresentando para tanto, o sentido ou o significado atribuído no contexto
da pesquisa, visto que um mesmo conceito pode ter várias definições (léxicas,
estipulativa e de precisão)102, bem como muitos significados e, o conceito efeitos é
um exemplo dessa pluralidade semiológica.
O conceito afirma Abbagnano (2007) é todo processo que torna possível a
descrição, a classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis, o que o torna um
termo com significado vastíssimo que inclui qualquer espécie de sinal ou
procedimento semântico.
Portanto, o conceito pode se referir tanto a um objeto concreto, próximo,
individual, como a um elemento abstrato, distante e universal. Além disso, e mais
importante, o conceito embora seja geralmente "indicado por um nome, não é o
nome, já que diferentes nomes podem exprimir o mesmo conceito ou diferentes
conceitos podem ser indicados, por equívoco, pelo mesmo nome" (ABBAGNANO,
op.cit., p. 320).
Assim, a complexidade presente na distinção semiológica dos principais
conceitos utilizados na pesquisa, em função de sua etimologia faz com que grande
parte dos pesquisadores se exima dessa tarefa, o que em parte é compreensível,
pois, partir para essa empreitada é como navegar por um leito turvo, isto é, por um
ambiente no qual não temos um significativo domínio. Contudo, não tentar um
esclarecimento é deixar que o leitor atribua seu próprio significado aos conceitos que
usamos o que frequentemente gera equívocos interpretativos.
Por exemplo, o conceito efeito por meio do qual analisamos as cinco
dimensões presentes na tese (econômica, política, social, cultural e ambiental) que
compõem o que denominamos efeitos espaciais da mineração, ele pode significar,
tanto resultado produzido por uma causa, uma consequência de uma proposição
102 ABBAGNANO (2007) faz uma análise detalhada e apresenta as diferenças entre as três
definições.
Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bossi e Ivone Castilho
Benedetti. Edição revista e ampliada. São Paulo: Martins Fonttes, 2007, 1026p.
200
103 Cf. BRANQUINHO, João; GOMES, Nelson e MURCHO, Desidério. Enciclopédia de termos
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
Entre estatais
E multinacionais, quantos ais!
A dívida interna
A dívida externa
A dívida eterna
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
104 Sigla em inglês; ela foi criada em 1964 em Genebra no âmbito das discussões sobre a
liberalização do comércio e no contexto da criação do GATT. É o órgão das ONU que busca
promover a integração dos países pobres na economia mundial. Para tanto, a UNCTDA atua como
fórum para deliberações intergovernamentais, apoiado por debates com especialistas e intercâmbio
de experiências. A organização também desenvolve pesquisas, análises de políticas e coleta de
dados para debates de representantes do governo e especialistas.
Disponível em: <http://ois.sebrae.com.br/comunidades/unctda-conferencia-das-nacoes-unidas>
Acesso em: 15 maio 2017.
206
mundo elencadas na Revista Fortune, 111 destas eram firmas que apresentavam
grande poder econômico e, consequentemente um significativo peso político diante
de alguns Estados soberanos, mas economicamente dependentes. A partir dos
resultados dessa pesquisa, faz coro a essa realidade, os apontamentos de Ribeiro
(2008). Para ele, em função da dependência econômica que caracteriza a grande
maioria dos Estados, sobretudo os da África, atualmente, seus
Governos disputam esse investimento acirradamente, através de
concessões de isenções fiscais, garantias trabalhistas e outros benefícios. E
em vista disso, esses Estados cedem aos interesses dos consórcios
multinacionais e/ou transnacionais pelo seu enorme poder econômico e
controle de setores fundamentais da economia estatal, tendo diluída sua
soberania e dificultando o exercício pleno da governação (RIBEIRO, op.cit.,
p. 865).
105 Halliday (1987) elenca um conjunto de ações ou realizações em cada uma das estratégias
legitimadoras. A primeira, por exemplo, integra a identidade, o status, realizações, capacidade,
opiniões, sentimentos e objetivos. Já no segundo, apresentam alegações como: somos excelentes,
podemos ajudar você, temos altos ideais, somos como você. No terceiro grupo, as multinacionais
apelam para as vantagens; a segurança; invocam ideias e exortam para o orgulho nacional.
É pertinente lembrar que essas estratégias são usadas também pelas corporações transnacionais
que, conforme assinalamos são a evolução conceitual e lapidação das empresas ditas multinacionais.
208
do poder decisório, ou seja, o fato de terem mais do que um centro de poder e estar
registradas em mais de uma Bolsa de Valores (BV). Para Carvalho Filho (2011) um
dos aspectos que distingue a empresa transnacional é o fato de esta ditar na
atualidade o rumo econômico e político de todo o planeta terra.
De origem antiga, quanto às multinacionais, a empresa transnacional tem
suas origens nas antigas Companhias de comércio dos séculos XVI e XVII,
representadas pelas Companhias de que nos referimos anteriormente. É claro que
as ETNs atuais se diferem das antigas Companhias do período mercantil, porém
alguns elementos em comum podem ser identificados, como: sua atuação extra -
fronteiras, principal distintivo da firma transnacional moderna.
Carvalho (2007, p. 9) concorda que as formas iniciais das modernas
transnacionais podem ser observadas já entre os anos 1600 e 1700 da Era Cristã,
em vista que as Companhias que atuavam nesse período tinham características
muito peculiares, tais como
Promulgar normas jurídicas sobre os territórios que dominavam, mantinham
exércitos e portos próprios e toda a estrutura que hoje só um Estado possui
em função de sua soberania. Apesar de essas Companhias serem
sociedades de direito privado, elas possuíam prerrogativas que lhes
permitiam atuar em diferentes territórios com poderes muito amplos.
político dentro do governo e do Estado, o que lhes permite exercer influência, mas
quase sempre em seu próprio benefício.
Esse são os casos da denominada Vale Moçambique subsidiária da Vale
S.A., da Jindal África, filial da Jindal Steel and Power (JSPL), da International Coal
Ventures Limited (ICVL) Minas de Benga, uma joint ventures composta por cinco
empresas estatais do ramo da siderurgia indiana e encabeçada pela Steel Authority
of India e a National Mineral Development Corporation. Apesar da sua
nacionalidade, essas empresas não produzem para o mercado moçambicano e, sim
para o mercado estrangeiro, asiático, sobretudo. Suas ações estão registradas nas
bolsas de valores dos países nos quais se localizam suas matrizes e não na recém
criada Bolsa de Valores de Moçambique (BVM).
213
______________________________________________________________
PARTE 3 ALIANÇA ENTRE O ESTADO E O CAPITAL
_________________________________________________________________
214
106 A primeira classe era composta pelas terras mais férteis que só poderiam ser concedidas aos
colonos portugueses ou aos seus representantes- as companhias; a segunda categoria correspondia
às terras de fertilidade intermédia, que poderia também ser concedidas aos portugueses e aos negros
moçambicanos (o que eles chamavam de indígena), mas estes em menores proporções. Já as terras
da terceira classe eram as menos férteis e áridas, aquelas que a administração colonial entendia que
poderiam ser atribuídos aos negros moçambicanos. Enquanto os ditos civilizados podiam registrar a
terra como propriedade privada, os negros moçambicanos (ditos não civilizados) não tinham esse
direito, salvo os casos em que estes renunciassem à cultura moçambicana, por meio da chamada
assimilação da cultura portuguesa, comportando-se, por conseguinte, como civilizado.
O art.º 41 do ROCT "são terras de segunda classe, os terrenos demarcados para atribuição conjunta
a populações a fim de serem por eles ocupados e utilizados de harmonia com os seus usos e
costumes" (ALFREDO, 2009, p. 34).
220
Seja como for, o certo é que essa forma de atuação e, por conseguinte, as
relações de produção e de troca no campo prevaleceram inalteradas até a
independência. Com a conquista da independência, renascem as esperanças da
parte da população em voltar a ocupar as suas terras, até então, usurpadas pelo
poder colonial. Tal fato não aconteceu, porque por meio dos Decretos Leis107
n.16/75 e n. 5/76 o Estado nacionalizou ou adquiriu os direitos individuais ou
particulares sobre a terra, ou seja, a terra foi tomada a favor do Estado.
Essa atitude do Estado gerou frustração e descontentamento no seio da
população que olhava para independência como a oportunidade para reaver suas
antigas terras. Bruce (1992, p. 8) entende que a atitude do Estado moçambicano
condizia com a lógica dominante em muitos países africanos após a década de
1960, porque esses se engajaram em
Fazer alterações básicas aos seus sistemas de terra [supondo que] os
sistemas de posse consuetudinários da terra eram demasiado tradicionais
para poderem fornecer uma base adequada para o desenvolvimento
agrícola. [assim] as novas elites governamentais não estavam inclinadas
para estas formas, porque constituíam uma importante base de poder das
autoridades tradicionais, que elas procuravam substituir. [Além disso] havia
também o desejo de ter um único sistema de posse da terra.
Como dito na parte 1, o ódio pelo colonialismo e por todas as suas formas e
manifestações serviu durante muito tempo, como a ligadura ideológica que unia os
interesses do Estado e o engajamento mais ou menos voluntarioso da população na
construção do novo Estado. Em torno desse envolvimento, a figura de Samora
Machel desempenhava um papel importante, tanto pelo seu carisma quanto pelo seu
caráter incisivo na tomada de decisões.
De fato, a eloquência com que anunciava expressões como: o fim da
exploração do homem pelo homem; a eliminação do imperialismo; o Estado é
formado por operários e camponeses, entre outras que alimentavam a retórica
108 O art.º 1º da Constituição publicada em 1975, diz que a República Popular de Moçambique é fruto
da resistência secular e da luta heróica e vitoriosa do povo moçambicano, sob direção da FRELIMO,
contra a dominação colonial portuguesa e o imperialismo.
222
Desse modo, um dos destaques dessa lei é o fato de a terra ter sido
declarada propriedade do Estado, não podendo ser vendida, alienada, tampouco
hipotecada ou penhorada. Na referida lei, instituiu-se, também, que a terra é
reservada a todo o povo moçambicano o direito de nela trabalhar. Ao Estado, cabe,
então, determinar as condições de seu uso e aproveitamento.
223
do plano, desde que a parcela objeto de exploração não esteja dentro das
chamadas zonas de desenvolvimento agrário planejado.
Amparado na Constituição de 1975 e buscando reforçar o papel da
participação popular na edificação da nova sociedade, a lei n. 6/79 demonstra sua
preocupação em relação aos cuidados no manejo da terra. E adverte no art.º 6º que
As empresas e entidades que utilizam, para fins não agrários, terras de
agricultura e florestas, são obrigadas a recuperar por sua conta, a aptidão
das respectivas terras para serem aproveitadas na agricultura e silvicultura.
[E mais] as empresas e entidades industriais são obrigadas a empreender
medidas que impedem a contaminação e poluição das terras ou águas
(MOÇAMBIQUE, 1979, p. 224).
das atividades sob sua alçada e abre um limitado espaço para a iniciativa privada.
Com o decorrer do tempo, o pragmatismo inicial vai gradualmente abrindo flancos,
ou seja, o Estado procede ao levantamento de algumas restrições até então,
impostas de modo vigoroso, mas conserva a vigilância perpétua sobre a legislação
financeira, laboral e agrária hostil ao setor privado.
Já na segunda etapa, designada a transição para o capitalismo, o Estado
procede à construção de instituições apropriadas ao setor privado, aprova legislação
e cria políticas que favorecem a economia do mercado. Nesse período, o Estado
que, antes era avesso ao estabelecimento privado, passa a agir mais
apropriadamente em favor deste, impõe regras, cria instituições e todas as
condições necessárias.
Portanto, se aplicarmos esse quadro à experiência moçambicana, fica
evidente que o período de transição para o capitalismo evoca inicialmente as
deliberações do IV Congresso e as pré-reformas realizadas pelo Estado. Em função
das pressões do grupo Banco Mundial, o governo realizou reformas significativas
que culminou com a publicação da primeira Lei do Investimento Direto Estrangeiro
(IDE)109 em 1984 e a criação do Gabinete de Promoção do Investimento Estrangeiro
(GPIE), percussora do Centro de Promoção de Investimentos (CPI). Na seqüência
desses arranjos, o Estado aprovou a Lei n. 5/87 que instituiu o quadro legal que
regulamenta e isenta os investidores nacionais do pagamento de taxas e impostos
alfandegários referentes à importação de equipamentos.
Com o avolumar das pressões internacionais para a realização de reformas
mais profundas, o Estado respondeu com a aprovação em 1987 do Regulamento da
lei de terras de 15 de julho do mesmo ano, fruto de uma ligeira revisão da lei n. 6/79.
Sem mudanças de vulto, o decreto de lei n.16/87 vai manter quase todas as
disposições presentes na lei anterior, alterando somente o prazo de validade do
DUAT. Dessa forma, dos anteriores 5 a 15 anos de validade, podendo ser renovado
pelo mesmo período, mas nunca superior, conforme o art.º 10º da lei n. 6/79, no
novo regulamento, o DUAT para fins particulares passa a ser válido por 50 anos,
com a possibilidade de renovação pelo mesmo intervalo de tempo.
109 O art.º 1º da Lei n. 3/93, considera-se Investimento Direto Estrangeiro qualquer das formas de
contribuição de capital estrangeiro suscetível de avaliação pecuniária, que constitua capital ou
recursos próprios ou sob conta e risco do investidor estrangeiro, provenientes do exterior e
destinados à sua incorporação no investimento para a realização de um projeto de atividade
econômica, através de uma empresa registrada em Moçambique e a operar a partir do território
moçambicano (MOÇAMBIQUE, 1993, p. 4).
227
No artigo de que fizemos referência, o Estado vai determinar que cada família
tem o direito a 0,25 hectares de terra em áreas de regadio e 1 hectare de terra em
área de sequeiro. Os artigos subseqüentes, isto é, de 50 a 54 dispõem sobre as
condições e os direitos das famílias que eventualmente forem afetadas por
atividades econômicas que exijam o seu deslocamento. Com efeito, o regulamento
retoma e amplia o previsto no art.º 13 da lei n. 6/79 que dispõe que "os planos de
desenvolvimento agrário estabelecerão o processo das compensações e
indenizações a atribuir, quando da sua implementação resultem prejuízos para os
agregados familiares e outros utentes estabelecidos na área" (MOÇAMBIQUE, 1979,
p. 225).
Por essa razão, "a transferência do agregado familiar da área de ocupação
para outra só pode ser decidida por expressa declaração da conveniência do Estado
ou interesse público" (MOÇAMBIQUE, 1987, p. 47). Portanto, se a área em causa
estiver dentro do espaço contemplado pelos planos de desenvolvimento agrário, o
Estado fica isento do pagamento da indenização, cabendo a ele fazer o
ressarcimento em material de construção, instrumentos de trabalho e tudo o que
estiver contemplado no plano.
Para aqueles agregados familiares que optarem pela exploração privada, ou
seja, que não desejam integrar-se nos programas de desenvolvimento estatal, o art.º
59 estabelece as condições e as respectivas ressalvas
Aos agregados familiares quando ocupam áreas que excedam o limite
estabelecido no artigo 48 deste Regulamento ou não estejam a cumprir os
condicionalismos estabelecidos no n.1 do artigo 54 devem requerer uma
exploração de economia privada ou a sua integração em qualquer
exploração coletiva, cumprindo os formalismos necessários
(MOÇAMBIQUE, 1987, p. 49).
como o direito dele em viver num ambiente equilibrado, conforme dispõe o art.º 90.
Portanto, na nova Constituição o legislador buscou responder de forma mais ou
menos eficaz, aos condicionalismos para a obtenção de ajuda e abertura de mais
linhas de crédito.
Para Furtado (1964, p. 63) é exatamente nisso que reside o papel do Estado
na incorporação das novas técnicas ou formas de produção, o que implica sempre
modificações de tipo estrutural e
A forma como se efetivam essas modificações depende, em boa medida, do
grau de flexibilidade do marco institucional dentro do qual opera a
economia. E tal não é alheio a maior ou menor aptidão das classes
dirigentes para superar as limitações naturais de seu horizonte ideológico.
De modo geral, essa lei mostra-se mais preocupada com a proteção dos
direitos de uso e aproveitamento da terra pelas comunidades locais111. Com uma
elaboração mais refinada em relação às anteriores legislações, a nova lei amplia ou
111 Para efeitos dessa lei consideram-se comunidades locais, "o agrupamento de famílias e
indivíduos vivendo numa circunscrição territorial de nível de localidade ou inferior, que visa a
salvaguarda de interesses comuns através da proteção de áreas habitacionais, áreas agrícolas,
sejam cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de água e
áreas de expansão" (MOÇAMBIQUE, 1997, p. 15). No trabalho o termo comunidade local será
utilizado considerando essa definição.
231
reelabora o art.º 4º da Lei n. 6/79 referente ao perfil dos titulares do DUAT. Dessa
forma, os artigos 10 e 11 estabelecem que
Podem ser sujeitos do direito de uso e aproveitamento da terra as pessoas
nacionais, coletivas e singulares, homens e mulheres, bem como as
comunidades locais. As pessoas singulares e coletivas nacionais podem
obter o DUAT, individualmente ou em conjunto com outras pessoas
singulares ou coletivas, sob forma de co-titularidade. As pessoas singulares
e coletivas estrangeiras podem ser sujeitos de DUAT, desde que tenham
projeto de investimento devidamente aprovado e observem as seguintes
condições: a) sendo pessoas singulares, desde que residam há pelo menos
cinco anos na República de Moçambique; b) sendo pessoas coletivas,
desde que estejam constituídas ou registradas na República de
Moçambique (MOÇAMBIQUE, op.cit., p.16).
eficiente com base privatizante e que responda aos imperativos das comunidades
tendo como base a cidadania.
Frente a essa obrigação, o art.º 22 da nova lei determina que em áreas não
abrangidas pelos planos de urbanização a aprovação do DUAT compete
a) aos governadores provinciais a autorizar pedidos de DUAT de áreas até
ao limite máximo de 1000 hectares. [E cabe ao Ministério da Agricultura e
pescas] autorizar os pedidos de DUAT de áreas entre 1000 e 10 000
hectares. [E finalmente] compete ao Conselho de Ministros, autorizar
pedidos de DUAT de áreas que ultrapassam a competência do ministro da
agricultura e pescas, desde que inseridos num plano de uso da terra ou cujo
enquadramento seja possível num mapa de uso da terra (MOÇAMBIQUE,
1997, p.18).
local, apresenta armadilhas no seu bojo, isso porque, apesar de ele ser aberto a
toda comunidade, as informações obtidas durante o campo revelam que somente as
lideranças tradicionais têm participado dessas sessões. Além disso, as negociações
feitas entre os lideres tradicionais (com baixíssimas qualificações); alguns membros
das comunidades afetadas, mandatários das empresas na presença dos
administradores, quase sempre são vantajosos para o investidor em detrimento da
comunidade local.
O investidor, detentor do poder econômico e com alta capacidade para
seduzir ou influenciar as lideranças tradicionais, promete melhores condições de
vida e emprego (símbolos da racionalidade do objeto) para toda a comunidade caso
seja-lhes autorizado a operar naquela área. E, quando necessário, o setor privado
forma coalizões político-econômicas com funcionários do Estado em todos os níveis
e, com recurso à compra da lealdade ou à intimidação obrigam os líderes
tradicionais a convencer suas comunidades para ceder seus direitos de uso da terra
para as grandes transnacionais em troca de compensação pelos deslocamentos
compulsórios e de promessas de benefícios futuros - o que quase sempre não
acontece.
Portanto, esse processo é descrito por Silva (2016) como a principal
estratégia da territorialização do capital, já que a terra constitui o principal recurso a
ser apropriado pela cadeia produtiva dominante. E para o caso da mineração, a terra
é a célula mater de toda ação produtiva. Para Stedile (2013, p. 23), a recente crise
do capital financeiro tem efeitos sobre os bens da natureza, no sentido de que
"grandes grupos econômicos do Norte, diante da crise, das baixas taxas de juros,
correram para a periferia buscando proteger seus capitais voláteis por meio da
aplicação em ativos como terra, minérios, matérias-primas agrícolas, água e
territórios".
Diante disso, Stedile ressalva que, para entender o atual cenário de controle
das empresas transnacionais e do capital financeiro sobre os bens da natureza,
inclusive a terra, é preciso compreender que "construiu-se uma aliança maquiavélica
nos países do Sul entre os interesses dos grandes proprietários da terra,
latifundiários e fazendeiros capitalistas e as empresas transnacionais. Essa aliança
está destruindo e inviabilizando a agricultura camponesa" (STEDILE, op.cit., p. 26).
Embora no contexto moçambicano não se possa falar legalmente em grandes
proprietários de terras, latifundiários e fazendeiros capitalistas, em virtude de a terra
234
singulares nacionais que, de boa fé, ocupam a terra há pelo menos dez
anos (MOÇAMBIQUE, 1998, p.33).
112 Segundo esse regulamento benfeitoria é "toda a despesa feita para conservar ou melhorar a terra.
As benfeitorias classificam-se em necessárias, úteis ou voluptuárias. São benfeitorias necessárias as
que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da terra; úteis as que, sendo
indispensáveis para sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, são sendo
indispensáveis para a conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do
benfeitorizante" (MOÇAMBIQUE, 1998, p.33).
236
113 O caso mais recente e midiático desses esquemas dúbios que recompensam a elite política
nacional, e com a cumplicidade do Ocidente, é o recente escândalo das chamadas dívidas oculta
e/ou escondidas contraídas pelo governo, provavelmente, entre 2012 e 2014, sem a autorização da
Assembleia da República (AR), porém, com garantias soberanas do Estado. Essas dívidas que
geram dúvidas sobre o futuro político e econômico do país e, por conseguinte, de muitos de nós, são
estimadas em US$ 2,0 bilhões.
Disponível em: < http://www.imf.org/en/News> Acesso em: 12 maio 2017.
114 Segundo alínea (z) do art.º 1º da referida lei, designa-se Zona Econômica Especial a "área de
(iii) Incentivos
No que diz respeito aos incentivos ou atrativos para o investimento
estrangeiro e nacional, o Estado garante que
Em complemento das garantias de propriedade de fundos para o exterior
consagrados nos artigos 13 e 15, o Estado garante a concessão dos
incentivos fiscais e aduaneiros a ser definido no código dos benefícios
fiscais para investimentos em Moçambique. O direito ao gozo dos incentivos
concedidos nos termos do número anterior é irrevogável durante a vigência
do respectivo prazo que for previsto no código dos benefícios fiscais para o
investimento desde que não se alterem os condicionalismos que tiveram
fundamentado a sua concessão (MOÇAMBIQUE, op.cit., p.11).
115 Para efeitos da lei n. 4/2009, "consideram-se benefícios fiscais, as medidas que impliquem a
isenção ou redução do montante a pagar dos impostos em vigor, com o fim de favorecer as
atividades de reconhecido interesse público, bem como incentivar o desenvolvimento econômico do
país. Os benefícios fiscais incluem: a) as deduções à matéria coletável; b) as deduções à coleta; c) as
amortizações e reintegrações aceleradas; d) o crédito fiscal por investimento; e) a isenção e f) a
redução da taxa de impostos e o diferimento do pagamento destes" (MOÇAMBIQUE, 2009, p.116).
245
Branco. Tal generosidade é compatível com a política do Estado no que diz respeito
ao investimento estrangeiro e apadrinhado pelas IFIs que, conforme salientamos e
também o faz Paiva (2000, grifo do autor) consideram essas vantagens como uma
"bênção".
Com efeito, após observar todos os requisitos necessários ao registro do
Investimento (Lei n. 3/93), as empresas beneficiam-se de dois grandes grupos de
incentivos nomeadamente: a) benefícios genéricos e, b) benefícios específicos. No
primeiro caso, as vantagens incluem: a isenção no pagamento de direitos
aduaneiros e do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) em relação aos bens e
equipamentos classificados na classe K da pauta aduaneira.
Consta, ainda desse grupo (art.º 15), os chamados benefícios fiscais por
investimento que incluem: o crédito por investimento, amortizações e reintegrações
aceleradas; modernização e introdução de novas tecnologias; formação profissional,
entre outras. Não cabe nesse trabalho, especificar as vantagens ofertadas pelo
Estado ao investimento estrangeiro em cada uma dessas subcategorias, por isso,
apresentou-se, somente alguns exemplos.
No que diz respeito ao crédito por investimento, por exemplo, o art.º 15
determina que "os investimentos levados a cabo na cidade de Maputo beneficiam,
durante cinco exercícios fiscais, de dedução de 5% do total de investimento
efetivamente realizado na coleta do Imposto de Rendimento de Pessoas Coletivas
(IRPC). No caso dos projetos de investimentos realizados nas restantes províncias,
a percentagem estabelecida no n.1 é de 10%" (MOÇAMBIQUE, 2009, p. 118).
No aspecto da modernização, art.º 17 estipula que
O valor investido em equipamento especializado utilizando novas
tecnologias para o desenvolvimento das atividades dos projetos de
investimento beneficiam durante os primeiros cinco anos a contar da data
do início de atividade de dedução à matéria coletável, para efeitos do
cálculo do IRPC, até ao limite máximo de 10% da mesma (idem).
116 Segundo o Banco de Moçambique (2009), esse valor corresponde a US$ 462 962 mil ao câmbio
médio anual de US$ 1 para 27 meticais.
117 Segundo a alínea (z) do art.º 1º da lei n. 3/93 designa-se zona franca industrial "a área ou unidade
sustenta Castel-Branco (2010). Para efeitos desse código, as ZRD118 são "áreas
geográficas do território nacional, caracterizadas por grandes potencialidades em
recursos naturais, carecendo, porém, de infraestruturas e com fraco nível de
atividade econômica" (MOÇAMBIQUE, 2009, p.122, grifo nosso).
Nos denominados paraísos fiscais, parafraseando Castel-Branco (2008) um
mutirão de benefícios são instituídos que incluem: cinco anos de um crédito fiscal
por investimento de 20% do total investido a ser deduzido IRPC, bem como todos os
restantes incentivos previstos nos art.º 18 e 19 do código dos benefícios fiscais. De
posse dessas informações, podemos afirmar que os arranjos feitos em Moçambique,
a partir de 1984 e com mais intensidade após 1990, criaram as condições decisivas
para a captação do IDE. É a esse tipo de reestruturação estatal que Sanfelice (2000)
considera ser a construção de Estado máximo para o capital.
Por outro lado, a prioridade dada ao IDE pelo Estado moçambicano, com
poucos benefícios reais para as comunidades locais, impelem-nos a retomar o
questionamento feito por Chomsky (2002), portanto, o que interessa ao Estado: o
lucro ou as pessoas? Em vista que há uma sensação de que para o Estado somente
importa o lucro dos grandes empreendimentos (e os discursos oficiais indicam isso)
e os benefícios marginais à economia nacional, em detrimento das comunidades
locais fortemente ameaçadas por esses gigantes.
Com as reformas até aqui feitas, o Estado abriu as veias, a partir das quais
fluiria o capital no seu renovado processo de acumulação em Moçambique. Tal
círculo, até então incompleto, fechar-se-ia com a reforma da legislação de minas. Ou
seja, se a nova legislação de terras forneceu as garantias sobre o uso da terra; a
legislação sobre o investimento criou um quadro favorável para a maximização dos
lucros, então, a lei de minas e demais decretos sobre a matéria vai solidificar as
118Segundo o artigo 40 da lei n. 4/2009, são considerados ZRD as seguintes regiões do país: zona do
vale do Zambeze que inclui a toda a província de Tete; os Distritos de Morrumbala, Mopeia, Chinde,
Milange, Mocuba, Maganja da Costa, Nicoadala, Inhassunge, Namacurra e Quelimane- na província
da Zambézia; os Distritos de Gorongosa, Maringué, Chemba, Marromeu, Cheringoma e Muanza- em
Sofala. Os distritos de Barué, Guro, Tambara e Macossa, em Manica, bem como a totalidade da
província de Niassa; distrito de Nacala; Ilha de Moçambique, Ibo (MOÇAMBIQUE, 2009, p.122.
248
Do que foi dito até aqui, dois aspectos merecem atenção designadamente: a
relação intrínseca entre a extração dos recursos minerais e o desenvolvimento do
país, bem como o envolvimento do Fundo estatal da Terra e do Ministério dos
Recursos Minerais na resolução de possíveis impasses entre a comunidade e o
titular da licença mineira. Por razões já mencionadas, o primeiro aspecto tem sido de
vital importância na construção da racionalidade dos grandes projetos de mineração.
Com a virada do século XX, com a qual veio a perestroika moçambicana, a
legislação de minas mostrava-se, em certa medida, desajustada à realidade. Em
vista que a política do Estado sobre a qual foi erigida havia mudado, concomitante
ao início do projeto neoliberal que esfacelou o sonho do socialismo no país.
Adicionalmente, a aprovação ou início de alguns projetos de grande dimensão, como
a Mozal e a concessão do gás de Temane, exigia um quadro legal que fosse capaz
de acompanhar o crescimento do setor da mineração.
Bihale (2016, p.14) assume que foi o crescimento da indústria extrativa que
pressionou o governo a rever, aprimorar e elaborar instrumentos reguladores, quais
sejam, leis, resoluções, decretos, diplomas ministeriais, políticas e estratégias,
principalmente para o setor extrativo, portanto,
Estes instrumentos têm por objetivo acompanhar os desenvolvimentos da
indústria extrativa, de modo a atrair mais investimentos para o setor,
assegurar a competitividade, a transparência e proteção dos titulares de
concessões mineiras e de áreas para exploração de hidrocarbonetos,
sobretudo salvaguardar o interesse nacional e benefícios das comunidades.
De início, a entrada em vigor da nova lei revoga a lei n. 2/86, o seu respectivo
regulamento, bem como o Decreto de lei n. 5/94, instrumentos que, até então,
orientavam o setor da mineração no país. Nos dois artigos iniciais da lei n.14/2002,
além de indicar os objetivos e o âmbito de sua aplicação, adverte-se, também, de
que, no exercício dos direitos de uso e aproveitamento dos recursos minerais, haja
respeito pelo ambiente e que tal aproveitamento seja em benefício da economia
nacional.
Portanto, a importância e a prioridade que este setor tem em relação às
outras formas de uso da terra é sintetizado no art.º 43 que não contrariando o que
está disposto na legislação de terras de 1997, nem no seu regulamento que
estabelece as condições do uso e ocupação da terra, a presente lei afirma no inciso
2 que "o uso da terra para operações mineiras tem prioridade sobre outros usos da
terra quando o benefício econômico e social relativo das operações mineiras seja
superior" (MOÇAMBIQUE, 2002, p. 9).
Em relação à propriedade dos recursos minerais, o legislador reafirma no art.º
4º dessa lei e com respaldo no art.º 35 da Constituição de 1990 que
Os recursos minerais que se encontram no solo e no subsolo, nas águas
interiores, no leito do mar territorial, na zona econômica exclusiva e na
plataforma continental da República de Moçambique, são propriedade do
Estado, nos termos da Constituição. Incluem-se no disposto no número
anterior os recursos minerais situados no leito marinho e no subsolo do leito
marinho do mar territorial (MOÇAMBIQUE, op.cit., p.1).
120 É considerado utente da terra à luz desta lei, o individuo ou a entidade que em conformidade com
121 As especificidades de cada um dos instrumentos podem ser visto na Lei n. 20/97, lei do ambiente
e nos demais dispositivos legais, como por exemplo, os Decretos n. 45/2004 e n. 42/2008,
Regulamento sobre o processo de Avaliação do Impacto Ambiental.
122 São atividades do nível 1, as operações de pequena escala levados a cabo por indivíduos ou
cooperativas, bem como as atividades de reconhecimento, prospecção e pesquisa que não envolvam
253
3.000
2.700
2.500
2.100
2.000
1.500
1.348
1.000
804
500
423
288
184
-
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
De fato, tanto do ponto de vista técnico quanto na feição jurídica, a nova lei
evidencia certa robustez em relação às anteriores legislações. Com linguagem mais
refinada e concentrada, basicamente, em dois aspectos: comunidades locais e
transparência no setor da mineração. A lei n. 20/2014 apresenta além, do objeto e
dos conceitos, novas formas de obtenção do título mineiro nomeadamente: licença
de tratamento mineiro, licença de processamento mineiro e licença de
comercialização de produtos mineiros, inexistentes na legislação precedente.
Logo no art.º 8º, a lei deixa claro que é da competência do governo firmar
contratos mineiros com os titulares da licença de prospecção e pesquisa ou
concessão mineira mediante o concurso público e, após o pagamento da oferta
financeira pelo titular da licença. A grande novidade nesse artigo é o disposto nos
incisos 4 e 5 que diz
Os contratos mineiros são publicados no Boletim da República, antecedidos
do visto do Tribunal Administrativo, no prazo de 30 dias. E sem prejuízo da
sua publicação em jornais ou sítios da internet, os contratos mineiros, uma
vez aprovados, bem como a sua alteração, devem ser remetidos para
conhecimento da Assembléia da República (MOÇAMBIQUE, 2014a, p. 4).
e por que é que não chega esse é o problema (Entrevista com CDRM;
outubro de 2015).
123 Para se ter ideia dos esquemas e circuitos da comercialização ilegal das pedras preciosas,
sobretudo o rubi e a turmalina em Moçambique, sugerimos o artigo A vulnerabilidade socioambiental
no contexto da exploração das pedras preciosas e semipreciosas em Namanhumbir, Distrito de
Montepuez (Moçambique), entre 2004 e 2011, Revista do Departamento de Geografia- USP, volume
29 (2015), p. 34 a 58.
261
Desde a aurora do século passado, ficou evidente para a grande parte das
potências mundiais que a posse ou o controle de recursos, de infraestruturas e de
tecnologias energéticas modernas seria essencial para garantir, no futuro a
capacidade de defesa e de lidar com possíveis agressões externas. O suprimento
das necessidades energéticas de um país, isto é, a segurança energética, entendida
por Oliveira (2015, grifo do autor) como o nível ideal de disponibilidade de energia
para manter taxas razoáveis de crescimento econômico, está na origem das
disputas, expansão e tensões mundiais.
De fato, não é difícil enumerar as perturbações de origem energética que, no
entanto, afetaram profunda e decisivamente a política e o sistema internacional.
263
Nesse sentido, eventos como (i) a Doutrina Nixon (1969) caracterizada pela
desvinculação do dólar ao padrão ouro em 1971 e o primeiro choque petrolífero em
1973; (ii) a revolução iraniana e o segundo choque do petróleo entre 1979/1980,
bem como o aprofundamento da globalização financeira, as privatizações e a
desregulamentação, o colapso do bloco Soviético, fim da guerra fria e o "triunfo" do
capitalismo, acontecimentos que afetaram a política externa e a segurança
internacionais, estão diretamente associados à crise do petróleo (OLIVEIRA, 2015).
Portanto, esses aspectos trouxeram à tona a importância dos bens naturais,
sobretudo os energéticos como elementos que garantem a manutenção das taxas
de crescimento econômico, a segurança política militar e a soberania do Estado. Na
verdade, a importância da segurança energética é tal que é impossível, atualmente,
um país assegurar padrões de vida moderna, ou reduzir os níveis de pobreza, sem o
acesso à energia, uma vez que, da produção à logística, adentrando para os
serviços mais complexos como, por exemplo, a manutenção do funcionamento das
capacidades de um Estado moderno, o consumo de energia tornou-se a base desse
denso e extraordinário processo de modernização (WORLD COAL ASSOCIATION,
2012; OLIVEIRA, 2015).
Em função disso, aumentam, em diversas partes do mundo, os conflitos
decorrentes da necessidade de controlar (hard Power) ou exercer influência (soft
Power) sobre os países que têm comprovadas ou potenciais, reservas de distintos
recursos, inclusive fontes energéticas dos quais o petróleo, o gás natural, o carvão
mineral e outros. E a presença, cada vez maior, de consórcios americanos e
chineses na África é exemplo evidente da corrida energética em curso.
Desse ponto de vista, a ação e a coerção ao gosto das corporações
transnacionais ocidentais ou dos recém ingressados na corrida capitalista (China,
Índia e Brasil124, além da tradicional a África do Sul) definirão o padrão, a densidade,
bem como a brutalidade desses conflitos e, portanto, as configurações da chamada
geopolítica da energia. Segundo Oliveira (2015, p. 6) a geopolítica da energia é
A análise do conjunto dos elementos geopolíticos e estratégicos que
influenciam o controle de reservas de recursos energéticos, das tecnologias
de exploração, da infraestrutura energética, do transporte e uso final da
124 Estes países que junto com a Rússia e África do Sul compõem os BRICS continuarão sendo os
principais focos de consumo de energia e de outras matérias-primas fruto do seu crescimento
econômico e demográfico. Dados da ONU (2017) elencam a Índia, a China e o Brasil, além dos EUA,
na lista dos países cuja população deverá crescer rapidamente. Enquanto a China perderá a sua
posição em favor da Índia, os EUA cederão lugar para a Nigéria; o Brasil deve assumir o 7º lugar no
ranking dos 10 países mais populosos do mundo, em 2050.
264
Esses dois países, além de maiores consumidores do carvão mineral, são também
maiores produtores e detentores de reservas comprovadas desse minério.
De acordo com o World Coal Association (WCA, 2012), atualmente, o carvão
mineral é a segunda fonte de produção de energia e, responde por 30% da
demanda primária de energia e 41% da geração de eletricidade em nível mundial.
Esse percentual poderá aumentar até 2030, período no qual o consumo mundial do
carvão mineral deverá ultrapassar sete bilhões de toneladas por ano. Nessa etapa,
estima-se que 50% da eletricidade mundial serão produzidos a partir carvão mineral
e, os países pobres serão responsáveis por 97% desse crescimento.
Corroborando o WCA, dados da International Energy Agency (IEA, 2016)
indicam que o carvão continua sendo a fonte primária para a geração de
eletricidade. Em 2014, por exemplo, 65,5% do carvão comercializado em nível global
foram usados para a geração de energia. Na verdade, apesar dos efeitos ambientais
negativos (contaminação do solo, da água, do ar) do carvão a sua existência em
quantidades e em qualidade em quase todo o mundo (o carvão mineral existe em
pelo menos 70 países), bem como o baixo custo de produção em comparação com
a extração do petróleo e do gás determina, em parte, a crescente utilização desse
minério para a produção de energia.
Com reservas estimadas em 860 bilhões de toneladas de carvão de todos os
tipos em nível mundial, o equivalente a 118 anos de consumo nos níveis atuais125, o
carvão mineral é de longe uma das maiores "promessas" do futuro energético global
em comparação com o gás e petróleo, cujas reservas comprovadas indicam para 46
e 57 anos de exploração, mesmo considerando todo o aparato tecnológico que tem
sido aplicado nesse setor (WCA, 2012). No que tange à distribuição das reservas
por países, os EUA lideram a lista com 27% das reservas mundiais comprovadas;
Rússia com 17% e a China com 13%. Juntos os três países respondem por 57% das
reservas globais. Enquanto isso, a Índia, a Austrália, a África do Sul, a Ucrânia, o
Cazaquistão e a Iugoslávia detêm 33% dessas reservas, totalizando 90%, sendo
que aos outros países do mundo, incluindo Moçambique albergam os restantes 10%
(PLANO NACIONAL DE ENERGIA, 2007).
Na África Subsaariana, a África do Sul é o líder absoluto e detém em seu
território aproximadamente 70% das reservas totais comprovadas de carvão mineral
nesta região. Esse país destaca-se, também, como o único, em nível da região, que
tem investido intensamente em tecnologias limpas, as denominadas Coal clean
Technologies (CCT) que possibilitam maior aproveitamento desse recurso. Vale
lembrar que, desde 1995, a África do Sul produz combustíveis líquidos, a partir da
liquefação do carvão mineral usado, tanto em carros e em outros veículos
motorizados quanto em jatos comerciais.
A seguir a África do Sul, o Zimbabwe com 5.02 bilhões de toneladas possui a
segunda maior reserva de carvão mineral na região (Tabela 2). Moçambique com
2.5 bilhões; Tanzânia com 200 milhões e Nigéria com 190 milhões encerram a lista
das cinco maiores reservas de carvão mineral em nível da África subsaariana. Essa
riqueza mineral que não é, nem de longe, a metade das reservas minerais dessa
região, atiça a cobiça dos consórcios internacionais na grande maior apadrinhados
pelas IFIs, ou proveniente do outro eixo de poder mundial, isto é, a Ásia.
Na tabela 2, chama atenção a posição relativamente confortável ocupada por
Moçambique em termos de reservas comprovadas de carvão mineral. É importante
destacar que a quantidade de reservas apresentadas na tabela difere do que nos foi
dito pelo CDRM (2015). De acordo com ele, "só a bacia carbonífera de Moatize tem
reservas estimadas em 120 mil milhões, isto é, 1.2 bilhões de toneladas, das quais
850 milhões estão dentro da área concessionada à Vale" (Entrevista com o CDRM;
outubro 2015).
Portanto, detentora duma das maiores reservas de carvão mineral na África e
uma das maiores barragens de produção de energia (2.075 megawatts atualmente),
Moçambique apresenta uma crônica dependência pela importação de combustíveis
líquidos e baixos índices de eletrificação, sobretudo em níveis dos postos
administrativos e dos povoados. Dados da empresa Eletricidade de Moçambique
(EDM, 2014) apontam que em 2011, 107 sedes distritais, de um total de 151 tinham
acesso a energia elétrica da rede nacional. Apesar disso, Moçambique exporta
energia para os seguintes países: Malawi, Zimbabwe, África do Sul e Botsuana, a
partir de 2018.
268
126 No livro Charm offensive: how China’s Soft Power is transforming the world, Joshua Kurlantzick,
demonstra que desde o início dos anos 2000, as lideranças de Beijing iniciaram uma ofensiva
estratégica e diplomática pelo mundo afora, a qual visa transmitir a ideia de que a China quer paz e
269
estabilidade com todos os países, sobretudo com aqueles com que partilha as fronteiras, tal política
ficou conhecida por Peaceful Rise, ou seja, ascensão pacífica (KURLANTZICK, 2007).
Foi exatamente nesse período que a China iniciou a sua ofensiva e expandiu-se para muitos países,
principalmente africanos visando satisfazer seus interesses estratégicos, especialmente o acesso a
bens naturais, em ênfase para o gás e petróleo; garantir o mercado para as exportações chinesas de
baixo custo; legitimidade política em fóruns internacionais baseado no princípio da não ingerência nas
questões políticas de seus parceiros africanos, a prosperidade, segurança e estabilidade no
continente para o bem-estar dos africanos e, sobretudo para a segurança dos investimentos chineses
e continuidade de seus negócios (HANAUER e MORRIS, 2014).
127 A Índia é o terceiro maior produtor mundial de carvão mineral. Entre 2013 e 2014, por exemplo, o
país produziu aproximadamente 600 milhões de toneladas métricas ficando atrás apenas dos EUA
com 900 e da China com 4.000 milhões de toneladas métricas no período em análise (MINISTRY OF
COAL, PROVISIONAL COAL STATISTIC, 2013- 2014). Disponível em:
<http://www.coal.nic.in/sites/upload_files/coal/files/coalupload/provisional1314_0.pdf>. Acesso em: 12.
jul. 2017.
270
160,00
140,00
Em quadrilhões de Btu
120,00
100,00
80,00
60,00
40,00
20,00
0,00
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
128 Após atingir US$ 42 em 1990, com a invasão do Kuwait pelo Iraque, nos anos seguintes o preço
do barril do petróleo teve uma tendência decrescente até atingir menos de US$ 30 em maio de 2001.
Crude oil price history 1970- 2014. Disponível em: < https://ktwop.com/tag/oil-price/> Acesso em: 12
jul. 2017.
271
1.400,00
em milhões de toneladas
1.200,00
1.000,00
800,00
600,00
400,00
200,00
0,00
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
dos preços do carvão metalúrgico, frente aos preços estáveis do carvão de queima,
exerceu um peso significativo nos níveis da demanda pelo coque. A outra razão tem
a ver com a baixa capacidade de oferta mundial do carvão metalúrgico, fato que
resultou na super valorização do preço do carvão de coque. De fato, dos anteriores
US$ 155 a tonelada em 2009, a mesma quantidade passou a ser transacionada por
US$ 190 em 2010 e, no ano seguinte atingiu o pico de US$ 300 a tonelada.
Portanto, dada a volatilidade do preço do carvão mineral, assim como a sua
relação com a crise energética e do sistema internacional acreditamos ser difícil
augurar o peso e a composição do mercado desse minério. No entanto, sabe-se que
o ritmo da demanda por carvão está condicionado a um ou mais fatores como, por
exemplo, os acordos entre os países produtores de petróleo e do gás (primeira e
segunda maiores fontes de geração de energia no mundo), pois a maior
disponibilidade desses combustíveis influenciará seu preço, assim como determinará
a opção pelo gás em detrimento do carvão mineral, já que ele é potencialmente
menos poluente. Adicionalmente, a linha da procura dependerá, também, das
estratégias energéticas desenhadas mundialmente, sobretudo na Índia e na China
que, conforme fizemos referência nos últimos anos, tornaram-se intensivos do ponto
de vista do consumo de energia.
Dito de outra forma, o nível do consumo do carvão estará sujeito, em boa
medida, à forma como se processarão a procura e a oferta do mercado interno dos
grandes consumidores do carvão da Ásia e do mundo, bem como a tendência dos
preços do petróleo. Há evidências de que, desde outono de 2014, o preço do
petróleo vem caindo, além disso, tanto a China quanto a Índia têm investindo
bastante na construção de infraestruturas logísticas e na abertura de novas minas
de carvão em seus territórios o que potencialmente conduzirá ao aumento da
produção doméstica e a redução da dependência externa (IEO, 2016).
Por exemplo, entre 2014 e 2015 o governo chinês introduziu uma série de
medidas protecionistas que visam estimular a indústria carbonífera nacional. Esses
mecanismos incluem o estabelecimento de um limiar sobre as quantidades de
enxofre e de cinzas aceitos para o carvão importado, bem como a fixação de
impostos sobre as importações que variam de 3% do valor total para o carvão
antracito e de coque e 6% para o carvão térmico (IEO, 2016). Portanto, em função
de tudo isso, concorda-se com Oliveira (2015) ao explicar que o futuro do mercado
mundial do carvão mineral dependerá desses ou de mais fatores nomeadamente,
274
da África do Sul produzem não para o mercado nacional, mas para a exportação. É
isso que acontece tanto com o carvão mineral de Moatize quanto com o gás natural
e o alumínio, produzidos em Temane e Beleluane respectivamente. Portanto,
enquanto o carvão mineral arrancado do "ventre" de Moatize segue longas viagens,
sobretudo para a Ásia, o gás natural extraído em Pande e Temane, atravessa
comunidades inteiras desde o Norte de Inhambane até a região de Secunda na
África do Sul, de onde é refinado e vendido para Moçambique.
Na verdade, a expansão capitalista, condição para a manutenção da roda de
acumulação, visa à conquista de espaços estratégicos que possibilitem a exploração
da terra em todas as direções ou a descoberta de novas coisas úteis, isto é, novas
qualidades úteis das coisas antigas. Por outro lado, esse movimento permite
deslocar muitas das contradições internas do capital que, independentemente do
tempo de duração, sempre conduz à mudança estrutural no ciclo de reprodução do
capital, ou seja, aquilo que Mészáros (1989, p.59), denominou de "transformação
radical da produção genuinamente orientada para o consumo em destruição".
Num artigo recente, Gilson Dantas rastreou as tendências de formação de
crises no seio do sistema capitalista, bem como as estratégias acionadas para adiá-
la. Nessa pesquisa, Dantas (2013) demonstra que, desde cedo, o capitalismo
sobreviveu adiando as crises gestadas em seu próprio ventre e ele dá exemplos. No
final da década de 1970, por exemplo, o sistema conseguiu adiar a implosão da
crise reprimindo os movimentos sociais e sindicais, arrancando audaciosamente às
conquistas laborais até então amealhadas (a batalha travada entre o governo de
Thatcher e os sindicatos das empresas mineradoras), esmagando a revolução
polonesa em 1981 e, impondo a agenda neoliberal.
Todavia, nem mesmo essa engenharia tem conseguido impedir a formação
de hiatos, após períodos relativamente longos de estabilidade do sistema capitalista.
As duas crises, após Segunda Guerra Mundial, são exemplos dessas rupturas que,
com frequência, exigem mudanças estruturais. Junto a essas bolhas, cresce,
também, um movimento proletário cada vez mais organizado e disciplinado (a
transformação e a disciplina da China), portanto, um elemento adicional que ameaça
a continuidade do ritmo e da rentabilidade do processo produtivo capitalista.
Seja como for, os crashes, ou Katrina financeiro, para usar a expressão de
Harvey (2011), suscitam, quase sempre novas fórmulas na aplicação ou absorção
do excedente do capital produzido em outras alhures, invertendo desse modo, a
279
129 Cf., PAKENHAM, Thomas. The scramble for Africa. London: Abacus, 1991.
280
casos é, embora não de tudo culpada, a causa desse marasmo. Além disso,
mascara a ganância e os audaciosos planos capitalistas (controle de espaços e de
recursos estratégicos) não só do Norte Global, mas também de alguns países do
Sul, no âmbito da cooperação Sul - Sul.
Portanto, em seu novo formato, o sistema capitalista procedeu, sob o trono da
empresa transnacional, à integração simultânea que mescla mercadorias, trabalho e
tecnologia; porém, exclui o trabalho, já que esse é o manancial para a extração da
mais- valia, conforme explica Chesnais (1996). É, no entanto, a sua ação violenta
que anuncia que, para o império do capital, tudo vale, inclusive a repressão,
sobretudo, em coalizão com o Estado.
Para tanto, atravessam-se comunidades inteiras, aniquilam-se as formas de
produção ditas primitivas ou tradicionais e, com frequência, tachadas de atrasadas e
barreira ao processo de modernização capitalista; destroem-se as condições
materiais de vida, sejam o solo, subsolo, minerais, ar e outros, privatiza-se tudo,
inclusive a água, tudo em nome do progresso, a trama da inserção e da
expropriação contínua do Sul Global. Com filiais espalhadas pelo mundo todo,
porém conservando as suas bases nacionais, as corporações transnacionais muitas
vezes apoiadas por seus Estados, mobilizam a terra e todos os recursos em seu
redor para a realização de Grandes Projetos de Investimentos (GPI), numa região ou
em várias simultaneamente.
De natureza diversa e objetivos inversos aos que são formalmente
anunciados, os grandes investimentos diferem, tanto em forma e tamanho, quanto
no tempo de duração entre a idealização e a concretização. Os GPI diferem,
também, pela magnitude dos efeitos causados na economia, na paisagem social e
política da região e de seu entorno. Visto sob esse ângulo, os Grandes Projetos de
Investimento, tanto podem ser hidrelétricas, pontes, rodovias, planos de colonização,
plantas de mineração e sua respectiva estrutura logística, quanto grandes projetos
de agronegócio, como por exemplo, o controverso projeto Prosavana no corredor de
Nacala. Eles podem ser, igualmente grandes obras de infraestruturas que suscitam
deslumbramento a grande maioria da população, o canal de Panamá, a Sydney
Opera House, são alguns exemplos de infraestruturas de grande porte que atraem a
atenção de centenas de milhares de pessoas.
Para Vainer e Araújo (1992, p.34, grifo nosso), os grandes projetos de
investimentos são empreendimentos que consolidam "o processo de apropriação de
281
um dos grandes pesquisadores na área dos megaprojetos. Entrevista publicada na Revista Insight,
The global infraestructure magazine. n. 4, 2013, 76p.
283
Foto: Wordpress.com
por exemplo, a África do Sul. E, por outro lado, esse deficit representa também um
campo de oportunidades para que o capital possa aplicar os excedentes de capitais
produzidos em outras regiões, conforme lembra Harvey (2005).
Em Moçambique, os empreendimentos de grandes dimensões e alto custo
socioambiental recebem a designação de megaprojetos. No país, a denominação
megaprojeto considera, em grande medida, a quantidade de capital investido para a
realização desses empreendimentos. Esse tipo de análise que consideramos de
cunho economicista tem como principais referências os professores Carlos Nuno
Castel-Branco e João Mosca. Portanto, dada a natureza recente da transformação e
da dinâmica socioeconômica do país, o uso do termo megaprojetos, pelo menos em
pesquisas é atual e está diretamente relacionado a cada vez mais ativa participação
do Investimento Direto Estrangeiro na dinâmica de acumulação capitalista em
Moçambique.
De fato, o boom do IDE verificado no período entre 2002 e 2014 que no pico
atingiu US$ 4,7 bilhões, gerou certa efervescência na economia nacional, a
revolução no PIB entremeado da ilusão de desenvolvimento. Concomitantemente,
produziu rápidas transformações na paisagem rural e urbana das cidades de
Nampula (centro da malha ferroviária da região Norte de Moçambique), Tete (centro
político e administrativo) somente alguns exemplos.
De natureza intensiva e com efeito atomizador, no sentido de que, os
megaprojetos se moldam como um núcleo mais ou menos denso que atrai para o
seu entorno uma variedade de médios e pequenos empreendimentos, os grandes
projetos alimentaram debates e pesquisas diversas, assim como a retórica e a farsa
do fim do desemprego e da pobreza em Moçambique. Mais do que isso, os
megaprojetos hipnotizaram as lideranças políticas nacionais e mascararam as
dificuldades históricas do processo de acumulação do capital no país; carburaram
discursos políticos pretensamente otimistas em relação ao desenvolvimento, como
também geraram a destruição ambiental, o enriquecimento de uma parcela de
moçambicanos, conflitos sociais e político, o recrudescimento do crime, mas também
o advento de um "novo" tipo de crime, os raptos e a caça às pessoas portadoras de
albinismo. Alguns desses aspectos serão detalhados na parte 5.
Assim, buscando descrever a fisionomia desses novos elementos que de
súbito passaram a dominar o discurso político, acadêmico e da sociedade
moçambicana, Castel-Branco (2008, p.1) define os megaprojetos como "atividades
287
Para Xiong (2014) um dos aspectos comuns aos projetos que operam em
Moçambique é o fato de, serem projetos de grandes dimensões financiadas por
investimento estrangeiro; concentram-se na apropriação dos bens naturais, inclusive
os recursos hídricos; são intensivos em capital, porém não geram emprego
proporcional; a produção é destinada à exportação e, por vezes investem em
infraestruturas destinadas a fins específicos que não servem ao público em geral.
Com uma leitura mais focada no quadro legislativo sob o qual operam os
megaprojetos em Moçambique, Mosca e Selemane (2011, p.15) afirmam que
megaprojetos são "os empreendimentos do setor minero-energético que no geral
têm recebido investimentos iniciais não inferiores a USD 500.000 (quinhentos mil
dólares americanos), que se beneficiam de incentivos fiscais, de excepcionalidades
legais e de facilidades de operação de que nenhumas outras entidades econômicas
gozam".
Nos três conceitos apresentados, é bastante clara a importância atribuída ao
capital inicial investido, até porque esse é das características que permite a distinção
entre várias categoriais de investimento. Tanto no conceito de Castel-Branco e Xiog,
quanto no de Mosca e Selemane é possível observar, a presença de pelo menos
dois, dos seis C's enunciados por Frick (2005). Em Castel-Branco e, sobretudo em
Xiong nota-se a preocupação com questões como os destinatários desses
investimentos, algo como o controversial na caracterização de Frick.
De todo modo, os conceitos apresentados contêm elementos fundamentais
para análise que nos propusemos fazer nesse estudo. Todavia, isso não impede de
288
131Moçambique continua com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo.
De acordo com RDH (2015), o IDH é de 0, 416, aproximadamente 0,42 numa escala que varia de 0 a
1. Esse índice coloca o país na 180ª posição num conjunto de 188 países avaliados, ficando a frente
somente de países como Níger, República Centro Africana, Eritréia, Chade, Serra Leoa, entre outros
na sua grande maioria, em situação de guerra e/ou de instabilidade política.
Preocupa-nos saber, contudo, que Moçambique está na lista dos países com IDH baixo e está em
baixo de países como Sudão do Sul (mais novo país da África, desintegrado do Sudão em 2011),
289
revelado o contrário. Seja como for, essa característica revela também a tendência
extrativista da economia moçambicana, ou seja, há indícios de que a economia
nacional tende a transformar-se numa economia extrativa132, segundo Castel-Branco
(2010).
Portanto, considerando algumas características dos megaprojetos: a natureza
extrativa, o volume de capital investido, o potencial para gerar deslocamentos
compulsórios, a controvérsia e a (ir) racionalidade construída em volta desses
empreendimentos, fica evidente que não há diferenças, pelo menos no que se refere
a aspectos básicos, do que é designado megaprojeto, grandes projetos, grandes
empreendimentos e grandes projetos de investimentos. No nosso entender as
possíveis diferenças situam-se mais no plano léxico e não propriamente semântico,
uma vez que a expressão megaprojetos é de uso corrente na literatura inglesa,
sobre os grandes projetos de investimentos.
Em Moçambique, no qual a grande maioria das pesquisas e debates nesse
campo adota a denominação megaprojetos, as reformas realizadas pelo Estado,
tanto em nível da orientação política - ideológica, como na legislação atraíram para o
país diversos projetos. Esses empreendimentos considerados motores do
desenvolvimento econômico nacional concentram-se, sobretudo no setor extrativo
de recursos minerais. Não obstante, nota-se também a presença de massivos
investimentos no setor do agronegócio. O mapa 6 apresenta alguns desses grandes
projetos, com ênfase para aqueles destinados à extração e/ou processamento de
recursos minerais, incluindo o gás natural.
Mapa 6- Grandes empreendimentos minerais em Moçambique
Uganda, Ruanda, mesmo reconhecendo que Moçambique avançou significativamente, pois em 1980
o IDH moçambicano era de 0,24. O RDH de 2015 demonstra o fraco desempenho nas componentes-
chave do desenvolvimento (educação, saúde, emprego, segurança). Na educação, por exemplo, a
média dos anos de escolaridade é de 3,2, contra 8,9 do Botsuana, 6,0 da RDC.
Mais detalhes, ver PNUD. Relatório do desenvolvimento humano 2015: o trabalho como motor do
desenvolvimento. New York, USA, 2015. 310p.
132 Castel-Branco (2010, p.12, grifo nosso) considera as seguintes: (a) especialização na produção e
1.5 COOPERAÇÃO SUL - SUL: uma nova política externa para África?
com o aval da burguesia nacional africana e do Estado pós- colonial. Essa tendência
leva-nos acreditar que há um audacioso plano para África, um novo mapa elaborado
ou reelaborado, quer pelos países do capitalismo central e, mais precisamente por
aqueles do capitalismo periférico, que tem como centro de projeção de forças e de
disputas o continente africano.
Portanto, a releitura das condições e, sobretudo do papel do continente
africano na constituição do moderno sistema-mundo que teve de pronto, a Europa
como o centro de gravidade e a América Latina a condição sine qua non dessa
formação, nos revela que a África nasceu para servir aos interesses alheios e não
propriamente aos seus. Enquanto a América Latina "se desenvolveu em estreita
consonância com a dinâmica do capitalismo internacional", conforme explica Marini
(1973, p.8) a África foi importante, tanto na construção e consolidação do
capitalismo, tendo em conta a sua contribuição com a força de trabalho, como na
formação social de alguns países latino- americanos de considerável peso na atual
geopolítica mundial e, o Brasil é um bom exemplo disso.
Não obstante, a mais recente investida sobre os mercados africanos e,
principalmente os bens naturais africanos faz coro ao título do livro A pilhagem da
África: a economia de exploração do pesquisador sul- africano Patrick Bond. Nele,
Bond faz uma radiografia do passado do continente e os fatos não oferecem
margens de dúvidas sobre esse processo; a gênese da desestruturação societal e
do marasmo africano. Ou seja,
O legado histórico de um continente pilhado: comércio forçado datando de
séculos atrás; escravidão que desarraigou e desapossou cerca de 12
milhões de africanos; tomada de terras à força; regimes de tributação
perversos, exigindo sacrifícios; os metais preciosos feitos desaparecer; a
apropriação de antiguidades; a emergência de ideologias racistas no século
dezenove para justificar o colonialismo; o retalhamento da África em
territórios disfuncionais feito em 1884/5, numa sala de negociação em
Berlim; a construção de sistemas de povoamento colonial e de extrativismo
colonial; a retirada de trabalhadores negros emigrantes das áreas rurais
(deixando, conseqüentemente, mulheres com responsabilidades
imensamente elevadas), entre outras (BOND, 2007, p. 1-2).
133 De entre outros aspectos a PEI defendia "apoio decidido ao anticolonialismo; reconhecimento e
atribuição da devida importância aos interesses e aspirações comuns ao Brasil e às nações da África
e da Ásia e o estabelecimento e estreitamento de relações com os Estados africanos" (CAMPOS,
2015, p.14).
296
Sem tocar diretamente nas questões que mais interessavam aos diplomatas e
a diplomacia brasileira, a retórica da solidariedade, de apoio à autodeterminação e
as independências africanas não demorou a esgotar-se. A partir de então, refina-se
e reelabora-se o discurso da dívida secular que o Brasil tem com o continente, essa
oratória foi um dos principais testamentos da forte ofensiva diplomática brasileira
levada a cabo pelo ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
A despeito dos esforços empreendidos pelo governo de Jânio Quadros e os
outros governantes subsequentes, as boas relações que o Brasil cultivava com
Portugal, limitavam, por um lado, a sua atuação, expansão e a tomada de uma
posição mais truculenta em relação aos mercados africanos. E por outro, essa
aproximação catalisava o sentimento de desconfiança da parte das lideranças
africanas e dos Estados recém criados. Na verdade, por força do Tratado de
Amizade e Consulta firmada entre os dois países, a relação entre os países
africanos e o Brasil não conheceu avanços expressivos enquanto durou esse
memorando.
Lessa e Pena Filho (2007, p. 65) são enfáticos nisso
Um dos aspectos mais importantes do Tratado de Amizade e Consulta para
as relações entre o Brasil e a África foi o bloqueio do acesso brasileiro às
províncias ultramarinas, notadamente as africanas, ao mesmo tempo que
Portugal obtinha do Brasil a garantia de que as relações especiais entre
ambos permaneceriam. Assim, acabou servindo como importante
instrumento em mãos do governo português para obter apoio brasileiro em
questões internacionais, sobretudo no que dizia respeito ao colonialismo, o
principal assunto a envolver o Estado luso nas relações internacionais do
pós- guerra e pano de fundo de suas relações com o Brasil.
flancos para futuros acordos comerciais. Sua política externa foi sempre pautada
pelas questões econômicas, tal como explica Lechini (2008, p. 58) que
Nas questões Sul - Sul, o Brasil se considerava parte do Terceiro Mundo
sem ser terceiro- mundista. Portanto, o país nunca integrou plenamente-
participou apenas como observador- o Movimento de Não - Alinhados. A
política exterior brasileira se organiza em torno da hipótese dos 3D:
desarmamento, desenvolvimento econômico e descolonização.
Num contexto mais amplo, o desinteresse pela África por parte dos governos
brasileiros entre as duas décadas (1980 e 1990) espelha, dentre outros aspectos: as
dificuldades internas e o esgotamento do próprio modelo de desenvolvimento
abraçado pelo Brasil; os constrangimentos pelos quais passava a economia dos
EUA e da Europa, mas também a ideia enviesada de que para a inserção
internacional do Brasil, a África era menos relevante; fato que a própria evolução da
302
por organismos internacionais (BM, FMI e Freedom House), que o professor expõe,
de maneira inequívoca, o recente turning point do continente africano, rebatendo,
por conseguinte, a ideia da marginalidade da África ou de sua pouca importância no
desenho das relações internacionais no presente.
Nas suas palavras rebate
Ledo engano. A África jamais foi marginal, nem no passado nem no
presente. O conceito da marginalidade africana é insustentável, teórica e
empiricamente. Não são apenas os africanos que se insurgem contra essa
escatologia, mas a massa de literatura atualizada acerca dos desafios
africanos no xadrez da política internacional (SARAIVA, op.cit., p.85).
do século XXI, a África e seus povos foram tomados de "assalto", não só pelos
"outros", no dizer de Mia Couto134, mas por esses e mais outros (avalizados pelos
"donos da casa") sob a moldura da cooperação Sul - Sul.
Colocando em marcha o plano da diplomacia ao serviço da economia,
conforme diz Menezes (2013), o Brasil inaugura com o primeiro governo do ex-
Presidente Lula da Silva uma nova fase da sua política africana. A nova etapa
mescla "solidariedade" reelabora a premissa da histórica dívida dos três séculos de
escravidão, já ensaiada nos governos anteriores, e passa em revista as relações
econômicas e políticas entre os dois povos. Portanto, a ofensiva diplomática do
governo Lula é descrita por Marshall (2014, p.174) da seguinte forma,
O ex-presidente do Brasil, Lula, fez da trajetória Sul- Sul para África uma
característica normal da sua vida política durante e após seus dois
mandatos. Em toda África, ele é tido em alta estima como líder de libertação
nacional, no panteão de Nelson Mandela da África do Sul ou de Samora
Machel de Moçambique.
Todavia, foi depois dos dois governos de Lula da Silva, que o ex- Presidente
viria a clarear o incentivo que o seu governo deu à burguesia brasileira e as suas
respectivas empresas para se dirigirem à África. Além de "namorar" o apoio africano
para as pretensões do Brasil, no que diz respeito à obtenção de uma vaga no
Conselho de Segurança das Nações Unidas (juntos os países africanos representam
mais de 30% dos votos em organizações internacionais, das quais a ONU),
ampliando, por conseguinte, o seu poder de barganha, assim
A presença econômica do Brasil na África [era motivo de] orgulho, quando
empresas brasileiras se transformam em multinacionais. E o lobby do seu
governo para a instalação da Vale em Moçambique era pela necessidade
de o Brasil ter acesso ao carvão? Deixa eu te contar por que eu falo muito
dos empresários. É por que nós, os dirigentes, políticos, fazemos o
discurso, o Itamaraty prepara o memorando, mas para as coisas
acontecerem tem que ter agentes que vão fazer as coisas acontecerem.
Você percebe? (Lula da Silva entrevistado por ROSSI, 2015, p.52, grifo
nosso).
Por isso, a inserção brasileira no mundo africano teve como a face mais
visível as questões econômicas e poucas ações filantrópicas. De acordo com Rossi
(op.cit., p.52) em uma década, isto é,
306
Entre 2003 e 2013, o comércio exterior entre as duas regiões subiu de 6,1
para 28,5 bilhões de dólares, acrescimento acima do registrado pela
balança comercial brasileira em geral. Ainda assim, a África continua a
representar apenas uma pequena parcela da balança total, 6%. É pouco,
mas suficiente para fazer do continente nosso quinto maior comprador,
atrás da China, Estados Unidos, Argentina e Países Baixos- além de ser
nosso maior fornecedor de petróleo. Na mesma década, pelo menos
quinhentas empresas brasileiras se instalaram em países africanos- em
1995, havia apenas treze, segundo cálculos do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC). A maior é a Vale, que
planeja investimentos de 8, 2 bilhões de dólares em Moçambique.
Diante desses fatos, fica claro que as formas de atuação; o lobby feito pelo
governo brasileiro em favor da inserção das firmas brasileiras no mercado
internacional cumpre o audacioso plano de integração internacional do Brasil, bem
como os acordos firmados entre essas empresas e o BNDES. A partir desse
entendimento, queremos negar, parcialmente a ideia de que a Vale contratou
empresas brasileiras135, pois Moçambique e a região não dispõem de empresas
capacitadas e organizadas para atender as demandas produtivas da Vale, pois, tal
como mandam os contratos de financiamentos ou apoio às firmas brasileiras, a
contratação de empresas e o uso de produtos brasileiros, é parte das cláusulas de
financiamento do BNDES.
Em Moçambique, dentre outros investimentos de pequeno porte, a presença
do Brasil no país é marcada pela mineradora Vale. Um projeto de grandes
dimensões que conta não só com a mina de Moatize, mas também com uma
estrutura logística que demandou a duplicação da ferrovia e a construção de um
135 Além das empreiteiras que participaram na construção de várias infraestruturas, como por
exemplo, o aeroporto internacional de Nacala, na província de Nampula construído pela Odebrecht, a
Vale contratou igualmente a Diagonal, empresa responsável pelo estudo de mercado para a compra
de habitação paras as 106 famílias de Moatize que se recusaram integrar os dois grupos de
reassentados criado pela Vale no âmbito do reassentamento de Moatize (Entrevista com supervisores
da área social da Vale; outubro 2015).
A Diagonal- transformação de territórios é uma empresa de consultoria que integra várias dimensões:
social, econômica, jurídica, urbanística, ambiental e de engenharia, organizada em quatros áreas
principais de atuação. Tem sede a sua sede em São Paulo e possui escritórios em Recife e em
Maputo Moçambique. Foi esta empresa encarregada pelo levantamento de número de pessoas e
pagamento das compensações das pessoas atingidas pelo traçado da nova linha de trem construída
pela Vale para escoar o carvão mineral de Moatize para o porto de Nacala a velha.
312
ramal que estabelece a ligação entre a anterior linha, o terminal portuário do carvão
em Nacala a velha, litoral da província de Nampula.
Portanto, mais do que benefícios tal como é apresentada, a presença desses
projetos tem efeitos diversos na estrutura social das comunidades direta ou
indiretamente impactadas. Porque, além de produzir novas relações sociais de
trabalho; dada a natureza desses projetos, sua atuação em Moçambique cria, nas
cercanias desses empreendimentos, um exército de força de trabalho, apto para ser
explorada, condição para a sua reprodução social (LUXEMBURG, 1976).
Por outro lado, a inserção desses empreendimentos intensivos em capital e
de alto custo socioambiental, não só "amplia o espaço no qual se realiza o circuito
mais geral, sem que também se amplie, efetivamente, o de sua reprodução"
(FIGHERA, 2002, p.111).
No campo estrutural, o capitalismo brasileiro transnacionalizado, ainda que
atue com relativa autonomia, ele permanece ancorado aos grandes centros
capitalistas mundiais o que pressupõe a permanência de relações de subordinação.
Portanto, junto com a composição orgânica média na escala produtiva mundial, a
dependência do capitalismo brasileiro, frente aos grandes centros, sugere a ideia de
capitalismo dependente, denominado subimperialismo por Marini (1977).
Valendo-se dessa categoria, Marini buscou explicitar o metabolismo do capital
nas décadas de 1960 e 1970, as questões a ele relacionadas e, mais precisamente,
o nascimento de subcentros econômicos e políticos. Por isso, o subimperialismo
pode ser caracterizado, a partir
a) da reestruturação do sistema capitalista mundial que se deriva da nova
divisão internacional do trabalho e b) em função das leis próprias da
economia dependente, essencialmente: a superexploração do trabalho; o
divórcio entre as fases do ciclo do capital, a monopolização extrema em
favor da indústria suntuária, a integração do capital nacional ao capital
estrangeiro ou, o que é o mesmo, a integração dos sistemas de produção
(MARINI, 1977, p.15).
Para Mathias Luce, um dos estudiosos de Marini, a partir desse conceito, Ruy
Mauro Marini buscou estudar
Um fenômeno que possuía diversas dimensões- sendo o esquema de
realização de mercadorias apenas uma delas- e energia como uma nova
realidade que ainda não fora estudada entre autores marxistas. Daí a
proposição de uma nova categoria para emprestar-lhe significado. Além
disso, com o vocábulo subimperialismo Marini buscava definir um fenômeno
para além do caso do Brasil, passível de ocorrer em outros contextos
econômicos- sociais e geográficos do capitalismo dependente (LUCE, 2011,
p. 3).
313
Por essa razão, tanto o capitalismo brasileiro, como de outros países dos
BRICS, por exemplo, a África do Sul apresenta um perfil subimperialista do que
propriamente imperialista. Firmas desses países, ainda que tenham vivenciado uma
forte expansão e transnacionalização, continuam dependentes dos países do
capitalismo central que constituem os principais centros ancoragem desse processo.
Portanto, é como assinala Rodrigues (2015, p.143) que a atuação do Brasil e de
outros países é repleta de
De uma miríade de condições ambíguas e até paradoxais; uma impressão
de globalização que permitem que países como o Brasil ocupe ao mesmo
tempo posição de dominador e de dominado neste campo do poder;
consiste em uma dominação fluída e sutil, mas ao mesmo tempo bastante
objetiva e concreta.
________________________________________________________________
PARTE 4 MEIOS E FORMAS DE VIDA QUEBRADAS
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316
Embora a expressão "nem tudo que brilha é ouro" seja de uso comum, nessa
pesquisa, no entanto, ela sintetiza a narrativa do surgimento daquela que, 75 anos
depois, tornar-se-ia a segunda maior mineradora do mundo. A antiga Companhia
Vale do Rio Doce (CVRD) denominada Vale, desde novembro de 2007, é sucessora
da Brazilian Hematite Syndicate (BHS) e da Itabira Iron Ore Company.
Itabira, ou simplesmente, pedra que bilha em tupi (uma das línguas faladas
pelos povos tupis que habitavam grande parte do litoral brasileiro pré-colonial) era
um pequeno vilarejo que, em finais do século XIX, testemunhava o declínio da
mineração do ouro em Minas Gerais e a fuga de garimpeiros para outras regiões em
busca de trabalho. O pico do Cauê, que até então, constituía o centro de Itabira,
alimentava boatos e mitos que atiçavam grupos de aventureiros em busca de ouro,
uma vez que "nas noites de luar, o monte brilhava como se estivesse iluminado por
refletores pendurados no céu. Mas, como se sabe, nem tudo que reluz é ouro"
(VALE, 2012, p.17).
De fato, o estranho brilho no pico do Cauê não era o tão procurado ouro, mas
Enorme quantidade de ferro. Tratava-se de um ferro avermelhado, que
espalhava sua cor pelo relevo, pelas picadas de barro e pelos rios das
redondezas. Entrava pela casa das famílias e ficava por lá entranhado. Na
317
virada do século XIX para o XX, o pico do Cauê foi mapeado como a maior
jazida de ferro do mundo. A notícia ganhou o planeta. Se os garimpeiros de
ouro desapareciam de Itabira, começara, a aparecer às mineradoras
estrangeiras (idem).
137 O terminal marítimo de Tubarão foi construído com a intenção de ampliar a capacidade de
exportação de minério e reduzir o tempo de espera no porto. O nome Tubarão servia também para
indicar agressividade dos planos audaciosos, porém, destrutivos da Companhia. Este terminal
poderia receber navios com capacidade de transportar até 150 mil toneladas de minério, mesmo que
a maioria da frota mundial da época não passasse de 60 mil toneladas (VALE, 2012).
323
CVRD como empresa pública, as ações até então, controladas pelo governo Federal
foram adquiridos pelo Consórcio Brasil, liderado pela Companhia Siderúrgica
Nacional, cujo lance final foi de R$ 3, 338 bilhões.
No contexto dessa operação, o Consórcio Brasil que posteriormente fundou a
Valepar138 passou a controlar 41,73% das ações. Tal processo que só terminaria em
2000, contou com o apoio financeiro do BNDES em forma de subsídios. Assim, até
finais de julho de 2017 a Vale S.A. tinha capital total avaliado em US$ 51.303,13
milhões e a seguinte composição acionária: Valepar com 53,88% das ações
Ordinárias Nominativas139; seguido pelos investidores estrangeiros com 32,75%;
investidores brasileiros (6,89%) e o governo Federal por meio do BNDESpar
(6,48%) (VALE, 2017, VALE, 2012).
Portanto, enquanto decorria o processo de privatização, a CVRD iniciou o
plano de reorganização ou reestruturação dos recursos humanos eliminou, para
tanto, as antigas funções e colocou na órbita do capital uma legião desempregados.
Entre 1996 e 1997, por exemplo, perto de 5.000 postos de trabalho foram
eliminados, ação essa que continuou nos anos subsequentes. Concomitante a isso,
a Companhia não só criou unidades de negócios (celulose e papel, minério de ferro
e alumínio, um centro corporativo) consideradas estratégicas para a inserção no
mercado global, mas também passou a investir intensamente no setor de pesquisas
e desenvolvimento tecnológico (P&D) mediante acordos de parceira e cooperação
com Universidades e instituições de pesquisas.
Thomaz Júnior (2002, p.136) ao analisar o processo de incorporação da
tecnologia na produção capitalista, fruto da pesquisa científica garante que a
Tecnologia em si não está contra o trabalho, ou contra o trabalhador, mas
sim, ela está a favor do capital, isto é, o trabalho de pesquisa técnico-
científica se dá dentro dos moldes e prioridades da produção/reprodução do
capital, onde a descoberta (máquinas e outros) é a síntese da própria
acumulação do capital.
138 É um consórcio composto pela Litel participações S.A. controlado pela PREVI (caixa de
previdência dos funcionários do Banco do Brasil) Elétron S.A., Bradespar S.A., Mitsui e BNDSpar
holding do BNDES e um grupo acionário minoritário ligado ao Banco Opportunity (VALE, 2012,
RODRIGUES, 2016 .
139 Ações Ordinárias Nominativas (ON) são aquelas que dão aos investidores, acionistas ou seus
detentores o direito de voto nas assembléias da empresa, ao contrário, das Ações Preferenciais (PN),
que não dão esse direito. De todo modo, as ON não oferecem muitos benefícios, sobretudo em se
tratando de pequeno investidor frente aos investidores de grande porte.
Disponível em: <https://daxinvestimentos.com/acoes-ordinarias-on-e-preferenciais-pn-diferencas/>
Acesso em: 6 set. 2017.
327
140 Mercado Futuro é o ambiente onde os ganhos pela alta ou baixa de um determinado ativo, qual
seja uma commodity (milho, café, minério de ferro, carvão, boi gordo), uma moeda (como o dólar), um
Índice (Bovespa, Índice S&P 500) ou mesmo uma taxa de juros. A principal característica desse tipo
de mercados é a negociação de contratos futuros, estabelecendo preços para a compra e venda de
certo produto, em determinado período. Na prática, o valor do contrato varia em função da oferta e
demanda.
Disponível em: <https://www.tororadar.com.br/mercado-futuro> Acesso em: 7. set. 2017.
141 Há diversos modelos de terceirização designadamente: virtuoso, tortuoso e misto. Entre eles, o
padrão tortuoso do trabalho parece ser aquele que mais se adéqua à tática utilizada pela Vale S.A.
Aliás, é também o padrão predominante no Brasil (RUDUIT e SILVA, 2003, grifo dos autores).
328
142Kwame N'Krumah (1909-1972) foi um dos mais destacados estudiosos e militantes do movimento
pan africanista. Depois de cursar parte de seus estudos em Direito nos EUA, em 1945, N'Krumah vai
para o Reino Unido, onde juntamente com outros pan- africanistas, dos quais Du Bois, Jomo
Kenyatta, participou ativamente no V Congresso pan africanista nesse ano.
N' Krumah, foi o primeiro presidente do Gana independente liderando o Convention Popular Party.
Além de presidente, N'krumah era socialista e nacionalista africano.
329
dos mineiros de Moatize neste período lembra as condições dos trabalhadores das
minas de carvão na Inglaterra no início do século XIX143.
trabalho da classe operária inglesa no começo do século XIX. Nas minas de carvão localizadas em
Cornulha (rica em hulha), homens e crianças trabalhavam horas a fio (até 12 horas/dia) no interior
das minas. Em função das condições precárias de trabalho, grande parte deles apresentava doenças
relacionadas ao aparelho digestivo, cardíacas, como resultado de longos períodos de exposição aos
fumos, poeiras e baixos níveis de oxigênio no interior das minas (ENGELS, 1975).
O quadro sanitário descrito por Engels se assemelha aos que observamos em Moatize durante o
trabalho de campo.
332
144 De acordo com o Relatório de Avaliação das Propostas de Concurso (anexo do contrato), a
proposta o consórcio BHP Billiton- Mitsubishi Consortium foi excluída porque "não satisfez o requisito
obrigatório de prestação de garantia de responsabilidade ilimitada relativa às obrigações previstas no
Acordo de Princípios, na medida em que a empresa fixou a sua responsabilidade até ao teto de cem
milhões de dólares americanos. Esta limitação constitui um incumprimento substancial de um
requisito básico do Request for Proposals. (MOÇAMBIQUE, 2007, p.73).
145 Instituição que faz parte do Grupo Banco Mundial. O IFC é responsável pela definição dos padrões
pela Vale. S.A., pela Mitsui, que comprou 15% das ações do Projeto Carvão de
Moatize, e pelo governo de Moçambique, que detém 5% das ações, segundo o art.º
9º do contrato de concessão mineira (MOÇAMBIQUE, 2007).
Ao abrigo desse contrato, a RDMZ adquiriu vários direitos e prerrogativas
cedidas pelo governo, entre as quais:
a) direito exclusivo de realizar atividades mineiras na área de mineração a
céu aberto ou através da lavra subterrânea, relativamente a carvão e
minérios associados.
b) direito de minerar, processar, transportar, armazenar e comercializar o
minério de carvão, sem prejuízo da legislação mineira em vigor ou do
projeto apresentado (MOÇAMBIQUE, 2007, p.11).
Com uma licença válida por vinte e cinco anos, a RDMZ tem o direito de
solicitar a renovação, pelo mesmo intervalo de tempo, ao término dos primeiros vinte
e cinco anos de concessão. Assim, a análise detalhada do contrato permite
identificar entre outras disparidades, a diferença entre o tempo de validade da
licença enunciado no art.º 2.2 e o que efetivamente é apresentado na concessão
mineira. Isso porque, segundo tal documento, que é parte integrante do contrato, o
período de concessão é de vinte e sete anos, isto é, de 01/03/2005 a 01/03/2032 e
não de vinte e cinco anos, conforme é apresentado naquele artigo.
De todo modo, o contrato em análise oferece à RDMZ o
a) o direito de vender carvão a preços e condições prevalecentes no
mercado internacional entre vendedores e compradores independentes e de
acordo com as boas práticas competitivas do negócio;
b) O direito exclusivo de usar e ocupar a área de mineração para fins da
realização de atividades mineiras, durante o prazo da concessão mineira e
de quaisquer das suas eventuais prorrogações;
c) direito de penetrar, utilizar e ocupar áreas exteriores à área de
mineração, conforme for necessário e apropriado, incluindo, mas não se
limitando aos objetivos da construção e manutenção de quaisquer estradas
e outra infra-estrutura necessária para as operações mineiras,
d) o direito de adquirir, usar e operar, de acordo com as leis e regulamentos
aplicáveis, instalações de rádio e comunicações, helicópteros e outro tipo de
aeronave, portos, estradas, aeroportos e outras instalações de transporte,
juntamente com equipamento auxiliar e instalações, que sejam necessários
para as operações (MOÇAMBIQUE, 2007, p. 17- 23).
Como se pode notar, o contrato demonstra ser mais benévolo para a Vale
Moçambique do que propriamente para o Estado moçambicano. Além do mais, as
ações sociais da empresa, por exemplo, são definidas como prerrogativas e não
obrigação da Vale, desobedecendo desse modo, o United Nations Code Of Conduct
on Transnational148. Mas a questão que mais suscita preocupação e que está ligada
a pesquisa é o fato de que, mesmo sabendo que a implementação do Projeto de
Carvão de Moatize suscitaria a deslocação das comunidades (Chipanga, Bagamoyo,
Mithethe e Malabwe), até então residentes na área de concessão, o contrato não
apresenta sequer um artigo para discutir as modalidades, as condições, bem como
as estratégias para a restauração dos meios de vida da população a ser deslocada,
em função desse projeto.
De fato, a vaga menção que se faz sobre essa questão é no art.º 7.1.3, que
determina que a "concessionária é sujeito ao pagamento de indenização ou
compensação, de acordo com a legislação mineira e de terras, a aquisição e
extinção de direitos de terceiros relativamente à área de mineração"
(MOÇAMBIQUE, 2007, p. 20). Portanto, a prioridade dada ao pagamento da
indenização, como condição para aquisição dos direitos de uso da terra deixa
entender que a compensação por si só permitirá a reconstituição das formas e dos
meios de vida perdidos, devido ao deslocamento compulsório.
Por outro lado, as lacunas ou omissões presentes no contrato contribuíram
significativamente para que o processo de reassentamento das comunidades
afetadas pelo projeto da Vale fosse menos transparente, excludente e precário,
147Sobre os bens que constam da classe K da pauta aduaneira nacional, ver parte 3.
148De acordo com o art.º 23 desse Código, as Corporações Transnacionais devem cooperar com os
governos e com os nacionais dos países nos quais operam, na implementação dos objetivos
nacionais, que garantam a equidade na participação efetiva e o desenvolvimento local (ONU, 1983).
336
149O complexo logístico que inclui a ferrovia, o terminal de carvão e o Porto, é um projeto estruturante
objetivamente pensado para viabilizar o Projeto Moatize. Com uma capacidade instalada para
receber composição com até 120 vagões, cerca de 1.650 metros de comprimento e transportando
337
7.560 toneladas de carvão processado (térmico e metalúrgico), o Corredor Logístico de Nacala veio
revolucionar as operações da Vale, apesar dos perigos que isso representa para a população, visto
que essa ferrovia, atravessa muitos povoados e vilas no seu caminho para Nacala- a - Velha. O Porto
é dos mais profundos da costa oriental africana e permite ancoragem de navios de todo porte.
Recentemente a Vale fez o maior carregamento de carvão num navio com capacidade para 187 mil
toneladas. No Porto, o carregamento é feito por meio de um tapete rolante com 13 km de extensão.
150 Milhões de toneladas por ano.
151 De acordo com Rodrigues (2015) o chamado projeto Moatize II é referente à expansão da mina.
Ao contrário do Moatize I, o II, tem o caráter mais localizado e, não suscitará a deslocação das
pessoas.
Durante o trabalho de campo observamos que a mina Moatize II localiza-se, praticamente, na
garganta da unidade 4, do bairro residencial de Bagamoyo. Na ocasião uma das coisas que chamou
atenção é que, a mina da Vale Moçambique está a menos de 500 metros da Escola Primária
Completa das Oitavadas, portanto, local de concentração de pessoas, sobretudo crianças em pelo
menos três, dos quatro períodos letivos. Diante disso, não compreendemos o porquê a Vale não fará
o reassentamento da população da unidade 4.
Essa atitude viola o Decreto n. 31/2012 que regulamenta o processo de reassentamento resultante de
atividades econômicas. O mais curioso nisso tudo é que, as atividades da Vale decorrem aos olhos
do governo distrital e, ainda assim, nada se diz e nem se faz para por término a essa prática nociva
não só para o ambiente, mas também para os residentes do bairro.
152 Tanto o Capesize quanto Panamax fazem parte da subdivisão dos navios de carga.
Panamax compreende, geralmente, navios com capacidade de carga entre 60 e 80 mil toneladas, a
sua denominação refere-se ao calado máximo a trafegar pelo Canal do Panamá.
338
153A Austrália é um dos maiores produtores de carvão mineral no mundo. A Vale S.A., opera a mina
de Carborough Downs (mina subterrânea) desde 2007, período em que no seguimento de sua
política de expansão e de inserção agressiva no mercado global, a Companhia adquiriu a AMCI
holdings. Nessa mina, a Vale`s Carborough Downs produz, essencialmente, carvão metalúrgico.
Disponível em: <http://www.vale.com/australia/en/business/mining/coal/carborough-down. aspx>
Acesso em: 15. set. 2017.
341
Uma análise sobre a carga tributária incidente sobre toda a sua base de
custos. De 2008 a 2012, a mineradora pagou apenas 64 milhões de dólares
de impostos. Além dos benefícios na cobrança de royalties e no pagamento
de imposto de renda empresarial, a Vale começou a discutir os impostos
pagos para importar produtos usados nas operações, como explosivos e
óleo diesel. Também tentou negociar as tarifas para usar a ferrovia de
Sena. [Ou seja, a Vale] espremia Moçambique para tirar o máximo de sumo
possível (ROSSI, 2015, p. 121, grifo nosso).
Com efeito, ainda que a Vale não tenha conseguido a redução imediata dos
impostos, em parte devido ao avolumar das críticas (internas e externas) sobre a
contribuição marginal dos megaprojetos para a economia nacional, a empresa
conseguiu algumas vantagens. É que na esteira dessa chantagem, a Companhia
não só demitiu um significativo número de trabalhadores, sobretudo estrangeiros,
mas também fez um pacto com o governo da Província de Tete, para reduzir
salários, cortando alguns subsídios dos trabalhadores.
Para o governo e a Vale a
medida visa evitar o despedimento em massa dos trabalhadores, em face
da queda do preço do carvão metalúrgico no mercado internacional. Nós
negociamos com a empresa Vale Moçambique para passar dos 18 salários
para 13, e já está a fazer arranjos para diminuir o desemprego e os
despedimentos (JORNAL ELETRÓNICO DEUSTCHE WELLE, edição da
quinta- feira, 23 de julho de 2015).
154De acordo com o operador de máquina, permance corresponde ao valor pago ao trabalhador
anualmente, na data em que ele completa mais um ano de trabalho. Contudo, o pagamento dessa
gratificação está condicionado inexistência (na ficha do trabalhador) de um histórico de acidentes
e/ou outras irregularidades durante o período de um ano.
345
155 As empresas têm como forte parceiro o Estado que repetidas vezes usa o seu braço armado, a
polícia para conter e reprimir manifestantes que reivindicam o simples direito de ser considerados
trabalhadores ou as populações que se mobilizam para contestar as práticas nocivas das
corporações transnacionais. Foi assim que aconteceu em Thophuito quando os trabalhadores
paralisaram as suas atividades, como estratégia para frear as demissões em série, realizadas pela
Kenmare; em Moatize, com a greve dos trabalhadores da Vale; da população de Cateme, em janeiro
de 2012. É nisto que reside o papel do Estado no empreendimento capitalista, isto é, assegurar a
estabilidade social para melhor operação e circulação do capital, conforme explica Wood (2014).
156 Já dissemos que em Moçambique as diversas organizações que se aglutinam na chamada OTM-
Central Sindical, não constitui um movimento sindical propriamente dito, no sentido de ser o braço
forte que carrega as aspirações da classe trabalhadora. Porque desde o nascimento dessa
agremiação, no início da década de 1980, sempre esteve sob a mira e rígido controle do Estado e do
partido Frelimo, principalmente no período da experiência socialista. Com as reformas políticas, tal
situação não mudou, radicalmente, mas prevalece sob novas roupagens.
A repressão salarial e a consequente degradação das condições sociais e da vida do trabalhador
(mas também do não assalariado) acontecem sob os olhos e aplausos da OTM- Central Sindical.
157 É interessante notar que o salário mínimo nacional em vigor na Função Pública, varia entre 3.642
MT para o setor da agricultura e atividades afins, e 10.400 MT para o setor das atividades de serviços
financeiros. Considerando a taxa de câmbio de hoje (18/09/2017), o salário mínimo mais baixo,
corresponde a aproximadamente US$ 60 mensal (BANCO DE MOÇAMBIUQE, 2017). E a questão é:
que tipo de vida levará uma família que, tem como rendimento mensal US$ 60?
346
dificuldades que muitos investigadores têm e que inclusive nós tivemos, para
conversar com a Vale e visitar a mina, conforme dissemos na parte dois. Uma
síntese sobre as dificuldades e o modo de atuação das empresas, é apresentada
por Cambrão (2016, p. 224), que relata o seguinte:
As empresas mineiras manifestaram uma clara prepotência na recusa de
prestação de informação a equipas de estudo e da sociedade civil. Alguns
pedidos de entrevistas foram protelados e acabaram não acontecendo. Nas
visitas aos locais de exploração quando irrecusáveis pela origem da
solicitação, muitas respostas às perguntas formuladas não aconteceram
[não foram respondidas?], sob alegação de ser matéria da competência de
outros departamentos no quadro da forte hierarquização e
departamentalização de funções das empresas de grande dimensão.
Chegava-se à arrogância e o desprezo perante a nossa presença e, muito
mais grave, em relação aos cidadãos reassentados, ao afirmar-se serem os
melhores reassentamentos do mundo.
No mapa 7, nota-se que a Vale está presente em quase todo o mundo seja,
por meio de joint ventures, escritórios, pesquisa mineral ou então, através de licença
de pesquisa mineral. No artigo A gigante mineradora brasileira Vale, Judith Marshall
denuncia a dissonância prevalecente entre a imagem empresarial projetada pela
Vale e a realidade de fato em todas suas operações mundiais. Ou seja, o discurso
de progresso, de respeito pela cultura, tradições locais, sustentabilidade e de
consideração pelos direitos humanos propalado pela Vale, cai por terra quando
confrontado com a realidade em muitas frentes de mineração da Vale.
No Canadá, por exemplo, onde a Companhia opera uma das maiores minas
de níquel do mundo, além do histórico de greves que duraram respectivamente onze
e dezoito meses,
A relação entre trabalhadores e administração foi banalizada com a
insistência da Vale em grandes concessões do sindicato como precondição
para ir à mesa de negociações. Neste âmbito, a posição da Vale
desrespeitou todas as práticas aceitas nas tradições canadenses em
negociação coletiva e equivaleu a um ataque frontal a cultura de trabalho
em vigor (MARSHALL, 2014, p. 176).
Além disso, foi também no Canadá que, com recurso à mão de ferro sobre os
trabalhadores canadenses, a Vale conseguiu impor seus padrões de relacionamento
entre os empregados e a empresa. Isto é,
O que teve importância para a Vale nesta negociação foi o realinhamento
dos empregados no Canadá no mesmo tipo de relacionamento laboral que
a empresa tem com os seus empregados no resto do mundo. Este
relacionamento envolveu três assuntos cruciais: plano de pensão, bônus e a
cadeira de comando entre o empregador e empregado sem intervenção
direta do sindicato (idem).
352
Sob as agruras da crise, a vigilância cumpre outro papel não enunciado por
Foucault, mas denunciado pelos trabalhadores, portanto, a caça às bruxas. Uma
campanha meticulosamente planejada que tem por finalidade reunir fatos
conducentes à demissão de trabalhadores por justa causa - um atalho para encolher
ainda mais os gastos da empresa, mas sem perder a competitividade e o lucro.
Por sua vez, o discurso de adaptação dos megaprojetos e, no caso específico
da Vale, ao território e aos costumes locais não corresponde a verdade, pois,
conforme explica Rodrigues (2015, p.175) que na "vivência em campo pude
presenciar acusações de ociosidade inerentes aos moçambicanos e conflitos com
trabalhadores em função, por exemplo, de faltas relacionadas às cerimônias de
falecimento", cuja duração varia de uma etnia para outra.
Assim, a intensidade do ritmo de trabalho e a suposta ociosidade dos
trabalhadores moçambicanos no Projeto de Carvão de Moatize foram também
mencionadas pelo operador de máquina na Vale e, lamenta
[...] as dificuldades não faltam, para mim lá, por exemplo, eu mexo com
máquinas e máquinas, lá é uma mina a céu aberto durante esse percurso
de remover aquele material eu fico cansado, bem cansado e quando falo
com o meu chefe, chefe estou a pedir para descansar ele não aceita, e diz
se veio aqui para trabalhar é para trabalhar mesmo, não há moleza, vocês
africanos são muito preguiçosos e ociosos, não querem trabalhar, mas
355
querem receber, por isso são pobres mesmo (Entrevista com o operador de
máquina na Vale Moçambique, outubro de 2016).
158É uma instituição de pesquisa independente e de jornalismo investigativo dinamarquês. Seu foco
de investigação são os Estados, bem como os impactos das Companhias nos seguintes esferas:
ambiente e direitos humanos.
359
com 20% das receitas líquidas arrecadadas pelo Estado, o que em grande medida
corroborou a taxa de crescimento econômico (7,4%) anual alcançada em 2012.
Recentemente, dados da Economic Comission for Africa (ECA) retrataram a
dependência instituída entre esse setor e a economia do país como um todo, de tal
modo que a retração do setor extrativo significa, automaticamente, a queda das
receitas em formas de impostos coletados pelo Estado, e foi isso que aconteceu em
2015. Após três anos de contínuo crescimento, em 2015 a taxa de crescimento do
PIB nacional foi de 6,6%, comparado a 7,2% registrado em 2014. Essa contração
reflete o desacelaramento da economia em nível internacional que, internamente, se
traduziu na queda da demanda e dos preços dos produtos primários e, por
conseguinte, o baixo desempenho da indústria extrativa nacional (ECA, 2017). Por
isso, é correto afirmar que a indústria extrativa tem sido, nos últimos anos, a
locomotiva que puxa a economia nacional, ainda que tal não se traduza em ganhos
reais para a população moçambicana, sobretudo aquela diretamente afetada por
esses empreendimentos, ainda que a população seja a mais prejudicada.
De todo modo, o cenário ilustrado pela ECA, mais do que expor a
dependência da economia do país em relação ao ciclo de commodities que, por
certo, é instável, revela objetivamente que está em curso a construção de uma
economia de especialização reversa, ou então, a reprimarização da economia, no
dizer de Bittencourt, Bossi e Santos (2012) fato que, para Moçambique, representa
em grande medida a transição de uma economia de serviços para uma economia
extrativa, conforme afirma Castel-Branco (2010).
No país, o movimento de transição pode ser facilmente detectado, por
exemplo, se forem analisados os dados referentes ao aumento do número de
pedidos de licenças mineiras. Tal análise dispensa qualquer destreza, visto que se
percebe com relativa facilidade o adensamento e o espraiamento dos pedidos de
concessão mineira em quase todo o território nacional. Nesse âmbito, entre
prorrogação pendente; licença em vigor; aprovação pendente; atribuição pendente;
área para concessão, entre outras denominações, o Mozambique Mining Portal159
mostra um país abarrotado e totalmente loteado, cujo cerne das "disputas" é a
região Centro e Norte de Moçambique, conforme ilustra a Figura 5.
De acordo com o Portal, até ao momento foram emitidos para todo o país
cerca de 451 licenças de toda a natureza (prospecção e pesquisa, reconhecimento)
e 5 contratos mineiros estão em vigor. Vale lembrar que o número de contratos
anunciado no Portal não confere com a quantidade de empresas que estão
atualmente na fase de desenvolvimento. Ou seja, há contratos recentes como, por
exemplo, o do consórcio GK Ancuabe Graphite Mine160, localizado em Cabo
delgado, cuja etapa de produção iniciou em junho de 2017, que não constam no
Portal.
Seja como for, o volume de licenças e de outro tipo de autorização indica o
aumento do interesse pelos recursos minerais nacionais por parte das grandes
corporações transnacionais, atraídas não só pela riqueza mineral do país, mas
também pelas facilidades e incentivos fiscais oferecidos pelo governo. É a
denominada a assistência governamental, nas palavras de N'krumah (1967).
160 GK Ancuabe graphite mine é uma firma de capitais alemãs que opera na extração e
processamento de grafite no Distrito de Ancuabe. A produção do grafite no país que esteve
paralisada durante 18 anos. A empresa investiu cerca de 18 milhões de euros para a reabilitação e
ampliação da planta de processamento, aumentando desse modo, a capacidade de produção das
anteriores 6 mil toneladas para 9 mil toneladas por ano. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=OG3g94-zL2I&t=1358s>. Acesso em: 29. jun. 2017.
361
provável que seja esse o truque dominante entre as firmas que operam no país,
frente às "limitações" dos órgãos do Estado para fiscalizar esses consórcios.
Portanto, essa prática lesiva ao Estado moçambicano vem sendo denunciada
por outros pesquisadores, inclusive por instituições da Sociedade Civil. Em 2013,
Joseph Hanlon e Thomas Selemane, por exemplo, alertaram que a compra e venda
de licenças ou direitos mineiros, quase sempre ocorre no exterior e, frequentemente,
sem o acompanhamento dos órgãos competentes. De fato, em 2009,
A impressa noticiou o encaixe de cerca de US$ 12 milhões pela canadiana
Artumas161 ao vender as suas participações no Rovuma à Maurel & Prom e
à Cove Energy. A Cove Energy entrou e saiu do Bloco 1, de gás do Rovuma
sem ter explorado/exportado gás, pois uma vez valorizada a sua
participação desfez-se dela, assim como, a Riversdale entrou e saiu do
projeto carvão de Benga sem nunca ter explorado carvão (HALON e
SELEMANE, 2013, p. 8).
161 Artumas Moçambique Petróleos é uma sociedade constituída nos termos da legislação
com presença mundial. Suas atividades nesse segmento são reportadas desde 1877, quando a
Companhia Rio Tinto construiu uma das suas primeiras minas de cobre na Espanha. Com mais de
150 anos de atividade, atualmente a Rio Tinto está presente em pelo menos 35 países, nos quais
opera por meio de suas subsidiárias em diversos ramos de negócios, designadamente: minério de
ferro (Austrália); alumínio e seus subprodutos (Canadá, Austrália e Europa); cobre e diamante, ouro e
prata (Austrália, Chile, Mongólia, EUA e Indonésia); Carvão, sal, dióxido de titânio e urânio (EUA,
Austrália e África). A Companhia emprega atualmente 51 mil trabalhadores nos 35 países.
Em Moçambique, a Rio Tinto esteve envolvida até início de 2014, na extração do carvão mineral de
Moatize, Projeto de Carvão de Benga. A Rio Tinto Benga Limitada - subsidiária da Rio Tinto Benga
Mauritius Ltd, detentora da Rio Tinto Coal Mozambique (RIO TINTO, 2016).
363
163 É uma firma do setor mineiro registrada na Bolsa de Valores da Austrália. A Riversdale opera
principalmente na extração e processamento do carvão metalúrgico e possui operações no Norte dos
Estados Unidos, no Canadá e na África do Sul onde opera a mina de Antracite da Zululândia, num
projeto denominado Riversdale Anthracite Colliery (RIO TINTO, 2011).
365
válidas por 25 anos cada, foram emitidas em favor da ICVL, atual concessionária.
Nessa figura, nota-se que a área concessionada (3365C), estende-se praticamente
até as bordas do Rio Zambeze, inclusive algumas licenças são atravessadas por
este rio.
Estudos iniciais feitos pela Riversdale e posteriormente pela Rio Tinto, após
aquisição dos ativos de Benga, determinaram a existência de 119 milhões de
toneladas de carvão mineral. Esse valor representa um assinalável decréscimo (em
18 milhões), já que em 2011 a avaliação feita indicava a existência de 137 milhões
de toneladas de carvão metalúrgico e térmico. Na vasta lista dos ativos controlados
ou participadas pela Rio Tinto, a maior concentração está localizada na Austrália,
onde o grupo Rio Tinto Coal Australia (RTCA) controla um conjunto de 5 minas.
O carvão de Benga é considerado de boa qualidade, com teor de sulfatos de
0,89% por grama e valor calorífico de 26,4 MJ/Kg164, quase aos níveis dos carvões
extraídos em Hail Creek; Kestrel; Warkworth, com respectivamente, 32,2; 31,6 e
29,8% de valor calorífico, todos localizados na Austrália (RIO TINTO, 2012). No
164Megajoules (MJ) é a unidade usada tanto para medir a energia mecânica, isto é, o trabalho,
quanto para medir a energia térmica (calor).
367
Companhias. E por outro lado, porque o Porto da Beira exige constantes operações
de dragagem do canal de acesso. Além disso, muitas áreas atravessadas por essa
linha são vulneráveis a enchentes no tempo chuvoso (RIO TINTO, 2012).
Por todos estes condicionamentos, a RML cogitava a possibilidade de
transportar o carvão para o mercado, a partir das
Três rotas, designadamente: a linha de Sena, o Corredor Logístico de
Nacala e a via fluvial, são passiveis de serem usadas pela RML para
garantir que estas são capazes de otimizar o potencial de exportação de
suas operações. Assim, as três rotas são complementares e não
alternativas. Mas, o fator principal por trás do interesse da RML de
transportar carvão em barcaças no Rio Zambeze, é que a capacidade
ferroviária é insuficiente, sendo pouco provável que o sistema ferroviário
tenha disponibilidade, no futuro próximo, para atender às necessidade dos
atuais e futuros produtores de carvão na bacia carbonífera de Moatize
(GOLDER ASSOCIATES e IMPACTO, 2011, p. 91).
No entanto, essa proposta não foi aceita pelo governo. Segundo o ex-
Ministro dos Transportes e Comunicações, a rejeição do Plano deve-se ao fato de
O impacto ser visto como negativo, e que não há planos de mitigação. Tal
como proposto, não é factível. No Rio Zambeze, a cada quatro anos temos
problemas com enchentes que matam pessoas. Então, se você for dragar o
rio, expandir os bancos, estaremos em apuros [...] As barcaças poderão
afetar a população de peixes (RESENFELD, 2012, p.14).
2022, ano que se prevê a conclusão das obras da construção da terceira ferrovia,
com a extensão de 600 km, saindo de Moatize até ao Porto de Macuse, na Província
da Zambézia.
Portanto, um dos grandes constrangimentos da mineração do carvão em
Moçambique é a falta de infraestruturas suficientes para responder à demanda do
escoamento. A ferrovia de Sena, por exemplo, mesmo tendo sido reabilitada e
melhorada, sua capacidade de escoamento não poderá ultrapassar, pelo menos até
2018, os 12 Mtpa, entre 55 a 60% da capacidade produtiva da Vale Moçambique
(HALON e SELEMANE, 2013). Junto ao Corredor Logístico de Nacala, a capacidade
de escoamento das duas linhas é no máximo de 34 Mtpa, quantidade que
representa o total da produção do Projeto Moatize e, aproximadamente, a metade do
carvão produzido no Projeto de carvão de Benga, atualmente controlada pela ICVL.
Dessa forma, considerando estas limitações; a reprovação pelo governo da
proposta de usar o Rio Zambeze, associado ao contínuo decréscimo do preço de
carvão, a Rio Tinto Coal Moçambique reviu em baixa os ativos da mina de carvão de
Benga. Se em janeiro de 2013, Sam Walsh, diretor executivo da Rio Tinto garantiu a
continuidade do Projeto de Benga, em junho do mesmo ano a Companhia já
cogitava a possibilidade de vender parte ou a totalidade de sua participação, ao
mesmo tempo que tentava negociar com parceiros indianos e chineses a co-
participação no projeto, fato que culminou com a venda dos ativos em 2014,
conforme é descrito no Relatório de (2016).
Entre ativos, licenças de prospecção e pesquisa e concessão mineira, a ICVL
herdou o patrimônio até então pertencente à Rio Tinto Coal Moçambique, inclusive
os problemas relacionados ao processo de reassentamento. De todo modo, é
importante sublinhar que, apesar das novas concessões mineiras atribuídas à ICVL,
suas operações majoritárias concentram-se ainda na mina de Benga, cujo contrato
da concessão mineira foi assinado pela Riversdale Moçambique em 2009. À luz
desse contrato, ao concessionário é outorgado o direito de explorar e processar o
carvão e minerais associados, como continuidade das atividades realizadas ao
abrigo da licença de prospecção e pesquisa 881L (MOÇAMBIQUE, 2009a).
No geral e comparando com o contrato da Vale assinado dois anos antes, o
da Riversdale Moçambique mostra avanços significativos, ainda que se reconheçam
lacunas e fragilidades. Além de aspectos concernentes à forma que, no nosso
371
165Em relação às tabelas de compensação por culturas perdidas, cabe esclarecer que, elas foram
produzidas, grosso modo, quatro anos após o primeiro reassentamento realizado pela firma irlandesa
Kenmare. De todo modo, o valor da compensação pelas culturas e outras benfeitorias danificadas
varia de uma Província para outra. Em Tete, nós não tivemos a acesso a essas tabelas, o que não
equivale dizer que, não existam. Porém, para que se faça uma ideia, tomemos a título de exemplo, os
valores pagos por cada cultura destruída na Província de Nampula.
Assim, entre 2011 - 2013, por exemplo, a compensação paga por cada pé de arroz ou de oleaginosas
como o gergelim, variava entre 15, 00 a 20, 00 Mt, o equivalente a US$ 0,33 cêntimos. De 2014 em
diante, o preço para as mesmas culturas passou a ser respectivamente de 20, 00 e 35, 00 Mt, isto é,
US$ 0,58 cêntimos.
No caso das fruteiras (cajueiros, mangueiras, bananeiras), entre 2011 - 2013, a compensação variou
entre, 350, 00 a 500, 00 Mt, ou seja, entre US$ 5, 8 a 8,3. A partir de 2014, o pagamento em vigor
pelas mesmas benfeitorias varia entre 1.000,00 a 1.100, 00 Mt, portanto, entre US$ 16, 6 e 18, 3
(BANCO DE MOÇAMBIQUE, 2017).
374
166 Michael M. Cernea (1931) é um renomado cientista social, que até 1997 trabalhou como consultor
167 Em 2012, a Assembleia da República (AR) majoritariamente composta por deputados da bancada
parlamentar da Frelimo, viu-se forçada a aprovar às pressas o pacote legislativo anticorrupção, que
inclui a Lei n.16/2012, Lei da Probidade Pública, como condição sine qua non para que os parceiros
de apoio programático continuassem a apoiar o país (CIP, 2012).
378
168 A área em disputa vinha sendo usada pela população para a prática da agricultura; a extração da
pedra para construção, bem como a coleta de frutos silvestres que fazem parte da dieta alimentar da
comunidade. Segundo Julião Maceque, líder comunitário de Nhantchere, no período da concessão, a
Vale, a comunidade e o governo distrital chegaram a um consenso sobre a referida área. Nessa
época, a empresa comprometeu-se a não vedar umas partes, de modo a possibilitar acesso ao
interior dessa área pela população.
Apesar da morte do referido jovem (pela polícia) a população garante que vai continuar a manifestar-
se para impedir que a Vale Moçambique encerre o acesso.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bD9ga0Kjqv4>. Acesso em: 19. jul. 2017.
381
Nesse sentido, a demanda chinesa que iniciou nos finais da década de 1990
e, dominou toda a primeira década do novo milênio, propiciou o aumento do número
de firmas que aportaram em Tete, sobretudo em Moatize em busca de licenças para
mineração. Conforme explica o CDRM, até 2015, a Direção Provincial dos Recursos
Minerais de Tete, "havia atribuído mais de 350 licenças para a prospecção e
pesquisa de diversos minerais em toda a Província, incluindo o carvão mineral"
(Entrevista com CDRM, outubro, 2015).
Portanto, concentrado principalmente na exploração do carvão mineral em
Moatize, há no rastro dessa demanda, licenças emitidas para a prospecção e
pesquisa do minério de ferro, nos Distritos de Chiúta e Moatize. Presentemente
existem nesse último Distrito, quatro Companhias na fase de produção,
nomeadamente: a Vale Moçambique, a ICVL Minas de Benga; Beacon Hill
Resources Company e a Ncondezi Coal Project, cujos principais mercados para a
colocação da produção são: Índia, China e Japão. Juntos, as quatro empresas têm
uma produção anual calculada em 180 milhões de toneladas de carvão mineral de
todos os tipos.
Entre os projetos que, até outubro de 2016, estavam próximos de operar
destacam-se: os projetos Rio Tinto Zambeze, minas de Revubué, Eta Star, Coal
Indian African e Capitol Resources, quase todos voltados para à produção de carvão
mineral no Distrito de Moatize, com a exceção do último, cuja área concessionada
abrange, tanto Moatize quanto o Distrito de Chiúta e, destina-se à extração e
processamento do minério de ferro do depósito de Monte Tengue (DIGBY WELLS,
ENVIRONMENTAL, 2014).
No quadro 5, nota-se que, fora de Moatize, o único destaque é o projeto de
exploração e processamento do carvão da Jindal África, subsidiária da firma indiana
Jindal Steel and Power Limited (JSPL), empresa pública do setor siderúrgico e
produção de energia. A JSPL minerais Mozambique Limitada, denominação com a
qual foi registrada em Moçambique é subsidiária da Jindal África e da Jindal Group.
Com valor de mercado estimado em US$ 18 bilhões, a Jindal Group é,
segundo a Jindal África (2014), um conglomerado indiano que, nas últimas três
décadas emergiu como um dos maiores e mais dinâmicos grupos de negócio da
Ásia.
Quadro 5 - Principais empresas mineiras na Província de Tete, com destaque para Moatize, outubro 2016
Área Início da
Empresa Minério Localização (ha) Acionistas Produção Tipo de Carvão (Mtpa)* Mercado
Na fase de produção em Moatize Metalúrgico Térmico
Vale Moçambique Carvão Moatize 23780 brasileiros e outros
China, Índia e
Moatize I Carvão Moatize 2011 8.58 2.6 Japão
China, Índia e
Moatize II Carvão Moatize 2015 8.58 2.6 Japão
ICVL* Minas de Benga Carvão Moatize 4560 Indianos 2012 6 4 Índia e China
Sul - africano e Malawi, Zâmbia,
BHRC* Minas de Moatize Carvão Moatize 260 ingleses 2011 0.72 1.64 Zimbabwe
Ncondezi Coal Project Carvão Moatize 24900 ingleses 2014 0 10.5 ---
Próximo de operar
Rio Tinto Zambeze Carvão Moatize 9715,28 australianos 2014*** 13.5 9 ---
Minas de Revubué Carvão Moatize 3964,46 japoneses 2015*** 5.1 3.4 Japão
Eta Star Carvão Moatize- Calambo 4000 Dubai- emirandese --- Índia
Coal Indian African Carvão Carvão 10880 indianos --- Índia
australianos e
Capitol Resoureces Ferro Moatize e Chiúta 5640 ingleses 2016*** ---
Fonte: Trabalho de Campo, 2015 e 2016; Resenfeld (2012), Org.: Eduardo Bata (2017).
Notas: *Milhões de toneladas por ano; * International Coal Venture Limited; **Beacon Hill Resources Company; --- Informação não
disponibilizada; *** Previsão de início.
385
386
169 Para Almeida (1996, p. 460) os deslocamentos compulsórios resultantes dos chamados projetos
de desenvolvimento não devem e/ou podem ser considerados simplesmente como migração ou
êxodo. Com efeito, o deslocamento compulsório ou forçado deve ser compreendido como o "conjunto
de realidades factuais em que pessoas, grupos domésticos, segmentos sociais e/ou etnias são
obrigados a deixar suas moradias, seus lugares históricos de ocupação."
A despeito das prováveis (mas, dúbias) reuniões de apresentação pública dos projetos (consulta
pública), entende-se, porém que todo o processo de deslocamento da população é compulsório, em
vista que, as comunidades não têm outras escolha senão a de mudarem. Junto com as promessas de
vida melhor no reassentamento, o poder dos decretos de lei, encerra qualquer possibilidade de
oposição às ordens do grande capital, que têm no Estado o seu aliado.
391
Colonização = coisificação
170 De acordo com o Decreto n. 31/2012, o RAP é um instrumento que define com pormenor a
tipologia de ocupação de qualquer área específica, estabelecendo a concepção do espaço, dispondo
sobre usos do solo e condições gerais de edificações, traçado das vias de circulação, as
características das redes, infra-estruturas e serviços (MOÇAMBIQUE, 2012, p. 324).
395
172De acordo com o art.º 6º do Decreto n. 31/2012, a Comissão técnica é composta por: dois
membros do setor de ordenamento do território; um membro do setor de administração local; um
membro do setor de obras públicas e habitação; um membro do setor da agricultura; um membro da
área afim; um membro do governo provincial e um membro do governo distrital (MOÇAMBIQUE,
2012).
399
[...] Porque tínhamos que estar juntos porque somos da mesma família, não
tem sido fácil conviver com os familiares que vivem em Cateme, por falta de
dinheiro de transporte. Tem vez que há falecimento e nem todos
conseguem vir ou ir para lá (Morador reassentado no bairro 25 de
Setembro; outubro 2016).
Sim
Não
Fonte: Trabalho de campo, outubro 2015 e 2016; Org.: Eduardo Bata (2017).
Nao
Sim
Fonte: Trabalho de campo, outubro 2015 e 2016; Org.: Eduardo Bata (2017).
173 Vale apena lembrar que, a entrega e/ou o pagamento do valor de dois mil meticais para que os
reassentados paguem as despesas de transporte dos seus bens da antiga comunidade para o
reassentamento, viola a alínea (c) do artigo 10º do Decreto n. 31/2012, que estabelece que, "a
população diretamente afetada tem o direito de ser transportado com os seus bens para o novo local
de residência" (MOÇAMBIQUE, 2012, p. 235).
404
E por fim, a grande parte dos encontros de auscultação pública foi realizada
com os líderes comunitários e, a esses, por sua vez, foi dada a missão de convencer
o seu povo sobre a necessidade de serem deslocados para outros lugares. Portanto,
junto com a força da legislação (os Decretos de lei), a ausência de alternativas para
resistir ao processo de expropriação (legitimada pela lei) realizado pelas
mineradoras com o aval do Estado, transforma as consultas públicas em simples
fases para o cumprimento do "calendário" sem, contudo, envolver a todos, uma vez
que os reassentamentos "são parte integrante de um modelo de desenvolvimento
centrado na extração de recursos naturais e minerais, visto como inevitável"
(SELEMANE, 2016, p.1, grifo nosso).
Foto 9 - Rachaduras nas paredes de uma das casas dos moradores reassentados
no bairro 25 de Setembro
A B
2.1.2 Cateme
Foto 10 - Placa de cimento (A) que indica a distância entre Cateme e Moatize e,
sinal vertical (B) que indica uma passagem de nível com circulação de
trens em Cateme, Moatize
A B
Desenhado como uma Vila dentro de uma área até então pouco habitada, o
reassentamento de Cateme é o maior de todos os reassentamentos feitos até agora
no Distrito de Moatize, inclusive em toda a Província de Tete. De fato, foi nesse
espaço onde foram reassentadas as 712 famílias, cerca de 3.560 pessoas
classificadas como "rurais", segundo o recenseamento da Vale Moçambique.
Assim, na tentativa de reproduzir as anteriores formas de organização e
ocupação do espaço, no reassentamento de Cateme mantiveram-se os nomes das
anteriores aldeias/comunidades, bem como as respectivas lideranças. Ou seja, a
população que vivia em Mithethe, por exemplo, ao passar para Cateme, também foi
realocada para o bairro homônimo e assim por diante.
Na prática, esse esforço foi inútil, principalmente porque Cateme não oferece
as condições de reprodução social semelhante àquelas da anterior comunidade. A
título de exemplo, em Mithethe, Malabwe e Bagamoyo a população tinha acesso
direto ao rio, as machambas, a floresta para a produção do carvão vegetal e corte de
lenha para uso doméstico e/ou venda na Vila de Moatize. Essas facilidades não
existem e/ou são escassas em Cateme. Portanto, é como disse um dos reassentado
que "lá em Chipanga tínhamos como sobreviver".
O outro morador garantiu que "em Chipanga nós não precisávamos de nada,
vendíamos tijolos, conseguíamos comida e mandar nossos filhos para escola. Já,
415
aqui, temos problemas de fome, falta de comida, a vida não está fácil aqui",
demonstrando explicitamente, as dificuldades que as famílias enfrentam para a sua
subsistência.
E, por fim, convém destacar que as comunidades não se identificam com os
nomes (Mithethe, Malabwe, Bagamoyo e outros), mas com os lugares em si e,
sobretudo com os elementos simbólicos com os quais estabelecem vínculos.
Portanto, é como argumenta Augé (2003, p.71) que, "o lugar é uma construção
concreta e simbólica do espaço, princípio de sentido para aqueles que o habitam [...]
possuidor de três características comuns: identitários, relacionais e históricos", por
isso, na ausência dos símbolos, os novos lugares, tal é o caso de Cateme,
permanecem estranhos para a população, mesmo sem alterar os nomes.
Considerado reassentamento completo ou assim denominado, Cateme
apresenta-se, de fato, com mais infraestruturas em relação ao bairro 25 de
Setembro. Com efeito, a "Vila Cateme" possui escolas (EPC e Secundária do 1º e 2º
ciclos); Centro de saúde, mercado, posto policial, rádio comunitária e outras
infraestruturas que a torna um pólo de atração da população em busca, por
exemplo, do atendimento hospitalar e o acesso ao ensino secundário, sobretudo
para as crianças que concluem o EP2 no reassentamento de Mwaladzi.
Assim, como a população reassentada no bairro 25 de Setembro, aquela que
foi realocada para Cateme, exigiu algumas condições como contrapartida para o seu
deslocamento. De fato, no âmbito do PAR, por exemplo, ficou combinado que cada
família receberia uma nova casa construída de material convencional (Foto 11), cujo
número de cômodos e as dimensões seriam iguais ao das anteriores moradias.
Segundo o PAR, cada agregado familiar reassentado seria atribuído dois hectares
de terra para a abertura das machambas, principal fonte de subsistência das
famílias, além da introdução de projetos de auto-sustento, dos quais a criação de
frangos.
Para o CDRM (2015), em Cateme foram criadas as condições sociais para
atender a população deslocada, por que
[...] tem escolas, tem água, tem centro internato, tem luz elétrica, hospital,
posto policial. Criou-se o sistema de transporte, porque eles foram
reassentados lá não estão proibidos de vir à cidade, então, eles têm
transporte e o valor estipulado foi para garantir que as pessoas tivessem a
possibilidade de viajar. Eu penso que o mínimo de condições foi criado
(Entrevista com CDRM; outubro 2015).
416
E como resultado desse sentimento de "burla" perpetrado pela Vale parte dos
aviários construídos com o apoio financeiro dessa empresa estão abandonados.
Além do mais, Cateme é um reassentamento isolado (dista entre 7 a 8 km da EN7,
que liga à Vila de Moatize) e longe do principal mercado, tal como admitiram os
próprios trabalhadores da Vale. Parcela significativa da população do
reassentamento depende do trabalho a terra que, devido ao baixo grau de fertilidade
do solo, quase não consegue produzir o suficiente para garantir o sustento das
418
174 Resettlement is na incredibly coomplex thing - to pick people up and put them down somewhere
else, you are not moving objects, you are moving a society. You can have the best policies in the
419
World but without the political capacity, structures or will in place to implement and enforce them, they
are useless (WET, citado por DANWATCH, 2015, p.15).
175 O título desse item foi inspirado no artigo de opinião intitulado Reassentamento de Mwaladzi:
modelo ou pesadelo? Escrito por Célia Sitoe e Tomás Queface, pesquisadores do Centro de Estudos
e Pesquisa de Comunicação SEKELEKANI.
420
Junto com essas infraestruturas, cada família reassentada recebeu 119 mil
meticais referentes à compensação pelas perdas infligidas pelo reassentamento;
duas parcelas de terra; farinha; uma bicicleta, rádio e dois tambores para o
armazenamento de água de uso doméstico, conforme explicou o líder comunitário
de Luane. Em função de tudo isso, Matos e Medeiros (2015, grifo dos autores)
consideram que o reassentamento de Mwaladzi parecia uma oportunidade de
mudança de vida, pois, virtualmente, estavam criadas as condições básicas para um
"futuro melhor". É como diriam Sitoe e Queface (s/ano), o reassentamento de
Mwaladzi foi planejado para evitar novos "Catemes".
Assim, associado às infraestruturas fornecidas às comunidades reassentadas,
a esperança de poder vender a sua força de trabalho para a Riversdale, conforme
ficara combinado durante as sessões de consulta pública nutriam o sonho de uma
vida melhor e do tal "desenvolvimento", usado como estratégia para persuadir as
comunidades a "abraçarem" os projetos. Mas, os problemas do reassentamento de
Mwaladzi não demoraram a surgir.
À semelhança dos reassentamentos da Vale, o drama do reassentamento
modelo que se tornou pesadelo iniciou com o próprio processo de recenseamento
das comunidades residentes dentro da área de concessão mineira.Esse
levantamento que determinou a existência de dois grupos de famílias, sendo: um
com perfil rural (Chithatha, Nhamalabwe) e o outro, com características urbanas
(Benga e Capanga Sede) foi realizado pela Riversdale Moçambique.
Tendo em conta essa classificação, para a região de Mwaladzi, em Cateme
realocar-se-ia "445 famílias, cujos sistemas de sobrevivência estão assentes num
modus vivendi, tipicamente rural, e uma zona de características urbanas, área por
definir, para aquelas famílias cujos sistemas de sobrevivência estão assentes num
modus vivendi tipicamente urbano" (IMPACTO; RIVERSDALE MOÇAMBIQUE,
2009, p. 3). E a referida zona com características urbanas que ficou por identificar é
segundo o CDRM, "a área de Bozi, na qual seriam reassentadas as 46 famílias que,
até então, residiam em Capanga Gulo" (Entrevista, com o CDRM; outubro 2015).
Iniciado em novembro de 2010, com a transferência simbólica das primeiras
26 famílias para Mwaladzi (seis meses após a inauguração oficial da mina de
Benga); em fevereiro de 2011, foram reassentadas mais 45 famílias, totalizando 71
famílias deslocadas na primeira fase do reassentamento. Assim, em função da troca
422
dos recursos minerais; outubro 2015). Nas palavras de um dos líderes comunitários
(Luane), também reassentado, "as casas não têm problema, o problema é a
vivência, porque as pessoas aqui não têm negócio. A casa não tem problema, a
casa muito bom, uma coisa que tinha lá em casa quando chega aqui há de ver tudo,
celeiro, capoeira de galinha, isso deram tudo" (Entrevista com o líder comunitário de
Mwaladzi; outubro 2016).
Em verdade, as casas do reassentamento de Mwaladzi representam avanços
quando comparadas àquelas dos reassentamentos da Vale. Em Mwaladzi, a
moradia além de ser de material convencional, possui fiação elétrica (porém não
está ligada à rede elétrica, sendo que isso é feito individualmente em função das
condições financeiras de cada Agregado Familiar, portanto, nem todas as famílias
têm luz elétrica em seus domicílios); o teto tem um revestimento para reduzir o calor
das chapas de zinco, além de que, as casas têm calhas para a captação da água da
chuva; estratégia para minimizar o problema de abastecimento de água (Foto 13).
Mas, conforme já sinalizamos, nem tudo em Mwaladzi vai bem. Se, por um
lado, as casas salientam-se como um ganho para os reassentados, por outro, a casa
por si mesma não dá conta de resolver questões mais estruturais, como por
424
no carro perguntam: acabou? Sim, estão a demolir a sua casa você a ver.
Meus filhos choraram mamã nossa casa está ir embora, eu subi no carro a
deitar lágrimas e, assim acabou a história de Capanga (Entrevista com dona
L. membro do Fórum comunitário de Mwaladzi; outubro 2016).
básica, composta por: milho, óleo, açúcar, feijão, amendoim, peixe e arroz. Nesse
sentido, cada família recebia "um litro de óleo por cada criança da família; 1 kg de
arroz por cada criança, feijão também e o peixe (seco), tudo o resto era fornecido,
em função do número de pessoas por AF" (Entrevista com o líder comunitário de
Mwaladzi; outubro 2016).
Como dito, essa medida passageira tinha em vista protelar o sofrimento da
população reassentada e não evitá-lo. Por outro lado, o fornecimento da cesta
básica era uma forma de impedir possíveis revoltas populares, o que não aconteceu,
pois logo em 2013, meses depois do reassentamento houve a greve de água
organizada por um grupo de mulheres reassentadas, conforme atestam as palavras
de uma das participantes que,
[...] fizemos greve de água, todas as senhoras, não papás não, senhoras
porque somos nós que passamos dificuldades, entramos em greve de água,
a empresa [Rio Tinto] trouxe caminhões para abastecer em todas as ruas,
todos os dias até a água sair nos fontenários [fonte pública de
abastecimento de água], mesmo com isso, o problema ainda continua
(Entrevista com dona B. reassentada em Mwaladzi, outubro 2016).
As palavras dessa mulher lembram, uma vez mais, que são elas as que mais
sofrem pelo deslocamento compulsório. De todo modo, os problemas maiores que
ainda não foram resolvidos são: a terra com solo fértil para produzir; o acesso ao
trabalho; ao cemitério; a igreja, conforme disseram os nossos interlocutores durante
o campo. Esses aspectos são parte das promessas e dos acordos alcançados entre
a Riversdale Moçambique e as comunidades afetadas durantes as consultas
públicas.
Em Mwaladzi, ou seja, terra das pedras em Nyungwe, a terra é pedregosa
(Foto 14) e o nível de fertilidade do solo é variável. Para um dos especialistas em
solo e funcionário da Rio Tinto, a terra em "Mwaladzi e Cateme é de qualidade
variável, incapaz de produzir culturas básicas para a comunidade. Por isso, o
potencial agrícola não se teria expandido sem irrigação" (HRW, 2013, p.55).
Portanto, sem rios por perto, senão um pequeno riacho que se localiza logo na
entrada do reassentamento e, nem condições financeiras para investir num sistema
de irrigação, a população de Mwaladzi vive o espectro da fome e da insegurança
alimentar, uma vez que a terra fornecida é apta apenas para determinadas culturas.
428
176 Houve um levantamento feito pelo governo distrital para aferir o número de pessoas que
regressaram às anteriores aldeias/comunidades de onde foram retiradas, todavia, não tivemos
acesso a esses dados.
429
25
20
Frequências
15
10
0
0
Agricultura e tijolos 8
Agricultura e comércio 14
Agricultura e outras
18
atividades
Comércio e fazer tijolos 18
Outras atividades 28
Fonte: Trabalho de campo, outubro 2015 e 2016; Org.: Eduardo Bata (2017).
431
177Resultante da extracção de carvão mineral: Inalação de poeira põe em risco saúde de 289 famílias
em Tete. Disponível em: <https://www.diariodemocambique.co.mz/single-post/2017/12/04/Resultante-
da-extrac%C3%A7%C3%A3o-de-carv%C3%A3o-mineral-Inala%C3%A7%C3%A3o-de-poeira-
p%C3%B5e-em-risco-sa%C3%BAde-de-289-fam%C3%ADlias-em-Tete> Acesso em: 1. jan. 2018.
432
O que mais nos surpreende (ou não) em tudo isso é que esses atropelos à
legislação não decorrem da inexistência de instrumentos legais apropriados que
pautem essas atividades, mas da sua não aplicação e de uma espécie de vista
grossa que a Inspeção do Ambiente faz, já que é tarefa desse órgão e, sem o
prejuízo de outras inspeções, fiscalizar e penalizar os prevaricadores, de acordo
com o art.º 24, do Decreto n. 31/2012.
Na verdade, deve-se entender que o modelo de desenvolvimento capitalista
adotado no território nacional, que elegeu a mineração, como a sua engrenagem
principal, foi pensado na perspectiva de colocar sobre os ombros das comunidades
camponeses o fardo de todo o processo, o qual resulta invariavelmente, na perda de
autonomia e da soberania alimentar das comunidades.
De volta à Moatize, a população afetada afirma não só que a chegada dos
megaprojetos não melhorou a sua vida e, nos casos em que tal aconteceu, os
benefícios foram pouco expressivos, mas também relaciona a vinda desses projetos
com as mudanças nas formas de relacionamento entre as pessoas, principalmente
nos reassentamentos. De fato, para 52% dos moradores reassentados não houve
melhorias na qualidade de vida com a chegada dos megaprojetos até então,
publicitados como indutores do desenvolvimento.
Por sua vez, 27% da população respondeu que a vida melhorou com a vinda
dos megaprojetos. Assim, tanto os que apontaram melhorias parciais, isto é, 21%
quanto àqueles que indicaram melhorias efetivas, portanto, os que responderam
sim, todos destacam a proximidade ao hospital, a moagem, a escola, as
oportunidades de formação, a facilidade no acesso ao emprego, a melhoria da renda
proveniente do aluguel de casas e do trabalho, como aspectos que corroboram essa
percepção (Gráfico 8).
433
Sim
27%
Não
52%
Parcialmente
21%
Fonte: Trabalho de campo, outubro 2015 e 2016; Org.: Eduardo Bata (2017).
Machamba
0 10 20 30 40
Frequências
Fonte: Trabalho de campo, outubro 2015 e 2016; Org.: Eduardo Bata (2017).
Foto: Eduardo Bata (2016), Fonte: Trabalho de campo, Moatize, outubro 2016.
438
ações filantrópicas, tanto das mineradoras quanto de ONGs, como a Visão
Mundial que tem realizado projetos denominados comida pelo trabalho, ou seja,
as famílias contempladas trabalham e recebem como contrapartida uma cesta
básica.
Há pesquisas (HWR, 2013; MATOS, 2015; 2016) que documentam as dificuldades
no acesso aos alimentos, sobretudo em Mwaladzi. Portanto, além da tardia
distribuição da terra, o baixo nível de fertilidade dos solos alocados à população
corrobora o espectro da insegurança alimentar.
Desestruturação social Dado o caráter divisionista dos reassentamentos o risco de desarticulação social é
alto em todos eles. Pois, além do deslocamento físico imposto às comunidades a
X X X não transferência de elementos simbólicos, como o cemitério, a igreja a mesquita
e outros, concorre para esse fenômeno.
Na verdade, a própria mudança das suas anteriores aldeias para os
reassentamentos já conduz a esse fenômeno.
Aumento da mortalidade e morbidade O risco é alto, pois conforme relatos, alguns idosos morreram meses após o
reassentamento. Além disso, o aumento populacional e da circulação de viaturas
amplia o risco de aparecimento de várias doenças, com ênfase para as do veio
X X X respiratória. Por outro lado, o descontentamento em relação ao reassentamento
pode estar na origem de doenças, como a HPTA, visto que nem todos queriam ser
deslocados.
Perda do acesso à propriedade coletiva A população reassentada perdeu o acesso a recursos como o rio, as águas
e a recursos de uso comum termais, quer em função da distância, quer devido à ocupação e interdição de
X X X acesso a esses recursos. Por isso, o risco de empobrecimento, devido a falta
desses recursos que são elementos com uma representação simbólica e
existencial para essas comunidades é alto.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir das informações do trabalho de campo (2015 - 2016) e consulta bibliográfica.
439
440
[...] a demanda por espaço tem sido a grande dor de cabeça. Se for ver o
município de Moatize antes da existência dos megaprojetos havia espaço
por todo lado, mas depois da chegada deles, hoje que estou a falar, o
município não tem espaço nem para habitação, nem para comércio,
tampouco para atividades industriais, praticamente está sem espaço para
atribuição. Isso se verificou, a partir da altura que os megaprojetos
começaram a entrar na Vila a procura era maior que em algum momento
apanhou-nos de forma surpreendente foi se atribuindo espaços sem a
observância dos parâmetros legais, aquilo que são planos de pormenor e
plano de estrutura, então aquilo foi assim, hoje o município de Moatize não
tem espaço pra atribuir (Entrevista, com o vereador para área da
urbanização; outubro 2016).
178 Bossi et al (2010) destacam a importância da estrutura logística não só no sucesso do negócio,
mas também no agravamento dos impactos socioambientais. Para a Vale, particularmente a logística
é a segunda maior fonte de renda. Com a estrutura construída para viabilizar a exploração mineral, a
Vale aufere avultadas somas em dinheiro que conseguem amortizar parcela significativa dos custos
de transporte do minério de ferro das minas até os portos de embarque.
444
É claro que a Lei estabelece que a população deva ser informada, quando se
trata de atividades de prospecção e pesquisa mineral. Não obstante, sabe-se que as
operações de descarga e carregamento do carvão mineral no Terminal interferem na
vida dos residentes do bairro da Liberdade, o que nosso entender merecia, sim a
realização da consulta pública, com vista a informar e apontar caminhos para evitar
e/ou minimizar a exposição da população.
449
Por outro lado, a falta de informação transgride, igualmente, o art.º 6º, da Lei
n. 34/2014, Lei do direito à Informação. Segundo esse art.º,
As entidades públicas e privadas abrangidas pela presente lei têm o dever
de disponibilizar a informação de interesse público em seu poder,
publicando através dos diversos meios legalmente permitidos, que possam
torná-la cada vez mais acessível ao cidadão. Assim, as entidades
abrangidas pela presente lei devem proceder à ampla divulgação dos
modelos de organização e funcionamento dos serviços e conteúdos de
decisões passíveis de interferir na esfera dos direitos e liberdades do
cidadão (MOÇAMBIQUE, 2014f, p.34).
É preciso notar que esses atropelos à legislação ocorrem sob olhar dos
órgãos do Estado em todos os níveis. Na prática, pouco tem sido feito para inibir
esse ato suicida perpetrado pela Jindal. Portanto, é sob esse pano de fundo que
Martínez Alier (2007) considera que, frequentemente, o Estado atua como um ator
anti-ambiental, tanto poluindo, ou se omitindo ao não regular o mercado ou cobrar o
cumprimento das leis. No nosso entender, tal acontece porque, no país, o Estado,
além de regulador é também sócio dessas Companhias, pois à luz da legislação
nacional, em todas as empresas mineradoras constituídas no território nacional, o
Estado moçambicano tem resguardado o direito de adquirir entre 5 a 10% de ações.
Note-se, a propósito disso, que a aliança entre o capital e o Estado não ocorre
somente em Moçambique. Ela se insere num movimento mais amplo de
reconfiguração dos limites e das funções, isto é, o confinamento do Estado que no
entender de Mészáros (2011, p.106), "é uma exigência absoluta para assegurar e
proteger permanentemente a produtividade do sistema. O capital chegou à
dominância no reino da produção material paralelamente ao desenvolvimento das
práticas políticas totalizadoras que dão forma ao Estado moderno".
Já antes, Haesbaert e Porto-Gonçalves (2006, p. 52) tinham observado essa
tendência de redefinição e, sobretudo, a corrosão e a subordinação do Estado aos
interesses capitalistas o que em parte ocasionou aquilo que eles denominam
"encolhimento do Estado, em detrimento do crescente poder das grandes
corporações transnacionais".
De todo modo, em Moatize os efeitos da ausência ou da aliança do Estado
com o capital transcendem a dimensão legal e contaminam a esfera social das
comunidades compelidas a conviver com os megaprojetos. A saúde dos moradores,
por exemplo, enquanto "uma dimensão fundamental do social, direito, e enquanto
expressão e indicador de um conjunto mais amplo de determinantes sociais",
450
Nesse trecho de entrevista, dois aspectos saltam à vista e, por isso, merecem
atenção: primeiro, o fato de ela indicar que a situação da poluição do ar torna-se
mais aguda nos dias de muito calor. Portanto, conforme descrevemos na parte dois,
a Província de Tete de modo geral, é conhecida em nível do país, como a "capital do
calor". Notem-se, aqui, algumas exceções, como por exemplo, o Distrito de Angónia,
onde as temperaturas são mais amenas.
De acordo com a Impacto (2012, p.89), a temperatura média anual "na
estação meteorológica de Tete é de 26,4º C, variando entre uma temperatura média
mensal de 30º C em Novembro e 22º C em Julho. O período mais quente ocorre
entre Outubro e Novembro, antes do início das chuvas". Assim sendo, em toda a
Província, "os ventos são geralmente leves com aproximadamente 75% de todos os
ventos com menos de 2,1 m/s [metros por segundo]. Os ventos mais fortes estão
entre 3,6 e 5,7 m/s do Este - Sudoeste, mas ocorrem em menos de 3% das
ocasiões" (IMPACTO, op.cit., p. 90). Esse quadro propicia a concentração e a lenta
dispersão das poeiras e do material particulado decorrente da circulação de
caminhões de grande tonelagem e dos comboios nas operações de carga e
descarga do carvão.
Segundo, a moradora reconhece, não só os perigos da inalação da poeira,
sobretudo pra as crianças, mas também aponta as limitações dos residentes para
evitar a contaminação delas, em vista que a poeira penetra em todos locais,
inclusive dentro das habitações, conforme pode se observar na foto 19.
452
179 Foucault (1996) destaca a importância do discurso e do ato discursivo em si. O discurso, diz
Foucault é dotado de positividade, no sentido de que, como um gesto, interfere concretamente no
bulício do real, é um acontecimento, é produtivo, recorta objetos, conforma ações, estabelece
relações, constitui sujeitos e subjetividades.
457
Nesse período, quantos pacientes em média deram entrada Não temos registro de casos de pacientes com
no Centro de Saúde que, apresentavam indícios/sintomas sintomas de contaminação por ingestão ou
de contaminação por inalação de poeiras de carvão inalação de carvão mineral
mineral?
7 - Como moçambicana, você está satisfeita com a
presença dos megaprojetos de mineração em Moçambique,
principalmente os que operam em Moatize? Explica por Sim. Porque vai impulsionar o desenvolvimento
quê? do Distrito e do país em geral
Fonte: Trabalho de Campo, Moatize, 2016; Org.: Eduardo Bata (2017).
2.3.2 Toda Gente Sabe Dizer Que o Carvão Mata: está não é? Da maneira como
esta vir àquela poeira ali...
180 A palavra, tal como a descreveu o Professor Calane da Silva, no prefácio do livro Xigubo da
autoria de José Craveirinha é som e sentido, é lágrima e sorriso, é noite e dia. A palavra pode ser
caju doce de saborear como micaia que fere e faz sangrar. A palavra oculta e desoculta verdades. A
palavra é charrua que prepara o terreno-alma para sementeira da esperança, mas também é arma
que defende e ataca a fortaleza dos valores com que nos batemos. A palavra é voz-de-lume que
queima, mas também refresca, a palavra é música de pássaros na canção dos Homens ritmando o
segredo das coisas da terra e do mundo (CREVEIRINHA, 2008, p. 3).
460
O Sr. Ademar narra que a mortalidade das pessoas era devido à água, água
poluída, que deu essas doenças nessas crianças, do tipo diarreia e vômito.
De fato, este evento mortífero assim reportado, fortemente simbólico e
carregado de uma marca da cultura do carvão de que pouco se fala, foi
atribuído, mais tarde, às péssimas condições de higiene e falta de água
potável.
181 Gudynas utiliza o conceito de "efeitos derrame" para analisar os impactos da instalação dos
empreendimentos minerários em múltiplas escalas. Para ele, o conceito de efeito derrame é
imprescindível para identificar e caracterizar as condições e as transformações que se geram, além
do empreendimento, isto é, além do local da instalação de determinado projeto.
Assim sendo, Gudynas aponta que tais efeitos podem se manifestar nos seguintes campos:
ambiental (fruto da modificação da legislação ambiental, com o intuito de reforçar a mercantilização
da natureza e a contínua conversão dos recursos em mercadoria); territoriais (o avanço do
extrativismo impõe novas territorialidades, frente as grandes concessões, quais sejam, mineiras,
petrolíferas ou expansão da fronteira agrícola. Tais avanços ocorrem sobre territórios preexistentes);
sociais (comumente, o crescimento do setor extrativo implica a flexibilização social, seja, reduzindo os
padrões de segurança no trabalho, ou ainda, tolerar uma qualidade de vida ruim para as
comunidades próximas aos empreendimento); econômicos (a dependência econômica gerada pela
exportação de produtos primários, bem como a criação de economias de enclave, ou seja,
empreendimentos que se erguem como verdadeiras ilhas e sem relações e vínculos com o resto da
economia); excedentes (os governos autodenominados progressistas, valem-se da retórica de que, o
extrativismo é indispensável para a criação da riqueza nacional) e internacionais (o extrativismo
somente é possível, pois se insere em redes globais de comercialização. Ele alimenta a exportação
de matérias primas, que em épocas de grande demanda, seus volumes de exportação aumentam
drasticamente) (GUDYNAS, 2016, p. 28 - 33).
462
Dissemos aparente porque essa taxa não abrange todas as faixas etárias, ou seja,
ela é referente apenas à população que tem entre 15 e 49 anos de idade.
De acordo com o Conselho Nacional de Combate ao SIDA, Moçambique tem
1,5 milhões de pessoas vivendo com o HIV (PVHIV), e ocorrem 223 novas
infecções e 108 óbitos relacionados com o HIV por dia. Dessas infecções, a
maioria ocorre na região Sul (40%), que contribuiu apenas com 24% para a
população adulta. As regiões Centro e Norte contribuíram com 36 e 24%
respectivamente, do total de novas infecções no país (MOÇAMBIQUE,
2016a, p.12).
Segundo o mesmo estudo, 28,7% das novas infecções por HIV/SIDA ocorreu
entre Mulheres Trabalhadoras do Sexo (MTS), clientes de MTS e Homens que
fazem Sexo com Homens (HSH), sendo que a taxa de novas infecções é maior nas
regiões Centro e Norte, devido ao crescimento de casos de sexo transacional
(MOÇAMBIQUE, 2016a). É inegável a relação de causalidade entre o aumento da
taxa de novas infecções e o sexo transacional, contudo, esse não deve ser o único
aspecto a ser considerado na análise dessa complexa realidade.
Porque hipóteses como: questões culturais (ritos de iniciação masculinos e
femininos) em relação às atitudes e risco de infecção; a mobilidade populacional, ao
longo dos corredores internacionais de transporte; a marginalização econômica e o
empobrecimento da população são, entre outros aspectos, os que possuem
considerável valor explicativo, conforme assinala Raimundo (2011).
De acordo com MISAU (2005), a taxa de prevalência da AIDS entre a
população dos 15 a 49 anos de idade vem crescendo desde 2000. Por exemplo,
enquanto em 2001 o percentual foi de 16,8%, esse valor subiu para 20,4% em 2004.
Nesse período, a taxa de prevalência na Província de Tete variou entre 16,7% em
2001 e 16,6% em 2004, portanto, na média da taxa de prevalência da Província de
Gaza, a que apresenta maiores taxas de incidência do AIDS em nível do país.
Entre 2009 e 2015, a taxa de incidência da AIDS em Moçambique subiu de
11,5% para 13,2%. Esse percentual, que é relativamente menor (11,0%) nas zonas
rurais, em relação às zonas urbanas (16,8%) mostra, também, que a taxa de
prevalência é mais elevada entre as mulheres (20,5%) e menor entre os homens
(12,3%). Tete apresentou a taxa mais baixa (5,2%) do país (MISAU, 2017a)182.
Fonte: Livro de registro de entrada de pacientes, Centro de Saúde de Moatize; outubro de 2016. Compilação: Eduardo Bata (2016).
463
Mapa 9- Espacialização da ocorrência de doenças em crianças por tipo em Moatize, no período entre abril e outubro de 2016
Fonte: Livro de registro de entrada de pacientes, Centro de Saúde de Moatize; outubro de 2016. Compilação: Eduardo Bata (2016).
464
465
De fato, junto com a crise zimbabueana no início dos anos 2000, o arranque
das obras de construção da planta de processamento e de outras infraestruturas de
apoio à atividade mineira em Moatize e na cidade de Tete, atraiu para essas cidades
grandes contingentes humanos, entre eles, as trabalhadoras de sexo provenientes
do Zimbabwe e, não só, mas também do Malawi, Zâmbia e de algumas províncias
do país. De acordo com Raimundo (2011, p.14)
A crise interna do Zimbabwe abriu as portas para maior mobilidade de
vendedoras do sexo deste país para as províncias do Centro de
Moçambique. Numa reportagem recente da Televisão de Moçambique, as
vendedoras do sexo dizem que, os moçambicanos pagam muito bem e, por
isso, são os melhores clientes e, nós praticamos relações sexuais conforme
o gosto e a vontade do cliente.
Foto 21- Algumas residências adjacentes à mina de Moatize II, bairro de Bagamoyo;
ao fundo a cerca que separa a área de mineração e a residencial,
outubro 2016
183 Administração Regional das Águas do Zambeze é uma instituição controlada pelo Ministério das
Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos, que junto com a Direção Provincial das Obras
Públicas e Habitação, trabalham na gestão da bacia hidrográfica do rio Zambeze.
184 De acordo com o Decreto n.18/2004, os limites de concentração de poluentes no ambiente são
qualidade do ar, são as concentrações de poluentes que, ultrapassadas, poderão afetar a saúde da
população. [Enquanto isso], padrões secundários, são as concentrações abaixo das quais se prevê o
mínimo efeito adverso sobre o bem-estar da população, assim como o mínimo dano à fauna, à flora,
aos materiais e ao meio ambiente em geral" (CONAMA, 1990, p.342).
472
De acordo com Bernardo (2016, grifo do autor) é no fato de, alguns efeitos da
mineração não poderem ser visualizados ou sentidos de imediato que reside à
essência do que ele denomina "efeitos rato". Valendo-se dessa categoria, o autor faz
uma analogia entre o efeito das transnacionais que extraem o carvão em Moatize e
ação do rato, roedor-destruidor. Na verdade, uma das grandes virtudes do rato é
conseguir roer em silêncio e sem deixar rastros imediatos, tal como acontece com
parte significativa dos efeitos da mineração do carvão que somente poderão ser
visto e sentido em longo prazo. Portanto, partindo dessa premissa, Bernardo (op.cit.,
p. 208, grifos do autor) faz
Analogia do rato com as grandes transnacionais no desenvolvimento de
suas atividades. Alguns efeitos negativos dos seus trabalhos podem ser
vistos de imediato, os "efeitos já", mas tem aqueles que pela capacidade de
explorar soprando que esses projetos desenvolvem não são imediatamente
visíveis. Alguns imediatamente visíveis podem fazer com que se busquem
outras causas deixando essas grandes empresas bem distante. Para além
de que no final da extração dos bens que interessam essas transnacionais,
imediatamente se retiram sem remorsos. Alguém já viu o rato estar presente
na hora da compra da alimentação? Claro que não. Só está presente
enquanto tudo estiver bem. Quando os recursos se esgotam buscam outros
lugares. Os "efeitos rato" estão presentes na exploração de recursos em
grande escala como a Vale está fazendo em Moçambique. Infelizmente
ficam no lado oculto e no desconhecido.
No total, são mais de 350 pessoas que vivem entre as poeiras levantadas
pela extração do carvão mineral e os estrondos das dinamites acionados na mina da
475
Portanto, esse quadro, ainda que não seja totalmente igual ao que foi
observado em Moatize, em parte devido ao período abrangido pela coleta de dados,
bem como a ausência de um histórico de monitoramento dessas doenças em nível
do Distrito, contudo, ele possui elevado valor explicativo para a nossa pesquisa e
chama atenção para cenários futuros em Moatize. De modo singular, merece
destaque o aumento da taxa de incidência de doenças relacionadas ao aparelho
circulatório e respiratório, principais causas da mortalidade em Criciúma no período
abrangido pela coleta de dados. Assim como em Criciúma, em Moatize, a incidência
de doenças cardíacas resulta da exposição e inalação contínua de poeiras ou
partículas finas do carvão que com o tempo poderão dar lugar ao surto de
pneumoconiose, também denominada pulmão negro.
Condições similares de exposição contínua das comunidades às poeiras e
aos particulados da mineração do carvão foram observadas em outras regiões do
mundo. Na Colômbia, por exemplo, entre outros efeitos negativos da extração do
carvão mineral, Gregow (2016) identificou deficiências no acesso à água potável, já
que os rios e córregos próximos foram poluídos pelas operações mineiras. Além
disso, o mesmo estudo constatou que os reassentamentos realizados conduziram às
perdas de terras propícias para agricultura e, por conseguinte, a perda dos meios de
subsistência, principalmente dos grupos indígena e afro- colombianos.
Por outro lado, a extração do carvão na mina de Carrejón afetou também a
saúde da comunidade local. Com efeito, Gregow (op.cit., p.12) relata a ocorrência de
impactos significativos na saúde da população local e afirma:
477
186 De acordo com a Lei n. 23/2007, lei de trabalho, considera-se relações de trabalho "todo o
conjunto de condutas, direitos e deveres estabelecidos entre o empregador e o trabalhador,
relacionados com a atividade laboral ou serviços prestados ou que devam ser prestados e, com o
modo como essa prestação deve ser efetivada" (MOÇAMBIQUE, 2007a, p. 469).
479
Sem dúvida de que o quadro descrito por Engels se refere a um período mais
ou menos longínquo, isto é, no século XVIII, período no qual a mineração era
predominantemente manual. De fato, mesmo reconhecendo avanços significativos
na área da mecanização e da legislação sobre a higiene e segurança no trabalho,
essa atividade continua sendo um dos setores que mais representa riscos para a
saúde e vida do trabalhador. Entre a contaminação e a exaustão do trabalhador, em
função da longa jornada e da natureza do trabalho, Melek, et al. (2017, p.105)
destacam que a extração mineral permanece uma área de alto risco, porque além
dos acidentes laborais, operariado desse setor convive com problemas de saúde
mais graves, como
Distúrbios pulmonares, dificuldades respiratórias ao realizar esforços,
dificuldade respiratória durante o sono, tosse seca ou produtiva, sensação
de sufocamento, distúrbios cardiovasculares como elevação da pressão
arterial, cansaço, edema, alterações eletrocardiográficas, anomalias
cardiovasculares.
Para Frei (2017), essa expectativa decorre do fato de, em regiões onde a taxa
de desemprego é alta e, nas quais a pesca e a agricultura de autoconsumo são as
principais fontes de rendimentos, a esperança de vida melhor por meio do trabalho
remunerado, corre como sangue nas veias, no seio das comunidades. Todavia, a
experiência na implementação dos grandes empreendimentos no país, revela que a
promessa de emprego e da melhoria de vida das comunidades, não passa de um
simples discurso que não encontra materialidade, tanto nas ações do governo
quanto dos megaprojetos.
De fato, dezoito anos após a instalação de um dos primeiros grandes
empreendimentos em Moçambique, a Mozal, as grandes transnacionais do setor
extrativo demonstraram não serem os "patrões", ou seja, as que mais postos de
trabalho oferecem para a população moçambicana. Portanto, ainda que se
reconheça a sua contribuição para a geração de postos de trabalho na sua maioria
temporários e indiretos, no geral, os megaprojetos empregam menos pessoas.
486
Outro "veio" que deve ser explorado para a compreensão desse multifacetado
quadro do metabolismo social do trabalho é a migração para o trabalho, que, em
parte, alimenta o exército de reserva, portanto, o mutirão de trabalhadores pronto
para ser incorporado a qualquer preço (e condições) ao circuito de acumulação. Na
verdade, a inclusão de novos territórios amplia de um lado, as ofertas no mercado
de trabalho, intensificando a organização produtiva e a divisão social do trabalho,
mas, por outro lado, interfere nas relações de trabalho e, por conseguinte, no
desenvolvimento de processos migratórios, que se efetivam nos territórios (ALVES e
BRAND, 2015).
Para Lisboa (2012) a relação trabalho e migração é uma das expressões do
contínuo processo de reestruturação produtiva do capital, em escala mundial. Tal
processo, que não se realiza de forma homogênea pelo território e, "não poderia ser
diferente, tal como assinala Mendonça (2004, p.166) atingiu os objetivos propostos,
489
187 A inoperância e/ou a coalizão entre o sindicato e a Vale Moçambique, foi também observado pelo
jornalista e ativista ambiental Jeremias Vunjanhe numa entrevista realizada pela IHU On-Line. De
acordo com ele, "todos os sindicatos existentes no país, incluindo o dos trabalhadores da Vale, é
490
controlado pelo governo e pelo Partido Frelimo, que simultaneamente tem interesses empresariais no
projeto da Vale em Moatize.
De fato, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria de Construção Civil, Madeiras e Minas
de Moçambique (SINTICIM), é financiado e controlado pela Vale e com tal, pouco ou quase nada faz
para defender os direitos dos trabalhadores. Aliás, "o SINTICIM é acusado pelos trabalhadores de
estar a reboque dos interesses da Vale e de prejudicar os trabalhadores porque serve como espião
da empresa". Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500479-mocambique-o-menino-
bonito-da-vale-entrevista-especial-com-jeremias-vunjanhe> Acesso em: 26 jul. 2014.
491
188
Na parte 1, ao abordarmos o processo de formação territorial de Moçambique salientamos como
um dos grandes desafios a questão da unidade nacional. Exaltada em discursos políticos e em
492
grandes eventos, como por exemplo, nos festivais nacionais da cultura; a unidade nacional e o
esforço para a construção da moçambicanidade, enquanto um dos pilares do desenvolvimento segue
sendo uma questão por ser resolvida.
É preciso lembrar que uma das questões centrais que trazem à tona esse e outros aspectos é a
desigualdade na distribuição da riqueza e de oportunidades entre as regiões Sul, Centro e Norte de
Moçambique. Há uma sensação de que a condição sine qua non para a integração e o sucesso no
mercado laboral ou em outros circuitos do poder político e econômico nacional é preciso ser,
simultaneamente: membro do Partido Frelimo, parente de um alto governante.
493
estar na área dos transportes e era para ser adjunto do chefe dos
transportes em que o chefe dos transportes era brasileiro e quando fomos
discutir salários o chefe dos transporte tinha US$ 5.000 e a mim como
adjunto queriam me US$ 750 e eu disse isso não aceito e falaram que
vamos subir e deram a proposta de US$ 1.500 recusei e deram a proposta
de US$ 2.000 e pararam nesse valor e eu disse: olha eu primeiro vou ter
que deixar o Estado para trabalhar pra vocês como adjunto a receber esse
valor e o chefe US$ 5.000 e quem vai fazer trabalho sou eu, relatórios e
tudo, o chefe vai encarregar-me e então, porque vou estar a sofrer a
trabalhar para ele receber sentado? Então, mandei passear, não quis, eu
recusei, eu disse continuo no Estado estou bem, pelo menos lá ninguém me
chateia. Era muito dinheiro, era aliciante, mas eu joguei pela segurança,
depois aquelas são empresas que quando você pisa na bola eles não
ponderam é logo afastar (idem).
Notas:
* Congrega trabalhadores moçambicanos de diversas empresas que prestam
serviços ao projeto da Vale Moçambique.
** Metical da nova família que, vigora desde janeiro de 2006.
*** Aglutina trabalhadores estrangeiros de várias procedências, incluindo brasileiros.
**** US$ 1 = 28 MT, a taxa média anual em 2011, de acordo com o Banco de Moçambique
(BM, 2012).
189Numa entrevista concedida a IHU O - Line, Jeremias Vunjanhe, descreve as condições de trabalho
na Vale Moçambique, assim como, denuncia os esquemas de favorecimento e de tratamento
desigual dos trabalhadores. Segundo ele, "a situação de trabalho dos moçambicanos que atuam na
Vale é extremamente desigual. Há grupo de moçambicanos recrutados em Maputo e, por outro lado,
495
os filhos de dirigentes políticos e governantes que estão na capital. Eles possuem um grau de
instrução superior àqueles que têm uma situação de trabalho considerada muito boa e que aufere
salários muito elevados à semelhança dos trabalhadores brasileiros e outros estrangeiros. Entretanto,
a maioria dos trabalhadores com pouca instrução e experiência profissional encontra-se numa
situação extremamente precária e com salários muito baixos. Várias são as denúncias feitas por
trabalhadores e populares sobre a violação da lei do trabalho e o desrespeito da Vale com os mais
elementares direitos humanos. Há também relatos de expulsões arbitrárias e sem justa causa".
Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500479-mocambique-o-menino-bonito-da-vale-
entrevista-especial-com-jeremias-vunjanhe> Acesso em: 26 jul. 2014.
496
Já no art.º 31, o legislador deixa claro que "o empregador deve criar
condições para a integração de trabalhadores moçambicanos nos postos de trabalho
de maior complexidade técnica e em lugares de gestão e administração da empresa"
(idem). Adicionalmente, a legislação nacional sobre matéria estabelece quotas para
a contratação da força de trabalho estrangeira. Nesse sentido, para a grande
empresa190, tal como é a Vale Moçambique e outras mineradoras que operam em
Moçambique, a taxa de trabalhadores estrangeiros deve ser igual, mas não superior
a 5% da totalidade dos trabalhadores da grande empresa (MOÇAMBIQUE, 2007a).
190 As empresas são classificadas em: grande empresa, aquela que emprega mais de cem
trabalhadores, média empresa, a que emprega mais de dez até ao máximo cem trabalhadores e
pequena empresa, aquela que emprega até dez trabalhadores (MOÇAMBIQUE, 2007a).
498
Por outro lado, o art.º 14, do contrato mineiro assinado entre a Vale e o
governo determina que
A concessionária e seus subcontratados devem empregar pessoal
moçambicano e estrangeiro de acordo com o regime de contratação fixado
na legislação laboral. Considerando o nível de especialização e qualificação
exigidas pelo projeto à concessionária e seus subcontratados podem
contratar mão de obra estrangeira globalmente, em média, não mais que: (i)
30% do total de trabalhadores durante a fase desenvolvimento do projeto;
(ii) 20% do total dos trabalhadores após os primeiros 5 (cinco) anos da fase
de desenvolvimento, percentagem considerada numa base anual; (iii) 10%
do total dos trabalhadores após o fim da fase de desenvolvimento,
percentagem considerada numa base anula (MOÇAMBIQUE, 2007a, p.40).
191O filme foi lançado em 2010, em parceria com o movimento Justiça nos Trilhos. Nele, busca-se
desmontar a falsa ideia do desenvolvimento induzido pela Vale em vários municípios do estado do
Pará e do Maranhão. Além das mortes por atropelamentos ao longo das linhas de trem, relatam-se
casos de perseguição dos sindicalistas que se posicionam em favor dos trabalhadores.
NÃO VALE! O progresso da Vale. Produção de Silvestre Montanaro. Amazônia, 2010. 1 CD.
503
192 Não Vale! O progresso da Vale. 2010. Produção de Silvestre Montanaro. Amazônia, 2010. 1 CD.
504
Tal posicionamento dialoga com o que nos é proposto por Braz (2013, p. 274)
ao notar que, "os processos de trabalho, quando estruturados nos padrões da
sociedade capitalista, produzem um processo metabólico de destruição da saúde
física e mental dos trabalhadores". Portanto, em Moatize o regime de trabalho em
turnos, bem como os contratos precários, sobretudo na fase inicial dos megaprojetos
"pinta" a tela de degradação e marginalização de trabalhadores - chefes de família,
que no período anterior à chegada da Vale e de outras mineradoras tinham
estratégias próprias de sobrevivência e/ou de auto-sustento.
De todo modo, apesar desse quadro de degradação do trabalho e da vida do
trabalhador, acompanhado de demissões injustas; devido às dificuldades de acesso
ao emprego formal, principalmente fora da capital (Maputo), bem como aos salários
relativamente altos (comparado aos salários de fome pagos na função pública), os
trabalhadores sentem-se felizes pelo trabalho que têm e, sobretudo pelos salários
auferidos. Na verdade, tanto o operador de máquina quanto alguns reassentados,
destacam a formação técnica, como um dos grandes ganhos da presença dos
megaprojetos em Moatize.
505
Sigaud um dos marcos dessa denúncia) questiona o avanço das barragens, para
desembocar no movimento Justiça nos Trilhos que atua na denúncia dos problemas
socioambientais provocados pela Vale no Pará, diferentes atores (Comissão
Pastoral para Terra (CPT), associação dos moradores, estudantes, pesquisadores e
Universidades) se mobilizam, com vista a oferecer resistência aos projetos
extrativistas e/ou apoiar as comunidades afetadas.
De fato, os movimentos de repúdio às atividades mineiras e suas empresas
estão ganhando corpo, espaço e notoriedade no território brasileiro. Milanez e
Santos (2014, p.144) situam o "efervescimento"
Dessas organizações, a partir dos meados da década de 2000, os quais
estão atrelados ao início do processo de expansão das atividades mineiras
e da cadeia metalúrgica. Portanto, é dentro desse contexto que, as
organizações em diferentes territórios iniciaram movimentos de resistência a
este tipo de projetos. A primeira tentativa de organizar uma rede nacional
que aglutine esses movimentos foi proposta pela Rede de Justiça Ambiental
do Brasil, visando formar o Grupo de Trabalho Conjunto de Mineração e
Metalurgia (GTAMS) em 2007.
Por isso, "a expropriação dos sujeitos dos espaços da existência e das
condições dignas de trabalho para reprodução da vida, lança as classes sociais
empobrecidas nas fileiras dos sem-terra e sem trabalho" (GONÇALVES, op.cit., 236,
grifos do autor). Portanto, foi exatamente isso que ocorreu com a população
reassentada em Cateme, 25 de Setembro e em Mwaladzi que, em um passe de
mágica, ficou sem terra e, atualmente, sem trabalho.
Diante dessa brutal forma de atuação capitalista que culminou com a
introdução de novas formas de uso e apropriação da terra, a população diretamente
afetada pelos grandes projetos em Moatize tem se mobilizado, configurando, dessa
forma, diversas estratégias de (Re) Existência e de enfrentamento. Para Mendonça
(2010, p. 96), a (Re) Existência, surge como resposta às
Transformações no campo, a partir da implementação dos novos sistemas
técnicos e tecnológicos, alterando, os modos de vida dos
trabalhadores/camponeses. Compreendemos (Re) Existência, como
associação da defesa da terra de trabalho às novas ações políticas
(protestos, marchas, fechamento de rodovias, ocupação de prédios
510
C D
____________________________________________________________
PARTE 5 É HORA DE RECOMEÇAR194
_________________________________________________________________
1 "A MINHA CASA ERA DE PALHA, MAS VIVIA BEM": notas para o
prolongamento do debate
(i) a primeira, que invoca o período dos reinos e impérios africanos decorrente
das migrações Bantu, na qual a necessidade de proteger as áreas ricas em ouro
criou condições para o surgimento das muralhas do Grande Zimbabwe;
(ii) a segunda, marcada pela presença colonial em Moçambique, formalizada
na Conferência de Berlim, cuja característica fundamental foi a divisão do país em
áreas de interesse colonial, sendo: o Sul, sobretudo as províncias de Gaza e
Inhambane reservadas ao recrutamento da força de trabalho para as minas e
plantações na África do Sul e o Centro e Norte, quase que na sua totalidade,
alugado às Companhias de Moçambique e do Niassa, todas de capitais
estrangeiros. É o que designamos primeira etapa de inserção do país na economia
regional e mundial.
Tal como dissemos, desde o período colonial, Moçambique foi estruturado
para servir ao mercado externo, quer pela introdução de culturas obrigatórias (de
modo intenso a partir de 1930), como sisal, algodão e outras, quer por meio da
migração da força do trabalho, servindo, assim por dizer, de coluna vertebral do
capitalismo britânico presente na Rodésia do Sul, Niassalândia e na África do Sul.
Considerando esse quadro, concorda-se com Wuyts (1980), quando afirma que
Portugal nunca conseguiu moldar a colônia de Moçambique, em função das suas
próprias necessidades de acumulação de capital, o que justifica a inserção da
formação social moçambicana no interior do subsistema da África Austral, no qual o
capitalismo sul-africano é o alicerce.
(iii) a terceira fase, que se inicia com a independência e se fortalece com a
introdução dos programas de ajuste estrutural, no final da década de 1980, e que
culminou com a renúncia ao socialismo, oferece aportes significativos para a
compreensão dos arranjos de toda a ordem ocorridos em Moçambique. Essa etapa,
que nasce sob o espectro da crise estrutural do capitalismo, testemunha, em nível
mundial, ao movimento de transferência de capitais das regiões tradicionais para
outras que ofereçam vantagens comparativas e possibilidades de aplicação mais
rentável dos lucros produzidos em outras regiões, conforme assinala Harvey (2005).
Por isso, o ajuste espaço-temporal é segundo Harvey (2006, p. 98), uma
Metáfora das soluções para as crises capitalistas através da suspensão
temporal e da expansão geográfica. A produção do espaço, a organização
de novas divisões territoriais de trabalho, a abertura de novos e mais
baratos complexos de recursos, de novos espaços dinâmicos de
acumulação de capital em formações sociais preexistentes fornecem
diversos modos de absorver os excedentes de capital e trabalho existentes.
519
criou as condições legais para regular e/ou decidir por quem e como deve ser usada
a terra. É nisso que reside, em parte, o papel do Estado nesse emaranhado
processo de refuncionalização de alguns lugares, com vista a atender as
necessidades expansionistas do capital. É essa a tese que se buscou demonstrar e
comprovar ao longo da pesquisa.
Na senda disse processo, o Estado procedeu também à revisão da legislação
de minas, amparado na premissa de que "os recursos naturais situados no solo e no
subsolo, nas águas interiores, no mar territorial, na plataforma continental e na zona
econômica exclusiva, são propriedade do Estado", conforme determina o art.º 98 da
Constituição da República (MOÇAMBIQUE, 2004, grifo nosso). De forma inequívoca,
na lei de minas n.14/2002, revogada pela lei n. 20/2014, o legislador decreta que "o
uso da terra para as atividades mineiras tem prioridade sobre todas as formas de
uso e aproveitamento da terra, sempre que os benefícios sociais forem superiores e
desde que, isso seja precedido pelo pagamento de uma justa indenização
(MOÇAMBIQUE, 2002)".
Sem explicitar o quê é e quais são os "benefícios superiores", o Estado não
esconde, porém, a importância atribuída à mineração em relação às outras formas
de uso da terra. Em verdade, o discurso sobre a vitalidade da mineração para o
"desenvolvimento" do país vem sendo elaborado, desde a lei de minas n. 2/86, a
primeira após a independência. Deste modo, a partir desses elementos, concorda-se
com Scotto (2011, p.3) quando afirma que os conflitos socioambientais que nos
últimos anos, assolam algumas regiões do mundo, com ênfase para a América
Latina e a África, devem ser analisados considerando o papel dos Estados
nacionais. É preciso, pautar o olhar para além das consequências do aumento do
influxo do investimento estrangeiro nessas regiões e/ou países e passar a analisar
atentamente "o papel do Estado, dedicado a regular a propriedade, o acesso e a
exploração dos recursos minerais". Portanto, é como sugere Braudel (1987), olhar
sempre para o fundo do poço, até a massa profunda da água.
De fato, ao olhar para o fundo do poço, percebemos que as transformações
em curso no país, cuja notoriedade se dá, a partir dos programas de ajustes
estruturais, resultam de decisões e/ou eventos à escala mundial. Ou seja, é
resultado direto ou indireto de forças cuja gestação ocorre à distância, no dizer de
523
conforme lembra Marques (2015), não podem se permitir subordinar suas metas
empresariais ao imperativo socioambiental.
Numa só palavra, a população contesta a injustiça socioambiental, cujos
símbolos são, no dizer de Zhouri e Laschefski (2010), a exclusão no chamado
desenvolvimento, o direcionamento do ônus desse desenvolvimento para a
população. Portanto, nos três reassentamentos em Moatize está em curso o
processo de empobrecimento das comunidades, em função dos problemas como: o
acesso a terra, acesso ao trabalho, a marginalização, soberania alimentar,
desarticulação social, apenas alguns aspectos que conduzem a isso.
Longe de encerrar o debate, buscamos, com essa leitura panorâmica da
pesquisa, assinalar alguns pontos importantes. De resto, apesar das dificuldades
que permearam a realização da pesquisa, principalmente a coleta de dados
empíricos, acreditamos ter alcançado os objetivos propostos, o que não equivale
dizer que o estudo abarcou todas as peculiaridades dos megaprojetos de extração
do carvão mineral em Moatize, nem que a discussão sobre essa temática esteja
encerrada. Pelo contrário, pesquisas dentro da temática prosseguirão concomitante
à construção de novos olhares, ao refinamento de algumas ideias; afinal, o interesse
pela mineração vem já desde o mestrado e, certamente, prosseguirá nos próximos
anos é, assim por dizer, nossa agenda de pesquisa.
Sendo essa uma travessia, acreditamos que os quatro anos dedicados à
pesquisa não só foram marcados por momentos de angústia, sobretudo durante a
fase da redação da tese, mas também por momentos bons e de aprendizagem. O
que há de mais significativo em tudo isso foi à construção de novas parcerias e/ou o
fortalecimento de outras preexistentes, mas, principalmente, foi puder perceber que
as nossas escolhas, que são escolhas políticas espelham a forma como se pensa e
se olha o mundo, ou melhor, a visão que se tem sobre o papel da ciência na
transformação social. Por isso, acreditamos ser esse (a pesquisa) um contributo
singelo para o país, sobretudo em se tratando de uma nação "periférica", no qual os
desafios colocados pela nova (des) ordem mundial exigem esforços redobrados,
conjuntos, bem como novos engajamentos políticos, mas sempre, pautados na luta
pela transposição da ordem vigente - a ordem capitalista.
528
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