Friedrich Hayek O Uso Do Conhecimento Na Sociedade PDF
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O uso do conhecimento
na sociedade
Friedrich A. Hayek
I
Qual é o problema que buscamos resolver quando tentamos construir uma ordem
econômica racional? Partindo de alguns pressupostos amplamente aceitos, a resposta
é bastante simples. Se detivéssemos todas as informações relevantes, se pudéssemos
tomar como ponto de partida um sistema de preferências estabelecido,
e se tivéssemos completo conhecimento dos meios disponíveis, o resto do problema
seria simplesmente uma questão de lógica. Ou seja, a resposta para a pergunta por
qual é o melhor uso dos meios disponíveis está implícita em nossos pressupostos. As
condições que devem ser satisfeitas para a solução desse problema ideal foram
completamente analisadas e podem ser melhor expostas em um modelo matemático:
sucintamente, diríamos que as taxas marginais de substituição entre qualquer dois
bens ou fatores devem ser as mesmas independentemente dos seus diferentes usos.
A resposta para essa pergunta está intimamente relacionada com outra questão que
emerge aqui: a de quem está planejando. Toda a divergência sobre “planejamento
econômico” parte dessa questão. Não está em discussão se se deve planejar ou não,
mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma autoridade
única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido entre vários
indivíduos. No sentido específico em que o termo é utilizado nas controvérsias
contemporâneas, planejamento significa necessariamente planejamento central –
direcionar todo o sistema econômico de acordo com um projeto unificado. A
competição, por outro lado, significa uma descentralização do planejamento, que será
realizado por muitas pessoas independentes. O caminho do meio entre essas duas
posições – muito falado, mas pouco apreciado quando visto em prática – é a delegação
do planejamento para certas indústrias organizadas, isto é, a instituição de
monopólios.
Ficará imediatamente evidente que, neste ponto, a resposta será diferente de acordo
com os diferentes tipos de conhecimento; e a resposta para a nossa pergunta irá,
consequentemente, voltar-se para a importância relativa de diferentes tipos de
conhecimento; aqueles que mais provavelmente estarão à disposição de indivíduos
particulares, e aqueles que teríamos mais certeza de encontrar na posse de um órgão
constituído por especialistas bem escolhidos. Se hoje em dia é tão amplamente aceito
que a segunda opção é preferível, isto ocorre porque um tipo de conhecimento – o
conhecimento científico – ocupa nos dias de hoje um lugar tão proeminente na
imaginação pública que chegamos a esquecer que esse não é o único tipo de
conhecimento relevante. Pode-se admitir que, em relação ao conhecimento científico,
um órgão com um punhado de especialistas bem escolhidos seja a melhor opção para
melhor dominar o conhecimento disponível – embora isso, obviamente, seja
meramente trocar um problema por outro: o problema de como escolher esses
especialistas. O que desejo frisar é que, mesmo presumindo que esse problema
pudesse ser imediatamente resolvido, ele seria apenas parte de um problema maior.
Hoje é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não corresponde à
totalidade do conhecimento. Mas um pouco de reflexão irá mostrar que, sem sombra
de dúvida, existe um corpo importantíssimo de conhecimento desorganizado que não
pode ser chamado de científico, entendendo “científico” como o conhecimento de
certas regras gerais: o conhecimento de certas circunstâncias particulares de tempo e
lugar. É em relação a isso que praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem
comparativa em relação a todos os outros, pois ele possui informações únicas sobre
que tipos de usos benéficos podem ser feitos com certos recursos; usos estes que só
acontecerão se a decisão de como utilizá-los for deixada nas mãos desse indivíduo ou
for tomada com sua cooperação ativa. Basta apenas lembrarmos o quanto precisamos
aprender em qualquer profissão depois de termos completado nossa formação
teórica, quão grande é a parte da nossa vida profissional em que passamos
aprendendo habilidades específicas, e quão valioso, em todas as circunstâncias da
vida, é o conhecimento das pessoas, das condições locais e de certas circunstâncias
especiais. Conhecer e saber operar uma máquina que não estava sendo
adequadamente explorada, ou a habilidade de alguém que poderia ser mais bem
aproveitada, ou estar consciente de um excedente de reservas que pode ser usado
durante uma interrupção temporária do fornecimento, é tão útil socialmente quanto o
conhecimento das melhores técnicas alternativas. O transportador que ganha sua vida
descobrindo como melhor aproveitar seu espaço de carga que ficaria vazio, o agente
imobiliário cujo conhecimento consiste quase exclusivamente em encontrar
oportunidades temporárias, ou o arbitrageur, que lucra a partir das diferenças locais
entre os preços de certos bens – todos eles realizam trabalhos eminentemente úteis
que são baseados em um conhecimento especial das circunstâncias de um momento
fugidio, desconhecido por outros.
É curioso que nos dias de hoje esse tipo de conhecimento seja amplamente
menosprezado, e que as pessoas que fazem uso dele para alcançarem privilégios sobre
pessoas com melhor preparo teórico ou técnico sejam vistas quase como se
estivessem fazendo algo desonrado. Mas, embora conquistar privilégios usando um
conhecimento superior quanto às condições de comunicação e transporte seja visto
como algo quase desonesto, a verdade é que, para a sociedade, é quase tão
importante fazer o melhor uso possível dessas oportunidades quanto das últimas
descobertas científicas.
A experiência prática dos homens de negócios, até onde eu a conheço, não sustenta
essa crença amplamente aceita. Pelo menos nas áreas de negócios que são
competitivas – e apenas essas áreas servem de modelo para essa questão – a tarefa de
impedir os custos de subir exige um luta constante, que absorve grande parte da
energia do administrador. É fácil para um administrador ineficiente gastar as pequenas
sobras de onde saem os lucros; é um lugar-comum da experiência empresarial que,
com as mesmas condições técnicas, a mesma produção pode ser feita dentro de uma
variedade enorme de custos – mas isso não é igualmente conhecido pelos que
estudam apenas economia. O próprio desejo – frequentemente declarado pelos
produtores e engenheiros – de ser autorizado a fazer seus projetos sem considerações
financeiras é um testemunho eloquente do poder que esses fatores exercem sobre seu
trabalho diário.
Nesse instante, devo brevemente observar que o tipo de conhecimento de que tenho
tratado é de um tipo que, por sua própria natureza, não pode ser transposto para
dados estatísticos e que, por isso, não pode ser colocado à disposição de uma
autoridade central que delibere a partir de levantamentos estatísticos. As estatísticas
que essa autoridade teria de utilizar surgiriam exatamente por meio das abstrações
das pequenas diferenças entre as coisas, juntando como se fossem elementos de um
só tipo itens com diferentes características de lugar, qualidade e outras características
particulares, que seriam muito importantes para tomar uma decisão específica.
Consequentemente, planejamento central baseado em informações estatísticas, por
sua própria natureza, não pode levar em consideração diretamente as circunstâncias
de tempo e lugar, precisando encontrar algum jeito de essas decisões serem deixadas
para alguém que esteja no local.
V
De quanto conhecimento ele precisa para ser bem sucedido nisso? Quais dos eventos
que acontecerão além do seu horizonte imediato de conhecimento são relevantes
para sua decisão imediata, e quão bem ele precisa conhecer esses eventos?
Praticamente não há nada que ocorra no mundo que não possa influenciar a decisão
que ele precisa tomar. Mas ele não precisa conhecer esses eventos em si mesmos,
nem precisa conhecer todos os seus efeitos. Para ele, não é importante saber o porquê
de um certo tipo de parafuso estar sendo mais procurado em uma época específica, ou
porque os sacos de papéis estão mais facilmente disponíveis que os sacos de lona, ou
porque trabalhadores especializados ou máquinas específicas momentaneamente se
tornaram difíceis de encontrar. Tudo que ele precisa saber é quão mais ou
menos difícil está a aquisição de certas coisas em relação a outras coisas que também
lhe interessam, ou se a demanda por outras coisas que ele produz ou usa é mais ou
menos urgente. Ele sempre está preocupado com a importância relativa de coisas
particulares, enquanto os fatores que alteram essa importância relativa não lhe
interessam de forma alguma, exceto na medida dos próprios efeitos causados sobre as
coisas concretas do seu ambiente.
É em relação a isso que aquilo que chamei de “cálculo econômico” nos ajuda, ao
menos por analogia, a entender como esse problema pode ser resolvido – na verdade,
como ele já está sendo resolvido – pelo sistema de preços. Mesmo se existisse uma
única mente controladora que possuísse todos os dados sobre um sistema econômico
pequeno e restrito, ela não iria dar-se ao trabalho de repassar por todas as relações
entre fins e meios que talvez possam ser afetadas a cada vez que algum pequeno
ajuste na alocação recursos fosse feito. De fato, uma das grandes contribuições da
lógica pura da escolha é ter demonstrado conclusivamente que mesmo uma única
mente onisciente só poderia resolver esse tipo de problema por meio da construção e
da constante utilização de taxas de equivalência (ou “valores” ou “taxas marginais de
substituição”), ou seja, por meio da atribuição de um índice numérico a cada tipo de
recurso que, sem ser derivado de nenhuma propriedade dessa coisa em particular,
ainda refletisse ou condensasse sua relevância na estrutura total dos meios e fins. Para
cada pequena mudança, ela teria que considerar apenas esses índices quantitativos
(ou “valores”), no qual a informação relevante estaria concentrada; e, ao ajustar as
quantidades uma a uma, ela poderia reorganizar todos os elementos sem precisar
retomar todo o quebra-cabeça desde o início nem precisar parar a cada etapa para
analisar novamente todos os elementos e suas ramificações.
Não é preciso nem que boa parte deles saiba de onde essa demanda mais
urgentemente surgiu, nem mesmo em prol de quê eles irão poupar esses recursos.
Basta que alguns deles saibam diretamente da existência da nova demanda e
transfiram recursos para ela, que algumas outras pessoas percebam o vazio que foi
então criado e ajam para preenchê-lo com recursos de outras fontes, e então o efeito
irá rapidamente se espalhar por todo o sistema econômico, influenciando não apenas
todos os usos do estanho, mas também os usos dos seus substitutos, e dos substitutos
desses substitutos, assim como a oferta de todas as coisas feitas de estanho, e a dos
seus substitutos dessas coisas, e assim por diante; e tudo isso ocorre sem que a grande
maioria daqueles que realizam essas substituições saiba nada sobre a causa original
dessas mudanças. O todo age como se fosse um único mercado, mas isso não ocorre
porque cada um dos seus membros pôde analisá-lo como um todo, mas sim porque os
campos limitados da visão de cada um tinham alcance suficiente para que, através de
inúmeros intermediários, a informação relevante fosse comunicada para todos. O
mero fato de que há um preço para cada bem – ou, melhor dizendo, que cada preço
local está ligado de certa forma com o custo de transportá-lo para esse local, e assim
por diante – traz a mesma solução que uma única mente dotada de todas as
informações (embora ela seja apenas uma possibilidade imaginária) teria alcançado,
ainda que essas informações na verdade estejam dispersas entre todas as pessoas
envolvidas no processo.
VI
O sistema de preços é apenas uma dessas criações que o homem aprendeu a usar
(embora ele ainda esteja longe de ter aprendido a usá-lo perfeitamente), depois que
se deparou com ele, mesmo antes de entendê-lo. Por meio dele não apenas a divisão
de trabalho, mas também o uso coordenado de recursos baseado em conhecimentos
amplamente divulgados se tornam possíveis. As pessoas que gostam de ridicularizar
qualquer sugestão de que é assim que as coisas funcionam distorcem nosso
argumento ao insinuar que estamos dizendo que é por algum milagre que um sistema
como esse se desenvolveu espontaneamente, tornando-se o mais adequado para a
civilização moderna. Trata-se exatamente do contrário: o homem pode criar essa
divisão do trabalho sobre a qual a nossa civilização se sustenta justamente porque ele
se deparou com um método que a tornou possível. Caso isso não tivesse ocorrido, ele
talvez tivesse desenvolvido um tipo inteiramente diferente de civilização, talvez o
“Estado” dos cupins, ou outra coisa totalmente inimaginável. Tudo que podemos dizer
é que até agora ninguém conseguiu produzir um sistema alternativo no qual certas
características do sistema existente – que são respeitadas mesmo por aqueles que o
atacam violentamente – possam ser preservadas, especialmente em relação à
capacidade do indivíduo de escolher seus objetivos e, consequentemente, de dispor
livremente de suas habilidades e conhecimento.
VII
Por vários motivos, é ótimo que a necessidade do sistema de preços para qualquer
cálculo racional em uma sociedade complexa já não seja mais objeto de discussão
apenas entre grupos com opiniões políticas distintas. A tese segundo a qual sem o
sistema de preços nós não poderíamos preservar uma sociedade baseada numa
divisão de trabalho tão extensiva quanto a nossa foi recebida com gritos de chacota
quando Mises a apresentou há vinte e cinco anos. Hoje os argumentos que alguns
ainda apresentam para rejeitar essa tese não são mais exclusivamente políticos, e isso
cria um atmosfera muito mais receptível a discussões ponderadas. Quando vemos
Leon Trostky argumentando que o “cálculo econômico é inimaginável sem as relações
de mercado”; quando o professor Oscar Lange promete ao professor von Mises uma
estátua de mármore no futuro Diretório de Planejamento Central, e quando o
professor Abba P. Lerner redescobre Adam Smith, enfatizando que a utilidade
essencial do sistema de preços consiste em induzir o indivíduo a fazer aquilo que é do
interesse geral no instante em que busca realizar seus próprios interesses, então, as
divergências já não podem ser atribuídas a preconceitos políticos. Os dissidentes
restantes parecem claramente divergir dessa posição por motivos puramente
intelectuais e, mais particularmente, por causa de diferenças metodológicas.
1
Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia [Capitalism, Socialism, and Democracy (New York;
Harper, 1942), p. 175]. O professor Schumpeter é, me parece, o responsável pela criação do mito
segundo o qual Pareto e Barone teriam “resolvido” o problema do cálculo econômico no socialismo. O
que eles e muitos outros fizeram foi apenas elencar as condições que deveriam ser satisfeita para uma
alocação racional de recursos, e observar que essas condições eram essencialmente as mesmas do
estado de equilíbrio de um mercado competitivo. Isso é inteiramente diferente de saber como a
alocação de recursos segundo essas condições pode ser observada na prática. O próprio Pareto (de
quem Barone praticamente tomou quase tudo que tinha a dizer), longe de declarar ter resolvido esse
problema prático, de fato, negou explicitamente que ele poderia ser resolvido sem o auxílio do
Tomada literalmente, essa declaração é simplesmente falsa. Os consumidores não
fazem nada disso. O que o “ipso facto do professor Schumpeter provavelmente
significa é que a avaliação dos fatores de produção está implícita, ou que se segue
necessariamente, da avaliação dos bens de consumo. Mas isso também não é
verdadeiro. A implicação é uma relação lógica que só pode ser afirmada com
segurança a partir de pressupostos que estejam para o mesmo indivíduo. É evidente,
no entanto, que os valores dos fatores de produção não dependem exclusivamente da
avaliação dos bens de consumo, mas também das condições de fornecimento dos
vários fatores de produção. Apenas um único indivíduo que conhecesse todos esses
fatores simultaneamente poderia encontrar uma respostas derivada diretamente
desses dados. O problema prático surge, no entanto, precisamente porque esses
dados nunca estão inteiramente disponíveis para um único indivíduo, e porque, por
consequência, é necessário para resolver esse problema a utilização de conhecimentos
que estão dispersos por vários indivíduos.
mercado. Vejam o seu Manuel d’économie pure (2d ed., 1927), pp. 233–34, *“Manual de economia
pura”+. As passagens relevantes estão citadas em uma tradução inglese no início do meu artigo Socialist
Calculation: The Competitive ‘Solution’ *“O cálculo socialista: a ‘solução’ competitiva”+ in Economica,
New Series, Vol. VIII, No. 26 (May, 1940), p. 125.].
sistema, a análise do equilíbrio econômico tem uma atividade útil a desempenhar, mas
quando chega o ponto em que ela ofusca nossos principais intelectuais, fazendo-os
acreditar que a situação que estão descrevendo tem uma relevância direta para a
solução de problemas práticos, está mais que na hora de nos lembrarmos que esse
tipo de análise não lida com o processo social de forma alguma, e de que isso não é
mais do que uma etapa preliminar para a investigação do problema principal.