Memória e Patrimônio: Diálogos Entre Brasil e Portugal

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MEMÓRIA

E
PATRIMÔNIO:
Diálogos
entre Brasil
e Portugal
Conselho Editorial da Série História Chanceler
(Editor) Leandro Pereira Gonçalves, Dom Jaime Spengler
Pontifícia Universidade Católica Reitor
do Rio Grande do Sul, Brasil Evilázio Teixeira
António Costa Pinto, Vice-Reitor
Instituto de Ciências Sociais da Jaderson Costa da Costa
Universidade de Lisboa, Portugal

Jorge Ferreira,
CONSELHO EDITORIAL
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Presidente
Maria Helena Capelato,
Carla Denise Bonan
Universidade de São Paulo, Brasil
Editor-Chefe
Maria Izilda Santos de Matos,
Luciano Aronne de Abreu
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Brasil Beatriz Correa P. Dornelles
Jens Hentschke, Carlos Alexandre Sanchez Ferreira
Newcastle University, Carlos Eduardo Lobo e Silva
Reino Unido Eleani Maria da Costa
Helder V. Gordim da Silveira, Leandro Pereira Gonçalves
Pontifícia Universidade Newton Luiz Terra
Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Sérgio Luiz Lessa de Gusmão

Rui Cunha Martins,


Instituto de História e Teoria das Ideias/
Universidade de Coimbra, Portugal
SÉRIE

História

MEMÓRIA
E
PATRIMÔNIO:
Diálogos
entre Brasil
e Portugal
OR GANIZAD OR E S
Charles Monteiro
Klaus Hilbert
Paula Godinho

porto alegre
2017
© EDIPUCRS 2017

CAPA Thiara Speth


DIAGRAMAÇÃO Camila Borges
REVISÃO DE TEXTO Gaia – Revisão Textual
IMPRESSÃO E ACABAMENTO Gráfica Epecê

Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Publicação apoiada pela Capes.


Esta obra não pode ser comercializada
e seu acesso é gratuito.

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS


Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33
Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900
Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/fax: (51) 3320 3711
E-mail: [email protected]
Site: www.pucrs.br/edipucrs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


M533 Memória e patrimônio : diálogos entre Brasil e Portugal /
organizadores Charles Monteiro, Klaus Hilbert, Paula
Godinho. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2017.
193 p. (Série História ; v. 78)

ISBN 978-85-397-1032-4

1. Historiografia. 2. Memória coletiva. 3. História – Aspectos


sociológicos. 4. Evolução social. I. Monteiro, Charles. II. Hilbert,
Klaus. III. Godinho, Paula. IV. Série.

CDD 23 ed. 302.23


Lucas Martins Kern CRB 10/2288
Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo,
especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos.
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às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como
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apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO |  7
OS ORGANIZADORES

ARS MEMORATIVA: LUGARES NA MEMÓRIA E A


MEMÓRIA DOS LUGARES  |  17
KLAUS HILBERT

DOCUMENTO, MEMÓRIA E ARQUIVO NA ARTE


CONTEMPORÂNEA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
A OBRA IMEMORIAL DE ROSÂNGELA RENNÓ  |  33
CHARLES MONTEIRO

GEOGRAFIAS DA RESISTÊNCIA: A CIDADE E A MEMÓRIA  |  49


MARIA ALICE SAMARA

MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS NA REVOLUÇÃO


PORTUGUESA A PARTIR DE UMA OPERAÇÃO SAAL  |  65
JOÃO BAÍA

A GUERRA COLONIAL ENTRE A MEMÓRIA


E O ESQUECIMENTO  |  81
MIGUEL CARDINA
ENTRE A MEMÓRIA E O PATRIMÔNIO:
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO E A PESQUISA  |  93
MARIA LETICIA MAZZUCCHI FERREIRA
FRANCISCA FERREIRA MICHELON

TOPOGRAFIAS DA MEMÓRIA: RE-SIGNIFICAÇÕES DO


PASSADO NA FRONTEIRA ENTRE O NORTE DE PORTUGAL
E A GALIZA  |  113
PAULA GODINHO

CIDADE E PATRIMÔNIO HISTÓRICO: PASSO FUNDO/RS  |  129


EDUARDO ROBERTO JORDÃO KNACK

A CONSTRUÇÃO DE UM PATRIMÔNIO:
O CASO DA ENFERMARIA MILITAR DA CIDADE
DE JAGUARÃO/RS  |  145
ALEXANDRE DOS SANTOS VILLAS BÔAS

MEMÓRIA OPERÁRIA, RECONFIGURAÇÕES


PRODUTIVAS E NOVOS USOS DO PATRIMÓNIO
INDUSTRIAL NO VALE DO AVE  |  171
MARIANA REI

SOBRE OS AUTORES  |  191


APRESENTAÇÃO

O presente livro é fruto de intercâmbio acadêmico entre pesquisadores do


Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS) e do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPel),
que ganhou uma dimensão internacional a partir da participação do Grupo
de Pesquisa Memória e Patrimônio da Universidade Nova de Lisboa. Como
fruto desse intercâmbio, foi realizado na PUCRS o I Colóquio Usos da memó-
ria e práticas do patrimônio nos dias 26 e 27 de outubro de 2015. Naquela
oportunidade, os debates contaram com a participação de pesquisadores de
outras Instituições de Ensino Superior (IESs) brasileiras na composição das
mesas-redondas e nas apresentações de trabalhos, promovendo o diálogo
sobre os temas da memória e do patrimônio em uma dimensão interdisciplinar
entre História, Antropologia, Arqueologia e Museologia.
Os estudos sobre a memória e o patrimônio interessam diferentes áreas
de pesquisa, como história, antropologia, arqueologia, sociologia, mas não
estão restritos apenas às ciências humanas. De forma geral, pesquisadores
que empreendem investigações relativas à memória encontram, inicial-
mente, em Bergson (1990) e Halbwachs (2006) referências fundamentais
e incontornáveis para a pesquisa sobre o tema. Em Matéria e memória:
ensaio da relação do corpo com o espírito, Bergson (1990) procurou superar
o debate entre materialistas e idealistas, visando compreender o papel
do corpo, do espírito e da duração nos processos de ação, percepção e
rememoração ligados à memória. Ele dividia a memória em motora (de
ação ou de trabalho), relacionada às atividades banais do dia a dia, e
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pura, ligada ao plano do sonho e do espírito. Ele nos fala que através dos
movimentos do corpo, pela ação e percepção no presente, atualizamos
as imagens que evocamos de uma ação no passado. A memória não é
estática, ela atualiza e conecta as diferentes imagens e tempos a partir
de lembranças similares ou contíguas devido ao trabalho combinado do
corpo e do espírito. Porém, Bergson (1990) situa a sua reflexão no campo
do indivíduo, e não da sociedade como um todo.
Halbwachs (2006, p. 30) afirma que “jamais estamos sós” e abre caminho
para pensarmos a memória em uma dimensão coletiva, pois nossas lembran-
ças, para esse autor, nunca são individuais, “ainda que se trate de eventos em
que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos”.
Esse autor destaca a importância dos grupos sociais para a memória dos
indivíduos. De acordo com suas proposições, para que nossas lembranças
consigam esclarecer e reconstituir uma imagem de um acontecimento
passado, necessitamos de noções difundidas nos grupos dos quais fazemos
parte durante nossa vida: “é preciso que esta reconstrução funcione a partir
de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no
dos outros” (HALBWACHS, 2006, p. 39). Assim, o grupo fornece condições
para uma recordação, pois ao mesmo tempo que passamos formulações,
interpretações e características próprias sobre determinada lembrança para
outros integrantes, estes também passam para nós sua visão sobre o mes-
mo acontecimento rememorado. Recordamos do ponto de vista do grupo,
mesmo que seus membros não estejam materialmente presentes, por isso
“se pode falar em memória coletiva” (HALBWACHS, 2006, p. 41).
Por grupo podemos entender a família, o primeiro do qual fazemos parte,
a escola, os colegas de trabalho e de profissão, associações de moradores,
entre tantos outros exemplos que poderiam ser mencionados. Esses dife-
rentes grupos que interferem na vida dos sujeitos mantêm relações entre
si, determinam os “quadros sociais da memória” que evocamos em função
das vicissitudes do presente, mas “quanto mais os grupos que se tocam se
distanciam ou quanto mais numerosos são eles, mais a influência de cada
um é enfraquecida” (HALBWACHS, 2006, p. 56). Grupos mais coesos, que
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compartilham sociabilidades com maior frequência e intensidade, tendem a


interferir de forma mais eficaz nas lembranças dos sujeitos. Nesse sentido,
Halbwachs (2006) também tece considerações sobre o que chamou de “me-
mória da nação”, que compreende acontecimentos, personalidades e lugares
que não conhecemos pessoalmente, mas que entramos em contato por
recursos como livros, jornais, testemunhos, entre outros. Esses elementos
auxiliam na inserção dos indivíduos em um passado coletivo, acessado por
meio de uma “bagagem de lembranças históricas”, uma “memória tomada
de empréstimo” (HALBWACHS, 2006, p. 72). Dessa forma, ele define uma
diferença entre memória coletiva e história.
Segundo esse autor, “A história parece um cemitério em que o espaço
é medido e onde a cada instante é preciso encontrar lugar para novas
sepulturas” (HALBWACHS, 2006, p. 74). Ele ainda distingue a “história
vivida”, aquela que nossa memória se apoia, da “história apreendida”.
Enquanto uma é dinâmica, viva, em constante transformação, a outra está
associada à imobilidade de um cadáver que clama pelo sepultamento. Essa
oposição entre história e memória caracterizada pelo autor influenciou
profundamente estudos sobre o tema ao longo do século XX, marcando
presença nas reflexões sobre o patrimônio em outra referência importante
para os pesquisadores dessas áreas. Nora (1997), em Les Lieux de mémoire,
retoma essa distinção, que aborda questões relativas às comemorações,
à memória, ao patrimônio e ao imaginário da França.
Nora (1993, p. 7) afirma que “Há locais de memória porque não há mais
meios de memória”. Com tal afirmativa, o autor indica que a aceleração da
experiência social, especialmente a partir do século XX, esfacelou a “memó-
ria verdadeira, social” de diferentes grupos ao redor do mundo. O ímpeto
de uma história crítica das tradições arrancou a memória de sua dinâmica,
de sua vida nos grupos. “Os lugares de memória nascem e vivem do senti-
mento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que
é preciso manter aniversários, organizar celebrações” (NORA, 1993, p. 13)
para estender filiações ao passado, pois organicamente os grupos sociais
não mais conseguem fazer isso. A busca pela preservação patrimonial nas
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sociedades contemporâneas resultaria, partindo dessa perspectiva, da


necessidade de se criar lugares para cristalizar memórias que se perdem
pela rapidez, a aceleração das transformações que marcam nossa sociedade.
Catroga (2001, p. 40), porém, observa que só uma concepção “cien-
tificista” pode conceber uma separação tão radical entre história como
operação intelectual exata e crítica e memória como movimento dinâmico
e vivo nos grupos sociais. Algumas das características pontuadas como
típicas da memória (seleção, presentismo, finalismo, representação, ve-
rossimilhança e inclusive afetividade, pois não existe uma cisão radical
entre sujeito/pesquisador e objeto de estudo) estão presentes no trabalho
do historiador. Candau (2005, p. 75-76) indica que a história pode ser
“arbitrária, plural, falível, caprichosa, interpretativa dos factos”, ela pode
“recompor o passado a partir de ‘partes escolhidas’, tornar-se um risco,
ser objeto de combates e servir”. Mesmo levando em consideração essas
aproximações, tanto Candau (2005) como Catroga (2001) não reduzem
essas duas operações a uma mesma atividade.
É necessário detalhar suas distinções para perceber a confusão que
ocorre no uso desses dois termos. Candau (2005) menciona a “ditadura
dos fatos”, a qual os historiadores devem respeitar, observando certas
datas e acontecimentos para não cair em um revisionismo constante.
Segundo Certeau (2011), a operação historiográfica é composta por
um lugar profissional, uma instituição de saber que orienta e define os
caminhos a serem percorridos e legitima o conhecimento produzido; um
fazer, uma prática de pesquisa que está associada ao local de produção; e
uma escrita, uma narrativa que obedece a certos critérios e envolve uma
“linguagem referencial”, um saber dos outros, que exige um conhecimento
prévio de outras produções e pesquisadores da área.
Apesar de a memória ser com frequência trabalhada, enquadrada
(POLLAK, 1992), disputada, classificada como “forte” ou “fraca” (CANDAU,
2005; TRAVERSO, 2012), cristalizada em lugares, ela preserva centelhas
que podem despertar em situações inusitadas, tal como o gosto de uma
madeleine (PROUST, 2010). Essas centelhas podem invadir nosso presente
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de forma desenfreada por meio de “fissuras” que emergem em nossa


“consciência prática” (BERGSON, 1990, p.75). Não obstante, memória e
história são constantemente confundidas.
Muitas questões envolvendo memória nas sociedades estão rela-
cionadas à maneira como certos grupos tratam (e disputam) o passado,
confundindo frequentemente a memória com o patrimônio, com a tradição
e com a história. “Fala-se assim da memória de um país para evocar aquilo
que é de facto a sua história” (CANDAU, 2005, p. 80). Ocorre que muitas
vezes a história acaba se tornando um objeto da memória, funcionando
como um “sociotransmissor” (CANDAU, 2005, p.95), estabelecendo co-
nexões entre determinados quadros sociais (como a família) com quadros
mais amplos (a cidade, a nação), levando alguns indivíduos a afirmar que
se lembram da história de seu município, de seu país (lembram-se de uma
história apreendida, ou mesmo midiatizada, transformada em filmes, pin-
turas, romances). Muitos grupos utilizam, ou mesclam, acontecimentos
históricos com seu quadro social, justificando ou legitimando sua posição,
estabelecendo uma memória forte. A história pode orientar os quadros
sociais de memória, sendo utilizada, muitas vezes, dessa forma.
Nesse sentido, adentramos o conceito de “metamemória”, que é “a
representação que cada indivíduo cria da sua própria memória”. Em sua for-
ma coletiva, “é a reivindicação partilhada” de uma representação memorial
(CANDAU, 2005, p. 99). Esses discursos memoriais procuram estabelecer
bases para assentar as memórias individuais, fornecendo e solidificando
uma “crença em raízes e num destino comuns, como o conseguem ma-
ravilhosamente o discurso patrimonial ou as ideologias comunitaristas”
(CANDAU, 2005, p. 100). Dentro dessa perspectiva, é possível compreender
a definição de patrimônio proposta por Prats (1998, p. 63): “el patrimonio
cultural es una invención y una construcción social”. Enquanto invenção,
está ligado ao processo de criação e naturalização de discursos na sociedade,
envolvendo a capacidade e o poder de certos grupos para tanto; enquanto
construção pode ser associado ao processo de legitimação, assimilação,
partilha e reivindicação desse patrimônio pela sociedade.
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Para Prats (1998, p. 64), o patrimônio cultural consiste na legitimação


de referentes simbólicos associados a determinadas ideias e valores. A
questão da atribuição de valor é fundamental para pensar e pesquisar o
patrimônio, pois, segundo Riegl (2013, p. 15), “o sentido e a importância dos
monumentos não cabem às próprias obras em virtude da sua determinação
originária, mas somos nós, modernos, quem lhes atribui”. Riegl (2013, p. 9)
entende que os monumentos são construídos com o objetivo de “conservar
sempre presentes e vivos na consciência das gerações seguintes feitos
ou destinos humanos particulares (ou conjunto de tais feitos e destinos)”.
Partindo dessa concepção, o autor indaga sobre a constituição dos valores
atribuídos aos monumentos e se eles são acionados a partir de uma memória
considerada “intencional” (monumento criado para lembrar, investir uma
memória de grupos sobre acontecimentos a determinado objeto) ou “não
intencional” (monumento que não foi criado para ser um monumento, para
lembrar algo, mas que foi patrimonializado) (RIEGL, 2013). Essa reflexão
possibilita ao pesquisador pensar a relação do patrimônio com o tempo.
Choay (2006, p. 137) considera o advento da industrialização como
o impulso para a consagração do monumento histórico durante o século
XIX. Para Prats (1998, p. 64), o romantismo na Europa produz os critérios
fundamentais da legitimação do patrimônio cultural (a natureza, a história
e a genialidade). Na França, em meio à perda de edificações, de obras de
arte e transformações urbanas que reconfiguravam as cidades, emergem
discussões sobre a preservação do passado. “Confrontados com a indus-
trialização, os franceses se interessam essencialmente pelo valor nacional
e histórico dos edifícios antigos e tendem a promover uma concepção mu-
seológica deles” (CHOAY, 2006, p. 138). Mas esse “culto aos monumentos”
convivia com uma espécie de “culto da modernidade”, do progresso, do
futuro. Já na Inglaterra, os monumentos históricos eram considerados parte
integrante das cidades: “são necessários à vida do presente; não são nem
ornamento aleatório, nem arcaísmo, nem meros portadores de saber e de
prazer, mas parte do cotidiano” (CHOAY, 2006, p. 139).
O S O RG A N I Z A D O R E S 13

Na França, uma memória intencional que busca preservar edificações


consideradas históricas pelas elites letradas empenhadas em assentar a
história da pátria em raízes longínquas; a Inglaterra entende os monu-
mentos, especialmente aqueles mais antigos (ruínas de castelos, abadias
e palácios), como parte integrante da paisagem de um país, movimento
que naturaliza, ou associa, o antigo à memória de uma comunidade. Estes
são apenas exemplos de valores atribuídos em dois países, o que leva a
perceber que esses princípios de “ativação patrimonial” (PRATS, 1998, p.
67) podem indicar diferentes formas de “engrenar” o passado, o presente e
o futuro, revelando diferentes regimes de historicidades (HARTOG, 2013)
que orientam a percepção e a experiência temporal dos grupos sociais.
Estas, entre outras questões, permearam os debates que ocorreram
no colóquio de 2015. Na sequência, apresentamos uma breve reflexão a
partir de autores que podem fornecer um arcabouço e uma introdução
para a leitura dos trabalhos dos pesquisadores reunidos aqui.
O livro organiza os textos a partir dos dois eixos fundamentais que
nortearam o projeto de intercâmbio acadêmico: Usos da memória e Práticas
do patrimônio. A primeira parte, sobre os usos da memória, está composta
de cinco textos. Klaus Hilbert escreve o texto “Ars memorativa: lugares
na memória e a memória dos lugares”, que discute as diversas maneiras
de criar, de preservar e de apagar memórias. Por outro lado, as coisas
que estão guardadas em algum lugar físico ou o próprio lugar podem
estimular e aumentar as memórias das pessoas, que as transformam
em lembranças. Usam-se duas visões de cidades, a nossa em constante
transformação e a outra, eterna e utópica, como metáfora para ilustrar
a interação das duas formas de memorizar: a incorporada e a externada.
O texto “Documento, memória e arquivo na arte contemporânea:
algumas reflexões sobre a obra Imemorial de Rosângela Rennó”, de Charles
Monteiro, problematiza a memória, o esquecimento e a produção do
conhecimento histórico através da obra Imemorial (1994) da artista-fo-
tógrafa brasileira contemporânea Rosângela Rennó para pensar sobre
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os usos da memória e as práticas do patrimônio. A obra problematiza a


visibilidade social dos trabalhadores e a construção social de uma iden-
tidade moderna no Brasil e como o moderno pode se constituir através
de formas de organização do trabalho e de dominação políticas arcaicas.
A arte permite repensar a história e, sobretudo, desmontar as narrativas
hegemônicas e problematizar os esquecimentos dos arquivos públicos.
Maria Alice Samara, em “Geografias da resistência: a cidade e a memória”,
procura fazer um exercício que equacionasse as diferentes camadas histó-
ricas que se encontram num local. O ponto espacial de um mapeamento da
geografia da resistência – e da memória enquanto forma de resistência – es-
colhido foi a rua António Maria Cardoso e mais especificamente o edifício que
albergou a sede da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), depois
de novembro de 1969, conhecida como Direção Geral de Segurança (DGS).
No artigo “Movimentos sociais urbanos na revolução portuguesa a
partir de uma operação SAAL”, João Baía procura, a partir do estudo das
memórias dos moradores de um bairro, compreender as razões pelas
quais esses moradores conseguiram organizar-se para mudar de forma
substancial as condições habitacionais do seu bairro, tendo em conta o
contexto histórico a nível local e nacional.
“A guerra colonial entre a memória e o esquecimento”, de Miguel
Cardina, propõe-se a pensar sobre como depois de mais de 40 anos do
fim das guerras entre o Estado português e os movimentos de libertação
africanos o conflito permanece ainda hoje em Portugal como um palco
de evocações fragmentadas e de amnésias persistentes.
A segunda parte aborda os usos do patrimônio e está composta por
cinco textos. O primeiro denomina-se “Entre a memória e o patrimô-
nio: reflexões sobre o ensino e a pesquisa”, de Maria Leticia Mazzucchi
Ferreira e Francisca Ferreira Michelon, e procura pensar o contexto e
as principais referências teóricas sobre o patrimônio e a memória que
fundamentaram a criação do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural, no começo dos anos 2000, marcado pela
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progressiva incorporação do patrimônio cultural imaterial às agendas


públicas e aos processos de reivindicações memoriais.
“Topografias da memória: re-significações do passado na fronteira
entre o norte de Portugal e a Galiza”, de Paula Godinho, procura interrogar
os processos de emblematização da fronteira entre o norte de Portugal
e a Galiza, num tempo em que esse limite entre países deixou de existir.
Problematiza a fronteira como campo social, que serviu para salvar a
vida e para governar a vida, sendo hoje usada de modos diferenciados.
Eduardo Roberto Jordão Knack, em “Cidade e patrimônio histórico:
Passo Fundo-RS”, foca o estudo dos processos de patrimonialização que
ocorreram em Passo Fundo entre o início de 1990 até o presente momento,
observando questões como atribuição de valor aos bens patrimoniais,
políticas públicas e temporalidade.
O artigo “A construção de um patrimônio: o caso da enfermaria militar
da cidade de Jaguarão”, de Alexandre dos Santos Villas Bôas, discute o
processo de construção de um patrimônio cultural tombado pelo Instituto
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), denominado de Enfermaria Militar,
localizado na cidade de Jaguarão, entre a divisa do Brasil com o Uruguai.
Mariana Rei, em “Memória operária, reconfigurações produtivas e
novos usos do património industrial no Vale do Ave”, propõe-se a pensar
sobre o processo de requalificação de antigas unidades industriais com
significativo valor patrimonial e forte implantação na memória coletiva
da região, que tem como princípio transformar anteriores marcos de
desenvolvimento econômico em polos de inovação de referência, através
da instalação de incubadoras de indústrias criativas.
Esperamos que o leitor aprecie a leitura e se sinta instigado a par-
ticipar do debate a partir das propostas teórico-metodológicas e dos
estudos de caso sobre memória e patrimônio no Brasil e em Portugal
apresentados nesta obra.

Os organizadores.
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REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio da relação do corpo com o
espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BURKE, Peter. História como memória social. In: BURKE, Peter. Variedades de
história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. p. 67-89.
CANDAU, Jöel. Antropologia da memória. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 4. ed. São Paulo: UNESP, 2006.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do
tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: LE GOFF, Jacques. História e memória.
Campinas: Ed. UNICAMP, 1994, p. 423-483.
MENESES, U. B. A história: cativa da memória: para um mapeamento da
memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros, São Paulo, n. 34, 1992.
NORA, Pierre (Dir.). Les Lieux de mémoire. Paris: Quarto Gallimard, 1997.
______. Entre memória e história A problemática dos lugares. Tradução de Yara
Aun Khoury. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, n. 10, 1993.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 5, n. 10, 1992.
______. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, FGV, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
PRATS, Llorenç. El concepto de patrimonio cultural. Política y Sociedad, n. 7,
Madrid, 1998.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Editora Abril, 2010.
RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos e outros ensaios estéticos.
Lisboa: Edições 70, 2013.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína; FERREIRA,
Marieta (Orgs.). Usos e abusos de história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 93-101.
TRAVERSO, Enzo. O passado, modos de usar. História, memória e política.
Lisboa: Edições Unipop, 2012.
ARS MEMORATIVA:
LUGARES NA MEMÓRIA E A MEMÓRIA DOS LUGARES

KL AUS HILBERT

O LUGAR DA MEMÓRIA

Na sabedoria popular, o corpo humano tem espaços que podem ser pre-
enchidos com coisas materiais sólidas, com substâncias pastosas, líquidas
e gasosas e com coisas imateriais. Esses espaços precisam ser esvaziados,
com certa regularidade, para dar lugar a coisas novas. Todas essas ações,
de preencher e de esvaziar, provocam sensações. O espaço aberto entre
os braços procura o abraço, entre um pé e outro pé cabe um passo, que
leva a outros; muitos passos atravessam os continentes e levam até a
saltar na lua. No lugar apertado entre o dedo e o polegar, cabe uma pulga,
um cabelo, um beliscão. A boca não só retém e expele comida, bebida
e o ar que se expira e inspira, mas também as palavras do revoltado, do
amante e do fofoqueiro. Os olhos se enchem de lágrimas. Dizem que o
coração, bem como o peito, é o lugar para guardar as pessoas amadas,
para congelar a vingança ou o ódio, esconder o medo. A barriga é o lugar
onde alimentamos as emoções e onde guardamos as borboletas da an-
siedade. O vazio em algum espaço no corpo traz desconforto e tristeza,
mas também paz e tranquilidade. Precisa estar preenchido com algo, não
importa o que for, para sentir-se vivo, ou precisa estar vazio ou aberto para
sentir-se vivo. Na cabeça, há muitos lugares, também para as coisas que
18 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

chamamos de memória, conhecimento, sabedoria, dados; ela é lugar da


inteligência do “ser humano”. Há lugar para o “eu mesmo”, para o “mundo
vivido” e para o “estar no mundo”. Há espaços específicos para as coisas
da memória. A memória, por sua vez, é um espaço no qual armazenamos
as coisas que são evocadas em caso de necessidade. Memorizar descreve
a ação de acessar esse espaço e as coisas nele guardadas (CASEY, 1987).
Algumas coisas são memorizadas facilmente, outras desaparecem
no espaço da memória, são esquecidas, mas outras que queremos que
sejam esquecidas são sempre lembradas. O esquecimento é uma arte. O
esvaziamento do espaço da memória precisa ser aprendido e treinado. O
vazio de algum espaço no corpo traz tranquilidade, inércia, paz. A medita-
ção é uma das formas dessa arte. Os monges budistas ensinam essa arte.
Intoxicamos esse espaço da memória com fumaça ou com líquidos, para
dificultar o acesso a essas coisas não desejadas, e morremos fazendo isso.
A ideia da mente humana como espaço onde as coisas da memória
ocupam algum lugar não está apenas no imaginário da sabedoria popular.
Sherlock Holmes, na voz do seu criador Arthur Conan Doyle, idealiza a
cabeça humana como se fosse um espaço em uma casa que pode ser
preenchido com coisas, com móveis da memória.

Para mim, o cérebro humano, em sua origem, é como um só-


tão vazio que você pode encher com os móveis que quiser. Um
tolo vai entulhá-lo com todo tipo de coisa que for encontrado
pelo caminho, de tal forma que o conhecimento que poderia
ser-lhe útil ficará soterrado ou, na melhor das hipóteses, tão
misturado a outras coisas que não conseguirá encontrá-lo
quando necessitar dele. O especialista, ao contrário, é muito
cuidadoso com aquilo que coloca em seu sótão cerebral.
Guardará apenas as ferramentas de que necessita para seu
trabalho, mas dessas terá um grande sortimento mantido na
mais perfeita ordem. É um engano pensar que o quartinho
tem paredes elásticas que podem ser estendidas à vontade.
Chega a hora em que, a cada acréscimo de conhecimento,
K L AU S H I L B E RT 19

você esquece algo que já sabia. É da maior importância,


portanto, evitar que informações inúteis ocupem o lugar
daquelas que têm utilidade (DOYLE, 1990, p. 22).

No ensaio acerca do entendimento humano, John Locke (1997, p. 104) afirma


que, depois da percepção, a retenção das ideias na memória é de crucial impor-
tância, pois isso nos permite refletir sobre as ideias para adquirir conhecimento.
“[...] memória é como um depósito de todas as nossas ideias. A livre disposição
deste depósito é de uma necessidade absoluta ao homem”. Como a memória é
percebida por Locke como um processo mental interno, que retém ou conserva
as impressões de nossas percepções, tratamos a memória como uma espécie
de objeto que, por sua vez, conserva objetos da percepção (JONES, 2007, p. 7).
Irineo Funes, personagem caracterizada por Jorge Luis Borges, foi dotado
de uma extraordinária capacidade de memorizar, após ter caído de um cavalo
xucro. Borges se surpreende com a capacidade desse homem simples que

[…] sabía las formas de las nubes australes del amanecer del
treinta de abril de mil ochocientos ochenta y dos y podía
compararlas en el recuerdo con las vetas de un libro en pasta
española que sólo había mirado una vez y con las líneas de
la espuma que un remo levantó en el Río Negro la víspera
de la acción del Quebracho. Esos recuerdos no eran simples;
cada imagen visual estaba ligada a sensaciones musculares,
térmicas, etc. […] En efecto, Funes no sólo recordaba cada
hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las veces
que la había percibido o imaginado (BORGES, 1956, p. 6).

Esse homem, gaúcho do Uruguai, que ficou paraplégico aos 19 anos,


vivia na escuridão, deitado num catre nos fundos da casa de sua mãe, e
aprendeu, sem maior esforço, a falar inglês, francês, português e latim.
Entretanto, não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças,
é generalizar, é abstrair. No mundo cheio de coisas de Irineo Funes, não
havia senão detalhes, quase imediatos (BORGES, 1956).
20 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

Aquilo que fora provocado por um acidente, um capricho da natureza,


uma aberração quase patológica, no caso de Funes, memorizar coisas, é
considerado uma arte que pode ser exercitada, é fruto de um treinamento,
de uma técnica praticada que incorpora memória.

Ars memorativa

A arte de memorizar, ars memorativa, ensinada no auge da Retórica, nas


escolas da Antiguidade clássica da Grécia e de Roma, no período medieval e
até no início da Era Moderna, não é mais praticada nas nossas escolas nem
nas universidades. Não se podem confundir as coisas: a ars memorativa
não é uma metodologia para decorar aquilo que deve ser memorizado,
mas uma arte no sentido de conseguir aumentar a capacidade natural
de memorizar, de acessar o espaço da memória (CARRUTHERS, 2009).
Percebo a falta dessa capacidade no meu dia a dia. Até hoje, cada vez
que preciso confirmar e achar uma palavra em um dicionário, aciono um
dispositivo que desencadeia, rapidamente, uma sequência de letras do
nosso alfabeto, até encontrar a letra certa e, consequentemente, o espa-
ço correto da palavra procurada na localização correta no livro. Quando
faço cálculos matemáticos, só encontro o número certo depois de ter
passado, mentalmente, todos os números equivalentes da tabuada de
multiplicações e divisões. Faço as somas com a ajuda dos dedos, sempre
iniciando com o minguinho da mão esquerda. Consigo, assim, somente,
e graças ao sistema de repetições através do qual aprendi a decorar o
alfabeto e os números, acessar uma informação desejada através da
mesma repetição mecânica e sempre da mesma sequência de letras e
de números. Essa forma de ensinar a lembrar, que, na verdade, é um
adestramento, e não um ensinar, não tem nada a ver com as regras da ars
memorativa. Lá, aquilo que deve ser memorizado é arrumado com a ajuda
de determinados truques, de tal maneira que aquilo que é memorizado
pode ser acessado, quase diretamente e em qualquer ordem. Isso é feito
pela associação daquilo que merece ser memorizado com outras coisas,
K L AU S H I L B E RT 21

com um espaço arquitetônico ou natural, com números, letras, figuras,


formas, signos ou imagens.
Os resultados são surpreendentes e até parecem magia. É sabido que
Ciro conhecia os nomes de todos os seus soldados; Crasso, procônsul
da Ásia Menor, dominava os cinco diferentes dialetos gregos; conta-se
que Teodectes, retórico e poeta grego, recitava sem dificuldades versos
extensos, logo após tê-los ouvido uma única vez. Isso era possível graças
a um sistema mnemônico de relacionar coisas com coisas, que aumenta
a capacidade natural do espaço da memória e de acessar rapidamente
aquilo que foi memorizado.
Fazendo parte da arte da retórica, a arte da memória é representada
por Marco Fábio Quintiliano, que revela em sua Institutio oratoria uma
seleção dos princípios dessa arte. Um sistema mnemônico proposto
por ele era do tipo arquitetônico. Esses artistas da memória, entreviu
Quintiliano, devem recordar uma construção a mais ampla e variada
possível, com o pátio, a sala, os quartos, os salões, sem omitir as está-
tuas e outros ornamentos que decoram esses espaços. As imagens por
meio das quais o discurso será lembrado são colocadas pela imaginação
em lugares da construção que foram memorizados. Feito isso, tão logo
a memória dos fatos precisa ser reavivada, percorrem-se todos esses
lugares, sucessivamente, e pede-se a seus guardiões aquilo que foi
depositado em cada lugar (QUINTILIANUS, 1920-1922; YATES, 2007).
Uma variação desse sistema da arte de memorizar que se aproveita
dos espaços arquitetônicos estruturados consiste em criar um esquema
abstrato de um sistema de lugares ou de categorias. Esse esquema foi
sugerido, inicialmente, por Aristóteles e encontrou, principalmente no
período medieval, seguidores importantes, como Hugo de São Vitor,
que oferece, na introdução de sua obra De tribos maximis circumstantii
gestorum (Didascalicon), a mais completa e a mais clara descrição desse
sistema mnemônico (CARRUTHERS, 2009). O sistema não se aproveita
somente das imagens de lugares, mas de loci numéricos, sistema já
usado por Aristóteles e Cicero (SORABJI, 2004). São Vitor descreve
22 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

seu método da seguinte maneira: assuntos a serem estudados são


classificados na memória em três categorias, através de números, loca-
lidades e circunstâncias. A primeira maneira é através da classificação
do conteúdo por uma sequência numérica, por exemplo, a sequência
dos números naturais. Se alguém deseja memorizar um determinado
conteúdo, por exemplo, os salmos, deve proceder da seguinte maneira:
deve primeiro numerar todos os salmos (são 150), colocando-os em
sua ordem numérica. Assim saberá qual é o primeiro, qual o segundo,
qual o terceiro, e assim por diante, memorizando-os nessa ordem linear
numérica. Depois, essa pessoa deve visualizar a primeira frase de cada
salmo com seu número correspondente, como se fossem compartimen-
tos diferentes. Se essa conexão entre o compartimento numérico e seu
conteúdo for segura, de maneira que, se fosse questionada, ela poderia
recitar os salmos completos, não importa a ordem, de trás para a frente
ou de frente para trás, ou em qualquer ordem desejada, deve iniciar o
segundo passo, que consiste em fragmentar cada um dos salmos em
unidades menores. Cada verso, cada frase e cada palavra são novamente
numerados. Isso lhe possibilita não somente citar o salmo por inteiro, mas
também os versos em separado, através da relação entre os subnúmeros
e os fragmentos dos textos. Naturalmente, essa pessoa não precisa,
para se lembrar de um verso, iniciar sempre com o primeiro ou com o
último número, mas pode iniciar sua narração com qualquer número,
correspondendo a qualquer fragmento do texto. Esse método parte do
princípio de, inicialmente, fragmentar todo o conteúdo a ser lembrado,
depois codificar os fragmentos, através de um sistema rígido de signos,
de números, para, no final, com a ajuda desse esquema, recompor ou
memorizar o conteúdo na ordem que se deseja. Diferentemente do
esquema arquitetônico ou paisagístico praticado por Quintiliano, esse
método pode ser associado a um esquema de grades e signos ou a uma
espécie de tabela (SOENTGEN, 1997; CARRUTHERS, 2009).
A segunda maneira de memorizar um determinado texto está rela-
cionada com a imagem e com a posição do conteúdo, por exemplo, em
K L AU S H I L B E RT 23

um livro. Por esse motivo, é de grande importância fixar o conteúdo na


memória através da imagem e da sua posição num determinado lugar.
Quando se lê um livro, ressalta São Vitor,

deveremos gravar em nossas memórias, através do nosso


poder de formar imagens mentais, não apenas o número e
a ordem dos versos ou das ideias, mas ao mesmo tempo a
cor, a forma, o lugar e a posição das letras daquilo que vimos
ou escrevemos naquele compartimento (loci) da memória
(CARRUTHERS, 2009, anexo A).

O terceiro método de memorizar sugerido por São Vitor está relacio-


nado com a circunstância ou com a ocasião, quer dizer, aquilo que foi feito
antes e aquilo que foi feito depois, quanto tempo atrás, anos, meses, dias,
aquilo que precede e aquilo que vem depois, para assim contextualizar his-
toricamente aquilo que deve ser memorizado. Essa classificação é relevante
quando, por causa da natureza variável das situações em que aprendemos
algo, mais tarde e em outra ocasião precisamos ter acesso ao conteúdo na
nossa memória, lembrando-nos da situação em que aprendemos aquilo, se
era de dia, de noite, no inverno ou no verão, com tempo nublado ou com sol.

Memória dos lugares

Da mesma maneira como guardamos coisas em algum lugar na nossa


cabeça para melhor praticar a arte da memória, também as coisas que
estão guardadas em algum lugar físico podem estimular as nossas me-
mórias, que, por sua vez, transformamos em lembranças.
Núncia Constantino (2004) procura nas caixas do porão de sua casa
as vozes, as imagens e as histórias de sua infância e da sua família. O porão
assume o lugar, o espaço da sua mente, e as coisas guardadas nas caixas
ocupam um lugar na sua memória.
Ítalo Calvino (1998) viaja por cidades imaginadas e, consequentemente,
utópicas e brinca com as duas formas de memorizar: com uma que ajuda
24 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

e que remete a outras coisas, quando é praticada como ars memorativa,


e com outra que aciona e que estimula a memória. Calvino se lembra:

Ao se transporem seis rios e três cadeias de montanhas,


surge Zora, cidade que quem viu uma vez nunca mais con-
segue esquecer. Mas não porque deixe, como outras cidades
memoráveis, uma imagem extraordinária nas recordações.
Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto
por ponto, na sucessão das ruas e das casas ao longo das ruas
e das portas e janelas das casas, apesar de não demonstrar
particular beleza ou raridade. O seu segredo é o modo pelo
qual o olhar percorre as figuras que se sucedem como uma
partitura musical da qual não se pode modificar ou deslocar
nenhuma nota. Quem sabe de cor como é feita Zora, à noite,
quando não consegue dormir, imagina caminhar por suas ruas
e recorda a sequência em que se sucedem o relógio de ramos,
a tenda listrada do barbeiro, o esguicho de nove borrifos, a
torre de vidro do astrônomo, o quiosque do vendedor de
melancias, a estátua do eremita e do leão, o banho turco, o
café da esquina, a travessa que leve ao porto. Essa cidade
que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um
retículo em cujos espaços cada um pode colocar as coisas
que deseja recordar: nomes de homens ilustres, virtudes,
números, classificações vegetais e minerais, datas de bata-
lhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção de
cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de
afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória.
De modo que os homens mais sábios do mundo são os que
conhecem Zora de cor. Mas foi inútil a minha viagem para
visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para
facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu.
Foi esquecida pelo mundo (CALVINO, 1998, p. 4).
K L AU S H I L B E RT 25

O visitante de uma dessas cidades imaginárias, a cidade de Zora, en-


contra-se em uma situação desesperadora para quem pretende preservar
um espaço urbano ou um espaço qualquer, que até pode ser chamado
de natural. Por um lado, o sábio que conhece Zora usa, para evocar sua
memória, a imagem de diferentes lugares na cidade, em determinada
ordem decorada, para preenchê-los com aquilo que deseja memorizar,
exatamente como recomendam os sábios da ars memorativa. Por outro
lado, praticando esse exercício da arte de memorizar, o viajante é obriga-
do a criar categorias de referência simples e estáticas, que se encontram
vazias, pois entraram em esquecimento. Quando guardamos algo na
memória, queremos que isso ou aquilo se preserve, escape da destruição,
no decorrer do tempo, e que entre em algum lugar da nossa memória,
na cabeça e, dessa maneira, escape do esquecimento e da destruição.
Paisagens são transformadas, a natureza é cultivada, o solo é ma-
nipulado para ser terra agrícola, os bosques são derrubados para virar
lenha, os rios geram usinas hidrelétricas, mas uma cidade é construída
para durar para sempre. Ela é planejada para o futuro, para durar até a
eternidade. Construí-la significa lutar contra a constante destruição que
ocorre no decorrer do tempo, destino de todas as coisas. A cidade, tal
como é planejada, tem uma dimensão eminentemente utópica, pois se
coloca além da ordem natural, da destruição permanente. Ela é projetada
para estar distante da destruição permanente, pois é algo inexistente
na natureza. Essa cidade utópica e eterna é praticamente inacessível, é
protegida, desde os tempos de Jericó, por uma muralha, que a separa da
natureza e da destruição. Essa cidade aprisiona e ao mesmo tempo liberta
seus cidadãos. Assim, nós fomos expulsos do Jardim do Éden, para morar
na cidade de Deus. Mas os futuros moradores são obrigados a viver na
cidade que foi projetada e construída pelas antigas gerações de cidadãos
(GROYS, 1997). Essa cidade é imperfeita, pois foi construída conforme a
vontade de muitos outros, como alerta René Descartes (1979) em suas
reflexões no discurso sobre o método.
26 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

Assim, as antigas cidades [...] são geralmente tão mal propor-


cionadas, em comparação com as praças regulares, traçadas
por um engenheiro, conforme a sua fantasia, numa planície,
que embora considerando os seus edifícios um por um, neles
se encontra muitas vezes tanta ou mais arte do que nos das
outras [...]. É verdade que nunca se viu derrubarem-se todas
as casas de uma cidade só com o propósito de refazê-las de
outra maneira e de tornar assim as ruas mais belas; mas vê-se
que muitos fazem demolir as suas para reconstruí-las e que
até, algumas vezes, são forçados a isso, quando elas estão na
iminência de ruir e os seus alicerces não estão muito sólidos
(DESCARTES, 1979, p. 50).

Qual cidade e qual paisagem pretendemos memorizar, construir,


conservar, eliminando, preenchendo, abrindo e esvaziando os espaços
(DEHIO; RIEGL, 1988)? O conflito está armado: por um lado, tentamos,
de forma constante, preservar aquilo que mais se aproxime do nosso so-
nho da cidade eterna e perfeita, e, por outro lado, estamos demolindo e
melhorando tudo aquilo que não merece ser mantido (GROYS, 1997). No
entanto, entre os sonhos daquilo que deve ser eterno e a decisão sobre
aquilo que deve ser findável está, novamente, a mudança. Os sonhos do
eterno e do findável mudam, pois essas ações e posturas ocorrem em
tempos e dimensões históricas.
Posturas e ações radicais para interromper essa sequência de constru-
ções, de destruições e de decadências e para criar uma cidade ideal foram
adotadas por autoridades, técnicos e pensadores. As visões revolucionárias,
nesse sentido, de Le Corbusier (1984) são exemplos de uma tentativa de
construir a cidade eterna. Mesmo que existisse um plano uniforme para
a construção de uma cidade eterna, estamos vivendo, como salienta
Descartes (1979), sempre no provisório, que, por sua vez, transforma-se
na única coisa verdadeiramente constante e permanente em uma cidade.
Para construir essa cidade planejada e ideal, como foi idealizada a
cidade de Brasília, necessitamos de trabalhadores, que devem morar em
K L AU S H I L B E RT 27

algum lugar. Eles precisam de casas, de apartamentos para morar, de su-


permercados, de campos de futebol, de igrejas, de estradas, de fábricas,
de bares, de restaurantes, de cemitérios, de hospitais, até que a cidade
utópica seja construída. Isso requer tempo e planejamento. Para isso, mais
uma cidade provisória precisa ser erguida, ainda menos perfeita e mais
provisória do que a outra, que, por sua vez, necessita de mais outra cidade
provisória, e assim por diante. Essas cidades provisórias e transitórias,
com infinitas sequências de construções e destruições, são a cidade do
pesadelo, da guerra de “Blade Runner”, do “Exterminador do Futuro”, de
“Matrix” e, daqui a pouco, também a nossa realidade.
A cidade não utópica, a nossa cidade, é aquela que foi construída do
nosso e no nosso contexto e no nosso tempo histórico. Quem consegue
andar pela cidade utópica é o viajante, pois essa cidade visitada foi cons-
truída distante do contexto e do tempo histórico no qual o viajante vive
(GROYS, 1997). Ítalo Calvino (1998) é um turista que nos conta sobre
cidades utópicas. Aliás, somente as cidades utópicas são as do viajante.
Elas não podem ser construídas, mas visitadas, e são apenas transitórias.
No instante em que queremos modificá-las, quando queremos construir
ou destruir algo nelas, elas desaparecem e se desfazem.

Marcar lugares para lembrar

O arqueólogo é especialista na criação e preservação de memórias dos


lugares e das coisas. Ele usa as coisas para marcar esses lugares e os de-
nomina de sítios arqueológicos. Um sítio arqueológico é, à primeira vista,
uma construção localizada na paisagem. Os arqueólogos se sentem mais
confortáveis quando um sítio de achados arqueológicos está implantado
num espaço natural. Mesmo assim, os desafios são de natureza adversa.
Nos sítios arqueológicos em campo, o arqueólogo enfrenta a disputa entre
aquilo que é resultado da ação humana e aquilo que pertence ao espaço
natural. O arqueólogo assume, propositalmente, essa postura dicotômica
e simplificada, mesmo sabendo que ela não existe, mas ele se comporta
28 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

dessa maneira quando pratica Arqueologia. Separa tudo aquilo que é do


ser humano – isso que representa os achados arqueológicos ou a cultura
material arqueológica – daquilo que é da natureza, para guardar essas
coisas nos espaços da memória. Ele é conhecedor na análise dessas coisas
feitas. Aquilo que sobra é mandado por ele para os peritos da natureza,
para os geólogos, biólogos, químicos.
Sítios arqueológicos em espaços construídos e culturais ou urbanos
enfrentam dificuldades de definição, precisam ser explicados, teorizados
e justificados (SYMANSKI, 1997; THIESEN, 1999; TOCCHETTO, 2004;
LAZZAROTTI, 2013). É mais complicado delimitar esses sítios arqueológi-
cos, pois numa cidade, à primeira vista e por definição, tudo é feito pelo ser
humano, até as partes consideradas naturais, como os parques, os jardins
e os pátios. A natureza é percebida como uma ameaça. Ela é sinônimo de
destruição, que precisa ser mantida afastada da cidade ou domesticada. A
natureza são as chuvas, as altas e baixas temperaturas, os ventos, os insetos,
os pássaros, os fungos, as plantas, que, com suas forças, quebram as pedras,
corroem e fazem mofar as paredes e amontoam as terras.

Desmarcar e esquecer os lugares

Nossa cidade está em constante transformação. Os moradores moldam


sua cidade conforme suas vontades e necessidades, dentro e fora das
obrigações legais, no limite do possível, muitas vezes de modo irracio-
nal, planejado, supersticioso, experimental, espontâneo, modernista
ou tradicionalista. Algumas das mudanças, em determinados lugares
da cidade, são impactantes e dramáticas, outras são marcadas por sua
desintegração ou pela manutenção do status quo. A velocidade com que
essas mudanças ocorrem pode ser lenta e transcorrer ao longo de uma
linha de longa duração e, por isso, ser testemunhada por várias gerações
de habitantes da cidade (MONTEIRO, 1995; DOBERSTEIN, 2002). Outras
mudanças – e nas cidades contemporâneas isso é cada vez mais o caso
– são tão velozes que podem ocorrer em apenas poucos anos, ou até em
K L AU S H I L B E RT 29

meses. Essas transformações na cidade, marcadas pelo surgimento ou


desaparecimento de prédios, edifícios, casas, terrenos baldios, parques,
pelo traçado de estradas, pontes, avenidas, são as mais óbvias e imedia-
tamente reconhecíveis. Onde antigamente existia uma padaria, uma casa
em que trabalhava um sapateiro, um alfaiate, um barbeiro, uma parteira,
hoje existe um shopping center, um estacionamento, uma avenida.
Outras transformações são menos visíveis, menos impactantes, são
quase imperceptíveis, pois envolvem as pessoas, os moradores que se
afastam ou os que se aproximam da cidade. Com elas, as memórias e
habilidades desaparecem ou se instalam. Pessoas formam redes sociais,
que se materializam na cultura material, nos objetos criados, consumidos
e descartados e que se manifestam nos espaços, construídos, vazios ou
reformados. Alguns desses vestígios materiais ainda estão preservados,
pontualmente, na nossa cidade, outros foram transformados em outras
materialidades, muitos em imagens e em textos. Mas outros, por certo
tempo, apenas existem na lembrança das pessoas e nas suas falas. Com a
globalização das mercadorias, as antigas profissões entraram no esqueci-
mento. Antigas tecnologias e habilidades desapareceram. Os lugares e os
artefatos ligados a essas habilidades são vestígios materiais dessa cultura.

Finalidade

Não pretendemos evocar nostalgias saudosistas referentes a um passado


ou a um determinado lugar. Queremos estimular emoções e, através delas,
proporcionar informação. Ao mesmo tempo, pretendemos preservar o
patrimônio da cidade, não apenas como um espaço de contemplação, mas
também de interação e de formação da consciência histórica.
30 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S

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Porto Alegre: BIBLOS, 2004.
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culture. 2. ed. Cambridge University Press, 2009.
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zur Denkmalpflege um 1900. Braunschweig/Wiesbaden: Vieweg & Sohn, 1988.
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formação de uma cidade portuária do século XVIII a meados do século XIX. 2013.
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Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
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K L AU S H I L B E RT 31

SOENTGEN, Jens. Theorie als Gedächtniskunst. Journal for General Philosophy


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YATES, Frances A. A arte da memória. Tradução de Flavia Mancher. Campinas:
Editora UNICAMP, 2007.
DOCUMENTO, MEMÓRIA E ARQUIVO NA ARTE
CONTEMPORÂNEA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
A OBRA IMEMORIAL DE ROSÂNGELA RENNÓ 1

CHARLE S MONTEIRO

Sendo historiador da fotografia e trabalhando há anos de forma crítica com


documentos e em arquivos para problematizar a memória, o esquecimento
e a produção do conhecimento histórico, escolhi a obra Imemorial (1994)
da fotógrafa brasileira e artista contemporânea Rosângela Rennó para
pensar sobre os usos da memória e as práticas do patrimônio.
Segundo Costa (2011, p. 78), os processos da arte contemporânea colocam
problemas críticos articulados a outros campos do saber, como a Teoria da
História e a Arqueologia. Esta reflexão interdisciplinar procura problematizar a
produção da informação no contexto da cultura de massa contemporânea, bem
como os processos de construção da memória e a própria instituição do museu
de arte como espaço de constituição, gestão e legitimação de memórias sociais.
No século XX, o pensamento historiográfico foi levado a um ques-
tionamento radical sobre a produção e os usos sociais dos documentos.
Desde os anos 1920, com a École des Annales, se expandiu a noção de
documento para tudo aquilo que tivesse “a marca do homem”, incluindo
assim as imagens entre os materiais de pesquisa do historiador.

1 
Uma versão deste texto foi publicada na revista Memória em Rede, v. 8, n. 14, 2016, da UFPel.
34 CHARLES MONTEIRO

Para Michel Foucault (2005, p. 8), “o documento não é o feliz instru-


mento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória:
a história é, para uma sociedade, uma maneira de dar status e elaboração
à massa documental de que ela não se separa”. Ou seja, não existem do-
cumentos per si, mas, sim, como fruto de uma operação historiográfica
que atribui valor e constrói sentidos a partir dos restos ou vestígios da
ação do homem no tempo. O problema colocado pelo historiador e o
recorte da realidade efetuado por ele é que define se um vestígio se tor-
na documento ou não, sempre escolhendo dar voz a certos indivíduos e
grupos e deixar outros no silêncio (palavra) ou na invisibilidade (imagem).
A história transforma os documentos em monumentos ao isolar, agru-
par, inter-relacionar e organizar os conjuntos. O documento não é inócuo,
nem tampouco neutro. Ele resulta de um artifício, uma roupagem, uma
montagem. Segundo Le Goff (1994), no limite, não existe documento-
-verdade. Foucault (2005) propõe a desmontagem crítica do constructo
documento-monumento como dispositivo de poder.
Segundo Walter Benjamin (1987), em suas “teses sobre a história”, todo
documento de civilização é documento de barbárie, pois a “história” seria
esse cortejo de vencedores que avançam deixando os escombros das suas
conquistas para trás. Para esse autor, nem os mortos estão a salvo quando
somente os vitoriosos contam a história. Por isso, seria necessário escrever
a história a contrapelo, escavar os escombros e escutar essas outras vozes
que nos falam dos projetos alternativos de sociedade que foram vencidos.
Situando-me nesse horizonte de compreensão, penso a história com
uma das formas das sociedades elaborarem a passagem do tempo, ao lado de
outras, como: a construção de monumentos, mausoléus, a comemoração de
datas cívicas nacionais e locais, a criação de museus, de disciplinas escolares,
a preservação e o tombamento de prédios, de bairros e de cidades, bem como
de viagens turístico-culturais, documentários, filmes e romances de época.
História e memória são duas formas específicas de tomar consciência do
tempo e de explicar o passado, onde se mesclam invenção, estranhamento
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 35

e identidade (LOWENTHAL, 1998). Às vezes, essas formas de pensar o pas-


sado se sobrepõem e se entrecruzam, em outras elas entram em conflito.
Como afirma David Lowenthal (1995), o acesso a essa “terra estran-
geira” dá-se por meio de um conjunto de situações e objetos que estão
ao nosso redor no espaço urbano e podem remeter ao passado: prédios,
museus, utensílios, fotos, pinturas, leituras, histórias ouvidas etc. Essa
consciência de passado como algo distinto do presente é algo recente,
contemporâneo e que tem a sua história (LOWENTHAL, 1995). A memória
é uma das formas de experienciar a passagem do tempo, de se situar em
relação a uma cadeia de gerações, ao conhecimento herdado, a uma ruptu-
ra, de equilibrar-se sobre as ondulações vivas do tempo (HARTOG, 1996).
Como se sabe, toda memória é seletiva, pois trabalha com lembranças
e esquecimentos, é uma (re)apresentação de experiências passadas (vividas,
ouvidas, lidas ou aprendidas) relacionada às questões que o tempo presente
coloca. Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e
permitir resistir à alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o
destino de toda a vida humana; em suma, ela constitui – eis uma banalida-
de – um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros.
Mas essa percepção difere segundo nos situemos na escala do indivíduo, na
escala de um grupo social ou mesmo de toda uma nação (ROUSSO, 1996).
As sociedades e, no interior dessas, os grupos sociais e indivíduos
experienciam o tempo de forma particular. Certas sociedades voltam-se
para a memória de um “paraíso perdido” perpassadas pela nostalgia e pela
saudade de períodos de crescimento e de harmonia social; outras atêm-se
ao tempo presente, pregando uma espécie de amnésia do passado; outras,
ainda, voltam-se para o futuro como que predestinadas a um destino
heroico. Em determinados contextos, produzem uma interpretação do
passado que corresponde às necessidades do presente de legitimar-se e
orientar o horizonte de expectativas sociais para o futuro. O que é válido,
sobretudo, para os momentos de nacionalismo exacerbado.
36 CHARLES MONTEIRO

A memória articula-se através de espaços e tempos privilegiados,


sobre os quais a “luz” incide com maior intensidade sobre certos sujeitos
(nomes), tempos (datas) e lugares (espaços), enquanto outros permane-
cem na penumbra, numa gaveta mantida cuidadosamente fechada para
que de lá não aflorem contradições, incertezas e instabilidade.
A memória não tem necessidade da experiência de uma continuidade
cronológica; não que ela não tenha cadeias de ordenamento, mas ela joga
com uma justaposição de tempos. Já a história é elaborada de um ponto de
vista construtivo e narrativo do passado, constitui-se como uma maneira de
trabalhar sobre o conhecimento do passado. A experiência da história é lon-
gitudinal, interpreta o passado em perspectiva, e a experiência da memória
é vertical, pois coloca o indivíduo ou o grupo em profundidade dentro do
acontecimento, permitindo reconstruí-lo desde dentro (HALBWACHS, 1990).
A história é um discurso metódico sobre a experiência do tempo passado
em relação às questões do presente, embora esteja carregada da subjetividade
do historiador e das marcas de seu lugar social e institucional. A história é
mais “ampla” que a memória, no sentido que abarca um grande número de
memórias individuais e de grupos ao longo de muitas gerações (HALBWACHS,
1990). No entanto, ocorrem influências recíprocas entre essas duas formas
de elaborar o passado, no sentido em que a história termina por incorporar
elementos da memória coletiva em suas interpretações, via “contamina-
ção” pela transmissão oral do conhecimento e pela experiência de vida do
historiador (diante da impossibilidade da história tornar-se um discurso to-
talmente abstrato, científico e racionalizado), e a memória coletiva termina
por incorporar e utilizar certos marcos de referência da história (por meio
da aprendizagem formal na escola, das interpretações dos acontecimentos
do passado vulgarizadas pelos jornais e pelas emissões de rádio e televisão).
A história da memória trabalha nos desvãos e nas margens, nos
lugares de silenciamento da memória, nos esquecimentos e nas lacunas,
mas também nos excessos. O historiador transforma essas lacunas e
esses excessos em materiais de trabalho para uma compreensão mais
abrangente e profunda da forma como uma sociedade elabora e pensa
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 37

sobre o seu passado e sua trajetória no tempo por meio da produção es-
crita de especialistas da memória (historiadores, arquivistas, diretores de
museus) e intelectuais (cronistas, escritores, jornalistas). O historiador é
uma espécie de mestre artesão que trabalha sobre o engenho alheio – me-
mórias, documentos, textos, falas e experiências dos sujeitos –, buscando
compreender e tecer nas suas narrativas essa variedade de fios em uma
trama (história), que pretende dar conta da pluralidade de vozes, sujeitos,
espaços e temporalidades da experiência de uma sociedade.
A história da memória aborda a historiografia como uma produção
consciente e intencional de uma memória social, pois problematiza a
escolha e a organização dos sujeitos, espaços e tempos que são dignos
de serem rememorados, bem como os meios de organização através dos
quais as lembranças são transmitidas e recriadas.2 A história da memória
problematiza a forma como os grupos sociais e as instituições inventam
tradições ou se apropriam da memória coletiva, ressignificando-a com
fins específicos (HOBSBAWN; RANGER, 1997; BANN, 1994). Um exemplo
disso é o Projeto Memórias Reveladas3, criado em 2007, para receber, gerir
e divulgar a documentação sobre a violação dos direitos humanos durante
a ditadura militar. A memória coletiva não é apenas uma conquista, mas
também objeto e instrumento do poder.
Segundo Costa (2011), uma parte da produção contemporânea em arte
vem realizando operações desconstrutivas dos mecanismos disciplinares
de preservação da memória presentes na instituição de Arte – autoridade
hermenêutica, discursos eurocêntricos, exigências de mercado, noção de
exposição, modo de expor, valor e propriedade dos objetos etc.
O artista contemporâneo pesquisa em arquivos de museus, em biblio-
tecas e outras instituições, coleta material em arquivos familiares ou em

2 
Utiliza-se o termo “história da memória” no sentido de uma exploração arqueológica das
narrativas históricas e literárias sobre a cidade e a nação, que permite a elaboração de uma
genealogia do surgimento e institucionalização de formas de explicação sobre as dinâmicas
das sociedades no tempo. Nesse sentido, essa empresa exploratória orienta-se pelas questões
propostas por Nora (1993), Geary (1996), Matsuda (1996) e Lowenthal (1995).
3 
Encontre mais informações no site: www.memoriasreveladas.gov.br.
38 CHARLES MONTEIRO

feiras livres, registra em imagens fotográficas obras efêmeras, mantém


seu arquivo de projetos, de processos de criação, de exposições e de crí-
tica. Trabalhando sobre documentos e produzindo outros documentos
como reflexão sobre seu processo de criação. Ele trabalha a partir desses
materiais de arquivo, dos seus próprios, dos de terceiros e dos públicos,
lançando mão de mudanças de meio (materiais e dispositivos), de escala
(ampliação e redução) e de intervenções (tinta, cor, montagem) para
ressignificá-los e gerar obras que problematizem a memória e a história.
Rosângela Rennó é uma dessas artistas que trabalha com arquivos sobre
as memórias e os esquecimentos sociais em suas obras desde os anos 1980.
Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural (2017), Rosângela Rennó nas-
ceu em Belo Horizonte (Minas Gerais) em 1962, tendo se graduado em
Arquitetura pela UFMG (1986) e Artes Plásticas pela Escola Guignard (1987).
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1989. Em 1997, concluiu o doutorado em
Artes pela ECA/USP. Recebeu várias bolsas de pesquisa: Civitella Ranieri
Foundation (1995), Fundação Vitae (1998) e John Simon Guggenheim
Memorial Foundation (1999), entre outras. No final da década de 1980,
começou a trabalhar com álbuns de família, apropriando-se de imagens e
problematizando a montagem do dispositivo, a memória e o esquecimento.
Temas que seriam constantemente retomados e problematizados em seus
projetos posteriores que se voltaram para a memória e o esquecimento
público. Em 1992, Rennó iniciou o projeto Arquivo Universal, que se des-
dobraria em vários trabalhos, exposições e publicações. A artista trabalha
com imagens esquecidas, imagens ausentes, com o desaparecimento e com
a amnésia social através de fotografias, de textos, de notícias de jornais.
Utilizando de vídeo, instalações e materiais variados, ela se apropria das
imagens alheias e problematiza a memória e o esquecimento social.
Para a artista, a arte é como um instrumento de ampliação da experiência.
Através de suas obras, ela extrapola os limites dos suportes – dos dispositivos,
entre eles o fotográfico –, ganhando potência nessa nova relação entre a
imagem e a plataforma na qual ela é apresentada. Ela afirma que trabalha
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 39

“com imagens alheias, pois o que lhe importa é problematizar os sistemas


classificatórios, investigar os modos de ver e como as coisas envelhecem”.
Em Imemorial (1994), a artista problematiza a cultura do arquivo
para construir um olhar político sobre a construção de Brasília. A nova
capital representava a utopia de um país moderno e desenvolvido. Uma
nova capital para um novo Brasil. Totalmente planejada e funcional, no
meio do país, com uma nova linguagem urbanística proposta por Lúcio
Costa e a arquitetônica modernista de Oscar Niemayer. Seria uma espécie
de cidade-monumento para as gerações do futuro, porém, como afirma
Walter Benjamim (1987), civilização e barbárie são as duas faces da história.
A obra de Rennó consiste numa instalação de 50 fotografias com
retratos escuros dos trabalhadores (homens e crianças) que construíram
Brasília. As imagens foram encontradas pela artista no Arquivo Público do
Distrito Federal, em malas com mais de 15 mil dossiês de ex-trabalhadores
da Companhia Novacap (RENNÓ, 1994). Em Imemorial, ela faz referência ao
episódio apagado da narrativa épica da construção de Brasília, inaugurada
com grandes solenidades e festejos oficiais em 21 de abril de 1960, pelo pre-
sidente Juscelino Kubitschek: o massacre da Construtora Pacheco Fernandes
Dantas, ocorrido em 1959. Esse episódio trágico faz parte da história da
construção de Brasília e expõe as condições de vida e de trabalho precárias
de milhares de operários contratados pelas empresas construtoras da nova
capital. Com a proximidade da data de inauguração, as jornadas de trabalho
se intensificaram, e as turmas de trabalhadores se revezavam 24 horas no
enorme canteiro de obras que era Brasília. Os operários trabalhavam em
turnos de 18 horas por dia para conseguirem dobrar seus parcos salários.
Eles vinham de muito longe, a maioria era proveniente de vários estados do
Nordeste. Alguns vinham com as famílias, mas grande parte era composta
por homens solteiros que moravam em acampamentos.
As condições de vida nos galpões das construtoras eram muito precárias.
Os galpões eram de madeira com teto de telhas de zinco, possuíam de 10 a
15 quartos com beliches de duas ou três camas. O sanitário era um buraco
40 CHARLES MONTEIRO

escavado no chão com uma lona servindo de porta. Os colchões eram de


capim e ficavam infestados de parasitas. A falta de higiene favorecia a
proliferação de pulgas, percevejos e piolhos. Os materiais de construção
empregados e a concentração de gente nos galpões no clima quente do
planalto central não ofereciam qualquer conforto. Além disso, as cantinas
que forneciam refeições aos trabalhadores serviam por vezes comida crua
ou estragada. Devido às estafantes jornadas de trabalho e as péssimas
condições de vida nos acampamentos das construtoras, os operários se
revoltavam, e a Guarda Especial de Brasília (GEB) era chamada a intervir.
O massacre ocorreu em um domingo de carnaval de 1959 no acampa-
mento da construtora Pacheco Fernandes Dantas. Existem duas versões
para o ocorrido, a versão oficial das autoridades e a versão dos operários,
dada através de depoimentos orais a pesquisadores e jornalistas. A pes-
quisadora Nair Heloisa Bicalho de Sousa (1983) pesquisou o massacre
e escreveu um livro e vários artigos sobre o esquecimento oficial e as
memórias dos trabalhadores sobre o ocorrido naquela noite. Vale a pena
fazer uma pequena síntese de seu trabalho para compreender melhor a
violência do Estado e o silenciamento das memórias dos vencidos.
Após um conflito entre um operário da construtora e um funcionário
da cantina por causa da má qualidade da comida, dois policiais teriam
comparecido ao local e foram expulsos pelos operários. A paz parecia ter
retornado ao acampamento e todos foram dormir, depois de uma longa
jornada de trabalho. À noite, caminhões de soldados da GEB cercaram o
galpão, formando duas filas e exigindo que todos os operários saíssem para a
rua, sendo recebidos a golpes de cassetete e pontapés. Alguns trabalhadores
apavorados tentaram fugir e a polícia abriu fogo sobre eles e os barracões.
Houve vários mortos, alguns ainda estavam dormindo. Fala-se de 20 e de
50 vítimas. Porém, uma testemunha afirma ter visto 93 malas abandonadas
no galpão da construtora no dia seguinte. Os próprios operários teriam sido
obrigados a carregar os corpos dos mortos para dentro de um caminhão e
limpar o barracão. Segundo o depoimento de um antigo operário, os corpos
dos trabalhadores teriam sido enterrados em uma vala aberta ao pé da torre
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 41

de comunicações da cidade (SOUSA, 1983). Apenas três jornais noticiaram


o ocorrido naquele domingo de carnaval: Jornal do Brasil (14/02/1959), A
Notícia (13/02/1959) e O Estado de São Paulo (14/02/1959).
A memória oficial reconhece apenas uma vítima. A denúncia foi enca-
minhada e um processo foi aberto pelo Sindicato dos Trabalhadores, mas
nada foi apurado pela Justiça, e o caso terminou sendo arquivado. O livro de
memórias do presidente Juscelino Kubitschek, 50 anos em 5 (1978), não fala
sobre o caso. Da mesma forma, os arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemayer
afirmaram desconhecer o ocorrido. O presidente da NOVACAP, Ernesto Silva,
minimiza o incidente, não reconhece o número de vítimas e afirma ter sido
um fato isolado ao longo dos três anos e meio de construção de Brasília.
Os arquivos encontrados falam sobre trabalhadores que se insurgiram
contra as más condições de trabalho – falta de água potável, comida estragada,
barracões precários, longas jornadas de trabalho e baixa remuneração – nos
alojamentos improvisados, que foram construídos para serem posteriormente
destruídos no local que seria inundado para a formação do Lago de Brasília.
A Polícia da Nova Capital abriu fogo contra eles, matando dezenas de traba-
lhadores. Nos arquivos encontrados pela artista, em algumas das fichas dos
trabalhadores constava a informação: “dispensado por motivo de morte”!
O nome da exposição Imemorial é uma forma irônica de dialogar com
os vários memoriais construídos em Brasília para celebrar a memória e as
realizações dos governantes do passado. Especialmente, contrapor-se ao
Memorial JK localizado no Eixo Monumental – Lado Oeste Praça do Cruzeiro,
que celebra a memória do ex-presidente que construiu a cidade. O memorial
foi construído a partir de projeto arquitetônico de Oscar Niemayer, com
obras de Athos Bulcão e uma escultura do JK de 4,5 metros de Honório
Peçanha. O memorial foi inaugurado em 1981. O conjunto imponente abri-
ga uma câmara mortuária com os restos mortais de Juscelino Kubitschek
num salão oval em mármore negro com teto iluminado por luz natural, que
penetra através de um vitral com a imagem de um anjo. O memorial conta
ainda com 3.000 livros da biblioteca, fotos, roupas e objetos pessoais do
ex-presidente, além de uma exposição permanente sobre sua trajetória
42 CHARLES MONTEIRO

pública e vida privada. As formas arquitetônicas, os materiais escolhidos,


o tipo de iluminação, a presença da câmara mortuária e as escolhas expo-
gráficas propõem um culto à memória do fundador da cidade.
Já o Museu Vivo da Memória Candanga fica fora do Eixo Monumental
no antigo Hospital Juscelino Kubistchek de Oliveira (HJKO), que funcionou
no Núcleo Bandeirante (antiga “Cidade Livre”) até a metade dos anos 1970.
Criado em 1990, com uma estrutura bem mais modesta, ele conta com
acervos dos primeiros fotógrafos da cidade – Mario Moreira Fontanelle,
Peter Scheir e Joaquim Paiva – e exposição permanente sobre os primei-
ros anos da capital. O museu também possui um auditório, uma galeria e
um espaço para as “oficinas do saber fazer” de artesanato e arte popular.
Nesse sentido, a obra de Rosângela Rennó é uma espécie de an-
timemorial com uma proposta de escrever a contrapelo a história da
construção da cidade. Um “imemorial” no sentido benjaminiano em que
se a história é esse cortejo de vencedores, em que os governantes de
hoje são os herdeiros dos vencedores do passado, devemos lutar contra
essa narrativa e os esquecimentos dos vencidos para que eles não sejam
derrotados uma segunda vez. Bertold Brechet (1986), em Perguntas de
um operário letrado, perguntava-se:

Quem construiu Tebas, a das sete portas?


Nos livros vêm o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilônia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos. [...].
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 43

A exposição é composta de 50 fotografias agrupadas em faixas horizontais.


As fotos dos trabalhadores mortos são apresentadas em preto sobre preto e
das crianças trabalhadoras em cores escuras. Desperta a atenção a presença
de retratos de crianças muito novas e de mulheres entre os operários da
nova capital. Retratos de identificação que mudam de valor e de estatuto,
de documentos jurídicos para imagens artísticas. Retratos que nos colocam
diante de vestígios da existência desses sujeitos ausentes da história. Uma
presença-ausência que ativa uma memória dessa falta. Colocam “provas”
no tribunal da história, tornam-se peças de um processo contra a violência
das relações de trabalho e a impunidade das construtoras e das autoridades
policiais diante do massacre da Construtora Fernandes Pacheco Dantas.
Segundo Rennó (1998, p. 132), “as fotografias foram feitas em filme
gráfico, cuja superfície muito brilhante e pintada de preto por trás se
torna um espelho negro, indicativo do lugar de sobra social em que esses
narcisos experimentaram o desamor coletivo por si”. Nesse “espelho negro
da história”, o observador pode contemplar um rosto, quase um fantasma,
mas também o seu próprio rosto (como nos daguerreótipos). Dessa forma,
a artista problematiza a relação entre o “eu” do observador e o “outro”
desconhecido, entre o presente e o passado, entre a vida e a morte. Nós
os vemos e eles nos olham desse não lugar da história, nos intimando a
pensar sobre a sua morte e seu esquecimento social, a pensar sobre a
fragilidade e o desaparecimento de cada um de nós. Imemorial poderia
referir-se à exploração desses trabalhadores, às formas de esquecimento
social dos “de Baixo” e ao cortejo dos vitoriosos na história.
A disposição das imagens no chão como lápides e a cor negra que recobre
os retratos dificultam uma aproximação dessas fotografias como um espelho
do real. A instalação assemelha-se a um monumento fúnebre em memória dos
trabalhadores que construíram Brasília. É como se pudéssemos abrir os seus
túmulos e ver novamente seus rostos vindos de um passado que nos olham
no presente. As imagens são como fantasmas desses “outros” desconhecidos
e esquecidos pela história e pela sociedade atual. Eles nos contemplam e
nos desafiam a dar um significado as suas presenças-ausências. A obra não
44 CHARLES MONTEIRO

nos oferece uma reconstituição de suas identidades ou de suas memórias,


apenas as presenças espectrais desses outros que nos falam através de sua
ausência (morte e esquecimento social) do que ainda resta saber sobre os
que construíram a capital de um desejado país “novo e moderno”.


Figuras 1, 2, 3. Imemorial – instalação para a exposição “Revendo Brasília” –, 40
retratos em película ortocromática pintada e 10 retratos em fotografia em cor em
papel resinado sobre bandejas de ferro e parafusos. Título Imemorial na parede
em letras de metal pintado. 60 x 40 x 2 cm (cada moldura de ferro). Coleção de
Marcos Vinícius Vilaça.
Fonte: Rennó, 1994.
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 45

A obra problematiza a visibilidade social dos trabalhadores e a construção


social de uma identidade moderna no Brasil. Como o moderno pode se constituir
através de formas de organização do trabalho e de dominação políticas arcaicas,
que remontam a herança do passado escravocrata e ao genocídio indígena
do período colonial? Diante dessas imagens, estamos diante do tempo, como
diria Didi-Huberman (2008). De uma realidade incômoda que gostaríamos de
esquecer e que retorna à superfície através desses retratos de trabalhadores
mortos. Fantasmas que nos veem do passado, cujos retratos nos contemplam!
Essas imagens ampliadas, dispostas lado a lado no chão, retratos
enegrecidos de trabalhadores e trabalhadoras, permitem problematizar
a narrativa épica sobre a construção da cidade e o projeto republicano de
nação, que desejava libertar o país das mazelas e dos dilemas do passado
escravista e autoritário. Essas imagens invertem a seta do tempo e nos
fazem pensar no tráfico escravista, nas vagas de imigrantes do passado
aliciados pelos donos das companhias de vapor europeias, mas também
o nosso presente. Fantasmas que nos recordam dos cidadãos assassina-
dos pela ditadura militar e dos desaparecidos, que continuam insepultos.
Convoca-nos a pensar nas confecções instaladas nos porões do bairro
Bom Retiro, em São Paulo, onde imigrantes trazidos por rotas ilegais
trabalham de forma quase escrava; da condição precária dos haitianos
que chegam ao Norte do país em busca de melhores condições de vida e
de trabalho, bem como nos agricultores sem-terra e nas trabalhadoras
e trabalhadores urbanos em suas longas e penosas jornadas diárias de
labuta e de deslocamento na periferia das grandes metrópoles brasileiras.
A arte permite repensar a história e, sobretudo, desmontar as narrativas
hegemônicas e problematizar os esquecimentos dos arquivos públicos, bem
como questionar nossa identidade nacional fraturada e os futuros-passados
derrotados de nossos projetos sociais coletivos. Os diálogos entre história
social, história da arte e cultura visual colocam a possibilidade de elaborar
novos problemas e de propor novas interpretações para novas-velhas
questões sobre a memória e a amnésia sociais de nossa jovem nação.
46 CHARLES MONTEIRO

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SOUSA, Nair Heloisa Bicalho. Construtores de Brasília. Petrópolis: Vozes, 1983.
GEOGRAFIAS DA RESISTÊNCIA: A CIDADE E A MEMÓRIA1

MARIA ALICE SAMAR A

Alguns dos mapas que encontramos em determinadas cidades di-


zem-nos: “Você está aqui” (cf. HARMON, 2004 para a complexidade,
profundidade e o fascínio associado aos mapas). Este aqui, explicita-nos
qual é a nossa localização geográfica, o espaço absoluto, e, nesse sentido,
dá-nos um ponto inserido numa grelha.Observando o mapa, sabemos
onde estamos, temos pontos de referência, o nome da rua ou a indicação
do bairro.Se estávamos perdidos, passamos a ter um referente espacial.
Mas onde é – e o que é – aqui? O aqui simplificado no mapa, pode ser
muito mais que um simples ponto no espaço. Ensina-nos David Harvey que
este deve ser equacionado levando em linha de conta tanto os diferentes
tempos – o passado, o presente e o futuro – como a sua relação com o
existente nesse mesmo local:

An event or a thing at a point in space cannot be understood by


appeal to what exists only at that point. It depends upon everything
else going on around it (although in practice usually within only a
certain range of influence). A wide variety of disparate influences
swirling over space in the past, present and future concentrate
and congeal at a certain point to define the nature of that point
(HARVEY, 2004, p. 4).

1 
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
50 MARIA ALICE SAMARA

Neste sentido, a multiplicidade de tempos e a abordagem relacional con-


figuram uma metodologia adequada para se complexificar o aqui encontrado
nos mapas. David Harvey, no que à análise do “papel político das memórias
colectivas nos processos urbanos” diz respeito, acrescentou: “If I ask the
question: what does Tiananmen Square or “Ground Zero” mean, then the only
way I can seek an answer is to think in relational terms.” (HARVEY, 2004, p. 5)
Partindo das reflexões de David Harvey, convocamos tanto a história
como a memória – reconhecendo que são duas instâncias diferentes –
para tornar o espaço mais denso e a cidade menos plana. Neste sentido,
a profundidade implica uma relação dinâmica e de interdependência entre
a cidade e memória. Hávárias dimensões nesta relação, nomeadamente
asubjetiva. Maria Stella Bresciani, recorrendo a Anne Couquelin, considera
que viver em cidades “configura antes de tudo uma sobreposição pouco
ordenada de camadas de lembranças, nem todas vividas como experi-
ências nossas, mas tornadas nossas pela transmissão dessas memórias e
lembranças esparsas” (BRESCIANI, 2002, p. 31).
Pablo Sztulwark, refletindo sobre a situações urbanas que produzem
memória, considerou que:

Ante la pregunta por laciudad como lugar de la memoria, nos invitan


a indagar lassituaciones urbanas como generadoras de memoria.
Como nos dice Borges: “losojosven, lo que estánacostumbrados a
ver”. Justamente por eso, estiempo de indagar estas otras formas
de la memoria: más alládelarchivo, del monumento, de laplaza
oficial; es tiempo de pensar la memoria como eso que está actuando
todo eltiempo, como eso que está produciendo y produciéndonos.
Más allá de lo monumental, haysituaciones urbanas que producen
memoria, que hacen memoria. La tareaesentrenar a nuestrocuer-
poenelejercicio de esta sensibilidad (SZTULWARK, s.d.:9).

Pensar a questão da memória como algo que se está a produzir implica


necessariamente o reconhecimentode que este campo não é isento de comba-
tes – antes pelo contrário, as batalhas são um dos seus elementos constitutivos.
G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 51

A cidade que se assume aqui como palco das lutas pela memória é Lisboa,
de há muito a capital de Portugal. Trabalhamos num projeto que assume a
cidade enquanto lugar político e cultural2, levando a cabo o mapeamento,
numa primeira camada, dos locais associados tanto ao poder – os espaços de
violência a serem relembrados na contemporaneidade como forma de negar
qualquer forma de neutralização do conflito – e, sobretudo, os associados
à sociabilidade política e cultural da resistência quotidiana à ditadura do
Estado Novo (1933-1974). Neste sentido constitui-se como central a sede
da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), depois de novembro
de 1969, Direção Geral de Segurança (DGS). Sendo a cidade um objecto
denso, composto de diferentes camadas – quer no sentido material, quer
no simbólico –, interessa-nos aqui analisar este local específico, a sede da
PIDE/DGS, na rua António Maria Cardoso. Local de repressão, de violação
sistemática dos direitos civis e políticos, e de morte, representa também
o espaço do conflito desigual entre torcionários e resistentes. Durante a
revolução de 25 de Abril de 1974 foi palco de uma desesperada e violenta
resposta da polícia aos acontecimentos em curso, que disparou contra os
populares que ali se manifestaram pelo fim da PIDE/DGS. Mas este ponto
específico na cidade, analisado levando em linha de conta a sua historicidade
e a relação entre passado e presente, é central para a discussão, que extra-
vasa as balizas cronológicas do regime, em torno da luta pela memória, o
combate contra o esquecimento e, em certo sentido, contra a neutralização
do conflito efetuada neste local. Assumindo um renovado sentido nos mais
de quarenta anos de regime democrático, faz agora parte da geografia de
resistência, do que não pode ser esquecido, da luta da memória antifascista.
Passado que é convocado em nome de um futuro.

2 
Trabalho de pós-doc. Espaços e redes de resistência na grande Lisboa (1945-1974).
52 MARIA ALICE SAMARA

Rua António Maria Cardoso: a luta pela memória

Na rua António Maria


Convenha a todos saber
A patriótica espia
Sabe bem onde morder
(José Afonso, Na Rua António Maria).

No presente, em Lisboa, no Chiado, assumimos o ponto de vista de um


observador que não está familiarizado com a história de Portugal dos
últimos séculos. Neste primeiro andamento, percorremos a rua, des-
cendo do Chiado, com uma nesga de rio que se vê a partir de metade
da rua, até à curva apertada à esquerda para a ruaVítor Cordon. Não é
difícil ter a perceçãode que se trata de uma rua “histórica”, ou seja, onde
o património edificado nos remete para um outro tempo – mesmo que,
num momento inicial e assumindo uma posição de leigo na matéria, não
consigamos precisar as datas de construção.Resta saber, contudo, como
é que a história é utilizada nas estratégias e dinâmicas urbanas, das eco-
nómicas às culturais, se de uma forma neutralizadora do conflito, e nesse
sentido, assética, se numa forma crítica. Enzo Traverso, discorrendo sobre
o “turismo da memória”, advertiu aliás para a “reificação do passado”, ou
seja a sua “transformação em objecto de consumo, estetizado, naturali-
zado e rentabilizado, pronto para ser utilizado pela indústria do turismo
e do espectáculo, especialmente pelo cinema” (TRAVERSO, 2012, p. 11).
A rua António Maria Cardoso (antiga rua do Tesouro Velho) localiza-se
no Chiado, uma das zonas históricas de Lisboa, entre o Bairro Alto e a
Baixa Pombalina. Pelo menos desde o Romantismo que se constitui – e se
autorreferencia – como um local “cosmopolita”, de políticos, inteletuais
e artistas, mas por onde também passava um circuito de sociabilidades
femininas. A isto se associava uma parte comercial (juntamente com a
G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 53

Baixa) para as classes médias e altas da sociedade portuguesa – penalizada,


no último quartel do século XX, com a emergência, de novos hábitos de
consumo ligados a novos espaços.Em agosto de 1988 um incêndio que
deflagrou nos históricos armazéns Grandella (fundados no final do século
XIX) destruiu vários edifícios nas ruas do Carmo, Garrett, Nova do Almada,
Cruxifixo, Ouro e Calçada do Sacramento. A reconstrução foi entregue ao
arquiteto Siza Vieira. Atualmente, o Chiado, mantendo o perfil comercial
e com um preço por metro quadrado habitacional bastante alto, é um dos
sítios mais procurados pelos turistas.Contemporaneamente, podemos
associar à zona do Chiado um território de lazer, consumo e até cultural,
sem com isto negligenciar a sua importância histórica na dinâmica lisboeta.
Esta brevíssima descrição do Chiadoconstitui-se como central para
a compreensão da relação entre a rua António Maria Cardoso e a sua
envolvência urbana ea forma como se relaciona com esta parte da cidade.
O nome desta rua que estamos a analisar, alterado em 1890, presta
homenagem a um oficial de Marinha (1849-1900), explorador africanis-
ta e, mais tarde, deputado. Paralela à rua do Alecrim, a António Maria
Cardoso está rodeada por outras ruas que evocam militares que estiveram
igualmente envolvidos nas expedições africanas, nomeadamente Vítor
Cordon, Paiva de Andrada, Serpa Pinto, Capelo e Ivens.
Todas estas ruas, renomeadas entre 1885 e 1890,mostram como esta
zona da cidade de Lisboa está profundamente marcada pelos sonhos oito-
centistas de um império africano, na conjuntura da conferência de Berlim
(1884-1885).Aí seestabelecera o princípio da ocupação efetiva das colónias
em África, levando Portugal a organizar expedições para o domínio do
território, de modo a manter a sua posição imperial.Estes homens e os
seus “feitos” africanos teriam igualmente uma enorme importância na
visão da história propagandeada e ensinada durante o Estado Novo, que
defenderia a ideia de um Portugal imperial e colonial, e depois dos “ventos
de mudança” com o início das descolonizações, o Portugal com as suas
“províncias ultramarinas”. Por elas arrastou a sociedade para uma guerra
colonial em três frentes (Guiné, Angola e Moçambique).
54 MARIA ALICE SAMARA

É esta a primeira camada de significado histórico-toponímico a reter:


o projeto imperialmaterializado na que era considerada a zona moderna e
cosmopolita da cidade de Lisboa.Quando, em referências mais recentes, se
fala na António Maria Cardoso, evocando a rua e não o nome do oficial de
Marinha, o que é trazido à memória não são os esforços portugueses em África,
mas outras reminiscências de cariz negativo do século XX português, nome-
adamente as da repressão associada à polícia política do regime salazarista.
Voltemos à rua. Deixando o Largo do Chiado para trás, avançando pela
rua de passeios estreitos com calçada portuguesa e carris do elétrico ao
centro, encontramos à nossa direita o edifício verde pálido do outrora cine-
ma “Chiado Terrasse”, que funcionou desde osalvores do século XX até ao
início da década de setenta. Uns passos à frente, à esquerda, a rua abre-se à
Travessa dos Teatros, deixando-nos entrever o Teatro Nacional de São Carlos.

Figura 1. Rua António Maria Cardoso, Lisboa, 2015


Fonte: A autora.
G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 55

Sensivelmente a meio da rua, neste travelling, está o Teatro Municipal


São Luiz, inaugurado no final do século XIX.Já se chamou D. Amélia, durante
a Monarquia e, depois da implantação da República a 5 de Outubro de 1910,
foi renomeado passando a ter o nome do regime. Neste ponto, equacio-
nando os diferentes tempos deste espaço, relembramos a revolução na
toponímia levada a cabo pelos republicanos, apagando da cidade os nomes
associados à família real e a monarquia.
Na parte final da rua, o antigo Paço de Bragança deu lugar, na segunda
metade do século XIX, aos edifícios de rendimento (do n.º 2 ao 26) da Casa
de Bragança.Foi exatamente neste local que se instalou a sede PIDE/DGS.
É este o local – e os combates pela memória a ele associados –que se cons-
titui como central para este artigo. Interessa-nos o espaço, que se transforma
em lugar, e o processo em que se articulam os diferentes tempos históricos.

No grande edifício conhecido por ter sido a sede da temível


polícia política do regime salazarista (PVDE/PIDE/DGS) e que
até 1933 tinha o n.º 20, geralmente se ignora que ali foi uma
sede importante de vários organismos sindicais: Empregados
do Comércio e Indústria, Caixeiros (com o seu jornal O Caixeiro),
Enfermeiros e Enfermeiras, Pessoal do Anglo-Portuguese
Telephone, Compositores Tipográficos, Federação Portuguesa
dos Empregados no Comércio e Federação Portuguesa dos
Trabalhadores do Livro e do Jornal (mais, em certa altura, o
seu órgão de imprensa O Gráfico). No mesmo edifício, mas
com entrada pelo n.º 26, também aqui esteve instalada nos
seus primeiros tempos a redacção e administração darevista
Seara Nova, fundada por António Sérgio, Raul Proençae outros
intelectuais independentes [...] (FREIRE; LOUSADA, 2013, p. 38).

Esta descrição, parte da obra Roteiros da Memória Urbana, marcas


deixadas por libertários e afins ao longo do século XX (FREIRE; LOUSADA,
2013), recuperoutambém a vitalidade cívica e política deste local.J. M.
Costa Feijão, escrevendo no jornal Avante!(órgão de imprensa doPartido
56 MARIA ALICE SAMARA

Comunista Português – PCP), a 6 de março de 2003 (no aniversário sobre


o ano de fundação deste partido), relembrou que foi na Associação dos
Caixeiros, na rua António Maria Cardoso que se formou uma comissão para
a criação do PCP (sobre este assunto veja-se também MADEIRA, 2013, p. 19).
Mas, e retomando os versos do poeta, compositor e cantor José Afonso
(1929-1987), voz fundamental do Portugal da resistência,acima colocados
em epígrafe, a rua António Maria Cardosoganhou outro sentido durante o
período da ditadura do Estado Novo, passando a ser um dos locais associados
à repressão, juntamente com, por exemplo, o campo do Tarrafal (colónia
penal, muitas vezes referida como campo de concentração), ou as cadeias
do Aljube, Caxias ou do Forte de Peniche.
A Associação dos Ex-presos Políticos Antifascistas (AEPPA)publicou
em 1977 uma pequena brochura intitulada Os mortos reclamam justiça.
Nesta,fazem uma lista dos mortos às mãos do que entendiam ser a re-
pressão fascista, de entre as quais aqueles que tinham morrido na sede da
polícia política, o que faz deste lugar, além do espaço de desumanização
e de violência, um lugar de morte.É simbólico que, apelando a que “todas
as informações sobre a PIDE e a repressão fascista lhes sejam enviadas”
(AEPPA, 1977, [contracapa]), a associação dos ex-presos políticos tenha
como sede a rua António Maria Cardoso (n.º 15, 3.B).
Mas o edifício da polícia política está ainda associado a outro infame e
infausto acontecimento. Muito embora a revolução portuguesa de abril de
1974 não se tenha caraterizado pelo derramamento de sangue, foi justa-
mente neste local que, perante aqueles que exigiam o fim da polícia política,
foi aberto fogo sobre a multidão, ferindo várias pessoas e matando quatro
(embora algumas fontes falem de cinco). Importante é reter este dado: lugar
de tortura e morte durante o regime, significou o estertor violento e letal
do mesmo no dia da revolução. É exatamente a luta pela memória desta
ação violenta, bem como a batalha contra o esquecimento em relação à
polícia política e ao regime, que surgem no centro da polémica em torno
deste espaço e o torna um lugar de disputa da memória.
G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 57

A 25 de abril de 1980 foi colocada uma placa evocativa dos aconteci-


mentos do dia da revolução na fachada do prédio, uma “homenagem de
um grupo de cidadãos”. Nesta, numa curta e incisiva frase está contida a
violência do momento, ou seja, explica-se que “a PIDE abriu fogo sobre o
povo de Lisboa”, matando quatro pessoas cujos nomes são mencionados,
numa clara estratégia de combate ao esquecimento. Enunciar, expondo
em termos claros ou manifestar, faz assim parte do combate à amnésia.

Figura 2. Placa evocativa das mortes de dia 25 de Abril de 1974 na Rua António
Maria Cardoso, Lisboa, 2015.
Fonte: A autora.

O Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA),


gerido pela Direção-Geral do Património Cultural, ajuda-nos na recons-
trução desta história da utilização do edifício depois da revolução de 25 de
Abril de 1974: da instalação daComissão de Extinção da PIDE (serviços de
coordenação de extinção da ex-PIDE/DGS3)ao estado de imóvel devoluto

3 
Em junho de 1974 foi criado o Serviço de Coordenação de Extinção da PIDE/DGS e da Legião
Portuguesa, que depois de outras tutelas e de uma reestruturação, foi transferido para a
58 MARIA ALICE SAMARA

(exceto piso térreo) em 1990, até 2004, com a aprovação de um projeto


para a transformação num empreendimento de luxo.4 Há obviamente
uma perplexidade a ser surpreendida na forma como um dos lugares
epítomes da repressão e da violência – e depois da revolução, o lugar
do reconhecimento da força dos que resistiam – pode ser transformado
num condomínio. Mas a perturbação inicial rapidamente evoluiu para a
tomada de posições concretas demonstrando que, pelo menos para uma
parte da sociedade, esta questão não podia ser deixada por contestar.
O que aconteceu neste edifício da António Maria Cardoso não pode ser
separado do que foi acontecendo no resto da cidade, sobretudo na histórica
zona do Chiado, nomeadamente das pressões do imobiliário do segmento
de luxo. Mais ainda: esta transformação não pode ser desassociada quer dos
ciclos da memória e da história, em relação ao regime e à resistência, quer
das políticas públicas de memória.Como demonstrou Manuel Loff (LOFF,
2015), a memória da luta contra o regime do Estado Novo tem atravessado
vicissitudesvárias. Para este historiador, o período de 1974-1976 foi a “única
fase da vida social portuguesa na qual a memória antifascista conquistou
uma hegemonia política evidente” (LOFF, 2015, p.31).
A construção do condomínio e, como adiante veremos, a desaparição
da placa evocativa dos mortos pela PIDE, deram início a uma onda de pro-
testos. Manuel Loff considerou que a partir do outono de 2005 podemos
constatar o aparecimento de movimentos que tinham como escopo a
transformação das sedes da antiga polícia política de Lisboa e do Porto no
que chamou de “centros da memória da resistência”:

Em Lisboa, o movimento foi desencadeado pela notícia da


transformação da antiga sede nacional da polícia política (que,
ao contrário do que sucedia no Porto, nunca fora proprieda-
de do Estado) num condomínio de luxo. Deste movimento

dependência da Assembleia da República em novembro de 1982 e extinto em janeiro de 1991.


4 
http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=22128
G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 59

surgiria, a curto prazo, a associação Não Apaguem a Memória


(NAM), em que convergem sobretudo ativistas ligados ao
BE [Bloco de Esquerda] e ao PS [Partido Socialista], alguns
dos quais ex-militantes do PCP, de entre os quais se desta-
cará Raimundo Narciso, antigo operacional da ARA[Ação
Revolucionária Armada] e ex-deputado do PS, que presidiu
ao NAM em 2008-2012 (LOFF, 2015, p. 131).

De facto, a associação movimento cívico NAM – Não Apaguem a


Memória constituiu-se em maio de 2008, mas o movimento nasceu a 5
de outubro de 2005:

Face à tentativa de apagamento da memória da resistência ao


fascismo, um grupo de cidadãos manifestou-se publicamente
junto à antiga sede da PIDE/DGS, em 5 de Outubro de 2005,
para protestar contra a transformação daquele edifício em
condomínio fechado, sem que fosse assegurada uma adequa-
da menção ao sofrimento causado a tantas portuguesas e
portugueses pela polícia política do regime ditatorial.

Desta iniciativa cívica nasceu o Movimento Cívico “Não Apaguem


a Memória!”, motivado pela exigência da salvaguarda, investigação
e divulgação da memória da resistência antifascista e que con-
sidera ser responsabilidade do Estado, do conjunto dos poderes
públicos e da sociedade a preservação condigna dessa memória.

Porque sem memória não há futuro (maismemoria.org).

Também a União dos Resistentes Antifascistas Portuguesas (URAP), ligada


ao PCP, se manifestou sobre este assunto. Recebida pela Câmara Municipal
de Lisboa, na pessoa do vereador Ruben de Carvalho, uma delegação desta
associação expôs as atividades promovidas “no sentido do esclarecimento
público”, junto das camadas mais jovens, do que foi e o que representou a
60 MARIA ALICE SAMARA

“ditadura fascista de Salazar e Caetano sustentada por um feroz aparelho


repressivo”. De entre estas,

a elaboração pela URAP de um documento de protesto, logo


que foi tornado público o destino a que iria ser dado ao edifício
da sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa.
Esse documento, subscrito por 4.500 (quatro mil e quinhentos)
cidadãos revoltados por naquele local se ir construir um condo-
mínio de luxo, foi oportunamente entregue ao então Presidente
da República, Dr. Jorge Sampaio (URAP recebida pela CML).

Ou seja, estes dois exemplos mostram como uma parte da sociedade


civil, claramente de sensibilidade política de esquerda, tomou posições
públicas na luta pela memória dos resistentes.
Não sendo o objetivo deste artigo analisar todas as atividades do NAM,
cumpre referir ainda que dinamizaram uma petição nacional (151/X/1)5, que
deu entrada na Assembleia da República em 2006, reclamando políticas
públicas da memória em relação aos crimes do Estado Novo e à resistência à
ditadura. De igual modo condenaram a transformação do edifício da sede da
antiga polícia política, num reconhecimento da importância deste local (a par
de outros igualmente simbólicos) na preservação da memória. Defenderam
a necessidade de criação de “um espaço e um elemento memorial”.6
Por último, levantando uma outra batalha que teve este lugar como
palco central, gostaríamos de fazer uma breve referência e análise ao
desaparecimento da placa evocativa colocada na fachada do edifício em

5 
Petição Nº 151/X/1: Reclamam a criação de um espaço público nacional de preservação e divul-
gação pedagógica da memória colectiva sobre os crimes do chamado Estado Novo e a resistência
à ditadura, condenam a conversão do edifício da sede da PIDE/DGS em condomínio fechado e
apelam a todos os cidadãos e organizações para preservarem, de modo duradouro, a memória
colectiva dos combates pela democracia e pela liberdade em Portugal. Veja-se o site do parlamento
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=11474
6 
Texto na petição disponível online: http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pd-
f?path=6148523063446f764c3246795a5868774d546f334e7a67774c336470626e426c-
64476c6a6232567a4c33526c6548527658325a70626d46734c316776554556554d545578-
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G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 61

1980. A partir de 2009 vários ativistas, nomeadamente do NAM,políticos


tanto na Assembleia da República como na Câmara Municipal de Lisboa
e académicos protestaram contra o desaparecimento da supracitada
placa e depois a sua colocação num local secundário, pouco visível e sem
dignidade. Em 2014, a câmara Municipal apresentou queixa por alegado
roubo da placa (Público, 2 de abril de 2014). Hoje em dia, a placa evocativa
encontra-se na fachada do edifício.
Argumentamos, tal como estes ativistas, que estes lugares podem – e
devem –funcionar como suportes da memória colectiva (IPPDH, 2012, p.
12). A placa tem um efeito de enunciação e de evocação que não deve ser
negligenciado. Tem uma função de marca e de sinalização e, simultanea-
mente, de homenagem.Todas as medidas tomadas para que estivesse na
fachada do edifício demonstram como está viva a memória dos resistentes.

Considerações finais

Procurámos fazer um exercício que equacionasse as diferentes camadas


históricas que se encontram num local. O ponto espacial de um mape-
amento da geografia da resistência – e da memória enquanto forma de
resistência – escolhido foi a rua António Maria Cardoso e mais especifi-
camente o edifício que albergou a sede da polícia política portuguesa. Era
importante perceber a evolução e a complexidade além do património
material, resgatando a sua densidade histórica associada às suas formas
de ocupação e aos seus significados.
Se no início do século XX este espaço – que poderia parecer quase sempre
o mesmo visto do exterior – era um lugar associado à vida cívica, intelectual
e política, a partir da emergência do Estado Novo passou a assumir, em certo
sentido, o seu contrário. Era o lugar que violentamente punia o dissenso.
Depois do 25 de Abril de 1974, nos mais de quarenta anos de de-
mocracia, o mesmo local transformou-se, como vimos, num espaço de
combate. Já não entre os opositores ao regime e a polícia política, mas
entre a amnésia e o dever de relembrar todos aqueles que foram expostos
62 MARIA ALICE SAMARA

e sofreram com a violência policial do regime. Neste sentido deve ter um


lugar na geografia da resistência da cidade de Lisboa.
Retomamos a importância simbólica da manifestação de 5 de outubro
de 2005: a contestação – que configura um dos aspectos de cidadania
democrática e interventiva – à transformação da antiga sede da polícia
política transforma aquele espaço no campo de batalha. Muito embora
o espaço físico do edifício seja privado, a manifestação abriu, de forma
simbólica, o espaço público.Esta Lisboa tornou-se uma cidade participativa,
que questiona e que age.
É também disto, desta matéria fluída e quente da memória e dos seus
combates, que a cidade é feita.

REFERÊNCIAS
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Relógio d’Água, 2000.
BRESCIANI, Maria Stella. Cidade e história. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (org.).
Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2002.
FREIRE, João; LOUSADA, Maria Alexandre. Roteiros da Memória Urbana.
Marcas deixadas pelos libertários e afins ao longo do século XX. Lisboa: Edições
Colibri, 2013.
HARMON, Katherine (ed.). You are here: Personal Geografies and other maps
of imagination. Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 2004.
HARVEY, David. Space as a key Concept. Paper for Marx and Philosophy
Conference, Institute of Education, London, 29 May 2004.
Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL (IPPDH).
Documentos IPPDH. Princípios Fundamentais para as políticas públicas sobre
lugares de memória, 2012. (consultado em 8 de novembro de 2015)
FEIJÃO, J. M. Costa. 1921 – O ano da Fundação do PCP. In: Avante!, n.º 1527,
6 de março de 2003. (http://www.avante.pt/pt/1527/argumentos/114198/,
consultado a 7 de outubro de 2015)
LOFF, Manuel. Estado, democracia e memória: políticas públicas e bata-
lhas pela memória da ditadura portuguesa (1974-2014). In: LOFF, Manuel.
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(et al.). Ditadura e Revolução. Democracia e políticas da memória. Coimbra:


Almedina, 2015.
MADEIRA, João. História do PCP. Das origens ao 25 de Abril (1921-1974). Lisboa:
Tinta-da-China, 2013.
NAM, “Quem somos”, maismemory.org, http://maismemoria.org/mm/home/
quem-somos/, consultado em 10 de outubro de 2015.
SZTULWARK, Pablo. Ciudad Memoria: Monumento, Lugar y Situación Urbana,
Memoria Abierta, http://www.memoriaabierta.org.ar/materiales/pdf/ciu-
dad_memoria.pdf (consultado em 7 de outubro de 2015)
Público, 2 de Abril de 2014, edição online: http://www.publico.pt/local/
noticia/camara-de-lisboa-apresentou-queixa-pelo-roubo-de-placa-da-an-
tiga-sede-da-pide-1630701, (consultada a 8 de outubro de 2015)
TRAVERSO, Enzo. O Passado, modos de usar. História, Memória e Política.
Edições unipop, 2012.
URAP, “URAP recebida pela CML” 21-11-2006, http://www.urap.pt/index.php/
urap/documentos-mainmenu-33/17-urap-recebida-pela-cml, (consultado
em 9 de outubro de 2015)
MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS NA REVOLUÇÃO
PORTUGUESA A PARTIR DE UMA OPERAÇÃO SAAL1

JOÃO BAÍ A

Os Movimentos Sociais Urbanos (MSU) estudados por Castells estão de


novo a assumir centralidade. Quando parte do movimento dos indignados
em Espanha apoiou e integrou a Plataforma de Afectados por la Hipoteca
(PAH), quando na Turquia e no Brasil, em 2013, reivindicações urbanas
dão início a um movimento que aglomera outros movimentos e outras
reivindicações podemos observar que os MSU, os seus repertórios, as
suas reivindicações devem ser de novo objecto de estudo. Quando se
discute os MSU na Europa parece que houve um processo de amnésia, de
esquecimento de lutas urbanas importantes, estudados por Castells na
sua obra Lutas Urbanas e Poder Político, na qual se debruça sobre lutas
urbanas em Paris, Monterreal e Santiago do Chile em que refere que:

[...] a cidade se transforma sob o impulso, não dos técnicos


de planificação urbana, mas do processo contraditório dos
grupos sociais e também, como é que as questões postas
pela problemática urbana são expressas através das acções
que renovam as vias revolucionárias das nossas sociedades,
articulando outras formas de conflito às resultantes do sis-
tema produtivo e da luta política (CASTELLS, 1976, p. 124).

1 
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
66 J OÃO B A Í A

Castells, Borja e Lojkine debruçaram-se sobre os Movimentos Sociais


Urbanos (MSU). Castells foi o autor que impulsionou mais este debate teórico
em torno dos MSU, tendo sido muito estudado nos anos setenta. Em Portugal,
era um autor de referência, para quem queria estudar neste período, os MSU.
Castells, tendo estudado o movimento social de moradores em contextos
de crise do Estado como Itália, França, Chile e Canadá, considerava que o
movimento social urbano era um sistema de práticas, cujo desenvolvimento
tendia para a transformação estrutural do sistema urbano ou da relação de
forças no seio da luta de classes, e em último caso na relação de forças es-
tabelecidas para ver quem controlava o poder do Estado, através da junção
dos vários órgãos de poder popular (apud LOJKINE, 1981, p.302).
Castells entendia que era preciso extrair dos MSU, “suas perspectivas,
sua estrutura interna, suas contradições, seus limites e possibilidades, suas
relações com a cidade e com o Estado”, para se poder, “a partir de sua ob-
servação concreta, registar a forma pela qual se desenvolvem e as acções e
organizações que integram”. Por fim, seria necessário relacionar os elementos
obtidos com: “a) as contradições estruturais do capitalismo; b) a expressão
estrutural do movimento no urbano; e c) o processo político mais geral do
país nos últimos anos” (apud GOHN, 2002, p. 190).
Para Foweraker, os movimentos urbanos, que na América Latina nos anos
70 e 80 começaram a ser muito estudados, eram uma categoria aberta, pois
eram condicionados pelo “tempo, espaço e circunstâncias, podendo incluir
novas formas de movimento operário, movimento de mulheres, movimento
de professores, movimento estudantil e movimentos a favor dos desapare-
cidos ou exilados” (FOWERAKER, 1995, p. 6). “O contexto urbano”, durante
este período, “tornou-se especialmente importante devido à concentração
de movimentos” (FOWERAKER, 1995, p. 6).
As grelhas de análise disponíveis ou mais em voga em certos momentos
não têm muitas vezes em conta experiências mais próximas a nível geográfico,
preferindo, por exemplo, traçar paralelismos entre as tentativas recentes de
ocupações de casas em Portugal com os movimentos de ocupação de casas
e espaços devolutos noutros países europeus como Itália, Alemanha, Holanda
M OV I M E N TO S S O C I A I S U R B A N O S N A R E VO LU Ç ÃO P O RT U G U E S A 67

ou Espanha. É necessário conhecer a história dos movimentos sociais, o


contexto histórico, económico e social dos países e do próprio país, quando
se tenta comparar movimentos sociais de diferentes países.
Uma maior compreensão e conhecimento da história dos MSU em
Portugal permitirá, a quem estuda movimentos sociais e aos activistas desses
movimentos, saber que em Portugal o direito à cidade, ao lugar e à habitação
já mobilizou milhares de pessoas em diferentes modalidades de MSU.
Este tipo de movimento não cabe no conceito Novos Movimentos
Sociais pelas razões expostas num livro sobre a memória do movimentos
de moradores em Madrid: “sus reivindicaciones no se centraban, en primer
término, en bienes ‘posmateriales’; por outro lado, su caracter interclasista
distinguía el movimiento vecinal de otras modalidades ‘clásicas’, como el
movimiento obrero” (PÉREZ QUINTANA; SÁNCHEZ LEÓN, 2008, p. 14).
A partir do estudo das memórias dos moradores de um bairro procu-
rar-se-á compreender as razões pelas quais esses moradores conseguiram
organizar-se de forma a mudar de forma substancial as condições habita-
cionais do seu bairro, tendo em conta o contexto histórico a nível local e
nacional (BAÍA, 2012).
Em Portugal, no dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças
Armadas realizou um golpe militar que granjeou ampla adesão popular,
constituindo uma ruptura com 48 anos de ditadura. A política de habitação
do Estado Novo foi minimalista e vedava o acesso à habitação para todos
e punha em causa o direito à cidade e ao lugar. A parca habitação social foi
construida na periferia das cidades, contribuindo para o isolamento das famí-
lias carenciadas que conseguiram viver num bairro de habitação social. Nas
duas últimas décadas do Estado Novo, com o crescimento da urbanização
e industrialização, o governo viu-se obrigado a deixar de construir núcleos
de casas unifamiliares nas periferias das cidades para começar a construir
habitações coletivas em grandes bairros situados na periferia, sobretudo do
Porto e de Lisboa, cidades que constituiram o destino da maior parte das
migrações internas resultantes do êxodo rural e dos fluxos interior-litoral,
devido à maior concentração de indústrias (SERRA, 1997, p. 5).
68 J OÃO B A Í A

As reivindicações e as acções das lutas urbanas durante os dois anos


que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 incidiram além da questão do
alojamento, em áreas como a educação, a saúde, transportes e criação de
equipamentos colectivos.
Durante o período entre 1974 e 1976, as ocupações de casas, a luta
contra o subaluguer de casas, a participação em comissões e associações
de moradores, a criação de orgãos de coordenação alargados à participação
de outros sectores e o envolvimento de alguns bairros no processo SAAL
foram algumas das modalidades assumidas pelos MSU.
Irei deter-me mais no Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL),
nomeadamente na operação SAAL da Relvinha, em Coimbra.
O SAAL, resultou de um Despacho conjunto do Ministério da
Administração Interna e do Ministério do Equipamento Social e do Ambiente,
aprovado a 31 de Julho de 1974. Este projecto divulgado internacionalmente
em revistas de arquitectura de vários países implicava os moradores no
processo de gestão e controlo das operações; obrigava os moradores au-
to-organizarem-se e a terem de constituir uma associação de moradores;
cruzou a noção de direito à habitação com o direito à cidade e ao lugar,
defendendo a manutenção dos moradores pobres nos bairros localizados
nos centros das cidades (RODRIGUES, 1999, p. 49). A obra de José António
Bandeirinha sobre o SAAL a nível nacional contém um levantamento exausti-
vo das operações SAAL, permitindo uma melhor compreensão das diferentes
problemáticas e perspectivas discutidas a nível nacional e internacional em
torno da “Arquitectura do 25 de Abril” (BANDEIRINHA, p. 2007).
De um despacho emitido pelo I Governo Constitucional, no dia 27 de
Outubro de 1976, conferiu às Câmaras Municipais o controlo e a definição
das operações em curso, resultou a extinção do SAAL, pois foi do poder
local que surgiram os maiores obstáculos ao SAAL.
O movimento de moradores e o processo SAAL em Coimbra não teve
o mesmo impacto que teve noutras cidades. A maior parte das associações
de moradores eram pouco activas, excepto as associações dos bairros que
aderiram ao SAAL e que estavam marcados há vários anos pela pobreza
M OV I M E N TO S S O C I A I S U R B A N O S N A R E VO LU Ç ÃO P O RT U G U E S A 69

e por condições habitacionais precárias. De quatro bairros, apenas um


passou da fase do projecto para a fase de construção – o bairro da Relvinha.
Nesta pesquisa realizou-se uma “etnografia em retrospectiva”, traba-
lhando com as memórias dos moradores que conceptualizam o passado “a
partir de um tempo presente” (ALMEIDA, 2002, p. 50), partindo de um quadro
teórico e metodológico multidisciplinar e recorrendo à realização de histórias
de vida, entrevistas semiestruturadas, análise de jornais locais e nacionais e de
documentos vários, que acedi em arquivos pessoais de moradores do bairro
da Relvinha, arquivo da Cooperativa Semear Relvinhas, arquivo da Câmara
Municipal de Coimbra e Centro de Documentação 25 de Abril.
No Anteprojeto de Urbanização de Embelezamento e de Extensão
da Cidade de Coimbra, apresentado por De Gröer, em 1948, previa-se o
crescimento da cidade para norte, o que veio a acontecer na década de
50, aquando do alargamento da Avenida Fernão de Magalhães até à zona
da estação ferroviária (Estação Velha, também conhecida por Coimbra B).
Este alargamento do limite da aglomeração urbana da cidade de Coimbra
obedecia à política de zonamento, de divisão do território em zonas que
seriam destinadas para habitação, para a indústria, serviços. Esta divisão
também dividia o território segundo as classes sociais, destinando normal-
mente as zonas mais periféricas para a indústria e para a classe operária.
As memórias dos informantes do período anterior a 1954, quando
na sua maioria, eram ainda crianças e adolescentes e moravam na zona
da Estação Velha constituem uma memória colectiva de uma infância de
pobreza, descrevendo as estratégias familiares de sobrevivência, a fome,
as cheias, as precárias condições de habitabilidade.
As estratégias familiares de sobrevivência relatadas podem ser
consideradas formas de “resistência quotidiana”, como as referidas por
James Scott em relação aos camponeses de Sedaka na Malásia que se
distinguem das formas de resistência aberta, como greves e manifesta-
ções (SCOTT, 1985). As formas de “resistência quotidiana” identificadas
foram: o mercado negro durante a II Guerra Mundial, andar pendurado
no eléctrico, trocar senhas de racionamento por outros géneros, roubar
70 J OÃO B A Í A

carvão da linha de comboio para acender o fogareiro. Vinte e oito famílias


que viviam na zona da Estação Velha viram as suas casas ser demolidas
em 1954 devido à construção da avenida Fernão de Magalhães. Depois
de serem desalojadas e viverem em bairros camarários durante três anos,
foram realojadas em 1957 pela Câmara Municipal em vinte e oito casas
(barracas) de madeira, de forma “provisória” até 1974.
Entre 1957 e 1974 os quotidianos presentes nas narrativas de vida reco-
lhidas continuaram a ser quotidianos de pobreza. As barracas de madeira,
que com o passar dos anos foram-se degradando, ofereciam condições de
habitabilidade bastante precárias. Os informantes apontaram facto do chão
das casas ser de cimento, da chuva entrar dentro das casas, de existir um
elevado grau de humidade, do frio sentido no interior das casas e da lama
que se formava nas pequenas ruas entre as barracas de madeira. A fome, a
falta de luz e água foram outras carências indicadas.
O deslocamento dos moradores para uma zona mais periférica trouxe o
aumento da distância relativamente ao centro da cidade e consequentemente
um maior isolamento do bairro.
O movimento estudantil protagonizou de 1958 a 1974 vários episódios
que agitaram a cidade de Coimbra, desde crises académicas, manifestações,
greves, que originaram cargas policiais, prisões. Alguns moradores começaram
a frequentar meios e espaços onde conheceram elementos dos movimen-
tos de oposição ao regime, como cafés, tascas e repúblicas de estudantes,
permitindo quebrar os efeitos do isolamento a que foram destinados. Estes
espaços eram lugares, onde se juntavam estudantes, intelectuais, operários,
onde se discutia política, que permitiram a alguns moradores a ter a ter
acesso a informação que, de outra forma, lhes estava vedada, devido à parca
escolarização que possuiam e à guetização a nível geográfico, cultural e social.
Um morador refere duas acções que ocorreram em finais dos anos
sessenta, que estarão entre as formas de “resistência quotidiana” e as
formas de “resistência aberta”, referidas anteriormente: o rompimento
de uma fossa séptica, cujo conteúdo caiu sobre a entrada do prédio do
vice-presidente da Câmara Municipal de Coimbra e a colocação de sacos
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de lixo nas escadas da casa do Presidente da Câmara de Coimbra. Ambas


foram realizadas à noite e de forma clandestina:
Fernando Martins de Almeida descreve o ambiente que se viveu em
Coimbra nos dias a seguir ao 25 de Abril de 1974:

As pessoas começaram a ficar mais alegres. Pessoas que nunca


falaram em política andavam na rua a gritar “25 de abril sem-
pre”. O que marcou mais aqui em Coimbra foi a mobilização
das pessoas. Famílias inteiras na rua. As pessoas a quererem
acreditar que era possível. Que o país tinha de andar para a
frente. [...] Toda a gente com cravos na mão. Crianças com
cravos. Os cravos desapareciam todos. Era lindo. Famílias, todos
a chorarem. Viamos na televisão as prisões a abrirem-se para os
antifascistas, as pessoas a sairem das prisões e a abraçarem os
amigos e os familiares. A mim nunca mais me sai da memória.

A seguir ao 25 de Abril abriu-se uma janela de oportunidades que


o bairro da Relvinha não deixou escapar e aderiu ao projecto SAAL. No
Concelho de Coimbra, em 1975, estavam em curso quatro Operações que
pretendiam alojar dignamente 260 famílias em quatro bairros da cidade:
no Bairro da Relvinha, Conchada, Fonte do Bispo e na Quinta da Nora
(Conselho Nacional do SAAL, 1976).
Destes quatro bairros, o bairro da Relvinha foi o que adoptou os proce-
dimentos necessários para acelerar o processo de construção de 34 casas
(entretanto o número de agregados familiares já tinha aumentados de 28
para 34) e o único a conseguir passar da fase do projeto à fase da construção.
A brigada SAAL da Relvinha que esteve na elaboração do projeto
e no acompanhamento da obra liderada pelo arquiteto Carlos Almeida
de acordo com a vontade expressa pelos moradores decidiu aderir à
autoconstrução, que consistia na participação ativa dos moradores no
processo de construção das casas de forma a tentar reduzir o custo
final da obra. Segundo um dos moradores, o arquitecto Carlos Almeida
“quis acelerar isto o mais rapidamente possível, porque ele dizia e muito
72 J OÃO B A Í A

bem, era preciso começar-se a fazer alguma coisa, houvesse dinheiro ou


não, para que as pessoas acreditassem, senão ia tudo por água abaixo”
(OLIVEIRA, 2003, p. 81).
Nuno Portas, Secretário de Estado da Habitação e do Urbanismo a
seguir ao 25 de Abril, criador do projecto SAAL defendia, segundo José
António Bandeirinha, “que era necessário «mexer na obra», com todas
as implicações físicas e psicológicas da acção, para que essa apropriação
fosse mais intensa” (BANDEIRINHA, 2007, p. 122). Algumas operações
SAAL recorreram à autoconstrução como uma das formas de partici-
pação dos moradores nos encargos da obra como a operação SAAL da
Meia Praia que deu origem à conhecida música de José Afonso “Índios da
Meia Praia”, que serviu de banda sonora para o filme de António Cunha
Telles “Continuar a viver ou os Índios da Meia Praia”. A autoconstrução
foi recusada por várias comissões e associações de moradores em várias
operações SAAL, bem como, por vários arquitectos que consideravam a
autoconstrução como “dupla exploração do trabalhador”.
Um dos informantes descreve assim o processo de autoconstrução:

As pessoas a meter tijolo mulheres, crianças, toda a gente


ali a ajudar. Foi lindo e depois as pessoas que vieram de fora
estudantes de vários países. Foi uma envolvência muito
grande. [...] Foi um dos momentos mais bonitos da história do
bairro da Relvinha (José Fernando Martins de Almeida, 2009).

Ressalvando que nunca se deixaram colonizar por nenhum grupo e


que seguiram um caminho autónomo, o bairro obteve apoio de grupos
de estudantes, grupos culturais, partidos e grupos católicos, empresas.
Tiveram o apoio de um grupo, chamado Companheiros Construtores,
constituído por jovens voluntários estrangeiros que participaram no
processo de construção do bairro.
Algumas pessoas entrevistadas destes grupos e os próprios mora-
dores referiram que houve uma “aprendizagem mútua”, entre diferentes
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culturas, diferentes classes, diferentes conhecimentos. A “aprendizagem


mútua” é um conceito emic que desenvolvi a partir da minha investigação
sobre a Relvinha e que está relacionado com uma aprendizagem recípro-
ca entre os moradores e os grupos externos ao bairro. Da parte destes
grupos também houve aprendizagem, porque passaram a conhecer uma
realidade que lhes estava vedada e tiveram que aprender novas formas
de comunicar os seus conhecimentos.
A relação rentre técnicos e moradores reflectiu-se na “democratiza-
ção da racionalidade técnica e na ampla disponibilização de informação”
(NUNES; SERRA, 2003) às populações. O arquitecto Francisco da Silva
Dias afirma que:

[As populações] alcançam sobretudo o direito a pensar a


cidade [...] [Para os arquitectos] terá sido a grande experiência
trazida pela Revolução. Pela primeira vez têm, como clientes,
com os quais dialogam directamente, populações carenciadas.
Diálogo difícil e enriquecedor (apud DIONÍSIO, 1993, p.170).

Os arquitectos tiveram de aprender a trabalhar com outras escalas


e a comunicar de forma diferente e os moradores tiveram de aprender a
participar em assembleias, a explicar como queriam as suas casas, dando
corpo ao processo de “aprendizagem mútua”. A aprendizagem mútua es-
teve presente noutros projetos governamentais levados a cabo no mesmo
período e que procuravam uma maior democratização do saber, da cultura,
dos cuidados médicos, como o Serviço Cívico Estudantil, as Campanhas de
Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA e o Serviço Médico na Periferia.

Conclusão

A associação de moradores do bairro da Relvinha para além de ter con-


seguido resolver a questão principal do bairro – melhoria das condições
de habitação dos moradores - construiu uma escola, criou a cooperativa
74 J OÃO B A Í A

Semearrelvinhas que construiu anos mais tarde um prédio para novos


moradores carenciados, colaborou com as associações dos bairros da
cidade de Coimbra que aderiram ao SAAL, com comissões de trabalhado-
res e com a Cooperativa Agrícola de Barcouço do Concelho da Mealhada
que chegou a vender os produtos da cooperativa no bairro. Participaram
em manifestações locais e nacionais pelo direito à habitação e contra
extinção do SAAL e, nos momentos-chave do período entre 1974 e 1976,
tomaram posição, deslocando-se para sítios estratégicos da região e da
cidade (Aeródromo de Cernache e Ponte de Santa Clara).
Quais as razões que permitiram um maior envolvimento e participação
dos moradores do bairro da Relvinha, após o 25 de Abril de 1974? Julgo que
podemos encontrar respostas múltiplas para esta questão. Os diversos
apoios externos, a memória partilhada de carências económicas, o isola-
mento, que por outro lado conduziu a uma maior unidade entre os mora-
dores e a uma elevada identificação com o bairro. A experiência adquirida
em lutas levadas a cabo pelos moradores antes do 25 de Abril de 1974 e o
contacto com outros movimentos sociais como o estudantil e o operário
poderão ser alguns factores que permitiram acelerar todo o processo e ao
mesmo tempo conseguir envolver os moradores nas tomadas de decisão
colectiva em assembleias e na participação em reuniões camarárias e em
acções do MSU a nível local e nacional e em acções de outros movimentos.
O contexto histórico e geográfico revelou-se muito importante para
compreender a mobilização dos moradores deste bairro, uma vez que,
segundo os informantes, houve um maior contacto entre diferentes
grupos e classes sociais, numa época, nos “longos anos 60”, numa cidade,
que marcou uma geração e que originou uma “aprendizagem mútua” de
repertórios de luta, de formas de organização, cruzamento de ideias e
experiências políticas diferentes. Como os moradores do bairro da Relvinha
antes do 25 de Abril tiveram contacto com o movimento estudantil e com
movimentos de oposição ao Estado Novo conseguiram aproveitar melhor
a janela de oportunidades que se abriu a seguir ao 25 de Abril, usando
as redes sociais já criadas. Estas redes permitiram contactar com outros
M OV I M E N TO S S O C I A I S U R B A N O S N A R E VO LU Ç ÃO P O RT U G U E S A 75

grupos que se disponibilizaram para ajudar os moradores do bairro da


Relvinha na resolução de questões técnicas, burocráticas, arranjando
formas diversas de angariar fundos, como apoio na autonstrução, venda
de autocolantes, organização de concertos e sessões de esclarecimento.
A memória de um período denso como o que decorreu entre 1974-1976
necessita de uma análise situada e diacrónica que nos permita compre-
ender o contexto local e as suas dinâmicas sociais, culturais e políticas.
Compreender este período implica conhecer os diversos movimentos
sociais e como actuaram em diferentes situações e contextos geográficos.
A maior parte dos estudos focaram os acontecimentos que decorreram
nas grandes cidades, deixando na sombra acontecimentos que dificil-
mente se encontram nos jornais nacionais da época ou na documentação
disponível em diferentes arquivos. Por isso a história oral foi fundamental
para desocultar uma história feita a partir das diferentes memórias dos
moradores e das pessoas que prestaram apoio ao bairro.
Pablo Sánchez León, a partir dos relatos dos líderes dos MSU ma-
drilenos, conclui que todos referem o afastamento das gerações mais
novas do activismo e o envelhecimento das lideranças, como factores
que podem conduzir ao desaparecimento da memória das lutas do mo-
vimento. O importante para o autor não é apenas passá-las a um registo
escrito e “conservar sus ecos”, mas também “garantizar la continuidad
de su audiencia” (SÁNCHEZ LEÓN, 2008).
Os moradores sublinham a importância da transmissão da memória às
gerações mais novas para a continuidade da mobilização dos moradores
do bairro face aos novos problemas que vão surgindo:

Eu penso que devia haver aulas que versassem sobre o 25


de Abril. A malta com vinte anos não sabe. Porque também
ninguém está interessado em lhes ensinar. Mas esta rapa-
ziada toda que está aqui devia ser consciencializada, deviam
conhecer o que é o 25 de Abril para amanhã terem força para
voltarem a fazer o mesmo se for necessário, porque vai ser
76 J OÃO B A Í A

[...] Penso que o futuro está nas gerações mais novas, mas
continuo a pensar que os mais velhos têm a obrigação de os
dinamizar. Têm a obrigação de os politizar para isso, têm a
obrigação de os consciencializar. Há três anos no dia 28 de
Fevereiro fiz aí um discurso em que disse: “A Relvinha não
morrerá nunca porque vocês jovens têm a obrigação de lhe
dar continuidade” (JORGE VILAS, 2009).

A memória, segundo Paula Godinho, “pode servir para olhar a história


com os olhos do que foram subalternizados ou proveniente de grupos sociais
subordinados” (2011, p. 21). Ao contrário das memórias oficiais e hegemó-
nicas produzidas pelos governos, por outras instituições e pelos meios de
comunicação social, estas tendem a permanecer “subterrâneas, escondidas
ou interditas”, dando corpo às “memórias fracas”. Esta tensão entre dois
tipos de memória baseados nas diferenças de poder e reconhecimento
indicada por Enzo Traverso é sintetizada desta forma: “A ‘visibilidade’ e o
reconhecimento de uma memória dependem também da força de quem a
possui” (TRAVERSO, 2012, p. 71-72).
Ao longo dos últimos quarenta anos os MSU em Portugal perderam
a dinâmica participativa e hoje, o direito à habitação e o direito à cidade
continuam a ser problemas por resolver. A intensa participação de milhares
de pessoas em diferentes movimentos sociais durante o período entre 1974-
1976 tem sido remetida para o esquecimento pelos meios de produção de
memórias hegemónicas.
Com esta investigação procurou-se contribuir para um maior conhecimen-
to da história das populações que vivem nas periferias. A partir das memórias
dos moradores do bairro da Relvinha, situado na periferia da cidade de Coimbra,
procurou-se dar voz a memórias que eram “fracas” na cidade e no país.
M OV I M E N TO S S O C I A I S U R B A N O S N A R E VO LU Ç ÃO P O RT U G U E S A 77

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SANTOS, João dos (2009)


SANTOS, João Augusto dos (2009)
SANTOS, Maria Albertina Ferreira da Silva dos (2009)
VILAS, Jorge (2009)

Entrevistas semi-directivas
ALMEIDA, Celeste (2007)
BANDEIRINHA, José António (2009)
FERREIRA, José Augusto (2007)
GOMES, Diamantino (2009)
GOUVEIA, Hermínio Simões (2009)
MARCONI, Francesco (2009)
NATIVIDADE, Frederico (2007)
OLIVEIRA, Mário de (2009)
RIBEIRO, Letícia (2009)
JAHNKE, Hans (2009)
VILAS, Jorge (2007)

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A GUERRA COLONIAL ENTRE
A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO 1

MIGUEL C ARDINA

I.

A 25 de Abril de 1974 seria derrubada em Portugal a ditadura do Estado


Novo, por via de um golpe militar ao qual se seguiria um agitado período
revolucionário. Entre 1974 e 1975, e em correlação com isso, assistir-se-ia
também ao processo das independências africanas e ao fim de uma longa
guerra colonial, que o Estado português levava a cabo em África desde 1961.
Mais de quarenta anos depois do fim das guerras entre o Estado português e
os movimentos de libertação africanos, o conflito permanece ainda hoje em
Portugal um palco de evocações fragmentadas e de amnésias persistentes.
A forma como é rememorado – e como é silenciado – atesta a força de um
acontecimento cuja existência não se confina ao seu início e fim cronológico.
Para utilizar uma expressão de Henry Rousso e Éric Conan, a propósito da
França de Vichy, estamos diante de “um passado que não passa” (CONAN;
ROUSSO, 1994), cuja presença no presente se revela tanto no que é dito
como no que permanece por verbalizar ou por trazer à discussão.

1 
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
82 A G U E R R A CO LO N I A L E N T R E A M E M Ó R I A E O E S Q U EC I M E N TO

A breve menção a alguns números permite constatar a dimensão e


o impacto da guerra colonial em Portugal. Num país à época com nove
milhões de habitantes na chamada “metrópole”, cerca de 800 mil jovens
foram mobilizados para combater em África. Trata-se, como já foi nota-
do, de um esforço humano cinco vezes maior, em termos comparativos,
àquele empregue pelos Estados Unidos da América no Vietname (CANN,
1997, p. 106). A estes números devem somar-se os mais de 500 mil africa-
nos que foram incorporados na tropa portuguesa, num processo que foi
crescendo com o andamento da guerra: na década de 1970, e tomando em
conjunto os três teatros de operações (Angola, Moçambique e Guiné), o
recrutamento local estava já acima de 40% do total das tropas regulares,
e em Moçambique passou a representar, a partir de 1971, mais de metade
do contingente (COELHO, 2002). Os treze anos de conflito originaram
mais de 8.000 militares mortos e cerca de 30.000 feridos, confinando a
contabilidade apenas às tropas portuguesas. Não se conhecem dados
completos e fiáveis sobre as vítimas feitas entre a população civil e entre
os guerrilheiros africanos. E a guerra foi também uma das causas da forte
vaga emigratória que conduziu mais de um milhão de portugueses para
fora do país, entre 1958 e 1974.2

II.

A guerra não foi publicamente assumida como tal pelo Estado Novo, o
regime político institucionalizado no início da década de 1930 e que teria na
figura de António de Oliveira Salazar o seu símbolo máximo. Na leitura que
a ditadura difundiria, o que ocorria em África eram antes acções armadas
dentro de um mesmo espaço nacional que –o “Portugal uno e indivisível
do Minho a Timor”, numa expressão célebre da propaganda do regime –e

2 
Dos perto de 900.000 portugueses que emigraram para França entre 1958 e 1974, 563.000
fizeram-no clandestinamente, tendo esse número sido particularmente alto no final da década
de 1960. Cf. Freitas, 1989: 194. Para uma visão aprofundada sobre o fenómeno migratório para
França durante estes anos, cf. PEREIRA, 2014.
MIGUEL CARDINA 83

levadas a cabo por “terroristas” isolados do verdadeiro sentir da população


das colónias. Só tardiamente, na verdade, a guerra se tornou alvo de debate
e contestação, e ainda assim em domínios sociais bastante circunscritos.
Vários factores ajudam a explicar o consentimento em torno da guerra
no Portugal da década de 1960. Em primeiro lugar, cabe registar o impacto
de uma “mística imperial” que acentuava o papel civilizador e cristianizador
de Portugal em África. Reconfigurando tópicos anteriores ao Estado Novo,
ela ganhou aqui projecção e sedimentação, difundindo-se nas escolas e na
propaganda, nos órgãos de comunicação e nas grandes celebrações do
regime. Em segundo lugar, e como frequentemente acontece no início dos
conflitos militares, este foi acompanhado por um certo fervor nacionalista,
insuflado por alguns relatos e imagens unidireccionais de violência contra
os colonos portugueses.
Um terceiro factor reside nos mecanismos de censura e no cercea-
mento das liberdades públicas, originando uma situação de filtragem da
informação disponível. A isto deve somar-se ainda uma cultura de resig-
nação que era determinada, entre outros aspectos de natureza histórica e
social, pela criminalização e demonização do debate político – e, portanto,
da discussão sobre a realidade da guerra ou sobre a sua legitimidade. Era
a eficácia do que o historiador Fernando Rosas designa como “violência
preventiva”, esse conjunto de órgãos de vigilância, de ordem pública e
de inculcação ideológica que incitavam à obediência e que limitavam
fortemente a expressão de posicionamentos contrários à norma social e
política definida pelo Estado Novo (ROSAS, 2012, p. 196-202).
Por fim, importa ainda considerar a vontade ativa do regime em es-
conder da sociedade os impactos da guerra. SalientaCarlos Matos Gomes
que o regime nunca deu apoio institucional aos combatentes e às suas
famílias. Regressados à então Metrópole, os militares feridos desembar-
cavam de maneira quase clandestina e eram entregues a cargo de uma
instituição não-governamental, a Cruz Vermelha (GOMES, 2004, p. 173).
Na verdade, quem combateu a guerra viu-se assim envolvido por um
regime de invisibilidade, que tocou particularmente dois grupos sociais:
84 A G U E R R A CO LO N I A L E N T R E A M E M Ó R I A E O E S Q U EC I M E N TO

os africanos que combateram do lado português, vistos e tratados como


“seres não existentes”; e os deficientes das Forças Armadas, testemunhos
espectrais do lado pouco heróico da guerra. Como acentua Bruno Sena
Martins, “regressados da guerra amputados, cegos, surdos, paraplégicos,
com transtornos de estresse pós-traumático, etc., [eles] constituíram a
expressão viva de um trauma coletivo que a ordem social democrática quis
esquecer” (MARTINS, 2013).
A incapacidade do regime em responder politicamente ao problema da
guerra conduziria a uma crescente insatisfação nas frentes de combate e
à criação do Movimento das Forças Armadas (MFA). A 25 de Abril de 1974
é desencadeado o movimento que iria pôr fim à ditadura e abrir caminho
a um período revolucionárioem que se destruiu o aparelho repressivo
proveniente da ditadura, se questionou a estrutura da propriedade, se
conquistaram liberdades públicas e se processou o fim da guerra e, con-
sequentemente, do Império.Caído o Estado Novo, a herança traumática
de um passado por exorcizar continuara todavia a produzir os seus efeitos,
observáveis nos ressentimentos sobre a “perda” de África, no modo como
se desenhou a imaginação da Europa enquanto novo desígnio nacional ou
nas manchas de silêncio sobre a guerra colonial e o seu contexto histórico.
No fundo, a persistência do “colonialismo como impensado”, como lhe
chama Eduardo Lourenço, consistiu na naturalização do colonial através
de dispositivos jurídicos, políticos, sociais e discursivos que o imaginam
e representam como não-colonial.3 A força desta representação ajuda a
explicar a perplexidade com que, ainda hoje, se olha a questão da violência
exercida na guerra, justamente porque não se lhes reconhecem razões,
causas e contextos. Como nos recorda Eduardo Lourenço, Portugal é

3 
Essa invenção de um colonialismo ilibado do seu estatuto conjugou-se de múltiplos modos e em
diversos tempos, e tanto é devedora de leituras que acentuam a excepcionalidade da presença portu-
guesa em África, como se alimentam da dificuldade em interpretá-lo à luz do modelo que determina
o entendimento dominante da experiência colonial enquanto tal. Neste sentido, Boaventura de Sousa
Santos defende que a condição semiperiférica de Portugal marcou historicamente o colonialismo
luso, que navegaria assim entre Próspero e Caliban, entre a subalternidade (relativamente ao colo-
nialismo-norma britânico) e a superioridade (relativamente aos povos coloniais) (SANTOS, 2002).
MIGUEL CARDINA 85

o lugar “da mais espectacular boa consciência colonial que a História


regista”, baseado no esquecimento ativo de que “o seu império era fruto
da colonização, isto é, do encontro com outrem sob uma forma que não
exclui, nem excluiu, a violência” (LOURENÇO, 2014, p. 137).

III.

A memória da guerra não deixaria de se revelar problemática nos


anos seguintes. Em primeiro lugar, convém notar que os militares que
fizeram a guerra foram também aqueles que desencadearam a mudança
política em Portugal, o que curto-circuitou a evocação do período anterior.
Assim, poderíamos dizer que o protagonismo de militares no derrube do
Estado Novo tendeu a interferir no debate público sobre a guerra, no-
meadamente nas suas vertentes mais sangrentas. A guerra acabou por
ser vista mais como a antecâmara do advento da democracia e menos
como um episódio inserido no tempo longo da presença em África e das
violências coloniais que ela condensou.
Em segundo lugar, cabe notar que de certo modo Portugal perdeu
a guerra. A este respeito, tornou-se comum a discussão sobre o facto
de se ter tratado de uma derrota militar inflingida a Portugal ou uma
escolha política apostada em descolonizar quando a guerra não estava
militarmente perdida. Fazendo uma separação nítida entre a ordem po-
lítico e a ordem militar, esta última perspetiva acaba por resultar numa
valorização autónoma e quase heroica dos “feitos militares no Ultramar”.
Ao centrar-se eminentemente na dimensão militar, descreve-se “o modo
português de fazer a guerra”, como sendo, sobretudo, um processo de
gestão de recursos humanos e de aparatos bélicos e tecnológicos. Marcus
Power (2011) deteta a mesma perspetiva interpretativa nos cinquenta
suplementos e cinco filmes sobre a guerra colonial que, entre 1997 e 1998,
saíram com o Diário de Notícias, um jornal nacional de grande tiragem.
Para Power, esta produção opta por colocar a tónica na bravura dos
86 A G U E R R A CO LO N I A L E N T R E A M E M Ó R I A E O E S Q U EC I M E N TO

soldados, ao mesmo tempo que desconsidera fenómenos como o papel


da tropa negra e o lugar da violência no conflito colonial.
Em terceiro lugar, o facto de estarmos perante um momento histórico
que envolveu episódios de forte violência é também, em si mesmo, uma
das razões para que as memórias da guerra permaneçam circunscritas ao
domínio privado ou do núcleo de camaradas de armas que regularmente
se vai encontrando.Com efeito, este elemento tem sido aliás sublinhado
de diferentes formas por autores que se têm debruçado com testemu-
nhos de guerra. A articulação discursiva da violência aparece como um
domínio protegido que careceria de uma compreensão apenas acessível
a quem “passou por isso”. À dificuldade de encontrar referenciais discur-
sivos para proferi-la publicamente, soma-se a incapacidade em integrar a
violência da guerra – muitas vezes, parte de uma violência colonial mais
vasta – em quadros explicativos mais gerais. Esta espécie de rasura da
memória não é indissociável da ideia de que se tratou de uma guerra “de
baixa intensidade”, uma irrupção mais ou menos indecifrável na placidez
dos trópicos portugueses e que foi a causa – evitável e entendida como
quase equívoca – do doloroso retorno à metrópole de cerca de 500 mil
portugueses na segunda metade da década de 1970.
De acordo com Manuel Loff, num detalhado estudo sobre a memória
da ditadura e da revolução no Portugal democrático, as últimas décadas
assistiram à consolidação de leituras sobre a guerra e o colonialismo si-
multaneamente antagónicas e comunicantes. Por um lado, manteve-se no
essencial a perceção de que o 25 de Abril consistira numa rutura socialmente
benéfica para a larga maioria da população, o que colocava a ditadura e a
guerra como uma espécie de contraponto negativo que a Revolução dos
Cravos havia suplantado. Por outro lado, uma certa memória valorizadora
da “África perdida”, articulada com a ideia de uma descolonização ataba-
lhoada e profundamente lesiva, criou o pano de fundo para a proliferação
de imagens nostálgicas de timbre lusotropicalizante que tendem a omitir o
papel da violência colonial. Como refere a este respeito, “ao mesmo tempo
que se percebera que a guerra fora um instrumento inaceitável de bloqueio
MIGUEL CARDINA 87

do direito à autodeterminação dos africanos, uma parte provavelmente


maioritária da sociedade não achava, como parece ainda hoje ser o caso,
que a dominação colonial fora igualmente inaceitável” (LOFF, 2014, p. 56).
Em sentido semelhante, Carlos Maurício examinou sondagens de
opinião, publicadas entre 1973 e 2004, a partir das quais seria possível
cotejar a evolução da opinião pública relativamente à guerra, ao Império
e à descolonização. Faz notar que “após um período de relativa amnésia e
de recusa de debate público, o 20.º aniversário do 25 de Abril permitiu uma
alteração no modo como a opinião pública encarava a guerra colonial e a
descolonização”, com a expressão crescente de uma “visão revisionista do
colonialismo e muito crítica da descolonização” (MAURÍCIO, 2011, p. 291).
Estas perceções têm nas instâncias políticas, namídia, mas também na
escola espaços particularmente significativos de articulação. Analisando
as representações do processo colonial entre estudantes portugueses e
moçambicanos, Rosa Cabecinhas e João Feijó notaram divergências en-
tre os dois grupos. Se os estudantes portugueses tenderam a focar nos
“Descobrimentos” e na narrativa do “encontro cultural”, os estudantes
moçambicanos destacaram mais a conquista de independência e os efeitos
nefastos da colonização (CABECINHAS; FEIJÓ, 2013).

IV.

A guerra colonial transformou-se em Portugal num território com-


plexo de evocações, reflexões e exercícios de natureza artística, literária
e documental. Foi aliás o campo literário quem primeiro, no pós-25 de
Abril, produziu obras capazes de se transformar em locus privilegiado
de reflexão e catarse sobre a experiência colonial portuguesa e a forma
como se efetuou o seu desfecho – de que os exemplos mais conhecidos
são Os Cus de Judas (António Lobo Antunes, 1:ª edição: 1979) e A Costa
dos Murmúrios (Lídia Jorge, 1.ª edição: 1988) (Teixeira, 1998; Medeiros,
2000; Ribeiro, 2004; Vecchi, 2010). Este conjunto de romances e poemas
foram-se constituindo, a partir de finais da década de 1970 e durante as
88 A G U E R R A CO LO N I A L E N T R E A M E M Ó R I A E O E S Q U EC I M E N TO

décadas de 1980 e 1990, como mecanismos de problematização acerca de


um tema sobre o qual escasseavam os trabalhos de natureza historiográfica.
Mais recentemente, emergiram um conjunto de documentários e de
outros produtos culturais de alcance mediático – de que o mais significativo
foi a série televisiva A Guerra, realizada por Joaquim Furtado e exibida na
RTP 1, em quarenta e dois episódios, entre 2007 e 2012. Simultaneamente,
a literatura sobre o Império e sobre a guerra veio a sofrer um novo surto
editorial, frequentemente através de obras de cunho autobiográfico, que
ora assumem um distanciamento crítico face ao período colonial, ora
revelam traços explícitos de saudosismo pela“África perdida”.
Nos últimos anos, duas parecem ser as vias dominantes de consi-
deração do conflito. A primeira inscreve-a enquanto experiência vivida,
registada nos corpos e nas mentes de quem aí esteve e que rememora a
guerra, frequentemente a partir da tónica convivial, noutras realçando
a dimensão do estranhamento, noutras ainda os aspetos bélicos propria-
mente ditos. A segunda tende justamente a entender a guerra sobretudo
a partir da óptica militar e/ou diplomática, colocando em segundo plano
os contextos nos quais ela se desenrola,e a enquadrá-la na mais vasta
ordem colonial e suas plasticidades.

V.

Em Silencing the Past.Power and the Production of History, Michel-Rolph


Trouillot mostrou de que forma o silêncio é inerente à produção historiográ-
fica, manifestando-se no momento da criação das fontes, no processo de
constituição de arquivos e na construção posterior de narrativas e signifi-
cados históricos sobre os eventos (TROULLIOT, 1995, p. 26). Na verdade, o
silêncio não é um espaço em branco à espera de ser preenchido mas antes
um “espaço socialmente construído no qual, e sobre o qual, sujeitos e pala-
vras (…) não se expressam” (WINTER, 2010,p. 4). Neste sentido, o silêncio
pode resultar da incapacidade dos indivíduos inscreverem a sua narrativa no
MIGUEL CARDINA 89

espaço público (devido à proximidade temporal do evento, ao desconforto


social causado pela narrativa, ou à falta de mecanismos sociais e discursivos
para a tornar “audível”). Mas também, adicionalmente, ser a expressão de
uma ordem hegemónica que oblitera determinadas experiências vividas,
memórias partilhadas ou análises do passado.
Assim, no caso português,não se detecta pois um silêncio genérico
sobre a guerra, uma vez que a sua inscrição na memória pública foi e
modelando o seu conteúdo ao longo das últimas quatro décadas e ga-
nhando, mais recentemente, crescente espaço de enunciação. Do que se
trata, poderíamos dizer, é de um silenciamento da guerra como guerra e
do colonial como colonial, o que, por um lado, se sustenta em interpreta-
ções baseadas na persistência de um certo senso comum lusotropicalista
e que, por outro, demonstra a dificuldade em transformar essa guerra
que conduziu ao fim do Império em África em lugar de reflexão sobre o
passado imperial e sobre o presente pós-imperial.
Trata-se, com efeito, de um “esquecimento organizado”, configurador
de um tipo de património memorial sobre a guerra que nos diz tanto sobre
o que foi aquele conflito como nos convida a pensar a maneira como as
sociedades metropolitanas têm permanecido sensíveis, ou não, ao eco
difuso dos passados coloniais. Terminada enquanto fenómeno histórico, a
guerra não deixa de permanecer viva no Portugal contemporâneo, como
um legado profundo inscrito nas memórias, nas vidas e nos corpos de
quem a combateu ou diretamente vivenciou. As narrativas que priorizam
a violência – da guerra mas também do colonialismo – tendem porém a
surgir como “memórias fracas” (TRAVERSO, 2012, p. 71-87), atestando,
nessa ausência demasiado ruidosa, a permanência do colonial, já não
como relação política, mas como relação social (SANTOS, 2006, p. 29).
90 A G U E R R A CO LO N I A L E N T R E A M E M Ó R I A E O E S Q U EC I M E N TO

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ENTRE A MEMÓRIA E O PATRIMÔNIO:
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO E A PESQUISA

MARIA LE TICIA MA ZZUCCHI FERREIR A


FR ANCISC A FERREIR A MICHELON

Ao apresentar neste texto o Programa de Pós-Graduação em Memória Social


e Patrimônio Cultural (PPGMP) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), é
importante situá-lo dentro de, no mínimo, duas linhas cronológicas e causais.
Na perspectiva cronológica, o curso surge com o mestrado em Memória
Social e Patrimônio Cultural em 2006, caudatário de uma experiência coletiva
plasmada no curso de especialização em Memória, Identidade e Cultura
Material, que funcionou dos anos 2003 até 2005. Em 2013, inaugurou-se o
curso de doutorado, e encerrou-se o ano de 2015 com quase uma centena
de dissertações defendidas e uma tese de doutorado concluída.
Essa linha de tempo, embora sumária para efeitos do presente artigo,
apresenta correspondências, no plano nacional e internacional, bastante
significativas dentro do campo da memória e do patrimônio. No cenário
brasileiro, dando continuidade ao que prevê a Constituição de 1988 sobre
o reconhecimento e preservação dos bens culturais de natureza imaterial,
foi aprovado o Decreto n. 3.551 de 4 de agosto de 2000, no qual ficou
instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e a criação
do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), gerenciado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A meto-
dologia que permitiu instruir a identificação, documentação e análise do
94 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

bem cultural foi o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC),


etapa fundamental na busca pela salvaguarda do bem de natureza imaterial.
É fundamental observar que o INRC e toda a concepção de identificação
do bem cultural de natureza imaterial são fundados no conceito de referências
culturais, termo cunhado por Antonio Augusto Arantes e que aponta para
uma produção simbólica de valores e sentidos, conferidos ao bem cultural por
sujeitos coletivos (LONDRES, 2000). Reafirma-se, nessa concepção, a ideia
lançada por Alöis Riegl (1984), historiador de arte e inspetor de patrimônio
na cidade de Viena nos começos do século XX, sobre a atribuição de valores
aos monumentos, que se constituem histórica e temporalmente.
A compreensão de que os bens culturais não podem ser abordados sob
a ótica essencialista e de valores intrínsecos faz-se fundamental. Entender
o bem cultural dentro de uma cadeia de reconhecimento e outorga de
valores torna compreensível e operacional o conceito de ativação patri-
monial proposto por Llorenç Prats (1988), que envolve interesses, valores
e situações históricas que mobilizam um repertório patrimonial. Conforme
afirma Prats, ativação patrimonial é o processo de mobilização de valores
atribuídos como formadores de um conjunto de referências identitárias,
posto em ação por meio de agentes, tais como o Estado. Nesse processo,
elementos de invenção de um passado são acompanhados de outros que
articulam sua legitimação, tudo isso em vista do reconhecimento, por um
grupo ou sociedade, daquilo que constituir-se-á como o fato patrimonial.
Na perspectiva da ativação, os elementos culturais são interpretados
e inseridos em uma lógica da gestão patrimonial condizente com o grupo
ou a sociedade da qual fazem parte. Necessariamente interpretativa, essa
ativação manifesta-se discursivamente e pode estar na base de afirmação
de identidades e ideologias, daí sua relação muito íntima com o poder
político, independentemente do nível em que ocorra.
É nessa perspectiva que, retornando ao contexto no qual surge o
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural,
percebe-se que o começo dos anos 2000 foi marcado pela progressiva
incorporação do patrimônio cultural imaterial às agendas públicas e aos
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 95

processos de reivindicações memoriais. Nesse sentido, um dos eixos


fundamentais foi o texto da Convenção da UNESCO, de 2003, que esta-
beleceu os marcos regulatórios de uma política de identificação, registro
e chancela internacional sobre os bens culturais de natureza imaterial. A
Convenção, da qual o Brasil se tornou signatário em 2006, formalizou um
conceito de patrimônio cultural imaterial que incorpora

práticas, representações, expressões, conhecimentos e técni-


cas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares
culturais que lhes são associados – que as comunidades, os
grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como
parte integrante de seu patrimônio cultural (UNESCO, 2006).

Como suporte ao conceito de patrimônio cultural imaterial está o de


transmissão, remetendo-se à ideia de uma memória viva e sempre contem-
porânea aos sujeitos. Um segundo aspecto fundamental da Convenção foi o
de prescrever a necessidade de modelos nacionais de inventários para identi-
ficação e registro do patrimônio imaterial, conferindo um papel proeminente
às comunidades no processo de identificação e registro de seus patrimônios.
O Brasil esteve na vanguarda de políticas de patrimônio imaterial,
uma vez que, tal como abordado anteriormente, antecipou a metodologia
de inventário e instituiu o conceito estruturante de referências culturais
três anos antes da Convenção da UNESCO. Cabe destacar que em 2002
tivemos o ofício de paneleiras de Goiabeiras registrado como patrimô-
nio nacional (IPHAN, 2002); entre 2004 e 2006, cinco bens de natureza
imaterial receberam o Registro por parte do IPHAN; e entre 2006 a 2015,
contabilizou-se trinta bens. Também em 2015, conforme dados do IPHAN,
eram 23 bens culturais em processo de registro e 21 inventários nacionais
em curso com o uso da metodologia do INRC.
O PPGMP, ao iniciar sua trajetória em 2006, foi, de certa forma, resul-
tado desse movimento de expansão e ampliação do conceito de patrimônio,
ultrapassando os limites de origem que o associavam ao Estado Nacional
96 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

e abrindo-se em direção a novos atores sociais, novos objetos patrimonia-


lizantes. Igualmente, trouxe novos sentidos identitários, caracterizando o
que Jean-Louis Tornatore (2007) classifica como proliferação, associando o
patrimônio a práticas mais localizadas e reivindicações por reconhecimento.
Em 2009, ainda na perspectiva de uma linha de tempo, foi fundado o
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), órgão importante para o fomento
de políticas museológicas, tal como o Sistema Nacional de Museus. A cria-
ção do IBRAM e a disseminação de uma política de fomento ao surgimento
de museus, cada vez mais associados a processos identitários, tais como
os museus comunitários ou de comunidades, vêm fornecendo matéria de
reflexão sobre o papel do Estado nos processos de reivindicação memorial.
No entanto, não apenas o campo museológico foi impulsionado por essas
novas compreensões de museu e patrimônio, mas também o campo da
memória vem sendo reconfigurado. Em particular no que se refere à
memória política, a instalação, em 2011, de uma Comissão Nacional da
Verdade foi um ponto de inflexão nas questões referentes à recuperação
de memórias dolorosas no Brasil.
Concebida como uma instância de apuração das violações de Direitos
Humanos no país, ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro
de 1988, a Comissão Nacional da Verdade, embora tardia se comparada a
países como a Argentina, veio reavivar a necessidade de recuperar a me-
mória de processos políticos que estiveram por longos anos numa espécie
de esquecido social, no sentido conferido por Pollack (1989). Trazer ao
cenário contemporâneo relatos e documentos que se relacionam com pro-
cessos de violência lançou no debate público a reflexão sobre as omissões
e interdições, supostamente assumidas num pacto de esquecimento. Ao
mesmo tempo, possibilitou que o conceito de patrimônio fosse aplicado
a espaços e objetos que se relacionam, pela origem, aos processos de
violação de Direitos Humanos e instituição do estado de terror.
Essas novas formas memoriais e patrimoniais são resultados do
engajamento dos atores sociais em suas buscas pelo reconhecimento
e a disposição do poder público em articular estratégias para fortalecer
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 97

determinados discursos memoriais. A essas disposições, Patrick Garcia


(2005) define como políticas de memória que, conforme Serge Barcellini
(1986), são definidas por quatro características fundamentais:

• O sentido patrimonial, ou seja, a valorização de lugares nos quais


a memória possa ser “encarnada”, lugares que foram palco de
acontecimentos coletivos de forte dramaticidade. Exemplo
disso são os recentes processos de patrimonialização de prédios
que foram sede de locais de interrogatório e tortura durante
o regime militar iniciado em 1964. O tombamento do prédio
do Destacamento de Operações de Informações do Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo, em
janeiro de 2014, marcou um ponto de virada na história da pre-
servação do patrimônio histórico brasileiro. Pela primeira vez, um
prédio era tombado não por seu valor estético ou arquitetônico,
mas pela memória dos eventos traumáticos que nele ocorreram.

• O sentido comemorativo, isto é, ritualizações da memória que


evidenciam as disposições públicas sobre o que recordar, ma-
terializando-se sob a forma de comemorações cívicas, monu-
mentos inscritos no espaço social, efemérides, dentre outros. O
sentido comemorativo pode estar igualmente na denominação
de logradouros e espaços públicos, um dos grandes marcadores
da memória social.

• O sentido científico, que constitui um dos elementos funda-


mentais das políticas de memória. Nesse caso, a instrumen-
talização do poder público através de pesquisas é o aspecto
mais importante. Aqui temos como fundamental as pesquisas
arqueológicas, históricas, antropológicas e interdisciplinares.

• O sentido pedagógico, cujas ações voltam-se para efetivar o


processo de transmissão que tem como alvo as gerações pos-
teriores aos eventos, para as quais a memória está desvinculada
da experiência. Nesse sentido, museus, memoriais e centros de
memória desempenham um papel fundamental como media-
dores entre o real e o sujeito observador. O papel pedagógico
98 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

dessas instituições é o que torna possível a conversão de ele-


mentos do passado em uma memória social, daí a importância
que assumem como veículos de identidade ou mesmo como
espaços de conflitos em torno da memória. Ao mesmo tempo,
essas instituições podem se tornar espaços de reivindicação
memorial, o que pode ser percebido quando o eixo sobre o qual
se articulam remete-se a questões de identidades fragmentadas,
esquecimento, memórias marcadas pela violência e violações
de direitos humanos. Os museus de memória são exemplos
dessas novas perspectivas e papel social que são outorgados à
instituição museal. Destinam-se a (re)construir discursivamente
a vivência do trauma coletivo, buscando instaurar um processo
de empatia e compartilhamento com o visitante, o que possibilita
transcender a experiência pessoal da vítima.

Extremo Sul: um cenário local

O Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural


surgiu em um cenário local que apresentava ações de relevância no que se
refere ao tema patrimonial e, por proximidade, à memória. É importante
ressaltar que a cidade de Pelotas e sua região circunvizinha constituem um
circuito geográfico fortemente marcado por uma história militar e política
de relevância no Sul do Brasil. Palco de inúmeros episódios políticos e eco-
nômicos emblemáticos do século XIX, como a Revolução Farroupilha e o
ciclo econômico do charque, essa região foi afetada nas primeiras décadas
do século XX por um progressivo processo de recessão econômica, o que
ficou refletido no modelo urbano local que, ao contrário de acompanhar o
ritmo de modernização de outras regiões brasileiras, manteve elementos
da paisagem edificada remanescente do século XIX e inícios do século XX.
A cidade de Pelotas é detentora de um dos maiores conjuntos ecléticos do
Brasil, estilo construtivo que foi introduzido na arquitetura local entre os
anos 1870 e 1931 e que acompanhou a incorporação de inúmeros itens de
modernização urbana. A economia local, baseada na indústria saladeiril,
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 99

permitiu a acumulação de excedentes econômicos que possibilitaram


a importação por parte de países europeus de materiais construtivos,
adornos e mão de obra especializada (SANTOS, 2007).
Na trajetória do patrimônio em Pelotas, é fundamental destacar o
papel de Henrique Carlos de Morais, autodeclarado historiador e nomeado
em 1940 pelo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(DPHAN) ao cargo de Conservador do Patrimônio. Foi pela ação de Morais
que Pelotas contou, em 1955, com o primeiro monumento tombado, o
Obelisco Republicano edificado em homenagem a Domingos José de
Almeida, o que abriu caminho para outros processos de proteção patri-
monial, ainda muito circunscritos a monumentos que testemunhavam
episódios ou personagens do quadro histórico local (REZENDE, 2010).
Na década de 1970, a cidade, como muitos centros urbanos brasileiros,
encontrava-se imersa em um processo de modernização e alterações no
plano urbano, resultando em degradação dos antigos imóveis. O discurso
patrimonial que deriva desse processo destrutivo foi elaborado a partir de
agentes públicos e profissionais do campo da Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Esse discurso, fortemente combativo aos ditames
de um mercado imobiliário em ascensão, materializou-se no documento
“Carta de Pelotas” do ano 1978, que dentre várias medidas propostas
apontava para a criação de um sistema de proteção formado por “um
órgão (ou vários órgãos) de defesa, difusão e criação de instrumentos de
proteção, somado a leis que incentivassem a preservação com benefícios
fiscais, mais mecanismos de zeladoria (fiscalização) por parte do poder
público e da comunidade” (DIAS, 2009), propondo ainda e realização de
um Inventário dos bens edificados seguidos de um cadastro local.
A “Carta de Pelotas” foi propulsora da criação de normas municipais para
a preservação do patrimônio edificado, culminando com a instituição do II
Plano Diretor do Município, pela Lei n. 2.565/801 e no qual, em seu artigo

1 
O I Plano Diretor do Município de Pelotas data de 1963.
100 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

4º, consta a determinação pela proteção do patrimônio histórico cultural da


cidade. Esses dispositivos patrimoniais foram sendo afinados conforme as
novas demandas protetivas, sendo a Lei n. 4.568, de 7 de julho de 2000, uma
das mais importantes, pois definiu quatro áreas de preservação denominadas
Zonas de Preservação do Patrimônio Cultural de Pelotas. A lei determinava
a preservação da fachada e volumetria, entre outros itens, aplicada aos imó-
veis constantes do Inventário do Patrimônio Histórico e Cultural de Pelotas.
Como medida suplementar, mas de grande impacto no âmbito local, foi a
promulgação da Lei n. 5.146/05, que definiu critérios para redução do Imposto
Predial e Territorial Urbano (IPTU), estabelecendo a isenção integral dessa
taxa para os imóveis tombados, inventariados ou definidos como patrimônio
cultural do município, se devidamente conservados ou restaurados.
Ainda no contexto local, é importante ressaltar a inclusão de Pelotas
no Programa Monumenta/MinC, que a partir do ano 2002 foi utilizado para
implementação do Projeto de Recuperação do Centro Histórico de Pelotas.
Como parte das obras realizadas dentro do Programa Monumenta estão a
recuperação de prédios emblemáticos da cidade, tais como o Grande Hotel,
Mercado Público, os casarões 8 e 6, dentre outros. Igualmente importante
foi o desenvolvimento do Projeto de Salvamento Arqueológico na Zona
Urbana de Pelotas, sob responsabilidade da equipe de pesquisadores da
Universidade Federal de Pelotas.
No conjunto de ações patrimoniais desenvolvidas em Pelotas, destaca-se
o papel desenvolvido pela Universidade Federal de Pelotas, seja através do
trabalho de docentes e discentes de áreas como Arquitetura e Urbanismo,
História, Arqueologia e outras associadas ao campo patrimonial, seja através
de atividades acadêmicas formadoras de recursos humanos para a área: criação
do curso de especialização em Patrimônio Cultural e Conservação de Artefatos,
em 1995; criação do curso de especialização em Memória, Identidade e Cultural
Material em 2003; criação do bacharelado em Museologia, em 2006 e do
bacharelado em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, em
2008, todos com a participação ativa de docentes, que igualmente fundaram
o Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural.
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 101

É importante destacar que Pelotas realizou o Inventário de Referência


Cultural-Produção de Doces Tradicionais de Pelotenses, tendo como agentes
patrocinadores o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), IPHAN
e Monumenta, do qual participaram pesquisadores associados ao Programa
de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. Essa participa-
ção de docentes em projetos envolvendo ações de salvaguarda patrimonial
foi sempre uma constante, o que reverte em novos campos de pesquisa e
reflexão, além de ampliar o universo de ocupação dos egressos do Programa.

Uma proposta interdisciplinar

Ao articularmos memória social e patrimônio cultural como a base teórico-


-metodológica de nosso Programa, tínhamos consciência de que ambos os
conceitos são polissêmicos e contextuais, não sendo apreensíveis apenas
por uma ou outra área do conhecimento. Essa constatação fez com que
buscássemos justamente o campo interdisciplinar como o espaço de con-
vergência entre diferentes áreas na construção de um conhecimento novo,
resultado dessas múltiplas abordagens.
O Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural, inscrito no Comitê Interdisciplinar da CAPES, articula-se em
torno de quatro Linhas de Pesquisa:

• Memória e identidade – que comporta pesquisas embasadas nas


diferentes concepções de memória, do individual ao coletivo,
abordando as interfaces entre memória e cultura expressas nos
diferentes suportes (materiais, visuais, sonoros) e espaços (museus,
memoriais, arquivos, centros de documentação). Fazem parte
dessa linha estudos envolvendo a relação entre reivindicações
memoriais e busca pelo reconhecimento, processos contempo-
râneos de conflitos de memória, vitimização e excesso memoriais,
dever de memória e papel do Estado, memórias institucionais,
memória política, obliterações e esquecimentos, tradição e usos
do passado, transmissão de saberes tradicionais, patrimônio ima-
terial, patrimônio industrial rural e urbano e memórias do trabalho.
102 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

• Instituições de memória e gestão de acervos – com trabalhos


cujas finalidades estejam relacionadas à discussão sobre o
papel das instituições de memória no campo do patrimônio,
localização, inventário, estudo, planejamento e execução de
projetos de conservação de acervos, em seus diversos suportes,
considerados como patrimoniais, bem como estudos sobre
a proteção legal e constitucional do patrimônio cultural sob
os matizes do material e imaterial. Aspectos relacionados ao
estudo e à aplicabilidade dos procedimentos de conservação
e guarda de acervos em ambientes de museus e instituições
culturais também serão contemplados nessa linha de pesquisa,
assim como a metodologia de viabilização institucional desses
projetos (financiamento, relações institucionais no setor público,
privado, não governamental e agentes comunitários).

• Patrimônio e cidade – pesquisas com ênfase na cidade como es-


paço construtor de memória e identidade, associando questões
de urbanização, territórios sociais e produção simbólica do es-
paço através de processos de patrimonialização e reivindicações
identitárias. Compreende-se a cidade compondo uma paisagem
cultural para a qual concorrem representações da memória em
suas diferentes percepções pelo sujeito evocador. Temas como
preservação do patrimônio edificado, aparelhos urbanos e locais
patrimonializados, conservação e preservação do patrimônio
arquitetônico, planejamento ambiental, atividades econômicas
em espaços patrimonializados, comércio e centros históricos
e ecologia de paisagem fazem parte dessa linha.

• Políticas de memória e patrimônio no MERCOSUL – nessa linha


se destaca o histórico das políticas públicas do patrimônio
tanto no Brasil quanto na região do Mercosul, problematizando
contextos e situações que estabeleçam relações com a con-
temporaneidade. Pesquisas centradas nas novas concepções
patrimoniais, seu tratamento no âmbito das políticas públicas
que vinculam memória e patrimônio no Mercosul, assim como
questões e reflexões amplas sobre a legislação brasileira e
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hispano-americana voltada para a preservação de bens cul-


turais. Inclui pesquisas sobre políticas de memória e acervos
no Mercosul, gestão e agências da cultura e o patrimônio no
Mercosul, colocando ênfase na rede de significados e práticas
sociais do patrimônio. O patrimônio como expressão política da
memória e como suporte de memória oficial tem no Cone Sul
uma dinâmica própria vinculada aos processos de reivindicação
da memória do passado recente, especialmente o relacionado
com as Ditaduras, busca pela verdade e pelos Direitos Humanos.

As pesquisas voltadas ao MERCOSUL e fronteiras buscam construir


conexões e interações necessárias para uma universidade que se localiza
a menos de 100 km da fronteira com o Uruguai. Geográfica e historica-
mente, toda a região, desde o estuário do Rio da Prata, ao sul, até o Rio
Uruguai, no norte, e desde o Oceano Atlântico, no leste, até o Rio Paraná,
no oeste, é o espaço produzido por uma sociedade que se formou nas
disputas de processos definidores de fronteiras, no embate político e
militar pela posse do território. As cidades que aparecem nessa região
guardam essa dinâmica na sua fundação e apresentam-se como lugares
marcados pela fricção cultural própria de zonas de fronteira. A memória
e o patrimônio, vistos como vetores que atravessam essas realidades
locais e regionais, se apresentam como um campo no qual os usos do
passado possibilitam a estabilização de processos identitários, a dinami-
zação de economias, a busca pelo reconhecimento e justiça. Assim, ao
propormos uma linha de pesquisa com ênfase no espaço de fronteira e no
comparativo de realidades nacionais vizinhas, objetivamos compartilhar
as perspectivas teóricas em curso, as estratégias e ações patrimoniais
dos países fronteiriços e a reflexão sobre problemas e realidades que nos
aproximam como membros do chamado Cone Sul. O MERCOSUL vem se
mostrando cada vez mais como um espaço de trocas culturais, o que fica
bem demonstrado por várias ações de caráter binacional que estão sendo
implementadas, buscando construir sinergias entre realidades nacionais
que são, ao mesmo tempo, próximas e diferentes.
104 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

A posição dos egressos do mestrado e doutorado em Memória Social


e Patrimônio Cultural confirma o papel social importante que o Programa
cumpre na agenda de políticas de patrimônio e memória no plano nacio-
nal e internacional. Assim, considerando o número de 99 mestres e um
doutor diplomados entre os anos 2008-2015, apresentamos o Gráfico
de ocupação relacionado à área de memória e patrimônio, quer seja na
gestão e na docência, quer seja nas atividades profissionais correlatas,
como museólogos, conservadores restauradores, arquitetos de restauros:

Gráfico 1. Posição dos egressos do mestrado e doutorado do PPGMP/


UFPel, 2008-2015.
Fonte: As autoras (2016).

Os novos usos do passado: discussões sobre a memória e o


patrimônio

A memória assume cada vez mais o sentido de coesão social na perspectiva


das sociedades contemporâneas, ancorada menos nos grandes discursos
fundadores da narrativa nacional e mais no sentido de afirmação de sin-
gularidades sociais. Ocupando o vazio deixado pelos meios de memória
tradicionais, multiplicam-se os “lugares de memória”, no sentido proposto
por Pierre Nora (1984), assumindo um lugar de proeminência no cenário
contemporâneo, caracterizando aquilo que o antropólogo francês Joel
Candau (2011) denomina como mnemotropismo, um constante movimento
em direção ao passado e uma nova relação com o tempo. Essa irrupção da
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 105

memória se manifesta através das comemorações, da patrimonialização,


do controle da “perda durável” no sentido engendrado por Gaetano Ciarcia
(2006), do dever de memória gerando dispositivos sob forma de legislação,
arquivos, Comissões de verdade e outras formas de gestão do passado.
A noção de memória remete-se tanto aos mecanismos de acumulação,
conservação, atualização e reconhecimento de uma lembrança quanto
aos processos de compartilhamento de representações sociais. Vinculada
ao universo de interações e significações de um sujeito em seu mundo, a
memória é essa reinterpretação constante do passado, sua reconfiguração
e formas de ação no presente, tal como abordou Maurice Halbwachs (1925)
ao definir essas vinculações da memória individual com o seu contexto social.
A herança intelectual deixada por Halbwachs nos possibilitou pensar a
memória para além de seus contornos individuais e psicológicos. Inaugurando
a Sociologia da Memória, Halbwachs apontou para a proeminência das
chamadas “molduras sociais” que formatam a memória individual. Nessa
perspectiva, não apenas a matéria da memória está situada em uma
experiência que por natureza é social, como decorre de necessidades do
presente, sugerindo assim uma reconstrução do passado e respondendo
ao lugar do sujeito no momento da evocação.
A associação da memória aos grupos que compartilham referências
comuns foi uma das premissas de Halbwachs para o conceito de memória
coletiva, mas seu desaparecimento prematuro em razão da deportação
para o campo de concentração nazista de Buchenwald, ainda que tenha
deixado uma obra póstuma de referência – A memória coletiva (1950,
1990) –, não possibilitou que esse conceito fosse melhor analisado por ele.
Ao identificar o tempo presente das sociedades contemporâneas como
mnemotrópico, Joel Candau (2011) retoma alguns princípios fundamentais
do pensamento de Halbwachs e avança em direção à formulação de ins-
trumentos conceituais que permitam problematizar e ampliar o conceito
de memória coletiva. Na perspectiva de uma Antropologia da memória,
Joel Candau adverte para o risco das essencializações comuns quando se
associa memória com identidade de grupos que se multiplicam em suas
106 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

reivindicações pelo reconhecimento, sem fazer uma análise crítica sobre


a própria temporalidade da memória (os usos do passado, a relação com
o presente), o que pode gerar esquemas compreensivos reducionistas e
potencialmente conflitivos.
A discussão proposta por Joel Candau associa a ideia de memória coletiva
com a de “retóricas holistas”, esquemas interpretativos que buscam generali-
zações. A questão levantada por Candau é de que a memória, como faculdade
individual, só pode ser aplicada ao coletivo como metáfora, levando-nos a
questionar se o que existe é realmente um compartilhamento de lembran-
ças ou a crença nesse compartilhamento? Como resposta possível, Candau
(2009) propõe o conceito de metamemória, ou seja, a representação que o
sujeito faz de sua própria memória, a crença no compartilhamento memorial
com base na necessidade de se engajar em comportamentos colaborativos
que afirmam a identidade e coesão social do grupo. A possibilidade de uma
intersubjetividade memorial seria, na perspectiva do autor, possível de ser
compreendida através da ação do que denomina de sociotransmissores,
analogia feita aos neurotransmissores, que no plano da memória biológica
são elementos que atuam favorecendo ou inibindo as conexões sinápticas.
Na perspectiva metamemorial, os sociotransmissores seriam dispositivos
que atuam favorecendo a crença no compartilhamento memorial, assumindo
diferentes e diversas formas como as narrativas, os museus, a transmissão
cultural e tantas outras quantos forem os grupos envolvidos.
A noção de metamemória vem sendo utilizada para explicar os fenômenos
de irrupções memoriais que vemos ocorrer nos tempos atuais, sobretudo
quando a ela vêm associados processos de patrimonialização. Observe-se
que Joel Candau (2011) define patrimônio como a dimensão política da me-
mória, estabelecendo, portanto, status diferente a ambos. Mesmo que não
insista na dicotomia entre memória e patrimônio, Candau atribui à memória
a capacidade de acionar sentimentos de pertencimento e continuidade
através da transmissão de representações, saberes, mitos etc. Essa memória,
integradora e fluida, tenderia a acompanhar os grupos nos quais se origina
e responde ao seu movimento de fluxo e refluxo.
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 107

Conforme afirma Davallon (2015), se por um lado a memória coletiva se


apoia sobre a memória individual de fatos, práticas e saberes, por oposição
podemos analisar o patrimônio ao concebê-lo como o reconhecimento
atribuído pelos sujeitos a objetos, no sentido mais amplo do termo, aos quais
não apresentam uma vinculação de origem, mas que consideram importante
proteger para que sejam transmitidos. A patrimonialização seria o processo
pelo qual esse novo vínculo e sentido é atribuído ao objeto, tornando-o apto a
representar o passado. A operação simbólica pela qual objetos (aqui entende-se
do material ao imaterial) são retirados de sua condição primária de origem
e lançados ao status de bem cultural fundamenta-se na possibilidade de que
estes sejam portadores de memória, reconhecidos pelos sujeitos sociais, iden-
tificados por sua capacidade de transmissão dentro do tempo (LAMY, 2012).
Com base nessa premissa que Daniel Fabre (2015) utiliza a noção operatória de
dispositivo para descrever a operação de patrimonialização como uma forma
de perenizar a cultura, dentre outras formas engendradas pelos grupos sociais.
Tomando-se como referência a noção de dispositivo patrimonial, tor-
na-se difícil definir como são atribuídos os valores ao bem cultural, uma
vez que, orientando-se por outros critérios como o afetivo, identitário,
emocional, transcendem os valores tradicionais como o de autenticidade,
excepcionalidade e raridade que presidiam as escolhas e definições do
patrimônio material.
O reconhecimento do valor patrimonial dá-se, portanto, no conjunto
das interações sociais, ainda que seja o poder público que defina e tutele
o bem cultural. Nesse sentido, considerando que sobre o bem cultural
atravessam os valores simbólicos, político e econômico, cabe ao Estado
adotar o quadro retórico do Direito no que se refere ao reconhecimento e
proteção do patrimônio em base ao pressuposto de que ele esteja ancorado
em princípios éticos associados aos “direitos do homem” (FABRE, 2015). A
defesa pelo patrimônio se coloca, na contemporaneidade, como a defesa
pelo direito ao passado, ao reconhecimento e à memória, avançando
para o interior de sociedades marcadas pela multiplicidade de sujeitos e
108 M A R I A L E T I C I A M A Z Z U CC H I F E R R E I R A | F R A N C I S C A F E R R E I R A M I C H E LO N

demandas sociais, o que supera, definitivamente, o papel do patrimônio


como justificador do Estado-Nação.
Essa ordem na qual o patrimônio se coloca como centro de inúmeras
outras racionalidades e lógicas fundamenta-se naquilo que Jean-Louis
Tornatore denominou como “regimes de engajamento da ação coletiva
patrimonial”, fundados em uma nova relação com o tempo, na qual o pas-
sado, imaginado ou não, se transforma em fonte para laços sociais, projetos
coletivos e construção de novas significações ao presente (TORNATORE,
2007). Essa nova ordem, pautada pelas políticas e pelos discursos patrimo-
niais, é traduzida por Valdimar Hafstein (2007) como a base de um “regime
da verdade”, ou seja, é capaz de criar passados, memórias e converter
práticas culturais em fontes a serem administradas pela comunidade, se
afirmando como ideologias da memória e nexos entre os sujeitos entre si.
Refletir sobre essa nova relação com o tempo e os usos do passado
nas dinâmicas sociais contemporâneas é uma tarefa fundamental para a
qual é necessário compreender a complexidade que se reveste a questão
da memória e do patrimônio nas sociedades atuais. Os significados que
podem assumir a palavra “patrimônio”, não mais unicamente ditados pelas
questões de afirmação de um projeto de nação, são de diferentes ordens
e remetem a categorias como empoderamento, participação, afirmações
identitárias, economia patrimonial, comunidade, território, dentre tantas
outras formas de dizer o patrimônio e a memória. Não podemos, entre-
tanto, discutir essas novas apropriações e usos da memória e patrimônio
sem abordar os novos problemas que envolvem essas duas categorias e
para os quais é necessário que sejamos instrumentalizados. É fundamental
nos reportarmos aqui, dentre tantas questões atuais, aos “conflitos em
torno da memória” (CANDAU, 2004; BOURSIER, 2004; BLANCHARD;
VEYRAT-MASSON, 2008), os excessos ou escassez de memória (RICOEUR,
2000; ROBIN, 2003), emoção e percepção do patrimônio (FABRE, 2013),
a patrimonialização “como princípio organizador” (HEINICH, 2009;
JEUDY, 2008); governança global, UNESCO e patrimônio internacional
(BORTOLOTTO, 2011; ISNART, 2015); tradição e retradicionalização
EN T R E A M EM Ó R I A E O PAT R I M Ô N I O : R EF L E XÕ E S S O B R E O EN S I N O E A PE S Q U I S A 109

(LENCLUD, 1987; BOCOUM, TOULIER, 2013); a espetacularização do


patrimônio (ANDRIEU, 2007).
Abordar essas questões é, portanto, fazer frente às novas exigências
impostas por um tempo mnemotrópico e no qual o expertise é chamado
a pensar, intervir e, por vezes, gerir a guarda de memórias e as ações de
patrimonialização. Nesse sentido é que o Programa de Pós-Graduação em
Memória Social e Patrimônio Cultural busca orientar suas reflexões e pes-
quisas, em consonância com as linhas de pesquisa nas quais está embasado.

REFERÊNCIAS
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anthropologues, 2007. Disponível em: http://jda.revues.org/2977. Acesso
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TOPOGRAFIAS DA MEMÓRIA:
RE-SIGNIFICAÇÕES DO PASSADO NA FRONTEIRA
ENTRE O NORTE DE PORTUGAL E A GALIZA1, 2

PAUL A GODINHO

Para Francisco Pérez, o Xico de Mandín, que me ensinou o que é ser regionauta
We need a common culture, not for the sake of an abstraction, but because we
shall not survive without it (Raymond Williams, 1958, p. 317).

Usos da memória e cultura de orla

No segundo sábado de Agosto de 2015, como nos últimos 15 anos, realizou-


-se a Festa das Adegas, na aldeia galega raiana de Mandín. Foi inventada em
2000, por Francisco Pérez, que prefere ser tratado por “Xico de Mandín”,

1 
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
2 
O trabalho de campo e a reflexão presentes neste texto resultam da conjugação da pesquisa
no âmbito de dois projectos ibéricos: (1) “Cooperación transfronteriza y (des)fronterización:
actores y discursos geopolíticos transnacionales en la frontera hispano-portuguesa”, coordenado
por Heriberto Cairo Carou, no âmbito da Universidade Complutense de Madrid, com outros
colegas de várias universidades espanholas e portuguesas (2013-2016), inserido no Plan Nacional
de I+D+I del Ministerio de Educación y Ciencia de España; (2) projecto I+D+i “Los festivales y
celebraciones musicales como factores de desarrollo socioeconómico y cultural en la Península
Ibérica”, ref.: HAR2013-46160-P, coordenado por Susana Moreno Fernández, da Universidad
de Valladolid, que também inclui outros colegas de universidades portuguesas e espanholas
(2015-2017) (2014-2016), sendo financiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad de
España. Deve-se ao Instituto de História Contemporânea, através de fundos atribuídos pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, o pagamento da viagem para que a comunicação de que
resultou este texto pudesse ser apresentada em Porto Alegre, no colóquio organizado pelo Prof.
Charles Monteiro, no âmbito da PUC de Rio Grande do Sul, em Outubro de 2015, em Porto Alegre.
114 PAU L A G O D I N H O

do que por “Paco” – o diminutivo espanhol do seu nome. É um regionauta,


cuja vida e genealogia explicam a facilidade de circulação pela fronteira: filho
de emigrantes na Alemanha, seria criado por um avô, que vendia peixe nas
aldeias da raia, circulando sem entraves e reconhecendo gente de ambos os
lados. Na festa, de adega em adega, os que aí se deslocam vão bebendo vinho,
comendo petiscos, cantando, dançando e divertindo-se. Alguns regressam
de longe para uma cerimónia que convive com a da santa padroeira local. A
festa não se reivindica de uma «tradição» longa, não apela a um formato as-
sente numa prática continuada, mas pretende unir os que no passado tinham
a agricultura e o contrabando a juntá-los. Sem evocar “a tradição”, a festa
reporta à necessidade de diversão e de junção daqueles que, durante o ano,
estão separados pela vida atual e pelos processos migratórios. A fronteira é
o cerne da “Festa das Adegas e da Amizade Raiana”.
Neste texto, procuro interrogar os processos de emblematização da
fronteira entre o norte de Portugal e a Galiza, num tempo em que este
limite entre países deixou de existir. Numa paráfrase de Claude Lévi-Strauss,
pretendo debater os sentidos duma fronteira que é “boa para pensar” e
“boa para viver”. No caso estudado, há uma complexificação suplementar, já
que se trata do limite entre dois Estados – o português e o espanhol –, com
uma nação sub-estatal, a Galiza. Conquanto a fronteira tenha longamente
primado pela carência de reflexão antropológica, ainda que a ciência se
tenha dedicado a estabelecer fronteiras e delimitações entre povos e gru-
pos étnicos, Fredrik Barth (1969) interrogou a importância da construção
cultural e do contacto entre diferentes grupos. Através do seu trabalho,
compreende-se que as distinções étnicas não dependem da ausência de
interação e de aceitação social, mas constituem o seu fundamento. No limite
entre dois Estados, aqui abordado, a interação não dissolve as diferenças,
sendo estas incorporadas e capitalizadas para viver melhor. Também Eric
Wolf e John Cole, em The Hidden Frontier – uma etnografia de duas aldeias
fronteiriças do Tirol, entre Itália e Alemanha –, salientama necessidade de
entender os processos locais a partir igualmente das influências exteriores
(WOLF; COLE, 1974). Numa obra seminal do estudo das fronteiras europeias,
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 115

Peter Sahlins (1989) debateu a apropriação por parte dos indivíduos das suas
fronteiras e das suas identidades, para as usarem contra ou em colaboração
com os centros políticos longínquos, numa zona em que a fronteira entre
dois Estados-nação se confronta com uma nação sub-estatal, a Catalunha.
A sua abordagem histórica nega a passividade dos camponeses fronteiriços
e sustenta que os Estados não impuseram só os seus valores e as suas fron-
teiras à sociedade local: esta última deu igualmente um impulso à criação
da nação como um Estado territorial. Os protagonistas dos processos de
fronteirização e de desfronterização não foram só os homens de Estado,
os ministros ou os diplomatas, mas igualmente os camponeses, os autar-
cas, os contrabandistas e os desertores. Todos participam na formação
das identidades nacionais; se as comunidades locais se opõem ao Estado,
também o utilizam em seu proveito, exprimindo o seu sentimento nacio-
nal de forma mais local. Ainda que reticentes à entrada na vida da nação,
usam-na todavia na sua vida, quando se apoiam nela para defenderem os
interesses das suas comunidades. O meu argumento assenta numa idêntica
prática quanto aos processos de desfronterização, numa fase em que por
cima, a União Europeia os favorece, e por baixo, os raianos os corroboram.
A fronteira pode não significar necessariamente uma outra realidade,
assumindo performances, aparências, atividades, estruturas sociais e sim-
bólicas, com uma linha elástica de união ou de separação entre “nós” e “eles”.
Subjetivada, a linha tem o sentido que lhe é dado pelos habitantes fronteiriços,
dependendo do contexto e das conjunturas, do género, da idade ou do gru-
po social. Se concebermos os comportamentos como escolhas em função
de constrangimentos, a questão central não está na aplicação das normas
definidas em abstrato, mas na margem de manobra dos sujeitos no seio de
um espaço social de contornos incertos. Assim, se em momentos históricos
particulares esta fronteira constituiu uma zona de refúgio (SCOTT, 2009),
noutros a capitalização dessa cultura de orla pode ser feita através de formatos
de emblematização,de patrimonialização e de turistificação, que resgatam
o amor-próprio de quem vive numa orla, projetando para fora uma imagem
depurada, com efeitos práticos (GODINHO, 2008).
116 PAU L A G O D I N H O

Devido à desvitalização atual dos locais e das relações, osformatos


comemorativos que se reportam ao passado resgatamalguns momentos
para reencontrar o que se encontra puído. Embora em dimensões diversas,
o passado é um país estrangeiro (LOWENTHAL, 1985), tecido a partir do
presente e evocado nos processos de fronteirização e desfronteirização,
realizados de cima para baixo e de baixo para cima. Abordar uma fronteira
que constituiu uma cultura de orla, requer também o recurso a escalas
variadas, entre o que é pequeno e próximo, observado com pormenor, e
o que é distante e recoloca num sistema, enquadrando em realidades que
frequentemente escapam a nível localizado. Os agentes sociais corroboram
estes processos de fronteirização e desfronteirização, que convocam a
memória em níveis diferenciados: local, regional, nacional.
Este texto resulta de um trabalho de campo longo, que se iniciou em
1987 e se prolonga até à atualidade. Integrou uma estadia inicial de cerca
de dois anos em aldeias da raia/raya – o endónimo da zona de fronteira
–, bem como revisitações sucessivas até à atualidade. Procedeu-se igual-
mente à consulta de arquivos locais, distritais e nacionais, de um e outro
lado, que permitiram conferir profundidade histórica à abordagem de
uma região, hoje exangue devido aos intensos movimentos migratórios.
A realidade da fronteira, na sua complexidade, requer o recurso a mé-
todos compósitos, que neguem a monomania disciplinar: o trabalho de
campo, a observação direta e participante, os ciclos longos, o trabalho
longitudinal. A análise das redes sociais permite a perceção da importância
das unidades de análise abertas que se estendem além dos lugares e dos
fluxos, convocando dimensões translocais e transnacionais.

A contas com o passado, em busca de um futuro: usos da


cultura de orla

Num tempo alongado, esta foi uma fronteira que gerou uma cultura própria,
integrando o próprio limite. A cultura de orla assenta numa relação maleá-
vel “nós”/“eles”, de acordo com as necessidades, a conjuntura e o contexto
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 117

(GODINHO, 2012). Embora o conflito tenha também de ser convocado


para compreender as relações de fronteira, esta trazia benefícios práticos
e gerava modos de vida particulares. Se a agricultura tinha centralidade,
incorporando em formatos comunitários os vizinhos de um e outro lado,
a transgressão da fronteira, como modo de vida, era realizada quotidiana-
mente. O contrabando, sob diversas modalidades, foi variando em função
das conjunturas, juntando os vizinhos de ambos os lados e associando-os
em escalas diversas, que servem atualmente para resolver problemas locais
de abastecimento, ou podem integrar uma economia-mundo.
Foi uma “zona de refúgio” (SCOTT, 2009), permitindo escapar à esfera
dos Estados espanhol e português e ganhar a vida – através do contraban-
do – ou mesmo salvar a vida – em momentos históricos que requereram
a passagem. Foi assim em três momentos da história ibérica do século XX.
Em primeiro lugar, durante as incursões monárquicasencabeçadas por Paiva
Couceiro, que se seguiram à implantação da República em Portugal, e que
ocorreram em 1911 e nos anos seguintes,de que resta uma memória, fixada
através do folclore em alguns locais. Em segundo lugar, durante a guerra civil
de Espanha e a longa paz incivil que se seguiu (CASANOVA, 2002), em que
esta fronteira permitiu a muitos espanhóis escapar com vida e refugiarem-se
nas aldeias portuguesas. Alguns destes seriam evacuados através de redes
que transcendiam o nível localaté ao Porto, donde partiriam para a América
Latina ou outros destinos. Outros permaneceriam nas povoações portu-
guesas e viriam a integrar o maquis, designação da guerrilha antifranquista
(GODINHO, 2004; 2011). Finalmente, um terceiro momento ocorre nos
anos 1960-70, durante a guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné,
constituindo uma das rotas dos desertores portugueses, num período em
que a sangria demográfica também passava por aqui, através de redes de
emigração clandestina com destino a outros países europeus.
Essa cultura de orla, que permitia viver melhor ou escapar em tempos
duros, constituía um recurso dos mais frágeis (SCOTT, 1985), através do
discurso escondido (SCOTT, 1990), só partilhado entre os vizinhos, ainda
que por vezes integrasse os próprios agentes estatais, nomeadamente os
118 PAU L A G O D I N H O

guarda-fiscais. Para os Estados centrais, as zonas limítrofes constituíram


longamente uma periferia, com as características de liminariedade ine-
rentes: perigosas, indefinidas, contaminadas. Todavia, não há periferia na
periferia. Ali, desenvolveram-se redes de relações à margem dos Estados
ou contra eles, constituindo uma cultura própria.
O segredo e a clandestinidade estão longamente associados a esta
vida de fronteira e à cultura própria aí gerada. Esta assenta num território
de limites fluidos, em que os fluxos e as redes se estendem no espaço e
disputam aos lugares um papel significativo. Uma das características do
processo atual é a emblematização da fronteira do passado, patrimo-
nializando-a e tornando-a visitável. Assenta na conversão do que fora
oculto, e que assentava em práticas furtivas, por caminhos esconsos e
a desoras, em algo de exibível: em performances nas quais o passado é
sobre-representado e engrandecido. Esta fetichização da fronteira, com
resultados práticos, é a última fase de um processo em que se detetam
três outras. A primeira, que decorreu até aos anos de 1960, assentava
em continuidades centradas na agricultura, complementada pelo contra-
bando. A relação entre este e aquela dependia de conjunturas políticas e
da situação no âmbito de cada casa, através do pessoal disponível e dos
meios para investir ou granjear no comércio de fronteira. Os documentos
do Tratado de Limites entre Portugal e Espanha de 1864 permitem ler a
importância local do acesso à propriedade, conquanto a nível central se
sobrepusesse a soberania. Essa continuidade da ênfase na posse de terra,
com três grupos sociais identificados pela etnografia – proprietários,
lavradores e jornaleiros – continuaria de forma longa, em conjunturas
variadas, que integram a da guerra civil de Espanha, até à década de 1960.
A segunda fase inicia-se então com um processo de desarticulação da
agricultura em função da sangria migratória. Nesses anos, a compensação
para as perdas demográficas advinha da colaboração na passagem de
emigrantes. Os “passadores”, algumas vezes denunciados ou surpreendidos
pelas autoridades, encarregavam-se de estabelecer a ligação e facilitar
a passagem a nível local e em redes que podiam ir até à fronteira com a
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 119

França ou a Alemanha. Desde meados dos anos 1990, ao mesmo tempo que
um conjunto de pequenas fábricas e manufacturas de confecção deram
vazão ao trabalho feminino – com outsourcing, associado à indústria têxtil
e de moda -, vive-se uma terceira fase. Agora, as migrações com retorno
semanal conjugam-se com modos de relação com o passado que trazem
benefícios práticos. Embora mantenha o seu carácter poroso, inserido em
tráficos mundializados, assiste-se a uma fetichização da fronteira, onde
se lembra e exibe as suas práticas ocultas, atraindo um público citadino,
em momentos de lazer. Esta última fase, assente na ilusão do mergulho
no tempo passado, conduziu a novos usos da fronteira, que permitem
resgatar a auto-estima local de povoações desertificadas e sem vitalida-
de, através de um papel interessante e com benefícios práticos. Como
se escreveu noutro texto, da fronteira útil, passou-se à fronteira fútil
(GODINHO, 2009), em espaços em que o rural já não é só agrícola, mas
não deixou de também o ser. Nesta última fase, os anos de dolorosa crise
vividos em Portugal e em Espanha converteram a agricultura em último
recurso para os que foram perdendo o emprego e retornaram.

Dois paradoxos de uma fronteira exangue

Max Weber notava a necessidade de procurar a racionalidade dos fenómenos


sociais, mesmo dos que pareciam irracionais. Nesta fronteira esvaziada, duas
situações são aparentemente paradoxais. A primeira é legível na inexistên-
cia de rituais de alfândega, devido à inserção num espaço comunitário – a
União Europeia –, ao mesmo tempo que se verifica um afastamento entre
os vizinhos de um e outro lado, devido à alteração dos modos de vida an-
teriores, ligados à agricultura. O aumento do percurso escolar dos jovens
e um processo de nacionalização prática contribuíram para esta situação:
há hoje um conjunto de serviços fornecidos nas vilas e cidades dos países
respectivos, que resolve problemas antes superados pela cultura de orla.
O segundo paradoxo é desencadeado pela evidência de uma fronteira
exangue, que perdeu gente e onde se assiste a uma inflação cerimonial,
120 PAU L A G O D I N H O

pois dispararam as festividades coladas ao calendário. Este trompe-l’œil


da vitalidade local está associado a dois fenómenos: por um lado, a um
tecido social que só se reconstitui em momentos festivos, alguns dos
quais de invenção recente; por outro, ao turismo e lazer citadinos, que
buscam um rural imaginado e uma experiência da vida fronteiriça do
passado, que bane o lado do sacrifício e do sofrimento, inserido-os numa
economia política do turismo (GOTHAM, 2002). Ao longo dos últimos
20 anos fecharam todas as escolas e jardins-de-infância existentes nas
aldeias, abrindo centros de dias e lares para os idosos, numa fronteira que
envelheceu e viu partir os mais novos. Em Vilarelho da Raia existiu mesmo
o plano de construir um desses centros para idosos na fronteira com a
aldeia-espelho, Rabal, para juntar na velhice os que tantas cumplicidades
partilharam, sobretudo nos Invernos em que o rio Tâmega transbordava
e a aldeia galega ficava desligada do território espanhol. O lar de idosos
está perto da fronteira, embora só tenha vilarelhenses.
De um e de outro lado, as crianças passaram a ser encaminhadas
precocemente para as vilas e cidades. Os centros de saúde das aldeias
fecharam, sendo os serviços prestados nas vilas e cidades. Também aí,
em alguns casos, decisões políticas tomadas pelos centros de poder en-
cerraram serviços de urgência, tornando mais vulnerável e difícil a vida
dos vizinhos. Porém, quem se esgueirar no mês de Agosto até ao troço
da fronteira entre os concelhos de Chaves – do lado português – e de
Vilardevós, Verín, Oimbra e Cualedro, na Galiza, assistirá a algo surpre-
endente. Tudo fervilha de festa e o passado local é comemorado numa
alegria pretérita com fruição presente. Nos fins-de-semana de Agosto,
haverá que escolher ou que calcorrear cerimónias concorrentes. Além
das festas patronais, são várias as possibilidades, de que já foi referida
a Festa das Adegas, em Mandín, que nem pretende reportar a uma tra-
dição inventada (HOBSBAWM; RANGER, 1983), mas antes revitalizar a
cultura e o convívio local (BOISSEVAIN, 1992). Junta-se-lhe a “Rota do
Fardo”, percorrendo a partir de Lamadarcos os trilhos do contrabando
do passado, em motas e motorizadas, com t-shirt alusiva; uma malha de
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 121

cereal, encenada pelos vizinhos de Rabal, evocando os trabalhos agrícolas


do passado e a entreajuda nas tarefas de colheita dos cereais; a romaria
de S. Caetano, com missa bilingue e feira com os produtos etiquetados
em duas línguas, correspondendo a quem frequenta e compra, de um e
outro lado da fronteira; a feira de vinhos de Monterrei, uma região de-
marcada, realizada em Verín, que é visitada por gente de um e de outro
país; a “Festa do Pemento”, em Oimbra, que promove um produto local,
o pimento branco, cultivado de um e de outro lado da fronteira, ainda
que a União Europeia o tenha registado como adstrito exclusivamente
ao lado galego; um festival de folclore, com actuação dos diversos gru-
pos internacionais em Chaves e em Verín. Noutros momentos do ano,
a efusividade festiva é retomada, não só em convivialidade de final de
semana, frequentemente levada a cabo só por grupos de homens (a festa
do alambique, a ida ao “aguardenteiro de Cambedo”), mas igualmente em
momentos como a Festa do Senhor dos Desamparados, que tem lugar em
Junho, na aldeia de Soutelinho, na Feira dos Santos, no final de Outubro,
em Chaves, ou nos vários “entroidos” galegos, próximos da raia, em Verín,
Laza ou no Xinzo de Límia. A Taberna do Xico, pertencente ao referido
reintegracionista de Mandín, é um lugar de junção, onde se bebe vinho
“Couto Mixto”, criado com castas da raia e que alude a um conjunto de
três aldeias cujo historial é reivindicado na edificação da cultura de orla.
Esta enumeração não é exaustiva, numa zona em que a inflação cerimonial
coexiste com a desvitalização da cultura de orla, que assentava em trocas
contínuas e correntes entre os vizinhos de um e outro lado. A performance
festiva, com a participação de vizinhos, visitantes e turistas de um e outro
lado da fronteira, encena um passado convivial em que a economia assen-
tava na agricultura e no efeito-fronteira possibilitado no comércio raiano: o
contrabando. A fronteira que não existe é patrimonializada e a vida a que
dava razão de ser é convertida em emblema, numa zona em festa.
Aqui, o pão chega de fora – real e simbolicamente. Grande parte dos
afluxos que permitem a sobrevivência resultam de fluxos trazidos pela imi-
gração dos vizinhos, por pensões, subvenções e subsídios vários, a que se
122 PAU L A G O D I N H O

juntam o afluxo de turistas. Numa das aldeias, reivindicou-se mesmo uma das
rotas do caminho de Santiago, alegando que sempre por ali tinha passado.
A reprodução das unidades domésticas depende cada vez mais do exterior
das aldeias. O pão chega em carrinhas, trazido das cidades e vilas – de fora
–, feito com farinha mais branca e mais fina e distanciando-se do que era
produzido no âmbito de cada casa, com o milho e o centeio que o escureciam.

Fronteirizar e desfronterizar: o passado no presente

Esta é a mais antiga fronteira europeia, estabelecida pelo Tratado de


Alcañices em 1297, precedido de um tratado parcial – o de Badajoz – em
1267. No decurso do séc. XIX, os troços que permaneceram menos claros
viriam a ser acordados no Tratado de Lisboa, celebrado em 1864 entre
Portugal e Espanha (GODINHO, 2011). O limite entre o norte de Portugal
e a Galiza mereceria os maiores acertos: dos 31 artigos do “Tratado de
Lisboa”, 23 estabeleceram a fronteira e destes, 15 constituíram arranjos
entre o norte de Portugal e a Galiza. Dois problemas se sobrepunham
aos restantes, do ponto de vista de Madrid e Lisboa: o Couto Misto – de
que fazem parte três aldeias, até então num regime de autarcia – e vá-
rias povoações atravessadas pela linha da fronteira, referidas então nos
documentos oficiais como “povos promíscuos”, um exónimo injuriante.
Os processos de fronteirização, edificando limites, embora inerentes a
todas as culturas, foram particularmente difíceis neste contexto, onde
uma cultura de orla unia. Para Lisboa e Madrid foi particularmente difícil
sobrepor por aqui lealdades a centros políticos distantes – ser português
e ser espanhol – relativamente às que seriam inerentes a contactos quoti-
dianos e longos no tempo. Só o conseguiram quando os interesses locais,
com lógicas associadas à propriedade e aos seus limites, se reconheceram
nas propostas centrais, com argumentos que remetiam para a soberania
(GODINHO, 2011). Mesmo nessas circunstâncias, a cultura de orla reali-
mentou de forma ambígua a encenação da aceitação dos novos limites
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 123

e as resistências de rotina: destruição dos marcos de pedra, ataque aos


guardas fronteiriços, invasões e reocupações de territórios.
Nesta fronteira, que serviu para escapar às guerras e incorporações
militares, salvando a vida, e que serviu para conseguir melhorar as condições
de existência em tempos nos quais a agricultura era desvalorizada, assiste-se
na atualidade a formatos de relação com esse passado no presente, atribuin-
do-lhe novos significados. Como nota Maurice Godelier, numa obra recente,
o imaginado nem sempre é imaginário (GODELIER, 2015, p.7), reportando a
uma determinada realidade. Neste contexto, a re-significação do passado
com ganhos no presente seguiu dois moldes. Por um lado, a partir de ini-
ciativas provindas do poder político e económico, de cima para baixo. De
acordo com um projecto prezado pela União Europeia, foram criadas até ao
momento três Eurocidades nesta fronteira: Tui-Valença, Monção-Salvaterra
do Miño e Chaves-Verín. O projecto Eurocidades pretende propiciar a
cooperação transfronteiriça, evitando duplicação de serviços e trazendo
um conjunto de benefícios às populações de um e outro lado da fronteira.3
Também o Eixo Atlântico do Noroeste Peninsular constitui uma iniciativa
empresarial e do poder político, que junta autarquias e interesses diversos.4
Por outro lado, a desfronteirização faz-se de baixo para cima. São várias
as iniciativas locais, por parte de mulheres e homens ligados a associações
e juntas de freguesia. As redes informais do passado são recuperadas pelos
regionautas do presente, através festivais e eventos de promoção de pro-
dutos locais, bem como da realização de cursos de verão, com o patrocínio
de universidades portuguesas e galegas. Estes últimos tiveram bastante
importância desde meados de 1990 e até 2005, quando o associativismo
local tinha maior vigor. Também os itinerários para caminhantes - rotas da
natureza ou do contrabando - juntam vizinhos das aldeias, antigos contra-
bandistas e guardas-fiscais, que acompanham turistas em busca da fruição
da natureza e de uma perspectiva prazenteira do passado local. Esse tempo

3 
Ver http://www.eurocidadechavesverin.eu/.
4 
Ver http://www.eixoatlantico.com/index.php/pt/.
124 PAU L A G O D I N H O

pretérito, que juntou os vizinhos, através de locais como o Couto Misto, ou de


acontecimentos como os de 1946, em Cambedo da Raia, é hoje comemorado
de modos diversos, através da aposição de placas e da organização de ceri-
mónias como a da atribuição do grau de “Xuiz Honorário do Couto Mixto”.5
A fronteira como campo social, que serviu para salvar a vida, em mo-
mentos duros da história de cada país, e para governar a vida, através do
aproveitamento da diferença, é hoje usada de modos diferenciados. Como
nota Orvar Löfgren, “[...] os mapas mentais e os campos de acção tendem a
variar entre gerações e tipos de regionautas, com uma variedade de padrões de
interacção definida, quer por um quadro tradicional, quer pelas novas possibi-
lidades, geradas pelas diferenças detectadas a vários níveis” (LÖFGREN, 2008,
p. 201, tradução minha). Os formatos do “capitalismo regional” (NAROTZKY;
SMITH, 2006) usaram até recentemente a mão-de-obra de mulheres de
um e outro lado da fronteira em manufacturas ligadas à confecção e no
outsoucing do trabalho na indústria de moda. Desde o início do novo milénio,
a procura de mão-de-obra mais barata e com menos direitos, na Ásia e na
América do Sul, desvitalizou esta indústria. Na actualidade, a busca de bens
de uso corrente no lado da fronteira em que são mais baratos beneficia do
efeito-fronteira, bem como da facilidade de passagem devida à inserção no
espaço da União Europeia. Por outro lado, um outro uso prático da fronteira,
que concatena uma economia dos afectos com as necessidades materiais, é
legível no casamento canónico de viúvas e viúvos no país vizinho, sem registo
civil, permitindo manter a pensão de sobrevivência do cônjuge falecido. Nos
modos de existência, a raia é fulcralpara os “profissionais de fronteira”, como
os guardas e oscontrabandistas, e para as profissões que aproveitam a fron-

5 
Em 1946, depois de uma longa estadia de dez anos por parte de refugiados espanhóis na
aldeia de Cambedo, esta foi cercada por forças do exército português, da Guarda Nacional
Republicana, da Guarda Fiscal e da PIDE e foi atingida com morteiros. As autoridades portu-
guesas, conjuntamente com a Guardia Civil, procuravam atingir os que fugiram da guerra civil
de Espanha e da implantação do regime franquista, refugindo-se em várias aldeias portuguesas
desta raia. Houve várias dezenas de presos (dois dos quais cumpriram pena no tenebroso campo
de concentração de Tarrafal, em Cabo verde), dois mortos do lado dos guerrilheiros e dois por
parte das autoridades. Por longos anos, este foi um assunto remetido para o silêncio e para uma
amnésia forçada por parte dos vizinhos de Cambedo da Raia (GODINHO, 2004; 2011; 2014b).
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 125

teira, em cruzamento pendular, ou no exercício de actividades que seriam


consideradas impróprias do lado oposto. É também assim com os bares de
alterne, que se dispõem logo nos primeiros quilómetros depois da passagem
do antigo posto alfandegário de Vila Verde da Raia/Feces, do lado espanhol,
sobretudo frequentados por portugueses e com prostitutas emigrantes e
pobres. Como afirmava um homem português, «passa-se a fronteira, já não
há pecado». O carácter liminar do tempo (de limen, limiar, soleira, entre dois)
constrói a liminaridade que define a fronteira ritual. Marca a passagem de
uma soleira e a entrada numa «lei» diferente para cada agente social, que
assim toma novas modalidades (AGIER, 2013, p. 37).

Inconclusões

Nos últimos anos, a Europa do Sul foi castigada por políticas destruidoras
dos modos de vida. Também nesta fronteira se sentiram os reflexos desse
tempo duro, com mais gente a tentar sair e muitos dos que estavam fora,
sobretudo no Estado espanhol, a retornar às aldeias, que constituem um
último refúgio, em tempos duros. Quando se interroga o futuro para as
aldeias, os vizinhos podem retorquir com o passado, capitalizando a me-
mória da fronteira, num tempo em que os milieux de mémoire (cada vez
mais puídos pela contingência da vida e pelos processos migratórios) se
revêem cada vez mais nos lieux de mémoire (NORA, 1986). O património,
agora entendido como património cultural (BENDIX, 2011), assenta aqui
na cultura de orla do passado, que constitui um recurso para tempos de
crise, alimentando também a auto-estima de aldeias que desertificam.
A fetichização da zona de fronteira (LÖFGREN, 2008, p.206) tem assim
um novo aproveitamento no presente, com a passagem de uma cultura
de orla, à assunção da fronteira como amenidade (GODINHO, 2014a).
A economia local, assente na agricultura, está desvitalizada. Sobra a produ-
ção de vinhos do lado galego e sobretudo as hortas, destinadas a fornecer
os legumes e hortaliças para uso quotidiano. O posto aduaneiro do lado
português, com letreiros «Vende-se» há vários anos, e sucessivamente van-
126 PAU L A G O D I N H O

dalizado, é um símbolo ignorado de um tempo que passou. Neste cenário de


crise, a desarticulação da vida nas aldeias é concomitante com a encenação
do retorno a práticas antigas, que permitiriam assegurar a sobrevivência. O
passado parece ter-se tornado um dos recursos essenciais, quando o futuro
também parece um país estrangeiro, numa paráfrase de Josep Fontana (2013).
É um artefacto do presente (LOWENTHAL, 1978), que não parece servir para
preparar o futuro. É construído, alvo de negociações e contrafacções, ideali-
zado e, nesse sentido, cobiçado. Vivido em retrocesso e venerado como fonte
de segurança, este passado autenticado é frequentemente imaginado e um
modelo do presente, embora moldado a partir de instrumentos modernos. É
“um país estrangeiro cujos atributos são configurados pelos gostos de hoje, e
as suas peculiaridades são domesticadas pela nossa própria preservação dos
seus vestígios”. (LOWENTHAL, 1978, p.xvii, tradução minha)”.
Quando o passado parece ter açambarcado a vida local para trás,
questionam-se os formatos que esta assumirá para a frente. Nestas
circunstâncias, o passado e o futuro parecem conjugar-se no presente,
enquanto o próprio presente se torna o tempo da reprodução antecipada
do passado (JEUDY, 2008, p.10). A fronteira que já não existe, em função
da integração no espaço da União Europeia, não deixou paradoxalmente
de existir numa memória com efeitos práticos que se mantêm.

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CIDADE E PATRIMÔNIO HISTÓRICO: PASSO FUNDO/RS

EDUARDO ROBERTO JORDÃO KNACK

Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo
em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes
de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais,
datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada
ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de con-
trastes que sirva de evocação à memória. De modo que os homens mais sábios
do mundo são os que conhecem Zora de cor. Mas foi inútil minha viagem para
visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a me-
morização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo
(CALVINO, 1990, p. 19-20).

No romance de Calvino (1990), As cidades invisíveis, Marco Polo descre-


ve a Kublai Khan, cidades que o imperador desconhecia em seus vastos
domínios. As cidades descritas no romance são ficcionais e encantam por
uma série de particularidades que as definem e as diferenciam umas das
outras. Assim, o viajante fala em cidades relacionadas e definidas quanto a
memória, desejo, símbolos, mortos, trocas, céu, contínuas, ocultas, entre
outros tipos. A cidade de Zora exemplifica a compulsão pela memória, por
afirmar características do passado (real ou ficcional) empreendidas por
diferentes grupos que compõem o mundo urbano no ocidente.
130 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

A cidade pode ser palco de inúmeras referências à memória e ao


passado, mas mesmo com esse verdadeiro trabalho para deixar a marca
de uma lembrança nos espaços concretos da cidade, atribuindo nomes
às ruas, construindo monumentos, tombando edifícios como patrimônio
histórico, essa dimensão memorial é dinâmica, e o valor atribuído a essas
referências está em constante transformação. Se não fosse assim, tal como
Zora, as cidades se esfacelariam no tempo pela imobilidade, cairiam no
esquecimento devido à incapacidade de se renovar, de produzir novas
experiências prenhas de significados para seus habitantes e demais visi-
tantes. O patrimônio é um desses instrumentos utilizados pelos grupos
para evocar sua memória, sua compreensão do que é importante preservar
do passado diante dos acontecimentos que se desenrolam no presente.
Por isso a importância de analisar os discursos patrimoniais, o processo
de patrimonialização dos bens que compõem o conjunto do patrimônio
histórico e arquitetônico de Passo Fundo1, ou de qualquer outra cidade.
Diferentes autores indicam que a palavra “patrimônio” assumiu uma
força impressionante nas sociedades ocidentais, adquirindo, cada vez
mais, no transcorrer do século XX, uma conotação positiva. Segundo
Poulot (2009, p. 10), “por conseguinte, não cansamos de evocar ‘patri-
mônios’ a serem conservados e transmitidos” relacionados a diferentes
características e esferas da sociedade. Exemplo disso é a profusão de
“patrimônios” nas décadas de 1970-1980. Para Choay (2006, p. 11), a ex-
pressão patrimônio “se ampliou a dimensões planetárias”, e Gonçalves

1 
Passo Fundo é uma cidade localizado ao norte do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Sua
fundação pode ser situada entre 1827-1828, com o estabelecimento de uma fazenda pastoril pelo
miliciano conhecido como Cabo Neves (MIRANDA; MACHADO, 2005, p. 22). Até praticamente
o final do século XIX, teve uma economia centrada na agricultura, funcionando como entreposto
comercial, uma rota de passagem para o transporte de animais (mulas e gado especialmente)
para outras regiões do país. A instalação da estrada de ferro em 1898 proporcionou surtos de
crescimento ao longo das primeiras décadas do século XX. Até 1950, a agroindústria impulsionou
esse crescimento (com base na produção do trigo). A prestação de serviços também acompanhou
o desenvolvimento urbano do município, recebendo impulso com a fundação da Universidade
de Passo Fundo (UPF) em 1968. Ao longo da segunda metade do século XX, assumiu contornos
de “capital do planalto”, região em que está inserida no estado (KNACK, 2016).
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 131

(2003) chama a atenção para a recorrência do uso dessa palavra em nosso


cotidiano. Fala-se em patrimônio histórico, cultural, etnológico, ambiental,
genético, financeiro, político, material e imaterial, entre tantos outros,
como também são reconhecidos em nível local (cidades, vilas, famílias),
regional (estados, províncias, regiões abrangentes, como pantanal, pampa,
planalto), nacional (países) e da humanidade (bens com reconhecimento
de órgãos dedicados à preservação e proteção do patrimônio com atuação
em âmbito internacional). São diferentes tipologias em diferentes escalas.
Candau (2010, p. 43) menciona uma “compulsão memorial”, manifestada na
obsessão por comemorações, aniversários, genealogias, sucesso das biografias,
interesse generalizado pelas “raízes” do passado, entre outras “formas ritualiza-
das de reminiscências”. A busca pela preservação e divulgação do patrimônio é
uma dessas formas que se insere nessa compulsão pela memória. Mais que uma
palavra, para Gonçalves (2003), o patrimônio pode ser entendido como uma
categoria de pensamento importante. Nas sociedades ocidentais modernas,
essa categoria aparece com delimitações precisas que estão relacionadas à
valorização, a qualificações próprias da contemporaneidade.
A recente conotação exacerbadamente positiva que essa palavra
(essa categoria) recebeu impõe certas dificuldades e problemas para os
pesquisadores desse tema. É importante evitar tentações memorialísticas
e comemoracionismos. Os historiadores e demais profissionais que se
dedicam aos estudos da memória e do patrimônio não devem se deixar
levar por ondas de comemorações. É necessário ao pesquisador adotar um
olhar crítico para formular problemas, questões relativas aos processos
de patrimonialização (PRATS, 1998) e não promover ufanismos desme-
didos. Estudar a memória, seus usos e as práticas que envolvem os bens
patrimoniais, ou mesmo o funcionamento do patrimônio como categoria
de pensamento em determinado contexto, exige do historiador um rigor
crítico, uma base teórica e uma pesquisa documental, e não celebrações,
enaltecimentos, como ocorre com outros grupos sociais.
No presente trabalho, o foco do estudo são os processos de patrimo-
nialização que ocorreram em Passo Fundo entre 1990 e 2000, refletindo
132 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

especialmente sobre a atribuição de valor e estabelecendo um panorama


geral sobre atividades, práticas e discursos construídos sobre o patrimônio
(avançando até discussões mais recentes sobre o tema). Pensar essa ques-
tão envolve esclarecer quem escolhe, como e por que determinado bem se
torna patrimônio. A pesquisa incide sobre os princípios que orientaram a
seleção dos lugares, acontecimentos e/ou sujeitos que passam a ser consi-
derados patrimônio por um determinado grupo em um contexto histórico
específico. A seleção desses elementos (lugares, acontecimentos, sujeitos)
é inerente ao trabalho do historiador e à constituição da própria memória
(POLLAK, 1992). Isso não significa defender que história e memória fazem
parte de uma mesma operação. História e memória são formas distintas de
estabelecer filiações, de se relacionar com o passado, mas em determinadas
situações, como a patrimonialização de um bem cultural, por exemplo, suas
diferenças podem ser reduzidas flexibilizando suas fronteiras.
Nesse sentido, o patrimônio pode elucidar elaborações eruditas da
própria história, formas de compreender, se situar e perceber a passagem
do tempo. O patrimônio é, portanto, um indício do “regime de historici-
dade” (HARTOG, 2013) que marca uma sociedade em um determinado
contexto histórico. Cabe esclarecer o que é um regime de historicidade:

Entendo essa noção como uma formulação erudita da experiência


do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nos-
so próprio tempo. Um regime de historicidade abre e circunscreve
um espaço de trabalho e de pensamento. Ele dá ritmo à escrita
do tempo, representa uma “ordem” à qual podemos aderir ou,
ao contrário (e mais frequentemente), da qual queremos escapar,
procurando elaborar outra (HARTOG, 1996, p. 129).

O patrimônio, especialmente aquele ao qual é atribuído o valor de


“histórico”, é uma expressão de como uma comunidade elabora sua ex-
periência temporal, “engrena” as categorias temporais. De acordo com
Hartog (2013, p. 13), “Conforme domine a categoria do passado, do futuro
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 133

ou do presente, a ordem do tempo resultante não será evidentemente


a mesma”. A seleção inicial do que será patrimonializado remete-se a
uma certa compreensão da história por parte dos sujeitos envolvidos
no processo. É a partir de um regime de historicidade que determinado
valor é atribuído a um bem que se torna patrimônio. Esse valor histórico
não é o mesmo, pois a compreensão, a consciência de uma comunidade
sobre o tempo e no tempo se altera, alterando aquilo que entende como
significativo, como relevante para se tornar patrimônio histórico.
É justamente o ato de atribuir valor ao patrimônio que o torna dife-
rente, que orienta sua seleção entre um conjunto de possibilidades para
se tornar “histórico” para uma cidade, região ou país, pois “o sentido e a
importância dos monumentos não cabem às próprias obras em virtude
da sua determinação originária, mas somos nós, modernos, quem lhos
atribui” (RIEGL, 2013, p. 14). Esses “valores” atribuídos ao patrimônio são
feitos a partir de um quadro de referências (políticas, econômicas, cultu-
rais) vinculado aos regimes de historicidade. Quando o valor é atribuído,
determinado bem é deslocado de sua circulação social habitual, passa a
atrair outro tipo de atenção – memórias, projetos, ações culturais, entre
outros. Passa a fazer parte do universo de referências identitárias de uma
comunidade. Riegl (2013) elabora um importante estudo sobre o valor dos
monumentos no início do século XX, em que estabelece alguns tipos de
“valorização” que marcavam aquele contexto. Para esse autor, no “culto
moderno aos monumentos” existente nas primeiras décadas do século
passado, poderiam ser identificados três tipos de “valor de memória”: o
valor de antiguidade, o valor histórico e o valor de memória intencional.
Riegl (2013, p. 27) afirma que “O valor de antiguidade de um monu-
mento trai-se à primeira vista pelo aspecto não moderno”. A percepção
de um monumento, de uma edificação antiga alcança grande parte da
população. A valorização das edificações antigas em oposição ao presente,
assentada no valor da dissolução, da passagem do tempo, está vinculada
a uma valorização do passado como “busca das raízes” de um povo. Assim,
quanto mais distante alcançam as raízes, mais forte é o elo de um povo
134 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

com sua história. Também exerce forte influência a admiração pelas forças
da natureza, que podem alterar os destinos dos homens em questão de
segundos. As ruínas oferecem o exemplo mais claro dessa atribuição de
valor. Ligadas à nostalgia, ao apego pelo passado, carregam a marca de
uma “autenticidade histórica”, que afetou a Europa nos séculos XVIII-XIX,
mas que perdeu força no transcorrer do século XX por “não ter lugar na
cultura de mercadorias e memórias do capitalismo avançado” (HUYSSEN,
2014, p. 96). Perderam lugar nessa sociedade devido às constantes trans-
formações e modernizações urbanas, que levaram a fluxos de especulação
imobiliária que sobrevalorizaram espaços, impedindo a coexistência de
centros urbanos com antigas ruínas, com exceção no caso de cidades
que estabelecem o turismo como uma lucrativa fonte de renda. Nesses
casos específicos, edificações arruinadas sobrevivem, mas perdem seu
encanto nostálgico que os defensores da preservação das ruínas como
monumentos do início do século XX identificados por Riegl observavam.
Esses defensores do valor de antiguidade concebiam “no monumento
um pedaço de sua própria vida” (RIEGL, 2013, p. 30), prezavam por uma
intervenção mínima, apenas para manter as edificações, preservando as
marcas da passagem do tempo, da ação da natureza ou mesmo de forças
destrutivas desencadeadas pelos próprios homens.
Os defensores do valor histórico priorizavam a capacidade que os
monumentos tinham de informar sobre o passado. Segundo Riegl (2013,
p. 34), “O valor histórico é tanto mais elevado quanto mais claro for o
grau em que se revela o estado coeso, original, que o monumento possuía
imediatamente ao ser produzido”. Diverge do valor de antiguidade, pois
não procura uma valorização do antigo apenas por meio de um olhar
estético, que busca uma contraposição com o presente ou “enterrar”
uma identidade cada vez mais fundo no passado. Ao priorizar um valor
documental, informativo, visa preservar para que os historiadores, an-
tropólogos, arqueólogos, entre outros profissionais, elucidem lacunas
da história. Embora com essa diferença, o valor histórico estabelece um
respeito pela matéria original, mas não por uma admiração, e sim para
evitar falseamentos ou deturpação de antigas construções.
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 135

O valor de memória intencional, por sua vez, é a expressão da inces-


sante busca por memória que marcou as sociedades ocidentais durante
o século XX. Seus defensores eram empenhados em “fazer que, em certa
medida, um monumento nunca se torne passado”, buscando “mantê-lo
sempre presente e vivo na consciência dos vindouros” (RIEGL, 2013, p. 42).
Essa terceira tipologia de valor se diferencia dos outros dois mencionados
ao empreender um verdadeiro trabalho de enquadramento da memória
(POLLAK, 1992), um investimento memorialístico que necessita de uma
constante revitalização para não ser esquecido.
Todas as forças que atuam na dissolução de um monumento devem
ser combatidas. A restauração passa a ser a arma fundamental para esse
valor. Vários postulados basilares do restauro que estavam em voga no
final do século XIX eram ligados a ideias que “floresceram sobretudo a
partir do Renascimento, amadureceram gradualmente no período que se
estende dos séculos XV ao XVIII, e foram conjugadas no estabelecimento
das teorias de restauração” (KÜHL, 2002, p. 15). Entre estas, encontram-
-se o respeito pela origem, a defesa da reversibilidade, documentação e
metodologia para o restauro, a mínima intervenção e a “ruptura entre
passado e presente” (KÜHL, 2002, p. 16). No século XVIII, o conhecimento
histórico passou a ser compreendido como essencial, e no XIX, a partir de
ampla discussão teórica, experiências de inventários e intervenções que
vinham sendo realizadas sobre diferentes monumentos, a restauração
se consolidou como prática de preservação.
Kühl (2002) indica diferentes vertentes de restauradores – a que
defendia uma intervenção maior, buscando unidade de estilo, mesmo que
para isso traços e intervenções anteriores fossem perdidas (corrente cujo
expoente é Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc); e a outra que defendia
um grande respeito pela origem, respeitando as marcas do tempo e com
comedidas intervenções (encabeçada por John Ruskin e William Morris).
Destaca Camillo Boito como reformulador dessas concepções, que enun-
cia alguns postulados centrais para a restauração no final do século XIX,
como a importância de reunir e estudar uma documentação relativa ao
136 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

monumento em questão e evitar a perda de elementos característicos, o


respeito às fases dos monumentos, o reconhecimento da fotografia como
importante instrumento para registro do trabalho e a relevância de erguer
lápides com inscrições apontando as datas das intervenções e sua natureza.
Cabe destacar que tanto um regime de historicidade, como esses tipos
de valores mencionados acima, quanto um instrumento de análise devem ser
compreendidos como tipos ideais. Além disso, dificilmente são encontrados em
sua forma pura nos discursos e nas práticas de patrimonialização, bem como
podem conviver, interagir e cruzar com diferentes valores e diferentes ordens
temporais. É importante notar que esses valores estão articulados a regimes
de historicidade presentes nas sociedades ocidentais entre os séculos XIX e
XX. Mesmo as divergências entre as correntes de restauração, que exerceram
impacto na elaboração de políticas de preservação do patrimônio, são indícios
de elaborações eruditas sobre o passado, vinculadas à atribuição de valores
aos monumentos. As iniciativas voltadas para a preservação do patrimônio
em Passo Fundo também estão vinculadas a diferentes percepções sobre e
valorização dos bens culturais e da história presentes não apenas em debates e
políticas públicas, mas no próprio imaginário social daquele momento. Pesavento
(1999, p. 32) ressalta a importância da atribuição de sentido ao mundo urbano:

Uma cidade é, sem dúvida, antes de tudo, uma materialidade


de espaços construídos e vazios, assim como é um tecido
de relações sociais, mas o que importa, na produção de seu
imaginário social, é a atribuição de sentido, que lhe é dado, de
forma individual e coletiva, pelos indivíduos que nela habitam.

A atribuição de valor aos bens que foram patrimonializados em Passo


Fundo entre 1990 e 2000 pode ser compreendida por uma confluência
entre os valores históricos, da memória intencional e de um imaginário
que concebia (e ainda concebe) a cidade como centro da região norte do
estado. A concepção de história que baseou as justificativas nos projetos
de tombamento está associada ao contexto de intensas transformações
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 137

urbanas que o município enfrentou a partir da segunda década do século XX.


Na dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Passo Fundo, Modernização do espaço urbano e
patrimônio histórico: Passo Fundo, RS (KNACK, 2007), no capítulo 3, foram
analisados sete projetos de lei para o tombamento de edificações (um dos
projetos compreendia três edifícios) entre 1990 e o início da década de 2000.2
Foi possível concluir que as justificativas para o tombamento desses
bens não partiram de um projeto articulado do poder público ou de grupos
da sociedade civil. Embora houvesse a atuação de algumas entidades, que
demonstravam interesse ao executivo e ao legislativo na preservação de
edificações consideradas históricas, os projetos de lei que tramitaram
nas comissões da Câmara partiram de iniciativas isoladas de alguns
vereadores. A atribuição de valor, seguindo a definição de Riegl (2013),
pode ser caracterizada como um valor histórico, de forma geral. Cabe
mencionar que a concepção de história presente nas justificativas para
esses projetos estava alicerçada em historiadores locais, que encontra raiz
nas concepções de Francisco Antonino Xavier e Oliveira – uma noção de
história não acadêmica, baseada no valor de uma história política/econô-
mica que acabou excluindo determinados grupos de suas páginas. Alguns
desses bens chamaram a atenção da comunidade simplesmente por serem
antigos, o que mostraria a reminiscência de um valor de antiguidade, de
busca das raízes do povoado. O valor de memória intencional pode ser

2 
Entre os processos que tramitaram na Câmara de Vereadores para aprovação do tombamento
analisados encontram-se os seguintes bens: Banco da província (hoje Banco Itaú), Cervejaria
Brahma (hoje Faculdades Anhanguera), Estação Férrea da Gare (hoje funcionam estabeleci-
mentos públicos e a Feira do Pequeno Produtor), Banco Popular/Casa Gabriel Bastos (hoje
demolida), Igreja Metodista (ainda em funcionamento), Prédio do Instituo Educacional (ainda
em funcionamento) e os prédios da Intendência Municipal (hoje Museu Histórico Regional e
Museu de Artes Visuais Ruth Schneider), da Câmara de Vereadores (hoje Teatro Municipal Múcio
de Castro) e do Clube Político Pinheiro Machado (hoje Academia Passo-Fundense de Letras).
Também foi analisado o Projeto de Restauração do Clube Visconde do Rio Branco, cedido por
Maria de Lourdes Isaias, integrante de movimentos em prol da cultura de afrodescendentes,
observando que não houve interesse e/ou disponibilidade por parte dos poderes executivo e
legislativo em executar o projeto, que cedia a edificação onde funcionou o referido clube (uma
associação de mútuo socorro de descendentes de escravos libertos do início do século XX).
Para maiores informações, consultar Knack (2007; 2013).
138 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

identificado na medida em que projetos conscientes de preservação foram


concretizados, mas com ressalvas, pois essas edificações enfrentaram
um descaso por parte do poder público durante anos, mesmo depois de
tombadas. Dessa forma, é possível apontar a falta de interesse em revi-
talizar a memória histórica que justificou sua patrimonialização, deixando
lacunas na valorização típica da memória intencional.
Eis o problema que moveu a pesquisa: essas edificações remetiam-se
a experiências próprias das elites em busca da afirmação da cidade como
um centro regional. Nesse sentido, foram tombadas edificações relaciona-
das a atividades políticas do município e ao desenvolvimento econômico.
Edifícios e espaços que reportavam-se a experiências de outros grupos
foram abandonados e acabaram sucumbindo à intensa especulação imo-
biliária que ainda está presente, influenciando o desenvolvimento urbano
local. Desde a década de 1950, lideranças políticas dedicaram-se a afirmar
a cidade como uma capital da região norte do estado. Entre os símbolos
desse imaginário está a verticalização urbana, que se destacou como
sinal de crescimento, prosperidade e ordem da cidade, em conjunto com
o possível desenvolvimento industrial, especialmente da agroindústria.
A busca por esse ideal de se tornar a capital do planalto (expressão
que aparece em uma série de documentos analisados, como imprensa,
propagandas políticas, relatórios municipais, planos de desenvolvimen-
to urbano, entre outros3) levou a um processo de remodelação urbana,
caracterizando o centro por edificações verticalizadas, confluindo e as-
sentando as principais atividades financeiras e comerciais de Passo Fundo
no espaço ao redor da praça Marechal Floriano, levando à valorização
imobiliária daquele zona e seu entorno. Esse processo foi acompanhado
por propostas de modernização, embelezamento de praças, adequação
de ruas, da avenida principal e de infraestrutura. No final dos anos 1980,
boa parte das edificações mais antigas havia desaparecido (o próprio

3 
Ver Knack (2007; 2012).
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 139

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano recomendava a remoção de


habitações consideradas pobres ou insalubres de parte daquela área),
restando apenas exemplares ligados à esfera pública, às atividades econô-
micas ainda em funcionamento ou casas de moradores que tinham poder
econômico suficiente para resistir à especulação imobiliária.
Assim, a busca pela afirmação de um imaginário, entre outros ele-
mentos, causou a demolição de parte das antigas edificações daquela
área, o que limitou a possibilidade de escolha dos vereadores responsáveis
pelo tombamento daqueles bens entre 1990 e 2000. A verticalização
não deixou de ser uma representação de poder econômico, com valor
imobiliário real, o que impediu a preservação de outros bens e desviou a
atenção da conservação de muitos prédios históricos, que continuavam
não condizendo com uma cidade moderna e urbanizada – uma capital do
planalto. Dessa forma, ocorreram encontros e desencontros entre o valor
atribuído aos bens tombados nesse período e um regime de historicidade
presentista. As experiências relacionadas à modernização da cidade são
um indício de uma percepção temporal que prioriza o presente. Antes de
1980-90, visualizava-se no futuro a cidade de Passo Fundo industrializada
e urbanizada. A partir do início de 1990, os efeitos, positivos e negativos,
dessa busca começaram a aparecer, e o presente passou a ter um peso
maior, seja para resolver problemas gerados nesse caminho (como a
derrubada de parte da história arquitetônica), ou para afirmar atividades
lucrativas como a especulação imobiliária. Nesse contexto, o valor de
memória intencional não encontrou espaço nos projetos do poder público.
O que pressionou os vereadores no contexto 1990-2000 foi a emergência
de “não lugares”, característicos de uma cidade que vinha sofrendo acelerado
processo de urbanização. A expressão de Augé (2012) define a situação de
pressão que impulsionou os projetos de patrimonialização em Passo Fundo.
O aumento no trânsito, o consumo de automóveis, por exemplo, levou
a “alterações urbanas implementadas para viabilizar o sempre crescente
fluxo de veículos, pela reconfiguração de bairros que se especializaram”
(CARVALHO, 2007, p. 423) nesse ramo, como o Boqueirão. Também fo-
140 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

ram nessas décadas que apareceram as primeiras galerias comerciais, os


shopping centers, as grandes garagens de estacionamento, além da intensa
verticalização que mudou a fisionomia da cidade. Como Koolhaas (2010, p.
31-32) bem coloca: “[...] o facto do crescimento humano ser exponencial
implica que o passado se tornará em dado momento demasiado ‘pequeno’
para ser habitado e partilhado por aqueles que estão vivos”. A história,
materializada na arquitetura, corre perigo com o crescimento populacional.
O desaparecimento da história materializada na arquitetura marcou
essa primeira fase de patrimonialização de edificações em Passo Fundo.
Vinculados a um regime de historicidade de aceleração, em que forças
políticas entendiam que o “progresso” caracterizava o presente, sem se
importar com consequências futuras, ou mesmo com o passado da cidade,
surgiram os tombamentos da década de 1990. A partir de 2002, iniciativas
promovidas pela Universidade de Passo Fundo, articuladas com o poder pú-
blico, começaram a efetivar debates, discussões e projetos sobre patrimônio,
educação patrimonial e políticas públicas, marcando uma segunda fase no
processo de patrimonialização dos bens no município. Embora ainda ligada
à necessidade gerada pela acelerada transformação urbana, essa fase marca
a articulação de pesquisadores de diferentes áreas (história, arquitetura,
artes, jornalismo, entre outras) e poderes executivo e legislativo.
No início dos anos 2000, Wickert (2002) chamava a atenção para o
problema da poluição visual, destacando que “o que chama atenção é o
descaso com que este patrimônio está sendo tratado atualmente”, afir-
mando que não existia uma conscientização sobre o “valor de memória”
desses bens na cidade. Isso porque a memória coletiva que marca espe-
cialmente o poder político deve ser compreendida à luz do imaginário de
capital do planalto, que está articulado com um regime de historicidade
de aceleração, modernização e de ideias de progresso. É importante notar
a percepção da arquiteta (atual Secretária do Planejamento) sobre o pro-
blema. Reunindo referencial teórico próprio da arquitetura, voltado para
restauração, Wickert (2007, p. 390) descrevia o contexto em que Passo
Fundo se encontrava, com poucas edificações restando para preservação,
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 141

afirmando que em pleno “século XXI, mutilada pela perda irreparável de


dezenas de edificações históricas e conjuntos urbanos”, eram necessários
esforços para elaboração de instrumentos de preservação.
Carvalho (2006) também destacava a derrubada de bens que poderiam
integrar o patrimônio municipal, como em artigo publicado em O Nacional:
“foi anunciada a demolição do Cine Teatro Pampa que por muitas décadas foi
um ponto de encontros entre amigos, namorados e até inimigos”. Em outro
artigo, Carvalho (2007) indica a existência de uma mentalidade progressista
que orientou o desenvolvimento do município desde seu centenário em 1957.
Kramer e Waihrich (2007, p. 9) elaboraram um inventário da arquitetura
de Passo Fundo, entendendo o patrimônio “como fundamental para os
futuros projetos a serem realizados” por pesquisadores ligados ao curso
de Arquitetura da UPF e demais interessados. Nesse inventário, foram
destacados edifícios “reconhecidos pela comunidade como de importância
histórica, social e arquitetônica”, com uma metodologia de trabalho inspi-
rada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
É importante citar o projeto televisivo Momento Patrimônio, de 2011 (que
ainda segue atuando) desenvolvido inicialmente a partir de uma articulação entre
integrantes (professores, alunos e técnicos) dos cursos de História, do Museu
Histórico Regional, do curso de Jornalismo e da UPFTV. Segundo Machado (2012,
p. 10), “o projeto constitui-se em planejar, organizar e apresentar programas
de rádio e TV mensais para discutir e divulgar temas de Patrimônio Histórico,
Cultural e ambiental, e propor políticas de reconhecimento, restauração e
tombamento de patrimônios”, executando programas que envolveram a
participação de pesquisadores e lideranças políticas da comunidade.
Essa fase marca a consolidação de um momento de reflexão em torno
da questão do patrimônio histórico, articulando diferentes grupos, ligados
a universidades, instituições culturais e poder político. O valor histórico
continuou marcante na emergência de novos bens que entraram para o
conjunto de bens patrimoniais do município, ainda em virtude do processo
de urbanização ocorrido a partir de 1950. Mas nesse momento aparece, a
partir de iniciativas, projetos e debates, a necessidade de estabelecer ins-
142 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K

trumentos efetivos para a preservação, como inventários, restauração e


políticas públicas consistentes. Ocorre uma especialização no valor histórico,
afirmando um discurso acadêmico sobre o tema. O valor da memória inten-
cional, ou melhor, a busca pela afirmação de uma memória para a cidade é
estabelecida a partir de projetos e discussões que passam a se repetir com
frequência entre diferentes setores, levando a um maior cuidado com bens
já patrimonializados e chamando a atenção para edificações que corriam o
risco de tombar literalmente. Portanto, é possível concluir que o processo de
patrimonialização dos bens que passam a integrar o conjunto do patrimônio
oficial de Passo Fundo foi impulsionado pela necessidade de preservação
diante da derrubada da história materializada na arquitetura. Dois momentos,
embora articulados pela força de um mesmo regime de historicidade, pro-
porcionaram mudanças na percepção sobre o que valorizar historicamente.

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A CONSTRUÇÃO DE UM PATRIMÔNIO: O CASO DA
ENFERMARIA MILITAR DA CIDADE DE JAGUARÃO/RS

ALE X ANDRE DOS SANTOS VILL A S BÔA S

Atualmente, no âmbito de estudos da linha de pesquisa do patrimônio


cultural no Brasil, estão sendo discutidas questões como a importância de
uma maior participação da comunidade em relação ao que deve ser a política
de preservação do patrimônio, acompanhando o processo de democra-
tização da sociedade brasileira a partir do fim do regime militar em 1985.
Não basta mais a sociedade assistir passivamente ao tombamento de
bens culturais de uma determinada memória que é gestada em gabinetes,
sem levar em conta o uso e as apropriações do patrimônio. Embora tenha
havido durante as últimas décadas do século XX uma mudança nas polí-
ticas patrimoniais em nível internacional, com a valorização do chamado
patrimônio imaterial, no Brasil, somente a partir do início do século XXI,
passamos a ter uma legislação específica para o tema, que ainda não é bem
compreendida, haja vista os poucos registros efetuados até o momento.
Nesse sentido, a proposta deste artigo de se analisar um patrimônio
cultural material pode, à primeira vista, ser identificado como mais um
estudo sobre os cânones clássicos da área. No entanto, o que vai ser ex-
plicitado é muito mais o valor imaterial desse patrimônio, ou seja, o que
ele significa para a comunidade, como era percebido e utilizado e como, a
partir de um projeto que pretende transformar o local em um museu, será
apropriado pela sociedade. Para isso, se reconstruirão os períodos históricos
146 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

desse patrimônio cultural, denominados de fases de ocupação, e serão


verificados como ao longo do tempo foi se modificando a relação entre os
usuários diretos e a comunidade e suas percepções, que motivaram uma
identificação que perduraria até o início das obras do projeto do museu.
Este artigo objetiva ainda colocar algumas questões que se julgam
relevantes, como, por exemplo, a persistência de métodos burocráticos
gestados nos anos 1930, quando da implantação do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Será questionada a forma como
está sendo trabalhada a questão da educação patrimonial no que tange
ao início das obras do museu e seu andamento. Essas reflexões estão
baseadas no sentido de demonstrar que a política patrimonial no Brasil,
especificamente nesse caso, precisa incorporar métodos participativos
da comunidade em suas práticas, para que o patrimônio não fique restrito
a uma elite técnica de órgãos estatais de preservação.

Contexto histórico de formação da cidade de Jaguarão

Jaguarão localiza-se no extremo sul do Brasil, na fronteira com o Uruguai,


aproximadamente a 380 km de Porto Alegre, com uma população de 27.931
pessoas.1 A cidade originou-se de um acampamento militar estabelecido às
margens do Rio Jaguarão, no ano de 1802, que tinha o objetivo de controlar e
impedir a passagem do exército espanhol para a Província de São Pedro do Rio
Grande do Sul e também de influir decisivamente no comércio do Rio da Prata.
Esse aquartelamento foi denominado de Guarda do Cerrito e da
Lagoa. Em 1802, paulatinamente, se foi formando ao redor do quartel
um pequeno povoado, que, além de abastecer os soldados, iniciou um
comércio com os espanhóis, do outro lado do rio.

Muitas das aglomerações que se formavam no entorno das


instalações militares, criadas após os tratados de 1750 e 1777,

1 
Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010.
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 147

foram responsáveis pelo início das povoações urbanas ou por


sua elevação à categoria de freguesia: Arroio Grande, Bagé,
Piratini, Erval, Jaguarão, Dom Pedrito, Santana do Livramento
e Quaraí, são alguns exemplos. Ao mesmo tempo, teve início
o povoamento da retaguarda de Alegrete, Itaqui e São Gabriel,
protegendo a nova fronteira (MARTINS, 2001, p. 28).

Na Figura 1, a seguir, se pode ver em primeiro plano o Rio Jaguarão,


tendo na margem direita a povoação da Vila do Cerrito do Espírito Santo
de Jaguarão, com o aquartelamento seguido das primeiras construções
civis, e na margem esquerda a Guarda Fronteiriça no território uruguaio.
Observa-se a passagem de tropeiros, que abasteciam a vila e deixavam
mercadorias que, posteriormente, eram comercializadas nas cidades de
Pelotas e Rio Grande, respectivamente o polo charqueador e o único porto
marítimo da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Ainda na imagem, há a presença de embarcações que se deslocavam
pelo Rio Jaguarão e através da Lagoa Mirim alcançavam as cidades de
Pelotas e Rio Grande, sendo o meio mais rápido de intercâmbio comercial
e cultural na região. Essa localização estratégica da povoação levou a um
incremento populacional e econômico.

Figura 1. Povoação de Jaguarão no início do século XIX


Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão (IHGJ) – reprodução da
litogravura atribuída ao pintor Jean Baptiste Debret.
148 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

Com a formação das nações do Brasil e Uruguai, a afirmação da


nacionalidade na região de fronteira objetivou controlar esses fluxos
comerciais entre os dois países. Entretanto, já havia se constituído uma
elite agrária baseada no poder militar-civil, com ramificações em ambos
os lados da fronteira2, principalmente em função da economia pecuária,
que logo tomaria destaque no comércio do charque surgido em meados
do século XIX, tanto no estado do Rio Grande do Sul como no Uruguai.
Franco (2001, p. 18) nos assinala esse aspecto:

Desde muito cedo, as comunidades dos dois lados da linha


divisória tenderam a prática de uma economia solidária e
complementar, que as barreiras fiscais jamais conseguiram
disciplinar. O famigerado contrabando, hostilizado pelos
governos (nem sempre com muita sinceridade e coerência)
e combatido pelas praças comerciais que ele prejudicava,
sobreviveu a todas as perseguições.

Ao final do século XIX, a cidade de Jaguarão tornou-se um centro co-


mercial, com uma economia agropecuária que permitiu a formação de um
excedente de capital, que foi aplicado no núcleo urbano de Jaguarão, o qual
buscou seguir o tipo de cidade eclética desenvolvida em cidades como Rio
Grande e Pelotas, com a construção de palacetes, praças e ruas. Isso se depre-
ende do depoimento do padre belga Raphãel Goris em 1901, quando de sua
passagem pela cidade, reproduzido por Souza Soares e Franco (2010, p. 56):

Jaguarão originou-se recentemente: não creio que tenha


um século de existência. Está construída seguindo o gosto
americano, isto é, suas ruas são amplas e se entrecruzam

2 
A partir da anexação do Uruguai como Província Cisplatina, em 1821, um grande número de
brasileiros constituiu fazendas de criação de gado no Uruguai, principalmente na fronteira e
no norte do território, ocasionando um intenso comércio fronteiriço.
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 149

regularmente; a maior parte das casas é de uma arquitetura


encantadora; algumas são verdadeiros palácios.

A tentativa de transformação do centro urbano de Jaguarão em uma có-


pia das cidades europeias de estilo eclético mostrou-se de frágil sustentação,
por não ser acompanhada de uma dinâmica social que desse um impulso
capitalista e gerasse um mercado consumidor. No entanto, a preservação
dos prédios pela elite latifundiária, devido à estagnação econômica, foi o
que permitiu a constituição do patrimônio arquitetônico. Embora tenha
sido originado de uma classe que detinha o poder econômico, na atualidade
tornou-se símbolo da cidade e naturalizado para toda a comunidade.
Dentro do contexto histórico apresentado, se insere a construção de
uma instalação militar voltada ao atendimento médico dos militares da
cidade e região, denominada de Enfermaria Militar de Jaguarão, a qual será
analisada a seguir quanto a sua história e aos seus usos pela população da
cidade até ser objeto de preservação patrimonial pelo Estado Brasileiro.

A Enfermaria Militar

O prédio denominado de Enfermaria Militar de Jaguarão foi construído


em 1883 como instalação de saúde do Exército Brasileiro, tendo ao lon-
go do tempo mudado os usos do seu espaço devido às contingências
do exército e de diretrizes institucionais do poder público municipal.
Assim, se pode determinar três períodos distintos de usos do prédio: o
primeiro período – 76 anos – vai desde sua fundação em 1883 até o final
da década de 1950, com seu uso exclusivo como organização de saúde;
o segundo – 12 a 15 anos – vai desde os anos 1960 até aproximadamente
meados da década de 1970, em que perdera sua função original e teve
variados usos, tais como escola primária e prisão política; e o terceiro –
39 anos – vai desde 1970 até 2009, período em o prédio foi depredado,
tornando-se ruína, até o seu tombamento e posterior apresentação do
150 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

projeto de revitalização das ruínas, que passaria a se chamar de Centro


de Interpretação do Pampa (CIP).
Na Figura 2, a seguir, tem-se o prédio em suas feições originais, apre-
sentando sua fachada e parte lateral, em que se destacam as janelas e as
colunas da parte frontal, denotando o estilo neoclássico derivado dos proje-
tos arquitetônicos do exército. O terreno em torno do prédio era composto
de áreas verdes, com poucas construções, e na parte anterior do edifício
existia uma pedreira, da qual foi retirado o material para construção da en-
fermaria. O frontão com colunas de estilo dórico demonstrava sobriedade
e impunha dignidade ao conjunto. A grande porta de acesso compunha-se
de madeira trabalhada, e as paredes internas do hall de entrada possuíam
escaiolas que era uma técnica utilizada na imitação do mármore, muito
praticada nessa região devido à escassez de materiais adequados.

Figura 2. Antiga Enfermaria Militar de Jaguarão


Fonte: IHGJ.

Dentro dos três períodos delimitados anteriormente, se pode inferir


que a ação dos grupos que utilizaram o espaço, em certa medida, delimitou
a sua identidade perante a comunidade. No primeiro período, as atividades
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 151

desenvolvidas pelo grupo dos militares eram ligadas ao cuidado de doen-


tes, o que levava a um relativo isolamento em relação à comunidade, por
causa do medo do contágio e da proliferação de doenças, considerando
que no final do século XIX havia um controle sanitário muito menor do
que na atualidade. Local de dor e desespero, isolado em uma área fora da
cidade, foi se criando uma determinada imagem na comunidade de como
era percebido aquele local e sua relação com a cidade.
Quando perdeu suas funções como hospital, novos grupos começaram
a utilizar o espaço, como uma escola primária organizada por um grupo de
religiosas católicas, que tinha por objetivo atender à população carente do
entorno da enfermaria, que havia se constituído em um bairro periférico
ao centro urbano. Em razão disso, começou lentamente a se modificar
a percepção da identidade do lugar, de uma área de atividades militares,
embora de saúde, com toda sua carga de simbolismo, para outras funções.
A esse propósito, argumenta Leite (2007, p. 289):

Para que exista um lugar, é necessário que as práticas sociais que


lhe são constitutivas sejam relacionais ao espaço, tornando-o um
“território de subjetivação” [...]. Isso significa que a sua dimensão
espacial, em toda a sua extensão simbólica e material, inclusive
edificada, deve reter significados e incidir igual e reflexivamente
sobre as ações que lhe atribuem sentidos. Disso resulta a relação
multicausal necessária para a construção dos lugares.

Após o uso do prédio da enfermaria como escola, novamente seu


uso foi modificado, pois, após o golpe militar de 1964, o edifício serviu
de prisão política temporária para pessoas que supostamente tivessem
alguma relação com os políticos e partidos que estavam no poder ante-
riormente.3 Isso leva ao terceiro período de uso, com a transformação

3 
A cidade apresentava um efetivo militar considerável na época do golpe militar de 1964,
tendo o comandante do quartel do regimento de cavalaria aderido aos golpistas e estimulado
a perseguição aos partidários do regime democrático anterior. Foram levados e torturados nas
152 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

do prédio em ruínas, devido a uma depredação realizada pela população.


Talvez o motivo que tenha levado à depredação de um prédio desse porte
e antiguidade na comunidade, dentre outros, seja o imaginário relacionado
a ser um local de sofrimento, de relativo isolamento. O fato foi que não
havia uma valorização da antiga enfermaria como patrimônio pela elite
local, pelo menos não ao ponto de impedir sua destruição. Em relação
aos usos e à constituição do patrimônio, esclarece Varine (2012, p. 20):

O patrimônio está ligado ao tempo por sua evolução e por


seus ritmos. Ele tem um passado, um presente e um futuro.
Se o desenvolvimento se efetua no presente, portanto a partir
de um patrimônio constatado a um dado momento, ele não
pode ignorar suas origens e não pode igualmente se limitar
a consumi-lo sem nada criar de novo. Quanto aos ritmos, ou
ao menos aos ritmos endógenos, eles são produto e resultado
do patrimônio. Não se pode fazer nenhum desenvolvimento
sem levar em conta os ritmos da vida local, que fazem parte
integrante da cultura viva da população.

Outros prédios existentes na cidade com o mesmo tempo de exis-


tência foram preservados, mesmo que suas destinações tenham se
alterado, mas isso não ocorreu com a antiga enfermaria. Na Figura 3,
a seguir, observa-se a parte frontal do prédio já depredado, mas ainda
conservando as aberturas.

salas da antiga enfermaria, conforme atestam testemunhos dos sobreviventes nos processos
de reparação de danos às vítimas do regime ditatorial, armazenados no Arquivo Público do Rio
Grande do Sul (APERS), na cidade de Porto Alegre.
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 153

Figura 3. Vista frontal da Enfermaria Militar em maio de 1973


Fonte: IHGJ.

Formação do patrimônio cultural da Enfermaria Militar

Na década de 1980, um programa de extensão universitária da Universidade


Federal de Pelotas (UFPel) foi realizado com o objetivo de inventariar
os prédios que teriam significado histórico na cidade de Jaguarão. Esse
projeto foi derivado do Projeto Jaguar, que foi concebido para valorizar
o patrimônio arquitetônico da cidade através de atividades de educação
patrimonial. O inventário teve como prioridade a preservação patrimonial
e teve como símbolo as ruínas da antiga Enfermaria Militar – justamente
aquele local aparentemente abandonado e sem nenhum referencial dos
usos como instalação de saúde ou como escola, ou mesmo como prisão
política, visto que não existia mais o prédio e, por consequência, a atividade
social que lá havia. Apesar disso, para os membros do projeto, possuía um
capital simbólico, de histórias passadas que tornariam o local uma relíquia,
conforme conceito elaborado por Leite (2007, p. 291):
154 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

A noção de relíquia, aqui utilizada, refere-se ao processo


no qual os costumes locais perdem suas conexões com o
presente e tendem a subsistir como uma “relíquia”. Retomo
a citação de Giddens, feita no primeiro capítulo: Uma relíquia
não tem conexão efetiva com a área em que ela existe, mas
é produzida como um ícone para observação de qualquer
pessoa que deseje visitá-la. Como outras peças de museu,
pode estar no lugar em que foi originada, mas esse fato tem
pouca importância para a sua natureza, que é como de um
significante da diferença. Uma relíquia é como um vestígio
da memória despojado de suas estruturas coletivas.

Ao escolher as ruínas da antiga Enfermaria Militar como lugar privile-


giado de ativação patrimonial, o Projeto Jaguar utilizou-se das ruínas como
símbolo de um passado, mas sem conexão com os antigos usos da enfer-
maria. Tinha como objetivo transformar o local das ruínas, e seu entorno,
em um centro cultural com atividades como música e teatro e também
roteiro turístico, contando para esse empreendimento com a parceria da
Prefeitura Municipal de Jaguarão. Prats (1998, p. 68) argumenta de forma
concisa esse tipo de ativação de determinados locais como patrimônio:

O que significa, em definitivo, ativar um repertório patri-


monial? Escolher determinados referenciais de um todo e
colocá-los de outra forma. Evidentemente isto equivale a
articular um discurso que estará avalizado pela sacralidade
dos referenciais. Este discurso dependerá dos referenciais
escolhidos, dos significados destes referenciais que se des-
tacam, da importância relativa que lhes atribuam, de sua
inter-relação (é dizer da ordem do conjunto que integram)
e do contexto (em um processo não isento, às vezes, de
pretensas reduções de símbolos a signos). É bem claro, pois,
que nenhuma ativação patrimonial, nenhuma, de nenhum
tipo, é neutra ou inocente, sejam conscientes ou não disto
os gestores do patrimônio (Tradução nossa).
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 155

Na Figura 4, a seguir, se apresenta a proposta de revitalização da antiga


enfermaria militar, onde as ruínas seriam preservadas e usadas como cenário
para outras atividades culturais, como um teatro de verão construído no lugar
da antiga pedreira; arquibancadas de contemplação para a vista da cidade
e do Rio Jaguarão e um parque destinado a ser usado como acampamento
pelos visitantes e outras atividades de lazer, com projeto paisagístico de ar-
borização e um pequeno lago artificial. Esse projeto foi derivado do acordo
entre a UFPel e a Prefeitura Municipal de Jaguarão, com o nome de Programa
de Revitalização Integrada de Jaguarão. Nota-se que apesar de um número
considerável de imóveis no centro urbano de importância histórica, a antiga
enfermaria foi elegida como principal vetor desse programa.

Figura 4. Projeto de revitalização da antiga Enfermaria Militar


Fonte: Projeto Jaguar, Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão, acervo do IHGJ.

Para que houvesse um envolvimento da comunidade no projeto, foi


realizado um movimento com o objetivo de despertar a população para
a importância das ruínas da Enfermaria Militar como parte do patrimônio
156 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

arquitetônico da cidade. As chamadas vigílias da enfermaria foram parte


desse processo de incluir a participação popular para a preservação da-
quele bem. Em 1987, como parte das metas do projeto, foi construído o
parque denominado Dr. Fernando Corrêa Ribas, o qual tinha a intenção
de consolidar a participação da comunidade no entorno das ruínas, ao
mesmo tempo que aproveitava seu espaço para afirmar uma concepção
arquitetônica de utilização do patrimônio. Isso fica bem claro na repro-
dução da portaria que instituiu o parque pelo jornal local:

O imóvel a que se refere o artigo 1º desta Portaria destina-se


a execução de projeto paisagístico, compreendendo a recu-
peração do prédio da Antiga Enfermaria do 33º Batalhão de
Infantaria Motorizada, do Ministério do Exército, a construção
de pequeno teatro de verão; de pátio ou local de artesanato
e exposição de objetos folclóricos; de centro de informações
turísticas; de áreas de estar, bem como o tratamento de áreas
verdes, inclusive com introdução de espécies ornamentais e
nativas (A FOLHA, 1987, p. 3).

Essa esperada consolidação da participação popular não ocorreu nos


moldes desejados, por falta de um uso mais apropriado pela população
do entorno, que não se viu pertencente àquele tipo de uso determinado
por arquitetos e pelo poder público. Novamente, o local ficou abando-
nado, e as ruínas voltaram a ter o significado anterior, ou seja, um local
de histórias e lendas de um passado desconhecido. Entretanto, as ruínas
foram tombadas como patrimônio histórico pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do Rio Grande do Sul (IPHAE-RS) em 1990.

O projeto do Centro de Interpretação do Pampa (CIP)

Após 22 anos, não existindo mais o parque nem contando com a intervenção
do órgão estatal de preservação para a consolidação das ruínas, a situação
do bem tombado estava em precárias condições. Em 2009, foi concebida
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 157

uma nova proposta de ativação patrimonial pela Prefeitura Municipal de


Jaguarão e a Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), para revitalização
das ruínas e seu entorno, transformando o local num complexo cultural
denominado de Centro de Interpretação do Pampa (CIP). A proposta colo-
caria, novamente, as ruínas da antiga Enfermaria Militar como relíquia, agora
sendo a base para a consecução de um museu que teria como conteúdo
da exposição o bioma do pampa gaúcho4, com espaços agregados, com
anfiteatro, auditório e prédio de apoio e exposições temporárias.
Na Figura 5, a seguir, observa-se o projeto do arquiteto Marcelo Ferraz,
do escritório Brasil Arquitetura, da cidade de São Paulo. O partido utiliza-
do consiste em uma mescla da arquitetura moderna com as ruínas, uma
característica dos projetos desenvolvidos pelo escritório de arquitetura
paulista quando da intervenção em bens tombados. Essa proposta difere
da proposta anterior do Projeto Jaguar por construir sobre as ruínas um
prédio totalmente modificado e sem relação com seus usos anteriores.

Figura 5. Projeto do CIP para intervenção nas ruínas da antiga Enfermaria


Fonte: Brasil Arquitetura, 2010.

4 
A região do pampa compreende a fronteira oeste do Rio Grande do Sul, o território do
Uruguai e parte do território argentino, caracterizada por pequenas elevações, cobertas por
gramíneas e vegetação de pequeno porte. A figura do gaúcho foi-se modificando ao longo do
tempo, mas basicamente se trata de pessoas ligadas à atividade pecuária, desenvolvendo uma
cultura peculiar nas atividades rurais.
158 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

As ruínas da antiga Enfermaria Militar serviriam como base para a


construção de um museu com uma proposta de conduzir o visitante por
um percurso interno determinado, dividindo as salas em áreas temáticas,
ou eixos norteadores. As antigas salas da Enfermaria, agora revitalizadas,
seriam transformadas para abrigarem exposições com conteúdo interati-
vo, apoiados por uma aparelhagem tecnológica de luz e som, cujo fundo
temático seria originado do bioma do pampa.
Uma grande diferença entre o projeto do CIP e o Projeto Jaguar é no que
tange à intervenção nas ruínas, não prevista pelo segundo, o qual deixaria as
ruínas intactas como objeto de contemplação. O projeto do CIP não levou
em consideração a relação das ruínas com seu uso presente, nem serviram
de ponto de reflexão desse projeto com a comunidade que as usa, talvez
com a justificativa de que essa população do entorno seria beneficiada com
os investimentos no local, que valorizaria a infraestrutura urbana. O poder
político de órgãos como a prefeitura e a universidade determinariam o me-
lhor aproveitamento das ruínas, segundo suas diretrizes. Conforme afirma
Prats (1998, p. 69), sobre os interesses políticos nas ativações patrimoniais:

Voltemos ao poder político que havia sido, e presumivelmente


será o principal agente de ativação patrimonial, o principal
construtor de museus, de parques naturais e arqueológicos,
de catálogos de monumentos, de identidades [...]. O Estado,
as comunidades autônomas, os municípios, e seus respectivos
governos, não atuam neste sentido de forma diferente. Senão
com maior ou menor intensidade segundo seus meios, mas
também segundo suas urgências identitárias (Tradução nossa).

No caso em tela, o prédio em ruínas da antiga Enfermaria Militar


evocava um passado ligado a classes mais populares do seu entorno, na
periferia do centro urbano e com atendimento de saúde. Mais do que a
instalação de um complexo cultural, da revitalização de uma ruína, está
posta em questão os usos e sentidos de certa parte da comunidade em
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 159

relação às ruínas, que ao verem seu local de memória esvaziado de sentido


acabaria produzindo o esquecimento, e a um novo ciclo de depredação e
abandono. A grande chave que poderia dar ao projeto do CIP uma maior
apropriação pela comunidade do entorno seria a valorização das me-
mórias daquelas pessoas que utilizaram o espaço em seu cotidiano, nos
três períodos de uso explicitados inicialmente. O mais importante seria
valorizar o processo de reconhecimento da comunidade do entorno, para
que a partir desse ponto houvesse uma conexão com as novas gerações
que iriam utilizar o espaço revitalizado.

O projeto do CIP e a comunidade: problemas a serem enfrentados

O projeto do CIP nasceu de necessidades que podem ser percebidas nas es-
tratégias de gestão do governo municipal da cidade de Jaguarão, quando se
analisa o contexto econômico e político da região neste momento: fomento
turístico através da valorização do patrimônio cultural; potencial de desen-
volvimento econômico em uma região privada de um capitalismo industrial,
que propiciasse uma elevação no nível de renda das camadas populares da
cidade; atração turística para o público que vai até a vizinha cidade uruguaia
de Rio Branco para comprar produtos importados em free shops.
Esses fatores, embora não sejam claramente explicitados no projeto,
é, na realidade, o esteio da proposta do poder político local para justi-
ficar o investimento aplicado, dentro da lógica de enfrentamento com
os grupos opositores da proposta. Esses aspectos, que em certa medida
são justificáveis, por ser uma região carente economicamente, não po-
deriam ser os únicos direcionadores desse tipo de empreendimento. O
patrimônio cultural não é uma questão que deva ser pautada somente
pelo viés econômico, mas deve considerar também os benefícios em lon-
go prazo, para o desenvolvimento humano e, consequentemente, social.
Nesse sentido, deve-se pensar em resultados formativos – educativos e
culturais –, mas também visar praticamente o empreendedorismo que
se pode estimular através do uso adequado do patrimônio cultural, prin-
160 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

cipalmente em relação às comunidades populares, que em uma cidade


do interior não têm acesso aos equipamentos culturais que existem nas
médias e grandes cidades. Varine (2012, p. 40) esclarece:

Provocar o enriquecimento permanente do patrimônio é,


assim, uma proposta das políticas de desenvolvimento, o
que os programas exclusivamente turísticos normalmente
rejeitam. A criatividade da população, em suas diferentes
gerações, é um trunfo e seria um erro limitá-la ao econômico,
ou crer que ela está reservada aos especialistas, autodesig-
nados ou diplomados.

O sentido que se dará ao espaço revitalizado do Centro de Interpretação


do Pampa não pode prescindir da participação ativa da comunidade sob
pena de, ao longo do tempo, tornar- se um local meramente voltado ao
turismo e, mesmo nesse aspecto, ficar pobre de significado, porquanto não
estaria imbuído da participação modificadora que é a cultura local, variável
ao longo do tempo.
Percebe-se que a ativação patrimonial das ruínas da antiga Enfermaria
Militar contém muitos pormenores, envolvendo uma série de atores e pro-
postas por vezes conflitantes. O simples fato de revitalizar uma ruína como
forma de preservação da memória leva ao questionamento sobre de que
memórias estão falando. Também o aspecto econômico não é argumento em
si só para sustentar a justificação dos recursos aplicados perante a população.
A concepção do projeto, sui generis, originada da junção de instituições
como a prefeitura, a universidade e os órgãos de preservação, aliada ao
olhar dos projetistas, tanto da arquitetura como da museografia, levou a
uma tensão constante pela disputa conceitual e burocrática do complexo
cultural. Questões importantes como a troca de informações entre todos
esses atores e o envolvimento e a participação da comunidade para a cons-
trução do projeto ficaram prejudicadas. Funari (2011, p. 57) alerta sobre
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 161

essas dificuldades na concepção e gestão de projetos na área patrimonial e


o desenvolvimento urbano:

As práticas preservacionistas acionadas na América Latina man-


têm-se em sintonia com as políticas internacionais de proteção,
que enfrentam o desafio de associar a preservação do patrimônio
cultural e da memória social ao desenvolvimento urbano. Mas,
no caso latino-americano, os especialistas se deparam com
outros impasses, agravados pela complexidade e extensão dos
acervos de bens, a dispersão desse patrimônio no vasto conti-
nente americano, as urgências sociais e a escassez de recursos.

As políticas patrimoniais, apesar de toda a problemática social de um


país com desigualdades sociais, reforçam o compromisso, cada vez maior,
de ampliar o acesso aos bens culturais, de forma democrática e participativa
das camadas populares. Esse desafio para os gestores de projetos de pre-
servação patrimonial deve ser enfrentado com uma proposta de educação
patrimonial em que ambos os envolvidos, gestores e comunidade, possam
dialogar e promover o intercâmbio necessário para boa política patrimonial.
Mais do que um discurso de legitimação dos órgãos institucionais do
patrimônio, a educação patrimonial deve ser baseada na percepção de que
a comunidade é a detentora das memórias do patrimônio a ser preserva-
do, tendo essa educação de estar imbuída de um novo olhar pedagógico
livre de preconceitos teóricos de especialistas do que seja patrimônio,
mas usando o conhecimento científico na construção de uma práxis que
incentive a cidadania através da cultura. Funari (2011, p. 59) argumenta de
forma eloquente esse ponto:


Por certo, a implementação de políticas patrimoniais deve


partir dos anseios da comunidade e ser norteada pela delimi-
tação democrática dos bens reconhecidos como merecedores
de preservação. Mas a seleção dos bens a serem tombados
precisa estar integrada aos marcos identitários reconhecidos
162 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

pela própria comunidade na qual se inserem. Nesse ponto,


a experiência participativa executada em Cuba, na Havana
Velha, pode ser lembrada, pois as medidas implementadas
promoveram o diálogo entre o velho e o novo e o debate sobre
as necessidades socioculturais da população. Desse modo,
o velho centro de Havana foi reabilitado, segundo Roberto
Segre, mediante atribuição de novos usos aos ambientes anti-
gos, transformados em espaços culturais, abrigos ou escolas.

A Educação Patrimonial, nesse sentido, é uma ferramenta essencial na cons-


trução do conhecimento das potencialidades do patrimônio a ser preservado,
valorizando os usos anteriores do patrimônio edificado como uma memória
a ser compartilhada pela comunidade. Assim, o conceito de educação patri-
monial é um fenômeno interdisciplinar, conforme assevera Horta (1999, p. 2):

A partir da experiência e do contato direto com as evidências e


manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos,
sentidos e significados, o trabalho da Educação Patrimonial
busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de co-
nhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural,
capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propi-
ciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num
processo contínuo de criação cultural. A observação direta e
a análise das “evidências” (aquilo que está à vista de nossos
olhos) culturais permitem à criança ou ao adulto vivenciar a
experiência e o método dos cientistas, dos historiadores, dos
arqueólogos, que partem dos fenômenos encontrados e da
análise de seus elementos materiais, formais e funcionais para
chegar a conclusões que sustentam suas teorias.

Ainda, no caso do projeto do CIP, O bioma do pampa, proposta concei-


tual escolhida para a museografia, é uma temática pouco compreendida,
o que denota o primeiro obstáculo a ser trabalhado para que houvesse
uma aproximação entre a comunidade e o centro cultural. Nesse sentido,
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 163

o elo que poderia ser incluído na temática do projeto e na apropriação pela


população seria o referencial histórico dos usos e da memória da antiga
Enfermaria Militar. Assim, o patrimônio cultural anteriormente constituí-
do serviria de ponte entre as gerações que vivenciaram os usos da antiga
Enfermaria e aquelas que vivenciarão o novo complexo do CIP.
A transformação do espaço patrimonializado e de seus significados
que estão consolidados na comunidade deveria ser objeto da educação
patrimonial nesse caso, como forma de demonstrar as escolhas dos ges-
tores para a viabilização do novo espaço, democratizando as informações
e permitindo a inclusão de possíveis demandas da comunidade nesse pro-
cesso. Igualmente importante é que haja uma educação patrimonial voltada
aos diversos gestores do projeto, compartilhando concepções e saberes.

Preservação do patrimônio e o desenvolvimento social

Embora a cidade de Jaguarão tenha um índice de desenvolvimento eco-


nômico baixo, vivendo basicamente da agropecuária e com uma grande
camada da população desprovida de trabalho e renda, está sendo reali-
zado um alto investimento do governo federal no patrimônio cultural da
cidade, principalmente o edificado, por ter sido o conjunto histórico e
paisagístico de Jaguarão tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN) em 2012. A justificativa desse investimento,
além do próprio patrimônio em si, é a utilização desses recursos como
potencializador do desenvolvimento econômico do município.
Nesse sentido, a supervalorização da utilização do patrimônio como
atrativo turístico gerador de renda tem de ser pensada com critérios e in-
dicadores que possam ser dialogados com a comunidade, para não se criar
expectativas que ao final não sejam supridas. Para que isso seja minimizado, a
educação patrimonial deveria ser entendida como um processo que, além de
construir um sentimento de pertencimento ao patrimônio ao qual estão sendo
investidos recursos, proporcione um desenvolvimento social da comunidade.
Além disso, o próprio IPHAN preconiza que a todo bem restaurado ou
construído com base em algum patrimônio cultural edificado deva ocorrer,
164 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

paralelamente à execução das obras, ações de educação patrimonial à


sociedade.5 Outra questão relacionada com a necessidade de haver uma
educação patrimonial durante as obras do CIP é a paisagem que está
sendo modificada no entorno do canteiro de obras. Essa paisagem é
formada por uma elevação acentuada no terreno, denominada de cerro,
uma característica das planícies da região. Esse cerro é referenciado em
documentos que remontam à fundação da cidade, por se constituir em
um dos dois pontos mais altos da região. No entorno da Enfermaria Militar,
surgiu uma povoação constituída de casebres habitadas por famílias de
baixa renda sem qualquer assistência do poder público na infraestrutura
do local, como drenagem e esgoto. Em vista disso, o poder público re-
alizou um projeto para melhoria dessas habitações e seu entorno, com
infraestrutura adequada, conforme as palavras do prefeito da época,
Cláudio Martins, em cuja gestão o CIP foi elaborado:

De acordo com o prefeito, existe um projeto de “revitali-


zação” do Cerro da Pólvora, incluído no PAC-2. Através do
investimento, 197 famílias receberão regularização fundiária
e esgotamento sanitário individual. Destas famílias, dez serão
beneficiadas com moradias realocadas e 86 com moradias
reformadas. Ainda é prevista a construção de um espaço de
lazer, utilizando a área das pedreiras, com praça (brinque-
dos, palco para eventos, banheiros e espaço para reuniões
da comunidade) e área esportiva, com campos de futebol e
quadra de vôlei. Também serão feitas sinalização, drenagem,
construção de calçadas e pavimentação (ZORZI, 2012, p. 93).

5 
Conforme as legislações existentes, sobretudo das políticas internas do IPHAN sobre educação
patrimonial, vide Portaria n. 420, de 22 de dezembro de 2010, Portaria n. 299, de 6 de julho de
2004, Portaria n. 127/2009 (Paisagem Cultural Brasileira), Fórum Política Nacional no Âmbito
da Educação Patrimonial Eixos Temáticos, Diretrizes e Ações Documento final do II Encontro
Nacional de Educação Patrimonial (Ouro Preto-MG, 17 a 21 de julho de 2011).
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 165

As obras se iniciaram em 2012, no entanto os projetos esbarraram nos


caminhos burocráticos do Estado e na falta de coordenação das políticas
públicas dos órgãos de preservação com o poder público local. Enquanto
as obras do CIP tiveram investimento de recursos oriundos do governo
federal, mais especificamente do Ministério da Cultura, o projeto da
melhoria da infraestrutura do seu entorno não foi concretizado.
Como é possível perceber na Figura 6, a seguir, as moradias simples
e a falta de infraestrutura das ruas em frente ao CIP são evidentes. A
situação precária continuou a mesma para os moradores daquele local,
somente sendo modificada a paisagem a sua frente, onde a presença do
Estado se faz visível. Enquanto que os anseios daquela população não são
percebidos, eles observam técnicos e especialistas, assim como autoridades,
visitarem e usarem o CIP como símbolo de sua política.

Figura 6. Entorno da obra do CIP. Vila do Cerro da Pólvora


Fonte: O autor (2015).
166 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

Na Figura 7, na sequência, pode-se observar a cerca que envolve todo o


complexo. Embora não estivesse prevista no projeto, ela foi colocada com a
justificativa de dar mais segurança para a obra do CIP, ou seja, a segregação da
comunidade com seu bem patrimonial começou antes mesmo do funcionamen-
to do museu e evidencia um preconceito relativo às camadas menos favorecidas
economicamente. Há de se observar que, durante toda a sua existência como
organização militar, não houve uma cerca que separasse a Enfermaria Militar
de seu entorno, o que seria justificável por ser uma instalação militar. Ainda que
essas questões possam ser dirimidas posteriormente, fica patente a escolha
dos gestores em priorizar a preservação das ruínas e a construção do CIP em
detrimento da melhoria da infraestrutura da comunidade do entorno. A boa
política patrimonial não pode ficar alheia ao desenvolvimento urbano onde
esse patrimônio está inserido sob pena de haver uma cisão entre os órgãos de
preservação e as pessoas a quem de fato essas políticas deveriam beneficiar.

Figura 7. Cerca no entorno da obra do CIP


Fonte: O autor (2015).
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 167

Considerações finais

Neste artigo, foi apresentado o processo de construção de um patrimônio


tombado pelo órgão federal de preservação brasileiro em uma cidade localiza-
da na fronteira entre Brasil e o Uruguai. Esse bem denominado de Enfermaria
Militar de Jaguarão, construído no final do século XIX pelo exército brasileiro,
teve diversos usos ao longo de sua existência de mais de cem anos, tornando-
-se um local de memória para os moradores do entorno como também para
o restante da comunidade. Quando de sua proteção pelo Estado através do
tombamento, o prédio encontrava-se em ruínas, mas mesmo nessa situação
seu espaço era apropriado pela comunidade através de histórias, lendas e
canções que evocavam um sentimento de ligação com aquele bem.
O processo de transformação de um prédio em ruínas em bem patrimo-
nial protegido pelo Estado passou por um processo de ativação patrimonial,
iniciado na década de 1980 pelo Projeto Jaguar da UFPel até culminar no
projeto do Centro de Interpretação do Pampa (CIP), o qual foi concebido e
desenvolvido em uma parceria entre a Prefeitura Municipal de Jaguarão e a
UNIPAMPA, com a anuência do IPHAN. Esse projeto visa à construção de
um museu com a temática do bioma pampa, que ocultaria a memória da
comunidade em relação à antiga Enfermaria Militar, que se transformaria
em apenas um vestígio do passado, uma relíquia. Grandes recursos foram
alocados oriundos de verba pública federal para a consecução do projeto, e
a contrapartida caberia ao poder público municipal, que viabilizaria a me-
lhoria das condições de infraestrutura do entorno da antiga enfermaria, por
se tratar de um bairro periférico e uma das regiões mais carentes da cidade.
A intenção deste artigo foi a de discutir os elementos que perpassam
essa política patrimonial aplicada pelo Estado brasileiro, que investe grandes
somas de recursos em bens patrimoniais sem levar em consideração o seu
entorno, que no caso analisado constitui-se de uma população historicamente
marginalizada pelo poder público. Embora em outras áreas de investimento
de recursos públicos a população tenha conquistado mais participação, como
os orçamentos participativos, na área patrimonial ainda persiste uma visão
168 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S

elitista de como deve ser gerido o patrimônio, sujeito ao regramento e à


conceituação dos técnicos dos órgãos de preservação, os quais impõem suas
concepções através de uma presumida autoridade científica.
No caso apresentado neste artigo, foi possível observar que a im-
plantação dessa política patrimonial vinda de cima para baixo não é mais
possível sem considerar os avanços dos métodos participativos de uma
sociedade democrática contemporânea. A aludida participação popular
se torna essencial no que tange à aplicação de recursos públicos em bens
patrimoniais, que são em sua essência um legado da comunidade e fator
de identificação e memória desta.
Enfim, o que se colocou neste artigo foi a discussão de elementos para
que se possa refletir sobre uma nova política patrimonial alicerçada na par-
ticipação democrática e no gerenciamento compartilhado dos bens que são
constitutivos da sociedade. Assim, atualizar esse debate é imprescindível
para a construção das novas políticas patrimoniais no início do século XXI.

REFERÊNCIAS
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2016. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/perfil.php?cod-
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A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 169

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MEMÓRIA OPERÁRIA, RECONFIGURAÇÕES
PRODUTIVAS E NOVOS USOS DO PATRIMÓNIO
INDUSTRIAL NO VALE DO AVE1

MARIANA REI

[...] los procesos económicos siempre suceden en algún lugar; de este modo,
estudiar el modo como estos procesos se espacializany contribuyen decisiva-
mente a la producción del espacio posee un enorme potencial heurístico para
las ciencias sociales en su intención de analizar la tensión global/local
(FRANQUESA, 2007, p. 127).

Num artigo de 2010, Jaume Franquesa denota como a dimensão económica


do património, designadamente o seu papel nos processos de acumulação
de capital, é frequentemente negligenciada pelos antropólogos, centrados
sobretudo no seu caráter cultural e identitário (2010, p. 40). Apesar de, ten-
dencialmente, os discursos e processos de patrimonialização se revestirem
de uma aparência economicamente desinteressada, o antropólogo catalão
sustenta comoestes desempenham, naverdade, um papel central na produ-
ção de valor que enforma o próprio objeto patrimonial. Tal é notório pela
forma como, nas últimas décadas, a inflação patrimonial – para recorrer ao

1 
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
172 MARIANA REI

termo de Françoise Choay (1992) – tem sido acompanhada com uma forte
expansão dos processos de mercantilização (FRANQUESA, 2010, p. 54).
Neste sentido, Franquesa propõeno referido artigo um conjunto de ferra-
mentas teóricas que ajudem a pensar esta relação entre património e mercado.
Segundo o antropólogo, a categoria de património revela-se desadequada a
este propósito, pelo seu caráter essencializador, ocultando o processo me-
diante o qual o objeto patrimonial adquire valor. Apoiando-se na tradição da
antropologia económica – designadamente em Annette Weiner (Inalienable
Possessions. The paradox of keeping-while-giving 1992) e Maurice Godelier
(L’énigme du don 1996), que estudam a questão da posse em sociedades de
reciprocidade não económica –, propõe guardar como categoria analítica al-
ternativa, uma questão que desenvolve posteriormente (FRANQUESA, 2013)
de forma articulada com o contexto de Palma, na ilha de Maiorca (Espanha).
A inter-relação entre os processoseconómicos e os de patrimonialização
constitui-se como o ponto de partida do estudo que informa este artigo, de-
senvolvido a partir de um fenómeno de proliferação recente em Portugal – as
fábricas criativas (REI, 2016a). Conforme nota Franquesa na citação que dá o
mote a este artigo,os processo económicos sempre decorrem nalgum lugar
(2007, p. 127), constituindo-se a regeneração urbana como uma das suas
manifestações mais visíveis. Partindo da requalificação de antigas unidades
industriais com significativo valor patrimonial e forte implantação na memó-
ria coletiva da região, as fábricas criativas– isto é, a requalificação de antigos
espaços industriais em espaços de indústrias criativas –têm como princípio
transformar anteriores marcos de desenvolvimento económico em polos
de inovação de referência, através da instalação de incubadoras de indús-
trias criativas. Assentes na desvalorização e revalorização cíclica de espaços,
estes projetos constituem-se, neste sentido, como mecanismos de criação
de novas oportunidades de mais-valia, num processo de destruição criativa
(SCHUMPETER, 1961 [1943])que acompanha as crises cíclicas do capitalismo
e constitui a base do seu sistema de acumulação (FRANQUESA, 2007, p. 128).
Pela forma como materializam localmente e ao longo do tempo fenó-
menos globais e abstratos como são os processos económicos, as fábricas
MEMÓRIA OPER ÁRIA 173

criativasassumem-se, neste sentido,como um dispositivo epistemológico


importante na sua análise, constituindo-se como autênticos lugares “de fron-
teira” – ou liminaridade,recorrendo à reformulação por Victor Turner (1967)
do termo cunhado por Arnold van Gennep em Lesrites de passage, em 1909.

Uma etnografia de fábricas criativas: tema, problema, objeto

Partindo deuma etnografia0 das duas vidas que estas fábricas criativas
condensam, procurou-se neste estudo olhar para asatuais transforma-
ções no mundo do trabalho, suas mudanças e continuidades, no quadro
de uma reestruturação produtiva à escala global a que temos vindo a
assistir particularmente desde a década de 1980. Em contexto europeu,
este novo modelo de produção – assente num sistema de subcontratação
“em cascata” (APPAY, 2005) e naflexibilização laboral, por substituição
da velha fábrica vertical fordista – tem-se traduzido numa estetização
da economia e do trabalho, onde os discursos e práticas em torno da
criatividade assumem crescentemente um papel central.
Enunciados não por quem trabalha nas áreas criativas, mas por ges-
tores, políticos ou programadores culturais, e portanto sob uma aura
idealista que passa para a esfera pública, os discursosnos quais assentam
estes espaçossão, neste quadro, distintos da produção criativa efetiva.
Considerando a visão romantizada que subsiste na esfera pública relati-
vamente à realidade do trabalho criativo, definiu-se como problemática
central deste trabalhoa análisedas atuais reconfigurações produtivas à luz
da figura do artista, questionando até que ponto este se assume como
modelo ideal de trabalho perante o sistema económico vigente.
Tendo em vista a constituição de um objeto de estudo, foquei-me
especificamenteno caso de requalificação recente de uma antiga e em-
blemática fábrica têxtil algodoeira localizada no Vale do Ave, na periferia
do Porto (Portugal). Embora em contexto europeu os exemplos sejam
múltiplos e o fenómeno adquira já um caráter histórico, este tem vindo a
alastrar desde a década de 1970 a partir do centro progressivamente para
174 MARIANA REI

os países periféricos, tendoproliferadoem Portugal particularmente desde


2012, a norte do país e por recurso a programas de financiamento europeus.

Entre Antropologia e História: questões de teoria e métodos

Em L’experience concentrationaire, obra ligada à emergência da história


oral, Michael Pollak (1990) refere como o recurso ao método biográfico
nas ciências sociais se pode revelar particularmente profícuo para o estu-
do de mudanças sociais e económicas acentuadas, designadamente pela
forma como permitem atentar à totalidade da vida da pessoa, e portanto
um olhar a montante e a jusante – mais abrangente – da temática em
estudo. A história oral permite, por outro lado, estender a pesquisa à base
da escala social (ibid. p. 197), uma questão particularmente relevante
num estudo que se debruça sobre memórias fracas (TRAVERSO, 2005).
Propus-me, neste sentido,estabelecer uma etnografia das duas vidas
que estas fábricas encerram, têxtil e criativa, a partir das histórias de vida
laborais das pessoas que lhes dão corpo. O estudo assentou na realização
deentrevistas semiestruturadas a 31 pessoas, 19 no caso da primeira vida(a
antigos operários, mas também empregados de escritório ou da canti-
na, com idades compreendidas entre os 60 e 76 anos de idade), e 12 na
segunda (designers ou gestores selecionados para integrar a incubadora
criativa da fábrica, com idades entre os 23 e 43 anos), seguindo a técnica
de “bola de neve”, num total de 38 entrevistas áudio e 12 em formato vídeo.
Tendo em vista a análise comparativa e histórica que se pretendia
da problemática em estudo,o recurso ao método histórias de vida foi
articulado com o trabalho de arquivo, encarado neste contexto, na linha
seguida por Sónia Almeida, como um autêntico terreno antropológico
(2007, p. 55). Esta fase abarcou o trabalho com arquivos tanto de caráter
privado (mediante a recolha de fotografias, vídeos e objetos relevantes
junto de antigos trabalhadores), como empresarial (no arquivo da fábrica,
particularmente as fichas mecanográficas dos trabalhadores, folhas de
salários e regulamento interno da fábrica) e público (consulta de legislação
MEMÓRIA OPER ÁRIA 175

de época). Esta complementaridade de métodos aplicou-se particularmen-


te no caso da primeira vida, por se tratar de um tempo longo, tendo-se
revelado central na compreensão da realidade da fábrica à época.
Embora cruzando ferramentas da Antropologia e da História, este
estudo situa-se no domínio da Antropologia, dado que se centra não na
reconstituição factual do passado – num tempo mais ou menos longo –,
mas nas representações sobre ele pelo universo de entrevistados, portan-
to no domínio da memória. A utilização de excertos de histórias de vida
assume-se, neste contexto, não como prova mas enquanto ilustração.2
O passado é sempre uma construção social, pelo que a rememoração
se constitui sempre a partir de elaborações discursivas situadas no presente,
moldada pelas preocupações e aspirações de cada época. Como afirmou
Maurice Halbwachs, “everything seems to indicate that the past is not
preserved, but is reconstructed on the basis of the present” (1994 [1925],
p. viii). É, então, a partir deste presente etnográfico, correspondente
ao período que decorreu o trabalho de campo que informa este projeto
(entre dezembro de 2013 e maio de 2014), que se poderá entender esta
rememoração. Em maio de 2014, a incubadora criativa da Grande Fábrica,
já requalificada, ainda não tinha aberto, enfrentando os entrevistados
desta segunda vida,por esta altura, um longo compasso de espera. Sendo
que a primeira vida já havia terminado, com o encerramento da fábrica
em 1990, no início da primeira vaga de desindustrialização da região e do
país, e a segunda ainda não tinha começado, as entrevistas decorreram
por isso sempre fora do espaço da fábrica.
Recorro aqui aos termos primeirae segunda vida para distinguir entre
as duas vidas da fábrica, partindo da proposta de Barbara Kirshenblatt-
Gimblet (1998), embora não me reportando ao processo de patrimonia-
lização em si, fora do âmbito deste trabalho, mas para distinguir entre as

2 
Na linha dos trabalhos de Paula Godinho (1998, p. 42) e Sónia Vespeira de Almeida (2009, p.
50) sobre a realidade portuguesa. Conforme refere Paula Godinho (1998, p. 42), a formulação
do recurso a fragmentos de história de vida enquanto ilustração, e não como prova, é tratada
por Daniel Bertaux (1986, p. 21-34).
176 MARIANA REI

suas duas fases.Considere-se, a este respeito, que embora possamos falar


de duas vidas no que respeita à fábrica, o mesmo não se aplica no caso
dos entrevistados, uma vez que, ainda que operários e criativosnunca
se cruzem no decurso do trabalho de campo e pertençam a gerações
diferentes, estes são contemporâneos.

Industrialização no Vale do Ave: do têxtil à moda

Desde cedo que as características geográficas, demográficas e socioeco-


nómicas do Vale do Ave se mostraram propícias à produção têxtil na região.
Num contexto profundamente rural marcado pela tradição domiciliária do
linho e pela proximidade ao rio, bem como aos principais centros urbanos
a norte do país, a indústria têxtil encontra neste território as condições
mais atrativas para se instalar. A abundância de energia hidráulica, ter-
reno e mão de obra a baixo custo ditaram, em meados do século XIX, a
deslocalização da indústria têxtil do Porto para a periferia, naquele que
ainda hoje se constitui como o principal centro de produção têxtil do país.
Pela numerosa força de trabalho que empregava e os extensivos lucros
advindos do algodão das colónias, a indústria têxtil algodoeira constituiu-se
então como um dos setores mais importantes no país.
Embora crucial na criação de uma cultura de trabalho têxtil, nem
por isso a tradição domiciliária do linho contribuiu para a construção de
uma cultura industrial. Numa região marcada pela pluriatividade – que
se divide entre o trabalho na indústria e a agricultura de subsistência – e
onde a consciência de classe terá ficado por construir3, a industrialização
pautou-se sempre por um caráter difuso, monoespecializado, tardio e lento.
A este facto não será alheia a condição geográfica e culturalmente peri-
férica que sempre caracterizou a indústria têxtil, cuja extensão da cadeia
produtiva e força de trabalho intensiva ditou a primeira divisão técnica e
internacional do trabalho. Segundo Madalena Fonseca, a constituição do

3 
Sobre este assunto, cf., por exemplo, Pereira (1997), Ingerson (1981) ou Alves (1999).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 177

Vale do Ave como uma região industrial monoespecializada terá resultado


precisamente deste movimento estratégico de internacionalização da pro-
dução por parte dos ingleses4, facto que marcou fortemente a dimensão e
características da industrialização nesta região, designadamente ao nível
da organização e controlo da produção (2001, p. 136-137).
É neste contexto que é fundada, no final do século XIX, a Grande
Fábrica5,integrando a primeira vaga de industrialização do Vale do Ave. A sua
constituição segue a tendência, corrente à época, de inclusão de engenheiros
e técnicos ingleses e franceses nas suas estruturas diretivas, para colmatar o
conhecimento técnico industrial na altura inexistente em Portugal.Constitui-se
como uma unidade vertical ou completa, integrando todo o processo pro-
dutivo necessário à transformação do algodão em fio e em tecido. Assenta
numa força de trabalho intensiva6, especializada e desqualificada7, e apresenta
uma forte divisão etária, de género e técnica – uma hierarquia extensa, com
papéis de execução e controlo marcados. Centrada na produção de fios e
tecidos em massa, acabou por encerrar quase um século depois, no início
de uma profunda desindustrialização da região e do país.
A desindustrialização e consequente terciarização económica trou-
xeram ao Vale do Avea urbanização do território. A viragem do milénio
marca, na localidade em estudo, o início de um longo processo de rege-
neração urbana e de tentativa por parte do município de aproximação da
cidade ao rio, centrado numa parte significativa deste vasto complexo

4 
De acordo com a autora, este movimento de internacionalização da indústria têxtil pelos
ingleses surgiu por resposta à resistência empreendida pelo movimento operário inglês organi-
zado à introdução de novas tecnologias (2001, p. 137). O mesmo motivo originou, mais tarde, a
deslocalização da indústria têxtil do Porto para o Vale do Ave, na sua periferia (cf. MÓNICA, 1986).
5 
Por forma a garantir o seu anonimato, todos os nomes de entrevistados, de pessoas ou locais
mencionados nas entrevistas, bem como da própria fábrica foram alterados ou ocultados.
6 
Numa folha de salários da fábrica de 1960 contam-se 1008 trabalhadores (F.S. nº 2637 de 6
de abril de 1960).
7 
Aplicam-se aqui os termos «qualificado» e «especializado» respetivamente no sentido da
formação do trabalhador e da divisão por tarefa da cadeia de montagem. Por inerência, quando
mais específica a tarefa mais repetitiva e menor a qualificação necessária à sua realização e
respetivos salários, e tanto maior a produtividade do trabalhador, por via da redução de ope-
rações diferentes, e a sua alienação.
178 MARIANA REI

fabril. Progressivamente requalificada através de sucessivas candidaturas


a programas de financiamento europeus, a fábrica vai acompanhando a
evolução das tendências europeias ao nível das políticas culturais e de
regeneração urbana – da cultural, à tecnológica e, finalmente, à criativa.
Na origem desta “viragem criativa” – e económica – nos usos do patri-
mónio industrial estão as designadas indústrias criativas, um termo político
associado à promoção do talento individual e à exploração da propriedade
intelectual, com origem num outro, o de indústria cultural, introduzido por
Adorno e Horkheimer na década de 1940 precisamente no sentido oposto
ao atual, para criticar a massificação da arte provocada pela Revolução
industrial (1985 [1947]). O termo foi popularizado na década de 1990 pelo
governo de Tony Blair, no quadro da designada terceira via, surgindo como
forma de abrir caminho ao privado, o que se reflete nesta transição do foco
na cultura (vista enquanto arte, associada aos setores tradicionais como
a dança ou as artes plásticas) à criatividade (já associada à inovação, com
um forte pendor económico, a partir de áreas como o design ou o cinema).
Resultado do cruzamento das designadas indústrias criativas com o
conceito de património industrial, surge hoje uma nova tendência ao nível
das políticas de requalificação urbana: as fábricas criativas. Em Portugal, a
Lx Factory, fundada em 2008 por iniciativa privada, foi um caso pioneiro.
Desde 2012, o fenómeno tem proliferado particularmente a norte do país,
por iniciativa privada e recurso a programas de financiamento europeus. A
Grande Fábrica, na sua segunda vida, integra este movimento, no âmbito
do Cluster de Indústrias Criativas na Região do Norte e financiado pelo
Programa Operacional Regional do Norte 2007-2013 (ON.2). Entre outras
valências, este espaço viria a integrar, no ano seguinte, uma incubadora
criativa direcionada para a área do design e da moda, no qual se centra a
análise relativa à segunda vidadeste espaço.
Nos projetos selecionados para integrar este espaço, o modelo cor-
responde à empresa flexível (CE 1997). Direcionadas sobretudo para a área
da moda e turismo, externalizam recorrentemente o processo produtivo
mediante um sistema de subcontratação «em cascata» (APPAY, 2005).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 179

A força-de-trabalho, qualificada e tendencialmente não especializada, en-


contra-se por isso fortemente atomizada – com cada marca ou empresa a
ser constituída por 1 a 3 pessoas, entre designers e gestores –, desempe-
nhando papéis híbridos e sem uma hierarquia vincada, sendo recorrente
a figura do designer-gestor ou do patrão-trabalhador. Por fim, os espaços
de trabalho são por norma flutuantes, invisíveis e de baixo custo, sendo
recorrente o recurso à esfera doméstica.

Primeira vida, segunda vida: operários e artistas

Passados mais de 25 anos,o encerramento da Grande Fábrica constitui-se


ainda hoje como um episódio traumático na história de vida de quantos lá
trabalharam. “O que vou dizer, que me roubaram? Foi por isso que nunca mais
lá pus os pés”8, “Eles que paguem o que me devem”.9 Um(a), após outro(a),
após outro(a). Off the record, e excetuando os primeiros entrevistados, a
primeira reação era quase sempre a mesma: revolta. Desde logo pelas in-
demnizações que lhes eram devidas – enquanto credores da fábrica, a par
da segurança social e do banco –, a uma grande parte por décadas de casa:

Na altura, quando aquilo fechou, ficaram-me a dever – isto


falando em contos ainda – à volta de 2500 contos, que nessa
altura era muito. Ainda hoje é. Recebi cerca de 200 contos, não
recebi mais. Portanto, ficou lá muito dinheiro meu e de muitos
colegas meus. [...] E custa-me até a entrar lá dentro. E quando
entro, entro muito revoltado, por não me pagarem aquilo
que me ficaram a dever (Operário nos armazéns de revista e
expedição, empregado na secção de venda ao público e chefe
da secção de revista após o 25 de abril de 1974).10

8 
Entrevista 6 – parte 1 (21.01.2014, registo do caderno de campo).
9 
Entrevista 4 – parte 1 (07.12.2013).
10 
Entrevista 11 (12.02.2014).
180 MARIANA REI

Para além da revolta, outros fatores apontam para que possamos estar
perante um cenário de memórias traumáticas.Note-se como boa parte dos
antigos trabalhadores manifestam relutância ou mesmo recusa em entrar
no espaço da fábrica – “Há ainda gente que não tem coragem de entra”11,
é referido recorrentemente. Ou como, por vezes, o primeiro contacto com
antigos trabalhadores era marcado pelo silenciamento, desconfiança ou
relutância em falar, sobretudo por parte da população feminina, embora os
dados não permitam estabelecer qualquer relação causal direta a este nível.
Todos estes fatores, de revolta ou silenciamento, apontam para uma me-
mória coletiva ainda muito viva ao nível local, e que ainda vai sendo ativada:

Gostei de ir lá, mas fiquei... A gente vê aquilo tudo desfeito,


aquilo é uma doença. As partes que estão recuperadas a gente
até acha que está bem, porque sempre dá aqui outro ambiente.
Mas faz tristeza. Quem viu aquilo e quem vê, faz tristeza.
Aqueles campos, eram todos fabricados, aquilo tudo. Agora está
tudo a monte. Nunca se via um portão podre, agora está aquele
portão ali todo podre. [...] Lembro-me das pessoas, velhoticas,
a correr por aí abaixo, chinelicos apeados [...]. Eu fui lá quando
eles fizeram ali uma festica agora há pouco tempo [...]. Foi aí.
E depois acho que nunca mais lá fui (Operária da fiação).12

Esta questão torna-se particularmente relevante se notarmos como a


rememoração reporta, sobretudo, ao período do Estado Novo, regime dita-
torial que vigorou em Portugal desde 1933 até à Revolução de 25 de Abril de
1974.13 Uma questão muito referida nas entrevistas diz, por isso, respeito à
forte disciplina da fábrica neste período, de forma articulada com um marcado

11 
Entrevista 1 – parte 2 (02-12-2013).
12 
Entrevista 3 – parte 1 (06.12.2013).
13 
Embora a maioria dos entrevistados da primeira vida tenham permanecido na fábrica até
à data de falência ou próximo (13 de 19), todos ingressaram pela primeira vez antes do 25 de
abril de 1974 (8 entre 1952 e 1959, e 11 entre 1960 e 1973), pelo que os testemunhos se reportam
sobretudo ao período do Estado Novo.
MEMÓRIA OPER ÁRIA 181

sentimento de injustiça relativamente à aplicação de castigos. Por norma, o


castigo implicava ficar sem trabalhar por período incerto, e portanto sem
salário, algo bastante relevante se considerarmos as condições de miséria em
que vivia grande parte da população durante o Estado Novo. Contudo, era
o ato de “pedir ao portão”, para retomar o trabalho após o castigo, que era
visto como humilhação máxima, pela forma como tornava o castigo público
perante todos. Esta não era, porém, a única estratégia usada para disciplinar
do operariado, conforme nota uma antiga operária da fiação:

E depois era aquele castigo, ‘Não vens trabalhar sem falar


comigo’. A gente ia lá um dia, ia dois, ia três, mas tínhamos
que ir todos os dias, estar ali encostadas ao portão. Para
mim é escravatura. Dava o castigo, ‘São 3, 4, 5 ou 6 [dias]’.
Era escravatura. [...] [E depois] Era de tal ordem um carrasco,
porque mesmo a fazer mal aos trabalhadores, mesmo a cas-
tigá-los, nós tínhamos que passar e dizer-lhe boa noite. Isso
para mim era como quem me cortasse o pescoço (Operária
da fiação, delegada sindical após o 25 de abril de 1974).14

Outra questão muito marcada na memória local, e que potencia a


revolta sentida, diz respeito à manutenção, segundo os testemunhos, de
determinadas atividades ilícitas na fábrica por parte de quadros intermédios e
superiores, como desvios de dinheiro e géneros ou a manutenção de relações
sexuais com operárias.15 Por um lado, a falência da fábrica e posterior falha
no pagamento das devidas indemnizações é cobrada historicamente aos
desvios de dinheiro e géneros. Por outro, a injustiça sentida na aplicação de
muitos dos castigos é atribuída, entre outros motivos,ao favoritismo que a
manutenção de tais atividades ilícitas gerava. Este sentimento de injustiça

14 
Entrevista 16 (13.03.2014).
15 
Note-se que, em vários testemunhos, é reforçado repetidamente que a manutenção de tais
atividades ilícitas, bem como a forte disciplina na fábrica, era prática corrente em todas as
fábricas da região no período do Estado Novo, e não apenas naquela.
182 MARIANA REI

recaía sobretudo nos intermediários (mestres e encarregados), que, por terem


acesso a informação privilegiada, desempenham um papel central nestes
esquemas de patrocinato. Os intermediários eram, por norma, pessoas da
classe operária interessadas em ascender socialmente, e portanto ideais para
a função de controlo. Na memória oral local são designados, por isso, também
de “capatazes”, “maiorais”, “jagunços”, “bufos”, “lacaios” ou “lambe-botas”.

– Os chefes eram sempre os filhos do Fulano. Esse é que era o


encarregado. E o que sabia era o funcionário normal. [...] Os en-
carregados, quem eram os encarregados de afinadores? Era tudo
ou primos, ou filhos. Tudo o que fosse descendente dos maiorais.

– E sabe porquê? Eu vou-lhe dizer o motivo. O Grande Patrão,


havia muita coisa em comum, segredos em comum. Era o ser-
ralheiro, fazia bancas na serralharia, mandava para a quinta
para sítio x [...]. E depois tinha o chefe dos carpinteiros, pronto.
Depois esse gajo fazia tudo o que queriam, porque havia um
passarinho escondido debaixo da bota (Operário da tinturaria,
branqueação e acabamentos, e pintor-secção de trolhas).16

Na compreensão desta questão é fundamental atentar à condição


das mulheres na fábrica à época. Embora em número superior na esfera
produtiva17, estas constituíam-se como o elemento mais vulnerável lá
dentro, sobretudo no que concerne aos castigos e a conseguir trabalho
na fábrica, para si ou para os filhos. O ato de “pedir [trabalho] ao portão”
servia, segundo alguns dos testemunhos orais, não só para tornar o
castigo público, mas também como meio de chantagem sexual sobre as
operárias. O mesmo sucedia quando as raparigas, entrando para a fábrica
muito novas, queriam casar e iam pedir aumento de salário:

16 
Entrevista 8 (07.02.2014).
17 
Na folha de salários de 1960, diretamente na linha de montagem (excluindo os cargos su-
periores e de manutenção, exclusivamente masculinos) apenas 37% num total de 708 traba-
lhadores são homens são homens (F.S. nº 2637 de 6 de abril de 1960). Incluem-se, entre estes,
os trabalhadores do turno da noite, vedado, segundo o despacho vigente à época, a mulheres
e menores (Despacho de 1 de agosto de 1955, “Trabalho nocturno de menores e mulheres”,
Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Providência, n.º 18/1955).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 183

Calhava, por exemplo, elas estarem a brincar. Porque naquela


altura ainda se brincava um bocado. E depois também não dava
gosto o trabalho, as pessoas trabalhavam de chicote. [...]. Eles
o que é que faziam, castigavam-nas ‘Ficas 3 dias de castigo, ou
ficas 8, ou um mês’. Ou, ‘Ficas de castigo até segunda ordem’.
E elas tinham que ir lá para a porta todos os dias pedir que as
tornassem a meter. E então eles aproveitavam-se disso. [...]
Estavam na totalidade dominadas pelo emprego. Porque em casa
levavam porrada, porque aquele dinheiro fazia falta (Operária
da fiação, delegada sindical após o 25 de abril de 1974).18

Num cenário de forte dominação associada ao têxtil e de marcada estrati-


ficação social – em que a família, e não a classe, se assume como unidade base
de produção –, os esquemas de patrocinato são a forma recorrentemente
encontrada para ultrapassar as dificuldades e procurar ascender socialmente.
O recurso a estes esquemas de favores implica, contudo, uma quebra do
sistema de valores, originando uma dependência moral que se reproduz ao
longo de toda a hierarquia da fábrica, abrindo caminho à aplicação injusta de
castigos ou à manutenção de atividades ilícitas na fábrica. Esta é uma questão
que permanece ainda hoje muito viva na memória coletiva local,refletindo-se,
nas entrevistas, norecurso recorrente a expressões como “emprenhar pelos
ouvidos”, “é a escovice” ou “crescer na vida com o mal dos outros”.
Se na primeira vida, a primeira reação à minha abordagem era de revolta,
na segunda foi de expectativa perante o impasse na abertura da incubadora,
o que acabou por não se verificar no período que decorreu o meu trabalho
de campo. Este atraso e impasse é particularmente sentido naquela que era
considerada efetivamente a grande vantagem do espaço e que justificaria
a sua deslocação lá – o apoio técnico à prototipagem e produção:

Eu acredito que aquilo vá produzir, mas na altura em que pre-


cisei ainda não estavam aptos, não sei se era pouca quantidade.

18 
Entrevista 17 – parte 2 (17.03.2014).
184 MARIANA REI

[...] Eu queria, no fundo, esse apoio de produção. Ter apoio da


confeção, ter apoio das máquinas, ter apoio de modelismo. Tudo
aquilo que me disseram que aquela fábrica iria ter (Designer).19

A dificuldade na produção de pequenas coleções foi uma das questões


mais abordadas ao longo das entrevistas, tendo sido esta a principal motiva-
ção na candidatura à incubadora. “Eu costumo dizer à minha irmã, a gozar,
‘As pessoas querem é fazer cuecas’, porque é muito rápido”, refere uma das
designers entrevistadas20, em tom irónico, a propósito do longo e penoso
processo de bater às portas que antecede a produção de cada coleção.
Apesar da hibridização de papéis que encontramos nesta segunda vida
e do reduzido número de pessoas destas micro empresas, uma questão
também abordada diz respeito à tensão latente entre a necessidade de
autonomia criativa dos designers, e o foco economicista do gestor. “Ele está
a criar, ele está a tentar fazer as coisas bonitas; eu deste lado estou a tentar
fazer dinheiro”, refere um dosentrevistados, gestor.21 Notório é ainda o facto
de, nos casos de empresas unipessoais, a pessoa em questão ser sempre
designer, que acumula a função de gestor, já o contrário não acontece.
Estas duas questões refletem um certo paradoxo implicado no termo
indústrias criativas. Por um lado, este é discursado na base da autonomia.
Numa das entrevistas, uma jovemdesigner refere como lhe “[...] agrada
a ideia de, lá está, não ter horário, mas ao mesmo sabendo que tenho
que trabalhar o dia inteiro”.22 Por outro, apesar desta autonomia assentar
numa lógica demicro empresas – quase de um trabalhador, uma empresa
–, estas inserem-se num sistema de concentração económica que funciona
numa lógica de grande escala, o que representa dificuldades acrescidas na
prossecução destes projetos. Esta questão torna-se particularmente visível

19 
Entrevista 24 – parte 1 (02.04.2014).
20 
Entrevista 25 – parte 1 (02.04.2014).
21 
Entrevista 28 (24.04.2014).
22 
Entrevista 25 – parte 1 (02.04.2014).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 185

não só pela enorme dificuldade que estas marcas enfrentam na produção


de pequenas quantidades, como também na inadequação dos programas
de financiamento, inclusive de empreendedorismo, à realidade destas mi-
croempresas, questões que contrariam a visão romantizada que subsiste
na esfera pública relativamente à realidade do trabalho criativo. Conforme
nota um dos entrevistados, “[...] no meio disto tudo criou-se a ideia que os
criadores são como aqueles indianos que vivem do sol”.23

Reconfigurações produtivas e sustentabilidade das


fábricas criativas

Da análise das duas vidas da fábrica desenvolvida neste estudo, aqui


apresentada apenas em traços gerais, concluiu-se, num primeiro plano,
que as principais mudanças se situam no plano da organização. Ao nível
da estrutura organizacional dá-se um salto de escala, com a passagem de
empresas de dimensão média e interdependentes, a megacorporações
que passam a controlar e ditar elas próprias o mercado, assentes numa
rede imensa de microempresas, segundo um esquema de subcontratação
que acompanha toda a cadeia produtiva. A força de trabalho atomiza-se
e passa de uma gestão rígida ao modelo flexível, e o produto deixa de se
enquadrar na produção em massa, direcionando-se para a moda e o turismo.
Já as continuidades se situam essencialmente ao nível do indivíduo, sendo
transversal às duas vidas da fábrica a sobreposição da esfera económica
(ou laboral), à pessoal (ou familiar) do trabalhador. Este facto é visível, por
exemplo, na forma como em ambas as vidas a rede de contactos se revela
fundamental no ultrapassar de dificuldades, ou no recurso recorrente ao
espaço doméstico para fins laborais.
Num segundo nível, verifica-se como a figura do artista se assume
efetivamente como expressão máxima das transformações laborais atuais,
oposta às representações contestatárias ou subversivas do romantismo,

23 
Entrevista 21 – parte 1 (25.03.2014).
186 MARIANA REI

que o situavam num plano oposto ao do trabalho. A precarização laboral


estende-se desta forma também ao trabalho qualificado. Pelas caracterís-
ticas intrínsecas à sua atividade, o trabalhador criativo torna-se facilmente
confundível com uma microempresa, pela sua flexibilidade, autonomia e
propensão ao risco. Contudo, os discursos em torno das indústrias cria-
tivas não revelam, por um lado a profunda insegurança laboral implicada
no trabalho criativo e, por outro, as enormes dificuldades por que passam
estas microempresas, sobretudo numa fase inicial. Assistimos, então, a uma
estetização e empresarialização do trabalho, mediante a transposição do
estatuto associado às figuras do artista e do patrão na forma do empreen-
dedor criativo, e o seu aproveitamento em termos de autonomia intelectual
e financeira, respetivamente. Os próprios espaços destas fábricas criativas
refletem este cruzamento dos domínios empresarial e artístico, entre um
espaço que foi produtivo e o imaginário artístico associado ao loft.24
Relativamente às fábricas criativas, da análise do caso em estudo
de forma articulada com outro caso recentea norte de Portugal (SILVA;
REI, 2014), foi possível concluir o profundo impacto dos programas de
financiamento europeu na reprodução de modelos uniformizadores e
desgarrados do local em que se inserem, o que se reflete nestes espaços
numa desarticulação múltipla à escala local entre o tecido produtivo, os
trabalhadores criativos, a população, e os municípios. As fábricas criativas
assumem-se, em suma, como espaços de consumo ligados à gestão cultural,
sendo fortemente dependentes de um tecido produtivo pré-existente e de
fundos públicos. Enunciado não por quem trabalha nas áreas criativas, mas
por gestores, políticos ou programadores culturais, e portanto sob uma
aura idealista que passa para a esfera pública, o termo indústrias criativas,
no qual assentam estes espaços,é, neste quadro, distinto da produção
criativa efetiva. Encontram-se ainda profundamente desenraizadas do local
em que se inserem e desarticulados das necessidades da sua população,

24 
Os dois primeiros níveis das conclusões deste estudo foram apresentados de forma mais
aprofundada num artigo recente (REI, 2015).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 187

que não reconhece benefícios neste tipo de projetos, algo que se agrava
se considerarmos como os financiamentos europeus nos quais assentam
hipotecam os orçamentos municipais, não só devido à comparticipação
local implicada na requalificação do edificado, mas também pelos custos de
manutenção, que não são abrangidos pelos fundos comunitários de apoio.
Perante estas fragilidades, importa questionar até que ponto estes
novos usos económicos do património são sustentáveis a médio e longo
prazo, e qual o impacto das políticas culturais e programas de financiamen-
to europeu à escala local, designadamente por comparação com outros
casos, desenvolvidos a partir de cima e de baixo, em contexto nacional e,
sobretudo, internacional, onde são inúmeros os exemplos com vários anos
de implementação. Este foi um trabalho que já iniciei, num outro momento
(no prelo-b REI, 2016b), com um primeiro olhar para outros formatos a partir
de fábricas apropriadas a partir de baixo em Portugal.

REFERÊNCIAS
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-giving. Berkeley: University of California Press, 1992.
SOBRE OS AUTORES

Alexandre dos Santos Villas Bôas é historiador da Universidade Federal


do Pampa e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É mestre
em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM
– 2014), bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande
(FURG – 2011) e licenciado em História pela Universidade Federal de
Pelotas (UFPel –2006). Tem experiência na área de História, com ênfase
em Patrimônio Cultural, atuando principalmente nos seguintes temas:
cidade, educação patrimonial e planejamento urbano.

Eduardo Roberto Jordão Knack é pós-doutorando do Programa de Pós-


Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal
de Pelotas (UFPel), doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS
– 2016), mestre (2007) e licenciado (2005) em História pelo Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF). Pesquisa
relações entre urbanização, modernização e patrimônio cultural. Temas
de interesse: cidades, comemorações, memória, patrimônio e imaginário.
192 S O B R E AU TO R E S

Francisca Ferreira Michelon é doutora em História pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS – 2001) e mestre em
Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS –
1993). Fez estágio no Arquivo Fotográfico da Câmara de Lisboa (2009) em
conservação de fotografia. É professora associada da Universidade Federal
de Pelotas (UFPel) desde 1992. Orienta alunos em pesquisa nos níveis de
graduação e pós-graduação e tem experiência com os seguintes temas:
fotografia, patrimônio cultural, memória social, gestão de acervos, con-
servação de fotografias, história da fotografia e acessibilidade em museus.

João Baía é doutorando em Migrações na especialidade em Antropologia


no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, mestre em
Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa e licenciado em Sociologia pela Universidade de Coimbra.
É membro da Red Ibero Americana Resistencia y Memoria (RIARM),
investigador do projecto internacional “Cooperación transfronteriza y
(des)fronterización: actores y discursos geopolíticos transnacionales en la
frontera hispano-portuguesa (CSO2012-34677)”, investigador associado
do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Maria Alice Samara é pós-doutoranda da Fundação para a Ciência e


Tecnologia, doutora em História Contemporânea Institucional e Política de
Portugal (2011), mestre em História do século XX, pelo curso de Mestrado
de História dos séculos XIX e XX, secção do século XX, da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2001) e licen-
ciada em História. Investigadora do Instituto de História Contemporânea da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
S O B R E AU TO R E S 193

Maria Leticia Mazzucchi Ferreira é professora associada da Universidade


Federal de Pelotas (UFPel). Atua como docente e pesquisadora na área
de Patrimônio, principalmente nos seguintes temas: patrimônio industrial,
patrimônio imaterial, políticas públicas de patrimônio, memória e museus.
É docente no Programa de Pós-Graduação (mestrado/doutorado) em
Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPel. Coordena, pelo lado
brasileiro, o projeto de cooperação com o Laboratoire d’Anthropologie
et de Psychologie Cognitives et Sociales, da Universidade de Nice, França,
participando de projeto de investigação internacional sobre o Colostrum,
financiado pela ANR (Agence Nationale de la Recherche) e coordenado
pelo antropólogo Joel Candau.

Mariana Rei é doutoranda em Antropologia (FCSH-UNL) e investigadora


integrada no Instituto de História Contemporânea (IHC-NOVA), mestre
em Antropologia – especialização em Culturas Visuais (FCSH-UNL) (2015)
e licenciada em Design pela Universidade de Aveiro (2006). Desenvolve
trabalho no domínio da memória do trabalho em contextos (des)indus-
trializados, articulando ferramentas metodológicas da antropologia e da
história com as culturas visuais.

Miguel Cardina é doutor, com uma tese intitulada Margem de certa ma-
neira. O maoísmo em Portugal: 1964-1974, à qual foi atribuído o Prémio
Victor de Sá de História Contemporânea (2011) e o Prémio CES para Jovens
Cientistas Sociais de Língua Portuguesa (2013). É investigador do Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), onde integra o
Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP),
e investigador associado do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa.
Série História

A Série História visa à difusão dos mais recentes estudos que congre-
gam diferentes abordagens do conhecimento histórico.
Trata-se de um meio de propagação de pesquisas que contribuem
com o desenvolvimento do saber histórico nacional e internacional, pro-
movendo a circulação de obras cujos autores se propõem a (re)interpretar
os mais variados temas e estabelecer novos horizontes aos saberes ligados
às Ciências Humanas.

Leandro Pereira Gonçalves


Editor

TÍTULO AUTOR Ano Nº Edição

A REVOLUÇÃO DOS MARAGATOS: 1893-1895 MOACYR FLORES 1993 1 1ª


NEGROS E INDÍOS MOACYR FLORES 1994 2 1ª
FATOS E MITOS DO ANTIGO EGITO MARGARET MARCHIORI BAKOS 2014 3 3ª
PORTO ALEGRE: URBANIZAÇÃO E
CHARLES MONTEIRO 1995 4 1ª
MODERNIDADE
O NEGRO NA DRAMATURGIA BRASILEIRA
MOACYR FLORES 1995 5 1ª
(1838-1888)
ALEMÃES NA GUERRA DOS FARRAPOS HILDA AGNES HUBNER FLORES 2008 6 2ª
MULHER: A MORAL E O IMAGINÁRIO CLARISSE ISMÉRIO 1995 7 1ª
DICIONÁRIO DE HISTÓRIA DO BRASIL MOACYR FLORES 2008 8 4ª
ARTE ARGENTINA: TRADIÇÃO E MODERNIDADE MARIA LUCIA BASTOS KERN 1996 9 1ª
CEPAL: UMA PERSPECTIVA SOBRE O
JACQUELINE HAFFNER 1996 10 1ª
DESENVOLVIMENTO LATINO-AMERICANO
PORTO ALEGRE E SEUS ETERNOS INTENDENTES MARGARET MARCHIORI BAKOS 2013 11 2ª
FACES DA LIBERDADE, MÁSCARAS DO PAULO ROBERTO STAUDT
1996 12 1ª
CATIVEIRO MOREIRA
IMAGENS DO GAÚCHO DAYSI LANGE ALBECHE 1996 13 1ª
GETÚLIO VARGAS: A CONSTRUÇÃO DE UM
LUCIANO ARONNE DE ABREU 1996 14 1ª
MITO
DO IMPÉRIO DAS LEIS ÀS GRADES DA CIDADE MOZART LINHARES DA SILVA 1997 15 1ª
ARGENTINA X BRASIL HELDER GORDIM DA SILVEIRA 1997 16 1ª
REDUÇÕES JESUÍTICAS DOS GUARANIS MOACYR FLORES 1997 17 1ª
CAMPONÊS, TERRA E POBREZA EARLE DINIZ MACARTHY MOREIRA 1998 18 1ª
ENSAIOS BABILÔNICOS EMANUEL BOUZON 1998 19 1ª
Série História

TÍTULO AUTOR Ano Nº Edição

III JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO KATIA M. POZER 1998 20 1ª


DARIO DE BITENCOURT (1901-1974) MARIA JOSÉ LANZIOTTI BARRERAS 1998 21 1ª
PACTO ABC: PERON-VARGAS-IBANEZ PAULO RENAN DE ALMEIDA 1998 22 1ª
BANALIZAÇÃO DA MORTE NA CIDADE CALADA:
JANETE SILVEIRA ABRÃO 2009 23 2ª
A HESPANHOLA EM PORTO ALEGRE, 1918
MODERNIDADE E URBANIZAÇÃO NO BRASIL MARIA REGINA DO NASCIMENTO 1998 24 1ª
LUIZ RICARDO MICHAELSEN
A CIDADE COLONIAL NO BRASIL 1999 25 1ª
CENTUR
DON PEDRO I DE BRASIL, POSIBLE REY DE 1ª
BRAZ A. BRANCATO 2014 26
ESPANA reimpressão
DEUSES, MÚMIAS E ZIGURATTS CIRO FLAMARION CARDOSO 1999 27 1ª
URBANISMO NO RIO GRANDE DO SUL LUIZ FERNANDO ROHDEN 1999 28 1ª
IMPRENSA: POLÍTICA E CIDADANIA ANDRÉA SANHUDO TORRES 1999 29 1ª
RIVALIDADES E SOLIDARIEDADES NO
ISABEL BILHÃO 1999 30 1ª
MOVIMENTO OPERÁRIO
A IDENTIDADE INACABADA NO RIO GRANDE NEWTON LUIS GARCIA
2000 31 1ª
DO SUL CARNEIRO
ALDEAMENTOS KAINGANG NO RIO GRANDE MARISA SCHNEIDER
2000 32 1ª
DO SUL NONNENMACHER
A ENTRADA DO BRASIL NA SEGUNDA GUERRA RICARDO ANTONIO SILVA
2000 33 1ª
MUNDIAL SEITENFU
PARAGUAI: A CONSOLIDAÇÃO DA DITADURA
CERES MORAES 2000 34 1ª
DE STROESSNER
SOCIEDADES IBERO-AMERICANAS ARNO ALVAREZ KERN 2000 35 1ª
VELHOS INTEGRALISTAS CARLA LUCIANA SILVA 2000 36 1ª
HERESIA, CRUZADA E INQUISIÇÃO NA FRANÇA
JOSÉ RIVAIR MACEDO 2000 37 1ª
MEDIEVAL
MUNDO GRECO-ROMANO MOACYR FLORES 2005 38 2ª
O INTEGRALISMO NO PÓS-GUERRA GILBERTO GRASSI CALIL 2001 39 1ª
O FASCISMO E OS IMIGRANTES ITALIANOS NO 2001 1ª
JOÃO FÁBIO BERTONHA 40
BRASIL 2017 2ª
ONDA VERMELHA CARLA LUCIANA SILVA 2001 41 1ª
GAÚCHOS EM RORAIMA CARLA MONTEIRO DE SOUZA 2001 42 1ª
DIZEM QUE FOI FEITIÇO: AS PRÁTICAS DA
NIKELEN ACOSTA WITTER 2001 43 1ª
CURA NO SUL DO BRASIL
CENSURA NO REGIME MILITAR E
ALEXANDRE AYUB STEPHANOU 2001 44 1ª
MILITARIZAÇÃO DAS ARTES
CINEMA, IMPRENSA E SOCIEDADE EM PORTO
FÁBIO AUGUSTO STEYER 2001 45 1ª
ALEGRE (1896-1930)
QUANDO A ORDEM É SEGURANÇA E O
GILVAN VEIGA DOCKHORN 2002 46 1ª
PROGRESSO É DESENVOLVIMENTO (1964 - 1974)
ESTATUÁRIOS, CATOLICISMO E GAUCHISMO ARNOLDO WALTER DOBERSTEIN 2002 47 1ª
A IMAGEM DO TERCEIRO REICH NA REVISTA
MATEUS DALMÁZ 2002 48 1ª
DO GLOBO (1933-1945)
A CEPAL E A INDUSTRIALIZAÇÃO BRASILEIRA
DORIVALDO POLLETO 2002 49 1ª
(1950-1961)
O AVIADOR E O CARROCEIRO: POLÍTICA, ETNIA
RENÉ GERTZ 2002 50 1ª
E RELIGIÃO NO RS
Série História

TÍTULO AUTOR Ano Nº Edição


PESQUISA E HISTÓRIA JANETE SILVEIRA ABRÃO 2007 51
reimpressão
UM RIO PARA O EL DORADO KLAUS HILBERT 2005 52 1ª
CONSPIRAÇÃO CONTRA O ESTADO NOVO ADRIANA IOP BELLINTANI 2002 53 1ª
REPÚBLICA RIO-GRANDENSE: REALIDADE E
MOACYR FLORES 2002 54 1ª
UTOPIA
IDADES DA HISTÓRIA MARCO ANTÔNIO LOPES 2009 55 1ª
TUPÍ OR NOT TUPÍ: NAÇÃO E NACIONALIDADE
ÉDER SILVEIRA 2009 56 1ª
EM JOSÉ DE ALENCAR E OSWALD DE ANDRADE
PARA COMPREENDER O SÉCULO XXI CARLOS ANTONIO AGUIRRE ROJAS 2010 57 1ª
ROUSSEAU FRENTE AO LEGADO DE
MONTESQUIEU: HISTÓRIA E TEORIA POLÍTICA RENATO MOSCATELI 2010 58 1ª
NO SÉCULO DAS LUZES (CH 58)
POVO E POLÍTICA - A CONSTRUÇÃO DE UMA
HILDA SABATO 2012 59 1ª
REPÚBLICA
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA: DAS CULTURAS
STEFAN RINKE 2012 60 1ª
PRÉ-COLOMBIANAS ATÉ O PRESENTE
DE VARGAS AOS MILITARES: AUTORITARISMO
LUCIANO ARONNE DE ABREU 2014 61 1ª
E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO BRASIL
FESTAS CHILENAS JURANDIR MALERBA 2014 62 1ª
CHRISTIAN FAUSTO MORAES
A CARNE, A GORDURA E OS OVOS:
DOS SANTOS E MARLON 2015 63 1ª
COLONIZAÇÃO, CAÇA E PESCA NA AMAZÔNIA
MARCEL FIORI
VIOLÊNCIA E SOCIEDADE EM DITADURAS JORGE MARCO, HELDER GORDIM
IBERO-AMERICANAS NO SÉCULO XX- DA SILVEIRA E JAIME VALIM 2015 64 1ª
ARGENTINA, BRASIL, ESPANHA E PORTUGAL MANSAN (ORGS.)
POSITIVISMO AO ESTILO GAÚCHO A DITADURA
DE JÚLIO DE CASTILHOS E SEU IMPACTO SOBRE
JENS R. HENTSCHKE 2015 65 1ª
A CONSTRUÇÃO DO ESTADO E DA NAÇÃO NO
BRASIL DE GETÚLIO VARGAS
MARÇAL DE MENEZES PAREDES,
LUCIANO ARONNE DE ABREU,
DIMENSÕES DO PODER HISTÓRIA, POLÍTICA E
HELDER GORDIM DA SILVEIRA E 2015 66 1ª
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
LEANDRO PEREIRA GONÇALVES
(ORGS.)
GALEGOS NOS TRÓPICOS: INVISIBILIDADE E
PRESENÇA DA IMIGRAÇÃO GALEGA NO RIO DE ÉRICA SARMIENTO 2016 67 1
JANEIRO 1880-1930
A REPÚBLICA REVISITADA: CONSTRUÇÃO E
CLÁUDIA M. R. VISCARDI E JOSÉ
CONSOLIDAÇÃO DO PROJETO REPUBLICANO 2016 68 1ª
ALMINO ALENCAR (ORGS.)
BRASILEIRO
TATYANA DE AMARAL MAIA,
RECONSTRUINDO O PASSADO: O PAPEL
LUÍS ALBERTO MARQUES ALVES 2016 69 1ª
INSUBSTITUÍVEL DO ENSINO DA HISTÓRIA
E MIRIAM HERMETO SÁ MOTTA
MISSÕES: UMA UTOPIA POLÍTICA ARNO ALVAREZ KERN 2016 70 2ª
A GRANDE IMPRENSA “LIBERAL” CARIOCA
E A POLÍTICA ECONÔMICA DO SEGUNDO LUIS CARLOS DOS PASSOS
2016 71 1ª
GOVERNO VARGAS (1951-1954): CONFLITO MARTINS
ENTRE PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO
O BIBLIOTECÁRIO PERFEITO: O HISTORIADOR
ANA PAULA SAMPAIO CALDEIRA 2017 72 1ª
RAMIZ GALVÃO NA BIBLIOTECA NACIONAL
Série História

TÍTULO AUTOR Ano Nº Edição

CONSTRUTORES DO IMPÉRIO, DEFENSORES


DA PROVÍNCIA: SÃO PAULO E MINAS GERAIS CARLOS EDUARDO FRANÇA DE
2017 73 1ª
NA FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL E DOS OLIVEIRA
PODERES LOCAIS, 1823-1834
RIO GRANDE DO SUL ONTEM E HOJE: UMA
LUCIANO ARONNE DE ABREU 2018 74 1ª
VISÃO HISTÓRICA
TRANSIÇÕES À DEMOCRACIA EUROPA E JAIME VALIM MANSAN, JAIME
2017 75 1ª
AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XX YAFFÉ, HELDER G. DA SILVEIRA

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