O Homem Horizontal (Márcio Thamos)

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Márcio Thamos

O HOMEM HORIZONTAL
eda

2COQUEIROS

O HOMEM HORIZONTAL
Márcio Thamos

Edição © 2Coqueiros
Araraquara - SP
2021

ISBN
978-65-00-34617-6

Este livro está disponível para download no site


2coqueiros & Asterisco – edições livres
Márcio Thamos

O HOMEM HORIZONTAL
Sumário

O homem horizontal 11
Canção do tempo 012
Três rios 14
Flor essência 15
Dádiva de agosto 16
Borboleta amarela 17
No meio da rua 18
Invenção do poeta 20
O livro 22
Verbo haver 23
Fábula complexa 24
Bem-te-vi no amanhecer 27
Solitude 29
Infantil 31
Nonsense 32
Etílica 33
Feriado 34
Roteiro para um curta-metragem 35
O amor e a bandeira 39
Aula de literatura (1º semestre) 41
Poesia e imitação 42
Sucesso inédito da minha banda 43
Silêncio adentro 44
Figuras no olhar 46
Boizinho bailarino 47
Os cavalos cantores 49
A aurora hoje cedo 50
O verão que não verei 51
O mar convida 53
A fábula da estrela 54
Charada para Maurice Béjart 57
Bailarinas 58
Ritmos sofísticos 59
Fumaça 61
Vertigem vertical 62
Resumo de vida 63
Descartes dramático 64
Fábula verossímil 65
Aula de literatura (2º semestre) 66
Dona Maria Italiana 67
Mais nova canção do exílio 68
Um olho roxo 70
Os cadernos de Solano 72
O carrinho do Renan 73
O segredo do bichinho da goiaba 74
Crepúsculo lilás 75
Vedete enigmática 76
Almofada macia 77
Homo erectus 79
Monstrengo do tédio 80
Além de Deus 81
Três transmutações 82
Aula de filosofia 84
Girassol alemão 85
O caroço 86

O autor e suas bagatelas 89


Para Giovanna
O HOMEM HORIZONTAL
O homem horizontal

O médico decreta,
depois de analisar o exame:
Andar, não pode.
Sentar, não pode.
Não pode tocar violão.
Dei-ta-do, que a coluna arriou!

O homem voltou para casa,


deu telefonemas avisando aos amigos
que iria se ausentar por uns tempos.
Tomou banho e fez a barba, preparou
uma garrafa de café, bebeu
um bom gole de conhaque e depois
foi direto para a cama.

Infenso a todos os instintos verticais,


o homem permanece deitado.
Lendo um livro ou alisando o gato,
que procura carinho em suas mãos,
lá está o homem
– paciência de ferro paralela ao chão –
esperando uma resposta dos céus.

― O homem não pode nem ouvir falar


em ter que operar.

11
Canção do tempo

Haverá dias – hoje,


amanhã e depois. Não
há pressa. O tempo não
vai nem vem: aqui está
presente em cada instante
e nos saúda fluidamente
e se acomoda, cheio de preguiça,
feito poeira nos móveis.

O relógio na parede é uma gaiola


que aprisiona um pássaro fugidio.
Não tem poder nenhum sobre o tempo.
Não merece mais confiança
que qualquer outro objeto da mobília.
Quem bem reparar verá
que todas as coisas
a relógios se equivalem.

Não há pressa.
Não há inimigos
nem há perfeição.
Antes e depois de agora,
muito antes e depois de nós
– durante, durando sempre –,
somente o tempo.

12
O tempo niilista,
cantando uma canção dadá
saída da
memória de tudo o
que já foi e ainda
será.

O tempo inconformista,
cantando uma canção revolucionária,
que promete no refrão
um dia ser revogada a lei
da gravidade.

13
Três Rios

Um rio sem peixe é rio sem


tido sempre como rio:
baldo está da carne e não
do desejo de servir.

Um rio desejo é rio de


mora e demora a mostrar
os frutos todos que tem:
a seu tempo os dá por bem.

Um rio tempo é este agora


correndo manso no nada
do metro incerto que invento:
fluido em si mesmo, sem água.

14
Flor essência

Nem tudo são flores.


Mesmo assim, tudo um dia,
mais cedo ou mais tarde,
haverá de florescer.

15
Dádiva de agosto

A natureza tende ao equilíbrio.


Agosto é grande prova disso,
mês de cachorro louco e de ipê florido.

Só de ver aquele amarelo afetuoso


aquecendo a paisagem fria,
o cachorro suspira de gozo,
de repente fica bom
e amansa de alegria.

Depois vai e dá uma mijadinha


gostosa no pé do ipê
que é pra aliviar a bexiga
e ao mesmo tempo agradecer
à Terra, ao Sol e à Chuva
por essa dádiva numa curva
duvidosa do entardecer.

16
Borboleta amarela

A vida passa, a vida pesa,


queria ser uma
borboleta amarela.

A vida pesa, a vida passa,


e passa a borboleta
pela minha janela.

A vida é bela, a vida é bela,


queria ser essa
borboleta amarela.

Queria menos, queria ser


só o amarelo
das asas dela.

17
No meio da rua

Tinha uma lata vazia no meio da rua,


uma rua sem saída
por onde eu vinha solitário e triste,
num dia sem sol,
pela selva de pedra,
sentindo a perda
que eu não sabia expressar,
que eu não sabia de quê,
a perda...
que me fatigava
e me esvaia os sonhos
e me impunha a sua presença
e insistia em caminhar ao meu lado.

Mas tinha, no meio da rua,


uma lata vazia,
como já disse e vou repetir,
no meio da rua
tinha uma lata vazia.

Como passei perto, não vacilei,


tasquei-lhe um bico assim sem mais,
por puro desenfado: ela saltou de banda,
rolou prum lado, e eu fui embora,
corri pra casa, deixei a perda
se perder pelo caminho.

18
O negócio era ver
se eu tirava um poema
de uma lata vazia
que tinha no meio da rua
por onde eu vinha um dia
cheio de sonhos na cabeça e sentindo
a perda que eu não sabia de quê,
a perda que me seguia pela rua
escura e sem saída.

Mas se fosse uma pedra,


pensei comigo,
chutava também,
o que é que tem,
o que é que tinha?
Tinha uma lata vazia e tinha
a perda
nem sei do quê...

19
Invenção do poeta

A poesia desconhece enredos e tramas


que não sejam os de suas próprias palavras.
O poeta quer ir por aqui,
a passos seguros, pé ante pé;
o poema já pôs sebo nas canelas,
levantando poeira, dando saltos vitais
e cambalhotas loucas, completamente surdo
aos apelos do poeta.

Poesia adora correr e se molhar,


pular em poça d'água,
pôr barquinho de papel pra descer
rente à guia da calçada,
por isso nunca sai de guarda-chuva
– sabe que o sol depois volta.

Já poeta é melindroso;
e mesmo pós-moderno,
tem sempre umas frescuras.
Olha pro arco-íris e fica lembrando
um outro poema colorido,
só pra ver se sabe de cor.
Enquanto isso, lá na frente, a poesia
já pulou no pote de ouro!
Quando o poeta vai ver...
— Cadê o poema que estava aqui?

20
Parece que não era esse...
E não era mesmo!

A poesia inventa o poeta apenas


para se desincumbir da necessidade
circunstancial de um suporte articulado
para a pena com que se escreve.
O poeta empresta-lhe o punho,
e ela, alheia a humanas vaidades,
sorri generosa quando ele assina
ao pé da página o próprio nome
e logo abaixo, orgulhoso de si mesmo,
acrescenta conscienciosamente a data para
mais tarde satisfazer aos seus biógrafos.

21
O livro

Estou escrevendo um livro


já faz certo tempo.
Um livro só meu, o único
que escreverei a vida inteira.

É um livro artesanal,
encadernação de capa dura,
as folhas do miolo
costuradas com capricho.

Escrito à mão, ele segue


em fluxo contínuo,
sem intervalos para revisão
(se falha uma caneta,
ou ela se extravia, pulo uma linha
e um novo capítulo começa).

Quando estiver terminado,


talvez valha a pena
alguém folheá-lo.

22
Verbo haver

Haverá verbo mais raro


que o ligeiro verbo haver,
forma elegante e discreta
que com tudo tem a ver?

Ser e estar são preciosos,


mas haver não tem igual,
verbo sempre tão distinto,
com um charme impessoal.

23
Fábula complexa

Há muito tempo, a questão da existência


sempre perturbava o homem, animal
naturalmente inseguro pelo fato
de não saber de onde viera.

Os outros animais, embora também


não fizessem a menor ideia
de onde tinham vindo,
não se angustiavam com o problema,
até porque não consideravam
sua própria origem um problema
(isso, para eles, só evidenciava
o complexo complexo de inferioridade
do homem, o único preocupado
em se justificar constantemente
perante os seus colegas de existência).

Assim, o homem se punha a pensar


e tanto pensou que chegou a encontrar
uma brilhante solução:
existia justamente porque pensava,
e toda a explicação se encerrava aí!
Contudo, o rigor lógico dessa conclusão
não atingiria a limitada compreensão
das massas selvagens, pensou
também o homem.

24
Valendo-se de sua razão,
agora mais bem desenvolvida
pelo longo exercício de existir
(ou de pensar, o que, afinal,
dava na mesma!), o homem
tratou de adotar uma justificativa
mais popular, que pudesse ser
amplamente aceita.
E, então, apegando-se às mais modernas
técnicas de marketing pessoal,
acabou por reciclar
antigas crenças que julgava ultrapassadas
e criou de si mesmo uma imagem
e, a partir dela, um deus,
o qual, à sua própria imagem
e semelhança, teria criado o homem.

A onça e o jacaré, o pato e o jabuti,


o macaco e o leão e todos os outros animais,
notadamente a coruja, continuavam
a não se incomodar com a questão e,
na verdade, achavam aquele comportamento
do homem um tanto pueril,
mas, condescendentes, diziam
uns aos outros: "Tudo bem!
Se isso faz com que ele se sinta melhor,
não vamos criticar".

E, realmente, o homem, na posse dessa ideia,


em geral sentia-se melhor, confiante
na própria superioridade em relação

25
aos seus semelhantes, devido à semelhança
dele com o deus que ele mesmo criara.
Não obstante, às vezes, sem qualquer motivo,
uma risada que soltasse de avesso a hiena
em conversa sem importância, o homem
chegava a duvidar, ele próprio, da plena
convicção que tinha e caía em depressão.

Recentemente, filósofos neocínicos


da Universidade Geral do Reino apresentaram
uma proposta de abordagem da questão
em termos de

Moral múltipla escolha:


a) Quem pensa sempre alcança.
b) Querer é poder.
c) O ócio é pai do vício.
d) Imitar é natural ao homem,
e) isso lhe dá prazer, como já dizia Aristóteles.

Mas foram criticados por estudiosos


de diversas áreas do conhecimento
– desde zoologistas e antropólogos
até behavoristas bem intecionados
e mecatrônicos esclarecidos –
por não terem incluído
em sua perspectiva epistemológica
uma possibilidade alternativa
mais ampla e condizente
com o tamanho do problema:
f) N.d.a.

26
Bem-te-vi no amanhecer

Passarinho que bem-me-viu,


bem-te-ouvi, bem-te-ouvi!
Que cedo que me acordou, passarinho,
mas que trilice urgente é essa!
E como pode me ver tão bem
se o próprio sol mal despertou,
e eu nem abri ainda
as folhas da janela?

Passarinho que bem-me-viu,


fico feliz por você,
porque se alegra com tão pouco:
bem-me-veja mesmo ou não,
tudo é pretexto para o seu canto.

Também já fui assim um dia, passarinho


(ah, bem-me-visse então!),
e cantava só de alegre
e achava tudo tão bonito e bom
que nem me incomodava
com aquela propalada
impossibilidade normativa
do emprego dos pronomes
pessoais da segunda pessoa
do sing., caso oblíquo, átono,
us. nas posições sintáticas

27
em que não exerce a função
de sujeito da oração,
equivalendo ao
oblíquo objetivo direto da
terceira pessoa do sing.,
mesmo que a tal inadequação
fosse apontada até, como aqui,
para o gasto de qualquer
conversa corriqueira
em lírica ligeira.

Mas essa noite, passarinho,


quando deitei, eu já trazia
o peito embatucado.
A gente cansa, bem-me-ouviu?
Veja bem, passarinho,
ainda é muito cedo.
Por que não vai bem ver
se eu estou lá na esquina?
Me deixa quieto aqui,
não tenho asas pra bater
assim quando bem quero.
E pra voar, passarinho,
eu tenho é que sonhar.

28
Solitude

Estou só.
O dia todo, o telefone não tocou.
Nenhuma voz doce pronunciou
meu nome do outro lado da linha.
A chance de alguém aparecer
me trazendo uma caixa de bombons
praticamente não existe.
Por isso ainda não tomei banho
nem quis escovar os dentes.
O asseio só faz sentido quando existe
a possibilidade da sedução.
Mas passei desodorante nos sovacos
e comi uma maçã.
Quero aproveitar para tomar sol
enquanto a noite não vem.

Talvez devesse estar triste,


mas há dias não sinto nada.
Sonho com aspargos.
Não me lembro de rezar.
Lá fora, os automóveis, inquietos,
passam rugindo pra botar medo
nos pedestres curiosos.
Carros é a melhor coisa que inventaram
pra gente poder namorar sossegado.
Mas hoje não preciso deles.

29
Não preciso de mais nada que não seja
um bom disco pra ouvir bem alto
e esta garrafa de vinho tinto.

30
Infantil

Menininha quando nasce


se esparrama pelo chão,
batatinha quando dorme
põe a mão no coração.

Pedi um pouco d'água,


me trouxeram aguardente;
isso mesmo que eu queria,
fiquei bêbado e contente.

31
Nonsense

Cigarro é o parceiro da cigarra,


mas cantar, não canta nada.

O tesouro é louco pela tesoura,


por ela, só não rasga dinheiro.

Jabuti adora jabuticaba,


mas não sabe subir no pé.

Domingo pede cachimbo,


só que a cinza queima o dedão.

32
Etílica

saciar a sede
sustentar a calma
sufocar o medo
seduzir o instinto

transbordar o copo
naufragar o corpo
ancorar a mente
afogar a dor

33
Feriado

As vacas dormem sobre os fios de eletricidade.


Um elefante pobre passeia pela rua.
Entre os astros, um boneco de papel
dá cambalhotas incríveis. A noite é quase clara.
Da janela, contemplo a paisagem mágica,
ancestral.
A vida é simples e foi sempre assim.
Só o que me incomoda são essas manchas na lua.
Com cuspe e com flanela vou lustrando a cara
dela até de manhã cedo,
que lua foi feita pra ser branca, muito branca!

34
Roteiro para um curta-metragem

Me formo na faculdade.
Tanto faz, de medicina ou de direito.
Seja como for, aprendi um pouco de latim
para impressionar minhas tias da capital
e alguma namorada no interior.
Depois, escolho no mapa
uma cidade de praia
– dessas onde ainda não chegou
reciclagem de alumínio
por falta de lata pra catar –,
compro uma rede de dormir,
uma barraca fácil de montar
e vou.
Levo o diploma na bagagem
só para provar que sou doutor
e passo o dia ao sol fazendo pose,
de óculos escuro na cara
e uns livros de filosofia no colo.
Quando passa uma moça bonita,
eu faço um verso;
quando o tempo ameaça chover,
eu faço outro.
Quando a moça volta com pressa,
não acho a rima;
quando o céu começa a pingar,
eu fecho a quadra.

35
Entro na barraca e fico
tomando água de coco
– não tem coisa mais saudável.
Quando a chuva para,
vou caminhar pela areia
e fazer alongamentos
pra cuidar bem da coluna.
O mar eu deixo pros peixes.
De vez em quando, dou um mergulho,
mas volto logo pra descansar.
De repente, começo a sentir
um tédio dessa vida.
Ameaço me afogar na bebida,
mas monto uma jangada de pescador,
telefono pra uns amigos bem relacionados
e vamos fazer um filme documentário
patrocinado pelo governo.
No filme, eu sou um caiçara.
Moro na beira do mar,
acordo cedo todo dia pra pescar,
só volto à noite, com a maré baixa,
nem sempre trago peixe na rede.
Lá em casa, tem um monte de gente
que depende de mim. Eu sofro.
Depois, cansei desse enredo
e entreguei o filme para a montagem
sem terminar. Na edição,
a gente põe umas panorâmicas bonitas
com o sol se afundando no mar
e a silhueta da jangada ao vento, ao longe.
Isso e uma canção cantada por Caymmi
resolve tudo: o filme vira cult.

36
O sucesso da fita me incomoda
– os críticos me comparando ao Orson Welles.
Eu faço um discurso tranquilo:
só pra marcar posição,
agradeço ao Ministério da Cultura,
elogio a lei Rouanet,
e anuncio meu retiro
para um balanço de carreira.
Pego um trem pra Machu Picchu,
apareço em São Tomé das Letras.
De vez em quando, eu fico
lembrando a moça da praia.
Solto uns suspiros pelas montanhas,
bate um vento no meu rosto,
e eu faço uma cara de triste.
Começo a sentir muita sede,
uma sede progressiva
(é uma sequência conceitual):
a cada dia preciso beber
um copo a mais de água.
Depois é Carnaval e chove muito:
a sede passa.
A saudade faz de conta
que vai se esquecer de mim,
eu também disfarço
e nunca me lembro dela.
Assim longe do mar, é mais fácil mentir,
não tem a brisa que amolece a gente.
Reparo nisso de estalo e aproveito
– agora, diante do espelho,
eu pisco um olho e já sei:
é tudo verdade!

37
Pego minha jangada
(aqui, um erro de continuidade
que pouca gente percebe)
e vou atrás da moça dos versos
que ficou na praia
sem ver meu filme.

38
O amor e a bandeira

Meço o tempo ouvindo sinfonias delicadas.


Só hoje foram três, três vezes cada uma.
São metros e metros de partituras todo dia
para preencher o vazio
do silêncio ao meu redor.
Enquanto isso fico na cama exercitando
virtudes com disciplina: vou terminar
este grosso volume de História do Brasil.

Minha pátria é a Poesia


é o que eu sempre quis dizer.
E acho que bandeira dispensa,
por natureza, qualquer frase
que não seja de algum verso de Virgílio.
Mas se os republicanos positivistas
encasquetaram com o lema de Comte,
por que diabos não deixaram "o amor",
que figurava "por princípio", antes de
"a ordem por base e o progresso por fim"?
Alguém duvidaria que amor
também convém a repúblicas?
(Certamente nem Platão,
que da sua exilava os poetas).

Um vaga-lume de luz verde-


-acetinada invade o quarto.

39
Apago a luz, e no escuro
ele aviva seu neon
traçando incompreensíveis
mensagens pelas paredes.
Me faz sorrir como criança.
Nesse momento eu quase perdoo
os militares sisudos
que dispensaram o amor...

Mas, num susto, acendo a luz


e trago à tona a consciência
mergulhada em sinfonias:
― E que valor daria ao perdão
quem foi capaz de excluir desde o início
o amor por princípio?

40
Aula de literatura (1º semestre)

O poema parecia sem graça e difícil de


despertar emoção, enlevo, sentimento
de beleza, apreciação estética, etc.
Mas a explicação do professor parecia
tão solidamente amparada
em teorias e minúcias eruditas,
que a classe toda se convenceu
de que o texto era mesmo
pura poesia.

Depois de se formar,
o pior aluno da turma
dava aulas de Filologia
e publicava em revistas indexadas
pelo menos dois
artigos acadêmicos por ano
em que dissecava
obras poéticas.

41
Poesia e imitação

Mesmo Homero merecia


a severa punição:
ser banido da República,
como queria Platão.

O poeta é imitador
e a verdade não revela,
finge o mundo com sua arte,
com sua arte bagatela.

O difícil é saber
por que precisamos dela:
a verdade será triste,
e sem arte não há trégua?

Ou Platão estava errado


no ideal de ver um mundo
onde tudo era perfeito
e não tinha vagabundo?

42
Sucesso inédito da minha banda

Depois de muitos anos, tocou


no rádio do meu coração:

"As noites vêm e vão,


e a escuridão fica em mim;
eu sei que é tarde, é muito tarde,
mas o silêncio não me deixa
dormir".

43
Silêncio adentro

O poeta não usa palavras em vão,


constrói pontes, estreita distâncias
entre realidades possíveis
e mundos desconhecidos.

É quase filósofo o poeta,


só trabalha com matéria
mais palpável e olhável,
mais cheirável e ouvível
– embora nem sempre palatável.

O poeta vive para aprender


a sentir nas próprias mãos,
o peso de cada palavra.
Por isso, quando em vigília,
não se deixa seduzir pelo efeito
pirotécnico de uma frase
que não tem outro sentido senão o
de se consumar como efeito
pirotécnico.

Por intuir o sentido reinante


silêncio adentro, o poeta
deseja interpretá-lo
vida afora.

44
Silêncio...
Silêncio cor da aurora.
Vou despertar devagarinho,
já quase que amanheço agora.

45
Figuras no olhar

Nos ladrilhos ou nas nuvens,


sempre vi figuras estranhas.
Algumas engraçadas,
outras que despertam compaixão.
Rostos multiformes que se mostram
conforme o olhar que os mira.

Jamais duvidei da existência desses seres.


Quando criança, me divertiam
ou punham medo.
E não adiantava mais fechar os olhos:
ao cerrar as pálpebras,
as figuras se imprimiam
com novas cores nas retinas.

Serão talvez espíritos do ar


manifestando mansamente
sua presença entre nós.
Serão mistérios permanentes
para quem os queira ver.
E – não importa o que digam
os insensíveis – farão sempre
mais sentido do que o fato
de pijamas terem bolsos.

46
Boizinho bailarino

Quando a noite lá fora


estrelece de vez,
e um sereno sutil
insiste que insiste
em marejar dos olhos
da criança ainda
acordada aqui dentro,
lá vem ele, lá vem,
de rijo couro negro vestido,
meu boizinho-bumbá,
bumbando só pra mim.

É um boizinho de barro cozido,


cara vermelha, enfeitado de fitas
singelas, azuis e amarelas,
pendurado no batente da janela.
De coleira branca e sino
opaco preso ao pescoço,
pula de improviso no ar,
solta um mugido grosso
e vem, lá vem ele,
meu boizinho voador,
simulando na dança
a braveza imaginada
em toada de estrofe e refrão,
batendo baixo, botando baba,

47
berrando, berrando, vindo
e voltando, quadrupedando
astuto na penumbra do abajur.

Com ternura estropeada,


dança doido o meu boizinho
uma dança encapetada
que não chega mais ao fim,
que não pode se acabar,
que não pode se acabar
mas no fim vai se acabando,
vai virando festa mansa,
acalanto, cafuné
que em mim mesmo então enrolo,
sonolento enrolo até
sossegar esse menino
que tem medo de balé.

48
Os cavalos cantores

Os cavalos cantores,
passeando na noite,
se divertem nas nuvens
e desdenham do açoite.

Os cavalos cantando
trotam livres ao léu,
vão fazer serenata
às estrelas do céu.

Os cavalos cantores
não tropeçam em nada,
ferraduras macias
de pisar madrugada.

Os cavalos cantando
perambulam sem rumo,
inventando canções,
assobiam, e eu durmo.

49
A aurora hoje cedo

Meu grito afiado feriu


a face escura da noite.
Ela escorria em vermelho
quando o dia sorriu.

O tom encarnado, aos poucos


desbotando em aquarela,
misturou-se ao azul da manhã
e produziu a cor do crepúsculo.

― Hoje cedo, ninguém sabe,


mas a aurora nasceu
foi do meu desespero.

50
O verão que não verei

O verão vai passar,


e eu não vou com ele.
Vou estar aqui,
vendo o sol na janela
e querendo ver o mar.

Verão é quando os corpos têm mais cheiro,


e os cheiros mais amores.
Quando a gente pode fazer sexo gostoso
e dispensar o cobertor.
Verão é tempo de cores fortes
e desejos a pino.
Quando a função básica da vida
– engendrar-se a si mesma –
fica mais favorecida.

No verão, tem Carnaval


e outras coisas naturais.
Tem mulher que samba pelada,
tem mulher sem biquíni na praia,
tem mulher pra todo lado
querendo abusar da gente.
Certamente outros virão,
mas só este será este
– cada estio tem seu estilo.

51
O verão vai passar,
e eu não vou com ele.
Vou estar aqui,
vendo o sol na janela
e sonhando com o mar.

52
O mar convida

Aquela conchinha
ao lado da cama
é o mar que me chama.

A tarde cedeu,
o sol arriou,
a noite surgiu.

Bocejo com sono


o dia enfadonho,
e o mar me convida.

A tarde caiu,
o sol despencou,
a noite desceu.

E a voz da conchinha,
baixinho a chiar
me chama pro mar.

53
A fábula da estrela

Naqueles dias, enquanto a noite calava,


era comum ouvir disparos surdos,
estrondos roucos, abafados pela escuridão.
E pouca gente reparava que
na noite seguinte o céu estava
mais apagado, menos cintilante
que no dia anterior.

Num desses dias, ouvi, no meio da noite,


um estampido de longe, um tiro seco
que entrou de repente no meu sonho.
Acordei assustado a tempo de olhar
pela janela e ver uma estrela
purpurina riscando um arco no céu.
Ela caía silenciosa sobre a praia
e veio se apagar na areia,
ao pé do grande farol vermelho.

De manhã cedo, nem bem raiava o dia,


corri até lá pensando em quem sabe, talvez
poder resgatar a estrela abatida.
Eu não tinha certeza se tudo não passava
de um sonho estranho e sombrio.
Mas ao contornar o farol pude ver:
lá estava ela, quase toda enterrada na areia;
só a ponta de uma das pontas

54
teimava em despontar do chão,
apontando ainda para o céu.
Levei a estrela para casa,
e ela não brilhava, estava seca,
sem luz e fria.

Dias depois, ao ir me deitar,


notei uma pequena fagulha
tremeluzindo na estante do quarto:
era a estrela que, afinal, estava ainda
viva e queria brilhar!
No meio da noite percebi
que ela emitia uma claridade
cada vez mais intensa, um raio vibrante
que se espalhava ao redor
como querendo se comunicar.

Olhei pela janela, e lá estava


o grande farol vermelho na ponta da praia,
seu olho bem aberto para o mundo,
o grande farol que avisava:
"apesar das balas perdidas e achadas,
no fundo da noite escura a vida
renasce e reflui".
Saltei da cama inspirado,
abri a janela e depositei no parapeito
a estrela caída.
Ela começou a faiscar um brilho forte,
acendendo as cinco pontas de uma vez.
Aos poucos transformou-se
numa chama transparente e cintilante,
leve como a luz... e foi subindo

55
lentamente dentro da noite
até se fixar, radiante, no alto do céu.

Então, por toda a orla pude ver que centenas,


milhares de estrelas enterradas na areia
começavam a piscar e a reluzir.
Assim à distância era como uma festa
de pirilampos na praia.
Dali a pouco, levitando,
subiram também para o céu,
e a noite, que andava apagada e entristecida,
de novo se iluminou
e como antes
voltou a sorrir.

56
Charada para Maurice Béjart

O que há de comum
no revoo dos pássaros,
no farfalhar das folhas,
no balanço do barco,
no tremular da chama?

– A dança!

57
Bailarinas

Beijar os pés das bailarinas


é o que eu queria
– beijar, beijar, beijar.
É o mínimo elogio que lhes devo
por serem tão jovens,
por serem tão lindas,
e não quererem outra vida senão
dançar, dançar, dançar.

As bailarinas pensam que me enganam.


Atrás das cortinas,
fazem-se de tímidas testando
o bico das sapatilhas com mãos delicadas.
Mas depois, soltam-se no ar
e viram doidivinas ninfas de Vênus
e já não sentem pudor
e vivem no puro prazer
da primavera abissal
que trazem na ponta dos pés.

Não obstante a natureza dissoluta,


bailarinas são meninas
meigas de alma disciplinada
que aprenderam a modelar o tempo
no ritmo de seus corpos.
Por isso não envelhecem nunca,
e seus pés eu quero beijar.

58
Ritmos sofísticos

O tempo se dispersa
lentamente pela casa
em grandes baforadas
de um cachimbo ruim.

Silêncios intermitentes
jorram ritmos sofísticos
na tarde que agoniza até a lua aparecer.

Inevitáveis poemas tolos


por um momento
chegam a parecer bons.

Ritmos sofísticos jorram


silêncios intermitentes
na madrugada que uiva até o sol nascer.

As palavras estão inertes;


os signos, estagnados – sentidos inacessíveis.
Os anjos ainda estão dormindo,
e as folhas não se mexem nas árvores.

O orvalho nas flores enfim se condensa,


a letargia da noite se aninha entre os ramos,
e enquanto a luz fresca do dia
se estende mansamente sobre o mundo,

59
a aurora, clarinha,
chora baixinho
uma chuva fina
que lava-me a alma
e enche a piscina.

60
Fumaça

Acabou o cigarro,
não veio a inspiração...

Sobrou fumaça pelo quarto


e um gosto amargo no céu da boca.

Se eu fumasse de verdade eu tragaria


mas acho que me estragava os pulmões.

Não vale a pena, não!


Poesia não se faz de fora pra dentro.

Depois também, onde há fumaça há cinza,


e eu quero mais é alegrar meu coração.

61
Vertigem vertical

Uma folha em branco é um problema:

jogar-
-se
num
abismo e
continuar
caindo
dentro
dele
sem
poder
prever
o
ponto
final
...

Uma solução é um poema.

62
Resumo de vida

Num canto morto da sala,


junto ao telefone fixo,
um bloquinho de rascunho:

alguns recados supostamente


urgentes, dois ou três pensamentos
anotados com pressa, rabiscos
aleatórios preenchendo todas
as margens.

(O telefone toca e ninguém atende;


no vaso ao lado, as flores
ficaram por regar).

63
Descartes dramático

Penso, logo: hesito...


Sou ou não sou? Eis a questão
descartada pelo príncipe da Dinamarca.

64
Fábula verossímil

"O voo de um pássaro encerra em si


toda a verdade"
– ao descer a montanha,
disse um dia
um grande sábio.

Seus seguidores resolveram então


elucidar a lição do mestre
e trancaram o pássaro
numa gaiola a fim de observá-lo
com todo o rigor.

65
Aula de literatura (2º semestre)

O poema parecia intrigante e capaz de


despertar emoção, enlevo, sentimento
de beleza, apreciação estética, etc.
Mas a explicação do professor parecia
tão metodicamente complicada
por teorias e minúcias eruditas,
que a classe toda se convenceu
de que o texto mesmo
era mero hermetismo sem nexo.

Depois de se formar,
o melhor aluno da turma
dava aulas de Filologia
e publicava em revistas indexadas
pelo menos dois
artigos acadêmicos por ano
em que dissecava
obras poéticas.

66
Dona Maria Italiana

Sem mais, lembrei-me de Dante


e seu toscano feliz.
Por que teria evitado
cantar na língua dos sábios?
Tamanha ousadia então
não haveria de ser
pura aventura ou capricho.

As vozes da minha infância


ecoam o bom dialeto.
Dona Maria italiana,
vizinha da casa ao lado,
faz massa de macarrão
e canta com bom sotaque.
Dona Maria italiana,
amiga da minha mãe,
não quis saber de Camões
e seus mares nunca dantes.
Era fiel à sua língua
ainda mais que o poeta.

Quando foi ler a Divina


Comédia, dona Maria
fez pouco até de Virgílio:
pulou Purgatório e Inferno
– foi direto ao Paraíso.

67
Mais nova canção do exílio

Longe, bem longe daqui


– lá, palmeira e sabiá:
retrato do Paraíso.
A palmeira é majestosa,
o sabiá, bom cantor.
A palmeira tem a sombra
mais fresca da região,
e aplicado é o sabiá,
gorjeia todo o Pozzolli.

Se puder sair daqui,


é pra lá que eu me despacho.
Não aguento mais o caos
do trânsito na cidade,
não aguento mais ficar
de pé em fila de banco
– tudo me dá dor nas costas.

Lá, ninguém sabe o que é pressa,


nem estresse ou paranoia
– alcaloide é liberado.
Nunca tem notícia-bomba
pra gente ver na telinha.
Lá, o negócio é comer,
beber, dormir e sonhar...

68
Mas depois, é bem capaz
que me desgoste a palmeira,
que o sabiá me aborreça,
que me bata uma saudade
oca como uma cabaça,
e eu volte de mala e cuia,
cansado de tanta paz.

Sempre vale a experiência,


ninguém perde por tentar,
mas no fundo, quem não sabe
– o poeta já dizia! –
que lugar de ser feliz
só existe dentro da gente?

69
Um olho roxo

Um soco na cara agora eu queria.


Me dou conta do fato tão tarde:
jamais tomei um murro no centro de um olho.
Será que alguém se torna um homem sem isso?

De que vale essa paz interior


se lá fora há uma guerra de verdade;
lá, no mundo real, onde as pessoas
têm medo e fome e espadas sobre a cabeça?

Não sou das ruas, não sou de brigas,


não conheço as grandes mazelas da vida.
Preferi sempre o conforto da casa,
onde eu podia sentar e ouvir Bach.

Se na minha infância houvesse um piano,


talvez eu nunca aprendesse a tocar.
Mas teria sido bom um piano
sólido na sala ressoando harmonia.

Hoje, se tivesse um piano em casa,


eu tocava uma música macia
e esperava a vizinha ir dormir tranquila
pra depois destruí-lo a machadadas.

Metade da vida, passei só, entre livros,


e não tenho graves queixas de mim.

70
Mas que faço que ainda aqui permaneço,
por que não entreabri a porta da rua?

Essa noite, eu tive um sonho honesto:


em bares sujos, nos becos escuros,
tomava um porre com amigos drogados,
dançava bolero com as prostitutas.

Quem é que tem paciência para ler


tanto, notadamente poesia?
Por que é que os poetas deixaram os bordéis
e foram todos parar na Internet?

A raiva e o nojo da vida asséptica


pouco a pouco se apoderam de mim.
Mastigo carne e não tenho mais vontade
de arrancar o fiapo de entre os dentes.

O mundo civilizado é um labirinto.


Nele, mora um monstro moralista que vive
recitando fábulas noite e dia.
Se eu não fujo dele, ele me devora.

Estou decidido: é hoje, é agora!


Vou pra rua, vou caçar alguém
que me dê um soco bem dado na cara
pra eu poder revidar de punhos cerrados.

Amanhã, quando o sol clarear,


quero olhar e ver no espelho um olho roxo.
Sem masoquismo nenhum, vou sorrir
e saber: sou poeta mas não sou frouxo!

71
Os cadernos de Solano

Amor à liberdade,
amor e generosidade,
amor incondicional
foi o que encontrei
nos cadernos de Solano.

Nas faces de sua Trindade


imprimem-se todas as rugas do amor.
Nas páginas de seus cadernos
ressoam tambores ancestrais
em desengravatados ritmos
que encorajam a encarar
de peito aberto o rugir
da vida feroz.

Uma lágrima ficou presa em meus olhos


e enfim rolou quando fechei
os cadernos de Solano.
Uma lágrima fresca e matizada
como o orvalho das flores
refletindo a luz da manhã.

72
O carrinho do Renan

"Oi, tio, vem ver! Olha o que eu fiz:


um carrinho que carrega pilhas nas costas!"

É um carrinho elétrico, só rodas e motor,


que carrega duas pilhas embutidas no chassi.
Sai andando lento, trôpego, o carrinho,
mas carrega sim, carrega pilhas nas costas.

"Um carrinho que carrega,


um carrinho que carrega,
um carrinho que carrega pilhas nas costas".

— Mas... isso era um brinquedo


ou um poema?

73
O segredo do bichinho da goiaba

Semente de encanto brotando ao sol,


a criança ensaia seus primeiros passos.
Não se sabe ainda inteiramente à parte
da Natureza; não é um ser só,
individualizado no mundo.

Corre com prazer em qualquer direção


– todas lhe convêm, todas são caminhos
a serem pisados sem medo algum.
Não há do que se prevenir, não há
nem sequer a ideia de prevenção.

Existe um mundo, e está-se nele agora.


Vê-se que é belo e grande, sem fronteiras
que separem aqui dentro de lá fora.
Vê-se que é colorido e luminoso
esse mundo, quase como um sonho.

Grama verde, céu azul, terra vermelha,


água boa de a gente se molhar.
Onde é que isso tudo começa, onde é
(se é certo que acabar nunca se acaba)?
― É o segredo do bichinho da goiaba!

74
Crepúsculo lilás

O sol, descendo a ladeira purpurina


que leva a um pacífico oceano,
saiu de cena outra vez em grande estilo.

No céu, deixou fiapos de laranja,


doce cor que nos aquece
e reconforta com fúria mansa.

Boa noite, ó Sol! Bem-vinda, dona Lua!


O sono agora não tarda
trazendo sonhos feéricos.

Vamos dar rédea a enredos e montá-los


com o desembaraço de quem conta
anedotas para os seus cavalos.

Amanhã, retomamos gravemente


nossa arte cartão de ponto,
descolorida e literal.

Mas, se tivermos sorte, um outro


há de haver, mágico, lilás
crepúsculo para nos poetizar.

75
Vedete enigmática

Essa noite, nem São Jorge,


nem dragão, nem coelhinho branco
– essa noite, a Lua era uma imensa
coroa de prata brilhando
entre as nuvens do céu.

De repente, ela virou-se, chegou mais perto,


e sua cara luminosa preencheu
toda a janela do meu quarto.

Ela, então, teatralmente me encarou,


se fez de séria, mas deu logo um sorriso
monalísico, assim como quem não
quer dizer nada mesmo, e perguntou:

Para o francês, o revoar


dos pássaros será sempre
um espetáculo de despedida?

Depois, numa risada esfíngica


de vedete canastrona e fingida
jogou-me um beijo e foi-se embora,
alheia a qualquer resposta,
se encontrar com dona Aurora.

76
Almofada macia

Tudo em mim jaz dissonante.


Às seis da manhã, ainda
sem dormir, quero escrever.
Até agora não penso
em nada nem sei qual será
o próximo verso... este:
noite repleta de luz,
chegou o jornal como estrela
cadente por sobre o muro.
Não vale a pena ir pegá-lo,
as notícias são de ontem.
O domingo permanece
como possibilidade
latente de acontecer
alguma coisa que não
acontece simplesmente.
Preciso de uma figura
com urgência ou meu poema
vai agonizar até
tornar-se menos que prosa
rala de revista à toa
em espera de dentista.
Sorrir é fundamental,
amar depende da gente.
Meus olhos são portos rasos
de partida e de chegada,

77
seja lá o que com isso
eu queira dizer; talvez
que a forma vale a expressão.
Escrevo este poema agora
não por medo de esquecê-lo,
mas porque se deixar para
mais tarde ele será outro.
Nenhum deles servirá
para lapidar meu espírito,
mas com sílabas eleitas
doma-se às vezes o caos
que vai por dentro da gente,
cria-se a doce ilusão
de que a beleza é adestrável,
chega-se a acreditar
que a natureza tudo aconchega
no ardor de seu afago primordial.

― Uma almofada macia


resolve muito na vida...

78
Homo erectus

A gravidade e o medo, como pesam!


Meu corpo irresistivelmente atraído
para o centro da Terra,
minha alma esmagada pela pressão
concreta da incerteza.

Quanta força faz um homem


para poder colocar-se de pé!
A Natureza e tudo mais o querendo
rastejante pelo chão,
e ele a insistir que não é um verme.

É um prodígio comovente
cada homem vertical.
Aquele que se põe inteiramente reto,
esticando bem os braços,
numa noite dessas é capaz
de alcançar uma estrela no céu.

Mas Deus não dá ponto sem nó.


Desconfiado do muito poder
que conferia à criatura,
num átimo elabora um plano
para não ser nunca ameaçado:
arranca ao homem, sem dó,
uma costela estratégica,
deixando-lhe a coluna frágil.

79
Monstrengo do tédio

Quando o vento vinha a favor,


icei a vela e deixei-me levar.
Flutuar sobre as águas, solitário,
num barco pequeno, faz a gente pensar
em coisas aeradas, fluidas, distantes...
Dá vontade de fazer versos.

É inevitável encontrar amores no alto-mar.


Nas longas travessias, ilhas cupidinosas
aparecem do nada quando a gente menos espera.
Ninfas e sereias são sempre
apaixonantes e adoram brincar
com marujos de primeira viagem.

Sim, é belo o mar, ambígua estrada.


Mas, nele, namorar um pouco
depois de enfrentar as tormentas
é tudo o que resta pra gente fazer
antes de seguir remando outra vez.

― Ao fim e ao cabo, o desejo de inventar versos


é o que nos salva do monstrengo do tédio.

80
Além de Deus

Estou louco de amor pela vida


e sobriamente desapaixonado de tudo.
Nunca tive medo da morte,
mas acho a dor repugnante
(e desnecessária quando dispomos
de tantas formas saudáveis
de bem moldar o caráter).

A imperfeição de Deus se revela


em tantos detalhes da criação
que é patético não enxergá-la
(como se isso diminuísse
seu terrível poder de criador).
E não me venha cristão nenhum
mandar calar a boca!
Apresento-lhe provas contundentes
– a maldade que é:
toda criança ficar banguela,
a tensão pré-menstrual das mulheres,
e a absoluta necessidade de ereção
para o homem consumar o ato.

Estou louco de amor pela vida,


mas a pobreza dos detalhes incomoda.
Como chegar ao homem além do homem
sem inventar o deus além de Deus?

81
Três transmutações

Pousou no peitoril um pardal,


bichinho ordinário,
sem graça e de todo sem cor,
que saltava daqui
pra lá, de lá
pra cá, sem dar um pio,
no meio da tarde disposta a chover.

Assim que sentiu os primeiros


pingos, pulou para dentro do céu
nublado e foi sumindo, indistinto,
num voo cinzento enquadrado
com profundidade insólita em perspectiva aérea
pela sólida moldura da janela.

Voltou dali a pouco


sem mais nem menos montado
num camelo o pardalzinho.
E chilreava um solilóquio inteiro,
dinamarquês perfeito,
To sleep? Perchance to dream. Ay, there's the rub,
e repetia, Ay, there's the rub.

Já todo molhado, ostentando


uma crina moicana, e agora montado
num leão, em que se transformara

82
o camelo, totalmente enrouquecido,
trilava esbravejante o pardalzinho,
Should I stay or should I go now?
Should I stay or should I go now?

Depois, sem esperar resposta,


nas costas de um anjo
azul em que o leão por sua vez
se tornara, foi-se embora
sem olhar para trás, gorjeando
uma alegre canção lilás...

Fiquei confuso, mas valeu a pena


que encontrei na beira
da janela aquela tarde e guardei
dentro de um livro, pensando
em fazer dela um dia
um poema que falasse da pena
que um dia me deu esse
pardalzinho filosófico.

83
Aula de filosofia

Como era vívida a agitação da folhagem


através da ensolarada vidraça, onde o zumbir
das moscas em torno era feliz,
naquela tarde teórica e sufocante.

— E como era nietzschido o frescor do vento lá


fora!

84
Girassol alemão

Sob o bárbaro céu do meio-dia, eu,


porque sei que o diabo não existe,
giro ao sol, giro ao sol,
falando alemão perfeitamente
–– Um zwölf Uhr!, preciso
como um relógio suíço.
Até outro dia, não entendia nada de Nietzsche,
nicht!
E achava que chucrute
era um repolho azedo.
Mas hoje giro, giro, giro
e sei contar dreihundertsiebenundfünfzig sem
perder o fôlego!
Sei que amarelo é gelb,
sei que azul é blau,
sei que Zug é trem
– Atemzug, Atemzug!
Sonnenblume, flor solar,
das ist ich, das ist ich!
Alles wandelt sich,
e eu vou girando sem parar
porque sei que o diabo não existe.

85
O caroço

Pelos subúrbios do tempo


cheguei até aqui.
Não sou forte nem fraco,
representante em tudo
mediano da espécie gente.

Não me reconheço mais na foto


da carteira de identidade.
Queria fazer segunda via
mas não faço, tenho preguiça.

Vou rasgar meu RG


– não sou um
número nem quero
ser. A vida é curta.
Quero mais é curtir
os múltiplos em mim,
multiplicar a sincronia restrita
que sou, transpor sinestesias
da alma, anular anacronismos,
ser muitos, ser outros em outros
tempos, ao mesmo tempo, aqui,
em todos os lugares, ser toda a gente
em mim: 17.551.199 não me basta
nem me representa!

86
De acordo com Darwin,
mais cedo ou mais tarde,
desapareço de vez.
Por mim, faço questão
de não deixar rastro sequer:
minha contribuição
por amor à espécie.

Mas até receber no peito


a última golfada fria
de ar que aquecerei,
procuro o caroço das coisas
e o das palavras.
Procuro por instinto puro
o duro caroço de mim.

87
O autor e suas bagatelas

Márcio Thamos nasceu em


Guarulhos/SP, em 1967. É professor na
Unesp de Araraquara, onde vive
atualmente. A tradução de poesia
clássica e o estudo das relações entre
palavra e imagem, formam uma base
constante de seus interesses. Publicou O umbigo do rei
(Escrituras), As armas e o varão: leitura e tradução do canto I
da Eneida (Edusp) e o livreto ilustrado A fábula da estrela
(2Coqueiros). Como cantor e compositor, gravou o cd
Márcio Thamos & Banda ao vivo (1997). Em 2001, editou, em
formato de "caderno de poesias", uma primeira versão
d’O homem horizontal com "poemas escritos entre
novembro e dezembro de 2000, enquanto o autor
desfrutava de um repouso horizontal compulsório, após
descobrir sua própria fragilidade estrutural". Essa versão
caseira, que apresentava então vinte e sete poemas,
aparece aqui revista e ampliada (pelo acréscimo de outros
textos, escritos antes e depois daquele período de apuro),
formando um conjunto de cinquenta e cinco bagatelas.

▪ Site pessoal: https://sites.google.com/site/marciothamos


▪ E-mail: [email protected]

89
Título O homem horizontal

Autor Márcio Thamos

Projeto gráfico, ilustrações, capa e editoração Márcio Thamos

Revisão, incentivo e sugestões Giovanna Longo

Formato 14 x 21 cm

Fonte Palatino Linotype, 11

Número de páginas 90

Ilustrações

Janela aberta capa

Chapa da coluna 1 p. 4

Chapa da coluna 2 p. 8

Chapa da coluna 3 p. 10

Chapa da coluna 4 p. 88

A QUEM INTERESSAR POSSA, ADVERTE-SE QUE ESTE LIVRO FOI COMPOSTO PELA GRÁFICA ARTESANIA
PARA A EDITORA 2COQUEIROS & ASTERISCO, AMBAS CODINOMES DA “EDITORA DO AUTOR”,
EM NOVEMBRO DE 2021, DURANTE A PANDEMIA.
É um prodígio comovente
cada homem vertical.
Aquele que se põe inteiramente reto,
esticando bem os braços,
numa noite dessas é capaz
de alcançar uma estrela no céu.

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