Matthew Pearl - O Clube Dante
Matthew Pearl - O Clube Dante
Matthew Pearl - O Clube Dante
OR TODA A CIDADE DE BOSTON, AO LONGO DA NOITE, OS policiais
S REUNIÕES DO CLUBE DE DANTE. CUMPRIA-SE O PRIMEIRO
A
Holmes.
ponto da ordem de trabalhos com o anfitrião a rever as
provas da sessão da semana anterior.
- Bom trabalho, meu caro Longfellow - disse o doutor
Ele ficava satisfeito sempre que uma das correcções que tinha sugerido era
aceite, e duas das que fizera na última quarta-feira apareciam já nas últimas
provas de Longfellow. Holmes dirigiu a sua atenção para os cantos daquela
noite. Ele tivera um cuidado especial na sua preparação, porque, naquela
noite, ia ter de os convencer que chegara o momento de protegerem Dante.
- No sétimo círculo - disse Longfellow -, Dante diz-nos de que modo ele e
Virgílio vão parar a uma selva escura.
Em cada região do Inferno, Dante segue o seu adorado guia, o poeta
romano Virgílio. Ao longo do caminho, ele conhece o destino de cada grupo
de pecadores, escolhendo um ou dois para se dirigir ao mundo dos vivos.
- A selva perdida, que ocupou os pesadelos individuais de todos os leitores
de Dante num momento ou noutro - disse Lowell. - Dante escreve como
Rembrandt, com o pincel imerso nas trevas e um brilho ténue do fogo
infernal a iluminá-lo.
Como habitualmente, Lowell sabia tudo sobre Dante na ponta da língua; ele
vivia a poesia de Dante, de corpo e alma. Num dos raros momentos da sua
vida, Holmes invejava o talento de outra pessoa.
Longfellow leu a partir da sua tradução. A sua voz soava profunda e
verdadeira, sem qualquer severidade, como o rumor da água a correr sob
um manto fresco de neve. George Washington Greene parecia
particularmente sereno, porque, na espaçosa cadeira de braços verde
instalada no canto, o erudito deixava-se embalar até adormecer entre o
som das suaves entoações do poeta e o brando calor da lareira. Trap, o
pequeno terrier, que se enroscara sobre o estômago roliço por baixo da
cadeira de Greene,
também dormitava, e os seus roncos seguiam-se uns aos outros, como os
grunhidos rabugentos do contrabaixo numa sinfonia de Beethoven. No
canto em análise, Dante encontrava-se no Bosque dos Suicidas, onde as
«sombras» dos pecadores haviam sido transformadas em árvores,
brotando sangue onde devia correr seiva. Depois, surgiram outros castigos:
brutais harpias com colos e rostos de mulheres e corpos de pássaros, pés
com garras e ventres protuberantes, abrindo caminho por entre os
espinhais, alimentando-se e dilacerando todas as árvores à sua passagem.
Contudo, juntamente com a dor profunda, os rasgões e as lágrimas das
árvores eram a única forma de as sombras exteriorizarem a sua dor, de
contarem as suas histórias a Dante.
- Assim, brotam juntos o sangue e as palavras - disse Longfellow. Depois de
dois cantos de castigos, testemunhados por Dante, os livros
foram marcados e arrumados, as folhas misturadas e trocadas mostras de
admiração. Longfellow disse:
- A lição chegou ao fim, meus senhores. Ainda só passam trinta minutos das
nove, e merecemos algum descanso pelo trabalho realizado.
- Sabem? - disse Holmes. - Um dia destes, pensei no nosso trabalho sobre
Dante numa nova perspectiva.
Peter, o criado de Longfellow, bateu à porta e, num sussurro hesitante, deu
um recado a Lowell.
- Uma pessoa para falar comigo? - protestou Lowell, interrompendo
Holmes. - Quem é que pode ter-me encontrado aqui? - Quando Peter
gaguejou uma resposta vaga, Lowell vociferou suficientemente alto para
que todos na casa o ouvissem. - Quem, por Deus, ousa aparecer na noite em
que o nosso clube se reúne?
Peter inclinou-se mais para Lowell.
- Senhor Lowell, ele diz que é polícia.
No vestíbulo principal, o agente Nicholas Rey sacudiu a neve fresca das
botas, batendo com os pés no chão, e depois permaneceu estático diante da
enorme profusão de esculturas e pinturas de George Washington que
Longfellow possuía. A casa fora o quartel-general de Washington, nos
primeiros dias da Revolução Americana.
Peter, o criado preto, levantou a cabeça desafiadora e duvidosamente
quando Rey lhe mostrou o seu distintivo. Tinha sido comunicado a Rey que
as reuniões de quarta-feira do senhor Longfellow não podiam ser
interrompidas e, polícia ou não, ele iria ter de aguardar na saleta. A sala
para onde foi conduzido estava envolta, como um relicário, numa
decoração intangivelmente graciosa - papel de parede com flores e cortinas
suspensas de bolbos góticos.
O suave busto de mármore de uma mulher estava protegido sob um arco,
junto à lareira, com caracóis pétreos a cair-lhe suavemente sobre as feições
delicadamente talhadas. Rey permanecia de pé quando dois homens
entraram na sala. Um tinha uma barba solta, e uma dignidade que o fazia
parecer bastante alto, embora fosse de estatura mediana. O seu
companheiro era um homem entroncado e de porte resoluto, com um
bigode de pontas reviradas como presas de morsa, que se projetavam para
diante, como para se apresentarem primeiro. Tratava-se de James Russell
Lowell, que se deteve por um longo e perplexo momento, e depois avançou
precipitadamente.
Ele riu com a presunção de quem sabe de antemão de que situação se trata.
- Longfellow, sabe uma coisa? Eu li tudo sobre este moço no jornal dos
homens livres! Ele foi um herói no Regimento dos Negros, o
Quinquagésimo Quarto, e o Andrew admitiu-o no departamento da polícia
na semana em que o presidente Lincoln morreu. Que honra conhecê-lo,
meu amigo!
- Regimento Quinquagésimo Quinto, professor Lowell, o regimento de
apoio, «das duas irmãs». Obrigado - disse Rey. - Professor Longfellow, peço
desculpa por afastá-lo dos seus amigos.
- Tínhamos acabado de chegar ao fim da parte séria, senhor agente -disse
Longfellow, a sorrir -, e pode bem tratar-me por senhor. - O seu cabelo
grisalho e a barba solta conferiam-lhe uma pose patriarcal, própria de uma
pessoa com mais de cinquenta e oito anos. Os seus olhos eram azuis e
sempre jovens. Longfellow vestia uma sobrecasaca escura impecável, com
botões dourados e um colete de cabedal, que lhe torneava as formas na
perfeição. - Cansei-me da minha toga de professor há uns anos, e o
professor Lowell ocupou o meu lugar.
- Mas continuo a não conseguir habituar-me a esse maldito título -
murmurou Lowell.
Rey virou-se para ele.
- Uma menina de sua casa encaminhou-me amavelmente até aqui. Ela
disse-me que só não o encontraria em lado nenhum às quartas-feiras à
noite.
- Ah, deve ter sido a minha Mabel! - disse Lowell a rir. - Ela não o pôs na
rua, pois não?
Rey sorriu.
- É uma jovem muito simpática, Sir. A universidade mandou-me falar
consigo, Professor.
Lowell pareceu atónito.
- O quê? - murmurou ele. Depois, explodiu, com as faces e as orelhas da cor
do vinho da Borgonha, e parecendo-lhe que a voz lhe queimava a garganta.
- Eles mandaram um agente da polícia! Com que justificação plausível? Não
serão eles homens capazes de dizer o que pensam sem manipularem os
cordelinhos de uma qualquer marioneta da Câmara Municipal! Explique-se,
senhor!
Rey permaneceu tão imóvel como a estátua de mármore da mulher de
Longfellow, colocada junto à lareira.
Longfellow pousou uma mão na manga do amigo.
- Compreenda, senhor agente, o professor Lowell é suficientemente amável
para me ajudar, juntamente com alguns dos nossos colegas, numa
diligência literária, que neste momento não é da aprovação de certos
membros dos órgãos dirigentes da universidade. Mas isso deve-se a que...
- As minhas desculpas - disse o polícia, pousando o olhar fixo no primeiro
homem que falara, cuja vermelhidão do rosto desaparecera de forma tão
abrupta como surgira. - Fui eu que contactei diretamente a universidade, e
não o contrário. Sabe, procuro um especialista em línguas, e alguns
estudantes indicaram-me o seu nome.
- Então, senhor agente, aceite o senhor as minhas desculpas - disse Lowell -,
mas o senhor teve sorte em me ter encontrado. Consigo falar seis línguas
como um nativo... de Cambridge. - O poeta deu algumas gargalhadas e
pousou o papel, que Rey lhe entregara, em cima da secretária de
Longfellow, de pau-rosa com embutidos, passando os dedos pelas letras
inclinadas e garatujadas.
Rey viu a testa alta de Lowell enrugar-se vincadamente.
- Um senhor dirigiu-me umas certas palavras. Falou em surdina, o que quer
que pretendesse comunicar, e tudo aconteceu muito depressa. Consegui
concluir apenas que se tratava de uma língua rara e estrangeira.
- Quando foi isso? - perguntou Lowell.
- Há umas semanas. Tratou-se de um encontro estranho e inesperado. - Rey
deixou que os seus olhos se fechassem. Lembrou-se da pressão prolongada
da mão do sussurrador no seu crânio. Ele conseguia ouvir distintamente a
articulação das palavras, mas não conseguia reproduzir nenhuma delas. -
Receio que essa seja apenas uma transcrição grosseira, Professor.
- Na verdade, uma confusão! - disse Lowell, enquanto passava o papel a
Longfellow. - Receio que pouco se consiga fazer com esses hieróglifos. Não
pode perguntar a essa pessoa o que quis dizer? Ou, pelo menos, descobrir
em que língua tentava falar?
Rey hesitou antes de responder. Longfellow disse:
- Senhor agente, nós temos um gabinete de eruditos esfomeados ali dentro,
cuja sabedoria podia ser subornada com ostras e macarrão. Pode ter a
gentileza de deixar uma cópia desse papel connosco?
- Ficava-lhe muito grato, senhor Longfellow - disse Rey, avaliando os poetas
antes de acrescentar: - Devo pedir-lhes para não comentarem com ninguém
a minha visita de hoje. Isto tem a ver com um caso delicado da polícia.
Lowell ergueu as sobrancelhas com cepticismo.
- Com certeza - assegurou Longfellow, e inclinou a cabeça num aceno, que
dava a entender que a confiança era algo inerente a Craigie House.
- Mantenha o bom afilhado de Cérbero longe da mesa esta noite, caro
Longfellow! - disse Fields, enquanto prendia a ponta do guardanapo no
colarinho da camisa. Estavam instalados nos seus lugares à volta da mesa
da sala de jantar. Trap protestou com um latido breve.
- Oh, ele é bastante amistoso para os poetas, Fields - objetou Longfellow.
- Ah! Devia tê-lo visto na semana passada, senhor Greene - disse Fields. -
Enquanto o senhor estava preso à cama, esse tipo amistoso serviu-se de
uma perdiz, que estava em cima da mesa, enquanto nos ocupávamos, no
escritório, do décimo primeiro canto!
- Esse foi simplesmente o resultado do seu ponto de vista da Divina
Comédia - disse Longfellow a sorrir.
- Um encontro estranho - observou Holmes, vagamente interessado. -Foi a
única coisa que o agente da polícia disse sobre isto? - Ele avaliava o bilhete
do polícia, segurando-o sob a luz quente do candelabro, e revirando-o antes
de o passar.
Lowell anuiu.
- Tal como Nemrod, o que quer que o nosso agente Rey tenha ouvido, pela
confusão, lembra a infância gigantesca do mundo.
- Em parte, gostaria de dizer que a escrita é uma pobre tentativa de se
expressar em italiano. - George Washington Greene encolheu os ombros
como que a desculpar-se, e entregou o bilhete a Fields com um suspiro
ruidoso.
O historiador voltou a concentrar-se no seu prato. Ele mostrava-se
constrangido quando tinha de competir com as estrelas luminosas que
habitavam a constelação social de Longfellow. O Clube de Dante havia
incorporado os seus livros nas suas prateleiras e, em contrapartida,
tornara-o alvo de gracejos à ceia. A vida de Greene havia sido pavimentada
com pequenas promessas e grandes reveses.
As suas conferências públicas nunca tinham tido suficiente consistência
para lhe assegurar um lugar de professor, e o seu trabalho como pastor
nunca fora suficientemente determinante para lhe permitir obter a sua
própria paróquia (as suas prelecções, segundo os seus detratores, eram
excessivamente admoestadoras e os seus sermões demasiado históricos).
Longfellow olhou para o velho amigo com sinceridade, e fez passar pela
mesa bocados especialmente escolhidos, que julgava agradarem mais a
Greene.
- O agente Rey - disse Lowell com admiração - é a imagem perfeita de um
verdadeiro homem, não é, Longfellow? Um soldado na maior das nossas
guerras, e agora o primeiro elemento de cor da polícia. Infelizmente, nós
professores, limitamo-nos a permanecer no portaló, a observar os poucos
que embarcam no vapor.
- Ah, mas nós vivemos muito mais por causa das nossas actividades
inteletuais - disse Holmes -, segundo um artigo que vem no último número
da Atlantic, relativamente aos efeitos salutares do estudo sobre a
longevidade. Parabéns por mais um magnífico número, meu caro Fields.
- Sim, eu já o vi. Um artigo excelente. Cuide bem desse jovem autor, Fields -
disse Lowell.
- Hum. - Fields sorriu-lhe ao ouvir estas palavras. - Aparentemente, eu
devia consultá-lo antes de deixar que qualquer autor escrevesse alguma
coisa. Certamente que a Review acabaria rapidamente com a nossa Life of
Percival. Quem não nos conheça, pode bem pensar que você não tem por
mim a mais pequena consideração!
- Fields, eu não lisonjeio ninguém por mero sentimentalismo -declarou
Lowell. - Você sabe muito bem que é conveniente publicar um livro que,
entre outras coisas, é fraco, mas que abre caminho para um trabalho
melhor sobre o mesmo tema.
- Pergunto à mesa se concorda que Lowell publique na The North American
Review, uma das minhas revistas, um ataque a um dos livros da minha
editora!
- Bem, eu perguntava antes - respondeu Lowell -, se algum dos presentes
leu esse livro e está disposto a discutir as minhas conclusões.
- Eu arriscaria um retumbante «não» em nome de todos os que estão nesta
mesa - admitiu Fields -, mas asseguro-vos que, desde o dia em que o artigo
de Lowell apareceu, nem mais um único exemplar do livro foi vendido!
Holmes deu algumas pancadinhas com o garfo no seu copo.
- Aqui mesmo formulo uma acusação contra Lowell por assassínio, porque
ele assassinou irremediavelmente a Life.
Todos riram.
- Oh, ela já nasceu morta, juiz Holmes - respondeu o arguido -, eu limitei-me
a cravar os pregos no seu caixão!
- Digam-me uma coisa - interveio Greene, tentando parecer descontraído ao
voltar ao seu assunto preferido. - Alguém reparou, de acordo com os
registos de Dante, nos dias e nas datas deste ano?
- Correspondem exatamente às do dantesco 1300 - respondeu Longfellow,
anuindo. - Assim, nos dois anos, a Sexta-Feira Santa calha no dia vinte e
cinco de Março.
- Caramba! - exclamou Lowell. - Há quinhentos e sessenta e cinco anos,
Dante desceu à città dolente, a cidade dolorosa. Este não é o ano de Dante!
É um bom augúrio para uma tradução - perguntou Lowell com um sorriso
gaiato -, ou mau? - Contudo, o seu comentário recordou-lhe a persistência
da Corporação de Harvard, e o seu sorriso rasgado desvaneceu-se.
- Amanhã - disse Longfellow-, com os nossos últimos cantos do Inferno na
mão, desceremos por entre os diabos da gráfica - os Malebranches da
Riverside Press -, e assim nos aproximaremos mais do final. Prometi enviar,
no fim do ano, uma edição limitada do Inferno à Comissão Florentina como
nosso contributo, embora modesto, para as comemorações dos seiscentos
anos sobre o nascimento de Dante.
- Sabem, meus caros amigos - disse Lowell, franzindo o sobrolho -, que
aqueles malditos loucos de Harvard ainda continuam exaltados a tentar por
todos os meios acabar com o meu curso sobre Dante.
- E depois de o Augustus Manning me ter advertido das consequências da
publicação da tradução - acrescentou Fields, tamborilando com os dedos na
mesa num gesto de frustração.
- Porque haviam eles de ir tão longe? - perguntou Greene, alarmado.
- De uma maneira ou de outra, eles procuram distanciar-se tanto quanto
possível de Dante - explicou Longfellow, devagar. - Eles temem a sua
influência, porque é estrangeiro... e católico, meu caro Greene.
- Presumo que - disse Holmes, reflectindo uma simpatia natural -, em parte,
podia ser compreensível, porque há algo dantesco que nos afeta. Quantos
pais foram, em Junho passado, ao Mount Auburn Cemetery visitar as
campas dos seus filhos, em vez de irem ao Templo dos Quáqueros
inscrever-se nessa seita? Em muitos casos, creio que não precisamos de
outro Inferno, do qual acabámos de sair.
Lowell servia-se do terceiro ou quarto copo de vinho tinto de Falerno. Do
outro lado da mesa, Fields tentava sem sucesso acalmá-lo com um olhar
apaziguador.
- Mal comecem a lançar livros para a fogueira - disse Lowell -, mandam-nos
a todos para um inferno, do qual não conseguiremos sair, meu caro
Holmes!
- Oh, não pense que me agrada a ideia de tentar impermeabilizar o espírito
norte-americano a questões que o céu lança sobre ele, meu caro Lowell.
Mas acaso... - Holmes hesitou. Aquela era a sua oportunidade. Virou-se para
Longfellow: - Acaso devemos pensar num calendário de publicação menos
ambicioso, meu caro Longfellow... Primeiro, uma edição limitada a algumas
dúzias de exemplares, para que os nossos amigos e colegas eruditos
pudessem apreciá-la, pudessem captar-lhe a força, antes de divulgarmos a
obra às massas...
Lowell quase saltou da cadeira.
- O doutor Manning falou consigo? Acaso ele mandou alguém assustá-lo a
esse ponto, Holmes?
- Lowell, por favor - interveio Fields, sorrindo diplomaticamente. -Manning
não abordaria Holmes por causa disto.
- O quê? - O doutor Holmes fingiu não ouvir aquilo. Lowell continuava a
aguardar uma resposta. - Claro que não, Lowell. Manning não passa de um
daqueles fungos, que se desenvolvem sempre nas universidades mais
antigas. Mas parece-me que não queremos suscitar conflitos
desnecessários. Só serviria para nos distrair do que nos interessa e prende
a Dante. Nesse caso, teria a ver com a luta e não com a poesia. Demasiados
médicos praticam o exercício da medicina, atafulhando o mais possível os
doentes com medicamentos. Devíamos ser judiciosos nas nossas curas mais
bem-intencionadas, e cautelosos nos nossos avanços literários.
- Quanto mais unidos, melhor - sentenciou Fields, dirigindo-se a todos os
que estavam à mesa.
- Não podemos mostrar-nos cautelosos diante dos tiranos! - protestou
Lowell.
- Nem sequer pretendemos formar um exército de cinco pessoas contra o
mundo inteiro - acrescentou Holmes. Ele estava radiante por Fields já estar
a acalentar a sua ideia de esperar. Assim, acabaria o seu romance antes de o
país ouvir sequer falar em Dante.
- Antes ser queimado vivo na fogueira - exclamou Lowell. - Ou melhor
ainda, concordaria ficar fechado durante uma hora sozinho com toda a
Corporação de Harvard, a atrasar a publicação da tradução.
- Claro, não alteraremos em nada os planos de edição - disse Fields. O vento
deixou de soprar a favor das velas de Holmes. - Mas Holmes tem razão
quanto a avançarmos com isto sozinhos - continuou Fields. -Podemos
seguramente tentar arranjar apoios. Eu podia falar com o velho professor
Ticknor para ele usar de toda a influência que ainda lhe resta. E, talvez com
o senhor Emerson, que leu Dante há uns anos. Ninguém à face da terra sabe
se, quando é publicado, um livro vai vender ou não cinco mil exemplares.
Mas, se se venderem esses cinco mil exemplares, bem certo é poderem
vender-se vinte e cinco mil.
- Eles podem tentar tirar-lhe o lugar de lente, senhor Lowell? - interrompeu
Greene, ainda preocupado com a Corporação de Harvard.
- Jamey é suficientemente conhecido como poeta para que isso aconteça -
insistiu Fields.
- Não me ralo nada com o que eles possam fazer-me, em todos os sentidos!
Não entregarei Dante aos filisteus.
- Nem nenhum de nós o fará! - apressou-se Holmes a declarar. Para sua
grande surpresa, ninguém o contestou; em vez disso, todos pareceram
determinados em mostrar, não só que ele tinha razão, como sabia defender
os seus amigos de Dante, e Dante da efusão dos seus amigos. O encorajador
volume das suas exclamações contagiou os circunstantes, que irromperam
em gritadas expressões como «Apoiado, muito bem!» e «Isso mesmo!
Exatamente!», com a voz de Lowell a sobrepor-se às restantes.
Ao ver um resto do recheio de tomate depositado no seu garfo de metal,
Greene inclinou-se para partilhar aquela fartura com Trap. Por baixo da
mesa, Greene reparou que Longfellow se levantava.
Embora estivessem apenas cinco amigos reunidos na sala de jantar de
Longfellow, na íntima privacidade de Craigie House, o absoluto insólito de o
anfitrião se levantar para fazer um brinde suscitou um silêncio total. - À
saúde dos que estão reunidos à volta desta mesa. Foi tudo o que ele disse,
mas todos gritaram hurras, como se estivessem perante outra Proclamação
da Independência. Depois, chegaram o cobbler de cereja, o gelado e o
conhaque com torrões de açúcar flamejantes e charutos, de um pacote
acabado de abrir, que foram acesos nas velas colocadas no centro da mesa.
Antes de a noite chegar ao fim, Longfellow foi convencido por Fields a
contar aos presentes a história dos charutos. Para lisonjear Longfellow e
levá-lo a falar de si próprio, desviou-se o interesse para um assunto neutro,
como os charutos.
- Fora chamado à Corner para tratar de uns assuntos - começou por dizer
Longfellow, enquanto Fields ria antecipadamente -, quando o senhor Fields
me convenceu a acompanhá-lo a uma tabacaria próxima para comprar
algumas lembranças. O vendedor trouxe-nos uma caixa de uma certa marca
de charutos, da qual vos juro nunca ter ouvido falar. E ele disse com a
maior sinceridade deste mundo: - Estes, Sir, são do tipo dos que Longfellow
prefere fumar.
- O que lhe respondeu você? - perguntou Greene, elevando a voz Por cima
de todo o regozijo que se gerou.
- Olhei para o homem de relance, baixei os olhos para os charutos, e disse-
lhe: «Muito bem, então, terei de os experimentar.» E paguei-lhe a
encomenda de uma caixa, pedindo-lhe que ma enviasse.
- Então, e o que acha agora, meu caro Longfellow? - perguntou Lowell,
engasgando-se com a sobremesa de tanto rir.
Longfellow exalou um suspiro.
- Ah, julgo que o homem tinha toda a razão. Acho-os mesmo bons.
- «Por isso, é bom que me arme de prudência com uma arma de fogo, assim,
se for obrigado a sair do sítio que me é mais querido, eu...» - declarou o
estudante, em tom de frustração, deslizando os dedos para trás e para a
frente, por baixo do texto italiano.
Desde há vários anos, o escritório de Lowell em Elmwood desdobrara-se
numa sala de aula para o seu curso sobre Dante. Na sua primeira etapa
como professor da cátedra Smith, solicitara uma sala e fora-lhe
disponibilizado um espaço gelado, situado na cave do edifício principal da
universidade, com compridas tábuas de madeira, em vez de carteiras, e um
púlpito para o professor, que, seguramente, provinha dos tempos dos
puritanos. O curso não tinha alunos suficientes, tinham dito a Lowell, para
merecer uma das salas de aulas mais cobiçadas. Não fazia mal. Instalar-se
em Elmwood, dava-lhe a comodidade de um cachimbo e o calor de uma
lareira, e era mais uma razão para não ter de sair de casa.
A turma encontrava-se duas vezes por semana em dias escolhidos por
Lowell; por vezes, era ao domingo, porque a Lowell agradava a ideia de se
encontrarem no mesmo dia da semana que Boccaccio, uns séculos antes,
dera as primeiras aulas sobre Dante, em Florença. Muitas vezes, Mabel
Lowell sentava-se e ouvia as lições do seu pai da sala contígua, que
comunicava com a outra por duas arcadas abertas.
- Lembre-se, Mead - disse o professor Lowell quando o estudante parou,
frustrado. - Lembre-se que nesta quinta esfera celeste, a esfera dos
Mártires, Cacciaguida profetizou a Dante que o poeta seria exilado de
Florença quando regressasse ao mundo dos vivos, e que a sentença seria de
morte na fogueira se voltasse a cruzar as portas da cidade. Agora, Mead,
traduza a sua próxima frase: «io non perdessi li altri per / miei carmi»,
tendo isto em mente.
O italiano de Lowell era fluente e sempre tecnicamente correto. Mas Mead,
um aluno do penúltimo ano de Harvard, gostava de pensar que a condição
de norte-americano de Lowell se evidenciava na escrupulosa pronúncia de
cada sílaba,
como se cada uma delas não tivesse qualquer relação com a seguinte.
- «Os outros não perdesse por meus poemas.»
- Atenha-se ao texto, Mead! Carmi são canções; não apenas os seus poemas,
mas a autêntica musicalidade da sua voz. No tempo dos menestréis,
pagava-se e escolhia-se ou as histórias na forma de canções ou prédicas.
Uma prédica que canta e uma canção que prega - isso acontece na Comédia
de Dante. «Pois se o lugar me tiram que é mais caro, / aos outros não
perdesse por meu carme.» Uma leitura honesta, Mead - disse Lowell com
um gesto que parecia forçado e que comunicava a sua aprovação geral.
- Dante repete-se - disse Pliny Mead num tom monótono. Edward Sheldon,
o estudante sentado ao lado dele, mostrou-se embaraçado diante daquela
observação. - Como o senhor diz - prosseguiu Mead -, um profeta divino já
previu que Dante iria encontrar refúgio e protecção com Can Grande.
Então, para que precisava Dante de «outros» lugares? Que tolice de poesia.
- Quando Dante fala num novo lar no futuro - respondeu Lowell -, graças à
sua obra, quando alude aos outros lugares que busca, não está a falar na
sua vida de 1302, o ano do seu exílio, mas na sua segunda vida, a vida que
ele viverá através do poema, ao longo dos séculos.
- Mas «o lugar mais querido» - insistiu Mead - nunca é verdadeiramente
alcançado por Dante, sendo ele próprio quem se afasta dali. Florença
ofereceu-lhe uma oportunidade de regressar a casa, para junto da mulher e
da família, e ele recusou-a!
Pliny Mead não era daqueles alunos que impressionam professores e
colegas pela sua genialidade, mas, desde a manhã em que recebera as
classificações das suas provas do último período académico - e que lhe
provocaram uma triste desilusão - passara a olhar Lowell com acrimónia.
Mead atribuía a sua baixa classificação - e a subsequente descida de lugar
no livro das classificações, da turma de 1867, do décimo segundo para o
décimo quinto lugar - ao fato de ter discordado de Lowell em várias
ocasiões ao longo dos debates sobre literatura francesa, e de o professor
não suportar ser confrontado com os próprios erros. Mead teria desistido
do seu curso de línguas vivas, mas de acordo com o regulamento da
Corporação, uma vez matriculado num curso de línguas, o estudante tinha
de permanecer mais três períodos no departamento; um dos artifícios
adoptados para dissuadir os rapazes de pensarem sequer em se inscrever.
Por isso, Mead estava preso àquele grande bazofiador que era James
Russell Lowell. E a Dante Alighieri.
- Que proposta lhe fizeram! - respondeu Lowell a rir. - Clemência absoluta
para Dante, e restituição do seu legítimo lugar em Florença,
em troca da petição do poeta da sua absolvição e de um pagamento
avultado em dinheiro! Nós fizemos Johnny Reb voltar para a União com
menor aviltamento, quanto mais para um homem que clama por justiça,
aceitar um acordo tão vil com os seus opressores.
- Bem, Dante continua a ser um florentino, independentemente do que nós
possamos dizer! - asseverou Mead, tentando obter a concordância de
Sheldon com um olhar furtivo e simulado de cumplicidade. - Sheldon, não o
vês assim? Dante escreve incessantemente sobre Florença e os florentinos
que encontra e com quem fala nas visitas que faz à vida futura, e ele escreve
tudo isso enquanto está exilado! Para mim, meus amigos, é bastante claro
que ele anseia apenas o regresso. A morte do homem no exílio e a pobreza
são o seu derradeiro e enorme fracasso.
Irritado, Edward Sheldon reparou que Mead sorria ironicamente diante do
silêncio que conseguira impor a Lowell, e que se levantara e enfiara as
mãos no casaco bastante coçado. No entanto, Sheldon conseguiu ver em
Lowell, na jactância do seu cachimbo, um estado de espírito elevado. Ele
parecia estar a pairar noutro plano de competência mental, bem acima do
escritório de Elmwood, enquanto caminhava a passos regulares sobre o
tapete com as suas botas de grossos atacadores. Habitualmente, Lowell não
permitia a admissão de principiantes numa turma de literatura avançada,
mas o jovem Sheldon fora persistente, e Lowell dissera-lhe que eles veriam
se ele conseguia orientar-se. Sheldon ficou grato pela oportunidade, e
aguardou a oportunidade de defender Lowell e Dante contra Mead, o tipo
que, de certeza, em criança andara a colocar moedas nos carris do
caminho-de-ferro. Sheldon abriu a boca, mas Mead lançou-lhe um olhar,
que o fez voltar a calar os seus pensamentos.
Lowell denunciou um olhar de decepção a Sheldon, e depois virou-se para
Mead.
- Onde está o judeu que há em si, meu rapaz? - perguntou-lhe ele.
- Como? - exclamou Mead, ofendido.
- Não, não se preocupe. Não era isso em que estava a pensar, Mead. O tema
de Dante é o homem... não um homem - acabou por dizer Lowell com a
paciência conciliadora, que reservava apenas para os estudantes. - Os
Italianos sempre se agarraram a Dante, para o obrigar a dizer que seguia os
princípios deles e a sua maneira de pensar. A sua maneira de pensar, claro!
Confiná-lo a Florença ou a Itália é subtraí-lo à simpatia da humanidade. Nós
lemos o Paraíso Perdido como um poema, mas a Comédia de Dante lemo-la
como uma crónica das nossas vidas interiores. Conhecem Isaías 38:10?
Sheldon reflectiu com afinco e Mead permaneceu sentado com uma
expressão inflexível de obstinação, propositadamente empenhado em não
pensar em nada do que quer que soubesse sobre o assunto.
- «Ego dixi: In dimidio dierum meorum vadam ad portas inferi!» - exultou
Lowell, e depressa se dirigiu às suas estantes cheias de livros, onde, de
alguma maneira, encontrou imediatamente o referido capítulo e versículo
numa Bíblia latina. - Vêem? - perguntou ele, colocando-a aberta sobre o
tapete, aos pés dos seus alunos, deliciado por demonstrar que se lembrava
da citação corretamente.
- Querem que traduza? - perguntou Lowell. - «Eu dizia para mim mesmo:
vivi apenas metade da minha vida e já tenho de partir para ir passar no
mundo dos mortos os anos que me faltavam para viver!» Há alguma coisa
em que os autores das nossas Escrituras Sagradas não tenham pensado?
Algures a meio das nossas vidas, de todos nós, de cada um de nós, fazemos
uma viagem para nos confrontarmos com um Inferno só nosso. Qual é o
primeiro verso do poema de Dante?
- «No meio do caminho em nossa vida» - sugeriu voluntariosamente
satisfeito Edward Sheldon, que tinha lido essa ressalva de abertura do
Inferno vezes sem conta no seu quarto no Stoughton Hall, e nunca se
sentira tão atraído por nenhum verso de poesia nem tão encorajado por
nenhum clamor como aquele. - «Eu me encontrei por uma selva escura,
porque a direita via era perdida.»
- «Nel mezzo del cammin di nostra vita. No meio do caminho em nossa
vida» - repetiu Lowell com um brilho tão intenso no olhar fixo que dirigia à
lareira, que Sheldon olhou de relance por cima do ombro, julgando que a
bonita Mabel Lowell tivesse entrado atrás dele; porém, a sua sombra
continuava a mostrá-la sentada na saleta contígua. - «Nossa vida.» Desde o
primeiro verso do poema de Dante que somos envolvidos na viagem,
somos levados a fazer a peregrinação, tanto quanto ele, e temos de encarar
o nosso Inferno com tanta determinação quanta a que Dante teve. Vedes
que o valor maior e mais duradouro do poema é mostrar a autobiografia de
uma alma humana. A vossa e a minha, tanto faz, tal como a do próprio
Dante. Enquanto ouvia Sheldon ler os quinze versos seguintes em italiano,
Lowell pensou para consigo como era bom ensinar algo autêntico. Como
Sócrates fora tolo ao pensar expulsar os poetas de Atenas! Com que imensa
satisfação Lowell veria a derrota de Augustus Manning quando a tradução
de Longfellow se revelasse um imenso êxito.
No dia seguinte, Lowell saía do edifício principal da universidade depois de
pronunciar uma conferência sobre Goethe,
e só ficou um pouco surpreendido ao aperceber-se de que olhava para um
italiano baixo que passava apressado, vestindo um casaco de corte largo,
mas que lhe ficava terrivelmente justo.
- Bachi? - disse Lowell.
Pietro Bachi fora contratado uns anos antes por Longfellow como leitor de
italiano. À Corporação nunca agradara a ideia de empregar estrangeiros,
em particular, um papista italiano, e o fato de Bachi ter sido reprovado pelo
Vaticano não alterava em nada a opinião deles sobre o assunto. Na época
em que Lowell assumiu o controlo do departamento, a Corporação
encontrou motivos bastante razoáveis para afastar Pietro Bachi - o seu
alcoolismo e a sua insolvência. No dia em que foi despedido, o italiano
queixou-se ao professor Lowell.
- Não voltam a apanhar-me aqui novamente, nem morto. - Apesar de não as
tomar à letra, por qualquer motivo, Lowell acreditou nas palavras de Bachi.
- Meu caro Professor. - Agora Bachi estendia a mão ao antigo responsável
pelo seu departamento, que a agitou vigorosamente no seu jeito habitual.
- Bem... - começou Lowell por dizer, sem saber bem se devia perguntar qual
o motivo que trouxera Bachi, manifestamente vivo e agitado, a Harvard.
- Ando a dar um passeio, Professor - explicou Bachi. Contudo, ele parecia
ansioso por passar por Lowell, de modo que o professor abreviou as suas
mostras de simpatia. No entanto, ao virar-se para trás, por breves instantes,
estranhou cada vez mais o aparecimento de Bachi, e Lowell reparou que ele
se dirigia a uma figura vagamente familiar. Era o indivíduo do chapéu de
coco preto e colete axadrezado, o amante de poesia que Lowell vira
indolentemente encostado a um olmeiro americano, umas semanas antes.
Ora, que negócios teria ele a tratar com Bachi? Lowell ficou parado para ver
se Bachi saudava a personagem desconhecida, que seguramente parecia
estar à espera de alguém. Mas depois, uma onda de estudantes, eufóricos
por terem sido dispensados das declamações de grego, rodeou-os como um
enxame, e o curioso par - se, de fato, os dois homens iam falar um com o
outro - desapareceu do alcance da vista de Lowell.
Esquecendo-se por completo da cena, Lowell encaminhou-se para a
Faculdade de Direito, onde encontrou Oliver Wendell Júnior rodeado de
condiscípulos, a quem explicava algum aspeto relacionado com o direito,
que não estavam a perceber bem. Em geral, o seu aspeto não era diferente
do doutor Holmes, mas era como se alguém tivesse levado o pequeno
doutor a uma roda de tortura e o tivesse esticado até ao dobro da sua
estatura.
O doutor Holmes caminhava indolente ao fundo das escadas de serviço de
sua casa. Depois, deteve-se diante de um espelho pendurado a baixa altura
e, com um pente, agitou as porções espessas e hirsutas do seu cabelo
castanho para um dos lados. Pensou ainda que o seu rosto não compunha
um retrato muito lisonjeiro da sua pessoa. «Mais uma conveniência do que
um adorno», gostava ele de dizer aos que lhe eram próximos. A tez um
nadinha mais escura, o nariz mais perfeito na inclinação ou o pescoço mais
pronunciado; ele bem podia estar a olhar para o reflexo de Wendell Júnior.
Neddie, o filho mais novo de Holmes, fora bastante desafortunado para
apresentar o mesmo aspeto do seu pai, tendo herdado até os seus
problemas respiratórios. O doutor Holmes e Neddie eram Wendell, teria
dito o reverendo Holmes; e Wendell Júnior era um Holmes puro. Com
aquele sangue, Júnior não tinha dúvidas que suplantaria o renome do pai;
não só seria o Exmo. Holmes, mas também Sua Excelência Holmes ou o
Presidente Holmes. O doutor Holmes endireitou-se energicamente ao ouvir
os passos de umas pesadas botas, e rapidamente recuou até uma sala
próxima. Depois, dirigiu-se de novo às escadas, com um passo descontraído
e os olhos baixos, fixos num livro antigo. Oliver Wendell Holmes Júnior
entrou em casa de rompante e pareceu dar um grande salto para o segundo
andar.
- Ah, Wendy - disse Holmes com um sorriso breve. - És tu? Júnior abrandou
a sua subida a meio das escadas.
- Olá, pai.
- A tua mãe acabou de me perguntar se já te tinha visto hoje, e apercebi-me
de que isso ainda não acontecera. De onde vens tão tarde, meu rapaz?
- Fui dar um passeio a pé.
- Ah, sim? Sozinho?
Com ressentimento, Júnior fez uma pausa no patamar. Baixou as suas
sobrancelhas pretas e dirigiu um olhar irado ao pai, que amassava a
balaustrada de madeira no final das escadas.
- Por acaso, estive a conversar com James Lowell. Holmes mostrou alguma
surpresa.
- Lowell? Estiveram juntos até tão tarde? Tu e o professor Lowell? Um
ombro largo ergueu-se ligeiramente.
- Bem, e sobre o que conversas tu com o nosso querido amigo comum,
posso perguntar? - continuou o doutor Holmes, desenhando-se no seu
rosto um sorriso amável.
- De política, da minha participação na guerra, das minhas aulas de Direito.
Diria que nos damos muito bem.
- Bom, ultimamente, andas a perder muito tempo. Estás muito ocioso.
Ordeno-te que pares com essas frívolas digressões com o senhor Lowell!
- Não obteve resposta. - Sabes, roubam-te tempo ao estudo. E não podemos
permitir que isso aconteça, pois não? Júnior desatou a rir.
- Todas as manhãs, diz: «Para que serve isso, Wendy? Um advogado nunca
chega a ser um grande homem, Wendy.» - Isto foi dito num tom de voz vivo
e rude. - E agora, quer que eu estude Direito com mais afinco?
- Exatamente, Júnior. Fazer algo que mereça a pena requer esforço, muita
energia e fósforo. E, na nossa próxima sessão do Clube de Dante, darei uma
palavrinha ao senhor Lowell sobre esse vosso hábito. Estou certo que ele
concordará comigo. Ele próprio em tempos foi advogado, e conhece as
exigências do curso. - Holmes caminhou em direcção ao vestíbulo bastante
satisfeito com a sua firmeza.
Júnior resmoneou.
O doutor Holmes virou-se.
- Queres dizer mais alguma coisa, meu rapaz?
- Estava só a pensar - disse Júnior. - Gostava de saber mais sobre esse vosso
Clube de Dante, meu pai.
Wendell Júnior nunca mostrara o menor interesse pelas suas actividades,
tanto literárias como profissionais. Ele nunca lera os poemas do doutor,
nem o seu primeiro romance, nem sequer assistira às suas conferências
sobre os avanços da medicina ou sobre a história da poesia. O caso mais
significativo acontecera depois de Holmes ter publicado «My Hunt After the
Captain», na revista The Atlantic Monthly, onde narrava a viagem que fizera
ao Sul, depois de ter recebido um telegrama erróneo a informá-lo da morte
de Júnior no campo de batalha.
Na verdade, Júnior dera uma vista de olhos pelas provas, e sentira as
feridas de guerra a latejar, enquanto o fazia. Ele não podia acreditar como é
que o seu pai conseguira pensar que podia encerrar toda a guerra em
alguns milhares de palavras, que, na sua maioria, contavam piadas sobre
rebeldes moribundos em camas de hospital, e recepcionistas de hotel de
cidades pequenas a perguntar-lhe se ele não era o «Autocrata da Mesa do
Pequeno-Almoço».
- Ou seja - continuou Júnior com um esgar desafiador -, se o senhor se acha
incomodado, porque se considera membro do clube?
- Como, Wendy, não percebo? O que queres tu dizer com isso? O que sabes
tu sobre esse assunto?
- Apenas que o senhor Lowell diz que a sua voz se ouve mais à mesa da ceia
do que no escritório. Para o senhor Longfellow, esse trabalho é tão
importante como a própria vida, e para Lowell é a sua vocação. Já vê que
ele atua de acordo com as suas convicções; não se limita a falar delas,
como fazia, enquanto advogado, quando defendia os escravos. Para si o
clube é apenas mais um sítio onde pode tilintar copos em saudações.
- Lowell disse... - começou o doutor Holmes por dizer. - Ora, nota bem,
Júnior!
Júnior acabou de subir as escadas e fechou-se no seu quarto.
- Como é que, antes de mais, soubeste do nosso Clube de Dante! -gritou o
doutor Holmes.
Antes de se retirar para o escritório, Holmes vagueou pela casa sem saber o
que fazer. A sua voz ouvida sobretudo à mesa? Quanto mais repetia aquela
alegação para si próprio, mais ofensiva lhe parecia. Lowell estava a tentar
preservar o seu lugar à direita de Longfellow, mostrando-se superior à
custa de Holmes.
Com as palavras de Júnior pronunciadas no tom alto de barítono de Lowell
a ressoar-lhe na cabeça, ele escreveu obstinadamente ao longo das
semanas seguintes, avançando de forma constante, o que não lhe era
natural. Quando uma ideia nova assaltava Holmes, tornava-se o seu
momento sibilino, mas, normalmente, o ato de composição era acolhido
com uma sensação pesada e desagradável em volta da testa, interrompida
apenas de vez em quando pela descida simultânea de um grupo de palavras
ou de uma imagem inesperada, que provocava uma explosão do mais
descontrolado entusiasmo e autocomplacência, e durante a qual, por vezes,
ele chegava a incorrer em pueris excessos de linguagem e acção. De
qualquer modo, ele não conseguia trabalhar muitas horas seguidas sem
redefinir todo o sistema. Os seus pés começavam a ficar frios, a cabeça
quente, os músculos cansados, e sentia que tinha necessidade de se
levantar. À noite, interrompia todo o trabalho árduo antes das onze horas e
pegava num livro de leitura leve, para esvaziar a mente dos assuntos
anteriores. Tanto trabalho cerebral produzia-lhe uma sensação de náusea,
como se tivesse comido de mais. Atribuía isto, em parte, às características
depletivas e enervantes do clima. Brown-Séquard, um colega médico de
Paris, afirmara que os animais não sangram tanto na América como na
Europa. Não era assustador pensar nisso? Apesar dessa insuficiência
biológica, agora Holmes dedicava-se a escrever como um louco.
- Como você sabe, devia ser eu a falar com o professor Ticknor sobre
o seu contributo para a nossa causa de Dante - disse Holmes a Fields. Ele
decidira parar no escritório de Fields, na Corner.
- O que é isso? - Fields lia três coisas ao mesmo tempo; um manuscrito, um
contrato e uma carta. - Onde estão os termos sobre os direitos de autor?
J. R. Osgood estendeu-lhe mais uma pilha de papéis.
- Você tem o tempo muito ocupado, Fields, e tem de pensar no próximo
número da Atlantic... Seja como for, precisa de descansar o seu cérebro
cansado - argumentou Holmes. - Afinal, o professor Ticknor foi meu mestre.
Felizmente para Longfellow, é possível que eu consiga exercer maior
influência sobre o velho colega.
Holmes ainda se lembrava de uma época em que Boston era conhecida no
meio literário como Ticknorville. Se não se fosse convidado para os saraus
literários na biblioteca de Ticknor, não se era ninguém. Em tempos, esse
local ficara conhecido como a Sala do Trono de Ticknor; agora, com maior
frequência, falava-se no Icebergue de Ticknor. Numa grande parte da sua
sociedade, o antigo professor perdera a sua reputação de ocioso refinado e
de antiabolicionista, mas perdurava a sua posição de um dos maiores
conhecedores literários da cidade. A sua influência podia reverter em
benefício dos membros do grupo.
- A minha vida foi povoada por mais criaturas do que me é permitido
tolerar, meu caro Holmes - disse Fields, soltando um suspiro. -Hoje em dia,
a visão de um manuscrito é como um agulhão... corta-me ao meio. - Ele
ficou a examinar Holmes durante alguns instantes, depois, concordou
enviá-lo ao n.o 9 da Park Street no seu lugar. - Mas faça-me o favor de lhe
dar lembranças minhas, está bem, Wendell?
Holmes sabia que Fields se sentia aliviado por lhe passar a tarefa de falar
com George Ticknor. O professor Ticknor - esse título ainda era
insistentemente utilizado, apesar de ele não ensinar nada desde a sua
jubilação há trinta anos - nunca tivera em grande consideração o seu primo
mais novo, William D. Ticknor, e essa sua opinião depreciativa estendia-se
ao seu sócio, J. T. Fields, como deixou claro a Holmes, depois de o médico
ter sido até ele conduzido pelas escadas em caracol do vizinho n.o 9 da Park
Street.
- A escandalosa falácia dos lucros, que considerava os livros lucrativos e de
grande projecção, consoante as vendas e os prejuízos! - disse o professor
Ticknor, com os lábios secos contraídos numa reacção súbita de
repugnância. - O meu primo William sofria dessa doença, doutor Holmes, e
desconfio que também a contagiou aos meus sobrinhos. Aqueles que se
dedicam a essas tarefas não devem controlar a arte literária. Não acha,
doutor Holmes?
- Contudo, o senhor Fields tem alguma perspicácia, não lhe parece? Ele
sabia que a sua History iria relançar as vendas, professor. Ele acha mesmo
que o Dante de Longfellow terá bastantes leitores. - Na verdade, a History
of Spanish Literature, do Ticknor, tivera escassos leitores fora do círculo
dos colaboradores das revistas, mas o professor considerava essa uma
medida exata do seu sucesso.
Ticknor ignorou a lealdade de Holmes, e, delicadamente, retirou as mãos de
uma máquina volumosa. Ele mandara construir aquela máquina de
escrever - uma espécie de máquina impressora em miniatura, como ele a
descrevia - quando as suas mãos começaram a tremer demasiado para
conseguir utilizar a pluma. Em resultado disso, há alguns anos que não via a
sua própria caligrafia. Estava a trabalhar numa carta quando Holmes
chegou.
Sentado com o seu solidéu púrpura de veludo e os chinelos calçados,
Ticknor deixou que o seu olhar crítico se detivesse, pela segunda vez, no
corte das roupas de Holmes e na qualidade da sua gravata e do seu lenço de
bolso.
- Doutor, receio que enquanto o senhor Fields sabe o que o público lê,
nunca chegará a compreender porquê. Ele deixa-se levar pelo entusiasmo
de amigos próximos. Uma peculiaridade perigosa.
- O senhor sempre afirmou como era importante difundir o conhecimento
das culturas estrangeiras pela classe erudita - lembrou-lhe Holmes. Com as
cortinas fechadas, o velho professor era agora tenuemente iluminado pela
lareira da biblioteca, cuja luz deprimida era clemente para com os seus pés-
de-galinha. Holmes dedilhava a sua própria fronte. O Icebergue de Ticknor
estava, na verdade, bastante quente por a lareira estar sempre a ser
alimentada.
- Devemos esforçar-nos por compreender os nossos estrangeiros, doutor
Holmes. Se não submetemos os recém-chegados às particularidades do
nosso carácter nacional, nem os levarmos a aceitar de bom grado a sujeição
às nossas instituições, um dia, seremos nós submetidos ao jugo das turbas
de gente que vêm de fora.
- Mas, aqui entre nós, Professor - insistiu Holmes -, que hipóteses pensa o
senhor que a tradução do senhor Longfellow tem de agradar ao público? -
Holmes mostrou um olhar de tão obstinada concentração que Ticknor fez
uma pausa para reflectir genuinamente. Como uma defesa contra a
melancolia, a velhice conferira-lhe a tendência para dar a mesma dúzia de
respostas automáticas a todas as perguntas relativas à sua saúde ou ao
estado do mundo. '
- Creio que não pode haver dúvida alguma de que o senhor Longfellow fará
algo surpreendente. Não terá sido por isso que o escolhi para me suceder
em Harvard? Mas lembre-se que, também eu, em tempos, considerei a
possibilidade de introduzir Dante aqui, até a Corporação ter transformado
a minha cátedra numa farsa... - Uma névoa toldou os olhos negros de
azeviche de Ticknor. - Não pensei ser possível viver para ver uma tradução
americana de Dante, e não consigo entender como é que ele vai conseguir
levar a cabo essa tarefa. Se as massas desenluvadas a aceitam ou não,
é outra questão, que tem de ser respondida pela voz popular e à margem da
dos doutos amantes de Dante. Nunca poderei erigir-me em juiz disso - disse
Ticknor, com uma altivez tão sincera que o tornou mais animado. - Mas
começo a acreditar que, quando acalentamos a esperança firme de que
Dante será amplamente lido, incorremos em tolices pedantes. Não me
interprete mal, doutor Holmes. Dediquei a Dante muitos anos da minha
vida, tal como Longfellow. Não pergunte o que Dante dá ao homem, mas o
que o homem dá a Dante: penetrar pessoalmente na sua esfera, apesar de
isso ser sempre violento e inesquecível.
IV
SSE DOMINGO, SOB AS RUAS DA CIDADE, E ENTRE OS MORTOS, o
O DOMINGO, DIA 22 DE OUTUBRO DE 1865, A ÚLTIMA EDIÇÃO do
EPOIS DE SE ASSEGURAR QUE A PORTA ESTAVA BEM FECHADA,
LIVER WENDELL HOLMES CHEGOU ATRASADO À REUNIÃO
A SEMANA QUE SE SEGUIU AO FUNERAL DE ELISHA TALBOT,
. HENRY OSCAR HOUGHTON, UM HOMEM DE ESTATURA elevada e
w
senhor Greene - apressou-se Fields a dizer, apertando o cotovelo de
Longfellow e dirigindo-o à sua frente.
- Mas estais confundidos, meus senhores.' Acabais de passar Revere House,
que fica na direcção oposta! - disse Greene a rir.
- Sim, bem... - Fields procurou uma desculpa verosímil, enquanto
esperavam que duas charretes, que se aproximavam, passassem pelo
movimentado cruzamento.
- Greene - interrompeu Longfellow. - Antes temos de fazer uma pequena
paragem. Por favor, venha ter ao restaurante e almoce connosco e com o
senhor Houghton?
- Receio que a minha filha possa ficar numa fúria se não for para casa -
respondeu Greene, preocupado. - Oh, vejam quem aí vem! - Greene deu um
passo atrás, vacilou e ficou fora do passeio estreito. - Senhor Houghton!
- As minhas mais sinceras desculpas, meus senhores. - Um homem
deselegante, vestido de negro como um cangalheiro, apareceu junto deles, e
baixou o seu braço, insolitamente longo, para apertar a primeira mão, que
foi a de George Washington Greene. - Estava quase a entrar na Revere
House quando os vi aos três pelo canto do olho. Espero que não estejam há
muito tempo à minha espera. Senhor Greene, meu caro senhor, vai fazer-
nos companhia? Como tem passado, meu bom amigo?
- Muito mal alimentado - respondeu Greene, agora passando em revista os
seus padecimentos. - A minha era uma vida cujo primeiro e último sustento
eram as reuniões de Dante nos serões de quarta-feira.
Longfellow e Fields alternavam a sua vigilância com vislumbres de quinze
segundos. A entrada da Wade and Son continuava tapada pela charrete
intrusa, cujo cocheiro continuava pacientemente sentado no seu lugar,
como se a sua principal missão fosse obstruir a visão dos senhores
Longfellow e Fields.
- Você disse eram? - perguntou Houghton a Greene, surpreendido. - Fields,
isto tem alguma coisa a ver com o doutor Manning? Mas então o que
acontece à celebração em Florença e à impressão especial do primeiro
volume? Tenho de saber se as datas de publicação foram adiadas. Eu não
posso andar às cegas!
- Claro que não, Houghton - disse Fields. - Nós só afrouxámos um pouco as
rédeas.
- E, pergunto, em que pode ajudar um homem habituado ao prazer desse
pedacinho semanal de paraíso? - lamentou-se dramaticamente Greene.
- Não sei - respondeu Houghton. - Mas preocupa-me imprimir este livro,
por causa da inflação dos preços...
Posso perguntar-lhe se o seu Dante vai ultrapassar todos os obstáculos que
Manning e Harvard se propuserem a interpor no seu caminho?
As mãos de Greene agitaram-se quando ele as levantou ao ar.
- Se fosse possível resumir uma ideia precisa sobre Dante, numa única
palavra, senhor Houghton, ela seria poder. Essa paisagem do seu mundo
acaba por assentar na memória de cada um, juntamente com o seu próprio
mundo real. Até os sons que ele se atardou a descrever ao ouvido do leitor
como ásperos, fortes ou suaves, nos invadem instantaneamente sempre
que ouvimos o rumor do mar, o uivo do vento ou o canto dos pássaros.
Bachi saiu da loja, e agora eles conseguiam vê-lo a examinar o conteúdo da
sua bolsa, aparentando uma grande emoção. Greene deteve-se.
- Fields? Mas o que se passa? Você parece estar à espera que aconteça
qualquer coisa do outro lado da rua.
Longfellow fez um sinal a Fields, um golpezinho com o pulso, para que
entretivesse o interlocutor deles; como parceiros numa situação crítica,
que de alguma forma conseguem comunicar uma estratégia complexa com
o mínimo gesto. Fields executou uma manobra de diversão com o velho
amigo de ambos, passando descontraidamente o braço por cima dos seus
ombros.
- Bem vê, Greene, houve várias alterações no campo da edição, desde o final
da guerra...
Longfellow puxou Houghton para o lado e disse-lhe em surdina.
- Receio que tenhamos de adiar o nosso almoço para outra altura. Dentro
de dez minutos, sai uma tipóia para Back Bay. Peço-lhe que acompanhe o
senhor Greene até lá. Acomode-o num lugar, e não se vá embora até a tipóia
sair. Assegure-se de que ele não se apeia - disse Longfellow, erguendo
ligeiramente o sobrolho para que o outro compreendesse bem a sua
urgência.
Houghton respondeu com um gesto militar, sem pedir mais explicações.
Alguma vez Henry Longfellow lhe pedira, a ele ou a alguém que conhecesse,
algum favor pessoal? O dono da Riverside Press deslizou o seu braço sob o
de Greene.
- Senhor Greene, posso acompanhá-lo até às tipóias? Julgo que a próxima
está quase a sair, e não lhe convém esperar muito tempo com este frio de
Novembro.
Com despedidas apressadas, Longfellow e Fields esperaram que duas
grandes diligências descessem a rua ruidosamente a tocar as campainhas
de aviso. Os dois poetas atravessaram a rua apressadamente, apercebendo-
se ao mesmo tempo que o professor italiano já não estava na esquina.
Olharam para todo o quarteirão, para a frente e para trás, mas não o viram
em parte nenhuma.
- Onde diabo...? - perguntou Fields.
Longfellow apontou e Fields olhou a tempo de ver Bachi confortavelmente
sentado no banco de trás daquela mesma charrete que estivera a obstruir a
vigilância de ambos. O ruído dos cascos dos cavalos distanciava-se,
aparentemente sem partilhar a impaciência do passageiro.
- E não há nenhum fiacre à vista! - disse Longfellow.
- Talvez consigamos apanhá-lo - disse Fields. - A estrebaria do cocheiro
Pike fica a poucos quarteirões daqui. O velhaco pede um quarto de dólar
por cada lugar na sua charrete, e meio dólar quando se sente
particularmente usurpador. Mais ninguém neste quarteirão além de
Holmes consegue tolerá-lo, e ele não suporta mais ninguém além do
médico.
Caminhando apressadamente, Fields e Longfellow encontraram Pike na sua
estrebaria, mas teimosamente estacionado em frente à mansão de tijolo do
n.o 21 da Charles Street. Os dois solicitaram os serviços de Pike, e Fields
mostrou-lhe as mãos cheias de notas.
- Não posso fazer-lhes o serviço, meus senhores, nem por todo o dinheiro
desta comunidade - disse Pike num tom brusco. - Comprometi-me a
transportar o doutor Holmes.
- Ouça-nos com atenção, Pike - Fields exagerou o tom de comando, que
naturalmente a sua voz já tinha. - Nós somos colaboradores muito
próximos do doutor Holmes. Ele próprio lhe diria para nos levar.
- Os senhores são amigos do senhor doutor? - perguntou Pike.
- Somos! - exclamou Fields, aliviado.
- Então, como amigos dele não é provável que queiram deixar a charrete
para ele? Eu estou comprometido com o doutor Holmes - repetiu Pike
amavelmente, e recostou-se para tirar com os dentes a ponta de um palito
de marfim.
- Bem! - exclamou Oliver Wendell Holmes, meneando-se no degrau da
entrada de sua casa, segurando uma mala de mão. Vestia um fato escuro de
fibra e um cachecol de seda branco perfeitamente atado como uma gravata,
e com uma rosa branca na sua lapela. - Fields. Longfellow. Então, sempre
vieram ouvir falar sobre alopatia!
Os cavalos de Pike avançaram a toda a pressa pela Charles Street, em
direcção às intrincadas ruas do centro, passando tangentes aos candeeiros
de rua e assustando os irados condutores de tipóias. A charrete de Pike, já
em mau estado, tinha o teto baixo, mas era aberta atrás, com um assento
suficientemente amplo para acolher quatro passageiros,
sem que tivessem de viajar a bater com os joelhos uns nos outros. O doutor
Holmes dera instruções ao cocheiro para chegar rapidamente, à uma
menos um quarto, ao Odeon, mas agora o destino fora alterado,
aparentemente contra a vontade do médico, segundo a perspectiva do
cocheiro, e o número de passageiros triplicara. Em todo o caso, Pike tinha o
propósito de os conduzir ao Odeon.
- E a minha conferência? - perguntou Holmes a Fields, uma vez na traseira
da charrete. - Está esgotada, sabe!
- Pike pode deixá-lo lá num instante, enquanto nós vamos ao encontro de
Bachi e lhe fazemos uma ou duas perguntas - respondeu Fields. -E
asseguro-lhe que os jornais não darão a informação de que você chegou
atrasado. Se eu não tivesse dispensado o meu fiacre para o deixar a Annie,
não teríamos ficado para trás!
- Mas o que imagina você conseguir se o encontrarmos, de fato? -perguntou
Holmes.
Foi Longfellow que lhe respondeu.
- É certo que hoje Bachi está nervoso. Se conversarmos com ele longe de
casa, e da sua bebida, ele pode mostrar-se menos renitente a falar. Se não
tivéssemos tropeçado em Greene, é provável que tivéssemos alcançado o
senhor Bachi sem esta correria. Eu quase estive para explicar de forma
simples ao pobre Greene tudo o que aconteceu, mas a verdade seria um
rude golpe para uma constituição tão frágil. Ele padece de todos os males, e
acredita que o mundo inteiro está contra si. Só lhe falta cair um raio em
cima.
- Ali vai! - exclamou Fields, apontando para um veículo a uns cinco
quarteirões à frente deles. - Longfellow, não é a charrete?
Longfellow esticou o pescoço para a parte lateral da charrete, sentindo o
vento golpear-lhe a barba, e fez sinais de assentimento.
- Cocheiro, siga em frente! - gritou Fields.
Pike afrouxou as rédeas, e a charrete percorreu a rua, bamboleando-se, a
uma velocidade muito superior ao limite permitido, que a Repartição de
Segurança de Boston estabelecera recentemente num «trote moderado».
- Estamos a afastar-nos muito para leste! - advertiu Pike aos gritos,
sobrepondo a sua voz ao estrépito dos cascos sobre os paralelepípedos de
pedra. - Muito longe do Odeon, sabe, doutor Holmes?
- Por que razão tivemos de ocultar Bachi de Greene? - perguntou Fields a
Longfellow. - Não creio que se conheçam.
- Há muito tempo - disse Longfellow, anuindo -, o senhor Greene conheceu
Bachi em Roma, antes de se manifestar o pior dos seus padecimentos. Tive
medo que se tivéssemos abordado Bachi, estando Greene presente,
este lhe falasse demasiado do nosso projeto de Dante..., como costuma fazer
com quem quer que esteja disposto a ouvi-lo... e isso iria interferir com a
vontade que Bachi pode ter de falar, fazendo-o sentir-se ainda mais infeliz.
Por várias vezes, Pike perdeu de vista o objectivo deles, mas, depois de
umas voltas rápidas, galopes notavelmente medidos e pacientes atrasos,
recuperou a vantagem. O outro cocheiro também parecia estar com pressa,
no entanto, permanecia completamente alheio à perseguição. Próximo das
ruas estreitas da zona portuária, a sua presa voltou a escapar-lhes.
Depressa reapareceu, arrancando a Pike uma blasfémia, pela qual pediu
desculpa, e acabou por parar bruscamente, fazendo Holmes voar pela
charrete até ao colo de Longfellow.
- Aqui vem ela! - avisou Pike, quando o seu colega conduziu a charrete em
direcção a eles, afastando-se do porto. No entanto, o assento do passageiro
estava vazio.
- Ele deve ter saído no molhe! - disse Fields.
Mais uma vez, Pike conteve o passo dos cavalos, e os seus passageiros
saíram. O trio abriu caminho por entre o aglomerado de gente, que
saudava, ia de um lado para o outro e contemplava vários navios a
desaparecer na neblina, enquanto se despediam, agitando lenços.
- A esta hora, a maioria dos barcos zarpam para Long Wharf - disse
Longfellow. Há uns anos, ele passeava com frequência pelo porto para ver
os grandes veleiros, que chegavam da Alemanha ou de Espanha, e ouvir os
homens e mulheres falarem as suas línguas nativas. Em Boston não havia
uma grande Babilónia de idiomas nem tons de pele comparável ao seu
porto.
Fields tinha dificuldade em prosseguir.
- Wendell?
- Aqui, Fields! - exclamou Holmes, rodeado pela multidão. Holmes
encontrou Longfellow a descrever Bachi a um estivador
negro, que carregava barris.
Fields decidiu perguntar aos passageiros que vinham da direcção oposta,
mas depressa se deteve para descansar no rebordo de uma embarcação.
- Você aí de fato bonito. - O corpulento dono da embarcação de barba
gordurenta, agarrou rudemente no braço de Fields, e empurrou-o Para o
lado. - Saia da frente dos que estão a embarcar, se não comprou bilhete.
- Bom, senhor - disse Fields -, necessito da sua ajuda imediata. Viu um
homem de estatura baixa, com uma sobrecasaca azul amarrotada e os olhos
injetados de sangue?
O dono da embarcação ignorou-o, ocupado que estava em organizar a fila
de passageiros por classes e por camarotes. Fields observou o homem,
enquanto retirava o gorro (demasiado pequeno para a sua cabeça de
mamute) e passava uma mão áspera pelo cabelo emaranhado.
Fields fechou os olhos como se estivesse em transe, escutando as estranhas
e nervosas ordens daquele homem. À sua mente acorreu uma habitação
escura com uma pequena vela incansável a arder numa mísula da chaminé.
- Hawthorne - disse Fields, sussurrando quase involuntariamente. O dono
da embarcação deteve-se e virou-se para Fields.
- O quê?
- Hawthorne - repetiu Fields a sorrir, sabendo que estava certo. -O senhor é
um admirador incondicional dos romances de Hawthorne.
- Bem, eu... - O dono da embarcação rezou ou jurou para o colarinho da sua
camisa. - Como é que sabe? Diga-me imediatamente!
Os passageiros que estava a organizar por categorias também ficaram
parados para ouvir.
- Não importa. - Fields sentiu um impulso satisfeito por conservar aquela
habilidade para descobrir os gostos do público leitor, e que muitos anos
antes lhe fora de tanto proveito, quando era apenas um jovem
administrativo numa livraria. - Escreva a sua morada nesta folha de papel, e
eu envio-lhe a nova colecção «Azul e Ouro», com todas as grandes obras de
Hawthorne, autorizada pela viúva. - Fields estendeu-lhe o papel, e
rapidamente o retirou do seu alcance, fechando a mão. - Se hoje me ajudar,
senhor.
O homem, subitamente supersticioso diante dos poderes de Fields, anuiu.
Fields pôs-se em bicos dos pés, e fez um aceno a Longfellow e Holmes, que
vinham na sua direcção. Ele gritou-lhes.
- Perguntem a esse proprietário!
Holmes e Longfellow abordaram um capitão do porto, e descreveram-lhe
Bachi.
- E quem são os senhores?
- Somos grandes amigos dele - gritou Holmes. - Por favor, diga-nos se ele
embarcou. - Agora, Fields juntava-se a eles.
- Bem, eu vi-o chegar ao porto - respondeu o homem com uma lentidão
sinuosa e desesperante. - Creio que ele embarcou ali, e estava muito
nervoso - acrescentou, apontando para um barco pequeno no meio do mar,
que não podia transportar mais de cinco passageiros.
- Muito bem, esse barquito não pode ir muito longe. Para onde se dirige? -
perguntou Fields.
Aquele? É só um transporte entre o molhe e o barco. O Anónimo é
demasiado grande para atracar neste cais. Por isso, fica fora do porto. Está
a vê-lo?
A sua silhueta mal se via no meio da neblina, aparecendo e desaparecendo,
mas era o maior vapor que eles alguma vez tinham visto.
- Ah, parece-me que o amigo dos senhores estava com muita pressa para
embarcar. Aquele barquito em que ele vai está a fazer a última viagem, com
o grupo de passageiros que chegaram atrasados. Em seguida, zarpa.
- Para onde? - perguntou Fields, sobressaltado.
- Ora, para o outro lado do Atlântico, senhor. - O capitão do porto olhou de
relance para o seu quadro. - Faz uma escala em Marselha, e, ah, sim, segue
diretamente para Itália!
O doutor Holmes chegou ao Odeon a tempo de fazer uma comunicação
decididamente bem acolhida, e o seu auditório considerou-o um
conferencista muito importante por ter chegado atrasado. Longfellow e
Fields sentaram-se, muito atentos, na segunda fila, ao lado de Neddie, o
filho mais novo do doutor Holmes, das duas Amelias e de John, o irmão de
Holmes. Na segunda de uma série de três conferências esgotadas,
organizadas por Fields, Holmes analisou os procedimentos médicos
relacionados com a guerra.
- Curar é um processo vivo - disse Holmes ao seu auditório -, em grande
medida por influência das condições mentais. - E explicou como era
frequente um mesmo ferimento, recebido em combate, sarar depressa nos
soldados vencedores, e revelar-se fatal nos vencidos. - É daqui que emerge
essa região média entre ciência e poesia, de cujo acesso os homens
considerados sensatos se resguardam muito bem.
Holmes olhou para a fila ocupada pela sua família e amigos e para o lugar
vago, reservado para Wendell Júnior, caso ele aparecesse.
- O meu filho mais velho sofreu mais do que um desses ferimentos durante
a guerra, e foi enviado para casa pelo Tio Sam com algumas botoeiras no
seu colete conveniente. - Risos. - Nessa guerra também '
houve muitos corações perfurados, que não apresentam quaisquer sinais
de bala.
Depois da conferência, e com a necessária quantidade de elogios dirigidos
ao doutor Holmes, ele e Longfellow acompanharam o seu editor de novo à
Sala dos Autores, na Corner, e esperaram por Lowell. Ali, decidiram que
devia ser marcada uma reunião do clube de tradução em casa de
Longfellow para a quarta-feira seguinte.
A sessão planeada serviria um duplo propósito. Primeiro, apaziguaria todas
as inquietações de Greene sobre o estado da tradução e sobre a estranha
conduta que ele e Houghton tinham testemunhado, e assim minimizaria o
risco de novas interferências como a que lhes havia custado perder a
informação que Bachi pudesse possuir. Segundo, e talvez o mais
importante, permitia-lhes avançar na tradução de Longfellow. Ele estava a
tentar cumprir a sua promessa de ter o Inferno pronto para o enviar para o
Festival de Dante, em Florença, o último do ano, por ocasião do sexto
centenário do nascimento do poeta, em 1265.
Longfellow não quisera admitir que era improvável que ele terminasse
antes do final de 1865, a menos que as investigações deles tivessem alguma
evolução milagrosa. Contudo, ele começara a trabalhar nas suas traduções
à noite, sozinho, implorando interiormente a Dante para que lhe desse
sabedoria para desvendar os confusos finais de Healey e de Talbot.
- O senhor Lowell está? - perguntou uma voz baixa, acompanhada de um
batimento com os nós dos dedos na porta da Sala dos Autores.
Os poetas estavam exaustos.
- Receio que não - respondeu Fields ao invisível inquisidor com um enfado
indissimulado.
- Excelente! O príncipe dos comerciantes de Boston, Phineas Jennison,
ataviado, como sempre, com um fato e chapéu brancos, entrou depressa e,
com estrondo, fechou a porta atrás de si, permanecendo imperturbável. -
Um dos seus empregados disse-me que o encontrava aqui, senhor Fields.
Desejo falar livremente sobre Lowell, e prefiro que o rapaz não esteja
presente. - Colocou a sua cartola de seda no cabide de ferro de Fields, com o
que o seu cabelo luzidio descaiu para o lado esquerdo num soberbo
movimento majestoso. - O senhor Lowell está a passar por dificuldades.
O visitante suspirou ao aperceber-se da presença dos dois poetas. Esteve
quase a cair sobre um joelho, enquanto apertava as mãos de Holmes e de
Longfellow, manejando-as como se fossem garrafas de vinho das mais raras
e delicadas colheitas.
Jennison gostava de disseminar a sua vasta riqueza com o patrocínio de
artistas e no seu próprio aperfeiçoamento das belles lettres. Nunca deixava
de se sentir esmagado diante dos génios, que só conhecia graças ao seu
dinheiro. Jennison acomodou-se numa cadeira de braços.
- Senhor Fields, senhor Longfellow, doutor Holmes - disse ele, nomeando-
os com uma cerimónia exagerada. - Todos vós sois bons amigos de Lowell,
melhores do que me é dado ser, embora eu tenha o privilégio de o
conhecer, porque o verdadeiro conhecimento só se dá entre génios. Holmes
interrompeu-o nervosamente. - Senhor Jennison, aconteceu alguma coisa a
Jamey? - - Eu sei, Doutor - disse Jennison, suspirando profundamente e
procurando as palavras. - Estou a par dos desditosos atos relacionados com
Dante, e estou aqui porque desejo ajudá-los no que for preciso para os
contrariar.
- Atos relacionados com Dante? - repetiu Fields numa voz esmorecida.
Jennison anuiu solenemente.
- A maldita Corporação e a sua esperança de se livrar desse curso de Lowell
sobre Dante. E a sua tentativa de impedir a realização da vossa tradução,
meus caros senhores! Lowell falou-me sobre isso, apesar de ser demasiado
orgulhoso para pedir ajuda.
Três suspiros contidos escaparam por baixo dos respectivos coletes diante
das palavras de Jennison.
- Agora, como certamente os senhores sabem, Lowell cancelou
temporariamente as suas aulas - disse Jennison, mostrando-se contrariado
por ter de advertir para a aparente indiferença dos seus interlocutores,
diante de algo que lhes dizia respeito. - Bem, digo-lhes que isso não pode
acontecer. Não beneficia um génio da categoria de James Russell Lowell, e
não pode ser consentido sem que se lute. Temo que esteja eminente a
possibilidade de fazerem Lowell em pedaços, se empreenderem uma via de
conciliação! E, na faculdade, constou-me que Manning está exultante. -
Acabou a dizer isto com a preocupação reflectida na sua testa franzida.
- O que pretende você que façamos, meu caro senhor Jennison? -perguntou-
lhe Fields com um movimento de deferência.
- Animem-no para que se mostre mais audaz. - Jennison realçou o seu
ponto de vista com um soco na palma da mão. - Salvem-no da sua própria
cobardia, ou a nossa cidade perderá um dos seus corações mais vigorosos.
Mas também me ocorreu outra ideia. Criar uma organização Permanente,
dedicada ao estudo de Dante... eu próprio aprenderia italiano para vos
ajudar! - Jennison fez um sorriso luminoso, como reluzente era o seu cinto
de pele com porta-moedas, do qual retirou e contou notas grandes. - Uma
associação dantina de qualquer tipo, dedicada à protecção dessa literatura
que vos é tão cara, meus senhores. O que me dizem? Ninguém precisará de
saber que estou envolvido nisto, e os senhores conseguirão vencer os
membros da Corporação.
Antes de alguém conseguir responder, a porta da Sala dos Autores abriu-se
de repente, e Lowell ficou parado à frente deles com o rosto pálido.
- Então, Lowell, o que se passa? - perguntou Fields.
Lowell ia começar a falar, mas reparou imediatamente em Jennison.
- Phinny? O que faz você aqui?
Jennison olhou para Fields em busca de auxílio.
- Eu e o senhor Jennison tínhamos alguns assuntos pendentes -disse Fields,
enfiando o cinto com porta-moedas nas mãos do homem de negócios e
empurrando-o para a porta. - Mas ele já se ia embora.
- Espero que esteja tudo bem, Lowell. Em breve contatarei consigo, meu
amigo!
Fields encontrou Teal, o marçano do turno da tarde, no vestíbulo, e pediu-
lhe que acompanhasse Jennison até à rua. Depois, fechou a porta da Sala
dos Autores à chave.
Lowell serviu-se de uma bebida do contador.
- Oh, não vão acreditar no azar que eu tive, meus amigos. Quase desloquei o
pescoço de tanto procurar Bachi em Half Moon Place, e acabei como
comecei! Não estava em lado nenhum, e ninguém por ali sabia onde o podia
encontrar... não creio que os dublinenses daquela zona dirigissem a palavra
a um italiano, mesmo que estivessem a afogar-se ao lado dele numa balsa, e
o italiano tivesse um corcho. Quem sabe se não anda a divertir-se por aí,
como fizestes vós esta tarde.
Fields, Holmes e Longfellow permaneceram em silêncio.
- O que é? O que se passa? - perguntou Lowell.
Longfellow sugeriu que eles ceassem em Craigie House, e, no caminho,
explicassem a Lowell o que sucedera com Bachi. Depois da ceia, Fields
contou-lhe que voltara a falar com o capitão do porto e, com a ajuda de uma
moeda de ouro da águia norte-americana, o convencera a verificar o registo
e a informá-lo sobre a viagem de Bachi. A entrada correspondente indicava
que ele adquirira um bilhete de ida e volta com desconto, e que não lhe
permitia regressar antes de Janeiro de 1867.
De novo no salão de Longfellow, abatido, Lowell deixou-se cair numa
cadeira de braços.
- Ele sabia que o tínhamos encontrado. Bem, claro... mostrámos-lhe que
estávamos a par do que acontecera com Lonza! O nosso Lúcifer escapou-
nos por entre os dedos como finos grãos de areia!
- Então, devíamos celebrá-lo - disse Holmes com uma gargalhada. -Não
compreende o que isso significa, se tiver razão? Vá lá, isto é um pobre final
para os seus pares do teatro, concentrados em tudo o que parece
estimulante.
Fields inclinou-se para Lowell.
- Jamey, se Bachi foi o assassino...
Holmes completou o seu raciocínio com um sorriso rasgado.
- Então, estaríamos a salvo. E a cidade estaria a salvo. E Dante! Se, graças ao
nosso conhecimento, o afugentámos, então, derrotámo-lo, de fato, Lowell.
Fields levantou-se, radiante.
- Oh, meus senhores, vou organizar uma ceia Dante que fará empalidecer de
vergonha o clube de Sábado. Que a carne de cordeiro seja tão tenra como o
verso de Longfellow! E pode o Moet espumar como o engenho de Holmes, e
os trinchantes rivalizarem com a argúcia da sátira de Lowell!
Foram feitos três brindes a Fields.
Tudo aquilo aliviou um pouco Lowell, bem como a notícia sobre a sessão de
tradução de Dante, o que equivalia a repor a normalidade, a regressar ao
puro desfrute da sua erudição. Ele esperou que eles não tivessem perdido
esse prazer ao aplicar o seu conhecimento sobre Dante a tão repugnantes
assuntos.
Longfellow parecia saber o que inquietava Lowell. - No tempo de
Washington - disse ele -, fundiram os tubos dos órgãos das igrejas para
fabricar balas, meu caro Lowell. Não tiveram outra alternativa. Agora,
Lowell, Holmes, querem acompanhar-me lá abaixo à adega, enquanto
Fields vai ver como está o trabalho na cozinha? - perguntou ele, enquanto
retirava uma vela de cima da mesa.
- Ah, as verdadeiras fundações de qualquer casa! - comentou Lowell,
levantando-se da cadeira de braços com um salto. - Você tem uma boa
colheita, Longfellow?
Já conhece o meu método prático, senhor Lowell:
«Quando convidares um amigo para cear, oferece-lhe o teu melhor vinho.
Quando convidares dois, bastará o segundo melhor.»
Os presentes deram sonoras gargalhadas colectivas, incentivadas por uma
sensação de alívio.
- Mas temos quatro sequiosos para satisfazer! - objetou Holmes.
- Então, não esperemos muito, meu caro doutor - aconselhou Longfellow.
Holmes e Lowell seguiram-no até à adega à luz do fulgor prateado da vela.
Lowell recorreu ao riso e à conversa para se distrair da dor pungente que
lhe irradiava pela perna, golpeando-o e passando mais para cima, desde o
círculo vermelho que lhe cobria o tornozelo.
Jr Phineas Jennison, com um casaco branco, um colete amarelo e um
obstinado chapéu branco de abas largas, desceu as escadas da sua mansão
de Back Bay. Ele caminhava e assobiava. Volteava a sua bengala com
adornos dourados, e ria-se com vontade, como se dentro de si tivesse
acabado de ouvir uma boa piada. Era frequente Phineas Jennison rir-se
sozinho deste modo, enquanto passeava todas as noites por Boston, a
cidade que conquistara. Ainda faltava um mundo para ele conquistar, um
mundo onde o dinheiro tinha graves limitações, onde o sangue
determinava grande parte da posição de cada um, e esta conquista tinha ele
de realizar, apesar dos recentes obstáculos.
Do outro lado da rua, ele era observado, observado passo a passo desde o
momento em que deixara para trás a sua mansão. A sombra seguinte que
precisava do castigo. Vejam como ele caminha, assobia e ri, como se não
soubesse o que é o erro nem nunca tivesse conhecido nenhum. Passo a
passo. A vergonha de uma cidade, que já não conseguia dirigir o rumo do
seu futuro. Uma cidade que perdera a sua alma. Ele que sacrificara o único
que os podia reunificar a todos. O observador chamou-o.
Jennison parou, esfregando o seu famoso queixo com covinha. Olhou de
soslaio para a noite.
- Alguém me chamou? Não obteve resposta.
Jennison atravessou a rua e olhou de relance em frente, reconhecendo
vagamente a pessoa que permanecia de pé e imóvel, junto à igreja. Sentiu-
se mais tranquilo.
- Ah, é você. Lembro-me de si. O que pretende?
Jennison reparou que o homem fazia uma inflexão do corpo e se colocava
atrás de si, e, de imediato, algo perfurou as costas do príncipe dos
comerciantes.
- Leve o meu dinheiro, senhor, leve-o todo! Por favor! Pode ficar com ele e
seguir o seu caminho! Quanto quer? Diga-me! O que é que disse?
- Através de mim o caminho corre entre as gentes perdidas. Através de
mim.
A última coisa que J. T. Fields esperava encontrar quando, na manhã
seguinte, se apeou da sua charrete, era um cadáver.
- Aqui mesmo - disse Fields ao seu cocheiro. Fields e Lowell desceram e
caminharam pelo passeio em direcção à Wade and Son. - Foi aqui que Bachi
entrou antes de se dirigir a toda a pressa para o porto - disse Fields,
indicando o lugar a Lowell.
Eles não tinham encontrado nenhuma referência à loja nos guias da cidade.
- Diabos me levem se Bachi não veio aqui por um motivo obscuro -disse
Lowell.
Bateram devagar, sem obterem resposta. Depois, passados uns instantes, a
porta oscilou, abriu-se e saiu um homem com um casaco comprido azul
com botões brilhantes, que passou por eles sem lhes prestar a menor
atenção. Levava uma caixa cheia de artigos diversos.
- Com licença - disse Fields. Dois outros policiais aproximavam-se agora, e
abriram de par em par as portas da Wade and Son, empurrando Lowell e
Fields lá para dentro. No interior estava um homem muito velho de queixo
afilado, caído sobre o balcão, com uma caneta ainda na mão, como se
tivesse ficado a meio de uma frase. As paredes e as prateleiras estavam
vazias. Lowell aproximou-se mais. Um fio telegráfico ainda estava enrolado
em volta do pescoço do homem. O poeta fitou-o fascinado, porque o homem
parecia estar vivo.
Fields correu para o seu lado e puxou-lhe pelo braço para o conduzir até à
porta.
- Está morto, Lowell!
- Tão morto como um dos cadáveres que Holmes manipula na Faculdade de
Medicina - especificou Lowell, mostrando o seu acordo. - Receio que ao
nosso dantista não corresponda a prática de um homicídio tão prosaico.
- Lowell, venha! - Fields foi tomado pelo pânico, diante do crescente
número de policiais que se afanavam a estudar o local, sem ainda se terem
apercebido da presença dos dois intrusos.
- Fields, está uma mala ao lado dele. Preparava-se para fugir, tal como
Bachi. - Voltou a olhar para a caneta que estava na mão do morto. - Atrever-
me-ia a dizer que ele estava a tentar terminar os assuntos pendentes.
- Por favor, Lowell! - exclamou Fields.
- Muito bem, Fields. - Mas Lowell contornou o cadáver, deteve-se em frente
à bandeja do correio, que estava em cima da secretária, e deslizou o
primeiro envelope para dentro do bolso do seu casaco. - Então, vamos. -
Lowell lançou um olhar rápido para a porta. Fields apressou-se a avançar,
mas deteve-se para olhar para trás quando não sentiu a presença de Lowell
atrás de si. Lowell parara no meio da sala com uma expressão assustada e
pesarosa.
- O que foi, Lowell?
- A ferida no meu tornozelo.
Quando Fields se virou novamente para a porta, aguardava-os ali um
polícia com uma expressão de curiosidade.
- Acabávamos de vir à procura de um amigo nosso, senhor agente, que
ontem vimos entrar nesta loja.
Depois de ouvir a história deles, o polícia decidiu tomar notas no seu bloco.
- Pode repetir o nome desse seu amigo, Sir? O italiano?
- Bachi. B-a-c-h-i.
Quando foi permitido a Lowell e Fields retirarem-se, chegaram o detective
Henshaw e outros dois homens do gabinete de detectives, acompanhados
do senhor Barnicoat, o magistrado encarregue da investigação, e
dispensaram a maior parte dos policiais.
- Enterrem-no no cemitério dos pobres com o resto da imundície -disse
Henshaw ao ver o corpo. - Ichabod Ross. Não quero perder mais tempo;
ainda não tomei o pequeno-almoço. - Fields deixou-se ficar até Henshaw
encarar o seu olhar fulminante.
O vespertino tinha uma breve resenha sobre o homicídio de Ichabod Ross,
um pequeno comerciante, durante um assalto.
No envelope que Lowell surripiara estava escrito RELÓGIOS VANE. Era
uma casa de penhores, situada numa das ruas mais indesejáveis do Leste
de Boston.
Quando, na manhã seguinte, Lowell e Fields entraram na loja, desprovida
de escaparates, encontraram-se diante de um homem corpulento, que
pesaria uns cento e quarenta quilos, com a cara tão vermelha como o
tomate mais maduro, e uma barba esverdeada, que lhe brotava do queixo.
Uma enorme variedade de chaves pendia de uma corda passada em volta
do seu pescoço e tilintava sempre que se mexia.
- Senhor Vane?
- O próprio - respondeu ele, mas o seu sorriso gelou quando olhou para os
seus interlocutores de cima a baixo e viu como estavam vestidos. - Já disse
àqueles detectives de Nova Iorque que não fui eu que passei aquelas notas
falsas!
- Nós não somos detectives - disse Lowell. - Julgamos que isto lhe pertence.
- Ele colocou o envelope em cima do balcão - É de Ichabod Ross.
Um sorriso enorme iluminou-lhe o rosto.
- Ora, o pobre! Matarem o velhote antes de fechar as contas comigo!
- Senhor Vane, lamentamos a morte do seu amigo. Porque acha o senhor
que alguém queria acabar assim com o senhor Ross? - perguntou Fields.
- Oh, que investigadores curiosos que os senhores são, hem? Bom, não se
enganaram ao vir bater à minha porta. Quanto é que me pagam?
- Só lhe trouxemos o que lhe devia o senhor Ross - contestou Fields.
- Isso é o que me cabe legitimamente! - disse Vane. - Não mo vão negar!
- Tudo tem de ser feito em troca de dinheiro, não é? - objetou Lowell.
- Lowell, por favor - sussurrou-lhe Fields.
O sorriso de Vane voltou a gelar, enquanto olhava fixamente em frente. Os
seus olhos abriram-se até ficar com o dobro do tamanho.
- Lowell? Lowell, o poeta!
- Bem, sim... - admitiu Lowell, um pouco desconcertado.
- «E o que é tão raro como um dia de Junho?» - disse o homem, depois de
fazer uma pausa para se rir, e continuou.
«E o que é tão raro como um dia de Junho?
Então, como sempre, chegam dias perfeitos;
então o Céu tenta a terra se estiver na altura certa,
e sobre ela reclina suavemente o seu cálido ouvido;
Quer olhemos quer escutemos,
percebemos o murmúrio da vida ou vemo-lo resplandecer.»
- A palavra correta no quarto verso é brandamente - corrigiu-o Lowell com
uma certa indignação. - Reclina brandamente o seu cálido ouvido, sabe?
- Não me digam que não existe um grande poeta norte-americano! Oh, meu
Deus, eu até tenho a sua casa! - anunciou Vane, retirando debaixo do balcão
um exemplar encadernado a cabedal de Homes and Haunts of Our Poets,
que folheou até chegar ao capítulo sobre Elmwood. - Ah, ainda guardo o seu
autógrafo na minha colecção. Entre Longfellow, Emerson e Whittier, o
senhor é o meu autor favorito. Também aqui está aquele tratante do Oliver
Holmes, que seria melhor que não se dedicasse a tantas coisas.
w
*1 «Bardolfiano» provém de Bardolph, uma personagem secundária de
três obras de Shakespeare, famosa pelo seu proeminente nariz vermelho.
[N. da T.]
w
- Como é que esta noite eu posso dormir descansado sabendo que tão
distinto cidadão tem ilustrações suficientes nesse livro para localizar a
minha casa! - exclamou Lowell.
- Precisamos da ajuda deste homem!
- Sim - admitiu Lowell, endireitando a sua jaqueta. - Na igreja, com os
santos, e na taberna, com os pecadores.
- Por favor, senhor Vane - disse Fields, voltando-se para o proprietário e
abrindo a sua carteira. - Queremos saber umas coisas sobre o senhor Ross,
e depois deixamo-lo em paz. Quanto é que aceita para nos dizer aquilo que
sabe?
- Não o faria nem por um centavo! - respondeu Vane, rindo com vontade, e
com os olhos a parecerem afastar-se, recuando no seu cérebro. - Será que
tudo tem que ser feito em troca de dinheiro?
Vane propôs quarenta autógrafos de Lowell como um pagamento
suficiente. Fields levantou uma sobrancelha em sinal de advertência,
dirigida a Lowell, que acedeu contrariado. Enquanto Lowell fazia a sua
assinatura em duas colunas num caderno de apontamentos, «Um artigo de
primeira categoria», declarou Vane com um gesto de aprovação, vendo a
escrita de Lowell, Vane disse a Fields que Ross, um antigo tipógrafo de um
jornal, trocara essa actividade pela impressão de notas falsas. Ross
cometera o erro de passar esse dinheiro para um círculo de jogadores, que
o utilizava para enganar os antros de jogo locais, tendo até recorrido a
algumas casas de penhores como receptadores involuntários de artigos
adquiridos com o dinheiro ganho nessa operação (a palavra involuntário
foi pronunciada com um movimento acentuado da boca do cavalheiro, com
a língua a tocar-lhe nos lábios e quase a alcançar-lhe o nariz). Era apenas
uma questão de tempo até este esquema o envolver.
De novo na Corner, Fields e Lowell repetiram tudo isto a Longfellow e a
Holmes.
- Suponho que podemos adivinhar o que o Bachi levava na bolsa quando
saiu da loja de Ross - disse Fields. - Uma bolsa com notas falsas, como uma
espécie de combinação desesperada. Mas como se teria ele imiscuído na
questão da falsificação?
- Se não consegues ganhar dinheiro, suponho que podes fazê-lo -disse
Holmes.
- O que quer que o tenha levado a isso - concluiu Longfellow - parece que o
signor Bachi se foi embora a tempo.
Na quarta-feira à noite, Longfellow deu as boas-vindas aos seus convidados
à porta de Craigie House, conforme o velho hábito. À medida que entravam,
recebiam de Trap um segundo cumprimento em forma de latido. George
Washington Greene confessou o muito que melhorara a sua saúde depois
de receber o aviso sobre a reunião, e como esperava que agora a
regularidade prevista fosse restabelecida. Estava tão diligentemente
preparado como sempre para os cantos que tinham sido escolhidos.
Longfellow deu início à reunião, e os eruditos instalaram-se nos seus
lugares. O anfitrião fez circular o canto de Dante em italiano e as
correspondentes provas da sua tradução em inglês. Trap observou o
desenrolar da sessão com um grande interesse. Satisfeito com a ordem na
habitual distribuição dos lugares e com a comodidade do seu dono, o
sentinela canino instalou-se no vão por baixo da faustosa cadeira de braços
de Greene. Trap sabia que o ancião nutria um especial afeto por ele, que se
manifestava sob a forma de comida da ceia, e, além disso, a cadeira de
braços de veludo de Greene estava posicionada mais próximo do intenso
calor que emanava da lareira do escritório. - Aí atrás está um diabo, que nos
engalana.
Depois de sair do Comissariado Central da Polícia, Nicholas Rey fez um
esforço para não adormecer na tipóia. Só agora sentia como tinha
descansado pouco ao longo de todas aquelas noites, apesar de
praticamente ter estado sempre acorrentado à sua secretária por ordem do
presidente da Câmara Lincoln com pouco que lhe preenchesse os dias.
Kurtz encontrara um novo motorista, um agente novato de Watertown.
Durante o breve sonho que Rey teve no meio dos bruscos movimentos do
carro, aproximou-se dele um homem de aspeto bestial, que lhe sussurrou,
«Não posso morrer enquanto aqui estiver», mas, mesmo a sonhar, Rey
sabia que aquilo não era uma peça do quebra-cabeças que lhe ficara por
resolver sobre a questão da morte de Elisha Talbot. Não posso morrer
enquanto estou. Ele foi acordado por dois homens, que se seguravam às
pegas presas ao teto, e discutiam as vantagens do sufrágio feminino, e, de
imediato, apesar da sonolência, chegou a uma conclusão - conseguiu
perceber que a figura bestial do seu sonho tinha o rosto do saltador,
embora ampliado três ou quatro vezes. Pouco depois, a campainha soou e o
cobrador gritou, «Mount Auburn! Mount Auburn!»
Mabel Lowell, que recentemente fizera dezoito anos, esperou que o Pai
saísse para a sua reunião do Clube de Dante, para revistar a escrivaninha
de mogno, em estilo francês, cuja função fora desvalorizada pelo pai como
depósito de papéis,
já que preferia escrever numa antiga almofada de cartão, sentado na sua
cadeira de braços colocada no canto.
Ela sentia falta da boa disposição do pai em Elmwood. Mabel Lowell não
estava interessada em correr atrás dos rapazes de Harvard ou de se juntar
à pequena Amélia Holmes no círculo de costureiras a conversar sobre
quem elas aceitavam ou rejeitavam (excepto no caso de jovens
estrangeiras, cuja rejeição não merecia qualquer discussão), como se todo o
mundo civilizado esperasse ser admitido no clube de costura. Mabel queria
ler e viajar pelo mundo para ver pessoalmente o que lera nos livros, nos do
seu pai e de outros autores visionários.
Os papéis do seu pai estavam em desordem, como de costume, o que
reduzia o risco de futuras inspecções, mas exigia uma delicadeza especial,
porque as pilhas impossíveis de manejar podiam cair todas ao mesmo
tempo. Ela encontrou plumas de aves completamente gastas e muitos
poemas abandonados a meio, com frustrantes borrões de tinta a apagar
aquilo que ela mais queria ler. Com frequência, o pai advertia-a para nunca
escrever versos, porque a maioria saíam mal e os bons eram tão inacabados
como uma pessoa bonita.
Havia um estranho desenho, traçado a lápis sobre uma folha pautada. Fora
feito com o cuidado rebuscado, que alguém podia votar, imaginou ela, ao
desenhar um mapa quando se perdia no bosque ou, como também
imaginou, quando se desenhava hieróglifos; fora executado com
solenidade, numa tentativa de descodificar algum significado ou pista.
Quando ela era criança, e o pai viajava, ele ilustrava sempre as margens das
cartas que enviava para casa com figuras toscamente desenhadas dos
organizadores de sociedades literárias ou de dignitários estrangeiros com
quem ele ceara. Agora, pensando como aquelas ilustrações humorísticas a
faziam rir, inicialmente concluiu que o desenho representava as pernas de
um homem, com uns patins de gelo de tamanho desmesurado nos pés, e
uma espécie de superfície plana até onde devia começar o tórax.
Insatisfeita com a sua interpretação, Mabel virou o papel de vários ângulos
e depois de pernas para o ar. Então reparou que as linhas desiguais dos pés
podiam representar espirais de chamas em vez de patins.
Longfellow leu a sua tradução do Canto Vinte e Oito, onde eles tinham
ficado na última sessão. Ele ficaria satisfeito por entregar as últimas provas
deste canto a Houghton, e eliminá-lo da lista que deixara em poder da
Riverside Press. Era a parte fisicamente mais desagradável de todo o
Inferno. Aqui, Virgílio guiara Dante até ao novo fosso infernal, conhecido
como Malebolge, a Bolsa do Mal. Ali estavam os Cismáticos,
aqueles que tinham dividido nações, religiões e famílias em vida, e agora se
encontravam divididos no Inferno - corporeamente - mutilados e
despedaçados.
- "Como um que vi" - Longfellow leu a sua versão das palavras de Dante -
"assim se desmedula, oco do mento até onde se ruja." Longfellow inspirou
fundo antes de prosseguir.
"Entre as pernas a tripa pende e pula;
a fressura se vê e o triste saco
que merda faz daquilo que se engula."
Perante isto, Dante mostrara-se comedido. Este canto demonstrava a sua
sincera crença em Deus. Só alguém que possuísse uma fortíssima fé na alma
imortal podia conceber tão brutal tormento, infligido ao corpo mortal.
- A sujidade de algumas destas passagens - disse Fields - degradaria o
chalante mais embriagado.
"Um outro, que furada tinha a gola,
nariz cortado até à sobrancelha,
e a quem só uma orelha se descola,
de pasmo a olhar cos outros se aparelha
e antes deles abriu assim a cana
que era por fora toda só vermelha."
E estes eram homens que Dante conhecera! Esta sombra com o nariz e as
orelhas cortadas, Pier da Medicina, de Bolonha, não prejudicara Dante
pessoalmente, apesar de ter alimentado a dissensão entre os cidadãos da
Florença de Dante. Este nunca foi capaz de afastar Florença dos seus
pensamentos, enquanto escrevia a sua viagem ao inframundo. Ele
precisava de ver os seus heróis redimidos no Purgatório e recompensados
no Paraíso; ele ansiava encontrar os perversos nos círculos infernais mais
inferiores. O poeta não se limitava a imaginar esse lugar como uma
possibilidade; ele sentia a sua realidade. Dante chegou a ver um Alighieri,
seu parente, entre os despedaçados, mostrando-o com um sinal e pedindo
vingança pela sua morte.
A pequena Annie Allegra entrou na cozinha da cave de Craigie House, vindo
do vestíbulo, a esfregar os olhos para tentar afastar o sono. Peter despejava
um balde de carvão no fogão da cozinha.
- Miss Annie, o senhor Longfellow já não a mandou dormir? Ela esforçava-
se por manter os olhos abertos.
- Quero beber um copo de leite, Peter.
- Trago-lho já, Miss Annie - disse um dos cozinheiros, numa voz monótona,
enquanto ela espreitava para o pão que estava a cozer. - Com todo o gosto,
querida, com todo o gosto.
Ouviu-se bater ao de leve na porta principal. Emocionada, Annie reclamou
o privilégio de a ir abrir, empenhada, como sempre, em realizar tarefas de
ajuda, em especial a de receber visitas. A menina subiu ao vestíbulo da
entrada e abriu a porta maciça.
- Chiu! - sussurrou Annie Allegra Longfellow antes sequer de conseguir ver
o bonito rosto da visita. Este inclinou-se. - Hoje é quarta-feira - explicou ela
num tom confidencial, juntando as mãos. - Se o senhor veio cá para falar
com o papá, tem de esperar até ele sair da reunião com o senhor Lowell e
os outros. São essas as ordens, sabe? O senhor pode aguardar aqui ou na
saleta, se quiser - acrescentou ela, indicando as suas opções.
- Peço desculpa pela intrusão, Miss Longfellow - disse Nicholas Rey. Annie
Allegra assentiu graciosamente e, lutando para resistir ao peso
que voltava a sentir nas suas pálpebras, subiu as angulosas escadas com um
passo indolente, esquecendo-se do que a levara a fazer a longa viagem até
lá abaixo.
Nicholas Rey permaneceu de pé no vestíbulo principal de Craigie House,
entre os retratos de Washington. Retirou os pedaços de papel do bolso.
Pedir-lhes-ia ajuda mais uma vez, mas agora mostrando-lhes os pedaços
que apanhara do chão junto ao sítio onde Talbot morrera, na esperança de
que houvesse alguma relação, que eles conseguissem descobrir e que a ele
não era possível. Encontrara vários estrangeiros nas imediações do cais,
que tinham reconhecido o retrato do saltador, o que reforçara a convicção
de Rey de que ele era estrangeiro, e que fora numa outra língua que lhe
sussurrara ao ouvido. E esta convicção não podia deixar de recordar a Rey
que o doutor Holmes e os outros sabiam algo mais do que aquilo que lhe
tinham dito.
Rey começou a dirigir-se à saleta, mas deteve-se antes de abandonar o
vestíbulo principal. Voltou-se, surpreendido. Algo o fez parar. O que
acabara ele de ouvir? Recuou e aproximou-se mais da porta do escritório.
- "Che le ferrite son richiuse prima ch'altri dinanzi li rivada..."
Rey estremeceu. Ele deu mais três passos silenciosos, aproximando-se da
porta do escritório.
- "Dinanzi li rivada." - Retirou um bloco de notas do bolso e encontrou a
palavra: Deenanzee. A palavra fora para ele como um repto
desde que o mendigo se precipitara da janela do Comissariado da Polícia.
Ouvia-a em sonhos e com o coração em sobressalto. Rey inclinou-se para a
porta do escritório e comprimiu o ouvido contra a fria madeira branca.
- Aqui Bertrand de Born, que cortou o vínculo de um filho com o seu pai,
instigando a guerra entre ambos, segura no ar a sua própria cabeça cortada
como se fosse uma lanterna, e, com a boca dessa cabeça separada do corpo,
conversa com o peregrino florentino. - Era Longfellow que falava em voz
alta.
- Como o Cavaleiro sem Cabeça de Irving. - Ouviu-se o inconfundível riso de
barítono de Lowell.
Rey sacudiu o papel e escreveu o que ouvira.
Porque separei pessoas tão unidas, dividido ficou o meu cérebro - ai de
mim! - desde o início que está neste tronco. Assim se observa em mim o
contrapasso.
Contrapasso? Uma pronúncia monótona e nasal. Como um ronco. Rey
sentiu-se coibido e susteve a sua própria respiração. Então, ouviu uma
chilreante sinfonia de plumas a garatujar.
- O castigo mais perfeito de Dante - disse Lowell.
- O próprio Dante podia estar de acordo - corroborou outro.
Os pensamentos de Rey angustiavam-no demasiado para que continuasse a
tentar distinguir as vozes dos falantes, e o diálogo acabou por se
transformar num coro.
- ... E a única vez que Dante presta uma atenção tão explícita à ideia de
contrapasso, uma palavra para a qual não há uma tradução exata, não há
uma definição precisa em inglês, porque a palavra é, em si mesma, a sua
própria definição... Bem, meu caro Longfellow, eu diria contra-sofrimento...
A noção de que cada pecador deve ser castigado com um prolongamento,
contra si mesmo, do mal causado pelo seu pecado..., como esses Cismáticos
que eram despedaçados...
Rey recuou até ao vestíbulo principal.
- Terminou a aula, meus senhores.
Foram fechados os livros, os papéis crepitaram, e Trap começou a ladrar à
janela, sem que ninguém lhe prestasse atenção.
- E ganhámos uma ceia pelo nosso trabalho...
- Mas que faisão gordo que este é! - Com um zelo agitado, James Russell
Lowell tocava num estranho esqueleto rematado por uma cabeça
descomunal e plana.
- Não há nenhum animal cujos interiores ele não tenha retirado e voltado a
pôr no lugar - denotou o doutor Holes jocosamente, e, segundo achava
Lowell, com algum sarcasmo.
Era bem cedo, na manhã seguinte à sua reunião do Clube de Dante, e Lowell
e Holmes estavam no laboratório do professor Louis Agassiz, no Harvard
Museum of Comparative Zoology. Agassiz cumprimentou-os e olhou de
relance para a ferida de Lowell antes de voltar para o seu escritório
particular para concluir um certo assunto.
- O bilhete de Agassiz dava, pelo menos, a entender que estava interessado
nas amostras de insetos. - Lowell tentou aparentar indiferença. Agora,
estava certo de que, de fato, o inseto do escritório de Healey o picara, e
estava profundamente preocupado com o que Agassiz pudesse dizer acerca
dos seus terríveis efeitos: "Ah, não há esperança, pobre Lowell, que pena."
Lowell não confiava na opinião de Holmes de que esse tipo de inseto não
podia picar. Que tipo de inseto que se preze não pica? Lowell aguardava o
prognóstico fatal. Ao menos fora um alívio ouvi-lo. Ele não dissera a
Holmes o quanto a ferida aumentara de tamanho nos últimos dias, com
quanta frequência ele a sentia latejar no interior da perna, e como
conseguia seguir o rasto da dor, umas horas a seguir às outras, penetrando-
lhe em todos os nervos. Não queria mostrar-se tão fraco diante de Holmes.
- Ah, você gosta disso, Lowell? - Louis Agassiz entrou com as amostras dos
insetos nas suas mãos carnudas, que cheiravam sempre a óleo, a peixe e a
álcool, mesmo depois de as lavar cuidadosamente. Lowell esquecera-se que
estava de pé junto ao esqueleto, que se assemelhava a uma hiperbólica
galinha.
Agassiz disse, orgulhosamente:
- O cônsul das Maurícias trouxe-me dois esqueletos do dodó, enquanto eu
estava em viagem! Não são uma preciosidade?
- Acha que serve para comer, Agassiz? - perguntou-lhe Holmes.
- Ah, sim. É uma pena que não possamos ter dodós no nosso Clube de
Sábado! Uma boa refeição sempre foi a maior bênção da humanidade. Que
pena. Bem, estamos prontos?
Lowell e Holmes seguiram-no até uma mesa e sentaram-se.
Cuidadosamente, Agassiz retirou os insetos dos tubos de solução alcoólica-
- Antes de mais, digam, onde é que encontraram estes bichinhos especiais,
doutor Holmes?
- Na verdade, foi Lowell que os encontrou - respondeu com cuidado. -
Próximo de Beacon Hill.
- Beacon Hill - repetiu Agassiz, ainda que o nome soasse de forma
totalmente distinta, dito com a sua acentuada pronúncia suíço-germânica.
- Diga-me, doutor Holmes, o que acha o senhor deles?
Holmes não gostava do costume de formular perguntas, tendentes a
provocar respostas erradas.
- Esta não é a minha área. Mas são moscas-varejeiras, não são, Agassiz?
- Ah, sim. Género? - perguntou Agassiz.
- Cochliomyia - disse Holmes.
- Espécie?
- Macellaria.
- Ah, ah! - riu Agassiz. - De fato, parecem sê-lo, se nos cingirmos aos livros.
Não é, meu caro Holmes?
- Então não são... isso? - perguntou Lowell. Parecia que todo o sangue lhe
subira para as faces. Se Holmes estivesse enganado, então as moscas
podiam não ser inofensivas.
- Fisicamente, as duas moscas são quase idênticas - disse Agassiz, e
suspirou de uma forma que cortava qualquer resposta. - Quase. - Agassiz
dirigiu-se às suas estantes. As suas feições amplas e a sua figura corpulenta
faziam-no parecer mais um político de sucesso do que um biólogo ou um
botânico. O novo Museum of Comparative Zoology era o culminar de toda a
sua carreira, porque finalmente podia contar com recursos para completar
a sua classificação da miríade de espécies animais e vegetais anónimas. -
Permitam-me que lhes mostre uma coisa. Podemos nomear cerca de duas
mil e quinhentas espécies de moscas oriundas da América do Norte.
Contudo, segundo as minhas estimativas, neste momento, existem dez mil
espécies de moscas a viver entre nós.
Ele mostrou alguns desenhos. Toscos, eles eram mais representações
grotescas de rostos humanos, com os narizes substituídos por orifícios
estranhos, como borrões obscuros. Agassiz explicou.
- Há alguns anos, o doutor Coquerel, um cirurgião da Armada Imperial
Francesa, foi chamado à colónia da ilha do Diabo, na Guiana Francesa, na
América do Sul, ao norte do Brasil. Cinco colonos estavam internados no
hospital com sintomas graves e não identificáveis. Um dos homens morreu
pouco depois da chegada do doutor Coquerel. Quando ele esguichou água
para dentro das cavidades do corpo, foram encontradas no seu interior
trezentas larvas de mosca-varejeira. Holmes ficou desorientado.
- As larvas estavam dentro de um homem... de um homem vivo?
- Não interrompa, Holmes! - gritou Lowell.
222 - 223
Agassiz assentiu à pergunta de Holmes com um silêncio pesado.
- Mas a Cochliomyia macellaria só consegue digerir tecido morto -objetou
Holmes. - Não há larvas capazes de parasitismo.
- Lembre-se das oito mil moscas por descobrir de que acabei de lhes falar,
Holmes! - recordou-lhe Agassiz, num tom professoral. - Não se tratava da
Cochliomyia macellaria. Era uma espécie distinta, meus amigos. Uma que
nunca tínhamos visto antes... ou que não queríamos acreditar que existisse.
Uma fêmea desta espécie põe ovos nas narinas do doente, onde os ovos
eclodem, as larvas se metamorfoseiam em larvas de varejeira, e se
alimentam, penetrando no interior da cabeça. Outros dois homens da ilha
do Diabo morreram com a mesma infestação. O médico só conseguiu salvar
os outros, extraindo-lhes as larvas de varejeira do nariz. As larvas da
Macellaria só conseguem viver em tecido morto, e preferem sobretudo os
cadáveres, mas as larvas desta espécie de mosca, Holmes, sobrevivem
apenas em tecido vivo.
Agassiz aguardou que as reacções se reflectissem nos rostos dos seus
interlocutores. Depois, prosseguiu:
- A fêmea só põe uma única vez, mas pode pôr um número elevadíssimo de
ovos, de três em três dias, dez ou onze vezes ao longo do seu ciclo de vida,
que dura um mês. Uma única mosca fêmea consegue pôr até quatrocentos
ovos numa única postura. Procura feridas quentes em animais ou pessoas
para se abrigar. Os ovos eclodem e saem as larvas, que se arrastam para o
interior da ferida, abrindo caminho pelo corpo. Quanto mais infestada com
larvas estiver a carne, mais atraídas serão outras moscas adultas. As larvas
alimentam-se de tecido vivo até que, uns dias mais tarde, se
metamorfoseiam em moscas. O meu amigo Coquerel chamou a esta espécie
Cochliomyia hominivorax.
- Homini... vorax - repetiu Lowell. Traduzindo depois com uma voz rouca e
olhando para Holmes: - Devoradora de homens.
- Exatamente - confirmou Agassiz com o contido entusiasmo de um
cientista que tem uma terrível descoberta para anunciar. - O Coquerel
informou disto as publicações científicas, ainda que tivessem sido poucos
os que acreditaram nas suas provas.
- Mas você acreditou? - perguntou-lhe Holmes.
- Sem ter a mínima dúvida - respondeu Agassiz num tom grave. -Desde que
o Coquerel me enviou estes desenhos, que tenho estudado os historiais
médicos e os registos dos últimos trinta anos, em busca de referências a
experiências similares com pessoas, que desconheciam estes pormenores.
O Isidore Sainte-Hilaire registou o caso de uma larva encontrada por baixo
da pele de uma criança. Segundo Cobbold, o doutor Livingston, encontrou
várias larvas diptera no ombro de um negro ferido, no
Brasil. Nas minhas viagens, descobri que estas moscas se chamam Warega,
conhecidas como uma praga tanto para animais como para as pessoas. E, na
guerra mexicana, informou-se sobre aquelas às quais as pessoas comuns
chamavam «moscas da carne», e que depositavam os ovos nas feridas dos
soldados, que ficavam toda a noite no campo de batalha, sujeitos às
intempéries. Por vezes, as larvas não causavam qualquer dano, porque só
se alimentavam de tecido morto. Estas eram varejeiras comuns, larvas
comuns de macellaria, como aquelas com que o senhor está familiarizado,
doutor Holmes. Mas, outras vezes, o corpo era invadido por turgescências e
não se conseguia salvar a vida dos soldados. Eles eram esburacados de
dentro para fora. Compreendem? Estas eram as hominivorax. Essas
moscas-varejeiras têm de fazer dos animais e pessoas indefesas as suas
presas. Esta é a única fonte que possuem para a sobrevivência da sua prole.
As suas vidas requerem a ingestão de vida. A investigação ainda está no
início, meus amigos, e é muito emocionante. Olhem, colhi os meus
primeiros espécimes de hominivorax na viagem que fiz ao Brasil.
Aparentemente, os dois tipos de moscas-varejeiras são, em muitos aspetos,
idênticos. Temos de olhar para a coloração viva e utilizar o instrumento de
medição mais sensível. Foi assim que ontem consegui reconhecer as suas
amostras.
Agassiz puxou por outra cadeira de braços.
- Agora, Lowell, vamos lá ver novamente a sua pobre perna, está bem?
Lowell tentou falar, mas os lábios tremiam-lhe violentamente.
- Oh, não se preocupe, Lowell! - disse Agassiz, desatando a rir. -Então,
Lowell, você sentiu o pequeno inseto na sua perna, e depois sacudiu-o?
- E matei-o! - lembrou-lhe Lowell. Agassiz retirou um bisturi de uma gaveta.
- Bem, doutor Holmes, quero que deslize isto para o centro da ferida, e
depois o retire.
- Tem a certeza, Agassiz? - perguntou Lowell, nervosamente.
Holmes engoliu em seco, e ajoelhou-se. Posicionou o bisturi no tornozelo de
Lowell, e olhou imediatamente para o rosto do amigo. Lowell olhava
fixamente e de boca aberta.
- Você nem vai sentir isto, Jamey - prometeu-lhe Holmes, tranquilamente,
para que ambos se sentissem à vontade. Apesar de Agassiz estar apenas a
alguns centímetros deles, fingiu amavelmente não os ouvir.
Lowell assentiu e agarrou com força os lados da sua cadeira. Holmes fez
como Agassiz lhe pedira, inserindo a ponta do bisturi no centro do inchaço
no tornozelo de Lowell.
Quando o retirou, viram uma larva dura e branca, com quatro milímetros
ou mais, a contorcer-se na ponta - viva.
- Pronto, aqui está! A bela hominivorax! - exclamou Agassiz, rindo
triunfante. Ele observou a ferida de Lowell em busca de algo mais, e ligou
imediatamente o tornozelo. Ele pôs a larva amorosamente na sua mão. -
Está a ver, Lowell? A pobre mosca-varejeira que você viu, só teve uns
segundos para pôr os ovos na sua perna, antes de você a matar; por isso só
teve tempo de pôr um. A sua ferida não é profunda, e vai sarar
completamente, acabando por recuperar em pleno. Mas reparou como a
lesão da sua perna aumentou apenas com uma larva a rastejar dentro de si,
e como você a sentia à medida que avançava pelo tecido. Imaginem
centenas. Agora imagine centenas de milhares... a expandirem-se dentro de
si de poucos em poucos minutos.
Lowell fez um sorriso suficientemente rasgado para deslocar as pontas do
seu bigode para cada um dos lados do rosto.
- Está a ouvir isto, Holmes? Vou ficar bom! - Ele riu e abraçou Agassiz e, em
seguida, Holmes. Depois, começou a assimilar o que tudo aquilo
significara... para Artemus Healey e para o Clube de Dante.
Agassiz também ficou sério, enquanto secava as mãos na toalha.
- Há mais uma coisa, meus caros amigos. Na verdade, é o mais estranho.
Estas criaturinhas... não são de cá, não são oriundas da Nova Inglaterra,
nem de nenhum dos nossos vizinhos. São nativas deste hemisfério, em
relação a isso não há dúvidas. Mas só de climas quentes e húmidos. Cheguei
a ver enxames delas no Brasil, mas nunca tinham sido vistas em Boston.
Nunca se registou a sua presença, nem com a denominação correta nem
com qualquer outra. Não consigo imaginar como é que aqui chegaram.
Talvez tenha sido acidentalmente numa carga bovina importada ou... -
Agassiz esteve prestes a deixar-se levar pelo seu sentido de humor
desabrido a propósito da situação. - Não importa. Temos sorte por estes
bichos não conseguirem viver num clima setentrional como o nosso; não
com este tempo nem num semelhante. Estas Warega não fazem boa
vizinhança. Felizmente, as únicas que vieram até aqui, de certeza, que já
morreram de frio.
Uma vez que o medo se transfere rapidamente para outras sensações,
Lowell esquecera-se por completo que tivera a certeza do seu destino fatal,
e a recordação da prova pela qual acabava de passar convertera-se numa
fonte de prazer por ter sobrevivido. E não conseguia pensar em mais nada,
enquanto abandonava em silêncio o museu, caminhando ao lado de
Holmes.
Holmes foi o primeiro a falar.
- Estava cego quando dei ouvidos às conclusões do Barnicoat nos jornais. O
Healey não morreu do golpe que lhe foi desferido na cabeça! Os insetos não
foram simplesmente um tableau vivant dantesco, uma espécie de
espectáculo decorativo para que pudéssemos reconhecer o castigo
imaginado por Dante. Foram libertados para causar dor - disse Holmes,
falando depressa e com fervor. - Os insetos não foram um adorno, eles
foram a sua arma!
- O nosso Lúcifer pretende que as suas vítimas não só morram, mas
também sofram, como as sombras do Inferno. Num estado entre a vida e a
morte, que compreenda ambas sem ser nenhuma delas. - Lowell virou-se
para Holmes e tomou-lhe o braço.
- Para que sejam testemunhas do seu próprio sofrimento, Wendell. Eu senti
aquela criatura a abrir caminho por dentro de mim, devorando-me. A
digerir-me. Apesar de só poder comer uma pequena quantidade de tecido,
eu senti-o como se corresse diretamente através do meu sangue até ao
fundo da minha alma. A criada dizia a verdade.
- Meu Deus, pois dizia - corroborou Holmes, horrorizado. - O que significa
que o Healey... - Ninguém conseguia expressar o sofrimento que Healey
tinha suportado. Diz-se que o juiz do Supremo Tribunal saiu para a casa de
campo no sábado de manhã, e o seu corpo só foi encontrado na terça-feira.
Ele esteve vivo durante quatro dias, sob os «cuidados» de dezenas de
milhares de hominivorax, que o devoraram por dentro... O seu cérebro...
Centímetro a centímetro, hora a hora.
Holmes olhou para o interior do frasco de vidro com as amostras de
insetos, que Agassiz lhe devolvera.
- Lowell, tenho de lhe dizer uma coisa. Mas não pretendo provocar uma
discussão consigo.
- O Pietro Bachi. Holmes assentiu vacilante.
- Isto não parece encaixar com o que sabemos sobre ele, não é? -perguntou
Lowell. - O que deita por terra todas as nossas teorias!
- Pense nisto: o Bachi estava amargurado; o Bachi tinha um temperamento
colérico; o Bachi era um alcoólico. Mas tamanha crueldade metódica e
profunda, consegue você imaginá-la nele? Sinceramente? O Bachi pode ter
pensado encenar qualquer coisa para mostrar o erro de ter vindo para os
Estados Unidos. Mas recriar os castigos de Dante de forma tão extrema e
completa? Os erros que cometemos devem ser algo
muito denso, Lowell, como salamandras que saem depois das chuvas.
Sempre que levantamos uma folha, sai debaixo dela, arrastando-se,
Uma nova salamandra - disse Holmes, movendo os braços frenéticamente.
- O que está você a fazer? - perguntou Lowell. A casa de Longfellow era
perto, e era ali que eles deviam ir.
- Estou a ver uma charrete livre ali adiante. Quero voltar a observar
algumas destas amostras ao meu microscópio. Espero que Agassiz não
tenha morto esta larva... a natureza irá revelar-nos melhor a verdade, se ela
continuar viva. Não acredito na conclusão dele de que estes insetos já
desapareceram. Podemos vir a saber mais qualquer coisa sobre o assassino
através destas criaturas. Agassiz não aceita a teoria darwinista, e isso
prejudica o seu ponto de vista.
- Wendell, este tema é a especialidade do homem. Holmes ignorou a falta de
fé de Lowell.
- Em determinadas ocasiões, os grandes cientistas podem ser um
contratempo na senda da ciência, Lowell. As revoluções não são feitas por
homens de óculos, e os primeiros sussurros de uma nova verdade não são
captados por quem necessita de cornetas acústicas. Justamente no mês
passado, eu estava a ler um livro sobre as ilhas Sandwich, acerca de um
ancião fiji, que fora levado para um país estrangeiro, e rogava que o
devolvessem ao seu país para que o filho pudesse bater-lhe na cabeça à
vontade, de acordo com o costume daquelas ilhas. Não foi Pietro, o filho de
Dante, que, após a sua morte, contou a toda a gente que o poeta nunca quis
dizer se, de fato, fora ao Inferno e ao Céu? Os nossos filhos sovam] com
muita frequência os cérebros dos seus pais.
«Alguns pais, mais do que outros», disse Lowell para consigo, pensando em
Oliver Wendell Júnior, enquanto observava Holmes a subir para a charrete.
Lowell começou a caminhar apressadamente para Craigie House,
desejando ter ali o seu cavalo. Ao atravessar uma rua, olhou para trás
vacilando e dirigiu subitamente a sua atenção para o que via.
O homem alto, de rosto cansado e chapéu de feltro, que vestia um colete
quadriculado - o mesmo homem que Lowell vira a observá-lo atentamente,
enquanto se apoiava num olmeiro no campus de Harvard; o mesmo homem
que ele vira a aproximar-se de Bachi nesse mesmo sítio -, esse homem
estava agora de pé no meio do bulício do mercado. Isso podia não ter sido o
suficiente para manter vivo o interesse de Lowell, depois das revelações de
Agassiz, mas o homem estava a conversar com Edward Sheldon, o
estudante de Lowell. Na verdade, Sheldon não se limitava a falar com ele,
mas acusava o homem, como se estivesse a dar ordens a um doméstico
recalcitrante para que levasse a cabo uma qualquer tarefa negligenciada.
Então, Sheldon partiu depressa, soprando e envolvendo-se angustiado na
sua capa negra. No início, Lowell não conseguiu decidir qual havia de
seguir.
Sheldon? Podia encontrá-lo sempre na Faculdade. Então, optou por seguir o
desconhecido, que abria caminho por entre um aglomerado de peões e
charretes, que ocupavam a praça redonda.
Lowell correu por entre algumas bancas do mercado. Um vendedor pôs-lhe
uma lagosta à frente da cara, que ele desviou com uma palmada. Uma
rapariga que distribuía prospetos, enfiou um no bolso do sobretudo de
Lowell.
- Propaganda, Sir?
- Agora não! - gritou Lowell. Num outro momento, o poeta localizou o
fantasma do outro lado da calçada. Subia para uma charrete apinhada, e
aguardava que o cobrador lhe desse o troco.
Lowell correu para subir para a plataforma traseira quando o cobrador
tocava a campainha e o veículo começava a arrancar, seguindo pelos carris
em direcção à ponte. Lowell não teve dificuldade em apanhar o pesado
veículo, correndo ao longo dos carris. Ele acabava de se agarrar ao
corrimão das escadas da plataforma traseira, quando o cobrador se voltou.
- Leany Miller?
- Senhor, o meu nome é Lowell. Tenho de falar com um dos seus
passageiros. - Lowell pôs um pé nas escadas traseiras salientes, quando os
cavalos apertaram o passo.
- Leany Miller? Já cá vens outra vez com os teus truques? - O cobrador
agarrou num bastão e começou a martelar a mão enluvada de Lowell. - Não
voltarás a manchar os nossos lindos carros, Leany! Não, enquanto eu
estiver vigilante!
- Não! Senhor, eu não me chamo Leany! - Mas os golpes do cobrador
obrigaram Lowell a soltar-se. Isto fez com que os pés do poeta ficassem em
cima dos carris achatados.
Lowell gritou, tentando sobrepor a sua voz ao barulho dos cascos dos
cavalos e da campainha, para convencer o irado cobrador da sua inocência.
Mas então apercebeu-se de que o som da campainha vinha de trás,
assinalando a aproximação de outro veículo. Quando se virou para o olhar,
os passos de Lowell tornaram-se mais lentos, e o carro que ia à frente
ganhou distância. Sem outra alternativa, e correndo o risco de os cavalos
que se aproximavam lhe pisarem os calcanhares, Lowell saltou para fora
dos carris.
Naquele momento, em Craigie House, Longfellow introduzia na sua saleta
Robert Todd Lincoln, filho do defunto presidente e um dos três alunos de
Dante do curso de Lowell de 1864. Lowell prometera reunir-se com eles ali
em casa depois da visita a Agassiz, mas como estava atrasado, Longfellow
optou por iniciar sozinho a entrevista com Lincoln.
- Oh, querido Papá! - disse Annie Allegra, entrando e interrompendo-os. -
Estamos quase a acabar o último número de The Secret, Papá! Queres vê-lo
já?
- Sim, querida, mas desculpa, neste momento estou ocupado.
- Por favor, senhor Longfellow - disse o jovem. - Eu não tenho pressa.
Longfellow pegou na revista manuscrita «publicada» em fascículos pelas
suas três filhas.
- Ah, parece que é a melhor que vocês já fizeram. Está muito bonita, Panzie.
Esta noite leio-a toda, do princípio ao fim. Foi esta página que tu
desenhaste?
- Foi! - respondeu Annie Allegra. - Esta coluna e esta. E também esta
adivinha. Consegues adivinhar o que é?
- O lago da América do Norte tão grande como três estados - respondeu
Longfellow a sorrir, e passou os olhos rapidamente pelo resto da página.
Um hieróglifo e um artigo em primeiro plano, que evocava «Todo o meu dia
de ontem (desde o pequeno-almoço até ao deitar)» por A. A. Longfellow.
- Oh, está maravilhoso, minha querida - disse Longfellow detendo-se
dubitativo num dos pontos da lista. - Panzie, aqui diz que, ontem à noite,
abriste a porta a uma visita mesmo antes de te deitares.
- Ah, sim. Eu tinha vindo cá abaixo buscar um pouco de leite, foi isso. Ele
disse que eu me comportei como uma boa anfitriã, Papá?
- Quando é que foi isso, Panzie?
- Durante a reunião do clube, claro. Dizes sempre para não seres
incomodado durante as tuas reuniões do clube.
- Annie Allegra! - chamou-a Edith do vão da escada. - Alice quer rever o
índice. Tens de trazer já o teu exemplar para aqui!
- Ela faz sempre de redatora - lamentou-se Annie Allegra, reclamando a
revista a Longfellow. Ele acompanhou Annie ao vestíbulo, e adiantou-se a
ela nas escadas, antes de ela conseguir chegar ao escritório particular de
The Secret - o quarto de um dos irmãos mais velhos. - Panzie, querida,
quem era a visita de ontem à noite que referiste?
- O quê, Papá? Nunca o tinha visto antes.
- Mas lembras-te do seu aspeto? Talvez pudesses acrescentar isso na The
Secret. Talvez possas entrevistá-lo, e fazer-lhe perguntas sobre a sua
experiência.
- Como seria bonito! Um negro alto, com muito bom aspeto, com uma capa.
Eu disse-lhe para ele esperar por ti, Papá. Disse, sim. Será que ele não fez o
que eu lhe disse? Deve ter-se aborrecido de ficar ali de pé, e voltou para
casa. Sabes como se chama, Papá?
Longfellow assentiu.
- Diz-me lá, Papá! Talvez consiga fazer-lhe uma entrevista, como tu dizes.
- Senhor agente Nicholas Rey, da polícia de Boston. Lowell entrou de
rompante pela porta principal.
- Longfellow, tenho muito para lhe contar... - Deteve-se quando viu a
expressão do rosto do seu vizinho. - Longfellow, o que aconteceu?
Bem cedo, naquele dia, o agente Rey fora introduzido numa sóbria sala de
espera, e ali ficara a contemplar os ramos, agitados pelo vento, dos
olmeiros que davam sombra ao campus. Um grupo de homens brancos
começou a desfilar pelo vestíbulo, com os seus gabões pretos até aos
joelhos e os chapéus altos, que compunham os seus uniformes, como
hábitos monásticos.
Rey entrou na Sala da Corporação, da qual aqueles homens haviam saído.
Quando Rey se apresentou ao presidente, o reverendo Thomas Hill, este
estava em plena conversa com um membro atrasado do conselho directivo
da Universidade. Este outro homem ficou imóvel quando Rey fez referência
à polícia.
- Isto está relacionado com algum dos nossos alunos, senhor? - perguntou o
doutor Manning, interrompendo a sua conversa com Hill, e voltando a sua
barba marmórea para o agente mulato.
- Tenho de fazer algumas perguntas ao presidente Hill, relacionadas, por
acaso, com o professor James Russell Lowell.
Os olhos amarelos de Manning abriram-se muito, e insistiu em ficar. Fechou
a porta dupla e sentou-se à mesa redonda de mogno, ao lado do presidente
Hill e em frente ao agente da polícia. Rey observou imediatamente que Hill,
contrariado, permitia ao outro dominar a situação.
- Pergunto-me até que ponto o senhor conhece o projeto em que o senhor
Lowell tem estado a trabalhar, presidente Hill - começou Rey por dizer.
- O senhor Lowell? Ele é um dos melhores poetas e sátiros de toda a Nova
Inglaterra, claro - respondeu Hill com uma gargalhada franca. -«The Biglow
Papers.» «The Vision of Sir Launfal.» «A Fable for the Critics», que é a minha
favorita, confesso. Além das suas colaborações na North American Review.
O senhor sabe que ele foi o primeiro redator-chefe da Atlantic? Bem, tenho
a certeza que o nosso trovador está ocupado a trabalhar em muitas
iniciativas.
Nicholas Rey retirou um papel do bolso do seu colete e enrolou-o entre os
dedos.
- Estou a referir-me, em particular, a um poema em cuja tradução, a partir
de uma língua estrangeira, creio tem estado a colaborar.
Manning entrelaçou os dedos e fitou os olhos no papel dobrado na mão do
agente.
- Meu caro senhor agente - disse Manning. - Houve algum problema? - Era
notório pelo seu olhar que desejava que a resposta fosse afirmativa.
Dinanzi. Rey estudou o rosto de Manning, e o modo como as elásticas
comissuras da boca do ancião professor pareciam contorcer-se de
antecipação.
Manning passou uma mão pela polida superfície do seu couro cabeludo.
Dinanzi a me.
- O que eu queria perguntar... - começou por dizer Manning, tentando outra
táctica; agora ele estava menos ansioso. - Houve algum conflito? Uma
queixa de algum tipo?
O presidente Hill beliscou o queixo, desejando que Manning tivesse saído
com os outros membros da Corporação.
- Pergunto-me se não devíamos mandar chamar o próprio professor Lowell
para falarmos com ele.
Dinanzi a me non fuor cose create Se non etterne, e io etterno duro.
O que significava aquilo? Se Longfellow e os seus poetas tinham
reconhecido aquelas palavras, por que motivo tinham feito todos os
possíveis para não o esclarecerem?
- É um disparate, reverendo - atalhou Manning. - O professor Lowell não
pode ser incomodado por uma ninharia. Senhor agente, devo insistir que,
se tiver havido algum incidente, no-lo diga imediatamente, e nós
resolveremos o assunto com a rapidez e a discrição adequadas.
Compreende, senhor agente? - disse Manning, inclinando-se para diante
com afabilidade. - Houve várias tentativas, por parte do professor Lowell e
de vários colegas literatos, de introduzirem uma certa literatura na nossa
cidade, que não é apropriada. O seu ensino colocaria em perigo a paz de
milhões de boas almas. Como membro da Corporação, foi-me imposto o
dever de defender a boa reputação da universidade contra esse tipo de
máculas. O lema da universidade é «Christo et ecclesiae» senhor, e nós
devemos procurar viver segundo o espírito cristão desse ideal.
- Mas o lema costumava ser «ventas» - disse o presidente Hill,
tranquilamente. - A verdade.
Manning lançou-lhe um olhar acutilante.
O agente Rey hesitou outro instante, depois voltou a pôr o papel no bolso.
- Expressei algum interesse pela poesia que o senhor Lowell tem andado a
traduzir. E ele pensou que os senhores pudessem ser capazes de me
orientar sobre o local adequado para o seu estudo. As faces do doutor
Manning adquiriram cor rapidamente. - O senhor está a querer dizer que
esta é uma visita puramente literária? - perguntou ele, contrariado. E, como
Rey não respondia, Manning garantiu ao agente que Lowell quisera brincar
com ele, com ele e com a universidade, para se divertir. Se Rey quisesse
estudar a poesia do Diabo, podia fazê-lo aos pés do próprio Diabo.
Rey atravessou o campus de Harvard, onde o vento frio silvava em torno
dos velhos edifícios de tijolo. Ele sentia-se baralhado e confuso
relativamente àquele assunto. Depois, uma sirene dos bombeiros começou
a tocar; soava, conforme parecia, de todas as esquinas do universo. E Rey
começou a correr.
XI
LIVER WENDELL HOLMES, POETA E MÉDICO, ILUMINOU OS
CHEFE KURTZ ANUNCIOU NA ARDÓSIA DO COMISSARIADO
w
*1 Benedict Arnold (1741-1801) é o paradigma do traidor para os norte-
americanos, porque foi um herói que lutou em ambos os lados durante a
Guerra da Independência. Incorporou a ala dos insurretos, em 1775, tendo
empreendido aí grandes façanhas e tendo-se tornado num dos militares
mais distintos. No entanto, por ambição, a partir de 1780 passou para o
lado britânico, onde combateu com igual valentia. [N. da T.]
w
Ele observou Lowell, demoradamente. - Sente-se. Você está muito corado.
Ultimamente tem dormido o suficiente? Lowell ignorou-o.
- O que nos permitiria qualificar o Jennison como um Cismático? Em
concreto, nesse fosso do Inferno, cada uma das sombras que Dante escolhe
para individualizar é inequivocamente emblemática desse pecado.
- Até descobrirmos por que razão Lúcifer escolheu o Jennison, temos de
extrair o que conseguirmos dos pormenores do crime - disse Fields.
- Bem, o crime confirma a força de Lúcifer. O Jennison fizera escalada com o
Clube Adirondack. Ele era um desportista e um caçador, no entanto, o
nosso Lúcifer deita-lhe a mão e fá-lo em pedaços com toda a facilidade.
- Não há dúvida que o fez, sob a ameaça de uma arma - conjeturou Fields. -
Até o homem mais forte pode sucumbir ao medo diante de uma arma de
fogo, Lowell. Também sabemos que o nosso assassino é esquivo. Havia
policiais de guarda em cada rua daquela zona, a todas as horas, desde a
noite em que o Talbot fora assassinado. E a grande atenção colocada pelo
Lúcifer nos pormenores do canto de Dante... Isso é bem certo.
- A qualquer momento, enquanto falamos - reflectiu Lowell em voz alta,
com um ar ausente -, a qualquer momento, enquanto Longfellow traduz um
novo verso na sala ao lado, pode ser perpetrado outro homicídio e nós
somos impotentes para o impedir.
- Três homicídios e não há uma única testemunha. Coincidindo com toda a
precisão com as nossas traduções. O que vamos fazer? Vaguear pelas ruas e
esperar? Se fôssemos menos cultos, começaria a pensar que um autêntico
espírito do mal nos domina.
- Podemos concentrar a nossa atenção na relação que os assassínios têm
com o nosso clube - propôs Lowell. - Concentremo-nos em seguir a pista de
todos os que de alguma forma conhecem o calendário previsto para a
tradução. - Enquanto Lowell folheava rapidamente o bloco de
apontamentos onde anotava as suas investigações, distraidamente, bateu
numa das peças de colecção, uma bala de canhão disparada pelos
britânicos, em Boston, contra as tropas do general Washington.
Eles ouviram outro toque à porta principal, mas ignoraram-no.
- Enviei um bilhete ao Houghton a pedir-lhe que se assegure de que
nenhuma das provas da tradução do Longfellow sai de Riverside - disse
Fields a Lowell. - Sabemos que todas as mortes foram inspiradas nos
cantos, que, nas respectivas alturas, ainda não tinham sido traduzidos pelo
nosso clube. O Longfellow tem de continuar a levar as provas para a gráfica,
como se tudo se desenrolasse como habitualmente. E, entretanto, o que é
feito do jovem Sheldon?
Lowell franziu o sobrolho.
- Ele ainda não respondeu, e não foi visto em lado nenhum do campus. É o
único que nos pode informar sobre o fantasma com quem o vi falar, depois
da partida do Bachi.
Fields levantou-se e inclinou-se junto de Lowell.
- Você tem a certeza absoluta que viu esse «fantasma» ontem, Jamey? -
perguntou-lhe.
Lowell ficou surpreendido.
- O que quer você dizer com isso, Fields? Eu já lhe contei... Vi-o a observar-
me no campus de Harvard, e, depois, outra vez, enquanto esperava pelo
Bachi. E novamente quando mantinha uma acesa discussão com o Edward
Sheldon.
Fields não conseguiu evitar encolher-se.
- É que todos estamos muito apreensivos e ansiosos, meu caro Lowell. As
minhas noites também têm sido passadas por entre incómodos episódios
de insónia.
Lowell fechou com estrondo o bloco de notas que estava a rever.
- Você está a insinuar que tudo não passou de imaginação minha?
- Foi você mesmo que me disse que hoje pensou ter visto o Jennison, o
Bachi, a sua primeira mulher e, depois, o seu filho que faleceu. Por amor de
Deus! - gritou Fields.
Os lábios de Lowell tremeram.
- Oiça bem o que lhe vou dizer, Fields. Isto ultrapassou todos os limites...
- Acalme-se, Lowell. Não foi minha intenção levantar-lhe a voz. Não foi
minha intenção dizer isso.
- Eu julguei que você sabia melhor do que nós o que devíamos fazer. Afinal
de contas, nós não passamos de meros poetas! Julguei que você sabia
exatamente de que forma alguém pôde seguir o nosso calendário de
tradução!
- Ora, e o que significa isso, senhor Lowell?
- Simplesmente isto: Quem, além de nós, conhece em primeira mão as
actividades do nosso Clube de Dante? Os aprendizes da gráfica, os
gravadores, os encadernadores... Todos aqueles que estão relacionados
com a Ticknor e Fields.
- Ora! - Fields estava assombrado. - Não inverta os papéis contra
mim!
A porta que estabelecia a comunicação da biblioteca com o escritório abriu-
se.
- Meus senhores, lamento ter de interrompê-los - disse Longfellow, ao
mesmo tempo que fazia entrar Nicholas Rey.
Um olhar de terror perpassou pelos rostos de Lowell e Fields. Lowell
balbuciou uma litania de razões pelas quais Rey não podia interrompê-los.
Longfellow limitou-se a sorrir.
- Professor Lowell - disse Rey. - Por favor, meus senhores, estou aqui para
lhes pedir que me deixem ajudá-los.
De imediato, Lowell e Fields esqueceram a sua discussão e deram efusivas
boas-vindas a Rey.
- Compreendam que faço isto para parar com as mortes - clarificou Rey. -
Mais nada.
- Esse não é o nosso único objectivo - disse Lowell depois de uma longa
pausa. - Mas não conseguimos completar isto sem alguma ajuda, e o senhor
menos ainda. Este patife deixou a marca de Dante em tudo aquilo em que
tocou, e para si seria um erro tremendo tomar esse rumo sem ter um
tradutor ao seu lado.
Longfellow deixou-os na biblioteca e voltou para o escritório. Ele e Greene
estavam ocupados com o terceiro canto do dia, tendo começado às seis da
manhã, trabalhando e descansando até ao momento crítico do meio-dia.
Longfellow escreveu um bilhete a Holmes a pedir-lhe ajuda na tradução,
mas não obteve nenhuma resposta do n.° 21 da Charles Street. Longfellow
perguntou a Fields se podiam convencer Lowell a reconciliar-se com
Holmes, mas Fields recomendou-lhe que deixassem o tempo acalmá-los.
Ao longo do dia, Longfellow teve de despachar um número invulgar de
estranhas petições da habitual variedade de gente que se lhe apresentava.
Um habitante do Oeste trouxe-lhe o «pedido» de um poema sobre os
pássaros, que desejava que Longfellow escrevesse, e pelo qual pagaria
bastante. Uma mulher, uma visitante habitual, pôs a sua bagagem à porta,
explicando ser a esposa de Longfellow, e estar de regresso a casa. Um
soldado supostamente ferido veio pedir-lhe dinheiro. Longfellow teve pena
dele e deu-lhe uma quantia pequena.
- Mas, Longfellow, o «coto» desse homem mais não era do que o braço
dobrado por dentro da camisa! - disse Greene depois de Longfellow ter
fechado a porta.
- Sim, eu sei - respondeu Longfellow, enquanto voltava para a sua cadeira
de braços. - Mas, meu caro Greene, quem irá ser amável com ele, se eu não
for?
Longfellow voltou a mergulhar na sua tarefa do Inferno, Canto Quinto, que
deixara por terminar havia muitos meses. Referia-se ao círculo dos
luxuriosos. Ali, ventos incessantes golpeiam os pecadores a partir de todas
as direcções, tal como os seus lascivos desenfreamentos os golpearam a
partir de todas as direcções em vida.
O peregrino pede para falar com Francesca, uma bonita jovem, morta pelo
marido quando a encontrou a beijar o seu irmão, Paolo. Ela, com o
silencioso espírito do seu ilícito amante a seu lado, paira até se colocar ao
lado de Dante.
- À Francesca não basta sugerir que ela e o Paolo simplesmente
sucumbiram às suas paixões, mas pretende narrar a sua história a Dante,
chorando - denotou Greene.
- Exatamente - confirmou Longfellow. - Ela diz a Dante que eles estavam a
ler o episódio do beijo entre a Guinevere e o Lancelot, quando os seus olhos
se encontraram sobre o livro, e ela disse, recatadamente, «Hoje já não
lemos mais.» O Paolo toma-a nos braços e beija-a; contudo, a Francesca não
o culpa a ele a sua transgressão, mas ao livro que partilhavam. O autor do
romance é o traidor de ambos.
Greene fechou os olhos, mas não por estar com sono, como costumava fazer
muitas vezes durante as reuniões. Greene acreditava que um tradutor devia
esquecer-se de si mesmo e fundir-se com o autor, e era isso que fazia ao
tentar ajudar Longfellow.
- E, deste modo, eles recebem o castigo perfeito: permanecem juntos para
sempre, mas nunca mais voltam a beijar-se nem a sentir a emoção da corte;
experimentam apenas o tormento de estar ao lado um do outro.
Enquanto falavam, Longfellow viu as tranças douradas e o rosto sério de
Edith a inclinar-se para o interior do escritório. Depois do olhar de relance
do pai, a menina encaminhou-se rapidamente para o vestíbulo.
Longfellow sugeriu a Greene que fizessem uma pausa. Os homens que
estavam na biblioteca também tinham abandonado o seu debate para que
Rey pudesse examinar o diário das investigações que Longfellow guardava.
Greene saiu para o jardim para esticar as pernas.
Enquanto Longfellow retirava alguns livros, os seus pensamentos
vaguearam para outras épocas vividas naquela casa, épocas anteriores à
sua. Naquele escritório, o general Nathanael Greene, avô do seu amigo
Greene, discutia estratégia com o general George Washington quando
foram informados da chegada dos britânicos. Todos os generais reunidos
no aposento se apressaram a pegar nas suas perucas. Também naquele
escritório, segundo uma das histórias de Greene, Benedict Arnold se
ajoelhou e jurou lealdade. Com este último episódio em mente, Longfellow
passou para a sala, onde encontrou a filha Edith, feita num novelo em cima
de uma cadeira de braços Luís XVI. Ela puxara o seu assento para junto do
busto de mármore da mãe. O semblante creme de Fanny estava sempre ali
quando a menina precisava dela. Longfellow nunca conseguia olhar para
um retrato da esposa sem experimentar a exaltação de prazer que sentira
nos primeiros dias da sua torpe corte. Fanny jamais saíra de uma sala sem
o deixar com a sensação de que alguma luz era levada com ela.
O pescoço de Edith curvou-se como o de um cisne para esconder o rosto.
- Então, minha querida - disse Longfellow com doçura e a sorrir. -O que se
passa com a minha querida, esta tarde?
- Desculpa ter espreitado, Papá. Queria perguntar-te uma coisa e não pude
deixar de ouvir. Esse poema - disse ela, timidamente, mas como se o
sondasse - fala das coisas mais tristes.
- Sim. Às vezes, a Musa inspira-nos isso. O dever do poeta consiste em falar
dos nossos momentos mais difíceis com a mesma honestidade com que
celebramos as alegrias, Edie, porque só passando pelos momentos mais
obscuros se alcança, por vezes, a luz. É isso que Dante faz.
- Porque tendes de castigar assim o homem e a mulher do poema, por se
amarem? - E uma lágrima brotou dos seus olhos de um azul-celeste.
Longfellow sentou-se na cadeira, pô-la nos seus joelhos e fez-lhe um trono
com os próprios braços.
- O poeta daquela obra foi um cavalheiro baptizado como Durante, mas que
mudou este nome para Dante, como num jogo infantil. Ele viveu há cerca de
seiscentos anos. Ele mesmo se apaixonou, e por isso escreve assim.
Reparaste na estatueta de mármore que está por cima do espelho do meu
escritório? Edith anuiu com a cabeça.
- Muito bem, trata-se do Signor Dante.
- Aquele homem? Parece ter o peso do mundo todo em cima da cabeça.
- Sim. - Longfellow sorriu. - E estava profundamente apaixonado por uma
rapariga que conhecia há muito tempo, quando ela era..., oh, pouco mais
nova do que tu, minha querida (tinha mais ou menos a idade da pequena
Panzie), e chamava-se Beatrice Portinari. Ela tinha nove anos quando ele a
viu pela primeira vez, num festival, em Florença.
- Beatrice - repetiu Edith, imaginando o modo como a palavra se soletrava e
pensando nas bonecas para as quais ainda não encontrara um nome.
- Bice... era assim que os seus amigos a tratavam. Mas nunca Dante. We
tratava-a apenas pelo seu nome completo, Beatrice. Quando ela se
aproximava dele, apoderava-se do coração de Dante um tal sentimento de
modéstia que não conseguia levantar os olhos nem devolver-lhe o
cumprimento. Noutra ocasião, ele mostrou-se disposto a falar, mas ela
limitou-se a passar, mal dando pela presença dele. Ele ouviu as pessoas da
cidade a sussurrarem a propósito dela, «Não é moral. É um dos bem-
"aventurados de Deus.»
- Era isso que diziam dela? Longfellow riu ligeiramente.
- Bem, isso era o que Dante ouvia, porque estava profundamente
apaixonado por ela, e quando estamos apaixonados, ouvimos as pessoas
elogiarem aquele que elogiamos.
- Dante pediu a sua mão? - perguntou Edith, esperançada.
- Não. Ela só falou com ele uma vez, para o saudar. Beatrice casou com
outro florentino. Pouco depois, adoeceu com uma febre e morreu. Dante
casou com outra mulher e constituíram família. Porém, ele nunca esqueceu
o seu amor, chegando até a pôr o nome de Beatrice à própria filha.
- A mulher dele não ficou aborrecida? - perguntou a menina, indignada.
Longfellow agarrou numa das suaves escovas de Fanny e pôs-se a deslizá-la
pelos cabelos de Edith.
- Não sabemos muito sobre Donna Gemma, mas sabemos que quando o
poeta se viu em algumas dificuldades, a meio da sua vida, teve uma visão
em que Beatrice, do seu cantinho no Céu, lhe enviava um guia para o ajudar
a atravessar um lugar muito escuro e voltar a juntar-se a ela. Quando Dante
começa a tremer diante da ideia de um desafio semelhante, o seu guia
recorda-lhe: «Quando voltares a ver os seus lindos olhos, saberás
novamente qual a viagem da tua vida.» Compreendes isto, querida?
- Mas como é que ele amava assim tanto Beatrice se nunca falou com ela?
Longfellow continuou a escovar-lhe os cabelos, surpreendido com a
dificuldade da pergunta.
- Uma vez, minha querida, ele disse que ela despertava tais sentimentos
nele que não conseguia encontrar palavras para os descrever. Como poeta
que Dante era, o que podia cativá-lo mais do que um sentimento que
desafiasse as suas rimas?
Depois, ele recitou suavemente, acariciando-lhe o cabelo com a escova:
- «Tu, minha menina, és melhor do que todas as baladas/ jamais cantadas
ou recitadas,/ porque tu és um poema vivo./ E todos os demais estão
mortos.»
O poema produziu o habitual sorriso na destinatária, que depois deixou
que o pai mergulhasse nos seus pensamentos. Seguindo o som dos passos
de Edith a subir as escadas, Longfellow permaneceu na reconfortante
sombra do busto de mármore, de cor creme, submergindo na tristeza da
sua filha.
- Ah, aqui está você. - Greene apareceu na sala, com as mãos na cintura. -
Acho que adormeci no banco do seu jardim. Não faz mal.
Agora estou prontíssimo para voltar para os nossos cantos! Ouça, onde se
meteram o Lowell e o Fields?
- Julgo que saíram para ir dar uma volta. - Lowell pedira desculpa a Fields
por se ter exaltado, e ambos haviam saído para apanhar um pouco de ar.
Longfellow apercebeu-se do longo tempo que estivera sentado. As suas
articulações rangeram audivelmente quando se levantou da cadeira.
- Com efeito - disse ele, olhando para o relógio, que retirou do bolso do
colete -, eles já saíram há algum tempo.
Fields tentava alcançar Lowell, que dava grandes passadas, a descer a
Brattle Street.
- Talvez devêssemos regressar agora, Lowell.
Fields ficou grato por Lowell ter parado de repente. Mas o poeta olhava
fixamente em frente, com uma expressão assustada. Sem aviso prévio,
empurrou Fields rapidamente para trás do tronco de um olmeiro.
Sussurrou-lhe para que olhasse em frente. Fields dirigiu o olhar para o
outro lado da rua, quando uma figura alta, com um chapéu de coco e um
colete quadriculado, virou a esquina.
- Calma, Lowell! Quem é ele? - perguntou-lhe Fields.
- Nem mais nem menos do que o homem que surpreendi a vigiar-me no
campus de Harvard! E, depois, a encontrar-se com o Bachi! E, uma vez mais,
a ter uma discussão acesa com o Edward Sheldon!
- O seu fantasma? Lowell anuiu, triunfante.
Eles seguiram-no sub-repticiamente, com Lowell a dirigir o seu editor para
manterem uma certa distância do estranho, que virava agora para uma rua
lateral.
- Que Deus nos ajude! Ele está a dirigir-se para sua casa! - exclamou Fields.
O desconhecido dispôs-se a transpor a cancela branca de Elmwood. -
Lowell, temos de ir falar com ele.
- E dar-lhe vantagem? Tenho reservado um plano muito melhor para este
tratante - disse Lowell, levando Fields a dar a volta pela cocheira e o celeiro,
para entrarem em Elmwood pela porta das traseiras. Lowell ordenou à sua
criada que recebesse o visitante, que ia bater à porta principal. Ela devia
levá-lo para uma sala específica no terceiro andar da mansão, e só depois
iria fechar a porta. Lowell retirou da biblioteca a sua espingarda de caça,
verificou-a e levou Fields para cima, utilizando as estreitas escadas de
serviço, situadas na parte posterior da casa.
- Jamey! Por amor de Deus, o que está você a pensar fazer?
- Vou certificar-me de que desta vez o fantasma não me escapa; pelo menos,
até eu estar satisfeito com o que queremos saber - esclareceu Lowell.
- Não cometa loucuras. Em vez disso, mandemos chamar o Rey. Os olhos
castanhos e brilhantes de Lowell tornaram-se cinzentos.
- O Jennison era meu amigo. Ele ceava nesta mesma casa, ali, na minha sala
de jantar, onde limpava os lábios aos meus guardanapos e bebia pelos
meus copos de vinho. Agora, está cortado em pedaços! Recuso-me a
continuar a avançar timidamente, pairando em torno da verdade, Fields!
O aposento situado no cimo das escadas, o quarto de Lowell quando era
criança, não era usado nem estava aquecido. Da janela do seu desvão
infantil, a vista no Inverno era ampla e um pouco vazia, apesar de incluir
uma parte de Boston. Agora, Lowell olhava para o exterior e via a familiar e
grande curva da Charles Street e os vastos campos, que se estendiam entre
Elmwood e Cambridge, as planas zonas pantanosas para lá do rio suave e
silencioso, com a neve a derreter-se.
- Lowell, você ainda mata alguém com isso! Como seu editor, ordeno-lhe
que pouse imediatamente essa arma!
Lowell tapou com a mão a boca de Fields, e fez um gesto, indicando a porta
fechada, para que detetassem qualquer movimento. Passaram vários
minutos em silêncio antes de os dois eruditos, colocados atrás de um sofá,
ouvirem os passos da criada a conduzir o visitante pelas escadas principais
acima. Ela cumpria com o que lhe fora incumbido, deixando entrar o recém-
chegado no aposento e fechando imediatamente a porta atrás de si.
- Olá? - disse o homem, uma vez no aposento vazio e mortalmente frio. -
Que tipo de sala é esta? O que significa isto?
Lowell levantou-se do lugar que ocupava atrás do sofá, apontando a sua
espingarda diretamente para o colete quadriculado do homem.
O desconhecido arfou, introduziu a mão no bolso da sua sobrecasaca e
retirou um revólver, que apontou para o cano da espingarda de Lowell.
O poeta não vacilou.
A mão direita do desconhecido tremeu violentamente ao mover o dedo,
metido numa luva de cabedal demasiado grosso, sobre o gatilho do
revólver.
Do outro lado do aposento, Lowell levantou a espingarda acima do seu
bigode em forma de presas de morsa, que aparecia muito negro sob a
escassa luz, e fechou um olho, fitando o outro diretamente no ponto de
mira. Ele falou através dos dentes cerrados.
- Ponha-me à prova, e, independentemente do que aconteça aqui, você sairá
a perder. Ou nos manda para os anjinhos - disse ele, enquanto levantava a
sua arma -, ou nós o mandamos para o inferno.
XIII
DESCONHECIDO SUSTEVE O SEU REVÓLVER MAIS ALGUNS
ma ideal messe de oficiais para as patentes militares mais elevadas
num simples soldado, senão mesmo num Billy Yank(1). Pensem nos
nossos soldados, que ainda usam os seus uniformes do exército nas ruas e
nos mercados. Muitas vezes, senti-me confuso ao ver um desses grandes
espécimes. Voltou para casa, mas continua ainda a usar as roupas de
soldado? Para que guerra o terão mandado agora?
- Mas isso encaixa com o que sabemos dos homicídios, Wendell? - quis
saber Fields.
- Creio que encaixa muitíssimo bem. Comecemos pelo homicídio de
Jennison. Sob esta nova luz, ocorreu-me pensar concretamente na arma que
ele pode ter usado.
Rey anuiu.
- Um sabre militar.
- Exato! - exclamou Holmes. - Precisamente o tipo de lâmina condizente
com os ferimentos. Ora bem, quem é que foi instruído no seu manuseio?
w
*1. Nome dado comummente ao soldado da União durante a guerra civil
americana (1862-1865). (N. da T.)
w
Um soldado. E o Fort Warren, a escolha do cenário para esse crime... Um
soldado que ali tivesse feito a instrução ou que ali estivesse por fazer parte
da guarnição conhecê-lo-ia bastante bem! Ainda há mais: as larvas mortais
de hominivorax, que se banquetearam à custa do juiz Healey... provenientes
de algum lugar fora de Massachusetts, de um sítio quente e pantanoso,
segundo insiste o professor Agassiz. Talvez tivessem sido trazidas por um
soldado, como recordação dos pântanos mais profundos do Sul. Wendell
Júnior diz que moscas e larvas eram uma presença constante nos campos
de batalha e entre os milhares de feridos ali abandonados à sua sorte
durante um dia ou uma noite.
- Umas vezes, as larvas não afetavam os feridos - disse Rey. -E, outras vezes,
pareciam destruir um homem, deixando os cirurgiões perplexos e
impotentes.
- Tratava-se de hominivorax, embora os cirurgiões militares não o
conseguissem diferenciar de uma família de escaravelhos. Alguém
familiarizado com os seus efeitos sobre os feridos, trouxe-as do Sul e usou-
as em Healey - prosseguiu Holmes. - Sempre nos maravilhámos com a
enorme força física de Lúcifer, capaz de transportar o corpulento juiz
Healey até à beira do rio. Mas, quantos companheiros teve um soldado de
carregar nos seus braços, em plena batalha, sem pensar duas vezes!
Também fomos testemunhas da facilidade com que Lúcifer dominou o
reverendo Talbot, e como, com igual aparente facilidade, fez em pedaços o
robusto Jennison.
- Você deu com o nosso «Abre-te, sésamo», Holmes? - exclamou Lowell!
Holmes prosseguiu.
- Todos os homicídios foram atos cometidos por uma pessoa familiarizada
com os truques para sitiar e matar. E com as feridas e o sofrimento no
campo de batalha.
- Mas por que razão um rapaz do Norte converteria em alvo a sua própria
gente? Porque havia ele de converter Boston no seu objectivo? -perguntou
Fields, sentindo que havia necessidade de alguém expressar as dúvidas. -
Nós fomos os vencedores. E os vencedores do lado justo.
- Esta guerra foi diferente de qualquer outra, desde a Revolução,
relativamente aos sentimentos confusos - opinou Nicholas Rey.
- Não era a batalha do nosso país contra os índios ou os Mexicanos -
acrescentou Longfellow -, isso foram pouco mais do que umas conquistas.
Os soldados que se preocupavam em pensar nas razões por que lutavam
estavam imbuídos da noção de honra da União, da liberdade de uma raça
escravizada, da restauração da ordem devida ao universo-Contudo, o que
fazem os soldados quando regressam a casa? Os agiotas,
que outrora vendiam espingardas e uniformes de má qualidade, agora
circulam em berlinas pelas nossas ruas e prosperam em mansões de
Beacon Hill com portas de carvalho.
- Dante - disse Lowell -, que foi expulso de sua casa, povoou o Inferno com
gente da sua própria cidade, até mesmo da sua própria família. Deixámos
muitos soldados desamparados, enquanto agitávamos poemas que
cantavam a moral e os uniformes manchados de sangue. Eles são
desterrados das suas vidas anteriores... tal como Dante; convertem-se em
facções dentro de si próprios. E pensem quão rapidamente começaram
estes assassínios, quase logo a seguir ao final da guerra. Tinham passado
apenas uns meses! Sim, parece que as coisas se encaixam, meus senhores. A
guerra perseguia uma abstracção moral, a liberdade, mas os soldados
bateram-se nas suas batalhas por algo muito concreto; campos e frentes,
organizados em regimentos, companhias e batalhões. Os verdadeiros
movimentos na poesia de Dante têm qualquer coisa de veloz, de decisivo,
quase de militar na sua natureza. - Ele levantou-se e abraçou Holmes. - Esta
visão, meu querido Wendell, é celestial.
Propagou-se pela sala um sentimento colectivo de realização, e todos
aguardaram a anuência de Longfellow, que chegou sob a forma de um
sorriso tranquilo.
- Três vivas a Holmes! - exclamou Lowell.
- Porque não me dão três vezes três? - perguntou Holmes, adoptando uma
pose caprichosa. - Eu aguento!
Augustus Manning colocou-se à frente da mesa do seu secretário a
tamborilar com os dedos na esquina.
- No entanto, esse Simon Camp não respondeu ao meu pedido para uma
entrevista.
O secretário de Manning negou com a cabeça.
- Não, senhor. E no Hotel Marlboro dizem que ele já lá não está hospedado.
Quando partiu não deixou nenhuma direcção.
Manning estava lívido. Ele não confiara inteiramente no detective da
Pinkerton, mas também não pensara que ele fosse simplesmente um
vigarista.
- Você não acha estranho que, primeiro, se apresente um oficial da polícia a
fazer perguntas sobre as aulas de Lowell, e depois o homem da Pinkerton, a
quem eu paguei para averiguar mais sobre Dante, deixe de responder às
minhas chamadas?
O secretário não respondeu, mas depois, ao ver que a sua resposta era
aguardada, anuiu, desejoso de agradar.
Manning virou-se e olhou pela janela, donde se via o edifício principal de
Harvard.
- Para mim, Lowell teve alguma coisa a ver com tudo isto. Repita-me
novamente, senhor Cripps. Quem está matriculado no curso sobre Dante?
Edward Sheldon e... Pliny Mead, não é?
O secretário encontrou a resposta num monte de papéis.
- Edward Sheldon e Pliny Mead, exatamente.
- Pliny Mead. Um bom aluno - disse Manning, acariciando a sua barba rija.
- Bem, era, senhor, mas nas últimas classificações baixou muito. Manning
voltou-se para ele muito interessado.
- Sim, ele desceu uns vinte lugares na turma - explicou o secretário,
encontrando a documentação e comprovando orgulhosamente os fatos. -
Ah, sim, desceu de uma forma abrupta, doutor Manning! Principalmente,
segundo parece, pela classificação do professor Lowell a francês,
correspondente ao último período académico.
Manning pegou nos papéis do seu secretário e leu-os.
- Que vergonha para o nosso senhor Mead - disse Manning, sorrindo para si
próprio. - Uma vergonha terrível, terrível.
A noite caía sobre Boston, quando J. T. Fields acorreu ao escritório de
advogados de John Codman Ropes, um advogado corcunda, que convertera
a guerra numa dedicação profissional, depois de o irmão ter perdido a vida
no campo de batalha. Dizia-se que ele sabia mais sobre combates do que os
próprios generais que combatiam nelas. Como convinha a um perito
genuíno, ele respondeu sem ostentação às perguntas de Fields. Ropes
possuía uma lista com muitos lugares de auxílio a soldados - organizações
de caridade, fundadas, muitas delas, em igrejas, outras em edifícios
abandonados ou em armazéns, que alimentavam e vestiam veteranos
pobres ou que se esforçavam por se reintegrar na vida civil. Se se
procurasse soldados com problemas, esses locais seriam o sítio indicado
onde se devia acorrer.
- Não há nada semelhante a um diretório com os seus nomes, claro, e eu
diria que, a essas pobres almas, só as podemos identificar se elas quiserem,
senhor Fields - explicou Ropes no final da reunião.
Fields subiu a Tremont Street com um passo vigoroso, em direcção à
Corner. Há semanas que ele dedicava apenas uma fracção do seu tempo
habitual aos negócios, e preocupava-o que o seu navio encalhasse se ele
permanecesse ausente do leme por muito mais tempo.
- Senhor Fields.
- Quem está aí? - Fields parou e voltou atrás até uma azinhaga. -O senhor
está a falar comigo?
Ele não conseguia ver o seu interlocutor por causa da luz ténue. Fields
avançou devagar por entre os edifícios, penetrando no meio de um intenso
cheiro a fossa.
- Exatamente, senhor Fields. - O homem, de elevada estatura, saiu da
penumbra e retirou o chapéu da cabeça com a mão enluvada. Simon Camp,
o detective da Pinkerton, dirigiu-lhe um sorriso. - Desta vez o senhor não
tem o seu amigo professor para me apontar a espingarda, pois não?
- Camp! Não me incomode. Paguei-lhe mais do que devia para me deixar em
paz... Agora, desande.
- O senhor pagou-me, sim. Para lhe dizer a verdade, eu peguei neste caso
com enfado, uma mosca no meu chá, uma tolice. Mas o senhor e o seu
amigo puseram-me a pensar. Porque haviam uns janotas como os senhores
de ficar tão exaltados ao ponto de o senhor me dar dinheiro para que eu
não me metesse no cursito de literatura do professor Lowell? E o que
levara o professor Lowell a interrogar-me como se eu tivesse disparado
sobre Lincoln?
- Receio que um homem como o senhor nunca entenderia o que os homens
de letras apreciam - disse Fields, nervosamente. - Este é um assunto nosso.
- Ah, mas eu acho que já o entendo muito bem. Agora, compreendo.
Lembrei-me de uma coisa acerca dessa formiguita do doutor Manning. Ele
disse a um polícia que o visitou para lhe perguntar sobre o curso de Dante,
ministrado pelo professor Lowell. O velho estava frenético com isso. Então,
comecei a pensar: O que anda a polícia de Boston a fazer atarefada,
ultimamente? Bem, tem a ver com esse assuntozinho dos homicídios. Fields
tentou não demonstrar o pânico que sentia.
- Tenho de me despachar para um compromisso, senhor Camp. Camp
sorriu de modo beatífico.
- Então, pensei nesse rapaz, Pliny Mead, que cuspiu tudo quanto sabia
sobre os bárbaros e horripilantes castigos contra a humanidade que estão
nesse poema de Dante. Comecei a juntar todas as peças. Visitei novamente
o senhor Mead e fiz-lhe umas perguntas mais concretas, senhor Fields -
disse ele, inclinando-se para diante com complacência. - Eu conheço o seu
segredo.
- São disparates sem sentido. Não faço a mínima ideia do que você está a
dizer, Camp! - exclamou Fields.
- Eu conheço o segredo do Clube de Dante, Fields. Eu sei a verdade acerca
desses homicídios, e foi por isso que me pagou para que esqueCesse o
assunto.
- Isso é uma calúnia imoderada e malévola! - disse Fields, começando a
andar para sair da azinhaga.
- Então, irei à polícia - respondeu Camp, friamente. - E, em seguida, aos
jornais. E, de caminho, também volto a ir falar com o doutor Manning, de
Harvard, que anda aflito à minha procura. E veremos o que fazem todos
eles com os disparates sem sentido.
Fields virou-se e fitou Camp com um olhar duro.
- Se o senhor sabe o que diz saber, então o que o faz ter a certeza que não
fomos nós os responsáveis por essas mortes, e não acabamos por matá-lo
também, Camp?
Camp sorriu.
- Não seja vaidoso, Fields. Vocês são homens de letras, e é isso que
continuarão a ser até que mude a ordem natural do mundo.
Fields parou e engoliu em seco. Olhou em volta para ter a certeza que não
havia testemunhas por perto.
- O que o faria deixar-nos em paz, Camp?
- Para começar, três mil dólares... exatamente dentro de quinze dias - disse
Camp.
- Nunca!
- As verdadeiras recompensas oferecidas a troco de informação são muito
superiores, senhor Fields. Quem sabe se Burndy não tem nada a ver com
tudo isto. Eu não sei quem matou aqueles homens, nem quero saber. Mas
um jurado considerá-los-ia culpados quando soubesse que o senhor já me
pagou para que me afastasse do assunto, quando lhe fui fazer umas
perguntas sobre Dante... e que me ameaçaram com uma arma de fogo!
Fields percebeu, de repente, que Camp estava a fazer aquilo para se vingar
da sua própria cobardia diante da espingarda de Lowell.
- Você é um vil e mesquinho inseto - disse Fields sem conseguir conter-se.
Camp não pareceu preocupado com aquilo.
- Mas um inseto digno de confiança, já que você contou com ele para o
nosso acordo. Até os insetos têm dívidas para saldar, senhor Fields.
Fields combinou um encontro com Camp no mesmo sítio daí a duas
semanas.
Ele contou o sucedido aos amigos. Depois do choque inicial, os membros do
Clube de Dante concluíram que não tinham meios para evitar que Camp
levasse os seus planos por diante.
- De que vale isso? - perguntou Holmes. - Você já lhe deu dez moedas de
ouro, e isso não serviu para nada. Ele voltará mais tarde, com a mão
estendida, a pedir mais.
- O que Fields lhe deu foi um aperitivo - comentou Lowell. Eles não podiam
confiar que qualquer quantia em dinheiro assegurasse o seu segredo. Além
disso, Longfellow não queria ouvir falar em subornos para proteger Dante
ou a si próprios. Dante podia ter pago o fim do seu desterro e recusou-o,
numa carta que depois de passados todos aqueles séculos conservava a
paixão com que fora escrita. Prometeram esquecer-se de Camp. Naquela
noite, tinham de continuar vigorosamente a seguir a pista militar do caso.
Nessa noite, fizeram um esforço na revista dos arquivos, provenientes da
repartição das pensões do exército, que Rey levara emprestados, e
visitaram vários locais de assistência aos soldados. Fields só voltou para
casa perto da uma da madrugada, para grande exasperação de Annie Fields.
Ao entrar no vestíbulo principal, reparou que as flores que enviava para
casa todos os dias estavam amontoadas em cima da mesa, junto à entrada,
notoriamente fora de um vaso. Pegou no ramo mais fresco e foi ao encontro
de Annie na sala de recepções. Ela estava sentada no sofá de veludo azul a
escrever no seu Diário de acontecimentos literários e observações sobre
pessoas de interesse.
- Sinceramente, seria possível eu ver-te ainda menos, querido? - Ela não
levantou os olhos, e a sua bonita boca fez um trejeito. O seu cabelo cor de
jacinto cobria-lhe as orelhas.
- Prometo-te que as coisas vão melhorar. Este Verão... Bem, esforçar-me-ei
o mínimo no trabalho e vamos todos os dias a Manchester. O Osgood está
quase em condições para se tornar meu sócio. Nesse dia, comemoramos!
Ela voltou o rosto e fitou o tapete cinzento.
- Eu conheço as tuas obrigações. Mas já gasto as minhas energias no
governo da casa, sem sequer passar um instante contigo, como
recompensa. Apenas dedico uma hora ao estudo ou à leitura, excepto
quando estou demasiado cansada. Catherine está novamente doente, e, por
isso, a lavadeira teve de ir dormir para a sua cama, no quarto da criada do
andar de cima...
- Agora já estou em casa, meu amor - disse ele.
- Não, não estás. - Ela agarrou no casaco e no chapéu dele, que a criada do
andar térreo segurava, e devolveu-lhos.
- Querida? - O rosto de Fields entristeceu-se. Ela alisou o roupão e começou
a subir as escadas.
- Um mensageiro da Corner veio buscar-te com a máxima urgência há umas
horas.
- A esta hora de bruxas?
- Ele disse que devias lá ir agora ou temia que a polícia lá chegasse
Primeiro.
Fields quis seguir Annie pelas escadas acima, mas apressou-se a ir aos seus
escritórios na Tremont Street, onde encontrou o seu chefe administrativo, J.
R. Osgood, no aposento das traseiras. Cecilia Emory, a recepcionista do
vestíbulo, ocupava uma confortável cadeira de braços, soluçando e
escondendo o rosto. Dan Teal, o marçano do turno da noite, estava sentado
tranquilamente, pressionando um lenço contra o lábio ensanguentado.
- O que se passa? Então, o que aconteceu a Miss Emory? - perguntou Fields.
Osgood afastou Fields do alcance da rapariga, tomada pela histeria.
- Foi o Samuel Ticknor. - Osgood fez uma pausa para escolher as palavras. -
Ticknor estava a beijar Miss Emory atrás do balcão, fora do horário de
trabalho. Ela resistiu-lhe, gritou-lhe para que parasse e o senhor Teal
interveio. Receio que Teal tenha tido que dominar fisicamente o senhor
Ticknor.
Fields puxou por uma cadeira e animou amavelmente Cecilia Emory.
- Pode falar à vontade, minha querida - assegurou-lhe ele. Miss Emory
esforçou-se por conter o pranto.
- Desculpe, senhor Fields. Eu preciso deste emprego, e ele disse que se eu
não fizesse o que me pedia... Bem, ele é filho do William Ticknor, e diz-se
que, em breve, o senhor deve nomeá-lo seu sócio júnior, por causa do seu
nome... - Ela tapou a boca com uma mão, como se quisesse não ter
pronunciado aquelas horríveis palavras.
- Você... resistiu-lhe? - perguntou-lhe Fields com delicadeza. Ela anuiu.
- Ele é um homem forte. Graças a Deus..., o senhor Teal estava ali.
- Há quanto tempo é que isso com o senhor Ticknor dura, Miss Emory? -
perguntou-lhe Fields.
Cecilia respondeu entre soluços.
- Há três meses. - Quase desde que ela fora contratada. - Mas tenho Deus
por testemunha, em como nunca quis fazê-lo, senhor Fields! O senhor tem
de acreditar em mim!
Fields deu-lhe umas palmadinhas na mão e falou-lhe num tom paternal.
- Minha querida Miss Emory, ouça-me bem. Dado que é órfã, passarei por
cima disto e deixo-a conservar o seu lugar.
Ela anuiu activamente e lançou os braços em volta do pescoço de Fields.
Fields pôs-se de pé.
- Onde está ele? - perguntou, furioso, a Osgood. Aquilo era uma falta de
lealdade da pior espécie.
- Pusemo-lo no compartimento ao lado, à sua espera, senhor Fields. Devo
dizer-lhe que ele negou a versão dela da história.
- Se conheço alguma coisa da natureza humana, esta rapariga está
completamente inocente, Osgood. Senhor Teal - chamou Fields, virando-se
para o marçano. - Você testemunhou tudo o que Miss Emory contou?
Teal respondeu, falando muito devagar, com a boca a mover-se para cima e
para baixo como era habitual nele.
- Eu preparava-me para sair, senhor. Vi Miss Emory a debater-se e a pedir
ao senhor Ticknor para que a deixasse. Só quando o esmurrei é que ele a
largou.
- Você é um bom rapaz, Teal - disse Fields. - Não me esquecerei da sua
ajuda.
Teal ficou sem saber o que havia de responder.
- Senhor, tenho de estar no meu outro trabalho logo pela manhã. Durante o
dia, sou guarda na universidade.
- Ah! - exclamou Fields.
- Este emprego é tudo para mim - acrescentou Teal, rapidamente. -Se
precisar de mais alguma coisa minha, senhor, faça o favor de me dizer.
- Antes de se ir embora, quero que escreva tudo o que viu e fez aqui, senhor
Teal. No caso de ser necessária a intervenção da polícia, necessitamos de
uma declaração - disse Fields, e fez um gesto a Osgood para que fornecesse
a Teal uma folha de papel e uma caneta. - E quando ela estiver mais calma,
faça-a escrever também a sua versão da história -encarregou Fields o seu
principal empregado. Teal lutou para escrever algumas letras. Fields
percebeu que ele era quase analfabeto, e pensou como devia ser estranho
trabalhar no meio de livros, noites inteiras, sem saber algo tão básico como
ler e escrever. - Senhor Teal - disse ele -, dite a sua versão ao senhor
Osgood, porque isso vai ser oficial.
Teal acedeu agradecido, e devolveu o papel.
Fields demorou quase cinco horas de interrogatório a Samuel Ticknor para
lhe arrancar a verdade. Fields chegou a inquietar-se com o aspeto do
abatido Ticknor, com o rosto golpeado dos murros do marçano. De fato, o
seu nariz parecia descentrado. As respostas de Ticknor alternavam entre a
vanidade e a ligeireza. Mas acabou por admitir o seu adultério com Cecília
Emory, revelando ainda que se envolvera com outra secretária da Corner.
- Você vai abandonar imediatamente a empresa Ticknor e Fields, e a partir
deste dia nunca mais cá volta! - disse Fields.
- Ah! Esta empresa foi fundada pelo meu pai! Ele acolheu-o em Sua casa
quando você era pouco mais do que um mendigo! Sem ele, você não teria
hoje uma mansão nem uma mulher como Annie Fields! Você terá sempre o
meu nome acima do seu, senhor Fields!
- Você arruinou a vida de duas mulheres, Samuel! - disse Fields. -Para não
falar na destruição da felicidade da sua esposa e da sua pobre mãe. Para o
seu pai isto teria sido uma afronta ainda maior do que para mim!
Samuel Ticknor estava quase a chorar. Ao sair, gritou.
- Senhor Fields, o senhor vai voltar a ouvir falar no meu nome, juro-o por
Deus! Se me tivesse simplesmente agarrado pela mão e introduzido no seu
círculo social... - ele deteve-se uns instantes, antes de acrescentar: - Sempre
fui considerado um jovem inteligente em sociedade!
Decorreu uma semana sem desenvolvimentos; uma semana sem que se
descobrisse nenhum soldado, que também pudesse ser um erudito
dantista. Oscar Houghton enviou uma mensagem a Fields depois de a
investigação deste confirmar que não faltava nenhuma prova. As
esperanças estavam a desvanecer-se. Nicholas Rey advertiu que estava a
ser vigiado mais de perto no Comissariado, mas fizera uma nova tentativa
com Willard Burndy. O processo causara um considerável desgaste no
ladrão de caixas-fortes. Quando não se mexia nem falava, parecia
desprovido de vida.
- Você não consegue sair desta sem ajuda - disse-lhe Rey. - Eu sei que você
não é culpado, mas também sei que o viram nas imediações da casa do
Talbot, no dia em que o cofre foi roubado. Pode dizer-me porquê, ou terá de
subir a escadaria do patíbulo.
Burndy estudou Rey, e depois assentiu com desânimo.
- Abri o cofre do Talbot. Mas, na verdade, não. Não vai acreditar. Não... Eu
próprio não acredito! Olhe, um tipo disse-me que me dava duzentos se lhe
ensinasse a rebentar um determinado cofre. Pensei que seria um trabalho
de nada... e sem que eu corresse o risco de ser apanhado! Palavra de
cavalheiro, em como não fazia a mínima ideia que a casa pertencia a um
clérigo! Eu não o assaltei! E, se o tivesse feito, não teria devolvido o
dinheiro!
- Porque é que você foi a casa do Talbot?
- Para apalpar o terreno. O tipo parecia saber que o Talbot não estava em
casa, por isso, entrei só para ver a disposição da casa. Entrei só para ver
como era o cofre. - Burndy suplicou compreensão com um riso estúpido. -
Não causei mal nenhum com isso, pois não? Era um cofre simples, e só levei
cinco minutos a explicar-lhe como devia arrombá-lo. Fiz-lhe um desenho
num guardanapo numa taberna. Para que saiba, o tipo tinha uma ferida na
cabeça. Ele disse-me que só queria mil dólares..., que não levava nem mais
um centavo. Já imaginou uma coisa assim?
Ouça, você não pode dizer que eu roubei o pregador, senão de certeza que
sou enforcado! O que quer que me tenha pago para rebentar o cofre, é ele o
louco... o que matou o Talbot, o Healey e o Phineas Jennison!
- Então, diga-me quem lhe pagou - concluiu Rey, calmamente -, ou é mesmo
enforcado, senhor Burndy.
- Era de noite, e eu tinha estado na taberna Stackpole, e estava um
bocadinho tocado. Agora, parece-me que tudo aconteceu muito depressa,
como se o tivesse sonhado, e a verdade só se me apresentou depois. De
fato, eu não consigo dizer como era a cara dele, ou, pelo menos, não me
lembro de nada.
- O senhor não viu nada ou não se lembra, senhor Burndy? Burndy
mordiscou o lábio, e disse com relutância.
- Há uma coisa. Ele era um dos seus. Rey aguardou um instante.
- Um negro?
Os olhos rosados de Burndy chisparam, e pareceu estar prestes a ter um
ataque.
- Não! Um Billy Yank. Um veterano! - Ele tentou recompor-se. - Um soldado
com uniforme de gala, como se estivesse em Gettysburg a fazer ondular a
bandeira!
Em Boston, os lugares de auxílio aos soldados eram geridos localmente, de
forma extra-oficial e sem mais publicidade além da palavra passada boca-a-
boca entre os veteranos. A maioria daqueles lugares armazenava cestos de
comida duas ou três vezes por semana para serem distribuídos pelos
soldados. Seis meses depois do final da guerra, a Câmara Municipal
manifestava cada vez menos vontade de continuar a financiar aqueles
lugares. Os melhores, em geral vinculados a uma igreja, propunham-se a
ambiciosa tarefa de doutrinar os antigos soldados. Além dos alimentos e da
roupa, eram-lhes oferecidos sermões e conversas.
Holmes e Lowell cobriram o quadrante sul da cidade. Eles tinham
contratado Pike, o cocheiro. Enquanto esperava em frente às instalações do
auxílio aos soldados, Pike pegava num bocado de uma cenoura, ofereCIa-o a
uma das suas velhas éguas, e depois trincava ele próprio outro bocado.
Entretinha-se a calcular quantos bocados no total, entre dentadas equídeas
e humanas, seria preciso trincar para consumir uma cenoura de tamanho
médio. O tédio não compensava o pagamento da tarifa. Além disso, quando
Pike perguntava por que razão iam de um lugar daqueles a outro, o
cocheiro - que desenvolvera uma astúcia própria de quem vive entre os
cavalos - sentia-se incomodado diante das respostas falsas.
Assim, Holmes e Lowell alugaram uma charrete de um único cavalo, em que
este e o respectivo cocheiro adormeciam sempre que a charrete fazia uma
paragem.
O último lugar para acolhimento dos soldados a receber a visita deles
parecia ser um dos mais bem organizados. Estava instalado numa igreja
unitarista vazia, que fora pervertida durante as longas batalhas com os
congregacionalistas. Naquele local em particular, proporcionavam aos
soldados locais uma mesa para se sentarem e uma refeição quente à ceia,
pelo menos, quatro noites por semana. A ceia terminara pouco antes da
chegada de Lowell e Holmes, e os soldados dirigiam-se para a igreja
contígua.
- Está apinhada - comentou Lowell, espreitando para a capela, cujos bancos
estavam repletos de uniformes azuis. - Vamos sentar-nos. Pelo menos,
descansamos os pés.
- Palavra de honra, Jamey, não vejo como é que isto nos pode ajudar mais.
Talvez devêssemos passar ao próximo da lista.
- Este era o seguinte. Segundo a lista de Ropes, o outro só está aberto às
quartas-feiras e aos domingos.
Holmes observou como um dos soldados, com um coto no lugar da perna,
era empurrado numa cadeira de rodas através do pátio por um camarada.
Este era pouco mais do que um rapaz, com a boca afundada por lhe terem
caído os dentes devido ao escorbuto. Aquele era o lado da guerra que as
pessoas não podiam saber pelos relatórios dos oficiais nem pelas crónicas
dos repórteres.
- De que serve esporear um cavalo esgotado, meu caro Lowell? Nós não
somos Gedeão, que observa os seus soldados a beber do poço. Limitando-
nos a olhar, não vamos chegar a lado nenhum. Não encontramos Hamlet
nem Fausto, não determinamos o correto nem o errado, nem o valor dos
homens a fazerem provas de albumina ou a examinarem fibras ao
microscópio. Tenho a impressão de que temos de encontrar uma nova via
de acção.
- Você e Pike são igualzinhos - disse Lowell, e abanou a cabeça com tristeza.
- Mas juntos encontraremos o caminho. De momento, Holmes, limitemo-
nos a decidir se ficamos ou se dizemos ao cocheiro que nos leve a outro
local de acolhimento de soldados.
- Vocês são novos, hoje - interrompeu-os um soldado zarolho, com uma
pele sulcada de rugas e muito picada pelas bexigas, e com um cachimbo de
cerâmica preta a sair-lhe da boca. Como não esperavam manter uma
conversa com terceiros, os surpreendidos Holmes e Lowell ficaram ambos
sem palavras e aguardaram educadamente que um dos dois respondesse
ao seu interlocutor. O homem vestia um uniforme de gala que, conforme
parecia, não via sabão desde antes da guerra.
O soldado começou a encaminhar-se para a igreja e só olhou para trás por
breves instantes para dizer, um pouco ofendido.
- Peço desculpa. Pensei que tivessem vindo por causa de Dante. Por breves
instantes, nem Lowell nem Holmes tiveram reacção.
Ambos julgaram ter imaginado a palavra que o outro acabava de
pronunciar.
- Hei, você aí, espere! - exclamou Lowell, que mal conseguia falar com
coerência devido à emoção.
Os dois poetas precipitaram-se para o interior da capela, onde havia pouca
luz. Deparando-se-lhe um mar de uniformes, não conseguiram descobrir o
não identificado dantista.
- Sentem-se! - gritou alguém de mau humor, através das mãos em concha.
Holmes e Lowell procuraram uns lugares às apalpadelas e instalaram-se
nas extremidades de bancos separados. Contorciam-se desesperadamente
em busca de um rosto no meio da multidão. Holmes voltou-se para a
entrada, para a eventualidade de o soldado tentar fugir. Os olhos de Lowell
perscrutavam os olhares fixos e toldados e as expressões vazias, que
enchiam a capela, e finalmente passaram pela cara picada pelas bexigas e
pelo olho solitário do seu interlocutor.
- Descobri-o - sussurrou Lowell. - Já dei com ele, Wendell. Descobri-o!
Descobri o nosso Lúcifer!
Holmes virou-se, resfolegando de impaciência.
- Não consigo vê-lo, Jamey!
Alguns soldados fizeram sinais violentamente, dirigindo-se aos dois
intrusos.
- Ali! - murmurou Lowell, frustrado. - Um, dois... o quarto banco a começar
da frente!
- Onde?
- Ali!
- Agradeço-vos, meus bons amigos, por me terem convidado mais uma vez.
- Uma voz trémula interrompeu-os, ondeando desde o púlpito. - E agora
continuarão os castigos do Inferno de Dante...
Lowell e Holmes dirigiram imediatamente a sua atenção para a parte da
frente da capela escura e apinhada de gente. Continuaram a olhar,
enquanto o velho amigo deles, George Washington Greene, tossia
debilmente, corrigia a sua postura, e apoiava os braços nos dois lados do
facistol. A sua congregação estava fascinada com a expetativa e a fidelidade,
aguardando ansiosamente voltar a transpor as portas do seu inferno.
CÂNTICO 3
XV
H, PEREGRINOS, APROXIMAI-VOS AGORA DO CÍRCULO FINAL
cada direcção, com o frenesim de Paul Revere(1). Ele ordenou aos seus
olhos que se adaptassem à escuridão da sala, para procurar, nos retratos
menos obscuros que se perfilavam na parede, algum rosto familiar.
- Nos tempos que correm, meus amigos, não há descanso, isso lhes garanto
- continuou o alfaiate o seu triste lamento. - Nem sequer para os mortos.
- Os mortos? - repetiu Lowell.
- Os mortos - murmurou Fields, passando a Lowell uma Bíblia com o fecho
aberto. A primeira página estava cheia com um texto escrito a tinta. Era a
genealogia completa de uma família, redigida pelo defunto ocupante da
casa, o reverendo Elisha Talbot.
w
*1 Paul Revere (1735-1818), herói da Guerra da Independência, ficou
famoso pela sua frenética cavalgada noturna, no dia 18 de Abril de 1775,
para avisar o povo de Massachusetts do envio de tropas britânicas. Apesar
de ter sido capturado antes de chegar ao seu destino, Concord, a figura do
ginete da meia-noite transformou-se numa lenda popular. Longfellow
dedicou-lhe também um poema. [N. da T.]
w
XVI
DIFÍCIO PRINCIPAL DA UNIVERSIDADE, 8 DE OUTUBRO DE 1865,
w
*1 Família de Massachusetts, em que alguns dos seus membros se
destacaram na área do direito e da política, no século xix e no início do
século xx. [N. da T.]
w
- Nunca houve diferenças entre nós - disse Lowell com tristeza.
- O Jennison animou-o para que você defrontasse a Corporação e incitou
esta a lutar contra si. Uma batalha que teria desgastado Manning. Qualquer
que tivesse sido o resultado final, vagariam alguns lugares, e o Jennison
teria aparecido como um herói ao prestar o seu apoio à causa da
Universidade. Esse foi sempre o seu objectivo - comentou Longfellow,
tentando assegurar a Lowell que ele não fizera nada para perder a amizade
que tinha com Jennison.
- Não me entra na cabeça, Longfellow - disse Lowell.
- Ele contribuiu para o corte de relações entre si e a universidade, Lowell, e,
em contrapartida, cortaram-no a ele - interveio Holmes. - Esse foi o seu
contrapasso.
Holmes fizera sua a preocupação de Nicholas Rey relativamente aos
bocados de papel encontrados junto aos corpos de Talbot e Jennison, e
ambos se tinham sentado juntos durante horas a partilhar possíveis
combinações. Holmes estava agora a compor palavras ou partes de
palavras com cópias manuscritas das letras de Rey. Não havia dúvidas que
outras haviam sido deixadas junto ao corpo do juiz Healey do Supremo
Tribunal, mas, nos dias compreendidos entre o assassínio e a descoberta do
corpo, a brisa proveniente do rio levara os papéis. Essas letras
desaparecidas teriam completado a mensagem que o assassino queria que
eles lessem. Holmes tinha a certeza disso. Sem elas, aquilo era como um
mosaico quebrado. Não podemos morrer sem isto como... im... sobre...
Longfellow fixou a sua atenção numa nova página do diário, no qual
baseava as investigações. Molhou a pluma em tinta, mas ficou a olhar
fixamente em frente durante tanto tempo que a ponta acabou por secar. Ele
não podia escrever a necessária conclusão de tudo aquilo: Lúcifer impusera
os seus castigos em benefício deles, em benefício do Clube de Dante.
O frontispício da Câmara Legislativa do estado, em Boston, rasgava-se ao
cimo da Beacon Hill. Ainda mais acima, elevava-se a cúpula de cobre, que
rematava o edifício, com a sua torre pequena e pontiaguda, a vigiar a cidade
como um farol. Corpulentos olmeiros, despidos e branqueados pela neve de
Dezembro, montavam guarda no recinto.
O governador John Andrew, com os seus caracóis pretos a sobressaírem em
rolos por baixo do seu chapéu preto de seda, permanecia de pé com toda a
dignidade que a sua forma de pêra lhe permitia, enquanto cumprimentava
políticos, dignitários locais e militares fardados,
sempre com o mesmo sorriso distraído, próprio do político. Os óculos
pequenos, de sólidos aros dourados, do governador eram o seu único sinal
de indulgência para com o material.
- Governador.' - O presidente da Câmara Lincoln curvou-se ligeiramente,
enquanto escoltava a senhora Lincoln pelas escadarias de acesso. - Parece
que reuniu os soldados mais ataviados.
- Obrigado, senhor presidente Lincoln. Senhora Lincoln, seja bem-vinda...
Faça favor. - O governador Andrew conduziu-os ao interior. -A
concorrência é mais prestigiosa que nunca.
- Ao que parece, até Longfellow foi acrescentado à lista de convidados -
disse o presidente da Câmara Lincoln, e deu ao governador Andrew uma
palmadinha lisonjeira no ombro.
- É uma coisa muito bonita o que o senhor está a fazer por estes homens,
governador, e nós... a cidade, quero dizer aplaudimo-lo. - A senhora Lincoln
segurou no vestido, que produziu um ligeiro rangido, e entrou com um
passo régio no foyer. Uma vez ali dentro, um espelho pendurado a baixa
altura proporcionou-lhe, a ela e às de mais damas, uma visão dos mais
pequenos pormenores dos seus vestidos, na eventualidade de os seus fatos
se terem desarranjado inadequadamente durante o caminho para a
recepção; um marido era completamente inútil para tais propósitos.
Misturados no vasto salão da mansão com vinte ou trinta convidados, havia
setenta a oitenta militares de cinco companhias diferentes,
esplendidamente ataviados com os seus uniformes e capas de gala. Muitos
dos regimentos mais activos que seriam homenageados tinham apenas um
número reduzido de sobreviventes. Apesar de os conselheiros do
governador Andrew o terem pressionado para incluir naquela reunião
apenas os mais destacados entre o núcleo escolhido dos militares - já que
alguns soldados, denotaram eles, estavam perturbados por causa da guerra
-, Andrew insistira em que todos fossem homenageados pela folha de
serviço e não pelo seu nível social.
O governador Andrew caminhava para o centro do espaçoso salão com um
passo staccato, desfrutando de uma onda de ostentação, enquanto
observava os rostos e sentia o zumbido dos nomes daqueles com quem
tivera a sorte de se familiarizar durante os anos da guerra. Por mais de uma
vez nesses tempos conturbados, o Clube de Sábado enviara Um fiacre à
Câmara Legislativa do estado para forçar Andrew a sair do Seu escritório e
a passar um serão descontraído nos quentes aposentos da casa dos Parker.
Todo aquele tempo fora dividido em duas épocas "" antes da guerra e
depois da guerra. Em Boston, Andrew pensava, «solvemos», enquanto se
misturava sem restrições com as gravatas brancas e os chapéus de seda,
os ouropéis e os cordões dourados dos oficiais, as conversas e os
cumprimentos dos velhos amigos.
George Washington Greene colocou-se ao lado de uma reluzente estátua de
mármore, que representava as Três Graças, cada uma inclinando-se
delicadamente para as outras, com os seus rostos frios e angélicos e os
olhos cheios de uma tranquila indiferença.
«Como podia um veterano de um lugar de auxílio aos soldados, que
escutara os sermões de Greene, conhecer também os minuciosos
pormenores das nossas tensões com Harvard?»
Esta pergunta fora colocada dentro do escritório de Craigie House. Tinham
sido propostas respostas, e eles sabiam que encontrarem essa resposta
significava encontrarem o assassino. Um dos jovens cativados pelos
sermões de Greene podia ter tido um pai ou um tio na Corporação de
Harvard ou no Conselho de Inspetores, que, de forma inocente, tivesse
relatado as suas histórias ao jantar, ignorando o efeito que podiam ter na
mente transtornada de alguém que ocupasse um lugar ao seu lado.
Os eruditos tinham de determinar com exactidão quem estivera presente
nas diversas reuniões do conselho, onde se tratara dos papéis de Healey,
Talbot e Jennison na posição da universidade contra Dante. Essa lista seria
comparada com todos os nomes e perfis que conseguissem reunir dos
soldados acolhidos nesses lugares. Uma vez mais, solicitariam a ajuda do
senhor Teal para aceder à Sala da Corporação. Fields coordenaria o plano
com o seu empregado quando os trabalhadores do turno da noite
chegassem à Corner.
Entretanto, Fields ordenou a Osgood que compilasse uma lista de todo o
pessoal da Ticknor & Fields, que tivesse combatido na guerra, baseando-se
sobretudo no Diretory of Massachusetts Regiments in the War of Rebellion.
Nessa noite, Nicholas Rey e os outros iriam assistir à última recepção do
governador em honra dos soldados de Boston.
Os senhores Longfellow, Lowell e Holmes dispersaram-se pelo apinhado
salão de recepções. Cada um deles mantinha os olhos vigilantes sobre o
senhor Greene, e, com algum pretexto casual, fizeram perguntaS a muitos
veteranos, em busca do soldado que Greene descrevera.
- Dir-se-ia que isto é o aposento das traseiras de uma taberna, em vez da
câmara estatal! - lamentou-se Lowell, enquanto afastava com uma palmada
algum fumo fugidio.
- Então, senhor Lowell, acaso não alardeava o senhor fumar deZ charutos
por dia, e a sensação que isso lhe provocava à chegada da transpiração? -
censurou-o Holmes.
Nós nunca gostamos de pressentir os nossos próprios vícios nos outros,
Holmes. Ah, vamos ver se tomamos um ou dois copos - sugeriu Lowell.
As mãos do doutor Holmes rebuscaram nos bolsinhos do seu colete de seda
lustrosa, e as suas palavras brotaram como que através de uma peneira.
- Todos os soldados com quem falei asseguram nunca ter conhecido
ninguém remotamente parecido com a descrição apresentada pelo Greene,
ou viram um homem exatamente com essas características no outro dia,
mas não sabem o seu nome nem onde poderemos encontrá-lo. Talvez o Rey
tenha tido mais sorte.
- Dante, meu caro Wendell, era um homem de grande dignidade pessoal, e
um dos segredos da sua dignidade era que nunca tinha pressa. Nunca o
encontrará impropriamente apressado... Uma excelente regra para nós
seguirmos.
Holmes emitiu uma gargalhada céptica.
- E você seguiu essa regra?
Lowell conteve-se dando um trago meditativo. Depois disse,
pensativamente:
- Diga-me, Holmes, você alguma vez teve a sua própria Beatrice?
- Perdão, como disse, Lowell?
- Uma mulher que tenha inflamado as profundezas mais terríveis da sua
imaginação.
- Bem, a minha Amélia!
Lowell rebentou em gargalhadas que pareciam bramidos.
- Oh, Holmes! Você nunca quebrou os seus votos? Uma esposa nunca pode
ser a sua Beatrice. Confie no que lhe digo, porque eu, à semelhança de
Petrarca, Dante e Byron, estive perdidamente apaixonado antes dos dez
anos. Só o meu coração sabe as angústias que sofri.
- Fanny ia adorar esta conversa, Lowell!
- Ora! Dante teve a sua Gemma, que foi a mãe dos seus filhos, mas não
alcançou a sua inspiração! Você sabe como é que eles se conheceram?
Longfellow não acredita nisto, mas Gemma Donati é a dama mencionada na
Vita Nuova, que consola Dante pela perda de Beatrice. Sabe, aquela jovem?
Holmes seguiu o olhar fixo de Lowell até uma jovem delgada, de cabelo
negro e lustroso, que resplandecia sob os brilhantes candelabros do salão.
- Ainda me lembro... Foi em 1839, na Galeria Allston. Ali estava a criatura
mais bela que os meus olhos já tinham visto. Não era estranho que aquela
beleza tivesse deslumbrado os amigos do marido, ali, ao canto. As suas
feições eram perfeitamente judias. Ela tinha uma tez morena,
mas o seu era um dos rostos claros no qual cada sombra de sentimento
brota dele como a sombra de uma nuvem sobre a relva. Do lugar que eu
ocupava na sala, todo o contorno dos seus olhos emergia completamente
das sombras das suas sobrancelhas e da tonalidade da sua tez, de modo que
só se conseguia ver uma glória indefinida e misteriosa. Mas que olhos!
Quase me fizeram estremecer. Aquela visão única da sua seráfica
formosura inspirou-me mais poesia...
- Ela era inteligente?
- Santo Deus, não sei! Ela bateu as pestanas na minha direcção, e não
consegui pronunciar uma única palavra. Só há uma maneira de atuar com
as mulheres namoriscadeiras, Wendell, fugir. Ainda assim, passados vinte e
cinco anos ou mais, não consigo afastá-la da memória. Garanto-lhe que
todos temos a nossa própria Beatrice, quer ela viva próximo de nós quer
viva apenas na nossa mente.
Lowell parou de falar quando Rey se aproximou.
- Agente Rey, os ventos sopraram a nosso favor... É tudo quanto posso
dizer-lhe. Temos sorte em podermos contar consigo ao nosso lado.
- Pode agradecê-lo à sua filha - disse Rey.
- A Mabel? - Lowell virou-se para ele, espantado.
- A Mabel foi falar comigo para me convencer a ajudá-los, meus senhores.
- A Mabel falou consigo em segredo? Holmes, você sabia disto? - perguntou-
lhe Lowell.
Holmes negou com a cabeça.
- De modo nenhum. Mas temos de a felicitar!
- Se você for severo com ela por causa disto, professor Lowell -avisou-o Rey
com um gesto sério, levantando o queixo -, terei de o prender.
Lowell riu com vontade.
- Esse é um bom argumento, agente Rey! Agora, mantenhamos a panela a
ferver.
Rey anuiu com um gesto cúmplice e continuou a sua ronda pelo salão.
- Você imagina isto, Wendell? A Mabel a conspirar nas minhas costas deste
modo, achando que pode mudar as coisas!
- Ela é uma Lowell, meu bom amigo.
- O senhor Greene está a aguentar - informou Longfellow, juntando-se a
Lowell e a Holmes. - Mas preocupa-me que... - Longfellow interrompeu-se. -
Ah, aí vêm a senhora Lincoln e o governador AndreW-
Lowell revirou os olhos. O seu lugar na sociedade demonstrava ser
incómodo para os seus propósitos daquela noite,
já que distribuir apertos de mão e manter conversas animadas com
professores, ministros, políticos e funcionários da universidade o distraíam
da finalidade que se haviam proposto alcançar. - Senhor Longfellow.
Longfellow virou-se para se encontrar com um trio feminino da alta
sociedade de Beacon Hill.
- Então, boa noite, minhas senhoras - disse Longfellow.
- Eu estava justamente a falar de si, senhor, durante umas férias em Buffalo
- disse a beldade de cabelo negro e brilhante daquela trindade.
- Ah, sim? - perguntou Longfellow.
- Sim, com Miss Mary Frere. Ela fala de si com muito carinho, diz que é uma
pessoa rara. Pelo que ela conta, passou momentos fantásticos consigo e a
sua família em Nahant, no Verão passado. E agora acontece que o encontro
aqui. Que maravilha!
- Ah, muito bem, é muito amável da sua parte - respondeu Longfellow a
sorrir, mas rapidamente dirigiu o olhar para longe. - Por onde anda o
professor Lowell? Viu-o por aí?
Próximo, Lowell voltava a contar prolixamente uma das suas típicas
anedotas a um pequeno grupo.
- Então, o Tennyson exclamou da cabeceira da mesa: «Sim, que raio. Eu
gostava de agarrar numa faca e de lhes arrancar as tripas!» Apesar de ser
um verdadeiro poeta, o rei Alfred não usava perífrases, como «vísceras
abdominais», para designar essa parte do corpo!
Os ouvintes de Lowell riram e gracejaram. - Se dois homens tentassem ser
parecidos - disse Longfellow, voltando-se novamente para as três damas,
que permaneciam ali de pé, com as orelhas de um tom rosado vivo e as
bocas muito abertas -, não o conseguiriam melhor do que o Lorde
Tennyson e o professor Lovering, da nossa universidade.
A beldade de cabelos negros e brilhantes dirigiu um olhar agradecido à
rápida fuga de Longfellow para se afastar do comentário inapropriado de
Lowell.
- É algo que dá que pensar, não é? - interjeitou ela.
Quando Oliver Wendell Holmes Júnior recebeu um bilhete do seu pai, para
que também assistisse ao banquete dos soldados na Câmara Legislativa
estatal, ele suspirou, releu-o e proferiu uma maldição. Não era tanto por se
importar com a presença do seu pai, mas também não achava que fosse um
serão agradável. Como está o seu querido pai? Continua a sua forma
atabalhoada de dar aulas, enquanto pensa nos seus poemas?
É verdade que o doutorzinho consegue pronunciar xxx palavras por
minuto, capitão Holmes? Porque havia ele de ser incomodado com
perguntas sobre o assunto favorito do doutor Holmes, a saber, o próprio
doutor Holmes?
Num grande grupo de membros do seu regimento, Júnior era agora
apresentado a vários cavalheiros escoceses, que faziam parte de uma
delegação que estava de visita. Ao ser pronunciado o nome completo de
Júnior, produziu-se a habitual enumeração de perguntas relativas ao seu
parentesco.
- É filho de Oliver Wendell Holmes? - indagou um recém-incorporado na
conversa, um escocês sensivelmente da idade de Júnior, que se apresentou
como uma espécie de mitólogo.
- Sou.
- Bem, eu não gosto dos livros dele - disse o mitólogo a sorrir, e afastou-se.
No silêncio que pareceu rodear Júnior, ali, sozinho no meio da charla, de
repente, ele sentiu-se irado contra a omnipresença do seu pai no mundo, e
voltou a amaldiçoá-lo. Seria desejável estender a própria fama de forma tão
indiscriminada, que vermes como o que Júnior acabara de conhecer,
pudessem considerá-lo um? Júnior virou-se e viu o doutor Holmes na
extremidade de um círculo, com o governador, e James Lowell a gesticular
no centro. O doutor Holmes colocara-se em bicos de pés, tinha a boca
aberta e estava à espera de uma oportunidade para falar. Júnior contornou
o grupo e dirigiu-se para o outro lado do salão.
- Wendy, olha? - Júnior fingiu não ouvir, mas o chamamento repetiu-se, e o
doutor Holmes abriu caminho por entre alguns soldados para se aproximar
dele.
- Olá, pai.
- Então, Wendy, não queres vir cumprimentar Lowell e o governador
Andrew? Anda, deixa-me mostrar-te como estás tão aprumado no teu
uniforme! Ah, ali está!
Júnior reparou que os olhos do seu pai percorriam o salão.
- Deve ser a camarilha escocesa de que Andrew estava a falar.-Ali, Júnior.
Eu gostava que conhecesses o jovem mitólogo, senhor Lang, e discutisses
com ele algumas ideias que tenho sobre Orfeu juntar-se a Eurídice fora das
regiões infernais. Leste alguma coisa dele, Wendy?
O doutor Holmes tomou o braço de Júnior e puxou-o para o outro lado do
salão.
- Não. - Júnior retirou o braço com força para deter o seu pai. O doutor
Holmes olhou-o, magoado. - Eu só aqui vim para comparecer ao lado do
meu regimento, pai. Tenho de ir ter com Minny a casa de James. Por favor,
peça desculpa por mim aos seus amigos.
- Já olhaste bem para nós? Nós formamos uma feliz irmandade, Wendy.
Cada vez mais, à medida que os anos vão passando. Meu rapaz, desfruta da
tua travessia no navio da juventude, porque é facílimo perder-se no mar!
- É, pai - disse Júnior, olhando por cima do ombro do seu progenitor para o
mitólogo, que falava fazendo trejeitos. - Ouvi esse tipo Lang falar mal de
Boston.
A expressão de Holmes tornou-se solene.
- Ah, sim? Pois então, não merece que percamos o nosso tempo com ele,
meu filho.
- Se o senhor o diz, meu pai. Diga-me, ainda está a trabalhar naquele novo
romance?
O sorriso de Holmes desvaneceu-se diante do interesse insinuado pela
pergunta de Júnior.
- De fato! Ultimamente, outros assuntos tomaram muito do meu tempo,
mas Fields promete que ganharei muito dinheiro quando o publicar. Terei
de me lançar ao Atlântico se não o fizer... quero dizer, à água propriamente,
não à revista The Atlantic, de Fields.
- Vai convidar os críticos a caírem-lhe em cima novamente - disse Júnior,
hesitando continuar a expressar o seu pensamento. De repente, desejou ser
suficientemente rápido para trespassar o verme do mitólogo com o seu
sabre regulamentar. Prometeu a si próprio ler a obra desse Lang, mesmo
sabendo que lhe daria muita satisfação se ela tivesse pouca qualidade. -
Talvez eu tenha oportunidade de ler esse romance, pai. Vamos ver se
arranjo tempo.
- Eu ficaria muito contente, meu rapaz - respondeu Holmes,
tranquilamente, enquanto Júnior se preparava para se ir embora.
Rey encontrara um dos soldados mencionados pelo diácono do lugar de
acolhimento dos soldados, um veterano só com um braço, que acabara de
dançar com a sua esposa.
- Alguns diziam-me - explicou orgulhosamente o soldado a Rey -, quando
vos mobilizaram a vocês, rapazes: «Eu não estou a combater numa guerra
de negros.» Ah, não faz a mínima ideia de como isto me envergonhava.
- Por favor, senhor Tenente - disse Rey. - Este cavalheiro que lhe descrevi...
acha que alguma vez o pode ter visto no lugar de auxílio aos soldados?
- Seguramente, seguramente. Um bigode em forma de volante e cor de feno.
Quase sempre de uniforme vestido. Blight... É como ele se chama.
Tenho a certeza disso, embora não tenha a certeza absoluta. Capitão Dexter
Blight. Perspicaz, sempre a ler. Um bom oficial, ainda que me pareça que
não assistia aos cultos religiosos.
- Diga-me, por favor, ele interessava-se muito pelos sermões do senhor
Greene?
- Ah, estou certo de que eles agradavam ao velho brigão! E sabe que aqueles
sermões eram como uma lufada de ar fresco. Eram do mais ousado que
alguma vez ouvi. Ah, claro, o capitão, mais do que ninguém, gostava deles,
ou pelo menos era isso que me parecia!
Rey mal conseguia conter-se.
- Sabe onde posso encontrar o capitão Blight?
O militar bateu com o coto na palma da sua única mão e fez uma pausa.
Depois lançou o braço são em volta da sua esposa.
- Bem, sabe, senhor agente, aqui a minha cara bonita deve ter-lhe dado
sorte.
- Oh, por favor, Tenente - protestou ela.
- Julgo saber onde o senhor pode encontrá-lo - disse o veterano. - Ali à
frente.
O capitão Dexter Blight, do 19.o Regimento de Massachusetts, tinha um
bigode revirado em forma de U, invertido, cor de feno, tal como Green o
descrevera.
O olhar fixo de Rey, que não durou mais de três segundos, foi discreto mas
vigilante. Ele estava surpreendido com a extrema curiosidade que sentia
por cada pormenor da aparência do homem.
- Senhor agente Rey, não é? - O governador Andrew olhou para o rosto de
Rey, e, cerimoniosamente, estendeu-lhe a mão. - Não estava à espera de o
encontrar aqui!
- Eu não pensava vir, governador. Espero que me perdoe.
Com isto, Rey recuou para um aglomerado de soldados, e o governador, que
o admitira na Polícia de Boston, ficou ali, de pé, fazendo um gesto de
incredulidade.
A sua súbita presença, que aparentemente passara despercebida aos
demais participantes da recepção, desfez todos os outros pensamentos dos
membros do Clube de Dante, quando todos eles, um a um, foram
informados. Fixaram nele um olhar colectivo. Podia aquele homem,
aparentemente mortal e vulgar, ter surpreendido Phineas Jennison e tê-lo
despedaçado? As suas feições eram marcadas e conferiam-lhe uma
expressão triste, mas, além de tudo o mais, não tinham nada de notável, sob
o seu chapéu de feltro preto e o seu dólmã com uma única fileira de botões.
Seria ele? O tradutor savant, que convertera as palavras de Dante em acção,
aquele que se antecipara a eles uma e outra vez?
Holmes desculpou-se diante de alguns admiradores e correu a juntar-se a
Lowell.
- Aquele homem... - sussurrou Holmes, prisioneiro da sensação de temor de
que algo correra mal.
- Já sei. - Lowell devolveu-lhe o sussurro. - O Rey também o viu.
- Devíamos fazer com que o Greene se aproximasse dele? - perguntou
Holmes. - Há qualquer coisa naquele homem. Ele não parece...
- Olhe! - disse Lowell, rapidamente.
Nesse instante, o capitão Blight descobriu George Washington Greene
vagueando sozinho. As proeminentes narinas do soldado dilataram-se com
interesse. Absorto no meio das pinturas e esculturas, Greene continuou a
deambular, como se estivesse numa exposição de fim-de-semana. Blight
contemplou Greene por instantes, depois, em passos lentos e incertos,
dirigiu-se para ele.
Rey avançou para se situar mais próximo, mas quando se virou com o
objectivo de vigiar Blight, reparou que Greene conversava com um
bibliófilo. Blight transpusera a porta.
- Atenção - exclamou Lowell. - Ele está a ir-se embora!
O ar estava demasiado sereno para que houvessem nuvens ou caísse neve.
O céu limpo mostrava uma meia-lua tão exata que parecia ter sido cortada
com uma lâmina acabada de afiar.
Rey distinguiu um soldado de uniforme no Common. Ele coxeava e apoiava-
se num bastão de marfim.
- Capitão! - chamou-o Rey.
Dexter Blight virou-se e olhou com dureza aquele que o chamava,
revirando os olhos.
- Capitão Blight.
- Quem é você? - A sua voz soou profunda e resoluta.
- Nicholas Rey. Preciso de falar consigo - disse Rey, mostrando-lhe o seu
distintivo de polícia. - É só por um momento.
Blight cravou o seu bastão no gelo, movendo-se mais depressa do que Rey
julgara ser possível.
- Não tenho nada a dizer! Rey agarrou Blight pelo braço.
- Se está a pensar prender-me, arranco-lhe as suas malditas tripas e atiro-
as ao lago Frog! - gritou Blight.
Rey temeu ter cometido um terrível engano. Aquele incontrolado estalido
de ira, a emoção não contida, eram próprios de alguém que tem medo, não
de um homem intrépido... Não daquele que eles procuravam. Ao olhar para
trás, para a Câmara Legislativa do estado, cujas escadarias os membros do
Clube de Dante se apressavam a descer, com a esperança reflectida nos
rostos, Rey viu também os rostos das pessoas de toda a cidade de Boston,
que o tinham levado àquela busca. O chefe Kurtz, que a cada morte
dispunha de menos tempo como guardião de uma cidade que estava a
expandir-se com demasiada voracidade para se adaptar ao que cada um
gostaria de chamar lar. Ednah Healey, com a sua expressão a esmorecer sob
a luz mortiça do seu quarto, arrancando com as próprias mãos a sua carne,
esperando voltar a ser ela mesma inteira. O sacristão Gregg e Grifone
Lonza, mais duas vítimas, não propriamente do assassino, mas do medo
insuportável que os homicídios tinham gerado.
Rey intensificou o seu aperto sobre Blight, que se debatia, e encontrou o
olhar fixo, dilatado e cauteloso do doutor Holmes, que, segundo parecia,
partilhava todas as suas dúvidas. Rey pediu a Deus que ainda houvesse
tempo.
Finalmente, resmungou Augustus Manning ao responder ao toque da
campainha da porta e deixar entrar a sua visita.
- Vamos para a biblioteca?
O afetado Pliny Mead escolheu o lugar mais cómodo para se sentar, no
centro do canapé de pele de toupeira de Manning.
- Agradeço-lhe ter acedido a vir ter comigo a uma hora tão tardia, senhor
Mead, e fora da universidade - disse Manning.
- Bem, desculpe o atraso. A mensagem do seu secretário fazia referência ao
professor Lowell. Trata-se do nosso curso sobre Dante?
Manning passou uma mão pelo regueiro nu que tinha entre os seus dois
tufos de cabelo branco, como dois penachos.
- Com efeito, senhor Mead. Diga-me, você falou com o senhor Camp sobre o
curso?
- Falei, sim - disse Mead. - Durante umas horas. Ele queria saber tudo o que
eu pudesse contar-lhe sobre Dante. Disse-me que o fazia a seu pedido.
- E assim foi, efectivamente. Contudo, desde então, não parece querer falar
comigo. Pergunto-me porquê.
Mead torceu o nariz.
- E agora, posso saber de que assunto se trata, senhor?
- Não devia, meu filho, claro. Mas pensei que mesmo assim talvez me
pudesse ajudar. Pensei que talvez pudéssemos reunir a nossa informação
para ver se percebe o que pode ter sucedido para que tão rapidamente se
tenha produzido essa alteração na conduta do professor Lowell.
Mead fitou-o lívido e obsequioso, mas estava decepcionado por a reunião
lhe conceder um escasso benefício e divertimento. Sobre a mísula havia
uma caixa de cachimbos. Ele acalentou a ideia de fumar junto à lareira de
um membro da Corporação de Harvard.
- Esses parecem Al, doutor Manning.
Manning anuiu complacente e preparou um cachimbo para a sua visita.
- Tome, ao contrário do que acontece no nosso campus, aqui podemos
fumar abertamente. Também podemos falar francamente, com palavras
que brotem com tanta liberdade como o nosso fumo. Há outros
acontecimentos estranhos relacionados com o anterior, senhor Mead, que
eu gostaria de trazer à luz. Um polícia veio ter comigo e começou a fazer-
me perguntas sobre o seu curso de Dante, mas depressa se deteve, como se
quisesse dizer-me algo importante, mas tivesse mudado de ideias.
Mead fechou os olhos e exalou fumo, voluptuosamente. Augustus Manning
mostrara-se bastante paciente.
- Interrogo-me, senhor Mead, se o senhor tem consciência de que o seu
lugar no curso não tem feito outra coisa senão descer.
Mead entorpeceu o corpo, como um rapazinho da primária, disposto a
receber uns açoites.
- Senhor, doutor Manning, acredite que não é por nenhuma outra razão,
além...
Ele interrompeu.
- Eu sei, meu bom rapaz. Eu sei o que se passa. A turma do professor Lowell
no último período escolar... isso é que é bem lamentável. Os seus irmãos
sempre ocuparam primeiros lugares nas suas turmas, não foi?
Encrespado pela humilhação e pela fúria, o estudante desviou o olhar.
- Talvez possamos fazer alguns ajustes no número que ocupa na turma, a
fim de o situar mais na linha de honra da sua família.
Os olhos verde-esmeralda de Mead avivaram-se.
- A sério, senhor?
- Talvez agora eu também dê umas fumaças - murmurou Manning,
levantando-se da cadeira de braços e examinando os seus bonitos
cachimbos.
A mente de Pliny Mead esforçava-se por deduzir o que podia haver por
detrás daquela proposta de Manning. Ele evocou o seu encontro com Simon
Camp passo a passo. O detective da Pinkerton tentara reunir dados
negativos acerca de Dante para informar o doutor Manning e a Corporação,
com o objectivo de reforçar a posição deles contra a reforma e a abertura
do plano curricular. No segundo encontro, Camp parecera excessivamente
interessado, agora que Mead pensava nisso. Mas ele desconhecia o que o
detective privado podia ter pensado. Também não entendia a razão pela
qual os policiais de Boston tinham andado a fazer perguntas sobre Dante.
Mead pensou nos recentes acontecimentos públicos, na insanidade da
violência e no medo que envolviam a cidade. Camp pareceu
particularmente interessado no castigo dos Simoníacos, quando Mead o
referiu como fazendo parte de uma longa lista de exemplos. Mead pensou
nos muitos rumores que ouvira sobre a morte de Elisha Talbot; vários
deles, apesar dos pormenores diferirem, aludiam aos pés carbonizados do
ministro. Os pés do ministro. Depois, havia o pobre juiz Healey, encontrado
nu e coberto de...
Malditos fossem todos! E Jennison também! Seria possível? E se Lowell o
sabia, explicava isso o seu súbito cancelamento do curso sobre Dante sem
nenhuma explicação conveniente? Podia Mead, inconscientemente, levar
Simon Camp a compreender tudo? Ocultara Lowell o que sabia à
universidade, à cidade? Podia ele ser arrastado para a ruína por isso!
Malditos!
Mead levantou-se com um salto.
- Doutor Manning, doutor Manning!
Manning conseguiu acender um fósforo, mas logo o apagou, baixando
rapidamente a voz até a converter num murmúrio.
- Ouviu alguma coisa vinda da entrada? Mead prestou atenção e negou com
a cabeça.
- Senhora Manning, senhor?
Manning levou à boca um dedo longo e torcido, e saiu deslizando do salão
para o vestíbulo da entrada.
Instantes depois, voltou para junto da sua visita.
- É imaginação minha - comentou, fixando o olhar em Mead com firmeza. -
Só quero que você tenha a certeza que absolutamente ninguém nos escuta.
Pressinto que tem algo importante para partilhar comigo esta noite, senhor
Mead.
- Posso ter, de fato, doutor Manning - respondeu Mead com inércia, já que
tinha organizado a sua estratégia durante o tempo que Manning levara a
comprovar a privacidade deles. Dante é um assassino maldito, doutor
Manning. Ah, sim, posso, de fato, compartilhar algo.
- Falemos primeiro do meu lugar na turma - disse Mead. - Depois, podemos
tratar de Dante. Ah, creio que o que tenho para lhe dizer lhe vai interessar
muitíssimo, doutor Manning.
Manning transbordava de alegria.
- Bom, e se eu servisse umas bebidas para acompanhar os nossos
cachimbos?
- Para mim um xerez, por favor.
Manning serviu o estimulante pedido, que Mead esvaziou de um único
trago.
- E, porque não outro, meu caro Auggie? Assim, demolhamos a noite.
Augustus Manning inclinou-se sobre o seu aparador, disposto a servir outra
bebida. Esperava, para bem do estudante, que o que ele tivesse para dizer
fosse importante. Ouviu uma pancada estrondosa e significativa,
percebendo, sem olhar, que o rapaz partira um objeto precioso. Manning
olhou para trás de soslaio, com irritação. Pliny Mead estava estendido
inconsciente no seu canapé, com os braços pendurados frouxamente de
cada lado do corpo.
Manning rodou sobre si mesmo, e a garrafa de cristal resvalou-lhe uns
centímetros da mão. O administrador ficou a olhar fixamente para o rosto
de um soldado de uniforme, um homem que vira quase diariamente pelos
corredores do edifício principal da universidade. O soldado também
mantinha um olhar fixo e mascava qualquer coisa esporadicamente.
Quando os seus lábios se separaram, uns pontos moles e brancos boiavam
na sua língua. Ele cuspiu, e um dos pontos brancos aterrou no tapete.
Manning não conseguiu deixar de olhar; parecia ter duas letras impressas
no húmido fragmento de papel... Lei.
Manning apressou-se a ir para o canto da sala, onde uma espingarda de
caça estava pendurada a decorar a parede. Subiu a uma cadeira de braços
para a alcançar, mas depois gaguejou: - Não. Não.
Dan Teal retirou a arma das mãos trémulas de Manning e golpeou-lhe o
rosto com a culatra, num movimento desprovido de esforço. Depois,
permaneceu ali, de pé, observando como o traidor, gelado até ao âmago do
seu coração, se agitava e caía redondo no chão.
XVII
DR. HOLMES SUBIU A LARGA ESCADARIA QUE CONDUZIA À Sala
O dos Autores.
- O agente Rey não voltou? - perguntou ele, ofegante. O sobrolho
franzido de Lowell expressava a sua contrariedade.
- Bem, talvez o Blight... - começou Holmes. - Talvez ele saiba alguma coisa, e
o Rey chegue com boas notícias. E em relação à sua visita ao arquivo do
edifício principal da universidade?
- Lamento, mas não foi feita - disse Fields, olhando para a sua barba.
- Porquê? - perguntou Holmes. Fields permaneceu em silêncio.
- O senhor Teal não apareceu esta noite - explicou Longfellow. - Talvez
tenha adoecido - acrescentou, rapidamente.
- Não é provável - disse Fields, cabisbaixo. - Os registos demonstram que,
em quatro meses, o jovem Teal não faltou a um único turno. Eu causei
alguma confusão na cabeça daquele pobre rapaz, Holmes. E depois de ter
demonstrado a sua lealdade uma e outra vez.
' - Que tolice... - começou Holmes por dizer.
- Você acha? Não devia tê-lo envolvido nisto! Talvez o Manning tenha
descoberto que o Teal nos ajudou a entrar lá e o tenha mandado prender.
Ou esse indesejável Samuel Ticknor pode ter-se vingado do Teal por ter
posto fim aos seus vergonhosos jogos com a Miss Emory. Entretanto,
estivemos a falar com todos os meus empregados que combateram na
guerra. Nenhum admitiu alguma vez ter recorrido a um lugar de auxílio aos
soldados, nem nenhum revelou algo que remotamente mereça ser referido.
Lowell caminhava para a frente e para trás, arrastando os pés
exageradamente, inclinando a cabeça para a janela gelada e olhando para a
opaca paisagem de bancos de neve.
- O Rey acha que o capitão Blight era apenas mais um dos soldados que
apreciavam os sermões do Greene. É provável que o Blight diga ao Rey
nada sobre outros,
mesmo depois de se ter acalmado. Talvez não saiba nada sobre os outros
militares do lugar de auxílio aos soldados! E, sem o Teal, não temos a
menor esperança de entrar nas instalações da Corporação. Nunca mais
deixamos de bombear poços secos! Bateram à porta e entrou Osgood, que
informou que dois empregados, veteranos da guerra, esperavam por Fields
na cafetaria. O chefe administrativo dera-lhe os nomes de todos os antigos
soldados ao serviço da Ticknor & Fields. Eram doze homens: Heath, Miller,
Wilson, Collins, Holden, Sylvester, Rapp, Van Doren, Drayton, Flagg, King e
Kellar. Um antigo empregado, Samuel Ticknor, fora mobilizado, mas, ao
cabo de duas semanas com o uniforme vestido, pagara três mil dólares para
enviarem um substituto para o seu lugar.
«Previsível», pensou Lowell, e depois disse: - Fields, dê-me a direcção do
Teal e eu próprio vou buscá-lo. Em todo o caso, não podemos fazer nada até
o Rey voltar. Holmes, você vem comigo?
Fields deu instruções a J. R. Osgood para que permanecesse nas instalações
do pessoal, no caso de a sua presença ser necessária. Osgood acomodou-se
numa cadeira de braços, com um olhar cansado. Para ocupar o tempo,
retirou um livro de Harriet Beecher Stowe da prateleira mais próxima, e, ao
abri-lo, encontrando alguns fragmentos de papel, sensivelmente do
tamanho de flocos de neve, que haviam sido rasgados da página de rosto,
onde figurava uma dedicatória de Stowe a Fields. Osgood folheou o livro e
reparou que se cometera o mesmo sacrilégio em várias outras páginas.
- Que estranho!
Em baixo, na estrebaria, Lowell e Holmes descobriram horrorizados que a
égua de Fields se contorcia no chão, incapaz de andar. A sua companheira
olhava-a com tristeza e coiceava quem quer que tentasse aproximar-se. A
epidemia que afetava as estrebarias desorganizara completamente os
meios de transporte de toda a cidade, de modo que os dois poetas se viram
forçados a deslocar-se a pé.
O número, meticulosamente escrito no impresso de solicitação de emprego
de Dan Teal, encaixava bem com a modesta casa no bairro sul da cidade.
- Senhora Teal? - cumprimentou Lowell, pressionando o chapéu diante da
consternada mulher que abrira a porta. - Chamo-me Lowell e este é o
doutor Holmes.
- Senhora Galvin - corrigiu ela, colocando uma mão no peito. Lowell
confirmou o número da casa com o que tinha escrito no papel. - Vive aqui
algum hóspede com o apelido Teal?
Ela olhou para eles com uns olhos tristes.
- Eu chamo-me Harriet Galvin. - Ela repetiu o seu apelido lentamente, como
se os seus interlocutores fossem crianças ou pessoas de fraco
entendimento. - Moro aqui com o meu marido, e não temos hóspedes.
Nunca ouvi falar nesse senhor Teal, senhor.
- Então, mudaram-se para aqui recentemente? - perguntou-lhe o doutor
Holmes.
- Já estamos aqui há cinco anos.
- Mais poços secos - murmurou Lowell.
- Minha senhora - disse Holmes -, pode ter a amabilidade de nos ceder uns
instantes para esclarecermos a situação?
Ela franqueou-lhes a entrada e de imediato atraiu a atenção de Lowell um
retrato em ferrotipia, pendurado na parede.
- Ah, posso pedir-lhe um copo de água, minha querida senhora? -perguntou
Lowell.
Depois de ela sair, ele encaminhou-se rapidamente para o retrato
emoldurado de um soldado, com uniforme novo mas de um tamanho acima
do seu.
- Santo Deus! É ele, Wendell! É tão certo como estarmos aqui em como é o
Dan Teal!
E era.
- Ele esteve no exército? - perguntou Holmes.
- Não figurava em nenhuma das listas de soldados elaboradas pelo Osgood,
nem dos que o Fields esteve a entrevistar!
- E aqui está a explicação para isso: «O alferes Benjamin Galvin» -Holmes
leu o nome gravado no retrato, em baixo. - Teal é um nome falso. Depressa,
enquanto ela está ocupada. - Holmes introduziu-se no compartimento
contíguo, que estava cheio de artigos militares do tempo da guerra,
cuidadosamente dispostos, mas um objeto atraiu de imediato a sua
atenção. Era um sabre, que estava pendurado na parede. Holmes sentiu que
uma sensação de arrepio lhe percorria os ossos, e chamou Lowell. O poeta
apareceu e todo o seu corpo estremeceu diante daquela visão.
Holmes espantou um mosquito, que voava em círculos, e que voltou
diretamente para ele.
- Esqueça o bicho! - disse Lowell, e esmagou-o. Holmes retirou
delicadamente a arma da parede.
- É justamente o tipo de lâmina... Estes eram os ornamentos pre' ciosos dos
nossos oficiais, lembranças das formas de combate mais civi lizadas do
mundo. Wendell Júnior tem um sabre e acarinhou-o como a um bebé
naquele banquete... Esta lâmina pode ter mutilado Phineas Jennison.
- Não. Não tem nenhuma mancha - disse Lowell, aproximando-se
cuidadosamente do reluzente instrumento.
Holmes passou um dedo pelo aço.
- Não podemos afirmá-lo a olho nu. Uma tal carnificina não se limpa
facilmente apenas com uns dias passados, nem com todas as águas de
Neptuno. - Depois, os seus olhos pousaram na mancha de sangue da parede,
tudo o que restava do mosquito.
Quando a senhora Galvin voltou com dois copos de água, viu o doutor
Holmes com o sabre nas mãos e pediu-lhe que parasse com o que estava a
fazer. Holmes, ignorando-a, dirigiu-se para a entrada e saiu para o exterior.
Ela sentiu-se ofendida e intimou-o a regressar a casa e a restituir aquele
objeto da sua propriedade, ameaçando-o chamar a polícia. Lowell interpôs-
se entre ambos. Ouvindo os protestos da mulher nos lugares recônditos da
sua mente, Holmes permaneceu de pé no passeio e levantou o pesado sabre
à sua frente. Um minúsculo mosquito voou para a lâmina, como uma
limalha de ferro atraída por um íman. Depois, num abrir e fechar de olhos,
apareceu outro, e mais dois, e três juntos formaram um grupo
desordenado. Passados poucos segundos, todo um enxame verrumava e
zumbia sobre a lâmina, onde o sangue penetrara profundamente.
Ao ver aquilo, Lowell interrompeu-se a meio da frase. - Chame os outros,
imediatamente! - gritou-lhe Holmes.
as frenéticas perguntas daqueles homens, que insistiam em saber do seu
marido, alarmaram Harriet Galvin. Ela ficou abatida e silenciosa,
observando a alternância de gestos e explicações entre Holmes e Lowell,
até um batimento na porta os deixar em suspenso. J. T. Fields apresentou-
se, mas Harriet fixou o seu olhar na delgada e leonina figura que estava
atrás desta, rechonchuda e solícita. Emoldurado com a brancura prateada
do céu, nada era mais puro do que o seu olhar perfeitamente calmo. Ela
levantou uma mão trémula, como se lhe fosse tocar na barba, e, de fato,
depois de o poeta seguir Fields para o interior, os dedos da mulher tocaram
nas ondas dos seus cabelos. Ele recuou um passo. Ela Pediu-lhe que
entrasse.
Lowell e Holmes olharam um para o outro.
- Talvez ela ainda não nos tenha reconhecido - sussurrou Holmes. Lowell
concordou.
Ela tentou explicar o melhor que conseguiu como estava maravilhada.
Como lia a poesia de Longfellow todas as noites antes de adormecer; como
quando o marido estivera prostrado na cama a seguir à guerra,
ela lhe recitava Evangeline; e como aqueles ritmos suavemente palpitantes,
a lenda do amor fiel, mas incompleto, o acalmavam até enquanto dormia... E
até agora, às vezes, disse ela com tristeza. Ela sabia palavra por palavra «A
Pealm of Life», e também ensinara o marido a lê-lo. Sempre que ele ia a
casa, aqueles versos eram para ela a sua única libertação do medo. Mas a
sua explicação converteu-se sobretudo numa repetição da pergunta:
«Porquê, senhor Longfellow...» Ela rogou-lhe uma e outra vez, antes de
irromper em soluços.
Longfellow disse com suavidade:
- Senhora Galvin, nós precisamos absolutamente de uma ajuda, que só a
senhora pode prestar. Temos de encontrar o seu marido.
- Esses homens parecem procurá-lo para lhe fazer mal - disse ela,
referindo-se a Lowell e a Holmes. - Não compreendo. Porque é que o
senhor... Porque há-de o senhor, senhor Longfellow, querer conhecer
Benjamin?
- Lamento, mas não temos tempo para lhe explicar de forma satisfatória -
respondeu Longfellow.
Pela primeira vez, ela afastou os olhos do poeta.
- Bem, eu não sei onde ele está, e sinto vergonha por isso. Já só vem a casa
raramente, e quando vem, mal fala. Chega a estar fora durante vários dias.
- Quando foi a última vez que a senhora o viu? - perguntou Fields.
- Hoje, ele esteve aqui por um momento, umas horas antes de os senhores
chegarem.
Fields puxou do seu relógio.
- E para onde ia quando saiu daqui?
- Ele costumava tomar conta de mim. Mas, agora, para ele não passo de um
fantasma.
- Senhora Galvin, esta é uma questão de... - começou Fields por dizer.
Outro batimento à porta. A mulher secou os olhos com o lenço e alisou o
vestido.
- De certeza que é outro credor que cá vem para me envergonhar. Enquanto
ela entrava no vestíbulo, o grupo juntou-se e trocou sussurros nervosos.
- Ele saiu há algumas horas, não ouviu? - disse Lowell. - E consta-nos que
não esteja na Corner... Não há dúvida que o fará se não o encontrarmos!
- Mas ele pode estar em qualquer parte da cidade, Jamey! - reSpondeu
Holmes. - E ainda temos de voltar à Corner para esperar ?e Rey. O que
podemos nós fazer sozinhos?
- Qualquer coisa! Longfellow? - disse Lowell.
- Agora nem sequer temos um cavalo para nos deslocarmos... - queixou-se
Fields.
A atenção de Lowell desviou-se para o vestíbulo, donde ouviu algo.
Longfellow avaliou-o.
- Lowell?
- Lowell, você está a ouvir? - perguntou-lhe Fields. Da porta principal
escapou uma torrente de palavras.
- Aquela voz - disse Lowell, estupefato. - Aquela voz! Ouçam!
- Teal? - perguntou Fields. - Quem sabe se ela não está a avisá-lo para fugir,
Lowell! Nunca mais o encontramos!
Lowell pôs-se em movimento. Atravessou o vestíbulo até à porta da
entrada, onde aguardava um homem de olhos cansados e raiados de
sangue. O poeta investiu sobre ele com um grito, disposto a capturá-lo.
XVIII
OWELL ENVOLVEU O HOMEM COM OS SEUS BRAÇOS E ARRAStou-o
ENJAMIN GALVIN ALISTOU-SE AQUANDO DA PRIMEIRA LEVA de
OLMES CAMINHAVA. APESAR DE TER VISTO O HOMEM POR
SPERE, ESPERE, ESPERE AÍ UM MINUTO - LANÇOU O JUDEU