Teresa Caldeira - Cidade de Muros
Teresa Caldeira - Cidade de Muros
Teresa Caldeira - Cidade de Muros
Cidade de muros
Crime, segregação e cidadania em São Paulo
e d it o r a H 3 4 I
E d ito ra 34 l.td a .
R u a H u n g ria, 5 9 2 Ja rd im E u ro p a C E P 0 1 4 5 5 -0 0 0
S ão P au lo - SP Brasil T e l/E a x i l l ) 3 8 1 6 -6 7 7 7 w w w .e d ito ra 3 4 .co m ,b r
E d u sp - E d ito ra da U n iv ersid ad e d e S a o P au lo
A v. P rof. L u c ia n o G u alh erto , T r a v e ssa J . 3 7 4 6‘* a n d ar
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R e v isã o :
Adrienne de Oliveira formo
C ré d ito s d a s fo to g ra fia s;
Célio JrJA E ip. 248a , 248b}; Teresa Pires do Rio (\aldcira (pp. 222a, 222b, 229a,
22% , 218a. 246a. 246b. 295a, 295b, 298a, 298b. 298c . 299a, 299b. 299c , 3 18a.
518b}; Teresa Pires do Rto Caldeira e Jam es Holston (pp. 222c. 258b. 29 (%j, 296b.
296c, 296d. 500a. 500b. 500c. 518c)
1* E d ição - 2 0 0 0 ; 2 4 E d iç ão - 2 0 0 3
C a ta lo g a ç ã o na F o m e d o D ep artam e n to N a c io n al d o L ivro
(F u n d aç ã o Biblioteca N a c io n al, R J, Brasil)
CDD - 307.76098161
CIDADE DF. MUROS
Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo
Introdução........................................................................................ ........... 9
Parte 1. A F ai \ do C r im e
A p ê n d ic e........................................................................................................... 379
Agradecimentos....................... 381
b ib lio g r a fia ...................................................................................................... 385
Para Jim,
explorador de cidades, reais e imaginárias.
INTRODUÇÃO
1 A Lei das índias foi proclamada em ] 573 por 1 1íIcs.- [[ da I sp.inba para estabelecer regras
uniformes para o planejamento de cidades a serem criadas nas colônias espanholas. Ver capitulo
8 snbrc o modelo das cidadcs-jardins. CIAM refere-se aos Congrcs Iniern.ilionaux dVArchuccciire
Moderne, que criaram a referência para o planejamento de ciJades modernistas. Brasília foi ins
pirada nesse modelo (ver H oktoii 1989).
Cidade dc Muros II
conjuntos comerciais c empresariais, ou condomínios residenciais, Fies atraem aque-
les que temem a hetcrogencidade social dos bairros urbanos mais antigos e prefe
rem abandoná-los para os pobres, os “ marginais” , os sem-icto. Por serem espaços
fechados cujo acesso é controlado privadamente, ainda que tenham um uso coleti
vo e semipúblico, eles transformam profundamente o caráter do espaço publico.
Na verdade, criam um espaço que contradiz diretamente os ideais de heteroge-
ncidadc. acessibilidade e igualdade que ajudaram a organizar tanto o espaço pú
blico moderno quanto as modernas democracias. Privatização, cercamentos, poli
ciamento de fronteiras e técnicas de distanciamento criam um outro tipo de espaço
público: fragmentado, arriculado cin termos de separações rígidas e segurança so
fisticada, e no qual a desigualdade é um valor estruturante. No novo tipo de espa
ço público, as diferenças não devem ser postas de lado, tomadas como irrelevantes,
negligenciadas. Nem devem também ser disfarçadas para sustentar ideologias dc
igualdade universal ou de pluralismo cultural. O novo meio urbano reforça e valo
riza desigualdades e separações e é, portanto, um espaço público nâo-dcmocrãtico
e nâo-moderno. O fato dc esse tipo de organização do espaço público se espalhar
pelo mundo inteiro no momento em que muitas sociedades que o adotam passam
por transformações como democratização política, fim de regimes racistas e crescente
heterogeneizaçâo resultante de fluxos migratórios, indica a complexidade das liga
ções entre formas urbanas e formas políticas. Além disso, indica que o espaço ur
bano pode ser a arena na qual a democratização, a equatização social e a expansão
dos direitos da cidadania vêm sendo contestados nas sociedades contemporâneas.
Dessa forma, este livro analisa o modo pelo qual a desigualdade social é reproduzida
cm cidades contemporâneas e conto essa reprodução contradiz processos que. em
teoria, deveríam eliminar discriminação e autoritarismo. O fato de que enclaves for
tificados e privados são uma característica tanto de Los Angeles como de São Pau
lo e Johannesburgo nos impede de classificar o novo modelo como uma caracterís
tica apenas de sociedades pós-coloniais. O novo modelo que eles representam pa
rece ter se disseminado amplamente. Os desafios que ele apresenta para a demo
cracia e a cidadania não se restringem às sociedades democratizadas recentemente.
A pesquisa na qual se baseia este estudo foi feita enrre 1988 c 1998 e apóia-se
numa combinação de metodologias e opos de informações. A observação partici
pante, normalmente considerada o método por excelência de um estudo etnográfico,
nem sempre foi viável para este estudo, por uma série de razões. Primeiro, é difícil,
quando não impossível, estudar a violência e o crime por meio da observação par
ticipante. Segundo, a unidade de análise para o estudo de segregação espacial ri-
Cidadc de Muros U
nha de ser a região metropolitana de São Paulo. Uma área urbana com 16 milhões
de habitantes não pode ser estudada com um método concebido para o estudo de
aldeias. Podcrta estudar bairros, como os antropólogos frequentemente têm feito
em cidades e como fiz em pesquisas anteriores na periferia. No entanto, não estava
espccialmenie interessada na ernografia de diferentes áreas da cidade, mas sim na
análise etnográfica de experiências de violência e segregação, c estas não podiam
ser estudadas do mesmo modo cm bairros diferentes. Enquanto os bairros da peri
feria ainda têm uma vida pública e são relativamente abertos ã observação e parti
cipação, nos bairros residenciais das classes média e alta a vida social c interiorizada
e privatizada e há muito pouca vida pública. Como nesses bairros os observadores
são vistos com suspeita c tornam-se alvo dos serviços de segurança privada, a ob
servação participante não é viável. Usar observação participante em áreas pobres c
outros métodos em áreas ricas significaria “ primitivizar" as classes trabalhadoras
e negligenciar as relações entre classe c espaço público. Por fim. porque estava in
teressada num processo de mudança social que só podia ser marginalmentc captu
rado no momento da observação, tive necessariamente que usar outros tipos de
informação.
Foi necessário, então, lançar mão de uma combinação de métodos e ripos de
informação. Para entender o crime violento, analisei estatísticas do crime e investi-
guei a história das forças policiais de modo a revelar como sua prática está interli
gada à reprodução da violência. Para analisar as mudanças em padrões de segrega
ção espacial, recuperei a história da urbanização de São Paulo usando indicadores
demográficos c socioeconõnncos produzidas por diferentes órgãos estatais ou ins
tituições acadêmicas, Para caracterizar o novo estilo dos condomínios fechados,
analisei anúncios imobiliários publicados em girnais. Apesar de esses e outros mé
todos e fontes de dados terem proporcionado informações sobre macroprocessos
de mudança, eles não podiam dizer muito a respeito de como os paulistanos esta
vam vivendo esses processos. Para este entendimento, utilizei entrevistas abertas com
moradores. Também usei os jornais como fome para os debates sobre direitos hu
manos e pena de morte. Finalmcnte, entrevistei políticos e administradores, ativistas
de direitos humanos, jornalistas e representantes do setor de serviços de seguran
ça, seja em empresas privadas, seja em enclaves fortificados. Recorrí também à minha
própria experiência e a minhas lembranças como moradora de São Paulo para dis
cutir algumas de suas transformações. A maior parte das entrevistas foi feita entre
IV89e 1991.
A pesquisa que deu origem a este livro Investigou experiências de medo e cri
me em várias classes sociais e suas relações com processos de mudança social. A
incorporação da perspectiva de várias classes é fundamental na concepção dessa
pesquisa, por três razões inter-relacionadas: por tratar-se de um estudo de segrega
ção social e espacial; porque as desigualdades sociais são agudas cm São Paulo; e
porque a violência é um fenômeno atnplamentc difundido, que tanto atravessa as
linhas de classe quanto torna as diferenças de classe mais agudas. Concentrar a
pesquisa num único grupo social ou numa única área da cidade significaria limitar
a compreensão de fenômenos que afetam fundamencalmente as relações entre gru
pos e as maneiras pelas quais tanto os espaços quanto as possibilidades de interação
2 As entrevistas em outros bairros da periferia de São Paulo foram feitas p ir um.i equipe de
pesquisa do Ciehrap — Ceniro Brasileiro de Analise e Planejamento —, instituição ã qual estive
filiada entre 1980 e 1995. As entrevistas foram realizadas no âmbito do projeto de pesquisa “ A
Periferia de São Paulo e o Contexto da Ação Política ".coordenada pela professora Kuth Cardoso
e iniciada a pedido da Conmsào dc Justiça L Paz Ja Arquidiocese dc São Paulo. Essa pesquisa foi
feira cm Cidade Julta, Jaguaré, Jardim Minam, Jardim Peri-Pcri. Jardim Martela (este úlrtmo em
Osasco. Região Metropolitana de São Paulo) e Jardim das Camélias, onde fui responsável pelas
investigações, Outras análises resultantes dessa pesquisa incluem Caldeira 198’ . I9SH e 1990,
Cidade dc Muros 15
criais que se insularam na Moóca na virada do século eram imigrantes europeus, a
maioria italianos, mas também espanhóis, portugueses e europeus do leste. A maioria
de seus filhos nunca foram trabalhadores industriais. A dcsindustrializaçãoda área
coincidiu também com um deslocamento de moradores que ascenderam socialmenre
e se mudaram para outras partes da cidade. Há quatro décadas a Moóc.i perde
população. Atualmente, embora o bairro ainda conserve vários dos seus armazéns
e fábricas e muitas casas operárias, e embora boa pane de sua população ainda cultive
um sotaque italiano e uma identidade étnica, dois processos novos e contraditórios
estão remodelando o bairro. De um lado, muitas casas grandes e antigas foram trans
formadas em cortiços. De outro lado. algumas áreas foram reurbanizadas por cau
sa da construção da linha do merró e estão passando por um processo de cnobre-
cimento [gentrificalinn]. F.ste é expressa na construção de apartamentos luxuosos
e na instalação de um comércio mais sofisticado dirigido à porção mais rica da
população que prefere não se mudar, ou a novos residenres também se mudando
dc outros bairros par3 lá. Todos esses processos estão gerando uma heterogenei-
dade social e uma tensão social desconhecidas ameriormente no bairro. F.ssa ten
são está claramente expressa na fala do crime.5
Finalmente, fiz pesquisas no Morumbi e em Alto de Pinheiros, bairros de classe
média alta e alta. Até os anos 70, essas eram áreas de pouca população, muita área
verde, grandes terrenos c casas imensas. A partir de meados dos anos 70, d a s fo
ram profundamente transformadas pela intensa construção de prédios de aparta
mentos, muitos seguindo o modelo de condomínio fechado. O Morumbi represen
ta de forma mais clara o novo padrão de expansão urhana que analiso nos capítu
los f> e 7, Hoje muitas pessoas da ciasse alta que costumavam morar nos bairros
centrais mu dam-se para o Morumbi para viver em enclaves fortificados. O bairro
também é socialmente mais heterogêneo que essas outras áreas tradicionais centrais,
porque os enclaves ricos são situados ao lado de algumas das maiores favelas da
cidade. Fm consequência, o Morumbi expressa da maneira mais ciara o novo pa
drão de segregação espacial da cidade. O Alto de Pinheiros foi o pioneiro na cons
trução dc condomínios fechados nos anos 70, mas o ritmo das construções foi mais
lento e boje ele tem menos favelas do que o Morumbi,
Realizei todas as entrevistas com moradores da cidade sob a condição de ano
nimato. F.m claro contraste com outros projetos de pesquisa que realizei, em que
os moradores estavam ansiosos para conversar comigo e para ver suas idéias e pa
lavras impressas, neste projeto encontrei resistência e relutância na discussão so
bre o crime c a violência. Muitas vezes, as pessoas inicialmente mc pediam que não
gravasse as entrevistas, embora sempre me dessem permissão para tomar notas. Na
maioria dos casos, elas acabaram me autorizando a gravar também. Quando as
pessoas temem as instituições da ordem, sobretudo a polícia, c quando sentem que
' Na Moóca. tive um assistente Je pesquisa. João Vargas. Seu trabalho resultou em uma
dissertação tVargas na qual ele amplia as discussões sobre como as recentes transforma
ções urbanas aleraram os moradores do bairro e moldaram seus medos e visões em relação ao crime.
An t r o p o l o g ia com S otaqlte
Este é um livro sobre São Paulo, a cidade onde crescí, onde passei a maior parte
da minha vida, onde venho fazendo pesquisas antropológicas desde o final dos anos
70 e onde trabalhei como pesquisadora e professora durante quinze anos. Sua pri
meira versão foi escrita na Califórnia, onde fiz meus estudos de doutorado em an
tropologia e onde atualmente trabalho como professora, O livro foi escrito cm Los
Angeles e em I.a jolla, e comecei a revisá-lo durante minha rotina de idas e vindas
entre I.a Jolla e Irvine, no coração do sul da Califórnia. Terminei as revisões em
Nova York e em São Paulo, onde passo agora cerca de três meses por ano. O que
penso sobre violência, espaço público urbano e segregação espacial é marcado por
minhas experiências como moradora dessas cidades e, especialmenre, pelos confli
tos e tensões provocados pela confluência dessas diversas experiências e os conhe
cimentos que elas geram. Deslocamento é algo central neste livro, tanto como ex
periência vivida quanto como instrumento de critica e de conhecimento.
O conflito em relação à língua é provavelmente uma das panes mais frustrantes
desse deslocamento. Minha língua materna é o português, a língua na qual estudei
até o mestrado, escreví meu primeiro livro e fiz a pesquisa para este livro. No en
tanto, escreví este livro em inglês. Ao fazê-lo, deparei-me diariamente com a per
cepção de que, mais do que as minhas palavras, meu pensamento estava moldado
num certo estilo e numa certa língua. Enquanto escrevia em inglês, podia ouvir a
repetitiva e por fim exasperada queixa de um dos meus editores: ""Qual é o sujeito?
Não escreva na voz passiva! Você não aprende?". Inútil explicar que o estilo aca
dêmico em português ê com frequência estruturado na voz passiva e quase sempre
com um sujeito ambíguo; supérfluo produzir irnia interpretação do sentido das es
colhas gramaticais de cada csnlo acadêmico, Não estava mais escrevendo na lín
gua que dominava e não podia mais contar com a liberdade e a segurança das cons
truções inconscientes. E agora, au revisar a tradução para o português feita por outra
pessoa, encontro-me frequentemente em dúvida sobre a escolha de palavras e so
bre a estrutura das frases e fico me perguntando onde foi parar a minha voz em
tudo isso. M as, obviamente, a questão não é apenas com a gramática e as palavras:
é episremológica e metodológica. A antropologia e a teoria social têm aquilo que
se pode chamar de um "estilo internacional", ou seja, um carpus de teoria, méto
do c literatura partilhado por profissionais do mundo inteiro. Embora esse cnrpiií
tenha me oferecido um ponto de referência durante meus deslocamentos entre o
(.'idade de Muros 17
Brasil c o» Estado» Unidos, tornei-me aguda mente consciente de que questões aca
dêmicas têm fortes vieses locais c nacionais e que a disciplina é, de fato, plural —
há antropologia», não antropologia. O que as discussões acadêmicas americanas
enfatizam como relevante e estimulante nem sempre está entre os interesses centrais
dos colegas brasileiros, e vice-versa. Num certo momento, essa percepção do cará
ter local da formulação de questões ficou tão forte que cheguei a pensar em escre
ver dois livros, ou pelo menos duas introduções, um para cada público, cada um
numa lingua diferente, cada um estruturado por diferentes questões. Concluí, no
entanto, que isso também era impossível, uma vez que meu pensamento e minha
percepção já tinham sido transformados e moldados por minha imersão simultâ
nea nos dois contextos c poderíam ser comprimidos num ou noutro molde apenas
artificialmente e com alguma perda. Minhas línguas, minha escrita, meu pensamento,
minhas críticas, tudo tinha adquirido uma identidade particular. Acabei concluin
do que assim como meu inglês tem sotaque, o mesmo acontece com a minha an
tropologia — o sotaque persiste não importa a partir de qual perspectiva a veja ou
em que língua escreva.
" t disse Polo: 'Todas as vezes que descrevo uma udade digo algo
a respeito dc Veneza. (...) Para distinguir as qualtdadcsdas outras
cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita, No
meu caso, c Venera’. "
Ira Io Calviiio, .4» cidade» uniuúms
Cidade de Muros 19
[ante, em sua própria nação. Em contraste com as antropologias marcadas pela
constituição de impérios, as antropologias periféricas são frequentemente associa
das a processos de formação nacional e dessa forma estão relacionadas aos dile
mas internos de suas próprias sociedades.
Os processos de construção nacional engajam antropólogos de maneiras pa
radoxais. Uma dimensão desse engajamento é a concepção do papel do intelectual.
No Brasil, assim como em outros países pós-coloniais, os intelectuais tendem a ter
um papel predominante na vida pública. Costumam pensarem si mesmos primei
ro como intelectuais comprometidos em influenciar debates públicos e só depois
como acadêmicos. Assim, muitos antropólogos brasileiros estudam o que é politi
camente relevante para eles. Alem disso, muitos intelectuais (inclusive antropólo
gos) concebem seu trabalho como uma questão de responsabilidade cívica e isso
molda suas relações com seus concidadãos e com as pessoas que estudam. Quando
intelectuais estudam sua própria cidade, é como cidadãos que tendem a escrever
sobre d a, não como observadores distantes. Isso significa que falam não apenas para
seus colegas intelectuais, mas para o público mais abrangente que possam alcan
çar. Isso significa também que mesmo quando escrevem num tom científico e car
regado de autoridade, e apesar de todos os poderes sociais inerentes à sua condi
ção de membros da elite, sua visão da sociedade está mais exposta ã contestação
tanto por parte de outros analistas sociais quanto de seus concidadãos. Essa visão
é apenas uma perspectiva num debate público, ainda que normalmente ela seja uma
visão poderosa. De qualquer modo, sua perspectiva é diferente daquela dos especia
listas em culturas estrangeiras falando para uma platéia acadêmica restrita num
debate entre especialistas cm locais distantes, como geralmentc acontece aos inte
lectuais americanos.
Quando escrevo sobre São Paulo, cm português, para brasileiros, escrevo como
intelectual e como cidadã, e, portanto, abordo a cidade de uma certa maneira. Ci
dades das quais somos cidadãos são cidades nas quais queremos intervir, que que
remos construir, reformar, criticar e transformar.® Elas não podem ser deixadas
intocadas, implícitas, ignoradas. Manter intocado o imaginário dc sua própria ci
dade é incompatível com um estudo (ou um projeto) de transformação social. Ci
dades que permanecem cristalizadas em imagens passadas que remos medo de to
car não são cidades que habitamos como cidadãos, mas cidades de nostalgia, cida
des com que sonhamos. As cidades (sociedades, culturas) em que vivemos estão,
como nós mesmos, mudando continua mente. Elas são cidades para serem refleti
das, questionadas, mudadas. São cidades com as quais nos envolvemos. Meu en-
Para mm história da inserção pública de intelectuais brasileiros, s[cr Martins i!987j c Miceli
(1979). Não estou considerando aqui iodas as variações históricas em seu pape! público c nas
preocupações especificas que « s envolveram.
-11Não estou concebendo a cidadania em lermos formais. Assumo que os moradores de uma
cidade, qualquer que seja seu sratus de cidadania nacional, lendem a se envolver com a vida diana
na cidade como cidadãos, como pessoas engajadas com suas condições amais e futuras.
F.ssa posição de liderança c intocabilidade tem sido frcqüriucinenK fortalecida pelos ti
pos de discurso que legitimam o trabalho dos intelectuais. Além cie serem membros das elites so
ciais, os intelectuais frequentemente têm concebido posições privilegiadas para si mesmos, tais como
as de membros das vanguardas, educadores das m assas, elabora dores de planos-mcstrcs, visioná
rios dc metas p.ira « Futuro, sores dos oprimidos c assim por diante. Eles legitimaram essi-s papéis
com metanarrativas como modernização, m arxism o, desenvolvimentismo e modernismo. Em bo
ra frequentemente SC coloquem a esquerda e do lado dos oprimidos, eles nem sempre se interro
gam sobtc sua posição ambígua de falar por aqueles que supostamente não teriam voz.
11 Tara uma discussão sobre com o as diferenças J e classe influenciaram ineu trabalho dc
cam po com pessoas da classe trabalhadora, ver Caldeira i I 'IX1 1.
Embora São Paulo constitua o foco deste livro e a análise que apresento a seu
respeito seja a mais detalhada possível, minha intenção não é salientar sua singula
ridade. Ao contrário, meu objetivo é entender e criticar processos mais amplos dc
transformação social e segregação que São Paulo exemplifica. Este livro é sobre São
Paulo. Mas é também sobre Los Angeles, Miami e muitas outras regiões metropo
litanas que estão adotando muros, separações c o policiamento de fronteiras como
instrumentos para organizar diferenças no espaço urbano. Essas regiões são obvia
mente diferentes, mas a diferença não impede o uso de instrumentos semelhantes c
repertórios comuns. Em outras palavras, embora este livro se concentre detalha
damente na análise da reprodução da desigualdade social c da segregação espacial
em tuna cidade — São Paulo— , ele identifica processos e instrumentos comuns a
muitas delas. A combinação de medo da violência, reprodução de preconceitos,
contestação de direitos, discriminação social c criação de novas fórmulas para manter
grupos sociais separados ccrtamcnte tem características específicas c perversas em
São Paulo, mas e!a também reflete processos sociais de mudança que estão ocor
rendo em muitas cidades. Assim, a comparação com Los Angeles tem interesse teórico
ao permitir ampliar o entendimento de processos de segregação espacial muito di
fundidos. Essa comparação tem ainda a função de relativizar a singularidade de São
Paulo, obrigando-me a enquadrar sua análise cm termos que façam sentido para
pessoas estudando outras cidades.
A FALA DO CRIME
1.
FALANDO DO CRIME E ORDENANDO O MUNDO
O crime violento aumentou em São Paulo nos últimos quinze anos. O mesmo
ocorreu com o medo do crime. A vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do
crime e do medo, e isso se reflete nas conversas diárias, em que o crime tornou-se
um tema central. N a verdade, medo e violência, coisas difíceis de entender, fazem
o discurso proliferar e circular. A fala do crime — ou seja, todos os tipos de con
versas, comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o
medo como tema — é contagiante. Quando se conta um caso, muito provavelmen
te vários outros se seguem; e é raro um comentário ficar sem resposta. A fala do
crime é também fragmentada e repetitiva. Ela surge no meio das mais variadas
interações, pontuando-as, repetindo a mesma história ou variações da mesma his
tória, comumente usando apenas alguns recursos narrativos. Apesar das repetições,
as pessoas nunca se cansam. Ao contrário, parecem compelidas a continuar falan
do sobre o crime, como se as infindáveis análises de casos pudessem ajudá-las a
encontrar um meio de lidar com suas experiências desconcertantes ou com a natu
reza arbitrária e inusitada da violência. A repetição das histórias, no entanto, só
serve para reforçar as sensações de perigo, insegurança e perturbação das pessoas.
Assim, a fala do crime alimenta um círculo em que o medo é trabalhado e reprodu
zido, e no qual a violência é a um só tempo combatida e ampliada.
E nesses intercâmbios verbais do dia-a-dia que as opiniões são formadas e as
percepções moldadas, isto é, a fala do crime não só é expressiva como também
produtiva. As narrativas, diz Michel de Certeau, antecedem as “ práticas sociais no
sentido de abrir um campo para elas” (1984: 125). Esse é especialmente o caso das
histórias de crimes. O medo e a fala do crime não apenas produzem certos tipos de
interpretações e explicações, habitualmente simplistas e estereotipadas, como tam
bém organizam a paisagem urbana e o espaço público, moldando o cenário para
as interações sociais que adquirem novo sentido numa cidade que progressivamen
te vai se cercando de muros. A fala e o medo organizam as estratégias cotidianas
de proteção e reação que tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu uni
verso de interações. Além disso, a fala do crime também ajuda a violência a proli
ferar ao legitimar reações privadas ou ilegais — como contratar guardas particula
res ou apoiar esquadrões da morte ou justiceiros —, num contexto em que as ins
tituições da ordem parecem falhar.
Neste capítulo, analiso uma narrativa de crime que me foi transmitida numa
entrevista. Tal como ocorre nas interações diárias das pessoas, as entrevistas, con
cedidas em momentos de intensa preocupação com o crime, foram freqüentemente
permeadas pela repetição de histórias de crimes. Embora tivesse interesse nessas
histórias, quase nunca precisei solicitá-las: elas surgiam espontaneamente no meio
Cidade de Muros 27
de conversas sobre os mais variados assuntos, mas especialmente sobre a cidade e
suas transformações e sobre a crise econômica. Na análise que se segue, mostro como
as narrativas de crimes recontam experiências de violência e, ao fazer isso, reorga
nizam e dão novo significado não apenas às experiências individuais mas também
ao contexto social no qual ocorrem. A narração, diz De Certeau, é uma arte do falar
que é “ ela própria uma arte do agir e uma arte do pensar” (1984: 77). As narrati
vas de crime são um tipo específico de narrativa que engendram um tipo específico
de conhecimento. Elas tentam estabelecer ordem num universo que parece ter per
dido o sentido. Em meio aos sentimentos caóticos associados à difusão da violên
cia no espaço da cidade, essas narrativas representam esforços de restabelecer or
dem e significado. Ao contrário da experiência do crime, que rompe o significado
e desorganiza o mundo, a fala do crime simbolicamente o reorganiza ao tentar res
tabelecer um quadro estático do mundo. Essa reorganização simbólica é expressa
em termos muito simplistas, que se apoiam na elaboração de pares de oposição
óbvios oferecidos pelo universo do crime, o mais comum deles sendo o do bem contra
o mal. A exemplo de outras práticas cotidianas para lidar com a violência (que analiso
em outros capítulos), as histórias de crime tentam recriar um mapa estável para um
mundo que foi abalado. Essas narrativas e práticas impõem separações, constroem
muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias, segregam, diferenciam,
impõem proibições, multiplicam regras de exclusão e de evitação, e restringem
movimentos. Em resumo, elas simplificam e encerram o mundo. As narrativas de
crimes elaboram preconceitos e tentam eliminar ambigüidades.
As narrativas de crime perpassam e interligam os mais diversos temas. Ao longo
deste estudo, lido com os mais importantes deles — crise econômica, inflação, po
breza, a falência das instituições da ordem, transformações da cidade, cidadania e
direitos humanos. Neste capítulo, concentro-me na maneira pela qual as narrati
vas de crime são estruturadas e operam, e discuto a relação entre violência e narra
ção. Também proponho um visão geral das transformações políticas, sociais e eco
nômicas no Brasil ao longo das décadas de 1980 e 1990. No capítulo 2, analiso os
diversos temas que a fala do crime articula e que esta narrativa introduz.
A narrativa que se segue me foi transmitida em 1989 por uma mulher cujos
pais migraram da Itália para o Brasil em 1924. Eles se estabeleceram na M oóca, à
época um bairro industrial habitado basicamente por imigrantes europeus, onde
abriram uma alfaiataria. A narradora nasceu na M oóca e passou toda sua vida lá,
presenciando suas diversas transformações, enquanto alguns de seus irmãos se mu
daram para “ lugares melhores” , segundo suas palavras. Ela é uma dona de casa e
foi professora primária antes de se casar. Quando a entrevistei, tinha quase 60 anos.1
Seu marido é corretor imobiliário e seu filho, dentista. Escolhi sua narrativa para 1
1.1
- A Moóca teve muito progresso. A melhor coisa que tem no bairro é o progresso. Teve
progresso de escolas, progresso de casas. As casas mais bonitas eram na Paes de Barros, cha
mava-se de palacete. [Paes de Barros é a rua em que ela morava.] A rua era residencial; hoje é
comercial. A mudança começou há uns 15 anos. Só gente chique morava na Paes de Barros. A
elite da Moóca hoje mora no bairro novo, o Juventus, 0 bairro teve muito progresso. Tem no
vos hospitais, o João XXIII, oS. Cristóvão. Tem a universidade também. A Universidade São Judas
começou na Rua Clark; era um barracão...
Tô radicada aqui, nasci aqui, tenho amizades aqui no bairro. 0 que estragou muito a Moóca
foram as favelas. Aquela da Vila Prudente é uma cidade. Tem cinqüenta e tantas mil pessoas!,,.
Tem também muito cortiço. Tem muito cortiço na Moóca desde que vieram a gente do Norte.
Tem 300 cortiços, cada um tem 50 famílias, só com três privadas - como é que se pode viver
assim?! 0 que tá prejudicando é isso aí, é a pobreza. Aqui tem classe média, classe rica e uma
diferença muito grande, a pobreza dos nordestinos. 0 bairro piorou desde que começaram a
chegar a turma do Norte.... Faz uns 15 anos. Agora tem demais. Casas lindas, bonitas da Moóca
foram subalugadas e hoje não se pode entrar, arrebentaram as casas. De uns 15 anos pra cá,
a Moóca regrediu nessa parte. A Moóca teve muito progresso, mas regride pela população pobre.
- Mas antes não tinha pobre na Moóca?
- Antes não existia. A gente saía de chapéu, os professores andavam de chapéu. Eu usava
luva e chapéu. Dos 15 aos 18 anos eu saía na rua de chapéu. A Praça da Sé, a Rua Direita, era
uma finura. Hoje, a gente não vai lá, não é possível, você sabe como é.
[Começamos a con versar sobre o que poderia ser feito em relação à pobreza e aos po
bres que viviam ali.]
Eles deveríam receber mais apoio do governo. Eles empestearam tudo, deveria voltar tudo
pra lá. 0 governo deveria dar casas pra eles lá no Nordeste prá eles não precisarem vir pra cá...
Cidade de Muros 29
Hoje aqui na Moóca não se pode nem sair de casa. Faz seis anos que eu fui assaltada, e seis
anos que parece que tudo perdeu o gosto. Aqui na Moóca não tem pessoa que não foi assaltada.
[Ela contou então o caso de um segurança de um supermercado da região que havia sido
morto poucos dias antes durante um assalto à mão armada. Ele tinha cinco filhos e trabalha
va ali havia apenas três meses].
A coisa pior que existe na Moóca é que o povo fica com medo. É muito crime, é muito
assalto. De uns oito anos pra cá está mais perigoso. Demasiadamente perigoso. Ninguém sai
de noite, ninguém sai com corrente no pescoço, com nada.
- Quem são os criminosos?
- Pessoal que assalta é tudo nortista. Tudo gente favelada. Gente do bairro e gente de
fora. Mas não adianta nada querer fazer alguma coisa. Você faz ocorrência, depois não resol
ve nada. Quando eu fui assaltada, eu fiz ocorrência, tinha advogado amigo, não adiantou nada,
não encontraram nada...
Hoje ninguém quer saber de morar em casa devido à falta de segurança. Eu morava na
Rua Gamé, com portão eletrônico, interfone, dobermann dentro de casa. Um dia, às 7 horas
da manhã, meu marido saiu para entrar na garagem, um cara veio, pulou em cima dele, tam
pou a cara dele e deu uma punhalada no coração dele. Depois desse dia, meu marido nunca
mais teve saúde, é cardíaco.
[Ela conta, então, que depois de ferirem o marido, os ladrões entraram na casa e lhe pe
diram dinheiro ejóias. Ela entregou pronta mente uma grande caixa dejóias: "Demos tudo". Os
ladrões começaram a encaminhá-la junto com seu filho para os fundos da casa, para o quarto
de empregada. No caminho, ela abriu o canil e o dobermann pulou sobre os ladrões, que deram
uns tiros mas não acertaram ninguém e acabaram fugindo. Pedi que ela me descrevesse os
ladrões:]
Eles tinham cara boa. Um era baixinho, moreninho, se vê que era do Norte. 0 outro ti
nha cara branca, mas sempre nortista, devia ser do Ceará.
[Do seu caso específico, ela passa novamente a discutir as mudanças no bairro.]
Lá no Juventus tem casas lindíssimas, mas tudo de grade. Nas ruas, tem guardas com
guaritas. Na Moóca, aqui fica todo mundo trancado: o ladrão fica pra fora, e a gente, tudo
trancado. E nem isso adianta. A minha casa que foi assaltada tinha portão eletrônico, interfone.
Os ladrões entraram no vizinho - uma casa que também era minha, estava alugada - e pula
ram pra dentro da minha casa e foram se esconder na garagem. No Juventus, todas as casas
são fechadas, mas se você for falar com eles, eles vão contar muito assalto. Os moradores da
Moóca estão tristes por causa da falta de segurança. Não é só a Moóca, é São Paulo toda. As
escolas parecem presídio. Antes era maravilhoso, as crianças ficavam nas ruas, o povo ficava
nas portas conversando, existia mais amizade, as pessoas se visitavam. Hoje vive-se de medo
na Moóca. Hoje, perguntando na rua, cada um tem uma história pra contar: se não foi assal
tado, tiraram a corrente, o anel, a carteira.
[Ela relembra um roubo de que sua irmã foi vítima: estava voltando a pé do mercado com
as compras quando alguém pegou sua carteira. Muitas vezes as pessoas levam os carrinhos de
compra com as mercadorias. E ela conclui:]
A Moóca está empesteada.
[E quanto ao que deveria ser feito...]
Teria solução. Teria de partir do governo. 0 governo deveria dar assistência pra pobreza.
0 bairro tornou-se feio com os cortiços. E pobre é pobre, quando não pode comprar as coisas
2 A narradora sugere que filhos de mães que “ não pensam” e têm filhos de que não podem
cuidar, ou porque são pobres demais ou porque os têm fora de um casamento, certamente irão se
tornar criminosos. Ela não elabora a idéia, porque esta é bem comum. Analiso a associação de
mães solteiras, pobreza e crime no capítulo 2. ~ '
Cidade de Muros 31
[E começo a recontar suas experiências de assalto.]
Dois meses antes do assalto, a minha empregada tinha ido pra Minas. Um dia, às 4 ho
ras da tarde, a casa.tava em ordem, e eu tava em casa toda vaidosa, toda bem arrumadinha,
com brinco de brilhante [o mesmo que estava usando durante a entrevista], anel igual, que
naquela época ainda tinha. Sentei para descansar... Às vezes eu pegava no piano... Tocou a
campainha. É bom vocês saberem: era um moço branco, com um guarda-pó. Se eu fico ner
vosa, não agüento falar. Se ouço um caso, sou capaz de subir no palanque, pôr fogo em São
Paulo. Era um moço da minha altura, estatura média, uns 22 anos, magro, avental azul e com
o emblema da perfumaria Abaeté no bolso, com um bloquinho e um lápis. Ele me interfonou,
falou que tinha uma entrega. Perguntei: "Não tá enganado?". Ele falou: "Não, é aqui". Tinha
um pacote assim [mostra o tamanho de uma caixa de sapatos], bem arrumado, com fita, car
tão. Perguntou: "Aí não mora o José?".3 "Mora, é meu filho, mas aqui ninguém comprou nada."
Ele se enfezou: "A gente trabalha, é empregado, e não querem receber a mercadoria". Pensei:
"Meu filho é moço, vai ver que foi fã, namoradinha que mandou. Minha sorte, ao invés de abrir
a porta pelo interfone, eu desci a escada de mármore, peguei a caixa, era pesada, peguei o
talãozinho pra assinar, daí me aparece com um revólver, desse tamanho [uns 20 a 30 cm, ela
mostra], daí ele disse: "Sobe!". Apareceu mais um, um moreninho, com um estilete. Comecei a
gritar, me sentaram, me arrastaram de joelho, me jogaram na garagem. Fiquei ruim do joelho
. até hoje, do rim... "Dou tudo pra vocês, não me façam nada!" Mas, com o grito, a minha vizi
nha achou que a Maria José - que era a minha empregada, que era assim um tipo espalhafa
toso, que gritava muito - , achou que ela tinha chegado de Minas e abriu a porta dela. Foi a
minha salvação, eles se mandaram, eu ainda tive que abrir a porta para eles. Mas dois meses
■ depois exato eles voltaram... Fiquei dois meses de cama, urinei sangue, tirei radiografia do joelho,
r* 1 tive que fazer infiltração... Não saio à noite, não faço nem uma visita. Hoje eu moro em apar-
tamento... Aquele trauma você nunca perde. Meu filho tem 28 anos, o medo que meu filho
j tem! Eu era tão feliz. Era feliz e não sabia. Era uma pessoa ativa, tava me mexendo o tempo
todo, fazia trabalhinho pra pobre...
À Na Moóca todo mundo tem medo, por isso que todo mundo vai embora. A população
x fina vai embora e os nordestinos vão chegando, nós vamos dando espaço pra eles...
Quando fui assaltada pela segunda vez, estava com meu cunhado, irmão do meu mari
do, em casa, fazia 17 dias que ele estava no Brasil, ele teve enfarto e morreu. Fazia oito dias
que ele estava aqui quando foi o assalto. Ele tava dormindo. Tinha vindo pra passear e pra se
tratar. Falo pro meu marido que não foi por causa do assalto, mas meu marido acha que não,
que ele ficou assustado... Um dos assaltantes tinha um punhal e ficou com ele encostado nos
olhos do meu filho. 0 consultório dele é todo cheio de grade, janela fechada, porta fechada -
pode-se viver assim?...
Agora as pessoas só se encontram em enterro. Círculo de amizades, de conterrâneo, de
patrício, tá se desfazendo. Vai se distanciando a amizade devido ao medo de sair à noite. Olha
que sentença bonitinhaL
A Moóca que eu conheci era tão diferente! Podia-se viver, sair sem esse pavor. Quando
a população era menor, existia mais tranquilidade. Empestearam a Moóca, deixaram a Moóca
feia.
Cidade de Muros 33
momento de calma para sentar-se ao piano; numa palavra, conforto, ordem e
status interrompidos pela fatídica campainha. Depois do assalto, a vida tornou-
se um inferno: tudo perdeu o gosto, ela e o marido perderam a saúde, o filho en
cheu-se de medo, eles perderam dinheiro e status. Venderam sua linda casa da
noite para o dia e se mudaram para um prédio de apartamentos. N ão consideram
que isso seja um jeito confortável de viver, já que não podem demonstrar seu
status e desfrutar dos resultados dos muitos anos de sacrifício que passaram para
construir uma residência respeitável e uma boa posição social. Também é interes
sante notar que dois episódios de crime, dois meses distantes um do outro, são
recontados na narrativa acima, mas eles simbolicamente fundem-se em vários mo
mentos para justificar as mudanças na vida cotidiana. Embora as circunstâncias e
os atos de cada um sejam diferentes, eles não só são apresentados da mesma for
ma, mostrados como capazes de provocar efeitos similares (problemas de saúde e
perda de dinheiro e status), como também por vezes se fundem para se transfor
mar numa experiência unificada.
As reduções feitas no âmbito da narração chegam ao ponto de distorcer fa
tos de modo a fazer com que se encaixem na história. A narradora acha que com
a mudança para o apartamento não só perdeu conforto e status, como também
dinheiro, e culpa o Plano Cruzado pela perda. Nesse ponto a narrativa fica con
fusa. Ela alega que eles perderam dinheiro porque venderam a casa um dia antes
do Plano Cruzado. N o entanto, ela disse muitas vezes que o assalto ocorrera seis
anos antes e que estava morando no apartamento havia seis anos — o que daria
1983, já que a entrevista foi feita em setembro de 1989. O marido e a irmã, com
quem também conversei, confirmaram depois que tinham se mudado seis anos
antes, o que significa que provavelmente ela acrescentou o Plano Cruzado à sua
narrativa com o objetivo de indicar que sua perda individual fora causada pela
crise econômica do país, não por seu fracasso pessoal. Além disso, ela associa a
experiência de viver o tempo todo sob uma inflação alta — uma situação em que
o valor do dinheiro é volátil e as pessoas não sabem quanto seus bens vão valer
no dia seguinte ■— com a ruptura de bens e valores que o roubo acarreta. Por ter
trocado propriedade por dinheiro, ela perdeu. Ao associar em sua narrativa o
momento do crime com a ocorrência do plano econômico e o colapso de seu mun
do, a narradora revela o quanto crime, crise econômica e queda social estão in
terligados na percepção dos moradores de São Paulo, isto é, como a biografia e
as condições sociais se entrelaçam. E importante notar, no entanto, que é o crime
que fornece a linguagem para expressar outras experiências como inflação e que
da social, não o contrário.
A biografia e as condições sociais coincidem de uma outra forma nessa nar
rativa por meio da intervenção do universo do crime: às mudanças no bairro e no
espaço da cidade é atribuída a mesma estrutura de significado da experiência do
crime, pois ambas têm um antes e um depois cujo ponto de ruptura está relaciona
do ao crime. Antes, havia progresso; depois, retrocesso. Antes, havia ruas sofisti
cadas em que homens e mulheres passeavam de luvas e chapéu; depois, apenas lu-
) gares onde ninguém pensaria em ir. Antes, o bairro era pequeno, elegante, cheio de
) conhecidos antigos e cordiais, com crianças brincando nas ruas, conversas na cal-
I
4 De acordo com a Fipe (1994: 7-9), em 1993 a Moóca tinha 9,0% dos quase 24 mil corti
ços da cidade, além de 16,12% das famílias que viviam nesse tipo de moradia. O número médio
de famílias por cortiço na Moóca era de 12,1, quase o dobro da média da cidade. Para mais infor
mações sobre cortiços, ver o capítulo 6.
Cidade de Muros 35
N o entanto, o bairro também mudou devido a um processo que se conven
cionou chamar de enobrecimento [gentrification]. À medida que antigas áreas re
sidenciais se tornaram áreas de comércio, uma nova área decaída foi transformada
por investimentos para as classes média e alta. Esta área enobrecida (Juventus) come
çou a ser construída nos anos 80, com muitos prédios de apartamentos. Integrantes
das classes médias que tinham ficado na parte mais antiga do bairro, como a se
nhora da narrativa com que estamos trabalhando, sentiram profundamente as trans
formações, já que elas afetaram radicalmente sua vida cotidiana local e seu padrão
de sociabilidade. O aspecto que quero enfatizar, no entanto, é como o crime ofere
ce uma linguagem para expressar, de maneira sintética, os sentimentos relacionados
às mudanças no bairro, na cidade e na sociedade brasileira de modo geral. Essas
mudanças são vistas como um retrocesso pelos velhos moradores e sua associação
com a invasão do bairro por “ criminosos” expressa seus pontos de vista de uma
forma convincente. O crime é ruim, não há dúvidas a respeito disso; associar as mu
danças no bairro a criminosos é atribuir um valor claramente negativo a elas.
A segunda redução é aquela embutida na categoria dos nordestinos, caracte
rizados nos mais depreciativos dos termos: ignorantes, preguiçosos, sujos, imorais.
Numa palavra, eles são criminosos. Esses termos depreciativos muitas vezes são os
mesmos que têm sido usados no Brasil desde a época da conquista para descrever
o índio, o escravo africano, o trabalhador, o pobre, e os analiso com mais detalhe
no próximo capítulo. N a M oóca, considera-se que todos esses vizinhos indesejados
vieram do Nordeste: migrantes, como os pais de muitos moradores, mas do empo
brecido Nordeste, e não da Europa. Está claro, no entanto, que o nordestino da
narrativa é uma categoria essencializada, destinada a simbolizar o mal e explicar o
crime. É simplista e caricatural (o que não significa que não afete as relações so
ciais). E produto de um pensamento classificatório relacionado com a produção de
categorias essencializadas e a naturalização e legitimação de desigualdades (ver
capítulo 2 e Malkki 1995: 256-7). É revelador, no entanto, que migrantes do N or
deste tenham sido selecionados pelos moradores da Moóca para serem alvo de suas
acusações e representarem a categoria do criminoso. Embora a fala do crime cons
tantemente elabore categorias essencializadas e preconceitos, seu conteúdo muda
em contextos sociais diferentes, isto é, o alvo do pensamento categorizante varia.
O preconceito contra os nordestinos existe em todo lugar, mas a questão é por que
eles são tão apontados como criminosos na M oóca, enquanto em outros bairros a
caracterização principal dos criminosos varia. Provavelmente isso está relacionado
ao fato de que a maioria das famílias da M oóca é descendente de imigrantes e que
os moradores da cidade normalmente vêem o bairro como um local de imigrantes.
Pelo fato de o rótulo imigrante também se aplicar aos moradores que entrevistei
(como a narradora acima, uma filha de imigrantes italianos) e de eles sentirem que
há diferenciações sociais no bairro que precisam ser mantidas, sentem-se impelidos
a distanciar a si próprios daqueles outros migrantes mais recentes. Em outras pala
vras, o princípio classificatório que está funcionando aqui é que a categoria que está
mais próxima do narrador mas que é diferente deve ser a mais enfaticamente distan
ciada e condenada. A mistura de categorias produz ansiedade cognitiva e conduz à
abominação, como nos lembra Mary Douglas em seu estudo sobre classificação:
Cidade de Muros 37
Esse tipo de ambigüidade é claro no caso que estou analisando. A narrado-
ra conclui que o homem que a roubou, embora fosse branco e tivesse um “ rosto
bom” , só podia ser do Norte, provavelmente do Ceará. N os dois roubos, os cri
minosos não se coadunavam exatamente com a imagem que ela faz de um nor-
destino/criminoso. Num dos casos, ela chegou mesmo a confundir o ladrão com
um trabalhador e insistiu comigo: “ Era um moço branco!” . M as em seus comen-
) tários sobre o crime, ela insiste em usar a imagem do nordestino/criminoso, já que
I é inconcebível para ela que pudesse ser de outra forma. Ela tem de prender-se aos
1 estereótipos disponíveis e aplicá-los rigorosamente para entender o absurdo dos
assakosAnfãsTnudanças em sua vida e no bairro. As categorias são rígidas: não
são feitas para descrever o mundo de forma acurada, mas para organizá-lo e
classificá-lo simbolicamente. Elas são feitas para combater a ruptura no nível da
experiência, não para descrevê-la. Isso não quer dizer que a descrição seja impos
sível: está lá, os ladrões eram brancos e de boa aparência, ela confundiu um deles
com um trabalhador. M as isso é parte da desorganização do mundo, da experiên
cia de violência e decadência social que reintroduzi várias vezes na narração ao
solicitar detalhes. N a narrativa organizada, os criminosos precisam ser não-bran-
cos do Nordeste, dos cortiços e das favelas, o lugar próprio aos criminosos. O
desreconhecimento é inerente à reorganização simbólica do mundo. E parte do
esforço para dar novo significado a uma realidade que não mais faz sentido, que
sofreu uma ruptura e/ou que está mudando.
Algumas vezes a narradora reconheceu o caráter simplista ou mesmo absurdo
de suas categorias e opiniões. Por exemplo, num determinado ponto ela distancia
a si mesma da versão mais extrema dos preconceitos contra os favelados dizendo
que a idéia de queimá-los todos é de seu marido, não dela. Mais adiante, ela modera
sua defesa da pena de morte e sua difamação dos nordestinos ao refletir sobre sua
ira e o caráter veemente de seu discurso: “ quando estou enfezada posso falar tão
bem quanto um advogado” , observou ela. Um advogado é também um persona
gem estereotipado, associado com corrupção, com a manipulação da lei possível
para aqueles que têm o poder e com a maestria no uso das palavras para ludibriar.
Em suma, a fala do crime lida não com descrições detalhadas dos crimino
sos, mas com um conjunto de categorias simplistas, algumas imagens essenciali-
zadas que eliminam as ambigüidades e misturas de categorias da vida cotidiana, e
que circulam especialmente em momentos de mudança social. A fala do crime não
é feita de visões equilibradas, mas da repetição de estereótipos, ainda que se reco
nheça seu caráter simplista. A fala do crime elabora preconceitos. No entanto, pelo
fato de o desreconhecimento poder ser reconhecido, a fala do crime é também
ambígua, com deslizes que revelam possíveis dúvidas do narrador em relação às
suas essencializações. Essas ambigüidades persistem em narrativas de crimes na
forma de alternâncias de categorias bem definidas e pequenos comentários dando
conta desses aspectos da realidade que não se enquadram na descrição estereoti
pada. Elas ficam especialmente aparentes nos inúmeros comentários sobre os po
bres. Em geral, as pessoas mais pobres de uma área são associadas a criminosos e
sempre referidas nos termos mais depreciativos, inclusive pelos próprios pobres.
No entanto, todos reconhecem que a pobreza não só é excessiva, mas tem cresci-
Cidade de Muros 39
preconceitos e estereótipos. Elas contradizem o discurso e as iniciativas democráti
cas, exatamente os tipos de prática que a sociedade brasileira estava tentando con
solidar quando o crime tornou-se a fala da cidade. Além disso, embora as distin
ções aguçadas da fala do crime reordenem de fato as experiências perturbadas pela
violência, não são eficazes para controlar a violência. Ao contrário, elas reprodu
zem o medo e a violência.
Em seu ambicioso estudo A violência e o sagrado (1977), René Girard ofere
ce o que chama de uma teoria científica da transformação da violência em cultura,
mais exatamente, do mecanismo generativo capaz de controlar a violência e sim
bolizar a passagem do não-humano para o humano (1977: 309, 311). Girard des
creve os processos sociais de violência recíproca generalizada (como uma série de
vinganças privadas) como crise sacrificial, que ele define como
uma crise de distinções — ou seja, uma crise que afeta a ordem cultural.
A ordem cultural nada mais é que um sistema regulado de distinções em
que as diferenças entre indivíduos são usadas para estabelecer sua “ iden
tidade” e suas relações mútuas... Ordem, paz e fecundidade dependem
de distinções culturais: não são essas distinções mas a perda delas que
dá origem a rivalidades ferozes e lança membros da mesma família ou
grupo social uns contra os outros... Essa perda força os homens a um
confronto perpétuo, que os despoja de suas características distintivas —
em resumo, de sua “ identidade” . A própria linguagem é posta em risco.
(Girard 1977: 49, 51)
Assim, uma crise sacrificial é uma espécie de guerra de todos contra todos na
qual os homens (esta é a linguagem de Girard) perdem suas distinções na medida
em que são nivelados pela violência. A solução que ele propõe para essa crise é uma
substituição sacrificial, na qual a sociedade unanimemente concorda com um ato
de violência contra uma vítima solitária, a vítima expiatória, que simbolicamente
representa todas as vítimas potenciais (Girard, 1977: 81-2). Analisada por Girard
por meio da tragédia e do mito de Edipo, a vítima expiatória transforma a violên
cia generalizada e o caos em ordem social. Seu sacrifício combina violência boa e
ruim, a violência que mata e a violência que restaura a ordem. A violência unâni
me exercida contra a vítima expiatória inicia um ciclo construtivo, aquele dos ritos
sacrificiais e da religião. Nesse ciclo, a violência generativa (a unânime) é constan
temente evocada por meio de rituais repetitivos, mantendo a violência recíproca sob
controle e permitindo que a cultura floresça. Para Girard, “ o ato original de vio
lência é a matriz de todas as significações mitológicas e rituais” (1977: 113, grifo
do autor). O propósito dos rituais é consolidar a diferença entre o bem e o mal,
selecionar uma certa forma de violência e marcá-la como boa e necessária em opo
sição a outras formas, que são consideradas ruins.
A teoria de Girard apóia-se na suposição não comprovada de que a violên
cia é inerente aos seres humanos, que tanto a agressividade quanto a vingança são
próprias da natureza humana e que a violência é contaminadora, comunicável e
“ se alastra como fogo” (1977: 31). Além disso, seu argumento pressupõe que a
5 Ver Daniel (1996: cap. 5) para uma análise etnográfica da tortura e do terror que corro
bora a hipótese de Scarry. Discussões sobre tortura sempre se referem à produção de significado
uma vez que a tortura é comumente associada às questões da verdade e da lei. Discuto esses temas
no capítulo 9.
Cidade de Muros 41
sária mas visivelmente desconstruir a voz do prisioneiro” (1985: 20). A estrutura
da tortura é a estrutura do desfazer. Para Scarry, o ponto principal da tortura não
é a verdade, mas o poder. Essa estrutura se opõe àquela do fazer, criar, significar,
em resumo, à estrutura da linguagem.
Enquanto autores como Girard e Scarry opõem violência e linguagem, há
outros que sustentam o argumento contrário, isto é, que a narrativa ajuda a vio
lência a circular e a proliferar. Em seu estudo sobre terror e violência durante o boom
da borracha na região de Putumayo, na Colômbia, Michael Taussig argumenta que
o terror é mediado pela narração (1987: 127). Para ele, o embate colonial foi um
embate moldado num espaço de desentendimento e criou uma cultura de terror
baseada no imaginar e na reprodução do medo. Por meio do trabalho colonial de
fabulação, a realidade tornou-se incerta e foi a violência que estruturou as interações
sociais. Reconhecer a imbricação de violência com narração tem, segundo Taussig,
implicações para o trabalho do antropólogo: como o terror é alimentado pela nar
ração, é difícil escrever contra ele (ver também Taussig 1992). Todavia, ele escreve
contra a violência e tenta encontrar um meio de produzir estranhamento em rela
ção a ela. Além disso, ele sugere que o terror pode ter efeitos inesperados, uma vez
que seu simbolismo ajuda a dar aos xamãs contemporâneos seu poder de curar. As
imbricações de violência, ordem e significação tornam-se, então, substancialmente
mais complexas.
A análise da violência política na Irlanda do Norte feita por Allen Feldman
(1991) também contribui para expor a complexidade dessas imbricações. Como
Taussig, que considera que a cultura do colonialismo é inscrita no corpo e que o
significado é produzido no corpo dos dominados, Feldman argumenta que a cultu
ra política da Irlanda do Norte é baseada na “ comodificação do corpo” (1991: 8).
Para ele, o instrumento político por excelência na Irlanda é o corpo, o qual é si
multaneamente vítima e perpetrador da violência e por meio do qual não apenas
as transformações sociais acontecem, como a história é visualizada (1991: 9). “A
formação múltipla do corpo pela violência, pelas tecnologias políticas e pelo ritual
jurídico convertem-no num texto inscrito e num agente de inscrição, num instru
mento contaminado e contaminador, um ‘fazendo’ e um sendo ‘feito’. Essa cons
trução ambivalente do corpo e seu estabelecimento como uma forma política são
contemporâneos da institucionalização da violência como um mecanismo que se
perpetua por meio de trocas e de mimese” (1991: 144-5). Feldman argumenta que
as narrativas orais remontam o corpo que foi fragmentado pela violência. Ao fazer
isto, no entanto, as narrativas têm o mesmo efeito da violência política: testemu
nham a emergência da agency política (1991: 10-6). “ Muitos dos textos transcri
tos neste livro podem ser entendidos como um projeto político-cultural da parte dos
autores e de minha parte, de localizar a narrativa na violência ao localizar a vio
lência por meio da narrativa” (1991: 14).
Analisando a reprodução da violência sectária na Irlanda do Norte, Feldman
mostra não só como cada espaço e personagem político tornam-se implicados na
violência e são então recriados na narração, mas também -— em contradição direta
com Girard —- como as ações que supostamente combatem a violência, como o
sacrifício (greve de fome, por exemplo), podem acabar tendo o efeito exatamente
Cidade de Muros 43
reitos da cidadania e, especialmente, a própria violência. Se a fala do crime gera
ordem, esta não é uma ordem democrática, igualitária e tolerante, mas exatamente
o seu oposto. A democracia tem a ver com a abertura e indefinição de fronteiras
(como argumento no capítulo 8), não com enclausuramentos, fronteiras rígidas e
distinções dicotomizadas.
N o universo do crime, as barreiras estão enraizadas não apenas nos discur
sos mas também materialmente nos muros da cidade, nas residências das pessoas
de todas as classes sociais e nas tecnologias de segurança. Preconceitos e derrogações
, não apenas são verbais, mas se reproduzem em rituais de suspeita e investigação
nas entradas de edifícios públicos e privados. A medida que os pensamentos e atos
das pessoas são moldados pelo raciocínio categorizante da fala do crime, sua in
fluência se espalha, afetando não apenas as interações sociais mas também as polí-
' ricas públicas e o comportamento político. Assim, a ordem simbólica da fala do crime
' visível e materialmente faz a mediação da violência. Na São Paulo de hoje, o apoio
a soluções privadas e violentas para o crime não apenas gera discursos, mas tam
bém alimenta o crescimento fenomenal da indústria de segurança privada (tanto
legal como ilegal). Além disso, esse apoio gera indiferença em relação às ações ile
gais de uma força policial que em 1992 matou 1.470 suspeitos de crimes em São
Paulo. A nova Constituição, aprovada após o fim do regime militar, é descrita por
muitos depreciativamente como “ protetora de bandidos” porque estabelece regras
para a detenção de suspeitos e limites para a busca e apreensão por parte da polí
cia. Muitos residentes da cidade consideram que as pessoas que defendem os direi
tos humanos dos presos advogam “ privilégios de bandidos” . Se o medo do crime e
a expansão da violência são reais em São Paulo, e se o crime está fornecendo uma
linguagem com a qual se pode falar e pensar sobre muitos outros processos de
desestabilização, também é verdade que, com a ajuda da fala do crime, o que está
sendo forjado é uma cidade muito mais segregada e uma sociedade muito mais
desigual, na qual as noções de justiça e os direitos de cidadania são diretamente
contestados, apesar do sistema político democrático.
Neste livro, analiso as complexas e multifacetadas equações que conectaram
o crime, a violência e o medo com outros processos que têm transformado a socie
dade brasileira nas duas últimas décadas. Na São Paulo dos anos 80 e 90, e especial
mente na época em que fiz a maioria das entrevistas (1989-1990), o crime não era
o único processo desestabilizador. Esse período da história brasileira foi marcado
por uma série de processos de transformação e por uma considerável instabilida
de. Esses vários processos, embora obviamente interligados e dialogando entre si,
não tiveram significados coincidentes. Alguns foram restritivos e resultaram em perda
e deterioração (inflação alta, crise econômica, desemprego e violência). Outros, no
entanto, especialmente a democratização política, foram expansivos e geraram liber
dade e respeito a direitos. Nesse contexto, o crime ofereceu não só uma linguagem
para dar sentido a outros processos desestabilizantes, mas também, através de suas
ordenações simbólicas peculiares, um campo no qual muitos cidadãos resistiram à
democratização. Embora essa resistência tenha sido significativa em alguns momen
tos, e apesar da cidade de muros criada pelas estratégias de segurança ser basicamente
antidemocrática, a resistência não impediu que a democracia criasse raízes ou que
Cidade de Muros 45
ção de Brasília deveria simbolizar e ajudar a promover o salto que se esperava que
o país desse do atraso à modernidade.6
A indústria metalúrgica baseada em São Paulo foi o centro da nova industria
lização. Em 1907, a produção industrial do estado de São Paulo representava 16%
da produção nacional; essa porcentagem cresceu para 31% em 1919, 38% em 1929,
49% em 1950 e 55% em 1960 (Brant 1989: 19). Em 1970, o estado de São Paulo
contribuiu com 58,2% do valor nacional da indústria de transformação (Rolnik s.d.:
27). Embora muitas outras regiões tenham aumentado consideravelmente sua pro
dução, e ainda que a crise econômica e o recente processo de desindustrialização
tenham afetado consideravelmente sua posição, São Paulo ainda é o principal pólo
industrial do país.
Como era de se esperar, o crescimento industrial esteve associado a uma in
tensa urbanização. A população da região metropolitana de São Paulo cresceu a
taxas em torno de 5,5% ao ano entre 1940 e 1970. Durante esse período, a migra
ção interna foi responsável por 50% do crescimento demográfico: ela trouxe mais
de 1 milhão de novos habitantes para a região nos anos 50 e 2 milhões nos anos 60
(Perillo 1993: 2). A construção civil e a transformação eram intensas e o governo
local repetia o lema “ São Paulo não pode parar!” .7
Os militares, que fecharam à força todas as organizações políticas e de oposi
ção, não interromperam o desenvolvimentismo: também eles queriam transformar
o Brasil num país moderno. Sob o regime militar, o PIB alcançou taxas de 12% de
crescimento anual no início dos anos 70. O progresso econômico era baseado no
endividamento externo e na intervenção direta do Estado na economia. Essa inter
venção foi responsável, entre outras coisas, pela criação de uma nova infra-estru
tura de estradas e telecomunicações, e pela expansão de instalações e serviços de
consumo coletivos como um sistema nacional de saúde e seguridade social. No
entanto, tudo foi feito sem a participação política das massas e sem distribuição da
riqueza. Durante os “ anos do milagre” , os militares anunciaram que era preciso
primeiro crescer para depois “ dividir o bolo” . Apesar da desigualdade persistente,
o Brasil mudou rapidamente nos últimos sessenta anos e, não obstante a repressão
política, a população passou a se orgulhar do seu país “ miraculosamente” moderno.
Embora São Paulo apresente o exemplo mais expressivo de industrialização e
urbanização, esta foi intensa em todo o país. A população urbana do Brasil, que
em 1950 constituía 36% da população total, em 1980 representava mais de 50%
(cerca de 80 milhões de pessoas). Metade dessa população urbana vivia em 30 cen
tros urbanos de mais de 250 mil habitantes. Por volta de 1980, o Brasil possuía nove
8 Todos os dados demográficos são dos censos. Essas áreas metropolitanas são Belém, For
taleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. São
todas capitais. Há também algumas cidades que não são capitais e têm mais de 1 milhão de habi
tantes, tais como Santos e Campinas, no estado de São Paulo.
9 Ver Faria (1983 e 1991) para análises do padrão de urbanização nos últimos cinqüenta
anos, da consolidação de um “ sistema de cidades” nacional e de mudanças na estrutura de emprego.
Cidade de Muros 47
N a verdade, a combinação de crescimento e desigualdade marcou os mais
variados aspectos do desenvolvimento dos anos 70. Esse é o caso dos equipamentos
e serviços de consumo coletivo. De acordo com Faria (1991: 107-8), os serviços de
saúde, previdência social e educação básica se expandiram, mas ao custo de uma
queda da qualidade dos serviços e de salários extremamente baixos pagos aos pro
fissionais que os forneciam. Além disso, pelo fato de o controle exercido pela socie
dade civil sobre esses serviços ser frágil, eles têm sido oferecidos de uma maneira
distorcida (por exemplo, há falta de serviços médicos básicos ao lado de um alto
investimento em sofisticadas tecnologias, corrupção na administração de fundos de
previdência social etc.). Em áreas que exigem altos investimentos públicos, como
habitação, transporte público e saneamento básico, os resultados foram ainda piores.
Em suma, dos anos 40 ao final dos anos 70, tanto o Brasil como a região
metropolitana de São Paulo mudaram de forma dramática mas paradoxal: urba
nização significativa, industrialização, sofisticação e expansão do mercado de con
sumo e complexificação da estrutura social foram acompanhados por autori
tarismo, supressão da participação política da maioria da população, uma distri
buição extremamente desigual da renda e uma constante tentativa de manter a
hierarquia social e a dominação pessoal. Em outras palavras, o Brasil tornou-se
um país moderno com base numa combinação paradoxal de rápido desenvolvi
mento capitalista, desigualdade crescente e falta de liberdade política e de respei
to aos direitos dos cidadãos. São Paulo é a região que melhor representa a mo
dernidade brasileira com todos os seus paradoxos. Com seus mais de 16 milhões
de habitantes, indústrias e arranha-céus, escritórios bigh-tech e favelas, metrôs
sofisticados e altas taxas de mortalidade infantil, comunicações via satélite e bai
xos níveis de alfabetização, a metrópole de São Paulo tornou-se um dos melhores
símbolos de uma sociedade de consumo industrial pobre mas moderna, heterogê
nea e profundamente desigual.
Apesar dos seus desequilíbrios, o processo de industrialização e crescimento
ajudou a sustentar muitas promessas: de progresso, mobilidade social e incorpora
ção do Brasil ao mercado de consumo internacional e à modernidade. Quando o
PIB estava crescendo a uma taxa de 10% ao ano, quando a renda per capita cres
cia a 6,1% ao ano, quando a maioria dos migrantes tornavam-se proprietários e
construíam casas para suas famílias nas maiores cidades do país, quando essas ca
sas eram decoradas com todo tipo de bens industrializados produzidos (sobretudo
a televisão) e quando as crianças dessas famílias recebiam educação e serviços mé
dicos (ainda que esses serviços fossem ruins), era possível acreditar que o Brasil
realmente estava se tornando moderno, que o futuro seria melhor, que a nova ge
ração seria mais afortunada e que a participação política e a diminuição da desi
gualdade viriam com o tempo.10 Embora a elite continuasse a sentir-se pouco à
10 Durante os anos 70, segundo Rocha, “ a renda per capita expandiu-se 6,1% por ano, a
taxa de analfabetismo caiu de 40% para 33%, e a população urbana aumentou de 55% para 68%.
Embora as desigualdades de renda e regionais tenham claramente se intensificado nos anos 70,
isso foi compensado pelo fato de que a maioria das pessoas, contudo, estava em melhor situação.
Cidade de Muros 49
Um dos resultados da queda nas taxas de fecundidade total é o declínio da
taxa média anual de crescimento da população, que na primeira metade de 1990
foi de apenas 1,9% . Um segundo resultado é a mudança na pirâmide etária da
população, que se tornou mais velha. Finalmente, um terceiro resultado é a mudança
no padrão de urbanização. Durante os anos 80 e especialmente durante os anos 90,
houve um importante declínio nas taxas de crescimento da população urbana. Isso
fica especialmente claro nas nove maiores regiões metropolitanas, onde as taxas
caíram de 4,5% ao ano no período 1940-1970, para 3,8% durante os anos 70 e
2% durante os anos 80. Depois de ter crescido apenas 1,16% durante os anos 80 e
ter registrado uma significativa emigração pela primeira vez na história, São Pau
lo, a cidade que não podia parar, o paraíso dos migrantes, teve uma taxa de cresci
mento da população de apenas 0,4% entre 1991 e 1996.
Como é bastante sabido, os anos 80 também foram “ a década perdida” para
a crise econômica. O PIB caiu 5,5% e o salário mínimo real diminuiu 46% duran
te o período de 1980-1990 (Serra 1991). Entre 1940 e 1980, o PIB crescera 6,9%
anualmente (4% no caso do PIB per capita). Entre 1980 e 1992, cresceu apenas
1,25% ao ano e a renda per capita caiu 7,6% (PNUD-IPEA 1996: 73). Um dos
principais componentes da crise econômica foram as persistentes taxas elevadas de
inflação (ver Tabela 1).
Tabela 1
Inflação anual (%), Brasil, 1980-1998
Ano Inflação Ano Inflação
1980 99,7 1990 1.585,2
1981 93,5 1991 475,1
1982 100,3 1992 1.149,1
1983 178,0 1993 2.489,1
1984 209,1 1994 929,3
1985 239,1 1995 21,9
1986 58,6 1996 9,1
1987 396,0 1997 4,3
1988 994,3 1998 2,5
1989 1.863,6
Fonte: IBGE: INPC (índice Nacional de Preços ao Consumidor).
Obs: Valores relativos à variação anual dos preços ao consumidor medidos em dezembro.
Os sucessivos planos para combater a inflação falharam até meados dos anos
90 — inclusive o famoso Plano Cruzado em 1986 e o Plano Collor em 1990. Além
disso, eles tiveram fortes efeitos na vida dos cidadãos, que, como as pessoas que
entrevistei e cujos depoimentos analiso no capítulo 2, sentiram que sua qualidade
de vida se deteriorou continuamente durante o período. Além disso, a recessão eco
nômica gerou desemprego e poucas oportunidades de recuperação. Durante a vi
gência de altas taxas de inflação, fica mais difícil prever o futuro e aumenta a sen
sação de insegurança das pessoas em relação à sua posição social. A decadência social
passa a ser uma perspectiva mais realista do que as possibilidades de ascensão, ao
contrário do que ocorrera desde os anos 50 até os 80,
Cidade de Muros 51
1990, a proporção de pobres era de 30% (Rocha 1996: l ) .16 Embora esse nível
seja mais baixo que o de 1980 (34% ), em comparação com o longo período de
mobilidade social e diminuição da pobreza dos anos 70, ele esconde uma forte
reversão de expectativas. Num contexto de crise e de inflação no qual esperanças
de mobilidade foram se frustrando, a insatisfação se tornou generalizada, especial
mente nas áreas metropolitanas, onde a proporção de pobres é maior do que nas
pequenas cidades (ver Leme e Biderman 1997 para uma análise do estado de São
Paulo). As entrevistas que analiso no capítulo 2 demonstram claramente essa re
versão de expectativas.
Em 1995, o Brasil tinha um PIB de US$ 536 bilhões e uma renda per capita
de US$ 3.370. Atualmente seu PIB está entre os dez maiores do mundo. Todavia,
sua distribuição de renda é uma das piores. A proporção da renda apropriada pe
los 20% mais ricos da população cresceu de 54% em 1960 para 62% em 1970,
63% em 1980 e 65% em 1990, enquanto a proporção correspondente aos 50%
mais pobres caiu de 18% em 1960 para 15% em 1970, 14% em 1980 e 12% em
1990 (Barros, Mendonça e Duarte 1997). Estudos recentes mostraram que a maior
concentração de renda ocorre no topo da distribuição, especialmente nos 1 % mais
ricos, enquanto a diferença entre os decis mais baixos não é acentuada e é compa
rável à de outros países latino-americanos. N a última década, de acordo com os
resultados das PNADs,17 a proporção da renda nas mãos dos 1% mais ricos da
população cresceu de 13,0% em 1981 para 17,3% em 1989 e para 15,5% em 1993.
Um estudo recente do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
comparando 55 países mostrou que, medida pela razão entre a renda média per
capita dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres da população, o Brasil tinha a
pior situação de desigualdade. Enquanto na maioria desses países (incluindo todos
os países desenvolvidos e todos os outros principais países da América Latina) a
renda dos 10% mais ricos é em média dez vezes mais alta do que aquela dos 40%
mais pobres, no Brasil ela é quase trinta vezes mais alta (PNUD-IPEA 1996: 17). A
região metropolitana de São Paulo é uma das menos pobres e tem uma das melho
res distribuições de renda do país. Em 1990, os pobres constituíam 17% da popu
lação do estado (a segunda proporção mais baixa do país; PNUD-IPEA 1996: 182).
Todavia, o coeficiente de GINI cresceu de 0,516 em 1981 para 0,566 em 1989 e
16 As linhas de pobreza variam de acordo com as cidades e regiões do país. Rocha apresen
ta sua metodologia para calculá-las em Rocha (1996). Ela calculou a linha de pobreza da região
metropolitana de São Paulo em 1990 como sendo o equivalente a uma renda mensal per capita de
US$ 43,29. Esse era o nível mais alto do país. Na região metropolitana de São Paulo, a proporção
dos pobres era de 22,0% em 1981, 34,4% em 1983, 16,9% em 1986 e 20,9% em 1989 (Rocha
1991: 37). Esses dados indicam que os piores anos da recessão foram os de 1981 e 1983, o que é
confirmado por Lopes e Gottschalk (1990: 104).
17 PNAD refere-se à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada pelo IBGE (Ins
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Todos os dados acima sobre distribuição de renda vêm
das PNADs.
Cidade de Muros 53
alguns grandes marcos desse processo. Um deles foi a recriação do movimento sin
dical a partir do ABCD paulista, que gerou um novo tipo de liderança sindical e
política que desempenhou um papel central no novo regime democrático. Outro
marco foi a eclosão dos movimentos sociais de bairro nas periferias pobres urba
nas, freqüentemente apoiados pela Igreja Católica, e que garantiram legitimidade
à noção de que os moradores desses bairros tinham o “ direito de ter direitos” . Os
participantes desses movimentos eram os proprietários de casas autoconstruídas e
que perceberam que a organização política era o único meio de forçar as autorida
des da cidade a ampliar a infra-estrutura urbana e os serviços para seus bairros. No
começo dos anos oitenta, quando foi possível a reorganização de partidos políti
cos, representantes de movimentos sindicais e de movimentos sociais, junto com re
presentantes dos movimentos de minorias (mulheres, negros, homossexuais etc.),
que também se expandiram nesse período, fundaram o PT — Partido dos Traba
lhadores —, provavelmente o primeiro partido político na história brasileira que
não foi gerado ou comandado pela elite.
Em suma, enquanto a crise econômica se acentuava, havia esperança na trans
formação política. De fato, os movimentos sociais e a abertura política ampliaram
de forma significativa os direitos políticos dos cidadãos. Por um tempo, o entusias
mo que essa expansão gerou foi partilhado por todas as classes sociais e sintetiza
do no desejo de que a ditadura militar terminasse. O movimento “Diretas Já! ” cap
turou esse anseio. Todos conhecemos a história que se seguiu, marcada pela frus
tração de expectativas dada a decisão de se manter o voto indireto em 1984, pela
dramática morte de Tancredo Neves, pelo Plano Cruzado de 1986, pelos trabalhos
da Assembléia Nacional Constituinte, que envolveram grande participação dos ci
dadãos, e, finalmente, pela aprovação da nova constituição em 1988. Em 1989,
quando os brasileiros finalmente puderam votar para presidente, o Brasil tinha 82
milhões de eleitores registrados. A sociedade e a comunidade política que eles re
presentavam eram radicalmente diferentes daquelas representadas pelos 15 milhões
de eleitores que em 1961 tinham participado da última eleição para presidente. Em
1989, a campanha eleitoral aconteceu principalmente na televisão — presente em
quase 60% dos domicílios —, os dois candidatos que foram para o segundo turno
eram ambos jovens (na casa dos 40 anos) e representavam o que poderia ser cha
mado de novo jeito de fazer política. Fernando Collor de Mello, eleito no segundo
turno, era um neoconservador oriundo das oligarquias do Nordeste e versado na
vida de Brasília. Seu adversário era o líder do PT, Luís Inácio Lula da Silva, um
migrante do Nordeste que tinha sido metalúrgico na região do ABCD e se tornara
seu mais importante líder sindical nos anos 70. O fato de ele ter vencido uma série
de famosos políticos nacionais e ter participado do segundo turno atesta o quanto
o país tinha mudado. M as não mudara o suficiente.
Os brasileiros preferiram eleger o produto dos meios de comunicação das
oligarquias conservadoras, acreditando que ele poderia trazer modernização e le
var uma imagem “ apropriada” do Brasil para as “ nações adiantadas do mundo” ,
como afirmou uma pessoa que entrevistei. N o entanto, no contexto de crise que
acabei de descrever, as esperanças de uma modernização fácil logo foram frustra
das. Em março de 1990, era visível que a inflação estava fora de controle (ver T a
21 O conceito de democracia disjuntiva não se aplica apenas à sociedade brasileira, mas aponta
para processos contraditórios de desenvolvimento que podem ocorrer em qualquer democracia (ver
Holston e Caldeira, 1998). No entanto, disjunções muito claras parecem caracterizar especialmente
países que passaram recentemente por transições democráticas (Holston, no prelo).
Cidade de Muros 55
de aparatos do Estado, aumentou consideravelmente desde o fim do regime mili
tar. Esse aumento no crime e na violência está associado à falência do sistema judi
ciário, à privatização da justiça, aos abusos da polícia, à fortificação das cidades e
à destruição dos espaços públicos. Em outras palavras, no Brasil, a democracia
política não trouxe consigo o respeito pelos direitos, pela justiça e pela vida huma
na, mas, sim, exatamente os seus opostos. Nesse contexto, o crime não só expressa
e articula outros processos negativos de mudança, mas também representa os limi
tes e desafios da democratização brasileira. N a verdade, o universo do crime indi
ca o caráter disjuntivo da democracia brasileira de duas maneiras: em primeiro lugar,
porque o crescimento da violência em si deteriora os direitos dos cidadãos; e em
segundo, porque ele oferece um campo no qual as reações à violência tornam-se
não apenas violentas e desrespeitadoras dos direitos, mas ajudam a deteriorar o
espaço público, a segregar grupos sociais e a desestabilizar o estado de direito.
Neste livro, analiso especialmente aqueles aspectos da sociedade brasileira em
que a democracia deitou raízes de forma apenas relutante, ou nas quais simples
mente não se enraizou. Analiso a violência e as várias dimensões da deslegitimação
da justiça e dos direitos civis. Essa é a esfera na qual a democratização é desafiada
e na qual a resistência às transformações que poderiam levar a uma sociedade mais
igualitária estão articuladas de forma explícita. Pelo fato de estar insistindo no ca
ráter disjuntivo da sociedade brasileira, nunca pressuponho que os sombrios pro
cessos sociais que analiso constituem a marca principal ou a única marca da socie-
xdade brasileira, ou mesmo a única tentativa de criação de ordem. No entanto, ar
gumento que o universo da violência^ do crime, incluindo a falência do sistema
/judiciário, o desrespeito aos direitos individuais, os abusos por parte dasjnstitui-
/ ções da ordem, preconceitos e intolerância contrapõem-se às tendências democrá
ticas e ajudam a sustentar uma das sociedades mais desiguais do mundo.
V ■* '
Cidade de Muros 57
çadas e ambíguas. Segundo, quando as pessoas têm de lidar com estereótipos que
discriminam a si mesmas e ao invés de questionarem os estereótipos, tentam afastá-
los de si mesmas e associá-los a outras pessoas próximas, geralmente vizinhos. Ao
interpretar as entrevistas, tentei entender o que cada pessoa me disse. Entretanto,
o que apresento aqui não são opiniões individuais, mas sim um resumo que obtive
ao justapor todas as entrevistas.1 Na minha narrativa, uso citações das entrevistas
de duas maneiras. Primeiro, como exemplos, quando uma citação representa vá
rias outras parecidas, sintetizando comentários e imagens encontrados de manei
ras mais fragmentadas em todo o material. Segundo, particularmente, quando analiso
casos específicos que considero ser especialmente ou até excepcionalmente revelado
res a respeito de uma certa articulação. N ão é preciso dizer que o essencial ao se
empreender uma análise qualitativa é capturar parte da riqueza de significados
embutida nas práticas sociais e que desafiam grandes categorizações e descrições.
Utilizo outras metodologias a fim de entender outras dimensões do universo do crime.
L im ites ã M o d e r n iz a ç ã o
2.1
- Inflação é isso: você compra hoje e amanhã não sabe se dá para comprar. Você come
hoje e amanhã não sabe se come. Quem perde? Sempre o povo, o pobre. Infelizmente é a par
te que pôs os homens lá. Quem perde mais geralmente é o povo, é a massa. Eles perdem.
Vendedor desempregado, 32 anos, solteiro; mora com uma irmã casada na Moóca.
2.2
- A inflação e essa desorganização que houve no sistema fez com que se perdessem as
referências, então nós não temos mais referência; o que é melhor, pagar bem um funcionário
ou dar uma cesta básica, ou dar uma segurança, ou dar um serviço hospitalar pro funcioná
rio? Então, nós perdemos a referência... Eu acho que um dos motivos que provocam essa crimi
nalidade crescente é essa inflação que é desumana, que atinge muito a classe de renda me
nor... 0 Plano tirou o poder de compra do comprador. 0 Plano Collor — eu votei no Collor —, o
Plano Collor veio pra diminuir o empobrecimento, pra tirar do rico e pôr... eu acho que acon
teceu o contrário, até agora tem sido o contrário, o pobre tá mais pobre e o rico tá mais rico...
A hiperinflação corrói completamente os conceitos de moralidade, de tudo que você possa ter,
mudam seus conceitos... Então, eu acho que na hiperinflação todos perdem tudo, ninguém ganha
nada... A inflação faz com que você perca os teus conceitos. (...) Então, sem querer, sem querer,
não, a inflação faz com que você pague muito pouco pro teu empregado, e a inflação, ela traz
o dinheiro pro rico, ela concentra renda, então eu acho imoral, é como roubo; roubo pra mim
é imoral.
Empresário do ramo imobiliário, cerca de 40 anos, mora com a mulher e três filhos no
Morumbi.
Era comum a opinião de que os remédios para lidar com a inflação alta ha
viam sido consistentemente ineficazes, culminando com o Plano Collor. Esse pla
no afetou todo mundo, e os entrevistados concordaram que, apesar de suas inten-
Cidade de Muros 59
ções, g plano acentuou a desigualdade social e tomou a distribuição da renda ain
da mais injusta.
2.3
- Olha, por incrível que pareça, na época, pode ter sido até uma ilusão, o milagre brasi
leiro no tempo do Delfim Neto, mas naquela época a inflação não subia com esta aceleração.
Eu acho que era uma inflação mais estável. Eu acho que aquela época era uma época melhor.
(...) Eu acho que a geração de 50 anos de idade, que pegou o Plano Collor, é uma geração que
economicamente acabou. Não tem mais chance. Porque o pessoal que tinha dinheiro pra via
jar, ou que poupou pra comprar um apartamento para os filhos, ou que poupou até para a
casa própria, ficou com o dinheiro preso. E muito dificilmente vai se recuperar, foi um golpe
muito grande mesmo (...) Hoje a expansão da riqueza no país aumentou, embora a distribui
ção seja péssima. Agora, o que eu acho que aumentou muito mais é o número de pobres. Por
que rico tem poucos filhos, quem tem filho aí que nem cobaia é pobre. Então, eu acho que a
pobreza aumentou muito mais que a riqueza. Porque ganhar dinheiro não é fácil. Principal
mente honestamente, não é nada fácil. Mas aumentou porque o país cresceu economicamen
te, dizem que é a oitava economia do mundo. Só que a distribuição de renda é pior que nos
países da África. Do que o Senegal... que eu andei lendo por aí. Dizem que é uma vergonha. É
incrível!
Corretora imobiliária, 56anos, divorciada;começou a trabalharem 1990;mora com uma
filha no Alto de Pinheiros.
2.4
- 0 Brasil está um caos. Porque nós estamos vivendo de várias mentiras, e uma das maio
res é a inflação. (...) 0 Brasil precisaria, por exemplo, de um presidente que pudesse ter braço
de ferro, democraticamente, e poder ser reeleito, e poder ser reeleito, até endireitar.
Contador, 63 anos, mora com a mulher e o filho na Moóca.
2.5
- Eu não consigo ver como o nosso país vai conseguir se unir ao resto do mundo. Você
não saca. Está superindefinido. Eu acho que a situação é otimista em certo ponto, porque eu
reconheço que nós somos uma história nova (...) A nossa tristeza, vamos dizer assim, é que a
gente está vendo ali na tela do cinema os países prosperando e a gente quer se igualar a eles.
A gente encurta a ponte. Tá achando que a gente está no mesmo patamar, mas não, é uma
ilusão. Aquilo é uma tela, aquilo está num tempo muito na frente e a gente tem que trabalhar
muito para fazer isto aqui um país.3 (...) É preciso haver um segunda... uma verdadeira inde
pendência do Brasil. (...) Eu acho que o Brasil nunca esteve numa época adequada, porque jus
tamente o Brasil nunca foi independente. Ele nunca se assumiu, nunca pôde se assumir como
um país independente, e isso já dá uma certa insegurança. (...) 0 Brasil nunca teve uma época
2 Para uma discussão sobre o que os membros das camadas trabalhadoras pensam de Vargas
e de seu governo, e especialmente do Estado corporativista, ver Caldeira (1984: cap. 4).
3 Esse tema teve muitas outras expressões na época. Por exemplo, numa famosa canção do
final dos anos 80, Caetano Veloso pergunta: “ Quando é que em vez de rico ou polícia ou mendi
go ou pivete serei cidadão, e quem vai equacionar as pressões do PT, da UDR e fazer dessa vergo
nha uma nação?” (Vamo Comer, de Caetano Veloso e Tony Costa).
Cidade de Muros 61
boa, se teve foi uma ilusão, mas passou. Talvez a era Vargas criou uma ilusão assim (...) Hoje
eu escuto muito senhores falando da era Vargas e tal. Mas isso foi um período de cheia, por
que o poder deles é limitado, por mais grande que seja, é por um momento. 0 que a gente
precisa é de um poder constante, durável. Não adianta chegar um poderoso e fazer uma coisa
maravilhosa no país e de repente (...) é a mesma coisa que construir um castelo na areia. Construir
um maravilhoso castelo em cima de areia movediça, mole, de água. Isto é simplesmente ilusão.
Se alguém me dizer que houve períodos melhores eu vou dizer que realmente houve, mas foi
só o tempo de fotografar aquele castelo, porque logo veio a água e "tchuf". E se é para ter um
castelo por um segundo, eu acho melhor nem ter. Tem muitas pessoas que falam desta época,
eu concordo, mas compreendo a ilusão que o cara viveu, eu não vivi, eu só vi esta fotografia.
Desempregado formado em comunicações com especialização em rádio, 23 anos; mora
com os pais na Moóca.
4 Essa tensão entre um ideal moderno e a realidade retrógrada da nação vem à tona nos mais
diferentes modelos inventados pelas ciências sociais brasileiras para conceber a realidade brasilei
ra. Ela está presente nas discussões raciais do final do século XIX sobre “ branqueamento da po
pulação” (cf. Skidmore 1974) e nos debates sobre o relacionamento entre liberalismo e escravi
dão (cf. a famosa discussão sobre as “idéias fora do lugar” de Schwarz (1977). Ela também está
obviamente presente nas discussões sobre o desenvolvimentismo nacional e a necessidade de pu
lar etapas de desenvolvimento e acelerar a industrialização (cf. Furtado 1969 e a discussão sobre
a “originalidade da cópia”, de F. H. Cardoso 1980), e sobre a teoria da dependência (Cardoso, F.
H. e Faletto 1967). O modelo antropológico mais famoso articulando a tensão entre as espe-
cificidades locais e a modernidade completa é o de DaMatta (ver especialmente 1991).
5 Algumas dessas imagens são tão velhas como o próprio país. Elas ecoam a famosa frase
“ uma terra onde, em se plantando, tudo dá” , usada em 1500 pelo escrivão Pero Vaz de Caminha
para descrever a nova terra para o rei de Portugal.
2.6
- 0 Brasil está cada vez... cada vez assim... não digo menos viável, mas é um país que
não está dando muita projeção de um bom futuro para o povo brasileiro. A gente está preo
cupado. Eu como jovem fico preocupado porque eu não sou jovem alienado. Eu estou achando
que esse novo governo que vai entrar vai enfrentar sérias dificuldades, porque nós somos um
país do Terceiro Mundo, nós somos um país que... culturalmente é um país do Terceiro Mun
do, nós temos uma dívida externa muito grande, nós temos uma qualidade de vida, de saúde,
ruim, de alimentação ruim. Nós temos problema a nível de... até de... problemas gerais, sabe,
de posicionamento perante o mundo desenvolvido. É um país que, tudo bem, é rico, é um país
que tem muita terra, tem muito futuro, dizem que vai ser o celeiro do mundo. Mas meu pai já
falava isso, meu avô já falava isso, e eu estou vendo que o tempo vai passando e as coisas vão
ficando iguais e cada vez piores. Nunca se teve tanta miséria no Brasil, acho, como agora.
Funcionário público do médio escalão, 32 anos, solteiro, nível universitátio, mora com os
pais na Moóca.
2.7
- Eu acho que a coisa está caminhando para uma internacionalização. Eu acho que o
Estado nacional está sendo ultrapassado, está tudo muito interligado, uma nação não vive so
zinha. Quer dizer, aquele espírito: "vamos fechar as fronteiras e fomentar o mercado interno",
esse negócio não existe mais. A velocidade do conhecimento está muito grande e é uma velo
cidade que se dá por uma sinergia que existe, uma relação sinérgica entre as nações; se fe
char, vai ficar para trás...
6 Ilusão é também uma boa metáfora para o que acontece sob a inflação e para a ciranda
financeira que a acompanha: as pessoas pensam que ganharam dinheiro com a especulação finan
ceira, mas é apenas uma ilusão, pois o poder de compra desaparece; as pessoas pensam que o sa
lário aumentou, quando ele apenas acompanhou a inflação.
Cidade de Muros 63
Eu não acho que o Brasil perdeu o bonde da história. Eu acho, sim, que nós perdemos
dez anos, infeiizmente, esse troço todo, mas eu acho que dá para recuperar. Eu sou um cara
otimista. Eu não compartilho de pessimismo, sou um cara otimista, eu vibro muito com tudo
isso que está acontecendo, a nível político, essas mudanças todas (...) Acho que nós tamos num
processo correto. Nesse ponto até, o Collor, não votei nele, votei no Lula no segundo turno;
quase me mataram no meu meio empresarial, esse troço todo, quase me jogaram pela janela,
mas eu votei nele mais porque eu achava que o Lula trazia uma ameaça menor ao sistema de
mocrático do que o Collor.
Diretor gerai e co-proprietário de uma indústria química, Morumbi, 37 anos, dois filhos;
a mulher é dona de casa.
2.8
- Olha, eu acho que não é fácil, mas acho que é um primeiro passo para a gente partir
para uma coisa nova. Nós não podíamos mais continuar no mundo atual sendo uma coisa que
não tinha mais nada a ver, precisava realmente uma sacudida (...) Eu acho que toda essa men
talidade nova tem que ser introduzida no país. Nós não podemos mais ficar tão fora do mun
do. E não sei como, mas quem sabe a gente vai conseguir. Me dá a sensação às vezes que nós
estamos começando a melhorar (...) Eu acho que já se conversa num nível um pouco mais in
ternacional, uma coisa assim um pouco mais ampla. Acho que já se vislumbra que não pode
ser como era (...) Não é fácil. A nossa mentalidade é muito..., eu não sei, eu acho que um pouco
primitiva até, né? Essa falta de noção que nós temos de economia, essa coisa de não saber
consumir adequadamente. Enquanto a gente não entender - a gente que eu estou falando é
nós todos, o povo - , não entendermos que a gente tem que poupar, que a gente tem que
consumir adequadamente, tudo vai ser difícil. Eu acho que pior é o consumo do pessoal mais
miúdo, pessoal que não tem noção nenhuma de nada... Enquanto não mudar essa mentalida
de, eu acho muito difícil.
[Mais tarde ela argumentou que São Paulo é um lugar especial. Explicou que se uma pes
soa viaja no interior do estado de Sâo Paulo, realmente fica surpresa com seu desenvolvimen
to. Durante os primeiros dias que se seguiram ao Plano, "quando era aquela miséria nacional",
ela teve de voar para Minas. Olhando para baixo do avião, pensando que ninguém tinha dinheiro
naquela época, mas vendo toda a terra cultivada,"essa coisa fantástica", ela pensou:]
Puxa! o Brasil é um fenômeno, não pode afundar. Eu acho que é uma diferença grande
para o resto do Brasil. (...) 0 pessoal aqui em São Paulo, o pessoal trabalha, o pessoal não se
deixa... o pessoal está trabalhando e está tocando a sua vida. Isso aí não tem como parar, eu
acho. Essa parte do país eu acho que não tem o que faça parar. 0 pessoal quer trabalhar. En
quanto nós não nos desligarmos dessa mentalidade de governo protetor, isso aí não tem jei
to. Tudo o governo, o governo que tem que dar, o governo que tem que fazer, o governo... Isso
aí... isso aí é um desastre. 0 que a gente precisa é livre iniciativa, é trabalhar, tocar a vida pra
frente.
Dona de casa, 52 anos, Morumbi, dois filhos; o marido é executivo de uma multinacional.
D eca in d o S o c ia lm e n t e e M e n o sp r e z a n d o os P o bres
Cidade de Muros 65
trabalhassem e estudassem duro — como faziam —, ainda não conseguiriam mui
to. Para eles, a idéia totalmente consensual dez anos antes de que São Paulo era um
bom lugar porque oferecia emprego e mobilidade social não era mais válida. Ain
da podia até ser um bom lugar para se achar um emprego, mas os salários não
permitiam sua incorporação à sociedade de consumo — como acontecia uma dé
cada antes — ou mobilidade social. Os salários eram gastos em alimentação e trans
porte, e os jovens que entrevistei falaram com tristeza e ironia sobre as possibilida
des que lhes eram oferecidas: como disse um deles, ele não podia nem mesmo levar
sua mulher ao parque de diversões de vez em quando. Construir a casa própria estava
fora de cogitação. N o fim dos anos 70, quando comecei a fazer trabalho de campo
no Jardim das Camélias, todos no bairro acreditavam no progresso. As pessoas es
tavam construindo suas casas e organizando todos os tipos de associações e movi
mentos sociais para obter melhores serviços e infra-estrutura para o bairro (Cal
deira 1984, 1987 e 1990). Elas apoiavam a democracia e queriam eleições diretas,
algumas estavam entusiasticamente organizando um núcleo local do PT, e muitas
outras participavam de campanhas eleitorais por candidatos de diferentes partidos
(Caldeira, 1987). Elas obtiveram a maior parte da infra-estrutura (asfalto, ilumi
nação pública, esgoto) e dos serviços públicos (creche, posto de saúde) para o bair
ro nos anos 80 e dessa forma ajudaram a urbanizar a periferia. Muitas pessoas
conseguiram aumentar e terminar suas casas autoconstruídas. Seus filhos, todavia,
que no início dos anos 90 estavam na casa dos 20 anos, se casando, e que já tinham
estado no mercado de trabalho por um período, sentiam que não tinham as opor
tunidades que seus pais tinham tido. Como me disseram muitas vezes, não conse
guiam ver os resultados de seus esforços. Tudo o que puderam ver ao longo dos
últimos anos era, como um deles disse, que “ os ricos ficaram mais ricos e os po
bres não têm mais chance de subir na vida” . Para completar esse sentimento de
desesperança, percebiam que em seu bairro, o lugar calmo e pacato onde cresce
ram jogando bola nas ruas, estava ficando perigoso. Alguns de seus colegas tinham
sido mortos nas mesmas ruas onde costumavam brincar juntos. Os pais dos três
rapazes que entrevistei em 1990 estavam entre os líderes mais ativos das associa
ções locais no fim dos anos 70 e começo dos anos 80 e entre os fundadores do co
mitê local do PT. Em meados dos anos 80, porém, ao sentir que as coisas estavam
ficando muito difíceis e violentas, voltaram para sua terra natal, a Bahia. Desde então,
cada um de seus sete filhos tem retornado a São Paulo em algum momento em busca
de melhores oportunidades.
A descrição dos irmãos sobre a situação econômica do país era desanimadora:
“ ninguém tem dinheiro, os empregadores estão todos indo à falência, despedindo
funcionários; o Plano Collor ferrou com muita gente” , disse o mais velho. Apesar
de dois deles ainda estarem empregados, eles não esperavam manter o emprego por
muito tempo. Um tinha certeza de que seria demitido depois das festas de fim de
ano. Especialmente convincentes e desalentadores foram seus relatos sobre tentati
vas de encontrar trabalho —-apesar da pouca idade, todos já tinham tentado mui
tos empregos —, as longas horas gastas em trabalho e condução, as tentativas de
baixar as expectativas e as contínuas frustrações de suas esperanças. Eles sabiam
das oportunidades de consumo que a cidade oferecia e queriam participar desse
2.9
A - 0 salário só dá pra comer mesmo, não dá nem pra ir no parque levar a Maria pra
brincar de roda-gigante. Se eu gastar com condução, vai faltar pra eu ir trabalhar o outro dia.
Então eu vou ficar em casa mesmo, porque é melhor, então eu fico em casa. (...) 0 cinema eu
acho que também não compensa, não. A pessoa, alguém que tem um videocassete, vai numa
locadora, aluga uma fita por 150, e passa o dia só vendo o filme que quiser. Eu gosto mesmo
é de ver filme de Rambo, aí fico o dia todo vendo filme de Rambo.
- Por que você gosta de Rambo?
A - Porque é um cabra violento. Você já viu o Rambo lá nos Estados Unidos?
- Eu já vi filme dele.
A - Quando você for lá pros Estados Unidos, você ver ele, você fala que tem um cara
aqui que quer um autógrafo dele.
- Vou falar pra ele, mas acho que vai ser difícil encontrar com ele, só na televisão...
A - Eu vejo Rambo mesmo por que ele faz um papel defendendo, querendo ter os direi
tos, defendendo o bem, defendendo os pobres e o bem, acabando com a ambição, você vê que
ele vai atrás de gente ambicioso e tudo acaba bem. Era bom se o pessoal pegasse desse jeito,
pegasse esses caras ricos assim, muito ambicioso, e metesse fogo. (...) Se isso acontecesse o
Sílvio Santos tava morto, Roberto Marinho tava morto, que é tudo ambicioso, é tudo rico, esse
pessoal rico é tudo ambicioso, só pra ter alguma coisinha tem que ser ambicioso.
- Você acha que hoje em dia a pessoa que trabalha a vida inteira tem chance de subir na
vida?
A - Eu acho que quem trabalha a vida inteira... acho que não tem chance de subir na
vida, não.
C - Antigamente tinha, hoje não pode, não.
- Antigamente quando?
C — Dez, vinte anos atrás, e agora você ganha um dinheiro, mostrou, o ladrão vem e leva,
você não pode nem gastar.
B - Não vale a pena comprar coisa boa mais não. Você ganha vinte mil, você vai com
prar uma calça: é quase quinze mil.
A - Trabalha um mês pra comprar uma calça!
B - Sapato, se você for andar na moda, você tem que ganhar na faixa de uns cem mil
pra andar na marca, como dizem.
C - Tem que ganhar na loto ou na sena.
A - 0 cara ganha uns dinheirinho mais ou menos, vai querer comprar uns móveis bom
pra por dentro de casa, vai querer passear um dia, quando chega os ladrão já rapou tudo. Tem
que sair e pedir pro vizinho dar uma vigiada.
- E como é que as pessoas fazem pra andar na moda?
Cidade de Muros 67
B - Ah, muitas pessoa compra roubada, como lá na firma mesmo, os caras compra é
roubada - os cara vai, assalta lá a loja e aí vende mais barato - a calça tá por quinze, eles
vendem por cinco, o tanto que o cara der eles aceitam, e muitos lá andam na marca é por causa
disso aí, que trabalhando em firma mesmo não dá pra andar de marca.
C - Se saísse essa moda de andar nu por aí tudo...
A - Se o governo liberasse, eu andava nu só pra não ficar sujando roupa.
C - Aí eu botava uma marca: importada.
- Mas você tinha vontade de comprar umas roupas de marca?
B - Eu, eu não tenho esse negócio, não, de andar de marca, mas andar mais bonito, umas
roupas mais bonitas, umas roupas bem-acabadas.
C - Você, nem reza braba deixa você mais bonito.
B - Eu tinha que ganhar na faixa de cem mil. Pra andar do jeito que eu quero tem que
ganhar na faixa de uns cem mil. Ganhando dezoito só dá mesmo pra condução do mês. Só de
passagem vai na faixa de uns sete mil, depois aí vem comida pra levar todo dia, tem despesa,
e aí não dá pra andar nos trinques.
- Que direito que você acha que gente pobre tem hoje em dia7
A - Que direito? Nenhum, só o direito de ir trabalhar, de vir pra casa e dormir, pra no
outro dia ir trabalhar. Leva quatro horas no trânsito pra chegar no trabalho, duas horas pra ir,
duas horas pra voltar.
- Você acha que se o Lula fosse eleito ele ia poder te defender mais?
A - Ah, ele ia, podia dar uma vida digna pra todos nós, né... todos nós queremos não só
comer, mas ter uma boa casa, um bom móvel, um carro, uma casa boa, uma boa roupa, ter um
bom tudo, ter dinheiro suficiente para ajudar a nossa família. A gente não tá tendo dinheiro
pra comer, vai ter dinheiro pra ajudar a família! Essa época de Collor está sendo a pior de to
das (...) Eu acho que se Lula ganhasse ele ia fazer alguma coisa por nós, que ele já passou por
isso que a gente passa, e Collor nunca passou, nem Collor nem esses outros que entrou, tudo
já nasceu de berço de ouro.
C - Tudo a mesma coisa quando chega lá em cima...
2.11
- A classe média desapareceu. Hoje é classe pobre e milionária só. Eu me considerava
classe média, hoje eu me considero classe pobre. Hoje não me considero mais classe média
porque... se eu não tivesse essa casa, hoje eu não teria condições de comprar uma outra de
jeito nenhum. Não teria mesmo.
- Ea classe pobre? 0 pessoal que mora mais na periferia?
- Pra eles eu acho que não está tão ruim, porque nós, classe média, a gente tem que ter
uma apresentação, você não pode andar de qualquer jeito e tal. E pra eles não. Então, geralmente
na família são quatro, cinco pessoas que trabalham, eles conseguem sobreviver. Não estão
vivendo, sobrevivem. Eu acho que quem está sofrendo mais é a classe média mesmo, que tem
que ter uma certa aparência, você tem que ter uma casa razoável, você não vai morar num
cortiço, né? É uma dificuldade mesmo. Pra classe rica tá bom. Haja visto os apartamentos que
estão construindo agora, todos de 4, 5 suítes, 5 garagens, tudo nessa base, sala pra tudo.7
Viúva, cerca de 50 anos, Moóca. Ela divide a casa com a irmã, também viúva, de modo
que a família do sobrinho possa morar na casa da irmã sem pagar aluguel.
Apesar de alguns elementos que ainda garantem uma certa qualidade de vida,
como a casa própria, as pessoas que entrevistei estavam convencidas de que esta
vam decaindo socialmente. Numa situação como essa, a preocupação com a posi
ção social se torna aguda. Para ressaltar a deterioração de sua posição social, as
pessoas que se consideram de classe média podem retoricamente associar-se aos
pobres. M as esse exercício não dura muito, e as marcas de distinção em relação
àqueles que estão abaixo são apresentadas sem demora. A citação 2.11 exemplifica
uma das maneiras mais comuns usadas para diferenciar os pobres: considera-se que
eles estão mais perto da necessidade, preocupados apenas com a sobrevivência, e
sem preocupação com boa aparência ou estilo.
Essas suposições em relação aos pobres obviamente não são exclusivas às clas
ses alta e média brasileiras. Há, por exemplo, uma longa tradição em estudos de
estética que afirma que o gosto das pessoas pobres é uma função da necessidade;
de fato, as pessoas pobres não teriam uma percepção estética já que não se distan
ciam da necessidade. Uma versão recente e sofisticada dessa perspectiva é apresen
tada por Bourdieu (1984, especialmente o capítulo 7), para quem as classes traba-
lhadoras estão confinadas à “ escolha do necessário” . O diálogo dos irmãos do Jar-
7 Ver o capítulo 7 para uma análise dos empreendimentos imobiliários. Essa opinião sobre
empreendimentos imobiliários de luxo era muito comum na época na imprensa e entre os corre
tores de imóveis.
Cidade de Muros 69
dim das Camélias (citação 2.9) e muitas outras entrevistas com pessoas da classe
trabalhadora sobre a decoração de suas casas e estilos de roupas demonstra que eles
entendem de moda e estilo, e que articulam julgamentos estéticos nas suas escolhas
de consumo.8 Se não expressam seu gosto e conhecimento com mais freqüência, é
porque são superexplorados e não têm recursos para isso, e não por não terem senso
estético ou desejo de consumir. Descrever os pobres como limitados à necessidade
é apenas mais um preconceito contra eles, um preconceito recorrente entre aqueles
que se pensam superiores socialmente. Além disso, localizar os pobres perto do
I necessário, identificá-los com necessidade, natureza e falta de racionalidade ou de
i uma cultura sofisticada pode ser uma maneira de associá-los ao espaço do crime,
1 que é freqüentemente descrito com os mesmos traços.
M as a questão da aparência introduzida na citação 2.11 tem ainda um outro
aspecto. Uma das razões pelas quais as classes médias estavam particularmente
sensíveis às transformações recentes era porque estavam tendo dificuldades em
manter as aparências e distâncias que julgavam adequadas. Antes, isso era fácil,
basicamente uma questão de usar a roupa certa e manter uma casa confortável num
bairro calmo. M as com as mudanças rápidas no bairro, a ampliação do mercado
de consumo a outros grupos sociais, a crise econômica reduzindo o poder de com
pra, as novas práticas democráticas transformando a vida política e as velhas cren
ças no futuro sendo minadas, as pessoas sentiam-se inseguras a respeito de sua
posição social. Uma das maneiras de lidar com a incerteza é elaborar diferenças
sociais. Assim, discussões sobre declínio social viram discussões sobre diferenças
sociais e a manutenção do lugar de cada um na hierarquia social.
A distância social é marcada de várias maneiras. Ela pode ser criada mate
rialmente através do uso de grades, que ajudam a marcar uma casa própria como
algo claramente distinto de cortiços e favelas. O uso de cercamentos ainda oferece
o sentimento de proteção, crucial em tempos de medo do crime. M as concepções
depreciativas dos pobres também cumprem a função de criar distanciamento so
cial: elas formam uma espécie de cerca simbólica que tanto marca fronteiras quan
to encerra uma categoria e, portanto, previne as perigosas misturas de categorias.
N a citação 2.11, a narradora, que considerava que a classe média estava desapare
cendo, descreve os pobres como pessoas acostumadas à indignidade e que aceitam
sua posição quase que fora da sociedade e de seu mercado de consumo. Quando
essa imagem é contradita pelos pobres e eles exibem sinais de participação na so
ciedade e no mercado de consumo, aqueles que querem mantê-los fora podem rea
gir fortemente. Essa irritação em relação ao consumo dos pobres muitas vezes foi
expressa nas entrevistas, especialmente em comentários laterais feitos por pessoas
2.12
- Eu acho que pior é o consumo do pessoal mais miúdo, pessoal que não tem noção ne
nhuma de nada. São criaturas que largam uma torneira aberta e vão lá para dentro fazer não
sei o quê e aquela torneira está aberta ali. Eu vejo isso dentro da minha casa. Estou falando pa
ra você de uma coisa do dia-a-dia. Você pode entrar na cozinha, está lá a torneira aberta. Agora,
por exemplo, se eu chego, a torneira está aberta, eu sinto que a criatura volta para fechar a tor
neira porque eu já disse: Olha, a água não cai do céu, a água é uma coisa cara, é uma coisa que
custou um tratamento de água, foi captada, foi juntada, foi tratada, até chegar na tua torneira.
- Quer dizer, você acha que tem uma coisa que é meio esbanjadora?
- Muito. Mais no pessoal miúdo ainda do que os outros.
- Mas esse não seria o pessoal que teria menos o que esbanjar?
- É, mas você não imagina o que esbanjam, é uma coisa, assim, fenomenal. É uma coisa
que você não... Você diz assim: mas como esbanja se não tem? Mas se tiver, esbanja. 0 que
tem, esbanja. Não sabe preservar, não sabe guardar, não sabe... não há a menor... Agora, no
Sul do país é completamente diferente. No Sul do país você vai ver um pessoal que é poupador,
que vai e compra a sua casa, sai do neca e vai juntando e vai poupando e compra sua casa.
2.13
- Isto é uma coisa revoltante, Você vai em qualquer maloca, e no Rio de Janeiro tam
bém, e aqui em São Paulo, que tem perto das marginais, que tem nessas favelas, você vê em
todas essas casinhas antenas de televisão. Não tem geladeira, mas tem televisão. Geladeira seria
Cidade de Muros 71
até mais útil, mas eles não têm geladeira e têm televisão. Eles estão acompanhando isto, o jeito
que os ricos vivem e que a televisão mostra.
2.14
M - Antigamente, a gente tinha mais dinheiro também! Eu comia camarão todo sába
do - camarão, lagosta... Agora, pra comprar camarão... Pra mim tá mais duro. Eu trabalho a
mesma coisa, meu marido também, mas hoje em dia, não... Eu cobro em dólar pra não ficar
todo mês reajustando, mas eu sinto, a gente antigamente fazia muito mais comidinha, o meu
marido também, a gente vivia com o salário dele, hoje em dia não dá nem 15 dias o salário
dele. Sério. 0 fator dinheiro, você também fica mais apreensivo, fica mais irritado.
0 — Eu senti [diferença] a partir do Plano
M - Acho que as diferenças sociais antigamente não eram tão grandes, não se sentia
tanto, hoje em dia tá maior. A classe alta de antigamente, de uns dez anos atrás, a alta não tá
mais tão alta assim, ficou mais pra média, e nós médios, obviamente que despencamos em
relação do que a gente era. Então, esses que eram altos, ainda querem se firmar, e então nisso
existe muita agressividade, são poucas as pessoas que...
Pessoas da classe alta podem ter problemas para consumir itens de luxo como
faziam outrora, mas acreditam que deveríam poder fazê-lo. M as o consumo dos
pobres é repreensível se parece transgredir as linhas imaginárias que separam os
grupos sociais e mantêm cada um no lugar que lhe é “ próprio” . Como pode um
empregado ousar comprar o mesmo tipo de carro que seu patrão? Como pode ele
ousar parecer-se com eles e deixar-se tomar por alguém de outra classe? O mal-estar
que as pessoas da classe alta sentem com a incorporação de trabalhadores à socie
dade de consumo, mesmo que modestamente, é evidente. Se eles gastam dinheiro
em algo considerado de classe alta, são “ridículos” , é “ um horror” —- mesmo quando
os pobres estão demonstrando sua incorporação às relações capitalistas.9 Policiar
as fronteiras das posições sociais é uma operação crucial da fala do crime, e isso é
realizado não apenas pela elite, mas por todos os grupos sociais — os pobres tam
bém o fazem, depreciando os moradores de favelas e cortiços.
9 Esses tipos de preconceito são bem difundidos. Em anos recentes eles ressurgiram no con
texto da oposição ao programa de “ Renda Mínima” . Esse é um programa adotado por alguns
municípios no Brasil para lidar com o crescente empobrecimento da população. Ele fornece a fa
mílias abaixo da linha de pobreza um valor mínimo em dinheiro com a condição de que essas fa
mílias mantenham seus filhos na escola. Esse programa tem sofrido oposição de vários setores da
Cidade de Muros 73
Os preconceitos em relação aos pobres não impedem as pessoas das classes
altas de reconhecer que as condições de vida da classe trabalhadora aproximam-se
do intolerável. Entretanto, elas sempre acham um meio de culpar os pobres por sua
própria pobreza e de descartar argumentos contrários. As três mulheres que acabei
de citar concordam que a desigualdade na distribuição de renda no Brasil é absur
da e a contrastam com a de alguns países europeus. No entanto, compartilham do
preconceito de que os trabalhadores são preguiçosos e têm má vontade na hora de
trabalhar duro, e é por isso que pessoas como seus maridos não se dispõem a pagá-
los melhor. Além disso, elas compartilham do preconceito de que os pobres não estão
mais bem de vida porque têm filhos como “cobaias” . Elas não conseguiram acre
ditar nos meus relatos sobre o declínio das taxas de fecundidade entre os pobres e
sobre os resultados da minha pesquisa no Jardim das Camélias indicando que as
mulheres pobres não estavam tendo mais que dois ou três filhos. Elas continuaram
a insistir em que a redução da fecundidade era “ basicamente das classes média para
cima” e que a população continuava a “ crescer nas classes pobres” (P). Desse modo,
a má distribuição de renda é explicada pelo mito do alto crescimento populacional
entre os pobres.
O preconceito de que as mulheres pobres “ têm filhos como coelhos” é muito
difundido e até mesmo quando a diminuição nas taxas de fecundidade é admitida,
como nos meios de comunicação de massa, por exemplo, freqüentemente se refor
ça a opinião de que os pobres são dominados por irracionalidade e necessidade. Uma
explicação comum aponta supostas “ organizações internacionais” como respon
sáveis pela esterilização de mulheres pobres, que não estariam conscientes do que
teria sido feito a elas. Outra aponta a crescente pobreza como causa da diminuição
da fecundidade. N os últimos vinte anos, conversei com inúmeras mulheres no Jar
dim das Camélias que não querem mais ter uma família numerosa. E não é por ra
zões econômicas, e sim porque, como qualquer mulher de classe média, elas que
rem ter tempo para poder fazer outras coisas, inclusive conseguir empregos melho
res que o de empregadas domésticas (Caldeira 1990).10 Elas não querem ser pri
sioneiras da necessidade e muitas delas escolheram ser esterilizadas depois do nas-
Cidade de Muros 75
A s E x p e r iê n c ia s de V io l ê n c ia
2.15
- Esses que mataram era molequinho, só que era bandido da pesada e tudo, andava aí
na favela. Então, uns a polícia que matou. Eu sei que aqui até que acalmou mais, mas teve uma
época, não sei se foi esse ano... não posso te dizer certo se foi esse ano ou o ano passado, que
teve um bandido, ele morava na rua da igreja, ele matou dois irmão aqui. Matou os dois ir
mão... Nossa! Foi uma coisa que aqui na vila todo mundose revoltou, mas passado algunsdias,
mataram ele também. Mataram, depois, um colega dele também que tava junto, mataram;
depois mataram acho que mais quatro também. Aí, depois parou.
Dona de casa do Jardim das Camélias, 33 anos, quatro filhos; seu marido é trabalhador
especializado de uma pequena indústria têxtil.I
O contato diário com a violência pode ser recente no Jardim das Camélias,
mas não é uma novidade na periferia de São Paulo. A pesquisa da equipe do Cebrap
em 1981-1982 em outros bairros da periferia já havia indicado que o contato diá
rio com a morte e o crime é apenas um fato a mais na vida da classe trabalhadora.
Em várias entrevistas para aquela pesquisa, assim como nas que fiz em 1989-1991,
ouvimos muitas histórias de crimes violentos que aconteceram nas redondezas. Em
muitos relatos, como nas citações 2.15 e 2.16 acima, mencionaram-se vários assas
sinatos em seqüência, enfatizando sua ocorrência rotineira no bairro. As narrativas
também estavam pontuadas por detalhes, especialmente em relação ao tempo em
que ocorreram, como quebraram o fluxo do dia-a-dia e como vitimaram pessoas
\inocentes, a maioria trabalhadores no caminho de ida ou de volta do trabalho.
, j A narrativa no capítulo 1 é um exemplo dos sentimentos dos moradores da
} Moóca, e mostra algumas diferenças em relação àqueles da perifcriaC^ários mora-
/ ) dóre^da M oóca mencionaram que suas casas tinham sido roubadas, qhe os vizi-
| nhos haviam sido roubados, que suas bolsas e carteiras tihhairrstdcrfurtadas em
/ ônibus ou em áreas do centro. Gada um desses acontecimentos foi sempre seguido
j por novas medidas de segurança e, freqüentemente, mais preocupação com os cor-
v tiços. M as esses moradores não mencionaram assassinatos.
No Morumhi, quase todas as pessoas com quem conversei haviam sido víti
mas de furto ou roubo. Os crimes que relataram tinham ocorrido em diferentes
lugares: em restaurantes, nas ruas, em cruzamentos com semáforos, ou em suas
11 Gil Gomes apresentava um conhecido programa de rádio no qual narrava crimes. Nar
rar crimes é um gênero popular de programas de rádio. Nos anos 80 e no começo da década de
90, havia dois programas imensamente populares desse gênero e que eram sempre mencionados
nas entrevistas na periferia. Um era o de Gil Gomes, que em meados da década de 90 introduziu
o gênero na televisão (programa “Aqui, Agora”, no SBT). O outro era o de Afanasio Jazadji, um
opositor aos direitos humanos cujas opiniões discuto no capítulo 9. Esses programas tinham o efeito
de reproduzir o medo e promover uma polícia violenta e o desrespeito aos direitos civis (ver os
capítulos 5 e 9). Eram também usados freqüentemente como uma forma de prova: se Gil Gomes
falou a respeito, então se tratava de um crime sério e real.
Cidade de Muros 77
próprias casas. Foi comum no Morumbi ouvir relatos de vários episódios de assal
to à residência. Uma entrevistada me disse que tinha sido vítima em quatro episó
dios, outra em cinco e muitas tinham sido pelo menos em um. Cada um desses
episódios originou novas medidas de segurança, novos sistemas de alarmes e vigi
lância eletrônica, muitos fins de semana sem sair de casa, menos viagens e assim
por diante. O maior medo que se tinha no Morumbi, contudo, era da possibilida
de de seqüestro.
2.17
- A gente achava que aquela falta de liberdade, a censura, era ruim - hoje eu acho que
tinha que vir de novo um regime militar. Por exemplo, o caso do seqüestro. É um absurdo a
falta de segurança que você sente. Eu não sou ninguém, eu não tenho grandes posses nem
nada, mas eu tenho medo que de repente qualquer camarada pegue o meu filho pra pedir um
resgate, de repente, de 5 milhões, eu morro de medo (...) Porque qualquer um pode ser seques
trado. Eu tenho medo do meu marido chegar do trabalho e na hora de entrar em casa... por
que agora virou moda o seqüestro, por quê? pela impunidade. Nós estávamos falando do re
gime militar... Quando apareceu o AI-5, lembra?, acabou o assalto a bancos, acabou, porque
todo mundo sabe que aquele dinheiro de assalto a bancos era pra financiar movimentos po
líticos e pra mandar dinheiro pro exterior. Acabou. Então, a impunidade faz com que a gente
se sinta insegura.
Dono de casa casada com um homem de negócios; quase 40 anos, dois filhos, mora no
Morumbi.
Cidade de Muros 79
sidera apropriadas para uma casa). Como residências um tanto anômalas, ou seja,
que não se encaixam totalmente na classificação de casas apropriadas, favelas e
cortiços acabam classificados como sujos e poluidores. Eles coincidem, então, com
a fórmula de Douglas de que “ sujeira e imundície é aquilo que não pode ser inclu
ído se se quer manter um padrão” (1966: 40). Excluídos do universo do que é ade
quado, eles são simbolicamente constituídos como espaços do crime, espaços de
características impróprias, poluidoras e perigosas.
Como seria de esperar, os habitantes desses espaços são tidos como margi
nais. A lista de preconceitos contra eles é infinita. São considerados intrusos: nor
destinos, recém-chegados, estrangeiros, pessoas de fora e que não são na verdade
da cidade. São também considerados socialmente marginais: diz-se que têm famí
lias divididas, que são filhos de mães solteiras, crianças que não foram criadas de
vidamente. Condena-se seu comportamento: diz-se que usam palavrões, são sem-
)vergonha, consomem drogas e assim por diante. De certo modo, tudo o que que-
/ bra os padrões do que se considera boa conduta pode ser associado a criminosos,
ao crime e a seus espaços. O que pertence ao crime é tudo o que a sociedade consi
dera impróprio. }
Essas categorias genéricas do crime e dos criminosos resultam da clara oposi
ção entre o que é ruim e o que é bom. Falar de favelas, cortiços, nordestinos em
particular, é mais complexo. Os discursos mais ambíguos e elaborados ocorrem
quando há uma proximidade dos narradores com os espaços do crime, ou seja,
quando eles moram perto ou nas próprias favelas e cortiços
N as entrevistas na periferia, apesar de muitas pessoas falarem com cuidado
sobre os moradores de favelas próximas e de quererem considerá-los como iguais,
havia também uma certa suspeita, expressa de maneiras ambíguas. M as quando a
conversa era sobre crime, maior era a probabilidade de que se usassem os precon
ceitos. Segue uma entrevista de 1981, na Cidade Júlia, com a dona de um pequeno
bazar que havia sido roubada algumas vezes.12
2.18
- Mas de onde a senhora acha que é esse pessoal que tanto assalta por aqui?
- Ah, só pode ser da favela! Não vou dizer que é da favela, porque na favela tem tanta
gente boa também. Então, eu acho que vem de outros lugares; inclusive, esses dois que me
assaltou, assaltou duas vezes essa mesma moça, assaltou o irmão dela, assaltou os dois inqui
linos que moram no quintal e assaltou esse vizinho que mora do meu lado. Num período de
cinco a sete dias foi assaltado todo esse pessoal. Passando uns dias, a mãe de um dos rapazes
que foi assaltado me contou que os policiais apagaram uns três fulaninhos lá embaixo. De
pois disso, ninguém viu e ninguém foi assaltado (...) Então, eu acredito que esses dois que fi
zeram comigo, com a turma, a gente não deseja o mal, mas se foi, graças a Deus, não apare
ceu ninguém mais aqui não.
- 0 pessoal que mora nessa favela, des vêm comprar aqui também?
12 As entrevistas na Cidade Júlia em 1981 e 1982 foram feitas por Antonio Manuel Texeira
Mendes, integrante da equipe do Cebrap.
13 As entrevistas no Jaguaré foram feitas por Maria Cristina Guarnieri, integrante da equi
pe do Cebrap. Nessa entrevista, “ M ” refere-se ao marido da entrevistada.
Cidade de Muros 81
que a isso se seguiu. No caso do Jaguaré, é adequado falar sobre a “ chegada” da
favela, já que ela foi transferida pela administração municipal de outro bairro (Ver
gueiro), que estava passando por uma intensa remodelação para a construção da
linha do metrô. Como ela disse: “ Depois que trouxeram a favela, virou um infer
no!” . Ela decidiu ir à prefeitura e reclamar da situação.
2.19a
- Então fui direto ao gabinete [do prefeito]. Quando eu cheguei lá, expus a situação,
que eu falei que fui em nome do bairro, né? Ele perguntou se era problema de buraco na rua,
se era problema de lixo, né?
- A senhora falou diretamente com o prefeito?
- Com ele, então eu falei pra ele: não senhor! Não é problema de buraco, porque se fosse
buraco nós não viriamos amolar, porque tem muita terra em todos os terrenos aqui - a gente
taparia, certo? E lixo, a gente tacaria fogo, exterminaria o pior, né? Eu falei: é pior do que lixo!
Porque daí a gente vai tacar fogo e vai preso e é uma calamidade. Nem se pense nisso! E ele
então: "0 que é?". Eu falei: “A favela que o senhor tá apoiando"... Aí ele quis me dar uma lição
de moral, né?, virou pra mim e falou: "Minha senhora, são gente!". Falei: "Não senhor! São in
digente!... Gente é o meu marido, que trabalha de dia pra gente comer de noite. Esses são gente!
Agora, lá, o senhor tá apoiando uma escola de latrocínio, banditismo... e nós, como pobre, quero
dar uma moralidade pros meus filhos, e não tem condições. Não tem condições! Se 9 horas da
noite é bang-bang, assassinato em frente à nossa casa! Certo? Não precisa televisão em casa.
É ao vivo! Dez horas da manhã num domingo, que a gente levanta, sai na frente da casa ge
ralmente pra ver, não se pode: é palavrões de alto calibre ali, é umas nega aí que fazia strip
tease direto! Quer dizer: não há condições de nós, como pobre, querer instruir os filhos pra
uma vida melhor! (...) Não é questão de desfazer, entende, que a gente sabe: você trabalha,
você é honesta, você é trabalhadora, mas se você é uma vagabunda, uma salafrária que fica aí
esfolando os outros, ninguém vai te dar apoio! E não tem lógica em te dar... Certo?". Daí ele
mandou a "operação pente-fino". É, ele mandou um quartel.
Dona de casa e líder de bairro, Jaguaré, 35 anos, 4 filhos; o marido é trabalhador especia
lizado de uma fábrica têxtil.
14 Eu mesma fui uma testemunha dessas diversas visitas de surpresa à Prefeitura. É impor
tante mencionar que os prefeitos indicados pelo regime militar preferiam receber líderes individuais
2.19b
- Eu ia pôr, inclusive, no abaixo-assinado me dirigindo ao prefeito Reynaldo de Barros,
eu ia pôr: Nós, contribuintes do senhor - porque eu me atrasei no impostinho e já me man
daram uma carta do judiciário —, nós, os contribuintes do senhor, moradores da rua tal, e os
não-contribuintes, que do senhor dependem - que é da favela - , porque tanto nós que pa
gamos imposto quanto eles necessitamos desse asfalto, dessas melhorias aqui (...)
M as a escolha das palavras não era seu único problema. Ela tinha dificulda
des em se aproximar das pessoas da favela contra as quais fizera campanha e em
do que grandes grupos de pessoas. Em geral, as pessoas que iam sozinhas eram identificadas com
partidos políticos de centro e da direita, enquanto pessoas afiliadas ao PT faziam questão de ir em
grande número. A primeira eleição para prefeito em São Paulo ocorreu apenas em 1985, embora
a primeira eleição para governador no estado tenha ocorrido em 1982.
15 Para uma análise de diferentes tipos de liderança de bairro, especialmente mulheres, e suas
diferentes táticas para mobilizar os moradores e abordar a administração da cidade, ver Caldeira
(1990).
Cidade de Muros 83
convencê-las a apoiá-la. Ela nos disse que era difícil porque as pessoas estavam
assustadas, perguntando se sua assinatura significaria que teriam de pagar por al
guma coisa, ou pior, desconfiando que ela estaria interessada em caçar “ os bandi
dos” . Ela lhes garantiu que não estava lá para pegar bandidos, porque sabia que
esse não era um problema só deles, mas algo comum a toda a cidade. Ela lhes dis
se: “ eu só quero melhoria pra nós, pra mim e pros meus filhos, e pra vocês e seus
filhos” . E ao continuar a descrever suas interações com eles, as diferenciações co
meçaram a surgir:
2.19c
- Eles sempre tiveram medo, mas dessa vez eu meti a cara e entrei lá dentro, acho que
pensaram que eu era da assistência social. E como eu tava te falando, tem uns barraquinhos
ali que tão caindo, um mau cheiro horroroso, cinco crianças dormindo no chão - ali o barra
co tá cai-não-cai.
2.19d
- Eu ensino meus filhos a cruzar a rua; eu saio, levo eles, mostro como é que é, mas
enfim, eu vou espionar. Mas são crianças, geralmente essa gente [da favela], eles não vão com
os filhos numa Lapa, numa cidade, não vão falar pro filho: ó, filho, é assim que atravessa a
rua. Não têm tempo! Então, são crianças que anda avuaçada... e os carros anda adoidado, eles
não têm... A maioria dos motoristas, homens, porque as mulheres são responsáveis, são mães.
2.19e
- Então eu me entrosei com eles [os favelados]... eles são gente! No começo eles tive
ram medo, porque eles acharam que eu queria mexer com banditismo. Mas jamais eu vou mexer
com banditismo, porque nenhum bandido, se houver bandido nessa favela, nenhum deles vi
eram perturbar nós, entende?... É que favelado é nome marginalizado. Infelizmente, pra so-
2.20
- Eu só acho o seguinte: que de alguns anos pra cá tem havido muita entrada de es
trangeiros - entre aspas, que são de outros estados (...) Então, é diferente daquela Moóca de
antigamente, que eram todas pessoas tradicionais, eu digo descendentes de italianos, de es
panhóis, principalmente, e também de portugueses. E hoje, não, hoje nós temos muita infil
tração de brasileiros, nossos, mas que vieram do Nordeste. Então o índice de capacidade, de
estudo, é muito menor. Pessoas que vieram, vamos dizer, da roça lá do Nordeste, que se fixa
ram aqui. Então mudou muito nesse aspecto a vida da Moóca. A Moóca antigamente, eu me
lembro, eram todas pessoas que se conheciam há vinte, trinta, quarenta anos. E devido tam
bém ao progresso ter avançado, aquelas avenidas que passaram, e também o metrô, que tam
bém chega a afetar a Moóca; lá embaixo também é Moóca, então muitas famílias tradicionais
tiveram que se mudar pra ir pra uma região bem distante (...) No local onde eu moro, ali é um
local que ainda não houve infiltração praticamente de “estrangeiros" (...) Eu digo "estrangei
ros" com todo o carinho porque eles também merecem todo o respeito (...) Não quero colocar
16 Para uma análise dos esforços dos pobres para controlar as narrativas dominantes e dis
tanciar-se de seus estereótipos, ver Caldeira (1984: cap. 4, e 1987). Ver também De Certeau (1984).
Cidade de Muros 85
nunca em xeque o fato de você ter vindo do Norte, do Nordeste, ser especificamente crimino
so. Não é isso. A gente conhece muitos deles, sabe que são honestos e tal. Mas a diferenciação
que eu quero fazer é a seguinte: de que a gente conhecia... a Moóca, por exemplo, de vinte
anos atrás, pessoas que a gente conhecia há vinte anos, e hoje vem uma pessoa morar perto
da gente que a gente mal conhece. Então, até que a gente sinta segurança ao lado dessas fa
mílias que vieram, é diferente. Essa é a colocação que eu queria fazer. Nunca em termos de
dizer que a pessoa que veio é criminoso. Não é isso. Mas que mudou muito pra pior, mudou.
Atacadista, Moóca, 45 anos, casado; mora com a mulher e dois filhos.
2.21
- Dentro de São Paulo tem gente que presta e gente que não presta, a gente não pode
generalizar a coisa. Agora, o que estraga geralmente o nordestino é que eles são sangue quente,
às vezes eles não são nem assaltantes nem bandidos, mas se eles esquentam a cabeça, eles
puxam a faca e matam (...) Mas esse negócio não tem nada a ver, não; se eu fosse assaltado
toda vez por nordestino eu ia falar que tem tudo a ver, mas não é verdade. Na verdade, quem
é contra nordestino são os descendentes de europeus, de italianos. 0 meu cunhado fala as
sim: os nordestinos chegam aqui e já compram "raiban", compram peixeira, arrancam os den
tes e colocam dentadura ou ficam banguela. Eu acho que não são todos, você não pode gene
ralizar uma coisa assim. Não é porque uma meia dúzia faz isso, todos têm que pagar. Pelo
contrário, se São Paulo cresceu tanto, foi também graças a eles. Se eles não viessem para cá,
nós é que íamos ter que pegar na massa. Só que a nossa mão de obra já ia ser mais cara, não
é? Para construir o metrô, eles pagam quanto eles querem; nós não íamos querer, a gente ia
exigir, não ia querer isso. 0 meu sonho, ainda, para não dizer que não tenho vontade de sair
de São Paulo, é um dia ir para o Norte para ajudar a melhorar o Norte. Por exemplo: criar um
sistema de irrigação para que eles não sofram mais o que eles sofrem, educar esse pessoal,
começar por baixo, instruindo eles, mostrar o que é a vida para eles, dar cultura (...) Não que
2.22
- Eu me lembro muito bem quando São Paulo era uni lugar onde se encontrava muito
europeu. Quando começou vir o pessoal do Norte, os costumes foram modificados, eles trou
xeram costumes... Nós éramos mais educados; não sou contra o nortista, mas é o que aconte
ce. Mudou o costume, mudou o respeito que se tinha pelo que era do outro, pelo aquilo que é
seu e que a gente vê tão bem, tão bonito nos Estados Unidos. Fecha o sinal, você pára, todo
mundo pára, você pode andar com sossego na rua, exatamente o contrário do que acontece
aqui.
Empreendedor imobiliário, quaren ta e poucos anos, proprietário de uma empresa de de
senvolvímen to imobiliário; mora com a mulher e três filhos no Morumbi,
Cidade de Muros 87
centes usando dados de Censo d e l 9 8 0 e l 9 9 1 mostram que, seja qual for o indi
cador utilizado, os negros estão em pior situação social (Goldani 1994, Hasenbalg
1996, Lopes 1993, Silvia e Hasenbalg 1992, e Telles 1992, 1993 e 1995). Esses
estudos, junto com o Movimento Negro, desafiam o mito da democracia racial. Uma
das principais táticas que têm ajudado a manter esse mito é um sofisticado código
de polidez que considera de mau gosto nomear pessoas negras diretamente “ negras”
e colocar em palavras qualquer ofensa a elas, como se fosse possível eliminar o
racismo ao não se pronunciar certas palavras. Essa é uma das razões pelas quais
vários recenseamentos brasileiros omitem questões sobre raça e pela qual as pes
soas usam todo tipo de eufemismos (moreno, escurinho, por exemplo) para se re
ferir a uma pessoa negra.17 E por isso também que o Movimento Negro encontra
dificuldade em recrutar ativistas que optem por identificar-se publicamente como
negros (abandonando categorias “ mais brancas” como mulato) e que os julgamentos,
desde que a Constituição de 1988 definiu o racismo como um crime, têm sido ra
ros e frustrantes (ver Guimarães 1997). A constante necessidade de censurar as
palavras aprendidas no contexto das relações raciais pode muito bem ter influen
ciado a expressão de depreciações em relação a outras categorias sociais. Apesar
\d e as pessoas expressarem julgamentos negativos em relação aos nordestinos e
(favelados (também possíveis eufemismos para $egros)%e aos pobres em geral, elas
jprocuram corrigir-se, atribuir a opinião a outros, relativizá-la. A arte de discrimi-
/ nar e ao mesmo tempo negar que se faz isso só pode ser cheia de ambigüidades.
1 M as é uma arte em que os brasileiros são mestres (Caldeira 1988).
Em formas às vezes mais elaboradas, às vezes menos, os moradores que en
trevistei em todos os bairros usaram alguns desses modos de expressão parado
xais em relação aos pobres, aos favelados, às pessoas que vivem nos cortiços e aos
nordestinos. Entretanto, alguns moradores do Morumbi ofereceram uma descri
ção diferente dos criminosos. Eles associam o aumento do crime ao tráfico de dro
gas e a operações criminais cada vez mais sofisticadas. Uma dona de casa me dis
se que nenhuma das pessoas que ela conhecia que haviam sido assaltadas tinha
sido roubada por um “ mendigo” . “ Grandes assaltos” — argumentou ela — “ são
feitos por gente muito bem-vestida, muito bem-arrumada, e se um tipo com ja
queta se aproximar de você, você deve tomar cuidado, porque a jaqueta sempre
esconde uma arm a” . Outro casal, que foi roubado num restaurante e que decidiu
aceitar o medo do crime como um preço que tem de pagar para viver em São Pau-
/ lo, cidade de que eles gostam, falou sobre a discrepância entre a imagem comum
4 do criminoso como pobre e a realidade mais provável de ser roubado por alguém
(' que não parece pobre.
Nos bairros ricos, a imagem do criminoso pobre não é muito detalhada, pro
vavelmente pela simples razão de que os moradores não temem ser confundidos com
criminosos. Seus discursos sobre criminosos raramente deixam o campo do genéri
co e essa distância social segura lhes permite até mesmo uma certa proximidade |
simbólica: alguém que é um criminoso pode não coincidir com o estereótipo do
criminoso; pode até estar bem-vestido. Foi apenas no Morumbi que residentes se
referiram à imagem do moderno profissional do crime, com jaquetas de couro,
motocicletas e armas, interessado em dólares e com recursos para crimes sofistica
dos como seqüestro, o crime que a elite mais teme.
A proximidade real com o estereótipo do criminoso, entretanto, requer um
discurso elaborado de distanciamento e separação. Quando entrevistei as pessoas
na periferia ou na Moóca, perguntei-me várias vezes se a minha insistência no assunto
do crime não iria automaticamente gerar ansiedade, dúvidas sobre se eu suspeita
va que eles fossem criminosos, e a conseqüente necessidade de enfatizar as diferen
ças. As pessoas pobres que entrevistei sempre se esforçaram para distanciar a si
mesmos e a outras “ pessoas honestas, trabalhadoras” da imagem do criminoso. Essa
ansiedade em relação à separação não tem origem exclusiva num esforço para exi-
Q bir um status social melhor ou num exercício simbólico. N a verdade, a “ confusão”
n I entre pessQas pobres e criminosos pode ter sérias conseqüências, considerando-se
' )que a polícia"Vmbém opera com os mesmos estereótipos, freqüentemente confun-
f dindo os pobréSjcom Criminosas e às vezes até matando-os. O aspecto paradoxal
da tentativa dos pobres trabalhadores de separarem-se do estereótipo do criminoso
é que isso é feito usando-se contra o vizinho as mesmas estratégias que são usadas
contra a própria pessoa. Como conseqüência, a categoria do criminoso e seu reper
tório de preconceitos e depreciações raramente são contestados. Ao contrário, a
categoria é continuamente legitimada e os preconceitos e estereótipos contra os
pobres (favelados, nordestinos, moradores de cortiços) são reencenados diariamente.
O universo simbólico do crime não está limitado a referências de caráter so-
cioeconômico e não está restrito aos tipos de preconceitos e difamações que acabei
de analisar. O crime é também uma questão do mal, e suas explicações também têm
a ver com autoridade e construções culturais destinadas a domesticar as forças do
mal. E importante investigar essas concepções sobre o controle da difusão do mal
porque os paulistanos as usam para atacar os direitos humanos, para apoiar abu
sos da polícia, justiceiros e esquadrões de morte, e para justificar a pena de morte.
Cidade de Muros
M al e A u t o r id a d e
2.24
- Eu acho que é a própria cidade que contribui pra isso. Sabe, eu acho que, por exem
plo: decerto ele viu o outro com um monte de blusa, casaco, tudo, e ele sem blusa, passando
um frio desgraçado, vendo o outro vestido, ele foi lá, deu não sei quantas facadas e arrancou
a blusa dele e foi embora (...) Agora, eu acho que é a própria cidade que contribui pra isso. Porque
você vê: a maioria que tá aqui, vieram de onde? Vieram lá do Nordeste, vieram lá do Sul - apesar
que o pessoal do Sul eu acho mais, assim, civilizado, né? Eu acho que o pessoal do Nordeste,
eles vivem numa condição, do Norte e do Nordeste... ah, numa condição, assim, horrível de
vida, horrível (...) Já essa maldita propaganda que eles fazem na televisão e levam pra lá, essa
imagem vai pra eles: 'Olha, pessoal que vai pra São Paulo consegue ficar rico'. Então, que que
eles fazem? Eles pegam toda a família, vendem o pouco que eles têm lá, e vêm pra cá. Quando
eles chegam aqui, eles não têm lugar pra ficar. Às vezes tem um conhecido, vão lá na casa do
conhecido, aí fica aquela montoeira, né?, numa casinha, sei lá, de um par de sala, quarto e sala
ou quarto e banheiro, cozinha, ou numa favela mesmo. Então fica assim: dez, vinte, trinta pessoas
dentro duma casa... você imagina o que não acontece. Então, os filhos, vendo os pais saindo,
sei lá, pra irem pro trabalho, ficam lá o dia inteiro. Aí junta esses filhos mais os filhos do outro,
mais os filhos do outro... E mais os filhos de não sei mais quem lá... E sem comer, sabe? Os pais
ganham pouco, né?, não têm condições. Então, o que acontece? Já é uma violência, porque
daí ele vê um que tem tudo, sabe?: 'pô, aquele cara tem tudo e eu não tenho nada! Eu vou
tirar um pouco do que ele tem, quem sabe vai me beneficiar1. Você vê: a maioria dos ladrões,
18 Entrevistas no Jardim Peri-Peri foram feitas em 1981 por Célia Sakurai, integrante da equipe
de pesquisa do Cebrap.
Cidade de Muros 91
o que eles pensam? Que eles vão poder tirar aquilo que os caras têm, sabe, que a polícia nunca
vai descobrir o que eles roubaram, entende? Então eu acho que é a própria condição de vida
do pessoal (...) A fome é a pior coisa que tem. Então, esse pessoal que vem de lá pra cá, eles
passam fome. Então, eles não têm com que lutar. Não têm! Não têm com que lutar. Então, sabe,
eles vão assaltar, vão matar, entende?, pra ter uma coisa.
Digitadora de computador numa grande fábrica, 33 anos, Jardim Peri-Peri; mora com a
mãe, que é faxineira, e com uma tia.
Essa versão estereotipada das causas do crime acumula uma longa lista de
elementos. Há sempre a questão dos lugares impróprios. Mesmo se todos os nor
destinos não vivem em favelas, diz-se que moram em casas promíscuas com exces
so de pessoas e sem as devidas separações, onde crianças se misturam com inúme
ras outras crianças desconhecidas, todas sem o devido acompanhamento dos pais.
Como pano de fundo, as condições sociais de sempre: fome, pobreza, e a pertur
badora desigualdade na distribuição da renda. Finalmente, há a impunidade, o fra
casso da polícia e do sistema judiciário em punir os crimes. A combinação de to
dos esses elementos cria uma condição de vida que enfraquece as pessoas, deixan
do-as sem a capacidade para lutar. Lutar é um verbo comumente associado à idéia
de persistência e trabalho duro; é o que leva as pessoas a ascender socialmente (ver
Caldeira 1984: cap. 4). O verbo lutar e o substantivo luta são também usados na
periferia para se referir aos movimentos sociais. Acredita-se que pessoas em uma
posição enfraquecida, que não podem lutar adequadamente, correm um alto risco
de serem infectadas pelo mal.
Os mesmos elementos foram repetidos em muitas entrevistas. Quando per
guntamos a um rapaz na M oóca se ele concordava que o crime estava relacionado
aos nordestinos, ele respondeu que poderia ser, já que as migrações e os roubos eram
ambos motivados por razões econômicas. Entretanto, quando lhe foi pedido que
descrevesse que tipo de pessoa ele imaginava que tinha tomado seu relógio, a res
posta foi bem diferente.
2.25
- Olha, essa pessoa, eu imagino que ela pode até ser desempregada, possa ser uma pessoa
que... olha, para cair nessas condições é muito fácil. Basta você ter, por exemplo, um mau re
lacionamento familiar, basta você ter uma esposa que... sei lá, um mau relacionamento em geral.
Um insucesso no trabalho. Basta pequenas coisas. E também tem um detalhe: basta você ter
uma moral fraca, uma educação insignificante, basta você ter uma cultura medíocre. 0 que .
que é isso? Isso infelizmente é a maioria. Então é dessa maioria que surge essas coisas. 0 as
saltante pode até ter vindo de uma família classe média. Outro pode ter vindo realmente da
favela. Então, eu acho que favorece, essas coisas gerais, sociais, que é da cultura, que atinge
todo mundo, pode favorecer todo mundo que é atingido maciçamente por isso.
Desempregado formado em comunicações com especialização em rádio, 23 anos, Moóca,
mora com os pais.
2.26
- Tudo aumentou 100°/o e o salário da pessoa não aumentou nem um tostão. Quer di
zer, pra quem ganha pouco, o salário ou um pouquinho mais, quer dizer, uma pessoa dessas
eu achoquese apincha no abismo. Você pensa bem: um pai de família, tem três, quatro filhos,
ele vai trabalhar, trabalha, trabalha, trabalha, o serviço já é aborrecido, depois chega em casa
também e não vê condições, não vê saída, então isso aí eu acho que joga muitas pessoas que
não pensa bem no abismo. E aí começa a querer assaltar, a querer roubar, a querer matar, querer
fazer vingança com a família, fazer vingança com o colega de trabalho, com o patrão.
Trabalhador semi-especializado, 39 anos, Jardim das Camélias.
Perguntei à militante dos movimentos de bairro citada em 2.19 o que ela achava
que transformava os meninos do Jardim das Camélias em bandidos.
2.27
- Eu não sei... Às vezes eu penso assim, às vezes pode ser a convivência do pai e da mãe,
uma separação, é o filho que às vezes já nasce revoltado com a vida, até mesmo com o pai e a
mãe. Eu acho que para a pessoa levar isso, será que é só um vício? Muitos bebem e diz que
bebem porque é um vício, fuma porque... sei lá, é tudo confuso. Acho que para a pessoa levar
a isso, sei lá, eu acho que é as más companhias também. Às vezes os colegas mesmo... às vezes
' os próprios colegas que leva, às vezes não quer ir e tudo, mas vamos ali e tal e tal. Quer dizer,
que é tudo isso, né? Já vem de casa, às vezes é da rua, sei lá, perde a cabeça. Depois que perde
a cabeça, pronto.
Muitos dos entrevistados acham que as pessoas que têm de enfrentar condi-
/ções de vida muito difíceis ou que crescem em ambientes adversos precisam de uma
j mente forte para evitar o desespero e resistir às más influências. M as, se perdem a
/cabeça (isto é, sua razão e capacidade de julgamento), elas estão perdidas. E não
/ há melhor maneira de perder a cabeça do que se envolver com drogas. N a verdade,
/ a correlação de drogas e crime foi uma das mais comuns nas entrevistas, e foi per-
' sistentemente descrita como um ciclo: as pessoas vêm de um meio inadequado, ficam
sujeitas às más influências nas ruas, conseguem drogas de graça, ficam perdidas e
se tornam viciadas, e finalmente viram criminosos para poder sustentar seu vício.
Pessoas de todos os grupos sociais acreditam que uma mente forte se origina
dentro de uma família forte, que discipline adequadamente seus filhos e os mante
nha à distância das más companhias.
2.28
E (mãe) - Eu acho. Eu acho que, olha aí, esses moleques criados aí, você vê moleque de
15, 16, 17 anos, fica o dia na rua. Eles não ficam pensando em outra coisa, se eles não fazem
nada. Você pelo menos estuda, é diferente. Eles não estuda, não trabalha, quer dinheiro, eles
não têm de onde tirar, que é que eles vão fazer?
Cidade de Muros 93
D (filha) - E onde entra o desemprego?
E - Ah, existe o desemprego, mas se procurasse, encontrava - e por que que aqueles
que procuram, encontram?
D - Quanta gente tem aí desempregada, procurando emprego e não acha!
E - Eu acho que se procurasse, encontrava, sim. Agora, fica aí na malandragem, numa
boa... tem moleque aí com 13 anos que já anda com revólver na mão!
D - Agora, por quê? Por que que eles estão com o revólver na mão? Porque a maior parte
desses garotos foram criados sem as mães tarem em casa! Por quê? Porque as mães precisa
vam trabalhar pra pôr alimento pra dentro de casa. Então, quer dizer, o que que esse garoto
vai aprender na rua? Roubar! Vai faltar as coisas em casa porque a mãe ganha um salário
pequeno, não dá pra ter tudo em casa, então ele começa a roubar. Então, quer dizer, o culpa
do não são eles: é uma culpa da sociedade!
E - Eu acho que a culpa tá em todo mundo, não tá só na sociedade, não.
D - Então, a sociedade é todo mundo.
[A discussão continua e E argumenta que as mães não deviam ir trabalhar e deixar seus
filhos de 15, 16 anos em casa sem trabalhar. Ela acha que se as mães tivessem mais autorida
de, isso não aconteceria. No entanto, ela diz que autoridade não significa autoritarismo, por
que o relacionamento entre pais e filhos deveria ser baseado na amizade e confiança, não na
imposição do ponto de vista de uma das partes. Ela argumenta que se a criança não sente que
pode confiar nos pais e conversar com eles, ela pode acabar preferindo confiar em outra pes
soa na rua. Ela acha que tudo seria mais fácil se houvesse mais diálogo entre pais e filhos, e se
os pais pudessem ver menos televisão e conversar mais com os filhos. Nesse ponto, o entre
vistador perguntou se o seu filho de 10 anos costumava brincar na rua.]
- Esse menino, filho da senhora, ele brinca na rua?
E - Ele não, ele tava trabalhando até essa semana.
- Esse garotinho?
E - Tava trabalhando na farmácia até essa semana. Saiu essa semana, que tá no fim do
ano e ele tá com problema da escola.
D - Ele só foi na farmácia porque a gente trancava ele dentro de casa...
E - Pra não ter contato com os outros.
D - Então, acontece que ele escapava, sabe. Ele pegava a chave, e quando você descui
dava, tava ele na rua. Então, quer dizer, o contato que ele tem com o pessoal não ia ser legal
pra ele. Então a gente pôs ele na farmácia. Ele não recebia praticamente nada, era assim um
dinheirínho pra ele mesmo, mas que já empatava dele ficar na rua.
E - Eu acho que o ambiente, a amizade influi bastante. As amizades influem bastante. E
tem amizade que a gente é obrigada a evitar um pouco. Tem certas amizades que a gente é
obrigado a evitar, então isso foi uma maneira de manter ele afastado do... das más companhias.
Dona de casa, Cidade Júlia, cerca de 40 anos, e sua filha de 20 anos. A mãe tem outro fi
lho biológico e dois adotados.
2.29
- Epor que vocês preferem morar em casa e não num desses condomínios?
0 - Liberdade. Pra mim, liberdade em primeiro lugar, e contato de muitas crianças que
eu não ia poder separar, controlar a amizade dos meus filhos. .
P - Certo.
0 - Famosa: o medo da droga. Minha cunhada mora num condomínio. É o dia inteiro
crianças daqui, dali, daqui; você não sabe de quem são os filhos...
M - Porque lá as casas não são cercadas, a casa não tem cerca, não tem nada...
0 - 0 muro bem grande em volta.
M - Só o muro do condomínio, mas a casa, só a graminha, dali a pouco já é a outra
casa. Tipo americano.
0 - Tudo aberto, e você não sabe o contato que o seu filho tem... Se você quer que seja
com esse, tudo bem, mas como é que você vai separar? Você não tem um muro, como é que
você vai dizer: não, meu filho, você recebe os amigos que eu acho melhor, vou selecionar es
ses amigos. Que hoje em dia você deve selecionar, eu acho, né?, você deve pelo menos sele
cionar a amizade. E não dá, então eu não vou de jeito nenhum. (...) Sabe, idéias de crianças
que passam pra outras crianças, porque a criança pode ser muito calma, tranqüila, mas com
influência de um bando mais pesado... Porque teve caso de criança roubar casa de outra criança
pra roubar dólar pra comprar maconha, não vou dizer nome, mas foi casos que aconteceram...
Eu não ia aguentar, eu não moro mesmo, de jeito nenhum. Pode acontecer pros meus filhos
também, mas aí, paciência, mas eu tentei fazer o possível, e no momento só quando eu sentir
que eles realmente têm a cabecinha boa pra enfrentar o mundo sozinhos, abro as portas tran
qüila, que façam o que quiser - mas até então quero ter o controle.
Cidade de Muros 95
2.19, 2.24, 2.28). É óbvio que esse ponto de vista desconsidera o fato de que a
maioria das crianças cujas mães trabalham não fica em casa sozinha e abandona
da, mas com as avós, tias, vizinhos, irmãos e irmãs, professoras, empregadas e as
sim por diante. Muitas pessoas insistem, entretanto, que a mãe deve ficar por per
to, como se apenas sua presença pudesse manter as coisas como se deve,
Pode-se argumentar que o mal é um dos elementos mais democráticos no
universo do crime. Ele vem de todo lugar, pode afetar qualquer um (embora os fracos
sejam mais vulneráveis), e conseqüentemente requer que todos sejam controlados.
Entretanto, as conseqüências dessa preocupação com a vigilância constante transcen
dem o universo do crime. Pessoas acostumadas a exercitar um alto nível de controle
têm grande dificuldade para aceitar qualquer limite à sua vigilância ou reconhecer
os direitos individuais de outros. Elas não acham que seus filhos têm direito à priva
cidade ou à escolha, como, por exemplo, selecionando com quem brincar. Crianças
devem fazer o que seus pais querem que façam e brincar com as crianças que eles
selecionarem — as lições sobre separação e preconceito começam cedo. Só resta
indagar quando o direito de escolha das pessoas começa, especialmente o direito
daqueles “ que precisam” de um controle mais rígido, como os jovens e as mulheres.
Pode-se também especular que a falência da escola pública no Brasil não é apenas
uma questão de falha institucional: será que os pais da classe alta considerariam as
crianças da classe trabalhadora como possíveis companheiros para as brincadeiras
de seus filhos? Os pais da M oóca deixariam seus filhos brincar com nordestinos?
Um outro elemento revelado nas discussões sobre controle das más influências
é a necessidade de ocupar a mente e o tempo das pessoas. Um senhor do Jardim
das Camélias me disse uma vez que “ uma mente vazia é oficina do diabo” .19 N a
cultura popular, considera-se que a melhor proteção contra a influência do diabo é
o trabalho, como também demonstrou Alba Zaluar em muitos de seus estudos so
bre o universo do crime no Rio de Janeiro e sobre as relações entre trabalhadores e
bandidos nos bairros pobres.20 Entretanto, se as pessoas não estão trabalhando,
elas devem pelo menos estar ocupadas com algo. O menino mencionado na cita
ção 2.28 foi mandado trabalhar na farmácia para que se mantivesse ocupado e fora
das ruas. Tempo ocioso é um risco para todos. Os homens podem perder a cabeça
quando desempregados, e diz-se que as mulheres que não têm nada para fazer dei
xam a mente aberta às más influências.
As pessoas também acham que é difícil ressocializar os presos tanto porque
não é fácil erradicar o mal depois que ele já infectou uma pessoa, como porque nos
presídios eles ficam sem fazer nada. Assim, muitos pensam que o único caminho
para ressocializar prisioneiros é forçá-los a adquirir alguma especialização profis
sional durante o tempo de prisão. Esta é, por exemplo, a opinião de um entrevista
do da Moóca. Ele acha que um dos problemas das prisões é que as pessoas que estão
2.30
- É não deixar que ele fique ocioso, é como aquela história, é como... vai agora o meu
lado machista: é como mulher que fica em casa sozinha, né?, sem trabalhar, fica o dia inteiro
e aí fica pensando em bobagem... "Onde será que ele tá que não chegou ainda?" Então, põe
pra trabalhar que vai estar mais ocupado!21
Dono de bar, Moóca, tem diploma de advogado mas não exerce a profissão;solteiro, mora
com três companheiros de quarto.
As pessoas acham que reabilitar alguém que “entra no caminho errado” é quase
sempre impossível. Muitos que defendem a pena de morte apontam o perigo repre
sentado por aqueles dominados pelo mal. Eles dizem que a morte é a única manei
ra eficaz de extinguir o mal. Controlar o mal é sempre uma tarefa intensa, difícil.
O mal se espalha facilmente por “ osmose” , através do contato; basta um momen
to de distração, uma mente temporariamente ociosa, uma situação de instabilida
de, com seus limites indefinidos e o medo de misturas. Como conseqüência, as pes
soas querem barreiras para evitar a difusão do mal e para reorganizar um mundo
muito facilmente tomado pelo caos.
Os elementos que analisei até agora não esgotam as explicações do crime dadas
pelos moradores de São Paulo. Uma outra série aborda os problemas do indivíduo,
tanto morais como psicológicos. Essas explicações são freqüentemente evocadas
quando as referências ao ambiente e ao que é considerado apropriado são insufi
cientes para explicar um crime. Quando as pessoas vêm dos lugares certos e tive
ram um supervisionamento adequado, quando as aparências contradizem o com
portamento, uma compreensão da violência pode ainda ser encontrada na “ natu
reza” — ou mais exatamente na “natureza pervertida” — e, em alguns casos, na
consciência pervertida. Moradores de São Paulo dizem que as pessoas ricas podem
roubar por “ malvadeza” . A violência pode também ser justificada por um “ drama
psicológico” ou loucura, um caso extremo de “ perder a cabeça” . As vezes as pes
soas se tornam criminosas simplesmente porque esse é o seu “ destino” .
Esses tipos de argumentos são usados especialmente para explicar o uso ex
cessivo da violência. O estupro, por exemplo, em geral requer uma explicação ba
seada na perversidade. Além disso, referências a um desvio da natureza humana e
da razão surgem para justificar crimes em que o uso excessivo da violência é consi
derado gratuito, como no caso de um ladrão que, depois de pegar tudo o que que
ria, mata a pessoa que foi roubada. Como um estudante universitário que mora na
M oóca com os pais disse: “ Algo assim não tem explicação; só pode ser que ele es
21 A equivalência entre mulher e prisioneira nessa citação de um “ macho” não deve passar
despercebida.
Cidade de Muros 97
tava fora de si, drogado” . Apenas os crimes contra a propriedade podem ser expli
cados puramente por razões socioeconômicas.
As explicações que se referem a perversão, destino, azar e emoção são tam
bém usadas para explicar crimes cometidos por aqueles que não se encaixam em
nenhum dos estereótipos. Crimes cometidos por pessoas das classes mais altas, que,
como se diz, “ têm tudo do bom e do melhor” , só podem ser explicados por algum
tipo de perversidade. Dois estudantes universitários entrevistados na M oóca sepa
raram claramente crimes motivados por razões econômicas (cometidos por alguém
que está, por exemplo, desempregado e desesperado) e crimes cometidos por pes
soas “ que têm aquela natureza” . Eles acham que o uso das drogas é muito dissemi
nado, não apenas entre as pessoas das classes baixas, mas também nas classes mé
dia e alta, com as quais eles têm contato em bairros como os Jardins. N a verdade,
eles acham que o uso é mais comum nos grupos mais ricos, porque eles têm mais
dinheiro para viciar-se e roubam por razões estúpidas, como para pegar pequenas
coisas, como um par de tênis.
Os jovens da classe trabalhadora do Jardim das Camélias também acham que
os crimes cometidos pelas pessoas da classe alta estão associados a drogas — como
estão os crimes em geral, na sua opinião. Entretanto, no caso das classes altas, as
drogas apenas não oferecem uma explicação.
2.31
A - E tem gente até que rouba e nem precisa, rouba por que é descarado. Que nem uma
época aí que tinha os filho de barão jogando bomba dentro de restaurante. Porque faz aqui
lo? Acho que é uma diversão pra eles, não têm o que fazer, vai ver quer tirar a paciência da
gente mesmo.
C - Se fosse pobre, a polícia pegava, batia...
A — Se fosse pobre, a polícia pegava, batia, fazia tudo; mas como é rico, podia até ser
filho de general, de major, se a polícia pegar, tem que soltar.
O CRIME VIOLENTO E A
FALÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO
3.
O AUMENTO DO CRIME VIOLENTO
M o ld a n d o as estatísticas
3 O IBGE não usa a denominação legal dos crimes: em vez de lesão corporal dolosa ele usa
a categoria agressão física , que pode incluir vários tipos de crime, como o estupro, por exemplo.
4 O número de pessoas que são vítimas de violência física é provavelmente maior, mas essa
agressão tanto pode não ser considerada como algo errado que valha a pena ser denunciado, quanto
pode não ser declarada porque as pessoas se sentem envergonhadas. Embora bater em crianças
seja uma prática comum em todas as classes sociais, a porcentagem de pessoas menores de 9 anos
de idade apontadas como vítimas de agressão física na PNAD foi de apenas 3,78% do número
total de vítimas de agressão. Ver o capítulo 9 para uma discussão sobre este tema.
5 Enquanto no Brasil os homens são vitimados principalmente em espaços públicos (54,73%
dos casos nas ruas), as mulheres são vitimadas principalmente dentro de suas casas (48,2%). Essa
informação não está disponível para a região metropolitana de São Paulo isoladamente.
6 Dados sobre o uso do sistema judiciário estão disponíveis apenas para regiões brasileiras.
O Sudeste inclui os estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo.
7 O pau-de-arara parece ser a forma mais comum de tortura usada pela polícia em São Pau
lo. Também foi a forma mais comum utilizada contra presos políticos durante o regime militar. O
preso é suspenso por uma barra pela parte de trás dos joelhos, com as mãos amarradas à frente
das pernas. Descrições desse e de outros métodos comuns de tortura são encontradas em Arqui
diocese de São Paulo (1986: cap. 2), Américas Watch (1987: cap. 5), Anistia Internacional (1990).
10 Para uma análise dos estereótipos que distorcem julgamentos de crimes violentos nos quais
a vítima é uma mulher, ver Ardaillon e Debert (1988), Américas Watch Committee (1991a) e Corrêa
(1981, 1983). Sobre violência contra mulheres, ver Gregori (1993).
11 Para uma análise das delegacias da mulher, ver Ardaillon (1989) e Nelson (1995). Dados
sobre o número de delegacias foram fornecidos pela assessoria de imprensa da Secretaria de Segu
rança Pública.
12 A informação de que as mortes causadas por policiais militares não aparecem no total de
homicídios foi oficialmente confirmada pela Secretaria de Segurança Pública (assessoria de imprensa).
13 As mortes registradas pelo Registro Civil são classificadas de acordo com as categorias
da CID (Classificação Internacional de Doenças, Versão 9, até 1996), da Organização Mundial
de Saúde.
T en d ên c ia s d o c r im e , 1973-1996
Quadro 1
Classificação de Crimes usada nas Estatísticas Oficiais
Crimes contra a pessoa
Homicídio
Homicídio doloso
Homicídio culposo
Lesão corporal dolosa
Acidentes de trânsito
Homicídio culposo
Lesão corporal
Outros (infanticídio, aborto, omissão de socorro)
Crimes contra o patrimônio
Furto
Furto qualificado
Roubo
Latrocínio
Estelionato
Outros
Crimes contra os costumes
Estupro
Sedução
Prostituição
Outros
Crimes contra a incolumidade pública
Tráfico de entorpecentes
Uso de entorpecentes
Outros
Outros crimes
de 1991. Essa proposta sugere a eliminação da categoria “crimes contra os costumes” e a inclu
são de estupro na categoria “crimes contra a pessoa” . Uma proposta semelhante que circula entre
os grupos feministas defende a criminalização do assédio sexual e da violência doméstica, e pro
põe a legalização do aborto. Uma versão dessa proposta aparece como “ Manifesto das Mulheres
Contra a Violência — Proposta para Mudanças no Código Penal Brasileiro”, em Estudos Femi
nistas (1[1]: 190-1,1993). Para uma proposta feminista de transformação da legislação que trata
da violência dentro da família, ver Pimentel e Pierro (1993: 169-75). Até março de 2000, a reforma
do Código Penal ainda estava sob discussão. Parece haver um consenso entre os membros da comis
são encarregada de propor um novo código quanto a eliminar a categoria “crimes contra os cos
tumes” . No entanto, a maioria dos membros da comissão, dos quais só um é mulher, é contra a
legalização do aborto. Em 8 de março de 1996, o presidente brasileiro e o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher anunciaram uma série de medidas para celebrar o Dia da Mulher. Essas medi
das incluíam enviar um projeto ao Congresso Nacional para mudar a classificação de estupro para
“crime contra a pessoa” . A proposta ainda não havia sido votada em dezembro de 1999. Para uma
análise do lobby feminista durante os trabalhos da Assembléia Constituinte, ver Ardaillon (1989).
16 Os dados da polícia civil indicam um número menor de mortes em acidentes de trânsito
do que as outras fontes. Uso-as aqui por uma questão de consistência, já que para todos os outros
tipos de crime os dados da polícia civil são os únicos disponíveis.
17 Dados separados para o município de São Paulo estão disponíveis apenas de 1976 em
diante. Salvo menção em contrário, todos os dados criminais citados aqui são da Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, Delegacia Geral de Polícia, Departamento de Planeja
mento e Controle da Polícia Civil, Centro de Análise de Dados, organizados pelo Seade — Funda
ção Sistema Estadual de Análise de Dados. O Seade também está encarregado da publicação ofi
cial de dados na sua série anual de estatísticas para o estado de São Paulo, o Anuário estatístico
do estado de São Paulo, de onde cito. Gostaria de agradecer a Dora Feiguin e Renato Sérgio de
Lima, do Seade, por facilitarem meu acesso aos dados e por me ajudarem a navegar através das
estatísticas. Salvo menção em contrário, em todos os cálculos estou considerando taxas de crime
por 100 mil habitantes. As estimativas de população são também do Seade e foram corrigidas de
acordo com os resultados do Censo de 1991 e da Contagem da População de 1996.
18 E difícil saber quanto esse padrão mudou em relação a períodos anteriores, dada a falta
de estudos e a dificuldade em comparar dados de estudos diferentes e seus resultados contraditó
rios. De acordo com Fausto (1984: 445), do número total de prisões por crimes (não incluindo
contravenções) em São Paulo no período de 1892-1916, 39,5% foram crimes contra a pessoa (ele
os chama de “crimes de sangue” ) e 54,6% foram crimes contra a propriedade. No entanto, para
Gráfico 1
Taxas de crimes
Região metropolitana de São Paulo, 1973-1996
Ano
Crimes contra a pessoa ----- Crimes contra a propriedade " 1 Total de crimes
o Rio de Janeiro durante o período de 1908-1929, Bretas (1995: 108) argumenta que “crimes vio
lentos representam a maior parte dos crimes no Rio, principalmente por meio de casos de agres
são, que constituíram mais de um terço dos crimes anuais” . Para o Rio de Janeiro da época do
império, Holloway (1993: 213, 256) indica que a proporção de prisões para crimes contra a pro
priedade era maior do aquela para crimes contra a pessoa em 1862, 1865, e 1875.
C rim es v io len to s
Ano
----- MSP ----- OM
Gráfico 4
Taxas de crimes contra a pessoa
Região metropolitana de São Paulo, 1981-1996
Ano
Homicídios e __ Lesão c o r p o r a l ______Acidentes de ______ Estupros e
tentativas dolosa trânsito tentativas
Gráfico 5
Taxas de homicídio doloso
M SPe OM, 1981-1996
Ano
----- MSP — - OM
Feiguin e Lima (1995: 77) sugerem que a grande discrepância nos registros
de homicídios pode ser explicada pelo fato de que os registros da polícia se referem
aos eventos em vez de se referirem a mortes individuais, como ocorre no registro
de óbitos. Um evento de homicídio pode envolver várias mortes. Como resultado,
quando analisam dados de 1988 a 1993, Feiguin e Lima (1995: 77) sugerem que a
discrepância pode ser associada a um crescimento das mortes coletivas — as chaci
nas — em anos mais recentes. No entanto, como a diferença no início dos anos 80
é mais alta do que a dos últimos anos ou comparável a ela (Tabela 2), é difícil de-
mantém as informações mais detalhadas, mas apenas para os últimos anos e apenas para o muni
cípio de São Paulo. Dados do registro de óbitos têm uma classificação muito mais complexa e
acurada das causas de morte do que os da polícia, permitindo diferenciar, por exemplo, o instru
mento usado e o motivo (intencional ou não intencional, ou, ainda, de intencionalidade indeter
minada). Em geral, mortes provocadas intencionalmente são denominadas homicídios em estatís
ticas sanitárias. No entanto, como as categorias incluídas nessa classificação (E960 a E969) ex
cluem as mortes provocadas em relação às quais a intencionalidade é indeterminada, eu as consi
dero como homicídio doloso, tornando-as comparáveis à categoria da polícia civil que exclui ho
micídio culposo.
Gráfico 6
Evolução do registro de homicídio doloso
MSP eO M , 1981-1996
Ano
MSP MSP OM OM
Polícia Civil Registro Civil Polícia Civil Registro Civil
Gráfico 7
Taxas de furto e roubo
Ocorrências policiais /100.000 habitantes
1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Ano
— Furto - MSP ----- Furto - OM - - - Roubo - MSP ------ - Roubo - OM
28 de novembro de 1990, p. 66). Devemos ser cuidadosos ao examinar essas taxas internacionais.
Para 1985, as taxas para a cidade de São Paulo apresentadas nesse estudo quase coincidiram com
as ocorrências da polícia (26,98), mas são bem diferentes daquelas produzidas com base no regis
tro de óbitos tanto para São Paulo (35,8) quanto para o Rio de Janeiro (41,0).
B u s c a n d o e x p l ic a ç õ e s
25 No caso de São Paulo, para o período de 1880-1924 há o estudo das estatísticas crimi
nais de Fausto (1984). Para o Rio de Janeiro durante o período de 1907-1930, há o estudo de Bretas
(1995), que também analisa as estatísticas e relatórios produzidos pela polícia. Para o Rio de Ja
neiro da virada do século, há o estudo de Chalhoub (1986), que não analisa estatísticas, mas tenta
descobrir por meio dos registros judiciários um quadro dos relacionamentos cotidianos e confli
tos da classe trabalhadora. Para os períodos Colonial e Imperial, há os estudos de Aufderheide
1975, Chalhoub 1990, Franco 1974, Holloway 1993, Huggins 1985 e Lara 1988, mas apenas
Aufderheide, Holloway e Huggins analisam estatísticas. Para outros países na América Latina, há
os estudos de Johnson 1990, Rohlfes 1983, Taylor 1979, Vanderwood 1981. Sobre os bandidos
sociais brasileiros do começo do século XX, o estudo clássico é Queiroz 1977.
26 A bibliografia nesses casos é vasta. Sumários interessantes são, para o caso da Colômbia,
Comisión de estúdios sobre la Violência (1987), e para o caso do Peru, Comisión Especial de Se
nado {1989).
Para Chesnais (Pref. e cap. 1), esse padrão de longa duração de diminuição
da violência contra as pessoas foi condicionado por processos como a diminuição
da escassez e da pobreza, a revolução demográfica com a diminuição da mortalidade
e a valorização da vida, e especialmente o crescimento do Estado, com suas institui-
27 Vários desses estudos foram patrocinados pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria
Nacional de Direitos Humanos e fazem parte do projeto “ Mapas do Risco da Violência” , coorde
nado pelo Cedec em São Paulo. Para São Paulo, ver Núcleo de Estudos de Seguridade Social (1995),
e para o Rio de Janeiro, ver Cano (1997).
28 Um estudo recente de Cláudio Beato sustenta a interpretação que estou propondo. Ele
não consegue encontrar correlações entre taxas de crime violento e indicadores de desigualdade
social, disponibilidade de serviços públicos, desemprego e qualidade de vida urbana. Resultados
parciais dessa pesquisa ainda em andamento foram apresentados na Conferência “ Rising Violence
and the Criminal Justice Response in Latin America: Towards an Agenda for Collaborative Research
in the Twenty-first Century” , Universidade do Texas em Austin, maio de 1999.
Além de não ser apoiada pelos dados, essa hipótese pressupõe que os profis
sionais do crime não são violentos, e que basicamente são os principiantes — tal
vez aqueles empurrados para a criminalidade pela crise econômica — que se vol
tam para a violência. Além disso, a hipótese pressupõe que a maioria dos crimes
violentos são cometidos por não-profissionais. Isso está em total desacordo com as
afirmações de Coelho (1988), Paixão (1983), Mingardi (1992), Zaluar (1994) e
outros analistas do crime (como repórteres que cobrem diariamente a polícia e as
autoridades da Segurança Pública), que insistem que na última década o crime tor
nou-se cada vez mais organizado e profissional, e que esta tendência se expressa
principalmente no uso de armas, tráfico de drogas e em grandes empreitadas como
o roubo de edifícios inteiros e o seqüestro de executivos. Como os jornais têm re
gistrado, as redes associadas a alguns seqüestros envolvem traficantes de drogas, o
jogo do bicho, vários políticos, advogados, gangues organizadas dentro das prisões
e até a polícia. Estamos lidando com o aumento do crime organizado e armado,
não com indivíduos inexperientes levados ao crime por um contexto de crise.
M as, se a hipótese de Pezzin parece não ter mérito, é no entanto fácil ver como
ela é coerente com o universo no qual foi formulada, aquele que concebe o crime e
a violência em relação a indicadores de pobreza urbana e marginalidade. Quando
a realidade resiste a esse modelo, essas explicações se enfraquecem. De fato, expli
cações socioeconômicas parecem se enfraquecer ainda mais quando a questão não
é apenas o crime, mas sim o crime violento. E sobretudo a violência que estamos
tentando explicar, porque, como argumentei acima, foi a violência que mudou ra
dicalmente o padrão do crime em 1983-1984.
Em sua análise, Pezzin concentra-se quase exclusivamente nas variáveis so
cioeconômicas e não dá muita atenção à correlação entre níveis de criminalidade e
gastos do Estado com segurança pública. Coelho (1988), ao contrário, parece des
considerar variáveis socioeconômicas e se concentrar principalmente naquelas as
sociadas à repressão ao crime.
Parece-me, no entanto, que devemos ter mais cuidado com essas conclusões.
Um maior investimento em segurança pública depois de 1984 de fato não fez dimi-
1 Valor relativo ao total de homicídios calculado pelo Registro Civil, que provavelmente inclui
as mortes causadas pela polícia. Se considerarmos o total de homicídios registrado pela polícia civil,
a porcentagem de mortes causadas pela polícia seria de 27,6%.
A violência e o desrespeito aos direitos pela polícia têm uma longa história
no Brasil. Um padrão constante de abuso da população pelas forças policiais, so
bretudo no caso das camadas trabalhadoras, tem-se repetido em governos liberais
ou conservadores, em períodos ditatoriais ou democráticos. Entretanto, pelo fato
de o número de abusos sérios pela polícia no final dos anos 80 e começo dos anos
90 ser especialmente alto, e também por terem acontecido durante uma consolida
ção democrática em que o respeito aos direitos do cidadão expandiu-se em várias
outras áreas (especialmente os direitos políticos), eles apresentam um desafio para
a análise. Tendências aparentemente contraditórias não representam um parado
xo raro na história brasileira. Na verdade, elas são tão freqüentes que há uma ten
dência de se pensar a sociedade brasileira como marcada por algumas fissuras pro
fundas, articuladas em argumentos dualísticos, que opõem os aspectos modernos e
retrógrados da sociedade.2 Examino a seguir algumas das versões mais influentes
dessa idéia, especialmente ao lidarem com a questão da violência e das instituições
da ordem, para contrastá-las com a minha interpretação sobre a democracia brasi
leira atual e suas instituições violentas.
2 Essa tendência pode ser rastreada ao longo de toda a história das ciências sociais, tanto
brasileira quanto de brasilianistas. Ela é algumas vezes expressa sob a idéia de “ dois Brasis” : um
moderno, industrial e urbano, o outro retrógrado e rural.
4 Linger (1992) também sugere um modelo dualista para explicar os significados da violên
cia numa cidade brasileira, São Luís do Maranhão. Ele contrapõe o carnaval, um “festival báquico”,
à briga, definida como uma confrontação ritualizada de rua que é potencialmente letal. A violên
cia ocorre em ambos, e para explicá-la Linger invoca uma “teoria popular sobre o desabafo” , ou
seja, sobre a expressão de frustrações, ressentimentos e irritações. Segundo essa teoria, carnaval,
briga e desabafo supostamente formam um cultural cluster (cap. 11). O carnaval seria um “bom
desabafo” e representaria “o eu e a sociedade sob controle” , enquanto a briga seria um “mau
desabafo” e representaria “ o eu e a sociedade fora de controle” (1992: 225). Assim, o desabafo é
o “operador” entre ordem e desordem, calma e violência. Quando ele é bem-sucedido, como num
carnaval organizado, produz communitas; quando é mal-sucedido, leva a briga e morte. Linger
vai ao ponto de sugerir que o desabafo é a “ raison d’être do Carnaval” (234), reduzindo, assim,
de maneira considerável, as muitas dimensões desse complexo festival social — uma redução pro
vavelmente necessária para equipará-lo à briga, um evento social de significado cultural muitíssi
mo menor. A análise de Linger restringe-se a uma teoria psicológica popular sobre o controle da
agressão e não oferece nenhuma explicação sociológica para a difusão da violência. Assim, ele
reproduz a opinião de que a violência é tanto o extraordinário quanto uma questão de autocontrole
individual. Essa visão impede o entendimento da violência como um elemento constitutivo das
relações de poder em interações sociais cotidianas. Devo mencionar também que nenhuma das
pessoas que entrevistei sobre o aumento do crime e da violência em São Paulo mencionou o desa
bafo como parte dos seus esforços explicativos.
5 Todas essas oposições são encontradas em DaMatta (1979). Ver, por exemplo, o quadro
da p. 175 no qual ele lista as oposições entre as características do indivíduo e da pessoa.
O r g a n iz a ç ã o das F o r ça s P oliciais
6 Apesar de as forças policiais brasileiras terem sempre sido divididas, há uma tendência na
literatura de falar sobre a polícia em geral, sem se especificar qual força está sendo analisada. Isso
acontece, por exemplo, nos estudos de Bretas (1995), Cancelli (1993) e Lima (1986), que anali
sam apenas a polícia civil, mas referem-se a ela como “ a polícia” e não tornam necessariamente
claro que não estão considerando outros setores das instituições policiais. Fernandes (1974) ana
lisa apenas a polícia militar em São Paulo.
U m a T r ad ição de T ra n sg r essõ es
11 Para uma análise da história da polícia militar e suas práticas a partir do regime militar,
ver Pinheiro (1982, 1983, e 1991b), e Pinheiro et al. (1991).
12 Para um relatório dos abusos durante o regime militar, ver Arquidiocese de São Paulo
(1986). Para uma análise da concepção militar de segurança nacional que estruturou todo o apa
rato repressivo, ver Stepan (1971 e 1988).
13 Do período colonial até o século XX, a violência foi também comum entre os “ homens
livres” e constituía um meio usual para a resolução de conflitos interpessoais, como demonstra o
estudo de Franco (1974). Analiso a violência interpessoal no capítulo 9.
16 O projeto Brasil nunca mais, secretamente realizado pela Arquidiocese de São Paulo, fo
tocopiou e analisou os documentos completos do tribunal militar correspondentes a 707 julga
mentos realizados de 1964 a 1979 e registros fragmentados de dúzias de outros julgamentos. Os
documentos estão agora em vários arquivos pelo mundo. Um resumo das conclusões, do qual es
tou citando, foi publicado no Brasil em 1985. Uma versão editada desse resumo foi publicada em
inglês como Torture in Brazil (1986). As mortes e desaparecimentos mencionados pelo BNM são
apenas aqueles documentados, seja direta, seja indiretamente, nos julgamentos, e não incluem ví
timas de abusos que nunca estiveram ligados a julgamentos, como, por exemplo, nos casos de vio
lência rural. Sigaud (1987: 7-8) calcula que, entre 1964 e 1986, 916 camponeses foram mortos
por razões políticas, mas apenas 93 dessas mortes foram perpetradas por representantes do Estado.
1 Para uma discussão mais ampla da disjunção entre o respeito aos direitos políticos e sociais
e o desrespeito aos direitos individuais no Brasil contemporâneo, ver Holston e Caldeira 1998.
2 Nesse sentido, a situação atual é totalmente diferente daquela dos regimes militares no Cone
Sul dos anos 60 aos anos 80 e dos conflitos políticos na América Central nas décadas de 70 e 80,
que podem ser descritas como situações de grande violência política. Tem havido repressão e vio
lência contra participantes de movimentos sociais, especialmente em áreas rurais (contra o Movi
mento dos Sem-Terra, por exemplo), mas nada comparável ao que aconteceu durante os regimes
militares na América Latina.
A polícia também tem usado armas longe dos lugares onde os crimes ocor
rem e basicamente contra pessoas pobres, em especial homens jovens e negros. O
estudo de Pinheiro et al. (1991: 110), que analisou todos os casos de morte causa
dos pela polícia militar na última década, concluiu que a maioria das mortes ocor
reu em bairros pobres da periferia da região metropolitana de São Paulo, longe dos
lugares em que os supostos crimes aconteceram. A maioria das pessoas que morre
ram eram homens jovens: 71,5% eram homens entre 15 e 25 anos. A proporção
de negros entre aqueles que morreram é muito maior do que a proporção de ne
gros na população.
De acordo com a polícia militar, a maioria das mortes- (63,6%) ocorreu em
situações de “ resistência/reação à polícia” . “ Apenas 8,1% ocorreram em casos de
fuga, e 5,8% em casos de pessoas presas em flagrante” (Pinheiro et al. 1991: 107).
N o entanto, a conclusão da equipe que estudou as informações é que mais do que
indicar uma tendência da criminalidade, esses dados indicam a existência de um “pa
drão pré-fabricado” usado pela polícia quando uma morte ocorre (idem: 106).
Quaisquer que sejam as circunstâncias, as ocorrências são registradas como casos
de “ resistência seguida de morte” e classificadas e processadas separadamente das
ocorrências de homicídios. Barcellos (1992) descreve o mesmo padrão.
Uma indicação adicional do abuso policial é a relação entre o número de pes
soas mortas pela polícia e o número total de homicídios dolosos. De 1986 a 1990,
as mortes causadas pela polícia representavam uma média de 8% do total de ho-
6 Até onde sei, a história do governo Montoro ainda não foi escrita. Contudo, a oposição
José Carlos Dias, que começou no dia em que ele revelou suas intenções para o cargo, é bem do
cumentada pela imprensa.
7 Essa explicação coincide com o argumento de Bretas sobre a autonomia da polícia civil
durante a República Velha (1995: Conclusão).
Tabela 4
Punição de policiais civis
Estado de São Paulo, Secretaria de Segurança Pública, 1981-1988, 1991-1993
Ano Punição
Demissão Suspensão Reprimenda Advertência
1981 12 n.d. n.d. n.d.
1982 13 n.d. n.d. n.d.
1983 39 481 202 13
1984 66 600 173 • 15
1985 37 640 173 4
1986 45 590 123 10
1987 68 724 235 30
1988 60 478 1 133 1 49 1
1991* 29 128 17 6
1992* 28 138 23 8
1993* 105 155 22 0
Fontes: Para demissões em 1981-1982 e 1988, Mingardi (1992: 69). Para 1981-1988, Corregedoria da Polícia
Civil, Corregepol, citado em Nepp (1990: 83). Para 1991-1993, Secretaria da Justiça e da Cidadania, relatório
preparado para a 50a Sessão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, Genebra, 1994, Apêndice
D-3 (dados da Corregedoria da Polícia Civil).
Obs: * Os dados para 1991-1993 se referem apenas a casos de violência (agressão, tortura, abuso do poder etc.)
e de corrupção (extorsão, contrabando etc.),
n.d. = informação não disponível.
1 Até julho.
Tabela 5
Policiais militares demitidos e expulsos
Estado de São Paulo, Secretaria de Segurança Pública, 1981-1993
Ano PMs punidos
1981 179
1982 181
1983 435
1984 587
1985 448
1986 406
1987 436
1988 589
1989 379
1990 n.d.
1991 404
1992 384
1993 391
Fonte: Para 1981-1989 — Secretaria de Segurança Pública, Estado Maior da PM, 1989, citado por Nepp (1990:
85). Para 1991-1993 — Secretaria da Justiça e da Cidadania, relatório preparado para a 50a Sessão da Comis
são de Direitos Humanos das Nações Unidas, Genebra, 1994, Apêndice e-2 (dados da Corregedoria da PM),
n.d. = informação não disponível.
Era passar valores. Porque, veja bem, para você passar que não é
só o bandido, mas é qualquer pessoa, e mesmo o bandido, porque não é
porque ele praticou um delito que pode haver a pena de morte, transi
tado e julgado, sendo juiz e executor o soldado. Então pra passar esses
valores é algo muito demorado, é alguma coisa que você encontra resis
tência, porque é muito mais fácil para o policial, que vive tenso porque
8 Pinheiro (1982: 90) reproduz um documento do chefe da Rota certificando que era im
possível identificar as armas usadas por uma equipe da Rota devido à maneira pela qual as armas
eram retiradas.
9 Entrevista, 25 de julho de 1990.
14 O massacre foi amplamente documentado pela mídia brasileira. Ele também foi registra
do pela Anistia Internacional (1993), por Machado e Marques (1993) e por Pietá e Pereira (1993).
Vários massacres envolvendo policiais militares ocorreram no Rio de Janeiro no ano seguinte. Entre
eles incluem-se o assassinato de oito menores que dormiam nas proximidades da Igreja da Can
delária, em 23 de julho de 1993, e o assassinato de 21 residentes da favela Vigário Geral, em 30
de agosto de 1993.
15 Analisei a cobertura da imprensa do massacre na Casa de Detenção em cinco jornais e
duas revistas, todos publicados em São Paulo, pelo período de dez dias seguintes ao massacre. A
amostra inclui os dois maiores jornais paulistas com circulação nacional, Folha de S. Paulo e O
Estado de S. Paulo , e três jornais locais, Jornal da Tarde, Folha da Tarde e Notícias Populares. As
O massacre teve traços dantescos, já que não só se atirou nos presos aleato
riamente, como eles foram espancados, atacados por cães treinados para morder
os órgãos genitais e perfurados com facas. Nus, muitos dos sobreviventes foram for
çados a assistir a execuções, a carregar os corpos de seus colegas mortos e a limpar
o sangue que escorria por todo lugar, porque os policiais estavam apavorados com
a possibilidade de serem contaminados pela aids. N a verdade, uma razão que a
polícia deu para justificar sua ação foi a de que os presos atacaram com dardos
embebidos em sangue contaminado por HIV. Apesar de a polícia e o governo ten
tarem esconder o massacre (eleições municipais aconteceriam em 3 de outubro e o
candidato do governador poderia ser prejudicado pelas notícias), fotos chocantes
apareceram em toda a imprensa dois dias depois: uma série de corpos nus e muti
lados, com grandes números pretos escritos em suas pernas, dispostos lado a lado
em caixões abertos nos corredores do Instituto Médico Legal. Uma visão de cam
po de concentração. Alguns dias depois, publicaram-se imagens de dentro da Casa
de Detenção: pilhas de corpos, closes de presos mortos, presos nus carregando ca
dáveres e a destruição dentro das celas. Estas foram complementadas por imagens
de parentes desesperados sendo atacados por cães e pela polícia na porta do Caran
diru enquanto tentavam conseguir informações sobre os presos que estavam lá
dentro, ou de pessoas chorando do lado de fora do Instituto Médico Legal, depois
de terem sido obrigadas a examinar todos os cadáveres para identificar seus parentes.
19 Ao contrário do que aconteceu em São Paulo, a administração do Rio adotou uma polí
tica declaradamente “ dura” , gerando um drástico aumento nas mortes causadas por policiais
militares. Depois que o general Nilton Cerqueira tomou posse como secretário da Segurança Pú
blica em 1995, o número de civis mortos aumentou seis vezes, de uma média de 3,2 por mês para
20,55. (Human Rights Watch/Americas 1997: 15.)
20 A administração Covas também começou a publicar os números de mortes pela polícia
civil, antes não disponíveis. Elas foram 47 em 1996 e 18 em 1997. O número de policiais civis
mortos foi de 17 em 1996 e 11 em 1997.
21 Esse bloco inclui os seguintes deputados: Afanasio Jazadji, que defende a tortura e ataca os
direitos humanos em seus programas de rádio, e foi o deputado mais votado em São Paulo em 1986;
Erasmo Dias, ex-secretário da Segurança Pública sob o regime militar; o ex-policial militar Conte Lo
pes Lima, o mais ativo defensor da PM quando do massacre de 1992; e o delegado Hilkias de Oliveira.
22 Conte Lopes foi eleito com 66.772 votos; Afanasio Jazadji foi eleito com 58.326 votos;
Erasmo Dias foi eleito com 28.178 votos; o coronel Ubiratan teve 26.156 votos e não foi eleito;
Hilkias de Oliveira obteve 11.799 votos e não foi reeleito.
5.1
- Olha, se chegar pra mim um cara e falar pra mim "eu sou bandido, eu vou levar a se
nhora até em casa", eu aceito mais do que um cara fardado chegar perto de mim: "eu sou policial
e vou levar a senhora". Não, eu não confio na polícia. Tenho medo de polícia (...) Duas vezes
quase que eu fui levada até presa.
Empregada em serviço de limpeza em aeroporto, Cidade Júlia, 34 anos, casada, três fi
lhos; o marido está desempregado.
5.2
- Você sabe que a polícia confunde, ou muitas vezes, pra se nomear, pra se engrandecer,
ela mata, inconscientemente, um inocente, acusando como bandido. Ela bota o revólver ali na
mão do coitado. Você pode, ó, se você não tiver amizade, não tiver sabedoria... teu filho morre
como bandido sem ele ser bandido, porque a polícia matou por engano, mas ele pôs como ban
dido e vai como bandido (...) Eu estou sabendo de um aluno, porque não estava com documento,
saiu correndo de medo da polícia e foi atirado e foi mantido como bandido, sem ele ser.
Dona de casa e líder de bairro, Jaguaré, 35 anos, 4 filhos; o marido é trabalhador especia
lizado de uma fábrica têxtil.
Para a maioria dos membros das classes trabalhadoras, suas experiências com
a polícia são de arbitrariedade. Suas descrições de como a polícia mata por engano
e encobre os assassinatos coincidem com os relatos das organizações de direitos
humanos e os de Barcellos (1992): o padrão é bem conhecido. A polícia confunde
trabalhadores com criminosos, usa de violência contra eles e tenta disfarçar seus
erros. Para a polícia, como para muita gente, a fronteira que separa a imagem do
trabalhador pobre da do criminoso é de fato muito tênue. Em conseqüência, mem
bros das classes trabalhadoras podem ser molestados pela polícia, mortos como
criminosos e suas reações naturais de medo (como fugir) podem ser interpretadas
como comportamento de criminosos. As narrativas de pessoas das classes traba
lhadoras estão cheias de exemplos de problemas causados por essa confusão entre
trabalhadores e criminosos, assim como de expressões de indignação geradas por
ela. Além disso, seu discurso é pontuado por referências a sinais que deveriam pro
var suas identidades como trabalhadores e sua dignidade, como a carteira profissio
nal, a marmita e os calos nas mãos. No entanto, mesmo os sinais mais claros po
dem ser ignorados por uma força policial que, na opinião popular, pode ser vio
lenta com os trabalhadores mas branda com os criminosos. As razões que os tra
balhadores dão para pensar que os criminosos recebem “melhor tratamento” se
enquadram em duas categorias. De um lado, acreditam que a polícia tem interes
ses monetários no crime e nos criminosos: os policiais são corruptos e podem estar
envolvidos diretamente com o crime. De outro, estão convencidos de que a polícia
não está bem preparada para cumprir suas tarefas. Em ambas as circunstâncias, as
imagens usadas para caracterizar o criminoso também podem ser usadas para des
crever a polícia.
5.4
- Ainda ontem mesmo eu estava escutando no rádio, o repórter falando que parece que
já foi preso três policial e um delegado, eles mesmo estão roubando! Quer dizer que os próprios
policiais são bandidos também (...) Mas o pior é que essa Rota aí, eles às vezes matam até pessoas
inocentes. Então, eles matam as pessoas inocentes enquanto que os bandidos estão aí soltos
na rua. Agora: por que é que não prende os bandidos? Porque eles dão dinheiro para eles, né?
Eu acho que sim. Porque eles vão roubar, eles dividem com eles e tudo bem, aí vai passando.
Dona de casa, Jardim das Camélias, 33 anos, quatro filhos;participou de vários movimen
tos sociais e associações locais; o marido é trabalhador especializado de uma pequena fábrica
têxtil.
Mesmo quando não se acha que a polícia é corrupta, considera-se que ela está
despreparada para a função. Em geral, afirma-se que a polícia está próxima dos maus
elementos do ambiente do crime: perversão, doença, prostituição e más influências
são apenas alguns dos elementos de uma longa lista.
5.6
- 0 que que eu acho da polícia? Olha, eu acho o seguinte: lamentável, né?, com traba
lhadores como nós. Mas é lamentável que a polícia hoje está muito despreparada. Não é por
culpa do soldado, do policial; mais uma vez, é a estrutura geral que está muito despreparada.
[Ele argumenta que os homens que se tornam policiais sãomuito jovens e sem o neces
sário treinamento. Por isso, sentem-se inseguros e com medo quando têm de enfrentar os cri
minosos. Em conseqüência, usam suas armas mais do que o necessário a fim de superar seus
medos ou às vezes "só para mostrar que são homens". Além disso, dada a falta de instrução, eles
não têm noção de que estão lá para servir a sociedade, que são pagos com o dinheiro dos im
postos e que não deveriam molestar os cidadãos comuns.]
- Hoje em dia o policial encara todo mundo, todo mundo pra ele é bandido, todo mun
do pra ele é marginal, todo mundo merece ser preso e todo mundo tem que respeitá-lo. E la
mentável, é falta de preparo. A polícia sempre foi despreparada e está piorando. Nunca foi boa.
Proprietário de um bar, Moóca, tem diploma de direito mas não exerce a profissão;sol
teiro, mora com três colegas.
5.7
- A polícia é uma calamidade pública! Acho que é falta de capacidade dos policiais. Eu
acho que eles pegam qualquer um pra ser guarda. Pegam qualquer um que vem lá da Paraíba,
do Maranhão, daqueles fim-de-mundo lá; não sabem nem ler e é guarda! É PM! Que que um
cara desses entende? Principalmente de lei? Deve ser isso, né? Você não vê, na polícia, você
não vê paulista nato; você vê tudo nortista! (...) A polícia, qualquer dez cruzeiros compra uma
polícia! Eles tão lá, mais ou menos nesse bloco aí, pra pegar dinheiro mesmo. Eles quer dinhei
ro, principalmente a PM.
Operário especializado, aposentado, Jardim Marieta; cerca de 60 anos, casado, dois
filhos.
5.9
- Logicamente que você soltar carinha de firma por aí armado pela cidade é mais um
risco. Quer dizer, com os policiais já é uma coisa horrorosa. Você imagina... se você expande o
número de caras armados, eu acho que pensando em termos globais, deve dar uma coisa meio
ruim (...) Você pode até argumentar que isso tanto faz ser público ou privado, os caras que estão
armados são todos provenientes da mesma mentalidade, da mesma classe social, e tão des
preparados quanto, ou tão prontos a usar as armas para qualquer bobagem quanto.
Jornalista free lance, 43 anos, Morumbi;divorciada, dois filhos.
5.10 ,
A - Muitas vezes acontece um assalto ali, daí a vizinhança cai em cima dizendo que e
ue|e é aquele - a polícia fala: "eu não peguei de flagrante, então não levo", e vai embora. E
o que acontece? 0 cara, pra se vingar, sai matando meio mundo, que é o que acontece hoje
em dia por aí: “Ah, você me entregou pra polícia...", que muitas vezes acontece. Isso quando
acontece um crime assim na rua... A população não colabora com a policia por isso, né? (...) E
medo de dar vingança, ele pega e não fala nada; pega, fala que não viu nada. Eu mesmo, se eu
ver um ladrão matando alguém, eu mesmo não vou querer saber. Eu finjo que não vi nada. Se
a polícia me perguntar, eu vou falar: eu não vi nada.
- Se por acoso você for assaltado, você acha que vale a pena dar queixa?
A - Eu acho que não vale, não. A gente vai dar a queixa, o delegado vai perguntar "onde
foi isso?", a gente faz tudo e ainda sai louco da vida, sabe que a gente vira as costas, ele rasga
o papel e joga fora. „ . ,
0 mais velho dos três irmãos que vivem no Jardim das Camélias - 22 anos, mecânico de
automóveis e casado.
5.11
PM _ Fim de semana prolongado é um desastre. 0 pessoal sai para viajar, quando volta
na segunda-feira ou no domingo à noite, é aquele monte de telefonema, que a casa ta arrom
bada, levaram tudo. E o pior.de tudo é que a vizinhança não vê. Aliás, o povo vê e tem medo
de avisar.
- E porque o povo tem medo de avisar?
PM - Devido à fragilidade das leis. Ele sabe que se ele avisar a PM, ou a polícia, a polícia
civil, qualquer uma que seja, ele não vai ter proteção.
- Como assim?
PM - A gente não pode dar proteção individual, né? A não ser que venha de uma or
dem superior que a gente tem que fazer a proteção daquela pessoa devido ela ser testemunha
185
Cidade de Muros
de algum crime, ou coisa parecida. Agora, se simplesmente a viatura passar e ela falar "olha,:
tem dois bandidos dentro daquela casa ali"... tudo bem, a gente vai lá e prende o cara, só que
aquela pessoa depois fica à mercê dos bandidos. A gente não vai poder estar passando toda
hora na frente da casa dela, olhar se está tudo bem e tal. Muito porque o material bélico nos
so - material bélico que eu digo é viatura, essas coisas - é frágil.
- E que mais que você acha que precisaria mudar para facilitar o trabalho de vocês?
PM - Nosso? Nosso não precisava mudar muita coisa, não. Só haver justiça. Porque é
desanimador você levar o indivíduo para o Distrito... Porque a corrupção tem em todos os lu
gares. Não estou querendo escapar a PM também disso. Tem certos policiais corruptos. Mas
na área da polícia civil, aqui em São Paulo, é mais. É desanimador você pegar um indivíduo,
levar para o Distrito e o delegado - coisa que eu já vi - , o delegado pegar o dinheiro do cara
e falar assim: "Deixa o PM sair pra não ficar mal, que eu vou te soltar atrás". Eu já vi isso acon
tecer, eu sair e ficar olhando o cara sair pela outra porta. Quer dizer, já passa daí, né? Eu acho
que no Brasil também deveria arrumar um jeito de acabar com a corrupção, porque está vi
rando um... Outro dia eu estava comentando com um colega meu que isso aqui virou um
Paraguai. Aqui é tudo na base do dinheiro. Você quer conseguir alguma coisa, você paga. En
tendeu?... Tem muita gente que deve na rua devido à corrupção. Teria também que haver uma
legislação eficiente em relação à corrupção (...) Se houvesse justiça, mais alguma reformulação
nas leis... não precisava ser muito, o cara dar uma estudadinha melhor para ver se dá para
reformular da forma que a gente quer. (...)
0 polícia militar é muito ridicularizado. Eu estava comentando que, antigamente, há uns
tempos atrás, o polícia militar, era um orgulho andar fardado na rua. Hoje em dia é motivo de
vergonha, o policial anda fardado, ele anda meio assim olhando, pra ver se tá bem... Os caras
ficam olhando para ele, ele já acha que os caras estão rindo da cara dele (...) Às vezes por falta
de respeito, às vezes pela brutalidade dos próprios polícias. Que tem polícia hoje em dia... Não
vamos atribuir toda a falha à sociedade, eu acho que tem polícia hoje em dia também que não
está preparado para exercer a função. Onde ele vai, já mostra a carteira: "sou polícia, não sei o
quê". Isso aí não devia acontecer, né? É o abuso. Ele gosta de prevalecer pela farda ou pelo
fato de ele ser polícia (...) A população fala mesmo, não gosta de polícia, não sei por quê, Não
sei se é por causa das leis, sei lá, sei que de certa forma o pessoal não gosta de polícia. Inclu
sive a população tem medo da polícia hoje em dia, né?
Policial militar, Jardim das Camélias, cerca de 30 anos, casado com uma mulher que tra
balha como secretária em uma fábrica, um filho; nas horas de folga trabalha como segurança
particular.
5.12
- Você vai procurar saída de que jeito? Não tem solução pra procurar uma saída des
sas... que solução que você vai procurar? Você vai, você vai fazer reclamação de um polícia, ele
vai te perseguir depois... E a gente tem medo de morrer, que essa gente anda tudo armado!
Você vai fazer uma queixa de um político... se ele descobrir que é você, eles vão mandar te
prender... Então, você não pode fazer nada. Você tá mal, você quer fazer as coisas e não pode
fazer. Se você for fazer, você vai preso... tá condenado à morte!
Operário especializado aposentado, Jardim Marieta, cerca de 60 anos; casado, dois
filhos.
Q sistema judiciário está tão longe de ser visto como confiável que em muitas
entrevistas nem foi mencionado como um elemento no controle do crime: o uni
verso do crime parece incluir apenas criminosos, policiais e cidadãos impotentes,
que têm de negociar sua segurança por conta própria e entre si. O sistema judiciá
rio é visto como totalmente enviesado contra trabalhadores, a quem não oferece
ría a possibilidade de justiça. Nas entrevistas com pessoas de todas as classes so
ciais, a reação mais comum a menções do judiciário foi: “ E uma brincadeira, uma
piada!” . Freqüentemente, as pessoas não quiseram entrar em detalhes: era algo óbvio.
Algumas pessoas, entretanto, estenderam-se em suas opiniões.
5.13
— A justiça neste país não funciona. Isto eu afirmo por mim mesmo porque eu vejo as
coisas acontecerem e as coisas não têm uma resposta satisfatória para todos. A justiça, a lei,
neste país, não existe. 0 setor judiciário não-existe. Vida de advogado é meio que farsa neste
país. Infelizmente a maioria tem que se corromper para sobreviver, tem que favorecer a essas
pessoas que têm poder. Eu adoro a imagem do advogado, mas a imagem universal do advo
gado; a imagem do advogado no Brasil para mim é ultrajante. Para você conseguir uma coisa
que você sofreu que você tem que remediar e depende da justiça, além de você ir envelhecen
do com essa perda que você teve, de ela não ser remediada a curto prazo, além de você só
conseguir esta coisa daqui a anos, você gastou muito. Hoje quem usa um advogado tem que
ter dinheiro também...
Universitário, 23 anos, Moóca, desempregado; tem diploma de comunicação com espe
cialização em rádio, mora com os pais.
5.15
- Eu sempre falo para o meu cunhado, quando eu fico revoltado com alguma coisa, que
aqui no Brasil não tem lei. 0 país é sem lei, não é? Acontece coisa, desgraça com o cara que é
pobre, um coitado, fica por isso mesmo. Tenho até prova de um caso que aconteceu com um
ajudante...
[Ele conta o caso de um rapaz de 19 anos que trabalhava como ajudante de um motoris
ta de caminhão de uma empresa de transportes. Ele foi morto por um outro caminhão que fez
uma manobra errada num posto de gasolina. As pessoas viram o caminhão, anotaram a cha
pa e foram até a empresa, mas o dono recusou-se a dar o nome do motorista, e a polícia não
fez nada.]
Quando acontece alguma coisa, por exemplo: um empresário é seqüestrado, é notícia o
ano inteiro. A polícia vai atrás, vai fundo.
Vendedor desempregado, 32 anos, solteiro, mora com uma irmã casada na Moóca.
24 Ela se refere ao famoso crime envolvendo duas pessoas da classe alta e freqüentador
assíduos de colunas sociais. Doca Street matou sua namorada, Ângela Diniz, e foi absolvido du
rante um julgamento controvertido no qual seus advogados argumentaram que ele tinha agido em
“legítima defesa da honra” . O julgamento provocou uma forte reação das feministas, que desa
fiaram o argumento jurídico de “legítima defesa da honra” usado para absolver homens que ma
tam suas mulheres. Para uma história desse argumento e de como seus usos têm mudado, ver
Ardaillon e Debert (1987) e Américas Watch (1991a). Tal argumento foi considerado ilegítimo
em 1991 pelo Supremo Tribunal Federal. É interessante observar que a entrevistada das camadas
trabalhadoras que cito não está se referindo a esse crime da forma como ele geralmente é discuti
do — como uma prova de um sistema judiciário machista — mqs como uma prova de um siste
ma judiciário com um viés de classe.
5.16
- Explica pra mim aonde tá a lei! Onde tá a lei? Existe lei?
- A lei existe, na minha opinião, mas ela existe...
- Aqui no Brasil não tem condições (...) Porque eu acho, sei lá, eu sou um cara meio re
voltado com injustiça, viu, meu!... Eu não me conformo com uma coisa: por que o governo faz
tanta sacanagem com o trabalhador? (...) A lei funciona pra um lado só. Pro lado do quê? Do
quê? Pra onde eles tá ganhando dinheiro! Pro lado do dinheiro! É lógico!! Rapaz, você num
acha que um cara tem que ficar revoltado? Mas eu sozinho vou ficar revoltado? Vai adiantar
alguma coisa? (...)
Então, é o seguinte: o povo, o pobre, que não tem dinheiro, é que se fode. É isso que me
deixa mais irritado da vida por causa disso. Por que? Só manda o dinheiro. E existe justiça no
mundo? Por isso que eu falei pro dono da firma hoje, eu fui cobrar dele, eu falei: eu vou arre
bitar você, eu sei onde você mora! Bicho, eu vou morrer na detenção.
- Que é isso! Não fala assim, cara!
- Os outros sócios, é tudo safado também. Porque não existe lei nesse mundo. Então,
lei você tem que fazer com as próprias mãos.
- E isso leva a quê?
5.17
- Eu queria que existisse ainda o Esquadrão da Morte, sabe? 0 Esquadrão da Morte é a
polícia que só mata; o Esquadrão da Morte é a justiça com as próprias mãos. Eu acho que podia
existir isso ainda. Tem que fazer justiça com as próprias mãos, mas os próprios delegados fa
zer, as próprias autoridade, não a gente. Por que que a gente vai pegar o cara e matar? Por
que que a gente paga imposto? Pra isso, pra ser vigiado, pra ter melhores condições, como é
que chama? - materiais. Não adianta a gente linchar, o direito tinha que ser deles, o dever é
deles, que a gente paga imposto pra isso. (...) A lei tem que ser essa: matou, morreu.
Auxiliar de escritório, Jardim das Camélias, 18 anos; mora com os pais, uma irmã e dois
sobrinhos.
5.18
- Esquadrão da Morte foi jóia, foi a melhor polícia que teve. Depois que entrou o Es
quadrão da Morte e matou o Saponga, matou ele lá no Tremembé, acabou. São Paulo ficou
até 72 sem ter crime igual tinha antes. Foi uma beleza. Depois começou a condenar os caras
do Esquadrão da Morte. Era bom, e é, o Esquadrão da Morte, mas matar o cara certo, enten
deu?, matar o cara certo. Que o cara que não presta tem que morrer mesmo - fica aí comen
do comida, atrapalhando a vida dos outros, então some logo com ele, dá lugar pra outro.
- Mas quem é que decide quem é o cara certo e quem é o cara errado?
- É no flagrante, pegar o cara roubando na hora. Se o cara sabe que o cara é perigoso,
então vai procurar o cara. Pegou, matou. Nada de prender. Prender já era!
Motorista, Jardim das Camélias, 32 anos; foi motorista de táxi e agora trabalha como
motorista para um instituição pública; casado, quatro filhos.
Para algumas pessoas, pedir justiça à polícia significa pedir a ela para exercer
vingança imediata — como freqüentemente ela faz —, sem a mediação do sistema
5.19
- Eu acho também que a polícia, eles dão muita colher de chá para esses bandidos. Que
uma coisa que me revolta é que um bandido pode matar um pai de família, agora, um pai de
família não pode matar um bandido. Se ele entra na minha casa, quer dizer que eu não posso
fazer nada, agora eles podem pintar e bordar. Eu me revolto. E eu digo firme: eu sou a favor
da pena de morte, que Deus me perdoe, mas (...) É... eu acho que quando eles falavam nos direitos
humanos eles acham que não pode matar ninguém, né? Acho que... sei lá... Agora, eu não concor
do. Eu mesmo, tenho um conhecido meu, ele tinha uma mercearia, pequena; os bandidos entra
ram, acho que pela terceira vez, roubaram, ele achou que era um de desaforo, né? Foi, atirou.
Um morreu, o outro parece que foi preso. Ele, coitado, teve que fugir. Fechou a mercearia, abando
nou tudo, foi embora para o interior de SP. Agora, o outro que foi preso, no outro dia tava na
rua. Agora, ele falou que quando ele encontrar, ele vai matar; eles ainda entram, eles roubam
e ainda ameaçam o pai de família que precisou largar sua casa, seu lar, deixou tudo. Fechou,
não mexeu em nada, não voltou mais no local, com medo. Eu não concordo de jeito nenhum.
Dona de casa, Jardim das Camélias, 33 anos, quatro filhos;participou de vários movimen
tos sociais e associações locais; o marido é trabalhador especializado de uma pequena fábrica
têxtil.
26 De acordo com Martins (1991: 22), entre 1979 e 1988 a imprensa registrou 272 lincha
mentos no Brasil, 131 no estado de São Paulo. Em abril de 1991, um linchamento foi transmitido
pela televisão em cadeia nacional.
5.20
- 0 problema hoje em dia é esse: a impunidade. Agora, não saberia como resolver isso.
Não estou me colocando aqui como salvador da pátria. Estou vendo os problemas e não sei
como resolver. Eu acho que isso compete às autoridades.
- 0 senhor acha que individualmente as pessoas não vão conseguir resolver isso?27
- Individualmente, não.
- Por exemplo, onde eu moro as pessoas sabem da ineficiência do governo, dessa impu
nidade que o senhor está colocando, começaram eles mesmos a contratar policiamento, eles
mesmos a ter armas em casa...
- Eu acho que esse caminho aí seria o extremo, seria o fim da nação, seria o fim do go
verno. Se o governo não consegue conter o ímpeto de criminalidade, seria o fim, seria o caos.
Atacadista, Moóca, 45, casado; mora com a esposa e dois filhos.
5.21
- Aí fica um círculo vicioso: a população fica ultra-revoltada pelas barbaridades que os
ladrões, os criminosos, assaltantes, cometem. E cometem mesmo. Eu acho, por exemplo, em
nível pessoal, que se alguém matasse alguém de minha família e eu visse que o cara não foi
julgado, não fosse condenado, eu mandava matar ou matava. A nível pessoal, aí entra toda
uma emotividade, mas a nível teórico, como funciona um estado de direito, como funciona
uma jurisprudência, aí eu acho que o negócio tem que ser de outro jeito. Os direitos humanos
são a base de uma civilização.
Corretora imobiliária, 56 anos, divorciada, começou a trabalhar em 1990; mora no Alto
de Pinheiros com uma filha.
5.22
- Criei três filhas, minha concepção [é esta]: não permito duas coisas: andar de moto e
tóxico; o resto vocês podem fazer o que vocês quiserem. Porque, de moto, eu já vi tanto nego
morto (...) Eu sou uma pessoa que gosto de cumprir aquilo que é imposto, nunca gostei e nunca
vou gostar de alguém me chamar atenção por eu ter errado. Eu via garoto com 14, 15 anos
pegando carro, saindo - um absurdo. A vida é dinâmica, não é estática. Se você me perguntar
se você daria o carro pro seu filho com 15 anos, eu daria um carro pro meu filho pra ele sair
com 15 anos. Você sabe que é contra a lei? Eu sei que é contra a lei. Por que que eu daria? Eu
não tenho segurança de deixar um menino com 15 anos, 14 anos, 16 anos sair com condu
ção: ele vai ser assaltado, ele vai ser roubado. Ou vai andar de carro com um colega que eu
não conheço e eu não tenho confiança na responsabilidade dessa pessoa. Então, eu darei um
carro com 15 anos pra evitar o quê? Pra evitar que ele sofra qualquer agressão. Então, eu acho
que é válido.
Engenheiro, técnico especializado trabalhando para a polícia; 50 anos, casodo, cinco fi
lhos; Morumbi.
O que se segue é uma discussão entre pessoas com opiniões diferentes. Duas
mulheres dizem que não deixariam seus filhos dirigirem antes dos 18 anos. P acha
que “ cada coisa tem sua fase” ; a outra, O, diz que há uma regra e que gosta de seguir
regras. Entretanto, sua amiga M diz que certamente daria um carro a seus filhos
menores porque ela os educa para confiar neles e, se algo lhes acontecer, ela prefe
re que seja por algo que eles fizeram e não “ porque ele estava num táxi e o moto
rista praticou alguma violência com ele, ou ele foi roubado dentro de um ônibus...” .
Além de expressar perspectivas diferentes, a discussão entre essas amigas torna claro
o quão relativa a defesa dos princípios da lei pode ser.
Essas mulheres têm o privilégio de poder escolher não respeitar a lei: prova
velmente nada irá acontecer, elas têm dinheiro para sair de qualquer inconvenien
te. Quando a lei serve aos seus interesses, as pessoas a defendem; quando não, elas
a ignoram. Como uma delas reconheceu, no entanto, as pessoas das camadas tra
balhadoras não têm essa escolha.
Apesar da imensa distância que separa as diferentes classes sociais no Brasil,
e que marca seu relacionamento com a lei e o sistema judiciário,28 elas têm alguns
pontos em comum. As reações de todos os grupos sociais a experiências cotidianas
com a violência e com instituições da ordem ineficazes parecem estar levando a uma
deslegitimação do estado de direito. As pessoas que são vítimas de arbitrariedades,
violência e injustiças praticadas pelas instituições da ordem sentem que são deixa
das sem alternativas dentro daquela ordem. Pessoas que tiram vantagens das fra
quezas das instituições da ordem podem escolher ignorá-las e fazer o que acham
mais apropriado. Em ambos os casos, no entanto, as reações estão articuladas em
termos privados e freqüentemente ilegais. N os dois casos, o estado de direito é
deslegitimado. Essas tendências são também expressas pela difusão dos serviços de
segurança privada (legais e ilegais), que incentivam reações privadas ao crime.
S eg u ra n ça c o m o um a Q uestão P rivada
A expansão dos serviços de segurança privada em São Paulo nos últimos anos
não pode ser associada exclusivamente nem ao aumento do crime e do medo, nem
a disfunções da polícia e do sistema judiciário. O crescimento da indústria da segu
rança (tanto de equipamentos quanto de serviços) é uma característica das socie
dades ocidentais.em geral, e não algo específico de São Paulo. Na verdade, segu
rança é hoje uma mercadoria vendida no mercado sob formas cada vez mais sofis
ticadas e variadas. Em diversos países ocidentais, o equipamento de segurança está
se tornando cada vez mais complexo e os serviços privados estão crescendo consi
deravelmente, tanto em quantidade como em extensão.29 Por exemplo, nos Esta
dos Unidos, o número de pessoas empregadas na indústria de segurança privada
isaltou de 300 mil, em 1969, para 1 milhão em 1980, e para 1,5 milhão em 1990.
28 Reconhece-se que no Brasil a lei discrimina por classes: os pobres sofrem sanções crimi
nais em relação às quais os ricos geralmente estão imunes, enquanto os ricos desfrutam de acesso
à lei civil e comercial, da qual os pobres são sistematicamente excluídos. Sobre as conseqüências
desse duplo viés e outros aspectos do descrédito do judiciário no Brasil, ver Holston e Caldeira
(1998).
29 Várias empresas que vendem equipamentos de segurança em São Paulo são filiais locais
de empresas multinacionais. Nos Estados Unidos, há mais de 16 milhões de sistemas de segurança
residencial em uso. Entre 1986 e 1991, a venda de sistemas de alarme cresceu 80%. The New York
7'imes, 9 de fevereiro de 1991, p. 4-1.
32 Complementada pelo Decreto 1.592 de 10 de agosto de 1995 e pela Portaria 992 da Polícia
Federal de 25 de outubro de 1995.
33 Essa Comissão foi originalmente criada em 25 de fevereiro de 1991 (Portaria 73 do Mi
nistério da Justiça) e reformada pela Portaria 1.545 de 8 de dezembro de 1995.
43 Ver Fernandes (1991) para uma análise do caso do Cabo Bruno e de outros justiceiros.
203
Cidade de Muros
a liberdade de ação dos guardas privados. A questão principal é o respeito pelo estado
de direito e a consolidação do regime democrático. O Estado deve ser capaz de con
trolar a arena em que empresas ilegais de segurança privada fundem-se com esqua
drões da morte e justiceiros e com as ações ilegais da própria polícia. O controle
desse mercado ilegal não pode ser separado do controle dos abusos da força poli
cial, em si uma tarefa difícil. Isso indica o quão difícil será controlar um setor que
prefere ser deixado de lado para servir à elite, que sabe como se organizar para
defender suas próprias regras, dinâmicas e lucros, e que no terreno clandestino é
capaz de desfrutar do apoio de uma parte significativa da população para as suas
ações de vingança privada.
Há, ainda, a questão da desigualdade social. O crescimento da privatização
da segurança leva ao aprofundamento da desigualdade no acesso à segurança em
qualquer lugar (Bayley e Shearing 1996). N o Brasil, onde a distância entre as clas
ses é imensa, onde as camadas trabalhadoras têm sempre sido o alvo e a principal
vítima da polícia violenta, esse problema é especialmente agudo. Com a difusão da
segurança privada, a discriminação contra os pobres pelas forças de “ segurança” é
dobrada. Por um lado, eles continuam a sofrer os abusos da polícia. Por outro, como
os ricos optam por viver, trabalhar e consumir em enclaves fortificados usando os
novos serviços de segurança privada para manter os pobres e todos os “ indesejá
veis” de fora, os pobres tornam-se vítimas das novas formas de vigilância, contro
le, desrespeito e humilhação. Numa sociedade altamente desigual, a segurança pri
vada irá apenas servir para aprofundar essa desigualdade.44
O C ic lo de V io lên cia
44 Esse problema com certeza não é exclusivo de sociedades altamente desiguais. “As socie
dades democráticas ocidentais”, argumentam Bayley e Shearing, “ estão se transformando inexo
ravelmente, receamos, num mundo tipo Laranja Mecânica, onde tanto o mercado quanto o go
verno protegem os ricos dos pobres — um construindo barricadas e excluindo, outro por meio da
repressão e encarceramento — e no qual a sociedade civil para os pobres desaparece diante da
vitimização criminal e da repressão por parte do governo” (1996: 602).
O princípio que rege tanto a ação privada como a pública é o mesmo: vingança.
A diferença crucial, entretanto, e que tem enormes conseqüências sociais, é que “ sob
o sistema público, um ato de vingança não é mais vingado; o processo é encerrado,
o perigo de uma escalada, afastado” (Girard 1977: 16). Para que o sistema judiciá
rio interrompa efetivamente ciclos de vingança, ele tem que manter sua autoridade
e legitimidade. Ele tem que ser capaz de estancar formas paralelas de vingança pri
vada e ter o monopólio no exercício da vingança. Isto é exatamente o que não ocorre
na São Paulo contemporânea. Apesar de o judiciário nunca ter desfrutado de um
alto grau de legitimidade, recentemente ele perdeu mrtéá mais credibilidade em razão
de sua incapacidade de punir os responsáveis pelo número crescente de crimes vio
lentos, de conter as execuções sumárias extralegais cometidas pela polícia e a vin
gança privada dos justiceiros e esquadrões da morte, e porque as pessoas tendem a
-ignorá-lo e a resolver os conflitos pessoalmente ou por acordos privados.
45 Boreman (1997) recentemente aplicou a hipótese de Girard sobre o papel do sistema ju
diciário em evitar ciclos de violência para analisar o destino dos países do leste europeu e sua “in
vocação do estado de direito” no pós-socialismo. Ele concluiu que os Estados que são capazes de
se transformar e se estabelecer como autoridades morais legítimas que provêem justiça e invocam
os princípios do estado de direito “ não irão se desintegrar em ciclos de violência” . A chave dessa
transformação é a “ adoção por parte do Estado da responsabilidade por justiça distributiva”
(Boreman 1997: 165). O Estado que tipifica esse processo na análise de Boreman e que, segundo
ele, foi o mais bem-sucedido em controlar a violência e institucionalizar o estado de direito foi a
Alemanha Oriental. Esse exemplo é, no entanto, muito particular, já que a Alemanha Oriental foi
essencialmente incorporada ao quadro institucional já existente e em funcionamento na Alema
nha Ocidental. Ao se concentrar principalmente nesse caso específico, Boreman não considera como
o estado de direito pode ser legitimado num contexto em que ele não existia ou era muito abusivo
antes, ou seja, um contexto em que os termos da “invocação do estado de direito” não têm repre
sentação institucional e têm pouca ressonância junto à população. Esse parece ser o desafio de di
versos Estados pós-socialistas, assim como do Brasil.
207
Cidade de Muros
Teresa Pires do Rio Caldeira
CIDADE DE MUROS .
Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo
Tradução
Frank de Oliveira e Henrique Monteiro
Parte III
SEGREGAÇÃO URBANA,
ENCLAVES FORTIFICADOS
E ESPAÇO PÚBLICO
edusP
editoraB34
6.
SÃO PAULO: TRÊS PADRÕES DE SEGREGAÇÃO ESPACIAL
Esse in sigh t sobre a relação entre formas urbanas, interações de ciasses e ex
pressão artística sugere maneiras de considerar os padrões de segregação espacial
de São Paulo, especialmente as transformações recentes. Em sua análise das pintu
ras impressionistas de Paris, Clark identifica as principais características do novo
tipo de espaço público (e sua representação) exemplificados no finai do século XIX
pela reconstrução de Paris promovida por Haussmann. Os novos bulevares in
corporavam as condições para o anonimato e o individualismo, permitindo tanto
a livre circulação quanto a desatenção às diferenças e ajudando, assim, a consolidar
a imagem de um espaço público aberto e igualitário. Esses são exatamente os valo
res que estão em xeque atualmente em São Paulo e em muitas outras cidades onde
o espaço público não mais se relaciona ao ideal moderno de universalidade. Em vez
disso, ele promove a separação e a idéia de que os grupos sociais devem viver em
enclaves homogêneos, isolados daqueles percebidos como diferentes. Consequen
temente, o novo padrão de segregação espacial serve de base a um novo tipo de esfera
pública que acentua as diferenças de classe e as estratégias de separação.
A seguir, delineio as características gerais dos três padrões de segregação da
cidade usando indicadores geográficos, demográficos e socioeconômicos. No capí
tulo 7, analiso o aspecto mais revelador do novo modelo de segregação: a criação
de espaços murados e privados pelas classes média e aita. No capítulo 8, discuto as
transformações resultantes na vida pública e nas interações públicas e uso o caso
de Los Angeles como comparação.
De 1890 até cerca de 1940, o espaço urbano e a vida social em São Paulo fo
ram caracterizados por concentração e heterogeneidade.1 Na última década do sé
culo XIX, a população de São Paulo cresceu 1 3 ,9 6 % ao ano (ver a Tabela 6 ), mas
a área urbanizada não se expandiu proporcionalmente. Por volta de 1914, a densi
dade populacional da cidade era de 110 hab/ha, comparada a 83 hab/ha em 1881
(F. ViUaça citado por Rolnik 1997:165). Com o advento da industrialização, a outro-
ra sossegada cidade voltada aos serviços e negócios financeiros associados à expor
tação de café — a atividade econômica dominante no estado de São Paulo até a dé
cada de 1930 — foi transformada num espaço urbano caótico. Na virada do século,
a construção era intensa: erguiam-se novas fábricas uma atrás da outra, e residências
tinham que ser construídas rapidamente para abrigar as ondas de trabalhadores che
gando a cada ano.*2 As funções não eram espacialmente separadas, as fábricas eram
construídas perto das casas, e comércio e serviços intercalavam-se com residências.
Tabela 6
Evolução da população
Cidade de São Paulo e Região Metropolitana, 1872-1996
Ano São Paulo Taxa de Outros Taxa de Região Taxa de
crescimento municípios crescimento metropolitana crescimento
anual {%) da RM anual {%) Total anual (%)
1872 31.385
1890 64.934 4,12
1900 239.820 ' 13,96
1920 579.033 4,51
1940 1.326.261 4,23 241.784 1.568.045
1950 2.198.096 5,18 464.690 6,75 2,662.786 5,44
1960 3.781.446 5,58 957.960 7,50 4.739.406 5,93
1970 J.924.61J 4,59 2.215.115 8,74 8.139.730 5,56
1980 8.493.217 3,67 4.095.508 6,34 12.588.725 4,46
1991 9.646.185 1,16 5.798.756 3,21 15.444.941 1,88
1996 9.839.436 0,40 6.743.798 3,07 16.583.234 1,43
Fonte: Para 1872-1991, IBGE, Censo Brasileiro; para 1996, IBGE, Contagem 1996.
Obs; A região metropolitana deSãoPauloé formada peto município (cidade) de São Paulo e outros 3.8 municí
pios adjacentes (OM).
• A análise histórica de São Paulo durante o período de 1890-1940 baseia-se nos seguintes
estudos; Bonduki 1982 e 1983; Langenbuch 1971; Morse 1970; Rolnik 1983,1994 e 1997. Ri
beiro (1993) desenvolve uma análise semelhante para o caso do Rio de Janeiro.
2 Os novos habitantes da cidade que chegavam para o trabalho em fábricas recém-construídás
eram principalmente imigrantes europeus. Eles vieram para o Brasil incentivados por uma políti
ca destinada a importar trabalhadores brancos qualificados para substituir os ex-escravos negros
e “ branquear" a população brasileira. Em 1893,as pessoas nascidas no exterior representavam
55% da população da cidade, de acordo com o censo. Esse foi o pico da imigração estrangeira,
que diminuiu depois de 1900, quando a tasca de crescimento da população começou a cair. Em
1920, os estrangeiros representavam 3 6 % da população (Fausto 1 9 8 4 : 1Ò).
Embora a elite e os trabalhadores vivessem relativamente próximos uns dos
outros, havia uma tendência de a elite ocupar a parte mais alta da cidade — em
direção ao espigão centrai onde se localizaria a Avenida Paulista — e os trabalhadores
viverem nas áreas mais baixas, ladeando as margens dos rios Tamanduateí e Tietê
e próximo ao sistema ferroviário. No começo do século, a segregação social se ex
pressava também nas moradias: enquanto a elite (da indústria e da produção de café)
e uma pequena dasse média viviam em mansões ou casas próprias, mais de 80%
das habitações de São Paulo eram alugadas (Bonduki 1983: 146). A propriedade
de uma casa não era definitivamente uma opção para os trabalhadores, que em sua
maioria viviam em cortiços ou casas de cômodos, todos superpovoados.3 Essas cons
truções precárias constituíam um bom investimento na época e proliferaram pela
cidade. Não havia prédios de apartamentos para alugar na época. Uma minoria de
trabalhadores, basicamente os especializados, alugavam casas só para suas famí
lias, em geral casas geminadas. Algumas fábricas construíam essas casas geminadas
para seus trabalhadores especializados tanto como uma forma de atraí-los com a
oferta de melhores moradias como para discipliná-los com a ameaça de despejo.
Numa cidade concentrada como era São Paulo, que havia crescido e mudado
rapidamente, ás preocupações com a discriminação, classificação e controle da
população eram intensas no começo do século. Como também foi típico nas cida
des européias no início da industrialização, essas preocupações eram frequentemente
expressas em termos de saúde e higiene, sempre associadas à moralidade. Questões
sobre como abrigar os pobres e como organizar o espaço urbano numa sociedade
que se industrializava estavam ligadas ao saneamento. Em conjunto, elas se torna
ram o tema central das preocupações da elite e das políticas públicas durante as pri
meiras décadas do século XX.
A elite paulista diagnosticou as desordens sociais da cidade em termos de
doença, sujeira e promiscuidade, idéias logo associadas ao crime. Em 1890, o esta
do de São Paulo criou o Serviço Sanitário, seguido pelo Código Sanitário de 1894.
Logo em seguida, agentes do estado começaram a visitar as moradias dos pobres,
especialmente os cortiços, procurando por doentes e mantendo estatísticas e regis
tros. Essas visitas geravam reações negativas: era clara para as classes trabalhado
ras a associação de serviços sanitários com controle social.4 Além de controlar os
pobres, a elite começou a separar-se deles. Temendo epidemias — assim como te
mem o crime hoje — e identificando os pobres e suas condições de vida a doenças
e epidemias, os membros das elites começaram a mudar-se das áreas densamente
povoadas da cidade para regiões um pouco afastadas e com empreendimentos imo-
3 Em 1900, a média de pessoas por prédio em São Paulo era de 11,07 (Bonduki 1982:85).
4 Uma das principais revoltas populares na época não se originou no espaço de trabalho,
mas seguiu-se à decisão do governo de vadnar a população contra a varíola e mandar agentes sa
nitários pata as áreas pobres do Rio de Janeiro a fim de desinfetar suas casas e destruir aquelas
supostamente infestadas. A Revolta da Vacina Obrigatória ocorreu em 1904, quando o prefeito
Pereira Passos lançou um programa radical de reforma urbana do tipo haussmanniano, abrindo
grandes avenidas no centro da cidade e destruindo muitas habitações de moradores pobres.
5 A Lei Municipal 1.874, de 1915, criou a primeira divisão da cidade em quatro zonas (central,
urbana, suburbana e rural) e exigiu que as plantas de construção fossem aprovadas pela adminis
tração municipal. O Ato 849, de 1916, regulamentou a construção. A Lei Municipal 2.611, de
1923, estabeleceu dimensões mínimas para um lote urbano (300 m2) e regras para a pavimenta
ção das ruas. Ela também estabeleceu que, para empreendimentos maiores que 40 mil m2, oincor-
porador deveria doar espaços para ruas e áreas verdes. Ao que parece, essa lei foi influenciada pela
City of São Paulo Improvements and Free Hold Land Co., Ltd., a companhia que estava lançando
novos empreendimentos imobiliários inspirados nas cidades-jardins inglesas desde 1912. Esses
empreendimentos originaram os bairros chamados “Jardins", que têm alojado as classes média e
alta desde os anos 20 (São Paulo, Sempla 1995:15). Em 1929, a cidade aprovou seu primeiro Código
de Obras (Lei Municipal 3.427, Código Arthur Saboya), que sistematizou a maior parte da legis
lação anterior e estabeleceu um mínimo de três andares por prédio na área centrai, dessa forma
encorajando a construção vertical. Essecõdigo foi reconsolidado em 1934. Ver Morse (1970: 366-
7) para uma crítica desse plano.
* Ver Holston (1991 b) para uma análise da relação entre as práticas ilegais e a ocupação da
terra no Brasil e especialmente na periferia de São Paulo. Ver Rolnik (1997) para uma análise da
legislação urbana e da mesma dinâmica legat/ilegal entre 1886 e 1936.
7 Embora decisões importantes baseadas no plano tenham começado a ser tomadas no fi
nal da década de 20, as principais obras foram executadas depois de 1988, durante a administra
ção de Prestes Maia.
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216
podiam pagar os elevados aluguéis acabaram expulsos do centro. O Plano de Ave
nidas também optou por investir nas ruas em vez de expandir o serviço de bondes.
Uma das principais causas da concentração da cidade era que o transporte coletivo
baseava-se np sistema de bondes, que requeria instalações caras e, portanto, expan
dia-se ientamente. Porque esse sistema cobria apenas uma pequena área da cidade,
era difícil desalojar os moradores pobres do centro da cidade, onde trabalhavam.
O lançamento de um sistema de ônibus, associado à progressiva abertura de novas
avenidas, possibilitou a expansão da cidade em direção à periferia.
A segunda fonte de influência nas transfofhiações urbanas veio do grupo de
industriais ôongregados na Federação das Indústrias e liderados por Roberto Si-
monsen. Eles estavam interessados em estudar os padrões de consumo e moradia
das classes trabalhadoras a fim de reformá-los. Promoveram a criação de uma sé
rie de instituições que se especializaram no estudo edocumentação das condições
de vida das classes trabalhadoras, especialmente a habitação popular, considerada
“o magno problema social” (Bonduki 1983: 147). Convencidos de que os empre
gadores não podiam arcar com a responsabilidade de resolver esse problema, os 1'
industriais eram favoráveis à aquisição da casa própria pelos trabalhadores, o que
podería reduzir suas despesas com moradia e aumentar suas possibilidades de con
sumo. Obviamente, também estavam interessados em organizar o espaço da cida
de para a expansão industrial.
A terceira fonte era o movimento sindical, que se tornou bastante forte sob a
influência anarquista. Ele promoveu uma série de greves importantes em São Pau
lo durante a década de 10 (Fausto 1977) e na década de 20 uniu-se a outros movi
mentos de oposição que levaram à derrota da República Velha. A habitação era um
tema central nos movimentos de trabalhadores, expresso principalmente em discus
sões sobre o aluguel e seu controle. Desde a década de 10, os sindicatos anarquis
tas propuseram a formação de “ligas de inquilinos” para boicotar o pagamento de
aluguéis. Apesar dessa mobilização, e a despeito da sua contribuição para a mu
dança do regime político, a “questão da moradia” acabou sendo tratada indivi
dualmente por cada trabalhador, e não coletivamente.
Finalmente, a quarta influência na transformação urbana foi o governo fede
ral, especialmente depois da Revolução de 1930. O recém-criado Ministério do
Trabalho defendeu a criação de oportunidades para as classes urbanas adquirirem
a casa própria. Assim como os industriais, os representantes do Ministério do Tra
balho estavam interessados em cortar despesas com alugue) e disseminar o valor
da casa própria, que consideravam uma das bases da estabilidade social. O gover
no federal tomou várias iniciativas para propagar a casa própria, nem todas igual
mente bem-sucedidas.8 O fator que teria o maior impacto na cidade e nos arranjos
9 Para uma análise das várias dimensões da Ld do Inquilinato, ver Bonduld (1983 e 1994).
Para uma análise da política trabalhista de Vargas, ver Santos (1979).
10 Desde 1934 várias restrições foram impostas à imigração estrangeira. No mesmo perío
do, secas no Nordeste fizeram com que muitos se deslocassem para São Paulo. Durante o período
de 1935-1939,96% das 285 mil pessoas que migraram para o estado de São Paulo eram brasilei
ros (Morse 1970:302).
11A análise que se sçgue é baseada em: Brant etal. (1989),Bonduki (1983), Calddra (1984),
Camargoeto/.(1976) eLangenbuch (1971).
Em 1948, os ônibus públicos respondiam por 31% dos deslocamentos entre a casa e o
trabalho, e os ônibus particulares, por 12,6%. Em 1966, no entanto, a situação havia se inverti
do: os ônibus particulares faziam 7J,7% dos deslocamentos e os ônibus públicos,apenas 15,5%
(Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994:153).
17 Todas essas formas deilegalidade ou irregularidade afetam as pessoas que compram seus
lotes de boa-fé e pagam por eles. Eles constituem um caso diferente do das favelas, que são forma
das pela invasão de terras e onde as pessoas normalmente não compram os lotes (embora possam
comprar seus barracos).
'* Em 1977, na zona leste da cidade, onde se localiza o Jardim das Camélias, moradores
que usavam ônibus para ir ao trabalho gastavam uma média de 13 horas fora de casa, indo ou
vindo para o trabalho e trabalhando. Em 1987 a situação permanecia inalterada (Caldeira 1984:
62, Metrô 1989:41).
19 Para 1920, Bonduld (1982:146); para 1960 e 1991, Censo Brasileiro.
70 Agradeço ao Laboratório de Espadalização de Dados do Cebrap e especialmente a Ciro Bi-
derman e Anderson Kazuo Nakano pela assistência na elaboração dos mapas usados neste capítulo.
Mapa 1
Expansão da Área Urbana, Região Metropolitana de São Paulo, 1949-1992
l&. ;d
10
C i d a d f rir» M n r o c
À medida que a metrópole se expandiu as preocupações das autoridades pú
blicas em regular o espaço construído, domar a expansão descontrolada e reme
diar os efeitos mais perversos também aumentaram. Os regulamentos e planos mul
tiplicaram-se a partir dos anos 60. No entanto, como já havia acontecido antes, seus
efeitos foram sentidos principalmente nas áreas centrais ocupadas pelas classes média
e alta, enquanto as periferias permaneceram negligenciadas até os anos 70.
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região central, élas não explicam porque alguns atios mais tarde a classe média es
tava se mudando para um tipo de residência que antes havia rejeitado fortemente.
Este fenômeno pode ser melhor entendido considerando-se a próxima importante
intervenção do Estado no mercado imobiliário de apartamentos, dessa vez em âmbito
federal: a criação, em 1964, do BNH e do SFH (Sistema Financeiro de Habitação).
Este sistema, que começou a operar em larga escala em 1967, foi criado especifíca-
mente para promover a construção e financiamento da casa própria para famílias
de renda baixa e muito baixa. Nci entanto, como é sabido, nos anos 70 o BNH
tornou-se a principal fonte de financiamento para a classe média, e o que ele mais
financiava eram apartamentos em prédios recém-construídos. Do total de recursos
fornecidos pelo SFH entre 1965 e 1985, apenas 6,4% foi para famílias com renda
menor do que 3,5 salários mínimos (Brant et al. 1989: 9 S ).26
O SFH provocou uma forte transformação num mercado imobiliário que vi
nha sendo dominado por incorporadores relativamente pequenos e famílias que
construíam suas próprias residências. Ele estimulou a criação de grandes empresas
de incorporação imobiliária, que tomavam dinheiro emprestado do SFH para cons
truir edifícios ou conjuntos habitacionais para serem vendidos com financiamento
do BNH. Embora dados para São Paulo, não estejam disponíveis, Ribeiro e Lago
mostram que no Rio de janeiro, do total de incorporadores imobiliários registrados
ns} cidade no final dos anos 1980, 60% havia iniciado suas atividades durante a
dt :ada de 70 (1995:375). Esses incorporadores tinham muito mais capital do que
os'empreendedores anteriores e dominaram completamente o mercado imobiliário
a partir dos anos 70, primeiro nas regiões centrais das áreas metropolitanas e mais
recentemente também nas periferias. Esses incorporadores construíam sobretudo
edifícios, mas também alguns condomínios fechados horizontais.
Especialmente durante a década de 70, os anos do “milagre econômico” , o
BNH (associado a grandes incorporadores) desempenhou um papel fundamental
no mercado imobiliário. Em São Paulo, 80,8% dos prédios de apartamentos residen
ciais colocados ,no mercado entre 1977 e 1982 receberam financiamento do BNH
(Salgado 1987:58). A entrada do SFH no mercado imobiliário fez com que o número
de prédios de apartamentos registrados por ano no município de São Paulo mais
do que dobrasse.27 Considerando-se que 63% das unidades financiadas pelo SFH
entre 1970 e 1974 eram para o assim chamado mercado médio (isto é, para a clas
se média), 25% para o mercado econômico e apenas 12% para o mercado popular
(Rolnik et al. s.d.: 111), não é difícil concluir que os prédios de apartamentos eram
moradias de classe média. Em outras palavras, a classe média conseguia emprésti
mos baratos subsidiados pelo governo, e as camadas trabalhadoras, que não tinham
recursos para comprar no mercado formal e que só raramente atingiam as exigên-
16 Ver Sachs (1990) para uma análise das políticas de habitação durante a existência do BNH.
27 O número de prédios de apartamentos registrado por ano no município de São Paulo pulou
de uma média de 265 entre 1959 e 1969 para 580 entre 1970 e 1976 (Ferreira 1987: 25). Para
análises do Rio de Janeiro que mostram um padrão semelhante, ver Ribeiro (1993) e Ribeiro e
Lago (1995).
Na década de 70, São Paulo tinha se tornado uma cidade na qual pessoas de
diferentes classes sociais não só estavam separadas por grandes distâncias, mas tam
bém tinham tipos de habitação e qualidade de vida urbana radicalmente diferen
tes. Desde o final dos anos 60, a cidade tem realizado estudos que indicam essas
disparidades. Em 1968, o PUB (Plano Urbanístico Básico) mostrou que 52,4% dos
domicílios não tinham ligação de água, 41,3% não estavam ligados à rede de esgo
tos e 15,9% não dispunham de coleta de lixo (citado por Camargo eia/, 1976:28).28
zs o PUB foi a base para o primeiro plano urbanístico gerai da cidade, o Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado aprovado em 1971 (Lei Municipal 7.688).
A ílão Paulo do final dos anos 90 é mais diversa e fragmentada do que era
nos anos 70. Uma combinação de processos, alguns deles semelhantes aos que afe
tam outras cidades, transformou o padrão deriistribuiçâo de grupos sociais e ativi
dades através da região metropolitana. São Paulo continua a ser altamente segregada,
mas as desigualdades sociais são agora produzidas e inscritas no espaço urbano de
modos diferentes. A oposição centro-periferia continua a marcar a cidade, mas os
processos que produziram esse padrão mudaram consideravelmente, e novas for
ças já estão gerando outros tipos de espaços e uma distribuição diferente das clas
ses sociais e atividades econômicas. São Paulo hoje é uma região metropolitana mais
complexa, que não pode ser mapeada pela simples oposição centro rico versus pe-'
riferia pobre. Ela não oferece mais a possibilidade de ignorar as diferenças de clas
ses; antes de mais nada, é uma cidade de muros com uma população obcecada por
segurança e discriminação social.
Vários foram os processos que se combinaram para provocar as mudanças
recentes no padrão de segregação espacial de São Paulo. Nos anos 80 e 90, a taxa
de crescimento populacional em São Paulo caiu significativamente, como resulta
do de uma queda acentuada nas taxas de fecundidade (ver capítulo 1) combinada
com emigração. Isto é, reverteram-se as tendências demográficas que haviam ca
racterizado a cidade nos últimos cem anos. Essa mudança demográfica combinou-
se a uma transformação nos padrões residenciais especialmente para os moradores
mais ricos e os mais pobres. Pela primeira vez na história da São Paulo moderna,
moradores ricos estão deixando as regiões centrais da capital para habitar regiões
distantes. Embora a riqueza continue geograficamente concentrada, a maioria dos
bairros centrais de classe média e alta perderam população no período de 1980-
1996, enquanto a proporção de moradores mais ricos aumentou substancialmente
em alguns municípios no noroeste da região metropolitana e em distritos no sudo
este da cidade habitados anteriormente por pessoas pobres. Nessas novas áreas, o
principal tipo de habitação é o enclave fortificado. Ao mesmo tempo, a aquisição
da casa própria por meio da autoconstrução na periferia tornou-se uma alternati
va menos viável para os trabalhadores pobres. Isso é o resultado da combinação
de dois processos: o empobrecimento causado pela crise econômica dos anos 80 e
■ as melhorias na infra-estrutura urbana na periferia, inclusive a legalização de ter
renos, resultante da pressão dos movimentos sociais e de um novo tipo de ação dos
governos municipais. Em outras palavras, enquanto as rendas diminuíram, a peri
feria melhorou e tornou-se mais cara. Como resultado, muitos moradores pobres
tiveram de colocar de lado o sonho da casa própria e cada vez mais optar por viver
em favelas ou em cortiços, que aumentaram substancialmente.
A dinâmica econômica e a distribuição de atividades econômicas também
mudou. O setor industrial, especialmente na cidade de São Paulo, perdeu sua pre-
O Censo de 1980 apresenta dados para 56 distritos e subdistritos da cidade de São Paulo
e o Censo de 1991 apresenta dados para 96 distritos. Os novos distritos não são subdivisões dos
antigos, mas têm limites totalmente diferentes, tornando impossível a criação de unidades compa
ráveis. A Secretaria Municipal de Planejamento (Sempta) elaborou uma tabela que estima a popu
lação de 1980 de acótdo com os novos distritos. Essa é a única informação disponível de uma forma
comparável de acordo com os novos distritos para o período de 1980-1991. Além disso, a Emptasa
(Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo) produziu alguns poucos indica
dores comparáveis para os velhos distritos. A Contagem de 1996, que tem dados organizados de
- acordo com os novos distritos, restringe-se a alguns indicadores demográficos.
32 Uma fonte alternativa de informação seriam as Pesquisas OD (Origem-Destino) realiza
das pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) em 1977 e 1987. Elas apresentam
resultacos para pequenas subdivisões da cidade chamadas zonas de tráfego. Embora essas subdi
visões também sejam diferentes para as duas datas, o Departamento de Planejamento da Secreta
ria de Planejamento do Município de São Paulo criou unidades comparáveis durante a adminis
tração de Luiza Erundina. Usei esses dados na minha tese, mas decidi abandoná-los depois da
publicação do Censo de 1991, pois os dados para 1987 diferem consideravelmente dos resultados
do censo. A Pesquisa OD-87 usou estimativas populacionais que o censo provou estarem erradas
(por exemplo, para a cidade de São Paulo, a Pesquisa OD estimou um crescimento anual da po
pulação de 3,2% em vez do 1,1% observado pelo censo). Como consequência, a maioria das in
formações em que me baseei antes da publicação do censo (e que usavam a densidade populacio
nal como uma variável) estava incorreta. As discrepâncias eram especialmente altas em relação a
alguns bairros fundamentais para minha análise, como a Moóca, que teve um crescimento popu
lacional negativo (-1,6%) de acordo com o Censo de 1991, mas um crescimento anual significativo
de acordo com a Pesquisa OD-87 (2,0%). Na análise atual não uso nenhum dado da Pesquisa OD
que dependa de estimativas populacionais. No entanto, uso seus dados sobre construções baseados
nos registros municipais de propriedade urbana (TPCL — Cadastro de Propriedade Urbana). Os re
sultados das Pesquisas OD estão em: São Paulo, Emplasa (1978), Metrô (1989), e Rolnik et a!. (s.d.).
Dados de acordo com as zonas de tráfego não foram publicados. Gostaria de agradecer ao Departa
mento de Planejamento do município de São Paulo (da administração Erundina) e especialmente .
a Raquel Rolnik e Heloísa Proença por terem permitido meu acesso a esses dados não-publicados.
33 A cidade de São Paulo tem uma área total de 1,509 km2. A área total da região metropo
litana é de 8.051 km2.
34 Para a análise do crescimento populacional de acordo com os 96 distritos novos uso a
estimativa de população de 1980 feita pela Sempla, Secretária Municipal de Planejamento, com
base em dados do censo, além de dados do Censo de 1991 e da Contagem de 1996. Ver no Mapa
4 no Apêndice os 96 distritos novos da cidade de São Paulo.
33 7,5% dos distritos da cidade perderam população nos anos 70. Esses tinham 1,87% da
população em 1980. Para uma análise do crescimento da população de acordo com os velhos dis
tritos da cidade durante o período de 1940-1980, ver Caldeira (1984: cap. 1}.
36 As taxas médias anuais de crescimento populacional entre 1980 e 1991, e 1991 e 1996,
respectivamente, foram: -0,61 e -3,80 no Itaim Bibi, -1,90 e -3,57 em Santo Amato, -1,35 e -2,53 na
Consolação,-1,67 e -2,43 em Pinheiros,-0,68 e -1,33 na Vila Mariana,-0,69 e -0,95 em Perdizes.
37 Por exemplo, em Cidade Tiradentes (antes uma pane do velho distrito de Guaianases,
no limite leste), que teve a maior taxa anual de crescimento populacional nos anos 80 (24,55%) e
a segunda mais alta entre 1991el996(ll,06% ), 90,3 % da população vive em áreas classificadas
como rurais. Marsilac (anteriormente parte de Parelheiros, no limite sul), o distrito com as piores
condições de infra-estrutura, é totalmente rural.
38 Além de São Paulo, Osasco, Santo André, São Caetano e SalesópoliS tiveram emigração
entre 1980 e 1991 (São Paulo, Emplasa 1994: 136).
39 Em julho de 1997, a única informação disponível sobre renda do Censo de 1991 de acor
do com os distritos da cidade referia-se à renda dos chefes de domicilio. Informações sobre a for
ça de trabalho e a população economicamente ativa não estão disponíveis por distrito. Infeiizménte,
as informações sobre a renda dos chefes de família não são disponíveis para o Censo de 1980, o
que novamente toma comparações e a análises dtacrõnicas difíceis. Em 1991 (setembro), o valor
do salário mínimo era de Cz$ 36,161,00, ou aproximadamente USS 65,00; em 1997, era de R$
112,00 ou USS 100,00.
40 Os dados TPCL são organizados de acordo com os velhos distritos. Para o Censo de 1991,
uso uma tabulação especial de domicílios com base nos velhos distritos feita pela Emplasa (São
Paulo, Emplasa 1994: 349).
410 TPCL registrou 19.537 unidades residenciais em Guaianases em 1990, enquanto o censo
registrou 104.155 domicílios em 1991. Para a cidade como um todo, o censo registrou 2.S39.953
domicílios, enquanto o TPCL em 1990 registrou 1.684.994, uma diferença de 50,74%. Este é um
problema antigo, Rolnifc descobriu altas proporções de construções não regularizadas no final do
século XIX e no início do sécuio XX/(1997: 60, 77).
48 O mesmo processo parece estar ocorrendo na periferia do Rio de Janeiro, como indicado
por Ribeiro e Lago (1995).
49 Um cortiço normalmente tem muitos quartos. Em média, há 6,7 famílias por cortiço, mas
em algumas áreas, como a Moóca, o número é mais alto (12,1).
i
Mapa 2
Renda Mensal Média dos Chefes de Domicílio (em salários mínimos),
Região Metropolitana de São Paulo, 1991
d ) 3.00 a 5.00
| | 5.00 a 9 00
í0 Esses distritos são: Jardim Paulista, Moema, Alto de Pinheiros, Morumbi, Consolação,
Pinheiros, Itaim Bibi, Santo Amaro, Perdizes, Campo Belo e Vila Andrade. Vale lembrar que São
Paulp, como o Brasil em geral, é uma sociedade desigual, com úma elite pequena, extremamente
rica,'.: uma enorme população empobrecida. A desigualdade social tornou-se ainda pior durante
os artos 90. Como conseqliênda, não é de surpreender que a população mais rica seja bastante
pequena. Apenas 7,16% dos chefes de domicílio na cidade ganhavam mais de 20 SM em 1991.
51 A razão dos chefes de domicílio que ganham mais de 20 SM em relação àqueles que ga
nham menos de 3 é de 4,59 no Jardim Paulista e de 3,98 em Moema. Apenas em 11 distritos da
cidade essa razão £ maior que 1,0.
si Os apartamentos representavam 20,8% do número total de domicílios na cidade de São
Paulo em 1991, de acordo com o censo.
13 A fonte para o número e a localização de prédios de apartamentos colocados no merca
do entre 1976 e 1996 £ a Embraesp — Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio S/C Ltda.
(Relatórios Anuais).
í4 Durante os anos 80, um dos temas mais constantes em artigos de jornal sobre bens imó
veis era a associação da crise econômica com “apartamentos de luxo". Esse parece ser o setor do
mercado de construção de apartamentos que mais flutuou nos últimos 15 anos. Apartamentos de
quatro dormitórios representavam 30,77% dos apartamentos lançados no mercado em 1985, e '
20% em 1984 e 1986. No entanto, essa proporção caiu para uma média de 6,8% de 1987 a 1993
(Embraesp 1994:6). Ela aumentou novamente após 1994, e a média para 1994-1996 foi de 20,47%
(Embraesp 1997: 11). Houve também uma tendência de diminuição da área média dos grandes
apartamentos depois de 1985. A despeito disso, a área média dos apartamentos com quatro dor-
mítórios é quase o dobro daquela dos apartamentos com tres dormitórios (185 m2 de área util
comparados a 85,57 m2). Além disso, enquanto a área média dos apartamenros de três dormitó
rios manteve-se constante entre 1990 e 1997, a área média dos apartamentos de quatro dormitó
rios variou consideravelmente (Embraesp 1997: 9).
55 Houve 55 distritos dos anos 50 até os anos 80.
Si Dados do TPCL para 1980 não foram publicados; para 1990 eles aparecem em São Pau
lo, Sempla (1992). O coeficiente de aproveitamento pode ser calculado separadamente para áreas
residenciais horizontais ou verticais e é um indicador relativamente confiável de construções ver-
ticai1-, que em gerai são registradas. Em 1990, o TPCL registrou 566.466 apartamentos, enquanto
o Cehso de 1991 registrou 529.991 na cidade de São Paulo, uma diferença de 6,9%. No que se
refere às casas, no entanto, o TPCL registrou 1.118.531 casosem 1990, enquanto o Cénso de 1991
registrou 15*84.710, uma diferença de 77,4%. Os distritos nos quais a diferença entre proprieda
de registrada e os domicílios identificados pelo censo é pequena são aqueles com maior propor
ção de prédios de apartamentos e famílias de renda alta (Consolação, Jardim Paulista, Jardim
América, Cerqueira César, Pinheiros e Perdizes).
i7 As taxas anuais de crescimento da população para 1980-1991 epara 1991-l996são2,33%
e -0,75% no Morumbi, e 5,93% e 4,93% na Vila Andrade.
246
Teresa Pires do Rio Caldeira
na distribuição de renda é uma característica das novas áreas de expansão da cida
de e da região metropolitana, onde os empreendimentos imobiliários para pessoas
com rendas mais altas estão localizados em regiões que eram pobres e parcamente
habitadas, e onde os apartamentos para as classes altas são construídos ao lado de
imensas favelas.
Os vizinhos dos condomínios fechados em volta do Real Parque e da Aveni
da Giovanni Gronchi, no coração do Morumbi, são moradores de duas das mais
famosas favelas de São Paulo. Em 1987, havia 233.429 pessoas morando em fave
las no distritos do oeste e sudoeste da cidade, o que correspondia a 28,62% dos
moradores de favelas de São Paulo.60 Em 1993, os moradores de favelas desses
distritos aumentaram para 482.304, o que representava 25,36% dos residentes de
favelas de São Paulo (São Paulo, Sempla 1995: 76).
Depois de 15 anos de intensa incorporação imobiliária para as classes mais
altas em regiões com infra-estrutura precária combinada com a proliferação de
favelas, o Morumbi exibe um quadro impressionante de desigualdade social e exem
plifica a nova face da segregação social na cidade (ver Fotos 10 e 11). Quando se
observa a área em torno de sua avenida principal, a Avenida Giovanni Gronchi, e
os anúncios de seus edifícios, fica-se perplexo com a imaginação dos incorporadores
imobiliários para dotar cada conjunto de apartamentos de características “distin
tas'.’: além da arquitetura monumental e dos nomes vagamente aristocráticos, os
prédios têm características exóticas, como uma piscina para cada apartamento, três
quartos de empregada, salas de espera para motoristas no térreo, salas especiais para
guardar cristais, porcelanas e pratarias e assim por diante. Todo esse luxo contras
ta com a visão que se tem das janelas dos apartamentos: os mais de 5 mil barracos
da favela Paraisópolis, uma das maiores de São Paulo, que fornece os empregados
domésticos para os condomínios vizinhos. Para pessoas interessadas em viver ex
clusivamente entre seus pares, os muros têm mesmo de ser altos, e as residências
para as claáses altas não disfarçam suas cercas eletrificadas acima dos muros, as
sim como câmaras de vídeo e guardas particulares.
A construção intensa de acordo com os interesses dos incorporadores imobi
liários e com. pouco planejamento ou controle por parte do Estado, além de trans
formar completamente a paisagem, criou um espaço caótico. Edifícios imensos fo
ram construídos um após o outro em ruas estreitas e com infra-estrutura inadequa
da. Na Vila Andrade, por exemplo, apenas 57,6% dos domicílios estão conectados
à rede de esgoto, uma porcentagem mais baixa do que em vários distritos da perife
ria pobre (para o total da peri feria a porcentagem é de 74%). Os edifícios são imen
sos e muitas das novas ruas não têm calçadas — provavelmente com a intenção de
manter distantes as pessoas que não têm automóvel. O tráfego é intenso e os con-
60 Não estão disponíveis números exatos de favelas no Morumbi e na Vila Andrade porque
os resultados do Censo de Favelas são fornecidos de acordo com uma outra classificação espacial:
as administrações regionais. Para a estimativa apresentada no texto, considerei a população que
vivia em favelas nas administrações regionais do Butantã e Campo Limpo, que incluem o Morumbi
e a Vila Andrade, mas são maiores do que esses distritos.
;*•
248
Teresa Pires do Rio Caldeira
gestionamentos, uma rotina.61*Apesar de altos investimentos da cidade e da cons
trução de pontes, túneis e vias expressas ligando o Morumbi ao centro da cidade através
do rio Pinheiros, as vias de acesso são insuficientes e o transporte público é simples
mente ruim. Isso dificulta o cotidiano dos mais pobres, mas também é inconvenien
te para as classes médias, já que o bairro ainda carece de serviços básicos e de comér
cio. Apesar de alguns grandes shopping centers e hipermercados estarem agora ope
rando na região, o abastecimento cotidiano de alimentos requer um automóvel, um
tipo de dependência que pode ser contornada na maioria dos bairros centrais de São
Paulo, onde, como se diz, pelo menos o pão pode ser comprado a pé. O transporte
das crianças e adolescentes também depende dos automóveis, mesmo para ir às es
colas particulares do bairro, que contam entre os melhores serviços ali disponíveis.61
Ao contrário dos bairros centrais da cidade e das regiões pobres da periferia,
o Morumbi e a Vila Andrade não são lugares onde os moradores rotineiramente
caminham pelas ruas. Ironicamente, esses bairros, com suas ruas estreitas, infra-
estrutura ruim e ligações precárias com o resto da cidade, dependem de automó
veis para quase tudo. Consequentemente, mudar para um dos apartamentos de luxo
da região significa suportar tráfego pesado e serviços urbanos deficientes. No en
tanto, para os moradores dos novos conjuntos fechados, as inconveniências pare
cem ser mais do que compensadas pela sensação de segurança que ganham por trás
dos muros, vivendo exclusivamente entre iguais e longe do que consideram ser os
perigos da cidade.
R ecess Ao , D esindustriauzaçâo e os
Novos E spaços para Atividades T erciárias
61 No Portal do Morumbi, por exemplo, que está situado numa rua estreita e tem apenas
duas saídas, na hora do rush, especialmente de manhã, o congestionamento chega a ser tão inten
so que os moradores podem levar mais de meia hora para cruzar os limites de seus muros e chegar
à avenida que os liga à cidade.
(í Atraídas pelos terrenos baratos e pela possibilidade de construir grandes instalações, muitas
das tradicionais escolas particulares se mudaram para o Morumbi ou abriram novas filiais. Isso é
algumas vezes mencionado como um motivo para as pessoas se mudarem para o Morumbi.
63 O valor adicionado total (VAT) corresponde, para cada município, ao valor das saídas de
mercadorias, acrescido do valor das prestações de serviços no seu território, deduzido o valor das
entradas de mercadorias, em cada ano civil. Este indicador é calculado pela Secretaria da Fazenda.
64No estado de São Paulo, a participação do setor industrial na produção total caiu de 47,1 %
em 1980 para 41,3% em 1991. Simultaneamente, a participação das atividades terciárias aumen
tou de 49,7% para 54,6%.
65 Ela cresceu de 34,7% em 1960 (Seade 1990: 24) para 39,6% em 1970 (Gonçalves e
Semeghini 1992)
66 Os estudos de economia urbana que estou citando consideram apenas dois setores: o in
dustrial e o terciário. Portanto, a porcentagem do setor terciário nas atividades econômicas é com
plementar à das atividades Industriais: 67,9% para a cidade em 1991.
47 A área da cidade afetada pelo movimento das atjvidadcs terciárias segue o rio Pinheiros,
em ambas as margens, da Lapa — passando pelo Butantâ e Morumbi — até o Campo Limpo a
oeste, e do Alto de Pinheiros até Sanro Amaro, passando pelo Ibirapuera e peia Vila Olímpia, a
leste. Em todas essas áreas podemos observar a combinação de condomínios fechados da classe
alta com favelas e de enclaves residenciais com centros comerciais e de escritórios.
A R egião M etropolitana
48 Entre 1980 e 1990, a taxa média de variação do valor adicionado total (VAT) foi nega
tiva nos municípios industriais, como, por exemplo, emSão Paulo (-3,75%), emOsasco (-2,19%)
e na da região do ABCD: -4,46% em Santo Andté, -2,96% em São Bernardo, -7,27% em São
Caetano, -0,26% emMauá, e 1,23% emDiadema (Araújo 1993:35).
A N ova Segregação
73 O crescimento da pòpulação entre 1991 e 1996 foi de 8,7%. Em 1991,14% dos chefes
de domicílio tinham uma renda maior do que 20 salários mínimos. É o único município (com exceção
de São Paulo) no qual mais de 10% dos chefes estão nessa categoria. Em 1991, a renda média dos
chefes (em salários mínimos) nos municípios na região noroeste era: 9,8 em Santana do Parnaíba;
6,2 em Barueri; 5,9 em Cotia; e 3,2 em Cjijamar.
74 Em 1980, apenas 1,5% da população economicamente ativa de Santana do Parnaíba
ganhava mais de 20 SM, enquanto 53,7% ganhava menos de 2 salários mínimos.
75 O segundo mais alto é o de Barueri: 0,6480. O coeficiente de GINI para a cidade de São
Paulo é de 0,5857, e para a região metropolitana, 0,5748. Cajamar, que teve um bom desempe
nho econômico mas não recebeu moradores de renda elevada, teve um coeficiente de GINI sígni-
ficativamente menor: 0,4635. A maioria dos municípios na região leste tem coeficientes de GINI
comparativamente baixos.
1 Ver Cenzatti e Crawford (199$) para uma análise de “espaços semipúblicos”, isto é, os
espaços interiores de shopping centers, hotéis, aeroportos etc., que, embora sejam propriedade
privada, têm uso público. Eles não discutem a versão residencial dos enclaves.
2 Alguns dos condomínios recentes têm mais de 100 mil m2 para uso coletivo e podem ser
comparados a clubes sofisticados. Alguns são tão grandes quanto um bairro, com mais 20 mil
habitantes e várias ruas internas. Eles são invariavelmente fechados.
3 Ver McKenzie (1994) para uma análise dos CIDs nos Estados Unidos. Segundo, McKenzie,
os CIDs compartilham três características que os distinguem de outros ripos de moradia: proprie
dade em comum; participação obrigatória na associação de moradores; e regime privado de conven
ções restritivas imposto por moradores. Eles podem ser de três tipos: empreendimentos de unidades
planejadas (ou PUDs— plattned urtit developments), que consistem em casas isoladas construídas
de acordo com um mesmo piano mestre, em geral nos subúrbios; condomínios, comumente pré
dios; e cooperativas (ou co-ops), isto é, apartamentos cm que os condôminos tem participação
acionária no prédio como um todo em vez de serem proprietários de uma unidade (1994: 19).
4 Blakety e Snyder (1997: 7,180) estimam que 19% de todas as 190 mil associações inte
grantes do CAI (Community Association Institute) em 1996 eram condomínios fechados. Eles
corresponderíam a mais de 3 milhões de unidades. Não há estimativa disponível do número de
condomínios fechados em São Paulo.
7 Essas cidades-jardins existem até hoje e originaram a área mais rica da cidade, chamada
Jardins, Com suas típicas ruas circulares, a primeira delas, Jardim América, foi planejada na In-
giaterra pela firma de Barry Parker e Raymond Unwin,
s Dados da construtora Alburquerque, Takaoka S.A., publicados no informativo interno
de Alphaville (Jornal de Alphaville, XIV (3): 5,1991). No final dos anos 90, a população residen
te parece ter crescido para 30 mil, e a média de população flutuante, para 80 mil (comunicação
verbal de representantes da construtora).
7.1
— Eu sai da Av. Paulista por causa do barulho, (...) Nos fins de semana tinha o movimen
to daqueies restaurantes, daquilo tudo. Então foi ficando impossível de se morar (...) E a circula
ção de gente durante todo o dia em frente de onde eu morava, era como se fosse o centro da
cidade: eram office-boys, aqueie movimento permanente, permanente.
Dono de coso, 52 anos, vive no Morumbi com seu marido, executivo numa multinacional,
e dois filhos.
Isolamento e distância do centro da cidade e sua intensa vida urbana são ti
dos como condições para um estilo de vida melhor. Os anúncios comumente se
referem à paisagem natural dos empreendimentos, com áreas verdes, parques e la
gos, e usam frases com apelos ecológicos. Os condomínios também são freqüente-
mente representados como ilhas instaladas no meio de arredores nobres.
13 Essa mudança já pode estar refletida nos novos dados sobre a força de trabalho. De 1980
a 1993, o seror de serviços domésticos da força de trabalho urbana diminuiu — 0,3% por ano na
cidade de São Paulo, enquanto todos os outros subsetores do terciário aumentaram. Os serviços
pessoais e os serviços de conserto e manutenção aumentaram 3,3% e 4,2% ao ano. Isso pode in
dicar uma mudança na maneira pela qual os serviços são executados em vez de uma diminuição
do uso de serviços domésticos. Por exemplo, serviços de limpeza feitos por empregados de uma
empresa não são classificados como serviço doméstico, mesmo quando feitos numa casa, mas como
serviços de manutenção e conserto. Leme e Meyer (1997: 66).
15 Em 1995, a cidade de São Paulo passou uma lei proibindo qualquer tipo de discrimina
ção no uso de elevadores. Embora todos os elevadores exibam uma cópia da lei, no uso cotidiano
a divisão entre o social e o de serviços continua a ser observada. Ver Holston (1989:174-81) para
uma análise do sistema de separação espacial nos apartamentos modernistas projetados por Os
car Niemeyer em Brasília.
Para uma discussão instigante de como a profissionalização das mulheres de classe mé
dia e alta tem tido pouca repercussão na organização da vida doméstica, ver Ardaülon (1997).
17 Uso a expressão subúrbios antigos para me referir àqueles que eram basicamente residen
ciais e dos quais os moradores se deslocavam para os empregos no centro da cidade. Uso “subúrbios
novos” para me referir àqueles que combinam residências com escritórios e centros comerciais.
Há muitos rótulos para esses novos tipos de subúrbio na literatura americana, como edge cities,
outer cities, ou exopolis. No Brasil, o fenômeno ainda não tem um nome, apesar dos esforços de
alguns empreendedores imobiliários. Para uma crítica da noção de edge city, ver Beauregard 1995.
18 Talvez uma das razões pelas quais o rótulo não colou seja o fato de que a tradução em
português usada nos anúncios, “cidade de contorno”, não faz muito sentido.
19 Ambas s5o "cidades novas” (rtew tottms), construídas e financiadas privadamente e en
tre as maiores desse tipo de empreendimento (McKenzie 1994:100). Nos anos 90, contudo, ambas
foram assimiladas à conurbação da Grande Washington. Elas não podem ser consideradas exem
plos típicos das edge cities dos anos 90.
a
Visite apartamento
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OMMM
20 O livro de Blakely e Snyder (1997) avalia a vida dentro das gated communities em rela
ção a um ideal de Comunidade definido por dois critérios: as sensações de pertencimento e parti
cipação pública (capítulos 2 e 6). Compartilhando com moradores dos subúrbios um sentimento
antíurbano e referindo-se a uma vida comunitária idealizada de “décadas passadas — bairros onde
as pessoas se conheciam e cuidavam umas das ouuas” (1997:166), esses autores criticam as co
munidades fechadas não pela segregação que elas podem impor, mas basicamente por falharem
em produzir boas comunidades. Seu conselho pata a substituição de portões tem como objetivo
principalmente a criação de “comunidades melhores” e inclui receitas de “neotradicionalismo" e
“espaço defensivo” (cap. 8).
7.2
- 0 que mais nos atinge é a segurança Interna, sâo nossos fiihos. A questão da segu
rança externa já foi resolvida há muito tempo.
Ele não parou nem prestou nenhuma ajuda à vítima. No dia seguinte, soube-se que o motorista
era filho de Odacir Klein, na época ministro dos Transportes. O próprio ministro estava no carro
no momento do acidente. Quando isso se tornou público, o ministro teve de renunciar, mas seu
filho saiu praticamente sem punição do episódio. A juíza Maria Leonor Leiko Agueno, conhecida
em Brasília por ser branda com crimes cometidos pela elite, decidiu não responsabilizar Fabrício
Klein por não prescar socorro â vítima argumentando que “como o pedreiro )á estava morto, ele
não precisava de ajuda" (O Globo, 21 de janeiro de 1997, pp. 2-9). Além disso, ela suspendeu o
processo contra Klein baseada em cláusula especial que permite aos juizes suspender julgamentos
de crimes em que a pena prevista é de menos de um ano de prisão.
12 “Alphaville vive ‘dia de Twin Peaks’ em debate sobre drogas e violência", Folha de S.
Paulo, 10 de abril de 1991. Os números estão provavelmente subestimados, já que os moradores
não têm interesse em pedir ajuda à polícia ou em relatar crimes que ocorram dentro de seus muros,
23 O consumo de drogas é um problema permanente tanto nas escolas particulares como
nas públicas. As últimas, especialmente aquelas que ficam em bairros pobres de periferia, são es
tigmatizadas como locais de tráfico de drogas. Poder-se-ia esperar que as escolas particulares das
camadas altas fossem capazes de controlar a prática, mas isso não tem acontecido.
Eles inibem a polícia. Usam a velha frase do “você sabe com quem
está falando?” . Tudo aqui é abafado. Há uma lei para os mortais mas
não para os moradores de Alphaville. (Folha de S. Paulo, “Alphaville, o
‘condomínio-paraíso’ de São Paulo, agora teme os assaltos”, 20 de abril
de 1990).24
24 Ver DaMatta (197?) para uma análise do uso da frase "Você sabe com quem está falan
do?” como um meio de impor distância social e o reconhecimento de inferioridade social.
u A cobertura desse evento revela a maneira rotineira e não-questionada pela qual os jor
nalistas brasileiros usam frases sexistas, como a que define um homem que é sodomizado à força
como a “mulher” do violador; ou frases que reproduzem estereótipos, como aquela justificando o
estupro de um estuprador como um comportamento que está de acordo com um “código de hon
ra”. Isso também reflete o que Michael Taussig chama de “terror as usual* (1992: capitulo 2).
Parece que há outras leis por aqui. Comecei a dizer que ia prender
pais de jovens infratores e os telefonemas não pararam. Um queria anistia
porque também era juiz, outro era primo de juiz, outro era prefeito, outro
dizia ser primo de desembargador, só faltavam falar que eram irmãos
do Romeu Tuma e da ministra Zélia Cardoso de Mello. (Folha de S.
' P aulo, 10 de abril de 1991).
28 Para os Estados Unidos, ver Massey e Denton (1993) e McKenzie (1994). Para a Europa,
ver Wíeviorka (1991, 1993) e Wieviorka et al. (1992).
Estar no coração da cidade ainda parece ser atraente para alguns, especial
mente se o lugar puder ser — como em condomínios — valorizado por sua proxi
midade aos ricos, suas mansões, estilo aristocrático e civilização {seja o que for que
isso signifique), ou simplesmente sua beleza. No entanto, os anúncios revelam o
poder do “novo conceito de moradia” ao incluir frases como “para quem não quer
fugir” ou “ superar a obsessão esttjadeira” , que reconhecem que eles não são mais
a$ únicas opções de prestígio.
Como os condomínios fechados incorporam prestígio, não é de surpreender
que anúncios para outros tipos de edifícios façam referências a eles. Em anúncios
de prédios de apartamentos em bairros tradicionais dè classe média baixa e das classes
trabalhadoras, é impossível ter o luxo do Morumbi, mas alguns sinais em direção
ao seu modelo estão presentes.
Podemos ler nesses anúncios uma antipatia em relação à parte central da ci
dade e a algumas idéias associadas à vida na cidade, mas uma apreciação de outros
aspectos da vida pública e urbana e da sociabilidade local. Esses anúncios tentam
capitalizar a infra-estrutura pública e urbana dos bairros, os serviços e a proximi
dade do centro da cidade (exatamente o que o Morumbi não tem). Essas qualida
des urbanas vêm junto com valores antigos (de que os bairros centrais presumi
velmente carecem); isto é, tranqüilidade e valores locais, tradicionais e familiares
que podem compensar a suposta ausência desses valores no resto da cidade. Mes
mo “amizades" podem ser apresentadas como uma vantagem, sugerindo que a
310 jogo de bocha não é comum em outras áreas da cidade, mas é uma obsessão na Moóca.
A menção frequente de canchas de bocha nos anúncios para a área sinaliza que o empreendimen
to é destinado a mooquenses. A referência ã creche pode atrair pessoas que não têm empregadas
em tempo integral.
Livrar-se do aluguel é Osonho de todos, que ficou mais difícil depois da recessão
econômica e do fim do financiamento do BNH. A ênfase na possibilidade de finan
ciamento é típica tanto em anúncios para a classe baixa quanto para a classe alta
do período. O que é atípico é a imagem das boas-vindas dadas pelos vizinhos, o
que provavelmente seria considerado de mau gosto, ou mesmo assustador, no Mo
rumbi. Só nos anúncios para a classe baixa e para os estratos mais baixos da classe
média é que encontrei referências positivas à sociabilidade dentro do condomínio,
liso é o mais próximo que os anúncios chegaram da idéia de comunidade — total-
P ortas fechadas
7.3
- A senhora mora em uma casai1
- Moro, mas é uma cadeia. Tem grade de cima embaixo, e do jeito que as coisas estão
nâo se pode deixar a porta aberta nem pra lavar a calçada na frente da casa.
Dona de casa, cerca de 40 anos; mora na Moóca e è cosada com um dono de bar.
Uma das imagens mais comuns usadas para descrever sentimentos de insegu
rança e formas de lidar com eles foi a das portas fechadas.*33 Essa imagem exprime
não só o medo das pessoas, mas também a realidade das restrições causadas tanto
pela crise econômica quanto pelo medo do crime. Moradores em todos os bairros
acham que precisam de cercas, muros, grades, barras nas janelas, luzes especiais e
campainhas com interfones, mas muitos não apreciam suas casas mais seguras como
apreciavam aquelas abertas e o espaço social que criavam. Em muitos casos, as
fachadas agora estão escondidas; visitar um vizinho significa passar por chaves,
travas e interfones, mesmo nas áreas mais pobres da cidade. Em bairros mais anti
gos — ou seja, com pelo menos 15 anos — os sinais da transformação são óbvios:
as cercas e muros modificaram o desenho original das casas e apartamentos. Mui
tas casas são mehos confortáveis e aconchegantes do que eram.
pública (por exemplo, Sennett 1974). Além de nâo mencionar essas idéias ao discutir suas opções
de moradia, os moradores do Morumbi explicitamente rejeitam qualquer noção de que privaci-
di',ie e individualidade deveríam ser extendidas a seus filhos, criaturas que eles consideram que
derem ser direta e estritamente controladas e que não deveríam escolher seus próprios amigos.
Muitos homens têm discursossimilares em relação às esposas. Ver capítulo 9.
33 A associação de portas abertas com ordem e segurança, e de portas fechadas com desor
dem e insegurança não £ corrente apenas entre os paulistanos de hoj& Essa imagem estrutura o
romance Portas abertas, do escritor siciliano Leonardo Sciascia. Ele discute a aplicação da pena
de morte a um preso comum em Palermo no final dos anos 30. Este é um diálogo entre dois juizes:
“— Como o senhor sabe, é de domínio público que aqui, desde que o fascismo chegou ao
poder, podemos dormir de portas abertas...
— Eu continuo fechando a minha — disse o juiz.
— Eu também: mas não podemos negar que as condições de segurança pública, de uns quinze
anos para cá, melhoraram bastante. Até aqui na Sicília, apesar de tudo. Agora, quaisquer que se
jam as nossas opiniões acerca da pena de morte, temos que admitir que a restauração serve para
inculcar na cabeça das pessoas a idéia de nm Estado que se preocupa ao máximo com a segurança
dos cidadãos-, a idéia de que realmente as pessoas durmamdeportas abertas.” (Sciascia, 1987:17)
Mais uma vez a narrativa é dividida entre antes e depois “daquela quarta,-fei-;
ra, 12 anos atrás”, que, no caso, iniciou um processo de transformações da casa.
Inventários de mudanças feitas para tornar a casa mais segura e muitas narrativas
relatando mudanças de casas para apartamentos são acompanhadas pela expres
são de sentimentos de aprisionamento que estragam os prazeres que uma casa pró
pria deveria oferecer, Como é possível desfrutar da mesma forma de uma casa cuja
sala teve de ser diminuída para acomodar uma garagem para proteger o carro? Ou
na qual a luz do quarto foi bloqueada pelo novo muro? Ou na qual a vista de to
das as janelas é emoldurada por barras? Como é possível desfrutar da mesma ma
neira de um quintal dos fundos e das áreas comuns de um edifício de apartamen
tos? A transformação da casa numa prisão se adiciona tanto aos sentimentos de
restrição, e perda associados à crise econômica quanto à angústia de decadência social.
A porta 'fechada é uma forte metáfora.
Apesar de vários grupos de paulistanos resistirem às transformações recentes
e se ressentirem da nova maneira como estão vivendo, o “novo conceito de mora
dia” é hegemônico na cidade. Além de ser compreendido por todos, ele influencia
as decisões e opções das pessoas, moldando as transformações que elas fazem em
seus lares e estilos de vida. Ele se transformou no modelo do que é mais apropria
do, mais prestigiado e, para muitos, mais desejável em termos de residência. Entre ,
todos os elementos desse modelo, a segurança é o que melhor simboliza as atuais
transformações. Viver atrás de muros e cercas é uma experiência cotidiana dos
paulistanos e os elementos associados à segurança constituem um tipo de lingua
gem através do qual pessoas de todas as classes expressam não só o medo e a ne
cessidade de proteção, mas também mobilidade social, distinção e gosto. Apesar
dessa linguagem ter vários dialetos de classe, também tem algumas características
gerais que perpassam todas as classes. Para todos os grupos sociais, a segurança é
um elemento através do qual as pessoas pensam seu lugar na sociedade e material
mente criam seu espaço social.
Cercas, barras e muros são essenciais na cidade hoje não só por razões de
segurança e segregação, mas também por razões estéticas e de status. Todos os ele
mentos associados à segurança tornaram-se parte de um novo código para a ex
pressão da distinção, um código que chamo de “estética da segurança”. Esse é um
código que incorpora a segurança num discurso sobre gosto, transformando-a em
símbolo de status. Na São Paulo atual, cercas e barras são elementos de decoração
e de expressão de personalidade e inventividade. São elementos de um novo código
estético. Esses elementos têm de ser sofisticados não só para proteger contra o cri
me, mas também para expressar o status social dos moradores: câmaras sofisticadas,
interfones e portões com abertura eletrônica, sem falar do projeto e da arquitetura
defensivos, tornam-se afirmações da posição social. São investimentos na aparên
cia pública e devem permitir a comparação entre vizinhos, para mostrar tanto quem
está se saindo melhor socialmente quanto quem tem o gosto mais sofisticado.
Alguns anos atrás, moradores das classes média e alta viam a segurança como
algo imposto à arquitetura de uma forma artificial. Este ainda é o sentimento dos
moradores da Moóca e do Jardim das Camélias. Quando acrescentada a um proje
to concebido sem ela, a segurança pode ainda parecer e ser sentida como estranha.
Mas agora que a segurança faz parte de qualquer projeto, os moradores vêem suas
exigências de modo distinto. Em 1980, ainda havia debates nos jornais de São Paulo
sobre os direitos dos proprietários de apartamentos de acrescentar cercas e muros
a seus edifícios, às vezes mudando 0 projeto original.34 Esse debate parece ter mor
rido. São poucas as casas ou apartamentos que não têm cercas— e ninguém anun
ciaria um edifício sem muros e dispositivos de segurançal No iiycio dos anos 90,
era a nova “arquitetura da segurança” que abria espaço nos artigos de jornal.33 Essa
arquitetura cria meios explícitos de manter afasta dos os indesejáveis, especialmen
te os sem-teto.3S36Depois de vinte anos de elaboração e de experimentos num novo
modo de segregação, a linguagem do isolamento e distanciamento sociais está se
tornando cada vez mais explícita e se espalha pela cidade (ver Fotos 12 e 13).
Sâo Paulo é hoje uma cidade de muros. Os moradores da cidade não se arris
cariam a ter uma casa sem grades ou barras nas janelas. Barreiras físicas cercam
espaços públicos e privados: casas, prédios, parques, praças, complexos empresa
riais, áfeas de comércio e escolas. À medida que as elites se retiram para seus endaves
e abandonam os espaços públicos para os sem-teto e os pobres, o número de espa
ços para encontros públicos de pessoas de diferentes grupos sociais diminui consi
deravelmente. As rotinas diárias daqueles que habitam espaços segregados — pro
tegidos por muros, sistemas de vigilância e acesso restrito — são bem diferentes das
rotinas anteriores em ambientes mais abertos e heterogêneos.
Moradores de todos os grupos sociais argumentam que constroem muros e
mudam seus hábitos a fim de se proteger do crime. Entretanto, os efeitos dessas
estratégias de segurança vão muito além da garantia de proteção. Ao transformar
a paisagem urbana, as estratégias de segurança dos cidadãos também afetam os
padrões de circulação, trajetos diários, hábitos e gestos relacionados ao uso de ruas,
do transporte público, de parques e de todos os espaços públicos. Como podería a
experiência de andar nas ruas não ser transformada se o cenário é formado por altas
grades, guardas armados, ruas fechadas e câmaras de vídeo no lugar de jardins,
vizinhos conversando, e a possibilidade de espiar cenas familiares através das jane
las? A idéia de sair para um passeio a pé, de passar naturalmente por estranhos, o
ato de passear em meio a uma multidão de pessoas anônimas, que simboliza a ex
periência moderna da cidade, estão todos comprometidos numa cidade de muros.
As pessoas se sentem restringidas em seus movimentos, assustadas e controladas;
saem menos à noite, andam menos pelas ruas, e evitam as “zonas proibidas” que
só fazem crescer no mapa mental de qualquer morador da cidade, em especial no
caso das elites. Os encontros no espaço público se tomam a cada dia mais tensos,
acé violentos, porque têm como referência os estereótipos e medos das pessoas.
Tensão, separação, discriminação e suspeição sâo as novas marcas da vida pública.
Este capítulo analisa as mudanças no espaço público e na qualidade de vida
pública que resultam da expansão das estratégias de segurança: segregação, distância
social e exclusão e a implosâo da experiência da vida pública na cidade moderna.
Primeiro, discuto a noção moderna do público articulada aos ideais de abertura e
acessibilidade, tanto no espaço da cidade como na comunidade política. Analiso
duas críticas a cidades industriais que permanecem comprometidas com valores
modernos: o modernismo e a cidade-jardim. Ambos influenciaram os enclaves for
tificados. Em seguida, comparo os espaços dos novos enclaves com aqueles do pla
nejamento modernista da cidade, mostrando que aqueles usam convenções moder
nistas com a intenção de criar o que o último produziu involuntariamente: segre-
1 Análises de várias dimensões da vida urbana moderna encontram-se em: Benjamin (1986),
Berman (1982), Clark (1984), Harvey (1985), Holston (1989), Jacobs (1961), Rabinow (1989),
Schorske (1961), Sennett (1974), Simmel (1971 (1903)), Vidler (1978), Wirth(1969 (19381) e Young
(1990). Restrinjo minhas discussões às cidades ocidentais, tanto na Europa quanto nas Américas.
Cidade do M uros 3 03
no. Em geral, eles desconsideram o fato de que a moderna noção do público é, na -
verdade, um tipo de espaço e uma experiência de vida urbana que surgiram apenas
no processo da urbanização industrial do século XIX. Recordar a especificidade his
tórica dessa noção do público é essencial para entender sua transformação atual.
Jane Jacobs é uma das defensoras mais famosas dos valores da vida pública
moderna nas ddadès. Sua análise do uso de calçadás e parques enfatiza não só
abertura e acessibilidade, mas também a etiqueta ^ as condições que tornam in
terações públicas entre estranhos possíveis e seguras. Essas condições incluem o con
trole complexo e voluntário exercido pelos moradores que ela rotula “olhos sobre
a rua” (Jacobs 1961: 35); densidade; uso contínuo; ampla diversidade de usos; e
uma clara demarcação entre espaço público e espaço privado. Quando essas con
dições desaparecem, argumenta ela, á liberdade da cidade e sua civilização estão
ameaçadas. Isso acontece, por exemplo, quando a “instituição doTurf” (1961:47-
50) orienta construções urbanas e as pessoas constroem barreiras, fecham algumas
áreas e isolam os outros do lado de fora. Isso também acontece quando se confun
de a separação entre público e privado. A privacidade, argumenta Jacobs, é “indis
pensável” nas cidades (1961: 58). A “vida pública civilizada” é mantida com base
em relacionamentos em público que sejam dignos, formais e reservados — o que
podemos chamar de civilidade —, além de separados das vidas privadas. Onde não
existem calçadas e espaços públicos vivos, e quando os relacionamentos em públi
co começam a se intrometer na vida privada e a requerer a convivência entre vizi
nhos, a liberdade da cidade está ameaçada; as pessoas tendem a impor certos es
tandartes, criandb um senso de homogeneidade que leva à insularidade e à separa
ção. Quando não há vida pública, as alternativas a compartilhar muito podem ser
não compartilhar nada, suspeita e medo dos vizinhos. Em suma, para Jacobs, tan
to traçar linhas e fronteiras no espaço da cidade como estender o privado no públi
co ameaçam os valores básicos de uma boa vida pública urbana.2
íris Maríon Voung (1990) parte da análise de Jacobs para construir um “ideal
normativo de vida'na cidade”, que ela imagina como uma alternativa às cidades
existentes e como uma maneira de acessar suas muitas injustiças sociais. Young cria
seu modelo como um ideal e, assim, não discute sobre sua especificidade histórica
e moderna. Entretanto, seus argumentos e críticas de algumas visões iluministas
revelam seu caráter moderno. Young define a vida na cidade como “o estar junto
de estranhos”, cujo ideal é “uma abertura à alteridade não assimilada” (Young 1990:
237,227). “Como um ideal normativo”, ela argumenta, “a vida na cidade exem
plifica as relações sociais de diferença sem exclusão” (Young 1990:227). Por prin
cípio, esses ideais são incompatíveis tom qualquer tipo de ordem hierárquica (como
ximadamente um século para se consolidar. Esse ensaio não esconde o longo caminho que condu
ziu ao reconhecimento de cada direito, mas isso não ameaça a sua tese mais geral de progresso
contínuo da cidadania, apoiada na história de sua expansão. A imagem da expansão progressiva
da cidadania encontra ecos em versões contemporâneas da teoria política que se concebem como
“radicais" e que não enquadram a análise em termos de incorporação. Por exemplo, a análise de
Lactau e Mouffe (1985) apresenta a democracia com base num imaginário caracterizado pelo
“ deslocamento equivalencial” e que tenta considerar as possibilidades de sua hegemonia, de for
ma radical, nas sociedades contemporâneas. Para críticas recentes da visão otimista e evolucionária
de Marshall, ver Hirschman (1991) e Tumer (1992).
* O movimento pelos direitos civisje o movimento feminista americanos nas décadas de 60
e 70, assim como os movimentos sociais urbanos na América Latina no final dos anos 70 e come
ço dos 80 são exemplos do que estou chamando de movimentos sociais “ liberais”.
s Para uma crítica feminista da teoria do contrato social, ver Pateman (I988),e para uma
crítica do entendimento legal de igualdade como samettess, ver Eisenstein (1988). Scott (1997)
oferece uma análise do paradoxo que mareou a história do feminismo liberal francês: sua necessi
dade de simultaneamente aceitar e recusar diferenças sexuais na polftica. Ver também os debates
sobre multiculturalísmo e, especialmente, as reivindicações por direitos indígenas em alguns paí
ses da América Latina concebidas como direitos de nações dentro de um Estado-nação {Stavenhan-
gen 1996; Findji 1992) e o debate sobre o nacionalismo em Quebec (Kymlicka 1996).
6 É interessante observar que em vez de formular um modelo de democracia em termos pu
ramente abstratos, Young o ancora na experiência moderna de vida na cidade. Embora insista nas
várias injustiças sociais e de segregação encontradas nas cidades, é ainda de sua experiência que
ela deriva o modelo de um espaço democrático no qual as diferenças permanecem “não-assímila-
das” e a heterogeneidade, a tolerância em relação ao outro, a acessibilidade e as fronteiras flexí
veis existem de alguma maneira e podem ser resgatados como valores positivos. Ver Deutsche (1996)
para uma crítica das concepções de espaço público em relação ao papel da arte pública num con
texto democrático. Deutsche argumema, inspirada por Lefort, que o papel dessa arte deve ser
exatamente o de desestabilizar limites e identidades.
7 O livro To-Morrour. A Peacefut Path to Social Peform, de Howard, foi publicado origi-
nalmenee em 1898. Em 1902, ele foi republicado como Gardett Cities ofTontorrow. Na Inglater
ra, seus principais seguidores foram Raymond Unwin e Barry Parker, que planejaram a primeira
cidade-jardim e ajudaram a criar seu idioma. Eles também projetaram a primeira cidade-jardim
de São Paulo. Para diferentes análises da influência de Howard no planejamento urbano, ver Fishman
(1982: párte I), Girouard (1985: 351-63), Jacobs (1961: 17-25), Kostof (1991: 75-82,194-9) e
McKenzie (1994:1-6).
®Ver Jackson (1985) para uma visão da suburbanizaçlo dos Estados Unidos e Fishman
(1995), Beauregard (1995), Soja (1996.4) e Garreau (1991) para diferentes visões das mudanças
do caráter do subúrbio americano.
9 Ver acima e Young (1990: 227-36) para uma crítica ao comunitarianismo e seu caráter
antiurbano e excludente.
10 Para uma análise da expansão dos CIDs, ver McKenzie (1994). A associação de senti
mentos antiurbanos com ideais comunitários é explícita na análise de Blakel/ e Snyder (1997) sobre
condomínios fechados nos Estados Unidos. Embora esses autores critiquem os portões, seu viés
antiurbano e sua preocupação com a “comunidade” os impedem de captar o caráter profunda
mente antidemocrático das comunidades fechadas.
11 Para as afinidades entre Le Corbusier e Howard, ver Fishman (1988:178 e cap. 21), Jacobs
(1961:21-5) e Girouard (1985: 360).
12Ver Holston (1989) para uma análise de Brasília, sua afiliação ao CIAM e as inversões e
perversões geradas à medida que o projeto foi elaborado e a cidade, povoada. Minhas considera
ções sobre Brasília são baseadas nessa análise.
13 Assim sendo, o modernismo não podería estar ausente dos anúncios de condomínios fe
chados. Em 1982, um conjunto de sete prédios no Morumbi foi anunciado como: “L’Abitare — o
sucesso planejado (...) introduziu uma das tendências mais modernas e vitoriosas em matéria de
arquitetura e urbanismo (...) L’Abitare devolve o espaço vivencial aos moradores e reflete uma
preocupação tanto com o homem e sua qualidade de vida, considerando as necessidades específi
cas das famílias paulistanas de classe média, quanto com as experiências que na linguagem do famoso
arquiteto Le Corbusier resultaram na concepção das ‘unidades de vizinhança’ (...) Tudo isso cer
cado e guardado por portaria com vigilância permanente. (...) Localização excelente: (...) o bairro
é um prolongamento da área tradicionalmente ocupada pelas residências da classe média supe
rior" (O Estado de S. Paulo, 3 de outubro de 1982). Chico Buarque captou esse uso da arquitetu
ra modernista como uma forma de status no romance Estorvo. A residência da irmã no condomí
nio fechado é um projeto modernista. Trata-se de “uma pirâmide de vidro, sem o vértice”, mas
que precisa ser cercada para se tornar uma fortaleza. O resultado é estranho, como observa o
narrador: “Eu sempre achei que aquela arquitetura premiada preferia habitar outro espaço” (1991:
p. 14-5). j
14 Brasília foi criada a partir do nada como um plano total. Muitas cidades existentes ao
redor do mundo, entretanto, foram substanciafmente modificadas pela intervenção do planejamenro
modernista. Além disso, o modernismo tornou-se o tipo padrão de projeto nas cidades domina
das pela União Soviética. Através do uso de espaços monumentais e construções modernistas, o
planejamento soviético criou um tipo de espaço público que também é completa mente diferente
do tipo moderno ocidental: um espaço para paradas, manifestações de grandes multidões e espe
táculos patrocinados pelo Estado, mas não para a interação diária dos pedestres.
15 A disputa entre a cidade de São Paulo e os moradores que fecharam suas ruas com cor
rentes foi relatada nos jornais O Estado de S. Paulo e Polba de S. Paulo (por exemplo, durante
janeiro de 1385). A mudança nas concepções públicas e na atitude da administração municipal
em relação aos enclausuramentos está registrada em “Bairros residenciais querem fechar ruas”,
O Estado de S. Paulo, 18 de junho de 1991. Nos Estados Unidos, o fechamento de ruas também
provocou oposição. Uma das disputas mais famosas ocorreu em Whitley Heights, Los Angeles,
onde os portões construídos petos moradores foram considerados ilegais e ordenou-se que nunca
fossem fechados. Em muitas outras áreas, no entanto, eles foram fechados. O caso de Whitley
Heights foi discutido em inúmeras edições do Los Angeles Times (especialmente em 1994-1995) e
por Blakely e Snyder (1997: 104-8).
16 Ver Caldeira (1984: eap, 3) para uma análise dos rituais da vida cotidiana nas ruas do
Jardim das Camélias no final dos anos 70 e começo dos 80.
17 Em bairros de periferia como o Jardim das Camélias, às vezes ouvem-se histórias sobre
controle de acesso por moradores ligados ao crime. Cangues de moradores às vezes tratam o bair
ro como seu próprio território e só permitem a movimentação segura daqueles moradores que pagam
uma “taxa de segurança” mensalmente. Ruas bloqueadas e controle de circulação em guetos
tampouco são uma novidade nos Estados Unidos.
18 Sobre a organização de movimentos sociais e associações locais no Jardim das Camélias
e na periferia no final dos anos 70 e começo dos anos 80, ver Caldeira (1987 e 1990).
Fotos 27,28 e 29: O uso público das ruas em São Paulo é extremamente variado. A foto 27
mostra a’ rua São Bento, no centro antigo: uma rua-corredor transformada em um calçadão
abarrotado de pedestres e vendedores ambulantes (1990). No Morumbi, a maioria das ruas è
vazia, sem pedestres, como na foto 28 (1994). A foto 29 mostra uma esquina no Jardim das
Camélias, onde os moradores ainda se reúnem para conversar e jogar (1994).
21 Centros regionais são as várias áreas na periferia que congregam comércio e serviços e
que geralmente servem como centros de transporte público. Por exemplo, o Largo 13, na periferia
sul.
22 A mudança aqui não é apenas de espaços mistos para exclusivos, mas tatpbém do consu
mo fragmentado e diário em pequenos mercados e vendas para as visitas mensais a um supermer
cado, ou se)a, de compras relativamente espontâneas para uma mais planejada. Essas mudanças
tâm sido acompanhadas de transformações na vida doméstica, onde se introduziram novos apa
relhos como os freczers e fornos de microondas, novas maneiras de preparar e servir comida e novos
relacionamentos.
23 Em 1996, 69% das viagens por transporte público em São Paulo eram feitas por ônibus,
26% por metrô e J% por trem. Apenas o metrô transporta mais de 1 milhão de passageiros dia
riamente (Seade, Anuário Estatístico do Estado de São Paulo 1996).
14 Para discussões sobre tráfego, desrespeito e violência, ver também DaMatta (1982) e
0 ’Donnell (1986).
25 Folha de S. Paulo, 13 de maio de 1989.
26 Folha de S, Paulo, 11 de maio de 1986.
27 O Estado de S. Paulo, 8 de outubro de 1989.
E x p e r iê n c ia s d o P ú b l ic o
. 30 E x is te m v á r ia s b a n d a s d e r o c k n a p e r if e r ia q u e t r a ta m d e s s e s te m a s . U m a d e la s é c h a m a
d a P a v ilh ã o 9 , n o m e in s p ir a d o n o s e to r d a C a s a d e D e te n ç ã o e m q u e o c o rre u o m a s s a c re d e 1 9 9 2 ,
V e r , p o r e x e m p l o , V e ja S ã o P a u lo 3 0 ( 3 7 ) : 1 5 - 2 1 d e s e t e m b r o d e 1 9 9 7 .
8.1
—As pessoas não vão mais ao cinema?
L — Nào vão mais ao cinema. Agora, depois do video, então, não vão mesmo.
W - Depois, é muita dificuldade. Começa por estacionar: não tem lugar pra estacionar.
0 estacionamento é tão caro quanto o cinema. Se deixa na rua, ou roubam ou tem os donos
da rua pra tomar conta. Então é um problema pra gente sair com o carro, a gente não fica
sossegado. Vai num shopping... a gente vai a cinema de shopping às vezes.
L - Estacionar o carro lá dentro mesmo. Cinema, quando a gente vai, è no Lar Center,
Center Norte mesmo, porque já tem mais facilidade.
W - Há 3 0 ,4 0 anos atrás, a gente podia sair, se arrumava bem pra sair, com luvas, tudo
bonitinho, pra ir á cidade, no centro. Cine Ipiranga, Metro. 0 Metro então era o máximo, né?
L - 0 Olído... no Dlido não entrava homem sem gravata. Não entrava.
-Q uando isso?
W — Uns 40 anos atrás.
L - (_) Acho que uns 30 anos atrás. No Marrocos, não entrava sem gravata. Então na
quela época a gente podia se arrumar e ir para o centro. Nós $6 lamos no cinema no centro da
cidade. A gente ia no cinema, depois saía, ia olhar umas vitrines, ,a Barão de Itapetininga era
uma rua boa, lojas boas. Você ia tomar um lanche, ia jantar... ia jantar fora. Hoje você não pode
ir pro centro da cidade num domingo, fim de semana, não tem condições de... porque são
homossexuais, são travestis, slo ... barraquinhas. Bom, o centro da cidade está um horror ago
ra, né?, com esses márreteiros todos.
LeW sõo viúvos de cinqilento e poucos anos Sempre viveram no Moóca■Moram juntas
na casa de L para que o filho de W possa viver com a família em sua casa sem pagar aluguel.
Cidade de Muros W í
muitos que trabalham lá — vendedores de todo tipo de produto popular (comida,
roupas, ervas, brinquedos, panelas), pastores de diferentes religiões, músicos e poli
ciais —, o mesmo tipo de pessoas que lotam qualquer eixo importante do transporte
público. A praça também tem muitos moradores: um contingente de meninos de
rua e sem-teto. Homens vestidos com ternos e carregando maletas, geralmente ad
vogados que têm de chegar ao Fórum Central ali perto, são vistos com frequência
na praça, porém não mais lhe conferem sua identidade. A Praça da Sé é fundamen-
talmentç um espaço para os moradores pobres, tanto em seu uso diário como em
seu simbolismo. Moradores do jardim das Camélias que entrevistei no final dos anos
70 consideravam ir à Praça da Sé uma atividade especial para os feriados, como o
dia de Ano Novo: era a maneira que encontravam de aproveitar a cidade e sentir
que pertenciam a ela. Hoje, eles sentem que a praça se tornou um local perigoso e,
apesar de ainda a usarem, preferem ir a lugares como shopping centers para o lazer.
Enquanto as camadas trabalhadoras dominam a praça com seus sons e cheiros, os
ricos a evitam. Para eles, a praça é apenas um lugar perigoso e desagradável.
Mas a Praça da Sé tem uma segunda camada de simbolismo: para paulistanos
ricos e pobres ela é o principal espaço político da cidade, um significado que foi
fixado por vários eventos durante o processo de democratização. Durante os anos
militares, as poucas demonstrações políticas que ocorreram tiveram lugar na Pra
ça da Sé, principalmente devido à presença da catedral. A Igreja Católica foi na época
a única instituição capaz de oferecer um espaço relativamente seguro para protes
tos contra os abusos e as violações aos direitos humanos praticados pelo regime
militar. Pela mesma razão, a Praça da Sé se tornou um lugar de inúmeras manifes
tações de movimentos sociais durante o processo de abertura, mais visivelmente as
imensas manifestações do Movimento do Custo de Vida na segunda metade dos
anos 70. Quando o movimento pelas eleições diretas foi organizado, no começo dos
anos 80, era natural que as manifestações de massa fossem feitas lá. Em 25 de ja
neiro de 1984, o dia em que a cidade comemorava sua fundação, cerca de 300 mil
pessoas se reuniram na Praça da Sé para reivindicar eleições diretas. Naquele dia,
pessoas das classes média e alta que não iam ao centro havia anos (as principais
atividades econômicas e todo o comércio de luxo tinham se mudado) descobriram
como pegar o metrô e emergiram no meio da praça para exigir democracia. As
manifestações aconteceram no Vale do Anhangabaú em apenas duas ocasiões, quan
do a praça ficou muito pequena para a esperada multidão de 1 milhão de pessoas
(o último comício por eleições diretas, em abril de 1984, e a manifestação pelo
im peachm ent do presidente Collor, em setembro de 1992).31
A Praça da Sé simboliza, de um lado, a reapropriação política do espaço pú
blico pelos cidadãos na transição para a democracia. Por outro, ela representa a
deterioração do espaço púbiico, perigo, crime, ansiedades em relação ao declínio
social e o empobrecimento dos trabalhadores, que continuam a usá-la nas idas e
vindas do trabalho, e que trabalham no mercado informal ou consomem seus pro
32 O tipo de espaço nio-democrático criado em São Paulo por meios democráticos é similar
às várias regulamentações segregacionistas formuladas pelos movimentos NIMBY (Noí In My Back
Yard) na Califórnia e analisadas por Davis {1990}, No entanto, se Davis revela uma aguda sensi
bilidade em relação aos processos disjuntivos da democracia nessa análise, faz o oposto quando
afirma que os espaços fortificados dc Los Angeles são um resultado direto das políticas da era Bush-
Reagan. O relacionamento entre política governamental e espaço da cidade é mais complicado do
que isso, como mostra o caso de São Paulo.
33 Ver, por exemplo: sobre Johannesburgo, Beavon (1998).eMabin (1998); sobre Budapes
te, Ladányi (1998); sobre Buenos Aires, Lacarrieu (1997); sobre cidades americanas, Blakeíy e Snyder
(1997), Davis (1990), Dumm (1993) e EHin (1997).
Apesar de a cidade sempre ter tido um centro, que cresceu ao redor do seu
pueblo original do século XVIII e continua a concentrar as principais estruturas
administrativas e um distrito financeiro dinâmico, seu relacionamento com o resto
da cidade não é o de um centro tradicional. A região metropolitana de Los Angeles
não tem um único centro, mas sim uma rede de núcleos dinâmicos. O centro reno
vado é apenas um dos centros financeiros e econômicos da região.37 Tudo na re
gião metropolitana, de habitação a indústria, foi sempre disperso e continuou a
descentralizar à. medida que a cidade crescia. Como resultado, a Los Angeles con
temporânea é “polinucleada e descentralizada” (Soja 1989:194). Esse padrão, que
34 Não é minha intenção oferecer uma descrição detalhada da história e do padrão de urba
nização de Los Angeles. Para mais detalhes, ver Banham (1971); Cenzatti (1992); Davís (1985,
1987,1990,1991 el993);Folgelson(1967);Klingetal.(1991);Scott(1993);ScotreSoja (1996);
e Soja (1989,1992 e 1996a e 1996b).
35 “Los Angeles é a primeira cidade americana importante a se separar deeisivamenre dos
modelos europeus e a revelar o impulso de privatização embutido nas origens da Revolução Ame
ricana (...) A ausência de uma ordem hierárquica integrada tanto no espaço construído quanto no
meio institucional í em certo sentido a completa expressão do tipo de democracia que acompa
nha uma apoteose de privatização na qual a multiplicidade de partes que competem leva a uma
textura uniforme da atividade política” (Weinstein 1996:22,30).
36 Sobre o sistema de transporte de Los Angeles, ver Wachs (1996).
37Ver Davis {1991} e Soja (1989: cap. 9) sobre a importância do centro de L. A. na estrutu
ração da região.
38 As taxas de renda para os Estados Unidos como um todo foram: 13,8% em 1969,12,5%
em 1979 e 10,3% em 1589.
Mike Davis atribui a Los Angeles cada vez mais segregada e privatizada a um
plano da elite pós-liberal (ou seja, republicanos da era Reagan-Busb), e reitera esse
tema em sua análise da rebelião de 1992.(Davis 1993). Para ele, a Los Angeles con
temporânea representa uma “nova guerra de classes ao nível do espaço construído”
e demonstra que a “forma urbana está de fato seguindo uma função repressiva na
esteira política da era Reagan-Bush. Los Angeles, em seu modo prefigurativo, ofe
rece um catálogo especialmente inquietante das ligações emergentes entre a arqui
tetura e o estado policial americano” (Davis 1990:228).
O texto de Davis é marcado por uma indignação sustentada por uma riqueza
de evidências. No entanto, ele is vezes comprime processos sociais complexos em
um cenário simplificado de guerra, que suas próprias descrições desmentem. A
coincidência da segregação atual de São Paulo com a democratização política reco
menda ceticismo em afirmar uma correspondência direta entre intenções políticas
e transformações urbanas. Mas apesar dessa limitação, Davis elabora uma crítica
notável da segregação espacial e social, e associa a configuração urbana emergente
aos temas cruciais da desigualdade social e opções políticas. Para ele, não há nada
inevitável em relação à “arquitetura-fortaleza”, e ela tem consequências profundas
na maneira pela qual o espaço público e as interações públicas são moldados.
Tanto em São Paulo como em Los Angeles, o espaço público criado pelos
enclaves e instrumentos de estilo “defensivo” alimenta a reprodução de desigual
dades, isolamento e fragmentação.43 Como ordens urbanas baseadas no enciausu-
ramento e no policiamento de fronteiras, essas cidades negam os valores básicos
do ideal moderno. Percebendo como o meio urbano contemporâneo de Los Angeles
conflita com o público moderno, Davis o considera a “destruição do espaço públi
co” (Davis 1990: cap. 4). Mas essa frase evita muitas questões. Estamos lidando
com a destruição do espaço público em geral ou com a criação de outro tipo de
espaço público, que não é democrático, que não tolera indeterminação e nega os
ideais modernos de abertura, heterogeneidade e igualdade? Afinal, o tipo soviético
44 A idéia do “fim do espaço público” aparece em outros livros recentes, como, por exem
plo, no subtítulo da coleção de ensaios organizada por Sorkin (1992). Dos autores representados
nesse volume, Davis é o único que aborda o tema diretamente. No entanto, várias outras análises
aludem implicitamente k transformação do espaço público, considerando o tipo de parque temático
que'estudam como “análogo”, “substituto” , “teatral" etc., ou seja, de alguma forma como espa
ços públicos falsos. Nessas análises há uma desistoricizaçâo do espaço público, na medida em que
sua forma moderna aparece como espaço público em geral. Historicizar a noção de espaço públi
co ajuda tanto a evitar a nostalgia quanto a entender as transformações atuais. Para uma discus
são mais longa de Variations o» a Theme Park, ver Caldeira (1994).
45 Não entro aqui em discussões sobre arquitetura pós-modema, da qual Los Angeles ofe
rece numerosos exemplos. O foco da minha análise são as formas urbanas e não os estilos arquite
tônicos, embora o espaço público de apartheid possa ser parrialmente moldado pelos edifícios do
estilo arquitetônico pós-moderno.
Apesar de suas especificidades, São Paulo e Los Angeles são hoje mais social-
mente desiguais e mais dispersas do que costumavam ser, e muitas das mudanças
nos seus espaços urbanos estão causando separação entre grupos sociais, que estão
cada vez mais confinados a enclaves homogêneos. Privatização e fronteiras rígidas
(tanto materiais como simbólicas) fragmentam continuamente o que costumavam
ser espaços mais abertos, e servem para manter os grupos separados.
No entanto, a experiência do espaço urbano não é a única experiência dos
moradores dessas cidades, e certamente não é sua única experiência seja de dife
rença social seja de democracia. Uma das características de Los Angeles repetida
mente enfatizada por seus analistas é seu multiculturalismo, a presença de um nú
mero expjressivo de diferentes grupos étnicos mudando a feição de uma cidade
outrora predominantemente branca (anglo). Essas são as características destacadas
por aqueles que, como Soja e Dear, vêem o urbanismo pós-moderno de uma pers
pectiva positiva, em vez de enfatizar seus aspectos mais negativos, como Davis ten
de a fazer. Soja (1996a), por exemplo, fala sobre um novo sincretismo cultural (la
tino, asiático), fusão cultural e a construção de coalizões. Há também a fala sobre
o hibridismo e as culturas de fronteira. Alguns mencionam a importância dos meios
de comunicação de massa e das novas formas de comunicação eletrônica e seu pa
pel em borrar fronteiras e encurtar distâncias, não apenas em L.A., mas em todo
lugar. Em São Paulo, a oposição aos impulsos segregacionistas e antidemocráticos
do espaço urbano vem em parte também da mídia, mas principalmente de outras
fontes: do processo de democratização, da proliferação de movimentos sociais e da
expansão dos direitos de cidadania das classes trabalhadoras e de várias minorias.
Tanto em São Paulo como em Los Angeles, portanto, podemos detectar pro
cessos sociais opostos: alguns promovendo tolerância à diferença e à flexibilização
de fronteiras e alguns promovendo segregação, desigualdade e policiamento de fron
teiras. Na verdade, temos nessas cidades uma democracia política com muros ur
banos; procedimentos democráticos usados para promover segregação, como nos
movimentos NIMBY; e multiculturalismo e formações sincréticas com zonas de
46 Soja, por exemplo, interpreta os distúrbios de 1992 como o primeiro movimento de re
sistência ao põs-modernistno e ao pós-fordismo conservadores (1996a: 459),