Conan Espada & Magia 1 PDF
Conan Espada & Magia 1 PDF
Conan Espada & Magia 1 PDF
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Robert E. Howard
L. Sprague de Camp
Lin Carter
CONAN
ESPADA & MAGIA
Tradução de
Julia Bárány e Jose Antonio Ceschin
UNICÓRNIO AZUL
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4
CONAN
da literatura para os quadrinhos
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Sumário
Introdução 9
Sobre o Autor 13
A Torre do Elefante 55
Deus na Tigela 89
Vingança 115
7
8
Introdução
L. Sprague de Camp
12
Sobre o
Autor
13
Lock Box 313
Cross Plains, Texas
10 de março de 1936
Cordialmente,
Robert E. Howard
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A Coisa
dentro
da Cripta
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20
O maior herói dos tempos hiborianos não foi
um hiboriano mas um bárbaro, Conan da Ciméria,
ao redor de quem gira todo um ciclo de lendas. Das
civilizações mais antigas da época hiboriana e atlan-
te, sobrevivem somente algumas poucas narrativas
fragmentadas, meio lendárias. Uma delas, Crônicas
da Nemédia, fornece a maior parte do que é conhe-
cido sobre a carreira de Conan. A seção que trata de
Conan começa assim:
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Olhos
Vermelhos 1
Durante dois dias os lobos o seguiram através da floresta,
e agora estavam novamente se aproximando. Olhando por cima
do ombro, o menino os avistou: formas peludas, pesadas, de um
cinza escuro, saltando entre os troncos negros das árvores, com
olhos que queimavam como carvões em brasa na penumbra cres-
cente. Dessa vez, ele sabia que não poderia afastá-los como havia
feito antes.
Ele não conseguia enxergar muito longe, pois à sua volta
se avolumavam, como soldados silenciosos de algum exército en-
feitiçado, os troncos de milhares de abetos negros. A neve ainda
cobria de manchas brancas as encostas das colinas voltadas para
o norte, mas o borbulhar de milhares de córregos formados pela
neve e pelo gelo derretidos pressagiava a chegada da primave-
ra. Era um mundo escuro, silencioso e sombrio, mesmo no meio
do verão; e agora, enquanto a tênue luz da tarde esmaecia com a
aproximação da noite, parecia mais sombrio que nunca.
O fugitivo continuava a correr encosta acima em meio a
um espesso matagal, como havia corrido durante os dois dias
desde que conseguiu se livrar do abrigo de escravos em Hiper-
bórea. Embora fosse um cimério legítimo, ele fizera parte de um
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bando aesir de saqueadores, que assolava as fronteiras hiperbo-
rianas. Os altivos guerreiros louros daquele país obscuro haviam
encurralado e esmagado o grupo atacante; e o menino Conan,
pela primeira vez em sua vida, havia experimentado a amargura
das correntes e do chicote, destino comum do escravo.
No entanto, ele não permaneceu na escravidão por muito
tempo. Trabalhando à noite enquanto os outros dormiam, ele ha-
via desgastado um dos elos de sua corrente até conseguir arreben-
tá-la. Em seguida, libertou-se durante uma tempestade violenta.
Matara, a golpes de sua corrente arrebentada, o guarda e um sol-
dado que saltou em seu caminho, desaparecendo no aguaceiro.
A chuva que o escondia de vista também desorientou os cães da
equipe de busca mandada ao seu encalço.
Embora livre no momento, o jovem se encontrou separado
de sua Ciméria natal por metade da extensão de um reino hostil.
Então, ele fugiu para o sul, para a terra selvagem e montanho-
sa que separava os pântanos ao sul da Hiperbórea das planícies
férteis da Brithunia e as estepes de Turania. Em algum lugar ao
sul, disseram-lhe, existia o fabuloso reino de Zamora - Zamora
com suas mulheres de negras cabeleiras e torres misteriosas. Ali
havia cidades famosas: Shadizar, a capital, chamada de Cidade
da Maldade; Arenjun, a cidade de ladrões; e Yezud, a cidade do
deus-aranha.
No ano anterior, Conan havia experimentado pela pri-
meira vez os prazeres da civilização quando, acompanhando a
horda dos cimérios sedentos de sangue que atravessara os muros
de Venarium, participara do saque daquele posto fronteiriço de
Aquilônia. Isto atiçou seu apetite para querer mais. Ele não tinha
uma ambição definida nem um programa de ação; nada a não ser
vagos sonhos de aventuras desesperadas nas ricas terras do Sul.
Visões de ouro e de jóias reluzentes, de comida e bebida à von-
tade, e dos calorosos abraços de belas mulheres de origem nobre
eram os prêmios por sua coragem que passavam por sua ingênua
cabeça jovem. No Sul, ele pensava, seu tamanho e sua força de
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alguma maneira lhe trariam fama e fortuna entre os fracos habi-
tantes. Assim ele rumou para o Sul, em busca de seu destino com
nada mais que uma túnica esfarrapada e grosseira e um pedaço
de corrente.
E então os lobos captaram seu cheiro. Normalmente um
homem em suas plenas forças tinha pouco a temer dos lobos.
Mas era final de Inverno; os lobos, famintos após uma es-
tação ruim, estavam desesperados por qualquer possibilidade de
alimento.
Da primeira vez que eles o alcançaram, ele usou a corrente
com tanta fúria que deixou um lobo cinzento debatendo-se e ui-
vando na neve com as costas quebradas e outro lobo morto com
o crânio despedaçado. Sangue vermelho manchou a neve derreti-
da. A famigerada alcatéia havia se afastado desse jovem de olhos
ferozes brandindo a terrível corrente para, em vez disso, se refes-
telar com seus próprios irmãos mortos, e o jovem Conan fugira
para o Sul. Mas, em breve eles estavam ao seu encalço novamente.
No dia anterior, ao pôr-do-sol, eles o alcançaram perto de
um rio congelado nas fronteiras de Brithunia. Conan havia luta-
do com eles sobre o gelo escorregadio, girando a corrente sangui-
nária como um malho, até que o lobo mais corajoso conseguiu
prender na mandíbula sinistra os elos de ferro, arrancando a cor-
rente de sua mão amortecida. Então a fúria da batalha e o peso da
alcatéia rompeu o gelo embaixo deles. Conan se viu afogando na
correnteza gelada. Vários lobos haviam caído junto com ele - ele
viu de relance um lobo, meio imerso, arranhando desesperada-
mente a borda gelada com suas garras, tentando sair da água -
mas ele jamais soube quantos conseguiram se arrastar para fora
e quantos haviam sido tragados pela correnteza debaixo do gelo.
Batendo os dentes, ele se içou para fora do outro lado, dei-
xando a alcatéia uivante para trás. Seminu e semicongelado, pas-
sou a noite toda fugindo para o sul, atravessando as colinas cheias
de florestas, e o dia seguinte também. Agora eles o alcançaram de
novo.
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O ar frio da montanha queimava seus pulmões esgotados,
cada respiração era como inspirar o fogo de alguma fornalha in-
fernal. Insensíveis, suas pernas de chumbo se moviam como pis-
tões. A cada passo, seus pés calçados com sandálias afundavam
na terra encharcada e saíam novamente fazendo ruídos de sucção.
Ele sabia que, de mãos vazias, tinha pouca chance contra
uma dúzia de peludos assassinos de homens. No entanto, conti-
nuava a caminhar sem parar. Sua sombria herança ciméria não
lhe permitia desistir, mesmo em face da morte certa.
A neve voltou a cair - flocos grandes e úmidos caíam com
um leve mas audível ruído sibilante, cobrindo a molhada terra
preta e os esguios abetos negros com uma infinidade de pontos
brancos. Aqui e ali, grandes montes despontavam da terra ata-
petada de agulhas dos abetos; a região se tornava cada vez mais
rochosa e montanhosa. E ali, pensava Conan, poderia estar sua
única chance de sobreviver. Ele poderia apoiar as costas num ro-
chedo e afugentar os lobos quando estes o atacassem. Era uma
chance mínima - ele conhecia bem a rapidez ferrenha daqueles
corpos ágeis, sinuosos, de 45 kg de peso - mas era melhor que
nada.
A mata escasseava na medida em que a encosta ficava mais
íngreme. Conan saltou para uma enorme massa de rochedos que
apontava na encosta da colina, semelhante à entrada de um caste-
lo soterrado. Então os lobos apareceram na borda da mata espes-
sa e correram atrás dele, uivando como demônios vermelhos do
Inferno perseguindo e derrubando uma alma penada.
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A Porta no
Rochedo 2
Em meio a redemoinho branco de neve, o menino viu uma
boca negra escancarada entre dois enormes rochedos e correu
para lá. Os lobos estavam em seus calcanhares; sentiu o hálito
quente, malcheiroso deles sobre suas pernas nuas quando se jo-
gou para dentro da fenda negra que se abria à sua frente. Conan
se espremeu através da abertura no mesmo instante em que o
lobo que estava na frente pulava em cima dele. As mandíbulas
famintas se fecharam no vazio; ele estava salvo.
Mas por quanto tempo?
Agachando-se, Conan tateou à sua volta no escuro, pal-
milhando o chão de pedra áspera, procurando qualquer objeto
solto para jogar na horda uivante. Ele ouvia os passos deles sobre
a neve fresca do lado de fora, arranhando a pedra com as garras.
Assim como ele, os lobos resfolegavam. Eles fuçavam e ganiam,
famintos por sangue. Mas nenhum deles conseguiu passar pela
abertura, uma fenda escura, cinzenta na escuridão. E isto era
muito estranho.
Conan se encontrou num estreito cômodo dentro da pe-
dra, apenas iluminado por uma tênue claridade que vinha pela
fresta. O chão irregular da cela estava coberto de resíduos trazi-
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dos pelo vento através dos séculos, ou carregados pelos pássaros e
pelos animais: eram folhas secas, agulhas de abeto, galhos, alguns
ossos espalhados, pedregulhos e lascas de pedra. Não havia nada
no meio desse lixo que ele pudesse usar como arma.
Esticando-se em toda a sua altura - já alguns centímetros a
mais do que há pouco tempo atrás - o menino começou a explo-
rar a parede com a mão estendida. Em breve ele encontrou outra
porta. Tateando, passou por essa entrada e se viu em meio a uma
escuridão de breu, quando seus dedos apalparam letras entalha-
das na pedra, de alguma língua desconhecida. Desconhecida, ao
menos para o menino analfabeto que vinha das terras bárbaras
do Norte, que desprezava o conhecimento da leitura e da escrita
por considerar efeminadas essas habilidades civilizadas.
Ele teve de se agachar para passar pela porta interna, mas
depois já havia altura suficiente para ficar ereto. Cansado, deteve
-se a escutar. Embora fizesse silêncio total, algum sentido o aler-
tava que não estava sozinho naquele lugar. Nada que pudesse ver,
ouvir ou sentir o cheiro, mas uma sensação diferente de alguma
presença.
Seus ouvidos sensíveis, treinados para ouvir ecos na flores-
ta, informaram-no de que esta câmara interna era bem maior do
que a anterior. O lugar rescendia a poeira antiga e a excremento
de morcegos. Sentia sob seus pés vários objetos espalhados pelo
chão. Embora não pudesse vê-los, percebia que não era lixo da
floresta, mas pareciam mais objetos feitos pelo homem.
Ao dar um passo rápido no escuro ao longo da parede,
tropeçou num desses objetos, que se despedaçou sob o seu peso.
Uma lasca de madeira acrescentou mais um arranhão àqueles
provocados pelos galhos de abetos e pelas garras dos lobos. Pra-
guejando, levantou-se e tateou no escuro procurando a coisa que
ele havia destruído. Era uma cadeira, cuja madeira estava tão
apodrecida que se quebrara.
Continuou suas explorações com mais cautela. Encontrou
outro objeto maior, que ele reconheceu ser o corpo de uma carru-
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agem. As rodas havia desabado por causa dos eixos apodrecidos
e assim o corpo jazia no chão em meio aos fragmentos dos eixos
e pedaços de aros.
As mãos de Conan toparam com algo frio e metálico. Seu
tato lhe dizia que era provavelmente uma armação enferrujada
da carruagem. Isto lhe deu uma idéia. Voltou tateando às cegas
rumo ao portal interior, que ele mal conseguia distinguir nas tre-
vas que a tudo envolviam. Apanhou do chão da antecâmara um
punhado de material inflamável e várias lascas de pedra. De volta
à câmara interior, fez uma pilha com o material inflamável e foi
golpeando uma a uma as pedras no ferro. Depois de várias tenta-
tivas, encontrou uma pedra que soltou brilhantes faíscas.
Em breve já ardia uma pequena fogueira fumarenta, que
Conan foi alimentando com os pedaços da cadeira e com os frag-
mentos das rodas da carruagem. Agora podia relaxar, descansar
de sua terrível correria através do pais e aquecer seus membros
enregelados. O fogo crepitante deteria os lobos, que ainda ronda-
vam a entrada externa, relutantes em ir atrás dele na escuridão da
caverna mas também não querendo desistir de sua presa.
O fogo emitia uma quente luz amarela que dançava pelas
paredes de pedra grosseiramente lavrada. Conan olhou à sua vol-
ta. O cômodo era quadrado e maior do que tinha imaginado. O
teto alto se perdia em sombras espessas, abarrotado de teias de
aranha. Várias cadeiras estavam encostadas às paredes, junto com
um par de baús abertos expondo seu conteúdo de roupas e de
armas. A grande sala de pedra tinha cheiro de morte - de coisas
antigas desenterradas há muito tempo.
E então seus cabelos se eriçaram, e o menino sentiu sua
pele se arrepiar com a emoção do sobrenatural. Pois ali, num
enorme assento de pedra, no canto mais afastado do salão, estava
entronizada uma figura de um homem nu, com uma espada de-
sembainhada sobre os joelhos e uma cavernosa face fitando-o à
luz bruxuleante.
Logo que viu o gigante nu, Conan percebeu que ele estava
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morto - morto há muitos séculos. Os membros do cadáver es-
tavam marrons e ressecados como varas secas. A carne sobre seu
enorme tronco havia secado, encolhido e rachado, pendendo em
frangalhos das costelas nuas.
Isto, porém, não acalmou o repentino calafrio de terror
que percorreu a espinha do jovem. Mais destemido que o normal
na sua idade, pronto para enfrentar homens e animais na batalha,
o menino não tinha medo nem da dor nem da morte nem de ini-
migos mortais. Mas ele era um bárbaro que vinha das colinas do
Norte do interior de Ciméria. Como todos os bárbaros, ele temia
os terrores sobrenaturais da sepultura e das trevas, com todos os
seus pavores e demônios e as coisas monstruosas e bamboleantes
da Noite e do Caos Atávicos, com as quais o povo primitivo po-
voa as trevas além do círculo de sua fogueira. Conan até preferiria
enfrentar os lobos famintos do que permanecer ali com o morto
olhando para ele de seu trono de pedra, enquanto as chamas os-
cilantes davam vida e movimento à caveira ressecada e moviam
as sombras em suas órbitas como se fossem escuros olhos cha-
mejantes.
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3
A Coisa
Sentada
no Trono
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Duelo com os
Mortos
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A Espada de
Conan 6
Conan deu um profundo suspiro e mais outro. Depois da
tensão, sentia-se totalmente esgotado. Enxugou o suor frio de
terror de seu rosto e penteou com os dedos os cabelos negros
emaranhados para trás. A múmia do guerreiro morto finalmente
estava morta de verdade, e a grande espada era dele. Ele tornou a
brandi-la, avaliando seu peso e seu poder.
Por um instante, ele pensou em passar a noite na tumba.
Estava mortalmente cansado. Do lado de fora, os lobos e o frio
esperavam para acabar com ele, e nem mesmo seu senso de dire-
ção adquirido pela prática na selva poderia mantê-lo no caminho
escolhido numa noite sem estrelas, numa terra estranha.
Mas então ele foi tomado por nojo. A câmara cheia de fu-
maça cheirava mal, agora, não só por causa do pó secular mas
também por causa da carne humana queimada, morta há mui-
to tempo - um odor estranho, que não se assemelhava a nada
que as narinas de Conan haviam detectado até então. Um cheiro
que revolvia seu estômago. O trono vazio parecia olhar de sos-
laio para ele. Aquela sensação de alguma presença que o atingiu
quando acabara de entrar nessa câmara ainda permanecia em sua
lembrança. Arrepiou-se da cabeça aos pés quando pensou em
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dormir naquela câmara assombrada.
Além do mais, com sua nova espada, ele estava cheio de
confiança. Estufando o peito, girava a lâmina em círculos sibi-
lantes.
Momentos mais tarde, enrolado num manto de pele que
encontrara numa das arcas, segurando uma tocha numa das
mãos e a espada na outra, ele saiu da caverna. Não havia sinal dos
lobos. Dando uma olhada para o céu, viu que já estava clareando.
Em seguida, Conan estudou as estrelas que brilhavam entre as
nuvens e mais uma vez dirigiu seus passos rumo ao Sul.
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A Filha do
Gigante
de Gelo
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O barulho metálico das espadas e dos machados de guerra
tinha desaparecido no ar; os gritos de morte já não ecoavam no
céu, e o silêncio cobria a neve manchada de vermelho. O brilho
fraco e pálido do sol reluzia forte nos campos gelados, e por toda
a planície coberta de neve viam-se raios de prata refletidos nas ar-
maduras despedaçadas e nas lâminas quebradas dos mortos, nos
lugares onde haviam tombado. Mãos geladas ainda agarravam os
cabos de espadas; e muitas cabeças ainda cobertas pelos capace-
tes, ostentando o horror da morte no rosto, apontavam para cima
as barbas vermelhas e as barbas douradas, como uma derradeira
invocação a Ymir, o gigante do gelo, deus de uma raça de guer-
reiros.
No meio das figuras vestidas com a malha protetora de me-
tal, entre as manchas avermelhadas do chão, duas figuras se en-
treolharam. Perdidas naquele lugar desolado, eram as duas únicas
que ainda se moviam. Por cima o céu gelado, à sua volta a planície
branca e ilimitada, e dezenas de mortos aos seus pés. Caminha-
ram devagar por entre os corpos, como fantasmas a caminho de
um encontro, vagando pelos restos de um mundo destruído. Em
meio ao silêncio, ficaram frente a frente.
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Eram dois homens altos, fortes como um par de tigres
adultos. Os escudos haviam desaparecido, as armaduras estavam
riscadas e rachadas. O sangue coagulava nas suas malhas, e as
espadas estavam manchadas de vermelho. Os capacetes orna-
mentados com chifres de touro mostravam as marcas de golpes
violentos. Um deles não tinha barba, e seus cabelos abundantes
eram escuros. Os cabelos e a barba encaracolada do outro eram
vermelhos como o sangue que tingia a neve banhada pelos raios
do sol.
— Homem, — disse este último — quero saber teu nome,
para que meus irmãos em Vanaheim saibam quem foi o último
membro do bando de Wulfhere a morrer pela espada de Heimdul.
— Não em Vanaheim, — resmungou o guerreiro de cabe-
los negros, — mas em Valhalla você vai contar a seus irmãos que
enfrentou Conan da Ciméria!
Heimdul urrou e deu um salto para a frente, com a espada
brilhando num arco mortal. Quando a lâmina prateada atingiu
seu capacete, lançando faíscas azuladas ao ar, Conan cambaleou
e sua visão encheu-se de fagulhas avermelhadas. Mas ao vacilar,
ele juntou todas as forças de seus ombros poderosos por trás da
espada. A lâmina afiada rasgou a malha de metal, os ossos e o co-
ração do inimigo, e o guerreiro dos cabelos vermelhos encontrou
a morte aos pés de Conan.
O cimério ergueu-se, com a espada apoiada no chão, atrás
dele. Viu-se repentinamente diante da doentia realidade que o
cercava. O brilho do sol refletido na brancura da neve doía em
seus olhos, como a ponta de uma faca, e o céu parecia distante, es-
tranhamente separado do mundo. Ele virou as costas para aquela
planície desolada, onde guerreiros de barbas louras jaziam agar-
rados aos matadores de cabelos vermelhos, no abraço da morte.
Deu alguns passos, e o reflexo dos campos gelados de repente se
apagou. Uma onda de cegueira tomou conta de sua vista, e ele
caiu na neve, apoiando o corpo em um dos braços vestidos com
a malha metálica, procurando afastar a cegueira dos olhos com
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um balanço da cabeça, como um leão sacudindo a juba dourada.
Uma gargalhada aguda penetrou na sua tontura, e sua vi-
são clareou lentamente. Conan levantou os olhos. Sentia algo es-
tranho no mundo ao seu redor, que não conseguia definir nem
interpretar, um estranho matiz no céu e na terra. Mas não teve
muito tempo para pensar nisso. Diante dele, balançando como o
capim ao vento, estava uma mulher em pé. Para seu olhar confu-
so, o corpo dela parecia branco como o marfim e, a não ser por
um véu muito fino e flutuante, estava tão nua como a luz do dia.
Os pés delicados eram ainda mais brancos do que a neve sobre a
qual pisavam. Ela riu para o confuso guerreiro, com uma garga-
lhada mais doce do que os pingos de uma fonte das montanhas e
carregada do veneno da mais pura zombaria.
— Quem é você? — perguntou o cimério. — De onde você
veio?
— O que importa? — A voz dela era mais musical do que
as cordas de uma harpa, embora cheia de crueldade.
— Chame os seus homens, — disse Conan agarrando a es-
pada. —Estou quase sem forças, mas não me entregarei sem lutar
até a morte. Vejo que você é vanir.
— Por acaso eu disse isso?
Conan examinou melhor os cachos dourados dos cabelos
dela que, a princípio, pareciam vermelhos. Notou então que não
eram nem amarelos nem vermelhos, mas uma mistura das duas
cores. Ficou fascinado. Aqueles cabelos longos tinham a delica-
deza do ouro; o sol refletia neles com tamanha intensidade que
Conan mal conseguia manter seus olhos abertos. O olhar dela
também confundia: não era de todo azul nem cinzento, mas uma
mistura de tons e luzes flutuantes, uma verdadeira nuvem de to-
nalidades estranhas que ele não sabia como interpretar. Os lábios
vermelhos mostraram um sorriso delicado. Todo o seu corpo de
marfim, desde as pontas dos pés até a ofuscante cabeleira doura-
da, era perfeito como o sonho de um deus. O sangue de Conan
parecia querer ferver nas veias.
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Ele disse:
— Não sei se você é de Vanaheim, portanto minha inimiga,
ou de Aesgaard e minha aliada. Já tive muitos sonhos, mas uma
mulher como você eu nunca vi. Seus cabelos são tão brilhantes
que fico cego ao olhar para eles. Jamais vi uma cabeleira assim,
nem mesmo entre as mais lindas filhas de Aesir. Em nome de
Ymir...
— Quem é você para usar assim o nome de Ymir? — in-
terrompeu ela. — O que sabe dos deuses do gelo e da neve, você,
que veio do sul para aventurar-se no meio de um povo que lhe é
estranho?
— Em nome de todos os deuses escuros de minha raça!
— gritou Conan com raiva. — Não tenho os cabelos louros dos
aesires, mas ninguém consegue segurar uma espada como eu!
Hoje eu vi dezenas de homens tombarem, e fui o único a sair vivo
dos campos onde os guerreiros de Wulfhere enfrentaram os lobos
de Bragi. Diga-me, mulher, por acaso viu o brilho de armaduras
sobre os campos gelados, ou homens armados viajando sobre a
neve?
— O que vi foi o orvalho gelado brilhando sob o sol, — res-
pondeu ela. — E ouvi o assobio do vento na neve eterna.
Conan balançou a cabeça, suspirando.
— Niord deveria ter nos alcançado antes de a batalha co-
meçar. Temo que ele e seus guerreiros tenham sido atacados de
surpresa. Wulfhere e seus homens estão mortos... Eu achei que
não havia aldeia alguma em um raio de muitos quilômetros deste
lugar, porque a guerra nos trouxe para longe. Mas você não pode
ter viajado muito pisando sobre a neve, nua como está. Se for de
Aesgaard, leve-me à sua tribo, sofri muitos golpes e fiquei exausto
com a batalha.
— Minha aldeia é mais distante do que imagina, Conan
da Ciméria, — disse ela, rindo. De braços abertos, dançou diante
dele, a cabeça dourada em movimentos sensuais, e os olhos cinti-
lantes emoldurados pelos longos e curvados cílios louros. — Não
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sou bela, cimério?
— Tão linda como a aurora correndo nua sobre a neve, —
resmungou Conan, com os olhos cintilando como os de um lobo.
— Então, por que não se levanta e me segue? Quem é o
poderoso guerreiro que jaz aos meus pés? — A voz dela era um
canto de pura zombaria. — Fique caído e morra na neve, como
os outros tolos, Conan dos cabelos negros. Você não poderia ir
aonde eu vou.
Amaldiçoando sua sorte, o cimério levantou-se com um
brilho intenso no olhar, sentindo arder o rosto escuro e cicatri-
zado. O ódio tomava conta de sua alma, mas o desejo por aquela
provocante criatura martelava suas têmporas e fazia aumentar a
pressão do sangue em todas as veias do seu corpo. Uma paixão
tão violenta como a agonia física tomou conta de todo o seu ser,
fazendo a terra e o céu ficarem vermelhos para o seu olhar des-
concertado. A loucura apoderou-se dele, e toda fraqueza e cansa-
ço desapareceram.
Ele não disse uma palavra sequer, ao enfiar na bainha a
espada ensanguentada e abrir as mãos na direção da mulher, ten-
tando agarrar sua pele macia. Com um grito e uma risada ela
saltou para trás e correu, os olhos sorrindo para ele por cima dos
ombros brancos. Resmungando, Conan a seguiu. Ele se esquecera
da luta, já não lembrava dos homens em armadura que jaziam so-
bre o próprio sangue, nem de Niord, cujos guerreiros não haviam
chegado a tempo. Todos os seus pensamentos eram apenas para
a figura branca e esguia que parecia flutuar, ao invés de correr na
frente dele.
A louca perseguição desenvolveu-se pela planície branca
e gelada. Os campos cobertos de sangue ficaram para trás, e Co-
nan continuou correndo com a silenciosa tenacidade peculiar aos
homens de sua raça. Seus pés, calçando sandálias de malha metá-
lica, rompiam a crosta de gelo e afundavam na neve amontoada
pelo vento, e ele prosseguia, ajudado pela enorme força dos seus
músculos. A garota parecia dançar sobre a neve, como uma pena
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flutuando numa lagoa. Seus pés descalços quase não marcavam a
superfície branca do chão. Apesar do fervor intenso do seu san-
gue, o frio penetrava na malha metálica e no casaco de pele que
cobriam o corpo do guerreiro. E a mulher, protegida apenas por
um véu muito delicado, flutuava com tamanha leveza e alegria
como se estivesse dançando no meio das palmeiras do jardim de
rosas de Poitain.
Ela correu mais e mais, e Conan a seguiu. De vez em quan-
do escapava um palavrão entre seus lábios rachados pelo frio. As
enormes veias de suas têmporas inchavam e pulsavam, enquanto
seus dentes rangiam.
— Não vai conseguir escapar de mim, — ele gritou. — Se
me atrair para uma emboscada, amontoarei aos seus pés os cor-
pos mortos dos seus guerreiros! Não tente se esconder de mim,
pois eu derrubarei cada montanha até encontrá-la! Vou segui-la
nem que tenha de ir até o inferno!
Os lábios dele babavam ao ouvir o sorriso enlouquecedor
que ela lançava para trás. E a mulher corria cada vez mais pela
vastidão branca. As horas foram passando com o sol deitando
na direção do horizonte. E a paisagem mudou. A planície aberta
deu lugar a colinas arredondadas, que marchavam para cima em
cadeias interrompidas. Muito ao norte ele viu os picos de altas
montanhas, com a neve dos picos num tom azulado, por causa da
distância, e mostrando tons de vermelho ao refletir o sol do po-
ente. Os céus escureciam sobre eles, e mostravam as ondas colo-
ridas da aurora boreal. Espalhavam-se pelo céu como dezenas de
arco-íris, como labaredas de mil cores, mudando de intensidade,
crescendo e dançando no ar.
Por cima de Conan, o céu brilhava e espoucava com estra-
nhas luzes e fulgores. A neve brilhava de um modo assustador:
ora um azul muito forte, ora vermelho como o sangue e depois
um tom prateado e frio. No meio de um reino branco de encanta-
mento, que tremulava diante dos seus olhos, ele despencou para
a frente, mergulhado em um labirinto confuso onde a única rea-
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lidade era o corpo branco e delgado que insistia em dançar à sua
frente, longe do seu alcance, cada vez mais longe do seu alcance.
Ele não se preocupou com aquele cenário estranho, nem
mesmo quando duas gigantescas figuras apareceram bem na sua
frente. As lâminas metálicas das armaduras dos dois homens es-
tavam cobertas de gelo. Havia neve nos seus cabelos e o olhar de
ambos era tão frio como as luzes que dançavam no céu, acima
deles.
— Irmãos! — gritou a mulher, dançando entre os dois.
—Vejam quem me segue! Trouxe-lhes um guerreiro para que o
matem! Arranquem seu coração, para que o possamos queimar
sobre a mesa de nosso pai!
Os gigantes lançaram um urro estranho, como o barulho
do gelo esfregando sobre a superfície congelada de um lago. Le-
vantaram seus machados de guerra, brilhando à luz das estrelas,
ao mesmo tempo em que o enlouquecido Conan se lançava con-
tra eles. Uma lâmina gelada passou bem perto dos seus olhos.
Com todas as forças que lhe restavam, ele desfechou um golpe
terrível que atingiu em cheio a perna do inimigo, na altura do
joelho.
A vítima caiu com um berro, e no mesmo instante Conan
foi atirado para trás, sentindo adormecer o ombro esquerdo, atin-
gido por um golpe repentino do machado do outro gigante. A
malha metálica de Conan quase não bastou para lhe salvar a vida.
Ele viu o sujeito em pé ao seu lado, como uma enorme estátua de
gelo, contrastando com o azul escuro do céu. O machado tom-
bou, mas mergulhou na neve branca, no instante em que Conan
rolou para o lado e, com uma inesperada agilidade, levantou-se
de um salto. O gigante urrou e levantou de novo o machado de
guerra. No mesmo instante, a espada de Conan assobiou no ar.
Os joelhos do inimigo se dobraram, e ele tombou devagar para
a frente, no meio da mancha vermelha formada pelo sangue que
jorrava do seu pescoço cortado em dois.
Conan virou-se para ver a garota parada a uma certa dis-
49
tância, com os olhos arregalados de horror. A expressão de zom-
baria desaparecera do rosto dela. Ele gritou e sua espada derra-
mou gotas de sangue quando as mãos dele tremeram por causa da
intensidade de sua paixão.
— Pode chamar todos os seus outros irmãos, — ele gri-
tou. — Darei os corações deles para os lobos! Você não vai me
escapar...
Com um grito de guerra ele disparou na direção da mulher.
Ela já não ria mais, nem lançava seus olhares de desafio sobre os
ombros brancos. Corria como quem teme pela vida. Embora ele
juntasse toda a força e energia de todos os seus músculos, até que
suas têmporas estivessem a ponto de explodir e seus olhos vissem
tudo vermelho à sua frente, ela conseguiu afastar-se, desapare-
cendo devagar sob o fogo misterioso do céu, até sua figura ficar
menor do que imagem de uma criança, dançando sobre a bran-
cura do gelo, um mero ponto na distância. Conan buscou todas as
suas reservas de energia, rangeu os dentes na boca e correu mais.
Logo, ela ficou apenas uns cem passos à sua frente. Lentamente,
metro a metro, a vantagem dela foi diminuindo.
Ela parecia não ter mais forças para correr, e seus cabe-
los dourados esvoaçavam ao ar. Ele ouviu a respiração cansada
e viu o brilho de medo nos olhos dela, quando a cabeça delicada
se voltou sobre os ombros alvos. A resistência selvagem daquele
bárbaro mostrava toda a sua utilidade. A velocidade foi desapa-
recendo das pernas dela. Seus passos já não eram tão seguros. Na
alma descontrolada de Conan brilhavam as chamas do inferno
que ela acabara de alimentar. Com um grito inumano, ele se apro-
ximou. A mulher tropeçou, deu um grito e ergueu os braços para
se defender.
A espada caiu por terra, quando ele a apertou num abraço
selvagem. O corpo delicado dobrou para trás, e a mulher lutou
com desespero tentando libertar-se dos braços fortes. Os cabelos
dourados esvoaçavam pelo rosto dele, cegando-lhe o olhar com
seu brilho. O contato com aquele corpo escultural, que se revolvia
50
tentando escapar dos seus braços, levou-o perto da loucura. Os
dedos fortes mergulharam na pele macia do corpo dela, fresco
como a neve gelada. Era como se abraçasse não uma mulher hu-
mana, de carne e osso, mas um corpo feito de gelo que queimava
de tão frio. Ela lançou a cabeça para um lado, lutando para evitar
os beijos ardentes de paixão, que machucavam seus lábios encar-
nados.
— Você é tão fria como a neve, — ele resmungou. — Mas
vou aquecê-la com o calor do meu próprio sangue...
Com um grito agudo e um esforço desesperado, a mulher
escorregou dos braços de Conan, deixando a roupa fina e trans-
parente no lugar onde ela estava antes. Saltou para trás e ficou
de frente para ele, com os cabelos louros desarrumados sobre o
rosto, os seios brancos tremendo como gelatina, os lindos olhos
irradiando um brilho apavorado. Durante uma fração de segun-
do ele ficou parado, estupefato diante da inacreditável beleza nua
que se erguia diante dele, em pleno campo gelado.
Naquele instante ela levantou os braços na direção das lu-
zes coloridas que iluminavam o céu e gritou, com uma voz estri-
dente que ecoaria para sempre nos ouvidos dele:
— Ymir! Ó meu pai, salve-me!
Conan saltava para a frente, com os braços abertos para
agarrá-la, no instante em que todo o céu, com o barulho de de-
zenas de raios estourando ao mesmo tempo, pareceu abrir-se em
uma única e gelada labareda. O corpo de marfim da jovem foi en-
volvido em uma língua de fogo azulado, tão intensa que o cimé-
rio teve de levar a mão aos olhos para se proteger do intolerável
brilho. Por um segundo todo o céu e as colinas geladas ficaram
envolvidos pelo fogo branco que lançava raios azulados e verme-
lhos como o sangue.
Então, Conan tropeçou e deu um grito. A mulher desa-
parecera no ar. A neve branca estava de novo vazia e silenciosa.
Muito acima de sua cabeça as luzes geladas da aurora boreal ain-
da dançavam no céu enlouquecido. No meio das distantes mon-
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tanhas azuis ecoava um trovão que mais parecia ser as rodas de
uma carruagem gigante correndo atrás de cavalos cujos cascos
arrancavam faíscas da neve e lançavam seu eco para o céu.
E a aurora boreal, as colinas cobertas de neve e os céus ilu-
minados começaram a girar diante dos olhos de Conan. Milhares
de bolas de fogo brilhavam com faíscas avermelhadas, e o próprio
céu transformou-se em uma gigantesca roda, lançando fagulhas
ao girar. Sob os seus pés a neve levantou-se como uma onda, e o
cimério tombou no gelo e ficou imóvel.
Em um universo escuro e gelado, cujo sol parecia ter-se
extinguido milhares de anos antes, Conan sentiu de repente o
movimento da vida, estranho e insuspeitado. Um verdadeiro ter-
remoto o havia agarrado e o sacudia com força, de um lado para
o outro, esfregando seus pés e mãos até que ele gritasse de dor e
tentasse agarrar a espada.
— Ele está voltando a si, Horsa, — disse uma voz. — De-
pressa! Temos de esfregar mais forte para espantar o frio de seus
membros, ou jamais levantará uma espada de novo!
— Não quer abrir a mão esquerda, — resmungou outra
pessoa. — Parece que está agarrando alguma coisa.
Conan abriu os olhos e examinou os rostos barbados que
se curvavam sobre ele. Estava cercado de enormes guerreiros lou-
ros, vestindo armaduras e capas de peles.
— Conan! — gritou um deles. — Está vivo!
— Em nome de Crom! É Niord, — balbuciou o cimério.
— Estou vivo mesmo ou estaríamos todos mortos, em Valhalla?
— Estamos vivos, — disse o aesir, curvado sobre os pés
gelados de Conan. — Tivemos de enfrentar uma emboscada e
não pudemos alcançar vocês antes da batalha. Os mortos estavam
todos gelados quando chegamos ao campo. Não o encontramos
entre eles, e então seguimos os seus rastros. Em nome de Ymir,
Conan, por que diabos correu para a vastidão do Norte? Passa-
mos horas seguindo os seus rastros pela neve. Se uma tempestade
as tivesse apagado nós jamais o teríamos encontrado. Por Ymir!
52
— É melhor não usar o nome de Ymir em vão o tempo
todo, — resmungou um dos guerreiros, olhando para as mon-
tanhas distantes. — Esta terra é o lar dele, e as lendas dizem que
mora atrás daquelas montanhas.
— Vi uma mulher, — respondeu Conan. — Enfrentamos
os homens de Bragi na planície. Não sei quanto tempo durou a
batalha. Fui o único a sobreviver. Fiquei tonto e desmaiei. Tudo
parecia um sonho diante dos meus olhos. Só agora as coisas pare-
cem mais naturais e conhecidas. A mulher apareceu e me provo-
cou. Era maravilhosa, como uma chama gelada vinda do inferno.
Uma loucura estranha tomou conta de mim quando olhei para
ela, de modo que me esqueci de tudo no mundo. E a segui. Não
encontraram os rastros dela? Nem os gigantes de armadura que
matei lá atrás?
Niord balançou a cabeça.
— Só encontramos os seus rastros na neve, Conan.
— Então devo ter enlouquecido, — resmungou Conan,
confuso. — Mas, para os meus olhos, vocês não são mais reais
do que era aquela linda mulher de pele clara e cabelos dourados
que corria nua pela neve, na minha frente. De um momento para
o outro, ela escapou das minhas mãos e desapareceu no meio de
uma labareda gelada.
— O sujeito está delirando, — disse um dos guerreiros.
— Nada disso, — interrompeu um homem mais velho,
cujo olhar era selvagem e estranho. — Era Atali, a filha de Ymir,
o gigante de gelo! Ela sempre aparece no campo dos mortos e se
mostra aos que estão no fim. Quando era menino eu mesmo a vi,
quando estava à morte no campo ensanguentado de Wolfraven.
Apareceu entre os mortos na neve, o corpo nu brilhando como
marfim e os cabelos dourados reluzindo intensamente à luz do
luar. Fiquei deitado ali e urrei como um cachorro moribundo,
porque não podia ir atrás dela. Atali costuma atrair os homens
para o norte gelado, para serem mortos por seus irmãos, os gi-
gantes da neve, que costumam colocar o coração de suas vítimas
53
sobre a mesa de Ymir. O cimério viu Atali, a filha do Gigante do
Gelo!
— Qual nada! — resmungou Horsa. — A mente do velho
Gorm foi ferida quando ele era jovem, por um golpe de espada
na cabeça. Conan estava delirando por causa da fúria da batalha.
Vejam como o capacete dele está manchado de sangue. Um golpe
como esses que ele levou deve ter atingido seu cérebro. Foi uma
alucinação que ele seguiu para esta terra perdida. Ele vem do Sul:
como poderia saber sobre Atali?
— Talvez você fale a verdade, — interrompeu Conan. —
Foi tudo tão estranho e confuso... Por Crom!
O cimério sentiu os olhos marejarem, quando notou o
objeto que ainda tinha na mão. Os guerreiros se calaram, con-
templando em silêncio aquilo que ainda se encontrava na mão
esquerda de Conan. Um véu brilhante muito fino... Um pedaço
de renda jamais visto por um tear humano.
54
A Torre do
Elefante
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56
1
Tochas tremeluziam sombriamente nas festas do Beco,
onde os ladrões do Leste faziam carnaval à noite. No Beco, eles
podiam fazer quanta algazarra e gritaria quisessem, pois as pes-
soas honestas evitavam esse bairro, e os guardas, bem pagos com
dinheiro sujo, não interferiam na diversão deles. Ao longo das
ruas tortuosas e sem pavimentação, com montes de lixo e poças
lamacentas, cambaleavam vociferando os bêbados briguentos. O
aço brilhava nas sombras de onde vinham o riso estridente das
mulheres e os ruídos de arruaça e luta. A luz das tochas flamejam
tênues das janelas quebradas e portas escancaradas, e emanava
o mau cheiro de vinho azedado e de corpos suados, o clamor de
bêbados e o bater de punhos sobre mesas grosseiras, as animadas
canções obscenas, lançadas como uma bofetada.
Numa dessas espeluncas, a diversão trovejava até o telhado
baixo manchado pela fumaça, onde os vagabundos se reuniam
vestidos com toda espécie de farrapos — eram batedores de car-
teira, astutos raptores, ladrões de dedos ligeiros, vociferando ex-
clamações animadas com suas meretrizes de vozes estridentes,
vestidas com suntuosos vestidos de gosto duvidoso.
O elemento dominante eram os vagabundos do lugar —
57
zamorianos de pele e olhos escuros, com sabres em seus cintos e
fel em seus corações. Mas lá estavam também alguns lobos vindos
de meia dúzia de nações do interior. Havia um gigante hiperbo-
riano renegado, taciturno, perigoso, com uma espada amarrada
ao seu enorme corpanzil terrível — pois, no Beco, os homens
carregavam o aço abertamente. Havia um contraventor shemita,
com seu nariz adunco e barba encaracolada negro-azulada. Ha-
via uma prostituta brituniana de olhos ousados, sentada no colo
de um gunderman de cabelos castanhos — um soldado merce-
nário nômade, desertor de algum exército derrotado. E o gordo
indecente, cujas piadas picantes provocavam gargalhadas, era um
raptor profissional vindo da longínqua Koth para ensinar como
raptar as mulheres dos zamorianos, que nasceram com mais co-
nhecimento dessa arte do que ele jamais conseguiria obter. Este
homem interrompeu sua descrição dos encantos de uma futura
vítima e enfiou sua cara num enorme caneco de cerveja espu-
mante. Em seguida, soprando a espuma de seus lábios gordos,
disse:
— Por Bel, deus de todos os ladrões, eu lhes mostro como
roubar prostitutas; eu a farei passar pela fronteira zamoriana an-
tes do amanhecer, e haverá uma caravana esperando para recebê-
la. Trezentas peças de prata foi o que um conde de Ophir me pro-
meteu em troca de uma esguia jovem brituniana da classe mais
alta. Levei semanas andando pelas cidades fronteiriças disfarçado
de mendigo para encontrar uma que servisse. E essa é uma linda
peça!
Ele jogou no ar um beijo obsceno.
— Conheço alguns lordes em Shem que negociariam o se-
gredo da Torre do Elefante em troca dessa jovem — disse, voltan-
do à sua cerveja.
Um toque na manga de sua túnica o fez voltar a cabeça,
resmungando por ter sido interrompido. Em pé a seu lado estava
um jovem alto e robusto. Estava tão deslocado naquela espelunca
quanto um lobo cinzento entre ratos famintos nos bueiros. Sua
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túnica barata não conseguia esconder as linhas duras, bem pro-
porcionadas de sua estatura poderosa, os ombros largos e pesa-
dos, o peito maciço, a cintura delgada e os braços pesados. Sua
pele estava tostada pelo sol dos campos, seus olhos eram azuis
e ardentes; uma negra cabeleira emaranhada coroava sua fronte
larga. Do seu cinturão pendia uma espada numa bainha de couro
surrado.
O kothiano recuou involuntariamente; pois o homem não
pertencia a nenhuma raça civilizada que ele conhecia.
— Você falou da Torre do Elefante — disse o estranho, fa-
lando o zamoriano com um sotaque estrangeiro — Ouvi muitas
histórias sobre a Torre. Qual é seu segredo?
O camarada não parecia ameaçador, a cerveja e a evidente
aprovação de sua audiência deixaram o kothiano todo cheio de si.
— O segredo da Torre do Elefante? — exclamou — Ora,
qualquer idiota sabe que Yara, o sumo sacerdote, mora lá com
uma grande pedra preciosa chamada Coração do Elefante, que é
o segredo de sua feitiçaria.
O bárbaro ficou digerindo a informação por algum tempo.
— Eu vi essa torre — disse ele — Ela fica no meio de um
grande jardim a um nível acima da cidade, cercada por muros
altos. Não vi nenhum guarda. Seria fácil pular o muro. Por que
ninguém roubou ainda essa jóia?
O kothiano arregalou os olhos e abriu a boca, pasmo com
a simplicidade do outro, em seguida caiu numa gargalhada e os
outros o acompanharam.
— Ouçam este pagão! — vociferou ele — Ele quer roubar
a jóia de Yara! Ouçam, camaradas — disse ele, voltando-se sole-
nemente para o jovem —, suponho que você seja alguma espécie
de bárbaro do Norte...
— Sou da Ciméria — respondeu o estrangeiro, num tom
nada amistoso. A resposta e a maneira como ela foi dita pouco
significavam para o kothiano; nada sabia sobre um reino que fica-
va longe ao sul, nas fronteiras de Shem. Só ouvia falar vagamente,
59
sobre as raças do Norte.
—Então abra os ouvidos e fique esperto, camarada — dis-
se ele, apontando com seu caneco para o jovem desconcertado
— Saiba que em Zamora, principalmente nessa cidade, existem
mais ladrões destemidos que em qualquer outro lugar do mun-
do, mesmo em Koth. Se um mortal pudesse roubar a jóia, tenha
a certeza de que ela já teria sido roubada há muito tempo. Você
fala em pular o muro, mas uma vez tendo pulado, você deseja-
ria imediatamente estar de volta. Não existem guardas no jardim
por uma razão muito boa. Lá não há guardas humanos, embora
na parte baixa da Torre, homens armados a vigiem. E, mesmo se
você passasse por aqueles que fazem a ronda dos jardins à noite,
ainda teria de passar pelos soldados, pois a jóia está guardada em
algum lugar, bem lá no alto da Torre.
— Mas se um homem conseguisse passar pelos jardins —
argumentava o cimério — por que não poderia chegar até a jóia
pela parte superior da Torre, evitando assim os soldados?
Novamente o kothiano ficou pasmado com ele.
— Ouçam este camarada! — gritou ele com escárnio — O
bárbaro pensa que é uma águia que pode voar até a borda da Tor-
re, que está apenas a cinco metros acima do solo, com seus lados
arredondados mais lisos que vidro polido!
O cimério olhou ao redor, embaraçado com a trovoada de
gargalhadas que a sua observação provocara. Ele não via nada de
engraçado nisso e ainda conhecia pouco da civilização para en-
tender o que era falta de cortesia. Os homens civilizados são mais
maleducados que os selvagens, porque eles sabem que podem fal-
tar com a cortesia sem ter o crânio despedaçado. Ele estava emba-
raçado e envergonhado e, sem dúvida, teria ido embora sentindo-
se humilhado, mas o kothiano quis continuar a rebaixá-lo.
— Vamos! Vamos! — gritou ele — Diga pra esses pobres
camaradas, que são ladrões há muito, mesmo antes de você ter
sido gerado, diga para eles como é que você pretende roubar a
jóia!
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— Existe sempre uma maneira, se a vontade estiver asso-
ciado à coragem — respondeu abruptamente o cimério irritado.
O kothiano resolveu tomar isso como afronta pessoal. Seu
rosto ficou rubro de raiva.
— O quê?! — esbravejou ele — Você ousa nos dizer como
devemos proceder e insinua que somos covardes? Suma da mi-
nha frente! — esbravejou, empurrando o cimério com violência.
— Você zomba de mim e depois quer pôr as mãos em
mim? — esquentou-se o bárbaro, pronto para despejar sua fú-
ria; e devolveu o empurrão com um soco que jogou seu ofensor
contra a mesa tosca. A cerveja espirrou da boca do tratante, e o
kothiano foi desembainhando a espada, trovejando de fúria.
— Cão do inferno! — vociferou ele — Vou arrancar seu
coração por isso!
O aço faiscou e a multidão precipitou-se abrindo cami-
nho. Em sua fuga, eles derrubaram a única vela acesa e a taverna
mergulhou na escuridão. Só se ouvia o ruído de bancos caindo,
o trotar de pés em fuga, os gritos, as pragas quando trombavam
uns com os outros, e um grito estridente de agonia que cortou a
espelunca como uma faca. Quando acenderam uma vela, a maio-
ria dos fregueses havia desaparecido pela porta e pelas janelas
quebradas, e o resto se escondia embaixo das mesas e atrás das
pilhas de barris de vinho. O bárbaro se fora; o centro da sala es-
tava deserto com exceção do corpo ensanguentado do kothiano.
O cimério, com seu infalível instinto selvagem, havia matado seu
oponente em meio à escuridão e confusão.
61
2
O cimério deixou para trás as luzes lúgubres e a orgia de
bêbados. Ele tinha abandonado sua túnica rasgada e caminhava
seminu pela noite, vestido apenas com uma tanga e calçado com
suas sandálias de tiras. Ele se movia com a agilidade de um enor-
me tigre, com seus músculos retesados sob a pele escura.
Ele havia penetrado na parte da cidade reservada aos tem-
plos. De todos os lados, eles refletiam sua brancura à luz das es-
trelas — pilares de mármore branco como a neve, cúpulas doura-
das e arcos prateados, santuários dos inúmeros estranhos deuses
zamorianos. Não se preocupava com eles; sabia que a religião de
Zamora, como todas as coisas de um povo civilizado e antigo,
era muito complicada e tinha perdido a maior parte da essência
primordial, numa confusão de fórmulas e de rituais. Ele havia fi-
cado de cócoras durante horas nos pátios dos filósofos, ouvindo
as discussões dos teólogos e dos mestres, e acabara confuso e de-
sorientado, certo apenas de uma coisa, isto é, que todos eles eram
malucos.
Os deuses dele eram mais simples e compreensíveis; Crom
era o chefe, e vivia numa montanha enorme, de onde enviava
destruição e morte. Era inútil chamar por Crom, porque ele era
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um deus sinistro e selvagem, e odiava os fracos. Mas ele dava co-
ragem ao homem por ocasião de seu nascimento; a vontade e o
poder para matar seus inimigos, o que, na cabeça do cimério, era
tudo o que se esperava de um deus.
Seus pés calçados não faziam ruído sobre o pavimento re-
luzente. Nenhuma sentinela passava, pois nem mesmo os ladrões
do Beco invadiam os templos, onde se sabia que maldições estra-
nhas recaíam sobre os violadores. À sua frente, ele vislumbrou a
Torre do Elefante, cuja silhueta tenebrosa se destacava no céu. Ele
se perguntava porque aquela torre se chamava assim. Ninguém
sabia. Jamais havia visto um elefante, mas entendia vagamente
que era um animal monstruoso, que tinha uma cauda na frente
e outra, pequena, atrás. Quem lhe contara isto fora um shemita
nômade, jurando que havia visto milhares desses animais no país
dos hirchanianos; mas todos sabiam como eram mentirosos es-
ses homens de Shem. De qualquer forma, não havia elefantes em
Zamora.
O corpo tremeluzente da Torre erguia-se como gelo ao en-
contro das estrelas. À luz do sol, reluzia de maneira tão estontean-
te que poucos aguentavam olhar para ela, e os homens diziam que
era feita de prata. Era redonda, um cilindro delgado e perfeito,
com cinco metros de altura, e sua borda incrustada com enormes
pedras preciosas brilhava à luz das estrelas. A Torre se erguia en-
tre as exóticas árvores ondulantes de um jardim cultivado bem
acima do nível geral da cidade. Um muro alto circundava este
jardim, e fora dos muros havia um nível inferior, também cercado
por um muro. Nenhuma luz ardia na Torre; parecia que ela não
tinha janelas, ao menos não acima da altura no muro interno.
Bem mais acima, somente as pedras preciosas reluziam geladas à
luz das estrelas.
Um matagal espesso crescia do lado de fora do muro ex-
terno, mais baixo. O cimério arrastou-se furtivamente até ele e
parou, medindo-o com o olhar. Era alto, mas ele seria capaz de
pular e se agarrar na beirada. Depois, seria brincadeira de criança
63
içar-se e pular por cima do muro, e ele não duvidava que po-
deria passar pelo muro interior da mesma maneira. Mas Conan
hesitava ao pensar sobre os estranhos perigos que se dizia que o
aguardariam do lado de dentro. Essas pessoas eram-lhe estranhas
e misteriosas; não pertenciam à sua espécie — nem mesmo eram
do seu sangue como os brithunianos mais a oeste, os nemédios,
os kothianos e os aquilonianos. Tempos atrás, ele havia ouvido
sobre aqueles mistérios civilizados. O povo de Zamora era muito
antigo e, pelo que tinha visto, muito mau.
Ele pensou em Yara, o sumo sacerdote, que elaborava es-
tranhas destruições nessa Torre ornamentada, e os cabelos do ci-
mério se eriçaram quando ele se lembrou de uma história contada
por um pajem embriagado da Corte zamoriana — de como Yara,
rindo na cara de um príncipe hostil, erguera uma pedra preciosa
reluzente e maléfica diante dele, e de como essa pedra infernal
emitira raios ofuscantes que envolveram o príncipe, que caiu aos
berros e se encolheu até virar um montículo seco e enegrecido;
depois esse montículo se transformou numa aranha negra que,
após correr selvagemente pelo salão, foi terminar esmagada sob
o calcanhar de Yara.
Yara não costumava sair de sua torre de feitiços, e sempre
que o fazia era para fazer o mal para algum homem ou alguma
nação. O rei de Zamora tinha mais medo dele do que da morte,
e se mantinha embriagado a maior parte do tempo porque este
medo era tão grande que só podia aguentá-lo nesse estado de tor-
por. Yara era muito velho — tinha séculos de idade, assim diziam
os homens, acrescentando que ele iria viver para sempre por cau-
sa do feitiço de sua pedra preciosa que os homens chamavam de
Coração de Elefante; por essa razão, chamaram o seu refugio de
Torre do Elefante.
O cimério, absorto nesses pensamentos, de repente se co-
lou ao muro. Havia alguém caminhando a passos medidos dentro
do jardim. Ouviu o tilintar do aço. Então, afinal, havia de fato
guardas naquele jardim. O cimério esperou pelos seus passos na
64
ronda seguinte; mas o silêncio se estendia sobre os jardins cheios
de mistério.
Finalmente, a curiosidade tomou conta dele. Saltando com
leveza, agarrou o muro e se jogou no topo. Deitado sobre a bei-
rada larga, observou o espaço vazio entre os muros, com apenas
alguns arbustos cuidadosamente aparados perto do muro inter-
no. A luz das estrelas caía sobre o gramado regular e ouvia-se o
borbulhar de uma fonte que estava invisível.
O cimério se abaixou cautelosamente para o lado de dentro
e desembainhou a espada, olhando ao redor. Nervoso por estar
desprotegido à luz das estrelas, caminhou pé ante pé ao longo da
curva do muro, tateando, até se aproximar dos arbustos que ha-
via notado antes. Então, correu agachado em sua direção e quase
atropelou um vulto deitado à beira dos arbustos.
Uma rápida olhada à direita e à esquerda não revelou
nenhum inimigo, nenhum inimigo pelo menos à vista, e ele se
curvou para investigar. Seus olhos vivos, mesmo na penumbra,
mostraram-lhe um homem robusto vestido com a armadura pra-
teada e com o capacete em pontas da guarda real de Zamora. Um
escudo e uma lança jaziam a seu lado, e num instante percebeu
que o homem havia sido estrangulado. O bárbaro olhou ao redor,
indeciso. Ele sabia que o homem devia ser o guarda que ele havia
escutado passar por seu esconderijo ao lado do muro. Nesse cur-
to intervalo, mãos desconhecidas haviam estrangulado o soldado.
Forçando os olhos na penumbra, viu um indício de movi-
mento nos arbustos perto do muro. Mergulhou naquela direção,
segurando a espada com força. Não fez mais ruído do que uma
pantera esgueirando-se pela noite, no entanto, o homem que ele
estava espreitando ouvira. O cimério sentiu alívio ao perceber
que pelo menos era um ser humano; em seguida, num sobressal-
to de pânico, o camarada deu um rápido giro, fez menção de se
lançar para a frente, as mãos cerradas, mas quando a lâmina do
cimério reluziu à luz das estrelas, recuou. Por um tenso instante
nenhum deles falou, os dois prontos para qualquer coisa.
65
—Você não é soldado! — sibilou o estranho finalmente —
Você é um ladrão como eu.
— E quem é você? — perguntou o cimério, num sussurro
cheio de suspeitas.
— Taurus da Nemédia.
O cimério abaixou sua espada.
— Já ouvi falar de você. Chamam-no de Príncipe dos La-
drões.
Uma risada baixa foi a resposta. Taurus era tão alto quanto
o cimério, porém mais gordo, seu ventre era grande, mas cada
movimento seu era imbuído de um sutil magnetismo dinâmico
que se refletia em seus olhos penetrantes e brilhantes, cheios de
vitalidade. Ele estava descalço e carregava um rolo que parecia
uma corda fina e forte, com nós amarrados a intervalos regulares.
— Quem é você? — sussurrou ele.
— Conan, da Ciméria — respondeu o outro — Estou pro-
curando uma maneira de roubar a jóia de Yara, que os homens
chamam de Coração do Elefante.
Conan percebeu que o ventre enorme do homem se sacu-
dia com o riso, mas não era um riso de desprezo.
— Por Bel, deus dos ladrões! — sibilou Taurus — Pensei
que somente eu tivesse a coragem de tentar essa façanha. Esses
zamorianos se denominam ladrões — Bah! Conan, gosto da sua
audácia. Eu nunca compartilhei uma aventura com alguém; mas,
por Bel, tentaremos isso juntos, se você quiser.
— Então você também está atrás da jóia?
— Que lhe parece? Planejei durante meses; mas você, meu
amigo, acho que agiu por impulso.
— Você matou o soldado?
— É claro. Passei pelo muro quando ele estava do outro
lado do jardim. Escondi-me nos arbustos; ele me ouviu, ou pen-
sou que tivesse ouvido alguma coisa. Quando veio procurando,
não foi difícil esgueirar-me atrás dele e agarrar de repente seu
pescoço e estrangulá-lo. Ele estava, como a maioria dos homens,
66
meio cego na escuridão. Um bom ladrão deve ter os olhos de um
gato.
— Você cometeu um único erro — disse Conan.
Os olhos de Taurus faiscaram com fúria.
— Eu? Eu, um erro? Impossível!
— Você deveria ter arrastado o corpo para dentro dos ar-
bustos.
— Disse o aprendiz ao mestre da arte. Eles só trocarão a
guarda depois da meia-noite. Se alguém vier à sua procura agora
e encontrar o corpo, irá correndo avisar Yara, e assim teremos
tempo para fugir. Se não o encontrassem, iriam bater nos arbus-
tos e nos apanhariam como ratos numa ratoeira.
Você tem razão — concordou Conan.
— Então. Agora preste atenção. Estamos perdendo tempo
com esta maldita discussão. Não há guardas no jardim interno,
guardas humanos, quero dizer, embora haja sentinelas ainda mais
mortíferas. Foi isso que me barrou tanto tempo, mas finalmente
descobri uma maneira de dominá-las.
— E os soldados na parte inferior da torre?
— O velho Yara mora nos aposentos superiores. É por
aquele caminho que iremos, e voltaremos, assim espero. Não se
preocupe em me perguntar como. Eu arrumei um jeito. Vamos
nos esgueirar pelo topo da Torre e estrangular o velho Yara antes
que ele possa lançar um de seus malditos feitiços sobre nós. Pelo
menos vamos tentar; é o risco de sermos transformados numa
aranha ou num sapo, contra a riqueza e o poder do mundo. Todos
os bons ladrões devem saber se arriscar.
— Eu irei até onde um homem pode ir — disse Conan,
tirando suas sandálias.
— Então, siga-me — e, voltando-se, Taurus saltou para
cima, agarrou o muro e subiu. O agilidade do homem era espan-
tosa, considerando seu tamanho; ele parecia quase deslizar por
cima da beirada do muro. Conan o seguiu e, deitados sobre o
topo largo, falaram por sussurros.
67
— Não vejo luz alguma — murmurou Conan. A parte infe-
rior da Torre parecia-se muito com aquela porção visível do lado
de fora do muro — É um perfeito cilindro reluzente, sem nenhu-
ma abertura aparente.
— Existem portas e janelas disfarçadas — respondeu Tau-
rus — mas estão fechadas. Os soldados respiram o ar que vem de
cima.
O jardim era uma poça nebulosa de sombras, onde arbus-
tos fofos e árvores baixas e frondosas acenavam à luz das estre-
las. A alma cansada de Conan sentia a ameaça que espreitava no
jardim. Ele sentia a presença de olhos invisíveis queimando na
escuridão e percebeu um cheiro sutil que eriçou seus cabelos ins-
tintivamente como o cheiro de um velho inimigo eriça o pêlo de
um cão de caça.
— Siga-me — sussurrou Taurus —, fique atrás de mim se
dá valor à sua vida.
Tirando do seu cinto algo que se parecia com um tubo de
cobre, o nemédio andou pé ante pé até o gramado do lado de den-
tro do muro. Conan o seguia de perto, a espada de prontidão, mas
Taurus empurrou-o para trás, para perto do muro, e não mos-
trou nenhuma tendência a avançar. Sua atitude toda era de tensa
expectativa, e seu olhar, assim como o de Conan, estava fixo na
massa sombria dos arbustos a alguns passos dali. Esses arbustos
se mexiam, embora a brisa tivesse parado de soprar. Então dois
olhos enormes faiscaram das sombras ondulantes e atrás deles
outras línguas de fogo brilharam na escuridão.
— Leões! — murmurou Conan.
— Sim. De dia eles são guardados nas cavernas subterrâne-
as abaixo da Torre. É por isso que não há guardas humanos nesse
jardim.
Conan contou rapidamente os olhos.
— Cinco à vista; talvez mais deles atrás dos arbustos. Ele
vão atacar num minuto...
— Fique quieto! — sibilou Taurus, e desprendeu-se do
68
muro, cautelosamente, como se estivesse caminhando em cima
de navalhas, erguendo o tubo delgado. Ouviram-se grunhidos
baixos nas sombras, e os olhos chamejantes se adiantaram. Co-
nan podia ver as enormes mandíbulas salivantes, as caudas com
tufos na ponta batendo nos flancos escuros. A tensão aumentava
— o cimério agarrou sua espada, esperando o ataque daqueles
corpos gigantescos. Então Taurus soprou o tubo com força. Um
longo jato de pó amarelado saiu do outro lado do tubo e se trans-
formou instantaneamente numa espessa nuvem verde-amarelada
que se instalou sobre os arbustos, escondendo os olhos faiscantes.
Taurus voltou correndo até o muro. Conan olhava sem en-
tender. A nuvem espessa escondia os arbustos, e de lá não vinha
som algum.
— O que é esta névoa? — perguntou o cimério hesitante.
— Morte! — sibilou o nemédio — Se um vento soprá-la em
cima de nós, devemos fugir o mais depressa que pudermos para
o outro lado do muro. Mas não, o vento está parado, e agora a né-
voa está se dissipando. Espere até que desapareça por completo.
Respirar isto é morte certa.
No momento, restavam apenas alguns resíduos amarela-
dos suspensos no ar como fantasmas; em seguida desapareceram,
e Taurus impeliu seu companheiro para a frente. Eles se esguei-
raram em direção dos arbustos, e Conan parou estupefato. Cinco
enormes vultos marrons estavam estendidos nas sombras; o fogo
de seus olhos sinistros estava apagado para sempre. Um cheiro
adocicado, enjoativo, ainda pairava no ar.
— Eles morreram sem fazer ruído algum! — murmurou o
cimério — Taurus, o que era aquele pó?
— Era feito de extrato do lótus negro, cujas flores crescem
nas selvas perdidas de Khitai, onde moram apenas os sacerdotes
de crânio amarelo de Yun. Essas flores matam quem as cheirar.
Conan ajoelhou-se ao lado das enormes formas, certifican-
do-se de que estavam realmente inofensivas. Ele sacudia a cabeça;
a magia das terras exóticas era misteriosa e terrível para o bárbaro
69
vindo do Norte.
— Por que você não mata os soldados da Torre da mesma
maneira? — perguntou ele.
— Porque era tudo o que eu tinha. Obter esse pó foi uma
façanha que por si só já me tornaria famoso entre os ladrões do
mundo. Eu o roubei de uma caravana que se dirigia para Stygia;
estava num saco de tecido dourado, guardado por uma enor-
me serpente. E consegui tirá-lo sem despertá-la. Mas venha, em
nome de Bel! Vamos desperdiçara noite discutindo?
Eles deslizaram pelos arbustos até o pé da torre reluzente, e
ali, com um gesto pedindo silêncio, Taurus desenrolou sua corda
de nós que tinha em uma das extremidades um forte gancho de
aço. Conan percebeu seu plano e não fez perguntas, enquanto o
nemédio agarrava a corda um pouco abaixo do gancho e come-
çava a girá-la acima da cabeça. Conan colou o ouvido no muro
liso, mas não ouvia nada. Evidentemente os soldados que esta-
vam dentro não suspeitavam da presença de invasores, que não
faziam mais barulho do que o vento noturno soprando entre as
árvores. Mas um nervosismo estranho tomou conta do bárbaro;
talvez fosse o cheiro de leão que predominava no local.
Taurus jogou a corda com um movimento poderoso e sua-
ve de seu braço musculoso. O gancho curvou-se para cima e para
dentro, de uma maneira peculiar, difícil de descrever, e desapare-
ceu por cima da borda ornamentada. Aparentemente parecia ter-
se firmado bem, pois os puxões vigorosos não o tiraram do lugar.
— Sorte no primeiro arremesso! — murmurou Taurus —
Eu...
Foi o instinto selvagem de Conan que o fez girar abrupta-
mente; pois a morte que estava sobre eles aproximara-se em total
silêncio. Um relance instantâneo mostrou ao cimério a gigantesca
forma escura, erguendo-se contra as estrelas, prestes a desferir o
golpe mortal. Nenhum homem civilizado poderia ter se movi-
do com a metade da rapidez do bárbaro. Sua espada relampejou
como gelo à luz das estrelas, impulsionada por cada grama de
70
nervos e músculos desesperados, homem e animal caíram juntos.
Praguejando incoerentemente, Taurus curvou-se sobre a
massa e viu seu companheiro debater-se tentando se livrar do
enorme peso que o esmagava. Num relance o nemédio espantado
viu que o leão estava morto, com o crânio despedaçado. Ele agar-
rou a carcaça e, com sua ajuda, Conan rastejou para o lado e se
ergueu, ainda agarrando sua espada gotejante.
— Você está ferido, homem? — arfou Taurus, ainda confu-
so com a estonteante rapidez desse episódio.
— Não, por Crom! — respondeu o bárbaro — Mas foi por
um triz. Por que esse maldito animal não rugiu quando nos ata-
cou?
— Todas as coisas nesse jardim são estranhas — disse Tau-
rus —. Os leões atacam silenciosamente, assim como outras mor-
tes. Vamos, houve pouco barulho nessa matança, mas os soldados
podem ter ouvido, se não estiverem dormindo ou embriagados.
Esse animal estava em algum outro lugar do jardim e escapou da
morte causada pelo veneno, mas certamente não há mais leões.
Devemos subir por esta corda; não preciso perguntar a um cimé-
rio se ele consegue.
— Se ela aguentar o meu peso — grunhiu Conan, limpan-
do sua espada na grama.
—Ela aguenta três vezes o meu — respondeu Taurus —
Foi tecida com as tranças de mulheres mortas, roubadas de seus
túmulos à noite. Para torná-la ainda mais forte, eu a mergulhei
no vinho mortífero da árvore upas. Eu vou primeiro, me siga de
perto.
O nemédio agarrou a corda e, apoiando o joelho numa la-
çada, começou a subida; ele subia como um gato, compensando
seu corpo aparentemente desajeitado. O cimério o seguiu. A cor-
da balançava e girava em torno de si mesma, mas os dois não se
deixaram intimidar; ambos já haviam realizado escaladas muito
mais difíceis. A borda ornada projetava-se perpendicularmente
ao muro, de maneira que a corda pendia talvez a uma distância
71
de meio metro do lado da Torre, fato que facilitava enormemente
a subida.
Enquanto os dois subiam silenciosamente, as luzes da ci-
dade foram se afastando mais e mais, as estrelas acima deles iam
ficando cada vez mais ofuscadas pelo brilho das jóias ao longo
da borda. Então Taurus alcançou a borda com a mão, içando-
-se para cima. Conan se deteve por um momento na beirada,
fascinado com as enormes pedras preciosas cujo brilho gelado
ofuscava seus olhos — diamantes, rubis, esmeraldas, safiras, tur-
quesas, opalas, incrustadas como estrelas na prata reluzente. Ao
longe, seus reflexos diferentes pareciam fundir-se num único bri-
lho branco pulsante; mas agora, de perto, elas brilhavam com um
milhão de tons do espectro, hipnotizando-o com suas cintilações.
— Aqui há uma fortuna fabulosa, Taurus — sussurrou ele;
mas o nemédio respondeu impaciente — Vamos! Se conseguir-
mos o Coração, essas e todas as outras coisas serão nossas.
Conan passou por cima da beirada reluzente. O nível do
topo da Torre estava a alguns metros abaixo da beirada ornada.
Era liso, composto de alguma substância azul-escura, incrustada
com ouro que refletia a luz das estrelas, de maneira que o todo
parecia como uma enorme safira salpicada com pó de ouro. Do
outro lado de onde eles haviam entrado havia uma espécie de
sala construída sobre o telhado. Era do mesmo material prateado
das paredes da Torre, adornada com desenhos trabalhados com
pedras menores; sua única porta era de ouro, com a superfície
recortada em escamas e incrustada com pedras preciosas que re-
luziam como gelo.
Conan lançou um olhar no oceano pulsante de luzes que se
estendia abaixo deles, em seguida olhou para Taurus. O nemédio
recolhia e enrolava a corda. Ele mostrou a Conan onde o gancho
havia se fixado — uma fração de centímetro da ponta havia se
enterrado sob uma enorme pedra preciosa do lado de dentro da
borda.
— A sorte estava de novo do nosso lado — murmurou ele
72
— Nosso peso poderia ter arrancado esta pedra. Siga-me; os ver-
dadeiros riscos da aventura começam agora. Estamos na toca da
serpente, e não sabemos onde ela está escondida.
Arrastaram-se como tigres pelo chão escuro e pararam na
porta de ouro. Com toda a cautela, Taurus tentou abri-la. Ela ce-
deu sem oferecer resistência alguma, e os companheiros espiaram
para dentro, tensos, esperando por qualquer coisa. Por cima do
ombro do nemédio, Conan viu uma câmara reluzente, as paredes,
o teto e o chão da qual estavam incrustados com enormes pedras
brancas, que pareciam ser sua única iluminação. Não se via ser
vivo algum.
— Antes de cortar nossa única via de retirada — sibilou
Taurus — vá até a borda e olhe em todas as direções; se avistar um
soldado nos jardins, ou qualquer coisa suspeita, volte e me avise.
Vou esperar por você nesta sala.
Conan não viu razão alguma para fazer isto, e uma leve
suspeita de seu companheiro tocou sua alma cansada, mas ele
fez o que Taurus pedira. Quando saiu, o nemédio deslizou para
dentro e fechou a porta. Conan rastejou por toda a volta da borda
da torre, voltando para o ponto de início sem ter visto nenhum
movimento suspeito no mar ondulante de folhas embaixo. Vol-
tou para a porta — de repente, dentro da sala, ouviu-se um grito
estrangulado.
O cimério saltou para a frente, eletrificado — a porta relu-
zente abriu-se e lá estava Taurus emoldurado pelo frio esplendor
às suas costas. Ele cambaleou e entreabriu os lábios mas somente
um engasgo seco saiu de sua garganta. Agarrando-se à porta dou-
rada, ele precipitou-se para o telhado, em seguida caiu de cabeça,
apertando a garganta. A porta se fechou atrás dele.
Conan, agachando-se como uma pantera à espreita, nada
viu na sala atrás do nemédio, no breve instante em que a porta fi-
cou entreaberta — a não ser por um truque de luz que fez parecer
como se uma sombra passasse pelo chão reluzente. Nada seguiu
Taurus para o telhado, e Conan curvou-se sobre o homem.
73
O nemédio estava de olhos arregalados, as pupilas dilata-
das, cheias de algo terrível e espantoso. Suas mãos apertavam a
garganta, os lábios tremiam e balbuciavam algo incompreensível;
em seguida, ele ficou inerte, e o espantado cimério percebeu que
Taurus estava morto, sem saber o que o havia atingido. Conan
fixou os olhos na misteriosa porta dourada. Naquela sala vazia,
com suas reluzentes paredes ornadas de jóias, a morte havia al-
cançado o príncipe dos ladrões tão rápida e misteriosamente
quanto ele havia matado os leões no jardim abaixo.
Hesitante, o bárbaro passou as mãos sobre o corpo semi-
nu do homem, procurando uma ferida. Mas as únicas marcas de
violência que encontrou entre os ombros, perto da base de seu
pescoço, foram três pequenas feridas, que pareciam ter sido feitas
por três unhas enterradas na carne. A carne em volta dessas feri-
das estavam enegrecidas, e exalavam um leve cheiro de putrefa-
ção. Dardos envenenados? pensou Conan — mas nesse caso, eles
ainda deveriam estar nos ferimentos.
Cautelosamente, ele se esgueirou em direção da porta dou-
rada, empurrou-a e espiou para dentro. A sala estava vazia, ba-
nhada pela luz pulsante e fria de milhares de pedras preciosas. No
centro do teto havia um desenho esquisito — um padrão octo-
gonal em preto, no centro do qual havia quatro pedras preciosas
que emitiam uma chama vermelha diferente do brilho branco das
outras pedras. Do outro lado do quarto havia outra porta, seme-
lhante àquela onde ele estava, mas sem ser lavrada em camadas.
Foi por aquela porta que a morte havia surgido? — e, uma vez
tendo atingido sua vítima, voltara pelo mesmo caminho?
Fechando a porta atrás de si, o cimério avançou pela câ-
mara. Seus pés descalços não faziam ruído algum sobre o chão
de cristal. Não havia cadeiras nem mesas, somente três ou qua-
tro divãs de seda, com estranhos desenhos bordados a ouro, e
vários baús de mogno emoldurados com prata. Alguns estavam
trancados com pesados cadeados de ouro; outros estava abertos,
com suas tampas entalhadas caídas para trás, revelando montes
74
de jóias numa confusão descuidada de esplendor aos olhos es-
pantados do cimério. Conan praguejou; ele já havia visto mais
riqueza naquela noite do que jamais sonhara que existisse no
mundo inteiro, e ficou tonto pensando no valor da jóia que estava
procurando.
Agora ele estava no centro do quarto, caminhando inclina-
do para a frente, a cabeça erguida, a espada de prontidão, quando
de novo, a morte atacou em silêncio. Uma sombra esvoaçante que
varreu o chão reluzente foi o único aviso, e o salto instintivo para
o lado foi o que salvou sua vida. Ele viu de relance um terror
negro e peludo que passou por ele com um barulho de presas
mortíferas, e algo que queimava como gotas de fogo infernal caiu
em cima de seu ombro nu. Pulando para trás com a espada ergui-
da, ele viu o terror bater no chão, girar e lançar-se contra ele com
uma rapidez incrível — era uma gigantesca aranha negra, igual
ao que se vê apenas em pesadelos.
Era do tamanho de um porco, e suas oito patas grossas e
peludas carregavam seu corpo repulsivo com a cabeça na frente;
seus quatro olhos maldosos brilhavam com uma terrível inteli-
gência, e de suas presas gotejava veneno que Conan sabia, pela
queimação em seu ombro, que estava carregado de morte instan-
tânea. Este era o assassino que havia se precipitado da teia pen-
durada no meio do teto sobre o pescoço do nemédio. Tolos foram
eles por não terem suspeitado que as câmaras superiores estariam
tão bem guardadas quanto as inferiores!
Esses pensamentos passaram de relance pela mente de
Conan enquanto o monstro avançava. Ele pulou para o alto e o
monstro passou por baixo dele, girou e atacou novamente. Dessa
vez ele também evitou o ataque pulando para o lado e defenden-
do-se como um gato. Sua espada decepou uma das pernas pelu-
das, e novamente ele se salvou por um triz do ataque do monstro
que o ameaçava com as presas estalando diabolicamente. Mas a
criatura não voltou a atacar; deu-lhe as costas, passou correndo
pelo chão de cristal e subiu pela parede até o teto, de onde, por al-
75
guns instantes, ficou estudando-o com seus diabólicos olhos ver-
melhos. Em seguida, sem aviso, lançou-se pelo espaço, soltando
um fio cinzento e pegajoso.
Conan recuou evitando o impacto do corpo — em seguida
abaixou-se desesperadamente, a tempo de escapar de ser aprisio-
nado pelo fio de teia. Ele viu a intenção do monstro e pulou em
direção da porta, mas esse foi mais rápido, e um fio pegajoso lan-
çado contra a porta aprisionou-o. Ele não ousava cortá-lo com
sua espada, pois sabia que o fio grudaria na lâmina; e antes de
conseguir livrá-la, o inimigo estaria enterrando as presas nas suas
costas.
Então começou um jogo desesperado, com a astúcia e a ra-
pidez do homem contra a arte e a rapidez diabólicas da aranha gi-
gantesca. A aranha já não mais desferia ataques diretos correndo
pelo chão, nem lançava-se pelo espaço em sua direção. Ela corria
pelo teto e pelas paredes, tentando prendê-lo nos fios gosmentos,
que lançava com precisão diabólica. Esses fios tinham a grossura
de uma corda, e Conan sabia que uma vez enrolados nele, sua
força desesperada não seria suficiente para rompê-los antes que o
monstro voltasse a atacar.
Essa dança macabra ocupava o espaço inteiro da sala, no
mais completo silêncio, quebrado apenas pela respiração ofegante
do homem, o arrastar de seus pés descalços, sobre o chão reluzen-
te, e o tinido das presas do monstro. Os fios cinzentos caíam em
rolos sobre o chão, com a ponta presa na parede; cobriam os baús
de jóias e os divãs de seda, e pendiam como festões sombrios no
teto ornamentado. A rapidez do olhar agudo e dos músculos de
Conan o mantinham incólume, embora os anéis pegajosos pas-
sassem tão próximo dele que chegavam a raspar na sua cabeleira
desprotegida. Ele sabia que não seria capaz de evitá-los todos; ti-
nha de ficar atento não apenas nos fios pendurados no teto mas
também no chão, para não tropeçar nos laços espalhados por ali.
Mais cedo ou mais tarde, um laço grudento iria envolvê-lo como
uma jibóia, e assim, enrolado como um casulo, ele estaria à mercê
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do monstro.
A aranha correu pelo chão da sala, agitando a corda cin-
zenta atrás de si. Conan pulou para cima e o monstro, com um rá-
pido giro, correu parede acima, e o fio, saltando do chão como se
estivesse vivo, enrolou-se em volta do tornozelo do cimério. Ele
se apoiou nos braços ao cair, debatendo-se freneticamente para se
livrar da teia. O demônio peludo estava descendo a parede para
completar sua captura. Em seu desespero, Conan agarrou um baú
de jóias e arremessou-o com toda a sua força contra o monstro.
Acertando bem no meio da aranha, esmagou-a contra a parede
com um ruído abafado e enjoativo, espirrando sangue e uma
substância viscosa esverdeada. O corpo negro esmagado caiu en-
tre o brilho chamejante de jóias que se esparramaram sobre ele;
as pernas peludas se agitavam sem objetivo, os olhos vermelhos
moribundos brilhavam entre as faiscantes pedras preciosas.
Conan olhou à sua volta, mas nenhum outro terror apare-
ceu, e ele se pôs a livrar-se da teia. A substância grudava tenaz-
mente no tornozelo e nas mãos, mas finalmente ele se libertou
e, tomando a espada, esgueirou-se por entre os fios e rolos cin-
zentos até a porta interna. Que horror se esconderá lá dentro ele
não sabia. O sangue do cimério estava quente, e já que ele tinha
chegado tão longe e vencido tantos perigos, estava decidido a ir
até o fim da horrível aventura, qualquer que fosse. E sentia que
a jóia que procurava não estava entre as que se espalhavam pela
sala reluzente.
Tirando os laços que emaranhavam a porta interna, ele
descobriu que, assim como a outra, essa também não estava
trancada. Ele se perguntava se os soldados lá embaixo ainda não
tinham percebido sua presença. Bom, ele estava bem acima de
suas cabeças, e se as histórias deviam ser acreditadas, os soldados
estavam acostumados a ruídos estranhos no alto da torre — sons
sinistros e gritos de agonia e de terror.
Yara ocupava seus pensamentos, e Conan não estava nem
um pouco confortável quando abriu a porta dourada. Mas havia
77
apenas uma escada de degraus prateados que conduzia para bai-
xo, precariamente iluminada de uma maneira que ele não conse-
guia descobrir. Desceu silenciosamente, espada em punho. Não
havia ruído algum; chegou até uma porta de marfim, incrustada
com hematitas. Tentou ouvir alguma coisa, mas nenhum som
vinha do lado de dentro; somente tênues tufos de fumaça se es-
ticavam preguiçosamente por debaixo da porta, exalando um
odor exótico, desconhecido ao cimério. Abaixo dele, a escada de
prata serpenteava para baixo, desaparecendo na penumbra, e ne-
nhum som vinha daquele poço sombrio. Conan tinha um pres-
sentimento sinistro de que estava sozinho numa torre ocupada
somente por fantasmas e assombrações.
78
3
Cautelosamente, ele empurrou a porta de marfim, que
abriu-se silenciosamente. Na reluzente soleira, Conan olhava
como um lobo num ambiente estranho, pronto para lutar ou para
fugir. Era uma grande sala com um teto em abóbada dourada;
as paredes eram de jade verde, o chão de marfim, parcialmente
coberto por tapetes espessos. Fumaça e um exótico cheiro de in-
censo saíam do braseiro apoiado sobre um tripé de ouro, atrás do
qual estava sentado um ídolo sobre uma espécie de divã de már-
more. Conan olhava estupefato; a imagem tinha o corpo de um
homem nu, da cor verde; mas a cabeça era feita de algum pesade-
lo e loucura. Era grande demais para o corpo humano; não tinha
atributos humanos. Conan olhava as grandes orelhas de abano,
o nariz enrolado, ladeado por dois chifres brancos com bolas de
ouro na ponta. Os olhos estavam fechados, como se a figura esti-
vesse dormindo.
Era essa então a razão do nome, Torre do Elefante, pois a
cabeça da coisa era muito semelhante aos animais descritos pelo
nômade shemita. Esse era o deus de Yara; onde mais poderia es-
tar a jóia a não ser escondida dentro do ídolo, já que a pedra era
chamada de Coração do Elefante?
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Quando Conan se aproximou com os olhos fixos no ídolo
imóvel, os olhos da coisa se abriram abruptamente! O cimério
ficou paralisado. Não era uma imagem — era um ser vivo, e ele
estava encurralado em sua câmara!
O fato de que ele não explodiu no mesmo instante num
acesso de frenesi assassino demonstrava o tamanho de seu ter-
ror, que o mantinha grudado ao chão. Numa condição dessas, um
homem civilizado iria se refugiar na conclusão de estar louco; ao
cimério, porém, não ocorreu duvidar de sua sanidade. Ele sabia
estar face a face com um demônio do Mundo Antigo, constatação
essa que lhe embotou todas os sentidos com exceção da visão.
A tromba da criatura estava erguida interrogativamente, os
olhos de topázio fitavam sem ver, e Conan percebeu que o mons-
tro era cego. Com este pensamento, seus nervos congelados se
amoleceram, e ele começou a recuar silenciosamente em direção
da porta. Mas a criatura ouviu. A tromba sensível se esticou em
sua direção, e o terror de Conan o paralisou novamente quando
o ser falou, numa voz estranha, trêmula que jamais modificava
o tom ou o timbre. O cimério sabia que aquelas mandíbulas não
tinham sido feitas para a fala humana.
— Quem está aí? Você veio para me torturar de novo, Yara?
Você jamais fica satisfeito? Ó, Yag-Kosha, quando essa agonia terá
fim?
Lágrimas rolavam dos olhos cegos da criatura; Conan de-
teve seu olhar nos membros estendidos sobre o divã de mármore.
E percebeu que o monstro não seria capaz de se levantar para
atacá-lo. Ele conhecia as marcas da roda de tortura e as cicatri-
zes do fogo, e por mais que fosse impiedoso, ficou horrorizado
com as deformações que outrora foram membros tão graciosos
como os dele próprio. E, de repente, todo o medo e repulsa foram
substituídos por uma grande pena. Conan não podia saber o que
era esse monstro, mas as evidências de seus sofrimentos eram tão
terríveis e patéticas que uma estranha tristeza tomou conta do
cimério sem ele saber por quê. Apenas sentia que estava olhando
80
para uma tragédia cósmica, e encolheu-se de vergonha, como se a
culpa de uma raça inteira estivesse sobre os seus ombros.
— Eu não sou Yara — disse ele —, sou apenas um ladrão.
Não vou machucá-lo.
— Aproxime-se para que eu possa tocá-lo — implorou a
criatura, e Conan se aproximou sem medo, com a espada esque-
cida na mão. A tromba sensível estendeu-se e apalpou seu rosto
e seus ombros, tateando como um cego — um toque leve como o
de uma menina.
— Você não pertence à raça diabólica de Yara — suspirou
a criatura — Você traz a marca dos desertos limpos e selvagens.
Conheço o seu povo desde os tempos antigos, quando era chama-
do por outro nome, quando outro mundo erguia seus pináculos
ornados para as estrelas mas... Há sangue em seus dedos.
— Uma aranha na câmara de cima e um leão no jardim —
murmurou Conan.
— Você também matou um homem esta noite — respon-
deu o outro — E há morte no alto da torre. Eu sinto; eu sei.
— Sim — murmurou Conan — O príncipe dos ladrões jaz
lá em cima morto pela mordida da aranha.
— Então, então! — a estranha voz não humana elevou-se
numa espécie de canto monótono — Uma morte na taverna...
uma morte no telhado, eu sei; eu sinto. E a terceira fará a magia
que nem mesmo Yara sonha, a magia da libertação, ó deuses ver-
des de Yag!
Novamente as lágrimas rolaram enquanto o corpo tortu-
rado era embalado por diversas emoções. Conan observava, con-
fuso.
Então as convulsões cessaram; os olhos meigos e cegos
voltaram-se para o cimério, a tromba acenou.
— Escute, humano — disse a criatura estranha — Sei que
sou repulsivo e monstruoso para você, não é? Não, não precisa
responder; eu sei. Mas você também seria para mim, se eu pudes-
se vê-lo. Existem incontáveis mundos além dessa Terra e a vida
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neles assume muitas formas. Eu não sou nem deus nem demônio,
mas um ser de carne e sangue como você, embora a substância
seja em parte diferente e a minha forma tenha sido fundida em
outro molde.
“Sou muito velho, ó homem dos países desertos; eras atrás,
eu vim para este planeta junto com outros do meu mundo, de um
planeta verde chamado Yag, que gira eternamente na orla desse
Universo. Viemos voando pelo espaço com asas poderosas que
nos levaram pelo cosmo mais rápido que a luz, porque fomos ba-
nidos depois da derrota numa guerra contra os reis de Yag. Mas
jamais pudemos voltar pois na Terra as nossas asas murcharam.
Aqui vivíamos separados da vida terrestre. Lutamos com as estra-
nhas e terríveis formas de vida que andavam pela Terra então, de
maneira que nos tornamos temidos e não éramos molestados nas
florestas escuras do Oriente onde morávamos.
“Vimos os homens evoluírem dos macacos e construírem
as reluzentes cidades de Valusia, Kamelia, Commoria e suas ir-
mãs. Vimos como eles tremeram por causa dos ataques dos atlan-
tes, pictos e lemúrios pagãos. Vimos os oceanos se erguerem e
tragarem a Atlântida e a Lemúria, as ilhas dos pictos e as reluzen-
tes cidades civilizadas. Vimos os sobreviventes construírem seu
império da idade da pedra para depois caírem na ruína, envolvi-
dos em guerras sangrentas. Vimos os pictos afundarem no abis-
mo da selvageria, os atlantes voltarem ao estado simiesco. Vimos
novas levas de migrações de selvagens rumo ao Sul, conquistando
o Círculo Ártico para construir uma nova civilização, com novos
reinos chamados Nemédia, Koth, Aquilônia e suas irmãs. Vimos
o povo cimério ascender dos atlantes, que regrediram ao nível dos
macacos. Vimos os descendentes dos lemurianos, que haviam so-
brevivido ao cataclismo, surgirem de novo como selvagens que
migraram para o Oeste, com o nome de hirkanianos. E vimos
essa raça de demônios, sobreviventes de uma antiga civilização
que existia antes da submersão da Atlântida, adquirir de novo a
cultura e o poder, que é este maldito reino de Zamora.
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“E isto nós vimos, sem ajudar nem atrapalhar o cumpri-
mento da imutável Lei Cósmica, e fomos morrendo um após o
outro; pois nós, de Yag, não somos imortais, embora a nossa vida
seja longa como a vida dos planetas e das constelações. Por fim
somente eu restei, sonhando com os tempos antigos entre os tem-
plos em ruínas de Khitai perdido nas florestas, adorado como um
deus pela ancestral raça de pele amarela. Então veio Yara, versado
no conhecimento oculto transmitido desde os dias da barbárie,
desde antes da submersão da Atlântida.
“De início, ele se sentava a meus pés e aprendia comigo.
Mas não ficava satisfeito com o que eu lhe ensinava, pois era ma-
gia branca, e ele queria a sabedoria do mal para escravizar so-
beranos e satisfazer as suas diabólicas ambições. Eu jamais lhe
ensinaria, por vontade própria, os negros segredos que conquistei
através dos tempos.
“Mas ele sabia mais do que eu imaginara; com a maldade
obtida entre as tumbas sombrias da escura Stygia, ele me obrigou
a lhe passar um segredo que eu não pretendia desvelar; e, voltan-
do meu próprio poder contra mim, ele me escravizou. Ah, deuses
de Yag, minha taça tem sido amarga desde aquela hora!
“Ele me tirou das florestas perdidas de Khitai, onde maca-
cos cinzentos dançavam ao som das flautas dos sacerdotes ama-
relos, e oferendas de frutas e de vinho abarrotavam meus altares
quebrados. Eu não era mais um deus para o bondoso povo das
florestas — eu era o escravo de um demônio em forma humana.
Novamente lágrimas surgiram nos olhos cegos da criatura.
— Ele me aprisionou nesta torre que, sob seu comando, eu
construí em apenas uma noite. Dominou-me pelo fogo e pela tor-
tura, e por outras torturas tão estranhas e sobrenaturais que você
jamais entenderia. Há muito eu teria acabado com minha vida,
se pudesse, mas ele me mantém vivo, aleijado, cego e mutilado —
para obedecer às suas ordens nojentas. E durante trezentos anos
eu obedeci às suas ordens, sentado neste divã de mármore, dene-
grindo minha alma com pecados cósmicos e manchando minha
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sabedoria com crimes, porque não tinha outra escolha. No entan-
to, nem todos os meus antigos segredos ele conseguiu arrancar de
mim e meu último ato será o feitiço do Sangue e da Jóia.
“Pois sinto que o fim se aproxima. E você é a mão do Des-
tino. Eu lhe peço, pegue a gema sobre aquele altar.
Conan voltou-se para o altar de ouro e marfim indicado
e pegou uma grande pedra redonda escarlate, límpida como um
cristal; e reconheceu que era o Coração do Elefante.
— Por fim, chegou a hora da mais poderosa magia jamais
vista até hoje e que jamais será vista no futuro, por milhares e
milhares de milênios. Pelo sangue de minha vida, eu o conjuro,
pelo sangue nascido no peito verde de Yag sonhando suspenso na
imensidão azul do Espaço.
“Pegue sua espada, humano, e arranque meu coração; em
seguida esprema-o deixando o sangue escorrer sobre a pedra ver-
melha. Desça as escadas e entre na câmara de ébano onde Yara
está sentado envolto nos sonhos malignos da lótus. Pronuncie seu
nome e ele acordará. Então coloque esta jóia diante dele, e diga:
‘Yag-Kosha lhe dá um último presente e um último encantamen-
to’. Em seguida saia rapidamente da Torre; não tenha medo, seu
caminho estará livre. A vida humana não é igual a vida de Yag,
nem a morte humana é igual à morte de Yag. Deixe-me ficar livre
dessa prisão de carne alquebrada e cega, e eu serei mais uma vez
Yogah de Yag, coroado pela manhã, reluzente, com asas para voar,
pés para dançar, olhos para ver e mãos para tocar.
Conan se aproximou indeciso, e Yag-kosha, ou Yogah,
sentindo sua indecisão, indicou onde ele devia desferir o golpe.
Conan cerrou os dentes e enfiou fundo a espada. O sangue espir-
rou na lâmina e nas mãos de Conan, o monstro debateu-se em
convulsões e depois caiu imóvel para trás. Certificando-se de que
a vida o tinha deixado, pelo menos a vida como ele a entendia,
Conan se pôs a executar a macabra tarefa e rapidamente retirou
algo que achava ser o coração da estranha criatura, embora este
fosse diferente de qualquer outro que já tinha visto. Segurando o
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órgão ainda pulsante sobre a jóia reluzente, ele o espremeu com
ambas as mãos, e um jorro de sangue caiu sobre a pedra. Para a
sua surpresa, o sangue não escorreu por fora, mas foi absorvido
pela pedra como se fosse uma esponja.
Segurando hesitante a jóia, ele saiu da câmara fantástica e
chegou até os degraus de prata. Não olhou para trás; instintiva-
mente, ele sentia que estava acontecendo algum tipo de transmu-
tação no corpo estendido sobre o divã de mármore, e sentia tam-
bém que era do tipo que não devia ser testemunhado por olhos
humanos.
Conan fechou a porta de marfim atrás de si e aí, sem hesi-
tar, desceu os degraus de prata. Não lhe ocorreu ignorar as instru-
ções que lhe foram dadas. Parou na porta de ébano, no centro da
qual havia uma caveira de prata esboçando um sorriso macabro.
Abriu a porta e, dentro daquele aposento de ébano e azeviche,
viu uma figura alta reclinada sobre um catre de seda negra. Yara,
o sacerdote e feiticeiro, estava deitado com os olhos abertos e di-
latados pelos eflúvios do lótus amarelo, com o olhar perdido nos
abismos noturnos além do alcance de um simples ser humano.
— Yara! — disse Conan, como um juiz decretando a des-
truição — Yara! Acorde!
No mesmo instante, seus olhos voltaram ao normal, frios
e cruéis como os de uma ave de rapina. A figura alta, vestida de
seda, ergueu-se e ficou bem mais alta que o cimério.
— Cão! — sibilou como uma serpente — O que faz aqui?
Conan colocou a jóia sobre a grande mesa de ébano.
— Aquele que mandou esta gema ordenou-me que disses-
se: “Yag-Kosha lhe dá um último presente e um último encanta-
mento”.
Yara encolheu-se; seu rosto escuro empalideceu. A jóia
deixara de ser límpida como cristal; suas profundezas lamacentas
pulsavam e tremiam, e esquisitas ondas esfumaçadas de cor mu-
tante passavam por sua superfície lisa. Como que hipnotizado,
Yara se curvou sobre a mesa e agarrou a gema nas mãos, olhando
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nas suas profundezas sombrias, como se um ímã estivesse atrain-
do sua alma trêmula para fora do corpo. E Conan pensou que
seus olhos lhe estavam pregando peças. Pois quando Yara se le-
vantou do divã, parecera gigantesco; agora a cabeça de Yara mal
chegava até seus ombros. Ele piscou, confuso e, pela primeira vez
naquela noite, duvidou de seus sentidos. Então, percebeu choca-
do que o sacerdote estava encolhendo diante de seus olhos.
Conan continuou olhando sem se emocionar, como um
homem observa um jogo; imerso num sentimento de irrealidade
esmagadora, o cimério não estava mais certo de sua própria iden-
tidade; percebe que está olhando para evidências externas de um
combate entre forças imensas, muito além de sua compreensão.
Yara não era maior do que uma criança; depois, do tama-
nho de um bebê, ele esticou-se sobre a mesa, ainda segurando
a jóia. Súbito, percebendo o seu destino, o feiticeiro levantou-se
de um salto, soltando a gema. Ele continuava encolhendo mais
ainda e Conan viu uma minúscula figura correndo loucamente
pela mesa de ébano, agitando os braços e gritando numa voz que
parecia o guinchar de um inseto.
Agora ele estava encolhido até o ponto em que a enorme
jóia se erguia acima dele como uma montanha. Conan viu como
ele cobriu os olhos com as mãos para se proteger da luz, camba-
leando como um louco. O cimério sentiu que alguma força mag-
nética invisível atraía Yara para a gema. Três vezes ele correu ao
redor dela num círculo cada vez mais fechado, três vezes ele ten-
tou voltar-se e correr para o outro lado da mesa; em seguida, com
um grito quase inaudível que ecoou nos ouvidos do observador, o
sacerdote jogou os braços para cima e correu direto para o globo
chamejante.
Curvando-se, Conan viu Yara rastejar por cima da superfí-
cie lisa e curva como um homem que realiza a impossível façanha
de escalar uma montanha de vidro. Agora o sacerdote estava em
pé sobre o topo, ainda com os braços erguidos, invocando nomes
sinistros que apenas os deuses conhecem. E, de repente, ele afun-
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dou no centro da jóia como um homem afunda no mar, e ondas
de fumaça se fecharam sobre sua cabeça. Agora, no coração rubro
da pedra que voltara a ser límpida como cristal, ele era minúsculo
como numa cena distante. E lá dentro apareceu uma figura verde,
reluzente, com o corpo de homem e a cabeça de elefante, não
mais cego nem aleijado. Yara jogou os braços para cima e fugiu
como louco, com o vingador em seu encalço. Então, a enorme
pedra desapareceu como uma bolha de sabão que estoura, num
arco-íris de luzes muito brilhantes, e a mesa de ébano ficou vazia,
tão vazia como o divã de mármore na sala acima, onde o corpo
daquele estranho ser trans-cósmico chamado Yag-Kosha e tam-
bém Yogah havia estado.
O cimério voltou-se e desceu correndo a escada de prata.
Estava tão perplexo que não lhe ocorreu fugir pelo mesmo cami-
nho que usara para entrar na Torre. Correndo pelo sinuoso poço
de prata, chegou a uma grande sala ao pé dos degraus reluzentes.
Deteve-se por um instante; era a sala dos soldados. Viu o brilho
de seus peitorais de prata e das suas bainhas ornadas de jóias.
Estavam aglomerados ao redor de uma mesa, com suas plumas
escuras ondulando sombriamente acima das cabeças caídas, ves-
tidas com capacetes; eles estavam deitados no meio de seus dados
e canecos de vinhos espalhados pelo chão de lápis-lazuli man-
chado de vinho. E Conan sabia que estavam mortos. A promessa
havia sido cumprida, a palavra fora mantida. Conan não sabia
se foi feitiçaria ou encantamento ou a sombra das grandes asas
verdes que silenciou os inimigos, mas seu caminho havia sido de-
simpedido. E uma porta de prata estava aberta, emoldurada pela
claridade da aurora.
O cimério saiu para os jardins e, quando o vento da au-
rora soprou sobre ele a fresca fragrância de plantas viçosas, Co-
nan despertou como de um sonho. Voltou-se indeciso, para olhar
para a torre de pedra que acabara de deixar. Ele esteve enfeitiçado
ou encantado? Será que tudo não passara de um sonho? A torre
reluzente, oscilando contra a aurora rubra com sua borda ornada
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de jóias brilhando na luz crescente, desabou transformando-se
num monte de escombros brilhantes.
88
Deus na
Tigela
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Arus, o guarda, agarrou sua besta com mãos trêmulas e
sentiu gotas de suor frio brotar em sua pele ao olhar para o feio
cadáver estendido no chão polido. Não é nada agradável se depa-
rar com a Morte num lugar solitário no meio da noite.
O guarda estava num extenso corredor iluminado por
enormes velas colocadas nos nichos ao longo das paredes. En-
tre os nichos, as paredes estavam cobertas por panos de veludo
negro, e entre os panos, pendiam escudos e armas cruzadas de
feitio fantástico. Aqui e ali, havia figuras de deuses esquisitos —
imagens de pedra ou madeira preciosa, de bronze, de ferro ou de
prata — espelhando-se levemente no chão negro.
Arus estremeceu. Ele jamais conseguira se acostumar ao
lugar, embora estivesse trabalhando como guarda já havia alguns
meses. O grande museu e a casa de antiguidades que os homens
chamavam de Templo de Kallian Público era um edifício antigo
cheio raridades vindas de todas as partes do mundo — e agora, na
solidão da noite, Arus estava no enorme salão silencioso, olhando
para o cadáver do rico e poderoso proprietário do Templo.
Até o cérebro obtuso do guarda entendia que o homem
estava com uma aparência muito estranha, diferente daquela de
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quando cavalgava ao longo do Caminho Palian em sua carrua-
gem ornamentada, arrogante e dominador, com seus olhos escu-
ros brilhando com vitalidade magnética. Os homens que odia-
vam Kallian Público mal o reconheceriam agora, jogado como
um monte de gordura desintegrada, com a veste rasgada e sem
sua túnica violeta. O seu rosto estava escuro, os olhos arregalados
e a língua esticada para fora da boca aberta. As mãos gorduchas
estavam abertas como se num gesto de esquisita futilidade. Pe-
dras preciosas reluziam em seus dedos grossos.
— Por que eles não levaram os anéis? — murmurou o guar-
da inquieto. Então ele olhou e olhou, os cabelos começando a se
eriçar. Afastando as cortinas de seda escura que escondiam uma
das muitas portas que se abriam para a sala, surgiu uma figura.
Aras viu um jovem alto, forte, vestido apenas com uma tan-
ga e sandálias amarradas nos tornozelos. Sua pele estava tostada
pelo sol do deserto, e Aras olhou nervosamente para seus ombros
largos, peito maciço e braços pesados. As feições taciturnas, as
sobrancelhas largas, mostravam ao guarda que o homem não era
um nemédio. Debaixo de uma negra cabeleira desgrenhada fitava
um par de perigosos olhos azuis. Uma espada comprida, enfiada
numa bainha de couro desgastado, pendia de seu cinto.
Arus, todo arrepiado e tenso, dedilhou sua besta, meio in-
deciso entre atirar um dardo no corpo do estranho, sem avisar,
e o medo do que pudesse acontecer se falhasse em matá-lo no
primeiro tiro.
O estranho olhou para o corpo no chão mais curioso do
que surpreso.
— Por que você o matou? — perguntou Arus nervoso.
— Eu não o matei — respondeu o outro, sacudindo a cabe-
ça desgrenhada, falando o nemédio com um sotaque de bárbaro
— Quem é ele?
— Kallian Público — respondeu Arus, recuando.
— É o proprietário desta casa? — perguntou o estranho,
com um lampejo de interesse nos taciturnos olhos azuis.
92
— Sim.
Arus já havia recuado até a parede. Então agarrou uma
grossa corda de veludo que estava pendurada ali e sacudiu-a vio-
lentamente. Ouviu-se lá fora na rua o som estridente dos sinos
que estavam pendurados diante de todas as lojas e estabelecimen-
tos para convocar a guarda.
— Por que você fez isso? — perguntou o estranho surpre-
endido — Assim vai chamar o guarda!
— Eu é que sou o guarda, velhaco! — respondeu Arus, reu-
nindo coragem — Fique onde está. Não se mova, senão atiro!
Seu dedo tocou o gatilho de sua arcobalista; a maldosa ca-
beça quadrada da seta apontou diretamente para o peito largo
do outro. O estrangeiro franziu a testa e olhou de esguelha para
Arus. Não demonstrava medo mas parecia hesitar entre obedecer
à ordem e arriscar um ataque repentino. Arus lambeu os lábios
e seu sangue gelou nas veias ao perceber claramente que havia
um conflito entre precaução e uma intenção assassina nos olhos
nublados do estrangeiro.
Então ele ouviu o estrondo da porta se abrindo e um alari-
do de vozes, e deu um profundo suspiro de alívio. O estrangeiro
se retesou, com o olhar preocupado de um animal encurralado,
quando meia dúzia de homens entraram no salão. Todos eles com
exceção de um usavam a túnica escarlate da guarda. Estavam ar-
mados com punhais e alabardas — armas de lâminas compridas,
meio lança, meio machado.
— Quem diabo fez isso?— exclamou o homem que estava
na frente, cujos frios olhos cinzentos e feições bem delineadas e
magras, assim como suas vestes de civil, destacavam-no no meio
de seus grosseiros companheiros.
— Por Mitra, Demétrio! — exclamou Arus — Sem dúvida
a sorte está do meu lado esta noite. Não esperava que a guarda
respondesse ao meu chamado com tanta rapidez, nem que você
estivesse entre eles!
— Eu estava fazendo a ronda com Dionus — respondeu
93
Demétrio — Estávamos passando pelo Templo quando o sino de
alarme tocou. Mas quem é este aqui? Por Ishtar! É o próprio se-
nhor do Templo!
— É ele mesmo — respondeu Arus — e foi assassinado
de maneira terrível. É meu dever caminhar pelo edifício a noite
toda, porque, como você sabe, há uma imensa fortuna armaze-
nada aqui. Kallian Público tinha patronos ricos — estudiosos,
príncipes e ricos colecionadores de raridades. Bem, há apenas
alguns minutos experimentei a porta que se abre para o pórtico e
verifiquei que estava fechada apenas com travas: o cadeado estava
aberto. A porta tem uma trava que pode ser aberta dos dois lados,
e tem também um enorme cadeado que só pode ser aberto do
lado de fora. Somente Kallian Público tinha a chave desse cadea-
do, que é a chave pendurada no seu cinto.
“Eu sabia que algo estava errado, pois Kallian sempre tran-
cava a porta com o cadeado grande quando fechava o Templo,
e eu não o vi desde que partiu, no final do dia, para a aldeia nos
subúrbios. Eu tenho a chave que abre a trava; entrei e encontrei o
corpo estendido assim como está agora. Não toquei nele.
— Então — perguntou Demétrio, examinando com seus
olhos agudos o estrangeiro sombrio —. E quem é este aqui?
— O assassino, sem dúvida! — gritou Arus — Ele surgiu
daquela porta ali. É um bárbaro do Norte, talvez um hiperborea-
no ou um bossoniano.
— Quem é você? — perguntou Demétrio.
— Eu sou Conan, um cimério — respondeu o bárbaro.
— Foi você que matou este homem?
O cimério sacudiu a cabeça.
— Responda-me! — ordenou o inquisidor.
Um laivo de fúria apareceu nos taciturnos olhos azuis.
— Não fale comigo como com um cachorro!
— Oh, um sujeito insolente! — disse com um sorriso de es-
cárnio o companheiro de Demétrio, um homem grande, que usa-
va a insígnia do chefe da guarda — Um ladrão independente! Já já
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sacudo dele a impertinência. Você aí! Fale! Por que você matou...
— Espere um momento, Dionus — ordenou Demétrio —
Camarada, eu sou o chefe do Conselho de Investigação da cidade
de Numália. É melhor você me dizer porque está aqui e, se você
não for o assassino, então prove.
O cimério hesitou. Ele não demonstrava medo mas estava
um pouco confuso, como um bárbaro fica quando confrontado
com as complexidades dos sistemas civilizados cujo funciona-
mento é muito misterioso e incompreensível para ele.
— Enquanto ele decide — precipitou-se Demétrio, vol-
tando-se para Arus — diga-me: você viu Kallian Público sair do
Templo hoje à noite?
— Não, meu senhor; mas ele costuma estar fora quando
chego para o meu turno de sentinela. A grande porta estava tra-
vada e trancada com o cadeado.
— Ele poderia ter entrado no edifício sem que você o ti-
vesse visto?
— Ora, é possível, mas pouco provável. Se ele tivesse vol-
tado de sua casa de campo, certamente teria vindo em sua carru-
agem, pois é longe, e quem já viu Kallian Público viajar de outra
maneira? Mesmo se eu estivesse do outro lado do Templo, teria
ouvido as rodas da carruagem rangendo sobre os pedregulhos. E
não ouvi nada.
— E a porta estava trancada no início da noite?
— Juro que sim. Eu testo todas as portas várias vezes du-
rante a noite. A porta estava trancada do lado de fora até talvez
uma meia hora atrás, quando foi a última vez que testei antes de
descobrir que estava destrancada.
— Você ouviu gritos ou sons de luta?
— Não senhor. Mas isto não é estranho, pois as paredes do
Templo são tão grossas que não permitem que nenhum ruído as
atravesse.
— Para que todo este incômodo de fazer perguntas e espe-
culações? — queixou-se o rude prefeito — O nosso homem é este
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aqui, sem dúvida. Vamos levá-lo à Corte da Justiça; vou arrancar
uma confissão dele, mesmo se tiver de esmagar seus ossos.
Demétrio olhou para o bárbaro.
— Você entende o que ele disse? — perguntou o inquisidor
— Que é que tem a dizer?
— Que o homem que me tocar, logo em seguida estará
cumprimentando seus ancestrais no Inferno — o cimério rangeu
seus dentes poderosos, com os olhos queimando de fúria.
— Por que você veio até aqui, se não foi para matar este
homem? — continuou Demétrio.
— Eu vim para roubar — respondeu o outro.
— Roubar o quê?
— Comida — disse Conan hesitante.
— É mentira! — disse Demétrio — Você sabia que não ha-
via comida aqui. Diga-me a verdade ou...
O cimério colocou a mão sobre o punho da espada, e o ges-
to estava tão carregado de ameaça como o arreganhar de dentes
de um tigre, esticando as garras.
— Poupe suas ameaças para os covardes que têm medo de
você — grunhiu ele — Não sou um nemédio criado na cidade
para me encolher diante de seus cães amestrados. Já matei ho-
mens melhores que você por menos que isso.
Dionus, que abrira a boca para vociferar sua fúria, tornou
a fechá-la. Os guardas remexiam indecisos em suas alabardas e
olhavam para Demétrio, aguardando suas ordens, desnorteados
por presenciar a derrota da toda-poderosa polícia. Mas Demétrio
nada fez. Aras olhava primeiro para um depois para o outro, ima-
ginando o que estava passando pelo astuto cérebro de Demétrio
por trás de seu rosto aquilino. Talvez o magistrado temesse pro-
vocar a fúria bárbara do cimério, ou talvez houvesse uma dúvida
honesta em sua mente.
— Eu não o acusei de ter matado Kallian — retrucou ele
— Mas você deve admitir que as aparências o condenam. Como é
que você entrou no Templo?
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— Eu me escondi na sombra do armazém atrás deste edi-
fício — respondeu Conan a contragosto — Quando este cão —
disse, apontando o dedo para Arus — passou por mim e dobrou
a esquina, eu corri e pulei o muro...
— Mentira! — interrompeu Arus — Ninguém consegue
subir por aquele muro liso!
— Você nunca viu um cimério escalar um rochedo liso?
— perguntou Demétrio — Eu é que estou conduzindo esta inves-
tigação. Continue, bárbaro.
— O canto é decorado com entalhes — disse o cimério —
Foi fácil escalar. Alcancei o telhado antes que este cão desse a vol-
ta no edifício. Encontrei um alçapão, fechado com uma trava de
ferro trancada por dentro. Dobrei a trava em dois...
Arus, lembrando-se da grossura da trava, reteve a respira-
ção assombrado e se afastou do bárbaro, que franziu a testa meio
distraído e continuou:
— Passei pelo alçapão e entrei num aposento superior. Fui
direto até a escada...
— Como é que você sabia onde ficava a escada? Apenas
aos empregados de Kallian e seus ricos patronos era permitido o
acesso a esses aposentos superiores.
Conan olhava em teimoso silêncio.
— O que você fez depois de chegar à escada? — exigiu De-
métrio.
— Desci por ela — balbuciou o cimério — a escada levava
ao aposento atrás daquela porta com cortinas. Quando desci a
escada, ouvi uma outra porta se abrindo. Quando olhei através da
cortina, vi este cão em pé ao lado do homem morto.
— Por que você saiu de seu esconderijo?
— Porque pensei que ele fosse outro ladrão, que veio rou-
bar aquilo que... — o cimério se conteve.
— Aquilo que você mesmo veio roubar! — concluiu De-
métrio —Você não vasculhou os aposentos superiores onde estão
guardadas as maiores riquezas. Você foi enviado aqui por alguém
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que conhece bem o Templo, para roubar alguma coisa especial!
— E matar Kallian Público! — exclamou Dion — Por Mi-
tra, é isso! Peguem-no, homens, teremos uma confissão antes do
amanhecer!
Conan saltou para trás, jogando uma praga estrangeira, sa-
cando a espada com tanta fúria que a lâmina afiada zuniu.
— Para trás, se prezam sua maldita vida! — grunhiu ele —
Se ousam torturar lojistas e desnudar as prostitutas e bater nelas
para fazê-los falar, não pensem que podem botar suas patas num
homem das colinas! É só tocar no seu arco, guarda, que eu arre-
bento suas entranhas com o meu calcanhar!
— Espera! — disse Demétrio — Afaste seus cães, Dionus.
Ainda não estou convencido de que ele seja o assassino — Demé-
trio inclinou-se e sussurrou algo no ouvido de Dionus que Aras
não conseguiu captar, mas que ele suspeitou ser um plano para
enganar o cimério, fazendo com que ele largasse sua espada.
— Muito bem — grunhiu Dionus — Afastem-se, homens,
mas continuem de olho nele.
— Dá-me sua espada — disse Demétrio para Conan.
— Tome-a se puder! — rosnou Conan.
O inquisidor encolheu os ombros.
— Tudo bem. Mas não tente fugir. Há homens com bestas
guardando a casa do lado de fora.
O bárbaro abaixou sua lâmina, embora relaxasse apenas de
leve seu tenso estado de alerta. Demétrio voltou-se novamente
para o cadáver.
— Estrangulado — murmurou ele — Por que alguém ha-
veria de estrangulá-lo se uma golpe de espada é muito mais rápi-
do e seguro? Esses cimérios nascem com a espada na mão; nunca
ouvi falar de um cimério matar um homem desta maneira.
— Talvez seja para afastar suspeitas — disse Dionus.
— Possivelmente — disse Demétrio, tocando o corpo com
mãos experientes —. Morto há pelo menos meia hora. Se Conan
nos diz a verdade sobre quando entrou no Templo, mal poderia
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ter matado o homem antes de Arus entrar. É verdade que ele pode
estar mentindo, pode ter entrado antes.
— Escalei a parede depois que Arus fez a sua última ronda
— grunhiu Conan.
— É o que você diz — respondeu Demétrio, detendo-se na
garganta do morto que havia sido esmagada até se transformar
num monte de carne arroxeada. A cabeça pendia solta por causa
das vértebras quebradas. Demétrio sacudiu a cabeça, duvidando
— Por que um assassino usaria um cabo mais grosso que o braço
de um homem? E que aperto terrível teria esmagado o pescoço
dele dessa maneira?
Ele se levantou e foi até a porta mais próxima que se abria
para o corredor.
— Aqui perto da porta há uma estátua derrubada de seu
pedestal — disse ele —, o chão está arranhado e as cortinas na so-
leira estão rasgadas... Kallian Público deve ter sido atacado nessa
sala. Talvez ele tenha tentado escapar do assaltante ou arrastado o
sujeito consigo na sua fuga. De qualquer maneira, ele cambaleou
no corredor onde o assassino deve tê-lo seguido e acabado com
ele.
— E se este pagão não for o assassino, então onde está ele?
— exigiu o prefeito.
— Ainda não descartei o cimério — disse o inquisidor —
Mas investigaremos aquele aposento.
Ele se deteve, virou-se e ficou escutando. Da rua vinha
o rangido de rodas de carruagem, que se aproximou e cessou
abruptamente.
— Dionus! — bramiu o inquisidor — Manda dois homens
atrás dessa carruagem. Traga o condutor até aqui.
— Pelo ruído — disse Arus, que conhecia bem todos os
ruídos da rua —, eu diria que ela parou na frente da casa de Pro-
mero, do lado oposto da rua onde fica a loja do mercador de seda.
— Quem é Promero? — perguntou Demétrio.
— É o escrivão-chefe de Kallian Público.
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—Mande buscá-lo junto com o condutor — disse Demé-
trio.
Dois guardas foram enviados. Demétrio ainda estudava o
corpo; Dionus, Arus e os outros policiais observavam Conan que
estava em pé com a espada na mão como uma ameaçadora estátua
de bronze. Então ecoaram passos de pés calçados com sandálias
e dois guardas entraram com um homem robusto, de pele escura,
usando o capacete de couro e a túnica comprida de um cocheiro,
com um chicote na mão, e um indivíduo pequeno, tímido, típico
da classe que, saída das fileiras dos artesãos, fornece seus serviços
para ricos mercadores e comerciantes. O homenzinho retraíu-se
com um grito ao ver o volume estendido no chão.
— Oh, eu sabia que algo de mau acabaria acontecendo! —
choramingou ele.
—Você é Promero, o escrivão-chefe, suponho. E você? —
perguntou Demétrio.
— Enaro, cocheiro de Kallian Público.
— Você não parece muito impressionado com o cadáver
dele — observou Demétrio.
Os olhos escuros de Enaro faiscaram. — Por que haveria eu
de ficar impressionado? Alguém fez o que eu sempre quis fazer,
mas nunca tive coragem.
— Então! — murmurou o inquisidor — Você é um homem
livre?
Os olhos de Enaro estavam amargos quando ele afastou a
túnica descobrindo seu ombro onde havia a marca do escravo
devedor.
— Você sabia que seu senhor vinha aqui hoje à noite?
— Não. Eu trouxe a carruagem até o Templo hoje à noite
como de costume. Ele entrou e eu dirigi até a sua casa de campo.
Entretanto, antes de chegarmos ao Caminho Palian, ele mandou
que voltássemos. Parecia muito agitado.
—E você o levou de volta para o Templo?
— Não. Ele ordenou que eu parasse na casa de Promero.
100
Então me mandou embora, dizendo que voltasse para buscá-lo
pouco depois da meia-noite,
— Que horas eram?
— Pouco depois do escurecer. As ruas estavam quase de-
sertas.
— O que você fez em seguida?
— Voltei para os alojamentos dos escravos, onde fiquei até
a hora de ir à casa de Promero. Então fui direto para lá, e seus
homens me agarraram quando eu estava falando com Promero
na porta de sua casa.
— Você tem alguma idéia do motivo pelo qual Kallian foi
à casa de Promero?
— Ele não falava de negócios com os seus escravos.
Demétrio voltou-se para Promero.
— O que você sabe sobre isso?
— Nada — os dentes do vendedor tremiam ao falar.
— Kallian Público foi até a sua casa conforme diz o co-
cheiro?
— Sim senhor.
— Quanto tempo ele ficou lá?
— Pouco tempo. Depois foi embora.
— Ele foi para o Templo depois de deixar a sua casa?
— Não sei! — disse o escrivão numa voz aguda.
— Por que ele foi até a sua casa?
— Para ... para falar de negócios comigo.
— Você está mentindo— disse Demétrio — Por que ele foi
até a sua casa?
— Eu não sei! Não sei de nada! — exclamou Promero já
histérico — Não tenho nada a ver com isso...
— Obrigue-o a falar, Dionus — falou bruscamente Demé-
trio. Dionus grunhiu e acenou para um de seus homens que, com
um riso selvagem, aproximou-se dos dois prisioneiros.
— Vocês sabem quem eu sou? — grunhiu ele, esticando o
pescoço e fitando suas presas encolhidas de medo.
101
— Você é Posthumo — respondeu o vendedor taciturno —
Você arrancou o olho de uma moça na Corte da Justiça porque
ela se recusava a incriminar seu amante.
— Eu sempre consigo o que quero! — vociferou o guarda.
As veias no seu pescoço grosso incharam e seu rosto ficou roxo
quando ele agarrou o pobre escrivão pelo colarinho de sua túnica,
torcendo-o de maneira que o homem ficou quase sufocado.
— Fale, rato! — grunhiu ele — Responda aos inquisidores!
— Oh, por Mitra, piedade! — berrou o coitado — Eu juro...
Posthumo bateu com violência no rosto dele e depois o jo-
gou no chão e o chutou com precisão maldosa.
— Piedade! — gemeu a vítima — Eu conto, eu conto qual-
quer coisa...
— Então se levante, seu bastardo! — vociferou Posthumo
— Não fique deitado aí chorando!
Dionus lançou um rápido olhar para Conan, para ver se ele
estava impressionado.
— Veja o que acontece com aqueles que desacatam a polí-
cia — disse ele.
Conan cuspiu com um ricto de desprezo.
— Ele é um fraco e um tolo—grunhiu ele —. Se um de vo-
cês tocar em mim, espalho suas entranhas pelo chão.
— Você está pronto para falar? — perguntou Demétrio
cansado.
— Tudo o que sei — soluçou o escrivão, pondo-se de pé
com dificuldade, ganindo como um cão que apanhou — é que
Kallian foi até a minha casa pouco depois que eu cheguei; saí do
templo junto com ele, quando ele mandou embora sua carrua-
gem. Ele ameaçou que iria me demitir se eu dissesse qualquer
coisa a respeito disso. Sou um homem pobre, meus senhores, não
tenho amigos nem vantagens. Se perder meu emprego, vou pas-
sar fome.
— O que tenho eu a ver com isso? — disse Demétrio —
Quanto tempo ele ficou na sua casa?
102
— Até talvez as onze e meia. Em seguida ele saiu, dizendo
que estava indo para o Templo e iria voltar depois de fazer o que
pretendia.
— O que ele pretendia fazer lá?
Promero hesitava, mas ao olhar trêmulo para a expressão
ameaçadora de Posthumo, com o enorme punho cerrado, logo
abriu a boca.
— Havia algo no Templo que ele queria examinar.
— Mas por que ele viria aqui sozinho, e em tamanho se-
gredo?
— Porque a coisa não lhe pertencia. Chegou de madruga-
da, com uma caravana vinda do Sul. Os homens da caravana nada
sabiam a respeito disso, exceto que essa coisa fora confiada a eles
pelos homens de uma caravana da Srygia e que se destinava a Ca-
ranthes de Hanumar, sacerdote de Ibis. O senhor da caravana ha-
via sido pago por aqueles homens para levá-la diretamente para
Caranthes, mas o tratante queria continuar direto para Aquilônia
pela estrada que não passa por Hanumar. Então ele perguntou se
podia deixá-la no Templo até que Caranthes mandasse buscá-la.
“Kallian concordou e disse-lhe que ele mesmo manda-
ria um criado informar Caranthes. Mas, depois que os homens
haviam partido e falei do mensageiro, Kallian proibiu que eu o
mandasse. Ele ficou matutando sobre o que os homens haviam
deixado.
— E o que era isso?
— Uma espécie de sarcófago, igual ao que se encontra nos
antigos túmulos stígios. Mas este era redondo, como uma tigela
de metal com tampa. Era feita de algo semelhante ao cobre, mas
mais duro, e tinha hieróglifos gravados iguais aos que se encon-
tram nos antigos menires no sul da Stygia. A tampa estava bem
fixada por tiras gravadas parecidas com cobre.
— O que havia dentro dela?
— Os homens da caravana não sabiam. Aqueles que lhes
tinham dado a tigela disseram que era uma relíquia de incalculá-
103
vel valor, encontrada entre os túmulos bem abaixo das pirâmides
e enviada para Caranthes “por causa do amor que o remetente
dedicava ao sacerdote de íbis”. Kallian Público acreditava que ela
continha o diadema dos reis gigantes, dos povos que habitavam
aquela terra escura antes que os antepassados dos stígios chegas-
sem. Ele me mostrou um desenho gravado na tampa, que jurava
que tinha a forma do diadema que, segundo as lendas, era usado
pelos reis-monstros.
“Ele queria abrir a tigela para ver o seu conteúdo. Enlou-
quecia-o a idéia do fabuloso diadema, encrustrado com estranhas
pedras preciosas conhecidas apenas pela raça antiga, das quais
uma única valeria mais do que todas as pedras do mundo mo-
derno.
“Eu o preveni para não fazê-lo. Mas, pouco antes da meia-
noite, ele foi sozinho ao Templo, escondendo-se nas sombras
até o guarda passar para o outro lado do edifício, depois entrou
usando a chave que trazia na cintura. Fiquei nas sombras da loja
de sedas observando-o até ele entrar, depois voltei para casa. Se
encontrasse o diadema, ou qualquer coisa de grande valor, pre-
tendia escondê-lo em algum lugar no Templo e depois, sem que
ninguém percebesse, tirá-lo de lá. Na manhã seguinte, faria uma
grande gritaria diria que ladrões haviam invadido sua casa e rou-
bado a propriedade de Caranthes. Ninguém saberia de sua trapa-
ça além do condutor da carruagem e de mim, e nenhum de nós
iria traí-lo.
— Mas e o guarda? — contestou Demétrio,
— Kallian não pretendia ser visto por ele; planejava man-
dá-lo crucificar como cúmplice dos ladrões — respondeu Pro-
mero. Aras engoliu em seco e empalideceu quando percebeu o
quanto era corrupto seu empregador.
— Onde está este sarcófago? — perguntou Demétrio.
Promero apontou, o inquisidor resmungou — Então! O
mesmo aposento no qual Kallian deve ter sido atacado.
Promero torceu suas mãos magras.
104
— Por que um homem da Stygia mandaria um presente
para Caranthes? Deuses antigos e múmias esquisitas já vieram
pelas estradas das caravanas antes, mas quem é que ama tanto
o sacerdote de Ibis na Stygia, onde as pessoas ainda adoram o
arqui-demônio Set que serpenteia entre os túmulos na escuridão?
O deus Ibis está em constante luta com Set desde a aurora da Ter-
ra, e Caranthes passou a vida inteira combatendo os sacerdotes de
Set. Há alguma coisa obscura e oculta nisso tudo.
— Mostre-nos este sarcófago — ordenou Demétrio, e Pro-
mero foi na frente, hesitante. Todos o seguiram, inclusive Conan,
que nem parecia notar como os guardas o olhavam, pois estava
só curioso. Eles passaram pelas cortinas rasgadas e entraram no
aposento, que estava mais escuro do que o corredor. As portas
dos dois lados conduziam para outros aposentos e as paredes es-
tavam cobertas de imagens fantásticas, de deuses de terras estra-
nhas e povos distantes. Promero deu um grito agudo.
— Olha! A tijela! Está aberta... e vazia!
No centro havia um estranho cilindro negro, de quase um
metro e meio de altura e talvez um metro de diâmetro na sua
parte mediana. A pesada tampa gravada jazia no chão, e ao lado
dela um martelo e um formão. Demétrio olhou dentro da tijela,
perplexo por um instante com os obscuros hieróglifos e voltou-se
para Conan.
— É isto que você veio roubar?
— Como é que um homem conseguiria levá-la embora? —
disse o bárbaro sacudindo a cabeça.
— As faixas foram cortadas com este formão—admirou-
-se Demétrio — e com pressa. Há marcas do martelo que errou
o alvo ao bater no metal. Podemos supor que Kallian abriu a tije-
la. Alguém devia estar se escondendo por perto... possivelmente
atrás das cortinas da porta. Quando Kallian conseguiu abrir a ti-
jela, o assassino lançou-se sobre ele... ou pode ter matado Kallian
e aberto ele mesmo a tijela.
— Isto é algo sinistro — arrepiou-se o escrivão — É mui-
105
to antigo para ser sagrado. Quem é que já viu um metal assim?
Parece mais duro do que o aço da Aquilônia, no entanto, veja
como está corroído e desgastado, com manchas. E vejam aqui, na
tampa! — disse Promero, apontando com o dedo trêmulo — Que
vocês diriam que é?
Demétrio curvou-se perto do desenho gravado.
— Eu diria que representa uma espécie de coroa — gru-
nhiu ele.
— Não! — exclamou Promero — Avisei Kallian, mas ele
não quis acreditar em mim! É uma serpente enrolada, com a cau-
da na boca. É o sinal de Set, a Velha Serpente, o deus dos stígios!
Esta tijela é muito antiga para um mundo humano; é uma relíquia
do tempo em que Set caminhava pela Terra em forma humana.
Talvez a raça que surgira de sua semente guardasse os ossos de
seus reis em caixas como essa!
— E você diria que aqueles ossos ressecados se ergueram,
estrangularam Kallian Público e depois foram embora?
—Não era um ser humano o que foi colocado para descan-
sar nessa tijela — sussurrou o escrivão, com olhos arregalados e
fixos na tijela —. Que tipo de homem caberia nisto aqui?
Demétrio praguejou.
— Se o cimério não é o assassino, o autor disto ainda está
em algum lugar neste edifício. Dionus e Aras, fiquem aqui co-
migo, e vocês três prisioneiros fiquem aqui também. O resto de
vocês faça uma busca na casa! Se o assassino fugiu antes que Arus
encontrasse o corpo, somente poderia fugir pelo mesmo cami-
nho pelo qual Conan entrou, e neste caso o bárbaro o teria visto,
se ele estiver dizendo a verdade.
— Não vi ninguém além deste cão — grunhiu Conan, in-
dicando Arus.
— É claro que não, porque você que é o assassino — disse
Dionus — Mas estamos perdendo tempo, vamos fazer uma busca
por formalidade. E se não encontrarmos ninguém, prometo que
você será queimado! Lembre-se da lei, meu selvagem de cabelos
106
negros: por matar um artesão você vai para as minas; um comer-
ciante, você é enforcado; um nobre, você é queimado!
Conan arreganhou os dentes como resposta Os homens
começaram sua busca. Ouviam-se seus passos para cima e para
baixo pelos aposentos, movendo objetos, abrindo portas e gritan-
do uns para os outros.
— Conan — disse Demétrio — você sabe o que significa se
eles não acharem ninguém?
— Eu não matei esse homem — rosnou o cimério — Mas
se ele tentasse me impedir, eu teria fendido seu crânio; mas não o
vi até que dei com o seu cadáver.
— No mínimo alguém o mandou aqui para roubar — disse
Demétrio — e por causa do seu silêncio você se incrimina neste
assassinato também. O simples fato de você estar aqui é suficiente
para mandá-lo para as minas, admita você a culpa ou não. Mas, se
contar a história toda, poderá se salvar do enforcamento.
— Bem — respondeu o bárbaro a contra-gosto — vim aqui
roubar a taça de diamantes de Zamora. Um homem me deu um
mapa do Templo e me disse onde procurá-la. Ela fica guardada
nesse aposento — apontou Conan — num nicho no chão debaixo
de um deus de cobre shemita.
— Ele fala a verdade quanto a isso — disse Promero
— Pensei que nem chegava a meia dúzia os homens que
conheceriam o segredo desse esconderijo.
— E depois de roubá-la — disse Dionus com um riso de
desprezo — você realmente a levaria para o homem que o em-
pregou?
Novamente os olhos ardentes faiscaram com ressentimen-
to.
— Não sou um cachorro — murmurou o bárbaro — Man-
tenho minha palavra.
— Quem o mandou aqui? — exigiu Demétrio, mas Conan
se manteve num teimoso silêncio. Os guardas estavam voltando
de sua busca.
107
— Não há ninguém escondido nessa casa — disseram —
Vasculhamos tudo. Encontramos o alçapão no telhado pelo qual
o bárbaro entrou e o parafuso que ele cortou ao meio. Um ho-
mem que fugisse por aquele caminho teria sido visto pelos guar-
das, a não ser que ele tenha fugido antes que chegássemos. Além
disso, ele teria que empilhar mobília para atingir o alçapão e isto
não foi feito. Por que não poderia sair pela porta da frente antes
que Arus desse a volta no edifício?
— Porque — disse Demétrio —a porta estava travada por
dentro, e as únicas chaves que abrem aquela trava, uma delas está
com Arus e a outra ainda está pendurada no cinto de Kallian Pú-
blico.
— Acho que vi uma corda que talvez tenha sido usada pelo
assassino — disse outro.
— No aposento pegado a este — respondeu o guarda — É
um grosso cabo preto, enrolado num pilar de mármore. Não con-
segui alcançá-lo. Ele conduziu os outros para o aposento cheio de
estátuas de mármore e apontou para a coluna alta.
— Não está mais aí! — gritou, detendo-se espantado.
— Ela nunca esteve aí— bufou Dionus.
— Por Mitra, estava sim! Enrolada ao redor do pilar acima
daquelas folhas entalhadas. Estava tão escuro aí em cima que eu
mal conseguia vê-la, mas estava lá.
— Você está bêbado — disse Demétrio, voltando-se — É
muito alto para um homem conseguir chegar até aí, e ninguém
conseguiria subir por este pilar liso.
— Um cimério conseguiria—murmurou um dos homens.
— É possível. E se Comin estrangulou Kallian, amarrou o
cabo ao redor do pilar, atravessou o corredor e se escondeu no
aposento onde fica a escada, como então ele poderia ter retirado
o cabo depois de você tê-lo visto? Ele esteve conosco desde que
Arus encontrou o corpo. Não, eu lhe afirmo que Conan não co-
meteu o assassinato. Acredito que o verdadeiro assassino matou
Kallian para apoderar-se do que quer que estivesse na tijela e está
108
se escondendo agora em algum esconderijo secreto do Templo.
Se não conseguirmos achá-lo, teremos de culpar o bárbaro para
satisfazer a justiça, mas, onde está Promero?
Eles voltaram até o lugar onde estava o cadáver, no cor-
redor. Dionus chamou Promero, que veio do aposento no qual
estava a tijela vazia. Ele tremia e seu rosto estava lívido.
— Que foi, homem? — exclamou Demétrio irritado.
— Encontrei um símbolo no fundo da tijela! — gaguejou
Promero — Não é um hieróglifo antigo; mas um símbolo que foi
gravado recentemente! A marca de Thoth-Amon, o feiticeiro stí-
gio, inimigo mortal de Caranthes! Ele deve ter encontrado a tijela
em alguma caverna sinistra debaixo das assombradas pirâmides!
Os deuses dos Tempos Antigos não morriam como morrem os
homens; eles caíam em sono profundo e seus adoradores os tran-
cavam em sarcófagos, para que nenhuma mão estranha pudesse
perturbar seu sono! Thoth-Amon mandou a morte para Caran-
thes, mas a cobiça de Kallian fez com que ele soltasse este horror,
e o deus está à espreita em algum lugar perto de nós. Agora mes-
mo ele pode estar rastejando para cima de nós...
— Seu tolo gaguejante! — trovejou Dionus, dando uma
forte bofetada na boca de Promero — Bem, Demétrio — disse
ele, voltando-se para o inquisidor — não vejo nada que se possa
fazer a não ser prender o bárbaro...
O cimério deu um grito, de olhos arregalados, voltados
para a porta de um aposento contíguo à sala das estátuas.
— Vejam! — exclamou ele — Vi algo se movendo naquela
sala; vi através das cortinas. Algo que atravessou o chão como
uma sombra escura.
— Bah! — bufou Posthumo — Nós investigamos aquela
sala...
— Ele viu alguma coisa! — berrou Promero com voz es-
tridente e histérica — Este lugar está amaldiçoado! Algo saiu do
sarcófago e matou Kallian Público! Esta coisa se escondeu onde
nenhum homem se esconderia, e agora espreita naquele aposen-
109
to! Mitra que nos defenda dos poderes das trevas! — disse, agar-
rando a manga de Dionus — Investigue aquela sala de novo, meu
senhor!
Como o prefeito sacudisse a garra frenética do escrivão,
Posthumo disse:
— Você mesmo vai investigá-la, escrivão! — e, agarran-
do Promero pelo colarinho e pelo cinto, empurrou até a porta o
pobre coitado que berrava, lançando-o para dentro da sala com
tanta violência que o escrivão caiu e ficou meio atordoado.
— Basta — grunhiu Dionus, fitando o silencioso cimério.
O prefeito ergueu a mão, quando foi interrompido pela entrada
de um guarda, arrastando uma figura delgada, ricamente vestida.
— Eu o vi andando furtivamente atrás do Templo — disse
o guarda, esperando por aprovação. Em vez disso, recebeu maldi-
ções que fizeram seus cabelos eriçarem.
— Liberte esse senhor, seu tolo! — gritou o prefeito —
Você não conhece Aztrias Petanius, sobrinho do governador? O
guarda, envergonhado, largou o cativo enquanto o jovem nobre
esfregava com cuidado sua manga bordada.
— Guarde suas desculpas, meu bom Dionus — falou —
Tudo pelo dever, eu sei. Eu estava voltando para casa de uma saí-
da tardia, caminhando para libertar meu cérebro dos vapores do
vinho. Que temos aqui? Por Mitra, é um assassinato?
— É um assassinato, meu senhor — respondeu o prefei-
to — Mas temos um suspeito que, embora Demétrio pareça ter
dúvidas sobre o assunto, com certeza irá para as galeras por isso.
— Um bruto com aparência maléfica—murmurou o jovem aris-
tocrata —. Como podem duvidar de sua culpa? Jamais vi uma
fisionomia tão maldosa.
— Oh, sim, você viu, seu cão perfumado — bufou o cimé-
rio — quando você me empregou para roubar a taça zamoriana.
Que noitada, heim? Você estava esperando nas sombras por mim,
para eu lhe entregar o fruto do roubo. Eu não teria revelado seu
nome se você falasse bem de mim. Agora conte para esses cães
110
que me viu escalando o muro depois que o guarda fez a sua últi-
ma ronda, assim eles saberão que não tive tempo para matar este
porco gordo antes que Aras entrasse e encontrasse o corpo.
Demétrio deu uma rápida olhada para Aztrias, que não
mudou de cor.
— Se o que ele diz for verdade, meu senhor — disse o in-
quisidor — isto o isenta da culpa e podemos abafar facilmente o
assunto da tentativa de roubo. O cimério ganha dez anos de tra-
balhos forçados por invadir uma casa; mas, se você quiser, arran-
jaremos a fuga dele e ninguém além de nós saberá disso. Entendo,
você não é o primeiro jovem nobre que teve de recorrer a estes
meios para pagar dívidas de jogo e coisas assim, mas pode contar
com a nossa descrição.
Conan olhou esperançoso para o jovem nobre, mas Aztrias
encolheu seus magros ombros e cobriu um bocejo com a delicada
mão branca.
— Eu não o conheço — respondeu — Ele é um louco em
dizer que eu o empreguei. Que receba o que merece. Ele tem cos-
tas fortes; o trabalho nas minas lhe fará bem.
Conan, com os olhos em fogo, olhava como se tivesse sido
picado. Os guardas ficaram tensos, agarrando suas alabardas; em
seguida relaxaram quando ele deixou cair a cabeça, como se esti-
vesse resignado. Arus não sabia se ele estava ou não observando-
os debaixo de suas pesadas sobrancelhas negras.
O cimério investiu sem nenhum aviso como uma serpente
dando o bote; sua espada reluziu à luz das velas. Aztrias começou
um grito que terminou quando sua cabeça rolou de seus ombros
num jorro de sangue, seus traços paralisados numa branca más-
cara de terror.
Demétrio puxou um punhal e adiantou-se para golpear.
Conan girou como um felino e investiu mortalmente nas entra-
nhas do inquisidor. O retraimento instintivo de Demétrio mal
evitou a ponta, que afundou em sua coxa, bateu do osso e atraves-
sou sua perna. Demétrio caiu sobre um joelho com um gemido
111
de agonia.
Conan não parou. A alabarda que Dionus ergueu salvou o
crânio do prefeito da lâmina sibilante, que se desviou levemente
ao cortar a beirada da alabarda, errando o alvo dirigido para a
cabeça e decepou a orelha direita do prefeito. A velocidade eston-
teante do bárbaro paralisou a guarda. Metade deles estaria derru-
bada antes de ter a chance de se defender não fosse o corpulento
Posthumo que, mais por sorte do que por habilidade, jogou os
braços ao redor do cimério, imobilizando o braço que segurava a
espada. A mão esquerda de Conan arremeteu-se contra a cabeça
do guarda, e Posthumo caiu gritando, apertando a órbita verme-
lha gotejante onde antes havia um olho.
Conan se defendia das alabardas que voavam ao seu redor.
Com um pulo, saiu do meio da roda de seus inimigos e se postou
onde Arus havia se agachado para rearmar sua besta. Um chute
violento no ventre derrubou Arus, que ficou com o rosto esver-
deado e ânsia de vômito, e o calcanhar da sandália de Conan es-
magou a boca do guarda. O pobre coitado gritou em meio a uma
ruína de dentes despedaçados, o sangue jorrando de seus lábios
esmagados.
Em seguida, todos ficaram paralisados de horror por causa
de um grito de sacudir a alma, que vinha do aposento no qual
Posthumo tinha jogado Promero. O escrivão veio cambaleando
pela porta e parou, sacudido por grandes soluços silenciosos; lá-
grimas escorriam por seu rosto enrugado e pingavam de seu lá-
bios trêmulos e moles; parecia um bebê idiota chorando.
Todos se detiveram espantados a olhar para ele — Conan,
com sua espada gotejando, a polícia com suas alabardas erguidas,
Demétrio agachado no chão e tentando estancar o sangue que es-
guichava da enorme ferida em sua coxa, Dionus apertando o toco
ensanguentado de sua orelha, Arus chorando e cuspindo pedaços
de dentes quebrados — até Posthumo parou com seus uivos e pis-
cava com o olho bom. Promero cambaleou até o corredor e caiu
diante deles, gritando em meio a uma insuportável gargalhada
112
aguda de loucura:
— O deus tem um longo alcance; ha-ha-ha! Oh, um mal-
dito longo alcance!
Em seguida, depois de uma convulsão aterradora, ele enri-
geceu com um sorriso vago nos lábios, os olhos fixos no teto em
sombras.
— O homem está morto! — sussurrou Dionus pasmado,
esquecendo-se de sua própria ferida e do bárbaro que estava pa-
rado a seu lado com a espada gotejante. Ele se curvou sobre o
corpo, em seguida se endireitou, com seus olhos de porco arre-
galados—Ele não está ferido. Em nome de Mitra, o que é que tem
naquele aposento?
Então todos eles, tomados pelo terror, precipitaram-se ber-
rando pela porta afora. Os guardas, largando suas alabardas, cor-
reram para a porta também, formando um tumulto de empurrões
e colisões. Aras os seguiu, e Posthumo foi tropeçando meio cego
atrás deles, guinchando como um porco ferido e implorando-lhes
que não o deixassem para trás. Ele caiu, foi chutado e pisotea-
do. Mesmo assim, rastejou atrás deles, seguido por Demétrio que
mancava apertando sua coxa jorrando sangue. A guarda, o con-
dutor de carruagem, o guarda e os oficiais, seja feridos, ou não,
precipitaram-se berrando para a rua, onde os homens que guar-
davam a casa foram tomados de pânico e se juntaram à fuga, sem
esperar para perguntar porquê.
Conan ficou sozinho no corredor, diante dos três cadáveres
no chão. O bárbaro ajeitou a espada na mão e entrou no aposento.
Dentro do aposento havia ricas tapeçarias de seda; almofadas e
sofás de seda estavam espalhadas numa profusão descuidada e,
acima de um pesado painel dourado, um rosto fitava o cimério.
Conan fitou maravilhado com a beleza fria, clássica daque-
le rosto, que não se parecia com nada que ele vira entre os filhos
dos homens. Nem fraqueza, nem misericórdia, nem crueldade,
nem bondade, nenhuma emoção humana transparecia naqueles
traços. Poderia ser a máscara de mármore de um deus, esculpida
113
pela mão de um mestre, a não ser pela presença inconfundível de
vida — vida fria e estranha, que o cimério jamais conhecera e que
não podia entender. Passou-lhe pela cabeça como seria o corpo
escondido atrás do painel; devia ser perfeito, ele pensou, pois o
rosto era de uma beleza não humana.
Mas ele conseguia ver apenas a cabeça bem moldada, que
oscilava de uma lado a outro. Os lábios cheios se abriram e pro-
nunciaram uma única palavra, num tom rico e vibrante igual aos
sinos de ouro que tocam nos templos de Kithai, perdidos na selva.
Era uma língua desconhecida, esquecida antes que os reinos dos
homens surgissem, mas Conan sabia o que significava:
— Venha!
E o cimério se aproximou, com um salto desesperado e um
corte sibilante de sua espada. A bela cabeça voou do corpo, bateu
no chão de um lado do painel, e rolou um pouco antes de parar.
Então a pele de Conan se arrepiou, pois o painel estreme-
ceu com as convulsões de algo que estava atrás. Ele já havia visto
e ouvido muitos homens morrendo, e jamais havia ouvido um ser
humano emitir sons assim em seus estertores de morte. Havia um
ruído de bater e se arrastar. O painel tremeu, balançou, inclinou-
-se para a frente e caiu aos pés de Conan com um estrondo me-
tálico.
Então todo o terror daquilo que estava atrás do painel aco-
meteu o cimério. Ele fugiu, sem diminuir a corrida até que as tor-
res de Numália desaparecessem na aurora atrás dele. Pensar em
Set era como um pesadelo, assim como pensar nos Filhos de Set
que outrora reinavam na Terra e que agora dormiam nas caver-
nas soturnas debaixo das negras pirâmides. Atrás daquele painel
dourado não havia um corpo humano — somente os brilhantes
anéis sem cabeça de uma serpente gigantesca.
114
Vingança
115
116
1
“Um fugiu,
outro morreu e outro
está dormindo
numa cama de ouro”
Ditado Antigo
123
2
Pouco depois de Murilo ter saído do calabouço onde Co-
nan, o cimério, estava preso, Athicus trouxe para o prisioneiro
uma bandeja de comida que incluía, entre outras coisas, um enor-
me pedaço de carne e um caneco de cerveja. Conan atirou-se à
comida com voracidade, e Athicus fez uma última ronda pelas
celas, verificando se tudo estava em ordem e que ninguém teste-
munharia a simulada invasão da prisão. Foi enquanto estava ocu-
pado com isso que um esquadrão de guarda marchou para dentro
da prisão e o prendeu. Murilo havia se enganado ao presumir que
alguém da prisão descobriu o plano de fuga de Conan. Tratava-se
de outro assunto; Athicus havia se tornado descuidado em suas
relações com o submundo e um de seus pecados passados o havia
alcançado.
Outro carcereiro tomou seu lugar, uma criatura confiável e
parva, cujo senso de dever nenhum suborno poderia abalar. Ele
era limitado, mas tinha uma idéia elevada da importância de seu
trabalho.
Depois de Athicus ter sido levado para ser formalmente
condenado perante um juiz, este carcereiro fez a ronda pelas ce-
las, por rotina. Quando passou pela de Conan, ficou chocado e
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despeitado ao ver o prisioneiro livre das correntes e no ato de
arrancar com os dentes as últimas fatias de carne de um enorme
osso. O carcereiro ficou tão perturbado que cometeu o erro de
entrar sozinho na cela, sem chamar os outros guardas. Este foi
seu primeiro erro no cumprimento do dever e, diga-se de passa-
gem, o último. Conan rachou-lhe cabeça com o osso, tomou-lhe
o punhal e as chaves e saiu despreocupado. Como Murilo havia
dito, apenas um guarda estava a postos ali naquela noite. O cimé-
rio saiu dos muros usando as chaves que havia tomado e viu-se ao
ar livre, tão livre como se o plano de Murilo tivesse tido sucesso.
Escondido pela sombra dos muros da prisão, Conan parou
para decidir a seguinte etapa de ação. Ocorreu-lhe que, já que
havia fugido com os seus próprios recursos, nada devia a Mu-
rilo; mas fora o jovem nobre que havia tirado suas correntes e
lhe mandara a comida, sem o que sua fuga teria sido impossível.
Conan decidiu que estava em dívida para com Murilo e, já que
era um homem que sempre acabava cumprindo suas obrigações,
iria cumprir a promessa feita ao jovem aristocrata. Mas primeiro
tinha de cuidar de um assunto seu.
O cimério jogou fora sua túnica rasgada e caminhou pela
noite vestido apenas com uma tanga. Apalpou o punhal que ha-
via pego — uma arma mortal com uma larga lâmina de dois gu-
mes, de meio metro de comprimento. Esgueirou-se pelas ruelas
e praças sombrias até chegar ao bairro de seu destino — o La-
birinto. Caminhava com desenvoltura pelos caminhos conheci-
dos. De fato era um labirinto de ruelas negras, pátios fechados
e trilhas enganadoras, cheias de sons abafados e de mau cheiro.
As ruas não estavam pavimentadas; lama e lixo se misturavam
numa combinação asquerosa. Não se conhecia o esgoto; o lixo
era empilhado nas ruelas formando montes e poças fétidas. Se
não andasse com cuidado, poderia perder o equilíbrio e cair nes-
sas poças imundas, ficando enterrado até a cintura. Não era nada
incomum tropeçar num cadáver com a garganta cortada ou com
um crânio fendido, caído na lama. As pessoas decentes tinham
125
boas razões para evitar o Labirinto.
Conan alcançou seu destino sem ser visto, no momento em
que a pessoa que ansiava por encontrar estava saindo. Quando o
cimério enfiou-se no pátio acima, a moça que o entregou para a
polícia estava se despedindo de seu novo amante num quarto no
andar superior. Depois que a porta se fechou atrás dele, este jo-
vem rufião se pôs a descer a escada que rangia a cada passo, tate-
ando o caminho, imerso em seus próprios pensamentos que, as-
sim como os da maioria dos frequentadores do Labirinto, tinham
a ver com o roubo de alguma propriedade. A meio caminho, ele
parou com os cabelos eriçados. Um vulto estava agachado diante
dele na escuridão, um par de olhos ardiam como os de um animal
espreitando a sua presa. Um rosnar animalesco foi a última coisa
que ele ouviu na vida, pois o monstro investiu contra ele e uma
lâmina afiada atravessou seu ventre. Emitindo um grito engasga-
do, caiu rolando pela escada.
O bárbaro andou à sua volta por alguns instantes como
um deus, com os olhos queimando na penumbra. Sabia que as
pessoas ouviram o ruído, mas os habitantes do Labirinto eram
prudentes o bastante para não se meterem em assuntos alheios.
Um grito de morte nas escadas sombrias não era nada incomum.
Mais tarde, alguém iria se aventurar a investigar, mas só depois
de um razoável lapso de tempo, quando já sabiam que o perigo
não existia mais.
Conan subiu a escada e parou na frente da porta que co-
nhecia há muito tempo. Estava fechada por dentro, mas sua lâmi-
na passou entre a porta e o trinco e levantou a trave. Ele entrou,
fechando a porta atrás de si, e se defrontou com a moça que o
entregara à polícia.
A prostituta estava sentada na cama desarrumada, de ca-
misola, com as pernas cruzadas. Ela empalideceu e arregalou os
olhos como se estivesse olhando para um fantasma. Tinha ouvido
o grito nas escadas e viu a mancha vermelha no punhal que ele
segurava na mão. Mas estava apavorada demais com sua própria
126
sorte para perder tempo lamentando o evidente destino de seu
amante, e começou a implorar por sua vida. Conan não respon-
deu; limitou-se a fitá-la com seus olhos chamejantes, testando a
ponta de seu punhal com o polegar calejado.
Finalmente atravessou o quarto, enquanto ela se encolhia
contra a parede, soluçando súplicas frenéticas por misericórdia.
Agarrando-a rudemente pelos louros cachos, ele a arrastou para
fora da cama. Enfiando o punhal na bainha, levantou sob o bra-
ço esquerdo sua cativa que gritava sem parar e foi até a janela.
Havia uma espécie de laje que circundava cada andar, à altura
das janelas. Conan chutou a janela e pisou nessa beirada estreita.
Se alguém estivesse por perto ou acordado, teria testemunhado a
visão bizarra de um homem se movendo cuidadosamente ao lon-
go do beiral, carregando debaixo do braço uma prostituta semi-
nua que se debatia. A moça não conseguia entender o que estava
acontecendo.
Ao alcançar o lugar procurado, Conan parou, agarrando-
se à parede com a mão livre. Nesse instante, um súbito clamor de
vozes ergueu-se dentro do edifício, mostrando que o corpo havia
sido descoberto. Sua cativa soluçava e se debatia, repetindo as sú-
plicas. Conan olhou para a lama das ruelas embaixo, detendo-se
um pouco para ouvir o barulho que vinha de dentro e as súplicas
da prostituta; em seguida, ele a deixou cair exatamente dentro de
um monte de lixo. Durante alguns segundos ficou se deliciando
vendo-a chutar e se debater, observando o veneno concentrado
de sua vulgaridade, e até se permitiu uma gargalhada. Em segui-
da, ergueu a cabeça e, ouvindo o tumulto crescente dentro do edi-
fício, decidiu que era hora de matar Nabonidus.
127
3
Foi um tilintar de metal que acordou Murilo. Estava ator-
doado e, gemendo, procurou se sentar. Tudo era silêncio e es-
curidão ao seu redor e, por um instante, pensou apavorado que
havia ficado cego. Então se lembrou do que havia acontecido, e
um arrepio percorreu-lhe o corpo inteiro. Tateando, descobriu
que estava deitado sobre um chão de lajes de pedra. Continuando
a tatear no escuro, descobriu uma parede do mesmo material e,
apoiando-se nela, conseguiu se pôr de pé. Não havia dúvidas de
que estava numa espécie de prisão, mas lhe era impossível adi-
vinhar onde e há quanto tempo. Lembrava-se vagamente de um
estrondo e se perguntava se teria sido a porta de ferro de seu ca-
labouço que se fechara atrás dele ou se fora o anúncio da entrada
do carrasco.
Esse pensamento o fez tremer da cabeça aos pés e recome-
çar a tatear à procura de uma saída, mas depois de algum tempo
chegou à conclusão de que estava andando por um corredor. Per-
maneceu grudado na parede, receoso de encontrar fossas e ou-
tras armadilhas, e deu-se conta de que havia alguma coisa oculta
pelas trevas. Seus ouvidos captaram um som furtivo, ele parou
sobressaltado, com os cabelos eriçados; certo como ainda estava
128
vivo, sentia agora diante dele a presença de alguma criatura viva
agachada na escuridão.
Achou que seu coração iria parar, quando uma voz sibilou
com um sotaque bárbaro:
— Murilo! É você?
— Conan! — exclamou o jovem nobre enfraquecido pela
reação e, tateando no escuro, suas mãos encontraram um par de
enormes ombros nus.
— Sorte que eu o reconheci — disse o bárbaro — Estava
prestes a furá-lo como um porco engordado.
— Onde estamos, em nome de Mitra?
— Nos subterrâneos da casa do Sacerdote Vermelho; mas
por que ...
— Que horas são?
— Não passa muito da meia-noite.
Murilo sacudiu a cabeça, tentando reunir seus pensamen-
tos.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou o cimério.
—Vim com a intenção de matar Nabonidus. Soube que
eles haviam trocado o guarda na sua prisão...
— Sim, de fato eles trocaram — rosnou Conan — Rachei
a cabeça do novo carcereiro e saí. Estaria aqui horas atrás, mas
tive um assunto particular para resolver. Bem, vamos caçar Na-
bonidus?
Murilo estremeceu.
— Conan, estamos na casa do arquiinimigo! Vim atrás de
um inimigo humano; encontrei um demônio cabeludo do infer-
no!
Conan grunhiu tomado pela dúvida; destemido como um
tigre ferido quando defrontado com inimigos humanos, ele tinha
todos os temores supersticiosos de um homem primitivo.
— Consegui entrar na casa — sussurrou Murilo, como se a
escuridão estivesse cheia de ouvidos — Encontrei morto no jar-
dim o cachorro de Nabonidus. Dentro da casa deparei-me com
129
Joka, o empregado, com o pescoço quebrado. Então vi o próprio
Nabonidus sentado em sua cadeira, vestido como sempre. Pri-
meiro pensei que ele também estivesse morto e me aproximei
furtivamente para apunhalá-lo, quando ele se levantou e me en-
frentou. Deuses!
A lembrança daquele horror deixou momentaneamente
mudo o jovem nobre, revivendo aquele espantoso momento.
— Conan — sussurrou ele — quem estava em pé na minha
frente não era um ser humano! Nem seu corpo nem sua postura
eram humanos; debaixo do capuz escarlate do sacerdote sorria
um rosto de loucura e pesadelo! Esse rosto estava coberto de pê-
los negros, com dois olhinhos vermelhos de porco; o nariz era
achatado, com grandes narinas dilatadas; os lábios moles se do-
bravam para trás, revelando enormes presas amarelas, iguais aos
dentes de cachorro. As mãos que pendiam das mangas vermelhas
eram disformes e também cobertas por pêlos negros. Vi tudo isso
num relance, então fui tomado pelo pânico e caí desmaiado.
— E então? — murmurou o cimério irrequieto.
— Recobrei a consciência pouco tempo atrás; o monstro
deve ter me jogado nos subterrâneos. Sempre suspeitei que Na-
bonidus não era totalmente humano! Ele é um demônio — um
lobisomem! De dia ele anda no meio dos homens disfarçado de
ser humano e de noite retoma sua verdadeira aparência.
— Isto é evidente — respondeu Conan — Todos sabem
que existem homens que se transformam em lobos quando que-
rem. Mas por que ele matou seus empregados?
— Quem consegue entender a mente de um demônio? —
disse Murilo — Nosso interresse no momento é sair deste lugar.
Armas humanas não podem machucar um lobisomem. Como
você conseguiu chegar até aqui?
— Pelo esgoto. Eu contava com que os jardins estivessem
sendo vigiados. Os esgotos se juntam com um túnel que sai nes-
se subterrâneo. Pensei em achar alguma porta destrancada para
entrar na casa.
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— Então vamos fugir por onde você entrou! — exclamou
Murilo — Para os diabos com isto! Uma vez fora deste ninho de
cobra, vamos tentar a sorte com os guardas do rei e arriscar uma
fuga da cidade. Vá na frente!
— É inútil — retrucou o cimério—A saída para os esgotos
está barrada. Quando entrei no túnel, uma grade de ferro desa-
bou do telhado. Se eu não me movesse mais rápido do que um
relâmpago, as pontas teriam me pregado ao chão como a um ver-
me. Tentei erguê-la mas não consegui. Nem um elefante conse-
guiria tirá-la do lugar e só um coelho passaria entre as barras.
Murilo praguejou, sentindo uma mão gelada passando por
sua espinha. Ele deveria ter adivinhado que Nabonidus não dei-
xaria desprotegida nenhuma entrada para sua casa. Se Conan não
possuísse a rapidez igual a uma mola de aço, aquele pórtico iria
cortá-lo ao meio ao cair. Sem dúvida, quando Conan caminhou
pelo túnel, acionou algum gatilho oculto que soltou a grade do
telhado. A realidade era que ambos estavam enterrados vivos.
— Há apenas uma coisa a fazer — disse Murilo, suando
profusamente — É procurar uma outra saída; sem dúvida, todas
elas estão protegidas por armadilhas, mas não temos outra esco-
lha.
O bárbaro concordou grunhindo e os companheiros se
puseram a tatear pelo corredor às escuras. Nesse momento, algo
ocorreu a Murilo.
— Como é que você me reconheceu nas trevas? — pergun-
tou.
— Senti o cheiro do perfume que você usava nos cabelos
quando veio à minha cela — respondeu Conan —. Senti o mesmo
perfume, quando estava agachado no escuro e me preparando
para despedaçá-lo.
Murilo aproximou do nariz uma mecha de seu cabelo;
mesmo assim mal conseguia sentir o cheiro com seus sentidos
civilizados e percebeu quão aguçados deveriam ser os órgãos do
bárbaro.
131
Instintivamente, Conan tocou a bainha da espada e pra-
guejou ao encontrá-la vazia. No mesmo instante, uma pálida luz
apareceu na sua frente, e eles chegaram a uma curva do corredor
onde a luz se refletia cinzenta. Os dois espiaram por detrás da es-
quina e Murilo, apoiando-se no companheiro, sentiu sua enorme
estatura enrijecer. O jovem nobre também havia visto aquilo — o
corpo seminu de um homem, jogado no corredor depois da cur-
va, vagamente iluminado por uma luminosidade que parecia irra-
diar do grande disco de prata pendurado na parede mais adiante.
Uma estranha familiaridade em relação à figura deitada de bru-
ços agitou Murilo com inexplicáveis e monstruosas conjeturas.
Impelindo o cimério para que o acompanhasse, ele se esgueirou
até o corpo e se inclinou sobre ele. Vencendo certa repugnância,
agarrou-o e virou-o de costas. Uma exclamação de incredulidade
escapou de sua boca; o cimério deu um grunhido explosivo.
— Nabonídus! O Sacerdote Vermelho! — exclamou Muri-
lo, com seu cérebro num vórtex estonteante de espanto — Então
quem... o quê...?
O sacerdote deu um gemido e se mexeu. Com uma rapidez
felina, Conan se curvou sobre ele apontado o punhal para o cora-
ção do sacerdote. Murilo agarrou o seu pulso.
— Espere! Não o mate ainda...
— Por que não? — inquiriu o cimério — Ele abandonou
sua forma de lobisomem e está adormecido. Você quer acordá-lo
para que ele nos despedace?
— Não, espere! — insistiu Murilo, tentando reunir suas
idéias confusas — Veja! Ele não está dormindo — vê esse hema-
toma na sua têmpora barbeada? Recebeu um golpe que o deixou
sem sentidos. Pode estar deitado aqui há horas.
— Pensei que você jurou tê-lo visto na forma de um animal
no andar de cima da casa — disse Conan.
—Eu vi! Ou então... ele está voltando a si! Afaste sua lâ-
mina, Conan; há aqui um mistério ainda mais sinistro do que eu
pensei. Tenho de falar com este sacerdote antes que o matemos.
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Nabonídus ergueu a mão vacilante até a sua têmpora fe-
rida, balbuciou alguma coisa e abriu os olhos. Por um instante,
seus olhos permaneceram vazios e sem inteligência; em seguida,
a vida lhes voltou com uma sacudidela e o sacerdote se sentou,
olhando arregalado para os dois companheiros. Por mais terrível
que tivesse sido o baque que aturdira temporariamente seu cére-
bro aguçado, este voltara a funcionar com o poder de costume.
Seu olhar perscrutou rapidamente o espaço ao seu redor, em se-
guida parou no rosto de Murilo.
— Você honra minha pobre casa, jovem senhor — riu ele
friamente, olhando para a enorme figura atrás do jovem nobre
— Vejo que trouxe um destemido. Sua espada não era suficiente
para tirar a vida de minha humilde pessoa?
— Basta — retorquiu Murilo impaciente — Quanto tempo
você ficou deitado aqui?
— É uma estranha pergunta a se fazer para um homem que
acaba de recuperar os sentidos — respondeu o sacerdote — Não
sei que horas são agora. Mas faltava mais ou menos uma hora
para a meia-noite quando fui atacado.
— Então quem é aquele que está no andar de cima da casa,
vestido com sua túnica? — exigiu Murilo.
— Aquele deve ser Thak — respondeu Nabonidus, apal-
pando pesaroso suas feridas — Sim, deve ser Thak. E vestido com
a minha túnica? Que cachorro!
Conan, que não estava compreendendo nada, mexeu-se
impaciente, e resmungou alguma coisa em sua própria língua.
Nabonidus olhou para ele com ar espantado.
— A faca do seu arruaceiro busca meu coração, Murilo —
disse ele — Pensei que você seria mais esperto e aceitasse o meu
conselho de sair da cidade.
— Como podia saber o que me esperava? — retrucou Mu-
rilo — De qualquer maneira, meus interesses estão aqui., —Você
está em boa companhia com esse cortador de pescoços — mur-
murou Nabonidus — Já há algum tempo que venho suspeitando
133
de você. É por isso que fiz desaparecer aquele obscuro secretário
da corte. Antes de morrer, ele me contou muitas coisas, entre ou-
tras, o nome do jovem nobre que lhe dava propinas para surrupiar
segredos de Estado, os quais o nobre vendia para potências rivais.
Não se envergonha disso, Murilo, seu ladrão de mãos brancas?
— Não tenho mais motivos para me sentir envergonhado
do que você, seu trapaceiro de coração de corvo — respondeu
Murilo rapidamente — Você explora um reino inteiro para seu
próprio benefício; e, sob o disfarce de desinteressada dedicação
ao Estado, você engana o rei, empobrece os ricos, oprime os po-
bres e sacrifica o futuro inteiro da nação por sua ambição impie-
dosa. Você não passa de um porco gordo com o focinho enfiado
na sarjeta. Você é mais ladrão do que eu. De nós três, este cimério
é o homem mais honesto, porque ele rouba e mata abertamente.
— Bem, então, todos nós somos embusteiros — concordou
Nabonidus — e agora? E quanto à minha vida?
— Quando vi a orelha do secretário desaparecido, sabia
que estava liquidado — disse Murilo bruscamente — e acredito
que você invocaria a autoridade do rei. Não estou certo?
— Exatamente — respondeu o sacerdote — É fácil liquidar
um secretário da corte, mas você é importante demais. Pretendia
dizer ao rei um gracejo sobre você, na manhã seguinte.
— Um gracejo que teria custado minha cabeça — mur-
murou Murilo — Então o rei não sabe de meus negócios com o
exterior?
—Ainda não — suspirou Nabonidus — E agora, já que vejo
que seu companheiro tem uma faca, temo que esse gracejo nunca
será dito.
— Você deve saber como sair desses ninhos de ratos — dis-
se Murilo — Suponhamos que eu concorde em poupar sua vida.
Está disposto a nos ajudar a fugir e a jurar manter silêncio sobre
meus atos?
— Desde quando um sacerdote manteve um juramento?
— queixou-se Conan, entendendo o rumo da conversa — Deixe
134
-me cortar o pescoço dele; quero ver de que cor é o seu sangue.
Dizem no Labirinto que o seu coração é negro, então o sangue
deve ser negro também...
— Fique quieto — sussurrou Murilo — Se ele não nos
mostrar a saída desses subterrâneos, podemos apodrecer aqui.
Bem, Nabonidus, que me diz?
— O que pode dizer um lobo com a perna presa na arma-
dilha? — riu o sacerdote — Estou em seu poder e, se quisermos
escapar, devemos nos ajudar mutuamente. Juro que se eu sobrevi-
ver a esta aventura, vou esquecer todas os seus negócios excusos.
Juro pela alma de Mitra!
— Estou satisfeito — murmurou Murilo — Até o Sacerdo-
te Vermelho não ousaria quebrar este juramento. Agora, como
vamos sair daqui? Este meu amigo entrou pelo túnel, mas uma
grade caiu depois que ele passou e bloqueou a passagem. Você
pode erguê-la?
— Não destes subterrâneos — respondeu o sacerdote — A
alavanca de controle fica no aposento acima do túnel. Existe ape-
nas mais uma saída, que vou mostrar para vocês. Mas, diga-me,
como é que você chegou aqui?
Murilo contou-lhe resumidamente e Nabonidus, fazendo
sinal com a cabeça, levantou-se empertigado. Mancando pelo
corredor que se abria para uma grande sala, foi em direção do
disco de prata que estava do outro lado. A luz aumentava confor-
me avançavam, embora não passasse de uma tênue luminosidade
cheia de sombras. Chegando perto do disco, eles viram uma esca-
da estreita que levava para o andar de cima.
— Essa é a outra saída— disse Nabonidus — E duvido
muito que a porta no final da escada esteja trancada. Mas acho
que aquele que quiser atravessar aquela porta é melhor que corte
primeiro sua própria garganta. Olhe para dentro do disco.
Aquilo que parecera uma placa de prata era, na realidade,
um enorme espelho encaixado na parede. Um sistema confuso de
tubos de cobre saía da parede acima dele, curvando-se em ângu-
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los retos em direção do disco. Olhando para dentro deste tubos,
Murilo viu um conjunto estonteante de espelhos menores. Vol-
tando sua atenção para o espelho maior na parede, soltou uma
exclamação de espanto. Espiando por cima de seu ombro, Conan
grunhiu.
Eles pareciam estar olhando através de uma grande janela
para dentro de um aposento bem iluminado. Havia espelhos so-
bre as paredes, com cortinas de veludo entre eles; havia sofás de
seda, cadeiras de ébano e mármore e passagens com cortinas que
levavam para fora do aposento. E diante de uma das portas que
não tinha cortina, estava sentado um negro objeto volumoso que
contrastava grotescamente com a riqueza do aposento.
Murilo sentiu o sangue novamente gelar nas veias ao olhar
para o horror que parecia estar fitando-o diretamente nos olhos.
Recuou involuntariamente enquanto Conan estendia o pescoço
truculento, até seu queixo quase tocar a superfície do espelho,
grunhindo alguma ameaça ou desafio em sua própria língua bar-
bárica.
— Em nome de Mitra, Nabonidus — arfou Murilo, abala-
do — que é aquilo?
— É Thak — respondeu o sacerdote, acariciando sua têm-
pora ferida—Alguns o chamariam de gorila, mas ele é quase tão
diferente de um verdadeiro macaco quanto é diferente de um
verdadeiro homem. Seu povo mora no Leste distante, nas mon-
tanhas que ladeiam as fronteiras orientais de Zamora. Não há
muitos deles; mas, se não forem exterminados, acredito que se
transformarão em seres humanos em talvez, cem mil anos. Estão
no estágio de formação; não são nem macacos, como os seus an-
cestrais remotos, nem seres humanos, como seus descendentes
remotos poderão ser. Moram nas encostas altas de montanhas
bem inacessíveis, sem conhecer nada do fogo nem da fabricação
de abrigos ou de vestimentas, nem do uso de armas. No entanto,
falam uma espécie de língua que consiste principalmente de gru-
nhidos e estalos de língua.
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“Peguei Thak quando ainda era um filhote, e ele aprendeu
o que lhe ensinei muito mais rápido e melhor do que qualquer
animal de verdade o faria. Servia-me ao mesmo tempo como
guarda-costas e como servo. Mas me esqueci de que, sendo em
parte humano, ele não poderia ser transformado em uma simples
sombra de mim mesmo, como um verdadeiro animal. Aparente-
mente, seu semi-cérebro conservou impressões de ódio, ressenti-
mentos e algum tipo próprio de ambição animal.
“Em todo o caso, ele me atacou quando eu menos esperava.
Ontem à noite, de repente ele pareceu enlouquecer. Suas ações
tinham todas as características de insanidade animal, no entanto
sei que deve ter sido resultado de um longo e cuidadoso planeja-
mento.
“Ouvi sons de luta no jardim e, ao investigar — pois acredi-
tava que fosse você sendo arrastado pelo meu cão de guarda — vi
Thak emergir dos arbustos pingando sangue. Antes de me dar
conta de sua intenção, ele pulou sobre mim com um terrível grito
e me deixou sem sentidos.
“Não me lembro de mais nada, mas posso apenas concluir
que, seguindo alguma idéia de seu cérebro semi-humano, ele ti-
rou minha túnica e me jogou ainda vivo nos subterrâneos — por
que razão, somente os deuses saberiam. Ele deve ter matado o cão
quando saiu do jardim e, depois de me derrubar, evidentemente
matou Joka, conforme você mesmo viu. Joka teria vindo em mi-
nha ajuda, mesmo contra Thak, a quem ele sempre odiou.
Murilo olhou pelo espelho para a criatura que estava sen-
tada com tamanha paciência diante da porta fechada. Estreme-
ceu ao ver as mãos negras e peludas. O corpo era grosso, largo e
curvado. Os ombros, de tão largos, haviam rasgado a túnica es-
carlate, e sobre esses ombros Murilo notou o mesmo pêlo negro
e espesso. O rosto espiando debaixo do capuz escarlate era to-
talmente animalesco, mas Murilo percebeu que Nabonidus tinha
razão ao dizer que Thak não era de todo um animal. Havia algo
naqueles olhos vermelhos embaçados, na postura desajeitada da
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criatura, uma aparência que a distinguia do verdadeiro animal.
Aquele corpo monstruoso abrigava um cérebro e uma alma que
estavam prestes a desabrochar em algo vagamente humano. Mu-
rilo ficou assombrado ao reconhecer uma leve e abominável se-
melhança entre sua espécie e aquela monstruosidade acocorada,
e ficou enauseado ao pensar nos abismos de bestialidade profun-
da dos quais a humanidade havia emergido com tanto esforço.
— Com certeza ele está nos vendo — murmurou Conan
—. Por que não nos ataca? Ele poderia quebrar esta janela com
facilidade.
Murilo percebeu que Conan supunha que o espelho atra-
vés do qual estavam olhando fosse uma janela.
— Ele não está nos vendo — respondeu o sacerdote —
Estamos olhando para o aposento que fica no andar de cima. A
porta que Thak está guardando é a que fica no topo dessa esca-
da. É simplesmente uma disposição de espelhos. Você está vendo
aqueles espelhos nas paredes? Eles refletem a imagem do apo-
sento para estes tubos, pelos quais outros espelhos, por sua vez, a
levam para refleti-la finalmente em tamanho maior neste espelho
grande.
Murilo percebeu que a perfeição de tal invenção colocava o
sacerdote séculos na frente de sua geração; mas Conan atribuiu-o
à feitiçaria e não se preocupou mais com isso.
— Construí estes subterrâneos para servir tanto de refúgio
quanto de calabouço — dizia o sacerdote — Há ocasiões em que
me refugiei aqui e, através desses espelhos, observava o destino
cair sobre aqueles que me procuravam com más intenções.
— Mas por que Thak está guardando aquela porta? — in-
sistiu Murilo.
— Ele deve ter ouvido a grade cair no túnel. A grade está
ligada a sinos pendurados nos aposentos superiores. Ele sabe que
há alguém nos subterrâneos, e está esperando que esse alguém
suba pelas escadas. Oh, o monstro aprendeu bem as lições que
lhe ensinei. Ele viu o que aconteceu com os homens que passaram
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por aquela porta quando puxei aquela corda que está pendurada
naquela parede, e está esperando para me imitar.
— E enquanto ele espera, o que faremos? — insistiu Mu-
rilo.
— Não há nada que possamos fazer, a não ser observá-lo.
Enquanto ele estiver naquele aposento, não podemos ousar subir
pela escada. Ele tem a força de um verdadeiro gorila e poderia
nos despedaçar a todos facilmente. Mas ele não precisa exercitar
seus músculos; se abrirmos aquela porta basta ele puxar aquela
corda e nos mandar para a eternidade.
— Como?
— Eu concordei em ajudá-los a fugir — respondeu o sacer-
dote — não em revelar meus segredos.
Murilo ia reclamar, mas de repente enrigeceu. Uma mão
furtivamente havia afastado as cortinas numa das passagens re-
velando um rosto escuro, cujos olhos brilhantes se fixaram ame-
açadores sobre a forma acocorada vestida com a túnica escarlate.
— Petreus! — sibilou Nabonidus — Mitra, que reunião de
abutres acontece essa noite!
O rosto permaneceu emoldurado pelas cortinas afastadas.
Por cima do ombro do intruso espiavam outros rostos — rostos
escuros, finos, animados com ansiedade sinistra.
— O que eles fazem aqui? — murmurou Murilo, abaixan-
do inconscientemente a voz, embora soubesse que eles não po-
diam ouvi-los.
— Ora, o que estariam fazendo Petreus e seus jovens na-
cionalistas esquentados na casa do Sacerdote Vermelho? — riu
Nabonidus — Vejam com que ansiedade eles olham para a figura
que julgam ser seu arquiinimigo. Eles caíram no mesmo erro que
você; seria divertido observar as expressões deles quando desco-
brirem o engano.
Murilo não respondeu. O assunto inteiro tinha distinta-
mente um ar de irrealidade. Ele sentiu como se estivesse obser-
vando um jogo de marionetes, ou como se ele mesmo fosse um
139
espírito desencarnado, olhando impessoalmente para as ações
dos vivos que não o vêem nem suspeitam de sua presença.
Ele viu Petreus colocar o dedo nos lábios em advertência
e acenar para seus companheiros conspiradores. O jovem nobre
não conseguia saber se Thak tinha percebido os intrusos. A po-
sição do homem-macaco não havia mudado; continuava sentado
de costas para a porta pela qual os homens estavam se esgueiran-
do.
— Eles tiveram a mesma idéia que você — murmurava Na-
bonidus no ouvido dele — Só que as razões deles são patrióticas
e não egoístas. É fácil entrar na minha casa, agora que o cão está
morto. Oh, que chance de me livrar dessa ameaça de uma vez por
todas! Se eu estivesse sentado no lugar de Thak... um pulo até a
parede... um puxão naquela corda...
Petreus havia pisado de leve sobre o soleira da porta; seus
companheiros estavam nos seus calcanhares, segurando as ada-
gas. De repente Thak levantou-se e se voltou para eles. O horror
inesperado de sua aparência, quando pensavam que veriam a fi-
gura odiosa mas familiar de Nabonidus, abalou os nervos deles,
assim como o mesmo espetáculo havia feito com Murilo. Petreus
recuou com um grito estridente, empurrando para trás seus com-
panheiros que tropeçaram uns nos outros; e naquele instante,
Thak, cobrindo a distância num prodigioso salto grotesco, agar-
rou e puxou com força uma corda grossa de veludo que pendia
perto da porta.
Então as cortinas se afastaram para os lados deixando a
porta descoberta, e algo faiscou com um borrão prateado pecu-
liar.
— Ele se lembrou! — exultou Nabonidus — O animal é
meio humano! Ele viu como se faz e se lembrou! Observem ago-
ra! Observem! Observem!
Murilo viu que era um painel pesado de vidro que havia ca-
ído fechando a porta. Através dele, viu os rostos pálidos dos cons-
piradores. Petreus, jogando as mãos como se quisesse proteger-se
140
de uma investida de Thak, encontrou a barreira transparente e,
pelos seus gestos, disse alguma coisa para seus companheiros.
Agora que as cortinas estavam afastadas, os homens que estavam
no subterrâneo viam tudo que acontecia no aposento que conti-
nha os nacionalistas. Completamente aturdidos, correram pelo
aposento até a porta pela qual haviam aparentemente entrado,
somente para parar de repente, como que impedidos por uma
parede invisível.
— O puxão da corda selou aquele aposento — riu Nabo-
nidus — E simples; os painéis de vidro funcionam por meio de
trilhos nas portas. Ao puxar a corda, solta-se uma mola que os
segura. Eles deslizam, travam no lugar e só podem ser acionados
do lado de fora. O vidro é inquebrável; um homem com um bas-
tão de ferro não consegue quebrá-lo. Ah!
Os homens aprisionados estavam histéricos; corriam lou-
camente de uma porta à outra, batendo em vão nas paredes de
cristal, sacudindo os punhos violentamente para a implacável
forma negra que estava acocorada do lado de fora. Então um de-
les jogou a cabeça para trás, olhou para cima e se pôs a berrar, a
julgar pelo movimento dos lábios, enquanto apontava para o teto.
— A queda dos painéis liberou as nuvens da morte — disse
o Sacerdote Vermelho com um riso selvagem — A poeira do lótus
cinzento, dos Pântanos dos Mortos, além do país de Khitai.
No meio do teto havia um enorme aglomerado de botões
dourados; eles se abriram como pétalas de uma enorme rosa en-
talhada, de onde espirrou uma névoa cinzenta que rapidamente
encheu o aposento. Instantaneamente, a cena mudou de histe-
ria para loucura e horror. Os homens aprisionados começaram a
cambalear; corriam em círculos como que embriagados. De seus
lábios escorria espuma, num ricto de riso tenebroso. Debatendo-
se, eles caíam uns sobre os outros com dentes e adagas, cortando,
rasgando, matando num holocausto de loucura. Murilo sentiu
náuseas ao ver a cena e ficou contente por não ouvir os gritos e
uivos que deviam estar preenchendo aquele aposento. Era como
141
imagens silenciosas projetadas numa tela.
Do lado de fora do aposento de terror, Thak saltitava numa
alegria animalesca, sacudindo seus braços peludos para cima. Em
pé, atrás de Murilo, Nabonidus ria.
— Ah, um belo golpe, Petreus! Isto o desentranhou bem!
Agora uma para você, meu amigo patriota! Assim! Todos eles es-
tão caídos, e os vivos rasgam a carne dos mortos com seus dentes
salivantes.
Murilo estremeceu. Atrás dele o cimério praguejava baixo
em sua língua inculta. Restava somente a morte no aposento da
névoa cinzenta; rasgados, esmagados e triturados, os conspira-
dores jaziam num monte vermelho, com a boca entreaberta e o
rosto injetado de sangue, olhando no vazio no meio da fumaça
mortífera rodopiando devagar.
Thak, curvando-se como um monstruoso anão, aproxi-
mou-se da parede onde pendia a corda e deu-lhe um puxão la-
teral.
— Ele está abrindo a porta mais distante — disse Naboni-
dus — Por Mitra, ele é mais humano do que eu suspeitava! Vejam,
a névoa rodopia para fora do aposento e se dissipa. Ele aguarda,
para estar seguro. Agora ele ergue o outro painel. É cauteloso,
conhece a morte do lótus cinzento que traz a loucura. Por Mitra!
A exclamação atingiu Murilo como um choque elétrico.
— Nossa única chance! — exclamou Nabonidus — Se ele
sair do aposento por alguns minutos, vamos tentar subir corren-
do por aquelas escadas.
Tensos, eles observavam o monstro atravessar gingando a
porta e desaparecer. Quando o painel de vidro foi erguido, as cor-
tinas haviam caído, escondendo o aposento da morte.
— Temos de arriscar! — ofegou Nabonidus, e Murilo viu
gotas de suor cobrindo seu rosto — Talvez esteja se livrando dos
corpos como me viu fazer. Rápido! Sigam-me por essas escadas!
Ele correu em direção dos degraus e subiu com uma agi-
lidade que espantou Murilo. O jovem nobre e o bárbaro estavam
142
em seus calcanhares e ouviram seu suspiro de alívio quando es-
cancarou a porta no topo da escada. Precipitaram-se para dentro
do grande aposento que haviam visto espelhado lá embaixo. Thak
não estava à vista.
— Ele está naquele aposento com os cadáveres! — excla-
mou Murilo — Por que não prendê-lo ali como ele fez com os
homens?
— Não, não! — ofegou Nabonidus, empalidecendo de ma-
neira estranha — Não sabemos se ele está lá dentro. Poderia apa-
recer antes que eu alcançasse a corda da armadilha! Sigam-me
para o corredor; devo alcançar meu quarto e pegar as armas que
vão destruí-lo. Este corredor é a única saída desse aposento que
não tem algum tipo de armadilha.
Os dois seguiram-no rapidamente atravessando a soleira
do lado oposto à porta do aposento da morte e saíram para um
corredor, para o qual se abriam diversos outros aposentos. Com
pressa desajeitada, Nabonidus se pôs a tentar abrir as portas. To-
das elas estavam trancadas, assim como a porta do final do cor-
redor.
— Meu deus! — exclamou o Sacerdote Vermelho com os
olhos arregalados, apoiando-se na parede — As portas estão tran-
cadas e Thak levou minhas chaves. Estamos de fato presos.
Murilo ficou assustado ao ver o homem em tal estado de
nervosismo; Nabonidus se empertigou com esforço.
— Esse animal me pôs em pânico — disse ele — Se vocês
tivessem visto como ele despedaça as pessoas... bem que Mitra
nos ajude, mas devemos lutar contra ele com aquilo que os deuses
nos deram, Venham!
Ele os conduziu de volta pela porta com cortinas e espiou
para dentro do grande aposento a tempo de ver Thak aparecer
na porta, do outro lado. Era óbvio que o homem-animal havia
suspeitado de alguma coisa. Suas pequenas orelhas pregadas à
cabeça estavam contraídas; ele olhou furioso à sua volta e, apro-
ximando-se da porta mais próxima, puxou as cortinas para espiar
143
atrás delas.
Nabonidus recuou, tremendo como uma folha, e agarrou
o ombro de Conan.
— Homem, você tem coragem de apostar sua faca contra
as presas dele?
Os olhos do cimério arderam em resposta.
— Rápido! — sussurrou o Sacerdote Vermelho, empurran
-do-o atrás das cortinas, junto à parede — Já que de qualquer
maneira ele vai nos encontrar, vamos atraí-lo para nós. Quan-
do passar por você, afunde sua lâmina nas costas dele, se puder.
Você, Murilo, deixe que ele te veja e depois fuja pelo corredor.
Mitra sabe que não temos chance contra ele num combate corpo
a corpo, mas estaremos perdidos de qualquer maneira quando ele
nos encontrar.
Murilo sentiu o sangue congelar nas veias, mas reuniu co-
ragem e deu um passo para a frente. No mesmo instante, Thak,
do outro lado do aposento, voltou-se, olhou e investiu com um
rugido tremendo. Seu capuz escarlate havia caído para trás, reve-
lando sua disforme cabeça negra; suas mãos negras e a túnica ver-
melha estavam manchadas de um vermelho mais vívido. Era um
pesadelo vermelho e negro correndo através do aposento, com
as presas arreganhadas, as pernas curvas carregando seu enorme
corpo num passo aterrorizante.
Murilo voltou-se e correu de volta para o corredor e, por
mais rápido que fosse, o horror desgrenhado estava quase em
seus calcanhares. Então, quando o monstro passou correndo pe-
las cortinas, de dentro delas catapultou uma enorme figura que
golpeou em cheio os ombros do homem-macaco, e no mesmo
instante enfiou o punhal em suas costas animalescas. Thak berrou
terrivelmente, caindo com o impacto e levando consigo o atacan-
te. Os dois rolaram num redemoinho de pernas e braços, na luta
desesperada de inimigos.
Murilo viu que o bárbaro havia prendido as pernas em
torno do torso do homem-macaco e estava tentando manter sua
144
posição sobre as costas do monstro enquanto o golpeava com seu
punhal. Thak, por outro lado, estava tentando derrubar o inimigo
e arrastá-lo até que pudesse atingi-lo com suas gigantescas pre-
sas. Num redemoinho de golpes e farrapos vermelhos, os com-
batentes rolaram pelo corredor tão rapidamente que Murilo não
ousava usar a cadeira que havia erguido, com medo de golpear
o cimério. E viu que, apesar da vantagem do primeiro golpe de
Conan e da volumosa túnica que envolvia o corpo do homem-
-macaco, tirando-lhes os movimentos, a força gigantesca de Thak
estava prevalecendo rapidamente. Ele estava conseguindo girar o
cimério para que ele ficasse de frente. O punhal de Conan havia
afundado diversas vezes no dorso do homem-macaco, nos om-
bros e pescoço taurino; o sangue esguichava de uma série de fe-
ridas; mas, a não ser que a lâmina alcançasse rapidamente algum
ponto absolutamente vital, a força desumana de Thak sobrevive-
ria para acabar com o cimério e, depois dele, com os companhei-
ros de Conan. Com os mesmos golpes, o cimério teria matado
uma dúzia de homens.
O próprio Conan estava lutando em silêncio como um ani-
mal selvagem, a não ser pelos resfolegos do esforço. Os múscu-
los negros do monstro e a terrível garra daquelas mãos disformes
rasgavam-no e arranhavam-no, e as mandíbulas abertas procu-
ravam sua garganta. Então Murilo, vendo uma brecha, pulou e
bateu com a cadeira no crânio de Thak. Usou toda a sua força,
suficiente para esmagar o crânio de um ser humano. Ao atingir
a cabeça negra de Thak, o monstro ficou atordoado e relaxou
momentaneamente seus músculos, o suficiente para que Conan,
ofegando e sangrando, se lançasse para a frente e afundasse seu
punhal até o fim no coração do homem-macaco.
Com um tremor convulsivo, o homem-animal olhou para
cima, depois caiu inerte para trás. Seus olhos ferozes ficaram
imóveis e vidrados, seus membros grossos estremeceram e fica-
ram rígidos.
Conan, atordoado, levantou-se cambaleando, sacudindo o
145
suor e o sangue de seus olhos. O sangue pingava de seu punhal e
de seus dedos, escorria por suas coxas, braços e peito. Murilo quis
apoiá-lo, mas o bárbaro se desvencilhou com impaciência.
— Quando eu não puder mais me manter de pé sozinho,
será hora de morrer — resmungou ele por entre os lábios esma-
gados — Mas bem gostaria de uma garrafa de vinho.
Nabonidus olhava para a figura imóvel como se não acre-
ditasse em seus próprios olhos. O monstro jazia negro, peludo,
abominável, grotesco, envolto em frangalhos de túnica escarlate;
embora mais humano que animalesco, mesmo assim possuía algo
de vagamente patético e terrível.
Até o cimério sentiu isso, pois disse ofegante:
— Esta noite matei um homem, não um animal. Vou colo-
cá-lo entre os nobres que mandei para as trevas, e minhas mulhe-
res cantarão sobre ele.
Nabonidus se agachou e pegou um molho de chaves que
pendia numa corrente de ouro. Elas haviam caído do cinto do
homem-macaco durante a batalha. Indicando a seus companhei-
ros que o seguissem, conduziu-os até um aposento, destrancou a
porta e entrou; era iluminado da mesma maneira que os outros.
O Sacerdote Vermelho tomou um frasco de vinho que estava em
cima de uma mesa e encheu as taças de cristal. Enquanto seus
companheiros sedentos bebiam, ele murmurou:
— Que noite! Já é quase dia. O que querem fazer, meus
amigos?
— Vou cuidar das feridas de Conan se você me trouxer
ataduras e outras coisas assim — disse Murilo, e Nabonidus ace-
nou com a cabeça, dirigindo-se até a porta que conduzia para o
corredor. Algo em sua cabeça abaixada fez com que Murilo o ob-
servasse com atenção. Chegando à porta, o Sacerdote Vermelho
virou-se de repente. Seu rosto havia se transformado. Seus olhos
brilhavam com o antigo fogo, seus lábios riam silenciosamente.
— Embusteiros juntos! — zombou ele, com sua voz costu-
meira — Mas não tolos juntos. Você é o tolo, Murilo!
146
— O que você quer dizer? — perguntou o jovem nobre,
adiantando-se.
— Para trás! — chicoteou a voz de Nabonidus — Mais um
passo e eu o faço estourar!
O sangue de Murilo gelou ao ver que a mão do Sacerdote
Vermelho havia agarrado uma grossa corda de veludo que pendia
entre as cortinas do lado de fora da porta.
— Que traição é essa?— gritou Murilo — Você jurou...
— Eu jurei não revelar seus segredos! Não jurei que não
tomaria o assunto em minhas próprias mãos, se pudesse. Você
pensa que eu deixaria passar uma oportunidade dessas? Em cir-
cunstâncias normais, não ousaria matá-lo eu mesmo sem a san-
ção do rei, mas agora ninguém jamais saberá. Você irá para as
valas ácidas junto com Thak e os tolos nacionalistas, e ninguém
será mais sábio que o outro. Que noite para mim! Apesar de per-
der alguns servos valiosos, livrei-me de vários inimigos perigo-
sos. Para trás! Estou na soleira e você não pode me alcançar antes
que eu puxe esta corda e o mande para o inferno. Dessa vez não
será o lótus cinza e sim algo tão ou mais eficiente. Quase todos
os aposentos de minha casa são uma armadilha. E assim, Murilo,
que tolo que você é...
Rápido demais para seguir com o olhar, Conan pegou um
banco e o arremessou. Nabonidus jogou instintivamente os bra-
ços para cima com um grito, mas não houve tempo. O objeto ba-
teu em sua cabeça, o Sacerdote Vermelho cambaleou e caiu de
bruços numa escura poça vermelha que se alastrava devagar.
— O sangue dele é vermelho, afinal — grunhiu Conan.
Murilo afastou para trás com a mão trêmula seus cabelos
empastados de suor e apoiou-se na mesa, num súbito relaxamen-
to físico, depois de tanta aflição.
— Já é de manhã—disse ele — Vamos sair daqui antes
que caiamos em alguma outra armadilha. Se pudermos escalar o
muro externo sem sermos vistos, não estaremos comprometidos
com tudo que aconteceu aqui. Que a polícia escreva suas próprias
147
explicações.
Ele olhou para o corpo do Sacerdote Vermelho deitado
numa poça de sangue e encolheu os ombros.
— Ele foi um tolo, afinal; se não tivesse parado para nos de-
safiar, poderia ter-nos apanhado facilmente nalguma armadilha,
sorrateiramente.
— Bem — disse o cimério tranquilamente — ele escolheu
o caminho de todos os canalhas, afinal de contas. Eu gostaria de
saquear a casa, mas acho que é melhor irmos embora.
Quando eles apareceram da penumbra do jardim orvalha-
do, Murilo disse:
— O Sacerdote Vermelho desapareceu nas sombras, então
meu caminho na cidade está livre e não tenho nada mais a temer.
Mas e você? Ainda há o assunto daquele sacerdote no Labirinto,
e...
— Estou cansado desta cidade mesmo — sorriu o cimé-
rio — Você falou de um cavalo me esperando no Covil do Rato.
Estou curioso para ver quão rápido aquele animal pode me levar
para outro reino. Há muitas estradas pelas quais ainda quero via-
jar antes de tomar o mesmo caminho que Nabonidus tomou hoje
à noite.
148
A Fênix
na Espada
149
150
1
Além das sombras dos pináculos e das torres estendia-se
a escuridão fantasmagórica e o silêncio que antecede a Aurora.
Num beco sombrio, em meio a um labirinto de misteriosos ca-
minhos sinuosos, quatro vultos mascarados saíram apressados
por uma porta, aberta por uma mão sombria e furtiva. Sem pro-
nunciar palavra, caminharam em direção das trevas, envoltos
cuidadosamente em seus mantos encapuçados; desapareceram
na escuridão, silenciosamente, como fantasmas de homens assas-
sinados.
Atrás deles, espiava uma fisionomia sardônica emoldurada
pela porta entreaberta; um par de olhos faiscaram maldosamente
em meio às sombras.
— Entrem na noite, criaturas noturnas — zombou uma
voz — Tolos, sua destruição está em seus calcanhares como um
cão cego e vocês não sabem disso.
Aquele que falou, cerrou a porta, empurrou as travas, e,
de vela na mão, seguiu pelo corredor. Ele era um gigante sinis-
tro, cuja pele escura revelava sua origem stígia. Entrou numa
sala, onde um homem alto, magro, vestido de veludo desgastado,
recostava-se como um grande gato preguiçoso sobre um divã de
151
seda, bebericando vinho de uma enorme taça de ouro.
— Bem, Ascalante — disse o stígio, depondo a vela —
aqueles ingênuos deslizaram furtivamente pelas ruas como ratos
saindo de suas tocas. Você trabalha com ferramentas estranhas.
— Ferramentas? — retrucou Ascalante — Ora, é exatamen-
te o que eles me consideram. Durante meses, desde que os Qua-
tro Rebeldes me chamaram do deserto do Sul, tenho vivido bem
no meio dos meus inimigos. De dia me escondendo nesta casa
lúgubre, de noite me esgueirando por ruelas escuras e corredo-
res ainda mais escuros. E consegui realizar o que aqueles nobres
rebeldes não conseguiram. Trabalhando através deles e de outros
agentes, muitos dos quais jamais viram meu rosto, espalhei sedi-
ção e agitação pelo Império todo. Em resumo, eu, trabalhando
nas sombras, tracei a queda do rei que está sentado no Trono do
Sol. Por Mitra, eu era um governante antes de ser um criminoso.
— E esses idiotas que se julgam seus mestres?
— Vão continuar pensando que eu os sirvo, até que nossa
missão seja cumprida. Quem são eles para se igualarem em as-
túcia a Ascalante? Volmana, o conde anão de Karaban; Gramei,
o comandante gigante da Legião Negra; Dion, o barão obeso de
Attalus; Rinaldo, o bardo de cérebro de coelho. Eu sou a força que
forjou o aço dentro de cada um e, por causa da argila existente em
cada um deles, eu os esmagarei quando chegar a hora. Mas isso
fica para o futuro; esta noite, o rei Conan morre.
— Dias atrás, vi os esquadrões imperiais cavalgando para
fora da cidade — disse o stígio.
— Eles foram até a fronteira assediada pelos pictos pagãos,
graças ao vinho forte que contrabandeei pela fronteira para en-
louquecê-los. A grande fortuna de Dion fez com que isto fosse
possível. E Volmana tornou possível dispensar o resto das tropas
imperiais que permaneceram na cidade. Por intermédio de seu
parente real de Nemédia, foi fácil persuadir o rei Numa a requi-
sitar a presença do conde Trocero de Poitain, senescal de Aquilô-
nia; e, é claro, para fazer-lhe a honra, ele será acompanhado por
152
uma escolta imperial, assim como por suas próprias tropas, e por
Próspero, o braço direito do rei Conan. Assim, apenas a guarda
pessoal do rei permanece na cidade, além da Legião Negra. Por
intermédio de Gromel, corrompi um ganancioso oficial da guar-
da e subornei-o para que afastasse seus homens da porta do rei,
precisamente à meia-noite.
“Então, junto com meus dezesseis vagabundos desespera-
dos, entraremos no palácio por um túnel secreto. Depois que a
tarefa for consumada, mesmo se o povo não se levantar para nos
dar as boas-vindas, a Legião Negra de Gromel será suficiente para
tomar posse da cidade e da coroa.
— E Dion pensa que a coroa será sua?
— Sim. O tolo gordo exige a coroa por causa de um vestí-
gio de sangue real em suas veias. Conan cometeu um erro grave
ao deixar vivos os homens que ainda se gabam de ser descenden-
tes da velha dinastia, da qual ele usurpou o trono de Aquilônia.
“Volmana almeja recuperar o favor real que tinha no an-
tigo regime, para que suas terras destruídas pela pobreza voltem
à grandeza antiga. Gromel odeia Pallantides, o comandante dos
Dragões Negros, e deseja o comando do exército inteiro, com
toda a teimosia do bossoniano. O único dentre todos nós que não
tem ambição alguma é Rinaldo. Para ele, Conan é um selvagem,
um sanguinário que veio do Norte para saquear uma terra ci-
vilizada. Ele idealiza o rei a quem Conan matou para tomar a
coroa, lembrando-se apenas que ele ocasionalmente apadrinhava
as artes, e esquecendo-se dos males de seu reinado, e faz com que
as pessoas também se esqueçam. Elas já cantam abertamente O
Lamento pelo Rei, no qual Rinaldo louva o vilão santificado e
denuncia Conan como “aquele selvagem de coração negro vindo
do abismo”. Conan dá risadas, mas as pessoas rosnam.
— Por que ele odeia Conan?
— Os poetas sempre odeiam os poderosos. Para eles, a per-
feição está sempre logo atrás da última esquina, ou além da próxi-
ma. Eles fogem do presente para sonhos do passado ou do futuro.
153
Rinaldo é uma tocha flamejante de idealismo, surgindo, como
ele pensa, para derrubar um tirano e libertar o povo. Quanto a
mim, bem, poucos meses atrás eu perdi todas as ambições exceto
a de atacar caravanas pelo resto de minha vida; mas agora so-
nhos antigos emergem. Conan vai morrer. Dion subirá ao trono.
E então, ele também vai morrer. Um após o outro, todos que se
opuserem a mim vão morrer, pelo fogo, pelo aço ou por aqueles
vinhos mortais que você sabe preparar tão bem. Ascalante, rei da
Aquilônia! A frase soa bem, não?
O stígio encolheu seu largos ombros.
— Houve um tempo — disse ele com visível amargura —
em que eu também tive minhas ambições, que fazem as suas pa-
recerem espalhafatosas e infantis. Veja a que ponto eu me deixei
cair! Os nobres e os meus rivais na Stygia ficariam espantados se
vissem Thoth-Amon do Anel servindo de escravo para um es-
trangeiro, ainda mais a um criminoso; e ajudando a concretizar
as mesquinhas ambições de barões e reis!
— Você confia demais nessas bobagens de magia — res-
pondeu Ascalante com indiferença — Eu confio em minha astú-
cia e na minha espada.
— Astúcia e espada são inúteis contra a sabedoria das Tre-
vas — grunhiu o stígio, com seus olhos escuros faiscando com
raios e sombras ameaçadores — Se eu não tivesse perdido o Anel,
nossos papéis estariam invertidos.
— No entanto — respondeu impacientemente o crimino-
so — você carrega as marcas do meu chicote nas costas e, ao que
parece, vai continuar carregando.
— Não tenha tanta certeza! — por um instante, os olhos do
stígio faiscaram vermelhos de ódio mortal — Algum dia, de al-
guma maneira, vou encontrar o meu Anel, e quando o fizer, pelas
presas da serpente de Set, você vai pagar caro pelo...
O exaltado aquiloniano ergueu os olhos e deu um soco na
boca do outro. Thoth retrocedeu, com o sangue escorrendo de
seus lábios.
154
— Está se tornando ousado demais, cão stígio — grunhiu o
criminoso — Cuidado; ainda sou seu senhor e conheço seu segre-
do. Suba as escadas e anuncie ao povo que Ascalante está de volta
à cidade conspirando contra o rei, se tiver coragem.
— Eu não ousaria — murmurou o stígio, enxugando o san-
gue de seus lábios.
—Não, você não tem coragem — Ascalante sorriu fria-
mente — Pois, se eu for morto por traição sua, um sacerdote
eremita no deserto do Sul saberá disso e quebrará o selo de um
certo manuscrito que lhe confiei. E depois de lê-lo, uma palavra
será sussurrada na Stygia, e um vento se erguerá do Sul, através
da noite. E então, onde você irá esconder desse vento perverso,
Thoth-Amon?
O escravo estremeceu e seu rosto obscuro ficou cinza.
— Basta! — Ascalante mudou de tom peremptoriamente
— Tenho um serviço para você. Não confio em Dion. Mandei-o
que viajasse para a sua propriedade de campo e permanecesse lá
até que a missão de hoje à noite estivesse terminada. O tolo gordo
não conseguiria ocultar o nervosismo perante o rei o dia todo. Vá
até lá e, se não o alcançar no caminho, continua até a propriedade
dele e mantenha-o sob sua vigilância. Não o perca de vista. Ele
está apavorado e pode explodir, pode até ir correndo em pânico
até Conan e revelar-lhe o plano inteiro, esperando assim salvar a
própria pele. Vá!
O escravo fez uma reverência, ocultando o ódio em seus
olhos, e foi fazer o que lhe fora ordenado. Ascalante voltou ao
seu vinho. Acima das torres adornadas de Tarântia erguia-se uma
aurora rubra como sangue.
155
“Quando eu era um guerreiro, os
tambores retumbavam,
2
As pessoas espalhavam pó de ouro
diante das patas do meu cavalo;
Mas agora que sou um grande rei,
as pessoas perseguem meus passos
Com veneno na minha taça de vinho e
punhais às minhas costas.”
160
Ao pé das pirâmides
escavadas, o grande Set dorme
3
enrolado em seus anéis;
Entre as sombras dos túmulos
se esgueira seu povo sombrio.
Dos abismos ocultos que nunca
conheceram o sol eu pronuncio
a Palavra...
Envia-me um servo para servir
ao meu ódio, ó Escamoso e
Reluzente!
166
Quando o mundo era jovem e os
4
homens eram fracos, e os inimigos da
noite caminhavam livremente.
Eu lutei contra Set com fogo, com aço e
com a seiva das árvores-upas;
Agora que durmo no coração negro da
montanha e os séculos cobram
seu tributo.
Esqueceis daquele que lutou com a
Serpente para salvar a alma humana?
170
“Que sei sobre educação, cultura, jóias,
5
artes e posição?
Eu, que nasci numa terra deserta e
cresci debaixo do céu aberto.
A língua sutil, a astúcia sofista
fracassam quando as espadas cantam;
Correi e morrei, cães - eu era um
homem antes de ser um rei.”
182
Os Anais da
História
Hiboriana
183
184
Nada que esteja neste artigo deve ser considerado uma ten-
tativa de mostrar qualquer teoria oposta à história consagrada. É
simplesmente um cenário fictício para uma série de histórias de
ficção. Há alguns anos, quando comecei a escrever as histórias de
Conan, preparei esta “história” de sua época e dos povos daquela
época, com o propósito de emprestar a ele e à sua saga uma maior
aparência de realidade. E descobri que ao me ater aos “fatos “ e ao
espírito dessa história, ao escrever as histórias, era mais fácil visu-
alizá-lo ( e, portanto, de apresentá-lo) como uma personagem real
de carne e ossos em vez de um produto acabado. Ao escrever sobre
ele e sobre suas aventuras nos diversos reinos de sua Época, jamais
violei os “fatos “ ou o espírito da “história “ aqui definidos, mas
sempre segui as linhas dessa história com tanto cuidado quanto o
verdadeiro escritor de ficção histórica segue as linhas da história
verdadeira. Usei esta “história” como guia para todas as histórias
desta série que escrevi.”
Robert E. Howard
185
Pouco se sabe sobre aquela época que os cronistas nemé-
dios conheciam como a Era Pré-cataclísmica, com exceção da
última parte, que está envolta na névoa lendária. A História co-
nhecida começa com o declínio da civilização pré-cataclísmica,
dominada pelos reinos de Kamélia, Valusia, Verulia. Grondar,
Thule e Commoria. Esses povos falavam línguas semelhantes e
defendiam uma origem comum. Havia outros reinos, igualmente
civilizados, mas habitados por raças diferentes e aparentemente
mais antigas.
Os bárbaros daquela época eram os pictos, que viviam nas
ilhas bem distantes em meio ao oceano ocidental; os atlantes,
que habitavam um pequeno Continente entre as Ilhas Pictas e o
Continente principal, ou o Continente Thurio; e os lemúrios, que
habitavam uma cadeia de ilhas grandes, no hemisfério oriental.
Havia extensas regiões de terras inexploradas. Os reinos
civilizados, embora enormes, ocupavam uma porção relativa-
mente pequena do planeta inteiro. Valusia era o reino situado no
extremo ocidente do Continente Thurio; Grondar, no extremo
ocidente. Ao leste de Grondar, cujos povos eram menos cultos do
que os dos reinos aparentados, estendia-se uma série de desertos.
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Entre os pedaços menos áridos dos desertos, nas selvas e no meio
das montanhas, viviam clãs e tribos esparsas de selvagens primi-
tivos. Bem ao sul havia uma misteriosa civilização, sem laços com
a cultura thuria, e aparentemente de natureza pré-humana. Nas
distantes praias do Sul do Continente vivia outra raça, humana
mas misteriosa e não thuria, com a qual, de tempos em tempos,
os lemúrios entravam em contato. Originavam-se provavelmente
de um Continente sombrio e sem nome situado em algum lugar
a leste das Ilhas Lemúrias.
A civilização thuria estava ruindo; seus exércitos compu-
nham-se principalmente de mercenários bárbaros. Seus generais
eram pictos, atlantes e lemúrios, assim como seus estadistas e,
muitas vezes, seus reis. Havia muito mais lendas do que história
precisa sobre as lutas entre os reinos e as guerras entre Valusia e
Commoria, assim como sobre as conquistas pelas quais os atlan-
tes fundaram um reino no Continente.
Então o cataclisma sacudiu o mundo. A Atlântida e a Le-
múria submergiram e as Ilhas Pictas foram empurradas para cima
formando os picos das montanhas de um novo Continente. Par-
tes inteiras do Continente Thurio desapareceram sob as ondas, ou
afundaram formando grandes lagos e mares interiores. Vulcões
entraram em erupção e terríveis terremotos derrubaram as re-
luzentes cidades dos impérios. Nações inteiras foram apagadas.
Os bárbaros estavam em condições um pouco melhores
do que as raças civilizadas. Os habitantes das Ilhas Pictas foram
destruídos, mas uma grande colônia deles, estabelecida no meio
das montanhas da fronteira sul de Valusia para servir de anteparo
contra as invasões de estrangeiros, permaneceu intacta. O reino
continental dos atlantes também escapou da ruína geral, e para lá
se dirigiram em navios milhares de pessoas de sua tribo, fugindo
da terra submersa. Muitos lemúrios fugiram para a costa leste do
Continente Thurio, que permanecia relativamente intocada. Fo-
ram escravizados ali pela antiga raça que já morava no lugar, e a
história deles, durante milhares de anos, é uma história de brutal
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servidão.
Na parte oeste do Continente, condições mutantes cria-
ram formas estranhas de vida vegetal e animal. Selvas espessas
cobriam as planícies, grandes rios cortavam seu caminho rumo
ao mar, montanhas selvagens foram erguidas e lagos cobriam os
destroços de velhas cidades localizadas nos vales férteis. O reino
continental dos atlantes foi invadido por miríades de animais e de
selvagens — homens-macaco e macacos, que fugiam das regiões
submersas. Apesar de forçados a lutar constantemente por suas
vidas, eles conseguiram conservar vestígios do seu adiantado es-
tado anterior de barbárie. Destituídos de metais e de minério, eles
passaram a trabalhar a pedra como seus ancestrais remotos o fize-
ram, e já haviam alcançaram um nível verdadeiramente artístico
quando sua cultura entrou em contato com a poderosa nação pic-
ta: os pictos também haviam regredido para a pedra lascada, mas
haviam avançado mais rapidamente em termos de população e da
arte da guerra. Faltava-lhes a natureza artística dos atlantes, pois
eles eram uma raça mais grosseira, mais prática, mais prolífica.
Eles não deixaram imagens pintadas ou entalhadas em mármore,
como o fizeram seus inimigos, mas deixaram uma abundância de
eficientes armas de pedra lascada.
Esses reinos da idade da pedra desmoronaram e, numa sé-
rie de guerras sangrentas, os atlantes, cujo número era menor,
foram lançados de volta a um estado de selvageria, e a evolução
dos pictos foi interrompida. Quinhentos anos depois do cataclis-
mo, os reinos bárbaros desapareceram. Atualmente é uma nação
de selvagens — os pictos — que guerreia constantemente com as
tribos selvagens — os atlantes. Os pictos tinham a vantagem de
serem em número maior e de se unirem, enquanto os atlantes
haviam se dispersado em clãs com pouca ligação entre si. Esse era
o Oeste daqueles dias.
No Leste distante, separados do resto do mundo pelo sur-
gimento de gigantescas montanhas, e pela formação de cadeias
de lagos extensos, os lemúrios estão labutando como escravos de
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seus antigos senhores. O extremo Sul ainda está envolto em mis-
tério. Intocados pelo cataclismo, seu destino ainda é pré-humano.
Das raças civilizadas do Continente Thurio, um remanescente
das nações não valusias habita entre as montanhas baixas do Su-
deste — os zhemri. Aqui e ali pelo mundo espalham-se clãs de
selvagens simiescos, totalmente alheios à ascensão e à queda das
grandes civilizações. Mas, no extremo Norte, outros povos estão
nascendo aos poucos.
Na época do cataclismo, um bando de selvagens, cujo de-
senvolvimento não estava muito acima do do Neanderthal, fu-
giu para o norte para escapar da destruição. Eles encontraram
os países cobertos de neve habitados somente por uma espécie
de ferozes macacos-de-neve—enormes animais de pêlo branco,
aparentemente nativos daquele clima. Os selvagens lutaram com
eles e os baniram para além do Círculo Ártico, achando que lá
pereceriam. Então, estes se adaptaram ao novo ambiente inóspito
e prosperaram.
Depois que as guerras picto-atlantes haviam destruído o
início daquilo que poderia ter sido uma nova cultura, outro ca-
taclismo menor alterou mais a aparência do Continente original;
deixou um grande mar interior onde outrora existira uma cadeia
de lagos, separando mais ainda o Oeste do Leste; e os terremotos,
as enchentes e os vulcões completaram a ruína dos bárbaros que
as guerras tribais haviam começado.
Mil anos depois do cataclismo menor, o mundo ociden-
tal é uma terra selvagem de matas, de lagos e de rios torrenciais.
Entre as colinas cobertas por florestas, a noroeste, existem ban-
dos nômades de homens-macaco, que não falam uma língua hu-
mana, não conhecem o fogo nem o uso de ferramentas. São os
descendentes dos atlantes, decaídos no caos de animalidade flo-
restal para fora da qual seus ancestrais, séculos atrás, haviam tão
laboriosamente se arrastado. A sudoeste, habitam esparsos clãs
de selvagens homens das cavernas decaídos, que falam uma lín-
gua mais primitiva, mas que ainda conservam o nome de pictos,
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termo que chegou a significar meramente seres humanos, para
distingui-los dos verdadeiros animais com os quais eles disputam
a vida e o alimento. É o único vínculo que têm com o estágio
anterior. Nem os esquálidos pictos nem os simiescos atlantes têm
qualquer contato com outras tribos ou com outros povos.
No extremo Leste, os lemúrios, rebaixados até quase o pla-
no animalesco pela brutalidade da escravidão, ressurgiram-se e
destruíram seus senhores. São selvagens entre as ruínas de uma
civilização estranha. Os sobreviventes dessa civilização, que ha-
viam escapado da fúria de seus escravos, foram migrando rumo
ao oeste. Eles atacam aquele misterioso reino pré-humano do
Sul e derrubam-no, substituindo sua própria cultura, modificada
pelo contato com a mais antiga. O reino novo se chama Stygia, e
os remanescentes da nação mais antiga parecem ter sobrevivido,
e até ter sido adorados, depois que a raça como um todo fora
destruída.
Aqui e ali pelo mundo, pequenos grupos de selvagens mos-
tram sinais de uma tendência ascendente; são esparsos e insig-
nificantes. Mas no Norte, as tribos estão crescendo. Esses povos
são chamados de hiborianos, ou hibori; o deus deles era Bori —
algum chefe importante, a quem as lendas tornaram mais antigo
ainda como o rei que os conduzira para o norte nos dias do gran-
de cataclismo, do qual as tribos se lembram apenas em forma de
folclore distorcido.
Eles se espalharam pelo Norte e estão descendo para o sul
em passos vagarosos. Até agora, ainda não entraram em contato
com outra raça; suas guerras têm sido entre eles mesmos. Mil e
quinhentos anos passados nas terras do Norte os tornaram uma
raça de homens altos, louros, de olhos cinza, vigorosos e guerrei-
ros, já exibindo uma natureza artística e poética bem definida.
Eles ainda vivem principalmente da caça, mas as tribos do Sul
têm criado gado há alguns séculos. Há uma exceção em seu com-
pleto isolamento de outras raças: um nômade que viajara para
o extremo norte voltara com a notícia de que os desertos gela-
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dos supostamente desabitados eram habitados por uma grande
tribo de homens simiescos, descendentes, conforme jurava, dos
animais banidos das terras mais habitáveis pelos ancestrais dos
hiborianos. Ele instava para que uma grande companhia de guer-
ra fosse enviada para além do Círculo Ártico a fim de extermi-
nar esses animais, que ele jurava que estavam evoluindo em seres
humanos. Riram dele; um pequeno bando de jovens guerreiros
aventureiros seguiu-o para o norte, mas ninguém voltou.
Mas as tribos dos hiborianos estavam migrando para o sul
e, conforme a população crescia, o movimento deles se expandia.
A época seguinte foi de andanças e de conquistas. Através da his-
tória do mundo, tribos e levas de tribos se movem e mudam de
lugar num panorama sempre em mutação.
Vamos olhar para o mundo quinhentos anos mais tarde.
Tribos de hiborianos louros migraram para o sul e para o oeste,
conquistando e destruindo muitos clãs pequenos e sem raça. Ab-
sorvendo o sangue das raças conquistadas, os descendentes de
migrações anteriores já começaram a mostrar traços raciais mo-
dificados, e essas raças misturadas são atacadas ferozmente pelas
migrações novas, de sangue mais puro, e varridas à sua frente,
como uma vassoura varre imparcialmente o lixo, para se torna-
rem mais misturadas ainda e enredadas no lixo das raças e finais
de raças.
Os conquistadores ainda não entraram em contato com
as raças mais antigas. No Sudeste, os descendentes dos zhemri,
recebendo o impulso do sangue novo resultante da mistura com
alguma tribo não classificada, estão começando a tentar fazer re-
viver uma leve sombra de sua antiga cultura. No Oeste, os simies-
cos atlantes estão começando a longa escalada ascendente. Eles
completaram o ciclo de existência; esqueceram-se há muito tem-
po de sua existência anterior como seres humanos; inconscientes
de qualquer outro tipo de estado, estão começando a subir, sem a
ajuda nem o impedimento das memórias humanas. Ao sul deles,
os pictos continuam selvagens, aparentemente desafiando as leis
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da Natureza por não estar progredindo nem retrocedendo. No
extremo Sul sonha o antigo reino misterioso de Stygia. Nas suas
fronteiras do Leste, vagueiam clãs de nômades selvagens, já co-
nhecidos como os Filhos de Shem.
Próximo aos pictos, no extenso vale de Zingg, protegido
pelas grandes montanhas, um bando de primitivos sem nome,
classificado aproximadamente como parente dos shemitas, de-
senvolveu um sistema avançado de agricultura e de existência.
Outro fator acrescentou-se ao ímpeto da migração hiboria-
na. Uma tribo dessa raça descobriu o uso da pedra na construção,
e assim surgiu o primeiro reino hiboriano — o reino grosseiro e
bárbaro de Hyperborea, que teve seu início numa fortaleza rude
de pedras, construída para repelir os ataques das tribos. As pes-
soas dessa tribo logo substituíram suas tendas de pele de cavalo
por casas de pedra, de construção tosca mas forte e, protegidas
assim, tornaram-se fortes. Há poucos fatos mais dramáticos na
história do que o surgimento do reino rude, violento de Hyperbo-
rea, cujos povos abandonaram abruptamente a vida nômade para
erguer moradias de pedra bruta, cercadas por muros ciclópicos
— uma raça recém-saída da idade da pedra polida que, por um
golpe do destino, aprendeu os primeiros princípios grosseiros da
arquitetura,
O surgimento desse reino afastou muitas outras tribos,
pois, vencidos nas guerras ou se recusando a pagar tributos aos
parentes que moravam em castelos, muitos clãs partiram cami-
nhando por longas trilhas que os levaram para o outro lado do
mundo. E as tribos mais ao norte já começam a ser acossadas
por gigantescos selvagens loiros, não muito mais avançados que
homens-macaco.
L. Sprang de Camp.]
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A Carta de Robert E. Howard para P. Schuyler Miller foi originalmente publicada em
The Coming of Conan, de Robert E. Howard, N.Y.: Gnome Press Inc., 1953; copyrigth
©1953 de Gnome Press.
A Filha do Gigante de Gelo de Robert E. Howard foi publicada em uma forma ligei-
ramente diferente com o título de Gods of North em The Fantasy Fan, de março, 1934;
e reimpressa na forma atual em Fantastic Universe Science Fiction de dezembro, 1956.
Revisado por Robert E. Howard e mais tarde por Sprague de Camp foi reimpressa com o
título The Frost Giant’s Daugther em Fantasy Fictton, de agosto, 1953; copyrigth © 1953 de
Future Publications Inc.; e em The Coming of Conan.
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