2014 VivianeVenancioMoreira VCorr
2014 VivianeVenancioMoreira VCorr
2014 VivianeVenancioMoreira VCorr
Versão Corrigida
São Paulo
2014
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História Social
Versão Corrigida
São Paulo
2014
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História Social
Versão Corrigida
São Paulo
2014
AGRADECIMENTOS
À professora Sara Albieri pela confiança depositada em mim para que eu seguisse
meu próprio caminho por entre as veredas de Ranke.
Aos professores José Vasconcellos e Miguel Palmeira pela leitura atenciosa, pelas
críticas e pelas sugestões que sem dúvida desencadearam uma reviravolta nos rumos da
pesquisa.
À minha grande “família peluda” Sabá, Junior, Frida, Franz, Ulisses e Kristoferson
todo reconhecimento pela presença sempre cheia de bondade e carinho. Seus muitos
sonos e brincadeiras dentre livros e papéis tornaram o cotidiano mais sensível, sábio e
belo.
I and Pangur Ban my cat, 'Gainst the wall he sets his eye
'Tis a like task we are at: Full and fierce and sharp and sly;
Hunting mice is his delight, 'Gainst the wall of knowledge I
Hunting words I sit all night. All my little wisdom try.
Better far than praise of men When a mouse darts from its den,
'Tis to sit with book and pen; O how glad is Pangur then!
Pangur bears me no ill-will, O what gladness do I prove
He too plies his simple skill. When I solve the doubts I love!
Palavras-chave:
Teoria da História; História da Historiografia; História Intelectual; Leopold von Ranke;
Sérvia; Questão Oriental.
ABSTRACT
Leopold von Ranke (1795-1886), considered one of the most important historians of the
19th century and of the whole history of historiography, produced prolifically during his
entire professional carrier, having as one of his main objects the of study the formation of
the Western Modern Nations and being famous for his historical methodological approach.
But his work can also be a considerable source of new themes and new interpretations,
especially when his less known books such as The Ottoman and the Spanish empires in the
sixteenth and seventeenth centuries or The Serbian Revolution are taken under
consideration. This research analyses a theme somewhat yet to be explored in Ranke’s
work, that is to say, the position of this historian in respect of oriental groups through the
interpretation of the three editions (1829, 1844 and 1879) of his book The Serbian
Revolution (Die serbische Geschichte). Some characteristics of this works deserve
highlight: 1) the period of fifty years in which Ranke retook the text makes it possible to
study the development of his ideas; 2) it is about the study of a contemporary theme, which
means that Ranke wrote while the actions he studied still were part of the present; 3) the
work has a collaborative nature, which was conceived by the union of Ranke and the
Viennese Slavonian Circle; 4) the way Ranke described the eastern people (Turkish and
Serbian) indicates the relation between these notions and a series of representations of the
East, which were connected to widespread Romanticist ideas.
Keywords:
Theory of History, History of Historiography; Intellectual History; Leopold von Ranke;
Serbia; Eastern Question.
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................9
A Revolução Sérvia: o ponto fora da curva nos trabalhos de Ranke
CAPÍTULO I .....................................................................................................................21
Um tema persistente: A Revolução Sérvia na biografia intelectual de Ranke
CAPÍTULO II....................................................................................................................65
Sérvia mutatis mutantis: histórico das edições e a questão da autoria
BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................174
1. FONTES............................................................................................................. 174
1.1. Edições d’A Revolução Sérvia ......................................................... 174
1.2. Obras de Ranke ................................................................................ 174
1.3. Demais fontes ................................................................................... 175
2. BIBLIOGRAFIA GERAL ...................................................................................... 176
3. IMAGENS .......................................................................................................... 182
INTRODUÇÃO
A REVOLUÇÃO SÉRVIA
O ponto fora da curva nos trabalhos de Ranke
Jahrhundert (1828)1, e sua entrada nos arquivos venezianos para pesquisar material sobre a
formação dos Estados modernos, tema principal de sua produção durante toda carreira.
Neste momento, Ranke já havia ingressado como professor extraordinário da Universidade
de Berlin, recebendo uma licença para pesquisar nos arquivos estrangeiros. A licença de
quase cinco anos resultou no afastamento da docência e na incessante busca de fontes
primárias
No período em que Ranke pesquisa fora do território da atual Alemanha, ele passa
algum tempo em Viena, local onde A Revolução Sérvia é concebida através de um vínculo
criado entre ele e alguns acadêmicos eslavos que residiam na corte austríaca. O livro foi
publicado em 1829 e entrou, desde então, para um seleto grupo de títulos fundamentais
para se compreender a questão dos Bálcãs. Sua importância não está só em ser um dos
primeiros títulos no Ocidente a tratar do tema, mas também no êxito com que Ranke lidou
com a massa documental e testemunhos orais, direcionando-a com habilidade no sentido
político e cultural. Além disto, o momento de lançamento era bastante oportuno, uma que
já na década de 1820 vários movimentos populares e acordos diplomáticos encaminhavam
a Sérvia e outras regiões do leste Europeu para sua independência. Esse tipo de incertezas e
de mudanças políticas colocavam a questão oriental e a configuração da Europa
contemporânea na ordem do dia.
1
O livro foi publicado em 1827, tendo seu título alterado para Die Osmanen und die Spanischen Monarquie
im 16. und 17. Jahrhundert quando acrescentado às obras coligidas.
11
No entanto, durante todo o século XIX, uma série de levantes na Grécia, Bósnia e na
própria Sérvia colocavam para esses povos a possibilidade da autonomia. Se Ranke
estudou o nascimento dos Estados com crescente empoderamento entre os séculos XVI e
XVII, esta era a sua oportunidade de presenciar o nascimento de uma possível nova
constelação de potências com relatos de primeira mão. Neste sentido, sobre a decisão de
redigir A Revolução Sérvia, Ranke faz referência a uma motivação intelectual e política
pessoal, além de entender a importância da convulsão política dos Bálcãs na configuração
da Europa contemporânea, colocando assim o impulso de escrita mais assumidamente no
presente. Tal centralidade da Sérvia não parece fazer referência necessariamente ao
impacto do poder sérvio, já que este povo ainda estava bastante fragilizado pelo domínio
otomano de longa data, e sim ao caráter exemplar da luta pela autonomia e liberdade. Além
disso, no plano estratégico da geopolítica, devemos lembrar que a Sérvia era a última
barreira entre o Império Otomano e Viena. No momento da redação da primeira edição d’A
Revolução Sérvia. O contexto de convulsão e fragmentação político-social de países que
faziam parte até então da periferia do desenvolvimento europeu era familiar a Ranke pela
própria situação alemã do começo do século, o que fazia o tema mais candente para o
historiador. Da mesma forma, a Sérvia era um ponto privilegiado de observação do grande
processo de formação das nações contemporâneas durante todo o século XIX.
O que Ranke entendia por “Europa” também é algo debatido e a opinião mais
divulgada é que seu tratamento exclusivo das nações europeias ocidentais implicaria em
uma concepção bastante restrita, o que também se conectava à ideia de quais povos tinham
ou não uma história. Em seu conhecido artigo de 1874 sobre Leopold von Ranke, Sérgio
Buarque de Holanda elenca uma série de questões sobre a historiografia rankeana. No que
tange as inatualidades de sua historiografia, um destaque vai para a fronteira estabelecida
por Ranke separando os povos dignos de sua atenção daqueles que não pareciam relevantes
para o quadro geral do processo histórico:
Em princípio, nada há a dizer contra semelhante procedimento, nem
parecem boas as razões dos que deploram a exiguidade do seu campo de
visão, que o levam a interessar-se unicamente por umas tantas
nacionalidades. [...] As razões dessa crítica só valeriam se quisessem
dizer que o mundo histórico cessava, para Ranke, nos limites da Europa
Ocidental com seus apêndices ultramarinos. O resto não deixa apenas de
interessá-lo, mas, de fato, é para ele como se fosse inexistente. Sua ideia
de nexo de sentido, que poderia justificar-se como princípio de economia
necessário, passa a ser um mandato de exclusão sem apelo. Os povos que
não tiveram o privilégio de originar-se das grandes invasões dos séculos
IV a VII, que não se puseram logo sob a égide da Igreja de Roma, que
12
2
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Atual e o Inatual em Ranke. In: Revista de História. São Paulo:
Universidade de São Paulo, pp. O artigo também reaparece, cinco anos mais tarde, como introdução da
coletânea dos textos de Ranke organizada por Holanda: HOLANDA, S.B.H. (org.). Lepold von Ranke. São
Paulo, Ática, 1979, pp. 7-62. A referida citação consta nas páginas 30-31.
3
“Ranke looked to actions for the evidence of community. Such common and formative endeavors were the
barbarian invasions, the crusades, and European colonization of the world,, as it were, “three great
respirations of this great confederation”. This view of Europe, a constricted Romantism, that excluded Celts,
Hungarians and Slavs, was rooted in German nationalism and great-power piety.” FITZSIMONS, M. A.
Ranke: History as Worship. In: The Review of Politics, Vol. 42, nº 4 (oct., 1980), p. 538.
13
Se a busca por tais linhas gerais é tarefa instrutiva quando se procura traçar o
conhecimento sobre um determinado autor, tal procedimento, por outro lado, corre sempre
o risco de acorrentar as divergências e as obras heterodoxas no porão da fortuna crítica.
Portanto, é importante também pensar um autor em sua totalidade de obras, procurando
desviar da necessidade de encontrar uma linha única ou uma coerência interna inexorável
em seu trabalho. É tarefa dos que se debruçam sobre o trabalho alheio tentar alargar o
horizonte deste perfil geral ou pelo menos flexibilizar um pouco as certezas: se o manual
tenta “amarrar” as características num conjunto harmônico e coerente, as pesquisas sobre
um texto específico tentam afrouxar tais amarras e mostrar que um autor é sempre
multifacetado, mais rico – e por vezes problemático – do que se poderia suspeitar.
4
“Great figures of German Romanticism – Herder, Therese von Jakob (Talvj), the brothers Grimm, Goethe,
and Ranke – were enthusiastic about south Slavic folk culture. The famous philologist Jacob Grimm (1785-
1863) advised Vuk Karadžić about collecting folklore and translated his Little Serbian Grammar as well as a
large number of south Slavic folk songs. Goethe’s translation of the song “Hasan Aga’s Wife” made his
poetry a part of world literature.” ANZULOVIC, Branimir. Heavenly Serbia: From Myth to Genocide.
New York : London: New York University Press, 1999, p. 76.
5
“There, Ranke and his students carefully poured over original sources from Europe's past in the pursuit of
documentary criticism. They avoided chronicles and contemporary histories, which were riddled with error
and marred by bias, and concentrated on government charters and decrees, bureaucratic files, and especially
diplomatic dispatches and reports. With these documents, it was thought, historians could write true
'scientific' histories.” MUIR, Edward. "Leopold von Ranke, His Library, and the Shaping of Historical
Evidence." Syracuse University – Library Associates Courier, Vol. 22, Nº1 (1987), p. 3
14
Entretanto, a obra sobre a Sérvia se fia na tradição oral (sejam depoimentos ou canções
do folclore sérvio) recolhidas junto ao Círculo Eslavo de Viena, o qual Ranke frequentara
durante sua estadia no império Habsburgo. O elemento oral conecta-se então a outro ponto
de diferença na obra, ou seja, seu tratamento de um tema que adentra a chamada história
do presente. A pesquisa, nesse sentido, era praticamente uma investigação em tempo real
da formação do Estado sérvio, estando a par com a cobertura jornalística da época.
O tema sérvio ttrabalhado por Ranke é o único que leva o presente em
consideração. O próprio Ranke disse uma vez: “Apresento aqui o
presente, pois ele é frutífero para a História.” A impressão mais
expressiva desse livro era uma apresentação atual que levava os próprios
sérvios a uma compreensão de si mesmos. 6
6
„Das serbische Thema ist unter den Arbeiten, die Ranke aufgenommen hat, das einzige, das der
Gegenwartsgechichte zuhört. Ranke selbst sagt einmal: „Ich komme hier der Gegenwart häher, als es für die
Historie ersprießlich ist.“ Die bedeutendste Wirkung dieses Buches war denn auch eine Aktuelle, nämmlich
daß es den Serben selbst zu ihrer Eigendeutung verhalf.“ HEYER, Friedrich. „Leopold von Rankes
Orthodoxie-Verständniss in seiner Darstellung der „Serbischen Revolution“. In: Geist, Glaube, Geschichte.
Festschrift für Ernst Benz. Netherlands: Brill Archiv, 1967, p. 421
15
conteúdo de cada edição, antecipado por um breve histórico dos conflitos nos Bálcãs
durante o império otomano, encaminhando esses elementos para a discussão acerca dos
autores do texto. O problema da autoria aponta também para a relação entre o político
intelectual, como é caso de censuras, controles, represálias e necessidade de cálculos de
contatos valiosos, o que é apontado principalmente no item 1.3 do Capítulo I.
No que diz respeito a esse contato entre Ranke e os intelectuais eslavos, é importante
salientar que Ranke exerceu uma importante influência sobre os intelectuais eslavos que
estudavam em Berlim, daí criando também um vínculo intelectual profícuo entre a
historiografia alemã e sérvia:
A primeira geração de “berlinenses” sérvios foi mais fortemente
influenciada por Leopold von Ranke e Adalbert Wojciech Cybulski assim
como por Karl Ludwig Michelet. O famoso historiador Ranke tornou-se
conhecido por seu trabalho de juventude A Revolução Sérvia e a maioria
dos sérvios frequentaram suas aulas. Jovan Ristić, estudante de filosofia
entre 1851 e 1852, regente como príncipe e rei assim como presidente do
ministério por inúmeras vezes e representante da Sérvia no Congresso de
Berlim em 1878, frequentou as aulas de Ranke sobre a Idade Média. “Ele
não é eloquente, ele não olha nos olhos dos ouvintes” – assim ele
escreveu posteriormente sobre este tempo. “Apesar de ele ocupar há
bastente tempo o cargo de professor, ele não tem muitos ouvintes. Entre
eles se encontram também nós sérvios (...)” que escutam um cientista que
é reconhecido por seu brilhantismo no mundo histórico para se interarem
da história sérvia, para sobrarem-se frente a autoridade de sue nome, seus
esforços audaciosos e vasto conhecimento.” O segundo aluno berlinense
de seu tempo, o escritor Ljubomir Nenadović, recomendou ao o
historiador e político Stojan Novaković a publicação deste trabalho de
Ranke em sérvio enquanto seu amigo estudante Dimitrije Matić
comentou que tudo que a jovem Prússia sabia sobre a Sérvia vinha de
Ranke.” 7
7
„Die erste Generation der serbischen ,Berliner’ wurde am stärken von Leopold von Ranke und Adalbert
Wojciech Cybulski beeinflusst sowie von Karl Ludwig Michelet. Der berühmte Historiker Ranke war durch
sein Jungedwerk Die serbische Revolution bekannt, und die meisten Serben belegten seine Vorlesungen.
Jovan Ristić, Philosophiestudent von 1851 bis 1852, fürstlicher und königlicher Regent sowie mehrmaliger
serbischer Ministerpräsident, aber auch Vertreter Serbiens beim Berliner Kongress 1878, besuchte Rankes
Vorlesungen über das Mittelalter. „Er ist nicht wortgewandt, er zieht seine Hörer nich durch äußeren Glanz
an“ – so schrieb er später über diese Zeit. „Obwohl der Gelehrtenruf der Professors längst erwissen ist, hat er
nicht viele Hörer. Dass sich darunter auch wir Serben befinden(...),, einen Wissenschaftler zu hören, der es in
den Breiten der Geschichtswelt für notwendig befand, sich auch mit der serbischen Geschichte zu befassen,
ihr die Autorität seines Names zu schencken und ihr seine beherzten Bemühungen, sein unermessliches
Wissen zu widmen“. Der zweite Berliner Student aus jenen Zeiten, der Schriftsteller Ljubomir Nenadović,,
schlug dem späteren Historiker und Politiker Stojan Novaković vor, dieses Werk Rankes in Serbische zu
übertragen währen sein Schulfreund Dimitrije Matić die Bemerkung machte, dass alles, was die jungen
Preußen über Serbien wüssten von Ranke stamme. TRGOVČEVIĆ, Ljubinka: „Nördliche oder südliche
Universitäten? Serbische Studenten an deutschen Universitäten im 19. Jahrhundert.“. In: DUCHHARDT,
Heinz (Hrsg.). Jahrbuch für Europäische Geschichte. Band 6. München: Oldenburgh Wissenschaftsverlag,
2005, p. 72.
16
8
“Nicht weniger geht dies aus der intensiven Beschäftgung serbischer Historiker mir diesem Frühwerk
hervor. Ja, im Jahre 1865, also 136 Jahre nach dem ersten Erscheien, wurde die serbische Übersetzung von
Vlasimir Stojancević, großartig mit Bildern Rankes und Vuks illustriert, in Belgrad neu herausgegeben.“
HEYER, op. cit, p. 421.
9
“to that extent they [the serbians] were the first revolutionaries in the Balkans, carrying out what the
German historian Ranke, the father of modern historical scholarship, soon dubbed the “Serbian Revolution.”
AVLOWITCH, Stevan . Serbia: The History Behind the Name. London: C. Hurst & Company, 2001, p.
29.
10
FITZSIMONS, op. cit. p. 541
17
11
„Die Orientalische Frage erhebt sich von Neuem in drohender Gestalt und bringt Blutvergießen
Grausamkeit, Zerstörung, Leiden mit sich. Vergebens sucht man sie unter dem bescheidenen Namen
„Cyrische Frage“ zu verhüllen: Niemand täuscht sich über ihre Tragweite. Die anormale Lage von ganz
Europa, die riesigen Rüstungen, die man überal vornimmt, die Gefahr, von welcher sich der Despotismus
bedroht sieht, die heftigen Leidenschaften, die ins Spiel getreten sind, Neid und Misßtrauen, die Ohnmacht
der alten Ideen und die allgemeine Unruhe der Geister – Alles zeigt, daß es nur eines Funkens bedarf, um die
Explosion herbeizuführen, welche die Welt mit Ruinen bedecken wird. Der erste Flintenschuß der
18
Para esse relatório alemão de 1854, o problema do império otomano seria como uma
doença cuja raiz estaria no despotismo turco:
Esta doença tem seua base não na composição dos Estados mas sim no
despotismo, sob o qual a Turquia se tornou grande, é hoje como há
quatrocentos anos a única configuração de Estado possível para o Reino
do Otomanos. 12
Enropäischen Truppen im Orient kann vielleicht dieser Funke sein.“ Anônimo (von einem Russen).
Russland und die Orientalische Frage. Aachen, J. M. Vaner, 1860, p. 1.
12
„Diese Krankheit hat ihren Sitz nicht in der Verfassung des Staats, denn der Despotismus, unter welchem
die Türkei groß geworden, ist heute wie vor vier hundert Jahren das einzig mögliche Staatsgrundgesetz für
das Reich der Osmanen.“ Akademische Anstalt für Literatur und Kunst. Deutsche Antwort auf die
orientalische Frage. Heidelberg: K. Groos, 1859, p. 1.
13
SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, p. 29.
19
14
“the geography and culture of large parts of Asia and North Africa, plus some of what we now think of as
Eastern Europe.” The Romantic Period: “Romantic Orientalism: Overview”. In: The Norton Anthology of
English Literature. (http://www.wwnorton.com/college/english/nael/romantic/topic_4/welcome.htm),
acessado em 12/01/2014.
15
GUINSBURG, J. “Romantismo, Historicism e História” In: GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São
Paulo: Perspectiva, 2011, p. 14
16
É importante nota que uma leitura europeia orientalista de outras culturas não precisa ser necessariamente
sobre o oriente mas pode também aplicar-se ao “outro” americano ou africano, por exemplo.
20
17
Idem.
CAPÍTULO I
UM TEMA PERSISTENTE
A Revolução Sérvia na biografia intelectual de Ranke
O livro A Revolução Sérvia (no título original Die serbische Revolution: aus
serbischen Papieren und Mitteilungen), publicado pela primeira vez em alemão em 1829, é
a terceira obra do historiador Leopold von Ranke1, a qual seguiu mais duas edições, uma
em 1844 e outra em 1879.
Após o sucesso de seu primeiro livro, História dos Povos Latinos e Germânicos
(Geschichte der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514), de 1824, e a
finalização de Príncipes e Povos do Sul da Europa nos Séculos XVI e XVII (Fürsten und
Völken von Süd-Europa im 16. und 17 Jahrhundert), em 18272, o historiador conseguiu
uma licença especial para pesquisar nos arquivos venezianos, nos quais buscava ampliar o
corpo documental de suas pesquisas sobre o nascimento das nações modernas nos século
XIV e XV. O livro sobre a Sérvia surgiu em meio a essa licença de pesquisa e o caminho
de sua produção foi cercado de elementos que revelam, através da própria dinâmica de
1
Segundo a lista oficial de suas publicações, uma vez que só restou um fragmento de sua tese sobre Lutero,
redigida em 1817 por conta do jubileu da Reforma. Contam-se assim as obras publicadas apenas enquanto
Ranke pode ser considerado um historiador profissional.
2
O título dessa obra, assim como no caso da Revolução Sérvia, é mudado quando incluído das obras
coligidas [Sämmtliche Werke] de Ranke, transformado assim em Os Otomanos e a Monarquia Espanhola nos
séculos XVI e XVII [Die Osmanen und die spanische Monarchie im 16. und 17. Jahrhundert].
22
3
MATA, Sérgio da. Leopold von Ranke: Apresentação. In: A História Pensada: Teoria e Método na
Historiografia Europeia do Século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, p. 192.
4
A circulação da informação no que se refere às fontes históricas ganha fôlego justamente nesse período,
quando a publicação de compilações de documentos começam a ser editadas e publicadas. O caso dessas
publicações e seu impacto na Revolução Sérvia é tratado no capítulo III.
5
As relazioni são um conjunto de documentos relativos aos despachos dos embaixadores venezianos no
período anterior à unificação italiana, ou seja, entre século IX ao século XVIII (1797), enquanto a República
de Veneza era autônoma. Muitas dessas relações foram levadas a outros arquivos, como o de Viena, na
ocasião da invasão napoleônica de 1797, quando este cede Veneza ao Império Austríaco.
6
Fritz Ringer indica a grande influência da política no apontamento para cargos do ensino superior na
Alemanha durante o século XIX: “De 1355 professores nomeados para as faculdades alemãs de teologia,
direito e medicina entre 1817 e 1900, não menos de 322 foram designados contra ou sem as recomendações
das faculdades. Como em cada uma desses casos foram desconsideradas até três propostas, pode-se concluir
23
Vê-se, como aponta Ringer, que o cargo implicava o vínculo como funcionário
público, mas os níveis de influência eram altamente hierarquizados. No caso de Ranke, ele
ocupava no começo de sua carreira universitária o grau mais baixo do escalão.
É justamente esse período que, como relata o biógrafo austríaco Eugene Guglia8,
ocorrem os “anos de peregrinação” [Wanderjahre]9 de Ranke, marcados pela necessidade
de lidar com a burocracia acadêmica que perseguiria toda a carreira acadêmica10:
No outono de 1827 apareceu para ele uma possibilidade de obter um
cargo de professor na Universidade de Munique: a vaga em Berlim era
tão modesta que ele deveria pensar bem no assunto se quisesse melhorar
de situação. Mas mesmo assim ele não quis – como ele disse - viajar a
Munique “com dinheiro prussiano”, onde ele, em qualquer caso, deveria
conversar sobre e negociar o apontamento bávaro. Então ele decidiu pelo
caminho através de Dresde, Praga e Viena.11
que as prerrogativas do governo, mesmo nessa área, não eram de modo nenhum mera formalidade.Os órgãos
de autogestão acadêmica eram relativamente fracos, sobretudo no plano executivo, e as tradicionais
invocações de liberdade ensino nada fizeram para mudar essa situação”. RINGER, Fritz. O Declínio dos
Mandarins Alemães. A Comunidade Acadêmica Alemã, 1890-1933. São Paulo, EDUSP, 2000, p. 50.
7
Idem, p. 48.
8
Eugene Guglia foi não só um biografo de Ranke como também de Friedrich von Gentz, figura sobre a qual
trataremos mais adiante. A obra sobre o estadista é: Friedrich von Gentz: Eine biographishe Studie.
Brünn: Wiener Verlag, 1901.
9
O proprio Ranke refere-se aoo período nos mesmo termos; em carta a Henrich Ritter, ele escreve: “ Du
vermuthest mit Recht, daß ich noch kein Ende meiner Peregrination absehe.“ (RANKE, op. cit., p. 185).
10
Ranke descreve no Ditado de 1885: “Wie sich versteht, verlor ich dabei meinen Hauptzweck nicht aus den
Augen. Im October 1828 reise ich nach Venedig ab. Mein erster venetianischer Aufenthalt dauerte bis
Februar 1829. Ich ging dann nach Florenz. Am 22, März fah ich den ersten grünen Strauch in der römischen
Campagna. In Rom blieb ich, nicht jedoch ohne einen Auslug nach Neapel zu machen, bis April 1830.
Nochmals führten mich dann meine Studien nach Florenz züruck, wo ich noch die letzten Zeitung über die
Bewegung, die der Julirevolution voranging, zu lesen bekam. (...) Niemals habe ich mehr gelernt und
gedacht, niemals mehr eigenheimst, als in der zweiten Hälfte des Jahres 1830 und inder ersten der Jahres
1831“. RANKE, Leopold von. Zur Kritik neuerer Geschichtschreiber. Eine Beitrage zu desselben
romanischen und germanischen Geschichten. Leipizi; Berlin: G. Keimer, 1824, p. 64.
11
„Aber gerade im Sommer 1827 eröffnete sich ihm die Aussicht, an der Universität München eine Professur
zu erhalten: die Stelle in Berlin war so bescheiden dotiert, daß er wohl daran denken mußte, sich zu
verbessen. Eben darum wollte er nicht – wie er sagt – „mit preußischem Gelde“ nach München reisen, wo er
doch auf jeden Fall über die bairische Anstellung reden und verhandeln müßte. So entschloß er sich denn für
den Weg über Dresden, Prag und Wien.“ GUGLIA, Eugene. Leopold von Ranke. Leben und Werke.
Leipzig: F. W. Krunow, 1898, p. 93.
24
12
Ranke relata ao irmão com entusiasmo seu encontro com Humboldt: “Ich denke, ich habe Dir geschrieben,
daß Herr Hase, Mitglied der Akademie zu Paris, mich Herrn Alex. von Humboldt, der damals hier war,
dringend zur Beförderung meiner Parisier Reise emfohlen hat. Dir eigentlich habe ich wohl noch nicht
gemeldet, daß ich darauf diesen berühmten Mann sah, ihn geistreich, munter, mit der Gelehrsamkeit und
besonders dem täglichen Wachsen der Erfahrungswissenschaft lebhaft beschäftigt, für meine Absichten
eingenommen fand. Er versprach mir allen Beistand; eine nicht unwichtige Zusage, da er im Frühjar
zurückkommen und Vortrag bei dem Könige halten wird. Have ich Dir dies nicht auch schon geschrieben?
Nun dann zweimal.“ (RANKE,Leopold. Brief an Heinrich Ranke im Februar 1827. In: Zur Eigenes
Lebensgeschichte. Sämmtliche Werke 34.-35. Band. Leipzig: Duncker und Humblot, 1890, p. 163)
13
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834) foi pregador protestante e professor de Filosofia e
Teologia na Universidade de Halle.
14
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) foi um educador e filósofo idealista alemão. Sua obra com maior
impacto político para o crescimento da consciência alemã e para a Unificação foi Reden an die deutsche
Nation (1807/1808).
15 “
For Schleiermacher e Humboldt, schools were responsible for disseminating generally accepted and
directly applicable knowledge. The task of universities was to show how to discover knowledge by ‘making
apparent the principles at the basis of all knowledge in such a way that the ability to work one’s way into any
sphere of knowledge would emerge’. RÜEGG, Walter. A History of University in Europe. Volume III:
Universities in the Nineteenth and Early Twentieth Centuries (1800-1945). New York: Cambridge
University Press, 2004, p. 12.
25
16
“Vor Allem fragt sich, wem von so Vielen eine originale Kenntniß bengewohnt, von wem wir wahrhaft
belehrt werden können.” RANKE, op. cit., p. v. Para maior detalhes sobre os princípios metodológicos que
Ranke estabeleceu em sua primeira obra e sua relação com a História da Sérvia, ver o terceiro capítulo.
17
“Whereas at the beginning of the nineteenth century Paris had been the Mecca of scholars and scientists
from around the world, from 1830 on French governments regularly sent observers to Germany to obtain up-
to-date information about the advances in the universities there. Many French, British and, later, American
scholars were educated at German universities, and by the end of the century they had institutionalized the
ideal of the modern research university throughout Europe, the USA and Japan.” RÜEGG, op. cit., p. 12.
26
entre a política e a educação na nova universidade: “Portanto havia desde o começo uma
tensão entre o ethos científico da profissão que demandava um comprometimento livre de
preconceitos e julgamento de valores e a função política da profissão, que naturalizava uma
certa ordem social.”18 A liberdade que estava implícita no ato desse novo homem pensante
e ativo propiciou o advento do que Fritz Ringer chama de “intelectuais mandarins” e
colocou o modelo universitário alemão (sob os auspícios prussianos) em franca oposição
ao modelo francês napoleônico. Nesse cenário de nacionalidades em oposição e
autoafirmação, é importante lembrar que até 1815, a Europa passa pelas guerras
napoleônicas e que na época da quarta coalizão (1806-07), Napoleão forma a confederação
do Reno ao anexar estados culturalmente alemães que não eram governados pela Prússia,
acirrando rivalidades e, posteriormente, a tensão entre Prússia e França, resultando, em
1870, na guerra franco-prussiana.
Além disso, até o momento a França detinha, através da mistura de seu alcance
político, sua força militar e da herança da influência iluminista, lugar de liderança cultural
em terras europeias e não europeias. Uma das iniciativas da Prússia e dos demais estados
que hoje formam a atual Alemanha na busca de autonomia foi a concepção alternativa de
universidade. Tal modelo universitário estava ligado intrinsecamente ao funcionalismo
público prussiano e às formas de ascensão social da classe média, que competia com a
nobreza por espaços de poder junto ao rei. A “palavra mágica” que tornava possível o
ingresso na burocracia era Bildung (formação) e que, com o passar do tempo, começou ser
parâmetro de regra e substituir privilégios de nascimento.
Através da formação, como o próprio exemplo de Ranke mostra, o indivíduo podia
construir para si uma carreira longeva e destacada. Ao tomar-se a forma como Ranke se
moveu nos escalões universitários e, mais amplamente, sua formação geral, percebe-se em
muitos aspectos um caso clássico de mandarinato alemão como definido por Ringer, ou
seja, uma “elite social e cultural que deve seu status muito mais às qualificações
educacionais do que à riqueza ou aos direitos hereditários”19. Veja-se o caso do próprio
Ranke: ele nasceu em 1795, na provinciana cidade de Wiehe (integrada aos territórios
18
“Thus there existed from the beginning a tension between the scientific ethos of the profession, which
demanded a commitment free of preconceptions and value judgments, and the political function of the
profession, which took a certain social order for granted.”IGGERS,Georg. “Classical Historicism as a model
for historical scholarship”. In: Historiography in the Twentieth Century. From Scientific Objectivity to
the Postmodern Challenge. Connecticut: Wesleyan University Press, 1993, p. 23.
19
RINGER, op. cit., p. 22.
27
prussianos em 1815)20, numa família de pastores luteranos21 que primava pela educação, o
que se refletiu no aprendizado de idiomas e na frequência do menino Ranke em duas
escolas monasteriais prestigiadas: Donndorf e Schulpforta, nos quais teve acesso a
Homero, Ovídio, Virgílio e Sófocles. Assim como seu pai, recebeu formação universitária
em Leipzig, com interesse em teologia e filologia, de onde sai após a graduação para
lecionar no Friedrichsgymnstasium de Frankfurt an der Oder:
A posição social da família de Ranke corresponde bem ao que se chama
“burguesia intelectual” – uma classe média avant l’heure cuja plataforma
de ascensão e consolidação socioeconomia e cultural se tornou possível,
ainda no século XVIII, pela educação e pela formação, e não pelo berço.
A ética do esforço, do trabalho e da competência, sobretudo sob as
circunstâncias adversas de não dispor de herança pecuniária, foi ima
vivencia própria da família de Gottlob Ranke, incutida em seus filhos.
Mesmo se os meios de subsistência bastassem, eram limitados e, sabia-se,
somente frutificavam mediante dedicação.22
20
Até hoje a cidade é diminuta: no senso de 2012 de todas as cidades da Turíngia, consta que Wiehe tenha
apenas 2764 habitantes.
21
No ditado biográfico de 1863, Ranke faz uma longa digressão genealógica de sua família desde o século
XVII. (ZEL, p. 4)
22
MARTINS, Estevão; CALDAS, Pedro. Leopold von Ranke (1795-1886). In: BENTIVOGLIO, Julio;
LOPES, Marcos Antônio. A Constituição da História como Ciência. De Ranke a Braudel. Petrópolis:
Vozes, 2013, p. 15.
23
MATA, op. cit., p. 189-191.
28
24
“It is important to keep in mind that the new historical profession served definite public needs and political
aims that made it important to communicate the results of its research to a public whose historical
consciousness it sought to shape and who turned to historians in search of their own historical identity.”
IGGERS, Georg. Historiography in the Tweentieth Century. From Scientific Objetivity to the
Postmodern Chalenge. Connecticut: Wesleyan University Press, 1997, p. 23. Essa relação problemática
ficará mais evidente no tópico abaixo, uma vez que as expectativas políticas do império Habsburgo em
relação a Ranke serão decisiva para o andamento das pesquisas deste.
25
Burke discorre sobre o papel do seminário na instituição universitária alemã: “Na Alemanha, o seminário
foi mais uma modalidade associada à formação profissional dos estudantes de pós-graduação, sobretudo em
filologia e história. Os seminários de filologia remontam à segunda metade do século XVIII, quando o
exemplo de Göttingen foi adotado por Wittenberg, Erlagen, Kiel, Helmstadt e Halle. No século XIX, a
prática se difundiu para outros campos. O seminário de história de Leopold von Ranke em Berlim foi o
exemplo mais famoso, ladeado ou seguido por seminários de línguas orientais e estudos indo-germânicos e
do Novo Testamento. Com o tempo, o que se iniciara como uma série de reuniões informais, muitas vezes na
casa do professor, cresceu, migrou para a universidade, a recebeu verbas e se converteu em instituição. O
termo “seminário” passou a ser outro nome para departamento ou instituto. (BURKE, Peter. Uma História
Social do Conhecimento II: Da Enciclopédia à Wikipédia. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 214).
Fitzsimons indica o funcionamento e objetivo dos seminários de Ranke: “When he resumed lecturing in
Berlin, he continued the practice of using his home to receive the students of his seminar. The model for it as
well for his elaboration of historical method was the advanced course in classical philology established at
Leizig and some other universities. The members of Rank1s seminar usually met weekly and had to chosen
or approved by the director of the seminar, who presided at sessions where the philosophy of history and
source problems were discussed until in later meetings each member submitted a research paper to the
criticism of the members and director. The seminar became an institution in the growth of graduate education
that is a feature of the nineteenth century university. (...) The seminar, sometimes called historical laboratory,
which encouraged many historians to write for other historians rather than the general reader. The director of
the seminar emphasized bibliographical thoroughness, criticism, precision and penetration.” (FITZSIMONS,
M. A. Ranke, “History as Worship”. In: The Review of Politics, Vol 42, Nº 4 (Oct. 1980), p. 542.
26
GUGLIA, op. cit., p.58. Ranke relata ao irmão Heirich: “Mit dem Collegium – ich lese nur eins über die
Geschichte des westlichen Europa – geht es ziemlich gut. Mein Publikum ist zwar etwas wetterwendisch und
flüchtig; es läßt sich selbst für einen, der liest, der also nicht lange zählen kann, fast in jeder Stunde en Ab
oder Zuhörer bemerken; indeß werden ihrer doch in der Regel ungefäher 30 sein“ (RANKE, Leopold von.
„Briefe an Heinrich Ranke. Juli 11. 1825“ In: Zur Eigenes Lebensgeschichte. Sämmtliche Werke 34.-35.
Band. Leipzig: Duncker und Humblot, 1890, p. 146.
29
O trabalho na Universidade de Berlim não parecia muito estimulante e vida não era
tão confortável como a de um professor catedrático, mas, por outro lado, o cargo na
Universidade de Berlim oferecia vantagens importantes para um historiador oitocentista.
27
Philipp Friedrich Heinrich Ranke (1798 – 1876) foi, além do interlocutor mais importante de Leopold von
Ranke, teólogo protestante. Estudou teologia e filologia na Universidade de Jena. Em 1818, foi juntamente
com o irmão para Frankfurt an der Oder e lá atuou com professor em uma escola privada. No mesmo ano, ele
foi também a Berlim. Em 1822, foi professor no Instituto de Educação de Nuremburgo, juntamente como
teólogo Karl Georg von Raumer (citado várias vezes nas cartas trocadas entre Ranke e Heinrich). Em 1824,
Ranke passou no Segundo Exame Teológico de Ansbach. Em 1826, foi clérigo em Rückersdorf (Nuremberg)
e em 1834, foi decano e inspetor distrital das escolas em Thurnau. A partir daí, faz carreira clériga: em 1841,
foi o segundo conselheiro em Bayreuth, em 1845, consegue o mesmo cargo em Ansbach e em 1859, primeiro
conselheiro; em 1866, torna-se o quarto chefe-conselheiro em Munique e em 1870 terceiro chefe-conselheiro,
aposentando-se finalmente em 1873.
28
„Wie steht es mit Halle? Ich hoffe, daß man Dich dort haben und in Berlin behalten will. Berlin würde mir
ohne Euch schlecht gefallen. Bleib ja züruck, daß ich Dich finde. Aber nicht eher, als etwa im April; bis
dahin bleibe ich von Herzen weg.“ RANKE, Leopold von. Zur Eigenes Lebensgeschichte. Sämmtliche
Werke 34.-35. Band. Leipzig: Duncker und Humblot, 1890, p. 173.
29
“Du siehst, wie sehr ich darauf zähle, in Berlin bleiben zu können. An München denke ich nicht mehr. Daß
der König mir einen Mann, wie Görres, vorgezogen hat, finde ich sogar billig und höchst vernünftig. Ein
solcher Mann soll, wie mir scheint, weder im Ausland leben noch Noth leiden. Ich kann nicht fürchten, daß
seine Wirkung phantastisch oder fanatisch werden sollte. Indessen wer weiß, wohin mich das Schicksal noch
einmal verschlagen wird? Leider stehe ich in Berlin so gering (und man braucht dort viel Geld), daß ich mich
eigentlich ein wenig fürchte, in die alte Armseligkeit zurückzukehren. Da kommt mir eben ein Antrag von
Dorpat mit 1400 Rthlr. sächs. Gehalt (außer den Honoraen), erblichen Abelstand 2c. Ich habe an einer
großenStadt auch weiter nichts, als die Bibliotek; ich muß mir sagen, daß wenn ich von Zeit zu Zeit Freiheit
hätte, zu reisen und sie für die europäische Geschichte wichtigsten Manuscripte und Bücher zu lesen, ja
vielleicht selbst zusammenzubringen, daß es mir dann im Gründe einerlei sein kann, in welchen Winkel der
Erde ich hause. Man sagt mir, es sei dort übrigens angenehm, einige Zeit in der Mitte der nordschen Welt zu
leben, könnte auch nicht schaden. Ich hoffe jedoch, so weit soll es nicht kommen.“ RANKE, op. cit., p. 189.
30
Deve-se lembrar de que nesse período os arquivos e bibliotecas ainda não estavam abertos
à consulta pública, sendo seu acesso dependente de autorização real. Além de estar mais
próximo fisicamente dos documentos necessários por conta da mudança para Berlim, o
vínculo com a universidade garantia também maior grau de contato com documentos
originais que alavancavam sua pesquisa sobre a política moderna europeia:
Para o avanço de seus trabalhos o mais importante era que ele pudesse
utilizar os 48 volumes abrigados na biblioteca real berlinense. Até então
ele havia trabalhado quase que exclusicamente a partir de livros
impressos, agora se abriam para ele ricas fontes de novas notícias. 30
A mesma questão de dificuldade no acesso material descrito acima por Ranke para
Berlim foi válida para os arquivos em Viena, dificuldade esta antecipada na carta acima.
Para o acesso aos materiais necessários era fundamental estabelecer as relações sociais
adequadas.
30
„Für den Fortgang seiner Arbeiten war das bedeutendste, daß er in der Berliner königlichen Biblioteck 48
Bände handschriftlicher italienicher Relationen, vorzüglich über südeuropa Berhältnisse, benutzn konnte. Bis
dahin hatte er fast nur nach gedruckten Büchern gearbeitet, nun eröffnete sich ihm eine reiche Quelle ganz
neuer Nachrichten.“ GUGLIA, op. cit,, p. 63.
31
As relazioni foram desde cedo reconhecidas como documentação importante para a história moderna:
“When a Venetian ambassador returned from his term abroad, he was required to read a final report of his
activities to the Senate. These reports, or relazioni, came to have a standard format in which the ambassador
discussed the geography, climate, economy, military capacity, and political institutions, as well as court
gossip of the country he had visited. As early as the sixteenth century the informational value of these reports
was recognized, and Venetians and foreigners alike began to collect and sometimes even to publish them.
Venice's efficient diplomatic service was often given credit for the fact that the city somehow survived as an
independent republic during the great age of absolutist monarchies, and so the writers of the relazioni came to
have a European~wide reputation for exceptional sagacity and insight.” (MUIR, Edward. "Leopold von
Ranke, His Library, and the Shaping of Historical Evidence." The Courier, 22.1 (1987), p.7)
32
“Ich gehe nun nach Wien. Ich habe meine Hauptabsicht auf das venetianische Archiv gerichtet. Hier ruht
eine nicht unbekannte Geschichte von Europa. Ich hoffe, daß man mir eröffen soll. Ich werde amtliche und
persönliche Empfehlungen (letztere von Kamptz an Metternich) bekommen. Wie mein Wunsch erfüllt, oder
sehe ich sonst die Möglichkeit vor mir, etwas Gescheutes durch Winter über verbleiben. Auf dem Rückweg,
sei es nun im Oktober oder wie ich hoffe im April, besuche ich Dich.“ RANKE, Leopold. Brief an Heinrich
Ranke am 25 August 1827. In: op. cit., p. 169.
31
33
“Wenn ich mich dabei zunächst nach Wien wandte, so geschah das, weil ein guter Theil des Archives von
Venedig in Folge der Occupation dieser Stadt nach Wien übergeführt worden war und sich in dem dortigien
Archiv in der That befand. In der heutigen Zeit hat man seine Idee mehr davon wie schwer es damals war
und wurde, Zutritt in die Archiv zu finden. Fürst Metternich hat sich ein unsterbliches Berdiest erworben, daß
er mir auf den Rath des gestwollen Genß die Erlaubniß zur Benutzung. Des Archives gab, die ich dann nicht
verfehlte gründlich auszubeuten. Ich fand daselbst einen reichen Schaß venetianischer Relationen und das
große Tagebuch des Marino Sanudo um Originel; Doch war ich auf das Archives nich beschränft. „ Ranke,
op. cit, p. . Já aqui a questão do império otomano mostra sua importância na empreitada de compreender as
principais forças em movimento durante a era moderna, sendo a Turquia pedágio indispensável para quem
desejasse escrever uma história política europeia, tema sobre o qual o historiador se debruçará durante toda
sua carreira e cujos textos relativos encontram todos reunidos na terceira edição da Revolução Sérvia . Ranke
se depara com ele já nas relações venezianas: “In der Bibliothek des Hofes fand sich eine ansehnliche Anzahl
venetianischer Relationen, bezüglich auf die Türkei und auf Deutschland. Ich durchsuchte sie mit dem einmal
angeregt Fleiße – denn ich stieß von Tag zu Tag auf Neues, Unerwartetes, Belehrendes – auf das emsigste”.
34
““Das Archiv, versichern mir Kopitar, Bilat, Gentz, Adam Müller und andere Einstimmung, wird mir
geöffnet werden.” RANKE, Leopold, op. cit., p. 173. Da mesma forma, os problemas financeiros persistiam
durante a viagem, aumentando a dependência de Ranke de uma espécie de mecenato real, como ele escreve
32
Dado esse fatores, a petição de Ranke foi trabalhosa de ser atendida, como ele
mesmo desabafa:
Até agora há dificuldades e é indiferente se se tem um pagamento
adiantado ou não, e o arquivo, ou seja, uma parte dos arquivos
venezianos sobre o qual tratei na introdução da minha primeira
parte, só se abrirá por intermédio e simpatia do príncipe
Metternicht e do conselheiro Gentz . Embora seja apenas uma
porção pequena, eu a entendo como parte fundamental para o
em 1828: “Der König hat mir auch ein Geld bewilligt. Nachdem das Ministerium mir geschrieben hatte, ich
solle eine genügende Summe nennen, habe ich endlich auf wirderholtes Schreiben gesagt, daß ich mit 500
Rthr. Außer dem, was ich sonst habe, sechs Monate auszukommen denke. Du wirst vielleicht der Meinung
sein, daß ich mehr hätte sondern sollen. Allein es schien mir doch besser, bescheiden zu sein; und mit so viel
denke ich wirklich auszureichen. Diese Summe hat mir denn der König bewilligt und so denke ich bald zu
gehn.“ (Idem, p. 207)
35
“A first resource which provided Ranke with symbolic power was his scholarly reputation preceding his
arrival in Viena in September 1827. To his brother Heinrich he wrote, “My last book is the reason of my joy.
Everybody, so to speak, knows about my efforts and acknowledges them. I enjoy support in manifold ways.”
MÜLLER, Phillipp. “Ranke in the Lobby of the Archive: Metaphors and Conditions of Historical Research”.
In: Jobs, S. ans Lüdtke, A. (eds.) Unsettling History: Archiving and Narrating History. Frankfurt:
Campus Verlag, 2010, p. 115. A citação de Ranke utilizada por Müller localiza- RANKE, Leopold von. Zur
Eigenes Lebensgeschichte. Sämmtliche Werke 34.-35. Band. Leipzig: Duncker und Humblot, 1890, p.
177.
36
“It was not only Ranke’s professional reputation, but his official recommendation which helped him to
establish important contacts to members of the Austrian government. Hence, he was able to finally dissipate
suspicious and doubts about his person and his interest in the arcane knowledge of the Austrian Empire.”
Ibidem.
33
37
„ Soweit es auch Schwierigkeiten gemacht hat, ob man gleich einen förmlichen Abschlag vorausgesandt
hat, so ist mir doch durch die inmettelbare Theilnahme des Fürsten Metternicht und der Hofrath Gentz der
Archiv eröffnet worden, d. h. ein Theil eben jenes venetianischenArchivs, von dem ich in der Vorrede zu
meinem Ersten Theil gehandelt habe. Es ist zwar nir ein kleiner Theil, un ich sehe besonders für die eingesten
Verhältnisse dieses Staates nichts als Lücken; auch ist mir nur der Zugang zu einigen Theilen verstattet;
indessen auf jeden Fall finde hier höchst merkwüdige Sachen: für die Geschichte der Menschheit von
unschätzbarem Werth, welche Europa, wenn es nicht über sich selbst im Dunkeln liegen will, schlechterdings
wissen muß.“ RANKE, op. cit., p. 178.
38
“Jedermann, den ich noch gesprochen, kennt meine Arbeiten und läßt sie gelten.” RANKE, Briefe an
Heinrich Ranke am 4. October 1827. In: op. cit., p. 172.
39
BURKE, op. cit., p. 44.
40
O Geheime Hausarchiv reunia três instituições arquivísticas: o Hausarchiv, Hofarchiv e Staatsarchiv.
34
Friedrich von Gentz, de quais candidatos não ofereceriam perigo. No entanto, a concepção
utilitária dos arquivos não era histórica no sentido de fomentar pesquisas independentes,
mas entendidos como “uma parte integral da esfera arcana do estado; sua tarefa principal
era participar na proteção e salvaguarda da “boa ordem” do estado e da sociedade civil”41,
sendo a pesquisa uma atividade derivada e secundária, cujo objetivo era a legitimação de
direitos ou narrações que favorecem o fortalecimento das monarquias ou das soberanias
nacionais em construção no momento.42
A relação entre arquivo e razão de estado implicava um controle feroz do conteúdo
documental43, o que influenciava diretamente, por parte dos pesquisadores que dependiam
desses acervos, o ritmo de produção das pesquisas e, consequentemente, no aumento da
pressão exercida pela universidade para a publicação de resultados e pelos colegas de
trabalho, cuja competição interna era acirrada. 44
Logo, saia na dianteira quem soubesse jogar melhor com as regras e os tempos dos
diferentes arquivos, criando ou mobilizando mais eficientemente as redes de contato que
favoreciam sua presença. Os compromissos assumidos por um pesquisador para com seus
beneficiários no momento em que adentrava os arquivos realizavam-se na esfera em que o
conhecimento forma intersecção com a política. No caso de Ranke, seu problema
41
MÜLLER, op. cit., p. 113.
42
De acordo com o tópico “tarefas e organização” do página do arquivo austríaco na internet, o duplo
estatuto ainda é presente, apesar de a importância da pesquisa histórica agora ter ganhado mais força: “They
(os arquivos austríacos) are a subordinate agency of the Federal Chancellery serving two purposes: On the
one hand, they are central archives for the federal services of the Republic of Austria (supreme bodies and
ministries), which have a legal responsibility to transfer their acts and documents to the State Archives. On
the other hand, their historical departments are the keepers of the archival heritage of the Habsburg empire
(1526–1918) and its central authorities, as well as of the Holy Roman Empire of the German Nation (until
1806)” (in: http://www.oesta.gv.at – acessado em 2.10.2013)
43
Peter Burke afirma que a “censura foi vigorosa no Império Habsburgo” onde, por exemplo, houve a
censura dos mais diversos tipos de materiais, incluindo a obra de Franz Joseph Gall, ainda no século XIX por
supostamente “encorajarem o materialismo, o ateísmo e a imoralidade” (BURKE, op. cit., p.181).
44
“Zwar ließ sich in diesem Fall wohl eine günstige Entscheidung hoffen; doch ein so bestimmter Antrag
und noch eine Concurrenz! Man wirft oft den Professoren vor, daß sie bei solchen Gelegenheiten nicht
allzusauber verfahren. Diesmal aber that es die Univesität. Ich habe also gar bald an Ewers geschrieben: daß
ich ihm für seine gute Meinung danke, aber weiter nicht berücksichtigt zu werden wünschen könne. Ich möge
nicht concurrien u.s.w. Unserem Minister habe ich geschrieben, daß ich diesen Antrag, den ich beigelegt,
völlig abgelehnt habe u.s.w. Daraufwird nun freilich nichts erfolgen und die Sache wird sonder Zweifel
bleiben, wir sie ist; obwohl ich die Mien angenommmen, als hoffe ich gar viel. Zufrieden bin ich, daß die
Sache abgethan ist. Dergleichen Händel find höchst verdrießlich. Man denkt daran, man sinnt sich die
Möglickeit einer neuen Existenz aus; man denkt an Geld und Gut uns an sich selber. Welch eine Plage!”
RANKE, op. cit. p. 190. Ewers, que Ranke cita em seu comentário, é Johann Philipp Gustav von Ewers
(1779 – 1830), historiador alemão do direito e fundador da disciplina acadêmcia “história legal russa”. Sua
formação na província russa da Livonia resultou na monografia O Mais Antigo Direito dos Russos (Das
älteste Recht der Russen), em 1826. Ele ocupou a cadeira de História, Estatística e Geografia na
Universidade de Dorpat, atual Estônia (a qual Ranke também menciona em outro comentário). Foi oferecida
a ele, em 1816, a cadeira de Economia Política na Universidade de Berlim, mas ele a recusou, tornando-se no
mesmo ano reitor da Universidade de Dorpat, cargo que ocupou até sua morte.
35
aprofundava-se porque o tema com o que trabalhava era considerado por demais recente e
ainda deitava raízes nas relações internacionais do século XIX:45
(...) a posição do historiador era vulnerável dado seu interesse particular
pelos assuntos de estado nos tempos modernos. Num estágio ainda muito
recente do estudo do historiador, tanto a política governamental de
arquivo e a prática de pesquisa do historiador tornaram-se
inevitavelmente entrelaçadas.46
45
A questão da história do presente é tratada nos capítulos III e IV.
46
MÜLLER, op. cit., p. 118.
47
“Receiving the favor of his patron, the Court Conselor Gentz, as well as the goodwill of His Grace Prince
Metternich, Ranke took a very loyal attitude towards the Austrian government and assessed the political
quality of his findings as he took notes from the relazioni in Venice in autumn 1830. (…) Overall, he assured
his patron the harmless nature of his historical studies. Favor and goodwill required (the manifestation of)
loyalty, if the petitioner did not seek to lose his source of support.” Idem, p. 119.
36
da alta esfera política, possibilitando um texto com aberturas mais amplas e uma
abordagem que não precisava necessariamente se preocupar com orgulhos nacionais de
seus patronos.
Este outro condicionante para A Revolução Sérvia emanava do chamado Círculo
Eslavo de Viena, meio que suscitou a escrita do livro. Tal condicionante detinha suas
próprias dinâmicas e outro contexto social e intelectual no qual Ranke afastava-se
temporariamente do núcleo do poder vienense e adentrava no mundo das relações entre
eruditos, na República das Letras.
Como parte complementar das condições que tornaram a escrita d’A Revolução
Sérvia possível, há o círculo intelectual do qual Ranke cercou-se em sua estadia em Viena.
Cosmopolita em sua natureza, esse grupo veio a ser formado, a despeito do que Peter
Burke afirma, muito em função das guerras napoleônicas. Segundo Burke, “as guerras
napoleônicas exerceram um impacto negativo nos estudos eruditos, interrompendo a
comunicação internacional”49. O que se vê, no entanto, é que um dos resultados da
diáspora causada pela guerra foi a união de intelectuais de diversas partes da Europa. O
que pode ser percebido, no caso de Ranke e dos eruditos eslavos com os quais se
encontrou, é que o contato foi fomentado pelas guerras napoleônicas e pelas lutas nacionais
de independência. Portanto, faria mais sentido falar em termos de um rearranjo do que em
uma interrupção propriamente dita, já que os intelectuais emigrados tiveram que encontrar
novos nichos em instituições europeias e nos Estados Unidos, o que propiciou encontros
intelectuais que provavelmente não aconteceriam em outras circunstâncias.
Da mesma forma, a competição pela hegemonia entre as “nações maiores” e a
situação marginal dos intelectuais de periferia colocada por Burke também não se mostra
concreta no caso do Círculo Eslavo de Viena, uma vez que apesar da propensão beligerante
e expansionista da Prússia, a colaboração entre Ranke e os intelectuais eslavos (sem contar
o suporte que Ranke recebera dos Habsburgo) mostra que a tendência para o trabalho
48
É importante fazer uma distinção entre o círculo de Viena aqui tratado e aquele outro grupo de filósofos
que recebeu o mesmo nome no século XX. Enquanto o círculo de Viena do qual Ranke participou diz
respeito ao contexto do século XIX conforme descrito a seguir; o outro círculo de Viena (que não está
relacionado de forma algum com a discussão que aqui se apresenta) refere-se ao grupo coordenado por
Moritz Schlick entre os anos de 1922 e 1936. Segue-se aqui a sugestão de nomenclatura de Miodrag
Jelejevic, acrescentando o temos “eslavo” para manter a clareza.
49
BURKE, op. cit. p. 249.
37
conjunto ainda existia. Portanto, a comunidade imaginada dos estudiosos – essa “república
das letras” ou Gelehrtenrepublik – descrita por Burke não terminaria por volta de 1750 nas
mãos da especialização e do nacionalismo, mas sofreria mudanças que a tornariam mais
complexa, sem que abrisse mão de gestos de solidariedade e de interesse cultural que
ultrapassavam as fronteiras incertas da Europa oitocentista (BURKE, 2012, p. 248). 50
As questões do poder e da circulação de pessoas implicam uma realidade objetiva
de convivência e de formação de círculos intelectuais envolvida inclusive na discussão
teórica de primeira grandeza para esses indivíduos eruditos que pensavam a formação de
seus próprios estados e que tinham, na maioria dos casos, suas próprias vidas afetadas pelo
movimento dos grandes poderes. Assim, de volta às questões institucionais, dada a
dificuldade de entrada nos arquivos graças ao “lobby” já comentado, alguns outros espaços
forma mobilizados por Ranke para o encaminhamento de sua pesquisa, sendo a alternativa
viável o espaço da biblioteca, o qual ganhava notada importância no século XIX ao
ampliarem consideravelmente seus acervos51:
Leopold Rnake foi compelido a ajustar constantemente sua própria
estratégia de pesquisa às decisões administrativas do estado. A política de
arquivo incentivava a pesquisa em outras instituições como livrarias e
museus, assim como a reorganização de sua viagem de pesquisa.52
O espaço da biblioteca já era caro a Ranke desde sua mudança para Berlim, pois foi
lá que encontrou os primeiros documentos sobre a história italiana e que, de certa forma,
impulsionaram seu interesse crescente pelas relazioni e sua viagem em busca destas. Ainda
em 1825, ele conta ao irmão:
50
Idem, p. 258. O interesse cosmopolita de Ranke parece ter sido uma herança passada aos discípulos, já
que como mostra Burke, seu aluno Ludwig Riess, foi o primeiro professor de história em Tóquio, no período
em que o regime Meiji procurava modernizar o Japão.
51
Burke aponta para o fortalecimento das bibliotecas dentro do espaço alemão (com especial destaque para a
biblioteca da universidade de Göttingen e seus 20 mil exemplares), indicando também que em tal
fortalecimento a cultura livreira monástica poderia ter encontrado sua continuidade: “As grandes bibliotecas
públicas se tornaram ainda maiores, muitas vezes incorporando bibliotecas particulares menores (...). Além
disso, quando os mosteiros alemães foram dissolvidos em 1802-03, seus livros e manuscritos foram, muitos
casos, enviados a bibliotecas laicas, como a bávara Staatsbibliotheck em Munique. O que a biblioteca chama
de “aquisições” são amiúde transferências” (Idem, p. 44).
52
“Leopold Ranke was compelled to constantly adjust his own research strategy to the decisions of the state
administration. Archive policy prompted research in other institutions such as libraries and museums as well
as the reorganization of his research trip.” MÜLLER, op. cit., p. 120.
53
“Meine Studien nehmen einen ziemlich glücklichen Fortgang, wofern das Weitere dem Anfang enspricht.
Ich habe in der Bibliotek 4 Bände von niemand benutzer italienischer Manuscripte über die Geschichte von
38
E é justamente nesse espaço, dessa vez a Biblioteca Nacional de Viena que Ranke
encontra, além de documentos úteis à pesquisa55, o personagem decisivo para A Revolução
Sérvia, Vuk Stephanović Karadžić. O encontro acontece por intermédio de outra figura
emblemática da intelectualidade eslava: Jernej (Bartolomäus) Kopitar, o filólogo esloveno
que apoiou a reforma do idioma sérvio e foi ele mesmo um reformador de sua língua
materna56.
A trajetória de Kopitar é um exemplo do cosmopolitismo e da abertura austríaca
aos estrangeiros eruditos, desde que tais candidatos soubessem o jogo dos favores: “Os
sérvios na monarquia eram cidadãos muito queridos, mas apenas poucos como Kopitar
também cidadãos esclarecidos da Europa.” 57. Comum aos intelectuais do período, Kopitar
serviu à burocracia, especificamente para o Barão Sigmund Zois, que era um patrono dos
jovens literatos e eruditos eslovenos. Passou a desenvolver seus trabalhos em Viena desde
1808, onde estudou Direito com especial interesse também em filologia eslava, chegando a
ser censor de literatura eslava, grega, romena e albanesa. Contando novamente com a ajuda
1530 bis 1550 gefunden, in desen sich sehr vorzügliche und authentische Sachen finden.“ RANKE, op. cit.,
p. 147.
54
„Alle Morgen um neun gehe ich nach der Bibliothek. Dies ist eine außerordentlich reiche Sammlung, auch
an Manuscripten, wie ich sie siche, sehr reich. Irgend ein böser Erbe eines alten venetianischen Dogen, M.
Foscarini, hat dessen Sammlungen und Schriften, ohne selbst seines Briefwechsels zu schonen, hierher
verkauft. Du kannst denken, daß ich mit dierser Unthat ganz zufrieden bin. Eben hier und in vier, fünf andern
Abtheilungen der hiesigen Handschriftensammlung find eine Menge Relazionen und authentische Schriften,
die ich mit dem größen Vergnügen studiere.“ RANKE, op. cit., p.178.
55
“Auf der Bibliotek finde ich außerordentlich wichtige Sachen.” RANKE, op. cit., p. 172.
56
A primeira obrade Kopitar, „Grammatik der Slavischen Sprache in Krain, Kärnten und Steyermark“, foi
publicada em 1808 e obteve grande sucesso entre os filólogos.
57
„Die Serben in der Monarchie waren zwar treue Bürguer, aber nur wenige wie Kopitar auch geistige
Bürger eines aufklärten Europas.“ JELESIKEVIĆ, Miodrag. Leopold von Ranke: “Die Serbische
Revolution” – Voraussetzungen und Entstehung im Wiener Kreis um Bartholomäus Kopitar uns Vuk
Stefanović Karadžić. Berlim: dissertation.de – Verlag im Internet GmbH, 2007, p. 26.
39
58
Ossolińskis foi um nobre polonês envolvido em atividades políticas e literárias com papel importante no
mecenato da pesquisa intelectual. Em 1793, tornou-se prefeito da biblioteca real de Viena e, em 1817, doou
todos seus arquivos e coleções de livros, manuscritos e objetos para o povo polonês (num momento em que a
Polônia ainda não existia como nação), originando o Instituto Ossolineum, hoje um dos mais importantes
institutos culturais da Polônia. O instituto abriu suas portas em 1827 (ano da publicação da primeira edição
da História da Sérvia) na cidade de Lviv, na Galícia (região entre a Ucrânia e a Polônia), então sob ocupação
austríaca e desde então se transformou num centro de cultura e ciência que contava com uma livraria, uma
editora e o Museu Lubomirski.
59
A busca por estabelecer a identidade própria de cada povo entrava nos campos político, geográfico e
cultural foi algo bastante amplo, na Alemanha passou pela busca em fixar os contos populares na forma
escrita, nos países bálticos assistia-se, entre 1820 e 1830, a Guerra do Alfabeto Esloveno, na qual se debatia
vivamente sobre qual o alfabeto deveria ser empregado nos novos idiomas que nasciam das reformas
linguísticas. Por outro lado, apesar da busca por esses traços peculiares – que poderia levar ao afastamento
entre povos – a troca intelectual vívida sugere que havia certa solidariedade entre pensadores que advinham
40
de contextos históricos de dominação (como os países bálticos) ou fragmentação (Alemanha), além de uma
comunidade europeia das letras unida por interesses afins e pela formação humanista comum.
60
„Große Verdienste um das serbische Schrifttum erwarb er sich durch die gesellschaftlichen und
wissenschaftlichen Hilfestellungen, die er dem Reformer der modernen serbokroatischen Schriftsprache, Vuk
Stefanović Karadžić, leistete. Seine Abneigung gegen Rußland entstammte seiner austroslavischen kultur-
politischen Konzeption. Vor allem für die katholischen Slawen sah er Wien als Zentrum des
Austroslavismus, kritisierte die russophilen Tschechen (J. Dobrovský, J. Kolár) und wollte besonders die
Südslaven noch enger an Wien binden. Seine Träume von einem Lehrstuhl für Slavistik an der Wiener
Universität verwirklichte erst sein Schüler und Nachfolger F. Miklosich.“ VINTR, Josef, „Kopitar,
Bartholomäus“, in: Neue Deutsche Biographie, Bd. 12 (1979), p. 566. Onlinefassung: http://www.deutsche-
biographie.de/pnd11856529X.html, acessado em 10/10/2013.
41
A cultura popular foi o campo preferido de ação tanto para os intelectuais de língua
alemã como para os eslavos. O meio preferido eram os estudos linguísticos, esforço que
rendeu muitos dos primeiros dicionários vernaculares contemporâneos:
61
“Karadžić hat ihn als den Älteren und Gebildeteren akzeptiert und Gegensatz zu den anderen Serbien
begonnen, seinen Empfehlungen und Forderungen Folge zu leisten. Er kamm in Kontakt mit dem
Gedankengut der slowenischen nationalen Wiedergeburt, personifiziert in Kopitar. Von ihm wird Karadžić
auf der Bühne der europäischen Kultur eingeführt und mit den allgemeinen neuen nationalen Bestrebungen
bekannt gemacht. Kopitar, dem J. Grimm den Stempel eines „monstrum scientarum“ aufdrückt, wird der
Leistern, die Sonne in der slavischen Galaxie mit einem großen Einflussgebiet darstellen, Kopitars Geist war
wissenschaftlich allgegenwärtig. Selbst Slawist, unterhielt er internationale Beziehungen mit anderen
Wissenschaftler und Gleichgesinnten. Er war eine kontroverse Persönlichkeit. Kopitar missfiel der Einfluß
Russlands auf die Serben, der traditionell in allen serbischen Gesellschaften der Monarchie vertreten und
besonders im orthodoxen Glauben fest verankert war.“ JELESIJEVIĆ, op. cit., p. 26.
42
finalmente o filólogo, historiador e crítico sérvio Karadžić, exilado de sua terra natal por
conta de sua oposição ao poder otomano em seu país. A empatia entre Ranke e Karadžić
era derivada em grande parte de uma formação comum que incluía o interesse pela
gramática histórica, pela política e pela erudição em geral62. Na mesma inspiração dos
irmãos Grimm na Alemanha, Karadžić foi responsável pela compilação de músicas,
crenças e histórias populares de sua terra. Seus interesses estavam, como podemos
perceber, em consonância com aqueles de alguns dos intelectuais alemães mais
importantes no renascimento cultural alemão contemporâneo, como os próprios irmãos
Grimm, Johann von Goethe, Adelbert Von Chamisso, E.T.A Hoffman e Ludwig Tieck.
Karadžić exerceu influência fundamental na formação nacional sérvia em um momento no
qual seu povo começava a ensaiar sua entrada no conjunto das nações europeias:
62
Miodrag Jelesijević ressalta também outra característica de Karadizic que se relacionava com a
personalidade do próprio Ranke: a compulsão pela escrita, sendo o sérvio um “Schreib-Fanatiker, ein
Graphoman”. (Idem, p. 8)
63
“Vuk S. Karadžić ist für die kulturelle Emanzipation der Serben die wichtigste Persönlichkeit seiner Zeit,
ein Trendsetter, jemand, dessen Einsatz, aufopfernde Arbeit und Schaffung des ‚Prapovis‘ (...) die
Emanzipation und kulturelle Modernisierung Serbiens erst ermöglich hat. Sein ‚Prapovis‘ ist eine
Kulturnorm, ein Grundstein der kulturellen Infrakstruktur, ohne den die kulturelle Entwiklung Serbiens nich
mögligh gewesen wäre.“ Idem, p. 16.
64
““Er wird auch in der Literatur die Erfahrung machen müssen, das ser ohne ständigen Kampf, wenn auch
jetzt mit Tinte und Papier, ohne direkte Folgen für das eigene Leben, nichts erreichen kann.“ Idem, p. 18.
43
65
O tema é tratado no capítulo IV.
66
Conforme o site da Universidade de Belgrado - http://www.bg.ac.rs/eng/uni/en_istorijat.php, acessado em
1/07/2013.
45
independente, além dos que apoiavam o domínio turco67. Há também uma relação palpável
de trocas intelectuais entre os países de fala alemã e os Bálcãs, o que é atestado pela
presença de intelectuais eslavos em Viena e pela própria A Revolução Sérvia.
Logo, apesar dessas divergências latentes de condições, algumas semelhanças de
trajetória entre Karadžić e Ranke parecem ser o campo comum sobre o qual foi construída
a amizade e a parceria intelectual entre os dois. Ambos pertenciam à mesma geração
(Karadžić era apenas dois anos mais novo do que Ranke), vinham de cidades pequenas68 e
assim como Ranke, Karadžić recebeu suas primeiras instruções em ambientes religiosos:
suas primeiras leituras foram em livros da Igreja, sua estadia no colégio monasterial
Tronoša durou dez anos e sua formação ginasial incluiu o aprendizado de latim, alemão e
história69. E, apesar de Karadžić ter nascido em berço consideravelmente mais humilde do
que a classe média protestante tão inclinada ao “mandarinato acadêmico”, ele ainda
conseguiu ascender a um cargo burocrático junto ao governo de Belgrado, local que o
ensinou sobre a dinâmica do poder e política internacional. Quando chega a Viena, em
1813, sua adaptação é surpreendente:
É incrível a rapidez com que Vuk Karadžić, um homem educado na
forma de pensamento arcaica, pensou a cultura ocidental de Viena. A
nostalgia e melancolia, especialmente em tempos difíceis, vão
acompanhá-lo, mas a sua compreensão da necessidade de modernização
cultural está sempre em mente. 70
Outra similaridade entre Ranke e Karadžić é que cada um, dentro de seu próprio
contexto social, seguiu os caminhos que levavam à espécie de self made intellectual, ou
seja, um indivíduo que necessita da astúcia, do esforço individual e da percepção afiada
das regras de funcionamento de um sistema que é mais forte do que ele para afirmar-se e
prosperar em seus estudos e em sua carreira. Nesse sentido, os mandarins acadêmicos (aqui
empregando o conceito em uma acepção mais ampla do que no contexto exclusivamente
alemão) transformavam sua produção e sua personalidade em uma espécie de marca que
deveriam gerir, criando características distintivas que se sustentassem em competição com
outros intelectuais. Ao mesmo tempo, o espaço de colaboração passava ou pela submissão
67
JELESIJEVIĆ, op. cit., p. 20.
68
Vuk Karadizic nasceu na pequena vila de Tršić, cidade a 150 km de Belgrado. O censo de 2011 indica que
a vila conta apenas com 1135 moradores.
69
Ibidem.
70
"Es ist erstaunlich, wie schnell Vuk Karadžić, ein im archaischen Stammsdenken aufewachsener Mann, die
westliche Kultur Wiens aufgesagte. Die Nostalgie und Wehmut, die besonders in schweren Stunden immer
wieder aufflamt, wird ihn begleiten, jedoch wird ihm die Einsicht der Notwendigkeit einer kulturellen
Modernisierung ständig vor Augen sein.“ Idem, p. 18.
46
71
“In seinem Streben nach Bildung und Wissen begab sich Vuk Karadžić 1805 in das Habsburgreich, nach
Sremiski Karlovci, in die Residenz des serbischen Metropoliten Stefan Stratimirović. Voller Bewunderung
betrachtet der einstige Hirtenjunge die barocke Residenz und das Gewimmel der internationalen Adels, der
hohen Beamten un der reichen Bürgenturms. Hier wurde sich Vuk Karadžić zum ersten Mal seiner sozialen
Herkunft bewusst. Er erlebt den sogenannten „Kulturschock“. Er schämte sich seiner bäuerlichen Herkunft.
Dennoch bereitete er sich für die Aufnahme auf das Gymnasium vor, lernte deutsch, lateinisch und begann,
die vorhandenen Bücher zur Geschichte und Kultur der Serben zu lesen.“ Idem, p. 18.
72
„ Zugleich aber was der Ausenthalt in Wien, der sich vom October 1827 bis October 1828 erstredste, in
jeder anderen Weise ergiebig. An Wuk Stepanowitch [sic], dem gelehrtesten aller Serben, die damals leben,
fand ich einen Freund, der mir deine Sammlung zu der serbischen Geschichte mittheile. Sie ergriff mich
durch die lebendige Information über eine Kreigniß von allgemeinster historischer und politischer Bedeutung
in der Tiefe der Geistes und Herzens. Im Sommer 1828 habe ich daraus die Geschichte der Revolution in
Serbien zusammengestellt, bei der mir die Beihilfe unvergeßlich ist, die mir der damalige Mittelsman
47
deutscher und slavischer Gelehrsamheit, Kopitar, geleistet hat.“ RANKE, Leopold von. Zur Eigenes
Lebensgeschichte. Sämmtliche Werke 34.-35. Band. Leipzig: Duncker und Humblot, 1890, p. 63.
73
Apesar de muito do conteúdo da coletânea de Karadžić ser do que chamaríamos hoje de folclórico, Ranke
escreve uma história sérvia ao seu modo e com os temas que movimentam sua historiografia: um forte
interesse político, a busca dos pontos de interação entre as forças em embate, o traçado das características
distintivas de cada povo dentro do mosaico das nações europeias.
74
DIETHER, Otto. Leopold von Ranke als Politiker. Historisch-psnchologische Studie über das
Verhältnis der reinen Historikers zur praktischen Politik. Leipzig: Dunker und Humblot, 1911, p. 54.
75
É importante aqui fazer uma distinção entre o círculo de Viena aqui tratado e aquele outro grupo de
filósofos que recebeu o mesmo nome no século XX. Enquanto o círculo de Viena do qual Ranke participou
diz respeito ao contexto do século XIX conforme descrito a seguir; o outro círculo de Viena (que não está
relacionado de forma algum com a discussão que aqui se apresenta) refere-se ao grupo coordenado por
Moritz Schlick entre os anos de 1922 e 1936.
76
Ao denominarem os sérvios de “ilírios”, os austríacos faziam referência ao povo que habitava a região a
oeste dos Bálcãs e sul da Itália no começo da era cristã. Sua especificidade é notadamente linguística,
constituindo um ramo separado do indo-europeu.
77
Kämpfer cita alguns outros membros do círculo de Viena: “Im Prager Nationalmuseum wurde Ranke mit
dem dortigen Bibliothekar, Vaclav Hanka(*1791), und mit Josef Dobrovsky(*1753), dem Begründer der
Slavistik, bekannt. Vermutlich war es eine Empfehlung aus diesem Kreise, die Ranke in Wien mit dem
Kustos der Wiener Hofbibliothek, Bartholomäus Kopitar (*1780), in Verbindung brachte.5 Auch
den berühmten Osmanisten Joseph Hammer (+1774) und andere interessante Persönlichkeiten Wiens lernte
Ranke kennen, unter ihnen Vuk Stefanovic Karadzic (*1787), der seit 1813 in Wien lebte. Die Wiener
Archive öffneten sich Ranke dank der Vermittlung eines führenden konservativen Publizisten, Friedrichs von
Gentz , der für ihn eine Audienz bei Metternich und damit die entsprechende Erlaubnis erwirkte.“
(KÄMPFER, Frank. Vuk Karadzic und Leopold Ranke: Zur Rezeption der 'SERBISCHEN REVOLUTION”
48
liberdade no seio de uma nação historicamente formada pelo domínio de uma cultura
alheia.81 O material recebido também pareceu incitar a escrita e Ranke tenta integrar ao
máximo o que recebera do Círculo Eslavo de Viena; além disso, não só o material escrito
era instigante mas também o testemunho vivo de Karadžić, contemporâneo ativo nas lutas
pela independência da Sérvia trazia elementos fundamentais para a compreensão dos
demais europeus sobre as guerras de independência que se desenrolavam nos Bálcãs
oitocentistas. Ao considerarmos, como faz Fritz Ringer, que na Alemanha até a década de
1890, a intelectualidade mandarim “levava o selo público e oficial”, tomando para si a
validade e a representação dos valores da elite aristocrática82, então é possível perceber a
importância do estudo sobre a Sérvia e os otomanos do ponto de vista das estratégias
militares e diplomáticas que seriam colocadas em prática no terreno da política
internacional alemã e austríaca. Assim, uma obra aparentemente despretensiosa começa a
ganhar contornos que a inserem num contexto de práxis e dos jogos do poder e de sua
relação com a informação, ganhando assim realce transnacional.
A segunda edição d’A Revolução Sérvia foi publicada em 1844, momento no qual
Leopold von Ranke gozava de boa reputação entre parte dos historiadores e políticos
devido ao sucesso das obras anteriores e de sua História dos Papas (Die römischen Päpste
in den letzten vier Jahrhunderten) (1834-1836), volumes que foram publicados após sua
promoção na Universidade de Berlim.
O tom de Ranke muda drasticamente nas cartas desse período, sendo essas marcadas
por uma maior acomodação e conforto, frutos tanto do seu casamento como da segurança
econômica, contrastando fortemente com a situação daquele jovem professor de 1828.
81
Conforme o argumento da História da Sérvia, apesar do povo sérvio ter passado por longos períodos de
domínio, haveria nele quase que uma disposição natural para a autonomia política. Ranke explora também os
limites dessa autonomia no sentido de que não significa isolamento total já que a política é em sua natureza
formada da interação.
82
RINGER, op. cit., p. 51.
50
83
Georg Waitz (1813 – 1886) desenvolveu atividades como historiador medievalista e político, tendo
relações bem próximas com Ranke. Após a graduação em Berlim (1836), Waitz foi a Hannover para assistir
Pertz na empreitada gigantesca da Monumenta Germaniae Historica. Posteriormente, foi professor em Kiel
(assume em 1842) e Göttingen (aceita o convite em 1847, mas só faz seu debut em 1849 por conta da
Revolução de 1848). Ele voltou a se envolver com a Monumenta, da qual se tornou editor-chefe como
substituto de Pertz, resultando viagems à Inglaterra, França e Italia para coleta de material. Como
curiosidade, as esposas de Waitz foram uma filha do poeta Schelling e a outra do General von Hartmann.
84
“Im August denke ich mit zwei neuen Kinder aufzutreten: 1) einer Erneurung des Buch über Serbien, 2)
aber einem aus Fleisch und Blut, wie ich der Welt noch nicht zeigen. Sind sie nicht auch in diesen Falle? In
meinem späten Ehestande bin ich doch, Gott sei Dank, unendlich zufrieden und wünsche nur, daß das so sort
gehen möge.“ RANKE, op. cit, p. 327.
85
O historiador suíço Carl Jacob Christoph Burckhardt (1818 – 1897) ocupou-se majoritariamente dos
campos da história da arte e da cultura, notadamente pelo trabalho A Civilização do Renascimento na Itália
(1860). Seu período de discência na Universidade de Berlim ocorreu entre 1839 e 1843.
86
BURKHARDT, Jacob. Cartas. Seleção e Edição de Alexander Dru; Tradução de Renato Rezende. Rio de
Janeiro: Top Books, 2003, p. 121.
87
Idem, p. 126.
88
Idem, p. 136.
51
89
Bettina Brentano (1785–1859) foi figura ativa no romantismo alemão (escrevendo também sob o
pseudônimo de Bean Beor), desempenhando atividades como escritora, editora, cantora, artista plástica,
patrona das artes e ativista social. Foi casada com o poeta Achim von Arnin, o qual faleceu em 1831,
estimulando assim a mudança de Bettina para Berlim, onde passa a lutar pelos direitos da mulher. Manteve
relações com Goethe e Beethoven, entre outros. Segundo citado nas cartas de Ranke, a relação dele com
Bettina datava já do final da década de 1820.
90
Trata-se aqui de Karl August Varnhagen von Ense (1785-1858). Varnhagen estudou medicina em Berlim,
mas dedicou-se principalmente à filosofia e à literatura, disciplinas que ele estudou nas Universidades de
Halle e de Tübingen. Trabalhou no serviço público prussiano em Berlim (1812), mas logo retomou a sua
carreira militar, dessa vez, como capitão no exército russo. Trabalhou também no serviço diplomático
prussiano e esteve presente no Congresso de Viena sob as ordens de Hardenberg, a quem ele também
acompanhou em Paris no ano de 1815.
91
Idem, p. 136-9
92
Idem, p. 139.
93
Friedrich Ludwig Georg von Raumer (1781 – 1873) foi professor da Universidade de Breslau (1811-1816)
e, entre 1819 e 1847, tornou-se professor de história na Universidade de Berlim. Assim como Ranke, Raumer
também teve um período de viagem, ainda que mais longo (1816-1855), encarregando-se igualmente de uma
pesquisa em Veneza (1815), seguindo por incursões na própria Alemanha, Suíça, Itália, Inglaterra e Estados
52
matar alguém de tédio – porque ele e Ranke, desafiando-se um ao outro, decidiram dar
aulas no mesmo horário” 94
É de interesse, assim, reparar no fator estruturante das relações entre Ranke e seu meio,
o qual seja aquilo que Diether chama de “desenvolvimento da arte política”, ou seja, a
política como tema do momento não era apenas uma questão acadêmica ou teórica, mas
também um item presente e estrutural na sobrevivência profissional: era ao mesmo tempo
um problema intelectual e prático que se fazia presente em diversos níveis da vida tanto
individual quanto coletiva.95
Deve-se lembrar de que é justamente na década de 1840 que Ranke recebe sua
nomeação como historiógrafo real, em 1841, pelo rei prussiano Friedrich Wilhelm IV96.
Ranke relata, no entanto, que o contato como rei havia sido estabelecido nos anos de
viagem, ou seja, no mesmo período em que tivera contato com o Círculo Eslavo de Viena e
escrevera A Revolução Sérvia e no mesmo espaço de sociabilidade alternativo ao arquivo,
a biblioteca:
Eu tinha travado contato, se assim posso dizer, com Frederick William IV em
Veneza; primeiramente eu o vi na Markusbibliotheck - foi em 1828 -, e depois
mais de uma vez no Hotel Danieli. Ele me cumprimentou como seu velho
conhecido com a expressão de apreciação pelo Fürsten und Völker, o que para
mim foi tão lisonjeiro que não consigo reproduzir. Ele é desde então meu
gracioso patrão e patrono. 97
Unidos. Ele também empreendeu uma carreira política, sendo eleito membro do Parlamento de Frankfurt em
1848, apoiando a Prússia, e agindo como embaixador alemão em Paris e, posteriormente, integrou o
Parlamento em Berlim. Seu trabalho é notadamente dedicado à história alemã, com destaque para
Geschichte der Hohenstaufen und ihrer Zeit (1823–25) e Geschichte Europas seit dem Ende des 15ten
Jahrhunderts (1832–50).
94
Idem, p. 136. As relações entre Ranke e Friedrich Raumer datam da década de 1820, como pode-se atestar
pela carta que Ranke envia ao irmão de Friedrich, Karl: “Ihre paar Zeilen Mitgabe, mein lieber Freund, waren
zwar nur ein paar, aber sehr lieb waren sie mir. Auch ich habe mir Ihren Rath fogleich zu Nutz gemacht und
auf fas künftige Semester historische übungen angekündigt. Gar sehr wünsche ich, mit meinen Zuhören in
lebendigem Bezug zu stehen: obwohl ich freilich nicht ganz der Mann bin, die edle Stellung eines wahrhaften
Lehrers einzunehmen. Ihr Herr Bruder ist gegen mich sehr gütig uns gefällig. Daß ich indeß in dem Sinne
sein College werden wollte, wir Heinrich es der Ihrige ist, ist bei der völligen Isolirung hiesiger Lehrer nicht
zu hoffen. Auf jeden Fall wede ich ihm seine Freundlichkeit und Güte zu gergelten suchen.“ (RANKE,
Leopold. Brief an Karl Raumer am 12. Juli 1825, In: op. cit., p. 148). Em outra carta, Ranke pede para que o
irmão entre em contato com Raumer, alegando: „Etwa auch Ritter’s (d. i. Heinrich R.‘s, der mein Freund ist;
nicht der Geograph, ob ich gleich auch mit dem gut stehe.)“ (RANKE, Leopold. Brief an Heinrich Ranke am
25 August 1827, In: op. cit, p. 169)
95
A vida pessoal de Ranke também sofre uma mudança importante: em 1843 ele se casa com Clarissa
Graves-Perceval, com quem teve três filhos.
96
Friedrich Wilhelm IV von Hohenzollern (1795-1861) subiu ao trono da Prússia em 1840.
97
“Ich hatte mit Friedrich Wilhelm IV. in Venedig, wenn ich so sagen darf, Bekanntschaft gemacht; zuerst
habe ich ihn auf der Markusbibliotheck – es war im Jahre 1828 – gesehen, dann mehr als einmal in den Hotel
Danieli. Er emping mich als seinen alten Bekannten mit dem Ausdruck der Anerkennung, die für mich so
schmeichelhaft war, daß ich sie nicht wiederholen mag, in Bezug auf meine Fürsten und Völker. Er ist
seitdem mein gnädiger Herr und Gönner gelieben.“ RANKE, op. cit., p. 71.
53
98
São referidose aqui aos escritos que estavam fora do corpo de pesquisa tradicional de Ranke sobre a
formação dos estados modernos. Tais escritos foram objetos de conferências, palestras e publicações em
revista, tendo como foco a política externa do momento, ainda que muitas vezes lançassem mão da
prerrogativa histórica como alicerce de seus argumentos.
54
A distinção feita pelos autores é bastante útil para o caso de Ranke, uma vez que em
seus textos a primeira instância (modelo da realpolitik) é notadamente mais declarada do
que o lado prescritivo (realismo normativo). O cuidado de Ranke em manter a parte dos
conselhos administrativos em luz baixa advém em muito dos próprios quadros do
historicismo, o qual tende a enfatizar a especificidade histórica da cada momento em sua
individualidade e opondo-se, assim, a uma história magistra vitae (ou, no caso magistra
politici) nos moldes do que a historiografia moderna propunha, como no caso clássico de
Maquiavel, por exemplo. No entanto, é lícito questionar até que ponto os dois lados dessa
equação são separáveis, uma vez que o estabelecimento de tal modelo já visava certo plano
de ação guiado por certo comportamento padrão (e portanto generalizado) dos diferentes
Estados frente ao poder. De qualquer forma, a Prússia do século XIX, empregadora de
Ranke na Universidade de Berlim, se enquadra na descrição clássica da Realpolitik, num
contexto histórico de ascensão das potências e das disputas imperiais que delinearam os
contornos da Europa contemporânea:
O realismo enfatiza a natureza anárquica do sistema internacional, no
qual não há legislatura, judiciário ou força polícial efetivas. Em tal
sistema, de acordo como o modelo de realpolitik, as Nações-Estado
perseguem seus próprios interesses e concebem estes interesses nacionais
primariamente em termos de poder. As Nações-Estado temem a conquista
por outras nações e assim constroem capacidades nationais (incluindo
armamentos) e formam coalizões (incluindo alianças militares) para
proteger a si mesmas. (...) Os realistas acreditam que a defesa da
independência nacions depende da implementação bem sucedida de
políticas nacionais (diplimacia, força militar e formação de alianças) para
formar uma “balança de poder” contra os Estados revisionistas. 100
99
“Broadly speaking, realism in social science is the analysis of human relations emphasizing power and
strategy. In study of relations among sovereign states (…), realists theories attempt to describe how states do
behave and to prescribe how they ought to behave. This mixture of scientific hypotheses and policy advice
has always been strength of realism and yet also a source of potential confusion. To distinguish between the
is and the ought, we will call the descriptive or explanatory side of realistic theory the realpolitik model,
while we call the prescriptive side normative power politics or normative realism.” WAYMAN, Frank W.;
DIEHL, Paul F. Realism Reconsidered. The Realpolitik Framework and Its Basic Propositions. In:
Reconstruction Realpolitik. Michigan, Michigan University Press, 1994, p. 3.
100
„Realism emphasizes the anarchic nature of the international system, in which there is no effective
legislature, judiciary, or police force. In such a system, according to the realpolitik model, nation-states
pursue their own national interests and conceive these national interests primarily in terms of power. Nation-
states are fearful of conquest by other nations and therefore build up national capabilities (including
armaments) and form coalitions (including military alliances) to protect themselves. (…) Realists believe
that the defeat of the national independence hinges on the successful implementation of national policies
(diplomacy, military strength, and alliance formation) to form a “balance of power” against revisionists
States.” Idem, p. 4.
55
101
“ So wäre unsere Absicht, nach um nach das Wichtigste zu umfassen, was ein denkender Zeitgenosse zu
erfahren wünschen kann, um seine Zeit nicht nach irgend einem Begriff, sondern in ihrer Realität zu
verstehen und völlig mitzuleben. Dies in dem Geiste eingehender Erforschung zu versuchen, in dem Geiste
reiner un unparteiischer Wahrheitsliebe, das ist unser Vorsatz.“ RANKE, Leopold von. Einleitung. In:
Historisch-Politische Zeitschrift. 1. Band. Hamburg: Friedrich Perthes, 1832, p. 8.
102
RANKE, Leopold von. Einleitung. In: Historisch-Politische Zeitschrift. 1. Band. Hamburg: Friedrich
Perthes, 1832, p. 3.
103
RANKE, Leopold von. Die großen Mächte. In: . In: Historisch-Politische Zeitschrift. 2. Band. Berlim:
Dunkler und Humblot, 1833-1836, p. 50-51.
104
Ver o capítulo II, item 1.2.
105
Segundo Roger Wines, a promoção na universidade acontece em 1824 por conta dos serviços prestados
como editor da Historisch-Politisch Zeitschrift.
56
106
“(…) equally sincere, and equally naïvely, he believed in the good intentions of the autocratic Prussian
Government; and indeed he had personally experienced nothing but benefits at its hands; he believed in its
wish and its ability to promote the interests of the whole nation. We see, then, Ranke in the grip of a great
contemporary intellectual movement. We observe, moreover, that his career under the protection of the
Prussian Government could not but confirm him in the conservative temper that went naturally with this new
vie of human society and of history.” (GEYL, Pieter. Ranke in the light of the catastrophe. In: Debates with
historians., p. 6)
107
“As the foreign minister, Acillon, remarked to the minister of education, Altenstein, Ranke’s promotion
was desirable “more in the general interest of the state than in that of the university”, and initially he was
paid out of the general treasury rather than from the university budget. The philosophical faculty was never
asked to vote on the appointment, and was informed only afterward that it had taken place. Ranke’s great
series of works, beginning with the History of the Popes, which earned him an international reputation, were
published after he had gained professional rank. Though his editorship of the journal ceased in 1836, Ranke
remained a conservative supporter of the Prussian government in university controversies relating to
academic freedom.” WIENES, Roger. Introduction to On the Relation of and Distinction Between History
and Politics. In: RANKE, Leopold von. The Secret of World History. Select Writings on the Art and
Science of History. Edited and translated by Roger Wines. New York: Fordham University Press, 1981, p.
105.
108
Assim como a Revolução Sérvia, a História da Prússia sofrerá uma revisão e consequente alargamento do
seu conteúdo entre os anos de 1878 e 1879, indo então de nove tombos para doze.
57
natal109. O impulso não passa ao largo d’A Revolução Sérvia, que é completamente
reestruturada para sua segunda edição, ganhando um formato mais notadamente
“rankeano”, ou seja, passa a ser mais parecida com os demais escritos de Ranke no que diz
respeito aos temas e à abordagem formal: recheada de informações estratégicas e grandes
cenários de diplomacia.
A biografia de Ranke, principalmente nas últimas duas décadas de sua vida, parece
formar coro com a famosa declaração de Sherlock Holmes em O Signo dos Quatro: “'I
cannot live without brain-work. What else is there to live for?”. Em 1871, Ranke se
aposenta da docência formal na Universidade de Berlim, mas continua com os seminários
de estudos e com as pesquisas sobre a história alemã. Nesse momento, sua influência como
historiador já havia formado certa escola histórica de pensamento que se estabeleceu
inclusive em outros países, notadamente nos Estados Unidos110 e, como bem coloca Geyl,
“as academias vieram a jurar perante Ranke.”111
109
A ligação entre política a posição na revista é bastante nítida: “(...) He was made editor of that little sheet
the Historisch-Politische Zeitschrift in order to defend Prussian Government policy against the Liberals and
their theories of Constitution and Parliament.”( GEYL, op. cit.,p. 5)
110
A amplitude da influência de Ranke sobre a disciplina histórica dos Estados Unidos não pode ser
subestimada. Como relata Edward Muir sobre a constituição da coleção rankeana da Syracuse University,
“Based on the model of the Berlin seminar, students of Ranke established America’s first Ph.D. program in
history at The Johns Hopkins University. Another veteran of Ranke’s seminar, Charles W. Bennett, became
the first professor of history at the new university founded in 1870 at Syracuse. In its early years the
fledgingling university tried to do everything at once: raise money, recruit well trained faculty, start teaching
students, provide classrooms, equip laboratories, and acquire a library collection. The last was a very
pressing need. During the 1880s when benefactors offered to help building up the library, Bennett returned to
Berlin and began negotiations with his old mentor to purchase at Rank’s death the extraordinary personal
library the historian had assemble in developing his method and writing his books. (MUIR, Edward. Leopold
von Ranke, his Library, and the Shaping of the Shaping of Historical Evidence. In: The Courier, 22.1 (1987),
p. 4)
111
“(…)the academies came to swear by Ranke.”GEYL, op. cit. p. 11. O autor também reintera, acerca da
influência rankeana, que o “Historicism was by no means confined to Germany, and the influence of Ranke
helped to spread it over the world.” (idem, p. 13)
58
A relação de Ranke com as altas esferas do poder também continuava intocada, como é
demonstrado pelas cartas ao Kaiser Wilhelm112 e ao chanceler Bismark113 em
agradecimento ao recebimento de um diploma honorário. Não pode ser esquecido que em
1865 Ranke tem acrescentado ao seu nome o “von”, ou seja, o rei Wilhelm I concede ao
historiador o título de nobreza, uma estampa de que ele, pelos menos na ritualística dos
títulos, “fazia parte do clube”.
A política de boa vizinhança com os Hohenzollen, assim como o reconhecimento do
progresso que Ranke havia trazido para a disciplina histórica, levavam o historiador a ser
consultor na formação de algumas academias científicas na Alemanha, já iniciadas desde
1854, quando o historiador proferiu as conferências para o rei Maximilian Joseph da
Baviera114. Assim, em 1871, Ranke submete uma petição a Bismarck para o
estabelecimento da Academia de História e Língua Alemãs (Akademie für Deutsche
112
Wilhelm I (Wilhelm Friedrich Ludwig) (1797 – 1888), dos Hohenzollern, foi rei da Prússia entre 1861 1
888 e o primeiro imperador alemão (1871 – 1888). Foi durante seu governo, juntamente com o primeiro
ministro Otto von Bismarck, que acontece a unificação alemã e o estabelecimento do império.
113
Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen (1815 – 1898), conhecido como o chanceler de ferro,
levou à frente o projeto político do Segundo Império Alemão (II. Deutscher Reich), que duraria de 1871 a
1918. Entre 1832 e 1833, estudou direito na Universidade de Göttingen, matriculando-se na Universidade de
Berlin, onde permaneceu entre 1833 e 1835. Começou sua carreira como advogado em Aachen e Potsdam.
Ingressa na política em 1847 com uma cadeira na Dieta (Landtag) prussiana, participando como
representante de Prússia na Dieta de Frankfurt em 1850, destacando-se pelo conservadorismo e posição
antiaustríaca. Foi embaixador em São Petesburgo e Paris, retornando a Berlim em 1862, sendo nomeado por
Wilhelm I primeiro ministro. O sucesso na guerra contra a Dinamarca, em 1864 (garantindo a posse do
Schleswig-Holstein) assegurou o poder de Bismarck. Em 1865, Bismarck recebe o título von Bismarck-
Schönhausen. de A vitória contra a Áustria, em 1866, cedeu a liderança do mundo germânico à Prússia e a
guerra franco-prussiana (1870) consolidou o poderio prussiano na balança dos poderes europeus. Em 1871,
recebe o título de príncipe e em 1890 de duque von Lauenburg.
59
115
RANKE, ZEG, p. 696.
116
““eine Akademie für die Entwicklung der deutschen Schriftsprache zu gründen, die zugleich eine
Bereinigung der namhastesten Schriftsteller bilden sollte.” Op. cit, p. 696
117
“Ranke was able to “monopolize” the Monumenta Germaniae Historica project in Berlin as well as the
historical commission set up by the Bavarian academy (the Bavarian king was Ranke’s student). Ranke
recurred the professional work available within these projects for his students, and for his student only. The
students thus could make a living working on research material which they could also use for their own
purposes, which put them into a much better position than any other competitors.” WOCKOECK, Ursula.
German Orientalism: The Study of Middle East and Islam from 1800 to 1945. New York: Routledge,
2009, p. 291, nota 10.
60
Minha intenção é fazer com que a terceira parte da história do mundo também
apareça em duas divisões, mas de uma maneira um pouco diferente; a primeira,
um pouco maior do que as anteriores, deve conter o texto histórico que vai tratar
do período de Augusto a Constantino, incluindo as origens do cristianismo; o
segundo constara dos Analectos. Além disso, queremos levar à cabo outras
consultas. O meu pedido então é levar a impressão à cabo de modo que não
precise ser apressada no mês de novembro com as provas, como no ano de 81. É
realmente uma superprodução, o que pode ter consequências nefastas. Porque
assim poderá ser previamente para assegurado que a impressão é capaz de
suportar a pressão e continuar ininterruptamente no mesmo padrão. 118
118
“Meine Absicht ist, den dritten Theil der Weltgeschichte ebenfalls in zwei Abtheilung erscheinen zu
lassen, jedoch in etwas abweichender Art; der erste, etwas umfangreicher als die frühren, soll den
historischen Text, der die Epoche von Augustus bis Constantin, also auch die Anfänge des Christenthums
behandeln wird, enthalten; der zweite die vielbeschrochenen Analekten, welche Sie abgesondert
herauszugeben Bedenken trugen. Darüber wollen wir dann weiter Rücksprache nehmen. Meine Bitte wird
dann dahin gehen, den Druck so einzurichten, daß ich nicht im Monat November mit den Correcturen so
überhäuft zu werden brauche, wie in dem Jahre 81. Darin liegt wirklich eine Überreizung, welche schädliche
Folgen haben kann. Dafür also wird im voraus zu sorgen sein, daß die Buchdruckerei im Stande seu, den
Druck zu übernehmen und ununterbrochen gleichemäßig fortzusetzen.“ RANKE, op. cit, p. 551.
119
Ernst Constantin Ranke (1814 – 1888) foi teólogo protestante e trabalhou, em 1850, como professor de
história da igreja e de exegese na Universidade de Marburg, da qual foi reitor entre 1865 e 1866.
120
“Den zehnten September weiß ich nicht besser zu feiern (so enge glaube ich Dich mir auch in meiner
gestigen Arbeit verbunden) als damit, daß der dritte Theil der Weltgeschichte seiner Vollendung nahe ist.
Auch die Analekten find bereits großtentheils abgesetzt. Es würde zu nichts führen, wenn ich Dir die drei
ersten Bogen nochmals zuschicken wollte, zumal ich nicht genau weiß, wo Du Dich eigentlich befindest. Bei
der letzten Correctur ist nichts weiter hinzugekommen als bei Deinem Namen die Notiz, daß E. R. Mein
Bruder ist. Zum ersten mal, soviel ich mich besinne, war ich veranlaßt, dies auszusprechen; ich sage Dir
nochmals herzlichen Danke für die sorgfältige Durchsicht des ersten Abschnittes der Analekten. Es gereicht
mir zur Genugthuung, daß Du auch in Bezug auf Josephus mir beistimmst. Wäre es nur möglich gewesen,
Dich auch bei den folgeden Abschinitten herbeizuziehen, ich würde dann bei der Publikation weniger
Bedenken empfinden. Deren find immer noch ganz manche. Auch bei dem Hauptwerk selbst bin ich meines
Erfolges nich ganz sicher Denn ich habe darin von Monarchie und Religion zugleich zu handeln, wobei ich
noch ganz andern, als bloß literarischen Antupathien entgegensehen muß. Anders wae es nun einmal nicht;
ich möchte zögern, so lange ich wollte so würde ich doch nicht anders schreiben können.“ RANKE, cit. op.,
p. 553.
61
Entre 1867 e 1890, Ranke inicia a compilação de suas obras (Sämmliche Werke),
pensado então sua produção como um todo:
121
“For the first years of his retirement Ranke devoted himself to rounding out his contribution to German
history and to share in editing his complete works (54 volumes, 1873-1890). At 80 years of age and almost
blind, he depended upon research and secretarial assistants. The old man’s industry taxed their energies.”
FITZSIMONS, op. cit., p. 551. Há inclusive uma espécie de celebração heroica do ancião Ranke dentro da
história da historiografia: “He was feeble, sunken, and almost blind, scarcely able to read or write”, so Acton
told his audience at Cambridge afterwards. “He uttered his farewell with kindly emotion, and I feared that the
next I should hear of him would be his death”. Instead, there came another lot of volumes, of a World
History, which was broken off somewhere in the late Middle Ages when the old man died, in 1886, in his
ninety-first year” GEYL, op. cit., p.2)
122
Ranke escreve em carta de 21 de março de 1979 a Carl Geibel: “Ich freue mich, daß ein kundiger Mann an
der Revision des Druckes Theilnehmen Will, der dann hoffentlich vollkommen correct ausfällt. Längere
Berzögerungen aber wären doch unangenhem“ (RANKE, op. cit, p. 545).
62
história de vida em meio à história universal – cujo exemplo lapidar é o começo de seu
ensaio autobiográfico de 1885, que costura sua trajetória pessoal aos grandes
acontecimentos da transição do século XVIII e XIX123:
Nasci no ano em que a Paz de Basileia foi acordada, a primeira tentativa de um
acordo entre a Revolução que reformulou a França e o Estado Prussiano, usando
os princípios conservadores do mundo europeu; mais uma tentativa de
compreensão, como uma paz que existia nos dois elementos opostos. 124
123
O nome do ensaio, Ditado de Novembro de 1885 (Dictat von November 1885) é resultado da
comemoração do nonagésimo aniversário de Ranke. O fato de ser um ditado justifica-se pela condição física
de Ranke, uma vez que o historiador, nesse momento, estava praticamente cego e necessitava do auxílio de
seus alunos para ler e redigir, ditando assim os conteúdos que desejava. A longa e ativa vida de Ranke fez
dele não só um intépreta da história como também uma memória viva dos acontecimentos que marcaram a
Europa oitocentista: “Nada das transformações que ocorreram no longo século XIX europeu, em particular na
Prússia, da qual se tornou súdito compulsório em 1815, escapou-lhe. Entre 1795 e 1886 testemunhou as
mudanças trazidas pelo ciclone napoleônico, viveu a ordem do Congresso de Viena e viu instalar-se o
Império Alemão. Sua relevância social, política, histórica e cultural faz dele um protagonista incontornável
do século XIX.” (MARTINS, Estevão; CALDAS, Pedro. Leopold von Ranke (1795-1886). In:
BENTIVOGLIO, Julio; LOPES, Marcos Antônio. A Constituição da História como Ciência. De Ranke a
Braudel. Petrópolis: Vozes, 2013, p.14).
124
“Ich bin in dem Jahre geboren, in welchem der Friede von Basel geschlossen worden ist, der erste
Versuch einer Abkunft zwischen dem durch die Revolution umgestalteten Frankreich und dem preußischen
Staate, der die conservativen Principien der europäischen Welt in sich trug; mehr ein Versuch der
Verständigung, als ein Friede, bei dem beiden entgegenfesetzten Elemente in Jahrzehnt einander gegenüber
bestanden.“ Ranke, Zur Eigene Geschichte, p. 56
125
Alfred Wilhelm Dove (1844 – 1916) foi historiador e editor . Em 1861, começa a estudar medicina e
ciências naturais na Universidade de Heidelberg; no ano seguinte vai para a Universidade de Berlim, onde
começa os estudos de história. Em 1870, vai para Leipzig e torna-se redador da revista Die Grenzboten,
trabalhando depois para a revista Im neuen Reich. É em Leipzig que conseguem em 1873, sua habilitação,
tornando-se, no ano seguinte, professor de História na Universidade de Breslau, sendo promovido para
professor ordinário em 1879, mas muda-se para Universidade de Bonn em 1884. É redator do Allgemeinen
Zeitung em 1891 e em 1894 entra para a Academia de Ciências da Baviera. Em 1897, segue para a
universidade de Freiburg, onde leciona até 1905. De 1901 a 1906 e de 1907 até 1912 foi presidente da
Comissão Histórica de Baden.
126
Ranke escreve ao editor Geibel, em 1880: “Wenn Sie mich etwa in vierzehn Tagen wieder besuchen, so
denke ich, Ihnen als dann ein neues Manuscript einhändigen zu könne Zunächst sollen zwei Bände von
mäßigem Umfange, etwa zu dreißig Bogen erscheinen, welche die ältere Geschichte, eingeschlossen die
griechische, enhalten werden; überdies aber einen ansehnnlichen Anhang gelehrter Erörterungen. Die beiden
Bände sollen zusammen erscheinen un nur eine einzige Lieferiing ausmachen. Ich würde dann wünschen,
den Druck möglichst bald in Angriff nehmen zu sehen. Villeicht könnte das Buch noch gegen Ende des
Jahres erscheinen. (RANKE, op. cit, p. 546).
63
Dentro do projeto das obras coligidas, que conta com cinquenta e quatro volumes,
os quadragésimo terceiro e quadragésimo quarto volumes, datados de 1879, são dedicados
à questão oriental, contendo o texto da segunda edição da História da Sérvia e outros
textos produzidos para artigos e conferências cuja temática tocava o império otomano, toso
reunidos sob o título Sérvia e a Turquia no Século Dezenove (Serbien und die Türkei im
neunzehnten Jahrhundert). Ranke relata, em 15 de abril de 1879, a Alfred von Reumont128:
O que você pode esperar da próxima vez, é uma nova edição do meu livro
sobre a Sérvia com adições retiradas do campo das condições políticas do
século XIX. Foi para meu próprio espanto (particularmente os relatos do
cônsul geral prussiano Meroni em Belgrado) quando vi que os arquivos
tratavam de uma história contemporânea e ainda praticamente
desconhecida dos anos cinquenta e sessenta deste século; acho que é o
tipo de tesouro para se agarrar, mas espero que o mundo a acreditar que o
mundo o veja tão favoravelmente como o primeiro. 129
Logo, percebe-se que Ranke via ainda a história balcânica com destaque. O historiador
obteve sucesso em relatar grande parte da história contemporânea sérvia e via a última
edição como o completar de um ciclo no qual aquela primeira edição de 1829 tinha
destaque pelo arrojamento, mas a história de seus amigos eslavos estava longe de terminar.
127
„Gerade das weitfrührende Unternehmen der Weltgeschichte war es, was Ranke daran verhindert hat, der
Summe seiner darstellenden Arbeiten Denkwürdigkeiten des eigenen Lebens hinzuzufügen, in denen sich
zugleich der allgemeine Gang der Begebenheiten des 19 Jahrhunderts als ein mitempfundenes Stück der
universalhistorischen Bewegung wiederspiegeln sollte.“ DOVE, Alfred. Vorrede. In: Zur eigene
Lebensgechichte, p. v.
128
Alfred von Reumont (1808 – 1887) foi acadêmico e diplomata. Recebeu educação nas universidades de
Bonn e Heidelberg. Sob ordens do serviço diplomático prussiano, serviu nas embaixadas de Florença,
Constantinopla e Roma, participando também da Repartição de Assuntos Estrangeiros em Berlim. Foi amigo
e conselheiro de Frederick Wilhelm IV. Em 1879, fundou a Associação Histórica de Aaschener (Aaschener
Geschichtsverein), cujo acesso pode ser feito através de http://www.aachener-geschichtsverein.de/.
129
“Was Sie nächstens zu erwarten haben, ist eine neue Ausgabe meines Buches über Serbien mit Zusätzen,
die sehr ins Gebiet der Politik des 19. Jahhunderts streifen. Es gereichte mir selbst zum Erstaunen, als ich die
Akten (besonders die Berichte des preußischhen Generalkonsuls Meroni in Belgrad) ansah, daß darin eine
zeitgenössische und doch eigentlich unbekannte Geschichte aus den fünfziger und sechsziger Jahren des
Jahrhunderts lag; ich glaube Art von Schatz zu heben, bin aber freilich weit davon entfernt zu glauben, daß
die Welt die neue Produktion so günstig ansehen wird, als die frühere.“ RANKE, op. cit, p. 545
64
momento mais de perto) antes de 19141? Levando em consideração o tema aqui exposto e
pressupondo a lacuna no conhecimento histórico geral dos Bálcãs, é preciso então, para a
compreensão dos temas trazidos por Ranke, traçar de forma muitíssimo breve os
movimentos básicos da história sérvia e dos outros poderes citados no texto n’A Revolução
Sérvia.
O marco inicial para o assunto tratado na obra de Ranke não é a Sérvia
propriamente dita, mas sim a formação do império otomano (também chamado de Império
Turco ou Império Turco-Otomano) a partir do ano de 12992. Em meio à história medieval,
o primeiro entrave e principal rival na expansão turca foi o antigo Império Bizantino (este
compreendia inclusive a região balcânica), que já se apresentava em declínio no século
XIII3. Aproveitando-se da fragmentação bizantina, Osman I, líder de um dos estados
independentes que formavam a Anatólia turca e cujo nome deu origem à designação
otomano, conquista territórios e promove a unificação turca.
1
Devemos lembrar que um dos momentos mais comentados na historiografia do século XX por ser
considerado o marco de início da Primeira Guerra Mundial foi justamente o assassinato do arquiduque Franz
Ferdinand em uma das capitais mais importantes do leste, Sarajevo, atual Bósnia e Herzegovina.
2
“Otomano” é derivado no nome do primeiro líder turco a empreender a expansão, Osman I (c. 1280 –1324).
3
“With the capture of Constantinople the Ottoman Empire gained a hub. Ideologically, the monarchy now
considered itself a great conquering Islamic dynasty that by reducing Byzantium inherited also de legacy of
Rome. Militarily, the city’s formidable defenses at the center of an enormous territory granted the state a
sense of security and a launching point for further conquests. Economically, the new capital’s control of
extensive hinterlands in the Balkans and western Anatolia, as well as seaborne access to the goods of the
known world, would turn it into a principal financial and commercial gathering place and bring great wealth
to its inhabitants and the imperial treasury. Socially, the city’s depopulated state in 1453 provided an
opportunity for the Ottomans to re-form it in their image, and, at first by force, and then by preference,
Armenian, Greek, Jewish, foreign, and Muslim Turkish settlers soon had constructed a polylingual,
polyethnic, and polyreligious metropolis that existed and thrived in striking contrast to non-Ottoman cities in
the Mediterranean and European worlds.” GOFFMAN, Daniel. The Ottoman Empire and Early Modern
Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 54.
67
4
A Igreja Ortodoxa é, na realidade, um conjunto de igrejas nacionais autocéfalas, ou seja, cada uma tem um
chefe religioso próprio. A instituição é resultado da separação entre cristandade ocidental (que são fiéis da
igreja católica romana) e os cristãos orientais (cuja Igreja tinha cede em Constantinopla, no Império
Bizantino). Essa separação acontece em 1054, com a chamada Cisma do Oriente e a partir de então os
cristãos ortodoxos não aceitam a autoridade papal e questionam vários dogmas da Igreja Romana.
Diferentemente do papado, os líderes ortodoxos são considerados sucessores dos apóstolos de Jesus.
5
O Islamismo é uma religião mais antiga do que a instituição do Império Otomano, uma vez que o calendário
islâmico começa com a migração Hijira em 622. A conversão dos turcos se deu quando estes ainda ocupavam
as planícies da Ásia Central e estes levaram sua fé quando migraram para Anatólia. Uma das características
políticas importantes do islamismo é que ele possibilitou a coesão de tribos em volta de um objeto comum.
68
6
“Holy War was intended not to destroy but to subdue the infidel world, the dârülharb. The Ottomans
established their empire by uniting Muslim Anatolia and the Christian Balkans under their rule and, although
continuous Holy War was the fundamental principle of the state, the empire emerged, at the same time, as
protectors of the Orthodox Church and millions of Orthodox Christians. Islam guaranteed the lives and
property of Christians and Jews, on the conditions of obedience and payment of a poll tax. It allowed them
free exercise of their own religions and to live according to their own religious laws. Living in a frontier
society and mixing freely with Christians, the Ottomans applied these principles of Islam with the greatest
liberality and tolerance. During the early years of the empire the Ottomans pursues a policy of attempting to
secure the voluntary submission and confidence of the Christians, before resorting to warfare.” INALCIK
Halil. The Ottoman Empire: The Classical Age (1300-1600). Phoenix: Phoenix Press, 2001, p. 11.
7
Ver o mapa da expansão do império no anexo I.
8 “(...) when considering the reasons for Ottoman success we can point with certainty to an event that
occurred in 1354 – the Ottoman occupation of a town (Tzympe), on the European side of the Dardanelles,
one of the three waterways that divide Europe and Asia (the others being the Bosphorus and the Sea of
Marmara). Possession of the town gave a secure bridgehead in the Balkans, a territorial launching pad that
instantly propelled the Ottomans ahead of their frontier rivals in Anatolia. With this possession, the
Ottomans offered potential supporters vast new fields of enrichment – the Balkan lands – that simply were
unavailable to the followers of other dynasts of chieftains on the other, Asiatic, side of the narrow waters.
69
(…) The Balkans offered a relief valve for the population pressures building on western Asia Minor, and the
Ottomans alone offered access to it.” QUATAERT, Donald. The Ottoman Empire, 1700–1922. New York:
Cambridge University Press, 2005, p. 19.
9
Por eslavo entende-se tanto uma identidade linguística como étnica de povos indo-europeus que ocupam a
Europa central e oriental, sendo que mais da metade da Europa é ocupada por falantes de línguas eslavas. Sua
ocupação dos Bálcãs começa no século VI. A relação entre os povos eslavos é complexa, uma vez que
existem entre eles ao mesmo tempo afinidades, diferenças culturais e até mesmo hostilidades. Os eslavos
balcânicos são classificados como eslavos meridionais, enquanto os eslavos orientais são russos, ucranianos e
bielorrussos e os eslavos ocidentais são tchecos, eslovacos, morávios e poloneses.
10
Stefan Nemanja (c. 1113-1199) foi o primeiro de uma casa monárquica de grande importância para a
primeira formação sérvia. Em seu reinado, não só a Sérvia atinge o status de Grande Principado como é com
ele que a igreja nacional é fundada (o próprio Nemanja se torna monge no final da vida e é inclusive
canonizado), o que possibilitou “the emergence of other independent social entities, and thus contributed to
political, economic, and intellectual liberties” (cf, ANZULOVIC, Branimir. Heavenly Serbia. From mith to
Genocide. New York: New York University Press, 1999, p.20). Seus filhos também se tornariam figuras
centrais na política e cultura sérvia: Stefan Nemanjić foi o primeiro rei sérvio propriamente dito e São Sava
foi o primeiro arcebispo da igreja sérvia e um dos santos mais cultuados dentro da ortodoxia servia.
11
Stefan Dušan (c. 1308 – 1355) foi responsável pela conquista de grande parte do leste europeu e leva a
Sérvia ao seu auge político, cultural, territorial e econômico. Em seu governo foi escrita a primeira
constituição sérvia (o Códice Dušan) e a Igreja sérvia atinge o estatuto de patriarcado, ou seja,
70
Sérvia medieval.”12 No entanto, o crescente poder otomano vinha de encontro aos sérvios e
o choque entre os dois poderes, marcado pela Batalha do Kosovo13, dá início ao declínio
do estado sérvio, marcado pela fragmentação característica do despotado – o poder
dividido entre seis famílias que governavam seções distintas do antigo império sérvio.
Apesar de várias tentativas sérvias de reverter a situação em relação aos otomanos, unindo
forças inclusive com os húngaros, o poder otomano conquista os territórios centrais sérvios
em 1459, com a vitória na batalha de Chernomen. Em 1521, cai Belgrado, apesar da cidade
de Vojnodina (que foi anexada ao Império Habsburgo), resistir até o século XVI. Desta
forma, a parte sul e central da Sérvia ficam sob os otomanos por mais de quatrocentos
anos, se forem computadas as datas entre as primeiras conquistas e a declaração formal de
independência. No que tangia os territórios dominados pelos otomanos, os cristãos sérvios
foram relegados a uma posição social mais baixa, mas mediante o pagamento de taxas
pesadas, as instituições sociais e culturas locais permaneceram relativamente intocadas,
havendo inclusive um governo intermediário sérvio, o patriarcado, que deveria recolher os
impostos e repassá-los aos otomanos.
A submerção de séculos da sérvia no império otomano foi sem dúvidas
uma tragédia nacional. Os sérvios perderam suas elites culturais e
políticas e suas instituições nacionais – com exceção da Igreja Ortodoxa
Sérvia. Eles foram reduzidos a uma sociedade de camponeses e pequenos
comerciantes em um império dominado por uma civilização estrangeira.14
12
““the Byzantine Empire provided the model for medieval Serbia’s institutions and culture.”ANZULOVIC,
Branimir. Heavenly Serbia. From mith to Genocide. New York: New York University Press, 1999, p. 17.
13
A batalha de Kosovo entra de forma poderosa para o imaginário sérvio, cujos elementos são mistificados e
integrados tanto à liturgia (incorporação dos líderes ao hall de santos da Igreja sérvia) como às poesias e
canções. Para ver sua apropriação poética e seu impacto no nacionalismo sérvio e montenegrino, ver o cap. 3,
item 4.
14
“The centuries-old submergence of Serbia in the Ottoman empire was undoubtedly a national tragedy. The
Serbs lost their political and cultural elites and their national institutions – with the exception of the Serbian
Orthodox Church. They were reduced to a society of peasants and small merchants in an empire dominated
by a foreign civilization.” ANZULOVIC, op. cit., p. 33.
71
15
O Império Habsburgo leva esse nome em função de ter sido regido pela família Habsburgo, mas também é
chamado alternativamente de Império Austríaco. Em 1867, o Império Habsburgo (ou Austríaco) anexa a
Hungria, daí sendo também conhecido como Império Austro-Húngaro.
16
Ver o mapa do império austríaco no anexo II.
72
outra intenção que não era de ordem étnica e sim econômica, ou seja, fazer com os
territórios sérvios atingissem o Mar Adriático.
A perda foi particularmente traumatic para os sérvios. Não apenas a
sérvia perdeu seu status de poder regional como desapareceu
completamente como uma identidade política. Os sérvios tornaram-se
súditos de segunda classe do sultão. Esta condição durou do século XV
até o XIX, durante o qual os sérvios cultivaram assiduamente mitos de
seu grande passado e grande futuro. Como outros países que emergiram
como estados-nação soberanos no século XIX após um longo período de
domínio estrangeiro ou fragmentação política, a Sérvia mostrava um forte
traço expansionista. 17
17
“The loss of was particularly traumatic for the Serbs. Not only did Serbia lose the status of a regional
power, it completely disappeared as a political identity. The Serbs became second-class subjects of the sultan.
This condition lasted from the fifteenth century to the nineteenth century, during which time the Serbs
assiduously cultivated myths of their great past and a great future. Like other countries that reemerged as
sovereign nation-states in the nineteenth century after a long period of foreign domination or political
fragmentation, Serbia displayed a strong expansionist trend.” ANZULOVIC, op. cit., p. 2.
73
1
Miloš Obrenović (1780 - 1860) foi uma figura central para a conquista da autonomia sérvia. Presente no
primeiro levante sérvio, foi príncipe da Sérvia entre 1815 e1839.
2
O principal tópico do tratado era por fim ao conflito entre o Império Russo e o Otomano mas, pela pressão
internacional, também tocou em pontos acerca do lesto europeu como a já mencionada questão sérvia, a
promessa de autonomia da Grécia e garantia à Rússia a ocupação da Moldávia e da Valáquia.
78
Esta primeira edição, intitulada “Die serbische Revolution: aus serbischen Papieren
und Mitteilungen”, é composta por doze capítulos mais considerações finais distribuídos
em 253 páginas publicadas por Friedrich Perthes3 e como já foi indicado, nasce
diretamente do encontro com o Círculo Eslavo de Viena, sendo, portanto um registro da
primeira organização concebida por Ranke para o material recebido e recolhido deste
ambiente.
3
Vale aqui uma observação sobre o editor e uma referência de propaganda contida no volume: a editora
Perthes foi fundada por Johann Georg Justus Perthes em 1785, em Gotha, cidade do estado natal de Ranke, a
Turíngia. A editora é famosa principalmente pelas publicações cartográficas, mas também incluiu materiais
estatísticos, históricos e genealógicos sobre vários países. Em 1822, a editora foi refundada e apesar de
continuar em Gotha, passou a levar o nome de Friedrich Perthes in Hamburg, o que pode ser percebido na
folha de rosto da História da Revolução da Sérvia, por exemplo. O filho de George Justus Perthes, Friedrich
Christoph Perthes, teve uma vida política bastante ativa, marcada pela resistência aos franceses em plena
ascensão napoleônica. Sua memória foi registrada em sua biografia de três volumes escrita por seu filho,
Clemens Theodor Pethers, intitulada Friedrich Perthes Leben nach dessen schriftlichen und mündlichen
Mittheilungen [A vida de Friedrich Perthes segundo notas escritas e orais], que conta também com uma
tradução para o inglês.
79
4
Ranke, Leopold. Serbische Revolution. Aus Papieren ind Mittheilungen. Hamburg: Friedrich Perthes,
1829, p. 6. “Von welchem Punkt aus man auch immer suchen mag, die Entwickelung der neuern
Jahrhunderte zu begreifen, beinahe alle Mal wird man auf das römishce Reich zurückführt, welches, in dem
es die Welt unterwarf und von der neuern überwältigt ward, eine Mitte für die gesammte Geschichte bildet.“
5
Stephan Dušan foi o monarca que arquitetou a expansão sérvia, tornando-se imperador dos sérvios e gregos
em 1346.
6
Sobre o impacto da batalha do Kosovo nos sérvios, ver Ranke, op. cit. p. 4.
7
Para a passagem sobre a convivência cultural diversa dento do império otomano, ver Ranke, op. cit. p. 9.
80
modo de vida simples expresso nas canções e festas populares, oferecendo o retrato de uma
Sérvia ancestral resistente às complicações e vícios do mundo moderno, realçado
principalmente pelo vínculo enfático que Ranke coloca entre os sérvios e a natureza.8
O segundo capítulo, “Levantes Internos” (“Innere Umwälzung”), trata, como o
próprio título explicita, das agitações sociais endógenas. Nesse capítulo, começa a ser
delineada a situação da Sérvia em 1804 através de um breve relatório de suas
transformações ao longo do século XVIII. Seu objetivo é atualizar o leitor para assim
tornar possível a compreensão da história do presente sérvio. A continuação da narração é
encontrada no terceiro capítulo, “Insurreição contra o Dahi” (“Empörung wieder die
Dahi”), no qual a pressão sobre os sérvios aumenta na medida em os dahis9 começam a
demonstrar interesse político e oposição ao sultão. É em 1804 (ano no qual Ranke havia
fechado o capítulo anterior) que os dahis tentam um golpe contra o sultão, ao mesmo
tempo em que assassinam parte da nobreza sérvia numa tentativa de eliminação de
oposição. É desse episódio que data o nascimento da revolução sérvia e o primeiro levante
sérvio.
As consequências da revolução são acompanhadas no próximo capítulo,
“Desenvolvimento da Insurreição” (“Entwickelung der Insurrection”), no qual há uma
narração mais voltada para o aspecto bélico do enfrentamento entre as forças otomanas e
sérvias. O desenvolvimento do primeiro levante chega ao ano de 1807 no quinto capítulo,
Conquistas da Insurreição: Ganho de Terras (Vollendung der Insurrection: Einnahme des
Landes), e nesse período os sérvios experimentam a vitória importante da batalha de Mišar
(1806) e a tomada de Belgrado no ano seguinte, resultando em conquistas políticas
fundamentais como a organização de um governo provisório dividido entre uma
assembleia do povo, um conselho e o líder militar George Petrovich Karađorđe10, que teve
impacto inclusive na educação sob a forma de fundação da Escola Superior de Belgrado e
da Universidade de Belgrado.
Constituída uma nação independente – ainda que precariamente –, o sexto capítulo,
Situação Interna (Innere Zustand), explora os problemas do governo da Sérvia. A natureza
da narração é modificada, partindo para a centralidade dos líderes militares, oferecendo
uma biografia de George Petrovich (“No exterior aparecia ele como a cabeça da nação.
8
Para uma passagem sobre a natureza, ver Ranke, op. cit, p. 25.
9
Os dahis (ou dahias) eram a elite dos janissários (uma infantaria constituída pelo sultão otomano e formada
por prisioneiros de guerra das conquistas nos Bálcãs) que governava a Sérvia
10
Karađorđe é a alcunha de George Petrovich e significa George Negro.
81
Ele é repleto de valor o que é perceptível pela contemplação de sua pessoa.”11) que inclui
não só a carreira como também um perfil psicológico12.
O conflito continua no sétimo capítulo, “Campanha de 1809” (“Feldzug von
1809”), momento no qual irrompe a guerra russo-otomana (os sérvios claramente apoiaram
a Rússia). Nesse contexto, há a invasão de Belgrado e a migração forçada dos sérvios pelo
Danúbio, o que impulsiona a entrada de poderes do oeste europeu, notadamente o de
Napoleão. Seguindo a resistência sérvia contra a tentativa de restauração do império
otomano, o oitavo capítulo “Poder Monárquico: Maior Extensão das Fronteiras”
(“Monarchische Gewalt: Weitester Umfang der Grenzen”), mantém a atenção na guerra
russo-otomana e no papel dos líderes. A situação, no entanto, é de desvantagem para os
sérvios no nono capítulo, “Desventuras” (“Unglücksfälle”), quando a invasão otomana é
efetivada e os sérvios são deixados sem assistência por Napoleão e pela Rússia. O décimo
capítulo é “Novo Domínio dos Turcos” (“Neue Herrschaft der Türken”) relata a nova
dominação e sua consequência, ou seja, a ascensão de Milosch Obrenovich, líder militar
que esteve ao lado de George Petrovich e que assume a função de comandante do levante
(e posteriormente de primeiro príncipe sérvio) quando Petrovitch se refugia no império
austríaco, em 1813. É justamente a ascensão de Milosch como líder o tema do décimo
primeiro capítulo, “Rebelião de Milosch” (“Empörung des Milosch”) que, seguindo a
estrutura do capítulo sobre Petrovich, apresenta igualmente uma biografia. Tal etapa marca
o início do Segundo Levante Sérvio (1815-1817). O último capítulo, “Desenvolvimento
das Relações Sérvias Até o Presente” (“Entwickelung der serbischen Verhältnisse bis zur
Gegenwart”), trata do andamento da questão no final da década de 1810 e na década de
1820. O momento de publicação encontra uma Sérvia com certo grau de autonomia e em
clima de positividade.
Então pode-se determinar os meios de propriedade científica adquirida
pela Europa cada vez mais compartilhada com esses povos.
11
Ranke, op. cit., p. 115. “In dem Auslande erschien er als das Haupt der Nation. Er ist wohl werth, daß wor
einen Augenblick bei seiner Person verweilen.“
12
Ver passagem que exemplifica o perfil psicológico em Ranke, op. cit. p. 117. Os chamados “grandes
personagens históricos“ está diretamente ligada a ação do indivíduo na história e sua importância como
catalisador de um movimento histórico depende de cada figura e da cada momento, impondo assim uma
análise sensível das pressões e motivações: “Portanto, para Ranke, o relato biográfico não possui um sentido
unívoco, mas múltiplo. E essa multiplicidade se mede a partir da capacidade criadora de um e de outro
indivíduo. (...) O sentido do documento depende, portanto, da percepção do historiador quanto ao valor do
sujeito histórico retratado no documento.” (MARTINS, Estevão; CALDAS, Pedro. Leopold von Ranke
(1795-1886). In: BENTIVOGLIO, Julio; LOPES, Marcos Antônio. A Constituição da História como
Ciência. De Ranke a Braudel. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 28)
82
13
Idem, ibidem, p. 225. “Dann kann man die Mittel finden, den wissenschaftlichen Besitz, welchen Europa
erworben, nach und nach auch diesem Volke mitzuteilen. Erst hierdurch würde es, wir gesagt, den Türken
wahrhaft überlegen werden, uns zur Theilnahme an dem geistigen Leben geladen die das wahre Glück
ausmacht. Der Acker ist frei, man brauch nur zu säen.”
14
Idem, p. 235. “Auch hier machen wir nur einen Versuch. Den Zustand eines unterdrückten Volks zu
erkennen, oder den Wechsel desselben wahrzunehmen, ist um so schwerer, da sei Leiden, wie alles rechte
Leiden, lang dauert, stumm ist, und sich nicht eignet, die Aufmerksamkeit auf sich zu zeihen.“
15
Para um dos pontos de descrição geográfica, ver Ranke, op. cit., p. 241.
83
espaço de tempo. Essa hipótese é reforçada pelas alterações da edição seguinte, na qual o
conteúdo é mais coerentemente organizado e ampliado.
Os anos de 1840 são marcados na Sérvia pela luta para manutenção da autonomia e
pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e instituições culturais na capital
Belgrado, como a primeira agência dos correios (1840) e o Museu Nacional Sérvio (1844).
16
Ranke, Leopold. History of Servia, and the Servian Revolution, from original Mss. And Documents.
Translated by Mrs. Alexander Kerr. London: John Murray, 1848.
17
Com base em Berlim, famosa pelo seu selo de águia e pela publicação de grandes trabalhos de filosofia, a
editora foi fundada por Heinrich Frölich em 1798. Seu início tem relações próximas com o romantismo, uma
vez que o primeiro trabalho foi a revista Athenäum, dos irmãos Schlegel com colaboração de Schleiermacher
e Novalis. A casa publicou outros nomes fundamentais para a discussão filosófica do romantismo, como
Goethe, E.T.A Hoffmann, Fouqué e também o grande (talvez o maior) nome da filosofia do período: Hegel.
Em 1809, o negócio é assumido por Carl Duncker und Peter Humblot, ganhando o nome que perdura até os
dias atuais.
84
18
RANKE, Leopold. Die serbische Revolution. Aus Papieren und Mittheilungen. Berlin: Humblot und
Ducker, 1844, p 1. „Die Wanderungen waren vollbracht: unermeßliche Landstriche in Besitz genommen;
jene zahlrichen Völkerschaften, deren Namen die Alten zu nennen verzweifeln, ziemlich in den Kreis
historischer und geographischer Kunde gezogen: fremde Gewaltherrschaften, wie die der Awaren, waren
wieder gebrochen; es kam die Zeit wo nun auch die Slawen selbst sich eigentümlich hervorheben und in
politischen Bildungen versuchen sollten.“
19
Ibidem. ““In derselben Zeit nun ist es daß wir auch von den ersten Versuchen staatähnlicher Einrichtungen
bei dem Stamme der Serben hören.”
85
O balanço de Ranke inclui a Sérvia no contexto mais amplo de uma luta geral contra o
crescimento do poder turco, incluindo não só regiões balcânicas como também a Itália,
Áustria e Polônia, por exemplo. A intenção dos sérvios de negociar com os turcos falha e,
ao final do capítulo, a Sérvia está completamente dominada. O terceiro capítulo,
“Características do Estabelecimento Otomano na Sérvia” (“Grundzüge der osmanischen
Einrichtungen in Serbien”) avança a cronologia até o século XVIII e ocupa-se de
descrever a forma de governo otomana que fundamentaria a cisão brusca entre dominantes
e dominados - dando destaque fundamental para a diferença entre religiões (cristã e
muçulmana) –, relatando os impostos, direitos dos súditos do sultão e a natureza dos dahi,
grupo fundamental nas transformações sérvia no século XIX.
No quarto capítulo, “Situação, Formas de Pensamento e Poesia da Nação Sérvia”
(“Zustände, Sinnesweise und Poesie der serbischen Nation”), corresponde em conteúdo ao
primeiro capítulo da primeira edição, mas com alterações na redação. Há a descrição ampla
de diversas características do povo sérvio, como a configuração das vilas, santos de
devoção e igrejas, relações de parentesco e de casamento, festas e rituais, folclore, poesia e
canções, etc. O deslocamento desse capítulo do início do texto para a quarta posição pode
indicar a mudança de enfoque narrativo da centralidade cultural para a histórica, o que
significa, em Ranke, começar por uma narrativa cronológica que mostre o nascimento das
instituições nos povos dos Bálcãs. Dessa forma, a impressão que é dada é de uma relação
simbiótica entre produção cultural e desenvolvimento institucional, ao mesmo tempo em
que essa produção ajuda a formatar tais instituições ao imprimir-lhe “o espírito e mente”
do povo sérvio; se as instituições só foram possíveis pela união que superou diferenças
regionais, tal unidade é dada pela cultura da poesia nacional: “A poesia supera a diferença
20
da religião: ela conecta todo o clã, ela vive no conjunto dos povos.” . Nesse sentido, a
poesia teria a função de refletir um desejo inconsciente de nacionalidade expressa na
ordem de um destino manifesto de todos os povos.
Após um capítulo que fica entre a descrição institucional e a cronologia e outro
plenamente voltado para a questão cultural, o quinto capítulo, “Origem dos Novos
Movimentos na Turquia” (“Ursprung der neueren Bewegung in der Türkei”) retoma o
passo dos acontecimentos históricos em sua faceta política numa perspectiva cronológica a
partir do lado turco. A pressão política sofrida pelo Império Otomano por parte da Europa
20
Idem, p. 67. ““Den Unterschied der Religion überwindet die Poesie: sie verknüpft den ganzen Stamm, sie
lebt in dem gesammten Volke.”
86
21
Os janissários (do turco “soldados novos“) eram uma elite da infantaria otomana criada em 1383, cuja
função era a guarda do sultão. Os membros, conhecidos por sua alta disciplina e ordem, eram escolhidos
ainda quando crianças dentre a população cristã da Anatólia e Bálcãs. As crianças que eram consideradas
mais aptas recebiam educação superior e formavam a classe senhorial dos viziers uma classe científica que
incluía médicos e arquitetos. Foi abolida em 1826, por conta do episódio conhecido como Incidente Infeliz,
no qual as tropas se revoltaram contra o sultão Mahmud II e foram suprimidos violentamente. A partir de
então, o Império Otomano adotou um corpo militar moderno.
22
O Massacre dos Knezes aconteceu em 1804, quando inúmeros nobres sérvios (“knezes” significa duques
em sérvio) foram assassinados na praça pública de Sarajevo pelos dahis. O evento é considerado o estopim
do Primeiro Levante Sérvio.
87
livro, com tom consideravelmente heroico, uma vez que Georg, mais do que um indivíduo,
encarna o ideal de liberdade e, com isso, ocupa o palco dos grandes poderes23:
Segue-se um novo balanço geral no décimo primeiro capítulo, “Relação da Sérvia
com as Condições Gerais da Europa e Turquia” (“Beziehung Serbiens zu den allgemeinen
Verhältnissen Europas und der Türkei”). Aqui se encaixa a influência indireta das Guerras
Napoleônicas, mais especificamente da quarta coalizão, sobre o império otomano. Nesse
espaço, Ranke aplica mais uma vez o princípio dos grandes poderes, para o qual a política
é vista como um teatro no qual existem atores principais e coadjuvantes (ou ainda na
imagem de uma constelação com astros maiores e menores e na qual alguns se apagam
para dar espaço ao brilho de outros).
Mais dois anos são analisados no décimo primeiro capítulo, “Campanhas de 1809 e
1810. Maior Extensão das Fronteiras“ (“Feldzüge von 1809 und 1810. Weitester Umfang
der Grenzen“). Novamente a história da Sérvia se mistura ao contexto geral das guerras
napoleônicas, uma vez que o texto não só descreve a ação dos sérvios em sua luta contra o
sultão como também o impacto da quinta coalizão na Áustria (aliada dos sérvios) e na
Inglaterra contra a França. As conquistas dos rebeldes sérvios são apreciadas no décimo
terceiro capítulo, “Dissensões Internas: Poder Monárquico” (“Innere Entzweiungen:
monarchische Gewalt”), coroadas com a independência de Bucareste, a qual é analisada no
décimo quarto capítulo, “Liberdade de Bucareste em 1812” (“Friede von Bucharest
1812”), no qual Ranke apresenta mais uma vez as ideias indicadas em “Os Grandes
Poderes”, ou seja, o equilíbrio dos poderes europeus24.
A disputa se agrava e leva à guerra, tratada no décimo quinto capítulo, “Guerra na
Sérvia no ano de 1813” (“Krieg in Serbien im Jahr 1813”), o que resulta na nova
conquista turca sobre os sérvios, tratado no capítulo seguinte, “Novo Domínio dos Turcos”
(“Neue Herrschaft der Türken”), o qual Ranke inicia com uma ponderação sobre a
natureza do mal que se instala em determinados momentos da história25. Esse capítulo
indica a posição de Ranke em relação à violência, pois as ações violentas, quando injustas,
trariam em seu cerne tanto a atração do infortúnio (Unglück) como também a divisão na
coesão social: “(...) mas violentos como eram, por isso mesmo despertou a resistência entre
23
Para uma passagem do retrato biográfico de Kara Georg, ver Ranke, op. cit., p. 179.
24
Para a passagem sobre os poderes individuais e uma comunidade europeia, ver Ranke, op. cit. p. 221.
25
Ranke, op. cit., p. 250.
88
26
Ibidem. “(...) aber gewaltthätig wie sie war, eben dadurch den Widerstand gegen denselben erweckte.” É
interessante como Ranke costura uma reflexão com fundo na filosofia moral e na filosofia política,
entrelaçando a esses dados o elemento da tradição oral sérvia, ou seja, elementos da cultura e do imaginário:
“So wurde es wahr was die alten Kmeten von Anfang gedroht haben, daß man einmal werde büßen müssen.”
(Idem, p. 252)
27
Sobre o movimento de retomada da Sérvia pelos turcos, ver Ranke, op. cit., p. 260.
28
Idem, p. 264. ““Milosch konnte zu den ursprünglichen Oberhäuptern gezählt werden, die ihre Gewalt von
sich selbst hatten.” Ao considerar a palavra “Gewalt” utilizada por Ranke, aprecia-se uma ambiguidade
construída a partir do capítulo anterior, uma vez que seu significado em alemão pode ser tanto “violência”
como “senhoria” ou “poder de legislar”.
29
Idem, p. 266. ““Welch barbarische Eröffnung einer Unternehmung die auf Herstellung eines gesetzlichen
Zustandes berechnet war. Aber sogleich folgte Vergeltung und Rache.“
30
Para passagem sobre os emissários Sérvios no Congresso de Viena, ver Ranke, op. cit., p. 278.
31
Idem, p. 283
89
continuasse e, segundo Ranke, fez com que germinasse a semente do nacionalismo sérvio,
que se resumia na figura do líder Milosch32. O poder crescente de Milosch durante o ano
1816 levou a sua ascensão como governante reconhecido pelos sérvios. Seu governo é
tratado no décimo nono capítulo, “Estabelecimento e Governo de Milosch”
(“Einrichtungen und Herrschaft des Milosch”), o qual, como já era assinalado nas condutas
do capítulo anterior, foi marcado por certo autoritarismo (“Milosch não considerava
importante em sua administração recrutar um conselho administrativo”33) que o
aproximava da administração otomana e levou a desestabilização de seu governo.
A revolta camponesa contra a opressão de Milosch se alastrou sob a forma de um
desejo generalizado de mudança, tanto contra Milosch como contra o Império Otomano.
No entanto, o governo consegue subjulgar os camponeses e tomar para si todas as
instâncias de poder (inclusive a religiosa), o que teria garantido maior coesão ao redor da
autoridade do líder34.
Tal caráter instável do governo de Milosch é dado pela influência que o movimento
grego de independência35 teve sobre a Sérvia, o que é desenvolvido no vigésimo capítulo,
“Estabelecimento das Relações Sérvias” (“Feststellung der serbischen Verhältnisse”).
Ranke credita o fortalecimento do antagonismo entre gregos e otomanos ao fator religioso,
uma vez que o crescimento do cristianismo impulsionaria a queda das instituições
islâmicas decrépitas; como os sérvios também eram em sua maioria cristãos e lutavam
contra o mesmo inimigo, a contenda ganhava outra dimensão: “Assim tornou-se o
princípio da emancipação das nações cristãs, que os sérvios apoiaram, uma plataforma
ampla e universal”36. As convulsões no império otomano resultam em guerras entre russos
e turcos e os acordos entre as potências levam à proclamação de Grécia como reino
independente; todo esse movimento leva também a um tipo de evacuação de presenças
estrangeiras indesejáveis na Sérvia, como turcos e sacerdotes gregos (o que gera um
rompimento entre a igreja grega e sérvia). Entre os anos de 1829 e 1830 foram
32
Para passagem briográfica de Milosch, ver Ranke, op. cit., p. 285.
33
Idem, p. 302. “(“Milosch hielt nicht für nöthig bei seiner Verwaltung sich Raths zu erholen.”
34
Para passagem sobre a crescente autoridade de Milosh, ver Ranke, op. cit., p. 312.
35
A Grécia foi igualmente dominada pelos otomanos durante os séculos XVI e XVII, havendo guerras para a
tentativa de autonomia em 1537, 1571 e 1716. Assim como no caso da Sérvia, vários intelectuais gregos
exilados em Viena tomaram contato com ideias românticas, o que suscitou um novo movimento de
independência no século XIX, no qual a Grécia contou com o apoio marítimo da Rússia, França e Reino
Unido. Após uma série de derrotas, o Império Otomano se viu forçado a abrir mão do território grego, o que
é reconhecido formalmente no Protocolo de Londres (1830).
36
Idem, p. 315. ““Dadurch bekam das Prinzip der Emancipation der christlichen Völkerschaften, das die
Serben verfochten, eine breitere, allgemeinere Grundlage.”
90
37
Porte ou Sublime Porte é uma das formas de referir-se ao governo central otomano.
38
Sobre a reforma cultural, ver Ranke, op. cit, p. 376.
91
39
O governo sérvio oscilou, durante o século XIX, entre duas dinastias, Obrenović e Karađorđević. A família
Obrenović teve seis príncipes no poder: Miloš Obrenović I (1780–1860), que abdicou em favor do filho e
depois retorna para um reinado de 1858 a 1860, Milan Obrenović II (1819–1839), que reinou por apenas 26
dias e Mihailo (Ranke grafa como Michael) Obrenović III (1823–1868), deposto e substituído por
Aleksandar Karađorđević. Depois retornam, ainda em regime de principado, Mihailo Obrenović III (1823–
1868), que assassinado, Milan Obrenović IV(1854–1901), que proclama o reino da Sérvia e Alexander I
(1876–1903), que é assassinado e encerra sua dinastia. Os Karađorđević tiveram três monarcas: Karađorđe
Petrović (1768–1817), líder do primeiro levante sérvio e que foi exilado na Áustria, Aleksandar Karađorđević
(1806–1885), que abdicou favorecendo o retorno dos Obrenović e Peter I
(1844–1921), proclamado rei dos sérvios e croatas e eslovenos.
40
Sobre o novo impulso do governo otomano, ver Ranke, op. cit, p. 390.
41
Sobre a eleição, ver Ranke, idem, p. 398.
92
na qual a incerteza ainda se fazia presente: “Nesse momento nada é sabido acerca do que
resultará a reunião dos diplomatas. Sobre qualquer resultado de valor permanente, ninguém
aqui está animado”42. No que diz respeito à situação política sérvia, de 1817 a 1878, a
Sérvia finalmente é considerada principado.
Em 1865, Ranke publica na Historisch-Politike Zeitschrift o breve texto “Zur
orientalischen Frage. Gutachten im Juli 1854 Sr. Majestät König Friedrich Wilhelm IV
vorgetragen“, no qual aparece a ideia da política oriental como uma “permanente
mudança”, ou seja, apesar de aparentemente paradoxal, Ranke expõe a compreensão de
que a disputa por poder na região é ao mesmo tempo um evento de ressurgimento regular
(a cada cem anos) mas que se apresenta de diferentes formas: “A questão oriental, que em
cada decênio costuma abalar nossa centenária Europa, descansa no momento.43
A reflexão que segue tenta compreender o conflito oriental em sua acepção
totalizante no que se refere às relações internacionais, o que continua e amplia a direção
que Ranke já tomava na edição de 1844. Além disso, aqui ainda se apresenta também a
forte objeção à hegemonia de um poder (leia-se nação) sobre as demais, algo que já havia
sido posto conceitualmente em 1833 no conhecido “Die großen Mächte”.
A edição de 1879 pode ser considerada a edição final não só pela sua data de
publicação ser a última mas também pela completude de seu conteúdo. O título é mudado
pela primeira vez, constando agora como Serbien und die Tükei im neuzenten Jahrhundert
e desaparecendo, portanto, a palavra “revolução”. Publicada igualmente pela Duncker und
Humblot, apresenta nove partes44: 1) introdução à nova edição; 2) reapresentação da
introdução à edição de 1829; 3) reedição do texto de 1844 sem alterações; 4) o artigo A
Bósnia e sua relação com a reforma do sultão Mahmud II. 1820-30 (Bosnien in seinem
Verhältniß zu den Reformen des Sultans Mahmud II. 1820 – 32); 5) o texto Entrelaçamento
das relações orientais e ocidentais (Verflechtung der orientalischen und occidentalichen
Angelegenheiten (1838-1841)); 6) o texto O principado sérvio sob a influência dos poderes
42
The Eastern Question. In: The New York Times, 31/12/1876. “At this time nothing is known of what will
come from the meeting of the diplomatists. As to any result of permanent value, nobody here is at all
sanguine”. Outra notícia de 16/01/1977, intitulada “Turkey and the Great Powers”, atesta a dificuldade de
negociação com o império otomano e faz referência especificamente à concessão de territórios sérvios (“In
addition to the concession of Zwornik to Servia is left in suspense”).
43
Ranke, Leopold. “Zur orientalische Frage. Gutachten im Juli 1854 Sr. Majestät König Friedrich Wilhelm
IVvorgetragen ”. In: Historische Zeitschrift, Bd. 13, H. 2 (1865), pp. 406. “Die orientalische Frage, die in
jedem Decennium unseres Jahrhunderts Europa einmal zu erschüttern pflegt, ruht zur Zeit.“
44
A edição tem duas versões diferentes, ambos de 1879. A primeira é um volume avulso e a segunda faz
parte das obras coligidas.
93
europeus desde 1842 (Das Fürstentum Serbien unter der Einwirkung der europäishen
Mächte seit 1842); 7) cnco textos menores reunidos no título Analetos (Analekten).
Uma vez que o conteúdo geral da edição de 1844 já foi tratado no tópico acima,
resta agora um histórico dos demais textos, começando pela introdução à nova edição. É de
fato bastante interessante perceber aqui um olhar retrospectivo de Ranke, ainda que para
quem examine as obras, elas parecem estar tão próximas temporalmente uma das outras,
provavelmente uma ilusão provocada pela continuidade cronológica que o texto
demonstra. Mas entre a primeira empreitada e a última publicação cinquenta anos são
contabilizados, daí o tom nostálgico com o qual Ranke inicia a introdução: “Eu tive a
felicidade de registrar em um momento a história dos movimentos e das guerras de
libertação da Sérvia, onde apenas estava disponível uma lembrança viva.”45 A questão
mais marcante trazida pelo historiador na introdução é, no entanto, o que diz respeito à
atualidade dos acontecimentos trazidos pelo texto:
45
Idem, p. iv. “ “Ich hatte das Glück, die Geschichte der Umwälzung und der Befreiungskriege von Serbien
in einer Zeit niederzuschreiben, wo noch eine lebendige Erinnerung in an die Ereignisse vorhanden war”
94
No que diz respeito ao artigo sobre a Bósnia, este foi originalmente publicado no
segundo volume da Revista Histórico-Política (1834) com o título “As últimas agitações
na Bósnia: 1820-1832” (“Die letzten Unruhen in Bosnien: 1820-1832”). O artigo é em
parte uma avaliação crítica a partir de relatos de viagem pelo leste europeu e a justificativa
para o tema aparece na introdução do texto original de 72 páginas, insistindo mais uma vez
na questão da contemporaneidade do tema:
Há um século e meio a questão oriental tornou-se de maior importância
para a política europeia e momento após momento seu significado
universal aflora cada vez mais. Nos últimos anos ela recebeu um novo
interesse. As reformas, que nos reinos otomanos por muito se ensaiam e
já foram tentadas algumas vezes, são finalmente aceitas e trazidas a sua
realização. Através delas desenvolveu-se uma fermentação dos elementos
vitais mesmos que, sem contar a repercussão, devem expressar finalmente
grandes relações políticas e que merecem um exame atento.47
46
Idem, p. Vii “Welches ist doch eigentlich die Gewalt, die in unserem Europa die Herrschaft ausübt? Es ist
das Einverständniß der großen Mächte, welches die Herschaft einer einzigen ausschließt und sich aus allen
zusammensetzt? Der Krieg beginnt, wenn dies Einverständniß nicht mehr erzielen ist. Aber unaufhörlich
wird es durch neue Vorfälle gefährdet. In dieser Gefahr liegt eigentlich das Interesse der sogenannten
orientalischen Frage: denn eben in dem Schwanken der orientalischen Verhältnisse, die doch zu allen
anderen in unmittelbarer Beziehung stehen, liegt die Möglichkeit eines allgemeinen Conflictes. Zuweilen ist
derselbe vermieden worden, ein ander Man aber ist darüber ein Mißverständniß zwischen den Mächten
wirklich ausgebrochen, und sie find mit einander in Kampf gerathen. Schon an und für sich bildet dies einen
Gegenstand von hoher Wichtigkeit, doch steigt diese noch durch die in dem Orient emporkommenden
selbständigen Tendenzen.“
47
RANKE, Leopold von (org.). Historisch-Politische Zeitschrift. 2. Band. Duncker und Humblot: Berlin,
1834-36, p. 233. “Schon seit einem halben Jahrhundert ist die orientalische Frage für die europäische Politik
von der größten Wichtigkeit gewesen, und von Moment zu Moment immer wieder einmal in ihrer
universalen Bedeutung hervorgetreten. In den letzten Jahren hat sie noch ein neues Interesse bekommen. Die
Reformen, die man im osmanischen Reiche längst beabsichtigt, schon ein paar Mal versucht hatte, find
endlich durchgesetzt, zur Ausführung gebracht worden. Hierdurch ist in den inneren Lebenselementen
deßelben eine Gährung entstanden, die auch abgesehn von der Rückwirkung, die sie auf die großen
politifchen Verhältnisse zuletzt äußern muß, schon an und für sich eine aufmerksame Betrachtung verdient.“
48
Idem, p. 287. “ Ein politisches Interesse hat er nicht mehr, wohl aber ein historisches. Gerade Gegesatz, der
sich in demselben manifestierte, die Handlungen, welche aus ihm hervorgingen, verdienen, nicht der
Vergessenheit vollkommen überlassen zu werden.“
95
1841)”), não é um uma produção original para o volume a partir de uma perspectiva
política, filosófica e geográfica mais abrangente do que os demais textos, além do tom
positivo que o momento proporcionava para aqueles que acreditavam no fortalecimento
europeu frente ao poder turco, como atesta o parágrafo final do texto:
É o dia em que a Europa alcançou a superação da Turquia como nunca
antes fora possível. E nem ou poder ou outro, mas toda Europa. Na
realidade, os poderes europeus fizeram do Sultão novamente um senhor
em suas terras e estabeleceram estados sólidos no Oriente. 49
49
Ranke, Lepold von. Serbien und die Türkei im Neunzehnten Jahrhundert. Leipzig: Duncker und Humblot,
1879, p. 370. “Es liegt am Tage daß Europa dadurch zu einem Uebergewichte in der Türkei gelangt ist, wie
es noch niemals vorhanden war. Und zwar nicht eine oder die andere Macht, sondern ganz Europa.
Eigentlich die europäischen Mächte haben damals den Sultan wieder zum Herren in seinem Lande gemacht
und feste Zustände im Oriente begründet.“
50
Idem, p. 373. ““Ich komme nun auf die serbische Geschichte zurück. Doch wird die Fortsetzung insofern
einen veränderten Charakter tragen, als der europäischen Mächte auf den Lauf und Gestaltung der Dinge von
Tag zu Tag stärker hervortritt.”
96
orientalischen Politik des Fürsten Metternich”) e outra carta colocada no índice como
“Serbisches Memorandum vom 7. Mai 1860” e que é um relatório em francês para o Porte
da deputação sérvia enviada à Constantinopla em 1860.
Assim, Ranke encerra meio século de estudos sobre a história sérvia com uma rica
retrospectiva de sua própria produção e dos diversos textos, caminhos e temas que foram
abordados durante todo esse tempo. Embora os problemas na região não estivessem
resolvidos – e estavam, na realidade, bem longe disso –, Ranke deixou para seus
contemporâneos a análise diversificada e, o mais importante de tudo, atualizada acerca
dessa questão central na constituição da Europa moderna.
3. A QUESTÃO DA AUTORIA
Frank Kämpfer explica que o principal ponto contra a autoria de Ranke baseia-se
no fato de que o mesmo não detinha conhecimento suficiente do idioma sérvio para acessar
por si mesmo a documentação e literatura que emprega e dependia, ao mesmo tempo, dos
materiais providos pelo colega eslavo: “A pergunta sobre a origem da autoria é
controversa, por um lado pelo fato de que Ranke sabia apenas um pouco de sérvio (afinal
de contas ele pesquisou sobre a história otomana sem para isso aprender turco ou árabe),
por outro lado por razões de disponibilidade das fontes.” 53
51
Até onde foi possível verificar, a Revolução Sérvia é o único livro de Ranke sobre a qual tal dúvida foi
colocada.
52
Jelesijević p. 5. “Ist Ranke der Verfasser des Ganzen, dem der serbische Exilrevolutionär Vuk Karadizic
nur einige materialem und mündliche Auskünfte gegeben hat, oder ist – so die Antithese – Karadizic der
eingentliche Verfasser, dem der preußiche Professor lediglich den Namen geliehen und die Publikation im
neutralen Hamburg vermittelt hat?“
53
KÄMPFER, Frank. Vuk Karadzic und Leopold Ranke: Zur Rezeption der 'SERBISCHEN
REVOLUTION” in Deutschland. In: www.frank-kaempfer.de/Neuer PDF Ordner/Ranke_Serbische
97
Outro testemunho, no entanto, afirma que o livro não passa de uma tradução de
Ranke da obra de Vuk. A opinião vem de um amigo de Vuk, Jeremia Gagić: “Leopold
Ranke traduziu para o alemão o que ele (Vuk) havia escrito em sérvio; mas sua tradução é
picante.”57
A posição mais generalizada é de que A Revolução Sérvia foi resultado da
contribuição direta de pelo menos três intelectuais: Ranke seria o redator, Vuk teria
provido o material e a ideia viria de Kopitar. A natureza colaborativa e cosmopolita do
Círculo Eslavo de Viena aponta para o processo de autoria imprecisa, cuja colaboração
trabalharia em via dupla, como bem sintetiza Peter Burke: “(...) nessas fronteiras às vezes
definidas como “zonas de contato”, o conhecimento costuma correr nas duas direções,
levando ocasionalmente a novas descobertas”.58 Dessa forma, nos noventa e quatro dias de
convivência entre Leopold Ranke, Bartolomäus Kopitar e Vuk Karadžić, ideias foram
trocadas, misturadas e reapropriadas.59
O interesse original de Ranke teria sido aprimorado pelo contato com nativos
eslavos que podiam relatar em primeira pessoa os acontecimentos no leste europeu e ainda
fornecer uma série de referências e materiais que adensariam o impulso reflexivo de Ranke
acerca do tema. Tal proximidade possibilitou que os intelectuais eslavos o alertassem para
a importância da história da Europa oriental no balanço histórico geral do desenvolvimento
dos povos, apontando então para uma lacuna nas pesquisas de Ranke até o momento:
Ranke voltar-se par a o oriente é especialmente incrível, uma vez que ele
já havia desenvolvido sua concepção de história sobre a dualidade
germânico-romana em seu primeiro trabalho, “História dos Povos Latinos
e Germânicos de 1494 a 1535 (Leipzig, Berlim, 1824), do qual ele baniu
tanto os eslavos como turcos e outros povos periféricos da Europa
próxima.60
herausgekommen... Deswegen hat er sich fast jeden Tag mit Vuk getroffen, bin ins Detail Vuks Erzählung
aufgescrieben und ihm dann das geschriebene vorgelesen, um es dann Teil für Teil zu drucken und so ist das
Buch ‚Serbische Revolution‘ enstanden. Dieses hat Ranke geschrieben, den Inhalt aber, es kann bemerkt
werden, wie auch der Geist der Erzählung von Vuk.
57
Idem, p. 148. “Leopold Ranke hat das auf Deutsch übersetzt, was Ihr auf Serbische geschrieben habt; aber
seine Übersetzung ist stechend – pikant.” Só foi localizada uma referência para o nome de Jeremia Gagić,
qual seja uma citação na coletânea poliglota de documentos Monumenta Sérbica Spectatia Historiam Serbiae
Bosnae Ragusii (Viena, 1858). Ao que tudo indica, Gagić também fazia parte do círculo de Viena.
58
Burke, Peter. Uma História Social do Conhecimento II. Da Enciclopédia à Wikipédia. Rio de Janeiro,
Zahar, 2002, p. 256.
59
Jelesijevic, p. 147.
60
Kämpfer, op. cit. “Gerade bei Ranke war die Hinwendung zum Orient erstaunlich, hatte er doch in seinem
ersten Werk, „Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1535" (Leipzig, Berlin
1824) seine Geschichtskonzeption an der germanisch-romanischen Dualität entwickelt und dabei sowohl die
Slaven als auch Türken und andere Randvölker aus der Geschichte des engeren Europas ausgeschlossen.“
99
Além disso, Jelesijevic aponta correspondências entre Ranke e Vuk que atestam o
entendimento entre ambos de que A Revolução Sérvia era uma obra conjunta e que o
trabalho colaborativo poderia ter inclusive continuação:
61
Burke, idem, p. 258.
62
Ranke, 1879, p. 287. “Beschäftgt with Serbia, one must study his attention is to me the help Wuk's been
exceptionally beneficial. He is due to the collection of materials that were available to me. Other important
information was not available. The following essay, which has grown out of this material is available, refers
to states that is has since been changed completely.”
63
Jelesijevic, idem, p. 148. Carta escrita em Roma em 24.4.1830. “Es ist 1 ½ Jahr, dass wir uns getrennt
haben! Sie haben an der Wiederherstellung Ihres Vaterlandes mitgearbeitet, ich habe in Italien alte
Geschichte aufgesucht. Immerfort habe ich mich an Die erinnert, Ihnen und den Serben alles Heil gewünscht:
Sie werden mich auch nicht vergessen haben. Von unsere Buche sind wie mir der Bücherhandler schreibt,
noch immer reichlich Exemplare vorhanden, indessen da die serbische Sachen einen so unglücklicher
Fortgang genommen haben, wünchte er eine Fortsetzung unserer Geschichte sobald Sie mit Ihren
gegenwärtigen Einrichtungen einigermaßen zu Stande bekommen sind. Es wäre mir auch sehr lieb diese
Sache genau zu erfaheren. Da es nun kaum möglich scheint, dass wir uns irgendwo besprechen können, so
wäre es recht schön, wenn sie einen Aufsatz, wo möglich deutsch, wir wollen es schon verstehen – über die
Ereignisse von 1827 an, verfassen und mittheilen wollten. Sollte einer von den Ihrigen Theil daran nehmen
wollen, so wäre es desto besser. Ich bin die ganze Zeit über gesund und wohlauf gewesen und habe einen
100
ganzen Koffer voll Schreibereien zusammen gechacht. Ihnen wünsche ich von ganzem Herzen alles
Wohlergehen.”
64
Karadžić e Ranke foram amigos durante mais de três décadas, até o falecimento de Karadžić em 1864.
Esse dado pode elucidar uma das possíveis fontes de Ranke para a extensão do conteúdo da edição de 1844,
uma vez que sua correspondência com Karadžić adentra inclusive esse período.
65
Idem, p. 149. Carta escrita em 10.1.1829. ““Wollen Sie mir schreiben, so sei ein Hauptgegenstand unsere
Vuk Karadžić. Wie und wo er sich befindet, möchte ich genau wissen. Ich bin ihm sehr zugethan. Grüssen
Sie ihn Tausendmal.”
66
Ibidem. Carta de Vuk Karadžić a Stefan Tenka, 10.12.1839. “Leopold Ranke, der Professor für Geschichte
an der Berliner Universität schreibt mir dass er zum zweiten Mal mit mir die Arbeit fortsetzen möchte und
zum zweiten Mal sein Buch über Serbien „Die serbische Revolution“, welche er mit zusammen 1828
geschrieben hat.“. Em uma carta posterior, ele ainda escreve: “(...) este é nosso amigo escreveu comigo a
revolução sérvia. “66
101
67
JELESIJEVIC, idem, p, 150. “Er (Ranke) hat später auf elegante Art und Weise in der zweiten Auflage
Veränderungen vorgenommen. Auch bei der Ausgabe der zweiten Auflage hat Karadžić energisch darauf
bestanden, nicht als Autors namentlich erwähnt zu werden. Genau so wie er zu Zeiten der Herrschaft
Obrenović Angst vor möglichen Konsequenzen hatte, so befürchtete er, dass die positive Wertung über
Obrenović ihm dieselben Probleme mit den Anhängern Kara Georgs bereiten würde. „
68
“While the notion of intellectual property seems commonsensical to us now, it is really quite an
achievement: how can one make ideas into a person's exclusive property?” MANDELL, op. cit.
CAPÍTULO III
Se, como foi visto até agora, há uma relação de cooperação e curiosidade entre
Ranke o os eslavos que ele conheceu em Viena, o assunto das relações entre Oriente e
Ocidente toma um arranjo mais denso conforme o que é apresentado n’A Revolução
Sérvia. Pela própria natureza do tema da obra, o Ranke teve que se confrontar com a
questão oriental, sobre a qual os olhares estavam avidamente voltados durante todo o
século XIX em função do rearranjo geopolítico pelo qual passava a Europa. Quando
confrontado com o desafio de apresentar eslavos e turcos aos leitores, Ranke teve que
caminhar por uma densa floresta de representações ambíguas sobre o Oriente, sobre o que
representava o Império Otomano e sobre quem seriam afinal os sérvios – e em um
momento em que os próprios sérvios ainda se definiam como povo e tentavam constituir
uma nação. Ao definir o Oriente, Ranke inegavelmente falava também sobre o que é ser
um ocidental que olha e busca entender o outro de acordo com seus próprios horizontes.
Tais horizontes podem ser, como comumente são, delineados tanto por um entendimento
do próprio autor como também por uma série de representações culturais que o cercam. É
sobre essas várias visões de Oriente que o texto a seguir tratará.
A visão sobre o Oriente que Ranke apresenta n’A Revolução Sérvia começa com a
percepção do que representava sua própria atividade de historiador. A maneira com que
103
Ranke compreendeu seu ofício impactou seu objeto de estudos no que diz respeito ao nível
de estranhamento que ele estabeleceu com essas outras culturas, principalmente com a
parte islâmica de seu objeto de estudo.
Um dos efeitos da celebração da História como disciplina em formação durante o
século XIX foi a sensação generalizada de descoberta e desbravamento do passado e de
outras civilizações, que, juntamente com o neocolonialismo, expandiu a consciência
europeia temporal e geograficamente, levando-a ao encontro de um “outro” que poderia
estar tanto no passado como em lugares considerados exóticos1. Desta forma, assim como
o período das grandes navegações durante os séculos XV e XVI produziu um impulso de
descobertas, o século XIX também é marcado pela empolgação com o desconhecido que
parecia cada vez apreensível mais através da ciência. Esse tipo de atitude era tanto prática
quanto mental, o que pode ser percebido inclusive na forma como os intelectuais começam
a pensar suas respectivas atividades, ou seja, em termos de desbravamento e aventura.
Para a nascente ciência histórica, a percepção que os novos historiadores tinham de si
mesmos mediante o contexto de formação da disciplina é reveladora de certo impulso que
os animava na empreitada de redescobrir civilizações através do enfrentamento com
quantidades massivas de documento. No caso de Ranke e d’A Revolução Sérvia, é
significativo apreender como a percepção que o autor tinha de seu próprio ofício levava-o a
certo tipo de abordagem frente ao seu objeto, que era majoritariamente oriental. É possível
analisar também como tais dados foram trabalhados discursivamente por Ranke nas cartas
do período de sua viagem à Viena, nas quais metáforas expressavam seu entendimento do
que significava para ele ser um historiador.
1
Há uma considerável influência do pensamento de Hegel no desenvolvimento dessa noção durante o século
XIX: “Hegel’s Philosophy of History (1837), based on a series of lectures that influenced nineteenth-century
European perception of the non-European world, suggests a model in which spatial difference is combined
with temporal distance; (…) in his scheme of historical progress, a spatial divide (East-West) turns into a
model of temporal development: the East is the beginning and childhood of History; the West is its mature
age And its end. Africa is missing from this model, since for Hegel Africa has no history. Similarly, in the
context of European colonialism, indigenous people in earlier stages of human life (childhood) or history
(primitivism), far behind European modernity and progress.” (BOLETSI, Maria. “It’s All Greek to Me: The
Barbarian in History”. In: Barbarism and its Discontents. California: Stanford University Press, 2013, p.
100).
104
que Ranke buscasse novas fontes. Por outro lado, as dificuldades transpareciam nas cartas
de Ranke com traços heroicos de superação. A dificuldade de acesso aos arquivos e a
diplomacia envolvida nisso é bastante reveladora da personalidade de Ranke e de seu
entendimento acerca do que é história, indicando, entre outros elementos, uma concepção
épica do métier de historiador, cuja noção de esforço não só brota de sua admiração pelo
heroísmo clássico como também do ímpeto romântico.
Como é sabido pelas suas autobiografias, Ranke foi leitor dos clássicos da literatura e
da historiografia grega e a já tão explorada presença em sua mesa do busto de Tucídides e
Herótodo à maneira de um Janus já é lendária entre os historiadores. Seguindo tais rastros e
a natureza das descrições de Ranke no seu embate contra as forças opositoras no acesso
aos arquivos, é interessante perceber a conexão entre a historiografia clássica e aquela que
se propunha como nova através de uma autopercepção épica. Como indica Luiz Otávio
Magalhães: “um tema, em particular, emblemático da composição épica (é) o tema da
perseguição heroica por glória e fama”2 e esse aspecto épico é visto na concepção
historiográfica de Ranke de forma geral, ou seja, não só na descrição de seu ofício como
também na própria forma como interpreta e relata sua pesquisa. Vemos a presença do
heroico n’A Revolução Sérvia em sucessivas passagens nas quais se apresentam as lutas
dos sérvios oprimidos e em desvantagem contra o gigante otomano, na qual a escala e o
embate “Davi e Golias” fornecem uma imagem literária bela e tocante. A concepção
dramática também permeava as cartas do historiador e a relação desta com seu ofício:
Como a semana de trabalho de Ranke era de vinte horas, é cabível que o
jovem professor entendesse, como seu mote proclamava, que o trabalho
era um prazer. Em Frankfurt, então, ele tinha algo como uma orgia
quando se envolvia em uma história em particular. (...) As cardas do
jovem historiador quando invocam a história do mundo às vezes deslizam
para a rapsódia. 3
2
MAGALHÃES, Luiz Otávio de. “Tucídides: a inquirição da verdade e a latência do heroico” In: JOLY,
Fábio Duarte (org.) História e Retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p.
17.
3
“As Ranke’s teaching week was twenty hours, it is well that the young teacher found, as his motto
proclaimed, labor a pleasure. At Frankfurt, then, he had something of an orgy when he settled because of a
particular history. (…) The young historian’s letters when invoking world history sometimes rush to
rhapsody.” FITZSIMONS, M. A. “Ranke: History as Worship”. In: The Review of Politics, Vol. 42, nº 4
(Oct., 1980), p. 537.
105
Outra metáfora utilizada por Ranke interessa aqui mais de perto: a do historiador
explorador. A concepção que aproxima o trabalho do historiador a do cientista natural é
fundamental para compreender parte do interesse do historiador pelo tema da Sérvia. Nesse
momento da história da historiografia na qual as ciências naturais gozam cada vez mais de
prestígio, há um movimento em que a disciplina “volta-se para o lado das ciências da
natureza para dar a história uma dimensão científica”5. Vale lembrar que os estudos sobre a
natureza, através de um longo processo durante a modernidade, alcançara renome pelo
rápido avanço que tivera mediante seu processo de institucionalização, no qual ganhou o
título de ciências naturais. Segundo Sidney Ross, mesmo a palavra “cientista” teria sido
utilizada pela primeira vez no século XIX, sendo cunhada em 1834, por William
Whewell6. A ciência deste período ainda está intimamente ligada à história, usando
inclusive a denominação de história natural, e sua institucionalização tinha como
consequência a preocupação com a divulgação e o ensino. Outra forma de ciência era
aquela praticada no período é a do gentleman scientist, que poderia ser traduzido para a
linguagem atual como um cientista independente. Esses indivíduos atuavam através da
formação de sociedades científicas para publicação e discussão de pesquisas independentes
das instituições governamentais.
Ambas as formas de fazer científico, institucional ou independente, ligavam a
imagem da ciência à atividade de viagem, cujas experiências renderam inúmeras
publicações de relato e a noção de que o mundo se abria progressivamente à razão dos
4
“In his letter to Heinrich Ritter he fashioned himself the lover who had productive sex with an Italian
beauty; in his letter to Bettina von Arnim he portrayed himself as a prince bestowed with magical powers to
redeem cursed princesses.” Idem, p. 207)
4
MÜLLER, Phillipp. “Ranke in the Lobby of the Archive: Metaphors and Conditions of Historical
Research”. In: Jobs, S.; Lüdtke, A. (eds.) Unsettling History: Archiving and Narrating History. Frankfurt:
Campus Verlag, 2010, p. 115. A citação de Ranke utilizada por Müller localiza- RANKE, Leopold von. Zur
Eigenes Lebensgeschichte. Sämmtliche Werke 34.-35. Band. Leipzig: Duncker und Humblot, 1890, p. 13.
5
DOSSE, François. A História. São Paulo: Unesp, 2003, p. 163.
6
ROSS, Sydney. "Scientist: The story of a word". Annals of Science, Vol. 18, Nº2 (1962), p. 72.
106
exóticos encontrados, como também entradas de diário. Assim, o mercado literário foi
inundado por longas obras com o título que continham “Travel”, “Reisen”,
“Reisentagebuch”, etc, sendo possível até encontrar o anúncio de vários desses títulos nas
últimas páginas dos livros de Ranke, espaço geralmente reservado para propaganda de
novas ofertas da editora. Para citar apenas algumas produções dos nomes referidos acima:
Ludwig Leichhardt, publicou cinco livros sobre suas viagens à Austrália7, Heinrich Barth
publicou três acerca da África e um sobre a Turquia8, Eduard Vogel escreveu dois títulos
também sobre a África9, Ferdinand von Horschsteter publicou cinco trabalhos (sendo dois
artigos) sobre a geografia da Nova Zelândia, Peru e outros10, Gerhard Rohlfs publicou14
obras11, Karl von Steinen publicou quatro obras sobre o Brasil que incluíam estudos de
língua e de arte12, Victor Hense escreve duas sobre a Expedição Plankton13, e o próprio
7
São os títulos: Die erste Durchquerung Australiens 1844–1846., Neu bearbeitet nach seinen Tagebüchern,
mit einer Einführung und einem Nachweis versehen.; Ins Innere Australiens, Die erste Durchquerung von
Brisbane zur Nordküste.; Tagebuch einer Landreise in Australien von Moreton-Bay nach Port Essington
während der Jahre 1844 und 1845. Beiträge zur Geologie von Australien; Schicksal im australischen Busch.
Vorstoß in das Herz eines Kontinents.
8
Reisen und Entdeckungen in Nord- und Centralafrika.; Das Becken des Mittelmeeres in natürlicher und
kulturhistorischer Beziehung; Reise von Trapezunt durch die nördliche Hälfte Kleinasiens nach Scutari im
Herbst 1858; Reise durch das Innere der europäischen Türkei von Rutschuk über Philippopel, Rilo
(Monastir), Bitolia u. den Thessalischen Olymp nach Saloniki im Herbst 1862; Sammlung und Bearbeitung
centralafrikanischer Vokabularien.
9
Reise in Centralafrika: Ed. Vogel's Reise in Centralafrika: eine Darstellung seiner Forschung und
Erlebnisse nach den hinterlassenen Papieren des Reisenden; Schilderungen der Reisen und Entdeckungen des
Dr. Eduard Vogel in Central-Afrika, in der großen Wüste, in den Ländern des Sudan (am Tsad-See, in
Mußgo, Tubort, Mandara, Sinder, Bautschi u.s.w.) Nebst einem Lebensabriß des Reisenden.
10
Neu-Seeland; Geologisch-topographischer Atlas von Neu-Seeland; Reise der österreichischen Fregatte
Novara um die Erde; Ueber das Erdbeben in Peru am 13. August 1868 und die dadurch veranlassten
Fluthwellen im Pacifischen Ozean, namentlich an der Küste von Chili und von Neuseeland, 1868,
veröffentlicht in den Sitzungsberichten der kaiserlichen Akademie der Wissenschaften in Wien; Reise durch
Rumelien; Geologische Bilder der Vorwelt und der Jetztwelt – zum Anschauungs-Unterricht und zur
Belehrung in Schule und Familie; Asien: seine Zukunftsbahnen und Kohlenschätze.
11
Reise durch Marokko, Übersteigung des großen Atlas. Exploration der Oasen von Tafilelt, Tuat und
Tidikelt und Reise durch die große Wüste über Rhadames nach Tripolis.; Im Auftrage Sr. Majestät des
Königs von Preußen mit dem Englischen Expeditionskorps in Abessinien; Land und Volk in Afrika; Von
Tripolis nach Alexandria. ; Mein erster Aufenthalt in Marokko und Reise vom Atlas durch die Oasen Draa
und Tafilelt.; Quer durch Afrika. Reise vom Mittelmeer nach dem Tschad-See und zum Golf von Guinea.;
Drei Monate in der libyschen Wüste.; Beiträge zur Entdeckung und Erforschung Afrikas. Berichte aus den
Jahren 1870–1875; Kufra. Reise von Tripolis nach der Oase Kufra, ausgeführt im Auftrage der afrikanischen
Gesellschaft in Deutschland.; Neue Beiträge zur Entdeckung und Erforschung Afrikas.; Expedition zur
Erforschung der Libyschen Wüste unter den Auspizien Sr. H. d. Chedive von Ägypten im Winter 1874/1875
ausgeführt; Meine Mission nach Abessinien. Auf Befehl Sr. Maj. des deutschen Kaisers, im Winter
1880/1881 unternommen; Angra Pequena; Quid novi ex Africa.
12
Durch Central-Brasilien: Expedition zur Erforschung des Schingú im J. 1884; Die Bakaïrí-Sprache:
Wörterverzeichnis, Sätze, Sagen, Grammatik; mit Beiträgen zu einer Lautlehre der karaïbischen
Grundsprache; Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens. Reiseschilderungen und Ergebnisse der zweiten
Schingú-Expedition 1887–1888; Die Marquesaner und ihre Kunst: Studien über die Entwicklung primitiver
Südseeornamentik nach eigenen Reiseergebnissen und dem Material der Museen. 3 Bände.
13
Die Plankton-Expedition und Haeckels Darwinismus. Ueber einige Aufgaben und Ziele der beschreibenden
Naturwissenschaften; Ergebnisse der Plankton-Expedition der Humboldt-Stiftung.
108
caso célebre de Alexander von Humboldt, que publicou não só inúmeras obras sobre
ciência natural das regiões visitadas como também longos diários.14
Dentro desse amplo panorama de viagens e subsequentes relatos, a ciência vai
sendo entendida como um trabalho que é por natureza de campo. Com a história também
sendo inserida progressivamente nas ciências, se acirra então uma divisão – e competição –
entre o trabalho de campo e o de gabinete, uma vez que as ciências naturais no século XIX
estavam amplamente ligadas à ideia de exploração:
“O trabalho de campo veio a se firmar cada vez mais como prática
estabelecida na segunda metade do XVIII, gerando conflitos entre
“campo” (terrain) e o gabinete (cabinet), e rivalidades entre estudiosos
nômades e sedentários, entre profissionais da periferia e profissionais do
centro. O pesquisador do campo frequentemente manifestava desprezo
pelo estudioso de “poltrona”, considerando-se mais próximos da
realidade, fosse natural ou cultural. Por outro lado, no domínio da história
natural, Cuvier – apesar do trabalho de campo geológico que realizou –
afirmava a superioridade do estudioso de gabinete, capaz de ver o todo,
em relação ao naturaliste-voyageur, que enxergava apenas uma parte da
realidade.” (BURKE, 2012, p. 45)
14
Kosmos – Entwurf einer physischen Weltbeschreibung; Vues des Cordillères et Monuments des Peuples
Indigènes de l’Amérique; Ansichten der Natur; Voyage aux régions équinoxiales du Nouveau Continent: fait
en 1799, 1800, 1801, 1803 et 1804 (com Aimé Bonpland); Examen critique de l’histoire de la géographie du
Nouveau continent; Zentralasien (com Wilhelm Mahlmann).
109
Fig. 1: Dr. Clauss, Dr. K. von Stein e W. Von den Fig. 2: Theodor von Heuglin, que fez uma famosa
Steinen na primera expedição o Xingú, Brasil. expedição ao Egito e outra ao Polo.
Kämpfer aponta para a mesma metáfora: “Não há dúvidas que o gatilho para Ranke
não foi o filohelenismo mas sim a descoberta de 46 fólios das relações venezianas em
arquivos de Berlim, sobre a qual Ranke viu a si mesmo como um “Colombo”
historiográfico. 16
Assim, Ranke colocava para si nova concepção atraente do ofício de historiador,
que não só fazia essa viagem do ponto de vista temporal, ao acessar civilizações do
passado, como também entrava nos mais diferentes arquivos e acessava documentos nunca
antes revelados, trazendo-os à luz da ciência e à vista pública:
Apesar de Leopold Ranke nunca ter se aventurado em mar aberto, ele era
tentado a imaginar as expedições de exploração do Capitão Cook e
Cristovão Colombo pois ele imaginava a si mesmo atravessando as
bordas que dividiam o consenso estabelecido e o desconhecido do
passado. Escavando em bibliotecas e arquivos do Império Austríaco,
Ranke pensou explorar uma terra incognita. Sendo o primeiro
historiador, ele se orgulhou em tocar e usar manuscritos que “nunca
haviam sido usados por alguém” antes e postanto ele os reinvindicou.
Essa visão de si mesmo adianta a atitude mental com que Ranke encararia a empreitada
d’ A Revolução Sérvia e até mesmo justifica em parte ele ter aceitado o convite de escrever
sobre sérvios e turcos, pois, mesmo que houvesse um forte interesse político no assunto,
ardia também o desejo de acessar novos povos e culturas. Ao mesmo tempo, tais metáforas
inseririam o estudioso de gabinete em um ambiente de atividades viris e de dominação. Tal
sentimento de superioridade será transferido também para o tratamento de outros povos.
15
“So he fashioned himself in a letter to Heinrich Ritter in October 1827 as “a Columbus of Venetian
history” (Let. Ritter, 28 Oct 1827, Ranke 1890, 173ff, 176); in another letter to Karl Varnhagen van Ense he
voiced, more modestly, his wish to become, “if not a Columbus, at least a kind of Cook of some beautiful,
unknown island of world history.”” Müller, op. cit, p. 13. Interessante a comparação com Cook dado a
afinidade entre ele e Ranke na questão da oposição aos franceses, uma vez que Cook combateu Napoleão em
nome da marinha britânica.
16
„Doch besteht kein Zweifel daran, daß nicht Philhellenismus der Auslöser für Ranke war, sondern der
Fund von 47 Folianten venezianischer Relationen in Berliner Archiven, als deren historiographischer
"Columbus" sich Ranke betrachtete.” KÄMPFER, Frank. Vuk Karadzic und Leopold Ranke: Zur Rezeption
der 'SERBISCHEN REVOLUTION” in Deutschland. In: www.frank-kaempfer.de/Neuer PDF
Ordner/Ranke_Serbische Revolution1991.pdf. Acessado em 06/07/2013.
111
Apesar de o Oriente ser tema antigo e as falas dos europeus sobre ele também, o
processo de formação de identidades nacionais durante o século XIX requisitou a eleição
de uma contraidentidade que fornecesse contraste para a afirmação deste “eu” frente ao
“outro”, ou seja, a medida da civilização só se dá frente a quão bárbaro é o outro. Por outro
lado, esse movimento de alteridade gerou uma grande onda de encantamento artístico de
longa duração fomentado pelo imaginário e pelo estereótipo desse Oriente ao mesmo
tempo próximo e distante:
17
“Whether lover, prince, or explorer, all of these metaphors share one characteristic: the notion of virile
activity and power suggests he is acting whilst others are passive.” Müller, op. cit., p. 122.
18
„Seen another way, comparison assumes a level playing field and the field is never level, if only in terms
of the interest implicit in the perspective. It is, in other words, never a question of compare and contrast, but
rather a matter of judging and choosing.” (SPIVAK, Gayatri Chakravorty. “Rethinking Comparativism” In:
New Literary History, Volume 40, Number 3, Summer 2009, p. 609.)
112
19
“The Rabáiyát’s poetry, as interpreted by Edward Fitzgerald, the foreign gallantry of Lord Byron, and the
dreamer of Leigh Hunt: these are just a few among the legion of literary evocations, fixed in the nineteenth
century European mind, of an East of uncertain geographical location. North Africa and the Middle East were
far less distant than the lands of the Far East. The crossing to them could be achieved readily, but their exotic
charm could only be invoked by tales of enchantment. There would always be something wondrous about
this place of imagination, filled with possibilities of lubricity, fascinating to Europe for its culture of multiple
wives, subservient women, sexual license, and nomadic caravanserei.” MARTIN, Richard; KODA, Harold.
Orientalism. Visions of the East in Western Dress. New York: The Metropolitan Museum of Art, 1995, p.
50.
20
Ao entrar no Egito e na Síria, Napoleão invadia território otomano, uma vez que a região estava sob
domínio do Sultão. Após o contato com os franceses, o Egito se rebela contra o domínio otomano.
113
21
A Pedra de Roseta é um fragmento de pedra inscrita do Egito Antigo, cujo texto foi crucial para a
decifração dos hieróglifos egípcios. Foi encontrada em agosto de 1799 por soldados napoleônicos,
particularmente por um oficial chamado Bouchard, Quando a França assina sua capitulação diante do Reino
Unido, em 1801, a pedra passa a fazer parte do acervo Museu Britânico.
22
Como forma de organizar os estudos que eram feitos pela Commission des Sciences et des Arts na
expedição, foi fundado o Institut d’Égypte, em 24 de agosto de 1798, tendo o próprio Bonaparte como vice-
presidente. Em 22 de novembor de 1799, o Instituto publica os trabalhos acadêmicos no volume Description
de l'Égypte. Em 1836, subsume-se na The Egyptian Society, um grupo de trabalho coletivo que incluía
franceses, alemães e ingleses. Em 1859, é transferido para Alexandria e ganha o nome de Institut Égyptien,
funcionando sob auspícios do vice-rei, retornando ao Cairo em 1880. Em 2011, na ocasião da revolução
egípcia, o Instituto foi incendiado, mas protestantes e soldados conseguiram salvar entre 30 e 40.000
trabalhos (antes contando com 200.000 textos, muitos da era bonapartista).
23
Georg August Schweinfurth (1836–1925) foi botânico, viajante, etnólogo e paleontologista especilista em
África Central Oriental. Em 1863, ele viajou para a região Mar Vermelho, retornando à Europa em 1866. Em
1868,dado seu sucesso, recebeu o patrocínio bolsa do Humboldt-Stiftung de Berlim para uma viagem ao
Egito e Chade e Congo, viagem na qual descobriu o rio Uele (Congo). Entre 1873-1874, participou com
Friedrich Gerhard Rohlfs da expedição ao deserto da Líbia. Em 1875, fundou uma sociedade geográfica no
Cairo e no ano seguinte seguiu com Paul Güssfeldt para o deserto arábico. Algumas de suas obras são:
Beitrag zur Flora Aethiopiens (1867), Reliquiae Kotschyanae (1868), Linguistische Ergebnisse einer Reise
nach Centralafrika (1873), Im Herzen von Afrika (1874), Artes Africanae illustrations and descriptions of
productions of the industrial arts of Central African tribes (1875). O caso de Schweinfurth interessa aqui
porque revela a ligação entre as expedições científicas e o movimento político internacional e também porque
indica o nível de divulgação dessas descrições de viagens, principalmente para os alemães. Seus escritos
foram publicados em forma de livros, em periódicos e em panfletos como Petermanns Geographische
Mitteilungen e o Zeitschrift für Erdkunde.
24
O título completo é Description de l'Égypte, ou Recueil des observations et des recherches qui ont été
faites en Égypte pendant l'expédition de l'armée française.
114
primoroso pela qualidade dos textos e gravuras, mas faltava em acessibilidade pelo baixo
número de cópias, pelo tamanho grande e imagens que encareciam os volumes.
25
“Napoleon’s expedition, itself born, in part, out of a textual imagination rooted in Napoleon’s “encounters”
with the Orient that began with his days of adolescent reading, refigured the relationship between knowledge
and power in particular ways. Napoleon prepared in advance for the encounter, relying, among others, on the
work of the Comte de Volney (1859), a French traveler who published his Voyage en Egypte et en Syrie in
1787. Napoleon read Volney’s account as a handbook of sorts for dealing with the Orient (or the Orientals).
Moreover, conquest and acquisition of systematic, now-scientific knowledge emerged hand in hand: “The
Institut, with its team of chemists, historians, biologists, archeologists, surgeons, and antiquarians, was the
learned division of an army”. As Said explains, “After Napoleon… the very language of Orientalism changed
radically. It descriptive realism was upgraded and became not merely a style of representation but a language,
indeed a means, of creation.”” EL-HAJ, Nadia Abu. “Edward Said and the Political Present” In: NETTON,
Ian Richard. Orientalism Revisited. Art, Land and Voyage. New York: Routledge, 2013, p. 64.
116
Fig. 14: Quinze personagens, cada qual identificado com sua respectiva nacionalidade, descrevem as
“Opiniões Nacionais Sobre Bonaparte”. No que diz respeito ao Oriente, a figura do Egito (1ª) diz:
“Suas extorsões são abomináveis, eu desejo que fosse feito dele uma múmia!”; a figura chinesa (4ª)
questiona: “Não é esse tal Boonapar [sic] um ladrão famoso?”; a Turquia (8ª) “Eu tremo toda vez que
seu nome é mencionado.”; a figura identificada genericamente como Ásia (14ª): “Eu imploro que ele
seja mantido longe.” – 20 de Abril de 1808 – British Museum.
Mais uma vez, o caso dos retratos dos cientistas alemães é revelador nesse sentido. Se
acima foram vistas representações de domínio, resistência e superação, outro conjunto de
imagens aponta para a apropriação da cultura turca numa relação de simbiose, curiosidade
e fascinação.
Fig. 15: Eduard Vogel com o turbante Fig. 16: Gerhard Rohlfs em Fig. 17: Max von Oppenheim em
árabe (1863). roupas árabes. (1865). roupas árabes (1896).
No que diz respeito à intelectualidade alemã ligada à produção acadêmica, deve ser
considerado igualmente que a atenção da maioria dos estudos voltou-se com maior
empenho para o Extremo Oriente graças a um interesse duplo: sua busca pelas origens e
crescente entusiasmos pelas mitologias, ambas impulsionadas pelas marchas de expansão
dos impérios e pelas expedições científicas que revelavam (e inventavam)
progressivamente o mistério oriental.
26
“In the nineteenth century this “Turkomania” faded, to be replaced by yet other expressions of the Ottoman
presence in European popular culture. The common motifs of cruelty, intrigue, jealousy and savagery
continued, hence the ready reception accorded to the powerful British politician Gladstone’s rantings against
the “Bulgarian horrors.” Alongside this old ruthless image emerged that of the amorous or the buffoon Turk.
The silly Turk already had become a stock figure, as we see in Molière’s The Bourgeois Gentleman (1670),
where a major character babbled gibberish which the audience was meant to understand as Ottoman Turkish.
Now, in the nineteenth century, lustful Turks with enormous sex organs became an important feature of
Victorian pornography literature. Further, many Europeans, from Lord Byron to the novelist Pierre Loti to
Lawrence of Arabia, came to consider the Ottoman Empire as the land of dreams where sexual or other
fantasies could be realized. These three individuals and other thousands of others sought escape from the
tedium and monotony of modern industrial life and imagined East – whether or not they traveled to the
Ottoman realms.” QUATAERT, Donald. “The primitive, the savage, the noble”. In: The Ottoman Empire
(1700-1922). New York: Cambridge University Press, 2005, p. 10.
119
A relação entre os estudos orientalistas e a história ficava cada vez mais evidente,
principalmente pelo crescimento dos estudos culturais que ganhavam força dentro da
historiografia alemã oitocentista. Entretanto, o império otomano era relativamente excluído
do interesse direto desses pesquisadores que voltavam sua atenção principalmente para a
civilização clássica greco-romana, entendida como o berço das civilizações modernas.
27
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação Liberdade, 2010, p. 146.
28
Georg Friedrich Creuzer (1771-1858) foi filólogo, arqueólogo, orientalista e mitólogo alemão. Foi
professor da Universidade de Marburg, Heidelberg e Leiden. Dentre suas obra sobre o oriente, destacam-se
títulos sobre a cultura greco-romana: Symbolik und Mythologie der alten Völker, besonders der Griechen
(1812); Oratio de civitate Athenarum omnis humanitatis parente (1826); Ein alt-athenisches Gefäss mit
Malerei und Inschrift (1832); Zur Geschichte alt-römischer Cultur am Ober-Rhein und Neckar (1833); Zur
Geschichte der griechischen und römischen Literatur. Abhandlungen (1854).
29
Georg Anton Friedrich Ast (1778-1841) foi um filólogo clássico e filósofo alemão, conhecido
principalmente pelos estudos de Platão, sobre quem escreveu Platon's Leben und Schriften. Ein Versuch, im
Leben wie in den Schriften des Platon das Wahre und Aechte vom Erdichteten und Untergeschobenen zu
scheiden, und die Zeitfolge ächten Gespräche zu bestimmen (1816) e Lexicon Platonicum sive vocum
Platonicarum index ( 1835–1839).
30
Karl Wilhelm Friedrich von Schlegel (1772-1829) foi um filósofo da cultura, escritor, crítico literário,
historiador filólogo e pioneiro da indogermanística, além de indólogo. Sobre o oriente, escreveu: Vom
ästhetischen Werte der griechischen Komödie (1794); Über das Studium der griechischen Poesie (1797);
Über die Sprache und Weisheit der Indie (1808);
31
Idem, p. 147
120
32
““Orientalism is not a construction from experience of the Orient. It is the fabulation of pre-existing
Western ideas overwriting and imposed upon the Orient.” SARDAR, Ziauddin. Orientalism. Buckingham:
Open University Press, 1999, p. 9.
33
“And adventurers like Richard Burton, the famous translator of Arabian Knights; Charles Doughty, author
of Travels in Arabia Deserta, and E. W. Lane, who wrote Modern Egypt in 1834, added extra layers of
exotica to the representation of Islam in the West. They described a treasure-house of magic and occult,
astrology and alchemy, hemp and opium, snake-charmers, jugglers, public dancers, superstitions,
homosexual dens, women ready to satisfy every sexual urge, supernatural beliefs and bizarre incidents that
defied imagination. While a string of noted painters, form Jean-Auguste Dominique Ingres, Henri Regnault
to Eugene Delacroix, developed a genre of Orientalist painting that placed barbaric Muslim men and
sensuous, inviting and submisse Muslim women on the canvas.Colonial administrators like Lord Cromer of
Egypt and T. E. Lawrence, aka ‘Lawrence of Arabia’ who in reality was a spy for the British, turned these
images and representations into police.” SARDAR, Ziauddin; DAVIES, Merryl Wyn. The Nonsense Guide
to Islam. United Kingdom: New Internationalist Publications, 2007, versão online em www.newint.org.
121
Na Inglaterra, o impulso literário teria sido dado pela primeira tradução de As Mil e
Uma Noites, durante o século XVIII, estimulando assim o gênero dos contos orientais.
Durante o século XIX, o desenvolvimento do romance oriental está ligado ao romance
gótico, ambos explorando o exótico, o extravagante, o “outro”.34
Goticismo e orientalismo fazem o trabalho da ficção de forma mais geral
– provendo personagens imaginários, situações e histórias como
alternativas para – ou mesmo um escape da – realidade cotidiana dos
leitores. Mas eles operam como mais do que outros tipos de ficção. O
horror agradável e o exotismo agradável são experiências aparentadas
com a irrealidade e a estranheza na base das duas. 35
Também Heinrich Heine colaborou para alguns estereótipos acerca dos turcos em seu
O Rabi de Bacherach, afastando a imagem do idílio e colocando-a de acordo com a crítica
política do momento:
O turco é desatinado e despiciento, colocando com prazer os seus bastões
e instrumentos de tortura à disposição dos cristãos, contra os judeus
acusados. Pois ambas as seitas lhes são igualmente odiosas, considera
34
Para mais sobre a relação do romance gótico e o orientalismo em Ranke, ver o próximo tópico, “O curioso
caso dos vampiros”.
35
“Gothicism and Orientalism do the work of fiction more generally — providing imaginary characters,
situations, and stories as alternative to, even as escape from, the reader's everyday reality. But they operate
more sensationally than other types of fiction. Pleasurable terror and pleasurable exoticism are kindred
experiences, with unreality and strangeness at the root of both.” SARDAR; DAVIES, op. cit.
36
BYRON, George Gordon. “The Bride of Abydos”. In: Turkish Tales.
(http://www.poemhunter.com/poem/bride-of-abydos-the/), acessado em 12/1/2014.
122
É interessante para o caso de Ranke perceber a construção literária do Oriente, uma vez
que esta não lhe passava despercebida, como, aliás, nenhuma literatura. Ranke procurou
trazer o elemento literário em relação direta com suas pesquisas, nas quais estilo e
conteúdo deveriam se integrar como um único elemento: “Como Tucídides, que era o
assunto de sua dissertação, ele procurou escrever uma história que combinava um
reconstrução confiável do passado com elegância literária. A história precisava ser escrita
por especialistas, mas não apenas ou até primariamente para eles, mas para um público
educado mais geral.”38 Para retratar a questão oriental, Ranke fez uso de tópicos
produzidos pela literatura orientalista para caracterizar os sérvios. Mas, para os turcos,
todo um outro conjunto de representações muito mais agressivas foi sustentado pelo
historiador, colocando-o em consonância com a pena afiada de Heine.
No que tange a caracterização negativa do Oriente, muito dela estava baseada na crítica
política oriunda da decadência do império otomano. Apesar de ainda uma ameaça, os
turcos perdiam progressivamente o posto de “inimigos do Ocidente” para a Rússia, o que
pode ser visto claramente em alguns mapas satíricos do período. As imagens de sátira
política produzidas durante o século XIX explicitam eloquentemente a visão que o
Ocidente tinha em relação aos turcos, como nos mapas abaixo, que datam principalmente
da década de 1870 (quando acontece a Guerra Franco-Prussiana e as forças em combate se
explicitam com mais força), onde são vistas imagens icônicas do Império Otomano, usando
suas roupas típicas e sendo representado tanto em sua antropomorfia feminina quanto
37
HEINE, Heinrich. O Rabi de Bacherach e Três Textos Sobre o Ódio Racial. São Paulo: Hedra, 2009, p.
104.
38
““Like Thucydides, who was the subject of his dissertation, he sought to write a history that combined a
trustworthy reconstruction of the past with a literary elegance. History needed to be written by specialists, but
not only or even primarily for them, but for a broad educated public.” IGGERS,Georg. “Classical Historicism
as a model for historical scholarship”. In: Historiography in the Twentieth Century. From Scientific
Objectivity to the Postmodern Challenge. Connecticut: Wesleyan University Press, 1993, p. 25.
123
Fig. 18: Nesse mapa de 1849, no qual o sultão aparece, de costas, com roupas típicas turcas. As
dimensões dos demais é diminuta quando comparadas à escala da Rússia, retratada como um gigante
eslavo com uma faca ensanguentada em punho. A Prússia, na figura de Wilhelm II, fabrica enormes
quantidades de dinheiro. Os Bálcãs são retratados como vários pastores e feridos de guerra ainda
brigando.
39
Esses mapas alcançavam grande circulação e eram traduzidos para vários idiomas, sendo inclusive
copiados por diversos artistas.
124
Fig. 19: Nesse mapa de 1870, a Alemanha aparece mais uma vez identificada com a figura militar
prussiana, mas a Turkia aparece em suas representações – na parte europeia aparece sobrecarregada
pelo peso da Alemanha e na parte oriental como uma bela odalisca que repousa tranquilamente com seu
narguilé.
Fig. 20: Um “Octopus Map”, de Frederick Rose, faz parte do “Serio-comic war map for the year 1877”.
Nele, a Rússia é um polvo gigantesco que busca enroscar seus tentáculos ao redor da Alemanha,
identificado como Bismarck, a Austro-Hungria e a Turquia, representada por um homem vestido à forma
típica turca e que usa como bolsa a Grécia.
125
Outras imagens que trabalhavam com uma imagem negativa dos turcos são
encontradas nas charges políticas, principalmente de origem inglesa, cuja circulação era
ampla em toda Europa por meio dos jornais e cujos tópicos frequentes eram a situação
frágil do império otomano e a divisão de seus territórios entre as grandes potências
europeias. Muitas apelavam para a zoomorfização dos impérios através do trocadilho entre
a palavra “turkey” (“peru” em inglês) e o nome em inglês para a Turquia, que também é
Turkey40. Essas charges foram produzidas por todo o século XIX e início do XX e
acirradamente entre as décadas de 1820 a 1870, período em que Ranke também publicava
A Revolução Sérvia41:
Fig. 21: “Lê-se na legenda: “Cortando um peru; ou epicuros continentais!!”. A Turquia, em forma de
peru, tem a cabeça do sultão e é cortada por três monarcas. Alexander, à direita, pega o pedaço em que
se lê “Constantinopla” e diz "Pegarei um pedaço da cabeça, é um pedaço, é uma parte da qual minha
bisavó também gostava muito”. Francisco II, no centro, toma as partes de “Bender” and “Moldavia”,
dizendo "Pela águia austríaca – aqui está uma boa escolha". O terceiro, Frederick William III da
Prússia, diz "Eu não sou muito exigente – um pedaço da traseira é o suficiente para mim", tomando
“Akierman” e as “Províncias Orientais” e atrás dele está Bonaparte dizendo "Deem-me uma fatia. Eu
gosto muito de peru (Turkey)".” – 12 de Abril de 1802.
40
SEGER, Donna. Early Takes on the Turkey. In: http://streetsofsalem.com/2011/11/22/early-takes-on-the-
turkey. Acessado em 03/01/2014. No artigo são apresentadas diversas imagens sobre o peru dentro do
gênero de arte ligada aos estudos de biologia e sua relação com as charges políticas acerca da Turquia. A
autora finaliza de forma bastante espirituosa, referindo-se ao contraste entre os desenhos de Benjamin
Franklin que retratavam a ave e seu uso político para ridicularização do Império Otomano: “Franklin’s
“courageous” bird is noble no more; maybe this is what happens when you take something out of its native
environment!”
41
Todas as charges estão disponíveis no sítio do The British Museum (http://www.britishmuseum.org) e as
descrições que as acompanham são as oferecidas pela catalogação do museu.
126
Fig. 22: Uma fronteira bem marcada atravessa um planalto da Moldávia e Valáquia. A linha divide as
forças do sultão (esquerda) do czar (direita). A pata do cavalo de cada líder invade o território alheio e
enquanto a pata do cavalo de Alexandre pisa em uma lua crescente (islamismo), a pata do cavalo do
sultão pisa em uma cruz quebrada (cristianismo). Alexandre diz “Se ousar pisar para além dessa linha,
explodirei Seraglio em suas orelhas”. O sultão responde “Se ousar cruzá-la, farei seus ursos dançarem
ao som de nossa música e aniquilarei cada cão cristão de vocês”. Atrás do sultão estão soldados
segurando cabeças degoladas em referência às atrocidades turcas contra os gregos. – 15 de Maio de
1822.
Ranke não escapou desse “percurso intelectual oriental” típico de seu tempo e ofereceu
uma análise em sintonia com as críticas apresentadas nas charges inglesas. Apesar de tratar
dos otomanos durante todo o texto d’A Revolução Sérvia, alguns pontos específicos são
importantes por fornecerem ou uma comparação com o Ocidente que revela o
entendimento do autor acerca dos turcos como contraparte do empreendimento europeu. A
edição de 1844 é a que trabalha com mais clareza esse ponto:
Na segunda edição completamente expandida da "Revolução Sérvia" de
1844, texto que permaneceu essencialmente também na terceira edição de
127
45
„Freilich gehörte zu der vereinigenden Kraft der Hierarchie auch der Gegensatz gegen ihre Übermacht, zu
der Einwirkung von außen die freie Bewegung von innen her, zu dem Gehorsam der Widerspruch. Nachdem
die Nationalität einmal fest begründet war, konnte sie durch keine Meinungsverschiedenheit wieder zerstört
werden, die auf der Grundlage derselben erst möglich wurde. Ganz anders im Orient!“ Idem, p. 35.
46
„erscheinen Land und Leute staatswirthschaftlich gleichsam als ein großes Capital.“ Idem, p. 43
47
„Da nun die Bischöfe auch überdieß einen nicht unbedeutenden Aufwand machen müssen, um ihren Rang
in der Reihe der Herrn aufrecht zu erhalten, so ward ihre Verwaltung schon für die griechische Raja
drückend, wie viel mehr aber für die serbische, der sie als Fremde erschienen.“Idem, p 42.
48
HEYER, Friedrich. Die Orientalische Frage im kirchlichen Lebenskreis. Das Einwirken der Kirchen
Auslands auf die Emanzipation der Orthodoxen Nationen Südeuropas 1804-1912. Wiesbaden: Otto
Harrassowitz, 1991, p. 107.
49
„There was a significant contrast between the disunity in the Orthodox Balkans and the situation in the
Catholic world farther west, where the union of Croatia with Hungary and the multinational Habsburg
Empire formed a barrier against Ottoman penetration. Church unity was an important factor in this political
solidarity. But the solidarity of the Western Christians was at best limited to their own particular brand of
Christianity.” Anzulovic, p. 21.
129
precipitação de Ranke em enquadrá-los em uma situação sobre a qual Ranke não conhece o
suficiente. 50
Na relação entre as duas religiões, os islâmicos, cujo poder se concretizava no império
otomano, teria um talento para a corrupção através do suborno (como no caso da Igreja
Ortodoxa) de uma instituição fragilizada e de liderança egoísta. Se for isento o julgamento
moral, apresentando a questão numa perspectiva meramente estratégica, na realidade o
fortalecimento da Igreja Ortodoxa era uma manobra inteligente dos turcos para garantir
maior controle social, o que indica o porquê, a durabilidade e a extensão da dominação
otomana no Oriente:
Uma vez que uma igreja nacional autocéfala pode ser controlada mais
facilmente do que uma igreja universal cuja liderança reside fora das
bordas do império, os governantes otomanso deram maiores privilégios
aos ortodoxos do que à Igreja Católica. 51
Ainda assim, Friedrich Heyer defende que Ranke teria enxergado positivamente a
ortodoxia enquanto função social.52 O tom nostálgico do texto d’A Revolução Sérvia torna
difícil medir em qual proporção as descrições são de Ranke ou Karadžić (que era cristão
ortodoxo), mas muito provavelmente são lembranças relatadas pelo intelectual sérvio que
50
“Welches Motiv war für die Übernahme politischer und militärischer Führungsfunktionen durch serbische
Mönche und Priester während der Revolution maßgebend? Ranke stellt diese Frage nicht. Er fragt nicht
genug in die der Orthodoxie einwohnenden Kräfte züruck. Faktisch wäre festzustellen: Noch fehlte der
Einfluß der deutschen Romantik, der aus der Verklärung des Volkes eine neue Religion machte, Dir Priester
und Mönche beteiligten sich am Freiheitskampf wie an einem weltlichen Unternehmen und bewahrten dabei
ein das geistliche Leben fortsetzendes orthodoxes Frömmingkeitsgepräge.“HEYER, Friedrich. „Leopold von
Rankes Orthodoxie-Verständniss in seiner Darstellung der „Serbischen Revolution““. In: Geist, Glaube,
Geschichte. Festschrift für Ernst Benz. Netherlands: Brill Archiv, 1967, p. 416.
51
“Since an autocephalous national church can be controlled more easily than a universal church whose
leadership resides outside the borders of the empire, Ottoman rulers gave greater privileges to the Orthodox
than to the Catholic Church.” ANZULOVIC, Branimir. Heavenly Serbia. From Myth to Genocide. New
York: London: New York University Press, 1999, p. 28.
52
„Aber unberührt von der phanariotischen Herrschaft sieht Ranke als Ausgangsbasis für die Revolution die
orthodox bestimmten Strukturen des Volkslebens. Auch dort, wo die Priesterschaft nicht präsent ist, inspiriert
die Orthodoxie die serbische Gemeinschaft. Ranke erkannte das am Brauch der Pobratinie. „Die
Verbrüderung ist im serbischen Stamme Eigen. Kirchliche Einsegnung ist zwar hierbei nich zwar hierbei
gebräulich; aber in der Tat verbindet man sich im Namen des St, Johannes zu wechselseitiger Treue für das
ganze Leben. Man meint am sichersten den zu wählen, den man etwa geträumt hat. Die Verbundenen nennen
sich Brüder in Gott, Pobratinie.“ Auch in dem „sich selbst geügenden, in sich abgescholossenen
Familienhaushalt“ sah Ranke eine Grundlage des fortdauernden nationalen Lebens. Wenn hier das
Weihnachtsfest gefeiert wird, so „verbindet die göttliche Erscheinung die Mitglieder des Hauses zu
einmütiger Verehrung und anbetender Eintracht“. Dann lenkt Ranke den Blick auf fie unwesetzliche
Bedeutung der Klöster: „Wirksam ist die geistliche Verbindung, in der mehrere Gemeiden mit dem Kloster
stehen, das ihnen zunächst liegt. Es hat sic eingeführt, daß man die Beichte ausschließlich bei den Mönchen
ablegt. An gewissen Tagen versammelt man sich hiezu an den verstecken Schlupfwinkeln des Waldgebirges,
wo die Klöster einsam liegen. Auf Beichte un Kommunion des Morgens – oft ist man schon den Abend
zuvor gekommen und hat die Nacht beim Feuer zugebracht – folgt nachmittags Beratung der ältesten, Spiel
und Tanz der Jungend, Markt Verkehr (...).“ HEYER, Friedrich. „Leopold von Rankes Orthodoxie-
Verständniss in seiner Darstellung der „Serbischen Revolution““. In: Geist, Glaube, Geschichte. Festschrift
für Ernst Benz. Netherlands: Brill Archiv, 1967, p. 405.
130
foram trabalhadas textualmente pelo historiador alemão. Pelo fato de Karadžić ter sido
cristão ortodoxo, é preciso considerar até que ponto a inserção de tais comentários não
agiriam como atenuantes contra uma excomunhão, uma vez que apesar da coautoria
rejeitada, a colaboração do sérvio é citada nominalmente por Ranke na introdução da obra.
Mas ainda considerando tais passagens como algo realmente sustentado por Ranke, restam
duas coisas que saltam aos olhos: 1) que há uma romantização da vida religiosa sérvia, na
qual a ortodoxia serve de pano de fundo e poderia ser substituída por qualquer outra crença
sem prejuízo; 2) Ranke pode aqui estar sinalizando uma separação entre a instituição
religiosa como um braço político (cuja cúpula era corrompida), e a religião natural que
emana do povo e que seria mais autêntica, significativa e duradoura na vida do corpo social
e assim, a instituição seria um catalisador de uma força que brota da própria cultura
popular. Um elemento que reforça essa hipótese é a natureza do culto aos santos na Sérvia,
onde geralmente homens que realizaram grandes feitos em batalha são santificados e têm
suas histórias imortalizadas em canções populares passadas através da tradição oral e
solidificadas na religiosidade popular.53 Anzulovic adverte que há de fato uma divisão de
instâncias religiosas para os sérvios, uma vez que sua igreja era “extremamente conectada
com seu estado e nação” e que “há muito negligenciaram o evangelho e se devotou a
assuntos políticos aparentemente em um grau maior do que outras igrejas cristãs.”54 No
entanto, a relação entre popular e cultura eclesiástica torna-se bastante complexa uma vez
que as canções eram gestadas a partir da alta cultura letrada do patriarcado:
53
. Muitos desses “heróis de guerra” contam com atos de extrema violência em suas biografias, as quais são
igualmente glorificadas não apenas por uma romantização do fora-da-lei mas pela difusão da crença de que a
violência sofrida abonava a violência devolvida: “In the literature of Europe-wide high Romanticism, the old
theme of the outlaw-bandit was invested with romantic conjunction of honor and misanthropy by authors
from Schiller to Alexander Dumas, from Scott to Mérimée, and from Pushkin to Verga, usually set among
marginal communities living in peripheral areas, and involving a storyline carried by passion, desire, pride,
revenge and (thrillingly for the middle-class armchair reader) sovereign heedlessness of the rule of law and
conventions. The more Easterly portions of Europe partly share this general pattern but they also stand out
against it. Here, the outlaw theme is not merely an exotic fictional tope reverberating against Byronic
Romanticism, but also draws on figures, fact, or material from the escapism for middle-class readers but as a
glorification of heroic resistance and a means of anchoring a nascent high-literary tradition. Themes and
shared values of authentic, homegrown traditions found literary dissemination by means of the infrastructure
of book clubs, theaters, and commercially distrusted print literature. The theme enjoyed a vogue across
Europe because of its different literary backgrounds and functions, which intersected, overlapped, and
reinforced each other: a prestigious and fashionable tradition national as well as international intertext as well
as gritty folk-rooted authenticity.” (CORNIS-POPE, Marcel; Neubauer, John (ed.) History of the Literary
Cultures of East-Central Europe. Junctures and Disjunctures in the 19th and 20th centuries. Volume
IV: Types and Stereotypes. Netherlands: John Benjamins, 2004, p. 410).
54
““extremely closely connected with their state and nation”; “long ago neglected the gospel and devoted
itself to political issues seemingly to a higher degree than any other Christian church.” ANZULOVIC, op.
cit., p. 6.
131
55
“Folk singers played a very important role in the illiterate and eliteless Serbian society following the
Turkish conquest. Accompanying their chanting with one-stringed fiddle called the gusle, they were not
merely entertainers but bards who transmitted to their audiences a vision of the nation’s past and future.
However, they were not necessarily the creators of the myth propagated by their songs. The story of how
Prince Lazar opted for the heavenly kingdom in the 1389 battle on the Field of Kosovo seems to have
originated with the Narration about the Prince Lazar by Serbian Patriarch Danilo III (…), the noblewoman
Jefimija’s embroidered Encomium to Prince Lazar, and several other texts by anonymous authors, written
within thirty years after the battle. (...) Very few people have read the actual texts, but the folk songs based
on their theme have had huge audiences over the centuries.” Idem, p. 11.
56
“ In allen diesen späteren Arbeiten ist der Einblick in die Intimität orthodoxen Lebens, welchenVuk
Karadžić als orthodoxer Christ dem protestantischen Freund aus Berlin öffnete, nich mehr zy finden.
Symptomatisch ist, daß die Namen der handelnden orthodoxen Persönlichkeiten überhaupt nich mehr
erwänht werden, sonder nur die Amtsbezeichnungen „der Metropolit“, „der Patriarch“. Man hat recht daran
getan, das Jugendwerk später am liebsten wieder in der ursprünglichen Gestalt abzudrucken. Nur wo die
orthodoxe Kirche Serbiens von politischen Umstellungen mitbetrofen wird, wird sie von Ranke nach
behandelt.“ HEYER, op. cit., p. 412.
132
de Deus.”57. No caso do islamismo e do Império Otomano, falar parecia muito mais fácil
do que concretizar esse plano teórico. No texto d’A Revolução Sérvia, a ação dos islâmicos
está constantemente ligada à guerra e a força, o que, para Ranke, seria uma diferença em
relação ao cristianismo ocidental: “A Cristandade busca converter as nações: o Islã busca
conquistar a Terra. A Terra é de Deus e ele a concede a quem desejar.”58
Como um protestante, Ranke ligava a religião cristã a um amadurecimento racional
diretamente ligado ao poder de crítica e livre da autoridade estabelecida, mas para a
realização plena de uma nação, as instâncias políticas e religiosas deveriam ser separadas,
mas que são conectadas pela função social e espiritual da religião sobre as sociedades. 59
Ao comparar as instituições ocidentais e orientais, Ranke passa a sugerir uma escala
comparativa entre as nações que passa pelos quesitos da religião e da liberdade. É uma
empreitada perigosa e cujos argumentos logo serão utilizados como bandeira em
comentários menos sutis, como é o caso do prefácio para a tradução inglesa da segunda
edição. O tradutor aproveita o ensejo do escrito de Ranke e apresenta um texto claramente
hostil aos muçulmanos, estimulando a guerra santa. Ele começa por fundamentar sua
crítica no próprio texto traduzido, negando que se aprofundará nas questões: “The History
of Servia, as traced by Ranke, suggests the consideration of many and great truths, moral
and political; but it is beyond the province of the translator to enter upon their
discussion.”60 Entretanto, o prefácio o faz mesmo assim, apresentando ideias bastante
radicais, chamando a atenção para o fato de que há uma oposição entre governos que se
definem por suas instituições religiosas, nas quais o Ocidente teria a dianteira:
Pode parecer-lhe permitido, no entanto, notar que a subjulgação das
nações cristãs ao infiel não é apenas motivo de arrependimento mas um
assunto que pede atenção e simpatia ativa dos governos ilustrados e
poderos da Cristandade. 61
57
““history recognizes something of infinite in every existence: in every condition, in every being, something
eternal, coming from God.” Ranke, cf. Iggers, op. cit., p. 25.
58
““Das Christenthum sucht die Nationen zu bekehren: der Islam sucht die Erde zu erobern. “Die Erde ist
Gottes und er verleiht sie wem er will.“ Ranke, op. cit, p. 36
59
“Ranke sieht im Falle Serbien einen Prozeß ablaufen, der keineswegs durch den chrislichen Glauben
ausgelöst ist, der gleichwohl seinen Sinn hat und sich so vollenden soll, daß dabei das Christentum in
„gereinigter“ Form nebenher weiterbesteht. Man soll nicht gerade dabei „cie ewige Wahrheit aus den Augen
verlieren.““HEYER, op. cit., p. 421.
60
„It may, however, be permitted her to remark that the subjection of Christian nations to the infidel yoke, is
matter not merely for regret, but a subject that calls for attention and active sympathy of the enlightened and
powerful governments of Christendom” KERR, Alexander. “Introduction”. In: A History of Servia and the
Servian Revolution, from Original Mss. And Documents. London: John Murray, 18481848, p. x.
61
Idem, ibidem.
133
Mas o tom do texto se agrava ainda mais e a ligação entre estado e religião é ainda
mais notável:
Em primeiro lugar, os turcos tem sido invasores da Europa, oprimindo os
povos e empobrecendo países que dominam; e se opondo a liberdade,
ilustração e cristianismo. Se fosse para julgar um governo e uma fé por
seus frutos, deveríamos todos nos unir na esperança de que a religião
maometana e o despotismo obstrutivo do “Porte Sublime” sucumbisse ao
avanço da maré da civilização cristã. 64
62
“And in these days of enlightenment, when missionaries are diffusing the doctrines of Christianity among
the heathen in the remotest parts of the world, and the legislature is organizing a comprehensive educational
scheme for the people at home, it is surely not unreasonable to hope that the condition of a Christian people
so near to us as Servia [sic], will excite the sympathy of their brethren in faith in this free country.” Idem,
ibidem.
63
“The fanaticism of their Moslem rulers is so strongly opposed to every attempt of the Servians [sic] and
Bulgarians to form educational institutions, and even acquire the elements of Christian knowledge, that it is
only by foreign intervention – not the less effectual for being of a peaceful kind – that the means and
opportunity so earnestly desired by the Christian population of these countries can be afforded them.” Idem,
ibidem.
64
“The Turks have been intruders in Europe from the first; grinding down the people, and impoverishing the
countries which they overran; and warning alike against liberty, enlightenment, and Christianity. If were to
judge of a faith and a government by their fruits, we should all unite in hoping that the Mahomedan [sic]
religion and the obstructive despotism of the “Sublime Porte” should yield to the now swiftly-advancing tide
of Christian civilization.” Idem, p. xi.
134
Aqui se pode observar claramente a relação entre a história e seus usos políticos: não é
apenas o que Ranke disse, mas para qual tipo de argumentos ele abriu as portas quando
disse o que disse. Se, por um lado, é verdade que um autor não pode ter pleno controle
sobre sua crítica e o impacto de sua obra, por outro, a dimensão da discussão e sua
assiduidade nos meios de comunicação em geral tornavam possível para Ranke calcular a
recepção do texto e prováveis consequências. E ainda que se cogitasse que a perspectiva
apresentada n’A Revolução Sérvia fosse influência direta de Karadžić, para quem a
desmoralização dos islâmicos era de interesse direto para o fortalecimento da causa sérvia,
os outros textos de Ranke nos quais ele escreveu sozinho apresentam a mesma perspectiva
acerca dos islâmicos. Sobre esta explicação religiosa de Ranke (e realizada por outros
intelectuais alemães) para base de uma definição totalizante dos turcos enquanto cultura
islâmica, Edward Said comenta:
Transferido de uma avaliação social implícita para outra grandiosamente
cultural, esse Orientalismo masculino estático assumiu uma variedade de
formas no final do século XIX, especialmente quando o islã estava em
questão. Historiadores culturais tão respeitados como Leopold von Ranke
e Jacob Burckhardt atacavam o islã como se estivessem lidando menos
com uma abstração antropomórfica do que com uma cultura político-
religiosa, sobre a qual as generalizações profundas eram possíveis e
autorizadas: na sua Weltgeschichte (1881-8), Ranke falava do islã como
miserável, árido e trivial. Essas operações intelectuais eram realizadas
com muito mais perspicácia e entusiasmo por Oswald Spengler, cujas
ideias sobre a personalidade do mago (tipificada no oriental muçulmano)
impregnam Der Untergang des Abendlandes (1918-22) e a “morfologia”
das culturas que advoga.66
65
„Wir wollen nicht tiefer untersuchen, wie dieß mit den Prinzipien der beiden Religionen zusammenhängt,
damit, daß das Chriftenthum seinem innern Wesen nach popularer Natur ist, und im Gegensatz gegen die
heidnischen Staatsgewalten zuerst im Volke Platz griff, während der Islam von Anfang an mit dem Schwert
ausgebreitet wurde, – mit der ursprünglichen, nur zuweilen verdeckten (...)“ Ranke, 1844, p. 36
66
SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, p. 282.
135
Sérvia, uma vez que aqui os turcos não podem ser tratados como mera trivialidade, já que
ocupam o lugar central dos acontecimentos estudados no livro.
Da mesma forma, tal forma de pensamento relaciona-se diretamente com a noção
de um Oriente que serve como o negativo de uma foto do Ocidente, ou seja, opera-se nas
análises do Ocidente com uma constante alteridade pressuposta. Daí nasce uma, ainda que
não necessariamente, uma posição de superioridade do autor ocidental frente ao seu
reverso:
Na medida em que os eruditos ocidentais tinham consciência dos
orientais contemporâneos ou dos movimentos orientais de pensamento e
cultura, esses eram percebidos quer como sombras silenciosas a serem
animadas pelo orientalista, trazidas a ele à realidade, quer como um tipo
de proletariado cultural e intelectual útil para a atividade interpretativa
mais ilustre do orientalista, necessária para o seu desempenho como juiz
superior, homem erudito, vontade cultural poderosa.67
É justamente nos momentos em que Ranke pensa a cultura da qual faz parte em
relação à outra, notadamente quando havia um embate entre ambas no presente, que se
torna visível a tensão entre sua objetividade como pesquisador e suas análises políticas. Por
ser A Revolução Sérvia um livro que se passa majoritariamente na história de Europa
oitocentista, história essa que afetava Ranke e seus contemporâneos, o tempo que separa o
historiador de seu objeto – e que pode o auxiliar em sua abstenção de julgamento – é muito
menor. Logo, a relação entre tempo estudado e tempo vivido torna-se mais imediata e o
impacto do que o historiador escreve é muito mais voltado para a ação e mudança do que
para a erudição ou o alargamento do conhecimento. Há uma pressão inegável para que o
historiador se alinhe de um lado ou outro das forças combatentes.
A concepção de Ranke da história como uma ciência rigorosa é
caracterizada pela tensão entre a demanda explicita pela pesquisa
objetiva, que rejeita todo julgamento de valores e especulações
metafísicas, e os pressupostos filosóficos e políticos que na realidade
determinam sua pesquisa. 68
67
Idem, p. 282.
68
“Ranke’s conception of history as a rigorous science is characterized by a tension between the explicit
demand for objective research, which strictly rejects all value judgment and metaphysical speculations, and
the implicit philosophic and political assumptions that actually determine his research.” Iggers, op. cit, p. 25.
136
justa medida (o que justifica a inclusão da crítica sobre a igreja ortodoxa, por exemplo), o
que é, em última instância, uma noção relativa.
No tópico sobre os povos do Oriente encontramos mais claramente o Ranke como
homem de seu tempo e como integrante de uma ampla comunidade intelectual. O fato de
que Ranke não era um especialista em Oriente pesa no sentido de que a ele é mais
facilmente imputada à superficialidade no tratamento do tema, mas muitos outros autores
que se dedicaram exclusivamente ao tema padeceram do mesmo mal e construíram o
Oriente em molde muito similar ao usado por Ranke:
Os acadêmicos especializados no islã, e que por isto mesmo
desempenharam um papel importante ao darem respectabilidade
intelectual a ideias racistas sobre os muçulmanos, incluindo o inglês
Edward Pockock, o primeiro ocupante da cátedra de árabe em Oxford e
Simon Oakle, o historiador do século XVIII e autor da História dos
Sarracenos. Há também George Searle, um dos primeiros tradutores
ingleses do Corão. O tema dominante de seus trabalho foi o ófio e um
abuso aberto do islã. A primeira cátedra de árabe em Cambridge foi
estabelecida em 1632 e foi ocupada por William Bedwell. Como um
biógrafo de Bedwell notou, ‘O veneno gratuito que Bedwell destila sobre
o islã em cada oportunidade, até em seu dicionário, é espantoso em sua
intensidade. Uma exibição manifesta de sua atitude é vista no título
Imposturas de Maomé na primeira edição e Maomé Desmascarado na
secunda, com o título recorrente, “Uma descoberta de inúmeras farsas,
falsidades e horríveis impiedades do sedutor blasfemo Maomé: com uma
demonstração das insuficiências de sua lei, contida no Alcorão”. 69
69
“The scholars who specialized in Islam, and hence played a major part in giving intellectual respectability
to racist ideas about Muslims, included Englishman Edward Pockock, the fist occupant of the Chair of Arabic
in Oxford and Simon Oakley, the 18th-century historian and author of History of the Saracens. There was also
George Searle, one of the earliest English translators of the Qur’an. The dominant theme of their work was
hatred and open abuse of Islam. The first chair of Arabic at Cambridge was established in 1632 and was
occupied by William Bedwell. As a biographer of Bedwell has noted, ‘The gratuitous venom which Bedwell
expends on Islam at every opportunity, even in his dictionary, is striking in its intensity. A manifest
exhibition of his attitude seen in the title Mahammedis Imposturae in the first edition, and Mohamed
Unmasked in the second, with the recurrent title, “A discovery of the manifold forgeries, falsehood and
horrible impieties of the blasphemous seducer Mohammad: with a demonstration of the insufficiencies of his
law, contained in the Alkoran.” SARDAR; DAVIES, op. cit.
137
para ser enfático, filósofos como Hegel, von Ranke, Ernst Renan e
Oswald Spengler trabalharam arduamente para mostrar que o islã era
totalmente desprovido de pensamento ou conteúdo. Até Karl Marx teve
coisas simplesmente racistas a dizer sobre os muçulmanos. 70
O problema aqui talvez nem seja tanto o fato de Ranke sustentar a hipótese de que a
religião islâmica tenha uma matriz acentuada de violência, o que poderia ser um tema de
trabalho como qualquer outro, mas sim que ele o faz através da comparação com o
cristianismo ocidental, sobre o qual ele se recusa a imputar qualquer tipo de característica
negativa e, ainda mais grave, sem apresentar um conjunto de dados palpáveis e
consistentes que provem que o islamismo é quantitativa e qualitativamente mais violento
do que qualquer outra religião que está aliada com a força de um Estado. Nesse sentido, a
violência islâmica não é operada dentro dos parâmetros de uma hipótese, como um estudo
científico requereria, mas como um dado naturalizado.
Como foi visto, o olhar para o Oriente em Ranke faz parte de um amplo movimento
intelectual de reencanto e defesa que teve espaço em diversos países europeus entre os
séculos XVIII e XX. Dentro desse movimento, vê-se o caso do orientalismo balcânico que
explorou o folclore dos povos eslavos da região no sentido de criar características
identitárias específicas. Se “os mitos sérvios foram primeiramente recebidos e ampliados
no Ocidente durante o período romântico”71, a própria relação entre Ranke e o romantismo
iria além de mera relação intelectual e adentra a própria forma de perceber os processos de
vida, dos quais a história faria intrinsecamente parte:
70
“But such venom was not limited to scholars of Islam. Many of the philosophers, the founders of the
Enlightenment – including Voltaire, Montesquieu, Volney and Pascal – demonstrated the same trait. And, no
to be outdone, philosophers such as Hegel, von Ranke, Ernest Renan and Oswald Spengler worked hard to
show that Islam was totally devoid of thought and learning. Even Karl Marx had despairing and plainly racist
things to say about the Muslims.” Idem, ibidem.
71
ANZULOVIC, op. cit., p. 147.
138
A leitura de Ranke revela que essa ligação com o romantismo foi reforçada e
transpareceu nas obras pelo interesse que o historiador cultivava pela cultura em geral:
literatura, pintura, poesia, canções e tradições populares. Ao contrário do que comumente
se afirma acerca da exclusividade das fontes oficiais na historiografia rankeana, todos esses
outros elementos culturais eram fontes dignas para o trabalho historiográfico, uma vez que
com elas a história tornava-se viva e multifacetada. Além disso, as próprias fontes oficiais,
como relatórios e atas, continham muitas vezes elementos da cultura e das mentalidades,
como será visto mais abaixo. Assim, apesar do predomínio da história da formação dos
estados voltada para as relações políticas internacionais, a cultura gozava do respeito de
Ranke, de seu interesse profundo e de espaço em suas pesquisas historiográficas. No caso
d’A Revolução Sérvia, esse conteúdo vem à tona de forma extraordinária em dois sentidos:
extraordinário porque aparece de forma bastante explicita e abundante – o que não é tão
comum nos outros escritos do historiador – e extraordinária porque sua essência é algumas
vezes o mágico, o fantasioso, a superstição. É a partir da presença desses momentos do
extraordinário fantástico que as considerações sobre alguns aspectos teóricos se iniciarão.
Um dos itens que mais pode surpreender o leitor da primeira edição da Revolução
Sérvia é o desfile de bruxas e vampiros já no capítulo de abertura da obra. É há ainda uma
pergunta mais do que cabível, ou seja, o que estariam fazendo tais personagens no trabalho
de um historiador celebrado por seu enfoque político e racionalidade metodológica. No
entanto, como já fora dito acima, Ranke apresenta uma variedade de interesses muito
maior do que se poderia supor, uma vez que em sua concepção “a história deve ser ao
mesmo tempo uma disciplina científica e fonte de cultura”73
O assunto dos vampiros foi escolhido pela importância que tem para a formação de
um imaginário específico sobre os Bálcãs, lugar dos vampiros por excelência.
Curiosamente, Ranke colaborou para a disseminação deste imaginário, que no século XIX
havia retomado força por conta do interesse romântico pelo tema, principalmente por parte
da intelectualidade alemã que valorizava o recolhimento de folclore e que utilizava os
vampiros como tema de poesia.
72
“Ranke’s different conception is rooted in a different philosophy of life. To a certain extent this was
conditioned by the period. Romanticism is a notion which eludes exact definition, but the word is
indispensable. The reaction against eighteenth century rationalism in an essential part of the Romantic
attitude of mind.” GEYL, Pieter. Debates with Historians. New York: Philosophical Library, 1956, p. 4.
73
Iggers, op. cit., p. 25.
139
Para isso, veja-se primeiramente o que Ranke escreve sobre o assunto. Na primeira
edição, o tópico aparece então no capítulo de abertura, “Lage der Dinge vor den
Bewegungen - Nationale Sinnesweise und Poesie” e depois é transferido para o quarto
capítulo da segunda edição (1844), o qual leva o título Zustände und Sinnesweise der
Serben. Em ambos os capítulos, são descritos os hábitos culturais sérvios (como festas de
casamento, celebração natalina, comemorações religiosas, etc.) que exploram
principalmente a relação do povo com a natureza, com a qual sua religião parece vincular-
se sem conflitos. Para Ranke, tal harmonia entre cultura e natureza na cultura sérvia os
levaria a uma maior proximidade com explicações fantasiosas, dentre as quais as férteis
crenças em vampiros e bruxas74. Enquanto as bruxas também eram caras ao folclore
alemão, os vampiros são seres sobrenaturais “imigrantes”, que, sendo oriundos do leste
europeu, passam para o oeste como uma espécie de praga que se alastra:
No entanto, diferente da Ásia e do Novo Mundo (onde também sempre
houve relatos sobre criaturas sugadoras de sangue), o leste europeu estava
a poucos dias de viagem. Logo, grandes nações europeias como a
Alemanha, a França e principalmente o Reino Unido tomaram
conhecimento de recorrentes relatos sobre vampiros que aconteciam nas
regiões sob administração do Império Áustro-Húngaro. A consequência
foi que, em pleno Século das Luzes, quando a ciência moderna estava
emergindo e a razão era a palavra do dia, a Europa se viu assaltada pelo
chamado “levante vampírico” do leste europeu, disseminando e
popularizado pela emergente imprensa com seus boletins e folhetos.75
Ranke documenta inclusive esse temor crença: “Da der Prinz sich in Stuttgart
aufhielt, so ward die Sache in Deutschland bekannt, und man fürchtete schon, die Vampyrs
würden sich auch dahin verbreiten.”76 Tal ideia populariza-se posteriormente com o enredo
de Drácula (1897), de Bram Stoker, onde o vampiro viaja de navio da Transilvânia
(Romênia) até a Inglaterra.
Sobre os vampiros, Ranke diz na primeira edição:
Acredita-se em Wjeschtizen, bruxas que deixam seus corpos se
aproximam dos que dormem, abrem o lado esquerdo de seu peito com sua
varinha mágica e devoram seu coração. A ferida se fecha e a vítima
continua vva por pouco tempo sem seu coração que fora consumido pela
bruxa. Elas são um perigo especial para as crianças. Os adultos são
ameaçados pelo vampiro, Wukodlak. Um homem mal intencionado que
sai vivo do túmulo, se aproxima dos que dormem de forma imperceptível,
os priva de sua força vital e desaparece. A praga é personificada: figuras
femininas trajando véu branco transmitem a doença de um lugar a outro,
74
Ranke, 1844, p. 62
75
SILVA, Alexandre M. da. “Introdução” In: Contos Clássicos de Vampiro: Byron, Stoker e Outros. São
Paulo, Hedra, 2011, p. 21.
76
Ranke, 1829, p. 33.
140
77
“Man glaubt an Wjeschtizen, Hexen, die ihren Körper zurücklassen; feurig stiegen sie daher, kommen zu
den Schlafenden, öffnen ihm mit dem Zauberstabe die linke Brust, nehmen das Herz heraus und fressen es.
Doch kann der Beschädigte, denn die Brust schließt sich wieder, noch so lange leben, als ihm die Hexe sein
Herz verzehrend zugedacht hat. Vornehmlich Kindern sind diese gefährlich; Erwachsenen droht der Vampyr,
Wukodlak. Ein bösartiger Mensch kann im Grabe lebendig werden, durch die kleinste Veffnung
hervorgehen, und indem er sich dem Schlafenden fast unsichtbar nähert, ihm die Lebenskraft entziehen, so
daß dieser von Stunde an dahin welkt. Größeres Unheil wagt man sich jedoch nicht ganz so zu erklären. Zwar
denkt man sich auch die Pest persönlich: Frauengestalten weißem Schleier tragen die Krankheit von Ort zu
Ort, von Haus zu Hause, und viele Pestkranke verschwören sich hoch und theuer, solche leider gesehen, ja
mit ihnen gesprochen zu haben; diese Frauen selbst sind Pest.“ Idem, p. 32.
78
“In Serbien ist der Glaube an den Vampyr zu Hause. Es läßt sich nicht bezweifeln, daß er mit der in der
griechischen Kirche herkömmlichen Vorstellung von der Unverwes lichkeit, der Leiber der in dem
Kirchenbann Gestorbenen zusammenhängt, die dann von dem bösen Geist eingenommen werden, an
einsamen Ottern erscheinen und Menschen umbringen. In Serbien dachte man jedoch nicht mehr an die
kirchliche Beziehung; auch nicht daran daß der Vampyr selber für ein verbrecherisches Leben Strafe leide,
wie ein Dichter diese Idee ausgebildet hat; sondern nur an die Gefahr die den Lebenden daher drohe. Man
hielt dafür daß der Vampyr bei Nacht aus seinem Grabe hervorgehe, in die Wohnungen der Lebenden dringe,
und hier das Blut aus den Schlafenden sauge mit dem er sich nähre. Baldiger Tod ist hievon die
unausbleibliche Folge, und jeder, der so gestorben, wird wieder zum Vampyr: ganze Dörfer, sagen sie, seyen
darüber zu Grund gegangen: sie drohen ihre Nohnörter zu verlassen wenn man ihnen nicht gestatten will,
sich auf ihre Weise sicher zu stellen. Sie denken aber dabei nicht, wie die Griechen an Absolution: die
Ältesten der Dörfer lassen die Gräber eröffnen; da durchstoßen sie das Herz das noch des Blutes bedarf, mit
einem Pfahl von Weißdorn, verbrennen den Leib zu Asche und werfen sie in den Fluß.“ Ranke, 1844, p. 62.
141
pode-se inferir que boa parte dos relatos folclóricos alcançam Ranke via Karadžić, uma vez
que este se ocupou da publicação das crenças e baladas de seu povo e também dos demais
eslavos79. Entretanto, a nota de referência de Ranke é reveladora, uma vez que ele alega ter
tirado os dados apresentados do relatório oitocentista “Curieuse und sehr wunderbare
Relation von denen sich neuer Dingen in Servien erzeigenden Blut Saugern oder
Vampyrs“, de 1732. 80
Frontispício do relatório de
1732 sobre vampiros citado
por Ranke.
79
“The publication of this book (Little Slavo-Serbian Song Book) represents the first step in a long lasting
struggle that Karadizc conducted in order to affirm the place of Serbian folk culture within the nineteenth-
century European process of the ‘discovery of nations.” From 1834 to 1841 he traveled around various South
Slavic lands – Croatia, Bosnia, Herzergovina, and Montenegro – collecting poems, recording beliefs and
traditions and documenting popular customs. He returned periodically to Serbia, but due to constant
desagreements with the absolutist Prince Miloš Obrenović he never settled there.” TRENCSÉNYI;
KOPEČEK, op. cit., p 113.
80
Ele descreve o trabalho na nota de rodapé como: „(...) eine kleine Schrift die auf zwei amtlichen zur Zeit
der östreichischen Regierung in Serbien nach Belgrad erstatteten Berichten von den Jahren 1725 und 1732
beruht. Der letzte der an Prinz Carl Alexander von Würtemberg damals Gouverneur von Belgrad erstattet
wurde ist sehr ausführlich und mit der Unterschrift eines Oberstlieu ttnants eines Fähndrichs und drei
Feldscheerer bekräftigt.“ Ranke, 1829, p. 23; 1844, p. 63
142
fomentado uma discussão séria acerca do perigo dos vampiros no século XVIII, tendo
destaque dentro da difusão do mito. O acesso de Ranke ao texto pode ter-se dado tanto por
Karadžić quanto pelo acesso aos relatórios escritos que estavam publicados na compilação
de cinco volumes (1821-1828), “Zauber-Bibliothek oder von Zauberei, Theurgie und
Mantik, Zauberern, Hexen, und Hexenprocessen, Dämonen, Gespenstern, und
Geistererscheinungen”. Zur Beförderung einer rein-geschichtlichen, von Aberglauben und
Unglauben freien Beurtheilung dieser Gegenstände, feita por Georg Conrad Horst.
Outra fonte, também de 1732, chamada Visum et Repertum (Nachricht von den
Bluht-Aussaugers, so zu Meduegia in Servien sich, wie berichtet wird, haben antreffen
lassen), escrita por Johann Flückinger, solidifica ainda mais o impacto dos vampiros sobre
a sociedade. Como explica Claude Lecouteux:
Ainda durante o século XIX, os vampiros eram uma preocupação de saúde pública
e levados a sério não apenas pela população como por parte das autoridades:
Abundante na Romênia, o vampire também apareceu na Sérvia. É
importante para leitores do século XX perceber que os vampiros dos
primeiros tempos não eram meros fingimentos fictíciosda imaginação
popular. Acreditava-se que vampiros existissem e em algumas instências
pensava-se ser possível epidemias locais da doença ou outras calamidades
comunitárias. Na Sérvia, no começo do século XIX, a crença no vampiro
era tão arraigada que levou à ações não completamente aprovadas pelas
autoridades governamentais ou Igreja.84
81
O mesmo autor publica a obra Acten-mäßige und Umständliche Relation von denen Vampiren oder
Menschen-Saugern, Welche sich in diesem und vorigen Jahren, im Königreich Servien herfürgethan em
Leipzig no mesmo ano de 1732.
82
LECOUTEUX, op, cit., p. 13
83
Silva, op. cit., p. 22.
84
“Rampant in Romania, the vampire also surfaced in Serbia. It is important for twenty first century readers
to realize that the vampire in earlier times was no mere fictitious fingment of the folk imagination. Vampires
were believed to exist and in some instances were thought to be responsible for local outbreaks of disease or
143
Uma série relatórios publicados durante os séculos XVII, XVIII e XIX fixa o
vampiro no imaginário popular e erudito alemão. A Alemanha parece ser a região com
maior interesse científico no caso dos vampiros, o que é atestado pela quantidade de
relatórios lá publicados. Somente no ano de 1732, são publicados seis tratados médicos
sobre vampirismo87 e deste momento em diante, uma grande quantidade de relatos médicos
other community calamities. In Serbia in early nineteenth century, vampire belief was so entrenched that it
led to actions not altogether approved by either the governing authorities or the Church.” FINE JR., John V.
A. “In Defense of Vampire” In: DUNDES, Alan (ed.). The Vampire: A Casebook. Wisconsin: Wisconsin
University Press, 1998, p. 57.
85
O texto é De Graecorum Hodie Quirundam Opinatibus, escrito por Leo Allatibus em 1645. A Grécia
voltaria a ser palco dos vampiros no poema “A Noiva de Corinto”de Goethe.
86
“Thus, the historical data appear to complement the linguist studies, for the first occurrences of the term
vampire in European languages all refer to the Slavic superstitions; the wide dissemination of the term and its
extensive use in the vernacular follows the outburst of vampirism in Serbia. Paradoxically, although the
superstition of vampirism seems to have developed in Eastern Europe, the word vampire (for which the
Slavic cognate is upir), which is now universally used to describe the phenomenon, seemed to have gained
popularity in the West.” WILSON, Katharina M. „The History of the World Vampire“. In: DUNDES, Alan
(ed.). The Vampire: A Casebook. Wisconsin: Wisconsin University Press, 1998, p. 9.
87
Só em 1832, têm-se: Kurtzes Bedencken Von denen Acten-maeßigen Relationen Wegen derer Vampiren,
Oder Menschen- Und Vieh-Aussaugern, de Gottlob Heinrich Vogt; Philosophischer Versuch, ob nicht die
merckwürdige Begebenheit derer Blutsauger in Nieder-Ungern, A. 1732. geschehen, aus denen pricipiis
naturae, ins besondere aus der sympathia rerum naturalium und denen tribus facultatibus hominis könne
erleutert werden, de Christoph Friedrich Demelius; Besondere Nachrichten, von denen Vampyren oder
sogenannten Blutsaugern, wobei zugleich die Frage: Ob es möglich, daß verstorbene Menschen
wiederkommen, den Lebendigen durch Aussaugung des Bluts den Tod zuwege bringen, und dadurch ganze
Dörffer und Menschen und Vieh ruiniren können?, de Putoneo (Johann Christoph Meinig); Eines
weimarischen Medici muthmassliche Gedancken von denen Vampyren, oder sogenannten Blut-Saugern,
welchen zuletzt das Gutachten der Königl. Preussischen Societät derer Wissenschafften, von gedachten
Vampyren, mit beygefüget ist., de Johann Christian Fritsche; Schreiben eines guten Freundes an einen andern
144
guten Freund, die Vampyren betreffend, de dato 26. Martii 1732, de um autor anônimo; Unverlohrnes Licht
und Recht derer Todten unter den Lebendigen, oder gründlicher Beweis der Erscheinung der Todten unter
den Lebendigen, und was jene vor ein Recht in der obern Welt über diese noch haben können, untersucht in
Ereignung der vorfallenden Vampyren, oder so genannten Blut = Saugern im Königreich Servien und andern
Orten in diesen und vorigen Zeiten, de Otto von Graben zum Stein.
88
Outros textos do século XVIII são: Tractat von dem Kauen und Schmatzen der Todten in Gräbern, Worin
die wahre Beschaffenheit derer Hungarischen Vampyrs und Blut-Sauger gezeigt, Auch alle von dieser
Materie bißher zum Vorschein gekommene Schrifften recensiret werden (1734), de Michael Ranft; Müßiger
Reise Stunden Gedancken Von denen Todten Mensche-Saugern (1735), de Johann Daniel Geyer;
Medicinisches Bedencken von denen Vampyren, oder sogenannten Blutsaugern, ob selbte vorhanden, und
die Krafft haben, denen Menschen das Leben zu rauben? (1739), de Christian Ludwig Charisius, Des
Hochwürdigen Herrn Augustini Calmet […] Gelehrte Verhandlung der Materi, Von Erscheinungen der
Geisteren, Und denen Vampiren in Ungarn, Mahren etc. : Aus deren Anlaß auch darin von Zaubereyen und
Hexereyen, von Besessenen und Bezauberten, von denen alten heydnischen Oraculis, oder Götzen-
Bescheiden, vom Wahrsagen und Offenbaren verborgener oder künfftigen Dingen, von Wirckungen und
Blendungen des Satans, von Erscheinungen so wohl Verstorbener, als auch noch Lebender, die andern weit
entfernten Menschen geschehen seynd etc. gehandlet wird. (1752), de Augustin Calmet; Vampyrismus von
Herrn Baron Gerhard van Swieten verfasset, aus dem Französischen ins Deutsche übersetzet, und als ein
Anhang der Abhandlung des Daseyns der Gespenster beigerücket. (1755), de Gerard van Swieten; Visum
Repertum Anatomico-chirurgicum, oder, gründlicher Bericht von den sogenannten Blutsäugern, Vampier,
oder in der wallachischen Sprache Moroi, in der Wallachey, Siebenbürgen, und Banat: Welchen eine Eigends
dahin Abgeordnete Untersuchungskommission der Löbl. K. K. Administration im Jahre 1756 erstattet hat
(1784), de Georg Tallar.
89
São alguns dos títulos nos século XIX: Die Vampyre – Qualmenschen – Verdammte. In: Volkssagen und
volksthümliche Denkmale der Lausitz (1839), de Heinrich Gottlob Gräve; Die Vampyre in Kassuben. In: Die
Volkssagen von Pommern und Rügen, (1840), de Jodocus Donatus Hubertus Temme; Der Vampyr in den
Pariser Friedhöfen. Ein höchst interessanter Criminalfall der neuesten Zeit; zunächst für Psychologen und
Aerzte. Aus dem Französischen der Gazette des Tribunaux, Verlag Scheible, Stuttgart (1849), de Johann
Scheible; Wärwölfe, Vampire und Unterirdische. In: Deutsches Sagenbuch. (1853), de Ludwig Bechstein;
Die Vampyre. In: Zeitschrift für deutsche Mythologie und Sittenkunde. (1859), de Ignaz Johann Hanus;
Über Vampyrismus. In: Zeitschrift für deutsche Mythologie und Sittenkunde. (1859), de Wilhelm
Mannhardt; Der Vampyrschrecken im neunzehnten Jahrhundert. In: Die Gartenlaube (1873), de Carus
Sterne.; Noch einmal der Vampyr-Schrecken. In: Die Gartenlaube (1873), de Dr. Petermann.
145
90
Idem, p. 5-6.
91
“With the publication of this short poem, “Der Vampir” (The Vampire), Ossenfelder barely escaped
complete obscurity and he is now recognized as the first known poet to have adapted the vampire from
folklore for creative literature. What is unique and important about Mylius’ scientific publication in 1748 is
that it effectively marks the introduction of the vampire into literature through scientific inquire and
investigation by way of popular media.” CRAWFORD, Heide. ““But why do they have fangs?” The Cultural
History of the Vampire as a Teaching Strategy in the Literature Classroom”. In: NEVÁREZ, Lisa A. (ed.)
The Vampire Goes to College. Essays on Teaching with the Undead. North Carolina: McFarland &Co.,
2014, p. 24.
92
Gottfried August Bürger (1747- 1794) foi um poeta alemão ligado do movimento Sturm und Drang. Suas
composições mais famosas são as Baladas e As Aventuras do Barão de Münchhausen.
146
Mortos”, de Ludwig Tieck (c. 1800). É com Goethe que aconteceria a cisão entre folclore e
literatura: “A partir desse ponto, cria-se o fosso entre a imagem do vampiro folclórico,
traduzida de um cadáver ambulante, vestido em farrapos, e a representação do vampiro
literário, um ser sedutor, sociável e de sexualidade inquieta.”93 Katharina Wilson defende,
no entanto, que a difusão do tema para o grande público não se dá por via de um autor
alemão e sim pela tradução do inglês do conto de Polidori.94 Assim, a transformação do
vampiro tradicional eslavo no vampiro sedutor se daria com a literatura inglesa e o
romance de vampiro (Vampirroman), um nicho do romance que tinha como objeto os
sugadores de sangue e que teria logrado, em colaboração com os relatórios médicos, o
aumento da difusão do mito justamente por “fascinar a todos com sua sedução e
exotismo”95, fazendo com que olhos ávidos pelo extravagante se voltassem para o leste
europeu:
Polidori e Byron transformaram o vampiro morto-vivo camponês bruto,
primitivo e sem gênero do sul da Europa oriental em vilões
distintivamente masculinos, elegantes e de classe alta da novela gótica
tradicional. Eles são retratados como personalidades complexas, na qual a
melancolia, crueldade e desejo de poder forma uma mistura potente e
perigosa. 96
93
Silva, p, 25
94
WILSON, p. 6.
95
SILVA, p. 27.
96
“Polidori e Byron transformed the brutish, primitive, and ungendered peasant undead of South Eastern
European vampire folklore into elegant, upper-class, and distinctly masculine villains in the traditional
Gothic novel. They are portrayed as complex personalities, in which melancholy, cruelty, and lust for power
form a potent and dangerous mixture.” BARKHOFF, Jürgen. “Female Vampires, Victimhood, and
Vengeance” In: FRONIUS, Helena; LINTON, Anna (ed.). Women and Death. Representations of Female
Victims and Perpetrators in German culture. 1500-2000. New York: Camden House, 2008, p. 130. Sir
Walter Scott, autor importante dentro da biografia intelectual de Ranke por suas obras o terem introduzido ao
romance histórico e consequentemente aos temas históricos, também se envolveu com uma obra sobre o
sobrenatural, transcrevendo a “História da Demonologia e da Feitiçaria”.
147
Vampir und die Camarilla” (1826)97, August Schnezler escreve “Waldmärchen” (1833)98,
Johann Peter Lyser traz “Das Lied vom Vampyr” (1838)99, Heinrich Heine publica “Die
Beschwörung” (1844) e “Helena” (1852)100, Siegfried Kapper compõe “Ein Vampir”
(1844)101, Friedrich Schimper publica “Weihegesang der Vampire neben Tantalus”
(1847)102, Rudolf Gottschall escreve “Zwei Blumen” (1849)103, Adolf Friedrich von Schack
104
produz “Deine Blassen, Blassen Wangen” e “Dolores” (1883) . Na prosa, têm-se, por
exemplo, um envolvimento de E. T. A. Hoffmann os contos “Die Serapionsbrüder” (1819-
1821)105.
97
Friedrich August von Heyden (1789-1851) foi um escritor e político alemão. Produziu poesias, dramas,
líricas, novelas e épicas, dando preferência, como vários outros românticos, aos temas da Idade Média.
98
Ferdinand Alexander August Schnezler (1809-1853) foi poeta, redator e editor de contos. Alcançou fama
com a edição da coletânea “Badisches Sagen-Buch” (1846)
99
Johann Peter Lyser, cujo nome real era Ludewig Peter August Burmeister (1804-1870), foi um escritor e
pintor alemão amigo de Heine e de Clara Schumann. Suas ilustrações foram utilizadas em livros infantis,
tendo também realizado um dos retratos mais famosos de Beethoven.
100
Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856) é uma das maiores expressões da literatura alemã.
Conhecido como “o último dos românticos”, como poeta, fez a sua estreia com "Gedichte" (Poemas) em
1821 e publica sua primeira grande coletânea, “Buch der Lieder”, em 1827. Em 1831 troca a Alemanha por
Paris, mas continua a escrever sobre a situação política de sua terra natal. .
101
Siegfried Kapper (Isaac Salomon Kapper) (1820- 1879) foi um escritor, tradutor e médico tcheco-
germânico de origem judia. Como autor, interessou-se pela literatura tcheca, mas a partir de 1848 só escreveu
em alemão. Seu trabalho principal é “České listy“, uma coletânea de poemas tchecos judeus.
102
Karl Friedrich Schimper (1803- 1867) foi um naturalista, botânico, geólogo e professor alemão famoso
pela criação da teoria das eras glaciais. Produziu também uma série de poemas reunidos em “Gedichte: 1840
– 1846”.
103
Rudolf Karl von Gottschall (1823- 1909) foi um escritor alemão de dramaturgia, épica e contos, assim
como de historiador da literatura e crítico literário. Foi redator da Ostdeutschen Zeitung e, entre 1864 e
1888, das revistas Blätter für literarische Unterhaltung e Unsere Zeit. Pelas suas contribuições para a
literatura, foi nobilitado pelo Kaiser Wilhelm I em 1877.
104
Conde Adolf Friedrich von Schack (1815-1894) foi um poeta e historiador da literatura alemão. Após
serviços para o estado prussiano e de Oldemburgo, renuncia ao cargo e faz uma série de viagens que incluem
Itália, Egito e Espanha. Estudou a história dos mouros na Espanha e, ao regressar à Alemanha em 1855,
torna-se membro da Academia de Ciências da Baviera, fundando também a Pinacoteca de Munique.
105
Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822) foi um escritor alemão romântico que também atuou
como jurista, compositor, crítico de música desenhista e caricaturista.
148
106
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Deutsches Wörterbuch. Disponível em
http://woerterbuchnetz.de/DWB. Acessado em 03/01/2014.
107
SILVA, 27.
149
estranheza hipnótica e perigo, características essas que não se restringiam aos “mortos-
vivos” mas que também eram conferidas aos orientais em geral, como visto acima no caso
do orientalismo mais abrangente.
Seria possível conjecturar se a presença de tais elementos fantásticos na primeira
edição, mesmo que partindo de uma apresentação racional, fora mera influencia do circulo
de Viena (e do estreito contato deste com figuras de proa do romantismo alemão). Todavia,
o fato de que os vampiros de Ranke tenham sobrevivido na segunda edição (1844) pode
testemunhar algo a favor do interesse sincero do historiador, ainda que parte dessa
manutenção possa ter sido por respeito à coautoria de Karadžić. Por outro lado, existiam
certas expectativas do público quando uma obra se tratava de uma obra de história do povo
sérvio, uma vez que a ideia de “terra dos vampiros” encontrava-se em processo de ampla
difusão.
As fontes de tal “vampiromania” eram tanto relatórios, investigações teológicas e
tratados médicos como também o romance de vampiro. Trabalhando em conjunto, a
difusão desse material colaborou para a construção da ideia dos Bálcãs como a terra do
fantástico e do misterioso, como um lugar no qual as fronteiras entre esse mundo e o além
eram mais tênues do que em outras partes do globo108. Ou como consta belamente em
Drácula: “ I read that every know superstition in the world is gathered into the horseshoe of
the Carpathians, as IF it were the centre of some sort of imaginative whirlpool.”109 E tal
fixação no imaginário europeu fez com que fosse quase inevitável falar sobre essa região,
principalmente em temas que tocavam história e cultura, sem passar pelos famosos
vampiros:
As criaturas sobrenaturais do leste europeu começaram a chamar a
atenção dos países da Europa Ocidental a partir do tratado de Passarowitz
de 1718, no qual se estipulava que metade da Sérvia e partes da Bósnia e
da Valáquia (hoje parte da Romênia) deixariam de ser dominadas pelo
Império Otomano e passariam ao controle da Áustria. Esta nova
configuração política abriu as portas de uma região próxima, mas ao
mesmo tempo tão pouco conhecida pelo público ocidental, situação esta
que continuou até o fim do século XIX, como atestam as linhas iniciais
de Drácula, publicado em 1897.110
108
A crença do vampiro, entretanto, está presente em quase todas as culturas europeias. A imagem clássica
do vampiro que irá se solidificar como algo eslavo principalmente com Drácula e com os relatos antecedentes
de inúmeros casos de vampirismo nos Bálcãs.
109
STOKER, Bram. The New Annotated Dracula. Edited by Leslie Klinger. New York: Norton & Co.,
2008, p. 16
110
SILVA, Alexander M. da. “Introdução”, In: Contos de Vampiro, p. 19
150
A região da Sérvia era especialmente rica em pontos de contatos dos mais diversos
tipos:
A região havia sido recentemente incorada ao Império Habsburgo e
portanto se tornado um ponto de contato entre culturas, uma fronteira
entre a Igreja Ortodoxa Grefa e o Catolicismo Romano, Europa Central e
Bálcãs, a civilização ilustrada e uma outra supersticiosa. O debate
acirrado que seguiu essas mortes epidêmicas atribuídas a vampiros, o
debate sobre sua natureza como demoníaca, um fenômeno natural ou
imaginado, revelaram a enorme relevância da cultura de fronteira que o
vampiro habitava. 113
E ainda mais, pois como Ranke nota na passagem da edição de 1844, há uma
sobrevivência do vampiro mesmo a despeito da cristianização dos povos eslavos,
resultando em sobreposição dos elementos cristãos (ortodoxo e católico) e folclóricos, ou
seja, “ainda que o cristianismo tenha vencido a disputa pelo poder religioso, o vampiro
111
HEINE, Heinrich. Heine, hein? Poeta dos Contrários. Introdução e tradução de André Valias. São
Paulo: Perspectiva: Goethe Institut, 2009, p. 258-59. No original, essa estrofe final é: “Ihr Blick ist traurig.
Aus kalter Brust/ Die schmerzlichen Seufzer steigen./Die Todte setzt sich zu dem Mönch,/ Sie schauen sich
an - und schweigen.“
112
“Goethe makes full use of the ambivalent potential of the vampire, who, inhabiting the liminal space
between life and death, is the quintessential threshold figure. It is most telling that Goethe’s ballad is
historical and geographically located in a liminal zone between antiquity and the early medieval world, in
which attitudes toward religion, toward the supernatural and the natural, and, most importantly for Goethe’s
ballad, toward the body were redefined.” BARKHOFF, p. 131.
113
“The region had recently been incorporated into the Habsburg Empire and thus became a point of contact
between cultures, a frontier between the Greek Orthodox Church and Roman Catholicism, Central Europe
and the Balkans, the enlightened civilization and its superstitious other. The heated debate that followed these
epidemic deaths attributed to vampires, a debate about their nature as a demonic, a natural, or an imagined
phenomenon, reveled the enormous relevance of the culture borderline that the vampire inhabited.” Idem,
ibidem.
151
116
SALIBA, Elias Thomé. As Utopias Românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 42.
117
Idem, ibidem.
118
“But no less essentially part of Romanticism was the breaking away from the generalizations or the
abstractions constructed by the reasoning faculty and the desire to open the mind to reality in its manifold
manifestations and appearance. It is in this latter aspect that the Romantic movement has become so
exceedingly stimulating to scholarship, nowhere more than in Germany. The awareness of the individual, of
the characteristic, in communities as well as in human beings, was quickened. The study of law and
language, the whole way of viewing mankind and the world, was renovated. The conceptions of an organic
cohesion and of continuity had entered the mind of that generation, and the past thus required a reality of its
own, irreplaceable and equal to the present in value.” Geyl, op. cit. p.4.
153
Ranke estava do lado dos que não buscavam dissecar o mito, parte porque esse não
era seu objetivo principal na obra e principalmente porque sua inspiração era a de
apreender as formas de pensar e viver desse povo que ele havia se proposto a apresentar a
um conjunto de leitores. É verdade que, ao final, Ranke aposta em uma explicação
antropológica racionalista para a disseminação da crença nos vampiros e seres afins,
reafirmando tratarem-se elementos fantasiosos.120 No entanto, ele não os descarta por sua
natureza imaginativa. Muito pelo contrário, a compreensão do mito acaba por ser um
movimento histórico por natureza, daí porque um tema caro ao romantismo parece, neste
ponto, entrelaçar-se com uma abordagem análoga ao que era proposto pelos novos passos
da historiografia alemã do momento:
E a atração das narrativas reside em grande parte nas zonas de sombra
que elas deixaram. Para demonstrar o mito, isto é, para reencontrar as
peças e os fragmentos tão bem organizados, precisamos empreender um
mergulho nos tempos antigos e aprender a conhecer as crenças de nossos
antepassados distantes para os quais os fantasmas foram uma realidade
múltipla.121
Para a geração alemã dos séculos XVIII e XIX, o reforço da tradição popular era
um ato de resistência e reafirmação da nacionalidade frente às influências estrangeiras – no
caso da Alemanha seria a resistência à França e no caso sérvio aos turcos: “A valorização
119
Lecounteux, op. cit., p. 15.
120
„In dem gefahrlosen Gange eines mit der Natur enge verbundenen Lebens giebt nichts der
Aufmerksamkeit mehr zu schaffen als plötzliche Todesfälle die rasch nach einander eintreten und die
Phantasie ist geschäftig sie durch Einwirkungen von jenseit des Grabes her zu erklären.“ Ranke, 1829, p. 32 e
1844, p. 63
121
Lecounteux, op. cit., p. 35.
154
dos contos, da poesia, das lendas nacionais e de tudo mais que evoca o retorno às fontes de
um passado pleno de força e virtude exorta os alemães a reconhecer em sua própria origem
os traços de uma essência perdida.”122
Os vampiros são um elemento importante da caracterização do povo sérvio e toca
em outra questão diretamente ligada ao romantismo, isto é, a definição do outro que é, no
caso, o “oriental”. Nesse sentido, os vampiros, bruxas e superstições eram fundamentais
para Ranke e para toda uma geração que buscava definir diferenças e especificidades entre
os povos. Ao mesmo tempo em que essa definição foi fruto de uma profícua produção
literária, ela também indicou um processo de alteridade, uma vez que os vampiros foram
progressivamente definidos como algo específico dos Bálcãs, que esbarrava tensão entre
razão e fantasia, implicando muitas vezes na dissecação do mito.
De acordo com o que foi apresentado até o momento, o orientalismo, do qual Ranke
dá mostra, é visto tanto em versões literárias quanto políticas, cada qual com uma leitura
bastante específica do que significa o Oriente para os europeus do século XIX. Um
exemplo é o celebrado Drácula, onde Bram Stoker dá inúmeros exemplos de orientalismo,
no qual o Ocidente se personifica na figura de deslumbrado Jonathan Harker quando este
se põe rumo ao Oriente: “A impressão que tive era que eu estava deixando o Ocidente e
entrando no Oriente; as mais explendidas pontes sobre o Danúbio, que é aqui de nobre
largura e profundidade, nos levaram entre as tradições do domínio turco”123, ao que segue a
descrição de sua chegada à morada do conde como sendo “em meios as montanhas dos
Cárpatos; uma das mais selvagens e menos conhecidas porções da Europa.”124 O escritor
irlandês imortalizava de forma talentosa toda uma ideia ocidental acerca dos Bálcãs e
também sobre os povos não ocidentais em geral, construída pelo menos desde a
Antiguidade e que tomou feições peculiares durante o século XIX. A indomabilidade da
122
MOURA, Caio. “O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da
autoimagem do sujeito moderno”. In: Filosofia Unisinos, 10 (2), Mai-Ago 2009, p. 162.
123
“The impression I had was that we were leaving the West and entering the East; the most Western of
splendid bridges over the Danube, which is here of noble width and depth, took us among the traditions
Turkish rule.” STOKER, op. cit., p. 9.
124
“in the midst of the Carpathian mountains; one of the wildest and least known portions of Europe.”
STOKER, op. cit., p. 16.
155
125
“The fact that the term “barbarian” has a longer history than the term “civilization” leads to an intriguing
realization: in the age-old dichotomy within which the barbarian is implicated since its inception, the
“barbarian” is the stable term, while its positive opposite changes (Greek, Roman, Christian, European, and
the like, until the term “civilization” is coined). This suggests that a stable category for the absolute other is
even more essential for the discourse of the self than a stable positive category of self domination.”
BOLETSI, Maria. “It’s All Greek to Me: The Barbarian in History”. In: Barbarism and its Discontents.
California: Stanford University Press, 2013, p. 65.
126
““Hierdurch geriethen sie wohl sämmtlich in unlängbare Barbarei, jedoch nicht alle in dieselbe
Knechtschaft. Ihre Zustände haben sich im Laufe der Zeit verschieden entwickeln“126 e “Ihr Ursprung ist
immer eine unglückselige Anlage der menschlichen Natur; Rachgier zugleich und Habsuchts das rechte
Zeichen der Barbarei.“126, „Immer bleibt es wahr, daß die türkische Herrfchaft viele Vortheile nicht gewährt,
welche wir der Gefellschaft verdanken; daß durch die Erhebung eines Theils der Bevölkerung über die
andere die Barbarei befördert.“126, Von den Einrichtungen des osmanischen Reiches hatten dagegen die
welche das Gepräge der Barbarei am stärksten tragen Harem und Brudermord, eben den Erfolg,
Verwirrungen dieser Art zu verhindern.“126 e "Ihre Meinung (Milosch) war, daß in einem noch immer mit
Barbarei erfüllten Lande wie diesem, eine starke und strenge Gewalt unumgänglich erfordert werde.“
RANKE, 1844, p. 358.
156
127
“At the time of its inception on ancient Greece, the term “barbarian” was the exact opposite of “Greek”: it
was applied to foreigners who did not speak Greek and whose language was therefore incomprehensible,
sounding like “bar bar”.” (BOLETSI, Maria. “It’s All Greek to Me: The Barbarian in History”. In:
Barbarism and its Discontents. California: Stanford University Press, 2013, p. 57.)
128
“The historical travels of the barbarian reveal the various perspectives within European space (and
probably even more perspectives outside European space) for which barbarism has been defined. From a
different viewpoint each time, barbarians are the non-Greeks and the Greeks, the Christian and the non-
Christians, heathens and Muslims, the Romans, the Germanic nations, the inhabitant of the Orient, the
colonized peoples of the Americas, Africa and Asia, the European colonizers, the Jews, the Nazis, Romany,
members of the working class, terrorists, neo-imperialists, and many others. Practically every group in
Western history has been tagged as “barbarian” by another group.” Boletsi, op. cit, p. 58.
129
Moura, o. cit. p. 161.
157
de um povo e demarca, por assim dizer, um espaço de autonomia diante da esfera dos
negócios políticos.”130 Sobre o significado histórico do conceito de Kultur na Alemanha,
Norbert Elias expõe:
Que o termo “cultura” referiu-se outrora a um processo de cultivação, à
transformação da natureza por seres humanos, isso está hoje quase
esquecido – na Alemanha como em qualquer outro lugar. Mesmo quando
foi gradualmente adotado pelas elites da classe média do século XVIII em
ascensão, como uma expressão de autoimagem e de seus ideais, o termo
representou a imagem que se faziam de si mesmos, tal como a viam, ou
seja, dentre do contexto mais amplo do desenvolvimento da humanidade.
A visão desse desenvolvimento da intelligentsia da classe média alemã
era muito semelhante à francesa ou britânica. De fato, os escritos de
historiadores escoceses como William Robertson e de Voltaire e seu
círculo na França tiveram uma influência formativa nas ideias da
nascente intelligentsia alemã.131
A história cultural seria fruto dessa ascensão social e a oposição entre esta a história
política é bastante interessante quando pensada no caso de Ranke. Ainda com Elias:
Foi decisivo para a posição e autoimagem das elites da classe média
alemã que a tradição da história escrita mais claramente oposta à “história
política” ficasse conhecida como “história cultural” (Kulturgeschichte).
Focalizou aquelas áreas da vida social dos seres humanos que dotaram as
classes médias alemãs politicamente excluídas como a principal base para
a sua autolegitimação e para a justificação de seu orgulho – áreas tais
como religião, ciência, arquitetura, filosofia e poesia, assim como o
progresso da moralidade humana, tal como pode ser observado nos
costumes e na conduta das pessoas comuns. De acordo com a situação
especial das classes médias alemãs, a linha divisória entre “cultura” e
“política” e suas implicações antagônicas da história escrita como
“história da cultura” ou como “história política”, nas acepções que lhes
foram atribuídas nos séculos XVIII e XIX, eram particularmente
pronunciadas; talvez mais pronunciadas do que entre “civilização” e
“política” na Grã-Bretanha e na França. 132
A mesma mudança social que permitiu a ascensão dos “mandarins alemães”, para
utilizar novamente a expressão de Fritz Ringer, influirá inclusive nas formas de escrita da
história, do qual Ranke faz parte.
Pode-se dizer que no significado do termo alemão “Kultur” estava
embutida uma predisposição não-política, e talvez mesmo antipolítica,
sintomática do frequente sentimento entre as elites de classe média alemã
do que a política e os assuntos do Estado representavam a área de sua
humilhação e da falta de liberdade, ao passo que a cultura representava a
esfera de posição antipolítica do conceito de “cultura” nutrida pela classe
média dirigia-se contra a política de príncipes autocráticos. Tinha por
130
Moura, op. cit., p. 165.
131
ELIAS, Norbert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 120.
132
Idem, p. 121.
158
Ranke apareceria, mediante a análise de Elias, como certo intermediário entre essa
oposição entre a história cultural da classe média (à qual ele pertencia) e a história política
da corte (à qual ele deveria estar em bons termos em função de seu cargo de professor e
pesquisador), pensando ao mesmo tempo uma política cultural e uma cultura política. N’A
Revolução Sérvia, esses dois elementos aparecem claramente e deixam transparecer que a
compreensão político-diplomática de Ranke é perpassada por um elemento cultural
estrutural, expresso de forma bastante aberta no texto d’Os Grandes Poderes, como ele
mostra ao falar sobre a supremacia francesa na Europa.134
Em meio a um longo e profundo processo de diferenciação entre o europeu e o
“outro”, o elemento cultural é um ponto de comunhão entre o pensamento de Ranke e do
Círculo Eslavo de Viena, o que possibilitou o trabalho que esses desenvolveram juntos e a
visão comum da importância da cultura para a formação nacional possibilitou que um
historiador, Ranke, conhecido por sua postura política conservadora e pela sua rejeição aos
valores revolucionários que cultivava especial antipatia pela Revolução Francesa,
“argumentando que qualquer desafio para estabelecer instituições políticas e sociais por
meios revolucionários ou reformas extensicas constituem uma violação do espírito
histórico”135, admitisse que a revolução sérvia fosse um processo historicamente válido,
daí porque o título da obra aqui apresentada ostenta a palavra revolução em seu título.
133
Idem, p. 122
134
“Mit Einem Schlage dazu erweckt, von seiner Gründlichkeit und Reife unterstützt, entwickelte dann der
Geist der Nation selbstständig und frei versuchend eine poetische Literatur durch die er eine umfassende,
neue, obwohl noch in manchem innern Conflict begriffene, doch im Ganzen übereinstimmende Weltansicht
ausbildete und sich selber gegenüber stellte. Diese Literatur dann die unschätzbare Eigenschaft, daß sie nicht
mehr auf Theil der Nation beschrankt blieb, sondern sie ganz umfaßte ihrer Einheit zuerst wieder eigentlich
bewußt machte. Wenn nicht immer neue Generationen großer Poeten auf die alten folgen, so darf man sich
nicht so sehr darüber wundern. Die großen Versuche sind gemacht und gelungen; es ist im Grunde gesagt.
was man zu sagen hatte, und der wahre Geist verschmäht es auf befahrenen, bequemen Wegen
einherzuschreiten.“ Idem, p. 32.
135
“arguing that any challenge to the established political and social institutions by revolutionary means or
extensive reforms constituted a violation of the historical spirit” Iggers, op. cit., p. 26.
159
Dentre essas afinidades entre o panorama germânico e eslavo, havia a noção de que cabia à
literatura um papel fundamental na formação nacional e a tendência expansionista uma vez
que essa nacionalidade estava desenvolvida e havia alcançado o cenário das nações
europeias.
O investimento dos intelectuais eslavos do século XIX na literatura nacional (e
nacionalista) é intenso por ver na questão cultural uma ferramenta poderosa para a luta de
independência dos otomanos:
A busca por costumes populares e sua codificação em cultura nacional foi
inicialmente colocada em movimento pela tentativa de Karadžić de
confirmar o valor e a riqueza da língua vernacular contra o idioma
dominante “artificial” slavo-sérvio (slavonoserbski) cultivado por
igrejas e mercadores. Nos tempos de Karadžić, quando a Sérvia estava
lutando por emancipação do Império Otomano, versos que
evocavam a herança nacional sérvia, especialmente de heróis
históricos e lendários, representou uma fundação literária para
definir fronteiras linguístico-culturais e políticas. Neste sentido,
enquanto seu trabalho era fundamentado na escola filológica eslava
eslavônica de Kopitar, Karadžić foi além do projeto iluminista de
Kopitar de emancipação cultural eslava corroborada pelo
patriotismo supranacional. Ao invés, ele se voltou para o uso de
referências etnográficas para definir e legitimar uma entidade
política baseada em marcadores etno-culturais. 136
Há, portanto, uma identificação mútua entre os contextos alemão e sérvio que serve
como uma ponte de superação parcial do orientalismo de Ranke, ponte essa utilizada pelos
intelectuais sérvios para projetar suas ideias para o Ocidente e de Ranke para conhecer
mais a fundo a questão oriental. A proximidade entre a situação política alemã e sérvia
aqui é nítida, já que também a Alemanha tentava se desvencilhar da influencia francesa
sobre sua cultura e criar uma unidade nacional através do reavivamento da importância de
sua cultura popular e literatura nacional escrita em língua vernacular nacional.137
136
“The search for folk customs and their codification into national culture was initially set in motion by
Karadžić attempt to confirm the value and richness of the vernacular language against the dominate
“artificial” Slavo-Serbian (slavonoserbski) idiom cultivated by the church and the merchants. In Karadžić’s
times, when Serbia was fighting for emancipation from the Ottoman Empire, verses that evoked the Serbian
national heritage, especially in historical and legendary heroes, represented a literal foundation for defining
linguistic/cultural and later also political boundaries. In this sense, while his work was rooted in the Slavic
Slavonic philological school of Kopitar, Karadžić moved beyond Kopitar’s Enlightenment project of Slavic
cultural emancipation interwied with supra-national patriotism. Instead, he turned to the use of ethografical
references to devise and legitimize a political entity based on ethno-cultural markers.” TRENCSÉNYI,
Balázs; KOPEČEK, Michal. Discourses of Collective Identity in Central and Southeast Europe (1770-
1945). Texts and Commentaries. Volume Two: National Romanticism – The Formation of National
Movements. Hungary: Central European University Press, 2007, 113.
137
“O próprio Ranke defende esse ponto: “Doch ist das Werk des deutschen Genius noch lange nicht
vollendet, die positive Wissenschaft zu durchdringen, zu regeneriren ist er mit Anstrengung beschäftigt.
160
Allerdings hat er hier mit manchem Hinderniß zu kämpfen das ihm aus dem Gange seiner eigenen Bildung,
oder seinen alten Gegensätzen entsprungen ist, doch dürfen wir hoffen, daß er durchaus zu seinem eigenen
Verständniß gelangen und alsdann zu unabläßig neuer Hervorbringung fähig seyn werde. Jedoch ich halte
inne, denn von der Politik wollte ich reden. Obschon diese Dinge auf das genaueste zusammen gehören, und
die wahre Politik nur von einem großen nationalen Daseyn getragen werden kann. So viel ist wohl gewiß,
daß zu dem Selbstgefühl, von welchem dieser Schwung der Geister begleitet war, keine andere Erscheinung
so viel beigetragen hat, wie das Leben und der Ruhm Friedrichs II. Es gehört dazu, daß eine Ration sich
selbstständig fühle, wenn sie sich frei entwickeln soll: und nie hat eine Literatur geblüht ohne durch die
großen Momente der Historie vorbereitet gewesen zu seyn. Aber seltsam war es daß Friedrich selbst davon
nichts wußte, kaum etwas ahnete. Er arbeitete an der Befreiung der Nation; die deutsche Literatur mit ihm;
doch kannte er seine Verbündeten nicht. Sie kannten ihn wohl. Es machte die Deutschen stolz und Kuhn, daß
ein Held aus ihnen hervorgegangen war.“ Ranke, 1833, p. 32.
138
Caio Moura traz outros elementos, a partir de um estudo das obras completas de Friedrich II, que rebatem
o argumento de Ranke: “Em uma carta a dirigida a Voltaire, Frederico II, príncipe da Prússia, afirma não
falar alemão senão para repreender seus servos e dar ordens às suas tropas. “Não se aprende essa língua”,
escreve o príncipe. Senão para fazer guerra”. Dirigindo-se uma vez mais ao seu mais ilustre interlocutor,
Frederico é ainda mais sarcástico: “eis o que eu disse aos cavalos que terão a honra de vos conduzir”,
referindo-se ao poema dedicado ao filósofo com o qual abrira a carta, para então completar,” dizem que a
língua alemã é feita para falar com os animais; e, na qualidade de poeta dessa língua, julguei que minha musa
estivesse mais capacitada a inspirar os seus cavalos do que vos enviar os seus sons”. Para além do desprezo
perante o alemão, “língua verborrágica”, segundo o príncipe, suas cartas não se cansam de enaltecer o francês
como uma “língua dos deuses”, dotada de “elegância e fineza”. “Nenhum homem que não seja nascido na
França, ou habituado desde muito tempo a Paris”, enfatiza Frederico, “poderá possuir em sua língua o grau
de perfeição tão necessário para fazer bons versos ou elegante prosa.” (MOURA, Caio. “O advento dos
conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da autoimagem do sujeito moderno”.
In: Filosofia Unisinos, 10 (2), Mai-Ago 2009, p. 159).
139
TRENCSÉNYI; KOPEČEK, op. cit., p. 112.
161
ideia se concretizou, uma vez que a publicação dos títulos de Karadžić “caused a sensation
in European intellectual circles and were translated into several languages.”140 Dentro da
própria sérvia, no entanto, projetos nacionais diferentes disputavam espaço e Karadžić
logrou muito mais sucesso fora de sua terra natal do que com a cúpula da Sérvia autônoma:
(…) depois de falhar em estabelecer boas relações com o príncipe Milos
Obrenovic, o primeiro governante do Principado Sérvio autônomo, que
baniu a publicação dos escritos de Karadžić na Sérvia na década de 1820,
Karadžić foi para a Alemanha. Lá ele introduziu Johann Wolfganf Goethe
e Jakob Grimm às canções populares eslavas e colaborou com o
historiador Leopold von Ranke em sua Die Serbische Revolution, através
da qual o públivo europeu tornou-se familiar com a história sérvia. 141
140
Idem, ibidem.
141
“(…) after failing to establish good relations with prince Milos Obrenovic, the first ruler of the
autonomous Serbian Principality, who banned the publication of Karadžić’s writings in Serbia in the 1820s,
Karadžić went to Germany. There he introduced South-Slavic folk songs to Johann Wolfgang Goethe and
Jakob Grimm and collaborated with the German historian Leopold von Ranke on his Die Serbische
Revolution, by means of which the European public became acquainted with Serbian history.” Idem, ibidem.
142
““[the political process of nation-building] was largely based on discovering and codifying the ‘spirit of
the nation’ that Karadžić called, influenced by his German-oriented education and inspiration,
“Nationalism”” TRENCSÉNYI; KOPEČEK, op. cit., p. 114.
143
““In authentic Christian thought the Church, that is, the community of believers, constitutes the mystical
body of Christ. The identification of the church with the nation favors instead the concept of nation as
mystical body.” ANZULOVIC, op. cit., p. 23.
144
O poema é composto na cidade sérvia de Centije, mas publicado em um monastério armênio em Viena.
162
um exemplo de como a literatura, religião e política nos Bálcãs podem ser apropriadas de
forma a servirem a uma determinada agenda política. Njegoš e sua empreitada poética
ocupam o palco central na fábrica de fazer mitos do sul eslavo.”145
Fotografia de Petar II
Petrović-Njegoš, tirada por
Anastas Jovanović, 1851.
Aqui não cabe entrar nas interpretações acerca de todos os papeis políticos dessa
obra, que são, aliás, inúmeras, mas apenas apontar para a comunhão entre história e o
elemento heroico é profundamente trabalhada, como o próprio subtítulo adianta. São
comuns no poema falas como essa do Bispo Danilo:
Vocês me troueram grande alegria, meus falcões,
Grande regozijo para mim. Heroica liberdade!
Esta manhã radiante você foi ressurecta
de cada tumba de nossos queridos antepassados!146
145
““His legacy [of Njegoš], serves as a telling example of how literature, religion, and politics in the
Balcans can be interwoven in serving particular political agendas. Njegoš and his poetic endeavor occupy the
central stage in the South Slavic myth-making factory.” PAVLOVIĆ, Srdja. Balkan Anschluss. The
Annexation of Montenegro and the Creation of the Common South Slavic State. Indiana: Purdue
University, 2008, p. 8.
146
“You have brought me great gladness, my falcons,/ great joy for me. Heroic liberty! / This bright morning
you've been resurrected / from every tomb of our dear forefathers!” NJEGOŠ, Petar II Petrović. Mountain of
Wreath. In: http://www.rastko.org.rs/knjizevnost/umetnicka/njegos/mountain_wreath.html, acessado em
10/02/2014.
163
Frontispício da primeira
edição de A Montanha da
Guirlanda.
147
Elias, op. cit., p. 129.
164
Há, então, uma leitura utópica do passado como o lugar onde se encontrariam as
verdadeiras e puras raízes nacionais, entendendo que essas seriam um fato dado que, como
um artefato, deveriam ser descobertas e trazidas ao conhecimento público. Entretanto, a
nacionalidade estava longe de ser esse artefato obscuro: o povo, sua língua e sua cultura
eram esse tesouro que precisava ser escavado e restaurado à sua dignidade de lastro de
pertencimento espontâneo e incorrompido (ao contrário da superficialidade e artificialidade
da cultura de corte). E a largada é dada pelo idioma, entendido como a maior preciosidade
nacional e o crivo para a separação étnica que basearia as reivindicações de autonomia
política149.
148
“Vuk Karadžić was a follower of German Romanticism and a nationalist, and thus less of a Westernizer
than Obradović, but his reform of the Serbian literary language, liberal democratic in nature, enable the
democratization of cultural life. From the second volume of Karadžić’s collection of epic poems his
followers derived a specific Serbian indentity: they saw Serbs as heroic and justice-seeking people. The
Montenegrin prince-bishop Peter Petrović Njegoš merged it with a theological vision of the conflict between
good and evil, and transplanted it onto a historical level.” MILUTINOVIĆ, Zoran. Getting Over Europe.
The Construction to Europe in Serbian Culture. Amsterdan: New York: Rodopi, 2011, p. 126
149
“Another Romanticist Idea – the vernacular language and folk art represent the purest expressions of the
soul of a nation and the most important criterion for its identity.”(Anzulovic, op. cit., p. 70.)
165
150
“The verses of Gorski vijenac are inspired by the legends of the Battle of Kosovo (1389), the single most
significant symbol in Serbian history and mythodology. Therefore, Gorski vijenac transcends the centuries of
historical “non-being”, between the loss of national existence on the field of Kosovo and its subsequent
resurrenction and connects the ‘mythical forefathers’ and the modern founders of nation. (…) Njegoš sets the
eradication of Islamized Serbs against the backdrop of the struggle of the Serbian people for liberation. But
through his poetic and mythological approach he goes beyond narrow national limits and transports it to the
domain of general motives of freedom, death and resurrection.” TRENCSÉNYI; KOPEČEK, op. cit., p. 469.
151
“The reaffirmation of pre-Christian tribal attitudes in Serbia was a gradual process, facilitated by the chaos
accompanying the demise of the Serbian medieval state and the abolition of the patriarchate of Péc in 1766.
A further step in the same direction took place in the late eighteenth and nineteenth centuries, when the ideas
of the purity of primitive societies and the nation as the guardian of the people’s authentic spirit reinforced
the beliefs opposed to Christian ethics.” Anzulovic, op. cit., p. 26.
152
“ One is the old pagan cults of revenge, particularly strong between strong Dinaric tribal societies, and
expressed in the kind of folk poetry that experienced and enthusiastic revival in the late eighteenth and early
nineteenth centuries – the time of Njegoš, himself a collector of folk poetry. Another major impetuous to
hatred came from the demonization of the enemy n the teachings of the Serbian Orthodox Church.” Idem., p.
61.
166
Unem-se em uma obra literária forças latentes da sociedade sérvia que são direcionadas
para um propósito comum: a autonomia política nacional. Tal papel desempenhado pela
literatura não é um fenômeno estranho à Europa ocidental, principalmente para uma
Europa sobre auspícios românticos que utilizam a poesia e os panfletos como forma de
conclamar a nação. Mas há ainda uma relação mais próxima entre a Montanha da
Guirlanda e a Revolução Sérvia, isto é, ambos têm o elemento comum da influência de
Karadžić, que aparece mais uma vez como o arquiteto político que utilizava a cultura como
estopim das lutas pela autonomia sérvia: “Njegoš conhecia pessoalmente Vuk Stefanović
Karadžić, que ele conheceu em Viena em 1833 e cujo trabalho sobre a reforma da língua
ele apoiava fortemente.”153 Eis aqui mais um ilustre nome do Círculo Eslavo de Viena
indicando que Ranke havia participado de um projeto muito maior do que possivelmente
tenha imaginado. Outra suposta proximidade entre a Montanha da Guirlanda e a
intelectualidade alemã é que parte da crítica deposita em William Tell, de Schiller, uma
influência. Esse ponto é bastante debatido e a conclusão mais ponderada é que se há algum
parentesco entre o espírito romântico schilleriano e o poema de Njegoš, a saída que ambos
escolhem para o confronto é diametralmente oposta:
A peça de Schiller termina com uma paz social conseguida pela renúncia
dos nobres aos seus privilégios e a garantia da liberdade de seus súditos;
o poema de Njegoš termina com massacres seguidos pelo abençoamento
de uma arma. O espírito romântico está muito mais próximo da
Montanha da Guirlanda nos versos de “A Marselhesa”: “Deixe sangue
impuro/enxarcar nossos campos”, do que em Wilhelm Tell. 154
153
“Njegoš personally knew Vuk Stefanović Karadžić, whom he had met in Vienna in 1833 and whose work
on language reform he strongly supported.” TRENCSÉNYI; KOPEČEK, op. cit., p. 428.
154
“Schiller’s play concludes with social peace achieved by the nobles’ renunciation of their privileges and
the granting of freedom to their subjects; Njegoš’s poem ends with massacres followed by the blessing of a
gun. The Romanticism spirit comes much closer to The Mountain of Wreath in the verses of “La
Marseillaise”, “Let impure blood/drench our fields,” that in Wilhelm Tell.” Anzulovic, op. cit. p. 65.
167
da cultura heroico-pagã sérvia, a qual é indiferente ou mesmo hostil a uma ordem social
baseada nos direitos do cidadão individual.”155
Se o romantismo alemão parece ainda olhar para o classicismo de Goethe e para a
herança iluminista, o mergulho dos sérvios em seu passado tribal é profundo e a rejeição
dos argumentos diplomáticos fazem do processo de independência sérvia um dos mais
conturbados e violentos da história: “Não supreendentemente, Njegoš, que, juntamente
com Vuk Karadžić e outros românticos, introduziu elementos pagãos da herança popular e
da cultura heroico-tribal na literatura sérvia moderna, era muito hostil aos esforços
racionalistas.”156
A diferença da atitude sérvia e alemã perante o passado e sua consequência violenta
ou não no presente pode ser também explicada pela divergência no regime de tempo
histórico experimentado pelos dois povos. Se os alemães se apoiavam numa noção de
passado que tinha como ideias-modelo o código medieval de cavaleiros germânicos, os
sérvios se voltam para um passado mais próximo de atitudes territorialistas e de retaliação
dos inimigos, uma vez que todo o valor do passado é depositado num tempo anterior a
invasão e que anseia por sua total restauração:
A história cultural da Sérvia, como a da Rússia e outros países ortodoxos
do leste europeu, seguiu um desenvolvimento diferente daquela da
Europa catórica e protestante. Nos países ortodoxos, o equivalente à
Idade Média – o período durante o qual a Igreja era a portadora
dominante da herança cultural – durou até o final do século XVII e
começo do XVIII. 157
155
“The Western ideology of Romanticism, with it’s cult of supposedly pure primitive cultures, aided the
revival of Serbian pagan-heroic culture, which is indifferent or even hostile to a social order based on the
rights of the individual citizen.” Idem., p. 69.
156
““Not suprinsingly, Njegoš, who, together with Vuk Karadžić and other Romanticists, introduced pagan
elements of folk heritage and tribal-heroic culture to the modern Serbian literature, was very hostile to the
rationalists efforts.” Idem, p. 71.
157
“The cultural history of Serbia, like that of Russia and other Eastern European Orthodox countries,
followed a development different from that of Catholic and Protestant Europe. In Orthodox countries, the
equivalent of the Middle Ages – the period during which the church was the dominant barrier of cultural
heritage – lasted until the late seventeenth and early eighteenth century.” Idem, p. 69.
158
Le Goff, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 2003, p. 209.
168
tribal pré-invasão otomana. Levando esse ponto em consideração, Ranke parece acertar,
ainda que grosseiramente, em sua análise baseada na percepção de que algo de diferente
estava acontecendo no mundo eslavo, como se o passado em toda sua crueza irrompesse
entre os sérvios, cujo impulso de independência foi acompanhado por uma violência
primitiva. A diferença da análise de Ranke para uma menos orientalista está em perceber
que a violência assistida nesse período e nessa parte do globo não era algo específico da
sociedade sérvia nem da religião ortodoxa, uma vez que todas as sociedades e religiões têm
sua face violenta. Ainda assim, como explica Anzulovic, o diferencial na situação sérvia
foi o altíssimo nível de fusão entre religião e estado, o que resultaria em uma produção
literária (uma vez que eram os bispos e monges que detinham maior parte do controle de
produção intelectual) que encorajava a violência em massa.159 Literatura, independência,
violência formam a tríade das ideias que ferviam entre os sérvios revolucionários.
Juntamente com isso, há a sacralização da nação através da santificação de líderes da
revolução e pelo filtro aplicado pelos redatores das histórias e canções que faziam parte do
corpo religioso da ortodoxia sérvia160.
E não é só isso que a Montanha da Guirlanda deixa transparecer. Nela há também
um ocidentalismo, o que mostra que não era apenas o Ocidente que imaginava um “outro”
e que tinha planos acerca deles, ou seja, a própria Europa, a partir do ponto de vista do
projeto nacional sérvio, esse “outro”. No quadro de representações, o jogo se invertia:
Afora promover a algamação dos destinos nacionais sérvios e
montenegrinos, o texto está cheio de referências a outras nações e
religiões, particularmente muçulmanos (Turci) e venezianos (Mleci,
Latini). Estas “Caras Metades” são veementente denunciadas e sua
“normalidade”, até mesmo sua condição humana”, é trazida em questão
ao longo do texto. 161
159
ANZULOVIC, op. cit., p. 45.
160
STADLAND, Helke. “Sakralisierte Nation und säkularisierte Religion: Beispiele aus dem Westen un
Norden Europas” In: RUTAR, Sabine. Beyond the Balkans. Toward an Inclusive History of Southeastern
Europe. Münster: LIT Verlag, 2007, p. 184.
161
“Apart from promoting the amalgamation of Serbian and Montenegrin national fates, the text is filled with
references to other nations and religions, particularly Muslims (Turci) and Venetians (Mleci, Latini). These
“Significant Others” are conspicuously denounced, and their ‘normality’, even their ‘human condition’, is
called into question throughout the text.” TRENCSÉNYI; KOPEČEK, op. cit., p. 419.
169
Existe, no caso sérvio, uma distância considerável entre o polo de produção da cultura
nacional e as pessoas nas trincheiras da luta de independência. Se o espírito difundido era
de afirmação da especificidade sérvia perante os demais, a intelectualidade tinha uma
vivência cosmopolita que ajudava a colocar a cultura sérvia no palco das culturas
europeias, ganhando admiração principalmente entre os escritores alemães num conjunto
de trocas intelectuais do qual A Revolução Sérvia faz parte e na qual os alemães, por uma
162
““The change in language paradigms ended a conflict that had existed for decades between the Church
literary culture and the emerging Serbian cultural revival, resolving in favor of the latter.” Idem, p. 429.
163
““Indeed, ever since Serbs came into close contact with the West, they have been torn between the model
of Western civil society and ethnic tribalism.” ANZULOVIC, op. cit. p. 74.
164
Konstantinovic, Radomir. Filosofia Palanke, p. 238 cf. ANZULOVIC, op. cit., p. 80.
165
A expulsão de intelectuais como Karadzic se deu em função de desacordos com o governo revolucionário
porque enquanto o filólogo acreditava que a nova definição cultural deveria ser formada através da equação
idioma-nação, a Igreja ortodoxa naturalmente defendia a manutenção d equação nação-igreja.
166
“Except for Njegoš, the inhabitants of the Dinaric Mountains, where old pagan-heroic tribalism was still
very strong, were one of the principal revivers of that tradition under Romanticism influence. The Serbian
intelligentsia, located mostly in the Pannonian urban enviroment rather than in the harsh southern mountains,
played the dominate role in the resurgence of tribalism.” ANZULOVIC, op. cit., p. 80.
170
posição que ganhava cada vez mais destaque dentro da literatura e filosofia europeia,
ajudaram a projetar a obra dos colegas sérvios167:
Se a discussão começa com uma polarização entre o “eu” europeu e o “outro”
oriental, o estudo da relação de Ranke com o Círculo Eslavo de Viena (e o ambiente
intelectual mais amplo entre alemães e eslavos) mostra que o estado de coisas é mais
complexo do que se poderia supor. Há um longo caminho de ideias, autorrepresentações e
projetos nacionais que uniram os dois povos de forma profícua durante o século XIX e que
incluiu uma série de elementos que vão da política à literatura. Em ambos os lados,
cosmopolitismo e nacionalismo encontraram um meio de convivência e colaboração
através da tradução recíproca de suas culturas.
167
A relação cultural entre a Sérvia e as ideias ocidentais data pelo menos do século XVIII, quando “Strong
ties were stablished with the West, at the time when the Enlightenment had laid the foundation for modern
secular culture. This contact, uninterrupted since, has led to a large-scale assimilation of Western culture by
the Serbs.” (Anzulovic, op.cit. p. 69)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da jornada de Ranke que o levou ao contato com Vuk Karadžić e passando
por cinquenta anos de idas e vindas do autor com o livro no qual estudou a questão
oriental, percebe-se que A Revolução Sérvia é um trabalho cheio de peculiaridades e que
adiciona questões importantes aos estudos de Ranke e da história da historiografia,
principalmente no que diz respeito ao envolvimento de seu autor com a política e ao
compartilhamento de ideias amplamente disseminadas durante o século XIX, cuja base
orientou inclusive a interpretação de Ranke sobre outros povos. Se Ranke já havia
mostrado interesse pela questão oriental no seu trabalho anterior, Fürsten und Völker von
Süd-Europa im sechzehnten und siebzehnten Jahrhundert (1827), a história da Sérvia é
original tanto por tratar de um evento contemporâneo ao historiador como também por ser
um produto de várias mãos, o que também significou ser fruto de culturas diversas unidas
em torno de um tema comum. Além disso, no caso d’A Revolução Sérvia, Ranke teve que
lidar um grau maior de estranhamento, uma vez que lidava com dois grupos “bárbaros”,
sérvios e turcos.
Nesse sentido, um tópico que parece particularmente digno de atenção é a questão do
cosmopolitismo com a qual a pesquisa se iniciou e que ganha novos contornos no terceiro
capítulo. O aspecto de trocas do Círculo Eslavo de Viena, cuja existência propiciou trocas
intelectuais fundamentais para a constituição dos Bálcãs na contemporaneidade, parece
contradizer o isolamento sugerido pelo processo de individualização das formações
nacionais. No entanto, o espírito colaboracionista revelado pelo processo de criação d’A
Revolução Sérvia aponta para afinidades que unem as diversas identidades europeias (até
mesmo as do Leste Europeu) sob um mesmo impulso de ideias que entendem a cultura,
notadamente a cultura popular, como o cerne da nova organização política dos povos.
172
haver mais uma idealização da cultura sérvia orientada pela curiosidade. Sobre os turcos,
nota-se pouco interesse em entender sua cultura de fato e de forma aberta.
No que diz respeito às relações num nível pessoal, a rápida proximidade estabelecida
entre Ranke e Karadžić indica certa homogeneização da intelectualidade europeia, apesar
das diferenças culturais. Aqui é importante notar o papel fundamental da Alemanha na
formação dos intelectuais eslavos, o que contribuiu para a criação de um espaço comum.
Percebe-se então que há uma instância de relações na qual o parâmetro de troca não é a
nacionalidade e sim o compartilhamento de valores intelectuais comuns e de visões de
mundo afins. No entanto, poderia ser cogitado se essa formação germânica dos eslavos não
constituiria uma aculturação. Apenas de certo modo, uma vez que os mecanismos de
domínio cultural são sempre ambíguos e frutos de reapropriação. Dois exemplos disso são:
o uso que Karadžić fez da influência de Ranke para disseminar seu ponto de vista, uma vez
que A Revolução Sérvia é abertamente contra os otomanos, e a instrumentalização que essa
cultura letrada com formação alemã fez da cultura popular, o que é sumarizado no impacto
do poema A Montanha da Guirlanda. O que parece ter possibilitado as relações entre
ambos, pelo menos do que é possível inferir a partir d’A Revolução Sérvia, foi um conjunto
de ideias em comum e, acima de tudo, o uso que os eslavos fizeram de seu contato com
alemães para promover sua causa.
Assim, estranhamente, as acusações de “barbarismo” encontravam eco na própria
forma como os sérvios concebiam a si mesmo, uma vez que a volta às raízes tribais foi
percebida como caminho de resistência e algo estimulado através da literatura. Os sérvios
teriam estabelecido um uma relação complexa entre o cosmopolitismo (que requeria o
domínio dos códigos ocidentais) e uma espécie de “ímpeto primitivo” mediado pela “alta
cultura”. No caso do contato com Ranke, a escrita da história sérvia foi uma estratégia
muito bem sucedida de divulgação da causa nacional, utilizando os canais que o
cosmopolitismo trazia para que a revolução ganhasse ainda mais momento junto à opinião
dos europeus do oeste. Na busca de formarem a si mesmos, os sérvios ganharam o olhar da
Europa. E nada era tão conhecido pelos alemães no período do que a busca por autonomia
e individualidade cultural e política. Impossível não recordar Goethe, que captou tais
processos de individualização com maestria: “Entro em mim mesmo e aí encontro um
mundo.”1
1
GOETHE, Johann Wolfgang von. Os Sofrimentos do Jovem Werther. São Paulo: Hedra, 2006, p.32.
BIBLIOGRAFIA
1. FONTES
A History of Servia and the Servian Revolution, from Original Mss. And Documents.
Trans. by Alexander Kerr. London: John Murray, 1848.
Serbien und die Türkei um neunzehnten Jahrhundert. Leipzig: Duncker und Humblot,
1979.
___________. „Zur orientalischen Frage. Gutachten im Juli 1854. Sr. Majestät König
Friedrich Wilhelm IV vorgetragen“. In: Historische Zeitschrift, Bd. 13, H. 2 (1865),
pp. 406-433
HOLANDA, Sérgio Buarque (org.). Leopold von Ranke: história. Trad. Trude von
Laschan Solstein. São Paulo: Ática, 1979.
175
ANÔNIMO (von einem Russen). Russland und die Orientalische Frage. Aachen, J. M.
Vaner, 1860.
BÜRGER, Gottfried August. “Lenore”. In: COSTA, Bruno (org.). Contos Clássicos de
Vampiro. Byron, Stoker e outros. Trad. Marta Chiarelli.São Paulo: Hedra, 2010, pp.
217-227.
BYRON, George Gordon, Lord. “Trecho de um Romance”. In: COSTA, Bruno (org.).
Contos Clássicos de Vampiro. Byron, Stoker e outros. Trad. Marta Chiarelli.São
Paulo: Hedra, 2010, pp. 43-50.
CLAUSEWITZ, Carl von. A Campanha de 1812 da Rússia. São Paulo: Martins Fontes,
1994.
GOETHE, Johann Wolfgang von; SCHILLER, Johann C.F. von. Correspondência. São
Paulo: Hedra, 2010.
SCHILLER, Johann C.F. von. “Letters Upon the Aesthetic Education of Man” In:
Literary and Philosophical Essays: French, German and Italian. The Harvard
Classic Series, 32. New York: Collier, c. 1910.
STOKER, Bram. The New Annotated Drácula. Edited by Leslie Klinger. New York:
Norton & Co., 2008.
TIECK, Ludwig. Feitiço de Amor e Outros Contos. São Paulo: Hedra, 2011.
2. BIBLIOGRAFIA GERAL
The Romantic Period: “Romantic Orientalism: Overview”. In: The Norton Anthology of
English Literature.
(http://www.wwnorton.com/college/english/nael/romantic/topic_4/welcome.htm)
AVLOWITCH, Stevan. Serbia: The History Behind the Name. London: C. Hurst &
Company, 2001.
BOLETSI, Maria. Barbarism and its Discontents. California: Stanford University Press,
2013.
COSTA, Bruno (org.). Contos Clássicos de Vampiro. Byron, Stoker e outros. Trad.
Marta Chiarelli.São Paulo: Hedra, 2010.
DEHDAR, Gity. „Der Orient in der deutschen Literatur, in Theater und Oper“.
Dissertação de Mestrado em Filosofia. Wien: Universität Wien, 2011.
EL-HAJ, Nadia Abu. “Edward Said and the Political Present” In: NETTON, Ian Richard.
Orientalism Revisited. Art, Land and Voyage. New York: Routledge, 2013.
ELIAS, Norbert. Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos
XIX e XX. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
FITZSIMONS, M. A. “Ranke: History as Worship”. In: The Review of Politics, Vol. 42,
nº 4 (Oct., 1980).
FORD, FRankling L. “Leopold von Ranke: Setting the Story Straight” In: Proceedings of
the Massaschusetts Historical Society. Third Series, vol. 87 (1975), pp. 57-75.
GAY, Peter. Estilo na História: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Trad. Denise
Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GIANNOTTI, José Arthur. “Kant e o Espaço da História Universal” In: KANT, Immanuel.
Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, PP; 107-171.
GILBERT, Felix. “Leopold von Ranke and the American Philosophical Society“ In:
Proceedings of the American Philosofical Society, Nol. 130, No. 3 (Sep. 1986), pp.
362-366.
GRAFTON, Anthony. “The Footnote from De Thou to Ranke.” In: History and Theory,
Vol. 33, No. 4, Theme Issue 33: Proof and Persuasion in History (Dec., 1994), pp. 53-
76.
179
GUGLIA, Eugen. Leopold von Ranke. Leben und Werke. Leipzig: Friedrich Wilhelm
Grunow, 1898.
HOLANDA, Sérgio Buarque. “O Atual e o Inatual em L. von Ranke” In: Leopold von
Ranke: história. Trad. Trude von Laschan Solstein. São Paulo: Ática, 1979.
IGGERS, Heorg. “Historicism: The History and Meaning of the Term” In: Journal of the
History of Ideas, vol. 56, no. 1 (Jan. 1995), pp. 129-152.
JOLY, Fábio Duarte (org.) História e Retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São
Paulo: Alameda, 2007.
KÄMPFER, Frank. Vuk Karadžić und Leopold Ranke: Zur Rezeption der 'SERBISCHEN
REVOLUTION” in Deutschland. In: www.frank-kaempfer.de/Neuer PDF
Ordner/Ranke_Serbische Revolution1991.pdf. Acessado em 06/07/2013.
LIEBEL, Helen O. “The Elightenment and the Rise of Historicism in German Thought” In:
Eighteen-Century Studies, vol. 4, no 4 (Summer 1971), pp. 359-385.
LUKÁCS, György. O Romance Histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2011.
MACKENZIE, John M. Orientalism. History, Theory and the Arts. Bath: Manchester
Universty Press, 1995.
MARTIN, Richard; KODA, Harold. Orientalism. Visions of the East in Western Dress.
New York: The Metropolitan Museum of Art, 1995.
MATA, Sérgio da; MATA, Giulle Vieira da. “Os Irmãos Grimm entre Romantismo,
Historicismo e Folclorística” In: Fenix – Revista de História e Estudos Culturais,
vol. 3, ano III, no. 2, (Abril, Maio, Junho 2006), PP. 1-24.
MOURA, Caio. “O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a
consolidação da autoimagem do sujeito moderno”. In: Filosofia Unisinos, 10 (2), Mai-
Ago 2009, p. 157-173.
MUHLACK, Ulrich. “Ranke, Franz Leopold von.” In: Neue Deutsche Biographie
(NDB). Band 21. Berlin: Duncker & Humblot, 2003, p. 140–142.
MUIR, Edward. "Leopold von Ranke, His Library, and the Shaping of Historical
Evidence." Syracuse University – Library Associates Courier, Vol. 22, Nº1 (1987),
pp. 3-10.
NEVÁREZ, Lisa A. (ed.) The Vampire Goes to College. Essays on Teaching with the
Undead. North Carolina: McFarland &Co., 2014.
RINGER, Fritz. O Declínio dos Mandarins Alemães. São Paulo: EDUSP, 2000.
ROSS, Sydney. "Scientist: The story of a word". Annals of Science, Vol. 18, Nº2 (1962),
p. 72.
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: Uma Questão Alemã. Trad. Rita Rios. São Paulo:
Liberdade, 2010.
SALIBA, Elias Thomé. As Utopias Românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
SARDAR, Ziauddin; DAVIES, Merryl Wyn. The Nonsense Guide to Islam. United
Kingdom: New Internationalist Publications, 2007, versão online em www.newint.org.
SCHEVILL, Ferdinand. “Ranke: Rise, Decline and Persistence of a Reputation” In: The
Journal of Modern History, vol 24, no. 3 (Sep. 1952), pp. 219-134.
182
TURIN, Rodrigo. “Uma novre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocentista”
In: História e Historiografia, no. 2 (Março 2009), PP. 12-28.
WEBER, Wolgang; BRADY, Thomas A. “The long reign and the final fall of the German
conception of History: A Historical-Sociological” In: Central European History, vol.
21, no. 4 (Dec., 1988), PP. 379-195.
WOCKOECK, Ursula. German Orientalism: The Study of Middle East and Islam
from 1800 to 1945. New York: Routledge, 2009.
3. IMAGENS
Todas as imagens, com exceção de quando assinalado nas mesmas, foram retiradas do
banco de dados do Wikimedia Commons (http://www.commons.wikimedia.org).
CAPA: Christoph Weigel, segundo Caspar Luyken. “85. Ein Janitschar“ In: Neu-eröffnete
Welt-Galleria, Nürnberg, 1703.