O Cordeiro de Deus
O Cordeiro de Deus
O Cordeiro de Deus
Sob este título, com a graça de Deus, nos colocamos diante de uma bela tarefa:
Pretendemos trazer aos leitores partes de um livro da maior importância para todos os
cristãos, não só católicos. Trata-se do livro da grande mística alemã, Ana Catarina
Emmerich, aqui no Brasil intitulado “Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus”,
– que pode ser adquirido pelo site www.adashop.com.br . Aconselho a todos os que
puderem ler este livro na íntegra, que não percam a chance. Todas as famílias
católicas da terra o deveriam ter. Colocamos aqui, apenas as partes mais importantes.
Como não poderia deixar de ser, primeiro trazemos a parte relativa à vida da própria
mística, para que os leitores compreendam a dignidade superior de seu ministério.
Isso só vem edificar a sua obra e dar valor ao seu conteúdo de fé. Talvez nenhuma
outra pessoa na terra, jamais tenha tido a graça de ver, com os próprios olhos, e com
tão perfeita ordem, tudo aquilo que aconteceu com nosso Senhor, Jesus Cristo, desde
os dias de Seu nascimento, até Sua morte dolorosa na Cruz. De fato, o Calvário fica
real diante dos olhos do leitor, a medida que as palavras forem fluindo diante de
nossas vistas.
Eis aí um pouco da vida desta grande santa. Há mais textos a respeito dela, porém
cremos que o essencial está aqui retratado. Infelizmente, ainda não feita santa pela
Igreja, mas com certeza esta glória ela tem no Céu. Vejam o ódio de satanás contra
ela, tal que o seu processo de beatificação teve início em 1892, portanto há 111 anos,
sem ter andado quase nada. Só agora, recentemente, foi aceito um milagre atribuído a
ela, que deverá agilizar o processo. Somente este fato deveria acender o coração dos
homens da Igreja, para que se debruçassem sobre seus escritos, porque certamente
eles são da maior importância.
Nós, porém, vamos fazer a nossa parte. Com a colaboração de todos, editor, leitores
e divulgadores, poderemos fazer chegar a muitos, pelo menos as partes mais
importantes destas preciosas revelações. Este primeiro texto termina aqui, mas em
breve os outros chegarão, certamente para o bem e a edificação de muitos.
PS. Como viram a data de início deste trabalho é de 26/06/03. Hoje, quando reviso o
texto, leio as matérias relativas ao filme A PAIXÃO, do ator Mel Gibson, que é baseado
nas visões desta grande mística da nossa Igreja Católica. Também fico sabendo que
tudo isso está impulsionando, finalmente, o processo de canonização dela, o que já
não é sem tempo.
Maria tinha três anos e três meses, quando fez o voto de associar-se às virgens santas,
que se dedicavam ao serviço do Templo. Antes da partida fizeram na casa paterna
uma grande festa, à qual estiveram presentes cinco sacerdotes, que sujeitaram Maria
à uma espécie de exame, para ver se já chegara à idade de juízo e madureza de
espírito, para, ser admitida no Templo. Disseram-lhe que os pais tinham feito por ela o
voto, que não devia beber vinho ou vinagre, nem comer uvas ou figos. Maria ainda
acrescentou que não comeria nem peixe, nem especiarias, nem frutas, senão uma
espécie de pequenas bagas amarelas, que não beberia leite, dormiria na terra e se
levantaria três vezes durante a noite para rezar.
Os pais de Maria ficaram muito comovidos com estas palavras. Joaquim abraçou a
filha, exclamando, entre lágrimas: “Oh, minha querida filha, isto é duro demais; se
assim queres viver, teu velho pai não te verá mais”. - Foi um momento de profunda
comoção. Os sacerdotes, porém, disseram que se devia levantar só uma vez para a
oração, como as outras virgens, juntando ainda outras circunstâncias atenuantes,
como, por exemplo, que devia comer peixe nas grandes festas”.
Maria ofereceu-se também para lavar as vestes dos sacerdotes e outras roupas
grossas. No fim da solenidade, vi que Maria foi abençoada pelos sacerdotes. Ela estava
em pé, num pequeno trono, entre dois sacerdotes; aquele que a abençoou, estava-lhe
em frente, os outros atrás. Os sacerdotes rezaram alternadamente, em rolos de
pergaminho e o primeiro abençoou-a, estendendo as mãos sobre ela.
Tive nessa ocasião uma maravilhosa visão do estado íntimo da santa Menina. Vi-a
como que iluminada e transparente pela bênção do sacerdote e sob seu Coração, em
glória indizível, vi a mesma imagem que na contemplação do santo Mistério na Arca da
Aliança.
Numa forma luminosa, igual à do cálice de Melquisedec, vi figuras brilhantes,
indescritíveis, da bênção da promissão. Era como trigo e vinho, carne e sangue, que
tendiam a unir-se. Vi, ao mesmo tempo, que sobre essa aparição o Coração da Virgem
se abriu, como a porta de um templo e o mistério da promissão, cercado como de um
dossel, guarnecido de misteriosas pedras preciosas, lhe entrou no Coração aberto; era
como se a Arca da Aliança entrasse no templo. Depois disso, encerrava o coração da
Virgem o maior bem que naquele tempo havia no mundo. Desaparecendo essa
imagem, vi apenas a santa Menina cheia de ardente devoção e amor. Vi-a como que
extasiada e elevada acima da terra”.
Joaquim e Ana viajaram com Maria para Jerusalém. Em procissão solene foi a Menina
introduzida no Templo; depois de oferecido um sacrifício, erigiu-se um altar por baixo
de um portal. Maria ajoelhou-se nos degraus, enquanto Joaquim e Ana lhe puseram
as mãos na cabeça, proferindo orações de oferecimento. Um sacerdote cortou-lhe
então um anel do cabelo queimou-o num braseiro e vestiu-a de um véu pardo. Dois
sacerdotes conduziram Maria muitos degraus para cima, à parede divisória que separa
o Santo do resto do Templo e colocaram-na num nicho, do qual se via o Templo, em
baixo. Depois um sacerdote ofereceu incenso no altar próprio.
“Vi brilhar sob o Coração de Maria uma auréola de glória e soube que continha a
promissão, a bênção santíssima de Deus. Essa auréola aparecia como que cercada
pela arca de Noé, de modo que a cabeça da Santíssima Virgem sobressaia acima da
Arca. Depois vi a figura da arca de Noé transformar-se na da Arca da Aliança, cercada
pela aparição do Templo. Então vi desaparecer essas formas e sair da auréola
brilhante a figura do cálice da última ceia, diante do peito de Maria. Aparecendo-lhe
diante da boca um pão assinalado com uma cruz.
Dos lados lhe emanavam numerosos raios de luz, em cujas extremidades apareciam
muitos mistérios e símbolos da SS. Virgem, como, por exemplo, os nomes da Ladainha
de N. Senhora, em figuras. Do ombro direito e do esquerdo cruzavam-se dois ramos de
oliveira e cipreste sobre uma palmeira pequena, que vi aparecer atrás de Maria. Entre
esses ramos vi as formas de todos os instrumentos da paixão de Jesus. O Espírito
Santo, com asas luminosas, parecendo mais figura de homem do que de pomba,
pairou sobre a aparição. No alto vi o céu aberto, com a Jerusalém celeste no centro,
com todos os palácios, jardins e habitações dos futuros Santos; tudo estava cheio de
Anjos; também a auréola de glória que cercava Maria, estava cheia de cabeças de
Anjos.
Então desapareceu a visão gradualmente, como aparecera. Por fim vi somente o
esplendor sob o Coração de Maria e luzir nele a bênção da promissão. Depois
desapareceu também essa visão e vi apenas a Santa Menina, consagrada ao Templo,
guarnecida de seus adornos, sozinha entre os sacerdotes”.
Maria despediu-se dos pais e foi entregue às mestras: Noemi, Irmã da mãe de Lázaro e
a profetisa Ana, outra matrona. Então vi uma festa das virgens do Templo. Maria
tinha de perguntar às mestras e às meninas, uma a uma, se queriam deixá-la ficar
junto delas. Era o costume adotado. Depois fizeram uma refeição e no fim houve uma
dança; estavam umas em frente às outras, duas a duas e dançando formavam figuras:
cruzes, etc.
De noite Noemi conduziu Maria ao seu quartinho, de onde se podia ver o interior do
Templo. O quarto não formava um quadrângulo regular; as paredes estavam
marchetadas de triângulos, que formavam várias figuras. Havia no quarto um
banquinho, mezinha e estantes nos cantos, com diversos repartimentos para guardar
objetos. Diante desse quartinho havia um quarto de dormir e um guarda-roupa, como
também a cela de Noemi.
As virgens do Templo usavam vestido branco, comprido e largo, com cinta e mangas
muito largas, que arregaçavam para o trabalho. Estavam sempre veladas.
Maria, era, para sua idade, muito hábil; vi-a trabalhar, fazendo já pequenos lenços
brancos, para o serviço do Templo.
Vi a Santa Virgem passar o tempo parte na morada das matronas (com as outras
meninas), parte na solidão do quarto, em estudo, oração e trabalho. Trabalhava em
ponto de malha e tecia, sobre varas compridas, panos estreitos, para o serviço do
Templo. Lavava as toalhas e limpava os vasos do Templo. Vi-a muitas vezes em oração
e meditação.
Além das orações prescritas no Templo, Maria SS. tinha como devoção especial o
desejo contínuo da Redenção, que lhe constituía uma ininterrupta oração da alma.
Guardava esse desejo como um segredo e fazia as devoções às escondidas. Quando
todas dormiam, levantava-se do leito, para orar a Deus. Vi-a muitas vezes se desfazer
em lágrimas e rodeada de celestial esplendor, durante a oração.
A alma da Virgem parecia não estar na terra e gozava muitas vezes de consolações
celestes. Tinha um desejo indizível da vinda do Messias e na sua humildade, apenas
se atrevia a desejar ser a serva mais humilde da Mãe do Salvador.
Tendo as virgens do Templo alcançado certa idade, casavam-se e deixavam o serviço
do mesmo. Quando chegou, porém, o tempo de Maria, ela não quis deixar o Templo;
mas disseram-lhe que devia casar”.
“Eu vi, conta Catharina Emmerich, que um sacerdote muito idoso, que não podia mais
andar (provavelmente o Sumo Sacerdote), foi transportado por alguns outros, numa
cadeira, para diante do Santíssimo e rezou, lendo num rolo de pergaminho que lhe
estava em frente, sobre uma estante, enquanto se queimava um sacrifício de incenso.
Extasiado em espírito, teve uma aparição, sendo-lhe a mão colocada sobre o rolo, onde
o dedo indicador mostrava a palavra do Profeta Isaías: E sairá uma vara do tronco de
Jessé o uma flor brotar-lhe-á da raiz. (Is. 11, 1). Quando o ancião voltou a si, leu esse
verso e conheceu-lhe a significação ensinada na visão”.
Enviaram, portanto, mensageiros por todo o país, convocando todos os homens
solteiros da estirpe de Davi ao Templo. Reuniram-se muitos deles no Templo, em
vestes de gala, e foi-lhes apresentada a Virgem Santíssima. Vi ali um jovem muito
piedoso da região de Belém; tinha também implorado sempre, com ardente devoção, a
vinda do Salvador prometido e vi-lhe no coração o grande desejo de ser o esposo de
Maria. Esta, porém, se recolheu à cela, derramando lágrimas abundantes e não podia
conformar-se com o pensamento de ter de renunciar à virgindade.
Então vi que o Sumo Sacerdote (segundo a inspiração recebida do Céu) distribuiu
ramos a todos os homens presentes, com ordem de marcar cada um o seu ramo com o
respectivo nome e segurá-lo nas mãos, durante a oração e o sacrifício. Feito Isso,
todos entregaram os seus ramos, que foram colocados sobre um altar, diante do
Santíssimo; anunciou-lhes o Sumo Sacerdote que aquele cujo ramo florescesse, seria
destinado por Deus a desposar a Virgem Maria de Nazaré. Enquanto os ramos
estavam diante do Santíssimo, continuaram os homens a oferecer sacrifícios, a rezar;
vi que aquele jovem clamava instantemente a Deus, com os braços estendidos, num
dos átrios do Templo e rompeu em lágrimas, quando todos receberam os seus ramos e
foram informados que nenhum florescera e, portanto, nenhum dentre os presentes
fora destinado a ser o esposo dessa Virgem.
Vi depois que os sacerdotes do Templo procuraram de novo, nos registros das
gerações, se havia ainda um descendente de Davi, que antes tivessem saltado. Como,
porém, fossem marcados seis irmãos de Belém, de um dos quais já há muito tempo
não havia notícias, procuraram o domicílio de José e acharam-no, num lugar não
muito longe de Samaria, situado num ribeiro, onde morava sozinho, perto do ribeiro,
trabalhando em serviço de outros mestres. Estaria talvez na Idade de 33 anos.
À ordem do Sumo Sacerdote, veio José com o seu melhor traje ao Templo de
Jerusalém. Teve também de segurar um ramo, durante o sacrifício e as orações;
quando quis pô-lo sobre o altar, diante do Santíssimo, brotou uma flor branca, como
uma açucena, na ponta do ramo e vi descer sobre ele uma aparição luminosa, como o
Espírito Santo. Então reconheceram José como esposo de Maria, escolhido por Deus e
apresentaram-no à Maria, em presença de sua mãe e dos sacerdotes. Maria,
conformada com a vontade de Deus, aceitou-o humildemente por noivo.
As núpcias foram celebradas em Jerusalém. Depois seguiu Maria com a mãe para
Nazaré; José, porém, foi primeiro a Belém, a negócios de família. À sua chegada em
Nazaré, fizeram uma festa. Na casa que Ana montara para eles, tinha José um quarto
separado, na frente. Ambos estavam muito acanhados. Viviam em oração e muito
recolhidos”.
Depois do casamento de Maria SS. com S. José, estavam preparadas pela Divina
Providência todas as condições, de modo que o santíssimo e eternamente adorável
mistério da Encarnação podia realizar-se. Deu-se esse fato numa noite santa, na
silenciosa casa de Nazaré. Inspirada pelo Espírito Santo, que queria operar nela o
grandioso milagre, velou Maria toda a noite em ardente oração. Então sucedeu que,
pela meia noite, entrou na casa de Nazaré um dos mais augustos Anjos do Céu, como
mensageiro de Deus e, pelo consentimento da SS. Virgem, revestiu-se nela o Filho
Unigênito de Deus da natureza humana. Assim se uniu a eternamente adorável
Divindade, por um misterioso matrimônio e amor santo, com a humanidade
pecaminosa, a qual o Pai de misericórdia quis elevar de novo pelo Homem-Deus, para
estabelecer a nova Aliança de graça e amor.
Ouçamos a singela descrição desse mistério pela vidente privilegiada de Dülmen:
“Vi a Santíssima Virgem, pouco depois do casamento, em casa de José, em Nazaré.
José saíra da cidade, com dois jumentos, para buscar alguma coisa; parecia estar
voltando. Além da SS. Virgem e duas moças da mesma idade, vi ainda Sant’Ana e
aquela parenta viúva, que lhe servia de criada. Pela noite rezaram, comendo depois
alguma hortaliça. Maria recolheu-se então ao quarto de dormir e preparou-se para a
oração, pondo um vestido comprido, de lã branca, com cinto largo e cobrindo a cabeça
com um véu branco-amarelo. Tirou uma mezinha baixa encostada na parede e
colocou-a no meio do quarto; tendo posto ainda uma almofada diante dessa mezinha,
pôs-se de joelhos e cruzou os braços. Assim a vi rezar muito tempo, em ardente
súplica, elevados os olhos ao céu, pedindo a redenção e a vinda do Rei prometido”.
Então se derramou do teto do quarto uma torrente de luz sobre o lugar à direita de
Maria; nessa luz vi um jovem resplandecente descer para junto dela: era o Arcanjo S.
Gabriel, que lhe disse:
“Ave, cheia de graça. O Senhor é convosco, bendita sois entre as mulheres”. Ao ouvir
estas palavras, a Virgem perturbou-se e cogitava das razões daquela saudação. Mas o
Anjo observou-lhe: “Não vos perturbeis, Maria, porque merecestes graça diante de
Deus; pois concebereis e dareis à luz um filho, ao qual poreis o nome de Jesus. Ele
será grande e chamar-se-á o Filho do Altíssimo; e Deus Nosso senhor dar-lhe-á o
trono de Davi, seu pai, e reinará eternamente sobre a casa de Jacó e o seu reino não
terá fim”. (Lc. 1, 28-33).
Vi-lhe sair as palavras da boca como letras. Maria virou um pouco a cabeça velada
para o lado direito, mas, cheia de temor, não levantou os olhos. O Anjo, porém,
continuou a falar e Maria levantou um pouco o véu e respondeu:
“Como se fará isso, pois não conheço homem?” (Luc. 1, 34)
E o Anjo disse: “O Espírito Santo virá sobre Vós e a virtude do Altíssimo cobrir-vos-á
com sua sombra. E por isso o Santo que nascerá de Vós, será chamado Filho de Deus.
Já vossa prima Isabel concebeu um filho na velhice e este é o sexto mês da que se diz
estéril; pois nada para Deus é impossível”.
Maria levantou o véu e, olhando para o Anjo, respondeu as santas palavras: “Eis aqui
a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”. A Santíssima Virgem
estava em profundo êxtase. O quarto estava cheio de luz, o Céu parecia aberto e um
rasto luminoso permitia-me ver por cima do Anjo, no fim da torrente de luz, a
Santíssima Trindade. Quando Maria disse: “Faça-se em mim segundo a vossa
palavra”, vi a aparição do Espírito Santo; do peito e das mãos derramaram-se-lhe três
raios de luz para o lado direito da Santíssima Virgem, unindo-se-lhe. Maria estava
nesse momento toda luminosa e como transparente.
Vi depois o Anjo desaparecer e do rasto luminoso que se retirava para o Céu, caíram
sobre a Santíssima Virgem muitas rosas brancas fechadas, todas com uma folhinha
verde. Nesse momento vi também uma serpente asquerosa arrastar-se pela casa e
pelos degraus acima. O Anjo, ao sair do quarto da SS. Virgem, pisou diante da porta a
cabeça desse monstro, que uivou tão horrivelmente, que tremi de medo.
Apareceram, porém, três espíritos e expulsaram o monstro a pontapés e pancadas,
para fora de casa. A Virgem Santíssima, toda absorta em extática contemplação,
reconheceu e viu em si o Filho de Deus, feito homem, como uma pequena forma
humana luminosa, com todos os membros já desenvolvidos, até os dedinhos e
humildemente o adorou. Foi pela meia noite, que vi esse mistério. Depois de algum
tempo, Maria se levantou, colocou-se diante do pequeno altar de oração e rezou em pé.
Foi pela manhã que se deitou para dormir. Ana teve, por uma revelação de Deus,
conhecimento de tudo”.
Para a preparação completa da vida pública e das obras de Jesus era preciso também
a santificação e a ação pública do Precursor. Esta devia efetuar-se, segundo a vontade
de Deus, pela aproximação de Maria e de seu Filho milagrosamente concebido, da mãe
do precursor. Por isso inspirou o Espírito Santo à Virgem Santíssima o desejo de
visitar a prima Isabel. Esta morava em Hebron, no sul do país, Maria em Nazaré, no
norte; mas essa distância não desanimou Maria. Pôs-se a caminho, em contínua
adoração e contemplação do Filho de Deus, que trazia sob o Coração, acompanhada
por S. José, evitando, quanto era possível, as cidades e vilas tumultuosas. Anna
Catharina Emmerich narra:
“Isabel (a prima de Maria e esposa de Zacarias) soube, por uma visão, que uma virgem
da sua tribo se tornara mãe, do Messias prometido. Tinha pensado, durante essa
visão, em Maria, com grande saudade e vira-a em espírito, em caminho para sua casa.
Mas Zacarias deu-lhe a entender ser inverossímil que a recém-casada fizesse tal
viagem. Isabel, porém, cheia de saudade, foi-lhe ao encontro.
Maria Santíssima, vendo Isabel de longe e reconhecendo-a correu adiante de José, ao
encontro dela. Cumprimentaram-se afetuosamente com um aperto de mão. Nisto vi
um esplendor em Maria e um raio de luz passando dela para Isabel, que se sentiu
milagrosamente comovida. Abraçando-se, atravessaram, o pátio em direção à porta da
casa. José entrou, por uma porta lateral, no átrio da casa, onde humildemente
cumprimentou o velho sacerdote venerável; este o abraçou cordialmente e expandiu-se
com ele, escrevendo numa lousa, pois ficara mudo desde a aparição do Anjo no
Templo”.
Maria e Isabel entraram pela porta da casa no átrio. Ali se cumprimentaram de novo
muito afetuosamente, pondo as mãos nos braços uma da outra e encostando face a
face. Nisso vi de novo como que um esplendor em Maria, radiando para Isabel, pelo
que esta ficou toda luminosa, comovida por uma alegria santa. Recuando com as
mãos levantadas, exclamou, cheia de humildade, alegria e entusiasmo: “Bendita sois
entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre! Donde me vem a felicidade de
ser visitada pela Mãe do meu Senhor? Porque assim que chegou a voz da saudação
aos meus ouvidos, logo o menino deu um salto de prazer no meu ventre”.
Então conduziu Maria ao quartinho preparado para ela. Maria, porém, na elevação da
sua alma, proferiu o cântico do “Magnificat”: Minha alma engrandece o Senhor, etc.
Depois de alguns dias, voltou José a Nazaré, acompanhado, parte do caminho, por
Zacarias. Maria Santíssima, porém, ficou três meses com Isabel, até o nascimento de
João e já antes da circuncisão do menino voltou para Nazaré. José veio-lhe ao
encontro até meio caminho e foi então que notou que estava grávida. Não tendo
conhecimento da anunciação do Anjo à SS. Virgem, foi acometido de dúvidas e
desassossego. Maria guardara consigo o mistério, por humildade e modéstia. José
nada disse, mas lutou em silêncio com as dúvidas que lhe torturavam o coração. Em
Nazaré lhe cresceu o desassossego, a ponto de resolver abandoná-la e fugir
secretamente. Então lhe apareceu um Anjo em sonho e consolou-o”.
Nas últimas linhas, que não fazem mais que repetir o que já consta da Escritura
Sagrada, se revela a profunda humildade de Maria Santíssima. Ela compreendia que
José devia saber o que se tinha passado. Sentiu profundamente a dor do piedoso
esposo, mas, por modéstia, não teve a coragem de revelar-lhe o santo mistério e o
extraordinário privilégio, que lhe fora dado.
Humildemente confiou que Deus a ajudasse e foi-lhe recompensada essa confiança e
ouvida a piedosa oração. Quanto tempo teve de pedir, não sabemos; em todo caso,
porém, vemos que Deus não atende imediatamente às súplicas nem das pessoas mais
santas, mas só quando chega o tempo previamente determinado pela divina sabedoria.
“Vi a Santíssima Virgem, com sua mãe Sant’Ana, fazendo trabalhos de malha,
preparando tapetes, ligaduras e panos, conta Anna Catharina. José estava a caminho,
voltando de Jerusalém, para onde tinha levado animais para o sacrifício. Passando
pela meia-noite pelo campo de Chimki, a seis léguas de Nazaré, apareceu-lhe um Anjo,
com o aviso de partir imediatamente com Maria para Belém, pois era ali que ela devia
dar à luz o filho. Ordenou-lhe também que levasse, além do jumento, em que Maria
devia viajar, uma jumentinha de um ano; que deixasse esta correr livre e seguisse o
caminho que ela tomasse”.
José comunicou à Maria e Ana o que lhe fora dito; então se prepararam para a partida
imediata. Ana ficou muito aflita. A Virgem Santíssima, porém, já sabia antes que devia
dar à luz o filho em Belém, mas na sua humildade calara-se”.
A vida dos filhos de Deus é uma mistura de alegria e de dor. Maria Santíssima tinha-o
experimentado já em Nazaré; verificou-o por toda a vida e também então, na viagem ao
lugar abençoado, onde o Filho de Deus ia descer à terra. A piedosa Emmerich narra:
“Vi José e Maria partirem, acompanhados por Ana, Maria Cleophae e alguns criados,
até o campo de Ginim, onde se separaram, despedindo-se comovidos”.
Vi a Sagrada Família continuar a viagem, subindo a serra de Gilboa. Na noite seguinte
passaram por um vale muito frio, dirigindo-se a um monte. Caíra geada. Maria,
sentindo frio, disse: “Devemos descansar, não posso ir mais adiante”. José arranjou-
lhe um assento, debaixo de um terebinto; ela, porém, pediu instantemente a Deus que
não a deixasse sofrer qualquer mal, por causa do frio. Então a penetrou tanto calor,
que ela deu as mãos a José, para aquecer as dele. José falou-lhe muito
carinhosamente; ele era tão bom e sentia tanto que a viagem fosse tão penosa! Falou
também da boa recepção que esperava achar em Belém.
Celebraram o Sábado numa estalagem. Na manhã seguinte continuaram o caminho,
passando por Samaria. A Santíssima Virgem andava a pé; às vezes paravam em
lugares convenientes e descansavam.
A jumenta ora ficava atrás, ora corria muito para a frente; mas onde os caminhos
divergiam, apresentava-se e tomava o caminho bom e onde deviam descansar, parava.
A primeira coisa que S. José fazia, em cada lugar de descanso e em cada estalagem,
era arranjar um lugar cômodo para a Santíssima Virgem sentar-se e descansar.
Quando a sagrada família chegou a dez léguas de Jerusalém, encontrou de noite uma
casa solitária. José bateu à porta, pedindo agasalho para a noite; mas o dono da casa
tratou-os grosseiramente e negou-lhes o abrigo. Então andaram um pouco adiante e,
entrando num rancho, encontraram ali a jumenta esperando.
Abandonaram esse abrigo já antes de amanhecer. Em outra casa foram também
tratados asperamente. José tomou pousada mais vezes pelo fim da viagem, pois esta
se tornava cada vez mais penosa para a SS. Virgem. Seguindo sempre a jumenta,
fizeram deste modo uma volta de quase um dia e meio, para leste de Jerusalém.
Rodeando Belém, passaram pelo norte da cidade e aproximaram-se pelo lado oeste.
Pararam e pousaram afastados do caminho, sob uma árvore. Maria apeou-se e
concertou o vestido.
Depois José a conduziu a um grande edifício, que estava a alguns minutos fora de
Belém; era a casa paterna de José, o antigo solar de Davi, mas naquele tempo servia
de recebedoria do imposto romano. José entrou na casa; os amanuenses perguntaram
quem era e depois lhe leram a genealogia, como também a de Maria. Aparentemente
ele não sabia que Maria descendia também por Joaquim, em linha direta, de Davi.
Maria foi também chamada perante os escrivões.
José entrou então com ela em Belém, procurando em vão pousada logo nas primeiras
casas; pois havia muitos forasteiros na cidade. Continuaram assim, indo de rua em
rua. Chegando à entrada de uma rua, Maria esperava com os jumentos, enquanto
José ia de casa em casa, pedindo agasalho, mas em vão. Maria tinha de esperá-lo às
vezes muito e sempre com o mesmo resultado; tudo já ocupado, não havia mais lugar
para eles. Então disse José à Maria que era melhor ir à outra parte de Belém; mas
também lá procurou em vão. Conduziu-a então e ao jumento, para debaixo de uma
árvore grande, a fim de descansar, enquanto ele ia à procura de hospedagem.
Muita gente passou pela árvore, olhando para Maria. Julgo que alguns também se lhe
dirigiram, perguntando quem era. Maria era tão paciente, tão humilde e ainda tinha
esperança. Mas, depois de esperar muito, voltou José triste e abatido, pois nada
arranjara. Os amigos, dos quais tinha falado à SS. Virgem, não quiseram reconhecê-
lo. Lamentou-o com lágrimas nos olhos, mas Maria consolou-o. Mais uma vez
começou ele a procurar de casa em casa, voltando finalmente tão abatido, que só se
aproximou hesitante. Disse que conhecia um lugar fora da cidade pertencente aos
pastores; ali, com certeza, achariam abrigo.
Assim saíram de Belém, para uma colina situada no lado oriental da cidade, na qual
havia uma gruta ou adega. A jumentinha, que já da casa paterna de José tinha
corrido para lá, fazendo a volta da cidade, veio-lhes ao encontro, pulando e brincando
alegremente em roda. Então disse a SS. Virgem a José: “Vê, de certo é vontade de
Deus que aqui fiquemos”.
José acendeu uma luz e, entrando na caverna, tirou algumas coisas de lá, a fim de
arranjar um lugar de descanso para a SS.Virgem. Depois a levou para dentro e ela se
assentou no leito feito de mantas e fardéis de viagem. José pediu-lhe humildemente
desculpa pela pobre hospedagem; mas Maria, cheia de piedosa esperança e amor
estava contente e feliz.
José buscou água num odre e da cidade trouxe pratinhos, algumas frutas e feixes de
lenha miúda; buscou também brasas, para acender fogo e preparar a refeição. Depois
de ter comido e feito as orações, deitou-se Maria no leito; José, porém, arranjou o seu
leito à entrada da gruta.
Maria Santíssima passou o dia seguinte, o Sábado, na gruta, rezando e meditando
com grande devoção. De tarde José a levou, através do vale, à gruta que servira de
sepulcro a Marabá, ama de Abraão. Depois, terminado o Sábado, veio reconduzi-la à
primeira gruta. Maria disse a S. José que à meia noite desse dia chegaria a hora do
nascimento de seu Filho, pois teriam passado nove meses desde a anunciação pelo
Anjo: José ofereceu-se para chamar algumas mulheres piedosas de Belém para
assisti-la, mas Maria recusou.
Desse modo chegaram os santos Pais de Jesus, guiados pela Divina Providência, ao
lugar determinado pelo Pai Eterno, em união com o Filho Unigênito e o Espírito Santo,
para o nascimento daquele divino Menino, cheio de graça, que havia de tirar da terra a
maldição, abrir o Céu e criar um novo Éden de Deus cá na terra. Lúcifer e os seus
sequazes perderam o reino do Céu pelo orgulho, querendo ser iguais a Deus e assim
perderam os primeiros homens também o paraíso, porque o mesmo sedutor os
enganou com vãos desejos de serem iguais a Deus.
Por isso, a santa humildade havia de abrir de novo o caminho do Céu. O Filho de
Deus veio a este mundo ensinar, pelo exemplo, essa e todas as outras virtudes. Eis
porque Ele, o Rei da eternidade, quis nascer homem num lugar onde os animais se
abrigavam. Para primeiro berço escolheu uma miserável manjedoura, na qual o gado
costumava comer. Assim não lhe faltou nada da pobreza humana, mas uniu-se-lhe o
esplendor da majestade divina. - A piedosa vidente continua:
“Quando Maria disse ao esposo que o tempo estava próximo e que a deixasse e fosse
orar, José saiu, recolhendo-se ao leito, para rezar. Ao sair, voltou-se mais uma vez,
para fitar a SS. Virgem e viu-a como rodeada de chamas; toda a gruta estava
iluminada como por uma luz sobrenatural. Então entrou com santo respeito na sua
cela e prostrou-se por terra, para orar”.
Vi o esplendor em volta da SS.Virgem crescer mais e mais. Ela estava de joelhos,
coberta de um vestido largo, estendido em redor, sem cinto. A meia noite ficou
extasiada e levantada acima do solo; tinha os braços cruzados sobre o peito. Não vi
mais o teto da gruta; uma estrada de luz abria-se-lhe por cima, até o mais alto Céu,
com crescente esplendor.
Maria, porém, levantada da terra em êxtase, olhava para baixo, adorando o seu Deus,
cuja Mãe se tornara e que jazia deitado por terra, diante dela, qual criancinha nova e
desamparada. Vi o nosso Salvador qual criancinha pequenina, resplandecente, cujo
brilho excedia à toda a luz na gruta, deitado no tapete, diante dos joelhos de Maria.
Parecia-me que era muito pequeno e crescia cada vez mais, diante dos meus olhos.
Depois de algum tempo vi o Menino Jesus mover-se e ouvi-o chorar. Então foi que
Maria voltou a si. Tomou a criancinha e, cobrindo-a com um pano, apertou-a ao peito.
Assim se sentou, envolvendo-se, com o Filhinho, no véu. Então vi em redor Anjos em
forma humana, prostrados em adoração diante do Menino.
Cerca de uma hora após o nascimento, Maria chamou S. José, que ainda estava
rezando. Chegando-se-lhe perto, prostrou-se-lhe o esposo em frente, em adoração,
cheio de humildade e alegria. Só depois que Maria lhe pediu que apertasse de
encontro ao coração o santo dom de Deus, foi que se levantou, recebendo o Menino
Jesus nos braços e louvando a Deus, com lágrimas de alegria.
A SS. Virgem envolveu então o Menino em panos e deitou-o na manjedoura, cheio de
junco e ervas finas e coberta com uma manta. A manjedoura estava ao lado direito, na
entrada da gruta. Os santos Pais, tendo deitado o menino no presepe, ficaram-lhe ao
lado, cantando salmos”.
O tempo chegara à consumação: O Verbo fizera-se carne, - o Verbo Eterno e Divino do
Pai Celestial Todo-Poderoso. A profecia de Isaías cumprira-se: A Virgem concebera e
dera à luz um filho, cujo nome é Emanuel, “Deus Conosco”. (Is. 7, 14). Apareceu entre
nós o Messias, prometido já no paraíso e por todos os povos tão ardentemente
anelado. Está deitado numa manjedoura, qual criança pobre e desamparada. Será
reconhecido em tão humildes condições? A quem se revelará primeiro o Rei da glória?
Não aos grandes e soberbos da terra! Pastores, pobres e simples, são os primeiros
convidados por mensageiros celestiais à manjedoura, para adorar o Menino divino.
Conta Catharina Emmerich:
“Vi três pastores, que estavam juntos, diante do rancho, admirando a maravilhosa
noite; no céu vi uma nuvem luminosa, descendo para eles. Ouvi um doce canto. A
princípio se assustaram os pastores, mas de repente lhes surgiu um Anjo, dizendo:
“Não temais, anuncio-vos uma grande alegria, que é dada a todo o povo, pois nasceu
hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, nosso Senhor... Eis o sinal para
conhecê-lo: achareis uma criança envolta em panos e deitada num presépio”.
Enquanto o Anjo assim falava, aumentava o esplendor em redor e vi então cinco ou
sete Anjos, grandes, luminosos e graciosos, diante dos pastores; seguravam nas mãos
uma fita, como de papel, na qual estava escrita uma coisa, em letras do tamanho de
um palmo: ouvi-os louvar a Deus e cantar: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra
aos homens de boa vontade”.
Os pastores na torre de vigia tiveram a mesma aparição, apenas um pouco depois. Do
mesmo modo apareceram os Anjos a um terceiro grupo de pastores, perto de uma
fonte, a três léguas de Belém, a leste da torre dos pastores. Vi que os pastores não
foram imediatamente à gruta; para lá chegar, os três pastores tinham um caminho de
uma hora e meia e os da torre o dobro. Vi também que deliberaram sobre o que
deviam levar, como presente, ao Messias recém-nascido; depois buscaram as dádivas
o mais depressa possível.
Ao crepúsculo da manhã chegaram os pastores, com os presentes, à gruta. Contaram
a S. José o que lhes anunciara o Anjo e que vinham para adorar o Messias. José
aceitou os presentes, com humildes agradecimentos e conduziu os pastores à SS.
Virgem, que estava sentada ao pé do presépio, com o Filho ao colo. Os recém-chegados
prostraram-se de joelhos diante de Jesus, segurando os cajados nos braços; choraram
de alegria e permaneceram assim muito tempo, sentindo grande felicidade e doçura.
Quando se despediram, deu-lhes a SS. Virgem o Menino a abraçar. De tarde vieram
outros pastores, com mulheres e crianças, trazendo presentes.
Alguns dias depois do nascimento de Jesus, estando José e Maria ao lado do presépio
e olhando com grande e íntima felicidade para o divino Menino, aproximou-se de
súbito o jumento, e, caindo de joelhos, baixou a cabeça até o chão. Maria e José
derramaram lágrimas à vista disso.
Depois do Sábado, José chamou três sacerdotes de Belém, para a circuncisão do
Menino. Estes trouxeram a cadeira da circuncisão e uma laje de pedra octogonal, na
qual se encontravam os instrumentos necessários. Ao nascer do dia teve lugar a
circuncisão. Oito dias depois do nascimento do Senhor, vi que um anjo apareceu ao
sacerdote, apresentando-lhe o nome de Jesus, escrito numa lousa. O Menino Jesus
chorou alto, depois da santa cerimônia. José recebeu-o do sacerdote e depositou-o nos
braços da SS. Virgem.
Na tarde do dia seguinte, chegou Isabel, com um velho criado, à gruta. Houve
grande regozijo. Isabel apertou o Menino ao coração. Veio também Ana, com o
segundo marido e Maria Helí. Maria pôs o Menino nos braços da velha mãe, que
estava muito comovida. Maria contou-lhe também, cheia de íntima felicidade, todas as
circunstâncias do nascimento. Ana chorou com Maria, acariciando durante todo o
tempo o Menino Jesus”.
Logo, porém, adiante, esta alegria esfuziante dará lugar ao sofrimento e à dor.
Maria, a Mãe Santíssima, verá a espada de dor atravessar sua alma conforme profecia
de Simeão. Jesus passará pelo sofrimento da Cruz, esmagado pela ignomínia do
pecado humano. Tudo para que tivéssemos a graça de, um dia, abraçar ao Pai Celeste,
nosso Criador e Deus. Mistério de fé, que nunca seremos capazes de decifrar!
Neste novo texto, apresentaremos parte da chamada vida oculta de Jesus. De fato, os
Evangelhos citam as passagens do nascimento Dele, depois falam da passagem da
perda no Templo de Jerusalém, aos 12 anos, e depois vão retomar apenas nas
passagens do início da vida pública, aos 30 anos de idade. E milhões de pessoas
sempre tiveram a curiosidade de saber o que aconteceu com Ele durante aqueles anos.
Na verdade Jesus jamais ficou parado. Desde a mais tenra infância, pela vida inteira,
Ele sempre esteve trabalhando ciosamente na missão que Lhe foi confiada pelo Pai.
Não sendo somente exemplo de vida, mas também doutrinando a todos aqueles que
viviam ao seu redor, também visitando escolas, mas, sobretudo, rezando e meditando
para fortalecer sua parte homem, preparando-o para o imenso sacrifício da cruz.
Nesse tempo Ele fez grandes viagens, retornando inclusive ao Egito onde a família de
Nazaré vivera por alguns anos, e depois visitando os três reis magos, em seus países
de origem. Todas estas visões, teve a privilegiada serva Ana Catarina, conforme relata
a seguir.
A Escritura Sagrada diz: “Quando veio a plenitude dos tempos, enviou Deus o seu
Filho, nascido de mulher, sujeito à lei, a fim de remir os que estavam debaixo da lei,
para que recebêssemos a adoção de filhos”. (Gal. 4, 4-5).
Essas palavras nos ensinam que, com a vinda do Redentor a este mundo, começou
uma era nova, a qual a Escritura Sagrada chama a plenitude e consumação de todos
os tempos.
A era de Jesus Cristo foi a plenitude dos tempos, porque nele se cumpriram todas as
predições dos profetas. Foi-o também, porque em Jesus Cristo começou a última e
perfeita era.
Quantos períodos já tinham passado antes de começar esta última e mais sublime era!
Segundo o que nos ensinam as ciências, tanto as profanas como as sagradas, já a
haviam precedido muitos e, em parte, longos espaços de tempo. Assim a era sideral,
em que foram criados por Deus, os astros, com o respectivo movimento e
desenvolvimento; depois a era telúrica, em que a terra, até então uma massa ígnea em
fusão, começou a formar em si uma crista firme, mais e mais espessa.
Depois a era orgânica, em que Deus ornou e encheu a terra de plantas e animais;
afinal a era histórica, que teve princípio com a criação dos primeiros homens. Mas
esta última teve ainda diversos períodos; pois no princípio ficaram os homens sob o
império da lei natural, que Deus lhes gravou em letras indeléveis na consciência; com
ela todos os homens conhecem o que devem fazer ou deixar de fazer e por isso Deus
exige a observação dessa lei de todos os homens, mesmo dos pagãos que não o
conhecem. Mas Deus não se contentou com isso; quis entrar em relações com os
homens, pela graça e assim conduzir aqueles que Lhe obedecessem, a uma união mais
íntima consigo.
Mas também nesse desígnio procedeu gradualmente. A primeira aliança foi a que
começou pela escolha de Abraão para ser pai do povo de Israel e acabou com a
promulgação da lei, no monte Sinai. Em conseqüência dessa aliança, entrou o povo de
Israel em relações mais estreitas com Deus. Recebeu d´Ele um culto novo, novas leis e
a promessa consoladora de que do seu seio proviria o Salvador.
Para esse fim, serviam todas as leis especiais, cerimônias e preceitos do Velho
Testamento; até dos pecados e das desgraças do povo israelita sabia o Senhor, pela
sua Divina Providência, dirigir os efeitos, de modo que lhe serviam aos divinos
desígnios. Sob esse ponto de vista encara a Serva de Deus especialmente a formação
daquela família, da qual devia nascer o divino Salvador.
Quando o Redentor apareceu neste mundo, terminou a velha Aliança, porque estava
realizado o seu fim: os bons, entre os judeus e também entre os gentios, reconheceram
o seu estado pecaminoso e a necessidade da salvação, anelando ansiosos pelo
Messias.
Começou então uma segunda Aliança, abundante em graças, a qual foi confirmada no
monte Sião, em Jerusalém, pela vinda do Espírito Santo, no dia de Pentecostes. Com
essa Nova Aliança, que durará até o fim do mundo, principiou a consumação dos
tempos, na qual foi proporcionada aos homens pecadores a salvação abundante em
Jesus Cristo e pela qual somos elevados do estado de servidão ao estado de liberdade
e à dignidade de filhos de Deus.
“Vi a linhagem do messias dividir-se em Davi em dois ramos. A direita passou a linha
através de Salomão, acabando em Jacó, pai de José, esposo de Maria. Essa linha
corria em direção mais alta; partia em geral da boca e era inteiramente branca, sem
cores. As pessoas ao lado da linha eram todas mais altas do que as da linha oposta.
Todas seguravam na mão uma haste de flor, do tamanho de um braço, com folhas
semelhantes às da palmeira, que se dependuravam em volta do ramo.
Na ponta da haste havia uma flor campanada, branca, com 5 estames amarelos, que
espalhavam um pó fino. Três membros desta linha, antes do meio, contados de cima,
estavam eliminados, enegrecidos e ressequidos. As flores variavam em tamanho,
beleza e vigor; a de José era de grande pureza, com as pétalas frescas e brancas, era
mais bela. Vi esta linha unir-se pelo fim com a linha oposta, por um raio luzido; a
significação sobrenatural e misteriosa desse raio me foi revelada: referia-se mais à
alma e menos à carne; tinha algo da significação de Salomão; não sei explicá-lo bem.
A linha da esquerda passou de Davi por Natan até Helí, que é o verdadeiro nome de
Joaquim, pois recebeu este nome só mais tarde, como Abrão o de Abraão. Eu sabia o
motivo desta troca e sabê-lo-ei talvez de novo. José foi chamado muitas vezes nas
minhas visões “filho de Helí”. Toda essa linha vi passar mais baixo; tinha diversas
cores e manchas cá e lá, mas saía depois mais clara. Era vermelha, amarela e branca;
não havia azul. As pessoas ao lado eram menos altas do que as do lado oposto;
tinham ramos mais curtos, pendentes para o lado, com folhas verde-amarelas e
dentadas, os quais rematavam em um botão avermelhado, da cor da rosa silvestre; em
parte estavam vigorosos, em outra parte murchos; o botão não era tanto um botão de
flor, mas um ovário e sempre fechado.
Sant’Ana descendeu, pelo pai, da tribo de Leví, pela mãe, da de Benjamin. Vi alguns
de seus avós carregarem a Arca da Aliança, mui piedosos e devotos e notei que
receberam nessa ocasião raios do mistério, os quais se lhe referiam à descendência:
Ana e Maria. Vi sempre muitos sacerdotes freqüentarem a casa paterna de Ana, como
também a de Joaquim; daí o parentesco com Isabel e Zacarias.
No ramo de Salomão havia diversas lacunas; os frutos, estavam mais separados, mas
as figuras eram maiores e mais espirituais. As duas linhas tocaram-se várias vezes;
três ou quatro membros, talvez, antes de Helí, se cruzaram, acabando afinal em cima,
com a SS.Virgem Maria. Creio que nesses cruzamentos já vi principiar o sangue da
SS. Virgem.”
Os membros eliminados significam provavelmente ascendentes pecaminosos do
Salvador. Se bem que Ele mesmo seja o “Santo dos Santos” e também tenha por Mãe
uma Virgem Imaculada e por pai nutrício S. José, houve, todavia, pecadores e
pecadoras entre os seus antepassados, por exemplo, o rei Salomão, Asa, Joram,
Achaz, Manasses, Tamar e Betsabé; até duas pagãs: Racháb e Rut. Com certeza Jesus
assim o permitiu, para manifestar a sua misericórdia e o seu amor para com os
pecadores e também a intenção que tinha, de fazer participar da Redenção os gentios
e conduzi-los à eterna bem-aventurança.
Segundo as narrações de Anna Catharina Emmerich, eram os avós de Maria
Santíssima piedosos Israelitas, que estavam em íntimas relações com os Essenos, os
quais formavam uma espécie de ordem religiosa.
“Vi os avós da SS.Virgem, conta Anna Catharina, gente extraordinariamente piedosa e
simples, que alimentava secretamente o vivo desejo da vinda do Messias prometido.
Vi-os levar uma vida mortificada; os casados muitas vezes fizeram a promessa de
mútua continência durante certo tempo. Eram tão piedosos, tão cheios de amor a
Deus, que os vi freqüentemente sozinhos no campo deserto, de dia e também de noite,
clamando por Deus com um desejo tão veemente, que arrancavam as vestes do peito,
como para deixar que Deus entrasse pelos raios do sol, ou como para saciar com o
brilho da lua e das estrelas a sede que os devorava, do cumprimento da promissão.”
Segundo Anna Catharina, chamava-se Emorun a avó de Sant’Ana e teve do
matrimônio com Stolanus três filhas, uma das quais Isméria, foi mais tarde a mãe de
Sant’Ana. Ana tinha uma irmã mais velha, chamada Sobe e uma mais moça, com o
nome de Maharha e uma terceira, que era casada com um pastor.
O pai de Ana, de nome Eliud, era da tribo de Leví, ao passo que a mãe pertencia à
tribo de Benjamin. Ana nasceu em Belém, mas os pais foram depois viver em Seforis,
perto de Nazaré. Após a morte de Isméria, Eliud morava no vale de Zabulon. Ali se
encontraram Ana e Joaquim e travaram conhecimento. O pai de Joaquim, Matthat,
era o segundo irmão de Jacó, pai de S. José. Joaquim, cujo nome legítimo era Helí, e
José eram descendentes, pelo lado paterno, da estirpe real de Davi (1). Joaquim e Ana,
depois de casados, levaram uma vida piedosa e benfazeja, primeiro em casa do pai,
Eliud, depois em Nazaré.
A filha mais velha recebeu o nome de Maria Helí; conheceram, porém, que esta não
era a filha da promissão. Ana e Joaquim rezavam muitas vezes com grande devoção e
davam muitas esmolas. Assim viveram 19 anos depois do nascimento da primeira
filha, em contínuo desejo da filha prometida e em crescente tristeza. Além disso ainda
eram insultados pelo povo. Quando um dia Joaquim quis oferecer um sacrifício no
Templo, recusou-o o sacerdote, repreendendo-o por sua esterilidade. Joaquim, muito
abatido, não voltou a Nazaré, mas viveu cinco semanas escondido, com os rebanhos,
ao pé do monte Hermon.
Com isso aumentou ainda a tristeza de Ana, que chorou e rezou muito. Um dia,
quando rezava com grande aflição, eis que lhe apareceu um Anjo, anunciando-lhe que
Deus lhe ouvira a oração. Mandou-a ir a Jerusalém, onde se encontraria com Joaquim
na Porta Áurea.
Na noite seguinte lhe apareceu de novo um Anjo, dizendo que conceberia uma filha
santa; e escreveu o nome de Maria na parede.
Joaquim teve também a aparição de um Anjo; foi por isso ao Templo, ofereceu um
sacrifício e recebeu nessa ocasião a bênção da promissão ou o santo da Arca da
Aliança.
Ana e Joaquim encontraram-se na Porta Áurea, transbordando de alegria e felicidade.
Ali, diz Catharina Emmerich, lhes veio aquela abundância da divina graça, pela qual
Maria recebeu a existência, somente pela santa obediência e pelo puro amor de Deus,
sem qualquer impureza dos pais.”
Desse modo, após muitos anos de oração fervorosa, alcançou esse santo casal,
Joaquim e Ana, aquela pureza e santidade, que os tornou aptos para receberem, sem
o fomento da concupiscência, a santa filha, que foi escolhida por Deus para ser a Mãe
do Redentor.
1. Verônica, (propriamente: Seráfia) prima de São João Batista e cujo marido, de nome
Sirach, era membro do Conselho do Templo.
2. Maria Marcos, mãe de João Marcos, que morava fora dos muros de Jerusalém,
defronte do monte das Oliveiras.
3. Joana Chusa, viúva sem filhos, natural de Jerusalém.
4. Salomé, também viúva; morava em casa de Marta, em Betânia; era parenta da
família por um irmão de José.
5. Suzana, de Jerusalém, filha do irmão mais velho de José, Cleophas e deste modo
parente da família, como Salomé.
6. Dina, a Samaritana, que falara com Jesus no poço de Jacó e que se juntara às
santas mulheres, depois da conversão.
7. Maroni, a viúva de Naim, cujo filho, Martialis, Jesus ressuscitara dos mortos.
8. Maria Sufanitis, Moabita, que Jesus livrara de um mau espírito.
Um dos fatos mais maravilhosos da vida do Divino Salvador é a vinda dos três Reis
Magos ao presépio. Surge a pergunta: Como foi possível que três homens de alta
posição, com numerosa comitiva, vindos de terras longínquas, chegassem guiados por
uma estrela ao presépio de Belém?
Para explicação cita-se geralmente o trecho do livro Números 24, 17; “Uma estrela sai
de Jacó, um cetro levanta-se de Israel, que esmagará os príncipes de Moab.”
Certamente é este trecho de importância e sem dúvida o conheceram os pontífices dos
judeus, melhor do que os chefes das tribos longínquas dos gentios. Contudo, não
vieram aqueles ao presépio, mas estes últimos. Logo, não bastava só a estrela, para
levá-los lá, faziam-se precisas outras previdências divinas, milagrosas. Quais foram
estas, conta-nos a pobre camponesa de Flamske:
“Os antepassados dos três Reis Magos descendiam de Jó, que outrora vivera no
Cáucaso. Um discípulo de Balaão anunciara ali a profecia deste, de que apareceria
uma estrela de Jacó. Essa profecia achou larga aceitação. Construiu-se uma torre
alta, numa montanha. Muitos sábios e astrônomos viveram ali alternadamente; tudo
que notavam nos astros, escreviam e ensinavam a todos.
Os chefes de uma tribo da terra de Jó, numa viagem ao Egito, na região de Heliópolis,
receberam por um Anjo a revelação de que o Salvador nasceria de uma Virgem e seria
adorado pelos seus descendentes. Eles mesmos deviam voltar e estudar os astros.
Esses Médos começaram então a observar as estrelas. Diversas vezes, porém, caiu
esse estudo em esquecimento, por causa de vários acontecimentos. Depois começou o
abominável abuso de sacrificarem crianças, para que a criança prometida viesse mais
depressa.
Cerca de 500 anos antes do nascimento de Jesus, estava esse estudo dos astros
também em decadência. Existia, porém, a descendência daqueles chefes, constituída
por três irmãos, que viviam separados, cada um com sua tribo. Tiveram três filhas, às
quais Deus deu o dom de profecia, de modo que ao mesmo tempo percorreram o país e
as três tribos, profetizando e ensinando sobre a estrela de Jacó. Então se renovou
nessas três tribos o estudo das estrelas e renasceu o desejo da vinda do Menino
prometido.
Desses três irmãos descenderam os Reis Magos em linha direta, por 15 gerações, após
500 anos; mas, pela mistura com outras raças, eram de cores diferentes. Desde o
princípio desses 500 anos, ficavam sempre alguns dos antepassados dos Reis num
edifício comum, para estudarem os astros; conforme as diversas revelações que
recebiam, mudavam certas coisas nos templos e no culto divino. Infelizmente
continuou ainda entre eles, por muito tempo, o sacrifício de homens e crianças.
Todas as épocas que se referiam à vinda do Messias, conheciam-nas em visões
milagrosas, ao observar as estrelas. Desde a Conceição de Nossa Senhora, portanto há
15 anos, essas visões mostravam, cada vez mais distintamente, a vinda da criança.
Por fim viram até muitas coisas que se referiam à paixão de Jesus.
Podiam calcular bem o tempo da estrela de Jacó, que Balaão predissera. (Núm. 24,
17); pois viram a escada de Jacó e, segundo o número dos degraus e a sucessão das
imagens que nestes apareciam, podiam calcular, como num calendário, a proximidade
da Salvação; pois o cume da escada deixava ver a estrela ou a estrela era a última
imagem dela. Viam a escada de Jacó como um tronco, que tinha três séries de
escalões cravados em roda; nestes aparecia uma série de imagens, que viam também
nas estrelas, no tempo da sua realização. Dessa maneira sabiam exatamente que a
imagem havia de aparecer e conheciam, pelos intervalos, quanto tempo haviam de
esperá-la.
Lembro-me de ter visto, na noite do nascimento de Jesus, dois dos Reis na torre. O
terceiro, que vivia a leste do Mar Cáspio, não estava com eles; viu, porém, a mesma
visão, à mesma hora, na sua terra.
A imagem que reconheceram, apareceu em diversas variações; não foi numa estrela
que a viram, mas numa figura composta de um certo número de estrelas. Divisaram,
porém, sobre a lua um arco-íris, sobre o qual estava sentada uma virgem; à esquerda
desta, aparecia no arco uma videira, à direita um molho de espigas de trigo.
Vi aparecer diante da Virgem a figura de um cálice ou, melhor, subir ou sair-lhe do
esplendor; saindo desse cálice, apareceu uma criancinha e, sobre esta, um disco
luminoso, como um ostensório vazio, do qual emanavam raios semelhantes à espigas.
Tive nisso a impressão do SS. Sacramento.
Do lado direito da criancinha, que subia do cálice, brotou um ramo, no qual
desabrochou, como uma flor, uma igreja octogonal, que tinha um portão grande e
duas portas laterais. A Virgem moveu com a mão o cálice, a criança e a hóstia para
cima, colocando-as dentro da Igreja e a torre da Igreja levantou-se-lhe por cima e
tornou-se por fim uma cidade brilhante, assim como representamos a Jerusalém
celeste. Vi nessa imagem muitas coisas, como procedendo e desenvolvendo-se umas
das outras.
Os Reis viram Belém como um belo palácio, como uma casa na qual se junta e se
distribui muita bênção. Lá viram a Virgem SS., com o Menino, rodeada de muito
esplendor e muitos reis se inclinarem diante dele, oferecendo-lhe sacrifícios. Tomaram
tudo como realidade, pensando que o rei tinha nascido em tal esplendor e que todos
os povos se lhe haviam submetido; por isso foram também lhe oferecer os seus dons.
Havia um grande número de imagens naquela escada de Jacó. Vi-as todas aparecer
nas estrelas, no tempo do seu cumprimento.
Naquelas três noites, os três Reis Magos viram continuamente essas imagens. O mais
nobre entre eles mandou então mensageiros aos outros e, quando viram a imagem dos
reis que ofereceram presentes ao Rei recém-nascido, puseram-se também a caminho,
com riquíssimas dádivas, para não serem os últimos. Todas as tribos dos astrônomos
viram a estrela, mas só aqueles a seguiram.
Alguns dias depois da partida dos reis, vi Theokenos, com o seu séquito, juntar-se aos
grupos de Mensor e Sair; Theokenos não tinha estado antes com estes últimos. Cada
um dos Reis tinha no séquito quatro parentes próximos da tribo, como companheiros.
A tribo de Mensor era de cor agradável, pardacenta; a de Sair parda e a de Theokenos
de cor amarela, brilhante.
Mensor era Caldeu; depois da morte de Jesus, foi batizado por S. Tomé e recebeu o
nome de Leandro. Sair teve o batismo de desejo; não vivia mais, quando Jesus foi à
terra dos Reis Magos. Theokenos veio da Média e era o mais rico; foi batizado e
chamado Leão por S. Tomé. Deram-se aos Reis Magos os nomes de Gaspar, Melchior e
Baltasar, porque estes nomes lhes designam o caráter: Gaspar - Vai com amor.
Melchior - Aproxima-se humildemente. Baltasar - Age prontamente, conformando a
sua vontade com a de Deus.
O caminho para Belém era de mais de 700 léguas: fizeram-no em 33 dias, viajando
muitas vezes dia e noite. A estrela que os guiava, era como um globo brilhante. Um
jorro de luz emanava dela sobre a terra. Vi finalmente chegarem os Reis à primeira vila
judaica. Ficaram, porém, muito acabrunhados, porque ninguém sabia coisa alguma
do Rei recém-nascido.
Quanto mais se aproximavam de Jerusalém, tanto mais tristes ficavam, pois a estrela
se tornava muito menos clara e brilhante e na Judéia a viram raras vezes. Quando
pararam, fora de Jerusalém, desaparecera totalmente. Falaram da estrela e da criança
recém-nascida, ninguém quis compreendê-los; por isso, tornaram-se ainda mais
tristes, pensando que se tinham enganado”.
Anna Catharina descreve ainda a admiração e sensação que a caravana dos Reis
Magos causou na cidade; como Herodes, alta noite, mandou chamar Theokenos ao
palácio e convidou os Reis a virem apresentar-se na manhã seguinte. Herodes enviou
alguns criados a chamarem os sacerdotes e escribas, que se esforçaram por sossegá-
lo. Ao nascer do dia, se apresentaram os Reis a Herodes e perguntaram-lhe onde
estava o novo rei dos judeus, cuja estrela tinham visto e ao qual tinham vindo adorar.
Herodes ficou muito inquieto, informou-se mais sobre a estrela e disse-lhes que a
profecia se referia a Belém Ephrata; aconselhou-os a irem silenciosamente a Belém e
voltarem depois a informar-lhe, pois que também queria adorar o Menino.
Vi sair de Jerusalém a caravana dos Reis. Vendo de novo a estrela, deram um grito de
alegria. Ao cair da noite, chegaram a Belém; então desapareceu a estrela. Muito tempo
ficaram diante das portas, duvidando e hesitando, até que viram uma luz brilhante, ao
lado de Belém. Então tomaram o caminho para o vale da gruta, onde acamparam. No
entanto, apareceu a estrela por cima do outeiro da gruta e uma torrente de luz caiu
verticalmente sobre este. De repente se lhes encheram os corações de grande alegria,
pois viram na estrela a figura luminosa da criança. Os três Reis Magos aproximaram-
se da colina; abrindo a porta da gruta, Mensor viu-a cheia de luz celeste e a Virgem
sentada lá dentro, com a criança, como a tinham visto nas visões. Anunciou-o aos
outros dois.
S. José saiu-lhes ao encontro, cumprimentando-os e dando-lhes as boas vindas.
Então se prepararam para o ato solene que queriam fazer e seguiram S. José. Dois
jovens estenderam primeiro um tapete de pano no chão, até a manjedoura. Mensor e
os companheiros entraram, caíram de joelhos e Mensor colocou aos pés de Maria e
José os presentes; com a cabeça inclinada e os braços cruzados, proferiu palavras
comoventes de adoração. Depois tirou do bolso uma mão cheia de barras do tamanho
de um dedo, grossas e pesadas, com um brilho de ouro e pô-las ao lado da criança,
nas vestes de Maria. Tendo se retirado, com os companheiros, entrou Sair com os
seus, prostrando-se, com profunda humildade, com os dois joelhos por terra. Ofereceu
com palavras tocantes os presentes, colocando diante do Menino Jesus uma naveta de
incenso, feita de ouro puro, cheia de pequenos grãos esverdeados de incenso. Ficou
muito tempo de joelhos, com grande devoção e amor. Depois dele se aproximou
Theokenos, o mais velho. Ficando em pé, inclinou-se profundamente e apresentou um
vaso de ouro cheio de uma erva verde; ofereceu mirra e ficou muito tempo diante do
Menino Jesus, em profunda comoção.
Os Reis Magos estavam encantados e repassados de amor e humilde adoração.
Lágrimas de alegria caiam-lhes dos olhos; também Maria e José derramaram lágrimas
de felicidade. Aceitaram tudo, humildes e gratos; finalmente dirigiu Maria a cada um
algumas palavras afáveis.
Após os Reis, entraram também os criados, aproximando-se, cinco a cinco, do
presépio; ajoelharam-se em roda do Menino e adoraram-no em silêncio; finalmente
entraram também os pajens. Os Reis Magos voltaram mais uma vez ao presépio,
vestidos de amplos mantos, trazendo turíbulos nas mãos; incensaram o Menino, Maria
e José e toda a gruta, retirando-se depois, com profunda inclinação. Era esta a
cerimônia de adoração entre aqueles povos.
No outro dia visitaram os Reis mais uma vez o Menino e de noite vieram despedir-se.
Mensor entrou primeiro. Maria pôs-lhe o Menino nos braços; ele chorou, radiante de
alegria. Depois vieram também os outros. Maria deu-lhes o seu véu de presente.
Pela meia noite viram no sono a aparição de um Anjo, avisando-lhes que partissem
imediatamente, não tomando o caminho de Jerusalém, mas o do Mar Morto. Com
incrível rapidez desapareceram as tendas; e, enquanto os Reis Magos se despediam de
S. José, já o séquito estava caminhando a toda a pressa, em três turmas, para leste,
com rumo ao deserto de Engadi, ao longo do Mar Morto. Vi o Anjo com eles na
campina, mostrando-lhes a direção do caminho; de súbito não se avistaram mais.
O Anjo tinha avisado os Reis bem a tempo; pois a autoridade de Belém, não sei se por
ordem de Herodes ou por próprio zelo, tinha a intenção de prender os Reis, que
dormiam na estalagem, fechá-los, sob a sinagoga, onde havia adegas profundas e
acusá-los perante o rei Herodes de desordens públicas. Mas de manhã, quando se
soube da partida dos Magos, estes já estavam perto de Engaddi, e o vale onde haviam
acampado estava quieto e deserto como dantes, nada restando do acampamento, fora
algumas estacas de tendas e os rastos do capim pisado”.
Em memória da visita dos três Reis Magos ao presépio é que se celebra, todos os anos,
a festa de Reis. A Escritura Sagrada chama-os apenas os “Magos”, mas o povo deu-
lhes, desde os primeiros tempos, o título de “Reis”, talvez induzido pela profecia de
Davi: “Os reis de Tharsis e das ilhas oferecer-Lhe-ão dons; os reis da Arábia e de Sabá
trar-Lhe-ão presentes”. (S. 71, 10).
A festa de Reis é uma das mais antigas da Igreja cristã, mais antiga do que a de Natal.
É prova de que esse acontecimento fez grande impressão aos amigos de Jesus. Em
verdade era um fato maravilhosíssimo virem três príncipes do Oriente, com numeroso
séquito, guiados por uma estrela, prestar adoração ao Menino Jesus no presépio, ao
passo que Israel não conheceu o seu Senhor.
Só Deus pode criar estrelas e, sobretudo uma estrela que guia homens e pára por
cima do presépio: é um milagre grandioso, que só Deus, o Senhor da natureza, pode
operar. Foi, pois, esse acontecimento uma prova de que tinha chegado
verdadeiramente o cumprimento dos tempos e de que Jesus era mais do que um
homem comum.
A vinda dessa caravana numerosa e estranha devia dirigir os olhares de todo o povo
para Belém; tinha todo o cabimento a pergunta: Então chegou o tempo em que deve
vir o Messias? Desse modo foram preparadas todas as almas que amavam a Deus, ao
reconhecimento de Jesus como Messias; os infiéis, porém, tornaram-se mais culpados.
Visto que a Escritura Sagrada pouco relata da infância de Jesus, deve ser de grande
interesse para nós o que Anna Catharina Emmerich nos conta dessa época,
descrevendo como o nosso Divino Salvador passou a infância e mocidade.
Vi a Sagrada Família, constituída pelas três pessoas Jesus, Maria e José, desde o
décimo até o vigésimo ano de Jesus, morar duas vezes em casa alugada, com outras
famílias; do vigésimo ao trigésimo ano de Cristo, vi-a morar sozinha numa casa.
Havia na casa três quartos separados: o da Mãe de Deus era o mais espaçoso e
agradável e nesse se reuniam também os três membros da Família para a oração; fora
disso, raramente os vi juntos. Durante a oração ficavam em pé, as mãos cruzadas
sobre o peito; pareciam rezar alto. Vi-os rezar muitas vezes de noite, à luz do
candeeiro. Todos dormiam separados nos respectivos quartos. Jesus passava a maior
parte do tempo no seu quarto. José carpintejava no seu local de trabalho; vi-o talhar
varas e ripas, polir peças de madeira ou, de vez em quando, trazer uma viga. Jesus
ajudava-o no trabalho. Maria ocupava-se muito com trabalhos de costura ou certa
espécie de ponto de malha, com varinhas. Vi Jesus cada vez mais recolhido, entregue
à meditação, à proporção que se lhe aproximava o tempo da vida pública.
Até os dez anos prestava aos pais todos os serviços que podia; era também amável,
serviçal e obsequiador para com todos na rua e onde quer que se lhe oferecesse
ocasião. Como menino, era modelo para todas as crianças de Nazaré. Amavam-no e
receavam desagradar-lhe. Os pais dos companheiros, censurando os maus costumes e
as faltas dos filhos, costumavam dizer-lhes: “Que dirá o filho de José, se lhe contar
isso? Como ficará triste!” Às vezes se Lhe queixavam dos filhos, na presença destes,
pedindo: “Dize-lhe que não façam mais isso ou aquilo!” E Jesus aceitava-o de maneira
infantil, como brincadeira, rogando aos amigos carinhosamente que procedessem de
tal ou tal modo; rezava também com eles pedindo ao Pai Celeste força para se
corrigirem, persuadia-os a confessarem sem demora as faltas e a pedirem perdão.
Jesus tinha figura esbelta e delicada, rosto oval e alegre, a tez sadia, mas pálida. O
cabelo liso, de um louro arruivado, repartido no alto da cabeça, pendia-lhe da testa,
franca e alta, sobre os ombros. Vestia uma túnica comprida, de cor parda
acinzentada, inteiramente tecida, que lhe chegava até os pés; as mangas eram um
pouco mais largas nas mãos.
Aos oito anos foi Jesus pela primeira vez a Jerusalém, para a festa da Páscoa e depois
ia todos os anos. Quando Ele veio a Jerusalém, na idade de doze anos, possuía já
muitos conhecidos na cidade. Os progenitores costumavam andar com os
conterrâneos nessas viagens e, como fosse já a quinta romaria de Jesus, sabiam que
sempre andava em companhia dos jovens de Nazaré. Desta vez, porém, na volta, se
separara dos companheiros, perto do monte das Oliveiras, pensando estes que fosse
juntar-se aos pais. Mas, quando chegaram a Gophna, notaram Maria e José a
ausência de Jesus e tornaram-se muito inquietos. Voltaram imediatamente,
procurando-o pelo caminho e em Jerusalém; mas não o acharam logo.
Nosso Senhor se havia dirigido, com alguns rapazes, à duas escolas da cidade; no
primeiro dia, à uma; no segundo, à outra. No terceiro dia, fora de manhã à uma
terceira escola, e de tarde ao Templo, onde o acharam os pais. Jesus pôs os doutores e
rabinos de todas as escolas, em tal estado de admiração e de embaraço, pelas suas
perguntas e respostas, que resolveram humilhar o Menino, por intermédio dos rabinos
mais doutos, na tarde do terceiro dia, em auditório público, interrogando-o sobre
diversas matérias.
Vi Jesus sentado numa cadeira grande, rodeado de numerosos judeus velhos, vestidos
como sacerdotes. Escutavam atentamente e parecia estarem furiosos. Como o Senhor
houvesse alegado, nas escolas, muitos exemplos da natureza, das artes e ciências,
para demonstrar as suas respostas, reuniram-se conhecedores de todas essas
matérias. Começando estes, pois, a discutir com Jesus, entrando em pormenores,
objetou-lhes que tais coisas não se deviam discutir no Templo; queria, porém, lhes
responder por ser isso vontade de Deus.
Falou então sobre medicina, descrevendo todo o corpo humano, como ainda não o
conheciam os sábios; discorreu sobre astronomia, arquitetura, agricultura, geometria,
matemática, jurisprudência e sobre tudo que lhe foi proposto. Deduziu tudo isso tão
claramente da Lei e da promissão, das profecias do Templo, dos mistérios do culto e
dos sacrifícios, que uns não se fartavam de admirar e outros ficavam, ora
envergonhados, ora zangados e afinal todos se tornaram furiosos, porque lhes dissera
Nosso Senhor, coisas de que nunca haviam tido conhecimento, nem tão clara
compreensão.
Já havia ensinado desse modo algumas horas, quando José e Maria chegaram ao
Templo, para se informarem, com Levitas conhecidos, a respeito do Filho. Então
souberam que se achava com os doutores da lei no auditório. Como fosse um lugar em
que não lhes era permitido entrar, mandaram um dos levitas chamar Jesus. Este,
porém, lhes mandou dizer que primeiro queria acabar o trabalho. Magoou muito à
Maria o não vir Ele logo.
Era a primeira vez que fazia saber aos pais que as ordens destes não eram as únicas
que tinha a cumprir. Ensinou ainda uma boa hora e, só depois de todos estarem
refutados, envergonhados e em parte zangados, foi que saiu do auditório e se dirigiu
ao átrio de Israel e das mulheres, para se encontrar com os progenitores. José,
retraído e admirado, nada disse; Maria, porém, encaminhou-se para Ele, dizendo:
“Filho, porque nos fizeste isso? Olha que teu pai e eu te andávamos procurando,
cheios de aflição.” Mas Jesus, ainda muito sério, disse: Por que me procuráveis? Não
sabeis que me devo ocupar das coisas de meu Pai?” Eles, porém, não compreenderam
essas palavras e partiram com Ele, sem demora, de volta a Nazaré.
A doutrina de Jesus produziu grande sensação entre os doutores da lei; mas estes
guardaram silêncio sobre o acontecimento, falando só de um menino presunçoso, a
quem haviam repreendido, que possuía bom talento, mas precisava ainda ser educado
e polido.”
Jesus, ficando em Jerusalém, não teve nenhuma intenção de afligir os pais; teve em
mira só a vontade do Pai Celeste, que lhe inspirou ficar, para revelar a divina
sabedoria. Por isso, mostrou nas escolas e no Templo um saber maior que o natural.
Como menino de doze anos, ainda não freqüentara nenhuma escola, mas já se
apresentava como mestre dos doutores. Oxalá tivessem ouvido e recebido a doutrina
com coração suscetível! Mas, vaidosos de seu saber, não queriam ser ensinados; antes
quiseram humilhá-lo, propondo-Lhe perguntas difíceis, às quais, como supunham,
não poderia responder. Mas foram eles mesmos que ficaram humilhados pelas sábias
respostas de Jesus e por isso se enraiveceram contra Ele. Recusaram-se a ver a luz
que os iluminava.
Uma estrela milagrosa anunciara o nascimento do Messias; mas o povo escolhido não
se importara com tal fato, nem recebera o Salvador. O Menino Jesus fez brilhar a sua
luz no Templo; mas as autoridades do povo, os sacerdotes e doutores fecharam
propositadamente os olhos à essa luz. Por isso lhes será tirada: cada ano voltará o
Salvador ao Templo; mas não ensinará mais publicamente, até que, chegado à idade
madura, percorrerá todas as regiões da Palestina, pregando sua doutrina divina a todo
o povo. Então se apresentará de novo no Templo, exclamando, em alta voz: “Eu sou a
luz do mundo”. Jerusalém, se ao menos nesse dia o conhecesses!
Depois de voltar de Jerusalém, viveu Jesus, até a idade de trinta anos, com Maria e
José, em paz e recolhimento, na pequena casa de Nazaré. Nem a Escritura Sagrada,
nem a tradição nos transmitem pormenores dessa época; o Evangelho diz apenas: “E
era-lhes (aos pais) submisso.” (Luc. 2, 51). Também Anna Catharina Emmerich conta
pouco dessa fase da vida de Jesus. Ouçamos os fatos principais:
“Depois de Jesus ter voltado a Nazaré, vi preparar-se uma festa, em casa de Sant’Ana,
onde todos os moços e moças, parentes, e amigos de Jesus, se reuniram. Nosso
Senhor era a pessoa principal dessa festa, à qual estiveram presentes 33 meninos,
todos futuros discípulos do Salvador. Ele os ensinou e contou-lhes uma belíssima
parábola de núpcias nas quais a água seria mudada em vinho e os convidados
indiferentes em amigos fiéis; depois lhes falou de outras bodas, nas quais o vinho
seria mudado em sangue e o pão em carne; e esta boda permaneceria, com os
convidados, até o fim do mundo, como consolação e conforto e como vínculo vivo de
união. Disse também a Natanael, jovem parente seu: “Estarei presente às tuas bodas.”
Desde esse tempo, Jesus sempre foi como que o mestre dos companheiros. Sentava-
se-lhes no meio, contando ou ensinando, ou passeava com eles pelos campos.
Aos 18 anos, começou a ajudar a S. José na profissão. Dos vinte aos trinta anos, teve
muito que sofrer, por secretas intrigas dos judeus. Estes não podiam suportá-lo,
dizendo, com inveja, que o filho do carpinteiro queria saber tudo melhor.
Na época em que começou a vida pública, tornou-se cada vez mais solitário e
meditativo. Quando Jesus se aproximava dos trinta anos, tornou-se José cada vez
mais fraco. Vi Jesus e Maria mais vezes em companhia dele. Maria sentava-se-lhe ao
lado do leito, de quando em quando. Quando José morreu, estava Maria sentada à
cabeceira da cama, segurando-o nos braços; Jesus se achava em frente, junto ao peito
do moribundo. Vi o quarto cheio de luz e de Anjos. O corpo de José foi envolvido num
largo pano branco, com as mãos postas abaixo do peito, deitado num caixão estreito e
depositado numa bela gruta sepulcral, perto de Nazaré, gruta a qual recebera como
doação de um homem bom. Além de Jesus e Maria, foram poucos os que
acompanharam o caixão; vi-o, porém, acompanhado de Anjos e rodeado de luz. O
corpo de José foi levado mais tarde pelos cristãos para um sepulcro perto de Belém.
Julgo vê-lo jazer ali, ainda hoje, em estado Incorrupto.
José teve de morrer antes de Jesus, pois, sendo muito fraco e amoroso, não lhe teria
sobrevivido à crucificação. Já sentira profundamente as perseguições que o Salvador
teve de sofrer, dos vinte aos trinta anos, pelas repetidas maldades secretas dos
judeus. Também Maria havia sofrido muito com essas perseguições. É indizível com
que amor o jovem Jesus suportava as tribulações e intrigas dos judeus.
Depois da morte de José, Jesus e Maria se mudaram para uma aldeia situada entre
Cafarnaum e Betsaida, em que um homem chamado Leví ofereceu uma casa a Jesus.
Maria Cleophae, que, com o terceiro marido, vivia na casa de Sant’Ana, perto de
Nazaré, mudou-se para a casa de Maria, em Nazaré. Vi Jesus e Maria irem de
Cafarnaum para lá e creio que Maria ficou ali, pois havia acompanhado Jesus a
Cafarnaum.
Entre os moços de Nazaré Jesus já tinha muitos adeptos; mas sempre o abandonavam
de novo. Andava com eles pelas regiões marginais do lago e também em Jerusalém,
pelas festas. A família de Lázaro, em Betânia, era também já conhecida de Jesus”.
São estas as visões de Ana Catarina, e nos dão uma noção mais aproximada do que
Jesus fez neste tempo oculto de sua vida. Tudo Nele impressiona a gente. Mas o que
mais me deixou pasmo, foi saber que a grande arrogância dos homens daquele tempo,
foi incapaz de perceber naquele jovem o Messias esperado. De fato, um homem que
tinha uma tão vasta cultura, sem ter nunca freqüentado uma escola, deveria ser visto
por todos com olhos muito diferentes, pois a sabedoria manda assim, somente os
orgulhosos não a obedecem.
No texto que segue, trazemos algumas passagens sobre os últimos dias do tempo
de Jesus, imediatamente antes de começar sua vida pública. Na verdade tudo o que
Jesus fazia, tinha um sentido profundo de preparação para a grande missão. Penso
que muita gente sempre imaginou que Jesus passou dos 12 anos até os 30, tipo “na
flauta”, ou seja, apenas ajudando a São José e Nossa Senhora, sem nada fazer no
sentido da missão. Na verdade, como já vimos, até nos dias da perda no Templo,
Jesus aproveitou para fazer amigos – em especial os dois filhos de Verônica – que mais
tarde estavam entre os 72 discípulos. E já ali, ele visitava escolas, instruía as crianças
em especial, e falava sobre o Pai e o Reino.
Os homens caíram pela soberba; pela humildade quis o Salvador levantá-los. Por isso,
já no começo de sua tarefa difícil de ganhar os homens para o reino de Deus, pelo
exemplo e pela Paixão, submeteu-se à uma profunda humilhação, deixando-se batizar
por João.
Assim exortou o povo, pelo exemplo, a imitá-lo, ensinando-nos também ao mesmo
tempo a implorar, em espírito de humildade e penitência, a bênção de Deus para nós e
para os nossos trabalhos. Pois a penitência e humildade nos tornam dignos da bênção
e do agrado de Deus. Por isso, era tão meritória a humilhação voluntária do Filho de
Deus, recebendo o Batismo de João; mereceu a santificação da água e os efeitos
sacramentais do santo Batismo. Catharina Emmerich narra assim o batismo de
Jesus:
“Estava reunida uma extraordinária multidão de povo e João falou com grande alento
sobre a próxima vinda do Messias e sobre a penitência; disse também que teria de
desaparecer, para dar lugar Àquele. Jesus estava no meio do apinhado auditório.
João, que O viu bem, ficou extremamente satisfeito e fervoroso. Já tinha batizado a
muitos, quando Jesus, por sua vez, desceu ao tanque do Batismo.
Então disse João, inclinando-se diante dEle: “Sou eu que devo ser batizado por Vós e
vindes a mim!” Jesus respondeu-lhe: “Deixa fazer por ora; convém que assim
cumpramos toda a justiça, que me batizes e que eu seja batizado por ti”. Também lhe
disse: “Receberás o Batismo do Espírito Santo e de sangue”.
O Salvador dirigiu-se então por cima da ponte, à ilhota, acompanhado por João o
pelos discípulos André e Saturnino. Entrando numa tenda, despiu as vestes e veio
para fora, coberto de uma túnica de um tecido pardo; desceu à margem do tanque,
onde despiu também a túnica, tirando-a pela cabeça. Cingiu os rins com uma faixa,
que lhe envolvia as pernas, até abaixo dos joelhos. Assim entrou na fonte. João estava
de lado, ao sul do tanque; tinha na mão uma taça com aba larga e três biqueiras.
Abaixando-se, tirou água, com a taça e derramou-a, pelas três biqueiras, sobre a
cabeça do Senhor, dizendo mais ou menos as seguintes palavras: “Javé derrame a sua
bênção sobre ti, pelos Querubins e Serafins, com sabedoria, inteligência e fortaleza”.
Jesus subiu então e André e Saturnino cobriram-no com um pano, com o qual se
enxugou; vestindo-o depois de uma comprida túnica branca de batismo, impuseram-
Lhe as mãos aos ombros, enquanto João lhe pós a mão na cabeça.
Ouviu-se então um grande bramido, vindo do céu, como um trovão e todos que
estavam presentes, olharam para cima, estremecendo. Desceu uma nuvem branca e
luminosa e vi uma figura lúcida, com asas, pairar por cima de Jesus, derramando
sobre Ele uma torrente de luz; vi também a aparição do Pai Celestial e ouvi as
palavras: “Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição”. (Mat. 3,17)
Jesus, porém, subiu os degraus, vestiu a túnica e dirigiu-se, cercado dos discípulos,
ao largo da ilha. João falou com grande alegria ao povo, dando testemunho de que
Jesus era o Messias prometido. Citou as promissões dos patriarcas e profetas, que
nesse momento foram cumpridas; contou o que tinha visto e que era a voz de Deus,
que todos tinham ouvido. Disse também que, daí a pouco, se retiraria, logo que Jesus
voltasse. Exortou todos a seguirem Jesus.
Jesus confirmou simplesmente o que João dissera. Disse também que se retiraria por
algum tempo; mas depois viessem a Ele todos os enfermos e aflitos, pois que lhes
daria consolação e socorro.
Depois de batizado, Jesus partiu com os companheiros, primeiro para Belém,
seguindo daí para o sul do Mar morto, pelo mesmo caminho que a Sagrada Família
tomara, na fuga para o Egito. De lá, voltando, foi conduzido pelo Espírito Santo ao
deserto, para jejuar quarenta dias. Começou o jejum na montanha de Jericó, onde
subiu ao monte deserto e íngreme de Quarantania e rezou numa gruta. Descendo do
monte, atravessou, numa embarcação, o rio Jordão e veio à uma montanha muito
íngreme, distante cerca de nove léguas do Jordão. Jesus rezava numa gruta, ora
prostrado por terra, ora de joelhos, ora em pé. Não comia nem bebia, mas era
confortado pelos Anjos.
Cada dia, conta Anna Catharina Emmerich, a obra da oração de Jesus é diferente;
cada dia nos alcança outras graças. Sem essa obra, não podia ser meritória a nossa
resistência às tentações.
Outro dia o vi prostrado com o rosto em terra, quando vieram numerosos Anjos, que o
adoraram e lhe perguntaram se podiam apresentar-lhe a sua missão e se ainda era a
sua vontade sofrer como homem, para os homens. Tendo Jesus de novo confirmado
sua vontade de aceitar os sofrimentos, erigiram-lhe em frente uma Cruz alta.
Três Anjos trouxeram uma escada, outro uma cesta, com cordas e ferramentas;
outros, a lança, a haste de hissope, varas, chicotes, coroa de espinhos, pregos, tudo o
que depois se empregou na Sagrada Paixão. A Cruz, porém, parecia oca; podia abrir-
se, como um armário e estava cheia de inúmeros e diversíssimos instrumentos de
tortura.
Todas as partes e lugares da cruz eram de cores diferentes, pelas quais se podia
conhecer que tortura teria de sofrer. Havia também na Cruz muitas fitas de diversas
cores, como que relatórios de muitas contrariedades e trabalhos que Jesus teria de
suportar na sua vida e Paixão da parte dos discípulos e de outros homens. Quando,
desse modo, toda a Paixão estava posta diante dEle, vi que Jesus e os Anjos
choravam.
Satanás não sabia que Jesus era Deus, tomou-o por um profeta. Uma vez o vi à
entrada da gruta, sob a figura de certo jovem, a quem Jesus muito amava. Fez
barulho, pensando que Jesus se zangasse; mas este nem olhou para ele. Depois,
enviou o demônio sete ou nove aparições de discípulos à gruta; disseram-lhe que o
tinham procurado ansiosamente; não devia arruinar-se lá em cima e abandoná-los.
Jesus disse somente: “Afasta-te, Satanás, ainda não é tempo”. Então desapareceram
todos. Num dos dias seguintes vi Satanás querendo afigurar-se Anjo, trajando vestes
resplandecentes. Chegou voando à entrada da gruta e disse: “Fui enviado por vosso
Pai, para vos confortar”. O Senhor, porém, não olhou para ele.
Jesus sofreu fome e sede. Ao cair da noite, Satanás, sob a forma de um homem alto e
forte, subiu ao monte. Levava duas pedras que tirara em baixo, dando-lhes a forma de
pães. Disse a Jesus: “Se sois o Filho de Deus, fazei que estas pedras se mudem em
pão”. Ouvi Jesus apenas dizer: “O homem não vive de pão”. Satanás ficou furioso e
desapareceu.
Ao cair da tarde do dia seguinte, vi Satanás aproximar-se de Jesus, em forma de um
Anjo poderoso. Vangloriando-se, disse-lhe: “Mostrar-vos-ei quem sou e o que posso.
Eis aí Jerusalém e o Templo. Vou colocar-vos no mais alto pináculo; mostrai então o
vosso poder”. Satanás segurou-o pelos ombros e, levando-o pelos ares a Jerusalém,
colocou-o no cimo de uma torre.
Depois voou para baixo, à terra e disse: “Se sois o Filho de Deus, mostrai o vosso
poder e atirai-vos à terra; pois está escrito: Ele mandará os seus Anjos, que vos
sustentarão com as mãos, afim de que não machuqueis os pés de encontro às pedras”.
Jesus respondeu: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus”.
Então voltou Satanás, cheio de raiva e Jesus lhe disse: “Usa do teu poder, do poder
que te foi dado”. Satanás, furioso, segurou-o de novo pelos ombros, e, levando-o por
cima do deserto, em direção a Jericó, colocou-o no mesmo monte onde Jesus
começara o jejum.
Era o ponto mais alto do monte, no qual o tinha posto; mostrou em redor de si e
viram-se os mais maravilhosos panoramas, em todas as direções do mundo. Então
disse Satanás a Jesus: “Sei que quereis propagar agora a vossa doutrina. Eis aí todas
essas terras magníficas, esses povos poderosos e aqui a pequena Judéia. Ide lá! Dar-
vos-ei todas essas terras, se, prostrado a meus pés, me adorardes”. Jesus disse:
“Adorarás o Senhor teu Deus e a Ele servirás. Afasta-te, Satanás!” Então vi Satanás,
numa forma indescritivelmente hedionda, lançar-se para baixo e desaparecer.
Logo depois, vi um grupo de Anjos aproximar-se de Jesus e levá-lo à gruta, onde
começara o jejum. Eram doze esses Anjos e numerosos outros, para o servirem.
Celebrou-se, então, na gruta, uma festa em ação de graças e de júbilo e depois houve
um banquete”.
Jesus desceu do monte e veio ao Jordão, perto do lugar onde João estava batizando.
Este se voltou logo para o Mestre, exclamando: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira os
pecados do mundo”. Podia-se perguntar: Por que fez Jesus um jejum tão rigoroso? Por
que se sujeitou àquelas tentações?
Jesus está para começar sua vida pública; quer percorrer abertamente o país,
repreender os pecadores, convidá-los a converter-se e fazer penitência; na sua
doutrina, terá de fazer frente, muitas vezes, à opiniões errôneas a respeito da fé e da
moral; terá de apresentar-se ao povo como o Messias prometido, como o Filho de Deus
e de exigir humilde aceitação de sua doutrina. É uma tarefa dificílima, que traz
consigo muitos trabalhos penosos, mortificações, sofrimentos, inimizades e
perseguições. Por isso se prepara o Salvador para essa obra com jejum e meditação,
na solidão do deserto.
Ali, no retiro absoluto, deixa tentar-se por Satanás, que parece não lhe conhecer a
divindade. Por causa da inseparável união de sua alma com o Verbo Divino, não podia
a tentação nascer-lhe da própria natureza, mas podia só provir do exterior.
O homem tentado, pela tríplice concupiscência, é logo inclinado a ceder à tentação e,
desse modo, inúmeros homens caem na ruína temporal e eterna. Jesus, porém, quer
salvar os homens dessa maior desgraça; por isso, oferece também o jejum e as
tentações sofridas, como expiação dos pecados. Assim nos mostra como devemos
vencer a tentação; pela vitória sobre a mesma nos merece a graça de vencê-la também.
Em tudo se tornou igual a nós, com exceção do pecado.
A figura majestosa de Jesus, o seu trato sério, mas sempre amável e delicado, a força
da sua palavra, juntamente com os prodígios extraordinários que operava, deviam
fazer profunda impressão em todos. Uns, cheios de boa vontade, creram-lhe
humildemente na doutrina e nos milagres; outros, malignos, invejosos e de coração
endurecido, encheram-se de ódio contra Ele. Quem não se lembra, à vista desses
fatos, da profecia do velho Simeão: “Este Menino está posto para a ruína e salvação de
muitos, em Israel?”
Do número ainda pequeno dos aderentes só poucos se lhe tinham juntado,
acompanhando-o nas viagens apostólicas. Quando, porém, saiu do deserto, depois do
jejum de quarenta dias, aumentou o número dos discípulos; entre estes era André um
dos primeiros. Ouvira, com Saturnino, João indicar a Jesus, dizendo: “Eis aí o
Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo”. Ambos se reuniram a Jesus. André
conduziu o irmão Simão ao Salvador, que lhe disse: “Tu és Simão, filho de Jonas; no
futuro serás chamado Kephas (latim: Petrus)”. Jesus encontrou-se depois com Filipe e
convidou-o para discípulo, dizendo-lhe: “Segue-me”. Filipe falou a Natanael do
Messias; mas só o saber sobrenatural de Jesus o induziu a seguí-lo.
Com os discípulos e parentes, dirigiu-se Jesus a Caná, para assistir às bodas a que
Ele e sua Mãe tinham sido convidados. O noivo chamava-se Natanael e tinha certo
parentesco com Jesus; pois era sobrinho da filha de Sobe, a qual já conhecemos como
irmã de Sant’Ana. Conta-nos Anna Catharina Emmerich o seguinte:
Estavam reunidos mais de cem convidados. Jesus dirigia a festa, presidia aos
divertimentos, temperando-os com palavras de sabedoria. Foi também quem
organizou todo o programa da festa.
Vi os convidados, homens e mulheres, divertirem-se separados num jardim,
conversando ou brincando. Jesus também tomou parte num jogo de frutas, com
amável seriedade. Dizia, às vezes, sorrindo, algumas palavras sábias, que todos
admiravam ou escutavam comovidos. Nesses dias falou Jesus muito em particular
com aqueles discípulos que, mais tarde, se lhe tornaram Apóstolos. Quis revelar-se,
nessa festa a todos os parentes e amigos e desejou que todos até então por Ele eleitos
se conhecessem uns aos outros, naquela reunião, em que havia maior franqueza.
No terceiro dia depois da chegada de Jesus, foi celebrada a cerimônia do casamento.
Noivo e noiva foram conduzidos da casa da festa à sinagoga. No cortejo havia seis
meninos e seis meninas, que levavam grinaldas; depois seguiam seis moços e moças,
com flautas e outros instrumentos. Além desses, doze donzelas acompanhavam a
noiva, como paraninfas e o noivo, doze mancebos.
A cerimônia do casamento foi feita pelos sacerdotes, diante da sinagoga. Os anéis que
trocaram, foram um presente de Maria Santíssima e tinham sido bentos antes por
Jesus.
Para o banquete nupcial reuniram-se todos de novo, no jardim. Vi um jogo preparado
por Jesus mesmo, para os homens: a sorte que caía a cada um dos jogadores,
indicava-lhe as qualidades, os defeitos e virtudes. Jesus interpretava a sorte de cada
um, conforme a combinação das frutas que ganhavam. O noivo ganhou para si e a
esposa duas frutas estranhas, num só pé, como já vi antes, no paraíso. Todos se
admiravam muito e Jesus falou do matrimônio e do cêntuplo fruto da castidade.
Depois dos noivos terem comido a fruta, vi que uma sombra escura deles se afastava.
A fruta tinha relação com a castidade e a sombra que se apartava, era a
concupiscência da carne.
Ao jogo no jardim seguiu-se o banquete nupcial. A sala estava dividida em três partes;
na do meio estava Jesus sentado à cabeceira da mesa. A mesma mesa sentaram-se
também Israel, o pai da noiva, os parentes masculinos de Jesus e da noiva e também
Lázaro. As outras mesas laterais sentaram-se os outros convidados e os discípulos. O
noivo serviu as mesas dos homens e a noiva as das mulheres.
Jesus encarregara-se das despesas do segundo prato do banquete. (Lazaro pagou as
despesas, mas só Jesus e Maria o sabiam). Tudo estava bem arranjado pela
Santíssima Virgem e Marta. Jesus lhes tinha dito que forneceria o vinho para esse
prato. Depois de ter sido servido às mesas laterais o segundo prato, que constava de
aves, peixe, iguarias de mel, frutas e uma espécie de pastéis, que Seráfia (Verônica)
trouxera, Jesus aproximou-se e repartiu todas as iguarias; depois se sentou de novo à
mesa. Serviram-se as iguarias, mas faltou o vinho. Jesus, porém, estava ensinando.
Esta parte do banquete ficou aos cuidados da Santíssima Virgem e, como notasse que
faltava vinho, aproximou-se de Jesus, lembrando-lhe ansiosamente essa falta, porque
Ele tinha dito que o forneceria.
Jesus, que falava do Pai Celestial, disse-lhe então: “Mulher, não vos apoquenteis.
Deixai de inquietar-vos e a mim, minha hora ainda não chegou”. Assim falando, não
manifestava falta de respeito à sua Mãe. Disse mulher e não mãe, porque quis nesse
momento, como Messias e Filho de Deus, realizar uma ação misteriosa diante dos
seus discípulos e parentes, mostrando que ali estava, presente na sua missão divina.
Maria não se inquietou mais; disse, porém, aos criados: “Fazei tudo que Ele vos
mandar”.
Depois de algum tempo, mandou Jesus aos criados trazerem as ânforas vazias e
virarem-nas. Trouxeram-nas; eram três ânforas de água e três de vinho. Os criados
mostraram que estavam vazias, virando-as por cima de uma bacia. Jesus mandou que
enchessem todas com água. As ânforas eram grandes e pesadas; eram precisos dois
homens para transportarem cada uma.
Depois de estarem cheias de água, e postas ao lado do aparador, Jesus aproximou-se,
benzeu as ânforas e, tendo-se sentado de novo à mesa. disse: “Enchei os cálices e levai
um ao despenseiro”. Este, tendo provado o vinho, aproximou-se do noivo e disse-lhe
que sempre fora costume dar primeiro o bom vinho e depois dos convidados terem
bebido bastante oferecer o vinho inferior, mas que ele tinha dado o melhor no fim.
Então beberam também o noivo e o pai da noiva, ficando ambos pasmos; os criados
protestaram que haviam enchido de água as ânforas e tirado delas para encher os
cálices e copos das mesas. Então beberam todos. Não houve, porém, nenhum barulho
por causa do milagre, mas reinava silêncio respeitoso em toda a reunião e Jesus
ensinou muito, a respeito do que se passara.
Todos os discípulos, parentes e convidados estavam agora convencidos do poder de
Jesus e de sua dignidade e missão. Desse modo esteve Jesus a primeira vez na sua
comunidade e foi o primeiro prodígio que nela e para ela operou, para confirmar-lhe a
fé. Por isso é relatado na história da sua vida como o primeiro milagre e a última Ceia
como o último milagre, quando já era firme a fé dos apóstolos.
Ao fim do banquete veio o noivo sozinho a Jesus e declarou-lhe, com muita
humildade, que sentia extinta em si toda a concupiscência da carne e que desejava
viver em santidade com a esposa, se ela consentisse. Também a noiva veio a Jesus,
sozinha, dizendo-lhe o mesmo.
Chamou-os então Jesus a ambos e falou-lhes do matrimônio, da castidade, tão
agradável a Deus e do fruto cêntuplo do espírito. Citou muitos profetas e santos, que
viveram castos, sacrificando a carne, por amor do Pai Celestial, que tiveram como
filhos espirituais muitos homens perdidos, reconduzindo-os ao caminho da virtude e
que assim tinham grande e santa descendência.
Os noivos fizeram então voto de continência e de viverem como irmãos durante três
anos. Ajoelharam-se diante de Jesus, que os abençoou.
Assim, acreditamos que todos os leitores tiveram satisfeita a sua curiosidade, assim
como a tive ao ler o livro inteiro – lido não, “devorado” – em coisa de alguns dias.
Alguns detalhes revelados, entretanto, nos fazem pensar mais profundamente na
missão de Cristo. A maior perplexidade que estas revelações iniciais me causaram, foi
certamente a extrema compenetração de Jesus. Na verdade, muito poucas vezes Ele
ria. Isso prega frontalmente contra os promotores da Nova Era, que querem fazer de
Jesus um cara alegre, extrovertido, tipo bem sucedido, coisa que é de fato uma afronta
contra Ele, pois como poderá agir desta forma alguém que sabe, milímetro a
milímetro, do pavoroso sofrimento que o espera.
Nos espaço entre o último texto e este, constam no livro de Ana Catarina algumas
breves revelações sobre os três anos da vida pública de Jesus. Embora sempre haja ali
fatos muito interessantes, por questão de coerência deixamos que falem os
Evangelhos. De fato, tudo o que precisamos saber está ali contido. Por isso, vamos
seguir nos temas finais, em especial nas horas que antecederam ao pavoroso momento
da Cruz, exatamente porque aqui estão fatos que desconhecemos e que as revelações
desta mística, únicas na Igreja, em uma tal profundidade, vêm nos esclarecer.
Aqui apresentamos o tema relativo à Santa Ceia, e fico feliz porque hoje é Corpus
Christi, e assim uso o tempo desta tarde para caminhar junto com Jesus e os
apóstolos. Penso, no entanto, que não são necessárias explicações, porque certamente
o querido leitor terá saciado como eu, o desejo de conhecer em detalhes o que se
passou com Jesus naquela Quinta-Feira Santa. Deixamos o texto completo e por isso
o artigo ficará mais longo, isso para que observando os detalhes, nos compenetremos
da importância dos pequenos detalhes, também, na Santa Missa. Vamos aos textos:
Foi ontem à noite que se efetuou em Betânia a última e grande refeição de Nosso
Senhor e dos seus amigos, em casa de Simão, curado da lepra por Jesus e durante a
qual Maria Madalena ungiu Jesus pela última vez. Judas, indignado com isso, correu
a Jerusalém, onde negociou ainda uma vez com os príncipes dos sacerdotes, para
entregar-lhes Jesus. Depois da refeição, voltou Jesus à casa de Lázaro e uma parte
dos discípulos dirigiram-se à albergaria, situada fora de Betânia. Nicodemos veio
ainda de noite à casa de Lázaro, onde teve longa conversa com o Senhor; voltou a
Jerusalém antes do amanhecer, acompanhado numa parte do caminho por Lázaro.
Os discípulos já tinham perguntado a Jesus onde queria comer o cordeiro pascal.
Hoje, antes da madrugada, Nosso Senhor mandou vir Pedro e João e falou-lhes muito
de tudo que deviam comprar e preparar em Jerusalém; disse-lhes que, subindo o
monte Sião, encontrariam um homem com um jarro de água. (Eles já conheciam esse
homem, pois fora quem já na última Páscoa, em Betânia, preparara a ceia de Jesus;
por isso diz S. Mateus: um certo homem). Deviam seguí-lo até à casa em que morava e
dizer-lhe: “O Mestre manda avisar-te que seu tempo está perto e que quer celebrar a
Páscoa em tua casa”. Deviam pedir que lhes mostrasse o Cenáculo, que já estaria
preparado e fazer-lhe depois todos os preparativos necessários.
Vi os dois Apóstolos subirem a Jerusalém, seguindo um barranco ao Sul do Templo e
subirem ao monte Sião pelo lado setentrional. Ao lado Sul do monte do Templo havia
algumas fileiras de casas; seguiram um caminho que passava em frente destas casas,
ao longo de um ribeiro, que corria no fundo do barranco e os separava das casas.
Tendo chegado à altura de Sião, que é mais alto do que o monte do Templo, dirigiram-
se a um largo um pouco em declive, na vizinhança de um velho edifício, cercado de
pátios; ali, no largo, encontraram o homem que lhes fora indicado, seguiram-no e
perto da casa lhe disseram o que Jesus lhes ordenara.
Ele se regozijou muito de os ver e, ouvindo o recado, respondeu-lhes que a refeição já
lhe tinha sido encomendada (provavelmente por Nicodemos), sem que soubesse para
quem era, mas que muito lhe agradava saber que era para Jesus. Esse homem era Elí,
cunhado de Zacarias de Hebron, o mesmo em cuja casa Jesus anunciara, no ano
anterior, em Hebron, a morte de S. João Batista.
Tinha só um filho, que era Levita e amigo de Lucas, antes deste se juntar a Jesus, e
além desse, também 5 filhas solteiras. Todos os anos, ele ia com os criados à festa e,
alugando uma sala, preparava a Páscoa para as pessoas que não tinham casa em
Jerusalém. Nesse ano tinha alugado um cenáculo, pertencente a Nicodemos e José de
Arimatéia. Mostrou aos dois Apóstolos a sala e o arranjo interior.
Ao lado sul do monte Sião, perto do castelo abandonado de Davi e do mercado situado
na subida, à leste desse castelo, se acha um velho e sólido edifício, entre duas fileiras
de árvores copadas e no meio de um pátio espaçoso, cercado de muros fortes. À direita
e à esquerda da entrada há ainda outras construções encostadas ao muro: à direita a
habitação do mordomo e, perto desta, outra, à qual Nossa Senhora e as santas
mulheres às vezes se retiravam, depois da morte de Nosso Senhor.
O Cenáculo, antigamente mais espaçoso, servira de morada aos bravos capitães de
Davi, que ali se exercitavam no manejo das armas; também estivera ali por algum
tempo a Arca da Aliança antes da construção do Templo e ainda há indícios da sua
estada num subterrâneo da casa.
Vi também uma vez o profeta Malaquias escondido nos mesmos subterrâneos, onde
escreveu as profecias acerca da sagrada Eucaristia e do sacrifício do Novo Testamento.
Salomão tinha também esta casa em muito respeito, por certa relação simbólica, a
qual, porém, esqueci. Quando grande parte de Jerusalém foi destruída pelos
Babilônios, ficou salva essa casa, a respeito da qual tenho visto muitas outras coisas,
mas lembro-me só do que acabo de contar.
O edifício estava meio arruinado, quando se tornou propriedade de Nicodemos e José
de Arimatéia, que restauraram a casa principal e acomodaram-na bem, para a
celebração da festa da Páscoa, fim para o qual costumavam alugá-la a forasteiros,
como fizeram também na última Páscoa do Senhor. Além disso, serviam-lhes a casa e
os pátios de armazém para monumentos sepulcrais e pedras de construção, como
também de oficina para os operários, pois José de Arimatéia possuía excelentes
pedreiras nas suas terras e negociava em pedras sepulcrais e variadíssimas colunas e
capitéis, esculpidos sob sua direção.
Nicodemos trabalhava muito como construtor e, nas horas vagas, gostava de ocupar-
se também com a escultura; fora da época das festas, esculpia estátuas e
monumentos de pedra, na sala ou no subterrâneo debaixo desta. Essa arte pusera-o
em contato com José de Arimatéia; tornaram-se amigos e muitas vezes se associaram
também nas empresas.
Nessa manhã, enquanto Pedro e João, enviados de Betânia por Jesus, conversavam
com o homem que tinha alugado o Cenáculo para aquele ano, vi Nicodemos indo para
além e para aquém das casas à esquerda do pátio, para onde tinham sido
transportadas muitas pedras, que impediam as entradas da sala do Cenáculo. Havia
uma semana, eu vira algumas pessoas ocupadas em pôr as pedras ao lado, em limpar
o pátio e preparar o Cenáculo para a celebração da Páscoa; julgo até ter visto, entre
outros, alguns discípulos de Jesus, talvez Aram e Temeni, sobrinhos de José de
Arimatéia.
A casa principal, o Cenáculo propriamente dito, está quase no meio do pátio, um
pouco para o fundo. É um quadrilátero comprido, cercado por uma arcada menos alta
de colunas, a qual, afastados os biombos entre os pilares, pode ser unida à grande
sala interior; pois todo o edifício é aberto de lado a lado e pousa sobre colunas e
pilares; apenas estão as passagens fechadas ordinariamente por biombos. A luz entra
por aberturas existentes no alto das paredes.
Na parte estreita da frente, há um vestíbulo, ao qual conduzem três entradas; depois
se entra na grande sala interior, alta e com bom soalho lajeado; do teto pendem
diversas lâmpadas; as paredes estão ornadas para a festa, até meia altura, com belas
esteiras e tapetes e no teto há uma abertura coberta com um tecido brilhante,
transparente, semelhante à gaze azul.
O fundo da sala está separado do resto por uma cortina igual. Essa divisão do
Cenáculo em três partes dá-lhe uma semelhança com o Templo; há também um adro,
o santo e o santo dos santos. Nesta última parte é que são guardados, à direita e à
esquerda, as vestimentas e vários utensílios. No meio há uma espécie de altar. Sai da
parede, um banco de pedra com a ponta cortada no meio das duas faces laterais; deve
ser a parte superior do forno, no qual o cordeiro pascal é assado; pois hoje, durante a
refeição, estavam os degraus em roda muito quentes.
Ao lado dessa parte do Cenáculo, há uma porta, que dá para o alpendre que fica atrás
da pedra saliente; de lá é que se desce ao lugar onde se acende o fogo no forno; há ali
ainda outros subterrâneos e adegas, debaixo da grande sala. Naquela pedra ou altar
saliente da parede há várias divisões, semelhantes à caixas ou gavetas, que se podem
tirar; em cima há também aberturas como de uma grelha, uma abertura também para
fazer fogo e outra para apagá-lo.
Não sei mais descrever exatamente tudo que ali vi, parece ter sido um forno para cozer
o pão ázimo da Páscoa e outros bolos ou também para queimar incenso ou certos
restos das refeições da festa; é como uma cozinha pascal. Por cima desse forno ou
altar há uma caixa de madeira, saliente, semelhante a um nicho, que tem em cima
uma abertura, com uma válvula, provavelmente para deixar sair a fumaça.
Diante desse nicho ou pendente por cima dele, vi a figura de um cordeiro pascal; tinha
cravado na garganta uma faca e o sangue parecia cair gota a gota sobre o altar; não
sei mais exatamente como era feito. Dentro do nicho da parede há três armários de
diversas cores, os quais se fazem girar como os nossos tabernáculos, para se abrirem
e fecharem. Neles vi todas as espécies de vasos para a Páscoa, taças e mais tarde
também o SS. Sacramento.
Nas salas laterais do Cenáculo há assentos ou leitos em plano inclinado, feitos de
alvenaria, sobre os quais se acham mantas grossas enroladas; são leitos de dormir.
Debaixo de todo o edifício há belas adegas; antigamente esteve ali no fundo a Arca da
Aliança, onde, em seguida, foi construído o forno pascal. Debaixo da casa há cinco
esgotos, que levam todas as águas e imundícies monte abaixo, pois a casa está
situada no alto. Já antes vi Jesus curar e ensinar aqui; às vezes passavam alguns
discípulos à noite nas salas laterais.
Tendo os Apóstolos falado com Helí de Hebron, voltou este pelo pátio à casa; eles,
porém, se dirigiram para a direita, a Sião, desceram pelo lado norte, passaram uma
ponte e, seguindo por veredas ladeadas de sebes verdejantes, foram pelo outro lado do
barranco, até às fileiras de casas ao sul do Templo. Ali era a casa do velho Simeão,
que morrera depois da apresentação de Jesus no Templo. Moravam então lá os filhos
do venerando ancião; alguns eram secretamente discípulos de Jesus.
Os Apóstolos falaram a um deles, que era empregado no Templo; era homem alto e
muito moreno. Ele desceu com os Apóstolos, passando a leste do Templo, por aquela
porta de Ophel pela qual Jesus entrara triunfalmente em Jerusalém, no domingo de
Ramos; assim foram pela cidade, ao norte do Templo, até o Mercado de gado. Vi na
parte meridional do mercado pequenos recintos, onde belos cordeiros saltavam como
em pequenos jardins.
Na entrada triunfal de Jesus pensei que isso fora feito para abrilhantar a festa; mas
eram cordeiros pascais, que se vendiam ali. Vi o filho de Simeão entrar num desses
recintos; os cordeiros seguiram-no, saltando, e empurravam-no com as cabeças, como
se o conhecessem. Ele escolheu quatro, que foram levados ao Cenáculo. Vi-o também
de tarde no Cenáculo, ajudando na preparação do cordeiro pascal.
Vi como Pedro e João deram ainda vários recados na cidade, encomendando muitas
coisas. Vi-os também fora de uma porta, ao norte do monte Calvário e a NO da cidade;
entraram numa estalagem, onde ficaram nesses dias muitos discípulos. Era a
estalagem construída em Jerusalém para os discípulos, a qual estava sob a
administração de Seráfia, (conhecida pelo nome de Verônica). Pedro e João mandaram
alguns discípulos de lá ao Cenáculo, para dar alguns recados, dos quais me esqueci.
Foram também à casa de Seráfia, à qual tinham de pedir diversas coisas; o marido
desta, membro do conselho, estava a maior parte do tempo fora de casa, em negócios
e, mesmo quando estava em casa, ela o via pouco. Seráfia era uma mulher quase da
idade da SS. Virgem e há tempo estava em relações com a Sagrada Família; pois
quando o Menino Jesus, depois da festa, ficara atrás, em Jerusalém, comera em casa
dela.
Os dois Apóstolos receberam ali diversos objetos, em cestos cobertos, que foram
levados ao Cenáculo, em parte pelos discípulos. Foi também ali que receberam o cálice
de que Nosso Senhor se serviu, na instituição da sagrada Eucaristia.
(1) Este Cálice será o mesmo que está guardado em baixo de um prédio em Jerusalém,
conforme mensagens ao Cláudio, devendo ser achado para que João Paulo II celebre
com ele a grande Missa do Calvário, em ação de graças pelo fim da Terceira Grande
Guerra.
O Lava-pés
Jesus deu ainda instruções secretas. Disse aos Apóstolos que continuassem a
consagrar e administrar o SS. Sacramento, até o fim do mundo. Ensinou-lhes as
formas essenciais da administração e do uso do Sacramento e de que modo deviam
gradualmente ensinar e publicar esse mistério; explicou-lhes quando deviam receber o
resto das espécies consagradas e dá-lo à SS. Virgem e que deviam consagrar também
o SS. Sacramento, depois de lhes ter enviado o Divino Consolador.
Instruiu-os em seguida sobre o sacerdócio, sobre a preparação do Crisma e dos santos
óleos e sobre a unção. Estavam ao lado do cálice três urnas, duas das quais
continham misturas de bálsamo e diversos óleos e algodão; as urnas podiam ser
postas uma em cima da outra. Jesus ensinou-lhes muitos mistérios, como se devia
preparar o santo Crisma, a que partes do corpo se devia aplicar e em que ocasiões.
Lembro-me, entre outras coisas, que mencionou um caso em que a sagrada Eucaristia
não podia mais ser recebida; talvez se tenha referido à Extrema-Unção: mas as
minhas lembranças a tal respeito não são muito claras. Falou ainda de diversas
unções, inclusive a dos reis e disse que os reis sagrados com o Crisma, mesmo os
injustos, possuíam uma força interna misteriosa, que não era dada aos outros.
Derramou, pois, ungüento e óleo na urna vazia e misturou-os; não sei mais
positivamente se foi nesse momento ou já por ocasião da consagração dos pães, que
benzeu o óleo.
Vi depois Jesus ungir a Pedro e João; já por ocasião da instituição do SS. Sacramento
lhes derramara sobre as mãos a água que sobre as suas lhe correra e os fizera
também beber do cálice que Ele mesmo segurava.
Saindo do meio da mesa, um pouco para o lado, pousou as mãos primeiro sobre os
ombros e depois sobre a cabeça de Pedro e João. Em seguida mandou que ficassem de
mãos postas e colocassem os polegares em forma de cruz. Inclinaram-se os dois
Apóstolos profundamente diante do Mestre (não sei se aí estavam de joelhos). O
Senhor ungiu-lhes os polegares e indicadores com ungüento e fez-lhes com o mesmo
também o sinal da cruz na cabeça.
Disse-lhes também que essa unção devia permanecer com eles até o fim do mundo.
Tiago o Menor, André, Tiago o Maior e Bartolomeu receberam também ordens. Vi
também o Senhor ajustar em forma de cruz, sobre o peito de Pedro, a faixa estreita de
pano, que todos traziam ao pescoço; aos outros, porém, do ombro direito para debaixo
do braço esquerdo. Não sei mais com certeza se isso se fez já por ocasião da
instituição do SS. Sacramento ou só na hora da unção.
Vi, porém, que Jesus lhes comunicou com essa unção uma coisa real e também
sobrenatural, não sei como exprimi-lo em palavras. Disse-lhes mais que, depois de
terem recebido o Espírito Santo, deviam também consagrar pão e vinho e dar a unção
aos outros Apóstolos. Nesse momento tive uma visão sobre Pedro e João que, no dia
de Pentecostes, antes do grande batismo, impuseram as mãos aos outros Apóstolos, o
que também fizeram, uma semana depois, a alguns outros discípulos.
Vi também João, depois da ressurreição de Jesus, dar pela primeira vez o SS.
Sacramento a Nossa Senhora. Esse acontecimento foi celebrado pelos Apóstolos com
grande solenidade; a Igreja militante não tem mais essa festa, mas vejo-a celebrada
ainda na Igreja triunfante. Nos primeiros dias depois de Pentecostes vi só Pedro e João
consagrarem a santa Eucaristia, mais tarde a consagraram também os outros.
O Senhor benzeu-lhes também fogo, num vaso de bronze; esse fogo desde então ardeu
sempre, até depois de longas ausências era guardado junto ao lugar onde se
conservava o SS. Sacramento, numa parte do antigo fogão pascal; ali sempre o
buscavam para as cerimônias religiosas.
Tudo que Jesus fez por ocasião da instituição da sagrada Eucaristia e da unção dos
Apóstolos, foi debaixo de grande segredo e era também ensinado só secretamente e
tem se conservado, na sua essência, pela Igreja até os nossos tempos, aumentado,
porém, sob a inspiração do Espírito Santo, conforme as necessidades.
Os Apóstolos ajudaram na preparação e bênção do santo Crisma; quando Jesus os
ungiu e lhes impôs as mãos, fez tudo com grande solenidade.
Terminadas as santas cerimônias, o cálice, perto do qual estavam também os santos
óleos, foi coberto com a capa e Pedro e João levaram assim o SS. Sacramento para o
fundo da sala, separado do resto por uma cortina e ali era desde então o Santuário. O
SS. Sacramento estava por cima do fogão pascal, não muito alto. José de Arimatéia e
Nicodemos cuidavam do Santuário e do Cenáculo, na ausência dos Apóstolos.
Jesus ensinou ainda por muito tempo e disse algumas orações com grande fervor.
Parecia às vezes conversar com o Pai celeste, cheio de entusiasmo e amor. Os
Apóstolos também ficaram penetrados de zelo e ardor e fizeram-lhe várias perguntas,
às quais respondeu. Creio que tudo isso está escrito em grande parte na Escritura
Sagrada. Durante esses discursos, disse Jesus algumas coisas a Pedro e João
separadamente, as quais estes depois deviam comunicar aos outros Apóstolos, como
complemento de instruções anteriores e estes aos outros discípulos e às santas
mulheres, quando chegassem ao tempo de receberem tais conhecimentos.
Pedro e João estavam sentados perto de Jesus. O Senhor teve também uma conversa
particular com João, da qual me lembro agora apenas o prognóstico de que a vida
deste Apóstolo seria mais longa que a dos outros; falou-lhe também de sete Igrejas, de
coroas, Anjos e outras figuras simbólicas, com as quais designava, como me parece,
certas épocas. Os outros Apóstolos sentiram, diante dessa confiança particular, um
leve movimento de inveja.
O Mestre falou também diversas vezes do traidor, dizendo o que naquela hora este
estava fazendo; vi sempre Judas fazer o que o Senhor dizia. Como Pedro lhe afirmasse,
com grande ardor, que havia de permanecer fiel, disse-lhe Jesus: “Simão, Simão, eis
que Satanás vos reclama com instância, para vos joeirar como o trigo; mas eu roguei
por ti, afim de que tua fé não desfaleça; e tu enfim, depois de convertido, confirma na
fé teus irmãos”. Como, porém, Jesus dissesse que onde iria, não poderiam seguí-lo,
exclamou Pedro que o seguiria até a morte. Replicou Jesus: “Em verdade, antes que o
galo cante duas vezes, tu me negarás três vezes,”
Quando lhes anunciou os tempos duros que viriam, perguntou-lhes: “Quando vos
enviei sem alforje, sem sapatos, faltou-lhes porventura alguma coisa?” Responderam:
“Não”. Disse, porém, que daquela hora em diante, quem tivesse bolsa, a tomasse e
também alforje e o que nada tivesse, vendesse a túnica e comprasse espada, pois que
se devia cumprir a palavra: “E foi reputado por um dos iníquos”. Tudo que fora escrito
sobre Ele, devia cumprir-se então.
Os Apóstolos entenderam-no no sentido natural e Pedro mostrou-Lhe duas espadas
curtas e largas, como cutelos.
Jesus disse: “Basta, vamo-nos daqui”. Rezaram então um cântico; a mesa foi posta ao
lado e dirigiram-se todos ao vestíbulo.
Ali se aproximaram a mãe de Jesus, Maria de Cleofas e Madalena, que lhe pediram
instantemente que não fosse ao monte das Oliveiras; pois se propagara o boato de que
queriam apoderar-se dEle. Mas Jesus consolou-as com poucas palavras, continuando
apressadamente o caminho; eram cerca de 9 horas da noite. Descendo a grandes
passos pelo caminho pelo qual Pedro e João tinham vindo ao Cenáculo, dirigiram-se
ao monte das Oliveiras.
Creio que ficou claro ao leitor, o imenso cuidado, também a profundidade e a extrema
compenetração de Jesus, durante esta primeira Missa e a instituição do Sacramento
da Eucaristia. Efetivamente Jesus já sentia os efeitos daquilo que viria a seguir. Já
diante de seus olhos estavam os algozes, e a sua dor começara com as manobras
sujas do traidor, Judas, em todas as suas tramas para trair o mestre. Quem de nós,
num momento grave como aquele, teria forças para não dar uma surra ou pelo menos
lhe dizer umas verdades e expulsá-lo dali? Com angústia dobrada o Senhor fez esta
refeição, e isso nos serve também de duplo exemplo: Primeiro, para renovar em nós a
absoluta necessidade do perdão, sem o qual não se pode ir à Eucaristia. Segundo,
para nos compenetrarmos da imensidão dos sacrilégios que hoje se comete, como
novos Judas, pois ele foi o primeiro sacrílego e maior. Ou seja, sacrilégio – comungar
em pecado grave – é beber a própria condenação.
Por isso, preferimos deixar o texto das revelações na íntegra, uma vez que se tratam de
matéria desconhecida, embora no total este capítulo contenha matéria de um pequeno
livro.
Eram quase 9 horas da noite, quando Jesus chegou, com os discípulos, a Getsêmani.
Ainda reinava a escuridão na terra, mas no céu a lua já espargia a luz prateada. Jesus
estava muito triste e anunciou-lhes a aproximação do perigo. Os discípulos
assustaram-se e Ele disse a oito dos companheiros que ficassem no Jardim de
Getsêmani, num lugar onde havia um caramanchão. “Ficai aqui, disse, enquanto vou
ao meu lugar rezar”.
Tomando consigo Pedro, João e Tiago o Maior, subiu mais para o alto e, cruzando um
caminho, avançara, numa distância de alguns minutos, do horto das Oliveiras ao pé
do monte. Ele estava numa indizível tristeza; pressentia a tribulação e tentação, que
se aproximavam. João perguntou-lhe como podia agora estar tão abatido, quando
sempre os tinha consolado. Então Jesus disse: “Minha alma está triste até a morte” e,
olhando em redor de si, viu de todos os lados se aproximarem angústias e tentações,
como nuvens cheias de figuras assustadoras.
Foi nessa ocasião que disse aos Apóstolos: “Ficai aqui e vigiai comigo; orai, para não
serdes surpreendidos pela tentação”. Eles ficaram então ali; Jesus, porém, adiantou-
se ainda mais; mas as horrorosas visões assaltavam-no de tal modo, que, cheio de
angústia, desceu um pouco à esquerda dos três Apóstolos, escondendo-se debaixo de
um grande rochedo, numa gruta de talvez 7 pés de profundidade; os Apóstolos ficaram
em cima desse rochedo, numa espécie de cavidade. O chão da gruta era suavemente
inclinado e as plantas pendentes do rochedo, que sobressaía em frente, formavam
uma cortina diante da entrada, de maneira que quem estivesse dentro da gruta, não
podia ser visto de fora.
Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo circulo de imagens
horríveis, o qual se apertava mais e mais. Cresceu-lhe a tristeza e a tribulação e
retirou-se tremendo para dentro da gruta, semelhante ao homem que, fugindo de uma
repentina tempestade, procura abrigo para rezar, vi, porém, que as imagens
assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta, tornando-se cada vez mais distintas.
A estreita caverna parecia encerrar o horrível espetáculo de todos os pecados
cometidos, desde a primeira queda do homem, até ao fim dos séculos, como também
todos os castigos. Foi ali, no monte das Oliveiras, que Adão e Eva, expulsos do
Paraíso, pisaram primeiro a terra e foi nessa caverna que choraram e gemeram.
Tive a clara impressão de que Jesus, entregando-se às dores da Paixão, que ia
começar e sacrificando-se à justiça divina, em satisfação de todos os pecados do
mundo, de certo modo retirou a sua divindade para o seio da SS. Trindade; impelido
por amor infinito, quis entregar-se à fúria de todos os sofrimentos e angústias, na sua
humanidade puríssima e inocente, verdadeira e profundamente sensível, para
expiação dos pecados do mundo, armado somente do amor do seu coração humano.
Querendo satisfazer pela raiz e por todas as excrescências do pecado e da má
concupiscência, tomou o misericordiosíssimo Jesus no coração a raiz de toda a
expiação purificadora e de toda a dor santificante, por amor de nós, pecadores e, para
satisfazer pelos pecados inumeráveis, deixou esse sofrimento infinito estender-se,
como uma árvore de dores e penetrar-lhe com mil ramos todos os membros do corpo
sagrado, todas as faculdades da alma santa.
Entregue assim inteiramente à sua humanidade, implorando a Deus com tristeza e
angústia indizíveis, prostrou-se por terra. Viu em inumeráveis imagens todos os
pecados do mundo, com toda a sua atrocidade, tomou todos sobre si, e ofereceu-se na
sua oração, para dar satisfação à justiça do Pai Celestial, pagando com os sofrimentos
toda essa dívida da humanidade para com Deus.
Satanás, porém, que se movia no meio de todos os horrores, em figura terrível e com
um riso furioso, enraivecia-se cada vez mais contra Jesus e, fazendo passar-lhe diante
da alma visões sempre mais horrorosas, gritou diversas vezes à humanidade de Jesus:
“Que? Tomarás também isto sobre ti? Sofrerás também castigo por este crime? Como
podes satisfazer por tudo isto?”
Veio, porém, um estreito feixe de luz, da região onde o sol está entre as dez e onze
horas, descendo sobre Jesus e nela vi surgir uma fileira de Anjos, que Lhe
transmitiram força e ânimo. A outra parte da gruta estava cheia de visões horrorosas
dos nossos pecados e de maus espíritos, que O insultavam e agrediam; Jesus aceitou
tudo; o seu Coração, O único que amava perfeitamente a Deus e aos homens, nesse
deserto cheio de horrores, sentia com dilacerante tristeza e terror a atrocidade e o peso
de todos esses pecados. Ai! vi tantas coisas ali! Nem um ano chegaria para contá-las!
Voltando à gruta, com toda a tristeza que o acabrunhava, Jesus prostrou-se por terra,
com os braços estendidos e rezou ao Pai Celeste. Mas passou-lhe na alma nova luta,
que durou três quartos de hora. Anjos vieram apresentar-Lhe em grande número de
visões, tudo o que devia aceitar de sofrimentos, para expiar o pecado.
Mostraram-lhe a beleza do homem antes do primeiro pecado, como imagem de Deus e
quanto o pecado o tinha rebaixado e desfigurado.
Mostraram-lhe como o primeiro pecado fora a origem de todos os pecados, a
significação e essência da concupiscência e seus terríveis efeitos sobre as faculdades
da alma e do corpo do homem, como também a essência e a significação de todas as
penas contrárias à concupiscência.
Mostraram-lhe os seus sofrimentos expiatórios primeiramente como sofrimentos de
corpo e alma, suficientes para cumprir todas as penas impostas pela justiça divina à
humanidade inteira, por toda a má concupiscência; e depois como sofrimento, que,
para dar verdadeira satisfação, castigou os pecados de todos os homens na única
natureza humana que era inocente: na humanidade do Filho de Deus, O qual, para
tomar sobre si, por amor, a culpa e o castigo da humanidade inteira, devia também
combater e vencer a repugnância humana contra o sofrimento e a morte.
Tudo isto lhe mostraram os Anjos, ora em coros inteiros, com séries de imagens, ora
separados, com as imagens principais; vi as figuras dos Anjos mostrando com o dedo
elevado as imagens e percebi o que disseram, mas sem lhes ouvir as vozes.
Não há língua que possa descrever o horror e a dor que invadiram a alma de Jesus, ao
ver esta terrível expiação; pois não viu somente a significação das penas expiatórias
contrárias à concupiscência pecaminosa, mas também a significação de todos os
instrumentos do martírio, de modo que O horrorizou, não só a dor causada pelos
instrumentos, mas também o furor pecaminoso daqueles que os inventaram, a malícia
dos que os usavam e a impaciência daqueles que com eles tinham sido atormentados,
pois pesavam sobre Ele todos os pecados do mundo. O horror desta visão foi tal, que
lhe saiu do corpo um suor de sangue.
Enquanto a humanidade de Jesus sofria e tremia, sob esta terrível multidão de
sofrimentos, notei um movimento de compaixão nos Anjos; houve uma pequena
pausa: parecia-me que desejavam ardentemente consolá-lo e que apresentavam as
súplicas diante do trono de Deus. Era como se houvesse uma luta instantânea entre a
misericórdia e a justiça de Deus e o amor que se estava sacrificando.
Foi-me mostrada uma imagem de Deus, não como em outras ocasiões, num trono,
mas numa forma luminosa menos determinada; vi a pessoa do Filho retirar-se na
pessoa do Pai, como que lhe entrando no peito; a pessoa do Espírito Santo saindo do
Pai e do Filho e estando entre Eles; e todos eram um só Deus.
Quem poderá descrever exatamente uma tal visão? Não tive tanto uma visão com
figuras humanas, como uma percepção interna, na qual me foi mostrado, por imagem,
que a vontade divina de Jesus Cristo se retirava mais para o Pai, para deixar pesar
sobre a sua humanidade todos os sofrimentos, que esta pedia ao Pai que afastasse; de
modo que a vontade divina de Jesus, unida ao Pai, impunha à sua humanidade todos
os sofrimentos que a vontade humana, pelas súplicas, queria afastar.
Vi-O no momento da compaixão dos Anjos, quando estes desejavam consolar Jesus
que, com efeito, teve neste instante um certo alívio. Depois desapareceu tudo e os
Anjos, com sua compaixão consoladora, abandonaram o Senhor, cuja alma entrou em
novas angústias.
Judas não esperava que a traição tivesse as conseqüências que se lhe seguiram.
Queria ganhar a recompensa prometida e mostrar-se agradável aos fariseus,
entregando-lhes Jesus, mas não pensara no resultado, na condenação e crucifixão do
Mestre; não ia tão longe em seus desígnios. Era só o dinheiro que lhe preocupava o
espírito e já havia muito tempo travara relações com alguns fariseus e Saduceus
astutos que, com lisonjas, o incitavam à traição. Estava aborrecido da vida fatigante,
errante e perseguida, que levavam os Apóstolos.
Nos últimos meses furtara continuamente as esmolas, de que era depositário e a
cobiça, irritada pela liberalidade de Madalena quando derramou perfumes sobre
Jesus, impeliu-o finalmente ao crime. Tinha sempre esperado um reino temporal de
Jesus e uma posição brilhante e lucrativa nesse reino; como, porém, não o visse
aparecer, procurava amontoar fortuna. Via crescerem as fadigas e perseguições e
pretendia manter boas relações com os poderosos inimigos de Jesus, antes de chegar
o fim; pois via que Jesus não se tornaria rei, enquanto que a dignidade do Sumo
Sacerdote e a importância dos seus confidentes lhe produziam viva impressão no
espírito.
Aproximava-se cada vez mais dos agentes fariseus, que o lisonjeavam
incessantemente, dizendo-lhe, num tom de grande certeza, que dentro de pouco tempo
dariam cabo de Jesus. Ainda recentemente tinham vindo procurá-lo diversas vezes em
Betânia. O infeliz entregava-se cada vez mais a esses pensamentos criminosos e
multiplicava nos últimos dias as diligências para que os príncipes dos sacerdotes se
decidissem a agir. Estes ainda não queriam começar e tratavam-no com visível
desprezo. Diziam que não havia tempo suficiente antes da festa e que qualquer
tentativa causaria apenas desordem e tumulto durante a festa. Somente o sinédrio
deu atenção às propostas do traidor.
Depois da recepção sacrílega do SS. Sacramento, Satanás apoderou-se totalmente de
Judas, que saiu decidido a praticar o crime. Primeiro procurou os negociadores, que
sempre o tinham lisonjeado até ali e que o receberam ainda com amizade fingida. Foi
ter com outros, entre os quais Caifás e Anás; este último, porém, usou para com ele de
um tom altivo e sarcástico. Estavam hesitantes, não contavam com o êxito, porque
não tinham confiança em Judas.
Vi o império infernal dividido: Satanás queria o crime dos Judeus, desejava a morte de
Jesus, do santo Mestre que fizera tantas conversões, do Justo a quem tanto odiava;
mas sentia também não sei que medo interno da morte dessa inocente vítima, que não
queria subtrair-se aos perseguidores; invejava-O por sofrer inocentemente. Vi-O assim
excitar de um lado o ódio e furor dos inimigos de Jesus e de outro lado insinuar a
alguns destes que Judas era um patife, um miserável, que não se podia fazer o
julgamento antes da festa, nem reunir número suficiente de testemunhas contra
Jesus.
No sinédrio houve longa discussão sobre o que se devia fazer e, entre outras coisas,
perguntaram a Judas: “Podemos prendê-Lo? Não terá homens armados consigo?” E o
traidor respondeu:, “Não, está só com os onze discípulos; está desanimado e os onze
são homens medrosos”. Também lhes disse que era preciso apoderar-se de Jesus
nessa ocasião ou nunca, que não podia esperar mais tempo para entregá-Lo, porque
não voltaria para junto do Mestre, pois, alguns dias antes, os outros discípulos e
Jesus mesmo haviam evidentemente suspeitado dele; pareciam pressentir-lhe os ardis
e sem dúvida o matariam, se voltasse para o meio deles.
Disse-lhes ainda que, se não O prendessem agora, escaparia, voltando com um
exército de partidários, para fazer proclamar-se rei. Essas ameaças de Judas fizeram
efeito. Deram-lhe ouvido ao conselho maldoso e ele recebeu o preço da traição, os
trinta dinheiros. Essas moedas tinham a forma de uma língua, estavam furadas na
parte arredondada e enfiadas, por meio de argolas, numa espécie de corrente; traziam
certos cunhos.
Judas, ofendido pelo contínuo desprezo e a desconfiança que lhe manifestavam,
sentiu-se impelido pelo orgulho a restituir-lhes esse dinheiro ou oferecê-lo ao Templo,
para que o tomassem por um homem justo e desinteressado. Mas recusaram-no,
porque era preço de sangue, que não se podia oferecer ao Templo. Judas viu quanto o
desprezavam e sentiu-o profundamente. Não tinha esperado provar os frutos amargos
da traição já antes de a ter cometido; mas de tal modo que se havia comprometido
com aqueles homens, que estava nas suas mãos e não podia mais se livrar deles.
Observavam-no de muito perto e não o deixariam sair antes de ter explicado o
caminho a seguir, para apoderar-se de Jesus. Três fariseus acompanhavam-no,
quando desceu a uma sala, onde se achavam guardas do Templo, que não eram todos
judeus, mas gente de todas as nações. Quando tudo estava combinado e reunido o
número de soldados necessários, Judas correu primeiro ao Cenáculo, acompanhado
de um servo dos fariseus, para lhes dar notícia, se Jesus ainda estava ali, por causa
da facilidade de prendê-lo lá, ocupando as portas; devia mandar avisar-lhe por um
mensageiro.
Um pouco antes de Judas receber o prêmio da traição, um dos fariseus saíra, para
mandar sete escravos buscar madeira, para preparar a Cruz de Cristo, no caso que
fosse condenado, porque no dia seguinte não teriam mais tempo, pois começava a
festa da Páscoa. Andaram cerca de um quarto de hora, para chegar ao lugar onde
queriam buscar o madeiro da cruz; estava ali ao longo de um muro alto e comprido,
junto com muitas outras madeiras, destinadas a construções do Templo; carregaram-
no para um lugar atrás do tribunal de Caifás, afim de prepará-lo.
A árvore da cruz crescera antigamente perto da torrente Cedron, no vale, de Josafá;
mais tarde caíra através do ribeiro e servia de ponte. Quando Neemias escondeu o fogo
santo
e os vasos sagrados na piscina Betesda, empregou também este tronco para cobrí-los,
junto com outra madeira; tirando-o depois de novo, jogaram-no para o lado, com outra
madeira de construção. Em parte foi para zombar de Jesus, em parte aparentemente
por acaso, mas em verdade unicamente por disposição da Divina Providência, que a
Cruz foi construída de uma forma especial. Sem contar a tábua do título, a cruz foi
feita de cinco diferentes espécies de madeiras. Tenho visto muitas coisas a respeito da
cruz, diversos acontecimentos e significações, mas tenho esquecido tudo, fora o que
acabo de contar.
Judas, no entanto, voltou e disse que Jesus não estava mais no Cenáculo, mas havia
de estar certamente no monte das Oliveiras, num lugar onde costumava rezar. Insistiu
então que mandassem com eles somente uma pequena tropa, para que os discípulos,
que espiavam por toda a parte, não suspeitassem e provocassem uma insurreição.
Trezentos soldados deviam ocupar as portas e ruas de Ofel, bairro ao sul do Templo e
o vale Milo, até a casa de Anás, no monte de Sião, para poder mandar reforço à tropa
na volta, caso o pedisse; pois em Ophel todo o povo baixo aderia a Jesus.
O indigno traidor disse-lhes ainda que tomassem muito cuidado, para Jesus não lhes
escapar, mencionando que este já muitas vezes se tinha tornado invisível, por meio de
artifícios misteriosos, fugindo assim aos companheiros na montanha. Fez-lhes
também a proposta de amarrá-lo com uma corrente e servir-se de certas práticas
mágicas, para que Jesus não rompesse as correntes. Os Judeus, porém, recusaram
desdenhosamente esse conselho, dizendo: “Não nos podes impor nada; uma vez que
esteja em nossas mãos, está seguro”.
Judas combinou com a tropa entrar ele primeiro no horto, para beijar e saudar Jesus,
como se voltasse do negócio, como amigo e discípulo; depois deviam entrar os
soldados, para prender o Mestre. Procederia como se os soldados tivessem chegado na
mesma hora, só por acaso; fugiria depois, como os outros discípulos, fingindo não
saber de nada. Talvez pensasse também que houvesse um tumulto, no qual os
Apóstolos se defenderiam e Jesus fugiria, como fizera já diversas vezes.
Assim pensava nos momentos de raiva, sentindo-se ofendido pelo desprezo e
desconfiança dos inimigos de Jesus, mas não porque se arrependesse da negra ação
ou por ter compaixão de Jesus; pois tinha-se entregue inteiramente a Satanás.
Também não queria consentir que os soldados, entrando depois, trouxessem algemas
e cordas, nem que o acompanhassem, homens de má reputação. Satisfizeram-lhe
aparentemente os desejos, mas procederam como julgavam dever proceder com um
traidor em quem não se pode fiar e que se joga fora, depois de ter feito o serviço.
Foram dadas ordens expressas aos soldados de vigiar bem Judas e não o deixar
afastar-se antes de ter prendido e amarrado Jesus; pois, como já tivesse recebido a
remuneração, era de recear-se que o patife fugisse com o dinheiro e assim não
poderiam prender Jesus de noite ou prenderiam outro em seu lugar, de modo que
resultariam desta empresa apenas tumultos e desordens, no dia da Páscoa.
A tropa escolhida para prender Jesus compunha-se de vinte soldados, alguns da
guarda do Templo, os outros soldados de Anás e Caifás. Estavam vestidos quase da
mesma forma que os soldados romanos; usavam capacetes e do gibão lhes pendiam
correias em redor da cintura, como tinham também os soldados romanos.
Distinguiam-se desses principalmente pela barba, pois os romanos em Jerusalém
usavam só suíças, os lábios e queixo tinham imberbes. Todos os vinte soldados
estavam armados de espadas, alguns tinham apenas lanças. Levavam consigo tochas
e braseiras que, fixas sobre paus, serviam de lanternas; mas ao chegar, traziam acesa
só uma das lanternas.
Os judeus queriam mandar antes uma tropa mais numerosa com Judas, mas
abandonaram esse plano, concordando com ele, objeção do traidor, de que do monte
das Oliveiras se podia ver todo o vale e desse modo uma tropa maior não poderia
deixar de ser vista. Ficou, portanto, a maior parte em Ophel; mandaram também
sentinelas a vários atalhos e diversos lugares da cidade, para impedir tumultos ou
tentativas de salvar Jesus.
Judas marchou à frente dos vinte soldados; mandaram, porém, seguí-lo a certa
distância quatro soldados de má reputação, gente ordinária, que levavam cordas e
algemas. Alguns passos atrás desses, seguiam aqueles seis agentes, com os quais
Judas travara relações há muito tempo. Havia entre eles um sacerdote de alta posição
e confidente de Anás, outro de Caifás; além desses havia dois agentes fariseus e dois
saduceus, que eram também herodianos. Todos, porém, eram espiões, hipócritas,
aduladores interesseiros de Anás e Caifás e inimigos ocultos de Jesus, dos mais
maliciosos.
Os vinte soldados seguiram ao lado de Judas, até chegarem ao lugar onde o caminho
passa entre Getsêmani e o horto das Oliveiras; aí não quiseram deixá-lo avançar
sozinho e começaram a discutir com ele, num tom grosseiro e impertinente.
A prisão do Senhor
Quando Jesus saiu do horto, no caminho entre Getsêmani e o horto das Oliveiras,
apareceu na entrada desse caminho, à distância de vinte passos, Judas com os
soldados, que ainda estavam discutindo. Pois Judas queria, separado dos soldados,
aproximar-se de Jesus, como amigo; eles deviam depois entrar como por acaso,
aparentemente sem Ele saber; mas os soldados seguraram-no, dizendo: “Assim não
camarada, não nos fugirás antes de termos preso o Galileu”. Avistando depois os oito
Apóstolos, que ao ouvir, o barulho se aproximaram, chamaram os quatro soldados
para reforçar-se. Judas, porém, não consentiu que esses o acompanhassem e discutiu
veementemente com eles.
Quando Jesus e os três Apóstolos viram, à luz da lanterna, esse tropel ruidoso, com as
armas nas mãos, Pedro quis atacá-los à força e disse: “Senhor, os oito de Getsêmani
estão também lá adiante: Vamos atacar esses soldados”. Jesus, porém, mandou-o
ficar quieto e retirou-se alguns passos para além do caminho, onde havia um lugar
coberto de relva. Judas, vendo o seu plano transtornado, enraiveceu-se.
Quatro dos discípulos saíram do horto Getsêmani, perguntando o que havia
acontecido. Judas começou a conversar, querendo sair do embaraço por meio de
mentiras, mas os soldados não o deixaram afastar-se. Aqueles quatro eram Tiago, o
Menor, Filipe, Tomé e Natanael; este e um dos filhos do velho Simeão e alguns outros
tinham vindo para junto dos oito Apóstolos, em Getsêmani, uns enviados pelos amigos
de Jesus, para ter notícias dEle, outros impelidos pela inquietação e curiosidade. Além
desses quatro, andavam também os outros discípulos pelas vizinhanças, espiando de
longe e sempre prontos a fugir.
Jesus, porém, aproximou-se alguns passos da tropa e disse em voz alta e clara: “A
quem estais procurando?” Os chefes dos soldados responderam: “Jesus de Nazaré”. E
Jesus disse: “Sou eu”. Apenas tinha dito estas palavras, caíram os soldados uns sobre
os outros, como que atacados de convulsões. Judas, que estava perto, ficou ainda
mais desconcertado no seu plano; e pareceu querer aproximar-se de Jesus, mas o
Senhor levantou a mão, dizendo: “Amigo, para que vieste?”. Judas disse, cheio de
confusão, alguma coisa sobre negócio realizado. Jesus, porém, disse-lhe mais ou
menos as seguintes palavras: “Oh! Melhor te fora não ter nascido”. Mas não me lembro
mais das palavras exatas. No, entretanto tinham-se levantado os soldados e
aproximaram-se de Jesus e dos seus, esperando o sinal do traidor: que beijasse a
Jesus. Pedro, porém, e os outros discípulos, cercaram Judas com ameaças,
chamando-o de ladrão e traidor. O infeliz quis livrar-se deles por meio de mentiras,
mas não conseguiu justificar-se, pois os soldados defenderam-no contra os discípulos,
dando assim testemunho contra ele.
Jesus, porém, disse mais uma vez: “A quem procurais?” Virando-se para Ele,
responderam de novo: “Jesus de Nazaré”. Então disse: “Sou eu; já vos tenho dito que
sou eu; se, pois, procurais a mim, deixai aqueles”. À palavra “sou eu”, caíram os
soldados de novo com convulsões e contorções, como as têm os epiléticos e Judas foi
de novo cercado pelos Apóstolos, que estavam extremamente furiosos contra ele.
Jesus disse aos soldados: “Levantai-vos”.
Levantaram-se assustados e como os Apóstolos ainda discutissem com Judas e
também se dirigissem contra os soldados, estes atacaram os Apóstolos, livrando-lhes
Judas das mãos e impelindo-o com ameaças a dar o sinal combinado, pois tinham
ordem de prender só aquele a quem beijasse. Judas aproximou-se então de Jesus,
abraçou e beijou-O, dizendo, “Deus te salve, Mestre”. E Jesus disse: “Judas, é com um
beijo que atraiçoas o Filho do Homem?”.
Então os soldados cercaram Jesus e os soldados, avançando, puseram mãos em
Nosso Senhor. Judas quis fugir, mas os Apóstolos detiveram-no e atacaram os
soldados, gritando: “Mestre, feriremos com as espadas?”. Pedro, porém, mais excitado
e zeloso, puxou da espada e golpeou Malcho, criado do Sumo Sacerdote, que o quis
repelir e cortou-lhe um pedaço da orelha, de modo que Malcho caiu por terra,
aumentando deste modo ainda a confusão.
A situação nesse momento do veemente ataque de Pedro era a seguinte: Jesus preso
pelos soldados, que O queriam amarrar; cercavam-nO, num largo círculo, os soldados,
um dos quais, Malcho, foi prostrado por Pedro. Outros soldados estavam ocupados em
repelir os discípulos, que se aproximaram ou em perseguir outros que fugiram. Quatro
dos discípulos andavam pelo lado do monte e só se avistavam de vez em quando, à
grande distância.
Os soldados estavam em parte um pouco desanimados pelas quedas, em parte não
ousavam perseguir seriamente os discípulos, para não enfraquecerem
demasiadamente a tropa que cercava Jesus. Judas, que quis fugir logo depois do beijo
traidor, foi detido a certa distância por alguns discípulos, que o cobriram de injúrias.
Mas os seis agentes, que só então se aproximaram, livraram-no das mãos dos cristãos
indignados. Os quatro soldados, em roda de Jesus, estavam ocupados com as cordas e
algemas, seguravam-nO e iam amarrá-lO.
Tal era a situação, quando Pedro golpeou Malcho e Jesus ao mesmo tempo disse:
“Pedro! Embainha a tua espada, pois quem se serve da espada, perecerá pela espada.
Ou pensas que eu não podia pedir a meu Pai que me mandasse mais de doze legiões
de Anjos? Então não devo beber o cálice que meu Pai me apresentou? Como se
cumpririam as Escrituras, se assim não se fizesse?”. Disse aos soldados: “Deixai-me
curar este homem”. Aproximou-se de Malcho, tocou-lhe na orelha, rezando e ficou sã.
Estavam, porém, em roda os esbirros, os soldados e os seis agentes, que O
insultaram, dizendo aos soldados: “Ele tem contrato com o demônio; a orelha por
feitiço parecia ferida e por feitiço sarou”.
Então lhes disse Jesus: “Viestes a mim, armados de espadas e paus, a prender-me
como um assassino. Todos os dias tenho ensinado no Templo, no meio de vós e não
ousastes pôr a mão em mim; mas esta é a vossa hora, a hora das trevas”. Eles, porém,
mandaram amarrá-lO e insultaram-nO, dizendo: “A nós não nos pudeste jogar por
terra com teu feitiço”. Do mesmo modo falaram os soldados: “Acabaremos com as tuas
práticas de feiticeiro, etc”.. Jesus respondeu ainda algumas palavras, mas não sei
mais o que foi; os discípulos, porém, fugiram para todos os lados.
Os quatro soldados e os seis fariseus não tinham caído e, portanto também não se
tinham levantado, o que sucedeu, como me foi revelado, porque estavam inteiramente
nas redes de Satanás, do mesmo modo que Judas, que também não caíra, apesar de
estar no meio dos soldados; todos os que caíram e se levantaram, converteram-se
depois e tornaram-se cristãos. O cair e levantar era símbolo da conversão. Esses
soldados não puseram a mão em Jesus, mas apenas O cercaram; Malcho converteu-se
logo depois da cura, de modo que só por causa da disciplina continuou o serviço; já
nas horas seguintes, durante a Paixão de Jesus, fazia o papel de mensageiro entre
Maria e os outros amigos de Jesus, para dar notícias do que se passava.
Os soldados amarraram Jesus com grande barbaridade e com a brutalidade de
carrascos, por entre contínuos insultos e escárnios dos fariseus. Eram pagãos da
classe mais baixa e vil; tinham o peito, os braços e joelhos nus; na cintura usavam
uma faixa de pano e na parte superior do corpo, gibão sem mangas, ligado nos lados
com correias. Eram de estatura baixa, mas fortes e muito ágeis, de cor parda-ruiva,
como a dos escravos do Egito.
Amarraram Jesus de uma maneira cruel, com as mãos sobre o peito, prendendo
sem compaixão o pulso da mão direita por baixo do cotovelo do braço esquerdo e o
pulso da mão esquerda por baixo do cotovelo do braço direito, com cordas novas e
duras que lhe cortavam a carne.
Passaram-lhe em redor do corpo um cinturão largo, no qual havia pontas de ferro e
argolas de fibra ou vime, nas quais amarraram-Lhe uma espécie de colar, no qual
havia pontas e outros corpos pontiagudos, para ferir; desse colar saiam, como uma
estola, duas correias cruzadas sobre o peito até o cinturão, ao qual foram fortemente
apertadas e ligadas.
Fixaram ainda, em diversos pontos do cinturão, quatro cordas compridas, pelas
quais podiam arrastar Jesus para lá e para cá, conforme lhes ditava a maldade. Todas
essas cordas e correias eram novas e pareciam preparadas de propósito, desde que
começaram a pensar em prender Jesus.
Termina aqui a parte relativa ao sofrimento do Horto das Oliveiras. Nos textos dos
exorcismos, que já colocamos no site, a certa altura um dos demônios diz, que somos
algo como sacos de estrume. Jamais eu aceitei com tanta consciência uma frase tão
pesada. E digo mais, quem, lendo apenas esta pequenina parte do sofrimento de
Jesus, e mesmo assim não se sensibilizar, certamente é menos ainda que um saco de
estrume. Quando pela primeira vez li estes textos, e a media que me afundava neles,
por horas seguidas sem poder parar, eu me sentia esmagado no corpo, dilacerado na
alma, e desde então cada vez que eu contemplo o primeiro dos Mistérios Dolorosos do
Rosário, me assaltam novamente os mesmos sentimentos.
Entretanto, como vimos, este é apenas o começo. Até aqui, o sofrimento de Jesus
foi apenas espiritual, foi na alma. A partir de agora, porém, começam igualmente as
dores do corpo, que até chegar ao Calvário e à Cruz, não terá mais figura humana,
como bem o disse o grande profeta Isaías. Eis até onde o levará o seu imenso amor por
nós.
Começam, agora, os horríveis sofrimentos físicos de Jesus. À parte das dores do corpo,
porém, certamente lhe foi difícil enfrentar duas figuras diabólicas: Anás e Caifás, os
sumo sacerdotes daquele tempo de trevas. Na verdade, o máximo de veneno, que uma
dia satanás conseguiu colocar numa alma humana, estes dois homens certamente o
puderam provar. Creio que poucas criaturas da terra conseguiram ser mais malignas.
O sinédrio, certamente era composto, em sua maioria, de homens maus, de fariseus,
hipócritas e fingidos. Mas com certeza, para que se cumprissem com fidelidade as
escrituras, Deus permitiu que aquelas duas almas diabólicas estivessem ali, naquele
ano, justo no posto de comando, para que tudo Jesus sofresse pelo máximo. E
satanás pode prepará-los assim, também ao máximo.
Os cinqüenta soldados faziam parte de uma tropa de 300 homens, que haviam
ocupado de improviso as portas e ruas de Ofel e arredores; pois Judas, o traidor,
prevenira o Sumo Sacerdote que os habitantes de Ofel, na maior parte pobres
operários, jornaleiros, carregadores de água e lenha, a serviço do Templo, eram os
partidários mais convictos de Jesus e que era para recear que fizessem tentativas de
livrá-Lo, ao ser conduzido por lá. (...)
Quando, porém, tiveram a informação dada por alguns soldados: “trazem preso o falso
profeta, Jesus, o malfeitor; o Sumo Sacerdote quer acabar-Lhe com as práticas;
provavelmente morrerá na cruz”, levantou-se alto pranto e lamentação em toda a vila,
acordada do sono noturno. Essa pobre gente, homens e mulheres, correram pelas
ruas, chorando ou caindo de joelhos, com os braços estendidos, clamando ao céu ou
lembrando em alta voz os benefícios que Jesus lhes havia feito. (...)
Era um espetáculo que dilacerava o coração: Jesus, pálido, desfigurado, ferido, o
cabelo em desordem, o vestido molhado, sujo, mal arregaçado, puxado pelas cordas,
empurrado a pauladas, impelido pelos soldados impertinentes, meio nus, como se
conduz um animal meio morto ao sacrifício; vê-lo arrastado pela soldadesca arrogante,
através da multidão dos habitantes de Ofel, cheios de gratidão e compaixão, que Lhe
estendiam os braços, que curara de paralisia, que o aclamavam com as línguas a que
restituíra a voz, que olhavam e choravam com os olhos a que dera a vista.(...)
Do monte das Oliveiras até a casa de Anás caiu Jesus sete vezes.
Pedro e João seguiam o cortejo...(...) Judas, no entanto, como um criminoso
desvairado, que a seu lado vê o demônio, andava vagando pelas encostas íngremes ao
sul de Jerusalém, para onde se jogavam o lixo e todas as imundícies.
Cerca de meia noite chegou Jesus ao palácio de Anás e foi conduzido, pelo átrio
iluminado, à grande sala que tinha o tamanho de uma pequena Igreja. No fundo, em
frente à entrada, estava sentado Anás, rodeado de 28 conselheiros, num terraço, sob o
qual podia passar, pelo lado. Em frente havia uma escada, interrompida por
patamares, que conduzia a esse tribunal de Anás, no qual se entrava por uma porta
própria, do fundo do edifício.
Jesus, cercado ainda por uma parte dos soldados que o prenderam, foi puxado pelos
soldados, alguns degraus da escada para cima e seguro pelas cordas. A outra parte da
sala foi ocupada por soldados e gentalha, judeus que insultavam Jesus, criados de
Anás, e parte das testemunhas reunidas por este que depois se apresentaram em casa
de Caifás.
Anás estava esperando impacientemente a chegada de Jesus: tudo nele revelava ódio,
malícia e crueldade. Era então presidente de um certo tribunal e reunira ali a junta da
comissão, que tinha a tarefa de velar pela pureza da doutrina e de exercer o ofício de
procurador geral no tribunal do Sumo Sacerdote.
Jesus estava em pé diante de Anás, calado, de cabeça baixa, pálido, cansado, com as
vestes molhadas e enlameadas, as mãos amarradas, seguro com cordas pelos
soldados. Anás, velho malvado, magro, com pouca barba, cheio de impertinência e de
orgulho farisaico, sorria hipocritamente, como se não soubesse de nada e se
admirasse de ser Jesus o preso que lhe haviam anunciado.
O discurso enfadonho com que recebeu Jesus, não sei repetí-lo com as mesmas
palavras, mas era mais ou menos o seguinte: “Olá! Jesus de Nazaré! És tu? Onde
estão então os teus discípulos, os teus numerosos aderentes? Onde está o teu reino?
Parece que tudo saiu muito diferente do que pensavas! Acabaram agora as injúrias;
esperávamos pacientemente até que estivesse cheia a medida das tuas blasfêmias, dos
teus insultos aos sacerdotes e violações do Sábado. Quem são os teus discípulos?
Onde estão? Agora te calas? Fala, agitador e sedutor do povo? Já comeste o cordeiro
pascal de modo insólito, à hora e em lugar fora de costume. Queres introduzir uma
nova doutrina? Quem te deu o direito de ensinar? Onde estudaste? Qual é a tua
doutrina, que excita a todos? Responde, fala! Qual é a tua doutrina?”.
Então levantou Jesus a cabeça fatigada e, fitando Anás, disse: “Tenho falado em
público, diante de todo o mundo, em lugares onde todos os judeus costumam reunir-
se. Não tenho dito nada em segredo. Porque me perguntas a mim? Pergunta àqueles
que me ouviam, eles sabem o que tenho falado”.
Como o rosto de Anás, a essas palavras de Jesus, manifestasse ódio e raiva, um
esbirro infame, miserável e adulador, que estava ao lado de Jesus e que o percebeu,
bateu, com a mão de ferro, na boca e face de Nosso Senhor, dizendo: “Assim é que
respondes ao Sumo Pontífice?” - Jesus, abalado pela veemência da pancada e
arrancado e empurrado pelos soldados, caiu sobre a escada de lado e o sangue
escorreu-lhe do rosto; a sala retumbou de escárnio, murmúrio, insultos e risadas.
Levantaram Jesus com brutalidade e Ele disse calmamente: “Se falei mal, mostra-me
em que; se eu disse a verdade, porque me feres?”
Anás, enfurecido pela calma de Jesus, convidou todos os presentes a dizer, como Ele
próprio queria, o que dEle tinham ouvido, o que ensinava. Seguiu-se então uma
grande vozeria e gritaria daquele populacho: Ele disse que era rei, que era Filho de
Deus, que os fariseus eram adúlteros; Ele agitava o povo, curava no sábado, com
auxílio do demônio; o povo de Ofel rodeava-O como dementes, chamava-O seu
Salvador e Profeta; Ele se deixava chamar Filho de Deus; Ele mesmo se dizia enviado
por Deus, chamava a maldição sobre Jerusalém, falava da destruição da cidade, não
guardava o jejum, percorria o país seguido de multidões de povo, comia com ímpios,
pagãos, publicanos e pecadores, levava em sua companhia mulheres de má vida,
havia pouco tinha dito em Ofel que daria a quem lhe deu água a beber, água da vida
eterna e ele não teria mais sede; seduzia o povo com palavras equívocas, desperdiçava
o bem alheio, pregava ao povo muitas mentiras sobre seu reino e muitas outras
coisas.
Todas essas acusações foram proferidas ao mesmo tempo, numa grande confusão. Os
acusantes avançavam para Jesus, lançando-Lhe em rosto essas acusações,
acompanhadas de insultos e os soldados empurravam-nO para cá e para lá, dizendo:
“Fala! responde!” Anás e os conselheiros tomavam também parte, gritando-lhe, com
riso sarcástico: “Ora, agora ouvimos a tua doutrina. É boa! Que respondes? É essa
então a tua doutrina pública? O país está cheio dela. Aqui não tens nada que dizer?
porque não ordenas? oh, rei? Oh, enviado de Deus, mostra a tua missão?”
A cada uma dessas exclamações dos superiores, seguiam-se arrancos, empurrões e
insultos da parte dos soldados e de outros que estavam próximo, que todos de boa
vontade teriam imitado o que Lhe batera na face.
Jesus cambaleava de um lado para o outro e Anás disse-lhe, com impertinência
insultante: “Quem és? Que espécie de rei ou enviado? Eu julgava que fosses o filho de
um marceneiro obscuro. Ou és acaso Elias, que foi levado ao Céu num carro de fogo?
Dizem que ele ainda vive. Sabes também te tornar invisível, assim escapaste muitas
vezes. Ou és por acaso Malaquias? Sempre tens feito gala com esse profeta,
interpretando-lhe as palavras como se falasse de ti mesmo. Anda também a respeito
dele um boato, que não tinha pai, que era um Anjo e não morreu; boa oportunidade
para um embusteiro fazer-se passar por ele. Dize, que espécie de rei és? És maior do
que Salomão? Esta é também uma afirmação tua. Está bem, não te quero privar mais
tempo do título de teu reino”.
Anás mandou, pois, trazer uma tira de pergaminho, de 3/4 de côvado de comprimento
e da largura de três dedos, pô-la sobre uma tabuinha, que seguravam diante dele e
escreveu com uma pena de caniço uma série de letras grandes, cada uma das quais
continha uma acusação contra o Senhor. Enrolou-a depois e pô-la numa pequena
cabaça, fechando esta com uma rolha e amarrando-a a um caniço, mandou entregar-
Lhe esse cetro irrisório e dirigiu-Lhe, com riso satírico, algumas palavras, como: “Eis
aqui o cetro de teu reino; contém todos os teus títulos, dignidades e direitos. Leva-os
ao Sumo Sacerdote, para que conheça a tua missão e o teu reino e te trate como
convém à tua posição. Amarrai-Lhe as mãos e levai este rei ao Sumo Sacerdote”.
Então amarraram de novo as mãos de Jesus, que antes tinham desligado, cruzando-
lhas sobre o peito e pondo nelas o cetro afrontoso, que continha as acusações de
Anás. Assim conduziram o Senhor, entre risadas, insultos e brutalidades, da grande
sala de Anás para a casa de Caifás.
Ao ser conduzido à casa de Anás, Jesus passara já pelo lado da casa de Caifás;
reconduziram-nO depois para lá, descrevendo um ângulo. Da casa de Anás à de Caifás
haveria talvez a distância de trezentos passos. O caminho, que passa entre muros e
pequenos edifícios pertencentes ao tribunal de Caifás, era iluminado por braseiros,
colocados em cima de paus e estava cheio de uma multidão clamorosa de frenéticos
judeus. Mal podiam os soldados reter a multidão. Aqueles que tinham ultrajado a
Jesus na casa de Anás, repetiram então a seu modo as palavras afrontosas desse
último diante do povo e Jesus foi maltratado e injuriado em todo o percurso do
caminho. Vi criados armados do tribunal afastarem pequenos grupos de pessoas que
choravam, lastimando a Jesus, enquanto que deixavam entrar no pátio da casa de
Caifás e davam dinheiro a outros que se distinguiam acusando e insultando o Divino
Mestre.
O Tribunal de Caifás
Entre frenéticos gritos de insulto, com empurrões e arrancos, foi Jesus conduzido pelo
átrio, onde a desenfreada fúria do populacho se moderou, reduzindo-se a um sussurro
e murmúrio surdo de raiva contida. Da entrada dirigiu-se o cortejo à direita, para o
tribunal. Passando por Pedro e João, o querido Salvador, olhou-os, mas sem virar a
cabeça para eles, para não os trair. Mal Jesus tinha chegado, por entre as colunas, em
frente do tribunal, Caifás já lhe gritou: “Então chegaste, blasfemador de Deus, que nos
tens profanado esta santa noite”.(...)
Os soldados quiseram forçá-Lo a falar, davam-Lhe murros na nuca e nos lados,
batiam-Lhe nas mãos e picavam-nO com sovelas; houve até um vil patife que lhe
apertou com o polegar o lábio inferior sobre os dentes, dizendo: “Agora morde!”
Seguiu-se a audição das falsas testemunhas. (...) Contudo não eram capazes de
encontrar qualquer acusação solidamente provada. Os grupos de testemunhas que
entravam e saiam, começaram a insultar Jesus, em lugar de depor contra Ele.
Discutiam veementemente uns com os outros e nos intervalos Caifás e alguns dos
conselheiros continuavam incessantemente a insultar Jesus, gritando-Lhe, entre as
várias acusações: “Que rei és tu? Mostra teu poder. Manda vir as legiões de Anjos, das
quais falaste..(...)
Todas essas perguntas eram acompanhadas de incessantes crueldades dos soldados,
que, com pancadas e murros, queriam forçar Jesus a responder. Só por milagre de
Deus pôde Jesus agüentar tudo isso, para expiar os pecados do mundo. Algumas
testemunhas infames afirmaram que Jesus era filho ilegítimo, mas imediatamente
replicaram outros: “É mentira; pois sua mãe era uma moça piedosa do Templo e nós
assistimos à cerimônia do seu casamento com um homem muito religioso”. Essas
testemunhas começaram a discutir.(...)
Depois de muitos depoimentos falsos, vis e mentirosos, se apresentaram mais duas
testemunhas, dizendo: Jesus disse que queria destruir o Templo feito pelas mãos de
homens e construir em três dias outro, que não seria feito por mãos de homens. Mas
também esses dois não estavam de acordo; um disse que Jesus queria construir um
templo novo; por isso teria celebrado a Páscoa num outro edifício, porque queria
destruir o antigo Templo; o outro, porém, disse que aquele edifício também fora
construído por mãos de homens e que, portanto não se referia a ele.
Caifás chegou então ao auge da cólera; pois as crueldades praticadas para com Jesus,
as afirmações contraditórias das testemunhas, a inefável paciência e o silêncio do
Salvador, causaram impressão desfavorável a muitos dos presentes. Algumas vezes
foram as testemunhas até vaiadas. Muitos ficaram inquietos no coração, vendo o
silêncio de Jesus e cerca de dez soldados afastaram-se, sob pretexto de se sentirem
indispostos. Esses, passando diante de Pedro e João, lhes disseram: “Este silêncio do
Galileu, num processo tão infame, dói no coração, é como se a terra se fosse abrir e
tragar-nos; dizei-nos aonde nos devemos dirigir”.
Caifás, furioso pelos depoimentos contraditórios e a confusão das duas últimas
testemunhas, levantou-se do assento, desceu alguns degraus, até onde estava Jesus e
disse: “Não respondes nada a esta acusação?” Indignou-se, porém, de Jesus não o
fitar; os soldados puxaram então, pelos cabelos, a cabeça de Nosso Senhor, para trás e
bateram-lhe com os punhos por baixo do queixo. Mas o Senhor não levantou os olhos.
Caifás, porém, estendeu com veemência as mãos e disse em tom furioso: “Conjuro-Te
pelo Deus vivo, que nos digas se és o Cristo, o Messias, o Filho de Deus Bendito!”
Acalmara-se a vozeria e seguiu-se um silêncio solene em todo o átrio; Jesus,
fortalecido por Deus, disse, com uma voz cheia de inefável majestade, que fazia
estremecer a todos, com a voz do Verbo Eterno: “Eu o sou, disseste-o bem. E eu vos
digo que em breve vereis o Filho do homem assentado à mão direita da majestade de
Deus, vindo sobre as nuvens do céu”.
Durante essas palavras vi Jesus como que luminoso e sobre Ele, no céu aberto, Deus
Pai Todo-poderoso, numa visão inexprimível; vi os Anjos e as orações dos justos,
suplicando e orando em favor de Jesus. Vi, porém, como se a divindade de Jesus
falasse simultaneamente do Pai e do Filho: “Se eu pudesse sofrer, queria sofrer; mas
porque sou misericordioso, aceitei a natureza humana no Filho, para que nela sofresse
o Filho do Homem; pois sou justo e ei-Lo que toma sobre si os pecados de todos estes
homens, os pecados de todo o mundo”.
Por baixo de Caifás, porém, vi aberto todo o inferno, um círculo lúgubre de fogo, cheio
de figuras hediondas e ele por cima desse círculo, sustentado apenas como por um
crepe fino. Vi-o penetrado pela fúria do inferno. Toda a casa me parecia um inferno
agitado por baixo. Quando o Senhor declarou que era o Filho de Deus, o Cristo, foi
como se o inferno tremesse diante dEle e fizesse subir a essa casa toda a sua fúria
contra o Salvador.
Mas como tudo me é mostrado em imagens e figuras (cuja linguagem é para mim
também mais verdadeira, curta e clara do que outras explicações, pois os homens
também são formas corporais e sensíveis e não somente palavras abstratas), vi o medo
e o ódio do inferno manifestar-se sob inúmeras figuras horríveis, que subiam em
muitos lugares, como saindo da terra.
Entre outras me lembro ainda de bandos de pequenas figuras escuras, semelhantes a
cães, que andavam nas patas traseiras, curtas e com garras compridas, mas não me
lembro mais que espécie de vicio representavam essas figuras; sabia-o naquele tempo,
mas agora só me lembro da forma. Tais figuras horrendas vi entrar na maior parte dos
assistentes, ou sentar-se nos ombros ou sobre a cabeça deles. A assembléia estava
cheia dessas figuras e a fúria aumentava cada vez mais em todos os maus. Nesse
momento vi também muitas figuras hediondas, saindo dos sepulcros, além de Sião;
creio que eram espíritos maus.
Vi também, perto do Templo, saírem da terra muitas aparições e entre essas, diversas
que pareciam arrastar-se com cadeias, como presos; não sei mais se essas últimas
aparições eram espíritos maus ou almas condenadas a habitarem certos lugares da
terra e que talvez se dirigissem ao limbo, que o Senhor abriu pela sua própria
condenação à morte. - Não se podem exprimir exatamente essas coisas, nem quero
escandalizar aos que as ignoram, mas ao vê-las, sente-se um arrepio.
Esse momento tinha algo de horrível. Creio que também João deve ter visto alguma
coisa, pois ouvi-o falar disso mais tarde; pelo menos todos os que não eram ainda
inteiramente maus, sentiram, com um medo profundo, o horror desse momento; os
maus, porém, sentiram-se numa violenta erupção de ódio.
Caifás, como inspirado pelo inferno, apanhou a orla do manto oficial, cortou-a com
uma faca e rasgou o manto, com um ruído sibilante, gritando: “Ele blasfemou! Para
que precisamos de testemunhas? Vós mesmos ouvistes a blasfêmia; que julgais?”
Então se levantaram todos quantos ainda estavam presentes e gritaram, com voz
terrível: “É réu de morte. É réu de morte”.
A esse grito, a fúria do inferno tornou-se naquela casa verdadeiramente terrível: os
inimigos de Jesus estavam como embriagados por Satanás e do mesmo modo os
servos aduladores e abjetos. Era como se as trevas proclamassem o seu triunfo sobre
a luz. Causou tal horror aos que ainda conservavam um pouco de bom sentimento,
que muitos destes saíram furtivamente, envolvidos nos mantos. Também as
testemunhas mais notáveis, como não lhes fosse mais necessária a presença, saíram
do tribunal, sentindo remorsos da consciência. Outros, mais vis, vadiavam pelo átrio e
em redor da fogueira, onde, depois de recebido dinheiro, começaram a comer e beber.
O Sumo Sacerdote disse, porém, aos soldados: “Entrego-vos este rei; prestai a este
blasfemo a devida honra”. Depois se retirou com os membros do Conselho, à sala
circular, situada atrás do tribunal, cujo interior não se podia ver do átrio.
João, cheio de profunda tristeza, lembrou-se então da pobre Mãe de Jesus. Receou
que a terrível notícia, comunicada por um inimigo, pudesse feri-la ainda mais e por
isso, lançando mais um olhar ao Santo dos santos, disse no seu coração: “Mestre, bem
sabeis porque me vou embora” e saiu apressadamente do tribunal, indo à SS. Virgem,
como se fosse enviado por Jesus mesmo.
Pedro, porém, todo abalado pela angústia e pela dor e sentindo, devido à fadiga, ainda
mais o frio penetrante da manhã, ocultava a tristeza e o desespero o mais que podia e
aproximou-se timidamente da fogueira no átrio, rodeada pelo populacho, que ali se
aquecia. Não sabia o que estava fazendo, mas não podia separar-se do Mestre.
Quando Caifás saiu, com todo o conselho do tribunal, deixando Jesus entregue aos
soldados, lançou-se o bando de todos os malvados patifes aí presentes, como um
enxame de vespas irritadas, sobre Nosso Senhor, que até então estava seguro com
cordas por dois dos quatro primeiros soldados; os outros tinham se afastado antes do
interrogatório, para se revezarem com outros. Já durante a audição os soldados e
outros malvados arrancaram tufos inteiros do cabelo e da barba do Senhor.
Alguns homens bons apanharam parte do cabelo do chão e afastaram-se furtivamente
com ele; mas depois lhes desapareceu. O bando vil dos soldados também já tinham
cuspido em Jesus, durante o interrogatório que lhe tinham dado inúmeros murros,
batido com paus que terminavam em bulbos munidos de pontas e picado com
alfinetes; mas depois descarregaram a raiva de um modo insensato sobre o pobre
Jesus. Punham-Lhe na cabeça várias coroas, trançadas de palha e cortiça, de formas
ridículas e tiravam-nas novamente, com palavras maldosas de escárnio. (...)
Depois arrastaram e empurraram Jesus, com murros e pancadas, por toda a sala,
passando em frente dos membros do Conselho, ainda reunidos, que todos O
insultavam e escarneciam. Vi tudo cheio de figuras diabólicas; era um movimento
sinistro, confuso e horrível. Mas em redor de Jesus maltratado vi muitas vezes um
esplendor luminoso, desde que dissera que era o Filho de Deus. Muitos dos presentes
pareciam sentí-Lo também mais ou menos, vendo com certa inquietação que todos os
insultos e maus tratos não Lhe podiam tirar a majestade inexprimível.
Os inimigos obcecados pareciam sentir esse esplendor somente pela erupção mais
forte de sua ira e de seu ódio; a mim, porém, parecia esse esplendor tão manifesto,
que não podia deixar de pensar que velavam o rosto de Jesus, só porque o Sumo
Sacerdote, desde que ouvira a palavra: “Eu o sou”, não podia mais suportar o olhar do
Salvador.
Quando Jesus disse, em tom solene: “Eu o sou”, quando Caifás rasgou o próprio
manto, quando o grito: “É réu de morte!” interrompeu os insultos e ultraje da
gentalha, quando se abriu sobre Jesus o céu da justiça e o inferno desencadeou sua
fúria e dos sepulcros saíram os espíritos presos, quando tudo estava cheio de medo e
horror; (...)
Quem se atreveria a dizer, que em tais perigos, angústias, em tal pavor e confusão,
numa tal luta entre amor e medo, cansado, insone, prestes a perder a razão pela dor
de tantos e tão tristes acontecimentos dessa noite horrível, com uma natureza tão
simples como ardente, quem se atreveria a dizer que, em iguais condições, teria sido
mais forte do que Pedro? O Senhor abandonou-o às próprias forças; tornou-se então
tão fraco como o são todos os que esquecem as palavras: “Vigiai e orai, para não
cairdes em tentação”.
Jesus no cárcere
A cadeia em que estava Jesus, era um lugar pequeno, abobadado, sob o tribunal de
Caifás. Vi que ainda existe parte desse lugar. Dos quatro, só dois soldados ficavam
com Ele; revezavam-se com os outros, várias vezes, em pouco tempo. Ainda não
tinham restituído a roupa a Jesus, que estava vestido apenas daquele manto rasgado,
coberto de escarro e com as mãos novamente amarradas.
Ao entrar na prisão, Jesus pediu ao Pai Celeste que aceitasse toda a crueldade e
escárnio que sofreu e ainda ia sofrer, como sacrifício expiatório por todos os homens
que no futuro pecassem por impaciência e ira, em igual sofrimento. Também nesse
lugar os soldados não deixavam descansar o Senhor. Amarraram-nO a uma coluna
baixa, no meio do cárcere e não Lhe permitiam encostar-se, de modo que cambaleava
com os pés feridos e inchados pelas quedas e pelas pancadas das cadeias, que Lhe
pendiam até os joelhos. Não deixavam de insultar e maltratá-Lo e sempre que os dois
estavam cansados, eram revezados por outros, que entrando, começavam a fazer-Lhe
novas injúrias.
Não me é possível contar todas as baixezas que proferiram contra o mais Puro e Santo
de todos os Seres; fiquei doente demais e então quase morri de compaixão. Ai! Que
vergonha para nós, que por moleza e nojo nem podemos contar ou escutar as
crueldades inumeráveis que o Salvador sofreu por nós! Sentimos um terror
semelhante ao do assassino a quem mandam pôr a mão nas feridas do assassinado.
Jesus sofria tudo sem abrir a boca: Eram os homens, que soltavam a fúria contra seu
irmão, seu Redentor, seu Deus. (1) Também sou pecadora, também por minha causa
Ele teve de sofrer. No dia do Juízo há de manifestar-se tudo. Então veremos que parte
nos maus tratos do Filho de Deus tivemos, pelos nossos pecados, que continuamente
cometemos e pelos quais consentimos e nos unimos às crueldades perpetradas por
aquele bando de soldados diabólicos. Ai! Se considerássemos isso, pronunciaríamos
muito mais seriamente aquelas palavras contidas nas fórmulas de contrição: “Senhor!
Faze-me antes morrer do que vos ofender mais uma vez pelo pecado”.
Estando em pé no cárcere, Jesus rezava continuamente pelos carrascos. Quando
esses ficaram enfim cansados e mais calmos, vi Jesus encostado ao pilar e rodeado de
luz. Amanheceu o dia, o dia de sua imensa Paixão e expiação; o dia da nossa redenção
espiava timidamente por um orifício no alto da parede, contemplando o nosso Cordeiro
Pascal, tão santo e maltratado, que tomara sobre si todos os pecados do mundo. J
Jesus levantou as mãos amarradas ao novo dia, rezando alto e distinto uma oração
tocante ao Pai Celestial, na qual agradeceu a missão desse dia, que almejavam os
Patriarcas, pelo qual Ele tanto suspirara, desde a sua vinda ao mundo, como disse:
“Devo ser batizado com um batismo e quanto desejo que se realize!” Com que fervor
agradeceu o Senhor esse dia, em que devia alcançar o alvo de sua vida, nossa
salvação, abrir o Céu, vencer o inferno, abrir para os homens a fonte da graça e
cumprir a vontade do Pai Celeste!
Rezei com Ele, mas não sei mais repetir a oração, pois eu estava extenuada de
compaixão e de chorar, vendo-Lhe os sofrimentos e ouvindo-O ainda agradecer os
horríveis tormentos, que tomou sobre si também por minha causa; eu suplicava sem
cessar: “Ah! Dai me as vossas dores; pertencem-me a mim, pois são a expiação das
minhas culpas”.
Amanheceu o dia e Jesus saudou-o com uma ação de graças tão comovente, que
fiquei como aniquilada de amor e compaixão e repeti-Lhe as palavras como uma
criança. Era um espetáculo indizivelmente triste, afetuoso, santo e imponente, ver
Jesus, depois desse tumulto da noite, amarrado à coluna, no meio do estreito cárcere,
rodeado de luz, saudando com palavras de agradecimento os primeiros raios do
grande dia de seu sacrifício.
Ai! Parecia-me que esse raio Lhe entrou no cárcere, como um juiz vem visitar um
condenado à morte, para reconciliar-se com ele antes da execução. E Ele ainda Lhe
agradeceu tão docemente! - Os soldados, que de cansaço tinham adormecido um
pouco, acordaram surpresos, olhando para Ele; mas não O incomodaram, pois
pareciam admirados e assustados. Jesus ficou nesse cárcere pouco mais de uma hora.
(1) Foi nas mãos destes carrascos, especialmente de dois deles, servos dos sumo
sacerdotes, que Jesus sofreu as suas 15 Dores Secretas, confiadas por Ele mais tarde
a Irmã Clarissa Maria Madalena, conforme a devoção hoje amplamente divulgada.
Estes dois monstros flagelaram Jesus por horas seguidas, até caírem de exaustão, de
tal forma se haviam entregado a satanás. Eles tudo fizeram para que Jesus gritasse
por clemência, mas como o divino e mando Cordeiro não abria a boca, mais se
enfureciam. Todo este processo era ilegal, e esta tortura era proibida a um condenado,
antes do julgamento, mesmo entre os povos mais diabólicos da terra, e mesmo entre
os juizes mais iníquos.
Judas, tomado de desespero, impelido pelo demônio, vagueara pelo vale Hinom, no
lado íngreme, ao sul de Jerusalém, lugar onde se jogava o lixo, ossos e cadáveres;
enquanto Jesus estava no cárcere, ele veio aproximar-se da casa do tribunal de
Caifás. Rodeava-a, espreitando; ainda lhe pendia, preso ao cinto, o prêmio da traição,
as moedas de prata encadeadas num molho.
A noite já se tornara silenciosa e o infeliz perguntou aos guardas, que não o
conheciam, o que seria feito do Nazareno. Responderam-lhe: “Foi condenado à morte e
será crucificado”. Ainda ouviu outros falarem entre si que Jesus fora tratado tão
cruelmente e sofrera tudo com paciência e resignação; ao amanhecer seria levado
outra vez perante o Supremo Conselho, para ser condenado solenemente.
Enquanto o traidor colhia cá e lá essas notícias, para não ser reconhecido, amanheceu
o dia e já se via muito movimento dentro e em redor da casa. Então, para não ser
visto, retirou-se Judas para os fundos da casa; pois fugia dos homens como Caim e o
desespero tomava-lhe cada vez mais posse da alma. Mas eis o que se lhe apresentou
ante os olhos: - Achou-se no lugar onde tinham trabalhado preparando a cruz; lá
estavam as várias peças já arrumadas e entre elas, envolvidos nos cobertores, estavam
os operários dormindo.
Por sobre o monte das Oliveiras cintilava a pálida luz da manhã; parecia tremer de
horror, ao ver o instrumento da nossa salvação. Judas, ao deparar essa cena, fugiu,
preso de horror: vira o madeiro do suplício, para o qual vendera o Senhor. Escondeu-
se, porém, nos arredores, esperando pelo fim do julgamento da madrugada.
Desespero de Judas
Judas, o traidor, que não se tinha afastado muito, ouviu então o barulho do séquito,
como também as palavras de algumas pessoas, que seguiam de mais,longe; entre
outras coisas disseram: “Agora vão levá-Lo a Pilatos; o Conselho supremo condenou-O
à morte; vai ser crucificado; também não pode mais viver, nesse horrível estado em
que O deixaram os maus tratos. Tem uma paciência incrível, não diz nada, apenas
que é o Messias e se sentará à direita de Deus; outra coisa não disse e por isso vai
morrer na cruz; se não o tivesse dito, não O podiam condenar à morte, mas assim
deve morrer.
“O patife que O vendeu, foi seu discípulo e pouco antes ainda comeu com ele o
cordeiro pascal; eu não queria ter parte nesta ação; seja como for, o Galileu pelo
menos nunca entregou um amigo à morte por dinheiro. Deveras, esse patife de traidor
merece também ser enforcado”. Então o arrependimento tardio, a angústia e o
desespero começaram a lutar na alma de Judas. O demônio impeliu-o a correr. O
molho das trinta moedas de prata, no cinto, sob o manto, era-lhe como uma espora do
inferno: segurou-o com a mão, para que não fizesse tanto barulho, batendo-lhe na
perna ao correr.
Correu à toda a pressa, não atrás do cortejo, para lançar-se aos pés de Jesus, pedindo
perdão ao Salvador misericordioso, não para morrer com Ele, nem para confessar a
culpa diante de Deus; mas para se limpar diante dos homens da culpa e desfazer-se
do prêmio da traição; correu como um insensato ao Templo, aonde diversos membros
do supremo conselho como chefes dos sacerdotes em exercício e alguns dos anciãos se
tinham dirigido, depois do julgamento de Jesus.
Olharam-se mutuamente, admirados e com um sorriso desprezível, dirigiram olhares
altivos a Judas que, impelido pelo arrependimento do desespero e fora de si, correu
para eles; arrancou o feixe das moedas de prata do cinto e, estendendo-lhes a mão
direita com o dinheiro, disse, em tom de violenta angústia: “Tomai aqui o vosso
dinheiro, com o qual me seduzistes a entregar-vos o Justo; retomai o vosso dinheiro e
soltai Jesus; eu rompo o nosso pacto; pequei gravemente, traindo sangue inocente”.
Mas os sacerdotes mostraram-lhe então todo o seu desprezo; retiraram as mãos do
dinheiro que lhes oferecia, como se não quisessem manchar-se com o prêmio da
traição, dizendo: “Que nos importa que pecasses? Se julgas ter vendido sangue
inocente, é lá contigo; sabemos o que compramos de ti e julgamo-Lo réu de morte; é
teu dinheiro, não temos nada com isso. Etc”..
Disseram-lhe essas palavras no tom que usam os homens que estão muito ocupados e
querem livrar-se de um importuno e viraram as costas a Judas. Esse, vendo-se assim
tratado, foi tomado de tal raiva e desespero, que ficou como louco; eriçaram-se-lhe os
cabelos e rompendo com as duas mãos o molho das moedas de prata, espalhou-as
com veemência no templo e fugiu para fora da cidade.
Vi-o de novo, correndo como louco, no vale de Hinom e o demônio em figura
horrível ao seu lado, segredando-lhe ao ouvido, para levá-lo ao desespero, todas as
maldições dos profetas sobre esse vale, onde antigamente os judeus sacrificavam os
próprios filhos aos deuses. Parecia-lhe que todas essas palavras o indicavam com o
dedo, dizendo, por exemplo: “Eles sairão para ver os cadáveres daqueles que contra
mim pecaram, cujo verme não morre, cujo fogo não se apaga”.
Depois lhe soou aos ouvidos.: “Caim, onde está Abel, teu Irmão? Que fizestes? O
sangue de teu irmão clama a mim; agora, pois, serás maldito sobre a terra, vagabundo
e fugitivo”. Quando chegou à torrente doe Cedron e olhou na direção do monte das
Oliveiras, estremeceu e virou os olhos. Então ouviu de novo as palavras: “Amigo, para
que vieste? Judas, é com um beijo que entregas o Filho do homem?”
Então um imenso horror lhe penetrou no fundo da alma, confundiram-se-lhe os
sentidos e o inimigo segredou-lhe ao ouvido: “Aqui sobre o Cedron, fugiu também Davi
diante de Absalão; Absalão morreu pendurado numa árvore; Davi referia-se também a
ti no salmo: “Retribuíram o bem com o mal, ele terá um juiz severo; Satanás estará à
sua direita, todo o tribunal o condenará; os seus dias serão poucos; outro lhe receberá
o episcopado; o Senhor recordar-se-á sempre da maldade dos seus pais e dos pecados
de sua mãe, porque sem misericórdia perseguiu os pobres e matou os aflitos; ele
amava a maldição e esta virá sobre ele; revestia-se da maldição como de uma veste,
como água lhe entrou ela nos intestinos, como óleo nos ossos; como uma veste o cobre
a maldição, como um cinto que o cinge eternamente”.
Entre esses terríveis remorsos da consciência(1), chegara Judas a um lugar
deserto, pantanoso, cheio de lixo e imundície, a sudeste de Jerusalém, ao pé do monte
dos Escândalos, onde ninguém o podia ver. Da cidade se ouvia ainda mais forte o
tumulto e o demônio disse-lhe: “Agora O conduzem à morte; vendeste-O; sabes o que
está escrito na lei? “Quem vender uma alma entre seus irmãos, os filhos de Israel,
morrerá. Acaba com isto, miserável, acaba com isto!”. Então tomou Judas
desesperado o cinto e enforcou-se numa árvore que crescia em vários troncos, numa
cavidade daquele lugar. Quando se enforcou, rebentou-se-lhe o ventre e os intestinos
caíram-lhe sobre a terra.
(1) Devemos ter em mente que na verdade Judas jamais se arrependeu de fato.
Quem se arrepende, faz como Pedro que também traiu Jesus: Vai, pede perdão, e
chora as suas culpas amargamente. Judas, ao contrário, desesperou-se, duvidando da
misericórdia de Deus, que é sempre infinitamente maior que o nosso pecado. Este é
exatamente o pecado contra o Espírito Santo, do qual Jesus falou. É uma gravíssima
ofensa duvidar de Deus e da Sua misericórdia.
Vimos assim, o quão pavorosa foi a cena de Jesus servido de joguete nas mãos
daqueles dois malditos adeptos de satanás. Certamente que toda a flagelação de que
foi vítima, lhe haviam roubado quase todas as forças. Mas não era o fim ainda, porque
vem agora a parte de Pilatos, com a verdadeira flagelação de que falam os Evangelhos.
Que nos compenetremos destas dores imensas, unindo-as às nossas pequeninas,
para que possamos fazer parte deste Mistério Supremo: A Redenção do homem!
Eram talvez seis horas da manhã, segundo o nosso modo de contar, quando a
comitiva dos sumos sacerdotes e dos fariseus, com o nosso Salvador, horrivelmente
maltratado, chegou ao palácio de Pilatos. Entre o mercado e a entrada do tribunal
havia assentos em ambos os lados do caminho, onde se divertiam Anás e Caifás, e os
conselheiros que os acompanhavam. Jesus foi conduzido alguns passos adiante, até a
escada de Pilatos, pelos soldados, que o seguravam pelas cordas.
Quando lá chegaram, estava Pilatos deitado sobre uma espécie de leito, na sacada do
terraço; tinha ao lado uma mezinha de três pés, em que se viam algumas insígnias de
sua dignidade e outros objetos, dos quais não me lembro mais. Cercavam-no oficiais e
soldados, que também tinham colocado lá insígnias do poder romano. Os sumos
sacerdotes e judeus ficaram afastados do tribunal, porque, aproximando-se mais, se
teriam contaminado; segundo a lei havia um certo limite, que não transgrediam.
Quando Pilatos os viu chegar tão apressados, com tanto tumulto e gritaria,
conduzindo Jesus maltratado, levantou-se e falou em tom tão cheio de desprezo, como
talvez algum orgulhoso marechal francês falaria aos deputados de uma cidadezinha:
“O que vindes fazer tão cedo? Como pusestes este homem em tão mísero estado?
Começais cedo a esfolar e matar”. Eles, porém, gritaram aos soldados: “Adiante! Levai-
O ao tribunal”. Depois se dirigiram a Pilatos: “Escutai as nossas acusações contra este
criminoso; não podemos entrar no tribunal, para não nos tornarmos impuros”.(...)
Os soldados puxaram Jesus pelas cordas, escada acima, até o fundo do terraço, de
onde Pilatos estava falando aos acusadores. O procurador romano já ouvira falar
muito de Jesus. Quando O viu tão horrivelmente maltratado e desfigurado e, contudo
conservando uma dignidade inabalável, sentiu cada vez mais nojo e desprezo dos
sacerdotes e conselheiros judaicos, que lhe tinham já antes prevenido, que trariam
Jesus de Nazaré, réu de morte, perante o tribunal, fazendo-lhes sentir que não estava
disposto a condená-Lo sem culpa provada.
Disse-lhes, pois, em tom brusco e desdenhoso: “De que crime acusais este homem?”.
A que responderam irritados: “Se não O conhecêssemos como malfeitor, não vo-Lo
teríamos entregado”. Disse-lhes Pilatos: “Pois tomai e julgai-O segundo a vossa lei”. -
“Sabeis, responderam os judeus, que não nos compete o direito absoluto de executar
uma sentença de morte”.
Os inimigos de Jesus estavam cheios de escárnio e raiva; fizeram tudo com
precipitação e violência, para acabar com Jesus antes de começar o tempo legal da
festa, a fim de poderem sacrificar o cordeiro pascal. Mas não sabiam que Ele era o
verdadeiro Cordeiro pascal, que eles mesmos conduziam ao tribunal do juiz pagão,
servidor de falsos deuses, em cujo limiar não queriam contaminar-se, para poder
nesse dia comer o cordeiro pascal.(...)
Quando Pilatos ouviu que Jesus se fazia chamar o Cristo, rei dos judeus, tornou-se
pensativo. Saindo da sacada, entrou na sala contígua ao tribunal, lançando, ao passar
um olhar atento a Jesus e deu ordem à guarda de trazê-Lo à sala do tribunal.
Pilatos era pagão supersticioso de espírito confuso e inconstante. (...) Já ouvira falar
da promissão da vinda de um Messias, rei dos judeus, mas como pagão que era, não o
acreditava, nem podia compreender que espécie de rei seria; quando muito, podia
pensar, como os judeus instruídos e os herodianos daquele tempo, num rei poderoso e
conquistador. Tanto mais ridícula lhe parecia por isso a acusação de que esse Jesus
que estava diante dele, tão humilhado e desfigurado, pudesse declarar ser aquele
Messias, aquele rei. Como, porém, os inimigos de Jesus apresentassem isso como
crime contra os direitos do imperador, mandou conduzir o Salvador à sua presença,
para interrogá-Lo.(...)
Pilatos saiu outra vez para o terraço; não podia compreender Jesus; mas sabia que
não era um rei que quisesse prejudicar ao imperador, nem era pretendente a um reino
deste mundo; o imperador, porém, não se importava com um reino do outro mundo.
Pilatos gritou, pois, da sacada aos sumos sacerdotes: “Não acho nenhum crime neste
homem”. - os inimigos de Jesus irritaram-se de novo e proferiram uma torrente de
acusações contra Ele. O Senhor, porém, permanecia calado e rezava por esses pobres
homens e quando Pilatos se Lhe dirigiu, perguntando-Lhe: “Não tens nada a responder
a todas essas acusações?”. Jesus não proferiu uma só palavra, de modo que Pilatos,
surpreso, Lhe disse: “Vejo bem que empregam mentiras contra ti” - (em vez de
mentiras usou outra expressão, que, porém, esqueci). Os acusadores continuavam,
cheios de raiva, a acusá-Lo, dizendo: “0 que? Não achais crime nEle? Não é então
crime sublevar todo o povo, espalhar sua doutrina em todo o país, da Galiléia até
aqui?”.
Quando Pilatos ouviu a palavra Galiléia, refletiu um momento e perguntou: “Esse
homem é da Galiléia, súdito de Herodes?”. Os acusadores responderam: “Sim, seus
pais moravam em Nazaré e Ele tem domicílio atual em Cafarnaum”. Então disse
Pilatos: “Pois que é galileu e súdito de Herodes, conduzi-O a este; ele está aqui na
festa e pode julgá-Lo”. (...)
Os inimigos de Jesus, furiosos por lhes haver Pilatos negado a demanda e terem de ir
ao tribunal de Herodes, fizeram recair toda a raiva sobre Jesus. Cercaram-nO de novo
de soldados e, irritadíssimos, amarraram-Lhe as mãos e com empurrões e pancadas,
conduziram-nO à toda pressa, através da multidão que se apinhava no fórum e depois
por uma rua, até o palácio de Herodes, que não ficava muito longe. Acompanharam-
nos soldados romanos.
Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, mandara-lhe dizer por um criado, durante as
últimas discussões, que desejava falar-lhe urgentemente. Quando Jesus foi conduzido
a Herodes, estava escondida numa galeria alta, olhando com grande angústia e
tristeza para o cortejo que passava pelo fórum.
Pilatos e a Esposa
O palácio do Tetrarca Herodes estava situado ao norte do fórum, na cidade nova, não
muito longe do palácio de Pilatos. Um destacamento de soldados romanos
acompanhou o cortejo, a maior parte oriunda da região entre a Itália e a Suíça. Os
inimigos de Jesus, furiosos por ter de fazer tantas caminhadas, não cessavam de
ultrajá-Lo e de fazê-Lo empurrar e arrastar pelos soldados.
O mensageiro de Pilatos chegou antes do cortejo ao palácio de Herodes, que assim, já
avisado, O esperava sentado numa espécie de trono, sobre almofadas, numa vasta
sala; rodeavam-no muitos cortesãos e soldados. (...) Pilatos tinha-lhe também
comunicado que não achara crime em Jesus; e o hipócrita tomou-o como aviso, para
tratar os acusadores com certa frieza, o que ainda mais lhes aumentou a raiva.
Proferiram acusações tumultuosamente, logo ao entrarem; Herodes, porém, olhou com
curiosidade para Jesus e quando O viu tão desfigurado e maltratado, o cabelo
desgrenhado, o rosto dilacerado e coberto de sangue e imundícies, a túnica toda suja
de lama, esse rei mole e libertino, sentiu dó e nojo. Exclamou um nome de Deus que
me soou como “Jeovah”, virou o rosto, com um gesto de nojo e disse aos sacerdotes:
“Levai-O daqui, limpai-O. Como podeis trazer à minha presença um homem tão sujo e
maltratado?” Os soldados levaram então Jesus ao átrio; trouxeram água numa bacia e
um esfregão e limparam-nO cruelmente; pois o rosto estava ferido e passavam o
esfregão com brutalidade.(...)
Herodes dirigiu-se então com muita verbosidade e afabilidade, proferindo tudo que
sabia dEle. A princípio Lhe fez várias perguntas e manifestou o desejo de vê-Lo fazer
um milagre; como, porém, Jesus não respondesse palavra alguma e permanecesse
com os olhos baixos, ficou Herodes irritado e envergonhado diante dos presentes, mas
não quis mostrá-lo e continuou a fazer-Lhe uma torrente de perguntas.
(Segue um série de perguntas, às quais Jesus não respondeu e muitas constam dos
Evangelhos)
À toda essa torrente de palavras não obteve resposta alguma de Jesus. Foi-me
explicado agora e, já há mais tempo, que Jesus não lhe respondeu, porque Herodes foi
excomungado, tanto pelas relações adúlteras com Herodíades, como também pelo
assassínio de João Batista. Anás e Caifás aproveitaram a indignação que lhe causou o
silêncio de Jesus, para de novo proferir as acusações. (...)
Herodes, ainda que irritado pelo silêncio de Jesus, não se esqueceu dos seus
interesses políticos. Não quis condenar Jesus; pois Este lhe inspirava um terror
secreto e já era torturado de remorsos, por causa da morte de João Batista; também
odiava os sumos sacerdotes, porque não tinham querido desculpar-lhe o adultério e o
haviam excluído dos sacrifícios pelo mesmo motivo.
Mas o motivo principal era que não queria condenar aquele a quem Pilatos declarara
inocente; convinha-lhe aos interesses políticos aplaudir a opinião de Pilatos, diante
dos príncipes dos sacerdotes. A Jesus, porém, cobriu de desprezo e insultos; disse aos
criados e guardas, dos quais contava uns duzentos no palácio. “Levai para fora este
tolo e prestai a este rei ridículo as honras que se Lhe devem; pois é mais um doido do
que um criminoso”.
Conduziram então o Salvador a um vasto pátio, onde o cobriram de escárnio e
indizíveis crueldades. Esse pátio estendia-se por entre as alas do palácio e Herodes, de
pé num terraço, assistiu por algum tempo a esse espetáculo cruel. Anás e Caifás,
porém, andavam sempre atrás dele e procuravam por todos os meios movê-lo a
condenar Jesus; mas Herodes disse-lhes, de modo que os romanos da escolta o
ouvissem: “Seria um crime de minha parte, se O condenasse”. Queria certamente
dizer: “Seria um crime contra a sentença de Pilatos, que teve a gentileza de mandá-Lo
a mim”.
Vendo que não conseguiam nada de Herodes, os sumos sacerdotes e os inimigos de
Jesus enviaram alguns dos seus, com dinheiro, a Acra, bairro da cidade onde se
achavam nessa ocasião muitos fariseus, aos quais mandaram dizer que fossem, com
os respectivos partidários, às vizinhanças do palácio de Pilatos; fizeram também
distribuir entre o povo muito dinheiro, para levá-lo a pedir tumultuosamente a morte
de Jesus. (...).
Enquanto os fariseus estavam ocupados nesses negócios e intrigas, sofreu Nosso
Senhor o escárnio e a brutalidade mais ignominiosa da soldadesca ímpia e grosseira, à
qual Herodes O tinha entregue, para ser maltratado, como tolo que não lhe quisera
responder. Empurraram-nO para o pátio e um deles trouxe um comprido saco branco,
que achara no quarto do porteiro e em que, havia tempos, viera uma remessa de
algodão. Cortaram com as espadas um buraco no fundo do saco e meteram-nO por
entre grandes gargalhadas, sobre a cabeça de Jesus; outro trouxe um farrapo
vermelho e pôs-Lhe em redor do pescoço, como um colar; o saco caia-Lhe sobre os
pés. (...)
Havia lá cerca de duzentos soldados e servidores do palácio de Herodes, gente de
todas as regiões e cada um dos mais perversos queria fazer honra a seu país e
distinguir-se diante de Herodes, inventando um novo ultraje para Jesus. Faziam tudo
precipitadamente, empurrando-se uns aos outros, entre escárnios; os inimigos de
Jesus tinham pago dinheiro a alguns deles, que no tumulto Lhe deram diversas
pauladas na santa cabeça. Jesus fitava-os com os olhos suplicantes, suspirando e
gemendo de dor; mas zombavam dele, imitando-Lhe os gemidos; a cada nova
brutalidade rompiam em gargalhadas e insultos, não havia nenhum que Lhe
mostrasse piedade. Tinha a cabeça toda banhada em sangue e vi-O cair três vezes, sob
as pauladas, mas vi também uma aparição como de Anjos, que, chorando, desceram
sobre Ele e lhe ungiram a cabeça. Foi-me revelado que sem esse auxílio de Deus, as
pauladas teriam sido mortais. Os filisteus, que fizeram o cego Sansão correr na Pista
de Gaza, até cair morto de cansaço, não foram tão violentos e cruéis como esses
perversos.
Urgia o tempo para os Sumos Sacerdotes, porque em pouco deviam ir ao Templo e
quando receberam aviso de que todas as suas ordens tinham sido cumpridas,
insistiram mais uma vez com Herodes, pedindo-lhe que condenasse Jesus. Mas o
tetrarca tinha em vista apenas suas relações com Pilatos e mandou reconduzir-lhe
Jesus, vestido do manto derrisório.
Ora, era nesse tempo que o povo vinha, antes da festa da Páscoa, pedir, segundo um
antigo costume, a liberdade de um preso. Os fariseus tinham enviado, justamente por
isso, alguns agentes ao bairro de Acra, a oeste do Templo, para dar dinheiro ao povo,
instigando-o a que não pedisse a libertação, mas a crucificação de Jesus. Pilatos,
porém, esperava que o povo pedisse a liberdade de Jesus e resolveu dar-lhes a
escolher entre Jesus e um terrível facínora, que já fora condenado à morte, para que
quase não tivessem que escolher. Esse celerado chamava-se Barrabás e era
amaldiçoado por todo o povo; tinha cometido assassinatos durante uma agitação; vi
que também tinha feito muitos outros crimes.(...)
Houve um movimento entre o povo no fórum; um grupo avançou, com os oradores à
frente; esses levantaram a voz e bradaram a Pilatos, que estava no terraço: “Pilatos,
fazei-nos o que sempre fizestes, por ocasião da festa”. Pilatos, que só estava esperando
por isso, respondeu-lhes: “Tendes o costume de receber de festas a liberdade de um
preso. A quem quereis que solte, Barrabás ou Jesus, o rei dos judeus, que dizem ser o
Ungido do Senhor?”
Pilatos, todo indeciso, chamava-O “rei dos judeus”, já como romano orgulhoso, que os
desprezava, por terem um rei tão miserável, que tivessem de escolher entre Ele e um
assassino; já com uma certa convicção de que Jesus pudesse ser de fato esse rei
maravilhoso dos judeus, o Messias prometido; mas também esse pressentimento da
verdade era em parte fingimento e mencionou esse título do Senhor porque bem sentia
que a inveja era o motivo principal do ódio dos príncipes dos sacerdotes contra Jesus,
a quem considerava inocente.
Após a pergunta de Pilatos, houve uma curta hesitação e deliberação entre o povo e só
poucas vozes gritaram precipitadamente: “Barrabás!” Pilatos, porém, foi chamado por
um criado da mulher; retirou-se um instante do terraço e o criado mostrou-lhe o
penhor que ele dera de manhã à esposa e disse-lhe: “Cláudia Prócula manda lembrar-
vos vossa promessa”. Os fariseus, no entanto, e os príncipes dos sacerdotes estavam
em grande agitação; aproximaram-se do povo, ameaçando e instigando-o; mas não
precisavam de tanto esforço.(...)
Pilatos, lembrando-se, à vista do penhor, da súplica da esposa, devolveu-lho, como
sinal de que cumpria a promessa. Voltou ao terraço e sentou-se ao lado da mezinha;
os sumos sacerdotes também tornaram a ocupar os respectivos assentos e Pilatos
exclamou de novo: “Qual dos dois quereis que eu solte?” - Então se levantou um grito
geral por todo o fórum e de todos os lados: “Não queremos Este; entregai-nos
Barrabás!” Pilatos gritou mais uma vez: “Que farei então de Jesus, que é chamado o
Cristo, o rei dos judeus?” - “Crucificai-O, Crucificai-O!” Pilatos perguntou então pela
terceira vez: “Mas que mal tem feito? Eu pelo menos não Lhe acho crime de morte.
Mas vou mandá-Lo açoitar e depois soltar”. Mas o grito “Crucificai-O! Crucificai-O!”
rugia pelo fórum, como uma tempestade infernal e os sumos sacerdotes e fariseus
agitavam-se e gritavam como loucos de raiva. Então Pilatos lhes entregou Barrabás, o
malfeitor e condenou Jesus à flagelação.
A flagelação de Jesus
Pilatos, juiz covarde e indeciso, pronunciara várias vezes a palavra: “Não lhe acho
crime algum; por isso vou mandá-Lo açoitar (1) e depois soltar”. A gritaria dos judeus,
porém, continuava: “Crucificai-O! Crucificai-O!”. Contudo queria Pilatos tentar ainda
fazer sua vontade e deu ordem de açoitar Jesus à maneira dos romanos. Então
entraram os soldados e, batendo e empurrando a Jesus brutalmente, com os curtos
bastões, conduziram nosso pobre Salvador, já tão maltratado e ultrajado, através da
multidão tumultuosa e furiosa, para o fórum, até a coluna de flagelação, que ficava em
frente de uma das arcadas do mercado, ao norte do palácio de Pilatos e não longe do
posto da guarda.
Os carrascos, jogando os açoites, varas e cordas no chão, ao pé da coluna, vieram ao
encontro de Jesus. Eram seis homens de cor parda, mais baixos do que Jesus, de
cabelo crespo e eriçado, barba muito rala e curta; vestiam apenas um pano ao redor
da cintura, sandálias rotas e uma peça de couro ou outra fazenda ordinária, que lhes
cobria peito e costas como um escapulário, aberto dos lados; tinham os braços nus.
Eram criminosos comuns, das regiões do Egito, que trabalhavam como escravos ou
degredados na construção de canais e edifícios públicos; escolhiam-se os mais
ignóbeis e perversos, para tais serviços de carrascos no pretório.
Amarrados à mesma coluna, alguns pobres condenados tinham sido açoitados até à
morte, por esses homens horríveis, cujo aspecto tinha algo de bruto e diabólico e
pareciam meio embriagados. Bateram em Nosso Senhor com os punhos e com cordas,
apesar de não lhes opor resistência alguma, arrastaram-nO com brutalidade furiosa,
até à coluna da flagelação. É uma coluna isolada, que não serve para sustentar o
edifício. É de tamanho tal, que um homem alto, com o braço estendido, lhe pode tocar
a extremidade superior, arredondada e munida de uma argola de ferro; na parte de
trás, no meio da altura, há também argolas ou ganchos. É impossível descrever a
brutalidade bárbara com que esses cães danados maltrataram a Jesus, nesse curto
caminho; tiraram-Lhe o manto derrisório de Herodes e quase jogaram nosso Salvador
por terra.
Jesus trepidava e tremia diante da coluna. Ele mesmo se apressou a despir a roupa,
com as mãos inchadas e ensangüentadas pelas cordas, enquanto os carrascos O
empurravam e puxavam. Orava de um modo comovente e volveu a cabeça por um
momento para a Mãe SS. que, dilacerada de dor, estava com as mulheres piedosas
num canto das arcadas do mercado, não longe do lugar de flagelação e disse,
voltando-se para a coluna, porque O obrigaram a despir-se também do pano que lhe
cingia os rins: “Desvia os teus olhos de mim”. Não sei se pronunciou essas palavras ou
as disse só interiormente, mas percebi que Maria as entendeu; pois a vi nesse
momento desviar o rosto e cair sem sentidos nos braços das santas mulheres veladas,
que a rodeavam.
Então abraçou Jesus a coluna e os algozes ataram-Lhe as mãos levantadas à argola
de cima, dando-Lhe arrancos brutais e praguejando horrivelmente todo o tempo;
puxaram-Lhe assim todo o corpo para cima, de modo que os pés, amarrados em baixo
à coluna, quase não tocavam no chão. O Santo dos Santos estava cruelmente
estendido sobre a coluna dos malfeitores, em ignominiosa nudez e indizível angústia e
dois dos homens furiosos começaram, com crueldade sanguinária, a flagelar-Lhe todo
o santo corpo, da cabeça aos pés. Os primeiros açoites ou varas que usaram, pareciam
ser de madeira branca e dura; talvez fossem também feixes de tendões secos de boi ou
tiras duras de couro branco.
Nosso Senhor e Salvador, o Filho de Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem,
contraia-se e torcia-se, como um verme, sob os açoites dos criminosos; ouviam-se-Lhe
os gemidos e lamentos, doces e claros, como uma prece afetuosa no meio de dores
dilacerantes, entre o sibilar e estalar dos açoites dos carrascos. (...)
A multidão dos judeus mantinha-se afastada do lugar da flagelação, numa distância,
talvez, da largura de uma rua. Soldados romanos estavam postos em diferentes
lugares, especialmente pelo lado do posto de guarda; perto da coluna de flagelação
havia grupos de populacho, que iam e vinham silenciosos ou zombando; vi alguns que
se sentiram comovidos; era como se os tocasse um raio de luz saindo de Jesus.(...)
O corpo de Jesus estava todo coberto de contusões vermelhas, pardas e roxas e o
sangue sagrado corria-Lhe por terra; agitava-se em movimentos convulsivos. De todos
os lados se ouviam insultos e motejos.
Durante a noite tinha feito muito frio. Desde a madrugada até essa hora, não clareara
o céu e, com grande espanto do povo, caíram algumas curtas chuvas de pedra. Pelo
meio dia clareou e apareceu o sol.
O segundo par de carrascos caiu então com novo furor sobre Jesus; tinham outra
espécie de açoites; eram como varas de espinheiro, com nós e esporões. Os violentos
golpes rasgaram todas as pisaduras do santo corpo de Jesus; o sangue regou o chão,
em redor da coluna e salpicou os braços dos carrascos. Jesus gemia, rezava, torcia-se
de dor.
(...) Os dois seguintes carrascos bateram em Jesus com flagelos: eram curtas
correntes ou correias, fixas num cabo, cujas extremidades estavam munidas de
ganchos de ferro, que arrancavam, a cada golpe, pedaços de pele e carne das costas.
Oh! Quem pode descrever o aspecto horrível e doloroso deste suplício?
Mas a crueldade dos carrascos ainda não estava satisfeita; desligaram Jesus e
amarraram-nO de novo, mas com as costas viradas para a coluna. Como, porém,
estivesse tão enfraquecido, que não podia manter-se em pé, passaram-Lhe cordas
finas sobre o peito e sob os braços e debaixo dos joelhos, amarrando-O assim todo à
coluna; também Lhe ataram as mãos atrás da coluna, a meia altura.
Todo o corpo sagrado contraia-se-Lhe dolorosamente, as chagas e o sangue cobriam-
Lhe a nudez. Como cães raivosos, caíram-Lhe os carrascos em cima, com os açoites;
um tinha uma vara mais delgada na mão esquerda, com que Lhe batia no rosto. O
corpo de Nosso Senhor formava uma só chaga, não havia mais lugar são. Ele olhava
para os carrascos, com os olhos cheios de sangue, que suplicavam misericórdia, mas
redobravam os golpes furiosos e Jesus gemia, cada vez mais fracamente: “Ai!”
A horrível flagelação durara cerca de três quartos de hora (2), quando um estrangeiro,
homem do povo, parente do cego Ctesifon, curado por Jesus, se aproximou
precipitadamente da coluna, pelo lado de trás e, com uma faca em forma de foice na
mão, gritou indignado: “Parai! Não flageleis este homem inocente até morrer!” Os
carrascos, meio embriagados, pararam espantados e o homem cortou rapidamente,
como de um único golpe, as cordas de Jesus, que todas estavam seguras num prego
de ferro, atrás da coluna; depois o estrangeiro fugiu e perdeu-se na multidão. Jesus,
porém, caiu desfalecido, ao pé da coluna, sobre a terra empapada de sangue. Os
carrascos deixaram-nO lá e foram beber, depois de chamar os auxiliares do carrasco,
que estavam no posto de guarda, ocupados em trançar a coroa de espinhos.
Jesus torcia-se ainda de dor, ao pé da coluna, as chagas a sangrar; nesse momento vi
passar perto algumas raparigas libertinas, com as vestes imprudentemente
arregaçadas; estavam de mãos dadas e pararam diante de Jesus, olhando-O com
repugnância melindrosa; com isso sentiu Jesus ainda mais as feridas e levantou para
elas o rosto ensangüentado, com um olhar suplicante; então se afastaram,
continuando o caminho e os carrascos e soldados dirigiram-lhes, entre gargalhadas,
palavras indecentes.
Vi várias vezes, durante a flagelação, aparecerem Anjos tristes em redor de Jesus; ouvi
a oração que o Senhor dirigia ao Pai eterno, no meio dos tormentos e insultos,
oferecendo-se para expiação dos pecados dos homens. Mas nesse momento, quando
jazia, banhado em sangue, ao pé da coluna, vi um anjo, que lhe restituía as forças;
parecia dar-Lhe um alimento luminoso.
Então se aproximaram novamente os carrascos e dando-Lhe pontapés, mandaram-nO
levantar-se, dizendo que ainda não tinham acabado com o rei, querendo ainda bater-
Lhe, arrastou-se Jesus pelo chão, para alcançar a faixa de pano e cobrir a nudez; mas
os perversos celerados empurravam-na com os pés para lá e para cá, rindo-se de ver
Jesus em sangrenta nudez arrastar-se penosamente, como um verme esmagado, para
alcançar o pano e cobrir o corpo dilacerado.
Depois O impeliram, a pontapés e pauladas, a levantar-se sobre as pernas vacilantes;
não Lhe deram tempo de vestir a túnica, mas lançaram-lha sobre os ombros e Jesus
enxugou nela o sangue do rosto, enquanto O conduziram apressadamente ao corpo da
guarda, dando uma volta. Podiam tê-Lo levado por um caminho mais curto, porque as
arcadas e edifícios em redor do fórum eram abertos, de modo que se podia enxergar o
corredor sob o qual jaziam presos os dois ladrões e Barrabás; mas passaram com
Jesus diante dos sumos sacerdotes, que gritaram: “Levai-O à morte! Levai-O à morte!”
e viraram a cabeça com nojo. Conduziram-nO para o pátio interior do corpo da
guarda. Quando Jesus entrou, não havia lá soldados, mas escravos, soldados e
marotos, a escória do povo.
Vendo que o povo estava tão agitado, Pilatos mandara vir reforço da cidadela Antônia.
Essas forças cercavam em boa ordem o corpo da guarda; podiam falar, rir e insultar a
Jesus, mas não sair das fileiras. Pilatos queria com eles manter o povo em respeito.
Podia bem haver lá mil homens.(..)
Durante a flagelação falou Pilatos ainda várias vezes ao povo, que uma vez até gritou:
“Ele deve morrer, ainda que todos nós também pereçamos”. Quando Jesus foi
conduzido ao corpo da guarda, para ser coroado de espinhos, ainda gritaram: “Morra!
Morra!” pois chegavam cada vez novas turbas de judeus, que pelos emissários dos
sumos sacerdotes eram incitados a gritar assim.
Houve depois uma curta pausa. Pilatos deu ordens aos soldados. Os sumos
sacerdotes e os conselheiros, que estavam sentados em bancos, de ambos os lados da
rua, à sombra das árvores ou sob lonas estendidas, diante do terraço de Pilatos,
mandaram os criados trazerem alimentos e bebida. Vi também Pilatos de novo
perturbado pela superstição; retirou-se sozinho, para oferecer incenso aos deuses e
por certos sinais descobrir-lhes a vontade.
Vi que depois da flagelação a SS. Virgem e as amigas, tendo enxugado o sangue de
Jesus, se afastaram do fórum. Vi-as com os panos ensangüentados, numa pequena
casa encostada a um muro; não era longe do fórum; não me lembro mais de quem era.
Não me recordo de ter visto João durante a flagelação.
Jesus foi coroado de espinhos e escarnecido no pátio interior do corpo da guarda,
construído sobre os cárceres, ao lado do fórum. Esse pátio era cercado de colunas e
todas as entradas tinham sido abertas. Havia ali cerca de cinqüenta miseráveis
patifes, sequazes dos soldados, servos dos carcereiros, soldados e auxiliares dos
carrascos, escravos e os criminosos que flagelaram Nosso Senhor; esses todos
tomaram parte ativa nas crueldades praticadas em Jesus. No começo o povo tentou
entrar, mas pouco depois cercaram mil soldados romanos o edifício. Permaneciam nas
fileiras, mas com as zombarias e risos provocavam ainda o cruel exibicionismo dos
carrascos para redobrarem as torturas de Jesus, animando-os com as risadas, como o
aplauso anima os atores no palco.
Não posso relatar todas as torturas e ultrajes que os carrascos inventaram, para
escarnecer o pobre Salvador. Ai! Jesus sofreu horrível sede; pois em conseqüência das
feridas, causadas pela desumana flagelação, estava com febre e tremia; a pele e os
músculos dos lados estavam dilacerados e deixavam entrever as costelas em vários
lugares; a língua contraíra-se-Lhe espasmodicamente; somente o sangue sagrado que
lhe corria da fronte, compadecia-se da boca ardente, que se abria ansiosa. Mas
aqueles homens horríveis tomaram-Lhe a boca divina por alvo de nojentos escarros.
Jesus foi assim maltratado por cerca de meia hora e a tropa, cujas fileiras cercavam o
pretório, aplaudia com gritos e gargalhadas.
Ecce Homo
Todas as vezes que, nas meditações da dolorosa Paixão de Jesus Cristo, ouço esse
grito espantoso dos judeus: “Que o seu sangue caia sobre nós e nossos filhos”, o efeito
dessa solene maldição me é revelado e tornado sensível, em quadros maravilhosos e
terríveis.
Vejo acima do povo, que grita, um céu escuro, coberto de nuvens cor de sangue, das
quais saem flagelos e espadas de fogo.
Vejo como se os raios dessa maldição atravessassem todos até os ossos e neles
também os filhos.
Vejo o povo como envolvido em trevas e o grito sair-lhes das bocas como um fogo
tenebroso e maligno, unir-se por cima das cabeças e cair de novo sobre eles, entrando
mais profundo em alguns, pairando sobre outros.
Esses últimos eram aqueles que depois da morte de Jesus se converteram. O número
destes não era, porém, pequeno; pois vejo Jesus e Maria, durante todos esses terríveis
sofrimentos rezarem sempre pela salvação dos carrascos e todos esses horríveis
tormentos não lhes causaram nenhum ressentimento. (...)
Vejo então inúmeras figuras diabólicas, cada uma diferente, conforme o vício que
representa, em terrível ação entre a multidão; vejo-as correr, instigar a raiva, causar
confusão dos espíritos, entrar na boca das pessoas; vejo-as sair da multidão, reunir-se
em grande número e atiçar a raiva do povo contra Jesus, mas à vista do amor e da
paciência do Mestre tremem e desaparecem de novo entre o povo.
Toda essa atividade tem algo de desesperado, confuso, contraditório; é um movimento
confuso e insensato. Acima e em redor de Jesus e Maria e do pequeno número de
santos vejo também se moverem muitos Anjos, cujas figuras e vestimentas variam,
conforme as respectivas funções e ação; representam consolação, oração, unção,
conforto por comida e bebida e outras obras de misericórdia.
De modo semelhante vejo freqüentemente vozes consoladoras ou ameaçadoras saírem,
como palavras de diferentes cores e luzes, da boca de tais aparições; (...) Tudo que há
de mau no mundo, contribuiu para atormentar Jesus. Tudo que é amor, nEle sofreu.
Como Cordeiro de Deus, tomou sobre si os pecados do mundo: - Que infinidade de
coisas, tanto abomináveis como também santas, se podem ver e contar. Se, portanto,
as visões e contemplações de muitas pessoas piedosas não concordam em tudo, é
porque não tiveram o mesmo grau de graça para ver, contar e fazer-se compreender.
Pilatos, que não procurava a verdade, mas apenas uma saída para a dificuldade,
estava mais indeciso que nunca. A consciência dizia-lhe: “Jesus é inocente”. A esposa
mandara dizer-lhe: “Jesus é santo”. A superstição dizia-lhe: “É um inimigo de teus
deuses”. A covardia dizia-lhe: “É um deus e vingar-se-á”. Interroga mais uma vez a
Jesus, em tom inquieto e solene e Jesus lhe fala dos seus mais ocultos crimes, prediz-
lhe um futuro e uma morte miseráveis e que um dia virá, sentado sobre as nuvens do
céu, pronunciar sobre ele um juízo justo, o que deita na falsa balança da justiça de
Pilatos um novo peso contra a intenção de soltar Jesus. Ficou furioso por se ver em
toda a nudez de sua ignomínia interior diante de Jesus, a quem não podia
compreender; (...)
O celerado covarde e irresoluto pensava consigo: “Se Ele morrer, morrerá também com
Ele o que sabe de mim e o que me predisse”. À ameaça dos judeus de acusá-lo perante
o imperador, decidiu-se Pilatos a fazer-lhes a vontade, contrariamente à promessa que
fizera à esposa, contrariamente à justiça e à própria convicção. (...)
Ouvindo esses gritos sanguinários, Pilatos mandou preparar tudo para pronunciar a
sentença. Deu ordem para trazer outras vestes solenes e vestiu-as; (...). Somente Anás
e Caifás, com cerca de vinte e oito outros, se dirigiram ao tribunal no fórum, logo que
Pilatos começou a vestir as vestimentas oficiais. Os dois ladrões já haviam sido
conduzidos ao tribunal, quando Pilatos apresentou Jesus ao povo, dizendo: Ecce
homo! O assento de Pilatos estava coberto de uma manta vermelha e sobre essa havia
uma almofada azul, com galões amarelos.
Jesus, ainda vestido do rubro manto derrisório, com a coroa de espinhos na cabeça,
as mãos atadas, foi então conduzido pelos esbirros e soldados que O cercavam, entre
as vaias do povo, para o tribunal, onde O colocaram entre os dois ladrões. Pilatos,
sentado no tribunal, disse mais uma vez, em voz alta, aos inimigos de Jesus: “Eis aí o
vosso rei!” Eles, porém, gritaram: “Fora! Morra! Crucifica-O!” - Pilatos disse: “Devo
então crucificar vosso rei?” - Mas os príncipes dos sacerdotes gritaram: “Não temos
outro rei senão o César”.
Então Pilatos não disse mais palavra em favor de Jesus, nem mais Lhe falou, mas
começou a pronunciar a sentença. Os dois ladrões tinham sido condenados, já havia
mais tempo, à morte na cruz, mas a execução fora adiada para esse dia, a pedido dos
Sumos Sacerdotes, porque queriam ultrajar Jesus, crucificando-O entre assassinos
ordinários. As cruzes dos ladrões já estavam ao lado deles, no chão, trazidas pelos
ajudantes dos carrascos. A Cruz de Nosso Senhor ainda não estava lá, provavelmente
porque a sentença ainda não fora pronunciada.
A Santíssima Virgem, que se tinha afastado depois da apresentação de Jesus por
Pilatos e da gritaria sanguinária dos judeus, abriu caminho, em companhia de
algumas mulheres, por entre a multidão e aproximou-se do tribunal, para ouvir a
sentença de morte, proferida contra seu Filho e Deus; Jesus estava nos degraus da
escada, diante de Pilatos, rodeado de soldados e os inimigos lançavam-Lhe olhares
cheios de ódio e escárnio. Um toque de trombeta ordenou silêncio e Pilatos
pronunciou, com a raiva de um covarde, a sentença de morte contra o Salvador.
Senti-me sufocada de indignação, diante de tanta baixeza e duplicidade; o aspecto
desse celerado arrogante, do triunfo e ódio sanguinário dos príncipes dos sacerdotes,
satisfeitos após tantos esforços fatigantes, o estado lastimoso e os sofrimentos do
pacientíssimo Salvador, a indizível angústia e os tormentos da Mãe Santíssima e das
santas mulheres, a furiosa ansiedade com que os judeus esperavam a morte da presa,
o frio orgulho dos soldados e minha visão das horrendas figuras diabólicas entre a
multidão do povo, tudo isso me tinha aniquilado completamente. Ai! Percebi que eu
devia estar no lugar de Jesus, meu querido esposo; então a sentença seria justa. Eu
estava tão dilacerada pela dor, que não me lembro mais da ordem exata das coisas.
Vou contar mais ou menos o que me lembro.
Pilatos começou por um longo preâmbulo, em que se referiu com os mais pomposos
títulos ao imperador Cláudio Tibério. Depois expôs a acusação contra Jesus, que fora
condenado à morte pelos Sumos Sacerdotes e cuja crucificação tinha sido
unanimemente exigida pelo povo, por ser um rebelde, perturbador da paz pública,
violador da lei judaica, por se fazer chamar Filho de Deus e rei dos judeus. Quando,
porém, acrescentou ainda que achava essa sentença justa, - ele que por várias horas
continuara a declarar Jesus inocente, quase não pude conter-me mais, à vista desse
homem infame e mentiroso. Ele disse ainda: “Por isso condeno Jesus Nazareno, rei
dos judeus, a ser pregado na Cruz”. Depois deu ordem aos carrascos que fossem
buscar a cruz.
À essas palavras a Mãe de Jesus caiu por terra sem sentidos e como morta; agora
então estava decidida, era certa a morte de seu santíssimo e amantíssimo Filho e
Salvador, morte horrível, dolorosa, ignominiosa.(...)
A sentença foi escrita, mesmo no tribunal, por Pilatos e copiada mais de três vezes,
por aqueles que lhe estavam atrás. Enviaram vários mensageiros, porque alguns dos
documentos precisavam ser assinados por outras pessoas; não me lembro se esses
documentos faziam parte da sentença ou se eram outras ordens. Contudo foram
também alguns desses documentos levados a lugares distantes.
Havia, porém, ainda outra sentença, escrita por Pilatos mesmo e que lhe provava
claramente a duplicidade; pois tinha teor totalmente diferente da sentença que
pronunciara; vi como a escreveu contra a vontade, com o espírito atormentado e um
anjo irado a dirigir-lhe a mão. Esse documento, de cujo conteúdo tenho apenas uma
lembrança vaga, dizia mais ou menos o seguinte:
“Compelido pelos Sumos Sacerdotes e o Sinédrio e ameaçado por uma iminente
insurreição do povo, que acusavam Jesus de Nazaré de agitação contra a autoridade,
de blasfêmia e de desprezo da lei judaica, exigindo-Lhe a morte, entreguei-lhes o
mesmo Jesus, para ser crucificado, não tanto movido pelas acusações, que em
verdade não achei fundadas, mas para não ser acusado perante o imperador, de
favorecer a insurreição e negar justiça aos judeus. Entreguei-O porque exigiram com
violência a morte, como transgressor da lei; e com Ele dois ladrões, já antes
condenados, cuja execução fora adiada por maquinações dos judeus, porque queriam
que fossem executados junto com Jesus”.
Enquanto Pilatos pronunciava a sentença injusta, vi Cláudia Prócula, sua mulher,
remeter-lhe o penhor e separar-se dele. Na mesma noite fugiu ocultamente do palácio
e foi para junto dos amigos de Jesus, que a levaram a um esconderijo, num
subterrâneo da casa de Lázaro, em Jerusalém.
Vi também um amigo de Jesus gravar, numa pedra esverdeada atrás do tribunal do
Gábata, duas linhas, que diziam respeito à sentença injusta de Pilatos e à separação
da mulher do Procurador; ainda me lembro das palavras “judex injustus” e do nome
“Cláudia Prócula”. Mas não me recordo se foi no mesmo dia ou alguns dias mais tarde;
lembro-me apenas que nesse lugar do fórum estava um numeroso grupo de homens
conversando, enquanto o outro homem, encoberto por eles, gravou aquelas linhas,
sem ser visto. Vi que aquela pedra ainda está, desconhecida embora, em Jerusalém,
nos alicerces duma casa ou duma Igreja, situada onde antigamente era o Gábata.
Cláudia Prócula tornou-se cristã e depois de se ter encontrado com S. Paulo, tornou-
se-lhe amiga dedicada.(...)
Os dois ladrões estavam um ao lado direito, outro ao lado esquerdo de Jesus; tinham
as mãos amarradas e pendia-lhes, como a Jesus diante do tribunal, uma cadeia de
ferro do pescoço. (...)
Os carrascos estavam ocupados em juntar todas as ferramentas; preparavam-se para
a triste e terrível marcha, em que o nosso amado e doloroso Salvador quis carregar o
peso dos pecados de nós todos, homens ingratos e para os expiar, ia derramar o
santíssimo Sangue do cálice de seu Corpo, transpassado pelos homens mais
abomináveis.
Anás e Caifás terminaram afinal a discussão acalorada com Pilatos; receberam
algumas tiras compridas ou rolos de pergaminho, com cópias dos documentos e
dirigiram-se apressadamente ao Templo; e só por pouco não chegaram tarde.
Então se separaram os Sumos Sacerdotes do verdadeiro Cordeiro pascal; correram ao
Templo de pedra, para imolar e comer o cordeiro simbólico e a realização do símbolo, o
verdadeiro Cordeiro de Deus, fizeram-nO conduzir por vis carrascos ao altar da cruz.
Separaram-se ali os dois caminhos, dos quais um conduzia ao símbolo e outro à
realização do Sacrifício; abandonaram o Cordeiro de Deus, a pura Vítima expiatória,
que tentaram macular exteriormente e insultar com todo o horror da perversidade,
entregaram-nO a carrascos ímpios e desumanos e correram ao Templo de pedra, para
imolar cordeiros lavados, purificados e bentos.
Haviam tomado todo o cuidado para não se sujarem exteriormente e tinham as almas
todas sujas, transbordantes de ódio, inveja e ultrajes. - “Que o seu sangue caia sobre
nós e nossos filhos”, tinham exclamado e com essas palavras cumpriram a cerimônia,
impuseram a mão de sacrificador sobre a cabeça da vítima. Separaram-se ali os dois
caminhos, que conduziam ao altar da lei e ao altar da graça.
Eis aí um pouco do que foi realmente a condenação de Jesus. Quando meditamos
esta primeira estação da Via Sacra, certamente jamais imaginamos que fosse algo
assim terrível. Lembro, porém, ao leitor, que nos cortes foram suprimidas ainda nove
páginas apenas no que se refere à condenação, porque preservamos apenas a parte
mais dolorosa, tirando as partes descritivas. Entretanto, vale lembrar que mesmo as
visões de Ana Catarina aqui descritas, ainda assim deixaram passar milhares de
detalhes escabrosos, que afligiram ainda mais a Jesus. E estes, quem sabe nem na
eternidade os saberemos a todos.
Depois de haver lido estas descrições, há alguns anos atrás, com certeza jamais fui
o mesmo. E mil meditações já me surgiram neste tempo. Entretanto, o que mais me
chocou de tudo isso, não foi em si a atitude covarde de Pilatos, condenando a um
inocente, mas sim a maldade extrema dos sumo sacerdotes e a covardia inaudita dos
carrascos. Não me pode caber na idéia, que uma pessoa pode se sentir ainda gente,
depois de bater num corpo indefeso até vê-lo virar frangalhos. Não me pode caber na
inteligência que alguém, tendo plena consciência como tinham os sacerdotes, de que
Jesus era inocente, mesmo vendo-O daquela forma dilacerado, não sentissem em suas
almas um sinal sequer de arrependimento.
Os queridos leitores não imaginam o quanto apenas reler estes textos me deixa
angustiado. É como reabrir uma ferida que sangra. Não que eu seja criatura especial,
mas me oprime sentir da abissal cegueira que me guiou durante tantos anos, não
sendo capaz de penetrar melhor neste mistério da Cruz. Agora, porém, é tarde para
lamentos e tudo o que posso fazer, é tentar levar para mais pessoas o que foi na
realidade o verdadeiro Calvário de Cristo, e o terror assombroso que é morrer pregado
numa Cruz. Sigamos com Jesus, agora subindo o Calvário!
A rua estreita dirige-se no fim para a esquerda, torna-se mais larga e começa a subir.
Passa ali um aqueduto subterrâneo, que vem do Monte Sião (...) Quando Jesus,
carregado do pesado fardo, chegou a esse lugar, não tinha mais força para ir adiante;
os carrascos arrastavam e empurravam-nO sem piedade; então Jesus, nosso Deus,
tropeçando sobre a pedra, caiu por terra e a cruz tombou-Lhe ao lado.
Os carrascos praguejaram, puxaram-nO pelas cordas, deram-Lhe pontapés; o séqüito
parou, formou-se um grupo tumultuoso em redor do Divino Mestre. Debalde estendia
a mão, para que alguém O ajudasse a levantar-se. (...) Os fariseus gritaram: “Vamos!
Fazei-O levantar-se, senão nos morre nas mãos!”. Aqui e acolá, dos lados da rua, se
viam mulheres a chorar, com crianças, que também choramingavam assustadas.
Com auxílio sobrenatural (1), conseguiu Jesus afinal levantar a cabeça e esses
homens abomináveis e diabólicos, em vez de O ajudarem e aliviarem, ainda Lhe
impuseram novamente a coroa de espinhos. Levantaram-nO depois brutalmente e
puseram-Lhe a cruz de novo ao ombro. Com isso era obrigado a pender para o outro
lado a cabeça, torturada pelos espinhos, para assim poder carregar o pesado patíbulo.
Com novo e maior martírio subiu então pela rua, que dali em diante se tornava mais
larga.
(1) Devemos aqui deixar claro uma coisa! Jamais criatura alguma seria capaz de
sofrer tais tormentos, sem morrer antes. Ninguém suportaria tamanha saraiva de
golpes, sem sucumbir. E por diversas vezes, ficou claro que os anjos o ajudavam no
estritamente necessário, para que ele suportasse a nova saraiva. Dois casos se poderia
citar aqui: No riacho do Cedron, por duas vezes o puxaram para fora, pela corda do
pescoço. Em ambos os casos, se os anjos não o suspendessem, ele morreria. Quando
ele foi amarrado no poste para flagelação diante de Pilatos, levou duas pauladas na
cabeça. Se os anjos não lhe tivessem dado um alimento celeste, ambos golpes o teriam
matado. Acho que, depois de tanto pensar nisso, creio que no total, pelo menos 100
vezes Jesus teria morrido. Ou seja: se os carrascos fossem aplicar os mesmos golpes
que deram em Jesus, e ao matarem o primeiro fossem ao segundo, depois ao terceiro,
etc. eles matariam 100 homens um atrás do outro em série até terem chegado ao golpe
de lança na cruz.
O encontro de Jesus com a Sua Mãe. Segunda queda de Jesus debaixo da cruz
A Mãe de Jesus, transpassada de dor, tinha se retirado do fórum, com João e algumas
mulheres, depois de ouvir a sentença que lhe condenara injustamente o Filho. Tinham
visitado muitos dos lugares sagrados pela Paixão de Jesus, mas quando o correr do
povo e o toque dos clarins e o séqüito de Pilatos, com os soldados, anunciaram a
partida para o Calvário, Maria não pôde conter-se mais: o amor impelia-a a ver o
divino Filho, no seu sofrimento e pediu a João que a conduzisse a um lugar onde
Jesus tivesse de passar.
Eles tinham vindo dos lados de Sião; passaram ao lado do tribunal donde Jesus havia
pouco, fora levado por portas e alamedas que noutros tempos estavam fechadas, mas
nessa ocasião abertas, para dar passagem à multidão. Passaram depois pela parte
ocidental de um palácio, que do outro lado dá, por um portão, para a rua larga, na
qual o séqüito entrou depois da primeira queda de Jesus. Não sei mais com certeza se
esse palácio era uma ala da casa de Pilatos, com a qual parece estar ligada por pátios
e alamedas ou se é, como me lembro agora, a própria habitação do Sumo Sacerdote
Caifás; pois a casa em Sião era apenas o tribunal. - João conseguiu de um criado ou
porteiro compassivo a licença de passar, com Maria e as companheiras, para o outro
lado e o mesmo empregado abriu-lhes o portão para a rua larga. - Estava com eles um
sobrinho de José de Arimatéia; Suzana, Joana Chusa e Salomé de Jerusalém seguira
a Santíssima Virgem.
Quando vi a dolorosa Mãe de Deus, pálida, olhos vermelhos de chorar, tremendo e
gemendo, envolta da cabeça aos pés num manto azul-cinzento, passando com as
companheiras por aquela casa, senti-me presa de dor e susto. Já se ouviam por sobre
as casas o tumulto e os gritos do séqüito, que se aproximava, o toque da trombeta e a
voz do arauto, anunciando nas esquinas das ruas a execução de um condenado à
cruz. O criado abriu o portão; o ruído tornou-se mais distinto e assustador.
Maria rezava e disse a João: “Que devo fazer, ficar para vê-Lo ou fugir? Como poderei
suportar vê-Lo neste estado?” João disse: “Se não ficardes, arrepender-vos-eis
amargamente toda a vida”. Então saíram da casa, ficando à espera, sob a arcada do
portão; olhavam para a direita, rua abaixo, que até lá subia, mas continuava plana, do
lugar onde estava Maria.
Ai! Como o som da trombeta lhe penetrou no coração! O séqüito aproximava-se, ainda
estaria distante uns 80 passos, quando saíram do portão. Ali o povo não andava na
frente, mas aos lados e atrás havia alguns grupos; grande parte da gentalha, que saíra
por último do tribunal, corria por atalhos para a frente, para ocupar outros lugares,
donde pudesse ver passar o séqüito.
Quando os servos dos carrascos, que transportavam os instrumentos do suplício, se
aproximaram, impertinentes e triunfantes, começou a Mãe de Jesus a tremer e chorar
e torcer as mãos de aflição. Um dos miseráveis perguntou aos que iam ao lado: “Quem
é essa mulher, que está ali lamentando?”. Um deles respondeu: “É a mãe do Galileu”.
Ouvindo isso os perversos insultaram-na com palavras de zombaria, apontaram-na
com os dedos e um desses homens perversos tomou os cravos, com os quais Jesus
devia ser pregado na cruz e mostrou-o à Santíssima Virgem, com ar de escárnio.
Ela, porém, torcendo as mãos, olhava na direção de seu Filho e esmagada pela dor,
encostou-se ao pilar do portão. Tinha a palidez de um cadáver e os lábios roxos.
Passaram os fariseus a cavalo; depois veio o menino, com o título da cruz e, ai! alguns
passos atrás, Jesus, o Filho de Deus, seu próprio Filho querido, o Santo, o Redentor:
lá ia cambaleando e curvado, afastando penosamente a cabeça, com a coroa de
espinhos, do pesado fardo da cruz.
Os carrascos arrastavam-nO pelas cordas para a frente; tinha o rosto pálido, coberto
de sangue e pisaduras, a barba toda junta e colada sob o queixo pelo sangue. Os olhos
encovados e sangrentos do Salvador, sob o horrível enredo da coroa de espinhos,
lançaram um olhar grave e cheio de piedade à Mãe dolorosa e depois, tropeçando, Ele
caiu pela segunda vez, sob o peso da cruz, sobre os joelhos e as mãos. A Mãe, na
veemência da dor, não via mais nem soldados nem carrascos, via só o Filho querido
em estado tão lastimoso e tão maltratado. Estendendo os braços, correu os poucos
passos do portão até Jesus, através dos carrascos e abraçando-O, caiu-Lhe ao lado de
joelhos. Ouvi as palavras: “Meu Filho!” - “Minha Mãe!” - não sei se foram
pronunciadas pelos lábios ou só no coração.
Houve um tumulto: João e as mulheres tentavam afastar Maria, os carrascos
praguejavam e insultavam-na; um deles gritou: “Mulher, que queres aqui? Se O
tivesses educado melhor, não estaria agora em nossas mãos”. Vi que alguns dos
soldados estavam comovidos; eles afastaram a Santíssima Virgem, nenhum, porém, a
tocou.
João e as mulheres levaram-na e ela caiu de joelhos, como morta de dor, sobre a
pedra angular do portão, a qual suportava o muro; estavam de costas viradas para o
séqüito, apoiando-se com as mãos na parte superior da pedra inclinada, sobre a qual
caíra. Era uma pedra com veias verdes; onde os joelhos de Nossa Senhora tocaram,
ficaram cavidades e onde as mãos se lhe apoiaram, deixaram marcas menos
profundas. Eram impressões chatas, com contornos pouco claros, semelhantes à
impressões causadas por uma pancada sobre massa de farinha. Era uma pedra muito
dura. Vi que no tempo do bispo Tiago o Menor essa pedra foi colocada na primeira
Igreja católica, que foi construída ao lado da piscina de Betesda.
Já o tenho dito várias vezes e digo-o mais uma vez, que vi em diversas ocasiões tais
impressões causadas pelo contato de pessoas santas em acontecimentos de grande
importância. Isso é tão certo, que há até a expressão: “Uma pedra sentir-se-ia
comovida”, ou a outra: “Isso faz impressão”. A eterna Sabedoria não tinha precisão da
arte da imprensa, para transmitir à posteridade testemunhos dos santos.
Como os soldados, armados de lanças, que marchavam aos lados do séqüito, impeliam
o povo para diante, os dois discípulos que estavam com a Mãe de Jesus,
reconduziram-na pelo portão, que foi fechado atrás deles.
Os carrascos tinham, no entanto, levantado Jesus aos arrancos e puseram-Lhe a cruz
de novo ao ombro, mas de outra maneira. Os braços da cruz, amarrados ao tronco
haviam ficado um pouco soltos e um deles descera um pouco ao lado do tronco; foi
esse que Jesus abraçou então, de modo que o tronco da cruz pendia atrás, mais no
chão.
O séqüito continuou nessa rua larga, até chegar à porta de um antigo muro da cidade
interior. Diante dessa porta há uma praça, em que desembocam três ruas. Ali Jesus
tinha de passar sobre outra pedra grande, mas tropeçou e caiu. A cruz tombou para o
lado e Jesus, apoiando-se sobre a pedra, caiu por terra e tão enfraquecido estava, que
não pôde levantar-se mais. Passaram grupos de gente bem vestida, que iam ao Templo
e vendo-O, exclamaram: “Coitado, o pobre homem morre!”
Deu-se um tumulto; não conseguiram mais levantar Jesus e os fariseus que
conduziam o cortejo, disseram aos soldados: “Não chegamos lá com Ele vivo; deveis
procurar um homem que Lhe ajude a levar a cruz”. Vinha justamente descendo pela
rua do meio Simão de Cirene, um pagão, acompanhado pelos três filhinhos;
transportava um feixe de ramos secos debaixo do braço. Era jardineiro e vinha dos
jardins situados perto do muro oriental da cidade, onde trabalhava. Todos os anos
vinha, com mulher e filhos, para a festa em Jerusalém, como muitos outros da mesma
profissão, para podar as sebes.
Não pôde sair do caminho, porque a multidão se apinhava na rua. Os soldados, que
pela roupa viam que era pagão e pobre jardineiro, apoderaram-se dele e, levando-o
para onde estava Jesus, mandaram-lhe que ajudasse o Galileu a transportar a cruz.
Simão resistiu e mostrou muita repugnância, mas obrigaram-no à força.
Os filhinhos choravam alto e algumas mulheres que conheciam o homem, levaram-
nos consigo. Simão sentiu muito nojo e repugnância, vendo Jesus tão miserável e
desfigurado e com a roupa tão suja e cheia de imundície. Mas Jesus, com os olhos
cheios de lágrimas, olhou para Simão com olhar tão desamparado, que causava dó.
Simão foi obrigado a ajudá-Lo a levantar-se; os carrascos amarraram o braço da cruz
mais para trás e penduraram-no, com uma volta da corda, sobre o ombro de Simão,
que andava muito perto, atrás de Jesus, que deste modo não tinha mais de carregar
tanto peso. Finalmente o lúgubre séqüito se pôs em movimento.
Simão era homem robusto, de 40 anos. Andava com a cabeça descoberta; vestia uma
túnica curta, apertada e na cintura uma faixa de pano roto; as sandálias, atadas aos
pés e pernas com correias, terminavam na frente em bico agudo. Os filhos vestiam
túnicas listadas de várias cores; dois já eram quase moços, chamavam-se Rufo e
Alexandre e juntaram-se mais tarde aos discípulos. O terceiro era ainda pequeno; vi-o
ainda menino, em companhia de Santo Estevão. Simão ainda não tinha seguido muito
tempo Jesus, carregando o patíbulo e já se sentia profundamente comovido.
Verônica e o Sudário
A rua em que se movia nessa hora o séqüito, era longa, com uma leve curva para a
esquerda e nela desembocavam várias ruas laterais. De todos os lados vinha gente
bem vestida, que se dirigia ao Templo; ao ver o séqüito, uns se afastavam, com o
receio farisaico de se contaminarem, outros manifestavam certa compaixão.
Havia cerca de duzentos passos que Simão ajudava Jesus a carregar a cruz, quando
uma mulher de figura alta e imponente, segurando uma menina pela mão, saiu de
uma casa bonita, ao lado esquerdo da rua e que tinha um átrio cercado de muros e de
um belo gradil brilhante, onde se penetrava por um terraço, com escadaria. Ela
correu, com a menina, ao encontro do cortejo. Era Seráfia, mulher de Sirac, membro
do Conselho do Templo, a qual, pela boa ação praticada nesse dia, recebeu o nome de
Verônica (de “vera icon”: verdadeira imagem).
Seráfia tinha preparado em casa um delicioso vinho aromático, com o piedoso desejo
de oferecê-lo como refresco a Jesus, no caminho doloroso para o suplício. Já tinha ido
uma vez ao encontro do séqüito, em expectativa dolorosa; vi-a velada, segurando pela
mão uma mocinha que adotara, passar ao lado do séqüito, quando Jesus se
encontrou com a Santíssima Virgem. Mas, com o tumulto, não achou ocasião de
aproximar-se e voltou às pressas para casa, para lá esperar o Senhor.
Saiu, pois, velada de casa para a rua; um pano pendia-lhe do ombro; a menina, que
podia ter nove anos, estava-lhe ao lado, ocultando sob o manto o cântaro com o vinho,
quando o séqüito se aproximou. Os que o precediam, tentaram em vão retê-la; ela
estava fora de si de amor e compaixão. Com a menina, que se lhe segurava, pegando-
lhe o vestido, atravessou a gentalha, que ia dos lados e por entre soldados e carrascos,
avançou para a frente de Jesus e, caindo de joelhos, levantou para Ele o pano,
estendido de um lado, suplicando: “Permiti-me enxugar o rosto de meu Senhor”. Jesus
tomou o pano com a mão esquerda e apertou-o, com a palma da mão de encontro ao
rosto ensangüentado; movendo depois a mão esquerda, com o pano, para junto da
mão direita, que segurava a cruz, apertou-o entre as duas mãos e restituiu-lho,
agradecendo; ela o beijou, escondendo-o sobre o coração, debaixo do manto e
levantou-se.
Então a menina ofereceu timidamente o cântaro com o vinho; mas os soldados e
carrascos, praguejando, impediram-na de confortar Jesus. A audácia e rapidez dessa
ação provocou um ajuntamento curioso do povo e causou assim uma pausa de dois
minutos apenas na marcha, o que permitiu a Seráfia oferecer o sudário a Jesus. Os
fariseus a cavalo e os carrascos irritaram-se com essa demora e mais ainda com a
veneração pública manifestada ao Senhor e começaram a maltratá-Lo e empurrá-Lo.
Verônica, porém, fugiu com a menina para dentro de casa.
Apenas entrara no aposento, estendeu o sudário sobre a mesa e caiu por terra
desmaiada; a menina, com o cântaro de vinho, ajoelhou-se-lhe ao lado, chorando.
Assim as encontrou um amigo da casa, que entrara para a visitar e a viu como morta,
sem sentidos, ao lado do sudário estendido, no qual o rosto ensangüentado do Senhor
estava impresso de um modo maravilhosamente distinto, mas também horrível. Muito
assustado, fê-la voltar a si e mostrou-lhe o rosto do Senhor. Cheia de dor, mas
também de consolação, Seráfia ajoelhou-se diante do sudário, exclamando: “Agora vou
abandonar tudo, o Senhor deu-me uma lembrança”.
Esse sudário era de lã fina, cerca de três vezes mais longo do que largo. Costumava-se
usar em volta do pescoço; às vezes usavam ainda outro em torno dos ombros. Era uso
ir ao encontro de pessoas aflitas, cansadas, tristes ou doentes e enxugar-lhes o rosto;
era sinal de luto e compaixão; nas regiões quentes também usavam dá-lo de presente.
Verônica guardava esse sudário sempre à cabeceira da cama. Depois de sua morte
veio ter, por intermédio das santas mulheres, às mãos da Santíssima Mãe de Deus e
dos Apóstolos e depois à Igreja.
O séqüito estava ainda à boa distância da porta; a rua descia um pouco até lá. A porta
era uma construção extensa e fortificada; passava-se primeiro por uma arcada
abobadada, depois sobre uma ponte e finalmente por outra arcada. A porta ficava em
direção sudoeste; ao sair dela, se via o muro da cidade estender-se para o sul, a uma
distância como, por exemplo, da minha casa até a Matriz, (cerca de dois minutos de
caminho); depois virava, à uma boa distância, para oeste e voltava novamente à
direção do sul, fazendo a volta do Monte Sião. A direita se estendia o muro para o
norte, até à porta do Angulo, dirigindo-se depois ao longo da parte setentrional de
Jerusalém, para leste.
Quando o séqüito se aproximou da porta, impeliam-nO os carrascos com mais
violência. Justamente diante da porta, havia no caminho desigual e arruinado uma
grande poça: os carrascos arrastavam Jesus para frente, apertavam-se uns aos
outros; Simão Cireneu procurou passar ao lado da poça, pelo caminho mais cômodo;
com isso deslocou-se a cruz e Jesus caiu pela quarta vez sob a cruz e tão duramente,
no meio do lodaçal, que Simão quase não pôde segurar a cruz, Jesus exclamou em voz
fina, fraca e contudo alto: “Ai de ti! Ai de ti! Jerusalém! Quanto te tenho amado! Como
uma galinha, que esconde os pintinhos sob as asas, assim queria reunir os teus filhos
e tu me arrastas tão cruelmente para fora das tuas portas”.
O Senhor disse essas palavras com profunda tristeza, mas os fariseus, virando-se
para Ele, insultaram-nO, dizendo: “Este perturbador do sossego público ainda não
acabou; ainda tem a língua solta?” e outras zombarias semelhantes. Espancaram e
empurraram Jesus, arrastando-O para fora do lodaçal, para o levantar. Simão Cireneu
ficou tão indignado com as crueldades dos carrascos, que gritou: “Se não acabardes
com essa infâmia, jogarei a cruz no chão e não a carregarei mais, mesmo que me
mateis também”. (...)
Jesus não caiu ali inteiramente por terra; ia caindo como quem desmaia, de modo que
Simão pôs a extremidade da cruz no chão e, aproximando-se de Jesus, segurou-O. O
Senhor encostou-se em Simão. Essa foi a quinta queda do Salvador sob a cruz. As
mulheres e moças, ao verem Jesus tão desfigurado e ensangüentado, começaram a
chorar e lamentar alto, oferecendo-lhe os sudários, segundo o costume entre os
judeus, para que enxugasse o rosto.
Jesus virou-se-lhes e disse: “Filhas de Jerusalém, (isso significa também: filhas de
Jerusalém e cidades vizinhas), não choreis por mim, mas chorai por vós e vossos
filhos; porque sabei que virá tempo em que se dirá: “Ditosas as que são estéreis e
ditosos os ventres que não geraram e ditosos os peitos que não deram de mamar”. -
Então começarão os homens a dizer aos montes: “Caí sobre nós!” e aos outeiros:
“Cobri-nos”. “Porque, se isto se faz no lenho verde, que se fará no seco?”. Ainda lhes
disse outras belas palavras, as quais, porém, esqueci; entre outras disse que aquelas
lágrimas lhes seriam recompensadas, que doravante deviam seguir outros caminhos,
etc.
Houve ali uma pausa, pois o séqüito parou por algum tempo. Aqueles que levavam os
instrumentos do suplício, continuaram o caminho para o Calvário; seguiam-se depois
cem soldados do destacamento de Pilatos, o qual tinha acompanhado o cortejo até ali,
mas chegado à porta da cidade, voltara para o palácio.
Depois do doloroso encontro da SS. Virgem com o Divino Filho, carregando a cruz,
quando Maria caiu sem sentidos sobre a pedra angular, Joana Chusa, Suzana e
Salomé de Jerusalém, com auxílio de João e do sobrinho de José de Arimatéia,
conduziram-na para dentro da casa, impelidos pelos soldados e o portão foi fechado,
separando-a do Filho bem-amado, carregado do peso da cruz e cruelmente maltratado.
O amor e o ardente desejo de estar com o Filho, de sofrer tudo com Ele e de não O
abandonar até o fim, davam-lhe uma força sobrenatural. As companheiras foram com
ela à casa de Lázaro, na proximidade da porta Angular, onde estavam reunidas as
outras santas mulheres, com Madalena e Marta, chorando e lamentando-se; com elas
estavam também algumas crianças. De lá saíram em número de 17, seguindo o
caminho doloroso de Jesus.
Vi-as todas, sérias e decididas; não se importavam com os insultos da gentalha, mas
impunham respeito pela sua tristeza; passaram pelo fórum, a cabeça coberta pelos
véus; no ponto onde Jesus tomara ao ombro a cruz, beijaram a terra; depois seguiram
todo o caminho da Paixão de Jesus, venerando todos os lugares onde Ele mais sofrera.
Maria e as que eram mais inspiradas, procuravam seguir as pegadas de Jesus e a SS.
Virgem, sentindo e vendo-lhes tudo na alma, guiava-as, onde deviam parar e quando
deviam prosseguir nessa via sacra. Todos esses lugares se lhe imprimiram vivamente
na alma; ela contava até os passos e mostrava às companheiras os santos lugares.
Desse modo a primeira e mais tocante devoção da Igreja foi escrita no coração
amoroso de Maria, Mãe de Deus; escrita pela espada profetizada por Simeão; os santos
lábios da Virgem transmitiram-na aos companheiros do sofrimento e por esses a nós.
Esta é a santa tradição vinda de Deus ao coração da Mãe Santíssima e do coração da
Mãe aos corações dos filhos; assim continua sempre a tradição na Igreja.
Quando se vêm as coisas como as vejo, parece este modo de transmissão mais vivo e
mais santo. Os judeus de todos os tempos sempre veneraram os lugares consagrados
por uma ação santa ou por um acontecimento de saudosa memória. Eles não
esquecem um lugar onde se deu uma coisa sobrenatural: marcam-no com monumento
de pedras e vão em peregrinação, para rezar. Assim também nasceu a devoção da Via
Sacra, não por uma intenção premeditada, mas da natureza dos homens e das
intenções de Deus para com seu povo, do fiel amor de uma mãe, e, por assim dizer,
sob os pés de Jesus, que foi o primeiro que a trilhou.
Chegou então esse piedoso grupo à casa de Verônica, onde entraram, porque Pilatos
com os cavaleiros e os duzentos soldados, voltando da porta da cidade, lhes vinham ao
encontro. Ali Maria e os companheiros viram o sudário, com a imagem do rosto de
Jesus e entre lágrimas e suspiros, exaltaram a misericórdia de Jesus para com sua fiel
amiga. Levaram o cântaro com o vinho aromático, com que Verônica não conseguira
confortar Jesus e dirigiram-se todos, com Verônica, à porta do Gólgota. No caminho se
lhes juntaram ainda muitas pessoas bem intencionadas e outras comovidas pelos
acontecimentos, entre as quais também certo número de homens, formando um
cortejo que, pela ordem e seriedade com que passou pelas ruas, me fez uma singular
impressão. Esse cortejo era quase maior do que aquele que conduziu a Jesus, não
contando o povo que o acompanhou.
As angústias e dores aflitivas de Maria nesse caminho, ao ver o lugar do suplício, com
as cruzes no alto, não se podem exprimir em palavras; a alma amantíssima da Virgem
sentia os sofrimentos de Jesus e era ainda torturada pelo sentimento de não poder
seguí-Lo na morte. Madalena, toda transtornada e como embriagada de dor, andava
cambaleando, como que arremessada de angústia em angústia; passava do silêncio às
lamentações, do estupor ao desespero, das lamentações às ameaças. Os companheiros
eram obrigados a sustê-la, a protegê-la, a exortá-la e a escondê-la da vista dos
curiosos.
Subiram o monte Calvário pelo lado mais suave, ao oeste e aproximaram-se em três
grupos do aterro circular do cume, a certa distância, um atrás do outro. A Mãe de
Jesus, a sobrinha desta, Maria de Cleofas, Salomé e João avançaram até o lugar do
suplício; Marta, Maria Helí, Verônica, Joana Chusa, Suzana e Maria, mãe de Marcos,
ficaram um pouco afastadas, rodeando Maria Madalena, que não podia conter a dor.
Um pouco mais atrás estavam ainda sete pessoas e entre os três grupos havia gente
boa, que mantinha uma certa comunicação entre eles.
Os fariseus a cavalo estavam em diversos lugares em redor do local do suplício,
enquanto os soldados romanos ocupavam as cinco entradas.
Que espetáculo doloroso para Maria: o lugar do suplício, o cume com as cruzes, a
terrível cruz do Filho adorado e diante dela, no chão, os martelos, as cordas, os
horrendos pregos e os repelentes carrascos, meio nus, quase embriagados, fazendo o
horroroso trabalho entre imprecações. Os troncos das cruzes dos ladrões já estavam
arvorados, munidos de paus encaixados para subir. A ausência de Jesus ainda
prolongava o martírio da Mãe Santíssima; ela sabia que ainda estava vivo; desejava vê-
lo, tremia ao pensar em que estado O veria; ia vê-Lo em indizíveis tormentos.
Desde a madrugada até às dez horas, quando foi pronunciada a sentença, caíra
várias vezes chuva de pedra; durante o caminho de Jesus ao Calvário clareou o céu e
brilhava o sol; mas pelas doze horas começou uma neblina avermelhada a velar o sol.
De fato, é impossível imaginar que os homens pudessem ser tão maus, tão
covardes para bater num homem quase morto, amarrado e despedaçado por golpes,
afrontas e ultrajes. Ana Catarina chega a dizer que até as pedras se comoveriam,
entretanto os homens não foram capazes disso. Tanto ódio, só se pode imputar à
pessoas completamente dominadas pelos demônios, que descarregavam em Jesus
toda a sua fúria infernal.
Devemos esclarecer um fato. Lúcifer e sua camarilha, até aqui não tinham a
certeza de 100% de que Jesus era de fato o Messias. A Sabedoria Divina só lhes
permitiu saber disso, no momento em que Jesus deu o último suspiro. Ora, o inferno
não queria jamais que se completasse a redenção. Eles não queriam jamais que os
homens fossem libertados. E aconteceu que quando Judas traiu a Jesus, eles viram
uma oportunidade de sustar o processo, pois estavam desconfiados que Jesus era o
Messias. Assim, o próprio Lúcifer tentou tirar da cabeça de Judas a idéia de trair o
mestre. Entretanto, para ódio seu – e para surpresa dele e de todo o inferno – ele
descobriu que era incapaz de fazer o bem, ou seja, fazer alguém deixar de pecar. Isso
os colocou em verdadeira fúria contra Deus, pois se descobriram impotentes para
mais uma coisa que desconheciam até ali.
Pois foi justamente este ódio, que o inferno descarregou sobre nosso querido Jesus.
Ou seja, não somente a terra estava naquele momento num ápice extremo de
maldade, como também o inferno estava num ápice tremendo de fúria. Terra e
infernos juntos, para matar ao Filho de Deus e redentor do Mundo. Juntos para
esmagar apenas a um homem! Juntos para afrontar a Deus, até o extremo limite, do
inaudito extremo.
Mas para nossa dor, nem tudo passou! Faltam os cravos e a Cruz!
As visões de Ana Catarina, entretanto, não só nos vem mostrar o grau da maldade
humana, mas ainda mostrar um pouco da face horrenda do pecado. Porque de fato,
não há linguagem humana para traduzir em palavras todos os efeitos e todos os
sentimentos, desta suprema prova da bestialidade humana. É que, além do efeito
externo que foi mostrado à esta mística singular, seria preciso traduzir em fortes
verbos, todas as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo. E isso é impossível. Entretanto,
sem dúvida, as palavras que você lerá a seguir, produzem uma imagem de poderoso
impacto, às quais, até as pedras, se tivessem almas, fariam chorar, e sofrer, junto com
Jesus. Quanto a muitos homens, porque tem alma de pedra, estes jamais
compreenderão algo sobre estes sofrimentos. Estes preferirão, com plena consciência
de sua insensatez, buscar as trevas, rejeitando os méritos infinitos desta Paixão
Redentora. Vamos aos textos.
Jesus, imagem viva da dor, foi estendido pelos carrascos sobre a cruz; Ele próprio se
sentou sobre ela e eles brutalmente O deitaram de costas. Colocaram-Lhe a mão
direita sobre o orifício do prego, no braço direito da cruz e aí lhe amarraram o braço.
Um deles se ajoelhou sobre o santo peito, enquanto outro lhe segurava a mão, que se
estava contraindo e um terceiro colocou o cravo grosso e comprido, com a ponta
limada, sobre essa mão cheia de bênção e cravou-o nela, com violentas pancadas de
um martelo de ferro. Doces, e claros gemidos ouviram-se da boca do Senhor; o sangue
sagrado salpicou os braços dos carrascos; rasgaram-Lhe os tendões da mão, os quais
foram arrastados, com o prego triangular, para dentro do estreito orifício. Contei as
marteladas, mas esqueci, na minha dor, esse número. A Santíssima Virgem gemia
baixinho e parecia estar sem sentidos exteriormente; Madalena estava desnorteada.
As verrumas eram grandes peças de ferro, da forma de um T; não havia nelas nada de
madeira. Também os pesados martelos eram, como os cabos, de ferro e todos de uma
peça inteiriça; tinham quase a forma dos martelos de pau que os marceneiros usam
entre nós, trabalhando com formão.
Os cravos, cujo aspecto fizera tremer Jesus, eram de tal tamanho que, seguros pelo
punho, excediam em baixo e em cima cerca de uma polegada. Tinham cabeça chata,
da largura de uma moeda de cobre, com uma elevação cônica no meio. Tinham três
gumes; na parte superior tinham a grossura de um polegar e na parte inferior a de um
dedo pequeno; a ponta fora aguçada com uma lima; cravados na cruz, vi-lhes a ponta
sair um pouco do outro lado dos braços da cruz.
Depois de terem pregado a mão direita de Nosso Senhor, viram os crucificadores que a
mão esquerda, que tinham também amarrado ao braço da cruz, não chegava até o
orifício do cravo, que tinham perfurado a duas polegadas distante das pontas dos
dedos. Por isso ataram uma corda ao braço esquerdo do Salvador e, apoiando os pés
sobre a cruz, puxaram a toda força, até que a mão chegou ao orifício do cravo. Jesus
dava gemidos tocantes, pois deslocaram-Lhe inteiramente os braços das articulações;
os ombros, violentamente distendidos, formavam grandes cavidades axilares, nos
cotovelos se viam as junturas dos ossos.
O peito levantou-se-Lhe e as pernas encolheram-se sobre o corpo. Os carrascos
ajoelharam-se sobre os braços e o peito, amarraram-lhe fortemente os braços e
cravaram-Lhe então cruelmente o segundo prego na mão esquerda; jorrou alto o
sangue e ouviram-se os agudos gemidos de Jesus, por entre as pancadas do pesado
martelo. Os braços do Senhor estavam tão distendidos, que formavam uma linha reta
e não cobriam mais os braços da cruz, que subiam em linha oblíqua; ficava um espaço
livre entre esses e as axilas do Divino Mártir.(...)
Todo o corpo de nosso Salvador tinha-se contraído para o alto da cruz, pela violenta
extensão dos braços e os joelhos tinham-se-Lhe dobrados. Os carrascos lançaram-se
então sobre esses e, por meio de cordas, amarraram-nos ao tronco da cruz; mas pela
posição errada dos orifícios dos cravos, os pés ficavam longe da peça de madeira que
os devia suportar. Então começaram os carrascos a praguejar e insultar. Alguns
julgavam que se deviam furar outros orifícios para os pregos das mãos; pois mudar o
suporte dos pés era difícil.
Outros fizeram horrível troça de Jesus: “Ele não quer estender-se, disseram, mas nós
Lhe ajudaremos”. Atando cordas à perna direita, puxaram-na com horrível violência,
até o pé tocar no suporte e amarraram-na à cruz. Foi uma deslocação tão horrível, que
se ouvia estalar o peito de Jesus, que gemia alto: “Ó meu Deus! Meu Deus!” Tinham-
Lhe amarrado também o peito e os braços, para os pregos não rasgarem as mãos; o
ventre encolheu-se-Lhe inteiramente, as costelas pareciam a ponto de destacar-se do
esterno. Foi uma tortura horrorosa.
Amarraram depois o pé esquerdo com a mesma brutal violência, colocando-o sobre o
pé direito e como os pés não repousavam com bastante firmeza sobre o suporte, para
serem pregados juntos, perfuraram primeiro o peito do pé esquerdo com um prego
mais fino e de cabeça mais chata do que os cravos, como se fura a sovela. Feito isso,
tomaram o cravo mais comprido que o das mãos, o mais horrível de todos e,
passando-o brutalmente pelo furo feito no pé esquerdo, atravessaram-lhe a
marteladas o direito, cujos ossos estalavam, até o cravo entrar no orifício do suporte e,
através desse, no tronco da cruz. Olhando de lado a cruz, vi como o prego atravessou
os dois pés.
Essa tortura era a mais dolorosa de todas, por causa da distensão de todo o corpo.
Contei 36 golpes de martelo, no meio dos gemidos claros e penetrantes do pobre
Salvador; as vozes em redor, que proferiam insultos e maldições, pareciam-me
sombrias e sinistras.
(...) Os gemidos que a dor arrancava de Jesus, misturavam-se com contínua oração;
recitava trechos dos salmos e dos profetas, cujas predições nessa hora cumpria; em
todo o caminho da cruz, até à morte, não cessava de rezar assim e de cumprir as
profecias. Ouvi e rezei com Ele todas essas passagens e às vezes me lembro delas,
quando rezo os salmos; mas fiquei tão acabrunhada com o martírio de meu Esposo
celeste, que não sei mais juntá-las. - Durante esse horrível suplício, vi Anjos a chorar
aparecerem acima de Jesus.
O comandante da guarda romana fizera pregar no alto da cruz a tábua, com o título
que Pilatos escrevera. Os fariseus estavam indignados porque os romanos se riam alto
do título “Rei dos judeus”. Por isso voltaram alguns fariseus à cidade, depois de ter
tomado medida para uma outra inscrição, para pedir a Pilatos novamente outro título.
(...) Pela posição do sol era cerca de doze horas e um quarto, quando Jesus foi
crucificado. No momento em que elevaram a cruz, ouviu-se do Templo o soar de
muitas trombetas: Era a hora em que imolavam o cordeiro pascal.
Elevação da cruz
Depois de terem pregado Nosso Senhor à cruz, ataram cordas na parte superior da
mesma, por meio de argolas, lançaram as cordas sobre o cavalete antes erigido no lado
oposto e puxaram a cruz pelas cordas, de modo que a parte superior se lhe ergueu;
alguns se dirigiram com paus munidos de ganchos, que fincaram no tronco e fizeram
o pé da cruz entrar na cova. Quando o madeiro chegou à posição vertical, entrou na
escavação com todo o peso e tocou no fundo com um terrível choque.
A cruz tremeu do abalo e Jesus soltou um grito de dor; pelo peso vertical desceu-lhe o
corpo, as feridas alargaram-se-Lhe, o sangue corria mais abundantemente e os ossos
deslocados entrechocaram-se. Os carrascos ainda sacudiram a cruz, para a por mais
firme e fincaram cinco cunhas na cova, em redor da cruz: uma na frente, uma do lado
direito, outra à esquerda e duas atrás, onde o madeiro estava um pouco arredondado.
(...) Quando, porém, o madeiro erguido com estrondo, entrou na respectiva cova,
houve um momento de silêncio solene; todo o mundo parecia experimentar uma
sensação nova, nunca até então sentida. O próprio inferno sentiu assustado o choque
do lenho sobre a rocha e levantou-se contra ele, redobrando nos seus instrumentos
humanos o seu furor e os insultos. Nas almas do purgatório e do limbo, porém,
causou alegria e esperança: soava-lhes como o bater do triunfador às portas da
Redenção. A santa Cruz estava pela primeira vez plantada no meio da terra, como
aquela árvore da vida no Paraíso, e das chagas dilatadas do Cristo corriam quatro rios
santos sobre a terra, para expiar a maldição, que pesava sobre ela e para fertilizar e a
tornar um paraíso do novo Adão.
Quando nosso Salvador foi elevado na cruz e os gritos de insulto foram interrompidos
por alguns minutos de silencioso espanto, ouvia-se do Templo o som de muitas
trombetas, que anunciavam o começo da imolação do cordeiro pascal, do símbolo,
interrompendo de um modo solene e significativo os gritos de furor e de dor, em redor
do verdadeiro Cordeiro de Deus, imolado na cruz. Muitos corações endurecidos foram
abalados e pensaram nas palavras do precursor, João Batista: “Eis aí o Cordeiro de
Deus, que tomou sobre si os pecados do mundo”.
O lugar onde fora plantada a cruz (1), estava elevado cerca de dois pés acima do
terreno em redor. Quando a cruz ainda se achava fora da cova, estavam os pés de
Jesus à altura de um homem, mas depois de introduzida na respectiva escavação,
podiam os amigos chegar aos pés do Mestre, para os abraçar e beijar. Havia um
caminho para essa elevação. O rosto de Jesus estava virado para nordeste.
(1) Aqui cabe uma outra explicação interessante, consta no Livro Mística Cidade de
Deus de Madre Maria D’Agreda. Este exato local do buraco da Cruz foi exatamente o
mesmo onde, há quase dois mil anos antes, Abraão havia erguido o altar para oferecer
Isaac, em sacrifício, por obediência a Deus, conforme está em Gênesis 22,9.
Até pelas 10 horas, quando Pilatos pronunciou a sentença, caíra várias vezes chuva de
pedra; depois, até às 12 horas, o céu estava claro e havia sol; mas depois do meio dia,
apareceu uma neblina vermelha, sombria, diante do sol. Pela sexta hora, porém, ou
como vi pelo sol, mais ou menos às doze e meia, (a maneira dos judeus de contar as
horas é diferente da nossa) houve um eclipse milagroso do sol.
Vi como isso se deu, mas infelizmente não pude guardá-lo na memória e não tenho
palavras para o exprimir. A princípio fui transportada como para fora da terra; vi
muitas divisões no firmamento e os caminhos dos astros, que se cruzavam de modo
maravilhoso. Vi a lua do outro lado da terra; vi-a voar rapidamente ou dar um salto,
como um globo de fogo; depois me achei novamente em Jerusalém e vi a lua aparecer
sobre o monte das Oliveiras, cheia e pálida, - o sol estava velado pelo nevoeiro, - e ela
se moveu rapidamente do oriente, para se colocar diante do sol.
No começo vi, no lado oriental do sol, uma lista escura, que tomou em pouco tempo a
forma de uma montanha, cobrindo-o depois inteiramente. O disco do sol parecia
cinzento escuro, rodeado de um círculo vermelho, como uma argola de ferro em brasa.
O céu tornou-se escuro; as estrelas tinham um brilho vermelho.
Um pavor geral apoderou-se dos homens e dos animais, o gado fugiu mugindo, as
aves procuravam um esconderijo e caiam em bandos sobre as colinas em redor do
Calvário; podiam-se apanhá-las com as mãos. Os zombadores começaram a calar-se;
os fariseus tentavam explicar tudo como fenômeno natural, mas não conseguiram
acalmar o povo e eles mesmos ficaram interiormente apavorados. Todo o mundo
olhava para o céu; muitos batiam no peito e, torcendo as mãos, exclamavam: “Que o
seu sangue caia sobre os seus assassinos”. Muitos, de perto e de longe, caíram de
joelhos, pedindo perdão a Jesus, que no meio das dores volvia os olhos para eles.
A escuridão aumentava, todos olhavam para o céu e o Calvário estava deserto; ali
permaneciam apenas a Mãe de Jesus e os mais íntimos amigos; Dimas, que estivera
mergulhado em profundo arrependimento, levantou com humilde esperança o rosto
para o Salvador e disse: “Senhor, fazei-me entrar num lugar onde me possais salvar;
lembrai-vos de mim, quando estiverdes no vosso reino”. Jesus respondeu-lhe: “Em
verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”.
A Mãe de Jesus, Madalena, Maria de Cléofas, Maria Helí e João estavam entre as
cruzes dos ladrões, em redor da cruz de Jesus, olhando para Nosso Senhor. A
Santíssima Virgem, em seu amor de mãe, suplicava interiormente a Jesus que a
deixasse morrer com Ele. Então olhou o Senhor com inefável ternura para a Mãe
querida e, volvendo os olhos para João, disse à Maria: “Mulher, eis aí o teu filho; será
mais teu filho do que se tivesse nascido de ti”. Elogiou ainda João, dizendo: “Ele teve
sempre uma fé sincera e nunca se escandalizou, a não ser quando a mãe quis que
fosse elevado acima dos outros”. A João, porém, disse: “Eis aí tua Mãe!” João abraçou
com muito respeito, como um filho piedoso, a Mãe de Jesus, que se tinha tornado
também sua Mãe, sob a cruz do Redentor moribundo. (...)
Não sei se Jesus pronunciou alto todas essas palavras; percebi-as interiormente,
quando, antes de morrer, entregou Maria Santíssima, como Mãe, ao Apóstolo querido
e este, como filho, a sua Mãe. Em tais contemplações se percebem muitas coisas, que
não foram escritas; é pouco apenas o que pode exprimir a língua humana. (...)
Estado da cidade e do Templo durante o eclipse do sol
Eram mais ou menos duas horas e meia, quando fui conduzida à cidade, para ver o
que lá se passava. Encontrei-a cheia de pavor e consternação; as ruas em trevas,
cobertas de nevoeiro; os homens erravam cá e lá, às apalpadelas; muitos estavam
prostrados por terra, nos cantos, com a cabeça coberta, batendo no peito; outros
olhavam para o céu ou estavam sobre os telhados, lamentando-se.
Os animais mugiam e escondiam-se, os pássaros voavam baixo e caiam. Vi que Pilatos
fizera uma visita a Herodes e que estavam consternados, no mesmo terraço do qual
Herodes, de manhã, assistira ao escárnio de que Jesus fora alvo. “Isto não é natural”,
disseram, “excederam-se nos maus tratos infligidos ao Nazareno”. Vi-os depois irem
juntos ao palácio de Pilatos, atravessando o fórum; ambos estavam muito assustados,
indo a passos apressados e cercados de soldados.
Pilatos não ousou olhar para o lado do Gábata, o tribunal donde tinha pronunciado a
sentença contra Jesus. O fórum estava deserto; aqui e acolá alguns homens voltavam
apressadamente para casa, outros passavam chorando.
Juntavam-se também alguns grupos de povo nas praças públicas. Pilatos mandou
chamar os anciãos do povo ao palácio e perguntou-lhes o que significavam aquelas
trevas; disse-lhes que as tomava por um sinal de desgraça iminente; o Deus dos
judeus parecia estar irado porque haviam exigido à força a morte do galileu, que
certamente era profeta e rei dos judeus; enquanto ele, Pilatos, não tinha culpa, lavara,
as mãos, etc.
Os judeus, porém, ficaram endurecidos, queriam explicar tudo como fenômeno
comum e não se converteram. Converteu-se, contudo, muita gente, entre outros
também todos os soldados que, na véspera, tinham caído por terra e se levantado,
quando prenderam Jesus no monte das Oliveiras.
No entanto juntou-se uma multidão de povo diante do palácio de Pilatos e onde de
manhã tinham gritado: “Crucifica-o! crucifica-o!”, gritavam agora: “Fora o juiz injusto!
Que o sangue do Crucificado caia sobre os seus assassinos!”. Pilatos viu-se obrigado a
rodear-se de guardas. Zodóc, que, de manhã, quando Jesus fora conduzido ao
pretório, lhe proclamara alto a inocência, agitou-se e falou com tal energia diante do
palácio, que Pilatos esteve a ponto de mandá-lo prender. Pilatos, o miserável
desalmado, atribuiu toda a culpa aos judeus: disse que não tinha nada com isso, que
Jesus era o rei, o profeta, o Santo dos judeus, a quem estes tinham levado à morte e
nada tinha com Ele, nem lhe cabia culpa; os próprios judeus é que lhe tinham exigido
a morte, etc”..
No Templo reinava extremo susto e terror. Estavam ocupados na imolação do cordeiro
pascal, quando veio de repente a escuridão. Tudo estava em confusão e aqui e acolá se
ouviam gritos angustiantes. Os príncipes dos sacerdotes fizeram tudo para conservar
a calma e a ordem: fizeram acender todas as lâmpadas, apesar de ser meio dia, mas a
confusão crescia cada vez mais.
Vi Anás preso de susto e terror; corria de um canto a outro, para se esconder. Quando
tornei a sair da cidade, ouvi as grades das janelas das casas tremerem, sem haver
tempestade. A escuridão crescia cada vez mais. Na parte exterior da cidade, ao
noroeste, perto do muro, onde havia muitos jardins e sepulturas, desabaram algumas
entradas de sepulcros, como se houvesse um tremor de terra.
Sobre o Gólgota fizeram as trevas uma impressão terrível. A horrorosa fúria dos
carrascos, os gritos e maldições na elevação da cruz, os uivos dos ladrões ao serem
amarrados ao madeiro, os insultos dos fariseus a cavalo, o revezar dos soldados, a
barulhenta partida dos carrascos embriagados, tudo isso diminuíra a princípio um
pouco o efeito das trevas. (...)
Os fariseus, ocultando o terror, ainda procuravam explicar tudo pelas leis naturais,
mas baixavam cada vez mais a voz e afinal quase não ousavam mais falar; de vez em
quando ainda proferiam uma palavra insolente, mas soava um tanto forçada. O disco
do sol estava meio escuro, como uma montanha ao luar; estava rodeado de um anel
vermelho. As estrelas tinham um brilho rubro; os pássaros caiam sobre o Calvário e
nas vinhas vizinhas entre os homens e deixavam-se pegar com a mão; os animais dos
arredores mugiam e tremiam; os cavalos e jumentos dos fariseus apertavam-se uns de
encontro aos outros, baixando as cabeças. O nevoeiro úmido envolvia tudo.
Em redor da cruz reinava silêncio; todos se tinham afastado, muitos fugiram para a
cidade. O Salvador, naquele infinito martírio, mergulhado no mais profundo
abandono, dirigindo-se ao Pai celestial, rezava pelos inimigos, impelido pelo amor.
Rezava, como durante toda a Paixão, recitando versos de salmos que nEle se
cumpriam. Vi figuras de Anjos em redor dEle.
Quando, porém, a escuridão cresceu e o terror pesava sobre todas as consciências e
todo o povo estava em sombrio silêncio, ficou Jesus abandonado de todos e privado de
toda a consolação. Sofria tudo quanto sofre um pobre homem, aflito e esmagado pelo
absoluto abandono, sem consolação divina ou humana, quando a fé, a esperança e a
caridade, privadas de iluminação e consolo, de visível assistência, ficam sozinhas no
deserto da provação, vivendo de si mesmas, num infinito martírio. Tal sofrimento não
se pode exprimir.
Nessa tortura moral, Jesus nos alcançou a força de resistirmos na extrema miséria do
abandono, quando se rompem todos os laços e relações com a existência e a vida
terrena com o mundo e a natureza em que vivemos, quando se desfazem também as
perspectivas que esta vida em si nos abre, para outra existência; nessa provação
venceremos, se unirmos nosso abandono com os merecimentos do abandono de Jesus
na cruz. (...)
Jesus, inteiramente desamparado e abandonado, ofereceu-se, como faz o amor, a si
mesmo por nós, fez até do abandono um riquíssimo tesouro; pois se ofereceu, com
toda sua vida, seus trabalhos, amor e sofrimento e a dolorosa experiência de nossa
ingratidão, ao Pai celestial, por nossa fraqueza e pobreza. Fez testamento diante de
Deus e ofereceu todos os seus merecimentos à Igreja e aos pecadores. (...)
E testemunhou por um grito a dor do abandono, dando assim a todos os aflitos, que
reconhecem a Deus por Pai, a liberdade de uma queixa cheia de confiança filial. Pelas
três horas, Jesus exclamou em alta voz: “Eli, Eli, lama Sabachtani!”, o que quer dizer:
“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”
Quando esse grito de Nosso Senhor interrompeu o angustiante silêncio que reinava em
redor da cruz, os escarnecedores se voltaram novamente para Ele e um deles disse:
“Ele chama Elias”, e outro: “Vamos ver, se Elias vem ajudá-Lo a descer da cruz”.
Quando, porém, Maria ouviu a voz do Filho, nada mais pôde retê-la; voltou para junto
da cruz, seguida por João, Maria, filha de Cleofas, Madalena e Salomé.
Enquanto o povo tremia e gemia, vinha passando perto um grupo de cerca de trinta
homens a cavalo, notáveis da Judéia e da região de Jope, que tinham vindo para a
festa; e quando viram Jesus tão horrivelmente tratado e os sinais ameaçadores que se
mostravam na natureza, exprimiram em alta voz o horror que sentiam, exclamando:
“Ai! desta cidade abominável! Se nela não estivesse o Templo, devia-se destruí-la a
fogo, por se ter tornado culpada de tanta iniqüidade”. (...)
Logo depois das três horas, o céu começou a clarear-se; a lua afastou-se gradualmente
do sol, para o lado oposto àquele de que viera. O sol reapareceu, sem brilho, ainda
vedado pelo nevoeiro vermelho e a lua ia descendo rapidamente para o outro lado,
como se caísse. Pouco a pouco o sol readquiriu mais claridade e as estrelas
desapareceram; contudo o dia ainda permanecia sombrio. A medida que reaparecia a
luz, tornavam-se os inimigos escarnecedores mais arrogantes; foi nessa ocasião que
disseram: “Ele chama Elias”. Abenadar, porém, impôs-lhes silêncio e manteve a
ordem.
Quando a luz voltou, surgiu o corpo de Nosso Senhor, pálido, extenuado, como que
inteiramente desfalecido, mais branco do que antes, por causa da grande perda de
sangue. Jesus disse ainda, não sei se o percebi só interiormente ou se Ele o disse a
meia voz: “Sou espremido como as uvas, que foram pisadas aqui pela primeira vez;
devo dar todo o meu sangue, até sair água e o bagaço ficar branco; mas não se fará
mais vinho neste lugar”.
Mais tarde vi, numa visão a respeito dessas palavras, que foi nesse lugar que Jafé pela
primeira vez pisou as uvas, para fazer vinho, como hei de contar mais tarde.
Jesus consumia-se de sede e disse com a língua seca: “Tenho sede”. E como os amigos
o olhassem com tristeza,disse-lhes: “Não me podíeis dar um gole de água?” Queria
dizer que durante a escuridão ninguém os teria impedido. João, muito incomodado,
respondeu: “Senhor, esquecemo-lo mesmo”. Jesus disse ainda algumas palavras, cujo
sentido era: “Também os amigos mais íntimos deviam esquecer-se e não me dar a
beber, para que se cumprisse a Escritura”. Mas esse esquecimento Lhe doeu
amargamente. (...)
Nosso Senhor ainda disse algumas palavras de exortação ao povo; lembro-me apenas
que disse: “Quando minha voz não se fizer mais ouvir, falará a boca dos mortos”; ao
que alguns gritaram: “Ainda continua blasfemando”. Abenadar, porém, os mandou
calar.
Tendo chegado a hora da agonia, Nosso Senhor lutou com a morte e um suor frio
cobriu-lhe os membros. João estava sob a cruz e enxugou-Lhe os pés com o sudário.
(...)
Então disse Jesus: “Tudo está consumado!” e, levantando a cabeça, exclamou em alta
voz: “Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito”. Foi um grito doce e forte, que
penetrou o Céu e a terra; depois inclinou a cabeça e expirou. Vi a alma de Jesus, em
forma luminosa, entrar na terra, ao pé da cruz e descer ao Limbo. João e as santas
mulheres prostraram-se com a face na terra.
O centurião Abenadar, árabe de nascimento, depois, como discípulo, batizado com o
nome de Ctesifon, desde que oferecera o vinagre a Jesus, ficara a cavalo junto à
elevação onde estavam erigidas as cruzes, de modo que o cavalo tinha as patas
dianteiras mais no alto. Profundamente abalado, entregue à sérias reflexões,
contemplava incessantemente o semblante de Nosso Senhor, coroado de espinhos. O
cavalo baixara assustado a cabeça e Abenadar, cujo orgulho estava domado, não
puxava mais as rédeas.
Nesse momento pronunciou o Senhor as últimas palavras, em voz alta e forte e
morreu dando um grito, que penetrou o Céu, a terra e o inferno. A terra tremeu e o
rochedo fendeu-se, deixando uma larga abertura entre a cruz do Senhor e a do ladrão
à esquerda. O testemunho que Deus deu de seu Filho, abalou com susto e terror a
natureza enlutada. Estava consumado! A alma de Nosso Senhor separou-se do corpo e
ao grito de morte do Redentor moribundo estremeceram todos que O ouviram, junto
com a terra que, tremendo, reconheceu o Salvador; os corações amigos, porém, foram
transpassados pela espada da dor.
Foi então que a graça desceu à alma de Abenadar; estremeceu emocionado, cederam-
lhe as paixões e o coração orgulhoso e duro, fendeu-se-lhe como o rochedo do
Calvário. Lançou longe de si a lança, bateu no peito com força e exclamou alto, com a
voz de um homem novo: “Louvado seja Deus, Todo-poderoso, o Deus de Abraão e
Jacó! Este era um homem justo; em verdade, Ele é o Filho de Deus!”. E muitos dos
soldados, tocados pela palavra do centurião, fizeram o mesmo.
(...) Grande espanto apoderou-se dos assistentes, ante o grito de morte de Jesus,
quando a terra tremeu e o rochedo do Calvário se fendeu. - Esse terror fez-se sentir
em toda a natureza; pois rasgou-se o véu do Templo, muitos mortos saíram das
sepulturas, desabaram algumas paredes do Templo, ruíram muitos edifícios e
desmoronaram montes em muitas regiões da terra.
(...) Quando Jesus, cheio de amor, Senhor de toda a vida, pagou pelos pecadores a
dolorosa dívida da morte; quando entregou, como homem, a alma a Deus seu Pai e
abandonou o corpo, tomou esse santo vaso esmagado a fria e pálida cor da morte; o
corpo tremeu-Lhe convulsivamente nas últimas dores e tornou-se lívido e os vestígios
do sangue derramado das chagas ficaram mais escuros e distintos. O rosto alongou-
se, as faces encolheram-se, o nariz ficou mais delgado e pontiagudo, o queixo caiu, os
olhos, cheios de sangue e fechados, abriram-se, meio envidraçados.
O Senhor levantou pela última vez e por poucos momentos a cabeça, coroada de
espinhos e deixou-a depois cair sobre o peito, sob o peso dos sofrimentos. Os lábios
lívidos e contraídos entreabriram-se, deixando ver a língua ensangüentada. As mãos,
antes fechadas sobre a cabeça dos cravos, abriram-se; estenderam-se os braços, as
costas entesaram-se ao longo da cruz e todo o peso do santo corpo desceu sobre os
pés. Os joelhos curvaram-se, tornando para um lado e os pés viraram-se um pouco
em redor do prego que os trespassara. (...)
A luz do sol ainda era sombria e nebulosa. O tremor de terra foi acompanhado de calor
sufocante; mas seguiu-se-lhe depois um frio sensível. O corpo de Nosso Senhor morto,
na cruz, causava um sentimento de respeito e estranha comoção. Os ladrões pendiam
em horríveis contorções, como embriagados. Ambos estavam no fim calados; Dimas
rezava.
Era pouco depois das três horas, quando Jesus expirou. Passado o primeiro terror
causado pelo tremor de terra, alguns dos fariseus recobraram a anterior arrogância.
Aproximando-se da fenda no rochedo do Calvário, jogaram-lhe pedras e atando várias
cordas, amarraram uma pedra, fizeram-na entrar na fenda, para medir-lhe a
profundidade; quando, porém, não tocaram no fundo, tornaram-se mais pensativos.
(...)
O tremor de terra, aparição de mortos em Jerusalém
Quando Jesus, com um grito forte, entregou o espírito nas mãos do Pai celestial, a
alma do Salvador, qual forma luminosa, acompanhada de brilhante cortejo de Anjos,
entrou na terra, ao pé da cruz; entre os Anjos estava também S. Gabriel. Vi esses
Anjos expulsarem grande número de espíritos maus da terra para o abismo. Jesus,
porém, mandou muitas almas do limbo para que, retomando os corpos, assustassem
os impenitentes, os exortassem a converter-se e dessem testemunho dEle.
O tremor de terra, na hora da morte do Redentor, quando o rochedo do Calvário se
fendeu, causou muitos desmoronamentos e desabamentos em todo o mundo,
especialmente na Palestina e em Jerusalém. Mal o povo na cidade e no Templo
sossegara um pouco, ao desaparecer a escuridão, eis que os abalos do solo e o
estrondo do desabamento dos edifícios, em muitos lugares, espalharam um terror
geral e ainda maior do que dantes. O pavor chegou ao extremo, quando apareceram os
mortos ressuscitados, andando pelas ruas e admoestando com voz rouca o povo, que
fugia, chorando, em todas as direções.
No Templo, os príncipes dos sacerdotes acabavam justamente de restabelecer a ordem
e recomeçar os sacrifícios, suspensos pelo terror das trevas e triunfavam com a volta
da luz, quando de repente tremeu o solo, ouvindo-se um estrondo de muros a desabar,
acompanhado de ruído sibilante do véu do Templo, que se rasgou de alto a baixo,
causando um momento de mudo terror na imensa multidão, interrompido em diversos
lugares por gritos e lamentos. (...)
Pode-se fazer uma idéia da desordem e confusão que reinava, imaginando um grande
formigueiro, de tranqüilo movimento, em que se jogam pedras ou se remexe com um
pau; enquanto reina confusão num ponto, em outro ainda continua o movimento e a
atividade toda regular e mesmo no lugar onde houve desarranjo, logo começa a
restabelecer-se a ordem.
O sumo sacerdote Caifás e seu partido, com audácia desesperada, não perderam a
cabeça. Como um hábil governador de uma cidade revoltada, afastou a confusão,
ameaçando aqui, exortando ali, desunindo os partidos, atraindo outros com muitas
promessas. Devido ao seu endurecimento diabólico e aparente calma, conseguiu
impedir uma perigosa perturbação geral, fazendo com que a massa do povo não visse
nesses acontecimentos assustadores um testemunho da morte inocente de Jesus.
A guarnição do forte Antônia também fez tudo para conservar a ordem; deste modo
era o terror e a confusão grande, é verdade, mas cessou a celebração da festa, sem
que houvesse tumulto. O povo dispersou-se, ficando ainda com um oculto pavor, que
também foi pouco a pouco abafado pela ação dos fariseus.
Essa era a situação geral da cidade; seguem-se agora alguns incidentes particulares,
de que ainda me lembro: As duas grandes colunas situadas à entrada do Santuário do
Templo e entre as quais estava suspensa a magnífica cortina, afastaram-se no alto, a
da esquerda para o sul, a da direita para o norte; a verga que suportavam, abaixou-se
e a grande cortina partiu-se em duas, de alto a baixo, com um som sibilante e, caindo
as duas partes para os lados, abriu-se o santuário.
Essa cortina era vermelha, azul, branca e amarela; trazia o desenho de muitas
constelações dos astros e também figuras, como, por exemplo, a da serpente de
bronze. O santuário estava aberto a todos os olhares. Perto da cela onde Simeão
costumava rezar, no muro ao norte, ao lado do santuário, tombou uma pedra grande e
a abóbada da cela desabou; em várias salas se afundou o solo, umbrais deslocaram-se
e colunas cederam para os lados.
No santuário apareceu, proferindo palavras de ameaça, o Sumo Sacerdote Zacarias,
que fora assassinado entre o Templo e o altar; falou também da morte do outro
Zacarias e de João Batista, como em geral da morte dos profetas. Ele saiu pela
abertura que ficara, onde caiu a pedra na cela de Simeão e falou aos sacerdotes que
estavam no Santo.
Dois filhos do piedoso Sumo Sacerdote Simão o Justo, bisavô do velho sacerdote
Simeão que profetizara na apresentação de Jesus no Templo, apareceram como
espíritos grandes, perto da grande cátedra (cadeira dos doutores), proferindo palavras
severas sobre a morte dos profetas e sobre o sacrifício que ia cessar; exortaram a
todos a que seguissem a doutrina de Jesus crucificado.
Perto do altar apareceu o profeta Jeremias, proclamando em voz ameaçadora o fim do
sacrifício antigo e o começo do novo. Essas aparições e palavras, em lugares onde só
Caifás e os sacerdotes as ouviram, foram negadas ou ocultadas e foi proibido falar
nisso, sob pena de grande excomunhão. Mas ouviu-se ainda um grande ruído;
abriram-se as portas do santo e uma voz gritou: “Saiamos daqui!”. Vi então Anjos, que
se retiraram do Templo. O altar do incenso tremeu e caiu um dos vasos de incenso; o
armário que continha os rolos da Escritura tombou e os rolos caíram fora, em
desordem; a confusão aumentou, não sabiam mais que hora do dia era.
Nicodemos, José de Arimatéia e muitos outros abandonaram o Templo e foram-se
embora. Jaziam corpos de mortos, em vários lugares; outros mortos ressuscitados
andavam no meio do povo, exortando-o com palavras severas; à voz dos Anjos que se
afastaram do Templo, também eles voltaram às sepulturas. A grande cátedra, no átrio
do Templo, caiu. Vários dos 32 fariseus que tinham ido ao Calvário, mais tarde
voltaram, durante essa confusão e, como se tinham convertido ao pé da cruz, ficaram
ainda mais comovidos com esses sinais, de modo que censuraram com grande energia
a Anás e Caifás, retirando-se depois do Templo.
Anás, o verdadeiro chefe dos inimigos de Jesus, que desde muito tempo dirigira todas
as intrigas secretas contra o Salvador e os discípulos e que também instruíra os
acusadores, estava quase doido de terror; fugia de um canto para outro das salas
secretas do Templo; vi-o gritando e torcendo-se em convulsões; levaram-no a um
quarto secreto, rodeado de alguns dos partidários. Caifás deu-lhe uma vez um forte
abraço, para o reanimar; mas em vão; a aparição dos mortos tinha-o levado ao
desespero.
Caifás, apesar de estar também cheio de pavor, estava de tal modo possesso do
demônio do orgulho e da obstinação, que não deixava perceber nada do susto que
sentia. Cheio de raiva e orgulho, ocultava o medo e mostrava uma testa de bronze aos
sinais ameaçadores da cólera divina. (...)
O túmulo de Zacarias, sob o muro do Templo, desabara, arrastando consigo as pedras
do muro; Zacarias saiu do túmulo, mas não voltou mais para lá, não sei onde
depositou de novo os restos mortais. Os filhos ressuscitados de Simeão o Justo,
depositaram os corpos novamente, no túmulo, ao pé do monte do Templo, na hora em
que o corpo de Jesus foi preparado para a sepultura.
Enquanto tudo isso se passava no Templo, reinava o mesmo espanto em muitas
partes de Jerusalém. Logo depois das três horas, ruíram muitos túmulos,
particularmente na região dos jardins, ao noroeste, dentro da cidade. Vi lá, nos
túmulos, mortos ainda envoltos em panos; em outros jaziam esqueletos, com farrapos
apodrecidos, de muitos saia um mau cheiro insuportável.
No tribunal de Caifás desabaram as escadas em que Jesus fora escarnecido, também
parte do fogão do átrio, onde Pedro começara a negar Jesus. A destruição era tal, que
era preciso procurar outra entrada. Ali apareceu o corpo do Sumo Sacerdote Simão o
Justo, a cuja descendência pertencia Simeão, que proferiu a profecia, na apresentação
do Menino Jesus no Templo. Esse falou algumas palavras ameaçadoras, a respeito do
julgamento injusto que se fizera ali. (...)
No palácio de Pilatos se fendeu a pedra e afundou-se o solo onde Jesus fora
apresentado ao povo por Pilatos. Todo o edifício tremeu e vacilou; no pátio do tribunal
vizinho se afundou todo o lugar onde estavam sepultados os corpos das inocentes
crianças que Herodes mandara assassinar. Em vários outros lugares da cidade se
fenderam muros, caíram paredes; mas nenhum edifício foi totalmente destruído.
Pilatos, supersticioso e confuso, estava preso de terror e incapaz de desempenhar o
cargo; o terremoto abalou-lhe o palácio, o solo tremia-lhe debaixo dos pés, fugia de
uma sala para outra. Os mortos mostravam-se-lhe no átrio do palácio, lançando-lhe
em rosto o julgamento iníquo e a sentença contraditória. Julgando que fossem os
deuses do profeta Jesus, encerrou-se num quarto secreto do palácio, onde ofereceu
incenso e sacrifícios aos deuses pagãos, fazendo promessas, para que os ídolos
impedissem os deuses do Galileu de fazer-lhe mal. Herodes estava no palácio,
desvairado de pavor e mandara fechar todas as portas.(...)(1)
(1) Aqui suprimimos um capítulo inteiro, onde dava conta das imensas destruições
que houve em muitos lugares da terra, especialmente as regiões próximas a Jerusalém
e mais em alguns lugares onde, na sua vida pública, Jesus fora mal recebido. Prédios
desabaram, sinagogas também, o rio Jordão e o Lago de Genesaré tiveram
modificações drásticas. Esta destruição por toda a parte foi a principal responsável
pelo fato de os perseguidores de Jesus não haverem logo iniciado a caça aos
seguidores dele, pois meditavam estas coisas. A perseguição só reiniciou após o
pentecostes
O coração de Jesus trespassado por uma lança. Esmagamento das pernas e morte dos
ladrões
Durante todo esse tempo reinava silêncio e tristeza sobre o Gólgota. O povo assustado
dispersara-se, indo esconder-se em casa. A Mãe de Jesus e João, Madalena, Maria,
filha de Cleofas e Salomé estavam, em pé ou sentados, em frente à cruz, com as
cabeças veladas, chorando. Alguns soldados estavam sentados no barranco, com as
lanças fincadas no chão. Cássio, a cavalo, ia de um lado para outro. Os soldados
conversavam do alto do Calvário com outros que estavam mais em baixo. O céu estava
nublado e toda a natureza parecia abatida e de luto. Vieram então seis carrascos,
subindo o monte Calvário; trouxeram escadas, pás e cordas, como também pesadas
maças de ferro de três gumes, para esmagar as pernas dos executados.
(...) Subiram então pelas escadas nas cruzes dos ladrões; dois esmagaram, com as
maças cortantes, os ossos dos braços acima e abaixo do cotovelo, um terceiro fez o
mesmo acima e nas canelas, abaixo dos joelhos. Gesmas soltou gritos horríveis.
Esmagaram-lhe em três golpes o peito, para acabar de matá-lo. Dimas gemeu com a
tortura e morreu; foi o primeiro mortal que tornou a ver o Redentor. Os carrascos
desataram então as cordas, deixando cair os corpos no chão e arrastando-os depois
com cordas, para o vale entre o Calvário e o muro da cidade, onde os enterraram.
Os carrascos ainda pareciam duvidar da morte do Senhor e os parentes de Jesus
estavam ainda mais assustados, pela brutalidade com que haviam procedido e com
medo de que pudessem voltar. Mas Cássio, oficial subalterno, homem de 25 anos,
ativo e um pouco precipitado, cuja vista curta e cujos olhos tortos, juntamente com os
ares de importância que se dava, provocavam freqüentemente a troça dos
subordinados, recebeu de repente uma inspiração sobrenatural.
A crueldade e vil brutalidade dos carrascos, o medo das santas mulheres e um
impulso repentino, causado por uma graça divina, fizeram-no cumprir uma profecia.
Ajustando a lança, que trazia em geral dobrada e encurtada, firmou-lhe a ponta e
virando o cavalo, esporeou-o para subir o cume, onde estava a cruz e onde o cavalo
quase não podia virar; vi como o afastou da fenda do rochedo. Parando assim entre a
cruz do bom ladrão e a de Jesus, ao lado direito do corpo de Nosso Salvador, tomou a
lança com ambas as mãos e introduziu-a com tal força no lado direito do Santo Corpo,
através das entranhas e do coração, que a ponta da lança saiu um pouco do lado
esquerdo, abrindo uma pequena ferida. Quando tirou depois com força a santa lança,
brotou da larga chaga do lado direito do Redentor um rio de sangue e água que,
caindo, banhou o rosto de Cássio, como uma onda de salvação e graça. Ele saltou do
cavalo e, prostrando-se de joelhos, bateu no peito e confessou a fé em Jesus em alta
voz, diante de todos os presentes.
A Santíssima Virgem e os outros, cujos olhos estavam sempre fixos no Salvador, viram
a súbita ação do oficial com grande angústia e acompanharam o golpe da lança com
um grito de dor, precipitando-se para a cruz. Maria caiu nos braços das amigas, como
se a lança lhe tivesse transpassado o próprio coração e sentisse o ferro cortante
atravessá-lo de lado a lado.
Cássio, caindo de joelhos, louvava a Deus, pois, iluminado pela graça, ficou crendo e
também os olhos do corpo se lhe curaram e desde então via tudo claro e distinto. Mas
ao mesmo tempo ficaram todos profundamente comovidos à vista do sangue que,
misturado com água, se juntara, espumante, numa cavidade da rocha, ao pé da cruz;
Cássio, Maria Santíssima, as santas mulheres e João apanharam o sangue e a água
em tigelas, guardando-o depois em frascos e enxugando-o da rocha com panos.
Cássio estava como que transformado; tinha recobrado a vista perfeita e
profundamente comovido, curvava-se diante de Deus, com coração humilde. Os
soldados presentes, tocados pelo milagre que se operara nele, prostraram-se de
joelhos, batiam no peito e louvavam a Jesus. O sangue e a água corriam
abundantemente da larga chaga do lado direito do Salvador, sobre a rocha limpa,
onde se juntaram; apanharam-no, com indizível comoção e as lágrimas de Maria e
Madalena misturavam-se-lhe. Os carrascos, que nesse ínterim tinham recebido a
ordem de Pilatos de não tocar no corpo de Jesus, que doara a José de Arimatéia, para
o sepultar, não voltaram mais.(...)
Tudo Isso se passou em redor da cruz de Jesus, logo depois das quatro horas, quando
José de Arimatéia e Nicodemos estavam ocupados em juntar as coisas necessárias
para o enterro. Os criados de José de Arimatéia foram, enviados para limpar o
sepulcro e anunciaram aos amigos de Jesus no Gólgota que José recebera de Pilatos
licença para tirar da cruz o corpo do Mestre e sepultá-lo no seu sepulcro; então voltou
João, com as santas mulheres, à cidade, dirigindo-se ao monte Sião, para que a
Santíssima Virgem pudesse tomar algum alimento e também para buscar alguns
objetos para o enterro. (...)
Quando Jesus, com um grito forte rendeu a santíssima alma, vi-a, qual figura
luminosa, acompanhada de muitos Anjos, entre os quais também Gabriel, descer pela
terra adentro, ao pé da cruz. Vi, porém, que a divindade lhe ficou unida tanto à alma,
como também ao corpo, pregado à cruz. Não sei explicar o modo porque se passou. Vi
o lugar aonde se dirigiu a alma de Jesus; era dividido em três partes, parecendo três
mundos e eu tinha a sensação de que tinha a forma redonda e que cada um estava
separado do outro por uma esfera.
Antes de chegar ao limbo, havia um lugar claro e, por assim dizer, mais verdejante e
alegre. Era o lugar em que vejo sempre entrarem as almas remidas do purgatório,
antes de serem levadas ao céu. O limbo, onde se achavam os que esperavam a
redenção, estava cercado de uma esfera cinzenta, nebulosa e dividido em vários
círculos. Nosso Salvador, conduzido pelos Anjos como em triunfo, entrou por entre
dois desses círculos, dos quais o esquerdo encerrava os Patriarcas até Abraão e o
direito as almas de Abraão até João Batista.
Jesus penetrou por entre os dois; eles, porém, ainda não O conheciam, mas estavam
todos cheios de alegria e desejo; foi como se dilatassem esses páramos da saudade
angustiosa, como se ali entrassem o ar, a luz e o orvalho da Redenção. Tudo se deu
rapidamente, como o sopro do vento. Jesus penetrou através dos dois círculos, até um
lugar cercado de neblina, onde se achavam Adão e Eva, nossos primeiros pais.
Falou-lhes e adoraram-nO com indizível felicidade. O cortejo do Senhor, ao qual se
juntou o primeiro casal humano, dirigiu-se então à esquerda, ao limbo dos Patriarcas
que tinham vivido antes de Abraão. Era uma espécie de purgatório; pois entre eles se
moviam, cá e lá, maus espíritos, que atormentavam e inquietavam algumas dessas
almas de muitas maneiras.
Os Anjos bateram e mandaram que abrissem; pois havia lá uma entrada, uma espécie
de porta, que estava fechada; os Anjos anunciaram a vinda do Senhor, parecia-me
ouvi-los exclamar: “Abri as portas!”. Jesus entrou triunfalmente; os espíritos maus,
retirando-se, gritaram: “Que tens conosco? Que queres fazer de nós? Queres
crucificar-nos também?, etc”. - Os Anjos, porém, amarraram-nos e empurraram-nos
para diante. Essas almas sabiam pouco de Jesus, tinham só uma idéia obscura do
Salvador; Jesus anunciou-lhes a Redenção e eles lhe cantaram louvores.
Dirigiu-se então a alma do Senhor ao espaço à direita, ao verdadeiro limbo, em frente
ao qual se encontrou com a alma do bom ladrão, conduzida por Anjos ao seio de
Abraão e com a do mau ladrão que, cercado de espíritos maus, foi precipitada no
inferno. A alma de Jesus dirigiu-lhes algumas palavras e entrou então no seio de
Abraão, acompanhada dos Anjos, das almas remidas e dos demônios expulsos.
Esse lugar parecia-me situado um pouco mais alto; era como se subisse do
subterrâneo de uma igreja à igreja superior. Os demônios amarrados quiseram
resistir, não queriam passar; mas foram levados à força pelos Anjos. Neste lugar
estavam todos os santos Israelitas, à esquerda os Patriarcas, Moisés, os Juízes, os
Reis; à direita os profetas e todos os antepassados e parentes de Jesus, até Joaquim,
Ana, José, Zacarias, Isabel e João. Nesse lugar não havia nenhum mau espírito, nem
tormento algum, a não ser o desejo ansioso da Redenção, que se realizara enfim.
Uma indizível delícia e felicidade enchia as almas todas, que saudavam e adoravam o
Salvador; os demônios amarrados foram obrigados a confessar sua ignomínia diante
delas. Muitas dessas almas foram enviadas à terra, para entrar nos respectivos corpos
e dar testemunho do Senhor. Foi nesse momento que tantos mortos saíram dos
sepulcros em Jerusalém; apareciam como cadáveres ambulantes, depositando depois
novamente os corpos, como um mensageiro da justiça deposita o manto oficial, depois
de ter cumprido as ordens do superior.
Vi depois o cortejo triunfal do Salvador entrar numa esfera mais baixa, uma espécie de
lugar de purificação, onde se achavam piedosos pagãos que tinham tido um
pressentimento da verdade e o desejo de conhecê-la. Havia entre eles espíritos maus,
porque tinham ídolos; vi os espíritos malignos forçados a confessar o embuste e as
almas adorarem o Senhor com alegria tocante. Os demônios desse lugar foram
também amarrados e levados no cortejo. Assim vi o Salvador passar triunfalmente,
com grande velocidade, por vários lugares onde estavam almas encerradas, libertando-
as e fazendo ainda muitas outras coisas, mas no meu estado de miséria não posso
contar tudo.
Por fim o vi aproximar-se, com ar severo, do centro do abismo, do inferno, que me
apareceu sob a forma de um imenso edifício horrível, formado de negros rochedos, de
brilho metálico, cuja entrada tinha enormes portas, terríveis, pretas, fechadas com
fechaduras e ferrolhos que causavam medo. Ouviam-se uivos de desespero e gritos de
tormento, abriram-se as portas e apareceu um mundo hediondo e tenebroso.
Assim como vi as moradas dos bem-aventurados sob a forma de uma cidade, a
Jerusalém celeste, com muitos palácios e jardins, cheios de frutas e flores
maravilhosas, de várias espécies, conforme as inúmeras condições e graus de
santidade, assim vi também o inferno como um mundo separado, com muitos
edifícios, moradas e campos. Mas tudo destinado, ao contrário, à tortura e às penas
dos condenados.
Como na morada dos bem-aventurados tudo é disposto segundo as causas e
condições da eterna paz, harmonia e alegria, assim no inferno se manifesta em tudo a
eterna ira, discórdia e desespero. Como no céu há muitíssimos edifícios,
indizivelmente belos, transparentes, destinados à alegria e à adoração, assim há no
inferno inúmeros e variados cárceres e cavernas, cheios de tortura, maldição e
desespero.
No céu há maravilhosos jardins, cheios de frutos de gozo divino; no inferno horrendos
desertos e pântanos, cheios de tormentos e angústias e de tudo que pode causar
horror, medo e nojo. Vi templos, altares, castelos, tronos, jardins, lagos, rios de
maldição, de ódio, de horror, de desespero, de confusão, de pena e tortura; como há
no céu rios de bênção, de amor, de concórdia, de alegria e felicidade; aqui a eterna,
terrível discórdia dos condenados; lá a união bem-aventurada dos santos.
Todas as raízes da corrupção e do erro produzem aqui tortura e suplício, em
inumeráveis manifestações e operações; há só um pensamento reto: a idéia austera da
justiça divina, segundo a qual cada condenado sofre a pena, o suplício, que é o fruto
necessário de seu crime; pois tudo que se passa e se vê de horrível nesse lugar, é a
essência, a forma e a perversidade do pecado desmascarado, da serpente que
atormenta com o veneno maldoso os que o alimentaram no seio. Vi lá uma colunata
horrorosa, em que tudo se referia ao horror e à angústia, como no reino de Deus à paz
e ao repouso. Tudo se compreende facilmente, ao vê-lo, mas é quase impossível
exprimir tudo em palavras.
Quando os Anjos abriram as portas, viu-se um caos de contradição, de maldições, de
injúrias, de uivos e gritos de dor. Vi Jesus falar à alma de Judas. Alguns dos Anjos
prostraram exércitos inteiros de demônios. Todos foram obrigados a reconhecer e
adorar Jesus, o que foi para eles o maior suplício. Grande número deles foram
amarrados a um círculo, que cercava muitos outros, que deste modo também ficaram
presos. No centro havia um abismo de trevas, Lúcifer foi amarrado e lançado nesse
abismo, onde vapores negros lhe ferviam em redor. Tudo se fez segundo os decretos
divinos.
Ouvi dizer que Lúcifer, se não me engano, 50 ou 60 anos antes do ano 2.000 de
Cristo, seria novamente solto por certo tempo. Muitas outras datas e números foram
indicados, dos quais não me lembro mais. Deviam ser soltos ainda outros demônios
antes desse tempo, para provação e castigo dos homens. Creio que também em nosso
tempo era a vez de alguns deles e de outros pouco depois do nosso tempo.
É-me impossível contar tudo quanto me foi mostrado; são muitas coisas e não as
posso relatar em boa ordem; também me sinto tão doente e quando falo dessas coisas,
elas se me representam novamente diante dos olhos e só o aspecto já é suficiente para
nos fazer morrer.
Ainda vi exércitos imensos de almas remidas saírem do purgatório e do limbo,
acompanhando o Senhor, para um lugar de delícias abaixo da Jerusalém celeste. Foi
lá que vi também, há algum tempo, um amigo falecido. A alma do bom ladrão foi
também conduzida para lá e viu assim o Senhor no Paraíso, conforme a promessa. Vi
que nesse lugar foram preparados banquetes de alegria e conforto, como os tenho
visto já muitas vezes, em visões consoladoras.
Não posso indicar com exatidão o tempo e a duração de tudo que se passou, como
também não posso contar tudo quanto vi e ouvi lá porque eu mesma não compreendo
mais tudo, já porque podia ser mal compreendida pelos ouvintes. Vi, porém, o Senhor
em lugares muito diferentes, até no mar, parecia santificar e libertar todas as
criaturas; em toda parte fugiam os maus espíritos diante dEle e lançaram-se no
abismo. Vi também a alma do Senhor em muitos lugares da terra.
Vi-O aparecer no sepulcro de Adão e Eva, sob o Gólgota. As almas de Adão e Eva
juntaram-se-lhe novamente; falou-lhes e com elas O vi passar, como sob a terra, em
muitas direções e visitar os túmulos de muitos profetas, cujas almas se lhe juntaram,
próximo das respectivas ossadas e explicou-lhes o Senhor muitas coisas.
Vi-O depois, com esse séqüito escolhido, em que seguia também Davi, passar em
muitos lugares de sua vida e paixão, explicando-lhes com indizível amor todos os fatos
simbólicos que se tinham dado ali e o cumprimento dessas figuras em sua pessoa.
Vi-O especialmente explicar às almas tudo quanto se dera de fatos figurativos no lugar
em que foi batizado e contemplei muito comovida a infinita misericórdia de Jesus, que
as fez participar da graça de seu santo Batismo.
Causou-me inexprimível comoção ver a alma do Senhor, acompanhada por esses
espíritos bem-aventurados e consolados, passar, como um raio de luz, através da terra
escura e dos rochedos, pelas águas e pelo ar e pairar tão sereno sobre a terra.
É o pouco de que me lembro ainda, de minha contemplação da descida do Senhor aos
infernos e da redenção das almas dos Patriarcas, depois de sua morte; mas além
dessa visão dos tempos passados, vi nesse dia uma imagem eterna de sua
misericórdia para com as pobres almas do purgatório. Vi que, em cada aniversário
desse dia, lança por meio da Igreja, um olhar de salvação ao purgatório; vi que já no
Sábado Santo remiu algumas almas do purgatório, que tinham pecado contra Ele na
hora da crucificação.
A primeira descida de Jesus ao limbo é o cumprimento de figuras anteriores e, por
sua vez, é a figura da redenção atual. A descida aos infernos que vi, referia-se ao
tempo passado, mas a salvação de hoje é uma verdade permanente; pois a descida de
Jesus aos infernos é o plantio de uma árvore da graça, destinada a administrar os
seus méritos divinos às almas do purgatório e a redenção contínua e atual dessas
almas é o fruto dessa árvore da graça no jardim espiritual do ano eclesiástico.
A Igreja militante deve cuidar dessa árvore, colher-lhe os frutos, para os outorgar à
Igreja padecente, porque essa nada pode fazer em seu próprio proveito. Eis o que se dá
em todos os merecimentos de Nosso Senhor; é preciso cooperar, para ter parte neles.
Devemos comer o pão ganho com o suor de nosso rosto. Tudo quanto Jesus fez por
nós no tempo, dá frutos eternos; mas devemos cultivá-los e colhê-los no tempo, para
poder gozá-los na eternidade.
A Igreja é como um bom pai de família; o ano eclesiástico é o jardim mais perfeito,
com todos os frutos eternos no tempo; em um ano tem bastante de tudo para todos.
Ai! dos jardineiros preguiçosos e infiéis, que deixam perder uma graça, que poderia
curar um enfermo, fortalecer um fraco, saciar um faminto: no dia de juízo terão de dar
conta até do menor pezinho de erva.
Enfim, se não tivesse havido um Calvário e uma Cruz, não haveria um caminho de
salvação. Jesus realizou-a sozinho, pois o profeta diz claramente: No lagar pisei eu,
sozinho, e ninguém dentre os povos me auxiliou (Is 63,3). Jesus, também, quase ficou
sozinho na Cruz, pois quase todos os seus o abandonaram. Você já se perguntou,
leitor, onde é que estaria naquele momento? Teria fugido?
Embora já tenhamos lido a parte relativa ao início da vitória de Cristo, com a Sua
descida aos infernos, porque ela de fato aconteceu antes mesmo da sepultura Dele,
faltam ainda as revelações relativas ao descimento da cruz, e outras mais correlatas,
que não constam dos Santos Evangelhos, mas que podem nos edificar, e melhor
proclamar a dimensão inaudita da vitória do Senhor.
Restam também revelações relativas às artimanhas dos judeus daquele tempo, em sua
bestialidade e ódio extremos contra Jesus Cristo. Eles, de fato, em sua grande
maioria, jamais se conformaram com a visão redentora de Jesus Messias. E ainda hoje
partes expressivas deles, pugnam – agora talvez mais diabolicamente que naquele
tempo – para conseguirem implantar no mundo um reino guerreiro que falsamente
imaginaram, onde possam comandar a humanidade inteira como escravos, manobrá-
los como bestas ordinárias, tratando a todos com desprezo e ódio extremos. Sim, eles
conseguirão isso, por alguns poucos dias, é profecia e se cumprirá. Mas a maioria
deles se converterá em tempo, antes que se complete este último tempo da redenção
que estamos vivendo. Deus os ama demais, e não descansará enquanto eles também
não entrarem em Seu repouso.
Esse jardim está situado a cerca de sete minutos do monte Calvário, perto da porta de
Belém, na encosta que vai subindo até os muros da cidade; é um belo jardim, com
grandes árvores e bancos, em lugares com sombra; de um lado se estende até o muro
da cidade, no alto da encosta. Quem vem da porta ao norte do vale, entrando no
jardim, tem à esquerda o terreno do jardim, que sobe até o muro da cidade; e vê no
fundo do mesmo, à direita, um rochedo isolado, onde é o sepulcro.
Essa porta é de metal, que parece ser cobre e abre em dois batentes que, abertos, se
encostam à parede em ambos os lados; não fica perpendicular, mas um pouco
inclinada para o nicho e quase tocando o solo, de modo que uma pedra colocada em
frente impede de abri-la. A pedra destinada a esse fim ainda estava fora da gruta e foi
colocada à porta fechada, só depois de depositado o corpo de Nosso Senhor no
sepulcro.
É grande e um pouco arredondada para o lado da porta, porque as paredes laterais
também não estão em ângulo reto. Para abrir os batentes da porta não é necessário
rolar a pedra para fora da gruta, o que seria bastante difícil, por causa da falta de
espaço; mas passa-se uma corrente, que pende da abobada, através de algumas
argolas, fixas para esse fim na pedra; puxando pela corrente, levanta-se a pedra, mas
mesmo assim, só com esforço de vários homens se a desloca, encostando-a à parede
lateral.
Em frente à entrada da gruta, há no jardim um banco de pedra. Pode-se subir o
rochedo do sepulcro e andar sobre a relva de que é coberto; de lá se avista justamente
o muro da cidade e também o ponto mais alto de Sião e algumas torres; vê-se também
de lá a porta de Belém, um aqueduto e a fonte de Gion. A rocha no interior da gruta é
branca, com veios vermelhos e pardos. Toda a obra da gruta foi feita com muito
capricho.
O descimento da cruz
A Santíssima Virgem estava sentada sobre uma coberta, estendida sobre a terra; o
joelho direito, um pouco elevado, como também as costas, apoiavam-se-lhe sobre uma
almofada, feita de mantos enrolados; fizeram esse arranjo para facilitar à Mãe, exausta
de dor e cansaço, a triste obra de caridade que ia fazer, para com o santo corpo do
Filho querido, cruelmente assassinado.
A santa cabeça de Jesus, um pouco curvada, estava encostada ao joelho de Maria; o
corpo jazia estendido sobre o pano. Igualavam-se a dor e o amor da Virgem
Santíssima. Tinha de novo nos braços o corpo do Filho adorado, a quem durante tão
longo martírio não pudera testemunhar seu amor; via quanto estava desfigurado o
santo corpo, pelas horríveis crueldades, via-lhe de perto as feridas, beijava-lhe as faces
sangrentas, enquanto Madalena jazia prostrada por terra, com o rosto sobre os pés de
Jesus.
Os homens retiraram-se então para um pequeno vale, situado a sudoeste, na encosta
do Calvário, onde tencionavam terminar o embalsamamento e arrumaram tudo
quanto era necessário para esse fim. Cássio, com um grupo de soldados que se
tinham convertido, mantinha-se a respeitosa distância; toda a gente inimiga do Mestre
tinha já voltado para a cidade e os soldados ainda presentes ficaram para servir de
guarda e impedir que alguém viesse perturbar as últimas honras prestadas a Jesus.
Alguns ajudavam, comovidos e humildes, prestando pequenos serviços, quando lhes
pediam.
Todas as santas mulheres ajudavam, onde era preciso, passando os vasos com água,
esponjas, panos, ungüentos e especiarias ou mantinham-se atentas a certa distância.
Entre elas se achavam Maria, filha de Cleofas, Salomé e Verônica; Madalena estava
sempre ocupada com o santo corpo; Maria Helí, a irmã mais velha da Santíssima
Virgem, senhora já idosa, estava sentada silenciosa, João estava sempre ao lado da
Santíssima Virgem, pronto a prestar-lhe qualquer auxílio; era o mensageiro entre as
mulheres e os homens; ajudava àquelas e depois prestou também muitos serviços aos
homens, durante o embalsamamento.
Estava tudo muito bem preparado; as mulheres trouxeram odres de couro, que se
podiam abrir e dobrar e um vaso com água, que estava sobre uma fogueira de carvão.
Trouxeram à Maria e à Madalena tigelas com água e esponjas limpas, espremendo as
usadas e despejavam a água usada nos odres de couro. Creio, pelo menos, que os
chumaços redondos que as vi espremerem, eram esponjas.
A Santíssima Virgem conservava um ânimo forte, em toda a sua indizível dor; mesmo
em sua tristeza não podia deixar o santo corpo no horrendo estado em que o pusera o
ignominioso suplício e assim começou, com atividade infatigável, a lavá-lo
cuidadosamente. Abrindo a coroa de espinhos pelo lado posterior, tirou-a
cuidadosamente da cabeça de Jesus, com auxílio dos outros.
Para que os espinhos que entraram na cabeça, não alargassem as feridas, foi preciso
cortá-los um a um da coroa. Colocaram depois a coroa junto aos cravos, ao lado, e
Maria tirou alguns espinhos compridos e fragmentos que tinham ficado na cabeça do
Salvador, com uma espécie de pinças curvas e elásticas, de cor amarela e mostrou-os
tristemente aos amigos compassivos. Puseram os espinhos junto à coroa; mas é
possível que alguns fossem guardados como lembrança.
Quase não se podia mais reconhecer o rosto do Senhor, tão desfigurado estava pelas
feridas e pelo sangue. O cabelo e a barba, em desalinho, estavam completamente
colados pelo sangue. Maria lavou-lhe o rosto e a cabeça, passando esponjas molhadas
sobre o cabelo, para tirar o sangue que secara.
À medida que lavava, tornavam-se mais visíveis os efeitos do cruel suplício, causando
cada vez novas manifestações de compaixão, novos cuidados, de ferida em ferida.
Maria limpou-lhe as feridas da cabeça, lavou o sangue dos olhos, das narinas e dos
ouvidos, com uma esponja e um pequeno lenço, estendidos sobre os dedos da mão
direita; com esse limpou também a boca entreaberta, a língua, os dentes e os lábios de
Nosso Senhor.
Dispôs o pouco que restava da cabeleira de Jesus em três partes, uma para cada lado
e uma para o lado posterior da cabeça e depois de alisar os cabelos de ambos os lados,
fê-los passar por trás das orelhas. Quando acabou de limpar a cabeça, deu-Lhe um
beijo na face e cobriu o santo rosto. Dirigiu então os cuidados ao pescoço, aos ombros,
ao peito e às costas do santo corpo, aos braços e às mãos laceradas e sangrentas.
Ai! Então se viu toda a horrenda dilaceração do santo corpo. Todos os ossos do peito e
todas as articulações estavam deslocadas e tornaram-se inflexíveis; o ombro sobre o
qual Jesus transportou a pesada cruz, era uma grande chaga; toda a parte superior
do corpo estava coberta de feridas e pisaduras, causadas pela flagelação; no lado
esquerdo se via uma ferida pequenina, onde saíra a ponta da lança e no lado direito se
abria a larga chaga feita pela mesma lança, que também lhe traspassou o coração de
lado a lado.
Maria Santíssima lavou e limpou todas essas feridas. Madalena, prostrada de joelhos,
ficava-lhe às vezes em frente, para a ajudar, mas quase sempre estava aos pés de
Jesus, os quais lavou então pela última vez, mais com as lágrimas do que com água,
enxugando-os com o cabelo.
A cabeça, o peito e os pés do Senhor foram assim limpos do sangue e de toda a
imundície; o corpo, de um branco azulado, com o brilho de carne exangue, coberto de
manchas pardas e de outros lugares vermelhos, onde a pele fora arrancada repousava
sobre os joelhos de Maria, que lhe envolvia os membros lavados e se pôs a
embalsamar todas as feridas, começando novamente pela cabeça.
As santas mulheres ajoelhavam-se alternadamente diante dela, apresentando-lhe um
vaso, do qual, com o indicador e o polegar da mão direita, tirava um bálsamo ou
ungüento precioso, com que ungia e untava todas as feridas. Derramou também
ungüento sobre o cabelo; vi que, segurando as mãos de Jesus com a mão esquerda, as
beijou respeitosamente e encheu as largas chagas dos cravos com o mesmo ungüento
ou as mesmas especiarias de que enchera os ouvidos as narinas e a chaga do lado.
Madalena estava quase todo o tempo ocupada com os pés de Jesus, ora enxugando e
untando-os, ora banhando-os novamente com as lágrimas; muitas vezes apoiava neles
o rosto.
Vi que não despejavam fora a água usada, mas guardavam-na nos odres de couro, nos
quais também espremiam as esponjas. Vi diversas vezes que Cássio e outros soldados
foram buscar água à fonte de Gion, em odres e jarros, que as mulheres tinham
trazido; essa fonte de Gion estava tão perto, que se podia enxergá-la do jardim do
sepulcro.
Quando a Santíssima Virgem acabou de untar todas as feridas, envolveu a santa
cabeça em faixas; mas ainda não pôs o lenço que devia cobrir-lhe o rosto. Fechou-lhe
os olhos entreabertos, pousando sobre eles a mão por algum tempo; fechou também a
boca do Senhor, abraçou o santo corpo do Filho e, chorando, deixou cair o rosto sobre
o de Jesus. Madalena, pelo grande respeito que tinha ao Senhor, não lhe tocou no
semblante, mas apenas descansou o rosto sobre os pés do santo corpo.
José e Nicodemos já tinham estado por algum tempo perto, esperando, quando João
se aproximou da Santíssima Virgem, pedindo que se separasse do corpo de Jesus,
para que o pudessem preparar para a sepultura, porque o sábado já estava perto.
Maria abraçou mais uma vez, com o maior fervor, o corpo do Filho adorado,
despedindo-se dele com palavras comoventes.
Então levantaram os homens o santo corpo no pano em que jazia, sobre os joelhos da
Mãe Santíssima e levaram-no para o lugar do embalsamamento. A Virgem Santíssima,
novamente entregue à dor, para a qual tinha achado alguma consolação nos piedosos
cuidados, caiu, com a cabeça velada, nos braços das mulheres; Madalena, porém,
seguiu os homens, correndo-lhes alguns passos atrás, com os braços estendidos,
como se lhe quisessem raptar o Amado, mas voltou depois para junto da SS. Virgem.
Levando o santo corpo, os homens desceram um pouco do alto do Gólgota, para um
lugar, numa dobra da encosta, onde havia uma pedra chata e lisa, própria para esse
fim. Ali já tinham feito todos os preparativos para o embalsamamento. Vi primeiro, ali
estendido, um pano trabalhado a crivo, semelhante à uma rede, como que feita de
rendas; parecia-se com o grande pano de fome, que se pendura em nossas igrejas.
Quando criança pensava eu sempre, ao ver esse pano, que era o mesmo que vi no
embalsamamento do Senhor. Provavelmente tinha o feitio de uma rede, para deixar
escorrer a água, ao lavar. Vi mais um pano grande, estendido sobre a pedra. Deitaram
o corpo do Senhor sobre o primeiro e alguns seguravam o outro por cima. Nicodemos e
José de Arimatéia ajoelharam-se e desataram, sob essa coberta, o lençol em que
tinham envolvido o ventre do Senhor, ao descê-Lo da cruz.
Depois tiraram também do santo corpo a cinta que Jonadab, sobrinho do pai nutrício
do Salvador, lhe trouxera antes da crucifixão. Lavaram então o ventre do Senhor com
esponjas, sob o pano com que o cobriam, com piedoso recato e que o tornava invisível
aos seus olhos. Coberto ainda com o pano, levantaram-nO depois, por meio de outros
panos, passados sob os braços e joelhos e assim lhe lavaram também as costas, sem
virar o corpo.
Continuavam a lavar, até que a água espremida das esponjas escorria clara e limpa.
Depois o lavaram ainda com água de mirra e vi que depuseram o santo corpo sobre a
pedra, estendendo-o respeitosamente com as mãos, dando-lhe uma posição reta, pois
o meio do corpo e as pernas estavam ainda um pouco curvas, entesadas, na posição
em que se encolhera, morrendo.
Puseram-Lhe então sob os lombos um pano da largura de um côvado e cerca de três
côvados de comprimento, enchendo-lhe o seio de molhos de ervas, - como vejo às
vezes em banquetes celestes, ervas verdes em pratos de couro, com borda azul, - e de
fibras finas e crespas de plantas parecidas com açafrão e sobre tudo isso espalharam
um pó fino, que Nicodemos trouxera num vaso.
Envolveram depois o ventre, com todas essas especiarias, no pano, puxaram uma
parte deste, por entre as pernas, para cima e fixaram-na sobre o ventre, fazendo
entrar a extremidade do pano por baixo do cinto. Depois de O ter deste modo
envolvido, ungiram todas as chagas das coxas, cobriram-nas de especiarias, puseram
molhos de ervas entre as pernas, até os pés e enrolaram as pernas junto com as ervas,
de baixo para cima.
Então foi João chamar a Santíssima Virgem e as outras santas mulheres. Maria
ajoelhou-se ao lado da cabeça, colocando sob essa um lenço fino, que recebera de
Cláudia Prócula, mulher de Pilatos e que trouxera ao pescoço, sob o manto. Ela e as
outras santas mulheres encheram então os espaços entre a cabeça e os ombros, em
redor do pescoço, até às faces de Jesus, com molhos de ervas, com as fibras e o pó
fino e feito isso, a Santíssima Virgem atou tudo com aquele pano, envolvendo cabeça e
ombros.
Madalena derramou ainda um frasco inteiro de um líquido aromático na ferida do lado
de Jesus e as santas mulheres puseram-lhe ainda ervas e especiarias nas mãos e em
redor dos pés. Os homens puseram especiarias nas axilas, na cova estomacal,
enchendo todo o espaço em redor do corpo, cruzaram sobre o seio os santos braços
entorpecidos e envolveram finalmente todo o corpo, junto com as especiarias, no
grande pano branco, até o peito, como se enfaixa uma criança; depois fizeram entrar
sob um dos braços já enfaixados a extremidade de uma faixa, com a qual enrolaram
todo o corpo, levantando-o e começando pela cabeça.
Feito isto, puseram-no sobre o pano grande, de seis côvados de comprimento, o qual
José de Arimatéia comprara e nele o envolveram. O corpo jazia obliquamente sobre o
pano, do qual dobraram uma extremidade dos pés até o peito, a outra, de cima, sobre
a cabeça e ombros; com as partes salientes dos lados envolveram o meio do corpo.
Todos se ajoelharam então em redor do corpo, para se despedirem, chorando e eis que
um milagre comovente se lhes deparou ante os olhos: Toda a figura do santo corpo,
com todas as feridas, apareceu na superfície do pano que o cobria, desenhado em cor
vermelho-escura, como se Jesus quisesse recompensar-lhes os cuidados carinhosos e
a tristeza, deixando-lhes o retrato, através de todo o invólucro.
Chorando alto, abraçaram o santo corpo, beijando e venerando a milagrosa imagem. A
admiração de que estavam possuídos, era tão grande, que de novo abriram o pano e
tornou-se ainda maior, quando acharam todas as faixas e ataduras do corpo brancas
como dantes; só o pano exterior trazia a imagem da figura do Senhor.
A parte do pano sobre a qual jazia o corpo, mostrava o desenho do dorso do Senhor e
os lados do pano que o cobriam, sobrepostos, apresentavam a imagem da frente,
porque na frente estava o pano dobrado sobre Ele, com vários cantos. A imagem não
dava a impressão de feridas sangrentas, pois todo o corpo estava envolto
espessamente em especiarias, com muitas ataduras; era, porém, uma imagem
milagrosa, testemunho da divindade criadora, que permanecera unida ao corpo de
Jesus.
Vi também muitos fatos da história posterior dessa santa mortalha, os quais, porém,
não sei mais contar na devida ordem. Ela estava, junto com outros panos, na posse
dos amigos de Jesus, depois da ressurreição. Uma vez vi que foi arrancada à uma
pessoa, que a levava sob o braço. Vi-a duas vezes nas mãos de judeus, mas também
muito tempo em diversos lugares, venerada pelos cristãos. Uma vez houve uma
questão por causa dela e para a terminar, jogaram a mortalha no fogo, mas foi
milagrosamente levada pelos ares e caiu nas mãos de um cristão.
Foram feitas três cópias da santa imagem, por santos homens, que puseram outros
panos em cima, com fervorosa oração, reproduzindo assim tanto a figura do dorso,
como também a imagem composta da frente. Essas cópias foram consagradas pelo
contato na intenção solene da Igreja e em todos os tempos têm sido instrumento de
muitos milagres.
O original, eu vi uma vez, um pouco estragado, com alguns rasgões, na Ásia, venerado
por cristãos não católicos. Esqueci o nome da cidade, que fica situada num vasto país,
vizinho da terra dos Reis Magos. Vi nessas visões também certas coisas de Turim e da
França, do Papa Clemente I e do imperador Tibério, que morreu cinco anos depois da
morte de Cristo; mas esqueci-as.
O enterro
Os homens colocaram o santo corpo sobre a padiola de couro, cobriram-no com uma
coberta parda e enfiaram em cada lado um varal, o qual me causou uma viva
recordação da Arca da Aliança. Nicodemos e José carregavam as extremidades
anteriores dos varais sobre os ombros; atrás seguravam Abenadar e João. Depois se
seguiam a Santíssima Virgem, sua irmã mais velha, Maria Helí, Madalena e Maria de
Cleofas e após elas, o grupo das mulheres que dantes estavam um pouco mais
afastadas: Verônica, Joana Cuza, Maria Marcos (mãe de Marcos), Salomé Zebedaei,
Maria Salomé, Salomé de Jerusalém, Susana e Ana, sobrinha de S. José, educada em
Jerusalém. Encerravam o séquito Cássio e os soldados. As outras mulheres, por
exemplo Maroni, de Naim, Dina, a Samaritana e Mara, a Sufamita, estavam então em
Betânia, em casa de Marta e Lázaro.
Dois soldados, com fachos torcidos, iam na frente, pois precisavam de luz na gruta do
sepulcro. Cantando salmos, em tom triste e baixo, caminharam cerca de sete minutos,
através do vale, em direção ao jardim do sepulcro. Vi na encosta, além do vale, Tiago o
Maior, irmão de João, olhar o cortejo e voltar depois, para o anunciar aos outros
discípulos, refugiados nas cavernas.
O jardim irregular, coberto de relva, que ficava diante do rochedo da gruta, na
extremidade do jardim, era cercado de uma sebe e além desta tinha na entrada uma
cancela, cujas trancas, com gonzos de ferro, estavam fixas em estacas. Defronte da
entrada do jardim, diante do rochedo do sepulcro, à direita, há várias palmeiras. A
maior parte das outras plantas são arbustos, flores e ervas aromáticas.
Vi o cortejo parar na entrada do jardim e abrir a cancela, tirando algumas trancas,
das quais se serviram depois, como alavancas, para fazer rolar para dentro da gruta a
grande pedra que devia fechar o sepulcro. Chegando ao pé do rochedo, abriram a
padiola e tiraram o santo corpo, deitando-o sobre uma tábua estreita, coberta de um
largo pano. Nicodemos e José carregaram as duas extremidades da tábua, enquanto
os outros dois seguravam o pano.
A nova gruta sepulcral fora limpa e perfumada pelos criados de Nicodemos; era bem
graciosa e no alto das paredes interiores tinha um friso esculpido. A cova mortuária
era, no lugar da cabeça, um pouco mais larga do que no lugar dos pés e havia sido
escavada na forma côncava de um cadáver amortalhado, com pequenas elevações no
lugar da cabeça e dos pés.
As santas mulheres assentaram-se em frente à entrada da gruta. Os quatro homens
desceram com o santo corpo do Senhor à gruta, onde o depuseram no chão; encheram
ainda parte do leito sepulcral de especiarias, estenderam sobre ele um pano,
colocando sobre este o santo corpo. O pano pendia ainda dos lados do sepulcro.
Manifestando ao santo corpo o seu amor com lágrimas e abraços, saíram da gruta.
Entrou então a Santíssima Virgem. Sentou-se à cabeceira de Jesus, à beira do
sepulcro, que tinha cerca de dois pés de altura e inclinou-se, chorando, sobre o
cadáver do Filho. Depois de Maria Santíssima sair, entrou Madalena, com ramos e
flores, que colhera no jardim e que espalhou sobre o santo corpo.
Torcendo as mãos e chorando alto, abraçou os pés de Jesus. Como, porém, os homens
lá fora insistissem em fechar o sepulcro, voltou para junto das mulheres. Os homens
dobraram sobre o santo corpo a parte pendente do pano, cobriram tudo com uma
coberta parda e fecharam as portas. Puseram uma barra transversal e uma
perpendicular; parecia uma cruz.
A grande pedra destinada a fechar as portas do sepulcro e que ainda estava fora da
gruta, tinha uma forma semelhante a uma arca ou um monumento sepulcral; um
homem podia deitar-se sobre ela. Era muito pesada e os homens rolaram-na para
dentro da gruta, com auxílio das trancas tiradas da cancela do jardim e encostaram-
na às portas fechadas do sepulcro. A entrada exterior da gruta foi fechada com uma
porta de ramos entrelaçados.
Todos os trabalhos dentro da gruta foram feitos à luz de fachos, porque dentro estava
muito escuro. Durante o enterro do Senhor, vi vários homens na proximidade do
jardim e do Monte Calvário, que, tímidos e tristes, andavam de um lado para outro;
creio que eram discípulos, que receberam de Abenadar notícias e, saindo das
cavernas, aproximaram-se através do vale e àquela hora estavam voltando.
Isso nos faz um contraponto, em relação ao modo cruel que nós próprios tratamos
ao mesmo Corpo Santo, no momento em que nos aproximamos da Eucaristia sem o
devido respeito, além do que, com a alma cheia de pecados. Também nos lembra da
forma pouco devota como assistimos ao Santo Sacrifício da Missa. De fato, depois de
ler revelações tão terríveis, não sei como alguém ainda poderá exigir gritos, palmas,
abraços e cânticos de festa durante a celebração, pois tudo parece nos exigir devoção
extrema e a mais profunda compunção interior.
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