Memória e Patrimônio: Diálogos Entre Brasil e Portugal
Memória e Patrimônio: Diálogos Entre Brasil e Portugal
Memória e Patrimônio: Diálogos Entre Brasil e Portugal
E
PATRIMÔNIO:
Diálogos
entre Brasil
e Portugal
Conselho Editorial da Série História Chanceler
(Editor) Leandro Pereira Gonçalves, Dom Jaime Spengler
Pontifícia Universidade Católica Reitor
do Rio Grande do Sul, Brasil Evilázio Teixeira
António Costa Pinto, Vice-Reitor
Instituto de Ciências Sociais da Jaderson Costa da Costa
Universidade de Lisboa, Portugal
Jorge Ferreira,
CONSELHO EDITORIAL
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Presidente
Maria Helena Capelato,
Carla Denise Bonan
Universidade de São Paulo, Brasil
Editor-Chefe
Maria Izilda Santos de Matos,
Luciano Aronne de Abreu
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Brasil Beatriz Correa P. Dornelles
Jens Hentschke, Carlos Alexandre Sanchez Ferreira
Newcastle University, Carlos Eduardo Lobo e Silva
Reino Unido Eleani Maria da Costa
Helder V. Gordim da Silveira, Leandro Pereira Gonçalves
Pontifícia Universidade Newton Luiz Terra
Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Sérgio Luiz Lessa de Gusmão
História
MEMÓRIA
E
PATRIMÔNIO:
Diálogos
entre Brasil
e Portugal
OR GANIZAD OR E S
Charles Monteiro
Klaus Hilbert
Paula Godinho
porto alegre
2017
© EDIPUCRS 2017
ISBN 978-85-397-1032-4
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apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO | 7
OS ORGANIZADORES
A CONSTRUÇÃO DE UM PATRIMÔNIO:
O CASO DA ENFERMARIA MILITAR DA CIDADE
DE JAGUARÃO/RS | 145
ALEXANDRE DOS SANTOS VILLAS BÔAS
pura, ligada ao plano do sonho e do espírito. Ele nos fala que através dos
movimentos do corpo, pela ação e percepção no presente, atualizamos
as imagens que evocamos de uma ação no passado. A memória não é
estática, ela atualiza e conecta as diferentes imagens e tempos a partir
de lembranças similares ou contíguas devido ao trabalho combinado do
corpo e do espírito. Porém, Bergson (1990) situa a sua reflexão no campo
do indivíduo, e não da sociedade como um todo.
Halbwachs (2006, p. 30) afirma que “jamais estamos sós” e abre caminho
para pensarmos a memória em uma dimensão coletiva, pois nossas lembran-
ças, para esse autor, nunca são individuais, “ainda que se trate de eventos em
que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos”.
Esse autor destaca a importância dos grupos sociais para a memória dos
indivíduos. De acordo com suas proposições, para que nossas lembranças
consigam esclarecer e reconstituir uma imagem de um acontecimento
passado, necessitamos de noções difundidas nos grupos dos quais fazemos
parte durante nossa vida: “é preciso que esta reconstrução funcione a partir
de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no
dos outros” (HALBWACHS, 2006, p. 39). Assim, o grupo fornece condições
para uma recordação, pois ao mesmo tempo que passamos formulações,
interpretações e características próprias sobre determinada lembrança para
outros integrantes, estes também passam para nós sua visão sobre o mes-
mo acontecimento rememorado. Recordamos do ponto de vista do grupo,
mesmo que seus membros não estejam materialmente presentes, por isso
“se pode falar em memória coletiva” (HALBWACHS, 2006, p. 41).
Por grupo podemos entender a família, o primeiro do qual fazemos parte,
a escola, os colegas de trabalho e de profissão, associações de moradores,
entre tantos outros exemplos que poderiam ser mencionados. Esses dife-
rentes grupos que interferem na vida dos sujeitos mantêm relações entre
si, determinam os “quadros sociais da memória” que evocamos em função
das vicissitudes do presente, mas “quanto mais os grupos que se tocam se
distanciam ou quanto mais numerosos são eles, mais a influência de cada
um é enfraquecida” (HALBWACHS, 2006, p. 56). Grupos mais coesos, que
O S O RG A N I Z A D O R E S 9
Os organizadores.
16 A P R E S E N TAÇ ÃO
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ARS MEMORATIVA:
LUGARES NA MEMÓRIA E A MEMÓRIA DOS LUGARES
KL AUS HILBERT
O LUGAR DA MEMÓRIA
Na sabedoria popular, o corpo humano tem espaços que podem ser pre-
enchidos com coisas materiais sólidas, com substâncias pastosas, líquidas
e gasosas e com coisas imateriais. Esses espaços precisam ser esvaziados,
com certa regularidade, para dar lugar a coisas novas. Todas essas ações,
de preencher e de esvaziar, provocam sensações. O espaço aberto entre
os braços procura o abraço, entre um pé e outro pé cabe um passo, que
leva a outros; muitos passos atravessam os continentes e levam até a
saltar na lua. No lugar apertado entre o dedo e o polegar, cabe uma pulga,
um cabelo, um beliscão. A boca não só retém e expele comida, bebida
e o ar que se expira e inspira, mas também as palavras do revoltado, do
amante e do fofoqueiro. Os olhos se enchem de lágrimas. Dizem que o
coração, bem como o peito, é o lugar para guardar as pessoas amadas,
para congelar a vingança ou o ódio, esconder o medo. A barriga é o lugar
onde alimentamos as emoções e onde guardamos as borboletas da an-
siedade. O vazio em algum espaço no corpo traz desconforto e tristeza,
mas também paz e tranquilidade. Precisa estar preenchido com algo, não
importa o que for, para sentir-se vivo, ou precisa estar vazio ou aberto para
sentir-se vivo. Na cabeça, há muitos lugares, também para as coisas que
18 A R S M E M O R AT I VA : LU G A R E S N A M E M Ó R I A E A M E M Ó R I A D O S LU G A R E S
[…] sabía las formas de las nubes australes del amanecer del
treinta de abril de mil ochocientos ochenta y dos y podía
compararlas en el recuerdo con las vetas de un libro en pasta
española que sólo había mirado una vez y con las líneas de
la espuma que un remo levantó en el Río Negro la víspera
de la acción del Quebracho. Esos recuerdos no eran simples;
cada imagen visual estaba ligada a sensaciones musculares,
térmicas, etc. […] En efecto, Funes no sólo recordaba cada
hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las veces
que la había percibido o imaginado (BORGES, 1956, p. 6).
Ars memorativa
Finalidade
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K L AU S H I L B E RT 31
CHARLE S MONTEIRO
1
Uma versão deste texto foi publicada na revista Memória em Rede, v. 8, n. 14, 2016, da UFPel.
34 CHARLES MONTEIRO
sobre o seu passado e sua trajetória no tempo por meio da produção es-
crita de especialistas da memória (historiadores, arquivistas, diretores de
museus) e intelectuais (cronistas, escritores, jornalistas). O historiador é
uma espécie de mestre artesão que trabalha sobre o engenho alheio – me-
mórias, documentos, textos, falas e experiências dos sujeitos –, buscando
compreender e tecer nas suas narrativas essa variedade de fios em uma
trama (história), que pretende dar conta da pluralidade de vozes, sujeitos,
espaços e temporalidades da experiência de uma sociedade.
A história da memória aborda a historiografia como uma produção
consciente e intencional de uma memória social, pois problematiza a
escolha e a organização dos sujeitos, espaços e tempos que são dignos
de serem rememorados, bem como os meios de organização através dos
quais as lembranças são transmitidas e recriadas.2 A história da memória
problematiza a forma como os grupos sociais e as instituições inventam
tradições ou se apropriam da memória coletiva, ressignificando-a com
fins específicos (HOBSBAWN; RANGER, 1997; BANN, 1994). Um exemplo
disso é o Projeto Memórias Reveladas3, criado em 2007, para receber, gerir
e divulgar a documentação sobre a violação dos direitos humanos durante
a ditadura militar. A memória coletiva não é apenas uma conquista, mas
também objeto e instrumento do poder.
Segundo Costa (2011), uma parte da produção contemporânea em arte
vem realizando operações desconstrutivas dos mecanismos disciplinares
de preservação da memória presentes na instituição de Arte – autoridade
hermenêutica, discursos eurocêntricos, exigências de mercado, noção de
exposição, modo de expor, valor e propriedade dos objetos etc.
O artista contemporâneo pesquisa em arquivos de museus, em biblio-
tecas e outras instituições, coleta material em arquivos familiares ou em
2
Utiliza-se o termo “história da memória” no sentido de uma exploração arqueológica das
narrativas históricas e literárias sobre a cidade e a nação, que permite a elaboração de uma
genealogia do surgimento e institucionalização de formas de explicação sobre as dinâmicas
das sociedades no tempo. Nesse sentido, essa empresa exploratória orienta-se pelas questões
propostas por Nora (1993), Geary (1996), Matsuda (1996) e Lowenthal (1995).
3
Encontre mais informações no site: www.memoriasreveladas.gov.br.
38 CHARLES MONTEIRO
Figuras 1, 2, 3. Imemorial – instalação para a exposição “Revendo Brasília” –, 40
retratos em película ortocromática pintada e 10 retratos em fotografia em cor em
papel resinado sobre bandejas de ferro e parafusos. Título Imemorial na parede
em letras de metal pintado. 60 x 40 x 2 cm (cada moldura de ferro). Coleção de
Marcos Vinícius Vilaça.
Fonte: Rennó, 1994.
D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 45
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D O C U M E N TO, M E M Ó R I A E A R Q U I VO N A A RT E CO N T E M P O R Â N E A 47
1
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
50 MARIA ALICE SAMARA
A cidade que se assume aqui como palco das lutas pela memória é Lisboa,
de há muito a capital de Portugal. Trabalhamos num projeto que assume a
cidade enquanto lugar político e cultural2, levando a cabo o mapeamento,
numa primeira camada, dos locais associados tanto ao poder – os espaços de
violência a serem relembrados na contemporaneidade como forma de negar
qualquer forma de neutralização do conflito – e, sobretudo, os associados
à sociabilidade política e cultural da resistência quotidiana à ditadura do
Estado Novo (1933-1974). Neste sentido constitui-se como central a sede
da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), depois de novembro
de 1969, Direção Geral de Segurança (DGS). Sendo a cidade um objecto
denso, composto de diferentes camadas – quer no sentido material, quer
no simbólico –, interessa-nos aqui analisar este local específico, a sede da
PIDE/DGS, na rua António Maria Cardoso. Local de repressão, de violação
sistemática dos direitos civis e políticos, e de morte, representa também
o espaço do conflito desigual entre torcionários e resistentes. Durante a
revolução de 25 de Abril de 1974 foi palco de uma desesperada e violenta
resposta da polícia aos acontecimentos em curso, que disparou contra os
populares que ali se manifestaram pelo fim da PIDE/DGS. Mas este ponto
específico na cidade, analisado levando em linha de conta a sua historicidade
e a relação entre passado e presente, é central para a discussão, que extra-
vasa as balizas cronológicas do regime, em torno da luta pela memória, o
combate contra o esquecimento e, em certo sentido, contra a neutralização
do conflito efetuada neste local. Assumindo um renovado sentido nos mais
de quarenta anos de regime democrático, faz agora parte da geografia de
resistência, do que não pode ser esquecido, da luta da memória antifascista.
Passado que é convocado em nome de um futuro.
2
Trabalho de pós-doc. Espaços e redes de resistência na grande Lisboa (1945-1974).
52 MARIA ALICE SAMARA
Figura 2. Placa evocativa das mortes de dia 25 de Abril de 1974 na Rua António
Maria Cardoso, Lisboa, 2015.
Fonte: A autora.
3
Em junho de 1974 foi criado o Serviço de Coordenação de Extinção da PIDE/DGS e da Legião
Portuguesa, que depois de outras tutelas e de uma reestruturação, foi transferido para a
58 MARIA ALICE SAMARA
5
Petição Nº 151/X/1: Reclamam a criação de um espaço público nacional de preservação e divul-
gação pedagógica da memória colectiva sobre os crimes do chamado Estado Novo e a resistência
à ditadura, condenam a conversão do edifício da sede da PIDE/DGS em condomínio fechado e
apelam a todos os cidadãos e organizações para preservarem, de modo duradouro, a memória
colectiva dos combates pela democracia e pela liberdade em Portugal. Veja-se o site do parlamento
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?BID=11474
6
Texto na petição disponível online: http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pd-
f?path=6148523063446f764c3246795a5868774d546f334e7a67774c336470626e426c-
64476c6a6232567a4c33526c6548527658325a70626d46734c316776554556554d545578-
4c566774526935775a47593d&fich=PET151-X-F.pdf&Inline=true
G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 61
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G EO G R A F I A S DA R E S I S T Ê N C I A : A C I DA D E E A M E M Ó R I A 63
JOÃO BAÍ A
1
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
66 J OÃO B A Í A
Conclusão
[...] Penso que o futuro está nas gerações mais novas, mas
continuo a pensar que os mais velhos têm a obrigação de os
dinamizar. Têm a obrigação de os politizar para isso, têm a
obrigação de os consciencializar. Há três anos no dia 28 de
Fevereiro fiz aí um discurso em que disse: “A Relvinha não
morrerá nunca porque vocês jovens têm a obrigação de lhe
dar continuidade” (JORGE VILAS, 2009).
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78 J OÃO B A Í A
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MORTÁGUA, Maria de Lurdes Santos (2009)
MORTÁGUA, Maria Rosalinda Santos (2009)
SANTOS, Carlos Eduardo dos (2009)
M OV I M E N TO S S O C I A I S U R B A N O S N A R E VO LU Ç ÃO P O RT U G U E S A 79
Entrevistas semi-directivas
ALMEIDA, Celeste (2007)
BANDEIRINHA, José António (2009)
FERREIRA, José Augusto (2007)
GOMES, Diamantino (2009)
GOUVEIA, Hermínio Simões (2009)
MARCONI, Francesco (2009)
NATIVIDADE, Frederico (2007)
OLIVEIRA, Mário de (2009)
RIBEIRO, Letícia (2009)
JAHNKE, Hans (2009)
VILAS, Jorge (2007)
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A GUERRA COLONIAL ENTRE
A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO 1
MIGUEL C ARDINA
I.
1
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
82 A G U E R R A CO LO N I A L E N T R E A M E M Ó R I A E O E S Q U EC I M E N TO
II.
A guerra não foi publicamente assumida como tal pelo Estado Novo, o
regime político institucionalizado no início da década de 1930 e que teria na
figura de António de Oliveira Salazar o seu símbolo máximo. Na leitura que
a ditadura difundiria, o que ocorria em África eram antes acções armadas
dentro de um mesmo espaço nacional que –o “Portugal uno e indivisível
do Minho a Timor”, numa expressão célebre da propaganda do regime –e
2
Dos perto de 900.000 portugueses que emigraram para França entre 1958 e 1974, 563.000
fizeram-no clandestinamente, tendo esse número sido particularmente alto no final da década
de 1960. Cf. Freitas, 1989: 194. Para uma visão aprofundada sobre o fenómeno migratório para
França durante estes anos, cf. PEREIRA, 2014.
MIGUEL CARDINA 83
3
Essa invenção de um colonialismo ilibado do seu estatuto conjugou-se de múltiplos modos e em
diversos tempos, e tanto é devedora de leituras que acentuam a excepcionalidade da presença portu-
guesa em África, como se alimentam da dificuldade em interpretá-lo à luz do modelo que determina
o entendimento dominante da experiência colonial enquanto tal. Neste sentido, Boaventura de Sousa
Santos defende que a condição semiperiférica de Portugal marcou historicamente o colonialismo
luso, que navegaria assim entre Próspero e Caliban, entre a subalternidade (relativamente ao colo-
nialismo-norma britânico) e a superioridade (relativamente aos povos coloniais) (SANTOS, 2002).
MIGUEL CARDINA 85
III.
IV.
V.
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MIGUEL CARDINA 91
1
O I Plano Diretor do Município de Pelotas data de 1963.
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PAUL A GODINHO
Para Francisco Pérez, o Xico de Mandín, que me ensinou o que é ser regionauta
We need a common culture, not for the sake of an abstraction, but because we
shall not survive without it (Raymond Williams, 1958, p. 317).
1
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
2
O trabalho de campo e a reflexão presentes neste texto resultam da conjugação da pesquisa
no âmbito de dois projectos ibéricos: (1) “Cooperación transfronteriza y (des)fronterización:
actores y discursos geopolíticos transnacionales en la frontera hispano-portuguesa”, coordenado
por Heriberto Cairo Carou, no âmbito da Universidade Complutense de Madrid, com outros
colegas de várias universidades espanholas e portuguesas (2013-2016), inserido no Plan Nacional
de I+D+I del Ministerio de Educación y Ciencia de España; (2) projecto I+D+i “Los festivales y
celebraciones musicales como factores de desarrollo socioeconómico y cultural en la Península
Ibérica”, ref.: HAR2013-46160-P, coordenado por Susana Moreno Fernández, da Universidad
de Valladolid, que também inclui outros colegas de universidades portuguesas e espanholas
(2015-2017) (2014-2016), sendo financiado pelo Ministerio de Economía y Competitividad de
España. Deve-se ao Instituto de História Contemporânea, através de fundos atribuídos pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, o pagamento da viagem para que a comunicação de que
resultou este texto pudesse ser apresentada em Porto Alegre, no colóquio organizado pelo Prof.
Charles Monteiro, no âmbito da PUC de Rio Grande do Sul, em Outubro de 2015, em Porto Alegre.
114 PAU L A G O D I N H O
Peter Sahlins (1989) debateu a apropriação por parte dos indivíduos das suas
fronteiras e das suas identidades, para as usarem contra ou em colaboração
com os centros políticos longínquos, numa zona em que a fronteira entre
dois Estados-nação se confronta com uma nação sub-estatal, a Catalunha.
A sua abordagem histórica nega a passividade dos camponeses fronteiriços
e sustenta que os Estados não impuseram só os seus valores e as suas fron-
teiras à sociedade local: esta última deu igualmente um impulso à criação
da nação como um Estado territorial. Os protagonistas dos processos de
fronteirização e de desfronterização não foram só os homens de Estado,
os ministros ou os diplomatas, mas igualmente os camponeses, os autar-
cas, os contrabandistas e os desertores. Todos participam na formação
das identidades nacionais; se as comunidades locais se opõem ao Estado,
também o utilizam em seu proveito, exprimindo o seu sentimento nacio-
nal de forma mais local. Ainda que reticentes à entrada na vida da nação,
usam-na todavia na sua vida, quando se apoiam nela para defenderem os
interesses das suas comunidades. O meu argumento assenta numa idêntica
prática quanto aos processos de desfronterização, numa fase em que por
cima, a União Europeia os favorece, e por baixo, os raianos os corroboram.
A fronteira pode não significar necessariamente uma outra realidade,
assumindo performances, aparências, atividades, estruturas sociais e sim-
bólicas, com uma linha elástica de união ou de separação entre “nós” e “eles”.
Subjetivada, a linha tem o sentido que lhe é dado pelos habitantes fronteiriços,
dependendo do contexto e das conjunturas, do género, da idade ou do gru-
po social. Se concebermos os comportamentos como escolhas em função
de constrangimentos, a questão central não está na aplicação das normas
definidas em abstrato, mas na margem de manobra dos sujeitos no seio de
um espaço social de contornos incertos. Assim, se em momentos históricos
particulares esta fronteira constituiu uma zona de refúgio (SCOTT, 2009),
noutros a capitalização dessa cultura de orla pode ser feita através de formatos
de emblematização,de patrimonialização e de turistificação, que resgatam
o amor-próprio de quem vive numa orla, projetando para fora uma imagem
depurada, com efeitos práticos (GODINHO, 2008).
116 PAU L A G O D I N H O
Num tempo alongado, esta foi uma fronteira que gerou uma cultura própria,
integrando o próprio limite. A cultura de orla assenta numa relação maleá-
vel “nós”/“eles”, de acordo com as necessidades, a conjuntura e o contexto
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 117
França ou a Alemanha. Desde meados dos anos 1990, ao mesmo tempo que
um conjunto de pequenas fábricas e manufacturas de confecção deram
vazão ao trabalho feminino – com outsourcing, associado à indústria têxtil
e de moda -, vive-se uma terceira fase. Agora, as migrações com retorno
semanal conjugam-se com modos de relação com o passado que trazem
benefícios práticos. Embora mantenha o seu carácter poroso, inserido em
tráficos mundializados, assiste-se a uma fetichização da fronteira, onde
se lembra e exibe as suas práticas ocultas, atraindo um público citadino,
em momentos de lazer. Esta última fase, assente na ilusão do mergulho
no tempo passado, conduziu a novos usos da fronteira, que permitem
resgatar a auto-estima local de povoações desertificadas e sem vitalida-
de, através de um papel interessante e com benefícios práticos. Como
se escreveu noutro texto, da fronteira útil, passou-se à fronteira fútil
(GODINHO, 2009), em espaços em que o rural já não é só agrícola, mas
não deixou de também o ser. Nesta última fase, os anos de dolorosa crise
vividos em Portugal e em Espanha converteram a agricultura em último
recurso para os que foram perdendo o emprego e retornaram.
juntam o afluxo de turistas. Numa das aldeias, reivindicou-se mesmo uma das
rotas do caminho de Santiago, alegando que sempre por ali tinha passado.
A reprodução das unidades domésticas depende cada vez mais do exterior
das aldeias. O pão chega em carrinhas, trazido das cidades e vilas – de fora
–, feito com farinha mais branca e mais fina e distanciando-se do que era
produzido no âmbito de cada casa, com o milho e o centeio que o escureciam.
3
Ver http://www.eurocidadechavesverin.eu/.
4
Ver http://www.eixoatlantico.com/index.php/pt/.
124 PAU L A G O D I N H O
5
Em 1946, depois de uma longa estadia de dez anos por parte de refugiados espanhóis na
aldeia de Cambedo, esta foi cercada por forças do exército português, da Guarda Nacional
Republicana, da Guarda Fiscal e da PIDE e foi atingida com morteiros. As autoridades portu-
guesas, conjuntamente com a Guardia Civil, procuravam atingir os que fugiram da guerra civil
de Espanha e da implantação do regime franquista, refugindo-se em várias aldeias portuguesas
desta raia. Houve várias dezenas de presos (dois dos quais cumpriram pena no tenebroso campo
de concentração de Tarrafal, em Cabo verde), dois mortos do lado dos guerrilheiros e dois por
parte das autoridades. Por longos anos, este foi um assunto remetido para o silêncio e para uma
amnésia forçada por parte dos vizinhos de Cambedo da Raia (GODINHO, 2004; 2011; 2014b).
TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 125
Inconclusões
Nos últimos anos, a Europa do Sul foi castigada por políticas destruidoras
dos modos de vida. Também nesta fronteira se sentiram os reflexos desse
tempo duro, com mais gente a tentar sair e muitos dos que estavam fora,
sobretudo no Estado espanhol, a retornar às aldeias, que constituem um
último refúgio, em tempos duros. Quando se interroga o futuro para as
aldeias, os vizinhos podem retorquir com o passado, capitalizando a me-
mória da fronteira, num tempo em que os milieux de mémoire (cada vez
mais puídos pela contingência da vida e pelos processos migratórios) se
revêem cada vez mais nos lieux de mémoire (NORA, 1986). O património,
agora entendido como património cultural (BENDIX, 2011), assenta aqui
na cultura de orla do passado, que constitui um recurso para tempos de
crise, alimentando também a auto-estima de aldeias que desertificam.
A fetichização da zona de fronteira (LÖFGREN, 2008, p.206) tem assim
um novo aproveitamento no presente, com a passagem de uma cultura
de orla, à assunção da fronteira como amenidade (GODINHO, 2014a).
A economia local, assente na agricultura, está desvitalizada. Sobra a produ-
ção de vinhos do lado galego e sobretudo as hortas, destinadas a fornecer
os legumes e hortaliças para uso quotidiano. O posto aduaneiro do lado
português, com letreiros «Vende-se» há vários anos, e sucessivamente van-
126 PAU L A G O D I N H O
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TO P O G R A F I A S DA M E M Ó R I A 127
Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma armadura ou um retículo
em cujos espaços cada um pode colocar as coisas que deseja recordar: nomes
de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais,
datas de batalhas, constelações, partes do discurso. Entre cada noção e cada
ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de con-
trastes que sirva de evocação à memória. De modo que os homens mais sábios
do mundo são os que conhecem Zora de cor. Mas foi inútil minha viagem para
visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a me-
morização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo
(CALVINO, 1990, p. 19-20).
1
Passo Fundo é uma cidade localizado ao norte do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Sua
fundação pode ser situada entre 1827-1828, com o estabelecimento de uma fazenda pastoril pelo
miliciano conhecido como Cabo Neves (MIRANDA; MACHADO, 2005, p. 22). Até praticamente
o final do século XIX, teve uma economia centrada na agricultura, funcionando como entreposto
comercial, uma rota de passagem para o transporte de animais (mulas e gado especialmente)
para outras regiões do país. A instalação da estrada de ferro em 1898 proporcionou surtos de
crescimento ao longo das primeiras décadas do século XX. Até 1950, a agroindústria impulsionou
esse crescimento (com base na produção do trigo). A prestação de serviços também acompanhou
o desenvolvimento urbano do município, recebendo impulso com a fundação da Universidade
de Passo Fundo (UPF) em 1968. Ao longo da segunda metade do século XX, assumiu contornos
de “capital do planalto”, região em que está inserida no estado (KNACK, 2016).
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 131
com sua história. Também exerce forte influência a admiração pelas forças
da natureza, que podem alterar os destinos dos homens em questão de
segundos. As ruínas oferecem o exemplo mais claro dessa atribuição de
valor. Ligadas à nostalgia, ao apego pelo passado, carregam a marca de
uma “autenticidade histórica”, que afetou a Europa nos séculos XVIII-XIX,
mas que perdeu força no transcorrer do século XX por “não ter lugar na
cultura de mercadorias e memórias do capitalismo avançado” (HUYSSEN,
2014, p. 96). Perderam lugar nessa sociedade devido às constantes trans-
formações e modernizações urbanas, que levaram a fluxos de especulação
imobiliária que sobrevalorizaram espaços, impedindo a coexistência de
centros urbanos com antigas ruínas, com exceção no caso de cidades
que estabelecem o turismo como uma lucrativa fonte de renda. Nesses
casos específicos, edificações arruinadas sobrevivem, mas perdem seu
encanto nostálgico que os defensores da preservação das ruínas como
monumentos do início do século XX identificados por Riegl observavam.
Esses defensores do valor de antiguidade concebiam “no monumento
um pedaço de sua própria vida” (RIEGL, 2013, p. 30), prezavam por uma
intervenção mínima, apenas para manter as edificações, preservando as
marcas da passagem do tempo, da ação da natureza ou mesmo de forças
destrutivas desencadeadas pelos próprios homens.
Os defensores do valor histórico priorizavam a capacidade que os
monumentos tinham de informar sobre o passado. Segundo Riegl (2013,
p. 34), “O valor histórico é tanto mais elevado quanto mais claro for o
grau em que se revela o estado coeso, original, que o monumento possuía
imediatamente ao ser produzido”. Diverge do valor de antiguidade, pois
não procura uma valorização do antigo apenas por meio de um olhar
estético, que busca uma contraposição com o presente ou “enterrar”
uma identidade cada vez mais fundo no passado. Ao priorizar um valor
documental, informativo, visa preservar para que os historiadores, an-
tropólogos, arqueólogos, entre outros profissionais, elucidem lacunas
da história. Embora com essa diferença, o valor histórico estabelece um
respeito pela matéria original, mas não por uma admiração, e sim para
evitar falseamentos ou deturpação de antigas construções.
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 135
2
Entre os processos que tramitaram na Câmara de Vereadores para aprovação do tombamento
analisados encontram-se os seguintes bens: Banco da província (hoje Banco Itaú), Cervejaria
Brahma (hoje Faculdades Anhanguera), Estação Férrea da Gare (hoje funcionam estabeleci-
mentos públicos e a Feira do Pequeno Produtor), Banco Popular/Casa Gabriel Bastos (hoje
demolida), Igreja Metodista (ainda em funcionamento), Prédio do Instituo Educacional (ainda
em funcionamento) e os prédios da Intendência Municipal (hoje Museu Histórico Regional e
Museu de Artes Visuais Ruth Schneider), da Câmara de Vereadores (hoje Teatro Municipal Múcio
de Castro) e do Clube Político Pinheiro Machado (hoje Academia Passo-Fundense de Letras).
Também foi analisado o Projeto de Restauração do Clube Visconde do Rio Branco, cedido por
Maria de Lourdes Isaias, integrante de movimentos em prol da cultura de afrodescendentes,
observando que não houve interesse e/ou disponibilidade por parte dos poderes executivo e
legislativo em executar o projeto, que cedia a edificação onde funcionou o referido clube (uma
associação de mútuo socorro de descendentes de escravos libertos do início do século XX).
Para maiores informações, consultar Knack (2007; 2013).
138 E D UA R D O R O B E RTO J O R DÃO K N AC K
3
Ver Knack (2007; 2012).
C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 139
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C I DA D E E PAT R I M Ô N I O H I S TÓ R I CO : PA S S O F U N D O/ R S 143
1
Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010.
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 147
2
A partir da anexação do Uruguai como Província Cisplatina, em 1821, um grande número de
brasileiros constituiu fazendas de criação de gado no Uruguai, principalmente na fronteira e
no norte do território, ocasionando um intenso comércio fronteiriço.
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 149
A Enfermaria Militar
3
A cidade apresentava um efetivo militar considerável na época do golpe militar de 1964,
tendo o comandante do quartel do regimento de cavalaria aderido aos golpistas e estimulado
a perseguição aos partidários do regime democrático anterior. Foram levados e torturados nas
152 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S
salas da antiga enfermaria, conforme atestam testemunhos dos sobreviventes nos processos
de reparação de danos às vítimas do regime ditatorial, armazenados no Arquivo Público do Rio
Grande do Sul (APERS), na cidade de Porto Alegre.
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 153
Após 22 anos, não existindo mais o parque nem contando com a intervenção
do órgão estatal de preservação para a consolidação das ruínas, a situação
do bem tombado estava em precárias condições. Em 2009, foi concebida
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 157
4
A região do pampa compreende a fronteira oeste do Rio Grande do Sul, o território do
Uruguai e parte do território argentino, caracterizada por pequenas elevações, cobertas por
gramíneas e vegetação de pequeno porte. A figura do gaúcho foi-se modificando ao longo do
tempo, mas basicamente se trata de pessoas ligadas à atividade pecuária, desenvolvendo uma
cultura peculiar nas atividades rurais.
158 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S
O projeto do CIP nasceu de necessidades que podem ser percebidas nas es-
tratégias de gestão do governo municipal da cidade de Jaguarão, quando se
analisa o contexto econômico e político da região neste momento: fomento
turístico através da valorização do patrimônio cultural; potencial de desen-
volvimento econômico em uma região privada de um capitalismo industrial,
que propiciasse uma elevação no nível de renda das camadas populares da
cidade; atração turística para o público que vai até a vizinha cidade uruguaia
de Rio Branco para comprar produtos importados em free shops.
Esses fatores, embora não sejam claramente explicitados no projeto,
é, na realidade, o esteio da proposta do poder político local para justi-
ficar o investimento aplicado, dentro da lógica de enfrentamento com
os grupos opositores da proposta. Esses aspectos, que em certa medida
são justificáveis, por ser uma região carente economicamente, não po-
deriam ser os únicos direcionadores desse tipo de empreendimento. O
patrimônio cultural não é uma questão que deva ser pautada somente
pelo viés econômico, mas deve considerar também os benefícios em lon-
go prazo, para o desenvolvimento humano e, consequentemente, social.
Nesse sentido, deve-se pensar em resultados formativos – educativos e
culturais –, mas também visar praticamente o empreendedorismo que
se pode estimular através do uso adequado do patrimônio cultural, prin-
160 A L E X A N D R E D O S S A N TO S V I L L A S B ÔA S
5
Conforme as legislações existentes, sobretudo das políticas internas do IPHAN sobre educação
patrimonial, vide Portaria n. 420, de 22 de dezembro de 2010, Portaria n. 299, de 6 de julho de
2004, Portaria n. 127/2009 (Paisagem Cultural Brasileira), Fórum Política Nacional no Âmbito
da Educação Patrimonial Eixos Temáticos, Diretrizes e Ações Documento final do II Encontro
Nacional de Educação Patrimonial (Ouro Preto-MG, 17 a 21 de julho de 2011).
A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 165
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A CO N S T R U Ç ÃO D E U M PAT R I M Ô N I O 169
MARIANA REI
[...] los procesos económicos siempre suceden en algún lugar; de este modo,
estudiar el modo como estos procesos se espacializany contribuyen decisiva-
mente a la producción del espacio posee un enorme potencial heurístico para
las ciencias sociales en su intención de analizar la tensión global/local
(FRANQUESA, 2007, p. 127).
1
Este texto apresenta-se em sua forma original, escrito em português de Portugal.
172 MARIANA REI
termo de Françoise Choay (1992) – tem sido acompanhada com uma forte
expansão dos processos de mercantilização (FRANQUESA, 2010, p. 54).
Neste sentido, Franquesa propõeno referido artigo um conjunto de ferra-
mentas teóricas que ajudem a pensar esta relação entre património e mercado.
Segundo o antropólogo, a categoria de património revela-se desadequada a
este propósito, pelo seu caráter essencializador, ocultando o processo me-
diante o qual o objeto patrimonial adquire valor. Apoiando-se na tradição da
antropologia económica – designadamente em Annette Weiner (Inalienable
Possessions. The paradox of keeping-while-giving 1992) e Maurice Godelier
(L’énigme du don 1996), que estudam a questão da posse em sociedades de
reciprocidade não económica –, propõe guardar como categoria analítica al-
ternativa, uma questão que desenvolve posteriormente (FRANQUESA, 2013)
de forma articulada com o contexto de Palma, na ilha de Maiorca (Espanha).
A inter-relação entre os processoseconómicos e os de patrimonialização
constitui-se como o ponto de partida do estudo que informa este artigo, de-
senvolvido a partir de um fenómeno de proliferação recente em Portugal – as
fábricas criativas (REI, 2016a). Conforme nota Franquesa na citação que dá o
mote a este artigo,os processo económicos sempre decorrem nalgum lugar
(2007, p. 127), constituindo-se a regeneração urbana como uma das suas
manifestações mais visíveis. Partindo da requalificação de antigas unidades
industriais com significativo valor patrimonial e forte implantação na memó-
ria coletiva da região, as fábricas criativas– isto é, a requalificação de antigos
espaços industriais em espaços de indústrias criativas –têm como princípio
transformar anteriores marcos de desenvolvimento económico em polos
de inovação de referência, através da instalação de incubadoras de indús-
trias criativas. Assentes na desvalorização e revalorização cíclica de espaços,
estes projetos constituem-se, neste sentido, como mecanismos de criação
de novas oportunidades de mais-valia, num processo de destruição criativa
(SCHUMPETER, 1961 [1943])que acompanha as crises cíclicas do capitalismo
e constitui a base do seu sistema de acumulação (FRANQUESA, 2007, p. 128).
Pela forma como materializam localmente e ao longo do tempo fenó-
menos globais e abstratos como são os processos económicos, as fábricas
MEMÓRIA OPER ÁRIA 173
Partindo deuma etnografia0 das duas vidas que estas fábricas criativas
condensam, procurou-se neste estudo olhar para asatuais transforma-
ções no mundo do trabalho, suas mudanças e continuidades, no quadro
de uma reestruturação produtiva à escala global a que temos vindo a
assistir particularmente desde a década de 1980. Em contexto europeu,
este novo modelo de produção – assente num sistema de subcontratação
“em cascata” (APPAY, 2005) e naflexibilização laboral, por substituição
da velha fábrica vertical fordista – tem-se traduzido numa estetização
da economia e do trabalho, onde os discursos e práticas em torno da
criatividade assumem crescentemente um papel central.
Enunciados não por quem trabalha nas áreas criativas, mas por ges-
tores, políticos ou programadores culturais, e portanto sob uma aura
idealista que passa para a esfera pública, os discursosnos quais assentam
estes espaçossão, neste quadro, distintos da produção criativa efetiva.
Considerando a visão romantizada que subsiste na esfera pública relati-
vamente à realidade do trabalho criativo, definiu-se como problemática
central deste trabalhoa análisedas atuais reconfigurações produtivas à luz
da figura do artista, questionando até que ponto este se assume como
modelo ideal de trabalho perante o sistema económico vigente.
Tendo em vista a constituição de um objeto de estudo, foquei-me
especificamenteno caso de requalificação recente de uma antiga e em-
blemática fábrica têxtil algodoeira localizada no Vale do Ave, na periferia
do Porto (Portugal). Embora em contexto europeu os exemplos sejam
múltiplos e o fenómeno adquira já um caráter histórico, este tem vindo a
alastrar desde a década de 1970 a partir do centro progressivamente para
174 MARIANA REI
2
Na linha dos trabalhos de Paula Godinho (1998, p. 42) e Sónia Vespeira de Almeida (2009, p.
50) sobre a realidade portuguesa. Conforme refere Paula Godinho (1998, p. 42), a formulação
do recurso a fragmentos de história de vida enquanto ilustração, e não como prova, é tratada
por Daniel Bertaux (1986, p. 21-34).
176 MARIANA REI
3
Sobre este assunto, cf., por exemplo, Pereira (1997), Ingerson (1981) ou Alves (1999).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 177
4
De acordo com a autora, este movimento de internacionalização da indústria têxtil pelos
ingleses surgiu por resposta à resistência empreendida pelo movimento operário inglês organi-
zado à introdução de novas tecnologias (2001, p. 137). O mesmo motivo originou, mais tarde, a
deslocalização da indústria têxtil do Porto para o Vale do Ave, na sua periferia (cf. MÓNICA, 1986).
5
Por forma a garantir o seu anonimato, todos os nomes de entrevistados, de pessoas ou locais
mencionados nas entrevistas, bem como da própria fábrica foram alterados ou ocultados.
6
Numa folha de salários da fábrica de 1960 contam-se 1008 trabalhadores (F.S. nº 2637 de 6
de abril de 1960).
7
Aplicam-se aqui os termos «qualificado» e «especializado» respetivamente no sentido da
formação do trabalhador e da divisão por tarefa da cadeia de montagem. Por inerência, quando
mais específica a tarefa mais repetitiva e menor a qualificação necessária à sua realização e
respetivos salários, e tanto maior a produtividade do trabalhador, por via da redução de ope-
rações diferentes, e a sua alienação.
178 MARIANA REI
8
Entrevista 6 – parte 1 (21.01.2014, registo do caderno de campo).
9
Entrevista 4 – parte 1 (07.12.2013).
10
Entrevista 11 (12.02.2014).
180 MARIANA REI
Para além da revolta, outros fatores apontam para que possamos estar
perante um cenário de memórias traumáticas.Note-se como boa parte dos
antigos trabalhadores manifestam relutância ou mesmo recusa em entrar
no espaço da fábrica – “Há ainda gente que não tem coragem de entra”11,
é referido recorrentemente. Ou como, por vezes, o primeiro contacto com
antigos trabalhadores era marcado pelo silenciamento, desconfiança ou
relutância em falar, sobretudo por parte da população feminina, embora os
dados não permitam estabelecer qualquer relação causal direta a este nível.
Todos estes fatores, de revolta ou silenciamento, apontam para uma me-
mória coletiva ainda muito viva ao nível local, e que ainda vai sendo ativada:
11
Entrevista 1 – parte 2 (02-12-2013).
12
Entrevista 3 – parte 1 (06.12.2013).
13
Embora a maioria dos entrevistados da primeira vida tenham permanecido na fábrica até
à data de falência ou próximo (13 de 19), todos ingressaram pela primeira vez antes do 25 de
abril de 1974 (8 entre 1952 e 1959, e 11 entre 1960 e 1973), pelo que os testemunhos se reportam
sobretudo ao período do Estado Novo.
MEMÓRIA OPER ÁRIA 181
14
Entrevista 16 (13.03.2014).
15
Note-se que, em vários testemunhos, é reforçado repetidamente que a manutenção de tais
atividades ilícitas, bem como a forte disciplina na fábrica, era prática corrente em todas as
fábricas da região no período do Estado Novo, e não apenas naquela.
182 MARIANA REI
16
Entrevista 8 (07.02.2014).
17
Na folha de salários de 1960, diretamente na linha de montagem (excluindo os cargos su-
periores e de manutenção, exclusivamente masculinos) apenas 37% num total de 708 traba-
lhadores são homens são homens (F.S. nº 2637 de 6 de abril de 1960). Incluem-se, entre estes,
os trabalhadores do turno da noite, vedado, segundo o despacho vigente à época, a mulheres
e menores (Despacho de 1 de agosto de 1955, “Trabalho nocturno de menores e mulheres”,
Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Providência, n.º 18/1955).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 183
18
Entrevista 17 – parte 2 (17.03.2014).
184 MARIANA REI
19
Entrevista 24 – parte 1 (02.04.2014).
20
Entrevista 25 – parte 1 (02.04.2014).
21
Entrevista 28 (24.04.2014).
22
Entrevista 25 – parte 1 (02.04.2014).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 185
23
Entrevista 21 – parte 1 (25.03.2014).
186 MARIANA REI
24
Os dois primeiros níveis das conclusões deste estudo foram apresentados de forma mais
aprofundada num artigo recente (REI, 2015).
MEMÓRIA OPER ÁRIA 187
que não reconhece benefícios neste tipo de projetos, algo que se agrava
se considerarmos como os financiamentos europeus nos quais assentam
hipotecam os orçamentos municipais, não só devido à comparticipação
local implicada na requalificação do edificado, mas também pelos custos de
manutenção, que não são abrangidos pelos fundos comunitários de apoio.
Perante estas fragilidades, importa questionar até que ponto estes
novos usos económicos do património são sustentáveis a médio e longo
prazo, e qual o impacto das políticas culturais e programas de financiamen-
to europeu à escala local, designadamente por comparação com outros
casos, desenvolvidos a partir de cima e de baixo, em contexto nacional e,
sobretudo, internacional, onde são inúmeros os exemplos com vários anos
de implementação. Este foi um trabalho que já iniciei, num outro momento
(no prelo-b REI, 2016b), com um primeiro olhar para outros formatos a partir
de fábricas apropriadas a partir de baixo em Portugal.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor; Max HORKHEIMER. A dialéctica do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor: 1985
ALMEIDA, Sónia Vespeira. Campanhas de Dinamização Cultural e Acção
Cívica do MFA: uma etnografia retrospectiva. Arquivos da Memória, 2 (nova
série), 2007, pp. 47-65.
CAMPONESES, Cultura e Revolução. Campanhas de Dinamização Cultural e
Ação Cívica do MFA (1974–1975). Lisboa: IELT-Colibri, 2009.
ALVES, Jorge Fernandes. Fiar e Tecer: uma perspetiva histórica da indústria
têxtil a partir do vale do Ave. Vila Nova de Famalicão: Câmara Municipal, 1999.
APPAY, Béatrice. La dictature du succès: leparadoxe de l’autonomie contrôlée
et de lapré carisation, Paris: L’Harmattan, 2005.
BERTAUX, Daniel. Fonction diverses des récits de vie dans le processos de
recherche.In: DESMARAIS, Danielle; GRELL, Paul. (dir.). Les récits de vie,
Montreal: Ed. St. Martin, 1986.
188 MARIANA REI
Miguel Cardina é doutor, com uma tese intitulada Margem de certa ma-
neira. O maoísmo em Portugal: 1964-1974, à qual foi atribuído o Prémio
Victor de Sá de História Contemporânea (2011) e o Prémio CES para Jovens
Cientistas Sociais de Língua Portuguesa (2013). É investigador do Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), onde integra o
Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP),
e investigador associado do Instituto de História Contemporânea da
Universidade Nova de Lisboa.
Série História
A Série História visa à difusão dos mais recentes estudos que congre-
gam diferentes abordagens do conhecimento histórico.
Trata-se de um meio de propagação de pesquisas que contribuem
com o desenvolvimento do saber histórico nacional e internacional, pro-
movendo a circulação de obras cujos autores se propõem a (re)interpretar
os mais variados temas e estabelecer novos horizontes aos saberes ligados
às Ciências Humanas.
1ª
PESQUISA E HISTÓRIA JANETE SILVEIRA ABRÃO 2007 51
reimpressão
UM RIO PARA O EL DORADO KLAUS HILBERT 2005 52 1ª
CONSPIRAÇÃO CONTRA O ESTADO NOVO ADRIANA IOP BELLINTANI 2002 53 1ª
REPÚBLICA RIO-GRANDENSE: REALIDADE E
MOACYR FLORES 2002 54 1ª
UTOPIA
IDADES DA HISTÓRIA MARCO ANTÔNIO LOPES 2009 55 1ª
TUPÍ OR NOT TUPÍ: NAÇÃO E NACIONALIDADE
ÉDER SILVEIRA 2009 56 1ª
EM JOSÉ DE ALENCAR E OSWALD DE ANDRADE
PARA COMPREENDER O SÉCULO XXI CARLOS ANTONIO AGUIRRE ROJAS 2010 57 1ª
ROUSSEAU FRENTE AO LEGADO DE
MONTESQUIEU: HISTÓRIA E TEORIA POLÍTICA RENATO MOSCATELI 2010 58 1ª
NO SÉCULO DAS LUZES (CH 58)
POVO E POLÍTICA - A CONSTRUÇÃO DE UMA
HILDA SABATO 2012 59 1ª
REPÚBLICA
HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA: DAS CULTURAS
STEFAN RINKE 2012 60 1ª
PRÉ-COLOMBIANAS ATÉ O PRESENTE
DE VARGAS AOS MILITARES: AUTORITARISMO
LUCIANO ARONNE DE ABREU 2014 61 1ª
E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO BRASIL
FESTAS CHILENAS JURANDIR MALERBA 2014 62 1ª
CHRISTIAN FAUSTO MORAES
A CARNE, A GORDURA E OS OVOS:
DOS SANTOS E MARLON 2015 63 1ª
COLONIZAÇÃO, CAÇA E PESCA NA AMAZÔNIA
MARCEL FIORI
VIOLÊNCIA E SOCIEDADE EM DITADURAS JORGE MARCO, HELDER GORDIM
IBERO-AMERICANAS NO SÉCULO XX- DA SILVEIRA E JAIME VALIM 2015 64 1ª
ARGENTINA, BRASIL, ESPANHA E PORTUGAL MANSAN (ORGS.)
POSITIVISMO AO ESTILO GAÚCHO A DITADURA
DE JÚLIO DE CASTILHOS E SEU IMPACTO SOBRE
JENS R. HENTSCHKE 2015 65 1ª
A CONSTRUÇÃO DO ESTADO E DA NAÇÃO NO
BRASIL DE GETÚLIO VARGAS
MARÇAL DE MENEZES PAREDES,
LUCIANO ARONNE DE ABREU,
DIMENSÕES DO PODER HISTÓRIA, POLÍTICA E
HELDER GORDIM DA SILVEIRA E 2015 66 1ª
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
LEANDRO PEREIRA GONÇALVES
(ORGS.)
GALEGOS NOS TRÓPICOS: INVISIBILIDADE E
PRESENÇA DA IMIGRAÇÃO GALEGA NO RIO DE ÉRICA SARMIENTO 2016 67 1
JANEIRO 1880-1930
A REPÚBLICA REVISITADA: CONSTRUÇÃO E
CLÁUDIA M. R. VISCARDI E JOSÉ
CONSOLIDAÇÃO DO PROJETO REPUBLICANO 2016 68 1ª
ALMINO ALENCAR (ORGS.)
BRASILEIRO
TATYANA DE AMARAL MAIA,
RECONSTRUINDO O PASSADO: O PAPEL
LUÍS ALBERTO MARQUES ALVES 2016 69 1ª
INSUBSTITUÍVEL DO ENSINO DA HISTÓRIA
E MIRIAM HERMETO SÁ MOTTA
MISSÕES: UMA UTOPIA POLÍTICA ARNO ALVAREZ KERN 2016 70 2ª
A GRANDE IMPRENSA “LIBERAL” CARIOCA
E A POLÍTICA ECONÔMICA DO SEGUNDO LUIS CARLOS DOS PASSOS
2016 71 1ª
GOVERNO VARGAS (1951-1954): CONFLITO MARTINS
ENTRE PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO
O BIBLIOTECÁRIO PERFEITO: O HISTORIADOR
ANA PAULA SAMPAIO CALDEIRA 2017 72 1ª
RAMIZ GALVÃO NA BIBLIOTECA NACIONAL
Série História
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