Sonia Rodrigues Uma Casa No Interior
Sonia Rodrigues Uma Casa No Interior
Sonia Rodrigues Uma Casa No Interior
Dedicatória
A Teruko Oda,
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
Ao pequeno leitor
A autora.
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
Flor de laranjeira
Exótica moradia
De gordos besouros.
A família mudou-se para o interior para ir morar em uma casa. Mamãe achava
muito importante ter o que ela chamava ‘qualidade de vida’: muito espaço, ar puro e
contato com a natureza.
Camila, de nove anos, e Carolina, de seis, estavam animadas porque, morando
em uma casa, poderiam ter um cachorro e também bicicletas. Ao mesmo tempo estavam
tristes por deixarem de ver seus atuais amigos.
A cidade escolhida foi Bebedouro, que na época era conhecida como ‘cidade da
laranja’. Dizia-se que a laranja era o ouro do oeste paulista e que, nos anos de boa safra,
a cidade ficava coberta de dólares.
A mudança aconteceu em novembro, coincidindo com a florada dos laranjais.
Já na estrada o forte perfume de flores de laranjeira surpreendia o viajante. A
cada lado da estrada os pomares cobertos de flores brancas encantavam os olhos.
E nas flores, embora não pudessem ver ao longe, havia besouros. Milhares e
milhares deles. Os besouros carregam o pólen de flor em flor em seu vôo em busca de
alimento, e multiplicam-se assim flores e insetos. Uma multidão de besourinhos
alimentados pelo néctar das flores de laranjeiras espalhavam-se por toda parte. Meses
depois, milhares de frutos dourados enfeitavam os pomares.
As meninas só perceberam os besouros ao chegar à cidade. Eles estavam por
toda parte, no chão, no ar, voando, andando, penetrando nas casas, nos carros
estacionados e nas roupas.
A invasão dos besouros durava poucas semanas.
As telas nas janelas e portas mantinham os bichinhos do lado de fora à noite.
Durante o dia era inevitável que entrassem entre um abrir e fechar de porta e outro. E
para falar a verdade, a porta ficava aberta muito tempo, porque as crianças esqueciam de
fechá-la. Até mamãe esquecia-se.
Depois do almoço e à tardezinha, mamãe varria cuidadosamente a casa,
enchendo pás e pás de besouros. As meninas ajudavam a procurar aqueles escondidos
nos mais estreitos cantinhos, principalmente Camila, que tinha muito medo de que
algum lhe entrasse orelhas adentro enquanto dormia.
Camila declarou:
- O nome desta cidade está errado. O nome certo é Bebesouro.
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Sentinelas na noite.
É noite estrelada.
Na imensidão sem luar
Pio de coruja.
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
Laika
Crianças e cães
Sons alegres pela casa -
Início das férias.
brincar.
Mamãe tinha razão. Tal treinamento era desnecessário. Quando Laika espiava
por cima do muro, todas as pessoas mudavam de calçada.
Um portão gradeado de ferro separava a entrada da garagem do corredor que
dava acesso ao quintal. O portão ficava aberto à noite e podiam ouvir como Laika corria
ao redor da casa para exercitar-se. Parecia que ela não dormia à noite. Já durante o dia, o
portão ficava fechado e Laika dormia ou brincava com as meninas dentro de casa,
escondida dos olhares dos vizinhos.
Laika era uma cadelinha meiga, de porte imponente e coração amigo.
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Ruídos no telhado.
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
Enfeites de jardim.
Orvalho da noite-
Nas pétalas das camélias
O sol vira estrelas
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
Hóspedes inesperados.
Biquinhos de lacre
A saltitar no jardim
Visão musical.
portas e janelas, fez o lanche das meninas e chamou-as para comer, sem mencionar o
incidente. Mais tarde telefonou para os bombeiros.
Depois do almoço, alguns homens vieram inspecionar a casa e localizaram o
enxame debaixo de uma calha, próximo à caixa d’água. Os bombeiros retornaram à
noite, hora em que o enxame se recolhe, adormece e está menos agressivo. As meninas
observaram enquanto eles subiam ao telhado, com luvas grossas e máscaras especiais,
carregando uma lanterna e um enorme saco plástico. Os homens pegaram o enxame
todo, queimaram o local onde estava fixada a casa das vespas, e desceram do telhado.
Missão cumprida e ninguém picado.
- Vão matar os bichos? – perguntou Carolina
O bombeiro explicou que iam soltar o enxame no mato, em um local bem longe
da cidade, pois não eram vespas venenosas.
- Ah, bom – Carolina não gostaria de que nada acontecesse aos insetos.
- Eles não são maus – explicou mamãe – mas ficam por aí, podem enrolar-se nos
cabelos, a gente pode por a mão em cima de algum pousado por aí e então eles picam, e
é muito doloroso.
Somente anos mais tarde mamãe contou para as meninas sobre o susto que
levara naquela madrugada, e como limpara a cozinha.
- Você foi muito corajosa, mãe, como conseguiu? – perguntaram então as filhas.
- Eu não sei. Acho que quando uma coisa precisa ser feita, bem, a gente faz, de
alguma maneira. A gente sempre encontra uma resposta, quando precisa de uma.
- Bem, eu gostaria que isso funcionasse nas minhas provas de matemática -
retrucou Camila – As respostas certas nunca aparecem quando eu preciso de uma.
- Talvez você precise de um estímulo mais forte. Leve algumas vespas para
soltar em classe – sugeriu Carolina, sempre bem humorada.
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Passos no forro
Estala a madeira.
Em minha imaginação
Escuto fantasmas
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Um susto
Círculo de fogo
Iluminando o horizonte –
Tarde de verão.
O estio prolongava-se.
Há sete meses não chovia e a secura do ar ardia e queimava os tomateiros na
horta.
Mamãe estava chateada porque até a grama retorcia-se, seca, apesar das duas
abundantes regas diárias. Era tão bom colher os tomates pela manhã e comê-los na pizza
noturna, saborear os maracujás colhidos no pé, mas... com aquele tempo, só as
melancias e as mandiocas iam bem, e mamãe não tinha nenhuma das duas no quintal.
Mamãe trazia as melancias da feira no carro, rolava-as da área pelo chão da casa
adentro, lavava-as bem, cortava-as ao meio antes de colocá-las para gelar. Elas
ocupavam muito espaço na geladeira e seu sabor era doce, bom.
Foi em uma dessas tardes quentes que aconteceu o mais estranho fenômeno, algo
de que nunca haviam ouvido.
Lá pelas cinco da tarde, mamãe voltava da padaria com Carolina. Camila ficara
em casa, embalando-se na rede, pendurada lá fora no fundo do quintal.
O céu estava muito claro, de um azul translúcido, sem sequer um fiapinho de
nuvem em nenhum cantinho. O ar, parado. Não se ouvia um passarinho cantando, não
se avistava um inseto voando.
Mamãe e Carolina estavam olhando a casa, prestes a atravessar a rua, quando
viram uma luz branca concentrar-se e explodir no espaço acima do telhado. Na explosão
formou-se uma bola de fogo que iluminou tudo ao redor com seus raios alaranjados e
vermelhos, antes de desaparecer completamente.
Ondas de pressão empurraram mamãe e Carolina para trás. Camila, no quintal,
caiu da rede e que pensou que a casa havia sido atingida por um raio.
Os vizinhos correram a espiar o que acontecera, mas já não havia nada mais para
ser visto.
Sorte não haver nenhum utensílio doméstico funcionando naquela hora. A
vizinha, que estava na cozinha no momento da explosão, utilizando a liquidificador, foi
jogada para trás e teve a mão queimada. Ela perdeu na hora tudo o que estava ligado: o
liquidificador, o ventilador, a televisão e o videocassete, porém ficou satisfeita por ter
morrido com o choque nem ter a casa incendiada, já que os fios dos aparelhos ficaram
todos torrados.
O céu continuou límpido e ninguém soube explicar o que era aquela estranha
bola de fogo.
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Peixes
No oeste paulista o calor é intenso e o tempo seco chega a durar oito meses.
As chuvas acontecem de novembro a março, e que chuvas! Olhando o horizonte,
pode-se vê-la caindo, lá longe, parada no ar ou movendo-se pela planície.
- Como é estranho ver a chuva! – não se cansava de repetir a mãe.
Durante toda a juventude, mamãe morara no litoral, entre as montanhas e o mar.
Lá, as nuvens vêm do oceano, batem no paredão da serra e deságuam.
A chuva da planície é diferente. Quando não há vento, pode-se vê-la
geometricamente desenhada no espaço.
As chuvas de verão caíam fortes durante a madrugada e algumas vezes ao final
da tarde. As águas desciam ladeira abaixo como uma corredeira, inundando calçadas,
jardins e levando de roldão o que quer que encontrassem em seu caminho. Caixas de
papelão e sacos plásticos passavam boiando rápido rua abaixo.
Depois a chuvarada parava de repente, e, por entre os grossos pingos que caíam
dos beirais do telhado, um sol intenso rasgava as nuvens e enxugava os céus.
Ora, foi justamente em um destes momentos que o sol reclamava seus direitos à
dona chuva, que os três meninos subiram a ladeira com um peixe vivo nas mãos, aos
gritos:
- Eu nunca vi chover peixe, meu!
- Segura forte, ele pula!
- Será que dá para comer?
- Claro! É nosso jantar!
Carolina e Camila correram para fora:
- Mamãe, está chovendo peixe!
As duas meninas se debruçaram sobre o portão olhando curiosas para os
meninos.
- Onde vocês pegaram este peixe?
- Ele vinha subindo a rua.
- Você quer dizer descendo.
- Não, eu disse subindo. Apoiado nas barbatanas como se fossem patas.
O vizinho saíra para limpar a calçada das folhas e caixas acumuladas contra a
sua árvore e também veio espiar o peixe. Era um peixe branco, de barbatanas amarelas,
aí de uns 40 cm, gordo e apetitoso.
Os meninos colocaram o peixe em uma sacola plástica que vinha boiando
calçada abaixo e se foram.
- Meninas, saiam do molhado! – mamãe veio de galocha e guarda-chuva até a
calçada.
Nisto, o vizinho correu, agachou-se e levantou algo do chão. Outro grande peixe.
- Um peixe subindo a rua! Que coisa incrível! Não é que os meninos tinham
razão? Esse é mesmo um peixe que anda!
- Só ouvi falar de peixes que andam, na África – comentou mamãe.
- É mesmo um peixe africano – explicou a moça que saiu da casa grande da
esquina. Era uma moça alta, calada, órfã de pais, que morava sozinha na grande mansão
com um enorme cachorro negro chamado Átila – Meu primo trouxe alguns para mim o
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mês passado e eu estava criando em meu quintal; com esta chuvarada o tanque
transbordou, a piscina transbordou, o quintal todo inundou e meus peixes fugiram. Eles
andam. Na África, mudam-se de um lago para outro caminhando com suas fortes
barbatanas, e resistem horas sem água.
O vizinho fez menção de devolver o peixe. A moça dispensou-o com um gesto:
- Fique com ele. Assado na brasa com manteiga é muito gostoso.
Enquanto a moça se afastava, as meninas seguravam a vontade de pedir um
peixe para elas também. O vizinho agradeceu em voz alta e comentou em voz baixa:
- Chama o cachorro de Átila. Cria peixe africano no quintal. Que esquisitice! Sei
não...
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Vendaval
Rodopiando as nuvens
Ventos pincelam nos céus
A manhã de outono
Corria o mês de maio, uma sucessão de dias ensolarados, secos e ainda bastante
quentes. O ar rachava peles e lábios, além de provocar sangramentos nos narizes mais
sensíveis. Era preciso passar creme no corpo todo e manteiga de cacau nos lábios com
freqüência.
Carolina e Camila gostavam de cuidar da beleza e brincar de mocinha sem levar
bronca da mãe. Mamãe não deixava que elas pintassem as unhas nem que usassem
batom colorido nos lábios como faziam outras meninas, exceção feita para os dias de
Carnaval.
Mamãe colocava bacias com água nos quartos, para manter a umidade dentro de
casa.
Nas estradas, peões botavam fogo no capim seco, e no campo, para os lados de
Pitangueiras, os donos de terra incendiavam os canaviais, para facilitar o corte da cana,
porque era mais barato que comprar a máquina para fazer o serviço. Os incêndios
pioravam o problema do clima.
Certa tarde, voltando de Pirangi, onde tinham ido tomar sorvete artesanal, viram
uma mancha negra aparecer no horizonte. Mamãe a percebeu pelo retrovisor, rodeada
por um halo esverdeado que cintilou rápido e desapareceu. Mamãe não gostou do que
viu.
- O que é aquilo lá atrás, meninas?
As garotas olharam.
O céu ficara negro no horizonte e o negrume espalhava-se de leste a oeste em
pinceladas rápidas. A seguir avançou rapidamente para o sul, cobrindo uma área cada
vez maior do céu.
Mamãe acelerou o carro.
O vento assobiou agudo, trazendo folhas e areia aos rodopios, fazendo o carro
estremecer.
- Não quero estar na estrada quando isto chegar – e mamãe tornou a acelerar, um
pouco mais.
- As nuvens estão longe – começou a falar Carolina, mas não terminou de
formular seu pensamento. Gigantescos blocos negros rolavam uns sobre os outros, bem
alto nos céus, enrodilhando-se entre si com um roncar grave e profundo.
- Estou entendendo porque os vikings comparavam as nuvens com cavalos
galopando os céus – comentou Camila, que andava a ler mitologia – As Valquírias
furiosas estão guerreando lá por cima.
Carolina suspirou:
- Que bonito! Nós chegaremos antes delas, não é, mamãe?
Mamãe saiu da estrada e entrou em um estacionamento de um grande shopping.
Ainda estavam longe de casa, embora esta fosse uma das entradas para a cidade. As
árvores do estacionamento dançavam, flexíveis, um bailado selvagem de círculos e
espirais. O carro, embora brecado, estremecia.
O céu agora estava todo preto e os rolos de nuvens lançavam-se para o sul
furiosamente, sem que nenhuma gota caísse ao solo. Através dos vidros fechados
podiam adivinhar folhas, gravetos e poeira rodopiando
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Ciclone em Taiúva
Mamãe guardou na edícula as coisas que Fátima conseguira salvar até que ela se
reorganizasse. Ela ficou dormindo com vizinhos, que se juntaram em mutirão para
financiar algum material e consertar as paredes caídas de sua casa.
Em tempos de necessidade, há solidariedade.
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Árvores
No alto da paineira
Escolhe róseo enxoval
Mamãe João-de-barro
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Os presentes da noite.
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
ÍNDICE
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Uma casa no interior – Sonia Rodrigues
Título:
"UMA CASA NO INTERIOR"
Personalidades:
SÔNIA REGINA ROCHA RODRIGUES - Autor(a)
Registro:
330984, em 03/09/2004
Gênero:
Contos/Crônica
Obra Publicada: 2013
Tipo de Apresentação:
Impressa/Computador, 20 página(s).
ISBN - 85-904649-2-X
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