CONTOS - Os Mais Belos Contos para Ler A Dois - Editora Vecchi
CONTOS - Os Mais Belos Contos para Ler A Dois - Editora Vecchi
CONTOS - Os Mais Belos Contos para Ler A Dois - Editora Vecchi
ndice
pgina ttulo
autor
(gnero)
tradutor
6 As duas amantes
(novela)
Alfred de Musset
Gilberto Galvo
36 Empalhado
(conto)
Armand Silvestre
Alfredo Ferreira
38 Os pais da horizontal
(conto)
Dubut de Laforest
Alfredo Ferreira
41 Joana de la Tourduneuf
(conto)
Pedro Garcias
Alfredo Ferreira
45 Nada de emoo!
(conto)
R. O'Monroy
Alfredo Ferreira
Silverio Lanza
Manuel R. Silva
52 Vingana feminina
(novela)
Henri de Rgnier
Manuel R. Silva
Marcel Proust
Gilberto Galvo
72 Reveladoras
(novela)
Felipe Trigo
Jos Dauster
95 O flagrante delito
(conto)
Ren Maizeroy
Alfredo Ferreira
98 Bola-de-Sebo
(novela)
Guy de Maupassant
Frederico dos Reys Coutinho
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mile Bergerat
Alfredo Ferreira
Catillard
Gilberto Galvo
Georges-Armand Masson
Gilberto Galvo
Alex Alexis
Gilberto Galvo
Marcel Astruc
Gilberto Galvo
Clment Vautel
Gilberto Galvo
mile Carrre
Manuel R. Silva
Pierre Frondaie
Gilberto Galvo
Andr Birabeau
Alfredo Ferreira
154 O home
(conto)
August Bailly
Frederico dos Reys Coutinho
Cami
Alfredo Ferreira
165 O impasse
(conto)
Colette
F. de Paula Costa
167 Recordao
(teatro)
Eugnio Heltai
Alfredo Ferreira
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Tradutores
Editora Vecchi
MCMXLVI
1946
Impresso no Brasil
Composto e impresso nas oficinas grficas da Casa Editora Vecchi Ltd
Rua do Resende 144, Rio de Janeiro
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As duas amantes
Alfred de Musset
I
II
Disse que, dessas duas senhoras, uma era rica e a outra pobre. J adivinhas por que
ambas choravam por Valentino. Creio ter dito tambm que uma era casada e a outra
viva. A marquesa de Parnes, casada, era filha e esposa de marqus. O mais interessante
que era bastante livre, estando o marido na Holanda, a negcio. No contava vinte e
cinco anos, estava como rainha dum pequeno reinado no fim do Calada de Antim. Esse
domnio era um pequeno palcio, construdo com perfeito gosto, entre um grande ptio
e um belo jardim. Fora a ltima extravagncia do defunto sogro, grande proprietrio e
um pouco libertino, e a casa realmente se ressentia do gosto do velho dono. Se
assemelhava mais ao que se denominava antigamente uma casa de partida que ao retiro
duma moa condenada ao repouso pela ausncia do esposo. Um pavilho circular,
separado da manso, ocupava o meio do jardim. Esse pavilho, que no possua mais
que um cmodo rente ao solo, tambm tinha somente uma pea e no era, mais que
imenso quarto de toucador mobiliado com refinado luxo. A senhora de Parnes, que
habitava o palcio e passava por muito culta, se dizia que nunca ia ao pavilho.
Contudo, algumas vezes se via luz ali. Excelente companhia, jantar adequado, ativa
equipagem, criadagem numerosa. Numa palavra: Grande rudo de bom-tom, eis a
manso da marquesa. Alis, uma educao completa lhe dera mil aptides. Com tudo o
que era necessrio pra agradar sem esprito, achava meio de o ter. Uma indispensvel tia
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a levava a toda parte. Quando se referiam a seu marido dizia que estava a regressar.
Ningum pensava em murmurar a respeito dela.
Senhora Delaunay, a viva, muito jovem perdera o marido. Vivia, com a me, de
mdica penso obtida com grande dificuldade e penosamente suficiente. Num terceiro
pavimento era preciso subir, rua do Plat-d'Etain, pr encontrar bordando janela. Era
tudo que sabia fazer. Sua educao, percebes, fora muito descuidada. Um pequeno salo
era todo seu domnio. Na hora do jantar se rodava li a mesa de nogueira, relegada
durante o dia saleta da frente. Na noite um armrio de alcova se abria, contendo dois
leitos. De resto, cuidadosa limpeza conservava o modesto mobilirio. No meio de tudo
isso senhora Delaunay apreciava a vida mundana. Alguns velhos amigos do marido
faziam pequenas reunies onde ela se apresentava, ostentando um recente vestido de
organdi. Como as pessoas sem fortuna no tm estao, essas pequenas festas duravam
todo o ano. Ser pobre, jovem, bonita e honesta no mrito to raro que se anuncie,
porm um mrito.
Quando comuniquei a ti que Valentino amava duas mulheres, no pretendi declarar
que amava igualmente a ambas. Eu poderia me safar da dificuldade, dizendo que amava
uma e desejava a outra, porm no quero recorrer a essas sutilezas que, afinal de conta,
s significariam que desejava ambas. Acho melhor contar simplesmente o que
acontecia no corao.
O que o fez ir, a princpio freqentemente, s duas casas, foi um motivo bem
mesquinho, a ausncia do marido nas duas residncias. certo que uma aparncia de
facilidade, ainda que somente aparncia, seduz as cabeas juvenis. Valentino era
recebido na manso de senhora de Parnes porque ela via muita gente mundana, sem
outro motivo. Um amigo o apresentara. Pra ir casa de senhora Delaunay, que a
ningum recebia, no fora to fcil. Ele a encontrara numa dessas pequenas partidas das
quais falei h um momento, pois Valentino ia um pouco a todo lugar. Ento viu senhora
Delaunay, a observou, a fez danar, enfim, num belo dia achou meio de lhe levar um
livro novo que ela desejaria ler. Uma vez feita a primeira visita, se volta sem motivo e
no fim de trs meses a gente da casa. Assim so as coisas. Quem se espantar da
presena dum moo numa casa de famlia que ningum procura, algum dia ficar bem
mais espantado ao saber por que pretexto frvolo ele entrou ali.
Talvez te admires, senhora, da maneira como foi apanhado o corao de Valentino.
Foi obra do acaso. Vivera durante um inverno, segundo seu costume, mui loucamente,
porm bastante alegremente. Chegado o vero, como a cigarra, ficou desprevenido. Uns
partiam ao campo, outros iam Inglaterra ou s estaes de gua. H esses anos de
desero em que todos nossos amigos desaparecem. Uma lufada de vento os carrega e
ficamos ss de repente. Se Valentino fosse mais previdente faria como os outros e
partiria a seu lado. Todavia os prazeres foram caros e sua carteira vazia o retinha em
Paris. Lastimando sua imprevidncia, to aborrecido quanto se pode estar aos vinte e
cinco anos, pensava passar o vero e fazer da necessidade no virtude mas prazer, se
pudesse. Saindo numa manh a una dessas belas jornadas em que tudo o que jovem sai
sem saber por qu, s encontrou refletindo sobre o caso dois lugares onde podia ir:
casa de senhora Parnes ou de senhora Delaunay. Foi s duas no mesmo dia e, tendo
agido gulosamente, ficou inativo no dia seguinte. No podendo recomear as visitas
antes dalguns dias, se perguntou em que data o poderia fazer. Depois disso,
involuntariamente, rememorou o que dissera e ouvira nessas duas horas consideradas
preciosas pra si.
A semelhana da qual falei, e que at ento no o tocara, a princpio o fez sorrir. Lhe
pareceu estranho que duas moas em posies to diferentes, uma ignorando a
existncia da outra, tivessem o aspecto de serem duas irms. Comparou mentalmente
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seus traos, silhueta e esprito. Cada uma o fez alternativamente amar menos ou gostar
mais da outra. Senhora de Parnes era namoradora, viva, amorosa e folgaz. Senhora
Delaunay tambm era tudo isso mas no todos os dias, somente no baile e em grau mais
tpido. Sem dvida, a pobreza era a causa disso.
Entretanto os olhos da viva s vezes brilhavam com ardente expresso que parecia
se concentrar no repouso, enquanto o olhar da marquesa parecia uma centelha brilhante
mas fugidia. So de fato a mesma mulher, pensava Valentino. o mesmo fogo, l
volteando em delicioso braseiro, aqui coberto de cinza. Pouco a pouco foi aos detalhes.
Pensou nas mos brancas duma roando no teclado de marfim, nas mos um pouco
magras da outra caindo de fadiga sobre os joelhos. Pensou nos ps e achou estranho que
a mais pobre fosse a melhor calada. Ela mesma fazia suas polainas. Viu a senhora de
Calada de Antim, estendida em sua cadeira de repouso, respirando o ar fresco, com os
braos nus desde a manh. Indagava de si se a senhora Delaunay tambm tinha lindos
braos sob as mangas de indiana, e no sei por que estremecia idia de ver os braos
nus de senhora Delaunay. Depois pensou nas belas madeixas de cabelo negro de
senhora de Parnes e na agulha de tricotar que senhora Delaunay plantava em sua trana
enquanto conversava. Apanhou um lpis e procurou traar no papel a dupla imagem que
o preocupava. A fora de apagar e de tentar chegou a uma destas semelhanas
longnquas com que a fantasia se contenta algumas vezes mais que cum retrato
verdadeiro. Obtido esse esboo, estacou. Com qual das duas se assemelhava mais? No
podia decidir. Se dirigiu logo a uma e depois a outra, segundo o capricho de seu
devaneio. Quanto mistrio no destino!, pensava. Quem sabe, apesar da aparncia,
qual das duas mulheres a mais feliz? a mais rica ou a mais bonita? a que ser mais
amada? No. aquela que amar mais. O que fariam se amanh acordassem uma no
lugar da outra? Valentino se lembrou do homem que dormia acordado e, sem perceber
que tambm sonhava em pleno dia, fez mil castelos no ar. Prometeu ir, no dia seguinte,
fazer as duas visitas e levar o esquema pra ver seus defeitos. Ao mesmo tempo
acrescentava, cum trao de lpis, uma mecha de cabelo, uma prega no vestido. Os olhos
eram maiores, o contorno, mais delicado. Pensou novamente nos ps, depois nas mos,
em seguida nos braos alvos. Pensou ainda em mil outras coisas. Enfim, ficou
apaixonado.
III
Ficar apaixonado no difcil. O difcil saber dizer que estamos nessa situao.
Valentino, munido de seu desenho, saiu bem cedo no dia seguinte. Principiou pela
marquesa. Feliz acaso, mais raro do que se pensa, quis que a encontrasse tal qual a
sonhara na vspera. Estavam no ms de julho. Num banco de madeira, guarnecido por
almofadas novas, sob uma bela madressilva florida, os braos nus, vestida cum
penteador, assim podia parecer uma ninfa aos olhos dum pastor de Virglio. Desse modo
apareceu aos olhos do rapaz a clara Isabel, marquesa de Parnes, que o saudou cum
desses amveis sorrisos que custam to pouco quando temos belos dentes e lhe mostrou
negligentemente um tamborete muito distante. Em vez de se sentar nesse tamborete ele
o apanhou pra se aproximar. Como procurava onde se colocar, perguntou a marquesa:
Ento aonde irs?
Valentino julgou que sua cabea estava demasiadamente febril e que a realidade
indomvel caminhava mais devagar que o desejo. Parou e, colocando o assento um
pouco mais longe que antes, se sentou, no encontrando muito o que dizer. preciso
saber que um grande lacaio, de aspecto insolente e rude, estava de p na frente da
marquesa, e lhe apresentava uma chvena de chocolate fervente que ela comeou a
saborear em pequenos goles. A presena desse terceiro, a extrema ateno que prestava
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senhora, pra no queimar os lbios, o pouco caso com que, em retribuio, ela
considerava o visitante, no eram fatos encorajadores. Valentino tirou, gravemente, o
esboo que conservava no bolso e, fixando os olhos em senhora de Parnes, atentamente
examinou o original e a cpia. Ela perguntou o que fazia.
Ele se levantou, mostrou o desenho e se sentou outra vez, sem dizer. No primeiro
lance de olhos a marquesa franziu as sobrancelhas, como quando procuramos uma
semelhana, depois se inclinou ao lado, como procedemos logo que encontramos. Ela
sorveu o resto do chocolate, o criado saiu e os belos dentes reapareceram com o sorriso.
Finalmente disse:
Est melhor que o original. Fizeste isso de memria? Como o apanhaste?
Valentino respondeu que to belo semblante no tinha necessidade de pousar pra que
o pudessem copiar, e que o encontrara no corao. A marquesa fez um leve
cumprimento e Valentino aproximou seu tamborete.
Conversando sobre coisas indiferentes, senhora de Parnes examinava o desenho.
Acho que h neste retrato uma fisionomia que no a minha. Diria que se
assemelha a algum que se parece comigo mas que no foi eu que desejaram esboar.
Valentino enrubesceu, pra seu pesar, e acreditou sentir que no recndito da alma
amava senhora Delaunay. A observao da marquesa lhe apareceu um testemunho
disso. Examinou novamente o desenho, em seguida a marquesa, e depois pensou na
jovem viva:
Aquela que amo a mulher com quem este retrato mais se assemelha. Desde que
meu corao guiou minha mo, ela me revelar meu corao.
A conversao prosseguiu. Creio que se tratava duma corrida de cavalo que se
realizara no campo de Marte, na vspera. Disse senhora de Parnes:
Est distante 4km.
Valentino se levantou e caminhou a ela e disse, ao se aproximar:
Eis uma linda madressilva.
A marquesa estendeu o brao, apanhou um pequeno ramo florido e o ofereceu,
graciosamente.
Aceites. Apanhes isto e digas se foi realmente eu a mulher cuja semelhana
procuraste ou se, esboando outra, a encontraste ao acaso.
Cum pequeno movimento de petulncia, Valentino, em lugar de segurar o ramo,
apresentou, rindo, marquesa, a botoeira de seu palet, a fim de que ela prendesse ali o
ramalhete. Enquanto ela, de bom grado, se prestava a isso, porm no sem diligncia,
ele estava de p e mirava o pavilho do qual falei a ti e do qual uma veneziana estava
entreaberta. Se lembrou que senhora de Parnes, segundo diziam, nunca ia li. Afetava
at certo desprezo a esse aposento galante e rebuscado, que considerava m companhia.
Entretanto Valentino acreditou ver que as poltronas douradas e as brilhantes decoraes
no sofriam com a poeira. N meio desses mveis de forma grega, soberbos e
incmodos como tudo que vem do imprio, certa espreguiadeira evidentemente
moderna pareceu se destacar na sombra. O corao bateu mais forte, no sei por qu,
julgando que a linda marquesa s vezes se servia de seu pavilho. Ento por que a
poltrona estava l, seno pra se acomodar nela? Valentino segurou uma das alvas mos
ocupadas em a decorar e a levou aos lbios. O a marquesa que pensou a respeito no sei.
Valentino olhou a espreguiadeira. Senhora de Parnes mirava o desenho de Valentino.
Ela no retirava a mo e ele a conservara entre as suas. Um servial surgiu no topo da
escada: Chegava uma visita. Valentino abandonou a mo da marquesa e, fato bastante
singular, ela fechou bruscamente a persiana.
Recolhida a visita, Valentino ficou um tanto embaraado porque percebeu que a
marquesa escondeu seu esboo, como se o desprezasse, atirando seu leno sobre ele. Tal
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fato no estava no clculo. Tomou a deciso mais rpida, ergueu o leno e se apoderou
do papel. Senhora de Parnes fez um ligeiro sinal de espanto. Ele disse em voz alta:
Desejo o retocar. Me permitas o levar.
Ela no insistiu e ele se foi com o desenho.
Encontrou senhora Delaunay, que trabalhava em tapearia. Sua me estava sentada
perto de si. A pobre mulher, por jardim, possua algumas flores sobre a janela. Seu
vestido, sempre o mesmo, era de cor sombria porque no possua roupa matinal. Todo
suprfluo ndice de riqueza. Uma veleidade de falsa elegncia a induzia a ostentar,
todavia, brincos de mau-gosto e um colar de crisocal.1 Juntar a isso o cabelo em
desordem e a aparncia duma fadiga crnica. Concordars que a primeira observao
no fornece comparao favorvel.
Valentino no ousou, na presena da me, mostrar o desenho que trazia. Porm, logo
que soaram as trs horas, a velha senhora, que no tinha empregada, se retirou pra
preparar seu jantar. Era o instante que o jovem esperava. Ento tirou novamente seu
retrato e tentou a segunda prova. A viva no possua grande tato, no se reconheceu e
Valentino, um tanto embaraado, se viu obrigado a explicar que era ela que ele desejara
retratar. A princpio ela se mostrou assustada, depois encantada e crendo, simplesmente,
que era um presente que Valentino lhe oferecia, despendurou um pequeno quadro em
moldura branca do fogo e tirou dele um medonho Napoleo que ali amarelava desde
que se disps a colocar seu retrato na moldura.
Valentino principiou a deixando fazer. No podia se resolver a atrapalhar esse
movimento de cndida alegria. Contudo o pensamento de que a senhora de Parnes, sem
dvida, exigiria dele seu retrato o molestava visivelmente. Senhora Delaunay, que
percebeu o engano, acreditou ter cometido uma indiscrio. Estacou, embaraada,
segurando seu quadro e no sabendo o que fazer. Valentino, que sentia que fizera uma
tolice exibindo esse retrato que no queria ofertar, em vo procurava sair da trapalhada.
Aps alguns instantes de constrangimento e de hesitao, o quadro e o papel ficaram
sobre a mesa, ao lado do Napoleo destronado, e a senhora Delaunay recomeou o
trabalho. Finalmente Valentino disse:
Desejo que antes de deixar este pequeno esboo, me fosse permitido fazer uma
cpia.
Creio que no sou mais que uma estouvada. Respondeu a viva Guardes o
desenho que te pertence, se tens nisso interesse. Entretanto no suponho que tua
inteno seja a de o expor em teu dormitrio nem de o mostrar aos amigos.
Certamente que no, porm foi pra mim que o fiz e no desejo o perder
inteiramente.
Pra que poder te servir, se me garantes que no o mostrars a outrem?
Servir pra te ver, senhora, e pra falar, s vezes, a tua imagem o que no ouso
dizer pessoalmente.
Ainda que essa frase, a rigor, fosse apenas uma galanteria, o tom em que foi
pronunciada fez a viva erguer os olhos. Ela lanou sobre o moo um olhar no severo
mas srio. Esse semblante perturbou Valentino, j emudecido com as prprias palavras.
Enrolou o desenho e o meteria no bolso, quando senhora Delaunay se ergueu e o tomou
das mos, com expresso de tmido gracejo e comeou a rir e se apoderou prontamente
do papel.
Com que direito, senhora, me despojas de minha propriedade? Isso no me
pertence?
1
Ouro falso ou crisocal: Liga de composio semelhante ao ouro de Mannheim. O ouro de Mannheim composto de cobre, zinco e
estanho. Liga de bela cor amarela, que foi muito usada pra fazer botes e artigos chapeados imitando ouro. Nota do digitalizador.
http://www.ecured.cu/index.php/Anexo:Oro_(Tipos)#Oro_de_Mannheim
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IV
Era na residncia do antigo tabelio, chamado senhor de Andelys, que se realizava a
pequena reunio onde Valentino encontraria senhora Delaunay. A encontrou ali, como
esperava, mais linda e mais garrida que nunca. Apesar do colar e dos brincos, sua
apresentao era quase simples. Um lao de fita furta-cor acompanhava seu belo rosto e
outro do mesmo tom apertava a silhueta flexvel e galante. Disse eu que era muito
pequena, morena e que possua grandes olhos. Tambm era um pouco magra e nisso
diferia de senhora de Parnes, cuja boa disposio mostrava as mais belas formas
envoltas em tecido de alabastro. Pra me servir duma expresso de estdio, que meu
pensamento largou aqui, o conjunto de senhora Delaunay estava bem combinado, isto ,
nada era afetado: O cabelo no era muito escuro e a cor no muito branca. Possua a
aparncia duma crioulinha. Senhora de Parnes, ao contrrio, era qual uma pintura. Uma
leve colorao de prpura tingia as faces e reavivava os olhos cintilantes. Nada era mais
admirvel que seu espesso cabelo negro emoldurando os belos ombros. Porm vejo que
procedo como meu heri. Penso numa quando preciso falar da outra. Nos lembremos
de que a marquesa no ia s vesperais do tabelio.
Quando Valentino solicitou viva uma contradana, um Estou comprometida
bem seco foi toda a resposta que obteve. Nosso estouvado, que ali aguardava, fingiu no
ter entendido, e respondeu Obrigado. Se afastou alguns passos e senhora Delaunay
correu atrs pra dizer que entendera mal.
Ento que contradana me conceders?
Ela corou e, no ousando recusar, folheando um caderninho de baile onde estavam
inscritos seus compromissos:
Este caderno me engana. Disse, hesitando H uma quantidade de nomes
que ainda no indaguei e que me atrapalham a memria. Era o momento de sacar a
carteira do retrato. Valentino no falhou:
Tomes. Escrevas meu nome na primeira pgina deste lbum. Me ser ainda mais
querido.
Senhora Delaunay se reconheceu ento. Apanhou a pasta, olhou seu retrato e
escreveu na primeira pgina o nome de Valentino. A entregando ela disse, mui
tristemente:
necessrio dizer. Tenho duas palavras imprescindveis pra dizer mas no posso
danar contigo.
Passou ento a um quarto vizinho onde jogavam, e Valentino a seguiu. Ela se
mostrava excessivamente embaraada.
O que perguntarei talvez parecer bastante ridculo, e acho que ters razo de
considerar assim. Me visitou nesta manh e me tomou... a mo Acrescentou,
timidamente No sou to infantil e tola a ponto de ignorar que to pouca coisa no
aflige algum nem representa algo. No grande mundo onde vives isso no mais que
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Casquilha: Pequena casca, pedao de casca. Janota, enfeitado, peralta. Nota do digitalizador
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No foi sem inquietao que ela se decidiu e que chegou pra explicar tudo. A altivez
feminina, nessa circunstncia, manifestava cruel tendncia pra se elevar. Era preciso
confessar que estava sensibilizada e, entretanto, no o deixar perceber: Era necessrio
dizer que compreendera tudo e, todavia, parecer nada entender. Enfim era preciso dizer
que tinha medo, ltima palavra que uma mulher pronuncia. E a causa desse receio era
to insignificante! Desde suas primeiras palavras, senhora Delaunay sentiu que ali s
havia um meio de no parecer fraca nem virtuosa, namoradeira ou ridcula: Ser sincera.
Ento falou, e todas as palavras podiam ser reduzidas frase Te afastes, tenho medo
de te amar.
Quando ela se calou, Valentino a mirou ao mesmo tempo com admirao, pena e
inexprimvel prazer. No sei que orgulho o dominava. Nos sempre grato sentirmos
bater o corao. Abria os lbios pra responder e cem respostas vinham no mesmo
instante. Se enlevava com sua emoo e com a presena duma mulher que se atrevia a
falar dessa maneira. Queria declarar que a amava, desejava prometer obedincia,
pretendia jurar jamais a deixar, queria agradecer a ventura, desejava falar de sua
mgoa. Enfim, mil idias contraditrias, mil tormentos e mil delcias lhe cruzavam o
esprito e, no meio de tudo isso, estava preste a bradar, contra sua vontade: Mas me
amas!
Durante todas estas hesitaes danavam um galope no salo. Era moda de 1825.
Alguns grupos se distanciaram e faziam a volta do apartamento. A viva se ergueu.
Aguardava sempre a resposta do moo. Singular tentao se apoderou dele, ao ver
passar o alegre desfile: Muito bem! Sim. Juro que me vero em ltima vez. Assim
falando, envolveu com seu brao a cintura de senhora Delaunay. Seus olhos pareciam
dizer: Ainda nesta vez, sejamos amigos. Os imitemos. Ela se deixou arrastar em
silncio, e logo, parecendo duas aves, partiram ao som da msica.
Era tarde e o salo estava quase vazio. As mesas de jogo eram ainda freqentadas.
Mas preciso saber que a sala de jantar do notrio fazia uma volta no apartamento,
ento completamente deserta. Os pares no iam mais longe. Giravam em torno da mesa
e voltavam ao salo. Aconteceu que quando Valentino e senhora Delaunay passaram na
sala de refeio, alguns pares no os seguiram. Ento se encontraram de repente, ss, no
meio da sala. Um olhar rpido, atirado a trs, convenceu Valentino de que nenhum
espelho, nenhuma porta o podia trair. Apertou a jovem viva contra o corao e, sem
dizer palavra, pousou os lbios em seu ombro nu.
Um grito lanado por senhora Delaunay causaria um escndalo medonho.
Felizmente, pro afoito, sua companheira se mostrou prudente. Porm ela no pde se
mostrar enrgica, no mesmo instante, e cairia se ele no a amparasse. Ele a sustentou,
pois, e entrando no salo ela estacou, apoiada em seu brao, podendo apenas respirar. O
que ele daria pra contar os batimentos desse trmulo corao! Porm a msica cessava,
era preciso partir e, ainda que pudesse falar a senhora Delaunay, ela nada quis
responder.
V
Nosso heri no se enganara quando receou contar muito depressa com a indolncia
da marquesa. Estava ainda, no dia seguinte, entre a viglia e o sono, quando recebeu um
bilhete mais ou menos assim concebido:
Senhor, no sei quem deu a ti o direito de escrever a mim em semelhantes
termos. Se no desprezo aposta ou impertinncia. Em todo caso, devolvo
tua carta, que no pode ser endereada a mim.
Ainda repleto duma recordao mais viva, Valentino dificilmente se lembrava de sua
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declarao enviada a senhora de Parnes. Releu duas ou trs vezes o bilhete antes de
compreender claramente o significado. A princpio ficou bastante envergonhado e
inutilmente procurava resposta que pudesse dar ao caso. Se levantando e esfregando os
olhos, suas idias se tornaram mais ntidas. Achou que essa linguagem no era duma
mulher ofendida. E no fora assim que se exprimira senhora Delaunay. Releu a carta
que lhe enviara e nada encontrou que merecesse tanta clera. A missiva era apaixonada,
doida talvez, mas sincera e respeitosa. Atirou o bilhete sobre a mesa e prometeu no
mais pensar nele.
Semelhantes promessas no se cumprem. Talvez no tivesse mais pensado,
efetivamente, se o bilhete, em lugar de ser severo, fosse terno ou somente polido.
Porque a noite da vspera deixara na alma do rapaz um trao profundo. Porm a clera
contagiosa. Valentino comeou limpando sua navalha no bilhete da marquesa, depois o
destruiu e o atirou no cho, em seguida queimou a declarao. Depois se vestiu e
passeou a grandes passos no quarto. Pediu o almoo e no pde beber nem comer.
Enfim, pegou o chapu e foi casa de senhora de Parnes.
Disseram que ela sara. Querendo saber se era verdade, respondeu: Est bem. Sei.
E rapidamente atravessou o ptio. Tinha o porteiro correndo atrs, quando encontrou a
camareira. A abordou, puxou ao lado e, sem outro prembulo, lhe meteu um lus na
mo. Senhora de Parnes estava em casa. Ficou combinado, com a criada, que ningum
vira Valentino e que o teriam deixado passar por descuido. Ele subiu, atravessou o salo
e encontrou a marquesa s, no dormitrio.
Ela pareceu, se necessrio dizer tudo, muito menos colrica que seu bilhete.
Contudo lhe dirigiu, pois a senhora j o esperava, repreenses pela conduta e perguntou,
mui secamente, por que contingncia entrava daquela maneira. Ele respondeu, com
expresso natural, que no encontrara criado pra se fazer anunciar e que oferecia, com
toda humildade as mui humildes escusas pela conduta.
E que desculpas podes oferecer no caso?
A palavra desprezo, que se estava na missiva, chegou ao acaso memria de
Valentino. Pareceu agradvel tomar esse pretexto assim e dizer a verdade. Ento
respondeu que a carta insolente da qual se queixava a marquesa no fora escrita pra ela
e que lhe fora dirigida por equvoco. Convencer em semelhante questo no era fcil,
como bem imaginas. Como podemos escrever um nome e um endereo por engano?
No me encarrego de explicar por que razo senhora de Parnes acreditou ou fingiu
acreditar no que Valentino dizia. Ele contou, alis mais sinceramente do que ela
pensava, que estava apaixonado por uma jovem viva e que essa criatura, pelo mais
singular acaso, se parecia bastante com a senhora marquesa, que ele a via
freqentemente, que a vira na vspera. Numa palavra, lhe disse tudo que podia dizer,
omitindo o nome e alguns pequenos detalhes que percebeste.
No a primeira vez que um novio apaixonado se serve de histria desse gnero pra
mascarar sua paixo. Dizer a uma mulher que se ama outra que lhe semelhante em
tudo , a rigor, um meio romanesco que pode dar o direito de falar de amor. Mas
preciso, creio, pra isso, que a pessoa ao p da qual se empregam semelhante estratagema
ponha no assunto um pouco de boa-vontade. Foi assim que a marquesa o entendeu?
Ignoro. A vaidade ferida, antes que o amor, conduzira Valentino. Antes do amor, a
vaidade elogiada acalmou senhora de Parnes. Chegou a fazer ao rapaz algumas
perguntas sobre a viva. Se assustava com a semelhana da qual ele falava. Estaria,
dizia, curiosa pr julgar com seus olhos. Qual sua idade? menor ou maior que
eu? espirituosa? Aonde costuma ir? Ser que j a conheo?
A todas estas perguntas Valentino respondia, tanto quanto possvel, com a verdade.
Essa sinceridade apresentava, em cada palavra, o aspecto duma lisonja sonegada. No
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maior nem menor que tu. Tem, como tu, esse porte encantador, esses ps
incomparveis, esses belos olhos cheios de fulgor. A conversao, nesse tom, no
desagradava marquesa. Ouvindo atentamente, com fisionomia destacada, ela se
mirava no ngulo dos olhos. Pra falar verdade, essa manobra ofendia horrivelmente
Valentino. No podia compreender essa semivirtude nem essa semi-hipocrisia duma
mulher que se agastava com uma frase sincera e que se deixava conter atravs duma
gaza. Vendo as olhadelas que a marquesa enviava a si no espelho, sentia vontade de lhe
contar tudo, o nome, a rua, o beijo do baile, e de exercer desse modo sua completa
vendeta pelo bilhete que recebera.
Uma pergunta de senhora de Parnes aliviou o mau-humor do moo. Perguntou, com
semblante mofador, se podia ao menos dizer o nome de batismo de sua viva. Jlia,
replicou, prontamente. Havia nessa resposta to pequena hesitao e tamanha clareza,
que senhora de Parnes ficou chocada. um nome muito bonito. E a conversao caiu
de repente.
Ento aconteceu algo talvez difcil de explicar e provavelmente fcil de
compreender. Desde que a marquesa acreditou seriamente que a declarao que a
indignara no era realmente pra si, se mostrou surpresa e quase ferida. Seja porque a
inconstncia de Valentino se apresentasse ali mais forte, se ele amava outra, seja porque
ela lastimasse ter mostrado a clera fora de propsito, a marquesa se tornou sonhadora
e, o que estranho, no mesmo instante irritada e casquilha. Ela quis retornar a seu
perdo e, procurando querela com Valentino, se sentou ao toucador. Desatou a fita que
envolvia o pescoo, depois a prendeu novamente. Apanhou um pente. Seu penteado
parecia a desagradar. Refez uma madeixa dum lado, suprimindo uma doutro. Enquanto
arrumava o penteado o pente escorregou das mos e a longa cabeleira negra cobriu as
espduas.
Queres que eu chame a camareira?
No vale a pena.
A marquesa levantou, com mo impaciente, o cabelo solto e enfiou o pente.
Ignoro o que fazem meus criados. preciso que tenham sado todos, porque nesta
manh eu proibira que deixassem entrar algum.
Neste caso cometi uma indiscrio e me retirarei.
Deu alguns passos porta e sairia efetivamente, quando a marquesa, que voltava as
costas, e aparentemente no entendera sua resposta, disse:
Me ds uma caixa que est sobre o fogo.
Ele obedeceu. Ela apanhou grampos da caixa e reajustou o penteado.
A propsito. E o retrato que fizeste?
No sei onde est. Porm o encontrarei e, se me permites, darei a ti logo que o
tiver retocado.
Chegou um criado, trazendo uma carta qual era necessrio responder. A marquesa
comeou a escrever. Valentino se levantou e entrou no jardim. Ao passar no pavilho
viu que a porta estava aberta. A camareira que encontrara, ao chegar, limpara ali os
mveis. Ele entrou, curioso pra examinar de perto esse misterioso quarto de vestir que
diziam abandonado. O vendo, a criada comeou a rir, com aquele aspecto de proteo
que domina toda criada depois duma confidncia. Era jovem e muito bonita. Se
aproximou dela, deliberadamente, e se atirou a uma poltrona.
Tua patroa no vem aqui s vezes? Perguntou, com ar distrado.
A ancila3 parecia hesitar pra responder. Continuava a arrumar. Passando diante do
canap de tipo moderno do qual te falei, creio, disse a meia-voz:
Eis a poltrona da senhora.
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Roberto I de Normandia, conhecido tambm como Roberto O Liberal, Roberto O Diabo e tambm Roberto O Magnfico (1010 - 3
de Julho de 1035), foi duque de Normandia desde agosto de 1027. Se tornou um conto popular medieval. Nota do digitalizador
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VI
No decorreram mais de quinze dias aps o acontecimento, quando Valentino, saindo
da casa de senhora Delaunay, esqueceu o leno sobre uma poltrona. Depois que o rapaz
partiu a viva apanhou o leno e, tendo ao acaso olhado a marca, encontrou um I e um P
muito delicadamente bordados. No eram as letras de Valentino. A quem, pois,
pertencia? O nome de Isabel de Parnes jamais fora pronunciado na rua de Plat-d'tain e
a viva, por conseguinte, se perdia em intil conjetura. Virava o leno em todos os
sentidos, examinava um canto, depois o outro, como se esperasse descobrir nalguma
parte o verdadeiro nome do proprietrio.
E por que tanta curiosidade por algo to simples? Emprestamos todos os dias um
leno a um amigo e o perdemos. Isso ir sem comentrio. O que h nisso de
extraordinrio? Entretanto senhora Delaunay examinava de perto a fina cambraia e nela
achava um aspecto feminino que lhe fazia balanar a cabea. Entendia de bordado e o
desenho parecia demasiado rico pra sair do armrio dum rapaz. Um indcio imprevisto a
fez descobrir a verdade. Nas pregas do leno reconheceu que numa das pontas fora dado
um n pra servir de porta-nquel, e essa maneira de guardar o dinheiro s pertence, bem
sabes, s mulheres. A viva empalideceu com a descoberta e, depois de ter, durante
algum tempo, posto no leno olhares pensativos, foi obrigada a se servir dele pra
enxugar uma lgrima que escorria na face.
Uma lgrima!, dirs, j uma lgrima! Ai dela! Sim, senhora, chorava. O que
acontecera ento? Direi. Mas pra isso preciso voltar um instante sobre nossos passos.
necessrio saber que dois dias aps o baile, Valentino fora casa de senhora
Delaunay. A me abriu a porta e respondeu que a filha sara. Em seguida senhora
Delaunay escrevera uma longa carta ao moo. Lhe recordava seu ltimo encontro e
suplicava pra no mais a ver. Contava com sua palavra, honra e amizade. No se
mostrava ofendida e no falava do galope. Rapidamente Valentino leu a carta do
princpio ao fim, sem encontrar algo de mais ou de menos. Se sentiu comovido e
obedeceria se a ltima frase ali no estivesse. Na verdade fora apagada, mas to
levemente, que se podia ler at melhor. Dizia a viva, ao terminar sua carta: Adeus.
Sejas feliz.
Dizer a um apaixonado que expulsamos: Sejas feliz. O que pensas a respeito? No
foi pra dizer: No sou feliz? Na sexta-feira Valentino hesitou muito tempo se iria
casa do notrio. Apesar de sua idade e estouvamento a idia de prejudicar algum lhe
era insuportvel. No sabia o que decidir, quando repetiu a si: Sejas feliz! E correu
casa de senhor de Andelys.
Por que senhora Delaunay estava l? Quando nossa personagem entrou no salo a viu
franzir as sobrancelhas com singular expresso. No que diz respeito s maneiras, nela
havia, certamente, alguma garridice. Porm, no fundo do corao, ningum era mais
simples, mais inexperiente que senhora Delaunay. Ela pde, vendo o perigo, tentar
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atrevidamente se defender. Mas pra resistir a uma luta sustentada no possua as armas
necessrias. Nada sabia desses golpes hbeis, desses recursos sempre prontos, por meio
dos quais uma mulher de esprito sabe conter o amor a distncia e o afastar ou atrair
pouco a pouco. Quando Valentino lhe beijara a mo, ela monologara: Eis um mau
indivduo pelo qual eu bem poderia ficar apaixonada. preciso que ele v
embora no momento oportuno. Porm, logo que ela o viu, em casa do notrio, entrar
alegremente na ponta dos ps, apertado na gravata e com o sorriso nos lbios, a
saudando, apesar de sua proibio, com gracioso respeito, pensou: Eis um homem
mais obstinado e mais ardiloso que eu. No serei a mais forte diante dele e,
desde que ele voltou, talvez me ame.
Dessa vez ela no recusou a contradana. s primeiras palavras ele percebeu nela
uma grande resignao e notvel desassossego. No fundo dessa alma tmida e correta,
existia algum aborrecimento na vida. Embora apreciando o repouso, ela estava fatigada
da solido. Senhor Delaunay, falecido muito jovem, no, a amara. A tomara pra
governante, antes que pra esposa. e, ainda que ela no levasse dote, ele fizera, a
desposando, um casamento de juzo. A economia, a ordem, a vigilncia, a estima
pblica, a amizade de seu marido, as virtudes domsticas. Numa palavra, vejas o que ela
conhecia neste mundo. Valentino gozava, no salo de senhor de Andelys, a reputao
que todo rapaz de traje alinhado pode ter na casa dum notrio. Falavam como se
tratando dum elegante, dum cliente de Tortoni, e as priminhas sussurravam entre si
histrias doutro mundo, que lhe atribuam. Ele descera numa chamin em casa dum
baro, saltara na janela da residncia duma duquesa que morava num quinto andar, tudo
por amor e sem se magoar, etc., etc.
Senhora Delaunay tinha muito pouca vontade de escutar essas tolices. Porm talvez
fizesse melhor as escutando, que entendendo algumas palavras do assunto, ao acaso.
Tudo depende, freqentemente, nesse caso, da maneira pela qual nos apresentamos. Pra
falar como os colegiais, Valentino levava vantagem sobre senhora Delaunay. Em vista
de o repreender por ter comparecido, ela aguardava que ele lhe pedisse perdo. Ele se
defendeu bem, como calculas. Se fosse o que ela acreditava, isso , um homem
abastado, talvez no tivesse xito ao p dela, por que a viva ento o sentiria muito
hbil e muito seguro de sua posio. Contudo tremia, a tocando, e essa prova de amor,
somado cum bocado de receio, perturbava ao mesmo tempo o esprito e o corao da
moa. No consideravam, em tudo isso, a sala de jantar do notrio, ambos pareciam a
ter esquecido. Porm quando chegou o sinal do galope e Valentino foi convidar a viva,
se tornou bem necessrio se lembrarem dela.
Ele me assegurou que durante sua existncia no vira rosto mais lindo que o de
senhora Delaunay, quando lhe fez esse convite. A face se ruborizou. Todo o sangue que
ela possua no corao afluiu em torno dos grandes olhos negros, como pra fazer
sobressair a chama. Ela se levantou um pouco, preste a aceitar e no ousando o fazer.
Ligeiro estremecimento fez moverem as espduas, que dessa vez no estavam nuas.
Valentino segurava a mo dela. A comprimiu afetuosamente na sua, como pra dizer:
No receies mais. Sinto que te amo.
Refletiste na posio duma mulher que perdoa um beijo que lhe furtaram? No
momento em que ela promete o esquecer quase como se o aceitasse. Valentino ousou
fazer a senhora Delaunay algumas repreenses por sua clera. Se queixou de sua
severidade, do afastamento em que ela o conservava. Enfim chegou, no sem hesitar, a
falar dum pequeno jardim situado atrs de sua casa, local retirado, de espessa sombra,
onde nenhum olho indiscreto podia penetrar. Uma deliciosa cascata murmurante
protegia o colquio, a solido defendia o amor. Nenhum rudo, testemunha nem perigo.
Falar de semelhante recanto no meio da sociedade, ao som da msica, no turbilho
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duma festa, a uma moa que o escuta, que no aceita nem recusa, mas que deixa falar e
que sorri. ! senhora, descrever assim semelhante lugar, talvez seja mais encantador
que ali estar!
Enquanto Valentino se expandia sem reserva, a viva escutava sem reflexo. De vez
em quando, aos ardentes desejos ela opunha tmida objeo. Uma vez ou outra ela fingia
no entender, e se uma palavra a atingira, enrubescendo, ela a fazia repetir. A mo,
comprimida pela do rapaz, desejava estar fria e imvel. Ela estava inquieta e febril. O
acaso, que protege os amantes, quis que, ao passarem na sala de jantar se encontrassem
ss, como da ltima vez. Valentino no teve o pensamento de perturbar o sonho de sua
deusa, e no lugar do desejo senhora Delaunay viu o amor. O que direi? Esse respeito,
audcia, recinto, baile, a ocasio, tudo se reunia pr seduzir. Ela semicerrou os olhos,
suspirou e nada prometeu.
Eis, senhora, por que motivo senhora Delaunay comeou a chorar quando encontrou
o leno da marquesa.
VII
Desde que Valentino esqueceu o leno no preciso, entretanto, acreditar que no
tivesse um no bolso.
Enquanto senhora Delaunay chorava, nosso jovem imprudente, que nada sabia da
histria, estava muito longe de se sensibilizar. Ele estava num pequeno salo forrado de
madeira, dourado e almiscarado como uma bomboneira, no fundo duma grande poltrona
de damasco violeta. Ouvia, aps um bom jantar, o convite valsa, de Weber e,
saboreando excelente caf, olhava, de vez em quando, o colo alvo de senhora de Parnes,
que, com todos os atavios e exaltada, como diz Hoffmann, por uma chvena de ch bem
aucarado, dispunha da melhor maneira as lindas mos. No era pela pequena partitura,
preciso declarar, com inteira justia, a qual estava perfeitamente atrada. No sei qual
merecia mais elogio: O sentimental mestre alemo, a inteligente musicista ou o
admirvel instrumento de rard, que devolvia em vibrao sonora a dupla inspirao
que o animava.
Terminado o trecho, Valentino se ergueu e, tirando do bolso um leno:
Tomes. Agradeo. Eis o leno que me emprestaste.
A marquesa fez justamente o que fizera senhora Delaunay. Olhou logo a marca. A
mo delicada sentiu um tecido muito grosseiro pra lhe pertencer. Ela tambm era
entendida em bordado. Porm ali havia to pouco, nada suficiente, contudo, pra
denunciar uma mulher. Virou duas ou trs vezes o leno, o aproximou, timidamente, do
nariz, o examinou ainda, depois o atirou a Valentino, dizendo:
Ests enganado. Isso que me apresentas pertence a alguma camareira de tua me.
Valentino, que trouxera, por equvoco, o leno de senhora Delaunay, o reconheceu e
sentiu bater o corao.
Por que a uma camareira? Porm a marquesa se colocara ao piano. Pouco lhe
importava uma rival que se assoava no grosseiro pano. Ela retomou o presto da valsa e
fez uma fisionomia de no ter entendido.
Essa indiferena espicaou Valentino. Deu uma volta no quarto e pegou o chapu.
Aonde irs? Perguntou senhora de Parnes.
A casa de mame, entregar a sua criada de quarto o leno que me emprestou.
Te verei amanh! Ouviremos um pouco de msica e me dars o prazer de vir
jantar.
No. Tenho afazer pro dia todo.
Ele continuava a andar e no se decidia a sair. A marquesa se levantou e foi para ele.
s um homem singular. Desejas me fazer sentir cime.
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nosso prejuzo. Vi meu pai estupefato e mergulhado no desespero, com a cabea baixa,
lendo a carta. Estava to envergonhado como se fosse o culpado. Enxugou uma lgrima
na face, atirou a carta ao fogo e exclamou:
Como a vaidade e o interesse so coisas insignificantes! Mas como medonho
perder um amigo!
Se estivesses l, Valentino, farias o juramento de jamais iludir algum.
Senhora Delaunay, ao pronunciar essas palavras, deixou escapar alguma lgrima.
Valentino estava sentado perto. Em toda resposta, a atraiu a si. Ela pousou a cabea em
seu ombro e, tirando do bolso do avental o leno da marquesa:
bem bonito. O bordado fino. Deixars pra mim. No ? A mulher a quem ele
pertence no perceber que o perdeu. Quando temos um leno deste, temos vrios
outros semelhantes. Quanto a mim, tenho somente uma dzia e no so maravilhosos.
Me devolvers o meu que levaste e que no te far honra. Porm guardarei este.
Pra qu? No te servirs dele.
Sim, meu amigo, preciso que eu me console por o ter encontrado nesta poltrona
e preciso que ele enxugue minha lgrima at que cesse de rolar.
Que este beijo as enxugue!
E, apanhando o leno de senhora de Parnes, o atirou na janela.
VIII
Seis semanas se escoaram. E preciso que seja bem difcil ao homem se conhecer,
pois Valentino ainda no sabia de qual das suas duas amadas mais gostava. Apesar dos
momentos de sinceridade e dos laos de corao que o aproximavam de senhora
Delaunay, no podia resolver a desaprender o caminho da Calada de Antim. Malgrado
a beleza da senhora de Parnes, seu esprito, graa e prazeres que ele encontrava em sua
casa, no podia renunciar ao cubculo da rua Prato de Estanho. O pequeno jardim de
Valentino via, alternativamente, a viva e a marquesa passearem no brao do rapaz e o
murmrio da cascata cobria com seu rudo montono os juramentos sempre repetidos e
sempre trados com o mesmo ardor. Ento preciso crer que a inconstncia tenha suas
diverses como o amor fiel? s vezes ainda ouviam rodar a carruagem sem libr, que
conduzia, incgnita, senhora de Parnes, quando senhora Delaunay aparecia, velada, no
fim da rua, caminhando com passo receoso. Oculto atrs do seu zelo, Valentino sorria
desses encontros e se entregava, sem remorso, aos perigosos atrativos da mudana.
fato quase infalvel: Aqueles que se familiarizam com um perigo acabam o
amando. Sempre arriscado a ver sua dupla intriga descoberta por um acaso, obrigado ao
difcil papel dum homem que deve mentir sem parar. Sem se trair, nosso imprudente
ficou orgulhoso dessa estranha posio. Aps ter habituado a isso o corao, acostumou
tambm a vaidade. O receio que o perturbava no princpio, o escrpulo que o detinham,
ficaram queridos. Deu dois anis semelhantes a suas duas amigas. Conseguiu de
senhora Delaunay que usasse uma delicada corrente de ouro que escolhera em lugar de
seu colar de crisocal. Pareceu divertido fazer colocar esse colar na marquesa. Conseguiu
o impingir certo dia em que ela ia ao baile. Essa foi, seguramente, a maior prova de
amor que ela lhe deu.
Senhora Delaunay, ludibriada pelo amor, no podia acreditar na volubilidade de
Valentino. Havia certos dias em que a verdade surgia de repente, clara e irrecusvel.
Ento explodia em reprovao, se fundia em lgrima, desejava morrer. Uma palavra de
seu amado a enganava novamente. Um aperto-de-mo a consolava. Entrava em casa
feliz e tranqila. Senhora de Parnes, dominada pelo orgulho, no procurava descobrir
algo e no experimentava saber. Dizia: Existe alguma velha paixo que ele no tem
coragem de abandonar. E no se dignava se rebaixar a solicitar um sacrifcio. O
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amor lhe parecia um passatempo e o cime ridculo. Alis, acreditava que sua beleza
fosse um talism ao qual ningum pudesse resistir.
Se te recordas do carter de nosso heri, como procurei pintar na primeira pgina
deste conto, talvez compreenders e desculpars sua conduta, malgrado o que ela tem de
justamente reprovvel. O duplo amor que sentia ou acreditava sentir era, assim dizendo,
a imagem de sua vida inteira. Tendo sempre procurado os extremos, gozando as alegrias
do pobre e as do rico ao mesmo tempo, encontrava perto dessas duas mulheres o
contraste que lhe agradava e, realmente, era rico e pobre no mesmo dia. Se, das 7h s
8h, ao sol poente, dois belos cavalos cinzentos entravam a trote ligeiro na avenida dos
Campos Elseos, conduzindo suavemente atrs de si um cup forrado de seda como um
quarto de vestir, poderias ver, no fundo da carruagem, uma viosa e garrida figura
oculta sob um grande capote e sorrindo a um jovem indolentemente estendido a seu
lado: Eram Valentino e senhora de Parnes, que gozavam a aragem aps o jantar. Se na
manh, no nascer do sol, o acaso a conduzisse perto do lindo bosque de Romainville,
encontrarias ali, sob o verde arvoredo duma chcara, dois amantes falando em voz baixa
ou lendo, juntos, la Fontaine e eram Valentino e senhora Delaunay, que acabavam de
caminhar no orvalho. Estiveste, na noite, num grande baile na embaixada da ustria?
Viu no meio dum circulo brilhante de moas uma beldade mais atrevida, mais cortejada,
mais desdenhosa que todas as outras? Essa cabea encantadora, coberta cum turbante
dourado, que se move com graa, qual rosa embalada pelo zfiro, a jovem marquesa
que a sociedade admira, que o triunfo embeleza e que todavia parece sonhar. No longe
dali, apoiado a uma coluna, Valentino a observa: Ningum conhece seu segredo,
interpreta esse olhar nem no advinha a alegria do amante. O brilho dos lustres, o som
da msica, os murmrios dos convivas, o perfume das flores, tudo o penetra, o
transporta, e a imagem radiosa de sua linda amada embriaga seus olhos deslumbrados.
Quase duvidou da felicidade e que to raro tesouro lhe pertence. Ouviu os homens
dizerem em torno: Que encanto! que sorriso! e repetiu, baixinho, essas palavras.
Chegou a hora da ceia. Um jovem oficial corou de prazer ao apresentar sua mo
marquesa. A rodearam, cada um quer se aproximar e porfia uma palavra de seus lbios.
ento que ela passa perto de Valentino e sussurra: At amanh. Quanta delcia em
semelhantes palavras! Entretanto, no dia seguinte, no cair da noite, o rapaz subiu, a
apalpadela, uma escada escura e atingiu, com dificuldade, o terceiro andar e bateu
suavemente e uma pequena porta, que se abriu e ele entrou. Senhora Delaunay, diante
da sua mesa, trabalhava s, o aguardando. Ele se sentou perto dela, que olhou a ele,
tomou sua mo e disse que agradecia a amar ainda. Uma s lmpada iluminava
fracamente o modesto quartinho. Porm sob essa luz estava um semblante amigo,
tranqilo e afetuoso. Ali no havia mais testemunho desvelado nem admirao ou
triunfo. Valentino fez mais que no lastimar o mundo. Esqueceu. Entrou a velha me, se
sentou em sua poltrona e foi preciso ouvir at 10h as histrias do tempo passado,
acariciar o cozinho que rosnava, avivar a luz que se extinguia. s vezes era um novo
romance que era preciso ter a coragem de ler. Valentino deixou cair o livro pra tocar, ao
o apanhar, o pezinho de sua adorada. Outras vezes um piqu5 a dois soldos a ficha que
preciso jogar com a boa senhora e ter o cuidado de no possuir muito bom jogo.
Saindo de l o jovem voltou a p. Ceou ontem com vinho da Champanha, cantarolando
uma contradana. Ceou nessa noite com uma xcara de leite, fazendo alguns versos a
sua amada. Entrementes a marquesa estava furiosa por lhe terem faltado com a palavra.
Um grande lacaio empoado trouxe um bilhete cheio de terna repreenso e cheirando a
almscar. O bilhete foi desdobrado, a janela estava aberta, o tempo era lindo, senhora de
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Piqu: sm Jogo feito com 32 cartas. Casta de tecido feito de dois panos aplicados um sobre o outro e unidos por pontos cujas linhas
formam desenho. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/
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Parnes chegaria. Eis nossa estouvada e grande personagem. Dessa maneira, sempre
diferente de si, encontrava meio de ser verdadeiro jamais sendo sincero. E o amante da
marquesa no era o da viva.
Me disse, num dia em que, enquanto passevamos, procurava se justificar:
E por que escolher? Por que essa necessidade de amar de maneira exclusiva?
Censuram um homem de minha idade por estar enamorado de senhora de Parnes? No
admirada, invejada? No elogiam seu esprito e encanto? A prpria razo se apaixona
por ela. Por outro lado, que reprovao merece aquele a quem a bondade, a ternura, a
inocncia de senhora Delaunay impressionaram? No digna de fazer a alegria e a
ventura dum homem? Menos bela, no seria uma preciosa companheira, e como , h
no mundo namorada mais encantadora? Em que sou culpado por amar essas duas
mulheres, se cada uma merece ser amada? E se verdade que sou mui venturoso por
influir dalgum modo em sua vida, por que s poderia fazer uma feliz fazendo a desgraa
da outra? Por que o meigo sorriso que s vezes minha presena faz brotar nos lbios de
minha bela viva deveria ser comprado ao preo duma lgrima derramada pela
marquesa? eu pecado se a contingncia me atirou em seu caminho, se as tenho
aproximado, se me permitiram as amar? Qual escolheria sem ser injusto? Por que uma
mereceria mais que outra ser preferida ou abandonada? Quando senhora Delaunay
declarou que sua existncia inteira me pertence, que desejas, pois, que eu responda?
preciso a banir, desenganar e deixar o desnimo e a dor? Quando senhora de Parnes est
ao piano e, sentado atrs de si, a vejo se entregar nobre inspirao de seu corao.
Quando seu esprito eleva o meu, me exalta e me faz apreciar, pela simpatia, os mais
requintados gozos da inteligncia, necessrio que eu lhe diga que se ilude e que to
delicioso prazer criminoso? mister que eu transforme em dio ou desprezo a
recordao dessas horas magnficas? No, meu amigo. Mentirei dizendo a uma dessas
duas senhoras que no mais a amo ou que no a amei. Terei antes a coragem de as
perder juntas do que a de escolher uma.
Percebes que nosso estrina procedia como procedem todos os homens: No
podendo se corrigir de sua loucura, tentava dar a aparncia de razo. Entretanto havia
certos dias em que seu corao se recusava, pra seu pesar, ao duplo papel que
representava. Procurava perturbar o menos possvel o repouso de senhora Delaunay.
Porm do orgulho da marquesa teve mais dum capricho a suportar. Essa mulher tem
somente esprito e vaidade. Falava a mim a seu respeito, s vezes. Acontecia
tambm que, deixando o salo de senhora de Parnes, a ingenuidade da viva o fazia
sorrir e achava que, por sua vez, ela possua muito pouco orgulho e esprito. Ele se
lastimava de no gozar de liberdade. Algumas vezes um arrebatamento o fazia renunciar
a um encontro. Apanhava um livro e ia jantar sozinho no campo. Noutras ocasies
amaldioava a contingncia que se opunha a uma entrevista que solicitava. Senhora
Delaunay era, no ntimo do corao, a preferida. Porm ele ignorava tudo a respeito e
essa incerteza talvez durasse muito tempo se uma circunstncia, aparentemente
insignificante, no o tivesse esclarecido de repente sobre seu verdadeiro sentimento.
Era o ms de junho e as tardes no jardim estavam deliciosas. A marquesa, se
sentando num banco de madeira perto da cascata, entendeu um dia de o achar duro.
Disse ela a Valentino:
Darei presente a ti uma almofada.
Com efeito, no dia seguinte, na manh, chegou uma elegante poltrona, acompanhada
de bela almofada de tapearia, da parte de senhora de Parnes.
Talvez te recordes de que senhora Delaunay trabalhava em tapearia. Havia um ms,
Valentino a viu trabalhar constantemente numa confeco do gnero, cujo desenho ele
admirara. No porque o desenho tivesse algo notvel. Era, creio, uma coroa de flor,
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como em todas as tapearias do mundo. Porm as cores eram encantadoras. Alis, o que
pode fazer uma mo amada que no consideremos uma obra-prima? Cem vezes, na
noite; perto da luz, o rapaz seguira com os olhos, sobre a talagara,6 os hbeis dedos da
viva. Cem vezes, no meio dum entretenimento adorvel, parava, observando, em
religioso silncio, enquanto ela contava os pontos. Cem vezes interrompera essa mo
fatigada e lhe infundira a coragem com um beijo.
Quando Valentino fez transportarem a poltrona da marquesa a uma pequena sala
contgua ao jardim, desceu li e examinou o presente. Olhando de perto a almofada,
acreditou a reconhecer. A segurou, virou, ps no lugar e se perguntou onde a vira.
Pensou: Estou doido. Todas as almofadas se parecem, e esta nada tem de
extraordinrio. Porm uma pequena mancha feita sobre o fundo branco atraiu, de
repente, sua ateno. No havia como se enganar. Valentino fizera essa ndoa, deixando
cair uma gota de tinta no trabalho de senhora Delaunay, numa noite em que ele escrevia
perto.
Essa descoberta o deixou, como percebes, em grande estupefao. Pensou: Como
possvel? Como a marquesa podia enviar a mim uma almofada feita por
senhora Delaunay? Examinou ainda: Sem dvida, eram as mesmas flores e cores.
Reconheceu o brilho, a disposio. As tocou como pra ter certeza de que no ser iluso.
E ficou suspenso, sem saber como explicar a si o que via.
Nem preciso dizer que mil conjeturas, cada uma menos verossmil que a outra, se
apresentaram ao esprito. Ora supunha que o evento pudesse fazer se encontrarem a
viva e a marquesa, que estavam combinadas mutuamente, e que enviavam a almofada
em comum acordo, pra anunciar que sua perfdia estava desmascarada. Ou que senhora
Delaunay surpreendera sua conversao da vspera no jardim e desejara, pra o
envergonhar, executar a promessa de senhora de Parnes. De qualquer maneira se via
descoberto, abandonado pelas duas amadas ou, no mnimo, por uma. Depois de ter
passado uma hora sonhando, resolveu sair da incerteza. Foi casa de senhora Delaunay,
que o recebeu como de costume e cujo semblante s exprimia um pouco de espanto por
o ver chegar to cedo.
A princpio tranqilizado por essa acolhida, falou algum tempo sobre coisas
indiferentes. Ento, dominado pela inquietao, perguntou viva se a tapearia estava
terminada.
Sim.
Onde est?
Ante a pergunta senhora Delaunay se perturbou e enrubesceu.
Est na casa do negociante. Disse, muito depressa. Logo recuperou a calma e
acrescentou: A dei pra montar. A receberei.
Se Valentino ficou assustado ao reconhecer a almofada, ainda mais se mostrou ao ver
a viva se atrapalhar logo que falou no assunto. Todavia, no se atrevendo a fazer nova
indagao, com medo de se trair, saiu em seguida e foi residncia da marquesa. Porm
essa visita foi ainda menos proveitosa. Quando perguntou sobre a poltrona, senhora de
Parnes, como resposta fez ligeiro aceno de cabea sorrindo, como se dissesse:
Estou encantada porque te agrada.
Nosso imprudente entrou em casa, menos inquieto, verdade, do que ao sair, mas
acreditando quase ter sonhado. Que mistrio ou capricho da sorte ocultava essa singular
oferta? Uma faz a almofada e a outra a oferece a mim. Uma passa um ms
trabalhando e, ao terminar, a outra se apossa do objeto. Essas duas mulheres
jamais se viram e se entenderam pra me pregar uma pea que no parecem
pressentir. Certamente havia com que torturar o esprito. Tambm o rapaz procurava
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IX
Quando Valentino, de volta aos penates, ficou diante de sua poltrona, o segredo que
acabara de conhecer produziu efeito inesperado. Pensando que senhora Delaunay
empregara seis semanas pra fazer essa almofada pra ganhar 2 luses, e que senhora de
Parnes a adquirira enquanto passeava, ele experimentou um estranho aperto no corao.
A diferena que o destino estipulara entre essas duas mulheres se lhe mostrava, nesse
momento, sob forma to palpvel, que no pde se esquivar de sofrer. A idia de que a
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Morim: Pano de algodo, usado especialmente pra roupa de baixo e roupa branca. Tambm chamado madapolo. Nota do
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marquesa chegaria, se apoiaria neste mvel e roaria o brao nu sobre o vestgio das
lgrimas da viva era insuportvel presse homem. Apanhou a almofada e a enfiou num
armrio. Pensou: Que julgue o que quiser a respeito. Esta almofada me faz pena
e no a posso deixar ali.
Senhora de Parnes chegou logo depois e se admirou de no ver seu presente. Em vez
de procurar uma desculpa, Valentino respondeu que no a desejava e que jamais a
utilizaria. Pronunciou essas palavras em tom brusco e sem refletir.
Por qu?
Porque me aborrece.
Em que te desagrada? Disseste o contrrio ainda nesta manh.
possvel. Entretanto me aborrece. Quanto custou?
Eis uma bela pergunta! O que te passa na cabea?
preciso saber que havia alguns dias Valentino soubera, pela me de senhora
Delaunay, que ela estava bastante constrangida. Se tratava duma conta de aluguel a
pagar a um proprietrio avarento, que ameaava ao menor atraso. Valentino, no
podendo fazer, mesmo por uma bagatela, ofertas de servio, que no se deixasse
entender. No tinha outro partido a tomar alm de ocultar sua atribulao. Aps o que
revelara o empregado do Pai de Famlia, era provvel que essa almofada no fosse
suficiente pra tirar a viva do embarao. No era culpa da marquesa. porm a mente
humana , s vezes, to extravagante, que o moo quase pretendeu informar a senhora
de Parnes do preo mdico de sua compra e, sem atinar com a inconvenincia da
pergunta:
Custou 40 ou 50 francos. Falou. com azedume Sabes quanto tempo levaram
pra fazer?
Se. Tanto melhor porque a confeccionei.
Tu!
Eu, e por ti gastei nisso 15 dias. Vejas se me deves algum reconhecimento.
15 dias?, senhora. Mas so necessrios dois meses de trabalho assduo para
terminar semelhante confeco. Levarias seis meses pra terminar, se o empreendesses.
Pareces bem a par do assunto. Donde tanta experincia?
Duma artfice que conheo e que certamente no se engana.
Muito bem! Essa artfice no disse tudo. Ignoras que nessas coisas o mais
importante so as flores, e que elas esto preparadas nas casas dos negociantes de
talagara, onde o fundo cheio. O mais difcil resta a fazer, porm o mais demorado e o
mais aborrecido est feito. Foi assim que comprei a almofada, que no me custou 40 ou
50 francos, porque esse fundo nada significa. um trabalho de operria ao qual so
necessrias apenas a l e as mos.
A palavra operria no passara despercebido a Valentino.
Estou bem pesaroso. Porm no o fundo nem as flores so teus.
E de quem, ento? Provavelmente da operria que conheces?
Talvez.
A marquesa pareceu hesitar um instante entre a clera e a vontade de rir. Tomou o
ltimo partido e, se entregando ao bom-humor:
Ento digas, te suplico, o nome de tua misteriosa operria, que te fornece to boas
lies.
Se chama Jlia. Respondeu o rapaz. Seu olhar e o som da voz
lembraram,subitamente, a senhora de Parnes que ele lhe dissera o mesmo nome no dia
em que falara duma viva que amava. Como no momento o acento de verdade com que
respondera perturbou a marquesa, ele se recordou vagamente da histria dessa viva,
que usara como pretexto. Porm assim repetido esse nome pareceu srio.
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talvez o orgulho que fala, senhora. Porm convenhas, ento, que isso no
amor.
De nada sei. Se no sou ciumenta certo que por desprezo. Como s reconheo
a senhora de Parnes o direito de vigilncia sobre mim, no pretendo vigiar algum. Mas
como te atreve a me repetir um nome que deverias calar?
Por que o silenciaria quando me interrogas? Esse nome no pode fazer corar a
pessoa a quem pertence nem a quem o pronuncia.
Muito bem! Ento acabes de pronunciar.
Valentino hesitou um momento.
No. No pronunciarei em considerao quela que o possui.
A marquesa se levantou ante essas palavras, apertou a mantilha em torno de suas
formas e disse em tom gelado:
Penso que foram me procurar. Me conduzas at minha carruagem.
X
Marquesa de Parnes era mais que orgulhosa. Era odiosa. Habituada desde a infncia
a ver todos os caprichos satisfeitos, abandonada pelo marido, mimada pela tia, elogiada
pelo mundo que a envolvia, o nico conselheiro que a dirigia, no meio duma liberdade
to perigosa, era essa ousadia nativa que triunfava mesmo sobre as paixes. Chorou
amargamente ao entrar em casa. Depois fez vedar a porta e refletiu no que tinha a fazer,
disposta a no sofrer mais.
Quando Valentino, no dia seguinte, foi ver senhora Delaunay, acreditou perceber que
era seguido. Era, efetivamente, e a marquesa logo soube da residncia da viva, seu
nome, e das visitas freqentes que o rapaz fazia. No quis se deter nesse ponto, e
inverossmil que possa parecer o meio do qual se serviu, no menos certo que o
empregou e teve xito.
s 7h da manh chamou a camareira, mandou essa jovem trazer um vestido de linho,
um avental, um leno de algodo e ampla touca debaixo da qual escondeu, da melhor
maneira possvel, seu rosto. Assim disfarada, cum cesto sob o brao, foi ao mercado
dos Inocentes. Era a hora em que senhora Delaunay costumava ir at ali, e a marquesa
no procurou muito tempo. Sabia que a viva se parecia consigo e logo percebeu, diante
da banca duma fruteira, uma moa quase de seu porte, de olhos negros e de modesta
conduta, negociando cereja. Se aproximou:
senhora Delaunay a quem tenho a honra de falar?
Sim, senhorita. O que desejas?
A marquesa no respondeu. Sua fantasia estava satisfeita e pouco se importava que
se espantassem com isso. Lanou sobre a rival um olhar estpido e curioso, a examinou
minuciosamente dos ps cabea, depois se voltou e desapareceu.
Valentino no ia mais casa de senhora de Parnes. Recebeu dela um convite de baile
impresso e acreditou dever ir at l por convenincia. Quando entrou no palacete ficou
surpreso de ver somente uma janela iluminada. A marquesa estava s e o aguardava.
Perdoes. O pequeno ardil que empreguei pra te fazer vir. Pensei que no
responderias, talvez, se eu escrevesse pra solicitar um quarto de hora de distrao e
tenho necessidade de dizer uma palavra, suplicando responder sinceramente.
Valentino, que naturalmente no guardava rancor e em cujo corao o ressentimento
passava to depressa como entrava, pretendeu dirigir a conversao a um tom jovial e
comeou a galantear a marquesa sobre seu suposto baile. Ela lhe cortou a palavra,
dizendo:
Vi senhora Delaunay.
E ajuntou, vendo Valentino mudar de fisionomia:
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Postilho: sm (antigo) Encarregado do servio de posta. Homem que transporta, a cavalo, notcia e correspondncia. Por
extenso: Mensageiro. Nota do digitalizador. http://www.kinghost.com.br/
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Empalhado
Armand Silvestre
I
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rosto um ameaador Com mil diabos! que quase o fez recuar. Porque era poltro como
um coelho, por muito nobre que fosse.
Senhora, disse a Amlia, com a voz estrangulada pela clera percorrerei,
durante oito dias, as estradas, em minha bicicleta de Veneza, e se, ao voltar, no
encontrar esse maldito papagaio empalhado, juro que o mandarei assar e te obrigarei a
comer o corao.
Senhor visconde conhecia os clssicos e a sombria lenda de Franois Chateaubriand.9
Amlia chorou muito primeiro, depois desatou a rir como uma louca, a uma idia
brilhante que tivera. Mandou vir de Paris, porque estamos no castelo de Mauve, um
papagaio empalhado, da mesma raa que o seu e, escondendo a gaiola de Toms num
celeiro onde sabia que o marido nunca punha os ps, continuou a fazer visita furtiva ao
favorito e a passar, na sua espiritual companhia, as horas de lazer que lhe dava o gosto
esportivo de senhor de la Mauve.
Quando ele voltou do passeio, com as pernas em mau estado e escanchadas como as
do Colosso de Rodes, a cabea metida entre os ombros, sujo de suor e de poeira, teve
um sorriso malvado de satisfao, ao ver, a um canto da lareira, sua falsa vtima
empalhada.
Ao menos nunca mais dirs Com mil diabos!
Franois-Ren de Chateaubriand (Saint-Malo, 4 de setembro de 1768 Paris, 4 de julho de 1848), nome completo Franois
Ren Auguste de Chateaubriand, tambm conhecido como visconde de Chateaubriand, foi um escritor, ensasta, diplomata e
poltico francs que se imortalizou pela magnfica obra literria de carter pr-romntico. Pela fora da imaginao e brilho do
estilo, que uniu a eloqncia ao colorido descritivo, Chateaubriand exerceu uma profunda influncia na literatura romntica de raiz
europia, incluindo a lusfona.
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Os pais da horizontal
Debut de Laforest
-M
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Rafamia: sf (de rafa) Camada social inferior, plebe. (Cear) Misria, pobreza extrema. Nota do digitalizador.
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Joana de la Tourduneuf
Pedro Garcias
-S
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Nem precisa dizer que todos dormiam na casa. Se diria que batiam porta dum
tmulo. Enfim, uma espcie de aldeo criado abriu, cuma vela na mo. Estava em
camisa.
Ora vejam! senhor Alfredo!
Est bem, Pedro. conversaremos amanh. Depressa, um quarto! O melhor. Uma
boa cama, bem branca. Acendas o fogo, um grande fogo! Me casei nesta manh. Minha
esposa est na carruagem. Viemos passar aqui nossa primeira noite de npcia!
! Essa que est boa! Respondeu Pedro, a gargalhada. que, devo dizer,
amanh dia de feira!
A feira nada tem que ver com a situao.
Perdo! Toda a casa est cheia, da adega ao sto. Chegam a estar dezessete num
quarto com trs camas. Desta vez o pobre Alfredo teve vontade de arrancar o cabelo. E,
na fria ousou pronunciar essa blasfmia:
Diabos levem minha sogra!
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Utile dulci: til e agradvel. Expresso que significa unir o til ao agradvel. Nota do digitalizador
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Nada de emoo!
R. O'Monroy
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ento, homem!
Sim. Mas a grande dificuldade a encontrar.
No digas isso.
Pois se apenas tenho levado blefe!
Quais?
Fulaninha tratava de me seduzir depois de se deixar seduzir por um francs.
Sicraninha se deixava pretender enquanto resolvia comigo os preparativos pra nossa
boda. Beltrana j sabes o que era. Me apresentaram de Tal. Meio resolvido tinha eu o
assunto com os pais e soube que a menina andava de amor cum bobo que freqentava a
casa. A pequena de Qual tinha o vcio das criadas.
Que vcio?
1.
Tudo isso nada significa.
Plulas!
Por que no te casaste com a de Prez?
Pela mesma razo que me obrigou a deixar a de Gmez.
Qual?
Porque a de Gmez andava com um e a de Prez com outro.
Enfim, no pretendes te casar.
Lgico! Dirs que no posso me casar.
Queres que procure pra ti uma noiva?
Se no me cobras muito caro.
Purita.
No parece m pequena.
Certamente. No encontrars criatura melhor educada. Naquela casa no h atado,
enredo nem diverso que possa parecer desonesto. Trs ou quatro vezes por ano a
famlia vai ao teatro. Isso tudo. Ali s vers gente formal.
Se tudo isso fosse verdade.
Vendo, bastar. Te apresentarei nesta noite.
De acordo.
A reunio comear s 8:30h e acabara s 10h.
Um tanto atrasado, me parece, esse costume.
Queres uma mulher moderna?
No, no. Prefiro Purita.
Depois de cear nos veremos no caf, e dali casa.
No h inconveniente.
Me alegraria que te arrumasses duma vez.
Mais me alegraria eu.
Eia! Ento at logo.
At logo. Adeus.
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se me responderes.
Espera da senhorita a vida ou a morte teu adorador que te adora de corao
e da senhorita seguro servidor e atento amigo.
Q. S. P. B., Silvrio
No me recordo de ter escrito carta mais estpida. Nesta noite, enquanto jogamos
loto, a darei a essa casta-diva da rua da Sert.
Quem veio?
Padre Calamares.
E por que no entra?
Est deixando a telha na prateleira do corredor.
Vs, senhores, dai licena?
Entres.
Boa-noite, senhores.
Boas, Padre.
Como vais?, senhor Rudesindo.
Perfeitamente.
E tu?, dona Rufina.
Bem, muito obrigada.
Ento no h novidade?
No, senhor. Vou bem.
E a senhora?
Eu? Por cima de meu marido.
E Purita?
Acabando de limpar a prataria.
Sempre to trabalhadeira.
Sim, senhor.
H casos...
Mas, mulher, contars tudo em seguida.
Se no queres...
Nada disso. Com o padre h confiana ilimitada.
O que isso?
Silvrio se declarou menina.
Viva!
Sim, senhor. Escreveu a ela uma carta muito bonita. Se v que um perfeito
cavalheiro.
Ora, ora. E vs?
A pequena j tem a resposta pra dar nesta noite.
De modo que de vosso gosto?
Pois no se apresenta outra coisa. No mau partido. Tem uma rendinha, bem
saneada.
E Purita: O que disse?
Preferiria um militar, mas no houve oportunidade.
Te cales, pois vem a.
Pois ento j est o outro, porque a espera na janela da cozinha.
Vs, senhores, dai licena?
J est soando a campainha
Sou feliz porque soube trs coisas: Que sou um palegrafo, que sou um poliglota e
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E da?
Nada.
Mas qual o nmero?
0.
Que horror!
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Vingana feminina
Henri de Rgnier
A condessa de Baume-Pluvimel
Cinzano: um aperitivo mundialmente conhecido e apreciado pelo sabor delicado e inconfundvel. A frmula,
baseada em vinhos de alta qualidade e essncias de ervas e especiarias de todo o mundo, mantida em segredo desde o sculo 18.
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tempo o passa ali. Seu ar saudvel e o velho Baldipiero lhes deve muito da
fora de sua robusta ancianidade, porque no conhece o que seja um dos
achaques prprios das vidas prolongadas, ainda que a sua transpassara em
muito os limites correntes. Seus dias estiveram cheios de ilustres aes. Viu o
mundo. um homem rude e delicado que amou muito as mulheres e amou
mulheres de todos os pases. Ainda tem boa aparncia, embora o vejam pouco
e viva bastante retirado em sua casa ou na perfumada solido de seus jardins.
No obstante me recebera bondosamente, notei no rosto alguma
inquietao. Mordiscava, ao falar, o cabo da trana de sua peruca branca, e
dava a impresso de que lhe custava muito me ouvir tranqilamente enquanto
lhe explicava minha partida e o objetivo de minha viagem. Aprovou minha
resoluo e me ofereceu algumas cartas que podiam me ser teis. Me deixou
prs escrever e vi desaparecer no fundo da galeria sua casaca floreada cujas
abas roavam docemente o mrmore, deixando um perfume de almscar e
mbar.
Por aquele perfume e pelo pequeno desgosto que no pudera dissimular,
ocasionado por minha chegada, supus que cara, indubitavelmente, no meio
duma aventura galante contrariada por minha presena. Apesar de sua idade
era fama que o senador no se privava dum prazer que durante muito tempo
fora sua diverso principal e sua ocupao mais importante. Se afirmava
tambm que pra o satisfazer no recuava ante audcia que o fazia temvel a
pais e maridos. Nada regateava pra lograr seus prazeres: A fora, a astcia,
nem meio direto ou sinuoso. At se chegara a falar de surpresas e raptos, mas
to bem combinados e executados to felizmente que s corria acerca deles
um rumor, sem algo preciso ou demonstrado. possvel que eu tivesse
chegado no momento duma dessas faanhas: Portanto resolvi no importunar
mais tempo meu hspede e me afastar quando obtivesse as cartas que me
oferecera e que estava escrevendo. Me daria Roma e Paris, porque eu
hesitava em qual das duas cidades comear a viagem. A da Frana me tentava
sobremaneira e me inclinava empreender em primeiro lugar.
Pensando nesse projeto me pus a me mirar num espelho que pendia duma
parede. Me achava nele muito bem. Meu traje de seda, meu jaleco bordado,
meus sapatos com fivelas de brilhantes faziam o melhor efeito, capaz de
satisfazer o mais difcil. Havia em meus olhos um fogo particular. Me parecia
que com to bom talante poderia aspirar s mais altas fortunas amorosas,
porque as belas damas de Frana passam por no regatear seus favores a
quem procura os merecer por alguma dessas delicadezas a que so
particularmente sensveis. Por essa razo eu levava grande quantidade de
bracelete de Veneza e muito ponto de renda, sem contar bom nmero de caixa
com miniatura apropriada pra oferecer como presente.
Enquanto passeava nos jardins imaginava mil aventuras que no podiam
deixar de me sair ao encontro. Eram as mulheres o natural assunto delas. Via
se renovar ante mim os encantos do amor, sem pensar que igual em todas as
partes e que os lugares e os costumes apenas pem nele algumas pequenas
diferenas. Apesar disso no duvidava que descobriria novidades maravilhosas
e inesperadas. Me assaltavam repentinos desejos que me pareciam me
transportar a um pas de novela! E me assombraria se me recordassem, de
sbito, que estava a poucas lguas de Veneza, nos jardins de senador Andr
Baldipiero, de tal modo sentia que sara da vida ordinria, me afastara de suas
circunstncias habituais e me colocara na ocasio mais propcia s coisas mais
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Bugalho uma excrescncia arredondada que se forma nalgumas espcies de rvore do gnero Quercus (carvalho, sobreiro e
azinheira). Nota do digitalizador
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Rocalha: sf Poro de conta pra colar ou rosrio. Colar de conta, rocal. Do francs rocaille. Nota do digitalizador.
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bosques com a ponta de seu basto, cujo punho de ouro brilhava entre os
dedos de sua mo forte e peluda.
Chegou a hora do almoo, que foi longo e delicado, servido por criados
negros em vasta sala redonda, toda espelhada, na qual iam e vinham,
silenciosamente, em torno de ns. As multiplicavam estranhamente os
espelhos at chegar a ofender a vista com sua ilusria multido. Seu cabelo
crespo enchia o turbante de seda amarela, onde tremiam movedios penachos.
Das orelhas pendiam argolas de ouro. As mos negras nos serviam esse vinho
Cinzano que tanto aprecio. medida que bebamos sentia que meu regozijo
aumentava, enquanto durante momentos se ia sombreando o rosto do senador.
Me olhava comer e beber sem tocar em seu copo nem prato. Meu apetite
merecia ser imitado. A viagem o aumentara. No preciso procurar fora pra
ser capaz de fazer frente s ocasies de todas as classes que podem nos
encontrar, a julgar pelos relatos dos que viram o mundo? Nunca me senti mais
disposto. O vinho fazia subir ao rosto uma cor vermelha, sadia e abundante,
que o senador parecia contemplar, invejoso, ainda que a meu ver nada tivesse
a invejar, no que se refere perfeita conservao do corpo e do esprito.
No entanto, observando mais luz, me pareceu notar que tinha no rosto
visveis sinais de fadiga. Seria em conseqncia de nosso longo passeio nos
jardins, ou doutra causa diferente? Seria melhor a aparncia que a realidade no
velho Baldipiero? Estava numa idade em que as foras se limitam a sustentar a
vida e podem ainda cumprir sua misso durante muito tempo, sempre que no
se lhes exija alm do conveniente. Pois bem. Se tinha o senador por homem
que resistia a deixar de ser jovem e se contava que quando havia ocasio se
dispunha a retornar juventude, se excedendo e talvez sem tanto xito quanto
queria.
Pouco a pouco, durante a conversa comeou a se lamentar do que eu j
suspeitava. Fez o elogio a minha felicidade e ops a ela a misria de
envelhecer. Se notava grande amargura. No mais eu o escutava com escassa
ateno porque isso me parecia um acidente natural a que todos estamos
sujeitos e cujo porvir mais ou menos prximo deve nos servir de estmulo pra
gozar do presente o melhor que possamos. Portanto, enquanto falava,
continuava eu bebendo vinho Cinzano e comendo fruta. Eram deliciosas as que
os negros me ofereciam em canastrinhas de filigrana de prata, e me vali de seu
sabor pra gabar a hospitalidade de meu hspede. Muito elegantemente se
escusou de que minha brusca chegada o tivesse impedido de me preparar
algumas diverses que no fossem s as de seus jardins e sua mesa e de no
poder ajuntar a elas mais que uma palestra com um triste ancio, sem o
acessrio de convidados ou ao menos o acompanhamento dos msicos.
Respondi que no sentia falta duns nem doutros e que a solido consigo me
era muito agradvel se no tivesse que me reprovar ter perturbado a sua, e
que me aprazia muito uma circunstncia como aquela que me valia o favor de
sua conversao. Me deixou terminar e depois, movendo a cabea, agregou
que o desvanecia infinitamente minha cortesia e que no duvidava de que
naquele momento estava dizendo a verdade, mas que no tardaria, sem
dvida, a pensar doutro modo quando me visse no leito sozinho, entre os
lenis, coisa que no prpria de homem jovem e, sobretudo, dum homem
jovem que gosta de mulher.
palavra mulher pensei, de subitamente e sem saber a razo, na janela
fechada que tanto me preocupara quando a vi pouco antes. Ento estvamos
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Cequim: sm Antiga moeda de ouro, italiana, que valia aproximadamente 2000 ris. Nota do digitalizador. www.dicio.com.br/
Campanil: Liga metlica pra sino. Lugar alto pra sino.
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Leonello, e eu, todos amigos de Aldramin, todos pessoas que dariam a vida pra
preservar a dele, porque o estimvamos e ele a ns. Jamais houvera entre ns rivalidade,
nenhuma desinteligncia, nada alm de estima e amizade.
Ento Baltazar Aldramin suicidara! Sua prpria mo cravara o punhal homicida! Mas
por que se matara de tal modo? No era jovem, rico e feliz? Qual seria a pena que nos
ocultara a todos? Estvamos imveis e sombrios. Nossos rostos estavam to plidos
como o branco carto das mscaras que ainda tnhamos nas mos. Aldramin teria
realmente suicidado? Permanecamos com os olhos fixos em seu cadver. A mesma
suspeita monstruosa, inevitvel, nascia simultaneamente em nosso pensamento. No
seria um de ns o que, favorecido pelas trevas, dera em Aldramin o golpe mortfero? As
almas tm segredo e h tantas coisas ocultas! Mas nesse caso, quem? Qual era o autor
da obscura faanha? Este ou aquele? Quem?
Um mal-estar silencioso nos oprimia, e como no nos atrevamos a nos olhar frentea-frente, espivamos nossos olhares nos espelhos que refletiam e multiplicavam nossos
rostos em torno do inanimado corpo de Baltasar Aldramin: Seu cadver multiplicado
nos espelhos parecia estar nos acusando individualmente.
Depois que se enterrou Aldramin na igreja de Santo Estvo, onde repousa com as
mos cruzadas sobre o rubro orifcio do ferimento, continuou nos perseguindo a mesma
angstia: Quando nos encontrvamos, Barbarigo, Loredan, Mirmiani, Bottarolli e eu,
experimentvamos involuntria desconfiana uns dos outros. Mal nos atrevamos a dar
as mos.
Esse miservel mal-estar nos amargurou at o extremo de chegarem a se desafiar
Bottarolli e Barbarigo. Se bateram por um motivo importncia, com o qual ocultaram a
verdadeira razo da peleja. Bottaroli resultou ferido de morte e Barbarigo teve de fugir.
Ca em profunda tristeza. No podia me consolar da perda de Aldramin. Leonello
procurava me distrair. Tocava maravilhosamente diversos instrumentos musicais e quis
experimentar o efeito que causava em minha melancolia. Jamais pde meu esprito
conceber suspeita a respeito dele. Sua doura, sua fraqueza afastavam de tal modo
semelhante idia que nunca lhe disse do que me preocupava to dolorosamente.
Encontrei uma vez Loredan. Me perguntou sobre Leonello e respondi que desde algum
tempo ocupava uma dependncia em meu palcio. Tomes cuidado com a escurido!,
me recomendou rindo sarcasticamente. A injustia dessa suspeita me dilacerou o
corao que to sincera amizade professava a Leonello.
Ao ver que minha pena aumentava a cada dia que passava, Leonello me props que
viajssemos. Pretendeu ter negcio em Roma e me disse que recebera cartas de
Palermo, nas quais o incumbiam de os resolver. Fingi acreditar no pretexto, que era s
pra me induzir a mudar de residncia. Me desagradava a permanncia em Veneza. Os
sinos da igreja de Santo Estvo, que ficava perto de nosso palcio, me faziam
estremecer. Reavivavam em mim a recordao de Baltazar. Aceitei o projeto de viagem.
Depressa ficaram prontos nossos preparativos. Descemos os trs degraus do umbral
desgastados pela gua transparente. Me voltei vrias vezes pra olhar a branca fachada
do palcio de Aldramin. A chuva avivara os flores de mrmore rosa: Pareciam as
cicatrizes de duas finas feridas.
Nos pusemos a caminho eu e Leonello, no mesmo carro. Queramos ir dormir em
Pienza. Todavia a noite nos surpreendeu bastante longe da cidade, atravessando sombrio
pinheiral. J saamos dele quando nosso carro se viu, de improviso, assaltado por um
grupo de ladres. Os mais audazes agitavam tocha no focinho dos espantados cavalos,
enquanto os outros nos apontavam com o cano das pistolas. Nossos criados tinham
fugido.
Foram vs nossas tentativas de resistncia. Nossas espadas foram inteis.
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O termo francs oubli significa omisso, esquecimento. No texto s pode ser o nome duma loja, memorial ou outro lugar. Nota do
digitalizador.
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fiz estrear no mundo. Jovens como eu adquiriram o hbito de irem me visitar. Um era
perverso e malicioso. Tinha maneira ao mesmo tempo suave e atrevida. Foi de quem
fiquei enamorada. Meus pais souberam disso e nada articularam pra no me causarem
muita pena. Passando todo o tempo onde eu no o via, pensando em si, acabei me
rebaixando, me assemelhando a si tanto quanto me era possvel. Me induzia a proceder
mal quase por surpresa, pois me habituou a deixar despertar em mim mau pensamento,
ao qual no tive vontade a opor, nico poder capaz de os fazer reentrar na sombra
infernal donde saram. Quando o amor findou, o hbito tomara o lugar e no faltavam
jovens imorais pra o explorar. Cmplices de minhas faltas, tambm passavam por seus
apologistas diante de minha conscincia. A princpio tive remorso atroz e fiz juramentos
que no foram cumpridos. Minhas amigas me dissuadiram de insistir junto a meu pai.
Lentamente me convenceram de que todas as moas faziam o mesmo e que os pais
somente fingiam o ignorar. As mentiras que incessantemente eu era obrigada a forjar,
minha imaginao as disfarou imediatamente das aparncias dum silncio que
convinha guardar sobre uma necessidade inelutvel. Nesse momento eu no mais vivia
bem. Eu ainda sonhava, pensava, sentia.
Pra distrair e expulsar todos esses maus desejos comecei a penetrar demasiadamente
no mundo. Seus prazeres esgotantes me habituaram a viver em perptua companhia, e
eu perdi com o gosto da solido o segredo das alegrias que me deram at ali a natureza e
a arte. Jamais fui to freqentemente ao concerto como naqueles anos. Jamais,
inteiramente preocupada com o desejo de ser admirada numa loja elegante, senti menos
profundamente a msica. Eu ouvia e nada entendia. Se a entendia deixei de ver tudo que
a msica sabe revelar. Meus passeios tambm foram como tocados pela esterilidade. As
coisas que noutro tempo eram suficientes pra me fazer feliz durante todo o dia, um
pouco de sol dourando a verdura, o perfume que as folhas deixam escapar com as
ltimas gotas de chuva, perderam, como eu, doura e graa. As rvores, o cu e a gua
pareciam se desviar de mim e, se permanecendo s consigo frente a frente, eu os
interrogava ansiosamente, no mais murmuravam aquelas respostas vagas que me
enraiveciam. Os seres divinos, que anunciam as vozes das aves, das folhas e do cu se
dignam visitar somente os coraes que, habitando em si, so purificados.
Foi ento que, procurando um remdio inverso, porque eu no tinha a coragem de
querer o verdadeiro que estava to perto e, pobre criatura!, to longe de mim, em mim,
me permiti de novo ir aos prazeres pecaminosos, acreditando reanimar l a chama
extinta no mundo. Foi em vo. Impedida pelo prazer de agradar, eu dilatava, dia a dia, a
deciso definitiva, a escolha, o ato verdadeiramente livre, a preferncia pela solido.
No renunciei a um desses dois vcios em benefcio do outro. Os mesclei. O que estou
dizendo? Cada um se encarregando de quebrar todos os obstculos de pensamento, de
sentimento, que deteriam o outro, parecia tambm o evocar. Entrava no mundo pra me
acalmar depois duma falta, e cometia outra desde que estava calma. Foi nesse momento
terrvel, aps a inocncia perdida, e antes do remorso de hoje, nesse instante quando de
todos os momentos de minha existncia menos vali, que fui a mais apreciada de todas.
Me julgaram moa pretensiosa e tola. Entretanto, ao contrrio, a cinza de minha
imaginao estava ao gosto do mundo que ali se deleitava. Agora que eu cometia contra
minha me o maior dos crimes, me achavam, por causa da maneira ternamente
respeitosa em relao a si, o modelo das filhas. Aps o suicdio de meu pensamento,
admiravam minha inteligncia, se apaixonavam por meu esprito. Minha imaginao
esgotada, minha sensibilidade exaurida, bastava sede das mais alteradas da vida
espiritual, tanto essa sede era fictcia e mentirosa como a fonte onde acreditavam a
estancar. Alis, ningum suspeitava do crime secreto de minha vida e eu representava a
todos a donzela ideal. Ento quantos pais disseram a minha me que se minha situao
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fosse mais modesta e pudessem pensar em mim no desejariam outra mulher pra sua
filha! No fundo de minha conscincia obliterada eu experimentava, em conseqncia
destes louvores imerecidos, uma desesperada vergonha. No chegava superfcie e eu
cara to baixo que tive a indignidade de referir esses fatos, rindo, aos cmplices de
meus crimes.
IV
A algum que perdeu o que jamais se encontra... jamais!
Baudelaire
No inverno de meus vinte anos a sade de minha me, que nunca fora vigorosa, ficou
muito abalada. Soube que sofria do corao, sem gravidade, porm era preciso evitar
aborrecimento. Um de meus tios me informou que minha me desejava me ver casada.
Um dever preciso, importante, se me apresentava. Eu poderia provar a minha me o
quanto a amava. Aceitei o primeiro pedido que me transmitiu com sua aprovao, me
impondo assim, na falta de vontade, a necessidade de me obrigar a mudar de vida. Meu
noivo era justamente o jovem que, por sua extrema inteligncia, afabilidade e energia,
podia ter sobre mim a mais ditosa influncia. Ademais estava decidido a morar conosco.
Eu no seria separada de minha me, o que pra mim foi a pena mais cruel.
Ento tive a coragem de relatar todas minhas faltas a meu confessor. Perguntei se
devia a mesma confisso a meu noivo. Teve a piedade de me afastar do intento, porm
me fez prestar o juramento de no mais reincidir nos erros e me deu a absolvio. As
flores tardias que o jbilo fez brotarem em meu corao, que eu acreditava a sempre
estril, frutificaram. A merc divina, a graa da mocidade, onde se vem tantas feridas
cicatrizarem espontaneamente, pelo vigor da idade, me curaram.
Se, como disse Santo Agostinho, mais difcil voltar a ser casto do que ter sido,
ento conheci uma difcil virtude. Ningum duvidava que eu valia infinitamente mais
que antes e minha me beijava todo dia minha fronte, que nunca deixara de crer pura,
sem saber que estava regenerada. Ainda mais, nesse momento, fizeram sobre minha
atitude distrada, meu silncio e melancolia no mundo, injusta reprovao. Porm no
me irritei por isso, pois o segredo que existia entre mim e minha conscincia satisfeita
me proporcionava grande prazer. A convalescena de minha alma, que ento me sorria
ininterruptamente cum semblante semelhante ao de minha me e me olhava com
expresso de terna reprovao atravs das lgrimas que secavam, era dum encanto e
languidez infinitos. Minha alma renascia vida. Eu no compreendia como pudera a
maltratar, fazer sofrer, quase matar. E efusivamente agradecia a Deus a salvar a tempo.
Era o acordo dessa alegria profunda e pura com a fresca serenidade do cu que eu
saboreava na tarde quando tudo terminou. A ausncia de meu noivo, que fora passar
dois dias na casa da irm, a presena ao jantar do rapaz que tinha a maior
responsabilidade em minhas faltas passadas, no projetavam tristeza nessa tarde lmpida
de maio. No havia nuvem no cu que refletisse exatamente em meu corao. Alis
minha me, como se houvesse entre ela e minha alma, embora ignorasse meus pecados,
misteriosa solidariedade, estava quase curada. Dissera o mdico: preciso a tratar
quinze dias, ento no haver recada possvel! S essas palavras eram, pra mim, a
promessa dum futuro de ventura, cuja suavidade me fazia fundir em lgrima. Naquela
tarde minha me usava um vestido mais elegante que de costume, e, na primeira vez
depois da morte de meu pai, portanto mais velha dez anos, acrescentara um pouco de
malva a sua habitual veste negra. Estava toda embaraada por estar vestida como
quando mais jovem, triste e feliz por romper dor e luto pra me agradar e festejar minha
alegria. Aproximei de seu corpinho um cravo rosa, que a princpio repeliu, mas que
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Reveladoras
Felipe Trigo
I
Pois tragas. Vamos!
Uaa! Fez Glria, se voltando e lhe mostrando a lngua.
Donde a senhora teria tirado esses dois filhos to tolos? Muitas noites vinham
cozinha ver como descascavam batata, ela e a outra companheira, Vicenta. E, quando
tambm no estava presente a velha ama Charo, lhes contavam ambas, pra se
divertirem, histrias obscenas, pra rirem ao olhar a cara de tolo de Rodrigo, que no
compreendia, e a cara de Petra, que j ia entendendo demais e se zangava algumas
vezes porque diziam aquelas coisas diante do menino!
Glria o via no espelho, sem deixar de se pentear.
Porm tornou a chamar com energia e ela, enfim, se levantou, devagar, muito
confiada na bondade do rapazote, guapo como uma menina e ingnuo at o incrvel,
apesar de ter treze anos.
Assim como irritava, a Rodrigo, ter sempre de se aborrecer antes que as criadas lhe
obedecessem, o entristecia o afastamento cada dia maior de sua irm. Por isso os olhos
ressumavam lgrima quando Glria se aproximou, levando os cromos no avental, com
os seios mal cobertos pelo corpete solto. O censurou, parando em burlesca admirao:
Choras porque a senhorita no vir?
Qual senhorita?
Ora! Qual senhorita!Senhorita Petra! Tua irm. Me mandam que a chame assim.
No observaste que lhe preparam vestidos compridos? s tolo!
Melhor!
No poder vir porque est escrevendo uma carta a... uma carta pra... Isso no
disse mas sei... Porque est escrevendo uma carta... Uma carta em papel de flor!
Se sentou borda do canap, pra pr os cromos no assento.
Ora, ento no sabes a quem escreve? No sabes... s um bobo!, homem.
Melhor! Gritou de novo, cerrando as plpebras pra desfazer a lgrima.
Pensas que uma senhorita de quinze anos passar vida brincando com as bonecas?
Ters de brincar sozinho. Veremos. Talvez no saibas por que neste inverno tiraram tua
cama do quarto? Por que tiraram tua cama do quarto de Petra? No dormeis juntos?
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II
Contudo, o vira sair to decidido que, temendo que o tolinho fosse contar, resolveu
observar l de dentro. Apanhou sua blusa na cozinha e se abotoou. Atou o cabelo.
Na ante-sala achou ningum, nem na sala. Tudo estava escuro e silencioso, e fechado
o quarto de dona Luz. Quando se retirava, Petra a chamou, entreabrindo a porta do
toucador. A senhorita tornou a fechar. A mandou se sentar. Conclua.
Tambm Petra se sentou a escrever, afanosamente curvada na mesinha cheia de folha
de papel rasgada, com os ps cruzados a um lado da cadeira, descobrindo, na orla da
saia, os tornozelos e os sapatos finos como luvas. A formosa trana de azul de ao, por
fora de ser to negra, caa nas costas, sobre o chambre de luto leve.
Cerrou a carta num envelope e se dirigiu criada, tmida, delicada, incendiada de
adorvel rubor.
Pra quem ? Perguntou, a mantendo no alto numa ponta com dois dedos
Adivinhes!
Pro senhor Romo Glria respondeu, sem vacilar.
Tomes. Entregues na noite.
Guardando a carta, Glria sorria: Renderia um par de duros do generoso pretendente.
A senhorita lhe diz que sim?, acaso.
Adivinhaste. Seremos noivos. Respondeu a formosssima jovem, se estirando
na poltrona, onde cara como quem descansa dum trabalho Bem, e o qu mais? A
digo que o amo, o que no verdade, porque mal posso o amar quando ainda no falei
consigo. No creio que me agradar que falemos desta correspondncia em que se
empenha minha amiga Pura, porque a noiva do amigo dele e em que tu te empenhas
sem saber porqu!
!, senhorita. Bem, me disseram que a chamasse assim. Pra mim d no
mesmo. Gostars quando falar consigo na Alameda, na noite, depois que passar a
Virgem e que puder sair depois de tirar todo o luto. Ali h msica. As mames se
sentam sob as rvores e as moas, vestidas de claro como pomba, do volta e mais volta
nos jardins, acompanhadas dos noivos as que tm. Depois o teatro, depois os bailes. E o
porto em casa dalguma amiga. Depois... ! Ainda no viveste!
Tiveste muitos?
Namorados? Alguns!
O primeiro com que idade? Glria mergulhou na recordao, perdida em confusas
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73
III
Mas, quem chorara l em cima, no sto, aonde subiu, fugindo da ingratido da irm
que nunca queria brincar, foi Rodrigo. Ia cuspindo, passando as mos nos lbios, cheio
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de ira, pra apagar a impresso insulsa e abominvel do peito que Glria tentara lhe dar,
zombando dele como se fosse um beb. Se recordava que j fizera o mesmo noutra
ocasio, aquela porca!
Depois, Rodrigo tudo esqueceu durante a sesta, distrado matando vespa e
decalcando um mapa.
O terrao se estendia ao longo da casa. Ali tinha velocpede, com espao pra correr.
At o ptio, desde uma balaustrada cheia de vaso de flor, continuando no telhado da
galeria. Uns caramanches em forma de trapeira, que serviam pra traste e pra evitar o
calor ao andar de baixo, o isolavam da rua. Petra o transformara em jardim, com as
flores, e Rodrigo em ginsio a outra extremidade confinante com a igreja. No outro lado
uma taipa de 2m estabelecia a fronteira com o terrao da hospedaria, que na pitoresca
fachada ostentava o rtulo de hotel das Colnias.
De cadeira e de mesa a um tempo, onde instalava seus papis e suas figuras, servia
ao menino um dos bancos de tijolo que ao longo dos desvos se embutiam entre uma e
outra porta. Ia colorindo o mapa. Colhido de surpresa por tremendo badalar que soou
acima de sua cabea, derramou inesperadamente o copo dgua. Davam 6h no relgio do
Carmo. O desenho se molhara. Depois de o contemplar desoladamente, resolveu o
estender ao sol, no cho, sobre um jornal. Esperaria. Tomou carreira, se pendurou e
subiu, de rins, ao trapzio, ficando sentado tranqilamente, em suave balano, a cabea
encostada corda, enquanto contemplava de cima os sinos que sempre o assustavam.
Eram os telhados da parquia, uma regio singular e deserta como um cemitrio de
brbaros pantees, a nica decorao que o abstraa ali, onde o horizonte se estreitava
em muros prximos em todos os lados. Seguindo o muro que dava ao ptio,
perpendicular ao terrao, uma estreita plataforma corria sobre a parte do edifcio
destinado a moradia do proco. Numa rampa de cal se abriam trs escadinhas
irregulares transpondo o desnvel dos cruzeiros e a partir deles e duma lanterna, cujas
janelas de cortinas verdes ressaltavam sobre as pedras da meia-laranja do batistrio,
comeava um labirinto de encruzilhadas e estreitos, como sendas que subiam e desciam
em declives rpidos sobre as abbadas, atrs dos parapeitos e cornijas e entre as cpulas
laterais e o grande zimbrio que se elevava no espao, cortando o azul com o bojo
colossal de enegrecidas telhas. Outra escada encostada ao muro do zimbrio, em semicaracol, levava ao terrao do alto campanrio que fazia de torre, onde os arcos, cheios
de ninho de cegonha, exibiam os tijolos como feridas sangrando na argamassa. Nada de
adorno nem de arquitetura. Se tratava do reverso, que s Deus devia ver, do teto de
velho templo, dentro rejuvenescido e faceiro pros fiis. Os passeios eram de concreto
armado, lisos como as paredes, pra bem das lagartixas. E nas gretas, pilastras,
telhadinhos e buracos, uma fauna voltil se agitava cada vez que o poderoso vibrar dos
sinos perturbava o repouso da sesta, tangidos pela maquinaria do relgio ou pelos
coroinhas se pendurando nas maromas21 da sacristia.
Rodrigo sabia de cor aquelas anfratuosidades. Saltando o tabique, graas ao qual o
sacristo s subia ali de ms a ms, as percorria, a mido, em divertidas caadas a
francelhos22 e pardais. Quando no pelo prazer de trepar e escorregar como numa
excurso entre montanhas, ou, melhor ainda, pra se sentar na torre, sob o sino grande, e
contemplar o panorama da cidade e do campo. A solido penetrava na alma, causando
uma espcie de crispao de pavor que dava prazer e que suportava bem,
particularmente na tarde, quando o alegre rudo das aves o cercava no ar e ouvia cantar,
ao longe ,nas galerias suas criadas. Porque de confessar que nunca, na noite, embora
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se sentisse bem tomando fresco no terrao, pde sozinho suportar a viso das molhes
escuras, nem o resplendor do luar, que as coloria dum azul fantstico, fazendo
fosforescer reflexos cristalinos e lanando, de cpula a cpula, sinistras manchas de
sombra sob o alto cu.
IV
O fez se voltar no trapzio um rudo de garrafas quebradas e de cachorros ladrando.
Viu, no tabique do hotel, uma laranja atirada ao alto, e outra, que comearam a se
cruzar num subir e descer gracioso. Momentos depois no eram trs, mas seis ou sete as
laranjas, traando no ar um arco em que se perseguiam sem cessar.
Incapaz de resistir curiosidade, saltou do trapzio, pra ver. Nas pontas dos ps e
carregado com a escada branca da percha, a encostou ao tabique, comeando a subir
cautelosamente.
No terrao do fundo estava uma menina, loura como as bonecas, cujas melenas
frisadas caam sobre o guarda-p de brim, ondulando no gracioso balanceio dos braos,
presas por um diadema de pedras verdes. Estava de costas. No o percebeu. As laranjas
voavam como uma grinalda sobre sua cabea, se dilatando, se estendendo, se apertando
outra vez at parecer que chegavam a rodar nas tmporas, obedientes s rosadas mos
que as impulsionavam com rapidez de encanto, enquanto o talhe flexvel e firme se
estendia ou dobrava, ora erguido nas pontas dos ps, ora num e noutro lado, ou com o
busto a trs e o rosto ao cu, joelho no cho, em to violenta flexo de todo o corpo, que
o sapato branco tocava as pontas da urea cabeleira. E a formosssima criatura, sempre
rodeada por aquele aro girador, que parecia a extasiar, fingindo os anis duma serpente
avermelhada. Perto dum banco havia uma ctara e uma harpa. Diante dela, a
contemplando, presos e mimosos, estavam dois ces so-bernardo.
Cada vez que a menina, se ajoelhando, lanava a cabea a trs, Rodrigo se ocultava
atrs da cerca. Enfim ela o viu. Os ces rosnavam e ladraram. Ela interrompeu o jogo.
Deslumbrado pelo brilho singularssimo daquele rosto, tambm ficou a olhando. Ela
recolhera na saia as laranjas e mostrava as rendas azuis das saias-de-baixo de seda, a
meia perna, estalando a vigorosa panturrilha na meia escocesa.
Molk! Schut! Gritou, dando um pontap no co que ainda rosnava.
Imediatamente sorriu a Rodrigo, dirigindo uma reverncia.
Quem te ensina isso? Perguntou, animado pela plcida jovialidade.
Aprendo. Respondeu a mocinha, com acento estrangeiro, dulcssima a voz e
amvel.
Deve ser muito difcil!, creio.
! Aqui no solo, no. Se pode fazer. que querem que eu o faa em panneau
sobre Stren, que galopa muito alto.
Como?
Correndo em cima do cavalo.
Assim, cairs! Quem te segura?
Ningum. Vou em p sobre ele. No me viste no circo?
Sua curiosidade com relao menina redobrou. Se lembrou de ter lido nas esquinas
anncios sobre a chegada duma companhia eqestre.
! s titereira?, ento.
Acrobata e musicista excntrica. Retificou a menina, com orgulho ofendido.
Deixou as laranjas no banco, se sentou numa extremidade e apanhou a ctara.
Vs? Toco isso, violino, harpa, e em garrafas e copos dgua. Volteio, tambm, em
meu cavalinho Kaiser. Me chamo lia Deval. Senhorita lia. Viste os cartazes? Pois,
sou eu!
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outra... uma... a outra... Sem olhar a mo, s a cima... Querendo, prestes ateno, vo
passando de mo... atires a direita... apanhes a esquerda... Assim... assim... assim...
Vamos ver se consegues. Tomas?
Ela atirou as duas laranjas, que Rodrigo apanhou sucessivamente no ar. Com isso
cobrou nimo. Se firmando na escada, lanou primeiro uma e depois outra ao ar. Ambas
bateram no peito, rodando aos ps de lia, que ria.
Ele tambm ria, discpulo dcil, em confisso de inaptido.
E ela de repente o viu desaparecer como um boneco de surpresa.
Adeus!
V
Escapara para ir buscar Petra e a fazer subir pra que tambm viesse ver senhorita
lia, to pequenina, e que sabia fazer tantas coisas e se manter de p sobre cavalo a
galope. Diriam me que os levasse ao circo.
Um rumor de conversa o deteve na sala de visita.
Sua me e irm estavam com amigas que vinham cada vez com mais freqncia,
quase todas as tardes. esquerda, na fresca da porta, viu Petra na sacada, acompanhada
de Aurora Reina, que se lhe tornara antiptica desde um dia em que, como Glria, lhe
chamara maricas e Periquito entre elas, lhe mandando que as deixasse e fosse brincar
com os amigos. Como se ele, que s saa com o cura, pudesse ter amigos ou os
quisesse!
No se atreveu a entrar. Se aproximou na direita at a porta do Balozinho, onde
estava sua me, e reconheceu a voz dona Neves, a me de Aurora. Estava tambm
presente Josefina, aquela senhorita alta e elegante, mais jovem que todas, que o
aborrecia com carcia e beijoca, o pondo no colo constantemente pra o acariciar como a
uma menina de seis anos!
No buraco da fechadura as via, e ouvia o que dona Neves dizia a sua me:
Tens a filha tola por no a deixar se afastar de perto. preciso viver!, querida. Na
aldeia so indispensveis lutos de sete anos, mas no aqui. Te fazes de velha antes de
ser. Quem se isola da sociedade esquecido, e as amizades valem tanto quanto o
dinheiro. Cada coisa em sua idade, amiga Luz! Da mesma forma, esse rapaz que a ronda
o mais distinto da cidade. Uma sorte pra ela se chegasse a se casar. A deixes com
minha Aurora, que o conhece!
Rodrigo compreendeu que se entrasse estorvaria e que tambm dona Neves o
mandaria brincar como das outras vezes. Se afastou buscando a ama Charo, pra se
vestir, levando a sensao de que sobrava em toda parte dentro da sua casa, enquanto
essas pessoas estranhas vinham se apoderar das salas e das sacadas e falar de coisas que
no lhe interessavam e que nem devia escutar. A Josefina e dona Neves, to festejadas
pelos outros, Rodrigo no podia suportar. Se diria que vieram se apoderar de tudo,
mandar nele, em sua casa, em sua irm e em sua me.
A ama o ajudou a se vestir. Chegou senhor cura e passearam essa tarde no forte de
So Joo, colhendo lrio. Antes de dormir, naquela noite, ficou muito tempo pensando
como-diabo podia a titereira jogar com seis laranjas duma vez.
VI
Sentiu a menina no terrao e correu ao tabique.
Boa tarde, lia.
Boa-tarde, Rodrigo.
lia subia, infalivelmente, depois do almoo, pra cuidar dos ces, macacos e duas
araras. Rodrigo a viu fazer a obrigao de gaiola a gaiola, repreendendo Gut, que
trepava nas grades de arame e nada deixava aos outros, acariciando Molk, que rosnava e
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esticava a corrente, movendo a felpuda cauda ao colocar as enormes patas nos ombros
da menina.
Rodrigo no a interrompeu enquanto ela distribua os pedaos de dois pes que trazia
na saia. O palhao a castigaria se no fosse bem-feito. Nas tardes anteriores lia j
contara a seu amiguinho a crueldade com que lhe batiam por qualquer coisa: Quando
nos ensaios sobre seu cavalinho andava mal, chicoteavam indiferentemente o cavalinho
e ela. E ao narrar a pobrezinha chorava, fazendo chorar tambm o menino.
Outra tarde, manifestou temor de no poder dar, na noite, na grande srie de saltos,
um salto mortal de costas que queriam que desse e que ensaiaram pouco. A encheriam
de chibatada, l dentro, como sempre que se portava mal na funo, e por mais que o
diretor a mimasse na pista ao ver que o pblico ria carinhosamente...
Ouas. props Rodrigo, cheio de piedade No viste meu ginsio? aqui e
tem um trampolim de areia. O mau ser que caias, se isso to difcil. Mas se acreditas
que no, venhas. Ensaies em meu ginsio!
O que dificultava era a taipa, porque lia no tinha escada. Contudo, lisonjeada com
o convite, bem depressa a pequena artista achou meio de observar se o ginsio servia.
Uma cadeira rasgada, sobre a qual colocou dois velhos caixotes de querosene, permitiu
fazer uma torre mvel, qual ela trepou em seguida. Magnfico! A famlia de Rodrigo
no se zangaria?
Na hora da sesta, com este sol, ningum vem qui.
Est esplndido!
Num salto, apoiada nas mos, ficou sentada no cavalete, uma perna, depois outra, e
se atirou, gil l de cima, antes de Rodrigo ter tempo de oferecer a escada.
Puxa! Logo se v que s ginasta!
! Vers! Apenas, no poderei fazer algo assim. Esperes. Tens uma corda?
A acharam e com ela prendeu cintura o rodado das saias o cruzando entre as coxas
e o transformando em gracioso calo.
Depois, ensaiou, causando admirao e espanto ao amiguinho com seus sarilhos na
barra, donde se lanava em voltas no ar. Com suas paradas nas argolas, com seus
equilbrios no trapzio, em que, de repente, a um hip! selvagem caa a trs, com todo o
corpo, pra ficar pendurada nos ps, com a formosa cabeleira de ouro varrendo o cho. O
trampolim causou a Rodrigo maior medo ainda, porque no se tratava de simples saltos
mortais, mas sim de se lanar direto no alto e dar a volta como uma varinha flexvel ou
ento cair de cabea e saber se dobrar com vigoroso impulso a 0,5m do solo, de forma a
se pr de p depois de ter rodado sobre a nuca e as costas. O salto de costas,
principalmente, devia ser de imensa dificuldade, porque, conquanto lia se lanasse
bem sobre a perna direita, no podia girar no ar sem perder a lateralidade, o que a
desesperava e a fazia cair de mau jeito algumas vezes.
Mas isso um disparate! Te machucars! Repetia o rapazinho, alarmado e
cheio de pena.
Lacrimejou, uma vez que sua amiguinha foi tropeando at arrastar a cara na areia,
esbarrando nele, que tambm caiu, quando tentara a segurar.
Olhes. No quero ver isso. No quero que o faas. Sabes? E como se plantara
diante do trampolim pra o impedir, ela replicou:
J te dizia que no poderei os fazer na noite. Desorganizarei a srie de salto
porque os que vm atrs tero de parar ou cairo sobre mim. Me batero muito!
S ento o rapaz compreendeu o horror daquela profisso. No bastava que a
delicada boneca de olhos verdes fosse uma artista notvel em muitas coisas: Lhe pediam
sempre mais, que fizesse mais, que fizesse tudo, seno, lhe davam pauladas e chibatadas
como no cavalinho. O corao se lhe confrangia. Enfim, tirou o leno e se ps a chorar
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VII
Desde ento se gostaram como dois irmos e se encontravam todas as tardes no
terrao, saltando a parede.
Assim, quando lia terminava de cuidar dos animais, se aproximava da taipa e
perguntava, sorrindo:
Posso subir?
Sim, subas.
Um instante depois estavam juntos no terrao de Rodrigo. Disse ele numa tarde:
Tenho de dizer uma coisa. que te verei no circo. Minha mam nos levar na
prxima semana, no dia da Virgem, quando tirarmos o luto.
lia se alegrou. Claro! Que tolice nunca ter visto o circo! Devia se ver tudo, e por
isso ela gostava de viajar. J tinha visto muitos circos, muitos teatros. Estivera em
Londres, em Berlim, em Barcelona, em Madri e, em pequena, embarcara tambm pra ir
a Estados-Unidos. O que mais a satisfez foi Saragoa, porque teve amiguinhas no hotel
e a cidade tambm no a desagradava, conquanto fosse pequena.
Ele a ouvia, assombrado com o ar cosmopolita de seu falar, a olhando, exttico e
perdido em mistrio de lonjura, como o das bonecas finas trazidas de Paris. Sentado
num dos sofs de tijolo, enquanto a mocinha falava passeando, sem parar e brincando
com suas fitas ou olhando os ps, lhe perguntava coisas de suas viagens, das grandes
cidades, cujos nomes recordava, da geografia, como uma relao de coisas inexistentes.
Mas o certo que senhorita lia no sabia dar conta das cidades visitadas, a no ser das
hospedarias ou dos circos, e confundia Berlim, por exemplo, com Lisboa, sem estar
certa se uma ou outra era a capital da Prssia, coisas que faziam Rodrigo sorrir.
Tomes.
Deu um punhado de caramelo.
Obrigada. Replicou a menina, galantemente.
Por felicidade, no tiveram necessidade de lhe bater nas noites passadas, ao repetir a
grande srie de salto com seu salto lateral.
Tocars msica nesta noite? Tens duas coisas. Olhes o programa.
Sim, dois nmeros: Um de msica.
E o outro?
O volteio em Kaiser, pra encerrar a funo.
! O que preciso que o faas quando eu for! Tenho desejo de te ver no cavalo.
De repente, props menina apanhar ninho dos telhados da igreja, como duas tardes
antes, numa excurso corajosamente realizada por ambos.
Escalaram a taipa.
Ao chegarem no terrao da parquia, sorriram, se guiando um ao outro pela mo,
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sem se atrever a falar at se distanciarem duma clarabia que Rodrigo j dissera que
dava aos aposentos do cura. Em pouco, se perderam no lado oposto das cpulas,
seguindo a tortuosa senda traada na rampa dum cruzeiro. Ali no corriam perigo de ser
descobertos, porque aquela parte dava a outra rua e o edifcio da frente era um convento
arruinado.
O zimbrio os protegia com sua sombra colossal e o pavimento estava escorregadio e
mido. Revistavam os buracos nas paredes, nas cornijas, nos telhadinhos, donde
espantavam os pardais. Indistintamente, se levantavam, um ao outro, nos braos, pra
mirar as gretas. De quando em quando um francelho ou um gavio cruzava, fugitivo,
traando rpidos zigue-zagues no ar. As salamandras trepavam nos muros com seus
corpos gelatinosos, da mesma cor do cimento.
Mas o perigo que surgiu inopinadamente, bloqueando Rodrigo no ngulo inclinado
da esquina, onde o parapeito desaparecia pra fundir a cornija nos adornos duma voluta
sobre a rua, foi um vespeiro que com um fuste acabava de levantar, revistando as telhas.
Centenas de vespas volteavam, irritadas, e o rapaz, antes que o atacassem, atravessou
entre elas, se defendendo, a palmadas, das mais baixas, pra se juntar a lia e correrem,
porque o enxame os perseguiu bom pedao.
Se refugiaram no campanrio, sem parar de correr e sufocando as gargalhadas.
Bastante tempo estavam fora de casa, s logrando achar ninho seco. Se sentaram sob o
sino grande.
lia e Rodrigo estavam ali vontade, cada um dum lado da janela, recebendo o ar
fresco do alto e olhando a enorme profundidade da grande muralha. Dominavam a
cidade e os campos e lhes arrancava grito de alegria o espetculo das coisas
apequenadas.
, olha, olha ali, na praa! Que pequeninas as rvores e os homens baixinhos
como formigas!
, prestes ateno! O trem parece de brinquedo. No verdade?
Se viam os ptios e os terraos cheios de vaso de flor, no monto interminvel de
casas brancas e azuis, entre as quais apareciam algumas ruas estreitssimas e tortuosas.
Rodrigo indicava os lugares e os edifcios mais altos. Um grande passeio na
extremidade do povoado eram os jardins do parque, onde havia tanques com peixes
vermelhos e muitas rosas. Um edifcio alto e velho, a universidade. E o instituto, outro
casaro, diante da fbrica de gelo. Noutro lado, num lugar pitoresco e se destacando
soberbamente, se divisava o grande colgio de irms, e alm a praa de Touros. Depois,
estenderam a vista nas plancies interminveis da campina, onde o Guadalvira, aps
rodear a cidade com um trao em S, se escondia entre hortas, tornando a aparecer cada
vez mais perdido na distncia.
Vs o rio? Aquela ilha de salgueiro? Pois ali est nosso cercado El Galapar, onde
passei muito tempo.
Contava suas correrias ali, trepando nos carvalhos com sua irm Petra, como agora
com lia, nos telhados. Tinham um barco e uma rede, e passavam as horas de calor sob
os salgueiros da ilha, se balanando e matando mosquito.
No parece, vista daqui, uma manchinha verde? Pois grande e os salgueiros,
quando se est debaixo deles, parecem mais altos que daqui de cima, deste campanrio.
Ao olhar a cima, seguindo a indicao, lia pensou que o cu desabava. Um estrondo
estalara diante dela, povoando o ar de tremor metlico. Se abaixara, com terror, no
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tabuleiro do ajimez,23 apertando seus ombros contra o peito do rapaz, que sorria.
Era o sino grande, tocando as vsperas e, como ela compreendera logo, ria tambm,
de sorte que a segunda badalada apenas a assustou. Sem tempo de se separar de seu
amigo, olhava o sino e continuava sorrindo.
Escutes. Faas assim.
Enquanto o sino continuava tocando, colocava e retirava, alternadamente, as mos
aos ouvidos de lia, pra suavizar em ritmo entrecortado o zumbido formidvel. Quando
ela se levantou teve de desprender um anel de seu cabelo, preso num boto da blusa de
Rodrigo.
Ouas. s to valente quanto minha irm. Disse ele. lia sorriu.
Madame Andra disse que sou como minha me.
Estavas presente quando o cavalo matou tua me?
Sim, estava. Me recordo. Foi Kinder, um potro negro que ainda temos, cuma
estrela na cabea. Minha me montava alta escola, com traje de amazona, tambm
preto. Fazia saudao ao terminar um exerccio, porm, se sabe que o diretor,
distraidamente, fez sinal orquestra e, assim que Kinder ouviu o galope, partiu num
salto, atirando minha me contra uma coluna.
O que fizeste?
Eu? Como sabes, era muito pequena. Corri, gritando, e vi que no perdia sangue
quando a levavam. Uns cavalheiros do pblico me tomaram nos braos, me afirmando
que ela desmaiara, apenas.
A menina inclinava a cabea, recordando, e Rodrigo no insistiu, mostrando com o
silncio o respeito a seu sofrimento. Quis, porm, os interromper e lhe rogou que
explicasse alguns nmeros da funo daquela noite, cujo programa tornou a tirar do
bolso.
lia, com a habitual humildade galante, comeou:
Olhes: A Filha do Ar so vos em dois trapzios, colocados sobre uma rede.
Sobem os Leotardo, dois irmos, e depois ela...
VIII
Os surpreendeu a voz de Glria, chamando no terrao:
Rodrigo! Rodrigo!
Glria estranhou no o ver. Porm, guiada pelo rumor da conversa prxima, no
tardou em os descobrir na torre. Quem acompanhava Rodrigo?
Se esconderam.
Maliciosa, Glria insistiu em o chamar, advertindo que o vira.
Rodrigo, ento, tranqilizou sua amiguinha, comeando a descer com ela.
Apareceu primeiro ele por cima da cerca. Atrs, lia, que no ousava descer antes
que o rapaz o fizesse, e olhava Glria sorrindo:
Bem. O que ? O que queres? Esta uma menina que mora na hospedaria.
explicou Rodrigo, a cavalo na parede Para qu me chamam?
Apesar de tudo, se sentia ruborizado por ter sido descoberto. Ele que, sem saber por
que, ocultara a sua me e a Petra as entrevistas do terrao. Ele, que a ningum no mundo
dissera que durante as noites sonhava com sua linda amiguinha!
O alfaiate est a e te provaro um terno. Respondeu Glria. E acrescentou,
com escrnio:
23
Janela arqueada superiormente, bipartida por um colunelo central e vertical. Nota do digitalizador.
http://www.dicio.com.br/ajimez/
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Podes apresentar esta menina a tua me, que te admirar vendo como caas as
amigas nos telhados.
Queres? Perguntou Rodrigo a lia, ingenuamente, sem notar que a criada
gracejava.
! No! J era tarde. lia teria de ir ao circo, pro ensaio. Brigariam logo com ela, ao
saberem que, sem permisso, estivera em casa estranha.
Glria se torcia de rir, sem deixar de observar a gentileza com que o rapaz levou a
moa loura, dum lado a outro, escada ao ombro, pr ajudar a saltar a cerca.
Depois descia zombando cruelmente de Rodrigo, o pondo de mau-humor ao felicitar
pela namorada que achara maneira dos gatos, to linda e que, de certo modo,
compreendia a convenincia da permisso, segundo se devia visitar por dentro ou nos
terraos as casas da vizinhana.
Bem, homem. Se houver cria me oferecerei como padrinho a Barbastristes:
Cantars o Miarramamiau.24
IX
Enfim chegou a vspera da Virgem, to ansiada por Rodrigo.
Dona Luz resolvera ir ao circo naquela noite, pra no fazer Petra perder o passeio em
festa na noite seguinte.
s 9h a carruagem de Josefina parou porta. Vinha s.
Subiu e foi levada a um gabinete por Vicenta, a outra criada casa.
As patroas esto acabando de se arrumar.
A arrogante mulher do deputado vestia um traje princesa de seda cqui, bordado de
escura passamanaria. Soltou a leve estola de gaza, que trazia no brao, e se sentou no
sof, diante do faceiro espelho ornado.
Sorriu sua imagem elegantssima. Dois grandes brilhantes faiscavam no rseo lbulo
das orelhas, cobertas de cabelo escuro e spero.
Mas sorriu, com amargura infinita de vida e juventude perdidas: O marido passava
meses em Madri, a pretexto das Cortes, a pretexto dos perptuos assuntos do distrito. Se
casara pr abandonar to cruelmente, porque os eleitores necessitavam dum agente de
negcio?
Se sentia nervosa, passava agora cinqenta dias em solido desesperada de amor,
com aquela sogra fiscal e com aquele sacristanesco secretrio velho em casa, nesse
maldito povoado casca-de-noz, onde tudo se sabia e onde a mulher do deputado
infundia venerao de santa consagrada num altar, numa redoma de vidro.
E a santa se deitava, no dormia, se atormentando no martrio de seu temperamento
de brasa, naquele leito imenso e solitrio. Isso ela no perdoaria ao marido, tanto menos
quanto, ainda em suas raras temporadas de descanso campestre de homem pblico (o
que no faria ele em Madri), se convertia o deputado em enamorado ardentssimo, que a
fatigava, que a esgotava. Exatamente como no princpio do casamento, quando, a fora
de loucuras sem nome, despertou nela o hbito dessa nsia infinita.
Chegava algum.
Rodrigo, que se ps a sua frente, lhe estendendo a mo:
Boa-noite. tarde. No? Pois mame e Petra ainda no terminaram de se vestir.
Ol!, Rodrigo. Tens pressa. No? No te preocupes, pois a carruagem est ali
embaixo. Mas, como ests crescido!, demnio. Te sentes, ds um beijo.
O puxou na mo e deixou cair sentado no colo, o cobrindo com verdadeira chuva de
beijo.
24
Da obra Canuto Esprrago, de Antonio Ledesma Hernndez. Miarramamiau uma expresso de miado de gato em cantiga
infantil. Nota do digitalizador
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X
Alcanou a todos na escada.
Na carruagem, aberta, porque estava linda a noite, se sentou perto de sua irm e
diante de sua me. Estava ao lado de Josefina, que lhe contava que despedira a
cozinheira por causa de sua teimosia em pr alho na sopa. To teimosa, que os
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XI
Em troca, a curiosidade de muitos espectadores dos camarotes e das cadeiras parecia
ter por objetivo o de Rodrigo. Os binculos procuravam Petrita, divina com o cabelo
escuro partido em bandas e seu vestido claro que aprisionava o talhe, tendo apoiado,
graciosamente, na almofadinha escarlate da varanda o antebrao, coberto pelas uvas, e
em cujos dedos brancos brilhava o ncar dos binculos. Tambm procuravam Josefina,
com sua arrogncia de mulher formosa e sua distinta altivez de dama virtuosa, sentada
25
Sanefa: sf Tira larga de tecido que se estende sobre a parte superior duma cortina. Nota do digitalizador.
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26
Celagem: A cor do cu na alvorada e no crepsculo. Nota do digitalizador. http://www.kinghost.com.br/
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XII
Soou a msica. A formatura de fraque de baeta azul deu passagem a dois novos
artistas. Rodrigo, sentado entre Petra e Josefina, olhou o programa: Irmos Leotardo, os
filhos do ar. Se vestiam igualmente de cetim celeste, semeado de lantejoula de ao. O
sexo era distinguido apenas pela cabeleira, mais loura e mais comprida, e as pernas
menos musculosas da moa. Da mesma estatura e quase da mesma idade, era
igualmente rosado o rosto de ambos os jovens, que foram acolhidos por demorado
aplauso, que durava ainda quando, da rede, treparam aos trapzios, corda acima, a 15m
do solo.
O resplendor dos globos os feria de perto como espelhos e quando, pouco depois, se
balanavam entre as baterias eltricas, seus corpos resplandeciam de reflexo como
peixes do ar cobertos de luz.
Rodrigo, com ambos os cotovelos na varandinha e o rosto nas mos, estava absorto
pelo arriscadssimo exerccio. A orquestra silenciara e senhorita Leotardo se atirou ao
trapzio oscilante do irmo, onde a esperava pendurado pelas curvas das pernas, a
segurando nos pulsos. Imediatamente tornou a se desprender a seu trapzio, seguro em
vo de admirvel preciso. Ao saltar dum a outro, lanava pequenos gritos, ressoantes
sobre o silncio do circo como os gritos da coruja nos templos na meia-noite.
Tambm Petra parecia maravilhada com o espetculo, que a fez se esquecer do noivo
e da dignidade, um pouco violenta, que quis antes adotar ao se ver adulada pela
admirao estranha. Isso, sem dvida, contrariava Romo, que estava de olhos fixos
nela. Mas Petra aparecia aqui, criana como era, com toda a candura de sua alma
excitada na piedade dum perigo, no meio das nsias egostas que sua beleza despertava
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nos homens e totalmente alheia, agora, a tais artificiosos namoros e a tais preitos. Os
gritos continuavam caindo da altura, secos, imperativos, solenes, quais avisos de alerta
ante a morte e o corpo gil da artista cruzava o espao, enquanto algumas senhoras
bocejavam na platia e alguns cavalheiros se aborreciam com elegncia, lendo jornal.
Continuava calado o grande pblico, surpreendido em mudo entusiasmo de terror, e
Petra e Rodrigo tornaram, um instante, a se sentir unidos por sua antiga infantil ateno
de carinho.
, se cai! Exclamaram, uma vez que a Leotardo se lanava, girando, aos
braos do irmo e, irmos eles tambm, se estreitaram instintivamente a mo sobre a
saia de Petra, permanecendo assim em aliana de amor e mostrando sempre, a olhar a
cima, a pureza de anjos no branco azulado dos olhos. Viram, enfim, os voadores
suspensos um no outro, imveis, pra lanar outro grito sinistro e se precipitarem, em
vigorosa contrao, cada qual num lado, no vcuo, cabea a baixo, dando cambalhotas
na queda at a rede, que afundou os recebendo, os repelindo e fazendo rodar como
pobres passarinhos enredados na malha. A ovao foi delirante. Os fizeram voltar
pista muitas vezes.
Vs?, mame. Disse, compassivamente, Rodrigo Os faro comear de novo
e podem morrer!
Dona Luz acompanhara o trabalho com lgrima nos olhos, pensando que talvez a
me das pobres criaturas estivesse assistindo, sufocada de dor.
Contudo, os aplausos significavam, apenas, a ternura do pblico, e os Leotardo
desapareceram.
Se seguia o intervalo. Um criado o anunciou, apresentando a tabuleta na pista.
XIII
Todo o circo se movimentava. As passagens se enchiam de gente. Petra voltava a
olhar em torno do noivo, que parecia a argir de longe pelo esquecimento de dez
minutos. Suas amigas, que riam e conversavam nos camarotes, aos rapazes que a
contemplavam. Ao lado da pista descobriu o ajudante do general com outros senhores.
Um cavalheiro velho e de face cor de pimenta, entre as mechas de cabelo branco, a
queria comer com os olhos. Tudo isso a obrigou a entrar de novo na realidade. Adotou
seu ar indiferente e grave. No, as moas bonitas no iam li ver nem admirar algo,
conforme acabava de lhe repetir Josefina. Iam apenas se convencer de que eram lindas e
o demonstrar, se preocupando com os outros, estudando o modo de conseguir mais
admiradores pra fingir os desdenhar. A magia que produzem sempre os espetculos em
que o jogo da arte se junta ao jogo solene da vida a abandonou bem depressa, como se
lhe apagava o misticismo das oraes quando ia igreja com Aurora, que a distraa.
Rodrigo tornava a olhar a deusa nua do cenrio, os dourados, as luzes, os lbios de
Josefina. A deusa outra vez, os sorrisos de sua irm dirigidos no sabia a quem, e
enquanto isso a me os observava, ou melhor, repousava neles seus olhos de carcia,
contente porque se lhe afigurava estar mais com os dois quando estava ausente e
espalhafatosa e absorvente Aurora, til, apesar de tudo, segundo diziam, pra ir
habituando Petra sociedade.
No camarote entraram o coronel e sua filha. Visita de entreato. No lado das cadeiras
Pedro Lujn se aproximou pra cumprimentar. As conversaes se travaram
imediatamente: De cochichos entre Petra e sua amiga e entre o general e os demais. Mas
a mulher do deputado estava triste, mais nervosa, se irritando ao ver de p o notrio, a
focalizando com seu monstruoso binculo. Num momento em que dona ngela
dialogava com o artilheiro ela se aproximou de Rodrigo e lhe perguntou se estava
gostando do circo.
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XIV
Chegava o momento de grande expectativa pra Rodrigo. As campainhas anunciavam
o incio da segunda parte, cujo primeiro nmero pertencia a lia. Firmando bem os
olhos, pde ver sua cabeleira loura entre o tropel de criados e artistas porta da quadra,
onde um grande cavalo branco em panneau assomava a cabea.
A msica principiou a tocar um galope, se formaram as filas de serventes e correndo,
inesperadamente, apareceram na pista um palhao gigantesco e outro minsculo, de
fraque gren e calo frouxo de seda, tocando violino, indo o giganto perseguir a
menina. O pblico prorrompeu num aplauso a lia, e Rodrigo achava muito graciosa
com movimento contnuo de eletrizada e sorriso na mancha vermelha dos lbios. Ele
tambm a aplaudia. Mas a pequena artista, que no parava um segundo, rodando ou
correndo sem cessar com Grosai, enquanto os violinos acompanhavam a orquestra num
ritmo desenfreado, no o podia ver. Era uma vertigem, um agitar diablico de
remoinhos em passos de baile ingls, com sapateados sobre o tablado, em salto e
contoro, em encontros, em cujos tropees se empurravam rodando, pra se erguer e
correr outra vez, sem cessar a msica, cada vez mais viva, mais apressada. E, tocando
sempre, de repente se via senhorita lia em marcha triunfal nas pernas e no peito do
palhao, estendido como Gliver dormindo. Ora ele de p, esperando que ela subisse
nas coxas pr lanar dos ombros em salto mortal, ou a perseguindo e fugindo a palhaa
por cima da barreira, se atirando mutuamente os violinos, que caam em vo, cravados
sob o queixo, a agarrando e a pendurando no brao, pra que tocasse de cabea a baixo, a
soltando e a fazendo cair de p como os gatos, at que, enfim, a apanhou na cabea, nas
costas acima, e msica, e galope, e Grossi e senhorita lia desapareceram, como
entraram, num torvelinho de surpresa, que to somente deu tempo ao pblico pra
aplaudir e rir loucamente.
Rodrigo batia palma, juntando seu gozo aclamao geral; Grossi e lia voltavam,
agradeciam, j tranqilos, sem violino. E uma, duas, trs vezes, foi Rodrigo, o menino,
(bem o percebera Josefina!), quem recebeu os beijos cheios de graa da pequenina
artista, entusiasmada com o triunfo.
Arre! est claro que podia saltar parede sem escada!
Visto Petra e Josefina parecerem o interrogar por causa daquelas preferncias, que
fizeram voltar a cabea alguns espectadores, ele teve de explicar:
Sim, somos amigos. Mora no hotel e nos vimos no terrao. A pobrezinha no tem
me!
! Bem, bem!, menino. Prorrompeu a mulher do deputado longamente,
ficando pensativa.
Comeava outro nmero.
XV
O cavalo branco saiu pista e, enquanto um servente passeava a cavalo, um palhao
fazia pirueta, em seguida se pondo a namorar a bailarina que devia o montar. Exceto o
fato de que a artista, loura tambm, era uma graciosa alem, que agradava aos rapazes
das cadeiras, esse nmero se tornou aborrecido, evidentemente, com seus saltos e seus
aros de papel que a bela amazona ia rompendo.
Mas de repente o circo ficou no escuro, porque no palco onde o pano de boca se
levantara, devia bailar serpentina a formosa Armida Barton, uma das principais atraes
da festa. Soou a orquestra na treva, se viram na cena relmpagos de luz drumont27 e nos
27
Luminria Drummond (lmpada drummond ou tambm holofote drummond) foi um tipo de iluminao, inventado pelo
engenheiro escocs Thomas Drummond, destinada iluminao de palcos em teatro e sala musical. Nota do digitalizador.
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dois feixes de claridade, focada desde o bastidor, apareceu, como incendiada de fogos
metlicos, uma espcie de mariposa. O pblico rompeu em demorado aplauso frentico
e depois se fez de novo silncio, onde brotava, como um conjuro, o fio daquela msica
distante.
Rodrigo achava fantstico o quadro. No se movia. O reflexo dos feixes luminosos,
as mudanas cromticas, os torvelinhos de ondas vermelhas, azuis, verdes, amarelas,
que envolviam aquele corpo esplendente de fada, apenas entrevisto nos giros do manto
flgido e esvoaante, lhe deram a impresso dum sonho formoso, de fogos-ftuos numa
noite infinita e negra. No melhor momento a artista desaparecia numa faixa de
resplendor escarlates, num claro que se extinguia e logo tornava a reaparecer noutro
ngulo do palco com os fulgores tenussimos, fosforescentes, como a esteira dum astro,
crescendo em rajadas de luz cambiante pra se abrir de novo no seio de incendiado e
furioso mar, cuja marulhada a arrebatava e submergia. E assim, durante longo tempo, o
arrebatou de encanto.
Quando ela desapareceu definitivamente, a orquestra calou e a luz branca do circo
inundou os espectadores, provocando uma loucura desesperada de aplauso, Rodrigo se
alegrou porque achara aquilo extraordinariamente belo e gostaria que o repetissem toda
a noite, embora fosse... Mas sua ansiedade o enganava: O pblico s queria ver o corpo
da bailarina, no em vo anunciada e clebre como formosa. Voltou a obscuridade e a
artista retornou ao palco, envolta em seu manto cintilante de glria sob o jorro de luz
prateada. Sorriu, abriu o manto e mostrou seu corpo nu, dum rosa transparente e suave,
na gruta que lhe formavam as sedas plidas onde se recolhia a claridade nacarina de
colossal madreprola.
E permanecia assim, imvel, se mostrando, com seu floro de pedraria no diadema
da fronte. Nu, completamente nu, o corpo incomparvel.
Quer dizer, completamente nu pra Rodrigo e Petra, que no conheciam a malha de
matiz de carne com que Armida cobria as suas. Pra Rodrigo, sobretudo, que ento,
perturbado e envergonhado, no tornou a bater palma quando, ao se cobrir a mulher,
renasceu o escndalo que exigia a ver novamente. Havia de condescender. Era a
condio do xito. E outra vez, depois outra, e outra, e ressoavam beijos e aquilo no
tinha fim. E at o sorriso e os braos se lhe cansavam de estender o manto, numa fadiga
humilde pra satisfazer a ira sensual de tantos olhos.
Mas estava se recordando da noiva nua que, segundo Glria contara, se mostrava ao
noivo e a seus amigos. Aquilo j no lhe parecia to inverossmil, visto que essa mulher
se mostrava aqui, diante do povo. Rodrigo, de sua parte, se lembrando dos seios de
Glria e dos lbios de Josefina, cujo hlito na obscuridade estava sentindo, se
perguntava por que acontecia aquilo, por que razo queriam ver o corpo duma mulher. E
a resposta bulia em seu sangue, em seu corao, em sua cabea ardente, como o
princpio, ainda vago e indeterminado, dum contgio da sensualidade feroz que naquele
momento fazia respirar com violncia tantos homens. , por que, por que o beijara
Josefina e por que, a contragosto, tambm ele olhava o corpo de Armida
Barton!
A brotar terminantemente ia a resposta, precisa, levantada em clara idia pelos
instintos que de seu ser inteiro lhe subiam ao crebro, despertados pela nudez feminina.
Brotaria, saltaria a idia triunfante de mais um grande mistrio da vida. Mas caiu o
pano, pra no se elevar, e o mistrio ficou partido no corao do menino.
A luz branca do circo o fez apoiar a fronte sobre a mo pra descansar.
XVI
Achou desprovido de interesse, tanto quanto o pblico, extenuado sob a passada
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XVII
J campeava nela o cavalinho negro cheio de guizo e arreado de correame branco.
lia apareceu de jquei, como um rapaz, com a larga blusa e o gorro de cetim verde,
com cabelo encaracolado em trana. Jogava beijo, cumprimentava Rodrigo.
Imediatamente, sem parar de fazer pirueta e reverncia, se aproximou de Kaiser,
montou e, ao som da msica, empreendeu um galope. Saudava o pblico, a Rodrigo
tambm, ao passar com o gorro na mo, to linda, to graciosa, que cativava todo
mundo com doce sorriso. No meio do circo estalava o longo chicote do diretor.
Contudo, Rodrigo no demorou a observar que o cavalo parava depois de cada
trabalho, ou galopava mais depressa ou mais devagar, obedecendo antes orquestra que
ao ltego. Repentinamente, viu lia de joelho sobre o amplo lombo de Kaiser, na
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carreira, enquanto se agarrava com as mos nas correias com argolas que lhe serviam
pra mudar de posio. Menos mal. Assim era difcil uma queda, contanto que se
segurasse bem. Mas como de repente viu que num dos vaivns do corpo de lia, que
acompanhava os violentos impulsos do cavalo, ela se lanava at tocar o cho com a
ponta dos ps, voltando a cima e repetindo isso em duas voltas na pista, comeou a
julgar menos simples o exerccio. Parado Kaiser, lia se voltava sempre pra
cumprimentar Rodrigo, at arrancar a novo ritmo da msica. Rodrigo se lembrou do
potro negro que matou a me de sua amiguinha em Lisboa.
Faltava percorrer a escala inteira da admirao. Por alguma razo se fazia reclamo de
lia, como assombrosa artista em letras to grandes quanto as de Barton. Aquela
menina de onze anos executava tudo o que nessa classe de trabalho fizeram at ento
jqueis de vinte anos. Por isso, prescindindo de nimiedade, a viram de p sobre o
cavalinho, o estimulando com hips! hips! de fingido espanto, enquanto sustentava a
brida e parecia, encurvada, vacilar acompanhando os impulsos do galope. A viram se
erguer, os braos a cima, triunfante e flamejando o gorro ao receber os aplausos.
Depois, se dedicou a uma tarefa incompreensvel pra Rodrigo: Se agachava,
desamarrava uma correia e a atirava a trs, na carreira: Se inclinava e tornava a tirar
outro jaez. Enfim, abraada ao largo pescoo do cavalo, cujos olhos chamejavam, se
despojou dos guizos e da brida, o deixando em plo, pra continuar em cima num p,
como amazona area, enquanto Kaiser, alongando a cabea, corria, veloz, com as ventas
abertas e a crina estendida, como um selvagem fugitivo do pampa. Um salto mortal,
outro. E o pblico batia palma e enrouquecia de vivas, at que no terceiro salto lia
pulou do cavalo ao centro da pista, graciosa, sorridente.
A ovao era enorme. Rodrigo sufocava, olhando, quase com ira de dor, lia, que lhe
sorria. Sua alma protestava contra esses exerccios vertiginosamente brbaros, que
pareciam reservados exclusivamente pra ela.
Ainda no terminara? A que nova e maior atrocidade a obrigariam, visto aquilo ter
seguido uma gradao at o horrvel?
Se tratava dum salto que da arena ela faria pra ir ficar de p sobre o cavalo correndo.
Sendo a artista to pequena, era necessrio que Kaiser corresse o mais que podia, a fim
de que, ao se estender e se inclinar no crculo da pista, se tornasse mais acessvel. J o ar
louco da orquestra e as chibatadas do diretor o lanaram, velocssimo, como uma
centelha, na chuva de terra que despediam seus cascos. lia, que, sem dvida,
compreendeu a aflio de seu amigo, procurou o tranqilizar com o mais doce sorriso,
bria e segura de si, com a lisonja incessante do aplauso. Se perfilou com Kaiser, correu
e se lanou sobre ele, dando penetrante grito.
E o grito encontrou imediatamente um eco formidvel e espantoso no circo inteiro,
que se levantou de horror: Se vira lia resvalar sobre o cavalo, entre suas patas depois,
ali sacudida, pisoteada e lanada ao centro da pista, exnime.
Foi um segundo. Kaiser parou, dando pinote, e o diretor e alguns artistas se
precipitaram menina.
Rodrigo chorava e batia o p, desesperado, no tumulto do pblico. Muita gente
chorava. Choravam as senhoras nos camarotes. Atravs das lgrimas, quando, iniciada
pela compaixo, uma disperso geral, Petra, dona Luz e Josefina saam, Rodrigo ainda
viu o grete verde da menina num lado, enquanto ela era transportada por um grupo de
pessoas, entre cujos corpos se descobria, pendendo, cheia de sangue, a loura cabecinha.
Como sua me! Pensou Rodrigo, esfregando os olhos com o leno, depois que
o grupo desapareceu l dentro. Se sentia covarde pra fugir e ir a ver, pra beijar sua pobre
amiguinha.
Como sua me!
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Uma notcia chegou at a porta. Uma notcia que aumentou sua aflio e que o fez
chorar mais com medo de que morresse:
Senhorita lia vivia!
XVIII
Calada, sorridente, perversa a curiosidade em sua cara, Glria abriu a porta e entrou
na alcova. Rodrigo voltou a cabea no travesseiro.
O qu?! A gua!, homem.
Bem. E minha ama Charo?
Est dormindo. Que tal o circo? Queres que as velhas estejam despertas nesta
hora?
Colocou sobre a mesinha de cabeceira o copo e a garrafa. Glria no se ia, sorrindo,
enquanto dirigia o olhar ao cho e a algum que estivesse fora da porta.
Quem ? Perguntou Rodrigo, receoso.
Vicenta, a outra criada, entrou nas pontas dos ps com a mesma expresso maligna
no largo rosto de pessoa rude, picado de varola.
As duas se perguntavam, se convidando mutuamente a perguntar algo, e um acesso
de riso contido as dobrava at os joelhos.
Enfim Glria o encarou, numa seriedade cmica de mestra que repreende:
Muito bem!, garoto. No te basta andar caando nos telhados, como os gatos com
dor de dente, tambm te escondes com as senhoras elegantes que visitam a mame. Se
pode saber o que fazeis no gabinete?
Conquanto tivesse entrevisto, noutros dias, as intenes de Glria, sem de todo as
compreender, Rodrigo compreendeu a pergunta. E se via nos olhos de Glria uma
deciso velhaca to intensa que o alucinava.
Enrubesceu em ondas de vergonha que lhe cobriram dum fogo doce as faces e as
tmporas. Despertava seu assombro na mar da vida. O surpreendia o fato de se
ruborizar ao ver Glria surpresa e escandalizada com os beijos de Josefina. Com os
olhos fixos em Glria continuava, hipnotizado com o pressentimento daquele grande
mistrio fugitivo na nudez mgica de Barton. Tal mistrio se lhe apresentava outra vez
na atitude burlesca dessas duas mulheres, que chegavam caladas no silncio da noite.
como se as oraes de antes de dormir lhe houvessem conjurado essa noite em redor da
cama branca dois diabos ao invs de dois arcanjos.
O que te fazia dona Josefina? Vicenta tambm perguntou, com igual pudiccia
cnica.
Foi o sinal pra que Glria desatasse em horror, em voz baixa, pra no despertar a
ama Charo na alcova contgua:
Dona Josefina! Ou ele a ela. Eis um santinho-de-pau-oco. Vejas que no partiu
ornato! claro! Lhe muito melhor ser tomado como menino, com treze anos no rabo:
Assim, bancando o bobo, se deixa beijar e tentar pelas senhoras, e lhes salta no colo que
uma bno divina. E no lhe pago a vantagem do tolo com as cadelas que o mimam e
o beijoqueiam, acreditando que no sabe o que pesca, quando no melhor ele desce dos
telhados, aprendendo, com titereiras, a encomendar crianas em Paris. Se te trouxerem
um, iremos ao batizado. Sabes? Noutra vez digas a dona Josefina que feche por dentro,
pra no envergonhar a gente. Ao mesmo tempo eu e esta avisamos que desde hoje nos
fechamos por dentro, pra no despertarmos, quando menos esperarmos, contigo entre as
pernas.
Ua!... Porcas! Gritou o menino no cmulo da ira, se sentando na cama,
disposto a gritar Suas porcas!
Enquanto procurava, com os olhos, algo pra lhes atirar em cima, j as duas saram
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num furaco de saia, num rudo apressado de riso e pisada, que se perdeu ao longo do
corredor.
Rodrigo permaneceu sentado, com as mos a trs, apoiadas sobre o travesseiro, na
mesma posio irada na qual o deixaram.
Uma expresso de dor, um ricto, contraa a fronte e distendia os lbios, com os
dentes apertados, com os olhos fixos na contemplao spera e brusca dum quadro
desagradvel. A revelao estava feita por essas reveladoras. A revelao do grande
mistrio que algumas vezes fervera no sangue do menino. Mas fora feita com um golpe
violento. De modo brutal, forado. Nem com a violncia passional que horas antes
poderia ter surgido doutras reveladoras, nos beijos colhidos entre os lbios duma mulher
formosa, nem ainda com a violncia dum corpo nu, visto repentinamente entre disfarces
de msicas e cores. Fora feita com violncia repugnantssima, canalha e grosseira, das
palavras saltando em deboche, em escrnio. Por isso o menino se sentia triste, sem
compreender, porm, que lhe arrebataram da vida um gozo supremo e infinito de
virgindade, a que o levavam por gradaes poticas e insensveis, mais tarde, os olhos
verdes doutra menina: A Natureza!
XIX
Eram demasiadas as emoes e muito contraditrias.
Amanheceu com febre. O mdico disse:
Febre cerebral, que o prendeu ao leito duas semanas.
Delirava, e no delrios sua pobre irm no podia estar perto do leito porque o
enfermo dizia coisas incoerentes, com bastante coerncia no assombro de Petra, beijos,
bocas de mulher, de Glria que lhe dava o peito... Uma menina que se matava num
cavalo...
Petra chorava, repreendendo Glria na porta da alcova muitas vezes:
Tu, sim, lhe disseste tudo isso! Tu, como disseste a mim!
A moa se desculpou, enraivecida, contando como a surpreendeu, numa noite,
beijando como louca, ardendo, a muito, dona Josefina. E como Petra via Josefina entrar
e se sentar pra velar o enfermo durante longo tempo. Ia a seu quarto e chorava, chorava,
por no sabia que inocncias perdidas por ela e seu irmo, perdidas a sempre.
Quando Rodrigo se levantou, soube que a companhia do circo partira, estando lia
passando bem de todos os ferimentos da fronte. Josefina lhe dizia isso sorrindo e ele...
Agora sim!, olhava Josefina de modo sinistro e singular, lhe prometendo, obediente, que
almoaria na casa dela.
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Afinal, numa manh se levantou e subiu ao terrao dois dias depois, percorrendo a
igreja, exttico, horas inteiras na torre, com a contemplao dos horizontes longnquos
onde lia desaparecera.
Numa tarde encontrou seu nome, Rodrigo, gravado sobre o tijolo do cavalete no
tabique que dava ao hotel. lia o escrevera cuma pedra e um prego.
Sua despedida.
Algo assim como o epitfio duma inocncia, traado pela menina loura que em breve
tambm a perderia, entre palhaos e cavalos.
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O flagrante delito
Ren Maizeroy
Sganarello, o criado que adora contestar o patro, personagem principal de A escola dos maridos, foi criado por Molire em 1660
e faz parte da obra O cornudo imaginrio. Nota do digitalizador. Ler mais em http://www.webartigos.com/articles/26633/1/ASARCASTICA-ESCOLA-DE-MOLIERE/pagina1.html#ixzz1Xx9Cdf6y
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Bola-de-sebo
Guy De Maupassant
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O savate ou boxe francs um desporto de combate, desenvolvido na Frana na qual os ps e as mos so utilizados pra percutir
os adversrios e combina elementos de boxe com tcnicas de pontap. Nota do digitalizador. http://pt.wikipedia.org/wiki/Savate
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A mulher, uma dessas chamadas loureiras,33 era clebre por sua gordura precoce, que
lhe valera o apelido de Bola-de-Sebo. Pequena, toda rolia, to gorda que tinha
toucinho, com dedos intumescidos, estrangulados nas falanges, iguais a rosrios de
pequenas salsichas, com pele reluzente e esticada, um busto enorme que estufava o
vestido, continuava, apesar disso, apetecvel e desejada, to agradvel de ver era sua
louania. Seu rosto era uma ma vermelha, um boto de penia preste a desabrochar, e
nele se abriam, no alto, dois magnficos olhos negros sombreados por grandes clios
espessos que punham uma sombra dentro deles. Embaixo uma encantadora boca,
estreita, mida pro beijo, mobiliada por dentinhos brilhantes e microscpicos.
Alm disso, se dizia que era dotada de qualidades inapreciveis.
Mal a reconheceram correram cochichos entre as mulheres honestas e as palavras
prostituta, vergonha pblica foram sussurradas to alto que ela erguera a cabea. Ento
passeou nos vizinhos um olhar to desafiador e ousado que logo se estabeleceu absoluto
silncio e todos baixaram os olhos, com exceo da Loiseau, que a espreitava com ar
provocante.
Mas depressa a conversao recomeou entre as trs senhoras que a presena da
perdida tornara, subitamente, amigas, quase ntimas. Lhes parecia que elas deviam
reunir como um feixe de suas virtudes de esposas pra enfrentar aquela vendida, semvergonha. Porque o amor legal olha sempre com desprezo seu confrade livre.
Tambm os trs homens, que um instinto de conservador aproximara ao verem
Cornudet, falavam sobre dinheiro com certa inflexo de desprezo aos pobres. Conde
Hubert relatava os prejuzos que os prussianos lhe causaram, a perda decorrente do gado
roubado e da colheita perdida, com uma calma de gro-senhor dez vezes milionrio a
quem esses estragos preocupariam apenas um ano. Senhor Carr-Lamadon, com muita
experincia na indstria do algodo, tivera o cuidado de mandar 600 mil francos
Inglaterra, um recurso pra ocasies extremas das quais no se descuidava. Quanto a
Loiseau, conseguira vender, intendncia francesa, todos os vinhos comuns que
restavam na adega, de modo que o estado lhe devia uma soma formidvel que contava
muito receber no Havre.
E todos os trs trocavam olhadelas rpidas e amistosas. Embora de condies
diversas, se sentiam irmos pelo dinheiro, da grande franco-maonaria daqueles que
possuem, que fazem tilintar o ouro ao meter a mo no bolso da cala.
O carro ia to devagar que s 10h da manh ainda no fizeram 16km. Os homens
desceram trs vezes pra subir ladeira a p. Comeavam a se inquietar porque deviam
almoar em Ttes e perdiam a esperana de li chegar antes de anoitecer. Cada qual se
esforava em avistar uma taberna na margem da estrada, quando a diligncia se enterrou
num monto de neve e foi preciso duas horas pr desencravar.
O apetite aumentava, perturbava os espritos, e no aparecia uma tasca,34 negociante
de vinho, porque a aproximao dos prussianos e a passagem das tropas francesas
esfaimadas afugentaram todos os negcios.
Os cavalheiros procuravam se abastecer nas herdades na beira da estrada, mas nem
po encontraram, porque o campons desconfiado escondia suas reservas, receoso de
ser saqueado pelos soldados que, nada tendo pra comer, tomavam a fora o que
descobriam.
Cerca de 13h Loiseau comunicou que, decididamente, sentia um terrvel vazio no
estmago. Havia muito que todos sofriam como ele e a imperiosa necessidade de comer,
aumentando sempre, matara a conversao.
33
Loureira: Mulher que desejava agradar a todos. Provocante, sedutora, coquete. Casta de uva branca do Minho, Portugal. Nota do
digitalizador. http://www.dicio.com.br/loureira/
34
Tasca: sf Pequeno bar, restaurante simples. Nota do digitalizador. http://www.lexico.pt/tasca/
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hotel do Comrcio.
Se abriu a portinhola! Um rudo muito conhecido fez os viajantes estremecerem:
Eram as pancadas duma bainha de sabre contra o cho. Imediatamente a voz dum
alemo bradou algo.
Embora a diligncia estivesse imvel, ningum desceu, como se estivessem na
expectativa de serem trucidados logo na sada. O condutor apareceu ento, tendo mo
uma de suas lanternas, que iluminou subitamente at o fundo do carro as duas fileiras de
cabeas assustadas, cujas bocas estavam abertas e os olhos arregalados de surpresa e
susto.
Ao lado do cocheiro estava, em plena luz, um oficial alemo, um rapaz alto, muito
esguio e louro, apertado na farda como uma moa no espartilho, com um bon chato e
encerado cado ao lado, o que o fazia parecer um moo de recado de hotel ingls. O
bigode imenso, de comprido plo espetado, que diminua indefinidamente de cada lado
e terminava num fio louro to fino que no se via o fim, parecia pesar sobre os cantos da
boca e, repuxando a bochecha, imprimia nos lbios uma ruga a baixo.
Num francs de alsaciano, convidou os viajantes a sarem, dizendo, em tom seco:
Desceis, senhoras e cavalheiros.
As duas boas irms foram as primeiras a obedecer, com docilidade de santas
mulheres habituadas a toda submisso. O conde e a condessa apareceram depois,
seguidos do industrial e de sua esposa e, aps eles, Loiseau, que empurrava, na frente,
sua grande metade. Loiseau, ao pisar cho, disse ao oficial Bom-dia, senhor, muito
mais por prudncia que por delicadeza. O outro, insolente como todas as pessoas
onipotentes, o olhou sem responder.
Bola-de-Sebo e Cornudet, embora prximos portinhola, foram os ltimos a descer,
graves e altivos perante o inimigo. A gorda rapariga procurava se dominar e permanecer
calma, o democrata atormentava, com mo trgica e um pouco trmula, a longa barba
arruinada. Queriam conservar a dignidade, compreendendo que nesses encontros todos
representam um pouco seu pas. E igualmente revoltados pela dobrez35 dos
companheiros, ela procurava se mostrar mais altiva que as vizinhas, as mulheres
honestas, enquanto ele, sentindo bem que lhe cabia dar o exemplo, continuava, com
toda atitude, sua misso de resistncia comeada na inutilizao das estradas. Entraram
na vasta cozinha da hospedaria e o alemo, depois de fazer com que exibissem a
autorizao de partida assinada pelo general-comandante, na qual estavam enumerados
os nomes, os sinais de identificao e a profisso de cada viajante, os examinou
longamente, comparando as pessoas com os dados escritos.
Depois disse, subitamente, Est bem e desapareceu.
Ento respiraram. A fome ainda no desaparecera. A ceia foi encomendada. Era
necessrio meia hora pra preparar e, enquanto duas criadas pareciam cuidar disso, foram
visitar os quartos. Ficavam todos num comprido corredor que terminava numa porta
envidraada assinalada por um nmero de grande tamanho.
Finalmente se sentariam mesa, quando o hospedeiro se apresentou em pessoa. Era
um antigo negociante de cavalo, um homenzarro asmtico, que tinha sempre assobio,
rouquido e pigarro na laringe. O pai lhe transmitira o nome de Follenvie.
Ele perguntou:
Senhorita Elisabete Rousset?
Bola-de-Sebo estremeceu, voltou-se:
Sou eu.
Senhorita, o oficial prussiano quer falar contigo imediatamente.
Comigo?
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Pale ale uma cerveja de fermentao predominantemente morna e malte claro. um principais estilos de cerveja do mundo. Ale
um tipo de cerveja produzida a partir de cevada maltada usando uma levedura de alta fermentao, que fermenta a cerveja
rapidamente, proporcionando sabor adocicado, encorpado e frutado. A maioria das ales contm lpulo, o que ajuda a equilibrar o
sabor adocicado e preservar a cerveja. O outro tipo principal de cerveja a lager, de baixa fermentao. Nota do digitalizador.
http://en.wikipedia.org/wiki/Pale_ale e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ale_(cerveja)
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no se deve pensar que sejam limpos. , no! Emporcalham tudo, com licena da
palavra. E se os visses se exercitarem horas e dias a fio. Se postam todos num campo e
toca a marchar a diante, a marchar a trs, a volver qui, a volver li. Ao menos se
cultivassem a terra e trabalhassem na estrada, em seu pas! Mas no, senhora, esses
militares so inteis! E o pobre povo tem de os sustentar pra eles aprenderem apenas a
trucidar! No passo duma velha mulher sem educao, verdade, mas os vendo estafar
o corpo, sapateando da manh noite, digo, com meus botes: Por que, enquanto h
pessoas que fazem tantas descobertas pra serem teis, outras se do tanto
trabalho pra serem nocivas? Realmente, no abominvel matar criaturas, sejam
prussianos, ingleses, poloneses ou franceses? Quando a pessoa se vinga dalgum que
lhe fez mal est errada, uma vez que condenada, mas quando exterminam nossos
rapazes como se fossem caa, com fuzil, est certo, uma vez que se condecora aquele
que destruiu maior nmero? No, estais vendo, jamais compreenderei isso!
Cornudet elevou a voz:
A guerra uma barbaridade quando se ataca um vizinho pacfico. um dever
sagrado quando se defende a ptria. A velha mulher abaixou a cabea:
Sim. Quando a pessoa se defende outra coisa. Mas no se deveria antes matar
todos os reis que fazem isso por prazer?
O olhar de Cornudet se inflamou:
Bravo!, cidad.
Senhor Carr-Lamadon refletia profundamente. Embora fantico pelos ilustres
cabos-de-guerra, o bom-senso daquela camponesa o fazia meditar na opulncia que
trariam a um pas tantos braos desocupados e, portanto, perniciosos, tantas foras
mantidas improdutivas, quando deveriam ser empregadas nos grandes trabalhos
industriais, cuja concluso demandar sculos.
Mas Loiseau, se levantando, foi conversar baixinho com o estalajadeiro. O
homenzarro ria, tossia, escarrava. O enorme ventre saltitava de alegria com os gracejos
do interlocutor e comprou dele seis tonis de bord pr primavera, quando os prussianos
tivessem partido.
Mal acabou a ceia, como todos estivessem prostrados pela fadiga, foram se deitar.
Loiseau, entretanto, que observara as coisas, fez a esposa se recolher, depois colou
ora o ouvido ora o olho ao buraco da fechadura, procurando descobrir o que chamava os
mistrios do corredor.
Ao cabo duma hora aproximadamente, ouviu um roagar, olhou bem depressa e
avistou Bola-de-Sebo, que parecia ainda mais volumosa num penteador de seda azul,
enfeitado de renda branca. Segurava um castial e se encaminhava ao nmero grande,
bem no fundo do corredor. Mas uma porta, a seu lado, se entreabriu, e quando ela
voltou dali a alguns minutos, Cornudet, de suspensrio, a seguiu. Falava baixo, depois
pararam. Bola-de-Sebo parecia impedir, com energia, a entrada de seu quarto. Loiseau,
infelizmente, no ouvia as palavras, mas enfim, como erguessem a voz, pde entender
algumas. Cornudet insistia fortemente. Dizia:
Vamos. s tola. O que te importa isso?
Ela parecia indignada e respondeu:
No, meu caro. H momentos em que no se fazem essas coisas. E depois, aqui
seria uma vergonha.
Sem dvida, ele no compreendia, e perguntou por qu. Ento ela se exaltou,
elevando ainda mais a voz:
Por qu? No compreendes? Quando h prussiano na casa, talvez no quarto ao
lado?
Ele calou-se. Aquele pudor patritico de meretriz que no se deixava acariciar junto
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ao inimigo, deve ter lhe despertado, no corao, a dignidade enfraquecida, porque, aps
a ter somente abraado, retornou a sua porta na ponta dos ps.
Loiseau, muito excitado, abandonou a fechadura, deu uma cabriola no quarto, ps o
roupo e ergueu a coberta sob a qual jazia a dura carcaa da companheira que ele
acordou com um beijo, murmurando:
Me amas?, querida.
Ento toda a casa mergulhou em silncio. Mas logo se ergueu algures, em direo
indeterminada, que tanto podia ser a da adega como a das guas-furtadas, um roncar
poderoso, montono, regular, um rudo abafado e prolongado, com estremeo de
caldeira sob presso. Senhor Follenvie dormia.
Como a partida ficara marcada ao dia seguinte, s 8h, todos se encontraram na
cozinha mas o carro, cujo toldo estava coberto de neve, se erguia, solitrio, no meio do
ptio, sem cavalo e sem condutor. Em vo o procuraram nas estrebarias, no depsito de
forragem, nas cocheiras. Ento todos os homens resolveram percorrer a localidade e
saram. Se encontraram na praa, tendo ao fundo a igreja e, de ambos os lados, casas
baixas onde se viam soldados prussianos. O primeiro que avistaram descascava batata.
O segundo, mais adiante, lavava o salo do cabeleireiro. Outro, com barba que ia at os
olhos, abraava um garotinho que chorava, e o embalava nos joelhos, procurando
consolar. E as gordas camponesas, cujos homens estavam no exrcito da guerra,
indicavam, por meio de sinal, a seus vencedores obedientes, o trabalho que precisavam
fazer: Rachar lenha, preparar a sopa, moer o caf. Um at lavava a roupa de sua
hospedeira, uma velha inteiramente entrevada.
O conde, surpreso, interrogou o bedel, que saa do presbitrio. O velho rato-de-igreja
respondeu:
! Esses no so maus. Ao que se diz no so prussianos. So de mais longe. No
sei bem donde. E todos deixaram mulher e filhos em sua terra. A guerra no os diverte,
acredites! Estou certo que em sua terra tambm se chora bastante pelos homens que se
foram e disso resultar uma terrvel misria tanto a eles como a ns. Aqui ainda no
somos desgraados demais, por enquanto, porque no fazem mal e trabalham como se
estivessem em sua casa. Compreendes: As pessoas pobres tm mesmo que se ajudar
mutuamente... Os grandes que fazem a guerra.
Cornudet, indignado com a cordialidade reinante entre vencedores e vencidos, se
retirou, preferindo se fechar na hospedaria. Loiseau teve um dito pra fazer rir:
Repovoam. Senhor Carr-Lamadon emitiu um conceito srio: Reparam. Mas no se
encontrava o cocheiro. Enfim o descobriram no caf da aldeia, abancado fraternalmente
com a ordenana do oficial. O conde o interpelou:
No te deram ordem pra atrelar hoje s 8h?
Sim. Mas deram outra depois.
Qual?
Para no atrelar.
Quem deu essa ordem?
Ora! Ora! O comandante prussiano.
Por qu?
No sei. Vs perguntar. Me proibiram de atrelar, ento no atrelo. isso.
Quem disse isso foi ele?
No, senhor. Foi o estalajadeiro quem me deu essa ordem da parte dele.
Quando?
Ontem na noite, quando ia me deitar.
Os trs homens voltaram hospedaria muito inquietos. Perguntaram sobre senhor
Follenvie mas a criada respondeu que o patro, por causa da asma, nunca se levantava
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110
antes das 10h. Formalmente proibira que o despertassem mais cedo, salvo em caso de
incndio.
Quiseram ver o oficial mas isso era impossvel, embora residisse na hospedaria.
Somente senhor Follenvie tinha autorizao pra lhe falar sobre os negcios civis. Ento
esperaram. As mulheres retornaram a seus quartos e se entretiveram com futilidade.
Cornudet se instalou junto a alta lareira da cozinha. Mandou trazer uma das mesinhas
da taberna, uma caneca de cerveja e puxou um cachimbo, que desfrutava, entre os
democratas, considerao quase igual sua, como se servisse ptria ao servir a
Cornudet. Era uma magnfico cachimbo de espuma admiravelmente enegrecido, to
preto como os dentes do dono mas perfumado, recurvo, luzidio, familiar a sua mo e
complementar a sua fisionomia. E permaneceu imvel, com os olhos ora fixos nas
chamas da lareira, ora na espuma que coroava sua cerveja. E cada vez que bebia
passava, com ar satisfeito, os longos dedos magros no longos cabelo seboso, enquanto
aspirava o bigode franjado de espuma.
Loiseau, sob pretexto de esticar as pernas, foi vender vinho aos varejistas da regio.
O conde e o industrial se puseram a conversar sobre poltica. Previam o futuro da
Frana. Um acreditava nos Orles, o outro num salvador desconhecido, um heri que se
revelaria quando tudo estivesse perdido. Quem-sabe se um du guesclin, uma joana
Darco? Ou outro Napoleo I? ! Se o prncipe imperial no fosse to jovem! Cornudet,
os ouvindo, sorria como um homem que sabe o que acontecer. Seu cachimbo
perfumava a cozinha.
Batiam 10h quando senhor Follenvie apareceu. O interrogaram imediatamente mas
s pde repetir duas ou trs vezes, sem variante:
O oficial me disse: Senhor Follenvie, proibir que atrelem amanh o carro
dos viajantes. No quero que eles partam sem minha ordem. Ests ouvindo?
o bastante.
Ento quiseram ver o oficial. O conde lhe mandou seu carto de visita, ao qual
senhor Carr-Lamadon acrescentou seu nome e todos seus ttulos. O prussiano mandou
responder que receberia os dois homens pra lhe falarem depois que almoasse, isso ,
cerca de 1h.
As senhoras reapareceram e se comeu um pouco, apesar da inquietao. Bola-deSebo parecia enferma e imensamente perturbada.
Acabavam de tomar caf quando o ordenana chegou pra buscar es cavalheiros.
Loiseau se juntou aos dois primeiros mas, como se tentasse levar Cornudet, pra
tornar o pedido mais solene, ele declarou, altivamente, que fazia questo de jamais
entrar em relao com os alemes, e retornou lareira, pedindo outra caneca de cerveja.
Os trs homens subiram e foram introduzidos no mais belo quarto da hospedaria,
onde o oficial os recebeu, estirado numa poltrona, com os ps sobre a lareira, fumando
um comprido cachimbo de porcelana e metido num roupo fulgurante, sem dvida
furtado da residncia abandonada dalgum burgus de mau-gosto. No se levantou, no
os cumprimentou, no os fitou. Era uma magnfica amostra da insolncia prpria do
militar vitorioso.
Ao cabo dalguns instantes finalmente disse:
O que desejam?
O conde tomou a palavra:
Desejamos partir, senhor.
No.
Qual a causa de semelhante recusa?
Porque no quero.
Observarei, respeitosamente, senhor, que teu general-comandante nos concedeu
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licena pra partirmos e alcanar Dieppe. Creio no termos feito algo pra merecer teu
rigor.
No quero. Eis tudo. Podeis descer.
Tendo-se inclinado, todos os trs se retiraram.
A tarde foi lamentvel. No conseguiam compreender aquele capricho do alemo e
as idias mais singulares perturbavam as cabeas. Todos se conservavam na cozinha,
discutindo interminavelmente, imaginando coisas absurdas. Talvez quisessem os
guardar como refm. Mas com que fim? Pra os levar prisioneiros ou exigir um vultoso
resgate? A esse pensamento os dominou o pnico. Os mais ricos eram os mais
apavorados, se vendo j obrigados, pra comprar sua vida, a esvaziar sacos cheios de
ouro nas mos daquele soldado insolente. Davam tratos bola pra descobrir mentiras
aceitveis, esconder suas riquezas, se fazerem passar por pobres, muito pobres. Loiseau
tirou a corrente do relgio e o guardou no bolso. A noite que descia aumentou as
apreenses. Se acendeu o lampio e, como ainda faltassem duas horas pro jantar,
senhora Loiseau props uma partida de 31. Seria uma distrao. Aceitaram. O prprio
Cornudet, depois de apagar o cachimbo, por delicadeza, entrou no jogo.
O conde embaralhou as cartas e serviu. Bola-de-Sebo tinha 31 de sada. Depressa o
interesse na partida apaziguou o temor que obcecava os espritos. Mas Cornudet notou
que o casal Loiseau estava de combinao pra trapacear.
Quando se poriam mesa, senhor Follenvie reapareceu. Disse com voz roufenha:
O oficial prussiano mandou perguntar, a senhorita Elisabete Rousset, se j mudou
de opinio.
Bola-de-Sebo permaneceu de p, muito plida. Depois, corando subitamente, teve tal
sufoco de clera, que no podia falar. Enfim explodiu:
Dirs a esse crpula, a esse obsceno, a esse esqueleto de prussiano, que jamais
quererei. Ests ouvindo bem? Jamais, jamais, jamais!
O gordo hospedeiro saiu. Ento Bola-de-Sebo foi rodeada, interrogada, solicitada por
todos a desvendar o mistrio de sua visita. A princpio resistiu mas o exaspero logo a
dominou:
O que quer? O que ele quer? Quer se deitar comigo!
Ningum se chocou com a expresso, tamanha foi a indignao. Cornudet quebrou a
caneca de cerveja ao a depor violentamente na mesa. Foi um clamor de condenao
contra aquele militar ignbil, um sopro de clera, uma unio de todos resistncia,
como se fora pedida a cada um parte do sacrifcio que exigiam dela. O conde declarou,
repugnado, que aqueles homens estavam procedendo como os antigos brbaros. As
mulheres, principalmente, demonstraram a Bola-de-Sebo uma comiserao enrgica e
carinhosa. As boas irms, que s apareciam s refeies, baixaram a cabea e nada
diziam.
Jantara, entretanto, quando passou o primeiro furor. Mas se falou pouco, se refletia.
As senhoras se retiraram cedo. Os homens, enquanto fumavam, organizaram um
cart37 ao qual convidaram senhor Follenvie, a quem tencionavam interrogar
habilmente sobre os meios a empregar pra vencer a resistncia do oficial. Mas ele s
pensava em suas cartas e no ouvia nem respondia. Repetia, sem cessar: Ao jogo,
senhores, ao jogo. To grande era sua ateno, que esquecia de escarrar, o que s
vezes lhe punha no peito notas de rgo. Seus pulmes sibilantes proporcionavam toda
a escala da asma, desde as notas graves e profundas at a rouquido aguda dos jovens
galos que procuram cantar.
37
cart jogado com baralho de 32 cartas, se excluindo do baralho comum as cartas do 2 ao 6. A carta mais alta o s, se
seguindo rei, dama, valete, 10, 9, 8 e 7. jogado em duplas. O objetivo do jogo fazer vaza e a partida vai at cinco pontos. Os
jogadores marcam um ponto por trs ou quatro vazas feitas e 2 pontos por cinco vazas (capote). Nota do digitalizador.
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Se recusou a subir, quando sua mulher, que caa de sono, chegou o procurando.
Ento ela partiu sozinha, porque era da alvorada, sempre se levantando com o sol,
enquanto seu homem era do sero sempre pronto a passar a noite com os amigos. Ele
gritou: Ponhas meu caldo de galinha perto do fogo! e voltou partida. Quando os
outros viram que no podiam tirar algo dele, declararam que era tempo de se recolherem
e cada um foi a sua cama.
No dia seguinte se levantaram ainda bastante cedo, com uma esperana imprecisa,
um desejo maior de partir, um terror do dia a passar naquela horrorosa estalagem.
Infelizmente os cavalos continuavam na estrebaria, o cocheiro sempre invisvel. Sem
ter o que fazer, foram andar em torno do carro.
O almoo foi muito triste. Se produzira como uma frieza em relao a Bola-de-Sebo,
porque a noite, que boa conselheira, modificara um pouco as opinies. Agora
censuravam a rapariga por no ter ido procurar secretamente o prussiano, a fim de
preparar, quando acordassem, uma boa surpresa aos companheiros. O que havia de mais
simples? Quem o saberia?, alis. Poderia salvar a aparncia mandando dizer ao oficial
que se compadecia de sua situao. Pra ela isso tinha to pouca importncia!
Mas ningum ainda confessara tal pensamento.
Na tarde, como estivessem mortalmente enfadados, o conde props um passeio no
arredor da aldeia. Cada um se agasalhou cuidadosamente e o pequeno grupo partiu, com
exceo de Cornudet, que preferia ficar ao p do fogo, e das boas irms que passavam o
dia na igreja ou na casa do proco.
O frio, que cada dia aumentava mais, castigava cruelmente o nariz e as orelhas. Os
ps ficavam to doloridos que cada passo era um sofrimento. Quando depararam o
campo, ele lhes surgiu to medonhamente lgubre naquela alvura ilimitada, que todos
imediatamente regressaram, com a alma gelada e o corao apertado.
As quatro mulheres caminhavam na frente, os trs homens as seguiam um pouco
atrs.
Loiseau, que compreendia a situao, de repente perguntou se aquela rameira os
faria ficar ainda muito tempo em semelhante lugar. O conde, sempre corts, disse que
no se podia exigir duma mulher um sacrifcio to penoso, que devia ser de sua prpria
iniciativa. Senhor Carr-Lamadon fez observar que se os franceses desfechassem, como
se estava falando, uma contra-ofensiva em Dieppe, o encontro s se poderia verificar
em Ttes. Essa reflexo tornou os dois outros preocupados. disse Loiseau:
E se fugssemos a p?
O conde levantou os ombros:
Como pensar nisso com esta neve? Com nossas mulheres? E depois seramos logo
perseguidos, alcanados em 10min e trazidos prisioneiros merc dos soldados.
Era verdade. Se calaram.
As senhoras falavam sobre moda mas certo constrangimento parecia as separar.
De repente, na extremidade da rua, surgiu o oficial. Seu vulto alto de vespa
uniformizada se desenhava contra a neve, que fechava o horizonte. Caminhava de
joelhos afastados, com o movimento prprio dos militares que procuram no sujar as
botas cuidadosamente engraxadas.
Se inclinou ao passar junto das senhoras e olhou desdenhosamente aos homens, que
tiveram, alis, a dignidade de no se descobrir, embora Loiseau esboasse um gesto pra
tirar o chapu.
Bola-de-Sebo ficara vermelha at a raiz do cabelo e as trs mulheres casadas se
sentiam muito humilhadas pelo fato daquele militar as ter encontrado em companhia
daquela rapariga que ele tratara to grosseiramente.
Ento falaram a seu respeito, de seu aspecto, de sua fisionomia. Senhora Carrhttp://cheguavira.blogspot.com/
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Lamadon, que conhecera muitos oficiais e que os julgava como entendidos, no achava
mau aquele. Lamentava que no fosse francs, porque daria um hssaro muito bonito,
por quem todas as mulheres certamente se apaixonariam.
Depois de voltarem hospedaria no sabiam mais o que fazer. Palavras speras
foram trocadas a propsito de coisas insignificantes. O jantar foi silencioso e rpido e
todos subiram pra se recolher, esperando dormir pra matar o tempo.
No dia seguinte desceram com fisionomia fatigada e corao enraivecido. As
mulheres mal dirigiam a palavra a Bola-de-Sebo.
Um sino tocou. Era prum batismo. A gorda rapariga tinha um filho que era criado por
uns camponeses de Yvetot. No o via, nem uma vez por ano, e nunca pensava nele, mas
o pensamento daquele que seria batizado despertou no corao uma ternura sbita e
violenta pelo seu e ela fez questo de assistir a cerimnia.
Assim que partiu, todos se entreolharam, depois aproximaram as cadeiras, porque
sentiam, perfeitamente, que no fim seria preciso resolver algo. Loiseau teve uma
inspirao: Achava que se devia propor, ao oficial, pra ficar com Bola-de-Sebo apenas,
e deixar os outros partirem.
Senhor Follenvie tomou novamente a incumbncia mas desceu quase imediatamente.
O alemo, que conhecia a natureza humana, o expulsara. Tencionava deter todos
enquanto seu desejo no fosse satisfeito.
Ento o temperamento plebeu de senhora Loiseau explodiu:
Mas no morreremos de velhice aqui. Uma vez que a profisso dessa vagabunda
fazer isso com todos os homens, acho que no tem o direito de se negar a um e depois
se entregar a outro. Digo que esteve com tudo o que encontrou em Ruo, at com os
cocheiros! Sim, senhora, o cocheiro da prefeitura! Bem sei. Compra vinho em nosso
estabelecimento. E hoje que se trata de nos tirar duma dificuldade, essa porca se faz de
rogada! Pois eu acho que esse rapaz est procedendo muito bem. Talvez h muito tempo
esteja abstinente. E aqui estamos ns trs, que, sem dvida, ele preferiria. Mas no! Se
contenta com aquela que pertence a todos. Respeita as mulheres casadas. Pensai bem,
ele o senhor. Bastaria dizer Quero e podia nos violentar com seus soldados.
As duas mulheres sentiram um pequeno arrepio. Os olhos da linda senhora CarrLamadon cintilavam, e estava um pouco plida, como se j se sentisse violentada pelo
oficial.
Os homens, que discutiam porta, se aproximaram. Loiseau, furibundo, queria
entregar aquela miservel, de ps e punhos amarrados, ao inimigo. Mas o conde,
descendente de trs geraes de embaixador, e dotado dum fsico de diplomata, era
partidrio da habilidade. Disse que convinha a convencer.
Ento conspiraram.
As mulheres se aproximaram, o tom de voz baixou e a discusso se generalizou, cada
um emitindo opinio. Alis tudo era muito decente. As mulheres, principalmente,
encontravam insinuaes delicadas, sutilezas de expresso encantadoras, pra dizer as
coisas mais escabrosas. Um estranho nada compreenderia, to cautelosa era a
linguagem. Mas, uma vez que a leve camada de pudor que recobre toda mulher de
sociedade no passa da superfcie, se expandiam com aquela aventura libertina, se
divertiam loucamente no ntimo, se sentindo em seu elemento, manejando o amor com a
sensualidade dum cozinheiro requintado preparando a ceia doutro.
A alegria voltava espontaneamente, to engraada a histria parecia, afinal. O conde
se saiu com gracejos um pouco ousados, mas ditos to bem que faziam sorrir. Loiseau
disse alguns mais pesados que a ningum chocaram. E o pensamento brutalmente
expresso por sua mulher dominava todos os espritos: Uma vez que a profisso
dessa rapariga, por que se negaria quele mais que a outro? A mimosa senhora
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Carr-Lamadon parecia pensar que em seu lugar recusaria aquele menos que qualquer
outro.
O assdio foi longamente preparado, como se tratando duma fortaleza a atacar. Cada
um combinou o papel que representaria, os argumentos que utilizaria, as manobras a
executar. Acertaram os planos dos ataques, as manhas a empregar e as surpresas do
assalto, pra forar aquela cidadela viva a receber o inimigo na praa.
Cornudet, entretanto, permanecia afastado, alienado do caso.
Uma ateno to profunda absorvia os espritos que Bola-de-Sebo entrou
despercebida. Mas o conde sussurrou um leve psiu!, que fez todos os olhos se erguerem.
Ali estava ela. Subitamente se calaram. Um embarao impediu, a princpio, que lhe
falassem. A condessa, mais habituada que as outras s duplicidades dos sales, a
interrogou: Foi divertido o batismo?
A gorda rapariga, ainda emocionada, descreveu tudo, as pessoas, as atitudes, o
prprio aspecto da igreja. Acrescentou:
s vezes bom rezar.
At o almoo, entretanto, as senhoras se contentaram em ser amveis com ela, pra
aumentar a confiana e a docilidade aos conselhos.
Mal se sentaram mesa comearam as insinuaes. A princpio foi uma conversao
vaga sobre a dedicao. Exemplos antigos foram citados: Judite e Holofernes, depois,
sem razo, Lucrcia e Sextus, Clepatra fazendo passar em seu leito todos os generais
inimigos e os reduzindo ao servilismo de escravo. Ento relataram uma histria
fantstica, surgida na imaginao daqueles milionrios ignorantes, na qual as cidads de
Roma iam adormecer em Cpua tendo Anbal entre seus braos, e, com ele, seus oficiais
e as falanges de mercenrio. Se citaram todas as mulheres que detiveram os
conquistadores, fizeram de seu corpo um campo de batalha, um meio de dominar, uma
arma, que venceram, com as carcias, hericas criaturas medonhas ou odiadas, e
sacrificaram sua castidade vingana e dedicao.
Se falou, em termos velados, daquela inglesa de ilustre famlia, que se deixara
inocular uma horrvel e contagiosa molstia pra transmitir a Bonaparte, a quem uma
sbita debilidade salvara miraculosamente, na hora do encontro fatal.
E tudo isso era contado de maneira correta e moderada, na qual s vezes explodia um
entusiasmo intencional, prprio pra provocar a emulao.
No fim se poderia acreditar que o nico papel da mulher sobre a Terra era um
perptuo auto-sacrifcio, um abandono contnuo aos caprichos da soldadesca.
As duas boas irms no pareciam ouvir, imersas em pensamentos profundos. Bolade-Sebo nada dizia.
Durante toda a tarde a deixaram refletir. Mas em vez de a chamarem senhora, como
at ento fizeram, chamavam simplesmente senhorita, sem que algum soubesse bem o
motivo, como se quisessem a fazer descer um degrau na considerao que alcanou, a
fazer sentir sua vergonhosa situao.
No instante em que a sopa era servida senhor Follenvie apareceu, repetindo sua frase
da vspera:
O oficial prussiano mandou perguntar, a senhorita Elisabete Rousset, se j mudou
de opinio.
Bola-de-Sebo respondeu secamente:
No, senhor.
Mas no jantar a coalizo fraquejou. Loiseau teve trs frases infelizes. Cada uma dava
tratos bola pra descobrir novos exemplos e nada encontrava, quando a condessa,
talvez sem premeditao, sentindo uma vaga necessidade de render homenagem
religio, interrogou a mais idosa das boas irms sobre as grandes aes da vida dos
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santos. Ora, muitos cometeram atos que seriam crimes a nossos olhos mas a igreja
absolve facilmente esses delitos quando so praticados pr glria de Deus ou pro bem
do prximo. Era um argumento poderoso. A condessa o utilizou. Ento, fosse por uma
dessas combinaes tcitas, uma dessas condescendncias veladas, na qual prima quem
quer que vista um hbito eclesistico, fosse apenas em conseqncia duma feliz
incompreenso, duma asneira benfazeja, a velha religiosa trouxe conspirao um
auxlio formidvel. A julgavam tmida e se revelou impetuosa, verbosa, violenta. A ela
as indecises da casustica no perturbavam. Sua doutrina parecia uma barra de ferro.
Sua f nunca hesitava. Sua conscincia no tinha escrpulo. Achava muito simples o
sacrifcio de Abrao, porque mataria imediatamente pai e me a uma ordem vinda do
alto.38 E entendia que nada podia desagradar ao senhor quando a inteno era louvvel.
A condessa, se servindo da autoridade venervel de sua cmplice inesperada, a fez fazer
uma espcie de parfrase edificante do axioma moral O fim justifica os meios.
A interrogava.
Ento, minha irm: Achas que Deus aceita todos os meios e perdoa o fato quando
o motivo puro?
Quem pode duvidar?, senhora. Uma ao censurvel em si se torna, muitas vezes,
meritria pelo pensamento que a inspira.
E assim prosseguiam, desvendando os desgnios divinos, prevendo suas decises, o
fazendo se interessar por coisas que na realidade no lhe diziam respeito.
Tudo isso era velado, hbil, discreto. Mas cada uma das palavras da santa irm de
tricrnio39 fazia uma brecha na indignada resistncia da cortes. Depois, se desviando
um pouco a conversao, a mulher dos rosrios pendentes falou das casas de sua ordem,
de sua superiora, de si, de sua pequena vizinha, a querida irm So Nicforo. As
chamaram, ao Havre, pra cuidar, nos hospitais, de centenas de soldados atacados por
bexiga. Descreveu aqueles miserveis, pormenorizou a molstia. E enquanto
permaneciam detidas no caminho pelos caprichos daqueles prussianos, morria grande
nmero de franceses que elas poderiam salvar! Cuidar de militares era sua
especialidade. Estivera na Crimia, Itlia, ustria e, narrando suas campanhas,
subitamente se revelou uma dessas religiosas de tambor e clarim que parecem feitas pra
acompanhar os acampamentos, recolher ferido no torvelinho das batalhas e, melhor que
um chefe, dominar cuma palavra os veteranos indisciplinados. Uma verdadeira boa irm
ratapl,40 cujo rosto devastado, esburacado, parecia uma imagem dos estragos da guerra.
Ningum disse algo aps ela, to excelente parecia a impresso causada
Mal terminou a refeio, todos subiram depressa aos quartos, pra s descerem no dia
seguinte, com a manh adiantada.
O almoo foi tranqilo. Davam, semente plantada na vspera, tempo pra germinar e
frutificar.
A condessa props um passeio na tarde. Ento o conde, como combinado, deu o
brao a Bola-de-Sebo e ficou atrs dos outros, com ela.
Falou em tom familiar, paternal, um pouco desdenhoso, que os homens empertigados
empregam com as perdidas, a chamando minha querida filha, a tratando do alto de sua
posio social, de sua honorabilidade indiscutvel. Penetrou logo no cerne da questo:
Ento preferes nos deixar aqui, expostos como ti a todas as violncias que
decorreriam duma derrota das tropas prussianas, em vez de admitir uma dessas
condescendncias to freqentes em tua vida?
Bola-de-Sebo nada respondeu.
38
Segundo o texto bblico Abrao se disps a sacrificar o filho, no os pais. Nota do digitalizador
Tricrnio: Chapu de trs pontas. Nota do digitalizador
40
Ratapl: sm Onomatopia do rufar do tambor. Nota do digitalizador
39
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118
Bzique ou bzique um antigo jogo de carta que se alega ser originrio do Limus, Frana. Ainda popular no Haiti, onde,
invariavelmente, se joga com quatro jogos de 32 cartas, que so adicionados quatro cartas selvagens e um marcador de ponto de
marca conhecida no Haiti. No est provado, como se diz no Haiti, que foi inventado por Charles Bzique. Podem jogar duas, trs
ou quatro pessoas. Os jogadores podem se agrupar em dupla ou sozinho. Nota do digitalizador. http://fr.wikipedia.org/wiki/B%C3%A9sigue
42
Oremus: Convite para orar, feito antes da coleta e outras oraes curtas, constante no rito romano. Nota do digitalizador.
http://www.newadvent.org/cathen/11295a.htm
43
Gruier (gruyre) um duro queijo suo, originrio da cidade de Gruyres e produzido nos cantes de Friburgo, Vaud, Neuchtel
Jura e Berna. Nota do digitalizador. http://pt.wikipedia.org/wiki/Gruy%C3%A8re
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Cornudet, mergulhando ambas as mos, ao mesmo tempo, nos imensos bolsos de seu
palet-casaco, dum puxou quatro ovos cozidos e doutro uma cdea de po. Quebrou a
casca, a jogou na palha sob seus ps e comeou a trincar os ovos, fazendo cair na vasta
barba migalhas dum amarelo-claro que na barba pareciam estrelas.
Bola-de-Sebo, na pressa e no sobressalto do despertar, no pudera cuidar dalguma
coisa e olhava, exasperada, sufocando de raiva, aquelas pessoas que comiam
placidamente. Primeiro a dominou uma clera tumultuosa e abriu a boca pra gritar a
verdade cuma onda de injria que lhe subia aos lbios. Mas no podia falar, a tal ponto
o exaspero a sufocava.
Ningum a olhava, nem se lembrava de si. Se sentia afogada no desprezo daqueles
patifes honestos que primeiro a sacrificaram, depois repeliram, como coisa inasseada e
intil. Ento se lembrou de seu grande cabaz inteiramente cheio de boas coisas que eles
gulosamente devoraram, de seus dois frangos brilhantes de gordura, de seus pats, de
suas pras, de suas quatro garrafas de bord. E como sua fria cedesse de repente, como
uma corda estendida demais, que se parte, se sentiu preste a chorar. Fez esforo terrvel,
se inteiriou, engoliu o soluo como as crianas, mas o pranto subia, brilhava na borda
das plpebras, e depressa duas grandes lgrimas se destacando dos olhos, rolaram
lentamente nas faces. Outras se seguiram mais rpidas, fluindo como as gotas dgua se
filtrando duma rocha e caindo com regularidade na curva saliente de seu busto.
Permanecia inteiriada, de olhar fixo, com a face rgida e plida, esperando que no a
vissem.
Mas a condessa notou e preveniu o marido cum sinal. Ele levantou os ombros como
se dissesse:
O que queres? A culpa no minha.
Senhora Loiseau teve um riso silencioso de triunfo e murmurou:
Est chorando sua vergonha.
As duas boas irms voltaram a rezar aps enrolarem, num papel, o resto do salsicho.
Ento Cornudet, que digeria os ovos, estendeu as longas pernas sobre o banco
fronteiro, se estirou a trs, cruzou os braos, sorriu como um homem que acaba de se
lembrar duma boa piada e comeou a assobiar a marselhesa.44
Todas as fisionomias se anuviaram. O canto popular, certamente, no agradava a
seus vizinhos. Ficaram nervosos, irritados, e pareciam preste a uivar como co ouvindo
um realejo. Ele notou e no parou mais. s vezes cantarolava mesmo a letra:
Sagrado amor ptria
conduzas e sustentes nossos braos vingadores
Liberdade, querida liberdade
Combatas com teus defensores!
Se caminhava mais depressa porque a neve estava mais dura. E at Dieppe, durante
as longas horas inspidas da viagem, atravs das sacudidelas do trajeto, na noite que
descia, depois na obscuridade profunda do carro, ele continuou, com obstinao feroz,
seu assobio vingador e montono, obrigando os espritos cansados e exasperados a
acompanhar o canto do princpio ao fim, a recordar cada palavra, que aplicavam a cada
compasso.
E Bola-de-Sebo continuava chorando. s vezes um soluo incontido passava, entre
dois versos, no meio da treva.
44
A marselhesa (La marseillaise) o hino nacional francs. Foi composto pelo oficial Claude Joseph Rouget de Lisle, em 1792, da
diviso de Estrasburgo, como cano revolucionria. A cano adquiriu grande popularidade durante a revoluo francesa,
especialmente entre as unidades do exrcito de Marselha, ficando conhecida como A marselhesa. Nota do digitalizador.
http://pt.wikipedia.org/wiki/La_Marseillaise
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A mancha de tinta
mile Bergerat
mile Bergerat (29.04.1845, Paris - 13.10.1923, Neuilly-sur-Seine). Este conto, A mancha de tinta (La tache d'encre) foi extrado
do volume Contos de Calib (Contes de Caliban), editado em 1909. O conto A mancha de tinta pode ter sido escrito no sculo 20
ou 19. Portanto sculo passado o 18 ou 19. Provavelmente 18. Nota do digitalizador.
46
No original madelonnetes: A origem da capela penitencial de Bordus est no convento de Madalena, fundado no sculo 15 e
entregue s religiosas de Maria Madalena (as madelonnetes). Nota do digitalizador. http://www.marianistas.org/
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Eram mais que gentis. Eram deliciosos de paixo e de alegria amorosa. Por
um lindo gesto de inverso conjugal, era ele quem pendia o brao da esposa, e
parecia se entregar a seu domnio. O pai e a me seguiam atrs. Ela
segurando um rapazinho na mo, e os camaradas de oficina formavam o
cortejo nupcial do jovem carroceiro. Quanto a ela, a reconhecera primeira
vista: Era Lusa, a rapariga fichada.
Podes calcular como me voltei rapidamente, pra lhe poupar o vexame que o
encontro poderia lhe trazer. Eu era, talvez, a nica pessoa no mundo a saber,
mas enfim, sabia! Vira o registro! Interrogara a desgraada em meu gabinete
de juiz. Toda sua felicidade, sua vida, talvez, dependiam do conflito de nossos
olhares entrecruzados. No, decerto, que tivesse algo a temer de meus lbios
selados mas sua prpria emoo poderia a trair, justificar ao menos perguntas
fatais, contra as quais no teria fora pra se defender porque, naquele pobre
corpo de mrtir, manchado por toda a lama das sarjetas, a natureza, que no
ficha as mulheres, depositara uma alma luminosa como o azul dos olhos e
incapaz de mentira. Se dissera tudo ao futuro esposo antes do casamento, no
dissera aquilo, visto que ele se casava com ela porque a filosofia amorosa do
operrio parisiense vai at o registro, mas pra ali, e que catstrofe se ele lhe
perguntasse aquilo! Ela confessaria!
S havia um partido a tomar, o mesmo que tomareis: Renunciar ao
miraculoso peixe escabeche e ao belo vinhozinho, e se eclipsar francesa.48
duro, s vezes, envergar a toga!
Trs anos depois eu atravessava uma praa popular, onde brincava uma
revoada de garoto, quando ante minha passagem uma operria, sentada num
banco, se levantou, correu a pegar no filho, que brincava na areia, o levantou
nos braos, mo apresentou e ordenou:
Digas Obrigado!, senhor juiz.
! Essas operarinhas de Paris! Me reconhecera, naquela vez, na taberna,
sob meu disfarce de pescador com vara.
No encubro que requisitei de novo, sob um pretexto qualquer, o registro
fatal, e derramei, como por acaso, o vidro de tinta sobre a pgina em que a
jovem me era desonrada...
48
Qual a origem da expresso sada francesa? (Cristina Ferraz de Souza, Diadema, SP) Ningum sabe. O certo que no existe
melhor exemplo, pra ilustrar a velha rivalidade entre Frana e Inglaterra, que essa expresso, equivalente ao popular sair de fininho,
muito usada em festas e reunies quando algum se retira sem se despedir. Isso porque possui duas verses, uma em resposta
outra. A mais conhecida, sair francesa (take french leave, no original), foi criada pelos ingleses. A outra, sair inglesa (filer
l'anglaise), exclusividade dos franceses. Com toda a incerteza que cerca sua origem, se acredita que ela nascera como uma gria
militar, pra se referir a soldados que deixavam o posto sem avisar. provvel que fora dita em primeira vez durante a guerra dos
sete anos (1756-1763), quando as principais potncias europias se enfrentaram, encabeadas dum lado pela Frana e doutro pela
Inglaterra, afirmou o historiador e professor de francs Alexandre Roche, de Porto Alegre. Mas a rixa entre os dois pases to
antiga que fica difcil saber qual das duas expresses surgiu primeiro, disse a tradutora e tambm professora de francs Rosa Freire
d'Aguiar, do Rio de Janeiro. Nota do digitalizador. http://super.abril.com.br/superarquivo/2002/conteudo_120629.shtml
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Tempo difcil
Catillard
Primeiro ato
Um grande quarto num grande hotel. A janela se abrindo sobre a indolente Mancha. 18h.
Claudina de Mouchoux, 25 anos, est preste a se vestir, sem precipitao. Seu marido, Luiz, na
intimidade Lulu, 35 anos, entrou rapidamente, fechou a porta e caiu, abatido, numa poltrona.
Claudina, calma. O que desejas?, querido. Vamos embora, vamos passar o fim
das frias em casa de minha me ou da tua....
Lulu Mas no podemos ir embora!
Claudina Por qu?
Lulu Porque estamos pendurados no hotel. H seis semanas vivemos aqui, a 300
francos por dia. Faas a conta!
Claudina Poderamos explicar..
Lulu No! No!... Um homem como eu.
Claudina Sim. Evidentemente, vexatrio. E se partssemos sem dizer?
Lulu E a bagagem?
Claudina Deixaramos todas. No tenho mais que roupa imprestvel.
Lulu, refletindo. No! No! Isso no possvel! Por quem nos tomariam?
Claudina Num grande hotel como este j devem estar habituados. Compreendas!
Lulu. Talvez pudssemos empenhar teu colar.
Claudina Ests doido! No posso chegar casa de mame ou da tua sem meu
colar. Seria lindo! E depois jamais o veria.
Lulu Ds um golpe em tua me!
Claudina, rabugenta. s extraordinrio: Golpeies tua me! Como se no
pudesses golpear a tua.
Lulu, Ento, minha cara, com o correr do tempo, nada mais a fazer: Usei e abusei.
Nos veria morrer de fome, pois dificilmente nos forneceria um pedao de po.
Claudina Em todo caso, mame bem me disse, na ltima vez, que era a ltima.
No que no queira, porm no pode.
Lulu Falam assim!
Claudina No, no e no! Jogas como um maluco e, quando perdes tudo, s tens
uma frase na boca: Ajeites tua me!
Lulu Jogo como um maluco! um modo de falar. Perdeste ao menos tanto
quanto eu.
Claudina Por tua culpa! Te vendo perder todo o tempo, pensei que ganharias.
Alis, no reprovando nossas falhas que poremos dinheiro no bolso. Ficars a,
achatado como uma bolacha.
Lulu, enrgico. preciso fazer algo!
Claudina Mas o qu?
Lulu Entretanto no podemos ficar aqui at outubro. Por preo nenhum!
Claudina Tenho uma idia... Me restam 20 luses. Irei casa de minha tia Irene,
em Vendome, e ser o diabo se eu no conseguir arrancar a grande soma.
Lulu O que farei enquanto isso?
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Segundo ato
Uma propriedade, em Vendome. Claudina se prepara pra escrever ao marido
Meu bem-amado Lulu
Tuas cartas me causam muita pena. Te enervas e compreendo isso, mas o
que fazer? A cada vez que abordo a questo monetria minha tia me responde:
Pois sim, est combinado, quando partires! Entretanto deseja que venhas
me buscar: Nada ters de mim enquanto meu sobrinho no vier passar
alguns dias aqui. Entretanto no posso dizer que ests pendurado no hotel.
to provinciana que nos daria nada. Pacincia, esperes! Oito dias mais, oito
dias menos, na situao em que estamos...
Terceiro ato
Lulu, em pijama, l jornal no quarto. Entra Claudina, vinda da estao
Lulu, a apertando contra o corao. Ufa! J ests aqui?
Claudina Arre! Foi com dificuldade tirar 25 luses pra minha viagem, dizendo
que vinha procurar a ti...
Lulu, desesperado. Mas no podemos...
Claudina Bem sei!
Lulu O que concluis a respeito?
Claudina Telegrafes a teu padrinho, o general.
Lulu Nem me responder.
Claudina Vs o ver. Bayeux no to longe. Explicars, de homem a homem.
Lulu Me pregar uma lio de moral!
Claudina Tanto pior!
Lulu E tu?, durante esse tempo.
Claudina Ficarei aqui. Vigiarei as malas.
Lulu Sim. Embarcou na manh seguinte
Quarto ato
Mesma cena, dois dias mais tarde
Lulu Nada! Cai na poltrona.
Claudina, movendo as espduas. ! Os homens... Felizmente titia refletiu. 20 mil
francos, aproximadamente.
Lulu Bravo! Ento enviou os cobres?
Claudina Todavia, iremos a Vendome por causa dos turistas que visitam os
castelos. Partiremos depois de amanh. preciso que eu te apresente um jovem ianque
que deseja te conhecer. Dirs o que quiseres. Minha famlia, afinal de conta, mais
elegante que a tua.
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conselho era claro. Urias no o compreendeu e declarou que no poderia ir dormir com
sua mulher enquanto os amonitas estivessem em Raba. Era difcil a Davi, compreendeis,
explicar o motivo de tanta necessidade de o ver aproveitar a permisso de lavar os ps.
Est bem. Fiques aqui at amanh. No dia seguinte o convidou a sua mesa e o
embriagou. Esperava que os bons manjares e os vapores do vinho vencessem os
escrpulos patriticos do capito (porque nada nos prova que tivesse mais de trs
gales). Mas quando a refeio terminou Urias, em lugar de ir a sua casa, foi dormir na
casa da guarda. Esse militar era verdadeiramente cabeudo. Eu me inclinaria a crer, em
concluso, que deveria ser, no mximo, ajudante.
Davi se impacientou. Vos ponde em sua situao. ento que mandou levar a Joabe,
por Urias, uma ordem de servio em envelope fechado, que autorizava o general a o
desembaraar desse veterano estpido e, de resto, de duvidosa honestidade. conhecida
a passagem: Joabe confiou ao caporal Urias perigosa misso, onde ele foi morto.
E Davi pde desposar Betsab. E essa ao de Davi desagradou ao Senhor.
Porm ns, que no somos mais que pobres mortais, no seremos to severos. Eu
ousaria afirmar que, nessa ocasio como nas outras, Davi granjeou ttulos
imprescritveis a nossa gratido. De fato, antes de si a arte de enganar o prximo estava
ainda na infncia. Sem dvida, o adultrio j existia (alis, o contrrio no seria crvel),
pois est escrito em Levtico XX, 10: Se algum abusar da mulher alheia e
cometer adultrio com ela, que ambos adlteros morram. Mas essa instituio no
entrara ainda, oficialmente, no costume, pois no o Gnesis, o xodo, o Deuteronmio
nem o livro dos Juzes nos citam exemplo a respeito. No nos objetai com o caso do
rapto de Sara, porque Abimeleque nem a tocou, e nenhuma vantagem apresenta a
aventura de Jos com Putifar, pois ela termina em incompatibilidade.
Em conseqncia, mesmo a Davi que cabe a honra de ter dado ao adultrio
existncia legal e, como genial precursor, de haver enriquecido com engenhosas
inovaes o mecanismo dessa operao que, at ento, permanecera em simplicidade
primitiva. Com efeito, encontramos reunidos nesse breve relato todos os elementos
caractersticos dum completo adultrio, tal como se pratica nas civilizaes modernas, e
cujo ponto principal reside no consentimento de ambas as partes e no ignorncia nem
consentimento da terceira (marido ou esposa legtima). De fato, quando essa condio
no realizada, e as trs partes so igualmente concordes, o ato no constitui mais
adultrio propriamente dito, e toma o nome de partilha.
Nos impede agradecer ao bom rei Davi lanar as bases dessa preciosa instituio,
porque a vida sem o adultrio seria uma noite sem estrela, uma estrada sem pouso, uma
rvore sem fruto, um po sem sal.
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s um gnio...
Nada mais encontraste?
Encontrei uma liga escondida num bolsinho.
Est claro! Esta liga azul confirma que a dama loura.
Continuou a examinando minuciosamente.
A mulher tem 26 anos, 1,6m de altura, se banha diariamente, muito sensual,
temperamento extravagante, vivo, usa meia de seda, l Pierre Loti, anti-sufragista,
adora pintura... Que dia hoje? 15 de maio? Hoje se inaugura o salo no Grande
palcio. L estaro. Os capturaremos.
O que fizeste pra saber?
Conclu, pelo exame desta liga, que a amante tem predileo arte. No poder
faltar inaugurao duma exposio de pintura.
Na tarde foram ao Grande palcio. Porm, apenas adquiriram a entrada, um servente
foi a encontro do policial.
Perdoes. s senhor Pinkpallin?
Justamente.
Uma senhora me encarregou de entregar este bilhete.
Dilacerou, febrilmente, o invlucro e leu:
Sou muito sensvel arte mas espero que estejas de acordo comigo ao crer
ser exagerado falar de arte no salo. Irei, pois, a outro lugar.
A amante de Luciano
Pinkpallin se sentiu aniquilado.
Parc de la Villette. Complexo que combina natureza, arquitetura lazer, e cultura. um laboratrio de democratizao cultural,
onde a arte e a sociedade interagem. Nota do digitalizador. http://www.villette.com/
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pavimentos.
Morro! Sufoco! Suspirava senhora Susana, em cada degrau.
No segundo andar um empregado os preveniu de que o cossaco j subira ao terceiro
pavimento.
Melhorou! No mais escada. S elevador.
O enorme ascensor os levou ao terceiro andar.
Que beleza trabalhar no cimo duma torre de 300m! Me dizia Pinkpallin, que
readquiria o esprito combativo de seus melhores anos.
Porm uma ltima surpresa os aguardava: Nenhum trao de cossacos. Desceram da
torre, humilhados.
Enquanto subamos desciam. Ento se divertindo. Mas no esto distantes.
Contudo os vestgios do cossaco j estavam perdidos. Susana voltou at casa,
fatigada e abatida. Ao entrar, a criada disse:
Senhor Luciano Brvilie ficou em casa toda a tarde. Uma senhora loura veio o
procurar, h pouco, e saram juntos.
Uma mulher loura? Sejas sincera: Nada notaste?
Sim. Se tratavam por tu e se beijaram. Susana caiu, desfalecida.
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priso no armrio, com o perfume daquela mulher e pela comoo, apertava, sempre
mais, o amplexo.
Um beijo, dois, trs. Se arrastaram ao leito.
Jack, me vingues!
Porm, meia hora depois, enquanto a bela Susana misturava ainda, entre os lenis,
toda a mgoa de mulher trada, a porta se abriu, silenciosamente, e um homem apareceu.
Luciano! Luciano!
Sabia que desejavas me encontrar. Disse Luciano, calmo, a Pinkpallin,
mostrando no perceber o que sucedia. Te procurei em toda parte. Certamente no
imaginava te encontrar aqui. Me perdes se te incomodo. Ento: O que queres de mim?
Apanhou uma cadeira e se sentou ao lado do leito, exibiu um cigarro, acendeu e, com
o melhor sorriso deste mundo, falou, jovialmente:
Vamos, digas. Sabes que sou teu bom amigo.
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Palavras de amor
Marcel Astruc
scar Me amas?
Olga Ora!
Oscar Digas que me amas. Gosto que digam que me amam.
Olga Ora! Ora!
Oscar Por que no queres dizer?
Olga Porque no verdade. Tens tais idias. Me pergunto o que pde te fazer crer
em semelhante coisa.
Oscar Contudo j disseste.
Olga Pra no eternizar. Julgava que compreendias. verdade que s to
demorado nesses assuntos. Ento fao tudo o que possvel pra abreviar. Aqui, s
assim.
Oscar Se no me amas, por que no me amas?
Olga como se eu te amasse e perguntasses por que te amo. No falemos nisso.
Oscar Entretanto sou um homem delicado, atencioso.
Olga Vejamos! No restaurante sempre me colocas na corrente de ar. Sirvo pra te
abrigar. Te ajeitas pra tentar me fazer crer que o melhor lugar e que por isso que me
ds.
Oscar Ests certa? Pura coincidncia. No notei.
Olga Mas eu sim. Quando tomamos um txi, na entrevia, sobes sempre em
primeiro lugar, por causa dos veculos que vm em sentido inverso. No verdade?
Oscar Seguramente. No verdade!
Olga Negativas feitas em voz baixa. Passemos a outra coisa: Gosto mais de vinho
branco e preferes tinto. No restaurante ds um jeito pra sacrificar meu gosto por ti. Rogo
que acredites que no insistes quando tenho a generosidade de te dizer que no vejo
inconveniente em que peas uma garrafa de moinho-de-vento.
Oscar preciso dizer! Tambm, nada dizes.
Olga Parece que a gente te assassinar, quando no se deseja exatamente a mesma
coisa que tu.
Oscar Em todo caso no podes dizer que no sou generoso. Nunca te recusei
algo.
Olga Ds mas ds mal. E depois, recordas demasiado o fato. Cada vez em que
falas dum presente que fizeste, ele perde um pouco do valor. Na centsima vez, ests de
tal maneira pago, falando a tal respeito, que no te devem mais, e, propriamente, s
quem comea a dever algo. Dirs que podes sempre fazer outro presente. Somente no
se sabe mais em que preo est. um fazer conta que no se acaba mais.
Oscar Te asseguro que no fao conta.
Olga Mentiroso! S fazes isso. Tua cabea uma mquina aperfeioada, que
registra automaticamente. E como s comerciante raro haver pessoa que sai de tua
casa ainda devendo.
Oscar No fao com a inteno de ofender.
Olga No ofendes, pesas. A princpio a gente apenas percebe isso. Se toma a
coisa por um capricho de homem gordo, pouco delicado. Depois a gente sente que
respira dificilmente. Tenhas d! s quem absorve todo o ar. No observaste, quando
tens companhia mesa: No fim da refeio ests sempre no lugar de teu vizinho
imediato. De tal maneira o empurraste falando a ele durante o almoo, que tens uma
parte enorme do banquete do lado em que no h algum, enquanto teu vizinho est
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O marido da romancista
Clment Vautel
No sculo -4 a bela e audaciosa cortes grega Frinia foi julgada, em Atenas, por impiedade. Seu advogado, orador brilhante a
despiu diante dos juzes e foi, imediatamente, absolvida. Nota do digitalizador.
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Folie bergre: Loucura pastoril. Folie bocagre: Loucura bosqumana. O Folie Bergre uma casa musical parisiense cujo pice
de fama e popularidade foi de 1890 a 1920. Ainda funciona com espetculo. Nota do digitalizador
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Despiciendo: adjetivo Que no tem importncia ou cabimento e por isso no merece ser levado em conta. Desprezvel. Nota do
digitalizador. http://www.dicionarioweb.com.br/
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Tristezas do bordel
mile Carrre
I
Os narcisos do piano de manivela
Os pianos de manivela, na poca retratada neste conto, eram explorados nas ruas de Madri por gigols mui bem vestidos e
embonecados, que ostentavam brilhantes falsos nos anis. O forte de seu negcio consistia em se postar sob as janelas de certas
senhoritas protegidas por ancios endinheirados, e tocar maxixe, xote ou valsa da moda. As tais protegidas, a quem seduzia a
garbosa figura dos pianistas, saiam sacada pra escutar prazenteiramente a msica e acabavam obsequiando com moedas de prata e
at notas de banco, que os narcisos do piano de manivela apanhavam, graciosamente, no ar. Nota do tradutor
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Arcipreste: Ttulo dos vigrios de certas igrejas, que lhes confere proeminncia sobre os outros vigrios. Nota do digitalizador.
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II
Cano infantil
Trates de te levantar, que so 4h.
Andes, mulher, pois no ters tempo de ir ao cabeleireiro.
Angelina abriu os olhos. Estava to cansada! Na noite anterior tivera tanta farra em
casa de Salto-Alto! Voltou a casa na madrugada, moda, com a alma desfeita, de olhos
inchados, friccionando o rosto pra apagar os beijos macerantes dos bbedos da noite
anterior, que a possuram brutalmente. Porm trouxe dinheiro pra sua me. Julgava ter
direito a descansar.
Moravam num casebre da estreita rua dos Mancebos, sem mais ventilao que uma
janela sobre o telhado. A casa tinha uma sala e dois quartos. Um era de Angelina,
quando vinha, e outro era ocupado por dona Virtudes, na gostosa companhia de Perico
Castanheda, porque a honrada mulher no podia dormir sem arrulho de varo, costume
ao qual no faltou noite em sua longa existncia.
Castanheda era um rufio cinqento, corrodo das misrias de bordel, que foi seu
corpo calvrio onde o bisturi do cirurgio pintou as cruzes. Figadal inimigo do trabalho,
dado ao jogo e bebida, e a respeito de vergonha, foi a deixando desde moo em
pocilga, meretrcio e taberna.
Se presumia bonito, apesar de seu cabelo grisalho e de seu rosto cruzado por uma
cicatriz, e em sua galhardia viveu muito tempo custa de dona Virtudes, quando ela o
ganhava, e presentemente do garbo de Angelina. Quando voltava embriagado, batia nas
duas mulheres, e quando estava calmo continuava batendo, principalmente na velha, que
agentava as pancadas com canina, e se chegava a ele, passada a nuvem de ira, a o
cumular de carcia.
Numa noite, quando regressou mais bbedo que nunca, cismou de se deitar com a
pequena. Angelina o detestava, e se defendeu heroicamente, com as unhas, a dentadas, a
pontaps, numa luta brbara e repugnante. A velha, numa hedionda nudez, plangia em
meio do quarto:
Angelina, minha filha, melhor ceder, seno nos matar a ambas: Que mais te d!
A menina, com o rosto arranhado, com o peito cheio de sangue, cedeu, enfim, e foi
aquilo uma monstruosa conjuno no leito revolto, onde se uniam o arfar sensual do
bbedo e os soluos desesperados da pequena, em presena de sua me, que via o
quadro com estranha complacncia. Foi uma violao da alma. Desde ento ela foi
tomando velha surda averso.
Naquele dia, aps o jantar, saiu rua. Era maio. As accias pareciam turbulos
nupciais. O cu, lmpido como um rompimento de glria e, havia nas ruas uma alegria
luminosa, como um hino de ressurreio.
Andou, andou, bebendo a serenidade azul da tarde, se embriagando com a fragrncia
da flora nova, se sentindo banhada na alegria primaveril, como numa fonte de luminosa
pureza.
Suavemente se ia sentindo menina, com o ingnuo regozijo daquela remota e lmpida
manh em que fora fazer a primeira comunho, toda branca como uma margarida, toda
perfumada de castidade na roupa e no corao.
Pelo feitio da primavera, a alma da prostituta se abria recordao inefvel como
um loto comunho da Lua.
Chegou a um jardim pblico, todo verde e florido, onde cantavam as crianas como
um transbordamento de cristais de riso e de fragrncia. Na pracinha se erguia o busto
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dum poeta das crianas e do amor, esculpido em mrmore, com sorriso exuvivel57 e
longas melenas nevadas. Nos bancos de pedra os velhinhos sorriam ao raio dourado da
tarde. No idlio azul do jardim, cantava maio galante o madrigal das rosas nascentes e o
epitalmio58 rumoroso dos ninhos.
As vozes infantis esganiavam as velhas toadas dos jardins, que tm aroma de lenda
e doura de favo. o estribilho dum romance que todos cantamos, e que, ao voltar a
nossos lbios, to longe da infncia, nos deixa doce sabor de pranto na boca. Parece que
das runas de nosso corao dolorido, ressuscitamos ns prprios, com o cabelo louros
vestidos de rosa e com a alma virginal.
Angelina, sumida em calmante beatitude, subia, como se alada, sobre sua vida negra,
de amarga lascvia, de noites brutais, de carcias cruis e extenuantes. Se ouvia a voz
ingnua do coro:
Tenho uma boneca
a quem muito quero
de camisinha azul
e dourado bolero
Cantavam as meninas, e a suave toada, branca como os lrios, como os cisnes, como
o trigo branco da eucaristia, talvez se abrisse em suas alminhas brancas como o casto
lrio do anjo, na inefvel anunciao de Maria.
O trouxe rua
e ficou resfriada
a tenho na cama
muito agoniada
Com sua infantil puerilidade, nada era mais humano, mais fundo e mais penetrante
que a voz antiga da modinha. Angelina ia sentindo, no corao, uma espcie de
revelao toda luz, a razo inefvel da vida.
Se eu tivesse um filho!
Profundo estremecimento de felicidade lhe convulsionou a entranha de mulher.
Na louca evoluo de seus jogos chegou at ela um menino muito pequeno, todo
risonho, ouro e encaixes e atrs dele, a me, jubilosa, querendo o segurar no vestido. O
garoto se refugiou no regao de Angelina.
Venhas, filhinho, que incomodas a moa.
Angelina o beijou na fronte. Aquele beijo era o nico que dera com lgrima nos
olhos e sabor de corao nos lbios.
muito lindo, senhora! O benza Deus!
A me riu, com alvoroo.
muito mau, me d muito trabalho. E olhes que o pobrezinho esteve doente neste
inverno.
Deve ser uma dor muito grande ver um filho doente. No ?, minha senhora.
O rosto da me se transfigurou num gesto de angstia.
a dor das dores!
Ia caindo a tarde docemente. A prata mstica das estrelas brilhava no fundo das
fontes estticas. O rouxinol poeta comeava a cantar seu noturno de cristal. O ltimo
verso do romance infantil flutuava entre as roseiras em flor. Se foram os meninos,
fecharam o jardim, que mergulhou em mstico recolhimento, tal como se tivesse uma
57
Exuvivel: adj mf, zoologia Que pode mudar de pele ou epiderme, sem mudar de forma. Nota do digitalizador.
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58
Epitalmio: sm Poema lrico lido, recitado em ocasio de casamento ou composto em louvor a ele. Nota do digitalizador.
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III
O lrio do anjo
Pra mim esta pequena dormiu no ponto. Espies que magrela est ficando, vomita
e tudo a faz enjoar. Pois olhes que em boa te meteste, ingnua!
A me, consternada, lhe cravava no rosto suas garras de harpia.
Mas o que fars com a barriga na boca? E feita uma miniatura? Como te sucedeu
isso?, infeliz! E de qu viveremos quando os homens no puderem se aproximar de ti?
Olhem que de perder a cabea! Obtemperou Castanheda Tenho visto
bobas, mas como esta...
O regime alimentcio daquela honrada casa corria srio perigo por ter Angelina
ficado grvida.
Te convenas de que isso no pode ser. preciso fazer algo pra que no v
adiante.
A menina teve um feroz gesto de pantera. Levou as duas mos ao ventre, como quem
se defende, e brilharam as pupilas, com metlica fulgurao de punhal.
O qu?! Ser que tambm no queres isso?, vagabunda. Tencionas deixar tua me
morrer de fome?, filha maldita.
E o valento atenazou os braos da infeliz moa.
Todas as nobres rebeldias se lhe estrangulavam nalma, sufocadas pelo medo.
que isso me parece um crime.
Ora essa! Se sai com cada uma! Como sempre andas lendo dramalho. Pegaste a
doena da sensibilidade.
Pois seja o que for. Me repugna fazer tal coisa.
A resposta foi uma tremenda bofetada.
Fars o que me der na cachimnia,59 cadela!
E as mos atlticas do rufio se descarregaram, brutalmente, muitas vezes, sobre a
cara de Angelina.
Interveio dona Virtudes e o segurou numa das munhecas:
No sejas animal!, homem. Ests lhe dando na cara e logo mais no haver quem
olhe para ela. Fars o que quisermos. No ?, minha filha.
Angelina chorava silenciosamente, bebendo a lgrima, e germinava no corao um
dio negro, desesperado.
S gozava um pouco de tranqilidade quando, na madrugada, ao voltar a seu tugrio,
ficava s, no meio da grande cidade silenciosa. Ia na rua, lentamente, com vagar de
sonmbula, o pensamento cravado numa idia fixa duma celeste inefabilidade.
Dentro de si pulsava uma vida que era carne de sua carne, sangue seu, alma de sua
alma! No tinha pai: Era mais seu que os filhos das outras mulheres. Nada mais doce,
de mais intensa felicidade que quando sentiu em seu seio as suaves e primeiras
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IV
gua-forte
Pois . Mas que m-sorte. Ests sempre marcada por esse sem-vergonha que vive
com tua me. E ests mantendo a ambos.
O que deves fazer vir. E que busquem a gororoba num quartel.
Angelina no respondia, absorta em sua vida interior. No queria ir morar
definitivamente em casa de Felcia. Lhe dava medo a terrvel cancela que separava a
casa de prazer da alegre liberdade do arreio. Lhe repugnava a vida em comum com
outras, entre obscenidades e brigas, aspirando continuamente o odor acre e violento da
carne desnuda, porque as cordeirinhas de Salto-Alto possuam o gentil costume de
passear em camisa nas dependncias ermida venusiana.
A vida prostibular durante o dia era densa, confrangedora.60 Os rostos sem pintura
tinham uma monstruosidade grotesca, sob as melenas cheirando a suor e a perfume
barato. Tombadas, com mutismo de bestas cansadas, cantarolando alguma copla canalha
e dolente como essas que ouvimos nas esquinas, com infinita angstia, alta noite,
quando as ruas esto mais solitrias.
Quanto dera pra viver sozinha, num quarto muito pequeno e muito branco, donde
visse apenas o cu azul, onde na manh comeasse a coser os trapinhos de quem viria,
lmpido o corao e fortalecido pela esperana!
Mas aquele sonho to lindo era irrealizvel. Tudo o que ganhava era recolhido
diariamente por sua me, a recriminando se acaso a fria no era boa.
Odiava sua me e detestava visceralmente o rufio da velha. Porm lhes tinha um
medo supremo. ! Sobretudo dele! Se ela o visse morto! As surras contnuas, os
insultos mansamente sofridos, sua pobre vida de mrtir pela cobia dos seus, pela
imunda luxria dos estranhos! Jamais algum a tratara com amor.
Desde muito pequena, apenas teria doze anos, sua me a levava a um caf, a uma
tertlia com os velhos libertinos, a fim de que se divertisse com eles. Viviam desses
miserveis escarcus de amor. Todos os dias tirava umas moedas custa da prostituio
de sua alma. Antes do transbordamento da puberdade, sendo ainda virgem de corpo,
conhecia todas as caricias extenuantes. Aprendera a acender a voluptuosidade senil de
seus amigos com afagos vergonhosos. Tinha 14 anos quando dona Virtudes contratou o
sacrifcio da primeira rosa de sua fresca roseira com um velho amigo que a estafou,
segundo a frase da honrada mulher, porque o sensual comprador, depois de se fartar
com a mocinha, no entregou a importncia estipulada. Aquela fraude ps em perigo a
preciosa vida da velha rameira, que at sentiu febre durante muitas noites.
Imaginem, fugir em brancas nuvens aquele ladro, filho duma cadela!
Sempre triste, maltratada, sofrendo o grosseiro capricho e o menosprezo dos que a
prostituam, Angelina tinha a conscincia nebulosa, e o corao cum doloroso farrapo
de bordel.
Muito preocupava os velhos amantes que a pequena estivesse grvida.
Dentro dum ms parecer um fantasma. Muitos homens no gostam de mulher
assim. Castanheda duvidava:
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Tenho um pouco de medo de a fazer abortar. Podemos nos meter numa enrascada.
Pode morrer e ento que teremos arranjado a bia na colnia durante uma temporada.
Exagerado! Nem que fosse a primeira que faz um desmancho. O diabo que a
pequena tomou dio operao. J falei com a parteira e me pede 15 mangos. muita
gaita. Mas o principal que consinta.
E Angelina consentiu.
Uma noitinha foram casa da parteira, entendida em macumbas, hbil na
taumaturgia de beberagem e reza. No quarto andar duma casa duvidosa havia uma
tabuleta que rezava:
Sabina Roldo
Alojamento pra embaraada
Angelina e a harpia entraram numa sala obscura, de mobilirio ruinoso, suja e hostil.
Enormes passarocos dissecados se erguiam sob fanais de cristal. Um gato negro, de
olhos fosforescentes, um desses trgicos e demonacos gatos negros, camaradas das
adivinhadoras do futuro, cruzou, fantasmagrico, ante as visitantes. Na casa havia um
silncio profundo e carregado de receio, de turva inquietude. Rondava o esprito naquela
dependncia, algo tenebroso e cheio de superstio. Dava medo olhar a lmina
amarelenta dum espelho empoeirado, como se nele houvessem de se ver refletidas
carantonhas burlescas e perfis alucinantes como num cristal infludo de magia negra.
Aps curta espera se abriu uma porta, sem rudo, e apareceu ante elas uma figura
esqulida, amarela, alta e translcida, vestida de negro como uma sombra de pesadelo.
esta a pequena que est em apuro?
A voz da bruxa parecia vir de muito longe. Era uma voz penetrante, fria e cruel. Os
olhos fitavam, hipnoticamente, desde as covas violceas e estendia a mo ossuda, mo
de certa beleza morturia, cum gesto proftico.
Angelina sentia um terror infinito ante aquela sombra de mulher.
Nada experimentaste pra abortar?
No, senhora. A pobre nada fez ainda. Essa criatura no pode nascer. Ela da
vida. Seu estado afastaria os amigos e morreramos de fome, pois no temos outra
fortuna alm do que ela ganha honradamente. Mas deves nos fazer um abatimentozinho,
por caridade. Quinze cruzeiros um sacrifcio enorme. No podemos.
As coisas, pra serem bem feitas, tm que ser bem pagas. Poderia aconselhar uma
beberagem qualquer, como um cozimento de urtiga ou de espiga de centeio. Isso
custaria menos. Mas no garanto o resultado. Produz convulso horrvel na matriz e
muito perigoso. Podia nos ficar entre as mos.
Houve um silncio glacial. Angelina sentia um estremecimento de terror at a ponta
das unhas.
Quero examinar. Podes me fazer o favor?
A menina viu, com espanto, a mo esqueltica, de dedos quimericamente longos, que
se afundavam em sua carne, trmula de pavor. A mo gelada, adelgaada pela
contoro, chegava at a entranha, com a suavidade dum rptil.
J deve estar completamente formado.
Angelina prorrompeu em soluo, convulsionada, morta. A bruxa sorria.
E a senhora tem certeza de que no haver perigo?
Nenhum. H dez anos que sou parteira e no tive infelicidade. Calculai as
mulheres que tero passado por minhas mos!
E usas sonda?
Sabina Roldo sorriu, orgulhosa de sua macabra destreza.
Me bastam os dedos.
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V
A busca humilhante
Compreenderam que seria impossvel a fazer transigir. No tornaram a lhe falar de
garrafada nem abortivo. Esperavam.
Angelina ganhava muito pouco. A curva maternal deformava a gentil figurinha,
engrossava a cintura quebradia. Os amigos zombavam. No tugrio durante muitos dias
faltou o que comer.
No anoitecer saa a passear o embarao. A angustiava muito, estava pesada,
aborrecida. Sempre, ao fechar a porta, dona Virtudes clamava suplicante:
Angelina, minha filha, no quero dizer que os vs pescar. Mas se te aparecer
algum homem... Bem vs como estamos.
E Angelina agora procurava os homens, se exibia, namorava, se dedicava caa ao
transeunte voluptuoso com verdadeiro frenesi. Porm nada dizia me e ocultava o
dinheiro, bem enrolado no leno, pra que no tilintasse, durante o dia no peito, sob o
colcho na noite.
Guardava pra seu filho, se entregava ao capricho dos homens quase por gosto, pra
depois fugir com seu filhinho a tentar outra vida, longe de sua me e do rufio, longe da
tristeza do bordel.
Ia a um desses cafs de bairro, onde troa uma banda de regimento. Tomava um copo
de leite e escolhia, entre os paroquianos, o mais propcio pra atirar seu lao galante. Era
uma faina de sorriso, de piscadela, de olhar. Quando um senhor se insinuava, ela punha
os olhos em branco, umedecia os lbios com a pontinha da lngua, ou subia um pouco o
vestido, exibindo a barriga da perna, com o lavrado incitante das meias de seda.
Algumas vezes triunfava. Quase sempre fracassavam as piscadelas e trapaas, e ao sair
do caf no a seguia algum. Perdera a noite e, tristemente, de cabea abatida, voltava a
sua enxovia,61 onde a me passava as cruzes dum rosrio e dormia o leo-de-chcara,
curando uma das suas habituais bebedeiras.
Uma noite esbarrou cum amigo e o conquistou. Era um senhor velho e pudico, que
no queria ser visto com mulheres na rua. Iam, ela adiante e ele atrs, na outra calada,
61
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como um bom burgus que se deliciava com o fresco da noite, a caminho duma guarita
de prazer, quando se encontrou com o menino das olheiras, que a tomou no brao.
Me deixes, que irei com aquele gorducho. Me deixes.
Conseguiste frete, beleza. Pensei que estavas aposentada.
E o cafifa62 no se acanhou de ir atrs deles, os viu se perder num porto escuro. E
aguardou passeando na rua.
Decorrida meia hora, soou a campainha da porta e saiu o casal. Na praa das
Descalas alcanou Angelina.
Estava te esperando. Sabes? Como vi que ias de servio...
O que queres?
Pouca coisa. Um favorzinho: que necessito de duas pilas pra ir ao baile de
Padeiros, onde me esperam, e... estou a nris.63
Angelina respondeu, azeda, querendo ir embora:
No tenho dinheiro. Sinto muito.
Ento no te explicas? Mas se te vi cum mich,64 corao.
E o que tem isso? um capricho.
Agora sim, me desiludiste! Logo cum velho daquele.
H gosto pra tudo!, meu filho.
O que haver so murros. Andes! Soltes as duas pilas E lhe meteu a mo no
bolso Pro trabalho que te custa ganhar...
Mas, a troco de qu te darei dinheiro? Acaso s meu amante?
O que mais querias? Sua tsica! E forcejava pra tirar o porta-moeda, que no
desenrolar da luta se abriu,deixando cair uma moeda de cinco pesetas, que rolou no
calamento. O menino das olheiras correu atrs. Ela se atirou sobre a mo do cafifa, o
mordendo, cravando as unhas.
minha! Ladro! minha!
E o rufio, danado peles arranhes, temendo que viesse algum, a segurou no
pescoo e bateu com a cabea na grade do jardinzinho.
Tomes, pra que no grasnes mais!
Depois fugiu com o dinheiro, nas vielas em penumbra. Quando a moa voltou a si,
comeou a andar, com o rosto ensangentado, angustiadamente, como um pobre animal
sovado.
VI
Junto roda
Noite outonal. No postigo se via o cu profundo, sem estrela. Plangia o vento nas
janelas.
Angelina dormia, muito plida, muito franzina, com as mos cerleas e os lbios
crdeos.65 Junto de si um menino lourinho e branco, que vagia brandamente. A velha
velava, sentada sob o candeeiro de ferro, empoeirado. No tapume se projetava a sombra
de seu nariz de ugure e a barbeta enganchada.
Ao resplendor avermelhado da chama, o quarto era mais sinistro, duma pobreza mais
srdida.
Angelina, ests dormindo?
62
Cafifa: smf, brasileiro Pessoa azarada no jogo ou a quem o jogador atribui sua m-sorte. Nota do digitalizador.
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Nris, neres: adv popular Nada. Neres de biribitiba, nerusca, neres de neres, Neres de pitibiriba, patavina. Nota do digitalizador.
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Mich: sm Ao de se prostituir. Pagamento que recebe a prostituta. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/
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Crdeo, cardo: adj Da cor da flor do cardo, azul-violceo. Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/
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pensar duas vezes antes de brincar com o amor! Quando chega o desgosto, o que se
puxa do bolso no mais o leno e sim um revlver. E nem mais uma questo de
idade: Os amantes mais srios matam como qualquer jovem apaixonado. Deus me
perdoe, os velhos atiram pra dar a impresso de serem moos! Dar o corte, agora, quer
dizer retirar os cartuchos da pistola! Pois bem, tenho amor vida. No quereria estar
exposta a tal desregramento. E o que venho perguntar exatamente o seguinte: Como se
comporta senhor Luciano Bergue quando enganado?
Senhora Bellaine hesitava entre se zangar e desatar a rir. Enfim tocou a campainha. E
no foi pra pr Mado na rua, mas sim pra mandar servir o ch.
Contarei uma anedota. Julgo que bastar. Um dia senhor Bergue entrou, de
improviso, num quarto onde tinha algum direito de entrar. Na cama havia uma pessoa a
mais. Houve um minuto de silncio e de imobilidade entre as trs personagens. A dama
no se sentia vontade, o jovem estava bastante inquieto. Quanto ao senhor Bergue...
um pouco mope, como sabes, e ento se voltou um pouco, olhando no vcuo, e disse:
Bom dia. Onde ests? Esqueci os culos no sobretudo, e no vejo dois palmos
adiante do nariz. E saiu pra ir buscar os culos, fingindo se esbarrar nos mveis.
Voltou quando compreendeu que eu tivera tempo de fazer desaparecer o jovem. Posso
acrescentar que, que eu saiba, todas suas amantes o enganaram e no me parece que se
tenham sado mal. Ao menos por causa dele.
o homem que me convm! Exclamou Mado, com fora.
E as duas tomaram o ch, tagarelando.
E na primeira vez que senhor Luciano Bergue reviu Mado, teve a agradvel surpresa
de encontrar uma pessoa no mais evasiva e de preveno, mas relaxada, simptica e
acolhedora. Ela lhe disse:
Me agradas muito. Tenho confiana em ti. Tudo o que sei a teu respeito me
encanta.
Senhor Bergue corou de satisfao e orgulho.
E pouco tempo depois, teve, pra empregar a expresso de senhora Bellaine, direito a
entrar no quarto de Mado.
Entrava nele da maneira mais delicada do mundo. Quero dizer: Depois de se fazer
anunciar.
Se percebia que era um homem de experincia. O telefone lhe parecia inventado e
colocado em cima das mesas de propsito, pra que um cavalheiro srio possa dizer a sua
amiguinha: Chegarei pra te visitar daqui a um quarto de hora. Tinha sempre um
pequeno acesso de tosse antes de abrir uma porta. E a algum que lhe perguntava uma
vez: Por que no usas sapatos de sola de crepe? respondera: No foram feitos
pra mim.
Um homem muito agradvel, enfim, como se pode ver.
E Mado era a mais feliz das mulheres. Experimentava um sentimento delicioso e to
raro: O sentimento da tranqilidade. Que outras se rejubilem de viver perigosamente e
s se sintam satisfeitas quando tm pimenta em cima da mesa! Mado se contentava em
se expandir livremente, sem clculo e sem receio. algo, na verdade, poder dizer
consigo: Se eu tiver um amante e meu amigo souber disso, no levarei tiro. No
haver um homem ensangentado em minha cama. Meu quarto no ser
invadido pelos policiais. No terei necessidade de comparecer aos tribunais. O
que querem? Nem toda gente gosta dos tribunais. Mado uma mulherzinha loura,
bastante rechonchuda, que gosta de sono demorado, bom jantar, chocolate com torrada e
quimono folgado.
Por isso no se sentiu grandemente comovida quando ouviu se abrir a porta do quarto
num dia em que, ainda para falar como a senhora Bellaine, na cama havia uma pessoa a
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mais. Contrariada, decerto, porque era bastante aborrecido dar a um homem como
senhor Bergue um espetculo to desagradvel, mas no comovida. Sem dvida, senhor
Bergue tossira, como de costume, antes de abrir, mas h momento, no verdade?, nos
quais os rudos do mundo no se nos tomam mais perceptveis. Se endireitou,
envergonhada mas tranqila, e esperou o que ele diria.
! No esperou muito! E o que ele disse no foi o que ela esperava. Disse os mais
abominveis grosserias, dessas que um furor sbito faz brotar da entranha dum homem
alucinado. E fez mais: Tinha uma bengala na mo. Tanto na personagem que estava a
mais na cama de Mado quanto na prpria Mado, bateu, bateu, at que a bengala se
quebrou.
A personagem fugira, bastante maltratada. Bastante mal-tratada tambm, Mado
gemia. Arranhes lhe punham no rosto mil picadas ardentes, as espduas estavam
doloridas, sentia, aqui e ali, a carne inflamar e sobre o seio moo dois ou trs crculos
roxos circundavam o crculo cor-de-rosa que era o natural ornamento. A seus ps senhor
de Bergue soluava.
Perdo, perdo. Gemia ele Fui um louco. Todas minhas amantes me
enganaram, e eu nunca dissera algo. Isso nunca me fizera impresso. Isso nunca me
acontecera. Quer dizer, sim: Na primeira vez. A primeira amante infiel que surpreendi,
foi a mesma clera brusca: Quebrei uma perna do amante e trs dentes dela. Mas depois
disso, nunca mais... ! Mas eis, j compreendo tudo! Sim, sim. isso. Explicarei. que
sempre, sempre, minhas amantes me enganaram com o mesmo tipo de homem. Todas
s vezes que encontrei um amante nos braos duma das minhas queridas, era um jovem
moreno, de olhos pretos, pele lisa e escanhoado. Evidentemente, se os pusessem juntos,
lado a lado, encontraramos diferenas entre si, mas cada um em separado, era o mesmo.
Ento, acabara me habituando. Compreendes? Raciocinara. Minhas amantes, tambm,
se pareciam entre si. Eram todas como tu, louras, rechonchudas e um pouco moles. E eu
no fazia de propsito prs escolher assim. Era necessidade de minha natureza. Ento eu
acabava por admitir que certa lei, contra a qual eu nada podia, queria que eu escolhesse
amantes louras e rechonchudas e que essas mulheres tivessem necessidade de moos
morenos, de olhos pretos, pele lisa e escanhoados. Era uma lei fsica, uma necessidade
orgnica, um fato inevitvel e cientfico, que ia alm de minha vontade e tornava intil
revolta. Me inclinara, como se aceita a conformao do prprio rosto ou as exigncias
do prprio corpo. E juro, quando via na cama duma das minhas amantes um jovem
moreno, de olhos pretos, pele lisa e escanhoado, nada sentia! Mas hoje, o homem que
estava em tua cama era louro, de olhos azuis, pele branca e barbado. E fui tomado da
mesma fria que na primeira vez. Compreendes?
Mado abriu um olho tumefato:
Sim, sim. Mas nesse caso se previne!
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O home
Auguste Bailly
ram suas memrias que Ana de Kriven redigia, entretida, com ardor que a
desprendia da vida presente. No ouvia os nibus que, descendo e subindo a rua
da Bomba, paravam e tornavam a perna rangendo diante da porta do home.67
No via, atravs das vidraas, o jardinzinho retangular onde quatro castanheiros
ofereciam sombra aos pensionistas, onde os lils que escondiam os muros
desabrochavam as primeiras flores. Outra primavera, mais ardente e mais emocionante,
ressurgia nela, com todas as galas. Escreveu:
Eu alcanava quinze anos quando tive a revelao do amor.
Nesse instante, bateram porta.
Entres!
Esbelta, risonha, rigorosamente trajada de preto, tendo como nico enfeite uma gola
de piqu branco, o cabelo louro preso numa rede, Olga Smirnov, sua secretria, entrou
no aposento cuja porta fechou aps si.
L fora est um sacerdote, senhorita, que deseja te ver.
Um sacerdote? Um sacerdote que quer tomar penso?
No sei. Disse que se chama Abade Jgou, secretrio de monsenhor le Gallo,
bispo de Din.
Ana de Kriven se ergueu a meio, muito comovida.
De Din? Minha diocese! A diocese de todos meus antepassados! Mandes entrar,
minha filha, mandes entrar!
Home: Casa, lar, famlia, ptria, cidade ou terra natal, habitculo, ponto de origem, sede, centro, estabelecimento, instituio,
asilo, abrigo, [...] IV vt dar moradia, alojar, conduzir at a casa. No texto se trata de evidente anglicismo, j que no se encontra o
vocbulo em francs. Nota do digitalizador. Dicionrio ingls-portugus Barsa 1973
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Se me julgas digno de tua amizade, pra mim ser uma alegria imensa e a desforra
mais preciosa. Mas no te entregues aos impulsos de tua generosidade, senhorita, peo.
Na vida preciso ser desconfiado e duro. Sou um forasteiro, um desconhecido. Me
trates nessa qualidade at o dia em que tiver certeza de eu merecer mais.
Certeza? J tenho! Minha intuio nunca me engana.
E acrescentou, baixando os olhos:
As intuies duma mulher, sabes...
Trs pancadas leves mas resolutas interromperam essa efuso.
Entres! Entres.
Olga se limitou a abrir a porta.
Devo mandar subir a bagagem do cavalheiro, e a levar ao quarto?
Certamente, minha filha, certamente. Respondeu Ana, apressada Eu
chamaria agora mesmo. Mas primeiro as apresentaes. Senhor Pedro le Gallo, meu
compatriota, sobrinho de monsenhor, a respeito de quem falei. Senhorita Olga Smirnov,
minha secretria e meu brao direito.
Olga respondeu ao cumprimento de le Gallo, sem estender a mo nem olhar, com
simples aceno de cabea.
Queres me seguir?, senhor.
Enquanto ela subia a escada na frente, ele observava, como um conhecedor, o andar
flexvel daquele corpo esbelto e harmonioso, as compridas pernas de danarina, duma
linha to pura, a massa cintilante do cabelo dourado preso numa rede de larga malha.
Pensou:
Upa!
Essa simples palavra resumia eloqentemente, pra si, toda sua impresso.
Indiferente e polida, Olga abriu a porta do quarto, se afastou pra o deixar passar,
chamou a ateno sobre a vista que dava ao jardim, se ofereceu pra modificar a
arrumao dos mveis caso o desejasse, finalmente indicou o horrio das refeies, sem
que seu olhar se deixasse surpreender. Pedro sorria levemente. Disse, afinal:
Agradeo. Tudo est muito bem. Depois, em tom negligente, perguntou:
s estrangeira?, senhorita.
Ento ela ergueu os olhos a ele e, durante um segundo, ele se sentiu, medido e
julgado.
Sou russa.
E, sem indiscrio, por que te meteste neste buraco? Perguntou, a meia-voz.
Ela o olhou outra vez, sorriu imperceptivelmente e levantou os ombros.
preciso viver.
Ele comeou a rir.
A quem ests dizendo? Pois bem! Procuraremos viver!
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No folclore breto um korrigan uma fada ou duende. A palavra significa (korr duende, ig um diminutivo e o sufixo an um
hipocorstico) pequeno duende. O nome varia de acordo com o lugar. Entre os outros nomes h kornandon, ozigan, nozigan,
torrigan, viltas, poulpikan, paotred ar sabad... Nota do digitalizador. http://en.wikipedia.org/wiki/Korrigan
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Se senhorita Ana pudesse adivinhar o significado do rpido olhar que sua secretria e
seu hspede trocaram, ficaria fulminada. Mas a dominavam seus sonhos. A realidade
lhe escapava.
Fora preciso pouco tempo pra que Pedro le Gallo e a jovem russa se sentissem
irresistivelmente mutuamente atrados. Essa afinidade, a que Pedro se referira numa
frase cheia de subentendido, era a que logo os aproximou. Numa olhadela se
conheceram e se sentiram iguais e cmplices.
Ana de Kriven no podia suspeitar, e no acreditaria se ouvisse, que essa Olga to
discreta e senhora de si, to sbria de atitude e distante de todos, fora profissional numa
boate de Xangai e que sua beleza e crueldade provocaram alguns suicdios. Quanto a
Pedro le Gallo, fora, em Tnis, o protetor, bem recompensado, duma velha judia da qual
acabara roubando as jias. Monsenhor no o ignorava, porque fora quem liquidara a
conta, mas no julgara oportuno informar os fatos a dona do home.
Pedro e Olga nunca se interrogaram acerca de seu passado: Desconfiavam
perfeitamente do que ele seria pra ambos, mas no se preocupavam com isso. Os ligara
poderosa atrao fsica e se sentiam to perfeitamente concordes de alma quanto de
corpo e talvez no se enganassem quando diziam que sua unio era definitiva. Em
primeira vez na vida tinham a impresso de estabilidade e solidariedade.
Todas es noites, depois dos pensionistas do home se recolherem. Pedro ia ao quarto
da amante e s o deixava no alvorecer. Depois de se esgotarem em carcia, conversavam
sobre e futuro. Entre outros projetos havia um que os encantava fortemente: Comprar,
em Passy, um pequeno cabar russo, a Isba, cujo xito saberiam garantir, pois possuam
uma experincia bastante rica e extensa pra saber por que espcie de atrativo, atrao,
tentao e facilidade possvel garantir uma clientela escolhida, tanto mais
remuneradora quanto melhor servida nos vcios mais secretos, sem perder a aparncia
de correo e de elegncia.
Ambos faremos dela uma das primeiras boates de Paris! Ganharemos ali um
milho por ano. E isso nada nos custar!
Sim, nada. ! Realmente nada! Apenas e Olga ria um nada que no
possumos. Ser que conseguirs os 200 mil francos?
Tentarei.
Me ouas. Disse ela, docemente Refleti. Preparei um plano. Creio que
bom. preciso aproveitar esse amor que a velha sente por ti. Um amor que a torna
estpida como uma garota de 15 anos, que se ajoelha diante da fotografia de seu
querubim. nosso s de espada.
J pensei nisso. Mas no vejo como agir.
Vejo. A princpio pensei que poderias te tornar o amante dessa velha luntica.
No. Nada a fazer! A virtude dos Kriven, a honra ancestral. Impossvel! Mas uma vez
que sonha te desposar, uma vez que, sem notar, passa o tempo descrevendo a ti a
existncia futura de ambos, nesse solar que ela quer adquirir e onde ser senhora Pedro
le Gallo, preciso, desde j, o fruto est maduro, tratar disso diretamente e, sem
prometer, deixando tudo esperar.
Talvez. Disse Pedro le Gallo, meditativo Resumindo. Se seguirmos a linha
que indicaste, eis como a manobra se desenharia: Tambm estou apaixonado. Me sinto
velho e prematuramente gasto. Quero mudar de vida. O amor que sinto, amor tmido
que mal ousa se confessar, me torna outra vez virgem. Mas minha dignidade me impede
de desposar uma mulher rica, visto que nada possuo. Primeiro preciso fazer um pequeno
capital. Ora, deparo um negcio magnfico. Por exemplo, se ela perguntar mincia, uma
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sociedade com meu patro. Se eu entrar comandita com 200 mil bagarotes,69 ganharei
500 mil em dois anos. Nesse dia poderei me casar de cabea erguida! Por isso estou em
via de achar quem me empreste. e espero achar, dentro dalguns meses!
Perfeito. Disse Olga Ela no admitir que tomes dinheiro emprestado doutra
pessoa. Principalmente no admitir ter de esperar, quando vir o fim a alcance de sua
mo, e te oferecer o cheque numa salva de prata. Depois, cspite!70
Depois? Repetiu Pedro Pois bem, depois daremos o fora. Continuo devedor
seu. Nada prova que no a reembolsarei. O negcio rigorosamente correto! Nos
restar apenas construir nossa vida!
Me abraces. Murmurou Olga, com aquela voz sufocada que ele no podia
ouvir sem se sentir perturbado.
Se inclinou a ela e as bocas se uniram.
Destarte se verificou, nas maneiras de Pedro le Gallo, em sua atitude a com Ana de
Kriven, nas palavras que trocava com ela, uma sensvel e gradativa transformao.
Falava menos. Muitas vezes se perdia em sbito devaneio, do qual se arrancava com
visvel esforo. Parecia preocupado. A senhorita de Kriven parecia que ele andava
melanclico e ela multiplicava as provas de seu interesse, a manifestao de sua ternura.
s vezes lhe dizia, quando estavam sozinhos:
No s mais o mesmo. Te aflige uma preocupao que no me queres confessar.
! Reconheo que a escondes bem! Mas como poderia me enganar? Sem dvida no
tenho direito a exigir uma confisso qual talvez teu orgulho se oponha. Mas a amizade
no cria direito? Penses bem que no ests mais sozinho e no me recuses a alegria de te
ajudar, caso possa!
Ele suspirava. No respondia. Depois, como impelido por fora irresistvel, falava,
em temos velados, dessa timidez que provoca no homem, quando ele muito sofreu, uma
invencvel desconfiana em si e do que a vida lhe possa trazer. Ele evocava essa
necessidade de ternura, de comunho espiritual, que lhe pareciam, doravante, a prpria
condio da felicidade. Mas ser que determinados seres tm direito de a esperar?
Se o passado to acabrunhante, to difcil de carregar, ainda mais difcil de esquecer,
no os probe pensar nisso? E quando, pra maior desdita, no podem resistir ao
arrebatamento dum amor insensato, dum amor demasiado belo, demasiado puro pra
eles, como no se sentirem abatidos pela tristeza, uma vez que sabem perfeitamente que
mesmo o confessar seria absurdo e lhes proibido?
Depois, quando via Ana de Kriven desvairada de alegria, preste a se atirar a seus
braos, a deixava precipitadamente, se desculpando de haver falado assim a seu respeito
e prometendo no recomear. Era ela, ento, logo em seu primeiro encontro, quem o
crivava de pergunta e suplicava que lhe confiasse sua aflio.
Ela no podia duvidar mais: Ele a amava! Ele a amava e, por generosidade, receoso
de que o julgassem interesseiro, talvez tambm temeroso de que ela o achasse muito
moo, no se decidia confisso que ela aguardava, que almejava apaixonadamente e
que lhe arrancaria, enfim, caso no pudesse o levar manifestar! ! Como a vida seria
bela, e que cus o destino lhe estava entreabrindo!
Embora perdera, no excesso de sua alegria, todo o contacto com a realidade terrena,
senhorita de Kriven no podia deixar de preparar uma festinha, ntima e calorosa, em
honra a general Mardelet, a quem a chancelaria acabava de conceder, finalmente!, a
69
Bagarote: sm gria brasileira Nota ou moeda de mil-ris, grana, dinheiro (mais usado no plural). Nota do digitalizador.
http://www.dicio.com.br/bagarote/
70
Cspite!: Interjeio de admirao ou aprovao. Bravo! Caramba! Viva! Nota do digitalizador. http://www.dicio.com.br/caspite/
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s 8h ouviu descerem a bagagem: Dois txis estavam parados diante da porta. Ela os
olhou um instante, depois deixou cair a cortina. Foi ento se sentar a sua pequena
secretria e, num jato, escreveu:
Monsenhor, circunstncia independente de minha vontade e sobre a qual me
seria odioso esclarecer, me obrigou a expulsar do home o sobrinho de Vossa
Grandeza.
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O direito de pernada
Cami
Primeiro ato
O casamento do vilo
A cena representa a choupana do jovem e belo vilo
ovem-e-belo-vilo Sou feliz porque hoje desposarei minha vizinha, a
Bela-vil.
Primeiro-rstico-convidado No entanto a expresso de sua
fisionomia parece melanclica.
Jovem-e-belo-vilo Pois bem. Sim, meus amigos. Sofro, tenho cime, porque
nesta noite, em virtude do direito de pernada, o senhor do castelo feudal partilhar o
leito da Bela-vil que desposarei hoje.
Segundo-rstico-convidado um belo moceto, ao que parece, mas d maus
hbitos s jovens desposadas.
Terceiro-rstico-convidado verdade. No dia seguinte a meu casamento, minha
esposa, depois de ter passado a noite de npcia, com o senhor, me submeteu a uma
exigncia revoltante. Mesmo que seja um servo, as foras humanas tm limite.
Jovem-e-belo-vilo Mas distingo sobre a estrada empoeirada meu av-bufo, que
veio assistir meu casamento. No o vejo desde a idade de cinco meses mas o conheo
pelo traje de barqueiro.
Av-bufo Sou eu. Como cresceste desde aquele tempo! Nos preparemos pra
festejar este dia feliz.
Stimo-servo-convidado Eis a noiva, que se aproxima.
Coro-dos-rsticos Viva a desposada!
Segundo ato
A devoo
A cena representa a choupana do Jovem-e-belo-vilo
no dia seguinte
Jovem-e-belo-vilo Eis a aurora. Passei a noite na casa dum vizinho. No tive
pacincia de esperar mais pra vir consolar minha cara esposa. Mas o senhor do castelo
feudal talvez ainda no tenha partido. Entremos nas pontas dos ps. Entrando nas pontas
dos ps O que vejo! A porta do quarto nupcial est aberta. minha esposa em sono
profundo, o leito no est em desordem. O que significa?
Bela-vil acordando Olhes, meu marido!
Jovem-e-belo-vilo O senhor j partiu?
Bela-vil Vi ningum na noite inteira. O esperei, como de hbito. Mas no
vendo chegar algum, adormeci.
Jovem-e-belo-vilo incompreensvel! O senhor do castelo feudal entrou, no
entanto, em minha choupana, ontem na noite.
Bela-vil Chut! Escutes! Algum sai do quarto pegado.
Jovem-e-belo-vilo espiando no buraco da fechadura o senhor do castelo feudal.
Sai da choupana com passo cambaleante.
Bela-vil Mas o que fazia no quarto contguo?
Jovem-e-belo-vilo Nada compreendo! o quarto onde dorme meu Av-Bufo!
Voz do senhor-do-castelo-feudal f de cavalheiro! Nunca gente rstica me fez
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O impasse
Colette
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Recordao
Eugnio Heltai
Cenrio
O apartamento de solteiro do dramaturgo festejado, que, devido ao fato de sua tragdia O
ltimo... no ter alcanado mais de oito representaes, e com o teatro vazio, continua instalado
com a mais nobre e severa simplicidade. Nas paredes, cartazes de teatro e coroas de louro,
sabre cujas fitas as letras douradas j perderam o brilho. Em lugar bem visvel da mesa de
trabalho, um magnfico tinteiro, no qual, visto que o dramaturgo escreve no caf, a tinta secou
definitivamente. Atrs do tinteiro, uma fotografia duma festejada atriz, tirada momentos antes,
duma gaveta, entre muitas outras fotografias de artistas clebres e no. A limpou e colocou,
cuidadosamente, como se estivesse ali havia muitos anos.
Ao se levantar o pano, o festejado dramaturgo est estirado no sof, em posio de elegante
abandono, fumando um cigarro. A porta se abre e entra a artista, a quem o criado, porteiro
tambm nos momentos mais burgueses, fez entrar discretamente.
O dramaturgo festejado pulando do sof e atirando fora o cigarro Lenke! Querida
Lenke!
A atriz festejada com grande fervor J acreditas?
O dramaturgo festejado com grande fervor Acredito! ! Que coisas devem ter
acontecido pra que a senhora... pra que eu... pra que ns... Querida! A quer beijar
A atriz festejada com terno protesto No! Peo! Neste aniversrio, que pra mim
to precioso quanto pra ti indiferente, quis tornar a ver este quartinho. s um homem
delicado. Confio em que no deitars a perder minha emoo.
O dramaturgo festejado um pouco desiludido Como queiras. J se v que o quarto
no mudou. Tudo est no mesmo lugar de sempre. Teu retrato tambm.
A atriz festejada sorrindo Foste muito amvel em o usar pra esta ocasio solene.
Olha, sonhadora, o retrato Cinco anos! Meu-deus! Como eu era criana! E como estava
enamorada de ti! Hoje no compreendo, verdadeiramente, como pude estar to
enamorada.
O dramaturgo festejado com sombria blis Est visto que tens sugestes amveis.
Como pde estar enamorada de mim! Esqueces que h oito anos (pois o fato ocorreu h
oito anos, e no h cinco), eu tambm era oito anos mais moo. Tinhas mais sorte que
eu, j que s, ao menos, doze anos mais moa que eu.
A atriz festejada tambm biliosa Significa que envelheci muito?
O dramaturgo festejado No. Unicamente que ento diminuas quatro anos em
tua idade. Confessava ter 18, embora, mesmo entre irmos, j tivesses 22.
A atriz festejada Vejamos quanto tempo terei ainda de escutar tuas grosserias?
O dramaturgo festejado muito fcil remediar isso. Se no queres escutar me
feches a boca com a tua. Quer a beijar novamente
A atriz festejada com mais enrgica resistncia No! Peo! Deixemos a comdia!
Bem vs, quando me recordas que h cinco anos, oito segundo tu, que estive em
primeira vez em tua casa. Nunca teria acreditado que tornaria a pr os ps nesse
aposento. E agora queres recomear no ponto em que terminamos. Ento. No, meu
caro amigo. Nada disso! Vim qui como quem vai a um cemitrio, visitar o tmulo dum
ente querido. Falemos das velhas recordaes e... Batendo na mo do escritor abaixo as
mos!
O dramaturgo festejado de novo fino Como queiras.
A atriz festejada Te tranqilizes e escutes. Te sentes a, junto mesa, onde
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