Matthew Pearl - O Clube Dante

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Em Boston, no século XIX, um grupo de gênios literários decide traduzir

o que seria a primeira edição norte-americana de A divina comédia,de


Dante Alighieri. Para tanto, os escritores Henry Wadsworth Longfellow,
James Russel e o Dr. Oliver Wendell Holmes, junto com o Editor
J.T.Fields, formam o clube Dante. Porém, eles não contavam que um
serial killer seria capaz de tudo para recriar as piores cenas do
livro.Agora, o grupo deverá aplicar todo o conhecimento sobre o assunto
para encontrar o criminoso, que pode estar mais perto do que se
imagina.

ADVERTÊNCIA AO LEITOR

PREFÁCIO DE C. LEWIS WATKINS,
PROFESSOR DA CÁTEDRA BAKER-VALERIO DE CIVILIZAÇÃO E
LITERATURA ITALIANA E DE RETÓRICA

Pittsfield Daily Repórter, «Notas locais», 15 de Setembro de 1989

O INSETO QUE INFECTOU O RAPAZ DE LEXINGTON DESENCADEIA UMA
«RENOVAÇÃO».

Na terça-feira à tarde, equipes de busca e salvamento resgataram são e
salvo Kenneth Stanto, de dez anos, de uma remota enseada das montanhas
Catamount. O rapaz, aluno do quinto ano, foi atendido no Berkshire Medical
Center a uma inflamação e moléstias produzidas pelo depósito nas suas
feridas de larvas de insetos inicialmente não identificados.
O entomólogo, Dr. K. L. Landsman, do Harve-Bay Institute Museum, de
Boston, informa que as amostras de larvas de varejeira encontradas, no
local são historicamente desconhecidas em Massachusetts. O mais notável,
afirma Landsman, é que os insetos e suas larvas parecem corresponder a
uma espécie que, no entanto, os entomólogos consideravam
completamente extinta há quase cinquenta anos. A Cochliomyia
hominivorax, conhecida habitualmente por verme verrumão primário do
Novo Mundo, foi classificada em 1859 por um médico francês numa ilha
sul-americana. No final do século xix, a presença desta perigosa espécie
ascendeu a níveis epidémicos, provocando a morte de centenas de milhares
de cabeças de gado de todo o hemisfério Ocidental, e ainda, segundo
se informou, de alguns seres humanos. Durante a década de 1950, um
programa maciço da engenharia americana erradicou com êxito esta
espécie, ao introduzir na sua população moscas macho esterilizadas por
raios gama, anulando, assim, a capacidade de as moscas fêmea se
reproduzirem.
O caso de Kenneth Stanton pode ter contribuído para aquilo que é
conhecido como uma «renovação», produzida em laboratório, a partir de
insetos utilizados pelos investigadores. «Ainda que a erradicação tenha
sido uma iniciativa sensata de saúde pública», diz Landsman, «há muito a
aprender com uma instalação controlada e equipada com novas técnicas de
observação.» Tendo-lhe sido perguntada a sua reacção relativamente ao
seu êxito taxonómico, Stanton respondeu: «O meu professor de Ciências
acha que eu sou muito bom!»
O leitor pode questionar-se, tendo em atenção o título deste livro, sobre a
relação existente entre Dante e o artigo de abertura, mas não tardará a
comprovar que a dita relação é enorme. Como autoridade reconhecida na
recepção norte-americana da Divina Comédia de Dante, fui contactado no
Verão passado pela Random House para escrever, a troco dos seus
habitualmente insignificantes honorários, algumas observações prévias
para este livro.
O texto do senhor Pearl deriva das verdadeiras origens da presença de
Dante na nossa cultura. Em 1867, o poeta H. W. Longfellow completou a
primeira tradução norte-americana da Divina Comédia, o poema
revolucionário de Dante sobre o mais além. Atualmente, existem mais
traduções em inglês da poesia de Dante do que em qualquer outro idioma, e
os Estados Unidos da América editam mais traduções deste autor do que
qualquer outro país. A Dante Society of America, de Cambridge,
Massachusetts, orgulha-se de ser a organização mundial mais antiga, que se
dedica ao estudo e promoção de Dante. Como T. S. Eliot denotou, Dante e
Shakespeare dividem o mundo moderno entre ambos; e a metade do
mundo correspondente a Dante aumenta todos os anos. Contudo, antes do
trabalho de Longfellow, Dante permanecia quase desconhecido na América
do Norte. Não falávamos o italiano, nem sequer o ensinávamos com
frequência alguma, nem viajávamos para o estrangeiro em número
significativo, e os italianos que viviam em todo o território dos Estados
Unidos da América não passavam de um punhado disperso.
Com toda a força da minha perspicácia crítica, descobri que, para lá destes
fatos essenciais, os acontecimentos extraordinários narrados em O Clube
de Dante, prevalecia a fábula sobre a história. Contudo, ao consultar a base
de dados de Lixis-Nexis, para confirmar a minha valoração, descobri a
inquietante notícia de jornal, reproduzida no início, no Pittsfield Daily
Repórter. Contactei imediatamente o Dr. Landsman, do Harve-Bay Institute,
e reconstitui um quadro completo do acidente que acontecera há perto de
catorze anos.
Kenneth Stanton afastou-se da sua família, que se dispusera a dar um
passeio e a pescar nos Berkshires, e tropeçou numa estranha sucessão de
animais mortos num caminho cheio de erva: primeiro, um raccoon com o
umbigo a transbordar de sangue; depois, uma raposa; mais adiante, um
urso-preto. Mais tarde, o rapaz contou aos pais que experimentou uma
espécie de hipnose diante daquela grotesca visão. Ele perdeu o equilíbrio e
caiu, ferindo-se numa fileira de rochas pontiagudas. Inconsciente e com um
tornozelo fraturado, foi atacado pelos vermes verrumões primários das
larvas de mosca-varejeira. Cinco dias mais tarde, Kenneth Stanton, de dez
anos, sucumbiu a convulsões súbitas, enquanto convalescia já na sua cama.
Na autópsia descobriu-se doze larvas de Cochliomyia hominivorax, uma
das espécies de insetos mais mortíferas do mundo, extinta há cerca de
cinquenta anos, ou, pelo menos, assim se julgava.
A espécie rediviva de moscas, que mostra ter uma grande capacidade de
sobrevivência em diferentes climas, fato até aí desconhecido, foi
introduzida desde então no Médio Oriente, aparentemente através de
carregamentos de mercadorias, e, enquanto escrevo, dizima o gado e a
economia do Norte do Irão. Ultimamente tem sido teorizado, a partir de
achados científicos publicados no Abstrads of Entomology, do ano passado,
por exemplo, que a evolução divergente manifestada pelas moscas teve
origem no Nordeste dos Estados Unidos da América, por volta de 1865.
Para a questão de como começou ali, segundo parece, não existe uma
resposta, salvo, agora estou tristemente convencido, pelos pormenores do
Clube de Dante. Há mais de cinco semanas, tenho-me imposto a tarefa de
submeter o original de Pearl a uma análise adicional a cargo de oito dos
catorze colegas docentes que tenho este semestre. Eles analisaram e
catalogaram os aspetos filológicos e historiográficos, linha a linha,
assinalando àom um interesse desigual os erros menores, atribuíveis
apenas ao ego do autor. À medida que os dias passam, testemunhamos
mais alguma prova do notável grau de tristeza e glória que
experimentaram Longfellow e os seus protetores no ano do sexto
centenário do nascimento de Dante. Eu renunciei a qualquer retribuição,
porque isto já não era um prefácio que comecei por escrever, mas uma
advertência. A morte de Kenneth Stanton abriu de par em par a porta
fechada
da chegada de Dante ao nosso mundo e dos segredos que ainda
permanecem por desvendar no nosso tempo. Só quero preveni-lo para eles,
caro leitor. Por favor, se continuar, lembre-se, antes de mais, que as
palavras podem sangrar.

Professor C. LEWIS WATKINS Cambridge, Massachusetts



CÂNTICO 1
I



OHN KURTZ, O CHEFE DA POLÍCIA DE BOSTON, FEZ UM esforço para

J melhor se acomodar entre as duas criadas. De um lado, a irlandesa, que


encontrara o cadáver, chorava ruidosamente e gemia preces estranhas
(porque eram católicas) e ininteligíveis (por causa do pranto), e com os
seus cabelos provocava comichão nos ouvidos de Kurtz. Do outro lado,
estava sentada a sobrinha, muda e desesperada. A sala estava
profusamente mobilada com cadeiras e canapés, mas, enquanto esperavam,
as mulheres tinham-se colocado muito apertadas contra o visitante. Ele
teve de se concentrar para não derramar o seu chá, porque as criadas
imprimiam fortes sacudidelas ao sofá de cilício preto.
Como chefe da polícia, Kurtz já se tinha defrontado com outros homicídios.
Contudo, não os bastantes para que aquilo se convertesse numa rotina -
normalmente eram perpetrados um ou dois por ano, e, em Boston, podia
passar um período de doze meses sem que houvesse um homicídio digno
de registo. Os poucos assassinados pertenciam às classes baixas, de modo
que consolar não fizera parte das funções de Kurtz. De qualquer modo, era
um homem demasiado impaciente perante as emoções para se distinguir
nesse campo. Edward Savage, o subdelegado da polícia, que
ocasionalmente escrevia poesia, talvez tivesse feito melhor.
Aquele - aquele era o único nome que o chefe Kurtz podia permitir-se dar à
horrível situação, que estava prestes a mudar a vida da cidade -não era um
simples homicídio. Era o homicídio de um brâmane de Boston, um membro
da aristocracia, que estudara em Harvard, que fora abençoado pelo
unitarismo e pertencia à classe mais elevada da Nova Inglaterra. E a vítima
era mais do que isso. Tratava-se do mais alto magistrado do tribunal de
Massachusetts. Aquele não só matara um homem, como por vezes os
assassinos fazem de forma quase misericordiosa, mas destroçara-o por
completo.
A mulher por quem esperavam no melhor salão de Wide Oaks apanhara o
primeiro comboio que conseguira em Providence, depois de receber o
telegrama.
As carruagens da primeira classe avançavam ruidosamente, com uma
irresponsável lentidão, mas agora aquela viagem, como tudo o que
acontecera antes, parecia fazer parte de algo irreconhecível e esquecido.
Ela apostara consigo mesma, e com Deus, que se o pastor da família ainda
não tivesse chegado a sua casa quando ela lá entrasse, a mensagem do
telegrama era um equívoco. Não fazia qualquer sentido aquela sua aposta
semiarticulada, mas ela tinha de inventar alguma coisa em que acreditar,
algo que a impedisse de sucumbir definitivamente. Ednah Healey vacilou
no limiar entre o terror e o sentimento de perda, olhando fixamente para o
vazio. Ao entrar no hall, registou simplesmente a ausência do seu pastor e
rejubilou com um irreal sentimento de vitória.
Kurtz, um homem robusto, que exibia uma coloração mostarda por baixo
do seu bigode farfalhudo, apercebeu-se de que também ele tremia. Ensaiara
o encontro na carruagem que o levara a Wide Oaks.
- Madam, lamentamos reclamar a sua presença para lhe dizer isto. Chegou
ao nosso conhecimento que o juiz Healey do Supremo Tribunal... - Não, ele
tencionara fazer um preâmbulo. - Considerámos que seria melhor -
prosseguiu ele - esclarecer as infelizes circunstâncias, compreende, na sua
própria casa, onde estará mais confortável.
Ele achou esta ideia generosa.
- O senhor não conseguiu encontrar o juiz Healey, chefe Kurtz -disse ela, e
convidou-o a sentar-se. - Lamento que tenha feito esta breve visita em vão,
mas trata-se de um simples equívoco. O juiz do Supremo Tribunal esteve...
está a passar uns dias em Beverly para trabalhar com maior tranquilidade,
enquanto eu visitei Providence com os nossos dois filhos. Aguardamos o
seu regresso apenas amanhã.
Kurtz não se sentiu responsável por ter de a contrariar.
- A vossa camareira - disse ele, apontando para a mais corpulenta das duas
criadas - encontrou o seu cadáver, madam. Fora de casa, próximo do rio.
Nell Ranney, a camareira, irrompeu num pranto, sentindo-se culpada pela
descoberta. Ela não reparou que tinha alguns restos ensanguentados de
larvas de mosca na algibeira do avental.
- Parece ter acontecido há vários dias. Receio que o seu marido nunca tenha
chegado a partir para o campo - disse Kurtz, tendo o cuidado de não soar
demasiado brusco.
Inicialmente, Ednah Healey chorou contidamente, como uma mulher deve
fazer pela morte de um animal de companhia - de forma reflectida e
dominada, mas sem cólera. A pena castanha, cor de azeitona, que
sobressaía do seu chapéu, agitava-se com uma digna resistência.
Nell olhou para a senhora Healey, nervosamente, e disse em tom
comiserativo:
- O senhor deve voltar um pouco mais tarde, chefe Kurtz, por favor. John
Kurtz agradeceu o consentimento para sair de Wide Oaks.
Encaminhou-se com uma solenidade apropriada para o seu novo motorista,
um agente da polícia jovem e bem-parecido, que desceu os degraus da
charrete da polícia. Não havia razão para se apressar, não com o que já
devia estar a ser-lhe incumbido sobre aquele assunto no Comissariado
Central da Polícia, entre os frenéticos vereadores e o presidente da Câmara,
Lincoln, que já o questionara ininterruptamente por não fazer suficientes
investidas de surpresa em casas de jogo e bordéis para agradar aos jornais.
Um grito lancinante rasgou o ar antes de ele se afastar demasiado, ecoando
velozmente pelas doze chaminés da casa. Kurtz virou-se e observou com
uma indiferença ridícula Ednah Healey, a quem o chapéu de penas voara da
cabeça e que, com o cabelo solto em desalinho, corria para a escadaria
principal e lhe arremessava à cabeça como um raio um vaso branco.
Mais tarde, Kurtz lembrara-se que pestanejara. Parecia que pestanejar era
tudo o que conseguira fazer para evitar uma catástrofe. Ele rendeu-se à sua
incapacidade de atuação. O homicídio de Artemus Prescott Healey já o
liquidara. Não era a morte em si mesma. A morte era um visitante muito
comum na Boston de 1865. Doenças infantis, febres fatais, desconhecidas e
implacáveis, incêndios incontroláveis, tumultos instigados, mulheres
jovens que morriam de parto em tão grande número que parecia, acima de
tudo, que tinham vindo a este mundo com esse destino traçado e - apenas
seis meses antes - a guerra, que reduzira milhares e milhares de rapazes de
Boston a nomes inscritos em placas bordejadas a negro e enviadas às
famílias. Porém, a meticulosa e absurda - a elaborada e desprovida de
sentido - destruição de um único ser humano em concreto às mãos de um
desconhecido...
Kurtz tropeçou no seu casaco e caiu violentamente na relva macia e
ressequida. O vaso lançado pela senhora Healey despedaçou-se em mil
bocados azuis e marfim contra o grande tronco de um carvalho (uma das
árvores que se dizia ter dado o nome ao estado). «Talvez», pensou Kurtz,
«devesse ter mandado vir o subdelegado Savage para tratar deste assunto.»
O agente da polícia Nicholas Rey, o motorista de Kurtz, tomou-lhe o braço e
ajudou-o a levantar-se. Os cavalos resfolegaram e recuaram até ao fim do
caminho para as charretes.
- Ele fez tudo o melhor que sabia! Todos fizemos! Não merecíamos isto,
chefe, independentemente do que lhe tenham dito! Nós não merecíamos
nada disto!
Agora estou completamente sozinha! - Ednah Healey ergueu os punhos
cerrados, e depois disse algo que sobressaltou Kurtz. - Eu sei quem foi,
chefe Kurtz! Sei quem fez isto! Eu sei!
Nell Ranney rodeou com os seus braços robustos a mulher que soltava
gritos estridentes, fazendo-a calar-se, e afagou-a e embalou-a como fizera
com um dos filhos dos Healey, muitos anos antes. Ednah Healey, por sua
vez, cravava-lhe as unhas e puxava-a cheia de cólera, obrigando à
intervenção do digno e jovem agente da polícia, Rey.
Porém, a raiva da recém-viúva extinguiu-se, e ela dobrou-se sobre a
enorme blusa preta da criada, ocupada apenas pelo seu farto peito.
A velha mansão nunca parecera tão vazia.
Ednah Healey saíra para uma das suas frequentes visitas a familiares seus,
os diligentes Sullivans, que moravam em Providence, deixando o marido a
trabalhar no litígio, a propósito de uma propriedade, entre duas das
maiores instituições bancárias de Boston. O juiz despedira-se da família
com o seu habitual resmungo e modos afetuosos, e mostrara-se
suficientemente generoso para prescindir do serviço caseiro depois de a
senhora Healey desaparecer no horizonte. Apesar de a sua mulher nunca
renunciar aos criados, ele apreciava breves momentos de autonomia. Além
disso, nessas ocasiões, gostava de beber um trago de xerez, e era certo que
os criados informariam a senhora sobre qualquer infracção à sua
abstinência, porque eles gostavam dele, mas tinham um enorme pavor dela.
No dia seguinte, ele iniciaria um tranquilo fim-de-semana de estudo em
Beverly. O processo seguinte, que requeria a presença de Healey, não seria
pronunciado antes de quarta-feira, o dia em que ele regressaria de comboio
à cidade, para se apresentar no tribunal.
O juiz Healey não reparava em nada, mas Nell Ranney, que era criada há
vinte anos, desde que escapara à fome e às doenças que assolavam a sua
Irlanda natal, sabia que um ambiente bem ordenado era essencial para um
homem da importância do juiz do Supremo Tribunal. Por isso, Nell chegou
na segunda-feira, altura em que encontrou o primeiro salpico vermelho e
seco próximo da despensa, e outro às listras junto ao fundo das escadas.
Pensou que um qualquer animal ferido se introduzira em casa e em seguida
acabara por sair pelo mesmo sítio. Depois, ela viu uma mosca nos
cortinados do salão. Enxotou-a em direcção à janela aberta com um sonoro
estalar da língua e reforçado pelo brandir do seu espanador de penas.
Contudo, ela voltou a aparecer, enquanto puxava o lustro à comprida mesa
de jantar de mogno.
Pensou que as novas moças de cor da cozinha tivessem deixado
descuidadamente algumas migalhas espalhadas. O contrabando - que era
como ainda considerava as mulheres a quem fora concedida carta de
alforria, e sempre consideraria - não se importava com a verdadeira
limpeza, apenas com as aparências.
Pareceu a Nell que o inseto gorgolejava tão alto como a locomotiva de um
comboio. Ela matou a mosca com uma vergastada da North American
Review bem enrolada. O espécime morto tinha quase o dobro do tamanho
de uma mosca doméstica e até apresentava três listras negras a atravessar-
lhe o tronco verde e azulado. «E que focinho!», pensou Nell Ranney. A
cabeça da criatura era algo perante o qual o juiz Healey teria emitido um
murmúrio de admiração, antes de atirar a mosca para o caixote do lixo. Os
olhos salientes, de um laranja chamativo, ocupavam quase metade do
tronco. Destacava-se um brilho de uma estranha tonalidade também
laranja ou vermelha. Algo entre as duas, e também com matizes de amarelo
e negro. Cobre: a espiral de fogo.
Na manhã seguinte, ela voltou à casa para limpar o andar de cima. Mal
transpôs a porta, outra mosca passou a voar como uma seta junto à ponta
do seu nariz. Ultrajada, agarrou noutra das pesadas revistas do juiz e
perseguiu a mosca até à escadaria principal. Nell usava sempre as escadas
de serviço, mesmo quando estava sozinha em casa, mas aquela situação
exigia uma reavaliação das prioridades. Descalçou-se e os seus pés imensos
sentiram-se leves a pisar os degraus quentes e atapetados, seguindo a
mosca até ao quarto de dormir dos Healey.
Os olhos ígneos arregalaram-se irritados, o corpo contorceu-se como o de
um cavalo que se prepara para correr a galope, e, naquele instante, a
expressão do inseto assemelhou-se ao rosto de um homem. Aquele foi o
derradeiro momento em muitos anos a ouvir o monótono zumbido, em que
Nell Ranney experimentou algum sentido de paz.
Ela lançou um grunhido e esmagou violentamente a Review contra a janela
e a mosca. Contudo, durante a investida, vacilara por cima de qualquer
coisa, e agora baixava os olhos para o obstáculo, enrolado nos seus pés
descalços. Levantou aquela massa confusa, e uma dentadura humana
completa, que pertencia ao maxilar superior, caiu.
Soltou-a imediatamente, mas permaneceu de pé, atenta, como se pudesse
ser censurada pela indelicadeza.
Eram dentes postiços, feitos com desvelo artístico por um eminente
dentista nova-iorquino, para satisfazer o desejo do juiz Healey de ter uma
aparência mais elegante em tribunal. Ele tinha tanto orgulho neles, que
explicava a sua procedência a todos quantos quisessem ouvi-lo, sem
perceber que pôr a vaidade em coisas tão acessórias só dissuade os outros
a falar delas.
Eram um pouco brilhantes e novos de mais, como se tivessem sido feitos
para incidir sobre eles o sol de Verão, entre os lábios de um homem.
Pelo canto dos olhos, Nell reparou numa grande poça de sangue coagulada
e convertida numa crosta sobre o tapete. Junto dela estava uma pequena
pilha de roupas masculinas cuidadosamente dobradas. Aquele fato
completo era-lhe tão familiar como o seu próprio avental branco, a blusa
preta e a saia também preta em godés. Ela passajara bastante os seus
bolsos e mangas, porque o juiz nunca encomendava fatos novos ao senhor
Randridge, o alfaiate de excelência da School Street, excepto quando era
absolutamente necessário.
Voltando a descer as escadas para calçar os sapatos, a criada só então
reparou nos salpicos de sangue na balaustrada, camuflados pela passadeira
de pelúcia vermelha, que cobria os degraus. No exterior da ampla janela
oval do salão, para lá dos jardins imaculados, onde o terreno descia até aos
vales, aos bosques, aos campos bravios e, finalmente, chegava ao rio
Charles, ela viu um enxame de moscas varejeiras. Nell saiu, para o
inspeccionar.
As moscas concentravam-se em cima de um monte de detritos. O cheiro
nauseabundo encheu-lhe os olhos de lágrimas, à medida que se ia
aproximando. Agarrou num carrinho de mão e, ao fazê-lo, lembrou-se do
vitelo que os Healeys tinham deixado o moço da cavalariça criar no terreno.
No entanto, isso fora há anos. Ambos, o moço da cavalariça e o vitelo,
tinham crescido demasiado para ficarem em Wide Oaks, abandonando-o à
sua eterna monotonia.
As moscas eram daquela nova espécie de olhos ígneos. Também havia
moscardos amarelos, que demonstravam um interesse mórbido por uma
qualquer carne putrefata lá por baixo. Contudo, ainda mais numerosas do
que as criaturas voadoras eram as massas de bolinhas brancas peludas, que
crepitavam com movimentos vivos - eram vermes de dorso afilado, que se
contorciam energicamente por cima de algo, não se limitando a contorcer-
se, a estralejar, a furar, a submergir, mas corroendo-se uns aos outros,
corroendo o... Mas, o que sustentaria aquela horrível montanha viva com
uma viscosidade branca? Uma das extremidades do monte parecia um
arbusto espinhoso com franjas de cor castanha e marfim de... No alto
daquele monte estava um bordão curto de madeira com uma bandeira
esfarrapada, branca de ambos os lados, a ondular ao sabor da brisa
hesitante.
Ela não conseguiu averiguar no que consistia aquele monte, mas, assustada,
rezou para que encontrasse o vitelo do moço da cavalariça. Os seus olhos
não conseguiram resistir a distinguir com clareza a nudez das costas largas
e ligeiramente arqueadas, que formavam um declive até à fenda das
enormes e níveas nádegas, repletas daquelas larvas de varejeira
rastejantes, lívidas e em forma de feijão, acima das pernas
desproporcionalmente curtas e abertas em direcções opostas. Um bloco
denso de moscas, às centenas, volteava-se protetoramente. A parte de trás
da cabeça estava completamente envolta em vermes brancos, que se
deviam contar aos milhares e não às centenas.
Nell afastou com um pontapé aquele ninho de vespas e transportou o juiz
no carrinho de mão. Em metade do percurso, ela empurrou-o com
dificuldade, e, na outra metade, arrastou o corpo nu pela campina, pelo
jardim e pelo vestíbulo até ao escritório do juiz. Nell atirou o corpo para
cima de um monte de documentos legais, e puxou a cabeça do juiz Healey
para o seu colo. Punhados de larvas saíram em cascata do seu nariz,
ouvidos e boca entreaberta. Ela começou a arrancar-lhe as larvas
luminescentes da parte posterior da cabeça. As larvas, como bolinhas
vermiformes, estavam quentes e húmidas. Também retirou algumas
moscas de olhos ígneos, que a tinham atraído para dentro de casa, e
esmagou-as com a palma da mão, deixando-as com as asas abertas, e
lançando-as depois umas atrás das outras pela sala numa vingança vã. O
que ela ouviu e viu a seguir fê-la emitir um grito suficientemente alto para
ecoar por toda a Nova Inglaterra.
Dois moços da estrebaria da coudelaria vizinha encontraram Nell a sair de
gatas do escritório, a chorar desesperadamente.
- Mas, o que se passa, Nell, o que foi? Meu Deus, magoaste-te? Fora mais
tarde, quando Nell Ranney contara a Ednah Healey que
o juiz Healey gemera nos seus braços antes de morrer, que a viúva, não
conseguindo aguentar, atirara o vaso ao chefe da polícia. Que o marido
pudesse ter estado consciente durante aqueles quatro dias, ainda que
apenas vagamente consciente, era demasiado para ela conseguir admitir. O
conhecimento confesso da senhora Healey do assassino do marido revelou-
se bastante mais impreciso.
- Foi Boston que o matou - revelou ela um pouco mais tarde, nesse mesmo
dia, ao chefe Kurtz, depois de parar de tremer. - Toda esta cidade hedionda.
Comeu-o vivo.
Ela insistiu para que Kurtz a levasse junto do cadáver. Os ajudantes do
magistrado encarregue da investigação tinham levado três horas a extrair
as larvas de varejeira, de corpos espiralados e com seis milímetros de
comprimento, dos sítios onde se haviam alojado no interior do cadáver. As
minúsculas bocas córneas tiveram de ser arrancadas. As cavidades de
carne devorada, que haviam deixado sulcos enormes, permaneciam
abertas.
A horrível protuberância na parte posterior da cabeça ainda parecia pulsar
de larvas, mesmo depois de todas terem sido extraídas. As narinas estavam
agora nitidamente divididas, e os cotovelos tinham sido devorados.
Desprovido dos dentes postiços, o rosto descaía flácido como um acordeão
inerte. Mais humilhante e deplorável ainda não era o seu estado lastimoso,
nem tão-pouco o fato de o cadáver ter sido invadido por larvas de varejeira
e ter servido de local de postura a moscas e vespas, mas o simples fato de
estar nu. Diz-se, por vezes, que, para quem o contempla, um cadáver se
assemelha exatamente a um rabanete bifurcado com uma cabeça
fantasticamente esculpida no seu cimo. O juiz Healey tinha um daqueles
corpos que nunca ocorreria a ninguém ver nu, à excepção da própria
mulher.
No frio viciado dos aposentos do magistrado encarregue da investigação, a
Ednah Healey deparou-se-lhe esta visão, e percebeu naquele mesmo
instante o que significava ser viúva e o receio atroz que isso lhe inspirava.
Com um súbito torção do braço, ela agarrou rapidamente na grande
tesoura de arestas afiadas do magistrado, que estava numa estante.
Lembrando-se do vaso, Kurtz vacilou e recuou direito ao confuso e
praguejante magistrado.
Ednah ajoelhou-se e, ternamente, cortou uma madeixa da coroa de cabelo
em desalinho do juiz. De joelhos, com as saias volumosas e enrugadas a
estenderem-se a todos os cantos da pequena sala, uma mulher miudinha
inclinava-se por cima de um corpo frio e purpúreo, com uma mão envolta
numa luva leve, fechada em volta das lâminas, e a outra a acariciar o tufo
pilhado, espesso e seco como a crina de um cavalo.
- Bem, nunca vi um homem tão ruído pelas larvas - disse Kurtz num tom de
voz baixo, na casa mortuária, depois de dois dos seus homens terem saído
para acompanhar Ednah Healey a casa.
Barnicoat, o magistrado encarregue da investigação, tinha uma cabeça
pequena e informe, cruelmente perfurada por uns olhos salientes. As suas
narinas estavam tão atafulhadas de bolas de algodão, que pareciam ter
duplicado de tamanho.
- Larvas de varejeira - disse Barnicoat, sorrindo ironicamente. Pegou num
dos feijões brancos serpenteantes, que caíra para o chão. Ele debateu-se na
palma carnuda da sua mão, antes de o atirar energicamente para a
incineradora, onde produziu um som efervescente, ao mesmo tempo que ia
ficando preto, desfazendo-se depois em fumo, a seguir a um breve estalido.
- Não é costume os cadáveres serem deixados a apodrecer no campo. Em
todo o caso, é verdade que a turba alada que o nosso juiz Healey atraiu é
mais comum aparecer em carcaças de ovelhas e de cabras abandonadas ao
relento.
- A verdade era que o imenso número de larvas, que se tinham reproduzido
no interior de Healey, durante os quatro dias em que estivera no campo à
volta de sua casa, era espantoso, mas Barnicoat não possuía informação
suficiente para o confirmar. A nomeação do magistrado encarregue do caso
obedecia a razões políticas, e o cargo não requeria uma particular perícia
médica nem científica, apenas uma certa tolerância a cadáveres.
- A criada de quarto que levou o corpo para dentro de casa - explicou Kurtz
- tentou limpar a ferida de insetos, e pensa ter visto, atrevo-me a dizer que
não sei como...
Barnicoat tossiu para que Kurtz prosseguisse.
- Ela ouviu o juiz Healey gemer antes de morrer - disse Kurtz. -É o que ela
diz, senhor Barnicoat.
- Oh, é impossível! - respondeu Barnicoat, rindo despreocupadamente. - As
larvas da mosca-varejeira só conseguem sobreviver em tecido morto, chefe.
E é por isso - explicou ele - que as moscas fêmea procuram feridas no gado
para fazerem aí a postura, ou em carne putrefata. Se acontecesse estarem
na ferida de um ser vivo, que não tivesse consciência delas ou que fosse
incapaz de as retirar, as larvas só conseguiriam ingerir as porções de tecido
morto... o que provocaria poucos danos. Esta ferida da cabeça parece ter
duplicado ou triplicado de diâmetro, significando isso que todo o tecido
estava morto, ou seja, que, sem a mínima dúvida, o juiz do Supremo
Tribunal já tinha morrido quando os insetos iniciaram o seu festim.
- Então, o golpe na cabeça - perguntou Kurtz -, que causou a ferida original...
foi isso que o matou?
- Ah, é muito provável, chefe - disse Barnicoat. - E foi suficientemente forte
para lhe fazer saltar os dentes. Diz que ele foi encontrado no terreno de sua
casa?
Kurtz acenou com a cabeça. Barnicoat pensou na possibilidade de a morte
não ter sido intencional. Um assalto com o propósito de assassinar teria
incluído algo mais que garantisse o sucesso do empreendimento do que
uma pancada, como uma pistola ou um machado.
- Até mesmo um punhal. Não, parece mais provável tratar-se de um vulgar
assalto. O tratante agride o juiz do Supremo Tribunal na cabeça no quarto
de dormir, deixa-o sem sentidos, e, depois, leva-o para o exterior para se
livrar dele, enquanto rebusca a casa à procura de objetos de valor,
provavelmente sem pensar, uma única vez, que o ferimento de Healey era
assim tão grave - disse ele quase complacente para com o insensato ladrão.
Kurtz olhou diretamente para Barnicoat com um ar sinistro.
- Só que nada foi levado lá de casa. E não é apenas isso. As roupas do juiz do
Supremo Tribunal foram-lhe retiradas e cuidadosamente dobradas,
encontrando-se junto ao corpo, até as ceroulas. - Ele guinchou como se
tivesse sido pisado. - Com o porta-moedas, a corrente de ouro e o relógio
cuidadosamente deixados numa pilha junto à roupa!
Um dos olhos salientes de Barnicoat olhou fixamente para Kurtz.
- Ele estava despido? E absolutamente nada foi roubado?
- Uma autêntica loucura - disse Kurtz, surpreendendo-o de novo aquele fato
pela terceira ou quarta vez.
- Sem dúvida! - exclamou Barnicoat, olhando em volta, como se procurasse
outros interlocutores com quem comentar o insólito.
- O senhor e os seus ajudantes devem manter isto absolutamente
confidencial, por ordem do presidente da Câmara. Sabe isso, não é, senhor
Barnicoat? Nem uma palavra fora destas quatro paredes!
- Ah, claro, chefe Kurtz. - Depois, Barnicoat deu uma gargalhada breve,
irresponsável, infantil. - Bem, o velho Healey devia ser um homem
terrivelmente gordo para se conseguir arrastar por aí. Pelo menos,
podemos ter a certeza que não foi um qualquer infeliz atrofiado.
Kurtz recorreu a toda a lógica e emoção quando explicou, em Wide Oaks,
por que motivo necessitava de tempo para avaliar o assunto antes de o
público poder saber o que se passara. Contudo, Ednah Healey não lhe
respondera nada, enquanto a criada interna compunha os cobertores à
volta do seu corpo.
- Bem vê... Bom, se houver muita confusão à nossa volta, se a imprensa
atacar ferozmente os nossos métodos, como costuma fazer, o que
conseguiremos descobrir?
Os olhos dela, geralmente lancinantes e avaliadores, estavam tristemente
imóveis. Até as criadas, que temiam o seu cruel olhar de admoestação
severa, choravam tanto pelo seu estado atual, como pela perda do juiz
Healey.
Kurtz recuou, quase disposto a render-se. Ele reparou que a senhora
Healey fechara os olhos com firmeza quando Nell Ranney entrou no quarto
com o chá.
- O senhor Barnicoat, o magistrado encarregue da investigação, diz que a
crença da vossa criada de que o juiz do Supremo Tribunal estava vivo
quando ela o encontrou se revela cientificamente impossível... é uma
alucinação, porque Barnicoat consegue afirmar, pelo número de larvas de
varejeira ali encontrado, que o juiz do Supremo Tribunal já tinha falecido.
Ednah Healey virou-se para Kurtz com um olhar espantado e inquiridor.
- É verdade, senhora Healey - prosseguiu Kurtz com uma renovada
segurança. - Sabe, pela sua própria natureza, as larvas de mosca só se
alimentam de tecido morto.
- Então, ele não deve ter sofrido, enquanto esteve ali fora? - perguntou a
senhora Healey com uma voz ténue.
Kurtz negou com firmeza, abanando a cabeça. Antes de sair de Wide Oaks,
Ednah chamou Nell Ranney e proibiu-a de voltar a repetir aquela
horripilante parte da sua história.
- Mas, senhora Healey, eu sei que... - protestou Nell com uma voz apagada,
ao mesmo tempo que abanava a cabeça.
- Nell Ranney! Acatarás o que te digo!
Depois, para compensar o chefe, a viúva concordou em ocultar as
circunstâncias da morte do marido.
- Mas, tem que o fazer - disse ela, agarrando na manga do seu casaco. - Tem
de me jurar que descobre o assassino.
Kurtz assentiu.
- Senhora Healey, para começar, o departamento está a reunir todos os
nossos recursos, e na nossa situação atual...
- Não. - A sua mão pálida continuava a segurar, imóvel e com firmeza, o
casaco dele, como se quando Kurtz saísse do quarto aquela mão
continuasse ali colocada, intrépida. - Não, chefe Kurtz. Para começar, não.
Para terminar. Para descobrir. Jure-me.
Ela deixava-lhe poucas alternativas.
- Juro-lhe que o faremos, senhora Healey. - Ele não tencionava dizer mais
nada, mas a dúvida opressiva que sentia no peito fê-lo acrescentar. - De
uma maneira ou de outra.
J. T. Fields, editor de poesia, estava comprimido no lugar junto à janela do
seu escritório da New Comer a estudar os cantos que Long-fellow
seleccionara para o serão, quando um jovem empregado de escritório o
interrompeu com uma visita. A figura esguia de Augustus Manning
materializou-se, vinda do vestíbulo, aprisionada numa sobrecasaca austera.
Ele entrou desorientado no escritório, como se não fizesse a mínima ideia
de como chegara ao segundo andar de uma mansão recentemente
remodelada da Tremont Street, que agora albergava a Ticknor, Fields &
Company.
- Aqui há muito espaço, senhor Fields... muito. Embora o senhor seja para
mim sempre o sócio mais novo instalado atrás da sua cortina verde da Old
Corner,
a pregar para a sua pequena congregação de autores.
Fields, agora o sócio principal e o editor mais bem-sucedido dos Estados
Unidos, sorriu e aproximou-se da sua secretária, esticando o pé
suavemente até ao terceiro de quatro pedais - A, B, C e D -, dispostos em fila
por baixo da sua cadeira. Numa sala afastada dos escritórios, uma pequena
campainha, marcada com um «C», emitiu uma nota débil, sobressaltando
um moço de recados. A campainha «C» significava que o editor devia ser
interrompido dentro de vinte e cinco minutos; a campainha «B», dentro de
dez minutos, e a campainha «A», dentro de cinco minutos. Ticknor & Fields
era o seleto editor oficial dos textos, opúsculos, dissertações e manuais
universitários oficiais da Universidade de Harvard. Por isso, naquele dia, o
doutor Augustus Manning, o manuseador de todo o dinheiro da instituição,
recebeu o mais generoso «C».
Manning tirou o chapéu e passou uma mão pelo desfiladeiro calvo, ladeado
por ondas de cabelo ralo, que lhe caíam abruptamente de ambos os lados
da cabeça.
- Como tesoureiro da Corporação de Harvard - disse ele -, tenho de lhe dar
conta de um possível problema, que ultimamente chamou a nossa atenção,
senhor Fields. O senhor compreende que uma editora comprometida com a
Universidade de Harvard tem de gozar, no mínimo, de uma reputação
irrepreensível.
- Doutor Manning, atrevo-me a dizer que não existe nenhuma editora com
uma reputação tão irrepreensível como a nossa.
Manning cruzou os seus dedos encurvados, formando um campanário, e
soltou um longo e estridente suspiro ou tossiu, Fields não conseguiu
distinguir.
- Ouvimos falar numa nova tradução literária do senhor Longfellow, que
você está a planear publicar, senhor Fields. Claro que nós estimamos os
anos em que o senhor Longfellow colaborou com a universidade, e,
efectivamente, os seus poemas têm o maior mérito. No entanto, constou-
nos algo relacionado com esse projeto, sobre esse tema, e preocupa-nos
que esse tipo de patetices...
Fields dirigiu-lhe um olhar frio, diante do qual os dedos em pirâmide de
Manning deslizaram até se separar. Com o calcanhar, o editor pisou o
quarto pedal, o mais urgente, o botão da solicitação.
- Você sabe, meu caro doutor Manning, até que ponto a sociedade valoriza o
trabalho dos meus poetas. Longfellow. Lowell. Holmes.
Aquele triunvirato de nomes reforçava a sua posição de força.
- Senhor Fields, é justamente em nome da sociedade que estou a falar. Os
seus autores dependem de si. Aconselhe-os devidamente.
Não refira este encontro, se desejar, e eu também não o farei. Eu sei que
pretende que a sua editora continue a gozar da mesma estima, e não tenho
dúvidas que considera todas as repercussões da sua publicação.
- Agradeço-lhe essa confiança, doutor Manning. - Fields expirou para o
interior da sua barba farta, fazendo um esforço por manter a sua famosa
diplomacia. - Considerei essas repercussões meticulosamente, e também as
previ. Se o senhor não quiser continuar com a publicação das edições
universitárias pendentes, terei todo o gosto em lhe devolver
imediatamente as matrizes que estão na nossa posse sem qualquer
encargo. Espero que me compreenda que me sentiria ofendido diante de
qualquer alusão depreciativa em público a propósito dos meus autores. Ah,
senhor Osgood.
O chefe administrativo de Fields, J. R. Osgood, entrou arrastando os pés, e
Fields pediu-lhe que acompanhasse o doutor Manning numa visita breve
aos novos escritórios.
- Não é necessário. - Enquanto se levantava, as palavras infiltraram-se na
barba hirta e aristocrata de Manning, resistente como o próprio século. -
Espero que no futuro desfrute de dias bons e agradáveis neste local, senhor
Fields - disse ele, lançando um olhar frio de soslaio para o revestimento de
nogueira com lambris num preto reluzente. - Lembre-se de que haverá
alturas em que nem o senhor conseguirá proteger os seus autores das suas
próprias ambições. - Fez uma vénia com exagerada cortesia e começou a
descer as escadas.
- Osgood - disse Fields, e fechou a porta com um empurrão. -Quero que
ponha um mexerico no New York Tribune a propósito da tradução.
- Ah, o senhor Longfellow já a terminou? - perguntou Osgood com
vivacidade.
Fields franziu os seus lábios carnudos e arrogantes.
- O senhor Osgood sabia que certa vez Napoleão disparou sobre um
alfarrabista por ele ser demasiado agressivo?
Osgood meditou naquilo.
- Não, não sabia, senhor Fields.
- A ditosa vantagem de uma democracia é que somos livres de exagerar ao
máximo sobre os nossos livros com todo o nosso empenho, e ficarmos
perfeitamente a salvo de qualquer agravo. Não quero que nenhuma família
respeitável durma tranquila quando chegar à altura de mandarmos o livro
para o encadernador. - E qualquer pessoa no raio de um quilómetro, que o
ouvisse, acreditaria que ele faria os possíveis para que isso acontecesse. -
Para o senhor Greeley, de Nova Iorque, para a sua inclusão imediata na
secção «Boston Literário».
Os dedos de Fields golpeavam e dedilhavam o ar, parecendo um músico a
tocar um piano imaginário. Ele movia o pulso com dificuldade, enquanto
escrevia, por lhe provocar cãibras, por isso, Osgood era uma mão substituta
para a maioria dos escritos do editor, incluindo os seus rasgos poéticos, na
forma de versos.
Veio-lhe à ideia quase na sua forma final.
- «O QUE ESTÃO A FAZER OS LITERATOS EM BOSTON. Correm rumores
que uma nova tradução da Ticknor, Fields & Co. se encontra no prelo, o que
irá atrair uma considerável atenção em muitos âmbitos. Diz-se que o autor
é um cavalheiro da nossa cidade, cuja poesia conquistou ao longo de muitos
anos o público de ambos os lados do Atlântico. Constou-nos ainda que esse
cavalheiro contou com a ajuda dos mais ilustres talentos literários de
Boston...» Espere aí, Osgood. Substitua «de Boston» por «da Nova
Inglaterra». Não queremos que o velho Greene faça um sorriso afetado, pois
não?
- Claro que não, senhor - Osgood conseguiu responder por entre garatujas.
- «...os mais ilustres talentos literários da Nova Inglaterra para levar a cabo
a tarefa de rever e completar a sua nova e elaborada tradução poética. O
conteúdo do trabalho é, neste momento, desconhecido, podendo afirmar-
se, no entanto, que nunca antes foi lido no nosso país, e que irá transformar
o panorama literário.» Etc. Faça com que Greeley o marque como «Fonte
Anónima». Tomou nota de tudo?
- Fá-lo-ei sair amanhã de manhã logo na primeira recolha do correio - disse
Osgood.
- Telegrafe-o para Nova Iorque.
- Para ser impresso na próxima semana? - Osgood julgou ter ouvido mal.
- Sim, sim! - Fields lançou as mãos ao ar. Raramente o editor se exaltava. - E,
digo-lhe mais, teremos de ter outro texto pronto na semana seguinte!
Osgood virou-se com cautela, enquanto se dirigia para a porta.
- Se me é permitido perguntar, senhor Fields, o que trouxe o doutor
Manning aqui esta tarde?
- Nada com que deva preocupar-se.
Fields soltou um longo suspiro contido, que contradizia o que acabava de
afirmar, e voltou para o volumoso montão de originais, que se empilhava
no seu assento junto à janela. Em baixo, via-se o Boston Common, onde os
peões ainda se mantinham fiéis à roupa branca estival de linho e até
mesmo a alguns chapéus de palha. Quando Osgood se preparava
novamente para sair, Fields sentiu vontade de se explicar.
- Se avançarmos com o Dante de Longfellow, Augustus Manning concluirá
daí que todos os contratos de edição entre Harvard e a Ticknor & Fields
ficam cancelados.
- Bom, isso representa milhares de dólares; dezenas de milhares, se
pensarmos nos próximos anos! - disse Osgood, alarmado.
Fields anuiu pacientemente.
- Hum, Osgood, sabe porque é que nós não publicámos Whitman quando
ele nos trouxe as Leaves of Grass? - Não esperou pela resposta. - Porque Bill
Ticknor não queria arranjar problemas para a editora por causa das
passagens sensuais.
- Posso perguntar-lhe se o lamenta, senhor Fields?
Ele sentiu-se satisfeito com a pergunta. A sua voz modulou-se então do tom
do patrão para o do mentor.
- Não, não o lamento, meu caro Osgood. Whitman pertence a Nova Iorque,
como pertenceu Poe. - Este nome proferiu-o ele com mais amargura, por
razões que ainda pareciam latentes. - E vou deixá-los ficar com o pouco que
têm. Mas diante da verdadeira literatura não podemos acanhar-nos nunca,
não em Boston. E não é agora que o faremos.
Ele queria dizer «agora que Ticknor nos deixou». Não é que o defunto
William D. Ticknor não tivesse sensibilidade para a literatura. De fato,
podia dizer-se que os Ticknor tinham a literatura a correr-lhes nas veias,
ou, pelo menos, nalgum órgão vital, e o seu primo George Ticknor fora
outrora uma autoridade em matéria de literatura, em Boston, precedendo
Longfellow e Lowell na cátedra Smith de Harvard. Contudo, William D.
Ticknor começara em Boston no campo da complexa alta finança, e
trouxera para a edição, que na época pouco mais era do que o comércio de
livros em livrarias, o espírito de um subtil banqueiro. Fora Fields quem
reconhecera o génio em monografias e manuscritos inacabados e também
fora Fields que estimulara a amizade entre os grandes autores da Nova
Inglaterra, quando outros editores fechavam as suas portas por falta de
recursos ou por dedicarem demasiado tempo à venda a retalho.
Enquanto jovem empregado, dizia-se que Fields até exibia capacidades
sobrenaturais (ou «muito estranhas», como afirmavam os outros
empregados); pelo comportamento e pela aparência de um cliente, ele
conseguia dizer que livro iria pedir. Inicialmente, guardou isto para si
próprio, mas quando os outros empregados lhe descobriram esse dom,
tornou-se uma fonte de apostas frequentes, e os que apostavam contra
Fields acabavam sempre o dia infelizes. Pouco depois, Fields transformaria
a indústria ao convencer William Ticknor a remunerar os autores em vez
de os enganar, e a perceber que a publicidade podia transformar os poetas
em personalidades com notoriedade.
Como sócio, Fields adquiriu a The Atlantic Monthly e The North American
Review para servirem de ponto de encontro para os seus autores.
Osgood nunca seria um homem de letras como Fields, um literato, e por
isso hesitava na comparação de ideias em matéria de Verdadeira
Literatura.
- Por que motivo Augustus Manning havia de ameaçar com semelhante
medida? Isso é extorsão, é o que é - disse ele com indignação.
Perante isto, Fields sorriu discretamente, pensando no quanto ainda havia
para ensinar a Osgood.
- Nós extorquimos todos quantos conhecemos, Osgood, caso contrário não
se faria nada. A poesia de Dante é estrangeira e desconhecida. A
Corporação zela pela reputação de Harvard ao controlar cada palavra que
se permita transpor os portões da universidade, Osgood... Qualquer coisa
desconhecida, qualquer coisa irreconhecível acaba sempre por atemorizá-
los para além do racional. - Fields pegou na edição de bolso da Divina
Commedia de Dante, que encontrara em Roma. - Aqui entre estas duas
capas existe revolta suficiente para resolver tudo. A mentalidade do nosso
país está a mudar à velocidade de um telégrafo, Osgood, e as nossas
fantásticas instituições vão atrás, a passo de diligência.
- Mas, porque havia o seu bom nome de ser afetado nestas circunstâncias?
Eles nunca sancionaram uma tradução de Longfellow.
O editor motejou, fingindo indignação.
- Prefiro pensar que não, mas eles ainda continuam a associar este texto a
algo do mais assustador, algo que dificilmente pode ser eliminado.
A relação que ligava Fields a Harvard era o fato de ele ser editor da
universidade. Os outros eruditos mantinham com esta instituição laços
mais estreitos. Longfellow fora o seu professor mais famoso até se
reformar, uns dez anos antes, para se dedicar a tempo inteiro à poesia;
Oliver Wendell Holmes, James Russell Lowell e George Washington Greene
eram ex-alunos; e Holmes e Lowell eram professores de prestígio - Holmes
era titular da cátedra Parkman, de Anatomia, na Faculdade de Medicina, e
Lowell era o orientador do curso de Línguas e Literaturas Modernas na
Universidade de Harvard, que fora o antigo cargo ocupado por Longfellow.
- Isto será visto como uma obra-prima, que brota do coração de Boston e da
alma de Harvard, meu caro Osgood. Até Augustus Manning não será assim
tão cego para não ver isto.
O doutor Oliver Wendell Holmes, professor de Medicina e poeta, apressava-
se a percorrer os caminhos recortados de Boston Common,
em direcção ao escritório do seu editor, como se estivesse a ser perseguido
(contudo, parou por duas vezes para dar uns autógrafos). Se se passasse
demasiado próximo do doutor Holmes ou se fosse um daqueles transeuntes
que esgrimam a pluma em busca de um autógrafo num livro, podia-se ouvi-
lo a resmonear com razão. No bolsinho do seu colete de seda ondeada e
lustrosa atormentava-o o rectângulo de papel dobrado que impulsionara o
pequeno médico a dirigir-se à Corner (ou seja, ao escritório do seu editor) e
que lhe causava temor.
Quando se encontrava com admiradores seus, ele animava-os a nomearem
os seus poemas preferidos. «Ah, esse. Consta que o presidente Lincoln
recitava esse poema de cor. É verdade, foi ele mesmo que mo disse...» A
forma do rosto juvenil de Holmes, a sua boca pequena pressionada de
encontro ao maxilar pouco firme, dava a sensação que ele fazia um certo
esforço para manter a boca fechada por um período de tempo apreciável.
Depois de deixar para trás os caçadores de autógrafos, ele só parou mais
uma vez, hesitante, na livraria Dutton & Company, onde contou três
romances e quatro volumes de poesia completamente novos e (muito
provavelmente) de jovens autores nova-iorquinos. Todas as semanas, as
notícias literárias anunciavam que o livro mais extraordinário do momento
acabara de ser publicado. A expressão «Profunda originalidade» tornara-se
tão copiosa que, se uma pessoa fosse apanhada despercebida, podia tomá-
lo pelo produto nacional mais corrente. Apenas alguns anos antes da
guerra, parecia que o único livro que existia no mundo era o seu Autocrat
ofthe Breakfast-Table, o pequeno ensaio literário publicado em fascículos,
com o qual Holmes suplantara todas as expetativas ao criar uma nova
atitude perante a literatura, feita de observação pessoal.
Holmes irrompeu pela ampla sala de exposições da Ticknor & Fields. À
semelhança dos antigos judeus que recordavam diante do Segundo Templo
as glórias que este havia restituído, o doutor Holmes não conseguia resistir
ao brilhantismo encerado e reluzente nem deixar que se infiltrassem nas
suas evocações sensoriais o ranço e o bafio locais das instalações da livraria
Old Corner, no cruzamento da Washington Street com a School Street, onde
a editora e os seus autores se haviam comprimido durante décadas. Os
autores de Fields chamavam ao novo palacete, na esquina da Tremont
Street com a Hamilton Place, Corner ou New Corner, em parte pelo hábito,
mas também com uma ponta de nostalgia dos seus primórdios.
- Boa-tarde, doutor Holmes. Vem falar com o senhor Fields?
Miss Cecilia Emory, a agradável rapariga da recepção, de chapéu azul,
recebeu o doutor Holmes envolta numa nuvem de perfume e com um
sorriso caloroso.
Fields contratara várias mulheres como secretárias quando se inaugurara a
Comer, um mês antes, apesar de se fazer ouvir um coro de críticas, que
condenavam essa prática num edifício repleto de homens. Quase de certeza
que a ideia surgira de Annie, a obstinada e bonita (qualidades normalmente
próximas) esposa de Fields.
- Sim, minha querida - disse Holmes, fazendo-lhe uma vénia. - Ele está?
- Ah, é o grande Autocrata da Mesa do Pequeno-Almoço que desce para se
apresentar diante de nós?
Samuel Ticknor, um dos empregados, passou e despediu-se de Cecilia
Emory, fazendo um longo adeus, ao mesmo tempo que calçava rapidamente
as luvas. Não era o típico empregado de uma editora, e pouco depois
Ticknor seria acolhido em casa pela mulher e pelos criados, num dos
recantos mais atractivos de Back Bay.
Holmes cumprimentou-o com um aperto de mão.
- A New Corner está num sítio fantástico, não é, meu caro senhor Ticknor? -
Ele riu. - Estou um pouco admirado por o nosso senhor Fields ainda não se
ter perdido aqui.
- Não se perdeu - Samuel Ticknor retorquiu entre dentes com seriedade,
seguindo-se uma breve risada abafada ou um gemido.
J. R. Osgood apareceu para acompanhar Holmes ao andar de cima.
- Não lhe faça caso, doutor Holmes - Osgood fungou, observando o
indivíduo em questão, que deambulava na Tremont Street, e lançava ao ar
algumas moedas ao vendedor de amendoins, que estava na esquina, como
faria a um mendigo. - Atrevo-me a dizer que o jovem Ticknor acha que pode
adoptar na Common as mesmas atitudes que o seu pai teria se fosse vivo,
apenas por causa do nome que tem. E também quer que toda a gente aceite
isso.
O doutor Holmes não tinha tempo para mexericos... Pelo menos, naquele
dia.
Osgood informou que Fields estava em reunião, por isso, Holmes foi
instalado na Sala dos Autores, uma estância luxuosa, criada a pensar no
conforto e no prazer dos escritores daquela editora. Num dia corrente,
Holmes podia bem ter ali passado o tempo a admirar as memórias
literárias e os autógrafos pendurados na parede, entre os quais se incluía o
seu. Em vez disso, a sua atenção dirigiu-se para o cheque que, com um
gesto trémulo, retirou do bolso. No insultuoso número escrevinhado
descuidadamente, Holmes viu os seus desaires. Nas manchas de tinta
desgarradas, viu a sua vida de poeta, agitada pelos acontecimentos dos
últimos anos, e foi incapaz de se animar com proezas passadas. Sentou-se
em silêncio e, com brusquidão, esfregou o cheque entre o dedo indicador e
o polegar,
como o Aladino faria com a sua velha lâmpada mágica. Holmes imaginou
todos os autores audazes e cheios de frescura que Fields cortejava,
persuadia e talhava.
Ele saiu por duas ocasiões da Sala dos Autores, e dirigiu-se ao escritório de
Fields, e, pelas duas vezes, encontrou a porta fechada. Contudo, antes de se
retirar da segunda vez, a voz de James Russell Lowell, poeta e editor, fez-se
ouvir no corredor. Lowell falava energicamente e alto (como sempre), até
mesmo de forma dramática, e o doutor Holmes, em vez de bater ou de se ir
embora, optou por inteirar-se da conversa por acreditar que quase de
certeza teria alguma coisa a ver consigo.
Franzindo os olhos, como se conseguisse transferir a capacidade destes
para os seus ouvidos, Holmes só conseguiu perceber uma palavra
intrigante, quando algo lhe bateu e o atirou ao chão estrondosamente.
O jovem que parara de súbito diante do indiscreto poeta, agitou as mãos
num gesto estúpido de contrição.
- A culpa é toda minha, meu bom rapaz - disse o poeta a rir. - Sou o doutor
Holmes, e você é...
- Teal, doutor, Sir. - O medroso, um marçano, conseguiu apresentar-se antes
de se acobardar e desaparecer precipitadamente.
- Estou a ver que já conheceu Daniel Teal. - Osgood, o empregado mais
velho e chefe administrativo, apareceu, vindo do vestíbulo. - Não
conseguiria gerir um hotel, mas é dos mais trabalhadores que cá temos. -
Holmes soltou um riso abafado com Osgood: pobre rapaz, ainda verde na
firma e a ambientar-se à casa e quase choca com Oliver Wendell Holmes!
Esta recuperação da sua importância fez o poeta sorrir.
- Quer que eu veja se o senhor Fields ainda está demorado? - perguntou
Osgood.
Depois, a porta abriu-se a partir do interior. James Russell Lowell,
majestosamente desalinhado, com os seus olhos cinzentos penetrantes a
afastarem a atenção da lanosidade do seu cabelo e da barba, que ele alisava
com dois dedos, lançou uma espreitadela da soleira da porta. Ele estava
sozinho no escritório de Fields, com o jornal daquele dia.
Holmes imaginou o que Lowell lhe diria se tentasse partilhar com ele a sua
ansiedade: Este é o momento de concentrarmos todas as energias em
Longfellow e em Dante, Holmes, não nas nossas vaidadezinhas
insignificantes...
- Entre, entre, Wendell! - convidou-o Lowell, que começou a preparar-lhe
uma bebida.
- Bem, Lowell - disse Holmes -, ia jurar que ouvi vozes aqui dentro agora
mesmo. Espíritos?
- Quando perguntavam a Coleridge se ele acreditava em espíritos, ele
respondia negativamente, explicando que já vira bastantes.
- Riu com jovialidade, e, com um torção, retirou a extremidade
incandescente do seu charuto. - Ah, o Clube de Dante reúne-se hoje à noite.
Eu estava a ler isto em voz alta para ver como soa, sabe.
Lowell apontou para o jornal pousado sobre a mesa de apoio. Fields,
explicou ele, fora à cafetaria.
- Diga-me, Lowell, sabe se o Atlantic alterou as suas políticas de
pagamento? Quer dizer, eu não sei se você enviou alguns versos para
incluirmos no último número. Tenho a certeza que está bastante ocupado
com a The Review.
Os dedos de Holmes enredaram-se com o cheque que trazia no
bolso.
Lowell não o ouvia.
- Holmes, você deve dar uma boa vista de olhos a isto! Fields excedeu-se.
Aqui, por aqui. Olhe para isto.
Ele anuiu com a cabeça de forma conspirativa e observou cuidadosamente.
O jornal estava dobrado na página literária e exalava ao charuto de Lowell.
- Mas o que eu queria perguntar, meu caro Lowell - disse Holmes insistindo
e afastando o jornal da sua frente -, é se recentemente... Ah, muito obrigado
- disse ele, enquanto aceitava um conhaque com água.
Com um sorriso rasgado, Fields voltou a cofiar a sua barba ondulada.
Mostrava-se tão inexplicavelmente alegre e complacente como Lowell.
- Holmes! Não esperava ter o prazer de o ver aqui hoje. Estive quase a
mandar chamá-lo à Faculdade de Medicina para que viesse falar com o
senhor Clark. Houve um maldito erro nalguns dos cheques, referentes ao
último número da The Atlantic. Você é capaz de receber pelo seu poema um
cheque de setenta e cinco, em vez dos cem.
Desde que se iniciara a rápida inflação, em consequência da guerra, os
principais poetas recebiam cem dólares por cada poema, à excepção de
Longfellow, a quem eram pagos cento e cinquenta dólares. Aos autores
menores eram pagos entre os vinte e cinco e os cinquenta dólares.
- Ah, sim? - perguntou Holmes com um arquejo de alívio, que
imediatamente considerou embaraçoso. - Bem, estou sempre pronto a
receber mais.
- Esta nova fornada de empregados são criaturas como você nunca viu. -
Fields abanou a cabeça. - Estou ao leme de um navio enorme, meus amigos,
que se fará em mil bocados de encontro às rochas, se eu não o vigiar
constantemente.
Holmes reclinou-se satisfeito, e, por fim, baixou os olhos de relance para o
New York Tribune, que tinha entre as mãos. Guardou silêncio,
surpreendido, e afundou-se profundamente na cadeira de braços, como se
deixasse que as suas grossas pregas de cabedal o engolissem.
James Russell Lowell chegara à Comer, vindo de Cambridge, para executar
tarefas há muito negligenciadas na The North American Review. Lowell
passara o grosso do seu trabalho na Review, uma das duas principais
revistas de Fields, para uma equipa de assistentes editoriais, cujos nomes
ele confundia, até a sua presença ser requerida na revisão das últimas
provas. Fields sabia que, mais do que qualquer outra pessoa, mais até do
que o próprio Longfellow, Lowell apreciaria o avanço publicitário.
- Que requinte! Você conserva ainda um pouco de judeu, meu caro Fields! -
disse Lowell, roubando o jornal a Holmes com um sacão.
Os amigos não prestaram uma particular atenção ao estranho comentário
de Lowell, porque estavam habituados à sua tendência para teorizar que o
mundo com capacidade, incluindo ele próprio, era de alguma forma judeu,
ou, pelo menos, de descendência judaica.
- Os meus livreiros vão devorá-lo - vangloriou-se Fields. - Só com os lucros
de Boston, mandaremos construir uma carruagem vistosa!
- Meu caro Fields - disse Lowell, rindo animadamente, e bateu ao de leve
com o jornal, como se este contivesse um prémio secreto -, se você tivesse
sido o editor de Dante, atrevo-me a dizer que ele teria sido bem acolhido
em Florença, e até lhe teriam feito festejos de rua!
Oliver Wendell Holmes riu, mas houve também algum desconforto quando
ele disse:
- Se Fields tivesse sido o editor de Dante, Lowell, o poeta nunca teria sido
exilado.
Quando o doutor Holmes se retirou para ir ao encontro do senhor Clark, o
empregado encarregue da parte financeira, e antes de eles saírem para casa
de Longfellow, Fields pôde ver que Lowell estava preocupado. O poeta não
era pessoa que escondesse o seu descontentamento, em nenhuma
circunstância.
- Não acha que Holmes devia parecer mais empenhado? - perguntou
Lowell. - Dir-se-ia que esteve a ler um obituário - disparou ele, conhecendo
a sensibilidade de Fields relativamente à recepção das suas afirmações
extravagantes. - O seu próprio.
Mas Fields riu daquela afirmação.
- Ele está simplesmente preocupado com o seu romance, nada mais, e por
não saber se, desta vez, a crítica o vai tratar de forma justa. Bem, e tem
sempre milhares de coisas na cabeça. Você sabe isso, Lowell.
- Essa é exatamente a questão! Se Harvard tentar continuar a intimidar-nos
mais... - começou Lowell, e depois, prosseguiu.
- Não quero que ninguém fique com a ideia de que nós não vamos com isto
até ao fim, Fields. Você já pensou que isto pode levar Wendell
simplesmente a integrar-se noutro clube?
Lowell e Holmes gostavam de esgrimir argumentos um com o outro, com
Fields a fazer os possíveis para os desencorajar. Eles competiam sobretudo
pela atenção. Depois de um banquete recente, a senhora Fields afirmou ter
ouvido Lowell a demonstrar a Harriet Beecher Stowe por que motivo Tom
Jones era o melhor romance jamais escrito, enquanto Holmes provava ao
marido de Stowe, professor de Teologia, que a religião era responsável por
todas as desditas do mundo. O editor estava preocupado com algo mais do
que a repetição da perigosa tensão entre dois dos seus melhores poetas; ele
também estava preocupado com o fato de Lowell ir tentar teimosamente
demonstrar que as suas suspeitas em relação a Holmes eram fundadas.
Fields não podia suportar que alguém além dele pudesse ser causa de
inquietude para Holmes.
Fields ridicularizou o orgulho de Holmes, colocando-se de pé ao lado de um
daguerreótipo emoldurado do pequeno doutor, que estava pendurado na
parede. Pôs uma mão no vigoroso ombro de Lowell e disse-lhe com
sinceridade:
- O nosso Clube de Dante teria muito menos peso sem ele, meu caro Lowell.
Claro que ele tem as suas desorientações, mas é isso que lhe confere
brilhantismo. Bem, ele é o que o doutor Johnson teria considerado um
homem dubabel. Contudo, ele tem estado sempre connosco desde o início,
não é? E ao lado de Longfellow.
KJ doutor Augustus Manning, tesoureiro da Corporação de Harvard,
costumava ficar até mais tarde nas instalações da universidade do que os
seus colegas. Com frequência, ele desviava a atenção da sua secretária para
a janela, cada vez mais obscura, que reflectia a luz difusa do seu candeeiro,
e pensava nos perigos que diariamente se avolumavam, abalando os
alicerces da universidade. Nessa mesma tarde, enquanto saíra para dar o
seu pequeno passeio de dez minutos, fizera mentalmente uma lista com os
nomes de vários dos seus ofensores. Três estudantes conversavam entre si
próximo de Gray Hall. Quando o viram a aproximar-se, já era demasiado
tarde. Como um fantasma, ele não fazia barulho, mesmo quando caminhava
por cima de folhas secas e quebradiças. Eles seriam admoestados pelo
conselho disciplinar da faculdade por «congregação» - isto é, por ficarem
parados no pátio em grupos de dois ou mais.
Nessa manhã, na obrigatória comparência dos universitários na capela da
universidade, às seis, Manning também chamara a atenção do tutor Bradlee
para um estudante que lia um livro,
dissimulado por baixo da sua Bíblia. O infrator, um estudante do segundo
ano, seria admoestado em privado por ler durante o serviço religioso, bem
como pela tendência agitadora do autor do livro - um filósofo francês com
concepções políticas imorais. Na reunião seguinte do Conselho Directivo da
Faculdade, o castigo recairia inteiramente sobre o nome desse jovem, a
quem era decretada uma multa de vários dólares, e seriam retirados alguns
pontos à sua classificação académica.
Agora, Manning pensava como havia de enfrentar o problema de Dante.
Sendo um partidário acérrimo das línguas e estudos clássicos, dizia-se que
Manning certa vez passara um ano inteiro a dirigir todos os seus negócios e
assuntos pessoais em latim. Alguns duvidavam disso, referindo que a sua
esposa desconhecia essa língua, enquanto outros, pessoas conhecidas,
denotavam que esse fato confirmava a veracidade da história. As línguas
vivas, como eram designadas pelos seus pares de Harvard, eram pouco
mais do que imitações baratas, distorções vulgares. O italiano, à
semelhança do espanhol e do alemão, representava de forma particular as
dissolutas paixões políticas, os apetites carnais e a ausência de moralidade,
própria da Europa decadente. O doutor Manning não tencionava permitir
que o veneno estrangeiro se disseminasse sob o disfarce da literatura.
Enquanto permanecia sentado, Manning ouviu um surpreendente estalido,
vindo da sua antecâmara. Àquela hora, qualquer barulho era inesperado,
pois o seu secretário já tinha saído. Manning caminhou até à porta e rodou
a maçaneta da porta, mas esta estava fechada. Levantou os olhos e viu uma
extremidade aguçada de metal cravada na ombreira da porta, depois outra
alguns centímetros à direita. Manning puxou a porta com força várias
vezes, e, sempre com mais força, até o braço lhe doer e a porta se abrir com
relutância e um rangido seco e repentino. Do lado de fora estava um
estudante, armado com uma prancha de madeira e alguns pregos,
baloiçando em cima de um banquinho, e rindo ao mesmo tempo que
tentava selar a porta de Manning.
O bando de transgressores que o acompanhava correu assim que viu
Manning.
Manning agarrou o estudante que estava em cima do banco.
- Tutor! Tutor!
- Foi só uma brincadeira, a sério! Agora, largue-me!
De repente, o rapaz de dezasseis anos parecia ter menos cinco, e,
imobilizado pelos olhos de mármore de Manning cravados nele, entrou em
pânico.
Bateu em Manning várias vezes e depois afundou os dentes na sua mão,
que automaticamente aliviou o aperto. Contudo,
um tutor residente chegou e, junto à porta, agarrou o estudante pelo
colarinho da
camisa.
Manning aproximou-se com passos decididos e um olhar fixo e gelado. Ele
manteve esse olhar durante tanto tempo, apresentando um aspeto cada vez
mais pequeno e fraco, que até o tutor se sentiu desconfortável e perguntou
em voz alta o que devia fazer. Manning baixou os olhos para a sua mão,
onde viu duas manchas de sangue vivo a gorgolejar das marcas dos dentes
entre os ossos da mão.
As palavras de Manning pareceram emergir diretamente da sua barba
hirsuta, em vez dos seus lábios.
- Faça-o dizer os nomes dos seus cúmplices deste ato insano, tutor Pearce.
E descubra onde é que ele tem andado a consumir bebidas alcoólicas.
Depois, entregue-o à polícia.
Pearce hesitou.
- À polícia, senhor?
O estudante protestou.
- Ora, isso é um estratagema mesquinho, chamar a polícia por um assunto
interno da faculdade!
- Imediatamente, tutor Pearce!
Augustus Manning fechou a porta atrás de si. Voltou a ocupar o seu lugar,
ignorando o fato de a sua respiração ser pesada devido ao estado colérico
em que se encontrava, e sentou-se muito direito, com dignidade. Voltou a
pegar no New York Tribune para se recordar dos assuntos que tanto
exigiam a sua atenção. Enquanto lia a recensão crítica demasiado
laudatória de J. T. Fields, na secção «Literary Boston», e a sua mão latejava
nos pontos onde a pele estava fendida, pela mente do tesoureiro passaram
sensivelmente os pensamentos seguintes: Fields considera-se invencível na
sua nova fortaleza... Essa mesma arrogância usada orgulhosamente por
Lowell como se fosse um casaco novo... Long-fellow permanece intocável; o
senhor Greene, uma relíquia, há muito um paraplégico mental... Mas o
doutor Holmes... o Autocrata que atrai a controvérsia apenas por medo e
não por princípio... O pânico no rosto do pequeno doutor, enquanto via o
que sucedera ao professor Webster, há todos aqueles anos... Não era por
causa da condenação por homicídio, nem por causa da forca, mas pela
perda do seu lugar, alcançado na sociedade à custa do seu nome tão
virtuoso, por uma educação e uma carreira como homem de Harvard... Sim,
Holmes; o doutor Holmes provará ser o nosso maior aliado.

II




OR TODA A CIDADE DE BOSTON, AO LONGO DA NOITE, OS policiais

P reuniram «suspeitos», cerca de meia-dúzia, por ordem do chefe.


Cada polícia olhava para os suspeitos dos seus colegas com
prudência, enquanto os registavam no Comissariado Central da
Polícia, como se temessem que os seus malfeitores fossem considerados
inferiores. Os detectives, vestidos à paisana e evitando os uniformes,
subiam as escadas furtivamente, vindos dos calabouços - as celas de
detenção subterrâneas - e comunicavam mediante códigos secretos e
breves e discretos acenos de cabeça. O gabinete de detectives, copiado de
um modelo europeu, fora estabelecido em Boston com o objectivo de
ministrar a mais completa informação sobre o paradeiro dos delinquentes;
desse modo, a maioria dos detectives escolhidos eram, eles próprios,
antigos tratantes. No entanto, desconheciam os métodos sofisticados de
investigação com os quais podiam ter sido providos, de modo que
recorriam aos velhos artifícios (sendo os seus favoritos a extorsão, a
intimidação e a falsificação) para garantirem o seu quinhão de prisões e
justificarem os seus ordenados. O chefe Kurtz fizera tudo o que estivera ao
seu alcance para garantir que os detectives, juntamente com a imprensa,
pensassem na nova vítima de homicídio como um zé-ninguém. O último
problema no mundo com que agora ele precisava de se defrontar era com
os detectives a tentarem aproveitar-se do profundo sofrimento da abastada
família Healey para lhe extorquirem dinheiro.
Alguns dos indivíduos presos cantavam canções obscenas ou tapavam o
rosto com as mãos. Outros praguejavam e ameaçavam agressivamente os
agentes que os tinham prendido. Um número reduzido comprimia-se nos
bancos de madeira alinhados e que revestiam um dos lados da sala. Ali
havia todo o tipo de delinquentes, desde os grandes vigaristas - os
escroques mais clássicos -, até aos arrombadores de janelas, aos larápios e
aos salteadores bem vestidos, que atraíam os transeuntes para becos antes
de os seus cúmplices fazerem o resto.
Amendoins quentes eram lançados de cima, da galeria pública, por pálidos
rapazinhos traquinas irlandeses, que seguravam engordurados sacos de
papel e faziam pontaria atrás do corrimão. Eles alternavam esses projécteis
com uma rodada de ovos podres.
- Não ouviste ninguém a vangloriar-se de ter morto um homem? Não
conseguiste ouvir nada?
- Onde é que arranjaste essa corrente de relógio dourada, miúdo? E esse
lenço de seda?
- O que estás a pensar fazer com essa moca?
- Como é? Já alguma vez tentaste matar um homem, companheiro, nem que
seja só para ver como é?
Os agentes, de rostos congestionados, gritavam ao formular estas
perguntas. Então, o chefe Kurtz começou a pormenorizar a morte de
Healey, eludindo habilidosamente a identidade da vítima, mas não tardou a
ser interrompido.
- Olhe, chefezinho. - Um tratante negro corpulento tossiu, pensativo,
enquanto mantinha os olhos azuis salientes fixos no canto da sala. - Olhe,
chefezinho. O que é que se passa com o novo cachorrinho negro? Onde está
o uniforme dele? Não me parece que o senhor esteja disposto a recrutar
detectives negros, ou também posso afirmá-lo com toda a certeza?
Nicholas Rey endireitou-se muito diante das gargalhadas que se seguiram.
De repente, ele teve consciência da sua falta de participação no
interrogatório, bem como do fato de estar vestido à paisana.
- Ora, companheiro, ele não é negro - disse um homem janota, alto e esguio,
vestido de verde, ao mesmo tempo que avançava e perscrutava o agente
Rey com o olhar de um avaliador entendido. - A mim, parece-me que ele é
mestiço, e um belo exemplar. A mãe, uma escrava, o pai, um fazendeiro. É
isso, não é, meus amigos?
Rey aproximou-se mais da fila.
- E que tal se respondesse às perguntas do chefe, senhor? Vamos colaborar
uns com os outros, se formos capazes.
- Muitíssimo bem dito, branquinho como a neve. - O homem alto e esguio,
vestido de verde, levantou um dedo avaliador para o seu bigode fino, que se
encurvava num círculo até às comissuras dos lábios, como se assinalasse o
início de uma barba, mas terminava a cair abruptamente antes de alcançar
o queixo.
O chefe Kurtz impeliu com força o seu bastão contra o botão em forma de
losango ao nível do esterno de Langdon Peaslee.
- Não me irrites, Peaslee!
- Cuidadinho, está bem? - advertiu Peaslee, o maior arrombador de cofres
de Boston, sacudindo o seu colete. - Aquele tesourinho vale oitocentos
dólares, chefe, e adquirido legitimamente!
Ouviram-se gargalhadas vindas de todo o lado, inclusivamente de alguns
detectives. Kurtz não devia ter deixado Langdon Peaslee provocá-lo, não
naquele dia.
- Tenho a sensação que tens alguma coisa a ver com a quantidade de cofres
arrombados na Commercial Street no domingo passado - disse Kurtz. -
Neste momento, deixo-te quebrar as leis do Sabat, e podes dormir nos
calabouços com os outros carteiristas baratos!
Alguns lugares a seguir na fila, Willard Burndy riu ruidosamente.
- Bem, digo-lhe uma coisa em relação a isso, meu caro chefe - disse Peaslee,
elevando a voz de forma teatral, no interesse de todos os que estavam na
sala (incluindo os espetadores da galeria, que se perfilavam nos lugares de
destaque, e ficaram subitamente extasiados). - De certeza que não estava lá
o nosso amigo, o senhor Burndy, que podia fazer qualquer coisa como a
volta da Commercial Street. Ou esses cofres pertencem a alguma associação
de damas idosas da alta sociedade?
Os olhos cintilantes e coléricos de Burndy duplicaram de tamanho, ao
mesmo tempo que afastava os homens do caminho aos empurrões,
avançando em direcção a Langdon Peaslee, e quase iniciando um motim
entre os desordeiros mais turbulentos, que ficavam para trás, enquanto ele
caminhava, e os rapazes grosseiros, em cima, que aclamavam e gritavam.
Aquele espectáculo continuou e terminou trazendo à luz os segredos do
vira-casacas, que operava nas caves de North End, e dos que cobravam
vinte e cinco centavos por cabeça.
Enquanto os agentes dominavam Burndy, um homem confuso foi
empurrado para fora da fila, tropeçando precipitadamente. Nicholas Rey
agarrou-o antes de ele chegar a cair no chão.
Tinha uma compleição frágil e os seus olhos escuros, bonitos mas cansados,
mostravam uma expressão vacilante. O desconhecido mostrou uma
quantidade de dentes apodrecidos e em falta, que lembravam um tabuleiro
de xadrez, e emitiu um som semelhante a um silvo, deixando escapar ao
mesmo tempo um cheiro pestilento a aguardente de Medford. Também não
reparou ou não se importou que as suas roupas estivessem cheias de ovos
podres.
Kurtz avançou para a reorganizada galeria de tratantes em passo de
marcha e voltou a explicar-se. Ele falou no homem encontrado nu num
campo próximo do rio, com o corpo repleto de moscas, vespas, larvas de
varejeira que lhe devoravam a carne e se ensopavam no seu sangue. Kurtz
informou-os que um dos presentes o matara com um golpe na cabeça,
e o levara para ali para o abandonar aos efeitos das intempéries. Ele referiu
outro pormenor estranho: uma bandeira, branca e esfarrapada, cravada
sobre o cadáver.
Rey amparou a queda do seu preso desorientado com os pés. O nariz e a
boca do homem estavam vermelhos e assimétricos, comprimindo o seu
bigode fino e a sua barba. Uma das suas pernas estava aleijada, sendo isso o
resultado de um acidente ou de uma briga há muito esquecidos. As suas
mãos grandes agitavam-se em gesticulações descoordenadas. O tremor do
desconhecido aumentava a cada pormenor acrescentado pelo chefe da
polícia.
O subdelegado Savage disse:
- Oh, este amigo! Quem é que o trouxe para aqui, sabe, Rey? Antes não quis
dizer nenhum nome quando estavam a fotografar todos os novos para a
galeria dos delinquentes. Mudo como uma esfinge egípcia!
O colar de papel da esfinge estava quase oculto por baixo do seu lenço de
pescoço preto e andrajoso, enrolado e a cair folgadamente para um dos
lados. Ele olhou fixa e vagamente e agitou as mãos enormes no ar em
círculos toscos e concêntricos.
- Estás a tentar desenhar alguma coisa? - observou Savage, gracejando.
As suas mãos estavam de fato a fazer um desenho. Uma espécie de mapa,
algo que teria ajudado incomensuravelmente os policiais nas semanas
seguintes, se eles soubessem o que haviam de procurar. Aquele
desconhecido frequentara durante muito tempo o cenário onde Healey fora
assassinado, mas não os salões ricamente decorados de Beacon Hill. Não, o
homem não esboçava no ar uma imagem de um qualquer lugar terreno,
mas de uma antecâmara lúgubre do inframundo. Porque fora ali - ali, o
homem compreendeu, onde a imagem da morte de Artemus Healey se
infiltrara na sua mente e se avolumava com todos os pormenores -, sim,
fora ali que o castigo fora dado.
- Atrevia-me a dizer que ele é surdo e mudo - sussurrou o subdelegado a
Rey, depois de vários gestos ponderados com a mão não terem sido
entendidos. - E está um tanto tocado, a avaliar pelo cheiro. Vou levá-lo a
comer um pouco de pão com queijo. Vigie bem esse tipo, Burndy, está bem,
Rey? - Savage acenou com a cabeça em direcção ao agitador encarregue dos
embaraços, que agora esfregava os olhos congestionados com as mãos
algemadas, e que ficara fascinado com as descrições grotescas de Kurtz.
Com cuidado, o subdelegado soltou o homem que tremia da custódia do
agente Rey, e atravessou a sala com ele. Contudo, o homem agitava-se,
chorando descontroladamente, e, depois, parecendo fazer um esforço
inesperado,
empurrou o subdelegado da polícia, e atirou-o de cabeça de encontro a um
banco.
Foi então que o homem deu um salto para trás de Rey, enganchou o braço
esquerdo em volta do seu pescoço, arqueou os dedos por baixo da sua axila
direita e com a outra mão afastou o chapéu de Rey e imobilizou-se diante
dos seus olhos. Torceu a cabeça na sua direcção, para que a orelha do
agente ficasse presa diante do hálito húmido dos seus lábios. O sussurro do
homem foi tão débil, tão desesperado e gutural, tão semelhante a uma
confissão, que só Rey conseguiu captar as palavras por ele pronunciadas.
Um venturoso caos irrompeu entre os tratantes.
De repente, o desconhecido soltou Rey e agarrou-se a uma coluna estriada.
Lançou-se violentamente, girando em torno da sua circunferência e
catapultou-se para diante. As incompreensíveis palavras que ciciara
confundiram o espírito de Rey; era um código de sons sem sentido, tão
estridente e enérgico, como se pretendesse sugerir mais significado do que
aquele que Rey conseguia imaginar. Dinanzi. Rey esforçou-se por se
lembrar, por tornar a ouvir o sussurro, enquanto se debatia (etterne
etterno, etterne etterno) para não perder o equilíbrio, e ao mesmo tempo
que depois se lançava para diante para apanhar o fugitivo. Contudo, o
desconhecido precipitara-se com um impulso tão forte, que não teria
conseguido evitá-lo, mesmo que quisesse, naquele último instante da sua
vida.
Ele bateu violentamente contra o grosso vidro de uma das amplas janelas.
Um fragmento de vidro solto, com a forma perfeita de uma segadeira,
rodopiou em torno do seu eixo numa dança quase graciosa, atingindo o
lenço de pescoço preto e penetrando-lhe facilmente na traqueia, lançando-
lhe a cabeça flácida para a frente, ao mesmo tempo que esta golpeava o ar.
Depois de se lançar pesadamente através do vidro, caiu no pátio em baixo.
Tudo ficou em silêncio. Os bocados de vidro, delicados como flocos de neve,
estalaram por baixo dos sapatos de biqueiras gastas de Rey, à medida que
se aproximava do caixilho da janela e olhava para baixo. O corpo do homem
estava estendido em cima de um espesso colchão de folhas outonais, e o
vidro estilhaçado da janela cortava o corpo, enchendo o seu leito de um
variegado caleidoscópio de amarelo, preto e vermelho-pálido. Os
rapazinhos travessos, que foram os primeiros a descer até ao pátio,
apontavam e gritavam, dançando em volta do corpo golpeado. Enquanto
descia, Rey não conseguia esquecer as palavras imprecisas que, por
qualquer razão, o homem escolhera para lhe deixar como legado no último
ato da sua vida: Voi Ch'intrate. Voi CKintrate. Vós Que Entrais. Vós Que
Entrais.
Enquanto transpunha a galope a cancela de ferro do pátio de Har-vard,
James Russell Lowell sentia-se como Sir Launfal, o herói do seu poema mais
popular, que partira em busca do Graal. De fato, o poeta podia ver no papel
do galante cavaleiro o modo como ele entrava naquele dia, majestoso no
seu corcel branco e com a sua silhueta marcadamente delineada pelas
cores outonais, não fossem as suas peculiares preferências em matéria de
imagem: a sua barba aparada numa forma quadrada, cerca de cinco ou sete
centímetros abaixo do queixo, mas com o bigode muito mais longo, ficando
pendurado até mais abaixo. Alguns dos seus detratores, e muitos amigos,
observavam em privado que aquela talvez não fosse a opção mais
adequada para o seu rosto comprido. A opinião de Lowell era que as barbas
deviam ser longas, ou Deus não as teria concedido, embora não
especificasse se aquele estilo particular era o teolo-gicamente requerido.
A sua cavalaria imaginada era sentida com uma paixão mais forte naqueles
dias, quando o recinto da universidade se tornara uma cidadela cada vez
mais hostil. Algumas semanas antes, a Corporação tentara convencer o
professor Lowell a adoptar uma proposta de reformas que eliminaria
muitos dos obstáculos com que o seu departamento se deparava (por
exemplo, os estudantes receberiam metade dos créditos por se
matricularem numa língua estrangeira moderna, em vez de o fazer numa
língua clássica). Em contrapartida, a Corporação garantia a aprovação final
de todas as turmas de Lowell, oferta essa que ele recusou veementemente.
Se quisessem ver a sua proposta aprovada, teriam de passar por todo o
processo de a submeter à apreciação do Conselho de Inspetores de Har-
vard, essa hidra de vinte cabeças.
Então, uma tarde, Lowell recebeu um conselho do presidente, que o fez
perceber que recorrer ao conselho para a aprovação de todas as suas aulas
era um despropósito.
- Pelo menos, Lowell, cancele aquele seu seminário sobre Dante, e o
Manning pode bem melhorar-lhe as coisas - disse o presidente, agarrando
Lowell pelo cotovelo em jeito confidencial.
Lowell franziu os olhos.
- Então é isso? É atrás disso que todos eles andam! - Virou-se indignado. - A
mim não iludem com adulações, para que me vergue diante deles! Eles
livraram-se do Ticknor, e só Deus sabe como deram motivos ao Long fellow
para que ficasse ressentido com eles. Acho que todos os homens que se
consideram cavalheiros deviam falar abertamente contra eles,
ou melhor, todos os homens, claro, que não tenham passado nas provas do
seu doutoramento por ignomínia.
- O senhor considera-me um zero à esquerda, professor Lowell, porque não
controlo mais a Corporação do que o senhor, e, a maior parte das vezes,
dirigir-me aos seus membros é como falar para uma parede. Ah, e isso
apesar de eu ser o presidente desta universidade - acrescentou ele, rindo
entre dentes. De fato, o Thomas Hill era o presidente de Har-vard, e recente
nesse cargo, o terceiro numa década, uma prova de que os membros
constituintes da Corporação acumulavam muito mais poder do que o que
ele detinha. - Mas eles acreditam que Dante é um tema inconveniente
dentro das actividades do seu departamento, isso é evidente. Eles vão fazer
disso um exemplo, Lowell. O Manning fará com que isso sirva de exemplo! -
advertiu ele, e voltou a agarrar no braço de Lowell, como se a qualquer
instante o poeta tivesse de ser afastado de algum perigo.
Lowell afirmou que não toleraria que os membros da Corporação
submetessem ao seu juízo uma literatura sobre a qual nada sabiam. E Hill
nem sequer tentou argumentar este ponto. Era uma questão de princípio
para os colegas de Harvard, não saberem nada sobre as línguas vivas.
Quando Lowell voltou a encontrar Hill, o presidente vinha provido de uma
tira de papel azul onde estava escrita à mão uma citação de um poeta
britânico de algum prestígio e recentemente falecido, acerca de um aspeto
do poema de Dante. «Que ódio a toda a raça humana! Que exaltação e
regozijo perante o sofrimento eterno e não mitigável! Ficamos cada vez
mais atónitos à medida que progredimos na leitura; contemos as narinas e
tapamos os ouvidos. Alguma vez alguém viu juntos tão aviltantes odores,
obscenidades, excrementos, sangue, corpos mutilados, gritos agudos
agonizantes e monstros míticos como castigo? Ao ver isto, só posso
considerá-lo o livro mais imoral e ímpio jamais escrito.» Hill sorriu com
presunção, como se ele próprio fosse o seu autor.
Lowell riu-se.
- Passamos a ter lordes ingleses a dispor nas nossas estantes? Então,
porque não entregamos simplesmente Lexington aos casacas-vermelhas e
poupamos ao general Washington o incómodo da guerra? - Lowell
vislumbrou algo nos olhos de Hill, algo que às vezes via na expressão
inexperiente de um estudante, que o fez acreditar que o presidente podia
chegar a compreendê-lo. - Enquanto a América do Norte não aprender a
amar a literatura não como um divertimento, não como um mero verso
irregular para memorizar numa aula da faculdade, mas para alimentar a
sua energia humanizadora e nobilitante, meu caro e venerável presidente,
ela não terá alcançado esse tão elevado desígnio, que consiste em fazer de
um povo uma nação. É isso que faz com que o nome de um homem morto
se transforme numa força viva.
Hill esforçou-se por não se afastar do seu propósito.
- Essa ideia de viajar pelo além, de enumerar os castigos do Inferno... isso é
absolutamente chocante, Lowell. E uma obra como esta é muito
inapropriadamente intitulada uma «Comédia»! É medieval, escolástica, e...
- Católica - esta palavra emudeceu Hill. - Foi isso que o senhor quis dizer,
reverendíssimo presidente? Que é demasiado italiana e também
excessivamente católica para a Universidade de Harvard?
Hill elevou uma sobrancelha branca num gesto malicioso.
- Você tem de reconhecer que essas ideias aterradoras sobre Deus não
podem ser suportadas pelos nossos ouvidos protestantes.
A verdade era que Lowell era tão hostil quanto os seus colegas de Harvard
à quantidade de papistas irlandeses, que se amontoavam ao longo do cais e
nos distantes subúrbios de Boston. Contudo, a ideia de que o poema era
uma qualquer espécie de Edito, proveniente do Vaticano...
- Sim, nós preferimos condenar as pessoas para todo o sempre sem termos
a cortesia de as informar disso. E Dante chama à sua obra commedia, meu
caro senhor, porque está escrita na sua rústica língua italiana, em vez do
latim, e porque termina bem, com o poeta a elevar-se aos Céus, por
oposição à tragédia. Em vez de se esforçar por criar um grande poema
sobre algo estranho e artificial, ele deixa o poema brotar por si mesmo do
seu autor.
Lowell sentiu-se satisfeito por ver que o presidente estava exasperado.
- Por favor, Professor, não pensa certamente que existe algum rancor,
alguma malevolência da nossa parte para infligirmos torturas desumanas a
todos quantos praticam uma lista de pecados em concreto? Imagine um
qualquer homem público dos nossos dias a designar os lugares ocupados
pelos seus inimigos no Inferno! - argumentou Hill.
- Meu caro e reverendíssimo presidente, estou a imaginá-lo no exato
momento em que falamos. E não me interprete mal. Dante também manda
os seus amigos lá para baixo. Pode dizer isso ao Augustus Manning. Piedade
sem rigor seria um egoísmo cobarde, mero sentimentalismo.
Os membros da Corporação de Harvard, o presidente e seis pios homens de
negócios, escolhidos fora da Universidade, mostraram-se firmes na defesa
de um curriculum há muito instituído,
que lhes servira bem - Grego, Latim, Hebreu, História Antiga, Matemáticas e
Ciências -e afirmaram, como corolário do anterior, que a literatura e as
línguas modernas, inferiores, permaneceriam como uma novidade, algo
para engordar os seus catálogos. Longfellow fizera alguns progressos
depois da partida do professor Ticknor, incluindo um seminário de
iniciação a Dante, e contratara um brilhante exilado italiano, chamado
Pietro Bachi, como orientador e professor do curso da sua língua. Pela falta
de interesse relativamente ao assunto e pela língua, o seminário sobre
Dante foi consistentemente o menos popular dos vários que ministrava.
Mesmo assim, o poeta gozou do entusiasmo de umas poucas mentes que
passaram por aquele curso. Um dos entusiastas fora James Russell Lowell.
Agora, passados dez anos sobre as suas próprias contendas com a
administração, Lowell deparava-se com um acontecimento pelo qual
esperara, e cuja hora chegara, como se tivesse sido marcada pelo destino - a
descoberta de Dante pela América do Norte. Contudo, não só Harvard foi
rápida e meticulosa a desencorajá-la, como ao Clube de Dante também se
lhe deparou um obstáculo interno - Holmes e a sua ambígua posição de
neutralidade.
Por vezes, Lowell dava alguns passeios por Cambridge com o filho mais
velho de Holmes, Oliver Wendell Holmes Júnior. Duas vezes por semana, o
estudante de Direito saía do edifício da Dane Law School no preciso
instante em que Lowell terminava as suas aulas no edifício principal da
universidade. Holmes era incapaz de apreciar a sorte de ter um filho como
Júnior, porque conseguira fazer com que este o odiasse. Teria bastado que
Holmes o tivesse ouvido simplesmente, em vez de fazer com que Júnior
falasse. Certa vez, Lowell perguntara ao jovem se o doutor Holmes alguma
vez falara em casa sobre o Clube de Dante.
- Ah, claro, senhor Lowell - disse o bonito e alto Júnior, com um sorriso
afetado -, e também no Clube Atlântico, no Clube de União, no Clube de
Sábado, no Clube Científico, na Associação Histórica e na Sociedade
Médica...
Phineas Jennison, um dos homens de negócios mais abastados de Boston,
estivera recentemente sentado ao lado de Lowell numa ceia, que tivera
lugar no Clube de Sábado, em casa dos Parker, quando tudo isto ensombrou
o espírito de Lowell.
- Harvard está novamente a hostilizá-lo - disse-lhe Jennison. Lowell ficou
tão perplexo que se podia lê-lo no seu rosto com tanta facilidade como
numa tabuleta. - Não se sobressalte tanto por isso, meu caro amigo - disse
Jennison a rir com a covinha profunda do seu queixo a agitar-se
ligeiramente. Quem conhecia intimamente Jennison dizia que o seu cabelo
louro com laivos dourados e a sua covinha régia tinham pressagiado a sua
vasta fortuna quando era ainda rapaz,
apesar de, em abono da verdade, talvez ser uma covinha regicida, herdada
como era suposto de um antepassado, que decapitara Carlos I. - É que, um
dia destes, tive a oportunidade de falar com alguns dos membros da
Corporação. Sabe, não há nada que aconteça em Boston ou em Cambridge
que eu não saiba.
- Você está a construir outra biblioteca para nós? - perguntou Lowell.
- Em todo o caso, os colegas pareciam ter discutido acaloradamente entre si
a propósito do seu departamento. Eles pareciam muito determinados. Não
é minha intenção intrometer-me nos seus assuntos, claro, só que...
- Aqui entre nós, meu caro Jennison, eles propõem-se livrar-se de mim com
o pretexto do meu curso sobre Dante - interrompeu-o Lowell. - Por vezes,
temo que se tenham tornado tão opositores a Dante como eu sou a favor
dele. Até se ofereceram para aumentar a matrícula dos alunos do meu
curso, se eu os autorizasse a aprovarem o conteúdo dos temas do meu
seminário.
A expressão de Jennison reflectiu a sua preocupação.
- Recusei-o, claro - esclareceu Lowell. Subitamente, Jennison fez o seu
sorriso rasgado.
- Sim?
Foram interrompidos por alguns brindes, entre os quais se incluía a rima
improvisada mais aplaudida da noite, que a assistência havia pedido ao
doutor Holmes, disposto como sempre, apesar de se desculpar com o estilo
tosco da composição.
Um verso demasiado elegante nunca consegue emocionar, mas consegue
fazê-lo uma bola de bilhar.
- Estes versos à sobremesa podiam acabar com qualquer poeta, excepto
com Holmes - disse Lowell com um sorriso rasgado de admiração, ao
mesmo tempo que mostrava um olhar vago. - Por vezes, sinto que não sou
do mesmo material de que são feitos os professores, Jennison. Sou melhor
nalguns aspetos e pior noutros. Demasiado sensível e não suficientemente
vaidoso; poderia dizer que não fisicamente vaidoso. Sei que tudo isto me
prejudica. - Fez uma pausa. - E por que razão todos estes anos sentado na
cátedra não me entorpeceram para o mundo? O que deve pensar uma
pessoa como o senhor, um príncipe da indústria, sobre uma existência tão
mesquinha?
- Balelas infantis, meu caro Lowell! - Jennison parecia cansado do assunto,
mas, depois de permanecer pensativo por um momento, mostrou-se de
novo interessado.
- Você tem um dever muito maior para com o mundo e para consigo
mesmo, para se limitar a ser um mero espetador! Não quero saber de nada
sobre as suas dúvidas! Não me interessa nada que Dante tenha a ver com a
salvação da minha alma. Contudo, um génio da sua qualidade, meu bom
amigo, assume a divina responsabilidade de lutar por todos os exilados
deste mundo.
Lowell murmurou qualquer coisa inaudível, mas, sem duvida,
autodepreciativo.
- Ora, ora, Lowell - disse Jennison. - Não foi você o único que convenceu o
Clube de Sábado de que um simples comerciante era suficientemente bom
para jantar com uns imortais como os seus amigos?
- Podiam eles rejeitá-lo depois de você se ter oferecido para comprar a
Parker House? - respondeu Lowell a rir.
- Eles podiam ter-me rejeitado, e eu teria desistido da minha luta por
pertencer ao círculo dos grandes homens. Permita-me citar o meu poeta
favorito: «E aquilo com que eles ousam sonhar, ousam levá-lo a cabo.» Oh,
que sublime isto é!
Lowell ainda riu com mais vontade ao lembrar-se de que o seu interlocutor
se inspirava na sua própria poesia, mas, na verdade, assim era. E porque
não havia de ser? Segundo Lowell, a justificação da poesia era que reduzia à
essência de um único verso a vaga filosofia que pairava nos espíritos de
todos os homens, como para a tornar acessível e útil, como para tê-la
sempre ali à mão.
Agora, a caminho de mais uma aula, só a ideia de entrar numa sala repleta
de estudantes, que ainda pensavam ser possível aprender tudo sobre
alguma coisa, fê-lo bocejar.
Lowell esporeou o seu cavalo até à velha bomba de água, que se encontrava
no exterior de Hollis Hall.
- Dá-lhes uns coices valentes, se eles cá vierem, meu velho - disse ele,
acendendo um charuto.
Cavalos e charutos figuravam no catálogo das coisas proibidas no recinto
de Harvard.
Um homem estava indolentemente encostado a um olmeiro. Ele vestia um
colete axadrezado amarelo-vivo, e apresentava umas feições magras, ou
antes, consumidas. O homem, que era muito mais alto do que o poeta,
mesmo estando inclinado, demasiado velho para ser um estudante e
excessivamente abatido para ser um empregado da faculdade, olhou-o
fixamente com o brilho débil, familiar e ávido do admirador literário.
A fama não significava muito para Lowell, que só gostava de pensar que os
seus amigos reconheciam alguma qualidade ao que ele escrevia,
e que Mabel Lowell se sentiria orgulhosa por ser sua filha, quando ele
morresse. De contrário, pensava para consigo teres ataque rotundus - um
microcosmos em si mesmo, o seu próprio autor, público, crítico e pos-
terioridade. Mesmo assim, o elogio de homens e mulheres na rua não podia
deixar de o tocar. Por vezes, ia dar um pequeno passeio por Cambridge com
o coração tão cheio de enternecimento, que um olhar indiferente, mesmo
de um completo estranho, lhe trazia lágrimas aos olhos. No entanto, havia
algo igualmente doloroso quando se lhe deparava o olhar fixo, opaco e
confuso do reconhecimento. Isso fazia-o sentir-se com-pletamente
transparente e distante - o poeta Lowell, uma aparição.
Aquele observador vestido de amarelo e encostado a uma árvore tocou na
aba do seu chapéu de coco negro quando Lowell passou por ele. O poeta,
confuso, inclinou a cabeça e sentiu as bochechas a arder. Enquanto se
apressava em direcção ao campus universitário, para cumprir as suas
obrigações diárias, Lowell não reparou na estranha atenção que aquele
observador lhe dedicava.
O doutor Holmes entrou rapidamente no íngreme anfiteatro. Bastantes
botas barulhentas, usadas por aqueles cujos lápis e cadernos impediam
aplaudi-lo com as mãos, ribombaram à sua entrada. Àquilo seguiram-se
breves hurras, gritados pelos desordeiros (Holmes chamava-lhes os seus
barbarozinhos), reunidos naquela parte superior da sala de aula, conhecida
como a Montanha (como se aquela fosse a Assembleia da Revolução
Francesa). Ali, Holmes construía o corpo humano, tratando à vez cada
parte. Ali, quatro vezes por semana, estavam cinquenta venerandos filhos a
aguardarem cada uma das suas palavras. Em pé, diante da turma, no fosso
do anfiteatro, ele sentia-se com quase quatro metros de altura, em vez do
efectivo metro e setenta (e isso por causa das botas particularmente altas,
manufaturadas pelo melhor sapateiro de Boston).
Oliver Wendell Holmes era o único elemento da faculdade que nunca fora
capaz de dar aulas à uma da tarde, quando a fome e a exaustão se
combinavam com o ar narcotizado da pequena casa de tijolo de dois
andares, de North Grove. Alguns colegas invejosos diziam que a sua fama
literária cativava os estudantes. De fato, a maioria dos rapazes que escolhia
medicina, em detrimento do direito ou da teologia, eram rústicos, e se
tivessem conhecido alguma verdadeira literatura antes de chegarem a
Boston, era algum poema de Longfellow. Mesmo assim, a reputação
literária de Holmes espalhara-se como um mexerico sensacionalista, se
alguém procurava um exemplar de The Autocrat of the Breakfast-Table e o
fazia circular, assinalando com um olhar fixo e incrédulo para um colega,
«Ainda
não leste o Autocrata?» Contudo, a sua reputação literária entre os
estudantes era mais a reputação de uma reputação.
- Hoje - disse Holmes -, começaremos por um tema com o qual, vos garanto,
meus rapazes, não estais de todo familiarizados. - Ele puxou para baixo um
lençol branco imaculado, que cobria um cadáver feminino, depressa
levantando as palmas das mãos para fazer cessar o tumulto, que se seguiu,
de pés a baterem no chão e vozes a clamarem.
- Respeito, meus senhores! Respeito pela obra mais divina da humanidade
e de Deus!
O doutor Holmes estava demasiado perdido no mar de atenção para
reparar no intruso que se encontrava entre os estudantes.
- Sim, o corpo feminino iniciará o tema de hoje - prosseguiu Holmes. Um
jovem tímido, Alvah Smith, um entre a meia-dúzia de alunos
brilhantes de qualquer turma, para quem o professor naturalmente dirige a
sua prelecção de forma natural, como se fossem intermediários dos
restantes, corou visivelmente na primeira fila, onde os seus companheiros
mais próximos se mostraram felizes por escarnecer do seu embaraço.
Holmes apercebeu-se daquilo.
- E aqui, na pessoa de Smith, temos uma mostra da acção inibidora dos
nervos vasomotores sobre as arteríolas, que, de súbito, se relaxam e
enchem os capilares superficiais de sangue; o mesmo fenómeno agradável
que alguns de vocês podem testemunhar no rosto dessa jovem que
esperam visitar esta noite.
Smith também riu com os outros, mas Holmes ouviu igualmente uma
gargalhada ruidosa, grosseira e espontânea, das que produzem um ruído
seco com a indolência da idade. Levantou os olhos de soslaio para a coxia, e
reconheceu o venerável doutor Putnam, um dos membros menos
poderosos da Corporação de Harvard. Embora os membros que a
compunham representassem o mais alto nível de supervisão, jamais
assistiam, efectivamente, às aulas da sua universidade; percorrer a longa
distância de Cambridge até ao edifício da Faculdade de Medicina, que se
situava do outro lado do rio, em Boston, nas imediações dos hospitais, teria
sido uma ideia inaceitável para a maioria dos administradores.
- Ora - disse Holmes, furioso, para a turma, dispondo os instrumentos para
trabalhar no cadáver, junto do qual se encontravam os seus dois ajudantes
-, mergulhemos nas profundezas do nosso tema.
Depois de terminada a aula e de os barbarozinhos saírem às cotoveladas
pelas coxias, Holmes conduziu o venerável doutor Putnam ao seu gabinete.
- Você, meu caro doutor Holmes, representa o referente máximo para os
homens de letras norte-americanos. Nenhum trabalhou tão árduamente
para se destacar em tantas áreas.
O seu nome tornou-se um símbolo de erudição e autoria literária. Olhe,
ainda ontem eu falava com um cavalheiro inglês, que me dizia como o
senhor é profundamente respeitado na mãe-pátria. Holmes sorriu, absorto.
- O que foi que ele disse? O que disse ele, venerável doutor Putnam? O
senhor sabe como eu gosto de uma boa engraxadela.
Putnam franziu o sobrolho à interrupção.
- Em todo o caso, o Augustus Manning está preocupado com algumas das
suas actividades literárias, doutor Holmes.
Holmes ficou surpreendido.
- Refere-se ao trabalho do senhor Longfellow sobre Dante? O Long-fellow é
o tradutor. Eu sou apenas um dos seus ajudantes-de-campo, por assim
dizer. Sugiro-lhe que aguarde pela publicação desse trabalho e o leia; de
certeza que lhe vai agradar.
- O James Russell Lowell, o J. T. Fields, o George Greene e o doutor Oliver
Wendell Holmes. Mas que seletos «ajudantes», não é?
Holmes sentiu-se incomodado. Não pensara que o clube deles fosse alvo do
interesse geral, nem gostava de falar nele com um estranho. O Clube de
Dante era uma das suas poucas actividades que não tinham projecção
pública.
- Oh, lance uma pedra em Cambridge e terá forçosamente que atingir o
autor de dois volumes, meu caro Putnam.
Putnam cruzou os braços e aguardou.
Holmes agitou uma mão sem apontar em nenhuma direcção particular.
- É o senhor Fields que trata desses assuntos.
- Por favor, afaste-se dessa perigosa associação - disse Putnam com uma
sombria seriedade. - Chame os seus amigos à razão. O professor Lowell, por
exemplo, só transigiu...
- Se o senhor anda à procura de alguém a quem o Lowell dê ouvidos, meu
caro Putnam - Holmes interrompeu-se para deixar escapar uma gargalhada
-, fez uma má escolha ao virar-se para a Faculdade de Medicina.
- Holmes - disse Putnam com amabilidade -, eu vim sobretudo para o
avisar, porque o considero um amigo. Se o doutor Manning soubesse que eu
estava assim a falar consigo, ele... - Putnam fez uma pausa e baixou a voz
num tom elogioso. - Meu caro Holmes, o seu futuro ficará para sempre
associado a Dante. Temo o que, na atual situação, possa acontecer à sua
poesia e ao seu nome, a partir do momento em que o Manning intervenha.
- Manning não tem o direito de me atacar pessoalmente, mesmo que tenha
objecções relativamente aos interesses do nosso pequeno clube.
Putnam respondeu:
- Estamos a falar do Augustus Manning. Lembre-se disso. Quando o doutor
Holmes se retirou, parecia ter engolido um globo.
Putnam perguntava-se muitas vezes por que motivo nem todos os homens
usavam barba. Ele sentia-se satisfeito, mesmo com a agitação do caminho
de regresso a Cambridge, por saber que o doutor Manning ficaria
muitíssimo satisfeito com as suas informações.
Artemus Prescott Healey, nascido em 1804 e falecido em 1865, fora
enterrado numa grande parcela, numa das primeiras que se adquiriram,
uns anos antes, na principal colina do Mount Auburn Cemetery.
Ainda havia muitos brâmanes, que aceitavam mal as decisões cobardes de
Healey de antes da guerra. Contudo, todos tinham coincidido em que só os
antigos radicais mais extremistas ofenderiam a memória do juiz do
Supremo Tribunal do seu estado ao rejeitar desdenhosamente as suas
exéquias fúnebres.
O doutor Holmes inclinou-se para a sua mulher.
- Apenas quatro anos de diferença, Melia.
Ela respondeu à observação com um arrulho breve.
- O juiz Healey tinha sessenta anos - continuou Holmes a sussurrar. - Ou ia
fazer. Ele só tinha mais quatro anos do que eu, querida, quase completos,
até ao dia! - Pelo menos, quase até ao mês; como quer que fosse, o doutor
Holmes tomava em consideração a idade de pessoas falecidas e a sua
proximidade com a sua. Com um movimento dos olhos, Amélia Holmes
advertiu-o para que permanecesse em silêncio durante o panegírico.
Holmes calou-se e olhou em frente, para os campos serenos.
Holmes não podia afirmar ter privado com o falecido; poucos homens
podiam fazê-lo, mesmo entre os brâmanes. O juiz Healey do Supremo
Tribunal estivera ao serviço do Conselho de Inspetores de Harvard, por
isso, o doutor Holmes mantivera algum contato rotineiro com ele, enquanto
Healey tivera a função de administrador. Holmes também o conhecera na
qualidade de membro do Phi Beta Kappa, porque Healey presidira durante
algum tempo a essa imponente sociedade. O doutor Holmes conservava a
sua chave OBK na corrente do relógio, um objeto com que agora os seus
dedos se debatiam, enquanto o corpo de Healey repousava no seu novo
leito. «Pelo menos», pensou Holmes com a particular compaixão médica
pela morte, «o pobre Healey não sofreu ao morrer.»
O contato mais prolongado que o doutor Holmes tivera com o juiz
acontecera no tribunal, numa época conturbada para Holmes, e que o fizera
desejar retirar-se definitivamente para o mundo da poesia.
A defesa do processo de Webster, presidido, como em todos os crimes
capitais, por um tribunal composto por três juízes e presidido pelo juiz do
Supremo Tribunal, solicitara o depoimento do doutor Holmes como
testemunha abonatória importante de John W. Webster. Fora durante a
efusão do julgamento, muitos anos antes, que Wendell Holmes tivera
oportunidade de conhecer o estilo do discurso grave e cansativo ao qual
Artemus Healey se abandonava nas suas apreciações legais.
«Os professores de Harvard não cometem homicídios.» Foi o que o então
presidente de Harvard testemunhou, em defesa de Webster, apresentando
o seu breve testemunho pouco antes do doutor Holmes.
O homicídio do doutor Parkman ocorrera no laboratório, situado por baixo
da sala onde Holmes dava as aulas, e onde ele se encontrava naquele
momento. Já era suficientemente penoso Holmes ser amigo tanto do
assassino como da vítima, sem saber cujo infortúnio havia de lamentar
mais. Pelo menos as habituais gargalhadas contagiosas dos alunos de
Holmes tinham abafado o som dos golpes desferidos no corpo do nosso
professor Webster.
- Um homem devoto e temente a Deus, como toda a sua família... As
promessas celestes proferidas pela voz estridente do pregador, com uma
expressão de imenso pesar, não eram bem vistas por Holmes. Por uma
questão de princípio, poucos aspetos das cerimónias religiosas eram bem
vistos pelo doutor Holmes, como filho de um desses resolutos pastores
para quem o calvinismo se mantivera firme diante da sublevação do
unitarismo. Oliver Wendell Holmes e o seu tímido irmão mais novo, John,
tinham sido criados naquele enorme disparate, que ainda zumbia aos
ouvidos do doutor: «Com a fraqueza de Adão, todos pecamos.» Felizmente,
eles haviam sido protegidos pela inteligência arguta da mãe, que
sussurrava insinuações espirituosas para os lados, enquanto o reverendo
Holmes e os seus ministros convidados pregavam a condenação
predestinada e o pecado inato. Ela prometia-lhes que novas ideias
chegariam, em particular, a Wendell, quando ele se sentiu impressionado
por uma certa história relativa ao controlo diabólico sobre as nossas almas.
E, de fato, as novas ideias chegaram, tanto para Boston como para Oliver
Wendell Holmes. Só os unitaristas podiam ter construído o Mount Auburn
Cemetery, um local fúnebre, que era também um jardim.
Enquanto Holmes observava meticulosamente os muitos notáveis
presentes e não se ocupava de si mesmo, muitos outros inclinavam a
cabeça na direcção do doutor Holmes, porque ele fazia parte de um grupo
de celebridades conhecidas por diversos nomes - Os Santos da Nova
Inglaterra ou os Poetas do Lar. Independente do nome, constituíam o mais
importante contingente literário do país. Ao lado dos Holmes estava James
Russell Lowell,
poeta, professor e editor, a retorcer indolentemente as longas pontas do
seu bigode, até Fanny Lowell lhe puxar pela manga. Do outro lado, J. T.
Fields, editor dos maiores poetas da Nova Inglaterra, com a cabeça e a
barba a apontarem para baixo, formando um triângulo perfeito de séria
contemplação, uma figura notável para ser justaposta às faces
angelicamente rosadas e à atitude perfeita da sua jovem mulher. Lowell e
Fields não eram mais íntimos do juiz Healey do Supremo Tribunal do que
Holmes, mas assistiam às cerimónias fúnebres por consideração pela
posição de Healey e pela família (de quem os Lowell, além disso, eram de
certa forma primos).
Os presentes, ao observarem aquele trio de literatos, procuraram em vão o
mais ilustre que costumava acompanhá-los. Na verdade, Henry Wadsworth
Longfellow estivera disposto a acompanhar os seus amigos ao Mount
Auburn, que era muito próximo de sua casa, mas, como de costume, ficara
junto à lareira. Pouco havia no mundo, exterior a Craigie House, que
conseguisse tirar Longfellow de casa. Depois de tantos anos dedicados
àquele projeto, a realidade de uma publicação iminente requeria toda a sua
concentração. Além disso, Longfellow temia (e com razão) que, ao ir ao
Mount Auburn, a sua fama desviasse a atenção do cortejo fúnebre da
família Healey. Sempre que Longfellow caminhava pelas ruas de
Cambridge, as pessoas sussurravam, as crianças lançavam-se nos seus
braços e eram levantados chapéus em tão grande número, que parecia que
todo o condado de Middlesex entrara simultaneamente numa igreja.
Holmes lembrava-se de certa vez, há uns anos, antes da guerra, quando
viajava aos solavancos com Lowell num fiacre, passarem em frente à janela
de Craigie House, que emoldurava Fanny e Henry Longfellow junto à
lareira, rodeados pelos seus lindos cinco filhos, que estavam ao piano.
Nessa altura, o rosto de Longfellow ainda era sereno e permitia-se ser visto
pelo mundo.
- Tremo só de olhar para a casa do Longfellow - dissera Holmes. Lowell, que
se queixara de um ensaio fraco de Thoreau, de cuja
edição se encarregava, respondeu com uma breve risada, que contrastava
com o tom de Holmes.
- A felicidade deles é tão perfeita - continuara Holmes -, que nenhuma
mudança, qualquer que ela fosse, pode deixar de ser para pior.
Quando a oratória do reverendo Young se aproximou do fim, solenes
murmúrios começaram a ouvir-se na ampla e silenciosa extensão do
cemitério. Enquanto Holmes sacudia umas folhitas amarelas do seu
colarinho de veludo e deixava que os seus olhos vagueassem pelos rostos
pesarosos do cortejo fúnebre, reparou que o reverendo Elisha Talbot, o
pastor mais eminente de Cambridge, parecia notoriamente irritado com a
calorosa recepção que tivera a oratória de Young.
Sem dúvida que ensaiara o que teria proferido se fosse o pastor de Healey.
Holmes admirou a expressão contida da viúva de Healey. As viúvas de
lágrima fácil arranjavam sempre um novo marido antes das outras. Holmes
também se entreteve a observar o senhor Kurtz, porque o chefe da polícia
se colocara assertivamente ao lado da viúva Healey e a puxara para o lado,
tentando, aparentemente, convencê-la de qualquer coisa, mas num modo
tão breve como se aquele intercâmbio de palavras fosse uma recapitulação
de uma qualquer conversa anterior. O chefe Kurtz não argumentava,
fazendo antes uma advertência algo amável à viúva Healey, que anuiu com
deferência; «Ah, mas muito tensa», pensou Holmes. O chefe Kurtz terminou
com um suspiro de alívio, que Éolo teria certamente invejado.
Nessa noite, o jantar no número 21 da Charles Street foi mais tranquilo do
que o habitual, embora nunca fosse tranquilo. Os convidados da casa
partiam sempre admirados com o ritmo, para não falar no volume baixo,
das conversas dos Holmes, questionando-se se algum dos membros
daquela família alguma vez escutara os outros. Aquela fora uma tradição
implantada pelo médico para recompensar com mais uma dose de doce de
laranja o melhor conversador da noite. Hoje, a filha do doutor Holmes, a
«pequena» Amélia, conversava mais do que o habitual, contando a
novidade do noivado de Miss B... com o coronel F..., e contando o que o seu
círculo de costura andara a fazer como presentes de casamento.
- Ora, pai - disse Oliver Wendell Holmes Júnior, adolador, com um pequeno
esgar -, parece-me que, esta noite, o senhor vai ficar sem doce de laranja.
Júnior estava deslocado na mesa dos Holmes. Não só tinha um metro e
oitenta de altura numa casa de pessoas activas e de baixa estatura, como
era delicadamente parco nas palavras e nos movimentos.
Holmes sorriu pensativamente sobre o seu assado.
- Mas, Wendy, esta noite não te ouvi muito. Júnior odiava que o pai o
tratasse assim.
- Ah, não sou eu quem vai ganhar a dose extra. Mas o senhor também não,
meu pai. - Ele virou-se para Edward, o irmão mais novo, que agora estava
em casa apenas esporadicamente, por estar como aluno interno na
universidade. - Dizem que estão a fazer uma lista para dar o nome do pobre
Healey a uma cátedra da Faculdade de Direito. Acreditas nisto, Neddie?
Depois de, ao longo de todos estes anos, ele também se ter esquivado à sua
responsabilidade relativamente ao Decreto sobre os Escravos Fugitivos!
Que eu saiba, morrer é a única forma de Boston te perdoar pelo teu
passado.
Durante o seu passeio a seguir ao jantar, o doutor Holmes parou para dar a
algumas crianças que jogavam ao berlinde uma mão-cheia de moedas de
um dinheiro, com as quais escreviam uma palavra no passeio. Ele escolhia
laço (porque não?), e, se elas a escrevessem corretamente, deixava-as ficar
com as moedas. Ele estava contente por, em Boston, o Verão estar a chegar
ao fim, e com isso o calor asfixiante, que lhe agravava a asma.
Holmes sentou-se debaixo das árvores altas, que se encontravam nas
traseiras de sua casa, pensando nos «mais finos talentos literários da Nova
Inglaterra», segundo os exagerados elogios feitos por Fields no New York
Tribune. O seu Clube de Dante era importante para a missão de Lowell
introduzir a poesia de Dante na América do Norte, e para os planos
editoriais de Fields. Sim, estavam em jogo interesses académicos e
empresariais. Contudo, para Holmes, o sucesso do clube resultava da união
de interesses desse grupo de amigos, ao qual ele se sentia feliz por
pertencer. Ele adorava mais do que qualquer outra coisa a tagarelice
descontraída e a centelha brilhante, que brotavam quando eles davam livre
curso à poesia. O Clube de Dante era uma associação conciliadora - porque
ao longo dos últimos anos, de repente, todos tinham envelhecido -, que
juntara Holmes e Lowell, apesar das suas divergências a propósito da
guerra, que unira Fields e os seus melhores autores no primeiro ano sem o
seu sócio William Ticknor, para lhes proporcionar segurança, e que unira
Longfellow ao mundo exterior ou, pelo menos, a alguns dos seus
embaixadores com maior propensão literária.
O talento de Holmes para traduzir não era extraordinário. Ele possuía a
imaginação necessária, mas faltava-lhe aquela qualidade que adornava
Longfellow e que permitia que um poeta se predispusesse completamente
à voz de outro poeta. Ainda assim, numa nação com escasso intercâmbio de
ideias com países estrangeiros, Oliver Wendell Holmes sentia-se feliz por se
considerar um bom conhecedor de Dante - mais um dantino do que um
erudito especialista em Dante. Quando Holmes estudava na faculdade, o
professor George Ticknor, o literato aristocrata, sentia a sua tolerância a
chegar ao fim por causa da constante obstrução que a Corporação fazia ao
seu lugar de primeiro professor da cátedra Smith. Entretanto, tendo
chegado a dominar o grego e o latim aos doze anos, Wendell Holmes
sentira-se asfixiar de tédio durante as obrigatórias horas de récita e de
perturbante memorização e repetição de versos em coro da Écuba de
Eurípedes, com cujo significado se debatera durante muito tempo. Quando
eles se encontraram na sala de visitas da família Holmes, os olhos pretos e
fixos do professor Ticknor acolheram o colegial, que apoiava o seu peso
alternadamente em ambos os pés.
- Não está quieto um segundo - sussurrou o pai de Oliver Wendell Holmes,
o reverendo Holmes.
Ticknor sugeriu que o italiano podia discipliná-lo. Nessa época, os recursos
do departamento eram demasiado restritos para se oferecer uma
aprendizagem formal dessa língua. Contudo, depressa Holmes recebeu
emprestados uma gramática e um caderno de vocabulário, organizado por
Ticknor, juntamente com uma edição da Divina Commedia de Dante, um
poema constituído por três partes, denominadas Inferno, Purgatório e
Paradiso, por sua vez divididas, no total, em 35 cantos.
Agora, Holmes temia que as altas esferas de Harvard tivessem dado com
algo relacionado com Dante por causa da sua vincada posição de
ignorância. Na Faculdade de Medicina, as Ciências tinham permitido a
Oliver Wendell Holmes descobrir o modo como a natureza atuava quando
se libertava da superstição e do medo. Ele acreditava que, da mesma forma
que a astronomia substituíra a astrologia, também um dia a «teonomia»
suplantaria a sua irmã gémea de fraco talento. Com esta convicção, Holmes
evoluiu como poeta e professor.
Depois, a guerra armou uma cilada ao doutor Holmes, e a Dante Alighieri
também.
Tudo começou ao cair de uma noite no Inverno de 1861. Holmes estava
sentado em Elmwood, a mansão de Lowell, inquieto com as notícias da
partida de Wendell Júnior com o 25.o Regimento de Massachusetts. Lowell
era o antídoto exato para o seu nervosismo - um confidente impetuoso e
exaltado, cujas afirmações mostravam que o mundo estava sempre
exatamente como ele dizia; ridículo, se necessário, se as preocupações dos
outros se mostrassem excessivas.
Desde esse Verão que a sociedade se lamentava por sentir a falta da
presença consoladora de Henry Wadsworth Longfellow. Este escreveu aos
seus amigos a declinar todos os convites que o obrigassem a sair de Craigie
House, explicando que estava ocupado. Dizia que começara a traduzir
Dante e não fazia tenções de parar: Faço este trabalho, porque não posso
fazer mais nada.
Vindos do reticente Longfellow, estes recados eram lamentos lancinantes.
Ele estava aparentemente calmo por fora, mas, por dentro, esvaía-se em
sangue.
Então, Lowell colocou-se à porta de Longfellow, insistindo em o ajudar. Há
muito que Lowell lamentava o fato de os norte-americanos, pouco
conhecedores das línguas modernas, nem sequer terem acesso às poucas e
lamentáveis traduções britânicas existentes.
- Preciso do nome de um poeta para vender um livro como este ao público
inepto!
- dizia Fields perante as advertências apocalípticas de Lowell sobre a
cegueira da América do Norte em relação a Dante.
Sempre que Fields se propunha desencorajar os seus autores de avançarem
com um projeto arriscado, invocava a estupidez do público leitor.
Muitas vezes, ao longo dos anos, Lowell insistira com Longfellow para
traduzir o poema de três partes, chegando uma ocasião a ameaçá-lo fazê-la
ele próprio, algo para o qual não possuía a força interior necessária. Agora,
não podia deixar de ajudar. Afinal de contas, Lowell era um dos poucos
eruditos norte-americanos que sabiam algo sobre Dante; na verdade, ele
parecia saber tudo.
Lowell pormenorizou a Holmes a forma notável como Longfellow estava a
captar o espírito de Dante, a julgar pelos cantos que Longfellow lhe
mostrara.
- Creio que ele nasceu para aquela tarefa, Wendell. - Longfellow estava a
começar com o Paradiso, depois passaria para o Purgatório e, finalmente,
para o Inferno.
- De trás para a frente? - perguntou Holmes, intrigado. Lowell acenou com a
cabeça e fez um sorriso rasgado.
- Atrevia-me a dizer que o nosso querido Longfellow quer assegurar o Céu
antes de se comprometer com o Inferno.
- Eu nunca recorreria ao caminho para chegar a Lúcifer - disse Holmes,
referindo-se ao Inferno. - O Purgatório e o Paraíso são só harmonia e
esperança, e sentimo-nos pairar em direcção a Deus. Mas o horror e a
barbárie desse pesadelo medieval! Alexandre Magno devia ter dormido
com esse livro debaixo da almofada.
- O Inferno de Dante relata parte tanto do nosso mundo como do
inframundo, e não devia ser iludido - disse Lowell -, mas antes enfrentado.
Muitas vezes, nesta vida, alcançamos as profundezas do Inferno.
A força da poesia de Dante ressoava mais naqueles que não professavam a
fé católica, porque inevitavelmente a teologia de Dante prestara-se a
equívocos entre os crentes. Contudo, para os que estivessem mais distantes
em termos teológicos, a fé de Dante era tão perfeita, tão inflexível, que um
leitor se sentia obrigado pela poesia a levá-la muito a peito. Por isso,
Holmes temia o Clube de Dante. Temia que ele abrisse a porta a um novo
Inferno, imbuído de força pelo puro génio literário dos poetas. E, pior
ainda, temia que, depois de uma vida inteira a fugir do demónio sobre o
qual o seu pai pregava, ele próprio se mostrasse parcial, repelindo-o.
Nessa noite de 1861, no escritório de Elmwood, um mensageiro
interrompeu o chá do poeta. O doutor Holmes soube sem a menor dúvida
que era um telegrama cuidadosamente reenviado
da sua própria casa a informá-lo da morte do pobre Wendell Júnior num
qualquer campo de batalha gelado, provavelmente de exaustão - de todas
as explicações presentes nas listas de baixas, Holmes achava que «morto
por exaustão» era o mais assustador e intenso. Porém, em vez disso, era um
criado enviado por Henry Longfellow, cuja propriedade, Craigie House, era
ao virar da esquina. Um simples bilhete pedia o auxílio de Lowell em alguns
cantos já traduzidos. Lowell convenceu Holmes a acompanhá-lo.
- Já tenho tantas coisas em mãos para tratar, que temo cair em mais uma
tentação - disse Holmes, rindo no início. - Receio contrair a sua dantemania.
Lowell também convenceu Fields a dedicar-se a Dante. Embora não fosse
um especialista em cultura italiana, o editor contava com um útil
conhecimento do idioma, graças às suas viagens de negócios (dado que
havia pouco intercâmbio comercial de livros entre Roma e Boston, as
viagens de negócios eram sobretudo para o prazer de ambos, de si próprio
e de Annie), e agora ele mergulhava em dicionários e análises literárias. O
interesse de Fields, como a sua mulher gostava de dizer, era o que
interessava os outros. E o velho George Washington Greene, que oferecera
a Longfellow o seu primeiro exemplar de Dante, enquanto viajavam juntos
pelas regiões rurais italianas, trinta anos antes, começou a aparecer sempre
que saía de Rhode Island e chegava à cidade, e oferecia-lhe uma informação
completa acerca do seu trabalho. Fora Fields, quem mais precisava de
estabelecer prazos, a sugerir que fizessem as reuniões de trabalho sobre
Dante às quartas-feiras ao serão no escritório de Craigie House, e fora o
doutor Holmes, um nomeador perfeito, que baptizara a iniciativa de Clube
de Dante, apesar de o próprio Holmes normalmente se lhes referir como as
sessões deles, insistindo em que, se cada um se esforçasse por observar
com atenção, conseguia encontrar-se frente a frente com Dante junto à
lareira de Longfellow.
O novo romance de Holmes devolver-lhe-ia o favor do público. Seria a
história norte-americana que os leitores aguardavam que chegasse a todas
as livrarias e bibliotecas - a que Hawthorne não conseguira encontrar em
vida; a que espíritos promissores, como Herman Melville, turvavam com
singularidades, enveredando pela via do anonimato e do isolamento. Dante
atreveu-se a transformar-se quase num herói divino ao transformar a sua
débil personalidade, através da jactância da poesia. No entanto, para o
conseguir, o florentino sacrificou o seu lar, a sua vida familiar com a mulher
e os filhos, o lugar que ocupava na cidade desonesta que amava. Na solidão
e pobreza, ele definiu a sua nação; apenas na imaginação, ele conseguiu
experimentar a paz. O doutor Holmes, como lhe era habitual, realizaria
tudo ao mesmo tempo.
E, então, depois de o seu romance obter o apoio nacional, o doutor Manning
e os outros abutres terrestres tentaram debicar a sua reputação! No pico da
adoração intensa, Oliver Wendell Holmes, sustendo um escudo numa única
mão, podia defender Dante dos seus atacantes e garantir o triunfo de
Longfellow. Contudo, se a tradução iniciava demasiado depressa uma
batalha que aprofundasse as feridas que afetavam já o seu nome, então, a
história norte-americana podia passar despercebida, ou acontecer algo
ainda pior.
Holmes viu com a clareza de um veredito judicial o que tinha que fazer. Ele
tinha de os travar apenas o suficiente para terminar o seu romance, antes
de a tradução estar acabada. Esta não era apenas uma questão relacionada
com Dante; era também um assunto relacionado com Oliver Wendell
Holmes, o seu destino literário. Além disso, Dante, lamentavelmente,
atrasara o seu momento vários séculos, antes de surgir no Novo Mundo.
Que mal podia significar mais umas semanas?
No vestíbulo do Comissariado Central da Polícia de Court Square, Nicholas
Rey levantou os olhos do bloco de apontamentos, olhando de soslaio para o
candeeiro a gás, depois de uma longa batalha travada com uma folha de
papel. Um homem grosseiro e robusto num uniforme anil, agitando uma
folhita de papel como se embalasse uma criança, aguardava em frente à sua
secretária.
- O senhor é o agente Rey, não é? Eu sou o sargento Stoneweather. Não
queria interrompê-lo. - O homem avançou e estendeu a sua mão enorme e
impressionante. - O que quer que os outros digam, acho que é preciso ter
coragem para se ser o primeiro polícia negro. O que é que está a escrever,
Rey?
- Posso ajudá-lo nalguma coisa, sargento? - perguntou Rey.
- Sim, pode, eu acho que pode. Tem sido você que tem andado por aí pelos
outros comissariados da polícia a fazer perguntas sobre aquele mendigo do
demónio que saltou da janela, não é? Fui eu que o trouxe para o
reconhecimento.
Rey certificou-se de que a porta do escritório de Kurtz ainda permanecia
fechada. O sargento Stoneweather retirou uma tarte de mirtilo do
embrulho e foi-a comendo aos poucos enquanto falava.
- Lembra-se onde estava quando o trouxe cá para dentro? - perguntou Rey.
- Sim... Andava lá fora à procura de alguém que pudesse ter interesse, como
nos foi ordenado. Nas tabernas, nas habitações sociais. Na estação de
charretes de South Boston, era onde eu estava nessa altura,
porque sabia que alguns carteiristas operam por ali. Esse seu mendigo
estava caído em cima de um dos bancos, meio adormecido, mas a
estremecer, como se tivesse tremulous demendous ou delirious
tremendous ou qualquer coisa do género.
- Sabe quem ele era? - perguntou Rey. Stoneweather respondeu, enquanto
ainda mastigava.
- Muitos vadios e bêbados estão sempre a chegar e a partir das imediações
das paragens das charretes. Por isso, não me pareceu familiar. Para dizer a
verdade, nem sequer me passou pela cabeça trazê-lo, de tal modo me
pareceu inofensivo.
Rey ficou surpreendido com aquilo.
- É o que o fez mudar de ideias?
- O diabo daquele pedinte, foi o que foi! - deixou escapar Stoneweather,
perdendo-se algumas migalhas da massa no meio da sua barba. - Ele vê-me
a trazer alguns tratantes, e corre direito a mim, de punhos levantados, e
põe-se ali à frente deles, como se quisesse ser algemado e preso ali mesmo
por um homicídio sangrento que tivesse cometido! Então, pensei: «Acho
que os céus mo mandaram para o levar para esta identificação.» E o raio do
louco entrega-se. Tudo acontece por vontade de Deus; eu acredito nisso. O
senhor agente não?
Rey tinha dificuldade em imaginar o saltador em qualquer outra
circunstância que não fosse a do voo para a morte.
- Ele disse-lhe alguma coisa no caminho? Fez alguma coisa? Falou com mais
alguém? Talvez alguém que lesse um jornal? Um livro?
Stoneweather encolheu os ombros.
- Não reparei.
Enquanto Stoneweather remexia nos bolsos do casaco à procura de um
lenço para limpar as mãos, Rey reparou com um interesse distraído no
revólver que lhe saía do cinto de cabedal. No dia em que Rey fora admitido
na polícia pelo governador Andrew, o Conselho de Vereadores emitira uma
resolução a instituir-lhe restrições. Rey não podia usar uniforme, não podia
andar com uma arma mais potente do que um bastão, e não podia prender
uma pessoa da raça branca sem estar presente outro agente.
Naquele primeiro mês, a Câmara Municipal colocara Nicholas Rey a vigiar o
Segundo Bairro. O capitão do Comissariado da Polícia considerou que Rey
só podia ser eficaz a efetuar patrulhas em Nigger Hill. No entanto, ali havia
bastantes negros, que alimentavam ressentimentos em relação a um agente
mulato, e desconfiavam dele, de tal maneira, que os outros agentes da área
temiam distúrbios. O Comissariado da Polícia não era muito melhor. Só
dois ou três policiais dirigiam a palavra a Rey,
e os restantes assinaram uma carta, dirigida ao chefe Kurtz, a solicitar o
final da experiência de terem um agente de cor.
- Deseja mesmo saber o que o levou a fazer aquilo, senhor agente? -
perguntou Stoneweather. - Segundo a minha experiência, às vezes, um
homem não pode simplesmente averiguar a razão das coisas.
- Ele morreu no edifício deste comissariado, sargento Stoneweather - disse
Rey. - Mas, na sua cabeça, ele estava noutro sítio... longe de nós, longe da
protecção.
Isso era mais do que Stoneweather conseguia perceber.
- Quem me dera saber mais sobre esse pobre tipo.
Nessa tarde, o chefe Kurtz e o subdelegado Savage visitaram Beacon Hill.
No assento do cocheiro, Rey permanecia ainda mais tranquilo do que era
habitual. Quando se apearam, Kurtz perguntou-lhe:
- Ainda está a pensar naquele maldito vagabundo, senhor agente?
- Posso averiguar quem ele era, chefe - disse Rey.
Kurtz franziu o sobrolho, mas os seus olhos e a sua voz enterneceram-se.
- Bem, então o que é que já sabe sobre ele?
- O sargento Stoneweather encontrou-o numa paragem de charretes.
Talvez ele fosse dessa zona.
- Uma paragem de charretes! Ele podia lá ter chegado vindo de qualquer
sítio.
Rey não discordou e absteve-se de argumentar. O subdelegado Savage, que
estivera a ouvir, disse evasivamente:
- Também nós temos a nossa ideia, chefe, desde imediatamente antes do
reconhecimento.
- Ouçam-me bem - disse Kurtz -, os dois. Essa galinha velha da Healey
aperta comigo severamente, se não ficar satisfeita. E ela não vai ficar
satisfeita, enquanto não a deixarmos fazer de carrasco. Rey, não quero que
você ande a vasculhar por aí sobre o assunto desse saltador, ouviu? Já
temos problemas suficientes sem chamarmos a atenção do mundo inteiro
sobre nós por causa de um homem que morreu à frente dos nossos narizes.
As janelas da mansão de Wide Oaks estavam tapadas com panos pretos
grossos, que permitiam apenas que ténues listas de luz penetrassem pelos
lados. A viúva Healey levantou a cabeça de um monte de almofadas em
forma de folhas de lótus.
- Encontrou o assassino, chefe Kurtz - mais do que perguntar, ela declarou,
mal Kurtz entrou.
- Minha cara senhora - disse o chefe Kurtz, tirando o chapéu e pousando-o
em cima de uma mesa, colocada aos pés da cama dela -, temos homens a
trabalhar em todas as pistas. A investigação ainda se encontra na fase
preliminar... - Kurtz explicou-lhe as várias possibilidades. Havia dois
homens que deviam dinheiro a Healey e um criminoso muito conhecido,
cuja sentença judicial fora confirmada, cinco anos antes, pelo juiz do
Supremo Tribunal.
A viúva permaneceu com a cabeça suficientemente quieta para manter uma
compressa quente equilibrada sobre os arcos brancos das suas
sobrancelhas. Desde o funeral e das diversas cerimónias em memória do
juiz do Supremo Tribunal que Ednah Healey se recusava a sair do quarto,
mandando embora todas as visitas que não pertencessem à família mais
chegada. Do seu pescoço pendia o broche de cristal de rocha, que
aprisionava a madeixa em desalinho do juiz, um adorno que a viúva pedira
a Nell Ranney para enfiar num colar.
Os seus dois filhos, de ombros e cabeças tão robustos como os do juiz
Healey do Supremo Tribunal, mas de modo algum tão maciços, estavam
sentados em cadeiras de braços, flanqueando a entrada como dois
buldogues de granito.
Roland Healey interrompeu Kurtz.
- Não compreendo por que razão avançaram tão devagar, chefe Kurtz.
- Se tivéssemos simplesmente oferecido uma recompensa! - acrescentou o
filho mais velho, Richard, à reclamação do irmão. - Tínhamos a certeza de
que apanhávamos alguém com uma boa quantia oferecida! A ganância
demoníaca é a única coisa que leva as pessoas a colaborar.
O subdelegado ouviu aquilo com resignação profissional.
- Meu bom senhor Healey, se nós revelássemos as verdadeiras
circunstâncias do falecimento do vosso pai, os senhores seriam inundados
por falsas declarações daqueles que pretendem apenas ganhar alguns
dólares. Devem os senhores manter toda a questão em segredo para o
público, e deixar-nos prosseguir. Acreditem em mim quando lhes digo,
meus caros amigos - acrescentou ele -, que não iriam gostar de ver o que
aconteceria se se fizesse uma divulgação geral do caso.
- O homem que morreu no seu comissariado por ocasião do
reconhecimento - perguntou a viúva -, já descobriram alguma coisa sobre a
sua identidade?
Kurtz levantou as mãos.
- Muitos dos nossos bons cidadãos pertencem à mesma família quando são
levados a comparecer na polícia para um reconhecimento -disse ele,
sorrindo com um esgar. - Smith ou Jones.
- E este - perguntou a senhora Healey -, a que família pertencia?
- Ele não nos forneceu nenhum nome, minha senhora - disse Kurtz a
esconder compungidamente o seu sorriso sob a parte saliente do bigode
em desalinho. - Mas não temos motivos para crer que ele tivesse alguma
informação sobre o homicídio do juiz Healey. Ele estava simplesmente
tolinho, e também um pouco tocado.
- Segundo parece, surdo e mudo - acrescentou Savage.
- Porque estaria ele tão desesperado para se atirar, chefe Kurtz? -
perguntou Richard Healey.
«Esta é uma excelente pergunta», pensou Kurtz sem querer denunciá-lo.
- Não consigo dizer-lhe quantos homens encontramos regularmente na rua
que acreditam ser perseguidos por demónios e nos comunicam as
descrições dos seus perseguidores até ao pormenor dos cornos.
Mrs. Healey inclinou-se para diante e semicerrou os olhos.
- Chefe Kurtz, é o seu criado?
Kurtz fez sinal a Rey, que estava diante do corredor, para que entrasse.
- Minha senhora, apresento-lhe o agente da polícia Nicholas Rey. A senhora
pediu-nos que o trouxéssemos hoje connosco, por causa do homem que
morreu durante o reconhecimento.
- Um polícia negro? - perguntou ela com um visível incómodo.
- Na verdade, ele é mulato, minha senhora - declarou Savage, orgulhoso. - O
agente Rey é o melhor do nosso estado. Segundo dizem, o melhor de toda a
Nova Inglaterra. - Ele estendeu a mão e fez com que Rey a apertasse.
Mrs. Healey conseguiu torcer e alongar o pescoço o suficiente para ver o
mulato, sentindo-se aparentemente satisfeita.
- O senhor é o agente que lidou com o vagabundo, o que morreu no
comissariado?
Rey anuiu com a cabeça.
- Então, diga-me, senhor agente. O que é que o senhor acha que o levou a
agir daquela forma?
O chefe Kurtz tossiu nervosamente na direcção de Rey.
- Não posso afirmar nada categoricamente, minha senhora - respondeu
Rey, sinceramente. - Não posso dizer que, naquele momento, ele se tivesse
apercebido de algo ou pensado que a sua integridade física corria algum
perigo.
- Ele falou consigo? - perguntou-lhe Roland.
- Falou, senhora Healey. Pelo menos tentou, mas receio que do seu
murmúrio nada pudesse ser entendido - disse Rey.
- Ah! O senhor nem sequer é capaz de descobrir a identidade de um
vagabundo, que morre no interior das suas instalações! Devo acreditar que
o senhor pensa que o meu marido mereceu o fim que teve,
chefe Kurtz!
- Eu? - Kurtz voltou a olhar para o seu subdelegado, sem saber o que dizer. -
Minha senhora!
- Eu sou uma mulher doente, prestes a comparecer diante de Deus, mas a
mim não me enganam! O senhor considera-nos a todos uns tolos e uns
pacóvios e quer que vamos todos para o inferno!
- Minha senhora! - exclamou Savage, imitando o chefe.
- Não lhe darei o prazer de me ver morta, chefe Kurtz! Nem a si nem ao
desagradável do seu polícia negro! Ele fez tudo o que estava ao seu alcance,
e nós não temos que nos envergonhar de nada! - A compressa caiu ao chão
com estrondo quando ela esquadrinhou o pescoço com as unhas. Aquela
era uma nova convulsão, provocada pelas crostas recentes e as marcas
vermelhas que lhe cobriam a pele. Ela feriu o pescoço, enterrando as unhas
na carne e arranhando um enxame de insetos invisíveis, depositados nos
interstícios da sua mente.
Os filhos dela saltaram das respectivas cadeiras, mas conseguiram apenas
recuar em direcção à porta, para onde Kurtz e Savage tinham feito o
mesmo, confusamente, como se a viúva se fosse consumir em chamas a
todo o momento.
Rey aguardou mais um instante, e depois, calmamente, avançou para
o lado da cama.
- Senhora Healey - Os arranhões tinham-lhe desapertado as fitas da camisa
de dormir. Rey inclinou-se e diminuiu a intensidade da luz do candeeiro,
até se distinguir apenas a silhueta da viúva. - Minha senhora, gostaria que
soubesse que numa certa ocasião o vosso marido me ajudou.
Ela acalmara-se.
Kurtz e Savage trocaram olhares admirados junto à porta da entrada. Rey
falou muito devagar para que eles conseguissem perceber tudo o que dizia
do extremo oposto do quarto, mas os outros estavam demasiado
assustados para avançar e com a possibilidade de provocarem um novo
acesso na viúva. Contudo, mesmo na penumbra, conseguiram perceber até
que ponto ela ficara tranquila, calma e silenciosa, por causa da sua
respiração.
- Conte-me, por favor - pediu-lhe ela.
- Quando era criança, vim para Boston pela mão de uma mulher da Virgínia,
que viajou para cá numas férias. Uns abolicionistas tiraram-me dela e
fizeram-me comparecer em tribunal, diante do juiz do Supremo Tribunal,
que decidiu que, por lei, um escravo era tornado livre,
assim que pisasse solo livre. Ele entregou-me aos cuidados de um ferreiro
de cor, chamado Rey, e da sua família.
- Antes desse lamentável Decreto sobre os Escravos Fugitivos nos ter sido
imposto a todos. - As pálpebras da senhora Healey cerraram-se, enquanto
suspirava e torcia estranhamente a boca. - Eu sei o que pensam certas
pessoas da sua raça, por causa daquele rapaz, Sims. O juiz do Supremo
Tribunal não gostou que eu assistisse ao julgamento, mas eu fui lá... nessa
altura falou-se tanto disso. Sims era como você, um negro bonito, mas tão
escuro como a escuridão que muita gente tem na cabeça. O juiz do Supremo
Tribunal nunca o teria mandado de volta, se não tivesse sido obrigado a
fazê-lo. Ele não tinha alternativa, compreende? Mas deu-lhe uma família.
Uma família que o fez feliz?
Ele anuiu com a cabeça.
- Porque é que os erros só podem ser reconhecidos mais tarde? Não
podiam acaso ser remediados antecipadamente? É tão aborrecido. Tão
aborrecido.
Em parte, ela recuperara a lucidez, e agora percebia o que tinha que fazer
mal os agentes saíssem. Mas precisava de mais uma coisa de Rey.
- Por favor, diga-me, ele falou consigo quando ainda era criança? O juiz
Healey sempre adorou conversar com crianças.
Ela lembrou-se de Healey com os próprios filhos.
- Antes de escrever a sua decisão, senhora Healey, ele perguntou-me se
queria ficar aqui. Disse-me que, em Boston, estaria sempre em segurança,
mas, tinha de ser uma decisão minha, vir a tornar-me um homem de
Boston, um homem que cuidasse de si mesmo, e, ao mesmo tempo, velasse
por esta cidade, caso contrário seria sempre um marginal. Ele disse-me
ainda que quando um homem de Boston chega às Portas do Paraíso, surge
um anjo para o prevenir: «Não vais gostar disto aqui, porque isto não é
Boston.»
Ele escutou o murmúrio, ao mesmo tempo que ouvia a viúva Healey a
adormecer; e escutou-o na pobreza do seu gélido quarto mobilado. Todas
as manhãs acordava com as palavras na ponta da língua. Conseguia
saboreá-las, conseguia sentir o aroma penetrante, que as revestia,
conseguia roçar nas suíças hirsutas que as tinham proferido, mas quando,
ele próprio, tentava reproduzir o murmúrio, umas vezes enquanto
conduzia a charrete, outras vezes diante de um espelho, aquilo não fazia
sentido. Ele sentava-se a qualquer hora com a sua pluma, esvaziando
tinteiros, mas a falta de sentido era pior por escrito do que por palavras
ditas. Conseguia ver o homem a sussurrar, inquieto por aquele disparate,
com os olhos atónitos a fitá-lo,
antes de o corpo se lançar através do vidro. «O homem anónimo caíra do
céu, vindo de um lugar distante», Rey não conseguia deixar de pensar,
«para os braços de Rey, de onde voltara a cair.» Ele esforçava-se por afastar
aquilo da ideia, mas com que clareza conseguia ver a queda a prumo no
pátio, onde o homem depois se encheu de sangue e folhas, uma e outra vez;
de forma tão serena e constante, como as imagens que passam nas
transparências de uma lanterna mágica. Ele tinha de parar aquilo, a ordem
do chefe Kurtz que se danasse. Ele tinha de descobrir algum sentido para as
palavras deixadas em suspenso no ar inerte.
- Não queria deixá-lo ir - disse Amélia Holmes, com a sua cara miúda
franzida, enquanto puxava a gola do casaco do marido para lhe tapar o
pescoço. - Senhor Fields, ele não devia sair esta noite. Estou preocupada
com o que possa acontecer-lhe. Ouça como ele arqueja por causa da asma.
Pronto, Wendell, quando é que chegas a casa?
A carruagem bem equipada de J. T. Fields subiu até ao número 21 da
Charles Street. Apesar de ficar apenas a dois quarteirões de sua casa, Fields
nunca fazia Holmes andar a pé. O médico respirava com dificuldade junto à
porta da entrada, acusando o tempo frio, como muitas vezes acontecia
também com o calor.
- Oh, não sei - respondeu o doutor Holmes, levemente incomodado. - Estou
nas mãos do senhor Fields.
- Então, senhor Fields - disse ela num tom grave -, a que horas vai trazê-lo?
Fields reflectiu sobre a pergunta com a máxima seriedade. O apoio de uma
esposa era para ele tão importante como o de um autor, e ultimamente
Amélia Holmes andava apreensiva.
- Quem me dera que Wendell não voltasse a publicar mais nada, senhor
Fields - dissera Amélia num almoço em casa dos Fields, no início do mês, no
mimoso aposento, que, através de uma paisagem de folhas e flores, dava
para o rio calmo. - A única coisa que conseguiria com isso era reganhar a
crítica jornalística, e de que lhe serviria?
Fields abriu a boca para lhe tranquilizar o espírito, mas Holmes foi
demasiado rápido. Quando estava agitado ou assustado, ninguém
conseguia falar tão depressa como ele, sobretudo quando o tema era ele
próprio.
- O que queres dizer com isso, Amélia? Eu escrevi algo novo, de que a crítica
não terá de se queixar. Trata-se da «História norte-americana», que o
senhor Fields há muito me pressionava para escrever. Vais ver, minha
querida, será melhor do que qualquer coisa que alguma vez tenha escrito.
- Oh, é sempre o que tu dizes, Wendell. - Ela abanou a cabeça com tristeza. -
Mas eu gostava que deixasses isso.
Fields percebeu que Amélia sofrera com a decepção de Holmes quando a
publicação em fascículos de The Autocrat, The Professor at the Breakfast-
Table foi criticada por se tratar de um texto repetitivo, apesar das
promessas de sucesso feitas por Fields. Apesar disso, Holmes planeou uma
terceira parte, intitulada The Poet at the Breakfast-Table. Também fora a
sua desolação perante os ataques da crítica, e só o animou o modesto
sucesso que teve com Elsie Veneer, o seu primeiro romance, que escrevera
de um fôlego, e publicara pouco antes da guerra.
O novo círculo de críticos boémios de Nova Iorque gostava de atacar o
poder instituído de Boston, e Holmes representava melhor do que ninguém
a sua orgulhosa cidade; afinal de contas, ele concedera honrarias a Boston,
o Eixo do Universo, e designara a sua própria classe social como os
Brâmanes de Boston, em homenagem àquelas terras exóticas. Agora, os
facínoras que se autoproclamavam Jovem América, e deambulavam pelas
tabernas subterrâneas de Manhattan, ao longo da Broadway, tinham
declarado irrelevante para a nova era o prolongado domínio dos Poetas do
Lar, patrocinados por Fields. «O que fizera a camarilha de Longfellow, com
as suas rimas antiquadas e as suas efígies aldeãs para evitar a catástrofe de
uma guerra civil?», exigiam eles saber. Holmes, da sua parte, uns anos antes
da guerra, falara abertamente a favor de compromissos, e até assinara,
juntamente com Artemus Healey, um manifesto em apoio do Decreto sobre
os Escravos Fugitivos, que defendia a devolução dos escravos em fuga aos
seus senhores, como uma medida esperançosa para evitar o conflito.
- Mas, não vês, Amélia - continuou Holmes à mesa do pequeno-almoço. - Eu
vou ganhar dinheiro com ele, e isso não é mau. - De repente, levantou os
olhos para Fields. - Se me acontecer alguma coisa antes de terminar a
história, não vem ter com a viúva a reclamar-lhe o dinheiro, pois não? -
Todos riram.
Agora, sentados juntos na charrete, Fields olhava de relance para o céu
pronunciador de vicissitudes, como se lhe pudesse dar a resposta por que
Amélia esperava.
- Por volta da meia-noite - disse ele. - O que lhe parece à meia-noite, minha
querida senhora Holmes? - Ele olhou-a com os seus afáveis olhos castanhos,
apesar de saber que seria mais perto das duas da madrugada.
O poeta tomou o braço do seu editor.
- Está muito bem para uma noite dedicada a Dante, Melia. O senhor Fields
tratará de mim. Bom, uma das maiores honras que um homem pode
prestar a outro, é a minha visita esta noite a casa de Longfellow,
depois de tudo o que tenho feito ultimamente, entre as minhas aulas, o meu
romance e os belos jantares. Bom, porque não havia de sair esta noite?
Fields decidiu não ouvir este último comentário, apesar de ser jovial.
Era uma lenda popular na Cambridge de 1865, que Henry Wadsworth
Longfellow sabia exatamente quando iam aparecer à porta da sua mansão
colonial de um amarelo-sol as visitas habituais, convidados há muito
esperados ou visitantes completamente inesperados. Claro que muitas
vezes as lendas desapontam, e, com frequência, um dos criados do poeta
atendia a porta maciça de Craigie House, assim chamada pelos seus
anteriores proprietários. Nos últimos anos, houvera alturas em que Henry
Longfellow decidira simplesmente não receber ninguém.
Contudo, naquela tarde, bastante fiel ao dito da cidade, Longfellow estava à
porta de casa quando os cavalos de Fields, puxando a sua carga, subiram o
caminho das charretes de Craigie House. Inclinando-se para fora da
janelinha, Holmes distinguiu de longe a figura ereta, antes das sebes sujas
de pó branco se afastarem e descreverem uma curva. A agradável visão de
Longfellow, sereno, debaixo da luz do candeeiro e de pé na neve macia, que
se comprimia sob a sua flutuante barba leonina e a sobrecasaca que lhe
assentava impecavelmente, ajustava-se à representação que do ilustre
poeta fazia a mente do público. Aquela imagem cristalizara-se a seguir à
incomensurável perda de Fanny Longfellow, e o mundo inteiro parecia
tentar erigir um memorial ao poeta (como se, em vez da sua mulher, tivesse
sido ele a desaparecer), à semelhança de algumas aparições divinas,
enviadas para dar respostas à raça humana, quando os seus admiradores
tentam esculpir a sua efígie numa permanente alegoria de génio e
sofrimento.
As três meninas Longfellow apressaram-se a entrar, correndo da
inesperada neve onde brincavam e parando à entrada apenas o tempo
suficiente para sacudirem as galochas, antes de subirem precipitadamente
pela escadaria de ângulos aguçados.
Do meu escritório, vejo a luz do candeeiro descer a ampla escadaria da
entrada até à sisuda Alice, à sorridente Allegra, e à Edith com o seu cabelo
dourado.
Holmes acabara de passar em frente daquela ampla escadaria, e agora
encontrava-se de pé junto a Longfellow no escritório, onde a luz do
candeeiro iluminava a secretária que o poeta ocupava a escrever.
Entretanto, as três meninas desapareceram em grande agitação. Contudo,
ele continua a percorrer um poema vivo. Holmes sorriu para si, e tomou a
pata do cachorro de Longfellow que latia, mostrava os dentes e abanava o
corpo, que lembrava o de um leitão.
Então, Holmes cumprimentou o lânguido erudito de barba caprina, que
estava reclinado numa cadeira junto à lareira, com o olhar perdido num
folheto desproporcionado.
- Como vai o George Washington mais vivo do grupo de Longfellow, meu
caro Greene?
- Melhor, melhor, obrigado, doutor Holmes. Porém, receio não ter estado
suficientemente bem para ir ao funeral do juiz Healey.
Em geral, todos os outros se referiam a George Washington Greene como
«o velho», mas, de fato, ele tinha sessenta anos, apenas mais quatro anos do
que Holmes e mais dois do que Longfellow. Há décadas que as doenças
crónicas envelheciam o historiador e pastor unitarista retirado. No entanto,
todas as semanas, ele viajava de comboio desde East Greenwich, Rhode
Island, com tanto entusiasmo pelos serões das quartas-feiras em Craigie
House, como pelos sermões, que era convidado a pronunciar, ou pelas
histórias sobre a Guerra Revolucionária, que o seu próprio nome o
impulsionara a compilar.
- Longfellow, você esteve lá?
- Lamento dizê-lo, mas não, meu caro senhor Greene - respondeu
Longfellow. Ele não voltara a entrar no Mount Auburn Cemetery depois do
funeral de Fanny Longfellow, uma cerimónia durante a qual estivera
confinado à sua cama. - Mas acredito que tenha estado bem composto.
- Ah, sem dúvida, Longfellow. - Holmes cruzou os dedos em cima do peito,
pensativamente. - Um tributo lindo e apropriado.
- Talvez até demasiado composto - disse Lowell, avançando para a estante
com um braçado de livros, e ignorando o fato de Holmes já ter respondido à
pergunta.
- O velho Healey conhecia-se bem - salientou Holmes devagar. - Ele sabia
que o seu lugar se restringia ao tribunal, e nada tinha a ver com a bárbara
arena dos políticos.
- Wendell! Não pode estar a falar a sério - disse Lowell num tom autoritário.
- Lowell - advertiu-o Fields, olhando-o de forma contundente.
- E pensar que nos tornámos caçadores de escravos... - Lowell afastou-se de
Holmes apenas por um instante. Lowell era primo em sexto ou sétimo grau
dos Healey, porque os Lowell eram primos em sexto ou sétimo grau - pelo
menos - de todas as melhores famílias brâmanes, e este simples fato
incrementava a sua insistência.
- Alguma vez você teria decidido com tamanha cobardia como o Healey,
Wendell? Se eu alvitrasse que era uma opção sua, teria mandado aquele
rapaz, o Sims, de volta para a sua plantação, acorrentado? Diga-me. Diga-
me só isto, Holmes.
- Temos de respeitar a perda que a família sofreu - disse Holmes, em voz
baixa, dirigindo o seu comentário sobretudo para o semi-surdo senhor
Greene, que anuiu com a cabeça num gesto cortês.
Longfellow pediu desculpa por ter de se retirar quando uma campainha
soou no andar de cima. Podia haver professores ou reverendos, senadores
ou reis entre os seus convidados, mas, perante aquele sinal, Longfellow
deixava o que estava a fazer para, à hora de deitar, ir escutar as orações de
Alice, Edith e Annie Allegra.
Quando regressou, Fields tinha reconduzido habilmente a conversa para
assuntos mais ligeiros, de modo que o poeta se integrou numa ronda de
gargalhadas provocadas por uma anedota contada alternadamente por
Holmes e Lowell. O anfitrião consultou o seu relógio de mogno Aaron
Willard, uma peça de antiguidade pela qual sentia uma predilecção
especial, não pelo seu aspeto ou exactidão, mas por parecer ter um
tiquetaque mais agradável do que os outros.
- São horas de irmos ao trabalho - disse ele, brandamente.
A sala ficou em silêncio. Longfellow fechou as portadas verdes sobre a
janela. Holmes baixou a intensidade da luz dos candeeiros, destinados ao
moderador, enquanto os demais ajudavam a dispor uma fileira de velas.
Esta série de halos imbricantes fundia-se com a luminosidade vacilante da
lareira. Os cinco eruditos e Trap - o roliço terrier escocês de Longfellow -
ocuparam os seus lugares, previamente estabelecidos, ao longo da
circunferência da pequena sala.
Longfellow juntou um maço de folhas, que retirara da gaveta, e entregou
algumas páginas no italiano de Dante a cada conviva, acompanhadas de um
conjunto de provas impressas com a sua correspondente tradução, verso a
verso. Sob o delicado entrançado claro-escuro da lareira, dos candeeiros e
dos pavios, a tinta parecia saltar das provas de Longfellow, como se, de
repente, uma página de Dante ganhasse vida aos olhos de cada um. Dante
escrevera os seus versos em terza rima: de três em três versos havia um
jogo poético, com o primeiro e o terceiro versos a rimarem entre si e o do
meio a rimar, projetadamente, com o primeiro verso do terceto seguinte, de
tal modo que os versos se inclinavam para a frente num movimento
dianteiro.
Holmes sempre apreciara o modo como Longfellow abria as sessões de
Dante, com uma recitação dos primeiros versos da Commedia num italiano
inimitável e perfeito.
- «No meio do caminho em nossa vida,/ eu me encontrei por uma selva
escura/ porque a direita via era perdida.»

III




S REUNIÕES DO CLUBE DE DANTE. CUMPRIA-SE O PRIMEIRO

A
Holmes.
ponto da ordem de trabalhos com o anfitrião a rever as
provas da sessão da semana anterior.
- Bom trabalho, meu caro Longfellow - disse o doutor

Ele ficava satisfeito sempre que uma das correcções que tinha sugerido era
aceite, e duas das que fizera na última quarta-feira apareciam já nas últimas
provas de Longfellow. Holmes dirigiu a sua atenção para os cantos daquela
noite. Ele tivera um cuidado especial na sua preparação, porque, naquela
noite, ia ter de os convencer que chegara o momento de protegerem Dante.
- No sétimo círculo - disse Longfellow -, Dante diz-nos de que modo ele e
Virgílio vão parar a uma selva escura.
Em cada região do Inferno, Dante segue o seu adorado guia, o poeta
romano Virgílio. Ao longo do caminho, ele conhece o destino de cada grupo
de pecadores, escolhendo um ou dois para se dirigir ao mundo dos vivos.
- A selva perdida, que ocupou os pesadelos individuais de todos os leitores
de Dante num momento ou noutro - disse Lowell. - Dante escreve como
Rembrandt, com o pincel imerso nas trevas e um brilho ténue do fogo
infernal a iluminá-lo.
Como habitualmente, Lowell sabia tudo sobre Dante na ponta da língua; ele
vivia a poesia de Dante, de corpo e alma. Num dos raros momentos da sua
vida, Holmes invejava o talento de outra pessoa.
Longfellow leu a partir da sua tradução. A sua voz soava profunda e
verdadeira, sem qualquer severidade, como o rumor da água a correr sob
um manto fresco de neve. George Washington Greene parecia
particularmente sereno, porque, na espaçosa cadeira de braços verde
instalada no canto, o erudito deixava-se embalar até adormecer entre o
som das suaves entoações do poeta e o brando calor da lareira. Trap, o
pequeno terrier, que se enroscara sobre o estômago roliço por baixo da
cadeira de Greene,
também dormitava, e os seus roncos seguiam-se uns aos outros, como os
grunhidos rabugentos do contrabaixo numa sinfonia de Beethoven. No
canto em análise, Dante encontrava-se no Bosque dos Suicidas, onde as
«sombras» dos pecadores haviam sido transformadas em árvores,
brotando sangue onde devia correr seiva. Depois, surgiram outros castigos:
brutais harpias com colos e rostos de mulheres e corpos de pássaros, pés
com garras e ventres protuberantes, abrindo caminho por entre os
espinhais, alimentando-se e dilacerando todas as árvores à sua passagem.
Contudo, juntamente com a dor profunda, os rasgões e as lágrimas das
árvores eram a única forma de as sombras exteriorizarem a sua dor, de
contarem as suas histórias a Dante.
- Assim, brotam juntos o sangue e as palavras - disse Longfellow. Depois de
dois cantos de castigos, testemunhados por Dante, os livros
foram marcados e arrumados, as folhas misturadas e trocadas mostras de
admiração. Longfellow disse:
- A lição chegou ao fim, meus senhores. Ainda só passam trinta minutos das
nove, e merecemos algum descanso pelo trabalho realizado.
- Sabem? - disse Holmes. - Um dia destes, pensei no nosso trabalho sobre
Dante numa nova perspectiva.
Peter, o criado de Longfellow, bateu à porta e, num sussurro hesitante, deu
um recado a Lowell.
- Uma pessoa para falar comigo? - protestou Lowell, interrompendo
Holmes. - Quem é que pode ter-me encontrado aqui? - Quando Peter
gaguejou uma resposta vaga, Lowell vociferou suficientemente alto para
que todos na casa o ouvissem. - Quem, por Deus, ousa aparecer na noite em
que o nosso clube se reúne?
Peter inclinou-se mais para Lowell.
- Senhor Lowell, ele diz que é polícia.
No vestíbulo principal, o agente Nicholas Rey sacudiu a neve fresca das
botas, batendo com os pés no chão, e depois permaneceu estático diante da
enorme profusão de esculturas e pinturas de George Washington que
Longfellow possuía. A casa fora o quartel-general de Washington, nos
primeiros dias da Revolução Americana.
Peter, o criado preto, levantou a cabeça desafiadora e duvidosamente
quando Rey lhe mostrou o seu distintivo. Tinha sido comunicado a Rey que
as reuniões de quarta-feira do senhor Longfellow não podiam ser
interrompidas e, polícia ou não, ele iria ter de aguardar na saleta. A sala
para onde foi conduzido estava envolta, como um relicário, numa
decoração intangivelmente graciosa - papel de parede com flores e cortinas
suspensas de bolbos góticos.
O suave busto de mármore de uma mulher estava protegido sob um arco,
junto à lareira, com caracóis pétreos a cair-lhe suavemente sobre as feições
delicadamente talhadas. Rey permanecia de pé quando dois homens
entraram na sala. Um tinha uma barba solta, e uma dignidade que o fazia
parecer bastante alto, embora fosse de estatura mediana. O seu
companheiro era um homem entroncado e de porte resoluto, com um
bigode de pontas reviradas como presas de morsa, que se projetavam para
diante, como para se apresentarem primeiro. Tratava-se de James Russell
Lowell, que se deteve por um longo e perplexo momento, e depois avançou
precipitadamente.
Ele riu com a presunção de quem sabe de antemão de que situação se trata.
- Longfellow, sabe uma coisa? Eu li tudo sobre este moço no jornal dos
homens livres! Ele foi um herói no Regimento dos Negros, o
Quinquagésimo Quarto, e o Andrew admitiu-o no departamento da polícia
na semana em que o presidente Lincoln morreu. Que honra conhecê-lo,
meu amigo!
- Regimento Quinquagésimo Quinto, professor Lowell, o regimento de
apoio, «das duas irmãs». Obrigado - disse Rey. - Professor Longfellow, peço
desculpa por afastá-lo dos seus amigos.
- Tínhamos acabado de chegar ao fim da parte séria, senhor agente -disse
Longfellow, a sorrir -, e pode bem tratar-me por senhor. - O seu cabelo
grisalho e a barba solta conferiam-lhe uma pose patriarcal, própria de uma
pessoa com mais de cinquenta e oito anos. Os seus olhos eram azuis e
sempre jovens. Longfellow vestia uma sobrecasaca escura impecável, com
botões dourados e um colete de cabedal, que lhe torneava as formas na
perfeição. - Cansei-me da minha toga de professor há uns anos, e o
professor Lowell ocupou o meu lugar.
- Mas continuo a não conseguir habituar-me a esse maldito título -
murmurou Lowell.
Rey virou-se para ele.
- Uma menina de sua casa encaminhou-me amavelmente até aqui. Ela
disse-me que só não o encontraria em lado nenhum às quartas-feiras à
noite.
- Ah, deve ter sido a minha Mabel! - disse Lowell a rir. - Ela não o pôs na
rua, pois não?
Rey sorriu.
- É uma jovem muito simpática, Sir. A universidade mandou-me falar
consigo, Professor.
Lowell pareceu atónito.
- O quê? - murmurou ele. Depois, explodiu, com as faces e as orelhas da cor
do vinho da Borgonha, e parecendo-lhe que a voz lhe queimava a garganta.
- Eles mandaram um agente da polícia! Com que justificação plausível? Não
serão eles homens capazes de dizer o que pensam sem manipularem os
cordelinhos de uma qualquer marioneta da Câmara Municipal! Explique-se,
senhor!
Rey permaneceu tão imóvel como a estátua de mármore da mulher de
Longfellow, colocada junto à lareira.
Longfellow pousou uma mão na manga do amigo.
- Compreenda, senhor agente, o professor Lowell é suficientemente amável
para me ajudar, juntamente com alguns dos nossos colegas, numa
diligência literária, que neste momento não é da aprovação de certos
membros dos órgãos dirigentes da universidade. Mas isso deve-se a que...
- As minhas desculpas - disse o polícia, pousando o olhar fixo no primeiro
homem que falara, cuja vermelhidão do rosto desaparecera de forma tão
abrupta como surgira. - Fui eu que contactei diretamente a universidade, e
não o contrário. Sabe, procuro um especialista em línguas, e alguns
estudantes indicaram-me o seu nome.
- Então, senhor agente, aceite o senhor as minhas desculpas - disse Lowell -,
mas o senhor teve sorte em me ter encontrado. Consigo falar seis línguas
como um nativo... de Cambridge. - O poeta deu algumas gargalhadas e
pousou o papel, que Rey lhe entregara, em cima da secretária de
Longfellow, de pau-rosa com embutidos, passando os dedos pelas letras
inclinadas e garatujadas.
Rey viu a testa alta de Lowell enrugar-se vincadamente.
- Um senhor dirigiu-me umas certas palavras. Falou em surdina, o que quer
que pretendesse comunicar, e tudo aconteceu muito depressa. Consegui
concluir apenas que se tratava de uma língua rara e estrangeira.
- Quando foi isso? - perguntou Lowell.
- Há umas semanas. Tratou-se de um encontro estranho e inesperado. - Rey
deixou que os seus olhos se fechassem. Lembrou-se da pressão prolongada
da mão do sussurrador no seu crânio. Ele conseguia ouvir distintamente a
articulação das palavras, mas não conseguia reproduzir nenhuma delas. -
Receio que essa seja apenas uma transcrição grosseira, Professor.
- Na verdade, uma confusão! - disse Lowell, enquanto passava o papel a
Longfellow. - Receio que pouco se consiga fazer com esses hieróglifos. Não
pode perguntar a essa pessoa o que quis dizer? Ou, pelo menos, descobrir
em que língua tentava falar?
Rey hesitou antes de responder. Longfellow disse:
- Senhor agente, nós temos um gabinete de eruditos esfomeados ali dentro,
cuja sabedoria podia ser subornada com ostras e macarrão. Pode ter a
gentileza de deixar uma cópia desse papel connosco?
- Ficava-lhe muito grato, senhor Longfellow - disse Rey, avaliando os poetas
antes de acrescentar: - Devo pedir-lhes para não comentarem com ninguém
a minha visita de hoje. Isto tem a ver com um caso delicado da polícia.
Lowell ergueu as sobrancelhas com cepticismo.
- Com certeza - assegurou Longfellow, e inclinou a cabeça num aceno, que
dava a entender que a confiança era algo inerente a Craigie House.
- Mantenha o bom afilhado de Cérbero longe da mesa esta noite, caro
Longfellow! - disse Fields, enquanto prendia a ponta do guardanapo no
colarinho da camisa. Estavam instalados nos seus lugares à volta da mesa
da sala de jantar. Trap protestou com um latido breve.
- Oh, ele é bastante amistoso para os poetas, Fields - objetou Longfellow.
- Ah! Devia tê-lo visto na semana passada, senhor Greene - disse Fields. -
Enquanto o senhor estava preso à cama, esse tipo amistoso serviu-se de
uma perdiz, que estava em cima da mesa, enquanto nos ocupávamos, no
escritório, do décimo primeiro canto!
- Esse foi simplesmente o resultado do seu ponto de vista da Divina
Comédia - disse Longfellow a sorrir.
- Um encontro estranho - observou Holmes, vagamente interessado. -Foi a
única coisa que o agente da polícia disse sobre isto? - Ele avaliava o bilhete
do polícia, segurando-o sob a luz quente do candelabro, e revirando-o antes
de o passar.
Lowell anuiu.
- Tal como Nemrod, o que quer que o nosso agente Rey tenha ouvido, pela
confusão, lembra a infância gigantesca do mundo.
- Em parte, gostaria de dizer que a escrita é uma pobre tentativa de se
expressar em italiano. - George Washington Greene encolheu os ombros
como que a desculpar-se, e entregou o bilhete a Fields com um suspiro
ruidoso.
O historiador voltou a concentrar-se no seu prato. Ele mostrava-se
constrangido quando tinha de competir com as estrelas luminosas que
habitavam a constelação social de Longfellow. O Clube de Dante havia
incorporado os seus livros nas suas prateleiras e, em contrapartida,
tornara-o alvo de gracejos à ceia. A vida de Greene havia sido pavimentada
com pequenas promessas e grandes reveses.
As suas conferências públicas nunca tinham tido suficiente consistência
para lhe assegurar um lugar de professor, e o seu trabalho como pastor
nunca fora suficientemente determinante para lhe permitir obter a sua
própria paróquia (as suas prelecções, segundo os seus detratores, eram
excessivamente admoestadoras e os seus sermões demasiado históricos).
Longfellow olhou para o velho amigo com sinceridade, e fez passar pela
mesa bocados especialmente escolhidos, que julgava agradarem mais a
Greene.
- O agente Rey - disse Lowell com admiração - é a imagem perfeita de um
verdadeiro homem, não é, Longfellow? Um soldado na maior das nossas
guerras, e agora o primeiro elemento de cor da polícia. Infelizmente, nós
professores, limitamo-nos a permanecer no portaló, a observar os poucos
que embarcam no vapor.
- Ah, mas nós vivemos muito mais por causa das nossas actividades
inteletuais - disse Holmes -, segundo um artigo que vem no último número
da Atlantic, relativamente aos efeitos salutares do estudo sobre a
longevidade. Parabéns por mais um magnífico número, meu caro Fields.
- Sim, eu já o vi. Um artigo excelente. Cuide bem desse jovem autor, Fields -
disse Lowell.
- Hum. - Fields sorriu-lhe ao ouvir estas palavras. - Aparentemente, eu
devia consultá-lo antes de deixar que qualquer autor escrevesse alguma
coisa. Certamente que a Review acabaria rapidamente com a nossa Life of
Percival. Quem não nos conheça, pode bem pensar que você não tem por
mim a mais pequena consideração!
- Fields, eu não lisonjeio ninguém por mero sentimentalismo -declarou
Lowell. - Você sabe muito bem que é conveniente publicar um livro que,
entre outras coisas, é fraco, mas que abre caminho para um trabalho
melhor sobre o mesmo tema.
- Pergunto à mesa se concorda que Lowell publique na The North American
Review, uma das minhas revistas, um ataque a um dos livros da minha
editora!
- Bem, eu perguntava antes - respondeu Lowell -, se algum dos presentes
leu esse livro e está disposto a discutir as minhas conclusões.
- Eu arriscaria um retumbante «não» em nome de todos os que estão nesta
mesa - admitiu Fields -, mas asseguro-vos que, desde o dia em que o artigo
de Lowell apareceu, nem mais um único exemplar do livro foi vendido!
Holmes deu algumas pancadinhas com o garfo no seu copo.
- Aqui mesmo formulo uma acusação contra Lowell por assassínio, porque
ele assassinou irremediavelmente a Life.
Todos riram.
- Oh, ela já nasceu morta, juiz Holmes - respondeu o arguido -, eu limitei-me
a cravar os pregos no seu caixão!
- Digam-me uma coisa - interveio Greene, tentando parecer descontraído ao
voltar ao seu assunto preferido. - Alguém reparou, de acordo com os
registos de Dante, nos dias e nas datas deste ano?
- Correspondem exatamente às do dantesco 1300 - respondeu Longfellow,
anuindo. - Assim, nos dois anos, a Sexta-Feira Santa calha no dia vinte e
cinco de Março.
- Caramba! - exclamou Lowell. - Há quinhentos e sessenta e cinco anos,
Dante desceu à città dolente, a cidade dolorosa. Este não é o ano de Dante!
É um bom augúrio para uma tradução - perguntou Lowell com um sorriso
gaiato -, ou mau? - Contudo, o seu comentário recordou-lhe a persistência
da Corporação de Harvard, e o seu sorriso rasgado desvaneceu-se.
- Amanhã - disse Longfellow-, com os nossos últimos cantos do Inferno na
mão, desceremos por entre os diabos da gráfica - os Malebranches da
Riverside Press -, e assim nos aproximaremos mais do final. Prometi enviar,
no fim do ano, uma edição limitada do Inferno à Comissão Florentina como
nosso contributo, embora modesto, para as comemorações dos seiscentos
anos sobre o nascimento de Dante.
- Sabem, meus caros amigos - disse Lowell, franzindo o sobrolho -, que
aqueles malditos loucos de Harvard ainda continuam exaltados a tentar por
todos os meios acabar com o meu curso sobre Dante.
- E depois de o Augustus Manning me ter advertido das consequências da
publicação da tradução - acrescentou Fields, tamborilando com os dedos na
mesa num gesto de frustração.
- Porque haviam eles de ir tão longe? - perguntou Greene, alarmado.
- De uma maneira ou de outra, eles procuram distanciar-se tanto quanto
possível de Dante - explicou Longfellow, devagar. - Eles temem a sua
influência, porque é estrangeiro... e católico, meu caro Greene.
- Presumo que - disse Holmes, reflectindo uma simpatia natural -, em parte,
podia ser compreensível, porque há algo dantesco que nos afeta. Quantos
pais foram, em Junho passado, ao Mount Auburn Cemetery visitar as
campas dos seus filhos, em vez de irem ao Templo dos Quáqueros
inscrever-se nessa seita? Em muitos casos, creio que não precisamos de
outro Inferno, do qual acabámos de sair.
Lowell servia-se do terceiro ou quarto copo de vinho tinto de Falerno. Do
outro lado da mesa, Fields tentava sem sucesso acalmá-lo com um olhar
apaziguador.
- Mal comecem a lançar livros para a fogueira - disse Lowell -, mandam-nos
a todos para um inferno, do qual não conseguiremos sair, meu caro
Holmes!
- Oh, não pense que me agrada a ideia de tentar impermeabilizar o espírito
norte-americano a questões que o céu lança sobre ele, meu caro Lowell.
Mas acaso... - Holmes hesitou. Aquela era a sua oportunidade. Virou-se para
Longfellow: - Acaso devemos pensar num calendário de publicação menos
ambicioso, meu caro Longfellow... Primeiro, uma edição limitada a algumas
dúzias de exemplares, para que os nossos amigos e colegas eruditos
pudessem apreciá-la, pudessem captar-lhe a força, antes de divulgarmos a
obra às massas...
Lowell quase saltou da cadeira.
- O doutor Manning falou consigo? Acaso ele mandou alguém assustá-lo a
esse ponto, Holmes?
- Lowell, por favor - interveio Fields, sorrindo diplomaticamente. -Manning
não abordaria Holmes por causa disto.
- O quê? - O doutor Holmes fingiu não ouvir aquilo. Lowell continuava a
aguardar uma resposta. - Claro que não, Lowell. Manning não passa de um
daqueles fungos, que se desenvolvem sempre nas universidades mais
antigas. Mas parece-me que não queremos suscitar conflitos
desnecessários. Só serviria para nos distrair do que nos interessa e prende
a Dante. Nesse caso, teria a ver com a luta e não com a poesia. Demasiados
médicos praticam o exercício da medicina, atafulhando o mais possível os
doentes com medicamentos. Devíamos ser judiciosos nas nossas curas mais
bem-intencionadas, e cautelosos nos nossos avanços literários.
- Quanto mais unidos, melhor - sentenciou Fields, dirigindo-se a todos os
que estavam à mesa.
- Não podemos mostrar-nos cautelosos diante dos tiranos! - protestou
Lowell.
- Nem sequer pretendemos formar um exército de cinco pessoas contra o
mundo inteiro - acrescentou Holmes. Ele estava radiante por Fields já estar
a acalentar a sua ideia de esperar. Assim, acabaria o seu romance antes de o
país ouvir sequer falar em Dante.
- Antes ser queimado vivo na fogueira - exclamou Lowell. - Ou melhor
ainda, concordaria ficar fechado durante uma hora sozinho com toda a
Corporação de Harvard, a atrasar a publicação da tradução.
- Claro, não alteraremos em nada os planos de edição - disse Fields. O vento
deixou de soprar a favor das velas de Holmes. - Mas Holmes tem razão
quanto a avançarmos com isto sozinhos - continuou Fields. -Podemos
seguramente tentar arranjar apoios. Eu podia falar com o velho professor
Ticknor para ele usar de toda a influência que ainda lhe resta. E, talvez com
o senhor Emerson, que leu Dante há uns anos. Ninguém à face da terra sabe
se, quando é publicado, um livro vai vender ou não cinco mil exemplares.
Mas, se se venderem esses cinco mil exemplares, bem certo é poderem
vender-se vinte e cinco mil.
- Eles podem tentar tirar-lhe o lugar de lente, senhor Lowell? - interrompeu
Greene, ainda preocupado com a Corporação de Harvard.
- Jamey é suficientemente conhecido como poeta para que isso aconteça -
insistiu Fields.
- Não me ralo nada com o que eles possam fazer-me, em todos os sentidos!
Não entregarei Dante aos filisteus.
- Nem nenhum de nós o fará! - apressou-se Holmes a declarar. Para sua
grande surpresa, ninguém o contestou; em vez disso, todos pareceram
determinados em mostrar, não só que ele tinha razão, como sabia defender
os seus amigos de Dante, e Dante da efusão dos seus amigos. O encorajador
volume das suas exclamações contagiou os circunstantes, que irromperam
em gritadas expressões como «Apoiado, muito bem!» e «Isso mesmo!
Exatamente!», com a voz de Lowell a sobrepor-se às restantes.
Ao ver um resto do recheio de tomate depositado no seu garfo de metal,
Greene inclinou-se para partilhar aquela fartura com Trap. Por baixo da
mesa, Greene reparou que Longfellow se levantava.
Embora estivessem apenas cinco amigos reunidos na sala de jantar de
Longfellow, na íntima privacidade de Craigie House, o absoluto insólito de o
anfitrião se levantar para fazer um brinde suscitou um silêncio total. - À
saúde dos que estão reunidos à volta desta mesa. Foi tudo o que ele disse,
mas todos gritaram hurras, como se estivessem perante outra Proclamação
da Independência. Depois, chegaram o cobbler de cereja, o gelado e o
conhaque com torrões de açúcar flamejantes e charutos, de um pacote
acabado de abrir, que foram acesos nas velas colocadas no centro da mesa.
Antes de a noite chegar ao fim, Longfellow foi convencido por Fields a
contar aos presentes a história dos charutos. Para lisonjear Longfellow e
levá-lo a falar de si próprio, desviou-se o interesse para um assunto neutro,
como os charutos.
- Fora chamado à Corner para tratar de uns assuntos - começou por dizer
Longfellow, enquanto Fields ria antecipadamente -, quando o senhor Fields
me convenceu a acompanhá-lo a uma tabacaria próxima para comprar
algumas lembranças. O vendedor trouxe-nos uma caixa de uma certa marca
de charutos, da qual vos juro nunca ter ouvido falar. E ele disse com a
maior sinceridade deste mundo: - Estes, Sir, são do tipo dos que Longfellow
prefere fumar.
- O que lhe respondeu você? - perguntou Greene, elevando a voz Por cima
de todo o regozijo que se gerou.
- Olhei para o homem de relance, baixei os olhos para os charutos, e disse-
lhe: «Muito bem, então, terei de os experimentar.» E paguei-lhe a
encomenda de uma caixa, pedindo-lhe que ma enviasse.
- Então, e o que acha agora, meu caro Longfellow? - perguntou Lowell,
engasgando-se com a sobremesa de tanto rir.
Longfellow exalou um suspiro.
- Ah, julgo que o homem tinha toda a razão. Acho-os mesmo bons.
- «Por isso, é bom que me arme de prudência com uma arma de fogo, assim,
se for obrigado a sair do sítio que me é mais querido, eu...» - declarou o
estudante, em tom de frustração, deslizando os dedos para trás e para a
frente, por baixo do texto italiano.
Desde há vários anos, o escritório de Lowell em Elmwood desdobrara-se
numa sala de aula para o seu curso sobre Dante. Na sua primeira etapa
como professor da cátedra Smith, solicitara uma sala e fora-lhe
disponibilizado um espaço gelado, situado na cave do edifício principal da
universidade, com compridas tábuas de madeira, em vez de carteiras, e um
púlpito para o professor, que, seguramente, provinha dos tempos dos
puritanos. O curso não tinha alunos suficientes, tinham dito a Lowell, para
merecer uma das salas de aulas mais cobiçadas. Não fazia mal. Instalar-se
em Elmwood, dava-lhe a comodidade de um cachimbo e o calor de uma
lareira, e era mais uma razão para não ter de sair de casa.
A turma encontrava-se duas vezes por semana em dias escolhidos por
Lowell; por vezes, era ao domingo, porque a Lowell agradava a ideia de se
encontrarem no mesmo dia da semana que Boccaccio, uns séculos antes,
dera as primeiras aulas sobre Dante, em Florença. Muitas vezes, Mabel
Lowell sentava-se e ouvia as lições do seu pai da sala contígua, que
comunicava com a outra por duas arcadas abertas.
- Lembre-se, Mead - disse o professor Lowell quando o estudante parou,
frustrado. - Lembre-se que nesta quinta esfera celeste, a esfera dos
Mártires, Cacciaguida profetizou a Dante que o poeta seria exilado de
Florença quando regressasse ao mundo dos vivos, e que a sentença seria de
morte na fogueira se voltasse a cruzar as portas da cidade. Agora, Mead,
traduza a sua próxima frase: «io non perdessi li altri per / miei carmi»,
tendo isto em mente.
O italiano de Lowell era fluente e sempre tecnicamente correto. Mas Mead,
um aluno do penúltimo ano de Harvard, gostava de pensar que a condição
de norte-americano de Lowell se evidenciava na escrupulosa pronúncia de
cada sílaba,
como se cada uma delas não tivesse qualquer relação com a seguinte.
- «Os outros não perdesse por meus poemas.»
- Atenha-se ao texto, Mead! Carmi são canções; não apenas os seus poemas,
mas a autêntica musicalidade da sua voz. No tempo dos menestréis,
pagava-se e escolhia-se ou as histórias na forma de canções ou prédicas.
Uma prédica que canta e uma canção que prega - isso acontece na Comédia
de Dante. «Pois se o lugar me tiram que é mais caro, / aos outros não
perdesse por meu carme.» Uma leitura honesta, Mead - disse Lowell com
um gesto que parecia forçado e que comunicava a sua aprovação geral.
- Dante repete-se - disse Pliny Mead num tom monótono. Edward Sheldon,
o estudante sentado ao lado dele, mostrou-se embaraçado diante daquela
observação. - Como o senhor diz - prosseguiu Mead -, um profeta divino já
previu que Dante iria encontrar refúgio e protecção com Can Grande.
Então, para que precisava Dante de «outros» lugares? Que tolice de poesia.
- Quando Dante fala num novo lar no futuro - respondeu Lowell -, graças à
sua obra, quando alude aos outros lugares que busca, não está a falar na
sua vida de 1302, o ano do seu exílio, mas na sua segunda vida, a vida que
ele viverá através do poema, ao longo dos séculos.
- Mas «o lugar mais querido» - insistiu Mead - nunca é verdadeiramente
alcançado por Dante, sendo ele próprio quem se afasta dali. Florença
ofereceu-lhe uma oportunidade de regressar a casa, para junto da mulher e
da família, e ele recusou-a!
Pliny Mead não era daqueles alunos que impressionam professores e
colegas pela sua genialidade, mas, desde a manhã em que recebera as
classificações das suas provas do último período académico - e que lhe
provocaram uma triste desilusão - passara a olhar Lowell com acrimónia.
Mead atribuía a sua baixa classificação - e a subsequente descida de lugar
no livro das classificações, da turma de 1867, do décimo segundo para o
décimo quinto lugar - ao fato de ter discordado de Lowell em várias
ocasiões ao longo dos debates sobre literatura francesa, e de o professor
não suportar ser confrontado com os próprios erros. Mead teria desistido
do seu curso de línguas vivas, mas de acordo com o regulamento da
Corporação, uma vez matriculado num curso de línguas, o estudante tinha
de permanecer mais três períodos no departamento; um dos artifícios
adoptados para dissuadir os rapazes de pensarem sequer em se inscrever.
Por isso, Mead estava preso àquele grande bazofiador que era James
Russell Lowell. E a Dante Alighieri.
- Que proposta lhe fizeram! - respondeu Lowell a rir. - Clemência absoluta
para Dante, e restituição do seu legítimo lugar em Florença,
em troca da petição do poeta da sua absolvição e de um pagamento
avultado em dinheiro! Nós fizemos Johnny Reb voltar para a União com
menor aviltamento, quanto mais para um homem que clama por justiça,
aceitar um acordo tão vil com os seus opressores.
- Bem, Dante continua a ser um florentino, independentemente do que nós
possamos dizer! - asseverou Mead, tentando obter a concordância de
Sheldon com um olhar furtivo e simulado de cumplicidade. - Sheldon, não o
vês assim? Dante escreve incessantemente sobre Florença e os florentinos
que encontra e com quem fala nas visitas que faz à vida futura, e ele escreve
tudo isso enquanto está exilado! Para mim, meus amigos, é bastante claro
que ele anseia apenas o regresso. A morte do homem no exílio e a pobreza
são o seu derradeiro e enorme fracasso.
Irritado, Edward Sheldon reparou que Mead sorria ironicamente diante do
silêncio que conseguira impor a Lowell, e que se levantara e enfiara as
mãos no casaco bastante coçado. No entanto, Sheldon conseguiu ver em
Lowell, na jactância do seu cachimbo, um estado de espírito elevado. Ele
parecia estar a pairar noutro plano de competência mental, bem acima do
escritório de Elmwood, enquanto caminhava a passos regulares sobre o
tapete com as suas botas de grossos atacadores. Habitualmente, Lowell não
permitia a admissão de principiantes numa turma de literatura avançada,
mas o jovem Sheldon fora persistente, e Lowell dissera-lhe que eles veriam
se ele conseguia orientar-se. Sheldon ficou grato pela oportunidade, e
aguardou a oportunidade de defender Lowell e Dante contra Mead, o tipo
que, de certeza, em criança andara a colocar moedas nos carris do
caminho-de-ferro. Sheldon abriu a boca, mas Mead lançou-lhe um olhar,
que o fez voltar a calar os seus pensamentos.
Lowell denunciou um olhar de decepção a Sheldon, e depois virou-se para
Mead.
- Onde está o judeu que há em si, meu rapaz? - perguntou-lhe ele.
- Como? - exclamou Mead, ofendido.
- Não, não se preocupe. Não era isso em que estava a pensar, Mead. O tema
de Dante é o homem... não um homem - acabou por dizer Lowell com a
paciência conciliadora, que reservava apenas para os estudantes. - Os
Italianos sempre se agarraram a Dante, para o obrigar a dizer que seguia os
princípios deles e a sua maneira de pensar. A sua maneira de pensar, claro!
Confiná-lo a Florença ou a Itália é subtraí-lo à simpatia da humanidade. Nós
lemos o Paraíso Perdido como um poema, mas a Comédia de Dante lemo-la
como uma crónica das nossas vidas interiores. Conhecem Isaías 38:10?
Sheldon reflectiu com afinco e Mead permaneceu sentado com uma
expressão inflexível de obstinação, propositadamente empenhado em não
pensar em nada do que quer que soubesse sobre o assunto.
- «Ego dixi: In dimidio dierum meorum vadam ad portas inferi!» - exultou
Lowell, e depressa se dirigiu às suas estantes cheias de livros, onde, de
alguma maneira, encontrou imediatamente o referido capítulo e versículo
numa Bíblia latina. - Vêem? - perguntou ele, colocando-a aberta sobre o
tapete, aos pés dos seus alunos, deliciado por demonstrar que se lembrava
da citação corretamente.
- Querem que traduza? - perguntou Lowell. - «Eu dizia para mim mesmo:
vivi apenas metade da minha vida e já tenho de partir para ir passar no
mundo dos mortos os anos que me faltavam para viver!» Há alguma coisa
em que os autores das nossas Escrituras Sagradas não tenham pensado?
Algures a meio das nossas vidas, de todos nós, de cada um de nós, fazemos
uma viagem para nos confrontarmos com um Inferno só nosso. Qual é o
primeiro verso do poema de Dante?
- «No meio do caminho em nossa vida» - sugeriu voluntariosamente
satisfeito Edward Sheldon, que tinha lido essa ressalva de abertura do
Inferno vezes sem conta no seu quarto no Stoughton Hall, e nunca se
sentira tão atraído por nenhum verso de poesia nem tão encorajado por
nenhum clamor como aquele. - «Eu me encontrei por uma selva escura,
porque a direita via era perdida.»
- «Nel mezzo del cammin di nostra vita. No meio do caminho em nossa
vida» - repetiu Lowell com um brilho tão intenso no olhar fixo que dirigia à
lareira, que Sheldon olhou de relance por cima do ombro, julgando que a
bonita Mabel Lowell tivesse entrado atrás dele; porém, a sua sombra
continuava a mostrá-la sentada na saleta contígua. - «Nossa vida.» Desde o
primeiro verso do poema de Dante que somos envolvidos na viagem,
somos levados a fazer a peregrinação, tanto quanto ele, e temos de encarar
o nosso Inferno com tanta determinação quanta a que Dante teve. Vedes
que o valor maior e mais duradouro do poema é mostrar a autobiografia de
uma alma humana. A vossa e a minha, tanto faz, tal como a do próprio
Dante. Enquanto ouvia Sheldon ler os quinze versos seguintes em italiano,
Lowell pensou para consigo como era bom ensinar algo autêntico. Como
Sócrates fora tolo ao pensar expulsar os poetas de Atenas! Com que imensa
satisfação Lowell veria a derrota de Augustus Manning quando a tradução
de Longfellow se revelasse um imenso êxito.
No dia seguinte, Lowell saía do edifício principal da universidade depois de
pronunciar uma conferência sobre Goethe,
e só ficou um pouco surpreendido ao aperceber-se de que olhava para um
italiano baixo que passava apressado, vestindo um casaco de corte largo,
mas que lhe ficava terrivelmente justo.
- Bachi? - disse Lowell.
Pietro Bachi fora contratado uns anos antes por Longfellow como leitor de
italiano. À Corporação nunca agradara a ideia de empregar estrangeiros,
em particular, um papista italiano, e o fato de Bachi ter sido reprovado pelo
Vaticano não alterava em nada a opinião deles sobre o assunto. Na época
em que Lowell assumiu o controlo do departamento, a Corporação
encontrou motivos bastante razoáveis para afastar Pietro Bachi - o seu
alcoolismo e a sua insolvência. No dia em que foi despedido, o italiano
queixou-se ao professor Lowell.
- Não voltam a apanhar-me aqui novamente, nem morto. - Apesar de não as
tomar à letra, por qualquer motivo, Lowell acreditou nas palavras de Bachi.
- Meu caro Professor. - Agora Bachi estendia a mão ao antigo responsável
pelo seu departamento, que a agitou vigorosamente no seu jeito habitual.
- Bem... - começou Lowell por dizer, sem saber bem se devia perguntar qual
o motivo que trouxera Bachi, manifestamente vivo e agitado, a Harvard.
- Ando a dar um passeio, Professor - explicou Bachi. Contudo, ele parecia
ansioso por passar por Lowell, de modo que o professor abreviou as suas
mostras de simpatia. No entanto, ao virar-se para trás, por breves instantes,
estranhou cada vez mais o aparecimento de Bachi, e Lowell reparou que ele
se dirigia a uma figura vagamente familiar. Era o indivíduo do chapéu de
coco preto e colete axadrezado, o amante de poesia que Lowell vira
indolentemente encostado a um olmeiro americano, umas semanas antes.
Ora, que negócios teria ele a tratar com Bachi? Lowell ficou parado para ver
se Bachi saudava a personagem desconhecida, que seguramente parecia
estar à espera de alguém. Mas depois, uma onda de estudantes, eufóricos
por terem sido dispensados das declamações de grego, rodeou-os como um
enxame, e o curioso par - se, de fato, os dois homens iam falar um com o
outro - desapareceu do alcance da vista de Lowell.
Esquecendo-se por completo da cena, Lowell encaminhou-se para a
Faculdade de Direito, onde encontrou Oliver Wendell Júnior rodeado de
condiscípulos, a quem explicava algum aspeto relacionado com o direito,
que não estavam a perceber bem. Em geral, o seu aspeto não era diferente
do doutor Holmes, mas era como se alguém tivesse levado o pequeno
doutor a uma roda de tortura e o tivesse esticado até ao dobro da sua
estatura.
O doutor Holmes caminhava indolente ao fundo das escadas de serviço de
sua casa. Depois, deteve-se diante de um espelho pendurado a baixa altura
e, com um pente, agitou as porções espessas e hirsutas do seu cabelo
castanho para um dos lados. Pensou ainda que o seu rosto não compunha
um retrato muito lisonjeiro da sua pessoa. «Mais uma conveniência do que
um adorno», gostava ele de dizer aos que lhe eram próximos. A tez um
nadinha mais escura, o nariz mais perfeito na inclinação ou o pescoço mais
pronunciado; ele bem podia estar a olhar para o reflexo de Wendell Júnior.
Neddie, o filho mais novo de Holmes, fora bastante desafortunado para
apresentar o mesmo aspeto do seu pai, tendo herdado até os seus
problemas respiratórios. O doutor Holmes e Neddie eram Wendell, teria
dito o reverendo Holmes; e Wendell Júnior era um Holmes puro. Com
aquele sangue, Júnior não tinha dúvidas que suplantaria o renome do pai;
não só seria o Exmo. Holmes, mas também Sua Excelência Holmes ou o
Presidente Holmes. O doutor Holmes endireitou-se energicamente ao ouvir
os passos de umas pesadas botas, e rapidamente recuou até uma sala
próxima. Depois, dirigiu-se de novo às escadas, com um passo descontraído
e os olhos baixos, fixos num livro antigo. Oliver Wendell Holmes Júnior
entrou em casa de rompante e pareceu dar um grande salto para o segundo
andar.
- Ah, Wendy - disse Holmes com um sorriso breve. - És tu? Júnior abrandou
a sua subida a meio das escadas.
- Olá, pai.
- A tua mãe acabou de me perguntar se já te tinha visto hoje, e apercebi-me
de que isso ainda não acontecera. De onde vens tão tarde, meu rapaz?
- Fui dar um passeio a pé.
- Ah, sim? Sozinho?
Com ressentimento, Júnior fez uma pausa no patamar. Baixou as suas
sobrancelhas pretas e dirigiu um olhar irado ao pai, que amassava a
balaustrada de madeira no final das escadas.
- Por acaso, estive a conversar com James Lowell. Holmes mostrou alguma
surpresa.
- Lowell? Estiveram juntos até tão tarde? Tu e o professor Lowell? Um
ombro largo ergueu-se ligeiramente.
- Bem, e sobre o que conversas tu com o nosso querido amigo comum,
posso perguntar? - continuou o doutor Holmes, desenhando-se no seu
rosto um sorriso amável.
- De política, da minha participação na guerra, das minhas aulas de Direito.
Diria que nos damos muito bem.
- Bom, ultimamente, andas a perder muito tempo. Estás muito ocioso.
Ordeno-te que pares com essas frívolas digressões com o senhor Lowell!
- Não obteve resposta. - Sabes, roubam-te tempo ao estudo. E não podemos
permitir que isso aconteça, pois não? Júnior desatou a rir.
- Todas as manhãs, diz: «Para que serve isso, Wendy? Um advogado nunca
chega a ser um grande homem, Wendy.» - Isto foi dito num tom de voz vivo
e rude. - E agora, quer que eu estude Direito com mais afinco?
- Exatamente, Júnior. Fazer algo que mereça a pena requer esforço, muita
energia e fósforo. E, na nossa próxima sessão do Clube de Dante, darei uma
palavrinha ao senhor Lowell sobre esse vosso hábito. Estou certo que ele
concordará comigo. Ele próprio em tempos foi advogado, e conhece as
exigências do curso. - Holmes caminhou em direcção ao vestíbulo bastante
satisfeito com a sua firmeza.
Júnior resmoneou.
O doutor Holmes virou-se.
- Queres dizer mais alguma coisa, meu rapaz?
- Estava só a pensar - disse Júnior. - Gostava de saber mais sobre esse vosso
Clube de Dante, meu pai.
Wendell Júnior nunca mostrara o menor interesse pelas suas actividades,
tanto literárias como profissionais. Ele nunca lera os poemas do doutor,
nem o seu primeiro romance, nem sequer assistira às suas conferências
sobre os avanços da medicina ou sobre a história da poesia. O caso mais
significativo acontecera depois de Holmes ter publicado «My Hunt After the
Captain», na revista The Atlantic Monthly, onde narrava a viagem que fizera
ao Sul, depois de ter recebido um telegrama erróneo a informá-lo da morte
de Júnior no campo de batalha.
Na verdade, Júnior dera uma vista de olhos pelas provas, e sentira as
feridas de guerra a latejar, enquanto o fazia. Ele não podia acreditar como é
que o seu pai conseguira pensar que podia encerrar toda a guerra em
alguns milhares de palavras, que, na sua maioria, contavam piadas sobre
rebeldes moribundos em camas de hospital, e recepcionistas de hotel de
cidades pequenas a perguntar-lhe se ele não era o «Autocrata da Mesa do
Pequeno-Almoço».
- Ou seja - continuou Júnior com um esgar desafiador -, se o senhor se acha
incomodado, porque se considera membro do clube?
- Como, Wendy, não percebo? O que queres tu dizer com isso? O que sabes
tu sobre esse assunto?
- Apenas que o senhor Lowell diz que a sua voz se ouve mais à mesa da ceia
do que no escritório. Para o senhor Longfellow, esse trabalho é tão
importante como a própria vida, e para Lowell é a sua vocação. Já vê que
ele atua de acordo com as suas convicções; não se limita a falar delas,
como fazia, enquanto advogado, quando defendia os escravos. Para si o
clube é apenas mais um sítio onde pode tilintar copos em saudações.
- Lowell disse... - começou o doutor Holmes por dizer. - Ora, nota bem,
Júnior!
Júnior acabou de subir as escadas e fechou-se no seu quarto.
- Como é que, antes de mais, soubeste do nosso Clube de Dante! -gritou o
doutor Holmes.
Antes de se retirar para o escritório, Holmes vagueou pela casa sem saber o
que fazer. A sua voz ouvida sobretudo à mesa? Quanto mais repetia aquela
alegação para si próprio, mais ofensiva lhe parecia. Lowell estava a tentar
preservar o seu lugar à direita de Longfellow, mostrando-se superior à
custa de Holmes.
Com as palavras de Júnior pronunciadas no tom alto de barítono de Lowell
a ressoar-lhe na cabeça, ele escreveu obstinadamente ao longo das
semanas seguintes, avançando de forma constante, o que não lhe era
natural. Quando uma ideia nova assaltava Holmes, tornava-se o seu
momento sibilino, mas, normalmente, o ato de composição era acolhido
com uma sensação pesada e desagradável em volta da testa, interrompida
apenas de vez em quando pela descida simultânea de um grupo de palavras
ou de uma imagem inesperada, que provocava uma explosão do mais
descontrolado entusiasmo e autocomplacência, e durante a qual, por vezes,
ele chegava a incorrer em pueris excessos de linguagem e acção. De
qualquer modo, ele não conseguia trabalhar muitas horas seguidas sem
redefinir todo o sistema. Os seus pés começavam a ficar frios, a cabeça
quente, os músculos cansados, e sentia que tinha necessidade de se
levantar. À noite, interrompia todo o trabalho árduo antes das onze horas e
pegava num livro de leitura leve, para esvaziar a mente dos assuntos
anteriores. Tanto trabalho cerebral produzia-lhe uma sensação de náusea,
como se tivesse comido de mais. Atribuía isto, em parte, às características
depletivas e enervantes do clima. Brown-Séquard, um colega médico de
Paris, afirmara que os animais não sangram tanto na América como na
Europa. Não era assustador pensar nisso? Apesar dessa insuficiência
biológica, agora Holmes dedicava-se a escrever como um louco.
- Como você sabe, devia ser eu a falar com o professor Ticknor sobre
o seu contributo para a nossa causa de Dante - disse Holmes a Fields. Ele
decidira parar no escritório de Fields, na Corner.
- O que é isso? - Fields lia três coisas ao mesmo tempo; um manuscrito, um
contrato e uma carta. - Onde estão os termos sobre os direitos de autor?
J. R. Osgood estendeu-lhe mais uma pilha de papéis.
- Você tem o tempo muito ocupado, Fields, e tem de pensar no próximo
número da Atlantic... Seja como for, precisa de descansar o seu cérebro
cansado - argumentou Holmes. - Afinal, o professor Ticknor foi meu mestre.
Felizmente para Longfellow, é possível que eu consiga exercer maior
influência sobre o velho colega.
Holmes ainda se lembrava de uma época em que Boston era conhecida no
meio literário como Ticknorville. Se não se fosse convidado para os saraus
literários na biblioteca de Ticknor, não se era ninguém. Em tempos, esse
local ficara conhecido como a Sala do Trono de Ticknor; agora, com maior
frequência, falava-se no Icebergue de Ticknor. Numa grande parte da sua
sociedade, o antigo professor perdera a sua reputação de ocioso refinado e
de antiabolicionista, mas perdurava a sua posição de um dos maiores
conhecedores literários da cidade. A sua influência podia reverter em
benefício dos membros do grupo.
- A minha vida foi povoada por mais criaturas do que me é permitido
tolerar, meu caro Holmes - disse Fields, soltando um suspiro. -Hoje em dia,
a visão de um manuscrito é como um agulhão... corta-me ao meio. - Ele
ficou a examinar Holmes durante alguns instantes, depois, concordou
enviá-lo ao n.o 9 da Park Street no seu lugar. - Mas faça-me o favor de lhe
dar lembranças minhas, está bem, Wendell?
Holmes sabia que Fields se sentia aliviado por lhe passar a tarefa de falar
com George Ticknor. O professor Ticknor - esse título ainda era
insistentemente utilizado, apesar de ele não ensinar nada desde a sua
jubilação há trinta anos - nunca tivera em grande consideração o seu primo
mais novo, William D. Ticknor, e essa sua opinião depreciativa estendia-se
ao seu sócio, J. T. Fields, como deixou claro a Holmes, depois de o médico
ter sido até ele conduzido pelas escadas em caracol do vizinho n.o 9 da Park
Street.
- A escandalosa falácia dos lucros, que considerava os livros lucrativos e de
grande projecção, consoante as vendas e os prejuízos! - disse o professor
Ticknor, com os lábios secos contraídos numa reacção súbita de
repugnância. - O meu primo William sofria dessa doença, doutor Holmes, e
desconfio que também a contagiou aos meus sobrinhos. Aqueles que se
dedicam a essas tarefas não devem controlar a arte literária. Não acha,
doutor Holmes?
- Contudo, o senhor Fields tem alguma perspicácia, não lhe parece? Ele
sabia que a sua History iria relançar as vendas, professor. Ele acha mesmo
que o Dante de Longfellow terá bastantes leitores. - Na verdade, a History
of Spanish Literature, do Ticknor, tivera escassos leitores fora do círculo
dos colaboradores das revistas, mas o professor considerava essa uma
medida exata do seu sucesso.
Ticknor ignorou a lealdade de Holmes, e, delicadamente, retirou as mãos de
uma máquina volumosa. Ele mandara construir aquela máquina de
escrever - uma espécie de máquina impressora em miniatura, como ele a
descrevia - quando as suas mãos começaram a tremer demasiado para
conseguir utilizar a pluma. Em resultado disso, há alguns anos que não via a
sua própria caligrafia. Estava a trabalhar numa carta quando Holmes
chegou.
Sentado com o seu solidéu púrpura de veludo e os chinelos calçados,
Ticknor deixou que o seu olhar crítico se detivesse, pela segunda vez, no
corte das roupas de Holmes e na qualidade da sua gravata e do seu lenço de
bolso.
- Doutor, receio que enquanto o senhor Fields sabe o que o público lê,
nunca chegará a compreender porquê. Ele deixa-se levar pelo entusiasmo
de amigos próximos. Uma peculiaridade perigosa.
- O senhor sempre afirmou como era importante difundir o conhecimento
das culturas estrangeiras pela classe erudita - lembrou-lhe Holmes. Com as
cortinas fechadas, o velho professor era agora tenuemente iluminado pela
lareira da biblioteca, cuja luz deprimida era clemente para com os seus pés-
de-galinha. Holmes dedilhava a sua própria fronte. O Icebergue de Ticknor
estava, na verdade, bastante quente por a lareira estar sempre a ser
alimentada.
- Devemos esforçar-nos por compreender os nossos estrangeiros, doutor
Holmes. Se não submetemos os recém-chegados às particularidades do
nosso carácter nacional, nem os levarmos a aceitar de bom grado a sujeição
às nossas instituições, um dia, seremos nós submetidos ao jugo das turbas
de gente que vêm de fora.
- Mas, aqui entre nós, Professor - insistiu Holmes -, que hipóteses pensa o
senhor que a tradução do senhor Longfellow tem de agradar ao público? -
Holmes mostrou um olhar de tão obstinada concentração que Ticknor fez
uma pausa para reflectir genuinamente. Como uma defesa contra a
melancolia, a velhice conferira-lhe a tendência para dar a mesma dúzia de
respostas automáticas a todas as perguntas relativas à sua saúde ou ao
estado do mundo. '
- Creio que não pode haver dúvida alguma de que o senhor Longfellow fará
algo surpreendente. Não terá sido por isso que o escolhi para me suceder
em Harvard? Mas lembre-se que, também eu, em tempos, considerei a
possibilidade de introduzir Dante aqui, até a Corporação ter transformado
a minha cátedra numa farsa... - Uma névoa toldou os olhos negros de
azeviche de Ticknor. - Não pensei ser possível viver para ver uma tradução
americana de Dante, e não consigo entender como é que ele vai conseguir
levar a cabo essa tarefa. Se as massas desenluvadas a aceitam ou não,
é outra questão, que tem de ser respondida pela voz popular e à margem da
dos doutos amantes de Dante. Nunca poderei erigir-me em juiz disso - disse
Ticknor, com uma altivez tão sincera que o tornou mais animado. - Mas
começo a acreditar que, quando acalentamos a esperança firme de que
Dante será amplamente lido, incorremos em tolices pedantes. Não me
interprete mal, doutor Holmes. Dediquei a Dante muitos anos da minha
vida, tal como Longfellow. Não pergunte o que Dante dá ao homem, mas o
que o homem dá a Dante: penetrar pessoalmente na sua esfera, apesar de
isso ser sempre violento e inesquecível.

IV




SSE DOMINGO, SOB AS RUAS DA CIDADE, E ENTRE OS MORTOS, o

E reverendo Elisha Talbot, pastor da Segunda Igreja Unitarista de


Cambridge, empunhava uma lanterna bem alto, enquanto
serpenteava pela passagem, esquivando-se dos caixões em
equilíbrio precário e dos montes de ossos quebrados. Ele indagava-se se,
naquele momento, ainda precisava da orientação do seu candeeiro a
querosene, pois já estava muito habituado à escuridão cuidadosamente
preparada da passagem subterrânea serpenteante, apesar das invencíveis
contracções nasais que lhe provocava o desagradável cheiro da
decomposição. Um dia, atrever-se-ia a fazê-lo, conseguiria percorrer todo o
caminho sem luz, apenas confiando em Deus para o proteger.
Por instantes, julgou ter ouvido um rangido. Virou-se com um rodopio, mas
os túmulos e as colunas de lousa permaneciam imóveis. - Está aí alguém
vivo? - a sua famosa voz de tom melancólico cortou a atmosfera sinistra.
Talvez fosse um comentário impróprio para um pastor, mas a verdade é
que, de repente, ele se sentiu assustado. Tal como todos os homens que
vivem a maior parte da vida sozinhos, Talbot sofria de muitos temores
ocultos. A morte sempre o assustara, para lá do racional; era essa a sua
maior vergonha. Essa podia ser uma das razões que o levava a percorrer os
túmulos subterrâneos da sua igreja, para assim vencer o medo irreligioso
da mortalidade corpórea. Talvez também ajudasse a explicar, se alguém se
dispusesse a escrever a sua biografia, com que ansiedade Talbot suportava
os preceitos racionalistas do unitarismo frente aos demónios calvinistas
das antigas gerações. Talbot expirou nervosamente para a sua lanterna e
depressa se aproximou do vão da escada, no extremo mais distante da
cripta funerária, que prometia um regresso aos acolhedores candeeiros a
gás e a um caminho mais curto até sua casa do que pelas ruas.
- Quem está aí? - perguntou ele, oscilando a lanterna à sua volta, desta vez
com a certeza de ter ouvido um rumor. Mas, uma vez mais, nada.
92 - 93
O movimento era demasiado pesado para ser produzido por roedores, e
excessivamente leve para ser obra de garotos da rua. «Ora esta, o que
poderá ser!», pensou ele. O reverendo Talbot susteve a sussurrante
lanterna imóvel ao nível dos olhos. Ele ouvira dizer que bandos de
vândalos, deslocados pelo desenvolvimento urbanístico e pela guerra,
ultimamente se reuniam em criptas funerárias abandonadas. Talbot
decidiu, então, que, na manhã seguinte, levaria ali um polícia para tomar
conta da ocorrência. Estaria a proceder bem, como fizera na véspera, com a
participação do roubo de mil dólares do seu cofre pessoal que tinha em
casa? Ele tinha a certeza que a polícia de Cambridge nada fizera em relação
ao assunto. A sua única satisfação era que a incompetência dos ladrões de
Cambridge corria a par da da polícia, já que tinham negligenciado parte do
seu valioso conteúdo.
O reverendo Talbot era um homem virtuoso, sempre a atuar com justeza
em relação aos vizinhos e à sua congregação. Contudo, havia alturas em que
talvez tivesse mostrado um zelo excessivo. No início da sua actividade
como ecónomo da Segunda Igreja, há trinta anos, concordara em recrutar
homens da Alemanha e dos Países Baixos para se mudarem para Boston,
com a promessa de um lugar na sua congregação, tomando parte nas
cerimónias religiosas e de um trabalho bem remunerado. Se os católicos
podiam vir em torrentes da Irlanda, porque não trazer também alguns
protestantes? Só que o trabalho que lhes estava destinado consistia em
construírem os caminhos-de-ferro, e dezenas de recrutados seus morreram
de exaustão e por doenças várias, deixando abandonados à sua sorte órfãos
e viúvas. Talbot desligou-se sorrateiramente da iniciativa, e apesar de ter
prometido a si mesmo devolver o dinheiro, nunca o fez. Em vez disso,
esqueceu o assunto, e tomou todas as decisões da sua vida olhando sempre
meticulosamente de esguelha para a obstinação alheia.
Quando, ao avançar cauteloso, com passos ligeiros e cépticos, a certa altura
o reverendo Talbot recuou, tropeçou em qualquer coisa compata. Enquanto
permanecia imóvel, pensou por instantes que perdera as estribeiras, e
optou por se comprimir de encontro à parede. Há muitos anos que Elisha
Talbot não era agarrado por outra pessoa, nem sequer tocado, excepto
quando cumprimentava alguém com um aperto de mão. Mas agora não
havia dúvidas, nem mesmo para ele, de que o calor dos braços que o
envolviam pelo peito e cujas mãos lhe retiravam a lanterna, pertenciam a
outro ser humano. O aperto revelava fúria e magoava-o.
Quando Talbot recuperou a consciência, num breve momento que lhe
pareceu uma eternidade, percebeu que o envolvia uma escuridão diferente
e impenetrável. O cheiro acre da cripta funerária persistia nos seus
pulmões, mas agora uma humidade fria e densa roçava-lhe nas faces,
e uma salinidade que ele reconheceu como sendo o seu próprio suor
deslizara-lhe para dentro da boca, sentindo também lágrimas a escorrer-
lhe dos cantos dos olhos para a testa. Estava frio, muito frio como numa
geladeira. Privado de qualquer peça de roupa, o seu corpo tremia. Contudo,
o calor consumia-lhe a carne tolhida e dava-lhe uma sensação insuportável
que nunca antes experimentara. Seria um horrível pesadelo? Ah, claro! Era
aquele disparate medonho que andava a ler ultimamente antes de
adormecer, sobre demónios, animais, etc. No entanto, ele não se lembrava
de ter saído da cripta funerária, não se lembrava de ter chegado à sua
modesta casa de ripas de madeira cor de pêssego, nem de ter despejado a
água no lavatório. Na verdade, ele nunca saíra do mundo subterrâneo para
os passeios de Cambridge. De algum modo, apercebeu-se que o bater do
seu coração se dirigia para cima. Estava suspenso por cima dele, a pulsar
desesperadamente, bombeando-lhe o sangue do corpo para a cabeça. Ele
respirou com ténues exalações.
O pastor sentiu-se a pontapear o ar furiosamente, e, pelo calor, percebeu
que não se tratava de um sonho. Ele ia morrer. Era estranho. Naquele
momento, a emoção que estava mais distante dele era o medo. Talvez a
tivesse esgotado ao longo da vida. Em vez disso, sentia uma profunda e
intensa cólera por aquilo poder estar a acontecer, por a nossa condição
poder ser tal que um filho de Deus pudesse morrer, enquanto todos os
outros continuavam impassíveis.
Nos últimos instantes da sua vida, ele tentou rezar numa voz lacrimosa.
- Meu Deus, perdoai-me se pequei - mas, em vez disso, irrompeu dos seus
lábios um grito lancinante, e perdeu-se na imensa impiedade do seu
coração.

V




O DOMINGO, DIA 22 DE OUTUBRO DE 1865, A ÚLTIMA EDIÇÃO do

N jornal Boston Transcript trazia na primeira página um anúncio


onde se oferecia uma recompensa de dez mil dólares. Tanto
desnorte e tantas paragens de carruagens ressoantes junto dos
ardinas só fora ultrapassada, no que parecia ser uma eternidade, na altura
em que o Fort Sunter fora atacado, quando se tornara claro que uma
campanha de noventa dias podia terminar com a selvática rebelião no Sul.
A viúva Healey enviou ao chefe Kurtz um simples telegrama a revelar-lhe
os seus planos. O recurso ao telegrama era esclarecedor, porque era sabido
que muitos olhos no Comissariado da Polícia o leriam antes do chefe.
Escrevera para cinco jornais de Boston, dizia ela a Kurtz, a relatar a
verdadeira natureza da morte do marido e a oferecer uma recompensa por
qualquer informação que conduzisse à captura do assassino. Devido à
anterior corrupção no gabinete dos detectives, os vereadores tinham
aprovado normas a proibir os policiais de receberem recompensas, mas,
sem dúvida, que o público podia enriquecer desta forma. Kurtz podia não
ficar satisfeito, admitia ela, mas ele não cumprira a promessa que lhe fizera.
A última edição do Transcript trazia a notícia em primeira mão.
Agora, Ednah Healey imaginava os mecanismos concretos, através dos
quais era possível suscitar no tratante sofrimento e contrição. O seu
favorito consistia em levar o assassino a Gallows Hill, mas, em vez de ser
enforcado, seria despojado das suas roupas, enviado para a fogueira e,
depois, era-lhe permitido tentar (sem sucesso, claro!) apagar as chamas.
Ela sentia-se radiante e aterrada com tais pensamentos, mas eles serviam o
propósito adicional de a distrair de pensar no marido e de alimentar , o
crescente ódio que sentia por ele a ter abandonado.
As mitenes estavam apertadas em volta dos seus pulsos para a impedir de
arranhar mais a pele. Esta sua mania tornara-se constante, e a roupa já não
conseguia esconder as cicatrizes da sua automutilação. Certa noite,
a seguir ao sobressalto de um pesadelo, ela correu para fora do quarto e,
desesperada, procurou um esconderijo para o broche, que continha a
madeixa de cabelo do marido. De manhã, os filhos e os criados remexeram
Wide Oaks inteira, procurando-o desde debaixo do soalho até aos barrotes
da estrutura do edifício, sem conseguirem encontrar nada. Tanto melhor.
Com aqueles cuidados a balouçar-lhe ao pescoço, talvez a viúva Healey
nunca mais voltasse a adormecer.
Por sorte para ela, não sabia que durante aqueles agitados dias, durante
aquele conjurado calor outonal, o juiz Healey do Supremo Tribunal
resmoneara lentamente «Senhores jurados... » vezes sem conta, enquanto
as larvas de mosca-varejeira esfomeadas furavam às centenas a ferida
aberta até à palpitante massa esponjosa do seu cérebro, pondo cada uma
das férteis moscas centenas de larvas devoradoras de mais carne fresca.
Primeiro, o juiz Artemus Prescott Healey não conseguira mexer um braço.
Depois, mexera os dedos, pensando ter libertado a perna com um pontapé.
Pouco depois, as palavras já não saíam da sua boca de forma coerente:
«Membros do júri por baixo dos nossos cavalheiros...» Ele conseguiu
perceber que não faziam sentido, mas não podia fazer nada para o evitar. A
parte do seu cérebro associada à sintaxe estava a ser ingerida pelas
criaturas, que nem sequer apreciavam o que comiam, mas precisavam
daquilo. Nos breves momentos em que recuperou a consciência, ao longo
daqueles quatro dias, a angústia de Healey fazia-o acreditar que estava
morto, e rezava para morrer de novo. «Borboletas e o último leito...» Ele
olhou fixamente para a bandeira esfarrapada, que esvoaçava por cima de si,
e, com o pouco discernimento que ainda lhe restava, surpreendeu-se.
O sacristão da Segunda Igreja Unitarista de Cambridge estivera a registar
os acontecimentos da semana no diário da igreja, ao fim da tarde, depois da
partida do reverendo Talbot, que, nessa manhã, fizera um sermão
obstinado. Depois, estivera na igreja a reconfortar-se com as entusiásticas
notícias dos diáconos da igreja. Porém, o sacristão Gregg franzira-lhe o
sobrolho quando Talbot lhe pedira para destrancar o ferrolho da pesada
porta de pedra do extremo da ala da igreja, onde eram celebrados os
ofícios.
Parecia terem passado apenas alguns minutos, quando o sacristão ouviu
um pranto de intensidade crescente. O barulho parecia vir de nenhures, e,
no entanto, estava claramente enraizado na igreja. Depois, quase por
capricho, pensando nos que estavam há muito enterrados, o sacristão
Gregg colou o ouvido à porta de lousa, que conduzia à cripta funerária
subterrânea,
às ermas catacumbas da igreja. De forma extraordinária, apesar do barulho
agora ter cessado, pelos ecos, parecia vir da reentrância atrás da porta!
Depois de retirar a ruidosa argola de chaves do seu cinto, o sacristão
destrancou a porta como fizera para Talbot. Respirou fundo e desceu as
escadas.
O sacristão Gregg trabalhava ali há doze anos. A primeira vez que ouviu o
reverendo Talbot falar foi numa série de debates públicos com o bispo
Fenwick sobre os perigos do auge da Igreja Católica em Boston.
Durante esses discursos, Talbot articulara a sua vigorosa argumentação
sobre três pontos principais, afirmando:
1. que os rituais supersticiosos e as catedrais faustosas da fé católica
constituíam uma idolatria blasfema;
2. que a tendência dos irlandeses para se aglomerarem nas imediações das
suas catedrais e conventos podia dar origem a conluios secretos contra a
América do Norte e demonstrava uma marcada resistência à
americanização;
3. que o pontificado, a maior ameaça estrangeira, ao controlar todos os
aspetos da acção católica, ameaçava a independência de todas as religiões
norte-americanas com o seu proselitismo e o seu propósito de se
espalharem por todo o país.
Claro que nenhum dos pastores unitaristas anticatólicos perdoou os atos
dos trabalhadores irados de Boston, que haviam pegado fogo a um
convento católico depois de umas testemunhas afirmarem que raparigas
protestantes tinham sido raptadas e encerradas em masmorras para serem
convertidas em freiras. Os revoltosos escreveram a giz nos muros de
alvenaria O PAPA PARA O INFERNO! Mas aquilo era menos um desacordo
com o Vaticano do que um aviso aos irlandeses, que cada vez mais
ocupavam os seus postos de trabalho.
Em pleno auge dos seus debates, sermões e escritos anticatólicos, o
reverendo Talbot foi encorajado por alguns a suceder ao professor Norton,
na Divinity School de Harvard, a Faculdade de Teologia, mas ele declinou
sempre. Talbot apreciava demasiado a sensação de entrar no seu templo
dos Quáqueros apinhado de gente, num domingo de manhã, depois de vir
da tranquila sabatina de Cambridge, e ouvir os solenes acordes do órgão,
enquanto se conservava de pé no púlpito com a sua imponente batina lisa,
que lhe conferia uma aparência sublime. Embora sofresse de um horrível
estrabismo e tivesse uma entoação profunda e melancólica, com a perpétua
característica que a voz adquire quando um morto jaz algures em casa, a
presença de Talbot no púlpito infundia confiança e ele desempenhava com
lealdade o seu labor pastoral. Era ali que os seus poderes contavam.
Desde que a mulher falecera ao dar à luz, em 1825, Talbot nunca mais
tivera uma família, nem nunca mais desejara tê-la, pela satisfação que lhe
dava a sua congregação.
A candeia de azeite do sacristão Gregg perdia timidamente o seu brilho à
medida que ele ia perdendo a coragem. Quando o sacristão tinha de
expirar, a névoa cobria-lhe o rosto e entorpecia-lhe as suíças. Em
Cambridge ainda era Outono, mas na cripta funerária subterrânea da
Segunda Igreja já se estava no pino do Inverno.
- Está aqui alguém? Não era suposto... - a voz do sacristão pareceu não ter
sustentação física na plena escuridão da cripta funerária, e ele calou-se
rapidamente. Ao longo das orlas da cripta, reparou em pequenos pontos
brancos salpicados. Quando o seu número começou a aumentar, baixou-se
para inspeccionar os detritos, mas a sua atenção foi desviada por uma
crepitação aguda, vinda de cima. Um cheiro pestilento, suficientemente
horrível para até conseguir mitigar o ar da cripta funerária, chegou até ele.
Com o chapéu pressionado de encontro ao rosto, o sacristão continuou a
avançar por entre os caixões, que se alinhavam no chão sujo, atravessando
os tristes passadiços abobadados de lousa. Ratazanas gigantes escapuliam-
se com passos miúdos ao longo das paredes. Um brilho ténue e vacilante,
que não provinha do seu candeeiro, iluminava o caminho à sua frente, onde
a crepitação se transformava numa chiadeira contínua. - Está aí alguém? - O
sacristão avançou com cuidado, agarrando-se com firmeza aos tijolos sujos
da parede, enquanto contornava a esquina. - Santo Deus, seja louvado! -
gritou ele.
Da boca de um buraco irregularmente escavado no chão, mais adiante,
projetavam-se para o ar os pés de um homem, vendo-se ainda a barriga das
pernas e estando o resto do corpo comprimido dentro do buraco. As solas
dos dois pés estavam a arder. As articulações estremeciam tão
violentamente que os pés do homem pareciam escoucinhar para trás e para
diante com dores. A carne dos pés liquefizera-se, enquanto as vorazes
chamas começavam a alastrar aos tornozelos.
O sacristão Gregg caiu de costas. No chão frio, ao seu lado, estava uma pilha
de roupas. Agarrou na peça de vestuário que estava por cima e golpeou
com ela os pés em chamas até as extinguir.
- Quem é você? - exclamou ele, mas o homem, que para o sacristão era
apenas um par de pés, já estava morto.
O sacristão levou alguns instantes a perceber que a peça de roupa que
usara para apagar as chamas era um paramento de pastor. Rastejando por
um caminho de ossadas humanas, desenterradas, regressou ao metódico
monte de roupa e remexeu-o - roupa interior,
uma capa curta sem mangas e a gravata branca familiares, um xaile e os
sapatos bem engraxados do querido reverendo Elisha Talbot.
Ao fechar a porta do seu escritório, no segundo andar da Faculdade de
Medicina, Oliver Wendell Holmes quase chocou com um polícia no
corredor. Holmes demorara mais tempo que o previsto a acabar o trabalho
para o dia seguinte. Esperava começar mais cedo e dedicar um tempo a
estar com Wendell Júnior antes de o grupo de amigos do filho chegar. O
polícia procurava alguém responsável, e explicou a Holmes que o chefe da
polícia solicitava autorização para utilizar a sala de dissecações da
faculdade; e que o professor Haywood fora mandado chamar para
colaborar na investigação judicial do cadáver de um infeliz cavalheiro que
fora descoberto. Não se conseguia localizar o magistrado encarregue da
investigação, senhor Barnicoat, mas ele não disse que Barnicoat era
conhecido por frequentar as tabernas aos fins-de-semana, e, de certeza, não
estava em condições de conduzir uma investigação. Ao encontrar vazios os
aposentos do deão, Holmes chegou à conclusão que, como ele fora o
anterior deão (Sim, sim, cinco anos na popa do navio bastou-me, e aos
cinquenta e seis anos, quem precisa de tanta responsabilidade? -prosseguiu
Holmes nos dois lados da conversa), podia legitimamente satisfazer o
pedido do agente da polícia.
Chegou uma charrete da polícia, que transportava o chefe Kurtz e o
subdelegado Savage, e uma maca tapada com um cobertor foi levada
rapidamente para dentro, acompanhada pelo professor Haywood e o seu
estudante-assistente. Haywood ensinava Cirurgia e desenvolvera um
grande interesse pela autópsia. Diante das objecções de Barnicoat, o polícia
chamava ocasionalmente o professor ao depósito de cadáveres para que
desse a sua opinião, como quando haviam encontrado uma criança
emparedada numa cave ou um homem enforcado num armário.
Holmes reparou com interesse que o chefe Kurtz colocara à porta dois
agentes estaduais. Quem havia de querer entrar na Faculdade de Medicina
àquela hora da noite? Kurtz puxou o cobertor para trás só até aos joelhos
do cadáver. Era o bastante. Holmes teve de fazer um esforço para não
arquejar perante a visão do homem descalço, se tal palavra ainda se lhe
podia aplicar.
Os pés - e só os pés - tinham sido consumidos pelo fogo depois de um hábil
banho com algo que cheirava a querosene. «Completamente carbonizados»,
pensou Holmes, horrorizado. Os dois borrões que restavam estavam
estranhamente protuberantes na zona dos tornozelos, deslocados das
articulações. A pele, dificilmente reconhecível como tal,
estava entumecida e apresentava fendas abertas pelo fogo. Tecido cor-de-
rosa saía para fora. O professor Haywood inclinou-se para ver melhor.
Apesar de já ter aberto centenas de cadáveres, o doutor Holmes não tinha o
estômago de ferro dos seus colegas médicos legistas diante de tais
procedimentos, e teve de se afastar da mesa de observação. Por mais de
uma vez, como professor, Holmes abandonara a sala de aula no momento
em que um coelho vivo era adormecido com clorofórmio, implorando ao
seu demonstrador para que não o deixasse guinchar.
Holmes começou a sentir a cabeça a andar à roda, e, de repente, pareceu-
lhe que havia muito pouco ar na sala, e até esse pouco estava carregado de
éter e clorofórmio. Ele não sabia quanto tempo a investigação judicial podia
durar, mas tinha a certeza que não resistiria ali muito mais tempo sem cair
redondo no chão. Haywood destapou o resto do corpo, mostrando o rosto
pesaroso e escarlate do morto à sala, e limpou-lhe a terra dos olhos e das
faces. Holmes deixou que os seus olhos vagueassem por todo o corpo nu.
Ele limitou-se a reconhecer como familiar aquele rosto, enquanto Haywood
se inclinava por cima do cadáver, e o chefe Kurtz formulava perguntas em
catadupa a Haywood. Ninguém pedira a Holmes para ficar calado, e, na
qualidade de professor de Anatomia e Fisiologia da cátedra Parkman, de
Harvard, podia ter dado o seu contributo para a discussão, mas Holmes só
conseguia pensar em desapertar o lenço de seda que trazia ao pescoço. Ele
pestanejava convulsivamente, sem saber se devia conter a respiração para
conservar o oxigénio que já inspirara, ou respirar com expirações rápidas e
curtas para armazenar as últimas bolsas de ar disponível antes dos outros,
cuja aparente despreocupação em relação à densa atmosfera fez Holmes ter
a certeza que, a qualquer momento, todos cairiam redondos no chão.
Um dos homens presentes perguntou ao doutor Holmes se se sentia
indisposto. Tinha um rosto afável e atraente, e uns olhos brilhantes, e
parecia mulato. Falou com alguma familiaridade, e, na sua desorientação,
Holmes lembrou-se que era o agente da polícia que fora ter com Lowell à
reunião do Clube de Dante.
- Professor Holmes? O senhor concorda com a avaliação do professor
Haywood? - perguntou então o chefe Kurtz, talvez numa tentativa cortês de
o incluir no procedimento, porque Holmes não se aproximara o suficiente
do corpo para fazer qualquer observação e formular o diagnóstico, que
certamente seria surpreendente. Holmes tentou pensar se prestara atenção
ao diálogo entre Haywood e o chefe Kurtz, e pareceu lembrar-se que
Haywood mencionara que o defunto ainda estava vivo quando os seus pés
haviam sido incendiados, mas que devia ter estado numa posição que o
impossibilitara de pôr fim à tortura,
e que, pela expressão do seu rosto e pela ausência de outros ferimentos,
não era de excluir a possibilidade de ter morrido de ataque cardíaco.
- Ah, claro - observou Holmes. - Sim, claro, senhor agente. - Holmes recuou
até à porta, como para escapar de um perigo moral. - Por favor, cavalheiros,
podem continuar sem mim por uns instantes?
O chefe Kurtz prosseguiu o seu catecismo com o professor Haywood,
enquanto, às apalpadelas, Holmes alcançava a porta, o corredor, e se
apressava a sair para o pátio exterior, inspirando tanto ar quanto
conseguiu com arquejos rápidos e desesperados.
Quando os últimos raios de luz começaram a dissipar-se sobre Boston, o
absorto médico, vagueando sem rumo por entre fileiras de carrinhos de
mão, e passando por bolos com sementes, por vasilhas de cerveja de
gengibre, pelos vendedores de ostras e lagostas de batas brancas, que
mostravam com os braços levantados a enormidade dos seus produtos,
ainda não conseguia suportar a ideia do comportamento que tivera junto
ao cadáver do reverendo Talbot. Devido ao seu estado de perturbação,
ainda não se convencera que Talbot fora assassinado, e ainda não se
decidira a correr a partilhar com Fields ou Lowell a incrível notícia. Como
podia ele, o doutor Oliver Wendell Holmes, médico e professor de Ciências
Médicas, conferencista de renome e reformista médico, tremer assim à
vista de um cadáver, como se fosse um fantasma de um qualquer
romancezeco sentimental? Wendell Júnior ficaria completamente
estupefato com a vacilação medrosa do seu pai. O mais novo dos Holmes
não escondia a convicção de que teria sido melhor médico do que o mais
velho, e também melhor professor, melhor marido e melhor pai.
Apesar de ainda não ter vinte e cinco anos, Júnior estivera no campo de
batalha e vira corpos despedaçados, brechas enormes abertas nas fileiras,
dizimadas por disparos de canhão, membros arrancados e a cair como
folhas, e amputações realizadas com lâminas de machados por cirurgiões
amadores, enquanto os que soltavam gritos lancinantes eram pressionados
contra portas, usadas como mesas de operações, por enfermeiras
voluntárias salpicadas de sangue. Quando o primo lhe perguntou por que
razão Wendell Júnior conseguia tão facilmente deixar crescer o bigode,
enquanto as suas tentativas poucos resultados tinham, Júnior respondeu
secamente: «O meu foi adubado com sangue.»
Agora o doutor Holmes juntava todos os conhecimentos que sempre tivera
sobre o processo de fabrico do pão da melhor qualidade, e apelou a todas
as dicas que conhecia para descobrir, num mercado de Boston,
os vendedores de melhor qualidade pelas roupas, pelos procedimentos ou
pela sua procedência. Ele agarrava e apertava as mercadorias dos
vendedores com severidade, de forma ausente, mas com o toque
inconfundível da mão do médico. A testa ensopava-lhe o lenço à medida
que a limpava com pancadinhas leves. Na tenda de víveres seguinte, uma
velha com um aspeto horrível enfiava os dedos na carne salgada. Mas
Holmes não devia ceder a distracções que o afastassem da tarefa que se
tinha imposto.
Quando chegou à tenda de uma matrona irlandesa, o médico percebeu que
a sua agitação na Faculdade de Medicina tinha raízes mais profundas do
que inicialmente parecera. Não havia sido causada apenas pela sua
repugnância diante do corpo desfigurado e da sua terrível história
silenciosa. E não era apenas por Elisha Talbot (apesar de ser uma
instituição em Cambridge equiparável ao Olmeiro de Washington), ter sido
morto, e de forma tão brutal. Não... Havia algo naquele homicídio que lhe
era familiar, muito familiar.
Holmes comprou um grande pão integral quente e dirigiu-se para casa.
Ainda pensou se não teria sonhado com a morte de Talbot nalgum estranho
rasgo de premonição. Porém, Holmes não acreditava em fantasias dessas.
Devia ter lido uma qualquer descrição daquele hediondo ato, cujos
pormenores depois o assaltaram de modo imprevisto ao ver o cadáver de
Talbot. Mas que texto apresentaria tamanho horror? Certamente nenhuma
revista médica. Seguramente que o Boston Transcript também não, porque
o crime acabara de ser praticado. Holmes parou no meio da rua a imaginar
o sacerdote a pontapear no ar os pés em chamas, enquanto as labaredas
rodopiavam à sua volta...
- «Dai calcagni a le punte...» - murmurou Holmes em voz alta. «Dos
calcanhares aos dedos dos pés...» Era como os clérigos corruptos, os
Simoníanos, ardiam até ao fim dos tempos nos seus fossos escarpados. Os
seus corações sofriam um colapso. - Dante! É Dante!
Nelia Holmes colocou a tarte de caça fria no centro da mesa, posta na sala
de jantar. Deu algumas indicações à criada, alisou o vestido, e debruçou-se
para fora da porta principal à procura do marido. Tinha a certeza que, há
menos de cinco minutos, da janela do andar de cima, vira Wendell a entrar
na Charles Street, segundo parecia com o pão que ela lhe pedira para levar
para a ceia, que ia servir aos seus amigos, entre os quais Annie Fields. (E
como podia uma anfitriã estar à altura do salão de Anníe Fields, sem que
tudo estivesse perfeito?) Mas a Charles Street estava vazia, excepto as
difusas sombras do seu arvoredo, que se iam.
Talvez fosse outro homem de estatura baixa e com uma casaca comprida
vestida, que ela tivesse visto da janela.
Henry Wadsworth Longfellow examinou o bilhete que o agente da polícia
Rey deixara. Ele fez várias associações com o amontoado de letras e
transcreveu o texto várias vezes para outra folha, anagramatizando as
palavras em diferentes associações para formar novas combinações,
apoiando-se em pensamentos do passado. As suas filhas tinham ido visitar
a família da sua irmã, em Portland, e os seus dois filhos viajavam pelo
estrangeiro, separadamente, por isso, dispunha de uns dias de solidão, que
ele apreciava mais em teoria do que na prática.
Naquela manhã, do mesmo dia em que o reverendo Talbot fora
assassinado, o poeta sentou-se na cama, pouco antes de amanhecer, com a
nítida sensação de que não tinha dormido. Fazia parte da sua rotina diária.
A insónia de Longfellow não era causada por sonhos assustadores nem
traumatizantes, por serem agitados nem recorrentes. Na verdade, ele
descrevia a ligeira confusão mental em que mergulhava durante a noite
como bastante pacífica, algo análoga ao sono. Ele estava reconhecido por,
ao romper do dia, mesmo depois das longas vigílias noturnas por causa da
insónia, ainda se sentir repousado depois de ter estado deitado durante
tantas horas. Contudo, por vezes, no pálido halo dos candeeiros noturnos,
Longfellow pensava ver o dócil rosto dela a contemplá-lo do canto do seu
quarto, ali, na mesma assoalhada onde ela morrera. Nessas alturas,
levantava-se com um sobressalto assustado. O desânimo, que se seguia à
alegria quase completa, despertava em Longfellow um terror ainda maior
do que qualquer pesadelo de que conseguisse lembrar-se ou imaginar,
porque qualquer que fosse a imagem ilusória que conseguisse ver durante
a noite, continuaria, de manhã, a levantar-se da cama sozinho. Enquanto
Longfellow enfiava o roupão de calamaço, sentia as douradas madeixas
soltas da sua barba mais pesadas do que quando se deitava.
Quando Longfellow desceu pelas escadas de serviço, já vestia uma casaca,
com uma rosa na lapela. Ele não gostava de andar descuidado, nem mesmo
em casa. Ao fundo das escadas estava uma reprodução de Giotto de um
retrato do jovem Dante, com um furo negro no lugar de um dos olhos. O
fresco de Giotto fora pintado no Bargello, em Florença, mas ao longo dos
séculos estivera guardado para ser restaurado e permaneceu esquecido.
Agora, só restava uma litografia do fresco danificado. Dante pousara para
Giotto antes das provações do degredo e da sua batalha com o destino o
terem devastado; no entanto,
ele ainda continuava a ser o pretendente silencioso de Beatrice, um jovem
de estatura média, com um rosto sombrio, melancólico e pensativo. Os seus
olhos são grandes, o nariz aquilino, o lábio inferior projetado para diante,
com uma delicadeza quase feminina a recortar-lhe as linhas do rosto.
Segundo a lenda, raramente o jovem Dante falava, a menos que fosse
interpelado. Um peculiar gosto pelo contemplativo impossibilitava o desvio
da sua atenção para qualquer coisa exterior aos pensamentos que o
ocupavam. Em certa ocasião, Dante encontrou um livro raro numa botica
de Siena e passou o resto do dia a lê-lo num banco exterior à loja, sem
sequer reparar que havia festejos de rua a realizar-se mesmo à sua frente,
ignorando tanto os músicos como as bailarinas.
Depois de se instalar no seu escritório com uma tigela de leite e aveia, um
alimento que gostava de repetir ao jantar, a maior parte das vezes,
Longfellow não conseguiu deixar de pensar no bilhete do agente Rey. Ele
imaginou um milhão de diferentes combinações numa dúzia de línguas
para a resolução dos enigmáticos rabiscos, antes de abandonar o hieróglifo
- como Lowell o definira - no mesmo sítio do fundo da gaveta, a'mesma
donde retirou as provas dos Cantos Dezasseis e Dezassete do Inferno,
cuidadosamente anotadas com as sugestões da última sessão do Clube de
Dante. Por agora, a sua secretária estava vazia de poemas originais. Fields
publicara uma nova «Edição Limitada» dos poemas mais famosos de
Longfellow, e convencera-o a completar Tales of a Wayside Inn, esperando
com isso estimular a criação de novos poemas. Contudo, pareceu a
Longfellow que nunca mais voltaria a escrever nada de original, não se
preocupando sequer em tentar fazê-lo. Em tempos, traduzir Dante fora um
interlúdio para a sua poesia, para os seus Minnehaha, os seus Priscilla, os
seus Evangelines. Esse exercício regular iniciara-o ele há vinte e cinco anos.
Agora, ao longo dos últimos quatro anos, Dante tornara-se a sua prece
matutina e a sua actividade profissional diária.
Enquanto Longfellow enchia a segunda e última chávena de café, pensou no
boato que constava que Francis Child pusera a correr entre amigos seus de
Inglaterra: «Longfellow e o seu conventículo estão tão infetados com o mal
toscano, que se atrevem a classificar Milton como um génio de segunda
categoria, em comparação com Dante.» Milton era o estandarte de ouro dos
poetas religiosos para os eruditos ingleses e norte-americanos. Mas Milton
escreveu sobre o Inferno e o Céu de cima e de baixo, respectivamente, e não
a partir de dentro - com maiores vantagens. Diplomata, para que ninguém
saísse magoado, Fields rira-se quando Arthur Hugh Clough repetira o
comentário de Child na Sala dos Autores na Comer, mas custara um pouco a
Longfellow ouvi-lo.
Longfellow molhou a sua pluma de ave. Dos três tinteiros delicadamente
decorados que possuía, aquele era o que mais apreciava, tendo em tempos
pertencido a Samuel Taylor Coleridge e depois a Lorde Tennyson, que lho
enviara, como presente, para lhe desejar sucesso na tradução de Dante. O
anacoreta Tennyson fazia parte de um contingente demasiado reduzido,
naquele país, que compreendia verdadeiramente Dante e o tinha em
elevada estima, e que sabia sobre a Comédia algo mais do que uns poucos
episódios do Inferno. Espanha demonstrara antecipadamente o seu apreço
por Dante, até este ser abafado pelos dogmas oficiais e maltratado pelo
reinado da Santa Inquisição. Voltaire iniciara a animosidade francesa para
com a «barbárie» de Dante, que ainda prosseguia. Até mesmo em Itália,
onde Dante era muito mais conhecido, o poeta fora utilizado em proveito
próprio por diversas facções em luta pelo controlo do país. Muitas vezes,
Longfellow pensava nas duas coisas que mais deviam ter ocupado o
espírito de Dante ao escrever a Divina Comédia, enquanto estava no exílio,
longe da sua amada Florença. A primeira era conseguir voltar para a sua
pátria, o que acabaria por nunca acontecer e a segunda era voltar a ver a
sua Beatrice, desejo esse que o poeta também nunca conseguiu realizar.
Dante vagueou sem morada fixa, enquanto compunha o seu poema tendo
quase que pedir emprestada a tinta com que escrevia. Ao aproximar-se das
portas de uma cidade estranha, certamente que não conseguia evitar
lembrar-se que nunca mais poderia voltar a transpor as portas de Florença.
Quando ele via as torres dos castelos feudais a encimarem as colinas
distantes, sentia como os fortes eram arrogantes e os fracos abusados.
Todas as pontes e rios lhe recordavam o Arno, e todas as vozes que ouvia
lhe diziam, pelas suas estranhas pronúncias, que ele era um exilado. O
poema de Dante foi, pelo menos, a sua busca pela pátria. Longfellow era
metódico na gestão do seu tempo, e reservava as primeiras horas do dia
para escrever e, ao fim da manhã, dedicava-se aos assuntos pessoais,
recusando-se a receber qualquer visita antes do meio -dia, à excepção,
claro, dos seus filhos.
O poeta examinou cuidadosamente as pilhas de cartas que tinha para
responder, aproximando de si a caixa dos autógrafos, assinados em
pequenos quadrados de papel. Desde a publicação de Evangeline, uns anos
antes e da consequente generalização da sua popularidade, que Longfellow
recebia regularmente correio de estranhos, na sua maioria a pedir-lh um
autógrafo. Uma mulher jovem da Virgínia incluía o seu própri retrato, como
uma curte de visite, em cujo verso se lia: «Que defeito pod ser aqui
encontrado?», e a sua morada escrita por baixo. Longfellow ergueu uma
sobrancelha e enviou-lhe um autógrafo-padrão sem qualquer
comentário. «O defeito de uma juventude demasiado sublime», pensou ele
responder. Depois de fechar cerca de duas dúzias de envelopes, Longfellow
escreveu uma recusa amável a outra senhora. Não gostava de ser descortês,
mas aquela peticionária, em particular, solicitava-lhe cinquenta autógrafos,
explicando que queria usá-los como marcadores de lugares para os
convidados que ia receber num jantar. Por outro lado, ficou deliciado com o
relato que uma mulher lhe fazia da filha, que correu para a saleta depois de
encontrar uma melga na sua almofada. Ao perguntarem-lhe o que se
passava, a menina anunciou: «Mr. Longfellow está no meu quarto!»
Longfellow ficou satisfeito por encontrar na pilha do correio acabado de
chegar um bilhete de Mary Frere, uma jovem senhora de Auburn, Nova
Iorque, que Longfellow conhecera recentemente quando passara o Verão
em Nahant, tendo dado muitos passeios juntos à noite, depois de as
meninas adormecerem, ao longo da costa rochosa, conversando sobre
música e a nova poesia. Longfellow escreveu-lhe uma longa carta,
contando-lhe que as suas três filhas lhe perguntavam muitas vezes por ela,
e também lhe pediam para ele descobrir se Miss Frere ia passar o Verão
seguinte no mesmo sítio.
Ele foi afastado das suas cartas pela permanente tentação da janela que
estava em frente à sua secretária. O poeta esperava sempre uma renovação
do poder criativo com o despontar do Outono. O seu fogo ameno era
avivado pelas folhas outonais, que mimavam uma chama. Reparou que o
dia quente e luminoso chegava ao fim mais depressa do que parecia do
interior das paredes castanhas do seu escritório. A janela dava para as
amplas campinas, alguns acres das quais Longfellow adquirira
recentemente, estendendo-se livremente até às águas cintilantes do rio
Charles. Ele divertia-se a pensar na crença popular de que fizera aquela
compra com vista à subida do valor da propriedade, enquanto, na verdade,
a única coisa que ele queria preservar era a vista.
Nas árvores já não havia apenas folhas, mas frutos maduros, nos arbustos
já não havia flores, mas cachos de framboesas. E o vento trazia uma força
viril na voz... o tom não de um amante, mas de um marido. O dia de
Longfellow decorrera ao seu ritmo ideal. Terminada a ceia, dispensou os
empregados e decidiu embrenhar-se na leitura do seu jornal. Contudo,
depois de acender o candeeiro do escritório, deteve nele a sua atenção
apenas por alguns minutos. A última edição do Transcript trazia o
surpreendente anúncio de Ednah Healey. O artigo continha pormenores
sobre o homicídio de Artemus Healey, que até então tinham Sido ocultados
pela viúva «seguindo o conselho do departamento do Chefe da Polícia e de
outras pessoas ligadas a cargos oficiais».
Longfellow não conseguiu ler mais, apesar de certos pormenores do artigo,
dos quais viria a aperceber-se nas horas seguintes recheadas de
acontecimentos, se desvanecerem da sua mente errante. Não era tanto a
pena pelo juiz do Supremo Tribunal o mais intolerável para Longfellow,
naquela história, mas pela viúva.
Julho de 1861. Os Longfellow deviam estar em Nahant. Uma brisa marítima
fresca afagava Nahant, mas por razões pelas quais ninguém se recorda, os
Longfellow ainda não tinham abandonado o sol e o calor escaldantes de
Cambridge.
Um grito lancinante desvaneceu-se no escritório, vindo da biblioteca
contígua. Duas rapariguinhas gritavam horrorizadas. Fanny Longfellow
estava sentada com a pequena Edith, que tinha então oito anos, e Alice, de
onze, a lacrar envelopes com caracóis seus, acabados de cortar, para
guardá-los como recordação. A pequena Annie Allegra dormia
profundamente no andar de cima. Fanny abrira uma janela na vã esperança
de entrar uma brisa. A melhor conjetura que se conseguiu fazer nos dias
que se seguiram - por ninguém ter visto exatamente o que aconteceu; de
fato, ninguém podia ver algo tão breve e arbitrário - foi que um pingo de
lacre quente tivesse sido lançado pelo vento para o seu leve vestido de
Verão. Num instante, ela ardia.
Longfellow encontrava-se de pé, junto à sua secretária, no escritório, a
atirar um pouco de areia preta sobre um poema acabado de escrever para
lhe secar a tinta. Fanny correu aos gritos da sala contígua. O seu vestido
estava agora todo em chamas, cingindo-lhe o corpo como um vestido de
seda oriental feito por medida. Longfellow embrulhou-a numa manta e
deitou-a no chão.
Uma vez o fogo extinto, ele transportou o corpo a tremer para o andar de
cima até ao quarto. Nessa noite, mais tarde, os médicos adormeceram-na
com éter. De manhã, garantindo a Longfellow num sussurro decidido que
sentia muito poucas dores, ela tomou um pouco de café e, em seguida,
entrou em coma. O serviço fúnebre, celebrado na biblioteca de Craigie
House, coincidiu com o seu décimo oitavo aniversário de casamento. A sua
cabeça fora a única parte do corpo a ser poupada pelas chamas, e na sua
magnífica cabeleira fora colocada uma grinalda de flores de laranjeira.
Nesse dia, por causa das queimaduras que ele próprio também sofrera, o
poeta ficou confinado à cama, mas ouvia o choro irreprimido dos amigos,
homens e mulheres, na saleta do andar de baixo, que choravam por ele, ele
sabia-o, e também por Fanny. No seu estado de espírito abatido, mas alerta,
apercebeu-se de que conseguia distinguir cada uma das pessoas pelo choro.
As queimaduras faciais levá-lo-iam a deixar crescer uma barba farta,
não só para esconder as cicatrizes, mas também porque nunca mais podia
barbear-se. A descoloração das palmas das suas mãos flácidas, agora
alaranjadas, perduraria dolorosamente, lembrando-lhe o seu desaire, antes
de voltarem a ficar brancas.
Durante a convalescença no seu quarto, Longfellow levantava as mãos
ligadas para o ar, e durante quase uma semana, as crianças ouviram
palavras delirantes, que penetravam no vestíbulo, sempre que passavam
por ele. Felizmente, a pequena Annie era demasiado pequena para
perceber. - Porque não pude eu salvá-la? Porque não pude eu salvá-la?
Depois da morte de Fanny se ter tornado para ele definitiva, depois de
conseguir voltar a olhar para as suas meninas sem sucumbir
emocionalmente, Longfellow abriu a gaveta do papel de carta, fechada à
chave, onde em tempos colocava fragmentos das traduções de Dante. A
maioria do que fizera como meros exercícios, numa época mais risonha,
não servia de nada. Era pasto para as chamas. Aquilo não era a poesia de
Dante Alighieri, mas a poesia de Henry Longfellow - a linguagem, o estilo, o
ritmo -, a poesia de alguém que estava satisfeito com a sua própria vida. Ao
recomeçar o trabalho, iniciando-o com o Paradiso, desta vez, ele não
perseguia um estilo adequado para expressar as palavras de Dante.
Longfellow afastava-se da sua secretária e vigiava as suas três jovens filhas,
a preceptora das crianças, os seus conformados filhos - agora uns homens
inquietos - o serviço que contratara e Dante. Longfellow percebeu que mal
conseguia escrever uma palavra da sua própria poesia, mas não conseguia
parar de trabalhar sobre Dante. Ele sentia na sua mão a pluma como um
martelo de forja. Difícil de manejar com agilidade, mas com uma força
explosiva.
Depressa Longfellow se deparou com reforços à volta da sua mesa.
Primeiro, Lowell, depois Holmes, Fields e Greene. Longfellow dizia muitas
vezes que eles tinham constituído o Clube de Dante para se entreterem
durante os Invernos rigorosos da Nova Inglaterra. Esta era a maneira
modesta como expressava a importância que para ele tinha aquele
trabalho. A atenção dada às imperfeições e deficiências, por vezes, não era
para Longfellow o principal motivo de acordo, mas quando as críticas eram
severas, a ceia seguinte atuava como desagravo.
Ao retomar a revisão daqueles últimos cantos do Inferno, Longfellow ouviu
um baque oco, vindo do exterior de Craigie House. Trap soltou um latido
agudo.
- Trap? O que foi, meu velho?
Porém, ao não descobrir o motivo da agitação, Trap bocejou e voltou a
enroscar-se no forro de palha quente do seu cesto bege. Longfellow
espreitou para fora da sala de jantar às escuras, mas não viu nada. Depois,
dois olhos surgiram de repente da escuridão, seguidos daquilo que parecia
ser um clarão de luz ofuscante. Longfellow teve um sobressalto, não tanto à
vista de um rosto que aparecia de repente, mas à vista daquele mesmo
rosto, se é que se tratava disso, e que subitamente desapareceu depois de
os seus olhos fitarem os dele, com o vidro a embaciar-se sob o arquejo de
Longfellow. Ele recuou cambaleando, bateu num armário e atirou
precipitadamente para o chão uma colecção completa de pratos da família
Appleton (uma prenda de casamento, como fora a própria Craigie House,
do pai de Fanny). O cumulativo estrépito que se seguiu ressoou
tumultuosamente, levando Longfellow a soltar um grito irracional de
angústia.
Trap precipitou-se para diante e ladrou com todas as suas escassas forças.
Longfellow fugiu da sala de jantar para a saleta, e depois para junto da
indolente lareira da biblioteca, onde examinou as janelas à procura de mais
sinais daqueles olhos. Esperou que James Lowell ou Wendell Holmes
aparecessem à porta a pedir-lhe desculpa pelo susto involuntário e pela
hora tardia. Contudo, enquanto a mão direita de Longfellow lhe tremia, a
única coisa que conseguiu discernir da sua janela foi a escuridão.
Enquanto o grito de Longfellow soava ao longo da Brattle Street, os ouvidos
de James Russel Lowell estavam quase submersos na banheira. Ele
escutava o silêncio profundo da água, deixando as suas pálpebras fechar-se
e questionando-se se a vida se teria extinto. A pequena janela elevada
estava aberta, e a noite fria. Se Fanny entrasse, de certeza que o mandava
imediatamente para a cama quente.
Lowell conhecera a fama quando a maior parte dos poetas conceituados
eram já significativamente maiores do que ele, incluindo Longfellow e
Holmes, tendo ambos cerca de dez anos mais. Ele mostrara-se tão satisfeito
com o título de Jovem Poeta, que, aos quarenta e oito anos, parecia ter feito
alguma coisa errada para os perder.
Inalou com indiferença uma baforada do seu quarto charuto do dia,
deixando descuidadamente as cinzas sujarem-lhe a água. Ele lembrava-se
de uma época, apenas há alguns anos, em que aquela banheira parecia
demasiado espaçosa para o seu corpo. Questionava-se onde estariam as
lâminas de reserva da navalha da barba, agora desaparecidas, que
escondera uns anos antes na prateleira superior. Teriam Fanny ou Mab,
mais perspicazes do que ele teria imaginado, desconfiado dos pensamentos
obscuros que com frequência lhe zumbiam na cabeça quando tomava
banho? Na sua juventude, antes de conhecer a primeira mulher,
andava com estricnina no bolso do colete. Dizia que herdara as gotas de
sangue negro da sua pobre mãe. Pela mesma altura, Lowell encostara o
cano de uma pistola à testa, mas sentira demasiado receio para pressionar
o gatilho, uma circunstância da qual ainda se envergonhava
profundamente. Só se vangloriava de ter sido responsável por um ato tão
definitivo.
Quando Maria White Lowell morreu o seu marido daqueles últimos nove
anos, pela primeira vez, sentiu-se velho, sentiu como se de repente tivesse
um passado; algo alheio à sua vida atual, e do qual estivesse agora exilado.
Lowell consultou o doutor Holmes para que lhe fizesse um diagnóstico
profissional, sobre a obscuridade das suas emoções. Holmes recomendou-
lhe que, à noite, se retirasse pontualmente às 10.30 horas, e, pela manhã,
bebesse água fria em vez de café. «Ainda bem», pensava agora Lowell, «que
Wendell trocara o estetoscópio pelo facistol do professor; ele não tinha
paciência para assistir ao sofrimento até ao fim.»
Depois da morte de Maria, Fanny Dunlap fora preceptora da pequena
Mabel, e talvez alguém exterior à sua vida percebesse que era inevitável ela
assumir o papel de substituta de Maria aos olhos de Lowell. A transição
para uma nova esposa, mais recatada, não foi tão difícil como Lowell
receara, e, por causa disto, muitos amigos o censuraram, mas ele não
reagiria mostrando a sua amargura. Lowell detestava profundamente o
sentimentalismo. Além disso, a verdade é que, na maioria das vezes, Maria
já não lhe parecia real. Ela tornara-se uma visão, uma ideia, um brilho
ténue no céu, como as estrelas que começam a surgir com o crepúsculo
matutino. «Minha Beatrice», escrevera Lowell no seu diário. Mas até essa
doutrina exigia toda a energia da sua alma para que acreditasse nela, e não
muito depois disso apenas um muito vago espectro de Maria ocupava os
seus pensamentos.
Além de Mabel, Lowell tivera três filhos com Maria, tendo o mais saudável
vivido apenas dois anos. A morte daquela última criança, Walter, antecedeu
num ano a de Maria. Fanny tivera um aborto pouco depois de eles se
casarem, deixando-a incapacitada para a maternidade. Assim, James
Russell Lowell tinha uma única filha viva, criada com todos os desvelos por
uma segunda esposa estéril.
Quando ela era jovem, Lowell pensou que bastava esperar que Mabel se
tornasse uma menina esplêndida, forte, comum, que fizesse bolinhos de
lama e trepasse às árvores. Ele ensinou-a a nadar, a patinar e a caminhar
trinta e dois quilómetros por dia, como ele também fazia.
Contudo, desde tempos imemoriais que os Lowell tinham tido filhos varões.
O próprio Jamey Lowell tivera três sobrinhos, que haviam servido e
morrido no exército da União. Tal era o seu destino.
O avô de Lowell fora o autor da primitiva lei antiesclavagista de
Massachusetts.(1) No entanto, J. R. Lowell não tivera filhos varões, não
tivera nenhum James Lowell Júnior, que contribuísse para a maior causa da
sua época. Walt fora um rapazinho tão forte durante alguns meses; e,
seguramente, teria sido tão alto e corajoso como o capitão Oliver Wendell
Holmes Júnior.
Lowell deixou as mãos puxarem distraidamente o seu bigode semelhante a
presas de morsa, com as pontas viradas para baixo, molhadas e
encaracoladas, como as de um sultão. Ele pensou na The North American
Review e no tempo que ela lhe tomava. Trabalhar originais e apresentações
estava para além dos limites dos seus talentos, e deixara formalmente essas
tarefas para o seu co-editor, Charles Eliot Norton, mais meticuloso, antes de
este partir para uma viagem à Europa, com a senhora Norton, para ela
recuperar a sua saúde. Questões de estilo, gramática e pontuação nos
artigos de outras pessoas, e a pressão dos pedidos pessoais de amigos
qualificados e não qualificados a desejarem igualmente ser publicados,
tudo afastava Lowell da sua escrita. E também a rotina de ensinar,
contribuía para malograr os seus impulsos poéticos. Mais do que nunca, ele
sentia que a Corporação de Harvard estava sempre a examinar o que ele
andava a fazer, atormentando, esquadrinhando, espicaçando, escavando,
dragando e arranhando (e, temia ele, também praguejando) o seu cérebro,
à semelhança do que fizera com tantos imigrantes californianos. A única
coisa que precisava para recuperar a sua imaginação era deitar-se debaixo
de uma árvore durante um ano, sem nenhuma outra tarefa para fazer que
não fosse contemplar as manchas de sol na relva. Ele invejara Hawthorne
na última visita que fizera ao amigo, em Concord, porque ao torreão em
cima do telhado, que ele mandara construir, só se tinha acesso por um
alçapão secreto, sobre o qual o romancista colocava uma pesada cadeira.
Lowell não ouviu os passos leves a subirem as escadas nem se apercebeu
da porta da casa de banho a abrir-se completamente. Fanny fechou-a atrás
de si.
Lowell endireitou-se, com um sentido de culpabilidade.
- Está aqui uma aragem gelada, querida.
Fanny tinha um brilho inquieto nos seus olhos grandes, quase orientais.
- Jamey, está aqui o filho do moço da estrebaria. Perguntei-lhe o que queria,
mas ele diz que quer falar contigo. Mandei-o entrar para a sala de música. O
pobrezinho estava sem fôlego.
Lowell envolveu-se no roupão e desceu as escadas a dois e dois. O jovem
desajeitado, com uns enormes dentes cavalares protuberantes a sair-lhe
debaixo do lábio superior,
permanecia junto ao piano, de braços cruzados, como se nervosamente se
preparasse para um concerto. - Senhor, peço desculpa pelo incómodo... Eu
vinha pela Brattle e
pareceu-me ouvir um estrondo enorme vir da velha Craigie House...
Pensei bater à porta do professor Longfellow para ver se estava tudo
bem - toda a gente diz qu'ele é muito boa pessoa... mas eu não o conheço
pessoalmente, por isso...
O coração de Lowell acelerou vertiginosamente de pânico. Agarrou o rapaz
pelos ombros.
- Que som ouviste tu, meu rapaz?
- Um grande estrondo. E logo uma espécie de embate. - O jovem tentou em
vão reproduzir o barulho com um gesto. - O cãozinho... Hum, Trap, não é
assim que se chama? Ladrou o suficiente para despertar o Plutão. E, de
seguida, um grito alto, creio, Sir. Nunca antes ouvira assim um brado, Sir.
Lowell pediu ao rapaz para o aguardar e apressou-se a ir ao seu armário da
roupa, a agarrar nuns sapatos de atacadores e numas calças de xadrez, em
relação às quais e em circunstâncias normais, Fanny teria colocado
veementes objecções estéticas.
- Jamey, não vais sair a esta hora - insistiu Fanny Lowell. - Ultimamente,
tem havido uma onda de assaltos!
- Trata-se do Longfellow - respondeu-lhe ele. - O rapaz acha que pode ter
acontecido alguma coisa.
Ela ficou calada.
Lowell prometeu a Fanny levar consigo a sua espingarda de caça, e, com ela
lançada sobre o ombro, Lowell e o filho do moço da estrebaria desceram
até à Brattle Street.
Longfellow ainda tremia bastante quando abriu a porta, e ainda estremeceu
mais ao ver a arma de Lowell. Pediu desculpa pela comoção e descreveu o
incidente sem floreados, insistindo que a sua imaginação só
momentaneamente ficara perturbada.
- Karl - disse Lowell, e agarrou no filho do moço da estrebaria novamente
pelos ombros. - Corre ao Comissariado da Polícia a chamar um agente.
- Oh, não é necessário - disse Longfellow.
- Tem havido por aí uma onda de assaltos, Longfellow. A polícia vai correr o
bairro todo e certificar-se de que é seguro andar por aí. Ora, não seja
obstinado.
Lowell esperou que Longfellow continuasse a contestar, mas não o fez.
Lowell anuiu para Karl, que correu para o Comissariado da Polícia
de Cambridge com o entusiasmo infantil pelas emergências.
No escritório de Craigie House, Lowell afundou-se numa cadeira ao lado de
Longfellow e compôs o roupão por cima das calças. Longfellow pediu
desculpa a Lowell por tê-lo tirado de casa por uma questão tão
insignificante, e insistiu com ele para regressar a Elmwood. Mas também
insistiu em preparar um pouco de chá.
James Russel Lowell teve a sensação de que o medo de Longfellow nada
tinha de insignificante.
- A Fanny deve sentir-se reconfortada - disse ele com uma gargalhada. - Ela
apelida de «morte no banho» o meu hábito de abrir a janela da casa de
banho, enquanto estou letárgico na banheira.
Até naquele momento, Lowell se sentiu desconfortável ao pronunciar o
nome de Fanny diante de Longfellow, e, inconscientemente, tentou alterar a
inflexão da sua voz. O nome furtava a Longfellow qualquer coisa; as suas
feridas ainda estavam por sarar. Ele nunca falava na sua própria Fanny.
Não escrevia sobre ela, nem sequer um soneto, nem um poema elegíaco à
sua memória. O seu diário não continha uma única referência à morte de
Fanny Longfellow; na primeira entrada, após o seu falecimento, Longfellow
copiara alguns versos do poema de Tennyson: «Dorme docemente, em paz,
terno coração.» Lowell acreditava ter compreendido bastante bem a razão
pela qual Longfellow escrevera tão pouca poesia original nos últimos anos,
refugiando-se em Dante. Se fossem as suas próprias palavras o que
Longfellow escrevesse, a tentação de incluir o nome dela seria demasiado
forte, e então ela passaria a ser apenas uma palavra.
- Talvez fosse apenas um turista para ver a casa de Washington -gracejou
Longfellow, rindo amavelmente. - Cheguei a contar-lhe que na semana
passada se apresentou aqui um para ver «o quartel do general Washington,
por favor»? Ao sair, a planear a visita seguinte, suponho, perguntou-me se
Shakespeare não vivera no bairro.
Ambos riram.
- Santo Deus! O que foi que lhe respondeu?
- Disse-lhe que, se Shakespeare se mudara para cá, eu nunca o tinha
encontrado.
Lowell recostou-se na poltrona.
- Uma resposta tão boa como qualquer outra. Creio que a Lua nunca se põe
em Cambridge, o que explica a quantidade de lunáticos que há por aí. Está a
trabalhar no Dante a esta hora? - As provas que Longfellow retirara para
fora da gaveta ainda estavam em cima da mesa verde. -Meu bom amigo, a
sua pluma está sempre molhada. Está a consumir-se aos poucos.
- Eu nunca me canso de mais. Claro que há alturas em que me sinto a
arrastar-me, como rodas a afundar-se na areia seca. Mas, por vezeS sinto-
me impelido a continuar este trabalho,
Lowell, e não consigo descansar.
Lowell analisou as provas.
- Canto Dezasseis - disse Longfellow. - Tem de ir para a gráfica, mas estou
relutante em me desfazer dele. Quando Dante encontra os três florentinos,
diz, «Si fossi stato dal foco coperto...»
- «Se eu fosse pelo fogo então coberto» - Lowell leu a tradução do amigo,
enquanto Longfellow recitava em italiano. - «Ao meio deles logo tinha ido,
que meu doutor a tal me dera acerto.» Sim, nunca nos devemos esquecer
que Dante não é um mero observador do Inferno; ao longo de todo o
percurso, também ele está física e metafisicamente em perigo.
- Não consigo encontrar a versão correta em inglês. Julgo que alguns dirão
que, na tradução, a voz do autor estrangeiro deve ser modificada para
ganhar naturalidade no verso. Pelo contrário, enquanto tradutor, como
uma testemunha que depõe em tribunal, levanto a minha mão direita e juro
dizer a verdade, toda a verdade, nada mais do que a verdade.
Trap começou a ladrar para Longfellow e a raspar-lhe as pernas das calças
com as patas.
Longfellow sorriu.
- O Trap tem ido tantas vezes à gráfica, que acha que andou este tempo
todo a traduzir Dante.
Mas Trap não ladrava à filosofia da tradução de Longfellow. O terrier
correu para o vestíbulo. Uma pancada atroadora soou na porta de
Longfellow.
- Ah, a polícia - disse Lowell, impressionado com a rapidez da sua chegada e
torcendo o seu bigode ensopado.
Longfellow abriu a porta da entrada.
- Bem, mas que surpresa - disse no tom de voz mais hospitaleiro que
conseguiu usar naquele momento.
- Então porquê? - De pé na ampla entrada, J. T. Fields juntou as
sobrancelhas num ângulo oblíquo e tirou o chapéu da cabeça. - Recebi um
recado a meio da nossa partida de whist... precisamente num momento em
que já estava a ganhar a Bartlett! - Fez um sorriso breve, enquanto
pendurava o chapéu. - Dizia para vir cá imediatamente. Está tudo bem, meu
caro Longfellow?
- Eu não mandei nenhum recado, Fields - desculpou-se Longfellow. -
Holmes não estava consigo?
- Não, e esperámos por ele meia hora antes de começar.
Um restolho foi-se aproximando deles. Num instante, a pequena figura de
Oliver Wendell Holmes, com as suas botas altas a pisarem ruidosamente o
tapete de folhas secas, mudou de direcção para o caminho de Longfellow
numa marcha acelerada.
Fields afastou-se para o lado, e Holmes acelerou ainda mais ao passar por
ele, correndo para o interior do vestíbulo.
- Holmes? - surpreendeu-se Longfellow.
O frenético doutor reparou horrorizado que Longfellow tinha nos braços
um maço de cantos de Dante.
- Santo Deus, Longfellow - exclamou o doutor Holmes. - Arrume
isso!

VI




EPOIS DE SE ASSEGURAR QUE A PORTA ESTAVA BEM FECHADA,

D Holmes explicou num discurso ininterrupto como, ao regressar a


casa, vindo do mercado, a ideia lhe ocorrera de súbito; e como se
apressara a voltar à Faculdade de Medicina, onde soubera -
felizmente! - que o polícia saíra para a
esquadra de Cambridge. Holmes enviara um recado para casa do seu
irmão, onde decorria a partida de whist, a pedir para Fields ir a Craigie
House, imediatamente.
O médico agarrou na mão de Lowell e sacudiu-a precipitadamente,
mais reconhecido do que teria admitido noutras circunstâncias.
- Estive quase a mandar-lhe um para Elmwood, meu caro Lowell -disse
Holmes.
- Holmes, você disse alguma coisa à polícia? - perguntou Longfellow.
- Por favor... Longfellow, vamos todos para o escritório. Prometam-me
todos que guardam segredo de tudo o que vos vou contar na mais estrita
confidencialidade.
Ninguém objetou. Era invulgar ver o pequeno doutor tão sério. O seu papel
de aristocrata motejador há muito que se cristalizara - para grande regozijo
de Boston e desgosto de Amélia Holmes.
- Hoje, descobriu-se um homicídio - anunciou Holmes num murmúrio débil,
como que para provar se a casa tinha ouvidos furtivos ou para proteger a
sua terrível história das prateleiras apinhadas com vários volumes.
Afastou-se da lareira, genuinamente com receio que a conversa se
escapasse pela chaminé. - Eu estava na Faculdade de Medicina - começou
finalmente por dizer -, a fazer um trabalho, quando chegou a polícia para
requerer uma das nossas salas para uma investigação criminal. O corpo que
traziam estava cheio de terra, compreendem?
Holmes fez uma pausa, não como um efeito de retórica, mas para recuperar
o fôlego. Com a comoção, negligenciara os sinais sibilantes da sua asma.
- Holmes, o que tem isso a ver connosco? Porque me fez você abandonar a
toda a pressa o jogo em casa de John? - perguntou-lhe Fields.
- Esperem - disse Holmes com um aceno brusco da mão. Afastou para o
lado o pão que Amélia lhe pedira para comprar e puxou do seu lenço. - O
corpo, o morto, os seus pés... Deus nos valha!
Os olhos de Longfellow iluminaram-se com um azul brilhante. Ele não
dissera muito, mas prestara a maior atenção ao comportamento de Holmes.
- Uma bebida, Holmes? - propôs-lhe, amavelmente.
- Sim, obrigado - aceitou Holmes, limpando a testa suada. - Peço-lhe
desculpa. Vim para cá como uma seta, estava demasiado inquieto para
apanhar uma tipóia, estava demasiado impaciente e com receio de
encontrar alguém nas carruagens!
Longfellow encaminhou-se tranquilamente para a cozinha. Holmes
aguardou pela bebida, e os outros dois homens esperaram por Holmes.
Lowell abanou a cabeça com um gesto de séria comiseração pelo
transtorno do amigo. O anfitrião voltou com um copo de conhaque
comprimido pelo gelo, como Holmes preferia. Holmes agarrou nele, e
refrescou a garganta.
- Pensei que uma mulher tentava um homem pela comida, meu caro
Longfellow - disse Holmes -, nunca constou que Eva tivesse de recorrer à
bebida para o conseguir, porque ele caiu na tentação por si próprio.
- Então vamos lá, Wendell - instigou-o Lowell.
- Muito bem. Eu vi-o, compreendem? Eu vi o cadáver de perto, tão próximo
como estou agora de Jamey. - O doutor Holmes aproximou-se da cadeira de
Lowell. - Aquele corpo foi enterrado vivo, de cabeça para baixo e com os
pés para o ar. E as plantas dos dois pés, meus senhores, estavam
horripilantemente queimadas. Elas estavam esturricadas, coisa que
jamais... Bem, lembrar-me-ei até a natureza me aconchegar bem sob as
anuais violetas!
- Meu caro Holmes - disse Longfellow, mas Holmes não pararia ainda de
falar, nem sequer para ceder a palavra a Longfellow.
- As roupas tinham-lhe sido despidas. Não sei se a polícia o despiu... Não,
creio que foi encontrado assim por algumas coisas que os ouvi dizer. Eu vi o
seu rosto, eu vi-o. - Holmes tentou beber mais um pouco da sua bebida, mas
só encontrou um resto. Então, cravou os dentes num cubo de gelo.
- Ele era pastor - disse Longfellow.
Holmes virou-se, com um olhar fixo e incrédulo, e partiu o gelo com os
molares.
- Sim, exatamente.
- Longfellow, como é que você soube disso? - Fields virou-se, de repente,
muito confuso perante uma história que ainda sentia que nada tinha a ver
consigo. - Isto ainda não podia ter saído em nenhum jornal, se apenas
Wendell o tivesse testemunhado... - E então Fields percebeu como
Longfellow soubera. E Lowell também.
Lowell esbracejou para Holmes como se lhe fosse bater.
- Como é que você podia saber que o corpo fora deixado de cabeça para
baixo, Holmes? Foi a polícia que lhe disse?
- Bem, não propriamente.
- Você tem andado à procura de um motivo para pararmos a tradução e
para que você não tenha de se preocupar por Harvard estar a levantar
problemas. Tudo isso não passam de conjeturas.
- Ninguém precisa de me dizer o que eu vi - ripostou o doutor Holmes. - A
medicina é uma matéria que nenhum de vocês estudou. Eu dediquei os
melhores anos da minha vida a estudar a minha profissão, tanto na Europa
como na América do Norte. Agora, se você ou Longfellow começarem a
falar de Cervantes, devo reconhecer a minha ignorância... Bom, não, estou
bastante bem informado em relação a Cervantes, mas devo ouvir-vos,
porque vocês dedicaram muito do vosso tempo ao seu estudo!
Fields viu como Holmes estava genuinamente nervoso.
- Nós compreendemos, Wendell. Por favor, continue.
Se Holmes não tivesse parado para recuperar o fôlego, tinha desmaiado.
- Esse cadáver foi colocado de cabeça para baixo, Lowell. Eu vi vestígios das
lágrimas e das gotas de suor que lhe rolaram pela testa acima... ouçam-me
bem, pela testa acima. O sangue estava concentrado nas faces. Foi ao ver-
lhe o horror estampado no rosto, que reconheci o reverendo Elisha Talbot.
O nome surpreendeu todos. O velho tirano de Cambridge virado de cabeça
para baixo, aprisionado, cego pela terra, incapaz de se mexer excepto,
talvez, de pontapear os seus pés em chamas no meio do desespero, como se
fosse um dos Simoníacos de Dante, os clérigos que aceitavam dinheiro
pelos usos indevidos dos seus títulos...
- Mas há mais, se é que já não basta - Holmes mastigava o gelo, agora com
uma enorme rapidez. - Durante a investigação policial, um polícia disse que
ele fora encontrado no cemitério da Segunda Igreja Unitarista... Ou seja, na
igreja de Talbot! O corpo estava cheio de terra, da cintura para cima, mas
não havia um grão sequer da cintura para baixo. Ele foi enterrado nu, de
cabeça para baixo e com os pés para o ar!
- Quando é que o encontraram? Quem é que lá estava? - perguntou Lowell.
- Por amor de Deus - gritou Holmes. - Como é que eu podia saber esses
pormenores?
Longfellow observou o ponteiro das horas do seu relógio, com o seu
vagaroso tiquetaque, que marcava onze horas.
- A viúva Healey anunciou uma recompensa no jornal da tarde. O juiz
Healey não morreu de morte natural. Ela acredita que ele também foi
assassinado.
- Mas, no caso de Talbot, não se trata de um mero homicídio, Longfellow!
Devo recordar-vos o que é claro como a água? Trata-se de Dante! Alguém
usou Dante para matar Talbot! - exclamou Holmes com a frustração a
tingir-lhe as faces de vermelho.
- Você leu a última edição, meu caro Holmes? - perguntou Longfellow,
pacientemente.
- Claro! Bom, creio que sim. - De fato, ele olhara apenas de relance para o
jornal no átrio da entrada da Faculdade de Medicina quando se
encaminhava para o escritório para preparar uns desenhos de anatomia
para a aula de segunda-feira. - O que dizia?
Longfellow encontrou o jornal. Fields agarrou nele e leu-o em voz alta,
depois de abrir um par de óculos quadrados, que retirara do bolso do seu
colete. «Novas revelações sobre a misteriosa morte do juiz do Supremo
Tribunal, Artemus S. Healey.» Um erro de impressão típico. I O nome do
meio de Healey era Prescott.
- Fields, por favor avance para a segunda coluna - disse Longfellow. - Leia a
parte que fala no modo como o corpo foi encontrado... No prado, nas
traseiras da casa de Healey, a pouca distância do rio.
- Ensanguentado..., totalmente despojado das suas roupas..., encontrado
excessivamente enxameado de...
- Continue, Fields.
- De insetos?
Moscas, vespas, larvas de moscas-varejeiras... estes eram os insetos
especificamente catalogados pelo jornal. E próximo, no recinto de Wide
Oaks, fora encontrada uma bandeira, cuja proveniência os Healeys não
conseguiam explicar. Lowell pretendeu negar os pensamentos que
perpassavam pela sala com a leitura do jornal, mas, em vez de o fazer,
voltou a reclinar-se na poltrona, com o lábio inferior a tremer, como
acontecia sempre que não conseguia lembrar-se do que havia de dizer.
Trocaram olhares furtivos, mas inquisitivos, na esperança de um deles,
mais perspicaz do que os restantes, conseguir explicar tudo aquilo como
uma coincidência, com um argumento bem fundamentado ou com um dito
espirituoso mais inteligente,
que deitasse por terra a conclusão de que o reverendo Talbot fora
calcinado como os Simoníacos e o juiz do Supremo Tribunal lançado para o
meio dos Neutros. Todos os pormenores que se seguissem, confirmariam o
que eles não podiam negar.
- Tudo se ajusta - disse Holmes. - No caso do Healey, tudo se encaixa... o
pecado da neutralidade e o castigo. Durante demasiado tempo, ele recusou-
se a atuar com base no Decreto sobre os Escravos Fugitivos. Mas, e em
relação ao Talbot? Nunca me constou, nem num rumor, que ele abusasse do
poder que lhe outorgava o púlpito... Ajudai-nos, Febo! - Holmes deu um
salto quando reparou na espingarda encostada à parede. - Longfellow, por
que raio está isto aqui?
Lowell estremeceu ao lembrar-se do motivo pelo qual viera inicialmente a
Craigie House.
- Sabe, Wendell, o Longfellow pensou ter visto um ladrão escondido a
espreitar lá de fora. Mandámos o filho do moço da estrebaria chamar a
polícia.
- Um ladrão? - perguntou Holmes, incrédulo.
- Um fantasma - corrigiu Longfellow, abanando a cabeça. Fields levantou-se
com um salto desajeitado, batendo com os pés
no tapete.
- Bem, muito oportuno! - Depois, virando-se para Holmes, disse: - Meu caro
Wendell, por isto, você será recordado como um bom cidadão. Quando o
polícia chegar, explicamos que temos informações sobre estes crimes e
instruímo-lo para voltar com o chefe da polícia. - Fields apelou ao seu
melhor tom de autoridade, apesar de comunicar com Longfellow com um
olhar de soslaio para obter a sua aquiescência.
Longfellow não se mexeu. Os seus olhos azuis pétreos estavam fixos à sua
frente, nas lombadas ricamente adornadas dos seus livros. Não ficara claro
que ele tivesse sido parte da conversa. Aquele mesmo olhar raro e distante
de quando permanecia sentado em silêncio, passando a mão pelas
madeixas da sua barba, quando a sua invencível tranquilidade era abalada,
quando a sua tez virginal parecia obscurecer-se um pouco, deixava todos os
seus amigos em cuidados.
- Sim - disse Lowell, tentando projetar algo semelhante ao alívio geral nas
palavras de Fields. - Claro que informaremos a polícia das nossas suspeitas.
Sem dúvida nenhuma que esta será uma informação vital para a resolução
de tamanha trapalhada.
- Não! - sobressaltou-se Holmes. - Não, não podemos contar a ninguém.
Longfellow - disse o médico, em tom de desespero. - Temos de guardar isto
para nós! Todos os que estão nesta sala têm de manter este assunto em
segredo, conforme me prometeram, nem que o céu desabe!
- Ora, Wendell! - Lowell inclinou-se sobre o diminuto doutor. - Este não é o
momento de enfiarmos as mãos nos bolsos e fazermos de conta que nada
se passa! Foram mortas duas pessoas, dois homens da nossa classe social!
- Sim, e quem somos nós para nos imiscuirmos em tão horripilantes
questões? - pleiteou Holmes. - A polícia está a investigar, seguramente, e
descobrirá quem é o responsável sem a nossa intervenção!
- Quem somos nós para nos imiscuirmos! - repetiu Lowell em tom de
chacota. - Não há qualquer hipótese de a polícia vir a pensar nisto, Wendell!
Eles devem andar às voltas, até mesmo neste preciso instante em que
estamos aqui sentados!
- Você preferia que eles andassem atrás de nós, Lowell? O que sabemos nós
sobre assuntos como homicídios?
- Então porque veio você inquietar-nos por causa disto, Wendell?
- Porque devemos proteger-nos convenientemente! Eu fiz-vos um favor -
disse Holmes. - Isto pode colocar-nos em perigo!
- Jamey, Wendell, por favor... - Fields levantou-se, interpondo-se entre
ambos.
- Se vocês forem à polícia, podem ter a certeza que eu fico de fora -
acrescentou Holmes, elevando a voz aguda, enquanto se sentava. - E, se o
fizerem, oponho-me por princípio e deixo bem clara a minha recusa
categórica.
- Observem, meus senhores - disse Lowell com uma vergastada eloquente
da mão para Holmes -, o doutor Holmes adopta a sua posição habitual
quando o mundo precisa dele... Senta-se sobre as suas nádegas.
Holmes olhou em volta na esperança de alguém correr em sua defesa,
depois afundou-se ainda mais na cadeira, puxando resignadamente pela
corrente dourada, entrelaçada na sua chave Phi Beta Kappa, e olhou para o
seu relógio, confrontando as horas com as do relógio de mogno de
Longfellow, tendo quase a certeza de que a qualquer momento todos os
relógios de Cambridge parariam completamente.
Lowell mostrou-se muito convincente quando falou com uma segurança
afável, como fez quando se virou para Longfellow.
- Meu caro Longfellow, quando o senhor agente chegar, já devemos ter uma
comunicação preparada, dirigida ao chefe da polícia, a explicar aquilo que
julgamos ter descoberto aqui esta noite. Depois, podemos pôr isto para trás
das costas, tal como o nosso caro doutor Holmes deseja que façamos.
- Começo eu - decidiu Fields, abrindo a gaveta do papel de carta e envelopes
de Longfellow. Holmes e Lowell recomeçaram a sua discussão.
Longfellow soltou um breve suspiro.
Fields deteve a mão na gaveta. Holmes e Lowell calaram-se.
- Esperem, não dêmos um passo às cegas. Primeiro, escutem-me -disse
Longfellow. - Tanto em Boston como em Cambridge, quem é que sabe
destes crimes?
- Ora, essa é a questão - respondeu Lowell, que estava suficientemente
assustado para ser incorreto, até para aquele homem, a seguir ao seu
falecido pai, que ele venerava tanto. - Toda a gente na cidade abençoada,
Longfellow! A dele vem na primeira página de todos os jornais - ele agarrou
na página, cujo título em letras garrafais falava da morte de Healey -, e a de
Talbot virá antes de o dia despontar. Um juiz e um pregador! Não vos
servirá de nada tentar manter o assunto em segredo para o público!
- Muito bem. E quem mais na cidade conhece Dante? Quem mais sabe como
le piante erano a tutti accese intrambe? Quantos dos que deambulam pelas
Washington e School Streets a espreitar para dentro das lojas ou a parar na
Jordan e na Marsch para verem a última moda em chapéus, pensam para si
próprios que rigavan lor di sangue il volto, che, mischiato di lagrime, e
imaginam o medo desses fastidiosi vermi, esses repugnantes vermes?
- Digam-me, quem na nossa cidade... não, quem na América de hoje,
conhece as palavras de Dante, de toda a sua obra, de todos os seus cantos,
de todos os seus tercetos? As suficientes para começarem a pensar como
podem transformar os pormenores dos castigos de Dante do Inferno em
modelos de homicídios?
O escritório de Longfellow, o mais apreciado da Nova Inglaterra pelos
amantes da conversa, mergulhou num misterioso silêncio. Ninguém na sala
pensava responder à pergunta, porque aquela mesma sala constituía a
resposta: Henry Wadsworth Longfellow, o professor James Russell Lowell,
o professor Doutor Oliver Wendell Holmes, James Thomas Fields e um
pequeno grupo de amigos e colegas.
- Santo Deus! - exclamou Fields. - Só há um punhado de gente capaz de ler
em italiano, já para não falar no italiano de Dante, e, mesmo desses, quem
podia compreender alguma coisa disso com o auxílio de uma pilha de
gramáticas e dicionários, quando a maioria nunca teve nas mãos um
exemplar das obras de Dante? - Fields devia sabê-lo. Fazia parte da
actividade do editor conhecer os hábitos de leitura de todos os literatos e
eruditos da Nova Inglaterra, bem como de todos os que não se incluíam
nessas categorias. - O mesmo é dizer - continuou ele -, que nunca verão um
até haver uma tradução completa de Dante, publicada em todos os cantos
da América do Norte...
- Como esta em que estamos a trabalhar? - Longfellow ergueu as provas do
Canto Dezasseis. - Se descrevermos à polícia a precisão com que estes
homicídios foram inspirados em Dante e perpetrados,
quem podia ela eleger como suspeitos com conhecimentos suficientes para
cometer estes crimes?
- Não só seremos os seus primeiros suspeitos - disse Longfellow. -Como
teremos de ser os seus principais suspeitos.
- Ora, meu caro Longfellow - disse Fields com uma gargalhada
desesperadamente séria. - Refreemos todo este entusiasmo, meus
senhores. Olhai à vossa volta: professores, cidadãos influentes da
comunidade, poetas, anfitriões e convidados frequentes de senadores e
dignitários, eruditos... quem pensaria, de fato, que nos envolveríamos num
homicídio? De pouco vale enfunarmos o nosso estatuto, recordando-nos
que somos homens de grande posição em Boston, homens de sociedade!
- Como o era o professor Webster. O patíbulo lembra-nos que nada impede
a lei de condenar um homem de Harvard - respondeu Longfellow.
O doutor Holmes ficou ainda mais lívido. Apesar de se sentir aliviado por
Longfellow tomar o seu partido, aquele último comentário trespassou-o.
- Eu ocupava o meu lugar na Faculdade de Medicina há poucos anos - disse
Holmes, olhando fixa e vitreamente em frente. - No início, todos os
professores e pessoal administrativo da faculdade eram suspeitos... Até um
poeta como eu. - Holmes tentou dar uma gargalhada, mas o riso só
exteriorizou a sua amargura. - Fui incluído na sua lista de possíveis
agressores. Eles vieram a minha casa interrogar-me. O Wendell Júnior e a
pequena Amélia ainda eram crianças, a Neddie, apenas um bebé. Foi o
maior susto que apanhei na vida.
- Meus caros amigos - disse Longfellow, calmamente. - Peço-vos que
concordem, se conseguirem, neste ponto. Mesmo que a polícia quisesse
confiar em nós, mesmo que ela confiasse, de fato, e acreditasse em nós,
estaríamos sob suspeita até o assassino ser apanhado. E depois, até com o
assassino detido, Dante ficaria manchado de sangue ainda antes de os
Norte-americanos conhecerem as suas palavras, e numa época em que o
nosso país não pode suportar mais mortes. O doutor Manning e a
Corporação já querem enterrar Dante num sarcófago de chumbo para
salvaguardar os seus currículos. Durante o próximo milénio, Dante sofreria
a mesma maldição na América do Norte que sofreu em Florença. Holmes
tem razão. Não contamos a ninguém.
Fields virou-se para Longfellow, atónito.
- Nós jurámos proteger Dante, sob este mesmo teto - disse Lowell
pausadamente ao ver a expressão tensa do editor.
- Certifiquemo-nos de que nos protegemos primeiro, a nós próprios e à
nossa cidade, ou não restará ninguém para defender Dante! - disse FieldS'
- Protegermo-nos a nós próprios e a Dante é a mesma coisa, meu caro
Fields - declarou Holmes com o seu sentido prático,
instigado pela vaga sensação de que tivera razão ao pensar que todos
aqueles problemas acabariam por surgir. - A mesma coisa. Se tudo isto
fosse conhecido, não seríamos só nós a ser censurados, mas também os
católicos, os imigrantes... Fields sabia que os seus poetas tinham razão. Se,
naquele instante, fossem à polícia, o estatuto deles cairia no esquecimento,
correndo mesmo um perigo real.
- Deus nos valha. Seria a nossa ruína - exalou ele. Fields não pensava em
termos legais. Em Boston, a reputação e os rumores podiam acabar com um
cavalheiro com muito maior eficácia do que um carrasco. Por muito
queridos que fossem os seus poetas, o público acolhia sempre uma doentia
ponta de inveja contra as suas celebridades. Novidades sobre a mais ténue
associação com tais homicídios escandalosos espalhar-se-iam mais
depressa do que o próprio telégrafo conseguiria difundi-las. Fields ficara
indignado por ver reputações imaculadas serem ferozmente arrastadas
pelas ruas com base em meros mexericos.
- Eles podem já estar a chegar lá - disse Longfellow. - Lembram-se disto? - E
retirou uma folha de papel da gaveta. - Damos uma vista de olhos agora?
Penso que falará por si.
Longfellow alisou o papel do agente Rey com a palma da mão. Os eruditos
inclinaram-se para observar a transcrição garatujada. O clarão da lâmpada
reluzia em listas carmesim sobre os seus rostos atónitos.
Rey escrevera: Deenan see amno atesennone turnay eeotur nodur
lasheeato nay. Estas palavras chegavam-lhes da sombra por baixo da barba
leonina de Longfellow.
- É o segundo verso de um terceto - sussurrou Lowell. - Sim! Como é que
isto nos pôde escapar?
Fields pegou no papel. O editor não estava disposto a admitir que ainda não
conseguia vê-lo; ele sentia a cabeça demasiado confusa por causa de tudo o
que acontecera para se desenvolver com o seu italiano. O papel foi agitado
na mão de Fields. Delicadamente, voltou a pô-lo sobre a mesa e afastou os
seus dedos.
- «Dinanzi a me non fuor cose create se non etterne, e io etterno duro,
hsciate ogne» - recitou Lowell a Fields. - De toda a inscrição que estava Por
cima da porta do Inferno, isto é apenas um fragmento! «Lasciate ogne
speranza, voi ch'intrate.»
Lowell fechou os olhos, enquanto traduzia:
Antes de mim não houve cousas mais, do que as eternas e eu eterna duro.
Deixai toda a esperança, vós que entrais.
Também o homem que saltara vira aquele sinal surgir à sua frente no
Comissariado Central da Polícia. Ele vira os Neutros: Ignavi. Eles zurziam
desesperadamente o ar e depois zurziam os seus próprios corpos. Vespas e
moscas rodearam as suas formas brancas e nuas. Pestilentas larvas de
moscas-varejeiras arrastaram-se para fora dos pútridos buracos das suas
dentaduras, amontoando-se em baixo, bebericando o seu sangue,
misturado com o sal das suas lágrimas. As almas seguiam um estandarte
branco, que as antecedia, como um símbolo dos seus trilhos anódinos. O
homem que saltou sentiu a sua própria pele mexer-se com moscas, agitar-
se para cima e para baixo em esferas de carne corroída, e ele tinha de
fugir... pelo menos, tinha que tentar.
Longfellow encontrou as provas da tradução corrigida do Canto Três e
colocou-as em cima da mesa para as comparar.
- Deus Santíssimo - arquejou Holmes, puxando pela manga de Longfellow. -
Mas aquele agente mulato assistiu à investigação judicial do reverendo
Talbot. E ele veio ter connosco com isto, a seguir à morte do juiz Healey! Já
deve saber alguma coisa!
Longfellow abanou a cabeça.
- Lembrem-se que Lowell é professor da cátedra Smith da faculdade. O
agente queria identificar uma língua desconhecida, para cuja decifração, na
altura, estávamos todos demasiado cegos. Alguns estudantes
encaminharam-no para Elmwood, na noite da nossa sessão do Clube de
Dante, e Mabel dirigiu-o para aqui. Não há motivo algum para acreditarmos
que ele sabe o que quer que seja sobre a natureza dantesca destes crimes
ou do nosso projeto de tradução.
- Como é que não o vimos logo? - perguntou Holmes. - Greene pensou que
pudesse ser italiano, e nós ignorámo-lo.
- Ainda bem - exclamou Fields -, caso contrário, a polícia ter-se-ia dirigido
imediatamente a nós!
Holmes prosseguiu com um pânico renovado:
- Mas quem teria recitado a inscrição da porta ao agente da polícia? Isto não
pode ser uma mera coincidência temporal. Tem de ter alguma coisa a ver
com estes homicídios!
- Suspeito que tenha razão - anuiu Longfellow, calmamente.
- Quem pode ter dito isto? - insistiu Holmes, revirando constantemente o
pedaço de papel que tinha entre os dedos. - Aquela inscrição-- prosseguiu
Holmes. - As portas do Inferno... vêm no Canto Três, o mesmo canto em que
Dante e Virgílio caminham por entre os Neutros! O modelo para o
homicídio do juiz Healey do Supremo Tribunal.
Ruídos de passos multiplicaram-se pelo caminho de acesso a Craigie House,
e Longfellow abriu a porta ao filho do moço da estrebaria, que se apressou
a entrar,
batendo os seus dentes salientes. Olhando para a porta da entrada,
Longfellow deparou-se com Nicholas Rey.
- Ele pediu-me para o acompanhar, senhor Longfellow, Sir - lamuriou-se
Karl, ao ver a surpresa de Longfellow, e depressa levantou os olhos para
Rey, com um esgar triste.
- Eu estava no Comissariado da Polícia de Cambridge - disse Rey -, ocupado
com outra questão, quando este rapaz chegou a dar conta da sua
preocupação. Outro agente está lá fora à procura de pistas.
Rey quase conseguiu ouvir o silêncio pesado que se instalou no escritório
sob o som da sua voz.
- Quer fazer o favor de entrar, agente Rey? - Longfellow não sabia o que
mais havia de dizer. Depois, explicou a origem do seu alarme. Nicholas Rey
voltara a estar por entre a profusão de imagens de George Washington no
vestíbulo principal. Com uma mão no bolso das calças, manuseava os
pedaços de papel, que tinham sido espalhados pela cripta subterrânea,
ainda molhados da argila húmida sepulcral. Alguns dos bocados de papel
tinham escritas uma ou duas letras, outros estavam tão sujos que não se
lhes reconhecia nada.
Rey entrou no escritório e perscrutou os três cavalheiros: Lowell, de
bigodes com as pontas viradas para baixo, tinha o seu sobretudo a
envolver-lhe o roupão e as calças de xadrez, e os outros dois tinham os
colarinhos desapertados e em desalinho. Uma espingarda de caça estava
encostada à parede e um pão aguardava ser comido em cima da mesa. Rey
pousou os olhos no homem agitado, de feições infantis, o único que não se
escudava por trás de uma barba.
- Esta tarde, o doutor Holmes auxiliou-nos numa autópsia na Faculdade de
Medicina - explicou Rey a Longfellow. - Na verdade, é este mesmo assunto
que me traz agora a Cambridge. Mais uma vez, obrigado, Doutor, pela ajuda
que nos deu neste caso.
O médico levantou-se de um salto e, dobrando-se pela cintura, fez uma
vénia pouco firme.
- Não tem de quê, senhor. E, sempre que precisem de mais algum auxílio,
façam o favor de me chamar imediatamente - deixou ele escapar com
humildade, depois entregou a Rey o seu cartão, esquecendo-se por
instantes que não fora de qualquer utilidade. Holmes estava demasiado
nervoso para falar sensatamente. - Talvez aquilo que soa um latim mútil,
prognosís, possa ajudar de alguma forma a apanhar o assassino que anda à
solta pela nossa cidade.
Rey fez uma pausa e anuiu apreciativamente.
O filho do moço da estrebaria tomou o braço de Longfellow e puxou-o para
o lado.
- Desculpe, senhor Longfellow - disse o rapaz. - Não acreditei que ele fosse
polícia. Não traz uniforme nem nada, só um casaco vulgar. Mas o outro
agente disse-me que os vereadores o fazem andar à paisana para que
ninguém se sinta ofendido por ser importunado por um polícia negro e não
lhe dêem uma tareia!
Longfellow dispensou Karl com a promessa de uns doces noutro dia.
No escritório, mudando o peso do corpo de um pé para outro como se
estivesse descalço em cima de carvão quente, Holmes obstruiu o centro da
mesa ao olhar de Rey. Ali, um jornal anunciava em letras enormes o
homicídio de Healey; ao lado, estava a tradução inglesa de Longfellow do
Canto Três, o modelo daquele crime; no meio de ambos, via-se o pedaço de
papel com os apontamentos de Nicholas Rey: Deenan see amno atesennone
turnay eeotitr nodur lasheeato nay.
Atrás de Rey, Longfellow avançou para a soleira da porta do escritório. Rey
notou os seus arquejos rápidos, e reparou que Lowell e Fields olhavam fixa
e estranhamente para a mesa que estava atrás de Holmes.
Rapidamente, e com um movimento quase imperceptível, o doutor Holmes
esticou o braço e retirou subitamente o bilhete do agente de cima da mesa.
- Ah, senhor agente - disse o médico. - Podemos devolver-lhe o seu bilhete?
Rey sentiu um súbito laivo de esperança, e perguntou tranquilamente:
- Os senhores conseguiram...
- Sim, sim - disse Holmes. - Mas só parte dele. Recorremos à fonética de
todas as línguas registadas, meu caro agente, e receio que o inglês
macarrónico seja a nossa conclusão mais plausível. Parte dele é legível -
Holmes inspirou e fitou o vazio com severidade, recitando: - «Não olhes o
caminho de ninguém, não. Oh, hoje não abras o ferrolho.» Muito
shakespeariano, apesar de ser um pouco disparatado, não acha?
Rey olhou para Longfellow de relance, que parecia tão surpreendido como
ele próprio.
- Bem, agradeço-lhe por mo recordar, doutor Holmes - disse Rey. -Agora,
despeço-me dos senhores e desejo-lhes boa noite.
Todos se foram juntando à entrada, enquanto Rey desaparecia pelo
caminho de acesso.
- Não abras o ferrolho? - perguntou Lowell.
- Farei sempre os possíveis para que ele não desconfie de nada, Lowell! -
gritou Holmes. - Você podia ter adoptado uma atitude mais convincente. É
uma boa regra para o ator que dá vida às marionetas não deixar que o
público lhe veja as pernas!
- Foi muito bem pensado, Wendell - disse Fields, dando palmadinhas
calorosas no ombro de Holmes.
Longfellow preparou-se para falar, mas não conseguiu. Entrou no seu
escritório e fechou a porta, deixando os amigos embaraçadamente imóveis
no vestíbulo da entrada.
- Longfellow? Meu caro Longfellow? - chamou-o Fields, batendo à porta
devagar.
Lowell agarrou no braço do seu editor e abanou a cabeça. Holmes
apercebeu-se que tinha qualquer coisa na mão, e estendeu-a aos outros. Era
o bilhete de Rey.
- Olhem para isto. O agente Rey esqueceu-se disto.
Mas eles já não estavam a ver o bilhete de Rey, mas a fria pedra gravada
com letras em ferro descolorido, por cima das portas abertas do Inferno,
onde Dante se detivera, relutante, e Virgílio o empurrara para que
prosseguisse.
Zangado, Lowell amarfanhou rapidamente o papel e atirou as palavras
truncadas de Dante à chama do candeeiro do vestíbulo.

VII




LIVER WENDELL HOLMES CHEGOU ATRASADO À REUNIÃO

O seguinte do Clube de Dante, que sabia ser a última a que ia assistir.


Não aceitara fazer o trajeto na charrete de Fields, apesar de o céu
por cima da cidade estar todo encoberto.
O médico e poeta mal soltou um suspiro quando o varão do seu guarda-
chuva se partiu durante um aguaceiro, e quando escorregou nas várias
camadas de folhas, as últimas depositadas naquele Outono, em frente à
casa de Longfellow. Havia demasiadas injustiças no mundo para que se
exaltasse com contrariedades físicas. Nos olhos acolhedores e pristinos de
Longfellow, que claramente lhe davam as boas-vindas, havia incomodidade,
faltava serenidade para comunicar, e não respondiam à pergunta que
constrangia o estômago do médico: Como é que agora continuamos isto?
Comunicar-lhes-ia ao jantar que desistia da sua participação na tradução de
Dante. Lowell até podia estar demasiado desorientado pelos recentes
acontecimentos, ao ponto de o acusar de deserção. Holmes temia ficar
conhecido como um dilettante. Mas, não havia forma de conseguir fingir
que lia Dante como antigamente, com o cheiro da carne chamuscada do
reverendo Talbot no ar. Ele estava a sufocar uma sensação indistinta de
que de alguma forma tinham sido eles os responsáveis, que tinham ido
longe de mais, que as suas leituras de Dante todas as semanas tinham
libertado na atmosfera de Boston as punições do Inferno, por virtude da
sua própria jovial fé na poesia.
Meia hora antes, um homem entrara com passos pesados e sonoros,
causando a mesma convulsão que um exército de mil homens.
James Russel Lowell. Ele estava ensopado, apesar de, praticamente, só ter
virado a esquina, pois considerava ridículos os chapéus-de-chuva, aqueles
artefatos sem sentido. O lume brando da hulha com barrotes de nogueira
irradiava da ampla chaminé, fazendo o seu calor com que a humidade da
barba de Lowell cintilasse como uma luz interior.
Nessa semana, Lowell chamara Fields à parte na Corner e explicara-lhe que
não conseguia viver assim.
O silêncio deles relativamente à polícia era necessário... Muito bem. O bom
nome de todos tinha de ser preservado... Muito bem. Dante tinha de ser
protegido... Muito bem também. Mas nenhuma daquelas fundamentações
lógicas válidas apagava um simples fato evidente - havia vidas em perigo.
Fields dissera que ia tentar lembrar-se de uma ideia sensata. Longfellow
manifestara ignorar o que Lowell imaginava que eles pudessem fazer.
Holmes evitara com sucesso o amigo. Lowell fizera os possíveis para que os
quatro homens se reunissem num determinado momento, mas, até àquele
dia, eles tinham resistido a juntar-se de forma tão veemente como ímanes
que se repelem.
Agora que estavam sentados num círculo, no mesmo círculo em que haviam
estado ao longo de dois anos e meio, só havia uma razão para Lowell não os
agarrar pelos ombros individualmente e sacudi-los um a um. E essa razão
estava delicadamente reclinada na sua poltrona verde favorita e a suportar
o peso dos volumes de Dante. Todos tinham prometido não revelar a sua
descoberta a George Washington Greene. Ali estava ele, com os seus dedos
frágeis e esticados para diante, a aquecer-se junto à lareira. Os outros
sabiam que, com uma saúde debilitada, Greene podia não conseguir resistir
às violentas notícias que eles conheciam. Assim, o velho historiador e
pregador retirado, ao lamentar em tom despreocupado não ter tempo
suficiente para organizar as suas ideias, devido às mudanças de última hora
que Longfellow fazia das tarefas relativas aos cantos, mostrou ser o único
membro animado naquela noite de quarta-feira.
No início da semana, Longfellow enviara um recado aos seus companheiros
eruditos a pedir-lhes que revissem o Canto Vinte e Seis, onde Dante se
encontra com a alma ardente de Ulisses, o herói grego da Guerra de Tróia.
Aquele era um dos favoritos do grupo, de modo que havia a esperança de
que isso os revigorasse.
- Obrigado a todos por terem vindo - disse Longfellow. Holmes recordou o
funeral que, retrospectivamente, anunciara o início da tradução de Dante.
Quando a notícia sobre a morte de Fanny se espalhou, alguns brâmanes de
Boston experimentaram um involuntário vislumbre de prazer - algo que
jamais reconheceriam ou sequer admitiriam para si próprios - ao
levantarem-se uma manhã e descobrirem que esse infortúnio batera à
porta de alguém tão inacreditavelmente abençoado pela vida. Longfellow
parecia ter alcançado o talento e a ostentação máximas sem o menor
contratempo. Se o doutor Holmes tivesse experimentado algo menos
respeitável do que a total e absoluta angústia pela perda de Fanny naquele
horrível incêndio, seria talvez um sentimento que se podia apelidar de
surpresa ou de emoção egoísta, e se atreveria
a ajudar Henry Wadsworth Longfellow num momento em que precisava de
consolo.
O Clube de Dante devolvera um amigo à vida. E agora, agora tinham sido
cometidos dois homicídios, usando Dante como pretexto. E, eventualmente,
podia haver um terceiro, ou até um quarto, enquanto eles permaneciam
sentados junto à lareira com as provas na mão.
- Como podemos nós ignorar... - explodiu James Russell Lowell, antes de
reprimir o seu próprio pensamento, com um olhar furtivo e penetrante
lançado ao absorto Greene, que escrevia uma anotação na margem das suas
provas.
Longfellow leu e expôs o Canto de Ulisses, sem parar para completar o
comentário interrompido. O seu sorriso permanente e tenso toldou-se e
desvaneceu-se, como se tivesse sido adaptado de uma reunião anterior.
Ulisses viu-se no Inferno entre os Conselheiros de Fraude, como uma
chama incorpórea, agitando a sua ponta para a frente e para trás como uma
língua tagareladora. No Inferno, alguns resistiram a contar a Dante as suas
histórias, enquanto outros se mostraram inconvenientemente ansiosos.
Ulisses estava acima de ambas as vanglórias.
Ulisses conta a Dante como depois da Guerra de Tróia, como um soldado
idoso, ele não fez a viagem de regresso a ítaca para junto da sua esposa e
família. Convenceu os escassos membros da sua tripulação que restavam a
continuarem a viagem, passando a linha que nenhum mortal devia
transpor, para escarnecer do destino e buscar o conhecimento. Um
redemoinho avolumou-se, e o mar engoliu-os.
Greene foi o único a dizer mais qualquer coisa sobre o assunto. Ele pensava
no poema de Tennyson, que tivera como base o episódio de Ulisses. Sorriu
melancolicamente e observou:
- Creio que devíamos considerar a inspiração que Dante forneceu desta
cena à interpretação de Lorde Tennyson.
- «Quão tolo é parar, chegar ao fim» - prosseguiu Greene, recitando de cor
com elegância o poema de Tennyson. - «Inutilizar-se sem brilho, não
brilhar pelo desgaste! A vida seria como respirar! Uma vida sobreposta a
outra vida, ainda que fosse pouca coisa, e apenas de uma dessas vidas» - ele
fez uma pausa com uma névoa bem visível nos olhos - «pouco me resta».
Façamos de Tennyson o nosso guia, caros amigos, porque, no seu
infortúnio, ele viveu algo em comum com Ulisses; sentiu o desejo de
triunfar na última viagem da sua vida.
Depois de obter respostas veementes de Longfellow e Fields, o comentário
do velho Greene deu origem a ressonos sonoros. Depois de dar o seu
contributo, ele ficava exausto.
Lowell agarrava nas suas provas firmemente e com os lábios comprimidos,
como os de um aluno obstinado. A sua frustração diante da cortês charada
aumentava, e o seu mau génio dirigia-se a todos quantos chegavam.
Ao ver que não conseguia arranjar ninguém com quem falar, Longfellow
perguntou em tom de súplica:
- Lowell, tem algum comentário a fazer a este terceto?
Uma estatueta de mármore branco de Dante Alighieri estava por cima de
um dos espelhos do escritório. Os olhos encovados encaravam-nos
impiedosamente. Lowell resmoneou:
- Não foi o próprio Dante que numa ocasião escreveu que nenhuma poesia
pode ser traduzida? Porém, nós reunimo-nos aqui semanalmente e, com
jovialidade, assassinamos as suas palavras.
- Por favor, Lowell! - exaltou-se Fields, pedindo depois desculpa a
Longfellow com o olhar. - Estamos a fazer o que devemos - sussurrou o
editor roucamente, num tom suficientemente alto para censurar Lowell,
mas não tão alto para despertar Greene.
Lowell inclinou-se para a frente ansiosamente.
- Temos de fazer qualquer coisa... Temos que decidir... Holmes abriu muito
os seus olhos vivos para Lowell e apontou para
Greene, ou, mais precisamente, para o canal auditivo peludo de Greene. O
velho podia acordar a qualquer momento. Então, Holmes agitou o dedo e
deslizou-o em volta do pescoço esticado para lhes mostrar o silêncio que
deviam manter em relação ao assunto.
- Então, o que é que você acha que devíamos fazer? - perguntou Holmes. A
sua intenção era fazer com que aquilo soasse suficientemente ridículo para
suplantar a surdina. Contudo, a pergunta retórica ecoou pela sala como
pela enormidade do teto de uma catedral. - Infelizmente, não há nada a
fazer - agora era Holmes que murmurava, puxando pela gravata e tentando
recuperar a sua pergunta. Sem sucesso.
Holmes soltara qualquer coisa. Aquele era o desafio à espera de ser
colocado, o desafio que podia ser evitado apenas até ao momento em que
fosse proferido em voz alta, quando os quatro homens respirassem o
mesmo ar.
O rosto de Lowell ficou corado por uma necessidade premente. Ele olhou
fixamente para a respiração rítmica de George Washington Greene e,
simultaneamente, a sua mente encheu-se de todos os sons daquela reunião:
o agradecimento desesperado de Longfellow por terem vindo, Greene a
recitar Tennyson, os suspiros asmáticos de Holmes, as grandiosas palavras
de Ulisses, proferidas pela primeira vez no convés do seu Predestinado
navio, e depois repetidas no Inferno. Tudo isto retumbou em conjunto no
seu cérebro e forjou algo de novo.
O doutor Holmes observou Lowell a apertar a testa entre os seus dedos
fortes. Holmes não sabia o que inicialmente levara Lowell a dizê-lo. Ele
ficara surpreendido. Talvez esperasse que Lowell vociferasse e gritasse
para os animar; talvez até esperasse aquilo, como quem espera algo
familiar. Mas Lowell tinha a sensibilidade requintada de um grande poeta
em tempo de crise. Ele começou, pensativo, com um sussurro, e cada traço
tenso do seu rosto vermelho foi-se descontraindo gradualmente.
- «Meus marinheiros, almas que pelejaram, labutaram e reflectiram
comigo...» - Este era um verso do poema de Tennyson, em que Ulisses incita
a sua tripulação a desafiar a mortalidade.
Lowell inclinou-se para diante e, sorrindo, prosseguiu com um fervor que
advinha muito mais da sua voz garbosa do que das palavras.
... tu e eu estamos velhos;
mas a idade avançada tem a sua honra e o seu afã. A morte tudo termina;
mas algo fica antes do fim, ainda se pode levar a cabo alguma empresa
nobre...
Holmes estava aturdido, apesar disso não se dever à força das palavras,
porque há muito que decorara o poema de Tennyson. Ele ficara estarrecido
com o significado imediato que elas tinham tido para ele. Sentiu um frémito
interior. Aquilo não era uma declamação. Lowell falava com eles.
Longfellow e Fields também o fitavam com um arrebatamento e temor
elevados, porque também eles o compreendiam claramente. Sorrindo
enquanto falava, Lowell acabava de os desafiar a descobrir a verdade oculta
por trás das duas mortes.
Os lençóis de chuva, fria e ruidosa, fustigavam as janelas, parecendo chegar
primeiro só a uma e depois modificar o seu assalto no sentido dos
ponteiros do relógio. Viu-se um relâmpago, o ancestral prenúncio do
trovão, e ouviu-se o som rouco e chocalhado das vidraças. Antes de Holmes
se aperceber, a voz de Lowell foi abafada por instantes, e ele parou de
declamar.
Então, Longfellow falou, continuando a declamar o poema de Tennyson no
mesmo sussurro suplicante:
... os profundos
lamentos rondam com muitas vozes. Vinde, amigos.
não é tarde de mais para ir em busca de um mundo novo...
Depois, Longfellow voltou a cabeça para o seu editor com um olhar
inquisitivo. Era a vez de Fields.
Fields baixou a cabeça perante o convite, e a sua barba, aninhada na
sobrecasaca aberta, roçou no debrum do seu colete. Holmes temia que
Lowell e Longfellow tivessem entrado de rompante na causa impossível,
mas ainda havia esperança. Fields era o anjo da guarda dos seus poetas e
não os lançaria diretamente para o perigo. Fields permanecera livre de
traumas na sua vida pessoal, sem nunca tentar ter filhos, e assim
poupando-se ao desgosto dos bebés que não passavam do primeiro ou
segundo ano de vida ou das mães que morriam ao dar à luz. Livre dos
compromissos domésticos, ele reservara as suas energias protetoras para
os seus autores. Certa vez, Fields passou uma tarde inteira a discutir com
Longfellow sobre um poema, que narrava o naufrágio de Hesperus. A
discussão fez com que Longfellow se esquecesse da sua planeada excursão
no luxuoso barco de Cornelius Vanderbilt, que, umas horas mais tarde, se
incendiou e afundou. Do mesmo modo, Holmes rezou baixinho para que
aquele fosse o momento em que Fields se insurgisse e chamasse a atenção
até o perigo passar.
O editor devia saber que aqueles eram homens de letras e não de acção (e
assim envelheceriam). Aquela loucura era aquilo que eles liam, aquilo que
eles versificavam para alimentar um auditório ansioso, uma humanidade
em mangas de camisa, uns guerreiros que participavam em batalhas, que
nunca conseguiam vencer; essa era a matéria-prima da poesia.
Fields entreabriu os lábios, mas depois hesitou, como alguém que tenta
falar durante um sonho agitado, mas não consegue. De repente, pareceu
enjoado. Holmes suspirou complacente, mostrando um sinal da sua
aprovação relativamente à objecção. Mas depois, olhando com o sobrolho
franzido, primeiro para Longfellow e depois para Lowell, Fields levantou-se
agitado com um salto e prosseguiu num sussurro a declamação do poema
de Tennyson. Era uma aceitação do que estivesse para vir:
... e embora
agora não sejamos a força que em dias passados
movia montanhas, o que somos, somo-lo...
Seremos nós suficientemente fortes para deslindar um homicídio? O Dr.
Holmes reflectiu nisto. «Tolices, é o que é! Houve dois homicídios, uma
coisa horrível, mas nada podia garantir», pensou Holmes, recorrendo à sua
mente científica, «que mais nenhum se lhes seguisse.» O envolvimento
deles podia, para o bem ou para o mal, ser fruto do acaso. Uma parte dele
lamentava ter presenciado a investigação judicial na Faculdade de
Medicina, e a outra parte lamentava ter comunicado aos amigos a sua
descoberta. Apesar disso, ele não conseguia deixar de se questionar sobre o
que faria Júnior.
O capitão Holmes. O médico compreendia a vida de tantas perspectivas,
que conseguia facilmente confrontar-se com uma determinada situação,
sob qualquer ângulo. Contudo, Júnior possuía o dom natural e o talento da
estrita decisão. Só o rigoroso podia mostrar-se verdadeiramente corajoso.
Holmes manteve os olhos fechados sob os dedos.
O que faria Júnior? Ele imaginou a companhia militar de Wendell Júnior no
reluzente uniforme azul e dourado ao deixar o campo de treinos. «Boa
sorte. Quem me dera ter idade suficiente para combater.» E assim por
diante. Mas ele não o desejava. Agradecia aos céus já não ser jovem.
Lowell inclinou-se para Holmes e repetiu as palavras de Fields com uma
brandura paciente e um tom de voz indulgente e pungente, raros nele.
- Aquilo que somos, somo-lo.
Aquilo que somos, somo-lo: o que escolhemos ser. Aquilo acalmou um
pouco Holmes. Os três amigos que o esperavam mostraram-se de acordo.
Ainda assim, ele podia ir-se embora resignado. Inalou com uma respiração
profunda e asmática, do tipo da que era seguida por uma exalação de alívio
igualmente perceptível. Contudo, em vez de completar o movimento,
Holmes interrompeu-o. Ele não reconheceu a sua própria voz, uma voz
bastante serena para pertencer ao nobre ardor que falava a Dante. Limitou-
se a reconhecer a sua razão pela decisão de que as suas palavras, as
palavras de Tennyson, que cobraram vida:
- «...aquilo que somos, somo-lo,/Um génio idêntico de corações
heróicos,/debilitados pelo tempo e pela sorte, mas determinados na
vontade/para se afanar, para procurar, para encontrar» - ele fez uma pausa
- «e para não ceder».
- Afanar-se - murmurou Lowell meditativo, metódico e perscrutando
alternadamente o rosto de cada um dos seus companheiros, acabando por
se deter no de Holmes. - Procurar. Encontrar...
O relógio bateu a uma hora e Greene agitou-se, mas não era necessário
comunicar mais nada: O Clube de Dante havia renascido.
- Oh, mil desculpas, meu caro Longfellow - murmurou Greene ao acordar
com as sonoras badaladas indolentes do velho relógio. - Perdi alguma
coisa?

CÂNTICO 2
VIII



O SUBMUNDO DE BOSTON, MUITA COISA SE MANTEVE IGUAL na

N semana em que o corpo do reverendo Talbot foi descoberto.


Inalterado era o triângulo de ruas, formado por bairros
miseráveis, tabernas, bordéis e hotéis ordinários, que tinham
expulso os frequentadores que se podiam dar ao luxo de ser despejados,
onde a névoa pálida jorrada das chaminés, que se curvavam para fora de
fábricas de vidros e das oficinas de siderurgia, onde passeios estavam
juncados de cascas de laranja e cheios de joviais cantores e dançarinos a
horas desusadas. Hordas de gente de cor chegavam e partiam das
imediações das paragens das charretes públicas: mulheres jovens,
lavadeiras e criadas internas, cujos cabelos tinham sido apanhados
espaventosamente com lenços de pescoço coloridos e cuja joalharia
pendente chocalhava numa musicalidade viva; via-se ainda um soldado ou
marinheiro negro de uniforme, apesar de esta ser uma visão discordante.
Também se via um certo mulato a caminhar pelas ruas num notável
balanceio, sendo ignorado por alguns, ridicularizado por outros, observado
pelos olhos brilhantes dos negros mais velhos, que, pela sabedoria que
possuíam, sabiam que Rey era polícia, o que os desagradava não só pela sua
aparência, como pela sua misticidade. Os negros viviam em segurança em
Boston, sendo-lhes permitido até instruir-se e partilhar os transportes
públicos com os brancos, por isso, eles mantinham-se calados. Contudo,
Rey podia fomentar o ódio, se fizesse um movimento errado ou se se
cruzasse com a pessoa errada durante o cumprimento do seu dever. Os
negros tinham-no exilado do seu mundo por estes motivos, e porque esses
mesmos motivos eram para eles corretos, nenhuma explicação nem
desculpa lhe eram permitidas.
Algumas mulheres jovens que conversavam, enquanto seguravam cestos à
cabeça, faziam uma pausa para olhar para ele, com a sua bonita Pele
bronzeada, que parecia absorver toda a luz das lâmpadas ao passar. Do
lado oposto da rua, Rey reconheceu um homem entroncado, que se detinha
indolente na esquina, um judeu sefardita, um ladrão muito conhecido,
que por vezes era levado para o Comissariado Central da Polícia para ser
submetido a um interrogatório. Nicholas Rey subiu as escadas estreitas,
que conduziam ao seu quarto mobilado. A porta dava para o patamar do
segundo andar, e, apesar de a lâmpada estar fundida, pela sombra,
conseguiu ver que alguém bloqueava a entrada do seu quarto. Os
acontecimentos da semana tinham sido inexoráveis. A primeira vez que
Rey levara o chefe Kurtz a ver o corpo do reverendo Talbot, o sacristão
apressara-se a conduzir Kurtz e alguns sargentos pelas escadas, que
conduziam ao andar inferior. Kurtz parara e surpreendera Rey ao virar-se
para trás.
- Senhor agente. - Ele fizera sinal a Rey para avançar. No interior da cripta
funerária, o agente Rey exigira um momento de observação do cenário com
o corpo metido de pernas para o ar num buraco irregular, mesmo antes de
reparar nos pés protuberantes, incendiados, empolados e deformados. O
sacristão contou-lhes o que vira.
Os dedos estavam prestes a desprender-se e a cair das extremidades rosa,
sem pele e disformes, tornando difícil a distinção entre as extremidades
dos pés, que sustinham os dedos, e as outras, que, em termos anatómicos,
deviam ser os calcanhares. Este pormenor - os pés queimados, reveladores
para os dantinos, que se encontravam apenas a alguns quarteirões de
distância - não passava para a polícia de uma mera insanidade.
- Só os pés foram queimados? - perguntou o agente Rey, semicerrando os
olhos e tocando delicadamente apenas com a ponta de um dedo na carne
carbonizada e desfeita. Depois, recuou perante o calor latente, que ainda
cozia a carne, quase receando que o seu dedo tivesse ficado chamuscado.
Então, questionou-se sobre qual a quantidade de calor que o corpo humano
conseguia suportar antes de perder completamente a sua forma física.
Depois de dois sargentos levarem o corpo, na sua confusão lacrimosa, o
sacristão Gregg lembrou-se de qualquer coisa.
- O papel - disse ele, segurando subitamente em Rey, o único polícia que
ficara ali em baixo. - Há bocadinhos de papel espalhados junto aos túmulos.
Não era suposto havê-los lá! Ele não devia ter vindo ali! Eu não o devia ter
deixado entrar! - E chorou descontroladamente. Rey baixou a lanterna e viu
vestígios de letras, como remorsos mudos.
Os jornais ocuparam-se dos dois horríveis homicídios - de Healey e de
Talbot - com tanta frequência, que, para a opinião pública, ambos passaram
a surgir associados, referindo-se muitas vezes em conversas de rua aos
homicídios Healey-Talbot. Estaria assim a revelar-se a síndrome pública da
excêntrica observação que o doutor Oliver Wendell Holmes fizera em casa
de Longfellow, na noite em que Talbot fora encontrado?
Holmes oferecera os seus préstimos a Rey com tanto nervosismo como um
estudante de Medicina.
- Talvez aquilo que soa um latim inútil, prognosis, possa ajudar de certa
forma a apanhar o assassino que anda à solta pela nossa cidade. -A palavra
impressionou Rey: assassino. O doutor Holmes partia do princípio que os
homicídios tinham sido praticados pelo mesmo indivíduo. Contudo, não
havia nada indubitável que os relacionasse com alguém, além da respectiva
brutalidade de ambos. Havia também a nudez dos corpos e as roupas que
lhes tinham sido despidas e cuidadosamente dobradas, mas sobre isso
ainda não se informara os jornais quando Rey ouviu Holmes. Talvez tivesse
sido um lapso do doutorzinho pretensioso. Talvez. Os jornais
complementavam os títulos sobre homicídios com doses consideráveis de
outras situações violentas disparatadas, como estrangulamentos, assaltos,
arrombamentos de cofres, uma prostituta encontrada parcialmente
estrangulada a alguns metros do Comissariado da Polícia, uma criança
encontrada espancada numa hospedaria de Fort Hill. E lá estava, o estranho
incidente de a polícia ter permitido que um vagabundo, levado para o
Comissariado da Polícia para ser interrogado, se lançasse da janela para a
morte, perante o olhar inoperante do chefe Kurtz. Os jornais clamavam:
«Não tem a polícia alguma responsabilidade na segurança dos cidadãos?»
No obscuro vão das escadas que dava para o seu quarto mobilado, Rey
parara a meio do lanço e certificara-se de que ninguém o seguia. Com a mão
no bastão que trazia debaixo do casaco, ele avançou.
- Apenas um pobre mendigo, meu bom senhor - O homem que proferira
estas palavras do cimo das escadas era facilmente reconhecível, porque o
ângulo mostrava um par de pernas enfiadas numas calças de riscas a
emergirem de uns sapatos com tacões ferrados. Era Langdon Peaslee,
arrombador de cofres, que polia com indiferença o seu alfinete de gravata
de diamantes com o largo punho da sua camisa.
- Olha, o branquinho como a neve - Peaslee fez um sorriso rasgado,
mostrando uma bela fileira de dentes afiados como estalagmites. - Aperte
aqui - Ele agarrou na mão de Rey. - Não via esse seu focinho de presa desde
aquela identificação. Diga cá, este aqui por acaso não é o seu quarto? -
Apontou para trás de si, com inocência.
- Olá, senhor Peaslee. Constou-me que o senhor tinha assaltado o banco
Lexington há duas noites atrás. - Nicholas Rey disse isto para mostrar que
possuía tanta informação como o ladrão.
Peaslee não deixara vestígios que preocupassem os seus advogados em
tribunal, e seleccionara cuidadosamente os artigos, roubando apenas
valores não identificáveis.
- Ouça, diga-me, quem é que, hoje em dia, é suficientemente louco para
assaltar um banco sozinho?
- Você, tenho a certeza disso. Veio aqui para se entregar? - perguntou-lhe
Rey com uma expressão séria.
Peaslee riu desdenhosamente.
- Não, não, meu rapaz. Mas acho que essas restrições que eles lhe
impuseram... Quais foram? Não pode usar uniforme, não pode prender
homens brancos e aí por diante... Bem, são injustas, muito injustas mesmo.
Mas há alguns fatores compensatórios. Você tornou-se muito amigo do
chefe Kurtz, e isso pode ter uma grande influência sobre a condenação de
alguém pela justiça. Como acontece com os assassinos do juiz Healey e do
reverendo Talbot, paz às suas almas. Constou-me que os diáconos da igreja
de Talbot ainda estão a recolher donativos para oferecerem uma
recompensa.
Rey encaminhou-se para o seu quarto com um aceno de cabeça
desinteressado.
- Estou cansado - disse ele em voz baixa. - A menos que, neste momento,
tenha alguém específico que deva ser presente à justiça, com licença.
Peaslee enrolou uma mão no lenço de pescoço de Rey, e imobilizou-o.
- Os policiais não podem aceitar recompensas, mas um cidadão reto, como
eu, certamente que pode. E se alguém encontra o caminho até à porta de
um polícia de mérito... - Não houve qualquer reacção no rosto do mulato.
Peaslee mostrou a sua irritação e perdeu toda a sedução. Ele puxou o lenço
de pescoço com força, transformando-o num nó corredio descaído. - O que
foi que lhe disse na identificação aquele pedinte pateta? Oiça-me com
atenção. Há por aí, na nossa cidade, um monte de gente que pode muito
bem ficar com as culpas pela morte de Talbot, meu caro presunçoso. Eu
identifico-os num instante. Ajude-me neste negócio, e metade do bolo é seu
- disse ele, sem cerimónia. - A recompensa é suficientemente gorda para se
abafar um suíno, e depois pode fazer o que quiser. As comportas estão
abertas. Tudo vai mudar em Boston. A guerra forrou todo este sítio com
dinheiro. Vivemos tempos demasiado perigosos para se andar sozinho.
- Dê-me licença, senhor Peaslee - repetiu Rey com uma serenidade estóica.
Peaslee aguardou uns instantes, depois, voltou às gargalhadas derrotadas.
Com uma sacudidela, retirou uma linha imaginária do casaco de tweed de
Rey.
- Como queira, branquinho como a neve. Eu devia ter percebido ao vê-lo
com um casaco Joseph. É que eu tenho pena de si, meu amigo, tenho mesmo
muita pena.
Os negros odeiam-no por você ser branco, e todos os outros o odeiam por
ser negro. Eu avalio um labrego por aquilo que consegue morder aqui -
disse ele, apontando para a parte lateral da própria cabeça. - Uma vez,
branquinho como a neve, fui a uma cidadezinha da Louisiana, onde se via
sangue branco em metade das crianças negras. As ruas estavam cheias de
mestiços. Julguei que você quisesse viver algures num sítio como esse, não?
Rey ignorou-o e tirou a chave da porta do bolso. Peaslee pediu-lhe que lhe
fosse concedida a honra de a abrir, e empurrou a porta de Rey com um
único dedo aracnídeo.
Rey levantou os olhos, pela primeira vez, alarmado com o encontro deles.
- Sabe, as fechaduras são o meu divertimento - disse Peaslee, levantando o
chapéu com jactância. Depois, fingiu render-se, virou os pulsos juntos para
cima. - Pode engavetar-me por violação de propriedade alheia, senhor
agente. Ah, não, não, o senhor não pode fazê-lo, não é? - E despediu-se com
um breve sorriso rasgado.
Não faltava nada no apartamento. Aquela última proeza fora a
demonstração de poder por parte de um famoso arrombador de cofres, no
caso de quaisquer ideias imprudentes alguma vez ocorrerem a Nicholas
Rey.
Para Oliver Wendell Holmes era estranho sair assim com Longfellow, e vê-
lo cruzar-se com rostos e sons comuns, e com os magníficos e intensos
odores das ruas, como se fizesse parte do mesmo mundo que o homem que
conduzia uma parelha de cavalos, que puxavam uma máquina de aspersão
para limpar a rua. Não era que o poeta nunca tivesse saído de Craigie House
nos últimos anos, mas as suas actividades exteriores eram escassas e
limitadas. Deixar provas na Gráfica Riverside, jantar com Fields fora de
horas no Revere ou na Parker House. Holmes sentiu-se envergonhado por
ser o primeiro a tropeçar em algo que pudesse quebrar de forma tão
inconcebível o retiro tranquilo de Longfellow. Devia ter sido Lowell. Ele
nunca se sentiria culpado por forçar Longfellow a entrar na confusa
Babilónia de tijolo do mundo. Holmes interrogou-se se Longfellow ficaria
melindrado com ele por causa disso - se era capaz de ficar melindrado, ou
se era imune a esse sentimento, como acontecia em relação a muitas
emoções humanas desagradáveis.
Holmes pensou em Edgar Allan Poe, que escrevera um artigo intitulado
«Longfellow e Outros Plagiadores», acusando Longfellow e os outros poetas
de Boston de copiarem todos os escritores, vivos e mortos,
incluindo o próprio Poe. Isto acontecera numa época em que Longfellow
ajudava a manter vivo o próprio Poe através de empréstimos. Furioso,
Fields baniu definitivamente todos os escritos de Poe das publicações da
Ticknor & Fields. Lowell atolou jornais com cartas a demonstrar de forma
definitiva os erros injuriosos do escrevinhador de Nova Iorque. Holmes
passou a consumir-se com a ideia de que cada palavra que escrevia era de
fato um furto feito a algum poeta de melhor qualidade que o antecedera, e
nos seus sonhos não era invulgar aparecer-lhe o fantasma de um qualquer
antigo mestre já morto a reclamar que lhe fosse devolvida a sua poesia. Por
seu lado, Longfellow não disse nada em público, atribuindo em privado os
atos de Poe à irritação de uma natureza sensível, exaltada por um certo
sentido indeterminado do mal. E, enquanto para Holmes foi notavelmente o
fim, Longfellow lamentou genuinamente a morte de Poe.
Os dois homens baloiçavam ramos de flores debaixo dos braços, enquanto
se encaminhavam para a parte mais citadina de Cambrídge. Contornaram a
igreja de Elisha Talbot, procurando a cada passo a localização da terrível
morte de Talbot, inclinando-se por baixo das árvores e sentindo o chão por
entre as marcações das sepulturas. Vários transeuntes pediam-lhes
autógrafos em lenços de bolso ou no interior dos chapéus... muitas vezes ao
doutor Holmes e sempre a Longfellow. Durante a noite, teriam acolhido de
bom grado o anonimato, e Longfellow concluiu que teria sido melhor se
aparecessem como enlutados, que visitavam o cemitério, do que como
ressurreicionistas espaventosamente vestidos à procura de um corpo para
roubar.
Holmes estava reconhecido por Longfellow ter assumido a liderança
naqueles dias, desde que tinham concordado... O que tinham eles
concordado fazer, com as inflamadas palavras de Ulisses a queimar-lhes as
línguas? Lowell falara em investigar (sempre condicionados por um
impulso exterior). Holmes preferia falar em «fazer averiguações», e fê-las
de forma muito contundente quando falou com Lowell.
Além deles próprios, claro que podiam contar com os poucos dantinos, de
quem não se podiam esquecer. Alguns estavam a passar um período na
Europa, tanto numa base temporária como permanente, entre os quais se
incluíam Charles Eliot Norton, o vizinho de Longfellow, outro antigo aluno
do poeta, e William Dean Howells, um jovem acólito de Fields,
transformado em enviado especial a Veneza. Depois, havia o Professor
Ticknor, de setenta e quatro anos, retirado na sua biblioteca durante três
décadas de solidão; Pietro Bachi, um tutor italiano que estivera sob a
protecção de ambos, Longfellow e Lowell, antes de ser despedido de
Harvard; e todos os antigos alunos de Longfellow e de Lowell,
que tinham assistido aos seminários de Dante (e mais um punhado da
época de Ticknor). Far-se-iam listas e seriam agendadas reuniões privadas.
Contudo, Holmes rezou para que eles se lembrassem de uma explicação,
antes de fazerem figura de tolos diante de pessoas que respeitavam e que,
por sua vez, pelo menos até então, também os respeitavam.
Se o cenário de uma das mortes fora o terreno exterior da Segunda Igreja
Unitarista de Cambrídge, agora já não era reconhecível. Então, uma vez
mais, se as especulações deles estavam corretas e se se tinha feito um
buraco no pátio, onde Talbot fora enterrado, os diáconos da igreja tinham-
no encoberto rapidamente com erva fresca. Um pregador morto e colocado
de cabeça para baixo, não proporcionava a melhor publicidade para a
congregação.
- Então, vamos dar uma vista de olhos lá dentro - sugeriu Longfellow,
aparentemente descansado com a completa falta de evolução deles.
Holmes seguiu Longfellow de perto.
Na sacristia das traseiras, onde se localizavam os escritórios e os vestiários,
havia uma porta enorme em lousa, encostada a uma parede, mas que não
comunicava com o outro compartimento nem com outra ala da igreja.
Longfellow tirou as luvas e passou uma mão pela pedra fria, sentindo um
arrepio profundo.
- Sim! - sussurrou Holmes. O arrepio prolongou-se pelo interior do seu
corpo quando abriu a boca para falar. - A cripta funerária, Longfellow! A
cripta funerária ali em baixo...
Até há três anos, muitas das igrejas daquela área tinham mantido
funcionais os seus jazigos subterrâneos. Houvera alguns particulares
verdadeiramente sumptuosos, que podiam ser comprados pelas famílias,
mas também houvera outros públicos, de inferior valor, que acolhiam
qualquer membro da congregação por uma cota mínima. Durante anos,
esses jazigos tinham sido encarados como uma prudente utilização do
espaço em cidades demasiado povoadas, devido à expansão dos cemitérios.
Mas quando os habitantes de Boston começaram a morrer às centenas por
causa da febre-amarela, a Junta de Saúde Pública declarou como causa a
proximidade de carne em decomposição, sendo expressamente Proibida a
construção de novas criptas funerárias por baixo dos terrenos da igreja. As
famílias com dinheiro suficiente para o fazer, transladaram as urnas dos
seus entes queridos para o Mount Auburn e para outros locais bucólicos de
sepultura, acabados de construir. Contudo, ocultas debaixo do chão, as
parcelas «públicas» - as mais pobres - das criptas estavam cheias. Fileiras
de caixões por identificar, túmulos decrépitos, terrenos subterrâneos
destinados ao enterro dos pobres.
- Dante acha que os Simoníacos devem estar dentro da pietra lívida, da
pedra lívida - disse Longfellow.
Uma voz trémula interrompeu-o.
- Posso ajudá-los, meus senhores? - O sacristão da igreja, que fora o
primeiro a chegar junto do corpo calcinado de Talbot, era um homem alto e
magro, que vestia uma batina preta comprida, de cabelo branco, ou, mais
propriamente, cerdas espetadas em todas as direcções, como uma escova.
Os seus olhos pareciam fitar o infinito, lembrando assim constantemente o
retrato de um homem que via um fantasma.
- Bom dia, Sir. - Holmes aproximou-se, sacudindo o chapéu entre as mãos
para cima e para baixo. Holmes desejou que Lowell estivesse ali, ou Fields,
ambos autoridades negociadoras naturais. - Sir, eu e o meu amigo vimos
pedir autorização para descer à sua cripta subterrânea, se não for um
grande incómodo.
O sacristão não mostrou qualquer sinal de estar a considerar o pedido.
Holmes olhou para trás. Longfellow estava de pé com as mãos cruzadas em
cima do bordão, plácido, como um espetador sem convite.
- Ora, como eu estava a dizer, meu bom senhor, sabe, é muito importante
que nós... bem, eu sou o doutor Oliver Wendell Holmes. Lecciono uma
cadeira de Anatomia e Fisiologia na Faculdade de Medicina; na verdade, é
mais um canapé do que uma cadeira, pela extensão dos assuntos tratados.
Talvez o senhor já tenha lido alguns dos meus poemas em...
- Sir! - O pungimento penetrante na voz do sacristão aproximou-se de um
grito de dor quando ascendeu no final. - O senhor não sabe, s'nhor diretor,
que o nosso pastor foi encontrado tarde de mais... - ele gaguejou
horrorizado e depois recuou. - Eu vigio sempre este recinto, e nem uma
única alma entrou ou saiu! Por Deus, se isto aconteceu sob a minha
vigilância, admito que tenha sido um espírito diabólico, que não
necessitasse de um veículo físico, e não um homem! - Ele interrompeu-se. -
Os pés - disse ele com um olhar fixo e vítreo, parecendo não conseguir
prosseguir.
- Os seus pés, Sir - disse o doutor Holmes, querendo ouvi-lo, apesar de
conhecer exatamente a sorte a que tinham sido votados os pés de Talbot...
soubera-o em primeira mão. - O que se passa com eles?
Os quatro membros do Clube de Dante, excepto o senhor Greene, tinham
juntado todos os artigos de jornal, que tinham conseguido encontrar sobre
a morte de Talbot. Uma vez que as verdadeiras circunstâncias da morte de
Healey haviam sido ocultadas, durante várias semanas, antes de serem
reveladas, nas colunas de jornal Elisha Talbot foi morto de todas as formas
possíveis, com uma falta de rigor que teria feito Dante estremecer,
já que para ele todo o castigo era conferido pelo amor divino. Por seu lado,
o sacristão Gregg não precisava de conhecer Dante. Ele era uma
testemunha e um portador da verdade. Deste modo, possuía a força e a
simplicidade de um velho profeta.
- Os pés - continuou o sacristão após uma longa pausa -, estavam
incendiados, s'nhor diretor, eram como quadrigas de fogo nas escuras
criptas. Por favor, meus senhores. - A sua cabeça descaiu com desânimo, e o
seu gesto pediu-lhes que partissem.
- Meu bom senhor - disse Longfellow, brandamente. - Foi a morte do
reverendo Talbot que nos trouxe aqui.
Os olhos do sacristão descontraíram-se imediatamente. Não ficou claro
para Holmes se o homem reconhecera o rosto de barba prateada do amado
poeta ou se se aquietara, qual fera amansada, com a tranquilidade
acalentadora do órgão vocálico de Longfellow. Holmes apercebeu-se de que
se o Clube de Dante fizesse progressos com esta diligência, era por
Longfellow ter o mesmo efeito de tranquilidade celestial sobre as pessoas,
pela sua presença, que tinha sobre a língua inglesa, através da sua escrita.
- Apesar de lhe podermos dar como garantia apenas a nossa palavra, caro
senhor - prosseguiu Longfellow -, pedimos-lhe que nos ajude. Peço-lhe que
acredite em nós, porque temo que sejamos os únicos a conseguir, de fato,
dar um sentido ao que aconteceu. Mais do que isto, não podemos divulgar.
O abismo amplo e vazio estava abafado com uma névoa. O doutor Holmes
abanou o ar fétido, que lhe ardia nos olhos e ouvidos como pimenta em pó,
enquanto avançavam com passos curtos e cautelosos pela estreita cripta.
Longfellow respirava mais ou menos à vontade. O seu sentido do olfato era,
vantajosamente, limitado. Permitia-lhe usufruir do prazer das flores
primaveris e de outros aromas agradáveis, mas ocultava-lhe tudo o que
fosse mefítico.
O sacristão Gregg explicou que a cripta pública se estendia por baixo das
ruas da cidade, ao longo de vários quarteirões, em ambas as direcções.
Longfellow fez incidir a luz de uma lanterna nas colunas de lousa, depois,
baixou-a e examinou os túmulos de pedra rasa.
O sacristão preparou-se para fazer uma observação sobre o reverendo
Talbot, mas hesitou.
- Os senhores não devem pensar mal dele, s'nhores diretores, s'é lhes posso
pedir isso, mas o nosso querido reverendo percorria esta passagem pela
cripta funerária para, bem,
para ser franco, não era por motivos relacionados com a igreja.
- Por que razão vinha ele aqui? - perguntou Holmes.
- Era um caminho mais curto para chegar a casa. Para dizer a verdade, eu
próprio também não gostava muito dele.
Um dos bocados de papel rasgado, com as letras a e h, que escapara à
atenção de Rey, estava preso debaixo da bota de Holmes e afundado no solo
de terra espessa.
Longfellow perguntou se mais alguém podia ter entrado na cripta
funerária, vindo diretamente da rua, do sítio por onde o sacerdote devia
sair.
- Não - disse o sacristão, com determinação. - Aquela porta só se abre por
dentro. Mesmo assim, a polícia verificou-a, e não encontrou nenhuma
alteração. E não havia vestígios nenhuns de o reverendo Talbot ter chegado
à porta que dá para a rua, naquela última noite em que veio por aqui.
Holmes puxou Longfellow para trás, para fora do alcance do sacristão, e
falou em surdina.
- Não acha significativo que o Talbot usasse isto como um atalho? Temos
que fazer mais algumas perguntas ao sacristão. Ainda não conhecemos a
simonia do Talbot, e isto pode constituir uma indicação! - Eles não
encontraram nada que sugerisse que Talbot era mais do que o bom pastor
para o seu rebanho.
- Julgo que podemos afirmar - disse Longfellow - que percorrer uma cripta
funerária não constitui pecado, por muito imprudente que seja, não acha?
Além disso, nós sabemos que a simonia se relaciona com o dinheiro: roubá-
lo ou pagar com ele. O sacristão é um admirador de Talbot, tal como toda a
congregação, e demasiadas perguntas sobre os hábitos do pastor só
calariam qualquer informação que ele quisesse fornecer-nos. Lembre-se
que o sacristão Gregg, como toda a cidade de Boston, acredita que a morte
de Talbot resultou exclusivamente do pecado de outra pessoa e não dele
próprio.
- Então, como é que o nosso Lúcifer conseguiu entrar aqui? Se a saída da
cripta funerária só abre por dentro... e o sacristão diz que estava na igreja e
não viu ninguém passar pela sacristia...
- Talvez o nosso tratante esperasse que o Talbot subisse as escadas e saísse
da cripta, empurrando-o depois cá para baixo a partir da rua -especulou
Longfellow.
- No entanto, escavar assim tão depressa um buraco suficientemente
profundo para lá caber um homem? Parece mais provável que o nosso
patife tenha emboscado o Talbot... tenha escavado o buraco, esperado por
ele,
e depois, com firmeza, o tivesse puxado para dentro do buraco, regado os
seus pés com querosene...
À frente deles, o sacristão parou de repente. Parte dos seus músculos
contraíram-se e os restantes estremeceram violentamente. Ele tentou falar,
mas só soltou um queixume seco e pesaroso. Com a extensão do queixo,
conseguiu indicar uma laje grossa, pousada na terra, que atapetava o chão
da cripta. O sacristão correu de volta para o abrigo da igreja. Eles
encontravam-se próximo do local. Conseguiam pressenti-lo e sentir-lhe o
cheiro.
Em conjunto, Longfellow e Holmes recorreram a todas as suas forças para
remover a laje. Na terra fora escavado um buraco redondo, suficientemente
grande para caber um corpo de constituição mediana. Ali conservado pela
laje e liberto pela sua remoção, o cheiro a carne queimada encheu a
atmosfera como o cheiro fétido de carne podre e cebolas fritas. Holmes
abafou o rosto, puxando as golas para cima.
Longfellow ajoelhou-se e mergulhou nele uma mão em concha, enchendo-a
com terra que retirou do fundo do buraco.
- Sim, você tem razão, Holmes. Este buraco é profundo e foi bem calculado.
Deve ter sido escavado com antecedência. O assassino devia estar à espera
que Talbot entrasse. Ele conseguiu entrar, de alguma forma, eludindo o
nosso nervoso amigo sacristão, e deixou Talbot sem sentidos - teorizou
Longfellow -, pô-lo de cabeça para baixo no buraco e depois realizou o seu
horrível ato.
- Calcule-se o tormento absoluto! O Talbot devia ter tido consciência do que
se estava a passar, antes do coração fraquejar. A sensação da nossa própria
carne a arder enquanto estamos vivos... - Holmes quase engoliu a própria
língua. - Não quero dizer, Longfellow... - Ele amaldiçoou-se por falar tanto e,
em seguida, por não aceitar tranquilamente um erro. - Você sabe, só queria
dizer...
Longfellow parecia não o ouvir, deixando a laje suja escorregar-lhe dos
dedos. Cuidadosamente, pousou o viçoso ramo de flores próximo do
buraco.
- «Mas fica-te, e que sejas bem punido» - disse Longfellow, citando um
verso do Canto Dezanove, como se estivesse a lê-lo no ar à sua frente. - É
isto que Dante grita ao simoníaco com quem fala no Inferno, Nicholau III,
meu caro Holmes.
O doutor Holmes estava disposto a sair dali. O ar pesado alimentava uma
revolta dos seus pulmões, e as suas palavras entrecortadas haviam-lhe
destroçado o coração.
Contudo, Longfellow dirigiu o halo do seu candeeiro a gás para cima do
buraco, que fora deixado intato, mas não entrou nele.
- Temos de escavar mais fundo, por baixo da superfície que conseguimos
ver. À polícia nunca ocorreria fazê-lo.
Holmes fitou-o incrédulo.
- Nem a mim! Talbot foi colocado no buraco, não por baixo dele, meu caro
Longfellow!
- Lembre-se do que Dante diz a Nicolau - respondeu Longfellow -, enquanto
o pecador se debate no vil buraco do seu castigo.
Holmes sussurrou alguns versos.
- «Mas fica-te, e que sejas bem punido... e guarda bem a mal tida moeda...» -
Então, interrompeu-se bruscamente. - E guarda bem a mal tida moeda. Mas
não estará Dante apenas a mostrar algum do seu habitual sarcasmo,
recriminando o pobre pecador por em vida ter aceite dinheiro?
- De fato, é assim que eu interpreto o verso - disse Longfellow. - Mas Dante
pode ser lido, admitindo-se que faz esta afirmação em sentido literal.
Podemos argumentar que a frase de Dante revela, de fato, que parte do
contrapasso dos Simoníacos é que são enterrados de cabeça para baixo
com o dinheiro que em vida acumularam por meios imorais depositado
debaixo das suas cabeças. Certamente que Dante estaria a pensar nas
palavras que Pedro diz a Simão nos Atos dos Apóstolos: «Vai-te com o teu
dinheiro para a perdição!» De acordo com esta interpretação, o buraco que
acolhe o pecador de Dante torna-se a sua bolsa para toda a eternidade.
Perante aquela interpretação, Holmes proferiu uma variedade de sons
guturais.
- Se escavarmos - disse Longfellow com um sorriso breve -, as suas dúvidas
podem dissipar-se. - Ele esticou o seu bordão para chegar ao fundo do
buraco, mas este fora demasiado cavado. - Acho que não consigo lá chegar. -
Longfellow calculou o tamanho do buraco, e, depois, olhou para o
doutorzinho, que se contorcia por causa da asma.
Holmes permaneceu imóvel.
- Oh, mas, Longfellow... - Ele baixou os olhos para o buraco. - Por que é que
a natureza não me consultou sobre as minhas características físicas? - Não
valia a pena argumentar. Aliás, com Longfellow não era possível
argumentar convenientemente, porque o seu carácter era invencivelmente
tranquilo. Se Lowell ali estivesse, ter-se-ia posto a escavar o buraco como
um coelho.
- Aposto dez contra um em como parto uma unha. Longfellow anuiu
apreciativamente. O médico fechou os olhos e
deslizou primeiro os pés para dentro do buraco.
- É demasiado estreito. Não consigo curvar-me. Não me parece que consiga
mexer-me para escavar.
Longfellow ajudou Holmes a sair do buraco. O médico voltou a entrar na
estreita abertura, mas, desta vez, de cabeça, enquanto Longfellow o
agarrava pelas calças cinzentas à altura dos tornozelos. O poeta era hábil
no manuseio de marionetas.
- Com cuidado, Longfellow! Com cuidado!
- Consegue ver o suficiente? - perguntou-lhe Longfellow. Holmes mal o
ouvia. Ele escavou a terra com as mãos, sentindo a
sujidade húmida introduzir-se debaixo das unhas, ao mesmo tempo
repulsivamente quente, fria e dura como o gelo. O pior era o odor, o
persistente cheiro fétido a carne queimada, que se mantivera no estreito
abismo. Holmes tentou suster a respiração, mas essa táctica, juntamente
com a sua aflitiva asma, fê-lo sentir a cabeça leve, como se pudesse soltar-
se como um balão.
Ele estava onde o reverendo Talbot estivera; de cabeça para baixo, como
ele. Contudo, em vez do fogo expiatório nos pés, ele sentia as mãos firmes
do senhor Longfellow.
A voz abafada de Longfellow escoou-se até ele, fazendo uma pergunta que
revelava preocupação. O médico não conseguiu ouvi-la, e teve a vaga
sensação de mal-estar, questionando-se se uma perda dos sentidos podia
levar Longfellow a largar-lhe os tornozelos, e se, entretanto, isso podia
atirá-lo para o centro da terra. De repente, sentiu o perigo a que ambos se
tinham exposto ao tentarem defrontar um livro. A sucessão de
pensamentos flutuantes pareceu continuar indefinidamente até que as
mãos do médico bateram em qualquer coisa.
Com a sensação de ter tocado num objeto material, voltou-lhe a viva
lucidez. Um bocado de um qualquer tipo de tecido. Não. Uma bolsa. Uma
bolsa de tecido liso.
Holmes estremeceu. Tentou falar, mas o cheiro pestilento e a terra eram
obstáculos terríveis. Por instantes, o pânico deixou-o gelado, mas depressa
recuperou o bom senso, e começou a agitar as pernas freneticamente.
Percebendo que aquele era um sinal, Longfellow içou o corpo do amigo
para fora da cavidade, Holmes arquejou para recuperar o fôlego, cuspindo e
falando atabalhoadamente, enquanto Longfellow se inclinava para ele,
solicitamente.
Holmes caiu de joelhos.
- Por Deus, olhe para isto, Longfellow! - Holmes puxou pelo cordel atado em
volta do achado, e abriu a bolsa encrustada de pó.
Longfellow observava, enquanto o doutor Holmes colocava mil dólares em
notas verdadeiras no chão da cripta funerária.
E guarda bem a mal tida moeda...
Em Wide Oaks, a ampla propriedade da família Healey, desde há três
gerações, Nell Ranney conduziu dois recém-chegados pelo grande vestíbulo
da entrada. Eles pareciam estranhamente esquivos, com os corpos
forçadamente rígidos, mas os olhos rápidos e inquietos. O que mais
chamava a atenção da criada era o modo como estavam vestidos, já que
aqueles dois estilos extravagantes e diferentes eram uma raridade.
Com uma barba curta e um bigode pendente, James Russell Lowell
apresentava-se com um casaco largo cruzado, uma cartola por escovar, que
passava despercebida pela informalidade da sua indumentária, e, na sua
gravata, com um nó de marinheiro, um tipo de alfinete, que já há algum
tempo não estava na moda em Boston. O outro homem, cuja barba farta e
ruiva caía em cascata em anéis grossos e hirsutos, tirou as luvas de uma cor
forte, e enfiou-as no bolso da sobrecasaca de tweed escocês de corte
impecável, por baixo da qual, em volta do seu ventre, coberto por um colete
verde, como um enfeite natalício, se via uma corrente de relógio dourada e
brilhante.
Nell demorou a sair da sala, mesmo enquanto Richard Sullivan Healey o
filho mais velho do juiz do Supremo Tribunal, cumprimentava as suas duas
visitas literárias.
- Peço desculpa pelo comportamento da minha camareira - diss Healey
depois de dispensar os serviços de Nell Ranney. - Foi ela que encontrou o
corpo do meu pai e o trouxe para dentro de casa, e receio que desde então
encare cada pessoa como o possível responsável. Preocupa-nos que ela
imagine quase tantas coisas demoníacas como as que hoje em dia ocorrem
à minha mãe.
- Gostaríamos de ver a querida senhora Healey, esta manhã, se fosse
possível, Richard - disse Lowell muito educadamente. - O senhor Fields
pensou que podíamos falar com ela sobre um livro que homenageasse o
juiz do Supremo Tribunal e fosse editado pela Ticknor & Fields. - Era
costume os parentes, mesmo os primos afastados, visitarem a família do
recém-falecido, mas o editor precisava de um pretexto.
Richard Healey desenhou com a sua boca enorme uma curva amistosa.
- Receio que seja impossível fazer-lhe uma visita, primo Lowell. Hoje é um
dos seus maus dias. Ela está de cama.
- Então, não me diga que está doente! - Lowell inclinou-se para a frente com
indícios de curiosidade mórbida.
Richard Healey hesitou, pestanejando várias vezes.
- Não fisicamente, ou, pelo menos, é essa a opinião dos médicos. Mas ela
desenvolveu uma mania que temo se tenha agravado nas últimas semanas,
por isso também o podemos considerar como algo físico.
sente uma presença constante por cima dela. Peço desculpa por me
expressar em termos tão vulgares, meus senhores, mas, por mais que o
diagnóstico atribua isso à sua imaginação, ela continua a achar que há
qualquer coisa que rasteja na sua própria carne, pelo que insiste em coçar-
se e enterrar as unhas na pele.
- Há alguma coisa que possamos fazer para a ajudar, caro Healey? -
perguntou Fields.
- Encontrem o assassino do meu pai - respondeu Healey, esboçando um
sorriso triste. Com algum embaraço, ele reparou que os dois homens
respondiam ao seu pedido com olhares incisivos.
Lowell quis ver onde o corpo de Artemus Healey fora encontrado. Richard
Healey levantou algumas objecções a tão estranho pedido, mas depois de
considerar as excentricidades de Lowell e de as atribuir à sua sensibilidade
poética, acompanhou os dois homens ao exterior. Saíram pela porta das
traseiras da mansão, atravessaram o jardim com flores e entraram na
campina, que conduzia à margem do rio. Healey reparou que James Russell
Lowell caminhava com surpreendente rapidez, com um passo largo
atlético, que não se esperaria num poeta.
Um vento forte lançou grãos de areia fina para a barba e a boca de Lowell.
Com o gosto áspero na língua, um requebro na garganta e a imagem da
morte de Healey em mente, Lowell idealizou uma imagem muito viva.
Os Neutros do Terceiro Canto de Dante não escolhem o bem nem o mal, daí
que sejam menosprezados tanto pelo Céu como pelo Inferno. Deste modo,
foram postos numa antecâmara e não no Inferno propriamente dito, e aí
essas sombras cobardes pairam nuas, seguindo uma bandeira branca, já
que, em vida, se haviam recusado a seguir um determinado curso de acção.
Incessantemente, elas são alvo de picadas de moscardos e vespas,
misturando-se o seu sangue com o sal das próprias lágrimas e alimentando,
aos seus pés, vermes repugnantes. Esta carne pútrida origina mais moscas
e vermes. Moscas, vespas e larvas de varejeira eram os três tipos de insetos
encontrados no corpo de Healey. Para Lowell, isso demonstrava algo sobre
o assassino, tornando-o real.
O nosso Lúcifer sabia como transportar esses insetos - dissera Lowell.
Na primeira manhã da investigação deles, houve uma reunião em Kraigie
House com o pequeno escritório inundado de jornais e os dedos de todos
manchados de tinta e sangue, de tantas páginas virarem. Revendo as notas
que Longfellow tomara no seu diário, Fields quis saber por que razão
Lúcifer,
nome que Lowell dera ao adversário do grupo, escolhera Healey como
representante dos Neutros.
Lowell puxava pensativamente por uma das pontas do seu bigode em
forma de presa de morsa. Ele adoptava um tom pedagógico quando os
amigos se convertiam no seu auditório.
- Bem, Fields, a única sombra que Dante individualiza neste grupo de
Frouxos, ou «Neutros», é, segundo ele, o que fez a grande recusa. Deve
tratar-se de Pôncio Pilatos, porque foi ele que fez a grande recusa... o ato de
neutralidade mais terrível da história cristã... ao não autorizar nem impedir
a crucificação do Salvador. Do mesmo modo, foi pedido ao juiz Healey que
se opusesse duramente ao Decreto sobre os Escravos Fugitivos, mas, em
vez disso, ele não fez absolutamente nada. Devolveu a Savannah o escravo
fugitivo Thomas Sims, que era apenas uma criança, sendo ali açoitado até
ter o corpo todo em sangue, e depois exibidas as suas feridas pela cidade. E
o velho Healey não deixou de resmungar que não lhe cabia a ele alterar
uma lei aprovada pelo Congresso. Não! Em nome de Deus, isso cabia-nos a
todos.
- Não existe nenhuma solução para o quebra-cabeças deste gran rifuto, a
grande recusa. Dante não apresenta nenhum nome - intrometeu-se
Longfellow, afastando com vergastadas da mão a espessa massa de fumo do
charuto de Lowell.
- Dante não pode nomear o pecador - insistiu Lowell com emoção. -Essas
sombras que ignoraram a vida, «que nunca estiveram vivas», como diz
Virgílio, devem ser ignoradas na morte, mortificadas sem tréguas pelas
criaturas mais vis e insignificantes. Esse é o seu contrapasso, o seu castigo
eterno.
- Um erudito holandês sugeriu que essa figura não é Pôncio Pilatos, meu
caro Lowell, mas antes o jovem de Mateus 19:22, a quem foi oferecida a
vida eterna e que recusou - disse Longfellow. - O senhor Greene e eu
inclinamo-nos para atribuir a grande recusa ao papa Celestino V, outro
homem que optou pelo caminho da neutralidade ao recusar o cargo de
sumo pontífice, abrindo assim caminho à ascensão do corrupto papa
Bonifácio, responsável último pelo exílio de Dante.
- Isso é confinarmos demasiado o poema de Dante às fronteiras de Itália! -
protestou Lowell. - É típico do nosso caro Greene. É Pilatos. Quase consigo
vê-lo à nossa frente, taciturno, como Dante deve tê-lo visto.
Fields e Holmes tinham permanecido em silêncio durante aquela troca de
opiniões. Então, delicadamente, mas denunciando alguma censura, Fields
disse que o trabalho deles não devia transformar-se numa sessão do clube.
Tinham de encontrar a melhor forma de entender aquelas mortes,
e para isso tinham não só de ler os cantos que originavam as mortes, mas
também meterem-se neles.
Nesse momento, Lowell mostrou-se, pela primeira vez, temeroso diante do
que podia resultar de tudo aquilo.
- Bem, o que sugere?
- Primeiro que tudo - disse Fields -, temos de ver de onde surgiram as
visões de Dante.
Então, enquanto avançavam pela herdade dos Healey, Lowell agarrou no
braço do seu editor.
- «Come la rena quando turbo spira» - sussurrou ele. Fields não entendeu. ,
- Repita lá, Lowell.
Lowell avançou rapidamente e deteve-se onde a escura linha de terra dava
lugar a um círculo de areia branca e solta. Ele curvou-se.
- Aqui! - exclamou, triunfante.
- Sim, sim - disse Richard Healey, que o seguia a curta distância. Assim que
se apercebeu, adoptou uma expressão de espanto. - Como é que sabia isso,
primo? Como é que sabia que foi aqui que o corpo do meu pai foi
encontrado?
- Oh - respondeu Lowell, de forma dissimulada. - Foi fácil. Pareceu-me que
o primo abrandou o passo quando lhe perguntei: «Foi aqui?» - Virou-se
para Fields em busca de apoio. - Não é verdade que abrandou o passo?
- Creio que sim, senhor Healey. - Inspirando, Fields acenou com a cabeça
afirmativamente.
Richard Healey achou que não abrandara.
- Bom, a resposta é sim - disse ele, fazendo os possíveis por não esconder o
fato de estar impressionado com a intuição de Lowell, e de ela lhe inspirar
cautela. - Foi exatamente aqui que aconteceu, primo. Na parte mais
demoniacamente feia do nosso pátio - acrescentou com amargura. Era a
única parte do terreno onde absolutamente nada conseguia crescer.
Lowell riscou a areia com o dedo.
- Foi aqui - disse ele como se estivesse em transe. Pela primeira vez, Lowell
começou a sentir uma verdadeira e crescente simpatia por Healey. Fora ali
abandonado nu para ser devorado. O pior era que ele tivera um fim que
nunca compreendera, nem mesmo a posteriori, e menos ainda a mulher e
os filhos.
Richard Healey julgou ver Lowell prestes a chorar.
- Ele sempre lhe reservou um cantinho no seu coração, primo - disse ele, e
ajoelhou-se ao lado de Lowell.
- O quê? - perguntou Lowell, com a empatia a desvanecer-se rapidamente.
Healey recuou perante aquela resposta brusca.
- O juiz do Supremo Tribunal. O primo era um dos seus parentes favoritos.
Oh, ele lia a sua poesia, fazia-lhe grandes elogios e sentia por ela uma
enorme admiração. E sempre que chegava um novo número da The North
American Review, enchia o cachimbo e lia-a do princípio ao fim. Dizia
reconhecer em si um elevado sentido das coisas verdadeiras.
- Dizia? - perguntou Lowell um pouco desorientado.
Lowell evitou o olhar sorridente do seu editor, e murmurou um elogio
forçado ao rigor da avaliação do juiz do Supremo Tribunal.
Quando eles voltaram para dentro de casa, apareceu um criado com um
embrulho, vindo dos correios. Richard Healey retirou-se.
Fields falou com Lowell à parte, puxando-o rapidamente.
- Como raio sabia você onde o Healey foi morto, Lowell? Nós não falámos
disso nas nossas reuniões.
- Bem, qualquer dantino que se preze consideraria a proximidade do rio
Charles do pátio dos Healey. Lembra-se, os Neutros são encontrados
apenas a algumas varas de Aqueronte, o primeiro rio do Inferno.
- Sim. Mas as notícias do jornal não eram de todo específicas em relação ao
sítio onde, no pátio, ele foi encontrado.
- Os jornais não me serviram nem para acender um charuto -comentou
Lowell, retardando a sua resposta para gozar com a impaciência de Fields. -
Foi a areia que me forneceu a chave.
- A areia?
- Sim, sim. «Come la rena quando turbo spira.» Lembre-se do seu Dante -
censurou-o Lowell. - Imagine-se a entrar no círculo dos Neutros. O que
vemos quando olhamos para a massa de pecadores?
Fields era um leitor prático e tinha tendência para recordar as citações pelo
número das páginas, pelo peso do papel, pela mancha tipográfica e pelo
cheiro do cabedal. Ele conseguia sentir nos dedos os cantos dourados da
sua edição de Dante.
- «Expressões de ira» - Fields declamou cuidadosamente o poema enquanto
ia traduzindo de cabeça -, «palavras de agonia, e vozes que gritavam e que
enrouqueciam...» - Não conseguia lembrar-se. O que ele daria para se
lembrar do que vinha a seguir, para compreender o que agora Lowell sabia
e que tornava a situação menos descontrolada. Ele levava consigo uma
edição de bolso de Dante em italiano, e começou a folheá-la.
Lowell retirou-lha.
- Mais à frente, Fields! «Facevano un tumulto, il qual s'aggira sempre in
quell’aura sanza tempo tinta, come la rena quando turbo spira»: «tudo em
tumulto gira,/naquela aura sem tempo destingida,/como areal que um
turbilhão aspira.»
- Então... - disse Fields, digerindo aquilo. Lowell exalou com impaciência.
- O prado que se estende nas traseiras da casa está cheio de erva ondulante
ou de terra e pedras. Porém, o que foi soprado para os nossos rostos,
quando seguíamos naquela direcção, foi algo muito diferente, areia de
grãos finos e soltos. O castigo dos Neutros acontece no Inferno de Dante,
acompanhado por um tumulto como areal que um turbilhão aspira. Esta
metáfora da areia solta não são palavras vãs, Fields! É o símbolo das
mentes inconstantes e instáveis desses pecadores, que escolheram não
fazer nada quando tinham o poder de agir, e assim, no Inferno, perdem esse
poder!
- Caramba, Jamey! - disse Fields, elevando demasiado a voz. A criada
passava um espanador numa parede contígua, mas Fields não reparou nela.
- Mil vezes caramba! Areia aspirada num turbilhão! Os três tipos de insetos,
a bandeira, o rio próximo, tudo encaixa. Mas a areia? Se o nosso diabo até
consegue representar uma metáfora tão prolixa de Dante na sua atuação...
Lowell anuiu com uma expressão sombria.
- Ele é mesmo um dantino - concluiu com uma ponta de admiração.
- Senhores? - Nell Ranney apareceu junto aos poetas, e ambos deram um
salto para trás.
Lowell perguntou-lhe num tom brusco se ela estivera a ouvir a conversa
deles.
Ela abanou a cabeça robusta com um gesto de protesto.
- Não, meu bom senhor, juro. Mas pergunto-me se... - Ela olhou
nervosamente por cima de um ombro e depois do outro. - Os senhores são
diferentes dos outros que aqui vêm apresentar as condolências. O modo
como observaram a casa... e o pátio onde... Não vêm cá outra vez? Eu
tenho...
Richard Healey voltou e, deixando a frase a meio, a criada atravessou Para
o outro lado do enorme vestíbulo da entrada, como uma mestra da arte
doméstica da evasão.
Ele suspirou pesadamente, esvaziando o seu enorme peito para Metade do
volume.
- Desde que foi anunciada a nossa recompensa, todas as manhãs sinto o
insensato renascer da esperança, mergulhando de cabeça no correio
e pensando realmente que algures a verdade aguarda ser partilhada. - Ele
aproximou-se da lareira e atirou para o seu interior o último monte de
cartas. - Não consigo perceber se as pessoas são cruéis ou simplesmente
loucas.
- Diga-me, querido primo - disse Lowell. - A polícia não tem nenhuma
informação que o possa ajudar?
- A respeitável polícia de Boston. Posso dizer-lhe, primo Lowell, que eles
levaram para a esquadra todos os criminosos demoníacos que conseguiram
encontrar, e sabe no que resultou isso?
Richard aguardou, de fato, por uma resposta. Rouco por causa da
ansiedade, Lowell respondeu que não sabia.
- Bem, então, eu digo-lhe. Um deles saltou de uma janela e matou-se. Já
imaginou? O agente mulato que supostamente tentou salvá-lo disse
qualquer coisa sobre umas palavras que ele sussurrou, mas que não
conseguiu perceber.
Lowell avançou rapidamente e agarrou em Healey como que para tirar
mais dele, sacudindo-o. Fields puxou Lowell pelo casaco.
- Disse um agente mulato? - perguntou Lowell.
- A respeitável Polícia de Boston - repetiu Richard com uma amargura
contida. - Devíamos contratar um detective privado - disse Healey,
franzindo o sobrolho -, mas eles são quase tão demoniacamente corruptos
como a polícia desta cidade.
De um quarto do andar de cima chegaram uns lamentos, e Roland Healey
desceu as escadas a correr até meio, dizendo a Richard que a mãe estava a
ter outro ataque.
Richard saiu rapidamente. Nell Ranney começou a encaminhar-se para
Lowell e Fields, mas, ao vê-la, enquanto subia as escadas, Richard Healey
parou, inclinou-se sobre o largo corrimão e ordenou-lhe.
- Nell, faça o favor de terminar o trabalho na cave. - E esperou que ela
descesse, antes de continuar a subir.
- Então, o agente Rey investigava o homicídio de Healey quando ouviu o
sussurro - disse Fields ao ficar sozinho com Lowell.
- E agora sabemos quem é que lhe sussurrou essas palavras... quem morreu
nesse dia na esquadra da polícia. - Lowell ficou pensativo por breves
instantes. - Temos de saber o que assustou tanto esta criada.
- Cuidado, Lowell. Ela ficará em muitos maus lençóis se o filho de Healey o
vir. - A preocupação de Fields fez com que Lowell ficasse no mesmo sítio. -
Em todo o caso, ele disse que ela anda a imaginar coisas.
No mesmo instante, ouviu-se um estrondo, vindo da cozinha próxima-
Lowell certificou-se de que continuavam sozinhos, e depois dirigiu-se para
a porta da cozinha. Bateu ao de leve, mas não obteve resposta.
Empurrou a porta e ouviu um ruído residual ao lado do fogão; era a
vibração do monta-cargas, que acabara de subir da cave. Ele abriu a
portinhola de almofadas de madeira. Estava vazio de loiça, mas tinha uma
folha de papel.
Passou a correr por Fields.
- O que foi? O que aconteceu? - perguntou-lhe Fields.
- Não podemos chamar burra àquela criada. Tenho de encontrar o
escritório. Fique aqui de vigia, certifique-se que o filho de Healey não volta
já - disse Lowell.
- Mas Lowell! - protestou Fields. - O que faço se ele voltar? Lowell não lhe
respondeu, limitando-se a entregar o bilhete ao editor. O poeta apressou-se
a percorrer as várias salas, espreitando pelas
portas abertas até encontrar uma travada por um canapé. Afastou-o e
entrou rapidamente. A assoalhada fora limpa, mas à pressa, como se a meio
do trabalho a perspectiva de permanecer ali se tivesse tornado demasiado
dolorosa para Nell Ranney ou para alguma das criadas mais jovens. E não
era exatamente por ter sido ali que Healey morrera, mas por causa das
memórias do juiz Healey em vida, contidas na fragrância do cabedal dos
livros antigos.
Lowell conseguia ouvir os gemidos de Ednah Healey, que chegavam do
andar de cima num terrível crescendo, e tentou ignorar que se
encontravam numa casa enlutada.
Permanecendo de pé no vestíbulo, Fields leu o bilhete escrito por Nell
Ranney: Eles disseram-me para guardar isto para mim, mas não consigo, e
não sei a quem contar. Quando trouxe o juiz Healey para o seu escritório,
ele murmurou ainda nos meus braços antes de morrer. Alguém me pode
ajudar?
- Oh, meu Deus! - exclamou Fields, involuntariamente deixando cair o
bilhete. - Ele ainda estava vivo!
No escritório, Lowell ajoelhou-se e encostou a cabeça ao chão.
- Você ainda estava vivo - sussurrou ele. - O grande recusador. Foi por isso
que o mataram. - Ele falava como se se dirigisse com amabilidade a
Artemus Healey. - O que lhe disse Lúcifer? Tentou dizer alguma coisa à sua
criada quando ela ó encontrou. Ou estava a tentar perguntar alguma coisa?
- Ele viu manchas de sangue no chão. E viu mais qualquer coisa ao longo do
rebordo do tapete - larvas de mosca-varejeira esmagadas, semelhantes a
vermes, partes de estranhos insetos, que Lowell não conseguiu reconhecer,
as asas e os tórax de alguns dos insetos de olhos ígneos, que Nell Ranney
estripara por cima do corpo do juiz Healey. Ele remexeu na secretária cheia
de coisas de Healey até encontrar uma lupa, e focou-a por cima dos insetos.
Também eles tinham vestígios de sangue do juiz.
De repente, de baixo de umas pilhas de papéis, que estavam atrás da
secretária, saíram quatro ou cinco moscas de olhos ígneos, que se dirigiram
em fila para Lowell.
Ele arquejou furiosamente, tropeçou numa cadeira pesada, golpeou a perna
no ferro fundido de um chapéu-de-chuva e caiu no chão.
Apoderou-se de Lowell a sede da vingança, e arremessou metodicamente
um pesado livro de Direito sobre cada uma das moscas.
- Não pensem que conseguem assustar Lowell. - Então, sentiu uma ligeira
picadela acima do tornozelo. Uma mosca esgueirara-se para dentro de uma
das pernas das suas calças, e quando Lowell a levantou, desorientada, a
mosca voou de um lado para o outro, tentando fugir. Lowell esmagou-a
contra o tapete com o tacão da sua bota, experimentando um prazer
infantil. Foi então que reparou num abrasão vermelho imediatamente
acima do tornozelo, onde se ferira no chapéu-de-chuva.
- Malditas sejam - exclamou ele à defunta infantaria de moscas. Depois
ficou imóvel a observar como as cabeças das moscas pareciam ter
expressões de homens mortos.
Fields murmurou-lhe do exterior para que se despachasse. Com uma
respiração entrecortada, Lowell ignorou as advertências até se ouvirem
vozes e passos vindos do andar de cima.
Lowell retirou do bolso o seu lenço, bordado por Fanny Lowell com as
letras JRL, e depositou nele os insetos que acabara de matar, bem como
outras partes de insetos que conseguira encontrar. Guardando essa carga
no casaco, ele saiu a correr do escritório. Fields ajudou-o a pôr novamente
o canapé no mesmo sítio quando já se aproximavam as vozes dos seus
angustiados primos.
O editor estava ansioso por ouvir as novidades.
- Então? Então, Lowell? Encontrou alguma coisa?
Lowell deu umas palmadas leves no bolso onde pusera o lenço.
- Provas, meu caro Fields.

IX




A SEMANA QUE SE SEGUIU AO FUNERAL DE ELISHA TALBOT,

N todos os sacerdotes da Nova Inglaterra fizeram, nas suas homilias,


um elogio ao par falecido. No domingo seguinte, os sermões
centraram-se no mandamento «Não matarás».
Quando pareceu que os homicídios de Talbot e de Healey não tinham
nenhuma resolução à vista, os pastores de Boston pregaram sobre todos os
pecados cometidos desde antes da guerra, culminando no poder do Juízo
Final, invectivas contra o trabalho inútil do departamento da polícia com
uma hipnótica fogosidade, que teria feito chorar de orgulho Talbot, o velho
tirano do púlpito de Cambridge.
Os jornalistas perguntavam como era possível assassinar-se dois ilustres
cidadãos sem quaisquer consequências. Para onde fora o dinheiro que a
assembleia de vereadores votara para melhorar a eficácia da polícia? Para
os reluzentes números prateados dos uniformes dos oficiais, como dizia
sarcasticamente um jornal. Por que motivo aprovara a câmara municipal a
petição de Kurtz para que fosse permitido aos policiais andarem armados,
se não conseguiam encontrar os criminosos contra quem podiam usá-las?
Nicholas Rey leu com interesse esta e outras críticas na sua secretária do
Comissariado Central da Polícia. Na verdade, o departamento da polícia
estava a fazer alguns progressos reais. Tinham sido instaladas campainhas
de alarme para chamar toda a força policial, ou uma parte dela, a qualquer
zona da cidade. O chefe também arranjara sentinelas e moços de recados
para entregarem constantes informações no Comissariado Central, onde
todos os policiais aguardavam o mínimo sinal de um Potencial problema.
Em privado, Kurtz perguntou ao agente Rey qual era a avaliação que fazia
dos homicídios. Rey considerou a situação. Ele tinha o raro dom de homem
de permanecer em silêncio antes de falar, de modo a dizer exatamente
aquilo que tencionava. - Quando um soldado era apanhado a tentar
desertar do exército, toda a divisão fazia a formatura num campo,
onde estava uma sepultura aberta e um caixão ao lado dela. O desertor
marchava à nossa frente com um capelão ao lado, e era-lhe ordenado que
se sentasse no caixão, onde lhe eram vendados os olhos e atadas as mãos e
os pés. Um pelotão de fuzilamento, composto pelos seus próprios
companheiros, alinhava-se e aguardava a voz de comando. Prontos,
apontar... À voz de fogo, ele caía morto dentro do caixão, sendo enterrado
naquele mesmo sítio, sem qualquer indicação no chão. Voltávamos para o
acampamento de arma ao ombro.
- O Healey e o Talbot podem ser considerados exemplos de alguma coisa? -
Kurtz parecia céptico.
- Podiam simplesmente ter disparado sobre o desertor na tenda do general
de brigada ou na mata, ou obrigá-lo a ser presente a um conselho de guerra.
A encenação pública tinha como objectivo mostrar-nos que o desertor era
abandonado, tal como ele próprio abandonara as nossas fileiras. Os donos
de escravos utilizavam tácticas semelhantes para dar o exemplo aos
escravos que tentavam fugir. O fato de o Healey e o Talbot terem sido
assassinados podia ser secundário. A primeira coisa e a mais importante
que se nos deparam é o castigo destes homens. É suposto nós estarmos na
formatura e observarmos.
Kurtz sentia-se fascinado, mas não se dava por vencido.
- Suponhamos que é assim. Mas castigos dados por quem, senhor agente? E
por que faltas? Se alguém queria dar-nos lições com estes atos, o lógico era
que tivesse atuado de modo a conseguirmos entendê-los. O corpo nu
abandonado debaixo de uma bandeira. Os pés queimados. Isto não faz
qualquer sentido!
«Contudo, eles devem fazer sentido para alguém», pensou Rey. Talvez ele e
Kurtz não fossem as pessoas indicadas com quem falar.
- O que sabe o senhor sobre Oliver Wendell Holmes? - perguntou Rey a
Kurtz durante outra conversa, enquanto descia ao lado do chefe da polícia a
escadaria do Parlamento, e se dirigiam para o fiacre que os aguardava.
- Holmes - repetiu Kurtz, encolhendo os ombros com indiferença. -Poeta e
médico. Um tavão social. Era amigo do velho professor Webster antes de
ele ser enforcado. Um dos últimos a admitir a culpabilidade do Webster.
Contudo, não foi de um grande auxílio na investigação judicial do Talbot.
- Não foi, não - disse Rey, lembrando-se do nervosismo de Holmes ao ver os
pés de Talbot. - Creio que ele não estava bem, que sofria de asma.
- Sim... asma mental - disse Kurtz.
Depois da descoberta do corpo de Talbot, Rey mostrara ao chefe Kurtz as
duas dúzias de pedaços de papel, que apanhara do chão, junto à sepultura
vertical de Talbot.
Eram quadrados pequenos, cada um deles não sendo maior do que a cabeça
de uma tacha de tapete e contendo, pelo menos, uma letra impressa, e
alguns deles revelando também no verso sinais de impressão claramente
discerníveis. Alguns estavam manchados e era impossível reconhecer o que
tinham escrito por causa da humidade permanente da cripta funerária.
Kurtz ficou surpreendido com o interesse de Rey pelo lixo. Aquele era um
aspeto desfavorável para a confiança geral que tinha no seu agente mulato.
Mas Rey pousou cuidadosamente os pedaços de papel em cima da mesa.
Aqueles desperdícios tinham importância, e ele tinha a certeza que tinham
um significado qualquer, tinha tanta certeza disso como a que tivera ao
ouvir o sussurro do saltador. Ele já conseguira identificar o conteúdo de
doze dos fragmentos: e, di, ca, t, I, vic, B, as, im, n, y, e outro e. Um dos
pedaços manchados tinha a letra g, embora, na verdade, também pudesse
ser um q.
Quando Rey não transportava o chefe Kurtz aos encontros com conhecidos
dos falecidos ou a reuniões com capitães da polícia, aproveitava alguns
minutos livres para retirar os papelinhos do bolso das calças e espalhá-los
em cima da mesa. Por vezes, conseguia formar palavras, e anotava
pontualmente num bloco de notas as frases que iam surgindo. Fechava os
seus olhos dourados com toda a força e abria-os muito logo de seguida na
esperança inconsciente de que as letras se ordenassem por si mesmas,
explicando assim o que acontecera ou o que devia ser feito, como as tabelas
dos espiritas, que, conforme se dizia, pronunciavam as palavras dos mortos
quando se recorria a um médium bastante dotado como intermediário.
Uma tarde, Rey colocou as últimas palavras do saltador do comissariado,
pelo menos como o agente as transcrevera, no meio da nova confusão de
letras, na esperança de as duas vozes perdidas terem alguma coisa em
comum.
Ele tinha uma combinação favorita para os fragmentos soltos de letras: I
cant die as im... (Não posso morrer como im...) Rey parava sempre neste
ponto, mas, não haveria saída? Experimentou com outra combinação: Be
vice as I... (Ser imperfeito como eu...) O que fazia com aquele pedaço
rasgado com um g ou um q?
Todos os dias, o Comissariado Central da Polícia era inundado de cartas
com uma tão grande convicção, que se esperaria delas que respondessem a
todas as perguntas, mas acabando por não revelar o mais pequeno vestígio
de credibilidade. O chefe Kurtz encarregou Rey da tarefa de verificar aquela
correspondência, em parte para o afastar do «lixo».
Cinco pessoas garantiam ter visto o juiz do Supremo Tribunal no Music Hall
uma semana antes da descoberta do seu martirizado corpo.
Rey localizou o estupefato indivíduo em questão pelo número dos seus
bilhetes para a temporada teatral. Era um pintor de charretes da Roxbury
com uma massa de caracóis rebeldes, um pouco semelhantes aos do juiz.
Uma carta anónima informava a polícia que o homicida do reverendo
Talbot, conhecido e parente afastado do remetente, embarcara para
Liverpool, com um capote do qual se havia apoderado sem pedir
autorização, e aí o trataram de forma indecente, nunca mais se ouvindo
falar dele (nunca mais tendo o casaco, provavelmente, voltado à posse do
seu legítimo dono). Outro bilhete garantia que, espontaneamente, uma
mulher confessara numa alfaiataria ter assassinado o juiz Healey num
acesso de ciúmes, e depois fugira para Nova Iorque de comboio, onde podia
ser encontrada num dos quatro hotéis a seguir inumerados.
No entanto, quando Rey abriu com um rasgão uma carta anónima que tinha
apenas duas frases, experimentou a estimulante sensação de ter feito uma
descoberta. O envelope e o papel eram de boa qualidade, e a mensagem
estava escrita numa caligrafia grossa e com um traço deficiente; um
disfarse discreto da verdadeira letra do remetente:
«Escave mais fundo no buraco do reverendo Talbot. Ficou algo esquecido
por baixo da sua cabeça.»
O bilhete terminava assim: «Respeitosamente, um cidadão desta cidade.»
- Algo esquecido? - comentou Kurtz, num tom motejador.
- Aqui não se pretende provar nada, nem se quer inventar história
nenhuma - respondeu Rey com um entusiasmo que não lhe era habitual. - O
autor tem simplesmente algo a dizer. E, lembre-se, as notícias dos jornais
diferiram muito sobre o que acontecera ao Talbot. Agora devemos usar isso
como uma vantagem nossa. Esta pessoa conhece as verdadeiras
circunstâncias, ou, pelo menos, sabe que o Talbot foi enterrado num
buraco, e que estava de cabeça para baixo. Olhe aqui, chefe. - Rey leu em
voz alta e sublinhou: - «Por baixo da sua cabeça.»
- Rey, com a quantidade de problemas que eu tenho! O Transcript
descobriu alguém na câmara municipal, que confirmou que o Talbot foi
encontrado com as roupas dobradas numa pilha ao seu lado, tal como o
Healey. Eles vão publicá-lo amanhã, e toda esta maldita cidade vai saber
que estamos aqui a lidar só com um assassino. As pessoas não vão começar
a exclamar «um delito!»; elas vão querer o nome de alguém. - Kurtz voltou a
olhar para a carta. - Bem, então, suponhamos que esta carta nos diz que
podemos encontrar «qualquer coisa» no buraco do Talbot. Então, por que
razão ela não diz que «coisa» podemos encontrar no buraco do Talbot? E,
por que razão o seu cidadão não vem ao nosso comissariado dizer-me na
cara o que sabe?
Rey não respondeu.
- Deixe-me dar uma vista de olhos na cripta funerária, chefe Kurtz. Kurtz
abanou a cabeça.
- Rey, você sabe como fomos censurados por todos os malditos púlpitos da
comunidade. Não podemos ir escavar na cripta funerária da Segunda Igreja
à procura de recordações imaginárias!
- Deixamos o buraco intato para a eventualidade de ser preciso fazer outra
observação - argumentou Rey.
- Basta. Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre esse assunto, senhor
agente.
Rey anuiu, mas a sua expressão de certeza não esmoreceu. As obstinadas
recusas do chefe Kurtz não podiam competir com a convita desaprovação
silenciosa de Rey. Ao fim da tarde, Kurtz agarrou no seu sobretudo,
encaminhou-se para a secretária de Rey, e ordenou-lhe: - Senhor agente,
Segunda Igreja Unitarista, em Cambridge. Um novo sacristão, um
cavalheiro com aspeto de comerciante, com patilhas ruivas, apressou-se a
deixá-los entrar. Ele explicou-lhes que o seu antecessor, o sacristão Gregg,
estava cada vez mais perturbado, desde que descobrira o corpo do Talbot,
tendo renunciado àquelas tarefas para tratar da sua saúde. O sacristão
procurou desajeitadamente as chaves da cripta funerária subterrânea.
- É bom que saia daqui alguma coisa - Kurtz advertiu Rey quando o cheiro
nauseabundo da cripta chegou até eles. E saiu.
Apenas após alguns golpes com uma pá de cabo comprido, Rey desenterrou
a bolsa com o dinheiro, exatamente do sítio onde Long-fellow e Holmes
tinham voltado a enterrá-la.
- Mil. Exatamente mil, chefe Kurtz - disse Rey, contando o dinheiro sob a luz
viva de uma lanterna a gás. - Chefe - disse Rey, apercebendo-se de algo
notável. - Chefe Kurtz, o Comissariado Central da Polícia de Cambridge... na
noite em que o corpo do Talbot foi encontrado. Lembra-se do que eles nos
disseram? O reverendo comunicou o roubo do seu cofre justamente na
véspera do homicídio.
- Quanto é que lhe tinham levado do cofre?
Rey fez um sinal com a cabeça na direcção do dinheiro.
- Mil. - Kurtz suspirou, fazendo um gesto de incredulidade. - Bem, não sei se
isto nos ajuda ou se nos baralha tudo ainda mais. Diabos me levem, se o
Langdon W. Peaslee ou o Willard Burndy abriram o cofre de um pastor
numa noite e o mataram na noite seguinte, e, supondo que o faziam, se
deixavam o dinheiro para que o Talbot o gozasse no túmulo!
Foi então que Rey quase tropeçou num ramo de flores, a lembrança a'i
deixada por Longfellow. O agente pegou nele e mostrou-o a Kurtz.
- Não, não, não deixei entrar mais ninguém naquela cripta -garantiu-lhes o
novo sacristão, já de volta à sacristia. - Tem estado fechada desde o...
sucedido.
- Então, talvez o seu antecessor a tenha aberto. Sabe onde podemos
encontrar o senhor Gregg? - perguntou o chefe Kurtz.
- Aqui mesmo. Todos os domingos, com toda a certeza - respondeu o
sacristão.
- Bem, quando ele cá voltar, faça o favor de lhe pedir para contatar
connosco imediatamente. Até tem o meu cartão. Se ele deixou cá entrar
alguém, temos de saber.
Novamente no Comissariado Central da Polícia, havia muito que fazer. O
agente da polícia de Cambridge a quem o reverendo Talbot apresentara a
queixa do roubo tinha de ser novamente interrogado; eles tinham de seguir
o rasto das notas junto dos bancos para confirmar que provinham do cofre
de Talbot; indagar junto da vizinhança de Talbot para ver se encontravam
alguma informação relativa à noite em que o seu cofre fora arrombado, e
arranjar um perito em caligrafia que analisasse o bilhete que fornecera
aquela informação.
Rey via que Kurtz estava a sentir-se genuinamente optimista, talvez pela
primeira vez, desde que soubera da morte de Healey. Ele sentia-se quase
aturdido.
- É isto que caracteriza um bom polícia, Rey... uma ponta de instinto. Por
vezes, é tudo o que temos. Temo que se desvaneça a cada decepção na vida
e na carreira. Eu teria deitado fora esse bilhete juntamente com os outros
disparates, mas você não. Por isso, diga-me. O que devemos fazer, que
ainda não tenhamos feito?
Rey sorriu agradecido.
- Tem de haver alguma coisa. Vá, vá.
- Não vai gostar do que lhe vou dizer, chefe - respondeu-lhe Rey. Kurtz
encolheu os ombros.
- Desde que não esteja relacionado com os seus malditos pedaços de papel.
Normalmente, Rey recusava pedir favores, mas havia algo que ele ansiava.
Caminhou até à janela, que emoldurava as árvores do exterior do
Comissariado, e olhou-as.
- Ali fora há um perigo que ainda não conseguimos percepcionar, chefe.
Alguém que foi trazido para o nosso comissariado sentiu-o como algo mais
forte do que a própria vida. Quero saber quem era o indivíduo que morreu
no nosso pátio.
Oliver Wendell Holmes estava satisfeito por ter uma tarefa que lhe era
apropriada. Ele não era entomólogo nem naturalista, e interessava-se pelo
estudo científico dos animais apenas na medida em que revelavam mais
acerca das particularidades dos seres humanos, e, em particular, dele
próprio. Contudo, dois dias depois de Lowell lhe ter entregue a miscelânea
de insetos e larvas esmagadas, o doutor Holmes já tinha reunido todos os
livros sobre insetos que conseguira arranjar nas melhores bibliotecas
científicas de Boston, e iniciara estudos intensivos.
Entretanto, Lowell marcou um encontro com a criada dos Healey, Nell, em
casa da irmã dela nos arredores de Cambridge. Ela contou-lhe como fora
encontrar o juiz do Supremo Tribunal, como lhe parecera que ele queria
falar mas só conseguira gorgolejar antes de morrer. Ela caíra de joelhos ao
ouvir o som da voz de Healey, como se tivesse sido atingida por um
qualquer poder divino, e começara a andar de gatas.
Quanto à descoberta na igreja de Talbot, o Clube de Dante decidiu que tinha
de ser a polícia a desenterrar sozinha o dinheiro depositado na cripta
funerária. Holmes e Lowell tinham sido contrários a essa decisão. Holmes,
por receio, e Lowell, por um sentimento de posse. Longfellow instigou os
seus amigos a não verem a polícia como um rival, ainda que pudesse ser
perigoso o conhecimento das suas actividades por parte dela. Todos
trabalhavam com a mesma finalidade - parar com os homicídios. No
entanto, o Clube de Dante trabalhava, principalmente, com o que conseguia
encontrar em sentido literal, e a polícia com o que conseguia encontrar
fisicamente. Assim, depois de voltar a enterrar a bolsa com os seus
inestimáveis mil dólares, Longfellow redigira uma nota breve, e dirigira-a
ao departamento do chefe da polícia: Escavem mais fundo... na esperança
que alguém perspicaz no comissariado visse o bilhete e compreendesse o
suficiente, e, quem sabe, descobrisse algo mais sobre o crime. Quando
Holmes terminou o seu estudo sobre os insetos, Longfellow, Fields e Lowell
reuniram-se em sua casa. Embora, das janelas do seu escritório, Holmes
conseguisse ver todos os convidados que chegavam ao n.o 21 da Charles
Street, ele gostava da formalidade de a sua criada irlandesa instalar os
recém-chegados no pequeno gabinete da entrada, e depois subisse para os
anunciar. Só então, Holmes se apressava a descer as escadas.
- Longfellow? Fields? Lowell? Aqui estão? Subam, subam! Deixem-me que
vos mostre em que tenho estado a trabalhar.
O escritório requintado estava mais organizado do que a maioria das casas
dos autores, com livros alinhados do chão até ao teto, muitos deles -
considerando a estatura de Holmes -, acessíveis apenas com o auxílio de
uma escada corrediça, que ele mandara fazer.
Holmes mostrou-lhes a sua última invenção, umas estantes ao alcance da
mão, no canto da secretária, para que não tivesse de se levantar para ir
buscar qualquer coisa.
- Muito bem, Holmes - disse Lowell a olhar em direcção aos microscópios.
Holmes preparou um escaparate.
- Desde que existem os seres vivos que a natureza colocou em todas as suas
oficinas de trabalho a inscrição ENTRADA PROIBIDA. Se algum observador
indiscreto se aventurava a espiar os mistérios das suas glândulas, canais e
fluidos, ela cobria a sua obra com névoas ofuscantes e halos
desconcertantes, como as divindades da antiguidade.
Ele explicou que os espécimes eram larvas que davam origem a moscas-
varejeiras, tal como Barnicoat, o magistrado encarregue da investigação,
dissera no dia em que o cadáver fora encontrado. Este tipo de mosca põe os
ovos em tecido morto. Depois, eles transformam-se em larvas de varejeira,
que ingerem carne em decomposição, transformando-se, por sua vez, em
moscas, e reiniciando então todo o ciclo.
Baloiçando-se numa das cadeiras de Holmes, Fields contestou:
- Mas, segundo a criada, Healey disse qualquer coisa antes de morrer. Isso
significa que ele ainda estava vivo! Embora eu ache que tinha a vida por um
fio. Quatro dias depois de ter sido atacado... e com todos os orifícios do seu
corpo repletos de larvas.
Holmes teria sentido repulsa só de pensar em tamanho sofrimento, se a
ideia não fosse tão fantástica. Ele abanou a cabeça.
- Felizmente para o juiz Healey e a Humanidade, isso não podia ter
acontecido. De qualquer forma, mesmo que só houvesse um punhado de
larvas de varejeira, digamos umas quatro ou cinco, na superfície da sua
cabeça ferida, teria sido necessária a presença de algum tecido morto, ou
então ele não estava vivo. Com as larvas de varejeira a alimentarem-se no
seu interior nas quantidades tão maciças como as que foram relatadas,
todo o tecido devia estar morto. Ele estava morto.
- Talvez a criada tenha fantasiado - sugeriu Longfellow ao ver a expressão
derrotada de Lowell.
- Se você a visse, Longfellow - disse Lowell. - Se você tivesse visto o brilho
nos olhos dela, Holmes. Fields, você estava lá!
Fields anuiu com a cabeça, embora agora estivesse menos certo disso.
- Ela viu algo horrível, ou pensou vê-lo.
Lowell cruzou os braços num gesto de desaprovação.
- Ela é a única pessoa que sabe, por Deus. Eu acredito nela. Nós temos de
acreditar nela.
Holmes falou com autoridade. Pelo menos, as suas descobertas impunham
uma certa ordem - uma certa razão - às suas actividades. - Desculpe, Lowell.
Não há dúvida que ela presenciou algo horrível... o estado em que se
encontrava Healey. Mas isto... isto é ciência pura.
Mais tarde, Lowell apanhou a charrete de volta a Cambridge. Ele avançava
sob um dossel escarlate com rebordos descaídos, contrariado com a sua
incapacidade para evitar que o relato da criada fosse posto de lado, quando
Phineas Jennison, o grande príncipe do comércio de Boston, passou no seu
luxuoso fiacre. Lowell franziu o sobrolho. Ele não estava com estado de
espírito para ter companhia, embora, em parte, também ansiasse distrair-
se.
- Olá! Venha de lá essa mão! - E Jennison estendeu-lhe a sua manga de bom
corte pela janela, enquanto os seus lustrosos cavalos de cor baia
abrandavam o passo, reduzindo-o a um despreocupado trote.
- Meu caro Jennison - disse Lowell.
- Oh, que prazer apertar a mão a um velho amigo! - disse Jennison com
sinceridade. Embora não possuísse o aperto de mão de Lowell, que parecia
atarraxar-lha, Jennison usou a forma mais ávida dos homens de negócios de
Boston, um gesto semelhante ao que agita uma garrafa. Ele desceu e bateu
com os nós de dois dedos na portinhola verde da charrete alugada para que
o cocheiro a abrisse.
O sobretudo branco luzidio de Jennison estava descuidadamente abotoado,
revelando uma sobrecasaca vermelho-escura por cima de um colete verde
de veludo. Ele agarrou Lowell pelo braço.
- Vai a caminho de Elmwood?
- Confesso, milorde - respondeu Lowell.
- Diga-me, a Corporação que você acusa, ainda o deixa dar esse seu curso
sobre Dante? - perguntou Jennison com uma séria preocupação espelhada
no seu rosto voluntarioso.
- Felizmente, julgo que ela cedeu um pouco - disse Lowell com um suspiro. -
Só espero que o fato de eu ter suspendido esse curso, não a leve a
interpretar isso como uma vitória sua.
Jennison parou no meio da rua com o rosto pálido. Falou em voz baixa,
apoiando a palma da mão na barba por baixo da sua covinha.
- Lowell, é o mesmo Jammy Lowell que foi expulso para Concord Por
desobediência, quando estava em Harvard? Que resultou do confronto com
Manning e a Corporação, em nome dos futuros génios da América do
Norte? Você tem de fazer alguma coisa, ou eles...
- Não há nada a fazer com esses intratáveis colegas - garantiu-lhe Lowell. -
Neste momento tenho de me dedicar a uma coisa que exige toda a minha
atenção, e não posso ocupar-me dos seminários. Limito-me a dar as aulas
curriculares.
- Um gato doméstico não serve, se o que se pretende é um tigre de Bengala!
- comentou Jennifer, agitando a mão, satisfeito por se ter lembrado de uma
imagem muito mais poética.
- Essa não é a minha forma de atuar, Jennison. Não sei como é que você atua
com homens como os tipos da Corporação. Uma pessoa lida
constantemente com mandriões e cretinos.
- E são diferentes dos do mundo dos negócios? - Jennison mostrou o seu
sorriso rasgado. - Aqui está o segredo, Lowell. Você arma uma bronca até
conseguir o que procura... é esse o segredo. Você sabe o que é importante, o
que tem de ser feito, e tudo o mais que vá para o diabo! - acrescentou ele
com fervor. - Agora, se eu o puder ajudar de alguma forma na sua luta, se
puder ajudar de algum modo...
Por breves segundos, Lowell esteve tentado a contar tudo a Jennison e a
pedir-lhe ajuda, embora não soubesse exatamente de que tipo. O poeta era
péssimo em termos de finanças, sempre a esbanjar o seu dinheiro em
investimentos insensatos, de tal forma que lhe parecia que os homens de
negócios de sucesso detinham poderes sobrenaturais.
- Não, não, já encontrei mais ajuda para as minhas lutas do que uma boa
consciência permitiria, mas agradeço-lhe na mesma. - Lowell deu umas
palmadinhas no ombro do milionário, coberto por um fino tecido londrino.
- Além disso, o jovem Mead deve estar grato por poder descansar de Dante.
- Todas as boas batalhas necessitam de um aliado forte - disse Jennison,
decepcionado. Depois, pareceu querer revelar algo que não podia. -
Observei o doutor Manning. Ele não vai parar a sua campanha, por isso,
você não pode parar nunca. Não confie no que eles lhe dizem. Lembre-se
desta minha advertência.
Lowell apercebeu-se de uma atmosfera negra de ironia depois de falar na
aula, por cuja manutenção lutara ao longo de tantos anos. Um pouco mais
tarde, nesse mesmo dia, voltou a sentir a mesma estranha confusão que
sentira no dia em que transpusera os portões brancos de madeira de
Elmwood, a caminho da casa de Longfellow.
- Professor!
Ao virar-se, Lowell viu um jovem com a sua capa preta universitária a
correr de punhos no ar, cotovelos junto às costelas e a boca aberta numa
expressão grave.
- Senhor Sheldon? O que faz o senhor aqui?
- Tenho de lhe falar, imediatamente - O caloiro arfava por causa do esforço.
Longfellow e Lowell tinham passado a última semana a fazer listas de todos
os antigos alunos das suas aulas sobre Dante. Não podiam utilizar os
arquivos oficiais de Harvard, porque se arriscavam a atrair as atenções.
Aquela fora uma tarefa particularmente trabalhosa para Lowell, que
perdera os seus arquivos, e só se lembrava de alguns nomes e de nenhum
período em concreto. Até um estudante de há alguns anos podia receber a
saudação mais calorosa ao encontrar-se com Lowell na rua. - Meu rapaz! - e
depois: - Repita-me lá o seu nome? Felizmente, os seus dois estudantes
atuais, Edward Sheldon e Pliny Mead, ficaram imediatamente livres de
qualquer possível suspeita, porque Lowell fora professor deles no
seminário sobre Dante em Elmwood, coincidindo (de acordo com os seus
cálculos mais rigorosos) com o homicídio do reverendo Talbot.
- Professor Lowell, recebi esta nota pelo correio! - Sheldon deslizou uma
pequena folha de papel para a mão de Lowell. - Um engano?
Lowell olhou-o de relance com indiferença.
- Não foi engano nenhum. Tenho alguns assuntos a tratar, que me ocuparão
todo o meu tempo, mas só por uma ou duas semanas, ou assim o espero.
Não tenho a menor dúvida que você está suficientemente ocupado para
afastar Dante do seu espírito durante esse período.
Sheldon abanou a cabeça desapontado.
- Mas, e o que o senhor nos diz sempre? O seu círculo de admiradores
aumentou tanto ao ponto de o levar a dar um pouco de descanso ao errante
Dante? Não terá o senhor cedido diante da Corporação? Não estará o
senhor cansado de estudar Dante, Professor? - pressionou-o o estudante.
Lowell sentiu-se estremecer perante a pergunta. - Não conheço nenhum ser
pensante que consiga cansar-se de Dante, meu jovem Sheldon! Poucos
homens têm entendimento suficiente para, por si mesmos, penetrarem
numa vida e obra com tal profundidade. Cada vez o admiro mais como
homem, poeta e mestre. Nos nossos momentos de maior tristeza, ele dá-nos
a esperança de uma segunda oportunidade. E até me encontrar com o
próprio Dante no primeiro círculo do Purgatório, dou-lhe a minha palavra
de honra que nunca cederei um milímetro perante os malditos tiranos da
Corporação! Sheldon engoliu em seco.
- Então, o senhor não se vai esquecer do meu entusiasmo em continuar a
estudar a Comédia?
Lowell pôs o braço por cima do ombro de Sheldon e caminharam juntos.
- Sabe, meu rapaz, há uma história que Boccaccio conta sobre uma mulher
que passava em frente de uma porta em Verona, onde Dante esteve exilado.
Ela viu Dante do outro lado da rua, e apontou para ele, chamando a atenção
de outra mulher, dizendo, «Aquele ali é Alighieri, o homem que vai ao
Inferno quando lhe apetece e traz notícias dos mortos.» Ao que a outra
respondeu, «É bem provável. Não vês a barba encaracolada e a tez escura
que ele tem? Eu diria que isso se deve ao calor e ao fumo!»
O estudante explodiu em sonoras gargalhadas.
- Consta que esta conversa - prosseguiu Lowell - fez sorrir Dante. Sabe
porque duvido da veracidade desta história, meu rapaz?
Sheldon reflectiu sobre a questão com a mesma expressão séria que fazia
durante as suas aulas sobre Dante.
- Talvez, Professor, porque essa mulher de Verona, na verdade, ignorava o
conteúdo do poema de Dante - sugeriu ele -, já que só um número reduzido
de contemporâneos seus, a começar pelos seus defensores, teriam visto o
manuscrito antes de ele morrer, e mesmo esses teriam lido apenas curtos
fragmentos.
- Nem por um instante acredito que Dante sorrisse - respondeu Lowell,
confiante.
Sheldon começou a responder, mas Lowell levantou o chapéu e prosseguiu
o seu caminho para Craigie House.
- Lembre-se do meu entusiasmo, está bem! - gritou Sheldon atrás dele.
Sentado na biblioteca de Longfellow, o doutor Holmes fitava uma
surpreendente fotografia impressa no jornal, uma iniciativa de Nicholas
Rey, que mostrava o homem que morrera no pátio do Comissariado Central
da Polícia. A notícia do jornal não fazia qualquer referência ao incidente,
mas reproduzia o rosto cavado e os cabelos desgrenhados do saltador,
como estava pouco antes do reconhecimento, e pedia-se que qualquer
informação sobre a família daquele homem fosse comunicada ao gabinete
do chefe da polícia.
- Quando é que se espera encontrar a família de um homem, em vez do
próprio homem? - perguntou Holmes aos outros. - Quando ele morreu - ele
próprio deu a resposta.
Lowell examinou-lhe as feições.
- Não creio que alguma vez tenha visto um homem com um aspeto tão
triste. E este assunto é suficientemente importante para envolver o chefe
da polícia. Wendell, acho que você tem razão. O filho de Healey
disse que a polícia ainda não tinha identificado o homem que sussurrou
algumas palavras ao agente Rey, antes de se atirar da janela. Faz todo o
sentido que tenham querido pôr um anúncio no jornal.
O editor do jornal devia um favor a Fields, por isso, ele apareceu-lhe no
escritório, situado no centro da cidade. Informaram-lhe que fora um agente
da polícia mulato quem pusera o anúncio.
- Nicholas Rey - Fields achou aquilo estranho. - Depois de tudo o que se
dissera a propósito de Healey e Talbot, parecia um pouco estranho que um
polícia gastasse energias com a morte de um vagabundo. - Ceavam em casa
de Longfellow - Havia alguma forma de eles saberem que existia uma
ligação entre os homicídios? Podia esse agente da polícia ter alguma ideia
do que o homem lhe sussurrara?
- É duvidoso - disse Lowell. - Mas, se assim fosse, isso podia bem conduzi-lo
até nós.
Holmes ficou nervoso com aquilo.
- Então, temos de descobrir a identidade desse homem antes do agente
Rey!
- Bem, então, façamos seis brindes a Richard Healey. Agora sabemos por
que razão Rey veio ter connosco com os hieróglifos - disse Fields. -Esse
saltador foi levado para a esquadra para fazer o reconhecimento com uma
horda de outros mendigos e ladrões. Os agentes tê-los-ão interrogado
sobre o homicídio de Healey. Podemos concluir que esse pobre diabo
reconheceu Dante, se assustou, disse ao ouvido de Rey alguns versos em
italiano, justamente do canto que inspirou o homicídio, e começou a
correr... uma corrida que terminou com a sua queda da janela.
- O que o pode ter assustado assim tanto? - questionou-se Holmes.
- Podemos ter a certeza que não foi ele o assassino, porque morreu duas
semanas antes do homicídio de Talbot - disse Fields.
Lowell puxou o bigode pensativamente.
- Sim, mas podia ter conhecido o assassino, e temer a sua associação com
ele. Provavelmente, conhecia-o muito bem, se é que foi isso mesmo que
aconteceu.
- Ele tinha medo do que sabia, tal como nós. Mas como podemos nós
descobrir quem ele era antes da polícia? - perguntou Holmes.
Longfellow estivera "em silêncio durante esta conversa. Agora especificava:
- Nós possuímos duas vantagens naturais sobre a polícia para
descobrirmos a identidade desse homem, meus amigos. Sabemos que ele
reconheceu a inspiração de Dante nos terríveis pormenores do homicídio, e
que, durante esses seus momentos de crise, os versos do poeta brotaram
imediatamente da sua boca.
Assim, podemos concluir de tudo isto a probabilidade de ser um mendigo
italiano com uma boa formação literária e católica.
Um homem com barba de três dias e um chapéu enterrado até aos olhos e
orelhas jazia ao lado da Catedral da Santa Cruz, um dos templos católicos
mais antigos de Boston, tão imóvel na sua atitude como uma imagem
sagrada. Ele estava estendido na posição mais cómoda que os ossos
humanos permitem num passeio, e junto dele estava um tacho com comida.
Um transeunte que passava fez-lhe uma pergunta, mas ele nem sequer
virou a cabeça, quanto mais dignar-se a responder.
- Senhor. - Nicholas Rey ajoelhou-se ao seu lado e aproximou dele o jornal
com o rosto do saltador impresso. - Reconhece este homem, senhor?
Agora, o vagabundo revirava os olhos apenas o suficiente para
ver.
Rey retirou o distintivo do bolso interior do casaco.
- Senhor, chamo-me Nicholas Rey e sou agente da polícia municipal. É
importante que eu saiba o nome deste homem. Ele morreu. Não está
metido em nenhuma confusão. Por favor, conheceu-o ou sabe de alguém
que o pudesse ter conhecido?
O homem mergulhou os dedos no tacho, retirou um bocado, segurando-o
entre o indicador e o polegar, e depois levou-o à boca. Em seguida, meneou
a cabeça com uma breve e impassível negação.
O agente Rey começou a descer a rua, onde barulhentos carros de víveres e
de animais se alinhavam.
Apenas dez minutos depois, uma tipóia deixou passageiros numa
plataforma próxima, e dois homens aproximaram-se do vagabundo imóvel.
Um deles trazia o mesmo jornal dobrado para lhe mostrar as mesmas
feições.
- Bom homem, pode dizer-nos se conhece esta pessoa? - perguntou-lhe
Oliver Wendell Holmes num tom afável.
A insistência foi quase suficiente para terminar com a sonolência do
indigente, embora não totalmente. Lowell inclinou-se para a frente.
- Senhor?
Holmes voltou a empurrar o jornal para a frente dele.
- Por favor, diga-nos se este rosto lhe é familiar, e seguiremos
tranquilamente o nosso caminho, bom homem.
Nada.
- Precisa de uma corneta acústica? - gritou Lowell.
Aquilo não os levou muito longe. O homem retirou do tacho um bocado
irreconhecível de comida e deixou-o deslizar pela garganta abaixo,
parecendo não se preocupar em o engolir.
- Que lhe parece? - perguntou Lowell a Holmes, que se conservava junto
dele. - Três dias nisto, e nada. Esse homem não tinha muitos amigos.
- Já ultrapassámos as Colunas de Hércules no bairro da moda. Vamos
embora. - Holmes vira algo no olhar do vagabundo quando lhe mostrara o
jornal. Também reparara numa medalha que ele tinha pendurada ao
pescoço. Era San Paolino, o santo padroeiro de Lucca, na Tos-cana. Lowell
seguiu o olhar fixo de Holmes.
- De onde é, signore? - perguntou-lhe Lowell em italiano.
O inquirido continuou a olhar fixa e impassivelmente em frente, mas os
seus lábios abriram-se.
- Da Lucca, signore.
Lowell elogiou a beleza daquela cidade. O italiano não se mostrou
surpreendido com a língua por eles utilizada. Aquele homem, como todos
os italianos orgulhosos, nascera convencido de que o mundo inteiro falava
a sua língua; por isso, para ele, aquilo era apenas merecedor de uma
conversa. Então, Lowell repetiu as mesmas perguntas relativas ao homem
da fotografia impressa no jornal. O poeta explicou-lhe que era importante
saber o seu nome para que conseguissem encontrar a família e fazer-lhe
um funeral digno.
- Julgamos que este pobre tipo também era de Lucca - disse pesaroso em
italiano. - Merece ser enterrado num cemitério católico... com a sua gente.
O lucano demorou algum tempo a considerar o que ouvira antes de mudar
laboriosamente de posição, e apoiar-se num cotovelo para conseguir
apontar, com o dedo com que retirava a comida do tacho, para a porta
maciça da igreja, mesmo atrás de si.
O prelado católico que ouviu as suas perguntas era uma figura digna,
apesar da sua estatura corpulenta.
- Lonza - disse ele, devolvendo o jornal. - Sim, esteve aqui. Lembro-me que
se chamava Lonza. Sim... Grifone Lonza.
- Então, o senhor conheceu-o pessoalmente? - perguntou-lhe Lowell,
esperançado.
- Ele é que conhecia a igreja, senhor Lowell - respondeu o prelado num tom
afável. - O Vaticano deu-nos um fundo para ajudarmos os imigrantes.
Fazemo-lhes empréstimos e damos algum dinheiro para a passagem a
quem queira regressar à sua pátria.
Claro que só conseguimos ajudar um reduzido número deles. - Ele tinha
mais para dizer, mas conteve-se. - Por que motivo os senhores o procuram,
cavalheiros? Porque foi publicada a sua fotografia no jornal?
- Receio que tenha falecido, senhor padre. Acreditamos que a polícia anda a
tentar identificá-lo - disse o doutor Holmes.
- Ah, então suspeito que não encontrem os paroquianos da minha igreja
nem os das igrejas das imediações muito dispostos a falar com a polícia,
sobre que assunto for. Recordo-lhes que a polícia não fez rigorosamente
nada para que se fizesse justiça quando o Convento das Ursulinas foi
totalmente consumido pelas chamas. E, quando há um crime, persegue-se
os pobres, os católicos irlandeses - disse-lhes isto com os dentes cerrados e
uma ira contida, próprio de um clérigo. - Os irlandeses foram enviados para
a guerra para morrerem por uns negros, que agora lhes roubam os
empregos, enquanto os ricos ficaram nas suas casas a troco de gratificações
ridículas.
Holmes quis dizer: «Não o meu Wendell Júnior, senhor padre», mas, de fato,
ele tentara convencer Júnior a fazer exatamente isso.
- O senhor Lonza desejava regressar a Itália? - perguntou Lowell.
- O que cada um deseja verdadeiramente, não posso dizer. Esse homem
vinha em busca de comida, que damos habitualmente, e, se bem me
recordo, por causa de uns pequenos empréstimos para se manter sem
dívidas. Se eu fosse italiano, certamente que desejaria voltar para junto dos
meus. A maioria dos nossos paroquianos são irlandeses. Receio que os
italianos não sejam muito bem-vindos entre eles. Em toda a cidade de
Boston e nos arredores, há menos de trezentos italianos, segundo os nossos
cálculos. Eles são muito pobres, e exigem a nossa compaixão e caridade.
Mas quanto mais imigrantes houver de outros países, menos empregos
haverá para os que já cá estão... compreendem os senhores o potencial mal-
estar.
- Senhor padre, sabe se o senhor Lonza tinha família? - perguntou Holmes.
O prelado abanou a cabeça pensativamente, e depois disse:
- Sabem, havia um cavalheiro que, às vezes, o acompanhava. Receio que
Lonza fosse um alcoólico, e precisasse de ser vigiado. Sim, como é que ele
se chamava? Tinha um nome tipicamente italiano. - O prelado dirigiu-se à
sua secretária. - Devemos ter aqui uns papéis sobre ele, porque também
recebia alguns empréstimos. Ah, cá está... um professor de línguas. Demos-
lhe cinquenta dólares há um ano e meio. Lembro-me que dizia ter
trabalhado em tempos na Universidade de Harvard, apesar de eu ter
dúvidas a esse respeito. Aqui está. - Ele leu o nome que estava no papel. -
Pietro Bakee.
Enquanto Nicholas Rey interrogava algumas crianças esfarrapadas, que
borrifavam um cavalo, viu dois chapéus altos a saírem animadamente da
Catedral de Santa Cruz, e a desaparecerem ao virar a esquina. Mesmo à
distância, pareciam deslocados naquele sítio apinhado e de aspeto sombrio.
Rey dirigiu-se à catedral e perguntou pelo prelado. Este, ao saber que Rey
era agente da polícia e procurava um homem que não estava identificado,
analisou a fotografia do jornal, observando-a bem através dos seus óculos
de aros dourados, antes de placidamente se retirar. - Lamento, senhor
agente, mas nunca na vida vi esse pobre homem. Pensando nas duas figuras
enchapeladas, Rey questionou se teria estado mais alguém na zona a
perguntar pelo desconhecido. Voltando a guardar a ficha de Bachi na sua
gaveta, o prelado sorriu amavelmente para consigo e negou-o.
Depois, o agente Rey dirigiu-se para Cambridge. No Comissariado Central
fora recebido um cabo com a informação de que, a meio da noite, houvera
uma tentativa de roubar os restos mortais de Artemus Healey do seu
caixão.
- Eu já lhes expliquei o que podia advir do conhecimento público do caso -
disse o chefe Kurtz, referindo-se à família Healey, com um inapropriado
sentimento de vingança. A direcção do Cemitério do Mount Auburn
colocara agora o corpo num caixão de chumbo e contratara outro vigilante
noturno, desta vez munido com uma arma de fogo. Numa colina, próxima
da sepultura de Healey, estava a estátua do reverendo Talbot, erigida sobre
a sua sepultura e paga pela sua congregação. A estátua tinha uma graça,
que melhorava o verdadeiro aspeto do rosto do pastor. Numa mão, o
pregador de mármore segurava a Bíblia Sagrada e, na outra, uns óculos;
este era um tributo a um dos seus costumes no púlpito, um estranho hábito,
que consistia em retirar os grandes óculos quando lia um texto na estante
do coro, e voltava a pô-los quando pregava livremente, sugerindo de
maneira instrutiva que era necessária uma visão mais apurada para se ler a
inspiração do espírito de Deus. A caminho da inspecção que ia fazer ao
Mount Auburn, conforme lhe fora pedido pelo chefe Kurtz, Rey deteve-se
por causa de uma pequena alteração dessa mesma ordem. Foi-lhe dito que
um velho, alojado no segundo andar de um edifício próximo, estava ausente
há mais de uma semana, um período de tempo que não era insólito, já que,
por vezes, viajava. No entanto, os residentes pediam que se fizesse
qualquer coisa relativamente a um cheiro nauseabundo, que vinha de sua
Casa. Rey bateu com os nós dos dedos na porta, e considerou a
possibilidade de forçar a porta trancada por dentro, mas logo pediu
emprestada uma escada, colocando-a do lado de fora. Subiu por ela,
e levantou a janela do quarto, mas o horrível cheiro que saiu do seu interior
quase o fez cair.
Depois do compartimento ter arejado o suficiente para lhe permitir entrar,
Rey teve de se apoiar a uma parede. Demorou alguns segundos a aceitar
que não havia nada a fazer. Um homem rígido, com os pés pendurados,
próximo do chão, e uma corda grossa em volta do pescoço, fixa ao teto por
um gancho por cima da cabeça. As suas feições, tensas e apodrecidas,
impossibilitavam o normal reconhecimento, mas pelas roupas e pelos
olhos, apesar de salientes e em pânico, Rey conheceu o homem como sendo
o anterior sacristão da Igreja Unitarista próxima. Mais tarde, foi encontrado
um cartão-de-visita em cima da cadeira. Era o que o chefe Kurtz deixara na
igreja para que fosse dado a Gregg. No verso, o sacristão escrevera uma
mensagem à polícia, insistindo que não vira nenhum homem entrar na
cripta para matar o reverendo Talbot. Algures em Boston, advertia ele,
chegara uma alma diabólica, e ele não podia continuar a viver com o temor
do seu regresso para vir buscar os restantes.
Pietro Bachi, o cavalheiro italiano e graduado pela Universidade de Pádua,
acolheu com resmungos todas as oportunidades que se lhe apresentaram
em Boston como professor particular, ainda que fossem escassas e
desagradáveis. Ele tentou arranjar outra colocação na universidade, depois
de ter sido demitido de Harvard.
- Pode haver uma vaga para um único professor de Francês ou de Alemão -
disse, rindo, o reitor da nova Universidade de Filadélfia -, mas Italiano! Meu
amigo, não estamos à espera que os nossos rapazes se transformem em
cantores de ópera. - Universidades acima e abaixo da costa atlântica
previam que houvesse poucos cantores de ópera. E os Conselhos
Académicos já estavam bastante ocupados (graças ao senhor Bakey) a gerir
o grego e o latim para considerarem o ensino de uma língua viva
desnecessária, indecorosamente papista e vulgar.
Felizmente, no final da guerra, em determinados bairros de Boston,
concretizou-se uma procura moderada. Alguns comerciantes ianques
estavam ansiosos por abrir as portas, socorrendo-se de tantos
conhecimentos de línguas quantos conseguissem adquirir. Também uma
nova classe de famílias proeminentes, enriquecidas pelos lucros e o
açambarcamento da guerra, desejava, acima de tudo, que as suas filhas
tivessem cultura. Algumas consideravam sensato que as jovens
aprendessem o italiano básico, a par do francês, já que parecia valer a pena
mandá-las para Roma quando chegasse a altura de viajarem (uma moda
recente entre as belezas que desabrochavam em Boston).
Deste modo, Pietro Bachi, despojado sem cerimónias do seu lugar em
Harvard, ficou à disposição de comerciantes empreendedores e donzelas
mimadas. Estas, com frequência, tinham o seu tempo ocupado, já que os
professores de canto, desenho e dança as atraíam muito mais, pelo que
Bachi passava a vida a reclamar perante as jovens que lhe reservavam
períodos de uma hora e um quarto. Esta vida trazia Pietro Bachi
desalentado.
Não eram tanto as aulas que o atormentavam, mas ter de pedir os seus
honorários. Os americani de Boston haviam construído para si próprios
uma Cartago, uma terra atulhada de dinheiro, mas vazia de cultura,
destinada a desaparecer sem deixar rasto da sua existência. O que disse
Platão aos cidadãos de Agrigento? Esta gente constrói como se fosse
imortal e come como se fosse morrer nos instantes seguintes. Cerca de
vinte e cinco anos antes, no belo campo da Sicília, Pietro Batalo, à
semelhança de muitos italianos antes dele, apaixonara-se por uma mulher
perigosa. A família dela pertencia à facção política oposta à dos Batalo, que
combatera vigorosamente contra o poder papal do estado. Quando a
mulher sentiu que Pietro a ultrajava, a família dela ficou muito contente por
conseguir que ele fosse excomungado e desterrado. Depois de uma série de
aventuras em vários exércitos, Pietro e o irmão, um comerciante, que
desejava libertar-se daquela destrutiva paisagem política e religiosa,
mudaram de apelido para Bachi e atravessaram o oceano. Em 1843, Pietro
encontrou em Boston uma cidade pitoresca, de rostos amistosos, diferente
da que viria a emergir em 1865, quando os nativos demonstraram
claramente o seu receio pela rápida multiplicação dos estrangeiros, e as
montras se encheram de avisos que diziam: NÃO SÃO ADMITIDOS
ESTRANGEIROS. Bachi foi acolhido na Universidade de Harvard, e, durante
algum tempo, à semelhança do jovem professor Henry Longfellow, até ficou
alojado numa zona encantadora de Brattle Street. Depois, Pietro Bachi
descobriu uma paixão arrebatadora, como nunca sentira antes, por uma
jovem irlandesa, tornando-a sua esposa. Contudo, ela encontrou outras
paixões, pouco depois de se casar com o professor. Segundo diziam os
alunos de Bachi, ela abandonara-o, deixando-lhe no baú apenas os punhos
das suas camisas, e na garganta dele o verdadeiro entusiasmo que ela
sentia pela bebida. Assim se iniciou o vertiginoso e regular declínio no
coração de Pietro Bachi...
- Compreendo que ela seja, bem, digamos... - O seu interlocutor procurou
uma palavra delicada, enquanto se apressava atrás de Bachi: - ... difícil.
- Que ela seja difícil? - Bachi não parou, continuando a descer as escadas. -
Ah! Ela não acredita que sou italiano - disse Bachi. - Diz que não tenho
aspeto de italiano!
A menina apareceu no cimo das escadas, e observou o pai com uma
expressão arisca, titubeando atrás do pequeno professor.
- Oh, estou certo que a menina não quis dizer o que disse - declarou ele no
tom mais grave que conseguiu.
- Eu quis dizer isso mesmo! - gritou ela do patamar do primeiro andar,
apoiando-se de tal forma no corrimão de nogueira, e inclinando-se tanto,
que parecia ir cair em cima do chapéu de lã de Pietro Bachi. - Ele não se
parece nada com um italiano, meu pai! É muito baixo!
- Árabella! - exclamou o homem, e, com um sorriso amarelo e sério, como se
tivesse lavado a boca com ouro, voltou-se imediatamente para o vestíbulo,
que refulgia à luz das velas. - Peço-lhe o favor de aguardar mais um
instante, meu caro senhor! Aproveitemos esta ocasião para rever os seus
honorários, está bem, signor Bachi? - sugeriu ele, com as sobrancelhas
tensas, como duas flechas vibrantes, que aguardassem nos seus arcos
serem disparadas.
Bachi virou-se para ele um instante com o rosto a arder, estreitando com
força o punho em volta da sua bolsa de couro, enquanto tentava dominar o
seu mau humor. Ao longo dos últimos anos, as rugas entrecruzadas tinham-
se multiplicado no seu rosto, e cada pequeno contratempo fazia-o duvidar
da validade da sua existência.
- Amari Cani! - limitou-se Bachi a dizer. Árabella baixou os olhos, confusa.
Ele não lhe ensinara o suficiente para que ela compreendesse o jogo de
palavras: americani - «americanos», em italiano -, que se convertia em
«cães amargos».
Nas paragens, a tipóia, que àquela hora se dirigia para o centro, ia-se
enchendo de gente, como gado a ser levado para o matadouro. Servindo
Boston e os subúrbios, as tipóias eram compostas por compartimentos de
duas toneladas, capazes de transportar cerca de cinquenta passageiros.
Elas estavam providas de rodas de ferro, que deslizavam sobre carris
planos, e eram puxadas por uma parelha de cavalos. As pessoas que
conseguiam arranjar um lugar sentado observavam com um interesse
distante como outras três dúzias, entre elas Bachi, brigavam para que
outras se dobrassem sobre si mesmas, batendo e recebendo batidas com os
nós dos dedos, enquanto tentavam alcançar as pegas de cabedal que
pendiam do teto. Quando o cobrador conseguia abrir caminho e vender os
bilhetes, já a plataforma exterior estava cheia de gente, que aguardava a
tipóia seguinte. A meio do compartimento demasiado quente e mal
ventilado, dois bêbados inalavam o mesmo cheiro que um monte de cinza,
e esforçavam-se por cantar em uníssono uma canção, cuja letra
desconheciam. Bachi arqueou a mão sobre a boca e, certificando-se que
ninguém o observava, respirou dentro dela, e momentaneamente dilatou as
narinas. Assim que chegou à sua rua, Bachi desceu do passeio para uma
cave sombria, situada numa casa de vários apartamentos, chamada Half
Moon Place, ansiando a feliz solidão que o aguardava. No entanto, sentados
no último degrau, deslocados por não haver ali poltronas, estavam James
Russell Lowell e o doutor Oliver Wendell Holmes.
- Gostava de saber em que está a pensar, signore - disse Lowell com um
sorriso encantador, enquanto apertava a mão de Bachi.
- Não merece a pena, Professore - respondeu Bachi com a mão pendente e
flácida como um trapo molhado sob o aperto de mão de Lowell. - Perdeu-se
a caminho de Cambridge? - Ele dirigiu a Holmes um olhar desconfiado, mas
estava mais surpreendido com a visita deles do que dava a entender.
- De modo nenhum - disse Lowell, enquanto tirava o chapéu, descobrindo a
sua testa alta e branca. - Conhece o doutor Holmes? Nós gostaríamos de
trocar umas palavras consigo, se não houver nenhum inconveniente.
Bachi franziu o sobrolho e abriu a porta do seu apartamento com um
empurrão, sendo recebido pelo estrépito de uns boiões pendurados em
grampos exatamente atrás da porta. Era um apartamento subterrâneo com
um quadrado de luz do dia derramada desde uma meia-janela, que abria
por cima do nível da rua. Um cheiro a mofo emanava das roupas
penduradas em todos os cantos, cuja humidade nunca chegava a secar
totalmente, pelo que os fatos de Bachi estavam sempre enrugados.
Enquanto Lowell ajeitava os boiões atrás da porta para pendurar o chapéu,
descuidadamente, Bachi deslizou uma pilha de papéis da secretária para
dentro da sua bolsa. Holmes fez os possíveis por elogiar a decoração
degradada.
Então, Bachi pousou uma cafeteira com água em cima da grade interior do
fogão.
- Qual é o assunto que os traz até aqui, cavalheiros? - perguntou ele com
cortesia.
- Viemos aqui pedir-lhe ajuda, Signor Bachi - disse Lowell.
No rosto de Bachi esboçou-se um esgar divertido, enquanto servia o chá,
parecendo mais animado.
- Querem tomá-lo com quê? - Ele avançou até ao aparador, onde havia
meia-dúzia de copos sujos e três garrafas. Nos respectivos rótulos fia-se
RUM, GIM e UÍSQUE.
- Só o chá, obrigado - disse Holmes. Lowell concordou.
- Oh, vá lá! - insistiu Bachi, oferecendo a Holmes uma das garrafas. Para
agradar ao anfitrião, Holmes deitou na sua chávena de chá tão poucas gotas
de uísque quantas conseguiu, mas Bachi levantou o cotovelo do médico. -
Parece-me que o clima aflitivo da Nova Inglaterra nos mataria a todos,
doutor - disse ele -, se não tivéssemos a possibilidade de beber umas
gotitas de qualquer coisa quente de vez em quando.
Bachi preparava-se para se servir de chá, mas acabou por optar por um
copo a transbordar de rum. Os convidados levantaram-se das cadeiras,
apercebendo-se ao mesmo tempo que já se tinham sentado nelas.
- Da universidade! - disse Lowell.
- A universidade deve-me algo, não lhes parece? - perguntou Bachi com
uma afabilidade torpe. - Além disso, onde mais podia eu encontrar um lugar
tão particularmente desconfortável, hem? Os homens de Harvard podem
dizer tudo o que quiserem como unitaristas, mas serão sempre calvinistas
até à ponta dos cabelos, que gozam tanto com o próprio sofrimento, como
com o sofrimento alheio. Digam-me, como foi que os senhores me
encontraram aqui no Half Moon Place? Creio que sou o único que não é de
Dublin num raio de alguns quilómetros.
Lowell desenrolou um exemplar do Daily Courier e abriu-o numa página
onde se via uma fileira de anúncios. Em volta de um deles fora desenhado
um círculo.
Cavalheiro italiano, graduado pela Universidade de Pádua, altamente
qualificado pelos seus inúmeros trabalhos e com uma longa prática como
professor de Espanhol e Italiano, oferece-se para dar aulas particulares em
colégios masculinos e femininos, etc. Referências: Os ilustres senhores John
Andrew, Henry Wadsworth Longfellow e James Russell Lowell, Professor
da Universidade de Harvard. Morada: 2, Half Moon Place, Broad Street.
Bachi riu para consigo.
- Nós, italianos, gostamos de ocultar os nossos méritos, como a lâmpada
por baixo de um celamim. No nosso país, o provérbio é «Desculpe o pouco»
(para escondermos os nossos talentos). Mas na América do Norte devia ser:
«In bocca chiusa non entran mosche.» «Em boca fechada, não entra mosca.»
Como posso eu esperar que as pessoas venham e comprem, se
desconhecem que tenho alguma coisa para vender? Por isso, ponho a boca
no trombone.
Holmes estremeceu depois de beber um trago do chá forte.
- John Andrew é uma das suas referências, signore? - perguntou' -lhe ele.
- Diga-me, doutor Holmes, que aluno em busca de aulas de Italiano acorrerá
ao diretor a perguntar por mim? Suspeito mesmo, de qualquer modo, que
ninguém se tenha sequer apresentado diante do professor Lowell.
Lowell admitiu-o. Inclinou-se para se aproximar das pilhas de textos de
Dante e dos comentários que cobriam a secretária de Bachi,
desordenadamente aberta em todos os ângulos. Em cima da secretária
estava um pequeno retrato da mulher fugitiva de Bachi, e o pincel do pintor
tivera a consideração de o suavizar, obscurecendo o seu olhar duro.
- Então, como é que posso ser-lhes útil? Por mais de uma vez, fui eu que
precisei da sua ajuda, Professore - acrescentou Bachi.
Lowell retirou outro jornal do bolso do seu casaco, abrindo-o na página
onde estava a fotografia de Lonza.
- Conhece este homem, Signor Bachi? Ou melhor seria dizer conhecia-o?
Ao observar o rosto cadavérico naquela página descolorida, Bachi foi
invadido pela tristeza. Mas quando levantou os olhos, a ira tinha-se
apoderado dele.
- Presumem os senhores que eu devo conhecer todos os palermas
andrajosos?
- O prelado da Catedral da Santa Cruz pensou que o conhecesse -disse
Lowell num tom conhecedor.
Bachi pareceu sobressaltar-se, e virou-se para Holmes como se estivesse
cercado.
- Segundo creio, signore, ali foram-lhe emprestadas quantias em dinheiro
nada insignificantes - disse Lowell.
Isto envergonhou Bachi até o deixar lívido, e baixou os olhos num gesto
ovino.
- São assim os párocos norte-americanos... Não são como os italianos. As
suas bolsas estão mais cheias do que as do próprio Papa. Se os senhores
estivessem no meu lugar, nem sequer o dinheiro dos párocos lhes
ofenderia o olfato. - Ele bebeu o resto do rum, lançou a cabeça para trás e
assobiou. Voltou a olhar para o jornal. - Então, querem saber alguma coisa
sobre Grifone Lonza.
Fez uma pausa, e depois apontou com o polegar para a pilha dos textos de
Dante que estavam em cima da sua secretária.
- Tal como os senhores, cavalheiros literatos, eu sempre encontrei os meus
companheiros mais agradáveis entre os mortos e não entre os vivos. A
vantagem consiste em que, quando um autor se torna chato ou obscuro, ou
simplesmente deixa de nos distrair, podemos sempre dizer-lhe, «Cale-se.» -
Ele pronunciou estas últimas palavras como se elas o divertissem.
Bachi levantou-se e serviu-se de um gim. Bebeu um grande trago, dizendo
entre gorgolejos.
- Nos Estados Unidos, essa é uma tarefa solitária. A maioria dos meus
irmãos, que foram forçados a vir para cá, mal conseguem ler um jornal,
quanto mais La Commedia di Dante, que penetra no âmago da alma
humana, tanto no seu maior desespero como na sua maior felicidade, e
Aqui em Boston éramos poucos, há uns anos, homens de letras e de
pensamento: António Gallenga, Grifone Lonza, Pietro D'Alessandro. - Ele
não conseguiu conter um sorriso nostálgico, como se os seus visitantes
tivessem estado entre eles. - Sentávamo-nos nas nossas casas e líamos
Dante juntos em voz alta, primeiro um, depois outro, e, deste modo,
avançávamos ao longo de todo o poema, que contém todos os segredos.
Lonza
e eu fomos os últimos do grupo a ir embora ou a morrer. Agora, sou o único.
- Vamos lá, não menospreze Boston - disse-lhe Holmes.
- Poucos merecem passar a vida inteira em Boston - respondeu-lhe Bachi
com uma sinceridade irónica.
- Sabia, Signor Bachi, que Lonza morreu no Comissariado da Polícia? -
perguntou-lhe Holmes, delicadamente.
Bachi anuiu.
- Constou-me qualquer coisa a esse respeito.
Enquanto olhava para os livros de Dante, que estavam em cima da
secretária, Lowell disse:
- Signor Bachi, qual seria o seu raciocínio se eu lhe dissesse que Lonza
recitou um verso do Terceiro Canto do Inferno a um agente da polícia,
antes de se precipitar para uma morte certa?
Bachi não se mostrou nada surpreendido. Em vez disso, desatou a rir sem
conseguir controlar-se. A maioria dos exilados políticos vindos de Itália
tornavam-se mais extremistas na sua rectidão e, inclusivamente,
transformavam os próprios pecados em sinais de santidade. Nas suas
mentes, por outro lado, o Papa era um cão miserável. Mas Grifone Lonza
convencera-se que, de alguma forma, traíra a sua fé e tinha de encontrar
uma maneira de se arrepender das suas faltas aos olhos de Deus. Uma vez
estabelecido em Boston, Lonza contribuiu para expandir uma missão
católica, relacionada com o Convento das Ursulinas, certo de que a sua fé
chegaria aos ouvidos do Papa, e com isso conseguiria regressar. Então, os
desordeiros incendiaram o convento completamente.
- Numa reacção tipicamente sua, em vez de se indignar, Lonza ficou
desmoralizado, convencido de que fizera algo profundamente errado
algures na sua vida para merecer o pior dos castigos divinos. O seu lugar
aqui na América do Norte, no exílio, tornou-se confuso para ele.
Quase deixou de falar inglês. Julgo que uma parte dele se esqueceu de como
se falava essa língua, e só conhecia a verdadeira língua italiana.
- Mas, por que razão havia o senhor Lonza de recitar um verso de Dante
antes de saltar pela janela, signore? - perguntou-lhe Holmes.
- Um amigo meu regressou à sua pátria, doutor Holmes; um tipo jovial, que
geria um restaurante e respondia a todas as perguntas sobre os seus pratos
com citações de Dante. Bem, aquilo acabava por ser divertido. Lonza
enlouqueceu. Dante tornou-se para ele uma forma de se livrar dos pecados
que imaginava ter cometido. No fim, ele sentia-se culpado por tudo o que
acontecia. Nos últimos anos, nunca chegou a ler, de fato, Dante; não
precisava. Cada verso e cada palavra estavam gravados para todo o sempre
no seu cérebro, e para seu enorme terror. Ele nunca os memorizara
intencionalmente, mas acudiam à sua mente como as advertências de Deus
acudiam às dos profetas. A mais pequena imagem ou palavra podia fazê-lo
deslizar para um poema de Dante... Em certas ocasiões, podiam passar-se
dias sem que se o ouvisse dizer outra coisa.
- Não o surpreende que ele se tenha suicidado - denotou Lowell.
- Não me constou que tivesse sido isso que acontecera, Professore -disse
Bachi com brusquidão. - Mas não importa aquilo que o senhor lhe chama.
Toda a sua vida foi um suicídio. Ele renunciou à sua alma por medo, aos
poucos, até não restar no universo nenhum lugar que o salvasse do Inferno.
Mentalmente, ele estava no precipício do tormento eterno. Não me
surpreende que tenha caído. - Ele fez uma pausa. - Será este caso muito
diferente do do seu amigo Longfellow?
Lowell levantou-se de um salto. Holmes tentou rapidamente acalmá-lo e
fazê-lo sentar-se de novo.
- Pelo que me constou - insistiu Bachi -, o professor Longfellow afoga o seu
sofrimento em Dante há... quanto tempo... três ou quatro anos?
- O que pode você saber sobre um homem como o Henry Longfellow, Bachi?
- perguntou-lhe Lowell. - A ajuizar pela sua secretária, parece que Dante
também o consume há algum tempo, signore. Exatamente, o que procura
você aqui? Nos seus escritos, Dante buscava a paz. Quase me atrevia a dizer
que vocês andam atrás de algo menos nobre! - Concluiu ele, folheando as
páginas, descuidadamente.
Com uma palmada, Bachi afastou o livro, deixando-o fora do alcance de
Lowell.
- Não toque no meu Dante! Posso viver numa casa modesta, mas não tenho
de justificar as minhas leituras a ninguém, rico ou pobre, Professore!
Lowell corou, constrangido.
- Não se trata... Se precisar de um empréstimo, Signor Bachi... Bachi
vangloriou-se.
- Oh, vocês, amari cani! O senhor acha que eu vou aceitar caridade da sua
parte, um homem que ficou de braços cruzados, enquanto Harvard me
lançava aos lobos?
Lowell estava espantado.
- Ora, vá lá, Bachi! Fui eu que lutei com unhas e dentes pelo seu emprego!
- O senhor enviou uma nota para Harvard a solicitar-lhes que fizessem as
minhas contas e me pagassem. Onde estava o senhor quando eu não tive
ninguém a quem me dirigir? Onde estava o grande Longfellow? Os
senhores nunca lutaram por nada na vida. Os senhores escrevem poemas e
artigos sobre a escravatura e o assassínio dos índios, e esperam que algo
mude. Os senhores lutam por aquilo que não lhes vem bater à porta,
Professore. - Ele alargou o alcance da sua invectiva, virando-se para o
aturdido doutor Holmes, como se incluí-lo fosse uma questão de cortesia. -
Os senhores herdaram tudo o que possuem na vida, e não sabem o que é
clamar pelo pão que comem! Bem, e com que outras expetativas vim eu
para este país? De que podia eu queixar-me? O maior dos bardos só tinha
como lar o exílio. Talvez chegue o dia em que eu possa voltar a caminhar na
minha terra, mais uma vez com verdadeiros amigos, antes de partir deste
mundo.
Nos trinta segundos que se seguiram, Bachi bebeu dois copos cheios de
uísque, e afundou-se na cadeira atrás da sua secretária a tremer
visivelmente.
- Foi a intervenção de um estrangeiro, Charles de Valois, que provocou o
exílio de Dante. Ele é a nossa última propriedade, as derradeiras cinzas da
alma de Itália. Não aplaudirei que o senhor e o seu adorado senhor
Longfellow arranquem Dante ao lugar que lhe é devido, e o tornem
americano! Lembrem-se apenas disto, ele voltará sempre para nós! O
espírito de sobrevivência de Dante é demasiado poderoso para sucumbir
diante de qualquer homem!
Holmes tentou perguntar pela actividade docente de Bachi. Lowell
inquiriu-o sobre o homem de chapéu de coco e colete de xadrez, que vira
aproximar-se ansiosamente de Bachi no campus de Harvard. No entanto, de
momento eles já tinham tirado de Pietro Bachi tudo o que podiam-Ao
saírem do apartamento da cave, sentiram um frio enfermiço. Baixaram-se
para passar por baixo das escadas exteriores oscilantes, conheci' das dos
moradores como as Escadas de Jacob, por conduzirem a um sítio um pouco
melhor - o casario vizinho da Praça Humphrey, situada mais acima.
Um Bachi de rosto afogueado meteu a cabeça pela meia-janela aberta, de tal
modo que pareceu emergir do solo. Ele contorceu-se até fazer sair o
pescoço e disse com uma voz embriagada.
- Querem os senhores falar sobre Dante, professori? Mantenham-se atentos
às vossas aulas sobre Dante!
Lowell virou-se, e, gritando também, pediu-lhe que esclarecesse o
significado do que acabava de dizer.
Mas duas mãos trémulas fecharam a janela com um enorme estrondo.

X




. HENRY OSCAR HOUGHTON, UM HOMEM DE ESTATURA elevada e

R devoto, com uma barba ao estilo quáquer, revia as suas contas no


ordenado aglomerado da sua secretária, no escritório de
contabilidade, que reluzia por baixo do candeeiro com quebra-luz.
Pela sua incansável devoção aos pequenos pormenores, a sua empresa, a
Riverside Press, situada na orla costeira de Cambridge, junto ao rio Charles,
tornara-se a principal gráfica de muitas editoras eminentes, entre elas a
mais famosa, a Ticknor & Fields. Um dos estafetas bateu à porta aberta.
Houghton não se mexeu até ter acabado de escrever e secar um número no
seu livro de encargos. Sentia-se orgulhoso dos seus laboriosos
antepassados puritanos.
- Entra, rapaz - disse finalmente Houghton, levantando os olhos do seu
trabalho.
O rapaz depositou um bilhete na mão de Oscar Houghton. Mesmo antes de
o ler, o gráfico ficou impressionado com o peso e a rigidez do papel. Ao ler o
bilhete escrito à mão sob a luz do candeeiro, Houghton contraiu-se. A sua
paz, estritamente defendida, fora agora completamente quebrada.
A charrete do subdelegado Savage chegou, e o chefe Kurtz apeou-se. Rey
juntou-se a ele na escadaria do Comissariado Central da Polícia.
- Então? - perguntou Kurtz.
- Descobri que o nome próprio do saltador era Grifone, segundo outro
vagabundo, que afirma tê-lo visto algumas vezes junto ao caminho-de-ferro
- disse Rey.
- Já é um passo - admitiu Kurtz. - Sabe, tenho estado a pensar naquilo que
você disse, Rey, sobre esses homicídios serem cometidos como formas de
castigo. - Rey esperou que àquilo se seguisse algo conclusivo, mas Kurtz
limitou-se a deixar escapar um suspiro. - Tenho andado a pensar no juiz
Healey do Supremo Tribunal.
Rey anuiu.
- Bem, todos fazemos coisas de que nos arrependemos amargamente, Rey.
Durante o processo Sims, a nossa própria força policial reprimiu distúrbios
à bastonada nas escadarias do tribunal. Nós caçámos Tom Sims como um
cão, e, a seguir ao julgamento, levámo-lo até ao porto para que fosse
devolvido como escravo ao seu dono. Está a seguir-me? Aquele foi um dos
nossos momentos mais negros, e tudo a partir de uma decisão do juiz
Healey, ou da ausência dela, ao não declarar inválida a lei do Congresso.
- Sim, chefe Kurtz.
Kurtz parecia tristemente mergulhado nos seus pensamentos.
- Pense nos homens mais respeitáveis da sociedade de Boston, senhor
agente. Dir-lhe-ia que, com toda a probabilidade, não têm sido uns santos,
pelo menos nos tempos que correm. Eles vacilaram, apoiaram a facção
errada durante a guerra, preferiram a cautela à coragem, e coisas ainda
piores.
Kurtz abriu a porta do seu escritório, disposto a continuar, mas três
homens vestidos com sobretudos pretos estavam de pé, inclinados sobre a
sua secretária.
- O que se passa aqui? - inquiriu Kurtz, e olhou imediatamente em redor à
procura da sua secretária.
Os homens afastaram-se, revelando Frederick Walker Lincoln, sentado
atrás da secretária de Kurtz.
Kurtz tirou o chapéu da cabeça e fez uma ligeira vénia. - Digno...
Sentado entre as alas laterais da secretária de mogno de John Kurtz, o
presidente da Câmara Lincoln acabava de dar vagarosamente a última
fumaça num charuto.
- Espero que não se importe que tenhamos feito uso do seu escritório,
enquanto esperávamos, chefe. - Uma tosse interrompeu as palavras de
Lincoln. Junto dele estava sentado o vereador Jonas Fitch. Um sorriso
rasgado e hipócrita parecia ter sido talhado no seu rosto, pelo menos, há
umas horas. O vereador dispensou dois dos homens embrulhados em
sobretudos, elementos do gabinete de detectives. Um deles ficou. - Aguarde
na sala de espera, por favor, agente Rey - ordenou Kurtz. Com prudência,
Kurtz sentou-se nesse lado da secretária, e esperou que a porta fosse
fechada.
- Então, o que é que se passa? Por que motivo trouxeram para aqui estes
inúteis?
O inútil que ficara, o detective Henshaw, não se mostrou particularmente
ofendido.
O presidente da Câmara Lincoln disse:
- Estou certo que tem em mãos outros casos policiais que têm sido
negligenciados nos últimos tempos, chefe Kurtz. Decidimos que a resolução
destes homicídios ficará a cargo dos seus detectives.
- Não posso permiti-lo! - protestou Kurtz.
- Dê as boas-vindas aos detectives que vão fazer esse trabalho, chefe. Eles
estão aptos a resolver casos como estes com rapidez e energia -disse
Lincoln.
- Sobretudo com essas recompensas em cima da mesa - acrescentou o
vereador Fitch.
Lincoln franziu o sobrolho para o vereador. Kurtz olhou de soslaio.
- Recompensas? Os detectives não podem aceitar recompensas, segundo a
vossa própria legislação. Que recompensas, senhor Presidente?
O presidente da Câmara amassou o charuto, fingindo reflectir sobre o
comentário de Kurtz.
- Enquanto estamos aqui a conversar, o conselho de vereadores de Boston,
como nós dizemos, vai aprovar uma resolução impulsionada pelo vereador
Fitch, que anulará a restrição do recebimento de recompensas por parte
dos elementos do gabinete de detectives. Também haverá um ligeiro
aumento dessas recompensas.
- Um aumento, de quanto? - perguntou Kurtz.
- Chefe Kurtz... - começou a dizer o presidente da Câmara.
- Quanto?
Kurtz julgou ter visto o vereador Fitch a sorrir antes de responder.
- A recompensa eleva-se agora a trinta e cinco mil pela detenção do
assassino.
- Valha-nos Deus! - exclamou Kurtz. - Haverá muitos homens capazes de
cometer um homicídio para deitarem a mão a uma quantia dessas!
Sobretudo no nosso maldito gabinete de detectives!
- Nós estamos a fazer o trabalho que alguém devia ter feito e não fez, chefe
Kurtz - o detective Henshaw fez o reparo.
O presidente Lincoln exalou, e todo o seu rosto se tornou flácido. Embora o
presidente da Câmara não tivesse uma parecença exata com o seu primo
em segundo grau, o falecido presidente Lincoln, tinha o mesmo aspeto
esquelético e de pessoa incansável, apesar da sua fragilidade-
- Quero retirar-me a seguir a outro mandato, John - disse o Pre' sidente,
brandamente. - E quero ter a certeza que a minha cidade me recorda com
respeito. Temos de apanhar já esse assassino ou abrir-se-a° as portas do
Inferno. Já imaginou? Entre a guerra e o magnicídio, só DeUS sabe como os
jornais viveram do sabor a sangue durante quatro anos, e acredito que
estão mais sedentos dele do que nunca.
Healey foi da minha turma na Faculdade, chefe. Acredito que, de certo
modo, se espera de mim que vá para as ruas e seja eu mesmo a encontrar
esse louco. Caso contrário, sou colocado no Boston Common! Peço-lhe que
deixe os detectives resolverem isto, e retire o negro do caso. Não podemos
sofrer outro embaraço.
- Peço desculpa, senhor Presidente. - Kurtz endireitou-se na cadeira. - O que
tem o agente Rey a ver com tudo isto?
- O momento da identificação, relacionado com o caso do juiz Healey, e que
quase terminou em tumultos. - O vereador Fitch gostava das frases
rebuscadas. - Aquele mendigo que se atirou da janela do seu comissariado.
Suponho que isso lhe soe familiar, chefe.
- Rey não teve nada a ver com isso - contestou Kurtz, contrariado. Lincoln
abanou a cabeça com um gesto complacente.
- O vereador encarregou uma investigação para determinar o seu
envolvimento. Recebemos queixas de vários agentes da polícia dizendo
que, para começar, foi a presença do seu motorista que provocou a
agitação. Fomos informados que o mulato tinha a custódia do mendigo
quando aquilo aconteceu, chefe, e alguns julgam... bem, especula-se sobre
se ele pode ter forçado a queda da janela. Talvez acidentalmente...
- Malditas mentiras! - exclamou Kurtz, encolerizado. - Ele tentou acalmar as
coisas, como todos aqui fizemos! Aquele que saltou era uma espécie de
maníaco! Os detectives estão a tentar travar a nossa investigação para
receberem as recompensas! Henshaw, o que sabe você sobre isto?
- Sei que o negro não pode salvar Boston do que está a acontecer, chefe.
- Talvez quando o governador souber que o seu prémio traiu todo o
departamento da polícia, faça o que deve, e reconsidere a sua posição -
disse o vereador.
- O agente Rey é um dos melhores policiais que já conheci.
- O qual, já que aqui estamos, levanta outra questão. Também ficá-wos a
saber que o senhor é visto com ele por toda a cidade, chefe. - O presidente
da Câmara enrugou a testa. - Inclusivamente no local da morte de Talbot.
Não só como seu simples motorista, mas como um par nas suas actividades.
- É um verdadeiro milagre que esse mulato não tenha sido já perseguido
por uma turba de linchadores que lhe atirassem pedras da calçada sempre
que sai à rua! - disse o vereador Fitch a rir.
- Nós aplicámos a Nick Rey todas as restrições que o Conselho Municipal
sugeriu e... não estou a ver como pode a sua posição ter alguma coisa a ver
com isto!
- Temos sobre as nossas cabeças um delito que inspira horror - disse o
presidente Lincoln, apontando um dedo rígido para Kurtz. - E o
departamento da polícia está a cair aos bocados... por isso é que tem a ver.
Não permitirei que Nicholas Rey continue a intervir de forma nenhuma
neste caso. Mais um erro e terá de se haver com a demissão. Hoje vieram
ter comigo alguns senadores do estado, John. Estão a constituir outra
comissão para propor a supressão de todos os departamentos da polícia
municipal do estado e substituí-los por uma força de polícia metropolitana,
dependente do mesmo estado, se não conseguirmos acabar com isto. Eles
estão mesmo decididos a fazê-lo. Não posso permitir que isso aconteça sob
o meu comando... Veja se percebe isto! Não quero ver o departamento da
polícia da minha cidade desmantelado.
O vereador Jonas Fitch conseguiu ver que Kurtz estava demasiado abatido
para falar. O presidente da Câmara inclinou-se e olhou-o diretamente nos
olhos.
- Se você tivesse feito cumprir as nossas leis sobre a moderação e o
combate ao vício, chefe Kurtz, talvez por esta altura todos os ladrões e os
vadios tivessem fugido para Nova Iorque!
Às primeiras horas da manhã, os escritórios da Ticknor & Fields pulsavam
de anónimos empregados subalternos - alguns, ainda rapazes, e outros já
de cabeças grisalhas -, bem como de outros empregados de categoria
inferior. O doutor Holmes foi o primeiro membro do Clube de Dante a
chegar. Enquanto passeava pelo vestíbulo para matar o tempo, Holmes
decidiu instalar-se no escritório particular de J. T. Fields.
- Oh, desculpe, meu bom senhor - disse ao perceber que ali estava alguém, e
começou a fechar a porta.
Um rosto anguloso e na sombra estava voltado para a janela. Holmes
demorou um segundo a reconhecê-lo.
- Oh, meu caro Emerson! - saudou Holmes com um sorriso rasgado.
Ralph Waldo Emerson, com o seu perfil aquilino e o seu corpo amplo,
envolto numa capa e numa mantilha azuis, saiu do seu devaneio e
cumprimentou Holmes. Era uma raridade encontrar Emerson, poeta e
professor universitário, fora de Concord, uma pequena cidade que, durante
algum tempo, rivalizara com Boston pela sua colecção de talentos literários,
sobretudo depois de Harvard o ter impedido de falar no seu camptâ por ter
declarado como morta a Igreja Unitarista, durante uma palestra na
Faculdade de Teologia. Emerson era o único escritor dos Estados Unidos
que se aproximava da fama de Longfellow, e até Holmes, um homem centro
de todos os eventos literários,
se sentia deleitado quando estava na companhia do autor.
- Acabo de chegar do meu Lyceum Express anual, organizado pelo nosso
mecenas dos poetas modernos. - Emerson levantou uma mão por cima da
secretária de Fields, como se lhe desse a bênção, um gesto que recordava os
seus dias de reverendo. - O guardião e protetor de todos nós. Trazia-lhe
aqui uns papéis.
- Bem, já era tempo de o senhor voltar a Boston. Temos sentido a sua falta
no Clube de Sábado. Estive prestes a marcar uma reunião de protesto a
reclamar a sua companhia! - disse-lhe Holmes.
- Muito obrigado, não sabe como isso me lisonjeia - respondeu Emerson a
sorrir. - Você sabe, nunca temos tempo para escrever aos deuses nem aos
amigos, só aos advogados, que querem cobrar dívidas, e ao homem que irá
reparar-nos o teto de nossa casa. - Com a continuação da conversa,
Emerson perguntou a Holmes pelos seus assuntos.
Ele respondeu com longas e complicadas piadas. - Tenho estado a pensar
escrever outro romance. - Ele disse isto com alguma avaliação, por se sentir
intimidado pela força e a rapidez das opiniões de Emerson, que, muitas
vezes, faziam parecer que a outra pessoa estava completamente enganada.
- Oh, eu gostava muito que o fizesse, meu caro Holmes - disse Emerson com
sinceridade. - A sua voz não pode deixar de agradar. E fale-me do brilhante
capitão. Continua a trabalhar na sua carreira de direito?
Holmes riu nervosamente com a menção a Júnior, como se o assunto do seu
filho fosse algo cómico para si. O que não tinha o menor fundamento, já que
Júnior carecia do mínimo sentido de humor.
- Certa vez inclinei-me para as leis, mas considerei tudo aquilo muito
indigesto. Júnior também escrevia bons versos... não tão bons como os
meus, mas são bons versos. Agora está a viver novamente lá em casa. É
como um Otelo branco, sentado na cadeira de baloiço da nossa biblioteca a
impressionar as jovens Desdémonas com as histórias dos seus ferimentos.
Contudo, por vezes, fico convencido que me despreza. Já alguma vez teve
essa sensação com um filho, Emerson?
Emerson fez uma pausa durante uns densos segundos. - Não há paz para os
filhos dos homens, Holmes. Observar os gestos faciais de Emerson,
enquanto falava, era como °«iar para um homem maduro a atravessar um
rio, saltando de pedra m pedra, e o cauteloso egocentrismo que evocou essa
imagem distraiu Colmes das suas ansiedades. Ele desejava que a conversa
prosseguisse, mas Sabia que os encontros com Emerson podiam terminar
quase sem aviso.
- Meu caro Waldo, posso fazer-lhe uma pergunta? - O que Holmes queria
realmente era o seu conselho, mas Emerson nunca dava nenhum.
- O que acharia você se nós, Fields, Lowell e eu, ajudássemos Longfellow na
sua tradução de Dante?
Emerson ergueu uma sobrancelha branca.
- Se Sócrates aqui estivesse, Holmes, podíamos ir falando com ele pela rua.
Mas não podemos ir falar com o nosso querido Longfellow. Há um palácio,
criados e uma fileira de garrafas de vinhos de diversas cores, copos de
vinho e belos casacos. - Emerson inclinou a cabeça, pensativo. - Às vezes
penso na época em que lia Dante sob as directrizes do professor Ticknor,
como você também fez, mas não posso deixar de considerar Dante como
uma curiosidade, um mastodonte, uma relíquia que se põe num museu, não
em nossa casa.
- Mas, certa vez, você disse-me que a introdução de Dante na América do
Norte seria uma das proezas mais significativas do nosso século!
- insistiu Holmes.
- Sim. - Emerson considerou aquela afirmação. Sempre que lhe era possível,
ele gostava de reflectir sobre as questões de todos os pontos de vista. - Isso
também é verdade. Só que, sabe, Wendell, eu prefiro a sociedade com uma
pessoa fiel a uma associação de conversadores verborreicos, que mais do
que qualquer outra coisa buscam a admiração mútua.
- Mas o que seria da literatura sem essas associações? - respondeu Holmes
a sorrir. Ele tinha a integridade do Clube de Dante a seu cargo.
- Quem pode dizer o que devemos à sociedade pela admiração mútua entre
Shakespeare, Ben Jonson, Beaumont e Fletcher? Ou à sociedade formada
por Johnson e Goldsmith, Burke e Reynolds, Beauclerc e Boswell, o mais
admirado de todos os admiradores, e que se reuniam junto à lareira de um
salão?
Emerson reordenou os papéis que trouxera a Fields, a fim de mostrar que o
propósito da sua visita se tinha cumprido.
- Lembre-se que, só quando o génio do passado for transmitido a um poder
atual, é que teremos o primeiro poeta norte-americano. E, algures, nascido
mais nas ruas do que no ateneu, encontraremos o primeiro verdadeiro
leitor. O espírito do norte-americano supõe-se tímido; imitativo e
submisso; e o do erudito, honrado, indolente e complacente. Sem acção, o
erudito já não é um homem. As ideias podem construir-se através dos ossos
e dos braços dos homens bons, ou não passarão de meros sonhos. Quando
leio Longfellow, sinto-me à vontade, seguro-Contudo, isso não nos trará o
nosso futuro.
Quando Emerson saiu, Holmes sentiu que se lhe deparara um enigma da
esfinge, para o qual só podia dar uma resposta. Ele sentiu também que,
decididamente,
aquela conversa era algo que lhe pertencia, e não quis partilhá-la com os
outros quando chegaram.
- Mas isso é, de fato, possível? - perguntou Fields aos amigos depois de
falarem de Bachi. - Esse mendigo do Lonza podia estar tão angustiado, que
antepusesse o poema à vida?
- Não seria a primeira nem a última vez que a literatura se apoderava de
uma mente debilitada. Pensemos em John Wilkes Booth -disse Holmes. - Ao
disparar sobre Lincoln, ele exclamou em latim, «Que isto aconteça sempre
aos tiranos.» Foi o que Bruto disse, ao assassinar Júlio César. Lincoln era o
imperador romano, na mente de Booth. Lembrem-se que Booth era
shakespeariano. Tal como o nosso Lúcifer é um mestre dantino. A leitura, a
compreensão e a análise que fazemos todos os dias conseguiram o que
secretamente esperávamos que se operasse em nós; e isso mesmo atuou
sobre os ossos e os músculos deste homem. Longfellow ergueu as
sobrancelhas ao ouvir aquilo.
- Só que parece ter produzido esse efeito em Booth e Lonza de maneira
involuntária.
- Bachi deve ter ocultado alguma coisa que sabe acerca de Lonza! -disse
Lowell, contrariado. - Você viu, Holmes, como ele se mostrava relutante? O
que tem a dizer sobre isto?
- Era como andarmos às cabeçadas - admitiu Holmes. - Quando um homem
começa a atacar Boston, quando descarrega a amargura sobre a Frog Pond
ou o Parlamento, podem ter a certeza que não lhe resta muito. O pobre
Edgar Poe morreu no hospital pouco depois de ter começado a falar assim.
Se encontrarem alguém que esteja reduzido a essa condição, mais vale não
lhe darem dinheiro, porque estará nas últimas.
- O homem cascavel - murmurou Lowell perante a menção a Poe.
- Sempre houve um aspeto obscuro em Bachi - disse Longfellow. - Pobre
Bachi. A perda do emprego só o tornou mais desgraçado, e, sem dúvida que
no seu desespero, considera o nosso papel de forma pouco simpática.
Lowell não olhou Longfellow nos olhos. Abstivera-se de lhe contar os
pormenores da diatribe de Bachi contra ele.
- Creio que neste mundo a gratidão escasseia mais que os bons versos,
Longfellow. Bachi não tem mais sentimentos que um rábano picante, podia
ter acontecido que Lonza sentisse todo esse medo no Comissariado Central
da Polícia por saber quem matara Healey. Ele sabia que Bachi era o
culpado... ou talvez até tivesse ajudado Bachi a matar Healey.
- A referência ao trabalho de Longfellow sobre Dante não o fez reagir como
se lhe tivessem aproximado um fósforo aceso - disse Holmes, apesar de se
mostrar céptico. - O assassino tem de ser um homem com muita força
para ter conseguido transportar Healey do quarto até ao campo. Bachi mal
consegue caminhar direito, com o regimento de bebidas alcoólicas atrás.
Além disso, não encontrámos nenhuma relação entre Bachi e as duas
vítimas.
- Não precisamos de nenhuma! - disse Lowell. - Lembre-se que Dante
coloca no Inferno muita gente que ele nunca conheceu. Ser Bachi tem dois
ingredientes mais fortes que uma relação pessoal com Healey e Talbot.
Primeiro: um excelente conhecimento de Dante. Ele é o único, à excepção
do nosso clube, e à parte, suponho, o velho Ticknor, com um nível de
entendimento sobre este autor, que rivaliza com o nosso.
- Sem dúvida - corroborou Holmes.
- Segundo: a motivação - prosseguiu Lowell. - Ele é tão pobre como um rato.
Vê-se abandonado pela nossa cidade, e encontra consolo apenas na bebida.
Os seus trabalhos ocasionais como professor particular são a única coisa
que o mantém à tona, sem dívidas. Ele guarda-nos ressentimento por
acreditar que Longfellow e eu próprio ficámos de braços cruzados quando
ele foi despedido. E Bachi veria Dante ser mais arruinado do que salvo
pelos traidores americanos.
- Meu caro Lowell, por que motivo Bachi escolheria Healey e Talbot? -
perguntou-lhe Fields.
- Ele podia escolher quem muito bem entendesse, desde que se ajustasse
aos pecados que decidisse punir. Se Dante chegasse a revelar-se a sua fonte
de inspiração, podia desprestigiar o seu nome nos Estados Unidos, antes
mesmo de o poema se destacar por si.
- Podia Bachi ser o nosso Lúcifer? - perguntou Fields.
- Ele tem de ser o nosso Lúcifer? - questionou Lowell, estremecendo ao
mesmo tempo que agarrava no próprio tornozelo.
Longfellow interpelou-o, olhando para a sua perna.
- Lowell?
- Oh, não se preocupe, obrigado. Agora lembro-me que, no outro dia, fiz um
golpe quando esbarrei com um bengaleiro de ferro em Wide Oaks.
O doutor Holmes inclinou-se para a frente, e fez um gesto para que Lowell
arregaçasse a perna da calça.
- Aumentou de tamanho, Lowell? - O abrasão vermelho passara do tamanho
de uma moeda de um centavo para o de uma moeda de um dólar.
- Como é que havia de saber? - Ele nunca levava a sério os próprios
ferimentos.
- Talvez devesse prestar mais atenção a si mesmo do que a Bachi -
respondeu-lhe Holmes. - Não tem o aspeto de um ferimento sarado-Muito
pelo contrário. Diz que só fez um golpe? Não me parece que esteja infetado.
Tem andado a incomodá-lo, Lowell?
De repente, ele sentiu o tornozelo muito pior. - Agora dói-me outra vez. -
Depois, ficou pensativo. - É possível, enquanto estive em casa de Healey,
uma daquelas moscas-varejeiras introduziu-se na perna da calça. Pode ter
sido disso?
- Não me parece - respondeu Holmes. - Nunca me constou que uma mosca-
varejeira desse tipo conseguisse picar. Talvez tenha sido outro tipo de
inseto.
- Não, eu dava por isso. E esmaguei-a bem esmagada - explicou Lowell,
fazendo um esgar. - Foi uma das que lhe trouxe, Holmes.
Holmes reflectiu sobre aquilo.
- Longfellow, o professor Agassiz já voltou do Brasil?
- Creio que vem precisamente esta semana - respondeu Longfellow.
- Sugiro que enviemos ao museu de Agassiz as amostras de insetos que
você recolheu - disse Holmes, dirigindo-se a Lowell. - Não há nada que ele
não saiba sobre animais.
Lowell já estava mais do que farto do tema do seu próprio bem-estar. -
Faça-o se acha que é o melhor a fazer. Agora, sugiro que sigamos Bachi
durante uns dias, presumindo que já não caiu morto de tanto beber. Temos
de ver se ele nos leva a algum lugar revelador. Dois de nós aguardarão em
frente à sua casa numa charrete, enquanto os outros esperam aqui. Se não
houver objecções, eu mesmo assumirei a liderança dos que vigiarem Bachi.
Quem me acompanha?
Ninguém se voluntariou. Com um gesto indolente, Fields puxou pela
corrente do seu relógio.
- Oh, vamos lá! - disse Lowell, dando umas palmadinhas no ombro do seu
editor -, Fields, vem você.
- Sinto muito, Lowell. Comprometi-me com Oscar Houghton para o almoço
de hoje, e Longfellow vai acompanhar-me. A noite passada, Houghton
recebeu um bilhete de Augustus Manning a adverti-lo para deixar de
imprimir a tradução de Longfellow, ou arriscava-se a perder o negócio de
Harvard. Temos de fazer qualquer coisa, e rapidamente, ou Houghton
acabará por ceder.
- E eu vou dar uma palestra no Odeon sobre os últimos avanços da
homeopatia e da alopatia, que não pode ser cancelada, por implicar graVes
perdas económicas para os organizadores - disse o doutor Holmes,
deixando clara a prioridade. - Claro que todos estão convidados a assistir.
- Mas podíamos conseguir averiguar aqui algo de decisivo.' - protestou
Lowell.
- Lowell - disse Fields. - Se permitirmos que o doutor Manning tome a
dianteira sobre nós relativamente a Dante,
enquanto estamos ocupados com isso, todo o nosso trabalho de tradução,
tudo aquilo por que esperámos, irá por água abaixo. Leva apenas uma hora
a apaziguar Houghton, e depois podemos fazer o que você diz.
Naquela tarde, chegou até Longfellow o cheiro intenso dos bifes, e os
abafados e alegres barulhos próprios do almoço, enquanto aguardava de pé
em frente à pétrea fachada grega da Revere House. Um almoço com Oscar
Houghton significava, pelo menos, uma hora de tréguas, sem ter de falar de
crimes nem de insetos. Inclinando-se sobre o assento do cocheiro da sua
charrete, Fields deu-lhe instruções para voltar à Charles Street, porque
Annie Fields tinha de ir ao seu Clube de Senhoras em Cambridge. Fields era
o único membro do círculo de Longfellow, que tinha uma charrete própria,
não só porque o editor era o mais rico, mas também porque valorizava o
luxo acima das dores de cabeça causadas pelos cocheiros carrancudos e os
cavalos achacosos.
Longfellow fixou-se numa senhora pensativa com um véu negro, que
atravessava a Bowdoin Square. Ela levava um livro na mão e caminhava
deliberadamente devagar, com os olhos baixos. Ele pensou na época em
que se encontrava com Fanny Appleton na Beacon Street, como ela lhe
dirigia um aceno cortês, sem nunca parar para falar consigo. Ele conhecera-
a na Europa, enquanto se submergia nas línguas para se preparar para a
sua actividade de docente, e ela se mostrava bastante agradada com aquele
professor amigo do seu irmão. No entanto, de regresso a Boston, foi como
se Virgílio lhe sussurrasse ao ouvido o conselho que deu ao peregrino no
círculo dos Neutros: «Não falemos, olhemos e passemos ao largo.» Tendo-
lhe sido negada a conversa com a bonita jovem, Longfellow deu por si a
criar a personagem de uma bonita jovem no seu livro Hyperion, baseada
nela.
Mas os meses passaram sem que a mulher jovem respondesse ao gesto do
homem a quem ela chamava o professor, ou o profe, embora tivesse a
certeza que, se ela tivesse lido o seu livro, se teria reconhecido na
personagem. Quando finalmente ele voltou a encontrar Fanny, ela deixou
muito claro que não a entusiasmava ver-se escravizada no livro do
professor, exposta à vista de todos. Ele não pensou em desculpar-se, maS
nos meses seguintes, revelou-lhe as suas emoções como nunca fizera, nem
sequer com Mary Potter, a jovem noiva que morrera durante um aborto
poucos anos depois de se casar com Longfellow. Miss Appleton e o
professor Longfellow começaram a ver-se com regularidade. Em Maio de
1843 Longfellow escreveu-lhe um bilhete a pedi-la em casamento. No
mesmo dia, ele recebeu o seu consentimento.
Oh, Dia abençoado para todo o que me abriu para esta Vita Nuova, esta
Nova Vida de felicidade! Ele repetiu estas palavras vezes sem conta, até elas
tomarem forma, adquirirem peso, e poder abraçá-las e protegê-las como se
fossem crianças.
- Onde se terá metido Houghton? - perguntou Fields quando a sua charrete
partiu. - É bom que não se tenha esquecido do nosso almoço.
- Talvez tenha ficado retido em Riverside. Minha senhora - Longfellow tirou
o chapéu ao se cruzarem no passeio com uma mulher corpulenta, que se
virou e lhe devolveu um sorriso tímido. Sempre que Longfellow se dirigia a
uma mulher, por muito breve que fosse o encontro, era como se lhe
oferecesse um ramo de flores.
- Quem era? - perguntou Fields, franzindo o sobrolho.
- Aquela - respondeu Longfellow -, é a senhora que nos serviu um jantar no
Copeland há dois Invernos.
- Ah, bem, sim... De qualquer modo, se ele tivesse ficado retido em
Riverside, melhor seria que a causa fosse o trabalho com as páginas do
Inferno, que temos de enviar para Florença.
- Fields - disse Longfellow estreitando os lábios com firmeza.
- Peço perdão, Longfellow - desculpou-se Fields. - Da próxima vez que a vir,
prometo cumprimentá-la.
Longfellow abanou a cabeça.
- Não, não é isso. Olhe ali. - Fields seguiu o olhar fixo de Longfellow, que se
dirigia para um homem estranhamente encurvado com uma bolsa de
oleado brilhante, e que caminhava com um passo excessivamente vivo no
passeio contrário.
- É Bachi.
- E aquele foi em tempos professor em Harvard? - replicou o editor. - Está
tão encarnado como o pôr do Sol no Outono. - Eles observaram o passo do
professor italiano, cada vez mais rápido, até se converter num trote, que
culminou num salto brusco em frente da fachada de uma loja, numa
esquina. A loja tinha um teto de telhas baixo e um letreiro ostentoso na
montra onde se lia WADE AND SON & Co.
- Conhece aquela loja? - perguntou Longfellow. Fields não a conhecia.
- Ele parece estar com muita pressa, não é?
- O senhor Houghton não se vai importar de esperar uns minutos - disse
Longfellow, tomando o braço de Fields. - Venha, podemos saber algo mais,
se o apanharmos de surpresa.
Quando começaram a dirigir-se para a esquina, para atravessarem a rua,
viram George Washington Greene a sair com grande precaução da farmácia
Metcalfs com um braçado de mercadoria. O homem das muitas doenças
oferecia as novas medicinas, como outros oferecem gelados.
Muitas vezes, os amigos de Longfellow lamentavam-se por as poções da
Metcalfs contra a nevralgia, a disenteria e outras doenças semelhantes -
vendidas com uma imagem de marca, que representava a figura de um
sábio com um nariz exagerado - contribuírem em grande parte para os
acessos de Rip Van Winkle(1) de Greene durante as suas sessões de
tradução.
- Santo Deus, é Greene! - disse Longfellow ao seu editor. - É imperativo,
Fields, que consigamos impedi-lo de falar com Bachi.
- Porquê? - perguntou Fields.
Mas a aproximação de Greene impediu-o de continuar a falar.
- Meus caros Fields e Longfellow! O que vos traz hoje aqui, meus senhores?
- Caro amigo - disse Longfellow, olhando ansiosamente para a porta, sob a
sombra de um dossel, da Wade and Son, do outro lado da rua, esperando
que Bachi desse um sinal de vida. - Viemos almoçar no Revere House. Mas
você não devia estar em East Greenwich neste dia da semana?
Greene anuiu e suspirou.
- Shelly quer que eu fique sob os seus cuidados até a minha saúde melhorar.
Mas não posso ficar o dia todo na cama, apesar da insistência do médico! As
dores nunca mataram ninguém, embora sejam o companheiro de cama
mais molesto. - Ele entrou em grandes pormenores sobre os seus sintomas
mais recentes. Longfellow e Fields fitaram o outro lado da rua, enquanto
Greene prosseguia a sua tagarelice. - Mas eu não devia aborrecer toda a
gente com as lamúrias sobre os meus males. Não me queixaria se não me
sentisse frustrado por perder outra sessão de Dante... e, desde há semanas,
que não me dizem nem uma palavra a esse respeito! Comecei a ficar
preocupado, receando que o projeto tivesse sido abandonado. Por favor,
diga-me, meu caro Longfellow, que não foi isso que aconteceu.
- Não, só fizemos uma pequena pausa - disse Longfellow, esticando o
pescoço para olhar para o outro lado da rua, onde se podia ver Bachi
através da montra a gesticular energicamente.
- Não tardaremos a retomar as sessões. Sem dúvida - acrescentou Fields.
Uma charrete virou a esquina em frente, tapando-lhes a vista da fachada da
loja e de Bachi. - Desculpe, mas agora temos de ir andando,
w
*1 Referência ao relato incluído em Sketch Book de Washington Irving
(1783-1859), onde é narrada a história de Rip Van Winkle, uma
personagem norte-americana de origem holandesa, que dormiu durante
vinte anos nas montanhas, desconhecendo o que ia acontecendo no seu
país. As «ausências» de Greene durante as sessões do Clube de Dante dão
lugar a esta comparação jocosa com Rip Van Winkle. [N. da T.]

w
senhor Greene - apressou-se Fields a dizer, apertando o cotovelo de
Longfellow e dirigindo-o à sua frente.
- Mas estais confundidos, meus senhores.' Acabais de passar Revere House,
que fica na direcção oposta! - disse Greene a rir.
- Sim, bem... - Fields procurou uma desculpa verosímil, enquanto
esperavam que duas charretes, que se aproximavam, passassem pelo
movimentado cruzamento.
- Greene - interrompeu Longfellow. - Antes temos de fazer uma pequena
paragem. Por favor, venha ter ao restaurante e almoce connosco e com o
senhor Houghton?
- Receio que a minha filha possa ficar numa fúria se não for para casa -
respondeu Greene, preocupado. - Oh, vejam quem aí vem! - Greene deu um
passo atrás, vacilou e ficou fora do passeio estreito. - Senhor Houghton!
- As minhas mais sinceras desculpas, meus senhores. - Um homem
deselegante, vestido de negro como um cangalheiro, apareceu junto deles, e
baixou o seu braço, insolitamente longo, para apertar a primeira mão, que
foi a de George Washington Greene. - Estava quase a entrar na Revere
House quando os vi aos três pelo canto do olho. Espero que não estejam há
muito tempo à minha espera. Senhor Greene, meu caro senhor, vai fazer-
nos companhia? Como tem passado, meu bom amigo?
- Muito mal alimentado - respondeu Greene, agora passando em revista os
seus padecimentos. - A minha era uma vida cujo primeiro e último sustento
eram as reuniões de Dante nos serões de quarta-feira.
Longfellow e Fields alternavam a sua vigilância com vislumbres de quinze
segundos. A entrada da Wade and Son continuava tapada pela charrete
intrusa, cujo cocheiro continuava pacientemente sentado no seu lugar,
como se a sua principal missão fosse obstruir a visão dos senhores
Longfellow e Fields.
- Você disse eram? - perguntou Houghton a Greene, surpreendido. - Fields,
isto tem alguma coisa a ver com o doutor Manning? Mas então o que
acontece à celebração em Florença e à impressão especial do primeiro
volume? Tenho de saber se as datas de publicação foram adiadas. Eu não
posso andar às cegas!
- Claro que não, Houghton - disse Fields. - Nós só afrouxámos um pouco as
rédeas.
- E, pergunto, em que pode ajudar um homem habituado ao prazer desse
pedacinho semanal de paraíso? - lamentou-se dramaticamente Greene.
- Não sei - respondeu Houghton. - Mas preocupa-me imprimir este livro,
por causa da inflação dos preços...
Posso perguntar-lhe se o seu Dante vai ultrapassar todos os obstáculos que
Manning e Harvard se propuserem a interpor no seu caminho?
As mãos de Greene agitaram-se quando ele as levantou ao ar.
- Se fosse possível resumir uma ideia precisa sobre Dante, numa única
palavra, senhor Houghton, ela seria poder. Essa paisagem do seu mundo
acaba por assentar na memória de cada um, juntamente com o seu próprio
mundo real. Até os sons que ele se atardou a descrever ao ouvido do leitor
como ásperos, fortes ou suaves, nos invadem instantaneamente sempre
que ouvimos o rumor do mar, o uivo do vento ou o canto dos pássaros.
Bachi saiu da loja, e agora eles conseguiam vê-lo a examinar o conteúdo da
sua bolsa, aparentando uma grande emoção. Greene deteve-se.
- Fields? Mas o que se passa? Você parece estar à espera que aconteça
qualquer coisa do outro lado da rua.
Longfellow fez um sinal a Fields, um golpezinho com o pulso, para que
entretivesse o interlocutor deles; como parceiros numa situação crítica,
que de alguma forma conseguem comunicar uma estratégia complexa com
o mínimo gesto. Fields executou uma manobra de diversão com o velho
amigo de ambos, passando descontraidamente o braço por cima dos seus
ombros.
- Bem vê, Greene, houve várias alterações no campo da edição, desde o final
da guerra...
Longfellow puxou Houghton para o lado e disse-lhe em surdina.
- Receio que tenhamos de adiar o nosso almoço para outra altura. Dentro
de dez minutos, sai uma tipóia para Back Bay. Peço-lhe que acompanhe o
senhor Greene até lá. Acomode-o num lugar, e não se vá embora até a tipóia
sair. Assegure-se de que ele não se apeia - disse Longfellow, erguendo
ligeiramente o sobrolho para que o outro compreendesse bem a sua
urgência.
Houghton respondeu com um gesto militar, sem pedir mais explicações.
Alguma vez Henry Longfellow lhe pedira, a ele ou a alguém que conhecesse,
algum favor pessoal? O dono da Riverside Press deslizou o seu braço sob o
de Greene.
- Senhor Greene, posso acompanhá-lo até às tipóias? Julgo que a próxima
está quase a sair, e não lhe convém esperar muito tempo com este frio de
Novembro.
Com despedidas apressadas, Longfellow e Fields esperaram que duas
grandes diligências descessem a rua ruidosamente a tocar as campainhas
de aviso. Os dois poetas atravessaram a rua apressadamente, apercebendo-
se ao mesmo tempo que o professor italiano já não estava na esquina.
Olharam para todo o quarteirão, para a frente e para trás, mas não o viram
em parte nenhuma.
- Onde diabo...? - perguntou Fields.
Longfellow apontou e Fields olhou a tempo de ver Bachi confortavelmente
sentado no banco de trás daquela mesma charrete que estivera a obstruir a
vigilância de ambos. O ruído dos cascos dos cavalos distanciava-se,
aparentemente sem partilhar a impaciência do passageiro.
- E não há nenhum fiacre à vista! - disse Longfellow.
- Talvez consigamos apanhá-lo - disse Fields. - A estrebaria do cocheiro
Pike fica a poucos quarteirões daqui. O velhaco pede um quarto de dólar
por cada lugar na sua charrete, e meio dólar quando se sente
particularmente usurpador. Mais ninguém neste quarteirão além de
Holmes consegue tolerá-lo, e ele não suporta mais ninguém além do
médico.
Caminhando apressadamente, Fields e Longfellow encontraram Pike na sua
estrebaria, mas teimosamente estacionado em frente à mansão de tijolo do
n.o 21 da Charles Street. Os dois solicitaram os serviços de Pike, e Fields
mostrou-lhe as mãos cheias de notas.
- Não posso fazer-lhes o serviço, meus senhores, nem por todo o dinheiro
desta comunidade - disse Pike num tom brusco. - Comprometi-me a
transportar o doutor Holmes.
- Ouça-nos com atenção, Pike - Fields exagerou o tom de comando, que
naturalmente a sua voz já tinha. - Nós somos colaboradores muito
próximos do doutor Holmes. Ele próprio lhe diria para nos levar.
- Os senhores são amigos do senhor doutor? - perguntou Pike.
- Somos! - exclamou Fields, aliviado.
- Então, como amigos dele não é provável que queiram deixar a charrete
para ele? Eu estou comprometido com o doutor Holmes - repetiu Pike
amavelmente, e recostou-se para tirar com os dentes a ponta de um palito
de marfim.
- Bem! - exclamou Oliver Wendell Holmes, meneando-se no degrau da
entrada de sua casa, segurando uma mala de mão. Vestia um fato escuro de
fibra e um cachecol de seda branco perfeitamente atado como uma gravata,
e com uma rosa branca na sua lapela. - Fields. Longfellow. Então, sempre
vieram ouvir falar sobre alopatia!
Os cavalos de Pike avançaram a toda a pressa pela Charles Street, em
direcção às intrincadas ruas do centro, passando tangentes aos candeeiros
de rua e assustando os irados condutores de tipóias. A charrete de Pike, já
em mau estado, tinha o teto baixo, mas era aberta atrás, com um assento
suficientemente amplo para acolher quatro passageiros,
sem que tivessem de viajar a bater com os joelhos uns nos outros. O doutor
Holmes dera instruções ao cocheiro para chegar rapidamente, à uma
menos um quarto, ao Odeon, mas agora o destino fora alterado,
aparentemente contra a vontade do médico, segundo a perspectiva do
cocheiro, e o número de passageiros triplicara. Em todo o caso, Pike tinha o
propósito de os conduzir ao Odeon.
- E a minha conferência? - perguntou Holmes a Fields, uma vez na traseira
da charrete. - Está esgotada, sabe!
- Pike pode deixá-lo lá num instante, enquanto nós vamos ao encontro de
Bachi e lhe fazemos uma ou duas perguntas - respondeu Fields. -E
asseguro-lhe que os jornais não darão a informação de que você chegou
atrasado. Se eu não tivesse dispensado o meu fiacre para o deixar a Annie,
não teríamos ficado para trás!
- Mas o que imagina você conseguir se o encontrarmos, de fato? -perguntou
Holmes.
Foi Longfellow que lhe respondeu.
- É certo que hoje Bachi está nervoso. Se conversarmos com ele longe de
casa, e da sua bebida, ele pode mostrar-se menos renitente a falar. Se não
tivéssemos tropeçado em Greene, é provável que tivéssemos alcançado o
senhor Bachi sem esta correria. Eu quase estive para explicar de forma
simples ao pobre Greene tudo o que aconteceu, mas a verdade seria um
rude golpe para uma constituição tão frágil. Ele padece de todos os males, e
acredita que o mundo inteiro está contra si. Só lhe falta cair um raio em
cima.
- Ali vai! - exclamou Fields, apontando para um veículo a uns cinco
quarteirões à frente deles. - Longfellow, não é a charrete?
Longfellow esticou o pescoço para a parte lateral da charrete, sentindo o
vento golpear-lhe a barba, e fez sinais de assentimento.
- Cocheiro, siga em frente! - gritou Fields.
Pike afrouxou as rédeas, e a charrete percorreu a rua, bamboleando-se, a
uma velocidade muito superior ao limite permitido, que a Repartição de
Segurança de Boston estabelecera recentemente num «trote moderado».
- Estamos a afastar-nos muito para leste! - advertiu Pike aos gritos,
sobrepondo a sua voz ao estrépito dos cascos sobre os paralelepípedos de
pedra. - Muito longe do Odeon, sabe, doutor Holmes?
- Por que razão tivemos de ocultar Bachi de Greene? - perguntou Fields a
Longfellow. - Não creio que se conheçam.
- Há muito tempo - disse Longfellow, anuindo -, o senhor Greene conheceu
Bachi em Roma, antes de se manifestar o pior dos seus padecimentos. Tive
medo que se tivéssemos abordado Bachi, estando Greene presente,
este lhe falasse demasiado do nosso projeto de Dante..., como costuma fazer
com quem quer que esteja disposto a ouvi-lo... e isso iria interferir com a
vontade que Bachi pode ter de falar, fazendo-o sentir-se ainda mais infeliz.
Por várias vezes, Pike perdeu de vista o objectivo deles, mas, depois de
umas voltas rápidas, galopes notavelmente medidos e pacientes atrasos,
recuperou a vantagem. O outro cocheiro também parecia estar com pressa,
no entanto, permanecia completamente alheio à perseguição. Próximo das
ruas estreitas da zona portuária, a sua presa voltou a escapar-lhes.
Depressa reapareceu, arrancando a Pike uma blasfémia, pela qual pediu
desculpa, e acabou por parar bruscamente, fazendo Holmes voar pela
charrete até ao colo de Longfellow.
- Aqui vem ela! - avisou Pike, quando o seu colega conduziu a charrete em
direcção a eles, afastando-se do porto. No entanto, o assento do passageiro
estava vazio.
- Ele deve ter saído no molhe! - disse Fields.
Mais uma vez, Pike conteve o passo dos cavalos, e os seus passageiros
saíram. O trio abriu caminho por entre o aglomerado de gente, que
saudava, ia de um lado para o outro e contemplava vários navios a
desaparecer na neblina, enquanto se despediam, agitando lenços.
- A esta hora, a maioria dos barcos zarpam para Long Wharf - disse
Longfellow. Há uns anos, ele passeava com frequência pelo porto para ver
os grandes veleiros, que chegavam da Alemanha ou de Espanha, e ouvir os
homens e mulheres falarem as suas línguas nativas. Em Boston não havia
uma grande Babilónia de idiomas nem tons de pele comparável ao seu
porto.
Fields tinha dificuldade em prosseguir.
- Wendell?
- Aqui, Fields! - exclamou Holmes, rodeado pela multidão. Holmes
encontrou Longfellow a descrever Bachi a um estivador
negro, que carregava barris.
Fields decidiu perguntar aos passageiros que vinham da direcção oposta,
mas depressa se deteve para descansar no rebordo de uma embarcação.
- Você aí de fato bonito. - O corpulento dono da embarcação de barba
gordurenta, agarrou rudemente no braço de Fields, e empurrou-o Para o
lado. - Saia da frente dos que estão a embarcar, se não comprou bilhete.
- Bom, senhor - disse Fields -, necessito da sua ajuda imediata. Viu um
homem de estatura baixa, com uma sobrecasaca azul amarrotada e os olhos
injetados de sangue?
O dono da embarcação ignorou-o, ocupado que estava em organizar a fila
de passageiros por classes e por camarotes. Fields observou o homem,
enquanto retirava o gorro (demasiado pequeno para a sua cabeça de
mamute) e passava uma mão áspera pelo cabelo emaranhado.
Fields fechou os olhos como se estivesse em transe, escutando as estranhas
e nervosas ordens daquele homem. À sua mente acorreu uma habitação
escura com uma pequena vela incansável a arder numa mísula da chaminé.
- Hawthorne - disse Fields, sussurrando quase involuntariamente. O dono
da embarcação deteve-se e virou-se para Fields.
- O quê?
- Hawthorne - repetiu Fields a sorrir, sabendo que estava certo. -O senhor é
um admirador incondicional dos romances de Hawthorne.
- Bem, eu... - O dono da embarcação rezou ou jurou para o colarinho da sua
camisa. - Como é que sabe? Diga-me imediatamente!
Os passageiros que estava a organizar por categorias também ficaram
parados para ouvir.
- Não importa. - Fields sentiu um impulso satisfeito por conservar aquela
habilidade para descobrir os gostos do público leitor, e que muitos anos
antes lhe fora de tanto proveito, quando era apenas um jovem
administrativo numa livraria. - Escreva a sua morada nesta folha de papel, e
eu envio-lhe a nova colecção «Azul e Ouro», com todas as grandes obras de
Hawthorne, autorizada pela viúva. - Fields estendeu-lhe o papel, e
rapidamente o retirou do seu alcance, fechando a mão. - Se hoje me ajudar,
senhor.
O homem, subitamente supersticioso diante dos poderes de Fields, anuiu.
Fields pôs-se em bicos dos pés, e fez um aceno a Longfellow e Holmes, que
vinham na sua direcção. Ele gritou-lhes.
- Perguntem a esse proprietário!
Holmes e Longfellow abordaram um capitão do porto, e descreveram-lhe
Bachi.
- E quem são os senhores?
- Somos grandes amigos dele - gritou Holmes. - Por favor, diga-nos se ele
embarcou. - Agora, Fields juntava-se a eles.
- Bem, eu vi-o chegar ao porto - respondeu o homem com uma lentidão
sinuosa e desesperante. - Creio que ele embarcou ali, e estava muito
nervoso - acrescentou, apontando para um barco pequeno no meio do mar,
que não podia transportar mais de cinco passageiros.
- Muito bem, esse barquito não pode ir muito longe. Para onde se dirige? -
perguntou Fields.
Aquele? É só um transporte entre o molhe e o barco. O Anónimo é
demasiado grande para atracar neste cais. Por isso, fica fora do porto. Está
a vê-lo?
A sua silhueta mal se via no meio da neblina, aparecendo e desaparecendo,
mas era o maior vapor que eles alguma vez tinham visto.
- Ah, parece-me que o amigo dos senhores estava com muita pressa para
embarcar. Aquele barquito em que ele vai está a fazer a última viagem, com
o grupo de passageiros que chegaram atrasados. Em seguida, zarpa.
- Para onde? - perguntou Fields, sobressaltado.
- Ora, para o outro lado do Atlântico, senhor. - O capitão do porto olhou de
relance para o seu quadro. - Faz uma escala em Marselha, e, ah, sim, segue
diretamente para Itália!
O doutor Holmes chegou ao Odeon a tempo de fazer uma comunicação
decididamente bem acolhida, e o seu auditório considerou-o um
conferencista muito importante por ter chegado atrasado. Longfellow e
Fields sentaram-se, muito atentos, na segunda fila, ao lado de Neddie, o
filho mais novo do doutor Holmes, das duas Amelias e de John, o irmão de
Holmes. Na segunda de uma série de três conferências esgotadas,
organizadas por Fields, Holmes analisou os procedimentos médicos
relacionados com a guerra.
- Curar é um processo vivo - disse Holmes ao seu auditório -, em grande
medida por influência das condições mentais. - E explicou como era
frequente um mesmo ferimento, recebido em combate, sarar depressa nos
soldados vencedores, e revelar-se fatal nos vencidos. - É daqui que emerge
essa região média entre ciência e poesia, de cujo acesso os homens
considerados sensatos se resguardam muito bem.
Holmes olhou para a fila ocupada pela sua família e amigos e para o lugar
vago, reservado para Wendell Júnior, caso ele aparecesse.
- O meu filho mais velho sofreu mais do que um desses ferimentos durante
a guerra, e foi enviado para casa pelo Tio Sam com algumas botoeiras no
seu colete conveniente. - Risos. - Nessa guerra também '
houve muitos corações perfurados, que não apresentam quaisquer sinais
de bala.
Depois da conferência, e com a necessária quantidade de elogios dirigidos
ao doutor Holmes, ele e Longfellow acompanharam o seu editor de novo à
Sala dos Autores, na Corner, e esperaram por Lowell. Ali, decidiram que
devia ser marcada uma reunião do clube de tradução em casa de
Longfellow para a quarta-feira seguinte.
A sessão planeada serviria um duplo propósito. Primeiro, apaziguaria todas
as inquietações de Greene sobre o estado da tradução e sobre a estranha
conduta que ele e Houghton tinham testemunhado, e assim minimizaria o
risco de novas interferências como a que lhes havia custado perder a
informação que Bachi pudesse possuir. Segundo, e talvez o mais
importante, permitia-lhes avançar na tradução de Longfellow. Ele estava a
tentar cumprir a sua promessa de ter o Inferno pronto para o enviar para o
Festival de Dante, em Florença, o último do ano, por ocasião do sexto
centenário do nascimento do poeta, em 1265.
Longfellow não quisera admitir que era improvável que ele terminasse
antes do final de 1865, a menos que as investigações deles tivessem alguma
evolução milagrosa. Contudo, ele começara a trabalhar nas suas traduções
à noite, sozinho, implorando interiormente a Dante para que lhe desse
sabedoria para desvendar os confusos finais de Healey e de Talbot.
- O senhor Lowell está? - perguntou uma voz baixa, acompanhada de um
batimento com os nós dos dedos na porta da Sala dos Autores.
Os poetas estavam exaustos.
- Receio que não - respondeu Fields ao invisível inquisidor com um enfado
indissimulado.
- Excelente! O príncipe dos comerciantes de Boston, Phineas Jennison,
ataviado, como sempre, com um fato e chapéu brancos, entrou depressa e,
com estrondo, fechou a porta atrás de si, permanecendo imperturbável. -
Um dos seus empregados disse-me que o encontrava aqui, senhor Fields.
Desejo falar livremente sobre Lowell, e prefiro que o rapaz não esteja
presente. - Colocou a sua cartola de seda no cabide de ferro de Fields, com o
que o seu cabelo luzidio descaiu para o lado esquerdo num soberbo
movimento majestoso. - O senhor Lowell está a passar por dificuldades.
O visitante suspirou ao aperceber-se da presença dos dois poetas. Esteve
quase a cair sobre um joelho, enquanto apertava as mãos de Holmes e de
Longfellow, manejando-as como se fossem garrafas de vinho das mais raras
e delicadas colheitas.
Jennison gostava de disseminar a sua vasta riqueza com o patrocínio de
artistas e no seu próprio aperfeiçoamento das belles lettres. Nunca deixava
de se sentir esmagado diante dos génios, que só conhecia graças ao seu
dinheiro. Jennison acomodou-se numa cadeira de braços.
- Senhor Fields, senhor Longfellow, doutor Holmes - disse ele, nomeando-
os com uma cerimónia exagerada. - Todos vós sois bons amigos de Lowell,
melhores do que me é dado ser, embora eu tenha o privilégio de o
conhecer, porque o verdadeiro conhecimento só se dá entre génios. Holmes
interrompeu-o nervosamente. - Senhor Jennison, aconteceu alguma coisa a
Jamey? - - Eu sei, Doutor - disse Jennison, suspirando profundamente e
procurando as palavras. - Estou a par dos desditosos atos relacionados com
Dante, e estou aqui porque desejo ajudá-los no que for preciso para os
contrariar.
- Atos relacionados com Dante? - repetiu Fields numa voz esmorecida.
Jennison anuiu solenemente.
- A maldita Corporação e a sua esperança de se livrar desse curso de Lowell
sobre Dante. E a sua tentativa de impedir a realização da vossa tradução,
meus caros senhores! Lowell falou-me sobre isso, apesar de ser demasiado
orgulhoso para pedir ajuda.
Três suspiros contidos escaparam por baixo dos respectivos coletes diante
das palavras de Jennison.
- Agora, como certamente os senhores sabem, Lowell cancelou
temporariamente as suas aulas - disse Jennison, mostrando-se contrariado
por ter de advertir para a aparente indiferença dos seus interlocutores,
diante de algo que lhes dizia respeito. - Bem, digo-lhes que isso não pode
acontecer. Não beneficia um génio da categoria de James Russell Lowell, e
não pode ser consentido sem que se lute. Temo que esteja eminente a
possibilidade de fazerem Lowell em pedaços, se empreenderem uma via de
conciliação! E, na faculdade, constou-me que Manning está exultante. -
Acabou a dizer isto com a preocupação reflectida na sua testa franzida.
- O que pretende você que façamos, meu caro senhor Jennison? -perguntou-
lhe Fields com um movimento de deferência.
- Animem-no para que se mostre mais audaz. - Jennison realçou o seu
ponto de vista com um soco na palma da mão. - Salvem-no da sua própria
cobardia, ou a nossa cidade perderá um dos seus corações mais vigorosos.
Mas também me ocorreu outra ideia. Criar uma organização Permanente,
dedicada ao estudo de Dante... eu próprio aprenderia italiano para vos
ajudar! - Jennison fez um sorriso luminoso, como reluzente era o seu cinto
de pele com porta-moedas, do qual retirou e contou notas grandes. - Uma
associação dantina de qualquer tipo, dedicada à protecção dessa literatura
que vos é tão cara, meus senhores. O que me dizem? Ninguém precisará de
saber que estou envolvido nisto, e os senhores conseguirão vencer os
membros da Corporação.
Antes de alguém conseguir responder, a porta da Sala dos Autores abriu-se
de repente, e Lowell ficou parado à frente deles com o rosto pálido.
- Então, Lowell, o que se passa? - perguntou Fields.
Lowell ia começar a falar, mas reparou imediatamente em Jennison.
- Phinny? O que faz você aqui?
Jennison olhou para Fields em busca de auxílio.
- Eu e o senhor Jennison tínhamos alguns assuntos pendentes -disse Fields,
enfiando o cinto com porta-moedas nas mãos do homem de negócios e
empurrando-o para a porta. - Mas ele já se ia embora.
- Espero que esteja tudo bem, Lowell. Em breve contatarei consigo, meu
amigo!
Fields encontrou Teal, o marçano do turno da tarde, no vestíbulo, e pediu-
lhe que acompanhasse Jennison até à rua. Depois, fechou a porta da Sala
dos Autores à chave.
Lowell serviu-se de uma bebida do contador.
- Oh, não vão acreditar no azar que eu tive, meus amigos. Quase desloquei o
pescoço de tanto procurar Bachi em Half Moon Place, e acabei como
comecei! Não estava em lado nenhum, e ninguém por ali sabia onde o podia
encontrar... não creio que os dublinenses daquela zona dirigissem a palavra
a um italiano, mesmo que estivessem a afogar-se ao lado dele numa balsa, e
o italiano tivesse um corcho. Quem sabe se não anda a divertir-se por aí,
como fizestes vós esta tarde.
Fields, Holmes e Longfellow permaneceram em silêncio.
- O que é? O que se passa? - perguntou Lowell.
Longfellow sugeriu que eles ceassem em Craigie House, e, no caminho,
explicassem a Lowell o que sucedera com Bachi. Depois da ceia, Fields
contou-lhe que voltara a falar com o capitão do porto e, com a ajuda de uma
moeda de ouro da águia norte-americana, o convencera a verificar o registo
e a informá-lo sobre a viagem de Bachi. A entrada correspondente indicava
que ele adquirira um bilhete de ida e volta com desconto, e que não lhe
permitia regressar antes de Janeiro de 1867.
De novo no salão de Longfellow, abatido, Lowell deixou-se cair numa
cadeira de braços.
- Ele sabia que o tínhamos encontrado. Bem, claro... mostrámos-lhe que
estávamos a par do que acontecera com Lonza! O nosso Lúcifer escapou-
nos por entre os dedos como finos grãos de areia!
- Então, devíamos celebrá-lo - disse Holmes com uma gargalhada. -Não
compreende o que isso significa, se tiver razão? Vá lá, isto é um pobre final
para os seus pares do teatro, concentrados em tudo o que parece
estimulante.
Fields inclinou-se para Lowell.
- Jamey, se Bachi foi o assassino...
Holmes completou o seu raciocínio com um sorriso rasgado.
- Então, estaríamos a salvo. E a cidade estaria a salvo. E Dante! Se, graças ao
nosso conhecimento, o afugentámos, então, derrotámo-lo, de fato, Lowell.
Fields levantou-se, radiante.
- Oh, meus senhores, vou organizar uma ceia Dante que fará empalidecer de
vergonha o clube de Sábado. Que a carne de cordeiro seja tão tenra como o
verso de Longfellow! E pode o Moet espumar como o engenho de Holmes, e
os trinchantes rivalizarem com a argúcia da sátira de Lowell!
Foram feitos três brindes a Fields.
Tudo aquilo aliviou um pouco Lowell, bem como a notícia sobre a sessão de
tradução de Dante, o que equivalia a repor a normalidade, a regressar ao
puro desfrute da sua erudição. Ele esperou que eles não tivessem perdido
esse prazer ao aplicar o seu conhecimento sobre Dante a tão repugnantes
assuntos.
Longfellow parecia saber o que inquietava Lowell. - No tempo de
Washington - disse ele -, fundiram os tubos dos órgãos das igrejas para
fabricar balas, meu caro Lowell. Não tiveram outra alternativa. Agora,
Lowell, Holmes, querem acompanhar-me lá abaixo à adega, enquanto
Fields vai ver como está o trabalho na cozinha? - perguntou ele, enquanto
retirava uma vela de cima da mesa.
- Ah, as verdadeiras fundações de qualquer casa! - comentou Lowell,
levantando-se da cadeira de braços com um salto. - Você tem uma boa
colheita, Longfellow?
Já conhece o meu método prático, senhor Lowell:
«Quando convidares um amigo para cear, oferece-lhe o teu melhor vinho.
Quando convidares dois, bastará o segundo melhor.»
Os presentes deram sonoras gargalhadas colectivas, incentivadas por uma
sensação de alívio.
- Mas temos quatro sequiosos para satisfazer! - objetou Holmes.
- Então, não esperemos muito, meu caro doutor - aconselhou Longfellow.
Holmes e Lowell seguiram-no até à adega à luz do fulgor prateado da vela.
Lowell recorreu ao riso e à conversa para se distrair da dor pungente que
lhe irradiava pela perna, golpeando-o e passando mais para cima, desde o
círculo vermelho que lhe cobria o tornozelo.
Jr Phineas Jennison, com um casaco branco, um colete amarelo e um
obstinado chapéu branco de abas largas, desceu as escadas da sua mansão
de Back Bay. Ele caminhava e assobiava. Volteava a sua bengala com
adornos dourados, e ria-se com vontade, como se dentro de si tivesse
acabado de ouvir uma boa piada. Era frequente Phineas Jennison rir-se
sozinho deste modo, enquanto passeava todas as noites por Boston, a
cidade que conquistara. Ainda faltava um mundo para ele conquistar, um
mundo onde o dinheiro tinha graves limitações, onde o sangue
determinava grande parte da posição de cada um, e esta conquista tinha ele
de realizar, apesar dos recentes obstáculos.
Do outro lado da rua, ele era observado, observado passo a passo desde o
momento em que deixara para trás a sua mansão. A sombra seguinte que
precisava do castigo. Vejam como ele caminha, assobia e ri, como se não
soubesse o que é o erro nem nunca tivesse conhecido nenhum. Passo a
passo. A vergonha de uma cidade, que já não conseguia dirigir o rumo do
seu futuro. Uma cidade que perdera a sua alma. Ele que sacrificara o único
que os podia reunificar a todos. O observador chamou-o.
Jennison parou, esfregando o seu famoso queixo com covinha. Olhou de
soslaio para a noite.
- Alguém me chamou? Não obteve resposta.
Jennison atravessou a rua e olhou de relance em frente, reconhecendo
vagamente a pessoa que permanecia de pé e imóvel, junto à igreja. Sentiu-
se mais tranquilo.
- Ah, é você. Lembro-me de si. O que pretende?
Jennison reparou que o homem fazia uma inflexão do corpo e se colocava
atrás de si, e, de imediato, algo perfurou as costas do príncipe dos
comerciantes.
- Leve o meu dinheiro, senhor, leve-o todo! Por favor! Pode ficar com ele e
seguir o seu caminho! Quanto quer? Diga-me! O que é que disse?
- Através de mim o caminho corre entre as gentes perdidas. Através de
mim.
A última coisa que J. T. Fields esperava encontrar quando, na manhã
seguinte, se apeou da sua charrete, era um cadáver.
- Aqui mesmo - disse Fields ao seu cocheiro. Fields e Lowell desceram e
caminharam pelo passeio em direcção à Wade and Son. - Foi aqui que Bachi
entrou antes de se dirigir a toda a pressa para o porto - disse Fields,
indicando o lugar a Lowell.
Eles não tinham encontrado nenhuma referência à loja nos guias da cidade.
- Diabos me levem se Bachi não veio aqui por um motivo obscuro -disse
Lowell.
Bateram devagar, sem obterem resposta. Depois, passados uns instantes, a
porta oscilou, abriu-se e saiu um homem com um casaco comprido azul
com botões brilhantes, que passou por eles sem lhes prestar a menor
atenção. Levava uma caixa cheia de artigos diversos.
- Com licença - disse Fields. Dois outros policiais aproximavam-se agora, e
abriram de par em par as portas da Wade and Son, empurrando Lowell e
Fields lá para dentro. No interior estava um homem muito velho de queixo
afilado, caído sobre o balcão, com uma caneta ainda na mão, como se
tivesse ficado a meio de uma frase. As paredes e as prateleiras estavam
vazias. Lowell aproximou-se mais. Um fio telegráfico ainda estava enrolado
em volta do pescoço do homem. O poeta fitou-o fascinado, porque o homem
parecia estar vivo.
Fields correu para o seu lado e puxou-lhe pelo braço para o conduzir até à
porta.
- Está morto, Lowell!
- Tão morto como um dos cadáveres que Holmes manipula na Faculdade de
Medicina - especificou Lowell, mostrando o seu acordo. - Receio que ao
nosso dantista não corresponda a prática de um homicídio tão prosaico.
- Lowell, venha! - Fields foi tomado pelo pânico, diante do crescente
número de policiais que se afanavam a estudar o local, sem ainda se terem
apercebido da presença dos dois intrusos.
- Fields, está uma mala ao lado dele. Preparava-se para fugir, tal como
Bachi. - Voltou a olhar para a caneta que estava na mão do morto. - Atrever-
me-ia a dizer que ele estava a tentar terminar os assuntos pendentes.
- Por favor, Lowell! - exclamou Fields.
- Muito bem, Fields. - Mas Lowell contornou o cadáver, deteve-se em frente
à bandeja do correio, que estava em cima da secretária, e deslizou o
primeiro envelope para dentro do bolso do seu casaco. - Então, vamos. -
Lowell lançou um olhar rápido para a porta. Fields apressou-se a avançar,
mas deteve-se para olhar para trás quando não sentiu a presença de Lowell
atrás de si. Lowell parara no meio da sala com uma expressão assustada e
pesarosa.
- O que foi, Lowell?
- A ferida no meu tornozelo.
Quando Fields se virou novamente para a porta, aguardava-os ali um
polícia com uma expressão de curiosidade.
- Acabávamos de vir à procura de um amigo nosso, senhor agente, que
ontem vimos entrar nesta loja.
Depois de ouvir a história deles, o polícia decidiu tomar notas no seu bloco.
- Pode repetir o nome desse seu amigo, Sir? O italiano?
- Bachi. B-a-c-h-i.
Quando foi permitido a Lowell e Fields retirarem-se, chegaram o detective
Henshaw e outros dois homens do gabinete de detectives, acompanhados
do senhor Barnicoat, o magistrado encarregue da investigação, e
dispensaram a maior parte dos policiais.
- Enterrem-no no cemitério dos pobres com o resto da imundície -disse
Henshaw ao ver o corpo. - Ichabod Ross. Não quero perder mais tempo;
ainda não tomei o pequeno-almoço. - Fields deixou-se ficar até Henshaw
encarar o seu olhar fulminante.
O vespertino tinha uma breve resenha sobre o homicídio de Ichabod Ross,
um pequeno comerciante, durante um assalto.
No envelope que Lowell surripiara estava escrito RELÓGIOS VANE. Era
uma casa de penhores, situada numa das ruas mais indesejáveis do Leste
de Boston.
Quando, na manhã seguinte, Lowell e Fields entraram na loja, desprovida
de escaparates, encontraram-se diante de um homem corpulento, que
pesaria uns cento e quarenta quilos, com a cara tão vermelha como o
tomate mais maduro, e uma barba esverdeada, que lhe brotava do queixo.
Uma enorme variedade de chaves pendia de uma corda passada em volta
do seu pescoço e tilintava sempre que se mexia.
- Senhor Vane?
- O próprio - respondeu ele, mas o seu sorriso gelou quando olhou para os
seus interlocutores de cima a baixo e viu como estavam vestidos. - Já disse
àqueles detectives de Nova Iorque que não fui eu que passei aquelas notas
falsas!
- Nós não somos detectives - disse Lowell. - Julgamos que isto lhe pertence.
- Ele colocou o envelope em cima do balcão - É de Ichabod Ross.
Um sorriso enorme iluminou-lhe o rosto.
- Ora, o pobre! Matarem o velhote antes de fechar as contas comigo!
- Senhor Vane, lamentamos a morte do seu amigo. Porque acha o senhor
que alguém queria acabar assim com o senhor Ross? - perguntou Fields.
- Oh, que investigadores curiosos que os senhores são, hem? Bom, não se
enganaram ao vir bater à minha porta. Quanto é que me pagam?
- Só lhe trouxemos o que lhe devia o senhor Ross - contestou Fields.
- Isso é o que me cabe legitimamente! - disse Vane. - Não mo vão negar!
- Tudo tem de ser feito em troca de dinheiro, não é? - objetou Lowell.
- Lowell, por favor - sussurrou-lhe Fields.
O sorriso de Vane voltou a gelar, enquanto olhava fixamente em frente. Os
seus olhos abriram-se até ficar com o dobro do tamanho.
- Lowell? Lowell, o poeta!
- Bem, sim... - admitiu Lowell, um pouco desconcertado.
- «E o que é tão raro como um dia de Junho?» - disse o homem, depois de
fazer uma pausa para se rir, e continuou.
«E o que é tão raro como um dia de Junho?
Então, como sempre, chegam dias perfeitos;
então o Céu tenta a terra se estiver na altura certa,
e sobre ela reclina suavemente o seu cálido ouvido;
Quer olhemos quer escutemos,
percebemos o murmúrio da vida ou vemo-lo resplandecer.»
- A palavra correta no quarto verso é brandamente - corrigiu-o Lowell com
uma certa indignação. - Reclina brandamente o seu cálido ouvido, sabe?
- Não me digam que não existe um grande poeta norte-americano! Oh, meu
Deus, eu até tenho a sua casa! - anunciou Vane, retirando debaixo do balcão
um exemplar encadernado a cabedal de Homes and Haunts of Our Poets,
que folheou até chegar ao capítulo sobre Elmwood. - Ah, ainda guardo o seu
autógrafo na minha colecção. Entre Longfellow, Emerson e Whittier, o
senhor é o meu autor favorito. Também aqui está aquele tratante do Oliver
Holmes, que seria melhor que não se dedicasse a tantas coisas.

O homem, que corara, adquirindo um tom bardolfiano(1) por causa da


comoção, abriu uma gaveta com uma das chaves que tinha penduradas ao
pescoço e retirou uma tira de papel, na qual figurava o nome de James
Russel Lowell.
- Ora, mas esta não é a minha assinatura! - disse Lowell. - Quem quer que
tenha escrito isto não sabia assentar a caneta no papel! Peço-lhe, senhor,
que se desfaça, imediatamente, de todos os autógrafos fraudulentos de
todos os autores que conserve em seu poder, ou terá notícias hoje mesmo
do senhor Hillard, o meu advogado!
- Lowell! - protestou Fields, empurrando-o para o afastar do balcão.

w
*1 «Bardolfiano» provém de Bardolph, uma personagem secundária de
três obras de Shakespeare, famosa pelo seu proeminente nariz vermelho.
[N. da T.]

w
- Como é que esta noite eu posso dormir descansado sabendo que tão
distinto cidadão tem ilustrações suficientes nesse livro para localizar a
minha casa! - exclamou Lowell.
- Precisamos da ajuda deste homem!
- Sim - admitiu Lowell, endireitando a sua jaqueta. - Na igreja, com os
santos, e na taberna, com os pecadores.
- Por favor, senhor Vane - disse Fields, voltando-se para o proprietário e
abrindo a sua carteira. - Queremos saber umas coisas sobre o senhor Ross,
e depois deixamo-lo em paz. Quanto é que aceita para nos dizer aquilo que
sabe?
- Não o faria nem por um centavo! - respondeu Vane, rindo com vontade, e
com os olhos a parecerem afastar-se, recuando no seu cérebro. - Será que
tudo tem que ser feito em troca de dinheiro?
Vane propôs quarenta autógrafos de Lowell como um pagamento
suficiente. Fields levantou uma sobrancelha em sinal de advertência,
dirigida a Lowell, que acedeu contrariado. Enquanto Lowell fazia a sua
assinatura em duas colunas num caderno de apontamentos, «Um artigo de
primeira categoria», declarou Vane com um gesto de aprovação, vendo a
escrita de Lowell, Vane disse a Fields que Ross, um antigo tipógrafo de um
jornal, trocara essa actividade pela impressão de notas falsas. Ross
cometera o erro de passar esse dinheiro para um círculo de jogadores, que
o utilizava para enganar os antros de jogo locais, tendo até recorrido a
algumas casas de penhores como receptadores involuntários de artigos
adquiridos com o dinheiro ganho nessa operação (a palavra involuntário
foi pronunciada com um movimento acentuado da boca do cavalheiro, com
a língua a tocar-lhe nos lábios e quase a alcançar-lhe o nariz). Era apenas
uma questão de tempo até este esquema o envolver.
De novo na Corner, Fields e Lowell repetiram tudo isto a Longfellow e a
Holmes.
- Suponho que podemos adivinhar o que o Bachi levava na bolsa quando
saiu da loja de Ross - disse Fields. - Uma bolsa com notas falsas, como uma
espécie de combinação desesperada. Mas como se teria ele imiscuído na
questão da falsificação?
- Se não consegues ganhar dinheiro, suponho que podes fazê-lo -disse
Holmes.
- O que quer que o tenha levado a isso - concluiu Longfellow - parece que o
signor Bachi se foi embora a tempo.
Na quarta-feira à noite, Longfellow deu as boas-vindas aos seus convidados
à porta de Craigie House, conforme o velho hábito. À medida que entravam,
recebiam de Trap um segundo cumprimento em forma de latido. George
Washington Greene confessou o muito que melhorara a sua saúde depois
de receber o aviso sobre a reunião, e como esperava que agora a
regularidade prevista fosse restabelecida. Estava tão diligentemente
preparado como sempre para os cantos que tinham sido escolhidos.
Longfellow deu início à reunião, e os eruditos instalaram-se nos seus
lugares. O anfitrião fez circular o canto de Dante em italiano e as
correspondentes provas da sua tradução em inglês. Trap observou o
desenrolar da sessão com um grande interesse. Satisfeito com a ordem na
habitual distribuição dos lugares e com a comodidade do seu dono, o
sentinela canino instalou-se no vão por baixo da faustosa cadeira de braços
de Greene. Trap sabia que o ancião nutria um especial afeto por ele, que se
manifestava sob a forma de comida da ceia, e, além disso, a cadeira de
braços de veludo de Greene estava posicionada mais próximo do intenso
calor que emanava da lareira do escritório. - Aí atrás está um diabo, que nos
engalana.
Depois de sair do Comissariado Central da Polícia, Nicholas Rey fez um
esforço para não adormecer na tipóia. Só agora sentia como tinha
descansado pouco ao longo de todas aquelas noites, apesar de
praticamente ter estado sempre acorrentado à sua secretária por ordem do
presidente da Câmara Lincoln com pouco que lhe preenchesse os dias.
Kurtz encontrara um novo motorista, um agente novato de Watertown.
Durante o breve sonho que Rey teve no meio dos bruscos movimentos do
carro, aproximou-se dele um homem de aspeto bestial, que lhe sussurrou,
«Não posso morrer enquanto aqui estiver», mas, mesmo a sonhar, Rey
sabia que aquilo não era uma peça do quebra-cabeças que lhe ficara por
resolver sobre a questão da morte de Elisha Talbot. Não posso morrer
enquanto estou. Ele foi acordado por dois homens, que se seguravam às
pegas presas ao teto, e discutiam as vantagens do sufrágio feminino, e, de
imediato, apesar da sonolência, chegou a uma conclusão - conseguiu
perceber que a figura bestial do seu sonho tinha o rosto do saltador,
embora ampliado três ou quatro vezes. Pouco depois, a campainha soou e o
cobrador gritou, «Mount Auburn! Mount Auburn!»
Mabel Lowell, que recentemente fizera dezoito anos, esperou que o Pai
saísse para a sua reunião do Clube de Dante, para revistar a escrivaninha
de mogno, em estilo francês, cuja função fora desvalorizada pelo pai como
depósito de papéis,
já que preferia escrever numa antiga almofada de cartão, sentado na sua
cadeira de braços colocada no canto.
Ela sentia falta da boa disposição do pai em Elmwood. Mabel Lowell não
estava interessada em correr atrás dos rapazes de Harvard ou de se juntar
à pequena Amélia Holmes no círculo de costureiras a conversar sobre
quem elas aceitavam ou rejeitavam (excepto no caso de jovens
estrangeiras, cuja rejeição não merecia qualquer discussão), como se todo o
mundo civilizado esperasse ser admitido no clube de costura. Mabel queria
ler e viajar pelo mundo para ver pessoalmente o que lera nos livros, nos do
seu pai e de outros autores visionários.
Os papéis do seu pai estavam em desordem, como de costume, o que
reduzia o risco de futuras inspecções, mas exigia uma delicadeza especial,
porque as pilhas impossíveis de manejar podiam cair todas ao mesmo
tempo. Ela encontrou plumas de aves completamente gastas e muitos
poemas abandonados a meio, com frustrantes borrões de tinta a apagar
aquilo que ela mais queria ler. Com frequência, o pai advertia-a para nunca
escrever versos, porque a maioria saíam mal e os bons eram tão inacabados
como uma pessoa bonita.
Havia um estranho desenho, traçado a lápis sobre uma folha pautada. Fora
feito com o cuidado rebuscado, que alguém podia votar, imaginou ela, ao
desenhar um mapa quando se perdia no bosque ou, como também
imaginou, quando se desenhava hieróglifos; fora executado com
solenidade, numa tentativa de descodificar algum significado ou pista.
Quando ela era criança, e o pai viajava, ele ilustrava sempre as margens das
cartas que enviava para casa com figuras toscamente desenhadas dos
organizadores de sociedades literárias ou de dignitários estrangeiros com
quem ele ceara. Agora, pensando como aquelas ilustrações humorísticas a
faziam rir, inicialmente concluiu que o desenho representava as pernas de
um homem, com uns patins de gelo de tamanho desmesurado nos pés, e
uma espécie de superfície plana até onde devia começar o tórax.
Insatisfeita com a sua interpretação, Mabel virou o papel de vários ângulos
e depois de pernas para o ar. Então reparou que as linhas desiguais dos pés
podiam representar espirais de chamas em vez de patins.
Longfellow leu a sua tradução do Canto Vinte e Oito, onde eles tinham
ficado na última sessão. Ele ficaria satisfeito por entregar as últimas provas
deste canto a Houghton, e eliminá-lo da lista que deixara em poder da
Riverside Press. Era a parte fisicamente mais desagradável de todo o
Inferno. Aqui, Virgílio guiara Dante até ao novo fosso infernal, conhecido
como Malebolge, a Bolsa do Mal. Ali estavam os Cismáticos,
aqueles que tinham dividido nações, religiões e famílias em vida, e agora se
encontravam divididos no Inferno - corporeamente - mutilados e
despedaçados.
- "Como um que vi" - Longfellow leu a sua versão das palavras de Dante -
"assim se desmedula, oco do mento até onde se ruja." Longfellow inspirou
fundo antes de prosseguir.
"Entre as pernas a tripa pende e pula;
a fressura se vê e o triste saco
que merda faz daquilo que se engula."
Perante isto, Dante mostrara-se comedido. Este canto demonstrava a sua
sincera crença em Deus. Só alguém que possuísse uma fortíssima fé na alma
imortal podia conceber tão brutal tormento, infligido ao corpo mortal.
- A sujidade de algumas destas passagens - disse Fields - degradaria o
chalante mais embriagado.
"Um outro, que furada tinha a gola,
nariz cortado até à sobrancelha,
e a quem só uma orelha se descola,
de pasmo a olhar cos outros se aparelha
e antes deles abriu assim a cana
que era por fora toda só vermelha."
E estes eram homens que Dante conhecera! Esta sombra com o nariz e as
orelhas cortadas, Pier da Medicina, de Bolonha, não prejudicara Dante
pessoalmente, apesar de ter alimentado a dissensão entre os cidadãos da
Florença de Dante. Este nunca foi capaz de afastar Florença dos seus
pensamentos, enquanto escrevia a sua viagem ao inframundo. Ele
precisava de ver os seus heróis redimidos no Purgatório e recompensados
no Paraíso; ele ansiava encontrar os perversos nos círculos infernais mais
inferiores. O poeta não se limitava a imaginar esse lugar como uma
possibilidade; ele sentia a sua realidade. Dante chegou a ver um Alighieri,
seu parente, entre os despedaçados, mostrando-o com um sinal e pedindo
vingança pela sua morte.
A pequena Annie Allegra entrou na cozinha da cave de Craigie House, vindo
do vestíbulo, a esfregar os olhos para tentar afastar o sono. Peter despejava
um balde de carvão no fogão da cozinha.
- Miss Annie, o senhor Longfellow já não a mandou dormir? Ela esforçava-
se por manter os olhos abertos.
- Quero beber um copo de leite, Peter.
- Trago-lho já, Miss Annie - disse um dos cozinheiros, numa voz monótona,
enquanto ela espreitava para o pão que estava a cozer. - Com todo o gosto,
querida, com todo o gosto.
Ouviu-se bater ao de leve na porta principal. Emocionada, Annie reclamou
o privilégio de a ir abrir, empenhada, como sempre, em realizar tarefas de
ajuda, em especial a de receber visitas. A menina subiu ao vestíbulo da
entrada e abriu a porta maciça.
- Chiu! - sussurrou Annie Allegra Longfellow antes sequer de conseguir ver
o bonito rosto da visita. Este inclinou-se. - Hoje é quarta-feira - explicou ela
num tom confidencial, juntando as mãos. - Se o senhor veio cá para falar
com o papá, tem de esperar até ele sair da reunião com o senhor Lowell e
os outros. São essas as ordens, sabe? O senhor pode aguardar aqui ou na
saleta, se quiser - acrescentou ela, indicando as suas opções.
- Peço desculpa pela intrusão, Miss Longfellow - disse Nicholas Rey. Annie
Allegra assentiu graciosamente e, lutando para resistir ao peso
que voltava a sentir nas suas pálpebras, subiu as angulosas escadas com um
passo indolente, esquecendo-se do que a levara a fazer a longa viagem até
lá abaixo.
Nicholas Rey permaneceu de pé no vestíbulo principal de Craigie House,
entre os retratos de Washington. Retirou os pedaços de papel do bolso.
Pedir-lhes-ia ajuda mais uma vez, mas agora mostrando-lhes os pedaços
que apanhara do chão junto ao sítio onde Talbot morrera, na esperança de
que houvesse alguma relação, que eles conseguissem descobrir e que a ele
não era possível. Encontrara vários estrangeiros nas imediações do cais,
que tinham reconhecido o retrato do saltador, o que reforçara a convicção
de Rey de que ele era estrangeiro, e que fora numa outra língua que lhe
sussurrara ao ouvido. E esta convicção não podia deixar de recordar a Rey
que o doutor Holmes e os outros sabiam algo mais do que aquilo que lhe
tinham dito.
Rey começou a dirigir-se à saleta, mas deteve-se antes de abandonar o
vestíbulo principal. Voltou-se, surpreendido. Algo o fez parar. O que
acabara ele de ouvir? Recuou e aproximou-se mais da porta do escritório.
- "Che le ferrite son richiuse prima ch'altri dinanzi li rivada..."
Rey estremeceu. Ele deu mais três passos silenciosos, aproximando-se da
porta do escritório.
- "Dinanzi li rivada." - Retirou um bloco de notas do bolso e encontrou a
palavra: Deenanzee. A palavra fora para ele como um repto
desde que o mendigo se precipitara da janela do Comissariado da Polícia.
Ouvia-a em sonhos e com o coração em sobressalto. Rey inclinou-se para a
porta do escritório e comprimiu o ouvido contra a fria madeira branca.
- Aqui Bertrand de Born, que cortou o vínculo de um filho com o seu pai,
instigando a guerra entre ambos, segura no ar a sua própria cabeça cortada
como se fosse uma lanterna, e, com a boca dessa cabeça separada do corpo,
conversa com o peregrino florentino. - Era Longfellow que falava em voz
alta.
- Como o Cavaleiro sem Cabeça de Irving. - Ouviu-se o inconfundível riso de
barítono de Lowell.
Rey sacudiu o papel e escreveu o que ouvira.
Porque separei pessoas tão unidas, dividido ficou o meu cérebro - ai de
mim! - desde o início que está neste tronco. Assim se observa em mim o
contrapasso.
Contrapasso? Uma pronúncia monótona e nasal. Como um ronco. Rey
sentiu-se coibido e susteve a sua própria respiração. Então, ouviu uma
chilreante sinfonia de plumas a garatujar.
- O castigo mais perfeito de Dante - disse Lowell.
- O próprio Dante podia estar de acordo - corroborou outro.
Os pensamentos de Rey angustiavam-no demasiado para que continuasse a
tentar distinguir as vozes dos falantes, e o diálogo acabou por se
transformar num coro.
- ... E a única vez que Dante presta uma atenção tão explícita à ideia de
contrapasso, uma palavra para a qual não há uma tradução exata, não há
uma definição precisa em inglês, porque a palavra é, em si mesma, a sua
própria definição... Bem, meu caro Longfellow, eu diria contra-sofrimento...
A noção de que cada pecador deve ser castigado com um prolongamento,
contra si mesmo, do mal causado pelo seu pecado..., como esses Cismáticos
que eram despedaçados...
Rey recuou até ao vestíbulo principal.
- Terminou a aula, meus senhores.
Foram fechados os livros, os papéis crepitaram, e Trap começou a ladrar à
janela, sem que ninguém lhe prestasse atenção.
- E ganhámos uma ceia pelo nosso trabalho...
- Mas que faisão gordo que este é! - Com um zelo agitado, James Russell
Lowell tocava num estranho esqueleto rematado por uma cabeça
descomunal e plana.
- Não há nenhum animal cujos interiores ele não tenha retirado e voltado a
pôr no lugar - denotou o doutor Holes jocosamente, e, segundo achava
Lowell, com algum sarcasmo.
Era bem cedo, na manhã seguinte à sua reunião do Clube de Dante, e Lowell
e Holmes estavam no laboratório do professor Louis Agassiz, no Harvard
Museum of Comparative Zoology. Agassiz cumprimentou-os e olhou de
relance para a ferida de Lowell antes de voltar para o seu escritório
particular para concluir um certo assunto.
- O bilhete de Agassiz dava, pelo menos, a entender que estava interessado
nas amostras de insetos. - Lowell tentou aparentar indiferença. Agora,
estava certo de que, de fato, o inseto do escritório de Healey o picara, e
estava profundamente preocupado com o que Agassiz pudesse dizer acerca
dos seus terríveis efeitos: "Ah, não há esperança, pobre Lowell, que pena."
Lowell não confiava na opinião de Holmes de que esse tipo de inseto não
podia picar. Que tipo de inseto que se preze não pica? Lowell aguardava o
prognóstico fatal. Ao menos fora um alívio ouvi-lo. Ele não dissera a
Holmes o quanto a ferida aumentara de tamanho nos últimos dias, com
quanta frequência ele a sentia latejar no interior da perna, e como
conseguia seguir o rasto da dor, umas horas a seguir às outras, penetrando-
lhe em todos os nervos. Não queria mostrar-se tão fraco diante de Holmes.
- Ah, você gosta disso, Lowell? - Louis Agassiz entrou com as amostras dos
insetos nas suas mãos carnudas, que cheiravam sempre a óleo, a peixe e a
álcool, mesmo depois de as lavar cuidadosamente. Lowell esquecera-se que
estava de pé junto ao esqueleto, que se assemelhava a uma hiperbólica
galinha.
Agassiz disse, orgulhosamente:
- O cônsul das Maurícias trouxe-me dois esqueletos do dodó, enquanto eu
estava em viagem! Não são uma preciosidade?
- Acha que serve para comer, Agassiz? - perguntou-lhe Holmes.
- Ah, sim. É uma pena que não possamos ter dodós no nosso Clube de
Sábado! Uma boa refeição sempre foi a maior bênção da humanidade. Que
pena. Bem, estamos prontos?
Lowell e Holmes seguiram-no até uma mesa e sentaram-se.
Cuidadosamente, Agassiz retirou os insetos dos tubos de solução alcoólica-
- Antes de mais, digam, onde é que encontraram estes bichinhos especiais,
doutor Holmes?
- Na verdade, foi Lowell que os encontrou - respondeu com cuidado. -
Próximo de Beacon Hill.
- Beacon Hill - repetiu Agassiz, ainda que o nome soasse de forma
totalmente distinta, dito com a sua acentuada pronúncia suíço-germânica.
- Diga-me, doutor Holmes, o que acha o senhor deles?
Holmes não gostava do costume de formular perguntas, tendentes a
provocar respostas erradas.
- Esta não é a minha área. Mas são moscas-varejeiras, não são, Agassiz?
- Ah, sim. Género? - perguntou Agassiz.
- Cochliomyia - disse Holmes.
- Espécie?
- Macellaria.
- Ah, ah! - riu Agassiz. - De fato, parecem sê-lo, se nos cingirmos aos livros.
Não é, meu caro Holmes?
- Então não são... isso? - perguntou Lowell. Parecia que todo o sangue lhe
subira para as faces. Se Holmes estivesse enganado, então as moscas
podiam não ser inofensivas.
- Fisicamente, as duas moscas são quase idênticas - disse Agassiz, e
suspirou de uma forma que cortava qualquer resposta. - Quase. - Agassiz
dirigiu-se às suas estantes. As suas feições amplas e a sua figura corpulenta
faziam-no parecer mais um político de sucesso do que um biólogo ou um
botânico. O novo Museum of Comparative Zoology era o culminar de toda a
sua carreira, porque finalmente podia contar com recursos para completar
a sua classificação da miríade de espécies animais e vegetais anónimas. -
Permitam-me que lhes mostre uma coisa. Podemos nomear cerca de duas
mil e quinhentas espécies de moscas oriundas da América do Norte.
Contudo, segundo as minhas estimativas, neste momento, existem dez mil
espécies de moscas a viver entre nós.
Ele mostrou alguns desenhos. Toscos, eles eram mais representações
grotescas de rostos humanos, com os narizes substituídos por orifícios
estranhos, como borrões obscuros. Agassiz explicou.
- Há alguns anos, o doutor Coquerel, um cirurgião da Armada Imperial
Francesa, foi chamado à colónia da ilha do Diabo, na Guiana Francesa, na
América do Sul, ao norte do Brasil. Cinco colonos estavam internados no
hospital com sintomas graves e não identificáveis. Um dos homens morreu
pouco depois da chegada do doutor Coquerel. Quando ele esguichou água
para dentro das cavidades do corpo, foram encontradas no seu interior
trezentas larvas de mosca-varejeira. Holmes ficou desorientado.
- As larvas estavam dentro de um homem... de um homem vivo?
- Não interrompa, Holmes! - gritou Lowell.
222 - 223
Agassiz assentiu à pergunta de Holmes com um silêncio pesado.
- Mas a Cochliomyia macellaria só consegue digerir tecido morto -objetou
Holmes. - Não há larvas capazes de parasitismo.
- Lembre-se das oito mil moscas por descobrir de que acabei de lhes falar,
Holmes! - recordou-lhe Agassiz, num tom professoral. - Não se tratava da
Cochliomyia macellaria. Era uma espécie distinta, meus amigos. Uma que
nunca tínhamos visto antes... ou que não queríamos acreditar que existisse.
Uma fêmea desta espécie põe ovos nas narinas do doente, onde os ovos
eclodem, as larvas se metamorfoseiam em larvas de varejeira, e se
alimentam, penetrando no interior da cabeça. Outros dois homens da ilha
do Diabo morreram com a mesma infestação. O médico só conseguiu salvar
os outros, extraindo-lhes as larvas de varejeira do nariz. As larvas da
Macellaria só conseguem viver em tecido morto, e preferem sobretudo os
cadáveres, mas as larvas desta espécie de mosca, Holmes, sobrevivem
apenas em tecido vivo.
Agassiz aguardou que as reacções se reflectissem nos rostos dos seus
interlocutores. Depois, prosseguiu:
- A fêmea só põe uma única vez, mas pode pôr um número elevadíssimo de
ovos, de três em três dias, dez ou onze vezes ao longo do seu ciclo de vida,
que dura um mês. Uma única mosca fêmea consegue pôr até quatrocentos
ovos numa única postura. Procura feridas quentes em animais ou pessoas
para se abrigar. Os ovos eclodem e saem as larvas, que se arrastam para o
interior da ferida, abrindo caminho pelo corpo. Quanto mais infestada com
larvas estiver a carne, mais atraídas serão outras moscas adultas. As larvas
alimentam-se de tecido vivo até que, uns dias mais tarde, se
metamorfoseiam em moscas. O meu amigo Coquerel chamou a esta espécie
Cochliomyia hominivorax.
- Homini... vorax - repetiu Lowell. Traduzindo depois com uma voz rouca e
olhando para Holmes: - Devoradora de homens.
- Exatamente - confirmou Agassiz com o contido entusiasmo de um
cientista que tem uma terrível descoberta para anunciar. - O Coquerel
informou disto as publicações científicas, ainda que tivessem sido poucos
os que acreditaram nas suas provas.
- Mas você acreditou? - perguntou-lhe Holmes.
- Sem ter a mínima dúvida - respondeu Agassiz num tom grave. -Desde que
o Coquerel me enviou estes desenhos, que tenho estudado os historiais
médicos e os registos dos últimos trinta anos, em busca de referências a
experiências similares com pessoas, que desconheciam estes pormenores.
O Isidore Sainte-Hilaire registou o caso de uma larva encontrada por baixo
da pele de uma criança. Segundo Cobbold, o doutor Livingston, encontrou
várias larvas diptera no ombro de um negro ferido, no
Brasil. Nas minhas viagens, descobri que estas moscas se chamam Warega,
conhecidas como uma praga tanto para animais como para as pessoas. E, na
guerra mexicana, informou-se sobre aquelas às quais as pessoas comuns
chamavam «moscas da carne», e que depositavam os ovos nas feridas dos
soldados, que ficavam toda a noite no campo de batalha, sujeitos às
intempéries. Por vezes, as larvas não causavam qualquer dano, porque só
se alimentavam de tecido morto. Estas eram varejeiras comuns, larvas
comuns de macellaria, como aquelas com que o senhor está familiarizado,
doutor Holmes. Mas, outras vezes, o corpo era invadido por turgescências e
não se conseguia salvar a vida dos soldados. Eles eram esburacados de
dentro para fora. Compreendem? Estas eram as hominivorax. Essas
moscas-varejeiras têm de fazer dos animais e pessoas indefesas as suas
presas. Esta é a única fonte que possuem para a sobrevivência da sua prole.
As suas vidas requerem a ingestão de vida. A investigação ainda está no
início, meus amigos, e é muito emocionante. Olhem, colhi os meus
primeiros espécimes de hominivorax na viagem que fiz ao Brasil.
Aparentemente, os dois tipos de moscas-varejeiras são, em muitos aspetos,
idênticos. Temos de olhar para a coloração viva e utilizar o instrumento de
medição mais sensível. Foi assim que ontem consegui reconhecer as suas
amostras.
Agassiz puxou por outra cadeira de braços.
- Agora, Lowell, vamos lá ver novamente a sua pobre perna, está bem?
Lowell tentou falar, mas os lábios tremiam-lhe violentamente.
- Oh, não se preocupe, Lowell! - disse Agassiz, desatando a rir. -Então,
Lowell, você sentiu o pequeno inseto na sua perna, e depois sacudiu-o?
- E matei-o! - lembrou-lhe Lowell. Agassiz retirou um bisturi de uma gaveta.
- Bem, doutor Holmes, quero que deslize isto para o centro da ferida, e
depois o retire.
- Tem a certeza, Agassiz? - perguntou Lowell, nervosamente.
Holmes engoliu em seco, e ajoelhou-se. Posicionou o bisturi no tornozelo de
Lowell, e olhou imediatamente para o rosto do amigo. Lowell olhava
fixamente e de boca aberta.
- Você nem vai sentir isto, Jamey - prometeu-lhe Holmes, tranquilamente,
para que ambos se sentissem à vontade. Apesar de Agassiz estar apenas a
alguns centímetros deles, fingiu amavelmente não os ouvir.
Lowell assentiu e agarrou com força os lados da sua cadeira. Holmes fez
como Agassiz lhe pedira, inserindo a ponta do bisturi no centro do inchaço
no tornozelo de Lowell.
Quando o retirou, viram uma larva dura e branca, com quatro milímetros
ou mais, a contorcer-se na ponta - viva.
- Pronto, aqui está! A bela hominivorax! - exclamou Agassiz, rindo
triunfante. Ele observou a ferida de Lowell em busca de algo mais, e ligou
imediatamente o tornozelo. Ele pôs a larva amorosamente na sua mão. -
Está a ver, Lowell? A pobre mosca-varejeira que você viu, só teve uns
segundos para pôr os ovos na sua perna, antes de você a matar; por isso só
teve tempo de pôr um. A sua ferida não é profunda, e vai sarar
completamente, acabando por recuperar em pleno. Mas reparou como a
lesão da sua perna aumentou apenas com uma larva a rastejar dentro de si,
e como você a sentia à medida que avançava pelo tecido. Imaginem
centenas. Agora imagine centenas de milhares... a expandirem-se dentro de
si de poucos em poucos minutos.
Lowell fez um sorriso suficientemente rasgado para deslocar as pontas do
seu bigode para cada um dos lados do rosto.
- Está a ouvir isto, Holmes? Vou ficar bom! - Ele riu e abraçou Agassiz e, em
seguida, Holmes. Depois, começou a assimilar o que tudo aquilo
significara... para Artemus Healey e para o Clube de Dante.
Agassiz também ficou sério, enquanto secava as mãos na toalha.
- Há mais uma coisa, meus caros amigos. Na verdade, é o mais estranho.
Estas criaturinhas... não são de cá, não são oriundas da Nova Inglaterra,
nem de nenhum dos nossos vizinhos. São nativas deste hemisfério, em
relação a isso não há dúvidas. Mas só de climas quentes e húmidos. Cheguei
a ver enxames delas no Brasil, mas nunca tinham sido vistas em Boston.
Nunca se registou a sua presença, nem com a denominação correta nem
com qualquer outra. Não consigo imaginar como é que aqui chegaram.
Talvez tenha sido acidentalmente numa carga bovina importada ou... -
Agassiz esteve prestes a deixar-se levar pelo seu sentido de humor
desabrido a propósito da situação. - Não importa. Temos sorte por estes
bichos não conseguirem viver num clima setentrional como o nosso; não
com este tempo nem num semelhante. Estas Warega não fazem boa
vizinhança. Felizmente, as únicas que vieram até aqui, de certeza, que já
morreram de frio.
Uma vez que o medo se transfere rapidamente para outras sensações,
Lowell esquecera-se por completo que tivera a certeza do seu destino fatal,
e a recordação da prova pela qual acabava de passar convertera-se numa
fonte de prazer por ter sobrevivido. E não conseguia pensar em mais nada,
enquanto abandonava em silêncio o museu, caminhando ao lado de
Holmes.
Holmes foi o primeiro a falar.
- Estava cego quando dei ouvidos às conclusões do Barnicoat nos jornais. O
Healey não morreu do golpe que lhe foi desferido na cabeça! Os insetos não
foram simplesmente um tableau vivant dantesco, uma espécie de
espectáculo decorativo para que pudéssemos reconhecer o castigo
imaginado por Dante. Foram libertados para causar dor - disse Holmes,
falando depressa e com fervor. - Os insetos não foram um adorno, eles
foram a sua arma!
- O nosso Lúcifer pretende que as suas vítimas não só morram, mas
também sofram, como as sombras do Inferno. Num estado entre a vida e a
morte, que compreenda ambas sem ser nenhuma delas. - Lowell virou-se
para Holmes e tomou-lhe o braço.
- Para que sejam testemunhas do seu próprio sofrimento, Wendell. Eu senti
aquela criatura a abrir caminho por dentro de mim, devorando-me. A
digerir-me. Apesar de só poder comer uma pequena quantidade de tecido,
eu senti-o como se corresse diretamente através do meu sangue até ao
fundo da minha alma. A criada dizia a verdade.
- Meu Deus, pois dizia - corroborou Holmes, horrorizado. - O que significa
que o Healey... - Ninguém conseguia expressar o sofrimento que Healey
tinha suportado. Diz-se que o juiz do Supremo Tribunal saiu para a casa de
campo no sábado de manhã, e o seu corpo só foi encontrado na terça-feira.
Ele esteve vivo durante quatro dias, sob os «cuidados» de dezenas de
milhares de hominivorax, que o devoraram por dentro... O seu cérebro...
Centímetro a centímetro, hora a hora.
Holmes olhou para o interior do frasco de vidro com as amostras de
insetos, que Agassiz lhe devolvera.
- Lowell, tenho de lhe dizer uma coisa. Mas não pretendo provocar uma
discussão consigo.
- O Pietro Bachi. Holmes assentiu vacilante.
- Isto não parece encaixar com o que sabemos sobre ele, não é? -perguntou
Lowell. - O que deita por terra todas as nossas teorias!
- Pense nisto: o Bachi estava amargurado; o Bachi tinha um temperamento
colérico; o Bachi era um alcoólico. Mas tamanha crueldade metódica e
profunda, consegue você imaginá-la nele? Sinceramente? O Bachi pode ter
pensado encenar qualquer coisa para mostrar o erro de ter vindo para os
Estados Unidos. Mas recriar os castigos de Dante de forma tão extrema e
completa? Os erros que cometemos devem ser algo
muito denso, Lowell, como salamandras que saem depois das chuvas.
Sempre que levantamos uma folha, sai debaixo dela, arrastando-se,
Uma nova salamandra - disse Holmes, movendo os braços frenéticamente.
- O que está você a fazer? - perguntou Lowell. A casa de Longfellow era
perto, e era ali que eles deviam ir.
- Estou a ver uma charrete livre ali adiante. Quero voltar a observar
algumas destas amostras ao meu microscópio. Espero que Agassiz não
tenha morto esta larva... a natureza irá revelar-nos melhor a verdade, se ela
continuar viva. Não acredito na conclusão dele de que estes insetos já
desapareceram. Podemos vir a saber mais qualquer coisa sobre o assassino
através destas criaturas. Agassiz não aceita a teoria darwinista, e isso
prejudica o seu ponto de vista.
- Wendell, este tema é a especialidade do homem. Holmes ignorou a falta de
fé de Lowell.
- Em determinadas ocasiões, os grandes cientistas podem ser um
contratempo na senda da ciência, Lowell. As revoluções não são feitas por
homens de óculos, e os primeiros sussurros de uma nova verdade não são
captados por quem necessita de cornetas acústicas. Justamente no mês
passado, eu estava a ler um livro sobre as ilhas Sandwich, acerca de um
ancião fiji, que fora levado para um país estrangeiro, e rogava que o
devolvessem ao seu país para que o filho pudesse bater-lhe na cabeça à
vontade, de acordo com o costume daquelas ilhas. Não foi Pietro, o filho de
Dante, que, após a sua morte, contou a toda a gente que o poeta nunca quis
dizer se, de fato, fora ao Inferno e ao Céu? Os nossos filhos sovam] com
muita frequência os cérebros dos seus pais.
«Alguns pais, mais do que outros», disse Lowell para consigo, pensando em
Oliver Wendell Júnior, enquanto observava Holmes a subir para a charrete.
Lowell começou a caminhar apressadamente para Craigie House,
desejando ter ali o seu cavalo. Ao atravessar uma rua, olhou para trás
vacilando e dirigiu subitamente a sua atenção para o que via.
O homem alto, de rosto cansado e chapéu de feltro, que vestia um colete
quadriculado - o mesmo homem que Lowell vira a observá-lo atentamente,
enquanto se apoiava num olmeiro no campus de Harvard; o mesmo homem
que ele vira a aproximar-se de Bachi nesse mesmo sítio -, esse homem
estava agora de pé no meio do bulício do mercado. Isso podia não ter sido o
suficiente para manter vivo o interesse de Lowell, depois das revelações de
Agassiz, mas o homem estava a conversar com Edward Sheldon, o
estudante de Lowell. Na verdade, Sheldon não se limitava a falar com ele,
mas acusava o homem, como se estivesse a dar ordens a um doméstico
recalcitrante para que levasse a cabo uma qualquer tarefa negligenciada.
Então, Sheldon partiu depressa, soprando e envolvendo-se angustiado na
sua capa negra. No início, Lowell não conseguiu decidir qual havia de
seguir.
Sheldon? Podia encontrá-lo sempre na Faculdade. Então, optou por seguir o
desconhecido, que abria caminho por entre um aglomerado de peões e
charretes, que ocupavam a praça redonda.
Lowell correu por entre algumas bancas do mercado. Um vendedor pôs-lhe
uma lagosta à frente da cara, que ele desviou com uma palmada. Uma
rapariga que distribuía prospetos, enfiou um no bolso do sobretudo de
Lowell.
- Propaganda, Sir?
- Agora não! - gritou Lowell. Num outro momento, o poeta localizou o
fantasma do outro lado da calçada. Subia para uma charrete apinhada, e
aguardava que o cobrador lhe desse o troco.
Lowell correu para subir para a plataforma traseira quando o cobrador
tocava a campainha e o veículo começava a arrancar, seguindo pelos carris
em direcção à ponte. Lowell não teve dificuldade em apanhar o pesado
veículo, correndo ao longo dos carris. Ele acabava de se agarrar ao
corrimão das escadas da plataforma traseira, quando o cobrador se voltou.
- Leany Miller?
- Senhor, o meu nome é Lowell. Tenho de falar com um dos seus
passageiros. - Lowell pôs um pé nas escadas traseiras salientes, quando os
cavalos apertaram o passo.
- Leany Miller? Já cá vens outra vez com os teus truques? - O cobrador
agarrou num bastão e começou a martelar a mão enluvada de Lowell. - Não
voltarás a manchar os nossos lindos carros, Leany! Não, enquanto eu
estiver vigilante!
- Não! Senhor, eu não me chamo Leany! - Mas os golpes do cobrador
obrigaram Lowell a soltar-se. Isto fez com que os pés do poeta ficassem em
cima dos carris achatados.
Lowell gritou, tentando sobrepor a sua voz ao barulho dos cascos dos
cavalos e da campainha, para convencer o irado cobrador da sua inocência.
Mas então apercebeu-se de que o som da campainha vinha de trás,
assinalando a aproximação de outro veículo. Quando se virou para o olhar,
os passos de Lowell tornaram-se mais lentos, e o carro que ia à frente
ganhou distância. Sem outra alternativa, e correndo o risco de os cavalos
que se aproximavam lhe pisarem os calcanhares, Lowell saltou para fora
dos carris.
Naquele momento, em Craigie House, Longfellow introduzia na sua saleta
Robert Todd Lincoln, filho do defunto presidente e um dos três alunos de
Dante do curso de Lowell de 1864. Lowell prometera reunir-se com eles ali
em casa depois da visita a Agassiz, mas como estava atrasado, Longfellow
optou por iniciar sozinho a entrevista com Lincoln.
- Oh, querido Papá! - disse Annie Allegra, entrando e interrompendo-os. -
Estamos quase a acabar o último número de The Secret, Papá! Queres vê-lo
já?
- Sim, querida, mas desculpa, neste momento estou ocupado.
- Por favor, senhor Longfellow - disse o jovem. - Eu não tenho pressa.
Longfellow pegou na revista manuscrita «publicada» em fascículos pelas
suas três filhas.
- Ah, parece que é a melhor que vocês já fizeram. Está muito bonita, Panzie.
Esta noite leio-a toda, do princípio ao fim. Foi esta página que tu
desenhaste?
- Foi! - respondeu Annie Allegra. - Esta coluna e esta. E também esta
adivinha. Consegues adivinhar o que é?
- O lago da América do Norte tão grande como três estados - respondeu
Longfellow a sorrir, e passou os olhos rapidamente pelo resto da página.
Um hieróglifo e um artigo em primeiro plano, que evocava «Todo o meu dia
de ontem (desde o pequeno-almoço até ao deitar)» por A. A. Longfellow.
- Oh, está maravilhoso, minha querida - disse Longfellow detendo-se
dubitativo num dos pontos da lista. - Panzie, aqui diz que, ontem à noite,
abriste a porta a uma visita mesmo antes de te deitares.
- Ah, sim. Eu tinha vindo cá abaixo buscar um pouco de leite, foi isso. Ele
disse que eu me comportei como uma boa anfitriã, Papá?
- Quando é que foi isso, Panzie?
- Durante a reunião do clube, claro. Dizes sempre para não seres
incomodado durante as tuas reuniões do clube.
- Annie Allegra! - chamou-a Edith do vão da escada. - Alice quer rever o
índice. Tens de trazer já o teu exemplar para aqui!
- Ela faz sempre de redatora - lamentou-se Annie Allegra, reclamando a
revista a Longfellow. Ele acompanhou Annie ao vestíbulo, e adiantou-se a
ela nas escadas, antes de ela conseguir chegar ao escritório particular de
The Secret - o quarto de um dos irmãos mais velhos. - Panzie, querida,
quem era a visita de ontem à noite que referiste?
- O quê, Papá? Nunca o tinha visto antes.
- Mas lembras-te do seu aspeto? Talvez pudesses acrescentar isso na The
Secret. Talvez possas entrevistá-lo, e fazer-lhe perguntas sobre a sua
experiência.
- Como seria bonito! Um negro alto, com muito bom aspeto, com uma capa.
Eu disse-lhe para ele esperar por ti, Papá. Disse, sim. Será que ele não fez o
que eu lhe disse? Deve ter-se aborrecido de ficar ali de pé, e voltou para
casa. Sabes como se chama, Papá?
Longfellow assentiu.
- Diz-me lá, Papá! Talvez consiga fazer-lhe uma entrevista, como tu dizes.
- Senhor agente Nicholas Rey, da polícia de Boston. Lowell entrou de
rompante pela porta principal.
- Longfellow, tenho muito para lhe contar... - Deteve-se quando viu a
expressão do rosto do seu vizinho. - Longfellow, o que aconteceu?
Bem cedo, naquele dia, o agente Rey fora introduzido numa sóbria sala de
espera, e ali ficara a contemplar os ramos, agitados pelo vento, dos
olmeiros que davam sombra ao campus. Um grupo de homens brancos
começou a desfilar pelo vestíbulo, com os seus gabões pretos até aos
joelhos e os chapéus altos, que compunham os seus uniformes, como
hábitos monásticos.
Rey entrou na Sala da Corporação, da qual aqueles homens haviam saído.
Quando Rey se apresentou ao presidente, o reverendo Thomas Hill, este
estava em plena conversa com um membro atrasado do conselho directivo
da Universidade. Este outro homem ficou imóvel quando Rey fez referência
à polícia.
- Isto está relacionado com algum dos nossos alunos, senhor? - perguntou o
doutor Manning, interrompendo a sua conversa com Hill, e voltando a sua
barba marmórea para o agente mulato.
- Tenho de fazer algumas perguntas ao presidente Hill, relacionadas, por
acaso, com o professor James Russell Lowell.
Os olhos amarelos de Manning abriram-se muito, e insistiu em ficar. Fechou
a porta dupla e sentou-se à mesa redonda de mogno, ao lado do presidente
Hill e em frente ao agente da polícia. Rey observou imediatamente que Hill,
contrariado, permitia ao outro dominar a situação.
- Pergunto-me até que ponto o senhor conhece o projeto em que o senhor
Lowell tem estado a trabalhar, presidente Hill - começou Rey por dizer.
- O senhor Lowell? Ele é um dos melhores poetas e sátiros de toda a Nova
Inglaterra, claro - respondeu Hill com uma gargalhada franca. -«The Biglow
Papers.» «The Vision of Sir Launfal.» «A Fable for the Critics», que é a minha
favorita, confesso. Além das suas colaborações na North American Review.
O senhor sabe que ele foi o primeiro redator-chefe da Atlantic? Bem, tenho
a certeza que o nosso trovador está ocupado a trabalhar em muitas
iniciativas.
Nicholas Rey retirou um papel do bolso do seu colete e enrolou-o entre os
dedos.
- Estou a referir-me, em particular, a um poema em cuja tradução, a partir
de uma língua estrangeira, creio tem estado a colaborar.
Manning entrelaçou os dedos e fitou os olhos no papel dobrado na mão do
agente.
- Meu caro senhor agente - disse Manning. - Houve algum problema? - Era
notório pelo seu olhar que desejava que a resposta fosse afirmativa.
Dinanzi. Rey estudou o rosto de Manning, e o modo como as elásticas
comissuras da boca do ancião professor pareciam contorcer-se de
antecipação.
Manning passou uma mão pela polida superfície do seu couro cabeludo.
Dinanzi a me.
- O que eu queria perguntar... - começou por dizer Manning, tentando outra
táctica; agora ele estava menos ansioso. - Houve algum conflito? Uma
queixa de algum tipo?
O presidente Hill beliscou o queixo, desejando que Manning tivesse saído
com os outros membros da Corporação.
- Pergunto-me se não devíamos mandar chamar o próprio professor Lowell
para falarmos com ele.
Dinanzi a me non fuor cose create Se non etterne, e io etterno duro.
O que significava aquilo? Se Longfellow e os seus poetas tinham
reconhecido aquelas palavras, por que motivo tinham feito todos os
possíveis para não o esclarecerem?
- É um disparate, reverendo - atalhou Manning. - O professor Lowell não
pode ser incomodado por uma ninharia. Senhor agente, devo insistir que,
se tiver havido algum incidente, no-lo diga imediatamente, e nós
resolveremos o assunto com a rapidez e a discrição adequadas.
Compreende, senhor agente? - disse Manning, inclinando-se para diante
com afabilidade. - Houve várias tentativas, por parte do professor Lowell e
de vários colegas literatos, de introduzirem uma certa literatura na nossa
cidade, que não é apropriada. O seu ensino colocaria em perigo a paz de
milhões de boas almas. Como membro da Corporação, foi-me imposto o
dever de defender a boa reputação da universidade contra esse tipo de
máculas. O lema da universidade é «Christo et ecclesiae» senhor, e nós
devemos procurar viver segundo o espírito cristão desse ideal.
- Mas o lema costumava ser «ventas» - disse o presidente Hill,
tranquilamente. - A verdade.
Manning lançou-lhe um olhar acutilante.
O agente Rey hesitou outro instante, depois voltou a pôr o papel no bolso.
- Expressei algum interesse pela poesia que o senhor Lowell tem andado a
traduzir. E ele pensou que os senhores pudessem ser capazes de me
orientar sobre o local adequado para o seu estudo. As faces do doutor
Manning adquiriram cor rapidamente. - O senhor está a querer dizer que
esta é uma visita puramente literária? - perguntou ele, contrariado. E, como
Rey não respondia, Manning garantiu ao agente que Lowell quisera brincar
com ele, com ele e com a universidade, para se divertir. Se Rey quisesse
estudar a poesia do Diabo, podia fazê-lo aos pés do próprio Diabo.
Rey atravessou o campus de Harvard, onde o vento frio silvava em torno
dos velhos edifícios de tijolo. Ele sentia-se baralhado e confuso
relativamente àquele assunto. Depois, uma sirene dos bombeiros começou
a tocar; soava, conforme parecia, de todas as esquinas do universo. E Rey
começou a correr.

XI




LIVER WENDELL HOLMES, POETA E MÉDICO, ILUMINOU OS

O insetos colocados nos seus porta-objetos, servindo-se de uma vela


situada junto de um dos seus microscópios. Ele inclinou-se para a
frente e observou através da lente uma mosca-varejeira, ajustando
a posição do sujeito. O inseto saltava e contorcia-se, como se estivesse
possuído por uma enorme ira contra o seu observador. Não. Não era um
inseto.
Era a própria platina do microscópio que estava a tremer. Uns cascos de
cavalo ressoaram no exterior, estralejando numa paragem súbita. Holmes
correu para a janela, e afastou as cortinas. Amélia entrou, vinda do
vestíbulo. Com uma gravidade temível, Holmes ordenou-lhe que ficasse ali,
mas ela seguiu-o até à porta principal. A figura vestida de azul-escuro de
um polícia robusto, recortou-se contra o céu, enquanto puxava com toda a
força pelas rédeas para acalmar as inquietas éguas, salpicadas de manchas
cinzentas, presas à charrete.
- Doutor Holmes? - gritou ele do assento do cocheiro. - Tem de me
acompanhar imediatamente.
Amélia deu um passo em frente.
- Wendell? O que aconteceu? Holmes já ofegava.
- Melia, envia um recado a Craigie House. Diz-lhes que surgiu uma coisa, e
que vão ter comigo à Corner dentro de uma hora. Desculpa ter de sair
assim, mas não pude evitar.
Antes de ela conseguir protestar, Holmes subiu com um salto para a
charrete da polícia, e os cavalos partiram num galope tempestuoso,
deixando um rasto de folhas secas e pó. Oliver Wendell Holmes Júnior
espreitava atrás das cortinas da sala de estar do terceiro andar, e
questionou-se em que nova insensatez o seu pai se metera agora.
Um frio penetrante apoderara-se da atmosfera. o céu estava a abrir. Uma
segunda charrete aproximou-se a galope e parou exatamente no
mesmo sítio de onde a outra acabara de sair. Era o fiacre de Fields. James
Russell Lowell abriu a portinhola de rompante e perguntou à senhora
Holmes, com uma erupção de palavras, onde podia encontrar o doutor
Holmes. Ela inclinou-se para diante apenas o suficiente para distinguir os
perfis de Henry Longfellow e de J. T. Fields.
- Não sei exatamente onde ele foi, senhor Lowell. Mas foi levado pela
polícia. Ele encarregou-me de enviar um recado a Craigie House a pedir-
lhes que se reunissem na Corner. James Lowell, quero saber o que se passa
aqui!
Lowell olhou em torno da charrete, desesperado. Na esquina da Charles
Street, dois rapazes distribuíam prospetos, gritando: «Desaparecido!
Desaparecido! Leve um folheto, por favor. Senhor. M'nha senhora.»
Lowell enfiou a mão no bolso do seu casaco solto, sentindo o temor secar-
lhe a garganta. Retirou a mão com o prospeto amarrotado, que ficara
esquecido no seu bolso, desde que, na praça do mercado de Cambridge, vira
o fantasma na companhia de Edward Sheldon. Lowell alisou-o de encontro
à sua manga, e a sua boca tremeu ao exclamar: - Oh, meu Deus.
- Distribuímos agentes da polícia e sentinelas por toda a cidade, desde o
homicídio do reverendo Talbot, mas não se viu nada! - gritou o sargento
Stoneweather do assento do cocheiro, enquanto os dois cavalos, cheios de
picadas de pulga, corriam e se afastavam da Charles Street com os
músculos a dançar. De vez em quando, o sargento agarrava no chicote e
fazia-o serpentear.
A mente de Holmes rumava contra a corrente, com o barulho de fundo do
contundente trote e do rangido do cascalho por baixo das rodas. O único
fato compreensível que o cocheiro lhe dissera, ou, pelo menos, o único que
o atemorizado passageiro digerira, fora que o agente da polícia Rey o
mandara ir buscar Holmes. No porto, a charrete parou bruscamente. Daí,
um bote da polícia levou Holmes a uma das ilhas do sonolento porto, de
onde se alcançava, fora de uso, um castelo feito em granito maciço de
Quincy, desprovido de janelas, e agora domínio das ratazanas. Os baluartes
permaneciam desertos, e uns canhões apareciam tombados junto a
bandeiras desbotadas com barras e estrelas. Penetraram no Forte Warren,
com o médico a seguir o sargento, passaram em frente a uma fileira de
policiais pálidos como espectros, que já tinham estado no cenário da
ocorrência, atravessaram um labirinto de aposentos e desceram por um
túnel de pedra, frio e escuro como betume, para chegarem,
finalmente, a um armazém instalado numa estranha câmara escavada na
rocha.
O pequeno médico tropeçou, quase caindo. A sua mente deu um salto no
tempo. Quando estivera a estudar na Escola de Medicina de Paris, o jovem
Holmes presenciara combats des animaux, uma exibição bárbara de lutas
de buldogues, que depois eram soltos a um lobo, apenas um, um urso, um
javali, um touro ou um asno atado a um poste. Ainda durante a sua audaz
juventude, Holmes soube que nunca extirparia da sua alma a marca do
ferro do calvinismo, por mais poesia que escrevesse. Ainda tinha a tentação
de acreditar que o mundo era uma simples armadilha para o pecado
humano. Mas o pecado, tal como ele o via, era apenas o desaire de um ser
de execução imperfeita por se manter uma lei perfeita. Para os seus
antepassados, o grande mistério da vida era este pecado; para o doutor
Holmes, era o sofrimento. Mas nunca esperara encontrar tanto sofrimento.
A memória obscura, as alegrias e os risos irromperam como um estampido
na mente agora ofuscada de Holmes, quando olhou em frente.
Do centro da estância, pendurado de um gancho, cuja função era guardar
sacos de sal ou qualquer coisa semelhante, que pudesse haver nesse tipo de
locais, um rosto fitava-o. Ou com maior exactidão, o que fora um rosto. O
nariz fora visivelmente cortado, desde a cana até ao lábio coberto pelo
bigode, fazendo com que a pele se enrolasse para cima. Uma das orelhas do
homem estava pendurada, de um dos lados da cara, de fato, bastante abaixo
como para roçar de encontro ao ombro rigidamente arqueado. Ambas as
faces tinham sido cortadas de tal maneira que a mandíbula caía numa
posição que a fazia permanecer constantemente aberta, como se se
preparasse a todo o momento para falar. Contudo, em vez disso, da sua
boca saía sangue negro. Uma linha reta de sangue estava desenhada entre o
pesado queixo, com uma covinha pronunciada, e o órgão reprodutor do
homem - e este órgão era a única confirmação do sexo daquela
monstruosidade - estava horrivelmente fendido ao meio, numa dissecação
inconcebível, até mesmo para o médico. Músculos, nervos e vasos
sanguíneos abriam-se com uma invariável harmonia anatómica e uma
desordem que induzia a confusão. Os braços daquele corpo estavam
pendurados indefesos, de cada um dos lados do tronco, terminando em
obscuras polpas em torniquetes empapados. Não tinha mãos.
Demorou apenas um instante até Holmes se aperceber que antes já vira o
rosto mutilado, e noutro instante até reconheceu a despedaçada vítima, a
partir da covinha pronunciada, que com tenacidade permanecia no seu
queixo. Oh, não. O intervalo entre os dois momentos de consciência foi uma
aniquilação.
Holmes deu um passo atrás, e o seu sapato resvalou no vomitado, ali
depositado pelo homem que descobrira toda aquela cena, um vagabundo
em busca de abrigo. Holmes fez um requebro para ocupar uma cadeira
próxima, como se ali tivesse sido colocada de propósito para se observar
tudo aquilo. Ele arquejou incontrolavelmente e não se apercebeu que junto
dos seus pés estava um colete de uma cor chamativa e brilhante,
cuidadosamente dobrado em cima de umas calças brancas, feitas por
medida, e, no chão, havia pedaços de papel espalhados.
Ouviu pronunciar o seu nome. Era o agente Rey que falava próximo de si.
Até o ar da estância parecia tremer, como se fosse pôr toda aquela
encenação de pernas para o ar.
Holmes levantou-se precipitadamente, e a sua cabeça chocou com Rey.
Um detective à paisana, de ombros largos e com uma barba cerrada,
avançou para Rey e começou a gritar-lhe que ele não tinha nada que estar
ali. Depois, o chefe Kurtz interveio e afastou o detective.
A ânsia e as náuseas do médico deixaram-no de pé num sítio mais próximo
da distorcida carnificina do que teria desejado, mas antes de conseguir
pensar em abandonar aquele local, sentiu que algo húmido lhe roçava no
braço. Parecia uma mão, mas, de fato, era um coto ensanguentado assim
tornado por acção de um torniquete. No entanto, Holmes não se mexera um
centímetro sequer... disso tinha ele a certeza. Ele estava demasiado chocado
para se mexer. Sentiu como se tivesse mergulhado naquele tipo de
pesadelo, em que só podemos rezar para que tudo não passe de um sonho.
- Que Deus nos acuda! Está vivo! - exclamou o detective, desatando a correr
dali para fora, com a voz estrangulada pela própria mão, com que apertava
o estômago para conter o vómito. Também o chefe Kurtz desapareceu aos
gritos.
Quando Holmes se voltou, olhou diretamente para os olhos
incompreensivelmente salientes do corpo mutilado e nu de Phineas
Jennison, e observou os membros ruinosos a sacudir-se e a darem esticões
no ar. Na verdade, foi apenas um instante - só uma fracção da décima parte
de um centésimo de segundo - até o corpo ficar subitamente imóvel, e não
voltar a mexer-se, ainda que Holmes nunca tenha duvidado daquilo que
acabara de testemunhar. O médico permaneceu quieto como um cadáver,
com a sua boquita seca e contraída, os olhos a pestanejar sem controlo e
involuntariamente humedecidos, e contorcendo os dedos em desespero. O
doutor Oliver Wendell Holmes sabia que o movimento de Phineas Jennison
não fora o movimento voluntário próprio de um ser humano, resultado da
acção desejada por um homem que sente.
Tratava-se das convulsões tardias e automáticas de uma morte
indiscritível. Contudo, o seu ser consciente não o fez sentir-se melhor.
O contato com o morto gelara-lhe o sangue. Holmes mal notou que se
deixara levar de volta às águas do porto ou à charrete da polícia, chamada
Black Maria, na qual foi transportado o corpo de Jennison para a Faculdade
de Medicina. Ali foi-lhe explicado que Barnicoat, o magistrado encarregue
da investigação, contraíra uma terrível pneumonia durante uma
manifestação onde se exigia o aumento dos salários, e que, naquele
momento, não se conseguia localizar o professor Haywood. Holmes
assentia como se estivesse a ouvir tudo. O estudante-assistente de
Haywood ofereceu-se voluntariamente para assistir o doutor Holmes na
autópsia. Holmes mal precaveu aquelas alterações urgentes e quase não
sentiu as suas mãos a cortarem o cadáver, despedaçado até ao impossível,
numa câmara escura do último andar da Faculdade de Medicina.
- Observa-se em mim o contrapasso.
A cabeça de Holmes levantou-se, como se uma criança tivesse gritado por
socorro. Reynolds, o estudante-assistente, olhou para trás, e o mesmo
fizeram Rey e Kurtz e outros dois agentes, que tinham acabado de entrar na
sala, e de cuja presença Holmes não se tinha apercebido. Ele voltou a olhar
para Phineas Jennison, com a boca aberta por causa do corte na mandíbula.
- Doutor Holmes? - perguntou-lhe o estudante-assistente. - O senhor sente-
se bem?
A voz que acabava de ouvir, o sussurro, a ordem, não era mais do que um
rasgo da imaginação. Mas as mãos de Holmes tremiam demasiado até para
trinchar um peru, e, depois de se desculpar, teve de deixar o resto da
operação para o assistente de Haywood. Holmes vagueou por uma
azinhaga, situada em frente da Grove Street, e recuperando o fôlego aos
poucos. Ouviu alguma coisa a aproximar-se de si. Rey alcançou o médico
mais adiante na azinhaga.
- Por favor, neste momento não posso falar - disse Holmes com os olhos
fixos no chão.
- Quem matou o Phineas Jennison?
- Como hei-de eu saber! - exclamou Holmes. Ele perdera a serenidade,
transtornado que estava pelas visões das mutilações a bailarem-lhe na
cabeça.
- Traduza-me isto, doutor Holmes. - Rey abriu a mão de Holmes e depositou
nela o papel.
- Por favor, agente Rey. Nós já... - Holmes agitou os braços violentamente,
enquanto desdobrava o papel.
- «Porque separei pessoas tão unidas» - recitou Rey, recordando-se do que
ouvira na noite anterior -, «dividido ficou o meu cérebro. Assim, se observa
em mim o contrapasso.»
Foi isto que acabámos de ver, não foi? Como é que o senhor traduz
contrapasso, doutor Holmes? Um contra-sofrimento?
- Não existe uma tradução exata... Como é que você...? - Holmes retirou a
gravata de seda, para lhe facilitar a respiração. - Eu não sei nada.
- O senhor leu este crime num poema - continuou Rey. - Viu-o antes de ele
ocorrer e nada fez para o evitar.
- Não! Nós fizemos tudo o que podíamos. Nós tentámos. Por favor, agente
Rey, eu não posso...
- Conhecia este homem? - Rey retirou do bolso o jornal com a fotografia de
Grifone Lonza e estendeu-o ao médico. - Ele saltou da janela do
Comissariado Central da Polícia.
- Por favor! - Holmes sufocava. - Basta! Agora, vá-se embora!
- Olha, tu aí! - Três estudantes da Faculdade de Medicina, do tipo rústico a
quem Holmes se referia como os seus jovens bárbaros, passavam pela
azinhaga a saborear charutos baratos. - Tu, oh, burro! Deixa o professor
Holmes em paz!
Holmes tentou chamá-los à razão, mas não conseguiu superar a obstrução
que sentia na garganta.
O mais rápido dos bárbaros golpeou Rey com o punho dirigido ao estômago
do agente. Rey agarrou no braço do outro rapaz e afastou-o com tanta
suavidade quanta lhe foi possível. Os outros dois lançaram-se sobre Rey ao
mesmo tempo que Holmes recuperava a voz.
- Não! Não, rapazes! Estejam quietos! Saiam daqui, imediatamente! Ele é
um amigo! Desandem! - Eles escapuliram-se, obedientes.
Holmes ajudou Rey a levantar-se. Precisava de desagravá-lo. Pegou no
jornal e susteve-o na página que tinha a fotografia.
- Grifone Lonza - informou ele.
O brilho nos olhos de Rey demonstrou que estava impressionado e aliviado.
- Agora traduza-me o bilhete, doutor Holmes, por favor. Lonza proferiu
estas palavras antes de morrer. Diga-me o que significam.
- Italiano. O dialeto toscano. Olhe, você enganou-se em algumas palavras;
mas, para quem desconhece a língua, é uma transcrição bastante notável.
Deenan see am... «Dinanzi a me... Dinanzi a me non fuor cose create se non
etterne, e lo etterno duro»: «Antes de mim não houve cousas mais do que
as eternas e eu eterna duro.» «Lasáate ogne speranza, voi ch'intrate»:
«Deixai toda a esperança, vós que entrais.»
- Deixai toda a esperança. Ele advertia-me - disse Rey.
- Não... não me parece. Talvez ele julgasse que estava a ler-lhe o que estava
escrito por cima da porta do Inferno, do que sabemos do seu estado mental.
- Os senhores deviam ter informado a polícia de que sabiam algo! -
exclamou Rey.
- Teria sido maior a confusão, se o tivéssemos feito! - exclamou Holmes. -
Você não compreende... não pode compreender, senhor agente. Nós somos
os únicos que podemos chegar a encontrá-lo! Pensámos que o tínhamos
conseguido... julgámos que ele tinha fugido. A polícia não tinha a menor
ideia! Isto nunca se resolverá sem a nossa intervenção! - Holmes sentia-se
oprimido, enquanto falava. Passou a mão pela testa e pelo pescoço, que
estavam alagados num suor quente, que lhe saía de todos os poros. Holmes
perguntou a Rey se se importava de o acompanhar até lá dentro. Ele tinha
uma história para lhe contar, que talvez Rey não acreditasse.
Oliver Wendell Holmes e Nicholas Rey sentaram-se na sua sala de
conferências vazia.
- Decorria o ano de mil e trezentos. A meio caminho da sua vida, um poeta
chamado Dante despertou numa selva escura, e apercebeu-se que a sua
vida tomara um rumo errado. James Russell Lowell gosta de dizer, senhor
agente, que todos nós penetramos na selva escura duas vezes: algures a
meio das nossas vidas e, de novo, quando olhamos para trás...
A pesada porta almofadada da Sala dos Autores abriu-se uns centímetros e
os três homens que estavam no interior tiveram um sobressalto nos
respectivos lugares. Uma bota preta avançou, como que a sondar. Holmes já
não conseguia pensar no que podia encontrar atrás das portas fechadas,
que desfizesse em pedaços a sua segurança. Consumido e com a tez
cinzenta, ele partilhou o sofá com Longfellow, em frente de Lowell e Fields,
esperando que um simples aceno bastasse para responder a cada uma das
suas saudações.
- Primeiro parei em casa, antes de vir para aqui. Melia quase não me deixou
voltar a sair de casa por causa do meu aspeto. - Holmes riu nervosamente,
enquanto uma gota de humidade lhe brilhava no canto do olho. - Os
senhores sabem que os músculos com que rimos e choramos estão ao pé
uns dos outros, paralelos? Aos meus jovens bárbaros interessa sempre isto.
Eles aguardaram que Holmes começasse. Lowell estendeu-lhe o prospeto
amarrotado, onde se anunciava o desaparecimento de Phineas Jennison, e
se oferecia uma recompensa de muitos milhares a quem proporcionasse o
seu aparecimento.
- Então, os senhores já sabem - disse Holmes. - O Jennison está morto.
Ele iniciou uma narrativa errática e descontínua, começando pela
surpreendente chegada da charrete da polícia ao n.o 21 da Charles Street.
Servindo-se pela terceira vez de um copo de porto, Lowell disse:
- Fort Warren.
- Uma escolha engenhosa da parte do nosso Lúcifer - disse Longfellow. -
Receio que o canto dos Cismáticos pudesse não estar muito fresco nas
nossas mentes. Dificilmente parece possível que só ontem o tenhamos
traduzido, entre tantos dos nossos cantos. Malebolge é uma vasta superfície
de pedra, e Dante descreve-a como uma fortaleza.
- Cada vez mais verificamos que estamos perante uma mente erudita e de
excepcional brilhantismo - disse Lowell -, surpreendentemente preparada
para transmitir os pormenores de Dante sobre ambientes. O nosso Lúcifer
aprecia a exactidão da poesia de Dante. No Inferno de Milton, tudo é
selvagem, mas o de Dante está dividido em círculos, traçados com
compassos precisos. Tão real como o nosso próprio mundo.
- Agora sim - sublinhou Holmes com uma voz trémula. Fields não queria
ouvir um debate literário naquele momento.
- Wendell, você diz que a polícia estava espalhada por toda a cidade quando
o homicídio foi perpetrado? Como é que o Lúcifer pode ter passado
despercebido?
- Seriam precisas as mãos gigantes de Briareu, e os cem olhos de Argo para
lhe tocar ou vê-lo - comentou Longfellow, tranquilamente.
Holmes forneceu-lhes mais pormenores.
- Jennison foi encontrado por um bêbado, que às vezes dorme no forte,
desde que foi abandonado. O vagabundo esteve ali na segunda-feira, e tudo
permanecia normal. Depois, regressou lá na quarta-feira, e deparou-se-lhe
com aquele horrível espectáculo. Ficou demasiado assustado e só
participou o sucedido no dia seguinte, ou seja, hoje. O Jennison foi visto
pela última vez na terça-feira à tarde, e não dormiu na sua cama nessa
noite. A polícia interrogou toda a gente com quem conseguiu falar. Uma
prostituta que estava no porto disse ter visto alguém a sair do nevoeiro em
direcção ao porto na terça-feira à tardinha. Ela tentou segui-lo, presumo
que forçada pela sua profissão, mas só conseguiu chegar à igreja, e não viu
a direcção que ele tomou.
- Então, o Jennison foi morto na terça-feira à noite. Mas o cadáver só foi
descoberto pela polícia na quinta-feira - recapitulou Fields. - Mas, Holmes,
você diz que Jennison ainda estava... É possível que passado tanto tempo...?
- Durante... O... Foi assassinado na terça-feira e ainda estava vivo quando lá
cheguei hoje de manhã? O corpo sacudia-se com tais convulsões que, ainda
que beba até à última gota do Letes,
nunca mais conseguirei esquecer aquela visão - reflectiu Holmes, em tom
desesperado. - O pobre Jennison fora mutilado sem qualquer hipótese de
sobrevivência, disso não há a menor dúvida, mas estava cortado e atado de
tal modo que perdera sangue lentamente, e, com ele, a própria vida. Era em
grande medida uma tarefa comparável à inspecção dos restos do fogo-de-
artifício do 4 de Julho, mas consegui ver que não fora atingido nenhum
órgão vital. No meio de semelhante carnificina, observava-se um trabalho
artesanal, realizado por uma pessoa muito familiarizada com as feridas
internas, talvez um médico - arriscou ele, ignobilmente -, servindo-se de
uma faca afiada e larga. Com o Jennison, o nosso Lúcifer aperfeiçoa a sua
condenação através do sofrimento, o seu mais perfeito contrapasso. Os
movimentos que testemunhei não eram de vida, meu caro Fields, mas
apenas os nervos a morrerem com um último espasmo. Foi um momento
tão grotesco que nenhum Dante podia tê-lo concebido. A morte teria sido
uma dádiva.
- Mas sobreviver durante dois dias depois da agressão... - insistiu Fields. - O
que eu quero dizer é... Do ponto de vista médico, felizmente, isso não é
possível!
- Aqui «sobrevivência» significa simplesmente uma morte incompleta, não
uma vida parcial; ser-se apanhado no abismo entre os vivos e os mortos. Se
eu tivesse mil línguas, não tentaria começar a descrever a agonia!
- Porquê castigar o Phineas como um Cismático? - Lowell esforçou-se por
se expressar num tom distante, científico. - Quem situa Dante nesse círculo
infernal? Mahoma, Bertrand de Born, o perverso conselheiro, que
enfrentou rei e príncipe, pai e filho, como num outro tempo aconteceu a
Absalão e David; aqueles que promoveram a dissensão interna em religiões
e famílias. Mas, porquê Phineas Jennison?
- Apesar de todos os nossos esforços, não conseguimos responder a essa
pergunta em relação ao Elisha Talbot, meu caro Lowell - disse Longfellow. -
A sua simonia de mil dólares, para que foi? Dois contrapassi com dois
pecados invisíveis. Dante tem a vantagem de perguntar aos próprios
pecadores o que os levou ao Inferno.
- Você não era chegado ao Jennison? - perguntou Fields a Lowell. -E, apesar
disso, não lhe ocorre nada?
- Ele era um amigo; e eu não andava a averiguar as suas malfeitorias! Era
ele que me consolava quando eu me queixava de perdas consideráveis, das
aulas, do doutor Manning e da maldita Corporação. Ele era uma máquina a
vapor com calças, e admito que, por vezes, punha o chapéu um pouco
enviesado de mais... Estava metido, desde há anoS, em todos os negócios
fulgurantes, e suponho que tivesse os seus pontos vulneráveis.
Caminhos-de-ferro, fábricas, siderurgia... Esses negócios são para mim
difíceis de compreender, você já sabe, Fields - explicou Lowell, e baixou a
cabeça.
Holmes suspirou, ruidosamente.
- O agente Rey é subtil como uma lâmina, e provavelmente suspeitou, desde
o início, que sabíamos algo. Ele reconheceu as peculiaridades da morte do
Jennison, a partir do que ouviu da nossa sessão do Clube de Dante. A lógica
do contrapasso, dos Cismáticos, tudo isso, ele relacionou com o Jennison, e
quando lhe dei mais explicações, ele compreendeu imediatamente que
Dante também se relacionava com as mortes do juiz Healey do Supremo
Tribunal e do reverendo Talbot.
- Tal como também compreendeu o Grifone Lonza quando se matou nas
instalações do Comissariado da Polícia - disse Lowell. - O pobre infeliz via
Dante em toda a parte. Desta vez, aconteceu que tinha razão. De forma
semelhante, pensei muitas vezes na própria transformação de Dante. A
mente do poeta, sem lar na terra, por causa dos seus inimigos, foi
construindo o seu lar cada vez mais nesse espantoso inframundo. Não era
natural que, desterrado de tudo quanto amou nesta vida, ele se albergasse
exclusivamente no vindouro? Nós mostramo-nos pródigos na exaltação do
seu talento, mas Dante Alighieri não teve outra alternativa senão escrever o
seu poema, e escrevê-lo com o coração. Não admira que tenha morrido
pouco depois de o ter terminado.
- O que irá o agente Rey fazer agora que conhece a nossa relação com o
caso? - perguntou Longfellow.
Holmes encolheu os ombros.
- Nós ocultámos informação. Obstruímos a investigação dos dois crimes
mais horrendos que Boston já viu, e que agora se transformaram em três! O
Rey pode muito bem estar a denunciar-nos, a nós e a Dante, enquanto
estamos aqui a falar! Que lealdade lhe merece um livro de poesia? E até que
ponto lha devemos nós?
Holmes levantou-se, ajustou a cintura das suas calças folgadas e começou a
passear nervosamente. Fields levantou a cabeça, que tinha apoiada nas
mãos, ao se aperceber que Holmes agarrava no chapéu e no casaco.
- Eu quis partilhar o que averiguei - disse Holmes com uma voz suave e
apagada. - Não posso continuar.
- Fique - começou Fields por dizer. Holmes abanou a cabeça.
- Não, meu amigo Fields, esta noite, não.
- O quê? - gritou Lowell.
- Holmes - disse Longfellow. - Eu sei que isto parece não ter resposta, mas
permite-nos lutar.
- Você não pode abandonar isto, simplesmente; de modo nenhum! -gritou
Lowell, cuja voz, que enchia toda a sala que partilhavam, se sentiu
novamente poderosa. - Nós fomos demasiado longe, Holmes!
- Nós fomos longe de mais desde o início, longe de mais daquilo a que
pertencemos. Assim é, Jamey. Lamento - disse Holmes, calmamente. -
Desconheço o que o agente Rey vai decidir, mas eu vou colaborar da forma
que ele queira, e espero que vocês façam o mesmo. Só peço que não nos
entreguem por obstrução ou, pior ainda, como cúmplices. Não tem sido isso
o que temos feito? Cada um de nós desempenhou um papel ao permitir que
as mortes continuassem.
- Então, você não nos devia ter denunciado ao Rey! - E Lowell pôs-se de pé
num salto.
- E o que é que você teria feito no meu lugar, Professor? - perguntou
Holmes.
- Afastar-se não é agora uma opção, Wendell! O leite já foi derramado. Você
jurou proteger Dante, tal como todos nós fizemos, sob o teto de Longfellow,
nem que o céu se abata! - Mas Holmes ajustava o chapéu à cabeça e
abotoava o sobretudo - «Qui a bu boira.» - disse Lowell. - «Uma vez bêbado,
sempre bêbado.»
- Você não o viu! - Todas as emoções reprimidas no interior de Holmes
entraram em erupção quando se virou para Lowell. - Porque me tocou a
mim ver dois corpos horrivelmente mutilados em vez de você, insigne
erudito? Fui eu quem desceu ao ígneo buraco do Talbot, com o fedor da
morte a entrar-me pelas narinas! Fui eu quem teve de passar por tudo isto
enquanto vocês apenas faziam análises no conforto da vossa lareira,
filtrando tudo através das letras do alfabeto!
- No conforto? Eu fui atacado por uns insetos raros devoradores de
homens, que me colocaram numa situação crítica por jogar com a própria
vida, não se esqueça! - gritou Lowell.
Holmes começou a rir com indolência.
- Eu troco dez mil moscas-varejeiras pelo que me tocou ver!
- Holmes - interveio Longfellow. - Lembre-se que Virgílio diz ao peregrino
que o medo é o maior impedimento para a sua viagem.
- Não dou um centavo por isso! Já não, Longfellow! Eu cedo o meu lugar!
Nós não somos os primeiros a tentar libertar a poesia de Dante, e quem
sabe, talvez a nossa seja sempre uma causa perdida! Vocês não terão
pensado, uma só vez sequer, que Voltaire tinha razão quando dizia que
Dante era um louco e a sua obra um monstro? Dante perdeu a sua vida em
Florença e vingou-se criando uma literatura com a qual ousou converter-se
em Deus. E agora nós libertámos esse monstro na cidade, que dizemos
amar, e viveremos para o pagar!
- Já chega, Wendell! Basta! - gritou Lowell, pondo-se de pé em frente a
Longfellow, como se conseguisse escudá-lo daquelas palavras.
- O próprio filho de Dante pensava que era enganoso acreditar que ele
tivesse feito a viagem ao Inferno, e passou toda a sua vida a tentar rebater
as palavras do pai! - continuou Holmes. - Por que razão havíamos nós de
sacrificar a nossa segurança para o salvar? A Commedia não é uma carta de
amor. Dante não estava preocupado com Beatrice, nem com Florença! Ele
expressava a nostalgia pelo seu exílio, imaginando os seus inimigos a
contorcer-se e a implorar a salvação! Em alguma ocasião o ouviram referir-
se à sua esposa, uma única vez, sequer? Foi assim que ele se vingou das
suas decepções! Eu só quero proteger-nos de perder tudo o que nos é
querido! Foi apenas isso que eu pretendi desde o início!
- Você não quer admitir que alguém seja culpado - disse Lowell -, do mesmo
modo que se negou a considerar o Bachi como culpado, e tal como
imaginou inocente o professor Webster, mesmo depois de ele estar
pendurado na extremidade de uma corda!
- Não foi bem isso! - rejeitou Holmes, levantando a voz.
- Oh, é uma bela coisa o que você está a fazer por nós, Holmes. Uma bonita
coisa! - exclamou Lowell. - Você tem estado tão formal como as suas peças
líricas mais divagatórias! Talvez devêssemos ter recrutado WendelI Júnior
para o nosso clube em vez de você. Pelo menos, teríamos a possibilidade de
ter saído vitoriosos! - Ele estava disposto a dizer mais, mas Longfellow
agarrou-o pelo braço com uma mão amável, mas firme, como uma manopla
de ferro.
- Nós não teríamos levado o assunto tão longe sem si, meu querido amigo.
Por favor, descanse um pouco e apresente os nossos cumprimentos à
senhora Holmes - disse Longfellow com suavidade.
Holmes abandonou a Sala dos Autores. Quando Longfellow libertou a sua
mão, Lowell foi atrás do médico até à porta. Holmes apressou-se a dirigir-se
para o vestíbulo, olhando de esguelha para o amigo, que o seguia com um
olhar frio. Ao chegar à esquina, Holmes chocou com um carrinho de papéis,
que era empurrado por Teal, o marçano do turno da noite, adstrito aos
escritórios de Fields, e cuja boca estava sempre em movimento, triturando
ou mascando. Holmes voou e caiu no chão, e o carro vírou-se e espalharam-
se papéis por todo o vestíbulo e por cima do médico caído. Teal desviou
com pontapés alguns papéis, e com um °lhar cheio de compaixão tentou
ajudar Oliver Wendell Holmes, que se encontrava aos seus pés. Lowell
também correu para junto de Holmes, mas deteve-se, sentindo novamente
a sua ira, pois estava envergonhado da sua momentânea brandura.
244 - 245
- Pronto, já está feliz, Holmes. Longfellow precisava de nós! Finalmente,
você traiu-o! Você traiu o Clube de Dante!
Fitando-os assustado, enquanto Lowell repetia a sua acusação, Teal
levantou Holmes.
- As minhas mais sinceras desculpas - sussurrou ele ao ouvido de Holmes.
Apesar de a culpa ter sido inteiramente do médico, Holmes limitou-se a
corresponder com outro «desculpe». Já não sentia a opressão nem o ofego
da sua asma. Agora esta era opressiva e causava-lhe cãibras. Enquanto a
anterior lhe fazia sentir que necessitava cada vez mais de ar, esta convertia
todo o ar em veneno.
Lowell irrompeu de novo pela Sala dos Autores, batendo com a porta atrás
de si. Encontrou-se diante de uma expressão indecifrável no rosto de
Longfellow. Ao primeiro sinal de tempestade, Longfellow fechava todos os
postigos da casa, e explicava que não lhe agradava aquela discordância.
Agora apresentava o mesmo aspeto que se batesse em retirada.
Aparentemente, Longfellow dissera algo a Fields, porque o editor
permanecia de pé, expetante, inclinando-se para a frente, como para
continuar a ouvir.
- Bem - lamentou-se Lowell -, diga-me se ele podia fazer-nos isto,;i
Longfellow. Como é que Holmes pôde fazer isto agora?
Fields fez um movimento com a cabeça.
- Lowell, Longfellow julga ter-se apercebido de algo - disse ele, traduzindo a
expressão do poeta. - Lembra-se como particularizámos o canto dos
Cismáticos apenas a noite passada?
- Sim. E isso que tem, Longfellow? - perguntou Lowell. Longfellow
começara a pegar no casaco, e olhava lá para fora, pela
janela.
- Fields, será que o senhor Houghton ainda está na Riverside?
- Houghton está sempre na Riverside, pelo menos, quando não está na
igreja. O que pode ele fazer por nós, Longfellow?
- Tenho de lá ir imediatamente - disse Longfellow.
- Você apercebeu-se de alguma coisa que nos possa ajudar, meu caro
Longfellow? - perguntou Lowell, esperançado.
Ele pensou que Longfellow estivesse a reflectir na pergunta, mas o poeta
não lhe respondeu durante todo o percurso que fizeram até Cam-bridge, do
outro lado do rio.
U ma vez no gigantesco edifício de tijolo, que albergava a Riverside Press,
Longfellow solicitou a H. O. Houghton que lhe facultasse todo o material
impresso da tradução do Inferno de Dante. Apesar de não se ter revelado
de que obra se tratava, a tradução rompia com anos de virtual silêncio por
parte do poeta mais amado da história do seu país, e era ansiosamente
aguardada pelo mundo literário. Fields reservara-lhe um lançamento com
pompa e circunstância; a primeira edição de cinco mil exemplares seria
posta à venda no espaço de um mês. Antecipando-se a isso, Oscar Houghton
fora preparando as provas à medida que Longfellow lhe entregava as
anteriores corrigidas, mantendo uma pormenorizada e irrepreensível
relação entre datas.
Os três eruditos apoderaram-se do escritório privado de contabilidade do
gráfico.
- Não o encontro - disse Lowell. Nenhum deles estava concentrado nos
pontos mais concretos dos seus próprios projetos de edição, e, portanto,
menos ainda nos de outros quaisquer.
Fields mostrou-lhe o calendário previsto.
- Longfellow entrega as suas provas corrigidas na semana a seguir às
nossas sessões de tradução. Assim, seja qual for a data que encontremos
aqui a registar a recepção das provas por parte de Houghton, significa que
na quarta-feira da semana anterior se realizou uma reunião do nosso
círculo de Dante.
A tradução do Canto Três, dos Neutros, foi concluída três ou quatro dias
depois do homicídio do juiz Healey. O homicídio do reverendo Talbot, três
dias antes da quarta-feira reservada para a tradução dos Cantos Dezassete,
Dezoito e Dezanove, contendo este último o castigo dos Simoníacos.
- Mas depois soubemos do homicídio! - disse Lowell.
- Sim, e, à última da hora, eu adiantei o nosso trabalho até ao canto sobre
Ulisses, para nos animarmos, e trabalhei apenas nos cantos intermédios. E,
quanto ao último crime, a carnificina do Phineas Jennison, ocorreu,
segundo todos os cálculos, nessa terça-feira, um dia antes da tradução,
ontem, dos mesmos versos relacionados com o trágico acontecimento.
Lowell ficou lívido, e, em seguida, vermelho.
- Estou a ver, Longfellow! - exclamou Fields.
- Cada crime é perpetrado imediatamente antes de o nosso Clube de Dante
traduzir o canto, no qual o assassino se baseou - disse Longfellow.
- Como é que nós não vimos isto antes? - lamentou-se Fields.
- Alguém tem andado a brincar connosco! - irrompeu Lowell. Depois,
apressou-se a baixar a voz até ao sussurro. - Alguém nos tem andado a
vigiar ao longo deste tempo todo, Longfellow! Tem de ser alguém que
conhece o nosso Clube de Dante! Quem quer que seja, fez coincidir cada
homicídio com a nossa tradução!
- Esperem um momento. Isto pode ser tão-somente uma terrível
coincidência - disse Fields consultando novamente o calendário das
entregas. - Olhem aqui. Nós traduzimos perto de duas dúzias de cantos do
Inferno, mas ainda só ocorreram três homicídios.
- Três coincidências mortais - comentou Longfellow.
- Não é nenhuma coincidência - insistiu Lowell. - O nosso Lúcifer
empreendeu uma corrida connosco para ver quem chega em primeiro
lugar. Dante traduzido com tinta ou com sangue! Nós temos estado a
perder a corrida por dois ou três corpos de cada vez!
- Mas quem é que teve a possibilidade de conhecer o nosso calendário de
trabalho, antecipadamente? - protestou Fields. - E com tempo suficiente
para planear crimes tão elaborados? Nós não fizemos nenhum calendário
por escrito. Em certas ocasiões, saltamos uma semana. Às vezes, Longfellow
passa adiante um canto ou dois, para os quais ele não nos considera
preparados, e ficam fora das sessões.
- Nem a minha Fanny sabe de que cantos nos ocupamos, nem se incomoda
em averiguá-lo - comentou Lowell.
- E, quem poderia conhecer esses pormenores, Longfellow? - perguntou
Fields.
- Se tudo isto for verdade - interrompeu-o Lowell -, significa que de algum
modo estamos implicados diretamente no que deu origem aos homicídios!
Eles permaneceram em silêncio. Fields olhou para Longfellow com ar
protetor.
- Uma farsa! - disse ele. - Uma farsa, Lowell! - Este foi o único argumento
que lhe ocorreu.
- Admito que não compreendo esse estranho padrão - manifestou
Longfellow ao levantar-se da secretária de Houghton. - Mas não podemos
iludir as suas consequências. Qualquer que seja a iniciativa que o agente
Rey decida tomar, já não podemos considerar o nosso envolvimento
meramente como uma prerrogativa nossa. Passaram trinta anos desde o
dia em que me sentei, pela primeira vez, à minha secretária, em tempos
mais felizes, para traduzir a Commedia. Lancei-me a esse trabalho com uma
tal reverência que, em certas ocasiões, se converteu em resistência à sua
progressão. No entanto, chegou o momento de a apressar, de completar ; j o
trabalho, ou corremos o risco de termos mais perdas.
.Depois de Fields partir na sua charrete para Boston, Lowell e Longfellow .
caminharam até suas casas sob a neve que começava a cair. A notícia ]
sobre o homicídio de Phineas Jennison espalhara-se rapidamente pelos
seus círculos sociais.
O silêncio naquela rua de Cambridge, bordejada de olmeiros, era absoluto.
As ascendentes grinaldas de fumo das chaminés, brancas como a neve,
desvaneciam-se como fantasmas. As janelas, que não tinham os postigos
fechados, estavam cobertas na sua parte interior por roupa, camisas e
blusas penduradas descuidadamente, por estar demasiado frio para serem
postas a secar no exterior. As pequenas aldrabas estavam para baixo em
todas as portas. As casas que recentemente tinham instalado fechaduras de
ferro e correntes metálicas, por conselho dos agentes locais, mantinham-se
bem fechadas. Alguns residentes, inclusivamente, até tinham montado um
tipo de alarme nas suas portas, utilizando um sistema de correntes,
vendido porta-a-porta por Jeremy Didlers, do Oeste. Não havia nenhuma
criança a brincar nos montes de neve branca. Com aqueles três homicídios,
era evidente que havia alguém empenhado em atuar. As resenhas dos
jornais não tardaram a incluir a informação de que se encontrara a roupa
de cada vítima cuidadosamente dobrada no local do crime, e, de repente,
toda a cidade se sentiu nua. O terror que se desencadeou com a morte de
Artemus Healey, apoderara-se agora de Beacon Hill, seguindo pela Charles
Street, passando pela Back Bay e atravessando a ponte de Cambridge. De
repente, parecia haver motivos irracionais, mas palpáveis, para se acreditar
numa calamidade, no apocalipse.
Longfellow parou a um quarteirão de Craigie House.
- Podemos nós ser responsáveis? - A sua voz soou temerosa, débil aos seus
próprios ouvidos.
- Não permita que essa larva penetre no seu cérebro. Eu disse isso sem
pensar, Longfellow.
- Você tem de ser honesto comigo, Lowell. Você acha...?
As palavras de Longfellow foram interrompidas. O grito de uma menina
elevou-se no ar, fazendo estremecer as próprias fundações de Brattle
Street.
Os joelhos de Longfellow vacilaram, enquanto a sua mente tentava
determinar a origem do grito, o que o levou a dirigir-se para casa. Sabia que
devia lançar-se numa desvairada correria pela Brattle Street abaixo,
através do manto virginal de neve. Mas, por instantes, os seus pensamentos
imobilizaram-no naquele mesmo sítio, observando-o cautelosamente e
fazendo-o estremecer diante da possibilidade, como alguém que desperta
de um pesadelo horrível e busca sinais de calamidades sangrentas na
tranquila habitação à sua volta. As recordações encheram o ar à frente dele.
Porque não consegui eu salvar-te, meu amor?
- Devo ir buscar a minha espingarda? - exclamou Lowell, freneticamente.
Longfellow desatou a correr.
Os dois homens chegaram ao degrau da entrada de Craigie House
praticamente ao mesmo tempo, uma notável façanha para Longfellow, que,
ao contrário do seu vizinho, não praticava nenhum exercício físico.
Entraram a correr no vestíbulo. No salão, encontraram Charley Longfellow
ajoelhado, a tentar acalmar a excitada pequena Annie Allegra, que proferia
exclamações e guinchava alegremente à frente dos presentes, que o irmão
lhes trouxera. Trap gania encantado e abanava a sua farfalhuda cauda em
círculos, mostrando toda a dentadura numa expressão comparável ao
sorriso humano. Alice Mary saiu para o vestíbulo para os cumprimentar.
- Oh, Papá - exclamou ela -, Charley acaba de chegar a casa para o Dia de
Acção de Graças! E ele trouxe-nos jaquetas francesas, com listas vermelhas
e pretas! - Alice vestiu a sua jaqueta para Longfellow e Lowell.
- Que espanto! - aplaudiu Charley, que depois abraçou o pai. - Papá, porque
é que o senhor está branco como papel? Não se sente bem? A minha
intenção era apenas fazer-lhes uma surpresazinha! Talvez já esteja
demasiado velho para nós. - riu ele.
A cor voltou à tez clara de Longfellow, que, aos poucos foi empurrando
Lowell para um lado.
- O meu Charley voltou para casa - disse-lhe em tom confidencial, como se
Lowell não conseguisse vê-lo por si próprio.
Mais tarde, nessa noite, depois de as meninas já estarem a dormir no andar
de cima e Lowell se ter ido embora, Longfellow sentiu-se profundamente
calmo. Inclinou-se sobre a sua secretária, onde trabalhava de pé, e passou a
mão pela suave madeira sobre a qual escrevera a maior parte da sua
tradução. A primeira vez que leu o poema de Dante, tinha de confessar a si
mesmo, não teve fé no grande poeta. Ele temia como pudesse acabar, a
seguir a um início tão glorioso. Mas, ao longo do texto, Dante comportou-se
de forma tão valorosa, que Longfellow não conseguiu fazer outra coisa
senão maravilhar-se cada vez mais, não só com a sua força, mas com a
continuidade desta. O estilo elevava-se com o tema, e dilatava-se como as
águas da maré, cujo fluxo, ao largo, animava o leitor, carregado de dúvidas
e temores. O mais frequente era parecer que Longfellow estava a servir o
florentino, mas, outras vezes, Dante ludibriava-se, iludindo todas as
palavras, toda a linguagem. Nessas alturas, Longfellow sentia-se um
escultor que, incapaz de representar em mármore frio a beleza viva do olho
humano, recorria a artifícios como afundar mais profundamente o olho e
tornar mais proeminente a fronte, em cima, com expressões que não eram
as do modelo vivo.
Mas Dante resistia às intrusões mecânicas, e remetia para si próprio,
pedindo paciência. Sempre que tradutor e poeta chegavam a este impasse,
Longfellow parava e pensava: «Aqui, Dante pousou a pluma, e tudo quanto
se segue ainda está em branco. Como preencher a página? Que novas
figuras trará? Que novos nomes escreverá?» Então, o poeta voltava a pegar
na sua pluma e, com uma expressão de gozo ou de indignação no rosto,
continuava a avançar na redacção do seu livro, e Longfellow continuava
agora sem acanhamentos.
Um leve som de arranhões, como os dedos num quadro de ardósia, captou a
atenção das orelhas triangulares de Trap, que se escondeu como uma bola
aos pés de Longfellow. Parecia gelo a ser quebrado de encontro a uma
janela por causa do vento.
Às duas horas da madrugada, Longfellow continuava a traduzir. Com a
caldeira e a lareira no máximo, ele não conseguia fazer com que o mercúrio
subisse na sua pequena escala acima dos dezasseis graus celsius, para
descer logo, desanimado. Aproximou uma vela de uma janela e olhou por
outra para as bonitas árvores, todas frondosas e como se estivessem
cobertas de penas, devido ao efeito da neve. O ar permanecia imóvel, e, com
aquela iluminação, pareciam uma enorme e aérea árvore de Natal.
Enquanto fechava os postigos, reparou numas insólitas marcas numa das
janelas. Voltou a abrir os postigos. O som do gelo a quebrar-se fora algo
mais - uma faca a deslizar nos cristais de gelo. E ele estivera apenas a
alguns metros de quem a manuseara. Inicialmente, as palavras gravadas na
janela eram para ele ininteligíveis: ENOIZUDART AIM AL . Mas Longfellow
conseguiu decifrá-las quase de imediato. Mesmo assim, pôs o chapéu e o
cachecol, vestiu o casaco, e saiu de casa. Ali a ameaça podia ler-se
claramente à medida que ele contornava com os dedos os aguçados
rebordos das letras:
EMOISflDVKl VM VF «A MINHA TRADUÇÃO.»

XII




CHEFE KURTZ ANUNCIOU NA ARDÓSIA DO COMISSARIADO

O Central da Polícia que, umas horas mais tarde, apanharia o


comboio para iniciar um percurso pelos ateneus de toda a Nova
Inglaterra, a fim de explicar às comissões locais e aos sócios
atenienses os novos métodos policiais. Kurtz
confessou a Rey: - Para salvar a reputação da nossa cidade, cito os
vereadores. Mentirosos.
- Então, porquê?
- Para me manter afastado, para afastar os detectives. Por decreto, eu sou o
único oficial do departamento com autoridade sobre o gabinete de
detectives. Assim, aqueles velhacos ficarão com as mãos livres. Agora, esta
investigação cabe-lhes inteiramente a eles. Não ficará aqui ninguém com
poder para os travar.
- Mas, chefe Kurtz, eles andam a vasculhar no sítio errado. Eles só querem
fazer uma detenção para brilhar e mostrar trabalho feito.
Kurtz levantou os olhos, fitando-o.
- E você, senhor agente, deve permanecer aqui, conforme lhe foi ordenado.
Você sabe-o. Até tudo isto estar completamente esclarecido. E isso pode
acontecer só daqui a muitos meses.
Rey pestanejou.
- Mas eu tenho muito para contar, chefe...
- Você sabe que eu tenho de lhe dar instruções para que partilhe com o
detective Henshaw e os seus homens tudo o que sabe ou julga saber.
- Chefe Kurtz...
- Tudo, Rey! Tenho de o levar pessoalmente até Henshaw? Rey hesitou,
depois abanou a cabeça.
Kurtz pousou a mão no braço de Rey.
- Às vezes, a única satisfação consiste em saber que ninguém além de nós
mesmos pode fazê-lo, Rey.
Quando, nessa noite, Rey regressava a casa, uma figura envolta numa capa
pôs-se a caminhar ao seu lado. Puxou o capuz para baixo.
Respirava agitadamente, com o vapor da respiração a tropeçar no seu véu
escuro e saindo através dele. Mabel Lowell retirou o véu da frente do rosto
e dirigiu um olhar fogoso ao agente Rey.
- Senhor agente, lembra-se de mim, de quando foi a nossa casa à procura do
professor Lowell? Eu tenho aqui uma coisa que acho que o senhor devia ver
- disse ela, retirando um pacote volumoso debaixo da sua capa.
- Como é que me encontrou, Miss Lowell?
- Mabel. Acha que é assim tão difícil encontrar um agente da polícia mulato
em Boston? - Ela concluiu a sua frase com um esgar retorcido.
Rey deteve-se e olhou para o pacote, do qual retirou algumas folhas de
papel.
- Não sei por que havia de aceitar isto. Pertence ao seu pai?
- Sim - disse ela. Aquelas eram as provas de Longfellow da tradução de
Dante, que continham muitas anotações de Lowell nas margens. - Acho que
o papá descobriu alguns aspetos da poesia de Dante naqueles estranhos
homicídios. Ignoro pormenores que o senhor é capaz de conhecer, e acerca
dos quais nunca poderia falar com ele sem o pôr terrivelmente furioso, por
isso, peço-lhe que não lhe diga que me viu. Deu-me muito trabalho, senhor
agente, introduzir-me às escondidas no escritório do meu pai na esperança
de que ele não percebesse nada.
- Por favor, Miss Lowell - disse Rey, suspirando.
- Mabel. - Encarando o brilho honesto dos olhos de Rey, ela não pôde deixar
de exteriorizar o seu desespero. - Por favor, senhor agente. O papá conta
pouco à senhora Lowell, e, a mim, ainda menos. Mas uma coisa eu sei. Os
seus livros de Dante estão sempre espalhados por ali. Quando, por estes
dias, o ouço com os amigos, só falam disso... e num tom como se estivessem
constrangidos, num tom de angústia, inadequada para homens que se
reúnem para fazer uma tradução. Depois, encontrei um desenho de uns pés
humanos a arder, com alguns recortes de jornal sobre o reverendo Talbot.
Os seus pés, diziam alguns, estavam carbonizados quando o encontraram. E
ouvi o meu pai rever esse canto sobre os clérigos iníquos com Mead e
Sheldon só há alguns meses.
Rey conduziu-a ao pátio de um edifício próximo, onde encontraram um
banco vazio.
- Mabel, não deve contar a mais ninguém que sabe isto - disse-lhe o polícia.
- Só servirá para complicar a situação e lançar uma sombra Perigosa sobre
o seu pai e os seus amigos... e, receio, sobre si. Estão em jogo interesses que
se aproveitariam dessa informação.
- O senhor já sabia disto, não é verdade? Bem, pois devia planear alguma
coisa para parar com esta loucura.
- Para ser honesto, não sei o que fazer.
- O senhor não pode ficar quieto a observar; não enquanto o meu pai... Por
favor. - Ela voltou a pôr o pacote com as provas nas mãos dele.
Involuntariamente, os olhos dela encheram-se de lágrimas. - Aceite isto.
Leia-as antes que ele dê por falta delas. A sua visita a Craigie House,
naquele dia, deve ter tido alguma coisa a ver com tudo isto, e eu sei que o
senhor pode ser de uma grande ajuda.
Rey examinou o embrulho. Ele já não lia um livro desde antes da guerra.
Em tempos, consumira literatura com uma avidez alarmante, sobretudo
depois da morte dos seus pais adoptivos e das suas irmãs. Ele lera histórias,
biografias e até romances. Mas agora a simples ideia de um livro chocava-o
como ofensivamente repressiva e arrogante. Ele preferia jornais e
fascículos, que não tinham hipótese de lhe ocupar o espírito.
- Por vezes, o papá é um homem difícil... Eu apercebo-me da impressão que
ele pode causar - continuou Mabel. - Mas tem sofrido muita tensão, interna
e externa, ao longo da vida. Vive com o temor de perder a capacidade de
escrever, mas eu nunca pensei nele como poeta; apenas como meu pai.
- Não tem de se preocupar com o senhor Lowell.
- Então, o senhor vai ajudá-lo? - perguntou ela, pousando-lhe uma mão no
braço. - Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? Há alguma coisa
que me assegure que o papá estará em segurança, senhor agente?
Rey permaneceu em silêncio. Os transeuntes dirigiam-lhes olhares
inflamados, e ele afastava o olhar.
Mabel sorriu com tristeza e afastou-se para a outra extremidade do banco.
- Compreendo. O senhor é igual ao meu pai. Suponho que não sou de
confiança para questões importantes. Eu tive a ilusão de que o senhor fosse
diferente.
Por instantes, Rey sentiu uma enorme identificação afectiva com Mabel que
o levou a responder.
- Miss Lowell, este é um assunto no qual, se puder, mais vale não se
envolver.
- Mas eu não posso - concluiu ela, e voltou a baixar o véu à frente do rosto,
enquanto voltava para a paragem das charretes.
O professor George Ticknor, um velho em declínio, instruía a esposa para
fazer subir a visita. As suas instruções eram acompanhadas de um estranho
sorriso, que se delineava no seu rosto largo e peculiar. O cabelo de Ticknor,
outrora preto, tornara-se grisalho na nuca e ao longo das patilhas, e
lamentavelmente escasso no alto do crânio. Em tempos, Hawthorne dissera
que o nariz de Ticknor era o contrário de aquilino; não completamente
respingão nem achatado.
O professor nunca tivera muita imaginação, e estava agradecido por esse
fato, por assim se proteger dos desvarios que tinham afligido os seus
colegas bostonianos, em especial os escritores, que pensavam que, em
tempo de reforma, as coisas se modificariam. Ainda assim, Ticknor não
conseguia deixar de imaginar que o criado que o sentava e o ajudava a
levantar-se da cadeira, era o retrato vivo de George Júnior, que morrera aos
cinco anos de idade. Passados trinta anos, Ticknor ainda se sentia triste
com a morte de George Júnior; muito triste, porque já não podia ver o seu
sorriso luminoso nem ouvir a sua voz alegre, nem sequer na sua mente.
Mas isso fazia-o voltar a cabeça ao perceber algum som familiar, embora o
rapaz não estivesse lá. Por isso, aguçava o ouvido para captar os passos
leves do filho, que nunca chegava.
Longfellow entrou na biblioteca, levando-lhe timidamente um presente. Era
uma bolsa fechada com uma fita e orlada por uma franja.
- Por favor, não se levante, professor Ticknor - pediu-lhe ele com uma mão.
Ticknor ofereceu-lhe charutos, que, pelos invólucros esquartejados,
pareciam ter sido oferecidos e rejeitados ao longo de muitos anos a receber
convidados pouco frequentes.
- Meu caro senhor Longfellow, o que o traz aqui? Longfellow pousou a bolsa
em cima da secretária de Ticknor.
- Algo que achei que o senhor, mais do que ninguém, gostaria de ver.
Ticknor ficou a olhá-lo, expetante. Os seus olhos negros eram
impenetráveis.
- Recebi-o esta manhã de Itália. Leia a carta que o acompanhava. -
Longfellow estendeu-a a Ticknor. Era de George Marsh, da Comissão
Organizadora do Centenário de Dante, de Florença. Marsh escrevia para
garantir a Longfellow que não devia preocupar-se, porque a Comissão
florentina aceitara a sua tradução do Inferno.
Ticknor começou a ler:
- «O duque de Caietani e a Comissão receberam agradecidos a primeira
tradução norte-americana do grande poema, como o contributo mais
adequado à solenidade do Centenário, e, ao mesmo tempo, como uma
merecida homenagem do Novo Mundo a uma das mais altas glórias do país
do seu descobridor, Colombo.
- Por que razão você não se sente seguro? - perguntou-lhe Ticknor,
pensativo.
254 - 255
Longfellow sorriu.
- Suponho que, ao seu jeito amável, o senhor Marsh está a pedir-me que me
apresse. Mas, não consta que Colombo fosse exatamente pontual!
- «Por favor, aceite da nossa Comissão» - continuou Ticknor a ler -,
«em sinal de apreço pelo seu futuro contributo, uma das sete bolsas que
contêm as cinzas de Dante Alighieri, tardiamente retiradas da sua
sepultura, em Ravena.»
Isto coloriu com um pálido tom carmesim, causado pelo prazer, as faces de
Ticknor, e os seus olhos dirigiram-se para a bolsa. As suas faces já não
tinham aquela sombra vermelha que, contrastando com o seu cabelo
escuro, levara as pessoas a tomarem-no, na sua juventude, por espanhol.
Ticknor desatou a fita, abriu a bolsa e ficou a olhar para o que podia ser pó
de carvão. Mas depois deixou que alguns grãos lhe escorressem por entre
os dedos, como o cansado peregrino que por fim alcança
a água benta.
- Durante muitos anos pareceu que eu procurava pelos quatro cantos do
mundo colegas eruditos que estudassem Dante, com pouco sucesso - disse
Ticknor. Ele engoliu em seco, enquanto pensava, «Durante quantos anos?» -
Eu tentei ensinar a muitos membros da minha família até que ponto Dante
me transformara num homem melhor, mas fui escassamente
compreendido. Você reparou, Longfellow, que no ano passado não houve
um clube ou sociedade de Boston que não tivesse feito uma comemoração
pelos trezentos anos sobre o nascimento de Shakespeare? I Contudo,
quantos, fora de Itália, consideram que este ano, dos seiscentos anos
passados sobre o nascimento de Dante, merece ser destacado? Shakespeare
ajuda-nos a conhecer-nos. Dante, com a sua dissecção de todos os outros,
brinda-nos com o conhecimento uns dos outros. Fale-me das
incidências da sua tradução.
Longfellow inspirou bem fundo. Depois, narrou uma história de homicídio;
como o juiz Healey fora castigado como um Neutro, Elisha Talbot como um
Simoníaco e Phineas Jennison como um Cismático. E explicou ainda como o
Clube de Dante seguira o rasto do Lúcifer pela cidade, e acabara por
perceber que ele se adiantava à progressão da
tradução que eles faziam.
- Você pode ajudar-nos - disse Longfellow. - Hoje inicia-se uma
nova fase da nossa luta.
- Ajudar. - Ticknor pareceu saborear a palavra, como faria com um novo
vinho, e depois o repudiasse, desapontado. - Ajudar em quê, Longfellow?
Longfellow reclinou-se, surpreendido.
- Seria uma loucura tentar parar uma coisa destas - disse Ticknor sem
compaixão. - Você sabe, Longfellow, que eu comecei a oferecer os meus
livros? - Ele assinalou com a sua vara de ébano as estantes que cobriam as
paredes a toda a volta da sala. - Já dei perto de três mil volumes à biblioteca
pública, um a um.
- Um gesto magnífico, Professor - comentou Longfellow com sinceridade.
- Um a um até temer que não restasse nenhum para mim. - Ele empurrou o
seu luxuoso tapete com o luzidio ceptro negro. A sua boca cansada fez um
esgar, em parte sorrindo, em parte demonstrando enfado. - A primeira
memória que tenho da minha vida é a morte de Washington. Quando,
naquele dia, o meu pai chegou a casa, nem conseguia falar, tão chocado que
se sentia com a notícia. Eu estava aterrorizado por ele estar tão afetado, e
pedi à minha mãe para mandar chamar um médico. Durante umas
semanas, toda a gente, inclusivamente as crianças mais pequenas, usaram
faixas pretas nas suas mangas. Alguma vez você parou para pensar que se
matar uma pessoa é um assassino, mas se matar mil é um herói, à
semelhança de Washington? Noutra época, eu pensava assegurar o futuro
das nossas arenas literárias através do estudo e da instrução, por
deferência à tradição. Dante debatia-se para que a sua poesia tivesse
continuidade depois da sua morte, num novo lugar, e, durante quarenta
anos, eu trabalhei afincadamente por ele. A sina da literatura, profetizada
pelo senhor Emerson, tornou-se realidade com os acontecimentos que você
está a descrever... A literatura que alenta vida e morte, que consegue punir
e absolver.
- Eu sei que o senhor não pode aprovar o que aconteceu, professor Ticknor
- disse Longfellow, pensativamente. - Dante desfigurado, utilizado como
ferramenta para o crime e a vingança pessoal.
Ticknor bateu palmas.
- Por fim, Longfellow, encontrámo-nos, definitivamente, com um texto
antigo, convertido num poder atual, um poder capaz de julgar perante os
nossos próprios olhos! Não, se o que você descobriu for verdade, quando o
mundo souber o que aconteceu em Boston... mesmo que seja daqui a dez
séculos... Dante não ficará desfigurado, não se verá manchado nem
arruinado. Ele será reverenciado como a primeira autêntica criação do
génio norte-americano, o primeiro poeta a libertar o poder majestático de
toda a literatura sobre os incrédulos!
- Dante escreveu para nos afastar dos tempos em que a morte era
incompreensível. Ele escreveu para nos infundir esperança na vida,
Professor, quando já não nos restasse mais nada; para que soubéssemos
que a nossa existência e as nossas preces não eram indiferentes a Deus.
Ticknor suspirou acanhadamente e desviou a bolsa debruada a dourado.
- Não se esqueça do seu presente, senhor Longfellow. Longfellow sorriu.
- O senhor foi o primeiro a acreditar que era possível. - E colocou a bolsa
com as cinzas nas velhas mãos de Ticknor, que a agarraram cobiçosamente.
- Já estou demasiado velho para ajudar alguém, Longfellow - desculpou-se
Ticknor. - Mas permita-me que lhe dê um conselho. Você não anda atrás de
Lúcifer; esse não é o culpado que você descreve. Lúcifer permanece
completamente mudo quando finalmente Dante o encontra no gelado
Cocito, a suspirar e sem fala. Sabe, é assim que Dante triunfa sobre Milton.
Nós consideramos que Lúcifer é assombroso e inteligente, apesar de
podermos derrotá-lo, mas Dante torna-o mais difícil. Não. Você anda atrás
de Dante; é Dante que decide quem deve ser castigado, j onde devem ir e
que tormentos devem sofrer. E o poeta que toma essas] medidas, ainda que
ao se apresentar como o viajante, tente fazer-nosi esquecê-lo. E nós
acreditamos que ele é outra testemunha inocente da obra de Deus.
Xvntretanto, em Cambridge, James Russell Lowell via fantasmas.
Acomodado na sua poltrona, com a luz invernal a penetrar profusamente
no interior da sala, ele teve uma visão distinta do rosto de Maria, o seu
primeiro amor, fielmente retratado. «Com o tempo», repetia ele. «Com o
tempo...» Estava sentada com Walter nos joelhos e animava Lowell com
estas palavras: «Olha que rapaz tão bonito e forte que se está a fazer.»
Fanny Lowell disse-lhe que ele parecia estar num momento crítico, e
insistiu com o marido para que se fosse deitar. Ela chamaria um médico, ou
o doutor Holmes, se ele quisesse. Mas Lowell ignorou-a, porque se sentia
muito feliz. Abandonou Elmwood pela porta das traseiras. Pensava como a
sua pobre mãe, no asilo, costumava garantir-lhe que quando se sentia mais
contente era durante os ataques que tinha. Dante disse que sentia a maior
tristeza quando acontecia lembrar-se da felicidade passada, mas ele
enganara-se na sua formulação; estava «muitíssimo enganado», pensou
Lowell. Não há felicidades comparáveis em intensidade às nossas tristezas
e pesares. Alegria e tristeza eram irmãs, e muito semelhantes entre si, como
dissera Holmes, e nada arrancava lágrimas como ambas, fazendo-o de
modo igual. Walter, o pobre bebé de Lowell o último filho morto de Maria, o
seu herdeiro com todos os direitos, parecia-lhe algo palpável, enquanto
caminhava pelas ruas, tentando não pensar em nada,
em nada mais além da doce Maria; em mais nada. Contudo, agora a
presença espectral de Walter não era tanto uma imagem, mas um incerto
sentimento, que se projetava sobre ele como uma sombra, que estivesse
nele, do mesmo modo que uma mulher grávida sente a pressão da vida no
seu estômago. Também pensou ter visto Pietro Bachi a cruzar-se com ele
na rua, a cumprimentá-lo e a escarnecer dele, como se dissesse, «Estarei
sempre aqui para lhe recordar o seu fracasso. Você nunca lutou por nada,
Lowell.»
- Você não está aqui! - murmurou Lowell, e um pensamento veio-lhe à ideia.
Se, no início, não estivesse tão certo da culpabilidade de Bachi, se tivesse
compartilhado minimamente o cepticismo nervoso de Holmes, eles teriam
encontrado o assassino, e Phineas Jennison podia ainda continuar vivo. E
depois, antes de conseguir pedir um copo de água a um dos tendeiros da
rua, viu à sua frente um casaco branco reluzente e uma cartola de seda
também branca a deslizar alegremente para longe, com o apoio de um
bastão guarnecido com dourados. Phineas Jennison.
Lowell esfregou os olhos. Tinha suficiente consciência do seu estado de
espírito para não confiar no que os seus olhos viam, mas conseguia ver
Jennison a roçar com os ombros nos outros transeuntes, enquanto outros o
evitavam e lhe dirigiam olhares estranhos. Ele era corpóreo. De carne e
osso.
Estava vivo...
jennison! Lowell tentou gritar, mas tinha a boca demasiado seca. Aquela
visão convidava-o a desatar a correr, mas, ao mesmo tempo, prendia-lhe as
pernas. «Oh, Jennison!» Ao mesmo tempo, conseguiu recuperar a sua voz
forte e dos seus olhos começaram a brotar lágrimas. «Phinny, Phinny. Estou
aqui! Estou aqui! Jemmy Lowell, vês-me? Ainda não te perdi!»
Lowell correu por entre os transeuntes, e lançou o braço por cima dos
ombros de Jennison. No entanto, o sujeito virou-se para ele, e Lowell
defrontou-se com a cruel verdade. Tinha o casaco e o chapéu
confeccionados pelo alfaiate de Phineas Jennison, empunhava a sua luzidia
bengala, mas tratava-se de um velho infeliz, de rosto sujo, com a barba por
fazer e disforme. Ao abraçá-lo, Lowell sentiu-o a tremer.
- Jennison - disse Lowell.
- Não me prenda, Sir. Tinha de me aquecer... - O homem confessou ser ele o
vagabundo que encontrara o corpo de Jennison, depois de ter nadado até
ao forte abandonado, desde uma ilha próxima, onde havia um asilo de
beneficência. Ele encontrara umas roupas bonitas cuidadosamente
dobradas e amontoadas numa pilha no chão da estância
onde o corpo de Jennison fora pendurado, e servira-se de algumas peças de
roupa.
Lowell lembrou-se e sentiu agudamente a larva solitária que lhe fora
extraída, sozinha no seu percurso escarpado e ainda por desbravar,
devorando o seu interior. Ele também sentiu o buraco deixado, e que
expelira tudo o que estava retido nas suas entranhas.
O campus de Harvard estava em silêncio por causa da neve. Sem sucesso,
Lowell procurou Edward Sheldon, a quem enviara uma carta na quinta-
feira à tardinha, depois de o ver na companhia do fantasma, reclamando a
presença imediata do estudante em Elmwood. Contudo, Sheldon não lhe
respondera. Vários estudantes que o conheciam disseram-lhe não o ver há
uns dias. Outros, ao cruzarem-se com Lowell, recordaram-lhe a sua aula,
para a qual já estava atrasado. Quando entrou na sala de aula, no edifício
principal da universidade, um local espaçoso, que em tempos albergara a
capela da faculdade, dirigiu a sua saudação habitual.
- Cavalheiros e estudantes... - A isto seguiram-se as habituais e ensaiadas
gargalhadas dos estudantes. Pecadores... era assim que os ministros
congregacionistas da sua infância costumavam começar os seus sermões. O
seu pai, que para uma criança era a voz de Deus. Também assim era com o
pai de Holmes. Pecadores. Nada podia abalar tanto a sincera piedade do pai
de Lowell como a sua confiança num Deus que partilhava a sua força.
- Serei eu o tipo adequado de homem para guiar a ingénua juventude? Nem
por sombras! - Lowell ouvira-se dizer estas palavras quando
já tinha dado um terço de uma aula sobre Don Quixote. - E, por outro lado -
reflectiu -, ser professor não é bom para mim, humedece a minha pólvora,
como se a minha mente, ao incendiar-se, se juntasse a uma mecha
involuntária, em vez de saltar à primeira chispa.
Dois estudantes preocupados tentaram agarrá-lo por um braço quando
quase caiu. Lowell aproximou-se aos tropeções da janela e pôs a cabeça de
fora, com os olhos fechados. Em vez de sentir a fresca carícia do ar, I como
esperava, sentiu um inesperado golpe de calor, como se o inferno lhe
fizesse cócegas no nariz e nas faces. Ele tocou nas pontas levantadas do seu
bigode, e também as sentiu quentes e húmidas. Ao abrir os olhos, viu um
triângulo de chamas em baixo. Lowell correu para fora da sala j de aula e
desceu as escadas de pedra do edifício principal da universidade. Uma vez
no campus de Harvard, deparou-se-lhe uma fogueira que estralejava
vorazmente.
Rodeando-a estava um semicírculo de homens de porte majestoso a
contemplar as chamas com uma grande atenção. Eles atiravam para o meio
do fogo os livros que haviam empilhado ao lado.
Eram pastores unitaristas e congregacionalistas locais, membros da
Corporação de Harvard e alguns representantes do Conselho de Inspetores
de Harvard. Um agarrou num opúsculo, amarfanhou-o e arremessou-o
como se fosse uma bola. Todos aplaudiram quando atingiu as chamas.
Avançando rapidamente, Lowell baixou-se, apoiou-se num joelho, e
resgatou o opúsculo. A capa estava demasiado chamuscada para se
conseguir ler, por isso, ele abriu-o na página de rosto e leu o título: Em
Defesa de Charles Darwin e da Sua Teoria Evolucionista.
Lowell não conseguiu segurá-lo por mais tempo. O professor Louis Agassiz
estava de pé à sua frente, do outro lado da fogueira, com o rosto
mascarrado e inclinado por causa da fumarada. O cientista agitou
amistosamente as duas mãos.
- Como está a sua perna, senhor Lowell? Ah, isto... isto é obrigatório, senhor
Lowell, apesar de ser uma pena o desperdício de papel de qualidade. O
doutor Augustus Manning, tesoureiro da Corporação, contemplava a cena
de uma janela que se distinguia através do fumo, situada no Gore Hall, a
biblioteca da universidade, um edifício de granito, grotescamente gótico.
Lowell encaminhou-se rapidamente para a entrada maciça e atravessou a
nave, grato por a cada passada recuperar a compostura e a razão. No Gore
Hall não eram permitidas velas nem candeeiros a gás, devido ao perigo de
incêndio, de modo que as salas e os livros estavam sombrios como o
inverno.
- Manning! - bramiu Lowell, contando com uma reprimenda do
bibliotecário.
Manning espreitava da tribuna por cima da sala de leitura, onde estava a
reunir alguns livros.
- O senhor tem agora uma aula, professor Lowell. A Corporação de Harvard
não pode considerar uma conduta aceitável abandonar os estudantes sem
vigilância.
Lowell teve de passar um lenço pelo rosto antes de subir à tribuna. - O
senhor ousa queimar livros numa instituição de ensino! - A tubagem do
precursor sistema de aquecimento do Gore Hall tinha sempre fugas,
enchendo a biblioteca com um ondulante vapor, que condensava sob a
forma de gotículas quentes nas janelas, nos livros e nos estudantes. - O
mundo da religião está em dívida para connosco, e deve, em especial, ao
seu amigo professor Agassiz, gratidão por combater triun-fantemente o
ensino monstruoso de que descendemos dos macacos, professor.
Certamente que o seu pai teria demonstrado o seu acordo. - O Agassiz é
demasiado lesto - disse Lowell ao chegar ao cimo da tribuna, atravessando
a cortina de vapor. - Ele abandoná-lo-á...
pode contar com isso! Nada do que tente excluir do pensamento alguma
vez estará a salvo do pensamento!
Manning sorriu, e esse sorriso pareceu inserir-se na sua cabeça.
- Sabe? Através da Corporação obtive cem mil dólares para o museu de
Agassiz. Atrever-me-ia a dizer que o Agassiz irá exatamente por onde eu lhe
disser.
- Mas o que se passa, Manning? O que o leva a ter aversão às ideias alheias?
Manning olhou para Lowell de soslaio. Enquanto lhe respondia, perdeu o
estrito controlo que mantinha sobre a sua voz.
- Temos sido um nobre país, caracterizado pela simplicidade em matéria de
moral e de justiça; o último órfão da grande República Romana. O nosso
mundo está a ser estrangulado e demolido por infiladores, por novidades
imorais introduzidas por cada estrangeiro e por cada nova ideia contra os
princípios sobre os quais se construiu a América do Norte. Veja por si
mesmo, Professor. O senhor acha que podíamos ter feito uma guerra entre
nós há vinte anos? Teríamos sido envenenados. A guerra, a nossa guerra,
está longe de estar terminada. Está justamente apenas no início. Nós
libertámos os demónios no mesmo ar que respiramos. As revoluções, os
crimes e os roubos começam nas nossas almas e transferem-se para as ruas
e as nossas casas. - Isto era o mais próximo do emotivo que Lowell alguma
vez vira a Manning. - O juiz Healey do Supremo Tribunal foi meu
condiscípulo, Lowell; ele era um dos nossos melhores supervisores, e agora
foi atacado por uma besta qualquer, cujo único conhecimento é o da morte!
Em Boston, as mentes sofrem constantes assaltos. Harvard é a última
fortaleza para protecção das nossas sublimes essências. E esta é uma
responsabilidade minha!
Manning conteve os seus sentimentos.
- Professor, o senhor permite-se o luxo da rebeldia apenas na ausência de
responsabilidade. O senhor é um autêntico poeta.
Lowell sentiu que erguia o corpo, pela primeira vez, desde a morte de
Phineas Jennison. Aquilo infundiu-lhe renovadas forças.
- Carregámos de correntes toda uma raça de homens há cem anos, e com
isso começou a guerra. A América do Norte continuará a crescer
independentemente do número de mentes que o senhor acorrente agora,
Manning. Eu sei que o senhor ameaçou o Oscar Houghton, dizendo-lhe que,
se ele publicasse a tradução que Longfellow estava a fazer de Dante,
sofreria as consequências.
Manning voltou-se para a janela e contemplou as labaredas alaranjadas.
- E assim será, professor Lowell. A Itália é um mundo no qual reinam as
piores paixões e a moral mais relaxada. E acolhê-los-ei de bom grado se
doar alguns exemplares do seu Dante ao Gore Hall,
como um certo cientista néscio fez com esses livros de Darwin, pois esta
mesma fogueira os tragará... um exemplo para todos os que tentem
converter a nossa instituição num reduto de ideias de violência imunda.
- Nunca lho permitirei - respondeu Lowell. - Dante é o primeiro poeta
cristão, o primeiro e único cujo sistema de pensamento está comple-
tamente impregnado de uma teologia puramente cristã. Mas o poema está
mais próximo de nós por outras razões. É a verdadeira história de um
irmão nosso, um homem, de uma alma humana que é tentada, purificada e
que, por fim, sai triunfante. Ensina a benéfica acção mediadora do
arrependimento. Foi a primeira quilha que se aventurou no mar silencioso
da consciência humana ao encontro de um novo mundo de poesia. Manteve
contida a sua angústia ao longo de vinte anos, e não se permitiu morrer até
ter concluído a sua tarefa. Não fará o mesmo Longfellow. Nem eu próprio.
Lowell voltou-se e começou a descer as escadas. - Felicito-o, Professor - Da
tribuna, Manning permanecia impassível, apesar de os seus olhos
chisparem, inflamados pela ira. - Mas talvez nem toda a gente partilhe da
mesma opinião. Recebi uma visita peculiar de um certo polícia, um tal
agente Rey. Ele indagou-me acerca do seu trabalho sobre Dante. Não
explicou porquê, e partiu de repente. Pode dizer-me por que razão o seu
trabalho atrai a polícia à nossa respeitável «instituição de ensino»?
Lowell parou e voltou-se para olhar para Manning. Manning apoiou os seus
longos dedos sobre o esterno. - Alguns homens sensatos afastam-se do seu
círculo para o trair, Lowell... garanto-lho. Não há nenhuma congregação de
rebeldes que consiga permanecer unida por muito tempo. Se o senhor
Houghton não colaborar para os determos, alguém o fará. Por exemplo, o
doutor Holmes.
Lowell queria ir-se embora, mas esperou um pouco mais.
- Adverti-o há muitos meses para que se afastasse do seu projeto de
tradução, porque de contrário a sua reputação iria ressentir-se. O que acha
o senhor que ele fez? Lowell abanou a cabeça.
- Pediu-me para ir a sua casa e confidenciou-me que concordava com a
minha postura.
- Você está a mentir, Manning!
- Oh, então, o doutor Holmes continuou dedicado à causa? - perguntou ele
como se soubesse muito mais do que Lowell podia imaginar.
Lowell mordeu o seu lábio, trémulo.
Manning abanou a cabeça e sorriu.

- O homúnculo miserável é o seu Benedict Arnold(1) à espera de


instruções, professor Lowell.
- Saiba que quando sou amigo de um homem, sou-o para toda a vida, e é
muito difícil fazer-me voltar atrás. E mesmo que um homem possa fazer
gala em ser meu inimigo, não conseguirá converter-me em seu, enquanto
eu não quiser. Boa tarde. - Lowell deu por concluída a conversa, mas o
outro ainda precisava de falar com ele.
Manning seguiu Lowell até à sala de leitura, e agarrou-o pelo braço.
- Não compreendo como é que o senhor põe em risco o seu bom nome, tudo
aquilo por que sempre lutou uma vida inteira, por uma coisa como esta,
Professor.
Lowell desviou-se.
- Mesmo que você quisesse perceber, não podia, Manning? Regressou à sua
aula a tempo de se despedir dos alunos.
Se, de algum modo, o assassino estivera a seguir a tradução de Longfellow,
e os desafiava para uma corrida, o Clube de Dante tinha poucas
alternativas, além de terminar com a máxima brevidade os treze cantos do
Inferno que faltavam. Eles concordaram dividir-se em dois pequenos
grupos: o dos investigadores e o dos tradutores.
Lowell e Fields continuariam com a investigação, enquanto Longfellow e
George Washington Greene se empenhariam na tradução no escritório.
Fields informara Greene, para grande satisfação do antigo pastor, que a
tradução fora submetida a uma calendarização estrita, com vista à sua
finalização imediata. Ainda havia nove cantos por rever, um parcialmente
traduzido e dois com os quais Longfellow não estava totalmente satisfeito.
Peter, o criado de Longfellow, levaria as provas à River-side, à medida que
Longfellow fosse terminando o trabalho, e encarregava-se de, ao mesmo
tempo, levar Trap a passear.
- Isso não faz sentido!
- Então, deixe-o, Lowell - disse Fields, afundado na sua cadeira de braços,
colocada ao fundo da biblioteca, e que numa outra época pertencera ao avô
de Longfellow, um valoroso general da Guerra da Independência.

w
*1 Benedict Arnold (1741-1801) é o paradigma do traidor para os norte-
americanos, porque foi um herói que lutou em ambos os lados durante a
Guerra da Independência. Incorporou a ala dos insurretos, em 1775, tendo
empreendido aí grandes façanhas e tendo-se tornado num dos militares
mais distintos. No entanto, por ambição, a partir de 1780 passou para o
lado britânico, onde combateu com igual valentia. [N. da T.]

w
Ele observou Lowell, demoradamente. - Sente-se. Você está muito corado.
Ultimamente tem dormido o suficiente? Lowell ignorou-o.
- O que nos permitiria qualificar o Jennison como um Cismático? Em
concreto, nesse fosso do Inferno, cada uma das sombras que Dante escolhe
para individualizar é inequivocamente emblemática desse pecado.
- Até descobrirmos por que razão Lúcifer escolheu o Jennison, temos de
extrair o que conseguirmos dos pormenores do crime - disse Fields.
- Bem, o crime confirma a força de Lúcifer. O Jennison fizera escalada com o
Clube Adirondack. Ele era um desportista e um caçador, no entanto, o
nosso Lúcifer deita-lhe a mão e fá-lo em pedaços com toda a facilidade.
- Não há dúvida que o fez, sob a ameaça de uma arma - conjeturou Fields. -
Até o homem mais forte pode sucumbir ao medo diante de uma arma de
fogo, Lowell. Também sabemos que o nosso assassino é esquivo. Havia
policiais de guarda em cada rua daquela zona, a todas as horas, desde a
noite em que o Talbot fora assassinado. E a grande atenção colocada pelo
Lúcifer nos pormenores do canto de Dante... Isso é bem certo.
- A qualquer momento, enquanto falamos - reflectiu Lowell em voz alta,
com um ar ausente -, a qualquer momento, enquanto Longfellow traduz um
novo verso na sala ao lado, pode ser perpetrado outro homicídio e nós
somos impotentes para o impedir.
- Três homicídios e não há uma única testemunha. Coincidindo com toda a
precisão com as nossas traduções. O que vamos fazer? Vaguear pelas ruas e
esperar? Se fôssemos menos cultos, começaria a pensar que um autêntico
espírito do mal nos domina.
- Podemos concentrar a nossa atenção na relação que os assassínios têm
com o nosso clube - propôs Lowell. - Concentremo-nos em seguir a pista de
todos os que de alguma forma conhecem o calendário previsto para a
tradução. - Enquanto Lowell folheava rapidamente o bloco de
apontamentos onde anotava as suas investigações, distraidamente, bateu
numa das peças de colecção, uma bala de canhão disparada pelos
britânicos, em Boston, contra as tropas do general Washington.
Eles ouviram outro toque à porta principal, mas ignoraram-no.
- Enviei um bilhete ao Houghton a pedir-lhe que se assegure de que
nenhuma das provas da tradução do Longfellow sai de Riverside - disse
Fields a Lowell. - Sabemos que todas as mortes foram inspiradas nos
cantos, que, nas respectivas alturas, ainda não tinham sido traduzidos pelo
nosso clube. O Longfellow tem de continuar a levar as provas para a gráfica,
como se tudo se desenrolasse como habitualmente. E, entretanto, o que é
feito do jovem Sheldon?
Lowell franziu o sobrolho.
- Ele ainda não respondeu, e não foi visto em lado nenhum do campus. É o
único que nos pode informar sobre o fantasma com quem o vi falar, depois
da partida do Bachi.
Fields levantou-se e inclinou-se junto de Lowell.
- Você tem a certeza absoluta que viu esse «fantasma» ontem, Jamey? -
perguntou-lhe.
Lowell ficou surpreendido.
- O que quer você dizer com isso, Fields? Eu já lhe contei... Vi-o a observar-
me no campus de Harvard, e, depois, outra vez, enquanto esperava pelo
Bachi. E novamente quando mantinha uma acesa discussão com o Edward
Sheldon.
Fields não conseguiu evitar encolher-se.
- É que todos estamos muito apreensivos e ansiosos, meu caro Lowell. As
minhas noites também têm sido passadas por entre incómodos episódios
de insónia.
Lowell fechou com estrondo o bloco de notas que estava a rever.
- Você está a insinuar que tudo não passou de imaginação minha?
- Foi você mesmo que me disse que hoje pensou ter visto o Jennison, o
Bachi, a sua primeira mulher e, depois, o seu filho que faleceu. Por amor de
Deus! - gritou Fields.
Os lábios de Lowell tremeram.
- Oiça bem o que lhe vou dizer, Fields. Isto ultrapassou todos os limites...
- Acalme-se, Lowell. Não foi minha intenção levantar-lhe a voz. Não foi
minha intenção dizer isso.
- Eu julguei que você sabia melhor do que nós o que devíamos fazer. Afinal
de contas, nós não passamos de meros poetas! Julguei que você sabia
exatamente de que forma alguém pôde seguir o nosso calendário de
tradução!
- Ora, e o que significa isso, senhor Lowell?
- Simplesmente isto: Quem, além de nós, conhece em primeira mão as
actividades do nosso Clube de Dante? Os aprendizes da gráfica, os
gravadores, os encadernadores... Todos aqueles que estão relacionados
com a Ticknor e Fields.
- Ora! - Fields estava assombrado. - Não inverta os papéis contra
mim!
A porta que estabelecia a comunicação da biblioteca com o escritório abriu-
se.
- Meus senhores, lamento ter de interrompê-los - disse Longfellow, ao
mesmo tempo que fazia entrar Nicholas Rey.
Um olhar de terror perpassou pelos rostos de Lowell e Fields. Lowell
balbuciou uma litania de razões pelas quais Rey não podia interrompê-los.
Longfellow limitou-se a sorrir.
- Professor Lowell - disse Rey. - Por favor, meus senhores, estou aqui para
lhes pedir que me deixem ajudá-los.
De imediato, Lowell e Fields esqueceram a sua discussão e deram efusivas
boas-vindas a Rey.
- Compreendam que faço isto para parar com as mortes - clarificou Rey. -
Mais nada.
- Esse não é o nosso único objectivo - disse Lowell depois de uma longa
pausa. - Mas não conseguimos completar isto sem alguma ajuda, e o senhor
menos ainda. Este patife deixou a marca de Dante em tudo aquilo em que
tocou, e para si seria um erro tremendo tomar esse rumo sem ter um
tradutor ao seu lado.
Longfellow deixou-os na biblioteca e voltou para o escritório. Ele e Greene
estavam ocupados com o terceiro canto do dia, tendo começado às seis da
manhã, trabalhando e descansando até ao momento crítico do meio-dia.
Longfellow escreveu um bilhete a Holmes a pedir-lhe ajuda na tradução,
mas não obteve nenhuma resposta do n.° 21 da Charles Street. Longfellow
perguntou a Fields se podiam convencer Lowell a reconciliar-se com
Holmes, mas Fields recomendou-lhe que deixassem o tempo acalmá-los.
Ao longo do dia, Longfellow teve de despachar um número invulgar de
estranhas petições da habitual variedade de gente que se lhe apresentava.
Um habitante do Oeste trouxe-lhe o «pedido» de um poema sobre os
pássaros, que desejava que Longfellow escrevesse, e pelo qual pagaria
bastante. Uma mulher, uma visitante habitual, pôs a sua bagagem à porta,
explicando ser a esposa de Longfellow, e estar de regresso a casa. Um
soldado supostamente ferido veio pedir-lhe dinheiro. Longfellow teve pena
dele e deu-lhe uma quantia pequena.
- Mas, Longfellow, o «coto» desse homem mais não era do que o braço
dobrado por dentro da camisa! - disse Greene depois de Longfellow ter
fechado a porta.
- Sim, eu sei - respondeu Longfellow, enquanto voltava para a sua cadeira
de braços. - Mas, meu caro Greene, quem irá ser amável com ele, se eu não
for?
Longfellow voltou a mergulhar na sua tarefa do Inferno, Canto Quinto, que
deixara por terminar havia muitos meses. Referia-se ao círculo dos
luxuriosos. Ali, ventos incessantes golpeiam os pecadores a partir de todas
as direcções, tal como os seus lascivos desenfreamentos os golpearam a
partir de todas as direcções em vida.
O peregrino pede para falar com Francesca, uma bonita jovem, morta pelo
marido quando a encontrou a beijar o seu irmão, Paolo. Ela, com o
silencioso espírito do seu ilícito amante a seu lado, paira até se colocar ao
lado de Dante.
- À Francesca não basta sugerir que ela e o Paolo simplesmente
sucumbiram às suas paixões, mas pretende narrar a sua história a Dante,
chorando - denotou Greene.
- Exatamente - confirmou Longfellow. - Ela diz a Dante que eles estavam a
ler o episódio do beijo entre a Guinevere e o Lancelot, quando os seus olhos
se encontraram sobre o livro, e ela disse, recatadamente, «Hoje já não
lemos mais.» O Paolo toma-a nos braços e beija-a; contudo, a Francesca não
o culpa a ele a sua transgressão, mas ao livro que partilhavam. O autor do
romance é o traidor de ambos.
Greene fechou os olhos, mas não por estar com sono, como costumava fazer
muitas vezes durante as reuniões. Greene acreditava que um tradutor devia
esquecer-se de si mesmo e fundir-se com o autor, e era isso que fazia ao
tentar ajudar Longfellow.
- E, deste modo, eles recebem o castigo perfeito: permanecem juntos para
sempre, mas nunca mais voltam a beijar-se nem a sentir a emoção da corte;
experimentam apenas o tormento de estar ao lado um do outro.
Enquanto falavam, Longfellow viu as tranças douradas e o rosto sério de
Edith a inclinar-se para o interior do escritório. Depois do olhar de relance
do pai, a menina encaminhou-se rapidamente para o vestíbulo.
Longfellow sugeriu a Greene que fizessem uma pausa. Os homens que
estavam na biblioteca também tinham abandonado o seu debate para que
Rey pudesse examinar o diário das investigações que Longfellow guardava.
Greene saiu para o jardim para esticar as pernas.
Enquanto Longfellow retirava alguns livros, os seus pensamentos
vaguearam para outras épocas vividas naquela casa, épocas anteriores à
sua. Naquele escritório, o general Nathanael Greene, avô do seu amigo
Greene, discutia estratégia com o general George Washington quando
foram informados da chegada dos britânicos. Todos os generais reunidos
no aposento se apressaram a pegar nas suas perucas. Também naquele
escritório, segundo uma das histórias de Greene, Benedict Arnold se
ajoelhou e jurou lealdade. Com este último episódio em mente, Longfellow
passou para a sala, onde encontrou a filha Edith, feita num novelo em cima
de uma cadeira de braços Luís XVI. Ela puxara o seu assento para junto do
busto de mármore da mãe. O semblante creme de Fanny estava sempre ali
quando a menina precisava dela. Longfellow nunca conseguia olhar para
um retrato da esposa sem experimentar a exaltação de prazer que sentira
nos primeiros dias da sua torpe corte. Fanny jamais saíra de uma sala sem
o deixar com a sensação de que alguma luz era levada com ela.
O pescoço de Edith curvou-se como o de um cisne para esconder o rosto.
- Então, minha querida - disse Longfellow com doçura e a sorrir. -O que se
passa com a minha querida, esta tarde?
- Desculpa ter espreitado, Papá. Queria perguntar-te uma coisa e não pude
deixar de ouvir. Esse poema - disse ela, timidamente, mas como se o
sondasse - fala das coisas mais tristes.
- Sim. Às vezes, a Musa inspira-nos isso. O dever do poeta consiste em falar
dos nossos momentos mais difíceis com a mesma honestidade com que
celebramos as alegrias, Edie, porque só passando pelos momentos mais
obscuros se alcança, por vezes, a luz. É isso que Dante faz.
- Porque tendes de castigar assim o homem e a mulher do poema, por se
amarem? - E uma lágrima brotou dos seus olhos de um azul-celeste.
Longfellow sentou-se na cadeira, pô-la nos seus joelhos e fez-lhe um trono
com os próprios braços.
- O poeta daquela obra foi um cavalheiro baptizado como Durante, mas que
mudou este nome para Dante, como num jogo infantil. Ele viveu há cerca de
seiscentos anos. Ele mesmo se apaixonou, e por isso escreve assim.
Reparaste na estatueta de mármore que está por cima do espelho do meu
escritório? Edith anuiu com a cabeça.
- Muito bem, trata-se do Signor Dante.
- Aquele homem? Parece ter o peso do mundo todo em cima da cabeça.
- Sim. - Longfellow sorriu. - E estava profundamente apaixonado por uma
rapariga que conhecia há muito tempo, quando ela era..., oh, pouco mais
nova do que tu, minha querida (tinha mais ou menos a idade da pequena
Panzie), e chamava-se Beatrice Portinari. Ela tinha nove anos quando ele a
viu pela primeira vez, num festival, em Florença.
- Beatrice - repetiu Edith, imaginando o modo como a palavra se soletrava e
pensando nas bonecas para as quais ainda não encontrara um nome.
- Bice... era assim que os seus amigos a tratavam. Mas nunca Dante. We
tratava-a apenas pelo seu nome completo, Beatrice. Quando ela se
aproximava dele, apoderava-se do coração de Dante um tal sentimento de
modéstia que não conseguia levantar os olhos nem devolver-lhe o
cumprimento. Noutra ocasião, ele mostrou-se disposto a falar, mas ela
limitou-se a passar, mal dando pela presença dele. Ele ouviu as pessoas da
cidade a sussurrarem a propósito dela, «Não é moral. É um dos bem-
"aventurados de Deus.»
- Era isso que diziam dela? Longfellow riu ligeiramente.
- Bem, isso era o que Dante ouvia, porque estava profundamente
apaixonado por ela, e quando estamos apaixonados, ouvimos as pessoas
elogiarem aquele que elogiamos.
- Dante pediu a sua mão? - perguntou Edith, esperançada.
- Não. Ela só falou com ele uma vez, para o saudar. Beatrice casou com
outro florentino. Pouco depois, adoeceu com uma febre e morreu. Dante
casou com outra mulher e constituíram família. Porém, ele nunca esqueceu
o seu amor, chegando até a pôr o nome de Beatrice à própria filha.
- A mulher dele não ficou aborrecida? - perguntou a menina, indignada.
Longfellow agarrou numa das suaves escovas de Fanny e pôs-se a deslizá-la
pelos cabelos de Edith.
- Não sabemos muito sobre Donna Gemma, mas sabemos que quando o
poeta se viu em algumas dificuldades, a meio da sua vida, teve uma visão
em que Beatrice, do seu cantinho no Céu, lhe enviava um guia para o ajudar
a atravessar um lugar muito escuro e voltar a juntar-se a ela. Quando Dante
começa a tremer diante da ideia de um desafio semelhante, o seu guia
recorda-lhe: «Quando voltares a ver os seus lindos olhos, saberás
novamente qual a viagem da tua vida.» Compreendes isto, querida?
- Mas como é que ele amava assim tanto Beatrice se nunca falou com ela?
Longfellow continuou a escovar-lhe os cabelos, surpreendido com a
dificuldade da pergunta.
- Uma vez, minha querida, ele disse que ela despertava tais sentimentos
nele que não conseguia encontrar palavras para os descrever. Como poeta
que Dante era, o que podia cativá-lo mais do que um sentimento que
desafiasse as suas rimas?
Depois, ele recitou suavemente, acariciando-lhe o cabelo com a escova:
- «Tu, minha menina, és melhor do que todas as baladas/ jamais cantadas
ou recitadas,/ porque tu és um poema vivo./ E todos os demais estão
mortos.»
O poema produziu o habitual sorriso na destinatária, que depois deixou
que o pai mergulhasse nos seus pensamentos. Seguindo o som dos passos
de Edith a subir as escadas, Longfellow permaneceu na reconfortante
sombra do busto de mármore, de cor creme, submergindo na tristeza da
sua filha.
- Ah, aqui está você. - Greene apareceu na sala, com as mãos na cintura. -
Acho que adormeci no banco do seu jardim. Não faz mal.
Agora estou prontíssimo para voltar para os nossos cantos! Ouça, onde se
meteram o Lowell e o Fields?
- Julgo que saíram para ir dar uma volta. - Lowell pedira desculpa a Fields
por se ter exaltado, e ambos haviam saído para apanhar um pouco de ar.
Longfellow apercebeu-se do longo tempo que estivera sentado. As suas
articulações rangeram audivelmente quando se levantou da cadeira.
- Com efeito - disse ele, olhando para o relógio, que retirou do bolso do
colete -, eles já saíram há algum tempo.
Fields tentava alcançar Lowell, que dava grandes passadas, a descer a
Brattle Street.
- Talvez devêssemos regressar agora, Lowell.
Fields ficou grato por Lowell ter parado de repente. Mas o poeta olhava
fixamente em frente, com uma expressão assustada. Sem aviso prévio,
empurrou Fields rapidamente para trás do tronco de um olmeiro.
Sussurrou-lhe para que olhasse em frente. Fields dirigiu o olhar para o
outro lado da rua, quando uma figura alta, com um chapéu de coco e um
colete quadriculado, virou a esquina.
- Calma, Lowell! Quem é ele? - perguntou-lhe Fields.
- Nem mais nem menos do que o homem que surpreendi a vigiar-me no
campus de Harvard! E, depois, a encontrar-se com o Bachi! E, uma vez mais,
a ter uma discussão acesa com o Edward Sheldon!
- O seu fantasma? Lowell anuiu, triunfante.
Eles seguiram-no sub-repticiamente, com Lowell a dirigir o seu editor para
manterem uma certa distância do estranho, que virava agora para uma rua
lateral.
- Que Deus nos ajude! Ele está a dirigir-se para sua casa! - exclamou Fields.
O desconhecido dispôs-se a transpor a cancela branca de Elmwood. -
Lowell, temos de ir falar com ele.
- E dar-lhe vantagem? Tenho reservado um plano muito melhor para este
tratante - disse Lowell, levando Fields a dar a volta pela cocheira e o celeiro,
para entrarem em Elmwood pela porta das traseiras. Lowell ordenou à sua
criada que recebesse o visitante, que ia bater à porta principal. Ela devia
levá-lo para uma sala específica no terceiro andar da mansão, e só depois
iria fechar a porta. Lowell retirou da biblioteca a sua espingarda de caça,
verificou-a e levou Fields para cima, utilizando as estreitas escadas de
serviço, situadas na parte posterior da casa.
- Jamey! Por amor de Deus, o que está você a pensar fazer?
- Vou certificar-me de que desta vez o fantasma não me escapa; pelo menos,
até eu estar satisfeito com o que queremos saber - esclareceu Lowell.
- Não cometa loucuras. Em vez disso, mandemos chamar o Rey. Os olhos
castanhos e brilhantes de Lowell tornaram-se cinzentos.
- O Jennison era meu amigo. Ele ceava nesta mesma casa, ali, na minha sala
de jantar, onde limpava os lábios aos meus guardanapos e bebia pelos
meus copos de vinho. Agora, está cortado em pedaços! Recuso-me a
continuar a avançar timidamente, pairando em torno da verdade, Fields!
O aposento situado no cimo das escadas, o quarto de Lowell quando era
criança, não era usado nem estava aquecido. Da janela do seu desvão
infantil, a vista no Inverno era ampla e um pouco vazia, apesar de incluir
uma parte de Boston. Agora, Lowell olhava para o exterior e via a familiar e
grande curva da Charles Street e os vastos campos, que se estendiam entre
Elmwood e Cambridge, as planas zonas pantanosas para lá do rio suave e
silencioso, com a neve a derreter-se.
- Lowell, você ainda mata alguém com isso! Como seu editor, ordeno-lhe
que pouse imediatamente essa arma!
Lowell tapou com a mão a boca de Fields, e fez um gesto, indicando a porta
fechada, para que detetassem qualquer movimento. Passaram vários
minutos em silêncio antes de os dois eruditos, colocados atrás de um sofá,
ouvirem os passos da criada a conduzir o visitante pelas escadas principais
acima. Ela cumpria com o que lhe fora incumbido, deixando entrar o recém-
chegado no aposento e fechando imediatamente a porta atrás de si.
- Olá? - disse o homem, uma vez no aposento vazio e mortalmente frio. -
Que tipo de sala é esta? O que significa isto?
Lowell levantou-se do lugar que ocupava atrás do sofá, apontando a sua
espingarda diretamente para o colete quadriculado do homem.
O desconhecido arfou, introduziu a mão no bolso da sua sobrecasaca e
retirou um revólver, que apontou para o cano da espingarda de Lowell.
O poeta não vacilou.
A mão direita do desconhecido tremeu violentamente ao mover o dedo,
metido numa luva de cabedal demasiado grosso, sobre o gatilho do
revólver.
Do outro lado do aposento, Lowell levantou a espingarda acima do seu
bigode em forma de presas de morsa, que aparecia muito negro sob a
escassa luz, e fechou um olho, fitando o outro diretamente no ponto de
mira. Ele falou através dos dentes cerrados.
- Ponha-me à prova, e, independentemente do que aconteça aqui, você sairá
a perder. Ou nos manda para os anjinhos - disse ele, enquanto levantava a
sua arma -, ou nós o mandamos para o inferno.

XIII




DESCONHECIDO SUSTEVE O SEU REVÓLVER MAIS ALGUNS

O instantes, e depois deixou-o cair sobre o tapete. - Este assunto não


merece que passemos por situações tão absurdas!
- Faça o favor de apanhar a pistola, senhor Fields - disse
Lowell ao editor, como se aquela fosse a ocupação diária de ambos. - Agora
tu, ó, tratante, vais dizer-nos quem és e o que vieste aqui fazer. Diz-nos o
que tens a ver com o Pietro Bachi e por que razão o senhor Sheldon te
estava a dar ordens em plena rua. E diz-me ainda porque estás em minha
casa!
Fields levantou a arma do chão.
- Afaste a sua arma, Professor, ou não direi nada - disse o homem.
- Ouça-o, Lowell! - sussurrou-lhe Fields, para satisfação do terceiro
elemento da discórdia.
Lowell baixou a arma.
- Muito bem, mas para seu bem, seja sincero connosco. - Ele aproximou
uma cadeira de braços do seu refém, que não parava de repetir que toda
aquela cena era uma «tolice».
- Não creio que tenhamos tido oportunidade de sermos apresentados antes
de o senhor me apontar à cabeça a sua espingarda - disse o visitante. -
Chamo-me Simon Camp, e sou detective da Agência Pinkerton. Fui
contratado pelo doutor Augustus Manning, da Universidade de Harvard.
- Pelo doutor Manning! - exclamou Lowell. - Com que finalidade?
- Ele queria que eu investigasse os cursos sobre esse tal Dance, para Ver se
podia ser demonstrado como provável que produziam «efeitos
Perniciosos» sobre os estudantes. Também devo fazer pesquisas sobre o
assunto e redigir um relatório sobre o que descobri.
- E o que descobriu você?
- A agência atribuiu-me toda a área de Boston. Este caso insignificante não
era a minha principal prioridade, Professor, mas foi esta parte do trabalho
que me calhou. Contactei com um dos antigos professores,
um certo senhor Bakee, para se encontrar comigo no campus - disse Camp.
- Também interroguei vários estudantes. Aquele jovem insolente, o senhor
Sheldon, não estava a dar-me ordens, Professor. Ele estava a dizer-me o
que devia fazer com as minhas perguntas, e a sua linguagem foi demasiado
ofensiva para ser repetida em tão distinta companhia.
- E o que disseram os outros?
- O meu trabalho é confidencial, Professor - respondeu, sarcasticamente,
Camp. - Mas considerei que já era altura de falar consigo pessoalmente e de
lhe perguntar a sua opinião acerca desse Dante. Foi por isso que vim hoje a
sua casa. E que recepção!
Fields semicerrou os olhos, confuso.
- Foi o Manning que o mandou vir falar diretamente com o Lowell?
- Eu não ando às suas ordens, senhor. Este caso é meu, e eu formulo os
meus próprios juízos - respondeu Camp com arrogância. - O senhor teve foi
sorte em o meu dedo ter sido lento no gatilho, professor Lowell.
- Ah, mas que grande sermão que eu vou dar ao Manning! - Lowell deu um
salto e inclinou-se sobre Simon Camp. - Você veio aqui para ver o que eu
tenho a dizer, não é, senhor? Pois saia imediatamente deste antro de
bruxas! É isso que lhe digo!
- A mim isso não importa nada, Professor! - disse Camp, rindo-se na sua
cara. - Este caso foi-me entregue, a mim, e não o abandonarei por
ninguém... nem por esse janota de Harvard, nem por um tipo como o
senhor! Pode disparar sobre mim, se quiser, mas eu levo os meus casos até
ao fim! - Ele fez uma pausa, e, depois, acrescentou: - Eu sou um profissional.
Com a inflexão despreocupada que Camp deu a esta última palavra, Fields
pareceu entender imediatamente por que razão ele ali fora.
- Talvez pudéssemos trabalhar noutra coisa qualquer - disse o editor,
retirando algumas moedas de ouro da sua carteira. - O que me diz você a
deixar indefinidamente em suspenso este caso, senhor Camp?
Fields deixou cair várias moedas na mão aberta de Camp. O detective
esperou pacientemente, e Fields deixou cair mais duas, mostrando-lhe um
sorriso tenso.
- E a minha arma?
Fields devolveu-lhe o revólver.
- Ao que parece, meus senhores, de vez em quando surge um caso que se
resolve a contento de todas as partes envolvidas. - Simon Camp fez uma
vénia e saiu, descendo as escadas principais.
- Ter de pagar a um homem como este! - disse Lowell. - Como é que você
soube que ele ia aceitar aquilo, Fields?
- O Bill Ticknor dizia sempre que as pessoas gostam da sensação de ter
ouro nas mãos - recordou Fields.
Com o rosto pressionado de encontro à janela das suas águas-furtadas,
Lowell observou com uma ira contida Simon Camp a atravessar o caminho
de ladrilhos até à cancela, muito despreocupado, a brincar com as moedas
de ouro e a deixar as marcas das suas pegadas na neve de Elmwood.
Naquela noite, oprimido pelo cansaço, Lowell sentou-se, imóvel como uma
estátua, na sua sala da música. Antes de entrar nela, hesitara à porta, como
se ali fosse encontrar o verdadeiro proprietário da sala, sentado numa
cadeira de braços em frente à lareira.
Mabel esquadrinhou o interior desde o corredor. - Pai? Aconteceu uma
coisa e quero que converses comigo sobre isso. Bess, o cachorro terra-nova,
entrou a galope e lambeu a mão de Lowell. Ele sorriu, mas logo se sentiu
muito triste ao lembrar-se das saudações sonolentas de Argus, o seu velho
terra-nova, que ingerira uma quantidade fatal de veneno numa quinta
vizinha.
Mabel afastou Bess para tentar manter uma certa seriedade.
- Pai - disse ela. - Ultimamente temos passado tão pouco tempo juntos. Eu
sei... - Ela conteve-se e não acabou de expressar o seu raciocínio.
- O que é? - perguntou-lhe Lowell - O que é que sabes, Mab?
- Sei que há qualquer coisa que o inquieta e que não o deixa em paz. Ele
pegou-lhe na mão, com ternura.
- Estou cansado, minha querida Hopkins. - Este sempre fora o nome pelo
qual Lowell a tratara. - Vou deitar-me e sentir-me-ei melhor. És uma
menina muito boazinha, minha querida. Agora, dá cá um beijo ao teu
progenitor.
Ela condescendeu e deu-lhe maquinalmente um beijo na face. Já no seu
quarto, no andar de cima, Lowell enterrou a cabeça na almofada em forma
de folha de lótus, sem olhar para a esposa. Mas não tardou a repousar a
cabeça no colo de Fanny Lowell e a chorar ininterruptamente durante
quase meia hora. Todas as emoções que experimentara se cruzavam no seu
cérebro e transbordavam dele. Projetado nas suas pálpebras fechadas, ele
conseguia ver Holmes, devastado, estendido no chão da Corner, e o
despedaçado Phineas Jennison a gritar para que Lowell o salvasse, para que
o libertasse de Dante.
Fanny sabia que o marido não falaria sobre o que o preocupava, por isso,
limitou-se a passar uma mão pelo seu ardente cabelo castanho arruivado, e
esperou que ele se acalentasse a si mesmo até adormecer entre soluços.
- Lowell. Lowell, Por favor, Lowell. Levante-se. Levante-se.
Quando Lowell abriu os olhos, com um grunhido, ficou atordoado com a luz
do Sol.
- O quê..., o que foi? Fields?
Fields estava sentado na beira da sua cama, a segurar num jornal dobrado
de encontro ao peito.
- Está tudo bem, Fields?
- Tudo mal. É meio-dia, Jamey. Fanny disse que você esteve a dormir como
uma pedra o dia todo... sem parar de dar voltas. Está indisposto?
- Sinto-me muito melhor. - Lowell concentrou-se imediatamente no objeto
que as mãos de Fields pareciam querer ocultar da sua vista. - Aconteceu
qualquer coisa, não foi?
Fields disse num tom sombrio.
- Eu gostava de saber como lidar com qualquer situação. Agora sinto-me
tão oxidado como uma agulha velha, Lowell. Bem, olhe para mim, faça-me
esse favor. Eu engordei tanto que os meus credores mais antigos
dificilmente me reconheceriam.
- Fields, por favor...
- Eu preciso que você seja mais forte do que eu, Lowell. Por Longfellow,
temos...
- Outro homicídio? Fields passou-lhe o jornal.
- Ainda não. O Lúcifer foi detido.
O «suadouro» do Comissariado Central da Polícia media um metro de
largura por dois de comprimento. A porta interior era de ferro. No exterior,
havia outra porta de carvalho maciço. Quando se fechava esta segunda
porta, a cela convertia-se numa masmorra, sem o mais ténue vestígio de
luz, nem a leve esperança de vir a tê-la. Um prisioneiro podia ser ali
mantido durante dias seguidos, até não mais suportar a escuridão e se
mostrar disposto a fazer tudo o que lhe fosse pedido.
Willard Burndy, o segundo maior arrombador de cofres de Boston, a seguir
a Langdon W. Peaslee, ouviu girar uma chave na porta de carvalho, e a
claridade ofuscante da luz de um candeeiro a gás deixou-o aturdido.
- Podes ter-me aqui durante dez anos e um dia, porco, mas juro-te que não
vou arcar com as culpas por crimes que não cometi!
- Basta, Burndy - interrompeu-o o guarda.
- Juro, p'la m'nha honra...
- Pela tua quê? - inquiriu o guarda, a rir.
- Pela minha honra de cavalheiro!
Willard Burndy foi conduzido, algemado, pelo vestíbulo. Os outros que
ocupavam as outras celas, e que observavam com olhos vigilantes,
conheciam Burndy de nome, mas não pessoalmente. Um sulista, que se
mudara para Nova Iorque, para fazer a sua colheita à custa da afluência que
houvera para o norte durante a guerra, Burndy emigrara para Boston
depois de uma longa temporada na prisão nova-Iorquina The Tombs. Aos
poucos, Burndy foi-se apercebendo que, nas fileiras do submundo, ganhara
reputação por deitar o olho às viúvas dos brâmanes abastados, um rótulo
de que nem sequer ele próprio se dera conta. Não tinha muito interesse em
ser conhecido como assaltante de velhinhas endinheiradas, porque nunca
se considerara um canalha. Burndy prestava a sua colaboração de bom
grado sempre que era oferecida uma recompensa por recordações de
família ou jóias roubadas, devolvendo uma parte dos objetos a um
detective imparcial em troca de algum do dinheiro prometido.
Agora, um agente volteava e empurrava Burndy até o introduzir num
compartimento, e uma vez aí, fê-lo sentar-se numa cadeira com um
encontrão. Era um homem de rosto enrubescido e cabelo desgrenhado,
com tantas rugas na cara, que parecia uma caricatura de Thomas Nast. -
Qual é a sua? - perguntou Burndy, arrastando as palavras, ao homem que se
sentava à sua frente. - Eu estendia-lhe a mão, mas, como vê, estou de
pulseiras. Espere... eu já li qualquer coisa sobre si. O primeiro polícia negro.
Um herói militar durante a guerra. Você estava na identificação quando
aquele vagabundo saltou da janela! - Burndy desatou a rir-se ao lembrar-se
do saltador que partira a cabeça.
- O procurador quer que você seja enforcado - disse Rey num tom calmo,
apagando o sorriso do rosto de Burndy. - A sorte está ditada. Se souber por
que razão aqui está, diga-me.
- A minha é arrombar caixas-fortes. Sou o melhor de Boston, é o que lhe
digo, melhor que esse canalha de Langdon Peaslee! Sempre! Mas eu não
matei ninguém, e também não vou implicar nesta confusão nenhum colega
meu! Mando vir Squire Howe de Nova Iorque, e logo se vê. Ajustaremos
contas no tribunal!
- Porque está você aqui, Burndy? - perguntou-lhe Rey.
- Aqueles farsantes dos detectives, andam pra aí a inventar provas a torto e
a direito!
Rey sabia que aquilo era provável.
- Duas testemunhas viram-no na noite em que a casa do Talbot foi
assaltada, na véspera do seu assassínio, a inspeccionar o domicílio do
reverendo. Elas diziam a verdade, não era? Foi por isso que o detective
Henshaw o escolheu.
Você tem pecados suficientes para arcar com a condenação.
Burndy estava prestes a refutar as últimas palavras, mas hesitou.
- Porque havia eu de confiar num tipo como você?
- Quero que veja uma coisa - disse Rey, observando-o cuidadosamente. -
Pode ajudá-lo, se é que me faço entender. - E passou-lhe um envelope
fechado por cima da mesa.
Apesar das algemas, Burndy conseguiu abrir o envelope com os dentes, e
desdobrar o papel, de boa qualidade, dobrado em três. Examinou-o durante
uns segundos antes de o rasgar ao meio violentamente, decepcionado, e de
o atirar para o chão com raiva e bater com a cabeça contra a parede e a
mesa, num movimento pendular.
vJliver Wendell Holmes observava como a notícia impressa se curvava nos
cantos e descia lentamente pelos lados antes de se fundir com as chamas.
...iz do Supremo Tribunal de Massachusetts foi encontrado nu, cheio de
insetos e a...
O médico atirou outro artigo, com o qual as chamas se inflamaram ainda
mais.
Ele pensou no acesso de cólera de Lowell, que não se mostrara justamente
equânime sobre a crença cega de Holmes no professor Webster, quinze
anos antes. Era certo que, gradualmente, Boston perdera a sua fé no
desditoso professor de Medicina, mas Holmes tinha as suas razões para não
a perder. Ele vira Webster no dia a seguir ao desaparecimento de George
Parkman e falara com ele acerca daquele mistério. Não havia o mais
pequeno sinal de duplicidade no rosto amistoso de Webster. E a história de
Webster, como mais tarde veio à luz do dia, era totalmente coerente com os
fatos: Parkman acorrera a cobrar a sua dívida pendente, Webster pagara-
lha, Parkman assinara o recibo e partira. Holmes levara a sua contribuição
para pagar aos advogados de Webster, juntando o dinheiro a cartas de
conforto dirigidas à senhora Webster. Holmes testemunhou e proclamou a
bondade de carácter de Webster e a absoluta impossibilidade do seu
envolvimento num crime semelhante. Ele também explicou ao júri que não
existia nenhum método que permitisse afirmar com toda a certeza que os
restos humanos encontrados nas assoalhadas de Webster pertencessem ao
doutor Parkman... podiam pertencer-lhe, sim, mas também podiam muito
bem não lhe pertencer.
Não é que Holmes não sentisse simpatia pelos Parkman. Afinal de contas,
George fora o maior patrono da Faculdade de Medicina,
financiara as suas instalações na North Grove Street, e até criara a cátedra
Parkman de Anatomia e Fisiologia, a mesma que o doutor Holmes ocupava.
Inclusivamente, este até pronunciara o elogio fúnebre de Parkman durante
a realização das cerimónias. Mas era bem possível que Parkman tivesse
enlouquecido, vagueando num estado de confusão mental. O homem podia
ainda estar vivo, e ali estavam eles dispostos a enforcar outro, baseando-se
nos indícios mais fantásticos! Não podia ter acontecido que o porteiro,
temendo perder o emprego depois do pobre Webster o ter surpreendido a
jogar, se tivesse munido de uns fragmentos de ossos, servindo-se da grande
variedade existente na Faculdade de Medicina, para parecer que estavam
escondidos?
Tal como Holmes, Webster fora criado num ambiente confortável antes de
ingressar na Universidade de Harvard. Os dois homens, dedicados à
medicina, nunca tinham tido uma amizade íntima. Contudo, a partir do dia
da detenção de Webster, quando o pobre homem tentou engolir veneno,
angustiado com a desgraça que se abatera sobre a sua família, não houve
mais ninguém a quem o Dr. Holmes se sentisse mais unido. Não podia ele,
com a mesma facilidade, ver-se envolvido em tão daninhas circunstâncias?
Com as suas estaturas baixas, patiíhas fartas e rostos bem escanhoados, os
dois professores eram fisicamente parecidos. Holmes tinha a certeza que
podia desempenhar um papel, modesto, mas digno de atenção, na
inevitável declaração de inocência do seu colega de claustro. Mas, depois,
acabaram por se encontrar junto ao patíbulo. Esse dia parecia muito
remoto, impossível, alterado, ao longo de meses de declarações e recursos.
A maioria da boa sociedade de Boston ficara em casa, com vergonha do seu
vizinho. Acorreram condutores de carroças, estivadores, operários fabris e
lavadeiras. E não dissimulavam o seu entusiasmo pela morte e humilhação
de um brâmane.
Um J. T. Fields, que suava copiosamente, deslizou através do anel formado
por esse público e aproximou-se de Holmes.
- Tenho o meu cocheiro à espera, Wendell - disse Fields. - Volte para casa
com Amélia, e sente-se na companhia dos seus filhos.
- Fields, não vê no que isto se transformou?
- Wendell - disse Fields, colocando as mãos nos ombros do seu autor. - A
prova.
A polícia tentou encerrar a área, mas não levara cordas suficientes. Cada
telhado e janela dos edifícios que se apertavam em volta do pátio do
cárcere, situado na Leverett Street, mostravam um trasbordamento
humano possuído por uma única ideia. Nesse instante, Holmes sentiu ao
mesmo tempo a paralisia e a urgência de fazer mais qualquer coisa do que
simplesmente observar. Então, dirigiu-se à multidão. Sim,
improvisaria um poema a proclamar a grande estupidez da cidade. Afinal,
não era Wendell Holmes o mais célebre anunciador de brindes de Boston?
Na sua mente, começaram a tomar forma uns versos, que exaltavam as
virtudes do Dr. Webster. Ao mesmo tempo, Holmes pôs-se em bicos de pés
para dar uma vista de olhos à calçada das charretes, imitando Fields, para
que fosse o primeiro a ver chegar o indulto ou George Parkman, a pretensa
vítima do assassino.
- Se Webster deve morrer hoje - disse Holmes ao seu editor -, não morrerá
sem honrarias. - Ele abriu caminho em direcção ao cadafalso, mas, ao
chegar diante da corda do carrasco, parou bruscamente e emitiu um
arquejo sufocado. Aquela era a primeira vez que via a corda aterradora,
desde a sua infância, quando Holmes fugira com John, o irmão mais novo,
para Gallows Hill, em Cambridge, no momento em que um condenado se
contorcia no seu sofrimento final. Holmes sempre acreditara que fora
aquela visão que fizera com que ele se tivesse tornado, simultaneamente,
médico e poeta.
Um murmúrio percorreu a multidão. Holmes cruzou o olhar com o de
Webster, que subia para o cadafalso, cambaleando, e com um guarda a
agarrá-lo com firmeza num braço.
Quando Holmes dava um passo atrás, uma das filhas de Webster apareceu à
sua frente, estreitando um envelope de encontro ao peito.
- Oh, Marianne! - exclamou Holmes, e abraçou o anjinho com força. - É do
governador?
Marianne Webster estendeu-lhe o envelope, libertando-se do aperto dos
braços dele quando o afrouxou.
- O meu pai quis que lhe fosse entregue isto, antes de partir, doutor Holmes.
Holmes virou-se de costas para o cadafalso. A Webster foi colocado um
capuz preto, e Holmes abriu o envelope.
Meu muito querido Wendell,
Não me atrevo sequer a tentar expressar-lhe a minha gratidão com meras
palavras por tudo aquilo que fez. Você acreditou em mim sem qualquer
sombra de dúvida a toldar-lhe o espírito, e eu contarei sempre com esse
sentimento para obter força. Você foi o único que se manteve fiel à minha
pessoa, desde que a polícia me retirou de casa, enquanto outros, um a um,
se foram afastando de mim. Imagine o que um homem sente quando os do
seu próprio meio, com quem compartilhou a mesma mesa e ao lado de
quem orou na capela, o olham horrorizados. Quando até os olhos das
minhas queridas filhas, involuntariamente, reflectem reservas mentais
sobre a honra do seu pobre pai.
No entanto, por tudo isto, considero, meu querido Holmes, que devo
confessar-lhe que o fiz. Eu matei Parkman, esquartejei-o e depois incinerei-
o no forno do meu laboratório. Compreenda-o. Fui filho único, muito
mimado, e nunca consegui manter o controlo estrito sobre as minhas
emoções, que devia ter aprendido bem cedo. E aqui está a consequência de
tudo isto! No meu caso, todos os procedimentos foram justos, como é justo
que deva morrer no cadafalso, de acordo com essa sentença. Toda a gente
está certa e eu estou errado, e esta manhã, enviei relatos completos e
verdadeiros sobre o assassínio para vários jornais, bem como para o
porteiro, que tão vergonhosamente acusei. Seria para mim um consolo, que
a entrega da minha vida por ter violado a lei me servisse de expiação, ainda
que apenas em parte. Rasgue este papel neste mesmo instante, sem fazer
uma segunda leitura. Você veio ver como vou partir em paz, uma paz que
não se encontra no que escrevo com uma mão trémula, porque vivi na
mentira.
Enquanto o bilhete escorregava das mãos de Holmes, a plataforma
metálica, que suportava o peso do homem encapuzado, cedeu, batendo no
patíbulo e provocando um estrondo. O que amargurava Holmes não era ter
deixado de acreditar na inocência de Webster, mas a convicção profunda de
que todos podiam ter sido culpados, se se tivessem visto nas mesmas
circunstâncias desesperadas. Como médico, Holmes nunca deixara de
considerar quão pessimamente concebido fora o género humano.
Além disso, não podia haver um delito que não fosse um pecado?
Amélia entrou na assoalhada, alisando o vestido. Ela chamou pelo marido.
- Wendell Holmes! Estou a falar contigo. Não consigo perceber o que se
passa contigo, ultimamente.
- Sabes as coisas que me meteram na cabeça em criança, Melia? -disse
Holmes, enquanto atirava para a lareira um maço de provas que conservara
das reuniões do Clube de Dante de Longfellow.
Guardava uma caixa com todos os documentos relacionados com o clube:
as provas de Longfellow, as suas próprias anotações, os lembretes que
Longfellow lhe enviara para que comparecesse às reuniões de quarta-feira.
Holmes pensou que um dia talvez escrevesse as memórias sobre aquelas
reuniões. Certa vez mencionara-o, de passagem, a Fields, que começou
imediatamente a fazer planos sobre quem podia escrever um discurso de
louvor à obra de Holmes. Uma vez editor, é-se sempre editor. Agora,
Holmes atirava outro maço para o lume.
- O nosso pessoal da copa, criado no nosso país, dizia-me que o nosso
telheiro estava cheio de demónios e diabos negros.
Outro rapaz ingénuo informou-me que, se eu escreve o meu nome com o
meu próprio sangue, o agente de Satanás, que deambulava por aí, senão o
próprio Mal, colocá-lo-ia no bolso, e, desse dia em diante, tornar-me-ia seu
lacaio. - Holmes emitiu um risinho amargo entre dentes. - Contudo, por
muito que eduques um homem longe das superstições, ele pensará sempre
no que a francesa dizia dos fantasmas: Je n'y crois pas, mais je les crains.
Não acredito neles, mas temo-os.
- Tu dizias que aqueles homens iam tatuados segundo as suas crenças
particulares, como os ilhéus dos mares do Sul.
- Eu disse isso, Melia? - perguntou-lhe Holmes, depois repetiu-o para si
próprio. - É uma frase muito gráfica, por isso, devo tê-la dito. Não é de todo
o tipo de frase que uma mulher inventasse.
- Wendell - Amélia firmou um pé no tapete, em frente do marido, que era
sensivelmente da sua estatura, quando retirava o chapéu e as botas -, se ao
menos dissesses o que te preocupa, eu podia ajudar-te. Conta-me, meu
querido Wendell.
Holmes sentiu-se incomodado e não lhe respondeu.
- Então, escreveste alguns versos novos? Estou à espera que mos leias à
noite, já sabes.
- Com tantos livros que temos nas prateleiras da nossa biblioteca -
respondeu-lhe Holmes -, com Donne, Keats em toda a sua plenitude, por
que esperas que eu faça alguma coisa, querida Melia?
Ela inclinou-se para a frente e sorriu.
- Agradam-me mais os poetas vivos do que mortos, Wendell. - Ela tomou as
mãos dele: - E, agora, vais contar-me as tuas inquietações? Por favor.
- Peço desculpa pela interrupção, minha senhora. - A criada ruiva dos
Holmes aparecera à porta a anunciar uma visita para o Dr. Holmes, que
anuiu hesitante. A criada retirou-se e fez entrar o recém-chegado.
- Ele passa o dia na sua velha guarita. Bem, agora está nas suas mãos,
senhor! - disse Amélia Holmes levantando as suas mãos e fechando a porta
do escritório atrás de si.
- Professor Lowell.
- Doutor Holmes. - James Russell Lowell retirou o chapéu. - Não posso ficar
muito tempo. Só quero agradecer-lhe toda a ajuda que nos prestou. Peço-
lhe desculpa, Holmes, por me ter aborrecido consigo. E por não o ter
ajudado a levantar-se quando caiu no chão. E por dizer o que disse-
- Não é necessário, não é necessário - respondeu o médico, atirando outro
maço de provas para o meio das chamas.
Lowell observou os papéis de Dante a debaterem-se e a agitarem-se contra
as chamas, lançando chispas à medida que reduziam os versos a cinzas.
280 - 281
Holmes esperava friamente que Lowell se pusesse a vociferar perante
aquele espectáculo, mas não aconteceu isso.
- Se eu sei alguma coisa, Wendell - disse Lowell, e inclinou a cabeça para a
pira -, é que foi a Comédia que me conduziu ao escasso conhecimento que
possuo. Dante foi o primeiro poeta que alguma vez pensou fazer um poema
totalmente alheio à sua própria invenção; pensou que não só podia
escrever a história de uma qualquer personagem heróica, mas também de
qualquer homem, e que o caminho para o Céu não estava fora do mundo,
mas passava através dele. Wendell, há uma coisa que eu sempre quis dizer,
desde que estamos a ajudar Longfellow. Holmes arqueou as suas
sobrancelhas emaranhadas.
- Quando o conheci, há muitos anos, talvez o meu primeiro pensamento
tenha sido o quanto você me lembrava Dante.
- Eu? - inquiriu Holmes, fingindo humildade. - Dante e eu? - Mas apercebeu-
se que Lowell estava muito sério.
- Sim, Wendell. Dante instruiu-se em todos os campos da ciência do seu
tempo, tendo sido um mestre de astronomia, filosofia, direito, teologia e
poesia. Alguns, como você sabe, chegaram a dizer que ele frequentou a
escola médica, e que, por isso, pôde pensar tanto no modo como o corpo
humano sofre. Tal como você, ele fez tudo bem. Demasiado bem, ao ponto
de preocupar as outras pessoas.
- Eu sempre julguei que pudesse ganhar um prémio, pelo menos de cinco
dólares, nas apostas do concurso inteletual da vida. - Holmes virou-se de
costas para a lareira e pousou algumas das provas de tradução na estante
da sua biblioteca, sentindo o peso da mensagem de Lowell. - Eu posso ser
preguiçoso, Jamey, indiferente ou tímido, mas não sou, de maneira
nenhuma, um desses homens... Só que acredito que, neste momento, não
podemos evitar nada.
- No início, o ruído vivo da garrafa a ser desarrolhada exerce um enorme
poder sobre a imaginação - disse Lowell, e riu com uma melancolia contida.
- Suponho que, por algumas horas abençoadas, com tudo isto me esquecia
que era professor e me sentia como se fosse algo real. Confesso que faço
bem, ainda que invocar que os céus venham a baixo é algo admirável até os
céus nos tomarem pela nossa palavra. Eu sei o que é duvidar, meu querido
amigo. Mas, se você renunciar a Dante, todos nós acabaremos por fazer o
mesmo.
- Se vocês soubessem simplesmente como se cravou na minha mente o que
restou do Phineas Jennison... Feito em bocados, despedaçado... As
consequências de termos fracassado nisso...
- Seguramente que foi a maior das calamidades, Wendell, e é motivo
suficiente para se assustar - disse Lowell, e encaminhou-se solenemente
para a porta do escritório.
- Bem, antes de mais, eu queria apresentar-Lhe as minhas desculpas; e
Fields, claro, insistiu para que eu o fizesse. O meu pensamento mais feliz é
que, apesar de todos os defeitos do meu temperamento, não perdi um
verdadeiro amigo. - Lowell parou junto à porta, e voltou-se. - E eu gosto da
sua poesia. Você sabe disso, meu caro Holmes.
- Sim? Bem, obrigado, mas talvez também haja algo demasiado inquietante
nela. Suponho que faz parte da minha natureza tentar arrebatar todos os
frutos do conhecimento e ficar com um bom bocado da parte boa... e, depois
disso, deitá-la aos porcos. Eu sou um pêndulo com um brevíssimo período
de oscilação. - O olhar fixo de Holmes encontrou os olhos grandes, e muito
abertos, do amigo. - Como é que você tem passado por estes dias, Lowell?
Como resposta, Lowell encolheu levemente os ombros. Holmes não lhe deu
tempo para responder.
- Não quero dizer-lhe para ser valente, porque os homens de ideias não se
vêem diminuídos pelas contrariedades de um dia ou de um ano.
- Todos giramos em torno de Deus, seguindo órbitas mais ou menos
amplas, Wendell, umas vezes, com uma metade de nós exposta à luz, e,
outras vezes, com a outra metade. Algumas pessoas parecem ter sempre
permanecido na sombra. Você é uma das poucas pessoas a quem eu
consigo abrir o meu coração... Bem - O poeta pigarreou asperamente e
baixou a voz. - Tenho de assistir a uma importante conferência em Castle
Craigie.
- Ah? E o que se passa com a detenção de Willard Burndy? - perguntou
Holmes com cautela e fingindo desinteresse, quando Lowell já se preparava
para sair.
- Enquanto estamos aqui a conversar, o agente Rey apressou-se a ir lá dar
uma vista de olhos. Você acha que é uma farsa?
- Sem dúvida! É um puro disparate! - declarou Holmes. - No entanto,
segundo os jornais, o advogado do Ministério Público fará os possíveis para
o mandar para a forca.
Lowell juntou as suas rebeldes ondas de cabelo para dentro da sua cartola.
- Então, temos de salvar mais um pecador.
Holmes permaneceu sentado a segurar a sua caixa de Dante muito tempo
depois de os passos de Lowell se desvanecerem pelas escadas. Ele
continuou a atirar provas para o lume, determinado a acabar com a penosa
tarefa, ainda que não pudesse deixar de ler as palavras de Dante, enquanto
lhe iam passando pelas mãos. No início, ele lia com indiferença, como quem
relê provas,
assinalando pormenores, mas sem se deixar levar pelas emoções. Depois,
leu-as à pressa e cobiçosamente, absorvendo passagens, enquanto se
enegreciam para deixar de existir. O seu sentido de descoberta evocou a
época em que, pela primeira vez, ouviu o professor Ticknor afirmar, com
aquela digna capacidade de predição, o impato que a viagem de Dante um
dia teria na América do Norte.
Os demónios de Malebranche aproximavam-se de Dante e Virgílio... Dante
recorda: «Assim vi os outrora temíveis infantes sair guardados de Caprona,
vendo-se entre tão grande número de inimigos.»
Dante recordava a batalha de Caprona contra os Pisanos, na qual ele
combatera. Holmes pensou em algo que Lowell omitira da sua lista de
talentos de Dante: Dante fora um soldado. Tal como você, ele fez tudo bem.
«E também ao contrário de mim», pensou Holmes. «Um soldado deve
afirmar a culpabilidade a cada passo, silenciosa e irreflectidamente.» Ele
questionava-se se o fato de Dante ver os amigos morrer junto a si, pela
alma de Florença ou por um qualquer estandarte guelfo, desprovido de
sentido, servira para fazer dele um melhor poeta. Wendell Júnior fora o
poeta da turma no início do seu percurso em Harvard - muitos diziam que
apenas pelo nome que partilhava com o pai -, mas agora Holmes
interrogava-se se, depois da guerra, Júnior ainda conseguia reconhecer a
poesia. No campo de batalha, Júnior vira algo que Dante não vira, e afastara
de si a poesia - e o poeta -, deixando-a apenas para o doutor Holmes.
Holmes folheou as provas e leu durante uma hora. Gostava, em particular,
do segundo canto do Inferno, onde Virgílio convence Dante a iniciar a sua
peregrinação, mas os receios de Dante pela sua segurança voltam a surgir.
O momento supremo da coragem: encarar o tormento da morte dos outros
e pensar com clareza no modo como cada um deles se sentiria. Mas Holmes
já queimara as provas de Longfellow correspondentes a esse canto. Por
isso, recorreu à sua edição italiana da Commedia e leu: «Lo giorno se
n'andava...» «O dia ia fugindo...» Dante atrasava a sua deliberação, enquanto
se dispunha a penetrar nos reinos infernais, pela primeira vez: «...e io sol
uno...» «...e em meu sozinho alento...» Quão só ele se deve ter sentido! Teve
de o repetir três vezes! «Io, sol, uno... a me apparecchiava a sostener la
guerra, si dei cammino e si de la pietate.» Holmes não conseguia lembrar-se
de como Longfellow traduzira este verso, por isso, inclinando-se sobre a
sua obra-prima, ele próprio o traduziu, ouvindo o comentário deliberativo
de Lowell, Greene, Fields e Longfellow com o zumbido de fundo da lareira a
encorajá-lo.
- «E em meu sozinho alento» - Holmes apercebeu-se que tinha de falar em
voz alta para traduzir... - «me aparelhava a sustentar a batalha...»
Não, a guerra..., «... a sustentar a guerra... que tal caminho e piedade atrai.»
Holmes levantou-se da sua cadeira de braços com um salto e correu pelas
escadas acima até ao terceiro andar.
- E em meu sozinho alento... - repetia ele, enquanto ia subindo.
W endell Júnior debatia a utilidade da metafísica com William James, John
Gray e Minny Temple, entre ponches de genebra e charutos. Foi ao ouvir
um dos discursos de James, cheio de evasivas, que chegou até Júnior o som,
clip-clop, inicialmente baixo, do seu pai a subir as escadas afanosamente.
Júnior encolheu-se. Nos últimos tempos, o pai parecia deveras preocupado
com algo que não com ele próprio; portanto, algo potencialmente grave.
James Lowell apenas rondara a Faculdade de Direito, provavelmente, em
boa parte, conforme pensara Júnior, por andar metido em qualquer coisa
que também mantinha o seu pai distraído. No início, Júnior imaginava que o
seu pai ordenara a Lowell que se afastasse dele, mas Júnior sabia que ele
não lhe faria caso. E tão-pouco o seu pai tinha um carácter suficientemente
firme para dar ordens a Lowell.
Júnior não devia ter dito nada ao seu pai sobre a sua amizade com Lowell.
Claro que ele guardara para si próprio os súbitos elogios que Lowell
amiúde fazia ao doutor Holmes, e que introduzia nas conversas sem vir a
propósito. «Ele não só deu o nome a The Atlantic, Júnior - dizia Lowell,
evocando o tempo em que o pai sugerira o nome de The Atlantic Monthly -,
mas também ao Autocrat.» O gosto paterno pelo baptismo não era
surpreendente; ele era perito em categorizar a superfície das coisas.
Quantas vezes Júnior se vira obrigado a ouvir, na presença de convidados, a
história de como o seu pai chamara anestesia à invenção daquele dentista?
Apesar de tudo, Júnior questionava-se por que razão o doutor Holmes não
pudera ter-lhe posto um nome melhor do que Wendell Júnior.
O doutor Holmes bateu à porta como uma formalidade, e, logo em seguida,
mostrou-se com um brilho estéril nos olhos.
- Pai. Estamos um pouco ocupados.
Júnior manteve uma expressão de desagrado diante das saudações
excessivamente respeitosas dos seus amigos. Holmes exclamou:
- Wendy, preciso de saber uma coisa, imediatamente! Preciso de saber se
percebes alguma coisa de larvas. - Ele falou tão depressa que a sua voz soou
como o zumbido de uma abelha.
Júnior expirou uma baforada do seu charuto. Será que ele nunca se
habituaria ao seu pai? Depois de reflectir sobre aquilo, Júnior desatou a rir
ruidosamente, e os seus amigos juntaram-se a ele.
- Disseste larvas, pai?
E se for o nosso Lúcifer que está sentado naquela cela a fazer-se de lorpa? -
perguntou Fields, ansiosamente.
- Ele não sabe italiano... vi-o nos seus olhos - garantiu Nicholas Rey. - E isso
enfureceu-o. - Eles estavam reunidos no escritório de Craigie House.
Greene, que auxiliara na tradução durante toda a tarde, voltara para casa
da filha em Boston para aí passar a noite.
A breve mensagem contida no bilhete que Rey passara a Willard Burndy «a
te convien tenere altro viaggio se vuo' campar d'esto loco selvaggio», podia
traduzir-se como «pois te convém fazer outra viagem, se fugir queres tal
lugar selvagem.» Estas eram as palavras que Virgílio dirigira a Dante, que
estava perdido e se via ameaçado por umas feras num obscuro lugar
selvagem.
- A mensagem era apenas uma última precaução. A sua história não
concorda com nada do que temos sobre o perfil do assassino - disse Lowell,
atirando o seu charuto pela janela de Longfellow. - Burndy não tem cultura.
E não encontrámos outras relações nas pesquisas que fizemos sobre
qualquer uma das vítimas.
- Os jornais apresentam o caso como se estivessem a abarrotar de provas -
disse Fields.
Rey anuiu.
- Eles têm testemunhas que viram Burndy a espreitar para a casa do
reverendo Talbot na noite anterior à sua morte, a noite em que o cofre do
Talbot com os mil dólares foi roubado. Estas testemunhas foram
entrevistadas por bons agentes nossos. Burndy não me quis dizer muito.
Mas isso encaixa nas práticas dos detectives. Eles deitam mão a um mero
indício circunstancial para fabular sobre o seu falso caso. Não tenho a
menor dúvida que Langdon Peaslee os tem bem agarrados. Retira de
circulação o seu principal rival em Boston, em matéria de caixas-fortes, e os
detectives ficam com uma parte substancial do dinheiro da recompensa.
Ele já tentou chegar a um acordo assim comigo quando as recompensas
foram anunciadas.
- Mas, e se estivermos a esquecer-nos de alguma coisa? - lamentou-se
Fields.
- Você acha que esse senhor Burndy podia ser responsável pelos
homicídios? - perguntou-lhe Longfellow.
Fields franziu os seus bonitos lábios e abanou a cabeça.
- Suponho que só pretendo umas respostas que nos permitam regressar
calmamente às nossas vidas.
O criado de Longfellow anunciou que estava à porta um certo senhor
Edward Sheldon, de Cambridge, que procurava o professor Lowell.
Lowell acorreu rapidamente ao vestíbulo principal e conduziu Sheldon
para a biblioteca de Longfellow.
Sheldon tinha o chapéu muito enterrado na cabeça.
- Peço-lhe desculpa por vir aqui incomodá-lo, Professor, mas o seu recado
parecia urgente, e, em Elmwood, disseram-me que podia encontrá-lo aqui.
Diga-me, está pronto para recomeçar as aulas sobre Dante? - perguntou ele,
sorrindo com ingenuidade.
- Mas eu enviei-lhe esse recado há quase uma semana! - exclamou Lowell.
- Ah, pois, sabe... só hoje é que eu o recebi. - E ficou a olhar para o chão.
- Não me diga! E faça favor de tirar o chapéu quando está em casa de um
cavalheiro, Sheldon! - Lowell arrancou-lhe o chapéu da cabeça com uma
palmada. Então, pôde ver que ele tinha um inchaço vermelho em volta de
um dos olhos, e o maxilar inchado.
Lowell arrependeu-se imediatamente.
- Mas, Sheldon. O que foi que lhe aconteceu?
- Uma tremenda tareia, senhor. Eu ia explicar-lhe que o meu pai me
mandou recuperar em casa de uns parentes, em Salem. Quem sabe também
como castigo, para reflectir bem sobre as minhas acções - disse Sheldon
com um sorriso reservado. - Foi por isso que não recebi o seu recado. -
Sheldon deu um passo para apanhar o chapéu, e a luz incidiu em cheio nele.
Então, percebeu o olhar de horror estampado no rosto de Lowell. - Oh, já
está muito melhor, Professor. Só o olho me tem doído ultimamente.
Lowell sentou-se.
- Conte-me como é que isso aconteceu, Sheldon. Sheldon baixou os olhos
para o chão.
- Não pude evitá-lo! O senhor deve saber que esse horrível sujeito, Simon
Camp, anda por aí a deambular. E, caso não saiba, eu conto-lhe. Ele
interceptou-me na rua. Disse-me que andava a fazer uma investigação, que
lhe fora pedida pela direcção da Universidade de Harvard, sobre se o seu
curso de Dante podia ter repercussões negativas no carácter dos
estudantes. Estive a pontos de lhe esmurrar a cara, sabe, por semelhante
insinuação.
- Foi Camp que lhe fez isso? - perguntou-lhe Lowell com um violento
tremor paternalista.
- Não, não, ele afastou-se, fugindo, como é próprio dos da sua laia. A coisa
aconteceu na manhã seguinte com Pliny Mead. Um traidor como nunca
conheci nenhum.'
- Porque diz isso?
- Ele contou encantado que se sentara com Camp e lhe contara os
«horrores» da melancolia que Dante experimentava. Estou preocupado,
professor Lowell, que qualquer indício de escândalo possa ser perigoso
para a sua aula. Está bem claro que a Corporação não cedeu na sua luta. Eu
disse a Mead que o melhor que tinha a fazer era falar com Camp e retratar-
se dos horríveis comentários que fizera, mas ele recusou-se e rogou-me
uma praga aos gritos, e, bem, amaldiçoou o seu nome, Professor. Eu fiquei
louco! Então, ali mesmo, no cemitério velho, tivemos uma briga.
Lowell sorriu, orgulhoso.
- Você começou uma briga com ele, senhor Sheldon?
- Comecei, senhor - afirmou Sheldon. Teve um arrepio e acariciou o maxilar
com a mão. - Mas foi ele que a terminou.
Depois de acompanhar Sheldon ao exterior com muitas promessas de que
começariam em breve as suas aulas sobre Dante, Lowell voltou
rapidamente para o escritório, mas não tardou a ouvir-se outro toque
rápido na porta.
- Maldito seja, Sheldon, já lhe disse que um dia destes nos encontramos na
aula! - exclamou Lowell, abrindo a porta de par em par.
Por causa da excitação, o doutor Holmes pusera-se em bicos dos pés.
- Holmes? - As gargalhadas de Lowell mostraram uma alegria tão
espontânea, que levaram Longfellow a acorrer ao vestíbulo. - Você está de
regresso ao clube, Wendell! Não imagina como temos sentido a sua
falta! - Lowell gritava aos outros que estavam no escritório. - Holmes
voltou!
- Não é só isso, meus amigos - disse Holmes, entrando. - Creio que sei onde
vamos encontrar o nosso assassino.

XIV




ma ideal messe de oficiais para as patentes militares mais elevadas

U do general Washington, e, em anos mais recentes, ' servira à


senhora Craigie de salão de banquetes. Agora, Wendell Holmes,
Longfellow, Lowell, Fields e Nicholas Rey estavam sentados à
mesa, bem polida, enquanto Holmes caminhava à sua volta e se explicava.
- Os meus pensamentos impuseram-se-me com grande rapidez. Limitem-se
a escutar as minhas razões antes de se mostrarem de acordo ou de
discordarem, precipitadamente - disse ele, dirigindo-se em particular a
Lowell, e todos, excepto o próprio Lowell, entenderam. - Porque creio que
Dante tem estado todo o tempo a dizer-nos a verdade. Ele descreve os seus
sentimentos, à medida que se dispõe a dar os primeiros passos no Inferno,
trémulo e inseguro. «E io sol.» etc. Meu caro Longfellow, como é que você
traduziu isto?
- «E em meu sozinho alento/ me aparelhava a sustentar a guerra/ que tal
caminho e piedade atrai/e há-de dizer a mente que não erra.»
- Sim! - exclamou Holmes orgulhoso, lembrando-se da sua própria tradução
ser muito semelhante àquela. Mas não era o momento de se distrair com os
seus talentos, apesar de não deixar de perguntar a Longfellow o que achava
da sua versão. - Há uma guerra, uma guerra, em duas frentes para o poeta.
Em primeiro lugar, as dificuldades da descida física ao Inferno, e também o
desafio ao poeta para a gravar na sua memória e para transformar a
experiência em poesia. As imagens do mundo de Dante sucedem-se
livremente no meu cérebro, sem qualquer obstáculo.
Nicholas Rey ouviu com atenção e abriu o seu caderno de apontamentos.
- Dante não era estranho às implicações físicas da guerra, meu caro agente -
disse Lowell. - Aos vinte e cinco anos, a mesma idade de muitos dos nossos
rapazes de azul, ele combateu em Campaldino com os Guelfos, e, nesse
mesmo ano, em Caprona. Dante projeta essas experiências no Inferno, para
descrever os seus horríveis tormentos. Por fim, Dante foi desterrado,
não pelos seus rivais gibelinos, mas por causa de uma cisão interna dos
Guelfos.
- As subsequentes guerras civis de Florença inspiram a sua visão do Inferno
e a sua busca de redenção - prosseguiu Holmes. - Pensem também como
Lúcifer pega nas armas contra Deus, e como, na sua queda dos céus, o
outrora anjo mais brilhante se converte na fonte de todo o
mal, a partir da fraqueza de Adão. A queda física de Lúcifer na terra, depois
de ter sido expulso do alto, é o que abre um grande abismo no solo, a cave
da terra, que Dante descobre como sendo o Inferno. Deste modo, a guerra
criou Satanás. A guerra criou o Inferno. A escolha que Dante faz das
palavras nunca é fortuita. Eu sugeriria que os acontecimentos nas nossas
próprias circunstâncias apontam, sobretudo, para uma única hipótese: O
nosso assassino é um veterano de guerra.
- Um soldado! O juiz do Supremo Tribunal do nosso estado, um eminente
pregador unitarista, um comerciante abastado - disse Lowell.
- Um soldado rebelde derrotado que se vinga do mais representativo do
nosso sistema ianque! Pois, claro! Que tolos que temos sido!
- Dante não prestava lealdade maquinalmente a uma ou a outra facção
política - observou Longfellow. - Talvez ele mostre maior indignação contra
os que partilhavam os seus pontos de vista, mas não cumpriram as suas
obrigações, os traidores... Podia ser o caso de um veterano da União.
Recordo que cada homicídio demonstrou uma enorme e natural
familiaridade do nosso Lúcifer com o traçado de Boston.
- Sim - admitiu Holmes com impaciência. - É justamente por isso que penso

num simples soldado, senão mesmo num Billy Yank(1). Pensem nos
nossos soldados, que ainda usam os seus uniformes do exército nas ruas e
nos mercados. Muitas vezes, senti-me confuso ao ver um desses grandes
espécimes. Voltou para casa, mas continua ainda a usar as roupas de
soldado? Para que guerra o terão mandado agora?
- Mas isso encaixa com o que sabemos dos homicídios, Wendell? - quis
saber Fields.
- Creio que encaixa muitíssimo bem. Comecemos pelo homicídio de
Jennison. Sob esta nova luz, ocorreu-me pensar concretamente na arma que
ele pode ter usado.
Rey anuiu.
- Um sabre militar.
- Exato! - exclamou Holmes. - Precisamente o tipo de lâmina condizente
com os ferimentos. Ora bem, quem é que foi instruído no seu manuseio?

w
*1. Nome dado comummente ao soldado da União durante a guerra civil
americana (1862-1865). (N. da T.)

w
Um soldado. E o Fort Warren, a escolha do cenário para esse crime... Um
soldado que ali tivesse feito a instrução ou que ali estivesse por fazer parte
da guarnição conhecê-lo-ia bastante bem! Ainda há mais: as larvas mortais
de hominivorax, que se banquetearam à custa do juiz Healey... provenientes
de algum lugar fora de Massachusetts, de um sítio quente e pantanoso,
segundo insiste o professor Agassiz. Talvez tivessem sido trazidas por um
soldado, como recordação dos pântanos mais profundos do Sul. Wendell
Júnior diz que moscas e larvas eram uma presença constante nos campos
de batalha e entre os milhares de feridos ali abandonados à sua sorte
durante um dia ou uma noite.
- Umas vezes, as larvas não afetavam os feridos - disse Rey. -E, outras vezes,
pareciam destruir um homem, deixando os cirurgiões perplexos e
impotentes.
- Tratava-se de hominivorax, embora os cirurgiões militares não o
conseguissem diferenciar de uma família de escaravelhos. Alguém
familiarizado com os seus efeitos sobre os feridos, trouxe-as do Sul e usou-
as em Healey - prosseguiu Holmes. - Sempre nos maravilhámos com a
enorme força física de Lúcifer, capaz de transportar o corpulento juiz
Healey até à beira do rio. Mas, quantos companheiros teve um soldado de
carregar nos seus braços, em plena batalha, sem pensar duas vezes!
Também fomos testemunhas da facilidade com que Lúcifer dominou o
reverendo Talbot, e como, com igual aparente facilidade, fez em pedaços o
robusto Jennison.
- Você deu com o nosso «Abre-te, sésamo», Holmes? - exclamou Lowell!
Holmes prosseguiu.
- Todos os homicídios foram atos cometidos por uma pessoa familiarizada
com os truques para sitiar e matar. E com as feridas e o sofrimento no
campo de batalha.
- Mas por que razão um rapaz do Norte converteria em alvo a sua própria
gente? Porque havia ele de converter Boston no seu objectivo? -perguntou
Fields, sentindo que havia necessidade de alguém expressar as dúvidas. -
Nós fomos os vencedores. E os vencedores do lado justo.
- Esta guerra foi diferente de qualquer outra, desde a Revolução,
relativamente aos sentimentos confusos - opinou Nicholas Rey.
- Não era a batalha do nosso país contra os índios ou os Mexicanos -
acrescentou Longfellow -, isso foram pouco mais do que umas conquistas.
Os soldados que se preocupavam em pensar nas razões por que lutavam
estavam imbuídos da noção de honra da União, da liberdade de uma raça
escravizada, da restauração da ordem devida ao universo-Contudo, o que
fazem os soldados quando regressam a casa? Os agiotas,
que outrora vendiam espingardas e uniformes de má qualidade, agora
circulam em berlinas pelas nossas ruas e prosperam em mansões de
Beacon Hill com portas de carvalho.
- Dante - disse Lowell -, que foi expulso de sua casa, povoou o Inferno com
gente da sua própria cidade, até mesmo da sua própria família. Deixámos
muitos soldados desamparados, enquanto agitávamos poemas que
cantavam a moral e os uniformes manchados de sangue. Eles são
desterrados das suas vidas anteriores... tal como Dante; convertem-se em
facções dentro de si próprios. E pensem quão rapidamente começaram
estes assassínios, quase logo a seguir ao final da guerra. Tinham passado
apenas uns meses! Sim, parece que as coisas se encaixam, meus senhores. A
guerra perseguia uma abstracção moral, a liberdade, mas os soldados
bateram-se nas suas batalhas por algo muito concreto; campos e frentes,
organizados em regimentos, companhias e batalhões. Os verdadeiros
movimentos na poesia de Dante têm qualquer coisa de veloz, de decisivo,
quase de militar na sua natureza. - Ele levantou-se e abraçou Holmes. - Esta
visão, meu querido Wendell, é celestial.
Propagou-se pela sala um sentimento colectivo de realização, e todos
aguardaram a anuência de Longfellow, que chegou sob a forma de um
sorriso tranquilo.
- Três vivas a Holmes! - exclamou Lowell.
- Porque não me dão três vezes três? - perguntou Holmes, adoptando uma
pose caprichosa. - Eu aguento!
Augustus Manning colocou-se à frente da mesa do seu secretário a
tamborilar com os dedos na esquina.
- No entanto, esse Simon Camp não respondeu ao meu pedido para uma
entrevista.
O secretário de Manning negou com a cabeça.
- Não, senhor. E no Hotel Marlboro dizem que ele já lá não está hospedado.
Quando partiu não deixou nenhuma direcção.
Manning estava lívido. Ele não confiara inteiramente no detective da
Pinkerton, mas também não pensara que ele fosse simplesmente um
vigarista.
- Você não acha estranho que, primeiro, se apresente um oficial da polícia a
fazer perguntas sobre as aulas de Lowell, e depois o homem da Pinkerton, a
quem eu paguei para averiguar mais sobre Dante, deixe de responder às
minhas chamadas?
O secretário não respondeu, mas depois, ao ver que a sua resposta era
aguardada, anuiu, desejoso de agradar.
Manning virou-se e olhou pela janela, donde se via o edifício principal de
Harvard.
- Para mim, Lowell teve alguma coisa a ver com tudo isto. Repita-me
novamente, senhor Cripps. Quem está matriculado no curso sobre Dante?
Edward Sheldon e... Pliny Mead, não é?
O secretário encontrou a resposta num monte de papéis.
- Edward Sheldon e Pliny Mead, exatamente.
- Pliny Mead. Um bom aluno - disse Manning, acariciando a sua barba rija.
- Bem, era, senhor, mas nas últimas classificações baixou muito. Manning
voltou-se para ele muito interessado.
- Sim, ele desceu uns vinte lugares na turma - explicou o secretário,
encontrando a documentação e comprovando orgulhosamente os fatos. -
Ah, sim, desceu de uma forma abrupta, doutor Manning! Principalmente,
segundo parece, pela classificação do professor Lowell a francês,
correspondente ao último período académico.
Manning pegou nos papéis do seu secretário e leu-os.
- Que vergonha para o nosso senhor Mead - disse Manning, sorrindo para si
próprio. - Uma vergonha terrível, terrível.
A noite caía sobre Boston, quando J. T. Fields acorreu ao escritório de
advogados de John Codman Ropes, um advogado corcunda, que convertera
a guerra numa dedicação profissional, depois de o irmão ter perdido a vida
no campo de batalha. Dizia-se que ele sabia mais sobre combates do que os
próprios generais que combatiam nelas. Como convinha a um perito
genuíno, ele respondeu sem ostentação às perguntas de Fields. Ropes
possuía uma lista com muitos lugares de auxílio a soldados - organizações
de caridade, fundadas, muitas delas, em igrejas, outras em edifícios
abandonados ou em armazéns, que alimentavam e vestiam veteranos
pobres ou que se esforçavam por se reintegrar na vida civil. Se se
procurasse soldados com problemas, esses locais seriam o sítio indicado
onde se devia acorrer.
- Não há nada semelhante a um diretório com os seus nomes, claro, e eu
diria que, a essas pobres almas, só as podemos identificar se elas quiserem,
senhor Fields - explicou Ropes no final da reunião.
Fields subiu a Tremont Street com um passo vigoroso, em direcção à
Corner. Há semanas que ele dedicava apenas uma fracção do seu tempo
habitual aos negócios, e preocupava-o que o seu navio encalhasse se ele
permanecesse ausente do leme por muito mais tempo.
- Senhor Fields.
- Quem está aí? - Fields parou e voltou atrás até uma azinhaga. -O senhor
está a falar comigo?
Ele não conseguia ver o seu interlocutor por causa da luz ténue. Fields
avançou devagar por entre os edifícios, penetrando no meio de um intenso
cheiro a fossa.
- Exatamente, senhor Fields. - O homem, de elevada estatura, saiu da
penumbra e retirou o chapéu da cabeça com a mão enluvada. Simon Camp,
o detective da Pinkerton, dirigiu-lhe um sorriso. - Desta vez o senhor não
tem o seu amigo professor para me apontar a espingarda, pois não?
- Camp! Não me incomode. Paguei-lhe mais do que devia para me deixar em
paz... Agora, desande.
- O senhor pagou-me, sim. Para lhe dizer a verdade, eu peguei neste caso
com enfado, uma mosca no meu chá, uma tolice. Mas o senhor e o seu
amigo puseram-me a pensar. Porque haviam uns janotas como os senhores
de ficar tão exaltados ao ponto de o senhor me dar dinheiro para que eu
não me metesse no cursito de literatura do professor Lowell? E o que
levara o professor Lowell a interrogar-me como se eu tivesse disparado
sobre Lincoln?
- Receio que um homem como o senhor nunca entenderia o que os homens
de letras apreciam - disse Fields, nervosamente. - Este é um assunto nosso.
- Ah, mas eu acho que já o entendo muito bem. Agora, compreendo.
Lembrei-me de uma coisa acerca dessa formiguita do doutor Manning. Ele
disse a um polícia que o visitou para lhe perguntar sobre o curso de Dante,
ministrado pelo professor Lowell. O velho estava frenético com isso. Então,
comecei a pensar: O que anda a polícia de Boston a fazer atarefada,
ultimamente? Bem, tem a ver com esse assuntozinho dos homicídios. Fields
tentou não demonstrar o pânico que sentia.
- Tenho de me despachar para um compromisso, senhor Camp. Camp
sorriu de modo beatífico.
- Então, pensei nesse rapaz, Pliny Mead, que cuspiu tudo quanto sabia
sobre os bárbaros e horripilantes castigos contra a humanidade que estão
nesse poema de Dante. Comecei a juntar todas as peças. Visitei novamente
o senhor Mead e fiz-lhe umas perguntas mais concretas, senhor Fields -
disse ele, inclinando-se para diante com complacência. - Eu conheço o seu
segredo.
- São disparates sem sentido. Não faço a mínima ideia do que você está a
dizer, Camp! - exclamou Fields.
- Eu conheço o segredo do Clube de Dante, Fields. Eu sei a verdade acerca
desses homicídios, e foi por isso que me pagou para que esqueCesse o
assunto.
- Isso é uma calúnia imoderada e malévola! - disse Fields, começando a
andar para sair da azinhaga.
- Então, irei à polícia - respondeu Camp, friamente. - E, em seguida, aos
jornais. E, de caminho, também volto a ir falar com o doutor Manning, de
Harvard, que anda aflito à minha procura. E veremos o que fazem todos
eles com os disparates sem sentido.
Fields virou-se e fitou Camp com um olhar duro.
- Se o senhor sabe o que diz saber, então o que o faz ter a certeza que não
fomos nós os responsáveis por essas mortes, e não acabamos por matá-lo
também, Camp?
Camp sorriu.
- Não seja vaidoso, Fields. Vocês são homens de letras, e é isso que
continuarão a ser até que mude a ordem natural do mundo.
Fields parou e engoliu em seco. Olhou em volta para ter a certeza que não
havia testemunhas por perto.
- O que o faria deixar-nos em paz, Camp?
- Para começar, três mil dólares... exatamente dentro de quinze dias - disse
Camp.
- Nunca!
- As verdadeiras recompensas oferecidas a troco de informação são muito
superiores, senhor Fields. Quem sabe se Burndy não tem nada a ver com
tudo isto. Eu não sei quem matou aqueles homens, nem quero saber. Mas
um jurado considerá-los-ia culpados quando soubesse que o senhor já me
pagou para que me afastasse do assunto, quando lhe fui fazer umas
perguntas sobre Dante... e que me ameaçaram com uma arma de fogo!
Fields percebeu, de repente, que Camp estava a fazer aquilo para se vingar
da sua própria cobardia diante da espingarda de Lowell.
- Você é um vil e mesquinho inseto - disse Fields sem conseguir conter-se.
Camp não pareceu preocupado com aquilo.
- Mas um inseto digno de confiança, já que você contou com ele para o
nosso acordo. Até os insetos têm dívidas para saldar, senhor Fields.
Fields combinou um encontro com Camp no mesmo sítio daí a duas
semanas.
Ele contou o sucedido aos amigos. Depois do choque inicial, os membros do
Clube de Dante concluíram que não tinham meios para evitar que Camp
levasse os seus planos por diante.
- De que vale isso? - perguntou Holmes. - Você já lhe deu dez moedas de
ouro, e isso não serviu para nada. Ele voltará mais tarde, com a mão
estendida, a pedir mais.
- O que Fields lhe deu foi um aperitivo - comentou Lowell. Eles não podiam
confiar que qualquer quantia em dinheiro assegurasse o seu segredo. Além
disso, Longfellow não queria ouvir falar em subornos para proteger Dante
ou a si próprios. Dante podia ter pago o fim do seu desterro e recusou-o,
numa carta que depois de passados todos aqueles séculos conservava a
paixão com que fora escrita. Prometeram esquecer-se de Camp. Naquela
noite, tinham de continuar vigorosamente a seguir a pista militar do caso.
Nessa noite, fizeram um esforço na revista dos arquivos, provenientes da
repartição das pensões do exército, que Rey levara emprestados, e
visitaram vários locais de assistência aos soldados. Fields só voltou para
casa perto da uma da madrugada, para grande exasperação de Annie Fields.
Ao entrar no vestíbulo principal, reparou que as flores que enviava para
casa todos os dias estavam amontoadas em cima da mesa, junto à entrada,
notoriamente fora de um vaso. Pegou no ramo mais fresco e foi ao encontro
de Annie na sala de recepções. Ela estava sentada no sofá de veludo azul a
escrever no seu Diário de acontecimentos literários e observações sobre
pessoas de interesse.
- Sinceramente, seria possível eu ver-te ainda menos, querido? - Ela não
levantou os olhos, e a sua bonita boca fez um trejeito. O seu cabelo cor de
jacinto cobria-lhe as orelhas.
- Prometo-te que as coisas vão melhorar. Este Verão... Bem, esforçar-me-ei
o mínimo no trabalho e vamos todos os dias a Manchester. O Osgood está
quase em condições para se tornar meu sócio. Nesse dia, comemoramos!
Ela voltou o rosto e fitou o tapete cinzento.
- Eu conheço as tuas obrigações. Mas já gasto as minhas energias no
governo da casa, sem sequer passar um instante contigo, como
recompensa. Apenas dedico uma hora ao estudo ou à leitura, excepto
quando estou demasiado cansada. Catherine está novamente doente, e, por
isso, a lavadeira teve de ir dormir para a sua cama, no quarto da criada do
andar de cima...
- Agora já estou em casa, meu amor - disse ele.
- Não, não estás. - Ela agarrou no casaco e no chapéu dele, que a criada do
andar térreo segurava, e devolveu-lhos.
- Querida? - O rosto de Fields entristeceu-se. Ela alisou o roupão e começou
a subir as escadas.
- Um mensageiro da Corner veio buscar-te com a máxima urgência há umas
horas.
- A esta hora de bruxas?
- Ele disse que devias lá ir agora ou temia que a polícia lá chegasse
Primeiro.
Fields quis seguir Annie pelas escadas acima, mas apressou-se a ir aos seus
escritórios na Tremont Street, onde encontrou o seu chefe administrativo, J.
R. Osgood, no aposento das traseiras. Cecilia Emory, a recepcionista do
vestíbulo, ocupava uma confortável cadeira de braços, soluçando e
escondendo o rosto. Dan Teal, o marçano do turno da noite, estava sentado
tranquilamente, pressionando um lenço contra o lábio ensanguentado.
- O que se passa? Então, o que aconteceu a Miss Emory? - perguntou Fields.
Osgood afastou Fields do alcance da rapariga, tomada pela histeria.
- Foi o Samuel Ticknor. - Osgood fez uma pausa para escolher as palavras. -
Ticknor estava a beijar Miss Emory atrás do balcão, fora do horário de
trabalho. Ela resistiu-lhe, gritou-lhe para que parasse e o senhor Teal
interveio. Receio que Teal tenha tido que dominar fisicamente o senhor
Ticknor.
Fields puxou por uma cadeira e animou amavelmente Cecilia Emory.
- Pode falar à vontade, minha querida - assegurou-lhe ele. Miss Emory
esforçou-se por conter o pranto.
- Desculpe, senhor Fields. Eu preciso deste emprego, e ele disse que se eu
não fizesse o que me pedia... Bem, ele é filho do William Ticknor, e diz-se
que, em breve, o senhor deve nomeá-lo seu sócio júnior, por causa do seu
nome... - Ela tapou a boca com uma mão, como se quisesse não ter
pronunciado aquelas horríveis palavras.
- Você... resistiu-lhe? - perguntou-lhe Fields com delicadeza. Ela anuiu.
- Ele é um homem forte. Graças a Deus..., o senhor Teal estava ali.
- Há quanto tempo é que isso com o senhor Ticknor dura, Miss Emory? -
perguntou-lhe Fields.
Cecilia respondeu entre soluços.
- Há três meses. - Quase desde que ela fora contratada. - Mas tenho Deus
por testemunha, em como nunca quis fazê-lo, senhor Fields! O senhor tem
de acreditar em mim!
Fields deu-lhe umas palmadinhas na mão e falou-lhe num tom paternal.
- Minha querida Miss Emory, ouça-me bem. Dado que é órfã, passarei por
cima disto e deixo-a conservar o seu lugar.
Ela anuiu activamente e lançou os braços em volta do pescoço de Fields.
Fields pôs-se de pé.
- Onde está ele? - perguntou, furioso, a Osgood. Aquilo era uma falta de
lealdade da pior espécie.
- Pusemo-lo no compartimento ao lado, à sua espera, senhor Fields. Devo
dizer-lhe que ele negou a versão dela da história.
- Se conheço alguma coisa da natureza humana, esta rapariga está
completamente inocente, Osgood. Senhor Teal - chamou Fields, virando-se
para o marçano. - Você testemunhou tudo o que Miss Emory contou?
Teal respondeu, falando muito devagar, com a boca a mover-se para cima e
para baixo como era habitual nele.
- Eu preparava-me para sair, senhor. Vi Miss Emory a debater-se e a pedir
ao senhor Ticknor para que a deixasse. Só quando o esmurrei é que ele a
largou.
- Você é um bom rapaz, Teal - disse Fields. - Não me esquecerei da sua
ajuda.
Teal ficou sem saber o que havia de responder.
- Senhor, tenho de estar no meu outro trabalho logo pela manhã. Durante o
dia, sou guarda na universidade.
- Ah! - exclamou Fields.
- Este emprego é tudo para mim - acrescentou Teal, rapidamente. -Se
precisar de mais alguma coisa minha, senhor, faça o favor de me dizer.
- Antes de se ir embora, quero que escreva tudo o que viu e fez aqui, senhor
Teal. No caso de ser necessária a intervenção da polícia, necessitamos de
uma declaração - disse Fields, e fez um gesto a Osgood para que fornecesse
a Teal uma folha de papel e uma caneta. - E quando ela estiver mais calma,
faça-a escrever também a sua versão da história -encarregou Fields o seu
principal empregado. Teal lutou para escrever algumas letras. Fields
percebeu que ele era quase analfabeto, e pensou como devia ser estranho
trabalhar no meio de livros, noites inteiras, sem saber algo tão básico como
ler e escrever. - Senhor Teal - disse ele -, dite a sua versão ao senhor
Osgood, porque isso vai ser oficial.
Teal acedeu agradecido, e devolveu o papel.
Fields demorou quase cinco horas de interrogatório a Samuel Ticknor para
lhe arrancar a verdade. Fields chegou a inquietar-se com o aspeto do
abatido Ticknor, com o rosto golpeado dos murros do marçano. De fato, o
seu nariz parecia descentrado. As respostas de Ticknor alternavam entre a
vanidade e a ligeireza. Mas acabou por admitir o seu adultério com Cecília
Emory, revelando ainda que se envolvera com outra secretária da Corner.
- Você vai abandonar imediatamente a empresa Ticknor e Fields, e a partir
deste dia nunca mais cá volta! - disse Fields.
- Ah! Esta empresa foi fundada pelo meu pai! Ele acolheu-o em Sua casa
quando você era pouco mais do que um mendigo! Sem ele, você não teria
hoje uma mansão nem uma mulher como Annie Fields! Você terá sempre o
meu nome acima do seu, senhor Fields!
- Você arruinou a vida de duas mulheres, Samuel! - disse Fields. -Para não
falar na destruição da felicidade da sua esposa e da sua pobre mãe. Para o
seu pai isto teria sido uma afronta ainda maior do que para mim!
Samuel Ticknor estava quase a chorar. Ao sair, gritou.
- Senhor Fields, o senhor vai voltar a ouvir falar no meu nome, juro-o por
Deus! Se me tivesse simplesmente agarrado pela mão e introduzido no seu
círculo social... - ele deteve-se uns instantes, antes de acrescentar: - Sempre
fui considerado um jovem inteligente em sociedade!
Decorreu uma semana sem desenvolvimentos; uma semana sem que se
descobrisse nenhum soldado, que também pudesse ser um erudito
dantista. Oscar Houghton enviou uma mensagem a Fields depois de a
investigação deste confirmar que não faltava nenhuma prova. As
esperanças estavam a desvanecer-se. Nicholas Rey advertiu que estava a
ser vigiado mais de perto no Comissariado, mas fizera uma nova tentativa
com Willard Burndy. O processo causara um considerável desgaste no
ladrão de caixas-fortes. Quando não se mexia nem falava, parecia
desprovido de vida.
- Você não consegue sair desta sem ajuda - disse-lhe Rey. - Eu sei que você
não é culpado, mas também sei que o viram nas imediações da casa do
Talbot, no dia em que o cofre foi roubado. Pode dizer-me porquê, ou terá de
subir a escadaria do patíbulo.
Burndy estudou Rey, e depois assentiu com desânimo.
- Abri o cofre do Talbot. Mas, na verdade, não. Não vai acreditar. Não... Eu
próprio não acredito! Olhe, um tipo disse-me que me dava duzentos se lhe
ensinasse a rebentar um determinado cofre. Pensei que seria um trabalho
de nada... e sem que eu corresse o risco de ser apanhado! Palavra de
cavalheiro, em como não fazia a mínima ideia que a casa pertencia a um
clérigo! Eu não o assaltei! E, se o tivesse feito, não teria devolvido o
dinheiro!
- Porque é que você foi a casa do Talbot?
- Para apalpar o terreno. O tipo parecia saber que o Talbot não estava em
casa, por isso, entrei só para ver a disposição da casa. Entrei só para ver
como era o cofre. - Burndy suplicou compreensão com um riso estúpido. -
Não causei mal nenhum com isso, pois não? Era um cofre simples, e só levei
cinco minutos a explicar-lhe como devia arrombá-lo. Fiz-lhe um desenho
num guardanapo numa taberna. Para que saiba, o tipo tinha uma ferida na
cabeça. Ele disse-me que só queria mil dólares..., que não levava nem mais
um centavo. Já imaginou uma coisa assim?
Ouça, você não pode dizer que eu roubei o pregador, senão de certeza que
sou enforcado! O que quer que me tenha pago para rebentar o cofre, é ele o
louco... o que matou o Talbot, o Healey e o Phineas Jennison!
- Então, diga-me quem lhe pagou - concluiu Rey, calmamente -, ou é mesmo
enforcado, senhor Burndy.
- Era de noite, e eu tinha estado na taberna Stackpole, e estava um
bocadinho tocado. Agora, parece-me que tudo aconteceu muito depressa,
como se o tivesse sonhado, e a verdade só se me apresentou depois. De
fato, eu não consigo dizer como era a cara dele, ou, pelo menos, não me
lembro de nada.
- O senhor não viu nada ou não se lembra, senhor Burndy? Burndy
mordiscou o lábio, e disse com relutância.
- Há uma coisa. Ele era um dos seus. Rey aguardou um instante.
- Um negro?
Os olhos rosados de Burndy chisparam, e pareceu estar prestes a ter um
ataque.
- Não! Um Billy Yank. Um veterano! - Ele tentou recompor-se. - Um soldado
com uniforme de gala, como se estivesse em Gettysburg a fazer ondular a
bandeira!
Em Boston, os lugares de auxílio aos soldados eram geridos localmente, de
forma extra-oficial e sem mais publicidade além da palavra passada boca-a-
boca entre os veteranos. A maioria daqueles lugares armazenava cestos de
comida duas ou três vezes por semana para serem distribuídos pelos
soldados. Seis meses depois do final da guerra, a Câmara Municipal
manifestava cada vez menos vontade de continuar a financiar aqueles
lugares. Os melhores, em geral vinculados a uma igreja, propunham-se a
ambiciosa tarefa de doutrinar os antigos soldados. Além dos alimentos e da
roupa, eram-lhes oferecidos sermões e conversas.
Holmes e Lowell cobriram o quadrante sul da cidade. Eles tinham
contratado Pike, o cocheiro. Enquanto esperava em frente às instalações do
auxílio aos soldados, Pike pegava num bocado de uma cenoura, ofereCIa-o a
uma das suas velhas éguas, e depois trincava ele próprio outro bocado.
Entretinha-se a calcular quantos bocados no total, entre dentadas equídeas
e humanas, seria preciso trincar para consumir uma cenoura de tamanho
médio. O tédio não compensava o pagamento da tarifa. Além disso, quando
Pike perguntava por que razão iam de um lugar daqueles a outro, o
cocheiro - que desenvolvera uma astúcia própria de quem vive entre os
cavalos - sentia-se incomodado diante das respostas falsas.
Assim, Holmes e Lowell alugaram uma charrete de um único cavalo, em que
este e o respectivo cocheiro adormeciam sempre que a charrete fazia uma
paragem.
O último lugar para acolhimento dos soldados a receber a visita deles
parecia ser um dos mais bem organizados. Estava instalado numa igreja
unitarista vazia, que fora pervertida durante as longas batalhas com os
congregacionalistas. Naquele local em particular, proporcionavam aos
soldados locais uma mesa para se sentarem e uma refeição quente à ceia,
pelo menos, quatro noites por semana. A ceia terminara pouco antes da
chegada de Lowell e Holmes, e os soldados dirigiam-se para a igreja
contígua.
- Está apinhada - comentou Lowell, espreitando para a capela, cujos bancos
estavam repletos de uniformes azuis. - Vamos sentar-nos. Pelo menos,
descansamos os pés.
- Palavra de honra, Jamey, não vejo como é que isto nos pode ajudar mais.
Talvez devêssemos passar ao próximo da lista.
- Este era o seguinte. Segundo a lista de Ropes, o outro só está aberto às
quartas-feiras e aos domingos.
Holmes observou como um dos soldados, com um coto no lugar da perna,
era empurrado numa cadeira de rodas através do pátio por um camarada.
Este era pouco mais do que um rapaz, com a boca afundada por lhe terem
caído os dentes devido ao escorbuto. Aquele era o lado da guerra que as
pessoas não podiam saber pelos relatórios dos oficiais nem pelas crónicas
dos repórteres.
- De que serve esporear um cavalo esgotado, meu caro Lowell? Nós não
somos Gedeão, que observa os seus soldados a beber do poço. Limitando-
nos a olhar, não vamos chegar a lado nenhum. Não encontramos Hamlet
nem Fausto, não determinamos o correto nem o errado, nem o valor dos
homens a fazerem provas de albumina ou a examinarem fibras ao
microscópio. Tenho a impressão de que temos de encontrar uma nova via
de acção.
- Você e Pike são igualzinhos - disse Lowell, e abanou a cabeça com tristeza.
- Mas juntos encontraremos o caminho. De momento, Holmes, limitemo-
nos a decidir se ficamos ou se dizemos ao cocheiro que nos leve a outro
local de acolhimento de soldados.
- Vocês são novos, hoje - interrompeu-os um soldado zarolho, com uma
pele sulcada de rugas e muito picada pelas bexigas, e com um cachimbo de
cerâmica preta a sair-lhe da boca. Como não esperavam manter uma
conversa com terceiros, os surpreendidos Holmes e Lowell ficaram ambos
sem palavras e aguardaram educadamente que um dos dois respondesse
ao seu interlocutor. O homem vestia um uniforme de gala que, conforme
parecia, não via sabão desde antes da guerra.
O soldado começou a encaminhar-se para a igreja e só olhou para trás por
breves instantes para dizer, um pouco ofendido.
- Peço desculpa. Pensei que tivessem vindo por causa de Dante. Por breves
instantes, nem Lowell nem Holmes tiveram reacção.
Ambos julgaram ter imaginado a palavra que o outro acabava de
pronunciar.
- Hei, você aí, espere! - exclamou Lowell, que mal conseguia falar com
coerência devido à emoção.
Os dois poetas precipitaram-se para o interior da capela, onde havia pouca
luz. Deparando-se-lhe um mar de uniformes, não conseguiram descobrir o
não identificado dantista.
- Sentem-se! - gritou alguém de mau humor, através das mãos em concha.
Holmes e Lowell procuraram uns lugares às apalpadelas e instalaram-se
nas extremidades de bancos separados. Contorciam-se desesperadamente
em busca de um rosto no meio da multidão. Holmes voltou-se para a
entrada, para a eventualidade de o soldado tentar fugir. Os olhos de Lowell
perscrutavam os olhares fixos e toldados e as expressões vazias, que
enchiam a capela, e finalmente passaram pela cara picada pelas bexigas e
pelo olho solitário do seu interlocutor.
- Descobri-o - sussurrou Lowell. - Já dei com ele, Wendell. Descobri-o!
Descobri o nosso Lúcifer!
Holmes virou-se, resfolegando de impaciência.
- Não consigo vê-lo, Jamey!
Alguns soldados fizeram sinais violentamente, dirigindo-se aos dois
intrusos.
- Ali! - murmurou Lowell, frustrado. - Um, dois... o quarto banco a começar
da frente!
- Onde?
- Ali!
- Agradeço-vos, meus bons amigos, por me terem convidado mais uma vez.
- Uma voz trémula interrompeu-os, ondeando desde o púlpito. - E agora
continuarão os castigos do Inferno de Dante...
Lowell e Holmes dirigiram imediatamente a sua atenção para a parte da
frente da capela escura e apinhada de gente. Continuaram a olhar,
enquanto o velho amigo deles, George Washington Greene, tossia
debilmente, corrigia a sua postura, e apoiava os braços nos dois lados do
facistol. A sua congregação estava fascinada com a expetativa e a fidelidade,
aguardando ansiosamente voltar a transpor as portas do seu inferno.

CÂNTICO 3
XV



H, PEREGRINOS, APROXIMAI-VOS AGORA DO CÍRCULO FINAL

O desta prisão cega, que Dante tem de explorar no seu sinuoso


trajeto até ao mundo subterrâneo, na sua predestinada viagem
para aliviar a humanidade de todo o sofrimento! - George
Washington Greene levantou os braços abertos bem acima do pesado
facistol, que chocava com o seu estreito peito. - Porque Dante procurava
nada menos do que isto; o seu destino pessoal é secundário para o poema.
É a humanidade que ele quer elevar através da sua viagem; e, deste modo,
nós o seguimos, passo a passo, desde os ígneos portões até às esferas
celestiais, enquanto limpamos de pecado este nosso século dezanove!
«Oh, que formidável tarefa tem ele à sua frente na sua desdita torre de
Verona, com o amargo sal do exílio no seu paladar. Ele pensa: «Como posso
eu descrever o fundo do universo com esta língua frágil?» Ele pensa: «Como
poderei eu entoar a minha canção milagrosa?» Mas Dante sabe que deve
fazê-lo para redimir a sua cidade, para redimir a sua nação, para redimir o
futuro... e nos redimir a nós; nós que estamos aqui sentados, nesta capela
que voltou a despertar, para reviver o espírito da sua voz majestática num
Novo Mundo, também nós somos redemíveis! Ele sabe que em cada
geração haverá uns poucos afortunados, que compreendem e vêem
verdadeiramente. Ele é uma pluma de fogo com sangue do coração como
sua única tinta. Oh, Dante, que nos trazes a luz! Felizes as vozes das
montanhas e dos pinheiros que sempre repetiram os teus cânticos!»
Greene inspirou profundamente até encher os pulmões de ar, antes de
narrar a descida de Dante ao círculo final do inferno: um lago de gelo,
Cocito, polido como o cristal, com uma espessura, que nem sequer alcança
o rio Charles no momento mais rigoroso do Inverno. Dante ouve uma voz
irada que chega até ele desde essa tundra gelada
- Vê onde pões os pés! - grita a voz - Prestai atenção para não pisardes com
os vossos pés as nossas cabeças, fatigados e míseros irmãos!
- Oh, de onde chegavam estas palavras acusadoras, que incitavam os
ouvidos do bem-intencionado Dante? Ao olhar para baixo, o poeta vê,
incrustadas no lago gelado, umas cabeças que assomam do gelo, uma
congregação de sombras mortas... um milhar de cabeças purpúreas de
pecadores da mais baixa natureza, conhecidos como os filhos de Adão. Para
que falta está reservada esta planície glaciar do Inferno? Para a traição,
claro! E em que consiste o seu castigo, o seu contrapasso, para o frio dos
seus corações? Serem completamente sepultados no gelo: do pescoço para
baixo, de modo a que os seus olhos possam ver para todo o sempre as
míseras sanções acarretadas pela sua infâmia.
Holmes e Lowell estavam abatidos, com o coração contorcido na garganta.
A barba de Lowell pendia a toda a extensão que lhe permitia a boca aberta,
enquanto Greene, resplandecente de vitalidade, descrevia como Dante
agarrara na cabeça do veemente pecador pelos cabelos, a sacudira de
forma brutal, e lhe perguntara pelo nome. Ainda que me arranques os
cabelos, não te direi quem sou! Um dos outros pecadores,
inadvertidamente, chama o companheiro pelo nome para pôr fim aos seus
amargos gritos e para grande satisfação de Dante. Assim pôde ele registar o
nome do pecador para a posteridade.
Greene prometeu chegar ao bestial Lúcifer - o pior de todos os traidores e
pecadores, a besta de três cabeças, que castiga e é castigada -no seu sermão
seguinte. A energia que o velho ministro havia acumulado durante o
sermão dissipou-se rapidamente quando chegou ao fim, deixando apenas
um círculo de cor nas suas faces.
Lowell abriu caminho pelo meio da multidão, na capela escura, afastando
os soldados que se juntavam e falavam com vozes rudes nas naves laterais.
Holmes seguia-o.
- Meus queridos amigos! - saudou-os jovialmente Greene ao primeiro sinal
que Lowell e Holmes lhe dirigiram. Eles empurraram Greene para um
pequeno aposento, situado na parte posterior da capela, e Holmes fechou a
porta. Greene sentou-se num tablado junto a um aquecedor e levantou as
mãos. - Atrevo-me a dizer, meus colegas - observou ele -, que com este
tempo horrível voltei a constipar-me. Não estranharia se nós...
Lowell vociferou.
- Conte-nos tudo, imediatamente, Greene!
- Então, senhor Lowell, eu não fazia a mais pequena ideia de que vinham -
disse Greene, calmamente, e olhou de relance para Holmes.
- Meu caro Greene, o que Lowell quer dizer... - Mas o doutor Holmes
também não conseguiu manter a calma. - Pode-se saber o que raio está
você afazer aqui, Greene?
Greene pareceu sentir-se magoado.
- Bem sabe, meu caro Holmes, que eu faço sermões, como pregador
convidado, em diversas igrejas da cidade e de East Greenwich sempre que
me pedem e tenho disponibilidade. O Jeito de um enfermo é, no melhor dos
casos, um sítio aborrecido, e o meu trouxe-me ansiedade e dor no último
ano, por isso, aceito de bom grado sempre que me surgem esses pedidos.
Lowell interrompeu-o.
- Nós sabemos que o convidam para pregar, mas você estava ali a pregar
Dante!
- Ah, isso, Na verdade, é um entretenimento inocente. A experiência de
pregar para estes soldados desmoralizados foi um desafio, algo muito
diferente de tudo o que eu conhecera. Ao falar com os homens nas
primeiras semanas a seguir à guerra, sobretudo depois de Lincoln ter sido
tão traidoramente assassinado, encontrei um grande número deles
atormentados pela inquietação pelo seu próprio destino e pelas coisas da
outra vida. Uma tarde, algures nas últimas semanas de Verão, sentindo-me
inspirado pela dedicação de Longfellow à sua tradução, introduzi algumas
descrições dantescas durante o meu sermão, e considerei que o seu efeito
era bastante satisfatório. E foi assim que comecei a tratar, de uma forma
generalizada, a história e a viagem espirituais de Dante. Houve momentos
(e desculpem-me, como vêem ruborizo ao confessá-lo) em que fantasiei
que podia dar uma aula sobre Dante e que estes bravos rapazes eram os
meus alunos.
- E Longfellow não sabe nada disto? - perguntou-lhe Holmes.
- O meu desejo era compartilhar as novidades da minha modesta
experiência, mas, bem... - Greene estava pálido e fixou o olhar na flamejante
janelinha do aquecimento. - Suponho, queridos amigos, que me senti um
pouco coibido por me apresentar como mestre dantista diante de um
homem como Longfellow. Por isso, por favor, não lhe digam nada
sobre isto. Só o faria sentir-se desconfortável, já sabem como ele não
gosta que o considerem diferente...
- O sermão que acaba de pronunciar, Greene - interrompeu-o Lowell -,
baseou-se inteiramente nos encontros de Dante com os traidores.
- Sim, sim! - disse Greene, rejuvenescido pela recordação. - Não é
maravilhoso, Lowell? Não tardei a descobrir que explicar um canto ou dois
na sua totalidade mantinha a atenção dos soldados melhor ainda ®o que
um sermão baseado nos meus frágeis pensamentos, e atuar assim deixava-
me com melhor disposição para as nossas sessões de Dante na semana
seguinte. - Greene começou a rir com a vaidade nervosa de uma criança,
que alcançou um feito inesperado, e que os seus pais não esperavam. -
Quando o Clube de Dante iniciou o Inferno,
eu dei início à minha prática atual, pregando um dos cantos que iríamos
traduzir na reunião seguinte do nosso clube. Atrevo-me a dizer que agora
me sinto muito bem preparado para trabalhar esse clamoroso canto que
Longfellow marcou para amanhã! Normalmente, eu pregava o meu sermão
às quintas-feiras à tarde, pouco antes de apanhar o comboio de regresso a
Rhode Island.
- Todas as quintas-feiras? - perguntou-lhe Holmes.
- Houve vezes em que estive confinado à cama. E nas semanas em que
Longfellow cancelou as nossas sessões de Dante, infelizmente, não tinha
disposição para falar sobre Dante - disse Greene. - Depois, esta última
semana foi maravilhosa! Longfellow estivera a traduzir a uma velocidade
tão grande e a um ritmo tão rápido, que decidi instalar-me em Boston e,
durante uma semana, fazer quase um sermão por noite sobre Dante!
Lowell fez um movimento brusco para a frente.
- Senhor Greene! Reviva na sua mente cada momento da sua experiência
aqui! Algum dos soldados mostrou um especial conhecimento do conteúdo
dos seus sermões sobre Dante?
Greene levantou-se e olhou em volta confuso, como se de repente se tivesse
esquecido do que eles lhe tinham perguntado.
- Deixem-me pensar. Em cada sessão, havia entre vinte e trinta soldados,
sabem, mas nem sempre eram os mesmos. Eu sempre quis ser melhor
fisionomista. Alguns deles, de vez em quando, expressavam a sua
admiração pelos meus sermões. Têm de acreditar em mim... Se eu pudesse
ajudar-vos...
- Greene. Se você não pára imediatamente... - começou Lowell a dizer com a
voz abafada.
- Lowell, por favor! - disse Holmes, assumindo o habitual papel de Fields de
conter o amigo.
Lowell expirou ruidosamente e fez um gesto a Holmes, convidando-o a
continuar.
Holmes começou.
- Meu caro senhor Greene, você vai ajudar-nos... muitíssimo, tenho a
certeza. Agora, para nos fazer um favor, tem de pensar depressa, caro
amigo, por Longfellow. Recorde-se de todos os soldados com quem pode
ter conversado, desde que isto começou.
- Ah, sim! - Os olhos amendoados de Greene abriram-se de forma insólita. -
Sim, agora me lembro. Sim, houve um soldado que me formulou o desejo
específico de ler, ele próprio, Dante.
- Sim! E que resposta você lhe deu? - perguntou-lhe Holmes, radiante.
- Perguntei ao jovem se estava bem familiarizado com as línguas
estrangeiras. Ele acabou por dizer que era considerado um bom leitor
desde menino,
mas só em inglês, pelo que o encorajei a aprender italiano. Eu comentei que
estava a colaborar no final da primeira tradução norte-americana, com
Longfellow, para a qual tínhamos formado um pequeno clube em casa do
poeta. Ele pareceu-me muito interessado. Então, recomendei-lhe que, no
início do próximo ano, se dirigisse a uma livraria e perguntasse pela edição
de Ticknor e Fields. - Greene contou com o pormenor das gazetilhas que
Fields mandara inserir nas páginas dos rumores. Holmes fez uma pausa e
dirigiu um olhar de esperança a Lowell, que o incentivou a prosseguir.
- Esse soldado - perguntou-lhe Holmes, devagar - disse-lhe como se
chamava? - Greene negou com a cabeça. - Lembra-se do seu aspeto, meu
caro Greene?
- Não, não, tenho muita pena.
- Isto é mais importante do que possa imaginar - interveio Lowell.
- Tenho uma recordação muito difusa da conversa - disse Greene, e fechou
os olhos. - Parece-me que me lembro de ele ser bastante alto, com um
bigode da cor do feno, em forma de guiador. E talvez coxeasse. Mas muitos
deles se transformaram em autênticas ruínas humanas. Foi há uns meses, e,
nessa altura, não prestei uma atenção especial àquele homem. Como digo,
não sou dotado para memorizar rostos... Foi justamente por isso que nunca
escrevi narrativa, meus amigos. Na narrativa só aparecem rostos. - Greene
deu uma gargalhada, achando esta última afirmação ilustrativa. Contudo, a
inquietação estampada nos rostos dos seus companheiros traduzia-se em
olhares graves. - Meus senhores, por favor, digam-me, eu contribui para
criar algum tipo de problema?
Eles saíram, tendo o maior cuidado ao atravessar os grupos de veteranos, e
Lowell ajudou Greene a subir para a charrete. Holmes teve de despertar o
cocheiro e o cavalo, e o primeiro conduziu o segundo, letargiado, para longe
da velha igreja.
Entretanto, por trás de uma janela embaciada do lugar de auxílio aos
soldados, esta precipitada partida foi seguida na sua totalidade pelos olhos
vigilantes do homem a quem o Clube de Dante apelidava de Lúcifer.
George Washington Greene estava instalado numa cadeira de braços
reclinável na Sala dos Autores da Corner. Nicholas Rey juntara-se a eles. As
perguntas esmiuçaram ao máximo a informação de Greene acerca dos seus
sermões sobre Dante e dos veteranos que avidamente acorriam a ouvi-lo
todas as semanas. Depois, Lowell lançou-se numa crónica desPojada dos
assassínios dantescos, perante a qual Greene mal conseguiu articular uma
resposta.
À medida que os pormenores saíam da boca de Lowell, Greene sentia que
lhe era gradualmente arrebatada a sua associação com Dante. O modesto
púlpito daquele lugar de auxílio aos soldados, em frente ao seu
deslumbrado auditório; o lugar especial que a Divina Comédia ocupava na
estante da sua biblioteca em Rhode Island; as noites de quarta-feira
sentado diante da lareira de Longfellow; tudo isto havia parecido
manifestações permanentes e perfeitas da dedicação de Greene ao grande
poeta. No entanto, como tudo quanto alguma vez fora satisfatório na vida
de Greene, aquilo também ia mais além do que conseguira imaginar. Algo
excessivo que ocorrera com a independência do seu conhecimento e
indiferente à sua sanção.
- Meu caro Greene - disse Longfellow com suavidade. - Não deve falar a
ninguém sobre Dante fora desta sala, até estas questões estarem resolvidas.
Greene conseguiu simular uma anuência. A sua expressão era a de um
homem inútil e incapaz, a imagem de um relógio ao qual foram retirados os
ponteiros.
- E a nossa reunião do Clube de Dante que estava prevista para amanhã? -
perguntou ele com uma voz débil.
Longfellow abanou a cabeça com tristeza.
Fields puxou a campainha para chamar um moço para que acompanhasse
Greene a casa da sua filha. Longfellow ajudou-o a vestir o sobretudo.
- Nunca faça isso, meu querido amigo - disse Greene. - Um jovem não
precisa disso, e um velho não quer. - Ele deteve-se, enquanto o moço de
fretes o levava pelo braço, quando já caminhavam pelo vestíbulo; falou,
mas não se virou para trás para os homens que continuavam na sala. -
Podiam ter-me dito o que se estava a passar, sabem? Qualquer um de vocês
me podia ter contado. Posso não ser o mais forte..., mas sei que podia ter-
vos ajudado.
Eles aguardaram que o som dos passos de Greene se desvanecessem no
vestíbulo.
- Se ao menos lhe tivéssemos dito - disse Longfellow. - Que estúpido que eu
fui ao delinear uma corrida contra a tradução!
- Não o tome assim, Longfellow! - respondeu Fields. - Pense no que agora
sabemos. Greene pregava os seus sermões às quintas-feiras à tarde,
imediatamente antes de regressar a Rhode Island. Ele seleccionava um
canto que quisesse continuar a analisar, escolhendo dos dois ou três cantos
que você tivesse agendado para a sessão de tradução seguinte. O nosso
maldito Lúcifer ouvia o mesmo castigo de que nos iríamos ocupar... seis
dias antes do nosso próprio grupo!
E isso dava muito tempo a Lúcifer para preparar a sua própria versão do
homicídio contrapasso exatamente um ou dois dias antes de o traduzirmos
e transcrevermos para o papel. Deste modo, do nosso ponto limitadamente
vantajoso, tudo assumiria a aparência de uma corrida, de alguém que
escarnecia de nós com as particularidades da nossa própria tradução.
- E em relação à advertência gravada na janela do senhor Longfellow? -
perguntou Rey.
- La Mia Traduzione - disse Fields lançando as mãos ao ar. - Nós estávamos
com pressa de concluir o que era obra do assassino. Os malditos chacais do
Manning na universidade claro que fariam os possíveis para tentar
assustar-nos e afastar-nos da tradução.
Holmes virou-se para Rey.
- Senhor agente, sabe alguma coisa sobre Willard Burndy que nos possa
ajudar a partir de agora?
- Burndy disse que um soldado lhe pagou para que ele o ensinasse a abrir o
cofre do reverendo Talbot - respondeu Rey. - Presumindo tratar-se de um
lucro fácil com um risco escasso, ele foi a casa do Talbot para apalpar o
terreno, tendo sido ali visto por várias testemunhas. Depois do homicídio
do Talbot, os detectives descobriram as testemunhas, e, com a ajuda do
Langdon Peaslee, o rival de Burndy, dirigiram o caso contra o Burndy. Este
é um borrachola, e não se consegue lembrar de mais nada sobre o assassino
além do seu uniforme de soldado. Eu não confiava nele, mesmo que os
senhores não tivessem descoberto a fonte do conhecimento do assassino.
- Que enforquem Burndy! Que os enforquem a todos! - exclamou Lowell. -
Vocês não estão a ver? Está à frente dos nossos olhos. Estamos tão próximo
da pista de Lúcifer que não podemos evitar tropeçar no seu calcanhar de
Aquiles. Pensem nisto: o ritmo errático entre um homicídio e outro faz
agora todo o sentido. Afinal de contas, Lúcifer não era nenhum erudito
dantista... Não era mais do que um paroquiano de Dante. Ele só podia matar
depois de ouvir Greene a pregar sobre um castigo. Numa semana, Greene
pregou o Canto Onze, e o seu texto apresenta Virgílio e Dante sentados
numa muralha para se habituarem à pestilência do Inferno, comentando a
estrutura deste com a frieza de dois engenheiros. É um canto que não
descreve nenhum castigo específico e, portanto, não houve nenhum
homicídio. Depois, na semana seguinte, Greene adoeceu, não veio ao nosso
clube e não pregou... e voltou a não haver nenhum homicídio. - Assim foi, e
Greene adoeceu mais outra vez antes disso, também durante o tempo em
que estivemos a fazer a tradução do Inferno. - Longfellow virou uma página
do seu bloco de notas. - E outra vez depois dessa. Nesses períodos também
não houve nenhum homicídio.
- E quando fizemos uma pausa nas reuniões do nosso clube - prosseguiu
Lowell -, a primeira vez que decidimos investigar depois de Holmes ter
observado o corpo do Talbot, as mortes voltaram a parar... Porque parara
Greene! Até termos dado por concluída a nossa «suspensão» e decidirmos
traduzir o dos Cismáticos; e com isso devolvemos a Greene o púlpito e
enviámos o Phinny Jennison para a morte!
- Agora faz-se totalmente luz sobre o gesto do assassino ao colocar o
dinheiro sob a cabeça do simoníaco - disse Longfellow, compungido. - Era a
interpretação preferida do senhor Greene. Eu devia ter relacionado as suas
leituras de Dante com os pormenores dos homicídios.
- Não se deprima, Longfellow - apressou-se a dizer-lhe o doutor Holmes. -
Os pormenores dos homicídios eram tais que só um especialista em Dante
os conseguia identificar. Não havia forma alguma de adivinhar que Greene
era a sua fonte involuntária.
- Receio que, por mais bem-intencionado que tenha sido o meu raciocínio -
respondeu Longfellow -, tenhamos cometido um grave erro. Ao
acelerarmos a frequência das nossas sessões de tradução, o nosso
adversário ouviu tanto sobre Dante, pela boca de Greene, numa semana
como o que ouvira durante um mês.
- Eu proponho que Greene volte a essa capela - insistiu Lowell. - Mas, desta
vez, fazemos com que pregue sobre qualquer outro tema que não Dante.
Observamos o auditório, esperamos que alguém se mostre agitado e depois
apanhamos o nosso Lúcifer!
- Esse é um jogo demasiado perigoso para Greene! - disse Fields. -Ele não é
adequado para isto. Além disso, esse local de ajuda aos soldados está
semifechado, e é provável que, neste momento, os soldados já estejam
dispersos pela cidade. Não temos tempo de planear nada desse género.
Lúcifer podia atacar a todo o momento quem, na sua distorcida visão do
mundo, ele acreditasse ter cometido uma transgressão contra si próprio!
- No entanto, ele deve ter um motivo para acreditar em tais coisas, Fields -
respondeu Holmes. - A insanidade é muitas vezes a lógica de uma mente
cuidadosa e sobrecarregada.
- Agora sabemos que o nosso assassino precisa, pelo menos, de dois dias, e
às vezes mais, depois de ouvir um sermão, para preparar o seu crime -
disse o agente Rey. - Há alguma possibilidade de conseguirmos prever os
potenciais objectivos, agora que conheceis as partes de Dante que o senhor
Greene partilhou com os soldados?
- Receio que não - respondeu Lowell. - Em primeiro lugar, não temos
experiência que nos permita adivinhar como vai reagir o Lúcifer a esta
recente catadupa de sermões, em vez de um único. O canto dos Traidores,
que acabámos de ouvir, seria, suponho, o que maior impressão podia
causar-lhe. Mas como poderíamos nós alguma vez averiguar que Traidores
podem rondar na mente daquele lunático?
- Se ao menos Greene conseguisse lembrar-se melhor do homem que o
abordou, e lhe fez perguntas sobre uma leitura de Dante por sua própria
conta - disse Holmes. - Ele usava uniforme, tinha um bigode cor de feno em
forma de guiador e coxeava. No entanto, conhecemos a força física que o
assassino despendeu em cada uma das mortes, e a sua rapidez, já que
ninguém o viu nem antes nem depois dos crimes. Isto não torna improvável
que se trate de um ferimento incapacitante? Lowell levantou-se e dirigiu-se
a Holmes coxeando exageradamente.
- Se você quiser que o mundo não suspeite da sua força, Wendell, pode
fingir um andar como este?
- Não, nós não temos nenhuma prova de que o nosso assassino se esconda,
mas sim da nossa incapacidade para o ver. E pensar que Greene terá olhado
nos olhos do nosso demónio!
- Ou nos de um cavalheiro insuspeito, mas golpeado pela força de Dante -
sugeriu Longfellow.
- Foi notável ver a emoção com que os soldados aguardavam ouvir falar
sobre Dante - admitiu Lowell. - Os leitores de Dante converteram-se em
estudantes, os seus estudantes, em zelotas, e o que começa como um gosto
converte-se numa religião. O exilado sem teto encontra um lugar em mil
corações agradecidos.
Interrompeu-os um ligeiro toque e uma voz suave vinda do vestíbulo.
Fields abanou a cabeça, contrariado.
- Osgood, por favor, trate você do assunto.' Um papel dobrado deslizou por
baixo da porta.
- É só uma mensagem, se mo permite, senhor Fields. Fields hesitou antes de
desdobrar o papel.
- Tem o timbre de Houghton. «Respondendo ao seu último pedido, creio
que lhe interessa saber que as provas da tradução de Dante feita
pelo senhor Longfellow parecem, de fato, ter desaparecido. Assinado, H. O.
H.»
Perante o silêncio dos outros, Rey perguntou qual o significado daquilo. -
Quando erradamente julgávamos que os homicídios iam atrás da Nossa
tradução, senhor agente - explicou Fields -, eu pedi ao meu gráfico, senhor
Houghton, que se certificasse de que ninguém tinha acesso às provas do
senhor Longfellow à medida que iam sendo entregues, e que, de alguma
forma, se adiantara ao ritmo da nossa tradução.
- Santo Deus, Fields! - exclamou Lowell, arrancando o bilhete de Oughton
das mãos de Fields. - Justamente quando pensávamos que os sermões de
Greene explicavam tudo.
O assunto desfaz-se entre as nossas mãos!
Lowell, Fields e Longfellow encontraram Henry Oscar Houghton ocupado a
redigir uma carta ameaçadora, dirigida a um gravador incumpridor. Um
empregado anunciou-os.
- Você disse-me que não tinha desaparecido nenhuma prova do arquivo,
Houghton! - Fields nem sequer retirara o chapéu antes de começar a gritar.
Houghton mandou o empregado retirar-se.
- Tem toda a razão, senhor Fields. E estas ainda não foram tocadas -
explicou ele. - Mas, veja, eu coloco um conjunto extra de todas as estampas
e provas importantes numa câmara de segurança, lá em baixo na cave,
como prevenção contra um eventual incêndio; faço isto desde que a
Sudbury Street ardeu de cima a baixo. Nunca pensei que algum dos meus
rapazes tivesse acesso a essa câmara. Nada nela os pode atrair, porque de
certeza que não há muito mercado para provas impressas roubadas, e para
os aprendizes da minha gráfica seria um triunfo pô-los a ler um livro. Quem
é que disse aquilo, «Ainda que tenha sido um anjo a escrevê-lo, deverão
imprimi-lo os demónios?» Tenho de gravar isto num selo um dia. -
Houghton cobriu o seu digno risinho entre dentes com a mão.
- Thomas More - apostilou Lowell, o homem que sabia tudo, sem aguardar
uma resposta.
- Houghton - disse Fields -, peço-lhe o favor de nos mostrar onde estão
guardadas essas outras provas.
Houghton conduziu Fields, Lowell e Longfellow por umas escadas estreitas,
que davam acesso à cave. No final de um corredor comprido, o gráfico
compôs uma simples combinação, que dava acesso à câmara fortificada,
que adquirira a um banco desaparecido.
- Depois de comprovar as provas da tradução do senhor Longfellow com as
arquivadas, vi que estavam completas. Então, lembrei-me de verificar nesta
câmara de segurança, e, oh, surpresa! Várias das primeiras provas da
tradução do senhor Longfellow do Inferno tinham desaparecido.
- E quem as fez desaparecer? - perguntou Fields. Houghton encolheu os
ombros.
- Eu não entro nesta câmara com muita regularidade, como hão-de
compreender. Essas provas podiam ter desaparecido há dias, ou meseS,
sem que eu tivesse dado por isso.
Longfellow localizou a caixa etiquetada com o seu nome, e Lowell ajudou-o
a remexer nas provas da Divina Comédia. Vários cantos do Inferno tinham
desaparecido.
- Parecem ter sido retiradas completamente ao acaso, Longfellow -
murmurou Lowell. - Faltam partes do Canto Terceiro, mas este roubo
parece ser o único que coincide com um homicídio.
O gráfico interveio na conversa dos poetas e disse, pigarreando: - Eu posso
reunir todos os que podem ter tido acesso à minha combinação, se
julgarem oportuno fazê-lo. Irei até ao fundo disto. Se eu disser a um rapaz
para me pendurar o sobretudo, espero que ele volte e me confirme que o
fez.
Os moços faziam funcionar as prensas, devolviam os tipos fundidos às
caixas e esfregavam as permanentes manchas de tinta preta quando
ouviam o som da campainha de Houghton. Eles reuniram-se na sala de
descanso da Riverside Press.
Houghton bateu as palmas várias vezes para silenciar o habitual vozerio.
- Rapazes. Por favor, rapazes. Houve um pequeno problema que reclamou a
minha atenção. Certamente que reconhecem vocês um dos nossos
visitantes, senhor Longfellow, de Cambridge. As suas obras representam
uma parte importante, tanto comercial como civicamente, da nossa
impressão de literatura.
Um dos rapazes, um ruivo de aspeto rústico, com uma cara de um amarelo-
pálido, manchada de tinta, começou a retorcer-se e a dirigir olhares
furtivos e nervosos a Longfellow. Este reparou nisso e fez sinal a Lowell e a
Fields.
- Parece que algumas provas que estavam na câmara da cave foram...
desviadas, digamos assim. - Houghton abriu a boca para prosseguir quando
captou a inquieta expressão do seu moço amarelo-pálido. Lowell arqueou
ligeiramente a mão sobre o agitado ombro do aprendiz. Diante da sensação
do contato de Lowell, o aprendiz deitou um colega ao chão e saiu a correr
como uma flecha. Lowell foi imediatamente atrás dele e virou a
esquina a tempo de ouvir os passos a correr pelas escadas das traseiras
abaixo.
O poeta correu o mais que pôde até à oficina principal e desceu Pelas
íngremes escadas laterais. Precipitou-se rapidamente para o exterior e
interceptou o fugitivo quando este corria ao longo da margem do rio. Ele
esteve prestes a segurá-lo com força, mas o aprendiz evitou-o, deslizando
pelo gelado talude, e caindo pesadamente no rio Charles, onde alguns
rapazes pescavam enguias com arpões. Na sua queda, ele quebrou a
camada de gelo que cobria o rio.
Lowell pegou no arpão de um dos rapazes, que protestou, e pescou o
aprendiz que chocara com o gelo, agarrando-o pelo seu avental ensopado,
ao qual se tinham enleado utriculárias e ferraduras rejeitadas.
- Roubaste aquelas provas, meu patife? - gritou-lhe Lowell.
- De qu'é qu' tá pr'aí a falar? Deixe-me em paz! - respondeu ele com os
dentes a castanholar.
- Vais dizer-me! - exigiu Lowell, com os lábios e as mãos a tremer quase
tanto como os do seu cativo.
- Oxalá rebente, seu rabo gordo!
As faces de Lowell inflamaram-se. Ele agarrou no rapaz pelo cabelo e
submergiu-o no rio. O aprendiz cuspia e gritava por entre os fragmentos de
gelo. Por aquela altura, Houghton, Longfellow e Fields - e meia-dúzia de
vociferadores aprendizes, entre os doze e os vinte e um anos - já se tinham
juntado à porta principal da gráfica para presenciarem o espectáculo.
Longfellow tentou acalmar Lowell.
- Eu vendi as malditas provas, pois vendi! - guinchou o aprendiz, arfando.
Lowell levantou-se, dominando com força a sua presa com uma mão e
conservando na outra o arpão de encontro às suas costas. Os rapazes que
pescavam tinham-se apoderado do gorro cinzento do cativo e iam-no
experimentando todos. Respirando com dificuldade, o aprendiz sacudia a
dolorosa água gelada. - Desculpe, senhor Houghton. Nunca pensei que
alguém desse pela falta delas! Eu sabia que eram repetidas!
O rosto de Houghton estava vermelho como um tomate.
- Para a gráfica! Toda a gente para dentro! - gritou ele aos decepcionados
rapazes, que tinham acorrido ao exterior.
Fields aproximou-se com uma paciente autoridade.
- Sê sincero, meu rapaz, e tudo se há-de compor. Diz-nos lá... a quem é que
vendeste essas folhas?
- A um louco qualquer. Está satisfeito? Parou-me uma noite quand eu saía
do trabalho. Disse-me que qu'ria qu'eu lhe 'ntregasse umas vinte ou trinta
páginas do novo trabalho do senhor Longfellow, quaisquer páginas qu'eu
encontrasse, apenas as suficientes para que ninguém desse pela sua falta.
Ele disse-me que assim podia ganhar algum dinheirinho extra.
- Maldito seja! E quem era ele? - perguntou-lhe Lowell.
- Um tipo gordo... de cartola, capa e sobretudo escuros, e com barba. Depois
d'eu dizer que sim ao plano dele, deu-me umas palmadinhaS. Nunca mais
voltei a ver o pássaro.
- Então, como é que lhe entregaste as provas? - perguntou Longfellow.
- Não eram pra ele. Disse-me pra as levar a uma morada. Acho que não era
a casa dele... Bem, essa foi a sensação que deu p'la forma como ele falou.
Não me lembro do número, mas a rua não é longe daqui. Ele disse que m'ia
devolver as provas pra não ter que m'haver com o senhor Houghton, mas o
fulano nunca mais voltou.
- Ele conhecia o senhor Houghton pelo nome? - perguntou Fields.
- Ouve bem, meu bom homem - interrompeu Lowell. - Nós precisamos de
saber exatamente onde é que levaste essas provas.
- Já lhes disse - respondeu o aterrado aprendiz. - Não me lembro do
número.
- Não me tomes por estúpido.' - recriminou-o Lowell.
- Não tomo! Mas lembrava-me muito bem se percorresse essas ruas por aí à
minha maneira!
Lowell sorriu.
- Excelente, porque é agora mesmo que nos vais levar até lá.
- Nem pensar, a menos que conserve o meu trabalho ali! Houghton
aproximou-se da margem do rio.
- Nunca, senhor Colby! Escolhe ceifar a ceara alheia e depressa semearás a
tua!
- Não tardará a ter outro trabalho, mas fechado no cárcere - acrescentou
Lowell, que não compreendera exatamente o axioma de Houghton. - Você
vai levar-nos ao sítio onde entregou essas provas que roubou, senhor
Colby, ou, em vez de nós, leva-o lá a polícia.
- Juntemo-nos daqui a umas horas, ao anoitecer - respondeu o aprendiz,
com o seu orgulho maltratado depois de considerar as opções de que
dispunha. Lowell soltou Colby, que saiu da água e correu para a fornalha da
Riverside Press.
Entretanto, Nicholas Rey e o doutor Holmes haviam regressado ao local de
ajuda aos soldados, onde Greene pregara ao início daquela tarde, mas não
encontraram ninguém que se encaixasse na descrição de Greene sobre o
entusiasta de Dante. A capela não estava a ser preparada para a habitual
distribuição da ceia. Um irlandês, embrulhado num pesado casaco azul,
pregava com gestos sonolentos tábuas nas janelas.
- O lugar esgotou todo o seu fornecimento de combustível prós
aquecimentos, e a câmara não aprovou mais fundos pra ajudar os soldados,
pelo menos, foi o qu'eu ouvi. Eles dizem qu' agora isto vai fechar, Pelo
menos, nos meses de Inverno. Aqui pra nós, meus senhores, duvido que
voltemos a vê-lo aberto. Estes lugares e os seus homens mutilados São uma
recordação demasiado viva dos erros que todos cometemos.
Rey e Holmes foram ter com o administrador daquele lugar. O antigo
diácono da igreja confirmou o que o encarregado lhes dissera. Era por
causa do tempo, explicou ele; simplesmente, eles não podiam manter o
aquecimento do edifício. Ele disse-lhes que não tinham listas nem registos
dos soldados que haviam utilizado as instalações. Aquilo era caridade
pública, aberta a todos os que dela necessitavam, de todos os regimentos e
cidades. E não era apenas para os veteranos mais pobres, ainda que essa
fosse uma das finalidades daquela iniciativa de beneficência. Alguns dos
homens só precisavam de estar rodeados de pessoas que os pudessem
compreender. O diácono conhecia alguns soldados pelo nome, e um
número reduzido deles pelo número do regimento.
- O senhor pode conhecer aquele que procuramos. É um assunto da maior
importância. Rey - repetiu a descrição que George Washington Greene lhes
fornecera.
O administrador abanou a cabeça, negativamente.
- Terei todo o gosto em escrever para os senhores o nome dos cavalheiros
que conheço, de fato. Por vezes, os soldados atuam como se vivessem num
país à parte. Eles conhecem-se entre si muito melhor do que nós podemos
conhecê-los.
Holmes não parava de se mexer para trás e para a frente no seu assento,
enquanto o diácono mordiscava a extremidade da sua pena de ave com a
maior parcimónia.
Lowell conduziu a charrete de Fields através dos portões da Riverside
Press. O aprendiz ruivo montava a sua velha égua manchada. Depois de
lhes dirigir todo o tipo de impropérios por fazer a sua montada correr o
risco de adoecer, já que o Departamento de Saúde Pública o tinha advertido
que o dito risco era iminente depois de uma inspecção às condições do
estábulo, Colby penetrou rapidamente por atalhos e obscuros prados
gelados. O caminho era tão sinuoso e inseguro, que até Lowell, grande
conhecedor de Cambridge desde menino, estava desorientado e só
conseguiu manter o rumo certo por ouvir o esmagamento dos cascos que
seguiam à sua frente.
O aprendiz puxou as rédeas no pátio das traseiras de uma modesta casa
colonial. Primeiro, passou-a e, depois, fez a sua montada rodar
completamente sobre si própria.
- É esta casa; aqui foi ond' eu trouxe as provas. Meti-as por baixo da porta
das traseiras, tal como me disseram pra fazer.
Lowell parou a charrete.
- De quem é esta casa?
- O resto é convosco, pássaros! - grunhiu Colby, esporeando a sua égua, que
partiu a galope pelo terreno gelado.
Levando uma lanterna, Fields conduziu Lowell e Longfellow até ao
largozinho das traseiras da casa.
- Não há luzes acesas no interior - disse Lowell, arranhando a neve de uma
janela.
- Dêmos a volta até à fachada principal, tomemos nota da morada e
voltemos cá com o Rey - sussurrou Fields. - Aquele tratante do Colby pode
bem ter estado a gozar connosco. Ele é um ladrão, Lowell! Pode ter ali
amigos dentro à nossa espera para nos assaltar.
Lowell martelou repetidamente a aldraba de latão.
- A forma como as coisas andam ultimamente, se agora nos formos embora,
talvez amanhã de manhã a casa tenha desaparecido.
- Fields tem razão. Temos de agir com cautela, meu caro Lowell -apressou-
se Longfellow a dizer em voz baixa.
- Está alguém?! - gritou Lowell, golpeando agora a porta com os punhos. -
Não está cá ninguém. - Lowell deu um pontapé na porta, e ficou
surpreendido por ela se abrir com tanta facilidade. - Vêem? Esta noite, os
astros estão do nosso lado.
- Jamey, nós não podemos simplesmente irromper por aí assim! E se esta
casa pertencer ao nosso Lúcifer? Seremos nós quem acaba na prisão! -
disse Fields.
- Então, faremos a nossa apresentação - respondeu Lowell, tirando a
lanterna das mãos de Fields.
Longfellow permaneceu no exterior para ficar vigilante e para que a
charrete não fosse descoberta. Fields seguiu Lowell para o interior. O editor
estremecia sempre que ouvia um rangido ou uma pancada, enquanto
avançava pelas escuras e frias divisões. O vento que entrava pela porta das
traseiras aberta agitava as cortinas em piruetas fantasmagóricas. Alguns
dos quartos estavam profusamente mobilados, outros estavam
completamente vazios. Na casa reinava aquela densa e tangível
obscuridade, que se acumula com o abandono.
Lowell entrou numa sala oval bem equipada, com um teto abobadado,
semelhante ao de uma capela. Então, ouviu que Fields, de repente, cuspia e
esfregava a cara e a barba. Lowell descreveu com a luz da lanterna um
amplo arco.
- Teias de aranha. Semidestruídas. - Ele colocou a lanterna na mesa,
disposta no centro da biblioteca. - Já há algum tempo que não vive aqui
ninguém.
- Ou a pessoa que aqui vive não se importa com a companhia dos insetos.
Lowell fez uma pausa para reflectir sobre aquilo.
- Procuremos algo que nos possa explicar por que razão esse tratante
pagaria para lhe trazerem aqui as provas de Longfellow.
Fields começou a dizer algo como resposta, mas um grito confuso e uns
passos pesados estremeceram a casa. Lowell e Fields trocaram olhares de
horror, e apressaram-se a defender as próprias vidas.
- Ladrões! - A porta lateral da biblioteca abriu-se de rompante e entrou
precipitadamente um homem rechonchudo, vestido com um roupão de lã. -
Ladrões! Mostrem-se ou ponho-me a gritar «ladrões»!
O homem lançou a sua potente lanterna para diante, e parou
imediatamente, estupefato. Ele fixou-se mais nos seus trajes do que nos
seus rostos.
- Senhor Lowell? É o senhor? E o senhor Fields?
- Randridge? - exclamou Fields. - Randridge, o alfaiate?
- Bem, sim - respondeu Randridge confuso, arrastando os pés calçados
nuns chinelos.
Longfellow correu para o interior da casa, atraído pelas vozes provenientes
da sala.
- Senhor Longfellow? - Randridge retirou torpemente o seu gorro de noite.
- Você vive aqui, Randridge? O que andava a fazer com aquelas provas? -
perguntou-lhe Lowell.
Randridge estava desorientado.
- Vivo duas casas mais abaixo, senhor Lowell. Mas ouvi uns ruídos, e pensei
vir dar uma vista de olhos à casa. Temi que estivessem a saqueá-la. Eles não
embalaram nem levaram nada. Como podem ver, não falta nada aqui na
biblioteca.
Lowell perguntou.
- Quem é que não levou nada?
- Ora, os seus parentes, claro. Quem havia de ser?
Fields recuou e passeou a luz pelas prateleiras das estantes. Os seus olhos
abriram-se desmesuradamente diante do insólito número de Bíblias. Havia,
pelo menos, umas trinta ou quarenta. Ele pegou na maior.
- Vieram de Maryland para inventariar os seus pertences - disse Randridge.
- Os seus pobres sobrinhos estavam muito pouco preparados para se
depararem com um momento crítico destes, isso lhes garanto. E quem
estaria? De qualquer modo, como lhes estava a dizer, quando ouvi barulho,
pensei que alguns sujeitos pudessem estar a tentar levar alguma
recordação... Sabem, só pelo gozo que isso dá. Desde que os irlandeses
começaram a mudar-se para o nosso bairro... as coisas têm piorado.
Lowell sabia exatamente onde Randridge vivia em Cambridge.
Mentalmente, galopava pelo bairro, vendo as casas de duas em duas em

cada direcção, com o frenesim de Paul Revere(1). Ele ordenou aos seus
olhos que se adaptassem à escuridão da sala, para procurar, nos retratos
menos obscuros que se perfilavam na parede, algum rosto familiar.
- Nos tempos que correm, meus amigos, não há descanso, isso lhes garanto
- continuou o alfaiate o seu triste lamento. - Nem sequer para os mortos.
- Os mortos? - repetiu Lowell.
- Os mortos - murmurou Fields, passando a Lowell uma Bíblia com o fecho
aberto. A primeira página estava cheia com um texto escrito a tinta. Era a
genealogia completa de uma família, redigida pelo defunto ocupante da
casa, o reverendo Elisha Talbot.

w
*1 Paul Revere (1735-1818), herói da Guerra da Independência, ficou
famoso pela sua frenética cavalgada noturna, no dia 18 de Abril de 1775,
para avisar o povo de Massachusetts do envio de tropas britânicas. Apesar
de ter sido capturado antes de chegar ao seu destino, Concord, a figura do
ginete da meia-noite transformou-se numa lenda popular. Longfellow
dedicou-lhe também um poema. [N. da T.]

w

XVI




DIFÍCIO PRINCIPAL DA UNIVERSIDADE, 8 DE OUTUBRO DE 1865,

Meu caro reverendo Talbot,


Uma vez mais gostaria de realçar que continua a ter nas suas
competentes mãos a plena liberdade quanto à linguagem e à
forma das séries. O senhor concedeu-nos a garantia de que considera uma
grande honra imprimi-la em quatro partes na sua revista literária, uma das
principais e últimas concorrentes da The Atlantic Monthly, do senhor Fields,
para o público culto. Recorde apenas as linhas básicas para alcançar as
humildes metas propostas pela nossa Corporação, nas atuais circunstâncias.
O primeiro artigo, o qual apresentaria a sua experiência nestas matérias,
deveria pôr a nu a poesia de Dante Alighieri nos seus aspetos religioso e
moral. Os seguintes deviam conter a sua inatacável exposição, mostrando por
que razão semelhante charlatanice literária, de Dante e dos seus pares (e
toda a trapaça estrangeira similar, que cada vez nos toma mais terreno), não
tem lugar nas prateleiras das bibliotecas dos cidadãos norte-americanos
íntegros, e por que razão as editoras com «influência internacional» (da qual
com frequência o senhor F. se orgulha) de T., F. & Co. devem ater-se à sua
responsabilidade e sujeitar-se aos mais elevados padrões de exigência de
responsabilidade social. Os dois últimos artigos da série, meu caro reverendo,
deveriam analisar a tradução de Dante feita por Henry Wadsworth
Longfellow e reprovar o outrora poeta «nacional» por tentar introduzir
literatura imoral e irreligiosa nas bibliotecas norte-americanas. Com um
plano cuidadoso para conseguir o maior impato, os dois primeiros artigos
deviam preceder em alguns meses o aparecimento da tradução de
Longfellow, de modo a propiciar por antecipação o sentimento do público a
nosso favor; e os terceiro e quarto artigos deviam ser publicados ao mesmo
tempo que a própria tradução, com o objectivo de reduzir as vendas entre as
pessoas socialmente conscientes.
Certamente que não necessito de insistir no zelo moral que confiamos e
esperamos encontrar no seu texto. Embora suspeite ser desnecessário
recordar-lhe a sua própria experiência,
como jovem estudioso na nossa instituição, não deixará de sentir o seu peso
todos os dias na sua alma, como acontece connosco. A corrente bárbara de
poesia estrangeira, contida em Dante, contrasta comprovadamente com o
bem aprovado programa clássico defendido pela Universidade de Harvard
desde há cerca de duzentos anos. O esbanjamento da rectidão que saíra da
sua pluma, meu caro reverendo Talbot, comportará meios suficientes para
devolver a Itália, e ao Papa que aí o aguarda, o indesejado buque, vencido em
nome de Christo et ecclesiae.
Seu, sempre.

Quando os três eruditos voltaram a Craigie House, levavam consigo quatro


cartas do mesmo teor, dirigidas a Elisha Talbot e encimadas com o selo de
Harvard, bem como um braçado de provas de Dante, justamente as que
tinham desaparecido da câmara de segurança da Riverside Press. - O Talbot
era a peça ideal para eles - disse Fields. - Um ministro respeitado por todos
os bons cristãos, um reputado crítico dos católicos, e alguém exterior à
Universidade de Harvard, de modo que podia contentar esta e afiar a sua
pluma contra nós com uma aparência de objectividade.
- E creio que não seria necessário ser-se um desses adivinhos da Ann Street
para saber a quantia com que Talbot foi retribuído pela moléstia - disse
Holmes.
- Mil dólares - precisou Rey.
Longfellow assentiu, mostrando-lhes a carta dirigida a Talbot, na qual se
especificava a quantia relativa ao pagamento do seguinte modo.
- Quando os tivermos em nosso poder. Mil dólares pelas «despesas»
diversas relacionadas com a redacção e a investigação dos quatro artigos.
Esse dinheiro (agora podemos dizê-lo com toda a certeza) custou a Elisha
Talbot a própria vida.
- Então, o assassino tinha conhecimento da quantia exata que devia retirar
do cofre de Talbot - concluiu Rey. - Ele conhecia os pormenores deste
acordo, desta carta.
- «Guarda bem a mal tida moeda» - recitou Lowell, e depois acrescentou: -
Mil dólares foi a paga pela cabeça de Dante.
A primeira das quatro cartas de Manning convidava Talbot a ir ao edifício
principal da universidade para discutir a proposta da Corporação. A
segunda carta salientava o conteúdo esperado em cada entrega e adiantava
a totalidade do pagamento, previamente negociado pessoalmente. Entre a
segunda e a terceira cartas, parecia que Talbot se lamentava
ao seu destinatário por não conseguir encontrar nenhuma tradução inglesa
da Divina Comédia em nenhuma livraria de Boston. Aparentemente, o
ministro andava a tentar localizar uma versão inglesa do falecido
reverendo H. F. Cary, com o propósito de escrever a sua crítica. Assim, a
terceira carta de Manning, que na verdade era mais do que um bilhete,
prometia a Talbot conseguir arranjar-lhe um exemplar por antecipação da
tradução de Longfellow.
Quando fez esta promessa, Augustus Manning sabia que o Clube de Dante
nunca lhe facultaria nenhuma prova, depois da campanha que
empreendera para os fazer desistir. Assim, por causa da suspeita dos
eruditos, o tesoureiro ou um dos seus agentes encontrou um aprendiz
lorpa da gráfica, na pessoa de Colby, e subornaram-no para roubar umas
páginas do trabalho de Longfellow.
A razão dizia-lhes o sítio onde encontrariam respostas para as novas
perguntas relativas ao esquema de Manning - no edifício principal da
universidade. Contudo, Lowell não podia examinar os arquivos da
Corporação de Harvard durante o dia, quando os seus elementos se
moviam no seu território, e não tinha meios para o fazer à noite. Uma vaga
de velhacarias e manipulações levara a instalar um complexo sistema de
fechaduras e de combinações para selar os arquivos.
Penetrar na fortaleza parecia um propósito inalcançável, até que Fields se
lembrou de alguém que podia fazê-lo por eles.
- O Teal!
- Quem, Fields? - perguntou Holmes.
- O meu marçano do turno da noite. Durante aquele feio episódio que
tivemos com o Sam Ticknor, foi ele que salvou a pobre Miss Emory. Ele
mencionou que, além de passar as noites durante a semana na Corner, tem
um emprego diurno na universidade.
Lowell perguntou se Fields achava que o rapaz estaria disposto a ajudá-los.
- Ele é um homem leal à Ticknor & Fields, não é? - respondeu Fields.
Quando o homem leal à Ticknor & Fields saiu da Corner, por volta
das onze horas da noite, deparou-se, para sua grande surpresa, com J. T.
Fields à sua espera em frente à entrada principal. Uns minutos depois, o
rapaz estava sentado na charrete do editor, onde foi apresentado ao outro
passageiro... o professor James Russell Lowell! Com quanta frequência se
tinha ele imaginado na companhia de homens tão ilustres-Teal parecia não
saber exatamente como reagir a tão raro tratamento-Ele escutou com
grande atenção os seus pedidos.
Uma vez em Cambridge, conduziu-os através do campus de Harvard,
deixando para trás o desaprovador zumbido dos globos a gás.
Ele abrandou o passo para olhar por cima do ombro, várias vezes, como se
estivesse preocupado com o fato de o seu pelotão literário poder
desaparecer com tanta rapidez como se havia formado.
- Vamos. Continue, homem. Estamos mesmo aqui atrás de si! - garantiu-lhe
Lowell.
Lowell retorceu as pontas do seu bigode. Estava menos nervoso perante a
perspectiva de alguém da universidade os encontrar no campus, do que em
relação ao que eles pudessem encontrar nos arquivos da Corporação. Ele
pensou que, como professor, teria um pretexto sensato, se fosse apanhado
àquelas horas tardias por um dos empregados residentes no centro - podia
explicar que se esquecera de uns apontamentos. A presença de Fields podia
parecer menos natural, mas não podia prescindir dela, porque ele era
necessário para garantir a participação do mofino rapaz, que não parecia
ter muito mais de vinte anos. Dan Teal tinha faces imberbes, de criança,
olhos grandes e uma boca bonita, quase feminina, que se mantinha
constantemente em movimento, como a de um roedor.
- Não se preocupe de todo, meu caro senhor Teal - disse-lhe Fields, e
tomou-o pelo braço, quando começavam a subir a imponente escadaria de
pedra, que levava às salas do conselho e às salas de aula do edifício
principal da universidade. - Só precisamos de dar uma vista de olhos rápida
nuns papéis, e depois vamo-nos embora, sem qualquer novidade. Você está
a sair-se muito bem.
- É só isso que eu desejo - disse Teal com sinceridade.
- Bom rapaz - animou-o Fields, sorrindo.
Teal teve de utilizar o chaveiro que lhe tinha sido confiado, para conseguir
abrir a série de ferrolhos e fechaduras. Depois, uma vez franqueada a
entrada, Lowell e Fields acenderam umas velas que levavam numa caixa
para a ocasião, retiraram os livros da Corporação de uma vitrina e
espalharam-nos em cima da mesa comprida.
- Espere aí - disse Lowell a Fields quando o editor se dispunha a
mandar Teal embora. - Olhe para a quantidade de volumes que temos
aqui para analisar, Fields. Três seriam mais eficazes a fazê-lo do que dois.
Apesar do nervosismo, Teal também parecia entusiasmado com a
sua aventura.
- Acho que posso ajudar, senhor Fields. Em qualquer coisa que queira -
ofereceu-se ele. Depois, olhou, confuso, para a massa de livros. - isto é, se
me explicarem o que desejam encontrar.
Fields preparava-se para o aceitar, mas, ao recordar-se da desajeitada
tentativa de Teal para escrever, suspeitou que a sua leitura não fosse muito
melhor.
- Você já fez mais do que lhe competia, e pode ir dormir um bocado - disse
ele. - Mas voltarei a chamá-lo se necessitarmos da sua ajuda. O nosso
sincero obrigado, senhor Teal. Não irá arrepender-se de ter confiado em
nós.
Sob a luz incerta, Fields e Lowell leram todas as páginas das atas das
reuniões bissemanais da Corporação. Chegaram à improvisada condenação
do curso de Lowell sobre Dante, entre os assuntos universitários mais
entediantes.
- Não há nenhuma referência a esse repulsivo Simon Camp. Manning deve
tê-lo contratado por sua conta - disse Lowell. Algumas coisas eram
demasiado turvas até para a Corporação de Harvard.
Depois de passarem os olhos por intermináveis montes de papéis, Fields
encontrou o que procuravam. Em Outubro, quatro dos seis membros da
Corporação tinham apoiado com entusiasmo a ideia de encarregar o
reverendo Elisha Talbot da redacção de críticas sobre a tradução seguinte
de Dante, deixando o assunto da «apropriada compensação pelo tempo e
energias despendidos» à discrição da Comissão de Tesouraria... ou seja, a
Augustus Manning.
Fields começou a retirar os arquivos do Conselho de Inspetores de
Harvard, o órgão de governo composto por vinte pessoas eleitas
anualmente pelo legislativo do estado, mais um posto retirado da própria
Corporação. Ao relerem rapidamente os livros dos inspetores, encontraram
muitas referências do juiz Healey do Supremo Tribunal, um membro da
confiança do conselho até à sua morte.
De vez em quando, o Conselho de Inspetores de Harvard elegia aqueles a
quem chamava advogados, a fim de considerar com maior rigor assuntos
de particular importância ou controversos. Um inspetor que recebesse esse
encargo devia fazer uma apresentação do caso a todo o conselho, usando
no debate os seus dotes de persuasão para «convencer» os circunstantes,
enquanto outro inspetor defendia a postura contrária. O inspetor advogado
eleito não devia ter interesse pessoal algum no assunto, e apresentava
perante o conselho uma avaliação inteligível e clara à margem de toda a
influência e prejuízo.
Na campanha da Corporação contra as diversas actividades relacionadas
com Dante levada a cabo por pessoas destacadamente vinculadas à
universidade - ou seja, a turma de Dante de James Russell Lowell, e a
tradução feita por Henry Wadsworth Longfellow, com o seu suposto «Clube
de Dante» -, os inspetores mostraram-se de acordo em que os advogados
deviam ser escolhidos para apresentar claramente ambos os aspetos do
assunto. O Conselho escolheu como advogado da postura pró-Dante, o juiz
do Supremo Tribunal, Artemus Prescott Healey, um consciencioso
investigador e analista bem dotado.
Healey nunca se apresentara como literato, podendo deste modo avaliar o
caso desapaixonadamente.
Tinham passado vários anos desde que o conselho solicitara a Healey a
defesa de uma postura. A ideia de tomar partido numa jurisdição alheia ao
tribunal, parecia colocar o juiz do Supremo Tribunal numa posição
incómoda, e declinou o pedido do conselho. Desconcertados com a sua
recusa, os membros do conselho deixaram o assunto correr, e naquele
mesmo dia desinteressaram-se pelo destino de Dante Alighieri. A história
da recusa de Healey ocupava apenas duas linhas nos livros de atas da
Corporação. Tendo compreendido as suas implicações, Lowell foi o
primeiro a falar.
- Longfellow tinha razão - murmurou ele. - Healey não era Pôncio Pilatos.
Fields franziu os olhos por cima dos seus óculos de aros dourados.
- O único Neutro que Dante nomeia é o Grande Recusador - explicou Lowell.
- A única sombra que Dante elege para individualizar, enquanto atravessam
a antecâmara do Inferno. Eu li que se trata do Pôncio Pilatos, que lavou as
mãos na hora de decidir o destino de Cristo; do mesmo modo que Healey
lavou as suas em relação ao Thomas Síms e aos outros escravos fugitivos
que compareceram no seu tribunal. Mas o Longfellow, ou melhor, o
Longfellow e o Greene! sempre acreditaram que o Grande Recusador era
Celestino, que não afastou ninguém, mas eludiu uma responsabilidade.
Celestino renunciou ao trono papal, para o qual fora designado, quando a
Igreja Católica mais precisava dele. Isso conduziu à ascensão de Bonifácio e,
em última instância, ao exílio de Dante. O Healey renunciou a uma posição
de grande importância ao recusar argumentar a favor de Dante. E Dante foi
mais uma vez desterrado.
- Desculpe, Lowell, mas não comparo uma recusa do papado à negação de
uma defesa de Dante na reunião de um conselho - respondeu Fields, em
tom de refutação.
- Mas, você não vê, Fields? Nós não estabelecemos essa comparação, mas o
nosso assassino sim.
Chegaram até eles rangidos vindos da espessa crosta de gelo no exterior do
edifício principal da universidade. Os ruídos aproximavam-se. Lowell
correu para a janela.
- Que raio! Um tutor.'
- Tem a certeza?
- Bem, não, não consigo identificar de quem se trata... São dois...
- Eles viram a nossa luz, Jamey?
- Como é que eu posso saber... como é que posso saber... Apague-a!
A voz potente e melodiosa de Horatio Jennison elevou-se acima dos sons do
piano.
«Deixa de temer a hostilidade dos grandes! Sofreste o golpe do tirano! Não
te importes mais em vestir-te e alimentar-te! Para ti, o teu junco é como o
carvalho!»
Era uma das mais belas interpretações da canção de Shakespeare, mas
depois soou a campainha; uma interrupção mais do que inesperada, já que
os seus quatro convidados, sentados em volta da sala, apreciavam a sua
atuação com tal intensidade que pareciam estar à beira do transe mais
completo. Horatio Jennison enviara um bilhete a James Russell Lowell dois
dias antes, a pedir-lhe que considerasse a possibilidade de editar os diários
e cartas de Phineas Jennison, in memoriam, porque Horatio fora nomeado
testamenteiro literário, e queria desempenhar essa função o melhor
possível. Lowell era o redator fundador da The Atlantic Monthly e agora era
o redator chefe da revista The North American Review, e, além de tudo isso,
fora amigo íntimo do seu tio. Mas Horatio não esperara que Lowell
aparecesse simplesmente à sua porta, sem cerimónias, e a uma hora da
noite tão terrivelmente tardia.
Horatio Jennison percebeu imediatamente que a ideia apresentada no seu
bilhete devia ter impressionado Lowell, porque o poeta solicitou com
urgência, ou melhor, exigiu, os volumes mais recentes do diário de
Jennison, e até conseguiu que James T. Fields sugerisse que se planeasse
seriamente a sua publicação.
- Senhor Lowell? Senhor Fields? - Horatio Jennison acorreu à entrada
principal quando os dois visitantes se preparavam para levar os diários,
sem mais conversa. Estes transpuseram a porta e carregaram-nos para a
charrete que os aguardava. - Espero que resolvamos adequadamente o
assunto dos direitos que resultem da publicação.
Durante aquelas horas, o tempo tornou-se imaterial. De regresso a Craigie
House, os eruditos submergiram nas quase indecifráveis garatujas dos
volumes mais recentes do diário de Phineas Jennison. Depois das
revelações relativas a Healey e Talbot, não surpreendeu os dantistas, do
ponto de vista inteletual, que os «pecados» de Jennison punidos por Lúcifer
estivessem relacionados com Dante. Mas James Russell Lowell não podia
acreditar nisso - não podia acreditar numa coisa assim de um amigo a
tantos anos - até a evidência dissipar as suas dúvidas.
Ao longo dos muitos volumes do seu diário, Phineas Jennison expressava o
seu desejo ardente de conseguir um lugar no Conselho da Corporação de
Harvard. Ali, pensava o homem de negócios, alcançaria finalmente o
respeito de que não era credor por não ter estudado em Harvard, por não
descender de uma família de Boston. Ser membro da Corporação
significava ser acolhido num mundo que lhe estivera vedado ao longo de
toda a vida. E que sensação inefável de poder Jennison parecia encontrar
em dominar as mentes mais cultas de Boston, como já fizera com o seu
comércio!
Algumas amizades ficariam condicionadas... ou seriam sacrificadas. Nos
últimos meses, durante as suas repetidas visitas ao edifício principal da
universidade - por ser um considerável patrocinador financeiro do centro e
por, com frequência, ali fazer negócios -, Jennison manteve contatos
particulares com os membros da Corporação para evitar que se ensinasse
disparates, como os propagados pelo professor James Russell Lowell, e que
em breve se estenderiam às massas por Henry Wadsworth Longfellow.
Jennison prometia aos membros-chave do Conselho de Inspetores pleno
apoio financeiro para uma campanha com o objectivo de reorganizar o
Departamento de Línguas Vivas. Ao mesmo tempo, Lowell recordou
amargamente, enquanto lia os diários,'que Jennison andara a incitá-lo a
lutar contra os crescentes esforços da Corporação por limitar as suas
actividades.
Os diários de Jennison revelaram que, durante mais de um ano, ele
colaborara em manobras para vagar um lugar num dos órgãos de governo
da universidade. Atiçara uma controvérsia entre os administradores da
universidade e provocara baixas e demissões, que deviam ser preenchidas.
Depois da morte do juiz Healey, ficara furioso até ao paroxismo porque um
homem de negócios com metade do seu mérito e a quarta parte do seu
senso comum fora eleito para o lugar vago de supervisor, apenas por ser

um brâmane, aristocrata por herança e um insignificante Choate(1). Que


infortúnio! Phineas Jennison sabia que uma pessoa, acima de todas as
outras, impulsionara essa designação - o doutor Augustus Manning.
Não era claro exatamente até que ponto Jennison soubera da implacável
decisão do doutor Manning de cortar todas as ligações da universidade com
os projetos relacionados com Dante, mas, naquele momento, ele descobrira
a sua oportunidade para finalmente assegurar um lugar no edifício
principal da universidade.

w
*1 Família de Massachusetts, em que alguns dos seus membros se
destacaram na área do direito e da política, no século xix e no início do
século xx. [N. da T.]

w
- Nunca houve diferenças entre nós - disse Lowell com tristeza.
- O Jennison animou-o para que você defrontasse a Corporação e incitou
esta a lutar contra si. Uma batalha que teria desgastado Manning. Qualquer
que tivesse sido o resultado final, vagariam alguns lugares, e o Jennison
teria aparecido como um herói ao prestar o seu apoio à causa da
Universidade. Esse foi sempre o seu objectivo - comentou Longfellow,
tentando assegurar a Lowell que ele não fizera nada para perder a amizade
que tinha com Jennison.
- Não me entra na cabeça, Longfellow - disse Lowell.
- Ele contribuiu para o corte de relações entre si e a universidade, Lowell, e,
em contrapartida, cortaram-no a ele - interveio Holmes. - Esse foi o seu
contrapasso.
Holmes fizera sua a preocupação de Nicholas Rey relativamente aos
bocados de papel encontrados junto aos corpos de Talbot e Jennison, e
ambos se tinham sentado juntos durante horas a partilhar possíveis
combinações. Holmes estava agora a compor palavras ou partes de
palavras com cópias manuscritas das letras de Rey. Não havia dúvidas que
outras haviam sido deixadas junto ao corpo do juiz Healey do Supremo
Tribunal, mas, nos dias compreendidos entre o assassínio e a descoberta do
corpo, a brisa proveniente do rio levara os papéis. Essas letras
desaparecidas teriam completado a mensagem que o assassino queria que
eles lessem. Holmes tinha a certeza disso. Sem elas, aquilo era como um
mosaico quebrado. Não podemos morrer sem isto como... im... sobre...
Longfellow fixou a sua atenção numa nova página do diário, no qual
baseava as investigações. Molhou a pluma em tinta, mas ficou a olhar
fixamente em frente durante tanto tempo que a ponta acabou por secar. Ele
não podia escrever a necessária conclusão de tudo aquilo: Lúcifer impusera
os seus castigos em benefício deles, em benefício do Clube de Dante.
O frontispício da Câmara Legislativa do estado, em Boston, rasgava-se ao
cimo da Beacon Hill. Ainda mais acima, elevava-se a cúpula de cobre, que
rematava o edifício, com a sua torre pequena e pontiaguda, a vigiar a cidade
como um farol. Corpulentos olmeiros, despidos e branqueados pela neve de
Dezembro, montavam guarda no recinto.
O governador John Andrew, com os seus caracóis pretos a sobressaírem em
rolos por baixo do seu chapéu preto de seda, permanecia de pé com toda a
dignidade que a sua forma de pêra lhe permitia, enquanto cumprimentava
políticos, dignitários locais e militares fardados,
sempre com o mesmo sorriso distraído, próprio do político. Os óculos
pequenos, de sólidos aros dourados, do governador eram o seu único sinal
de indulgência para com o material.
- Governador.' - O presidente da Câmara Lincoln curvou-se ligeiramente,
enquanto escoltava a senhora Lincoln pelas escadarias de acesso. - Parece
que reuniu os soldados mais ataviados.
- Obrigado, senhor presidente Lincoln. Senhora Lincoln, seja bem-vinda...
Faça favor. - O governador Andrew conduziu-os ao interior. -A
concorrência é mais prestigiosa que nunca.
- Ao que parece, até Longfellow foi acrescentado à lista de convidados -
disse o presidente da Câmara Lincoln, e deu ao governador Andrew uma
palmadinha lisonjeira no ombro.
- É uma coisa muito bonita o que o senhor está a fazer por estes homens,
governador, e nós... a cidade, quero dizer aplaudimo-lo. - A senhora Lincoln
segurou no vestido, que produziu um ligeiro rangido, e entrou com um
passo régio no foyer. Uma vez ali dentro, um espelho pendurado a baixa
altura proporcionou-lhe, a ela e às de mais damas, uma visão dos mais
pequenos pormenores dos seus vestidos, na eventualidade de os seus fatos
se terem desarranjado inadequadamente durante o caminho para a
recepção; um marido era completamente inútil para tais propósitos.
Misturados no vasto salão da mansão com vinte ou trinta convidados, havia
setenta a oitenta militares de cinco companhias diferentes,
esplendidamente ataviados com os seus uniformes e capas de gala. Muitos
dos regimentos mais activos que seriam homenageados tinham apenas um
número reduzido de sobreviventes. Apesar de os conselheiros do
governador Andrew o terem pressionado para incluir naquela reunião
apenas os mais destacados entre o núcleo escolhido dos militares - já que
alguns soldados, denotaram eles, estavam perturbados por causa da guerra
-, Andrew insistira em que todos fossem homenageados pela folha de
serviço e não pelo seu nível social.
O governador Andrew caminhava para o centro do espaçoso salão com um
passo staccato, desfrutando de uma onda de ostentação, enquanto
observava os rostos e sentia o zumbido dos nomes daqueles com quem
tivera a sorte de se familiarizar durante os anos da guerra. Por mais de uma
vez nesses tempos conturbados, o Clube de Sábado enviara Um fiacre à
Câmara Legislativa do estado para forçar Andrew a sair do Seu escritório e
a passar um serão descontraído nos quentes aposentos da casa dos Parker.
Todo aquele tempo fora dividido em duas épocas "" antes da guerra e
depois da guerra. Em Boston, Andrew pensava, «solvemos», enquanto se
misturava sem restrições com as gravatas brancas e os chapéus de seda,
os ouropéis e os cordões dourados dos oficiais, as conversas e os
cumprimentos dos velhos amigos.
George Washington Greene colocou-se ao lado de uma reluzente estátua de
mármore, que representava as Três Graças, cada uma inclinando-se
delicadamente para as outras, com os seus rostos frios e angélicos e os
olhos cheios de uma tranquila indiferença.
«Como podia um veterano de um lugar de auxílio aos soldados, que
escutara os sermões de Greene, conhecer também os minuciosos
pormenores das nossas tensões com Harvard?»
Esta pergunta fora colocada dentro do escritório de Craigie House. Tinham
sido propostas respostas, e eles sabiam que encontrarem essa resposta
significava encontrarem o assassino. Um dos jovens cativados pelos
sermões de Greene podia ter tido um pai ou um tio na Corporação de
Harvard ou no Conselho de Inspetores, que, de forma inocente, tivesse
relatado as suas histórias ao jantar, ignorando o efeito que podiam ter na
mente transtornada de alguém que ocupasse um lugar ao seu lado.
Os eruditos tinham de determinar com exactidão quem estivera presente
nas diversas reuniões do conselho, onde se tratara dos papéis de Healey,
Talbot e Jennison na posição da universidade contra Dante. Essa lista seria
comparada com todos os nomes e perfis que conseguissem reunir dos
soldados acolhidos nesses lugares. Uma vez mais, solicitariam a ajuda do
senhor Teal para aceder à Sala da Corporação. Fields coordenaria o plano
com o seu empregado quando os trabalhadores do turno da noite
chegassem à Corner.
Entretanto, Fields ordenou a Osgood que compilasse uma lista de todo o
pessoal da Ticknor & Fields, que tivesse combatido na guerra, baseando-se
sobretudo no Diretory of Massachusetts Regiments in the War of Rebellion.
Nessa noite, Nicholas Rey e os outros iriam assistir à última recepção do
governador em honra dos soldados de Boston.
Os senhores Longfellow, Lowell e Holmes dispersaram-se pelo apinhado
salão de recepções. Cada um deles mantinha os olhos vigilantes sobre o
senhor Greene, e, com algum pretexto casual, fizeram perguntaS a muitos
veteranos, em busca do soldado que Greene descrevera.
- Dir-se-ia que isto é o aposento das traseiras de uma taberna, em vez da
câmara estatal! - lamentou-se Lowell, enquanto afastava com uma palmada
algum fumo fugidio.
- Então, senhor Lowell, acaso não alardeava o senhor fumar deZ charutos
por dia, e a sensação que isso lhe provocava à chegada da transpiração? -
censurou-o Holmes.
Nós nunca gostamos de pressentir os nossos próprios vícios nos outros,
Holmes. Ah, vamos ver se tomamos um ou dois copos - sugeriu Lowell.
As mãos do doutor Holmes rebuscaram nos bolsinhos do seu colete de seda
lustrosa, e as suas palavras brotaram como que através de uma peneira.
- Todos os soldados com quem falei asseguram nunca ter conhecido
ninguém remotamente parecido com a descrição apresentada pelo Greene,
ou viram um homem exatamente com essas características no outro dia,
mas não sabem o seu nome nem onde poderemos encontrá-lo. Talvez o Rey
tenha tido mais sorte.
- Dante, meu caro Wendell, era um homem de grande dignidade pessoal, e
um dos segredos da sua dignidade era que nunca tinha pressa. Nunca o
encontrará impropriamente apressado... Uma excelente regra para nós
seguirmos.
Holmes emitiu uma gargalhada céptica.
- E você seguiu essa regra?
Lowell conteve-se dando um trago meditativo. Depois disse,
pensativamente:
- Diga-me, Holmes, você alguma vez teve a sua própria Beatrice?
- Perdão, como disse, Lowell?
- Uma mulher que tenha inflamado as profundezas mais terríveis da sua
imaginação.
- Bem, a minha Amélia!
Lowell rebentou em gargalhadas que pareciam bramidos.
- Oh, Holmes! Você nunca quebrou os seus votos? Uma esposa nunca pode
ser a sua Beatrice. Confie no que lhe digo, porque eu, à semelhança de
Petrarca, Dante e Byron, estive perdidamente apaixonado antes dos dez
anos. Só o meu coração sabe as angústias que sofri.
- Fanny ia adorar esta conversa, Lowell!
- Ora! Dante teve a sua Gemma, que foi a mãe dos seus filhos, mas não
alcançou a sua inspiração! Você sabe como é que eles se conheceram?
Longfellow não acredita nisto, mas Gemma Donati é a dama mencionada na
Vita Nuova, que consola Dante pela perda de Beatrice. Sabe, aquela jovem?
Holmes seguiu o olhar fixo de Lowell até uma jovem delgada, de cabelo
negro e lustroso, que resplandecia sob os brilhantes candelabros do salão.
- Ainda me lembro... Foi em 1839, na Galeria Allston. Ali estava a criatura
mais bela que os meus olhos já tinham visto. Não era estranho que aquela
beleza tivesse deslumbrado os amigos do marido, ali, ao canto. As suas
feições eram perfeitamente judias. Ela tinha uma tez morena,
mas o seu era um dos rostos claros no qual cada sombra de sentimento
brota dele como a sombra de uma nuvem sobre a relva. Do lugar que eu
ocupava na sala, todo o contorno dos seus olhos emergia completamente
das sombras das suas sobrancelhas e da tonalidade da sua tez, de modo que
só se conseguia ver uma glória indefinida e misteriosa. Mas que olhos!
Quase me fizeram estremecer. Aquela visão única da sua seráfica
formosura inspirou-me mais poesia...
- Ela era inteligente?
- Santo Deus, não sei! Ela bateu as pestanas na minha direcção, e não
consegui pronunciar uma única palavra. Só há uma maneira de atuar com
as mulheres namoriscadeiras, Wendell, fugir. Ainda assim, passados vinte e
cinco anos ou mais, não consigo afastá-la da memória. Garanto-lhe que
todos temos a nossa própria Beatrice, quer ela viva próximo de nós quer
viva apenas na nossa mente.
Lowell parou de falar quando Rey se aproximou.
- Agente Rey, os ventos sopraram a nosso favor... É tudo quanto posso
dizer-lhe. Temos sorte em podermos contar consigo ao nosso lado.
- Pode agradecê-lo à sua filha - disse Rey.
- A Mabel? - Lowell virou-se para ele, espantado.
- A Mabel foi falar comigo para me convencer a ajudá-los, meus senhores.
- A Mabel falou consigo em segredo? Holmes, você sabia disto? - perguntou-
lhe Lowell.
Holmes negou com a cabeça.
- De modo nenhum. Mas temos de a felicitar!
- Se você for severo com ela por causa disto, professor Lowell -avisou-o Rey
com um gesto sério, levantando o queixo -, terei de o prender.
Lowell riu com vontade.
- Esse é um bom argumento, agente Rey! Agora, mantenhamos a panela a
ferver.
Rey anuiu com um gesto cúmplice e continuou a sua ronda pelo salão.
- Você imagina isto, Wendell? A Mabel a conspirar nas minhas costas deste
modo, achando que pode mudar as coisas!
- Ela é uma Lowell, meu bom amigo.
- O senhor Greene está a aguentar - informou Longfellow, juntando-se a
Lowell e a Holmes. - Mas preocupa-me que... - Longfellow interrompeu-se. -
Ah, aí vêm a senhora Lincoln e o governador AndreW-
Lowell revirou os olhos. O seu lugar na sociedade demonstrava ser
incómodo para os seus propósitos daquela noite,
já que distribuir apertos de mão e manter conversas animadas com
professores, ministros, políticos e funcionários da universidade o distraíam
da finalidade que se haviam proposto alcançar. - Senhor Longfellow.
Longfellow virou-se para se encontrar com um trio feminino da alta
sociedade de Beacon Hill.
- Então, boa noite, minhas senhoras - disse Longfellow.
- Eu estava justamente a falar de si, senhor, durante umas férias em Buffalo
- disse a beldade de cabelo negro e brilhante daquela trindade.
- Ah, sim? - perguntou Longfellow.
- Sim, com Miss Mary Frere. Ela fala de si com muito carinho, diz que é uma
pessoa rara. Pelo que ela conta, passou momentos fantásticos consigo e a
sua família em Nahant, no Verão passado. E agora acontece que o encontro
aqui. Que maravilha!
- Ah, muito bem, é muito amável da sua parte - respondeu Longfellow a
sorrir, mas rapidamente dirigiu o olhar para longe. - Por onde anda o
professor Lowell? Viu-o por aí?
Próximo, Lowell voltava a contar prolixamente uma das suas típicas
anedotas a um pequeno grupo.
- Então, o Tennyson exclamou da cabeceira da mesa: «Sim, que raio. Eu
gostava de agarrar numa faca e de lhes arrancar as tripas!» Apesar de ser
um verdadeiro poeta, o rei Alfred não usava perífrases, como «vísceras
abdominais», para designar essa parte do corpo!
Os ouvintes de Lowell riram e gracejaram. - Se dois homens tentassem ser
parecidos - disse Longfellow, voltando-se novamente para as três damas,
que permaneciam ali de pé, com as orelhas de um tom rosado vivo e as
bocas muito abertas -, não o conseguiriam melhor do que o Lorde
Tennyson e o professor Lovering, da nossa universidade.
A beldade de cabelos negros e brilhantes dirigiu um olhar agradecido à
rápida fuga de Longfellow para se afastar do comentário inapropriado de
Lowell.
- É algo que dá que pensar, não é? - interjeitou ela.
Quando Oliver Wendell Holmes Júnior recebeu um bilhete do seu pai, para
que também assistisse ao banquete dos soldados na Câmara Legislativa
estatal, ele suspirou, releu-o e proferiu uma maldição. Não era tanto por se
importar com a presença do seu pai, mas também não achava que fosse um
serão agradável. Como está o seu querido pai? Continua a sua forma
atabalhoada de dar aulas, enquanto pensa nos seus poemas?
É verdade que o doutorzinho consegue pronunciar xxx palavras por
minuto, capitão Holmes? Porque havia ele de ser incomodado com
perguntas sobre o assunto favorito do doutor Holmes, a saber, o próprio
doutor Holmes?
Num grande grupo de membros do seu regimento, Júnior era agora
apresentado a vários cavalheiros escoceses, que faziam parte de uma
delegação que estava de visita. Ao ser pronunciado o nome completo de
Júnior, produziu-se a habitual enumeração de perguntas relativas ao seu
parentesco.
- É filho de Oliver Wendell Holmes? - indagou um recém-incorporado na
conversa, um escocês sensivelmente da idade de Júnior, que se apresentou
como uma espécie de mitólogo.
- Sou.
- Bem, eu não gosto dos livros dele - disse o mitólogo a sorrir, e afastou-se.
No silêncio que pareceu rodear Júnior, ali, sozinho no meio da charla, de
repente, ele sentiu-se irado contra a omnipresença do seu pai no mundo, e
voltou a amaldiçoá-lo. Seria desejável estender a própria fama de forma tão
indiscriminada, que vermes como o que Júnior acabara de conhecer,
pudessem considerá-lo um? Júnior virou-se e viu o doutor Holmes na
extremidade de um círculo, com o governador, e James Lowell a gesticular
no centro. O doutor Holmes colocara-se em bicos de pés, tinha a boca
aberta e estava à espera de uma oportunidade para falar. Júnior contornou
o grupo e dirigiu-se para o outro lado do salão.
- Wendy, olha? - Júnior fingiu não ouvir, mas o chamamento repetiu-se, e o
doutor Holmes abriu caminho por entre alguns soldados para se aproximar
dele.
- Olá, pai.
- Então, Wendy, não queres vir cumprimentar Lowell e o governador
Andrew? Anda, deixa-me mostrar-te como estás tão aprumado no teu
uniforme! Ah, ali está!
Júnior reparou que os olhos do seu pai percorriam o salão.
- Deve ser a camarilha escocesa de que Andrew estava a falar.-Ali, Júnior.
Eu gostava que conhecesses o jovem mitólogo, senhor Lang, e discutisses
com ele algumas ideias que tenho sobre Orfeu juntar-se a Eurídice fora das
regiões infernais. Leste alguma coisa dele, Wendy?
O doutor Holmes tomou o braço de Júnior e puxou-o para o outro lado do
salão.
- Não. - Júnior retirou o braço com força para deter o seu pai. O doutor
Holmes olhou-o, magoado. - Eu só aqui vim para comparecer ao lado do
meu regimento, pai. Tenho de ir ter com Minny a casa de James. Por favor,
peça desculpa por mim aos seus amigos.
- Já olhaste bem para nós? Nós formamos uma feliz irmandade, Wendy.
Cada vez mais, à medida que os anos vão passando. Meu rapaz, desfruta da
tua travessia no navio da juventude, porque é facílimo perder-se no mar!
- É, pai - disse Júnior, olhando por cima do ombro do seu progenitor para o
mitólogo, que falava fazendo trejeitos. - Ouvi esse tipo Lang falar mal de
Boston.
A expressão de Holmes tornou-se solene.
- Ah, sim? Pois então, não merece que percamos o nosso tempo com ele,
meu filho.
- Se o senhor o diz, meu pai. Diga-me, ainda está a trabalhar naquele novo
romance?
O sorriso de Holmes desvaneceu-se diante do interesse insinuado pela
pergunta de Júnior.
- De fato! Ultimamente, outros assuntos tomaram muito do meu tempo,
mas Fields promete que ganharei muito dinheiro quando o publicar. Terei
de me lançar ao Atlântico se não o fizer... quero dizer, à água propriamente,
não à revista The Atlantic, de Fields.
- Vai convidar os críticos a caírem-lhe em cima novamente - disse Júnior,
hesitando continuar a expressar o seu pensamento. De repente, desejou ser
suficientemente rápido para trespassar o verme do mitólogo com o seu
sabre regulamentar. Prometeu a si próprio ler a obra desse Lang, mesmo
sabendo que lhe daria muita satisfação se ela tivesse pouca qualidade. -
Talvez eu tenha oportunidade de ler esse romance, pai. Vamos ver se
arranjo tempo.
- Eu ficaria muito contente, meu rapaz - respondeu Holmes,
tranquilamente, enquanto Júnior se preparava para se ir embora.
Rey encontrara um dos soldados mencionados pelo diácono do lugar de
acolhimento dos soldados, um veterano só com um braço, que acabara de
dançar com a sua esposa.
- Alguns diziam-me - explicou orgulhosamente o soldado a Rey -, quando
vos mobilizaram a vocês, rapazes: «Eu não estou a combater numa guerra
de negros.» Ah, não faz a mínima ideia de como isto me envergonhava.
- Por favor, senhor Tenente - disse Rey. - Este cavalheiro que lhe descrevi...
acha que alguma vez o pode ter visto no lugar de auxílio aos soldados?
- Seguramente, seguramente. Um bigode em forma de volante e cor de feno.
Quase sempre de uniforme vestido. Blight... É como ele se chama.
Tenho a certeza disso, embora não tenha a certeza absoluta. Capitão Dexter
Blight. Perspicaz, sempre a ler. Um bom oficial, ainda que me pareça que
não assistia aos cultos religiosos.
- Diga-me, por favor, ele interessava-se muito pelos sermões do senhor
Greene?
- Ah, estou certo de que eles agradavam ao velho brigão! E sabe que aqueles
sermões eram como uma lufada de ar fresco. Eram do mais ousado que
alguma vez ouvi. Ah, claro, o capitão, mais do que ninguém, gostava deles,
ou pelo menos era isso que me parecia!
Rey mal conseguia conter-se.
- Sabe onde posso encontrar o capitão Blight?
O militar bateu com o coto na palma da sua única mão e fez uma pausa.
Depois lançou o braço são em volta da sua esposa.
- Bem, sabe, senhor agente, aqui a minha cara bonita deve ter-lhe dado
sorte.
- Oh, por favor, Tenente - protestou ela.
- Julgo saber onde o senhor pode encontrá-lo - disse o veterano. - Ali à
frente.
O capitão Dexter Blight, do 19.o Regimento de Massachusetts, tinha um
bigode revirado em forma de U, invertido, cor de feno, tal como Green o
descrevera.
O olhar fixo de Rey, que não durou mais de três segundos, foi discreto mas
vigilante. Ele estava surpreendido com a extrema curiosidade que sentia
por cada pormenor da aparência do homem.
- Senhor agente Rey, não é? - O governador Andrew olhou para o rosto de
Rey, e, cerimoniosamente, estendeu-lhe a mão. - Não estava à espera de o
encontrar aqui!
- Eu não pensava vir, governador. Espero que me perdoe.
Com isto, Rey recuou para um aglomerado de soldados, e o governador, que
o admitira na Polícia de Boston, ficou ali, de pé, fazendo um gesto de
incredulidade.
A sua súbita presença, que aparentemente passara despercebida aos
demais participantes da recepção, desfez todos os outros pensamentos dos
membros do Clube de Dante, quando todos eles, um a um, foram
informados. Fixaram nele um olhar colectivo. Podia aquele homem,
aparentemente mortal e vulgar, ter surpreendido Phineas Jennison e tê-lo
despedaçado? As suas feições eram marcadas e conferiam-lhe uma
expressão triste, mas, além de tudo o mais, não tinham nada de notável, sob
o seu chapéu de feltro preto e o seu dólmã com uma única fileira de botões.
Seria ele? O tradutor savant, que convertera as palavras de Dante em acção,
aquele que se antecipara a eles uma e outra vez?
Holmes desculpou-se diante de alguns admiradores e correu a juntar-se a
Lowell.
- Aquele homem... - sussurrou Holmes, prisioneiro da sensação de temor de
que algo correra mal.
- Já sei. - Lowell devolveu-lhe o sussurro. - O Rey também o viu.
- Devíamos fazer com que o Greene se aproximasse dele? - perguntou
Holmes. - Há qualquer coisa naquele homem. Ele não parece...
- Olhe! - disse Lowell, rapidamente.
Nesse instante, o capitão Blight descobriu George Washington Greene
vagueando sozinho. As proeminentes narinas do soldado dilataram-se com
interesse. Absorto no meio das pinturas e esculturas, Greene continuou a
deambular, como se estivesse numa exposição de fim-de-semana. Blight
contemplou Greene por instantes, depois, em passos lentos e incertos,
dirigiu-se para ele.
Rey avançou para se situar mais próximo, mas quando se virou com o
objectivo de vigiar Blight, reparou que Greene conversava com um
bibliófilo. Blight transpusera a porta.
- Atenção - exclamou Lowell. - Ele está a ir-se embora!
O ar estava demasiado sereno para que houvessem nuvens ou caísse neve.
O céu limpo mostrava uma meia-lua tão exata que parecia ter sido cortada
com uma lâmina acabada de afiar.
Rey distinguiu um soldado de uniforme no Common. Ele coxeava e apoiava-
se num bastão de marfim.
- Capitão! - chamou-o Rey.
Dexter Blight virou-se e olhou com dureza aquele que o chamava,
revirando os olhos.
- Capitão Blight.
- Quem é você? - A sua voz soou profunda e resoluta.
- Nicholas Rey. Preciso de falar consigo - disse Rey, mostrando-lhe o seu
distintivo de polícia. - É só por um momento.
Blight cravou o seu bastão no gelo, movendo-se mais depressa do que Rey
julgara ser possível.
- Não tenho nada a dizer! Rey agarrou Blight pelo braço.
- Se está a pensar prender-me, arranco-lhe as suas malditas tripas e atiro-
as ao lago Frog! - gritou Blight.
Rey temeu ter cometido um terrível engano. Aquele incontrolado estalido
de ira, a emoção não contida, eram próprios de alguém que tem medo, não
de um homem intrépido... Não daquele que eles procuravam. Ao olhar para
trás, para a Câmara Legislativa do estado, cujas escadarias os membros do
Clube de Dante se apressavam a descer, com a esperança reflectida nos
rostos, Rey viu também os rostos das pessoas de toda a cidade de Boston,
que o tinham levado àquela busca. O chefe Kurtz, que a cada morte
dispunha de menos tempo como guardião de uma cidade que estava a
expandir-se com demasiada voracidade para se adaptar ao que cada um
gostaria de chamar lar. Ednah Healey, com a sua expressão a esmorecer sob
a luz mortiça do seu quarto, arrancando com as próprias mãos a sua carne,
esperando voltar a ser ela mesma inteira. O sacristão Gregg e Grifone
Lonza, mais duas vítimas, não propriamente do assassino, mas do medo
insuportável que os homicídios tinham gerado.
Rey intensificou o seu aperto sobre Blight, que se debatia, e encontrou o
olhar fixo, dilatado e cauteloso do doutor Holmes, que, segundo parecia,
partilhava todas as suas dúvidas. Rey pediu a Deus que ainda houvesse
tempo.
Finalmente, resmungou Augustus Manning ao responder ao toque da
campainha da porta e deixar entrar a sua visita.
- Vamos para a biblioteca?
O afetado Pliny Mead escolheu o lugar mais cómodo para se sentar, no
centro do canapé de pele de toupeira de Manning.
- Agradeço-lhe ter acedido a vir ter comigo a uma hora tão tardia, senhor
Mead, e fora da universidade - disse Manning.
- Bem, desculpe o atraso. A mensagem do seu secretário fazia referência ao
professor Lowell. Trata-se do nosso curso sobre Dante?
Manning passou uma mão pelo regueiro nu que tinha entre os seus dois
tufos de cabelo branco, como dois penachos.
- Com efeito, senhor Mead. Diga-me, você falou com o senhor Camp sobre o
curso?
- Falei, sim - disse Mead. - Durante umas horas. Ele queria saber tudo o que
eu pudesse contar-lhe sobre Dante. Disse-me que o fazia a seu pedido.
- E assim foi, efectivamente. Contudo, desde então, não parece querer falar
comigo. Pergunto-me porquê.
Mead torceu o nariz.
- E agora, posso saber de que assunto se trata, senhor?
- Não devia, meu filho, claro. Mas pensei que mesmo assim talvez me
pudesse ajudar. Pensei que talvez pudéssemos reunir a nossa informação
para ver se percebe o que pode ter sucedido para que tão rapidamente se
tenha produzido essa alteração na conduta do professor Lowell.
Mead fitou-o lívido e obsequioso, mas estava decepcionado por a reunião
lhe conceder um escasso benefício e divertimento. Sobre a mísula havia
uma caixa de cachimbos. Ele acalentou a ideia de fumar junto à lareira de
um membro da Corporação de Harvard.
- Esses parecem Al, doutor Manning.
Manning anuiu complacente e preparou um cachimbo para a sua visita.
- Tome, ao contrário do que acontece no nosso campus, aqui podemos
fumar abertamente. Também podemos falar francamente, com palavras
que brotem com tanta liberdade como o nosso fumo. Há outros
acontecimentos estranhos relacionados com o anterior, senhor Mead, que
eu gostaria de trazer à luz. Um polícia veio ter comigo e começou a fazer-
me perguntas sobre o seu curso de Dante, mas depressa se deteve, como se
quisesse dizer-me algo importante, mas tivesse mudado de ideias.
Mead fechou os olhos e exalou fumo, voluptuosamente. Augustus Manning
mostrara-se bastante paciente.
- Interrogo-me, senhor Mead, se o senhor tem consciência de que o seu
lugar no curso não tem feito outra coisa senão descer.
Mead entorpeceu o corpo, como um rapazinho da primária, disposto a
receber uns açoites.
- Senhor, doutor Manning, acredite que não é por nenhuma outra razão,
além...
Ele interrompeu.
- Eu sei, meu bom rapaz. Eu sei o que se passa. A turma do professor Lowell
no último período escolar... isso é que é bem lamentável. Os seus irmãos
sempre ocuparam primeiros lugares nas suas turmas, não foi?
Encrespado pela humilhação e pela fúria, o estudante desviou o olhar.
- Talvez possamos fazer alguns ajustes no número que ocupa na turma, a
fim de o situar mais na linha de honra da sua família.
Os olhos verde-esmeralda de Mead avivaram-se.
- A sério, senhor?
- Talvez agora eu também dê umas fumaças - murmurou Manning,
levantando-se da cadeira de braços e examinando os seus bonitos
cachimbos.
A mente de Pliny Mead esforçava-se por deduzir o que podia haver por
detrás daquela proposta de Manning. Ele evocou o seu encontro com Simon
Camp passo a passo. O detective da Pinkerton tentara reunir dados
negativos acerca de Dante para informar o doutor Manning e a Corporação,
com o objectivo de reforçar a posição deles contra a reforma e a abertura
do plano curricular. No segundo encontro, Camp parecera excessivamente
interessado, agora que Mead pensava nisso. Mas ele desconhecia o que o
detective privado podia ter pensado. Também não entendia a razão pela
qual os policiais de Boston tinham andado a fazer perguntas sobre Dante.
Mead pensou nos recentes acontecimentos públicos, na insanidade da
violência e no medo que envolviam a cidade. Camp pareceu
particularmente interessado no castigo dos Simoníacos, quando Mead o
referiu como fazendo parte de uma longa lista de exemplos. Mead pensou
nos muitos rumores que ouvira sobre a morte de Elisha Talbot; vários
deles, apesar dos pormenores diferirem, aludiam aos pés carbonizados do
ministro. Os pés do ministro. Depois, havia o pobre juiz Healey, encontrado
nu e coberto de...
Malditos fossem todos! E Jennison também! Seria possível? E se Lowell o
sabia, explicava isso o seu súbito cancelamento do curso sobre Dante sem
nenhuma explicação conveniente? Podia Mead, inconscientemente, levar
Simon Camp a compreender tudo? Ocultara Lowell o que sabia à
universidade, à cidade? Podia ele ser arrastado para a ruína por isso!
Malditos!
Mead levantou-se com um salto.
- Doutor Manning, doutor Manning!
Manning conseguiu acender um fósforo, mas logo o apagou, baixando
rapidamente a voz até a converter num murmúrio.
- Ouviu alguma coisa vinda da entrada? Mead prestou atenção e negou com
a cabeça.
- Senhora Manning, senhor?
Manning levou à boca um dedo longo e torcido, e saiu deslizando do salão
para o vestíbulo da entrada.
Instantes depois, voltou para junto da sua visita.
- É imaginação minha - comentou, fixando o olhar em Mead com firmeza. -
Só quero que você tenha a certeza que absolutamente ninguém nos escuta.
Pressinto que tem algo importante para partilhar comigo esta noite, senhor
Mead.
- Posso ter, de fato, doutor Manning - respondeu Mead com inércia, já que
tinha organizado a sua estratégia durante o tempo que Manning levara a
comprovar a privacidade deles. Dante é um assassino maldito, doutor
Manning. Ah, sim, posso, de fato, compartilhar algo.
- Falemos primeiro do meu lugar na turma - disse Mead. - Depois, podemos
tratar de Dante. Ah, creio que o que tenho para lhe dizer lhe vai interessar
muitíssimo, doutor Manning.
Manning transbordava de alegria.
- Bom, e se eu servisse umas bebidas para acompanhar os nossos
cachimbos?
- Para mim um xerez, por favor.
Manning serviu o estimulante pedido, que Mead esvaziou de um único
trago.
- E, porque não outro, meu caro Auggie? Assim, demolhamos a noite.
Augustus Manning inclinou-se sobre o seu aparador, disposto a servir outra
bebida. Esperava, para bem do estudante, que o que ele tivesse para dizer
fosse importante. Ouviu uma pancada estrondosa e significativa,
percebendo, sem olhar, que o rapaz partira um objeto precioso. Manning
olhou para trás de soslaio, com irritação. Pliny Mead estava estendido
inconsciente no seu canapé, com os braços pendurados frouxamente de
cada lado do corpo.
Manning rodou sobre si mesmo, e a garrafa de cristal resvalou-lhe uns
centímetros da mão. O administrador ficou a olhar fixamente para o rosto
de um soldado de uniforme, um homem que vira quase diariamente pelos
corredores do edifício principal da universidade. O soldado também
mantinha um olhar fixo e mascava qualquer coisa esporadicamente.
Quando os seus lábios se separaram, uns pontos moles e brancos boiavam
na sua língua. Ele cuspiu, e um dos pontos brancos aterrou no tapete.
Manning não conseguiu deixar de olhar; parecia ter duas letras impressas
no húmido fragmento de papel... Lei.
Manning apressou-se a ir para o canto da sala, onde uma espingarda de
caça estava pendurada a decorar a parede. Subiu a uma cadeira de braços
para a alcançar, mas depois gaguejou: - Não. Não.
Dan Teal retirou a arma das mãos trémulas de Manning e golpeou-lhe o
rosto com a culatra, num movimento desprovido de esforço. Depois,
permaneceu ali, de pé, observando como o traidor, gelado até ao âmago do
seu coração, se agitava e caía redondo no chão.

XVII




DR. HOLMES SUBIU A LARGA ESCADARIA QUE CONDUZIA À Sala

O dos Autores.
- O agente Rey não voltou? - perguntou ele, ofegante. O sobrolho
franzido de Lowell expressava a sua contrariedade.
- Bem, talvez o Blight... - começou Holmes. - Talvez ele saiba alguma coisa, e
o Rey chegue com boas notícias. E em relação à sua visita ao arquivo do
edifício principal da universidade?
- Lamento, mas não foi feita - disse Fields, olhando para a sua barba.
- Porquê? - perguntou Holmes. Fields permaneceu em silêncio.
- O senhor Teal não apareceu esta noite - explicou Longfellow. - Talvez
tenha adoecido - acrescentou, rapidamente.
- Não é provável - disse Fields, cabisbaixo. - Os registos demonstram que,
em quatro meses, o jovem Teal não faltou a um único turno. Eu causei
alguma confusão na cabeça daquele pobre rapaz, Holmes. E depois de ter
demonstrado a sua lealdade uma e outra vez.
' - Que tolice... - começou Holmes por dizer.
- Você acha? Não devia tê-lo envolvido nisto! Talvez o Manning tenha
descoberto que o Teal nos ajudou a entrar lá e o tenha mandado prender.
Ou esse indesejável Samuel Ticknor pode ter-se vingado do Teal por ter
posto fim aos seus vergonhosos jogos com a Miss Emory. Entretanto,
estivemos a falar com todos os meus empregados que combateram na
guerra. Nenhum admitiu alguma vez ter recorrido a um lugar de auxílio aos
soldados, nem nenhum revelou algo que remotamente mereça ser referido.
Lowell caminhava para a frente e para trás, arrastando os pés
exageradamente, inclinando a cabeça para a janela gelada e olhando para a
opaca paisagem de bancos de neve.
- O Rey acha que o capitão Blight era apenas mais um dos soldados que
apreciavam os sermões do Greene. É provável que o Blight diga ao Rey
nada sobre outros,
mesmo depois de se ter acalmado. Talvez não saiba nada sobre os outros
militares do lugar de auxílio aos soldados! E, sem o Teal, não temos a
menor esperança de entrar nas instalações da Corporação. Nunca mais
deixamos de bombear poços secos! Bateram à porta e entrou Osgood, que
informou que dois empregados, veteranos da guerra, esperavam por Fields
na cafetaria. O chefe administrativo dera-lhe os nomes de todos os antigos
soldados ao serviço da Ticknor & Fields. Eram doze homens: Heath, Miller,
Wilson, Collins, Holden, Sylvester, Rapp, Van Doren, Drayton, Flagg, King e
Kellar. Um antigo empregado, Samuel Ticknor, fora mobilizado, mas, ao
cabo de duas semanas com o uniforme vestido, pagara três mil dólares para
enviarem um substituto para o seu lugar.
«Previsível», pensou Lowell, e depois disse: - Fields, dê-me a direcção do
Teal e eu próprio vou buscá-lo. Em todo o caso, não podemos fazer nada até
o Rey voltar. Holmes, você vem comigo?
Fields deu instruções a J. R. Osgood para que permanecesse nas instalações
do pessoal, no caso de a sua presença ser necessária. Osgood acomodou-se
numa cadeira de braços, com um olhar cansado. Para ocupar o tempo,
retirou um livro de Harriet Beecher Stowe da prateleira mais próxima, e, ao
abri-lo, encontrando alguns fragmentos de papel, sensivelmente do
tamanho de flocos de neve, que haviam sido rasgados da página de rosto,
onde figurava uma dedicatória de Stowe a Fields. Osgood folheou o livro e
reparou que se cometera o mesmo sacrilégio em várias outras páginas.
- Que estranho!
Em baixo, na estrebaria, Lowell e Holmes descobriram horrorizados que a
égua de Fields se contorcia no chão, incapaz de andar. A sua companheira
olhava-a com tristeza e coiceava quem quer que tentasse aproximar-se. A
epidemia que afetava as estrebarias desorganizara completamente os
meios de transporte de toda a cidade, de modo que os dois poetas se viram
forçados a deslocar-se a pé.
O número, meticulosamente escrito no impresso de solicitação de emprego
de Dan Teal, encaixava bem com a modesta casa no bairro sul da cidade.
- Senhora Teal? - cumprimentou Lowell, pressionando o chapéu diante da
consternada mulher que abrira a porta. - Chamo-me Lowell e este é o
doutor Holmes.
- Senhora Galvin - corrigiu ela, colocando uma mão no peito. Lowell
confirmou o número da casa com o que tinha escrito no papel. - Vive aqui
algum hóspede com o apelido Teal?
Ela olhou para eles com uns olhos tristes.
- Eu chamo-me Harriet Galvin. - Ela repetiu o seu apelido lentamente, como
se os seus interlocutores fossem crianças ou pessoas de fraco
entendimento. - Moro aqui com o meu marido, e não temos hóspedes.
Nunca ouvi falar nesse senhor Teal, senhor.
- Então, mudaram-se para aqui recentemente? - perguntou-lhe o doutor
Holmes.
- Já estamos aqui há cinco anos.
- Mais poços secos - murmurou Lowell.
- Minha senhora - disse Holmes -, pode ter a amabilidade de nos ceder uns
instantes para esclarecermos a situação?
Ela franqueou-lhes a entrada e de imediato atraiu a atenção de Lowell um
retrato em ferrotipia, pendurado na parede.
- Ah, posso pedir-lhe um copo de água, minha querida senhora? -perguntou
Lowell.
Depois de ela sair, ele encaminhou-se rapidamente para o retrato
emoldurado de um soldado, com uniforme novo mas de um tamanho acima
do seu.
- Santo Deus! É ele, Wendell! É tão certo como estarmos aqui em como é o
Dan Teal!
E era.
- Ele esteve no exército? - perguntou Holmes.
- Não figurava em nenhuma das listas de soldados elaboradas pelo Osgood,
nem dos que o Fields esteve a entrevistar!
- E aqui está a explicação para isso: «O alferes Benjamin Galvin» -Holmes
leu o nome gravado no retrato, em baixo. - Teal é um nome falso. Depressa,
enquanto ela está ocupada. - Holmes introduziu-se no compartimento
contíguo, que estava cheio de artigos militares do tempo da guerra,
cuidadosamente dispostos, mas um objeto atraiu de imediato a sua
atenção. Era um sabre, que estava pendurado na parede. Holmes sentiu que
uma sensação de arrepio lhe percorria os ossos, e chamou Lowell. O poeta
apareceu e todo o seu corpo estremeceu diante daquela visão.
Holmes espantou um mosquito, que voava em círculos, e que voltou
diretamente para ele.
- Esqueça o bicho! - disse Lowell, e esmagou-o. Holmes retirou
delicadamente a arma da parede.
- É justamente o tipo de lâmina... Estes eram os ornamentos pre' ciosos dos
nossos oficiais, lembranças das formas de combate mais civi lizadas do
mundo. Wendell Júnior tem um sabre e acarinhou-o como a um bebé
naquele banquete... Esta lâmina pode ter mutilado Phineas Jennison.
- Não. Não tem nenhuma mancha - disse Lowell, aproximando-se
cuidadosamente do reluzente instrumento.
Holmes passou um dedo pelo aço.
- Não podemos afirmá-lo a olho nu. Uma tal carnificina não se limpa
facilmente apenas com uns dias passados, nem com todas as águas de
Neptuno. - Depois, os seus olhos pousaram na mancha de sangue da parede,
tudo o que restava do mosquito.
Quando a senhora Galvin voltou com dois copos de água, viu o doutor
Holmes com o sabre nas mãos e pediu-lhe que parasse com o que estava a
fazer. Holmes, ignorando-a, dirigiu-se para a entrada e saiu para o exterior.
Ela sentiu-se ofendida e intimou-o a regressar a casa e a restituir aquele
objeto da sua propriedade, ameaçando-o chamar a polícia. Lowell interpôs-
se entre ambos. Ouvindo os protestos da mulher nos lugares recônditos da
sua mente, Holmes permaneceu de pé no passeio e levantou o pesado sabre
à sua frente. Um minúsculo mosquito voou para a lâmina, como uma
limalha de ferro atraída por um íman. Depois, num abrir e fechar de olhos,
apareceu outro, e mais dois, e três juntos formaram um grupo
desordenado. Passados poucos segundos, todo um enxame verrumava e
zumbia sobre a lâmina, onde o sangue penetrara profundamente.
Ao ver aquilo, Lowell interrompeu-se a meio da frase. - Chame os outros,
imediatamente! - gritou-lhe Holmes.
as frenéticas perguntas daqueles homens, que insistiam em saber do seu
marido, alarmaram Harriet Galvin. Ela ficou abatida e silenciosa,
observando a alternância de gestos e explicações entre Holmes e Lowell,
até um batimento na porta os deixar em suspenso. J. T. Fields apresentou-
se, mas Harriet fixou o seu olhar na delgada e leonina figura que estava
atrás desta, rechonchuda e solícita. Emoldurado com a brancura prateada
do céu, nada era mais puro do que o seu olhar perfeitamente calmo. Ela
levantou uma mão trémula, como se lhe fosse tocar na barba, e, de fato,
depois de o poeta seguir Fields para o interior, os dedos da mulher tocaram
nas ondas dos seus cabelos. Ele recuou um passo. Ela Pediu-lhe que
entrasse.
Lowell e Holmes olharam um para o outro.
- Talvez ela ainda não nos tenha reconhecido - sussurrou Holmes. Lowell
concordou.
Ela tentou explicar o melhor que conseguiu como estava maravilhada.
Como lia a poesia de Longfellow todas as noites antes de adormecer; como
quando o marido estivera prostrado na cama a seguir à guerra,
ela lhe recitava Evangeline; e como aqueles ritmos suavemente palpitantes,
a lenda do amor fiel, mas incompleto, o acalmavam até enquanto dormia... E
até agora, às vezes, disse ela com tristeza. Ela sabia palavra por palavra «A
Pealm of Life», e também ensinara o marido a lê-lo. Sempre que ele ia a
casa, aqueles versos eram para ela a sua única libertação do medo. Mas a
sua explicação converteu-se sobretudo numa repetição da pergunta:
«Porquê, senhor Longfellow...» Ela rogou-lhe uma e outra vez, antes de
irromper em soluços.
Longfellow disse com suavidade:
- Senhora Galvin, nós precisamos absolutamente de uma ajuda, que só a
senhora pode prestar. Temos de encontrar o seu marido.
- Esses homens parecem procurá-lo para lhe fazer mal - disse ela,
referindo-se a Lowell e a Holmes. - Não compreendo. Porque é que o
senhor... Porque há-de o senhor, senhor Longfellow, querer conhecer
Benjamin?
- Lamento, mas não temos tempo para lhe explicar de forma satisfatória -
respondeu Longfellow.
Pela primeira vez, ela afastou os olhos do poeta.
- Bem, eu não sei onde ele está, e sinto vergonha por isso. Já só vem a casa
raramente, e quando vem, mal fala. Chega a estar fora durante vários dias.
- Quando foi a última vez que a senhora o viu? - perguntou Fields.
- Hoje, ele esteve aqui por um momento, umas horas antes de os senhores
chegarem.
Fields puxou do seu relógio.
- E para onde ia quando saiu daqui?
- Ele costumava tomar conta de mim. Mas, agora, para ele não passo de um
fantasma.
- Senhora Galvin, esta é uma questão de... - começou Fields por dizer.
Outro batimento à porta. A mulher secou os olhos com o lenço e alisou o
vestido.
- De certeza que é outro credor que cá vem para me envergonhar. Enquanto
ela entrava no vestíbulo, o grupo juntou-se e trocou sussurros nervosos.
- Ele saiu há algumas horas, não ouviu? - disse Lowell. - E consta-nos que
não esteja na Corner... Não há dúvida que o fará se não o encontrarmos!
- Mas ele pode estar em qualquer parte da cidade, Jamey! - reSpondeu
Holmes. - E ainda temos de voltar à Corner para esperar ?e Rey. O que
podemos nós fazer sozinhos?
- Qualquer coisa! Longfellow? - disse Lowell.
- Agora nem sequer temos um cavalo para nos deslocarmos... - queixou-se
Fields.
A atenção de Lowell desviou-se para o vestíbulo, donde ouviu algo.
Longfellow avaliou-o.
- Lowell?
- Lowell, você está a ouvir? - perguntou-lhe Fields. Da porta principal
escapou uma torrente de palavras.
- Aquela voz - disse Lowell, estupefato. - Aquela voz! Ouçam!
- Teal? - perguntou Fields. - Quem sabe se ela não está a avisá-lo para fugir,
Lowell! Nunca mais o encontramos!
Lowell pôs-se em movimento. Atravessou o vestíbulo até à porta da
entrada, onde aguardava um homem de olhos cansados e raiados de
sangue. O poeta investiu sobre ele com um grito, disposto a capturá-lo.

XVIII




OWELL ENVOLVEU O HOMEM COM OS SEUS BRAÇOS E ARRAStou-o

L para dentro de casa.


- Apanhei-o! - gritou Lowell. - Apanhei-o!
- O que está o senhor a fazer? - guinchou Pietro Bachi.
- Bachi! O que faz você aqui? - perguntou-lhe Longfellow.
- Como é que me encontraram aqui? Diga ao seu cão para tirar as mãos de
cima de mim, Signor Longfellow, ou terá de se haver comigo! - grunhiu
Bachi, dando inúteis cotoveladas no seu robusto captor.
- Lowell - disse-lhe Longfellow. - Falemos com o Signor Bachi em privado. -
Eles deixaram-no passar para outra assoalhada, onde Lowell pediu a Bachi
que lhes explicasse o que andava a fazer.
- Não tem nada a ver com os senhores - disse Bachi. - Vou lá fora falar com a
minha mulher.
- Por favor, Signor Bachi - pediu-lhe Longfellow, abanando a cabeça.
- O doutor Holmes e o senhor Fields querem fazer-lhe umas perguntas.
Lowell continuou:
- Que tipo de plano é que você urdiu com o Teal? - continuou Lowell.
- Onde está ele? Não brinque comigo. Você aparece como um fantasma
sempre que há sarilhos.
Bachi fez uma expressão azeda.
- Quem é o Teal? Eu sou o único a quem são devidas respostas para esta
espécie de rapto!
- Se não me responder imediatamente, levo-o diretamente para a polícia e
aí confessa tudo, de certeza! - disse Lowell. - Está a ver, Longfellow? Andou
a enganar-nos o tempo todo.
- Vá! Chame a polícia, vá! - disse Bachi. - Ela pode ajudar-me a recuperar o
que me pertence! Os senhores querem saber o que me trouxe aqui? Vim ver
se esse mendigo inútil que vive aqui me paga. - A vergonha que lhe causava
o assunto que o levara ali, fazia-lhe subir e descer a sua proeminente maçã-
de-adão. - Como os senhores podem ver, con tinuo incansável com as
minhas aulas particulares.
- Aulas particulares. Você dava-lhe aulas a ela? De italiano? - perguntou
Lowell.
- Ao marido - respondeu Bachi. - Só três lições, há algumas semanas...
Segundo parece julgava que eram grátis.
- Mas você tinha voltado para Itália! - disse Lowell. Bachi riu
melancolicamente.
- Oxalá isso fosse verdade, signore! O mais longe que estive foi a visitar o
meu irmão, Giuseppe, do outro lado do rio. Receio que haja, digamos,
facções contrárias que tenham tornado o meu regresso impossível, pelo
menos durante muitos meses.
- Então, você foi ver o seu irmão do outro lado do rio! Que descaramento! -
exclamou Lowell. - Você fez uma correria louca para apanhar um barco que
o ia levar a um vapor! E ia carregado com uma bolsa cheia de notas falsas...
Nós vimo-lo!
- Ouça, o que está a dizer...! - respondeu Bachi, indignado. - Como é que os
senhores podiam saber onde eu estive nesse dia?
- Responda-me!
Bachi apontou acusadoramente para Lowell, mas depressa se apercebeu,
pela imprecisão do seu dedo esticado, que estava débil e bastante
embriagado.
Ele sentiu uma onda de náuseas subir-lhe pela garganta. Reprimiu o
vómito, tapou a boca e arrotou. Quando conseguiu voltar a falar, a sua
respiração era ansiosa, mas estava mais calmo.
- Sim, cheguei ao vapor, mas não levava dinheiro nenhum comigo, nem
falso nem de qualquer outro tipo. Oxalá tivesse uma bolsa cheia de ouro a
cair-me pela cabeça, professore. Eu fui lá naquele dia para entregar o meu
manuscrito ao meu irmão, Giuseppe Bachi, que aceitara levá-lo para Itália.
- O seu manuscrito? - perguntou-lhe Longfellow.
- Uma tradução para inglês do Inferno de Dante, se quer saber. Ouvi falar
no seu trabalho, Signor Longfellow, e do seu estimado Clube de Dante, e
isso dá-me vontade de rir! Nesta Atenas ianque, os senhores falam em criar
uma voz nacional para vós mesmos. Os senhores animaram os vossos
compatriotas para que se revoltassem contra a hegemonia britânica nas
bibliotecas. Mas pensaram por um momento sequer que eu, Pietro Bachi,
podia muito bem ter contribuído com algo para a vossa tarefa? Que, como
italiano, como alguém que nasceu da sua história, das Suas dissensões, das
suas lutas contra o pesado dedo da Igreja, podia ter algo inimitável no meu
amor pela liberdade, que fora buscar a Dante?
"" Bachi fez uma pausa. - Não, não. Os senhores nunca me chamaram a
Craigie House. Foi por causa do malicioso rumor de que sou um alcoólico?
Foi por causa do meu infortúnio na Universidade? Que liberdade existe
aqui na América do Norte? Os senhores enviam-nos alegremente para as
vossas fábricas, para as vossas guerras, para cairmos no esquecimento. Os
senhores observam a nossa cultura espezinhada, as nossas línguas
esmagadas, e nós adoptamos a vossa maneira de vestir. Depois, com rostos
sorridentes, roubam-nos a nossa literatura das nossas próprias estantes.
Piratas. Malditos piratas literários, todos vós.
- Nós penetrámos mais no coração de Dante do que o senhor pode imaginar
- respondeu-lhe Lowell. - Deixe-me que lhe recorde que foi o seu povo, o
seu país que o deixou órfão!
Longfellow fez um movimento para conter Lowell e, em seguida, disse.
- Signor Bachi, nós observámo-lo no porto. Por favor, explique-se. Por que
razão ia o senhor enviar a sua tradução para Itália?
- Eu soube que em Florença estava previsto homenagear a sua versão do
Inferno no final do ano das Comemorações de Dante, mas que o senhor
ainda não tinha terminado o seu trabalho, e corria o risco de ultrapassar o
prazo máximo para a sua aceitação. Eu dedicara muitos anos à tradução de
Dante no meu escritório, por vezes, com o auxílio de velhos amigos, como o
Signor Lonza, quando ele ainda estava bem. Suponho que acreditávamos
que, se conseguíssemos demonstrar que Dante podia estar tão vivo em
inglês como em italiano, também nós conseguiríamos prosperar na
América do Norte. Nunca pensei ver essa tradução publicada, mas quando o
pobre Lonza morreu pressionado por estranhos, percebi logo que o nosso
trabalho devia sobreviver. Com a condição de eu encontrar uma forma de a
imprimir por minha conta, o meu irmão acedeu a levar a minha tradução a
uma gráfica que ele conhecia em Roma, e a apresentá-la logo a seguir
pessoalmente à Comissão para que intercedesse pelo nosso caso. Pois bem,
encontrei uma gráfica de papeletas de jogo, e a única de Boston que me
imprimia a tradução numa semana ou assim, antes da partida de
Giuseppe..., e barato. Mas o idiota do gráfico só a terminou no último
minuto, e provavelmente não a teria acabado de todo se não precisasse das
minhas míseras moedas. O tratante andava metido em apuros por falsificar
moeda para utilização dos jogadores locais, e, pelo que vim a saber, foi
obrigado a fechar as portas a toda a pressa.
«Quando eu cheguei ao molhe, tive de suplicar a um sombrio Caronte, que
estava no cais, para me levar num barquito até ao Anónimo. Depois de ter
deixado o manuscrito a bordo do vapor, voltei imediatamente para terra.
Toda a questão ficou em nada; fiquem os senhores felizes por sabê-lo. A
Comissão "naquela altura não estava interessada na recepção de novos
trabalhos para o nosso festival".» - Bachi fez uma série de caretas ao evocar
a sua derrota.
- Foi por isso que a presidência da Comissão lhe enviou as cinzas de Dante!
- Lowell virou-se para Longfellow. - Para garantir que a admissão da sua
tradução estava assegurada nas festividades, como a representante dos
Norte-Americanos!
Longfellow reflectiu por instantes, e depois disse:
- As dificuldades do texto de Dante são tão grandes que duas ou três
versões independentes seriam mais do que aceitáveis para os leitores
interessados, meu caro signore.
A expressão de dureza no rosto de Bachi desfez-se. - Compreendam.
Sempre tive em grande estima a confiança que os senhores me
demonstraram ao contratarem-me para a universidade, e eu não questiono
o valor da vossa poesia. Se fiz algo de que deva envergonhar-me por causa
da minha situação... - De repente, ele parou. Depois de uma pausa,
continuou: - O exílio deixa apenas a esperança mais ténue. Eu pensei que
talvez... só talvez... fazendo viver Dante no Novo Mundo, com a minha
tradução, fosse uma forma de abrir os meus horizontes. De que maneira tão
diferente me considerariam em Itália!
- O senhor - acusou-o Lowell de repente -, o senhor gravou aquela ameaça
na janela de Longfellow para nos assustar e para que Longfellow
interrompesse a sua tradução!
Bachi vacilou, fingindo não ter percebido. Retirou uma garrafa preta do seu
casaco e levou-a aos lábios, como se a sua garganta fosse um funil que
conduzisse a algum lugar distante. Ele estremeceu quando chegou ao fim. -
Não me tomem por um borrachola, professori. Eu nunca bebo mais do que
o que me convém, pelo menos, não o faço quando estou em boa companhia.
A questão consiste no seguinte: o que pode um homem fazer sozinho nas
horas mortas de Inverno na Nova Inglaterra? - As suas sobrancelhas
fizeram um gesto sombrio. - E agora, terminamos por aqui? Ou pretendem
os senhores continuar a ouvir-me falar sobre as minhas frustrações?
- Signore - disse Longfellow. - Nós temos de saber o que o senhor ensinou
ao senhor Galvin. Neste momento, ele fala e lê italiano?
Bachi atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.
- Esse homem não conseguiria ler inglês nem que tivesse ao seu lado Noah
Webster! Ele vestia sempre o seu uniforme militar azul, com riscas, e de
botões dourados. Ele queria Dante, Dante, Dante. Não lhe ocorreu que tinha
de começar por aprender a língua. Che stranezza!
- Você emprestou-lhe a sua tradução? - perguntou Longfellow. Bachi
abanou a cabeça, negativamente.
- Eu esperava manter esse empreendimento completamente em segredo.
Tenho a certeza que todos sabemos como é que o senhor Fields reage
diante de alguém que tente rivalizar com os seus autores. Em todo o caso,
tentei satisfazer os estranhos desejos do Signor Galvin. Sugeri-lhe que
fizéssemos as lições introdutórias de italiano, lendo juntos a Commedia,
verso a verso. Mas era como ler juntamente com um animal mudo. Então,
ele quis que eu fizesse um sermão sobre o inferno de Dante, mas eu
recusei-o por uma questão de princípio... Se ele queria contratar-me como
professor, tinha de aprender italiano.
- Você disse-lhe que não continuava com as lições? - perguntou-lhe Lowell.
- Isso ter-me-ia proporcionado um grande prazer, professore. Mas um dia,
ele deixou de me chamar. Desde então que não consigo encontrá-lo... e
ainda não me pagou.
- Signore - disse Longfellow -, isto é muito importante. Alguma vez o senhor
Galvin falou em indivíduos do nosso tempo, da nossa cidade, que ele
relacionasse com as suas ideias sobre Dante? o senhor deve tentar lembrar-
se se alguma vez ele mencionou o nome de alguém. Talvez pessoas de
alguma forma ligadas à universidade, que estivessem interessadas em
desacreditar Dante.
Bachi abanou a cabeça.
- Ele mal falava, Signor Longfellow, era como um boi mudo. Isto tem alguma
coisa a ver com a atual campanha da universidade contra o seu trabalho?
Lowell prestou uma atenção especial.
- O que sabe você sobre isso?
- Eu adverti-o quando foi ter comigo, signore - disse Bachi. - Disse-lhe para
ter cuidado com o seu curso sobre Dante, não foi? Lembra-se quando foi ter
comigo ao campus umas semanas antes daquele encontro? Eu recebera
uma mensagem para me encontrar com um cavalheiro e ter com ele uma
reunião confidencial... Oh, eu estava convencido que os membros da
Corporação de Harvard queriam que eu voltasse a ocupar o meu lugar!
Imaginem a minha estupidez! Na verdade, aquele tipo estava a pensar
demonstrar os efeitos perniciosos de Dante sobre os estudantes, e queria
que eu o ajudasse.
- Simon Camp - disse Lowell cerrando os dentes.
- Estive quase a dar-lhe um murro, garanto-lhes - afirmou Bachi.
- Quem dera que o tivesse feito, Signor Bachi. - E Lowell partilhou um
sorriso com o seu interlocutor. - Com tudo isto, ele pode provar a ruína de
Dante. E o que lhe respondeu você?
- Como era suposto eu responder-lhe? «Vá para o Diabo» foi a única coisa
que me ocorreu dizer-lhe. Aqui estou eu agora, sem sequer conseguir
ganhar o meu pão depois de tantos anos na Universidade, e quem, na
administração, contrata esse imbecil?
Lowell deu uma risada.
- Quem havia de ser? O doutor Mann... - De repente, ele interrompeu-se e
rodou sobre si mesmo para dirigir um olhar significativo a Longfellow. -
Doutor Manning.
Caroline Manning varreu os cristais partidos.
- Jane... o esfregão! - ela chamou a criada pela segunda vez, mal-humorada
por a garrafa de xerez ter terminado a sua existência no tapete da
biblioteca do marido.
Enquanto a senhora Manning abandonava o aposento, a campainha da
porta soou. Ela afastou as cortinas para trás apenas uns centímetros,
permitindo-lhe ver Henry Wadsworth Longfellow. Ora, ao que viria ele a
uma hora daquelas? Nos últimos anos, quase não tinha visto aquele pobre
homem, salvo umas poucas ocasiões nas imediações de Cambridge. Ela não
compreendia como alguém conseguia sobreviver a tantas coisas; como
parecia invencível. E ali estava ela, com uma pá de lixo na mão, parecendo
positivamente uma dona de casa.
A senhora Manning pediu desculpa: o doutor Manning não estava em casa.
Ela explicou que ele estivera à espera de uma visita e reclamara
privacidade. Ele e a sua visita deviam ter saído para dar um passeio a pé,
apesar de isso lhe parecer um pouco estranho com aquele tempo horrível.
E tinham deixado alguns vidros partidos na biblioteca.
- Mas o senhor sabe como às vezes os homens bebem - acrescentou ela.
- Eles podem ter ido de charrete? - perguntou Longfellow.
A senhora Manning disse que a epidemia que afetava os cavalos o impedira
de o fazer. O doutor Manning proibira expressamente a remoção, por
mínima que fosse, dos seus cavalos do estábulo. Ainda assim, ela acedeu a
acompanhar Longfellow à cavalariça.
- Santo Deus! - exclamou ela ao não encontrarem vestígios da charrete nem
dos cavalos do doutor Manning. - Passa-se alguma coisa, não passa, senhor
Longfellow? Santo Deus! - repetiu ela.
Longfellow não respondeu.
- Aconteceu-lhe alguma coisa? Tem de me dizer imediatamente! As
palavras de Longfellow saíram-lhe lentas.
- A senhora tem de ficar em casa e aguardar. Ele irá regressar em
segurança, senhora Manning. Prometo-lhe. - O fragor dos ventos que
sopravam sobre Cambridge havia aumentado, e magoava a pele.
- doutor Manning - disse Fields, com os olhos fixos no tapete de Longfellow,
vinte minutos mais tarde. Depois de saírem de casa de Galvin,
tinham-se encontrado com Nicholas Rey, que se provira de uma charrete da
polícia e de um cavalo saudável, que utilizou para os levar a Craigie House. -
Desde o início que ele tem sido o nosso pior adversário. Porque é que o
Teal não tratou dele mais cedo do que isto?
Holmes permanecia de pé, inclinado sobre a secretária de Longfellow.
- Porque ele é o pior, meu caro Fields. À medida que o Inferno se torna mais
profundo, estreita-se e os pecadores tornam-se mais flagrantes, mais
culpados, menos arrependidos do que fizeram. Até chegar a Lúcifer, que
iniciou todo o mal no mundo. O Healey, como o primeiro a ser castigado,
dificilmente teve consciência da sua recusa; essa é a natureza do seu
«pecado», que permanece como um ato indiferente.
O agente Rey estava de pé, em toda a sua estatura, no centro do escritório.
- Meus senhores, devem rever os sermões proferidos pelo senhor Greene
na última semana, para que possamos deduzir para onde o Teal levou o
Manning.
- O Greene começou as suas séries de sermões com os hipócritas -explicou
Lowell. - Depois, continuou com os falsários, incluindo os moedeiros falsos.
Por fim, no sermão a que nós assistimos, eu e Fields, ele tratou dos
traidores.
- O Manning não era um hipócrita - disse Holmes. - Ele perseguia Dante
tanto interior como exteriormente. E os traidores contra a família não se
comportam assim.
- Então só nos resta os falsários e os traidores contra a própria nação -
concluiu Longfellow.
- Na verdade, o Manning não se comprometeu com nenhuma fraude - disse
Lowell. - É certo que ocultou de nós as suas actividades, mas esse não foi o
seu principal meio de agressão. Muitas das sombras do Inferno de Dante
haviam sido culpadas por carradas de pecados, mas é o pecado que define
as suas acções, que determina o seu destino no Inferno. Os falsários devem
mudar de uma forma para outra para cumprir o seu contrapasso... como
Sínon, o Grego, que enganou os Troianos para que acolhessem
efusivamente o cavalo de madeira.
- Os traidores contra a nação destruíam o bem-estar do próprio povo -
disse Longfellow. - Encontramo-los no nono círculo... o mais baixo.
- Combatendo os nossos projetos sobre Dante, neste caso - disse Fields.
Holmes reflectiu sobre isto.
- É isso, não é? Soubemos que o Teal se veste com o uniforme quando atua à
sua maneira dantesca, quer esteja a estudar Dante quer esteja a preparar os
seus crimes.
Isto lança luz sobre a sua paisagem mental. Na sua insanidade, ele permuta
a salvaguarda da União e a de Dante. - E o Teal seria testemunha dos planos
do Manning graças ao seu lugar de guarda no edifício principal da
Universidade - disse Longfellow. - Para o Teal, o Manning está entre os
piores traidores da causa, para cuja defesa se pôs em pé de guerra. O Teal
reservou o Manning para o final.
Nicholas Rey perguntou interessado.
- Qual é o castigo que devemos procurar? Todos esperaram que Longfellow
respondesse.
- Os traidores são introduzidos completamente no gelo, do pescoço para
baixo, num lago, que, por causa do gelo, teria a aparência de cristal e não de
água.
Holmes resmungou.
- Todos os açudes da Nova Inglaterra congelaram nas duas últimas
semanas. O Manning pode estar em qualquer lugar, e nós só temos um
cavalo cansado com que procurá-lo!
Rey abanou a cabeça.
- Os senhores fiquem aqui, em Cambridge, e procurem o Teal e o Manning,
que eu vou a Boston buscar auxílio.
- E o que fazemos se virmos Teal? - perguntou Holmes.
- Usem isto. - Rey entregou-lhes o seu bastão de polícia.
Os quatro eruditos começaram a sua patrulha pelas margens desertas do
rio Charles, em Beaver Creek, próximo de Elmwood, e em Fresh Pond.
Alumiando-se com os débeis halos dos seus candeeiros a gás, eles estavam
em tal estado de alerta mental, que mal repararam na indiferença com que
a noite passava sem lhes proporcionar o mais pequeno avanço. Eles
envolveram-se em vários agasalhos, que não evitavam que o gelo se
acumulasse nas suas barbas (ou, no caso do doutor Holmes, nas suas fartas
sobrancelhas e suíças). Quão estranho e silencioso parecia o mundo sem o
ocasional barulho dos cascos dos cavalos a trote. Reinava um silêncio que
parecia estender-se por todo o caminho a norte, interrompido apenas pelos
bruscos ofegos das locomotoras à distância, a transportarem
constantemente mercadorias de uma paragem para a outra.
Cada um dos dantistas imaginava com grande pormenor como, naquele
preciso momento o agente Rey perseguia Dan Teal por Boston, detendo-o e
algemando-o em nome da comunidade; como Teal se explicaria, colérico,
justificando-se, mas se renderia à justiça, e à semelhança de lago, nunca
mais voltaria a falar nas suas acções. Várias foram as vezes que se
animaram uns aos outros, Longfellow, Holmes, Lowell e Fields, enquanto
davam voltas em torno das geladas vias de água.
Eles começaram a conversar, primeiro o doutor Holmes, claro. Mas os
outros também se confortavam com uma troca de sussurros. Falaram em
escrever versos comemorativos, em novos livros, em actividades políticas
com as quais não se tinham sintonizado até há pouco tempo; Holmes voltou
a contar a história dos primeiros anos da sua prática médica, quando
colocou um letreiro - AS MAIS INSIGNIFICANTES FEBRES SÃO
GRATAMENTE RECEBIDAS - até a sua janela ser partida por uns bêbados.
- Eu falei demasiado, não foi? - Holmes abanou a cabeça como que a
censurar-se. - Longfellow, quem me dera conseguir fazer com que você
falasse mais sobre si.
- Não - respondeu Longfellow, pensativamente. - Julgo que nunca o farei.
- Eu sei que você nunca o faz! Mas uma vez você confessou-mo -Holmes
reflectiu naquilo antes de prosseguir. - Quando conheceu Fanny.
- Não, não creio que alguma vez o tenha feito.
Eles trocaram várias vezes de par, como se estivessem a dançar; e também
trocaram de conversas. Às vezes, caminhavam os quatro juntos, e parecia
que o seu peso ia quebrar a crosta gelada sob os seus pés. Caminhavam
sempre lado a lado, de braço dado.
Pelo menos, era uma noite de céu limpo. As estrelas estavam fixas numa
ordem perfeita. Eles ouviram os golpes dos cascos do cavalo que trazia
Nicholas Rey e vinha envolto no vapor da respiração do animal. À medida
que se aproximava, cada um deles imaginava em silêncio o aspeto de
irreprimível triunfo no chamativo semblante do jovem, mas o seu rosto
reflectia gravidade. Informou que não havia vestígios de Teal nem de
Augustus Manning. Ele recrutara meia-dúzia de outros agentes para
varrerem o rio Charles em toda a sua extensão, mas só mais quatro cavalos
podiam ser dispensados da quarentena. Rey afastou-se, não sem advertir
cautela aos Poetas junto à Lareira, e prometer-lhes continuar a sua busca
até de manhã.
Quem sugeriu, às três e meia, descansarem um pouco em casa de Lowell?
Uma vez ali, dois acomodaram-se na sala de música e outros dois no
escritório contíguo. As duas estâncias eram gémeas na sua disposição, com
as lareiras de costas uma para a outra. Fanny Lowell retirou-se para cima,
devido aos ansiosos latidos dos cachorros. Ela fez-lhes chá, mas Lowell não
lhe explicou nada, limitando-se a resmungar por causa da epidemia nas
cavalariças. Ela estivera muitíssimo preocupada durante a ausência do
marido, e isso acabou por fazê-los perceber como era tarde, pelo que
Lowell incumbiu William, o seu criado, de ir entregar mensagens às outras
casas. Eles ficaram a dormitar em Elmwood meia hora - não mais -, junto às
duas lareiras.
Na hora em que o mundo permanecia imóvel, o calor dava em cheio num
dos lados do rosto de Holmes. Todo o seu corpo estava tão profundamente
cansado que ele só se deu conta disso quando se viu de novo em pé a
atravessar com um passo lento uma estreita cancela já no exterior. O gelo
que cobria o chão começara a derreter rapidamente com um súbito
aumento da temperatura, e a lama aglomerava-se nos regueiros de água. O
chão por baixo das suas botas tornara-se desigual e formava declives, e
Holmes sentiu que devia inclinar-se para diante como se fosse a subir uma
colina. Ele olhou para a comunidade de Cambridge, onde podia distinguir
aqueles canhões da Guerra da Independência, que haviam esculpido
colunas de fumo, e o corpulento Olmeiro de Washington, que, com os seus
milhares de ramos, semelhantes a dedos, crescia em todas as direcções.
Holmes olhou para trás e viu Longfellow a deslizar lentamente até ele.
Holmes apressou-se a ir ao seu encontro. Ele não gostava que Longfellow
ficasse sozinho muito tempo, mas um estrondo atraiu a atenção do médico.
Dois cavalos com manchas cor de morango e cascos albinos avançavam
tempestuosamente na direcção dele, ambos a puxarem charretes
desmesuradas. Holmes encolheu-se e caiu de joelhos. Agarrou-se aos
tornozelos e levantou os olhos a tempo de ver Fanny Longfellow - flores de
fogo voavam do seu cabelo solto e do seu peito amplo - segurando as
rédeas de um dos cavalos, e Júnior a controlar o outro com firmeza, como
se não tivesse feito outra coisa desde o dia em que nascera senão montar.
Quando as duas figuras passaram enroladamente por cada um dos lados do
pequeno doutor, não lhe pareceu possível manter o equilíbrio, e deslizou
para a penumbra.
Holmes levantou-se da cadeira de braços e permaneceu de pé, com os
joelhos a centímetros da grade da lareira onde a lenha crepitava. Levantou
os olhos. Por cima da sua cabeça a lâmpada crepitava.
- Que horas são? - perguntou ele ao perceber que estivera a sonhar. O
relógio de Lowell respondeu: Seis menos um quarto. Os olhos de Lowell
abriram-se como os de uma criança estremunhada e agitou-se na sua
cadeira de braços. Perguntou se se passara alguma coisa. O sabor amargo
que sentia na boca torna-lhe difícil abri-la.
- Lowell, Lowell - disse Holmes, abrindo todos os cortinados. - Uma Parelha
de cavalos.
- O quê?
- Parece-me que ouvi uma parelha de cavalos lá fora. Não tenho a certeza
disso; passaram muito próximo e a toda a pressa.
Eram, sem dúvida, dois cavalos. O agente Rey só dispõe de um, neste
momento. O Longfellow disse que o Teal roubou dois ao Manning.
- Nós adormecemos - respondeu Lowell, alarmado, pestanejando e vendo
pela janela como começara a despontar o dia.
Lowell despertou Longfellow e Fields, e pegou imediatamente no binóculo
e na espingarda, que lançou ao ombro. Quando se dirigiam para a porta,
Lowell viu Mabel, envolta no seu roupão, a entrar no vestíbulo. Ele deteve-
se, aguardando uma reprimenda, mas ela limitou-se a ficar ali quieta, de pé,
com o olhar perdido. Lowell recuou e abraçou-a com força. Quando se
ouviu a segredar-lhe «Obrigado», já ela lhe sussurrava a mesma palavra.
- Agora, tens de ter cuidado, Papá. Pela mamã e por mim. Passar do calor
para o ar frio do exterior agravou a asma de Holmes
muito severamente. Lowell correu à frente, em busca de marcas recentes
de cascos, enquanto os outros três deambulavam com expressões
circunspetas por entre os olmeiros despidos, que lançavam para o céu os
seus ramos nus.
- Longfellow, meu caro Longfellow... - dizia Holmes.
- Holmes? - respondeu o poeta amavelmente.
Holmes ainda conseguia ver diante dos seus olhos os vivos fragmentos
sonhados, e tremeu ao olhar para o seu amigo. Temia que pudesse escapar-
lhe: Acabei de ver a Fanny a dirigir-se para nós. Eu vi-a!
- Esquecemo-nos do bastão da polícia em sua casa, não foi? Fields pousou
uma mão tranquilizadora no ombro miúdo do médico.
- Neste momento, um pouco de coragem vale pelo resgate de um rei, meu
caro Wendell.
Mais adiante, Lowell inclinou-se, apoiando-se num joelho. Ele observou
com os binóculos o lago artificial situado à frente deles. Os seus lábios
tremiam de receio. No princípio, pensou ter visto alguns rapazes a
pescarem no gelo. Mas, depois, à medida que deslocava os binóculos, viu o
rosto lívido do seu aluno Pliny Mead... só o rosto.
A cabeça de Mead era visível através de uma estreita abertura recortada no
lago de gelo. O resto do seu corpo nu estava oculto pela água gelada,
debaixo da qual tinha os pés atados. Os seus dentes castanholavam
violentamente. A sua língua formava uma curva, revirada para a parte
posterior da boca. Os braços nus de Mead estavam estendidos para a frente
sobre o gelo e firmemente amarrados a uma corda, que se prolongava
desde os seus tornozelos até à charrete do doutor Manning - atado ali
próximo. Semiconsciente, Mead tinha deslizado pela abertura e, não fora
aquela corda, já estaria morto. Na parte detrás da charrete estacionada,
resplandecente no seu uniforme militar,
Dan Teal passava os braços por baixo de outra figura nua, levantou-a, e
começou a caminhar por cima do gelo traiçoeiro. Ele transportava o flácido
e branco corpo de Augustus Manning, cuja barba escorregava de forma
forçada sobre o seu delgado peito. As pernas e as ancas estavam atadas
com uma corda, e o seu corpo tremia, enquanto Teal atravessava o lago liso.
O nariz de Manning pusera-se da cor de um rubi vivo e, por baixo dele
formara-se, numa crosta, uma camada espessa de sangue castanho. Teal
deslizou primeiro os pés de Manning para outra abertura feita no lago
gelado, a uns trinta centímetros do de Mead. A impressão causada pelo
choque da água gelada devolveu Manning à vida, fazendo-o chapinhar e
agitar-se furiosamente. Então, Teal desatou os braços de Pliny Mead de tal
modo que a única força capaz de impedir que os dois homens nus
deslizassem para dentro dos respectivos buracos foi uma furiosa tentativa,
instintivamente compreendida e imediatamente empreendida pelos dois,
de agarrarem nas mãos estendidas um do outro.
Teal subiu para o talude para os observar a debaterem-se, e então soou o
disparo de uma arma, que atingiu o tronco de uma árvore por detrás do
assassino.
Lowell voltou a apontar, agarrando na sua arma e fazendo-se deslizar
precipitadamente pelo gelo.
- Teal! - gritou ele. Ele preparou a espingarda para efetuar outro disparo.
Longfellow, Holmes e Fields, todos avançaram de gatas até se colocarem
atrás dele.
Fields gritou.
- Senhor Teal, tem de parar com isto!
Lowell não conseguia acreditar no que estava a ver por cima do cano da sua
arma. Teal permanecia completamente imóvel.
- Dispare, Lowell, dispare! - incitou-o Fields aos gritos.
Lowell sempre gostara de participar em caçadas, mas nunca para abrir
fogo. Agora, o sol elevava-se a uma altura perfeita, espraiando-se por cima
da vasta superfície cristalina.
Por instantes, os homens cegaram com o reflexo. Quando os seus olhos
voltaram a habituar-se à claridade, Teal tinha desaparecido, e chegava-lhes
o eco dos sons abafados da sua corrida pela mata. Lowell disparou para a
densidade do arvoredo.
Tremendo descontroladamente, Pliny Mead já não tinha reacção, enquanto
a sua cabeça ia resvalando pelo gelo e o seu corpo se afundava aos poucos
nas águas mortíferas. Manning debatia-se para manter agarrados os braços
escorregadios do rapaz; depois, os seus pulsos e, em seguida, os seus dedos,
mas o peso era excessivo. Mead afundou-se na água. O doutor Holmes
lançou-se para diante, deslizando pelo gelo.
Mergulhou os dois braços no buraco, agarrando Mead pelos cabelos e pelas
orelhas, e puxou-o até o rapaz ficar caído sobre o gelo. Fields e Longfellow
içaram Manning pelos braços e deslizaram-no para a superfície antes de
chegar a submergir no buraco. Eles desamarraram-lhe as pernas e os pés.
Holmes ouviu o estalido de um chicote e levantou os olhos, vendo Lowell
no assento do cocheiro da charrete abandonada. Rapidamente, ele açulou
os cavalos em direcção à mata. Holmes deu um salto e correu na sua
direcção.
- Não, Jamey, não! - gritou-lhe Holmes. - Temos de os levar para um sítio
onde se aqueçam, senão morrem!
- Teal vai fugir, Holmes! - Lowell deteve os cavalos e ficou a olhar para a
figura patética de Augustus Manning, debatendo-se torpemente sobre o
lago gelado como um peixe fora da água. Ali estava o doutor Manning quase
no fim, e Lowell só conseguia sentir compaixão por ele. O gelo cedeu sob o
peso dos membros do Clube de Dante, e das vítimas destinadas a serem
assassinadas, e a água brotou formando bolhas através dos novos buracos
que se abriam à medida que eles iam avançando. Lowell saltou da charrete
no preciso instante em que uma das galochas de Longfellow quebrou uma
fina tira de gelo. Lowell chegou a tempo de o agarrar.
O doutor Holmes retirou as luvas e o chapéu e depois o sobretudo e a
sobrecasaca, e começou a envolvê-los em Pliny Mead.
- Envolvam-nos com tudo o que tiverem! Tapem-lhes a cabeça e o pescoço!
- Ele retirou a gravata e atou-a em volta do pescoço do rapaz. Depois,
descalçou as botas e as peúgas com um sacão e enfiou-as nos pés de Mead.
Os outros observaram com atenção como dançavam as mãos de Holmes e
imitaram-no.
Manning tentou falar, mas o que se ouviu foi um lamento entrecortado,
como uma débil cantilena. Tentou levantar a cabeça do gelo, mas estava
completamente confuso, quando Lowell lhe enfiou com força o seu chapéu
na cabeça.
O doutor Holmes gritou.
- Mantenham-nos despertos! Se adormecerem, perdemo-los!
Com dificuldade, transportaram os corpos hirtos para dentro da charrete.
Lowell, despindo a sua roupa até ficar em mangas de camisa, voltou a
sentar-se no lugar do cocheiro. Seguindo as instruções de Holmes, Long'
fellow e Fields massajaram os pescoços e os ombros das vítimas e
levantaram-lhes os pés para facilitar a circulação do sangue.
- Depressa, Lowell, depressa! - animou-o Holmes.
- Vamos o mais depressa que conseguimos, Wendell!
Holmes apercebera-se imediatamente que Mead era o que estava pior-Uma
horrível ferida na parte posterior da cabeça, seguramente infligido por
Teal,
era uma má complicação que se acrescentava à letal exposição ao frio.
Holmes estimulava freneticamente a circulação sanguínea do rapaz
durante o breve trajeto de regresso à cidade. No meio do seu pesar, ressoou
na mente de Holmes o poema que recitava aos seus alunos para lhes
lembrar o modo como deviam tratar os seus doentes.
Se a pobre vítima tiver que ser aberta, não convertas numa safra o seu
busto dorido. (Há doutores num raio de milhares de quilómetros que
golpeiam um tórax como martelos pneumáticos.) E quanto às tuas
perguntas, por favor, não tentes chupar o teu doente e deixá-lo
completamente seco; ele não é um molusco que se contorce no teu prato; tu
não és Agassiz, e ele não é um peixe.
O corpo de Mead estava tão frio que o toque era suficiente para o magoar.
- O rapaz estava perdido antes de nós chegarmos a Fresh Pond. Não havia
maneira de se fazer mais por ele. Tem de o aceitar, meu caro Holmes.
O doutor Holmes deslizava entre os seus dedos, para trás e para a frente, o
tinteiro de Tennyson, propriedade de Longfellow. Ignorava Fields e as
pontas dos seus dedos iam-se enegrecendo com manchas de tinta. - E o
Augustus Manning deve-lhe a vida - disse Lowell. - E a mim, o meu chapéu -
acrescentou ele. - Agora a sério, Wendell, esse homem tinha voltado a ser
pó sem si. Não vê isso? Nós desfizemos os planos de Lúcifer. Arrancámos
um homem das mandíbulas do Diabo. Desta vez, nós vencemos graças a si
por se ter entregue completamente, meu caro Wendell.
As três filhas de Longfellow, primorosamente vestidas para sair, bateram à
porta do escritório.
Alice foi a primeira a entrar.
- Papá, a Trudy e todas as outras raparigas estão na colina a deslizar de
trenó. Podemos ir?
Longfellow olhou para os seus amigos, acomodados nas cadeiras de braços
em volta da sala. Fields encolheu os ombros.
- Estão lá outras crianças? - perguntou Longfellow.
- Todas as de Cambridge! - anunciou Edith.
364 - 365
- Muito bem - disse Longfellow, mas depois observou-as como se estivesse
ocupado nas suas próprias reservas mentais. - Annie Allegra, talvez
devesses ficar aqui com Miss Davie.
- Oh, por favor, papá! Hoje estou a estrear os meus sapatos novos! -Annie
levantou o pé para o comprovar.
- Minha querida Panzie - disse ele a sorrir. - Prometo que é só desta vez. -
As outras duas saíram a brincar, e a mais pequena dirigiu-se para o
vestíbulo, à procura da sua ama.
Nicholas Rey chegou envergando o seu uniforme militar de gala, com um
dólmã azul e um capote. Ele informou que não se encontrara nada. No
entanto, o sargento Stoneweather tinha disponibilizado vários
destacamentos de homens para se procurar Benjamin Galvin.
- O Departamento de Saúde Pública anunciou que o pior da epidemia
equídea já passara, e retiraram-se várias dúzias de cavalos da quarentena.
- Excelente! Então, podemos formar uma equipa e iniciar as buscas - disse
Lowell.
- Professor, meus senhores... - disse Rey, enquanto se sentava. -Os senhores
descobriram a identidade do assassino. Salvaram uma vida, e talvez outras
que nunca venhamos a saber.
- Antes de mais, essas vidas estavam em perigo por nossa causa -suspirou
Longfellow.
- Não, senhor Longfellow. O que o Benjamin Galvin encontrou em Dante
teria encontrado em qualquer outro sítio, ao longo da sua vida. Os senhores
não invocaram nenhum desses horrores. Mas o que levaram a cabo em
relação à sua sombra é inegável. Mesmo assim, têm sorte em terem saído
bem de tudo isto. Agora devem deixar que seja a polícia a terminar este
assunto, a bem da segurança de todos.
Holmes perguntou a Rey por que razão vestia o seu uniforme militar.
- O governador Andrew dá hoje outro dos seus banquetes para os soldados
na Assembleia Legislativa. Claro que o Galvin continua ligado ao seu serviço
no exército. Ele pode muito bem aparecer por lá.
- Senhor agente, não sabemos como é que ele vai responder ao fato de ter
sido impedido de cometer o seu último homicídio - disse Fields. -E se ele
volta a tentar concretizar o castigo dos traidores? E se volta a tentar matar
o Manning?
- Temos agentes a vigiar as casas de todos os membros da Corporação de
Harvard e dos inspetores, incluindo do doutor Manning. Também
montámos guarda em todos os hotéis para proteger o Simon Camp no caso
de o Galvin ir atrás dele por considerá-lo outro traidor de Dante. Temos
vários homens na vizinhança do Galvin, e estamos a vigiar de perto a casa
dele.
Lowell encaminhou-se para a janela e olhou para baixo para a avenida em
frente à casa de Longfellow, onde viu um homem com um sobretudo grosso
azul a passar à frente da cancela e rapidamente a voltar na direcção
contrária.
- Você também tem aqui um homem? - perguntou Lowell. Rey anuiu.
- Em cada uma das vossas casas. Pela escolha das vítimas, parece que o
Galvin se considera o guardião dos senhores. Assim, pode pensar em
juntar-se aos senhores para decidir o que fazer depois de tão rápida
reviravolta dos acontecimentos. Se o fizer, prendemo-lo.
Lowell lançou o seu charuto para a lareira. De repente, aquela auto-
complacência desagradou-o.
- Senhor agente, parece-me que este é um assunto desagradável. Não
podemos ficar simplesmente aqui sentados, inermes, o dia todo!
- Não sugiro que o façam, professor Lowell - respondeu Rey. - Voltem para
vossas casas e passem algum tempo com as vossas famílias. O dever de
proteger esta cidade é meu, meus senhores, mas a falta da vossa presença é
muito mais sentida noutros lugares. A vossa vida deve começar a recuperar
a normalidade a partir deste momento, Professor.
Lowell levantou os olhos, contrariado.
- Mas... Longfellow sorriu.
- Uma grande parte da felicidade da vida não consiste em combater em
batalhas, meu caro Lowell, mas em evitá-las. Uma retirada magistral é em si
mesma uma vitória.
- Encontremo-nos todos aqui de novo esta noite - disse Rey. - Com um
pouco de sorte, trarei boas notícias para lhes contar. De acordo?
Os eruditos concordaram, com expressões mistas de contrariedade e de
grande alívio.
Nessa tarde, o agente Rey continuou a recrutar agentes; muitos deles
tinham evitado Rey em silêncio por prudência. Mas, desde há muito que ele
sabia quem eles eram. Sabia imediatamente quando um homem o olhava
simplesmente como para outro homem e não como para um negro, ou para
um mulato. O seu olhar direto e fixo nos olhos deles precisava de pouca
persuasão adicional.
Ele colocou um agente em frente ao jardim da casa do doutor Manning.
Enquanto Rey falava com o agente, por baixo de um ácer, Augustus
Manning saiu de rompante pela porta lateral.
- Alto! - gritou Manning, mostrando uma espingarda.
Rey virou-se.
- Nós somos policiais... policiais, doutor Manning. Manning tremia como se
ainda estivesse preso no gelo.
- Pela minha janela, vi o seu uniforme do exército, senhor agente. Pensei
que era aquele louco...
- Não precisa de se preocupar - disse Rey.
- O senhor vai..., o senhor vai proteger-me? - perguntou Manning.
- Enquanto for necessário - disse-lhe Rey -, este senhor agente irá vigiar a
sua casa. E está bem armado.
O outro agente desabotoou o casaco e mostrou o seu revólver.
Manning anuiu debilmente, permitindo que o polícia mulato o escoltasse ao
interior da casa.
Depois disso, Rey conduziu a sua charrete até à Cambridge Bridge. Ele
apercebeu-se de outra charrete parada, que bloqueava a passagem. Dois
homens estavam inclinados sobre uma das rodas. Rey colocou-se num dos
lados da calçada, desceu e encaminhou-se para o par que sofrera a avaria,
disposto a ajudá-los. Contudo, ao chegar junto deles, os dois homens
levantaram-se de repente. Rey ouviu ruídos atrás de si e virou-se vendo
que outra charrete parara mesmo atrás da sua. Dois homens, que vestiam
sobretudos largos, surgiram na rua. Os quatro homens permaneceram de
pé, formando um quadrado em volta do polícia mulato, e ficaram imóveis
durante quase dois minutos.
- Senhores detectives. Posso ser-lhes útil? - perguntou Rey.
- Pensamos que temos de lhe dar uma palavrinha no Comissariado, Rey -
disse um deles.
- Receio agora não ter tempo - disse Rey.
- Chegou ao nosso conhecimento que anda a interferir num assunto sem a
devida autorização, senhor - disse outro, dando um passo em frente.
- Não creio que isso seja da sua competência, detective Henshaw - disse Rey
depois de fazer uma pausa.
O detective esfregou dois dedos um no outro. Um detective aproximou-se
mais de Rey, ameaçadoramente.
Rey virou-se para ele.
- Eu sou um agente da lei. Se o senhor me agredir, estará a agredir a
comunidade.
O detective dirigiu um punho ao abdómen de Rey e logo lhe encaixou outro
na mandíbula. Rey dobrou-se sobre si mesmo, protegendo-se com o
colarinho do seu dólmã. O sangue brotou-lhe da boca, enquanto os outros
carregavam sobre si na parte detrás da sua charrete.
O doutor Holmes estava sentado na sua grande cadeira de baloiço de
cabedal, fazendo tempo para sair para a reunião marcada em casa de
Longfellow. Uma persiana parcialmente aberta deixava entrar uma luz
pálida e religiosa, que incidia sobre a mesa. Wendell Júnior subiu a correr
para o segundo andar.
- Wendy, meu rapaz - chamou-o Holmes. - Onde vais? Júnior voltou a descer
as escadas lentamente.
- Como está, pai? Não o vi.
- Podes sentar-te aqui um minuto ou dois?
Júnior acomodou-se no rebordo de uma cadeira de baloiço verde.
O doutor Holmes perguntou-lhe como ia o curso de Direito. Júnior
respondeu com indiferença, esperando a habitual invectiva contra o estudo
das leis, mas isso não aconteceu. O doutor Holmes admitiu que nunca
conseguira meter-se na pele da lei, quando teve de escolher, uma vez
terminada a universidade. «A segunda edição melhora a primeira», pensou
ele.
O tranquilo tiquetaque do relógio ritmava o silêncio de ambos em longos
segundos.
- Nunca tiveste medo, Wendy? - perguntou o doutor Holmes, rompendo o
silêncio - Quero dizer, na guerra.
Júnior ficou a olhar para o seu pai, sob as suas sobrancelhas escuras, e fez
um sorriso rasgado e acolhedor.
- É uma coisa estúpida, Papá, pôr-se a fazer discursos sempre que alguém
pode entrar em combate ou é morto. Não há poesia nenhuma numa
contenda.
O doutor Holmes deixou o filho voltar para o seu trabalho. Júnior anuiu e
voltou a subir as escadas até ao andar de cima.
Holmes devia pôr-se a caminho para ir ter com os outros. Decidiu armar-se
com o mosquete de pederneira do seu avô, que fora utilizado pela última
vez na Guerra da Independência. Aquela era a única arma que Holmes
permitia que existisse em sua casa, e guardava-a na cave como uma peça
histórica.
As charretes ainda continuavam fora de serviço. Cocheiros e cobradores
tinham tentado, sem sucesso, empurrar as charretes à força de braços. O
Metropolitan Railroad também tentara utilizar bois para puxarem os
vagões, mas os seus cascos eram demasiado tenros para o pavimento duro.
Então, Holmes deslocou-se a pé, caminhando pelas ruas sinuosas de Beacon
Hill, perdendo por poucos segundos a charrete de Fields, porque o editor
acorrera a casa de Holmes com o propósito de o acompanhar. O médico
tomou a West Bridge, que cruzava parcialmente o gelado Charles, e
atravessou Gallows Hill. Estava tanto frio que as pessoas batiam com as
mãos nas orelhas, encolhiam os ombros e corriam.
A asma de Holmes dava-lhe a sensação que o caminho que já percorrera
tinha o dobro do comprimento. Passou em frente da velha Primeira Igreja
de Cambridge, a velha igreja do reverendo Abiel Holmes. Ele esgueirou-se
para o interior da capela vazia e sentou-se. Os bancos eram os de sempre,
oblongos, com uma saliência diante dos paroquianos para apoiarem os seus
livros de salmos. Havia um órgão faustoso, algo que o reverendo Holmes
nunca teria permitido.
O pai de Holmes perdera a igreja durante uma secessão na sua
congregação, promovida por membros que desejavam receber pastores
unitaristas como ocasionais pregadores convidados para o seu púlpito. O
reverendo recusara-se, e o reduzido número de fiéis que o apoiou mudou-
se com ele para uma nova igreja. Naquela época, as capelas unitaristas
estavam na moda, porque a «nova religião» oferecia amparo perante as
doutrinas do pecado original e da indefensibilidade humana proposta pelo
reverendo Holmes e os seus irmãos ainda mais extraordinários. Fora
também numa daquelas igrejas que o doutor Holmes virara as costas às
crenças paternas, e encontrara outro tipo de amparo na religião razoável
em vez de ser no temor a Deus.
«Também havia amparo sob os sobrados de madeira», pensara Holmes
quando os abolicionistas intervieram; pelo menos, fora isso que Holmes
ouvira. Por baixo de muitas capelas unitaristas tinha-se escavado túneis
para esconder negros fugitivos quando o Supremo Tribunal do juiz Healey
apoiou o Decreto sobre os Escravos Fugitivos e obrigou os negros fugitivos
a esconderem-se. O que teria pensado o reverendo Abiel Holmes sobre
isto...
Holmes regressava à antiga igreja paterna todos os Verões, ao começar o
curso de Harvard, pois era ali que se celebrava a cerimónia de abertura. No
ano da graduação de Wendell Júnior como poeta da turma, a senhora
Holmes advertira o marido para não acentuar a pressão sobre júnior,
aconselhando ou criticando o seu poema. Quando Júnior tomou o seu lugar,
o Dr. Holmes sentou-se na igreja, na capela que fora arrebatada ao seu pai,
e um sorriso incerto e nervoso desenhou-se no seu rosto. Todos os olhos
estavam fixos nele, para ver a sua reacção ao poema do filho, escrito por
Júnior enquanto fazia a instrução para combater na guerra em que, em
breve, a sua companhia ia participar. «Cedat armis toga», pensou Holmes -
que a toga do estudante ceda o lugar às armas do soldado. Arquejando com
nervosismo enquanto olhava para o filho, Oliver Wendell Holmes desejou
poder submergir naqueles túneis mágicos que, conforme se supunha,
corriam por baixo das igrejas. Pois que utilidade teriam aquelas tocas de
coelho, agora que aos traidores seccionistas se lhes ia ensinar o que fazer
com as suas leis esclavagistas, com baionetas e espingardas Emdfield?
Holmes fixou a sua atenção no banco vazio. Os túneis! Fora assim que
Lúcifer conseguira eludir a sua localização, mesmo quando a polícia
alterara a disposição de todas as suas forças nas ruas! Por isso a prostituta
viu Teal desaparecer no meio do nevoeiro, próximo de uma igreja! Por isso
o inquieto sacristão da igreja de Talbot não viu o assassino entrar nem sair!
Um coro de aleluias iluminou o espírito do doutor Holmes. «Lúcifer não
caminha nem anda de charrete, enquanto arrasta Boston para o Inferno»,
exclamou Holmes para consigo. «Está na madrigueira!»
Lowell partiu ansiosamente de Elmwood para o seu encontro em Craigie
House, e foi o primeiro a cumprimentar Longfellow. No caminho, Lowell
não reparou que os policiais de vigia, que costumavam estar à frente de
Elmwood e de Craigie House, já não se viam em parte nenhuma. Longfellow
acabava de ler uma história a Annie Allegra. Ele deixou-a ir com a ama.
Fields chegou pouco depois.
Contudo, passaram vinte minutos sem que Oliver Wendell Holmes nem
Nicholas Rey dessem sinal de vida.
- Não devíamos ter-nos afastado de Rey - murmurou Lowell para o seu
bigode.
- Não consigo perceber porque é que o Wendell não chegou até agora -
disse Fields, nervoso. - No caminho para cá parei em casa dele, e a senhora
Holmes disse-me que ele já tinha saído.
- Não foi há muito tempo - disse Longfellow, sem afastar os olhos do seu
relógio.
Lowell afundou o rosto entre as mãos. Quando olhou através delas, tinham-
se escoado outros dez minutos. Quando voltou a fechá-las, foi subitamente
atingido por um pensamento que lhe produziu um calafrio. Apressou-se a ir
à janela.
- Temos de ir à procura de Wendell, imediatamente!
- O que se passa? - perguntou Fields, alarmado com a expressão
horrorizada estampada no rosto de Lowell.
- É o Wendell - disse Lowell. - Chamei-lhe traidor na Corner! Fields dirigiu-
lhe um sorriso amável.
- Há tanto tempo que isso está esquecido, meu caro Lowell. Lowell agarrou
na manga do casaco do seu editor para se equilibrar.
- Não está a perceber? Eu tive a minha disputa com o Wendell na Corner, no
dia em que o Jennison foi encontrado esquartejado, na noite em que o
Holmes abandonou o nosso projeto. O Teal, ou antes o Galvin, acabara de
entrar no vestíbulo. Ele deve ter-nos ouvido o tempo todo,
370 - 371
como fez com as reuniões do Conselho de Harvard! Eu segui o Holmes até
ao vestíbulo, desde a Sala dos Autores, a gritar-lhe... Não se lembram do que
lhe disse? Não ouvem ainda essas palavras? Eu disse ao Holmes que ele
estava a trair o Clube de Dante. Eu disse-lhe que ele era um traidor!
- Por favor, acalme-se - disse Fields.
- O Greene pregava para o Teal, e, com o passar do tempo, o Teal cometia os
homicídios. Eu condenei o Wendell como um traidor. O Teal foi a atenta
audiência do meu pequeno sermão! - exclamou Lowell. -Oh, meu querido
amigo, o que é que eu fui fazer. Eu assassinei o Wendell!
Lowell apressou-se a ir ao vestíbulo buscar o seu casaco.
- Ele estará aqui a todo o momento, tenho a certeza disso - disse
Longfellow. - Por favor, Lowell, ao menos esperemos pelo agente Rey.
- Não, eu vou à procura do Wendell agora mesmo!
- Mas onde pensa você encontrá-lo? E não pode ir sozinho - disse
Longfellow. - Nós também vamos.
- Vou eu com o Lowell - disse Fields, agarrando no bastão de polícia
deixado por Rey e sacudindo-o para demonstrar que servia na perfeição. -
Estou certo que está tudo bem. Longfellow, você quer ficar aqui à espera do
Wendell? Nós pedimos ao agente de patrulha para ir buscar Rey quanto
antes.
Longfellow anuiu com a cabeça.
- Então vamos, Fields! Já! - resmoneou Lowell quase a chorar. Fields tentou
acompanhar Lowell, enquanto ele corria pela avenida
em direcção à Brattle Street. Ali não estava ninguém.
- Então, onde raio está aquele agente? - perguntou Fields. - A rua parece
estar completamente vazia...
Do outro lado da cancela de Longfellow, por entre as árvores, algo rangeu.
Lowell levou um dedo aos lábios para pedir silêncio a Fields, e aproximou-
se sigilosamente do local de onde viera o barulho. Uma vez ali, permaneceu
imóvel, com o ânimo em suspenso.
Um gato apareceu de um salto aos pés deles e depois fugiu a correr,
desaparecendo na penumbra. Lowell emitiu um suspiro de alívio, mas
justamente então um homem precipitou-se por cima da grade e desferiu
um golpe sonoro na cabeça de Lowell, que caiu imediatamente no chão,
como uma embarcação cujo mastro se tivesse partido em dois. Caiu no
chão, e do rosto do poeta caído desvaneceu-se todo o movimento de forma
tão incrível, que pareceu a Fields que quase não o reconhecia.
O editor recuou, e em seguida levantou os olhos, que se encontraram com o
olhar parado de Dan Teal. Ambos se moveram como se estivessem
sincronizados. Fields fazia-o para trás e Teal para a frente, numa dança
curiosamente delicada.
- Por favor, senhor Teal - disse Fields, sentindo os joelhos a vacilar como se
se dobrassem para dentro. Teal permanecia impassível.
O editor tropeçou num ramo caído e lançou-se imediatamente numa torpe
correria. Corria pela Brattle Street abaixo, vacilando enquanto avançava,
tentando chamar a atenção de alguém, a gritar, mas só conseguia tossir,
emitindo um rouco grasnido, que se perdeu no meio dos ventos gelados,
que uivavam aos seus ouvidos. Ele olhou para trás e retirou o bastão de
polícia do bolso. Já não havia nenhum sinal do seu perseguidor. Quando
Fields se virou para olhar por cima do ombro, sentiu o seu braço a ser
agarrado, e sentiu-se ser atirado com força pelo ar. O seu corpo caiu na rua,
e o bastão deslizou por entre os arbustos com um suave esturdiar, tão
suave como o gorjeio de um pássaro.
Fields esticou o pescoço em direcção a Craigie House, olhando-a fixamente.
Das janelas do escritório de Longfellow, escapava um quente resplendor de
luz de um candeeiro a gás, e, naquele instante, Fields julgou perceber
perfeitamente o propósito do assassino.
- Só lhe peço que não faça mal ao Longfellow, Teal. Hoje, ele abandonou
Massachusetts, dou-lhe a minha palavra de honra - balbuciou Fields como
uma criança.
- Acaso eu não cumpri sempre com o meu dever? - disse o soldado
levantando muito alto o seu cacete acima da cabeça de Fields e golpeou-a.
O sucessor do reverendo Elisha Talbot havia levado a cabo algumas
reuniões com os diáconos da Segunda Igreja Unitarista de Cambridge, umas
horas antes do doutor Oliver Wendell Holmes, armado com o seu velho
mosquete e um candeeiro a querosene, que adquirira numa casa de
penhores, entrar na igreja e se introduzir na cripta funerária subterrânea.
Holmes meditara consigo mesmo sem compartilhar a sua teoria com os
outros, mas decidiu confirmá-la primeiro por sua conta. Se a cripta
funerária subterrânea de Talbot tivesse, de fato, uma comunicação com um
túnel abandonado para escravos fugitivos, isso podia conduzir a polícia
diretamente ao assassino. Também explicaria como Lúcifer entrara na
cripta funerária com antecedência, assassinara Talbot e fugira sem que
houvessem testemunhas. A intuição do doutor Holmes lançara o Clube de
Dante na sua investigação criminal, apesar de esta requerer a decisão de
Lowell para seguir em frente. Por que razão não havia de ser ele a pôr-lhe
um ponto final?
Holmes desceu à cripta funerária subterrânea e deslizou as mãos pelas
paredes do recinto sepulcral em busca de qualquer sinal de uma abertura
para outro túnel ou câmara. Não encontrou a passagem com as suas mãos
perscrutantes, mas com a biqueira da bota, que por um mero acaso
pontapeou um vão. Holmes inclinou-se para o examinar e descobriu um
espaço estreito. O seu corpo compato cabia à justa no buraco, e arrastou o
candeeiro atrás de si. Depois de algum tempo a avançar de gatas, a altura
do túnel aumentou, e Holmes conseguiu levantar-se com toda a
comodidade. Decidiu regressar imediatamente à superfície. Ah, como os
outros sorririam diante da sua descoberta. Com que rapidez o seu
adversário compreenderia agora a sua derrota! Mas as bruscas reviravoltas
e a escarpa do labirinto deixaram o pequeno doutor desorientado. Ele
descansou uma mão no bolso do seu casaco, agarrando no punho do seu
mosquete, para se sentir seguro, e começava a recuperar o equilíbrio
interior quando uma voz alertou todos os seus sentidos. - Doutor Holmes -
disse Teal.

XIX




ENJAMIN GALVIN ALISTOU-SE AQUANDO DA PRIMEIRA LEVA de

B Massachusetts. Aos vinte e quatro anos, ele já se considerava um


militar há algum tempo, tendo ajudado a conduzir escravos
fugitivos pelas redes de refúgios, santuários e túneis da cidade,
durante os anos em que a guerra ainda não tinha chegado a eles. Também
figurou entre os voluntários que escoltavam os oradores antiesclavagistas à
entrada e saída do Faneuil Hall e de outros ateneus, servindo de escudo
humano frente às turbas que lançavam pedras e tijolos.
Há que admitir que Galvin não estava politizado como os demais jovens. Ele
não sabia ler os densos ofícios nem os jornais onde se dizia se se devia
votar neste ou naquele político sulista, ou como este ou aquele partido ou
Câmara Legislativa estadual clamara a favor da secessão ou da conciliação.
Mas ele compreendia os oradores de tribuna, que proclamavam que devia
libertar-se uma raça escravizada e que os partidos culpados deviam
receber o castigo apropriado. E Benjamin Galvin também compreendeu, de
uma maneira bastante simples, que já não devia voltar ao seu lar de recém-
casado. Os recrutas prometiam que, se ele não voltasse a segurar bem alto a
bandeira das estrelas e das listas, fá-lo-ia envolto nela. Galvin nunca antes
tinha sido fotografado, e a única imagem recolhida por causa do
alistamento tinha-o decepcionado. O seu gorro e calças pareciam não ser do
seu tamanho, e os seus olhos pareciam incrivelmente temerários.
A terra estava quente e seca quando a Companhia C do 10.o Regimento foi
enviada de Boston para Springfiled, para o Campo Brightwood. Nuvens de
pó incrustaram-se nos uniformes azuis dos soldados ao ponto de os fazer
parecer da mesma cor cinzenta apagada dos inimigos. O coronel perguntou
a Benjamin Galvin se queria ser o ajudante da companhia e fazer a lista das
baixas. Galvin explicou que conseguia escrever o alfabeto, mas não era
capaz de escrever nem ler corretamente. Tentara aprender muitas vezes,
mas as letras e os sinais de pontuação
embrulhavam-se-lhe na cabeça e chocavam e giravam uns de encontro aos
outros na página. O coronel ficou surpreendido. O analfabetismo não era de
todo invulgar entre os recrutas, mas o soldado Galvin sempre parecera
estar mergulhado em tão profundos pensamentos, captando tudo com uns
olhos tão abertos e tranquilos, e com uma expressão tão absolutamente
serena que alguns dos homens o haviam apelidado de Sarigueira.
Quando eles estavam acampados na Virgínia, o primeiro acontecimento
emocionante ocorreu quando um dia um soldado das suas fileiras foi
encontrado na floresta, com um tiro na cabeça e feridas de baioneta. A
cabeça e a boca estavam cheias de larvas de moscas-varejeiras, como se
fossem um enxame de abelhas instaladas na sua colmeia. Dizia-se que os
rebeldes tinham mandado um dos seus negros matar um ianque apenas
por divertimento. O capitão Kingsley, um amigo do soldado morto, fez
Galvin e os outros homens jurarem não ter a menor compaixão quando
chegasse o dia de se baterem com os secessionistas. Parecia que nunca
teriam oportunidade de entrar em combate todos os homens que sentiam o
desejo ardente de o fazer.
Apesar de ter trabalhado sob as intempéries a maior parte da sua vida,
Galvin nunca vira o tipo de criaturas rastejantes, que pululavam por aquela
parte do país. O ajudante da companhia, que se levantava todas as manhãs
uma hora antes da alvorada para pentear o seu espesso cabelo e escrever
as listas dos feridos e mortos, não deixava ninguém matar aquelas criaturas
rastejantes. Ele tratava delas como se fossem crianças, apesar de Galvin ter
visto, com os seus próprios olhos, quatro homens de outra companhia
morrerem por causa das larvas brancas, que infestavam as suas feridas.
Isto sucedeu enquanto a Companhia C marchava em direcção ao
acampamento seguinte, mais próximo, segundo se murmurava, de um
campo de batalha em plena actividade.
Galvin nunca imaginara que a morte pudesse chegar tão facilmente às
pessoas que o rodeavam. Em Fair Oaks, num único estalido de ruído e
fumo, seis homens caíram mortos à sua frente, com os olhos ainda fixos,
como se os interessasse o que pudesse acontecer aos restantes. Naquele
dia, não foi o número de mortos, mas o número de sobreviventes, que
surpreendeu Galvin, porque não parecia possível, nem sequer justo, que
alguém saísse dali com vida. O número inconcebível de cadáveres humanos
e equídeos amontoaram-se como lenha e foram queimados. Depois disso,
sempre que Galvin fechava os olhos para dormir, ouvia gritos e explosões
dentro da sua cabeça rodopiante, e conseguia sentir constantemente o
fedor a carne putrefata.
Num fim de tarde, de regresso à sua tenda, devorado pela angústia, Galvin
deu por falta de um bocado da sua ração, que guardara na mochila.
Um dos seus companheiros de tenda disse-lhe que vira o capelão da
companhia tirar-lho. Galvin não julgou possível tamanha perversidade,
apesar de a todos corroer a mesma fome e todos terem o estômago
igualmente vazio. Mas era difícil culpar um homem. Quando a companhia
marchava sob a chuva torrencial ou o calor tórrido, as rações diminuíam de
forma inevitável, reduzindo-se a umas poucas bolachas infestadas de
gorgulho, e quase não havendo também suficientes. O pior de tudo era que
um soldado não podia passar uma noite sem uma «refrega», uma operação
que consistia em despojar-se das roupas e sacudir dela os bichos e
carrapatos. O ajudante, que parecia saber tudo sobre essas criaturas,
explicava a forma como os insetos os invadiam quando estavam quietos, de
modo que deviam manter-se sempre em movimento, e, de cabeça para
cima, sem pararem de se mexer.
As criaturas também pululavam na água para beber, em resultado dos
cavalos mortos e da carne putrefata, que, por vezes, amontoavam os
soldados nos vaus dos rios. Da malária à desinteria, todas as doenças eram
catalogadas como febre de acampamento, e o cirurgião não conseguia
distinguir entre os verdadeiros doentes e os que fingiam, pelo que
normalmente achava melhor assumi-los como doentes do que cair no
engano. Uma ocasião, Galvin vomitou oito vezes num único dia, e, a última
vez, apenas expeliu sangue. Durante os poucos minutos em que esperou
pelo cirurgião, que lhe receitou quinino e ópio, os outros cirurgiões
atiravam um braço ou uma perna pela janela do improvisado hospital.
Quando estavam no acampamento, havia sempre doenças, mas pelo menos
também havia livros. O cirurgião ajudante recolhia os que tinham sido
enviados de casa aos rapazes e conservava-os na sua tenda, de modo que
atuava como bibliotecário. Alguns dos livros tinham ilustrações, que Galvin
gostava de ver, e, outras vezes, o ajudante ou um dos companheiros de
tenda de Galvin lia uma história ou um poema em voz alta. Na biblioteca do
cirurgião ajudante, Galvin encontrara um exemplar, de um azul e dourado
brilhantes, da poesia de Longfellow. Galvin não conseguia ler o título
escrito na capa, mas reconheceu o retrato gravado na folha de rosto por um
dos livros da sua mulher. Harriet Galvin sempre dissera que em cada livro
de Longfellow ele conseguia encontrar um caminho para a luz e a felicidade
para as suas personagens quando se deparavam com o desespero. Tal como
Evangeline e o seu amado, separados no seu novo país e que acabaram por
se encontrar quando ele estava a morrer por causa de uma febre e ela era
sua enfermeira. Galvin imaginava que eram ele e Harriet, e isso
tranquilizava-o quando via os homens a tombar à sua volta. A primeira vez
que Galvin saiu da quinta da sua tia para ajudar os abolicionistas de Boston,
depois de ter ouvido um orador,
foi golpeado por dois irlandeses vociferadores, que o deixaram sem
sentidos e que tinham ido sabotar a reunião dos abolicionistas. Um dos
organizadores levou Galvin para sua casa para se recompor, e Harriet, uma
das suas filhas, apaixonou-se pelo pobre rapaz. Ela nunca conhecera
ninguém, nem mesmo entre os amigos do pai, com uma segurança tão
simples sobre o justo e o injusto das coisas, sem nenhuma preocupação
corruptora pela política ou pela influência. «Às vezes acho que amas mais a
tua missão do que consegues amar as outras pessoas», dizia-lhe ela durante
o noivado, mas ele era demasiado direto para pensar que o que fazia era
uma missão.
Ela ficou destroçada ao saber por Galvin que os seus pais tinham morrido
de peste negra quando ele ainda era jovem. Ela ensinou-o a escrever o
alfabeto, fazendo-o copiá-lo em ardósias. Já sabia escrever o seu nome. Eles
casaram no dia em que decidiu oferecer-se como voluntário para combater
na guerra. Ela prometeu ensinar-lhe o bastante para que ele lesse um livro
inteiro sozinho quando voltasse. Era por isso, dizia ela, que ele tinha de
regressar vivo. Galvin passava por baixo do seu cobertor, deitava-se no
duro estrado, e pensava na voz dela, regular e melodiosa.
Quando começaram os bombardeamentos, alguns dos homens riam
descontroladamente ou guinchavam, enquanto disparavam, com os rostos
enegrecidos pela pólvora, por terem de abrir os cartuchos com os dentes.
Outros carregavam e disparavam sem apontarem para nenhum alvo, e
Galvin considerava que esses homens estavam verdadeiramente
perturbados. Os ensurdecedores canhões aturdiam a terra de forma tão
terrível que os coelhos corriam disparados para as suas tocas, com os
corpinhos a tremer de terror enquanto brincavam por entre os corpos dos
mortos, espalhados por todo o campo, e dos quais, juntamente com sangue,
iam saindo vapores.
Aos sobreviventes, raramente restavam forças para escavar suficientes
túmulos para os seus companheiros, resultando daí paisagens inteiras de
joelhos, braços e cocurutos protuberantes a saírem do terreno. As
primeiras chuvas deixavam-nos a descoberto. Galvin observava os seus
companheiros de tenda a escrevinhar cartas para casa, a falar das suas
batalhas, maravilhava-se de como conseguiam eles pôr em palavras o que
tinham visto, ouvido e sentido, pois tudo excedia todas as palavras que ele
alguma vez ouvira pronunciar. Segundo um soldado, a chegada de reforços
para a sua última batalha, que aniquilara quase um terço da sua companhia,
respondia às ordens de um general, que desejava pôr em apertos o general
Burnside, na esperança de garantir a sua substituição. Mais tarde, o general
recebeu uma promoção.
- É possível? - perguntou o soldado Galvin a um sargento de outra
companhia.
- Dois machos e outro soldado mortos - respondeu o sargento LeRoy de
mau humor, rindo entre dentes, ao soldado ainda recruta.
A campanha só excedera em horrores e carnificina humana a campanha de
Napoleão na Rússia, conforme Benjamin Galvin fora sagazmente advertido
pelo ajudante amante de livros.
Ele não gostava de pedir aos outros que escrevessem cartas por si, como
outros analfabetos totais ou parciais faziam, por isso, quando Galvin
encontrava cartas nos cadáveres dos soldados rebeldes, mandava-as a
Harriet, em Boston, para que ela pudesse saber as coisas da guerra em
primeira mão. Ele escrevia o seu nome no fim, para que ela soubesse de
onde vinha a carta, e incluía a pétala de uma flor local ou uma folha
representativa. Nem sequer queria incomodar os homens que viviam da
escrita. Eles estavam sempre tão cansados, todos tão cansados que com
muita frequência, Galvin conseguia deduzir, antes das batalhas, pelas
expressões torpes dos rostos de alguns homens - quase como se ainda
estivessem a dormir -, quem de certeza não veria a manhã seguinte.
- Se eu pudesse ir simplesmente para casa, a União que fosse para o Inferno
- ouviu Galvin um oficial dizer.
Galvin não se apercebeu da diminuição das rações, que enfurecia tantos
homens, porque agora a maior parte do tempo não conseguia saborear nem
sentir o cheiro, e nem sequer ouvir a sua própria voz. Com um alimento que
já não era particularmente satisfatório, Galvin ganhou o hábito de mascar
seixos e depois bocados de papel rasgados da biblioteca minguante e
ambulante do cirurgião assistente, e das cartas dos rebeldes, para manter a
boca quente e ocupada. Os fragmentos rasgados ficavam cada vez mais
pequenos, para que durassem todo o tempo possível até ele conseguir
encontrar outros.
Um dos homens, que ficara demasiado coxo para resistir a uma marcha, foi
abandonado no acampamento, e dois dias mais tarde, encontraram-no
assassinado para lhe roubarem a carteira. Galvin disse a toda a gente que a
guerra era pior do que a campanha russa de Napoleão. Foi-lhe
administrada morfina e óleo de castor para a diarreia, e o médico deu-lhe
uns pós que o fizeram sentir-se tonto e frustrado. Ele só tinha um par de
ceroulas, e os caixeiros viajantes que as vendiam nos seus carromatos
pediam 2.50 dólares por um par que não valia mais de trinta cêntimos. O
caixeiro ambulante disse que não baixava o preço, mas que até podia subi-
lo se Galvin demorasse muito tempo a decidir. Galvin tivera vontade de
partir a cabeça do vendedor, mas não o fez. Pediu ao ajudante para lhe
escrever uma carta a Harriet Galvin a encarregá-la de lhe mandar dois
pares de ceroulas grossas de lã. Foi a única carta que escreveu durante a
guerra.
378 - 379
Foram precisas picaretas para retirar os cadáveres presos no chão pelo
gelo. Quando o calor voltou, a Companhia C encontrou um campo de
restolho cheio de corpos de negros por enterrar. Galvin maravilhou-se
diante de tantos negros de uniforme azul, mas logo percebeu o que estava a
ver. Os cadáveres tinham sido abandonados sob o sol de Agosto um dia
inteiro, e essa exposição ao calor e os bichos que se arrastavam por cima
deles faziam-nos parecer negros. Os homens tinham morrido em todas as
posições concebíveis, e os cavalos eram incontáveis; muitos deles pareciam
ajoelhados sobre as quatro patas, como se estivessem à espera que uma
criança os montasse.
Pouco depois, Galvin ouviu dizer que alguns generais estavam a devolver
escravos fugidos dos seus donos, e que conversavam com estes últimos
como se estivessem a jogar uma partida de cartas. Seria aquilo possível? A
guerra não fazia qualquer sentido, se não se combatesse para melhorar a
sorte dos escravos. Durante uma marcha, Galvin viu um negro morto, cujas
orelhas haviam sido pregadas a uma árvore como castigo por tentar fugir.
O seu dono deixara-o nu, sabendo bem que os vorazes mosquitos e moscas
haviam de desempenhar o seu papel.
Galvin não conseguia entender os protestos dos soldados da União quando
Massachusetts formou um regimento de negros. Um regimento de Illinois,
com o qual ele se encontrou, ameaçou desertar em massa, se Lincoln
libertasse mais um único escravo.
Num ressurgimento do sentimento religioso de negros, a que Galvin
assistira nos primeiros meses da guerra, ele ouviu uma prece na qual se
louvava os soldados que atravessavam a cidade: «Que o bom Deus tome os
que se lamentam e os joeire sobre o inferno, mas que não permita que vão
para ali.»
E cantavam:
O demónio está louco e eu estou contente. Glória, aleluia! Ele perdeu uma
alma que julgava ter ganho. Glória, aleluia!
- Os negros ajudaram-nos, espiaram para nós. Também precisam da nossa
ajuda - disse Galvin.
- Eu preferia ver a União morta do que ganhar graças aos negros! - gritou
na cara de Galvin um tenente da sua companhia.
Mais de uma vez, Galvin vira um soldado a agarrar numa rapariga negra
que fugia do seu amo e a arrastá-la pela floresta para se refocilar com ela.
A comida esgotara-se em ambos os lados da linha da frente de batalha. Uma
manhã, três soldados rebeldes foram capturados quando iam
buscar comida entre os restos que estavam na mata, próxima do seu
acampamento. Tinham um aspeto famélico, com a queixada caída. Com eles
ia um desertor das fileiras de Galvin. O capitão Kingsley ordenou ao
soldado Galvin que o matasse com um tiro. Galvin sentiu como se fosse
vomitar sangue, se tentasse falar.
- Sem as devidas cerimónias, meu capitão? - acabou ele por dizer.
- Marchamos para entrar em combate, soldado. Não há tempo para se fazer
um conselho de guerra, nem tão-pouco para o enforcar, por isso, dê-lhe um
tiro aqui mesmo! Pronto... Apontar... Fogo!
Galvin havia presenciado o castigo infligido a um soldado que se recusara a
cumprir essa mesma ordem. O castigo chamava-se «corcovear e arquear-
se», e consistia em prender-se uma das mãos aos joelhos com uma baioneta
colocada entre os braços e as pernas e a outra atada de tal forma que ficava
à altura da boca. O desertor, esquelético e exausto, não pareceu
particularmente afetado.
- Vamos, mata-me.
- Agora, soldado! - ordenou o capitão. - Quer ser castigado? Galvin matou o
homem com um tiro à queima-roupa. Os outros
correram para o corpo inanimado e trespassaram-no cerca de uma dúzia
de vezes com as lâminas das suas baionetas. O capitão voltou-se e, com um
brilho gelado nos olhos, ordenou a Galvin que ali mesmo disparasse contra
três prisioneiros rebeldes. Quando Galvin hesitou, o capitão Kingsley
empurrou-o para o lado, agarrando-o pelo braço.
- Você fica sempre a olhar, não é, Sarigueira? Passa a vida a olhar para toda
a gente, como se estivesse convencido de que sabe melhor do que nós o que
deve fazer. Muito bem, pois agora vai fazer exatamente o que eu lhe disser.
Vai fazê-lo agora, c'os diabos; eu sei que o fará. - Ele mostrava todos os
dentes, enquanto falava.
Os três rebeldes foram postos em fila. Depois do «pronto, apontar, fogo»,
Galvin disparou sucessivamente sobre cada um deles, na cabeça, com a sua
espingarda Endfield. Enquanto o fazia, experimentou tão pouca emoção
como a que sentia quando cheirava, degustava ou ouvia. Naquela mesma
semana, Galvin viu quatro soldados da União, incluindo dois da sua própria
companhia a molestarem duas meninas, de quem se tinham apoderado na
povoação. Galvin comunicou-o aos seus superiores, e, como exemplo, os
quatro homens foram atados a uma roda de canhão e açoitados nas costas
com uma vergasta. Como fora Galvin quem os denunciara, tocou-lhe a ele
empunhar o látego.
Na batalha seguinte, Galvin não teve a impressão de estar a lutar por
nenhuma das partes, contra nenhum dos lados. Ele limitava-se a combater.
O mundo inteiro combatia e descarregava a sua raiva contra si próprio,
e os clamores nunca cessavam. De qualquer modo, apenas conseguia
distinguir um rebelde de um ianque. Na véspera, devia ter roçado em
alguma folha tóxica, e, ao cair a noite, os seus olhos estavam praticamente
fechados. Os homens riam-se disso porque, enquanto outros tinham os
olhos fechados e as cabeças abertas pelas lâminas, Benjamin Galvin lutara
como um tigre e não sofrera um único arranhão. Naquele dia, um soldado,
que mais tarde foi recolhido para um asilo, ameaçou matar Galvin,
apontando-lhe a espingarda ao peito e avisando-o que, se não parasse de
mascar aquele maldito papel, lhe dava um tiro ali mesmo.
Depois da sua primeira ferida de guerra, uma bala cravada no peito, e
enquanto não estava completamente recuperado, Galvin foi enviado como
guarda para o Fort Warren, em frente ao porto de Boston, onde eram
mantidos os prisioneiros rebeldes. Ali, os prisioneiros endinheirados
compravam os melhores aposentos e a melhor comida, independentemente
do seu grau de culpabilidade ou do número de homens que tinham morto
injustamente.
Harriet rogava a Benjamin que não voltasse para a guerra, mas ele sabia
que os homens precisavam de si. Quando, ansiosamente, se reincorporou
na Companhia C, na Virgínia, tinham ocorrido tantas baixas no regimento,
por morte ou por deserção, que foi logo promovido a alferes.
Pelos novos recrutas, soube que os meninos ricos ficavam em casa, porque
pagavam trezentos dólares para se livrarem do serviço militar. Indignado,
Galvin explodiu de raiva. Sentiu-se débil por causa da angústia, e à noite
não dormiu mais de alguns minutos. Mas ele tinha de se mexer; tinha de se
manter em movimento. No decorrer da batalha seguinte, caiu entre os
cadáveres e adormeceu a pensar naqueles meninos ricos. À noite, os
rebeldes deambularam por entre os mortos, encontraram-no, pegaram nele
e levaram-no para a prisão de Libby, em Richmond. Depois, permitiram que
todos os soldados partissem, porque careciam de importância, mas Galvin
era alferes, e, por isso, passou quatro meses em Libby. Galvin só se
lembrava de imagens difusas e de alguns sons do tempo em que estivera
como prisioneiro de guerra. Era como se continuasse a dormir e a sonhar o
tempo todo.
Quando foi enviado para Boston, Benjamin Galvin foi desmobilizado com o
resto do seu regimento numa grande cerimónia que teve lugar junto às
escadarias da câmara legislativa do estado. A andrajosa bandeira da
companhia foi dobrada e entregue ao governador. Apenas duzentos dos
iniciais mil homens estavam vivos. Galvin não conseguia perceber como é
que a guerra podia ser dada por terminada. Nem sequer se tinham
aproximado do triunfo da sua causa.
Os escravos tinham sido libertados, mas o inimigo não alterara em nada o
seu comportamento e também não fora punido. Galvin não era político, mas
sabia que os negros não teriam paz no Sul, com ou sem escravatura, e
também sabia o que desconheciam aqueles que não tinham combatido na
guerra; não sabiam que o inimigo estava à sua volta a todas as horas do dia
e não se rendera. E nunca, mas nunca, nem por um único momento, os
inimigos haviam estado restringidos aos Sulistas.
Galvin sentiu que agora falava uma linguagem diferente, que os civis não
conseguiam compreender. Nem sequer conseguiam ouvir. Só os
companheiros de armas, que haviam sido afetados por canhões e obuses,
tinham essa capacidade. Em Boston, Galvin começou a ir de cá para lá com
eles, formando bandos. O seu aspeto era macilento e exausto, como o dos
grupos de vagabundos, que eles tinham visto nos bosques. Contudo, esses
veteranos, muitos dos quais haviam perdido os seus empregos e famílias e
lamentavam não ter morrido na guerra - pelo menos as suas mulheres
receberiam uma pensão -, deambulavam em busca de dinheiro ou de
bonitas raparigas, embebedavam-se e armavam zaragatas. Já não se
lembravam de vigiar o inimigo, e estavam tão cegos como os demais.
Enquanto Galvin caminhava pelas ruas, amiúde começava a sentir que
alguém o seguia de perto. Parava de repente e virava-se sobre si mesmo
num rodopio, com um olhar esbugalhado estampado nos seus grandes
olhos, mas o inimigo desaparecera numa esquina ou por entre a multidão.
O diabo está louco e eu estou contente...
A maior parte das noites, ele dormia com um machado debaixo da
almofada. Durante uma trovoada, acordou e ameaçou Harriet com uma
espingarda, acusando-a de ser uma espia rebelde. Nessa mesma noite,
permaneceu de pé no pátio à chuva, envergando o seu uniforme de gala e
fazendo a patrulha durante horas. Noutras alturas, ele fechava Harriet num
quarto e guardava-a, explicando-lhe que alguém estava a tentar capturá-la.
Ela teve de ir trabalhar como lavadeira para pagar as dívidas que tinham, e
insistiu com ele para que fossem consultar algum médico. O doutor disse
que ele tinha «o mal dos soldados» - palpitações descontroladas, causadas
pela participação em batalhas. E ela conseguiu convencê-lo a ir para um dos
lugares de auxílio aos soldados, onde, segundo ouvira a outras esposas,
velavam pelos militares com problemas. Quando Benjamin Galvin ouviu
George Washington Greene a fazer um sermão naquele lugar de auxílio aos
soldados, sentiu o primeiro raio de luz de que se lembrava em muito
tempo.
Greene falou num homem distante, um homem que compreendia, um
homem chamado Dante Alighieri. Também fora soldado,
fora vítima de uma grande divisão entre os partidos da sua cidade espúria e
levara a cabo uma viagem pelo mais além, a fim de devolver a rectidão a
toda a humanidade. De que incrível ordem da vida e da morte ele fora ali
testemunha! Nenhum derramamento de sangue no inferno era gratuito;
cada pessoa era divinamente merecedora de um castigo específico, criado
pelo amor de Deus. Que perfeição advinha de cada contrapasso, como o
reverendo Greene chamava ao castigo, que correspondia a cada pecado de
cada homem e mulher na terra, e se prolongava até ao dia do Juízo Final!
Galvin compreendeu quanta amargura Dante sentiu por os homens da sua
cidade, amigos e inimigos, só conhecerem o material e o físico, o prazer e o
dinheiro, e não se aperceberem que o juízo lhes pisava os calcanhares.
Benjamin Galvin não conseguia prestar suficiente atenção aos sermões
semanais do reverendo Greene, e também não conseguia captar deles nem
sequer metade, mas também não conseguia afastá-los da sua cabeça.
Quando saía da capela, sentia-se crescido.
Os demais soldados também pareciam desfrutar dos sermões, mas notava
que eles não os compreendiam como deviam, da mesma forma que ele.
Demorando-se uma tarde depois do sermão e olhando fixamente para o
reverendo Greene, Galvin conseguiu escutar uma conversa entre ele e um
dos militares.
- Senhor Greene, permita-me que lhe diga o muito que apreciei o seu
sermão de hoje - disse o capitão Dexter Blight, um homem com um bigode
da cor do feno, em forma de volante, e com um coxeio pronunciado. -
Queria perguntar-lhe, senhor, se poderia eu ler mais sobre as viagens de
Dante. Muitas das minhas noites são passadas em claro, e, por isso, tenho
muito tempo.
O ancião pastor perguntou ao soldado se sabia ler em italiano.
- Bem - disse George Washington Greene depois de receber uma resposta
negativa -, encontrará a viagem de Dante em inglês, com todos os
pormenores que desejar, dentro em breve, meu bom amigo! Saiba que o
senhor Longfellow, de Cambridge, está a terminar uma tradução (não, uma
transformação) para inglês, mediante reuniões semanais com uma espécie
de conselho de ministros, um Clube de Dante, que ele constituiu e do qual
eu sou um humilde membro. No próximo ano, procure o livro na sua
livraria, meu bom homem. Vai ser publicado pela incomparável editora de
Ticknor & Fields!
Longfellow. Longfellow estava relacionado com Dante. Quão apropriado
isso pareceu a Galvin, pois ouvira todos os seus poemas dos lábios de
Harriet. Galvin dirigiu-se a um polícia na cidade e disse-lhe: - Ticknor &
Fields. - O agente indicou-lhe um enorme edifício na Tremont Street, na
esquina com a Hamilton Place.
A sala de exposições media vinte e cinco metros de comprimento por dez
de largura, com um deslumbrante emadeirado, colunas talhadas e
escaparates de abeto ocidental, que reluziam sob gigantescos candelabros.
Um arco decorativo ao fundo da sala de exposições albergava os
exemplares mais distintos das edições da Ticknor & Fields, com lombadas
de cor azul, dourada e castanho-chocolate. Atrás do arco, num
compartimento, mostrava-se os últimos números das publicações
periódicas da editora. Galvin entrou na sala de exposições com a vaga
esperança de que o próprio Dante estivesse à sua espera. Ele avançou com
reverência, de cabeça descoberta e olhos fechados.
Os novos escritórios da editora tinham sido inaugurados apenas uns dias
antes de Benjamin Galvin lá entrar.
- Está aqui por causa do anúncio? - Não houve nenhuma resposta. -
Excelente, excelente. Por favor, preencha este impresso. Neste ramo, não se
trabalha melhor do que com J. T. Fields. Este homem é um génio, um anjo-
da-guarda para todos os autores, é o que ele é. - O homem identificou-se
como Spencer Clark, administrativo da empresa.
Galvin aceitou o papel e a pluma e dirigiu um olhar amplo, passando o
bocado de papel que trazia sempre na boca de uma bochecha para a outra.
- Filho, tem de nos dar o seu nome para podermos chamá-lo - disse Clark. -
Vamos lá, então. Dê-nos o seu nome ou terei de prescindir de si.
Clark apontou para uma linha do impresso de solicitação de emprego.
Galvin pousou aí a pluma e escreveu: «D-A-N-T-E-A-L.» Fez uma pausa.
Como é que se escrevia Alighieri? Ala?-Ali? Galvin continuou a questionar-
se até a tinta da sua pluma estar seca. Clark, que havia sido interrompido
por alguém que estava do outro lado da sala, pigarreou ruidosamente e
retirou-lhe o papel da frente.
- Oh, não seja tímido. Vamos lá ver o que temos aqui? - disse Clark, olhando
para ele de soslaio. - Dan Teal. Um bom rapaz. - Clark olhou decepcionado
para o papel. Apercebeu-se que aquele sujeito não podia ser um empregado
de escritório, com uma caligrafia como aquela, mas a casa necessitava de
todas as mãos que pudesse encontrar durante aquela transição para a
magna sede da New Corner. - Ora, amigo Daniel, peço-lhe que nos diga
onde vive e hoje mesmo poderá começar como marçano, quatro noites por
semana. O senhor Osgood é o chefe administrativo, e ele dir-lhe-á as
condições antes de sair esta noite. Ah, e felicidades, Teal. Acaba de iniciar a
sua nova vida na Ticknor & Fields!
- Dan Teal - disse o novo empregado, repetindo o seu novo nome vezes sem
conta.
Teal sentiu-se emocionado ao ouvir que se tratava de Dante quando
passava em frente à Sala dos Autores, no segundo andar, enquanto
empurrava o seu carro de documentos, que levava de uma dependência a
outra para que os empregados os encontrassem quando chegassem pela
manhã. Os fragmentos de discussões que ele escutou de passagem não
eram como os sermões do reverendo Greene, que falava das maravilhas da
viagem de Dante. Ele não ouvia muitas menções concretas a Dante na
Corner, e, a maioria das noites, o senhor Longfellow, o senhor Fields e a sua
tropa dantesca nem sequer se reuniam. Ainda assim, ali na Ticknor &
Fields, havia homens de alguma forma aliados à causa da sobrevivência de
Dante, e que falavam no modo como podiam protegê-lo.
Teal sentiu a cabeça a rodopiar, saiu do edifício e vomitou no molhe junto
ao Common: Dante requeria protecção! Teal escutou as conversas do
senhor Fields, do senhor Longfellow, do senhor Lowell e do doutor Holmes,
e retirou a conclusão de que o Conselho de Inspetores da Universidade de
Harvard atacava Dante. Teal soubera na cidade que também Harvard
andava à procura de novos empregados, uma vez que a maior parte do seu
pessoal morrera na guerra ou ficara incapacitado. A universidade ofereceu
a Teal um trabalho diurno. Após uma semana de trabalho, Teal conseguiu
trocar o seu lugar de jardineiro do campus pelo de guarda no edifício
principal da universidade, porque era ali, como Teal soubera ao perguntar
a outros trabalhadores, onde o Conselho da Universidade tomava todas as
suas decisões importantes.
No lugar de auxílio aos soldados, o reverendo Greene passou das
considerações gerais sobre Dante aos relatos mais específicos da viagem do
peregrino. O inferno escalonava-se em círculos, cada um deles mais
próximo do castigo do grande Lúcifer, o possuidor de todo o mal. Na
antecâmara do inferno, Greene guiou Teal pela terra dos Neutros, onde se
encontrava o grande Recusador, o pior dos ofensores dali. O nome do
Recusador, um papa qualquer, nada significava para Teal, mas por ter
renunciado a uma elevada e meritória posição, que teria assegurado a
justiça para milhões de pessoas, incendiou a ira de Teal. Este ouvira, atrás
das paredes do edifício principal da universidade, que o juiz Healey do
Supremo Tribunal tinha recusado terminantemente uma posição de grande
importância, uma posição que o levaria a defender Dante.
Teal sabia que o ajudante da Companhia C, amante de livros, recolhera
milhares de insetos durante as suas marchas pelos estados pantanosos e de
clima húmido, e os tinha mandado para casa numas canastas especialmente
confeccionadas, a fim de sobreviverem à viagem até Boston. Teal comprou-
lhe uma caixa de mortíferas moscas-varejeiras e de larvas, juntamente com
um cortiço de vespas,
e seguiu o juiz Healey desde o tribunal até Wide Oaks, onde o observou
enquanto se despedia da sua família.
Na manhã seguinte, Teal entrou em casa pela porta das traseiras, e abriu a
cabeça a Healey com a culatra da sua pistola. Ele despojou o juiz das suas
roupas e dobrou-as cuidadosamente, pois uns atavios de homem não
correspondiam a semelhante cobarde. Depois, transportou Healey para o
exterior, pelas traseiras da casa, e libertou as larvas e os insetos em cima da
ferida da cabeça. Teal também cravou uma bandeira branca no solo
arenoso próximo dele, pois Dante encontrou os Neutros sob esse sinal
admonitor. Ele sentiu imediatamente que se juntara a Dante, que penetrara
no longo e perigoso caminho da salvação entre as gentes perdidas.
Teal sentiu-se contrariado quando Greene faltou uma semana ao lugar de
auxílio aos soldados, por estar doente. Mas logo voltou e pregou sobre os
Simoníacos. Teal já se tinha sentido alarmado e espantado com o acordo
feito entre a Corporação de Harvard e o reverendo Talbot, assunto sobre o
qual ouvira falar em várias ocasiões no edifício principal da universidade.
Como podia um pregador aceitar dinheiro para enterrar Dante, subtraindo-
o ao público, vender o poder do seu ministério por uns corruptos mil
dólares? Mas nada podia fazer, enquanto não soubesse como ele devia ser
castigado.
Certa ocasião, Teal conheceu um ladrão de caixas-fortes, chamado Willard
Burndy, durante as noites que passava nas tabernas das azinhagas, que
percorriam os quarteirões de casas. Teal não teve nenhum problema em
atrair Burndy a uma dessas tabernas, e, apesar de estar furioso com a
borracheira do ladrão, Dan Teal pagou-lhe para que lhe explicasse como
havia de roubar mil dólares do cofre do reverendo Elisha Talbot. Burndy
não parava de dizer como Langdon Peaslee lhe estava a arrebatar todas as
suas ruas. Que mal havia em ensinar a mais alguém como abrir um cofre
simples?
Teal utilizava os túneis dos escravos fugitivos para atravessar até à
Segunda Igreja Unitarista, e espiou o reverendo Talbot, cheio de apreensão,
a descer todas as tardes à cripta funerária subterrânea. Ele contou os
passos de Talbot - um, dois, três - para confirmar quanto tempo ele levava a
chegar às escadas. Estimou a estatura de Talbot e fez uma marca na parede
com giz após o ministro ter passado. Depois, Teal escavou um buraco,
medido com precisão, para que os pés de Talbot pudessem ficar livres no
ar, quando fosse enterrado de cabeça para baixo, e, no fundo, enterrou o
dinheiro sujo de Talbot. Finalmente, na tarde de domingo, ele agarrou
Talbot, arrebatou-lhe a lanterna e despejou-lhe o querosene nos pés.
Depois de ter castigado o reverendo Talbot,
Dan Teal teve uma nebulosa certeza de que o Clube de Dante estava
orgulhoso do seu trabalho. Interrogou-se quando teriam lugar as reuniões
semanais em casa do senhor Longfellow, as reuniões de que o reverendo
Greene falara. «Aos domingos, sem dúvida», pensou Teal, «o Sabat».
Teal andou a perguntar por Cambridge e encontrou facilmente a grande
casa colonial amarela. Contudo, ao olhar pela janela da fachada lateral da
casa de Longfellow, não viu sinais de nenhuma reunião a decorrer. Na
verdade, produziu-se um grande alvoroço no interior pouco depois de Teal
pressionar o rosto de encontro à janela, pois o luar reflectia-se nos botões
do seu uniforme, que agora brilhavam. Teal não queria perturbar o Clube
de Dante, se é que estava reunido; não queria interromper os guardiães de
Dante, enquanto estavam a cumprir o seu dever.
Que desconcertado Teal se sentiu quando Greene voltou a faltar ao seu
encontro combinado no lugar de auxílio aos soldados, desta vez sem se
desculpar de antemão com nenhuma doença! Teal perguntou na biblioteca
pública onde podia ter lições de italiano, porque a primeira sugestão de
Greene ao outro militar fora ler o original nessa língua. O bibliotecário
encontrou um anúncio no jornal, de um tal senhor Pietro Bachi, e Teal
visitou-o para começar as lições. O professor apresentou a Teal um
montinho de livros de gramática e de exercícios, na sua maioria escritos
por ele próprio, mas aquilo nada tinha a ver com Dante.
A certa altura, Bachi ofereceu-se para vender a Teal uma edição veneziana,
centenária, da Divina Commedia. Teal tomou o volume nas suas mãos,
encadernado num cabedal grosso, sem ter em conta o modo como Bachi
divagava sobre a sua beleza. Uma vez mais, aquilo não era Dante. Por sorte,
pouco depois disto, Greene voltou a aparecer no púlpito do lugar de auxílio
aos soldados, e chegou à assombrosa entrada de Dante no poço infernal dos
Cismáticos.
O destino falara tão alto a Dan Teal como o troar de um canhão. Também
ele testemunhara aquele pecado inolvidável - dividir e causar cismas entre
grupos - na pessoa de Phineas Jennison. Teal ouvira-o falar em proteger
Dante nos escritórios da Ticknor & Fields, obrigando o Clube de Dante a
lutar contra Harvard; mas também o ouvira a condenar Dante nos
escritórios da Corporação de Harvard, incitando-a a fazer parar o trabalho
de Longfellow, Lowell e Fields. E Teal conduziu Jennison, através dos túneis
dos escravos fugitivos, até ao porto de Boston, onde o pôs diante da ponta
do seu sabre. Jennison rogou, chorou e ofereceu dinheiro a Teal. Este
prometeu-lhe fazer justiça, e depois cortou-o em pedaços. Ele envolveu
cuidadosamente as feridas. Teal nunca pensou que o que estava a fazer era
a matar, pois o castigo requeria um sofrimento prolongado, um
aprisionamento da sensação. Foi isto que ele achou mais reconfortante em
Dante.
Nenhum dos castigos que presenciara era novo. Teal tinha-os visto a todos
em maior ou menor grau ao longo da sua vida em Boston e nos campos de
batalha por toda a nação.
Teal sabia que o Clube de Dante estava emocionado com a derrota dos seus
inimigos, porque de repente o reverendo Greene ofereceu uma rajada de
sermões extáticos: Dante chegava a um lago gelado cheio de pecadores, de
traidores, que se contavam entre os piores pecadores que o viajante
descobre e proclama. Assim acabaram Augustus Manning e Pliny Mead
imobilizados no gelo, enquanto Teal os observava à primeira luz da manhã,
vestido com o seu uniforme de alferes. Assim, um Teal também de uniforme
observara o Neutro Artemus Healey a contorcer-se nu debaixo de um
manto de insetos; observara o Simoníaco Elisha Talbot, a contorcer-se e a
agitar os seus pés em chama, com o seu demoníaco dinheiro convertido
agora em almofada por baixo da cabeça; e observara Phineas Jennison a
estremecer e a sofrer sacudidelas, enquanto o seu corpo estava pendurado
feito em pedaços e cortado.
Mas depois apareceram Lowell, Fields, Holmes e Longfellow, e não foi para
o recompensar! Lowell disparara a sua arma sobre Teal, e o senhor Fields
gritara a Lowell para que voltasse a disparar. Teal sentiu partir-se-lhe o
coração. Teal dava o desconto a Longfellow, a quem Harriet Galvin adorava,
e os demais protetores que se reuniam na Corner identificavam-se com o
propósito que animava Dante. Agora compreendia que ignoravam a
verdadeira tarefa que ocupava o Clube de Dante. Havia muito que fazer,
tantos círculos por abrir com a finalidade de melhorar Boston. Teal
pensava na cena que acontecera na Corner, quando o doutor Holmes caíra,
e Lowell o seguira desde a Sala dos Autores a gritar: «Você traiu o Clube de
Dante, você traiu o Clube de Dante.»
- Doutor - disse-lhe Teal quando se encontraram no túnel dos escravos. -
Agora, vire-se, doutor Holmes, que eu vim vê-lo.
Holmes virou-se, ficando voltado para o militar fardado. O brilho apagado
que saía da lanterna do médico iluminou tremulamente o longo canal, o
abismo rochoso que se abria à sua frente.
- Imagino que o fato de o senhor me ter encontrado seja coisa do destino -
acrescentou Teal, que, pouco depois, ordenou ao médico que avançasse.
- Santo Deus, homem - exclamou Holmes com um arquejo. - Onde vamos?
- Ter com Longfellow.

XX




OLMES CAMINHAVA. APESAR DE TER VISTO O HOMEM POR

H breves instantes, reconheceu-o imediatamente como sendo Teal,


uma das criaturas noturnas da Corner, como lhes chamava Fields:
o Lúcifer deles. Agora, ao olhar para trás, reparou que o pescoço
do homem era tão musculado como o de um pugilista profissional, mas os
seus olhos de um verde-pálido e a sua boca quase feminina pareciam
infantis, o que resultava numa incongruência. Os seus pés, provavelmente
em resultado de árduas marchas, sustentavam o seu corpo com a postura
nervosa e perpendicular de um adolescente. Teal - aquele mero rapaz - era
inimigo e opositor deles. Dan Teal. Dan Teal! Oh, como pudera escapar a um
ourives da palavra como Oliver Wendell Holmes aquele lance brilhante?
DANTEAL... DANTE AL...! Oh, e em que som cavo se traduzia a recordação
da tonante voz de Lowell na Corner quando Holmes esbarrara com o
assassino no corredor: «Holmes, você traiu o Clube de Dante!», ouvira Teal,
como também devia ter escutado às portas dos departamentos de Harvard.
Com toda a sede de vingança armazenada por Dante.
Se Holmes fosse morto naquele instante para se cumprir o juízo final, não
levaria Longfellow nem os outros até ali. Ele parou no sítio onde o túnel
começava a descrever um declive.
- Não irei mais longe do que isto! - anunciou ele, tentando proteger-se com
uma voz artificialmente resoluta. - Farei o que você me pedir, mas não
envolverei Longfellow nisto!
Teal respondeu com um silêncio notório e compassivo.
- Dois dos senhores devem ser castigados. O senhor tem de fazer com que
Longfellow o compreenda, doutor Holmes.
Holmes apercebeu-se que Teal não se propunha castigá-lo como traidor.
Teal chegara à conclusão de que o Clube de Dante não estava do seu lado,
que os seus membros tinham abandonado a sua causa. Se Holmes tivesse
sido um traidor para o Clube de Dante, como Lowell inadvertidamente
anunciara a Teal, Holmes era amigo do verdadeiro Clube de Dante:
o único que Teal inventara da sua cabeça; uma silenciosa associação,
dedicada a trazer os castigos de Dante à cidade de Boston.
Holmes retirou o seu lenço do bolso e passou-o pela testa.
No mesmo instante, Teal deu-lhe uma palmada forte no cotovelo.
Contra as suas expetativas, e sem cálculo prévio nem plano algum, Holmes
afastou aquela mão com tamanha força que Teal foi bater de encontro à
parede de pedra da caverna. Então, o pequeno doutor lançou-se a correr,
agarrando na lanterna com as duas mãos.
Com a sua respiração ofegante, ele escapuliu-se pelos túneis escuros e
serpenteantes, lançando olhares de relance para trás e escutando
atentamente todo o tipo de barulhos, mas não havia forma de diferenciar o
que vinha do interior da sua cabeça e do crescente peso do seu peito, e o
que existia fora de si mesmo. A sua asma era uma grilheta presa à perna de
um espectro, que o arrastava para trás. Quando chegou a uma espécie de
cavidade subterrânea, precipitou-se para o seu interior. Ali encontrou um
saco-cama forrado a pele, fornecido pelo exército, e alguns bocados de uma
substância dura. Holmes partiu-a com os dentes. Era pão seco, como o que
os soldados se tinham visto obrigados a consumir durante a guerra. Aquele
era o lar de Teal. Havia uma fogueira feita com paus, uns pratos, uma sertã,
uma caneca de estanho e uma cafeteira. Holmes preparava-se para fugir
dali quando ouviu um rangido que o fez ter um sobressalto. Levantando a
sua lanterna, Holmes conseguiu ver a parte mais distante da câmara.
Lowell e Fields estavam sentados no chão, com as mãos e os pés atados e
mordaças de trapos a tapar-lhes a boca. A barba de Lowell caía-lhe sobre o
peito e ele estava perfeitamente imóvel.
Holmes arrancou os trapos da boca dos amigos e tentou sem sucesso
desatar-lhes as mãos.
- Vocês estão feridos? - perguntou Holmes. - Lowell! - Chamou-o ele,
agarrando-o pelos ombros e abanando-o.
- Ele bateu-nos e trouxe-nos para aqui - respondeu Fields. - O Lowell não
parou de insultar o Teal aos gritos quando nos estava a atar. Eu disse-lhe
para calar aquela maldita boca! Então, o Teal voltou a bater-lhe, deixando-o
inconsciente. - E Fields acrescentou em tom suplicante: - E continua, não é?
- O que queria o Teal de vocês? - perguntou Holmes.
- Nada! Não sei porque continuamos vivos, nem o que está ele a fazer!
- Aquele monstro tem qualquer coisa planeada para o Longfellow!
- Estou a ouvi-lo voltar! - exclamou Fields. - Depressa, Holmes! As mãos de
Holmes tremiam e pingavam suor, e os nós eram cegos.
Ele mal conseguia ver.
- Não, vá-se embora. Você tem de se ir embora agora! - disse Fields.
- Só mais um segundo... - Mas os seus dedos voltaram a resvalar do pulso de
Fields.
- Será tarde de mais, Wendell - disse Fields. - Ele não tarda a chegar. Não
tem tempo para nos libertar, e tão-pouco conseguiremos levar o Lowell a
qualquer lado nestas condições. Vá para Craigie House! Esqueça-nos, por
agora; deve salvar o Longfellow!
- Não consigo fazê-lo sozinho! Onde está o Rey? - exclamou Holmes.
Fields abanou a cabeça.
- Ele não apareceu, e todos os agentes que vigiavam as nossas casas já
foram desmobilizados! O Longfellow está sozinho! Vá!
Holmes precipitou-se para fora da câmara, correndo pelos túneis mais
depressa do que alguma vez conseguira correr, até que, à sua frente, viu
uma centelha ténue e distante de luz prateada. A ordem de Fields ressoava,
ampliando-se, na sua mente: VÁ, VÁ, VÁ.
Um detective descia sem pressa os húmidos degraus que conduziam à cave
do Comissariado Central da Polícia. Nos calabouços, separados por
tabiques de tijolo, podiam ouvir-se grunhidos e cruéis maldições. Nicholas
Rey deu um salto do chão duro da cela.
- Vocês não podem fazer isto! Há pessoas inocentes em perigo, por amor de
Deus!
O detective encolheu os ombros.
- Tu acreditas mesmo em tudo com que sonhas, não é, meu burro?
- Mantenham-me aqui, se quiserem, mas voltem a pôr aqueles agentes nas
casas que vigiavam, por favor. Peço-lhe. Há alguém aí fora que voltará a
matar. Vocês sabem que Burndy não matou Healey nem os outros! O
assassino ainda continua por aí à solta, e ele está à espera para voltar a
agir! Têm de o impedir!
O detective pareceu interessado em deixar que Rey o convencesse. Ele
sacudiu a cabeça como se estivesse a pensar.
- Eu sei que o Willard Burndy é um ladrão e um embusteiro, é isso que eu
sei.
- Ouça-me, por favor.
O detective agarrou em duas barras e dirigiu um olhar chispante a Rey.
- O Peaslee preveniu-nos para estarmos de olho em ti, para que não te
metesses nos nossos assuntos e não te afastasses do teu caminho.
Aposto que odeias estar aqui fechado, sem poder fazer nada, sem teres
ninguém que te ajude.
O detective retirou o chaveiro do cinto e agitou-lho, com um sorriso.
- Bem, isto vai servir-te de lição. Não vai, burro?
Henry Wadsworth Longfellow emitiu uma série de breves e pouco audíveis
suspiros, enquanto permanecia de pé diante da sua secretária, no seu
escritório.
Annie Allegra sugerira vários jogos que eles podiam jogar, mas a única
coisa que ele conseguia fazer era permanecer ali de pé junto à sua mesa de
trabalho com alguns cantos de Dante e traduzir, traduzir, para se livrar
daquele peso e penetrar naquele mundo, como quem transpõe a porta de
uma catedral. Ali dentro, os barulhos do exterior apagavam-se até se
converterem num murmúrio inaudível, e as palavras adquiriam uma
vitalidade eterna. Ali, nas amplas naves daquela catedral, o tradutor viu o
seu Poeta na penumbra, e esforçou-se por manter o ritmo de trabalho. O
passo do Poeta é tranquilo e solene. Ele enverga umas vestes largas e
flutuantes, e cobre-se com um gorro. Nos seus pés traz umas sandálias
calçadas. Através de congregações de mortos, através de ecos que deslizam
pelo ar de uma tumba a outra, através de lamentos que chegam do alto,
Longfellow podia ouvir a voz de alguém que fazia avançar o Poeta. Ela
deteve-se diante dos dois, na intransponível e doce distância; uma imagem,
uma projecção com um véu branco níveo e ornamentos escarlate como o
fogo, e Longfellow sentiu que o gelo no coração do Poeta derretia como a
neve nas altas montanhas: o Poeta, que busca o perdão perfeito e a paz
perfeita.
Annie Allegra perscrutou todo o escritório à procura de uma caixa de papel
perdida que necessitava para celebrar convenientemente o aniversário de
uma das suas bonecas. Então, deu com uma carta acabada de abrir de Mary
Frere, de Auburn, Nova Iorque. Perguntou de quem era.
- Ah, Miss Frere - disse Annie. - É encantadora! Será que ela vai passar este
Verão a Nahant, como nós? É muito agradável tê-la por perto, pai.
- Não creio que ela vá - e Longfellow tentou sorrir-lhe. Annie sentiu-se
decepcionada.
- Talvez a caixa esteja no armário da saleta - disse ela, de repente, e saiu à
procura da sua ama para que a ajudasse.
Na entrada principal, soou uma campainha impaciente, que deixou
Longfellow gelado. Depois, aumentou ainda mais de intensidade e
exigência.
- Holmes - ouviu-se dizer a si mesmo, exalando ar.
Annie Allegra, a aborrecida Annie Allegra, afastou-se da sua ama e gritou,
pedindo para ser ela a atender a porta. Correu e abriu-a com um puxão. O
frio intenso que vinha do exterior era terrível e envolvia tudo.
Annie começou a dizer qualquer coisa, mas Longfellow conseguiu perceber
do seu escritório que ela estava assustada. Ele ouviu uma voz que
murmurava e que não pertencia a nenhum dos seus amigos. Saiu para o
vestíbulo e deparou-se-lhe com um soldado vestido com o seu uniforme de
gala.
- Mande-a embora, senhor Longfellow - pediu Teal com uma voz tranquila.
Longfellow empurrou Annie para o interior do vestíbulo e ajoelhou-se
junto dela.
- Panzie, porque não terminas o texto de que falámos para The Secret?
- Papá, que parte? A entrevista...?
- Sim, porque não terminas já essa parte, Panzie, enquanto eu falo com este
cavalheiro?
Ele tentou fazer-se compreender, reflectindo na sua expressão a ordem
«Vai! » dirigida aos seus olhos, tal como fazia com a sua mãe. Ela anuiu
lentamente e apressou-se a ir para a parte de trás da casa.
- Senhor Longfellow, o senhor é necessário. O senhor é necessário neste
preciso instante - disse Teal a mascar furiosamente, e depois cuspiu
ruidosamente dois bocados de papel para o tapete de Longfellow, e mascou
outros tantos. A provisão de fragmentos de papel que tinha na boca parecia
inesgotável.
Desajeitadamente, Longfellow virou-se para o olhar, e percebeu
imediatamente o poder que emanava da sua violência interior. Teal voltou
a falar.
- O senhor Lowell e o senhor Fields... Eles traíram-no, eles traíram Dante. O
senhor também lá estava. O senhor estava lá quando o Manning esteve
prestes a morrer, e não fez nada para me ajudar. O senhor deve castigá-los.
Teal pousou um revólver do exército nas mãos de Longfellow, e o aço frio
estimulou a mão suave do poeta, cuja palma ainda conservava vestígios de
uma ferida sofrida uns anos antes. Longfellow não segurava numa arma
desde que em criança chegara a casa, desfeito em lágrimas, depois de o seu
irmão lhe ensinar a disparar sobre um pintarroxo.
Fanny desprezava as armas de fogo e a guerra, e Longfellow agradecia a
Deus por, ao menos, ela não ter visto Charley, o filho de ambos, a ir
combater e a regressar com uma bala que lhe trespassara a omoplata. Para
um homem, ser soldado deduz-se a vestir um uniforme bonito,
costumava ela dizer, e esquece-se das armas mortíferas que esse uniforme
esconde.
- Oh, senhor, finalmente vais aprender a ficar quieto e a atuar como te é
dito, escravo fugitivo. - Os olhos do detective reflectiram uma chispa de
hilaridade.
- Então, porque é que você ainda aqui está? - Agora, Rey permanecia de
costas voltadas para as grades de ferro.
O detective sentiu-se confuso com a pergunta.
- Para me assegurar de que aprendes bem a lição, ou arranco-te os dentes,
ouviste?
Rey virou-se devagar.
- Recorde-me lá essa lição.
O rosto do detective estava vermelho. Ele apoiou-se nas grades e franziu o
sobrolho.
- Fica quieto uma vez na vida, burro, e deixa trabalhar quem sabe mais do
que tu!
Rey baixou tristemente os olhos com raios dourados.' Então, sem permitir
que o resto do corpo traísse as suas intenções, ele disparou o braço e
agarrou o pescoço do detective, como se os seus dedos fossem umas
tenazes, e bateu com a fronte do homem de encontro às barras. Com a
outra mão, forçou a do detective a abrir-se, para largar o chaveiro. Depois,
soltou o homem, que ficou agarrado à garganta a recuperar o fôlego. Rey
abriu a porta da cela e, antes de sair, examinou o casaco do detective de
onde retirou uma pistola. Os presos das celas próximas aplaudiram-no.
Rey subiu as escadas a correr e entrou no corredor.
- Rey, você por aqui? - admirou-se o sargento Stoneweather. - Então, pode
saber-se o que se passa? Eu estava de guarda, como você, e os detectives
chegaram e disseram-me que você tinha ordenado que todos
abandonássemos os nossos postos! Onde é que você estava metido?
- Eles prenderam-me nos calabouços, Stoneweather! Tenho de ir a
Cambridge imediatamente! - disse Rey. Depois, viu uma rapariguinha, com
a sua ama, do lado oposto do corredor. Correu a abrir o portão de ferro, que
separava a área da entrada dos escritórios da polícia.
- Por favor - repetia Annie Allegra Longfellow, enquanto a ama tentava
explicar algo a um polícia confuso. - Por favor.
- Miss Longfellow - disse Rey, baixando-se junto dela. - O que aconteceu?
- O meu pai precisa da sua ajuda, agente Rey! - exclamou ela. Uma horda de
detectives irrompeu pelo corredor.
394 - 395
- Aqui está ele! - gritou um deles, agarrando Rey por um braço e atirando-o
de encontro à parede.
- Espera aí, filho de uma cadela! - disse o sargento Stoneweather, e bateu
com o seu bastão nas costas do detective.
Stoneweather gritou, e vários oficiais fardados apareceram a correr, mas
três detectives imobilizaram Nicholas Rey, agarraram-no pelos braços e
levaram-no ao mesmo tempo que ele se debatia.
- Não! O meu pai precisa de si, agente Rey! - exclamou Annie Allegra.
- Rey! - chamou-o Stoneweather, mas uma cadeira que chegou pelo ar
apanhou-o, e um murro atingiu violentamente as suas costas.
O chefe John Kurtz entrou de rompante. A sua habitual tez cor de mostarda
tinha-se tornado purpúrea. Um moço carregava-lhe três maletas.
- Esse maldito comboio... - começava ele a dizer. - Santo Deus! Mas o que
vem a ser isto?! - Os seus gritos chegaram ao corredor, que se encheu de
policiais e detectives, depois de ele se deparar com a situação. -
Stoneweather?
- Eles prenderam Rey nos calabouços, chefe! - protestou Stoneweather, com
sangue a escorrer-lhe do grande nariz.
- Chefe, eu preciso de ir a Cambridge imediatamente! - disse Rey.
- Agente Rey... - respondeu o chefe Kurtz. - É suposto você dedicar-se ao
meu...
- Agora, chefe! Tenho que ir!
- Soltem-no! - ordenou Kurtz aos detectives, que se afastaram de Rey. -
Todos vocês, meus canalhas, para o meu escritório! Imediatamente!
Oliver Wendell Holmes olhava constantemente para trás à procura de Teal.
O caminho estava livre. Ele não o seguira pelos túneis subterrâneos.
«Longfellow... Longfellow», repetia para si próprio, enquanto atravessava
Cambridge.
Então, à sua frente, viu Teal a levar Longfellow pelo passeio. O poeta
caminhava cuidadosamente sobre a capa de neve, cada vez mais fina.
Holmes assustou-se tanto naquele instante, que só houve uma coisa que
conseguiu impedi-lo de cair desmaiado. Tinha que agir com determinação.
Então, gritou a plenos pulmões:
- Teal! - Foi um grito estridente capaz de acordar toda a vizinhança. Teal
virou-se, como se já estivesse de sobreaviso.
Holmes retirou o mosquete do seu casaco e apontou-o, com as mãos a
tremer.
Teal não pareceu reparar de todo na arma. A sua boca agitou-se e deixou
escapar uma letra órfã empapada do alfabeto, que cuspiu para o manto
branco junto aos seus pés: um F.
- Senhor Longfellow, o doutor Holmes deve ser o primeiro que o senhor vai
castigar pelo que fez. Ele será o nosso exemplo para o mundo.
Teal levantou a mão de Longfellow, a que segurava o revólver do exército, e
apontou-o para Holmes.
Holmes aproximou-se, apontando o seu mosquete para Teal.
- Não dê nem mais um passo, Teal, ou disparo! Eu mato-o! Solte o
Longfellow e pode levar-me a mim no seu lugar.
- Isto é um castigo, doutor Holmes. Aqueles dos senhores que abandonaram
a justiça divina devem agora enfrentar a vossa sentença final. Senhor
Longfellow, faça o que lhe ordeno. Pronto... apontar...
Holmes avançou, firme, e levantou a sua arma ao nível do pescoço de Teal.
Não se vislumbrava nenhum vestígio de temor na expressão daquele
homem. Ele era em todos os momentos um soldado. Não havia nada assim.
Só o incorrigível zelo para praticar o bem, uma exigência que passara como
uma corrente por toda a Humanidade numa época ou noutra, e, em geral,
para se desvanecer rapidamente. Holmes estremeceu. Ele não sabia se
contava com reservas suficientes daquele mesmo zelo para afastar Dan
Teal do destino que se impusera a si mesmo.
- Fogo, senhor Longfellow - disse Teal. - Tem de disparar agora! -Ele pôs a
sua mão na de Longfellow e cobriu com os seus dedos os do poeta.
Engolindo em seco, Holmes afastou o seu mosquete da mira de Teal e
dirigiu-o diretamente para Longfellow.
Longfellow abanou a cabeça. Teal, confuso, deu um passo atrás, arrastando
consigo o seu cativo.
Holmes anuiu com firmeza.
- Eu disparo contra ele, Teal - disse ele.
- Não! - Teal meneou a cabeça com movimentos rápidos.
- Sim, eu mato-o, Teal! E então, não terá tido o seu castigo! Estará morto...
Ficará reduzido a cinzas! - gritou Holmes, levantando o mosquete e
apontando para a cabeça de Longfellow.
- Não, não pode fazer isso! Ele deve levar os outros consigo! Isso não se
pode fazer!
Holmes manteve a arma apontada para um horrorizado Longfellow, cujos
olhos se mantinham firmemente fechados. Teal abanou a cabeça com
rapidez, e, por instantes, pareceu estar prestes a gritar. Depois, virou-se
como se alguém estivesse à espera atrás de si, e, de seguida, virou-se para a
esquerda e para a direita. Por fim, desatou a correr, e correu com fúria para
longe daquele cenário. Antes de estar demasiado longe, rua abaixo,
ressoou no ar um disparo, e logo outro estampido misturou-se com um
grito de agonia.
Longfellow e Holmes não conseguiram deixar de olhar para as armas de
fogo que tinham nas mãos. Eles seguiram a direcção do último disparo. Ali,
no leito de neve, estava Teal. Dele escorria um rasto de sangue quente, que
fluía pela neve intata, acolhendo-o de má vontade. Duas manchas
vermelhas gorgolejavam no dólmã do homem. Holmes ajoelhou-se e as
suas mãos brilhantes começaram a trabalhar, em busca de vida.
Longfellow aproximou-se mais um pouco.
- Holmes?
A mão de Holmes deteve-se.
Junto ao corpo de Teal encontrava-se um Augustus Manning de olhos
esbugalhados, trémulo, com os dentes a castanholar e os dedos agitados.
Manning deixou cair a sua espingarda na neve, junto aos seus pés. Com a
sua barba hirsuta de tão gelada, dispôs-se a regressar a casa e indicou-a
com um dedo.
Ele tentou arrumar os seus pensamentos. Passaram alguns minutos antes
de dizer algo coerente.
- O agente que guardava a minha casa foi-se embora há umas horas! Então,
ouvi gritar e vi-o da minha janela - disse ele. - Eu vi-o com o seu uniforme...
Veio-me tudo à cabeça, tudo. Ele despiu-me, senhor Longfellow, e, e... atou-
me... levou-me sem roupa...
Longfellow ofereceu-lhe uma mão consoladora, e Manning irrompeu em
soluços no ombro do poeta, enquanto a sua mulher saía de casa a correr.
Uma charrete da polícia parou atrás do pequeno círculo que eles formavam
em volta do cadáver. Nicholas Rey esgrimiu o seu revólver quando se apeou
a toda a pressa. Outra charrete se lhe seguiu, transportando o sargento
Stoneweather e outros dois policiais.
Longfellow tomou o braço de Rey, cujos olhos observavam brilhantes e
inquiridores tudo aquilo.
- Ela está bem - disse Rey antes de o poeta conseguir fazer a pergunta. -
Tenho um agente a vigiá-las, a ela e à ama.
Longfellow assentiu, agradecido. Holmes agarrara-se ao muro em frente à
casa de Manning, para recuperar o fôlego.
- Holmes, é maravilhoso! Talvez você precise de entrar e de se estender um
pouco - disse Longfellow, pressentindo-lhe a vertigem e o temor. - Porque
fez você aquilo? Mas, como...
- Meu querido Longfellow, creio que a luz do dia irá aclarar tudo o que os
candeeiros deixaram em dúvida - disse Holmes. Atravessando a cidade, ele
conduziu os policiais até à igreja e aos túneis subterrâneos, a fim de
libertarem Lowell e Fields.

XXI




SPERE, ESPERE, ESPERE AÍ UM MINUTO - LANÇOU O JUDEU

E sefardita ao seu mentor de ofício. - Então, o que disse, Langdon: tu


serás o último dos Cinco de Boston. - Burndy não foi um dos Cinco
originais, meu lindo judeu - respondeu Langdon Peaslee,
omnisciente. - Os Cinco éramos (em paz estejam as suas almas à medida
que vão caindo no Inferno, e a minha também quando me juntar a eles)
Randall, que está a meio da sua condenação nas Tumbas; Dodge, que sofreu
um colapso nervoso e se retirou para o Oeste; Turner, que foi malhado pela
mulher, com quem estava há dois anos e picos (se isto não é uma lição para
não se juntar com outras, não sei o que será); e o querido Simonds, que
anda escaqueado por parte do molhe, demasiado tocado para rebentar
sequer com uma arca de criança.
- Oh, é uma vergonha. Uma vergonha - murmurou um dos quatro homens
que escutavam Peaslee.
- Repita lá! - Peaslee levantou uma sobrancelha ágil em sinal de
desaprovação.
- Uma vergonha vê-lo a ponto de subir os degraus do patíbulo! - continuou
o ladrão zarolho. - Não, nunca conheci esse homem, mas ouvi dizer que era
o melhor arrombador de cofres que Boston já teve! Dizem que conseguia
fazê-lo com uma pena!
Os outros três ouvintes mantiveram-se em silêncio e, se estivessem de pé
em vez de estarem sentados à mesa, teriam podido arrastar nervosamente
as suas botas sobre as duras cascas espalhadas pelo chão do bar, ou ter-se-
iam ido embora diante de semelhante comentário feito a Langdon W.
Peaslee. No entanto, naquelas circunstâncias, beberam belos tragos das
suas bebidas ou chuparam fundas fumaças, com expressões ausentes, dos
charutos que Peaslee tinha oferecido em rodada.
A porta da taberna abriu-se e uma mosca precipitou-se sobre os anteparos
enegrecidos pelo fumo negro que dividiam o local, e zumbiu à volta da
mesa de Peaslee. Um reduzido número de irmãos e irmãs da mosca haviam
sobrevivido ao Inverno,
e um número ainda mais reduzido havia prosperado em certas partes das
matas e bosques de Massachusetts, e continuaria a fazê-lo, apesar de o
professor Louis Agassiz, de Harvard, pelas informações de que dispunha,
continuar a considerá-lo despropositado. Com um olhar acutilante, Peaslee
reparou nos estranhos olhos vermelhos flamejantes e nos volumosos
corpos azulados. Ele esmagou-a, e na outra extremidade do bar, alguns
homens dedicaram-se ao desporto de caçar moscas.
Langdon Peaslee agarrou no seu ponche forte, a bebida especial da casa na
Stackpole Tavern. Peaslee não teve de mudar de posição na cadeira de
madeira maciça para alcançar o copo com a mão esquerda, apesar de a
cadeira estar a alguma distância da mesa, para que pudesse dirigir-se
adequadamente ao seu ignóbil semicírculo de apóstolos. Os braços
aracnídeos de Peaslee tinham-lhe permitido alcançar muitas coisas na vida
sem precisar de se mexer.
- Acreditem no que vos digo, companheiros, o nosso senhor Burndy -
Peaslee silvou o nome através dos enormes buracos que tinha entre os
dentes -, foi apenas o arrombador de cofres de mais peso que esta cidade já
viu.
A audiência aceitou aquela graçola, levantando os copos ao céu e
explodindo numa rajada de gargalhadas exageradas, que dilataram o já
excessivo sorriso de Peaslee. De repente, o judeu parou de sorrir,
mostrando um olhar tenso por cima do rebordo do seu copo.
- O que foi, judeu? - perguntou Peaslee voltando a cabeça e vendo um
homem de pé junto dele. Sem dizer uma única palavra, os ladrões e
carteiristas de menor importância, que rodeavam Peaslee, levantaram-se e
dirigiram-se para os diferentes cantos do bar, deixando atrás de si inúteis
nuvens de fumo viciado, que se misturavam com a atmosfera pesada do bar
sem janelas. Ficou apenas o delinquente vesgo.
- Fora! - sussurrou Peaslee, e o cortesão que ficara desapareceu no meio do
resto dos paroquianos.
- Ora, ora - disse Peaslee, ficando a observar o seu visitante de alto a baixo.
Estalou os dedos para chamar a criada do bar, pouco tapada por um vestido
muito decotado. - O que vai ser? - perguntou o ladrão de caixas-fortes, com
um sorriso rasgado e reluzente.
Nicholas Rey mandou a criada embora com um gesto simpático da mão e
sentou-se em frente a Peaslee.
- Vá lá, senhor agente, fume um destes.
Rey recusou o longo charuto que o outro lhe estendia.
- A que se deve essa cara tão sombria? Estes não são tempos conturbados! -
disse Peaslee, voltando a mostrar o seu sorriso rasgado. - Olhe
para ali, os colegas, que estão prestes a passar lá para trás para jogarem
uma partidinha. Fazemo-lo todas as noites, sabe? Tenho a certeza que não
se importavam que se juntasse a nós. A menos, claro, que não tenha graveto
suficiente para a aposta inicial.
- Obrigado, senhor Peaslee, mas não - disse Rey.
- Bem. - Peaslee levou um dedo aos lábios e depois inclinou-se para diante,
como se se preparasse para trocar confidências. - Não julgue, senhor agente
- começou ele por dizer -, que não lhe têm seguido o rasto. Nós sabemos
que o senhor andava atrás de um certo sujeito, que tratou de matar aquele
Manning, de Harvard; alguém que, segundo o senhor parece acreditar, tem
alguma coisa a ver com os outros crimes de Burndy.
- Exatamente - respondeu Rey.
- Bem, sorte a sua, isso não se ter sabido - disse Peaslee. - Como você sabe,
estão em causa as recompensas mais gordas desde que Lincoln foi morto, e
eu não vou renunciar a elas. Quando Burndy subir as escadas do patíbulo, a
minha parte vai ser tão abundante que posso abafar um porco com ela,
como me foi dito, amigo Rey. Continuamos de vigia.
- Você fez uma má jogada em relação a Burndy, mas não se preocupe
comigo, senhor Peaslee. Se eu tivesse provas para libertar Burndy, já as
teria apresentado, independentemente das consequências. E você não
receberia a sua recompensa.
Peaslee levantou o seu copo de ponche, pensativamente, perante a
referência a Burndy.
- Foi uma bonita história a que aqueles advogados urdiram: o ódio de
Burndy em relação ao juiz Healey por ter libertado demasiados escravos
antes do Decreto sobre os Escravos Fugitivos, e ter morto Talbot e Jennison
por eles o terem vigarizado nuns dinheiros. Ele encontrou a sua Waterloo,
ah, sim. E pode dançar quando morrer. - Bebeu um grande trago, e depois
adoptou uma expressão sombria. - Dizem que o governador decidiu
desmantelar o gabinete dos detectives, depois de o terem prendido no
comissariado, e que os vereadores andam a ver se substituem o velho Kurtz
e se se livram de si, definitivamente. Não invejo a sua sorte. Fuja enquanto
pode, meu querido branquinho. Ultimamente, você fez muitos inimigos.
- Também ganhei alguns amigos, senhor Peaslee - disse Rey depois de fazer
uma pausa. - Como lhe disse, não precisa de se preocupar comigo. Mas há
mais uma coisa, e foi por isso que aqui vim.
As sobrancelhas hirsutas de Peaslee repuxaram-se para cima até ao seu
chapéu de feltro de cor escura.
Rey virou-se no assento e olhou para um homem desajeitadamente alto que
estava sentado num banco ao balcão.
- Aquele homem tem andado a fazer perguntas por toda a cidade de Boston.
Segundo parece, ele tem outra explicação para os homicídios que não a que
os seus apresentaram. Willard Burndy, segundo ele diz, nada tem a ver com
isso. As suas perguntas podiam custar-lhe, a si, o resto da sua parte da
recompensa, senhor Peaslee... cada centavo.
- Um assunto feio. O que sugere que se faça em relação a isso? - perguntou
Peaslee.
Rey ficou pensativo.
- Se eu estivesse no seu lugar? Convencia-o a sair de Boston por muito
tempo.
Ao balcão do bar Stackpole, Simon Camp, detective da Pinkerton destinado
a cobrir a área metropolitana de Boston, releu o bilhete anónimo que lhe
fora enviado por alguém - pelo agente Nicholas Rey - a pedir-lhe para
esperar ali àquela hora para um encontro importante. Do seu banco, ele
olhava em volta com crescente frustração e ira para os delinquentes que
dançavam com as prostitutas baratas. Passados dez minutos, pousou
algumas moedas em cima do balcão e levantou-se para ir buscar o casaco.
- Então, para onde vai tão depressa? - perguntou-lhe o judeu sefardita,
enquanto lhe agarrava na mão e a sacudia.
- O quê? - perguntou Camp, libertando-se da mão do judeu com um puxão. -
O que raio vem a ser isto? Afaste-se antes que me irrite.
- Caro desconhecido! - O sorriso rasgado de Langdon Peaslee alcançou uma
largura de um metro, enquanto afastava os seus camaradas como se fossem
as águas do mar Vermelho, e avançava até se colocar em frente do detective
da Pinkerton. - Seria melhor passar à sala dos fundos e juntar-se a nós
numa partidinha de cartas. Detestamos ouvir dizer que os visitantes da
nossa cidade são deixados sozinhos.
Uns dias mais tarde, J. T. Fields caminhava por uma azinhaga de Boston à
hora que Simon Camp estipulara. Contou as moedas que trazia na sua bolsa
de camurça, assegurando-se de que o dinheiro do suborno estava certo.
Consultava mais uma vez o seu relógio de bolso quando ouviu alguém a
aproximar-se. Involuntariamente, o editor susteve a respiração e recordou
a si mesmo que devia permanecer forte. Depois, apertou a bolsa contra o
peito e virou a cara para a entrada da azinhaga.
- Lowell! - exclamou Fields, exalando o ar.
A cabeça de James Russell Lowell estava envolta numa faixa negra.
- Fields, porquê... Eu... Porque está você aqui...?
- Olhe, eu estava só a... - balbuciou Fields.
- Nós acordámos em não pagar ao Camp, em deixá-lo fazer o que quisesse! -
disse Lowell ao reparar na bolsa de Fields.
- Então, porque veio você aqui? - perguntou Fields.
- Para impedir que se lhe pague, e, às escondidas, oculto pela obscuridade! -
disse Lowell. - Bem, de qualquer modo, você sabe que eu não disponho
dessa quantia em dinheiro vivo. Não tenho a certeza... Julgo que vim para,
pelo menos, lhe dizer aquilo que penso. Não podemos deixar que esse diabo
humilhe Dante sem lutarmos. Quero dizer...
- Sim - admitiu Fields. - Mas talvez não o devêssemos dizer a Longfellow...
Lowell anuiu.
- Não, não, não devemos dizê-lo a Longfellow.
Os dois estiveram vinte minutos à espera. Observavam os homens, na rua, a
acender os candeeiros com pirtigas.
- Como é que tem passado da sua cabeça esta semana, meu caro Lowell?
- Como se estivesse partida ao meio e ma tivessem remendado de qualquer
maneira - disse ele, desatando a rir. - Mas o Holmes diz que a dor
desaparecerá dentro de uma semana ou duas. E a sua?
- Está melhor, muito melhor. Você teve notícias do Sam Ticknor?
- Desse grandíssimo imbecil?
- Está a abrir uma editora com um dos seus infelizes irmãos... em Nova
Iorque! Escreveu-me a dizer que nos vai pôr fora do negócio a partir da
Broadway. Pergunto-me o que pensaria Bill Ticknor de os filhos andarem a
tentar destruir a editora que tem o seu próprio nome.
- Que tentem, esses profanadores de túmulos! Ah, vou escrever-lhe o meu
melhor poema ainda este ano... justamente por isso, meu caro Fields. Sabe -
disse Lowell depois de mais uma breve pausa -, aposto que o Camp
recuperou a sensatez e desistiu deste joguinho. Creio que uma lua tão
celestial e umas estrelas tão serenas bastam para devolver o pecado ao
Inferno.
Fields levantou a bolsa, rindo ao comprovar o seu peso.
- Diga-me uma coisa, se assim for, porque não usar um pouco deste fardo
numa ceia tardia no Parker's?
- Com o seu dinheiro? O que é que nos impede! - Lowell começou a
caminhar, e Fields pediu-lhe que esperasse, mas Lowell não lhe fez caso.
- Espere aí, que raio! A minha pobre obesidade! Os meus autores nunca
esperam por mim - lamentou-se Fields. - Deviam ter mais respeito pela
minha gordura!
- Você quer perder um pouco de cintura, Fields? - respondeu-lhe Lowell,
virando-se. - Pague mais dez por cento aos seus autores, e garanto-lhe que
terá menos gordura de que se queixar!
Nos meses que se seguiram, uma nova fornada de revistas baratas de
acontecimentos menores, que exasperavam J. T. Fields pela influência
negativa que tinham sobre um público ávido, revelaram a história do
detective de segunda da Pinkerton, Simon Camp. Pouco depois de
abandonar Boston, depois de uma longa reunião com Langdon W. Peaslee,
foi acusado pelo delegado do ministério público de tentativa de extorsão a
vários funcionários governamentais de topo a propósito de segredos de
guerra. Durante os três anos anteriores à sua condenação, Camp embolsara
dezenas de milhares de dólares, fruto das suas chantagens feitas a pessoas
relacionadas com os seus casos. Allan Pinkerton restituiu os honorários a
todos os clientes, que tinham trabalhado com Camp, apesar de haver um, o
doutor Augustus Manning de Harvard, que não pôde ser localizado, nem
mesmo pela agência privada de detectives mais importante do país.
Augustus Manning demitiu-se da Corporação de Harvard e mudou-se com a
família para fora de Boston. A sua esposa disse que, durante meses, ele não
dissera mais do que algumas palavras numa certa ocasião. Alguns
contavam que ele se tinha mudado para Inglaterra, e outros tinham ouvido
dizer que ele partira para uma ilha situada em mares inexplorados. Uma
subsequente reorganização na administração de Harvard precipitou a
inesperada eleição do mais novo inspetor, Ralph Waldo Emerson, uma
ideia promovida pelo editor do filósofo, J. T. Fields, e apoiada pelo
presidente Hill. Assim terminou um exílio de vinte anos de Harvard para o
senhor Emerson, e os poetas de Cambridge e de Boston congratularam-se
por ter um dos seus no Conselho da Universidade.
Antes do final do ano de 1865, foi publicada uma edição particular da
tradução do Inferno por Henry Wadsworth Longfellow, a qual foi recebida
com agrado pela Comissão Florentina no final do ano das comemorações do
sexto centenário do nascimento de Dante. Esta circunstância suscitou
expetativas em torno da tradução de Longfellow, que já havia sido
anunciada como «excepcionalmente boa» nos círculos literários mais
seletos de Berlim, Londres e Paris. Longfellow entregou um exemplar a
cada membro do seu Clube de Dante, bem como a outros amigos. Apesar de
não ter mencionado o assunto com muita frequência, reservou o último
para o enviar para Londres, onde Mary Frere, uma jovem dama de Auburn,
Nova Iorque, se mudara para estar mais próxima do seu noivo.
Longfellow, por seu lado, estava demasiado ocupado com as suas filhas e
com o seu novo e imenso poema para encontrar para ela um presente
melhor.
A sua ausência de Nahant irá deixar um vazio, como o que deixa numa rua
uma casa demolida. Longfellow apercebeu-se de quão dantescas se tinham
tornado as suas figuras de linguagem.
Charles Eliot Norton e William Dean Howells regressaram da Europa a
tempo de ajudar Longfellow numa tradução completa e anotada. Ainda
envoltos na aura das suas aventuras no estrangeiro, Howells e Norton
prometeram aos seus amigos contar-lhe histórias de Ruskin, Carlyle,
Tennyson e Browning. Havia certas coisas que era melhor serem relatadas
pessoalmente do que por carta.
Lowell interrompeu esta opinião com uma gargalhada sincera.
- Mas você não está interessado, James? - perguntou Charles Eliot Norton.
- Querido Norton - disse Holmes, interpretando a hilaridade de Lowell -,
querido Howells, fomos nós que, sem termos atravessado nenhum oceano,
fizemos uma viagem que não podia ser contada em nenhuma carta escrita
por nenhum mortal. - Então, Lowell fez Norton e Howells jurarem que
guardariam discrição para sempre.
Quando o Clube de Dante pôs fim às suas reuniões, depois de o seu trabalho
estar pronto, Holmes pensou que Longfellow pudesse sentir-se
desconfortável. Então, Holmes convenceu Norton a dispor da sua
propriedade de Shady Hill para se reunirem aos sábados ao serão. Ali
tratariam da evolução da tradução de Norton de La Vita Nuova (A Nova
Vida), de Dante, a sua história de amor por Beatrice. Em algumas noites, o
seu pequeno círculo ampliou-se com Edward Sheldon, que começava a
estabelecer uma comparação entre os poemas de Dante e os seus escritos
menores, com o propósito, esperava ele, de estudar um ou dois anos em
Itália.
Recentemente, Lowell acedera a que a sua filha Mabel também fizesse uma
viagem a Itália, para uma estada de seis meses. Ela iria na companhia dos
Fields, que embarcaram no Ano Novo para celebrarem o trespasse das
operações diárias da editora para J. R. Osgood.
Entretanto, Fields começou a preparar um banquete no famoso Union Club
de Boston, antes mesmo de Houghton começar a imprimir a tradução de
Longfellow da Divina Comédia de Dante Alighieri, em três volumes, que
chegariam aos livreiros como o acontecimento literário da temporada.
No dia do banquete, Oliver Wendell Holmes passou a tarde em Craigie
House. George Washington Greene chegou de Rhode Island, para também
estar presente.
- Sim, sim - disse Holmes a Greene, referindo-se aos muitos exemplares que
o seu segundo romance vendera. - São os leitores individuais que mais
importam, porque nos seus olhos reside o mérito da escrita. Escrever não é
a sobrevivência dos mais dotados, mas a sobrevivência dos sobreviventes.
O que são os críticos? Eles fazem os possíveis por me desvalorizar, para que
não conte... E se eu não conseguir suportá-lo, então mereço tudo.
- Ultimamente, você parece o senhor Lowell a falar - disse Greene a rir.
- Também concordo.
Agitando um dedo, Greene retirou com um puxão a sua gravata branca,
libertando o pescoço flácido.
- Só preciso de um pouco de ar. Disso não tenho a menor dúvida -disse ele,
enquanto era tomado por um acesso de tosse.
- Se eu conseguisse ajudá-lo, senhor Greene, voltaria a exercer medicina. -
Holmes preparou-se para ir ver se Longfellow estava pronto.
- Não, não, é melhor não ir lá - sussurrou Greene. - Esperemos lá fora até ele
estar despachado.
A meio caminho da entrada, Holmes observou:
- Eu achava que já tinha tido o suficiente, mas, acredita, senhor Greene, que
comecei a reler a Comédia de Dante? Depois de todas as nossas
experiências, questiono-me se o senhor chegou a duvidar do valor do nosso
trabalho. Nem por uma vez sequer pensou que algo se pudesse ter perdido
pelo caminho?
Os olhos, em forma de meia-lua, de Greene fecharam-se.
- Vocês, doutor Holmes, sempre consideraram a história de Dante a maior
obra de ficção jamais escrita. Mas eu, sempre acreditei que Dante fez aquela
viagem. Eu acreditei que Deus lho permitiu, como também lhe permitiu
transformar isso em poesia.
- E agora - disse Holmes -, ainda acredita que tudo foi verdade, não é?
- Ah, mais do que nunca, doutor Holmes - respondeu ele, sorrindo e
voltando-se para olhar para a janela do escritório de Longfellow. -Agora,
mais do que nunca.
As luzes de Craigie House tornaram-se menos intensas, e Longfellow
desceu as escadas, passando em frente ao retrato de Dante, pintado por
Giotto, que olhava imperturbável com o seu único, inútil e danado olho.
Longfellow pensou que talvez aquele olho fosse o futuro, mas que no outro
mundo permanecera oculto o belo mistério de Beatrice, que animara a vida
do poeta. Longfellow escutou as preces das suas filhas, e depois observou
Alice Mary a agasalhar as suas duas pequenas irmãs,
Edith e Annie Allegra, e as suas bonecas, que se tinham constipado.
- Mas quando voltas para casa, Papá?
- Bastante tarde, Edith. Nessa altura, já todas vocês devem estar a dormir.
- Vão pedir-te para falares? Quem mais é que lá vai estar? - perguntou
Annie Allegra. - Diz-nos, quem mais?
Longfellow cofiou a sua barba.
- Quem eu nomeei até agora, minha querida?
- Não disseste todos, Papá! - Ela retirou o seu caderno debaixo dos
cobertores. - O Senhor Lowell, senhor Fields, o doutor Holmes, o senhor
Norton, o senhor Howells... - Annie Allegra estava a preparar um livro, que
intitulara A Little Persorís Memories of Great People, e planeava publicá-lo
através da Ticknor & Fields, e decidira começar com uma informação sobre
o banquete de Dante.
- Ah, sim - interrompeu-a Longfellow. - Podes acrescentar à tua lista o
senhor Greene, o teu bom amigo senhor Sheldon, e, sem dúvida, o senhor
Edwin Whipple, o crítico da excelente revista do Fields.
Annie Allegra escreveu tudo o que conseguiu anotar.
- Adoro-vos, minhas queridas filhas - disse Longfellow, enquanto beijava
cada uma das suas testas suaves. - Adoro-vos, porque vocês são minhas
filhas. E filhas da mamã, e porque ela vos adorava. E continua a adorar.
As luminosas aplicações das colchas das suas filhas subiam e desciam
ritmicamente, e ele deixou-as, seguro, no meio do infinito cicio do silêncio
da noite. Olhou da janela para o estábulo, onde a nova charrete de Fields o
aguardava - parecia sempre ter uma nova -,. puxada pelo velho baio, um
veterano da cavalaria da União, recentemente adoptado por Fields, e que se
refrescava na água recolhida de um charco pouco profundo.
Agora chovia, era uma noite chuvosa; caía uma chuva suave e cristã. Devia
ter sido um grande incómodo para J. T. Fields, vir de Boston a Cambridge só
para regressar de novo a Boston, mas ele insistira.
Holmes e Greene tinham deixado espaço suficiente para Longfellow entre
eles, nos lugares em frente dos ocupados por Fields e Lowell. Ao subir,
Longfellow esperou que não lhe pedissem para falar diante de todos os
convidados durante o banquete, mas, se isso acontecesse, ele agradeceria
aos seus amigos por o terem acompanhado de tão longe.

Nota Histórica



EM 1865, HENRY WADSWORTH LONGFELLOW, O PRIMEIRO POETA norte-
americano a alcançar verdadeiro reconhecimento internacional, iniciou na
sua casa de Cambridge, Massachusetts, um clube para traduzir Dante. Os
poetas James Russell Lowell e doutor Oliver Wendell Holmes, o historiador
George Washington Greene e o editor James T. Fields colaboraram com
Longfellow na finalização da primeira tradução integral da Divina Comédia,
de Dante, realizada naquele país. Os eruditos opuseram-se tanto ao
conservadorismo literário, que protegia a posição dominante do grego e do
latim na universidade, como o autotonismo cultural, que procurava limitar
a literatura norte-americana a trabalhos locais, um movimento estimulado,
mas nem sempre encabeçado por Ralph Waldo Emerson, um amigo do
círculo de Longfellow. No ano de 1881, o «Clube de Dante» original de
Longfellow foi oficialmente denominado Dante Society of America
(«Sociedade Americana de Dante»), tendo tido como seus três primeiros
presidentes Longfellow, Lowell e Charles Eliot Norton.
Apesar de anteriormente a este movimento, alguns inteletuais norte-
americanos se terem mostrado familiarizados com Dante, à custa
sobretudo de traduções inglesas da Comédia, o público em geral
permaneceu mais ou menos à margem da poesia de Dante. O fato de um
texto italiano da Comédia parecer não ter sido impresso na América do
Norte antes de 1867, o mesmo ano da publicação da tradução de
Longfellow, convida-nos a reflectir sobre a expansão e o interesse deste
texto. Nas interpretações que faz de Dante, este romance tenta manter-se
historicamente fiel mais às suas figuras retratadas e aos seus
contemporâneos do que às nossas leituras habituais.
Nalguma da linguagem utilizada, bem como nos diálogos, O Clube de Dante
incorpora e adapta excertos de poemas, ensaios, romances, diários e cartas
dos membros do Clube de Dante e dos que lhe estiveram próximo. As
minhas próprias visitas às propriedades dos dantistas e às suas imediações
foram complementadas por várias histórias da cidade, mapas, memórias e
documentos relativos ao ano de 1865 em Boston, Cambridge e na
Universidade de Harvard. Relatos contemporâneos, em particular as
memórias literárias de Annie Fields e de William Dean Howells, abriram
uma importante janela
diretamente sobre as vidas quotidianas do grupo e permitiram encontrar
uma voz para a textura narrativa do romance, onde até as personagens
secundárias são desenhadas, sempre que possível, a partir de personagens
históricas, que podiam ter estado presentes nos acontecimentos narrados.
A personagem de Pietro Bachi, o desdito leitor de italiano em Harvard, na
verdade, representa uma mescla de Bachi e de António Gallenga, outro dos
primeiros professores de Italiano em Boston. Dois elementos do Clube de
Dante, Howells e Norton, contribuíram em grande medida para enriquecer
a minha perspectiva, graças aos seus relatos sobre o grupo, apesar de só
terem tido oportunidade de aparecer brevemente nesta história.
Os assassínios decorrentes de Dante não têm fundamento histórico, mas os
expedientes policiais e os arquivos municipais documentam um súbito
aumento da média de homicídios na Nova Inglaterra no período
imediatamente a seguir à Guerra Civil, bem como uma proliferação da
corrupção e de alianças clandestinas entre detectives e criminosos
profissionais. Nicholas Rey é uma personagem ficcionada, mas ele enfrenta
os desafios bem reais dos primeiros policiais afro-americanos do século
XIX, muitos dos quais eram veteranos da Guerra Civil, provindo de
ambientes raciais mistos. Uma visão geral das suas circunstâncias pode ser
encontrada no livro Black Police in America, de W. Marvin Dulaney. A
experiência bélica de Benjamin Galvin decorre das histórias dos regimentos
10 e 13 de Massachusetts, bem como de relatos na primeira pessoa de
outros soldados e de repórteres. A minha exploração do estado psicológico
de Galvin foi especialmente guiada pelo recente estudo de Eric Dean, Shook
over Hell, que insiste em demonstrar a presença de uma perturbação
causada pelo stress pós-traumático nos veteranos da Guerra Civil
americana.
Apesar de a intriga que afeta as personagens do romance ser inteiramente
ficcionada, pode referir-se como breve nota digna de apreço uma história
não documentada que surgiu numa biografia prematura do poeta James
Russell Lowell. Num certo fim de tarde de uma quarta-feira, diz-se, uma
inquieta Fanny Lowell recusou-se a permitir que o seu marido saísse para a
rua para participar numa sessão do Clube de Dante, de Longfellow, a menos
que o poeta acedesse a levar consigo a sua espingarda de caça, justificando
assim a preocupação dela em relação a uma onda de crimes não
especificada, que atingia Cambridge.

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