Jane Austen - Mansfield Park

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Mansfield Park

Jane Austen
CAPÍTULO 1

Há cerca de trinta anos, Miss Maria Ward, de Huntingdon, com o


minguado dote de sete mil libras, teve a felicidade de cair nas graças de
Sir Thomas Bertram, senhor do solar de Masnfield Park, em Northamton,
e dessa forma erguer-se à posição de dama nobre com todos os confortos
e privilégios de uma bela casa e enorme renda. Toda a cidade de
Huntingdon comentou a suntuosidade da união, e o seu tio, advogado,
habilmente, tratou de passar para o seu próprio nome no mínimo 3 mil
libras. Maria tinha duas irmãs que deveriam lucrar com a sua elevação de
nível social; pelo menos assim pensavam suas relações, que não
hesitaram em predizer para Miss Ward e Miss Frances, tão bonitas
quanto Maria, casamentos com as mesmas vantagens. Acontece, porém,
que não há no mundo tantos homens ricos quantas mulheres bonitas que
os mereçam. Miss Ward, ao fim de seis anos, viu-se obrigada a casar com
o Reverendo Mr. Norris, amigo de seu cunhado, quase pobre, e Miss
Frances teve ainda pior sorte. O casamento de Miss Ward, na verdade,
não poderia dizer que fosse dos piores: Sir Thomas de boa vontade veio
em auxílio do amigo, que passou a viver em Mansfield; assim foi que o
casal Norris iniciou a sua feliz carreira conjugal com pouco menos de mil
libras por ano. Miss Frances, entretanto, casou-se, como se diz, para
contrariar a família, com um tenente da marinha, sem educação, sem
fortuna e sem relações. Não poderia ter feito pior escolha. Sir Thomas
Bertram, não só por princípio como por orgulho – num desejo natural de
proceder bem e de ver acomodadas todas as coisas que se relacionassem
consigo, quis ajudar a irmã de sua mulher; mas a profissão do marido
dela anulava qualquer tentativa e antes mesmo de ele chegar a planejar
outros meios de auxiliá-los, deu-se uma séria desavença entre as irmãs.
Resultou isto de procedimento de ambas as partes, como geralmente
acontece por causa de tais casamentos. Para evitar exprobrações inúteis
a Mrs. Price nunca tocou no assunto com a família senão depois de já
estar casada. Lady Bertram, que era muito calma, de temperamento
acomodado e indolente, preferiu não pensar mais na irmã e esquecer o
caso; Mrs. Norris, mais impetuosa, não se contentou enquanto não
escreveu a Fanny uma longa carta em que censurava a loucura de seu
procedimento e lhe vaticinava todas as suas possíveis más conseqüências.
Mrs. Price, por sua vez, sentiu-se ofendida e zangou-se; a resposta, cuja
aspereza atingia a cada uma das irmãs, e se refletia com tal desrespeito
no orgulho de Sir Thomas que Mrs. Norris não a pôde ocultar, pôs termos
a todas as relações entre elas por longo tempo.
Suas casas eram tão distantes e os círculos em que se moviam tão à
parte, que, durante os onze anos seguintes, quase nunca tiveram notícias
da existência uns dos outros, e era mesmo de estranhar que Mrs. Norris
tivesse meios de informá-los, como de vez em quando informava, que
Fanny tinha tido outro filho. No fim de onze anos, porém, Mrs. Price viu
que não estava em condições de manter orgulhos e ressentimento nem
perder uma ligação que lhe poderia ser útil. A família numerosa e ainda
em vias de aumentar, o marido incapaz para o trabalho, dado às más
companhias e a bebidas, e a insuficiência de meios para atender as suas
necessidades, fizeram com que ela ansiosamente desejasse reaver os
amigos que tão facilmente desprezara; escreveu, então, a Lady Bertram
uma carta em que demonstrava tanta contrição e abatimento, tanta
miséria e tanta necessidade de tudo, que todos se sentiram dispostos à
reconciliação. Estava se preparando para o nono parto; depois de
lamentar sua situação e lhes implorar que aceitassem como afilhada a
criança que ia nascer, não pôde ocultar a importância que os Bertram
poderiam ter na futura manutenção dos seus oito filhos já existentes. O
primeiro filho, que estava com dez anos, era um menino de belo caráter e
que desejava muito viajar pelo mundo; mas que poderia ela fazer? Não
haveria alguma oportunidade, mais tarde, de ser ele útil a Sir Thomas em
alguma de suas propriedades na Índia? Qualquer situação lhe serviria; ou
quem sabe se Sir Thomas não preferiria Woolwich; ou então como poderia
ele ir para o Oriente?
A carta surtiu efeito. Restabeleceu paz e amizade. Sir Thomas deu
amáveis conselhos sobre a profissão do rapaz. Lady Bertram remeteu
dinheiro e roupas de criança e Mrs. Norris escreveu as cartas.
Mas não ficou tudo nisso, pois dentro de doze meses essa carta
ainda resultou em maiores benefícios para Mrs. Price. Mrs. Norris estava
sempre dizendo que não podia esquecer a pobre irmã e sua família e que,
apesar de tudo que eles todos já tinham feito, ele ainda queria fazer mais
alguma coisa; finalmente confessou que desejava aliviar inteiramente
Mrs. Price do encargo da despesa de um de seus numerosos filho.
– Que tal se eles tomassem conta da filha mais velha que agora
estava com nove anos, em idade que necessitava de mais atenção do que
a que a pobre mãe lhe poderia dar? O trabalho e a despesa para eles não
representavam nada comparados com a bondade da ação. Lady Bertram
concordou imediatamente.
– Creio que não poderíamos fazer nada melhor – disse ela – vamos
mandar buscar a menina.
Sir Thomas não deu consentimento com tanta facilidade. Debateu o
assunto, hesitou: era um compromisso sério; uma menina já tão crescida
necessitava de cuidados especiais, do contrário era antes crueldade do
que benefício tirá-la da família. Pensou nos seus próprios quatro filhos,
nos dois rapazes, imaginou namoros futuros, etc.; mas todas as suas
objeções eram interrompidas por Mrs. Norris, com argumentos para
todas elas, embora com ou sem razão.
– Meu caro Sir Thomas, compreendo-o perfeitamente e faço justiça
à generosidade e à delicadeza de seus sentimentos, que, na verdade, não
diferem de sua conduta em geral; e estou inteiramente de acordo com
você quanto à necessidade de se fazer tudo o que é possível pela criança
de que nos encarregarmos; estou certa de que eu seria a última pessoa
no mundo a por obstáculos em tal ocasião. Já que não tenho filhos, de
quem hei de me encarregar senão dos filhos de minhas irmãs? E tenho
certeza de que meu marido é bastante justo – mas você sabe que eu sou
de poucas palavras e poucos meios. Por causa de uma ninharia não vamos
deixar de fazer uma boa ação. Educaremos a menina, introduzi-la-emos
convenientemente na sociedade e com toda probabilidade ela achará os
meios de se arranjar na vida de modo a não pesar sobre mais ninguém.
Uma sobrinha nossa, Sir Thomas, posso dizer, ou antes, uma sobrinha sua
não poderá deixar de ter grande vantagem vivendo neste ambiente. Não
quero dizer que ela seja tão bonita quanto suas primas; ouso mesmo dizer
que não; mas desde que fosse apresentada a nossa sociedade em
circunstâncias assim favoráveis, nada impediria que viesse mais tarde a
ter uma situação digna. Você está pensando em seus dois filhos; mas não
sabe que “isto” é justamente o que não poderá acontecer, se forem
criados como serão, sempre juntos, como irmãos? É moralmente
impossível. Nunca houve um exemplo disso. É, aliás, a melhor maneira de
evitar tais situações. Suponhamos que ela venha a ser uma pequena
bonita e que Tom e Edmund a vejam pela primeira vez daqui a sete anos;
sou capaz de apostar em que haveria aborrecimentos. A simples
lembrança do que ela havia sofrido distante de todos nós, no meio da
pobreza e do esquecimento, seria o bastante para qualquer um dos dois
se apaixonar pela pequena, sendo eles meigos como são. Agora, crie-a
junto dos rapazes desde já e mesmo supondo que ela fique tão bela como
um anjo, nunca será para eles mais do que uma irmã.
– Há uma grande verdade no que você diz – respondeu Sir Thomas –
e longe de mim trazer impedimentos a um plano que só poderá resultar
em benefícios para as situações de cada um. Quero apenas observar que
o caso não deve ser tomado levianamente e que, para que o ato seja
realmente útil a Mrs. Price e digno de nós, devemos assegurar um meio
de vida futuro à criança, ou nos considerarmos obrigados a assegurá-lo
mais tarde, pois tudo pode acontecer, caso não se apresentem as
possibilidades de matrimônio que você espera com tal confiança.
– Compreendo-o perfeitamente – exclamou Mrs. Norris – O senhor é
todo generosidade e bom senso e eu creio que não estaremos em
desacordo neste ponto. Tudo que eu puder, como o senhor bem sabe,
estou sempre pronta a fazer pelo bem daqueles a quem amo e embora
nunca possa sentir por essa menina a centésima parte da afeição que
tenho pelos seus filhos, nem considerá-la, de qualquer modo, como minha
própria filha, odiar-me-ia se a descuidasse. Não é ela filha de minha irmã?
E poderia eu suportar que passe fome enquanto eu tenha um último
pedaço de pão para lhe dar? Meu caro Sir Thomas, apesar de todas as
minhas faltas tenho bom coração; e embora pobre, mais facilmente me
privaria de minhas necessidades, do que deixaria de praticar uma ação
generosa. Portanto, se o senhor não se opõe, escreverei amanhã à minha
pobre irmã e lhe farei a proposta; e logo que fique resolvido, eu mesma
providenciarei para trazer a criança a Mansfield; vocês não precisarão
incomodar-se. Minhas dificuldades, o senhor sabe, nunca as levo em
conta. Mandarei Nanny a Londres e lá ela arranjará dormida em casa de
um seleiro que é primo dela e onde a criança lhe poderá ser entregue. De
Portsmouth para a cidade eles poderão facilmente mandá-la de carro em
companhia de qualquer pessoa honrada que por acaso venha de lá. Em
geral há sempre uma senhora respeitável, mulher de algum comerciante
que vai a Londres.
Excluindo a oposição ao primo de Nanny, Sir Thomas não fez mais
objeções e uma vez substituído o plano do encontro por um outro mais
digno embora menos econômico, tudo se arranjou, ficando todos desde
logo na agradável expectativa da realização do projeto. Aquela lisonjeira
sensação, porém, não deveria, por justiça, ser dividida igualmente; pois
Sir Thomas estava sinceramente resolvido a tomar sob sua inteira
proteção a criança eleita, enquanto que Mrs. Norris não tinha a menor
intenção de fazer qualquer despesa para mantê-la. Desde que se tratasse
de movimentar, falar e combinar planos ela estava sempre pronta e
ninguém, melhor que ela, sabia recomendar liberalidade aos outros; seu
amor ao dinheiro era tão forte quanto a vontade de mandar e quando se
tratava de despesas sabia muito bem guardar o seu para gastar o dos
amigos. Tendo o casamento lhe proporcionado renda muito menor do que
esperava, determinou, de início, que necessitava por em prática a mais
estrita economia, e aquilo que começara por prudência logo se
transformou numa questão de vontade. Se ela tivesse filhos, decerto
nunca poderia ter economizado; mas já que não tinha essa preocupação,
nada havia que a impedisse de ser sóbria ou que diminuísse o prazer de
aumentar anualmente a renda que nem chegavam a gastar. Sob a
influência deste princípio, levando-se em conta a pouca afeição que tinha
à irmã, era de se esperar que ela não pretendesse mais do que o crédito
de haver projetado e arranjado uma tão dispendiosa caridade; no entanto
talvez nem ela mesma o soubesse, tanto assim que ao voltar para o
Presbitério, depois dessa conversa, sentia-se muito feliz com a impressão
de ser a irmã e a tia mais liberal do mundo.
Quando novamente discutiram o assunto, porém, ficou inteiramente
explicada a sua maneira de pensar pois tendo Lady Bertram perguntado
“para onde deverá a criança ir de início, para a sua ou para minha casa?”,
Sir Thomas ouviu surpreso que Mrs. Norris se declarava absolutamente
impossibilitada de cuidar pessoalmente da criança. Ele supunha, como é
natural, que a criança seria recebida com alegria no Presbitério e que a
tia, que não tinha filhos, a consideraria uma companheira agradável para
seus dias; estava, porém, bem enganado. Mrs. Norris sentia muito dizer
que o fato da menina ir morar com eles, pelo menos no momento, estava
inteiramente fora de suas cogitações. Era impossível, dado o estado de
saúde do pobre Mr. Norris; ele, coitado, não poderia mais suportar o
barulho que a criança com certeza faria; se um dia ele ficasse bom da
gota de que estava sofrendo tanto, então seria diferente; ela ficaria muito
contente em poder cumprir a sua parte no compromisso e não se
queixaria do incômodo; mas justamente agora seu pobre marido lhe
tomava a maior parte do tempo e ela estava certa de que a simples
menção de tal coisa o iria atormentar.
– Então é melhor que ela venha para nossa casa, disse Lady
Bertram com a maior calma.
Depois de um momento Sir Thomas acrescentou com dignidade:
– Sim, que o seu lar seja esta casa. Procuraremos cumprir nosso
dever para com essa criança e aqui ela terá, ao menos, a vantagem de ter
companheiros da mesma idade e uma preceptora permanente.
– Muito certo, exclamou Mrs. Norris, são duas razões muito
importantes; e para Miss Lee será o mesmo se ela tiver três meninas para
ensinar em vez de duas – não há a menor diferença. Só desejaria poder
ser mais útil; mas vocês vêem que eu faço tudo o que posso. Não sou
dessas pessoas que se poupam de trabalhos, e embora me seja bastante
inconveniente dispensar minha principal empregada por três dias, Nanny
a irá buscar. Suponho, minha irmã, que a menina possa ficar no quartinho
branco do sobrado, ao lado do antigo quarto das crianças. Será muito
melhor para ela, pois ficará perto de Miss Lee e não muito distante das
meninas; e ainda com a vantagem de estar ao lado das empregadas que
poderão ajudá-la a vestir-se, não é? E cuidar das roupas dela, pois
acredito que você não conte com Ellis para olhar por ela ao mesmo tempo
que as outras. Na verdade não vejo outro lugar mais adequado.
Lady Bertram não fez oposição.
– Espero que ela seja uma menina de boa índole, continuou Mrs.
Norris, e reconheça a sorte extraordinária que lhe oferece uma tal
amizade.
– Se a índole dela for realmente má, continuou Sir Thomas, não
poderemos, para o bem de nossos próprios filhos, conservá-la em casa;
mas não há razão para se esperar uma tal desgraça. Por força teremos
muito que corrigir nela e devemos nos preparar para encontrar uma total
ignorância, muita baixeza de sentimentos, muita vulgaridade de
maneiras; esses defeitos, porém, não são incuráveis; nem tampouco,
espero, constituirão perigo para as outras crianças. Se minhas filhas
tivessem menos idade do que ela, eu consideraria a aproximação de tal
companheira como uma séria ameaça para elas; mas assim como é, tenho
esperança de que nada tenhamos a temer por minhas filhas e sim que
dessa aproximação só resulte benefício para a pequena.
– É justamente o que eu penso, exclamou Mrs. Norris, e o que estive
dizendo a meu marido esta manhã. O fato de viver junto das primas, disse
eu, já é uma educação para a criança; e mesmo que Miss Lee não lhe
ensinasse nada, ainda assim ela aprenderia com as outras a ser boa e
ajuizada.
– Só desejo que ela não atormente meu pobre cãozinho, disse Lady
Bertram. Ainda há pouco precisei dizer a Julia que o deixasse em paz.
– Temos ainda uma questão muito difícil a resolver, Mrs. Norris,
observou Sir Thomas, quanto à justa diferença a ser feita entre as
meninas depois de crescidas: de que maneira haveremos de incutir na
consciência de minhas filhas o que elas são, sem ao mesmo tempo fazer
com que elas não venham a fazer da prima um conceito muito inferior? E
como, sem humilhar demais a menina, haveremos de fazê-la compreender
que ela não é uma “Bertram”? Desejaria vê-las muito amigas e, de modo
algum, consentiria que minhas filhas mostrassem a menor arrogância
para com a outra; mas, embora assim, elas não poderão ser equiparadas.
O meio social, a fortuna, os direitos e as expectativas de cada uma serão
sempre diferentes. É uma questão muito delicada e você nos deve auxiliar
em nossos esforços para encontrar exatamente a melhor maneira de nos
conduzirmos.
Mrs. Norris se pôs logo a disposição dele; e embora ela concordasse
perfeitamente que a questão era das mais difíceis, encorajou-o a esperar
que tudo se resolveria facilmente.
É fácil prever que Mrs. Norris não escreveu em vão à irmã. Mrs.
Price ficou surpresa de que justamente a menina fosse escolhida, quando
havia tantos meninos tão aproveitáveis, mas aceitou o oferecimento muito
agradecida, assegurando-lhes que a filha era menina de muito boa índole
e temperamento dócil e que esperava que nunca tivessem motivos para
arrependimento. Estendeu-se em detalhes sobre a delicadeza da saúde da
filha, que dizia ser muito franzina mas que com a mudança de ares tinha
a esperança de que viesse a melhorar. Pobre mulher! Sem dúvida achava
que a mudança de ares era do que precisavam os filhos.

CAPÍTULO 2

A menina fez a longa viagem sem novidade: em Northampton foi


entregue a Mrs. Norris, que dessa maneira se sentiu muito lisonjeada por
ser a mais indicada para receber a menina e pela importância em que se
dava em apresentar a garota aos outros parentes, recomendando-a à
bondade deles.
Fanny Price tinha nesta ocasião justamente dez anos e embora à
primeira vista sua aparência não fosse muito cativante, não tinha, pelo
menos, nada que pudesse desgostar os parentes. Era pequena para a
idade, de compleição pouco atraente e sem nenhuma beleza especial;
excessivamente tímida e acanhada, retraia-se por qualquer observação.
Sua aparência, embora desajeitada, não era vulgar; a voz era doce e,
quando falava, sua fisionomia se tornava bonita. Sir Thomas e Lady
Bertram receberam-na amavelmente; e Sir Thomas vendo que ela
necessitava de ânimo, procurou lhe ganhar a simpatia; mas teve que lutar
contra o mais rebelde temperamento; quanto a Lady Bertram, sem muito
trabalho, dizendo uma só palavra enquanto ele dizia dez, apenas com o
auxílio de um sorriso, imediatamente se tornou menos terrível.
As outras crianças estavam todas presentes e representaram muito
bem os seus papéis na apresentação, portando-se com muita cortesia e
sem o menor embaraço, pelo menos quanto aos dois filhos, os quais já
com dezessete e dezesseis anos e altos demais para a idade, tinham toda
a imponência de homens feitos aos olhos da pequena prima. Já as duas
meninas não se sentiam tão à vontade, pelo fato de serem mais jovens e
respeitarem muito o pai, que as preparou especialmente para a ocasião.
Mas elas estavam por demais acostumadas à sociedade e aos elogios para
que se sentissem acanhadas; e a sua confiança aumentando à medida que
a prima mais se retraía, começaram com a maior indiferença a examinar-
lhe o rosto e o vestuário.
Eles formavam uma família notavelmente distinta, os filhos muito
bem parecidos e as filhas positivamente belas, todos bem desenvolvidos
para as idades, o que demonstrava uma diferença patente entre os primos
quanto ao meio em que haviam sido criados; ninguém julgaria haver tão
pouca diferença de idade entre as três meninas. Havia de fato apenas
dois anos entre a mais jovem e Fanny. Julia Bertram tinha doze anos e
Maria era apenas um ano mais velha. A pequena visitante, por esse
tempo, sentia-se tão infeliz quanto é possível. Com receio de todos,
envergonhada de si própria e com saudades da casa que deixara, não
tinha coragem de levantar a cabeça e mal conseguia murmurar as
palavras sem chorar. Mrs. Norris, durante a viagem, desde Northampton,
veio lhe falando de sua sorte incomparável e da gratidão e do bom
comportamento que ela deveria ter por isso mesmo, de forma que a
consciência de sua própria miséria aumentou com a idéia de que por
causa disso não poderia ser feliz. O cansaço, também, de uma viagem tão
longa em breve não se tornou menos doloroso. Em vão foram as bem
intencionadas amabilidades de Sir Thomas e todos os prognósticos de
Mrs. Norris de que ela seria uma boa menina; em vão Lady Bertram
sorriu e fê-la sentar-se ao seu lado no sofá e em vão foi, até, a vista da
torta de groselha para confortá-la; mal pôde engolir dois bocados e
irrompeu em soluços; levaram-na então para a cama o amigo sono
terminou suas tristezas.
– Esse princípio não é muito promissor, disse Mrs. Norris quando
Fanny deixou a sala. Depois de tudo o que eu lhe disse durante a viagem,
esperava que ela se portasse melhor; disse-lhe o quanto poderia depender
do seu comportamento de início. Desejo que não tenha sido um pouco por
birra – sua mãe, coitada, era bem rebelde; mas devemos ser indulgentes
para com essa criança, – aliás acho que o fato de ela se sentir triste por
ter deixado seu lar só a pode elevar em nosso conceito, pois, com todos os
defeitos, era o seu lar e ela ainda não pode compreender o quanto a
mudança foi para melhor; enfim, há limites para todas as coisas.
Contudo foi preciso muito mais tempo do que Mrs. Norris supunha
para reconciliar Fanny com a mudança para Mansfield e a separação de
todas as pessoas a quem ela estava habituada. Seus sentimentos eram
por demais sutis e por serem mal compreendidos não os levaram na
devida conta. Não que seus parentes fossem intencionalmente pouco
amáveis, mas ninguém cuidava em deixar suas comodidades para lhe ser
agradável.
A folga permitida às Misses Bertram no dia seguinte, a fim de que
pudessem mais à vontade travar conhecimento e entreter a jovem prima,
produziu pouco efeito. Elas não podiam deixar de olhar com pouco caso
para a prima ao descobrirem que ela só possuía duas faixas e que nunca
havia aprendido francês; e quando perceberam a pouca admiração que
demonstrou pelo dueto que elas tão bem executavam ao piano,
contentaram-se em presenteá-la generosamente com alguns de seus
brinquedos menos preciosos e se desinteressaram da pequena
completamente, entregando-se ao seu divertimento favorito no momento,
que consistia no fabrico de flores artificiais ou em colecionar papéis
dourados.
Fanny, quer estivesse perto ou longe dos primos, tanto na sala de
aulas quanto na sala de visitas ou no parque, sentia-se igualmente
desamparada, encontrando motivos para receio em cada pessoa ou lugar.
Sentia-se desanimada diante do silêncio de Lady Bertram, receosa do
olhar grave de Sir Thomas e completamente vencida com as
admoestações de Mrs. Norris. Seus primos mais velhos mortificavam-na
pela sua superioridade em altura e confundiam-na chamando atenção
para sua timidez; Miss Lee admirava-se de sua ignorância e as criadas
riam-se de suas roupas; e quando a todas essas tristezas se juntava a
lembrança de seus irmãos entre os quais ela sempre fora a mais
importante, tanto como companheira de brinquedos como no papel de
mestra e enfermeira, o desespero em que mergulhava seu pequeno
coração era enorme.
A magnificência da casa a atordoava mas não a consolava. As salas
eram grandes demais para que nelas se sentisse tranqüila; tinha a
impressão de que qualquer coisa que segurasse havia de quebrar-se em
suas mãos e vivia num constante terror de tudo, freqüentemente
escondendo-se em seu quarto para chorar; e a menina que, segundo
comentavam na sala de visitas, parecia estar tão agradecida à sua boa
fortuna, terminava as tristezas de cada dia chorando até adormecer.
Dessa forma passou-se uma semana sem que pelo seu modo passivo
ninguém suspeitasse do seu desgosto, até que uma manhã o primo
Edmund, o mais jovem dos dois filhos, encontrou-a chorando sentada na
escada do sobrado.
– Minha querida priminha, disse ele com toda a doçura de uma
excelente criatura, que foi que houve? – E sentando-se ao lado dela
procurou por todos os meios dominar-lhe o embaraço de ter sido assim
surpreendida e persuadi-la a falar abertamente.
Estava doente? Ou alguém tinha zangado com ela? Ou tinha brigado
com Maria e Julia? Estava atrapalhada com algum problema de suas
lições que ele poderia explicar? Ou desejava, finalmente, alguma coisa
que ele poderia talvez conseguir ou fazer? – Durante muito tempo não
conseguiu outra resposta além de um – Não – não – de modo algum – não,
obrigada; porém ele insistiu; e mal começou a se referir à família dela os
soluços aumentaram, mostrando onde se achava o ponto sensível. Tentou
consolá-la.
– Você está triste por ter deixado a sua mamãe, não é, minha
pequenina? – Disse o rapaz. – Isto mostra que você é uma boa menina;
mas deve lembrar-se de que está no meio de parentes e amigos, que
gostam muito de você e que desejam fazê-la feliz. Vamos passear no
parque, conversar sobre seus irmãos.
Prosseguindo no assunto ele viu que, embora muito quisesse aos
irmãos havia um entre todos para quem seus pensamentos mais
revertiam. Era de William que ela mais falava e a quem mais desejava ver.
William, um ano mais velho do que ela, era seu companheiro e amigo
mais constante; seu defensor perante a mãe (de quem era o predileto) em
todas as contingências.
– William não queria que eu viesse; ele disse que iria sentir muito a
minha falta.
– Mas William vai escrever a você com certeza.
– Sim, ele me prometeu que escreveria mas disse que eu deveria
escrever primeiro.
– E quando é que você vai escrever?
Ela inclinou a cabeça e respondeu hesitante: – Não sei; não tenho
papel.
– Se essa é toda a sua dificuldade, posso arranjar papel e tudo o
mais, e você pode escrever sua carta quando quiser. Quer mesmo
escrever a William?
– Sim, muito.
– Então escreva agora mesmo. Venha comigo à sala de almoço, lá
encontraremos tudo o que é preciso e ninguém nos incomodará.
– Mas, primo, a carta depois vai para o correio?
– Sim, só depende de mim; irá com as outras cartas; e visto que seu
tio pagará o selo, não custará nada a William.
– Meu tio? – Repetiu Fanny assustada.
– Sim, depois que você escrever a carta eu a darei para meu pai a
selar.
Fanny achou a medida arriscada mas não ofereceu maior
resistência; foram juntos para a sala de almoço onde Edmund preparou o
papel traçando nele as linhas de tão boa vontade como seu próprio irmão
o faria e talvez até com maior exatidão. Permaneceu ao seu lado todo o
tempo em que ela escrevia, para ajudá-la a apontar o lápis e auxiliá-la na
ortografia, pois que disso bem precisava; e junto a estas atenções, que ela
muito apreciou, demonstrou uma grande bondade para com seu irmão
que a alegrou acima de tudo. Ele próprio escreveu algumas linhas ao
primo William e lhe mandou meio guiné para o selo. O contentamento de
Fanny naquela ocasião foi tal que ela não soube como o expressar. Mas o
seu rosto e as poucas palavras ingenuamente proferidas demonstraram
toda a sua gratidão e o seu prazer; o primo começou a não a achar tão
desinteressante quanto parecia. Conversou ainda com ela e, por tudo que
disse a pequena, convenceu-se de que ela possuía um coração afetuoso e
um forte desejo de proceder bem; achou que ela merecia maior atenção,
dada a sua suscetibilidade, a sua situação e a sua grande timidez. Que ele
soubesse, nunca lhe havia causado sofrimento; porém sentia agora que
Fanny necessitava de maior carinho. E assim pensando, procurou, em
primeiro lugar, diminuir os receios que ela tinha deles todos, aconselhou-
a a que brincasse com Maria e Julia e que fosse alegre quanto possível.
Desse dia em diante Fanny sentiu-se mais consolada e a bondade do
primo Edmund trouxe-lhe melhor disposição para com os outros parentes.
A casa se lhe tornou menos estranha e as pessoas menos imponentes; se
havia ainda alguém entre os outros a quem ela não pudesse deixar de
temer, começou pelo menos a conhecer-lhes os hábitos e procurou
adaptar-se a eles da melhor maneira. As pequenas grosserias que a
princípio ameaçavam a tranqüilidade de todos, senão dela própria,
desapareceram e ela já não se sentia fisicamente receosa de aparecer em
frente do tio nem tampouco se assustava com a voz da tia Norris.
Ocasionalmente já fazia companhia às primas. Embora por sua
inferioridade em idade e porte não pudesse interessá-las como
companheira, havia certas brincadeiras em que se tornava necessário o
concurso de um terceira pessoa, especialmente se essa pessoa era de tal
maneira submissa e conformada; e não podiam deixar de confessar
quando a tia as sondava sobre os defeitos da menina ou seu irmão
Edmund recomendava que a tratassem com bondade, que “Fanny não era
de todo má”.
Edmund por si era sempre bom; e da parte de Tom ela não tinha
outra queixa senão aquela maneira de brincar que um rapaz de dezessete
anos sempre tem para com uma criança de dez. Estava justamente
começando a viver, cheio de entusiasmos, com todos os privilégios de
filho mais velho, que se sente no direito somente para o prazer e os
gastos. Sua bondade para com a pequena prima era conseqüente de sua
situação e direitos: dava-lhe bonitos presentes e ria-se dela.
A medida que ela ia melhorando de aparência e caráter, Sir Thomas
e Mrs. Norris se congratulavam pela sua boa ação; e em breve
reconheceram que, embora muito inteligente, Fanny demonstrava possuir
um temperamento bastante dócil, que, com toda probabilidade, lhes daria
pouco trabalho. Quanto às suas habilidades, nada lhes tinham dito. Fanny
sabia ler, trabalhar e escrever, mas não lhe ensinaram nada mais; e
quando as primas descobriram o quão ignorante ela era acerca de coisas
que lhes eram a longo tempo familiares, acharam-na prodigiosamente
estúpida e durante as duas ou três primeiras semanas não cessavam de
trazer à sala de visitas novos comentários sobre a pouca instrução da
prima.
– Imagine, mamãe, que nossa prima não conhece nem o mapa da
Europa – ou minha prima não sabe dizer os principais rios da Rússia – ou
ela nunca ouviu falar da Ásia Menor – ou ela não sabe distinguir aquarela
de desenho a carvão! Que coisa estranha! – Já se viu alguém mais
estúpida, tia Norris?
– Minha querida, dizia indulgente a tia, isto é realmente de lastimar,
mas você não pode esperar que todos estejam tão adiantados ou que
tenham a mesma facilidade de aprender que você tem.
– Mas minha tia, ela é mesmo muito ignorante! Imagine, ontem a
noite nós lhe perguntamos que caminho deveria tomar para ir à Irlanda; e
ela disse que atravessaria a Ilha de Wright e chama-a simplesmente de
“Ilha” como se não houvesse outra ilha no mundo. Eu morria de vergonha
se na idade dela soubesse tão pouco. Nem me lembro mais do tempo em
que eu não sabia uma porção de coisas de que ela ainda não tem a menor
noção. Quanto tempo faz, minha tia, que nós enumerávamos por ordem
cronológica todos os reis da Inglaterra, com datas e suas ascensões e a
maior parte dos acontecimentos principais de seus reinados?
– Sim, acrescentava a outra; e os imperadores romanos até Severo;
como também muitas figuras da mitologia pagã e todos os metais, semi-
metais, planetas e os filósofos mais conhecidos.
– De fato é verdade, minhas queridas, mas vocês foram dotadas de
uma memória prodigiosa, enquanto que sua pobre prima provavelmente
não tem nenhuma. Há uma grande diferença em memória como em tudo
o mais e portanto vocês não devem culpar sua prima e antes lastimar que
ela seja assim. E além disso devem lembrar-se que mesmo sendo tão
inteligentes, e estando tão adiantadas nos estudos, devem sempre ser
modestas, pois embora já saibam muito, ainda têm muito que aprender.
– Sim, já sei que até completar dezessete anos ainda tenho muito
que aprender. Mas quero lhe contar outra coisa de Fanny que eu acho tão
estranho e tão tolo. Imagine, ela disse que não quer aprender nem música
nem desenho.
– Realmente, minha querida, isso é mesmo uma tolice e demonstra
uma grande falta de talento e força de vontade. Enfim, considerando
tudo, não sei se não será melhor que seja assim, pois como vocês sabem
(já lhes disse isso uma vez) embora por bondade de seus pais ela esteja
sendo educada juntamente com os primos, não é absolutamente
necessário que ela seja tão instruída quanto vocês; ao contrário, é até
muito preferível que haja alguma diferença.
Tais eram os conselhos com os quais Mrs. Norris se propunha a
formar a mentalidade das sobrinhas; e não seria de admirar que embora
com todos os seus talentos e precocidades, elas fossem destituídas do
menos senso de autocrítica, de generosidade e modéstia. Aliás, eram
admiravelmente instruídas sobre todas as coisas, exceto quanto aos
princípios de moral. Sir Thomas não percebia essas lacunas pois que,
embora verdadeiramente interessado na educação das filhas, ele não
sabia exteriorizar sua afeição e a reserva de seus sentimentos reprimia
nelas toda a espontaneidade.
Lady Bertram não dava a menor atenção à educação das filhas. Não
tinha tempo para tais preocupações. Era mulher que passava os dias
sentada no sofá, lindamente ataviada, a fazer intermináveis trabalhos de
agulha, sem nenhuma utilidade ou beleza, pensando mais no cãozinho
que nos próprios filhos, mas muito indulgente para com estes, desde que
não a incomodassem; era dirigida pelo marido em todas as coisas
importantes e nos assuntos de menor monta se deixava guiar pela irmã. E
mesmo que tivesse mais tempo para olhar pelas filhas, provavelmente
acharia isso desnecessário, já que as meninas estavam sob os cuidados de
uma governanta, sob a orientação de professores adequados e de nada
mais precisavam. Quanto ao fato de Fanny ter dificuldade em aprender
“ela nada tinha a dizer senão que era uma infelicidade; mas afinal, havia
pessoas que eram estúpidas de nascença e Fanny devia esforçar-se mais:
não sabia o que mais poderia ser feito; e conquanto a pequena fosse
pateta, não podia deixar de reconhecer que não via na pobre criatura
outro defeito. Ao contrário, achava-a sempre prestativa e ligeira para
levar recados e procurar as coisas de que a tia precisava.”
Fanny, com todos os seus defeitos de ignorância e timidez, fixou-se
em Mansfield Park e, procurando adaptar-se ao meio, ali cresceu entre os
primos, quase feliz. Maria e Julia não tinham realmente má índole; e
Fanny, embora freqüentemente humilhada pela maneira com que elas a
tratavam, não se sentia ofendida, já que de si mesma fazia o mais baixo
conceito.
Mais ou menos na ocasião em que Fanny entrou para a família,
Lady Bertram, um pouco por doença mas muito mais por indolência,
desistiu da casa que ocupava na cidade (Londres) durante todas as
primaveras, e passou a morar todo o tempo no campo, sem pensar na
maior ou menor inconveniência que sua ausência traria a Sir Thomas, que
precisava atender a seus deverem para com o Parlamento. No campo,
portanto, as Misses Bertram continuaram a exercitar suas memórias,
executar os seus duetos e a se desenvolver fisicamente; e o pai viu-as
transformarem-se quanto a pessoa, modos e conhecimentos, em tudo o
que ele almejara. Seu filho mais velho era descuidado e extravagante e já
lhe havia causado muitos aborrecimentos; seus outros filhos, porém, não
lhe proporcionavam senão alegrias; quanto a Edmund, seu caráter forte,
seu bom senso e retidão de consciência só o poderiam levar para o que
fosse de utilidade, honra e felicidade não só para si próprio como para os
que o cercavam. Estava destinado a ser pastor.
Não obstante os cuidados e os prazeres com que cercava seus
próprios filhos, Sir Thomas procurava fazer o que pudesse pelos filhos de
Mrs. Price: ajudou-a na educação e colocação dos rapazes logo que
tiveram idade suficiente para seguir uma carreira; e Fanny, embora quase
totalmente separada da família, acompanhava cheia de satisfação e
reconhecimento qualquer ato de bondade feito em favor deles ou
qualquer auxílio que lhes viesse melhorar de situação. Uma única vez, no
período de muitos anos, ela teve a felicidade de ver William. Os outros
nunca mais os avistara; ninguém parecia esperar que ela algum dia
voltasse para casa, mesmo de visita, ninguém em sua casa parecia
desejar vê-la; mas tendo William, logo após a partida da irmã, resolvido
ser marinheiro, foi convidado a passar com ela, uma semana em
Northaptonshire, antes de embarcar. Pode-se imaginar a felicidade desse
encontro, a afeição, o prazer de estarem juntos, as horas de alegria e os
momentos de sérias palestras, a calcular a tristeza da separação.
Felizmente isto se deu justamente nas férias do Natal, de forma que
Fanny pôde encontrar consolo junto ao primo Edmund; e ele lhe falou
com tanta simpatia de William, das coisas formidáveis que ele iria fazer
em razão da profissão que abraçara, que finalmente ela se convenceu de
que a separação só poderia lhe ser útil. A amizade de Edmund por ela foi
sempre sincera; amizade essa que não sofreu a menor alteração com a
sua passagem de Eton para Oxford; ao contrário, permitiu mais
freqüentes oportunidades de prová-la. Sem mostrar que fazia mais do que
os outros, ou sem receio de fazer demais, ele estava sempre pronto a
olhar pelos interesses da prima, exaltando-lhe as boas qualidades e
lutando contra a excessiva modéstia que as fazia menos aparentes; dava-
lhe conselhos, consolo e ânimo.
Ignorada como era pelos demais, só o apoio que lhe dava o primo
não poderia levá-la avante; mas por outro lado os cuidados que ele lhe
dispensava eram da maior importância na formação de seu espírito.
Edmund percebeu que ela era inteligente e que tinha não só muita
facilidade de apreensão como bom senso e inclinação para leitura, que,
dirigida adequadamente, por si só constituiria uma instrução. Miss Lee
ensinava-lhe francês e ouvia-a diariamente ler uma parte de história; mas
os livros que ela deveria ler nas horas de folga eram escolhidos por ele,
que a ajudava na seleção dos assuntos e lhe corrigia o julgamento; fazia
da leitura um prazer útil, comentando sobre o que ela lia e elevando seu
gosto por meio de sensatos elogios. Em troca de tais atenções ela o
amava mais do que a ninguém no mundo, com exceção de William; seu
coração estava dividido entre os dois.

CAPÍTULO 3

O primeiro acontecimento de importância na família, quando Fanny


tinha cerca de quinze anos, foi a morte de Mr. Norris, fato que por força
devia trazer alterações e novidades. Mrs. Norris ao deixar o Presbitério
mudou-se de início para o Park, passando, em seguida, para uma pequena
casa pertencente a Sir Thomas, na vila, e consolou-se da perda do marido
com a convicção de que poderia muito bem viver sem ele; e para
contrabalançar a redução de sua renda, empenhou-se cada vez mais em
diminuir as despesas e viver na mais estrita economia.
A paróquia deveria, dali em diante, passar para Edmund; se o tio
houvesse falecido alguns anos antes, ela teria sido entre a algum de seus
amigos que a conservaria até que Edmund atingisse idade suficiente para
ordenar-se. Mas as extravagâncias de Tom haviam sido, antes disso, tão
grandes que foi necessário dispor de outra maneira do dote destinado à
futura ordenação, e o irmão mais jovem teve de pagar pelos prazeres do
mais velho.
– Envergonho-me por você, Tom, disse Sir Thomas com a maior
dignidade. Envergonho-me pela medida que sou forçado a tomar e só
desejo que na ocasião possa lamentar seus sentimentos de irmão. Você
roubou Edmund dez, vinte, trinta anos, ou, talvez para toda vida, de mais
da metade da renda a que ele tinha direito. Doravante depende de mim,
ou de você (assim o espero) conseguir para ele melhor situação; e é
preciso não esquecer que tudo o que pudermos fazer por ele não será
demais, comparado com certas vantagens de que agora é obrigado a
desistir por culpa de suas dívidas.
Tom o ouviu com alguma vergonha e tristeza; mas tão logo pôde
escapar-se, refletiu com o maior egoísmo, primeiro, que não tinha nem a
metade das dívidas que tinham alguns de seus amigos; segundo, que seu
pai tinha feito o caso muito pior do que era; e terceiro, que o futuro
encarregado da paróquia, quem quer que fosse, com toda a
probabilidade, morreria logo.
Com a morte de Mr. Norris a designação recaiu sobre um tal Dr.
Grant, que, conseqüentemente veio residir em Mansfield; e, sendo como
era um homem vigoroso, de quarenta e cinco anos de idade, veio, sem
dúvida, atrapalhar os cálculos de Mr. Bertram. Mas, “qual, era um
camarada de pescoço curto, apoplético, e que, levando muito a sério os
encargos da paróquia, dentro de pouco tempo daria cabo de si.”
Era casado com uma mulher quinze anos mais jovem do que ele e
não tinha filhos; ao virem para a vizinhança trouxeram a reputação de
muito respeitáveis e cordiais.
Por esse tempo Sir Thomas estava certo de que sua cunhada iria
reclamar os seus direitos sobre a sobrinha; a mudança de situação de
Mrs. Norris e a idade atual de Fanny, pareciam, não só abolir qualquer
antiga objeção de viverem juntas, mas, até, indicar que essa seria a
medida mais acertada. E como a sua própria situação já não estava tão
boa quanto antes, em vista das recentes perdas que havia sofrido em suas
propriedades de West India, além das extravagâncias do filho mais velho,
era para ele muito a desejar ver-se livre das despesas de manutenção da
sobrinha e da obrigação de provê-las no futuro. Na certeza de que tal
coisa deveria se dar, falou com a mulher sobre a sua probabilidade e
como Fanny estivesse presente na ocasião, ela virou-se calmamente para
a sobrinha e disse: “Quer dizer, Fanny, que você vai nos deixar para viver
com minha irmã? Que acha disso?”
Fanny ficou tão surpreendida que não pôde senão repetir as
palavras da tia.
– Vou deixá-los?
– Sim, querida; por que está tão admirada? Você morou cinco anos
conosco e minha irmã sempre pensou em levá-la depois que Mr. Norris
morresse. Mas você virá nos ver sempre que quiser.
A notícia foi para Fanny tão desagradável quanto inesperada. A tia
Norris nunca lhe tinha feito um agrado e não lhe podia querer bem.
– Terei muita pena de ir – disse ela com voz trêmula.
– Sim, acredito que terá; é muito natural. Creio que ninguém no
mundo seria tão bem tratada quanto você o foi, desde que veio para esta
casa.
– Não creia que eu seja ingrata, titia – disse Fanny modestamente.
– Não, minha filha, não o creio. Sempre achei que você era uma boa
menina.
– E eu nunca mais voltarei para aqui?
– Nunca, meu bem; mas pode ficar certa de que lá você será tão
bem tratada quanto o foi aqui. E o fato de morar em uma casa ou em
outra não fará grande diferença para você.
Fanny saiu com o coração apertado; achava que a diferença era
bastante grande e que não poderia conceber a idéia de viver com a tia.
Logo que encontrou Edmund, contou-lhe a sua desgraça.
– Primo, disse ela, vai acontecer uma coisa de que não estou
gostando nada; e embora você esteja sempre me dizendo que eu devo
procurar me habituar às coisas de que não gosto à primeira vista, neste
caso creio que não me poderá convencer. De agora em diante vou passar
a viver com a tia Norris.
– É verdade?
– É sim; a tia Bertram acabou de me dizer. Já está tudo combinado.
Vou deixar Mansfield Park para morar na White House, creio, logo que ela
se mudar para lá.
– Bem, Fanny, se o plano não fosse desagradável para você, diria
que era excelente.
– Oh, primo!
– Sim, a não ser isso, tudo o mais é a favor dele. Minha tia está
afinal agindo como uma pessoa sensata. Está procurando uma amiga,
uma companheira exatamente onde a deve procurar e eu me sinto feliz
em ver que sua avareza não interferiu. Tenho esperança de que você não
se sinta muito infeliz, Fanny.
– Mas o fato é que me sentirei; não me conformo com a idéia. Gosto
desta casa e de tudo o que ela tem; não gostarei de nada lá. Você sabe
que eu não me sinto bem junto dela.
– Não me refiro à maneira como ela tratou você quando criança;
com todos nós foi a mesma, ou quase a mesma coisa. Nunca soube
agradar uma criança. Mas você agora está em idade de ser tratada com
mais consideração; creio que ela já está mesmo se portando melhor; e
quando ela depender unicamente de você, você vai ter muita importância
para ela.
– Eu nunca terei importância para ninguém.
– Quem o impede?
– Tudo. Minha situação, minha ignorância, minha timidez.
– Quanto à sua ignorância e timidez, minha cara Fanny, creia-me,
você nunca teve nenhuma sombra de uma ou de outra, apenas está
empregando as palavras impropriamente. Não há motivo para que você
deixe de ter importância para aqueles que a conhecem. Você tem bom
senso, o temperamento dócil, e um coração que, estou certo, é incapaz de
receber uma bondade sem desejar retribuir. Não vejo melhores
qualidades para uma amiga e uma companheira.
– É bondade sua, disse Fanny corando diante de tais elogios; não sei
como agradecer a você por fazer tão bom juízo de mim. Oh! Se eu tiver de
ir, hei de me lembrar de sua bondade até o último dia de minha vida.
– Não precisa ir tão longe, Fanny; é bastante que você se lembre de
mim enquanto você estiver em White House. Você fala como se fosse
morar a duzentas milhas daqui, em vez do outro lado do parque; e no
entanto você nos pertencerá tanto quanto até aqui. As duas famílias
estarão juntas todos os dias do ano. A única diferença é que você
morando com sua tia, terá a educação que deveria ter. Aqui há muita
gente atrás de quem você pode se esconder; mas com ela você será
forçada a responder por si mesma.
– Oh! Não diga isso.
– Digo sim, e digo com prazer. Mrs. Norris é muito mais indicada do
que minha mãe para cuidar de você agora. Ela tem disposição para fazer
grandes coisas pelas pessoas por quem realmente se interessa.
Fanny suspirou e disse:
– Não posso ver as coisas como você vê; no entanto devo
reconhecer que tem mais razão do que eu e agradeço muito seu esforço
para me reconciliar com o que tem de ser. Se eu pudesse acreditar que
minha tia realmente se interessa por mim, seria um prazer sentir-me útil
a alguém. Aqui, eu sei que não sou de utilidade a ninguém e mesmo assim
sou tão apegada a este meio.
– Este meio, Fanny, você não precisa deixar, embora deixe a casa.
Terá tanta liberdade de usar o parque e os jardins como sempre teve.
Nem mesmo o seu constante coraçãozinho precisa amedrontar-se por
causa da mudança. Terá os mesmos caminhos para andar, a mesma
biblioteca, as mesmas pessoas para ver, o mesmo cavalo para montar.
– É verdade. Sim, o velho pônei querido! Ah! Primo, quando me
lembro de como tinha medo de montar, o terror que me dava ouvir que
seria bom para minha saúde! E então o trabalho que você teve para me
convencer a não ter medo, e pensar que depois de pouco tempo eu iria
gostar! Vendo como você tinha razão, tenho esperança de que suas
profecias sejam sempre certas.
– Estou certo de que sua permanência junto de Mrs. Norris será tão
salutar para seu caráter como a equitação foi para sua saúde e da mesma
forma também, para sua felicidade futura.
Assim terminou a discussão, a qual, por muito aproveitável que
fosse a Fanny, foi inteiramente inútil, pois Mrs. Norris não tinha a menor
intenção de levar consigo a sobrinha. Foi idéia que absolutamente não lhe
ocorreu, naquela ocasião, senão como coisa de que se deveria livrar por
todos os meios. E para evitar que esperassem dela uma tal atitude,
instalou-se na menor casa que havia na paróquia de Mansfield, a White
House, na qual apenas havia espaço suficiente para ela própria morar
com as suas criadas e só um quarto vago destinado a uma amiga, – amiga
essa de que ela fazia absoluta questão. Os quartos vagos no Presbitério
nunca tinham sido utilizados, mas agora era imprescindível que houvesse
um quarto para receber uma amiga. Contudo, nem com todas as suas
precauções se livrou que a julgassem melhor do que o merecia; ou, talvez
a importância que deu à necessidade daquele quarto a mais, tenha
enganado Sir Thomas que imaginou tratar-se realmente de Fanny. Lady
Bertram, porém, em pouco tempo esclareceu o negócio quando,
inconscientemente, observou a Mrs. Norris:
– Acho, minha irmã, que quando Fanny for morar com você nós não
precisamos mais conservar Miss Lee.
Mrs. Norris teve um sobressalto.
– Morar comigo querida Lady Bertram! Que significa isto?
– Pois ela não vai para a sua companhia? Pensei que você tinha
combinado com Sir Thomas.
– Eu! Nunca. Nunca disse uma palavra sobre isso a Sir Thomas nem
ele a mim. Imagine, Fanny morar comigo! A última coisa no mundo que
eu seria capaz de pensar ou que alguém poderia desejar, conhecendo-nos
a nós duas. Santo Deus! Que faria eu com Fanny? Eu? Uma pobre viúva,
sozinha, desamparada, inteiramente alquebrada, imprestável para
qualquer coisa; que faria eu com uma menina dessa idade? Uma mocinha
de quinze anos! Justamente na idade em que todas necessitam de maior
atenção e cuidado e quando justamente precisam de alegria! Sem dúvida
Sir Thomas não espera isso seriamente. Sir Thomas é muito meu amigo.
Pessoa alguma que me queira bem, estou certa, faria tal proposta. Como
se explica que Sir Thomas lhe tenha falado sobre isto?
– Na verdade não sei. Creio que ele julgou ser o melhor.
– Mas que disse ele? Não poderia ter dito ser desejo dele que eu
levasse Fanny. Tenho certeza que no íntimo não poderia exigir de mim tal
sacrifício.
– Não, apenas disse que o achava provável; e eu concordei com ele.
Ambos pensamos que lhe seria um consolo. Mas se você não quer, não se
fala mais nisso. Ela não nos incomoda aqui.
– Minha cara irmã, se você refletir sobre a minha triste situação,
compreenderá que ela não me poderá reconfortar. Agora veja, uma pobre
viúva desolada como eu, privada do melhor dos maridos, a saúde gasta
nas longas vigílias que passei tratando-o, o espírito ainda pior, toda a
minha paz neste mundo destruída, com uma renda apenas suficiente para
manter-me em situação digna e viver de modo a não desonrar a memória
do querido ausente – que possível consolo poderei encontrar em carregar
sobre os ombros um peso como Fanny? Ainda que estivesse em condições
de poder desejar isto para meu próprio bem, não faria uma tal injustiça à
pobre menina. Ela está em boas mãos e por certo será muito feliz. Eu que
me arranje como puder com as minhas tristezas e dificuldades.
– Então você não se importa de viver sozinha?
– Minha cara Lady Bertram, para que sirvo eu senão para a solidão?
Uma vez ou outra espero receber uma amiga em minha casa (terei
sempre um quarto para receber uma amiga); mas a maior parte dos meus
dias futuros serão passados na maior solidão. E não desejo mais nada.
– Creio, minha irmã, que as coisas não estão assim tão ruins para
você, considerando-se o que disse Sir Thomas, que você vai receber
seiscentas libras por ano.
– Não me queixo. Sei que não posso viver como vivia, mas hei de
poupar o quanto possa e aprender a administrar melhor minhas
economias. Fui uma dona de casa bastante liberal mas agora não me
envergonharei de ser mais econômica. Não só a minha renda quanto a
minha situação estão agora muito diferentes. Não se pode esperar que eu
continue com todos os encargos que o pobre Mr. Norris tinha como pastor
desta paróquia. Ninguém sabe o que se gastava com mantimentos lá em
casa, com os estranhos que entravam e saíam a toda hora. Em White
House essas coisas têm que ser melhor controladas. Preciso viver dentro
dos meus rendimentos se não quiser ficar na miséria; confesso que teria
grande satisfação se pudesse no fim de cada ano guardar nem que fosse
uma pequena quantia.
– E garanto que guardará. Você sempre guardou, não é?
– Meu fim, Lady Bertram, é ser útil àqueles que vierem depois de
mim. É para bem de seus filhos que desejo enriquecer. Não penso em
mais nada; apenas desejaria deixar alguma coisa para eles.
– Você é muito boa, mas não deve incomodar-se por causa deles.
Todos ficarão bem de vida. Isto compete a Sir Thomas.
– Pois olhe, a fortuna de Sir Thomas ficará bem desfalcada se as
suas propriedades em Antigua continuarem do jeito que estão.
– Ora, isto logo se arranjará. Sei que Sir Thomas já está
providenciando.
– Bem, Lady Bertram – disse Mrs. Norris levantando-se para sair. –
Digo apenas que meu único desejo é ser útil à sua família; e assim, se por
acaso Sir Thomas lhe falar novamente em eu levar Fanny, diga-lhe por
favor que minha saúde e meu estado de espírito mo impedem
absolutamente; além disso não teria realmente acomodações para Fanny,
visto que preciso do único quarto vago para uma amiga.
Lady Bertram repetiu ao marido a maior parte dessa conversa, a fim
de lhe mostrar o quanto estava enganado a respeito das intenções da
cunhada; e esta, a partir desse momento, ficou perfeitamente a salvo de
qualquer expectativa ou de qualquer alusão ao assunto. Sir Thomas não
podia compreender que ela se recusasse a fazer alguma coisa pela
sobrinha que fizera tanto empenho em adotar; mas como a cunhada teve
a previdência de insinuar que tudo quanto possuísse seria deixado para a
família ele logo se reconciliou com a idéia, que, além de ser vantajosa e
lisonjeira para eles, ainda lhe viria facilitar os meios de poder, ele mesmo,
dotar Fanny.
Fanny logo compreendeu quão desnecessários tinham sido seus
temores; a felicidade indizível, espontânea que teve, porém, ao fazer tal
descoberta, consolaram Edmund do desapontamento que teve por ver
desfeito o plano que considerava essencialmente útil para a moça. Mrs.
Norris tomou posse de White House, os Grants vieram para o Presbitério
e passados esses acontecimentos, a vida em Mansfield continuou a correr
como dantes.
Os Grants mostraram-se muito sociáveis e fizeram logo muitos
amigos entre os seus novos conhecidos. Tinham seus defeitos, como Mrs.
Norris não tardou em descobrir. O doutor era muito guloso e exigia todos
os dias um lauto jantar; e Mrs. Grant, em vez de procurar satisfazê-lo com
pouca despesa, pagava à cozinheira ordenados tão grandes quanto os dos
cozinheiros de Mansfield Park; além disso, era raramente vista cuidando
de seus afazeres. Mrs. Norris não podia, sem se irritar, falar de tais faltas,
nem da quantidade de manteiga e ovos que eram consumidos
regularmente na casa. “Ninguém mais do que ela gostava de abundância,
de dar hospitalidade; ninguém odiava mais certas mesquinharias. No seu
tempo nunca houve falta de conforto no Presbitério, mas aquele
desperdício, ela não o podia compreender. Uma senhora distinta, numa
paróquia de interior, ficava completamente deslocada. Por mais que
indagasse não conseguia descobrir se Mrs. Grant tinha mais do que
quinhentas libras de rendimento.”
Lady Bertram ouvia sem interesse certas insinuações. Ela nada
entendia de finanças, mas por outro lado, admirava-se de que Mrs. Grant,
sem ser bonita, tivesse conseguido instalar-se tão bem na vida, e exprimia
a sua admiração sobre o assunto quase tão freqüentemente, embora não
tão prolixamente, quanto Mrs. Norris discutia o outro.
Não havia ainda passado um ano desde que se debatiam essas
opiniões quando novo acontecimento de importância na família veio
empolgar os pensamentos e as conversas dessas senhoras. Para melhor
solução de seus negócios, Sir Thomas tinha decidido ir a Antigua, levando
consigo o filho mais velho, na esperança de o desviar de certas relações.
Partiram da Inglaterra com a expectativa de se ausentarem por uns doze
meses.
A necessidade da viagem sob o ponto de vista pecuniário e a
esperança de que ela seria útil ao filho, decidiram Sir Thomas a
conformar-se com a separação do resto da família, e deixar suas filhas
sob a direção de outras pessoas, justamente no momento de maior
interesse em suas vidas. Não acreditava que Lady Bertram fosse capaz de
o substituir; mas tinha bastante confiança na vigilância de Mrs. Norris e
no juízo de Edmund para partir sem receio pela conduta das raparigas.
Lady Bertram não gostou de ver o marido partir; não que, por um
só instante, se tivesse perturbado pelo receio pelo perigo que corria ou
pela falta de conforto a que estaria exposto, pois que ela era dessas
pessoas que não viam perigos e dificuldades senão para si mesmas.
Dignas de pena nessa ocasião eram as pequenas Bertram; não
porque estivessem tristes, mas pela falta de tal sentimento. Não amavam
o pai; ele nunca tomara parte em seus prazeres e a ausência dele foi
infelizmente recebida com a maior alegria. Viram-se livre de todo
constrangimento; e sem embora almejar divertimentos que seriam
provavelmente proibidos por Sir Thomas, sentiram-se, contudo,
imediatamente livres de dispor de suas próprias vontades e de conseguir
todas as facilidades ao seu alcance. O alívio de Fanny foi igual ao das
primas; possuindo, porém, uma natureza mais terna, sentiu que estava
sendo ingrata e sofreu porque de fato não podia sofrer. “Sir Thomas que
havia feito tanto por ela e por seus irmãos e que tinha ido talvez para
nunca voltar! Como poderia vê-lo partir sem uma única lágrima! Era uma
vergonha”. Além disso, naquela mesma manhã, ele dissera que ela
poderia ver William no próximo inverno e lhe dera autorização para
escrever convidando-o a vir a Mansfield, logo que a esquadra a que ele
pertencia voltasse a Londres. “Foi tão atencioso e amável!” e tivesse ele
apenas sorrido e lhe chamado “minha querida Fanny” enquanto lhe
falava, ela teria esquecido por completo qualquer constrangimento. No
entanto ele terminara o discurso de modo a mergulhá-la na maior
tristeza, acrescentando: “Se William vier a Mansfield, espero que saiba
convencê-lo de que todos esses anos passados desde que você veio para
cá não foram inteiramente inúteis para si; embora eu receie que ele não
vá encontrar grande diferença, em muitos respeitos, entre a irmã de
dezesseis e a de dez anos”. Depois que o tio saiu, ela, ao lembrar-se dessa
observação, chorou amargamente; e as primas, ao verem seus olhos
vermelhos, tomaram-na por hipócrita.
CAPÍTULO 4

Tom Bertram ultimamente tinha estado tão afastado de casa que


ninguém sentiu a sua falta; e a própria Lady Bertram viu admirada que
podiam viver sem o marido, quão bem Edmund podia substituí-lo nos
negócios, dar ordem ao mordomo, manter a correspondência com o
procurador, olhar pelos empregados, enfim, poupá-la de todo e qualquer
trabalho, exceto a sua própria correspondência.
Afinal a notícia de que os viajantes haviam chegado bem em
Antigua, tendo feito boa viagem, foi recebida; e não sem que antes disso
Mrs. Norris tivesse alimentado os mais tenebrosos receio; e como tinha
por hábito ser a primeira pessoa a tomar conhecimento de todas as
catástrofes, já estava preparando a melhor maneira de participar as más
notícias aos demais, quando a carta de Sir Thomas, assegurando que
estavam vivos e gozando boa saúde, veio fazer com que ela tivesse de
adiar seus discursos para mais tarde.
O inverno veio e passou sem que eles tivessem de ser chamados; as
contas continuavam perfeitamente em ordem; e Mrs. Norris, ocupada em
promover divertimentos para as sobrinhas, auxiliando-as nos vestuários,
ostentando seus talentos e procurando-lhes marido, tinha tanto que fazer,
além dos cuidados de sua própria casa e não poucas interferências na da
irmã e ainda os desperdícios de Mrs. Grant para bisbilhotar, que não lhe
sobrava tempo para se ocupar com a sorte dos ausentes.
As senhoritas Bertram estavam agora definitivamente estabelecidas
entre as belezas da vizinhança; e como além de bonitas e brilhantemente
instruídas possuíssem maneiras naturalmente desembaraçadas e
amáveis, eram não só admiradas mas estimadas por todos. Tão bem
educadas eram que, embora vaidosas, não se davam ares de importância;
no entanto os louvores que a tia se encarregava de ouvir e transmitir, só
serviam para as convencer de que eram perfeitas.
Lady Bertram nunca acompanhava as filhas. Era por demais
indolente para se dar a esse trabalho, mesmo para ter o prazer de
testemunhar a alegria e o sucesso das filhas; disso encarregava a irmã,
que não queria outra coisa senão poder figurar num posto de tanto
destaque e alegremente obter o meio de freqüentar a sociedade sem
fazer despesas por sua conta.
Fanny não tomou parte nos divertimentos da estação; mas
encontrava prazer em ser reconhecidamente útil a sua tia, quando o resto
da família se ausentava; e como Miss Lee já não estava em Mansfield, ela
naturalmente ficava à disposição de Lady Bertram, cada noite em que
havia um baile. Conversava, ouvia-a falar, lia para ela; e a tranqüilidade
daquelas noites passadas em “tête-à-tête” eram indizivelmente
agradáveis para ela. Quanto ao divertimento das primas, gostava de ouvir
falar sobre eles, principalmente dos bailes e com quem Edmund havia
dançado; mas fazia de sua própria situação um tão baixo conceito que
nunca imaginava poder tomar parte neles e por isso ouvia como se
fossem coisas muito distantes dela. O inverno todo para ela passou sem
novidades, e embora William não tivesse vindo à Inglaterra, ela não
perdia a esperança de o ver em breve.
A primavera seguinte veio privá-la do seu amigo, o velho cavalo
cinzento. E por algum tempo ela esteve em perigo de adoecer, pois apesar
de ser reconhecida a necessidade que tinha a equitação para a sua saúde,
não pensaram em arranjar-lhe outra montaria “porque”, como disseram
as tias, “ela podia montar nos cavalos das primas em qualquer ocasião em
que não estivessem ocupados”; e como as senhoritas Bertram usassem
seus cavalos todos os dias e não fizessem empenho em demonstrar suas
boas maneiras a ponto de sacrificarem qualquer prazer, aquela “qualquer
ocasião” nunca chegou. Durante todas as manhãs bonitas de abril e maio
saíam alegremente; e Fanny ou ficava em casa sentada ao lado de uma tia
ou caminhava além de suas forças em companhia de outra; Lady Bertram
achando que o exercício era tão desnecessário aos outros quanto era para
si; e Mrs. Norris, que andava todo dia, pensava que todo mundo deveria
também andar. Se Edmund não estivesse ausente naquela ocasião, o mal
teria sido remediado. Quando ele voltou, ao perceber a situação de Fanny,
viu que não havia outra coisa a fazer: – Fanny precisa de um cavalo,
declarou com resolução para cortar qualquer argumento inspirado na
indolência de sua mãe ou na avareza da tia. Mrs. Norris achava que
qualquer animal velho dentre os já existente no Park poderia servir
perfeitamente; ou senão, poderiam pedir emprestado um dos cavalos do
mordomo; ou ainda, talvez, o Dr. Grant pudesse emprestar de vez em
quando, o pônei que ele costumava mandar ao correio. O que ela não
podia admitir, que julgava absolutamente desnecessário e até impróprio,
era que Fanny possuísse um cavalo só para seu uso, como as primas. Sem
dúvida Sir Thomas nunca pensaria nisso; e ela acrescentava que tal
compra feita na ausência dele, além da despesa enorme para a
manutenção do animal, justamente quando uma grande parte dos seus
negócios estava incerta, não se justificava. – Fanny terá um cavalo, foi a
única resposta de Edmund. – Mrs. Norris continuou a ver a coisa de outra
maneira. Lady Bertram, porém concordou inteiramente com o filho em
que era realmente necessário comprar o cavalo e que o marido haveria de
aprovar; apenas pediu que não houvesse pressa; queria esperar pela volta
de Sir Thomas, para que ele próprio liquidasse o assunto. Ele deveria
voltar em setembro e portanto, que mal havia em esperar até aquele
mês?
Embora Edmund estivesse muito mais contrariado com a tia do que
com a mãe, pelo pouco caso que faziam da sobrinha, não pôde deixar de
reconhecer que a mãe tinha uma certa razão e finalmente, resolveu
proceder de tal modo que não incorresse no risco do pai achar que ele se
tivesse excedido e ao mesmo tempo proporcionar a Fanny um meio
imediato de exercitar-se. Possuía três cavalos mas nenhum deles servia
para montaria de senhoras. Dois eram usados para caçadas; o terceiro,
um ótimo cavalo para passeio. Este ele resolveu trocar por um em que a
prima pudesse montar; sabia onde encontrar um animal nestas condições;
e uma vez resolvido, o negócio logo se fez. A nova égua provou ser
esplêndida; com pouco trabalho ficou perfeitamente apta para o fim a que
era destinada e foi posta quase que inteiramente à disposição de Fanny.
Antes ela não pensava que pudesse um dia acostumar-se a outro cavalo
que não fosse o seu velho pônei; mas o prazer que sentia em montar a
nova égua ultrapassava todas as suas expectativas e não sabia como
expressar seu contentamento por se ver alvo de tão grande consideração.
Considerava o primo como exemplo de tudo que fosse bom e grandioso e
a sua gratidão pela bondade que dele recebia era tão intensa que não
poderia ser descrita por palavras. Seus sentimentos em relação a ele
traduziam-se por tudo que houvesse de respeito, gratidão, confiança e
ternura.
Visto que o cavalo continuava, em nome e realidade, como
propriedade de Edmund, Mrs. Norris tolerava que fosse usado por Fanny;
e se por acaso Lady Bertram tornasse a pensar na sua própria objeção,
Edmund estava a seus olhos desculpado por não haver esperado o
regresso de Sir Thomas, pois em setembro Sir Thomas continuava
ausente e sem nenhuma de terminar os negócios. Circunstâncias
desfavoráveis subitamente apareceram no momento em que ele estava
principiando a voltar seus pensamentos para a Inglaterra; e a grande
incerteza em que tudo ficou então envolvido, decidiram-no a mandar o
filho de volta, permanecendo ele próprio até a final liquidação. Tom
chegou são e salvo, trazendo as melhores notícias sobre a saúde do pai;
notícias inúteis, na opinião de Mrs. Norris. Parecia-lhe tão estranho que
Sir Thomas mandasse o filho para casa estando ele próprio ameaçado de
possíveis desgraças que não podia deixar de ter os mais terríveis
pressentimentos; e quando vieram as longas noites do outono, na triste
solidão de sua casa, ficava tão assombrada com essas idéias que era
obrigada a se refugiar diariamente na sala de jantar do Park. A volta do
inverno, porém, trouxe outras ocupações e com o espírito alegremente
empenhado em velar pelo destino da sobrinha mais velha, esqueceu seus
velhos temores. “Se o pobre Sir Thomas tivesse a infelicidade de nunca
mais voltar, ao menos seria um consolo ver a sua querida Maria bem
casada”, era o que ela freqüentemente pensava, quando estavam em
companhia de homens de fortuna e particularmente na apresentação de
um rapaz que recentemente herdara uma das maiores fortunas e mais
belas propriedades do Estado.
Mr. Rushworth de início empolgou-se com a beleza de Miss
Bertram; e, como tivesse inclinação para o casamento, logo se imaginou
ardentemente apaixonado. Era um rapaz pesado, sem nada de
extraordinário; mas como não havia nada de desagradável no seu aspecto
e no seu porte, a moça se sentiu bem contente com a conquista. Tendo já
completado vinte e um anos, Maria Bertram começou a encarar o
matrimônio como um dever e como o seu casamento com Mr. Rushworth
lhe traria os benefícios de uma fortuna maior do que a do pai e lhe
asseguraria uma casa na cidade – que era no momento seu principal
objetivo, – sentiu-se moralmente obrigada a casar-se com o moço caso o
conseguisse. Mrs. Norris teve o maior zelo em promover a união,
procurando por meio de sugestões e artifícios convencer cada uma das
partes das vantagens que a mesma traria; e entre outros meios procurou-
se fazer íntima da mãe do pretendente a qual no momento morava com
ele; induziu Lady Bertram a ir visitá-la apesar das dez milhas de péssima
estrada que era preciso percorrer. Não necessitou de muito tempo para
que ela e aquela senhora chegassem a um perfeito entendimento. Mrs.
Rushworth desejava muito que o filho se casasse e declarou que entre
todas as moças que ela havia visto, Miss Bertram, pelas sua esplêndidas
qualidades e prendas, era a mais apta a fazê-lo feliz. Mrs. Norris aceitou
o cumprimento e admirou a sagacidade com que tão bem distinguia o
mérito das pessoas. Maria na verdade era o orgulho e o encanto de todos
eles – perfeita – um anjo; e, naturalmente, tão cercada de admiradores,
seria difícil na escolha; e contudo, tanto quanto Mrs. Norris poderia
afirmar em tão curta convivência, Mr. Rushworth parecia precisamente
ser o único homem digno de a merecer.
Depois de dançarem juntos em diversos bailes o jovem par justificou
plenamente aquelas previsões e o noivado, com a devida referência à
ausência de Sir Thomas, foi anunciado, com grande satisfação para as
respectivas famílias e os conhecidos em geral, que já há muitas semanas
não esperavam outra coisa.
O consentimento de Sir Thomas não seria conhecido senão dali a
alguns meses; mas no ínterim, como ninguém duvidava de que ele
receberia o pedido com a maior cordialidade, as duas famílias estreitaram
as relações, e mais nenhuma tentativa foi feita para guardar segredo,
embora Mrs. Norris o comentasse com todo o mundo como coisa que não
deveria ser falada no presente.
Edmund era a única pessoa na família a ver defeitos na união; e
nenhum argumento apresentado pela tia conseguia induzi-lo a achar que
Mr. Rushworth seria o companheiro desejável para a irmã. Reconhecia
que a irmã melhor do que ninguém poderia julgar sobre a própria
felicidade, mas não se conformava de que a felicidade dela se baseasse
numa questão de fortuna; muitas vezes na presença de Mr. Rushworth
costumava dizer para si mesmo: “Se não fossem as doze mil libras, este
camarada não prestaria para nada”.
Sir Thomas, no entanto, acolheu com a maior alegria os projetos de
aliança tão vantajosa e da qual ele não sabia senão as coisas boas e
agradáveis. Era uma união perfeita – o mesmo condado e os mesmos
interesses – e o seu consentimento foi dado logo que possível. Impôs,
apenas, como condição, que o casamento não se realizasse antes de sua
volta, o que ele estava novamente planejando para breve. Escreveu em
abril, anunciando que esperava liquidar seus negócios satisfatoriamente,
a fim de que pudesse partir de Antigua antes de terminar o verão.
Tal era o estado das coisas no mês de julho; Fanny tinha completado
dezoito anos, quando a sociedade da vila foi acrescida de mais dois
membros, com a chegada de Mr. e Miss Crawford, irmãos de Mrs. Grant
por parte de mãe. Os dois eram ricos. O filho possuía uma boa
propriedade em Norfolk e a filha vinte mil libras. Quando eram ainda
crianças sua irmã os estimava muito; mas como ao seu casamento se
seguiu logo a morte da mãe, que os deixou aos cuidados de um irmão de
seu segundo marido, – o qual Mrs. Grant não conhecia, – ela nunca mais
teve ocasião de os ver. Na casa do tio tinham encontrado um lar. O
Almirante e Mrs. Crawford, embora em desacordo em tudo o mais,
uniram-se na afeição por aquelas crianças ou, pelo menos, seus
sentimentos não mais divergiam senão na preferência que cada um tinha
por uma ou outra das crianças. O Almirante tinha encantos pelo menino,
enquanto a menina era a predileta de Mrs. Crawford; e foi por causa da
morte dessa senhora que a sua protegida se via agora obrigada, depois de
alguns meses de experiência na casa do tio, a procurar novo lar. O
Almirante Crawford era um homem cheio de vícios e que, em vez de
conservar a sobrinha a seu lado, preferiu levar a amante para sua própria
casa e era a isto que Mrs. Grant devia o ter a irmã se proposto a morar
com ela, medida esta não desejada por uma parte quanto necessária para
a outra; pois a Mrs. Grant que por este tempo já tinha lançado mão de
todos os recursos possíveis para distrair a sua vida no interior – tendo
atafulhado a sua sala predileta com lindos móveis e feito uma completa e
selecionada coleção de plantas e aves – precisava arranjar outra distração
para seus dias. Por conseguinte, foi-lhe mais do que agradável a vinda
dessa irmã a quem sempre estimara e que agora pretendia permanecer
com ela até o dia em que se casasse. O seu único receio era que
Mansfield não agradasse a uma moça que estava habituada aos confortos
de Londres.
A própria Miss Crawford não estava inteiramente livre de tais
apreensões se bem que essas fossem causadas principalmente pelo modo
de vida da irmã e pela espécie de suas relações; e não foi senão depois de
tentar sem resultado persuadir o irmão a morar com ela em sua própria
casa de campo, que ela decidiu se aventurar para o lado dos outros
parentes. Infelizmente Henry Crawford tinha verdadeiro horror por
qualquer idéia de residência permanente ou prescrição de sociedade; não
poderia portanto sujeitar a irmã a uma tal situação; acompanhou-a pois,
com a maior solicitude, a Northamtonshire e prontamente se
comprometeu a ir buscá-la, no momento em que ela se sentisse farta do
lugar.
O encontro foi dos mais favoráveis para ambas as partes. Miss
Crawford encontrou uma irmã sem formalidades – um cunhado muito
gentil e uma casa confortável e bem montada; e pelo seu lado, Mrs. Grant
recebia em sua casa dois jovens muito atraentes, a quem ela esperava
amar mais do que nunca. Mary Crawford era notavelmente bela; e Henry,
conquanto não fosse bonito, tinha muito boa aparência; ambos tinham as
maneiras desembaraçadas e agradáveis e Mrs. Grant imediatamente lhes
fez todas as honras. Estava encantada pelos dois mas a sua predileção
recaiu logo sobre Mary; e como nunca tinha podido gabar-se de ser
bonita, sentia-se agora radiante por poder se orgulhar da beleza da irmã.
Antes mesmo da chegada da moça já lhe havia descoberto um marido
conveniente; decidira que este seria Tom Bertram; uma moça com a
fortuna e todos os predicados que Mrs. Grant antevia, merecia até mais
do que o primogênito de um baronete. E como era muito franca e cordial,
três horas depois de Mary haver chegado, ela foi logo lhe contando seus
planos.
Miss Crawford gostou imensamente de haver na vizinhança uma
família de tal importância e de forma alguma lhe desagradaram os planos
e a escolha feita pela irmã. O casamento era seu objetivo, caso pudesse
casar-se bem; e como tinha visto Mr. Bertram, decidiu que ele lhe
convinha não só fisicamente como pela sua situação financeira. E
conquanto levasse o caso em brincadeira, não deixava ao mesmo tempo
de pensar nele seriamente. Henry foi logo posto a par do projeto.
– E além disso, acrescentou Mrs. Grant, tenho uma idéia para
completar esse plano. Desejaria muito que vocês dois se fixassem aqui; e
assim sendo, Henry, você terá de casar-se com a mais nova das Misses
Bertram. É uma moça fina, bonita, delicada e cheia de predicados, que só
o poderá fazer muito feliz.
Henry agradeceu.
– Minha cara irmã – disse Mary – se você conseguir persuadi-lo a tal
coisa, será para mim um grande prazer encontrar uma aliada de tanto
valor e só sinto que você não tenha pelo menos meia dúzia de filhas para
dispor. Se quiser que Henry se case, tem que procurar uma francesa.
Tudo o que a habilidade inglesa poderia fazer já foi tentado. Eu mesma
tenho três amigas, cada qual mais louca por ele; e os trabalhos por que
elas, suas mães (por sinal muito sabidas), minha querida mana e eu
mesma temos passado para fazê-lo refletir sobre o assunto, e induzi-lo ao
casamento, você nem imagina! É o Maior namorador que se pode
imaginar. Se as senhoritas não querem sofrer uma decepção é melhor que
o evitem.
– Meu caro irmão, não acredito isso de você.
– Sei que não acredita, você é boa demais. É mais bondosa do que
Mary. Compreende decerto as indecisões e a inexperiência da mocidade.
Eu sou cauteloso e não quero arriscar minha felicidade com uma
precipitação. Ninguém faz melhor opinião do casamento do que eu. Estas
poucas palavras do poeta descrevem, com justiça, a felicidade de possuir-
se uma esposa: “O maior e mais durável dom divino”.
– Veja só, minha irmã, como ele é irônico! Repare o seu sorriso! O
que lhe garanto é que ele é detestável. As lições do Almirante lhe
estragaram completamente.
– Não dou nenhuma importância, disse Mrs. Grant, ao que os jovens
dizem sobre o casamento. Se não mostram inclinação para casar é que
ainda não encontraram a pessoa que lhes convém.
O Dr. Grant, rindo, felicitou Miss Crawford por ela se sentir
inclinada para o casamento.
– Oh sim! Não me sinto acanhada de o confessar. Acho que todo
mundo deve casar, desde que o possa fazer convenientemente; não
aprovo o procedimento dessas pessoas que não cuidam do futuro; todos
devem pensar em casar-se, logo que o casamento traga vantagens.

CAPÍTULO 5

Os jovens simpatizaram-se mutuamente à primeira vista. De cada


lado havia muito para os atrair e em breve as suas relações prometeram
maiores intimidades. A beleza de Miss Crawford favoreceu-a junto às
Misses Bertram. Elas próprias eram bastante belas para não temerem a
beleza de outra mulher e ficaram quase tão encantadas quanto seus
irmãos quanto a vivacidade de seus olhos escuros, o moreno de sua tez e
sua graça em geral. Se ela fosse alta, desenvolvida e clara, haveria algum
perigo; mas assim, não poderia haver comparação; era reconhecidamente
uma moça graciosa, gentil, enquanto que elas eram as mais belas da
redondeza.
O irmão não era bonito; quando o viram pela primeira vez acharam-
no absolutamente sem atrativo, escuro e desinteressante; contudo era
bastante delicado e tinha um porte agradável. No segundo encontro já
não o acharam tão feio; feio ele era, mas tinha a fisionomia tão agradável,
seus dentes eram tão bons, e era tão bem constituído de corpo, que não
se notava a sua feiúra; e, na terceira entrevista, quando jantaram juntos
no Presbitério ninguém mais pensou em o chamar de feio. Ele era, na
verdade, o rapaz mais agradável que as duas irmãs já haviam conhecido,
e ambas ficaram igualmente encantadas por ele. Como a mais velha das
Misses Bertram já estivesse noiva, ele foi imediatamente situado como
legítima propriedade de Julia, do que Julia estava perfeitamente
consciente; não se tinha passado uma semana depois que ele chegara a
Mansfield e ela já estava pronta a apaixonar-se pelo rapaz.
As idéias de Maria sobre o assunto eram mais confusas e
indistintas. Não queria ver nem compreender. – Não havia mal algum em
que ela apreciasse um rapaz tão agradável – todos conheciam a sua
situação – Mr. Crawford que tomasse conta de si. Mr. Crawford, porém,
não pretendia se expor a nenhum perigo. As Misses Bertram mereciam
que se lhes agradassem e estavam prontas para isto; e ele começou a
fazer com que elas não gostassem dele. Não queria vê-las sofrer; mas um
espírito e um temperamento que o faziam julgar-se o melhor juiz de seus
próprios sentimentos, tinha as vistas muito largas sobre tais pontos.
– Aprecio imensamente as Misses Bertram, minha irmã – disse ele
quando voltou depois de as acompanhar à carruagem no dia do tal jantar;
– são moças muito elegantes e agradáveis.
– Elas o são de fato e eu gosto de ouvir você dizer isto. Mas você
gosta mais de Julia.
– Oh sim! Gosto mais de Julia.
– Mas gosta realmente? Digo isto porque em geral todos acham
Miss Bertram mais bonita.
– Assim deveria eu também achar. Ela leva vantagem em todos os
aspectos e eu prefiro o seu rosto ao da outra; mas gosto mais de Julia;
Miss Bertram é sem dúvida mais bonita, e eu a acho mais agradável; e no
entanto, continuo a gostar mais de Julia, porque vocês o querem.
– Não discutirei com você, Henry, mas tenho certeza de que no fim ,
há de gostar mais dela.
– Pois não estou dizendo que, por princípio, já gosto mais dela?
– E além disso Miss Bertram é noiva. Lembre-se disso, meu caro
irmão. A escolha dela está feita.
– Sim, e por isso mesmo mais a aprecio. Uma mulher comprometida
é sempre mais agradável do que outra que não o seja. Está contente
consigo mesma. Não tem mais preocupações, sente que pode exercer
todos os seus poderes de sedução sem causar suspeitas. Uma senhora
comprometida está fora de perigo; nenhum se lhe pode fazer.
– Bem, quanto a isto, Mr. Rushworth é um ótimo rapaz e um bom
partido para ela.
– Mas Miss Bertram não liga a mínima importância a ele, e este é o
juízo que você faz de sua amiga íntima. Pois eu não concordo. Tenho
certeza de que Miss Bertram é muito afeiçoada a Mr. Rushworth. Percebi
em seus olhos quando ele foi mencionado. Faço muito bom conceito de
Miss Bertram para a supor capaz de conceder a mão sem dar o coração.
– Mary, como havemos de corrigi-lo?
– Creio que devemos deixá-lo de mão. Discutir não adianta. Algum
dia ele acaba capitulando.
– Mas não desejo que ele “capitule”; não desejaria vê-lo fazer o que
não estivesse em sua vontade; preferia que fosse sincero e leal.
– Ora! Ele que corra o risco de ter de capitular. Tanto faz. A todos
acontece o mesmo mais cedo ou mais tarde.
– Mas nem sempre quanto ao casamento, querida Mary.
– Especialmente quanto ao casamento. Com o devido respeito às
pessoas casadas que se acham presentes, minha querida mana, não há
uma só pessoa em cem, tanto de um como de outro sexo, que não o
tenham feito antes de casar. Para qualquer lado que me vire, vejo sempre
a mesma coisa; e creio que assim deve ser, se se levar em consideração
que o casamento é, de todas as transações, a única em que uma das
partes espera tudo da outra sem pensar em ter, ela própria, a mínima
parcela de sinceridade.
– Ah! Estou vendo que Hill Street foi uma péssima escola
matrimonial para você.
– Minha pobre tia, por certo, não foi das mais felizes no casamento;
no entanto, falando pelas minhas próprias observações, acho que o
casamento é um negócio que depende de certa manobra. Conheço muita
gente que se casou na expectativa e na confiança de obter vantagens
pessoais das relações, do talento ou das qualidades da pessoa escolhida e
que, ao se verem inteiramente enganados, foram obrigados a se
conformar exatamente com o contrário. Que é isto senão uma
capitulação?
– Minha filha, você deve estar exagerando. Desculpe-me mas não
lhe posso dar crédito. Fique certa de que você vê as coisas pelo meio. Só
vê o que há de mal, não vê a compensação. Pode haver pequenas
dificuldades e desapontamentos em toda parte e a que todos nós estamos
sujeitos, e, então, se falhar um plano de felicidade, a natureza humana
vira-se para outro; se o primeiro cálculo foi errado, podemos fazer um
segundo; havemos de encontrar conforto em alguma parte – e os
observadores mal intencionados, que do pouco fazem uma tragédia, esses
são mais enganados do que as próprias partes.
– Muito bem, mana! Faço justiça ao seu “esprit de corps”. Quando
me casar tenciono ser tão firme quanto você; e desejo que todos os meus
amigos também o sejam. Evitarei assim muitas tristezas.
– Você é tão ruim quanto seu irmão, Mary; Mas havemos de curar a
ambos. Mansfield há de curá-los, e sem muito esforço. É só vocês
demorarem aqui e logo ficarão curados.
Os Crawford, apesar de não quererem curar, desejavam ficar. Mary
achava que o Presbitério, como residência de momento, era satisfatória e
Henry estava igualmente pronto a prolongar a visita. Tinha vindo com a
intenção de passar apenas alguns dias; mas Mansfield prometia muitos
divertimentos e ele não tinha nada que o prendesse em outra parte. Mrs.
Grant ficou encantada por os ter em sua companhia, e igualmente o Dr.
Grant sentia-se contentíssimo de os receber; uma moça bonita e
desembaraçada como Miss Crawford é sempre uma companhia agradável
para um homem indolente, caseiro; e o fato de ter Mr. Crawford como
hóspede era um pretexto para beber clarete todos os dias.
Nunca Miss Crawford vira admiração igual à das Misses Bertram
por Henry. Ela reconhecia, contudo, que os Bertrams eram belos moços, e
que dois rapazes como aqueles não se viam freqüentemente, mesmo em
Londres e que os modos deles, principalmente os do mais velho, eram
excelentes. Ele ia muito a Londres e tinha, pois, mais vivacidade e
galanteria do que Edmund, devendo, por isso, ser preferido; e na verdade
o fato de ser ele o mais velho era outra razão que se impunha. Tinha tido
o pressentimento de que ia gostar do mais velho. Sabia que era o seu
destino.
Tom Bertram devia, de fato, ser considerado amável; era dessa
espécie de pessoas que são geralmente apreciadas, pois sua gentileza
agradava geralmente mais do que outra qualidade de maior caráter, pois
era desembaraçado, espirituoso, tinha um grande número de relações e
muito o que dizer; e a herança de Mansfield Park e do título de baronete
não prejudicava nenhum destes predicados. Miss Crawford viu logo que
ele lhe convinha. Examinando-lhe cuidadosamente a situação, viu que
quase tudo o favorecia; um parque, um parque verdadeiro, oito
quilômetros ao redor, uma casa espaçosa recentemente construída e tão
bem situada que sua pintura merecia fazer parte de qualquer coleção de
gravuras de casas nobres do reino, precisando somente ser
completamente remobiliada – irmãs encantadoras, uma mãe tranqüila e
ele próprio um homem agradável – com a vantagem de estar no momento
preso a uma promessa de dívidas de jogo e de se tornar “Sir Thomas” no
futuro. Servia-lhe muito bem; acreditou que o aceitaria; e
conseqüentemente começou a interessar-se pelo cavalo que ele iria fazer
disputar as corridas de Bath.
Por causa dessas corridas, teria ele de ausentar-se logo após
haverem travado conhecimento; e como era de supor-se por suas “fugas”
anteriores, a família não o esperava de volta senão depois de muitas
semanas. Tantos comentários foram feitos sobre o caso, que a induziram
a assistir às tais corridas.
E Fanny, o que estaria ela fazendo e pensando todo esse tempo? E
qual era a sua opinião sobre os recém chegados. Poucas moças de dezoito
anos seriam menos chamadas para dar sua opinião. Tranqüilamente, sem
que ninguém o percebesse, ela pagou seu tributo de admiração pela
beleza de Miss Crawford; mas como continuava a achar Mr. Crawford
muito sem interesse, apesar de ambas as primas repetidamente lhe
dizerem o contrário, ela nunca o mencionava. A observação feita a seu
próprio respeito, porém, foi a seguinte:
– Começo, agora, a compreender vocês todos, exceto Miss Price –
disse Miss Crawford aos Mrs. Bertrams. – Afinal ela já foi ou não
apresentada à sociedade? Estou intrigada. Jantou com vocês no
Presbitério, o que dava a entender que já o tinha sido; no entanto, falou
tão pouco que fiquei na dúvida.
Edmund, a quem a pergunta praticamente tinha sido feita,
respondeu:
– Creio que compreendo o que diz, mas não me comprometo a
responder à sua pergunta. Minha prima já é crescida, tem a idade e o
juízo de uma moça feita, mas se foi ou não apresentada, isto está fora do
meu alcance saber.
– No entanto, de um modo geral, não há nada mais fácil de se saber.
A diferença é bastante grande. Tanto as maneiras quanto as aparências
são, falando de um modo geral, completamente diferentes. Até agora eu
nunca supus ser possível enganar-me a esse respeito. Uma moça ainda
não apresentada nunca varia de vestuário; porta-se modestamente e não
diz uma só palavra. Pode quando muito sorrir; e assim mesmo, se o fizer
demais, é considerado impróprio, posso lhe assegurar. Elas têm de ser
quietas, reservadas. E a pior parte de tudo isto é que ao serem
introduzidas na sociedade a mudança geralmente é muito brusca. Às
vezes passam subitamente da reserva para a mais oposta ousadia! Esta é
a parte defeituosa do sistema atual. Ninguém gosta de ver uma moça de
dezoito ou dezenove anos mudar repentinamente em todos os sentidos –
pelo menos quando a viu, apenas no ano anterior, quase incapaz de abrir
a boca. Mr. Bertram, aposto, já presenciou muitas dessas alterações.
– Creio que sim, mas isto não é leal; vejo a que ponto quer chegar.
Está zombando de mim e de Miss Anderson.
– Não é verdade. Miss Anderson! Palavra que não sei de quem ou de
que está falando. Estou inteiramente às escuras. Mas terei muito prazer
em zombar, se me disser o que há a respeito disso.
– Ah! Sabe encaminhar o assunto muito bem, mas não me poderá
levar tão longe. Na certa estava pensando em Miss Anderson quando
descreveu uma moça “transformada”. Pinta as coisas bem demais para
que possa haver engano. Foi justamente isso. Os Andersons de Baker
Street. Ainda outro dia estivemos falando sobre eles, não é? Você,
Edmund, me ouviu mencionar Charles Anderson. E a circunstância foi
precisamente o papel que aquele moço representou no caso. Quando
Anderson me apresentou à família, cerca de dois anos passados, a irmã
dele ainda não tinha sido “apresentada”, e não consegui fazer com que
ela me dissesse uma única palavra. Estive lá uma manhã, sentado durante
uma hora à espera de Anderson, apenas com ela ou uma das meninas na
sala, a governanta estando doente ou tendo fugido, sei lá, e a mãe
entrando e saindo a todo momento, atarefada com as cartas de negócios;
e eu a custo consegui arrancar uma palavra ou um olhar da moça – nada
mais que uma resposta por delicadeza. Parafusou a boca e virou-me as
costas com um tal ar de arrogância! Não a vi senão depois de uns doze
meses, quando então ela já havia sido “apresentada”. Encontrei-a em
casa de Mrs. Holford e nem a reconheci. Ela se dirigiu a mim, afirmando
já me conhecer, encarou-me sem o menor embaraço, falou e riu a tal
ponto que eu já nem sabia para que lado olhar. Tive a impressão que
todos se riam de mim naquela hora e a moça, é evidente, ouviu a história.
– Aquele que mostra ao mundo como deveria ser o comportamento
das mulheres, – disse galantemente Mr. Bertram – faz muito para as
corrigir.
– O erro é muito simples, disse Edmund: tais moças são mal
educadas. Suas idéias são de início mal orientadas. Elas estão sempre se
preocupando com coisas de vaidade e não existe realmente mais modéstia
no seu comportamento de antes de aparecerem em público do que no
depois.
– Não sei, – respondeu Miss Crawford hesitante. – Sim, não estou de
acordo neste ponto. Esta é certamente a parte mais honesta do caso. É
muito pior ver moças “ainda não apresentadas” portarem-se com a
mesma arrogância e tomarem as mesmas liberdades como se já o fossem,
coisa que já tenho visto. Isto é pior que tudo – repulsivo!
– Sim, é realmente muito inconveniente – disse Mr. Bertram. –
Desorienta as pessoas; não se sabe o que fazer. Pela maneira de vestir-se
e pela reserva do comportamento, que tão bem descreveu (e nada mais
justo), sabe-se como agir; no ano passado estive metido num embaraço
medonho justamente por causa disso. Em setembro, logo depois da minha
volta da Índia, fui passar uma semana em Ramsgate com um amigo. Meu
amigo Sneyd – (você já me ouviu falar dele, Edmund). – Os pais e irmãs
do rapaz me eram todos desconhecidos. Quando chegamos a Albion Place
estavam todo ausentes; e fomos pois ao encontro, no cais, de Mrs. Sneyd
e das duas Misses Sneyds, além de outras pessoas de suas relações.
Cumprimentei-as como é de praxe; e como Mrs. Sneyd estava cercada de
cavalheiros, cheguei-me para junto de uma de suas filhas, caminhei ao
lado dela todo o tempo, cercando-a de todas as amabilidades possíveis; a
moça portou-se perfeitamente à vontade, conversando muito
naturalmente. Não tive a menor suspeita de estar cometendo uma gafe.
Elas tinham exatamente a mesma aparência: ambas bem vestidas, com
véus e sombrinhas como qualquer outra moça; mais tarde, porém, soube
que tinha dado toda a minha atenção à mais jovem, que ainda não tinha
sido “apresentada” e que tinha com isso ofendido extremamente a mais
velha. Miss Augusta não deveria ser percebida senão dali a seis meses; e
Miss Sneyd, parece, nunca me perdoou.
– Foi, de fato, uma perversidade. Pobre Miss Sneyd! Embora eu não
tenha nenhuma irmã mais jovem, sinto-o por ela. Ser desprezada dessa
maneira deve ter sido doloroso; mas foi culpa da mãe, exclusivamente.
Miss Augusta deveria estar acompanhada pela governanta. Estes meios
termos nunca dão bom resultado. Bom, agora quero que me esclareçam
sobre Miss Price. Ela vai a bailes? Costuma jantar fora, em outras casas
além de minha irmã?
– Não – respondeu Edmund. – Creio que ela nunca foi a um baile.
Minha mãe pouco sai e não costuma jantar em casa de ninguém a não ser
com Mrs. Grant; e Fanny fica sempre em casa com ela.
– Oh! Então está claro. Miss Price ainda não foi apresentada à
sociedade.

CAPÍTULO 6

Mr. Bertram seguiu para Bath, e Miss Crawford preparou-se para


enfrentar um grande aborrecimento devido à ausência dele nas reuniões
que agora estavam se tornando diárias entre as duas famílias, e quando,
logo em seguida, jantaram todos, no Park, ela retomou o seu lugar
favorito junto à cabeceira da mesa, consciente de que encontraria a mais
melancólica diferença na troca dos chefes da casa. Estava certa de que o
tempo iria passar insipidamente. Comparado ao irmão, Edmund não teria
nada que dizer. A sopa seria servida sem a menor animação, o vinho
bebido sem sorrisos e agradáveis gracejos e a caça seria cortada sem o
acompanhamento de uma anedota divertida ou de uma única história
engraçada sobre “o meu amigo tal e tal”. Deveria procurar distrair-se
com o que se passava na outra extremidade da mesa e em observar Mr.
Rushworth , que aparecia em Mansfield pela primeira vez desde os
Crawfords haviam chegado. Ele tinha ido visitar um amigo no condado
vizinho e como aquele amigo havia recentemente mandado embelezar os
seus campos por um empreiteiro, Mr. Rushworth voltara com a cabeça
cheia de projetos e ansioso para arrumar sua própria residência da
mesma maneira; e embora não dizendo muito a respeito, não podia falar
em outra coisa. O assunto já havia sido discutido na sala de visitas; e
agora tornava a ser debatido na sala de jantar; o principal e evidente
objetivo da conversa dele era chamar a atenção e obter a opinião de Miss
Bertram; e embora o procedimento dela demonstrasse antes
superioridade do que qualquer solicitude em agradá-lo, a referência feita
a Sotherton Court e às idéias ao mesmo ligadas, dava-lhe uma sensação
de prazer que a impedia de mostrar-se desinteressada.
– Desejaria que visse Compton, disse ele, é a coisa mais completa!
Nunca vi um lugar mudar tanto. Disse a Smith que já não sabia onde eu
estava. O parque, agora, é uma das coisas mais lindas da região; avista-se
a casa da maneira mais surpreendente. Confesso que quando ontem
voltei a Sotherton, achei-o feio como uma prisão – uma perfeita prisão
antiga.
– Oh, que horror! – exclamou Mrs. Norris – Uma prisão, que idéia!
Sotherton Court é o lugar mais antigo e nobre do mundo.
– Mas antes de tudo, minha senhora, precisa de melhoramentos.
Nunca em minha vida vi um lugar que mais necessitasse de
melhoramentos; e está tão abandonado que nem sei o que se possa fazer
dele.
– Não admira que Mr. Rushworth pense assim no momento, disse
Mrs. Grant com um sorriso a Mrs. Norris; mas conte com isso: dentro de
pouco tempo Sotherton terá todos os embelezamentos que se possa
desejar.
– Procurarei fazer qualquer coisa, disse Mrs. Rushworth, mas ainda
não sei o que. Tenho esperança de que algum amigo me auxilie.
– Seu melhor amigo em tal ocasião, imagino, seria Mr. Repton, disse
tranqüilamente Ms. Bertram.
– Era o que eu estava pensando. Como ele trabalhou tão bem para
Smith, pensei que o melhor seria chamá-lo imediatamente. Cobra cinco
guinéus por dia.
– Ora, e que fossem dez, exclamou Mrs. Norris, estou certa de que o
senhor não faria questão. A despesa é que não trará impedimento. Se
estivesse em seu lugar, não pensaria na despesa. Mandaria fazer tudo no
melhor estilo e tão belo quanto possível. Uma residência como Sotherton
Court merece tudo o que o bom gosto e o dinheiro podem proporcionar. O
senhor tem bastante espaço para aproveitar, e terrenos que o
recompensarão. Eu, por mim, se tivesse a quinquagésima parte do
terreno de Southerton, estaria sempre plantando e melhorando. É
verdade que sou excessivamente apaixonada por estas coisas. Seria
ridículo que me metesse a fazer qualquer coisa no lugar onde eu estou
agora, com aquele pedacinho de terra. Seria até burlesco. Mas se tivesse
mais espaço, havia de ter um prazer enorme em arrumar e plantar. No
Presbitério nós fizemos muito, nesse sentido; comparando com o que era
antes, é agora um lugar habitável. Vocês que são moços, talvez não se
lembrem; mas se o prezado Sir Thomas estivesse presente, ele havia de
dizer dos melhoramentos que nós fizemos ali; e muito mais teria sido feito
se não fosse o triste estado de saúde do pobre Mr. Norris. Ele dificilmente
podia sair, pobre homem, e apreciar qualquer coisa, e aquilo me
desanimava a fazer muitas coisas que Sir Thomas e eu planejávamos. Se
não fosse isso, teríamos aumentado o muro do jardim e teríamos cercado
o pátio da igreja com plantas, exatamente como o Dr. Grant fez agora.
Estávamos sempre fazendo alguma coisa. Foi apenas doze meses antes da
morte de Mr. Norris que nós plantamos aquele damasqueiro junto à cerca
da estrebaria, e que agora está crescido e se tornando uma árvore tão
nobre e de tal perfeição, meu caro senhor, disse virando-se para o Dr.
Grant.
– A árvore, sem dúvida, está bem desenvolvida, minha senhora,
respondeu o Dr. Grant. O solo é bom; e eu nunca passo por ela sem ter o
pesar de ver que as frutas não valem nem o trabalho de as colher.
– É um “Moor Park”, Dr. Grant, nós o compramos como tal e nos
custou – isto é, foi um presente de Sir Thomas, mas eu vi a conta – e sei
que custou sete shillings e que foi vendido como “Moor Park”.
– Pois foram enganados, minha senhora, respondeu o Dr. Grant:
estas batatas têm tanto gosto de damasco “Moor Park” como as frutas
daquela árvore. É uma fruta insípida; no entanto um bom damasco é uma
fruta comível, o que não se dá com nenhum dos que tenho no meu jardim.
– A verdade, minha senhora, disse Mrs. Grant pretendendo
cochichar com Mrs. Norris do outro lado da mesa, é que o Dr. Grant não
sabe que gosto têm os nossos damascos; ele nunca teve oportunidade de
os provar, pois essa fruta, com um pequeno cuidado, é muito apreciada e
os nossos são tão grandes e bonitos que a minha cozinheira os apanha
todos para fazer tortas e conservas.
Mrs. Norris que já estava começando a enrubescer acalmou-se; e
em seguida a conversa voltou ao assunto da renovação de Sotherton. O
Dr. Grant e Mrs. Norris raramente se davam bem; suas relações tinham
começado com desavenças e seus hábitos eram totalmente diferentes.
Depois de uma curta interrupção, Mr. Rushworth recomeçou.
– A casa de Smith causa admiração em toda vizinhança; e antes de
ser entregue a Repton não valia nada. Creio que vou chamar o Repton.
– Mr. Rushworth – disse Lady Bertram – se eu fosse o senhor,
mandaria plantar um lindo bosque. É tão agradável passear-se num
bosque, em tempo bom.
Mr. Rushworth imediatamente concordou; mas no meio de seus
protestos de que não desejava senão submeter-se ao gosto dela e atender
ao conforto das senhoras em geral, insinuando que havia porém apenas
uma a quem ele ansiosamente desejava agradar, ficou todo embaraçado, e
Edmund teve a feliz idéia de por fim ao discurso propondo que bebessem
do vinho. Mr Rushworth, contudo, embora não fosse muito falador, ainda
tinha o que dizer sobre o assunto de sua predileção:
– Smith não possui muito mais do que uns cem acres terreno, o que
é muito pouco; por isso mesmo mais me surpreende que tenha
conseguido tantos melhoramentos. Agora, em Sotherton, temos bem
umas setecentas, sem contar os banhados; assim eu penso, que se foi
possível fazer tanto em Compton, nós não devemos perder a esperança.
Foi preciso cortar umas duas ou três árvores velhas que se achavam
muito perto da casa e isso expôs tão espantosamente a perspectiva, que
me faz pensar que Repton ou qualquer pessoa que seja, certamente irá
derrubar a alameda de Sotherton; aquela alameda que vai da frente até o
alto da colina, a senhorita sabe, disse virando-se particularmente para
Miss Bertram.
Porém Miss Bertram achou de muita distinção responder:
– A alameda! Oh! Não me recordo dela. Na verdade conheço muito
pouco Sotherton.
Fanny que estava sentada ao lado de Edmund, exatamente em
frente a Miss Crawford, e que tinha ouvido atentamente, olhou para o
primo e disse-lhe em voz baixa:
– Derrubar uma alameda! Que pena! Não lhe faz lembrar de
Cowper? Ó alamedas decadentes, mais uma vez choro vosso destino
imerecido.
Ele sorriu e respondeu:
– Receio que a alameda esteja destinada a um triste fim, Fanny.
– Desejaria ir a Sotherton antes que a derrubem, para ver o lugar
tal como é agora; mas creio que isso não será possível.
– Você nunca esteve lá? Não, você nunca pôde; e, infelizmente, é
muito longe para ir a cavalo. Desejaria que pudéssemos arranjar um
meio.
– Oh! Não tem importância. Numa ocasião qualquer você me dirá o
que foi alterado.
– Concluo, do que falam, disse Miss Crawford, que Sotherton é um
lugar muito antigo e de alguma nobreza. Há alguma particularidade no
estilo da casa?
– A casa foi construída na época de Elizabeth e é um prédio de
tijolo, grande, simples; pesado mas de aparência nobre e tem muitos
cômodos. É porém mal situado. Fica justamente numa das partes mais
baixas do parque, e nesse ponto não favorece qualquer melhoramento. As
florestas, porém, são lindas e há um riacho que poderia ser bem
aproveitado. Mr. Rushworth tem muita razão, parece-me, em querer
modernizar o lugar e não tenho a menor dúvida de que tudo será
extremamente bem feito.
Miss Crawford o ouviu atentamente e disse consigo mesma:
– É um homem bem educado; faz as coisas parecerem melhores do
que são.
– Não pretendo influenciar Mr. Rushworth, continuou o rapaz; mas
se eu tivesse uma casa para modernizar, não a entregaria a um
empreiteiro. Preferia que não ficasse tão grandiosa mas que ao menos
fosse de uma beleza a meu gosto e obtida pouco a pouco. Prefiro sofrer
pelos meus próprios erros do que pelos dele.
– Bem, o senhor saberia o que estava fazendo, naturalmente; mas
para mim isto não serviria. Não tenho espírito inventivo, só sei olhar para
as coisas, tais como elas estão na minha frente. Se eu tivesse uma casa na
província, ficaria muito contente se a pudesse entregar a qualquer
Repton que a tornasse tão bonita quanto me fosse dado gastar; e não a
quereria ver senão depois de pronta.
– Pois eu gostaria muito mais de acompanhar todo o progresso da
reconstrução, disse Fanny.
– Sim, você foi educada para isso. Comigo não acontece o mesmo; e
o exemplo que eu tive desses progressos em construção foi tal que passei
a considerar toda espécie de obras como o maior dos aborrecimentos. Há
três anos passados, o Almirante, meu digno tio, comprou uma chácara em
Twickenham para que lá passássemos os verões; minha tia e eu fomos
para lá entusiasmadas; mas embora fosse muito bonita, logo verificamos
que precisava de consertos e por três meses ficamos no meio da sujeira e
da confusão, sem uma alameda para se caminhar, ou um banco que se
pudesse usar. Por mim teria as coisas, no campo, da maneira mais
completa possível, bosques, jardins e inúmeros bancos rústicos; contanto
que tudo fosse feito na minha ausência. Henry é diferente, ele gosta
destas coisas.
Edmund ficou decepcionado ao ouvir Miss Crawford, a quem ele
estava disposto a admirar, falar tão livremente do tio. Ferido na sua
suscetibilidade, ficou calado até que, induzido por novos sorrisos e
brincadeiras, pôs o caso de lado para mais tarde.
– Mr. Bertram, disse ela, tive novas notícias a respeito de minha
harpa. Asseguraram-me que está fora de perigo em Northampton; e ela já
lá estava provavelmente, nestes dez últimos dias, apesar das solenes
afirmativas do contrário que várias vezes nos fizeram. – Edmund exprimiu
o seu prazer e a sua surpresa. – A verdade é que as nossas pesquisas
foram mal orientadas; mandamos uma criada e fomos nós mesmos; isto a
setenta milhas de Londres, não adiantou; mas hoje de manhã, deram-nos
uma pista certa. Foi vista por um fazendeiro, que o disse ao moleiro, o
qual por sua vez o disse ao carniceiro e o cunhado do carniceiro contou
no açougue.
– Alegro-me muito de que tenha tido notícias da sua harpa, e espero
que agora não haja mais demora.
– Devo recebê-la amanhã; mas como acha que poderá ser
transportada? Não de carro ou carroça: oh não! Nada disso se poderia
alugar aqui na vila. Eu devia era ter procurado um carregador com um
carrinho de mão.
– Será difícil, talvez, no momento, por causa da colheita do trigo,
alugar uma carroça e um cavalo?
– Fiquei admirada ao ver a tragédia que fizeram por causa disso!
Que houvesse falta de carroça e cavalo no campo me pareceu impossível;
e por isso disse à minha empregada que fosse pedir um; e como da janela
do meu quarto não vejo senão pátio de fazenda, ou não passeio no bosque
sem passar por outro, pensei que era só pedir e conseguir; daí ter ficado
tão ofendida por não ter obtido nada. Imagina pois a minha surpresa
quando descobri que havia pedido a coisa mais impossível e extravagante
do mundo! Tinha ofendido todos os fazendeiros, todos os trabalhadores,
todo o feno da paróquia! Quanto ao administrador do Dr. Grant, achei
melhor nem chegar perto dele; e meu próprio cunhado, que no geral é tão
bondoso, olhou para mim com a cara mais carrancuda, quando soube o
que eu estava fazendo.
– Ninguém esperaria que a senhorita estivesse a par dessas coisas;
mas se refletir sobre elas, verá a importância que têm. Alugar uma
carroça em qualquer época já não é tão fácil como supõe, nossos
fazendeiros não as costumam alugar. Mas no tempo da colheita, então,
deve ser absolutamente impossível para eles dispensar um cavalo.
– Em tempo espero compreender todos os seus costumes; mas eu,
que vim de Londres com a idéia de que tudo se consegue com dinheiro,
fiquei um tanto embaraçada com a rude independência dos costumes de
sua província. De qualquer modo, porém, tenho que mandar buscar
minha harpa amanhã. Henry, que é a bondade em pessoa, ofereceu-se
para trazer no carro dele. Veja só que honra!
Edmund declarou que a harpa era seu instrumento favorito e
expressou o desejo de breve poder ouvi-la tocar. Fanny nunca tinha
ouvido o som de uma harpa e por isso também muito a desejava ouvir.
– Terei muito prazer em tocar para vocês, disse Miss Crawford; pelo
menos tanto tempo quanto queiram ouvir: provavelmente muito mais
tempo, pois eu própria adoro música, e quando me ponho a tocar não
tenho vontade de parar. Pois bem, Mr. Bertram, peço que, se escrever ao
seu irmão, lhe comunique que minha harpa já chegou; ele me ouviu
lamentar tanto a falta dela! E pode dizer também que eu vou preparar as
árias mais tristes para tocar na volta dele, em atenção aos seus
sentimentos, pois já sei que o seu cavalo vai perder.
– Se escrever, direi com certeza o que quiser; mas no momento não
vejo necessidade de escrever.
– Não, nem que ele ficasse ausente um ano o senhor não lhe
escreveria nem ele ao senhor, se o pudesse evitar. Nunca haveria ocasião.
Que criaturas estranhas são os irmãos! Só em caso de extrema
necessidade escrevem um ao outro; e mesmo assim, quando são
obrigados a pegar da pena para comunicar que tal cavalo está doente ou
que tal parente morreu, fazem-no com o menor número de palavras
possível. Todos têm o mesmo estilo. Conheço-o perfeitamente. Henry que
em todos os outros respeitos é exatamente o que um irmão deve ser, que
me ama, me consulta, que tem confiança em mim e conversa comigo
durante uma hora inteira, nunca me escreveu mais do que uma página; e
muitas vezes não mais do que – “Querida Mary, acabo de chegar. Bath
está cheia de gente e tudo vai como de costume. Seu irmão, etc.” Este é o
verdadeiro estilo masculino: e é esta toda a carta de um irmão.
– Quando estão ausentes da família toda, disse Fanny pensando em
William, eles sabem escrever longas cartas.
– Miss Price tem um irmão na Marinha, disse Edmund, cuja
excelência como correspondente a faz pensar que a senhorita está sendo
severa demais para conosco.
– Na Marinha, é? Naturalmente a serviço do rei?
Fanny preferiria que Edmund contasse a história, mas o silencio em
que ele ficou, obrigou-a a relatar a situação do irmão; sua voz animou-se
ao falar sobre a profissão dele, dos lugares onde estivera; mas não pôde,
sem lágrimas nos olhos, mencionar o número de anos que estava ausente.
Miss Crawford, delicadamente, desejou que ele fosse logo promovido.
– Sabe alguma coisa sobre o capitão do meu primo? perguntou
Edmund; do capitão Marshall? Se não me engano, tem muitas relações na
Marinha.
– Entre almirantes, conheço muitos; mas, disse com ares de
grandeza, conhecemos muito poucas pessoas nas classes inferiores.
Capitães de mar e guerra podem ser muito bons homens, mas não
pertencem ao nosso meio. De vários almirantes eu poderia lhe dizer
muitas coisas; deles e de suas bandeiras, da escala de seus ordenados,
das suas disputas e ciumadas. O que lhe posso afirmar é que, em geral,
eles são todos desprezados e muito maltratados. Sem dúvida, quando
morei com meu tio fiz relações com um círculo de almirantes. De
“contras” e “vices”, vi demais. Agora, não vão pensar que estou fazendo
trocadilho.
Edmund ficou novamente sério e apenas respondeu:
– É uma nobre profissão.
– Sim, a profissão é boa porém apenas sob duas circunstâncias: se
ela fizer a fortuna e houver descrição em gastá-la. Aliás , não é a
profissão que mais aprecio.
Edmund voltou ao assunto da harpa e novamente se declarou muito
feliz com a perspectiva de a ouvir tocar.
Entre os outros, neste ínterim, ainda se discutia sobre terras e
melhoramentos: e Mrs. Grant não pôde deixar de se dirigir ao irmão,
embora isso desviasse sua atenção de Miss Julia Bertram.
– Meu caro Henry, e você, não diz nada? Pelo que ouvi dizer de sua
casa em Everingham, ela pode rivalizar com qualquer uma da Inglaterra.
Estou certa de que deve ser muito bonita. Everingham, já como era, na
minha opinião era perfeita; com aquelas quebradas de morro e aquelas
florestas! O que não daria para vê-la de novo.
– Nada me seria mais agradável do que ouvir sua opinião sobre
minha casa, foi a resposta dele; mas receio que tivesse algum
desapontamento; não a encontraria como imagina. Em extensão é quase
nada; ficaria surpresa da insignificância que é; e quanto a
melhoramentos, fiz muito pouco – pouco demais; desejaria fazer muito
mais.
– Gosta então dessas coisas? – perguntou Julia.
– Imensamente; mas também, com as vantagens naturais do
terreno, que indicavam, até mesmo à vista de uma pessoa muito jovem, o
pouco que restava fazer, e com a minha própria resolução, três meses
depois da minha maioridade, Everingham já era o que é agora. Fiz o meu
plano em Westminster, um pouco alterado, talvez, em Cambridge, e aos
vinte e um anos executei-o. Invejo Mr. Rushworth por ter ainda a sua
frente tanta felicidade. A minha própria felicidade eu a devorei.
– Aqueles que vêem rapidamente, resolverão rapidamente e agirão
rapidamente, disse Julia. Ao senhor nunca faltará o que fazer. Em vez de
invejar Mr. Rushworth, deveria auxiliá-lo com a sua opinião.
Mrs. Grant que ouvira a última parte da conversa, reforçou-a
calorosamente; afirmou que não havia julgamento melhor do que o do
irmão; e como Miss Bertram igualmente percebera a idéia, e deu a ela
seu inteiro apoio, declarando que, na sua opinião, era muito melhor
consultar amigos e pessoas desinteressadas do que imediatamente
entregar o negócio a um profissional, Mr. Rushworth prontamente pediu a
Mr. Crawford o favor de sua assistência, e Mr. Crawford, depois de
modestamente depreciar suas próprias habilidades, se pôs às ordens do
outro para qualquer coisa em que pudesse ser útil. Mr. Rushworth então
propôs a Mr. Crawford que lhe fizesse a honra de ir até Sotherton, para lá
passar uns dias; neste momento Mrs. Norris, como se tivesse lido no
pensamento de suas duas sobrinhas quão pouco elas aprovavam aquele
plano, que as iria privar da companhia de Mr. Crawford, interferiu com
outro projeto.
– Não há dúvida quanto à boa vontade de Mr. Crawford; mas porque
não iremos mais algumas pessoas? Por que não organizarmos um
pequeno grupo? Aqui há muita gente que se interessaria pelos seus
projetos, meu caro Mr. Rushworth, e que gostaria de ouvir a opinião de
Mr. Crawford no local e que também lhe poderia ser de utilidade,
pequena que fosse, com as suas opiniões; e, da minha parte, há muito
estou querendo fazer uma visita à sua boa mãe; só mesmo o fato de não
possuir cavalos é que me poderia fazer tão negligente; mas, assim, eu
poderia ir e conversar um pouco com Mrs. Rushworth, enquanto os
outros andassem pelo parque e combinassem as coisas. Voltaríamos então
para jantar aqui ou jantaríamos em Sotherton, como fosse mais
conveniente para sua mãe, e, de volta, faríamos um lindo passeio com o
luar. Ouso dizer que Mr. Crawford não hesitaria em levar a mim e às
minhas duas sobrinhas no seu carro; e Edmund pode ir a cavalo, não é,
minha irmã? Fanny fica em casa com você.
Lady Bertram não fez objeção; e todos os interessados no programa
logo se declararam prontos a concordar, exceto Edmund, que ouviu tudo
e não disse nada.

CAPÍTULO 7

– Então, Fanny, o que acha de Miss Crawford agora? – disse


Edmund no dia seguinte, depois de refletir algum tempo sobre o assunto.
– que tal a achou ontem?
– Gostei muito dela – muito mesmo. Gosto de ouvi-la falar. Diverte-
me; e é tão bonita, que tenho prazer em olhá-la.
– E como a fisionomia dela é atraente! Tem um jogo admirável de
feições! Mas não sentiu que na conversa daquela moça havia alguma
coisa que não estava inteiramente certo, Fanny?
– Oh, sim! Não deveria ter falado do tio como falou. Fiquei
admirada. Um tio com quem ela viveu tantos anos, e que, quaisquer que
sejas as suas faltas, é tão carinhoso com o irmão dela, tratando-o, assim
dizem, como seu próprio filho! Nem acreditaria!
– Senti que você tinha ficado chocada. Foi muito injusto; muito
indecoroso.
– E muito ingrato, parece-me.
– Ingrato não digo. Não creio que o tio tenha direito a qualquer
gratidão da parte dela; a mulher dele certamente tinha; e é justamente o
grande respeito pela memória da tia, que a induz a erro. Ela está numa
situação embaraçosa. Com tal sensibilidade e um temperamento tão jovial
deve ser difícil fazer justiça à sua afeição por Mrs. Crawford, sem lançar
uma sombra sobre o Almirante. Não pretendo julgar a qual dos dois cabia
maior culpa nas suas desavenças, embora a conduta do Almirante
presentemente faça com que se fique ao lado da mulher dele; mas é
natural e amável que Miss Crawford esteja inteiramente do lado da tia.
Não lhe censuro as opiniões; mas certamente não é próprio torná-las
públicas.
– Você não acha – disse Fanny, depois de pequena consideração –
que isso é um reflexo dos sentimentos de Mrs. Crawford sobre a sobrinha,
a quem criou desde pequena? Ela não deve lhe ter dado uma noção exata
do respeito que devia ao Almirante.
– Sua observação é justa. Sim, devemos supor que os defeitos da
sobrinha tenham sido herdados da tia; e isto faz com que melhor
possamos avaliar as desvantagens por que ela passou. Mas agora acho
que na companhia da irmã ela estará melhor. Mrs. Grant procede
exatamente como deve. E ela se refere ao irmão sempre com muita
afeição.
– Sim, exceto quando diz que ele escreve cartas tão pequenas.
Quase me fez rir; mas eu não devo avaliar tão alto o amor e a boa índole
de um irmão, que não se dá ao trabalho de escrever às irmãs qualquer
coisa que valha a pena ler, quando estão separados. Tenho certeza que
William não me maltrataria dessa maneira sob qualquer circunstância. E
que direito tem ela de supor que você não escreveria longas cartas se
estivesse ausente?
– O direito de um espírito jovial, Fanny, valendo-se de qualquer
coisa que possa contribuir para seu próprio divertimento ou dos outros;
perfeitamente admissível, desde que não haja malícia ou grosseria; e no
procedimento e nas maneiras de Mrs. Crawford não há sombra nem de
uma nem de outra, nada que fosse malicioso, forte ou grosseiro. Ela é
perfeitamente feminina, exceto nos pontos em que estávamos falando.
Quanto a isso, não tem justificativa. Alegro-me que você tenha visto tudo
como eu vi.
Era natural que ela pensasse como o primo, uma vez que ele lhe
tinha formado a consciência e conquistado a sua afeição, embora, no
momento, sobre aquele assunto, já começasse a haver o perigo de
diversidade, porque ele estava a caminho de manifestar uma admiração
por Miss Crawford, que o levaria a um ponto onde Fanny não o poderia
seguir. Os atrativos de Miss Crawford não diminuíram. Com a vinda da
harpa aumentou a sua beleza, o seu espírito e a sua jovialidade; pois ela
tocava com a maior boa vontade, e com tal expressão e sentimento que
eram particularmente sedutores. Edmund ia ao Presbitério diariamente,
para ouvir tocar seu instrumento favorito; cada manhã assegurava um
convite para a manhã seguinte; pois à moça não poderia ser indiferente
ter um ouvinte, e em breve as coisas tomaram rumo favorável.
Uma linda e graciosa jovem, com uma harpa tão elegante quanto
ela própria, ambas colocadas em frente a uma janela abrindo para um
pequeno pátio cercado de arbustos de ricas folhagens, era suficiente para
prender o coração de qualquer homem. A estação, o cenário, o ar, tudo
era favorável à ternura e ao sentimento. Mrs. Grant e o seu bastidor
também não deixavam de ter sua utilidade; tudo estava em harmonia; e
como tudo serve de justificativa quando o amor se põe em movimento, até
mesmo a bandeja de sanduíches que o Dr. Grant se servia era digna de se
admirar. Sem refletir sobre o caso, inconscientemente, Edmund
começava, no fim de uma semana de tais relações, a apaixonar-se
seriamente; e para crédito da moça pode-se acrescentar que, embora ele
não fosse um homem sociável nem filho primogênito, sem qualquer
artifício de galanteria ou pequenas palavras de lisonja, ele começou a se
lhe tornar agradável. Ela tinha consciência do que sentia, embora não o
tivesse pressentido e dificilmente o compreendesse; pois ele não era o
que se diz um homem jovial; não conversava tolices; não fazia elogios;
suas opiniões eram inflexíveis e suas atenções para com elas eram
tranqüilas e simples. Havia, talvez, um encanto na sua lealdade, sua
firmeza, sua integridade, – encanto que Miss Crawford sentia mas não
queria se dar ao trabalho de discutir consigo mesma; ele lhe agradava, no
momento; gostava de tê-lo ao seu lado; era o bastante.
Fanny não se admirava de que Edmund fosse ao Presbitério todos
os dias; ela própria gostaria de ir, caso o pudesse fazer sem convite,
desapercebida, para ouvir a harpa; nem tampouco se admirava de que à
noite, quando as duas famílias se separavam, ele se sentisse na obrigação
de acompanhar Mrs. Grant e a irmã até em casa, enquanto Mr. Crawford
se dedicava à senhoras do Park; mas não gostava da troca; e se Edmund
não estava presente para lhe misturar a água e o vinho preferia não
beber. Sentia-se um pouco surpreendida ao vê-lo poder passar tantas
horas com Miss Crawford e não mais enxergar os defeitos que já lhe
observara, dos quais quase sempre se recordava, quando estava na
companhia da outra. Edmund gostava de falar com Fanny sobre Miss
Crawford e parecia achar suficiente que o Almirante desde então tivesse
sido poupado; e ela tinha escrúpulo de lhe expor as suas observações,
com receio de que parecesse maldade. O primeiro sofrimento de fato que
Miss Crawford lhe causou, foi motivado pela vontade que tinha de
aprender a montar, vontade essa que demonstrou logo depois de chegar a
Mansfield, ao ver o exemplo das moças do Park; quando as suas relações
com Edmund se estreitaram, ele naturalmente instigou esse desejo e
ofereceu para as suas primeiras tentativas, a sua própria égua, por ser o
animal mais adequado que qualquer das duas estrebarias poderia
fornecer ao uso de uma principiante. Com tal oferecimento, porém, ele
não tivera a intenção de causar à prima nenhum sofrimento ou injúria; ela
não perderia um só dia de exercício por causa disso. A égua apenas seria
levada para o Presbitério meia hora antes de começarem os passeios
dela. E Fanny, ao lhe ser feita a proposta, em vez de se sentir diminuída,
antes ficou cheia de gratidão porque ele lhe pedia aquele favor.
O primeiro ensaio de Miss Crawford foi feito com grande mérito
para ela própria e nenhum inconveniente para Fanny. Edmund, que levara
a égua e presidira a experiência, voltou com o animal em tempo
excelente, antes mesmo de Fanny e do velho cocheiro, que sempre a
acompanhava quando não saía com as primas, estarem prontos para
partir. O segundo ensaio já não foi tão isento de culpa. O prazer de Miss
Crawford em montar era tal, que ela não se resolvia a descer do cavalo.
Viva, corajosa e fortemente constituída, embora de pequena estatura, ela
parecia ter nascido para amazona; e além do próprio prazer pelo
exercício, as instruções que provavelmente Edmund lhe tinha de dar e a
convicção de estar ultrapassando em progresso o seu sexo em geral,
faziam-na pouco disposta a desmontar. Fanny estava pronta esperando;
Mrs. Norris já começava a repreendê-la por não ter ainda saído, e, no
entanto o cavalo não vinha nem Edmund aparecia. Saiu para evitar a tia e
ao mesmo tempo procurá-lo.
As duas casas, embora estivessem a menos de um quilômetro de
distância, não ficavam à vista uma da outra; mas caminhando cinqüenta
metros da porta de entrada, ela poderia olhar através do parque e avistar
o Presbitério e todos os seus domínios, erguendo-se suavemente além da
estrada da vila; e nos prados do Dr. Grant ela imediatamente destacou o
grupo formado por Edmund e Miss Crawford e dois ou três palafreneiros.
Um grupo feliz, assim lhe pareceu, todos interessados num único objeto;
muito alegre sem dúvida, pois o som das risadas chegava até ela. Um som
que não a fez alegre; admirou-se que Edmund a tivesse esquecido e
sentiu como que uma agonia. Não podia desviar os olhos do prado; não
podia evitar olhar tudo o que se passava. A princípio Miss Crawford e seu
companheiro fizeram a passo a volta do campo, que não era pequeno; em
seguida, aparentemente por sugestão dela, começaram a galopar; e para
a natureza tímida de Fanny foi uma admiração ver quão bem ela montava.
Depois de poucos minutos pararam inteiramente. Edmund estava perto
da outra; falava-lhe evidentemente ensinando o manejo das rédeas;
segurava-lhe as mãos; ela viu, ou a sua imaginação supriu o que a vista
não podia alcançar. Não devia se admirar de tudo aquilo; que coisa mais
natural do que Edmund fazer-se útil e provar sua bondade a qualquer
pessoa? Na verdade, porém, não podia deixar de pensar que Mr.
Crawford poderia muito bem lhe ter poupado o trabalho; que seria muito
mais justo e conveniente que o próprio irmão o tivesse feito; mas Mr.
Crawford, com toda a sua apregoada bondade e toda a sua destreza,
provavelmente não entendia nada do assunto e não tinha a boa vontade
de Edmund. Pensou que era um sacrifício imposto à égua fazê-la
trabalhar dobrado; já que se esqueciam dela própria, ao menos que se
lembrasse da égua.
Suas mágoas por uma e por outra em breve se tranqüilizaram um
pouco, ao ver o grupo no prado dispersar-se e Miss Crawford, ainda a
cavalo mas auxiliada por Edmund, a pé, atravessar o portão e entrar no
parque, indo em direção ao lugar onde ela se achava. Começou, então, a
recear que a achassem grosseira e impaciente; e caminhou ao encontro
deles com grande ânsia de evitar suspeita.
– Minha cara Miss Price – disse Miss Crawford logo que se
aproximou, – vim trazer-lhe minhas desculpas por tê-la feito esperar; mas
não tenho nada a dizer em minha defesa. Sabia que era muito tarde e que
eu me estava portanto extremamente mal; mas, assim mesmo, peço-lhe
que me perdoe. O egoísmo deve sempre ser perdoado, porque, como
sabe, não dá esperança de cura.
Fanny respondeu delicadamente e Edmund acrescentou estar certo
de que ela não tinha pressa.
– Pois há tempo mais que suficiente para minha prima andar o
dobro do que costuma – disse ele –, e a senhorita até lhe proporcionou um
bem, evitando que saísse meia hora mais cedo; as nuvens agora estão
altas e ela não mais sofrerá com o calor. Espero que não esteja fatigada
com tanto exercício. Desejaria que se tivesse poupado de voltar para a
casa a pé.
– Nada me fadiga mais do que ter de descer deste cavalo, posso lhe
assegurar – disse ela quando descia auxiliada por ele. – Sou muito forte.
Nunca me canso a não ser quando tenho de fazer o que não gosto. Miss
Price entrego-lhe o cavalo de muito má vontade; mas sinceramente lhe
desejo um esplêndido passeio, e para este adorável e belo animal, não
tenho senão louvores.
O velho cocheiro, que esperava com seu próprio cavalo, aproximou-
se, ajudou Fanny a montar e em seguida partiram em direção ao outro
lado do parque; a sensação de desconforto da moça não diminuiu ao ver,
quando se virou para trás, que os outros caminhavam juntos em direção à
vila; nem tampouco lhe fizeram bem os comentários do seu
acompanhante sobre as habilidades de Miss Crawford, a quem estivera
observando com interesse quase semelhante ao seu próprio.
– É um prazer ver uma senhora com tão boa disposição para
montar! – disse ele. – Nunca vi ninguém que montasse melhor. Parecia
não ter o menor medo. Muito diferente da senhora quando começou, há
seis anos passados, – vai fazer agora na Páscoa. Deus a abençoe! Como a
senhora tremia quando Sir Thomas a pôs sobre o cavalo!
Na sala de visitas, Miss Crawford também foi celebrada. O seu
mérito pelo vigor e pela coragem com que a dotara a Natureza, foi
amplamente apreciado pelas Misses Bertram; o prazer que mostrava ao
montar era semelhante ao delas; sua perfeição igual à delas e por isso
tinham prazer em louvá-la.
– Tinha certeza de que ela montaria bem – disse Julia; – tem
envergadura para isso. O seu porte é tão elegante quanto o do irmão.
– Sim – acrescentou Maria –, e tem a mesma disposição e a mesma
personalidade que ele. Acho que uma boa equitação tem grande
influência sobre o caráter.
Quando se despediram à noite, Edmund perguntou a Fanny se
tencionava montar no dia seguinte.
– Não sei, isto é, se você não precisar da égua – respondeu.
– Não preciso dela para mim mesmo – disse ele; – mas qualquer dia
em que você prefira ficar em casa, creio que Miss Crawford gostaria de
ficar com ela mais tempo – em resumo, durante toda a manhã. Ela tem
grande desejo de ir até a charneca de Mansfield; Mrs. Grant esteve
falando sobre a beleza do lugar e eu não tenho dúvida de que ela
agüentará perfeitamente. Mas pode-se ir qualquer dia. Ela de forma
alguma desejaria prejudicar você. E não seria direito que o fizesse. Monta
apenas por prazer, enquanto você necessita montar por causa da saúde.
– Amanhã, certamente, não sairei, – disse Fanny: tenho saído muito
ultimamente e preferia ficar em casa. Agora estou bastante forte e posso
andar muito bem.
Edmund mostrou-se contente, o que deveria agradar Fanny, e o
passeio à charneca de Mansfield se realizou no dia seguinte; o grupo
incluiu todo o pessoal jovem, com exceção dela própria, e muito se
divertiu, não só durante o passeio como à noite, quando discutiram os
acontecimentos. O sucesso de um plano como esse, geralmente trás a
idéia de formar outro; e o fato de haverem ido à charneca de Mansfield
deu-lhes vontade de ir a qualquer outra parte no dia seguinte. Havia
muitas outras vistas para serem mostradas; e embora o tempo estivesse
quente, havia sempre caminhos sombrios para qualquer lugar que
desejassem ir. Quatro manhãs foram assim sucessivamente passadas, a
mostrarem aos Crawfords a região e seus pontos mais bonitos. Tudo
correspondeu à expectativa; estavam todos alegres, de bom humor e a
própria inconveniência causada pelo calor era comentada com prazer –
até o quarto dia, quando a felicidade de um dos membros do grupo ficou
excessivamente nublada. Essa pessoa foi Miss Bertram. Edmund e Julia
foram convidados para jantar no presbitério e ela fora excluída. O plano
foi idealizado e executado por Miss Grant, na melhor das intenções,
pensando em Mr. Rushworth , que era esperado aquele dia no Park; mas a
moça o sentiu como uma grave ofensa e somente a sua boa educação fez
com que ela disfarçasse o vexame e a raiva, até chegar em casa. Como
Mr. Rushworth não veio afinal, a ofensa se tornou maior, não podendo ela
descarregar sobre ele; ficou de um mau humor com a mãe, a tia e a prima
e fez com que o jantar fosse tão sombrio quanto possível.
Entre dez e onze horas Edmund e Julia entraram na sala de visitas,
refrescados pela brisa da noite, animados e alegres, o perfeito contraste
do que encontraram nas três senhoras que lá se achavam, pois Maria nem
sequer levantou os olhos do livro e Lady Bertram dormitava; e mesmo
Mrs. Norris desconcertada com o mau humor da sobrinha e tendo feito
uma ou duas perguntas sobre o jantar, que não foram imediatamente
respondidas, parecia disposta a não dizer mais nada. Durante os
primeiros minutos os dois irmãos não pensaram senão em avidamente
relatar os acontecimentos da noite e falar das estrelas; mas na primeira
pausa, Edmund, olhando em redor, disse:
– Mas onde está Fanny? Já foi dormir?
– Não, não que eu saiba – respondeu Mrs. Norris; – ela estava aqui
há um momento.
A voz suave da moça vinda do outro lado da sala, que era muito
grande, mostrou-lhes que ela estava sentada no sofá. Mrs. Norris
começou a ralhar.
– Isto é muito bonito, Fanny, ficar toda a noite sem fazer nada
recostada num sofá? Não podia sentar-se aqui e fazer alguma coisa como
nós fazemos? Se não tem trabalho seu, posso lhe dar um agora mesmo.
Todo o morim que foi comprado a semana passada ainda está intacto.
Fiquei com as costas doendo de tanto cortar. Você deve aprender a
pensar nos outros; e fique certa que é a coisa mais vergonhosa do mundo
uma pessoa jovem estar sempre se espreguiçando num sofá.
Antes da metade disso ter sido dita, Fanny já estava de volta ao seu
lugar na mesa e retomara o trabalho; e Julia, que estava de muito bom
humor devido aos prazeres do dia, fez-lhe a justiça de exclamar.
– Pois devo dizer, minha tia, que Fanny é, nesta casa, a pessoa que
menos procura um sofá.
– Fanny, – disse Edmund, depois de observá-la atentamente – aposto
que você está com dor de cabeça.
Ela não pôde negar, mas afirmou que não era muito forte.
– Estou quase não acreditando – respondeu ele; – conheço você
muito bem. Há quanto tempo está assim?
– Desde um pouco antes do jantar. É apenas por causa do calor.
– Você saiu e apanhou muito sol?
– Saiu! Por certo que saiu, disse Mrs. Norris: queria que ela ficasse
em casa com um dia lindo como este? Todos nós saímos. Até sua mãe
esteve lá fora por mais de uma hora.
– Sim, é verdade, Edmund, – acrescentou Lady Bertram, que
despertara inteiramente com a acerba repreensão de Mrs. Norris; – estive
fora durante uma hora. Estive sentada três quartos de hora no jardim,
enquanto Fanny cortava as rosas; estava muito agradável, mas muito
quente. Dentro de casa estava bastante fresco, mas confesso que não tive
coragem de entrar.
– E Fanny esteve cortando rosas, não é?
– Sim, e receio que sejam as últimas deste ano. Pobrezinha! Ela
sentiu bastante o calor; mas as rosas já estavam tão abertas que não
podiam esperar.
– Não havia outra coisa a fazer, com efeito, – ajuntou Mrs. Norris,
numa voz mais branda; – mas pergunto se a dor de cabeça dela não teria
vindo disso, minha irmã. Não há coisa mais provável para uma dor de
cabeça do que levantar e abaixar-se todo o tempo debaixo do sol; acredito
porém que amanhã Fanny estará boa. E se você lhe desse o seu vinagre
aromático? Eu sempre me esqueço do meu.
– Já o dei, – disse Lady Bertram; – está com ela desde que veio a
segunda vez de sua casa.
– Que! – exclamou Edmund; – além de cortar rosas ainda esteve
andando, caminhando todo o parque até a sua casa e por duas vezes,
minha tia! Não admira que esteja com a cabeça doendo.
Mrs. Norris estava conversando com Julia e não o ouviu.
– Tive receio que fosse demais para ela, – disse Lady Bertram; – mas
depois de colhidas as rosas, sua tia as quis e então, você sabe, elas
tinham de ser levadas para a casa dela.
– Mas as rosas eram tantas que a obrigaram a ir duas vezes?
– Não, mas deviam ser postas no quarto vago para secar; e,
infelizmente, Fanny esqueceu de fechar a porta do quarto e trazer a
chave de volta, por isso foi obrigada a voltar.
Edmund levantou-se e caminhou pela sala, dizendo:
– E não podiam encontrar ninguém para fazer isso senão Fanny?
Pois isso foi muito mal feito.
– Não vejo de que outra maneira seria melhor, – gritou Mrs. Norris,
não podendo mais se fazer de surda; – a não ser que eu mesma fosse, na
verdade, mas eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo; e
naquela mesma hora eu estava falando a Mr. Green a mando de sua mãe
sobre a leiteira, e tinha prometido a John Groon escrever a Mrs. Jefferies
sobre o filho dele, e o pobre homem já estava me esperando há meia
hora. Creio que ninguém pode me acusar de me poupar em qualquer
ocasião, mas não posso, porém, fazer tudo ao mesmo tempo. E quanto ao
fato de Fanny ter ido duas vezes á minha casa para mim – a distância não
chega nem a meio quilômetro – não vejo que eu tenha me excedido em
pedir isso. Quantas vezes eu faço essa caminhada, três vezes por dia, de
manhã à noite, sim, e com qualquer tempo, e nunca digo nada?
– Desejava que Fanny tivesse metade de sua saúde, minha tia.
– Se Fanny fizesse exercícios mais regularmente, não se cansaria
tão depressa. Ela não tem saído a cavalo não sei quanto tempo, e eu
pensei que, já que não tem montado, deveria ao menos andar. Se tivesse
montado antes, eu não lhe pediria isso. Mas achei que era até bom para
ela, caminhar depois de estar abaixada no meio das rosas; pois não há
nada tão refrescante quanto uma caminhada depois de uma fadiga dessa
espécie; e embora o sol fosse forte, não estava muito quente. Aqui entre
nós, Edmund, – piscando significativamente para a mãe dele – o que lhe
causou o mal foi estar cortando as rosas e vadiando pelo jardim.
– Creio mesmo que tenha sido, – disse candidamente Lady Bertram
que a ouvira por acaso. – Receio muito que tenha sido nessa ocasião, pois
o calor era suficiente para matar qualquer um. Eu mesma quase não o
podia suportar. Sentada como eu estava, só o ter que chamar o cãozinho,
e fazer com que ele saísse de cima dos canteiros, foi trabalho demais para
mim.
Edmund não disse mais nada. Dirigindo-se tranqüilamente para
outra mesa, sobre a qual se achavam ainda os restos da ceia, trouxe um
copo de Madeira para Fanny e obrigou-a a beber a maior parte. Ela
desejava poder recusá-lo; mas com as lágrimas, que uma infinidade de
emoções lhe trouxera, era mais fácil engolir do que falar.
Envergonhado quanto ao procedimento da mãe e da tia, Edmund
estava mais aborrecido consigo mesmo. O seu próprio esquecimento era
pior do que qualquer coisa que elas pudessem ter feito. Nada disso teria
acontecido se ela não tivesse sido esquecida; no entanto tinha ficado
quatro dias sem outra companhia e exercício e sem pretexto para se
esquivar de fazer qualquer coisa que as tias injustamente a obrigassem.
Envergonhava-se ao pensar que, durante quatro dias Fanny tinha sido
privada de montar, e seriamente resolveu que, por muito que lhe custasse
desagradar Miss Crawford, aquilo nunca mais aconteceria.
Fanny foi dormir com o coração tão apertado como na noite de sua
chegada ao Park. O seu estado de espírito provavelmente tinha
contribuído para sua indisposição; pois ela vinha se sentindo esquecida e
vinha lutando contra o descontentamento e a inveja há alguns dias já.
Quando se recostara no sofá, para onde se tinha refugiado a fim de não
ser vista, o sofrimento de sua alma era maior do que a dor que tinha na
cabeça; e a súbita mudança causada pela bondade de Edmund deixou-a
em estado de não saber como se sustentar em pé.

CAPÍTULO 8

Os passeios de Fanny recomeçaram no dia seguinte; e como a


manhã estava agradavelmente fresca, menos quentes do que nos últimos
dias, Edmund acreditou que os danos causados tanto na sua saúde quanto
no seu espírito em breve estariam sanados. Enquanto ela estava ausente,
Mr. Rushworth chegou acompanhado da mãe, que para se fazer agradável
e mostrar a sua amabilidade, insistiu na execução do plano de visitar
Sotherton, feito há quinze dias passados, e que, em conseqüência da sua
subseqüente ausência de casa, ainda não fora realizado. Mrs. Norris e
suas sobrinhas ficaram muito contentes com o restabelecimento do
projeto; mencionou-se um dia próximo com o qual todos concordaram, se
Mr. Crawford não tivesse outro compromisso; as moças não se
esqueceram de estipular aquela condição e embora Mrs. Norris tivesse
vontade de responder por ele, elas não admitiriam tal liberdade nem lhe
correriam o risco; e finalmente, por sugestão de Miss Bertram, Mr.
Rushworth descobriu que o melhor expediente era ir ele próprio
diretamente ao Presbitério procurar Mr. Crawford e saber se a quarta
feira lhe era ou não conveniente.
Antes que ele voltasse, Mrs. Grant e Miss Crawford entraram.
Tendo estado fora por algum tempo e tendo tomado caminho diferente,
elas não o haviam encontrado. Afirmaram, porém, que Mr. Crawford seria
achado em casa. O projeto de ir a Sotherton foi naturalmente
mencionado. Era impossível, mesmo, que se falasse noutra coisa, pois
Mrs. Norris estava muito entusiasmada com a idéia; e Mrs. Rushworth,
mulher bem intencionada e amável, porém vaidosa e frívola, que não dava
importância senão ao que se relacionava com os seus próprios e os
interesses do filho, ainda não desistira de insistir com Lady Bertram para
que fizesse parte do grupo. Lady Bertram desculpava-se; mas a sua
maneira plácida de recusar dava ainda a Mrs. Rushworth a impressão de
que ela desejava ir, até que Mrs. Norris, com mais facilidade de exprimir-
se, a convenceu da verdade.
– O cansaço seria demasiado para minha irmã, demasiado, posso lhe
afirmar, minha cara Mrs. Rushworth. São dezesseis quilômetros para ir e
dezesseis quilômetros para voltar, como a senhora já sabe. Deve
desculpar minha irmã por esta vez e aceitar as nossas queridas meninas e
eu mesma sem ela. Sotherton é o único onde ela desejaria ir se pudesse,
mas de fato é impossível. Ficará acompanhada de Fanny Price, e assim
está tudo muito bem; e quanto a Edmund, como não está presente, posso
responder por ele e afirmar que terá muito prazer em nos acompanhar.
Poderá ir a cavalo.
Obrigada a se conformar com que Lady Bertram ficasse em casa,
Mrs. Rushworth não pôde senão expressar seus sentimentos: A falta de
sua senhoria era uma grande decepção e ela teria imenso prazer em
receber também Miss Price, que nunca fora antes a Sotherton! Era uma
pena que não conhecesse o lugar.
– É muito amável, muito boa, minha prezada senhora, – exclamou
Mrs. Norris; – mas Fanny terá muitas oportunidades de ver Sotherton.
Ainda tem muito tempo para isso; e a ida dela agora é inteiramente fora
de questão. Lady Bertram não a poderia dispensar.
– Oh não! Não poderia dispensar Fanny.
Mrs. Rushworth prosseguiu em seguida, na convicção de que todos
queriam ver Sotherton, por incluir Miss Crawford no convite; e embora
Mrs. Grant, que nunca se dera ao trabalho de visitar Mrs. Rushworth
desde que viera para a vizinhança, delicadamente recusasse o convite
para si própria, tinha muito prazer em que a irmã se divertisse; e Mary,
suficientemente instada e persuadida, não custou muito a aceitar o seu
quinhão na amabilidade. Mr. Rushworth voltou do Presbitério satisfeito; e
Edmund apareceu justamente em tempo de ouvir o que havia sido
combinado para quarta feira, acompanhar Mrs. Rushworth até a
carruagem e caminhar até metade do caminho com as outras duas
senhoras.
Ao voltar para a sala de almoço, encontrou Mrs. Norris a discutir
consigo mesma se seria ou não desejável a companhia de Miss Crawford,
ou se o carro do irmão teria lugar para ela. As Misses Bertram riram-se
da idéia, assegurando que “o carro daria perfeitamente para quatro
pessoas, independente da boléia, onde ‘alguém’ poderia ir com ele”.
– Mas é necessário – disse Edmund, – que o carro de Crawford, e só
o carro dele, seja usado? Por que não se vai no carro de minha mãe? No
outro dia quando se planejou o passeio, não pude compreender porque
uma visita da família não seria feita na carruagem da família.
– Que! – exclamou Julia – irem três atafulhadas numa cadeirinha
com um tempo destes, quando se tem um carro com lugares suficientes!
Não, meu querido Edmund, isto não serve.
– Além disso, – disse Maria – eu sei que Mr. Crawford faz questão de
nos levar.
– E depois, querido Edmund, – acrescentou Mrs. Norris – levar duas
carruagens quando uma só é suficiente, é ter trabalho sem necessidade; e
aqui entre nós, o cocheiro não gostará muito de andar por essas estradas
daqui até Sotherton; ele sempre reclama amargamente que os caminhos
estreitos arranham o carro; e você sabe que ninguém gostaria que o caro
Sir Thomas, ao voltar, encontrasse o verniz do carro todo arranhado.
– Não seria esta uma razão muito forte para se usar o carro de Mr.
Crawford, – disse Maria – mas a verdade é que Wilcox é um velho
estúpido e não sabe guiar. Posso garantir que não havemos de encontrar
inconveniências por causa de estradas apertadas na quarta feira.
– Não há incômodo, suponho, nada desagradável em ir na boléia do
carro, não é? – disse Edmund.
– Desagradável! – exclamou Maria; – ora essa! Creio até que é o
melhor lugar. A vista que dali se trem da região nem se compara.
Provavelmente a própria Miss Crawford preferirá ir na boléia.
– Não há então motivo para que Fanny não vá também; não há
dúvida quanto a lugar para ela.
– Fanny! – repetiu Mrs. Norris; – Edmund, meu caro, não se cogita
em levá-la. Ela ficará com sua mãe. Disse isso a Mrs. Rushworth. Ela não
está sendo esperada.
– A senhora não pode ter motivo para desejar que Fanny não faça
parte do grupo, – disse ele dirigindo-se à mãe – a não ser que isso traga
inconveniência para o seu próprio conforto. Se a pudesse dispensar, creio
que não a prenderia em casa, não?
– Decerto que não, mas não posso passar sem ela.
– Pode sim, se eu ficar em casa com a senhora, como pretendo.
Houve um protesto geral.
– Sim, – continuou ele – eu não tenho necessidade de ir e minha
intenção é ficar em casa. Fanny tem muita vontade de conhecer
Sotherton. Sei que ela deseja muito ir. Não é sempre que ela pode ter um
divertimento e estou certo de que a senhora não a privará deste prazer,
não é?
– Oh não! Terei muito gosto, se sua tia não fizer objeção.
Mrs. Norris imediatamente apresentou a única objeção que ainda
havia – o fato de haverem afirmado a Mrs. Rushworth que Fanny não
poderia ir. Ficaria estranho que ela agora aparecesse lá, o que lhe parecia
uma dificuldade inteiramente impossível de ser transposta. Ia parecer
muito esquisito! Era uma coisa tão sem cerimônia, de tanto desrespeito a
Mrs. Rushworth, cujas maneiras tinham um cunho da melhor educação e
polidez, que por força ela não aprovaria. Mrs. Norris não tinha afeição a
Fanny e não lhe desejava proporcionar qualquer prazer; mas a sua
oposição a Edmund no momento, nasceu mais da parcialidade pelo seu
próprio plano, pois que era dela, do que de qualquer outra coisa. Tinha
arranjado tudo tão bem, que qualquer alteração só poderia ser para pior.
Quando, portanto, logo que ela deu uma folga, Edmund respondeu que
por causa de Mrs. Rushworth ela não precisava preocupar-se, pois que ao
acompanhá-la até a entrada aproveitara a oportunidade de mencionar
Miss Price como uma das que provavelmente fariam parte do grupo e
recebera diretamente um convite para a prima. Mrs. Norris, que estava
contrariada demais para se resignar de boa vontade, disse apenas:
– Está bem, está bem, como quiser, faça como achar melhor, para
mim tanto faz.
– Vai parecer muito estranho, – disse Maria – que você fique em
casa em vez de Fanny.
– Ela deve ficar muito agradecida a você, – acrescentou Julia, saindo
apressadamente da sala, com receio que alguém se lembrasse de que
deveria se oferecer para ficar em casa.
– Fanny saberá ser tão grata quanto a ocasião merece – foi a única
resposta de Edmund e o assunto terminou.
A gratidão de Fanny ao saber do novo plano foi de fato muito maior
do que seu prazer. Agradeceu a bondade de Edmund com uma
sensibilidade de que ele, sem suspeitar do seu grande afeto, nunca
poderia fazer idéia; que se privasse de um divertimento por causa dela
causava-lhe pena e a sua própria satisfação em visitar Sotherton era
incompleta sem a companhia dele.
A próxima reunião das duas famílias de Mansfield resultou em outra
alteração do projeto, a qual teve aprovação geral. Mrs. Grant ofereceu-se
para acompanhar Lady Bertram em lugar do filho e o Dr. Grant viria mais
tarde para o jantar. Lady Bertram ficou satisfeita e novamente as moças
se alegraram. Até mesmo Edmund ficou muito grato pelo arranjo que lhe
facultava a possibilidade de fazer parte do grupo; Mrs. Norris achou o
plano excelente e já o tinha na ponta da língua, pronta para o propor,
quando Mrs. Grant expôs a idéia.
Na quarta feira o dia amanheceu lindo e logo depois do almoço Mr.
Crawford chegou de carro, conduzindo as duas irmãs; e como todos
estavam prontos, não havia mais nada a fazer senão Mrs. Grant descer e
os outros tomarem seus lugares. O lugar dos lugares, o assento invejado,
o posto de honra, estava desocupado. A que feliz mortal seria ele
destinado? Enquanto cada uma das senhoritas Bertram meditava na
melhor maneira de o conseguir, dando aos outros a aparência de os estar
obsequiando, o caso foi solucionado por Mrs. Grant que ao descer disse:
– Como vocês são cinco, é melhor que uma pessoa vá ao lado de
Henry; e como você disse outro dia que desejaria guiar, Julia, creio que
esta é uma boa oportunidade de tomar umas lições.
Feliz Julia! Infeliz Maria! A primeira não perdeu tempo em pular
para a boléia, a última sentou-se dentro, sombria, aborrecida; a
carruagem deu saída no meio das exclamações de boa viagem das duas
senhoras que ficavam e dos latidos do “pug” no colo de sua dona.
A estrada atravessava uma região belíssima; e Fanny, cujos passeios
nunca tinham sido muito longos, em breve começou a encontrar coisas
desconhecidas e se sentiu em observar tudo que era novo e admirar tudo
que era bonito. Não era freqüentemente chamada a tomar parte na
conversa das outras e nem o desejava. Seus próprios pensamentos e
reflexões eram habitualmente seus melhores companheiros; e ao observar
o aspecto da região, a direção das estradas, a diferença de solo, o estado
da colheita, as cabanas, o gado, as crianças, encontrava distração que
somente seria maior se pudesse trocar idéias com Edmund sobre o que
sentia. Este era o único ponto em que ela se assemelhava à moça que
tinha a seu lado; em tudo, menos no interesse por Edmund, Miss
Crawford era muito diferente de Fanny. Não tinha nenhuma das
delicadezas de gosto, espírito e sentimento que tinha Fanny; via a
natureza, a natureza inanimada, sem a observar; sua atenção se voltava
toda para a humanidade, sua inteligência para a frivolidade e o gracejo.
Entretanto, ao se voltarem à procura de Edmund, quando atrás dela
aparecia uma nesga de estrada ou que ele as passava atalhando o
caminho por cima da colina, uniam-se, e um “lá está ele” mais de uma vez
saiu de seus lábios ao mesmo tempo.
Durante os primeiros dez quilômetros Maria não se sentiu muito
consolada; sua vista alcançava sempre Mr. Crawford e Julia sentados lado
a lado, cheios de contentamento e alegria; e só o ver a expressão do perfil
dele, cada vez que se virava sorrindo para Julia, ou surpreender a risada
da outra, era uma fonte de irritação perpétua, que apenas o seu senso de
decoro conseguia disfarçar. Julia se virava para trás com a fisionomia
transbordando de felicidade e cada vez que falava com elas era com a
maior animação: “a paisagem era encantadora, só queria que elas
pudessem ver”, etc; mas o seu único oferecimento para trocar de lugar foi
dirigido a Miss Crawford, quando atingiram o ponto mais alto de uma
colina e assim mesmo resumiu-se a isto:
– Daqui se tem uma linda vista da região. Desejaria que você
estivesse no meu lugar; aposto que não quer trocar, mas eu faço questão;
e mal Miss Crawford teve tempo de responder, o carro se pôs em
movimento a trote largo.
Quando entraram nos domínios de Sotherton, as coisas melhoraram
para Miss Bertram. Ela tinha sentimentos por Rushworth e ao mesmo
tempo por Crawford, mas nas proximidades do Sotherton os primeiros
tomavam aspecto considerável. A importância de Rushworth refletia-se
nela. Não podia dizer a Miss Crawford que “aqueles bosques pertenciam
a Sotherton”, nem observar descuidadamente que “supunha todos
aqueles campos de um e outro lado da estrada pertencem a Mr.
Rushworth”, sem sentir o coração cheio de orgulho; e era um prazer que
aumentava com a aproximação da famosa mansão, a antiga residência
senhorial da família.
– Agora não teremos mais estradas ruins, Miss Crawford; estamos
salvas. O resto do caminho é ótimo. A primeira coisa que Mr. Rushworth
fez ao tomar posse da propriedade foi consertar a estrada. Aqui começa a
vila. Aquelas cabanas são realmente uma lástima. A torre da igreja é tida
como uma das mais belas. E é bom que a igreja não esteja tão perto da
casa grande como geralmente acontece nesses lugares antigos. O barulho
dos sinos deve ser terrível. Lá está o Presbitério; é uma casa de aparência
asseada e creio que o pastor e a mulher são gente muito decente. Aquele
é o hospício, que foi construído por alguém da família. À direita fica a
casa do mordomo; é um homem muito respeitável. Agora estamos
chegando ao portão; mas ainda temos um quilômetro e meio dentro do
parque. Daqui, como vê, não feio; tem algumas árvores muito bonitas,
mas a situação da casa não poderia ser pior. Teremos que descer quase
um quilômetro até chegar lá e é uma pena, porque o lugar não seria feio
se tivesse melhor situação.
Miss Crawford prontamente se pôs a admirar; compreendeu
imediatamente o que se passava com Miss Bertram e fez questão de que
o contentamento dela fosse o maior possível. Mrs. Norris não cabia em si
de contente; e até Fanny teve alguma coisa a dizer para expressar sua
admiração e foi ouvida com complacência. Observava com grande
interesse tudo que lhe estivesse ao alcance da vista; e depois que a muito
custo conseguiu avistar a casa e observou ser uma casa para a qual não
se podia olhar senão com respeito, acrescentou:
– Bem, e onde é a alameda? A casa está de frente para leste, como
percebo. A alameda, portanto, deve estar atrás dela. Mr. Rushworth disse
que ficava a oeste.
– Sim, é exatamente atrás da casa; começa a pequena distância e
sobe um quilômetro até a extremidade do terreno. Daqui se pode ver uma
parte dela – as árvores mais distantes. É toda de carvalhos.
Agora Miss Bertram podia falar com perfeito conhecimento das
coisas que se mostrara ignorante quando Mr. Rushworth lhe havia pedido
a opinião; e seu espírito se agitava numa onda de felicidade que somente
a vaidade e o orgulho poderiam dar, quando chegaram aos espaçosos
degraus de pedra em frente à porta principal.

CAPÍTULO 9

Mr. Rushworth estava na porta aguardando a chegada de sua linda


noiva; e todo o grupo foi recebido por ele com a devida cortesia. Na sala,
esperava-os sua mãe, com igual cordialidade, e Miss Bertram tratou a
todos com toda a distinção que se poderia desejar. Terminadas as
formalidades da chegada, era preciso comer e as portas foram abertas
para que passassem através de uma ou duas salas intermediárias para a
sala de jantar onde estava preparada com elegância uma abundante
refeição. Houve muito que dizer, muito que comer e tudo correu bem. O
principal objetivo do dia foi então considerado. Como Mr. Crawford
preferia, de que maneira acharia melhor fazer um exame do terreno? Mr.
Rushworth ofereceu um carro, Mr. Crawford sugeriu que uma carruagem
que levasse mais de duas pessoas seria mais aconselhável. – Privarem-se
da vantagem que ofereciam outras vistas e outros julgamentos seria uma
lástima, isso além de perderem o prazer da companhia.
Mr. Rushworth propôs que levassem duas carruagens; mas essa
idéia não foi recebida com muito entusiasmo: as moças nem sorriram nem
fizeram comentário. A sua proposta seguinte, a de mostrar as casa
àquelas que ainda não a conheciam, teve melhor aceitação, pois Miss
Bertram tinha prazer em que os outros vissem a sua grandeza e todos
ficaram contentes de fazer alguma coisa.
Em conseqüência, levantaram-se todos e, sob a direção de Mrs.
Rushworth, atravessaram várias salas, formidáveis, espaçosas e
amplamente mobiliadas no estilo de há cinqüenta anos atrás, com
lustrosos assoalhos e sólidas madeiras, ricos damascos, mármores,
dourados e esculturas, cada um mais lindo. De pinturas havia abundância
e algumas boas, mas a maior parte eram retratos da família, pessoas que
não tinham mais nenhum laço de parentesco senão com Mrs. Rushworth,
que nada delas sabia senão o que a custo aprendera com a governanta, –
pessoa que se mostrava igualmente interessada em mostrar a casa.
Naquele momento ela se dirigia principalmente a Miss Crawford e Fanny;
mas não se podia comparar a atenção com que cada uma a ouvia; pois
Miss Crawford, que já tinha visto milhares de casas nobres e nunca se
interessara por nenhuma, tinha a aparência de quem ouvia apenas por
delicadeza, enquanto que Fanny, para quem tudo era novo escutava com o
maior interesse tudo que Mrs. Rushworth relatava sobre a família no
passado, sua origem e grandeza, as visitas reais e lutas leais, encantada
de ligar os feitos à história e aquecer a sua imaginação com cenas do
passado.
A situação da casa não permitia que das salas se visse a paisagem;
e enquanto Fanny e alguns dos outros seguiam Mrs. Rushworth, Henry
Crawford permanecia muito sério, sacudindo a cabeça em reprovação às
janelas. Todos os compartimentos do lado do oeste davam para um pátio,
de onde se avistava o começo de uma alameda logo depois de uma alta
cerca e do portão de ferro.
Depois de visitarem mais salas do que se poderia supor de utilidade
senão para a contribuição da “taxa das janelas” ou para dar serviço às
camareiras, Mrs, Rushworth disse:
– Agora vamos para a capela, na qual por direito deveríamos entrar
por cima e olhar de lá; mas como estamos entre amigos, vou levá-los por
este caminho, se não se importam.
Entraram. A imaginação de Fanny tinha-a preparado para encontrar
uma coisa mais imponente do que aquela sala pouco espaçosa, oblonga,
adaptada para a prática de devoção; sem nenhuma coisa de mais notável
ou mais solene a não ser a profusão de mognos e as almofadas de veludo
carmesim que apareciam sobre a borda da galeria da família.
– Estou desapontada, – disse ela em voz baixa para Edmund. – Esta
não é a idéia que eu fazia de uma capela. Não há nada aqui que seja
imponente, nada melancólico, nada grandioso. Não vejo alas, nem
abobadas, nem inscrições, nem estandartes. Nem estandartes, meu
primo, para serem “soprados pelo vento da noite celeste”. Nem sinal de
que “um monarca escocês jaz ali”.
– Você se esquece, Fanny, de que tudo isso foi construído muito
recentemente e para fim muito limitado, em comparação com as antigas
capelas dos castelos e mosteiros. Foi feito para uso da família, apenas. Os
mortos estão enterrados, suponho, na igreja da paróquia. Lá é que você
deve procurar os estandartes e brasões.
– Foi tolice minha não ter pensado nisso; mas estou desapontada.
Mrs. Rushworth começou a narrativa.
– Esta capela foi arrumada assim com a vêem, no tempo de Jayme
II. Antes daquele período, parece-me, os bancos eram apenas de madeira;
e supõe-se que as guarnições e almofadas do púlpito e da galeria da
família eram somente de púrpura; mas isto é muito certo. É uma bela
capela e antigamente era usada sempre, tanto de manhã como à noite.
Muitas gerações ouviram as orações que os capelães da casa aqui
disseram; mas o falecido Mr. Rushworth deixou-a abandonada.
– Cada geração tem os seus progressos – disse Miss Crawford com
um sorriso para Edmund.
Mrs. Rushworth foi repetir a Miss Crawford o que acabara de
contar; Edmund, Fanny e Miss Crawford permaneceram juntos.
– É uma pena, – exclamou Fanny – que a prática não tenha
continuado. Era uma parte interessante dos tempos antigos. Uma família
inteira se reunindo regularmente para rezar é uma coisa linda!
– Muito linda, na verdade, – disse rindo Miss Crawford. – Devia ser
muito bom para os chefes das famílias que obrigavam todos os pobres
empregados e trabalhadores a deixarem seus trabalhos e prazeres para
virem rezar aqui duas vezes por dia, enquanto eles inventavam pretextos
para ficar fora.
– Isto não é absolutamente o que Fanny pensou da reunião de uma
família, – disse Edmund. – Se o próprio chefe e a dona da casa não tomam
parte, há mais mal do que bem na prática de tal costume.
– De qualquer forma, nesses assuntos, é mais seguro deixar que
cada um faça como quiser. Ninguém gosta de ser contrariado – que
escolham seu próprio tempo e modo de praticar devoção. A obrigação da
presença, a formalidade, o constrangimento, o tempo de duração – tudo
junto é uma coisa tremenda, e de que ninguém gosta; se a boa gente que
costumava ajoelhar-se e bocejar naquela galeria pudesse prever que viria
um tempo em que a humanidade podia ficar na cama por mais dez
minutos, quando acorda com dor de cabeça, sem o perigo de ser
reprovada por ter perdido a oração na capela, haveria de pular de alegria
e inveja . Já imaginaram quantas vezes as lindas donas antigas da casa
Rushworth se dirigiram de má vontade para esta capela? As jovens
senhoras Eleanor e Bridgets – com aparência muito piedosa, mas com as
cabeças cheias de coisas muito diferentes – principalmente se o pobre
capelão era feio – e, naqueles dias, eu imagino, os pastores eram ainda
inferiores ao que são hoje.
Por alguns momentos ninguém respondeu. Fanny corou e olhou
para Edmund, mas estava tão zangada que não podia falar; e ele precisou
refletir um pouco antes de dizer:
– O seu espírito jovial não é capaz de levar a sério nem mesmo as
coisas sérias. A senhorita nos deu um esboço muito divertido e a natureza
humana não pode negar ser um pouco assim. Todos nós sentimos, às
vezes, dificuldade em fixar nossos pensamentos no que desejamos; mas se
está supondo que isto é uma coisa freqüente, isto é, uma fraqueza que se
torna hábito por negligência, que se poderia esperar da devoção íntima
de tais pessoas? Acha então que a consciência daqueles que sofrem e
procuram o consolo numa capela teria maior reconhecimento se
estivessem num armário fechado?
– Sim, muito possível. Teria, ao menos, duas probabilidades a seu
favor. Haveria menos coisas para distrair sua atenção e a reclusão não
duraria tanto tempo.
– A consciência que não luta contra si própria numa destas
circunstâncias, encontraria objetos para se distrair em outra, suponho; e
a influência do meio e o exemplo podem muitas vezes trazer melhores
sentimentos. A duração maior do ofício, entretanto, eu admito ser
algumas vezes um esforço grande demais para a consciência. É de
desejar que não seja assim; mas eu vim de Oxford há muito pouco tempo
para já me ter esquecido do que são as orações numa capela.
Enquanto isto se passava, os outros membros do grupo se
espalhavam pela capela. Julia chamou a atenção de Mr. Crawford para a
irmã, dizendo:
– Olha Mr. Rushworth e Maria, em pé lado a lado, exatamente como
se a cerimônia se fosse realizar. Não acha que estão com ar disso?
Mr. Crawford concordou sorrindo e chegando para perto de Maria,
disse numa voz que só ela poderia ouvir:
– Não gosto de ver Miss Bertram tão perto do altar.
Assustada, a moça instintivamente deu um ou dois passos mas
recuperando a presença de espírito, fingiu rir-se e perguntou em tom não
muito mais alto:
– E se fosse o padrinho?
– Receio que não tivesse muito jeito, – foi a resposta, com um olhar
significativo.
Julia chegando-se a eles em seguida, continuou a pilhéria.
– Palavra de honra, é realmente uma pena que a cerimônia não se
realize neste momento. Se ao menos tivéssemos a licença! Estamos todos
reunidos aqui e nada no mundo poderia ser mais cômodo e agradável. –
Ela falou e riu com tão pouca precaução que chamou a atenção de Mr.
Rushworth e sua mãe e expôs a irmã aos sussurrados galanteios do noivo,
enquanto Mrs. Rushworth com sorrisos e dignidade perfeita dizia que
seria um acontecimento muito feliz qualquer tempo que se realizasse.
– Se Edmund já estivesse ordenado! – exclamou Julia correndo para
onde ele se achava com Miss Crawford e Fanny – Meu querido Edmund,
se você já fosse pastor, agora, poderia realizar a cerimônia! Que
felicidade você ainda não ter tomado ordens; Mr. Rushworth e Maria
estão prontos.
A fisionomia de Miss Crawford, enquanto Julia falava, podia divertir
um observador desinteressado. Ela parecia praticamente consternada
com o que ouvia. Fanny teve pena dela.
– Como vai ficar embaraçada com o que disse há pouco! – pensou.
– Tomar ordens! – disse Miss Crawford; – pois que então vai ser
pastor?
– Sim, tomarei ordens logo que meu pai voltar; provavelmente no
Natal.
Miss Crawford recobrando os sentidos e recompondo a fisionomia,
respondeu apenas:
– Se soubesse disso antes, teria falado da sotaina com mais
respeito, – e mudou de assunto.
Logo em seguida a capela ficou entregue ao silêncio e à calma que
ali reinava, com poucas interrupções, durante todo o ano. Miss Bertram
aborrecida com o irmão, abriu caminho e todos pareciam sentir que
tinham estado lá por bastante tempo.
A parte térrea da casa estava toda vista e Mrs. Rushworth, firme no
seu propósito, teria prosseguido pela escada principal e mostrado todos
os quartos de cima, se o filho não se tivesse interposto, dizendo que havia
tempo suficiente para isso.
– Pois se levarmos muito tempo dentro da casa, não teremos tempo
para o que se tem de fazer do lado de fora. Já passa de duas horas e nós
devemos jantar às cinco.
Mrs. Rushworth resignou-se; a questão de estudar o terreno, com
os quem e os com estava para agitar-se novamente, e Mrs. Norris já
começava a arranjar por que combinações de carruagem e cavalos
poderia ser levada a efeito, quando o pessoal jovem, encontrando uma
porta de saída, aberta para uma escada que levava diretamente ao meio
dos arbustos e relvas em plena doçura do parque de recreio, como por
um impulso, um desejo único de ar e liberdade, saiu pela porta a fora.
– Suponhamos que ficássemos aqui um momento, – disse Mrs.
Rushworth, delicadamente aceitando a idéia e seguindo-os. – Aqui está a
maior parte de nossas plantas e ali os curiosos faisões.
– Eu pergunto, – disse Mr. Crawford, olhando em volta – se não
poderemos achar alguma coisa para fazer aqui, enquanto não vamos
adiante? Vejo paredes muito promissoras. Mr. Rushworth, devemos reunir
o conselho para decidir sobre este pátio?
– James, – disse Mrs. Rushworth ao filho – creio que o bosque é uma
novidade para todo o grupo. As senhoritas Bertram nunca o viram.
Nenhuma objeção foi feita, mas por algum tempo ninguém parecia
ter inclinação a mudar de plano ou se mover para qualquer outro lugar.
Todo estavam interessados pelas plantas e pelos faisões e todos se
dispersaram pelo pátio em feliz independência. Mr. Crawford foi o
primeiro a mover-se, a fim de examinar as possibilidades daquele lado da
casa. O pátio, cercado de cada lado por um alto muro, continha além da
primeira área plantada, um gramado e, além deste, um longo terraço,
cercado com grades de ferro, por cima da qual se avistavam os cimos das
árvores da floresta que ficava logo atrás. Era um bom lugar para se achar
defeitos. Mr. Rushworth e Miss Bertram imediatamente seguiram Mr.
Crawford; e, logo depois, quando os outros começaram a formar novos
grupos, os três foram encontrados por Edmund, Miss Crawford e Fanny
em grandes confabulações sobre o terraço, os quais, depois de uma curta
participação nos seus pesares e dificuldades, os deixaram para seguir
adiante. As três ficaram, mrs. Rushworth, Mrs. Norris e Julia, ainda
estavam mais atrasadas; pois Julia, cuja estrela de felicidade já não
prevalecia, foi obrigada a conservar-se ao lado de Mrs. Rushworth e
constranger seus impacientes pés ao passo vagaroso daquela senhora,
enquanto a tia, tendo encontrado a governanta que viera alimentar os
faisões, ficou para trás, de conversa com ela. Pobre Julia, a única dentre
as nove pessoas que não podia se queixar da sorte, estava agora reduzida
a um estado de completa penitência e tão diferente da Julia que viera na
boléia do carro como bem se pode imaginar. A polidez que lhe haviam
ensinado a praticar como um dever, tornava-lhe impossível um meio de
escapar; enquanto que a falta de princípios mais elevados de domínio
sobre si mesma, de consideração pelos outros, de conhecimento de seu
próprio coração, e a noção de direito, que não haviam parte essencial da
sua educação, faziam-na ainda mais desgraçada.
– Está um calor insuportável, – disse Miss Crawford depois de
darem uma volta pelo terraço, quando se dirigiam à porta que abria para
a floresta. – Algum de nós faz objeção a que procuremos conforto? Ali
está um lindo bosquezinho. Se ao menos se pudesse entrar! Que
felicidade se a porta não estivesse fechada! Mas naturalmente deve estar;
nestas casas nobres os jardineiros são as únicas pessoas que podem ir
onde querem.
A porta, porém, não estava fechada e os três alegremente
concordaram em passar por ela, deixando para trás a implacável
claridade do dia. Uma descida considerável levou-os até a floresta, que
era um bosque plantado, cerca de duas geiras de terra, e que, embora
constituído na maior parte de lariços, louros e faias cortadas, dispostos
com excessiva regularidade, era sombrio, fresco e de uma beleza natural,
comparado com o gramado e o terraço. Todos sentiram a sua frescura e
durante algum tempo não pensavam senão em andar e admirar.
Finalmente depois de uma curta pausa, Miss Crawford começou dizendo:
– Então Mr. Bertram, vai mesmo ser pastor? É uma grande surpresa para
mim.
– Por que está surpreendida? Deve lembrar-se que eu tenho de ter
uma profissão e já há de ter percebido que não sou nem advogado, nem
soldado, nem marinheiro.
– É verdade; mas, em resumo, isto não me ocorreu. E como sabe, há
geralmente um tio ou um padrinho para deixar a fortuna ao segundo filho.
– Um costume muito louvável, – disse Edmund – mas não universal.
Eu sou uma das exceções e assim sendo, tenho que fazer alguma coisa
por mim mesmo.
– Mas porque há de ser pastor? Sempre pensei que esta sorte
coubesse ao filho mais moço, quando houvesse muitos irmãos para
escolher.
– Acha então que a igreja nunca é escolhida por si mesma?
– Nunca é uma palavra forte. Mas o “nunca” da nossa conversa, que
significa “não muito freqüentemente”, acredito que não. Pois o que se
pode esperar da igreja? Os homens gostam de se distinguir e em outra
qualquer carreira essa distinção pode ser alcançada, mas não na igreja.
Um pastor não é nada.
– Este “nada” da conversa também tem suas gradações, espero;
pelo menos tanto quanto o “nunca”. Um pastor não pode sobressair em
pompas e modas. Não deve dirigir povos nem ditar modas de vestuário.
Mas não vejo nessa situação nada que se relacione com aquilo que é de
primeira importância para a humanidade, individual ou coletivamente
considerado, temporária ou eternamente: a proteção da religião ou da
moral e conseqüentemente das maneiras que resultam da sua influência.
Nenhum de nós aqui pode achar que o “ofício” é nada. Se o homem que o
pratica é considerado inútil, o é por negligência aos seus deveres, por não
lhe dar uma justa importância e afastar-se do seu lugar para aparecer
onde não deve.
– O senhor dá mais importância ao pastor do que geralmente se
costuma dar ou do que eu posso compreender. Na sociedade não se sente
muito essa influência e essa importância, mas como poderiam ser
sentidas num meio onde os próprios pastores raramente são vistos? Como
podem dois sermões por semana, mesmo supondo que sejam dignos de
serem ouvidos, e embora o pregador tenha o bom senso de preferir os de
Blair aos seus próprios, fazer tudo isso que fala – governar a conduta e
dirigir as maneiras de uma grande congregação para o resto da semana?
Dificilmente se vê um pastor fora do púlpito.
– A senhorita está falando de Londres enquanto eu me refiro à
nação inteira.
– A metrópole é um bom exemplo do que deve ser o resto.
– Não o espero, no que se refere à proporção da virtude para o vício
em toda a extensão do reino. Não procuramos nossa moralidade nas
grandes cidades. Não é lá que a gente respeitável de qualquer
denominação pode fazer o maior bem; e certamente não é lá que a
influência do clero pode ser melhor sentida. Um bom pregador é sentido
e admirado; mas não é somente pelos belos sermões que um bom pastor
pode ser útil na sua paróquia e na sua vizinhança, onde, pela extensão
das mesmas, é possível se conhecer a sua vida íntima e observar a sua
conduta em geral, o que em Londres dificilmente aconteceria. Lá o clero
se perde no meio da multidão. São conhecidos apenas como pregadores
pela maior parte. E quanto à influência deles em questões de ordem
pública, peço que não me interprete mal, Miss Crawford, ou suponha que
eu pretenda chamá-los de árbitros da boa educação, de reguladores da
polidez e da cortesia, de mestres de cerimônias da vida. As “maneiras” a
que me refiro, poderiam antes ser chamadas “condutas”, ou talvez, o
resultado de bons princípios; o efeito, em resumo, daquelas doutrinas que
eles têm por dever ensinar e recomendar; e admito que haja aqueles que
são o que não deviam ser, como aliás se encontram em toda a parte.
– Certamente – disse Fanny com doçura.
– Aí está, – exclamou Miss Crawford – já convenceu Miss Price
completamente.
– Desejaria convencer Miss Crawford também.
– Não creio que consiga me convencer – disse ela com um sorriso
malicioso; – continuo tão surpreendida como fiquei ao saber que
tencionava ordenar-se. O senhor é digno de melhor sorte. Ânimo! Mude
de idéia, ainda é tempo! Entre para a carreira jurídica.
– Entre para a carreira jurídica! Com a mesma facilidade com que
entrei nesta floresta.
– Bem, agora vai fazer um sermão sobre as desvantagens da
advocacia; mas eu não permito; lembre-se, não o permito.
– Se a questão é evitar que eu fale difícil, não precisa inquietar-se,
pois, por natureza não tenho o menor espírito; sou uma criatura muito
positiva, franca e poderia passar meia hora empenhado em qualquer
discussão sem dizer nada de notável.
Seguiu-se um silêncio geral. Cada um ficou pensando. Fanny fez a
primeira interrupção, dizendo:
– Admiro-me de estar cansada, pois só caminhei neste bosque tão
fresco; mas no primeiro banco que encontrarmos, se não se opuserem,
gostaria de me sentar um pouco.
– Minha querida Fanny, – exclamou Edmund, imediatamente
tomando-lhe o braço – que descuidado estou sendo! Espero que não
esteja cansada demais. Talvez, disse virando-se para Miss Crawford,
minha outra companheira queira me dar a honra de aceitar o outro braço.
– Obrigada, mas não estou cansada em absoluto.
Aceitou, porém, o braço e o prazer que isso causou, a sensação de
sentir tal contato pela primeira vez, fez com que ele se esquecesse um
pouco de Fanny.
– A senhorita mal toca no meu braço, – disse ele. – Quase não se
utiliza de mim. Que diferença entre o peso de um braço de uma senhora e
o de um homem! Em Oxford muitas vezes servi de apoio a um homem em
toda a extensão de uma rua; comparando a ele, a senhorita parece uma
pluma.
– Realmente não estou cansada, o que até me admira, pois devemos
ter andado no mínimo um quilômetro e meio dentro deste bosque, não
acha?
– Nem a metade – respondeu-lhe resolutamente; pois o rapaz ainda
não estava tão apaixonado a ponto de medir distâncias ou calcular o
tempo.
– Oh! É que não leva em conta as voltas que temos dado. Em linha
reta o bosque não deve ter nem um quilômetro, mas nós estamos
seguindo um caminho muito cheio de curvas. Por isso ainda não
chegamos ao fim.
– Mas não se lembra que antes de deixarmos o caminho principal,
avistamos o fim do bosque? Dominamos toda a vista e observamos que o
bosque era fechado com portões de ferro e não podia ter mais do que uns
duzentos metros de distância.
– Bem, não entendo nada de distâncias, mas a mim me parece que o
bosque é muito grande e que nós temos andado para cima e para baixo
desde que entramos nele; e, naturalmente, quando eu digo que devemos
ter andado um quilômetro e meio, refiro-me ao circuito.
– Estamos exatamente há um quarto de hora aqui, – disse Edmund
tirando o relógio. –Acha que estamos andando a seis quilômetros por
hora?
– Oh! Não venha com seu relógio. Um relógio está sempre ou muito
adiantado ou muito atrasado. Não pode se guiar pelo relógio.
Alguns passos mais levaram-nos ao ponto final do próprio caminho
de que estavam falando; e ali, em lugar bem sombrio e abrigado, virado
para o parque, encontraram um largo banco, confortável, no qual todos
se sentaram.
– Receio que esteja muito cansada, Fanny – disse Edmund
observando-a; – porque não reclamou mais cedo? O dia não vai ser nada
divertido para você, se ficar doente. Toda a sorte de exercício a fadiga
logo, Miss Crawford, exceto andar a cavalo.
– Então, como foi abominável deixar que eu monopolizasse o cavalo
dela durante toda a semana! Envergonho-me pelo senhor e por mim
mesma; mas prometo que isso não acontecerá novamente.
– Sua atenção torna-me ainda mais sensível ao meu próprio
esquecimento. Os interesses de Fanny parecem mais seguros em suas
mãos do que nas minhas.
– Que ela esteja cansada agora, porém, não me admira; pois não há
nada que fadigue mais do que aquilo que fizemos esta manhã:
percorrendo uma grande casa, entrando e saindo de uma sala para outra,
cansando a vista e a atenção, ouvindo coisas que não se compreende e
admirando coisas que não têm interesse nenhum. Isto é geralmente
considerado uma das maiores maçadas do mundo e Miss Price também
achou, embora não tivesse percebido.
– Eu logo estarei descansada – disse Fanny; – sentar à sombra num
lindo dia, olhando para a verdura, é o melhor remédio.
Depois de se sentar um momento, Miss Crawford tornou a levantar-
se.
– Eu preciso mover-me – disse ela; – sentar me fadiga. Estou farta
desta vista. Tenho que ir e espiar através daquele portão de ferro para
apreciá-la melhor.
Edmund levantou-se também.
– Agora Miss Crawford, se olhar na direção deste caminho, ficará
convencida de que não pode ter um quilômetro de distância, nem a
metade de um quilômetro.
– É uma distância imensa – disse ela. – Posso ver a olho nu.
Ele ainda procurou convencê-la, mas em vão. Ela não queria
calcular, não queria fazer comparações. Apenas sorria e sustentava.
Finalmente concordaram que deveriam procurar determinar as
dimensões do bosque caminhando um pouco mais por ele. Iriam até o fim
na direção em que estavam (pois ao lado do lugar onde se achavam havia
um caminho gramado que ia diretamente ao fim), e dali talvez virassem
um pouco para outra qualquer direção, se fosse preciso, e estariam de
volta em poucos minutos. Fanny disse que estava descansada e que
poderia ir também, mas eles não concordaram. Edmund aconselhou-a a
permanecer onde estava com tanta ansiedade que ela não pôde resistir; e
a moça ficou no banco, pensando com prazer no cuidado que o primo
tinha por ela, sentindo-se muito triste por não ser mais forte. Observou-os
até que viraram na curva e ouviu-os até que o último som de suas vozes
se extinguiu.

CAPÍTULO 10

Um quarto de hora, vinte minutos passaram-se e Fanny continuava


pensando em Edmund, em Miss Crawford e em si própria, sem que
ninguém a interrompesse. Começou a admirar-se de ter sido deixada
sozinha tanto tempo e ansiosamente desejou ouvir seus passos e vozes
novamente. Prestou atenção e finalmente ouviu vozes e passos que se
aproximavam; mal porém compreendeu que não eram daqueles por quem
ela esperava, quando Miss Bertram, e os moços Rushworth e Crawford
surgiram no mesmo caminho por onde ele própria tinha vindo, e pararam
à sua frente.
“Miss Price aqui sozinha!” e “Minha querida Fanny, que foi isso?”
foram as primeiras exclamações. Ela contou o que tinha acontecido.
– Pobre Fanny, – exclamou a prima – como puderam eles maltratá-la
assim! Era melhor que você tivesse ficado conosco.
Depois, sentando-se com um cavalheiro de cada lado, Maria voltou
ao assunto de que se vinha ocupando, e discutiram as possibilidades de
reforma com muita animação. Nada fora ainda resolvido; mas Henry
Crawford estava cheio de idéias e projetos e, em geral, qualquer proposta
feita por ele era imediatamente aprovada, primeiro por ela e depois por
Mr. Rushworth, cuja principal tarefa era ouvir os outros e raramente
arriscar uma opinião.
Depois de alguns minutos passados dessa forma, Miss Bertram,
observando o portão de ferro, expressou o desejo de passar por ele para
dentro do parque, a fim de que os seus planos pudessem ser melhor
examinados e compreendidos. Isto era justamente o que deveriam fazer, a
melhor e única maneira de prosseguirem com alguma vantagem, na
opinião de Henry Crawford, que imediatamente viu uma colina, não muito
distante dali, na qual poderiam ter uma vista completa da casa. Deviam
pois ir para aquela colina; mas o portão estava fechado. Mr. Rushworth
sentiu não ter trazido a chave; ele tinha até pensado se não deveria levar
tal chave; fez protestos de nunca mais sair sem a trazer; mas todas essas
considerações não removiam a dificuldade presente. Não poderiam
passar; e como Miss Bertram não desistisse do intento, ficou resolvido
que Mr. Rushworth voltaria para apanhar a chave. Isto posto, pôs-se ele a
caminho.
– Sem dúvida é a melhor coisa a fazer, já que estamos tão longe de
casa, – disse Mr. Crawford logo que o outro saiu.
– Sim, não podemos fazer outra coisa. Mas agora, com sinceridade,
não acha que o lugar é muito pior do que esperava?
– Não, na verdade, muito ao contrário. Acho até melhor, maior e
mais completo em seu estilo, embora este não seja dos melhores. E para
lhe ser franco, – disse a meia voz – creio que nunca verei Sotherton com
tanto prazer como o estou vendo agora. No próximo verão já não terá o
mesmo interesse para mim.
Após um momento de embaraço a moça respondeu:
– O senhor é demais mundano para não ver as coisas praticamente.
Se outras pessoas mostrarem interesse por Sotherton, não tenho dúvidas
de que se interessará também.
– Receio que não seja tão mundano como desejaria ser em algumas
questões. Meus sentimentos não são tão passageiros nem minha memória
tão facilmente dominada, como acontece aos homens mundanos.
Seguiu-se um curto silêncio. Miss Bertram retrucou:
– O senhor pareceu apreciar muito a viagem desta manhã. Gostei de
vê-lo tão atrevido. O senhor e Julia vinham rindo o tempo todo.
– Vínhamos mesmo? Sim, creio que vínhamos; mas não me recordo
absolutamente porque ríamos. Oh! Parece-me que estive contando a ela
qualquer história ridícula de um antigo cocheiro irlandês do meu tio. Sua
irmã é muito alegre.
– Acha que ela é mais alegre do que eu?
– Diverte-se mais facilmente – respondeu ele.
– Conseqüentemente é melhor companhia – disse a moça sorrindo.
– Não poderia esperar entreter a senhorita com anedotas irlandesas
durante uma viagem de dezesseis quilômetros.
– Pois eu sou tão jovial quanto Julia, mas é que agora tenho muito
em que pensar.
– Acredito que tenha; seus projetos, porém, são belos demais para
justificar uma falta de alegria. Tem um futuro muito risonho na sua
frente.
– Quer dizer literalmente ou figurado? Literalmente, concluo. Sim,
não há dúvida que o sol está brilhando e o parque está muito alegre. Mas
infelizmente aquele portão de ferro me dá uma sensação de
constrangimento, de prisão. – Não posso fugir, como dizem os
passarinhos. – Enquanto falava caminhava para o portão: ele a seguiu. –
Mr. Rushworth está demorando tanto, não é?
– E para o mundo, não poderia sair sem a chave, a autoridade e a
proteção de Mr. Rushworth. Do contrário, penso que poderia com pouca
dificuldade, passar por cima do portão, se eu a ajudasse; creio que pode
ser feito, se realmente deseja ficar em liberdade e se se convenceu de
que nada a proíbe.
– Proíbe! Tolice! Certamente posso sair dessa maneira e sairei. Mr.
Rushworth estará aqui num momento; nós não nos vamos afastar muito.
– Ou se ele não nos encontrar, Miss Price terá a bondade de lhe
dizer que nos encontrará perto daquela colina; no bosque de carvalhos
sobre a encosta.
Fanny, sentindo que tudo aquilo estava errado, procurou impedi-lo.
– Vai ferir-se, Miss Bertram – exclamou ela – vai sem dúvida
machucar-se naquelas pontas ou rasgar o vestido; está arriscada a
escorregar. Seria melhor não ir.
Enquanto fazias essas recomendações, a prima punha-se a salvo do
outro lado e, sorrindo satisfeita pelo sucesso, dizia:
– Obrigada, querida Fanny, eu e meu vestido estamos vivos e
passando bem e por isso, adeus.
Fanny ficou novamente entregue à sua solidão e não mais alegre do
que antes, pois se sentia apreensiva com quase tudo que vira e ouvira,
admirada da conduta de Miss Bertram e aborrecida com Mr. Crawford.
Tendo eles se desviado do caminho, tomando, a seu ver, direção muito
diversa da colina, logo os perdeu de vista; e por alguns minutos mais
permaneceu inteiramente só. Parecia ter o bosquezinho todo para si.
Chegou a imaginar que Edmund e Miss Crawford já o tivessem achado,
mas achou impossível que Edmund a tivesse esquecido tão
completamente.
Novamente foi despertada dessas tristes meditações por um súbito
ruído de passos. Alguém vinha marchando apressadamente pelo caminho
principal. Esperava que fosse Mr. Rushworth, mas foi Julia que, suada e
sem fôlego, com um ar desapontado, exclamou ao vê-la:
– Olá! Onde estão os outros? Pensei que Maria e Mr. Crawford
estivessem com você.
Fanny explicou.
– Bonita peça, palavra de honra! Não os vejo em nenhuma parte –
disse espiando ansiosamente para o parque. – Mas não podem estar
muito longe e acho que vou imitar Maria, mesmo sem auxílio.
– Mas Julia, Mr. Rushworth voltará agora mesmo com a chave. É
melhor esperar por ele.
– Não eu! Era só que faltava! Já aturei bastante a família por hoje.
Não vê, menina, acabei de me escapar da horrorosa mãe dele! Agüentar
uma tal penitência, enquanto você fica aqui sentada muito comodamente
e feliz! Seria bom que estivesse no meu lugar, mas você sempre sabe
fugir desses apuros.
Tal censura não poderia ser mais injusta, porém Fanny
compreendeu e deixou passar: Julia estava irritada e de mau humor; mas
sabia que isto não duraria muito e por conseguinte fingiu não o notar e
apenas perguntou se ela não tinha visto Mr. Rushworth.
– Sim, sim, eu o vi. Ia apressado como se tratasse de uma questão
de vida e morte e não pudesse perder um minuto para nos dizer aonde ia
ou onde vocês estavam.
– É pena que tenha tanto trabalho sem necessidade.
– Isto é lá com Miss Maria. Não sou obrigada a me castigar pelos
pecados dela. A mãe eu não podia evitar, enquanto a minha enfadonha tia
dançava em redor da governanta, mas o filho não me pega.
E imediatamente saltou por cima da cerca e afastou-se sem nem
ouvir a última pergunta de Fanny, isto é, se havia visto Miss Crawford e
Edmund. A espécie de temor com que Fanny agora esperava ver Mr.
Rushworth, impediu-a de pensar muito na prolongada ausência dos dois.
Achava que ele havia sido maltratado demais, e sentia-se sem coragem
para lhe comunicar o que se havia passado. Cinco minutos depois da
saída de Julia, Mr. Rushworth apareceu; embora a pequena fizesse o
possível para atenuar a história, ele mostrou-se aborrecido e descontente
com o sucedido. A princípio não disse quase nada; apenas o olhar
exprimiu sua grande surpresa e irritação; caminhou para o portão, onde
parou indeciso, sem saber o que fazer.
– Eles quiseram que eu ficasse; Maria encarregou-me de lhe dizer
que os encontraria naquela colina ou ali perto.
– Creio que não irei mais adiante – disse Mr. Rushworth
obstinadamente; – não os posso ver daqui. Quando eu chegar na colina já
eles terão ido para outra qualquer parte. Já andei demais.
Sentou-se ao lado de Fanny com o rosto carrancudo.
– Sinto muito, – disse ela – foi pouca sorte. – E desejou inutilmente
poder lhe dizer alguma coisa mais.
Depois de um intervalo o rapaz falou:
– Creio que eles poderiam muito bem ter esperado por mim.
– Miss Bertram pensou que o senhor a iria procurar.
– Não teria que procurá-la se me tivesse esperado.
Isto não podia ser contestado e Fanny ficou em silencio. Depois de
outra pausa ele continuou:
– Diga-me, Miss Price, a senhora é tão grande admiradora desse Mr.
Crawford como algumas pessoas o parecem ser? Pela parte que me toca,
não vejo nada de extraordinário nele.
– Não o acho bonito, absolutamente.
– Bonito! Ninguém poderia achar bonito um homem de tão pouca
altura. Não tem mais de um metro e oitenta. Não me admiro se ele não
tiver menos do que isso ainda. Acho-o um camarada sem interesse. Na
minha opinião esses Crawfords não prestam para nada. Podíamos muito
bem passar sem eles.
Fanny deixou escapar um pequeno suspiro e não soube como
contradizer.
– Se eu tivesse posto alguma dificuldade em ir buscar a chave,
ainda havia desculpa, mas saí no mesmo instante em que ela pediu.
– Nada seria mais digno de elogio do que a sua espontaneidade e
estou certa de que andou o mais depressa que pôde; mas enfim, como
sabe, a distância é grande deste ponto até a casa; e quando se está
esperando o tempo custa a passar e cada minuto parece se multiplicar
por cinco.
Ele levantou-se e novamente caminhou para o portão, desejando
mais uma vez que tivesse trazido a chave antes. Fanny julgou divisar na
sua atitude uma indicação de enternecimento, da qual tirou coragem para
outra tentativa, e por isso disse:
– É uma pena que não os vá encontrar. Eles esperavam obter
melhor perspectiva da casa daquele lado do parque, e estarão agora
estudando a melhor maneira de a reformar; e nada poderão resolver sem
a sua presença, não é?
Fanny se sentia mais hábil para afastar uma companhia do que para
a reter. Mr. Rushworth se convenceu.
– Bem, disse ele, se acha que realmente eu devo ir... seria tolice
trazer a chave para não a usar.
E abrindo a passagem, afastou-se sem mais cerimônia.
Os pensamentos de Fanny estavam agora inteiramente absorvidos
pelos dois que a tinham deixado há tanto tempo e, tornando-se
impaciente, resolveu ir procurá-los. Seguiu-lhes os passos até o fim do
caminho e mal tinha virado noutra direção, ouviu a voz e a risada de Miss
Crawford; o som aproximava-se e algumas voltas mais os trouxe à sua
frente. Acabavam de voltar para o bosque, vindos do parque, para o qual
haviam sido tentados a entrar, tendo encontrado um portão lateral, lá
caminharam pela alameda que durante toda a manhã Fanny tivera a
esperança de ver, para afinal, ficar sentada embaixo de uma das árvores.
Esta foi a estória que contaram. Era evidente que tinham passado os
minutos agradavelmente e não se aperceberam do tempo em que
estiveram ausentes. O único consolo de Fanny foi Edmund lhe assegurar
que havia desejado muito a presença dela e certamente voltado para
buscar se ela já não estivesse cansada; isto porém não era suficiente para
a fazer esquecer a tristeza de ter ficado sozinha durante uma hora
inteira, quando eles haviam prometido ausentar-se somente por poucos
minutos, nem para afastar a curiosidade que sentia em saber o que eles
haviam conversado todo o tempo; e o resultado de tudo foi a sua
humilhação e desapontamento, quando eles se prepararam, de comum
acordo, a voltarem para a casa.
Quando chegaram no alto da escada do terraço, Mrs. Rushworth e
Mrs. Norris apareceram, prontas para irem até a floresta, depois de
terem saído de casa à uma hora e meia. Mrs. Norris havia se entretido
muito pelo cominho e não tivera pressa. Quaisquer que fossem os
contratempos ocorridos para interceptar o prazer das sobrinhas, não a
impediam de julgar a manhã muito divertida; pois a governanta, depois
de muitas cortesias sobre o assunto dos faisões, tinha-a levado para a
queijaria e lá a havia informado de tudo o que se relacionava com as
vacas e lhe tinha dado a receita de um famoso queijo; e logo que Julia as
havia deixado, elas encontraram o jardineiro, com quem Mrs. Norris fez
as melhores relações, pois o havia orientado sobre a doença do neto,
convencendo-o de que se tratava de uma febre intermitente e lhe
prometera um remédio infalível para a curar; e ele, em troca, lhe
mostrara todos os seus viveiros de plantas escolhidas e até mesmo a
presenteara com um espécime de cactus muito curioso.
Ao se encontrarem resolveram voltar todos juntos para a casa e lá
esperar da melhor maneira possível, com sofás e revistas, que os outros
viessem para jantar. Era tarde quando as Misses Bertram e seus dois
cavalheiros voltaram e pelo aspecto parecia que o passeio não fora de
todo agradável, nem de todo produtivo quanto ao objetivo do dia.
De acordo com as suas próprias explicações, eles tinham estado
todo tempo à procura uns dos outros e quando finalmente se encontraram
já era tarde demais, na opinião de Fanny, para restabelecer a harmonia,
como reconhecidamente o foi para discutirem a reforma da casa.
Fanny sentiu, ao observar Julia e Mr. Rushworth, que o seu coração
não era o único descontente no meio deles; havia tristeza na face de cada
um. Mr. Crawford e Miss Bertram estavam muito mais alegres e ela
percebeu que durante o jantar ele se esforçou para afastar qualquer
pequeno ressentimento que os dois pudessem ter e restabelecer o bom
humor geral.
O jantar foi imediatamente seguido do chá e café, pois uma viagem
de dez milhas não permitia perda de tempo; e desde a hora em que se
sentaram à mesa houve uma rápida sucessão de pequenos nadas até que
a carruagem foi trazida para a porta. Mrs. Norris, depois de se agitar pó
ali e obter alguns ovos de faisão, um queijo da governanta, e feito
abundantes discursos e amabilidades a Mrs. Rushworth, resolveu abrir
caminho. No mesmo instante, Mr. Crawford, aproximando-se de Julia,
disse: – Espero não perder a sua companhia, a menos que receie o ar da
noite num lugar assim exposto. – O convite não tinha sido previsto, mas
foi recebido com muito agrado e o dia de Julia provavelmente acabaria
tão bem como começara. Miss Bertram tinha feito planos um pouco
diferentes e ficou um tanto desapontada; mas a sua convicção de ser
realmente a preferida reconfortou-a e a ajudou a receber como devia as
atenções de Mr. Rushworth ao despedir-se. Ele certamente gostou muito
mais de levá-la para o carro do que ajudá-la a subir para a boléia, e com
isso, pareceu ficar apaziguado.
– Muito bem, Fanny, este foi um belo dia para você, palavra, – disse
Mrs. Norris, quando rodavam pelo parque. – Prazer e mais prazer, do
princípio ao fim! Você deve ficar muito agradecida à sua tia Bertram e a
mim por termos permitido que viesse. Um dia de grande divertimento o
que você teve!
Maria, porém, estava bastante descontente para dizer asperamente:
– Creio que a senhora mesma se divertiu bastante. Seu colo está
cheio de coisas boas e aqui ainda tem uma cesta com não sei o que, entre
nós, que está me incomodando imensamente.
– Minha querida, é apenas um lindo cactus, que o velho e amável
jardineiro me fez trazer; mas se a está incomodando, ponho-o no colo
imediatamente. Olha, Fanny, você leva este pacote para mim; tome muito
cuidado com ele; não o deixe cair; é um excelente creme de queijo, igual
ao que tivemos no jantar. Aquela boa velhinha, Mrs. Whitaker, fez questão
absoluta que eu trouxesse um desses queijos. Recusei o mais que pude,
até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Além disso eu sabia que era a
qualidade de que minha irmã haveria de gostar. Aquela Mrs. Whitaker é
um tesouro! Ficou escandalizada quando eu perguntei se permitiam
servir vinho na mesa da cozinha; imagine que despediu duas empregadas
só porque usavam vestidos brancos! Tome cuidado com o queijo, Fanny.
Assim posso segurar o outro pacote e a cesta muito bem.
– E que mais conseguiu surrupiar? – perguntou Maria, quase
contente por ver Sotherton tão elogiado.
– Surrupiar, minha querida! Isto aqui são apenas quatro ovos
daqueles lindos faisões que Mrs. Whitaker me obrigou a trazer; não
admitiu recusa. Disse-me que, já que eu vivia tão isolada, seria um
divertimento para mim ter algumas destas criaturas ao meu redor; e será
mesmo. Vou dar à leiteira para os deitar na primeira galinha que estiver
disponível e se saírem bem levo-os para casa e arranjo um galinheiro
emprestado; e nas minhas horas solitárias, será um grande prazer para
mim tratá-los. Se eu tiver sorte, darei alguns a sua mãe.
A noite estava linda, suave e calma, e a viagem foi tão agradável
quanto a serenidade da natureza a podia fazer. Quando Mrs. Norris
cessou de falar, o resto da viagem foi feito em silêncio. Estavam todas
exaustas de espírito; e a consciência da cada uma devia estar ocupada em
determinar se o dia lhe havia proporcionado mais prazer do que
sofrimento.

CAPÍTULO 11

O dia em Sotherton, com todas as suas imperfeições, proporcionou


às Misses Bertram sensações mais agradáveis do que a derivada das
cartas de Antigua, recebidas em Mansfield logo em seguida. Era muito
mais agradável pensar em Henry Crawford do que em Sir Thomas; a volta
deste para a Inglaterra, dentro de um certo período, – período que ele
mencionava nas cartas, era assunto que não gostavam de pensar.
Novembro era o mês negro, fixado para a sua volta; Sir Thomas
escrevera sobre isso com tanta decisão quanto a experiência e a
ansiedade lhe poderiam permitir. Seus negócios estavam tão perto da
conclusão que se justificava o projeto de tomar passagem no paquete de
setembro e conseqüentemente antecipar a esperança de estar com a sua
bem amada família nos primeiros dias de novembro.
Maria era mais digna de pena do que Julia; pois para ela o pai traria
um marido, visto que à volta dele se decidiria o seu casamento. Era uma
perspectiva sombria e tudo que poderia fazer era lançar uma nuvem
sobre o caso e esperar que esta ao dissipar-se lhe mostrasse as coisas de
outra maneira. Possivelmente a chegada do pai não seria para os
primeiros dias de novembro. Geralmente havia demoras, uma falta de
passagem ou qualquer outra coisa; talvez só fosse mesmo lá para meados
de novembro e até lá ainda tinha três meses. Três meses correspondiam a
treze semanas. Muito poderia acontecer em treze semanas.
Sir Thomas ficaria profundamente mortificado se pudesse suspeitar
a metade do que as filhas sentiam com a perspectiva de sua volta e
dificilmente encontraria consolo em ter conhecimento do interesse que a
mesma despertara no coração de uma outra moça. Miss Crawford indo
com o irmão passar a tarde em Mansfield Park , soube da novidade; e
embora não demonstrasse pelo assunto maior interesse do que a polidez
o exigia, e dando expansão aos seus sentimentos numa serena felicitação,
ouviu o que se comentava com uma atenção enorme. Mrs. Norris deu
todos os particulares das cartas e o assunto esmoreceu; mas depois do
chá, Miss Crawford que se achava em frente à janela com Edmund e
Fanny, apreciando o crepúsculo, enquanto as Misses Bertram, Mrs.
Rushworth e Mr. Crawford estavam às voltas com o piano, olhou para o
outro grupo e comentou:
– Como Mr. Rushworth parece feliz! Está pensando em novembro.
Edmund voltou-se para Mr. Rushworth, mas não achou nada que
dizer.
– A volta de seu pai será um grande acontecimento.
– Será sem dúvida, depois de tão grande ausência; uma ausência
não só longa como cheia de perigos.
– E será também a precursora de outros acontecimentos
interessantes; o casamento de sua irmã e a sua ordenação.
– Sim.
– Não se ofenda, – disse ela rindo – mas isto me faz lembrar aqueles
heróis pagãos que ofereciam sacrifícios aos deuses ao voltarem a salvo de
grandes façanhas em terra estrangeira.
– No caso presente não há sacrifícios, – respondeu Edmund sorrindo
e novamente lançando um olhar para o grupo do piano – ela mesma é
quem o quer.
– Oh sim! Isto sei eu. Estava brincando. Ela apenas faz o que toda
moça faria; e eu não tenho a menor dúvida de que ela é extremamente
feliz. O outro sacrifício a que me refiro, o senhor naturalmente não
compreende.
– A minha ordenação, posso lhe assegurar, é tão voluntária quanto o
casamento de Maria.
– É uma sorte que a sua vocação e a conveniência de seu pai
estejam tão perfeitamente de acordo. Ouvi dizer que existe por aí uma
ótima paróquia à sua espera.
– Motivo que a senhorita supõe tenha influído na minha resolução?
– Mas isto não é verdade! – exclamou Fanny.
– Obrigado pelo bom juízo que faz de mim, Fanny, mas eu mesmo
não estou certo se não é verdade. Ao contrário, o conhecimento de que
havia uma tal paróquia para mim, provavelmente me influiu. Nem vejo
que haja mal nenhum nisso. Não tive que lutar contra qualquer aversão e
não vejo razão porque um homem possa ser pior pastor só pelo fato de
saber que terá maiores facilidades no início da vida. Eu estava em boas
mãos. Espero não ter seguido o caminho errado mas estou certo de que,
se assim o fosse, meu pai seria bastante consciencioso para não o
permitir. Não tenho dúvida de que fui influenciado mas penso que
inocentemente.
– É a mesma coisa, – disse Fanny depois de um momento – como o
filho de um almirante que vai para a marinha ou o filho de um general
que vai para o exército e ninguém vê nada de mal nisso. Ninguém se
espanta que eles prefiram seguir uma carreira onde sabem que
encontrarão amigos que os auxiliarão e nem por isso se suspeita de que
possam ter menos vocação do que aparentam.
– Não, cara Miss Price, não é bem isso. A carreira, tanto na marinha
como no exército, tem sua própria justificativa. Ela tem tudo a seu favor;
heroísmo, perigo, vaidade, moda. Soldados e marinheiros são sempre
bem recebidos na sociedade. Ninguém se admira que os homens sejam
soldados e marinheiros.
– Mas os motivos por que um homem segue a carreira religiosa com
certeza de certas vantagens, devem naturalmente ser suspeitos, não é? –
disse Edmund. – Para que se justifique a seus olhos, é preciso que ele o
faça na mais completa ignorância das vantagens que terá.
– Que! Ordenar-se sem ter meios! Não, isto é realmente loucura;
loucura absoluta.
– Posso então lhe perguntar o que será da igreja, sem nem com
meios nem sem meios o homem deve ordenar-se? Não, pois certamente
não saberia o que dizer. Mas do seu próprio argumento posso tirar
alguma vantagem para o pastor. Como ele não pode ser influenciado por
aqueles sentimentos que na sua opinião são classificados como tentação e
recompensa para o soldado ou marinheiro, ao escolherem suas carreiras,
pois que o heroísmo, o barulho, a moda, não lhe são permitidos, ele deve
estar menos sujeito à suspeita de não ser sincero ou bem intencionado na
sua escolha.
– Oh! Sem dúvida ele é muito sincero ao preferir uma renda já
pronta em vez de ter de trabalhar para a conseguir; e tem as melhores
intenções de não fazer mais nada até o fim da vida senão comer, beber e
engordar. É indolência, Mr. Bertram, isto é que é. Indolência e amor ao
bem estar; uma falta total de louvável ambição, de gosto pelas boas
companhias, ou de vontade de se dar ao trabalho de ser agradável, é o
que fazem os homens quererem entrar para o clero. Um pastor não tem
nada que fazer senão ser negligente e egoísta; ler os jornais, olhar para o
tempo e discutir com a mulher. Sua paróquia fará todo o trabalho e a
preocupação de sua vida é jantar.
– Existem, sem dúvida, pastores assim, mas creio que não são tão
comuns que justifiquem o juízo por Miss Crawford do seu caráter em
geral. Suspeito que nessa censura ampla e (posso dizer) geral, a
senhorita não está julgando por si mesma, mas por pessoas mal
informadas, cujas opiniões se habituou a ouvir. É impossível que com as
suas próprias observações ficasse conhecendo muito o clero. Do grupo de
homens que a senhorita tão decisivamente condena, talvez pessoalmente
tenha conhecido muito poucos. Está repetindo o que ouviu dizer em casa
de seu tio.
– Estou dizendo o que parecer ser opinião geral; quando a opinião é
geral, habitualmente é correta. Embora eu própria não esteja muito a par
da vida doméstica dos pastores, há muitíssimas pessoas que o estão para
que haja engano na informação.
– Quando se vê uma qualquer corporação de homens educados, de
qualquer denominação, condenados sem distinção, deve haver erro de
informação ou (sorrindo) de qualquer outra coisa. Seu tio e seus colegas
almirantes talvez não conhecessem do clero senão os capelães, os quais
bons ou maus eles sempre preferiam ver de longe.
– Pobre William! O capelão do “Antuérpia” foi muito bondoso para
ele – disse Fanny ternamente, falando de acordo com seus próprios
pensamentos senão com o ritmo da conversa.
– Eu tenho me guiado tão pouco pelas opiniões de meu tio – disse
Miss Crawford – que dificilmente poderia supor... E já que me obriga a
falar, posso afirmar que não estou inteiramente alheia ao que são os
pastores, visto que atualmente sou hóspede de meu próprio cunhado, Dr.
Grant. E embora ele seja muito bom e amável comigo, embora seja
realmente um cavalheiro, e, ouso dizer, muito erudito e inteligente, muito
respeitável, e faça muito bons sermões, vejo no entanto que é um
indolente, egoísta, “bom vivant”, cujo gosto tem de ser consultado em
todas as coisas; que não mexe um dedo pela conveniência de ninguém; e
que, além disso, se a cozinheira comete uma asneira, fica de mau humor
com a sua excelente mulher. Para falar a verdade, Henry e eu hoje mesmo
quase fomos expulsos por causa de um pato de que ele não gostou. Minha
pobre irmã teve que ficar e agüentar a tempestade.
– Não me admiro de sua desaprovação, garanto. É uma grande falta
de caráter, aumentada pelo mau hábito de só se ouvir a si mesmo; ver a
sua irmã sofrer por causa disso deve ser extremamente penoso para uma
pessoa com os seus sentimentos. Fanny, estamos derrotados, Não
podemos defender o Dr. Grant.
– Não, – respondeu Fanny – mas por causa dele não devemos
condenar a sua profissão; porque, qualquer que fosse a profissão
escolhida pelo Dr. Grant, ele seria o mesmo... Careceria de bom humor; e
como ele teria, tanto na marinha como no exército muito mais gente sob
seu comando do que a tem agora, creio que haveria muito mais infelizes
se ele fosse marinheiro ou soldado em vez de pastor. Além disso, não
posso senão supor que qualquer coisa em contrário que se pudesse
desejar no Dr. Grant correria o risco de ser tornar ainda pior numa
profissão mais ativa e positiva, na qual tivesse menos tempo e obrigações
– onde ele pudesse escapar àquele conhecimento de si próprio, a
freqüência, ao menos, daquele conhecimento na sua atual situação é
impossível escapar. Um homem – um homem sensato como o Dr. Grant,
não costuma ensinar os outros seus deveres de cada semana, não pode ir
à igreja duas vezes cada domingo e fazer tão bons sermões e com tão boa
disposição como ele os faz, sem ser ele mesmo beneficiado com isto. A
profissão obriga-o a meditar; e não duvido que ele como pastor se domine
muito mais freqüentemente do que se fosse outra coisa qualquer.
– Concordo que não podemos provar ao contrário; mas desejo-lhe
melhor sorte, Miss Price, do que ser esposa de um homem, cuja
amabilidade dependa de seus próprios sermões; pois, embora nos
domingos ele ficasse de bom humor influenciado pela própria oratória,
seria bastante desagradável ouvi-lo discutir por causa de comida desde
segunda feira de manhã até sábado à noite.
– Creio que se houver alguém capaz de brigar com Fanny, – disse
Edmund afetuosamente – não haverá sermões que o endireitem.
Fanny debruçou-se mais para a janela; e Miss Crawford só teve
tempo de dizer amavelmente:
– Suponho que Miss Price está mais acostumada a merecer elogios
do que a ouvi-los. – Neste momento, sendo insistentemente convidada
pelas Misses Bertram para tomar parte numa canção, ela se dirigiu para
o instrumento deixando Edmund a observá-la num êxtase de admiração
por todas as suas muitas virtudes, desde os seus modos cativantes até os
seus passos leves e graciosos.
– Ali vai um humor, excelente, não há dúvida – disse ele. – Ali está
um caráter que nunca fará ninguém sofrer! Como pisa bem! E com que
facilidade se sujeita à vontade dos outros! Não se faz de rogada. Que
pena, – acrescentou ele depois de um instante de reflexão – ter estado
entregue a tais mãos.
Fanny concordou e teve o prazer de o ver continuar na janela a seu
lado, apesar da esperada canção; e de ver, em seguida, seus olhos como
os dela, virados para a paisagem exterior, onde tudo que era solene,
suave e amável, se destacava no esplendor de uma noite límpida ao
contrastes das sombras espessas dos bosques. Fanny expandiu seus
pensamentos.
– Aqui há harmonia! – disse ela; – aqui se repousa! O que se vê aqui
não há pintura nem música capaz de igualar e somente a poesia poderia
tentar descrever! Eis o que pode tranqüilizar todos os espíritos e
transportar o coração para a felicidade! Como vejo uma noite linda como
esta, não posso acreditar que haja maldade nem tristeza no mundo; e
certamente haveria menos sofrimento se a sublimidade da natureza fosse
mais apreciada e se o povo se deixasse induzir a contemplar um cenário
como este.
– Aprecio o seu entusiasmo, Fanny. A noite está adorável e aqueles
que não aprenderam, de certo modo, a sentir as coisas como você as
sente, devem ser lastimados; aqueles que, pelo menos na infância, não
aprenderam a admirar a natureza. Eles não sabem o que perdem.
– Foi você, meu primo, quem me ensinou a pensar nessas coisas, e a
compreendê-las.
– Tive boa aluna. Lá está Arcturus brilhando muito.
– Sim, e ali a Ursa. Queria ver Cassiopeia.
– Só se fôssemos lá fora. Você tem medo?
– Absolutamente. Faz muito tempo que não olhamos para as
estrelas.
– É verdade, nem sei como foi isso. – A canção começou. –
Ficaremos aqui até que acabem de cantar, Fanny, – disse ele virando as
costas para a janela; e conforme a canção ia progredindo, ela teve a
tristeza de o ver avançar também, aproximando-se pouco a pouco do
instrumento. Quando terminou Edmund se achava ao lado dos cantores,
entre os que mais insistentemente pediam para ouvir novamente a
canção.
Fanny suspirou e permaneceu sozinha junto à janela até que Mrs.
Norris a obrigou a sair, advertindo-a asperamente de que se iria resfriar.

CAPÍTULO 12

Sir Thomas deveria regressar em novembro, mas o seu filho mais


velho tinha compromissos que o obrigavam à voltar mais cedo. Ao
aproximar-se o mês de setembro receberam notícias de Mr. Bertram:
primeiro numa carta para o guarda-caça e depois uma para Edmund; e
pelo fim de agosto, ele próprio chegou, alegre, agradável e galante
sempre que tinha oportunidade ou que Miss Crawford o reclamava; falar
de corridas e Weymount, festas e amigos, seriam coisas que, há seis
semanas atrás, ela teria ouvido com interesse; mas agora, a comparação
lhe trazia a convicção plena de sua preferência pelo irmão mais moço.
Era um transtorno e ela o sentia muito; mas assim era; e agora,
longe da idéia de casar-se com o mais velho, ela não desejava mais o
atrair do que exigia a sua vaidade; o tempo que esteve ausente de
Mansfield, sem outra coisa em vista senão o prazer, demonstrava
claramente que ele nunca se tinha interessado por ela e a sua indiferença
de tal modo se equiparava à dela própria, que até mesmo se ele naquele
momento entrasse na posse de Mansfield Park, herdando o título e tudo o
mais, o que oportunamente aconteceria, a moça estava certa de que não o
queria.
A estação e os compromissos que trouxeram Mr. Bertram de volta a
Mansfield, levaram também Mr. Crawford para Norfolk. Everingham em
setembro não podia lhe dispensar a presença. Ausentara-se por uma
quinzena – uma quinzena tão cheia de monotonia para as Misses Bertram,
que estas deveriam se pôr em guarda e mesmo Julia, enciumada da irmã,
deveria admitir a absoluta necessidade de desconfiar das atenções dele e
desejar que não mais voltasse; da mesma forma numa quinzena de ócio,
nos intervalos da caça e do sono, se ele se desse ao trabalho de examinar
os seus próprios sentimentos e refletir sobre o ponto para que o estava
levando a indulgência da sua vaidade sem escrúpulos, convencê-lo-ia de
que deveria afastar-se por mais tempo; mas descuidado e egoísta como o
tinham feito a prosperidade e o mau exemplo, ele não pensava senão no
presente. As duas irmãs, lindas, inteligentes e fáceis, eram um
divertimento para seu espírito saciado; e não encontrando em Norfolk
nada que equivalesse aos prazeres sociais de Mansfield, voltou com
alegria no tempo marcado e lá foi com igual prazer recebido por aquelas
com quem pretendia continuar a divertir-se.
Maria, tendo apenas Mr. Rushworth por companhia, condenada aos
repetidos detalhes do seu dia de caça, de sua gabolice sobre os
cachorros, sua inveja dos vizinhos, suas dúvidas sobre as qualidades dos
mesmos e seus cuidados por causa dos ladrões de caça, assuntos estes
que não afetam os sentimentos femininos, a não ser que haja ou algum
interesse nos mesmos ou alguma afeição por quem os conta, sentiu
cruelmente a falta de Mr. Crawford; e Julia, sem compromisso e sem ter
em que se ocupar, sentia-se no direito de ainda mais lamentar a falta
dele. Cada uma das irmãs julgava-se a preferida. Julia podia ser
justificada pelas insinuações de Mrs. Grant, propensa a acreditar no que
desejava, e Maria pelas insinuações do próprio Mr. Crawford. Tudo voltou
ao que era antes da sua ausência; seu procedimento com cada uma era
tão animado que não o deixava perder terreno de nenhum lado,
conservando-se, porém, numa atitude que não desse a perceber aos
demais a persistência, a solicitude e o ardor com que as cortejava ao
mesmo tempo.
Fanny era a única que não tinha com que se aborrecer; mas desde o
dia que passaram em Sotherton, não podia ver Mr. Crawford ao lado de
qualquer uma das primas sem que os observasse, e raras vezes sem
espanto ou censura; e tivesse ela confiança no próprio julgamento, se
estivesse certa de estar vendo claramente e julgando sem malícia,
provavelmente teria feito comunicações importantes ao seu usual
confidente. Assim sendo, porém, ela arriscou apenas uma sugestão e esta
mesma não surtiu efeito.
– Estou admirada – disse ela – de ver Mr. Crawford de volta tão
depressa, depois de ter passado tanto tempo aqui, bem umas sete
semanas; pois como ouvi dizer que ele não gosta de parar muito tempo no
mesmo lugar, pensei que, uma vez indo, haveria certamente de acontecer
qualquer coisa que o prendesse noutra parte. Ele está acostumado a viver
em lugares mais alegres que Mansfield.
– Tanto melhor para ele – respondeu Edmund; – e, acredito, para o
prazer da irmã. Ela não aprova a inconstância dele.
– Minhas primas têm por ele tal admiração!
– Sim, ele sabe agradar às mulheres. Mrs. Grant, segundo me
parece, suspeita de que ele goste de Julia; eu por mim nunca percebi
coisa alguma, mas desejaria que fosse verdade. Uma afeição séria
corrigiria os defeitos que ele tem.
– Se Miss Bertram não estivesse noiva, – disse Fanny
prudentemente – eu quase poderia pensar, às vezes, que ele a admirasse
mais do que a Julia.
– O que prova ele gostar mais de Julia do que você, Fanny, pode
saber: geralmente acontece que o homem, antes de se definir
inteiramente, agrada mais à irmã ou à amiga íntima da mulher que ele de
fato está gostando do que a esta propriamente; Crawford tem bastante
juízo para não permanecer aqui se sentisse que estava correndo algum
risco por causa de Maria; e da parte dela, não tenho o menor receio.
Fanny acreditou que estava enganada e fez tenção de pensar
diferentemente para o futuro; mas embora quisesse concordar com
Edmund e apesar das insinuações e troca de olhares que ocasionalmente
surpreendia nos outros, que pareciam dizer que Julia era a escolhida por
Mr. Crawford, ela nem sempre sabia o que pensar. Uma tarde,
casualmente, ouvindo uma conversa de sua tia Norris com Mrs.
Rushworth, não pôde deixar de se espantar com o que elas pensavam
sobre o assunto; por si, preferia não ser forçada a ouvir, pois nesta
ocasião todo o pessoal jovem estava dançando e ela permanecia, contra a
própria vontade, sentada entre as senhoras junto à lareira, impaciente
pela volta do primo mais velho, de quem dependiam as suas esperanças
de um par para a dança. Aquele era o primeiro baile a que Fanny assistia,
embora não tivessem havido os preparativos e os esplendores de um
primeiro baile de muita moça, pois que havia sido improvisado naquela
mesma tarde, com a descoberta de um violinista entre os empregados da
casa e a possibilidade de conseguirem cinco pares incluindo Mrs. Grant e
um amigo íntimo de Mr. Bertram que acabava de chegar. Fanny sentira-
se, contudo, muito feliz durante as quatro primeiras danças e não queria
perder nem um quarto de hora. Enquanto esperava e desejava, olhando
para os dançarinos, ora para a porta, foi forçada a ouvir o seguinte
diálogo entre as duas senhoras mencionadas acima:
– Creio minha senhora, – disse a tia Norris, o olhar dirigido para Mr.
Rushworth e Maria que dançavam juntos pela segunda vez – que agora
veremos rostos alegres novamente.
– Sim, é verdade, – respondeu a outra com um sorriso afetado – já
se pode olhar “agora” com alguma satisfação e eu acho que seria de fato
uma pena se eles fossem obrigados a desmanchar o noivado. Na situação
de ambos se deveria desculpar que seguissem as formalidade usuais.
Admiro-me de meu filho não o ter proposto.
– Acredito que o tenha feito, minha senhora. Mr. Rushworth é muito
brioso. Mas a minha querida Maria tem um senso tão positivo de decoro,
uma verdadeira delicadeza de sentimentos, como raramente se encontra
nos dias de hoje, Mrs. Rushworth. Prezada senhora, observe-lhe a
fisionomia neste momento; que diferença das duas últimas danças!
De fato, Miss Bertram parecia feliz, seus olhos brilhavam de prazer
e falava com grande animação, pois Julia com seu par, Mr. Crawford,
estava ao lado dela: estavam os quatro como que amontoados. Que
expressão tinha a fisionomia de Maria durante as outras contradanças,
Fanny não se recordava pois estivera, ela mesma, dançando com Edmund
e não se preocupara com a prima.
Tia Norris continuou:
– É um prazer, minha senhora, ver dois jovens tão felizes, tão bem
combinados! Só penso no contentamento de Sir Thomas. E que acha,
minha senhora, da possibilidade de um outro noivado? Mr. Rushworth
deu o bom exemplo e essas coisas são sempre contagiosas.
Mrs. Rushworth, que não via senão o filho, ficou desorientada.
– Aquele outro par, minha senhora. Não percebe nenhum sintoma
ali?
– Ah sim! Miss Julia e Mr. Crawford. Sim, de fato, é um belo par.
Qual é a situação dele?
– Tem quatro mil libras por ano.
– Muito bem. Quem não tem mais, deve se contentar com o que
tem. Quatro mil libras por ano é uma boa renda e ele parece ser um rapaz
muito distinto. Espero que Miss Julia seja muito feliz.
– Ainda não é coisa decidida, minha senhora. Apenas comentamos
entre nós. Mas não tenho muita dúvida de que se realizará. Ele cada dia
está se tornando mais particular nas suas atenções.
Fanny não pôde ouvir mais. Desviou a atenção da conversa pois Mr.
Bertram acabava de entrar na sala; e embora achasse que seria uma
grande honra ser convidada para dançar com o primo, teve esperança
que ele o fizesse. Tom dirigiu-se para a pequena roda onde ela se achava;
mas em vez de a convidar para dançar, puxou uma cadeira para perto e
começou a falar sobre o estado de um cavalo doente e da opinião do
cocheiro, de quem acabava de se separar. Fanny compreendeu que ele
não tinha intenção de dançar e na sua natural modéstia imediatamente
concordou que tinha sido pouco razoável na sua expectativa.
Quando Tom acabou de relatar o que havia com o cavalo, apanhou
um jornal e passando nele os olhos, disse entediado:
– Se você quiser dançar, Fanny, estou pronto a lhe fazer a vontade. –
o oferecimento foi recusado com toda a delicadeza; ela não queria dançar.
– Antes assim, – disse ele mais animado e atirando o jornal sobre a mesa –
porque eu estou morto de cansaço. Só me admiro que esta gente não se
canse. É preciso que estejam todos amando muito para achar
divertimento numa tal bobagem; acredito que estejam mesmo. Observe-os
e verá que cada um está mais apaixonado do que o outro – todos exceto
Yates e Mrs. Grant – e, aqui entre nós, ela, pobre mulher, precisava mais
de um amante do que qualquer dos outros. A vida dela com o doutor deve
ser da mais desesperada monotonia. – Ao dizer isto relanceou um olhar
malicioso para a cadeira do doutor; como, porém, o doutor estava
exatamente a seu lado, obrigou-o a mudar tão repentinamente de
expressão e assunto que Fanny, apesar de tudo não pôde deixar de rir-se.
– Um negócio estranho este da América, Dr. Grant! Qual é a sua opinião?
Sempre me dirijo ao senhor quando quero me informar sobre esses
assuntos.
– Meu caro Tom, – exclamou a tia logo depois – já que você não está
dançando, creio que não fará objeção em jogar conosco; quer? –
Levantando-se chegou para perto dele a fim de o convencer,
acrescentando baixinho. – Queremos distrair Mrs. Rushworth, sabe? Sua
mãe está aflita, mas ela mesmo não pode perder tempo porque tem que
acabar a franja de crochet que está fazendo. No entanto, você, eu e o Dr.
Grant poderíamos jogar um pouco; e embora nós joguemos apenas meias
coroas, você e ele poderão apostar até meio guinéu.
– Teria muito prazer, – respondeu ele alto e pulando da cadeira todo
animado – gostaria muitíssimo; mas é que neste momento vou dançar.
Venha Fanny, – disse puxando-a pela mão – não perca mais tempo senão a
dança acaba.
Fanny o acompanhou de boa vontade, embora lhe fosse impossível
sentir muita gratidão pelo primo, ou fazer distinção, como ele certamente
fazia, entre o egoísmo de outra pessoa e o seu próprio.
– Um pedido bastante modesto, palavra de honra! – exclamou ele
indignado, quando se afastavam. – Pretender que eu fique preso numa
mesa de jogo durante duas horas com ela e o Dr. Grant, que estão sempre
brigando, e com aquela velha sorumbática, que entende tanto de cartas
quanto de álgebra. Era melhor que minha tia não fosse tão solícita! E
ainda por cima, me convidar de tal maneira! Sem a menor cerimônia, à
vista de todos, para que eu não tivesse jeito de recusar. É o que eu mais
detesto. Não há nada que me contrarie mais do que me convidarem por
fingimento, e ao mesmo tempo ser abordado de tal maneira que não
possa deixar de aceitar, seja lá para o que for! Se eu não tivesse tido a
feliz idéia de ficar ao seu lado, não teria podido escapar desta. É muita
perversidade. Mas quando minha tia mete uma idéia na cabeça não há
quem possa com ela.

CAPÍTULO 13
O novo amigo, o ilustre John Yates, não tinha muito que
recomendasse além dos hábitos de sociedade e de ser o filho mais moço
de um lorde com relativa independência; Sir Thomas provavelmente não
teria aprovado de forma alguma a sua apresentação em Mansfield. Mr.
Bertram travara relações com ele em Weymount, onde, durante dez dias,
tinham freqüentado a mesma sociedade e amizade, se amizade podia se
chamar, tinha-se estabelecido e consolidado com o convite feito a Mr.
Yates de passar por Mansfield quando tivesse oportunidade, e ele
apareceu até muito mais cedo do que era de esperar, em conseqüência de
se ter dissolvido um grande grupo ao qual se juntara ao sair de Weymount
e que se reunira em casa de outro amigo. Veio muito desapontado e com a
cabeça cheia de idéias de teatro, pois o divertimento da reunião tinha
sido ensaiar cenas teatrais. A peça em que ele tomava parte devia ser
representada dali a dois dias, quando a morte repentina de um dos
parentes mais próximos da família destruiu o projeto e dispersou os
atores. Estar tão perto da felicidade, tão perto da fama, tão próximo de
um longo artigo elogiando os amadores de Ecclesford, que naturalmente
imortalizaria todo o grupo por no mínimo doze meses! E estando assim
tão próximo, perder tudo, era uma injustiça das mais cruéis. Yates não
sabia falar de outra coisa. Ecclesford com o teatro, os preparativos e
vestuários, ensaios e pilhérias, era o seu assunto interminável e o consolo
era contar vantagem do passado.
Felizmente para ele, o gosto pelo teatro é tão geral, o desejo de
representar tão forte entre as pessoas jovens, que ele podia falar à
vontade sem cansar os ouvintes. Desde o início da combinação das partes
até o epílogo, tudo era fascinante e poucos havia que não tivessem
desejado tomar parte na representação, ou que hesitassem experimentar
seus talentos. A peça escolhida tinha sido a “Lover’s Vows” (Juras de
Amor), e Mr. Yates faria o papel de Conde Cassel.
– Um papel muito insignificante – disse ele – de que eu não gostei
absolutamente e que certamente não aceitaria de novo; mas estava
disposto a não criar dificuldades. Lorde Ravenshaw e o duque, quando eu
cheguei em Ecclesford, já se tinham apropriado dos dois únicos papéis
que valiam a pena representar; e embora Lorde Ravenshaw se oferecesse
para me ceder o seu papel, era impossível aceitar, vocês sabem. Tinha
pena dele por ter se enganado tanto no julgamento de suas capacidades,
pois se assemelhava tanto ao Barão como... – é um homenzinho com uma
voz muito fraca, sempre rouco depois dos primeiros dez minutos.
Materialmente deveria estragar a peça; eu porém tinha resolvido não
fazer as coisas difíceis. Sir Henry achou que o duque não podia
representar o papel de Frederico, mas o caso é que Sir Henry queria o
papel para si próprio; no entanto o papel estava em boas mãos.
Surpreendeu-me ver como Sir Henry é obstinado. Felizmente a força da
peça não dependia dele. A nossa Agatha era incomparável e muitos
acharam o duque muito bom. No todo, a peça certamente seria levada
admiravelmente.
“Foi um caso sério, palavra”; e “Concordo que os senhores foram
realmente dignos de pena”, eram as simpáticas manifestações dos
ouvintes.
– Não vale a pena lastimar; mas por certo a velha megera não
poderia ter morrido em pior ocasião. Era impossível não se desejar que a
notícia fosse abafada por mais três dias. Apenas três dias; e afinal de
contas, era apenas a avó, e a morte, tendo ocorrido a trezentos e tantos
quilômetros de distância, creio que não haveria grande prejuízo. Sei até
que houve quem sugerisse isso; mas Lorde Ravenshaw, que é, suponho
eu, um dos homens mais corretos da Inglaterra, não quis saber de tal
história.
– Uma tragédia em vez de comédia – disse Mr. Bertram. – “Juras de
Amor” posta de lado e Lorde Ravenshaw e senhora representando “Minha
Avó” em família. Bem, a herança o deve consolar; e, entre nós ele já
estivesse temendo o fracasso e os pulmões no papel do Barão e até tenha
gostado de acabar com o brinquedo; e para você não ficar triste, Yates,
proponho fazermos um pouco de teatro aqui em Mansfield e o convido
para nos dirigir.
Isto, embora fosse idéia de momento, não terminou ali; pois a
disposição para representar tinha despertado em todos e em ninguém
com mais força do que nele próprio, que agora era o chefe da casa; tão
poucas eram suas preocupações, que encontrava prazer em qualquer
novidade; e além disso tinha um talento e um gosto para coisas cômicas
que se adaptava exatamente à novidade de representar. A idéia se repetiu
freqüentes vezes. – Oh, poder fazer uma experiência como a de
Ecclesford! – As duas irmãs foram logo a favor; e Henry Crawford para
quem em todo o tumulto de seus prazeres, este era ainda desconhecido,
ficou animadíssimo com a idéia.
– Acredito sinceramente – disse ele – que neste momento estou
suficientemente louco para fazer qualquer papel jamais escrito, desde
Shylock ou Ricardo III até ao trovador de uma farsa, com sua capa
escarlate e chapéu de pena. Sinto que poderia representar qualquer coisa
ou todas as coisas; que poderia declamar, ou suspirar, ou dizer tolices em
qualquer tragédia ou comédia escrita em língua inglesa. Vamos fazer
qualquer coisa. Que seja a metade de uma peça, um ato, uma cena
apenas; que é que nos impede? Não há de ser por causa desses
semblantes, acrescentou virando-se para Miss Bertram. E quanto ao
teatro, que significa um teatro? Vamos apenas nos divertir. Qualquer sala
desta casa serve.
– Precisamos de uma cortina – disse Tom Bertram; – alguns metros
de feltro verde para fazer um pano e talvez seja o bastante.
– Ora, mais que suficiente! – exclamou Mr. Yates, – com apenas um
bastidor ou duas saídas, e três ou quatro cenários para trocar; não se
precisaria mais nada para uma representação como esta. Para nos
divertirmos entre nós mesmos, não precisamos de mais nada.
– Acho que até com menos ficaríamos satisfeitos – disse Maria. –
Não se tem muito tempo e poderiam aparecer outras dificuldades.
Devíamos de preferência adotar a idéia de Mr. Crawford e fazer apenas
um representação, e não um teatro. Muitas partes das nossas melhores
peças são independentes de cenários.
– Nada disso – disse Edmund que começava a ficar alarmado. – Não
devemos fazer nada pela metade. Se temos que representar, que seja num
teatro completamente instalado com ponto, camarote a galerias e com
uma peça completa do princípio ao fim; que seja uma boa peça alemã,
não importa qual, com uma cena final bem frívola, artificial, e um número
de dança, com gaita de fole e uma canção nos intervalos. Se não fizermos
mais do que Ecclesford, não faremos nada.
– Ora, Edmund, não seja implicante – disse Julia. – Ninguém gosta
mais de teatro do que você.
– Realmente, mais para ver teatro de verdade, para ver uma boa
peça bem representada; mas por coisa alguma me abalaria desta sala
para a sala pegada para assistir aos esforços de gente inexperiente que
não nasceu para o ofício; um grupo de cavalheiros e senhoras que teriam
de lutar contra todas as desvantagens da educação e do decoro.
Depois de um intervalo, porém, o assunto ainda persistia e foi
discutido com o mesmo entusiasmo, o interesse de cada um aumentando
com a discussão e o conhecimento do interesse dos outros; embora nada
ficasse estabelecido senão que Tom Bertram preferia uma comédia e as
irmãs e Henry Crawford preferiam drama e que nada seria mais fácil do
que encontrar uma peça que satisfizesse a todos, a resolução de
representarem qualquer coisa parecia tão decidida, que Edmund se
sentiu embaraçado. Estava resolvido a impedir, se possível, que levassem
a idéia avante, apesar de sua mãe, que igualmente ouvia a conversa, não
mostrar a mínima desaprovação.
Naquela mesma noite teve oportunidade de experimentar sua
autoridade. Maria, Julia, Henry Crawford e Mr. Yates estavam na sala de
bilhar. Tom, ao voltar para a sala de visitas, onde Edmund se achava
pensativamente junto à lareira, enquanto Lady Bertram no sofá, um
pouco distante, com Fanny a seu lado, se ocupava de um trabalho
qualquer, foi dizendo logo à entrada:
– Uma mesa de bilhar tão horrivelmente abjeta como a nossa não
deveria existir. Não a suporto mais, e acho, posso dizer, que nada me
induzirá a aproximar-me dela de novo; mas de uma coisa estou certo:
aquela é exatamente a sala indicada para um teatro, precisamente da
forma e do comprimento para isto; e as portas do fundo, comunicando
uma com a outra, como se arranjará em cinco minutos, unicamente com a
remoção da estante de livros no gabinete de papai, é perfeita para o que
nós queremos. Se ao menos tivéssemos chegado a um acordo! E o
gabinete de papai seria um excelente bastidor. Parece que está de
propósito ao lado da sala de bilhar.
– Você não está levando a sério, Tom, esta idéia de representação? –
disse Edmund em voz baixa quando o irmão se aproximou da lareira.
– Se estou levando a sério! Nunca estive tão sério, posso lhe
assegurar. Por que você se surpreende tanto com isto?
– Acho que seria um grande erro. Num ponto de vista geral, as
comédias de salão já estão sujeitas a muitas objeções, mas nas
circunstâncias em que nos achamos, acho que seria a maior falta de juízo,
mais do que falta de juízo, tentar qualquer coisa neste gênero. Seria
mostrar uma grande falta de respeito a papai, estando ele ausente e por
assim dizer em constante perigo; além disso, seria imprudente, parece-
me com respeito a Maria, cuja situação é muito delicada, – considerando
tudo, – extremamente delicada.
– Você leva tudo tão a sério! Como se nós fôssemos representar três
vezes por semana até papai voltar e convidar toda a vizinhança. Mas não
se pretende fazer uma exibição desta espécie. Não queremos senão nos
divertir entre nós mesmos, apenas para variar um pouco e experimentar
nosso talentos em alguma coisa nova. Não queremos nem assistência nem
publicidade. Acho que teremos bom senso suficiente para escolher
alguma peça que seja perfeitamente irrepreensível; e não concebo maior
prejuízo ou perigo para qualquer de nós conversar na linguagem elegante
escrita por qualquer autor respeitável em vez de tagarelarmos com
nossas próprias palavras. Não tenho receios nem escrúpulos. E quanto ao
fato de papai estar ausente, está tão longe de ser uma objeção que não a
considero um obstáculo; até ao contrário, esse período de ansiedade por
que mamãe está passando até ele chegar, deve ser horrível para ela; se
nós pudermos distrai-la um pouco dessa ansiedade e manter o seu ânimo
erguido durante essas duas semanas que faltam, acho que nosso tempo
terá sido bem empregado e estou certo que o será. É um período de
grande inquietação para ela.
Ao dizer isto, ambos olharam para a mãe. Lady Bertram, afundada
num dos cantos do sofá, perfeita imagem da saúde, opulência, bem estar
e tranqüilidade, estava começando a cochilar docemente, enquanto Fanny
se incumbia do trabalho dela.
Edmund sorriu e sacudiu a cabeça.
– Por Júpiter! Isto não adianta – exclamou Tom jogando-se numa
cadeira com uma risada. – Para falar a verdade, minha boa mãe, a sua
ansiedade – qual, não tive sorte.
– Que foi? – perguntou ela com a voz abafada de quem está meio
dormindo. – Eu não estava dormindo, não.
– Oh não, querida mamãe, ninguém está dizendo isto! Bem Edmund,
– continuou ele, voltando ao assunto, à atitude e à voz anterior, logo que a
mãe recomeçou o cochilo – mas uma coisa eu mantenho: é que não
havemos de fazer nada que possa causar qualquer dano.
– Não concordo com você; estou convencido de que papai não
aprovaria a idéia de forma alguma.
– Pois estou convencido do contrário. Ninguém tem mais gosto em
exercitar o talento das pessoas jovens e estou certo que ele sempre
demonstrou prazer por qualquer coisa no gênero de representações,
declamações e recitações. Quando nós éramos criança ele era o primeiro
a nos animar para essas coisas. Quantas vezes choramos sobre o cadáver
de Julio César nesta mesma sala, para divertimento dele?
– Mas aquilo era muito diferente. Você mesmo sabe que era
diferente. Papai queria que nós, como estudantes, falássemos bem, mas
nunca desejaria ver suas filhas moças representando peças de teatro.
Sabe como ele é severo nestas questões de decoro.
– Sei tudo isto, – disse Tom aborrecido – conheço papai tão bem
quanto você; e terei o cuidado de ver que as filhas dele não façam nada
que o possam contrariar. Cuide de seus próprios interesses e deixe o
resto da família por minha conta.
– Se você está resolvido a representar, – insistiu Edmund – espero
ao menos que o faça de modo ligeiro e quietamente; e sou de opinião que
não deviam pensar em fazer um teatro. Seria tomar liberdades com a
casa na ausência de papai, o que não se justifica.
– Assumo a responsabilidade por tudo o que acontecer – disse Tom
decidido. – A casa não será maculada. Meu interesse em cuidar desta
casa é tão grande quanto o seu; e quanto às alterações que acabei de
sugerir, tais como remover uma estante ou abrir uma porta, ou mesmo
usar a sala de bilhar durante uma semana para outro fim, você podia do
mesmo modo supor que papai fizesse objeção a que nós
permanecêssemos mais nesta sala do que na sala de almoço como
fazíamos antes dele partir, ou que o piano de minha irmã fosse removido
de um lado da sala para o outro. Tolices!
– A inovação, se não é um erro como inovação, sê-lo-á pela despesa.
– Sim, a despesa de um tal empreendimento seria prodigiosa!
Talvez não custe ao todo umas vinte libras. Alguma coisa que se pareça
com um teatro teremos que arranjar, isto não há dúvida, mas será tudo
muito simples; uma cortina verde e algum trabalho de carpintaria e é
tudo; e como o trabalho de carpintaria pode ser todo feito aqui mesmo
por Christopher Jackson, é até absurdo falar em despesa; contanto que
empreguemos Jackson, Sir Thomas não terá nada a dizer. Não imagine
que ninguém nesta casa possa ver ou julgar senão você. Você próprio não
precisa tomar parte, se não quiser, mas não queira governar os outros.
– Não, e quanto a eu mesmo representar, – disse Edmund – a isto eu
sou absolutamente contra.
Tom saiu da sala deixando Edmund sentado junto à lareira,
mergulhado em profunda meditação.
Fanny que ouvira tudo e que estava de acordo com Edmund, através
de toda a discussão, tentou neste momento confortá-lo dizendo:
– Talvez eles não consigam encontrar nenhuma peça que lhes sirva.
As opiniões de seu irmão e as de suas irmãs parecem muito diferentes.
– Não tenho esperança neste ponto, Fanny. Se eles persistirem no
projeto, acabarão encontrando alguma coisa. Falarei com minhas irmãs e
tentarei dissuadi-las. É tudo que posso fazer.
– Tenho para mim que a tia Norris ficará de seu lado.
– Acredito que sim, mas ela não tem bastante influência nem com
Tom nem com minhas irmãs para poder conseguir alguma coisa; e se eu
mesmo não conseguir convencê-los, deixarei que as coisas tomem seu
rumo, sem pedir a interferência dela. Briga de família é a maior desgraça
que há e é melhor que se faça alguma coisa do que depois ter de puxar as
orelhas.
As irmãs, a quem ele falou na manhã seguinte, se mostraram
inteiramente solidárias com Tom. A mãe não fazia objeção ao projeto e
elas não tinham o menor receio da desaprovação do pai. Não poderia
haver mal numa coisa que tinha sido feita em casa de tantas famílias
respeitáveis e por tantas senhoras da melhor sociedade; e devia ser
excesso de escrúpulos ver alguma coisa que censurar num plano como o
deles, em que só eram incluídos irmãos, irmãs e amigos íntimos e que
nunca passaria deles mesmos. Julia, achou que de fato a situação de
Maria poderia exigir certo cuidado e delicadeza – mas ela não tinha nada
com isto – ela era livre; e Maria evidentemente considerava que seu
noivado, ao contrário, a elevava muito acima de qualquer
constrangimento e dava-lhe mais direito do que a Julia, de consultar pai
ou mãe. Edmund tinha pouca esperança mas continuava a discutir o
assunto quando Henry Crawford entrou na sala exclamando:
– Já não nos falta auxílio para o nosso teatro, Miss Bertram. Já
temos reforços; minha irmã manda lembranças e espera ser admitida na
companhia, e se sentirá feliz se lhe derem o papel de qualquer velha ama
ou dócil confidente, que as senhoritas mesmas não queiram desempenhar.
Maria lançou um olhar para Edmund que significava “E agora o que
diz? Será que ainda estamos errados, se Mary Crawford pensa como
nós?” E Edmund, obrigado a calar-se, teve que reconhecer que a sedução
do teatro era capaz de fascinar até os gênios; e na ingenuidade de seu
amor, apoiou-se mais na delicadeza e gentileza do recado do que em
qualquer outra coisa, para acomodar seus escrúpulos.
O projeto progredia. Oposição era inútil; e quanto a Mrs. Norris ele
se enganara pensando que faria alguma coisa. Não opunha dificuldades
que não fossem em cinco minutos dissuadidas por seus sobrinhos mais
velhos, que tinham toda a força contra ela. E como o empreendimento só
traria pequena despesa para todos e nenhuma para si própria, como
previa no projeto um mundo de consolo na pressa, barulho e importância,
e deduzira a vantagem imediata de imaginar-se obrigada a deixar sua
própria casa, onde estava vivendo há um mês à sua própria custa e
hospedar-se no Park, a fim de ficar à disposição deles, Mrs. Norris sentiu-
se, de fato, excessivamente encantada com o projeto.

CAPÍTULO 14

Fanny estava mais próxima de acertar do que Edmund o supunha.


A dificuldade de encontrar uma peça que estivesse de acordo com o gosto
de todos não foi pequena; o carpinteiro, depois de receber as ordens e
tomar as medidas, depois de sugerir e remover no mínimo duas séries de
dificuldades e mostrar a necessidade de um aumento do plano e das
despesas, já se pusera a trabalhar e, enquanto isso, a peça ainda estava
por escolher. Outros preparativos também estavam sendo feitos. Um
enorme rolo de feltro verde chegara de Northamton e estava sendo
cortado por Mrs. Norris (economizando, com a sua habilidade, bem uns
três quartos de metro), para ser costurado pelas empregadas e se
transformar numa cortina; a peça ainda faltava, porém; e como se
passaram dois ou três dias nesta indecisão, Edmund começou a ter
esperanças de que não viessem jamais a entrar em acordo.
Existiam, realmente, tantas coisas que precisavam resolver, tanta
gente para agradar, tanta exigência de melhores papéis e, acima de tudo,
a necessidade de que a peça fosse ao mesmo tempo tragédia e comédia,
que parecia pouca possibilidade de chegarem a se decidir sobre qualquer
uma.
Os adeptos da tragédia eram Misses Bertram, Henry Crawford e
Mr. Yates; da comédia, Tom Bertram, não inteiramente sozinho, porque
evidentemente Mary Crawford, embora por delicadeza não o
demonstrasse, estava inclinada para o mesmo lado; mas a determinação e
o prestígio dele dispensavam aliados; e, independente desta grande e
irreconciliável diferença, queriam unanimemente uma peça que entrasse
o menor número de personagens, mas todos em papéis de importância e
três mulheres como protagonistas. As melhores peças foram todas
estudadas inutilmente. Nem “Hamlet”, nem “Macbeth”, nem “Otelo”, nem
“Douglas”, nem “O Jogador”, apresentavam qualquer coisa que pudesse
satisfazer até mesmo os trágicos; e “Os Rivais”, “A Escola de Escândalos”,
“Roda da Fortuna”, “Herdeiro por Lei” e muitos etceteras foram
sucessivamente postas de lado ainda com as maiores objeções. Não se
propunha uma peça que não aparecesse alguém com alguma dificuldade
e de um lado ou de outro era uma ladainha contínua de “Oh, não, esta
não serve de jeito nenhum! Não queremos tragédias. Esta tem
personagens demais. Esta não tem nenhum papel feminino que seja
tolerável. Qualquer outra menos esta, meu caro Tom. Esta não se pode.
Não se pode esperar que alguém queira desempenhar tal papel. Nada
senão palhaçada do princípio ao fim. Esta talvez servisse, se não fossem
os personagens inferiores. Se aceitam minha opinião, nunca vi na língua
inglesa uma peça mais insípida, mas não faço objeção; terei muito prazer
em ser útil, mas acho que não poderíamos fazer pior escolha”.
Fanny via e ouvia, divertida em observar o egoísmo que, mais ou
menos disfarçado, parecia governar a vontade de todos e estava de ver
como acabaria. Para seu próprio benefício se tudo não fosse contra, ela
deveria desejar que qualquer coisa fosse representada, pois nunca havia
assistido nem à metade de uma peça.
– Isto assim não vai – disse Tom Bertram finalmente. – Estamos
perdendo tempo da maneira mais abominável. É preciso resolver de
alguma maneira. Seja lá o que for, contanto que se escolha qualquer
coisa. Não devemos ser tão exigentes. Alguns personagens a mais não
nos devem assustar. Podemos fazer papéis duplos. Não podemos querer
só desempenhar papéis importantes. Se um papel é insignificante, maior
será nosso mérito em tirar partido dele. Daqui em diante não porei mais
dificuldades. Aceito qualquer papel que escolherem para mim, contanto
que seja cômico. Que seja apenas cômico, não imponho outra condição.
Pela quinta vez ele então propôs “Herdeiro por Lei”, ficando
somente na dúvida se preferia para si o papel de Lorde Duberley ou o do
Dr. Pangloss; e muito seriamente mas com pouco êxito, tentou persuadir
os outros de que havia várias partes bastante trágicas no resto da peça.
O silêncio que seguiu a esse esforço infrutífero foi interrompido
pelo próprio orador, que, apanhando um dos muitos volumes de teatro
que se achavam sobre a mesa, exclamou de repente:
– “Juras de Amor”! E porque “Juras de Amor” não há de servir para
nós como serviu para os Ravenshaws? Como é que nunca pensamos nela?
Que dizem vocês? Nela temos duas partes trágicas excelentes para Yates
e Crawford, e o papel do poeta Butler para mim, caso ninguém o queira
desempenhar; um papel insignificante mas no gênero que não me
desgostaria e, como disse antes, estou resolvido a aceitar qualquer coisa
e desempenhá-la o melhor que puder. E quanto aos outros personagens,
podem ser desempenhados por qualquer pessoa. Restam somente os
papéis de Conde Cassel e Anhalt.
A sugestão foi bem recebida. Já estavam ficando cansados daquela
indecisão e a primeira idéia foi que nada havia sido proposto que tão bem
satisfizesse a todos. Mr. Yates, principalmente, estava satisfeitíssimo: em
Ecclesford ele havia suspirado por fazer o papel de Barão, invejara o
papel de Lorde Ravenshaw e fora obrigado a guardar suas queixas para si
mesmo. Declamar o papel do Barão Wildnheim era a sua maior ambição
teatral; e com a vantagem de já saber de cor metade das cenas, ele agora
já se oferecia com a maior presteza para desempenhar aquela parte.
Fazendo-lhe justiça, ele não se apropriou logo do papel; pois, lembrando-
se que havia também diálogos muito bons no papel de Frederico,
demonstrou igual boa vontade para o desempenhar. Henry Crawford
estava pronto a aceitar qualquer um. Qualquer um dos dois papéis que
Mr. Yates não quisesse, seria excelente para ele, e seguiu-se a essa
declaração uma troca de amabilidades e cumprimentos. Miss Bertram
calculando os seus próprios interesses se lhe dessem o papel de Agatha,
resolveu tomar a si o encargo de decidir a questão, observando a Mr.
Yates que aquele era um caso em que a altura e a aparência física
deveriam ser levadas em conta, por isso que sendo ele o mais alto dos
dois, ficaria melhor no papel do Barão. Reconheceram que ela tinha toda
a razão e os dois papéis assim distribuídos ela ficava segura quanto à
pessoa que faria Frederico. Três personagens estavam escolhidos além do
que seria representado por Mr. Rushworth, pelo qual Maria se
responsabilizava que aceitaria qualquer um; porém Julia, pretendendo
como a irmã fazer o papel de Agatha, começou a manifestar escrúpulos a
respeito de Miss Crawford.
– Não estamos nos portando muito bem para com a ausente – disse
ela. – Os papéis femininos não são suficientes. O de Amélia e Agatha
podem ser desempenhados por Maria e por mim, mas que papel vamos
dar para sua irmã, Mr. Crawford?
Mr. Crawford pediu que não se preocupassem com isso; sua irmã
não estava assim tão interessada em representar, apenas estava disposta
a tomar parte, caso isso fosse preciso e ele tinha certeza de que ela não
permitiria que a considerassem no presente caso. Porém isso foi
imediatamente contraditado por Tom Bertram, que declarou ser o papel
de Amélia, em todos os sentidos, o indicado para Miss Crawford, se ela o
aceitasse.
– Ele calha tão natural e necessariamente para ela, – disse o rapaz –
quanto o de Agatha para uma ou outra das minhas irmãs. Nenhuma das
duas fará sacrifício, visto que o papel é extremamente cômico.
Seguiu-se um curto silêncio. Ambas as irmãs estavam ansiosas, pois
cada uma se sentia no direito de desempenhar a parte de Agatha, mas
esperava que os outros o dissessem. Henry Crawford, que neste ínterim
apanhara a peça e aparentemente descuidado folheava o primeiro ato,
logo resolveu a situação.
– Aconselho Miss Julia a não desempenhar o papel de Agatha. Do
contrário ela arruinará toda a minha solenidade. A senhorita não deve
fazer, realmente não o deve. Não poderia resistir à sua fisionomia
transformada em tristeza e palidez. As risadas que demos juntos
infalivelmente me viriam à cabeça, e Frederico e a sua mochila teriam de
sair correndo.
Falara com delicadeza, jovialmente; mas para os sentimentos de
Julia a maneira nada significava. Percebeu que ele com os olhos se
entendera com Maria, o que confirmava a ofensa feita a ela própria;
aquilo fora planejado, era uma farsa; ela tinha sido iludida, Maria era a
preferida; o sorriso de triunfo que Maria tentava reprimir mostrava quão
bem fora compreendida; e antes que Julia pudesse protestar, o irmão
também se manifestou contra ela, dizendo:
– Oh sim! Maria deve ser Agatha. Maria fará melhor o papel.
Embora Julia imagine que prefere papéis trágicos, não confiaria muito
nela. Ela não tem nada de trágica, nem tem aparência para isso. Não tem
as feições trágicas, caminha e fala depressa demais e além disso não sabe
ficar séria. Ela faria melhor o papel da velha aldeã, a mulher do
camponês; realmente esse é o papel que serve para você, Julia. É uma
parte muito bonita, pode crer. A velha abranda a altivez do marido com
muito espírito. Pois você fará o papel da mulher do camponês.
– A mulher do camponês! – exclamou Mr. Yates. – Que está dizendo?
A parte mais insignificante, mais trivial; da mais acabada vulgaridade!
Nenhum diálogo que se aproveite! E fazer sua irmã desempenhar tal
papel! É até um insulto fazer essa proposta. Em Ecclesford seria a
governanta quem o desempenharia. – Todos concordaram em que não
poderia ser oferecido a ninguém mais. – Um pouco mais de justiça, faça
favor, senhor empresário. Não merece o lugar se não tem capacidade
para julgar melhor os talentos da sua companhia.
– Quanto a isto, meu caro, até que eu e a minha companhia
cheguemos realmente ao ponto de representar, ainda tem que haver
muita conjectura; mas não tive a intenção de ofender Julia. Não podemos
ter duas Agathas e precisamos de uma mulher para o camponês; e creio
que eu mesmo dei o exemplo ficando com o papel do velho mordomo. Se a
parte é insignificante, mais mérito ela terá por fazê-la sobressair; e se
está tão desesperadamente contra tudo que é cômico, que faça então a
parte do próprio camponês em vez da mulher. Ele é solene e bastante
patético sem dúvida. Não faria a menor diferença para a peça e quando
tivessem que aparecer juntos eu mesmo não faria questão de me
encarregar do diálogo da mulher.
– Assim mesmo, – disse Henry Crawford – não seria possível adaptar
o papel para sua irmã e seria injusto que ela fosse obrigada a
desempenhá-lo. Não podemos permitir que aceite essa parte. Seus
talentos farão falta para o papel de Amélia. Amélia é uma personagem
mais difícil de ser representada que a própria Agatha. Considero Amélia a
personagem mais difícil de toda a peça. Requer grande talento, grande
sutileza para lhe dar graça e simplicidade, sem extravagância. Já vi boas
atrizes falharem nesta parte. A simplicidade está, na verdade, fora do
alcance de quase todas as atrizes profissionais. Requer uma delicadeza de
sentimentos que elas não têm. Requer uma fidalga – uma Julia Bertram. A
senhorita o desempenhará, não? – dirigiu-se à moça com um olhar de
ansiosa solicitude, o que a abrandou um pouco. Mas enquanto Julia
hesitava no que deveria dizer, o irmão novamente se interpôs com os
direitos de Miss Crawford.
– Não, não, Julia não pode ser Amélia. Não serve para ela, que,
aliás, não gostaria desta parte. Não a faria bem. Ela é muito alta e
robusta, e Amélia deve ser uma pessoa pequena, esbelta e viva. O papel é
próprio para Miss Crawford e unicamente para ela. Miss Crawford
estudará o papel e estou certo de que o desempenhará admiravelmente.
Sem prestar atenção, Henry Crawford continuava a sua súplica.
– Deve nos fazer a vontade, dizia ele, depois que tiver estudado a
personagem, tenho certeza que vai gostar do papel. Talvez goste mais dos
papéis trágicos mas não há dúvida de que a comédia lhe convém melhor.
A senhorita terá que me visitar na prisão levando uma cesta de provisões;
por certo não se recusará a me visitar na prisão? Parece que a estou
vendo chegar com a sua cesta.
A influência de sua voz se fazia sentir. Julia hesitava; mas estaria ele
apenas tentando apaziguá-la e fazê-la esquecer a ofensa anterior? Não
confiava nele. O seu desprezo fora bastante evidente. Ele estava, talvez,
apenas, a fazê-la de boba. Olhou desconfiada para a irmã; a fisionomia de
Maria havia de decidir: se ela estivesse preocupada, alarmada... Porém
Maria estava muito serena, satisfeita, e Julia sabia perfeitamente que,
naquele terreno, Maria só poderia estar feliz à sua custa. Indignada,
portanto, e com a voz trêmula ela disse:
– O senhor não parece ter receio de perder a seriedade quando eu
entrar com a cesta de provisões embora pense... Mas somente como
Agatha é que eu havia de ser irresistivelmente cômica! – Calou-se.
Henry Crawford ficou olhando-a desconcertado, sem saber o que
dizer. Tom Bertram novamente insistiu:
– Miss Crawford deve ser Amélia. Será uma Amélia excelente.
– Não tenha receio de que eu queira desempenhar o papel –
exclamou Julia furiosa. – Se não fizer o papel de Agatha, não farei
nenhum outro; e quanto ao de Amélia, é de todos os papéis o que mais
desgosto. Detesto-o. Uma pequena odiosa, mesquinha, afetada e
imprudente. Eu sempre fui contra a comédia e esta parte é comédia nos
seus piores aspectos. – E assim dizendo saiu apressadamente da sala,
deixando mais de uma pessoa embaraçada, porém inspirando pouca
compaixão a todos, exceto a Fanny, que tendo ouvido calada toda a
conversa, não poderia ver a prima sob a agitação do ciúme, sem sentir
grande piedade.
Depois que ela saiu ficaram por um momento em silêncio; mas logo
o irmão voltou ao assunto, e estudando a peça com grande interesse, com
o auxílio de Mr. Yates, procurava saber de que cenários iriam precisar,
enquanto Maria e Henry Crawford conversavam em voz baixa e a
aparente sinceridade com que ela declarou:
– Estou certa de que desistiria de boa vontade do papel em favor de
Julia, mas é que, embora eu provavelmente o desempenhe muito mal,
estou persuadida de que Julia o faria muito pior – sem dúvida lhe valeu os
cumprimentos que desejava.
Finalmente o grupo se dividiu; Tom Bertram e Mr. Yates saíram
juntos para deliberarem sobre outras coisas na sala que já começara a ser
chamada “o teatro” e Miss Bertram resolveu ir pessoalmente ao
Presbitério oferecer pessoalmente o papel de Amélia a Miss Crawford;
Fanny permaneceu sozinha.
A primeira coisa que fez logo que ficou só, foi pegar o volume que
ficara sobre a mesa e começar a familiarizar-se com a peça que já ouvira
tanto falar. Sua curiosidade era enorme e ela se empenhou na leitura com
uma avidez que só era interrompida pelos intervalos de espanto, à idéia
de que uma tal peça houvesse sido escolhida para aquela ocasião, que
fosse proposta e aceita num teatro particular! Agatha e Amélia lhe
pareciam, cada uma no seu gênero, inteiramente inadequadas para uma
apresentação íntima; a situação de uma e a linguagem da outra,
pareciam-lhe impróprias para serem expressas por qualquer mulher
honesta, e não podia acreditar que suas primas tivessem consciência do
papel para o qual estavam se comprometendo; e desejou que, quanto
antes, Edmund as advertisse.

CAPÍTULO 15

Miss Crawford aceitou prontamente a sua parte; e logo depois de


Miss Bertram voltar do Presbitério, chegou Mr. Rushworth, ficando
conseqüentemente distribuído o outro personagem. Ofereceram-lhe os
papéis de Conde Cassel e Anhalt; a princípio ele ficou indeciso na escolha
e pediu a Miss Bertram que o orientasse, mas depois que lhe fizeram
compreender a diferença entre cada personagem e quando se recordou
que uma vez em Londres já assistira àquela peça e que achara Anhalt um
camarada muito estúpido, logo se decidiu pelo Conde. Miss Bertram
aprovou a decisão, pois quanto menos ele tivesse que aprender, melhor
seria; e embora não concordasse com o desejo do noivo de que o Conde e
Agatha representassem juntos, nem demonstrasse muita paciência
enquanto ele lentamente virasse as folhas do volume na esperança de
ainda descobrir uma tal cena , ela se encarregou amavelmente de
preparar a parte que cabia a ele e cortou todos os diálogos que podiam
ser dispensados; além disso quando trataram do vestiário, escolheu-lhe as
cores dos trajes. Mr. Rushworth gostou muito da idéia de aparecer
ricamente vestido, embora pretendesse não estar ligando a isso; estava
tão preocupado com a sua própria aparência que Maria estava quase
certa de que ele não cuidaria pensar nos outros nem de tirar quaisquer
conclusões ou mesmo sentir qualquer descontentamento.
Tudo isto foi exposto a Edmund, que estivera fora toda a manhã e
não sabia de nada; quando ele entrou no salão antes do jantar, a
discussão entre Tom, Maria e Mr. Yates estava no auge; e Mr. Rushworth
adiantou-se ao seu encontro com grande entusiasmo para lhe contar as
novidades.
– Já temos a peça – disse ele. – Vai ser “Juras de Amor”: eu vou
desempenhar o papel de Conde Cassel, e no primeiro ato apareço com
uma vestimenta azul, com capa de cetim rosa e depois com outra linda
fantasia no feitio de uma roupa de caça. Não sei se irei gostar.
Os olhos de Fanny acompanharam Edmund e seu coração começou
a bater quando ouviu aquele discurso e viu pela aparência do primo qual
seria sua reação.
– “Juras de Amor”! – foi a única resposta que deu a Mr. Rushworth,
num tom que demonstrava o maior espanto; em seguida virou-se para os
irmãos como esperando uma contradição.
– Sim – exclamou Mr. Yates. – Depois de muitos debates e
dificuldades, vimos que não havia nada que nos servisse tão bem, nada
tão irrepreensível como “Juras de Amor”. É de admirar que não
tivéssemos pensado nela antes. Minha estupidez foi abominável, pois
nesta peça temos a vantagem de nos servir do que eu vi em Ecclesford; e
é tão útil ter-se uma experiência! Já estão distribuídos quase todos os
papéis.
– E como se arranjaram com os papéis femininos? – indagou
Edmund gravemente, olhando para Maria.
Maria corou quando respondeu:
– Desempenharei o papel que Mrs. Ravenshaw teria feito e (com o
olhar mais atrevido) Miss Crawford vai ser Amélia.
– Nunca imaginaria que esse fosse o gênero de peça que pudesse
tão facilmente ser aceita por nós – respondeu Edmund, voltando-se para a
lareira onde se achavam sua mãe, a tia e Fanny; sentou-se depois com um
ar de grande contrariedade.
Mr. Rushworth seguiu-o para dizer:
– Eu apareço no palco duas vezes e tenho quarenta e dois diálogos.
Já é alguma coisa, não? Mas não gosto muito é da idéia de aparecer tão
fantasiado. Vou até me desconhecer num traje azul com capa de cetim cor
de rosa.
Edmund ficou calado. Dentro de poucos minutos Tom Bertram foi
chamado para esclarecer algumas dúvidas do carpinteiro, e tendo ido
acompanhado de Mr. Yates e seguido logo depois de Mr. Rushworth,
Edmund aproveitou a oportunidade para dizer:
– Não posso falar na frente de Mr. Yates sem ofender seus amigos
de Ecclesford, dizendo o que penso desta peça, mas agora, minha querida
Maria, devo dizer que acho a peça extremamente imprópria para uma
representação íntima e espero que você desista dela. Estou certo de que
desistirá quando a tiver lido com atenção. Leia em voz alta apenas o
primeiro ato para mamãe e titia ouvirem e vai ver se a aprovam.
– Nós vermos as coisas muito diferentes – exclamou Maria. –
Conheço a peça perfeitamente, posso lhe garantir; e com muito poucas
omissões, que naturalmente serão feitas, não vejo nada repreensível nela;
aliás não sou a única moça que a acha própria para ser representada
particularmente.
– Pois sinto muito – foi a resposta dele; – mas neste caso você é
quem deveria orientar. Deve dar o exemplo. Se os outros erraram, é seu
dever lhes chamar a atenção e lhes mostrar a verdadeira delicadeza. Em
questões de decoro, a sua conduta deve servir de regra para os demais.
Esta imagem da sua importância surtiu algum efeito, pois ninguém
como Maria gostava de dirigir; respondeu pois de melhor humor:
– Fico-lhe muito grata, Edmund; sua intenção é muito boa, estou
certa; mas continuo achando que você vê as coisas com severidade
demais; e eu realmente não me posso encarregar de fazer um sermão a
todos os outros por causa de uma questão desta ordem. Aí sim, eu acho
que não seria decente.
– E você imagina que eu tenha tido tal idéia? Não: deixe que a sua
conduta seja a única a orientá-los. Pode dizer que, examinando a peça,
você não a achou conveniente; que não se sente capaz de a desempenhar.
Diga isto com firmeza e será o bastante. Todos que tiverem bom senso,
compreenderão o motivo. Desistirão da peça e a sua dignidade será
louvada como de direito.
– Não represente nada que não seja próprio, minha querida – pediu
Lady Bertram. – Sir Thomas não haveria de gostar. Fanny, toque a
campainha; está na hora do jantar. Julia certamente já deve estar pronta.
– Tenho a certeza, mamãe, – disse Edmund precedendo Fanny – que
Sir Thomas não aprovaria.
– Vê, minha querida, está ouvindo o que Edmund diz?
– Se eu desistir do papel, – declarou Maria com novos escrúpulos –
Julia certamente o desempenhará.
– Que! – admirou-se Edmund – mesmo sabendo os seus motivos?
– Oh! Ela decerto levaria em conta a diferença entre nós – a
diferença de situação de cada uma – e pensaria não ter necessidade de
ser tão escrupulosa quanto eu. Tenho certeza de que este seria o
argumento dela. Não, peço que me desculpe; não posso voltar atrás; já
está tudo combinado, ficariam todos desapontados, e Tom furioso; e se
formos levar tudo com essa severidade, nunca representaremos coisa
alguma.
– Era isto exatamente o que eu ia dizer – interrompeu Mrs. Norris. –
Se todas as peças forem rejeitadas, acabam não representando nada e o
dinheiro que já se gastou com os preparativos será posto fora, o que seria
uma desconsideração para todos nós. Não conheço a peça; mas, como
Maria diz, se houver qualquer coisa um pouco picante demais (como
acontece com a maioria) pode ser suprimida facilmente. Não devemos
exagerar, Edmund. Já que Mr. Rushworth vai também tomar parte na
representação, não pode haver mal algum. Só acho que Tom deveria ter
resolvido melhor o que queria, antes dos carpinteiros começarem, pois se
perdeu meio dia de trabalho naquelas portas laterais. A cortina, porém,
ficará ótima. As raparigas trabalham bem e creio que poderemos devolver
algumas dúzias de argolas. Não há necessidade de as pregar tão juntas.
Eu estou sendo útil, evitando desperdícios e fazendo tudo que posso. É
preciso que haja uma cabeça firme para superintender tanta gente
desmiolada. Esqueci de contar a Tom o que me aconteceu hoje. Estava no
pátio do galinheiro e quando ia saindo, quem eu vejo senão Dick Jackson,
dirigindo-se para a porta de serviço com dois pedaços daquelas tábuas
mais caras, levando-os sem dúvida para o pai; a mãe o tinha mandado
falar com o pai, e o pai o mandou trazer os dois pedaços de madeira, de
que estava precisando muito. Mas eu sabia o que significava tudo isto,
pois a sineta do jantar dos empregados estava tocando naquele momento
nos nossos ouvidos; e como detesto gente ladra (os Jacksons são uns
ladrões, eu sempre disse: gente que carrega tudo o que pode), disse logo
para o rapaz (um rapazinho de dez anos, muito vadio, que devia se
envergonhar de si mesmo): – Eu mesma levo as tábuas para o seu pai,
Dick, e você ponha-se para fora imediatamente. O pequeno me olhou
apalermado e virou-se sem dizer uma palavra, pois creio que lhe falei com
muita aspereza; mas aposto que ele tão cedo não voltará aqui para
roubar. Odeio essa voracidade; tão bom que Sir Thomas é para toda a
família, dando serviço ao pai, durante todo o ano.
Ninguém se deu ao trabalho de responder; em seguida os outros
voltaram; e Edmund compreendeu que o ter tentado persuadi-los devia
ser a sua única satisfação.
O jantar correu pesadamente. Mrs. Norris mais uma vez relatou seu
triunfo sobre Dick Jackson, mas a peça e os preparativos não foram mais
comentados, pois a desaprovação de Edmund se refletia até no irmão,
embora este não o quisesse admitir. Maria, sem o apoio de Henry
Crawford, preferiu evitar o assunto. Mr. Yates, que procurava se fazer
amável para Julia, compreendeu que o mau humor dela era menos
impenetrável em outro qualquer assunto do que no referente à sua
deserção da companhia; Mr. Rushworth, não pensando noutra coisa senão
no seu próprio papel e sua próprias toilletes, logo esgotou tudo o que
tinha a dizer sobre qualquer dos dois temas.
Os comentários sobre o teatro foram porém suspensos apenas por
uma ou duas horas; ainda havia muitas coisas para serem resolvidas;
criando novo ânimo, Tom, Maria e Mr. Yates logo depois de voltarem para
o salão, sentaram-se ao redor de uma mesa separada, e com a peça
aberta à sua frente, já aprofundavam no assunto quando foram
interrompidos pela entrada de Mr. e Miss Crawford, que, tarde da noite,
escuro e enlameado como estava o caminho, não puderam deixar de vir e
foram recebidos com a maior alegria.
“Muito bem, como vai indo o teatro?” e “que resolveram?” e “Oh!
Não podemos fazer nada sem a sua presença”, seguiram as primeiras
saudações; Henry Crawford em seguida sentou-se junto aos três enquanto
sua irmã se dirigia para Lady Bertram e atenciosamente a
cumprimentava.
– Felicito vossa senhoria, – disse ela – por ter sido escolhida a peça;
pois embora tenha suportado tudo com a maior paciência, estou certa de
que já devia estar farta de todo o nosso barulho e discussões. Os atores
devem estar contentes mas os espectadores devem estar infinitamente
mais satisfeitos com a decisão; e eu sinceramente lhe desejo os parabéns,
minha senhora, bem como a Mrs. Norris e todos os que estiverem na
mesma situação, concluiu relanceando os olhos meio receosa, meio
acanhada, para Fanny e Edmund.
Lady Bertram respondeu-lhe muito delicadamente mas Edmund
ficou calado, sem contestar ser apenas espectador. Depois de por alguns
minutos conversar com o grupo ao redor da lareira, Miss Crawford
dirigiu-se para a turma em volta da mesa; e em pé ao lado deles parecia
interessar-se pelos debates até que, impelida por uma súbita lembrança,
exclamou:
– Meus amigos, vocês estão muito tranquilamente estudando estas
questões de cabanas e tavernas, por dentro e por fora; mas por favor,
abram um parêntese para me esclarecerem sobre a minha sorte. Quem
vai fazer o papel de Anhalt? Qual dos cavalheiros presentes eu terei o
prazer de namorar durante a representação?
Por um momento ninguém falou; depois todos falaram ao mesmo
tempo para confessarem a triste verdade de que ainda não fora arranjado
nenhum Anhalt. Mr. Rushworth ia desempenhar o papel de Conde Cassel
mas o de Anhalt ainda estava por resolver.
– A mim me ofereceram os dois papéis – disse Mr. Rushworth; – mas
eu achei melhor o do Conde, embora não me agrade muito o traje que
terei de usar.
– O senhor escolheu muito bem – disse Miss Crawford com o olhar
malicioso; – o papel de Anhalt é muito enfadonho.
– O Conde tem que decorar quarenta e dois diálogos, – retrucou Mr.
Rushworth – o que não é pouco.
– Não me surpreende, – disse Miss Crawford depois de curto
intervalo – esta falta de Anhalt. Amélia não merece melhor sorte. Uma
rapariga tão atrevida assusta os homens.
– Eu teria muito prazer em desempenhar o papel, se me fosse
possível, – exclamou Tom; – mas infelizmente o mordomo e Anhalt têm de
aparecer em cena ao mesmo tempo. Mas ainda não desisti de todo; verei
o que pode ser feito – vou ler a peça de novo.
– Seu irmão devia desempenhar o papel, – disse Mr. Yates em voz
baixa dirigindo-se a Tom. – Acha que ele o faria?
– Não conte comigo para lhe falar – respondeu Tom de um modo
seco, determinado.
Miss Crawford falou de outra qualquer coisa e em seguida foi
juntar-se ao grupo da lareira.
– Não querem saber de mim – disse ela sentando-se. – Só sirvo para
os embaraçar e obrigá-los a fazerem discursos delicados. Mr. Edmund
Bertram, como não vai representar, será portanto um conselheiro
desinteressado; por isso apelo para o senhor. Como havemos de encontrar
um Anhalt? É direito que qualquer um dos outros faça papel duplo? Qual
é a sua opinião?
– Aconselho que arranjem outra peça – disse ele calmamente.
– Por mim não faço objeção – respondeu ela; – mas embora não me
desgoste particularmente o papel de Amélia, se for bem amparada, isto é,
se tudo correr bem, não gostaria de criar dificuldades; enfim, como não
pediram seu conselho (olhando para os da mesa), certamente não o
seguirão.
Edmund não retrucou.
– Se qualquer papel tivesse o poder de o tentar a representar,
suponho que seria o de Anhalt, – observou a moça maliciosamente depois
de pequeno intervalo; – pois ele era um pastor, como sabe.
– Esta circunstância não me tenta em absoluto, – respondeu o rapaz
– pois não gostaria de tornar o personagem ridículo com a minha má
representação. Deve ser muito difícil evitar que Anhalt pareça um
pregador afetadamente solene; e o homem que escolheu a profissão para
si próprio, é, talvez, o último a desejar representá-la num palco.
Miss Crawford calou-se e um pouco ressentida, afastou a cadeira
mais para perto da mesa de chá, dando toda a sua atenção a Mrs. Norris,
que ali presidia.
– Fanny, – chamou Tom Bertram do outro lado da mesa onde a
conferência prosseguia – precisamos de você.
Fanny levantou-se imediatamente, esperando que a fossem
incumbir de alguma mensagem, pois o hábito de a empregarem naquele
mister ainda perdurava, apesar de Edmund lutar contra ele.
– Oh! Não precisa levantar-se. Não precisamos de você no
momento. Apenas precisamos de sua cooperação na nossa peça. Você tem
de desempenhar o papel da mulher do camponês.
– Eu! – exclamou Fanny sentando-se novamente, muito assustada. –
Peço que me desculpem. Eu não poderia representar por coisa alguma.
Não, na verdade não posso.
– Sim, mas tem que representar, porque nós não podemos dispensar
você. Não precisa ter receio, o papel é muito insignificante, uma tolice
mesmo, não tem mais do que meia dúzia de diálogos ao todo, e não tem
importância que ninguém ouça uma palavra do que você disser. Pode
portanto ficar muda como quiser, contanto que apareça em cena.
– Se meia dúzia de diálogos a assusta, – exclamou Mr. Rushworth –
o que não seria se tivesse que desempenhar um papel como o meu? São
quarenta e dois diálogos que tenho que decorar.
– Não é que eu tenha receio de não decorar, – disse Fanny
encabulada por se ver naquele momento a única a falar em todo o salão e
sentindo que todos os olhos se fixavam nela; – mas realmente não posso
representar.
– Sim, sim, você poderá representar suficientemente bem para nós.
Estude a sua parte e nós lhe ensinaremos o resto. Só aparecerá em cena
duas vezes e, como eu farei o papel do camponês, posso guiá-la para aqui
e para ali. Você irá muito bem, respondo por isto.
– Não, Mr. Bertram, peço que me desculpe. Não pode imaginar.
Seria absolutamente impossível para mim. Se eu aceitasse, o senhor
ficaria desapontado.
– Ora, ora! Não seja tão modesta. Você se sairá muito bem. Nós
seremos condescendentes, não esperamos perfeição. Só precisa arranjar
um vestido marrom, um avental branco, uma touca de camponesa e
depois que nós lhe pintarmos algumas rugas e alguns pés de galinhas nos
cantos dos olhos, você ficará uma velhinha perfeita.
– Devem dispensar-me, devem dispensar-me, – implorava Fanny,
cada vez mais vermelha de encabulação e virando-se aflita para Edmund
que a observava ternamente; mas não querendo exasperar o irmão com a
sua interferência ele apenas a encorajou com um sorriso. As súplicas não
surtiram efeito sobre Tom; ele apenas repetiu o que havia dito antes e não
foi apenas Tom, pois agora o pedido era secundado por Maria e os moços
Crawford e Yates, com uma insistência que só diferia da dele por ser mais
delicada e cerimoniosa; e antes que Fanny pudesse respirar, Mrs. Norris
completou o conjunto dirigindo-se a ela num sussurro ao mesmo tempo
áspero e audível:
– Que bonito papel está fazendo por nada; envergonho-me de você,
Fanny, criar uma tal dificuldade para servir a seus primos numa bagatela
como esta – eles que são tão bondosos com você! Concorde de boa
vontade e não crie mais discussão, estou avisando-a.
– Não a obrigue, minha tia – disse Edmund. – Não é direito que a
obriguem dessa maneira. Está vendo que ela não quer representar. Tem o
direito de escolher como nós; a vontade dela deve ser levada em
consideração. Não a obrigue mais.
– Não a estou obrigando – respondeu Mrs. Norris asperamente; –
mas acho que ela será muito teimosa e ingrata se não quiser fazer o que a
tia e os primos lhe pedem; muito ingrata, na verdade, considerando-se
quem é e o que ela é.
Edmund estava tão furioso que não podia falar; mas Miss Crawford
fixando por um momento o olhar admirado de Mrs. Norris e depois em
Fanny, cujas lágrimas começavam a correr pelas faces, disse
imediatamente com alguma aspereza:
– Não posso ficar neste lugar; está quente demais para mim; – e
movendo a cadeira para o lado oposto da mesa, perto de Fanny, disse-lhe
ela baixinho, bondosamente: – Não se preocupe, minha querida, esta
noite está toda arrevesada; todo mundo está contrariado e aborrecido,
mas deixa-os para lá; – e com evidente atenção continuou a falar com ela,
procurando erguer-lhe o moral, apesar de estar ela própria com moral
abatida. Com um sinal ao irmão, impediu que insistissem no pedido e os
sentimentos realmente bons que demonstrava, rapidamente lhe
reconquistaram o pouco que havia perdido no conceito de Edmund.
Fanny não havia simpatizado com Miss Crawford; mas no momento
sentia-se muito grata a ela pela bondade com que a tratava; Miss
Crawford, depois de reparar no seu trabalho, declarando que desejava
trabalhar tão bem, indagou se Fanny se preparava para ser apresentada,
como naturalmente o seria depois que a prima se casasse; prosseguiu
depois se ela havia ultimamente recebido notícias do irmão e dizendo que
tinha muita vontade de o conhecer pois o imaginava um rapaz muito
distinto. Aconselhou a Fanny que procurasse mandar-lhe pintar o retrato,
antes de ele embarcar novamente; Fanny então não pôde deixar de
admitir que realmente aquela gentileza lhe era muito agradável e boa de
se ouvir, e viu-se respondendo com mais animação do que tencionava.
As consultas sobre a peça prosseguiam e a atenção de Miss
Crawford foi desviada de Fanny por Tom Bertram, que lhe disse
consternado ter chegado à conclusão de que lhe seria absolutamente
impossível desempenhar os papéis de Anhalt e do mordomo ao mesmo
tempo: procurava com o maior interesse ajustar os dois papéis mas via
que de fato não era possível; tinha que desistir.
– Mas não haverá a menor dificuldade em arranjar quem o
desempenhe – acrescentou. – É só procurar; eu podia neste momento,
enumerar no mínimo seis rapazes não muito distantes daqui, que ficariam
radiantes se fossem admitidos na nossa companhia e um ou dois que não
fariam má figura; não receio em confiar o caso a Oliver ou a Charles
Maddox. Tom Oliver é muito inteligente e Charles Maddox é um rapaz
distinto como não se vê em toda a parte. Irei pois a cavalo, amanhã bem
cedo até Stokes e combinarei tudo com um dos dois.
Enquanto ele assim falava, Maria olhava apreensiva para Edmund,
esperando que ele se opusesse a uma tal expansão do projeto, tão
contrária a todos os seus projetos anteriores; porém Edmund não disse
nada. Depois de alguma reflexão, Miss Crawford respondeu calmamente:
– Pela parte que me toca, não posso fazer objeção ao que todos
tiverem concordado. Será que eu conheço qualquer um dos dois
cavalheiros? Sim? Mr. Charles Maddox jantou uma vez em casa de minha
irmã, não foi Henry? Um rapaz de aparência muito tímida. Lembro-me
dele. Então por favor dêem-lhe preferência, pois para mim será menos
desagradável do que ter que representar com uma pessoa inteiramente
estranha.
Seria resolvido que seria Charles Maddox o escolhido. Tom repetiu
que iria procurá-lo no dia seguinte; e embora Julia, que toda a noite não
dissera uma palavra, observasse agora sarcasticamente com um olhar
primeiro para Maria e depois para Edmund, que “o teatro de Mansfield
iria animar excessivamente toda a vizinhança”, Edmund continuou calado
e apenas demonstrou seu ressentimento com decisiva seriedade.
– Eu não estou muito interessada nessa representação, – disse Miss
Crawford em voz baixa a Fanny, depois de uma pausa; – e vou prevenir
Mr. Maddox de que cortarei alguns dos diálogos dele e uma grande parte
dos meus, antes de ensaiarmos juntos. Vai ser muito desagradável e de
forma alguma eu esperava isso.

CAPÍTULO 16

Não estava no poder de Miss Crawford fazer com que Fanny


esquecesse completamente o que se havia passado. No fim da noite,
quando foi para a cama, cheia de ressentimentos, seus nervos ainda
estavam agitados com o choque provocado pelo ataque de seu primo Tom,
tão público e tão insistente e o moral abatido pela impiedosa censura e
exprobração da tia. Ser-lhe chamada a atenção de tal maneira,
compreender que aquilo não era senão o prelúdio de alguma coisa
infinitamente pior, saber que seria obrigada a fazer o que lhe parecia tão
impossível; e depois ser acusada de teimosia e ingratidão e, além de tudo,
aquela insinuação à dependência da sua situação, tinha sido por demais
doloroso para que se apagasse assim de sua memória, especialmente
estando, como estava, aterrorizada com o que o dia seguinte poderia
produzir em continuação àquele assunto. Miss Crawford protegera-a
apenas no momento; e se eles novamente insistissem, com a autoridade
que Tom e Maria exerciam sobre ela, Edmund estando, talvez, ausente,
que faria Fanny? Adormeceu antes de achar a resposta e na manhã
seguinte quando acordou, viu que o problema continuava sem solução
como na véspera. O pequeno quarto branco das águas furtadas, que
continuava a ser seu dormitório desde que entrara para a família, não lhe
tendo sugerido nenhuma solução, ela recorreu, logo que se vestiu, para
outro compartimento mais espaçoso e mais conveniente para andar de
um lado para outro e pensar, e do qual ela já por algum tempo era quase
que dona absoluta. Este compartimento havia sido a sala de aula; assim
foi chamado até que as Misses Bertram não mais permitiram que o
denominassem ou o usassem para tal fim. Ali tinha vivido Miss Lee e ali
eles tinham lido e escrito, conversado e rido, até o meado dos últimos três
anos, quando ela os deixou. A sala tornou-se então inútil e por algum
tempo abandonada, exceto por Fanny, quando ali ia ver as suas plantas ou
procurar um dos livros que ainda gostava de conservar lá, por falta de
espaço e acomodação no seu pequeno dormitório de cima; mas
gradualmente, dando valor ao conforto que ele lhe oferecia, adicionou-o
às suas possessões e passava lá a maior parte do tempo; e não havendo
nada que o impedisse, ela tão natural e simplesmente se acomodou
dentro dele que agora era geralmente reconhecido como seu. A “sala do
Leste” como a chamavam desde que Maria completara dezesseis anos,
era agora considerada de Fanny, quase tão decisivamente quanto o
pequeno quarto das águas furtadas: a exigüidade de um fazia o uso do
outro tão evidentemente razoável, que as Misses Bertram, com toda a
superioridade de seus próprios compartimentos, estavam inteiramente de
acordo; e Mrs. Norris, depois de ficar assentado que não se acenderia a
lareira para uso de Fanny, resignou-se a que ela tomasse conta de um
compartimento que ninguém mais queria, embora os termos com que às
vezes se referia àquele privilégio dessem a entender que se tratava do
melhor compartimento da casa.
O ambiente era tão favorável que, mesmo sem aquecimento, era
habitável em muitas manhãs de princípio de primavera ou de fim de
outono para uma natureza disposta como a de Fanny; e quando restou um
raio de sol, ela esperou não precisar sair dali, mesmo quando viesse o
inverno. O conforto que lhe proporcionava nas suas horas de folga era
imenso. Quando alguma coisa desagradável lhe acontecia embaixo,
retirava-se para lá e encontrava imediato consolo em qualquer trabalho
ou estudo. Suas plantas, seus livros – os quais colecionava desde a
primeira hora em que tivera um shilling à sua disposição – sua
escrivaninha e seus trabalhos de caridade, estavam todos ao alcance da
mão; e se estivesse indisposta para trabalhar, se não quisesse senão
meditar, encontrava naquela sala objetos que lhe traziam, cada um,
alguma lembrança interessante. Cada um era um amigo ou levava seus
pensamentos para um amigo; e embora algumas vezes tivesse sofrido
muito, embora raramente tivesse sido compreendida, seus sentimentos
desprezados, sua inteligência subestimada; embora tivesse conhecido a
dor da tirania, do ridículo, do esquecimento; contudo quase sempre a
lembrança que cada um lhe trazia representava para ela um motivo de
consolo; sua tia Bertram a tinha defendido, ou Miss Lee a tinha
estimulado, ou, o que era ainda mais freqüente e mais caro, Edmund
tinha sido o seu herói e seu amigo; ele defendera a sua causa ou
esclarecera o seu pensamento; ele tinha dito que não chorasse ou tinha
dado alguma prova de afeição que lhe tornara as lágrimas deliciosas, e
tudo isto agora estava tão confundido , tão harmonizado pela distância,
que cada sofrimento anterior tinha seu encanto. A sala era muito querida
para ela e não trocaria os móveis que a guarneciam pelos mais lindos que
houvesse na casa, embora estivessem bastante estragados pelo uso das
crianças; e as suas maiores elegâncias e ornamentos constavam de um
tamborete desbotado, trabalho de Julia e que não servira para o salão por
estar muito mal feito, três cortinas transparentes, feitas na ocasião que
houve grande mania por tais cortinas, para os três vidros inferiores de
uma janela, sobre a chaminé, uma coleção de retratos da família,
considerados indignos de estarem em outra qualquer parte, e ao lado
desses, pregado na parede, um pequeno “croquis” de um navio enviado
do Mediterrâneo, por William, há quatro anos passados, com as iniciais e
o nome “H. M. S. ANTHWERP” escritas na parte inferior, em letras da
altura do mastro grande.
Foi para este ninho de confortos que Fanny agora se dirigiu, a fim
de experimentar sua influência sobre um espírito agitado, confuso, e para
ver se, olhando o retrato de Edmund, podia receber algum de seus
conselhos, ou se, ao arejar os gerânios na janela, ela própria conseguiria
inalar algum sopro de força mental. Mas tinha que remover outros
receios além dos que atingiam a sua própria perseverança; começava a
ficar indecisa quanto ao que deveria fazer; e enquanto dava voltas na
sala, suas dúvidas aumentavam. Não estaria ela errada em recusar o que
lhe havia sido pedido com tanta insistência, tão ardentemente desejado
para – o que poderia ser tão essencial para um projeto no qual estavam
empenhados alguns daqueles a quem ela devia as maiores bondades? Não
seria maldade, egoísmo e medo de se expor? E seria a opinião de
Edmund, seria a sua certeza da desaprovação de Sir Thomas, suficiente
para justificá-la naquela recusa? A idéia de representar era para ela tão
horrível, que estava inclinada a desconfiar da sinceridade e da pureza de
seus escrúpulos; e ao olhar à sua roda, à vista dos presentes e presentes
que recebera dos primos, sentia-se mais na obrigação de os satisfazer. A
mesa entre as janelas estava coberta de cestas de costura, caixas de
agulhas e novelos de lã, que lhe haviam sido dados em várias ocasiões,
principalmente por Tom; e ela ficou perturbada pela soma dos favores
que lhe devia, graças a todas essas bondosas lembranças. Uma batida na
porta a despertou no meio desta tentativa de encontrar o caminho para
seu dever e o seu suave “pode entrar” foi respondido pela aparição da
pessoa ante quem costumava expor todas as suas dúvidas. Seus olhos
brilharam à vista de Edmund.
– Posso falar com você por alguns minutos, Fanny?
– Sim, certamente.
– Quero lhe fazer uma consulta. Preciso de sua opinião.
– Minha opinião! – exclamou ela, retraindo-se por um tal
cumprimento, por muito que ele a lisonjeasse.
– Sim, seu conselho e opinião. Não sei o que fazer. Esta idéia de
teatro vai de mal a pior, como vê. Não podiam ter escolhido uma peça
pior e agora, para completar, vão convidar para nela fazer parte, um
rapaz a quem conhecemos muito ligeiramente. Isto é o fim de toda a
intimidade e decoro de que a princípio falavam. Não conheço nada de mal
a respeito de Charles Maddox; mas a excessiva intimidade que poderá
surgir por ele ser introduzido desta maneira em nosso meio, é
absolutamente inadmissível, e mais do que intimidade – a familiaridade.
Não posso pensar nisso sem me revoltar; e a mim me parece uma tão
grande desgraça que, se possível, se deveria impedir. Você não concorda
comigo?
– Concordo sim; mas que se há de fazer? Seu irmão está tão
obstinado.
– Só há um meio, Fanny. Eu mesmo terei que desempenhar o papel
de Anhalt. Do contrário, sei bem que Tom não sossegará.
Fanny não pôde responder.
– Não é absolutamente o que eu pretendia – continuou ele. –
Ninguém gosta de ser apanhado numa tal contradição. Depois de ter sido
contra o projeto desde o princípio, é realmente absurdo que eu agora me
associe a eles, justamente agora que começam a sair do plano original em
todos os respeitos; mas não vejo outra alternativa. Você vê, Fanny?
– Não, – disse Fanny devagar – imediatamente não, mas...
– Mas o que? Vejo que não concorda comigo. Reflita um pouco.
Talvez você não compreenda tanto quanto eu o mal que pode, o
aborrecimento que deve surgir por se receber um rapaz desta forma;
dando-lhe todos os direitos entre nós; autorizando-o a vir aqui a qualquer
hora e colocando-o numa posição que por força eliminará todo
constrangimento. Sem pensar na liberdade que cada ensaio tende a criar.
Está tudo errado! Ponha-se no lugar de Miss Crawford, Fanny. Considere
o que significa desempenhar o papel de Amélia com um estranho. Ouvi o
suficiente do que ela disse a você ontem à noite, para compreender que
está desgostosa de ter de representar com um estranho; provavelmente
aceitou o papel esperando coisa diferente – talvez não tenha considerado
suficientemente a questão para pensar no que poderia acontecer – seria
injusto, seria realmente incorreto expô-la a isto. Seus sentimentos deviam
ser respeitados. Você não acha, Fanny? Você parece hesitar.
– Sinto muito por Miss Crawford; mas sinto muito mais por vê-lo
obrigado a fazer uma coisa contra a qual a qual se debateu e que era
sabido você achar que seria desagradável a meu tio. Será um triunfo tão
grande para os outros!
– Eles não terão muitos motivos para triunfar, quando virem o quão
infamemente eu represento. Contudo triunfo certamente será, e eu tenho
que o afrontar. Mas se depende de mim impedir a publicidade do negócio,
limitar a exibição, concentrar nossa loucura, serei bem recompensado,
não posso fazer nada: eu os ofendi e eles não me ouvirão; mas depois que
eu os puser de bom humor com esta concessão, tenho esperanças de os
persuadir a restringirem a representação a um círculo muito menor do
que o para que estão caminhando. Já é um benefício. Minha intenção é
limitá-lo a Mrs. Rushworth e aos Grant. Não acha que vale o sacrifício?
– Sim, já é uma grande vantagem.
– Mas ainda não tenho a sua aprovação. Pode você encontrar outro
meio pelo qual eu tenha a oportunidade de obter igual vantagem?
– Não, não vejo outro meio.
– Então conceda-me a sua aprovação, Fanny. Sem ela não me sinto
feliz.
– Oh, primo!
– Se você está contra mim, eu devo suspeitar de mim mesmo, e no
entanto... Mas é absolutamente impossível deixar que Tom prossiga desta
maneira, galopando pela vizinhança atrás de alguém a quem possa
persuadir de representar – não importa quem; desde que tenha a
aparência de “gentleman”, é suficiente. Pensei que você estivesse mais
inteirada dos sentimentos de Miss Crawford.
– Sem dúvida, ficará muito contente. Será um grande alívio para ela
– disse Fanny procurando dar maior ardor às suas palavras.
– Ela nunca me pareceu tão gentil como ontem à noite, pela
maneira como se portou com você. Por causa disso, ganhou muito no meu
conceito.
– Foi, na verdade, muito boa, e eu gostaria de vê-la poupada.
Não pôde terminar a generosa expansão. Sua consciência fê-la
parar no meio, mas Edmund ficou satisfeito.
– Darei a notícia logo depois do almoço, – disse ele – e tenho a
certeza de que ficarão contentes. E agora, querida Fanny, não quero
interrompê-la por mais tempo. Você quererá ler. Mas eu não podia me
sentir à vontade enquanto não lhe falasse e chegasse a uma decisão.
Dormindo ou acordado, minha cabeça estava cheia desse negócio toda a
noite. É uma desgraça, mas eu certamente a farei menor do que poderia
ser. Se Tom já estiver levantado falarei com ele diretamente e liquido
tudo de uma vez; quando formos para a mesa do almoço estaremos todos
no maior bom humor com a perspectiva de fazer o papel de bobo com tal
unanimidade. Neste ínterim você estará viajando pela China. Como vai
indo Lord Macartney? (abriu um volume de cima da mesa e depois vários
outros). E aqui temos “Tales” e “The Idler” de Crabbe, para a socorrer
quando se cansar de seu grande livro. Admiro imensamente o seu
pequeno retiro; e logo que eu sair, você varrerá de sua cabeça toda essa
tolice de representação e se sentará confortavelmente na sua
escrivaninha. Mas não permaneça aqui até se resfriar.
Ele saiu; mas não houve leitura, nem China, nem recolhimento para
Fanny. Ele tinha trazido as mais extraordinárias, mais inconcebíveis, mais
desagradáveis notícias; e ela não podia pensar noutra coisa. Ele
representando! Depois de todas as suas objeções – objeções tão justas e
tão públicas! Depois de tudo o que ela o ouvira dizer, de ver o seu
procedimento, de saber o que ele havia sentido. Seria possível? Edmund
tão inconstante! Não estaria ele se enganando a si próprio? Não estaria
ele enganado? Oh! Tudo isto era culpa de Miss Crawford. Tinha sentido a
influência dela em todas as suas palavras e sofrera. As dúvidas e
inquietações quanto a sua própria conduta que anteriormente a afligiam e
que adormeceram enquanto o ouvia, eram agora de pequena importância.
Esta ansiedade mais profunda afogava-as todas. As coisas seguiriam seu
destino; não queria saber como acabariam. Seus primos poderiam atacá-
la, mas dificilmente a atingiriam. Ele estava fora de seu alcance; e se
afinal fosse obrigada a ceder – que importa – tudo agora já era uma
miséria.

CAPÍTULO 17

Na verdade foi um dia de triunfo para Mr. Bertram e Maria. Uma tal
vitória sobre a prudência de Edmund estava acima de suas expectativas e
foi muito divertido. Agora já não havia mais nada para lhes perturbar o
projeto e, com grande júbilo congratularam-se entre eles pelo ciúme ao
qual atribuíam a mudança. Edmund ainda poderia se mostrar grave e
declarar que não aprovava a idéia em geral e particularmente desaprovar
a escolha da peça; a questão estava ganha; ele iria representar e tinha
sido impelido a isto unicamente por força de um sentimento egoísta.
Edmund descera daquela elevação moral em que se mantinha antes, e
ambos sentiam-se mais que felizes com esta descida.
Na ocasião, porém, portaram-se decentemente com ele, não dando
a perceber a excessiva alegria senão por um pequeno e disfarçado sorriso
e declarando estarem muito contentes por se verem livres da intrusão de
Charles Maddox, como se houvessem sido obrigados a admiti-lo contra a
vontade, na companhia. O que desejavam particularmente era que o
plano não saísse do círculo da própria família. Um estranho entre eles
teria sido um grande constrangimento; e quando Edmund, aproveitando-
se daquela idéia, insinuou que se deveria limitar os assistentes, eles, para
o agradar prontamente, prometeram submeter-se a qualquer coisa que
ele quisesse. Estavam todos de bom humor e animados. Mrs. Norris
ofereceu-se para arranjar o traje, Mr. Yates declarou que a última cena de
Anhalt com o Barão requeria muita ação e ênfase, o Mr. Rushworth se
encarregou de lhe contar os diálogos.
– Talvez agora Fanny consinta em nos auxiliar – disse Tom. – Talvez
você a possa persuadir.
– Não, ela está absolutamente decidida. Não representará, com toda
a certeza.
– Oh! Então está bem. – E não se disse mais nada; porém Fanny
sentiu-se novamente em perigo e a sua indiferença ao perigo já começava
a lhe faltar.
No Presbitério não houve menos sorrisos do que no Park em vista
da mudança de Edmund; Miss Crawford mostrou-se encantadora e
imediatamente começou a falar no assunto com grande demonstração de
alegria, o que não podia produzir senão um efeito sobre ele. Bem tivera
razão em respeitar tais sentimentos; estava contente por se ter resolvido.
E a manhã correu cheia de contentamentos que, se não eram muito
verdadeiros, pelo menos eram bastante suaves. Para Fanny resultou disso
tudo uma vantagem; em vista dos insistentes pedidos de Miss Crawford,
Mrs. Grant, com seu usual bom humor, concordou em desempenhar a
parte que estivera reservada para Fanny; e isto foi tudo o que ocorreu
durante o dia para lhe alegrar o coração; e mesmo isto, quando lhe foi
comunicado por Edmund, veio acompanhado por um sofrimento, pois foi
a Miss Crawford a quem teve de agradecer; foi Miss Crawford, cujos
bondosos esforços mereceram a sua gratidão e cujo mérito em os envidar
foi louvado com admiração ardente. Ela estava salva; mas a paz e a
salvação ali não se combinavam. Nunca sua consciência esteve mais
afastada da paz. Ela não podia deixar de se julgar com a razão, mas
estava inquieta sobre todos os pontos. Seu coração e sua consciência
estavam contra a decisão de Edmund: não se podia conformar com a falta
de firmeza dele e o seu contentamento acabrunhava-a. Estava agitada,
cheia de ciúmes. Miss Crawford parecia querer insultá-la com seus ares
de despreocupada alegria e às expressões amigáveis que lhe dirigia ela
dificilmente poderia responder com serenidade. Todos ao redor dela
estavam alegres, ocupados, florescentes e importantes; cada um tinha
seus interesses, sua parte, seu traje, sua cena favorita, seus amigos e
parceiros: todos estavam ocupados com as consultas e comparações e
divertiam-se com as cômicas concepções que das mesmas faziam. Ela era
a única triste e insignificante; não tomava parte em coisa alguma; podia
estar ou não presente; podia estar no meio da balbúrdia ou refugiar-se na
solidão da sala de Leste, sem que ninguém a visse ou desse pela sua falta.
Chegava quase a pensar que qualquer outra coisa seria preferível a essa
indiferença. Mrs. Grant estava importante; a sua boa vontade foi
mencionada com louvor; ela era procurada, seguida e elogiada; e Fanny, a
princípio, esteve em perigo de invejar a situação em que a outra se
colocara, aceitando o papel. Mas a reflexão trouxe-lhe melhores
sentimentos e mostrou-lhe que Mrs. Grant merecia consideração, o que
com ela não se teria dado; e que, por maior consideração que lhe dessem,
nunca se sentiria à vontade se viesse a associar-se a um plano que,
considerando apenas o tio, devia condenar inteiramente.
Mas o coração de Fanny não era, entre todos, o único entristecido,
como ela logo percebeu. Julia estava sofrendo também, embora não tão
inteiramente sem culpa.
Henry Crawford zombara de seus sentimentos; ela havia consentido
e até mesmo procurado as atenções dele, sabendo que havia razões para
ter ciúme da irmã, o que devia bastar para a ter curado; e agora que se
convencera da preferência dele por Maria, resignava-se, sem se
preocupar com a situação da irmã, ou sem qualquer esforço razoável pela
sua própria tranqüilidade. Permanecia em sombrio silêncio, mergulhada
numa gravidade que nada poderia subjugar, e nem mesmo a curiosidade,
nem as pilhérias a distraiam; ou então, consentindo nas atenções de Mr.
Yates, falava apenas com ele, esforçando-se por parecer alegre e
ridicularizando os outros.
Por um ou dois dias depois da afronta, Henry Crawford procurou
destruí-la com a sua habitual galanteria, mas não estava tão empenhado a
ponto de insistir depois de algumas repulsas; e em seguida, ficando
demasiadamente ocupado com a peça para ter tempo de cuidar de mais
de um namoro, tornou-se indiferente ou antes, pensou que era até uma
sorte poder terminar tranquilamente uma brincadeira que dentro em
pouco iria fazer com que outros além de Mrs. Grant nutrissem
esperanças. Esta não ficara satisfeita ao ver Julia excluída da peça, e
andando por ali desprezada. Mas como não era questão que realmente
envolvesse a sua felicidade, como Henry devia ser o melhor juiz da sua
própria felicidade e como ele lhe tinha assegurado, com o mais
persuasivo dos sorrisos, que nem ele nem Julia jamais haviam pensado
seriamente em qualquer coisa, Mrs. Grant não fez senão renovar suas
precauções anteriores sobre a irmã mais velha, aconselhando-a a não
arriscar a própria tranqüilidade demonstrando por ela demasiada
admiração; depois alegremente se dispôs a tomar parte em qualquer
coisa que trouxesse alegria ao pessoal jovem em geral e que
particularmente proporcionasse prazer aos dois a quem ela tanto amava.
– Admiro-me de que Julia não esteja apaixonada por Henry –
observou ela a Mary.
– Garanto que está – respondeu Mary friamente. – Suponho que
ambas o estão.
– Ambas! Não, não, não pode ser. Não insinue isto a ele. Pense em
Mr. Rushworth!
– É melhor que você diga a Miss Bertram que pense em Mr.
Rushworth. Talvez lhe traga algum benefício. Várias vezes penso na
propriedade e na independência de Mr. Rushworth e desejaria que
estivessem em melhores mãos; mas nele próprio não penso nunca. Um
homem com tais meios podia representar o Estado.
– Acredito que ele em breve entrará para o Parlamento. Quando Sir
Thomas vier, suponho que irá candidatá-lo a uma eleição qualquer, mas
até agora ninguém ainda se lembrou dele.
– Sir Thomas vai fazer grandes coisas quando voltar para casa –
disse Mary depois de um intervalo. – Você se lembra do “Adress to
Tobacco”, de Hawkins Brawne, na imitação de Pope?
“Bless leaf! whose aromatic gales dispense
To Templars modesty, to Parsons sense”.

Eu faço a seguinte paródia:

“Bless Knight! whose dictatorial looks dispense


To Children affluence, to Rushworth sense”.

Não acha que está bem, Mrs. Grant? Tudo parece depender da volta
de Sir Thomas.
– Quando você o vir garanto que lhe achará a importância muito
justa e razoável. Não estou certa de que as coisas estejam indo muito
bem sem a presença dele. Tem uma grande dignidade, tal como convém
ao chefe de uma casa como aquela, e sabe manter cada um em seus
lugares. Lady Bertram, agora, parece ainda mais nula do que quando ele
está em casa; e ninguém senão ele é capaz de conter Mrs. Norris. Mas
Mary, não imagine que Maria goste de Henry. Que Julia não goste dele
estou certa; do contrário não namoraria Mr. Yates como o fez ontem à
noite; e apesar de ele e Maria serem muito bons amigos, acho que ela
gosta demais de Sotherton, para ser inconstante.
– Eu não daria muito pela sorte de Mr. Rushworth, se Henry
resolvesse se declarar antes de terem corrido os papéis.
– Se você tem esta suspeita, precisamos fazer qualquer coisa; e logo
que termine esse negócio de teatro, falaremos com ele seriamente e o
faremos refletir sobre isto; se ele não tiver nenhuma intenção, embora ele
seja Henry, nós o mandaremos viajar por algum tempo.
Julia contudo sofreu, apesar de Mrs. Grant não o perceber e embora
muitos da sua própria família não terem igualmente notado. Tinha amado
e ainda amava, e estava passando por todos os sofrimentos que um
temperamento ardente e um caráter altivo poderiam suportar sob o
desapontamento de uma acariciada, embora irracional esperança. Seu
coração estava triste, magoado, a ela não encontrava consolo senão o
rancor. A irmã, com quem ela sempre estivera nos melhores termos de
intimidade, era agora sua maior inimiga; estavam separadas; e Julia se
comprazia com a esperança de que aquele namoro, que ainda continuava,
viesse a ter um mau fim, castigando Maria pelo procedimento vergonhoso
que estava tendo tanto com ele como para com Mr. Rushworth. Sem
efeito essencial de caráter ou divergente de opinião que as impedisse de
serem muito amigas enquanto seus interesses eram os mesmos, as duas
irmãs, submetidas a uma prova como essa, não tinham suficiente afetos
nem princípios que as fizessem julgar com clemência ou justiça, que lhes
dessem dignidade ou compaixão. Maria sentia o triunfo e prosseguia em
seu propósito, sem se preocupar com Julia; e Julia sem poder tolerar a
preferência de Henry Crawford por Maria, tinha esperança de que daí
surgisse uma ciumada e tudo acabasse num grande escândalo.
Fanny via e lastimava tudo isso em Julia; mas não havia entre elas
nenhuma espécie de camaradagem. Julia não era comunicativa e Fanny
não tomava liberdades. E as duas ficavam a sofrer isoladamente, ou
ligadas apenas pela consciência de Fanny.
O descuido dos dois irmãos e da tia pelo sofrimento de Julia e a sua
cegueira quanto à verdadeira causa, devia ser atribuído aos muitos
problemas de que suas cabeças viviam cheias. Estavam totalmente
preocupados. Tom, absorvido pelos interesses do seu teatro, não via
senão aquilo que imediatamente se relacionasse com ele. Edmund, na
alternativa do papel teatral e de seu papel real – entre os direitos de Miss
Crawford e a sua própria conduta – entre o amor e a compostura, vivia
igualmente alheio; e Mrs. Norris estando demasiadamente ocupada em
orientar e dirigir todos os pequenos arranjos da companhia,
superintendendo os diversos vestuários com econômico expediente, que
ninguém agradecia, e economizando para Sir Thomas, com admirável
probidade, meia coroa daqui e dali, não tinha tempo para observar o
procedimento sem defender a felicidade das sobrinhas.

CAPÍTULO 18

Tudo agora seguia normalmente; teatro, atores, atrizes e vestuários


progrediam sempre; mas embora não houvesse surgido outros
impedimentos, Fanny achou, antes de decorridos muitos dias, que o
contentamento não era de todo ininterrupto para os próprios membros da
trupe e que ela não seria testemunha da continuação daquela
unanimidade e alegria que a princípio lhe parecera difícil de suportar.
Cada um começou a ter seus aborrecimentos. Edmund os teve muitos.
Inteiramente contra a vontade dele, havia chegado da cidade um pintor
de cenários, o qual se pusera a trabalhar, aumentando consideravelmente
as despesas e, o que era pior, propalando a notícia dos seus
empreendimentos, o irmão, em vez de realmente orientar-se por ele
quanto à intimidade do espetáculo, estava distribuindo convites a todas
as famílias que encontrava. O próprio Tom começava a impacientar-se
com a moleza do pintor e a sentir os suplícios da espera. Ele já decorara o
seu papel – todos os seus papéis, aliás, pois havia assumido todos os
papéis sem importância, que podiam ser acumulados ao do mordomo; e
começava a impacientar-se pelo espetáculo; e cada dia que se passava
nessa demora, tendia a aumentar a noção da insignificância de todos os
seus desempenhos juntos, e fazer com que se arrependesse por não haver
escolhido outra peça.
Fanny sempre muito afável e geralmente o único ouvinte à mão,
amparava as queixas e decepções de quase todos. Eles sabiam que na
opinião geral Mr. Yates declamava pessimamente; que Mr. Yates estava
desapontado com Mr. Crawford; que Tom Bertram falava tão depressa
que não seria inteligível; que Mrs. Grant estragava tudo com as suas
risadas; que Edmund ainda não havia decorado o papel e que era um
suplício fazer-se qualquer coisa com Mr. Rushworth, o qual precisava de
ponto durante todos os seus diálogos. Sabia também que o pobre Mr.
Rushworth raramente conseguia alguém para ensaiar com ele; queixou-se
também como os demais; e, aos olhos dela, a esquivança de Maria por ele
era tão decisiva e tão desnecessariamente freqüentes eram os ensaios da
primeira cena entre ela e Mr. Crawford, que em breve começou a temer
outras queixas da parte do noivo. Compreendeu que, longe de estarem
todos satisfeitos e alegres, cada um queria alguma coisa que não possuía
causando descontentamento aos demais. Todos reclamavam que tinham
um papel ou muito longo ou muito curto; ninguém prestava a atenção que
devia à peça; ninguém se lembrava por que lado deveria entrar em cena;
ninguém observava as instruções.
Fanny estava crente de que ela própria encontrava maior
divertimento na peça do que qualquer um deles; Henry Crawford
representava bem e ela tinha prazer em assistir ao ensaio do primeiro
ato, apesar de se sentir chocada com alguns dos diálogos de Maria.
Maria, na opinião de Fanny, desempenhava bem o papel, bem demais; e
depois do primeiro ou segundo ensaio Fanny passou a ser o único
auditório, e, servindo algumas vezes de ponto, outras vezes de
espectador, era muito útil. Na sua opinião Mr. Crawford era o melhor
ator, entre todos; tinha mais desembaraço do que Edmund, mais
discernimento do que Tom, mais talento e gosto do que Mr. Yates. Como
homem, ela não o apreciava, porém era forçada a admitir que era ele o
melhor ator e, neste ponto, não havia muitos que discordassem dela. É
verdade que Mr. Yates reclamava contra a sua docilidade e insipidez; e
finalmente um dia Mr. Rushworth virou-se para Fanny com o olhar
sombrio e disse:
– Acha que realmente há alguma coisa tão admirável em tudo isto?
Por mim não consigo admirá-lo; e aqui entre nós, na minha opinião é
absolutamente ridículo ver um homenzinho, daquele tamanho, medíocre,
apontado como grande ator.
Dali em diante, volta e meia repetia-se esse acesso de ciúme, que
Maria, sentido crescer suas esperanças em Crawford, não se dava ao
trabalho de desfazer; e a possibilidade de Mr. Rushworth jamais chegar a
decorar os seus quarenta e dois diálogos cada vez se tornava menor. Que
ele conseguisse algum dia a fazer alguma coisa tolerável, ninguém tinha a
mínima esperança, exceto a mãe dele; de fato, lastimava que o papel do
filho não fosse mais importante e preferiu não vir mais a Mansfield senão
depois que os ensaios já estivessem suficientemente adiantados para que
pudesse compreender todas as cenas em que ele devia tomar parte; mas
os outros não aspiravam outra coisa senão que ele se lembrasse das
primeiras palavras do diálogo e fosse capaz de seguir o ponto até o fim.
Fanny, penalizada e bondosa, procurava de vários meios ajudá-lo a
decorar, dando-lhe toda a assistência e orientações ao seu alcance,
tentando produzir nele uma memória artificial, decorando ela mesma
cada palavra do papel, sem que ele, porém, fizesse muito progresso.
Muitas sensações de desconforto, muita ansiedade e apreensão ela
teve sem dúvida; mas com tudo isto e outros serviços que reclamavam
seu tempo e atenção, estava agora muito longe de se sentir imprestável e
inútil entre eles. A tristeza de seus primeiros pressentimentos provou-se
infundada. Ela era ocasionalmente útil a todos; estava, talvez, muito mais
tranqüila do que outro qualquer.
Havia, além de tudo, uma infinidade de costuras para serem feitas,
que requeriam o seu auxílio; e era evidente que Mrs. Norris a achava na
altura de prestar tais serviços, graças à maneira como os reclamava:
– Venha Fanny – gritava ela – estes dias você está com sorte! Mas é
melhor que deixe de andar de uma sala para outra, apreciando os outros;
preciso de você aqui. Tenho trabalhado como mouro para conseguir
cortar a capa de Mr. Rushworth sem precisar vir mais cetim; e agora
venha me ajudar na costura. São apenas três emendas, que você pode
fazer num segundo. Seria uma sorte se eu pudesse me encarregar apenas
dos acabamentos. Você cose razoavelmente; mas também, se ninguém
fizesse mais do que você, nós nunca acabaríamos com isto.
Fanny pôs-se a trabalhar calmamente, sem procurar defender-se;
porém a bondosa tia Bertram veio em seu favor:
– Não é de admirar, minha irmã, que Fanny esteja encantada; tudo é
novidade para ela, você bem sabe; nós mesmas, gostávamos muito de um
espetáculo, e eu ainda gosto; assim que eu tiver um pouco mais de folga,
também pretendo assistir aos ensaios. Qual é o assunto da peça, Fanny?
Você nunca me disse.
– Ora, minha irmã, por favor não lhe pergunte agora; Fanny não é
dessas pessoas que podem falar e trabalhar ao mesmo tempo. A peça é
sobre juramento de amor.
– Penso – disse Fanny à tia Bertram – que amanhã à noite vão
ensaiar três atos. Assim a senhora terá oportunidade de ver todos os
atores ao mesmo tempo.
– É melhor esperar até a cortina estar colocada – interpôs-se Mrs.
Norris; – a cortina ficará pronta dentro de um ou dois dias – um teatro
sem pano não tem cabimento – e se não me engano, será bordada com
lindos festões.
Lady Bertram resignou-se a esperar. Fanny não compartilhou a
calma de sua tia; estava ansiosa para que chegasse o dia seguinte, pois se
os três atos fossem ensaiados, Edmund e Miss Crawford iriam
representar juntos pela primeira vez; no terceiro ato havia uma cena
entre ambos, – cena que a interessava particularmente, e estava ansiosa e
ao mesmo tempo aflita por ver como eles a desempenhariam. Todo o
assunto versava sobre o amor – um casamento por amor era descrito pelo
cavalheiro, e nada menos que uma declaração de amor era feita pela
dama.
Ela havia lido e relido a cena com dolorosas, espantosas emoções, e
antecipava a sua representação como se fosse uma circunstância do
maior interesse. Estava certa de que eles ainda não a tinham ensaiado,
nem mesmo secretamente.
Chegou o dia seguinte, o plano para o serão prosseguiu e Fanny não
estava menos agitada. Trabalhou com afinco sob a direção da tia, mas a
sua diligência e o seu silêncio dissimulavam um espírito vago e inquieto;
e, perto do meio dia, escapuliu-se com o trabalho para a sala de Leste, a
fim de não mais assistir a mais um ensaio do primeiro ato que Henry
Crawford acabava de propor, – ensaio, na sua opinião, inteiramente
desnecessário, pois estava desejosa de ficar sozinha e fugir à vista de Mr.
Rushworth. Ao atravessar o hall, avistou as duas senhoras vindas do
Presbitério, mas mesmo assim não desistiu de retirar-se e, na sala de
Leste, trabalhou e meditou tranquilamente, por um quarto de hora,
quando uma batida leve na porta foi seguida da entrada de Miss
Crawford.
– Estarei certa? Sim; esta é a sala de Leste. Minha querida Miss
Price, peço que me desculpe, mas vim aqui lhe pedir o seu auxílio.
Apanhada de surpresa, Fanny procurou mostrar-se delicada fazendo
as honras da sala, e olhou significativamente para a lareira apagada.
– Muito obrigada; não estou com frio absolutamente. Permita-me
ficar aqui um momento e faça-me a bondade de ouvir o meu terceiro ato.
Trouxe o livro, e se quiser ensaiar comigo eu lhe ficarei imensamente
grata! Vim com a intenção de o ensaiar com Edmund – só nós dois – antes
do serão, mas não o encontrei; porém mesmo que o tivesse encontrado,
creio que não teria coragem de ensaiar com ele, senão depois de já estar
um pouco mais firme; porque, realmente, tem um ou dois diálogos... Fará
este favor, não?
Fanny respondeu-lhe com toda a delicadeza, embora sua voz
estivesse um pouco trêmula.
– Por acaso já leu a parte a que me refiro? – continuou Miss
Crawford abrindo o livro. – Aqui está. A princípio não me preocupei muito
com o papel – mas, palavra de honra – olhe veja este diálogo, e este, e
este. Como olhar para ele e dizer tais coisas? Você teria coragem? Enfim
ele é seu primo, no que há muita diferença. Queria que ensaiasse comigo,
para que eu imaginasse que você era ele e fosse me acostumando aos
poucos. Às vezes você se parece um pouco com ele.
– Acha? Farei o possível com a maior boa vontade; mas preciso ler a
cena, porque não a conheço quase.
– Nem a podia conhecer. Ficará com o livro, naturalmente. Bem,
vamos começar. Precisamos duas cadeiras que você terá de levar para a
frente do palco. Veja – umas ótimas cadeiras para sala de aula, mas
imprópria para um teatro; muito boas para uma garota sentar-se e dar
pontapés enquanto está estudando a lição. O que não diriam a sua
governanta e o seu tio se as vissem usadas para tal fim? Se Sir Thomas
aparecesse neste momento, havia de zangar-se, pois estamos ensaiando
pela casa inteira. Yates reclama em altas vozes na sala de jantar. Eu o
ouvi quando vinha subindo, e o teatro está naturalmente ocupado por
aqueles infatigáveis ensaiadores Agatha e Frederico. Se eles não forem
perfeitos, ficarei muito admirada. Por falar nisso, ainda há pouco, fui dar
uma espiada neles e aconteceu ser exatamente numa das ocasiões em
que estavam tentando não se abraçarem; Mr. Rushworth estava comigo.
Achei que ele estava ficando com o ar esquisito e procurei disfarçar as
coisas da melhor maneira, dizendo-lhe baixinho: – Teremos uma Agatha
excelente, há qualquer coisa de tão maternal nos modos dela, tão
completamente maternal na voz e no peito! Não acha que fiz bem? Ele
imediatamente desanuviou. Bem, agora vamos ao meu monólogo.
Mary principiou e Fanny ia respondendo modestamente, inspirada,
como havia sido calculado, pela idéia de estar representando Edmund;
mas com a aparência e a voz tão verdadeiramente femininas que não se
podia imaginá-la um homem. Com um tal Anhalt, porém, Miss Crawford
tinha bastante coragem; e estavam no meio da cena quando outra batida
na porta as interrompeu e a entrada de Edmund, em seguida, suspendeu
por completo o ensaio.
Surpresa, consciência e prazer estamparam-se na fisionomia de
cada um por este encontro inesperado; e como Edmund havia vindo com
o mesmo propósito que trouxera Miss Crawford, a consciência e o prazer
provavelmente não seriam para eles apenas momentâneos. Ele, também,
trazia o livro e vinha procurar Fanny para ensaiar, e auxiliá-lo a preparar-
se para o serão, sem saber que Miss Crawford estava em casa; grande,
pois, foi a alegria e a animação por se haverem assim encontrado, para
fazerem planos e se unirem em louvores pela bondade de Fanny.
Ela não poderia igualar-se a eles no seu ardor. Seu espírito abateu-
se sob o entusiasmo de ambos e a moça começou a sentir-se quase tão
inteiramente inútil aos dois que não lhe servia de consolo o ter sido
procurada por eles. Deviam agora ensaiar juntos. Edmund propôs, pediu,
implorou, até que a moça, não muito pouco disposta a princípio, não pôde
mais recusar e Fanny foi requisitada apenas para servir-lhes de ponto e
observá-los. Ela estava, na verdade, investida do papel de juiz e crítico e
seriamente desejava desempenhar bem esse papel, apontando todas as
falhas; mas ao fazê-lo, sentia-se imensamente constrangida – ela não o
poderia, não o deveria, não o ousaria tentar; tivesse ela, ao contrário,
capacidade para criticar, assim mesmo conscientemente, não se
aventurava a reprová-los. No todo sentia-se suspeita para julgar os
detalhes com segurança, honestamente. Era bastante que servisse de
ponto para eles; pois nem sempre podia prestar atenção ao livro. Ao
observá-los esquecia-se de si mesma; e, agitada com o entusiasmo
crescente nas maneiras de Edmund, numa ocasião fechou o livro e se
afastou, justamente quando ele precisava de auxílio. Isto, porém, foi
atribuído a um cansaço muito natural e ainda lhe agradeceram e a
lastimaram; na verdade, Fanny merecia mais piedade do que eles mesmos
poderiam supor. Finalmente o ensaio terminou e Fanny esforçou-se para
juntar seus louvores aos cumprimentos que cada um fazia ao outro; e
quando de novo ficou sozinha e pôde reconstituir toda a cena, acreditou
que no desempenho deles havia, na verdade, tanta naturalidade e
sentimento que lhes garantiria êxito e faria da exibição um motivo de
sofrimento para ela. Enfim, qualquer que fosse o efeito causado, teria de
suportar outro choque naquela mesma noite.
O primeiro ensaio verdadeiro dos três primeiros atos teria lugar
àquela noite; Mrs. Grant e os Crawford comprometeram-se a voltar para
aquele fim logo que o pudessem, depois do jantar; cada interessado
esperava o acontecimento com grande ansiedade. Parecia haver uma
alegria geral. Tom antegozava o resultado final; Edmund estava animado
com o ensaio daquela manhã e os pequenos aborrecimentos pareciam
haver desaparecido. Todos estavam animados, impacientes; as senhoras
logo se levantaram da mesa e os rapazes acompanharam-nas em seguida;
com exceção de Lady Bertram, Mrs. Norris e Julia, todos se dirigiram
para o teatro muito cedo; e iluminando-o tanto quanto era possível devido
à falta de acabamento, esperavam somente a vinda de Mrs. Grant e dos
Crawford para darem início.
Não tiveram que esperar muito pelos Crawford, mas Mrs. Grant não
aparecera. Ela não poderia vir. O Dr. Grant, dizendo-se indisposto, ao que
a cunhada não dava muito crédito, não poderia dispensar a mulher.
– O Dr. Grant está muito doente – disse ela com uma solenidade
irônica. – Adoeceu desde que soube que não havia faisão para o jantar.
Achou que era um absurdo, devolveu o prato e desde então está sofrendo
muito.
Foi um desapontamento! A falta de Mrs. Grant era um transtorno.
Seus modos agradáveis e sua alegre submissão eram sempre estimáveis;
mas agora ela era absolutamente necessária. Sem ela, não poderiam
representar, não poderiam ensaiar com satisfação. O prazer do serão
estava perdido. Que poderiam fazer? Tom, no papel de camponês, estava
desesperado. Depois de um momento de perplexidade, alguns olhares
começaram a dirigir-se para Fanny e alguém disse:
– Se Miss Price tivesse a bondade de ler a parte.
Imediatamente cercaram-na com súplicas, todos pediam e até
Edmund disse:
– Faça, Fanny, se não for muito desagradável para você.
Mas Fanny ainda hesitava. Não podia suportar a idéia. Por que não
pediam a Miss Crawford? Ou porque não tinha ela fugido para seu
quarto, onde sabia estar em segurança, em vez de ir assistir ao ensaio?
Sabia que ficaria irritada, aflita; bem sabia que devia ter ficado fora. Foi o
seu castigo.
– Só terá que ler a parte – repetia Henry Crawford procurando
convencê-la.
– E acredito que ela possa dizer cada uma das palavras –
acrescentou Maria – pois outro dia ela corrigiu Mrs. Grant vinte vezes.
Fanny, tenho a certeza de que você sabe toda a parte de cor.
Fanny não o podia negar; e como todos insistiam, como Edmund
repetiu o desejo, com um olhar de quem implorava a sua boa vontade, ela
tinha que ceder. Faria o que fosse possível. Todos ficaram satisfeitos; e
ela foi abandonada com os temores de um coração palpitante, enquanto
os outros se preparavam para começar.
E haviam começado; tão empenhados estavam na sua própria
algazarra que não se aperceberam de um movimento fora do comum na
outra parte da casa, até que a porta do salão foi escancarada e Julia
apareceu, com o rosto espantado, e exclamou:
– Papai está aí! Está chegando agora mesmo.

CAPÍTULO 19

Como se poderia descrever a consternação do grupo? Para a


maioria foi um momento de absoluto terror. Sir Thomas de volta! Todos
sentiram a imediata condenação. Ninguém abrigou uma só esperança de
impostura ou engano. A surpresa de Julia era uma evidência de que o
caso era indiscutível; e depois dos primeiros sustos e exclamações,
ficaram mais de um minuto sem poder falar; quase todos sentiam que o
golpe era dos mais desagradáveis, inoportunos e temíveis! Mr. Yates
talvez o considerasse apenas como uma inoportuna interrupção por
aquela noite e Mr. Rushworth, ao contrário, o considerasse como uma
felicidade; mas cada um dos outros corações estava afogado numa
espécie de auto-condenação, ou indefinido alarma, todos pensavam: – Que
será de nós? Que acontecerá agora? – Foi um momento de terrível
expectativa; e terrível para cada um ao ouvirem a confirmação de seus
temores com o barulho de portas que se abriam e passos que se
aproximavam.
Julia foi a primeira a mover-se e quebrar o silêncio. Ciúme e
amargura estavam suspensos: o egoísmo perdeu-se pela causa comum;
mas no momento em que ela aparecera, Frederico ouvia com o olhar
extasiado a narrativa de Agatha, segurando a mão dela sobre o coração; e
no momento em que ela notou, que o viu continuar na mesma posição,
retendo a mão de sua irmã, apesar do choque causado pelas suas
palavras, seu magoado coração novamente encheu-se de desgosto e,
corando intensamente, deu as costas e saiu do salão dizendo:
– Eu, de mim, não tenho motivos para recear aparecer à frente dele.
Com a saída dela os outros ergueram-se; e simultaneamente os dois
irmãos se adiantaram, sentindo a necessidade de fazer qualquer coisa.
Apenas algumas palavras entre eles foi o suficiente. O caso não admitia
duas opiniões; deviam imediatamente dirigir-se para a sala de visitas.
Maria com idêntica intenção acompanhou-os, mostrando-se justamente a
mais resoluta dos três; pois a própria circunstância que fizera Julia
retirar-se, era o seu mais doce conforto. O fato de Henry Crawford reter
sua mão num momento como aquele, um momento em que era uma prova
única e importante, valia por séculos de dúvida e ansiedade. Apelava para
aquele momento como um sinal da mais séria decisão e sentia-se capaz
de enfrentar o pai. Retiraram-se completamente atordoados, deixando Mr.
Rushworth a perguntar: “Devo eu ir também? Não seria melhor eu
também ir? Será que eu não devia ir?” Mas logo que eles passaram da
porta, Henry Crawford encarregou-se de responder àquele ansioso
interrogatório e, animando-o a de qualquer forma e sem demora
apresentar seus respeitos a Sir Thomas, mandou-o alegremente atrás dos
outros.
Fanny permaneceu no salão unicamente com os Crawford e Mr.
Yates. Fora inteiramente esquecida pelos primos; e como a sua própria
opinião sobre seus direitos sobre o afeto de Sir Thomas era
demasiadamente modesta para que ela se julgasse na obrigação de
acompanhar os filhos da casa, gostou de ficar para trás e ganhar um
pouco mais de tempo para se acalmar. Em virtude de uma índole pela
qual nem mesmo a inocência poderia impedir de a fazer, sua agitação e
seu susto excediam tudo que os outros estavam sofrendo. Estava quase
desmaiando; todo o habitual temor que anteriormente sentira pelo tio
voltara, acompanhado de uma grande compaixão por ele e por quase
todos os do grupo, antevendo os acontecimentos que se desenrolariam.
Sentia além disso uma indescritível solicitude por Edmund. Encontrou um
assento, onde, tremendo excessivamente, sofreu por todos esses
medonhos pensamentos, enquanto os outros três, já sem o menor
constrangimento, davam expansão aos seus desapontamentos,
lamentando aquela volta inesperada e prematura, como um
acontecimento dos mais perversos e sem compaixão, desejando que o
pobre Sir Thomas não tivesse conseguido passagem, que estivesse ainda
em Antigua.
Os Crawford estavam mais preocupados do que Mr. Yates, pois
compreendiam melhor a família e podiam mais claramente calcular a
tragédia que estaria por vir. A ruína do espetáculo era-lhes uma certeza;
sentiam que era inevitável a imediata destruição do plano; enquanto Mr.
Yates considerava tudo isto apenas como uma interrupção temporária, um
transtorno por aquela noite e sugeria, até, a possibilidade de
recomeçarem os ensaios depois do chá, quando a balbúrdia causada pela
chegada de Sir Thomas estivesse acalmada, e ele estivesse à vontade
para apreciar seus trabalhos. Os Crawford riram-se da idéia; e tendo em
seguida concordado em saírem quietamente deixando a família à vontade,
propuseram a Mr. Yates que os acompanhasse e passasse a noite no
Presbitério. Mas como Mr. Yates não estava habituado a levar a sério
essas questões de família, não percebia a necessidade de se retirar;
assim, agradeceu, dizendo que ele preferia ficar onde estava e apresentar
elegantemente seus respeitos ao velho, já que ele tinha vindo; e, além
disso, supunha que os outros não haveriam de achar bonito que todos
fugissem.
Quando chegaram a esta solução, Fanny estava justamente
começando a acalmar-se e a achar que se ela demorasse ali, muito,
poderia parecer falta de respeito ao tio; tendo sido encarregada pelos
dois irmãos de apresentar desculpas, viu-os prepararem-se para partir
enquanto ela própria saía para se desincumbir do pavoroso dever de
cumprimentar Sir Thomas.
Bem depressa se encontrou na porta da sala de visitas; e depois de
parar um momento para recuperar a coragem, sabendo embora que
nunca o conseguiria, virou o trinco ansiosamente e enfrentou as luzes da
sala e toda a família reunida. Quando ia entrar, ouviu seu próprio nome
mencionado. Sir Thomas neste momento estava olhando em redor e
dizendo:
– Mas onde anda Fanny? Por que não vejo a minha pequena Fanny?
– e ao vê-la, foi-lhe ao encontro com uma bondade que a espantou e
comoveu, chamando-a sua querida Fanny, beijando-a afetuosamente e
observando com evidente prazer como ela havia crescido! Fanny não
sabia o que pensar nem para onde olhar. Estava oprimida. Ele nunca
havia sido tão bondoso, tão realmente bondoso para ela em toda a sua
vida. Parecia mudado, falava depressa na agitação da alegria; levou-a
para próximo da luz e olhou para ela – informou-se particularmente de
sua saúde e depois corrigindo-se, observou que não precisava perguntar
pois a aparência dela o demonstrava claramente. Um belo rubor, que
substituíra sua palidez anterior, justificava que ele acreditasse ter ela não
só em saúde como em beleza. Em seguida pediu informações sobre a
família dela, especialmente William; a bondade do tio foi tanta que a
moça se envergonhou por amá-lo tão pouco e por haver considerado a
volta dele como uma infelicidade; e quando ousou levantar os olhos até
seu rosto e viu que o tio havia emagrecido e tinha a aparência fatigada,
enterneceu-se e lastimou que ele tivesse que passar por todos aqueles
aborrecimentos de que nem suspeitara.
Sir Thomas era de fato quem animava a reunião, que por sugestão
sua, se fizera em volta da lareira. Ele tinha o direito de ser o único a falar;
e o prazer de estar novamente em sua própria casa, no centro de sua
família, depois de tal separação, fazia-o comunicativo e conversador de
modo pouco comum; estava pronto a dar todas as informações sobre a
viagem, a responder a todas as perguntas dos seus dois filhos quase antes
de as formularem. Seus negócios em Antigua ultimamente haviam
prosperado rapidamente e ele viera diretamente de Liverpool, onde
oportunamente conseguira passagem num navio particular, em vez de
esperar pelo paquete; e todos os detalhes de seus feitos e
acontecimentos, suas chegadas e partidas, foram relatados
minuciosamente e com presteza, enquanto se achava sentado ao lado de
Lady Bertram, olhando com imensa satisfação os rostos à sua volta –
interrompendo-se mais de uma vez, porém, para observar a sua boa sorte
em os encontrar em casa – visto que chegara inesperadamente – todos
reunidos exatamente como desejara, mas não ousara esperar. Mr.
Rushworth não foi esquecido; uma recepção amistosa e um caloroso
aperto de mão seguiram-se à apresentação e ele já estava incluído entre
os entes mais intimamente ligados a Mansfield. A aparência de Mr.
Rushworth não tinha nada de desagradável e Sir Thomas já estava
gostando dele.
Nenhum dos presentes o ouvia com alegria mais constante e pura
do que sua esposa, que estava de fato extremamente feliz por vê-lo e
cujas emoções com a sua súbita chegada eram tantas que a tornaram
mais animada do que nunca o estiveram em vinte anos. Por alguns
minutos ficou até quase agitada e ainda continuava tão animada que
largou o trabalho, sacudiu o cãozinho do seu lado e deu toda a sua
atenção e todo o resto do sofá ao marido. Não tinha ansiedade nenhuma
capaz de obscurecer seu prazer: seu procedimento havia sido
irrepreensível durante a ausência dele: fizera um grande tapete e muitos
metros de franja; e teria livremente pela conduta e ocupações tanto de
todos os filhos como da sua própria. Era-lhe tão agradável vê-lo de novo,
ouvi-lo falar e divertir-se com as suas narrativas, que começou a pensar o
quanto haveria de sentir a falta do marido, como lhe seria impossível
suportar uma ausência mais longa.
A felicidade de Mrs. Norris não podia de forma alguma se comparar
à da irmã. Não que ela estivesse perturbada pelo receio da reprovação de
Sir Thomas quando tomasse conhecimento do que ia pela casa, pois ela
havia agido tão cegamente que, com exceção da cautela instintiva com
que havia feito desaparecer a capa de cetim de Mr. Rushworth no
momento em que o cunhado entrara, não mostrava o mínimo sinal de
alarme; mas estava aborrecida pela maneira como ele voltara. Não lhe
tinha dado oportunidade de fazer nada. Em vez de a ter chamado fora da
sala para o ver primeiro e então espalhar a feliz notícia pelo resto da
casa, Sir Thomas, contando muito naturalmente, talvez, com o mordomo,
apareceu, quase imediatamente em seguida, na sala de visitas. Mrs.
Norris sentiu-se lesada em um ofício com que sempre contara, quer a
chegada ou a morte dele fosse a notícia a ser revelada; e agora procurava
tomar parte do movimento sem ter nada em que se movimentar,
esforçando-se por se tornar importante onde não se queria senão
tranqüilidade e silêncio. Se Sir Thomas tivesse aceitado comer alguma
coisa, ela teria ido aborrecer a camareira com mil instruções e insultar o
criado com outras tantas ordens de expedição; mas Sir Thomas
resolutamente recusou-se a jantar; não aceitaria nada, nada até a hora do
chá – preferia esperar o chá. Assim mesmo Mrs. Norris volta e meia
insistia sobre qualquer outra coisa; e no momento mais interessante da
sua passagem para a Inglaterra, quando um corsário francês estava à
vista, ela interrompeu a narrativa para lhe propor uma sopa.
– Sem dúvida, meu caro Sir Thomas, um prato de sopa seria melhor
para o senhor do que o chá. Por que não aceita um prato de sopa?
Sir Thomas não gostava de ser interrompido.
– Sempre a mesma ansiedade pelo conforto de todos, prezada Mrs.
Norris – foi a sua resposta. – Mas, na verdade, prefiro não tomar senão
chá.
– Bem, então, Lady Bertram poderia mandar servir o chá
imediatamente; poderia apressar Baddeley um pouco; ele parece estar
atrasado hoje.
Enquanto ela monologava sobre essas providências, a narrativa de
Sir Thomas prosseguia.
Finalmente houve uma pausa. Sir Thomas havia relatado os
acontecimentos mais imediatos e agora parecia-lhe suficiente estar
olhando alegremente à sua volta, ora para um, ora para outro do seu
querido círculo; o intervalo porém não foi longo; na expansão da sua
alegria, Lady Bertram tornou-se conversadora e qual não foi a sensação
dos filhos ao ouvi-la dizer:
– Sabe, Sir Thomas, como esse pessoalzinho tem se divertido
ultimamente? Andam representando. Estamos todos animados com o tal
teatro.
– Será verdade! E que estiveram representando?
– Oh! Eles lhe contarão tudo.
– O tudo lhe será contado em breve – exclamou rapidamente Tom,
afetando indiferença; – mas não vale a pena aborrecer papai com essas
coisas agora. Amanhã o senhor terá tempo de ouvir muito a esse respeito.
Estivemos apenas tentando, por falta de outra coisa para distrair mamãe
nesta última semana, representar algumas cenas, uma bobagem. Tem
chovido tanto desde o princípio de outubro que não podemos fazer outra
coisa senão ficar presos dentro de casa dias e dias seguidos. Desde o dia
8 não peguei numa espingarda. Os três primeiros dias foram toleráveis
mas desde então era inútil tentar qualquer coisa. No primeiro dia fui até
a floresta e Edmund foi até o bosquezinho além de Easton; trouxemos uns
seis casais ao todo, entre nós dois, e podíamos cada um ter matado seis
vezes mais; porém respeitamos seus faisões, posso lhe garantir. Não creio
que o senhor encontre suas florestas, de forma alguma, menos povoadas
do que estavam antes. Nunca na minha vida via as florestas de Mansfield
tão cheias de faisões como este ano. Espero que o senhor mesmo tire um
dia destes para uma caçada.
O perigo no momento havia passado e Fanny sentiu-se aliviada; mas
quando logo depois o chá foi servido, e Sir Thomas, levantando-se, disse
que não poderia estar por mais tempo na casa sem olhar o seu querido
gabinete, todas as agitações voltaram. Foi-se antes que tivessem tempo
de o preparar para as mudanças que iria encontrar; e um intervalo de
susto seguiu-se à sua saída. Edmund foi o primeiro a falar:
– É preciso fazer alguma coisa – disse ele.
– Já é tempo de pensarmos nas nossas visitas – disse Maria,
sentindo ainda a mão sobre o coração de Henry Crawford e não cuidando
de mais nada. – Onde deixou Miss Crawford, Fanny?
Fanny disse que havia partido e desincumbiu-se da mensagem.
– Então o pobre Yates está sozinho – exclamou Tom. – Vou buscá-lo.
Ele nos ajudará quando a coisa for descoberta.
Dirigiu-se para o teatro onde chegou justamente em tempo de
presenciar o primeiro encontro do pai com o seu amigo. Sir Thomas ficara
admirado por encontrar velas acesas no seu gabinete, e por notar, ao
redor, outros sintomas de uso recente e um ar de confusão geral nos
móveis. Estranhou, principalmente, a mudança da estante que estava na
porta da sala de bilhar, mas mal teve tempo de se espantar com tudo isto,
quando ouviu som de vozes vindo da própria sala de bilhar, e que o
espantaram ainda mais. Alguém estava lá, falando em altas vozes; não
conhecia a voz de quem – mais do que falando – estava quase gritando.
Caminhou para a porta, contente por ter naquele momento um meio
imediato de comunicação, e, abrindo-a viu-se sobre o palco de um teatro,
à frente de um rapaz que declamava extravagantemente e que parecia
querer agredi-lo. Justamente no momento em que Yates percebeu a
presença de Sir Thomas e que mostrou a melhor expressão jamais
demonstrada em todo o período de seus ensaios, Tom Bertram entrou
pela outra porta da sala; e nunca ele tivera maior dificuldade em manter-
se sério. O olhar solene e admirado de seu pai, sua primeira aparição num
palco e a gradual metamorfose do apaixonado Barão Wildenhein no
polido e desembaraçado Mr. Yates, cumprimentando e apresentando
desculpas a Sir Thomas Bertram, era um tal espetáculo, uma cena tão
real, que ele não teria podido perder por coisa alguma. Aquela seria a
última – com toda a probabilidade a última cena levada naquele teatro;
mas com toda a certeza não haveria melhor. O teatro fecharia com o
maior “éclat”.
Não havia, contudo, nenhum tempo para perder com qualquer idéia
de divertimento. Era necessário, também, que ele entrasse em cena e
fizesse a apresentação, o que fez da melhor maneira que pôde, cheio de
embaraço. Sir Thomas recebeu Mr. Yates com toda a aparência de
cordialidade que era própria de seu próprio caráter, mas realmente
estava tão longe de ficar satisfeito com a nova relação como da maneira
por que esta havia começado. Conhecia suficientemente a família e as
relações de Mr. Yates, para que lhe agradasse a apresentação dele como
“amigo particular”, – mais um dos amigos particulares do seu filho; e era
preciso que toda a felicidade de estar novamente em casa e a indulgência
que por causa disso demonstrava, para que Sir Thomas não ficasse
furioso ao se sentir como que perdido em sua própria casa, tomando
parte numa ridícula exibição, no meio de uma cena teatral absurda, e
forçado, numa tão desagradável ocasião, a travar conhecimento com um
rapaz cuja aproximação estava certo de desaprovar, e cuja tranqüila
indiferença e volubilidade no correr dos primeiro cinco minutos, pareciam
demonstrar ser, dos dois, o que estava mais à vontade.
Tom compreendeu o pensamento do pai e desejando sinceramente
que ele conservasse o bom humor, começou a ver mais nitidamente agora
do que antes, que de fato havia motivos para o desagradar, e que se
justificava o olhar que Sir Thomas dirigia para o teto da sala; e quando o
pai perguntou com indulgente seriedade pelo destino que haviam dado à
mesa de bilhar, não o tinha feito senão por uma curiosidade muito
razoável. Alguns minutos de poucas prazenteiras sensações foram
suficientes para cada lado; e Sir Thomas tendo-se esforçado a ponto de
dizer algumas palavras de serena aprovação em resposta a uma
entusiástica referência de Mr. Yates sobre a felicidade dos preparativos,
os três cavalheiros voltaram juntos para a sala de visitas; Sir Thomas
vindo com uma expressão muito mais grave, o que não escapou aos
presentes.
– Acabo de vir do teatro – disse ele tranquilamente ao sentar-se. –
Encontrei-me nele inesperadamente. Como está vizinho ao meu
gabinete... Mas realmente, fiquei surpreendido, pois não tinha a menor
idéia de que a representação de vocês houvesse assumido caráter tão
sério. Pareceu-me, porém, um trabalho perfeito, o que dá crédito ao meu
amigo Christopher Jackson. – Mudou então de assunto e calmamente
tomou o café, falando sobre coisas domésticas; mas Mr. Yates, sem
sagacidade bastante para perceber a intenção de Sir Thomas, e sem
suficiente modéstia, delicadeza ou discrição para o deixar
espontaneamente voltar ao assunto, insistiu sobre o tópico do teatro,
atormentou-o com perguntas e observações a esse respeito e finalmente
fê-lo ouvir toda a história do seu desapontamento em Ecclesford. Sir
Thomas ouvia muito delicadamente, encontrando porém do princípio ao
fim da história, muitos motivos para ofender seus sentimentos de decoro
e para confirmar a má opinião que fizera dos hábitos e da maneira de
pensar de Mr. Yates. E quando a história terminou, ele não lhe pôde dar
outra demonstração de simpatia além de uma leve inclinação de cabeça.
– Assim foi, de fato, como começou a nossa idéia de representar –
disse Tom depois de refletir um pouco. – Meu amigo Yates saiu
infeccionado de Ecclesford e a doença nos contaminou; talvez
estivéssemos predispostos por ter o senhor mesmo, antigamente, nos
estimulado tantas vezes para esta espécie de divertimento. Era como se
estivéssemos voltando ao passado.
Mr. Yates logo que pôde tomou a palavra e imediatamente deu
conta a Sir Thomas de tudo que haviam feito e estavam fazendo; contou-
lhe como seus planos se haviam gradualmente ampliado, o feliz desfecho
de suas primeiras dificuldades e o estado promissor em que estavam os
negócios presentemente; relatando tudo com um interesse tão cego que o
fazia não só absolutamente alheio aos movimentos de inquietação de seus
amigos, à transformação de suas fisionomias, à ansiedade com que o
ouviam, como, e principalmente, o impedia de notar a expressão do rosto
sobre o qual se fixavam seus olhos – de ver as escuras sobrancelhas de
Sir Thomas se contraírem quando dirigia o olhar com escrutadora
veemência para as filhas e Edmund, demorando-se particularmente sobre
o último, demonstrando-lhe numa linguagem muda, uma censura, uma
reprovação, que ele recebia em cheio no coração. Não menos
agudamente ela era recebida por Fanny, que tratou de se entrincheirar
atrás do sofá de sua tia, e, assim protegida, podia observar tudo o que se
passava à frente. Uma tal exprobração como a que o tio lançava sobre
Edmund ela nunca esperaria testemunhar; e sentir que de uma certa
maneira ele a merecia, era, na verdade, uma circunstância agravante. O
olhar de Sir Thomas significava: “Contava com o seu juízo, Edmund; que
aconteceu com você?” Em espírito ela se ajoelhava diante do tio e
implorava “Oh! Ele não! Dirija-se a todos os outros, mas não a ele!”
Mr. Yates continuava falando.
– Para lhe dizer a verdade, Sir Thomas, estávamos no meio de um
ensaio quando o senhor chegou. Estávamos repassando os três primeiros
atos, aliás com bastante sucesso. Esta noite, porém, não se pode fazer
mais nada pois com a retirada dos Crawford, nossa companhia está toda
dispersa; mas se amanhã à noite o senhor nos quiser honrar com a sua
presença, não tenho receio do resultado. Nós apenas, como atores
inexperientes que somos, pedimos sua indulgência; de antemão pedimos
sua indulgência.
– Minha indulgência será dada, senhor – respondeu Sir Thomas
gravemente, porém, acabando de vez com os ensaios. E com um sorriso
enternecido acrescentou: – Voltei para casa para ser feliz e indulgente. –
Depois virando-se para os outros, disse tranquilamente: – Mr. e Miss
Crawford foram mencionados nas últimas cartas que recebi de Mansfield.
Vocês acham conveniente mantermos relações com eles?
Tom foi de todos o único pronto a responder, e como estivesse
inteiramente livre de interesse por qualquer dos dois, sem ciúme, sem
amor, sem despeito, podia referir-se a ambos sem constrangimentos.
– Mr. Crawford é um rapaz muito agradável e distinto; a irmã uma
moça gentil, bonita, elegante e muito viva.
Mr. Rushworth não pôde permanecer em silencio por mais tempo.
– Não digo que ele não seja distinto, dum modo geral; mas você
devia dizer ao seu pai que ele não tem mais do que um metro e oitenta de
altura; do contrário Sir Thomas ficará esperando um cavalheiro de boa
aparência.
Sir Thomas não compreendeu bem esta insinuação e olhou
admirado para o futuro genro.
– Se me dão licença de expor o que penso – continuou Mr.
Rushworth – na minha opinião, é muito desagradável estar sempre
ensaiando. É exagerar demais. Por mim já não estou tão interessado no
espetáculo como estive a princípio. Acho que empregaremos muito
melhor nosso tempo, sentando-nos confortavelmente aqui em família e
não fazendo nada.
Sir Thomas olhou novamente para ele e então respondeu com um
sorriso de aprovação:
– Alegro-me por ver que temos os mesmos sentimentos sobre este
assunto. Sinto-me sinceramente satisfeito. Que eu tenha a cautela e a
previsão e que sinta muitos escrúpulos que meus filhos não sentem, é
perfeitamente natural; da mesma forma, o valor que dou à tranqüilidade
doméstica, a um lar que esteja fechado aos prazeres ruidosos, deve muito
naturalmente exceder ao deles. Mas na sua idade sentir tudo isto,
demonstra uma qualidade que é favorável não só ao senhor mesmo como
a todos os que lhe estão ligados; e eu reconheço a vantagem de ter um
aliado como o senhor.
A intenção de Sir Thomas era louvar a opinião de Mr. Rushworth
com palavras mais convincentes, que, entretanto, não pôde encontrar.
Sabia que não podia encontrar nenhum gênio em Mr. Rushworth ; mas
pretendeu-lhe dar muito valor como rapaz ajuizado, de caráter firme. Os
outros não puderam deixar de sorrir. Mr. Rushworth não sabia o que fazer
com tantos elogios; mas aparentando estar, como realmente estava,
excessivamente satisfeito com a boa opinião que Sir Thomas fazia dele,
embora sem falar muito, empregou seus melhores esforços para
conservar aquela boa impressão o maior tempo possível.

CAPÍTULO 20

A primeira coisa em que Edmund se ocupou na manhã seguinte foi


falar a sós com o pai e lhe fazer uma exposição sincera de todo o projeto
da representação; explicou a parte que tomara no caso, porém só se
defendeu no que, conscientemente se poderia julgar isento de culpa. E
reconheceu, ingenuamente que a sua confissão fora ouvida com uma
benevolência tão parcial que o deixou a duvidar se não teria sido melhor
ficar calado. Enquanto se defendia, procurava ansiosamente não dizer
nada que pudesse desfavorecer os outros; mas, entre todos, havia
unicamente uma pessoa a quem ele se poderia referir sem necessidade de
se justificar ou defender.
– Todos nós tivemos mais ou menos culpa; todos nós, exceto Fanny.
Fanny foi a única que teve juízo durante o tempo todo: a única que se
manteve firme. Foi intransigente desde o princípio até o fim. Nunca
deixou de pensar no respeito que devia ao senhor. Fanny tem todas as
qualidades que o senhor poderia desejar.
Sir Thomas, com um vigor de que nunca o filho julgaria capaz,
expôs toda a inconveniência que havia num tal projeto, no meio daquele
grupo e justamente naquela ocasião. Ficara realmente muito ressentido;
e, apertando a mão de Edmund, quis com isso significar que procurava
desmanchar a impressão desagradável e esquecer o quanto ele próprio
havia sido esquecido, logo que isso lhe fosse possível – quando a casa,
livre de todos os objetos que forçavam a recordação, voltasse ao seu
estado normal. Não entrou em explicações com os outros filhos; preferia
acreditar que tivessem reconhecido seus erros, a correr o risco de uma
decepção. A determinação de que tudo fosse eliminado e o
desaparecimento de todos os preparativos seria o suficiente.
Havia, porém, uma pessoa na casa a quem ele não poderia expor
seu ressentimento apenas pela maneira com que se conduzia. Não pôde
deixar de insinuar a Mrs. Norris haver contado com a sua interferência
para impedir a realização de uma idéia que o seu bom senso deveria,
certamente, desaprovar. Os filhos haviam se conduzido com muita
leviandade ao formarem tal plano; deveriam ter agido com mais critério;
mas enfim eram jovens e com exceção de Edmund, não tinham o caráter
muito firme; por isso, ele via com mais surpresa a submissão da tia
àquelas desastradas medidas, a sua proteção àqueles perigosos
divertimentos, do que a imaginação de tais medidas e divertimentos. Mrs.
Norris ficou um pouco desapontada e tão calada como jamais estivera em
toda sua vida; pois envergonhava-se de confessar que nunca havia achado
nenhuma das inconveniências manifestadas por Sir Thomas e não queria
admitir que a sua influência era insuficiente – que ela teria falado em vão.
Sua única saída era fugir do assunto o mais depressa possível, desviando
as idéias de Sir Thomas para um plano mais feliz. Tinha muitas coisas
para contar, a seu próprio favor, quanto ao cuidado que tivera em geral
sobre os interesses e confortos da família dele, muito esforço e muitos
sacrifícios para exibir, representados pelas caminhadas precipitadas e
repentinos afastamentos de sua própria casa e os excelentes conselhos e
avisos que dera a Lady Bertram e a Edmund sobre os negócios e despesas
domésticas, conselhos que lhe valeram as mais consideráveis economias e
surpreenderam em falta mais de um empregado. Porém o seu principal
orgulho estava em Sotherton. Seu maior apoio e glória se baseavam em
ter sido ela quem fizera a ligação com os Rushworth. Naquela questão ela
era inacessível. Avocou a si todo o mérito por haver transformado em
realidade a admiração de Mr. Rushworth por Maria.
– Se não fosse eu ter me mexido – disse ela – e feito questão de ser
apresentada à mãe dele, depois haver persuadido minha irmã a lhe fazer
uma visita, tenho tanta certeza como a de estar aqui sentada, de que
aquilo não daria em nada; pois Mr. Rushworth é desses rapazes
excessivamente modestos; que necessitam ser estimulados; não faltariam
moças que o quisessem agarrar, se nós ficássemos aqui inativos. Eu,
porém, não deixei a pedra por virar. Virei céu e terra por convencer
minha irmã, o que por fim consegui. O senhor conhece a distância daqui a
Sotherton; foi no meado do inverno e as estradas estavam impraticáveis,
mas assim mesmo o consegui.
– Eu sei quão grande, quão justamente grande é a sua influência
sobre Lady Bertram e meus filhos, por isso mesmo é que me admiro de
não ter sido...
– Meu caro Sir Thomas, se o senhor tivesse visto o estado em que
estavam as estradas naquele dia! Pensei que nunca chegaríamos a
travessa-las, embora, naturalmente, tivéssemos levado os quatro cavalos;
e o pobre velho, o cocheiro, nos serviu com a maior bondade e afeição,
apesar de quase não poder sentar-se na boléia por causa do reumatismo,
do qual eu o venho tratando desde o dia de São Miguel. Até que enfim
consegui curá-lo; mas durante todo o inverno ele esteve muito mal – e
aquele dia estava de tal forma, que não pude deixar de o ir ver no quarto,
antes de sairmos e aconselhá-lo a não se arriscar; ele estava justamente
colocando a peruca; então eu disse: – Escute, cocheiro, é melhor você não
ir; Lady Bertram e eu não corremos perigo; você sabe que Stephen é
muito firme e Charles tem guiado tantas vezes ultimamente que estou
certa de que não haverá motivo para receio. Mas logo percebi que não
adiantava; ele estava resolvido a ir e como não gosto de contrariar, não
disse mais nada; sentia porém uma grande dor de coração por ele, cada
vez que o carro dava um solavanco e mais aflita ainda fiquei quando
passamos pelos ásperos caminhos próximos a Stokes, onde, com o gelo e
a neve acamada sobre as pedras, foi pior do que o senhor imagina. E os
pobres cavalos então! Ver o esforço que faziam! O senhor sabe como eu
sempre me preocupo com os cavalos. Quando chegamos ao vale de
Sandcroft Hill, sabe o que eu fiz? O senhor vai até rir-se de mim; pois
desci do carro e me pus a caminhar. Fiz isso, sim senhor. Não era lá
grande alívio para eles, mas sempre era algum, e eu não podia suportar a
idéia de ficar sentada muito comodamente e ser carregada à custa
daqueles nobres animais. Apanhei foi um tremendo resfriado, mas isso eu
não levei em consideração. Meu objetivo estava alcançado com a visita.
– Espero que sempre tenhamos motivo para considerar a ligação
digna do trabalho que deu para a estabelecer. Mr. Rushworth não tem
nada de muito notável em suas maneiras, mas fiquei satisfeito ontem à
noite com o que me pareceu ser a opinião dele sobre certo assunto: a sua
evidente preferência por uma reunião sossegada em família em vez da
balbúrdia e a confusão de um teatro. Ele parecia sentir-se exatamente
como era de desejar.
– Sim, não há dúvida, e quanto mais o conhecer mais gostará dele.
Ele não é o que se chama uma inteligência brilhante, mas tem milhares
de qualidades excelentes e está tão disposto a seguir o seu exemplo que
até já caçoam de mim porque todos os consideram como um achado meu.
“Palavra de honra”, disse-me Mrs. Grant outro dia, “se Mr. Rushworth
fosse seu próprio filho, creio que não teria mais respeito a Sir Thomas do
que lhe tem.”
Sir Thomas desistiu de prosseguir no assunto, derrotado pelas
evasivas da cunhada e desarmado com as suas lisonjas; e foi obrigado a
se conformar com a convicção de que onde o prazer momentâneo
daqueles a quem ela amava se encontrava em jogo, a sua bondade
algumas vezes subjugava o seu julgamento.
Foi uma manhã ocupada para ele. As conversações que tivera, não
lhe tomaram senão uma parte do dia. Tinha que se reintegrar aos
afazeres habituais da vida em Mansfield; ver o seu mordomo e o seu
administrador; examinar e avaliar e, nos intervalos dos negócios, andar
pelas estrebarias, pelos jardins e plantações mais próximas. Ativo e
metódico, quando se sentou à mesa de jantar, já havia não só feito tudo
isso e assumido o comando como chefe da casa, como também já
ordenara ao carpinteiro que pusesse abaixo tudo que acabara de
construir na sala de bilhar e despedira o pintor de cenários há tempo
bastante para justificar a agradável suposição de que, àquela hora, ele já
se achava bem distante de lá. O pintor havia se retirado, tendo apenas
entregado o assoalho de uma sala, gasto todas as escovas do cocheiro e
deixado cinco dos trabalhadores preguiçosos e descontentes; e Sir
Thomas tinha esperança de que um ou dois dias mais seriam suficientes
para apagar todos os vestígios do que se havia passado, até mesmo a
destruição das inúmeras cópias de “Juras de Amor” existentes em casa,
pois ele próprio ia queimando todas que encontrava.
Mr. Yates começava agora a compreender a intenção de Sir Thomas,
embora longe de entender os seus motivos. Ele e o amigo tinham estado
fora com as suas espingardas a maior parte da manhã e Tom aproveitara
a oportunidade para lhe explicar o caso, desculpando como pôde o
comportamento do pai. Mr. Yates ficou tão decepcionado quanto se
poderia supor. Ser logrado pela segunda vez da mesma maneira, era
realmente uma falta de sorte; e sua indignação foi tal que, se não fosse
por delicadeza ao amigo, e pela irmã mais moça do amigo, tinha a certeza
de que atacaria o baronete pelo absurdo do seu procedimento e o levaria
a raciocinar com um pouco mais de critério. Acreditava nisso muito
resolutamente enquanto estava na floresta de Mansfield e durante todo o
caminho para casa; mas quando se sentaram à mesma mesa, havia uma
qualquer coisa em Sir Thomas , que fez Mr. Yates achar mais avisado
deixá-lo prosseguir em seus próprios intentos e observar sua loucura sem
discutir. Conhecera já muitos pais desagradáveis e freqüentemente havia
se escandalizado com os embaraços que eles causavam, mas nunca, em
toda a sua vida, tinha encontrado um daquela espécie, de moral tão
incompreensível, tão infamemente tirânico como Sir Thomas. Era homem
que só mesmo em atenção aos filhos se poderia aturar, e se Mr. Yates
ainda pretendia permanecer por mais alguns dias sob seu teto, ele o
deveria agradecer à sua linda filha Julia.
O serão passou-se aparentemente suave, embora quase todos
estivessem contrariados; e a música que Sir Thomas pediu às filhas para
tocarem, auxiliou a disfarçar a falta de harmonia verdadeira. Maria
estava numa grande agitação. Era da maior importância para ela que
Crawford agora não perdesse tempo em declarar-se, e estava perturbada
por ver passar um dia sem haver qualquer progresso naquele ponto.
Esperou-o durante toda a manhã e durante todo o serão continuava a
esperá-lo. Mr. Rushworth havia partido logo cedo para Sotherton, levando
a grande novidade; ela havia aguardado ansiosamente aquele
afastamento, que poderia poupá-lo ao trabalho de voltar. Mas não tinha
visto ninguém do Presbitério, nem uma só criatura, e a notícia que lhe
chegou foi um amável bilhete de felicitações de Mrs. Grant a Lady
Bertram. Aquele era o primeiro dia, depois de muitas, muitas semanas,
em que as duas famílias estavam inteiramente separadas. Desde o
princípio de agosto, nunca mais se haviam passado vinte e quatro horas
sem que eles, de uma forma ou de outra, arranjassem um jeito para se
reunirem. Fora um dia triste, cheio de ansiedade; e o dia seguinte,
embora diferindo na espécie de contrariedades, não foi menos pesaroso.
Alguns momentos de alegria febril foram seguidos de horas de intenso
sofrimento. Henry Crawford aparecera novamente em casa, viera com o
Dr. Grant, que estava ansioso por apresentar seus cumprimentos a Sir
Thomas e numa hora, aliás muito cedo, foram recebidos na sala de
almoço, onde se encontrava quase toda a família. Sir Thomas apareceu
em seguida e Maria viu, com prazer e agitação, ser apresentado ao pai o
homem a quem ela amava. Sua comoção foi indescritível. Alguns minutos
depois, entretanto, ela ouviu Henry Crawford, que se achava sentado
entre ela e Tom, perguntar a este em voz baixa, se havia algum plano
para a continuação do espetáculo, depois daquela feliz interrupção. (E
deu um olhar de cortesia para Sir Thomas). Nesse caso, ele estaria pronto
a voltar para Mansfield a qualquer hora que desejassem: é que partiria
para Bath imediatamente, onde devia encontrar-se com o tio, com
urgência; mas se havia alguma esperança de recomeçar “Juras de Amor”
ele fazia questão de manter aquele compromisso, mesmo que tivesse que
romper com todos os outros; imporia ao tio a condição de procurá-lo logo
e sempre que ele precisasse. A peça não seria prejudicada com a sua
ausência.
– De Bath, Norfolk, Londres, York; onde eu estiver – disse ele –
atenderei ao seu chamado na mesma hora, de qualquer parte da
Inglaterra.
Foi bom que naquele momento fosse Tom que tivesse que responder
e não a irmã. Ele podia dizer imediatamente, sem o menor embaraço.
– Sinto muito que você tenha que partir; mas quanto à nossa peça,
está tudo acabado – inteiramente terminado – (olhou significativamente
para o pai). O pintor foi despedido ontem, e amanhã muito pouco restará
do teatro. Aliás eu já sabia de início que havia de acontecer isto. Mas
ainda é cedo para ir a Bath. Não encontrará ninguém lá.
– É quando meu tio costuma ir.
– Quando tenciona ir?
– Hoje mesmo, talvez vá até Banbury.
– Qual é a estrebaria que você usa quando está em Bath? – foi a
pergunta seguinte; e enquanto este assunto estava em discussão, Maria,
a quem não faltava nem orgulho nem resolução, preparava-se para
enfrentar a sua parte, com tolerável serenidade.
Crawford virou-se depois para ela, repetindo a maior parte do que
já havia dito, apenas dando às palavras uma tonalidade mais suave e uma
expressão mais forte de sentimento. Mas de que serviam suas expressões
ou a suavidade de suas palavras? Ele ia partir e se não ia partir
voluntariamente, pelo menos a sua intenção de permanecer afastado não
seria involuntária; pois, excetuando-se o encontro que deveria ter com o
tio, todos os seus compromissos eram arranjados por ele próprio. Podia
falar em necessidade mas ela conhecia a sua independência. A mão que
havia tão ternamente apertado a sua contra o coração dele! Tanto a mão
quanto o coração estavam agora igualmente parados, impassíveis! A sua
força de vontade amparava-a, mas a agonia em sua consciência era
enorme. Ela não teve que aturar por muito tempo a dor de ouvi-lo dizer o
que os seus atos contradiziam, nem ocultar o tumulto de seus
sentimentos sob a capa da polidez; pois as cortesias gerais logo o
obrigaram a se desviar dela e a visita de despedida foi muito curta. Ele se
fora – tocara sua mão pela última vez, fizera-lhe um cumprimento ao
afastar-se e a ela, agora, só restava procurar conformar-se com a solidão.
Henry Crawford havia partido, saíra de sua casa e dentro de duas horas
depois estaria fora da paróquia.
Assim terminaram todas as esperanças que a vaidade e o egoísmo
haviam proporcionado a Maria e Julia Bertram.
Julia podia alegrar-se com a idéia de que ele partira. A sua presença
já se lhe estava tornando odiosa; e se Maria não o tinha conquistado, ela
agora estava bastante indiferente para dispensar qualquer outra
vingança. E já que Henry Crawford se afastara ela poderia até lastimar a
irmã.
Fanny alegrou-se com aquele afastamento, porém com um espírito
mais puro. Deram-lhe a notícia na hora do jantar e ela a considerou como
uma benção. Por todos os outros a notícia foi comentada com tristeza; e
os méritos do moço foram enumerados com as respectivas gradações de
sentimento, desde a sinceridade do interesse muito particular de
Edmund, até ao desinteresse de sua mãe, que falava inteiramente por
tabela. Mrs. Norris começou a refletir e admirar-se de que a paixão dele
por Julia tivesse dado em nada; e quase se culpava por se haver
descuidado de a incentivar; mas também com tanta coisa em que pensar,
como era possível fazer tudo ao mesmo tempo?
Mais um dia ou dois, Mr. Yates também partiu. Na sua partida Sir
Thomas sentiu o maior interesse; desejando estar só com a família, a
presença de um estranho, mesmo superior a Mr. Yates teria sido um
aborrecimento; e aquele hóspede, frívolo e confiado, preguiçoso e
gastador, era uma contrariedade em todos os sentidos. Por si mesmo já
era aborrecido, mas como amigo de Tom e admirador de Julia tornou-se
ofensivo. Sir Thomas havia ficado indiferente a que Mr. Crawford partisse
ou não; mas os seus votos de boa viagem a Mr. Yates, quando o
acompanhou até a porta do hall, foram dados com verdadeira satisfação.
Mr. Yates esperava para ver a destruição de todos os preparativos do
teatro, em Mansfield, a remoção de tudo o que pertencera à peça: partiu
deixando a casa entregue à sua antiga sobriedade. E Sir Thomas teve a
esperança de que, vendo-o pelas costas, estaria livre do pior objeto ligado
àquela idéia, do último que lhe teria, inevitavelmente, recordado a sua
existência.
Mrs. Norris tratou de esconder da vista dele uma coisa que lhe teria
desagradado. E a cortina, cuja confecção ela havia dirigido com tanto
talento e tanto sucesso, encaminhou-se para sua própria casa, onde, por
acaso, se estava precisando tanto de um tapete verde.

CAPÍTULO 21

A volta de Sir Thomas causou uma mudança notável nos hábitos da


família, independente de “Juras de Amor”. Sob a sua direção, Mansfield
era um lugar diferente. Afastados os alegres amigos e entristecido os
espíritos de muitos, entre os da casa, estava tudo monótono, sombrio,
comparado com os dias passados – uma severa reunião de família,
raramente animada. Com a gente do Presbitério havia poucas relações.
Sir Thomas, pouco afeito a intimidades em geral, naquela ocasião estava
particularmente inclinado a não aceitar senão determinados
compromissos. Os Rushworth eram os únicos que ele admitia no círculo
de sua vida doméstica.
Edmund não se admirava que tais fossem os sentimentos do pai,
nem tinha pesar algum a não ser a exclusão dos Grants.
– É que eles – observava à Fanny – têm o direito. É como se nos
pertencessem; como se fossem uma parte de nós mesmos. Desejaria que
papai lhes fosse mais reconhecido pela grande atenção que deram à
mamãe e às minhas irmãs durante o tempo que esteve ausente. Receio
que se sintam ofendidos. A verdade é que papai quase não os conhece.
Ainda não estavam aqui, há doze meses, quando papai deixou a
Inglaterra. E se os conhecesse melhor, havia de dar à companhia deles o
valor que merece, pois são exatamente a espécie de gente que meu pai
haveria de gostar. Nós bem que precisamos, às vezes, de um pouco de
animação no nosso meio: minhas irmãs parecem desanimadas e Tom não
está certamente à vontade. O Dr. e Mrs. Grant haviam de nos alegrar, e
fazer com que nossos serões fossem mais divertidos, até mesmo para
papai.
– Você acha? – disse Fanny – na minha opinião, titio não havia de
gostar de nenhum acréscimo. Creio que ele dá valor justamente à calma
de que você fala e que o repouso no círculo de sua própria família é tudo
que ele deseja. E não me parece que nós estejamos mais sérios agora do
que costumávamos ser – isto é, antes de titio ir para o estrangeiro. Se não
me falha a memória, era justamente a mesma coisa. Nunca houve muita
risada na presença dele; ou se há alguma diferença, creio que não será
senão aquela que uma ausência tende a produzir logo no princípio. Deve
ser um certo acanhamento; mas não me recordo de que nossos serões
antigamente tivessem sido mais alegres, a não ser quando titio estava na
cidade. Nenhuma gente moça pode ser alegre, suponho, quando aqueles
a quem olham com respeito se acham em casa.
– Acho que você tem razão, Fanny – foi a resposta dele, depois de
pensar um pouco. – Creio que nossos serões apenas voltaram ao que
eram antes e não assumiram novo aspecto. A novidade foi se terem
tornado animados. No entanto, que forte impressão apenas algumas
poucas semanas podem causar! Eu me estava sentindo como se nunca
tivéssemos vivido senão assim, antigamente.
– Creio que eu sou mais séria que as outras pessoas – disse Fanny. –
Os serões não me parecem longos. Gosto de ouvir titio falar das Antilhas.
Poderia ouvi-lo uma hora inteira. Distraio-me mais com isto do que com
muitas outras coisas; enfim, eu sou diferente dos outros, parece.
– Que quer você dizer com isto? – sorriu – Quer que lhe diga que
você é diferente das outras pessoas apenas porque é mais ajuizada e
discreta? Mas quando você, ou qualquer outra pessoa, já recebeu de mim
um cumprimento, Fanny? Dirija-se a meu pai se quiser ser
cumprimentada. Ele lhe fará a vontade. Pergunte a seu tio o que ele
pensa e você ouvirá bastante elogios; e embora esses elogios sejam na
maioria sobre a sua pessoa física, você os deverá suportar e esperar que
ele veja igualmente tanta beleza na sua alma.
Essas expressões eram tão novas para Fanny que ela ficou
inteiramente embaraçada.
– Seu tio acha você muito bonita, Fanny – essa é que é a verdade.
Qualquer pessoa que não fosse eu, havia de tirar disso outra conclusão e
qualquer pessoa, menos você, havia de se ressentir por não ter sido
achada muito bonita há mais tempo; mas a verdade é que seu tio até
agora nunca a tinha admirado – e agora ele a admira. Sua pele está tão
bonita! E você ganhou tanto em aspecto! E o seu porte – não, Fanny, não
vire o rosto – é apenas um tio. Se você não pode suportar a admiração de
um tio, que será de você? Você deve realmente ir se acostumando com a
idéia de ser admirada. Deve se habituar a ser uma mulher bonita.
– Oh! Não fale assim, não fale assim – exclamava Fanny, perturbada
por sentimentos que ele não poderia adivinhar; vendo porém que ela
estava embaraçada, o rapaz mudou de assunto e apenas acrescentou
mais seriamente:
– Seu tio está inclinado a gostar de você em todos os sentidos; eu só
desejaria que conversasse mais com ele. Você é uma das que ficam mais
caladas durante o serão.
– Mas eu falo com ele mais do que costumava. Não ouviu eu o
interrogar ontem à noite sobre o tráfico de escravos?
– Ouvi – e tive esperança de que à pergunta fosse seguida de outras.
Seu tio havia de gostar que lhe tivesse pedido outras informações.
– E eu queria muito fazer outras perguntas – mas estava um silêncio
tão pavoroso! E enquanto meus primos estavam ali sentados sem dizer
uma palavra, parecendo não se interessar absolutamente pelo assunto, eu
não quis... – parecia que eu queria me exibir à custa do silêncio deles,
mostrando uma curiosidade e um prazer pelas informações que ele
decerto desejaria fossem manifestados pelas suas próprias filhas.
– Miss Crawford tinha razão no que me disse de você outro dia: que
você parecia ter tanto medo de ser notada e elogiada como as outras
mulheres têm medo de ser esquecidas. Estivemos falando a seu respeito
no Presbitério, e essas foram as palavras dela. “Aquela moça tem muita
penetração. Não conheço ninguém que distinga melhor os caracteres.”
Para uma pessoa tão jovem, é notável! Ela certamente compreende você
melhor do que a maioria daqueles que lhe conhecem já há tanto tempo; e
a respeito de algum dos outros, já percebi, por insinuações ocasionais ou
expressões que lhe escapam, que ela poderia definir o caráter de cada um
com a mesma segurança, se não fosse impedida pela delicadeza. Tinha
vontade de saber o que ela pensa de papai! Deve admirá-lo como a um
homem de boa aparência, dignidade e boas maneiras, mas, talvez, tendo-
o visto tão poucas vezes, a reserva dele tenha sido um tanto repulsiva. Se
eles se encontrassem mais vezes não tenho dúvida de que haviam de
gostar um do outro. Meu pai haveria de apreciar a vivacidade dela, e Miss
Crawford é bastante inteligente para dar valor aos predicados dele.
Desejaria que se encontrassem mais freqüentemente! Espero que ela não
imagine que papai lhe tem alguma antipatia.
– Miss Crawford deve estar bem segura do interesse que todo o
resto da família lhe tem – disse Fanny com um leve suspiro – e não há de
ficar apreensiva. E é tão natural que Sir Thomas queira agora estar só
com a família, que ela não pode se queixar por isso. Depois de algum
tempo suponho que tornaremos a nos encontrar como antigamente, com
a única diferença da estação do ano.
– É a primeira vez, desde criança, que ela passa um mês de outubro
no campo. Pois não considero Tunbridge ou Chelteham como campo; e
novembro é um mês ainda pior. Mrs. Grant está aflita, com receio de que
ela ache Mansfield muito enfadonho quando chegar o inverno.
Fanny podia ter dito muitas coisas, mas achou melhor calar-se, e
não tocar em nenhum dos muitos predicados de Miss Crawford, seus
talentos, seu caráter, sua importância, seus amigos, para não correr o
risco de fazer qualquer observação que pudesse parecer mesquinha. A
bondade com que Miss Crawford a tratava merecia pelo menos um pouco
de gratidão e assim ela mudou de assunto, falando de outras coisas.
– Creio que amanhã titio janta em Sotherton e você e Mr. Bertram
também. Nossa reunião em casa vai ficar muito reduzida. Espero que titio
continue a gostar de Mr. Rushworth.
– É impossível, Fanny. Depois de passar cinco horas com ele nesta
visita de amanhã, papai há de gostar muito menos. Se fosse somente
aturar a estupidez do dia que vamos passar! Mas a pior desgraça é que
virá depois – a impressão que ele vai deixar em Sir Thomas, que não
poderá se iludir por muito mais tempo. Tenho pena de todos, e só
desejaria que Mr. Rushworth e Maria nunca se tivessem encontrado.
Neste plano, de fato, o desapontamento de Sir Thomas estava
iminente. Nem toda a sua boa vontade para com Mr. Rushworth, nem
toda a consideração de Mr. Rushworth por ele, poderiam impedi-lo de em
breve descobrir uma parte da verdade – que Mr. Rushworth era um
homem inferior, tão ignorante em negócios quanto em livros, com opinião
em geral indecisas e parecendo não estar muito certo de si mesmo.
Esperava encontrar um genro muito diferente; e começando a
preocupar-se pelo futuro de Maria, procurou estudar os sentimentos dela.
Um pouco de observação foi o suficiente para perceber a indiferença que
havia entre eles. A atitude de Miss Bertram para com Mr. Rushworth era
fria, desinteressada. Ela não podia, não gostava dele. Sir Thomas
resolveu falar seriamente com a filha. Por muito vantajosa que fosse a
união, por muito prolongado e público que estivesse o noivado, a
felicidade dela não deveria ser sacrificada por causa disso. Ela havia,
talvez, aceitado o pedido de Mr. Rushworth muito cedo e ao conhecê-lo
melhor estava arrependida.
Com solene bondade Sir Thomas a interpelou; falou sobre os
receios que ele tinha, indagou sobre os desejos dela, pediu-lhe que fosse
franca, sincera, assegurou-lhe que se responsabilizaria por todos os
inconvenientes e que o noivado seria desmanchado se ela se sentia infeliz
com a idéia de tal casamento. Tomaria todas as providências e ela ficaria
livre. Maria teve um momento de indecisão enquanto ouvia, mas apenas
um momento; quando o pai parou de falar, ela já estava apta a lhe
responder imediatamente, com decisão e aparente calma. Agradeceu-lhe
a grande atenção, a sua bondade; porém estava inteiramente enganado
supondo que ela tivesse o menor desejo de desmanchar o noivado ou que
estivesse resolvida a mudar de opinião ou de afeto. Tinha a maior
consideração pelo caráter e pelo temperamento de Mr. Rushworth e
estava certa de que ele a faria feliz.
Sir Thomas tranqüilizou-se; e alegrou-se talvez por poder ficar
tranqüilo e apressar o negócio tanto quanto a sua consciência teria
aconselhado aos outros. Era uma aliança que ele teria desmanchado com
pesar; assim, raciocinou: Mr. Rushworth era muito jovem e ainda poderia
mudar; Mr. Rushworth, num bom meio, se aperfeiçoaria; e se Maria podia
agora aludir com tanta segurança à sua felicidade com ele, falando
certamente sem a insensatez, a cegueira do amor, deveria ser acreditada.
Os sentimentos dela, provavelmente, não eram fortes; nem ele nunca
pensara que o fossem; mas por isso mesmo a sua felicidade não seria
menor; e se ela não fazia questão que o marido tivesse um caráter forte,
brilhante, tudo o mais, certamente, estava a favor dela. Uma jovem bem
intencionada, mesmo quando não se casa por amor, em geral é mais
ligada a sua própria família; e o fato de Sotherton ser tão perto de
Mansfield devia naturalmente ser a maior atração e seria, com todas as
probabilidades, uma contínua fonte das mais amáveis e inocentes
alegrias. Tais e tais eram as reflexões de Sir Thomas, feliz por escapar ao
embaraçante desgosto de um rompimento, do espanto, dos comentários,
das censuras que isso provocaria; feliz por poder assegurar um
casamento que lhe traria um acréscimo de respeitabilidade e influência e
muito feliz por julgar ver no temperamento da filha qualquer coisa que só
seria favorável àquele fim.
Para ela, a conferência terminara com tanta satisfação como para o
pai. No estado de espírito em que se achava, sentia-se contente por ter
resolvido seu destino definitivamente; por se ter de novo empenhado a
Sotherton; por estar livre de dar possibilidade a Crawford o triunfo de
governar seus atos e destruir seus projetos; e retirou-se com altiva
resolução, decidida, porém, a portar-se mais cautelosamente para com
Mr. Rushworth dali em diante, a fim de que seu pai não tivesse novas
suspeitas.
Tivesse Sir Thomas interpelado a filha nos três ou quatro dias
depois que Henry Crawford saíra de Mansfield, antes de seus sentimentos
estarem de todo acalmados, antes de ela ter perdido todas as esperanças
ou de estar absolutamente resolvida a conformar-se com a sua sorte, a
resposta teria sido diferente; mas depois de se passarem mais três ou
quatro dias, não havendo sinal de volta, nem carta, nem recado, nem
sintoma de saudade, nem a esperança de que a separação pudesse trazer
alguma vantagem, ela esfriou suficientemente para encontrar no orgulho
e na desforra o consolo que estes lhe pudessem dar.
Henry Crawford havia destruído a sua felicidade, mas nunca
saberia o que tinha feito; e sua honra, sua dignidade, sua prosperidade,
porém, ele não haveria de destruir. Ele não teria o gosto de a ver definhar
por ele em Mansfield, rejeitando Sotherton e Londres, independência e
esplendor, só por sua causa. Agora mais do que nunca tinha necessidade
de independência; e em Mansfield ainda mais sentia aquela falta de
liberdade. Dia a dia sentia-se menos capaz de suportar o constrangimento
a que seu pai a obrigava. A liberdade que a ausência dele dera tornava-se
agora absolutamente necessária. Ela tinha que escapar dele e de
Mansfield o mais depressa possível e procurar consolo na riqueza e na
posição, na balbúrdia, na sociedade, a fim de curar a chaga de sua alma.
Estava perfeitamente resolvida e não pretendia mudar de idéia.
Para tais sentimentos a demora, mesmo a demora dos preparativos,
teria sido uma desgraça e Mr. Rushworth não poderia estar menos
impaciente do que ela pela realização do casamento. Moralmente Maria
estava bem preparada: preparada para o matrimônio pelo ódio que tinha
do seu lar, pelo constrangimento e sua tranqüilidade; pelo sofrimento de
um amor desiludido e pelo desprezo ao homem com quem se ia casar. O
resto podia esperar. As novas carruagens e mobílias podiam esperar até a
primavera quando ela estivesse em Londres e onde o seu próprio gosto
tivesse maior influência.
As partes interessadas neste assunto estando todas de acordo,
parecia que apenas algumas semanas seriam suficientes para os
determinados preparos que devem preceder um casamento.
Mrs. Rushworth estava pronta para retirar-se e entregar a casa à
jovem afortunada que seu filho havia escolhido; e logo nos primeiros dias
de novembro mudou-se, com o verdadeiro decoro de uma nobre dama,
com sua criada, seu mordomo e seu carro, para Bath, onde, nas suas
reuniões passou a ostentar os esplendores de Sotherton; gozando-os,
talvez, mais intensamente na animação de uma mesa de jogo, do que
jamais os havia gozado quando morava lá; e antes do fim daquele mesmo
mês realizou-se a cerimônia que deu a Sotherton uma nova dona.
O casamento foi muito bonito. A noiva estava elegantemente
vestida; as duas damas de honra mostravam-se exatamente como
convinha, um pouco menos bonitas; o pai levou-a ao altar; a mãe
permaneceu com o vidro de sais todo o tempo na mão, esperando ficar
aflita; a tia tentou chorar; e o ofício foi lido solenemente pelo Dr. Grant.
Os vizinhos, quando comentaram o casamento, não encontraram nada
para censurar, exceto que a carruagem em que os noivos e Julia se
retiraram da igreja havia sido a mesma já usada por Mr. Rushworth há
doze meses passados. Em tudo mais as formalidades do dia poderiam
enfrentar a investigação mais minuciosa.
Estava tudo terminado e eles haviam partido. Sir Thomas sentia-se
como se deve sentir um pai zeloso e sofria, de fato, a aflição que sua
mulher havia pensado sofrer mas que de felizmente escapara. Mrs.
Norris, muito feliz em ajudar nos preparativos, em passar o dia todo no
Park, a fim de amparar o espírito de sua irmã, em beber à saúde de Mr. e
Mrs. Rushworth com um ou dois copos de vinho a mais, estava radiante;
pois ela é quem fizera aquele casamento; ela havia feito tudo e ninguém
teria imaginado, vendo o seu orgulho, que ela tivesse jamais em sua vida
de infidelidade conjugal ou que tivesse o menor pressentimento sobre as
disposições da sobrinha, que vira crescer. A idéia do jovem casal era
viajar, depois de poucos dias, para Brighton, onde tomaria uma casa por
algumas semanas. Todos os lugares de divertimentos eram novos para
Maria, e Brighton era quase tão alegre no inverno como no verão. Depois
que se tivessem divertido bastante por lá, então chegaria o tempo para
um círculo mais amplo como Londres.
Julia ia com eles para Brighton. Desde que cessara entre as irmãs a
rivalidade, estas gradualmente foram recobrando a intimidade, e estava,
pelo menos, suficientemente amigas para que cada uma, numa ocasião
como aquela, encontrasse excessivo prazer na companhia da outra.
Qualquer companhia que não fosse o marido era essencial para a senhora
de Mr. Rushworth; e Julia estava tão ansiosa por novidades e prazeres
quanto Maria, embora não tivesse necessidade de lutar tanto para os
conseguir e fosse mais capaz de suportar uma situação inferior.
A partida deles trouxe outras mudanças para Mansfield, uma lacuna
que não se encheria senão depois de algum tempo. A roda da família
tornou-se muito reduzida; e embora ultimamente as duas Misses Bertram
não tivessem trabalhado muito para a alegrar, assim mesmo faziam falta.
Até a mãe lhes sentia a ausência; e muito mais ainda a meiga prima, que
vagava pela casa pensando nelas com uma tristeza e um afeto que elas
jamais mereceriam, pelo pouco que fizeram para isso.

CAPÍTULO 22

Com a saída das primas, aumentou a importância de Fanny.


Tornando-se como se tornou, a única moça nos serões da sala de visitas, a
única a ocupar aquele interessante lugar numa família em que ela, até ali,
estivera colocada num humilde terceiro plano, era impossível que não
fosse agora mais observada, mais considerada e cuidada do que jamais o
fora; e a pergunta “Onde anda Fanny?” tornou-se comum, mesmo quando
não precisavam dela para qualquer serviço.
Não foi somente em casa que seu prestígio aumentou, mas no
Presbitério. Naquela casa onde não entrara senão duas vezes por ano,
desde a morte de Mr. Norris, tornou-se a convidada desejada e favorita,
muito apreciada por Mary Crawford nos dias tristes e chuvosos de
novembro. Suas visitas lá, tendo começado por acaso, continuavam por
convite. Mrs. Grant, que de fato ansiava por obter qualquer distração
para a irmã, facilmente se persuadia de que estava fazendo uma grande
bondade a Fanny e lhe dando, com seus freqüentes convites, as maiores
oportunidades para instruir-se.
Tendo Fanny ido à vila numa incumbência qualquer da tia Norris,
foi surpreendida, perto do Presbitério, por uma pesada carga d'água; e
tendo sido vista por uma das janelas tentando encontrar abrigo em baixo
dos ramos de um carvalho logo adiante daquele local, foi forçada a entrar,
embora, por modéstia, tivesse relutado um pouco. Teria resistido se o
convite partisse apenas de uma empregada; mas quando o próprio Dr.
Grant saiu com um guarda-chuva, não havia mais nada a fazer senão ficar
muito envergonhada e entrar quanto antes; e para a pobre Miss
Crawford, que estava justamente contemplando a chuva num
desesperado estado de espírito, suspirando porque ela arruinaria todos os
seus planos de exercício naquela manhã e todas as possibilidades de ver
uma única criatura além deles próprios durante as seguintes vinte e
quatro horas, o som de um certo movimento na porta da frente e a
aparição de Miss Price, escorrendo água no vestíbulo, foi um encanto.
Reconheceu o valor que tem um acontecimento qualquer num dia
chuvoso no campo. Imediatamente tornou a ficar cheia de vivacidade e a
mais empenhada a ser útil a Fanny, em descobrir que ela estava mais
molhada do que a princípio parecia e em lhe arranjar roupas secas;
Fanny, depois de ser obrigada a submeter-se a todas essas atenções,
depois de ser socorrida e servida por patroas e empregadas, tendo sido,
também, obrigada, ao descer, a permanecer com elas no salão de visitas
durante uma hora enquanto a chuva continuava, foi considerada como
uma benção, uma coisa nova para se ver e distrair, o que fez Miss
Crawford ficar de bom humor até a hora de vestir-se para o jantar.
As duas irmãs foram tão amáveis com ela, tão agradáveis, que
Fanny teria apreciado a visita, se não estivesse certa de as estar
incomodando e se tivesse previsto que o tempo certamente, depois de
uma hora, havia de clarear e salvá-la da vergonha de ter de aceitar a
carruagem e os cavalos do Dr. Grant para ir para casa, como haviam
sugerido. Quanto à ansiedade que poderia causar em casa a sua ausência
com um tempo daqueles, ela não precisava preocupar-se; pois como as
duas tias eram as únicas que tinham conhecimento de sua saída, sabia
perfeitamente que não seria sentida, e que, qualquer que fosse a cabana
em que a imaginação da tia Norris resolvesse abrigá-la durante a chuva,
era evidente para a tia Bertram acreditar que na tal cabana ela deveria
estar.
Começava a clarear quando Fanny, observando uma harpa no salão,
fez algumas perguntas sobre o instrumento, o que logo deu a entender
que ela desejava muito ouvi-la tocar e obrigou-a à confissão, quase
inacreditável, de que nunca a ouvira desde que a harpa se achava em
Mansfield. Para Fanny aquilo parecia uma circunstância muito simples e
natural. Ela raramente ia ao Presbitério depois da vinda do instrumento;
não houvera motivo para que fosse lá; mas Miss Crawford, lembrando-se
de um desejo há muito tempo demonstrado sobre o assunto, ficou aflita
com seu próprio descuido; e imediatamente, acompanhadas da maior boa
vontade, seguiram-se as perguntas:
– Quer que eu toque para você agora? Que prefere que eu toque?
Dessa forma começou a tocar; feliz por ter um novo ouvinte, uma
ouvinte que parecia tão agradecida, tão cheia de admiração pela sua
execução e que não mostrava falta de gosto. Tocou até que o olhar de
Fanny, tendo-se dirigido casualmente para a janela, notou que o tempo
estava evidentemente claro; a moça fez menção de sair.
– Mais um quarto de hora – disse Miss Crawford – e vamos ver como
fica o tempo. Não queira fugir logo no primeiro sinal de bom tempo.
Aquelas nuvens estão ameaçadoras.
– Mas já passaram – respondeu Fanny. – Eu as estive observando.
Esta chuva veio do sul.
– Do sul ou do norte, conheço muito bem uma nuvem escura quando
a vejo; e não deve sair enquanto ainda estiver ameaçando. Além disso,
quero tocar mais alguma coisa para você – uma música muito bonita – a
favorita do seu primo Edmund. Tens que ficar, para ouvir a música
preferida de seu primo.
Fanny sentiu que devia ficar; embora não esperasse por aquela
referência para pensar em Edmund, naquele momento a lembrança dele
veio-lhe muito nítida na memória e ela o imaginou, sentado naquela sala
dias e dias, talvez no mesmo lugar onde se achava agora, ouvindo
enlevado a ária favorita, tocada, como ela supunha, com um timbre e
expressão superior, e conquanto ela mesma estivesse encantada e
contente por gostar do que ele gostava, ao terminar a música ela estava
mais impaciente de sair do que estivera antes; e como parecia
evidentemente resolvida, foi tão amavelmente convidada a voltar, ou
passar por lá sempre que pudesse para ouvir mais um pouco de música,
que achou necessário aceitar, caso não fizessem objeção em casa.
Tal foi a origem daquela espécie de intimidade que se fez entre elas
logo na primeira quinzena depois da partida das Misses Bertram – uma
intimidade que havia resultado principalmente do fato de Miss Crawford
precisar de novidade e que da parte de Fanny não era muito real. Fanny
visitava-as cada dois ou três dias: aquilo era como que uma fascinação:
ela não podia deixar de ir e, contudo, não a estimava, não podia pensar
como a outra e não podia sentir-se agradecida por ser convidada agora,
quando não havia mais ninguém para convidarem; e não encontrando na
conversação maior prazer a não ser casualmente, e isto mesmo muitas
vezes à custa do seu próprio raciocínio, quando por acaso faziam um
gracejo sobre pessoas e assuntos que Fanny não admitia fossem
desrespeitados. Ela ia, porém, e muitas vezes passeavam durante meia
hora no jardim de Mrs. Grant, estando o tempo extraordinariamente bom
para aquela época do ano; e aventuravam-se mesmo, algumas vezes, a
sentarem-se num dos bancos, relativamente desprotegidos,
permanecendo ali até que, no meio de alguma terna exclamação de Fanny
sobre a doçura de um outono tão prolongado, eram obrigadas por uma
súbita rajada de vento frio que derrubava sobre elas as últimas folhas
amarelas, a se erguerem à procura de aquecimento.
– Isto é lindo, muito lindo – disse Fanny, olhando em volta quando
um dia estavam assim sentadas; – cada vez que venho a este jardim fico
mais admirada do crescimento e da beleza dele. Há três anos passados
isto não era senão uma sebe rústica ao longo da parte alta do campo, que
ninguém acreditava pudesse dar em nada; e agora está transformado
num passeio, difícil de dizer se mais precioso como utilidade ou como
ornamento; talvez com mais três anos já se tenha esquecido – ou quase
esquecido o que fora antes. Que coisa admirável, como é admirável a
ação do tempo e as transformações do cérebro humano! – E seguindo o
curso desse último pensamento, ela acrescentou em seguida: – Se
qualquer uma das nossas faculdades pode ser classificada como a mais
admirável de todas, creio que deve ser a memória. Parece haver qualquer
coisa de mais incompreensível na força, nas falhas nas desigualdades da
memória do que em qualquer outro dos nossos sentidos. A memória
algumas vezes é tão fiel, tão serviçal, tão obediente; outras vezes tão
embrulhada, tão fraca; e ainda outras, tão tirânica, tão descontrolada!
Nós somos, por assim dizer, um milagre em todos os sentidos; mas as
nossas faculdades de lembrar e esquecer parecem impossíveis de
adivinhar.
Miss Crawford, desinteressada e distraída, não encontrou o que
dizer; e Fanny percebendo-o, levou a conversa para um assunto que
supunha interessá-la mais.
– Pode parecer impertinência eu estar elogiando, mas tenho que
admirar o gosto com que Mrs. Grant tratou de tudo isto. Há uma
simplificação tão suave no traçado dos caminhos! Tudo é tão espontâneo!
– Sim – respondeu Miss Crawford indiferente – está muito bem para
um lugar como este. Aqui ninguém pensa em progresso: e, entre nós, até
eu vir para Mansfield, nunca imaginei que um pastor do interior jamais
aspirasse a ter um jardim ou coisa semelhante.
– Gosto tanto de ver os pinheiros crescerem! – respondeu Fanny. – O
jardineiro de titio sempre diz que a terra aqui é melhor do que a nossa. E
parece, realmente, pelo crescimento dos loureiros e pinheiros. Os
pinheiros! Como são lindos! Pensando-se neles fica-se admirada das
variedades que existem na natureza! Sei que em alguns países as árvores
que mudam as folhas são a raridade; mas nem por isso é menos estranho
que o mesmo solo e o mesmo sol possam modificar a natureza das
plantas. Você vai pensar que eu estou fazendo poesia; mas quando saio
fico atacada deste ímpeto de admiração. Não se pode fixar os olhos na
coisa mais comum da natureza sem se encontrar motivo para uma
divagação da fantasia.
– Para falar a verdade – replicou Miss Crawford – eu sou mais ou
menos como o famoso Doge na corte de Luiz XIV; e posso declarar que
não vejo motivo para admiração neste jardim. Se alguém me tivesse dito
há um ano atrás que este lugar ia ser meu lar, que eu passaria meses e
meses aqui, como tenho feito, certamente não acreditaria. Já estou aqui
há cinco meses, que foram, aliás, os cinco meses mais calmos da minha
vida.
– Calmos demais para você, não é?
– Teoricamente eu mesma pensaria isto, mas – e seus olhos
brilharam enquanto falava – levando tudo em conta, nunca passei um
verão tão feliz. Mas daí, acrescentou com um ar mais pensativo e
baixando a voz, não se sabe em que isto dará.
O coração de Fanny bateu apressado e ela sentiu-se incapaz de
fazer conjecturas e pedir explicações. Miss Crawford, porém, com
renovada animação, logo prosseguiu:
– Mas a consciência me diz que eu estou muito mais reconciliada
com a residência no campo do que jamais havia esperado. Acho que até
seria agradável passar a metade do ano no campo; muito agradável
realmente, em certas circunstâncias. Uma casa elegante, relativamente
pequena, próxima das relações da família, em ligação constante com eles,
presidindo a melhor sociedade da região; presidindo-a talvez, até mais do
que aqueles de maior fortuna e passando do alegre círculo de tais
divertimentos para um não menos agradável “tête-à-tête” com a pessoa
de quem se gosta mais no mundo... Não há nada de assustador neste
quadro, não acha, Miss Price? Não é preciso invejar a nova Mrs.
Rushworth por ter uma casa como aquela.
– Invejar Mrs. Rushworth! – foi tudo o que Fanny pôde dizer.
– Ora, ora, seria muito ingrato nós censurarmos Mrs. Rushworth,
pois estou prevendo que haveremos de lhe dever muitas horas de alegre e
brilhante felicidade. Espero que para o ano haveremos de ir muitas vezes
a Sotherton. Um casamento como o que fez Miss Bertram é um benefício
para a comunidade; pois o principal prazer da esposa de Mr. Rushworth
deve ser de encher a casa e dar os melhores bailes de toda a redondeza.
Fanny ficou em silêncio e Miss Crawford recaiu em meditação até
que depois de alguns minutos despertou de repente e exclamou:
– Ah, lá vem ele. – Não se referia a Mr. Rushworth, mas a Edmund
que aparecia naquele momento, caminhando com Mrs. Grant em direção
a elas. – Minha irmã e Mr. Bertram! Fico tão contente por seu primo mais
velho ter ido embora, para que o segundo possa ser chamado Mr. Bertram
de novo! Mr. Edmund Bertram é um nome que soa de modo tão formal,
tão insignificante, tão inferior, que eu o detesto.
– Como nós pensamos de maneira diferente! – exclamou Fanny. –
Para mim o som de Mr. Bertram é tão frio e sem significação, tão
inteiramente sem ardor ou caráter! É somente muito distinto, nada mais.
Mas no nome de Edmund há nobreza. É um nome heróico e célebre; de
reis, príncipes e cavaleiros; parece exalar o espírito de cavalaria e o calor
das afeições.
– Reconheço que o nome em si é bom, e Lord Edmund ou Sir
Edmund soa deliciosamente; mas ponha-se-lhe na frente um Mister, e Mr.
Edmund não será mais do que Mr. John ou Mr. Thomas. Bem, vamos ao
encontro deles e deixá-los desapontados pela metade do sermão que nos
vão fazer por estarmos sentadas ao ar livre nesta época do ano,
levantando-nos antes que eles comecem?
Edmund mostrou um prazer especial em encontrá-las. Era a
primeira vez que as via juntas desde que começara aquela amizade, da
qual ouvia falar com grande satisfação. Uma amizade entre as duas
pessoas que lhe eram tão queridas, era tudo que ele poderia desejar: e
para se fazer justiça ao apaixonado, diga-se que ele, de forma alguma,
considerava Fanny como a única, ou mesmo a mais beneficiada com
aquela intimidade.
– Bem – disse Miss Crawford – então não nos vão repreender pela
nossa imprudência? Para que pensam que estivemos sentadas aqui senão
para que falassem, e nos implorassem e suplicassem que não fizéssemos
mais isto?
– Eu devia, talvez, repreendê-las – disse Edmund – se qualquer uma
das duas estivesse aqui sozinha; mas desde que cometeram a falta juntas,
fecho os olhos a muitas coisas.
– Elas não devem estar aí há muito tempo – interpôs Mrs. Grant –
pois quando subi para apanhar meu chalé, olhei-as pela janela da escada
e vi que estavam andando.
– E realmente – acrescentou Edmund – o dia está tão suave, que
dificilmente se poderia considerar imprudência estarem sentadas por
alguns minutos. Nossas estações nem sempre se podem regular pelo
calendário. Muitas vezes se podem tomar maiores liberdades no mês de
novembro do que no de maio.
– Palavra de honra – exclamou Miss Crawford – vocês dois são os
amigos mais decepcionantes e insensíveis que já encontrei! Não há meios
de se lhes dar um momento de inquietação! Nem sabem quanto nós
sofremos nem os arrepios que tivemos! Mas eu já há muito tempo percebi
que Mr. Bertram não é desses que se impressionam com esses dengues
com que as mulheres gostam de atormentar os homens. Desde o princípio
tive poucas esperanças com ele; mas você, Mrs. Grant, minha irmã,
minha própria irmã, pensei que tivesse o direito de a assustar um pouco.
– Não se adule a si mesma, minha querida Mary. Não adianta querer
me comover. Tenho minhas inquietações sim, mas essas são inteiramente
diferentes; se eu tivesse o poder de modificar o tempo, você teria era um
bom vento de leste soprando sobre si... Lá estão algumas de minhas
plantas que Robert cismou de deixar do lado de fora porque as noites têm
sido tão suaves. E eu sei bem como isto vai acabar: de repente vem uma
mudança brusca, uma geada forte vai cair sobre elas, pegando todo
mundo (pelo menos Robert) de surpresa; e eu as perderei todas. E há
coisa pior: a cozinheira acabou de me dizer que o peru, que eu estava
guardando para domingo, – e você sabe quão mais o Dr. Grant o
apreciaria no domingo, depois das fadigas do dia, – não poderá passar de
amanhã. Isto é uma injustiça e o culpado de tudo é o tempo.
– As delícias de uma dona de casa numa vila do interior! – disse
Miss Crawford com ironia. – Recomende-me ao homem das sementeiras e
ao tratador das galinhas.
– Minha querida filha, recomende o Dr. Grant ao decano de
Westminster ou de St. Paul, e eu ficarei tão satisfeita quanto você. Mas
aqui em Mansfield não temos gente importante assim. Que quer que eu
faça?
– Oh! Você não pode fazer mais do que já faz: atormentar-se
constantemente e ficar sempre de bom humor.
– Obrigada; mas ninguém pode escapar dessas pequenas
contrariedades, Mary, esteja onde estiver; e quando você estiver
estabelecida na capital e eu a for visitar, aposto que a encontrarei com os
seus aborrecimentos, apesar dos seus jardineiros e vendedores de
galinhas – ou talvez por causa deles mesmo. A escassez e a
impontualidade dessa gente ou os preços exorbitantes e os furtos, vão lhe
dar mais contrariedade.
– Pretendo ser bastante rica para não precisar me lamentar nem me
incomodar com coisa alguma dessa ordem. Uma grande fortuna é a
melhor receita que eu conheço para felicidade. Havendo dinheiro está
resolvida toda esta parte de jardins e perus.
– Pretende, então, ser muito rica? – perguntou Edmund, com um
olhar que para Fanny parecia ter uma significação muito séria.
– Com toda a certeza. E você não? Não é o que todos nós queremos?
– Não posso pretender uma coisa que está completamente fora de
meu alcance. Miss Crawford tem o direito de escolher a posição que lhe
pareça melhor. Só precisa estabelecer o número de milhões que deseja
por ano e não há dúvida que eles virão. Minhas intenções são de apenas
não ser pobre.
– Por meio de moderação e economia, cortando as suas
necessidades de acordo com a renda de que dispuser, e tudo isto.
Compreendo-o – um plano muito adequado para uma pessoa na sua idade,
com meios tão restritos e poucas relações. Que mais poderia desejar
senão uma vida decente? O senhor não tem muito tempo à sua frente; e
suas relações não estão em situação de fazer qualquer coisa por si nem
tampouco poderão mortificá-lo pelo contraste de suas próprias fortunas e
importâncias. Seja pobre e honesto, se assim o quiser – eu é que não o
invejo; creio mesmo que nem o hei de respeitar. Tenho muito mais
respeito por aqueles que são honestos e ricos.
– Seu grau de respeito pela honestidade, do rico ou do pobre, é o
que precisamente o que não me interessa. Eu não tenciono ser pobre. A
pobreza é exatamente o que eu estou resolvido a ser contra. Honestidade,
apesar de não ser rico, mesmo na circunstância de uma situação
remediada, é tudo de que eu não quero que a senhora faça pouco caso.
– Mas eu faço pouco caso, sim. Não posso deixar de desprezar uma
pessoa que se contenta com a obscuridade quando podia elevar-se a uma
posição mais distinta.
– Mas como acha que eu poderia elevar-me? Porque acha que eu
teria mais honestidade se subisse a uma posição mais elevada?
Esta pergunta não foi fácil de responder e tirou dos lábios da gentil
senhora um “Oh!” prolongado, antes de acrescentar:
– Poderia ter entrado para o Parlamento ou ter seguido a carreira
das armas há dez anos passados.
– Isto agora já não vem a propósito; e quanto à minha entrada para
o Parlamento, creio que não tenho de esperar por uma assembléia
especial para a representação dos filhos que não são primogênitos e não
têm meios suficientes para viver. Não, Miss Crawford – acrescentou ele
num tom mais sério – há certas distinções para as quais eu me sentiria
infeliz se me julgasse incapaz – absolutamente incapaz ou sem
possibilidade de obter – mas essas são de caráter diferente.
Um olhar significativo enquanto ele falava e o que pareceu uma
íntima compreensão da parte de Miss Crawford quando respondeu
gracejando, foi observado com tristeza por Fanny: e sentindo-se
inteiramente incapaz de prestar atenção a Mrs. Grant, ao lado de quem
ela agora ia acompanhando os outros, estava quase resolvida a voltar
imediatamente para casa, esperando apenas ter coragem para o dizer,
quando o grande relógio de Mansfield Park batendo três horas lhe provou
que realmente tinha estado ausente muito mais tempo do que de
costume. E de novo perguntou a si mesma se deveria despedir-se sem
demora ou esperar mais um pouco. Convencida de que deveria ir,
imediatamente começou a dizer adeus; e Edmund, nesta ocasião,
lembrou-se de que a mãe havia perguntado por ela e que ele havia ido ao
Presbitério com o fim de levar Fanny de volta.
A pressa de Fanny aumentou; e teria corrido para casa sozinha sem
esperar por Edmund; mas todos apressaram o passo e a alcançaram
dentro de casa, onde tinha que passar. O Dr. Grant estava no vestíbulo e
quando o passaram para o cumprimentar, a moça viu pelo modo de
Edmund que este tencionava voltar com ela: o primo também se estava
despedindo. Ficou agradecida. No momento em que iam sair, o Dr. Grant
convidou Edmund para jantar com ele no dia seguinte; e Fanny não teve
nem tempo de se sentir deslocada, pois Mrs. Grant, imediatamente, virou-
se para ela e pediu que lhe desse o prazer de vir também. Esta atenção
era tão inesperada, uma circunstância tão inteiramente nova na vida de
Fanny, que ela ficou cheia de surpresa e embaraço; e enquanto gaguejava
seu enorme agradecimento e suas desculpas – “não sabia se poderia” –
olhava para Edmund como que pedindo sua opinião e seu auxílio.
Edmund, porém, encantado por terem oferecido tal felicidade à prima, e
assegurando-lhe com o olhar e à meia voz que ela não tinha outra objeção
senão a que sua tia por acaso fizesse, e como ele não acreditava que sua
mãe pusesse qualquer dificuldade em dispensá-la, aconselhou-a
francamente a aceitar o convite; e embora Fanny não se aventurasse,
mesmo com o apoio dele, a assumir uma tal independência, resolveram
que, se não houvesse nada ao contrário, Mrs. Grant poderia contar com
ambos.
– E já sabem o que vai ser o jantar – disse Mrs. Grant sorrindo – o
peru, e eu garanto que há de estar muito bom; pois meu caro – disse
virando-se para o marido – a cozinheira insiste em matar o peru amanhã.
– Muito bem, muito bem – exclamou o Dr. Grant – tanto melhor; fico
contente por ver que você tem em casa uma moça tão boa. Miss Price e
Mr. Edmund Bertram, porém, têm que se arriscar. Nenhum de nós quer
ouvir o cardápio. Uma reunião entre amigos e não um jantar fabuloso, é o
que temos em vista. Um peru, ou um ganso, ou uma perna de carneiro, ou
qualquer coisa que sua cozinheira nos queira dar.
Os dois primos foram juntos para casa; e, exceto os comentários
imediatos sobre o convite, de que Edmund falou com grande satisfação,
como sendo particularmente vantajoso, para o progresso da intimidade
que ele com tanto prazer via estabelecer-se, andaram todo o tempo em
silêncio; depois, terminado aquele assunto, ele ficou pensativo e sem
vontade de falar sobre qualquer outro.

CAPÍTULO 23

– Mas porque teria Mrs. Grant convidado Fanny? – disse Lady


Bertram. – Por que motivo ela se lembrou de convidar Fanny? Fanny
nunca janta lá, como você sabe. Eu não a posso dispensar e, além disso,
estou certa de que ela não quer ir. Fanny, você não quer ir, não é?
– Se a senhora lhe pergunta desta maneira – exclamou Edmund,
impedindo a prima de falar – Fanny imediatamente dirá: “Não”; no
entanto tenho certeza, querida mamãe, de que ela gostaria de ir; e não
vejo razão para que não vá.
– Não compreendo por que Mrs. Grant teria pensado em convidá-la.
Nunca fez isto antes. Costumava convidar suas irmãs uma vez ou outra,
mas nunca convidou Fanny.
– Se a senhora precisa de mim... – prontificou-se Fanny tentando
iludir-se.
– Mas mamãe ficará com papai toda a tarde.
– É verdade que sim.
– Suponhamos que a senhora peça a opinião de papai.
– Isto é bem pensado. É o que eu farei, Edmund. Perguntarei a Sir
Thomas, logo que ele chegue, se eu posso dispensa-la.
– Como queira, mamãe; mas o que eu quero saber é a opinião de
papai sobre a conveniência de ser ou não aceito o convite; e acho que ele
julgará, não só por Mrs. Grant como por Fanny, que sendo este o primeiro
convite, deve ser aceito.
– Não sei. Perguntaremos. Ele, porém, vai ficar muito admirado de
que Mrs. Grant tenha convidado Fanny.
Não havia mais nada a dizer, ou que pudesse ser dito que
interessasse, até que Sir Thomas estivesse presente; mas o assunto
envolveria, como envolveu, seu próprio conforto no serão do dia seguinte;
por isso Lady Bertram estava tão preocupada que, meia hora depois,
quando o marido, vindo da plantação, passou um minuto pela sala, em
caminho para seu quarto de vestir, ela o chamou quando ele já ia quase
fechando a porta:
– Sir Thomas, espere um pouco – tenho uma coisa para lhe dizer.
O tom calmo e lânguido, pois ela nunca se dava ao trabalho de
erguer a voz, era sempre ouvido e atendido; e Sir Thomas voltou. A
história começou; Fanny imediatamente desapareceu da sala; pois, para
ela, ser o próprio objeto de qualquer discussão com o tio, era
insuportável. Estava ansiosa, sabia – mais ansiosa, talvez, do que devia
estar – pois que lhe importava, afinal, se fosse ou deixasse de ir? Se o tio
levasse muito tempo considerando e decidindo, com a fisionomia muito
séria e o olhar grave dirigido para ela e finalmente decidisse contra, tinha
receio de não ser capaz de aparentar convenientemente a submissão e a
indiferença devida. Sua causa, neste ínterim, prosseguia bem. Começou,
da parte de Lady Bertram:
– Vou lhe dizer uma coisa que o vai surpreender muito. Mrs. Grant
convidou Fanny para jantar.
– Bem – disse Sir Thomas, como se estivesse esperando mais
alguma coisa para completar a surpresa.
– Edmund quer que ela vá. Mas como poderei eu dispensá-la?
– Ela voltará tarde – disse Sir Thomas, olhando para o relógio – mas
quais são as suas dificuldades?
Edmund viu-se obrigado a falar e preencher os claros na história da
mãe. Contou todo o ocorrido; e ela apenas teve que acrescentar:
– Que coisa estranha! Mrs. Grant nunca costumava convidá-la.
– Não é, porém, tão natural – observou Edmund – que Mrs. Grant
procure uma visita tão agradável para a irmã?
– Nada mais natural – disse Sir Thomas, depois de uma curta
deliberação; – nem tão pouco, houvesse ou não irmã no caso, poderia uma
coisa ser mais natural. O fato de Mrs. Grant mostrar-se delicada com
Miss Price, com a sobrinha de Lady Bertram, não precisa explicações. A
minha surpresa é que esta seja a primeira vez que a convida. Fanny fez
muito bem em dar apenas uma resposta condicional. Ela parece que
pensa com juízo. Mas como eu compreendo que queira ir, e já que todas
as pessoas jovens gostam de estar juntas, não vejo razão para que lhe
seja negado este prazer.
– Mas e eu, posso passar sem ela, Sir Thomas?
– Na verdade, creio que pode.
– Ela sempre faz o chá quando minha irmã não está aqui, como
sabe.
– Sua irmã, talvez, possa ser induzida a passar o dia conosco, e eu
certamente estarei em casa.
– Bem, então Fanny pode ir, ouviu Edmund?
As boas notícias logo a seguiram. Edmund ao dirigir-se para seu
quarto, bateu na porta do quarto da prima.
– Olhe, Fanny, tudo foi resolvido satisfatoriamente e sem a menor
hesitação por parte de papai. Ele só teve uma opinião. Você deve ir.
– Obrigada, estou tão contente – respondeu Fanny instintivamente;
embora depois, quando ele saiu e ele fechou a porta, não pudesse deixar
de pensar: – E por que fico eu contente? Pois não tenho eu a certeza de
ver ou ouvir qualquer coisa lá que irá me fazer sofrer?
Apesar disso, porém, estava contente. Simples como poderia
parecer a outros olhos aquele convite, para ela tinha valor e era uma
novidade, pois, excetuando-se o dia em Sotherton, raras vezes havia
jantado fora de casa; e embora o jantar agora não fosse nem a um
quilômetro de distância e apenas de três pessoas, em todo caso era jantar
fora e todos os pequenos interesses dos preparativos eram por si um
divertimento. Não contou nem com a simpatia nem com o auxílio
daqueles que deveriam ter tomado parte nos seus sentimentos ou dirigido
seu gosto; pois Lady Bertram nunca pensava em ser útil a ninguém e Mrs.
Norris, quando veio no dia seguinte, em conseqüência de uma visita
matinal e do convite que Sir Thomas lhe fizera, estava de muito mau
humor e parecia empenhada, apenas, em diminuir o prazer da sobrinha,
tanto no presente como no futuro, quanto pudesse.
– Palavra de honra, Fanny, você está com muita sorte recebendo tal
atenção e benevolência! Deve ficar muito grata a Mrs. Grant por ter
pensado em você e à sua tia por ter consentido em que vá; na verdade
deve considerar isto como uma coisa extraordinária; pois espero que
esteja convencida que não é muito lógico você ser convidada assim,
principalmente para jantar; é uma coisa que não deve esperar que se
repita. Nem tampouco deve imaginar que o convite foi feito em atenção
particular a você; o cumprimento foi intencionalmente feito a seus tios e a
mim. Mrs. Grant achou que fazia uma delicadeza a nós lhe prestando um
pouco de atenção; do contrário nunca teria pensado nisso, e pode ficar
certa que se sua prima Julia estivesse em casa, não seria você a
convidada, de forma alguma.
Mrs. Norris havia tão engenhosamente destruído toda a parte de
Mrs. Grant no favor, que Fanny, vendo-se na iminência de ter que
responder, apenas pôde dizer que se sentia muito grata à tia Bertram por
tê-la dispensado e que estava procurando deixar todos os trabalhos de
sua tia bem adiantados para que não sentisse a sua falta.
– Oh! Pode ficar tranqüila, sua tia pode passar muito bem sem você,
senão não lhe dariam permissão para ir. Eu estarei aqui. Pode ficar bem
descansada quanto à sua tia. E espero que tenha um dia muito agradável
e ache tudo muito divertido. Mas devo observar que cinco pessoas numa
mesa é um número dos mais azarentos que existem; e me admiro de que
uma senhora tão elegante como é Mrs. Grant não tivesse pensado nisto! E
além disso, ao redor daquela enorme mesa que enche toda a sala! Será
um horror! Se o doutor, ao menos, como qualquer pessoa de bom senso,
tivesse se contentado em ficar com a minha mesa de jantar, quando eu
deixei a casa, em vez de trazer aquela mesa absurda dele, que é maior,
muito maior do que a mesa de jantar daqui, teria sido infinitamente
melhor! E ele seria muito considerado! Pois ninguém tem consideração
por uma pessoa que sai do seu próprio meio. Lembre-se disso, Fanny.
Cinco – apenas cinco ao redor daquela mesa. No entanto, aposto que
haverá jantar suficiente para dez pessoas.
Mrs. Norris tomou fôlego e continuou:
– Essa tolice das pessoas saírem da sua classe e procurarem
parecer mais do que são, faz-me lembrar que devo dar um conselho a
você, Fanny, agora que vai fazer uma visita sem a nossa companhia. Peço
e digo a você que não se mostre muito, falando e dando opiniões como se
fosse uma de suas primas, como se fosse a querida Mrs. Rushworth ou
Julia. Seria muito impróprio, pode crer. Lembre-se sempre, esteja onde
estiver, que deve ser sempre a mais humilde, a última: e não obstante
Miss Crawford estar no Presbitério como em sua própria casa, você não
deve querer igualar-se a ela. Quanto à hora de sair, deve deixar que
Edmund decida isto.
– Sim, senhora. Não pensaria em fazer outra coisa.
– E se por acaso chover, o que está com muito jeito, pois nunca vi na
minha vida uma tarde ameaçar tanta chuva, deve se arranjar da melhor
maneira que puder e não esperar que a carruagem vá buscá-la. Eu com
certeza não vou para casa hoje à noite e, portanto, a carruagem não terá
que sair por minha causa; assim é melhor que vá preparada para o que
der e vier.
A sobrinha achou isso muito razoável. Ela própria, mais do que Mrs.
Norris, fazia de seus direitos uma avaliação muito baixa; e quando Sir
Thomas logo depois, ao abrir a porta disse:
– Fanny, a que horas quer que lhe mande a carruagem? – ela ficou
tão espantada que não lhe foi possível falar.
– Meu caro Sir Thomas! – exclamou Mrs. Norris, vermelha de raiva
– Fanny pode vir à pé.
– Vir à pé! – repetiu Sir Thomas com a mais incontestável
dignidade, entrando na sala. – Minha sobrinha ir a um jantar, caminhando
a pé com um tempo destes! Quatro e vinte está bem para você?
– Sim, senhor – respondeu Fanny humildemente, sentindo-se como
uma criminosa perante Mrs. Norris; e vendo-se incapaz de permanecer
com ela, numa atitude que poderia parecer de triunfo, saiu da sala em
companhia do tio, não tendo, porém, deixado de ouvir estas palavras,
ditas na agitação de um grande despeito:
– É inútil! É bom demais! Enfim, Edmund vai também; sem dúvida é
por causa de Edmund. Observei na terça feira à noite que ele estava
rouco.
Mas Fanny não lhe deu importância. Ela sabia que a carruagem era
exclusivamente por sua causa; e ao ficar sozinha, a consideração do tio
para com ela, vindo imediatamente após as recriminações da tia, custou-
lhe algumas lágrimas de gratidão.
Num minuto o cocheiro parou à porta; outro minuto, trouxe o
cavalheiro, e como a dama, receosa de ficar atrasada, já se achava há
muitos minutos sentada na sala de visitas, Sir Thomas viu-os partir em
boa hora, como exigiam seus próprios hábitos correntemente pontuais.
– Agora deixe-me olhar para você, Fanny – disse Edmund sorrindo
bondosamente como um irmão afetuoso – e dizer se está bonita; tanto
quanto eu posso julgar com esta claridade, parece que está realmente
uma beleza. Com que vestido está?
– Com o vestido novo que titio teve a bondade de me dar para o
casamento de minha prima. Espero que não esteja elegante demais;
pensei que devia usá-lo logo que pudesse e que talvez eu não tenha outra
oportunidade durante o inverno. Espero que você não me ache ataviada
demais.
– Uma mulher está sempre bem quando se veste toda de branco.
Não, não acho que você esteja ataviada demais; está muito bem. Seu
vestido me parece muito bonito. Gosto dessas manchas brilhantes. Miss
Crawford não tem um vestido parecido com este?
Ao aproximarem-se do Presbitério passaram pelas cavalariças.
– Hei! – exclamou Edmund – temos companhia, veja uma
carruagem! A quem terão eles convidado? – E baixando a vidraça lateral
para poder distinguir: – É o carro de Crawford, garanto! Lá estão os dois
empregados dele levando-o para dentro da cocheira. Ele está aqui,
naturalmente. É uma grande surpresa, Fanny. Gostarei muito de o ver.
Não houve oportunidade, não houve tempo para Fanny dizer quão
diferente ela pensava; mas a idéia de que havia mais uma pessoa, e que
pessoa, para observá-la, aumentou-lhe enormemente o tremor com que
executou a terrível cerimônia de entrar no salão de visitas.
Mr. Crawford estava de fato no salão de visitas; tendo chegado já há
bastante tempo, estava pronto para o jantar; e os sorrisos e os olhares
satisfeitos dos três outros que se achavam à sua roda, mostravam que a
sua súbita resolução de passar alguns dias ali, ao sair de Bath, tinha sido
recebida com grande prazer. O seu encontro com Edmund foi muito
cordial; com exceção de Fanny, o prazer era geral; e até mesmo para ela
havia alguma vantagem na presença dele, visto que todo o acréscimo à
reunião só poderia fazer com que lhe fosse permitido sentar em silêncio e
despercebida. Em pouco tempo ela própria se convenceu disso; pois
conquanto ela tivesse que se resignar, como sua própria consciência lhe
dizia, e apesar da opinião de sua tia Norris, a que era a convidada de
honra naquela reunião, enquanto estavam na mesa, prevaleceu um fluxo
de conversação tão animada, na qual ela não foi chamada a tomar parte
(havia tanto a ser dito entre os dois irmãos sobre Bath, tanto entre os dois
rapazes sobre caçadas e tanto de política entre Mr. Crawford e o Dr.
Grant e de tudo e de todos ao mesmo tempo, entre Mr. Crawford e Mrs.
Grant) que lhe permitiu a liberdade de ter apenas que ouvir em silêncio e
passar assim uma tarde muito agradável. Ela não poderia, porém,
cumprimentar o recém chegado com qualquer demonstração de interesse
pela idéia de prolongar a sua estada em Mansfield, mandando buscar
seus caçadores em Norfolk. E essa idéia, sugerida pelo Dr. Grant,
aconselhada por Edmund e ardentemente apoiada pelas duas irmãs, logo
se apossou da cabeça de Crawford que parecia esperar apenas pela
aprovação de Fanny para se resolver. Sua opinião foi solicitada apenas
quanto à probabilidade de o tempo continuar firme, mas a sua resposta
foi tão curta e indiferente quanto a delicadeza permitia. Ela não poderia
desejar que ele ficasse e preferia que não lhe falasse.
Ao vê-lo, suas duas primas ausentes, especialmente Maria, lhe
voltavam muito vivas à memória; mas ele não parecia embaraçado. Ali
estava, no mesmo local onde tudo se havia passado, e aparentemente
desejando permanecer e divertir-se com as Misses Bertram, como se
nunca tivesse conhecido Mansfield em outro aspecto. Ouviu-o apenas
referir-se a elas de modo geral, até ao se reunirem todos no salão; lá,
Edmund conversando à parte com o Dr. Grant, sobre qualquer negócio
que parecia absorvê-los, Mrs. Grant ocupada na mesa do chá, ele
começou a falar delas com mais particularidades a Mary. Com um sorriso
significativo que fez Fanny odiá-lo, o rapaz disse:
– Quer dizer que Rushworth e sua linda noiva estão em Brighton?
Homem feliz!
– É, estão lá já há uma quinzena, não é Miss Price? E Julia está com
eles.
– E Mr. Yates, como presumo, não deve andar longe.
– Mr. Yates! Oh! Não sabemos nada de Mr. Yates. Não creio que ele
apareça muito nas cartas que escrevem para Mansfield Park; não é Miss
Price? Acho que minha amiga Julia é esperta demais para falar ao pai
sobre Mr. Yates.
– Pobre Mr. Rushworth e seus quarenta e dois diálogos! – continuou
Crawford. – Ninguém os poderia esquecer. Pobre diabo! Parece que o vejo
agora – o cansaço e o desespero dele. Bem, pode ser que esteja muito
enganado, mas não creio que a sua linda Maria queira jamais que ele lhe
diga quarenta e dois diálogos. – Depois acrescentou com seriedade
passageira. – Ela é boa demais para ele – boa demais. – E então, mudando
novamente de tom, dirigiu-se a Fanny com uma tranqüila galanteria: – A
senhorita era a melhor amiga de Mr. Rushworth. Sua bondade e paciência
nunca poderão ser esquecidas, – sua infatigável paciência em procurar
fazer com que ele decorasse o papel – em procurar lhe dar o cérebro que
a natureza lhe negou. Ele talvez não tenha senso o bastante para avaliar
a sua bondade, mas eu posso me arriscar a dizer que todos os outros a
apreciaram muito.
Fanny corou e ficou calada.
– Parece um sonho, um sonho agradável! – exclamou ele, e
acrescentou depois de alguns minutos de meditação: – Hei de me lembrar
sempre de nossas representações com um esquisito prazer. Havia tanto
interesse, uma tal animação, uma tão grande difusão de espírito. Todos o
sentiam. Estávamos todos cheios de vida. Havia ocupação, esperança,
solicitude, barulho o dia todo. Sempre alguma pequena objeção, alguma
pequena dúvida, uma pequena ansiedade para transpor. Nunca fui tão
feliz.
Com muita indignação Fanny repetia para si mesma: “Nunca foi
mais feliz – nunca foi tão feliz como quando fez o que sabia não ser justo!
– nunca foi tão feliz como quando se portou de modo tão desonesto e
insensível! Oh! Que alma corrompida!”
– Não tivemos sorte, Miss Price – continuou ele baixando a voz, a
fim de não ser ouvido por Edmund, e sem perceber absolutamente os
sentimentos dela; – não resta dúvida de que fomos muito sem sorte. Uma
semana mais, apenas mais uma semana, teria sido suficiente. Creio que
se tivéssemos podido dispor dos acontecimentos – se Mansfield Park
tivesse tido o poder de governar os ventos apenas por uma semana ou
duas, teria sido diferente. Não que desejássemos arriscar a vida dele com
um tremendo temporal – mas apenas com um permanente vento contrário
ou uma calmaria. Acho, Miss Price, que poderíamos nos contentar com
uma semana de calmaria no Atlântico.
Ele parecia determinado a obter uma resposta; e Fanny, virando o
rosto, disse com mais firmeza do que habitualmente:
– Quanto a mim, senhor, não teria retardado a volta do meu tio por
um dia sequer. Meu tio, quando chegou, desaprovou tanto tudo aquilo, de
modo que, na minha opinião, nós já havíamos ido longe demais.
Nunca havia falado tanto de uma só vez com ele e nunca tão
zangada com ninguém; e quando terminou, tremia e corava da sua
própria ousadia. Ele surpreendeu-se; mas depois de a observar em
silêncio por um momento, respondeu mais calmo, num tom mais sério,
como se estivesse convencido:
– Creio que tem razão. Foi mais agradável do que prudente.
Estávamos nos tornando muito espalhafatosos. – E então mudando de
conversa, quis interessá-la em outros assuntos; porém ela respondia com
tanto acanhamento e relutância, que ele não conseguiu levar avante
qualquer conversação.
Miss Crawford, que não tirava os olhos do Dr. Grant e Edmund,
observou naquele momento:
– Aqueles dois devem estar discutindo algum assunto de grande
interesse.
– O mais interessante do mundo – respondeu o irmão: – a maneira
de fazer dinheiro; como tornar maior uma boa renda. O Dr. Grant está
instruindo Mr. Bertram sobre a paróquia que ele irá receber brevemente.
Soube que ele vai ordenar-se dentro de algumas semanas. Na mesa de
jantar já estavam falando sobre isto. Estou contente por saber que
Bertram vai ficar tão bem de vida. Terá uma bela renda para criar patos e
marrecos, sem fazer muito esforço. Presumo que não serão menos de
setecentas libras por ano. Setecentas libras por ano é uma bela renda
para um irmão mais moço; e como ele continuará a viver na casa dos pais,
tal renda se destinará por completo para seus menus plaisirs; e um
sermão no Natal e um na Páscoa, creio eu, será toda a soma de seus
sacrifícios.
A irmã tentou disfarçar seus sentimento dizendo risonha:
– Não há nada que me divirta mais do que ver a felicidade com que
todos se referem à abundância daqueles que têm muito menos do que
nós. Você, Henry, ficaria bem atrapalhado se os seus menus plaisirs
tivessem de se limitar a setecentas libras por ano.
– Talvez ficasse; mas tudo isto que você conhece é inteiramente
relativo. Direitos de primogenitura e hábitos têm de ser levados em
conta. Bertram, para um filho segundo, mesmo da família de um
baronete, está muito bem. Quando ele tiver vinte e quatro ou vinte e
cinco anos terá setecentas libras, e nada que fazer para as conseguir.
Miss Crawford poderia dizer que havia alguma coisa que fazer e
sofrer, a que ela não deveria ser indiferente; mas controlou-se e deixou
passar; procurou mostrar-se calma e desinteressada quando, logo depois,
os dois cavalheiros se reuniram a eles.
– Bertram – disse Henry Crawford – faço questão de vir a Mansfield
para ouvir o seu primeiro sermão. Venho de propósito para dar coragem a
um jovem principiante. Quando vai ser? Miss Price, não se associará a
mim para darmos coragem a seu primo? Quer se comprometer a ajudá-lo
com os olhos fixos sobre ele o tempo todo – como eu o farei – a fim de que
não perca uma única palavra; ou desviando apenas o olhar para anotar
alguma frase muito bonita? Nós nos muniremos naturalmente de papel e
lápis. Quando é que vai ser? Você deve pregar em Mansfield, para que Sir
Thomas e Lady Bertram o possam ouvir.
– Hei de fugir de você, Crawford, tanto quanto puder – disse
Edmund; – pois seria muito capaz de me desconcertar; e eu sentiria mais
que você o fizesse do que qualquer outro homem.
“Será que ele não se comove com isto? – pensou Fanny. – Não, ele
não sente coisa alguma como devia.”
Como todos os convivas se achavam reunidos e os mais faladores se
atraíram mutuamente, Fanny ficou tranqüila; e como depois do chá
organizaram uma mesa de whist, – formada realmente para o
divertimento do Dr. Grant pela sua atenciosa esposa, embora não se
quisesse dar a perceber – e Miss Crawford tomou a harpa, ela não tinha
mais nada a fazer senão ouvir. A sua tranqüilidade não foi perturbada
todo o resto do serão exceto quando Mr. Crawford uma vez ou outra lhe
dirigia uma pergunta ou uma observação, que ela não podia deixar de
responder. Miss Crawford estava por demais contrariada com o que se
havia passado para se sentir inclinada por qualquer outra coisa que não
fosse a música. Com isto ela se consolava a si mesma e divertia a amiga.
A certeza de que Edmund tomaria ordens tão brevemente, caíra
sobre ela como um golpe que estava em suspenso; esperava intimamente
que qualquer coisa o impedisse ou adiasse. Sentia-se agora cheia de
amarguras e mortificação. Estava furiosa com ele. Pensara ter mais
influência sobre o moço. Já estava começando a pensar nele; acreditava
mesmo que o estivesse, com grande interesse, com quase decisiva
intenção; porém agora lhe iria pagar com a mesma indiferença. Estava
claro que Edmund não tinha sérias intenções, que não a queria de
verdade, do contrário não aceitaria uma situação a que ela, como devia
saber, nunca se submeteria. Haveria de aprender a igualá-lo em
indiferença. Dali em diante admitiria as suas atenções sem qualquer
outra idéia que não fosse a de divertir-se. Se ele podia controlar seus
afetos dessa forma, os dela não haviam de lhe causar nenhum dano.

CAPÍTULO 24

No dia seguinte Henry Crawford estava inteiramente resolvido a


passar outros quinze dias em Mansfield e, depois de mandar buscar seus
caçadores e escrever algumas linhas de explicação ao almirante, olhou
em roda enquanto selava a carta; vendo que o resto da família estava
ausente, virou-se para a irmã com um sorriso e disse:
– E como pensa que eu vou me divertir, Mary, nos dias em que não
for caçar? Estou ficando velho demais para sair mais que três vezes por
semana; tenho porém um plano para os dias de intervalo. Que pensa você
que seja?
– Caminhar e passear a cavalo comigo, talvez?
– Não exatamente, embora tenha muito prazer em ambas as coisas,
mas isto seria exercício apenas para o corpo e eu preciso cuidar da minha
alma. Ademais isto seria um divertimento fácil, sem a salutar mistura de
dificuldade e eu não gosto de comer o pão de ociosidade. Não, o meu
plano é fazer com que Fanny Price se apaixone por mim.
– Fanny Price! Loucura! Não, não. Você deve ficar satisfeito com as
duas primas dela.
– Mas eu não me satisfaço senão com Fanny Price; preciso deixar
uma marca no coração de Fanny Price. Parece que você não percebeu
bem que ela é digna de admiração. Quando estivemos falando de Fanny
ontem à noite, nenhum de vocês pareciam ter conhecimento da espantosa
mudança que se operou nela nestas últimas seis semanas. É que a vêem
todos os dias e por isso não o notaram; eu, porém, posso afirmar que está
uma criatura inteiramente diferente da que foi no outono passado.
Naquela época, era apenas uma menina calada, modesta e não muito feia.
Agora está incrivelmente bonita. Eu costumava pensar que ela não
tivesse nem cara, nem temperamento; mas naquela pele macia, que cora
tão facilmente, há decisiva beleza; e, pelo que lhe observei nos olhos e na
boca, não desanimo de que serão capazes de bastante expressão quando
tiverem alguma coisa a exprimir. E então o seu ar, seus modos, seu tout
ensemble estão tão mudados! Deve ter crescido pelo menos cinco
centímetros desde outubro.
– Ora, ora! Isto é só porque não havia outra pessoa mais alta para
comparar com ela, porque ela estava com um vestido novo e você nunca a
tinha visto antes tão bem vestida. Ela está a mesma coisa que estava em
outubro, pode crer. A verdade é que era a única moça presente a quem se
podia namorar, e você não pode passar sem namorar alguém. Eu sempre
a achei bonita – não de uma beleza estonteante – mas “bastante bonita”
como se diz; uma espécie de beleza que é individual. Os olhos poderiam
ser um pouco mais escuros, porém ela tem o sorriso muito meigo; quanto
a esta espantosa mudança, estou certa de que foi por conta de um vestido
mais elegante e de você não ter mais ninguém para olhar; de modo que,
se você começar a namorá-la, nunca me há de convencer que foi em
homenagem à beleza dela, ou que tal namoro provenha de outro qualquer
sentimento senão de sua própria ociosidade e loucura.
O irmão sorriu apenas dessa acusação e em seguida disse:
– Eu mesmo ainda não sei bem o que vou fazer de Miss Fanny. Não
a compreendo. Não poderia dizer o que ela pretendia ontem à noite. Que
temperamento tem ela? Será solene? Será esquisita? Será afetada? Por
que teria se retraído e olhado para mim com um ar tão sério? Mal pude
arrancar-lhe algumas palavras. Nunca estive tanto tempo em companhia
de uma moça, procurando entretê-la, que fosse tão mal sucedido! Nunca
encontrei uma pequena que me olhasse com tanta severidade! Preciso
tirar o melhor partido disto. O olhar dela me diz: “Não hei de gostar de
você e estou decidida a não gostar”; e eu digo que ela gostará.
– Sujeito louco! Então este é o atrativo que ela tem afinal? Isto é, o
fato de ela não se interessar por você, é que faz com que ela tenha uma
pele tão macia, o que a faz tão mais alta e que produz todos estes
encantos e graças? Só desejo realmente que você não a faça infeliz; um
pouquinho de amor, talvez, lhe faça bem e sirva para a animar, mas não
admito que a fira profundamente; ela é a melhor criatura deste mundo e é
muito sensível.
– Não há de durar mais do que quinze dias – afirmou Henry; – e se
uma quinzena for suficiente para matá-la é porque ela tem uma
constituição que nada poderá salvar. Não, não lhe causarei nenhum mal,
minha maninha! Quero só que ela me olhe com mais simpatia, que me
sorria e core, que guarde uma cadeira ao lado dela para mim e que se
alegre se eu me sentar nessa cadeira e lhe falar; que pense como eu
penso, que se interesse por todos os meus bens e prazeres, que procure
me conservar mais tempo em Mansfield e que, quando eu for embora,
sinta que nunca mais poderá ser feliz. É só isso que eu quero.
– É muito modesto! – disse Mary. – Agora não preciso ter mais
escrúpulos. Bem, não faltará oportunidade para você se fazer
recomendado, pois estamos muitas vezes juntas.
E sem tentar qualquer outra exprobração, deixou Fanny entregue
ao seu destino, um destino que, não estivesse o coração de Fanny
resguardado de certa maneira não suspeitada por Miss Crawford, poderia
ter sido muito mais cruel do que ela merecia. Sei que há, sem dúvida,
algumas jovens de dezoito anos que são inconquistáveis (ou senão nunca
se tinha lido sobre elas), que nunca se deixam persuadir a amar contra
suas vontades, mesmo que sejam empregados todos os artifícios do
talento, da polidez, da atenção e da galanteria; porém estou inclinada a
não acreditar que Fanny seria uma destas, ou a pensar que, com tanta
ternura de temperamento e tanto gosto, ela não teria escapado ilesa da
corte (embora apenas por quinze dias) de um homem como Crawford,
apesar da má opinião precedente que teria de transpor, se sua afeição já
não estivesse empenhada noutra parte. Com toda a segurança que o amor
por outro e o desprezo por ele davam à tranqüilidade da consciência que
ele estava atacando, as contínuas atenções – contínuas mas não
importunas, adaptando-se mais e mais à suavidade de seu caráter –
obrigaram-na muito rapidamente a desgostar menos dele do que de
início. Ela não havia de forma alguma esquecido o passado e continuava
como sempre a fazer dele o pior conceito; mas não podia negar a sua
sedução; era divertido, os seus modos estavam tão mudados, tão
delicado, tão séria e irrepreensivelmente delicado, que era impossível não
lhe retribuir também com delicadeza.
Poucos dias foram suficientes para operar esta mudança; e no fim
destes poucos dias, as perspectivas dele de a agradar tiveram um auxílio
proveniente de certa circunstância a qual trouxe para Fanny tal felicidade
que a tornou disposta a agradar todo o mundo. Seu irmão William, o
irmão ternamente amado e há muito tempo ausente, estava na Inglaterra
de novo. Ela própria recebera dele uma carta, algumas linhas apressadas
e felizes, escritas quando o navio estava no Canal e enviadas a
Portsmouth pelo primeiro barco que deixou o “Antuérpia”, ancorado em
Spithead; e quando Crawford entrou com o jornal na mão, esperando ser
o primeiro a trazer a feliz notícia, encontrou-a trêmula de alegria por
aquela carta e ouvindo com os olhos brilhantes, grata pelo bondoso
convite que o tio, muito calmo, estava ditando em resposta.
Fora apenas no dia precedente que Crawford tivera conhecimento
de que ela tinha tal irmão e que ele estava em tal navio, mas o interesse
então suscitado trouxe-lhe muita animação e ele decidiu que na sua volta
à capital tomaria informação sobre a data provável em que o “Antuérpia”
voltaria do Mediterrâneo, etc.; e a sorte que o fez examinar a lista de
navios naquela manhã, pareceu ser a recompensa pelo seu talento em
procurar tal método para agradá-la. Aconteceu, porém, que chegou
atrasado. Todos aqueles primeiros sentimentos, que ele esperara incitar,
já haviam sido proporcionados. Mas a sua intenção, a bondade de sua
intenção, foi reconhecida com gratidão; muita gratidão e ardor, pois em
virtude da efusão de seu amor por William, ela estava acima de sua usual
timidez.
Este querido William brevemente estaria entre eles. Não restava
dúvida de que conseguiria licença para se ausentar imediatamente, pois
que ainda era apenas aspirante de marinha; e como os pais, que moravam
naquela cidade, já deviam tê-lo visto e o viam, talvez, diariamente, as
suas férias deveriam, com justiça, ser passadas junto à irmã que havia
sido a sua melhor correspondente durante um período de sete anos, e do
tio que havia feito tanto para seu sustento e progresso; assim, não tardou
a chegar a resposta à carta dela, marcando uma data próxima para a sua
chegada; e não haviam ainda passado dez dias desde que Fanny passara
pela agitação do seu primeiro jantar fora de casa, quando se encontrou
novamente tomada de outra agitação de natureza mais elevada, vigiando
o hall, o corredor, as escadas, a fim de ouvir o primeiro ruído da
carruagem que lhe traria um irmão.
Felizmente chegou enquanto estava assim esperando, e como não
havia nem cerimônia nem receio para retardar o momento do encontro,
ela foi ter com ele no mesmo instante em que entrava, e os primeiros
minutos de esquisita emoção não tiveram interrupção nem testemunha, a
menos que os criados, ocupados em abrir as portas, pudessem ser
classificados como tal. Isto era exatamente o que Sir Thomas e Edmund
lhe haviam, separadamente, tencionado proporcionar, como cada um
provou ao outro pela presteza com que ambos aconselharam Mrs. Norris
a permanecer onde se achava, em vez de correr para o hall logo que
ouviram os ruídos da chegada.
William e Fanny não custaram a aparecer; e Sir Thomas teve o
prazer de receber, no seu protegido, certamente uma pessoa muito
diferente daquele que ele havia encaminhado há sete anos passados, um
rapaz de rosto aberto, franco, simples e de maneiras sensíveis e
respeitáveis.
Não foi senão depois de algum tempo que Fanny conseguiu
acalmar-se da agitação causada pelos últimos trinta minutos de espera e
o primeiro de prazer; custou mesmo um pouco para que ela se sentisse
realmente feliz, antes de desaparecer o desapontamento que sempre
acompanha a mudança da pessoa e ela pudesse ver no irmão o mesmo
William de antigamente e falar com ele como seu coração desejava fazer
há mais de um ano. Aquele dia, porém, chegara, percebido de afeição da
parte dele e de ternura da sua parte e muito menos embaraçado pela
polidez ou desconfiança.
No dia seguinte estiveram passeando juntos com verdadeira
alegria; e em cada dia consecutivo se renovava o tête-à-tête que Sir
Thomas não poderia olhar senão com complacência, mesmo antes de
Edmund o comentar com carinho.
Excetuando-se os momentos de particular prazer causado por
qualquer intencional ou imprevista consideração de Edmund por ela,
Fanny nunca havia sido tão feliz em sua vida, como nesta época de livre,
imparcial, confiante camaradagem com o irmão e amigo, que abria seu
coração para ela, falando-lhe de todas as suas esperanças e receios,
planos e inquietações sobre a promoção, há tanto tempo esperada e
caramente merecida; que lhe poderia dar notícias diretas e minuciosas
sobre o pai, a mãe e irmãos, dos quais raramente sabia; que se
interessava por todos os seus confortos e pequenos trabalhos no seu lar
em Mansfield, pronto a julgar cada membro daquele lar de acordo com a
opinião dela ou diferindo apenas por uma menos escrupulosa opinião e
mais ruidosa injúria à tia Norris; um irmão com quem podia recordar
todas as tristezas e alegrias de seus primeiros anos e relembrar com a
mais terna saudade, todos os antigos sofrimentos e prazeres mútuos.
Filhos da mesma família, do mesmo sangue, com os mesmos hábitos e
recordações de infância, têm em seu poder certa maneira de encontrar a
alegria, que nenhuma ligação subseqüente pode conseguir; e somente por
um longo e forçado afastamento, por uma separação que nenhuma
subseqüente ligação consegue justificar, é que esses preciosos rostos das
primeiras afeições podem ser inteiramente esquecidos. Muito
freqüentemente, ah! é isto que acontece. O amor fraternal é algumas
vezes considerado como tudo, outras é pior do que nada. Mas entre
William e Fanny Price este sentimento ainda conservava toda a primavera
e frescura, isento de qualquer oposição de interesses, não esfriado por
qualquer outro afeto, e sofrendo a influência do tempo e da ausência
apenas à medida que estes se prolongavam.
Uma tão bonita afeição não poderia deixar de engrandecer cada um
na opinião de todos aqueles que possuíam coração para dar valor aos
bons sentimentos. Henry Crawford foi um dos mais atingidos. Ele
respeitava tanto a cordial e brusca ternura do jovem marinheiro, que
chegou a dizer, com as mãos estendidas na direção da cabeça de Fanny:
– Sabe, já estou começando a gostar desta farda esquisita, apesar
de não ter acreditado que fossem feitas na Inglaterra, quando as vi pela
primeira vez. E quando Mrs. Brown e outras mulheres de comissários em
Gibraltar apareceram com esses uniformes, pensei que estivessem
loucas; Mas Fanny, porém, tem o poder de me reconciliar com qualquer
coisa; – e Crawford viu, com viva admiração, o rubor das faces de Fanny,
o brilho de seus olhos, o profundo interesse, a atenção com que ouvia o
irmão descrever qualquer dos perigos iminentes ou cenas espantosas que
um tal período no mar devem proporcionar.
Era um quadro que Henry Crawford não poderia deixar de apreciar.
Os atrativos de Fanny aumentavam – aumentavam duplamente; pois a
sensibilidade que embelezava a sua pele e iluminava o seu rosto já era em
si um atrativo. Ele já não tinha dúvidas sobre as capacidades do coração
dela. Ela tinha sentimento, genuíno sentimento. Seria alguma coisa ser
amado por uma criatura, despertar os primeiros ardores daquela jovem e
pura consciência! Estava mais interessado por ela do que havia previsto.
Uma quinzena não seria suficiente. Sua permanência tornou-se
indefinida.
William era freqüentemente convocado pelo tio para entabular a
conversação. Sir Thomas divertia-se com as narrativas dele, mas o seu
principal objetivo em as solicitar, era compreender o narrador, conhecer o
jovem pelas suas histórias; e ouvia os claros, simples e espirituosos
detalhes com grande satisfação, vendo neles uma prova de bons
princípios, de conhecimento profissional, energia, coragem e disposição,
tudo o que merecia ou prometia ser bom. Jovem como era, William já
havia visto muitas coisas. Tinha estado no Mediterrâneo; nas Antilhas;
novamente no Mediterrâneo; estivera muitas vezes em terra por favor de
seu capitão e, no período de sete anos havia conhecido todas as espécies
de perigos que o mar e a guerra poderiam oferecer. Com tais meios ao
seu alcance, era justo que fosse ouvido; e embora Mrs. Norris se agitasse
pela sala e os perturbasse com seus apartes sobre qualquer coisa trivial,
no meio da narração de um naufrágio ou de um combate, todos os outros
estavam atentos; e até Lady Bertram não podia ouvir tais horrores
impassível e sem de vez em quando levantar os olhos de seu trabalho
para dizer:
– Meu Deus! Que coisa desagradável! Admiro-me se pode querer
ser marinheiro!
Para Henry Crawford esses relatos produziam emoções diferentes.
Desejava ter sido marinheiro, ver, fazer e passar por todos aqueles
sofrimentos. Seu coração estava ardente, a imaginação incendiada e ele
sentia o maior respeito por aquele rapaz que, antes dos vinte anos, já
havia passado por tais trabalhos e dado tais provas de caráter. A glória do
heroísmo, da utilidade, do esforço, do sofrimento, fez que seus próprios
hábitos de egoísta fraqueza aparecessem em vergonhoso contraste. E ele
desejou ser um William Price, distinguindo-se e trabalhando pela sua
fortuna e distinção com aquele amor próprio e ardente felicidade, em vez
de ser o que era!
O desejo foi mais intenso do que durável. Despertou de seu sonho
de retrospecção e arrependimento por uma pergunta de Edmund sobre
seus planos para a caçada do dia seguinte; e reconheceu que era muito
bom ser um homem já rico, com cavalos e palafreneiros a sua disposição.
Num certo respeito foi melhor, pois lhe garantiu os meios de proporcionar
uma gentileza a quem ele desejava obsequiar. Com vivacidade, coragem e
curiosidade por todas as coisas, William exprimiu o desejo de caçar e
Crawford poderia dar-lhe montaria sem o menor inconveniente para si
próprio, tendo apenas que desfazer alguns escrúpulos de Sir Thomas, que
sabia melhor do que o sobrinho avaliar o valor de um tal empréstimo e
eliminar algumas inquietações de Fanny. Ela receava por William; embora
com todos os relatos dele sobre as suas proezas de equitação em vários
países, as partidas em que havia tomado parte, os rústicos cavalos e
mulas que havia montado e as vezes em que por pouco escapara de
quedas tremendas, ela não ficara convencida de que ele pudesse
governar um robusto cavalo de caça na Inglaterra. E só depois que o viu
voltar salvo e disposto, sem acidente ou vergonha, é que se acalmou e
sentiu por Mr. Crawford, por ter emprestado o cavalo, a gratidão que ele
contava merecer. Quando, pois, ficou provado que William não sofrera
nenhum dano, ela admitiu que havia sido uma bondade e até
recompensou o dono com um sorriso, quando o animal foi novamente
oferecido para que ele o usasse por alguns minutos; e outra vez, com a
maior cordialidade, de maneira a que ele não pudesse resistir, o cavalo foi
posto inteiramente à sua disposição por todo o tempo em que o moço
permanecesse em Northamptonshire.

CAPÍTULO 25

As relações entre as duas famílias neste período estavam mais


próximas de voltarem ao que haviam sido no outono, do que qualquer
membro da antiga intimidade teria suposto possível. A volta de Henry
Crawford e a chegada de William Price tiveram nisto grande influência,
mas muito mais ainda era devido à maior tolerância por parte de Sir
Thomas quanto aos ensaios de aproximação feitos pelos do Presbitério.
Seu espírito agora livre dos cuidados que a princípio o haviam
preocupado, estava mais afeito a reconhecer que os Grants e seus jovens
parentes eram realmente pessoas com que valia a pena terem relações; e
embora inteiramente longe de planejar ou imaginar qualquer
possibilidade de matrimônio para alguém que lhe era muito querido, e
desdenhando mesmo como uma mesquinhez a sua sagacidade nestes
assuntos, ele não podia deixar de perceber, de uma maneira ampla e
descuidada, que Mr. Crawford de um certo modo distinguia sua sobrinha
– e, talvez por isso mesmo, (embora inconscientemente) não se opunha a
consentir mais facilmente nos convites.
Sua presteza, porém, em aceitar o convite para jantar no
Presbitério, quando finalmente sugeriram uma reunião geral, depois de
muitos debates e muitas dúvidas sobre se valeria a pena, “porque Sir
Thomas parecia tão pouco disposto e Lady Bertram era tão indolente!”
proveio apenas da boa educação e boa vontade e nada tinha a ver com
Miss Crawford; pois foi justamente durante esta visita que ele começou a
pensar que, qualquer pessoa habituada a essas ociosas observações, teria
pensado que Mr. Crawford era admirador de Fanny Price.
A reunião foi de modo geral muito agradável, estando bem
proporcionada quanto àqueles que falavam e àqueles que ouviam; e o
próprio jantar foi elegante e abundante, conforme era o estilo dos Grants
e muito de acordo com os hábitos usuais de todos, para provocar
qualquer estranheza; exceto, naturalmente, Mrs. Norris, que nunca podia
ver nem a grande mesa nem o número de pratos servidos sem se sentir
impaciente; que sempre imaginava sentir qualquer mal estar com a
passagem dos criados por trás de sua cadeira e que sempre vinha com
alguma nova convicção de ser impossível, com tantos pratos, que alguns
não estivessem frios.
No serão ficou decidido de acordo com a determinação prévia de
Mrs. Grant e sua irmã, que depois de organizarem a mesa de whist, ainda
havia número suficiente para uma partida geral e estando todos
perfeitamente submissos e sem escolha como geralmente acontece nestas
ocasiões, ficou decidido jogarem speculation; e Lady Bertram logo se
encontrou na crítica situação de escolher entre os dois jogos e se resolver
se jogaria whist ou não. Ela hesitou. Felizmente Sir Thomas estava à mão.
– Que devo fazer Sir Thomas? Whist ou speculation? Qual dos dois
me distrairá mais?
Sir Thomas, depois de refletir um momento, recomendou
speculation. Ele próprio ia jogar whist e talvez não achasse muito
divertido tê-la como parceira.
– Muito bem – respondeu Sua Senhoria resignadamente; – então
Mrs. Grant, que seja speculation. Não entendo nada deste jogo, mas
Fanny pode me ensinar.
Aí, porém, Fanny interpôs-se, protestando ansiosamente sua igual
ignorância; ela nunca havia jogado nem visto jogar aquele jogo; Lady
Bertram teve outro momento de indecisão; mas como todos lhe
asseguraram que nada seria mais fácil, que dos jogos de carta aqueles
era o menos difícil e como Henry Crawford, imediatamente pedisse
permissão para se sentar entre Sua Senhoria e Miss Price para ensinar a
ambas, assim se fez; Sir Thomas, Mrs. Norris, o Dr. e Mrs. Grant tendo-se
sentado à mesa de whist, os seis restantes, sob a direção de Miss
Crawford, arrumaram-se ao redor da outra. Foi um ótimo arranjo para
Henry Crawford, que estava perto de Fanny, com as mãos muito
ocupadas, tendo que manejar as cartas de duas pessoas além das suas
próprias; pois, embora Fanny em três minutos já se sentisse senhora de
todas as regras do jogo, ele ainda precisava orientar as suas jogadas,
aguçar a sua avareza, controlar a sua sensibilidade, que, especialmente
quando se tratava de qualquer competição com William, era trabalho
difícil; quanto a Lady Bertram, ele teve que continuar a se encarregar de
todo o seu jogo e da sua fortuna durante a noite inteira; e se com
agilidade conseguia impedir que ela precisasse olhar as cartas no início
da partida, ainda tinha que dirigi-la no que fosse preciso fazer com elas
até ao fim.
Ele estava animadíssimo, fazendo todos os lances alegremente, com
superioridade, recursos ágeis e jovial desenvoltura que honravam o jogo;
e a alegre mesa redonda era um absoluto contraste da outra, onde
imperavam a maior sobriedade, tranqüilidade e o silêncio.
Sir Thomas por duas vezes quis saber do sucesso e do divertimento
de sua senhora, mas foi em vão; nenhum intervalo era suficientemente
longo para o tempo que suas maneiras medidas exigiam; e muito pouco
ficou sabendo da situação dela, até que Mrs. Grant, no final da primeira
partida, pôde falar com Lady Bertram.
– Espero que Vossa Senhoria esteja satisfeita com o jogo.
– Oh sim! É muito divertido realmente. Um jogo muito estranho.
Não entendo nada dele. Sei que não devo nunca ver minhas cartas; Mr.
Crawford se encarrega do resto.
– Bertram – disse Crawford um pouco depois, aproveitando um
pequeno esmorecimento no jogo – eu não cheguei a lhe contar o que me
aconteceu ontem quando ia para casa. – Eles tinham andado caçando
juntos e estavam no meio de um bom galope, a alguma distância de
Mansfield, quando, descobrindo que seu cavalo havia perdido uma
ferradura, Henry Crawford fora obrigado a desistir e voltar para trás. –
Como eu lhe disse, perdi-me no caminho ao passar por aquela casa velha,
porque eu não gosto de perguntar; mas não lhe contei que, com a minha
sorte habitual – pois nunca faço uma coisa errada que não saia ganhando
– encontrei-me justamente no lugar que tinha curiosidade de ver. De
repente, ao virar uma curva, achei-me no meio de uma pequena vila
abandonada, ao pé de umas montanhas que vão subindo suavemente; um
regato à minha frente, uma igreja situada numa espécie de colina à minha
direita – igreja esta espantosamente grande e bonita para o local e
nenhuma casa; ou metade de casa de moradia à vista, exceto uma – que
eu suponho ser o Presbitério – a uma curta distância da colina e da igreja
de que falei. Em resumo, encontrei-me em Thorton Lacey.
– Parece – disse Edmund; – mas que caminho você tomou ao passar
pela fazenda de Sewell?
– Não respondo a uma pergunta tão fora de propósito e tão
insidiosa como esta; porque, mesmo que eu respondesse a todas as
perguntas que me quisesse fazer durante uma hora, você nunca me
poderia provar que aquele lugar não era Thorton Lacey – pois tenho
certeza de que o era.
– Informou-se, então?
– Não, nunca peço informações. Mas disse a um homem que estava
remendando uma cerca que aquele lugar era Thorton Lacey e ele
concordou.
– Tem boa memória. Não me lembrava de lhe ter dito tanto sobre o
lugar.
Thorton Lacey era o nome da paróquia que lhe estava prometida,
como Miss Crawford bem o sabia; e o interesse dele na troca de um
valete com William Price aumentou.
– Bem – continuou Edmund – e que tal achou o que viu?
– Muito bonito, na verdade. Você é um sujeito feliz. Haverá trabalho
para no mínimo cinco verões, antes do lugar se tornar habitável.
– Não, não, não é tão ruim assim. Aquele galinheiro tem que ser
mudado, é verdade; porém além disso, não vejo mais nada. A casa não é
das piores e quando o galinheiro for removido, ficará com um pátio muito
razoável.
– O galinheiro deve ser removido e o lugar inteiramente plantado,
para tapar a vista da oficina do ferreiro. A casa deve ser virada para o
nascente em vez de para o poente; isto é, a entrada e os quartos
principais, devem ficar daquele lado, onde a vista é realmente magnífica.
Creio que isto pode ser feito. E no lugar em que atualmente está o jardim,
é que deve ser feito o pátio de entrada. Na parte que agora fica nos
fundos da casa, você pode fazer um novo jardim, em declive para o
sudoeste o que o tornará lindíssimo. O terreno parece que foi formado
exatamente para isto. Subi até cinqüenta metros acima do caminho, entre
a igreja e a casa, a fim de olhar em redor; e assim pude ver como poderia
ficar tudo. Não há nada mais fácil. Os prados para além do que vai ser o
jardim, bem como a parte onde ele agora está, estendendo-se do ponto
onde eu estava para o nordeste, isto é, até a estrada principal que
atravessa a vila, devem ser completamente aplainados, naturalmente;
lindos prados aqueles, todo entremeados de árvores. Pertencem ao
Presbitério, suponho; senão você os deveria comprar. E então o regato – é
preciso fazer-se qualquer coisa com aquele regato; mas ainda não resolvi
definitivamente o que será. Tive duas ou três idéias.
– Eu também tenho duas ou três idéias – disse Edmund – e uma
delas é que muito pouca coisa do seu projeto para Thorton Lacey será
posta em prática. Tenho que me contentar com menos ornamentações e
beleza. Acho que a casa deve ser modificada para que fique confortável e
tome um ar de distinção, sem muita despesa; e isso tem que ser suficiente
para mim; e, espero, será suficiente para aqueles que se interessam por
mim.
Miss Crawford, um pouco desconfiada e irritada por um certo tom
de voz e um certo olhar que julgou ter acompanhado a última expressão
da esperança dele, tratou de apressar suas trocas com William Price; e
obtendo o valete dele a um preço exorbitante, exclamou:
– Aí está, arrisco minha última ficha, como uma mulher de coragem.
Comigo não admito prudência. Não nasci para ficar parada e não fazer
nada. Se eu perder a partida, não será por não ter lutado para ganhá-la.
Ela ganhou; apenas o lucro não lhe deu para pagar o que havia
gasto para o conseguir. Distribuíram novas cartas e Crawford recomeçou
a falar sobre Thorton Lacey.
– Talvez meu plano não seja o melhor; não perdi muito tempo para o
idear; mas você pode fazer muita coisa. O lugar o merece e você próprio
não ficará satisfeito com muito menos do que é possível fazer. (Desculpe,
mas Vossa Senhoria não deve ver suas cartas. Assim, deixe-as ficar à sua
frente). O lugar merece uma reforma, Bertram. Você fala em dar à casa
um ar de distinção. Isso será feito com a remoção do galinheiro; pois
independente daquele horror, nunca vi uma casa que tivesse mais o ar de
distinção do que aquela, mais aparência de uma qualquer coisa acima de
uma mera casa de paróquia; não é um ajuntamento de compartimentos
pequenos e baixos, com tantos telhados como janelas; não é construída
com aquela densidade vulgar de uma casa quadrada de fazenda; é uma
casa sólida, ampla, que dá idéia de ter sido o lar de alguma antiga e
respeitável família, de geração em geração, durante dois séculos no
mínimo. – Miss Crawford ouvia e Edmund concordou. – Aquele ar de
residência nobre, portanto, você não pode deixar de lhe dar, se é que
pretende fazer qualquer coisa. Porém ela se presta a muito mais coisas.
(Deixa-me ver, Mary; Lady Bertram aposta doze naquela dama; não, não,
doze é mais do que ela vale. Lady Bertram não aposta doze. Ela não tem
jogo nenhum. Pode continuar). Com alguns melhoramentos como os que
eu sugeri (não estou realmente exigindo que você aceite meu plano,
embora eu esteja certo de que ninguém faria outro melhor) – você pode
dar à casa um aspecto mais nobre. De uma simples casa de moradia, pode
transformar-se com melhoramentos adequados, na residência de um
homem educado, de gosto, idéias modernas e boas relações. Tudo isto
pode se estampar nela; aquela casa poderá tomar um tal aspecto que o
seu dono será considerado por todos aqueles que passarem pela estrada,
como o maior proprietário da paróquia; principalmente porque não existe
por lá nenhuma casa nobre para lhe ser comparada; uma circunstância,
aqui entre nós, que encarece acima de todos os cálculos, o valor de uma
tal situação quanto ao privilégio e à independência. Concorda comigo,
não é? – disse com a voz mais suave virando-se para Fanny. – Já conhece o
lugar?
Fanny respondeu-lhe rapidamente que não e procurou disfarçar seu
interesse pelo assunto, dando toda atenção ao irmão, que neste momento
propunha uma troca, exigindo dela o mais que pudesse; mas Crawford
intrometeu-se com um – Não, não, não deve se desfazer da dama.
Comprou-a muito caro e seu irmão não oferece nem a metade do que ela
vale. Não, não senhor, não toque, não toque. Sua irmã não se desfaz da
dama. Ela está firmemente decidida. – Virando-se novamente para ela –
Fanny, vai ganhar a partida, com toda certeza.
– E Fanny teria preferido que William ganhasse! – disse Edmund,
sorrindo para ela. – Pobre Fanny! Não lhe permitem que se engane a si
mesma, como o quer!
– Mr. Bertram – disse Miss Crawford alguns minutos depois – sabe
como Henry é hábil nesses melhoramentos; creio que não deveria
empreender coisa alguma nesse sentido, em Thorton Lacey , sem aceitar
o auxílio dele. Basta pensar em como ele foi útil em Sotherton! Veja só
que grandes coisas foram feitas depois que nós todos fomos lá, num dia
quente de agosto, para examinar o terreno e ver o gênio de meu irmão se
inflamar. Lá fomos e de lá viemos; e o que foi feito nem se pode dizer!
Os olhos de Fanny fixaram-se em Crawford por um momento com
uma expressão mais do que grave – repreensiva mesmo; porém ao
cruzarem-se com os dele desviaram-se imediatamente. Com qualquer
coisa na consciência, Henry sacudia a cabeça para a irmã e respondeu
rindo:
– Não posso dizer que se tenha feito muito em Sotherton; mas
também o dia estava quente e nós estivemos todo o tempo perdidos,
andando atrás uns dos outros. – Logo que uma algazarra geral lhe deu
proteção, ele acrescentou em voz baixa, para que somente Fanny o
ouvisse: – Ficaria muito triste se minha capacidade para projetar fosse
julgada por aquele dia em Sotherton. Agora vejo as coisas de maneira
inteiramente diversa. Não me julgue pelo modo como procedi naquele
dia.
A palavra “Sotherton” chegou aos ouvidos de Mrs. Norris, que se
achava justamente gozando do intervalo que se seguiu a uma vaza ímpar,
favorável a ela e a Sir Thomas. E, exclamou, pois, de lá, com muito bom
humor:
– Sotherton! Sim, aquilo é que é casa, e que dia encantador nós
passamos lá! William, você está sem sorte; mas na próxima vez em que
vier espero que Mr. e Mrs. Rushworth já estejam em casa e tenho a
certeza de que será convidado amavelmente por ambos. Suas primas não
são dessas pessoas que desprezam os parentes e Mr. Rushworth é um
homem muito amável. Eles agora estão em Brighton, como sabe; estão
numa das melhores casas de lá; a fortuna de Mr. Rushworth lhes permite
este direito. Não sei exatamente a distância, porém, quando você voltar
para Portsmouth, se não for muito longe, podia ir até Brighton e
apresentar seus respeitos ao casal; e eu aproveitava para mandar por
você uma encomenda para suas primas.
– Teria muito prazer, minha tia; mas Brighton é quase em Beachy
Head ; e mesmo que eu pudesse ir até lá, não creio que seria bem
recebido numa casa tão elegante como a deles – pobre, insignificante
aspirante que sou.
Mrs. Norris ia começando a lhe assegurar, com grande entusiasmo,
da afabilidade que encontraria, quando foi interrompida por Sir Thomas
que disse com autoridade:
– Não o aconselho que vá a Brighton, William, porquanto não
faltarão melhores oportunidades para vocês se encontrarem; minhas
filhas, porém, terão prazer de estar com os primos em qualquer parte; e
você achará Mr. Rushworth sinceramente disposto a considerar como
seus próprios parentes todos os membros da nossa família.
– Preferia encontrá-lo como secretário particular do Primeiro Lord –
foi a única resposta de William, dada em voz baixa para que não fosse
ouvida na outra mesa, e o assunto terminou.
Até aí Sir Thomas ainda não havia observado nada para censurar no
procedimento de Mr. Crawford; mas ao desfazer-se a mesa de whist no
fim da segunda partida, tendo deixado o Dr. Grant e Mrs. Norris a
discutirem a última jogada, começou a observar a outra mesa e descobriu
que sua sobrinha era o alvo de atenções ou antes de declarações de um
caráter um tanto acentuado.
Henry Crawford estava no primeiro ardor de um novo plano para
Thorton Lacey; e como não se podia fazer ouvir por Edmund, detalhava-o
para sua bela vizinha, com grande intensidade no olhar. Seu novo plano
era alugar a propriedade no inverno seguinte, para poder ter sua própria
casa na vizinhança; não seria apenas para usá-la na estação de caça
(como estava dizendo à moça), embora isso fosse um dos motivos, visto
que, apesar da enorme condescendência do Dr. Grant, era impossível
acomodar os seus cavalos no lugar onde estavam agora, sem grande
inconveniência; mas o que o prendia àquela redondeza não era somente
um divertimento ou uma estação do ano; ele estava resolvido a conseguir
por ali um lugar para onde pudesse vir a qualquer tempo, uma pequena
casa de moradia à sua disposição, onde pudesse passar todas as suas
férias do ano, o que lhe permitiria manter, cultivar e aperfeiçoar aquela
amizade e intimidade com a família de Mansfield Park, à qual ele cada dia
dava mais valor. Sir Thomas ouviu e não se sentiu ofendido. Não havia
falta de respeito nas declarações do rapaz; e Fanny as recebeu com tanta
dignidade e modéstia, tanta tranqüilidade e recato, que ele não viu
motivo para a censurar. Ela pouco falou, concordava apenas com uma
coisa ou outra, e não demonstrou haver tomado para sai qualquer parte
no cumprimento nem tampouco ter encorajado os planos dele sobre
Northamptonshire. Percebendo quem o observava, Henry Crawford
dirigiu-se a Sir Thomas sobre o assunto num tom de voz menos
empolgante, mas ainda comovido.
– Estou querendo ser seu vizinho, Sir Thomas, como o senhor,
talvez, me ouviu dizer a Miss Price. Posso contar com o seu
consentimento e a sua promessa de não influenciar seu filho contra um
tal inquilino?
Sir Thomas maneou a cabeça com cortesia e respondeu:
– Esta é a única maneira pela qual eu não posso desejar vê-lo
instalado como vizinho permanente; pois espero e acredito que Edmund
ocupará sua própria casa em Thorton Lacey. Não é exato, Edmund?
Este, ao ser interpelado, teve primeiro de saber do que se tratava;
mas ao tomar conhecimento da questão, não custou a responder.
– Certamente, meu pai, não penso em outra coisa. Mas Crawford,
mesmo que eu o recuse como inquilino, você pode vir como amigo.
Considere a casa como sua, todos os invernos; e nós poderemos aumentar
as estrebarias conforme seu próprio projeto, e fazer todos os
melhoramentos que lhe possam ocorrer durante a primavera.
– Confesso que sairemos perdendo – continuou Sir Thomas. – O
afastamento dele, se bem que apenas numa distância de treze
quilômetros, será uma abreviação indesejável no círculo de nossa família;
eu ficaria, porém, profundamente desapontado se qualquer filho meu se
furtasse a um dever. É muito natural que o senhor não tivesse pensado
nisso, Mr. Crawford. Uma paróquia tem necessidades e direitos a que
somente um pastor permanente poderá atender e às quais nenhuma
delegação seria capaz de satisfazer com a mesma eficiência. Edmund
poderia, por assim dizer, cumprir suas obrigações em Thorton, isto é,
poderia pregar e ler seus sermões, sem sair de Mansfield Park; poderia ir
todos os domingos para uma casa nominalmente desabitada e cumprir
com o serviço divino; poderia ser pastor em Thorton Lacey de sete em
sete dias, por três ou quatro horas, se isso o satisfizesse. Mas não o
satisfaz. Ele sabe que a humanidade precisa de mais ensinamentos do
que um sermão semanal poderia transmitir; e se ele não viver no meio de
seus paroquianos e provar, pela atenção constante, ser para eles um
conselheiro e amigo, fará muito pouco tanto pelo bem dos outros como
pelo seu próprio.
Mr. Crawford concordou.
– Por isso repito – acrescentou Sir Thomas – que Thorton Lacey é a
única casa nesta redondeza em que não gostaria de ver Mr. Crawford
como ocupante.
Mr. Crawford agradeceu inclinando a cabeça.
– Sir Thomas – disse Edmund – sem dúvida conhece bem os deveres
de um pastor. Esperamos que o filho possa provar que ele também os
conhece.
Qualquer que fosse o efeito produzido em Henry Crawford pelo
pequeno discurso de Sir Thomas, ele causou certas sensações de mal
estar em duas outras pessoas, duas das suas mais atentas ouvintes – Miss
Crawford e Fanny. Uma das quais, não tendo nunca sabido que Thorton
seria tão proximamente e definitivamente a casa dele, estava ponderando
com os olhos baixos o que seria não ver Edmund todos os dias; e a outra,
arrebatada das agradáveis fantasias em que se estava embalando com a
descrição de seu irmão, não podendo mais, como no quadro que ela havia
formado de um futuro Thorton, fechar a igreja, suprimir o pastor e ver
apenas a residência respeitável, elegante, moderna e transitória de um
homem rico e independente, olhava para Sir Thomas com visível má
vontade, considerando-o como o destruidor de tudo aquilo e sofrendo
ainda mais pela paciência obrigatória que o seu caráter e educação
exigiam, e por não se atrever a desabafar-se com uma tentativa de lançar
no ridículo a discussão.
Todo o prazer que tivera no jogo se dissipou naquele momento. Era
tempo de acabar com as cartas, se os sermões iam prevalecer; e achou
bom dar fim à jogatina para poder refrescar o espírito com uma mudança
de lugar e vizinho.
A maioria estava agora reunida ao redor da lareira, esperando o
sinal de partida. William e Fanny eram os mais destacados.
Permaneceram juntos na mesa de jogo então deserta, conversando muito
à vontade sem pensar no resto das pessoas, até que alguém começou a
pensar neles. Henry Crawford levou a cadeira para perto dos irmãos e
sentou-se em silêncio, observando-os por alguns minutos; nesse meio
tempo ele próprio era observado por Sir Thomas, que se achava de pé,
conversando com o Dr. Grant.
– Hoje é a noite da Assembléia – disse William. – Se eu estivesse em
Portsmouth, talvez fosse assistir.
– Mas você não queria estar em Portsmouth, William.
– Não, Fanny, isto não. Terei muito tempo para estar em Portsmouth
e para dançar, também, quando não puder estar com você. E não sei se eu
tiraria muita vantagem em ir ao baile da Assembléia, já que podia não
encontrar com quem dançar. As moças de Portsmouth torcem o nariz a
qualquer pessoa que não seja comissionada. Um aspirante de marinha
não é nada. Não se é nada realmente. Você se lembra das Gregorys?
Ficaram umas moças muito bonitas, mas agora mal falam comigo, porque
Lucy está sendo cortejada por um tenente.
– Oh! Que vergonha! Mas não faz mal, William – suas faces estavam
coradas de indignação enquanto falava – Não vale a pena preocupar-se.
Isto não causa nenhum prejuízo; é o mesmo por que passaram, no seu
tempo, todos os grandes almirantes. Você deve se lembrar disso, deve
procurar se convencer de que é uma das penas por que todo marinheiro
deve passar, como o mau tempo e as privações; e com a vantagem de que
algum dia terá fim, e que tempo virá em que não suportará mais nenhum
desses sofrimentos. Quando você for tenente! Pense somente, William,
quando você for tenente, como você desprezará todas estas tolices.
– Já começo a pensar que nunca serei tenente, Fanny. Todo mundo é
promovido, menos eu.
– Oh! Meu querido William, não diga isso; não seja tão pessimista.
Titio não diz nada, mas eu estou certa de que ele fará tudo a seu alcance
para conseguir a sua promoção. Ele sabe, tanto quanto você, a
importância que há nisto.
Ela parou de falar ao perceber que o tio se achava mais próximo do
que havia suposto, e ambos acharam conveniente mudar de assunto.
– Você gosta de dançar, Fanny?
– Gosto muito; mas me canso logo.
– Gostaria de ir a um baile com você, para a ver dançar. Em
Northampton nunca há bailes? Gostaria de a ver dançar e se você
quisesse, – já que aqui ninguém saberia quem eu era, – gostaria de ser
seu par mais de uma vez. Antigamente costumávamos pular juntos,
lembra-se? Quando o homem do realejo andava pela rua? Sou um ótimo
dançarino, à minha moda, mas aposto que você é ainda melhor. – Virando-
se para o tio que agora se achava ao lado deles: – Não é verdade que
Fanny dança bem?
Fanny, atrapalhada por aquela pergunta inesperada, não sabia para
que lado olhar e como se preparar para ouvir a resposta. Alguma grave
censura ou, pelo menos, a mais fria expressão de indiferença, devia vir
para desapontar seu irmão. Mas, ao contrário, o que ouviu foi isto:
– Sinto dizer que sou incapaz de responder à sua pergunta. Nunca
vi Fanny dançar desde que era pequenina; entretanto, tenho a certeza de
que se sairá como uma fidalga, quando tivermos oportunidade de a ver
dançar, o que talvez, não demore muito.
– Eu já tive o prazer de ver sua irmã dançar, Mr. Price – disse Henry
Crawford – e posso responder a todas as perguntas que quiser fazer
sobre o assunto, para sua inteira satisfação. Creio, porém, (vendo que
Fanny estava perturbada) que o teremos de deixar para outra ocasião. Há
nesta sala uma pessoa que não gosta que se fale de Miss Price.
Era verdade que ele vira Fanny dançar uma vez; e era igualmente
verdade que ele poderia agora afirmar que a moça se movera pelo salão,
serena, elegantemente ágil num admirável compasso; mas o fato era que
ele não poderia, de forma alguma, recordar-se de como ela havia dançado
e ficou na dúvida se realmente a vira então, pois nem a notara.
Mas passou, contudo, por tê-la admirado; e Sir Thomas, de modo
algum descontente, prolongou a conversa sobre dança em geral, ficando
tão empolgado em descrever os bailes em Antigua e ouvir o sobrinho
descrever as diferentes maneiras de dançar que havia observado, que
nem ouviu anunciar a sua carruagem e só percebeu que ela os estava
esperando pelo tumulto causado por Mrs. Norris.
– Vamos Fanny; Fanny que você está esperando? Nós já vamos. Não
vê que sua tia já vai? Depressa, depressa! Não gosto de fazer o bom
Wilcox esperar. Você não deve nunca se esquecer do cocheiro e dos
cavalos. Meu caro Sir Thomas, resolvemos que a carruagem voltaria para
buscar o senhor, Edmund e William.
Sir Thomas não discutiu, pois ele mesmo havia feito aquela
determinação, que previamente comunicara à mulher e à cunhada; mas
aquilo parecia ter sido esquecido por Mrs. Norris, que gostava de
imaginar que ela própria tomara todas as providências.
A última sensação de Fanny nessa visita foi de desapontamento: o
xale que Edmund tranquilamente ia tomar da empregada para trazer e
lhe por nos ombros, foi arrebatado pelas mãos mais ágeis de Mr.
Crawford e ela foi forçada a lhe agradecer mais aquela proeminente
atenção.

CAPÍTULO 26

O desejo manifestado por William de ver Fanny dançar, causou mais


do que uma momentânea impressão sobre o tio. A esperança de uma
oportunidade, que Sir Thomas lhe havia dado, não ficou esquecida. Ele
continuava disposto a satisfazer tão amável sentimento; a satisfazer
alguém mais, que poderia desejar ver Fanny dançar, e a proporcionar
prazer ao pessoal jovem em geral; e tendo meditado sobre o assunto e
tomado sua resolução com serena independência, o resultado surgiu na
manhã seguinte à hora do almoço, quando, depois de recordar e elogiar o
que o sobrinho havia dito, acrescentou:
– Não quero, William, que você deixe o Northamptonshire sem este
prazer. Eu mesmo gostarei de os ver dançando. Você se referiu aos bailes
de Northampton. Suas primas freqüentaram alguns deles, uma vez ou
outra, mas esses não seriam convenientes para nós agora. Sua tia ficaria
muito fatigada. Creio que não devemos pensar num baile em
Northampton. Seria mais adequado se déssemos um baile em casa; e se...
– Ah, meu caro Sir Thomas! – interrompeu Mrs. Norris, – eu sabia o
que estava para vir. Sabia o que ia dizer. Se Julia estivesse em casa ou a
querida Mrs. Rushworth estivesse em Sotherton, para justificar o motivo,
o senhor estaria tentado a dar um baile em Mansfield para divertir a
gente nova. Sei que os haveria de dar. Se elas estivessem em casa para
dar graça à festa, o senhor havia de dar um baile no Natal próximo.
Agradeça a seu tio, William, agradeça a seu tio!
– Minhas filhas – respondeu Sir Thomas, interpondo-se gravemente
– tem seus prazeres em Brighton e acredito que estejam muito contentes;
o baile que pretendo dar em Mansfield será para meus sobrinhos. Se
pudéssemos estar todos juntos, nossa satisfação seria, sem dúvida, mais
completa, mas a ausência de uns não impede que os outros se divirtam.
Mrs. Norris não retrucou. Viu que ele estava decidido, e a sua
surpresa, a sua humilhação foram tão grandes que, para se recompor,
precisou ficar alguns minutos em silêncio. Um baile naquela época! Com
as filhas ausentes e sem a consultar, a ela! Não tardaria, porém, a
consolar-se. Teriam que contar com ela para fazer tudo: a Lady Bertram
seria, naturalmente, poupado todo o esforço e inquietações e tudo
recairia sobre seus ombros. Ela teria que fazer as honras do baile; e esta
reflexão tão rapidamente lhe restaurou o bom humor que ela pôde se unir
aos outros antes mesmo de eles chegarem a manifestar as suas alegrias e
seus agradecimentos.
Edmund, William e Fanny, em suas diferentes maneiras,
demonstravam e manifestavam pelo baile prometido um tão grande
prazer quanto Sir Thomas teria desejado. Edmund estava contente por
causa dos dois. Seu pai nunca havia concedido um favor ou demonstrado
uma bondade que mais o alegrasse.
Lady Bertram ficou perfeitamente calma e satisfeita; não fez
objeções. Sir Thomas comprometeu-se a não lhe dar muito trabalho; e ela
garantiu que não receava o trabalho absolutamente e na verdade ela não
imaginava que pudesse haver muita canseira.
Mrs. Norris prontamente ofereceu suas sugestões sobre as salas
que deviam ser usadas, porém descobriu que já estava tudo determinado;
e quando se arriscou a fazer conjecturas e insinuações sobre o dia, viu
que o dia também já estava estabelecido. Sir Thomas divertira-se em
formar um programa completo do sarau; e quando ela quisesse
tranquilamente ouvir, ele poderia ler a lista das famílias a serem
convidadas, nas quais ele calculava, com a possível redução motivada
pela brevidade do convite, obter suficientes rapazes e moças para formar
doze ou quatorze pares; e podia detalhar as considerações que o haviam
induzido a fixar o dia 22 como o mais conveniente. William devia estar de
volta a Portsmouth no dia 24; o dia 22 era, portanto, o último que passava
em Mansfield; e como os dias eram muito poucos, não seria aconselhável
marcar uma data mais cedo. Mrs. Norris foi obrigada a se contentar com
a idéia de que tinha pensado exatamente a mesma coisa e que estava a
ponto de propor ela mesma o dia 22 como o melhor para aquele fim.
O baile era, portanto, coisa estabelecida e, antes de escurecer, já
todos os interessados estavam a par da novidade. Os convites foram
encaminhados e naquela noite muita moça, do mesmo modo que Fanny,
foi para a cama com a cabeça cheia de felizes inquietações. Para aquela,
as inquietações quase ultrapassavam às vezes a felicidade; porque, sendo
jovem e inexperiente, com pequena liberdade de escolha e não tendo
confiança em seu próprio gosto, o “como devia vestir-se” era uma questão
de dolorosa solicitude; e o único enfeite que possuía, uma linda cruz de
âmbar que William lhe havia trazido da Sicília, era a sua maior aflição,
pois não tinha senão um pedaço de fita onde amarrá-la; e não obstante já
um dia a ter usado assim, seria permitido que o fizesse agora, quando
supunha que todas as outras moças usariam ricos adereços? E contudo,
como não usá-la? William lhe tinha querido comprar, também, uma
corrente de ouro, mas o preço estava fora de seu alcance e, por esse
motivo, se não usasse a cruz ele poderia ficar triste. Essas eram as suas
ansiedades; suficientes para lhe abaterem o espírito, mesmo ante a
perspectiva de um baile dado principalmente para sua satisfação.
Neste ínterim, os preparativos prosseguiam, e Lady Bertram
continuava sentada em seu sofá, sem se incomodar com coisa alguma.
Teve algumas conferências extraordinárias com a camareira e a dama de
companhia estava apressada, fazendo-lhe um vestido novo; Sir Thomas
dava ordens, Mrs. Norris corria de um lado para outro; mas nada disso a
incomodava, e como ela havia previsto, “não havia, de fato, trabalho
algum”.
Edmund andava por esse tempo cheio de inquietações; seu espírito
estava profundamente perturbado com a idéia de dois acontecimentos
importantes, agora muito próximos, dos quais dependiam sua vida futura
– ordenação e matrimônio; – e esses acontecimentos eram de caráter tão
sério que o baile, que seria seguido imediatamente por um deles, se
tornava menos importante a seus olhos do que aos de qualquer outra
pessoa da casa. No dia 23 iria visitar um amigo, nas proximidade de
Peterborough, o qual estava na mesma situação que ele; e na semana do
Natal ambos tomariam ordens. Uma parte do seu destino estaria então
determinada, mas a outra parte poderia não ser tão facilmente obtida.
Seus deveres estariam estabelecidos, mas a esposa que deveria
compartilhar, animar e recompensar tais deveres, poderia ainda estar
inacessível. Ele por si já se resolvera, mas nem sempre tinha a certeza de
saber as intenções de Miss Crawford. Havia muitos pontos com os quais
estavam inteiramente em desacordo; havia momentos em que ela parecia
favorável; e embora confiasse inteiramente na afeição dele, a ponto de
estar resolvido (ou quase resolvido) a tomar uma decisão dentro de pouco
tempo, logo que seus negócios estivessem arranjados e ele soubesse o
que tinha para lhe oferecer, passava por muitas inquietações, muitas
horas de dúvida quanto ao resultado. Às vezes tinha forte convicção de
que Mary o amava; podia recapitular toda uma série de estímulos e a
imaginava tão perfeita na sua afeição desinteressada como em tudo mais.
Outras vezes, porém, a dúvida e a inquietação se misturavam às suas
esperanças; e quando pensava na decisiva preferência dela pela vida de
Londres, na sua reconhecida aversão à intimidade e ao retiro, que
poderia esperar senão uma recusa? Ou então um consentimento obtido
através de súplicas, exigindo tais sacrifícios de situação e tais encargos
de sua parte, que a consciência nunca lhos poderia permitir.
O resultado dependia exclusivamente de uma única questão. Será
que Mary o amava bastante para esquecer o que para ela haviam sido
pontos essenciais? Amá-lo-ia suficientemente para que esses pontos não
fossem mais essenciais? E esta questão que ele não se cansava de repetir
a si mesmo, embora muitas vezes fosse respondida com um “sim”, às
vezes tinha o seu “não”.
Miss Crawford deveria, brevemente, deixar Mansfield e nesta
circunstância o “não” e o “sim” estavam constantemente em alternativa.
Ele percebera o brilho de seus olhos ao falar na carta da querida amiga,
que lhe reclamava uma longa visita em Londres, e na bondade de Henry
em comprometer-se a ficar onde estava até janeiro, a fim de a
acompanhar até lá; ouvira-a falar dos prazeres desta viagem com
animação na qual o “não” se traduzia em todos os tons. Mas isto ocorrera
no próprio dia em que combinaram a viagem, dentro da primeira hora
que se passou depois do arrebatamento de tal alegria, quando não via à
sua frente senão os amigos que iria visitar. Depois disso ele a vira
exprimir-se diferentemente, com outros sentimentos, com mais recato;
ouvira-a dizer a Mrs. Grant que sentiria deixá-la; que começava a
acreditar que nem os amigos nem os prazeres que iria encontrar a
recompensariam do que deixava para trás, e que, embora sentisse que
devia ir e soubesse que uma vez lá encontraria divertimento, já estava
ansiosa para voltar a Mansfield. Não era isso tudo um “sim”?
Com todas essas questões para refletir, arranjar e rearranjar,
Edmund não podia, por sua própria causa, pensar muito na noite que o
resto da família esperava com tanto interesse. Independente do prazer
que seus primos encontrariam, aquela noite não representava para ele
maior interesse do que teria qualquer outra reunião das duas famílias.
Em cada uma daquelas reuniões havia sempre a esperança de se
confirmar a sua convicção sobre o afeto de Miss Crawford; mas o
turbilhão de uma sala de baile, talvez, não fosse particularmente
favorável à manifestação de sentimentos mais sérios. Comprometê-la
previamente para as duas primeiras contradanças foi tudo em que se
resumiu a sua felicidade individual e o único preparativo para o baile em
que pensou, apesar de todo o tumulto que havia à sua volta, desde a
manhã até à noite.
Quinta feira seria o dia do baile e na quarta feira de manhã Fanny
ainda não tinha resolvido sobre o que deveria usar; decidiu procurar o
conselho de pessoas mais experientes e dirigiu-se a Mrs. Grant e sua
irmã, cujo reconhecido gosto a deixaria irrepreensível, e como Edmund e
William haviam ido a Northampton, e ela tinha motivos para supor que
Mr. Crawford estaria igualmente ausente, foi até o Presbitério sem receio
de que lhe faltasse oportunidade para discutir sobre coisas íntimas; e a
intimidade desta discussão era a parte mais importante para Fanny, que
estava um pouco acanhada de sua própria ousadia.
Encontrou-se com Miss Crawford a poucos metros do Presbitério,
indo justamente visitá-la; e como lhe pareceu que a amiga, embora
insistisse delicadamente para voltarem, não estava com vontade de
perder o passeio, Fanny lhe explicou imediatamente o assunto que levara
a procurá-la e observou que se tivesse a bondade de lhe dar a sua
opinião, a questão tanto poderia ser resolvida dentro como fora de casa.
Miss Crawford mostrou-se lisonjeada com o pedido. E depois de um
momento de reflexão, convidou Fanny para voltar, desta vez de um modo
mais cordial do que antes, e propôs que subissem para seu quarto, onde
poderiam conversar à vontade sem incomodar o Dr. e Mrs. Grant, que
estavam no salão. Era justamente o que Fanny preferia; e com grande
gratidão pela presteza e bondade com que era atendida, entraram,
subiram e logo depois estavam profundamente interessadas no assunto.
Miss Crawford, satisfeita com o apelo, deu a ela todo o auxílio de sua
influência e bom gosto, facilitou tudo com suas sugestões e procurou
tornar tudo agradável com a sua boa vontade. Tendo ficado o traje
resolvido nos pontos principais, disse Miss Crawford:
– E o que você vai usar em matéria de colar? Não vai por a cruz de
seu irmão? – E, enquanto falava, desfazia um pequeno embrulho que
Fanny já lhe tinha observado na mão, no momento em que se
encontraram.
Fanny confessou seu desejo e suas dúvidas a respeito; não sabia
como resolver, se usar a cruz ou deixar de usar. A amiga respondeu pondo
à sua frente uma caixinha de jóias e pedindo que ela escolhesse entre os
vários colares e correntes de ouro. Tal embrulho era o que Miss Crawford
trouxera e era o objeto de sua pretendida visita; e no momento, com a
maior bondade insistia com Fanny para que escolhesse um para a cruz e
que o guardasse como presente seu, dizendo tudo que lhe vinha à cabeça
para convencer Fanny de que não tivesse escrúpulos em aceitar.
– Você vê a coleção que eu tenho – disse ela – muito mais do que eu
jamais poderia ou pensaria usar. Não os ofereço como objetos novos. Não
ofereço senão um colar já velho. Você deve desculpar minha liberdade e
me fazer a gentileza de aceitar.
Fanny ainda hesitava. O presente era demasiado valioso. Mas Miss
Crawford insistia e argumentava com tão afetuosa solicitude, sobre todos
os tópicos, William e a cruz, o baile, ela própria, que finalmente
conseguiu. Fanny foi obrigada a ceder, para que não fosse tomada por
orgulhosa ou indiferente, ou outra qualquer mesquinhez, e com modesta
relutância disse que aceitava e começou a escolher. Examinava um por
um, desejando imensamente saber qual seria o menos valioso; finalmente
decidiu-se por um colar que imaginou ser o que mais lhe estava sendo
posto à vista. Era de ouro, lindamente trabalhado; e embora Fanny
tivesse preferido uma corrente mais longa e mais simples, que pensava
adaptar-se melhor ao seu fim, esperou, ao resolver-se por este, que
estivesse escolhendo o que Miss Crawford tinha menos interesse em
conservar. Miss Crawford sorriu demonstrando inteira aprovação e
imediatamente completou o presente colocando-o no pescoço dela,
fazendo-a ver como lhe ia bem. Fanny achou-o realmente muito bom e,
com exceção do que permanecia dos seus escrúpulos, ficou
excessivamente satisfeita com aquela aquisição feita tão a propósito.
Preferia, talvez, dever esse favor a outra pessoa qualquer. Mas isto era
um sentimento indigno. Miss Crawford havia antecipado seu desejo com
uma tal bondade que provava ser uma amiga verdadeira.
– Sempre que usar este colar me lembrarei de você – disse ela – e
de como você foi boa.
– Deve lembrar-se de outra pessoa também, quando usar este colar
– respondeu Miss Crawford. – Deve lembrar-se de Henry, pois a idéia foi
dele. Foi ele quem me deu esse colar e, com o presente, transfiro a você
toda a obrigação de lembrar-se do doador original. Ficará sendo uma
lembrança de família. A irmã não será lembrada por você, sem que se
lembre também do irmão.
Muito confusa e admirada, Fanny teria devolvido o presente
imediatamente. Aceitar o que havia sido presente de outra pessoa, ainda
mais de um irmão, era impossível! Não devia ser feito! E com uma aflição
e um embaraço que muito divertiam a companheira, colocou novamente o
colar no estojo e pareceu resolvida a escolher um outro ou nenhum. Miss
Crawford pensou que nunca havia visto uma consciência mais pura.
– Minha querida – disse ela rindo – de que você tem receio? Acha
que Henry vai reclamar o colar como propriedade minha e pensar que
você o roubou? Ou você está imaginando que ele vai ficar lisonjeado
demais por ver, à volta de seu adorável pescoço, um ornamento que o
dinheiro dele comprou há três anos passados, antes de saber que existia
no mundo um tal pescoço? Ou talvez – fazendo-se irônica – você suspeita
de que tenha havido conspiração entre nós e que isto que estou fazendo é
com o conhecimento e por vontade dele?
Intensamente ruborizada Fanny protestou contra tal idéia.
– Bem – então respondeu Miss Crawford mais séria, mas sem
acreditar nela absolutamente – para me convencer de que você não
suspeita de mim e que é tão alheia a cumprimentos como eu sempre
acreditei que o fosse, aceite o colar e não falemos mais nisso. Pelo fato de
ser um presente de meu irmão, você não precisa ter a mínima
preocupação, pois, de minha parte, asseguro que não tenho nenhuma em
me desfazer dele. Henry está sempre me presenteando com uma coisa ou
outra. Tenho tantos presentes dele que não é possível avaliar ou lembrar-
me nem da metade. Quanto a este colar, creio que não cheguei a usá-lo
seis vezes; é muito bonito, mas nunca o recordo; e embora eu tivesse o
mesmo prazer se você tivesse escolhido qualquer um outro, aconteceu
que você escolheu justamente o que, se eu pudesse optar, teria preferido
me desfazer e ver em seu poder que qualquer dos outros. Não diga mais
nada sobre isto. Uma bagatela como esta não vale tantas palavras.
Fanny não ousou nova oposição; e com renovados, mas menos
espontâneos agradecimentos, aceitou novamente o colar, vendo no olhar
de Miss Crawford qualquer coisa que ela compreendia bem.
Era-lhe impossível não ter percebido a mudança na atitude de Mr.
Crawford. Há muito já a percebera. Evidentemente ele procurava agradá-
la; era ousado, era atencioso, era qualquer coisa como havia sido para
com as suas primas; queria, pensava ela, brincar com a sua tranqüilidade
como havia brincado com a delas; e não teria ele alguma participação no
presente daquele colar? Ela não se podia convencer de que não a tivesse,
visto que Miss Crawford, complacente como irmã, era entretanto
indiferente como mulher e como amiga.
Refletindo cheia de dúvidas, e sentindo que a aquisição do objeto
que ela tanto desejara não lhe tinha trazido muito contentamento, dirigiu-
se para casa, fazendo aquela caminhada agora com muito mais
preocupações do que nunca.

CAPÍTULO 27

Ao chegar em casa, Fanny subiu imediatamente, a fim de depositar


a inesperada aquisição, o duvidoso presente do colar, em certa caixa
favorita na sua sala de leste, onde guardava todos os seus pequenos
tesouros; mas ao abrir a porta qual não foi a sua surpresa ao ver seu
primo Edmund sentado à mesa, escrevendo! Tal aparição, antes nunca
ocorrida, foi quase tão espantosa quanto bem acolhida.
– Fanny – disse ele logo, levantando-se e dirigindo-se a ela com
qualquer coisa na mão – peço desculpa por estar aqui. Vim procurá-la e
depois de esperar um pouco na esperança de que você viesse, estava
escrevendo para explicar a minha visita. Há de encontrar o princípio de
um bilhete; mas agora posso dizer pessoalmente que vim apenas pedir
que aceite este presentinho; uma corrente para a cruz de William. Você já
a devia ter recebido há uma semana, mas houve um atraso porque eu não
contava que tão cedo meu irmão se ausentasse da cidade; e só agora a
recebi de Northamton. Espero que goste da corrente, Fanny. Procurei
consultar a simplicidade de seu gosto; de qualquer modo, porém, eu sei
que você compreenderá minha intenção e a considerará como realmente
é, uma lembrança de um de seus mais velhos amigos.
Enquanto assim falava ia saindo apressadamente, antes que Fanny,
subjugada por mil sentimentos de dor e prazer, tivesse voz para falar;
mas, impulsionada por um desejo soberano, ela conseguiu chamá-lo:
– Oh! Meu primo, espere um momento! Por favor, espere!
Ele voltou.
– Não sei como agradecer – continuou muito agitada; – os
agradecimentos estão fora da questão. Eu sinto mais do que poderia
exprimir. Sua bondade em pensar em mim dessa maneira está acima...
– Se isto é tudo que você tem a dizer, Fanny – disse ele sorrindo e
virando-se novamente.
– Não, não é só isto. Preciso que você me aconselhe.
Quase inconscientemente abriu o pacote que ele lhe tinha posto na
mão e deparando com uma corrente de ouro, muito simples e elegante,
não pôde deixar de exclamar novamente:
– Oh! Esta é linda realmente! Esta é precisamente como eu queria!
É o único enfeite que eu já tive o desejo de possuir, e exatamente o que se
adapta à minha cruz. Devem ser e serão usados juntamente. E além disso,
vem numa ocasião tão propícia. Oh, primo, nem sei como eu lhe
agradeço.
– Minha querida Fanny, você exagera esses sentimentos. Fico muito
contente por ter gostado da corrente e por ter ela vindo em tempo de ser
usada amanhã; mas seus agradecimentos estão acima do necessário. Meu
prazer é vê-la contente, pode acreditar. Sim, pode dizer com segurança,
não há para mim prazer mais completo, mais puro. É espontâneo.
Depois de tal demonstração de afeto, Fanny poderia viver uma hora
sem dizer uma palavra; mas Edmund, após esperar um momento,
obrigou-a a voltar à realidade, perguntando:
– Mas sobre o que você queria me consultar?
Era sobre o colar, que ela agora estava aflita por devolver e queria
saber se ele aprovava que o fizesse. Contou-lhe a história de sua recente
visita e o seu entusiasmo todo esfriou; pois ao saber do ocorrido, Edmund
ficou tão tocado, tão encantado com o que Miss Crawford havia feito, tão
satisfeito com uma tal coincidência de procedimento entre eles, que
Fanny não pôde deixar de reconhecer a superioridade que tinha sobre ele
aquele prazer, embora o fizesse involuntariamente. Não foi sem custo que
conseguiu chamar a atenção do primo para o seu projeto ou que obteve
dele qualquer resposta ao seu pedido de opinião; ele estava entregue à
doce meditação, proferindo apenas de vez em quando meias frases de
louvor; mas quando despertou e compreendeu, foi decisivamente contra o
que ela desejava.
– Devolver o colar! Não, querida Fanny, de modo algum. Ela ficaria
muito aborrecida. Não existe sensação mais desagradável do que ver
devolvido um objeto que se deu com a esperança de contribuir para a
alegria de um amigo. Por que lhe estragar um prazer de que ela
demonstrou ser merecedora?
– Se ele me tivesse sido dado com essa intenção – disse Fanny – eu
não teria pensado em o devolver; mas sendo um presente do irmão dela,
não é justo que se desfaça dele, quando eu já não preciso.
– Ela não deve, pelo menos, supor que você não precisa, que não o
aceita; e que tenha sido originalmente um presente do irmão, não faz
diferença; pois, uma vez que ela o quis dar, e que você o pôde aceitar
apesar disso, não há motivo para que não o conserve. Não resta dúvida
que é muito mais bonito do que o meu e muito mais adequado para um
baile.
– Não, não é mais bonito, não é absolutamente mais bonito, nem é
tão adequado para o meu fim. A corrente está, sem comparação, muito
mais de acordo com a cruz de William do que o colar.
– Apenas por uma noite, Fanny, apenas por uma, se é um sacrifício –
tenho certeza de que você, pensando bem, preferirá fazer esse sacrifício
do que dar um desgosto a quem se interessou tanto pelo seu bem. A
atenção de Miss Crawford para com você – não que você não o
merecesse; eu seria a última pessoa a pensar tal – foi excepcional; e
devolver o presente de modo a que pudesse ser tomado por ingratidão,
apesar de eu saber que não seria isso, não está no seu temperamento,
estou certo. Use o colar, como você prometeu usar, amanha à noite, e
guarde a corrente, que não foi dada com essa intenção, para outras
ocasiões. É este o meu conselho. Não desejaria a sombra da indiferença
entre as duas pessoas, cuja intimidade eu tenho observado com o maior
prazer e cujos caracteres se assemelham tanto em verdadeira
generosidade e natural delicadeza, a ponto de as poucas e leves
diferenças, resultantes principalmente da situação, não constituírem
impedimento para uma perfeita amizade. Não desejaria ver a sombra da
indiferença – repetiu ele com a voz um tanto comovida – entre as duas
pessoas a quem mais quero neste mundo.
Saiu; Fanny permaneceu na sala, procurando tranqüilizar-se como
pôde. Ela era então uma das duas mais queridas – isto deveria consolá-la.
Mas a outra: a primeira! Ele nunca havia falado tão abertamente e
embora isto não lhe dissesse mais do que ela há muito percebera, foi uma
punhalada, porque demonstrava as próprias convicções e os pontos de
vista de Edmund. Aquelas eram decisivas. Ele se casaria com Miss
Crawford. Era uma punhalada, apesar de não ser novidade. Teve que
repetir muitas vezes que ela era apenas uma das duas mais queridas,
antes de o acreditar. Se ao menos acreditasse que Miss Crawford o
merecia, poderia ser – oh! como seria diferente – como seria mais
tolerável. Mas ele estava sendo enganado; atribuía-lhe qualidades que ela
não tinha; seus defeitos continuavam a ser os mesmos, porém ele não os
via mais. Enquanto muitas lágrimas não correram sobre a sua mágoa,
Fanny não pôde subjugar a agitação; e o abatimento que se seguiu
somente foi aliviado pela influência das fervorosas orações que fez pela
felicidade dele.
A intenção dela era, como pensava que devia ser, procurar dominar
tudo o que fosse excessivo, tudo que se aproximasse de egoísmo, em sua
amizade por Edmund. Chamar ou mesmo imaginar que aquilo fora um
desapontamento, seria uma presunção para a qual ela não tinha palavras
suficientemente fortes que justificassem sua própria humildade. Pensar
nele como Miss Crawford tinha o direito de pensar, em seu caso seria
loucura. Para ela, ele nunca seria nada, em nenhuma circunstância; nada
mais senão um amigo. Por que lhe teria ocorrido tal idéia, embora
bastante para ser reprovada e proibida? Não deveria ter nem tocado nos
confins da sua imaginação. Procuraria por uma sã inteligência e
honestidade, ser razoável e merecer o direito de julgar o caráter de Miss
Crawford e o privilégio da verdadeira solicitude por ele.
Portou-se com heroísmo e resolveu-se a cumprir o seu dever, mas
não é de estranhar que, sendo tão jovem e de temperamento tão terno,
ela, depois de tomar todas essas resoluções para se controlar, apanhasse
o pedaço de papel onde Edmund tinha começado a escrever, como um
tesouro fora do alcance de suas esperanças, lesse com a mais terna
emoção as palavras “Minha querida Fanny, peço que você me faça o favor
de aceitar” – e o guardasse juntamente com a corrente, como a parte
mais valiosa do presente. Era a única coisa semelhante a uma carta que
ela jamais recebera dele; talvez nunca recebesse outra; era impossível
que jamais viesse a receber outra que lhe desse tanto contentamento,
tanto quanto à ocasião como quanto ao estilo. Duas linhas mais estimadas
jamais saíram da pena do mais célebre autor – e jamais foram
completamente felizes as pesquisas do mais apaixonado biógrafo. O
entusiasmo do amor de uma mulher está acima da descrição dos
biógrafos. Para ela, o manuscrito em si, independente de qualquer coisa
que ele exprima, é uma bem-aventurança. Nunca tais caracteres deram a
outro ser humano tanta alegria como a que deram a Fanny as simples
letras de Edmund. Esse bilhete, escrito às pressas como foi, não tinha um
defeito; e havia uma tal felicidade no decorrer das quatro primeiras
palavras, no arranjo da frase – “Minha querida Fanny”, que ela as poderia
ficar contemplando toda a vida.
Tendo controlado os pensamentos e confortado os sentimentos com
esta feliz mistura de razão e fraqueza, ela se sentiu capaz, em tempo, de
descer e cuidar de seus usuais afazeres junto da tia Bertram e prestar-lhe
as habituais considerações sem demonstrar um mínimo abatimento.
Chegou a quinta feira, dia predestinado para a esperança e a
alegria; para Fanny o dia começou com maior felicidade do que oferecem
os dias comuns, pois logo depois do almoço William recebeu um bilhete
muito amável de Mr. Crawford, no qual informava que, como era obrigado
a ir a Londres no dia seguinte, desejava encontrar uma companhia; e
assim, esperava que William, caso se decidisse a deixar Mansfield um dia
mais cedo do que havia pensado, aceitasse um lugar em sua carruagem.
Mr. Crawford pretendia estar na cidade à hora habitual do jantar do seu
tio. A proposta não poderia ser mais agradável ao próprio William, que
antecipava o prazer de viajar numa carruagem com quatro cavalos e na
companhia de um amigo tão bem humorado e alegre; e Fanny, por motivo
diferente, estava excessivamente feliz; pois a idéia original era que
William viajaria na noite seguinte, pela costa de Northampton, o que não
lhe daria uma hora de descanso antes de tomar o coche para Portsmouth;
e embora esse oferecimento de Mr. Crawford lhe roubasse muitas horas
da companhia do irmão, ela se alegrou por ver William poupado da fadiga
de uma tal viagem. Sir Thomas aprovou o projeto por outra razão. A
apresentação de seu sobrinho ao Almirante Crawford poderia ser útil. O
almirante, supunha ele, tinha influência. No total, o bilhete causou alegria
a todos. Por causa disso Fanny passou parte da manhã muito animada,
prevendo o prazer que lhe causaria a ausência do próprio autor do
bilhete.
Quanto ao baile, ela estava demasiadamente agitada e receosa para
gozar metade da alegria que devia ter tido, ou que era suposto terem
outras tantas moças, esperando o mesmo acontecimento mais à vontade,
porém, com menos interesse, menos curiosidade, menos satisfação íntima
do que lhe seria atribuída. Miss Price, conhecida pela maioria das
pessoas convidadas apenas pelo seu nome de batismo, ia agora ser
oficialmente apresentada e deveria ser considerada como a rainha da
festa. Quem poderia ser mais feliz do que Miss Price? Mas Miss Price não
tinha sido educada para a idéia de ser “apresentada”; e tivesse ela
compreendido a significação desse baile, em relação a ela própria, isso
teria diminuído muitíssimo o seu conforto, aumentando os receios que já
tinha de não saber como portar-se e de ser observada.
Toda a sua ambição, e o que parecia resumir a sua maior
probabilidade de ser feliz, era poder dançar sem ser muito observada e
sem grande fadiga, ter ânimo e parceiros pelo menos para metade da
noite, dançar um pouco com Edmund e não muitas vezes com Mr.
Crawford, ver William divertir-se, e poder escapar de sua tia Norris.
Sendo essas as suas maiores esperanças, nem sempre poderiam elas
prevalecer; e no curso daquela infindável manhã, passada principalmente
na companhia das duas tias, ela esteve muitas vezes sob a influência de
perspectivas muito menos animadoras. William, determinado a aproveitar
o mais possível o seu último dia de folga, saíra para caçar; Edmund,
supunha com muita razão, devia estar no Presbitério; ficando, pois,
sozinha para suportar as amofinações de Mrs. Norris, que se exasperava
porque a governanta queria resolver de seu próprio modo a ceia, Fanny
acabou ficando tão cansada que atribuiu ao baile todo e qualquer
aborrecimento; e quando foi vestir-se, encaminhou-se languidamente
para seu quarto, sentindo-se tão incapaz de divertir-se como se não
tivesse nada a ver com o baile.
Enquanto subia vagarosamente, ia pensando no dia anterior; tinha
sido naquela mesma hora que ela voltara do Presbitério e encontrara
Edmund na sala de leste. “E se eu hoje o encontrasse lá de novo?”
pensava, dando-se ao luxo de uma fantasia.
– Fanny! – ouviu chamarem perto dela. Assustada e olhando para
cima, viu o próprio Edmund, em pé, no vestíbulo onde ela acabava de
chegar. O moço veio ao seu encontro. – Você parece estar cansada e
abatida, Fanny. Aposto que esteve caminhando demais.
– Não, não saí.
– Então cansou-se dentro de casa, o que ainda é pior. Era melhor
que tivesse saído.
Não querendo discutir, Fanny achou mais fácil não responder; e
embora ele a olhasse com a bondade usual, percebeu que não estava mais
pensando nela. Ele mesmo não parecia estar muito animado; qualquer
coisa não relacionada com ela havia acontecido. Subiram juntos, pois
seus quartos ficavam no mesmo andar.
– Vim agora da casa do Dr. Grant – disse então Edmund. – Você pode
adivinhar o que fui fazer lá, Fanny? – E pela aparência dele, Fanny viu
logo do que se tratava, o que a deixou em estado de não poder falar. – Fui
pedir Miss Crawford que me concedesse as duas primeiras contradanças,
– seguiu-se a explicação. Isto reanimou Fanny, a qual vendo que ele
esperava uma resposta, murmurou qualquer coisa como uma pergunta
sobre o resultado.
– Sim – disse ele – ela está comprometida comigo; mas (com um
sorriso meio forçado) disse que seria a última vez em que dançaria
comigo. Creio que está brincando, tenho esperança que ela não estava
falando a sério; preferia, porém, não ter ouvido. Disse-me que nunca
havia dançado com um pastor e que nunca haveria de dançar. Da minha
parte preferia que não houvesse baile nenhum justamente agora – quero
dizer, não esta semana, hoje; amanhã sairei de casa.
Fanny esforçou-se por falar e disse:
– Sinto muito que você tenha tido esse aborrecimento. Hoje deveria
ser um dia só de prazeres. Pelo menos essa foi a intenção de titio.
– Oh sim, sim! E será um dia de prazeres. Tudo terminará bem.
Fiquei aborrecido apenas por um momento. De fato não é que eu
considere o baile como inoportuno; que significa um baile? Mas, Fanny, –
fazendo-a parar, segurou-lhe a mão e disse baixo, muito sério: – você sabe
o que isto tudo significa. Você sabe como é; e poderia, talvez dizer melhor
do que eu, como e porque eu me sinto humilhado. Deixe-me falar um
momento. Você é tão boazinha! Sofri esta manhã por causa do
procedimento dela e não posso me conformar. Sei que o temperamento
dela é tão meigo e perfeito como o seu, mas a influência das companhias
que teve anteriormente, tornou-a... – deu à conversa dela, às suas
opiniões, às vezes, qualquer coisa que não está certo. Não tem intenção
de fazer mal, mas faz mal falando, faz de brincadeira; e mesmo sabendo
que é brincadeira, isto me mortifica a alma.
– É o defeito da educação – disse Fanny suavemente.
Edmund teve que concordar.
– Sim, com aqueles tios! Eles estragaram uma das mais belas
consciências deste mundo; pois às vezes, Fanny, confesso que o defeito
me parece não ser só nas maneiras; parece-me que consciência também
foi atingida.
Fanny percebeu que aquilo era um apelo à sua opinião e por isso,
depois de refletir um pouco, disse:
– Se você quer apenas que eu ouça, meu primo, estou à sua
disposição; mas não tenho capacidade para dar conselhos. Não me peça
conselhos. Não tenho competência.
– Você tem razão, Fanny, de protestar quanto a tal ofício, mas não
tenha receio. Neste assunto eu nunca pediria conselho; é um assunto
sobre o qual melhor é não se pedir a opinião de ninguém; e raros, creio
eu, são os que a pedem, a não ser que queiram ser influenciados contra a
própria consciência. Eu apenas quero conversar com você.
– Uma coisa apenas. Desculpe a liberdade; mas tome cuidado de
como você vai falar comigo. Não me diga nada agora de que mais tarde
venha a se arrepender. Um dia virá que...
O sangue subiu-lhe às faces enquanto falava.
– Fanny, querida! – exclamou Edmund, beijando-lhe a mão, quase
com tanto fervor como se tivesse sido a mão de Miss Crawford – você é
tão prudente! Mas aqui não há necessidade. Nunca chegará esse dia.
Nenhum dia como o que você alude virá. Começo a achar que isso é
quase impossível; as probabilidades dia a dia diminuem; e mesmo que
fosse o contrário, não haveria nada de que eu ou você tivéssemos receio
de lembrar, pois eu nunca me envergonho de meus próprios escrúpulos; e
se esses “algum dia” não tiverem razão de ser, será porque houve tais
mudanças que somente poderão elevar mais o caráter dele, pela
recordação de seus antigos defeitos. Você é a única criatura da terra a
quem eu diria o que disse; você, porém, sabe o conceito que faço dela;
você é testemunha, Fanny, de que eu nunca fui cego. Quantas vezes
falamos sobre as pequenas faltas dela! Você não precisa recear por mim;
eu quase já desisti de pensar nela seriamente; no entanto seria na
verdade um tonto, se depois de tudo que me aconteceu, eu ainda pudesse
pensar na sua bondade e simpatia sem a mais sincera gratidão.
Havia dito o bastante para abalar uma experiência de dezoito anos.
Dissera o bastante para que Fanny se sentisse mais feliz do que se sentia
ultimamente; e com um maior brilho no olhar, ela respondeu:
– Sim, meu primo, estou convencida de que você seria incapaz de
fazer outra coisa, embora, talvez, outros o fizessem. Não receio ouvir
tudo que me queira dizer. Pode ser franco. Diga-me o que tiver vontade
de dizer.
Estavam agora no segundo andar e a presença de uma empregada
os impediu de prosseguirem na conversa. Para o bem atual de Fanny,
terminou, talvez, no momento mais feliz; se ele tivesse podido falar por
mais cinco minutos, não se sabe se não teria eliminado todos os defeitos
de Miss Crawford e o seu próprio desespero. Mas assim, separaram-se
mostrando, do lado dele uma grata afeição e do dela, uma sensação muito
doce. Gozou dessa sensação durante horas. Desde que se desvanecera a
primeira alegria causada pelo bilhete de Mr. Crawford a William, ela
havia ficado num estado absolutamente contrário; não recebera conforto
de ninguém e sua esperança havia desaparecido. Agora tudo lhe sorria.
Lembrou-se novamente da boa sorte de William, a qual lhe pareceu maior
do que a princípio. O baile, também – quanto prazer à sua frente! Estava
agora realmente animada; e começou a vestir-se com entusiasmo. Tudo ia
bem; não se desgostou de sua própria aparência; quando chegou a vez do
colar, de novo sua ventura pareceu completa, pois ao experimentar o de
Miss Crawford, de modo algum conseguiu enfiá-lo pelo aro da cruz. Para
agradar Edmund, tinha resolvido usá-lo; mas o colar era muito grosso.
Teria, pois, que por a corrente dele; tendo com alegria reunido a corrente
e a cruz – aquelas lembranças dos dois entes mais queridos, aqueles
caros emblemas, formados um para o outro por tudo que era real e
imaginário – colocou-as à volta do pescoço e, vendo e sentindo quão
cheias estavam de William e Edmund, sentiu-se capaz, sem esforço, de
usar, também, o colar de Miss Crawford. Reconheceu que o devia fazer.
Miss Crawford tinha esse direito; quando não mais se tratava de usurpar,
de interferir em outros direitos mais fortes, com a verdadeira bondade de
outra pessoa, ela podia lhe fazer justiça até mesmo com prazer. O colar
era realmente muito bonito; Fanny saiu do quarto, finalmente, satisfeita
consigo mesma e com tudo que a cercava.
Sua tia Bertram casualmente nesta hora lembrou-se dela.
Ocorrera-lhe, de fato, espontaneamente que Fanny, preparando-se para
um baile, poderia precisar de melhor auxílio do que as empregadas lhe
poderiam dar e quando acabou de vestir-se, mandou sua própria dama de
companhia para ajudar a sobrinha; muito tarde, naturalmente, para
prestar qualquer auxílio. Mrs. Chapman tinha acabado de chegar ao
patamar do segundo andar, quando Miss Price saía do quarto,
completamente vestida e apenas foram trocadas amabilidades; Fanny,
porém, reconheceu a atenção de sua tia, quase tanto quanto as próprias
Lady Bertram e Mrs. Chapman.

CAPÍTULO 28

Quando Fanny desceu, seu tio e as duas tias se achavam no salão de


visitas. O primeiro, para quem ela era um objeto interessante, viu com
prazer a elegância geral de sua aparência e observou que ela estava
admiravelmente bela. Na presença de Fanny, porém, só elogiou a
elegância e a propriedade do vestido; mas quando ela, logo depois, saiu
do salão, o tio não se conteve, e falou sobre a beleza da sobrinha com os
mais decisivos louvores.
– Sim – disse Lady Bertram – ela está muito bem. Mandei Chapman
auxiliá-la a vestir-se.
– Se está muito bem! Ora, claro! – exclamou Mrs. Norris – não podia
deixar de estar muito bem com todas as vantagens que goza; educada
como foi no meio desta família, tendo como exemplo as maneiras de suas
primas! Agora veja, meu caro Sir Thomas, que extraordinárias vantagens
o senhor e eu lhe proporcionamos! O próprio vestido que acaba de
elogiar, foi o generoso presente que o senhor lhe fez para o casamento da
nossa querida Mrs. Rushworth. Onde estaria esta pequena a esta hora se
nós não tivéssemos tomado conta dela?
Sir Thomas não retrucou; mas quando se sentaram à mesa, os
olhares dos dois rapazes lhe deram a certeza de que o assunto poderia
ser novamente tocado com mais suavidade, depois que as senhoras se
ausentassem. Fanny percebeu que tinha sido aprovada, e a consciência de
estar bem, fê-la parecer ainda melhor. Por muitos motivos ela se sentia
feliz e em breve sentiu-se mais feliz ainda; porque, quando saiu da sala
com as tias, Edmund, que estava segurando a porta, lhe disse ao passar:
– Você deve dançar comigo, Fanny; precisa guardar duas danças
para mim; quaisquer que você quiser, exceto as duas primeiras.
Não podia desejar mais nada. Nunca havia, em sua vida, estado tão
perto de delirar de alegria. A alegria que as primas, antigamente, sentiam
num dia de baile não a surpreendia mais; ela reconhecia que na verdade
um baile era um encanto e começou a praticar os passos de dança pelo
salão, logo que se viu livre da presença de sua tia Norris, que estava
inteiramente entregue a novos arranjos e injúrias por causa do grande
fogo que o mordomo havia acendido na lareira.
Passou meia hora, que teria sido, no mínimo, lânguida em qualquer
outra circunstância, mas a felicidade de Fanny ainda prevalecia. Só
pensava nas palavras de Edmund; e que lhe importava a inquietação de
Mrs. Norris? Que lhe importavam os bocejos de Lady Bertram?
Os homens reuniram-se a elas; e logo depois começou a doce
expectativa da primeira carruagem, enquanto o bem estar geral e a
alegria parecia derramar-se pelo salão e todos falavam e riam, e cada
momento tinha seus prazeres e suas esperanças. Fanny julgou que
Edmund lutava para mostrar-se alegre mas ficou contente por ver que o
esforço dele era bem sucedido.
Quando as carruagens começaram realmente a se fazer ouvidas,
quando os convidados começaram de fato a se reunir, sua alegria foi
muito mais reprimida; a vista de tantas pessoas estranhas constrangeu-a;
e além da gravidade e formalidade do primeiro grande círculo que nem as
maneiras de Sir Thomas e Lady Bertram conseguiam suprimir, ela viu-se
obrigada, de vez em quando, a passar por coisa ainda pior. Era
apresentada aqui e ali por seu tio, e obrigada a falar, a cortejar e a falar
de novo. Esta era a parte dura, e cada vez que a chamavam para nova
apresentação, ela olhava para William, que se achava muito à vontade no
fundo da cena, e desejava estar junto dele.
A entrada dos Grants e Crawfords foi um momento favorável. O
constrangimento da reunião logo desapareceu diante de seus modos
muito dados e suas intimidades mais amplas; formaram-se pequenos
grupos e todos se sentiram à vontade. Fanny, livre das cerimônias da
apresentação, poderia novamente sentir-se muito feliz, se não estivesse
sempre o seu olhar acompanhando Edmund e Mary Crawford. Ela estava
linda... e como acabaria tudo aquilo? Despertou da cisma ao perceber à
sua frente Mr. Crawford, e seus pensamentos foram desviados para outro
plano, quando o ouviu imediatamente lhe solicitar as duas primeiras
contradanças. Sua felicidade, nesta ocasião, foi imensa, mas
elegantemente refreada. Conseguir um par logo de início era um bem
essencial, pois o momento de começar o baile estava seriamente se
aproximando; e ela dava muito pouco valor à sua própria pessoa; e
pensava que, se Mr. Crawford não a tivesse convidado, ela só conseguiria
um par depois de uma série de solicitações e interferências, o que teria
sido horrível; no entanto, ao mesmo tempo, sentiu no convite dele uma
evidência de que gostou e viu os olhos do moço vagarem um momento
sobre o seu colar com um sorriso – pelo menos ela assim pensou – que a
fez corar e sentir-se feliz. E embora não tivesse havido senão aquele olhar
para a perturbar, ela não conseguia vencer o embaraço, aumentado pela
idéia de ter ele percebido o colar. E não voltou ao seu natural senão
depois que a deixou, para falar com outra pessoa qualquer. Então Fanny
pôde gradualmente voltar à pura satisfação de ter um par, um par
voluntário, conseguido antes de começar a dança.
Quando começaram a movimentar-se para o salão de baile, ela
encontrou-se pela primeira vez ao lado de Miss Crawford, cujos olhos e
sorrisos como os do irmão, foram imediatamente e mais abertamente
dirigidos para o colar, sobre o qual começou logo a falar. Porém Fanny,
ansiosa para acabar com o assunto, apressou-se a dar explicações sobre o
segundo colar: a verdadeira corrente. Miss Crawford ouvia; e todos os
cumprimentos e insinuações que pretendia fazer a Fanny ficaram
esquecidos; só pensava numa coisa; e seus olhos, embora tão brilhantes
antes, mostravam poder ser ainda mais brilhantes, quando ela exclamou
cheia de prazer:
– Ele fez isto? Edmund fez isto? Só ele mesmo. Nenhum outro
homem teria tido esta lembrança. Não tenho palavras para exprimir
minha admiração por ele.
E olhou em volta como se quisesse dizer isto ao próprio Edmund.
Porém ele não estava perto, atendia a um grupo de senhoras, no outro
lado da sala; e como Mrs. Grant veio juntar-se às duas moças, tomando
um braço de cada uma, acompanharam os outros para o salão.
O coração de Fanny palpitava, mas não havia tempo para pensar
nem mesmo nas emoções de Miss Crawford. Estavam no salão de baile,
os violinos começavam a tocar e sua cabeça dava tantas voltas que não
lhe era possível fixar-se em coisa alguma séria. Tinha que observar os
preparativos e ver como tudo era feito.
Em poucos minutos Sir Thomas veio ter com ela e perguntou se já
estava comprometida; e o “Sim, senhor, com Mr. Crawford” foi
exatamente aquilo que ele quisera ouvir. Mr. Crawford não se achava
muito afastado; Sir Thomas trouxe-o, dizendo qualquer coisa pela qual
Fanny descobriu que ela devia abrir o baile; tal idéia nunca lhe havia
ocorrido. Sempre que pensara nos detalhes da noite achava sempre como
uma coisa natural, que o baile seria aberto por Edmund e Miss Crawford;
e a impressão foi tão forte, que, embora seu tio dissesse o contrário, ela
não pôde evitar uma exclamação de surpresa, uma insinuação de que não
tinha idoneidade e mesmo uma súplica para ser dispensada de tal honra.
Que ela ousasse opor-se à opinião de Sir Thomas, era prova de que
chegara ao último extremo; mas tal foi o seu horror na primeira sugestão,
que agora podia olhá-lo de frente e dizer que esperava poder ser
dispensada; contudo, foi em vão; Sir Thomas sorriu, procurou animá-la e
depois tornou-se muito sério, dizendo decididamente:
– Tem que ser assim, minha querida – de forma que ela não
aventurou dizer mais uma palavra.
E, em seguida, viu-se conduzida por Mr. Crawford para a
extremidade do salão e lá se reuniram aos outros dançarinos, par depois
de par, de acordo com a formação.
Era quase inacreditável! Ser colocada acima de tantas moças
elegantes! A distinção era grande demais! Era tratá-la igual às primas! E
seu pensamento voou para as primas ausentes com sincera, verdadeira
ternura, sentindo que não estivessem presentes para tomarem seus
lugares no baile e gozarem sua parte de prazer que para elas teria sido
tão intensa. Tantas vezes as ouvira referirem-se ao desejo de darem um
baile em casa como a maior das felicidades! E justamente agora que
estavam ausentes – e ela abrindo o baile – ainda mais com Mr. Crawford!
Esperava ao menos que já não invejassem aquela distinção que lhe era
feita; mas ao recordar-se do estado em que estavam as coisas no último
outono, do que eles todos eram uns para os outros quando em outra
ocasião haviam dançado naquela casa, não podia compreender sua
situação atual.
Começou o baile. Foi mais honra do que prazer para Fanny, pelo
menos na primeira dança: seu parceiro estava de excelente bom humor e
procurou comunicá-lo à moça; ela, porém, estava demasiadamente
assustada para poder sentir qualquer alegria, até que se pôde convencer
de que não era mais observada. Jovem, bonita e gentil, porém, não havia
acanhamento que lhe pudesse prejudicar a graça e houve poucas pessoas
presentes que não se sentiram dispostas a elogiá-la. Era atraente, era
modesta, era a sobrinha de Sir Thomas, e não demorou muito que
dissessem ser ela admirada por Mr. Crawford. Bastava isso para que
todos a olhassem com benevolência. O próprio Sir Thomas observava,
complacente, seu progresso na dança; estava orgulhoso da sobrinha; e
sem atribuir a beleza pessoal dela, como parecia fazer Mrs. Norris, à sua
mudança para Mansfield, estava contente consigo mesmo por lhe ter
dado tudo o mais: educação e modos.
Miss Crawford leu os pensamentos de Sir Thomas e como, apesar
de todas as injustiças dele, tinha um desejo dominante de lhe agradar,
aproveitou a oportunidade num intervalo da dança, para fazer um elogio
a Fanny. Suas palavras foram ardentes e ele as recebeu como ela teria
desejado, fazendo coro ao elogio com tanta intensidade quanto a
discrição, a polidez e a sua fala descansada o permitiam. E certamente foi
mais eloqüente do que a mulher, quando logo depois Mary, percebendo-a
num sofá próximo, virou-se antes de começar a dançar, dando-lhe os
parabéns pela beleza de Miss Price.
– Sim, ela está muito bem – respondeu Lady Bertram placidamente.
– Chapman ajudou-a a vestir-se.
Não que ela não estivesse contente por ver Fanny admirada; mas
sentia-se tão comovida pela sua própria bondade mandando Chapman
auxiliá-la, que não podia tirar isto da cabeça.
Miss Crawford conhecia bem Mrs. Norris para pensar que ela
ficaria lisonjeada pelos elogios que fizessem a Fanny; e lhe dirigiu a
palavra na primeira oportunidade:
– Ah! Minha senhora, que grande falta as queridas Mrs. Rushworth
e Julia fazem esta noite! – e Mrs. Norris recompensou-a com tantos
sorrisos e cortesias quanto lhe permitia o tempo, no meio de tantas
ocupações em que se encontrava, organizando as mesas de jogo, dando
conselhos a Sir Thomas e procurando conduzir todas as chaperons para
um lado melhor do salão.
Com a própria Fanny, Miss Crawford foi muito estouvada nas suas
maneiras de agradar. Sua intenção foi dar àquele pequeno coração uma
grande emoção e enchê-la de agradáveis sensações de importância; e
interpretando mal o rubor das faces de Fanny, ainda pensava que tivesse
conseguido o seu intento, quando, depois das duas primeiras danças,
dirigiu-se a ela e disse com um olhar significativo:
– Você talvez possa me dizer por que meu irmão vai amanhã para a
cidade? Diz que tem negócios lá, mas não me quer explicar o que é. É a
primeira vez que não é franco comigo! Mas é a isto que todos nós
chegamos. Mais cedo ou mais tarde, todos somos substituídos. Agora,
tenho que me dirigir a você quando quiser uma informação. Por favor,
que é que Henry vai fazer lá?
Fanny afirmou sua ignorância com tanta firmeza quanto permitia o
seu embaraço.
– Bem, então – respondeu Miss Crawford rindo – devo supor que é
puramente pelo prazer de conduzir seu irmão e falar de você durante o
caminho.
Fanny ficou confusa, porém a sua confusão era de
descontentamento; enquanto isso Miss Crawford se admirava de que ela
não sorrisse e pensava que talvez estivesse demasiadamente ansiosa, ou
a achava estranha ou outra qualquer coisa; só não supunha que Fanny
fosse insensível às atenções de Henry. No curso da noite, Fanny teve
muitos momentos de alegria; mas as atenções de Henry não eram
responsáveis por isso. Ela preferia não ser convidada por ele tão em
seguida e desejado não ser forçada a desconfiar que o interesse dele pela
hora da ceia fosse com o fim de se assegurar da sua companhia durante
aquela parte da noite. Mas não havia como o evitar; ele a fez
compreender o seu objetivo; no entanto ela não poderia dizer que o
tivesse feito desagradavelmente, que tivesse havido indelicadeza ou
ostentação nas maneiras do rapaz; e, às vezes, quando falava de William,
ele não era desagradável e demonstrava mesmo uma bondade que lhe
dava crédito. Mesmo assim, as atenções de Mr. Crawford não tomavam
parte na sua alegria. Sentia-se feliz toda vez que olhava para William e
quando estava com ele nos intervalos, percebia, pela maneira com que
falava nos seus sucessos, o quanto estava se divertindo; sentia-se feliz por
se saber admirada; e sentia-se feliz por ter ainda a esperança de dançar
duas vezes com Edmund, a qualquer hora que fosse, embora estivesse
sendo tão requisitada toda a noite que seu compromisso com ele
continuasse permanentemente em perspectiva. Sentiu-se feliz, mesmo
quando afinal conseguiram dançar; não, porém, que ele tivesse
demonstrado grande entusiasmo ou que tivesse usado de qualquer das
meigas expressões com que a tornara venturosa durante a manhã. Ele
estava abatido e a felicidade dela se baseou na convicção de ser ela a
amiga em que ele podia confiar.
– Estou cansado de todas estas delicadezas. Tenho falado sem parar
toda a noite e sem ter nada a dizer. Mas com você, Fanny, posso ficar
calado. Você não fará questão de conversar. Vamos nos dar o luxo de ficar
em silêncio.
Fanny mal pôde murmurar seu assentimento. Aquela lassidão
produzida, provavelmente, em maiores proporções, pelas mesmas
emoções que ele havia confessado de manhã, devia ser respeitada e eles
prosseguiram juntos as duas danças com tanta tranqüilidade, que
qualquer pessoa que os observasse se convenceria de que Sir Thomas não
estava educando uma esposa para o seu segundo filho.
A noite deu pouco prazer a Edmund. Miss Crawford tinha estado
muito alegre quando dançaram a primeira vez mas não era da alegria
dela que precisava; sentia-se antes constrangido do que feliz; e mais
tarde, pois ele ainda se animou a tirá-la novamente, ela o afligiu
completamente pela maneira como se referiu à profissão que em breve
abraçaria. Tinham falado e ficado em silêncio; ele havia se defendido e
ela ridicularizado; e tinham-se, por fim, separado mutuamente
aborrecidos. Fanny, que os observara, tinha percebido o suficiente para se
sentir satisfeita. Era bárbaro sentir-se feliz quando Edmund estava
sofrendo. Contudo, muito da sua felicidade nascia da própria convicção
de que ele sofria.
Quando terminaram as duas danças ela estava esgotada; e Sir
Thomas tendo percebido que a sobrinha mais andava do que dançava,
sem fôlego, com a mão na cintura, deu ordem para que ela ficasse
absolutamente parada. Desde aquele momento Mr. Crawford
permaneceu, também, sentado.
– Pobre Fanny! – exclamou William quando a veio ver um momento,
abanando-a com o leque de sua parceira, como se lhe quisesse dar vida, –
como se cansa logo! Pois que, agora é que a festa está começando.
Espero que ainda continue por mais duas horas. Não sei como você pode
cansar tão depressa!
– Tão depressa! Meu bom amigo – disse Sir Thomas cautelosamente
mostrando-lhe o relógio – são três horas e sua irmã não está habituada a
deitar-se a estas horas.
– Bem, então, Fanny, você não deve se levantar amanhã quando eu
sair. Durma quanto puder e não se preocupe comigo.
– Oh! William.
– Que! Pois ela pretendia levantar-se antes de você sair?
– Oh! Sim senhor – exclamou Fanny levantando-se ansiosamente, a
fim de ficar mais perto do tio; – quero levantar-me e almoçar com ele;
será a última vez, o senhor sabe; a última manhã.
– Era melhor não se levantar. Ele terá que almoçar e sair às nove e
meia. Mr. Crawford, o senhor virá buscá-lo às nove e meia, não?
Mas o tio não pôde negar mais nada, – Fanny estava ansiosa e tinha
os olhos cheios d'água, – terminou, pois, concordando:
– Bem, bem!
– Sim, às nove e meia – disse Crawford a William, quando o último
ia deixá-los – e serei pontual, visto que não terei uma irmãzinha para se
despedir de mim. – E num tom mais baixo para Fanny: – Não terei senão
uma casa desolada para deixar. Amanhã seu irmão achará que as minhas
idéias sobre o tempo são muito diferentes das dele.
Depois de curta consideração, Sir Thomas convidou Crawford para
tomar parte no almoço deles, em vez de almoçar sozinho; ele próprio
estaria lá; e a presteza com que o convite foi aceito convenceu-o de que a
suspeita que (ele tinha de o confessar a si mesmo) lhe sugerira a idéia
deste baile, não era infundada. Mr. Crawford amava Fanny. E Sir Thomas
antecipava com prazer o que iria acontecer. Sua sobrinha, entretanto, não
agradeceu o que ele acabava de fazer. Esperava poder ficar sozinha com
William durante toda a manhã. Teria sido uma indizível bondade. Mas
embora seus desejos fossem contrariados, ela não se revoltou. Ao
contrário, estava tão acostumada a não ser consultada, ou a ver qualquer
coisa acontecer sem estar de nenhum modo de acordo com os seus
desejos, que ficou mais disposta a admirar-se e a rejubilar-se por ter
defendido sua vontade até aquele ponto, do que a se rebelar pela
contrariedade que se seguiu.
Logo depois Sir Thomas novamente interferiu um pouco na sua
vontade, aconselhando-a a ir deitar-se imediatamente. “Conselho” foi a
palavra que usou, mas foi um conselho indiscutível e ela não pôde senão
levantar-se e, com o adeus muito cordial de Mr. Crawford, saiu
mansamente; parou na porta do salão como a Lady de Branxholm Hall,
“um momento só e nada mais”, para observar o cenário festivo e lançar
um último olhar a cinco ou seis pares determinados, que continuavam
dançando; então subiu vagarosamente a escada principal, perseguida
pela infindável contradança, cheia de esperanças e receios, fatigada, com
os pés doloridos, inquieta e agitada, mas achando, apesar de tudo, que
um baile era na verdade um encanto.
Ao mandá-la subir, Sir Thomas talvez não estivesse apenas
pensando em sua saúde. Talvez lhe tivesse ocorrido que Mr. Crawford já
estava há muito tempo sentado ao lado dela ou talvez pretendesse
recomendá-la como esposa, mostrando-lhe a docilidade.

CAPÍTULO 29
O baile passou e o almoço, também, logo depois, passou; o último
beijo foi dado e William havia partido. Mr. Crawford, como o prometera,
tinha sido muito pontual; curta e agradável fora a refeição.
Depois de ver William até o último momento, Fanny voltou à sala do
almoço com o coração apertado e ficou a meditar sobre a triste mudança;
e ali o tio bondosamente a deixou chorar em paz, julgando, talvez, que as
cadeiras onde um dos rapazes havia sentado poderiam influir sobre o seu
terno entusiasmo e que as suas emoções se dividiriam entre os restos de
carne e mostarda do prato de William e as cascas de ovo do prato de Mr.
Crawford. Ela sentou-se e chorou “com amor” fraternal e não outro.
Agora que William havia partido, ela se sentia como se houvesse perdido
metade da visita do irmão em inúteis desvelos e solicitudes pessoais, que
não diziam respeito a ele.
Fanny estava numa tal disposição de espírito que não podia nem
mesmo pensar em sua tia Norris, na pobreza e melancolia de sua
pequena casa, sem exprobrar por algumas pequenas faltas de atenção a
ela na última vez em que estiveram juntas; muito menos podia seu
sentimento absolvê-la de não ter agido, dito e pensado tudo por William,
como o deveria ter feito durante toda uma quinzena.
O dia foi triste, pesado. Logo depois do segundo almoço, Edmund
despediu-se deles por uma semana, montou em seu cavalo e partiu para
Peterborough, e, então, todos tinham partido. Nada mais restava da
última noite senão as lembranças, que ela não podia compartilhar com
ninguém. Conversou com a tia Bertram, precisava falar com alguém
sobre o baile; mas a tia tinha visto tão pouco do que se passara e era tão
pouco curiosa, que a conversa não progredia. Lady Bertram não se
lembrava do vestuário de ninguém, nem dos lugares que tinham ocupado
na mesa da ceia, nem de coisa alguma, exceto o que se referia a si
mesma. “Não podia lembrar-se do que foi que ouvira sobre uma das
Misses Maddox, ou o que Lady Prescott havia notado em Fanny; não
estava certa se o Coronel Harrison se referia a Mr. Crawford ou a
William, quando disse que ele era o rapaz mais elegante do baile; alguém
havia cochichado qualquer coisa em seu ouvido; esquecera de perguntar
a Sir Thomas o que teria sido”. E essas eram as suas frases mais longas e
as comunicações mais claras: o resto era apenas um lânguido “Sim, sim;
muito bem; ah! você fez? Ele disse? Eu não notei isto; não faço diferença
entre uma e outra”. A conversa foi péssima. Só foi melhor do que seriam
as acerbas respostas de Mrs. Norris; e como esta havia voltado para casa
com todas as sobras de geléias para os dar a uma empregada doente,
houve paz e bom humor na pequena reunião das duas, se bem que tenha
havido só isto.
O serão não foi menos pesado do que o dia:
– Não sei o que se está passando comigo – disse Lady Bertram,
depois que a mesa do chá foi retirada. – Sinto-me inteiramente estúpida.
Talvez seja porque me deitei tão tarde ontem. Fanny, você precisa fazer
qualquer coisa para me conservar acordada. Não posso trabalhar. Traga
as cartas; estou tão estúpida.
Veio o baralho e Fanny jogou com a tia até à hora de dormir; e como
Sir Thomas estava lento, não se ouviu na sala durante duas horas, senão
a contagem do jogo:
– E com esta são trinta e um; quatro na mão e oito no baralho. É a
sua vez de jogar, titia; quer que eu jogue pela senhora?
Fanny não parava de pensar na diferença que vinte e quatro horas
haviam feito naquele salão e em toda a casa. Na noite precedente
houvera esperança e sorrisos, barulho e movimento, brilho, tanto no salão
como fora e em toda parte. Agora era a tristeza e tudo apenas solidão.
Com uma noite bem dormida ficou mais animada. Já podia, no dia
seguinte, pensar em William com menos tristeza; e como de manhã teve
oportunidade de falar com Mrs. Grant e Miss Crawford sobre a noite de
quinta feira, num estilo diferente e melhor, com todos os acréscimos de
imaginação e as risadas pelas pilhérias que são tão essenciais aos
comentários de um baile passado, ela pôde, depois disso, sem grande
esforço, voltar ao seu natural e facilmente conformar-se com a
tranqüilidade e a quietude da semana que corria.
Na verdade eles agora formavam um grupo muito menor do que ela
jamais vira ali, no decorrer de um dia inteiro e ele, de quem
principalmente dependiam o conforto e a animação de cada uma das
reuniões da família, havia partido. A isto, porém, ela teria que se
acostumar. Muito breve ele partiria para sempre; e ela agradecia ainda
agora poder estar na mesma sala com o tio, ouvir a sua voz e mesmo
responder às suas perguntas sem se sentir tão infeliz como antigamente.
– Nossos dois rapazes estão fazendo falta – observou Sir Thomas,
tanto no primeiro como no segundo dia, quando, depois do jantar, se
achavam num círculo muito reduzido; e em consideração aos olhos de
Fanny que estavam cheios d'água, não se disse mais nada no primeiro
dia, além de beberem a saúde dos ausentes; mas no dia seguinte o
assunto se prolongou. William foi muito elogiado e falaram de sua
promoção com grande esperança. – E não há motivo para supor –
acrescentou Sir Thomas – que ele não nos possa visitar agora mais
freqüentemente. Quanto a Edmund, temos que nos habituar a viver sem
ele. Este inverno será o último que ele passará conosco.
– É – disse Lady Bertram – mas eu preferia que ele não fosse
embora. Estão todos indo, parece. Preferia que ficassem em casa.
Este desejo se referia principalmente a Julia, que justamente havia
pedido permissão para ir com Maria para a cidade; e como Sir Thomas
achara melhor para cada uma das filhas que a permissão fosse concedida,
Lady Bertram, embora por sua vontade não o tivesse impedido,
lamentava-se pela mudança havida na projetada volta de Julia, que do
contrário deveria por este tempo estar em casa. Sir Thomas expôs um
grande número de motivos para convencer a esposa a concordar com a
combinação. Tudo que um pai atento tinha que sentir foi exposto para
convencê-la e tudo que uma mãe afetuosa devia sentir ao proporcionar
alegrias a seus filhos foi atribuído ao temperamento dela. Lady Bertram
concordava com tudo com um calmo “Sim” e no fim de um quarto de hora
de muda consideração, observava espontaneamente:
– Sir Thomas, eu estive pensando – e estou muito contente por
termos trazido Fanny para casa, pois agora que todos os outros estão fora
é que podemos avaliar o bem que isto nos traz.
Sir Thomas imediatamente aperfeiçoou este cumprimento,
acrescentando:
– É verdade. Mostramos a Fanny que a achamos uma boa moça,
fazendo-lhe elogios na frente dela; ela agora é para nós uma companhia
inestimável. Se fomos bons para ela, ela agora, por outro lado, nos é
inteiramente necessária.
– Sim – respondeu Lady Bertram; – e é um consolo pensar que
nunca a perderemos.
Sir Thomas calou-se, sorriu, olhou a sobrinha de soslaio e então
respondeu seriamente:
– Espero que nunca nos deixe, até que seja convidada a morar em
outro lugar que a torne mais feliz do que se sente aqui.
– E isto não é muito provável de acontecer, Sir Thomas. Pois quem a
iria convidar? Maria talvez gostasse de a receber em Sotherton uma vez
ou outra, mas nunca a pensaria em convidá-la para morar lá; estou certa
de que ela aqui está muito melhor e, além disso, não posso passar sem
Fanny.
A semana que passou tão tranqüila e pacífica na casa grande de
Mansfield, teve um caráter muito diferente no Presbitério. Para cada uma
das moças das duas famílias, pelo menos, trouxe emoções muito
diferentes. O que para Fanny era tranqüilidade e conforto, para Mary era
tédio e aborrecimento. Questão de diferença de temperamento e hábito;
uma tão fácil de satisfazer, a outra desabituada a sofrer; mas alguma
coisa mais podia ainda ser atribuída à diferença de circunstâncias. Em
alguns pontos de interesse pessoal elas eram completamente opostas.
Para Fanny, a ausência de Edmund, justamente por seu motivo e
tendência, era realmente um alívio. Para Mary era dolorosa em todos os
sentidos. Ela sentia a falta da companhia dele, todos os dias, quase todas
as horas e irritava-se só em pensar no motivo por que ele havia partido.
Edmund não teria podido inventar nada mais capaz de aumentar o seu
prestígio do que esta semana de ausência, ocorrida, como foi, justamente
na ocasião em que o irmão dela havia partido, que William Price também
partira e completando aquela espécie de rompimento geral de um grupo
que fora tão animado. Sentia amargamente. Eles eram agora um trio
miserável, trancados dentro de casa por uma série de chuvas e neve, sem
nada que fazer e nenhuma esperança. Zangada que estivesse com
Edmund por ele seguir a própria vontade em desafio a ela (havia-se
aborrecido tanto com ele que depois do baile se tinham separado quase
como inimigos), assim mesmo, não podia deixar de pensar continuamente
no moço ausente, estendendo-se sobre as suas qualidades e afeto,
desejando de novo intensamente os encontros quase diários que tinham
ultimamente. A sua ausência não deveria ser tão longa. Ele não devia ter
planejado uma tal ausência; não deveria ter saído de casa, sabendo que
ela mesma partiria de Mansfield dentro de poucos dias. Depois começava
a culpar-se. Não lhe devia ter falado tão calorosamente na sua última
conversa. Receava ter usado de algumas expressões muito fortes e
desrespeitosas ao se referir ao clero e isto não era direito. Demonstrava
falta de educação; estava errado. Desejava de todo coração poder
desdizer tais palavras.
Seus aborrecimentos não terminaram com a semana. Tudo isto foi
muito ruim, porém ainda passou por pior quando de novo chegou a sexta
feira e Edmund não veio; quando chegou o sábado e ainda nada de
Edmund, Mary ficou sabendo, através da breve comunicação obtida no
domingo pela outra família, que Edmund havia escrito avisando que
adiara a volta, tendo prometido ficar mais alguns dias com o amigo.
Se ela estivera impaciente e arrependida antes – se havia sofrido
pelo que dissera e receara que o efeito sobre ele fosse demasiadamente
forte – agora sofria e receava dez vezes mais. Tinha, além do mais, que
enfrentar uma emoção desagradável e inteiramente nova para si – o
ciúme. O amigo dele, Mr. Owen, tinha irmãs; ele talvez as achasse
bonitas. De qualquer modo, ficar ausente numa ocasião em que, de
acordo com todos os planos anteriores, ela devia mudar-se para Londres,
significava qualquer coisa que não podia suportar. Se Henry tivesse
voltado, como prometera, no fim de três ou quatro dias, ela estaria agora
longe de Mansfield. Era imperioso que procurasse Fanny para saber
alguma coisa mais. Não poderia viver um minuto mais nesta triste
miséria; e encaminhou-se para o Park, atravessando mil dificuldades pelo
caminho que julgara intransponível uma semana antes, só com o fim de
poder ouvir um pouco mais, só com a esperança de, pelo menos, ouvir o
nome dele.
A primeira meia hora foi perdida, pois Fanny e Lady Bertram
estavam juntas e a menos que ficasse sozinha com Fanny, Mary não
poderia esperar coisa alguma. Finalmente porém Lady Bertram saiu da
sala e então, quase imediatamente, Miss Crawford começou, dando à voz,
quanto possível, um tom natural:
– E você, como suporta uma ausência tão longa de seu primo
Edmund? Sendo a única pessoa moça nesta casa, creio que é você a que
mais sofre. Deve sentir muita falta! Não está admirada de que demore
tanto?
– Não sei – respondeu Fanny hesitando. – Sim; não tinha realmente
esperado isto.
– Talvez ele tenha o costume de sempre se demorar mais do que
promete. É o que geralmente todos os rapazes fazem.
– Na última vez que Edmund foi visitar Mr. Owen, não fez isto.
– Deve ter achado o ambiente mais agradável agora. Demais, ele
próprio é um rapaz muito – muito agradável. E eu não posso deixar de
sentir pena por não o ver ainda antes de ir para Londres, como sem
dúvida acontecerá. Estou esperando Henry todos os dias e logo que ele
venha, nada me prenderá a Mansfield. Confesso que gostaria de o ver
mais uma vez. Fica você encarregada de lhe transmitir minhas
lembranças. Sim; creio que devem ser lembranças. Não acha, Miss Price,
que falta alguma coisa no nosso idioma – uma palavra entre lembrança e
saudades – que se adapte a esta sorte de camaradagem que tivemos?
Tantos meses! Mas no caso são suficientes as lembranças. A carta dele foi
muito longa? Ele lhe conta muitas coisas do que está fazendo? É por
causa das festas de Natal que vai ficar?
– Só tomei conhecimento de uma parte da carta, que foi dirigida a
meu tio; creio, porém, que foi muito curta; na verdade, penso que eram
apenas algumas linhas. Tudo que ouvi foi que o amigo tinha insistido para
que ele ficasse mais tempo e ele havia concordado. Poucos dias ou alguns
dias a mais, não tenho bem certeza.
– Oh! Se ele escreveu para o pai – eu pensei que tinha escrito a
Lady Bertram ou a você. Mas se escreveu para o pai, não admira que
tenha sido conciso. Quem se atreveria a tagarelar numa carta para Sir
Thomas? Se ele lhe tivesse escrito decerto havia mais detalhes. Você teria
conhecimento dos bailes e reuniões, pois ele lhe mandaria uma descrição
de tudo e de todos. Quantas são as Misses Owen?
– São três, já crescidas.
– Elas gostam de música?
– Não sei. Nunca ouvi dizer.
– Você sabe que é a primeira pergunta – disse Miss Crawford,
procurando mostrar-se alegre e desinteressada – que qualquer mulher
que sabe tocar, se lembra de fazer das outras. Mas é tolice fazer tal
pergunta sobre essas moças – sobre essas três irmãs apenas saídas da
infância; pois já se sabe, sem que seja preciso dizer, exatamente o que
elas são: todas três muito prendadas e interessantes e uma muito bonita.
Sempre há uma beleza em todas as famílias; é uma coisa natural. Duas
tocam piano e uma harpa; e todas cantam ou cantariam se tivessem
aprendido, e cantam justamente melhor porque não aprenderam; ou
qualquer coisa semelhante.
– Não sei nada a respeito das Misses Owen – disse Fanny
calmamente.
– Não sabe nada e ainda menos se interessa, como se costuma dizer.
De fato, que interesse se pode ter por pessoas que nunca se viu? Bem,
quando seu primo voltar, vai achar Mansfield quieto demais; todos os
barulhentos estarão ausentes, seu irmão, o meu e eu mesma. Agora que o
dia está perto, fico triste de deixar Mrs. Grant. Ela não se conforma com a
minha partida.
Fanny sentiu-se obrigada a falar:
– Você não pode duvidar de que muita gente vai sentir a sua
ausência – disse ela. – Vai nos fazer muita falta.
Miss Crawford olhou ao redor como se quisesse ouvir ou ver mais
alguma coisa, depois disse rindo:
– Oh sim! Sentirão a minha falta como se sente a falta do barulho
depois que ele se acaba; isto é, sentirão uma grande diferença. Não, não
estou lançando a isca; não precisa me elogiar. Se alguém sentir a minha
falta, logo se saberá. Aqueles que querem saber de mim, saberão me
descobrir. Não sei estar em nenhum lugar desconhecido, nem distante,
nem inacessível.
Fanny não achou o que responder e Miss Crawford ficou
desapontada; pois que ela esperava ouvir alguma agradável afirmação de
seu poder, da boca daquela que supunha bem informada, e seu espírito
ficou novamente nublado.
– Por falar nas Misses Owen – disse ela logo depois; – suponha que
você viesse a ver uma das Misses Owen instalada em Thorton Lacey: que
tal acharia isto? Têm acontecido coisas tão estranhas! Não duvido que
elas estejam tentando conseguir tal fim. E têm toda a razão, pois seria
uma linda situação. Não me admiro nem as censuro absolutamente. A
obrigação de todos é fazer tudo por si. Um filho de Sir Thomas é alguém;
e Edmund, além disso, segue a carreira tradicional da família delas. O pai
é pastor, o irmão é pastor, e todos eles juntos o são. Por direito ele lhes
pertence; e é natural que lhes pertença. Você não fala, Fanny? Miss Price,
você não diz nada? Diga, sinceramente, não acha que isto é mais provável
do que o contrário?
– Não – disse Fanny com firmeza – não creio absolutamente que seja
provável.
– Não crê absolutamente! – exclamou Miss Crawford com
alacridade. – Admiro-me! Mas aposto que sabe exatamente – eu sempre
imagino que você – que talvez você não acredite que ele algum dia se
case.
– Não, não acredito – disse Fanny docemente, esperando não se ter
enganado nem na crença nem na confissão desta.
Sua companheira olhou-a fixamente; e recobrando maior ânimo com
o rubor que esse seu olhar havia produzido, disse apenas:
– Ele assim está melhor – e mudou de assunto.

CAPÍTULO 30

Com essa conversa a inquietação de Miss Crawford diminuiu muito;


e ela pôde voltar para casa num humor que se tivesse sido posto à prova,
teria desafiado outra semana com o mesmo grupinho, o mesmo mau
tempo; mas como naquela mesma tarde o irmão voltara de Londres com a
sua usual alegria, Mary não precisou fazer grande esforço. A firme recusa
de Henry em contar o que tinha ido fazer já era um motivo para
divertimento; um dia antes ela se irritara, mas agora era uma boa
brincadeira; suspeitava apenas que estivesse escondendo algum plano,
para lhe dar uma agradável surpresa. E no dia seguinte veio a surpresa.
Henry tinha dito que ia só fazer uma visitinha a Lady Bertram para saber
como iam passando e que voltaria dentro de dez minutos; no entanto já
estava lá há mais de uma hora; e quando a irmã, que o esperava para
passearem juntos no jardim, afinal, já muito impaciente, o encontrou no
caminho e exclamou:
– Henry, querido, onde esteve todo este tempo?
Ele disse simplesmente que estivera conversando com Lady
Bertram e Fanny.
– Conversando com elas há uma hora e meia! – exclamou Mary
admirada.
Mas isto foi apenas o começo.
– É, Mary – disse ele tomando-lhe o braço e andando pela área como
se não soubesse onde estava: – Não pude sair mais cedo; Fanny estava
tão linda! Estou resolvido, Mary. Não tenho mais a mínima dúvida. Isto a
espanta? Não: você já deve saber que eu estou decisivamente resolvido a
casar com Fanny Price.
A surpresa agora foi completa; pois, apesar do que os modos dele
poderiam sugerir, nunca teria entrado na imaginação da irmã a suspeita
de que Henry estivesse levando a sério o caso; e ela se mostrou tão
realmente espantada que ele foi obrigado a repetir o que tinha dito, mais
amplamente e com mais solenidade. Uma vez admitida, a sua
determinação não foi mal recebida. Houve até prazer juntamente com a
surpresa. Mary estava numa disposição de espírito capaz de alegrar-se
por aquela ligação com a família Bertram e não ficou contrariada por seu
irmão casar-se num nível social um pouco abaixo do seu.
– Sim, Mary – concluiu Henry. – Fui apanhado direitinho. Você sabe
com que intenções eu comecei; mas agora terminou a brincadeira. Meus
progressos na afeição dela (posso gabar-me) não são dos menores; mas
pela minha parte, estou inteiramente firme.
– Pequena de sorte! – exclamou Mary logo que pôde falar; – que
casamento para ela! Henry, meu querido, este tem que ser o meu
primeiro sentimento; mas o segundo, que eu exponho com a mesma
sinceridade, é que eu aprovo a sua escolha com toda a minha alma e
prevejo a sua felicidade tão ardentemente como a desejo. Você terá uma
meiga mulherzinha, toda gratidão e devotamento. Exatamente como você
merece. Que espantoso casamento para ela! Mrs. Norris está sempre
falando da sorte da sobrinha; que não dirá agora? A alegria de toda a
família, na verdade! E ela tem na família alguns amigos verdadeiros!
Como estes hão de ficar contentes! Mas conte-me tudo! Continue a falar.
Quando é que começou a pensar nela seriamente?
Não havia coisa mais impossível do que responder a tal pergunta,
embora nada pudesse ser mais agradável do que tal pergunta ter sido
feita. “Como o amável flagelo se tinha apoderado dele”, não o poderia
dizer; e antes de ter pela terceira vez manifestado o mesmo sentimento,
com pequena variação, sua irmã o interrompeu exclamando:
– Ah, querido Henry, foi isto que o levou a Londres! Este era o seu
negócio! Você quis consultar o Almirante antes de se decidir.
Isto, porém, ele negou firmemente. Conhecia o tio demasiadamente
bem para consultá-lo sobre qualquer projeto de matrimônio. O Almirante
odiava o casamento e não o perdoava num rapaz de fortuna
independente.
– Quando ele conhecer Fanny – continuou Henry – ficará doido por
ela. Ela é exatamente a mulher que poderá acabar com todos os
preconceitos de um homem como o Almirante, porque é exatamente a
espécie de mulher que ele pensa não existir no mundo. Fanny é
exatamente a impossibilidade que ele descreveria, se na verdade meu tio
pudesse agora exprimir as próprias idéias com delicadeza de linguagem.
Contudo, até que tudo esteja definitivamente acertado – acertado acima
de toda e qualquer interferência – ele não saberá de nada. Não, Mary,
você está completamente enganada. Ainda não descobriu meu segredo.
– Bem, bem, estou satisfeita. Já sei a quem se refere e não tenho
pressa de saber o resto. Fanny Price! Formidável, formidável! Que
Mansfield tivesse feito tanto por... que você viesse encontrar seu destino
em Mansfield! Mas tem razão, Henry; não poderia ter escolhido melhor.
Não existe melhor rapariga no mundo, e você não precisa de fortuna;
quanto aos parentes dela, não poderia ser mais bem escolhidos. Os
Bertram, não há dúvida, são uma das primeiras famílias desta região. Ela
é sobrinha de Sir Thomas Bertram; para a sociedade é o bastante. Mas
continue. Diga mais alguma coisa. Quais são os seus planos? Ela já está
ciente da própria felicidade?
– Não.
– Que está esperando?
– Por... Por um pouquinho mais de oportunidade. Mary, ela não é
como as primas; mas acredito que não pedirei em vão.
– Oh não! Não é possível. Mesmo que você fosse menos agradável –
supondo-se que ela já não o ame (o que, porém, não duvido muito) – você
estaria seguro. A nobreza e a gratidão do caráter de Fanny fariam com
que você a conquistasse imediatamente. Intimamente eu penso que ela
não se casaria com você sem amor; isto é, se existe no mundo alguém
capaz de não se influenciar pela ambição, creio que é ela; mas peça-lhe
que o ame e ela não terá coragem de o recusar.
Logo que ela se acalmou e ficou em silêncio, ele começou a falar; e
seguiu-se uma longa conversa, quase tão profundamente interessante
para a irmã como para ele próprio, embora ele não tivesse o que relatar
senão suas próprias emoções, nada senão os encantos de Fanny. A beleza
do rosto e do porte de Fanny, as graças e a bondade de Fanny, era o
assunto interminável. Dissertou ardentemente sobre a ternura, a
modéstia e a meiguice do caráter dela; aquela meiguice que, na opinião
dos homens, forma a parte mais essencial do valor de qualquer mulher,
que é, embora, às vezes, imaginada onde não existe, eles nunca
acreditam na sua inexistência. Quanto ao temperamento de Fanny, ele
tinha motivos para se fiar nele e o elogiar. Viu muitas vezes quando tinha
sido posto à prova. Havia alguém na família, exceto Edmund, que não
tivesse, de um modo ou outro, continuamente provocado sua paciência e
sua tolerância? Sua natureza era evidentemente afetiva. Vê-la com o
irmão! Que coisa poderia provar mais deliciosamente que a bondade de
seu coração era igual a sua meiguice? Que coisa seria mais animadora
para um homem que tinha em vista o seu amor? E a sua inteligência viva
e clara, que estava acima de qualquer suspeita; e as maneiras, que eram
o reflexo da sua própria modéstia e delicada consciência. E isto não era
tudo. Henry Crawford era bastante conscienciosos para não apreciar o
valor dos bons princípios numa esposa, apesar de estar tão
desacostumado a sérias reflexões que não os pudesse classificar por sua
denominação legítima; mas quando ele se referia ao fato de Fanny ter
uma tal firmeza e regularidade de procedimento, uma tão elevada noção
de honra, uma tal consideração pelo decoro, que qualquer homem
poderia confiar inteiramente na sua fé e integridade, manifestava o que
lhe era inspirado pelo conhecimento de que ela era religiosa e bem
educada.
– Sei que posso confiar inteira e absolutamente nela – disse ele – e
isto é o que desejo.
– Quanto mais penso – exclamou a irmã – mais me convenço de que
você tem razão; e embora eu nunca pudesse imaginar que Fanny Price
fosse a moça capaz de o prender, já agora estou persuadida de que ela é
justamente a única capaz de o fazer feliz. A sua maldosa intenção de lhe
perturbar a paz transformou-se, realmente, num ótimo resultado. Vocês
dois encontrarão a felicidade.
– Foi maldade, muita maldade minha ter aquela intenção contra
uma criatura como essa; não a conhecia naquele tempo; e ela não terá
razão de lamentar a hora em que aquela idéia me veio à cabeça. Hei de
fazê-la muito feliz, Mary; mais feliz do que nunca o foi ou viu ser outra
pessoa qualquer. Não a levarei a Northamptonshire. Arrendarei
Everingham e alugarei uma propriedade na região; talvez Stanwix Lodge.
Arrendarei Everingham por uns sete anos. Basta que o queira, arranjo
logo um excelente arrendatário. Podia neste momento mencionar o nome
de três pessoas que aceitariam minhas condições e ainda me
agradeceriam.
– Ah! – exclamou Mary; – tenciona instalar-se em
Northamptonshire! Que bom! Então ficaremos juntos.
Mal disse isso, arrependeu-se e quis desdizer; mas não havia
necessidade; o irmão não a via senão como hóspede da Paróquia de
Mansfield, e, respondendo, convidou-a amavelmente para vir à sua
própria casa e reclamou os seus direitos sobre a companhia dela.
– Você deve ficar mais tempo conosco – disse ele. – Não posso
admitir que Mrs. Grant tenha o mesmo direito que Fanny e eu, porque
nós seremos dois a disputar a sua companhia. Fanny será uma irmã
verdadeira para você!
Mary só teve que agradecer e afirmar as suas promessas; ela
estava, porém, agora inteiramente resolvida a não ser hóspede nem do
irmão nem da irmã por muitos meses mais.
– Você dividirá seu tempo entre Londres e Northamtonshire?
– Sim.
– Então está bem; e em Londres, naturalmente, terá sua própria
casa; não ficará mais com o Almirante. Meu querido Henry, que vantagem
para você ver-se livre do Almirante antes de ser contagiado pelas rudes
maneiras dele, antes de contrair aquelas tolas opiniões ou se acostumar a
sentar-se à mesa das refeições como se isto fosse a melhor coisa da vida!
Você não pode avaliar o benefício disso porque a sua afeição por ele o
cegou; mas na minha opinião, o casamento pode ser a sua salvação. Vê-lo
imitar o Almirante, em palavras ou ações, em aparência ou gestos, ter-
me-ia partido o coração.
– Bem, bem, neste ponto não estamos inteiramente de acordo. O
Almirante tem seus defeitos, mas é um homem muito bom, e tem sido
mais que um pai para mim. Poucos pais teriam me dado a metade da
liberdade que eu tenho. Você não deve ter preconceitos contra ele. Quero
que os dois se amem.
Mary absteve-se de dizer o que pensava, que não poderiam existir
duas pessoas cujos caracteres e maneiras fossem mais discordantes; com
o tempo ele haveria de descobrir; mas não pôde deixar de jogar esta
indireta ao Almirante:
– Henry, eu dou tanto valor a Fanny Price que, se pensasse que a
futura Mrs. Crawford tivesse a metade das razões que fizeram a minha
pobre e maltratada tia abominar o próprio nome, impediria se o pudesse
este casamento; mas conheço-o bem: sei que a esposa que você amar será
a mulher mais feliz do mundo e que mesmo se depois não a amasse mais,
ela ainda encontraria no marido a generosidade e a boa educação de um
fidalgo.
A impossibilidade de não fazer tudo no mundo para tornar Fanny
Price feliz, ou deixar de amar Fanny Price, foi, naturalmente, a base da
eloqüente resposta dele.
– Se você a tivesse visto esta manhã, Mary – continuou ele –
atendendo com a mais inefável doçura e paciência todas as exigências da
estupidez da tia, trabalhando com ela e para ela, o rosto lindamente
rosado enquanto se curvava sobre o trabalho; voltando depois ao seu
lugar para terminar uma carta que começara a escrever antes, a mando
daquela estúpida mulher, tudo isto com uma ternura sem pretensões,
como se fosse a coisa mais natural não ter um único momento à sua
própria disposição; os cabelos bem penteados como sempre, um pequeno
cacho a cair-lhe da testa quando se curvou para escrever, o qual ela de
vez em quando puxava para trás; e, no meio de tudo isto, encontrando
ainda meios de me falar ou ouvir, como se estivesse gostando de ouvir o
que eu dizia! Se a tivesse visto assim, Mary, você não acreditaria na
possibilidade de jamais acabar o poder dela sobre o meu coração.
– Henry, meu muito querido – exclamou Mary, sorrindo-lhe – como
fico contente por vê-lo tão apaixonado! Dá-me um prazer enorme! Mas o
que dirão Mrs. Rushworth e Julia?
– Não me preocupo com o que elas digam ou pensem. Elas agora
verão que espécie de mulher pode prender-me, – pode prender um
homem de senso. Desejo que a descoberta lhes seja útil. Agora verão a
prima tratada como devia ser e espero que fiquem bastante
envergonhadas das suas próprias maldades e abominável indiferença.
Ficarão furiosas – acrescentou ele num tom mais frio depois de um
momento de silêncio; – Mrs. Rushworth vai ficar indignada. Será um
amargo momento para ela; isto é, como uma pílula amarga, dará dois
maus momentos, e então será engolida e esquecida; pois não sou tão
pretensioso que suponha os sentimentos dela mais duráveis do que os de
qualquer outra mulher, embora eu tenha sido o objeto desses
sentimentos. Sim, Mary, minha Fanny verá a diferença; uma diferença
diária, a toda a hora, no procedimento de todos aqueles que se
aproximarem dela; e saber que eu sou a causa disso, é o que completa a
minha felicidade; que eu serei a pessoa que lhe dará a importância a que
ela tem tanto direito. No momento ela depende dos outros, está
abandonada, sem amigos, desprezada, esquecida.
– Não, Henry, não por todos; não é esquecida por todos; não é sem
amigos ou esquecida. Seu primo Edmund nunca a esquece.
– Edmund! É verdade, creio que ele, geralmente falando, é bom
para ela e assim o é Sir Thomas, à sua maneira; na maneira de um tio
rico, superior e arbitrário. Que comparação pode o que Sir Thomas e
Edmund juntos poderiam fazer ou fazem pela felicidade dela, pelo seu
conforto, honra, dignidade no mundo, com o que eu hei de fazer?

CAPÍTULO 31

No dia seguinte de manhã muito cedo Henry Crawford voltou a


Mansfield Park. As duas senhoras se achavam na sala de almoço e, para
sua felicidade, Lady Bertram ia se retirando no momento em que ele
entrou. Já tinha chegado quase à porta e, não se querendo dar a tanto
incômodo sem proveito, prosseguiu em seu intento, depois de uma polida
recepção e uma pequena frase de agradecimento pela visita e um “Avise
Sir Thomas” a uma empregada.
Henry, radiante por vê-la sair, cumprimentou-a e, sem perder
tempo, virou-se imediatamente para Fanny, exibindo algumas cartas e
dizendo muito animado:
– Não posso deixar de ficar muito grato a quem me dá uma tal
oportunidade de a ver sozinha: tenho desejado isso mais do que pode
imaginar. Sabendo como eu sei como são os seus sentimentos de irmã,
não poderia admitir que qualquer outra pessoa compartilhasse no
primeiro conhecimento das notícias que lhe trago. Está tudo feito. Seu
irmão já é tenente. Tenho a infinita satisfação de lhe dar os parabéns pela
promoção de seu irmão. Aqui estão as cartas que a anunciam, recebidas
neste momento. Talvez goste de as ler.
Fanny não podia falar, mas ele não queria que ela falasse. Era
bastante ver a expressão de seus olhos, a mudança em seu semblante, o
progresso das emoções, as dúvidas, confusão e felicidade. Tomou as
cartas que ele lhe deu. A primeira era do Almirante, para informar ao
sobrinho, em poucas palavras, que fora bem sucedido no objeto em que
se havia empenhado, a promoção do jovem Price; incluía mais duas
cartas, uma do Secretário do Primeiro Lorde a um amigo, a quem o
Almirante encarregara de tratar do negócio; a outra, daquele amigo para
ele próprio pela qual se via que Sua Excelência tivera muito prazer em
atender à recomendação de Sir Charles; que Sir Charles estava muito
contente por ter tal oportunidade de provar sua estima pelo Almirante
Crawford e que a circunstância de ter sido concedida a Mr. William Price
a comissão de Segundo Tenente da corveta de S. M. “Thrush”, causara
contentamento geral num grande círculo de pessoas importantes.
Enquanto as mãos dela tremiam ao segurar estas cartas, seus olhos
correndo de uma para outra, o coração palpitante de emoção, Crawford
continuou com sincera impetuosidade a exprimir seu interesse pelo
acontecimento:
– Não falo da minha própria felicidade – disse ele – grande que seja,
pois só penso na sua. Comparado consigo, quem tem o direito de ser
feliz? Eu quase chego a me odiar por ter tido conhecimento de uma coisa
que Miss Fanny deveria ser no mundo a primeira a saber. Não perdi,
porém, um minuto. O correio chegou tarde, hoje, mas desde a hora em
que chegou não houve perda de um único instante. Não tento descrever a
impaciência, a ansiedade, o interesse que tive pelo assunto; como fiquei
aborrecido, como cruelmente me desapontou não o ter terminado
enquanto estava em Londres! Aguardei dia após dia, na esperança de o
ver concluído, pois nada menos caro para mim do que esta questão,
poderia me deter a metade desse tempo afastado de Mansfield. Contudo,
apesar de meu tio se ter interessado pelos meus desejos com todo o ardor
e se ter movido imediatamente, havia dificuldades provenientes da
ausência de um amigo e as ocupações de outro, e finalmente não pude
mais suportar a idéia de ficar lá até o fim. Sabendo em que boas mãos
deixava a causa, voltei na segunda feira, esperando que não se passariam
muitos correios antes de eu receber estas cartas. Meu tio, que é o melhor
homem do mundo, interessou-se, como eu tinha certeza, depois de ver
seu irmão. Gostou muito dele. Ontem não me permiti lhe contar o quanto
gostou nem repetir a metade do que o Almirante disse em favor dele.
Deixei para dizer depois que os elogios dele ficassem provados como os
de um amigo, como hoje está provado. Agora posso declarar que eu
mesmo não poderia esperar que William Price provocasse maior interesse
e que fosse alvo de tão calorosos votos e tão elevadas recomendações
como os que meu tio, voluntariamente, lhe fez depois do serão que
passaram juntos.
– Então foi o senhor que fez tudo isto? – exclamou Fanny. – Santo
Deus! Como foi bondoso! Foi o senhor realmente – foi por seu desejo?
Desculpe, mas estou perturbada. E o Almirante Crawford pediu? Como foi
isso? Estou estupefata.
Henry teve a maior felicidade em explicar, começando pelo
princípio e mencionando particularmente o que ele havia feito. Sua última
viagem a Londres não tinha tido outro objetivo senão o de apresentar o
irmão dela em Hill Street e insistir com o Almirante para se interessar
como pudesse, a fim de lhe conseguir a promoção. Esse havia sido o seu
negócio. Não o tinha dito à ninguém; não tinha deixado escapar uma
única palavra, nem mesmo a Mary; enquanto não tivesse certeza do
resultado, não poderia suportar que participassem de seus sentimentos; e
ele falava com tal entusiasmo de sua solicitude e usava de tão vigorosas
expressões, era tão abundante no “profundo interesse”, nos “duplos
motivos”, nos “desejos maiores do que é possível dizer”, que Fanny não
poderia ficar insensível às intenções dele, se lhe fosse possível
correspondê-las; mas seu coração estava tão cheio e seus sentidos ainda
tão perturbados, que não podia ouvir, nem o que lhe dizia de William,
repetindo apenas quando ele fazia uma pausa:
– Que bondade! Como foi bom! Oh, Mr. Crawford, nós lhe ficamos
infinitamente gratos! Querido, querido William! – pulou da cadeira e
dirigiu-se apressadamente para a porta, exclamando: – Vou ver titio. Titio
deve saber disso imediatamente.
Mas Henry não concordava com isso. A oportunidade era
demasiadamente preciosa e sua impaciência grande demais.
Interrompeu-lhe o caminho. – Ela não devia ir, devia conceder-lhe cinco
minutos mais; tomou-lhe a mão reconduzindo-a ao seu lugar e estava no
meio da sua nova explicação, sem que ela suspeitasse por que a tinha
detido. Quando, porém, compreendeu e viu que ele esperava que ela
acreditasse haver inspirado ao seu coração sentimentos que antes não
conhecera e que tudo o que ele havia feito por William devia ser levado
por conta do seu excessivo e único amor pela irmã, sentiu-se muito aflita
e não pôde falar durante muitos minutos. Considerou tudo aquilo como
uma fantasia, como uma mera frivolidade e galanteria, calculada apenas
para a iludir no momento; não pôde senão sentir que a estava tratando
com leviandade e desprezo, de uma maneira que ela não merecia; mas
isso era bem próprio de Henry Crawford e inteiramente de acordo com o
que ela havia visto antes; não se permitiu demonstrar nem a metade do
desgosto que sentia, porque ele lhe havia concedido um favor, que
nenhuma falta de delicadeza poderia fazê-la esquecer. Enquanto seu
coração ainda estava transbordando de alegria e gratidão por causa de
William, não poderia rigorosamente ressentir-se de qualquer injúria feita
a ela própria; e depois de por duas vezes retirar sua mão das dele, depois
de tentar em vão afastar-se, levantou-se e apenas disse muito agitada:
– Não, Mr. Crawford, por favor, não continue! Peço-lhe que não
continue. Esta espécie de conversa me é muito desagradável. Tenho que
sair. Não a posso suportar.
Ele porém ainda continuava a falar, descrevendo seu afeto, pedindo
que o correspondesse e, finalmente, com expressões tão claras que não
poderiam ser tomadas em outro sentido, até mesmo por ela, pediu que o
aceitasse – que aceitasse sua mão, sua fortuna e tudo que possuía. Assim
tinha sido; ele o tinha dito. O espanto e a confusão de Fanny aumentaram;
e embora ainda não soubesse se o levaria a sério, dificilmente se podia
manter em pé. Ele insistia por uma resposta.
– Não, não, não! – exclamou, escondendo o rosto. – Tudo isto é
loucura. Não me aflija. Não posso ouvir mais. Sua bondade para com
William torna-me mais obrigada a si do que eu poderia exprimir por
palavras; mas não quero, não posso suportar, não devo ouvir uma tal...
Não, não pense em mim. Mas o senhor não está pensando em mim. Eu sei
que tudo isto não quer dizer nada.
Conseguira escapar-se dele e naquele momento ouviu-se a voz de
Sir Thomas falando com um empregado, de caminho para a sala onde
estavam. Não havia tempo para novas juras ou súplicas; no entanto,
separar-se dele no momento em que a sua modéstia, apenas, parecia
impedir a felicidade que ele procurava, era cruel. Fanny correu por uma
porta oposta à em que o tio deveria entrar e já estava andando de um
lado para outro na sua sala de Leste, na maior confusão de sentimentos
contraditórios, antes de Sir Thomas acabar os cumprimentos e as
desculpas, ou ter começado a tomar conhecimento da alegre notícia que o
seu visitante tinha a lhe comunicar.
Ela sentia, pensava e tremia por tudo; agitada, feliz, miserável,
infinitamente grata, absolutamente zangada. Tudo aquilo era
inacreditável! Ele era indesculpável, incompreensível! Mas tal era o
costume dele, não podia fazer nada sem por no meio alguma maldade.
Primeiro fez com que ela se sentisse a criatura mais feliz do mundo e
depois insultou-a – não sabia o que dizer – como classificar ou em que
sentido tomar aquilo. Não acreditava que estivesse falando sério e
contudo, que desculpa poderia ter o uso de tais palavras e oferecimentos,
se é que isto não significava um gracejo?
No entanto William era tenente. Disso não tinha dúvida. Haveria de
pensar nisso para sempre e esquecer o resto. Mr. Crawford certamente
não a importunaria de novo; devia ter visto que ela não o desejava; e,
neste caso, como ela haveria de lhe agradecer, de o estimar pela amizade
que demonstrara para com William!
Não se arriscou a sair da sala de Leste senão depois de estar certa
que Mr. Crawford havia ido embora; depois, porém, que se convenceu
que ele saíra, ficou aflita para descer e falar com o tio, para gozar de toda
a felicidade de sua mútua alegria, bem como do benefício das
informações ou conjecturas dele quanto ao que seria de agora em diante
o destino de William. Sir Thomas estava tão contente quanto ela esperava
e muito bondoso e comunicativo; e Fanny teve com ele uma palestra tão
agradável a respeito de William, que chegou a esquecer que lhe havia
acontecido qualquer coisa aborrecida, até que quase no fim da conversa,
ficou sabendo que Mr. Crawford estava convidado a voltar a jantar
naquele mesmo dia. Não esperava por esta notícia, pois embora ele talvez
não se referisse ao que se tinha passado, era-lhe doloroso vê-lo logo em
seguida.
Procurou conformar-se; empenhou o maior esforço, quando se
aproximou a hora do jantar, para se sentir e parecer como de costume;
mas foi quase impossível não demonstrar o maior acanhamento e
desconforto quando o convidado entrou na sala. Nunca teria suposto que
justamente no dia em que soubera da promoção de William ela teria que
passar por tão dolorosas sensações.
Mr. Crawford não só estava na sala – e imediatamente se pôs ao
lado dela. Tinha um bilhete da irmã para lhe entregar. Fanny não o podia
encarar, e na voz dele não havia sinal da loucura daquela manhã. Abriu o
bilhete imediatamente, satisfeita por ter qualquer coisa para fazer, e feliz,
enquanto o lia, de sentir-se um pouco abrigada pelo papel das agitações
da tia Norris, que também jantava lá naquele dia.

“Querida Fanny – pois que agora a posso sempre chamar assim,


para infinito alívio de uma língua que esteve tropeçando no ‘Miss Price’
durante pelo menos as últimas seis semanas – não poderia deixar de
mandar por meu irmão algumas linhas de congratulações e manifestar o
meu mais jovial consentimento e aprovação. Prossiga, minha querida
Fanny, sem receio; não haverá dificuldades; quero crer que a certeza do
meu consentimento vale alguma coisa; assim você lhe pode sorrir, com os
seus mais doces sorrisos, esta tarde, e devolvê-lo para mim ainda mais
feliz do que ele saiu daqui .
Sua afetuosamente,
M. C.”

Não seriam essas as expressões que teriam feito bem a Fanny;


porque, não obstante as ter lido com demasiada pressa e confusão para
compreender claramente a intenção de Miss Crawford, era evidente que
ela pretendia lhe dar os parabéns pelo afeto do irmão e parecia mesmo
acreditar que esse afeto fosse verdadeiro. Não sabia o que fazer nem o
que pensar. Era uma desgraça pensar que seria sério; em todos os
sentidos havia perplexidade e agitação. Afligia-se toda vez que Mr.
Crawford lhe falava – e ele lhe falava freqüentemente; havia uma
qualquer coisa na voz dele e na maneira como se dirigia a ela, muito
diferente de como quando falava com os outros. Seu conforto durante o
jantar daquele dia foi inteiramente destruído; não pôde comer quase
nada; e quando Sir Thomas, muito bem humorado, observou que a alegria
lhe tinha tirado o apetite, ela quase morreu de vergonha, pelo terror da
interpretação de Mr. Crawford; pois, conquanto não se arriscasse por
coisa nenhuma a virar os olhos para o lado direito, onde Henry estava
sentado, sentiu que os olhos dele imediatamente se viraram para ela.
Ficou mais calada do que nunca. Não tomava parte na conversa,
nem mesmo quando se tratava de William, pois que a promoção dele
vinha também do lado direito e esta ligação lhe era penosa.
Achou que Lady Bertram permanecia à mesa mais tempo do que de
costume e começou a ficar impaciente por sair de uma vez; finalmente
encontraram-se no salão, onde ela pôde entregar-se aos seus próprio
devaneios, enquanto as tias falavam à sua moda sobre a promoção de
William.
Mrs. Norris parecia mais encantada com a economia que Sir
Thomas faria do que com qualquer outra coisa. Agora William já se podia
manter, o que faria uma grande diferença para o tio, pois ninguém sabia
quanto ele lhe custava; e, na verdade, haveria também alguma diferença
para ela. Estava muito contente de ter dado a William o que dera, quando
ele partiu, muito contente realmente, por ter podido, sem inconveniência
material, justamente naquela ocasião, lhe dar uma coisa de certo valor;
isto é, para ela, com seus escassos meios, pois que agora tudo seria útil
para preparar a cabine do rapaz. Sabia que ele teria de fazer alguma
despesa, que teria de comprar muitas coisas, não obstante os pais o
poderem auxiliar a comprar tudo muito barato; estava, porém, satisfeita
por ter contribuído com aquele pequeno auxílio.
– Estou contente por você ter lhe dado um bom presente – disse
Lady Bertram, com a maior calma – pois eu lhe dei apenas 10 libras.
– Verdade! – exclamou Mrs. Norris ficando muito vermelha. –
Palavra de honra, ele deve ter ido com os bolsos recheados,
principalmente não tendo despesa alguma na viagem.
– Sir Thomas me disse que 10 libras eram suficientes.
Não estando disposta a discutir se eram ou não suficientes, Mrs.
Norris começou a levar a questão para outro ponto.
– É incrível – disse ela – como essa gente moça custa aos amigos,
sem contar o que se gasta na educação deles e em encaminhá-los na vida!
A eles pouco importa a procedência do dinheiro, ou o que custam aos
pais, tios e tias no decorrer de um ano. Veja por exemplo os filhos de
minha irmã Price; junte-os todos, e ouso dizer que ninguém creditaria o
quanto custam a Sir Thomas a cada ano, sem falar no que eu faço por
eles.
– É verdade, minha irmã, é como você diz. Mas pobres coitados!
Não têm culpa; e você sabe que isto não faz grande diferença para Sir
Thomas. Fanny: espero que William não se esqueça do meu xale se for
para a Índia; aliás, pretendo lhe fazer outras encomendas de coisas que
valham à pena. Desejo que ele possa ir para a Índia; só assim terei o meu
xale. Creio que até encomendarei dois xales, Fanny.
Fanny, neste ínterim, falando somente quando não o podia evitar,
estava tentando compreender quais eram as intenções de Mr. e Miss
Crawford. Tudo no mundo, a não ser as palavras e as maneiras dele, dava
a entender que não estavam agindo seriamente. Tudo que fosse natural,
provável, razoável, era contra; todos os hábitos e maneiras de pensar
deles e todos os seus próprios desmerecimentos. Como poderia ela ter
inspirado séria afeição a um homem que já havia visto tantas, fora
admirado por tantas e namorado tantas moças, infinitamente superiores a
ela; que parecia tão pouco afeito a sérias impressões, mesmo se tratando
de procurar um divertimento; que pensava tão levianamente, tão
negligentemente, tão insensivelmente em todos os sentidos; que era tudo
para todo o mundo e parecia não encontrar ninguém essencial para ele?
E além do mais, como se poderia supor que a irmã dele, com todas as
suas avançadas e mundanas noções sobre o matrimônio, estivesse
protegendo uma coisa tão séria como aquela? Nada em ambos poderia
ser menos natural. Fanny envergonhava-se de suas próprias dúvidas.
Qualquer coisa seria possível menos um afeto sério, ou uma séria
aprovação da parte dela. Estava inteiramente convencida disso quando
Sir Thomas e Mr. Crawford se reuniram às senhoras. A dificuldade era
manter absolutamente a convicção depois de Mr. Crawford estar
presente; porque uma ou duas vezes ele lhe lançou um olhar que ela não
soube como interpretar; se fosse qualquer outro homem, ao menos, teria
dito que aqueles olhares tinham uma significação muito séria, muito
marcada. Mas tratando-se dele, ainda tentou acreditar que aquilo não era
senão o que ele havia freqüentemente manifestado por suas primas e
outras cinqüenta mulheres.
Percebeu que ele lhe queria falar sem que os outros ouvissem.
Imaginou que estava tentando isso desde que chegara, quando Sir
Thomas saía da sala ou quando estava empenhado em alguma
conversação com Mrs. Norris; e cautelosamente lhe recusava toda
oportunidade.
Afinal – para o nervosismo de Fanny parecera um afinal, embora
não muito tarde – ele começou a falar em partir; mas o alívio causado por
aquela notícia foi estragado em seguida, visto que ele se virou para ela
dizendo:
– Não tem nada para mandar a Mary? Não vai responder ao bilhete
dela? Ficará desapontada se não receber resposta sua. Por favor, escreva,
nem que seja apenas uma linha.
– Oh, sim! Certamente – exclamou Fanny, levantando-se depressa, a
pressa do embaraço e da vontade de afastar-se. – Escreverei
imediatamente.
Foi pois para a mesa onde costumava escrever a pedido da tia e
preparou o material, sem saber absolutamente o que iria dizer. Tinha lido
o bilhete de Miss Crawford apenas uma vez e responder a uma coisa que
tão mal compreendera era quase impossível. Inteiramente desabituada a
esta espécie de correspondência, se tivesse havido tempo para escrúpulos
e receios quanto ao estilo, ela os teria tido em abundância; qualquer
coisa, porém, tinha que ser escrita, e com um único pensamento, que era
o de não parecer intencional em nada do que escrevesse, assim escreveu,
com grande tremor tanto do espírito como da mão:

“Fico-lhe muito grata, minha prezada Miss Crawford, pelas suas


amáveis congratulações, até onde se referem ao meu querido William. O
resto de seu bilhete, eu sei, não significa nada; pois me considero tão
incapaz para qualquer coisa dessa sorte, que espero me desculpará por
lhe pedir que não insista no assunto. Conheço muito bem Mr. Crawford
para não compreender as intenções dele; se ele me compreendesse bem
também, acredito que procederia de modo diferente. Nem sei o que
escrevo, mas seria um grande favor não mencionar o caso novamente.
Com os agradecimentos pela honra de seu bilhete, sou, etc., etc.”

O final estava quase ilegível pelo aumento de temor, pois viu que
Mr. Crawford, sob pretexto de receber a carta, vinha em direção a ela.
– Não pense que eu quero apressá-la – disse ele abaixando a voz, ao
perceber a espantosa rapidez com que ela escrevia; – não pode pensar
que eu tenha uma tal intenção. Peço que não se apresse.
– Oh, não! Muito obrigada; já escrevi, acabei de escrever; num
momento estará pronta; fico-lhe muito obrigada se me fizer o favor de
entregar isto a Miss Crawford.
A carta estava entregue e devia ser levada; e como Fanny desviava
propositalmente o olhar quando voltou para junto da lareira onde os
outros se achavam, ele não teve outra coisa a fazer senão sair na maior
das aflições.
Fanny refletiu em que nunca havia tido um dia de maior agitação,
tanto de tristezas como de alegrias; felizmente, porém, as alegrias não
eram de sorte a morrer com o dia; pois cada dia que viesse havia de
fortalecer o conhecimento dos progressos de William, enquanto que as
tristezas, ela tinha esperança de que não voltariam mais. Não duvidava
de que sua carta parecesse extremamente mal escrita, que as expressões
não seriam dignas nem de uma criança, pois que, com a sua perturbação,
não pudera cuidar da composição; ao menos, porém, havia de persuadir a
ambos que ela não tinha ficado nem impressionada nem agradecida pelas
atenções de Mr. Crawford.

CAPÍTULO 32

Quando Fanny acordou no dia seguinte, ainda não tinha podido


esquecer Mr. Crawford; mas lembrando-se dos dizeres de sua carta, não
estava menos convencida do efeito que teriam, do que o estava na noite
precedente. Se Mr. Crawford ao menos fosse embora! Era o que ela mais
ardentemente desejava; que fosse e levasse a irmã consigo, como ia antes
fazer e como fora o seu propósito ao voltar a Mansfield. E por que não o
tinha já feito, não podia compreender, pois Miss Crawford certamente não
queria outra coisa. No decorrer da visita da véspera, Fanny teve
esperança de o ouvir mencionar o dia da partida; ele, porém, apenas se
referiu à viagem como uma coisa ainda remota.
Convencida como estava do resultado que teria a sua carta, não
pôde deixar de se espantar ao ver Mr. Crawford dirigir-se novamente
para ali, numa hora tão matutina quanto a do dia anterior. Sua vinda
talvez não tivesse nada a ver com ela, mas devia evitar de o ver, se
possível; e como ia subindo para seu quarto, resolveu permanecer por lá
enquanto durasse a visita, a menos que a chamassem, o que era pouco
provável, visto que Mrs. Norris ainda se achava em casa.
Sentou-se durante muito tempo numa grande agitação, prestando
atenção e tremendo com o receio de ser chamada a qualquer momento;
mas como não ouviu aproximação de passos, gradualmente se foi
acalmando, pôde começar a trabalhar e esperou que Mr. Crawford viesse
e saísse sem que ela fosse obrigada a tomar conhecimento de nada.
Quase meia hora havia passado e Fanny já estava muito mais
sossegada, quando de repente ouviu o ruído de alguém que se
aproximava; um passo pesado, um passo desconhecido naquela parte da
casa; era o andar do tio; conhecia-o tão bem quanto a sua voz; tinha
tantas vezes tremido por causa dele que novamente começou a tremer, só
com a idéia de que ele vinha para falar com ela, fosse qual fosse o
assunto. Foi realmente Sir Thomas quem abriu a porta e perguntou se ela
se achava ali e se poderia entrar. O terror que lhe causava as suas
ocasionais visitas de antigamente àquela sala, parecia de todo renovado e
Fanny sentiu como se o tio fosse novamente examiná-la em francês ou
inglês.
Foi, contudo, cheia de atenções que lhe ofereceu uma cadeira e
procurou demonstrar sentir-se honrada; e na sua perturbação esqueceu
inteiramente as deficiências do seu compartimento até que ele,
estacando-se na entrada, disse com surpresa:
– Por que não acendeu a lareira hoje?
Fora via-se o chão coberto de neve; Fanny estava sentada
embrulhada num xale. Hesitou.
– Não estou com frio, titio; nunca fico aqui muito tempo nesta época
do ano.
– Mas em geral, você costuma ter o fogão aceso, não?
– Não, senhor.
– Como é isso então? Deve haver algum engano. Pensei que você
usasse esta sala para o seu perfeito conforto. No seu quarto de dormir, eu
sei que não pode haver uma lareira. Mas aqui, deve ter havido algum mal
entendido que precisa ser corrigido. Não é nada bom para você ficar, nem
que seja meia hora por dia, num lugar onde não há fogo. Você não é forte;
ao contrário, é sujeita a resfriados. Aposto que sua tia não tem
conhecimento disso.
Fanny teria preferido ficar calada; mas já que era obrigada a
responder, não se pôde abster, fazendo justiça à tia de quem gostava
mais, de dizer qualquer coisa na qual as palavras “minha tia Norris”
foram percebidas.
– Compreendo – disse o tio, recordando-se e não querendo ouvir
mais: – Compreendo. Sua tia Norris sempre teve essa mania de achar que
as crianças devem ser educadas sem condescendências desnecessárias;
mas para tudo deve haver limites. Ela mesma tem muita saúde, o que,
naturalmente, influencia as suas opiniões sobre as necessidades dos
outros. E por outro lado, também, posso compreender perfeitamente. Sei
quais foram sempre os sentimentos dela. O princípio em si foi bom, mas
acredito que tenha sido levado muito acima dos limites no seu caso. Já
percebi que tem havido às vezes, em alguns pontos, uma distinção
injusta; contudo, conheço-a muito bem, Fanny, para acreditar que guarde
ressentimento por causa disso. A sua sensibilidade a impedirá de receber
as coisas apenas pela metade e julgar parcialmente pelos
acontecimentos. Olhará para todo o passado, considerará o tempo, as
pessoas, as probabilidades e sentirá que não podiam ser senão seus
amigos aqueles que a estavam educando e preparando para a condição
medíocre que parecia ser seu destino. No entanto, embora a cautela deles
venha a ser eventualmente desnecessária, foi com boa intenção que a
tomaram; e você pode ter certeza, que toda opulência que venha a ter
será apreciada em dobro, por causa das pequenas privações e restrições
que lhe tenham sido impostas. Estou certo de que você não prejudicará o
juízo que faço de sua pessoa deixando algum dia de tratar sua tia Norris
com o respeito e a atenção que lhe é devida. Bem, já falamos demais
sobre isto. Sente-se, minha querida. Preciso lhe falar por alguns minutos
mas não a deterei por muito tempo.
Fanny obedeceu, os olhos baixos e a cor lhe subindo ao rosto.
Depois de um momento de silêncio, Sir Thomas, tentando conter um
sorriso, continuou.
– Não desconhece, talvez, minha filha, que eu tenha tido uma visita
esta manhã. Não estava há muito tempo em meu gabinete, depois do
almoço, quando Mr. Crawford foi introduzido lá. O motivo da visita você
provavelmente adivinha.
Fanny corava cada vez mais; e o tio, percebendo que ela estava
embaraçada a um ponto que a tornava inteiramente incapaz de falar ou
levantar os olhos, desviou a vista e sem outra pausa, prosseguiu na
justificação da visita de Mr. Crawford.
Mr. Crawford tinha vindo com o propósito de se declarar
apaixonado por Fanny, fazer-lhe uma proposta definitiva e solicitar a
autorização do tio, que pensava estar no lugar dos pais dela; e tinha feito
tudo tão bem, tão francamente, tão dignamente, que Sir Thomas,
achando, além do mais, suas próprias respostas e suas próprias
observações terem sido muito a propósito, e não percebendo o que se
passava pelo espírito da sobrinha, imaginou que com tais detalhes
estivesse satisfazendo mais a ela do que a si mesmo. Falou, portanto, por
muito tempo sem que Fanny se atrevesse a interrompê-lo. Não chegava
nem a desejar fazer isto. Seu espírito estava mergulhado numa grande
confusão. Tinha mudado de lugar; e com o olhar intencionalmente fixo em
uma das janelas, ouvia o tio na maior perturbação e desânimo. Por um
momento ele parou de falar e ela mal o percebera; afinal Sir Thomas se
levantou da cadeira e disse:
– E agora, Fanny, que cumpri uma parte da minha missão e expus
todas as coisas com clareza e satisfação, devo executar o resto pedindo
que você me acompanhe até embaixo, onde, embora não possa presumir
que a minha tenha sido indesejável, devo admitir que encontrará uma
outra a quem gostará ainda mais de ouvir. Mr. Crawford, como você
talvez tenha adivinhado, ainda está aqui em casa. Ficou no meu gabinete
e espera vê-la lá.
Ao proferir tais palavras, houve um olhar, um estremecimento, uma
exclamação, que deixaram Sir Thomas admirado; mas qual não foi o seu
espanto ao ouvi-la exclamar:
– Oh! Não senhor, não posso, na verdade não posso vê-lo. Mr.
Crawford devia saber – ele devia saber isto; disse-lhe o bastante ontem
para o convencer; falou-me sobre o assunto, e eu lhe disse francamente
que isso me era muito desagradável e inteiramente fora de meu alcance
retribuir o seu bom juízo.
– Não percebo o que quer dizer – exclamou Sir Thomas sentando-se
de novo. – Fora de seu alcance retribuir o seu bom juízo? Que significa
isto? Sei que ele falou com você ontem e (assim o compreendi) recebeu
tanto encorajamento para prosseguir quanto uma moça ajuizada poderia
permitir-se a dar. Fiquei muito contente com o que soube sobre o seu
comportamento na ocasião; demonstra uma discrição muito louvável.
Mas, já que ele se declarou tão digna e honradamente – quais são os seus
escrúpulos agora?
– O senhor está enganado – exclamou Fanny, forçada pela ansiedade
do momento até a contradizer o tio; – o senhor está completamente
enganado. Como poderia Mr. Crawford dizer tal coisa? Não lhe dei
nenhum encorajamento ontem. Ao contrário, disse-lhe, – não me posso
recordar exatamente as minhas palavras, – mas tenho certeza de que lhe
disse que não o queria ouvir, que isto era muito desagradável para mim
em todos os sentidos, e lhe pedi para nunca mais me falar daquela
maneira. Tenho certeza de que disse tudo isto e mais alguma coisa; e
teria dito ainda mais, se estivesse certa de que ele estava falando a sério;
porém não quis, não podia atribuir às suas palavras outra intenção que
talvez não tivessem. Pensei que com ele tudo daria em nada.
Não podia continuar a falar. Estava quase sem fôlego.
– Devo compreender, então – disse Sir Thomas depois de um
momento de reflexão – que você recusa Mr. Crawford?
– Sim.
– Recusa-o?
– Sim.
– Recusa Mr. Crawford! Sob que pretexto? Por qual motivo?
– Eu... Eu não posso gostar dele, titio, não posso gostar
suficientemente para casar.
– Isto é muito estranho! – disse Sir Thomas num tom de tranqüilo
descontentamento. – Deve haver qualquer coisa nisso que minha
inteligência não alcança. Aí temos um rapaz desejando lhe fazer a corte,
com tudo para recomendar; não apenas situação na vida, e caráter, mas
ainda com um temperamento excelente, fora do comum, com maneiras e
conversação que agradam a todos. E depois, não é um conhecido de
ontem, já o conhece faz algum tempo. A irmã, além do mais, é sua amiga
íntima e ele fez o que fez por seu irmão, o que eu supunha ser o suficiente
para recomendá-lo, caso não houvesse outro motivo. Com o meu interesse
não sei quando se poderia conseguir a promoção de William. No entanto
ele já a conseguiu.
– É – balbuciou Fanny, baixando os olhos, cheia de vergonha; e
sentia-se quase envergonhada de si mesma, depois do quadro que o tio
havia pintado, por ela não gostar de Mr. Crawford.
– Você deve ter percebido – continuou Sir Thomas – deve ter
percebido há algum tempo, uma particularidade no procedimento de Mr.
Crawford a seu respeito. Não pode estar surpreendida. Deve ter
observado as atenções dele; e conquanto as tenha sempre recebido muito
dignamente (não tenho nada a censurar neste sentido), nunca percebi
que lhe fossem desagradáveis. Estou meio inclinado a pensar, Fanny, que
você não conhece bem os seus próprios sentimentos.
– Oh, sem senhor! Na verdade conheço. As atenções dele foram
sempre – o que eu não gostava.
Sir Thomas olhou para ela profundamente admirado.
– Não entendo mais nada – disse ele. – Isto requer uma explicação.
Jovem como você é e não tendo visto quase ninguém, é quase impossível
que suas afeições...
Parou e olhou atentamente para a moça. Viu seus lábios formarem
um “não”, embora o som não fosse articulado, mas as faces estavam
escarlates. Aquilo, porém, numa moça tão modesta podia ser muito
compatível com a inocência; aparentando, pois, ter ficado satisfeito,
acrescentou logo:
– Não, não, eu sei que isto não é o caso absolutamente; é
inteiramente impossível. Bem, não se fala mais no assunto.
E por alguns minutos ficou calado. Estava mergulhado em profunda
meditação. Sua sobrinha, também, meditava profundamente, procurando
preparar-se para novas perguntas. Preferia morrer a ter que dizer a
verdade; e com um pouco de reflexão sentiu que se ficasse firme não
chegaria a trair o seu segredo.
– Independentemente que a escolha de Mr. Crawford parecia
justificar – disse Sir Thomas recomeçando com muita dignidade – o desejo
dele de casar-se cedo eleva-o muito no meu conceito. Sou partidário dos
casamentos cedo, desde que haja meios proporcionais e acho que todo
rapaz, com renda suficiente, deve estabelecer-se logo que tenha
oportunidade depois dos vinte e quatro anos. Sendo esta a minha opinião,
para mim é um desgosto pensar quão pouco provável é o meu filho mais
velho, seu primo, Mr. Bertram, casar-se cedo; presentemente, tanto
quanto eu posso julgar, o matrimônio não faz parte dos planos e
cogitações dele. Desejaria que se estabelecesse. – Neste ponto olhou para
Fanny. – Edmund, pelo seu temperamento e hábitos, é mais provável que
se case antes do que o irmão. Ele, na verdade, se não me engano, já
encontrou a moça a quem poderia amar, enquanto que meu filho mais
velho ainda nem pensou nisto. Estarei certo? Você concorda comigo,
minha querida?
– Sim, senhor.
A resposta foi branda mas proferida calmamente e Sir Thomas ficou
descansado a respeito dos filhos. Mas esse fato não auxiliou a sobrinha; à
medida que a irredutibilidade dela se confirmava, o desgosto dele
aumentava; levantando-se e andando de um lado pára outro da sala, com
a testa franzida, como Fanny imaginava, embora não ousasse levantar os
olhos, ele logo depois disse com a voz autoritária:
– Minha filha, você tem alguma razão contra o caráter de Mr.
Crawford?
– Não senhor.
Teve vontade de acrescentar, “Mas tenho sim, contra os princípios”;
mas desanimou ante a perspectiva de discussão, de explicação e talvez do
fracasso em convencê-lo. A má opinião que fazia dele baseava-se
principalmente em observações que fizera através das primas, mas não o
ousava mencionar. Maria e Julia, especialmente Maria, estavam tão
intimamente implicadas no mau procedimento de Mr. Crawford, que ela
não poderia condená-lo sem as trair. Tivera a esperança de que, para um
homem como seu tio, tão justo, tão honrado, tão bom, o simples
conhecimento da sua antipatia, seria suficiente. Para seu infinito
sofrimento viu que não era assim.
Sir Thomas chegou-se à mesa onde ela se achava, trêmula e infeliz,
e com fria indiferença, disse:
– Percebo que não adianta falar com você. É melhor por um fim a
esta humilhante conferência. Mr. Crawford não deve ficar esperando por
mais tempo. Acrescentarei, porém, somente, pensando ser meu dever lhe
manifestar a minha opinião sobre a sua conduta, que você desapontou
todas as minhas esperanças e provou ter um caráter inteiramente diverso
daquele que eu havia julgado. Pois eu tinha, Fanny, como penso ter
demonstrado, formado um juízo muito favorável sobre você, desde o dia
que voltei para a Inglaterra. Imaginava-a particularmente livre de
obstinação, presunção, e toda aquela independência de espírito que tanto
prevalece nos dias de hoje, até nas moças, e que, nas moças, é mais
ofensiva e odiosa do que todos os defeitos comuns. E você acaba de
mostrar que é obstinada e perversa; que pode e quer decidir por si
mesma, sem qualquer consideração ou deferência por aqueles que
certamente têm o direito de a guiar, sem mesmo pedir o conselho deles.
Mostra-se muito, muito diferente de que a havia imaginado. A vantagem
ou desvantagem da sua família, de seus pais e irmãos, não lhe passou
pela cabeça numa ocasião como esta. O quanto eles lucrariam, o quanto
eles haveriam de se regozijar com um tal casamento, para você não quer
dizer nada. Só pensa em si mesma e porque não gosta de Mr. Crawford
exatamente como a sua fantasia imagina ser necessário para a felicidade,
resolve recusar a proposta dele imediatamente, sem mesmo desejar um
pouco de tempo para a considerar, um pouco mais de tempo para refletir
e para realmente examinar as suas próprias inclinações; e está, como
uma tonta atirando fora uma tal oportunidade de se estabelecer na vida,
vantajosamente, honradamente, nobremente, oportunidade que,
provavelmente nunca mais lhe ocorrerá. Aí está um rapaz de juízo, de
caráter, educado e rico, excessivamente afeiçoado a você e pedindo a sua
mão da maneira mais bela e desinteressada; e, deixe-me dizer-lhe, Fanny,
você poderá viver neste mundo mais outros dezoito anos sem ser
cortejada por outro homem com a metade da fortuna de Mr. Crawford ou
a décima parte das qualidades dele. De boa vontade lhe teria dado
qualquer uma das minhas próprias filhas. Maria já está nobremente
casada, mas se Mr. Crawford pedisse a mão de Julia, eu lha teria
concedido com satisfação superior e mais sincera do que dei a de Maria a
Mr. Rushworth. – Depois de uma curta pausa: – E ficaria bastante
surpreendido se qualquer uma das minhas filhas, ao receberem uma
proposta de casamento, que trouxesse apenas metade das vantagens que
este traz, imediatamente se resolvesse a recusá-la, sem consultar o meu
interesse e a minha opinião. Teria ficado muito surpreso e muito chocado
com um tal procedimento. Consideraria esse ato como uma total violação
dos deveres e respeitos. Mas você não pode ser julgada pelas mesmas
regras. Você não me deve o respeito de uma filha. Contudo, Fanny, se seu
coração a pode absolver da ingratidão...
Interrompeu-se. Fanny chorava tão amargamente que, por muito
zangado que estivesse, não pôde continuar. O coração dela estava quase
partido pelo juízo que o tio fazia, por aquelas acusações, tão graves, tão
múltiplas! Independente, obstinada, egoísta, ingrata. Pensava tudo isto
dela. Enganara as expectativas dele; perdera sua estima. Que seria dela?
– Sinto muito – soluçou por entre as lágrimas. – Estou realmente
desolada.
– Desolada! Sim, espero que o esteja; e provavelmente terá motivo
para o ficar por muito tempo, depois de tomar tal resolução.
– Se me fosse possível proceder de outra forma – disse ela com
outro esforço; – estou, porém, absolutamente convencida de que nunca o
faria feliz e que eu mesma me sentiria miserável.
Nova explosão de lágrimas; mas apesar dessa explosão, apesar
daquela negra palavra “miserável” que a precedeu, Sir Thomas começou
a achar que um pouco de enternecimento, uma pequena mudança de
disposição, talvez fosse responsável por aquelas lágrimas; e começou,
também, a ter mais esperanças. Sabia que ela era muito tímida e
excessivamente nervosa; e não achou impossível que com o tempo, com
um pouco de insistência, um pouco de paciência e um pouco de
impaciência, uma hábil mistura de tudo por parte do pretendente, talvez
desse algum resultado. Se o rapaz ao menos tivesse perseverança, se ele
ao menos amasse bastante para perseverar, Sir Thomas podia ter
esperança; e com essas reflexões, disse num tom de adequada
severidade, mas menos zangado:
– Bem, minha filha, enxugue essas lágrimas. Não há necessidade de
chorar; não adianta nada. Agora você deve descer comigo. Mr. Crawford
está esperando há muito tempo. Você mesma deve lhe responder; não
podemos esperar que ele fique satisfeito com menos; e só mesmo você
poderá lhe explicar esse equívoco sobre os seus sentimentos, do qual,
desgraçadamente, ele não se convenceu. Eu me sinto inteiramente
incapaz.
Mas Fanny mostrou uma tal relutância, um tal acabrunhamento, à
idéia de descer, que Sir Thomas depois de pequena consideração, achou
melhor lhe fazer a vontade. Suas esperanças, por conseguinte, sofreram
uma pequena depressão; mas ao olhar para a sobrinha e ver o estado em
que as lágrimas tinham deixado o rosto dela, pensou que uma entrevista
imediata só daria mais a perder do que a ganhar. Por isso, com algumas
palavras sem significação alguma, saiu da sala, deixando a pobre Fanny
sozinha para desabafar com lágrimas o que se havia passado.
O espírito dela estava todo em desordem. O passado, o presente, o
futuro, tudo era terrível. Mas o desprezo do tio era o que lhe causava
maior dor. Egoísta e ingrata! Ele a julgava assim! Nunca mais poderia ser
feliz. Não tinha ninguém a seu favor, para aconselhar, para defender. Seu
único amigo estava ausente. Ele talvez tivesse podido abrandar o pai; mas
todos, talvez todos, a julgariam egoísta e ingrata. Teria que ouvir essa
censura muitas vezes; teria que a ouvir, ver ou sentir a existência dela
para sempre em tudo que se relacionasse consigo. Não podia deixar de
sentir algum ressentimento contra Mr. Crawford; contudo, se ele
realmente a amasse, e também estivesse sofrendo! – Tudo era uma
miséria.
Cerca de um quarto de hora depois o tio voltou; quase desmaiou à
vista dele. Ele falou calmamente, porém, sem austeridade, sem censura, e
ela se reanimou um pouco.
– Mr. Crawford já foi: acabou de sair. Não preciso repetir o que se
passou. Não quero aumentar seu sofrimento, com a narração do que ele
sentiu. É suficiente saber que ele se portou com a maior distinção e
generosidade e confirmou da maneira mais favorável a minha opinião
sobre a sua inteligência, coração e caráter. Quando eu lhe expus o que
você estava sofrendo, ele imediatamente e com a maior delicadeza,
cessou de insistir para a ver no momento.
Neste ponto Fanny, que havia erguido os olhos, abaixou-os de novo.
– Naturalmente – continuou o tio – ele continua a desejar falar com
você sozinha, seja apenas por cinco minutos; um desejo muito natural, um
direito muito justo para ser negado. Mas não há dia marcado; talvez
amanhã, ou quando você se sentir mais calma. No momento basta que se
tranqüilize. Pare de chorar; só pode ficar exausta. Se, como eu quero
acreditar, você deseja me demonstrar alguma obediência, não se
abandonará a essas emoções mas, ao contrário, procurará raciocinar e
adquirir melhor disposição de espírito. Aconselho-a a sair; o ar lhe fará
bem; saia por uma hora; terá o jardim à sua disposição e com ar e
exercício se sentirá melhor. E, Fanny, – virou-se novamente por um
momento – não direi lá embaixo nada do que se passou; não direi nem
mesmo à sua tia Bertram. Não há necessidade de espalhar a decepção;
não diga nada você mesma.
Esta era uma ordem que seria obedecida com a maior alegria; e foi
um ato de bondade que Fanny agradeceu de coração. Ser poupada às
intermináveis censuras de sua tia Norris deixou-a cheia de gratidão.
Qualquer outra coisa seria mais suportável do que tais censuras. Até
mesmo falar com Mr. Crawford seria menos acabrunhante.
Saiu imediatamente como o tio havia recomendado e seguiu o seu
conselho quanto pôde; conteve as lágrimas; tentou ansiosamente
controlar o espírito e fortalecer a consciência. Queria provar que
desejava lhe ser obediente e conquistar novamente os seus favores; não
dando conhecimento do caso às suas tias, ele havia dado outro forte
motivo para esforçar-se. Não provocar suspeitas pela sua aparência e
seus modos, era agora o seu mais caro objetivo; e para escapar da tia
Norris, ela estava disposta a submeter-se a quase tudo.
Ficou pasmada, inteiramente pasmada quando, ao entrar na sala de
Leste depois do passeio, a primeira coisa que viu foi o fogo aceso e
queimando. Um fogo! Parecia-lhe demais; conceder-lhe um tal favor,
justamente naquela ocasião, era provocar até uma dolorosa gratidão.
Admirava-se que Sir Thomas ainda tivesse tempo para pensar numa coisa
como aquela; mas logo descobriu, por informação espontânea da
arrumadeira, que aquilo agora aconteceria todos os dias. Sir Thomas
havia dado ordens para que acendessem o fogo.
“Era preciso, na verdade, ser muito insensível, para realmente eu
ser ingrata! – disse ela consigo mesma. Deus me defenda de ser ingrata!”
Não soube mais do tio nem da tia Norris, até que se encontraram na
hora do jantar. O procedimento do tio para com ela foi tanto quanto
possível o mesmo de antes; ela estava certa de que Sir Thomas não
queria demonstrar nenhuma mudança e que a própria consciência é que
estava fantasiando alguma; a tia, no entanto, não demorou a brigar com
ela; e quando viu como e quão agradavelmente era tratado o simples fato
de haver ela saído sem o conhecimento de Mrs. Norris, sentiu toda a
razão que tinha em considerar como uma benção a bondade que a tinha
salvo das mesmas censuras, relacionadas com um assunto de mais
importância.
– Se soubesse que você ia sair, tê-la-ia mandado até lá em casa,
levar um recado para Nanny, recado que eu mesma, com grande
incômodo, fui obrigada a levar. Eu não tinha muito tempo para perder e
você me poderia ter poupado o trabalho, se tivesse tido a gentileza de nos
dizer que ia sair. Creio que não faria grande diferença para você andar
pelo jardim ou ir até minha casa.
– Recomendei a Fanny que não saísse do jardim, por ser o lugar
mais seco – interpôs Sir Thomas.
– Oh! – fez Mrs. Norris controlando-se um pouco – foi muita
bondade sua, Sir Thomas, mas não sabe como o caminho para minha casa
é seco. Fanny teria feito um passeio tão bom como o outro se fosse até lá,
posso lhe afiançar. Ainda com a vantagem de ser útil e ser delicada para
com sua tia: a culpa é toda dela. Se nos tivesse apenas dito que ia sair –
mas já observei muitas vezes em Fanny uma qualquer coisa – ela gosta de
agir por conta própria; não gosta de receber ordens; costuma sair quando
bem quer e entende; não há dúvida que tem uma certa tendência para a
reserva, a independência e o absurdo, que eu a aconselharia a corrigir.
Como reflexão geral sobre Fanny, Sir Thomas achou que nada
poderia ser mais injusto, embora ele mesmo, não há muito tempo,
houvesse exprimido os mesmos sentimentos, e procurou mudar de
assunto; tentou várias vezes antes de o conseguir, pois Mrs. Norris não
tinha suficiente sagacidade para perceber, nem agora, nem em outro
qualquer tempo, a que ponto ele chegava na boa opinião que fazia da
sobrinha e até quanto ele estava longe de desejar as qualidades de seus
próprios filhos realçadas à custa da depreciação das qualidades dela.
Mrs. Norris estava falando sobre Fanny, portanto, não compreendia que
ele se tivesse retirado da mesa no meio do jantar.
Finalmente, porém, terminou; e o serão começou com mais calma
para Fanny, e mais alegria do que ela teria esperado, depois de uma
manhã tão tormentosa; no entanto, ela confiava, em primeiro lugar, que
havia tido razão; que seu julgamento não a tinha enganado. Podia
responder pela sinceridade de suas intenções; e em segundo, estava
disposta a esperar que o desgosto do tio estivesse diminuindo e
diminuiria ainda mais depois que ele refletisse sobre o assunto com mais
imparcialidade e sentisse, como devia sentir um homem de bem, quanto
era triste, imperdoável, inútil e perverso casar sem afeição.
Depois que passasse a entrevista, de que estava ameaçada para o
dia seguinte, ela não poderia senão regozijar-se por ver o assunto
finalmente terminado e por pensar que, tendo Mr. Crawford partido de
Mansfield, logo tudo voltaria ao normal. Não queria, não podia acreditar
que o amor de Mr. Crawford por ela durasse muito tempo; seu
temperamento não era desses. Em Londres ele logo se curaria. Em
Londres ele não demoraria a admirar-se da sua loucura e lhe agradeceria
por tê-lo salvo de piores conseqüências.
Enquanto o espírito de Fanny se ocupava com essas esperanças, seu
tio, logo depois do chá, foi chamado a outra sala; era uma ocorrência
demasiadamente comum para lhe chamar a atenção e ela não percebeu
nada até que o mordomo reapareceu, depois de dez minutos e,
adiantando-se para ela, disse:
– Sir Thomas deseja falar-lhe no gabinete dele.
Então lhe ocorreu o que poderia ser; uma suspeita apossou-se de
seu espírito deixando-a pálida; levantando-se, porém, instantaneamente,
preparava-se para obedecer quando Mrs. Norris a chamou:
– Pode ficar, Fanny! Que está pensando? Aonde vai? Não seja tão
apressada. Fique certa que não é a você que estão chamando e sim a mim
– olhando para o mordomo – mas você está sempre tão aflita para se
adiantar. Que poderia Sir Thomas querer de você? É a mim que ele
chama, não Baddeley? Foi neste momento. Você se refere a mim, não é
Baddeley? Sir Thomas precisa de mim e não de Miss Price.
Mas Baddeley ficou firme.
– Não senhora, é de Miss Price. Tenho certeza que é de Miss Price.
– E com essas palavras disfarçou um sorriso que queria dizer, “Não
acredito que a senhora servisse para o caso, absolutamente”.
Mrs. Norris, muito descontente, foi obrigada a voltar ao seu
trabalho; e Fanny, saindo agitadamente, encontrou-se, como o
pressentira, sozinha com Mr. Crawford.

CAPÍTULO 33

A entrevista não foi nem tão curta nem tão conclusiva quanto a
moça havia suposto. Henry não se conformava facilmente. Era tão
perseverante quanto Sir Thomas desejaria que ele o fosse. Era vaidoso, o
que muito contribuía para, em primeiro lugar, não acreditar que Fanny
não o amasse, embora, talvez, sem se aperceber disso; e depois, forçado
afinal a admitir que ela presentemente estava segura de seus próprios
sentimentos, tinha a convicção de poder, com o tempo, modificar como
quisesse aqueles sentimentos.
Estava apaixonado, muito apaixonado; e essa paixão, agindo sobre
um espírito vivo, cheio de confiança, mais ardente do que delicado,
duplicava a importância do amor que ela lhe recusava.
Não perdia a esperança; não desistiria. Tinha uma excelente base
para uma sólida afeição; sabia que Fanny possuía todas as virtudes que
justificariam as mais ardentes esperanças numa felicidade permanente; a
conduta dela, naquele momento, ao demonstrar o desinteresse e a
delicadeza de seu caráter (qualidades que ele julgava das mais raras), era
de sorte a lhe aumentar todos os desejos e o confirmar em todas as suas
resoluções. Não sabia que teria de enfrentar um coração já
comprometido. Sobre isto não tinha suspeitas. Considerava-a como
alguém que nunca houvesse pensado seriamente no assunto para estar
em perigo; que estava protegida pela juventude, uma juventude de
consciência tão adorável quanto a de pessoa; sua modéstia a tinha
impedido de compreender as atenções do seu apaixonado, e que ainda
estava esmagada pela rapidez das declarações, tão inteiramente
inesperadas, e a novidade de uma situação em que a sua imaginação
nunca cogitara.
Não seria pois de esperar que, depois que fosse compreendido,
haveria naturalmente de vencer? Acreditava plenamente nisso. Um amor
como o seu, num homem como ele, tinha que ser retribuído e não
demoraria muito; e ele estava tão encantado com a idéia de a obrigar a
amá-lo dentro de pouco tempo, que já nem se importava com que ela o
não amasse. Uma pequena dificuldade para vencer não constituía
desgraça para Henry Crawford. Antes o animava. Estava acostumado a
conquistar corações com demasiada facilidade. Esta situação era nova e
animadora.
Para Fanny, porém, cuja vida fora cheia demais de oposições para
encontrar qualquer encanto em tal situação, tudo isto era
incompreensível. Viu que Henry tencionava insistir; mas como poderia
ele, depois das expressões a que ela se vira obrigada a usar? Ela não
conseguia compreender. Disse-lhe que não o amava, que não o poderia
amar e que estava certa de que nunca o poder amar; que era
absolutamente impossível mudar; que o assunto lhe era muito doloroso;
que ela lhe suplicava nuca mais o mencionar, pedira-lhe permissão para
se afastar imediatamente, e pedira-lhe mais que considerasse a questão
como terminada para sempre. E depois, ao ser novamente instada,
acrescentava que, na sua opinião, havia entre eles uma tal
incompatibilidade de gênio, que seria impossível qualquer tentativa de
mútua afeição; que pela natureza, educação e hábitos, eles eram
inteiramente diferentes. Tudo isso Fanny o dissera e com a mais
veemente sinceridade; entretanto aquilo não fora o bastante, pois ele
imediatamente negara que houvesse qualquer incompatibilidade entre os
seus gênios ou qualquer ou qualquer coisa hostil nas suas situações; e
positivamente declarara que ainda a amaria e ainda teria esperanças!
Fanny estava senhora das próprias intenções mas não podia julgar
suas próprias maneiras. Ela era incuravelmente gentil; não percebia
quanto as suas maneiras encobriam a severidade de seus propósitos. Sua
modéstia, sua gratidão e delicadeza, faziam com que cada expressão de
indiferença parecesse quase um esforço de abnegação; parecia, pelo
menos, estar dando quase tanta pena a si própria quanto a ele. Mr.
Crawford já não era o Mr. Crawford a quem, como clandestino, insidioso,
pérfido admirador de Maria Bertram, ela havia abominado, a quem odiara
ver ou falar, em quem ela não acreditava existir nenhuma boa qualidade e
cujo poder, mesmo de sedução, ela mal reconhecera. Agora se
transformara no Mr. Crawford que lhe falava com um amor ardente,
desinteressado; cujos sentimentos se haviam transformado em tudo que
há de mais honrado e leal, cujas perspectivas de felicidade se fixavam
todas sobre um casamento por amor; que exaltava as qualidades dela,
repetindo a descrição de seu afeto, provando, também, tanto quanto o
poderia provar por meio de palavras, a linguagem, o tom e o espírito de
um homem de talento, que a procurava por sua nobreza e bondade; e
para completar, era agora o Mr. Crawford que havia conseguido a
promoção de William!
Ele mudara, pois, completamente, e suas pretensões não poderiam
senão surtir efeito! Poderia tê-lo desprezado com toda a dignidade de
uma virtude ofendida nos jardins de Sotherton ou no teatro de Mansfield
Park; mas agora aproximava-se dela com direitos que exigiam um
tratamento diferente. Devia ser cortês, devia ter compaixão. Devia sentir-
se honrada e, quer pensando em si própria ou no irmão, devia demonstrar
uma grande gratidão. O resultado de tudo foi demonstrar-se tão
compassiva e perturbada e misturar com a sua recusa palavras tão
expressivas de gratidão e interesse, que, para um temperamento vaidoso
e confiante como o de Mr. Crawford, a verdade, ou pelo menos a extensão
da indiferença dela, poderia muito bem ser discutida; de modo que ele
não se mostrou, na realidade, desarrazoado quanto Fanny o considerava,
nos protestos de afeição perseverante, assídua e esperançada, com que
terminou a entrevista.
Foi com relutância que a viu sair; mas no momento da separação
não houve um olhar que desmentisse as suas palavras ou que desse à
moça a esperança de ele ser menos extravagante do que se havia
mostrado.
Ela agora estava zangada. Um certo ressentimento causado por
aquela insistência tão egoísta e mesquinha. Ali estava novamente a falta
de delicadeza e interesse pelos outros que a princípio a havia assombrado
e desgostado. Ali estava novamente algo do mesmo Mr. Crawford que ela
antes tanto condenara. Como era evidente a sua grande falta de
sentimento e de humanidade, quando seu próprio prazer estava em jogo!
Mesmo que seu coração estivesse livre, como talvez devesse estar, ele
nunca teria podido prendê-lo.
Assim pensava Fanny, com toda sinceridade, quando se achava
sentada, meditando junto ao fogo que a extravagante indulgência do tio
fizera acender na sua sala; admirando-se do passado e presente;
admirando-se do que ainda estaria para vir e numa grande agitação que
não a deixava ver senão que jamais, em nenhuma circunstância, seria
capaz de amar Mr. Crawford e que felizmente agora tinha uma lareira
junto à qual podia sentar-se a refletir.
Sir Thomas foi obrigado, ou obrigou-se a espera até o dia seguinte
para saber o que se havia passado entre os dois jovens. Então viu Mr.
Crawford e recebeu as suas impressões. A sua primeira sensação foi de
desapontamento; tinha esperado coisa melhor; pensara que uma hora de
suplicas de um rapaz como Crawford não poderia operar tão pequena
mudança sobre uma pequena dócil como Fanny; mas logo recobrou
esperanças ante a determinação e ardente perseverança do pretendente;
e ao ver a confiança que ele tinha de vencer, Sir Thomas também
começou a contar com o sucesso.
De sua parte não omitiu cordialidade, cumprimentos e bondades
que pudessem auxiliar o plano. A firmeza do caráter de Mr. Crawford foi
glorificada, Fanny elogiada e a aliança era ainda a mais desejável do
mundo. Em Mansfield Park , Mr. Crawford seria sempre bem recebido; só
teria que consultar seu próprio julgamento e sentimentos quanto à
freqüência de suas visitas no presente ou no futuro. Para todos da família
e amigos da sua sobrinha não poderia haver senão uma opinião, um único
desejo sobre a questão; a influência de todos que a amavam devia
inclinar-se para um único lado.
Tudo que pudesse reforçar a coragem foi dito. Todo estímulo foi
recebido com grato prazer e os dois cavalheiros se separaram na maior
das amizades.
Certo de que a causa agora estava indo bem, absteve-se de
novamente importunar a sobrinha e demonstrar francamente qualquer
interferência. Para um temperamento como o dela, acreditou que a
melhor forma de a conquistar seria por meio de bondade. As súplicas só
poderiam caber de um único lado. A aprovação de sua família, com
respeito a cujos desejos ela não poderia ter a menor dúvida, podia
também, de outro modo, ser um meio dos mais certos para chegar ao fim.
Baseado pois neste princípio, Sir Thomas aproveitou a primeira
oportunidade de dizer a Fanny, com suave gravidade, calculada para a
dominar:
– Bem, Fanny, estive novamente com Mr. Crawford e por ele soube
exatamente como andam as coisas entre vocês. Acho-o um rapaz
extraordinário e qualquer que seja o resultado, você deve sentir que
inspirou um afeto muito pouco comum; embora, sendo jovem como é e
pouco familiar com a natureza efêmera, inconstante, irregular do amor,
que geralmente há por aí, você não se pode impressionar como eu com o
que há de admirável numa perseverança dessa espécie, contra a sua
indiferença. Ali, vê-se apenas uma questão de sentimento; não se gaba;
talvez não tenha de se gabar. Contudo, tendo feito tão boa escolha, a
constância dele se justifica. Se a escolha fosse menos excepcional eu o
censuraria por insistir.
– Na verdade, meu tio – disse Fanny – sinto muito que Mr. Crawford
ainda continue a... Sei que devo ficar muito honrada e assim me sinto,
conquanto não o mereça; estou, porém, tão certa, como já lhe disse, a ele,
de que nunca serei capaz.
– Minha querida – interrompeu Sir Thomas – não há necessidade
disso. Estou tão a par de seus sentimentos quanto você deve estar de
meus desejos e pesares. Não há mais nada a dizer ou fazer. De agora em
diante não tocaremos mais no assunto. Você não tem nada a temer ou a
afligir-se. Não suponha que eu seja capaz de procurar persuadi-la a casar-
se contra sua vontade. Sua felicidade e vantagens são tudo que eu tenho
em vista e nada mais lhe é pedido senão que suporte as tentativas de Mr.
Crawford para convencê-la. Ele age por sua própria conta e risco. Você
está em terreno seguro. Eu me comprometi, apenas, a fazer com que você
o veja, sempre que ele vier aqui, como se nada disso houvesse acontecido.
Você estará com ele na presença de todos nós, da mesma maneira e,
tanto quanto possa, procurando esquecer qualquer coisa que lhe seja
desagradável. Dentro de tão poucos dias ele deixará o Northamptonshire,
de modo que mesmo este pequeno sacrifício não lhe será exigido muitas
vezes. O futuro pode ser incerto. E agora, minha cara Fanny, o assunto
está encerrado entre nós.
A prometida ausência foi tudo do que Fanny se lembrou com
satisfação. As bondosas expressões e a paciência do tio foram
reconhecidas com toda sinceridade. E ao considerar o quanto da verdade
ele desconhecia, acreditou que não tinha o direito de admirar-se da linha
de conduta que Sir Thomas seguia. Dele, que havia dado em casamento
uma filha a Mr. Rushworth, não se poderia, certamente, esperar nenhuma
delicadeza romântica. Ela devia cumprir com seu dever e esperar que o
tempo o tornasse mais leve do que agora.
Embora apenas com dezoito anos, Fanny não podia acreditar que a
afeição de Mr. Crawford durasse para sempre; não podia senão imaginar
que se ela firmemente, continuamente o desanimasse, com o tempo tudo
estaria terminado. E quanto tempo esperava ela que ele a esquecesse, já
é outra questão. Não seria bonito inquirir sobre a exata avaliação que
uma moça faz de seus próprios predicados.
Apesar de seu prometido silêncio, Sir Thomas viu-se, mais uma vez,
obrigado a mencionar o assunto a sua sobrinha, a fim de a preparar para
a notícia de que o caso seria comunicado às tias; medida essa que ele
teria ainda evitado, se lhe fosse possível, mas que se tornara necessária
em vista da idéia inteiramente contrária de Mr. Crawford, de não fazer
segredo de seu procedimento. Ele não queria ocultar nada. No
Presbitério, onde adorava conversar com as duas irmãs sobre o futuro,
todos já conheciam os seus sentimentos e para ele era antes um prazer
ter testemunhas do progresso de seus sucessos. Ao saber disso, Sir
Thomas sentiu a necessidade de por, sem demora, a esposa e a cunhada a
par do negócio, – conquanto ele quase temesse, como a própria Fanny, o
efeito que essa comunicação ia causar sobre Mrs. Norris. Sir Thomas, na
verdade, por esse tempo, não estava muito longe de classificar Mrs
Norris como uma dessas pessoas bem intencionadas mas que estão
sempre fazendo coisas erradas e muito desagradáveis.
Mrs. Norris, porém, o sossegou. Ele exigiu o mais estrito silêncio e
paciência para com a sobrinha; ela não só o prometeu como o cumpriu.
Apenas demonstrou maior má vontade. Furiosa ela estava; amargamente
furiosa; mas se sentia mais aborrecida com Fanny por ter recebido tal
proposta do que por a ter rejeitado. Aquilo era uma injúria, uma afronta a
Julia, que deveria ter sido a escolhida por Mr. Crawford; e
independentemente disso, odiava Fanny por que ela a havia esquecido;
não teria permitido uma tal elevação a uma pessoa que sempre procurara
deprimir.
Sir Thomas, na ocasião, deu mais crédito do que devia à discrição
dela; e Fanny lhe ficou muito grata por ter apenas que sentir a sua cólera
e não a ouvir.
Lady Bertram recebeu a notícia de modo diferente. Ela, durante
toda sua vida, havia sido uma beleza e uma próspera beleza; e beleza e
fortuna eram tudo que poderia interessá-la. O conhecimento de que
Fanny havia sido pedida em casamento por um homem de fortuna, por
isso, elevou-a muito em seu conceito. Por se ter convencido que Fanny era
muito bonita, o que ela havia duvidado antes, e que faria um casamento
vantajoso, fê-la sentir uma espécie de honra em se dirigir à sobrinha.
– Muito bem, Fanny – disse ela, logo depois que ficaram sozinhas (e
realmente estivera impaciente por este momento, como demonstrava a
extraordinária vivacidade de seu semblante). – Muito bem, Fanny, hoje de
manhã, tive uma surpresa muito agradável. Só posso falar sobre isso uma
vez; prometi a Sir Thomas que só falaria uma vez e depois não falarei
mais. Desejo-lhe toda felicidade, minha querida sobrinha. – E olhando
para ela com complacência, acrescentou: – Hein! Nós de fato somos uma
família admirável!
Fanny corou e a princípio não soube o que dizer; depois, esperando
atingi-la no ponto fraco, respondeu:
– Minha querida tia, a senhora não pode desejar que eu proceda de
maneira diferente da que procedi. Tenho a certeza. A senhora não pode
desejar que eu me case; pois iria sentir minha falta, não? Sim, tenho
certeza de que sentiria demais a minha falta para desejar isso.
– Não, minha querida, não teria coragem de impedi-la, quando uma
proposta desta ordem lhe é feita. Poderei passar perfeitamente sem você,
desde que se case com um homem tão rico como é Mr. Crawford. E você
deve saber, Fanny, que toda moça tem a obrigação de aceitar um pedido
tão irrepreensível quanto este.
Essa foi talvez a única regra de conduta, o único conselho que
Fanny recebeu da tia, no período de oito anos e meio. Ficou calada. Viu
que seria inútil discutir. Se a tia se colocava contra ela, de nada adiantava
procurar fazê-la compreender. Lady Bertram estava com uma grande
loquacidade.
– E lhe direi mais, Fanny – disse ela – aposto que ele se apaixonou
por você, na noite do baile; estou certa de que o mal começou naquela
noite. Você estava muito bonita. Todos disseram. Até Sir Thomas. E você
sabe, foi Chapman quem a ajudou a vestir-se. Fico contente por ter
mandado Chapman ajudá-la. Vou dizer a Sir Thomas que tenho a certeza
de que o negócio começou naquela noite. – E ainda prosseguindo nestes
alegres pensamentos, acrescentou logo depois: – E vou lhe prometer,
Fanny, uma coisa que não fiz com Maria: na próxima vez em que Pug tiver
uma ninhada, você terá um filhote.

CAPÍTULO 34

Edmund, ao voltar, soube de grandes novidades. Muitas surpresas o


aguardavam. A primeira que ocorreu não foi de menor interesse: o
encontro de Henry Crawford e da irmã passeando na vila quando ele ali
chegou. Havia suposto – tinha acreditado que eles já estivessem muito
longe dali. Tinha propositalmente prolongado a ausência por uma
quinzena, para evitar Miss Crawford. Voltava para Mansfield com o
espírito preparado para viver de melancólicas lembranças e ternas
associações, e eis que deparava com a própria pessoa de Mary, apoiada
no braço do irmão. Via-se acolhido com indubitável amizade por parte da
mulher, que, dois minutos antes, pensara estar a cento e tantos
quilômetros de distância e tão longe, muito mais longe do seu coração do
que qualquer distância o poderia exprimir.
A recepção que ela lhe fez foi também inesperada, e o seria mesmo
que contasse encontrá-la. Vindo, como veio, tendo realizado o objetivo
que motivara a sua ausência, não teria esperado senão um olhar de
satisfação e palavras de significação simples e agradáveis. Seriam o
suficiente para lhe encher o coração de alegria e levá-lo para casa na
melhor disposição de espírito para dar inteiro valor às outras alegres
surpresas que o aguardavam.
Soube logo da promoção de William, com todos os seus
particulares; e com a secreta provisão de conforto que tinha em seu
próprio peito para lhe aumentar a alegria, encontrou naquela notícia uma
fonte das mais agradáveis sensações durante todo o jantar.
Depois do jantar, quando ficou só com o pai, soube do caso de
Fanny; e, então, todos os maiores acontecimentos da última quinzena e a
atual situação dos negócios em Mansfield lhe foram relatados.
Fanny desconfiou do que se estava passando. Se eles permaneciam
na sala de jantar muito mais tempo do que o usual é que estavam falando
sobre ela; e quando, afinal, se reuniram para o chá e ela teve de enfrentar
novamente Edmund, sentiu-se terrivelmente culpada. Ele aproximou-se
dela, sentou-se ao seu lado, segurou-lhe a mão e apertou-a
bondosamente; e naquele momento Fanny pensou que se não fosse estar
ocupada e oculta pelo serviço de chá, teria traído uma emoção, cujo
excesso não lhe seria perdoado.
Ele, porém, não tencionava com tal gesto, exprimir-lhe uma
aprovação e um encorajamento sem reservas que as suas esperanças
deduziram dele. Foi apenas para exprimir a sua participação em tudo o
que a interessava e lhe dizer que havia ouvido uma coisa que muito o
alegrava. Estava, de fato, inteiramente ao lado do pai naquela questão.
Não se surpreendeu tanto quanto Sir Thomas ao saber que ela havia
rejeitado Crawford, porque, longe de supor que Fanny o preferisse, ele
havia antes sempre pensado o contrário; de modo que achou ter sido
apanhada de surpresa e nem por isso deixou de reconhecer a vantagem
de tal casamento. Para ele, o noivo tinha todos os predicados; e
conquanto a louvasse pelo que havia feito sob o domínio da atual
indiferença, com expressões ainda mais intensas do que as de Sir
Thomas, ele era o mais confiado na esperança de que o casamento um dia
se realizaria e que, unidos por mútua afeição, viriam algum dia a
reconhecer que haviam sido feitos um para o outro, como ele próprio
agora começava seriamente a considerá-los. Crawford havia sido
demasiadamente precipitado. Não havia dado tempo para que ela se lhe
afeiçoasse. Começara pelo lado oposto. Com o poder de sedução que
tinha, porém, e ante uma docilidade como a dela, Edmund esperava que
tudo chegaria a uma feliz conclusão. No entanto, percebia
suficientemente o embaraço de Fanny para que escrupulosamente se
abstivesse de a contrariar novamente, por qualquer palavra, olhar ou
gesto.
Crawford apareceu no dia seguinte, e com o pretexto da volta de
Edmund, Sir Thomas se sentiu mais do que justificado em o convidar para
o jantar; era de fato uma atenção necessária. Ele, naturalmente, aceitou e
Edmund teve então bastante oportunidade de observar como se portava
para com Fanny e qual o grau de imediato encorajamento que poderia ser
tirado do modo como a prima recebia as atenções dele. E foi tão pequeno,
tão, tão pequeno (toda a chance, toda a possibilidade, repousando-se
apenas no seu enleio; se não houvesse esperança na confusão dela, não
havia esperança em mais nada), que estava quase inclinado a admirar-se
da perseverança do amigo. Fanny era digna de tudo; ele achava que ela
valia todos os esforços de paciência, todo o trabalho de consciência. Mas
não acreditava que ele mesmo fosse capaz de prosseguir na aspiração por
qualquer mulher sem ver alguma coisa mais para lhe dar ânimo do que a
que seus olhos percebiam no da prima. Desejava muito que Crawford
visse mais claramente; e foi esta a mais consoladora conclusão a que
pôde chegar, diante de tudo que observara antes, durante e depois do
jantar.
Durante o serão ocorreram algumas circunstâncias que lhe
pareceram mais promissoras. Quando ele e Crawford entraram no salão,
sua mãe e Fanny achavam-se sentadas trabalhando tão atentas e
silenciosas, como se não houvesse mais nada em que pensar. Edmund não
pôde deixar de notar a profunda tranqüilidade que aparentavam.
– Não estivemos assim caladas o tempo todo – esclareceu sua mãe. –
Fanny esteve lendo para mim e só parou quando ouviu que vocês estavam
vindo. – E realmente havia um livro sobre a mesa que estava com jeito de
ter sido recentemente fechado: um volume de Shakespeare. – Ela sempre
me lê esses livros; e estava no meio de um diálogo muito bonito daquele
homem – como é mesmo, Fanny? – quando ouvimos os seus passos.
Crawford apanhou o volume.
– Deixe-me ter o prazer de acabar o diálogo para Vossa Senhoria –
disse ele. – Posso encontrá-lo sem demora.
E deixando cuidadosamente o livro abrir-se por si, encontrou logo o
trecho procurado, com a aproximação de uma ou duas páginas; e bastou
para contentar Lady Bertram que, assim que Crawford mencionou o
nome do Cardeal Wosley, afirmou logo ter ele encontrado o verdadeiro
diálogo. Fanny não se prontificou a ajudá-lo nem com um olhar nem com
oferecimento. Sua atenção concentrou-se no trabalho. Parecia
determinada a não se interessar por mais nada. Mas o amor dos versos
era demasiadamente forte nela. Não pôde abstrair o pensamento por
cinco minutos; foi forçada a ouvir; a leitura dele era excelente e o prazer
que ela sentia pelas boas leituras era extremo. No entanto estava
acostumada a boas leituras; o tio lia bem, todos os seus primos, Edmund
lia muito bem, mas na leitura de Mr. Crawford havia uma perfeição acima
de tudo que ela conhecia. O rei, a rainha, Buckingham, Wosley, Cromwell,
todos vieram por sua vez; pois com o maior talento, a maior arte de saltar
e adivinhar, ele sempre conseguia, ao seu bel prazer, passar para as
melhores cenas ou os melhores diálogos de cada um; e tanto fazia ser
dignidade ou orgulho, ternura ou remorso ou o que quer que tivesse de
ser enunciado, ele o podia exprimir com igual beleza. Era realmente
dramático. A sua representação havia sido a primeira a fazer Fanny
conhecer o prazer que uma peça poderia dar e a sua leitura trouxe-lhe
novamente a lembrança da representação: não, talvez, com maior prazer,
visto que vinha inesperadamente e sem o constrangimento que
costumava sentir ao vê-lo no palco com Miss Bertram.
Edmund observava o progresso da atenção dela e divertia-se em ver
que Fanny gradualmente afrouxava o trabalho de agulha que a princípio
parecia ocupá-la totalmente; viu o bastidor lhe cair das mãos enquanto
ela se tornava imóvel e afinal, os olhos que tinham parecido tão
cuidadosamente evitar Henry durante todo o dia, viraram-se e fixaram-se
nele; fixaram-se nele por minutos, fixaram-no em resumo, até a tração
fazer com que Crawford pousasse os dele sobre ela; então o livro foi
fechado e o encanto se quebrou. Fanny se encolheu novamente dentro de
si mesma, corando e trabalhando mais do que nunca; mas foi o bastante
para dar a Edmund ânimo por seu amigo e quando cordialmente
agradeceu a leitura, teve a esperança de estar exprimindo também o
secreto sentimento de Fanny.
– Essa peça deve ser a sua favorita – disse ele; – você a lê como se a
conhecesse muito bem.
– Será a favorita, creio, desta hora em diante – respondeu Crawford;
– não creio, porém, ter tido em minhas mãos um volume de Shakespeare
desde os meus quinze anos. Vi uma vez representar Henrique VIII, ou
ouvi alguém dizer que tinha visto, não estou bem certo. Mas a gente fica
conhecendo Shakespeare não se sabe como. É uma parte da constituição
inglesa. Seus pensamentos e encantos estão tão espalhados por todo o
mundo que o encontramos em toda a parte; fica-se íntimo dele por
instinto. Nenhum homem de alguma inteligência é capaz de abrir uma
boa parte de uma de suas peças sem lhe cair imediatamente no fluxo dos
pensamentos.
– Não há dúvida que Shakespeare nos é familiar até certo ponto –
disse Edmund – desde a primeira infância. As passagens célebres são
repetidas por todo o mundo; estão na maior parte dos livros que lemos e
nós todos falamos com Shakespeare, usamos suas imagens, descrevemos
com as suas descrições; mas isto é inteiramente diverso de lhe dar o
sentido que você dá. Conhecê-lo por este ou aquele trecho é muito
comum; conhecê-lo mesmo por todas as suas obras, não é, talvez, pouco
comum; mas saber lê-lo alto é um talento que não se encontra todos os
dias.
– Está me honrando muito – foi a resposta de Crawford, com um
cumprimento de irônica gravidade.
Os dois cavalheiros olharam para Fanny, para ver se conseguiam
extorquir dela uma palavra de louvor; ambos, porém, sentiram que aquilo
não seria obtido. Seu louvor havia sido experimentado pela atenção que
lhe dispensara; isto deveria contentá-los.
Lady Bertram, também, manifestou ardentemente sua admiração.
– Foi como se realmente estivesse assistindo à peça – disse ela. –
Desejaria que Sir Thomas estivesse presente.
Crawford ficou excessivamente satisfeito. Se Lady Bertram, com
toda a sua incompetência e languidez pôde sentir isso, a dedução do que
a sobrinha, viva e instruída, devia ter sentido, era superior.
– O senhor tem uma grande queda para o teatro, Mr. Crawford –
disse Sua Senhoria logo depois; – e digo-lhe mais, creio que ainda terá,
qualquer dia, um teatro na sua casa em Norfolk. Quero dizer, quando o
senhor estiver instalado lá. É na verdade o que eu penso. Acho que
instalará um teatro em sua casa em Norfolk.
– A senhora acha? – exclamou ele. – Não, não, isto nunca
acontecerá. Vossa Senhoria está inteiramente enganada. Teatro nenhum
em Everingham! Oh não! – e olhou para Fanny com um sorriso
expressivo, que evidentemente significava “essa senhora nunca permitirá
um teatro em Everingham”.
Edmund percebeu tudo e viu Fanny absolutamente determinada a
não ver nada; aquela rápida consciência de um cumprimento, uma tão
pronta compreensão de uma insinuação, pareceu-lhe antes favorável do
que desfavorável.
O assunto foi discutido ainda por algum tempo. Os dois rapazes
eram os únicos a conversar; e ambos em pé junto ao fogo, comentavam o
pouco que se cuida, na educação dos rapazes, de certas prendas sociais,
tais como a leitura em voz alta; e o conseqüente embaraço em que se
vêem homens sensíveis e instruídos, postos inesperadamente diante da
necessidade de ler alto, dando exemplos de fracassos e fiascos, pela falta
de controle da voz, de modulação adequada e ênfase, de previsão e
julgamento, tudo proveniente da primeira causa: falta de traquejo na
infância; Fanny ouvia de novo com grande interesse.
– Até mesmo na minha profissão – disse Edmund, com um sorriso –
como se tem estudado pouco a arte de ler! Quão pouco se cuida em
adquirir uma maneira clara, uma boa dicção! Falo mais do passado,
porém, do que do presente. Agora existe em todo mundo um certo
espírito de aperfeiçoamento; mas entre aqueles que se ordenaram a
vinte, trinta, quarenta anos passados, a maioria, a julgar pelo seu
desempenho, devia pensar que ler era ler e pregar era pregar. Agora é
diferente. O assunto está sendo considerado com mais precisão. Sabe-se
que a nitidez e a energia podem valer para recomendar as mais sólidas
verdades; e além disso, há hoje mais observação geral e gosto e um
conhecimento crítico mais difundido do que antigamente; em cada
congregação há uma maior proporção dos que sabem um pouco do
assunto e que podem julgar e criticar.
Edmund já havia uma vez, depois da sua ordenação, celebrado o
santo ofício; e ao saber disso, Crawford lhe fizera uma infinidade de
perguntas sobre as suas sensações e sucessos; perguntas que, feitas com
a vivacidade de um interesse amável e fino gosto, sem qualquer traço
daquele espírito de zombaria ou ar de leviandade que Edmund sabia ser
dos mais ofensivos a Fanny, foram satisfeitas com verdadeiro prazer; e
quando Crawford prosseguiu, pedindo a opinião dele e dando-lhe a sua
quanto à maneira mais conveniente por que certas passagens do ofício
deveriam ser pronunciadas, demonstrando ser este um assunto em que já
havia pensado antes, Edmund ficou cada vez mais contente. Aquele era a
maneira de conquistar o coração de Fanny. Ela não seria conquistada à
força de galanterias e espírito; ou, pelo menos, não seria conquistada por
esse meio senão depois de muito tempo, sem o auxílio do sentimento e do
juízo, da seriedade em questões sérias.
– Nossa liturgia – observou Crawford, tem coisas lindas que nem
mesmo o estilo descuidado da leitura pode destruir; mas tem, também,
redundâncias e repetições nas quais é mister boa leitura, para que não
sejam notadas. Por minha parte, ao menos, confesso que nem sempre
presto tanta atenção como deveria prestar – aqui olhou para Fanny; – que
dezenove vezes em vinte eu estou pensando como tal oração deveria ser
lida e desejando poder eu mesmo lê-la. Disse alguma coisa? – Adiantou-se
para Fanny e dirigiu-lhe a voz suavemente; e ao ouvi-la responder que
“Não”, acrescentou: – Está certa de que não disse nada? Vi que seus
lábios se moveram. Imaginei que ia dizer-me que eu deveria ser mais
atento e não permitir que meus pensamentos se desviassem. Não ia dizer-
me isto?
– Não, realmente, conhece demasiadamente bem seu dever para
que eu... mesmo supondo...
Interrompeu-se sentindo que caíra numa complicação, e ninguém
mais pôde persuadi-la a acrescentar uma única palavra, nem depois de
vários minutos de suplica e esperas. Ele então voltou ao seu lugar
primitivo e continuou como se não tivesse havido aquela terna
interrupção.
– Um sermão bem pregado é ainda menos freqüente do que as
orações bem lidas. Um bom sermão não é coisa rara. É mais difícil falar
bem do que compor bem; isto é, as regras e os truques usados numa
composição, são freqüentemente objeto de estudo. Um sermão
inteiramente bom, inteiramente bem pregado, é uma satisfação perfeita.
Eu nunca ouço um sermão assim sem sentir a maior admiração e respeito
e uma certa inclinação para tomar ordens e pregar. Há qualquer coisa na
eloqüência de púlpito, quando é realmente eloqüência, digna do mais
elevado louvor e honra. O pregador que consegue tocar e afetar uma tão
heterogênea massa de ouvintes, com temas tão limitados e já tão batidos
por todos os pregadores; que consegue dizer qualquer coisa nova ou
notável, qualquer coisa que chame a atenção, sem ofender o gosto e
cansar os ouvintes, é um homem para cuja capacidade não existem
bastantes elogios. Gostaria de ser tal homem.
Edmund riu.
– Gostaria, na verdade. Nunca em minha vida ouvi um pregador
célebre, sem sentir uma espécie de inveja. Mas para isso, seria preciso
que tivesse uma audiência em Londres. Não poderia pregar senão para
pessoas educadas; para aqueles que fossem capazes de compreender
minha oratória. E acho que não gostaria de pregar muito freqüentemente;
uma vez ou outra, talvez, uma ou duas vezes na primavera, depois de ser
ansiosamente esperado por meia dúzia de domingos; mas não
constantemente; constantemente, não.
Nesse ponto, Fanny, que não podia deixar de ouvir,
involuntariamente sacudiu a cabeça e Crawford imediatamente se pôs
novamente a seu lado, pedindo que lhe dissesse o que estava pensando; e
como Edmund percebeu, por vê-lo aproximar uma cadeira e sentar-se ao
lado dela, que o ataque desta vez seria direto, que os olhares e as
entonações de voz teriam de ser bem interpretados, retirou-se tão
mansamente quanto possível para um canto, deu-lhes as costas e
apanhou um jornal, sinceramente desejando que a sua querida Fanny
pudesse ser persuadida a explicar a significação daquela sacudidela de
cabeça, para inteira satisfação de seu ardente admirador; e ansiosamente
procurou abstrair-se de todo caso com a leitura de vários artigos, tais
como “O mais desejável Estado ao Sul de Gales”; “Aos Pais e Tutores”; e
“Principal estação dos caçadores”.
Neste ínterim, Fanny, aborrecida consigo mesma por não ter ficado
tão imóvel como estivera muda, e sentida por ver a intenção de Edmund,
procurava por todos os meios ao alcance de sua natureza modesta e
suave, repelir Mr. Crawford e evitar tanto seus olhares como suas
perguntas; e ele, sem lhe perceber a repulsa, persistia em ambos.
– Por que sacudiu a cabeça? Que pretendia exprimir com isso?
Desaprovação, talvez. Mas de que? Que disse eu que a desagradou? Acha
que disse alguma coisa imprópria, leviana, irreverente, sobre o assunto?
Diga-me apenas se o foi. Diga-me apenas se errei. Quero corrigir-me.
Não, não, suplico-lhe; pare de trabalhar por um momento. Que
significação teve aquela sacudidela de cabeça?
Em vão ela dizia:
– Por favor, não pergunte; por favor, Mr. Crawford.
E em vão tentou afastar-se. Com a mesma voz abafada e ansiosa, e
a mesma proximidade, ele prosseguia, insistindo na pergunta. Ela foi
ficando mais agitada e descontente.
– Como tem a coragem. O senhor me espanta; admiro-me de como
pode...
– Eu a espanto? – disse ele. – Admira-se? Há alguma coisa nas
minhas súplicas que não compreenda? Posso explicar-lhe imediatamente
o que me faz insistir desta maneira, porque me interesso por tudo que
você pensa ou faz, e o que excita a minha curiosidade. Não deixarei que
se espante por mais tempo.
Sem querer, ela esboçou um sorriso, mas não disse nada.
– Você meneou a cabeça quando me ouviu dizer que não gostaria de
cumprir com os deveres de um pastor continuamente. Sim, foi por causa
dessa palavra. Continuamente: não receio a palavra. Poderia dizê-la,
escrevê-la para qualquer pessoa. Não vejo mal nenhum nessa palavra.
Acha que estou errado?
– Talvez – disse Fanny, forçada afinal a falar; – talvez eu ache que é
uma pena o senhor não se conhecer geralmente tão bem como o
demonstrou naquele momento.
Satisfeito por ter conseguido que ela falasse de qualquer forma, ele
se decidiu a não deixar morrer a conversa; e a pobre Fanny, que esperava
silenciá-lo com aquela extrema censura, viu-se enganada tristemente e
percebeu que não provocara senão a troca de objetivo da curiosidade de
Crawford e uma frase por outra. Queria sempre saber a explicação de
tudo. A oportunidade não poderia ser melhor. Nenhuma como aquela
havia ocorrido desde que a vira no gabinete do tio, nenhuma como aquela
poderia talvez ocorrer novamente antes de ele partir de Mansfield. Lady
Bertram, sentada justamente do outro lado da mesa, não era levada em
conta, pois ela poderia quase sempre ser considerada como meio
adormecida; Edmund não desistia de ler o jornal.
– Bem – disse Crawford, depois de uma série de rápidas perguntas e
relutantes respostas: – Sinto-me mais feliz do que antes, porque agora
compreendo mais claramente a sua opinião sobre mim. Acha que eu sou
inconstante; facilmente influenciado pelo capricho do momento,
facilmente tentado, facilmente aborrecido. Com uma tal opinião, não
admira que... Mas veremos. Não será com protestos que procurarei
convencê-la de que está enganada; não será lhe dizendo que minhas
afeições são constantes. Minha conduta falará por mim. Eles provarão
que, se alguém é digno de a merecer, esse alguém serei eu. Você é
infinitamente superior a mim em qualidades; tudo isso eu seu. Você
possui qualidades que eu até hoje não supunha existir em nenhuma
criatura humana. Tem uma aparência angélica acima do que – não apenas
acima do que se pode ver, porque ninguém jamais viu uma coisa assim –
mas acima de tudo que se pode imaginar que exista. Mas mesmo assim
não tenho receio. Não é por igualdade de méritos que será conquistada.
Isto está fora da questão. Aquele que reconheça e adore seus méritos com
mais intensidade, que a ame com maior devoção, é que terá o maior
direito a ser correspondido. Nisso é que baseio a minha confiança. Por
esse direito eu hei de merecê-la; e quando se convencer que minha
afeição é tal como a descrevo, sei, por conhecê-la demasiadamente bem,
que posso manter a esperança. Sim, minha muito querida, minha doce
Fanny. Não – vendo-a afastar-se aborrecida – perdoe-me. Talvez não tenha
ainda esse direito; mas por que outro nome posso chamá-la? Supõe que
esteja presente na minha imaginação com um outro nome? Não, é como
“Fanny” que eu penso em si todo o dia, sonho toda a noite? Deu a esse
nome uma tal realidade de doçura que agora nada mais pode descrevê-la
melhor.
Fanny dificilmente poderia permanecer sentada por mais tempo ou
evitar pelo menos tentar afastar-se, apesar de toda a oposição que
antevia, se não fosse o som da liberdade que se aproximava, o único som
que ela tinha estado esperando e que se admirava estar demorando tanto.
A solene procissão, guiada por Baddeley, dos bules de chá, louças e
pratos de bolo apareceu e tirou-a da dolorosa prisão em que achava, de
corpo e alma. Mr. Crawford foi obrigado a afastar-se. Ela estava livre,
estava ocupada, estava portanto protegida.
Edmund não ficou triste por ser novamente admitido entre aqueles
que podiam falar e ouvir. Mas embora a conferência lhe tivesse parecido
longa demais, e embora ao olhar para Fanny percebesse que ela estava
bastante embaraçada, teve a esperança que tanto não poderia ter sido
dito e ouvido sem que dali o orador tirasse algum proveito.

CAPÍTULO 35

Edmund tinha resolvido deixar inteiramente a critério de Fanny, se


a sua situação com respeito a Crawford deveria ser ou não mencionada
entre eles; e se ela não o precedesse, ele nunca tocaria no assunto; mas
depois de um ou dois dias de mútua reserva, ele foi induzido pelo pai a
mudar de idéia e tentar o que a sua influência pudesse em favor do
amigo.
Um dia, um dia muito próximo, foi finalmente fixado para a partida
dos Crawfords; e Sir Thomas achou que seria conveniente fazer mais um
esforço pelo rapaz antes de ele deixar Mansfield, para que todos os seus
protestos e votos de afeição inabalável pudessem ser sustentados por
tantas esperanças quanto fosse possível.
Sir Thomas estava cordialmente inquieto pela perfeição do caráter
de Mr. Crawford naquele ponto. Desejava que ele fosse um modelo de
constância; e imaginava que o melhor sistema de o conseguir seria não o
por à prova por tempo demasiado.
Não foi difícil persuadir Edmund a tomar parte no negócio; ele
queria conhecer os sentimentos de Fanny. Ela estava acostumada a
consultá-lo em todas as dificuldades e o primo não se conformava em que
ela agora não lhe fizesse confidências, esperava poder auxiliá-la, pensava
que devia lhe ser útil; a quem mais poderia ela abrir o coração? Se não
necessitava de conselho, devia ter ao menos necessidade de desabafar.
Não era natural que Fanny estivesse estranha, silenciosa e reservada
para com ele; era uma situação a que ele deveria por fim.
– Falarei com Fanny, papai. Aproveitarei a primeira oportunidade
que tiver de falar com ela a sós – foi o resultado daquelas reflexões; e
como Sir Thomas o informasse de que a prima se achava naquele mesmo
instante passeando sozinha no jardim, ele imediatamente lhe foi ao
encontro.
– Vim andar com você, Fanny – disse ele. – Posso? – E enfiando o
braço dela no seu: – Faz muito tempo que não passeamos juntos.
Ela assentiu mais com o olhar do que com a palavra. Estava
abatida.
– Mas Fanny – acrescentou ele – para que tenhamos prazer no
passeio, é preciso alguma coisa mais do que simplesmente caminharmos
juntos por esta alameda. Você deve conversar comigo. Sei que você tem
qualquer coisa que a preocupa. Sei o que você está pensando. Não pode
supor que eu não esteja informado. É possível que eu tenha de ouvir isso
de todo mundo menos da própria Fanny?
Fanny sentiu-se logo aflita, desanimada; respondeu:
– Se você já ouviu da boca de todo mundo, meu primo, eu não tenho
mais nada para lhe contar.
– Quanto aos fatos, talvez não; mas os sentimentos, Fanny?
Ninguém, a não ser você mesma, os pode dizer. Não quero, porém,
obrigá-la. Se esse não for o seu desejo, eu desisto. Pensei que lhe seria
um alívio.
– Receio que nossas opiniões sejam demasiadamente diferentes
para que eu possa encontrar qualquer alívio em lhe falar do que sinto.
– Você acha que nós pensamos diferente? Não tinha idéia disso.
Ouso dizer que se compararmos nossas opiniões, acharemos que elas são
tão semelhantes como sempre o foram; até o fim. Considero as propostas
de Crawford muito vantajosas e desejáveis, caso você possa retribuir a
afeição dele. Considero como muito natural que toda a sua família deseje
que você a retribua; mas, já que você não o pode, acho que fez
exatamente o que devia fazer, recusando-o. Existe neste ponto algum
desacordo entre nós?
– Oh, não! Mas eu pensei que você me estava censurando. Pensei
que você estivesse contra mim. Estou tão contente agora!
– Este contentamento, você já o teria tido há mais tempo, Fanny, se
o tivesse procurado. Como pôde supor que eu estivesse contra você?
Como pôde supor que eu fosse a favor de um casamento sem amor? E
mesmo que eu fosse em geral indiferente a esses assuntos, como poderia
você imaginar-me assim, quando era da sua felicidade que se tratava?
– Titio achou que eu não tinha razão e eu sei que ele esteve falando
com você.
– Até agora, Fanny, acho que você está inteiramente com a razão.
Posso ainda ficar triste, posso ainda me surpreender; embora isto seja
difícil, porque você ainda não teve tempo de se afeiçoar; mas acho que
você está perfeitamente certa. Pode isto admitir alguma dúvida? Seria
uma desgraça para nós se o pudesse. Você não o ama; nada poderia
justificar que o aceitasse.
Há muitos dias Fanny não se sentia tão feliz.
– Até agora a sua conduta tem sido impecável e inteiramente
errados estão aqueles que desejarem outro procedimento de sua parte.
Mas o caso não termina aqui. A afeição de Crawford não é uma afeição
banal; ele persiste, com a esperança de criar uma estima que antes não
havia criado. Isto, nós sabemos, deve ser uma questão de tempo. Mas –
com um sorriso afetuoso – deixe que ele vença algum dia, Fanny, deixe-o
vencer finalmente. Você provou que é leal e desinteressada, prove agora
que é grata e carinhosa; e então será o modelo perfeito de mulher que eu
sempre acreditei que seria.
– Oh! Nunca, nunca, nunca! Ele nunca me vencerá.
E falou com tanto ardor que Edmund ficou espantado; e ela corou,
ao ver o olhar dele e ouvi-lo responder:
– Nunca! Fanny! Tão decidida e positiva! Não a estou
reconhecendo.
– Quero dizer – disse ela – tristemente, corrigindo-se – que eu acho
que nunca, tanto quanto se pode responder pelo futuro; acho que nunca
hei de corresponder à estima dele.
– Pois eu espero coisa melhor. Eu sei, muito mais do que Crawford,
que o homem que tencionar fazer você amá-lo (estando você ciente das
intenções dele) tem que trabalhar muito, pois terá que lutar contra todos
os seus hábitos e afeições de infância; e antes de conseguir conquistar
seu coração, tem que o libertar de todos os laços que o prendem a coisas
animadas e inanimadas, confirmados por tantos anos de crescimento e
que no momento estão consideravelmente apertados justamente pela
idéia da separação. Sei que a apreensão de ser forçada a deixar Mansfield
é um dos motivos que durante algum tempo a está armando contra ele.
Desejaria que ele não tivesse sido obrigado a lhe dizer o que estava
procurando conseguir. Desejaria que ele conhecesse você tanto quanto eu
a conheço, Fanny. Entre nós, creio que o teríamos conquistado. Meu
conhecimento teórico juntamente com o conhecimento prático que ele
tem, não poderia ter falhado. Ele deveria ter agido de acordo com os
meus planos. Eu tenho, porém, esperança de que o tempo provando
(como eu firmemente acredito) que pela constância do seu afeto ele a
merece, dará a Crawford a recompensa. Não posso acreditar que você
não tenha o desejo de o amar – o desejo natural da gratidão. Você deve
sentir a sua própria indiferença.
– Nós somos tão diferentes – disse Fanny, evitando uma resposta
direta – nós somos tão, tão diferentes em todas as nossas inclinações e
maneiras de pensar, que eu considero como absolutamente impossível
podermos ser razoavelmente felizes, mesmo que eu conseguisse amá-lo.
Nunca houve duas pessoas tão desiguais. Não temos um único gosto em
comum. Havíamos de ser desgraçados.
– Está enganada, Fanny. A desigualdade não é tão grande. Ambos
são até bastante semelhantes. Vocês têm gostos em comum. Vocês têm
gostos morais e literários em comum. Ambos têm o coração ardente e
bons sentimentos; e Fanny, quem o ouviu ler Shakespeare e viu você ouvi-
lo a noite passada, poderá achar que vocês não se combinam? Você se
esquece: há realmente uma grande diferença nos seus temperamentos.
Ele é espirituoso, você é séria; mas tanto melhor; o espírito dele
sustentará o seu. Sua disposição é para desanimar-se facilmente e
imaginar as dificuldades maiores do que realmente o são. Ele não vê
dificuldades em coisa alguma: e a sua jovialidade e a alegria serão um
constante auxílio para você. O fato de ambos serem tão diferentes, Fanny,
não impede, absolutamente, que venham a ser muito felizes juntos; não o
creia. Eu mesmo estou convencido de que esta circunstância é antes
favorável. Estou perfeitamente persuadido de que os temperamentos
devem ser diferentes: quero dizer, diferentes na expansão dos espíritos,
das maneiras, no gosto por maior ou menor companhia, na propensão
para falar ou ficar em silêncio, em ser séria ou alegre. Algumas oposições
tais como essas, estou inteiramente convencido, são favoráveis à
felicidade conjugal. Excluo, naturalmente, os extremos; e uma
semelhança muito próxima em todos esses pontos, seria a mais provável a
produzir um extremo. Uma certa incompatibilidade, suave e contínua, é a
melhor segurança para as maneiras e a conduta.
Bem sabia Fanny onde estavam os pensamentos dele naquele
momento, que a influência de Miss Crawford o estava dominando
novamente. Desde que voltara para casa, não se cansava de referir-se a
ela alegremente. A intenção de a evitar estava inteiramente esquecida.
Havia jantado no Presbitério ainda no dia precedente.
Depois de o deixar por alguns minutos entregue aos seus mais
felizes pensamentos, Fanny, pensando ser aquilo o seu dever, voltou a
falar sobre Mr. Crawford:
– Não é somente quanto ao temperamento que eu o considero
totalmente inconveniente para mim, embora, nesse ponto, acho a
diferença entre nós demasiadamente grande, infinitamente grande; suas
pilhérias em geral me oprimem; há, porém, nele alguma coisa que eu
ainda faço mais objeção. Devo dizer, meu primo, que não posso aprovar o
caráter de Mr. Crawford. Desde o tempo da representação que faço mau
juízo dele. Naquela ocasião vi-o comportar-se tão inconveniente e
insensivelmente – agora posso falar porque está tudo acabado –
inconvenientemente para com o pobre Mr. Rushworth, não parecendo
incomodar-se de como o expunha ou feria, fazendo corte à minha prima
Maria, que a impressão se gravou em mim e nunca mais passará.
– Minha querida Fanny – respondeu Edmund, a custo ouvindo-a até
o fim – não nos deixemos julgar, nenhum de nós, pelo modo como nos
conduzimos naquele período de loucura geral. Foi um tempo que eu
detesto recordar. Maria procedeu mal, Crawford também, todos nós
andamos mal; mas ninguém andou pior do que eu. Comparando-se a mim,
todos os outros foram irrepreensíveis. Eu fiz papel de bobo,
conscientemente.
– Como espectadora – disse Fanny – talvez eu tenha visto mais do
que você; e algumas vezes senti que Mr. Rushworth ficava com bastante
ciúme.
– Possivelmente. Não admira. Nada poderia ser mais inconveniente
do que todo o negócio. Fico envergonhado quando penso que Maria
pudesse ser capaz de uma tal conduta; mas se ele pôde desempenhar tal
papel, não podemos nos admirar dos outros.
– Antes da representação, se Julia estava pensando que ele lhe fazia
a corte, eu devo estar muito enganada.
– Julia! Já ouvi alguém dizer que ele estava apaixonado por Julia;
mas nunca percebi coisa alguma. E Fanny, não desfazendo das boas
qualidades de minhas irmãs, creio muito possível que elas, – uma delas,
ou ambas, – estivessem muito desejosas da admiração de Crawford e
talvez tivessem mostrado esse desejo mais abertamente do que a
prudência o exigia. Lembro que elas evidentemente eram loucas pela
companhia dele; e com tal facilidade, um homem vivo e, talvez, um pouco
inconsciente, como Crawford, podia ser levado a... Não poderia ser coisa
muito notável, porque está claro que não tinha pretensões: o coração dele
estava reservado para você. E devo dizer que essa inclinação dele por
você o elevou inconcebivelmente na minha opinião. Só esse fato lhe dá
grande crédito; demonstra o exato valor que ele dá à felicidade doméstica
e à pura afeição. Prova que não foi corrompido pelo tio. Prova que ele é,
em resumo, tudo que eu desejava acreditar que fosse e que temia não ser.
– Estou convencida que ele não leva em consideração, como devia,
as coisas sérias.
– Diga, antes, que ele não pensou em coisas sérias, o que me parece
ser uma grande parte do caso. Como poderia ser diferente, com uma tal
educação e um tal conselheiro? Sob essas desvantagens que ambos
tiveram não é, na verdade, admirável que ainda sejam o que são?
Crawford, até aqui, estou pronto a reconhecer, tem se deixado guiar
inteiramente pelos sentimentos. Felizmente esses sentimentos têm sido
geralmente bons. Você lhe proporcionará o resto; e afortunado é o
homem que se afeiçoou a uma tal criatura – a uma mulher, que, firme
como uma rocha em seus próprios princípios, possui uma delicadeza de
caráter tão propícia a recomendá-los. Ele escolheu a sua companheira, na
verdade, com rara felicidade; ele a fará feliz, Fanny; sei que ele a fará
feliz; mas você fará tudo dele.
– Não me proponho a tomar um tal encargo – exclamou Fanny – um
tal encargo e uma tal responsabilidade!
– Como sempre, achando-se incapaz de tudo! Imaginando que tudo
é demais para você! Bem, conquanto eu não seja capaz de persuadi-la a
pensar de outra maneira, espero que você mesma se persuadirá.
Confesso-me sinceramente ansioso por que mude. O interesse que tenho
pelo bem estar de Crawford não é comum. Depois da sua felicidade,
Fanny, é pela dele que eu mais me interesso. Você sabe que eu me
interesso muito por Crawford.
Fanny sabia suficientemente bem, para encontrar o que dizer, e
caminharam uns cinqüenta metros, ambos em silêncio e abstração.
Edmund foi o primeiro a falar:
– Fiquei tão contente pela maneira como ela ontem falou sobre o
assunto! Fiquei mais particularmente satisfeito, porque não havia julgado
que ela tivesse um tão justo ponto de vista sobre a questão. Sabia que ela
a estimava muito Fanny; contudo ainda receava que ela não avaliasse as
suas qualidades em relação ao irmão, exatamente como o mereciam, que
sentisse não haver ele escolhido alguma outra mulher de maior distinção
e fortuna. Tinha receio da influência daquelas máximas mundanas que ela
estava tão acostumada a ouvir. Mas foi diferente. Falou sobre você, Fanny,
justamente como o devia. Ela deseja o casamento tão ardentemente
quanto meu pai e eu próprio. Conversamos muito. Embora estivesse aflito
para saber o que ela pensava, não teria tocado no assunto; mas não
estava ainda há cinco minutos na sala, quando ela começou a falar sobre
o caso com toda aquela franqueza agradável e pessoal, aquela arte
espiritual que tanto a caracteriza. Mrs. Grant riu-se da pressa com que
ela entrou no assunto.
– Mrs. Grant estava, então, na sala?
– Sim, quando cheguei encontrei as duas irmãs sozinhas; e não
tínhamos ainda terminado de falar sobre você quando Crawford e o Dr.
Grant entraram.
– Faz mais de uma semana que não vejo Miss Crawford.
– É, ela se queixou; contudo reconhece que deve ter sido melhor
assim. Você, porém, a verá antes de ela ir. Está muito zangada, mas pode
imaginar como é zangada. É o sentimento e a decepção de uma irmã, que
pensa ter o irmão o direito a tudo que deseja logo que o manifesta. Ela
está sentida, como você o estaria por William; no entanto ama-a de todo
coração.
– Sabia que ela ficaria zangada comigo.
– Minha querida Fanny – exclamou Edmund – não se aflija com a
idéia de ela estar zangada. É uma zanga mais para ser falada do que
sentida. O coração dela é feito para o amor e para a ternura, não para o
ressentimento. Queria que você tivesse ouvido como a elogiou; queria que
você visse o semblante dela, quando disse que você seria a esposa de
Henry. E observei que ela se referiu todo o tempo a você como a Fanny, o
que não costumava fazer; e com a mais perfeita cordialidade de uma
irmã.
– E Mrs. Grant, ela disse... ela falou... esteve presente todo o
tempo?
– Sim, estava inteiramente de acordo com a irmã. A surpresa que a
sua recusa causou, Fanny, parece ter sido sem limites. Não podem
compreender que você rejeite um homem como Henry Crawford. Defendi-
a como pude; mas, a falar a verdade, conforme elas expõem o caso – você,
logo que o possa, tem que provar por uma conduta diferente, que não
está privada dos sentidos; nada mais as contentará. Mas não quero
aborrecê-la mais. Não direi mais nada. Não precisa fugir de mim.
– Eu teria suposto – disse Fanny, depois de um tempo de reflexão e
esforço – que qualquer mulher deveria compreender a possibilidade de
um homem não ser aprovado, não ser amado por qualquer outra mulher,
fosse ele geralmente considerado agradável. Tenha ele, embora, todas as
perfeições do mundo, creio que não deveria ser considerado como coisa
certa que um homem tem que ser aceito necessariamente por toda
mulher de quem por acaso venha ele a gostar. Mas mesmo supondo que
assim o fosse, admitindo que Mr. Crawford tenha todos os direitos que lhe
atribuem suas irmãs, como poderia eu estar prepara para lhe
corresponder com sentimentos iguais aos seus? Ele me apanhou de
surpresa. Não tinha a mínima idéia de que as atenções dele para comigo
tivessem qualquer significação; e certamente não seria de esperar que eu
me persuadisse a gostar dele, só porque ele estava, como parecia, se
divertindo comigo. Na minha situação, teria sido excesso de vaidade
nutrir esperanças sobre Mr. Crawford. Estou certa de que as irmãs dele,
tendo na conta em que o tem, devem ter pensado isso, supondo que ele
não tivesse nenhuma intenção. Como então eu poderia estar... estar
apaixonada por ele, no momento que ele disse o estar por mim? Como
poderia eu ter uma afeição para lhe servir, logo que ele a pediu? As irmãs
deviam pensar também em mim. Quanto mais elevadas fossem as
qualidades de Mr. Crawford, menos possibilidades havia de jamais eu
pensar nele. E, e, – nós pensamos muito diversamente sobre a natureza
das mulheres, se elas imaginam que uma mulher pode tão depressa
retribuir um afeto, como esse caso parece indicar.
– Minha muito, minha querida Fanny, agora sei da verdade. Sei que
esta é a verdade; e sentimento algum poderia ser mais digno de você. Já
antes eu lho tinha atribuído. Pensei que a tinha compreendido. Você
agora me deu a explicação exata, a mesma que eu me arrisquei a dar em
seu nome à sua amiga e a Mrs. Grant e foi o que melhor as contentou,
embora a sua afetuosa amiga ainda divagasse um pouco, dado o
entusiasmo que tem por Henry. Eu lhe disse que de todas as criaturas
humanas, você era uma sobre quem o hábito tinha a máxima influência e
a novidade nenhuma; e que as próprias declarações de Crawford, por
constituírem novidade, só podiam depor contra ele. Pelo fato de serem
tão inesperadas, só lhe poderiam ser desfavoráveis; que você não tolerava
coisa alguma a que não estivesse habituada; e fui por aí afora, para lhes
dar uma demonstração do seu caráter. Miss Crawford nos fez rir com os
projetos que fez para animar o irmão. Ela pretende insistir com ele para
que persista na esperança de ser amado algum dia e de ver as
homenagens dele recebidas com mais benevolência depois de cerca de
dez anos de felicidade conjugal.
Fanny dificilmente pôde sorrir como ele esperava. Seu espírito
estava em confusão. Receava ter dito demais, saindo da cautela que
supunha necessária; ao procurar salvar-se de uma desgraça, tinha caído
noutra; e o terem-lhe repetido a leviandade de Miss Crawford sobre o
assunto fora mais um agravo.
Edmund percebeu o desânimo e a tristeza na fisionomia dela e
imediatamente resolveu acabar com toda a discussão; e nem mesmo
mencionar novamente o nome de Crawford, exceto quando tivesse ligação
com o que devia ser agradável a Fanny. Com esse princípio, logo depois
observou:
– Devem partir na segunda feira. Você, portanto, pode estar certa
de ver a sua amiga ou amanhã ou domingo. Porém eles vão realmente na
segunda feira; e pensar que eu quase me deixei persuadir a ficar em
Lessingby até aquele dia! Quase cheguei a prometer! Que diferença teria
feito! Esses cinco ou seis dias mais em Lessingby seriam sentidos toda
minha vida.
– Você estava pensando em ficar por lá?
– Sim. Insistiram comigo tão amavelmente, que eu estava quase
consentindo. Se tivesse recebido alguma carta de Mansfield, para dizer-
me como vocês todos iam passando, creio que certamente teria ficado;
mas não tinha notícias daqui há uma quinzena e achei que já estava
ausente há bastante tempo.
– Você se divertiu muito lá?
– Sim; isto é, se não me diverti mais, é que o meu espírito não
permitiu. São todos muito amáveis. Duvido que me julguem da mesma
forma. Levei meu mal estar comigo e dele não consegui me ver livre
senão depois que voltei para Mansfield.
– As Misses Owen, você gostou delas, não?
– Sim, muito. Amáveis, bem humoradas, simples. Mas eu estou
estragado, Fanny, para a companhia feminina em geral. Essas moças
boazinhas, simples, não servem para um homem que está habituado à
companhia de outras mulheres de mais senso. São seres inteiramente
diversos. Você e Miss Crawford me tornaram demasiadamente exigente.
Mesmo assim, Fanny continuava oprimida e desanimada; percebia-
se pelo seu olhar, não era possível distraí-la; e não querendo mais tentar,
ele a conduziu, com a amável autoridade de um guardião privilegiado,
diretamente para casa.

CAPÍTULO 36

Edmund, agora, acreditava-se perfeitamente a par de tudo que


Fanny poderia dizer ou poderia deixar adivinhar de seus sentimentos, e
ficou satisfeito. Crawford, como ele previra, havia sido demasiadamente
precipitado, quando devia ter dado tempo para que a idéia, em primeiro
lugar, se tornasse familiar e, então, agradável a Fanny. Ela tinha que se
acostumar à noção de que ele a amava e então uma retribuição de afeto
talvez não estivesse muito distante.
Deu ao pai a sua opinião sobre o que havia concluído da conversa; e
recomendou que não lhe dissessem mais nada; nenhuma nova tentativa
de a influenciar ou persuadir; que tudo fosse deixado por conta da
assiduidade de Crawford e da ação natural da consciência dela própria.
Sir Thomas prometeu que assim se faria. Podia encontrar como
justas as impressões de Edmund sobre a disposição de Fanny; supunha
que ela tivesse todos aqueles sentimentos mas não podia deixar de
considerar como um infortúnio que ela os tivesse; pois menos propenso
do que o filho a confiar no futuro, receava que, se um tão longo tempo se
tornava necessário para ela se habituar a uma idéia, talvez, quando
chegasse a se persuadir a receber convenientemente as homenagens
dele, a inclinação do rapaz já não existisse. Não havia, porém, coisa
alguma a fazer senão submeter-se quietamente e esperar pelo melhor.
A prometida visita da “amiga”, como Edmund se referia a Miss
Crawford, constituía uma formidável ameaça para Fanny e ela viveu num
constante terror daquilo. Como irmã, tão parcial e tão zangada, tão pouco
escrupulosa do que dizia e por outro lado, tão triunfante e segura, Miss
Crawford era por todos os modos um doloroso alarma. Era terrível ter
que defrontar-se com o desgosto, a penetração e a felicidade dela; e sua
única esperança era que, quando viessem a encontrar-se, o resto da
família estivesse presente. Afastava-se o menos possível do lado de Lady
Bertram, evitava permanecer na sala de Leste e não passeava sozinha no
jardim, para impedir qualquer ataque inesperado.
Teve sorte. Quando Miss Crawford chegou, ela estava a salvo na
sala de almoço junto da tia, e tendo passado pelo primeiro perigo, como
Miss Crawford falou e aparentou muito menos particularidade de
expressões do que ela havia receado, Fanny criou alma nova e esperou
que nada pior teria de suportar, além de meia hora de razoável agitação.
Mas era esperar demasiadamente; Miss Crawford não era dessas que
aguardam oportunidade. Estava decidida a falar com Fanny a sós e
portanto foi logo lhe dizendo em voz baixa:
– Preciso falar com você um minuto, em qualquer outra parte.
Palavras estas que Fanny sentiu em todo o seu ser, em todos os seus
nervos. Negar era impossível. Seu hábito de obedecer imediatamente, ao
contrário, fez com que ela se levantasse quase no mesmo instante e a
convidassem a saírem da sala. Sentia-se infeliz, mas era inevitável.
Mal tinham saído para o hall, Miss Crawford pôs de lado todo
constrangimento. Imediatamente meneou a cabeça para Fanny, numa
censura, ao mesmo tempo maliciosa e afetuosa, e tomando-lhe a mão,
pareceu estar custando a conter-se para não entrar no assunto
diretamente. Não disse mais, porém, senão:
– Triste, triste criatura! Não sei quando acabarei de a repreender –
reservando, discretamente, o resto para quando estivesse garantido pela
proteção de quatro paredes.
Fanny, naturalmente, levou-a para o apartamento que agora estava
sempre em condições de ser por ela usado com conforto; abriu a porta,
contudo, com o coração apertado, sentindo que a cena que a aguardava
seria mais dolorosa do que qualquer outra que aquele compartimento
jamais testemunhara. Mas a desgraça que estava para cair sobre ela foi,
ao menos, retardada por uma súbita mudança nas idéias de Miss
Crawford; pelo efeito produzido em seu espírito ao encontrar-se
novamente na sala de Leste.
– Ah! – exclamou ela com repentina animação – aqui estou eu de
novo? A sala de Leste! Só estive aqui uma vez; – e depois de olhar em
volta como se quisesse recordar-se de tudo o que se havia passado,
acrescentou: – apenas uma vez. Você se lembra? Vim para ensaiar. Seu
primo veio também; e ensaiamos juntos. Você serviu de audiência e
ponto. Um ensaio bem divertido! Nunca o hei de esquecer. Estávamos
justamente neste canto; seu primo estava ali, eu estava aqui, e lá estavam
as cadeiras. Oh! Por que essas coisas acabam?
Felizmente ela não exigia resposta. Estava inteiramente entregue
aos próprios pensamentos, imersa em doces recordações.
– A cena que estávamos ensaiando era tão notável! O assunto era
tão... tão... Como direi? Ele devia descrever e recomendar-me o
matrimônio. Parece que o vejo agora, tentando fazer-se tão modesto e
sereno como o devia ser no papel de Anhalt, repetindo os dois longos
diálogos. “Quando dois corações se amam e se encontram junto ao altar, o
matrimônio deve ser considerado como uma felicidade na vida”. Creio
que não haverá tempo capaz de apagar a impressão que tive do olhar e da
voz com que ele proferiu essas palavras. Foi curioso, muito curioso, que
tivéssemos de representar uma tal cena! Se eu tivesse o poder de voltar a
qualquer semana da minha existência, seria àquela semana – a semana da
representação. Você pode pensar o que quiser, Fanny, seria aquela
semana; pois nunca senti uma tão esquisita felicidade em nenhuma outra.
O espírito dele, tão afeito a vencer, como foi vencido naquela semana!
Oh! Não há expressões capazes de descrever tanta ternura. No entanto,
ah! tudo foi destruído naquela mesma noite. Naquela mesma noite veio o
seu mais que desagradável tio. Pobre Sir Thomas, quem ficou contente
com a sua presença? Contudo, Fanny, não imagine que eu seria agora
capaz de falar desrespeitosamente de Sir Thomas, não obstante o ter,
certamente, odiado durante muitas semanas. Não, agora faço-lhe justiça.
Ele é justamente o que deve ser um chefe para tal família. Nada mais
tenho contra Sir Thomas, agora reconheço que amo a vocês todos. –
Tendo dito isto, com uma ternura que Fanny nunca presenciara nela e
que achava encantadora, Mary virou-se por um momento para recobrar a
tranqüilidade. – Desde que entrei nesta sala, tive um pequeno acesso de
loucura, você deve ter percebido – disse ela, depois, já sorrindo – mas
está acabado; vamo-nos, pois, sentar e ficar a cômodo; porque, quanto à
repreensão que eu pretendi fazer a você, Fanny, agora que chegou o
momento, não tenho coragem. – E abraçando-a muito carinhosamente: –
Boa, meiga Fanny! Quando penso que esta é a última vez, até não sei
quando, que eu a vejo, sinto ser inteiramente impossível fazer outra coisa
senão amá-la.
Fanny ficou comovida. Não tinha esperado por isso e seu coração
raramente podia suportar a melancólica influência da palavra “última”.
Chorou como se tivesse amado Miss Crawford mais do que lhe era
possível; e Miss Crawford, mais tocada ainda por uma tal emoção,
abraçou-a com mais ternura e disse:
– Detesto ter de deixá-la. Aonde vou não encontrarei ninguém de
quem goste tanto. Quem dirá que nós ainda havemos de ser irmãs? Sei
que o seremos. Sinto que nascemos para ser parentes; e estas lágrimas
convencem-me de que você também o sente, querida Fanny.
Fanny levantou-se e respondendo apenas em parte, disse:
– Mas você vai apenas trocar um grupo de amigos por outro. Vai ver
uma amiga muito íntima.
– Sim, é verdade. Mrs. Fraser é minha amiga íntima há anos. Mas
não tenho a menor vontade de vê-la agora. Não penso senão nos amigos
que vou deixar; minha excelente irmã, você e os Bertrams em geral. A
afeição que se encontra entre vocês todos é muito maior do que a que se
encontra pelo mundo afora. Vocês me dão a sensação de que posso ter
confiança em todos, o que não se sente num meio comum. Desejava ter
combinado com Mrs. Fraser só ir para lá depois da Páscoa, época muito
melhor para se fazer visitas, mas agora não posso desapontá-la. E depois
que estiver lá, tenho que ir para a casa da irmã, Lady Stornaway, porque
esta era das duas, a minha amiga mais íntima; no entanto nesses três
últimos anos já não me tenho interessado muito por ela.
Depois dessa conversa, as duas moças silenciaram por muitos
minutos, cada uma entregue a seus próprios pensamentos. Fanny
meditando sobre as diferentes espécies de amizades que havia no mundo.
Mary sobre qualquer coisa de menos filosóficas tendências. Esta foi a
primeira a falar.
– Como me lembro perfeitamente do dia em que resolvi procurá-la
aqui em cima e saí para encontrar o caminho da sala de Leste, sem ter a
mínima idéia de onde ficava! Como me lembro bem do que vinha
pensando pelo caminho e quando a espiei e a vi aqui sentada
trabalhando; e depois o espanto de seu primo quando, ao abrir a porta,
deu comigo aqui! E pensar que seu tio voltou naquela mesma noite!
Seguiu-se outra curta meditação, depois, como que despertando,
Mary dirigiu-se à companheira.
– Pois que, Fanny, você está absolutamente entregue ao devaneio!
Pensando. Espero que seja na pessoa que está sempre pensando em você.
Oh! Se eu pudesse transportá-la, um minuto que fosse, para o nosso
círculo na cidade, para que pudesse compreender o que pensam lá do seu
domínio sobre Henry! Oh! A inveja, o ódio, de dúzias e dúzias! A
admiração, a incredulidade que manifestarão ao ouvir o que você fez!
Pois quanto a segredo, Henry é bem como um herói de romance antigo, e
se vangloria das próprias cadeias. Devia vir a Londres para poder avaliar
a sua conquista. Se visse como ele é cortejado e como me agradam por
causa dele! Agora, tenho certeza de que não serei tão bem recebida por
Mrs. Fraser, em conseqüência da situação de Henry com você. Quando
ela souber da verdade, muito provavelmente desejará ver-me novamente
em Northamptonshire; porque existe uma filha de Mr. Fraser, do primeiro
matrimônio, que ela está louca por ver casar e quer que Henry seja o
marido. Oh! E tem feito tudo para conseguir isso. Inocente e tranqüila
como você se acha aqui, não pode fazer uma idéia da sensação que irá
causar, da curiosidade que terão em vê-la, da infinidade de perguntas a
que eu terei de responder! Pobre Margareth Fraser, não descansará
enquanto não souber bem como são os seus olhos, os seus dentes, como
você penteia os cabelos e quem fabrica os seus sapatos. Para o bem de
minha pobre amiga, desejava que Margareth não fosse casada, pois
considero os Frasers tão mal casados como muitos casais que conheço. E
contudo, na ocasião, parecia uma casamento muito desejável para Janet.
Todos nós estávamos satisfeitos. Ela não podia deixar de aceitá-lo, visto
que ele era rico e ela não tinha nada; no entanto ele se revelou malcriado
e exigente, e quis que uma moça, bonita e de vinte e cinco anos tivesse
tanta firmeza de caráter quanto ele. E minha amiga não soube manejá-lo
bem; parece-me que não soube como tirar partido da situação. Houve
uma certa irritação de parte a parte que, para não dizer nada pior, foi
certamente muito indecorosa. Na casa deles eu hei de me lembrar com
respeito das maneiras conjugais da Paróquia de Mansfield. Até mesmo o
Dr. Grant sabe demonstrar uma perfeita confiança em minha irmã, uma
certa consideração pelas opiniões dela, o que dá a entender que já houve
afeição; com os Frasers não verei nada disso. Meu espírito estará para
sempre em Mansfield, Fanny. Minha irmã como esposa, Sir Thomas
Bertram como marido, serão os meus modelos de perfeição. Pobre Janet,
foi tristemente enganada e no entanto não houve inconveniência alguma
de sua parte; ela não se atirou ao casamento inconsideradamente. Não
houve falta de previsão. Levou três dias para considerar sobre as
propostas dele e durante esses três dias pediu conselhos a todo mundo
que conhecia cujas opiniões eram dignas de ser ouvidas e dirigiu-se
especialmente à minha querida tia, cujo conhecimento do mundo fazia
com que o seu julgamento fosse geralmente e merecidamente observado
por todas as pessoas jovens de suas relações; e minha tia foi
decididamente a favor de Mr. Fraser. Isto dá a entender que não há nada
capaz de assegurar a felicidade conjugal. Já da minha Flora não posso
dizer tanto; pois Flora desprezou um excelente rapaz em Blues por causa
daquele horrendo Lord Stornaway, que não tem mais senso, Fanny, do
que Mr. Rushworth e é além disso muito mais feio e com um péssimo
caráter. Eu tive minhas dúvidas na ocasião, pois ele não tem sequer um
leve ar de distinção, e agora tenho certeza de que ela errou. E no entanto,
Flora Ross ficou louca por Henry no primeiro inverno depois que foi
apresentada. Mas se eu quisesse contar todas as mulheres que sei
estarem apaixonadas por ele, nunca acabaria. Só você, apenas você,
Fanny insensível, é quem pode pensar em Henry com indiferença. Será,
porém, que você é tão insensível quanto pretende ser? Não, não, eu vejo
que não o é.
De fato Fanny corou tão intensamente naquele momento, que
qualquer espírito predisposto teria visto nisto um forte motivo para
suspeita.
– Excelente criatura! Não quero aborrecê-la mais. Tudo que tiver de
acontecer virá a seu tempo. Mas Fanny, querida, não pode admitir que
não estivesse absolutamente preparada para receber a proposta, como o
seu primo imagina. Não é possível que você já não tivesse pensado um
pouco sobre o assunto, que tivesse alguma idéia do que poderia ser. Deve
ter visto que ele procurava agradá-la por todos os meios ao seu alcance.
Durante o baile, não esteve inteiramente dedicado a você? E mesmo
antes do baile, a questão do colar! Oh! Você o recebeu justamente como
ele pretendia. Estava tão consciente quanto era de desejar. Lembro-me
perfeitamente.
– Quer dizer, então, que seu irmão sabia de antemão aquele negócio
do colar? Oh! Miss Crawford, isto não foi correto.
– Se o sabia! Pois se foi idéia dele inteiramente! Envergonho-me de
confessar que não me tinha ocorrido fazer aquilo, mas fiquei encantada
de poder agir em favor de vocês dois.
– Não digo – respondeu Fanny – que não estivesse um tanto receosa,
naquela ocasião, de que houvesse alguma combinação, pois percebi em
seu olhar qualquer coisa que me assustou – mas não a princípio... A
princípio não tive a menor suspeita – na verdade não tive. É tão verdade
como eu estar sentada aqui agora. E se eu tivesse a mínima idéia, não
teria de forma alguma aceitado o colar. Quanto ao procedimento de seu
irmão, certamente que percebi uma certa particularidade; percebi-o faz
algum tempo talvez há duas ou três semanas; mas considerei então que
aquilo não passava de um divertimento. Tomei tudo como se fosse
simplesmente um novo modo dele e estava tão longe de supor quanto de
desejar que ele estivesse pensando seriamente em mim. Eu não pude
deixar, Miss Crawford, de observar atentamente o que se passou entre ele
e uma certa parte desta família durante o verão e o outono. Não falava,
mas não era cega. Não podia deixar de ver que Mr. Crawford gostava
muito de dispensar atenções que não queriam dizer nada.
– Ah! Não o posso negar. Ele de fato tem sido muito namorador e
pouco tem se importado com os estragos nos corações de muitas moças.
Muitas vezes censurei-o por isso, mas essa era a sua única falta; e, deixe
que se diga, muito poucas moças têm afeições dignas de serem levadas
em consideração. Por isso, Fanny, a glória está em prender alguém que
tem sido cobiçado por tantas; em ter o poder de vingar o próprio sexo!
Oh! Não acredito que mulher alguma tenha recusado esse triunfo.
Fanny balançou a cabeça.
– Não posso acreditar num homem que brinca com os sentimentos
de outra qualquer mulher; e deve ter havido, muitas vezes, muito mais
sofrimento do que uma pessoa alheia possa julgar.
– Não o defendo. Deixo-o inteiramente entregue à sua misericórdia
e quando você estiver com ele em Everingham, pouco me importa
quantos sermões lhe passe. Mas uma coisa posso dizer, que o defeito de
Henry, fazendo com que as pequenas fiquem um pouquinho apaixonadas
por ele, não é tão perigoso para a felicidade de uma esposa como uma
tendência a apaixonar-se ele próprio, o que nunca lhe aconteceu. E eu,
séria e sinceramente acredito que ele a ama de forma como nunca amou
nenhuma outra mulher; que a ama de todo o coração e que a amará para
sempre. Se existe algum homem capaz de amar uma mulher para sempre,
acredito que seja Henry em relação a você.
Fanny não pôde evitar um pálido sorriso, mas não disse nada.
– Não acredito que Henry jamais tenha sido tão feliz – continuou
Mary – como quando conseguiu obter a promoção de seu irmão.
Neste ponto levou uma grande vantagem sobre os sentimentos de
Fanny.
– Oh! Sim, ele foi tão... Tão bondoso.
– Sei que ele deve ter empregado os maiores esforços, pois conheço
as pessoas a quem teve de pedir. O Almirante odeia incomodar-se e não
admite pedir favores; e existem pedidos de tantos rapazes para serem
atendidos da mesma maneira que, a não ser por muita amizade e uma
grande força de vontade, são facilmente esquecidos. Que feliz criatura
William deve ser! Desejava poder vê-lo.
Pobre Fanny, seu espírito caiu na mais dolorosa das confusões. As
lembranças do que havia sido feito por William era sempre a mais
poderosa destruidora de todas as decisões contra Mr. Crawford; e ela
ficou por muito tempo em profunda meditação, até que Mary, que a
princípio a observava complacentemente, passando depois a devanear
sobre outra coisa qualquer, subitamente lhe chamou a atenção dizendo:
– Desejaria poder ficar aqui conversando com você o dia todo. No
entanto não podemos esquecer as senhoras lá embaixo; por isso, adeus
minha querida, minha amável, minha excelente Fanny, pois que embora
nós tenhamos que nos despedir oficialmente lá na sala de almoço, é aqui
que eu quero me despedir de você. E me despeço, desejando que
brevemente tenhamos a felicidade de nos reunir e esperando que quando
isso se der, seja em circunstâncias que nos permitam abrir mutuamente
nossos corações, sem nenhum remanescente ou nenhuma sombra de
reserva.
Um abraço afetuoso acompanhou essas palavras.
– Brevemente verei seu primo na cidade; ele fala em ir lá dentro de
pouco tempo; e Sir Thomas, quero crer, durante a primavera; o seu primo
mais velho, os Rushworth e Julia, tenho certeza de que os encontrarei
freqüentemente; todos, menos você. Tenho dois favores para lhe pedir,
Fanny: um é que me escreva. Deve escrever-me. E o outro, que procure
Mrs. Grant muitas vezes e procure consolá-la durante a minha ausência.
O primeiro desses favores, pelo menos, Fanny preferia que não lhe
tivessem pedido; era-lhe, porém, impossível não aceder mais prontamente
do que tinha vontade. Não havia como resistir a uma afeição tão
aparente. Sua índole era de molde a dar especial valor a qualquer
tratamento carinhoso por ter até então conhecido tão pouco tais
tratamentos, mais cativa ficou pelo modo como Miss Crawford a tratou.
Além disso, estava-lhe grata por ter tornado o tête-à-tête tão menos
penosos do que os seus receios haviam predito.
Estava tudo acabado e ela escapara sem censuras e sem
descobertas. Seu segredo ainda lhe pertencia; e enquanto assim o fosse,
ela achava que nada mais importava.
À noite houve outra despedida. Henry Crawford veio e permaneceu
algum tempo com eles; e o espírito de Fanny não estando prevenido, seu
coração comoveu-se algum tempo, porque o moço realmente parecia
sofrer. Inteiramente diferente do que costumava ser, ele quase não falou.
Estava evidentemente oprimido e Fanny devia sofrer por ele, embora
desejando não o ver nunca mais, até que estivesse casado com alguma
outra mulher.
Quando chegou o momento da despedida, ele lhe tomou a mão; não
permitiria que ela a negasse; não disse nada, porém, ou nada que ela
ouvisse e quando saiu da sala, Fanny sentiu-se mais contente por aquele
sinal de amizade ter sido dispensado.
No dia seguinte os Crawfords partiram.

CAPÍTULO 37

Depois que Mr. Crawford partiu, o primeiro cuidado de Sir Thomas


foi fazer com que a ausência dele fosse notada; e alimentou grande
esperança de que a sobrinha encontraria um vácuo na perda daquelas
mesmas atenções que na ocasião havia considerado, ou imaginado uma
desgraça. Fanny experimentara o sabor da admiração em suas formas
mais lisonjeiras; e ele esperava que a perda desse sabor, o mergulhar
novamente no nada, haveria de lhe causar os maiores arrependimentos.
Observava-a com esta idéia; mas dificilmente podia notar alguma
mudança. Era difícil, realmente, saber se havia ou não alguma diferença
no espírito da moça. Ela era geralmente tão suave e retraída, que as suas
emoções escapavam à observação do tio. Não a compreendia; pelo menos
assim pensava; e portanto dirigiu-se a Edmund para que ele lhe dissesse
até que ponto ela estava afetada naquele momento, e se se sentia mais ou
menos feliz do que antes.
Edmund não percebeu nenhum sintoma de arrependimento e achou
que o pai não estava sendo muito razoável, ao supor que os três primeiros
dias poderiam produzir qualquer mudança naquele sentido.
O que principalmente surpreendia Edmund, é que ela não
mostrasse mais claramente sentir a falta da irmã de Crawford, a amiga e
companheira, que fora tanto para ela. Admirava-se de que Fanny se
referisse tão raras vezes a ela e que estivesse espontaneamente tão
pouco a dizer sobre Mary depois daquela separação.
Ah! Essa irmã, essa amiga e companheira é que era agora a
principal inimiga da tranqüilidade de Fanny. Se ela pudesse acreditar que
o futuro de Mary estava tão desligado de Mansfield como ela sabia que
estaria o do irmão, se pudesse ter a esperança de que a volta de Mary
para ali estava tão distante quanto ela quase acreditava que estivesse a
de Henry, sentir-se-ia na verdade descansada; mas quanto mais pensava e
observava, mais profundamente se convencia de que mais do que nunca
tudo agora caminhava a favor do casamento de Miss Crawford com
Edmund. Do lado dele a inclinação era mais forte e do dela menos
equívoca. As objeções e os escrúpulos do primo tinham se sumido,
ninguém sabia como e as dúvidas e hesitações motivadas pela ambição
dela tinham igualmente desaparecido; e igualmente sem motivo aparente.
Só se fosse atribuído a um aumento de afeição. As boas qualidades dele e
os defeitos dela se haviam rendido ao amor e tal amor devia uni-los. Ele
deveria ir para a cidade, logo que alguns negócios referentes a Thorton
Lacey estivessem concluídos, talvez, dentro de quinze dias; Edmund
falava em ir, gostava de aludir a isso; e quando a visse novamente, Fanny
não duvidava do resto. Tinha tanta certeza de que ela aceitaria quanto de
que ele a pediria; contudo, subsistiam ainda certos defeitos que tornavam
o futuro muito triste, mesmo, acreditava ela, independentemente de si
mesma.
Na última conversa que tiveram, Miss Crawford, apesar de algumas
ternas emoções e muita bondade pessoal, ainda continuava a ser Miss
Crawford; continuava a mostrar um espírito perturbado, distraído. Ela
talvez o amasse, mas não merecia Edmund por nenhum outro sentimento.
Fanny não acreditava que houvesse um único pensamento em comum
entre eles; e ela teria sido perdoada por qualquer filósofo mais antigo,
por considerar como quase incrível a possibilidade de Miss Crawford vir a
aperfeiçoar-se no futuro; pois que se a influência de Edmund, em plena
estação do amor tinha feito tão pouco, que seria então depois de muitos
anos de matrimônio!
A experiência teria esperado mais de qualquer pessoa jovem nestas
circunstâncias e a imparcialidade não teria negado à natureza de Miss
Crawford aquela parte da natureza das mulheres em geral que as leva a
adotar as opiniões do homem que amam. Mas tal era a convicção de
Fanny, que ela sofria muitíssimo com isso e nunca podia falar de Miss
Crawford sem se sentir penalizada.
Neste ínterim, Sir Thomas continuava nutrindo suas próprias
esperanças e prosseguindo nas suas próprias observações, achando
ainda, de acordo com o conhecimento que possuía da natureza humana,
que podia esperar ver um bom efeito no espírito de sua sobrinha, pela
perda do poder e da importância, bem como das passadas homenagens
do admirador, com o desejo de que tudo isso voltasse; e logo depois se
convenceu de que não tinha, ainda, completa e indubitavelmente, notado
essa mudança, em virtude da perspectiva de uma outra visita, cuja
promessa era suficiente para erguer a moral do espírito que ele andava
observando. William havia obtido licença de passar dez dias em
Northamptonshire e vinha, o mais radiante dos tenentes, mostrar a sua
felicidade e descrever o novo uniforme.
Um dia chegou; e teria gostado muito de mostrar, também, o
uniforme, se não fosse o costume cruel que proibia o uso da farda a não
ser em serviço. De forma que a farda ficou em Portsmouth e Edmund
conjeturou que quando Fanny tivesse oportunidade de o ver já a sua
frescura e o prazer do dono em usá-lo estariam muito diminuídas. Já
traria em si a marca do desgosto; pois que coisa poderia ser mais
indecente ou mais inútil, do que o uniforme de um tenente , que já foi
tenente durante um ou dois anos, vendo outros passarem a comandante
antes dele? Assim raciocinava Edmund, até que seu pai lhe confiou um
projeto graças ao qual Fanny teria oportunidade de ver em toda sua
glória, o segundo tenente do H.M. “Thrush”.
O plano consistia em Fanny acompanhar o irmão quando este
voltasse para Portsmouth e lá passar algum tempo com a família.
Ocorrera a Sir Thomas num de seus devaneios, que essa medida seria
certa e desejável; antes de se resolver definitivamente, porém, consultou
o filho. Edmund considerou o caso sob todos os pontos de vista e não
encontrou nada que não fosse aconselhável. O plano em si era ótimo e
não poderia ter sido feito em melhor época; tinha certeza, além do mais,
que seria imensamente agradável a Fanny. Foi o bastante para Sir
Thomas decidir-se; e um decisivo “então assim será feito” encerrou a
primeira fase do negócio; Sir Thomas retirou-se com uma sensação de
contentamento e a perspectiva de certas vantagens que não chegara a
comunicar ao filho; pois o seu principal motivo em mandar a sobrinha,
pouco tinha a ver com a conveniência de ela ver os pais e absolutamente
nada com a idéia de lhe proporcionar um prazer. Ele com certeza
desejava que ela fosse espontaneamente, mas também desejava que ela
ficasse mortalmente aborrecida da casa antes de terminar o período da
visita; que uma pequena abstinência das elegâncias e dos luxos de
Mansfield Park lhe trouxesse mais lucidez ao espírito e a predispusesse a
dar mais justo valor àquele outro lar de maior permanência e igual
conforto que lhe era oferecido.
Era um plano de cura para a consciência da sobrinha que ele
considerava presentemente enferma. A residência durante oito ou nove
anos no meio da riqueza e da abundância, tinha posto um pouco em
desordem a sua capacidade de julgar e comparar. A casa do pai, com toda
a probabilidade, lhe ensinaria o valor de uma boa renda; e confiava que,
por causa da experiência a que ele a submetia, ela viria a ser a mulher
mais prudente e mais feliz para o resto da vida.
Se Fanny fosse sujeita a grandes entusiasmos, teria sofrido um forte
ataque deles quando compreendeu o que pretendiam lhe fazer, quando o
tio a primeira vez lhe perguntou se queria ir visitar os pais, os irmãos e
irmãs, de quem ela estava separada quase a metade de sua vida; se
queria voltar por um par de meses às cenas de sua infância, com William
por protetor e companheiro durante a viagem e a certeza de continuar a
ver William até o último momento em que ele permanecesse em terra.
Houvesse ela jamais dado expansão às suas alegrias, teria sido naquele
momento em que sentia tão alegre; mas a sua felicidade era calma,
profunda, íntima e, conquanto nunca fosse muito faladeira, nos momentos
em que seu sentimento era mais intenso, ela era justamente mais
propensa ao silêncio. Na ocasião pôde apenas aceitar e agradecer.
Depois, quando familiarizada com as perspectivas de divertimentos que
tão subitamente lhe ofereciam, pôde falar mais à vontade a William e a
Edmund sobre o que sentia; havia porém certas emoções de ternura que
não poderiam ser exprimidas por palavras. A lembrança de todos os seus
prazeres de infância, do que havia sofrido ao ser separada deles, veio-lhe
com renovada intensidade; e lhe parecia que ao estar novamente em casa
se sentiria curada de todos os sofrimentos causados pela separação. Estar
novamente no meio daquele círculo, amada por tantos e mais amada por
todos do que jamais havia sido; estimar sem receio ou constrangimento;
sentir-se igual àqueles que a rodeavam; estar livre de toda referência aos
Crawfords, salva de todo olhar de censura por causa deles – era uma
perspectiva de ternuras que ela mal podia imaginar.
E Edmund também – ficar dois meses longe dele, (talvez ela
pudesse conseguir ficar ausente por três meses) devia ser bom para ela.
De longe, sem ver os seus olhos, sem receber as suas constantes
atenções, livre da permanente irritação de observar-lhe as emoções, ou
de fugir para lhe impedir as confidências, ela poderias, talvez, recobrar a
serenidade, seria capaz de pensar nele e no que estaria fazendo em
Londres, sem se sentir demasiadamente infeliz. O que teria sido duro de
suportar em Mansfield, seria pequena desgraça em Portsmouth.
A única dúvida era se a tia Bertram poderia sem inconveniente
dispensar a sua presença. Não era útil a mais ninguém; mas à tia, poderia
fazer tal falta que nem gostava de pensar; e aquela parte do plano foi,
realmente, a mais difícil para Sir Thomas acomodar que somente ele
mesmo poderia ter acomodado.
Ele, porém, era o chefe de Mansfield Park. Depois de ter realmente
resolvido sobre qualquer medida, infalivelmente a levava avante; e agora,
depois de longa conversa sobre o assunto, explicando e repisando sobre o
dever de Fanny ver, algumas vezes, a família, induziu a esposa a deixá-la
ir; conseguiu-o, porém, mais por submissão do que por convicção, pois
Lady Bertram não acreditava muito que Sir Thomas achava que Fanny
devia ir e, por conseguinte, que ela fosse. Na tranqüilidade de seu quarto
de vestir, na efusão imparcial de suas próprias meditações, livre dos
embaraçantes argumentos, ela não podia se convencer de que houvesse
necessidade de Fanny jamais visitar um pai e uma mãe que viveram tanto
tempo e tão bem sem ela, enquanto que para ela própria era tão útil. E
quanto a não lhe sentir a falta, o que na discussão era o ponto que Mrs.
Norris tentava provar, ela própria se decidira firmemente a não admitir
tal coisa.
Sir Thomas havia apelado para o seu juízo, sua consciência e
dignidade. Dissera que era um sacrifício e exigiu de sua bondade e força
de vontade. Mas Mrs. Norris quis persuadi-la de que ela poderia passar
perfeitamente sem Fanny (ela estava pronta para lhe dedicar todo o seu
tempo, logo que fosse pedido) e, em resumo, não poderia, realmente,
precisar nem sentir falta da sobrinha.
– Pode ser que sim, minha irmã – foi tudo que Lady Bertram
respondeu. – Acredito que você tenha razão; mas tenho certeza de que
você sentirá a falta dela terrivelmente.
A fase seguinte foi comunicarem-se com Portsmouth. Fanny
escreveu avisando; e a resposta de sua mãe, embora curta, foi tão
bondosa – algumas poucas linhas, muito simples, exprimindo uma alegria
tão natural, tão maternal, pela esperança de ver novamente a filha, que
se confirmaram todas as perspectivas de felicidade da filha em estar com
ela – convencendo-a de que agora encontraria uma amiga afetuosa e
cordial na “mamãe”, que de fato antigamente não havia demonstrado
muita ternura; mas isso ela facilmente supunha ter sido por sua própria
culpa ou fantasia. Ela provavelmente havia afastado o amor com o seu
temperamento fraco e tímido ou havia, injustamente, querido um quinhão
maior do que cabia a qualquer um entre tantos filhos. Agora, porém, que
já sabia como ser útil, como ser paciente e que a mãe já não estava tão
ocupada pelas incessantes exigências de uma casa cheia de filhos
pequenos, haveria mais tranqüilidade e mais gosto pelo bem estar e, em
breve, elas seriam o que mãe e filha deviam ser uma para outra.
William estava quase tão radiante com a idéia quanto a irmã. Seria
o maior prazer para ele estar a seu lado até o último momento de
embarcar e talvez encontrá-la ainda lá quando voltasse de seu primeiro
cruzeiro. Além disso, desejava tanto que ela visse o “Thrush” antes que
saísse do porto (o “thrush” era sem dúvida a mais bela corveta em
serviço); havia, também, várias reformas no cais que ele ardia de
impaciência por lhe mostrar.
Não tinha mesmo escrúpulos em acrescentar que a permanência
dela em casa por algum tempo seria de grande vantagem para todos.
– Não sei como é – disse ele; – mas parece que lá em casa a gente
precisa um pouco dos seus modos distintos e metódicos. A casa está
sempre em confusão. Quero crer que você dará um jeito em tudo. Você
aconselhará mamãe e será tão útil a Susan, ensinará Betsey e fará com
que os meninos a amem e respeitem. Que tranqüilidade será!
Quando chegou a resposta de Mrs. Price, restavam apenas muito
poucos dias para ficar em Mansfield; e durante uma parte destes dias os
jovens viajantes passaram alarmados sobre a questão da viagem, pois
quando se falou na maneira como esta seria feita e Mrs. Norris viu que
toda a sua ansiedade em economizar o dinheiro do cunhado era inútil e
que apesar de seus desejos e insinuações de um meio dispendioso de
condução para Fanny, ficou resolvido que eles viajariam pela costa;
quando viu Sir Thomas entregar a William o dinheiro para esse fim, veio-
lhe a idéia de que na carruagem havia lugar para uma terceira pessoa e
subitamente sentiu uma grande vontade de ir com eles, para ver a sua
pobre e querida irmã Price. Manifestou o seu pensamento. Devia dizer
que estava quase resolvida a ir com os sobrinhos; seria um tão grande
prazer para ela; não via a pobre e querida irmã Price há mais de vinte
anos; e seria um benefício aos jovens durante a viagem terem uma cabeça
mais velha para os controlar; e não podia deixar de pensar que sua pobre
irmã Price acharia muito cruel de sua parte não aproveitar tal
oportunidade.
William e Fanny ficaram aterrorizados com a idéia.
Toda tranqüilidade da sua viagem seria logo destruída. Olharam-se
tristemente. Sua aflição durou uma ou duas horas. Ninguém interferiu
para os animar ou dissuadir. Mrs. Norris ficou à vontade para resolver o
caso por si mesma; e, para a infinita alegria dos sobrinhos, terminou por
se lembrar que possivelmente naquele momento não poderia ser
dispensada de Mansfield Park; que era demasiadamente necessária a Sir
Thomas e a Lady Bertram para que os pudesse deixar nem que fosse por
uma semana e, portanto, tinha que sacrificar todos os seus outros
prazeres pelo de lhes ser útil.
De fato o que lhe ocorrera foi que embora não lhe custasse nada ir
a Portsmouth, dificilmente lhe seria possível evitar as despesas da volta.
Assim, a pobre e querida irmã Price tinha que se conformar com o
desapontamento de Mrs. Norris não aproveitar tal oportunidade e um
outro período de vinte anos, tinha, talvez começado.
Os planos de Edmund foram perturbados com essa viagem a
Portsmouth, pela ausência de Fanny. Ele, também, tinha um sacrifício a
fazer por Mansfield, como a tia. Tinha pensado em ir naqueles dias a
Londres; mas não podia deixar os pais justamente quando todos os outros
estavam viajando; e com um esforço, sentido mas não manifestado, adiou
por uma ou duas semanas mais a viagem, na qual depositava todas as
esperanças que tinha de assegurar a sua felicidade para sempre.
Pôs Fanny a par de seus projetos. Ela já sabia tanto que podia saber
de tudo. Disso resultou um outro discurso confidencial sobre Miss
Crawford; e Fanny ficou mais emocionada por pensar que essa ia ser a
última vez em que o nome de Miss Crawford seria mencionado entre eles
com certa liberdade. Uma vez, mais tarde, ele tornou a fazer alusão a ela.
À noite, Lady Bertram estava dizendo à sobrinha que lhe escrevesse logo
e freqüentemente, e prometendo ser ela própria uma boa
correspondente; e Edmund, num momento oportuno, acrescentou em voz
baixa:
– E eu também escreverei a você, Fanny, quando tiver alguma coisa
que valha a pena escrever, qualquer coisa para dizer que eu creio que
você gostará de ouvir, e que será a primeira a saber.
Mesmo que ela tivesse dúvida quanto à significação das palavras
dele, a felicidade estampada em seu rosto quando olhou para ele tê-la-ia
convencido.
Precisava preparar-se para uma tal carta. Que uma carta de
Edmund fosse considerada um objeto de terror! Começou a acreditar que
ela ainda não havia passado por todas as alterações de opinião e
sentimento que o tempo e a variação de circunstância ocasionam neste
mundo cheio de revezes. As vicissitudes da consciência humana não
estavam ainda esgotadas para ela.
Pobre Fanny! Não obstante ir, como ia, espontaneamente, a última
noite passada em Mansfield Park ainda teria de ser dolorosa. Seu coração
estava completamente acabrunhado pela partida. Tinha lágrimas para
cada um dos compartimentos da casa, muitas mais para cada um dos seus
habitantes. Abraçou-se à tia, porque ela ia sentir a sua falta; beijou a mão
do tio com estrangulados soluços, porque ela o havia desgostado; e
quanto a Edmund, não podia falar, nem olhar, nem pensar, quando chegou
o último momento de estar com ele; e não foi senão depois de tudo
passado que percebeu que ele se despedia dela com um afetuoso adeus
de irmão.
Tudo isso se passou no serão, pois a viagem começaria muito cedo
na manhã seguinte; e quando o pequeno e disperso grupo se encontrou
no primeiro almoço, William e Fanny foram mencionados como se já não
fizessem mais parte da cena.

CAPÍTULO 38

Depois que Mansfield Park ficou bem para trás, a novidade da


viagem e a felicidade de estar junto de William não tardaram a produzir
sobre o espírito de Fanny o seu efeito natural; e quando terminaram a
primeira etapa e tiveram que deixar a carruagem de Sir Thomas, ela já se
pôde despedir do velho cocheiro sem demonstração de tristeza,
mandando por ele lembrança aos que ficaram.
Entre os dois irmãos o assunto não se esgotava. Para a imensa
alegria em que se encontrava o espírito de William, tudo era motivo de
divertimento e ele enchia com muitas brincadeiras e graças os intervalos
das palestras mais sérias, que terminavam todas, se não tinham
principiado, com elogios ao “Thrush”, conjecturas sobre como seria
usado, planos de ação junto às forças superiores (supondo o primeiro
tenente afastado, William não gostava nada do primeiro tenente), as quais
o fariam subir de posto logo que possível. Ou então imaginavam ganhar
na loteria muito dinheiro, que seria generosamente distribuído em casa,
reservando apenas o suficiente para construírem uma confortável
casinha, onde ele e Fanny passariam o resto da vida.
Os casos que interessavam diretamente a Fanny, desde que
envolvessem o nome de Mr. Crawford, não fizeram parte da conversa.
William estava a par do que se havia passado e sinceramente lamentava
que a irmã fosse tão indiferente a um homem que ele considerava como
sendo o primeiro caráter do mundo. No entanto, estava na idade em que
se achava tudo amável e por isso não a podia censurar; e sabendo que ela
não queria tocar no assunto, não lhe fez a menor alusão, a fim de não a
afligir.
Ela tinha razão em supor que Mr. Crawford ainda não a tinha
esquecido. Durante as três semanas que se passaram desde que eles
haviam partido de Mansfield, a irmã não parava de mandar notícias e em
cada uma de suas cartas vinha sempre algumas linhas dele mesmo,
ardentes e positivas como era a sua linguagem. Uma correspondência
que Fanny achava tão desagradável quanto a havia temido. O estilo de
Miss Crawford, jovial e afetuoso, era em si uma perversidade,
independente do que ela ainda era forçada a ler, escrito pelo irmão, pois
Edmund não sossegava enquanto ela não lhe lesse a carta inteira; e então
tinha que ouvir os elogios do primo à linguagem e às expressões de afeto
que ela empregava. Havia de fato tanto subentendido, tanta alusão,
tantas lembranças, tanto de Mansfield em cada uma de suas cartas, que
Fanny não podia senão supor que haviam sido escritas intencionalmente
para Edmund; e ver-se forçada a um encargo dessa espécie, constrangida
a manter uma correspondência que lhe trazia as declarações do homem
que ela não amava e a obrigava a fomentar a paixão adversa do homem
que ela queria, era de uma crueldade inominável. Neste ponto a sua atual
mudança também trazia vantagem. Quando estivesse longe de Edmund,
ela esperava que Miss Crawford não encontrasse uma razão de escrever
suficientemente forte para se dar a esse trabalho e que em Portsmouth a
correspondência se reduzisse a nada.
Com estes pensamentos entre milhares de outros, Fanny prosseguia
na viagem, tranqüila e feliz, e tão depressa quanto razoavelmente se
poderia esperar no mês de fevereiro. Entraram em Oxford, porém ela não
pôde senão dar uma rápida espiada à Universidade onde Edmund
estivera, pois que passaram sem parar em lugar nenhum até chegarem a
Newbury, onde, com uma ótima refeição, reunindo jantar e ceia,
terminaram as alegrias e as fadigas do dia.
Na manhã seguinte continuaram a viagem muito cedinho; e sem
acontecimentos nem demoras, prosseguiram regularmente, chegando aos
arrabaldes de Portsmouth ainda com dia, proporcionando a Fanny o
prazer de admirar os arredores e os novos prédios. Passaram a ponte
levadiça e entraram na cidade; e estava começando a escurecer quando,
guiados pela voz forte de William, foram conduzidos através de uma rua
estreita, até High Street, parando em frente à porta da pequena casa
habitada agora por Mr. Price.
Fanny estava cheia de ansiedade e alegria; cheia de esperanças e
apreensões. No momento em que pararam, uma criança imunda, que
parecia estar esperando à porta, adiantou-se e, mais interessada em dizer
as novidades do que em auxiliá-los, imediatamente começou com um:
– Faz favor, Mr. William, o “Thrush” acaba de sair do porto e um dos
oficiais esteve aqui para...
Foi interrompida por um belo rapaz de onze anos, que, saindo a
correr de dentro da casa, empurrou a criada para o lado e enquanto o
próprio William abria a porta da sege, gritou:
– Chegou mesmo na hora, William! Já estávamos esperando por
você! O “Thrush” saiu do porto hoje de manhã. Eu vi! Foi uma beleza!
Parece que vai ter ordem de partir daqui a um ou dois dias. E Mr.
Campbell esteve aqui às quatro horas para perguntar por você; está num
dos barcos do “Thrush” e vai voltar para bordo às seis; disse que
esperava que você chegasse a tempo para voltar com ele.
Um ou dois olhares embasbacados para Fanny, enquanto William a
ajudava a descer da carruagem, foi toda a atenção que este irmão lhe
deu: não fez, porém, objeção a que ela o beijasse, embora ainda
inteiramente ocupado em detalhar novos particulares sobre a saída do
“Thrush”, pelo qual tinha todo o direito de se interessar, visto que nele
começaria sua carreira de grumete justamente naquela ocasião.
Em seguida Fanny viu-se no estreito corredor de entrada da casa e
nos braços de sua mãe, que ali a encontrou, demonstrando sincera
afeição e cujas feições Fanny ainda mais adorou, porque lhe parecia estar
vendo a tia Bertram; vieram também as duas irmãs, Susan, já crescida,
uma esplêndida pequena de quatorze anos e Betsey, a menor da família,
com cerca de cinco anos – ambas, à sua moda, contentes de a ver,
conquanto demonstrassem certo acanhamento na maneira como a
recebiam. Mas Fanny não queria formalidades. Era bastante que a
amassem e estaria satisfeita.
Foi então levada para uma sala, tão pequena que a princípio estava
convencida de que era apenas uma passagem para outra sala maior e
ficou, por um momento, esperando que a convidassem para entrar; mas
quando percebeu que não havia outra porta e que havia sinais de ter sido
usada antes dela, compreendeu, reprovou-se e afligiu-se com receio de
que o tivessem percebido. Sua mãe, contudo, não esteve presente muito
tempo para suspeitar de coisa alguma. Tinha voltado para a porta de
entrada, a fim de receber William.
– Oh! Meu querido William, como estou contente! Você já soube do
“Thrush”? Já saiu do porto; três dias antes do tempo marcado; e não sei o
que fazer para arrumar as coisas de Sam, nunca ficarão prontas em
tempo, pois parece-me que vão partir amanhã. Tomou-me inteiramente de
surpresa. E além disso, dessa vez vocês vão sair de Spithead. Campbell
esteve aqui, está muito preocupado com você; e agora o que hei de fazer?
Pensei que passaria um serão tão tranqüilo com vocês, e aí vem tudo em
cima de mim de uma só vez.
O filho respondeu alegremente, dizendo-lhe que tudo havia de
acabar bem, fazendo pouco caso da inconveniência para si próprio por ter
de partir tão depressa.
– Sem dúvida, preferia que ainda estivesse no porto, para que
pudéssemos passar tranqüilamente algumas horas juntos; mas como o
barco está em terra, é melhor que eu vá de uma vez e para isso não há
remédio. Em que ponto de Spithead está ancorado o “Thrush”? Perto de
Canopus? Bem, não importa; Fanny está lá na sala e por que havemos de
estar aqui no corredor? Venha mamãe, você quase que nem olhou para a
sua Fanny.
Entraram ambos. Mrs. Price tendo de novo beijado bondosamente a
filha, comentou um pouco o seu crescimento e depois começou com uma
solicitude muito natural a informar-se sobre as suas fadigas e
necessidades na viagem.
– Pobres coitados! Como devem estar cansados! E agora, que
desejam comer? Já principiava a pensar que nunca mais chegassem.
Betsey e eu há meia hora estamos esperando. Quando é que comeram? E
que gostariam de comer agora? Não sabia se iriam preferir carne ou
simplesmente um pouco de chá, do contrário teria arranjado qualquer
coisa. Agora tenho receio que Campbell esteja de volta antes de dar
tempo de preparar um assado, quanto mais que não há açougue aqui
perto. É muito incômodo não haver açougue nesta rua. Na outra casa
estávamos muito melhor instalados. Talvez vocês gostem de tomar um
pouco de chá logo que possa ser feito?
Ambos declararam que preferiam chá a qualquer outra coisa.
– Então, Betsey, querida, corre até a cozinha e vê se Rebecca pôs
água para ferver; e diz-lhe que ponha a mesa do chá logo que possa. É
aborrecido a campainha não estar funcionando; mas Betsey é uma
mensageirinha muito ativa.
Betsey saiu prontamente, orgulhosa de mostrar suas habilidades
àquela nova irmã tão bonita.
– Meu Deus! – continuou a mãe ansiosamente – que triste fogo
temos hoje! Aposto que vocês estão gelados! Aproxime a sua cadeira,
minha querida. Não sei o que Rebecca anda fazendo. Tenho certeza de
que a mandei trazer carvão há mais de meia hora. Susan, você devia ter
tomado conta do fogo.
– Eu estava lá em cima, mamãe, arrumando minhas coisas – disse
Susan, num tom de defesa, impávido, que espantou Fanny. – Pois não
resolveu agora mesmo que eu e Fanny ficaríamos no outro quarto? E
Rebecca não me quis ajudar.
A discussão foi interrompida por diversas interrupções; primeiro, o
cocheiro que veio receber o pagamento; depois houve uma briga entre
Sam e Rebecca por causa da mala da irmã que ele queria levar sozinho; e
finalmente, a chegada de Mr. Price, a sua alta voz precedendo-o, numa
espécie de blasfêmia, por ter tropeçado na mala do filho e na valise da
filha que se achavam ainda no corredor, gritando para lhe levarem uma
vela; não lhe levaram, porém, nenhuma vela e ele entrou na sala.
Fanny levantou-se com hesitação para o encontrar, mas sentou-se
de novo, vendo que não percebiam no escuro e que não era esperada.
Cordialmente apertou a mão do filho e com a voz impaciente,
imediatamente começou:
– Ah! Seja bem-vindo, meu filho. Folgo muito em vê-lo. Já ouviu as
novidades? O “Thrush” saiu do porto hoje de manhã. Com os raios, você
chegou mesmo em tempo! O médico esteve aqui à sua procura; está num
dos botes e deve sair para Spithead às seis horas; assim, é melhor você ir
com ele. Falei com Turner sobre a sua comissão; está sendo preparada.
Não me surpreenderei se vocês tiverem ordem de partir amanhã; mas
não podem navegar com este vento, se forem para o ocidente; e o Capitão
Walsh acha que certamente vão fazer um cruzeiro pelo oeste, com o
“Elephant”. Com os raios, tomara que vocês vão! Mas o velho Scholey
esteve me dizendo, ainda há pouco, que ele acha que vão primeiro ser
mandados para o “Texel”. Bem, bem, estamos prontos para o que der e
vier. Mas com os raios, você perdeu um espetáculo magnífico não estando
aqui esta manhã para ver o “Thrush” sair do porto! Não teria perdido isso
por mil libras. O velho Scholey veio correndo na hora do almoço para
dizer que o navio estava largando âncoras para sair. Dei um pulo e não
tive tempo de dar dois passos na plataforma. Se já houve sobre as águas
uma beldade perfeita, essa é uma; estive duas horas na plataforma esta
tarde, admirando-o. Está ancorado junto ao “Endymion”, entre ele e o
“Cleópatra”.
– Ah! – exclamou William – seria este justamente o lugar onde o
havia de por se fosse eu o piloto. É o melhor ancoradouro em Spithead.
Mas, papai, aqui está minha irmã; aqui está Fanny, – virando-se e
apresentando-a; – está tão escuro que o senhor mal pode vê-la.
Confessando tê-la esquecido inteiramente, Mr. Price recebeu a filha;
e tendo-lhe dado um abraço muito cordial e observando que ela se havia
tornado uma moça e que provavelmente logo havia de querer um marido,
pareceu muito disposto a esquecê-la novamente.
Fanny encolheu-se novamente me seu lugar, com uma triste
sensação de sofrimento ao ouvir a linguagem do pai e ao sentir o seu
cheiro de álcool; ele falava apenas ao filho e somente sobre o “Thrush”,
embora William, ardentemente interessado como estava no assunto,
tentasse, mais de uma vez, fazer o pai pensar em Fanny, na sua longa
ausência e fatigante viagem.
Depois de muito tempo trouxeram uma vela; e como não houvesse
ainda sinal de chá, nem tampouco, a julgar pelas notícias que Betsey
trazia da cozinha, havia esperanças de que estivesse pronto senão depois
de muito tempo, William resolveu ir vestir-se e fazer os preparativos
necessários para a sua imediata mudança para bordo, a fim de depois
poder tomar o chá tranquilamente.
Logo que ele saiu da sala, dois meninos, de rostos rosados, sujos e
esfarrapados, com cerca de oito e nove anos, entraram correndo, libertos
naquele instante da escola e ansiosos para verem a irmã e contarem que
o “Thrush” tinha saído do porto; eram Tom e Charles. Charles havia
nascido depois que Fanny saíra de casa, mas de Tom ela muitas vezes
ajudara a cuidar e por isso agora sentia um prazer particular em vê-lo de
novo. Beijou ambos ternamente, mas quis conservar Tom ao seu lado,
procurando descobrir nele as feições do bebê que amara, e que ninara.
Tom, porém, não estava acostumado a um tal tratamento: não viera para
casa para ficar quieto e conversar, mas para correr e fazer barulho; os
dois meninos logo se escaparam dela e bateram a porta da sala até que
sua cabeça começou a doer.
Tinha agora visto todos os que moravam em casa; restavam apenas
dois irmãos entre ela e Susan, um dos quais era empregado numa
repartição pública em Londres e o outro era grumete a bordo de um navio
indiano. Não obstante, porém, ela ter visto todos os membros da família,
não tinha ainda ouvido todo o barulho que eles costumavam fazer. Outro
quarto de hora mostrou-lhe muito mais. Do primeiro lance do segundo
andar William começou a chamar a mãe e Rebecca. Estava aflito por
causa de qualquer coisa que havia deixado lá e que não podia encontrar.
Faltava uma chave, Betsey foi acusada de ter mexido no seu chapéu novo,
e notava a falta de algumas pequenas mas essenciais alterações no colete
de seu uniforme que lhe haviam prometido fazer, e que foram
inteiramente esquecidas.
Mrs. Price, Rebecca e Betsey, todas subiram para se defender, todas
falando ao mesmo tempo, sendo Rebecca a que falava mais alto, e o
conserto teve que ser feito de qualquer maneira e na maior pressa;
William tentava em vão mandar Betsey de volta ou conservá-la quieta
onde estava para que não atrapalhasse; toda a barulhada, como quase
todas as portas da casa estavam abertas, podia claramente ser ouvida na
sala, exceto quando era interrompida pelo barulho maior que fazia Sam,
Tom e Charles perseguindo-se uns aos outros acima e abaixo da escada,
saltando e gritando pela casa.
Fanny estava quase atordoada. O tamanho da casa e a pequena
espessura das paredes faziam com que tudo parecesse tão perto dela que,
acrescentado à fadiga de sua viagem e a todas as suas recentes aflições,
ela mal sabia como poder suportar. Dentro da sala estava relativamente
sossegado, pois tendo Susan desaparecido com os outros, só ficaram ali
seu pai e ela mesma; e aquele tendo pegado um jornal, que costumava
pedir emprestado ao vizinho, pôs-se a lê-lo, parecendo não se lembrar da
existência da filha. A única vela estava colocada entre ele e o jornal, sem
a mínima preocupação por qualquer possível inconveniência para Fanny;
porém ela não tinha nada que fazer e gostou de que a luz estivesse
encoberta e não atingisse a sua dolorida cabeça, enquanto aturdida,
atormentada, contemplava o ambiente.
Agora estava em casa. Mas , ah! não era uma casa assim, não era
um tal acolhimento que... – ela controlou-se; não estava sendo razoável.
Que direito tinha de querer ser importante para sua família? Não poderia
ter nenhuma importância, há tanto tempo longe da vista deles! O
interesse de todos por William devia ser muito maior, e ele tinha a isso
todo o direito. Contudo, que tivessem falado ou perguntado tão pouco
sobre ela, que não tivessem nem perguntado por Mansfield! Era doloroso
para Fanny que tivessem esquecido Mansfield; os amigos que haviam
feito tanto por eles; os amigos muito, muito queridos! Mas ali uma
questão absorvia todas as outras. Talvez tivesse de ser assim. O destino
do “Thrush” devia ser preeminentemente interessante. Um dia ou dois
mostraria a diferença. O único culpado era o navio. No entanto ela não
teria pensado assim em Mansfield. Não, na casa do tio teria havido uma
distinção para cada tempo e hora, uma ordem para cada assunto, uma
propriedade, uma atenção para cada pessoa que não havia ali.
A única interrupção que teve essa meditação depois de quase meia
hora, foi uma súbita exclamação de seu pai, de forma alguma calculada
para tranqüilizá-la.
– Diabo leve esses cachorros! Como eles estão guinchando! Este
rapaz só serve mesmo para mestre de equipagem. He! Você aí! Sam, pára
com essa gaita infernal ou eu te arrebento.
Esta ameaça foi tão evidentemente desdenhada que, não obstante
depois de cinco minutos os três garotos se terem precipitado juntos de
sala a dentro e se terem sentado, Fanny não podia considerar isso como
prova senão de já estarem derreados, como já mostravam os seus rostos
vermelhos e respiração ofegante; especialmente porque continuavam a
trocar socos e a gritar bem sob as vistas do pai.
Na próxima vez em que a porta se abriu, apareceu uma coisa mais
convidativa; foi o serviço de chá, que ela já quase começava a duvidar
que viria àquela noite. Susan e uma pequena ajudante, por cuja aparência
inferior Fanny, com grande surpresa, percebeu que havia antes visto a
empregada mais graduada, trouxeram tudo que era necessário para a
refeição. Ao colocar a chaleira no fogo Susan olhou para a irmã como se o
seu espírito estivesse dividido entre o agradável triunfo de mostrar as
usas atividades e utilidade e o receio de ser considerada diminuída por tal
serviço.
– Tinha estado na cozinha – informou ela – para apressar Sally e
ajudar a fazer as torradas e espalhar a manteiga no pão; do contrário não
sabia quando o chá ficaria pronto e ela tinha certeza de que a irmã devia
precisar comer qualquer coisa depois daquela viagem.
Fanny ficou muito grata. Não pôde deixar de confessar que
apreciaria muito um pouco de chá e Susan imediatamente se pôs a
prepará-lo, muito satisfeita de se encarregar de tudo; e apenas com um
pouco de barulho inútil e algumas tentativas sem propósito para manter
os irmãos em melhor ordem do que podia, saiu-se muito bem.
Fanny sentiu-se tão reparada de espírito quanto de corpo; sua
cabeça e seu coração logo melhoraram com essa demonstração oportuna
de bondade. Susan tinha a fisionomia franca, sensível; era como William,
e Fanny teve esperança de que ela fosse igual a William em
temperamento e boa vontade para consigo.
Neste intervalo de mais tranqüilidade, William reapareceu, seguido
logo depois da mãe e de Betsey. Ele, completamente metido no seu
uniforme de tenente, parecendo, por isso, mais alto, mais firme e mais
elegante, com o mais feliz sorriso estampado no rosto, caminhou
diretamente para Fanny, que, levantando-se, ficou olhando para o irmão
em muda admiração e depois lançou os braços em redor de seu pescoço,
para desabafar chorando as suas várias emoções de sofrimento e prazer.
Não querendo parecer que se sentia infeliz, logo se recompôs; e
enxugando as lágrimas, pôde ver e admirar todos os detalhes notáveis do
uniforme dele; e, então, já reanimada, ouviu-o falar sobre a esperança
que tinha de poder passar em terra uma certa parte de cada dia antes de
partir e até mesmo levá-la a Spithead para ver o navio.
Novo tumulto foi causado com a vinda de Mr. Campbell, cirurgião
do “Thrush”, rapaz muito bem comportado, que tinha ido buscar o amigo
e para quem, com certa dificuldade, foi encontrada uma cadeira, uma
xícara e um pires, lavados às pressas pela jovem encarregada do chá; e
depois de outro quarto de hora de conversa apressada entre os homens,
barulho sobre barulho, tumulto depois de tumulto, homens e meninos
todos se movimentaram ao mesmo tempo, tendo, afinal, chegado o
momento de partirem; estava tudo pronto. William despediu-se e todos
eles saíram; pois os três meninos, apesar das ameaças da mãe, estavam
decididos a acompanhar Mr. Campbell e o irmão até o porto; Mr. Price
saiu ao mesmo tempo, para restituir o jornal do vizinho.
Podia-se agora esperar uma certa tranqüilidade; por conseguinte,
quando conseguiram que Rebecca levasse as louças do chá e depois de
Mrs. Price ter andado algum tempo pela sala à procura de um punho de
camisa que Betsey havia tirado de uma gaveta na cozinha, o pequeno
grupo das mulheres ficou relativamente calmo e a mãe, tendo mais uma
vez lamentado a impossibilidade de preparar Sam em tempo, achou folga
para pensar na filha mais velha e nos amigos que ela havia deixado.
Uma série de perguntas começou a ser feita; uma das primeiras foi:
– Como conseguia a irmã Bertram arranjar-se com as empregadas?
Tinha a irmã tanta dificuldade quanto ela em arranjar uma empregada
passável?
Logo em seguida seus pensamentos se desviaram de
Northamptonshire e fixaram-se sobre suas próprias aflições domésticas e
sobre o péssimo caráter de todas as criadas de Portsmouth, entre as
quais as suas duas eram as piores. Os Bertrams foram inteiramente
esquecidos enquanto ela detalhava os defeitos de Rebecca, contra quem
Susan tinha também muito a depor e a pequena Betsey ainda mais, e que
parecia tão completamente destituída de uma única recomendação, que
Fanny não pôde deixar de modestamente sugerir que sua mãe a
dispensasse no fim de um ano de serviço.
– Um ano de serviço! – exclamou Mrs. Price. – Espero ver-me livre
dela muito antes de completar um ano, pois isso só se dará em novembro.
As empregadas em Portsmouth, minha querida, estão de tal forma que é
verdadeiro milagre conservá-las mais de um semestre. Já perdi a
esperança de conseguir uma que preste; e se eu despedir Rebecca, só
arranjaria uma ainda pior. E, no entanto, não creio que eu seja uma
patroa muito difícil de agradar; o serviço não é muito, pois sempre tomo
uma menina para ajudar e parte do trabalho muitas vezes sou eu quem
faz.
Fanny ficou em silêncio; mas não que estivesse convencida de não
haver um remédio para essas desgraças. Enquanto contemplava Betsey,
não podia deixar de pensar particularmente numa outra irmã, uma linda
menina, não muito mais criança, que havia deixado quando foi para
Northamptonshire e que morrera alguns anos depois. Essa menina tinha
qualquer coisa de especialmente adorável. Fanny naquele tempo preferia-
a a Susan; e quando recebera em Mansfield a notícia da morte dela, ficou
acabrunhada por algum tempo. A vista de Betsey trouxe-lhe novamente a
imagem da pequena Mary, mas por coisa alguma no mundo faria a mãe
sofrer fazendo alusão a ela. Enquanto assim contemplava Betsey, esta, a
pouca distância, tinha na mão qualquer coisa que procurava mostrar-lhe,
evitando ao mesmo tempo que fosse vista por Susan.
– Que é que tem aí, meu amor? – perguntou Fanny – venha aqui e
deixe-me ver.
Era uma faca de prata. Susan logo pulou, reclamando-a como
proprietária sua e procurando reavê-la; mas a menina correu para junto
da mãe, à procura de proteção e Susan pôde apenas repreendê-la, o que
fez muito vivamente e evidentemente esperando interessar Fanny em sua
causa. Era incrível que ela não tivesse direito sobre a sua faca; a faca era
dela; a irmãzinha Mary lha tinha deixado ao morrer e era justo que ela já
a tivesse recebido há muito tempo. Mas a mãe a tinha escondido, e estava
sempre deixando que Betsey a apanhasse; e o final de tudo era que
Betsey ainda a havia de estragar ou se apoderar dela, apesar de a mãe ter
prometido que não a daria a Betsey.
Fanny estava completamente escandalizada. Todo o seu sentimento
de dever, de honra, de ternura fora ferido por aquelas palavras da irmã e
da resposta da mãe.
– Ora, Susan – lamentou Mrs. Price desanimada – como pode você
ficar tão contrariada? Você está sempre brigando por causa dessa faca.
Gostaria que não fosse tão brigona. Pobrezinha de Betsey; Susan é tão má
para você! Mas não devia ter tirado a faca quando mexeu na gaveta. Eu já
lhe disse para não a tocar, porque Susan fica muito zangada. Preciso
escondê-la de novo, Betsey. Pobre Mary, quando apenas duas horas antes
de morrer me deu a faca pára guardar, mal sabia que ela ia ser um pomo
da discórdia. Pobre alma! Quase não se ouvia o que ela falava quando
disse: “Depois que eu morrer e estiver enterrada, quero que Susan fique
com a minha faca.” Pobre queridinha! Gostava tanto desta faca, Fanny,
que não se separou dela durante todo o tempo da doença. Foi presente da
madrinha, Mrs. Almirante Maxwell, seis semanas apenas antes de ela
adoecer. Pobre criaturinha! Bem, foi melhor assim, está livre de um dia
vir a sofrer. Minha Betsey (acariciando-a) você não teve a sorte de
arranjar uma madrinha tão boa. A tia Norris mora muito distante para
pensar numa pessoa tão pequenina como você.
Fanny, de fato, não havia trazido nada de sua tia Norris, a não ser
um recado para dizer que esperava fosse a afilhada muito boa menina e
que estudasse muito. No salão de Mansfield Park tinha havido, em dado
momento, um leve murmúrio a respeito de mandar à afilhada de Mrs.
Norris um livro de orações; mas depois não se ouviu mais nada sobre
isso. Mrs. Norris, contudo, com aquele fito, tinha ido em casa e trazido
dois velhos livros de orações que haviam pertencido ao marido; mas ao
examiná-los, perdeu o ardor da generosidade. Um deles era impresso em
caracteres demasiadamente pequenos para os olhos de uma criança e o
outro era pesado demais.
Cada vez mais cansada, Fanny deu graças a Deus quando a
convidaram para ir deitar-se; e antes de Betsey acabar de chorar por não
lhe terem permitido ficar acordada senão uma hora mais em honra da
irmã, ela já havia saído, deixando embaixo novamente tudo em confusão:
os meninos pedindo queijo assado, o pai gritando pelo seu rum com água
e Rebecca desaparecida.
No seu quarto acanhado e mesquinhamente mobiliado que ela devia
compartilhar com Susan, nada havia que contribuísse para lhe erguer a
moral. A pequenez dos compartimentos, tanto em cima como embaixo e a
estreiteza do corredor e da escada, na verdade, chocavam-na mais do que
poderia imaginar. Naquela casa demasiadamente pequena para que
alguém nela pudesse sentir conforto, Fanny não demorou a pensar com
respeito em seu pequeno quarto das águas furtadas em Mansfield Park.

CAPÍTULO 39

Se Sir Thomas pudesse avaliar os sentimentos da sobrinha, quando


ela escreveu a primeira carta à tia, não teria desesperado; pois, não
obstante uma boa noite de descanso, uma manhã agradável, a esperança
de tornar a ver William dentro de poucos dias e a relativa tranqüilidade
em que estava a casa pela saída de Tom e Charles para a escola, de Sam
para qualquer negócio de seu próprio interesse, e do pai, para seu giro
habitual, contribuíssem para que ela pudesse expressar-se alegremente
sobre os assuntos de casa, ela teve ainda, para consolo de sua própria
consciência, que reprimir muitas queixas. Se pudesse ter visto apenas a
metade do que sentia antes do fim de uma semana, ele não duvidaria
mais do sucesso de Mr. Crawford e teria ficado encantado com a sua
própria sagacidade.
Durante a semana não houve senão decepções. Em primeiro lugar,
William havia partido. O “Thrush” tinha recebido ordens, o vento mudara
e ele partira quatro dias depois de ter chegado a Portsmouth; e durante
esses quatro dias ela o tinha visto apenas duas vezes, numa visita curta e
apressada, quando veio a terra em serviço. Não tinha havido palestras,
nem passeios pelos arredores, nem visita às docas, nem conhecimento
com o “Thrush”, nem nada de tudo que haviam planejado fazer. Ficou
decepcionada de tudo naquele lugar, exceto da afeição de William. Seu
último pensamento ao sair de casa foi dedicado à irmã. Voltou novamente
até a porta para dizer:
– Mamãe, tome cuidado com Fanny. Ela é delicada e não está
costumada como nós a ser tratada com aspereza. Encarrego-a de cuidar
de Fanny.
William partira; e o lar que ele deixava, Fanny não podia esconder a
si mesma, era, em todos os sentidos, exatamente o reverso do lar que ela
desejava encontrar. Ali reinavam o barulho, a desordem, a
inconveniência. Ninguém estava em seus lugares, nada era feito como
devia ser. Ela não podia ter pelos pais o respeito que pensara ter. Nunca
havia confiado muito no pai, mas agora via que ele era ainda mais
descuidado da família, seus hábitos piores, suas maneiras mais rudes do
que imaginara encontrar. Não que lhe faltasse talentos; mas ele não tinha
curiosidade; não lhe interessava senão pela profissão; lia apenas os
jornais e a lista de navios; só falava sobre docas, portos, Spithead e
Motherbank; praguejava e embriagava-se, era sujo e grosseiro. Não se
podia lembrar de que ele algum dia tivesse para com ela qualquer gesto
que se parecesse com uma ternura. Só lhe restava uma impressão geral
de aspereza e barulho; e agora mal notava a sua presença, a não ser para
fazê-la alvo de qualquer grosseira brincadeira.
Seu desapontamento sobre a mãe foi muito maior; nela tinha
esperado muito e não tinha encontrado quase nada. Todos os seus
lisonjeiros sonhos de lhe ser necessária, logo caíram por terra. Mrs. Price
não era má; mas em vez de conquistar sua afeição e confiança e tornar-se
cada vez mais querida, a filha nunca obteve dela maior bondade do que a
que lhe demonstrara no dia da chegada. O instinto maternal logo se
satisfez e a afeição de Mrs. Price não tinha outra fonte. Seu coração e seu
tempo já estavam inteiramente tomados; não lhe sobrava nem tempo nem
afeição para dispensar a Fanny. Suas filhas nunca foram muito para ela.
Gostava mais dos filhos, especialmente de William, mas Betsey era a
primeira de suas filhas por quem ela jamais se interessara. Para com essa
ela era indulgente demais. William era o seu orgulho; Betsey a sua
querida; e John, Richard, Sam, Tom e Charles, ocupavam todo o resto de
sua maternal solicitude, alternadamente suas preocupações e seus
prazeres. Esses compartilhavam seu coração; a maior parte de seu tempo
era empregado nos arranjos da casa e nas questões domésticas. Seus dias
eram passados numa espécie de tumulto lento; sempre ocupada sem
conseguir ir para diante; sempre atrasada e lamentando-se por isso, sem
ter o ânimo de alterar seus métodos; desejando ser econômica sem,
porém, tomar as medidas necessárias; descontente com as empregadas,
sem ter a habilidade de as corrigir e se as ajudava, repreendia ou era
indulgente com elas, não tinha nenhuma força para se fazer respeitada.
Das duas outras irmãs, Mrs. Price se parecia muito mais com Lady
Bertram do que com Mrs. Norris. Dirigia a casa por necessidade, sem
contudo ter a propensão e a atividade de Mrs. Norris. Seu temperamento
era naturalmente calmo e indolente como o de Lady Bertram; e uma
situação de idêntica comodidade e folga lhe seria mais adequada do que a
esforçada e abnegada situação em que o seu imprudente casamento a
havia colocado. Ela se teria tornado uma mulher importante tão boa
quanto Lady Bertram, mas Mrs. Norris teria sido uma muito mais
respeitável mãe de nove filhos com pequena renda.
Fanny não podia deixar de reparar muitas dessas coisas. Tinha
escrúpulos de o exprimir em palavras, tinha que sentir e sentia que sua
mãe era uma mãe parcial, injusta, uma criatura mole, negligente, que
nem ensinava nem repreendia os filhos, cuja casa era a cena da desordem
e do desconforto do princípio ao fim e que não tinha nem talento, nem
conversação, nem estima por ela; nem curiosidade de a conhecer melhor,
nem desejo pela sua amizade, e nem prazer com sua companhia.
Fanny esforçava-se por ser útil e por não parecer deslocada em sua
própria casa ou de nenhuma forma incapacitada ou desinteressada, em
virtude de sua educação afastada, de contribuir para que ela se tornasse
mais confortável. E, portanto, pô-se logo a se ocupar em arrumar as
coisas de Sam e trabalhando desde cedo até tarde, com perseverança e
grande atividade, produziu tanto que o rapaz finalmente pôde embarcar
com mais da metade do enxoval pronto. Conquanto ela sentisse grande
prazer em ser útil, não podia conceber como eles se arranjariam se não
fosse ela.
Barulhento e insuportável como era Sam, ela sentiu vê-lo partir,
pois que ele era esperto e inteligente e estava sempre pronto a
encarregar-se de qualquer incumbência na cidade; e, não obstante as
constantes exprobrações de Susan, feitas com ardor inoportuno e sem
autoridade, já começava a influenciar-se pelos serviços e suaves
persuasões de Fanny; e viu que com ele se fora o melhor dos seus três
irmãos mais moços; Tom e Charles, muito mais crianças do que ele, não
estavam ainda em idade de compreender e raciocinar, o que teria
sugerido a conveniência de fazê-los amigos e procurar que tornassem
menos desagradáveis. Mas a irmã logo desanimou de causar qualquer
impressão sobre eles; eram absolutamente indomáveis, quaisquer que
fossem os meios que empregasse para os conquistar. Todas as tardes se
repetiam as suas turbulentas brincadeiras pela casa, e ela não demorou a
aprender a suspirar quando se aproximavam os meios dias de férias aos
sábados.
A Betsey, também, uma criança estragada de mimos, acostumada a
considerar o alfabeto como seu maior inimigo, deixada à vontade,
entregue às criadas e então animada a relatar qualquer falta que essas
cometessem, Fanny não se sentia com ânimo de amar ou ajudar; e quanto
ao temperamento de Susan, ela tinha muitas dúvidas. Suas contínuas
discussões com a mãe, suas brigas com Tom e Charles, sua petulância
com Betsey, eram, ao menos, tão embaraçantes para Fanny que, mesmo
admitindo que não eram feitas sem provocação, temia que a índole que os
permitia até aquele ponto, estivesse longe de ser delicada e de lhe
proporcionar qualquer repouso.
Tal era o lar que devia tirar Mansfield de sua cabeça e ensiná-la a
pensar em seu primo Edmund com sentimentos mais moderados. Ao
contrário, ela não podia pensar senão em Mansfield, seus queridos
habitantes, seus dias felizes. A elegância, a dignidade, a regularidade, a
harmonia e talvez, acima de tudo, a paz e a tranqüilidade de Mansfield,
vinham-lhe à lembrança a todas as horas do dia, pela comparação de
todas as coisas que ali se passavam.
A vida numa incessante balbúrdia era, para um físico e um
temperamento delicados como os de Fanny, uma desgraça que nenhuma
suplementar elegância ou harmonia poderia eliminar inteiramente. Em
Mansfield nunca se ouvia uma discussão, uma voz alterada, nenhum
passo precipitado nem ameaça de violência; tudo corria naturalmente
numa alegre tranqüilidade; cada um tinha a sua justa importância; os
sentimentos de cada um eram consultados. Se havia às vezes falta de
ternura, o bom senso e a boa educação a compensavam; e quanto às
pequenas implicâncias às vezes provocadas por sua tia Norris, essas eram
pequenas, uma bagatela, uma gota d’água no oceano, comparadas com o
incessante tumulto de sua presente residência. Aqui, todos eram
barulhentos, todos falavam alto (excetuando-se, talvez, sua mãe cuja voz
monótona se parecia com a de Lady Bertram, sendo apenas mais
lastimosa). Tudo era pedido aos berros, as criadas respondiam berrando
da cozinha. As portas estavam constantemente batendo, as escadas não
tinham sossego, nada era feito sem estrépito, ninguém parava quieto e
ninguém conseguia se fazer ouvir.
Passando em revista as duas casas, como elas lhe pareciam antes
do fim de uma semana, Fanny foi tentada a lhes aplicar o célebre
julgamento do Dr. Johnson sobre o matrimônio e celibato e a dizer que,
embora Mansfield Park tivesse seus sofrimentos, Portsmouth não poderia
oferecer nenhum prazer.

CAPÍTULO 40

Fanny tinha bastante razão em não esperar carta de Miss Crawford


com a mesma constância que havia principiado a sua correspondência; a
carta seguinte foi escrita com um intervalo muito mais longo do que a
última; mas não estava certa quando supôs que tal intervalo seria sentido
como um alívio para si mesma. Aí estava uma nova revolução em seu
espírito! Ela ficou realmente alegre quando recebeu a carta. Exilada e
distante como estava agora da boa sociedade e de tudo que a interessava,
uma carta de alguém que pertencera a um lugar onde estava preso seu
coração, escrita com afeto e com certa elegância, era-lhe muito bem
vinda. O aumento dos compromissos foi a usual desculpa por não lhe ter
escrito antes; “e agora que comecei”, continuava ela, “não vale a pena
você ler minha carta, pois que não haverá nenhum recadinho de amor no
fim, nem três ou quatro linhas apaixonadas do muito dedicado H.C.,
porque Henry está em Norfolk, foi chamado a negócios em Everingham
há dez dias passados ou talvez ele tenha inventado o chamado, só para
poder viajar ao mesmo tempo em que você viaja. Enfim, lá está ele e,
neste ínterim, a sua ausência pode suficientemente ser culpada de
qualquer esquecimento por parte da irmã, pois que não tem havido o
‘Como é, Mary, quando vai escrever a Fanny?’. ‘Não está no tempo de
você escrever a Fanny?’ para me lembrar. Finalmente depois de várias
tentativas de encontro, consegui ver suas primas, ‘a querida Julia e a
querida Mrs. Rushworth’; elas me encontraram em casa ontem e ficamos
muito contentes em nos vermos novamente. Parecíamos muito contente
por nos vermos; e creio mesmo que estivéssemos um pouco. Tínhamos
muito que nos dizer. Devo dizer-lhe como Mrs. Rushworth ficou quando
seu nome foi mencionado? Nunca pensei que lhe faltasse força de
vontade, mas para a exigência de ontem a sua força de vontade não foi
suficiente. No final das contas, Julia era a mais tranqüila das duas, pelo
menos depois que você foi mencionada. Depois que falei em ‘Fanny’ e me
referi a você como o teria feito uma irmã, não houve mais jeito de se lhe
desanuviar o semblante. Mas o dia de esplendor de Mrs. Rushworth está
para vir; recebemos convites para a sua primeira reunião no dia 28.
Neste dia então ela brilhará, pois vai abrir os salões de uma das mais
belas casas de Wimpole Street. Estive nessa casa há dois anos passados,
quando ali morava Lady Lascelles, e a prefiro a qualquer outra casa que
conheço em Londres, aí é que ela vai dar valor à fortuna que adquiriu.
Henry não lhe poderia ter dado esse luxo. Espero que reconheça isto e
fique satisfeita, tanto quanto possa, em fazer o papel de rainha num
palácio, embora o rei fique melhor no segundo plano; e como não desejo
atormentá-la, nunca mais a obrigarei a ouvir seu nome. Ela se conformará
pouco a pouco. Por tudo que tenho ouvido e adivinhado, as atenções do
Barão Wildenhein a Julia continuam, mas não sei se ele tem recebido
muita animação. Ela devia escolher melhor. Um nobre arruinado não é
vantagem e eu não posso imaginar que haja amor no caso, pois, tirando a
sua gabolice, o pobre barão não tem mais nada. Seu primo Edmund ainda
não apareceu; detido, talvez, pelos deveres da paróquia. Deve haver
alguma velha em Thorton Lacey para ser convertida. Prefiro não ser
esquecida por uma moça. Adeus! Minha muito querida Fanny, esta foi
uma longa carta para ser escrita de Londres; escreva-me uma bem
afetuosa para que Henry fique contente quando voltar, e mande-me uma
lista de todos os soberbos e jovens capitães a quem você tem desprezado
por causa dele.”
Havia muito em que meditar nesta carta, principalmente meditação
desagradável; e contudo, com toda a inquietação que ela produziu, ligou-
a aos ausentes, falou-lhe das pessoas e das coisas sobre as quais ela
nunca havia tido tanta curiosidade como agora; e Fanny teria ficado
contente se recebesse uma carta dessas cada semana.
Quanto às relações em Portsmouth que poderiam suprir as
deficiências de sua casa, não havia no círculo de conhecidos de seus pais
ninguém que lhe causasse o menor interesse; não via ninguém por quem
pudesse desejar dominar o seu próprio acanhamento e a sua reserva. Os
homens todos lhe pareciam rudes, as mulheres impudentes, todo mundo
mal educado; e ela não só não tinha prazer como dava pouco prazer a
qualquer novo ou velho conhecido que lhe era apresentado. As moças que
dela se aproximavam a princípio com um certo respeito por causa de ela
ter vindo da casa de uma família nobre, se ofendiam pelo que chamavam
“ares”; pois como Fanny nem tocava piano nem usava bonitas peles, não
podiam, depois de ulterior observação, admitir que ela lhes fosse
superior.
A primeira consolação verdadeira que Fanny teve de suas desgraças
em casa, a primeira que sua consciência aprovou inteiramente, e que
prometeu certa durabilidade, foi ter feito um melhor conhecimento do
caráter de Susan, esperando que pudesse lhe ser útil. Susan tinha sempre
se portado jovialmente para com ela, mas o caráter positivo de suas
maneiras em geral tinham-na alarmado e não foi senão depois de quinze
dias que começou a compreender aquele temperamento tão inteiramente
diferente do seu. Susan via que muita coisa em casa estava errada e
desejava corrigi-la. Que uma pequena de quatorze anos, agindo apenas
por seu próprio e único juízo, errasse no seu método de reforma, não era
de admirar; e Fanny se tornou logo mais disposta a admirar a inteligência
espontânea da criatura que com tão pouca idade era capaz de julgar com
justiça, do que a censurar severamente os defeitos de conduta a que ela
era levada por causa disso. Susan agia com sinceridade, e seguia o
sistema que seu próprio juízo aconselhava mais que o seu temperamento,
um pouco relaxado e indolente se recusava a sustentar. Susan procurava
ser útil onde ela, Fanny, só teria fugido e chorado; e que Susan era útil se
podia perceber; que as coisas ruins como eram, seriam piores se não
fosse a sua intervenção; e que tanto sua mãe quanto Betsey eram
refreadas em muitos excessos de indulgência e vulgaridades bastante
desagradáveis.
Em todas as discussões com a mãe, Susan levava sempre vantagem
e nunca houve carícia materna que a demovesse. A ternura exagerada
que era causa de todos os males a sua volta, ela nunca a havia conhecido.
Não tinha que agradecer por afeições passadas ou presentes que a
fizessem suportar melhor os seus excessos nos outros.
Tudo isso veio gradualmente, e gradualmente colocou Susan na
opinião da irmã como um objeto misturado de compaixão e respeito.
Fanny não podia deixar de sentir que as maneiras dela eram incorretas,
às vezes muito incorretas, suas medidas muitas vezes inoportunas e mal
escolhidas, sua aparência e linguagem muitas vezes injustificáveis;
começava, porém, a ter esperança de que tudo isso poderia ser corrigido.
Susan procurava-a e pedia-lhe sua opinião; e conquanto fosse uma coisa
inteiramente nova para Fanny demonstrar autoridade, ou imaginar-se
capaz de guiar ou aconselhar alguém, ela se resolveu, uma vez ou outra,
a aconselhar Susan e lhe dar mais justas noções sobre o que era devido
aos outros e o que era mais prudente para ela, o que a sua própria
educação, mais apurada, lhe poderia fornecer.
Sua influência, ou pelo menos a sua consciência e seu
aproveitamento, começou por um ato de bondade feito a Susan, o qual,
depois de muita hesitação imposta por sua delicadeza, decidiu executar.
Tinha-lhe, há muito tempo, ocorrido que uma pequena soma em dinheiro
talvez restaurasse a paz para sempre sobre o triste caso da faca de prata,
debatido agora continuamente, e o dinheiro que tinha em seu poder,
tendo seu tio lhe dado 10 libras na hora da partida, facultava-lhe o desejo
de ser generosa. Mas estava tão desacostumada a fazer favores, a não ser
a pessoas muito pobres, tão pouco habituada a remover as desgraças ou a
dispensar bondades aos seus semelhantes e tão receosa de parecer que
queria se fazer de grande benfeitora em casa, que custou a resolver se
lhe convinha fazer tal presente. Finalmente, porém, o presente foi feito;
uma faca de prata foi comprada para Betsey e aceita por esta com grande
prazer; Susan tomou posse definitiva da outra faca e Betsey
generosamente declarou que agora possuía uma muito mais bonita e que
nunca mais queria aquela. Valeu a pena; uma das fontes de distúrbios
domésticos estava inteiramente eliminada, e foi o meio de abrir para ela o
coração de Susan e lhe dar alguma coisa mais para amar e por que se
interessar. Susan mostrou ter delicadeza de espírito; contente como
estava pela posse de um objeto pelo qual vinha há mais de dois anos
lutando, estava, contudo, receosa de que a irmã a tivesse julgado mal e
que uma censura lhe era designada por ter lutado tanto a ponto de se
tornar necessária a compra para que houvesse tranqüilidade em casa.
Foi franca; reconheceu suas faltas, censurou-se por ter discutido
tão acaloradamente; e desta hora em diante, Fanny, compreendendo o
valor do temperamento dela e percebendo quanto Susan procurava a sua
opinião e desejava guiar-se pelo seu julgamento, começou novamente a
acreditar na afeição e a entreter a esperança de ser útil a uma
consciência tão necessitada de auxílio e que tanto o merecia. Deu-lhe
conselhos, conselho demasiadamente lógicos para não serem seguidos
por uma sã inteligência e dados com tanta suavidade e consideração que
não poderiam irritar uma índole menos perfeita; e teve o prazer de
observar seus bons efeitos não poucas vezes. Mais não poderia ser
esperado por uma pessoa que, conhecendo embora toda a obrigação e o
hábito da submissão e da abnegação, via, também, com imensa simpatia,
tudo que devia ser, a cada momento, desagradável a uma pequena como
Susan. Sua maior admiração sobre o caso em breve foi – não que Susan
tivesse por provocação faltado ao respeito ou mostrasse impaciência, mas
que tanta ciência e tão justas noções fossem suas exclusivamente – que
educada no meio da negligência e do erro, ela pudesse formar tão
adequado juízo do que devia fazer; ela, que não tinha tido um primo
Edmund para orientar seus pensamentos e fixar seus princípios.
A intimidade que se estabeleceu entre as irmãs trouxe pois uma
vantagem material para ambas. Permanecendo juntas no andar de cima,
evitavam um grande número de distúrbios em casa; Fanny ficava em paz
e Susan aprendia a não considerar como infortúnio ficar tranqüilamente
ocupada. Não tinham lareira; mas a esta privação até mesmo Fanny
estava acostumada e sofria menos porque isso fazia lembrar-se de sua
sala de Leste. Era o único ponto semelhante. Em tamanho, claridade,
mobília e vista não havia a menor parecença entre os dois
compartimentos; e ela muitas vezes suspirou ao lembrar-se de seus livros
e caixas, várias outras comodidades que tinha lá. Pouco a pouco as duas
moças passaram a ficar a maior parte da manhã no andar superior, a
princípio apenas trabalhando e conversando, mas depois de alguns dias, a
lembrança de seus livros se tornou tão poderosa e estimulante, que Fanny
viu não lhe ser possível passar sem leitura. Em casa do pai não havia livro
algum; mas a riqueza traz o luxo e a audácia e uma parte da sua
“fortuna” foi desviada para um salão de leitura. Fez a inscrição;
espantada de ser alguma coisa por sua própria iniciativa, espantada por
agir por si mesma em todos os sentidos, de poder escolher seus livros! E
ter em vista o aperfeiçoamento de alguém! Mas esse era o caso. Susan
nunca tinha lido nada e Fanny encontrou grande alegria em fazê-la
compartilhar de seu próprio prazer e lhe inspirar o gosto pelas biografias
e poesias que tanto a deliciavam.
Nesta ocupação ela esperava, além do mais, encerrar certas
recordações de Mansfield, as quais eram demasiadamente aptas a
apoderar-se de seu espírito se somente seus dedos estivessem ocupados;
e nesta ocasião, especialmente, esperava que os livros lhe fossem úteis
para desviar seus pensamentos sobre Edmund em Londres, para onde,
conforme a última carta da tia, sabia ter ele ido. Não tinha dúvida sobre o
que ia acontecer. A prometida notícia estava suspensa sobre sua cabeça.
A batida do carteiro na vizinhança estava começando a lhe trazer terrores
diários e se a leitura lhe podia afastar essa idéia nem que fosse por meia
hora, já era alguma vantagem.

CAPÍTULO 41

Há já uma semana que Edmund deveria estar na cidade e Fanny


ainda não recebera nenhuma notícia dele. Havia três conclusões a tirar
do seu silêncio, entre as quais o pensamento da moça flutuava; e
sucessivamente cada uma dessas conclusões lhe ia parecendo mais
provável. Ou a sua partida fora ainda adiada, ou ele ainda não obtivera
uma oportunidade de ver Miss Crawford a sós, ou então estava por
demais feliz para escrever!
Uma manhã, por esse tempo, quando já fazia quatro semanas que
Fanny viera de Mansfield (semanas que contara, dia a dia), ela e Susan se
preparavam para subir ao andar de cima, como de hábito, mas pararam
no meio, escutando uma batida à porta, anunciando um visitante; e elas
não se poderiam furtar, à presença estranha, pois Rebecca já correra à
entrada, sendo a porta um dever a que ela dava mais importância do que
a todos os outros.
Ouviu-se a voz de um cavalheiro; uma voz que fez empalidecer um
pouco Fanny, enquanto Mr. Crawford entrava na sala.
Apelou para todo o seu bom senso e equilíbrio; e conseguiu
apresentá-lo à mãe, como um “amigo de William” pensando ao mesmo
tempo em que antes nunca se acreditaria capaz de emitir uma sílaba em
tais circunstâncias.
A consciência dessa qualidade dele de “amigo de William” foi a que
lhe deu forças para agir; porque, depois da apresentação, quando já
estavam todos sentados lhe voltaram os terrores de que aquela visita
visava vencê-la, e Fanny teve que reprimir violentamente o seu desejo de
fugir dali.
Enquanto ela tentava fingir uma animação que não sentia, o
visitante, que ao entrar se aproximara de Fanny com mais vivacidade do
que de costume, espalhava livremente o seu olhar por tudo, e dava-lhe
tempo para se recobrar, dedicando-se inteiramente a Mrs. Price, falando-
lhe, dirigindo-lhe amabilidades, escutando-a cortesmente, com aquele ar
de amizade e interesse que emanava de suas maneiras perfeitas.
As maneiras de Mrs. Price também eram excelentes. Encantada
pela idéia de se avistar com um amigo do filho, e desejosa de não
aparecer mal diante de tal amigo, sentia-se inundada de gratidão –
ingênua e maternal gratidão que nunca pode ser desagradável. Mr. Price
não estava em casa, o que a mãe lamentava muito. Fanny já voltara a si o
bastante para sentir bem que ela, Fanny, não poderia lamentar muito essa
ausência. Além de todos os motivos de mal-estar que sentia, seria duro
demais a vergonha que teria por ele encontrá-la em tal casa. Tentava
censurar-se a si mesma por tal fraqueza, mas nenhuma censura surtia
efeito. Sentia vergonha, e sentia mais vergonha ainda pelo pai do que por
todo o resto.
Falaram sobre William; era um assunto sobre o qual Mrs. Price não
se fatigava nunca. E Mr. Crawford era tão elogioso nas suas referências
quanto o seu coração poderia desejar. Mrs. Price considerava que jamais,
em sua vida inteira, encontrara um rapaz tão agradável; e ficava atônita
ao saber que um cavalheiro tão importante e tão agradável viera a
Portsmouth não para se avistar com o almirante do porto, nem com
nenhuma das autoridades navais, nem com intenção de ir até à ilha, nem
sequer para visitar os estaleiros. Nada do que ela estava acostumada a
considerar como sinal de importância, ou emprego de fortuna, o trouxera
a Portsmouth. Ele chegara na véspera, tarde da noite, demoraria um dia
ou dois, instalara-se na hospedaria da Coroa, encontrara casualmente
dois ou três oficiais de marinha de seu conhecimento, depois que
chegara, porém não tinha nenhum objetivo fixo para a sua estadia.
Enquanto Crawford dava todas essas explicações, não seria
desarrazoado que ele deixasse de olhar e mesmo falar com Fanny. E ela
conseguiu toleravelmente bem ouvir, de olhos baixos, Mr. Crawford lhe
dizer que passara mais de meia hora junto à irmã, na véspera de sua
partida de Londres, que ela lhe mandara as mais carinhosas
recomendações, apesar de não ter tido tempo para escrever; que ele
próprio se considerava feliz por ter podido se entreter com Mary durante
toda uma meia hora, pois fazia apenas vinte e quatro horas que ela estava
em Londres, regressando de Norfolk. Que o seu primo Edmund estava na
cidade, já lá estando, aliás, há vários dias. Que ele próprio não o vira,
porém sabia que Edmund estava bem, deixara todos bem em Mansfield e
devia ter jantado com os Frasers na véspera.
Fanny ouvia serenamente, até a menção desta última circunstância;
e apesar de tudo foi um alívio para o seu espírito fatigado ter uma certeza
àquele respeito. E as palavras “já agora está tudo dito” repercutiam
profundamente nela, embora a sua única manifestação externa fosse um
ligeiro rubor.
Depois de falar um pouco sobre Mansfield, assunto sobre o qual o
seu interesse era apenas aparente, Crawford sugeriu a idéia de se dar um
ligeiro passeio. – A manhã estava linda, e naquela época do ano uma linda
manhã era coisa tão rara que ninguém devia perder a oportunidade de
fazer um pouco de exercício. – E como tais insinuações não dessem
nenhum resultado, Mr. Crawford declarou positivamente a Mrs. Price e às
filhas que deveriam dar o seu passeio sem perda de tempo. Só então o
compreenderam. Mrs. Price, ao que parecia, raramente atravessava a
porta da rua, exceto aos domingos; e confessava que, com uma família tão
grande, dificilmente tinha tempo para um passeio: – Não poderia ela
então convencer as filhas a aproveitarem o bom tempo, e permitir a ele o
prazer de as acompanhar? – Mrs. Price agradeceu, desvanecida. As filhas
viviam muito recolhidas. Portsmouth era um lugar péssimo; e elas só
raramente saíam e tinham várias coisinhas a fazer na rua, que lhes
seriam muito agradável executar agora.
E a conseqüência de tal conversa foi que Fanny, por estranho que
isso fosse, – estranho, desagradável e penoso, – viu-se, dentro de dez
minutos, em companhia de Susan e de Mr. Crawford, passeando pela
High Street.
Aquilo lhe trazia aborrecimento sobre aborrecimento, confusão
sobre confusão; porque eles mal tinham chegado à High Street quando
encontraram o pai, cuja aparência não era a adequada para um sábado.
Mr. Price parou, e por menos que ele semelhasse a um gentleman,
naquele momento, a moça foi obrigada a apresentá-lo a Mr. Crawford; ela
não tinha nenhuma dúvida a respeito do choque que Mr. Crawford
sentiria. Devia se sentir simultaneamente envergonhado e enojado.
Desprezá-la-ia, perderia todo interesse em conquistá-la. E embora ela
desejasse muito que ele se curasse da sua afeição, há uma espécie de
cura que pode ser tão desagradável quanto o pior mal. E eu suponho que
haja muito poucas moças em todo o Reino Unido que não prefiram ser a
causa da desventura de um belo e agradável rapaz, do que afastá-lo
graças à vulgaridade dos seus parentes mais próximos.
Mr. Crawford não poderia certamente olhar para o seu futuro sogro
com nenhuma idéia de o tomar como um modelo de elegância masculina;
porém (como Fanny, para o seu grande alívio, imediatamente o percebeu)
seu pai era um homem muitíssimo diferente, um Mr. Price completamente
diverso no seu procedimento com um estranho de cerimônia, do que era
dentro de casa, com a família. Suas maneiras, embora não fossem polidas
eram mais do que agradáveis; eram gratas, animadas, dignas; suas
expressões eram as de um pai afetuoso e de um homem sensível; seu alto
tom de voz ressoava ao ar livre, mas não deixou escapar uma única
praga. Aquilo era uma espécie de cumprimento instintivo às boas
maneiras de Mr. Crawford; e por conseqüência, os receios de Fanny
acalmaram-se de todo.
O resultado das amabilidades trocadas entre os dois cavalheiros, foi
um oferecimento feito por Mr. Price de conduzir o outro às docas. Mr.
Crawford, desejoso de receber como um favor o que o outro lhe oferecia
como tal, embora ele já conhecesse de sobra as docas e desejasse estar
longe dali, com Fanny, declarou que apreciaria imenso ir até lá, caso Miss
Price não receasse a fadiga. Porém foi-lhe garantido que as Misses Price
não receariam a fadiga; resolveram pois ir às docas. Se não fosse por Mr.
Crawford, Mr. Price se teria encaminhado diretamente para lá, sem
nenhuma consideração pelos recados que as filhas deveriam fazer em
High Street. Mas cuidou em que elas só visitassem as lojas onde tinham
expressamente o que fazer; e isso não os atrasou muito e Fanny pouco
deu a esperar ou esperou; e mal os cavalheiros, à porta, iniciavam uma
palestra sobre as últimas leis navais ou faziam a conta dos navios de
guerra em construção, suas companheiras apareciam, prestes a continuar
a caminhada. Logo estavam prontas para irem às docas; e na opinião de
Mr. Crawford, o passeio se arranjou de um modo singular. Mr. Price
assumiu inteiramente a direção dele e as duas moças ou os
acompanhavam ou não, segundo o podiam, enquanto os homens
caminhavam sempre no mesmo rápido passo. Mr. Crawford
absolutamente não queria caminhar à frente das pequenas; tentava
improvisar alguma maneira de alterar essa ordem, mas não lhe aparecia
nenhum auxílio; e só nalgum cruzamento, quando Mr. Price, virando-se
para trás dizia:
– Venham, meninas! Venha, Fan, venha, Sue; tenham cuidado! – o
moço as esperava e lhes prestava o seu auxílio.
Só próximo às docas foi que ele pôde contar com uma feliz conversa
com Fanny, porque se juntou ao grupo um colega de Mr. Price, que ia
para o seu serviço diário, e que provou ser muito melhor companhia do
que ele próprio; e quase imediatamente, os dois oficiais, muito satisfeitos
de andarem juntos, tratando de assunto de grande e nunca diminuído
interesse, deixaram o povo jovem saltar sobre as vigas, no estaleiro, ou
sentar-se sobre as pranchas de um esqueleto de navio que tinham ido ver
de perto. Fanny ia procurando ficar atrás; Crawford não a poderia desejar
mais fatigada ou mais ansiosa por sentar um pouco; ele também desejaria
que Susan fosse embora; um diabrete da idade de Susan é o mais
incômodo “tertius” que pode existir no mundo; totalmente diferente de
Lady Bertram, era toda olhos e ouvidos. E não seria possível aludir ao
assunto capital, à frente dela. O rapaz teve que se contentar em ser
agradável em geral, deixando que Susan tomasse parte na conversa, e
introduzindo sempre uma pergunta ou uma insinuação destinada à
melhor informada e conscienciosa Fanny. Era sobre Norfolk que eles mais
falavam: ele já estivera ali várias vezes e cada coisa do lugar crescia em
importância aos seus olhos, dados os seus atuais projetos; as viagens e os
conhecimentos do moço também foram utilizados, e Susan tomava parte
numa palestra inteiramente nova para ela. Para Fanny, era dito algo mais
do que a amabilidade acidental das reuniões a que ele estava presente.
Para a aprovação dele foi explicado o motivo particular da sua presença
em Norfolk naquele desusado período do ano. Tratava-se de um negócio
real: do renovamento de um arrendamento que punha em risco o bem de
uma grande e (ele assim o acreditava) laboriosa família; ele suspeitava de
o seu procurador andar fazendo negociatas secretas, e tentar induzi-lo a
uma injustiça; de forma que ele decidira vir ver pessoalmente a coisa e
investigar os méritos da questão. Viera, fizera mais bem do que imaginara
antes, fora mais útil do que o seu plano inicial previra, e agora poderia
congratular-se consigo próprio, pois, ao mesmo tempo que cumprira com
um dever, recolhera agradáveis recordações para si mesmo. Travara
conhecimento com vários rendeiros que jamais havia visto antes;
começara tomando conhecimento de vários cottages cuja existência real,
apesar de serem propriedades suas, até agora fora desconhecida dele.
Isso foi dirigido, e bem dirigido, a Fanny. Era-lhe agradável ouvi-lo falar
tão sisudamente; ele estava agindo, ali em Norfolk, como sempre devera
agir. Ser o amigo dos pobres e dos oprimidos! Nada poderia ser mais
grato à moça. E ela estava a ponto de lhe lançar um significativo olhar de
aprovação quando se sentiu subitamente aterrada: ele dizia agora que
seu mais querido desejo era ter alguém que o auxiliasse, uma alma amiga
que servisse de guia em cada plano de caridade ou utilidade para
Everingham; alguém que transformasse Everingham num lugar mais
querido do que jamais lhe fora antes.
Ela desviou os olhos, desejando que ele não falasse mais em tais
coisas. Verificava que o rapaz possuía muito melhores qualidades do que
o imaginara a princípio. Começou a sentir a possibilidade de que tais
qualidades acabassem por dominar completamente a personalidade dele;
porém o seu amor era e lhe devia ser inteiramente inadmissível, e não
devia pensar nela.
Crawford compreendeu que já fora dito o bastante a respeito de
Everingham, e que agora se deveria falar em outra coisa; passou pois a
falar de Mansfield. Não poderia ter escolhido melhor: era assunto que
prendia sempre a atenção e o olhar de Fanny, quase instantaneamente.
Ela sentia uma propensão invencível para ouvir ou para falar de
Mansfield. E agora, há tanto tempo afastada de todos que conheciam o
local, pareceu-lhe quase ouvir a voz de um amigo, quando ele se referiu a
Mansfield; e aceitou o caminho que lhe abriam, ajuntou às deles as suas
exclamações de louvor às belezas e confortos de Mansfield, aos tributos
que ele prestava aos seus habitantes; Crawford sentiu que ela tomava
parte, de coração, nos seus ardorosos elogios, falando do tio do qual só
enxergava a bondade e a retidão, falando da tia como do mais meigo
temperamento como jamais conhecera.
Ele próprio tinha uma grande simpatia por Mansfield; disse isso e
olhou-a, confiado, na esperança de passar bastante tempo, muito tempo
lá; lá ou na vizinhança. Visionou especialmente um felicíssimo verão e um
outono lá, naquele ano; sentiu que aquilo ia acontecer, contava com
aquilo; um verão e um outono infinitamente superiores aos últimos. Tão
animado como diverso do ponto de vista social, porém com indescritíveis
circunstancias de superioridade.
– Mansfield, Sotherton, Thorton Lacey – continuou ele – que
sociedade pode ser compreendida nessas casas! E com Michaelmas,
talvez, pode-se contar com mais uma quarta residência! Há excelentes
cabanas de caça na vizinhança de cada uma; é verdade que para uma
sociedade em Thorton Lacey, como certa vez Edmund Bertram propôs,
num momento de bom humor, eu espero e antevejo duas objeções, duas
ótimas, excelentes, irresistíveis objeções para esse plano.
Fanny estava agora duplamente silenciosa; depois de passado o
momento, lamentou muito não se ter forçado a obter informações a
respeito de um tema que a interessava, estimulando Henry Crawford a
lhe dizer algo mais a respeito de sua irmã e Edmund. E a sua fraqueza
para enfrentar tal assunto pareceu-lhe depois imperdoável.
Quando Mr. Price e o amigo haviam visto tudo que desejavam, ou
julgaram que era tempo de voltar, os outros já também estavam prontos
para o regresso; e no passeio de volta, Mr. Crawford diligenciou por obter
um minuto de solidão com Fanny, a fim de lhe dizer que o seu único
negócio em Portsmouth consistia em vê-la; que aquela fuga de alguns
dias fizera-a por causa dela, – dela unicamente, – já que lhe era
impossível suportar uma separação maior. Ela, ela sentia muito,
realmente sentia muito. E mais, apesar disso, e de outras duas ou três
coisas que ela preferia que ele não houvesse dito, pensava que Henry
ganhara muito no seu conceito, desde que o conhecia melhor; mostrava-
se muito mais atencioso, amável e gentil para com os sentimentos de
outras pessoas do que antes o demonstrara em Mansfield; nunca o achara
tão agradável, isto é, tão perto de ser agradável; seu procedimento em
relação ao pai dela não a podia ofender, e ele fora particularmente
delicado na forma como palestrara com Susan; decididamente ele
melhorara muito. E Fanny desejou que o dia acabasse logo, desejou que
Henry houvesse vindo apenas por um dia; porém a coisa não estava tão
mal quanto ela o receava; porque o seu maior prazer, na presença de Mr.
Crawford, fora falar a respeito de Mansfield.
Antes que ele partisse, ela ainda teve que lhe agradecer outro
prazer, – e não num ponto trivial. O pai solicitou ao moço a honra de lhes
participar do lombo de carneiro, ao jantar e Fanny teve bastante tempo
para um sobressalto de horror, antes que Crawfords se declarasse preso a
um compromisso anterior: prometera jantar com amigos naquele dia e no
dia seguinte; travara relações com moços oficiais na hospedaria da Coroa,
e agora não poderia anular os compromissos tomados; esperava porém
ter ainda a honra de na manhã seguinte, etc, etc. Separaram-se então,
Fanny sentindo-se num estado de felicidade absoluta por ter escapado,
graças a ele, de tão diabólica ameaça.
Tê-lo em casa para jantar, testemunhando todas as deficiências da
família: a cozinha de Rebecca, o serviço de Rebecca, os modos
absolutamente livres de Betsey à mesa, empurrando os pratos depois de
se ter servido, eram coisas a que a própria Fanny ainda não conseguira se
habituar. E ela era fina apenas graças a uma delicadeza nativa, enquanto
ele fora educado numa escola de epicurismo e de luxo.

CAPÍTULO 42
Os Prices mal saíam de casa, em direção à igreja, no dia seguinte,
quando novamente lhes apareceu Mr. Crawford. Chegou, e em vez de os
fazer parar, para um cumprimento ligeiro, acompanhou-os; pediu
permissão para irem juntos até Garrison Chapel, que era igualmente o
seu destino. Saíram caminhando todos.
Naquele momento a família aparecia num ângulo muito favorável. A
natureza lhes dera um grande quinhão de beleza, e os trajes claros de
domingo lhes dava um encanto particular. O domingo sempre trouxera
uma sensação de alegria a Fanny, sensação que, naquele domingo
especial, era talvez maior. Sua pobre mãe não parecia agora tão diferente
do que deveria ser uma irmã de Lady Bertram; muitas vezes seu coração
se afligira ao pensar no contraste que havia entre as duas; a idéia que, se
a natureza estabelecera tão pequena diferença entre ambas, as
circunstancias, entretanto, haviam criado diferenças tão grandes, e que
sua mãe, tão bonita quanto Lady Bertram, e muitos anos mais jovem,
tivesse uma aparência tão mal vestida e desbotada, tão desmazelada, tão
gasta. Porém o domingo lhe alterava inteiramente o aspecto; Mrs. Price
caminhava junto a um lindo grupo de crianças, livre por algum tempo dos
seus afazeres diários, perdendo um pouco a linha apenas quando via os
pequenos correrem algum perigo, ou ao ver passar Rebecca com uma flor
no chapéu.
Na capela, foram obrigados a dividir-se, porém Mr. Crawford tomou
cuidado em não ser afastado do grupo feminino; e depois do serviço
divino continuou em companhia delas, tomando parte no passeio que a
família deu até as fortificações.
Mrs. Price, durante os domingos bonitos do ano, costumava dar o
seu passeio semanal às fortificações, encaminhando-se para lá, muitas
vezes, logo à saída da igreja e voltando apenas à hora do jantar. Era lá a
sua praça pública, o seu centro social; lá se avistava com as conhecidas,
ouvia as novidades, falava sobre as deficiências das criadas de
Portsmouth, e cobrava ânimo para os trabalhos da semana a começar.
Chegaram afinal; Mr. Crawford sentindo-se feliz por ter ambas as
Misses Price entregues ao seu cuidado particular; pois, percorrido uma
parte do caminho, sem que Fanny pudesse dizer como aquilo se dera, sem
acreditar no que via, as irmãs caminhavam de braço dado com ele, e ela
não sabia absolutamente como poria fim àquela intimidade. Aquilo a
incomodou um pouco, de início, – mas, afinal, eram liberdades do passeio,
e depressa Fanny se convenceu disso, e tranqüilizou-se.
O dia era estranhamente bonito. Estavam de fato em março, porém
o ar livre era abril; soprava uma brisa fresca, um lindo sol luzia,
encoberto apenas de longe em longe por alguma nuvem. Tudo parecia
lindíssimo sob a influência de tal céu; os efeitos de sombras perseguindo-
se uns aos outros, nos navios do Spithead, ou em torno da ilha, as matizes
cambiantes sempre variadas da cor do mar, o dorso rápido de uma vaga
dançando sobre as águas e indo esmagar-se com fragor de encontro ao
quebra-mar, formavam para o espírito de Fanny um tal conjunto de
encantos, que a iam tornando cada vez mais descuidada das
circunstancias sobre as quais se sentia. E até mesmo, tendo tentado
caminhar sem o braço de Crawford, verificou que necessitava dele, pois
aquelas duas horas de passeio a tinham fatigado, vindo assim, depois de
uma semana de inatividade. Aliás Fanny estava começando a sentir os
efeitos da falta de seu habitual exercício. Já não gozava a mesma saúde
do tempo em que chegara a Portsmouth. E se não fosse o apoio de Mr.
Crawford e a beleza do tempo, sentir-se-ia estafada.
O encanto do dia fazia com que o rapaz se sentisse quase como se
sentia Fanny. Muitas vezes eles pararam, levados pelo mesmo sentimento
e pelos mesmos gostos, demorando vários minutos sobre o muro da
fortificação, olhando e admirando; e considerando que ele não era e nem
podia ser Edmund, Fanny o julgava suficientemente aberto aos encantos
da natureza e plenamente apto para exprimir essa admiração. A moça
entregava-se de vem em quando a doces abstrações e ele aproveitava-se
da vantagem que tais abstrações lhe concediam para lhe fitar o rosto sem
rebuços; e constatava, por esses olhares, que, embora encantadora como
sempre, a fisionomia de Fanny estava menos saudável do que deveria
estar. Ela dizia se sentir muito bem, e não havia modos de provar o
contrário; porém Crawford, intimamente, estava convencido de que a sua
presente residência não lhe poderia ser confortável nem saudável, e
sentia-se ansioso para que ela voltasse a Mansfield, onde a sua felicidade,
e a dele, ao vê-la lá, seria muito maior.
– Miss Fanny está aqui há um mês, creio eu? – perguntou ele.
– Não, Ainda não faz um mês. Amanhã é que faz quatro semanas
que eu deixei Mansfield.
– A senhorita é a calculadora mais minuciosa e honesta que
conheço; porque eu chamaria a isso um mês.
– Só cheguei aqui terça feira à noite.
– E veio para uma estadia de dois meses, não?
– Sim. Meu tio falou em dois meses. Creio que não poderá ser
menos.
– E como irá de volta para lá? Quem a acompanhará?
– Não sei. Minha tia não me disse nada a esse respeito. Talvez eu
tenha que demorar mais um pouco. Talvez não seja conveniente eu ir
embora logo que fizer exatamente dois meses.
Depois de um momento de reflexão, Mr. Crawford tornou:
– Conheço Mansfield, conheço o ambiente lá, conheço as faltas dos
de lá para consigo, Miss Fanny. Sei do perigo que corre de ser esquecida
por muito tempo, afastada do conforto, de que precisa, a pretexto da
imaginária conveniência de uma demora maior no seio da família. Receio
que a deixem aqui semana após semana, caso Sir Thomas não possa
arranjar as coisas para a vir buscar ele próprio, ou mandar a criada de
sua tia; basta que isso determine a menor alteração nas providências que
devem ser tomadas para a próxima estação. E isso não deve acontecer.
Dois meses já são uma estadia grande; creio mesmo que seis semanas
seriam o bastante. Estou pensando na saúde de sua irmã – acrescentou
ele dirigindo-se a Susan – porque acho que este isolamento em
Portsmouth não lhe está fazendo bem. Ela precisa de exercício constante.
Se você a conhecesse tão bem quanto eu, estou certo de quer também
acharia que Miss Fanny não pode estar muito tempo afastada do ar livre e
da liberdade do campo. Se por acaso – falou ele então, volvendo-se para
Fanny – não se sentir bem aqui, e aparecerem dificuldades para o seu
regresso a Mansfield, antes que os dois meses tenham acabado, isso não
deve ser encarado como um obstáculo: basta que a minha irmã tenha
conhecimento disso, que lhe dê a menor demonstração de que deseja ir,
imediatamente ela e eu viremos aqui e a acompanharemos até Mansfield.
Sabe a felicidade e o prazer com que faremos isso; sabe tudo o que
sentiremos nessa oportunidade.
Fanny agradeceu e tentou dar uma risada.
– Estou falando muito sério – tornou ele. – Sabe muito bem disso. E
espero que não vá esconder alguma indisposição que sinta. Sei que não
fará isso; não estará em seu poder. Sempre que disser positivamente, em
suas cartas a Mary “vou passando bem” eu, que a sei incapaz de afirmar
uma falsidade, acreditarei que estará bem.
Fanny lhe agradeceu novamente, porém estava comovida e
mortificada a tal ponto que lhe seria impossível falar muito, e aliás, não
sabia bem o que deveria dizer. Isso se deu já ao fim do passeio. Ele as
acompanhou até à porta de casa, recusando-se porém a entrar, alegando
que um amigo o esperava para jantar.
– Espero que não esteja muito cansada – disse ele – retendo um
pouco Fanny, depois que os outros entraram em casa. Desejo
infinitamente que esteja se sentindo muito bem. Quer alguma coisa para
a sua cidade? Estou com a idéia de ir logo para Norfolk. Não estou
satisfeito com Maddison. Tenho a certeza de que ele quer agir à minha
revelia o mais que puder, e tenciona por um primo morando num certo
moinho que eu destino a uma outra pessoa. Preciso ir lá e me entender
com ele. É preciso que ele saiba que eu não consentirei em ser
embrulhado no lado sul de Everingham, como não o serei no lado norte;
quero ser o dono do que é meu. Ainda não nos explicamos bastante a esse
respeito, até agora. O mal que um administrador pode fazer tanto ao
crédito do seu patrão quanto ao bem estar dos pobres é incalculável.
Estou pensando na verdade em ir diretamente para Norfolk e lá arranjar
as coisas de modo a que não possam ser facilmente alteradas. Maddison
não é um mau sujeito; não o quero dispensar, mas preciso providenciar
para que ele não tente me dispensar a mim. Era preciso ser tolo para me
deixar lograr por um homem que não tem nenhum direito a isso; e mais
do que tolo, se consentisse que me pusesse um sujeito qualquer como
rendeiro, justamente no lugar que eu já mais ou menos prometi a um
homem de bem. Não acha que seria realmente mais que tolice? Devo ir?
Qual é a sua opinião?
– Minha opinião? O senhor sabe muito bem que é isso o que deve
fazer.
– Sim. Quando você concorda, eu já sei que é direito. Seu
julgamento é o critério de direito que sigo.
– Oh, não! Não diga isso. Em nós mesmos nós encontramos um guia
muito melhor, se o queremos, do que o que outra qualquer pessoa possa
nos dar. Adeus. Desejo que tenha um dia muito agradável amanhã.
– Então não quer nada para a cidade?
– Nada. Mas lhe agradeço muito.
– Não quer mandar um recado para ninguém?
– Muitas recomendações para sua irmã, por favor. E, se vir meu
primo, – meu primo Edmund, espero que tenha a bondade de lhe dizer
que estou esperando notícias dele.
– Conte com isso; e se ele for preguiçoso ou negligente, eu próprio
lhe escreverei, mandando-lhe as desculpas.
Ele não pôde dizer mais nada, porque Fanny não quis demorar
mais. Apertou-lhe a mão, olhou-lhe o rosto e foi embora. E então, em
companhia de seus novos companheiros, esperou mais três horas pelo
excelente jantar da hospedaria; enquanto ela, imediatamente, foi sentar-
se à modesta refeição caseira.
Pudesse Henry Crawford suspeitar quantas privações, afora essa do
exercício, era Fanny obrigada a suportar em casa do pai, admirar-se-ia de
que seu rosto não estivesse muito mais abatido. Não havia diferença dos
pudins de Rebecca para os picadinhos de Rebecca, atirados à mesa junto
aos pratos meio lavados e aos talheres meio areados; e muitas vezes a
moça adiava o jantar até à noite, para quando pudesse mandar um dos
irmãos lhe comprar biscoitos ou bolos. Depois de se ter criado em
Mansfield, era tarde demais para se habituar aos duros métodos de
Portsmouth; e o próprio Sir Thomas, se por acaso tivesse conhecimento
disso, vendo embora que a sobrinha, trilhando o mais prometedor
caminho ao depauperamento físico e moral, daria agora um justo valor à
fortuna e à companhia de Mr. Crawford, recearia levar a experiência
avante, com medo de a matar com a cura.
Fanny ficou perturbada durante todo o resto do dia. Embora mais
ou menos certa de não se avistar com Mr. Crawford, não pôde vencer o
desânimo; ele, ao partir, assumira um pouco as qualidades de um amigo;
e embora, por um lado estimasse vê-lo ir embora, parecia-lhe que agora
estava desamparada por todos; parecia-lhe, hoje, ter sido novamente
separada de Mansfield; e Fanny não podia pensar no regresso dele à
cidade, convivendo com Mary e Edmund, sem sentir em seu coração
sentimentos tão parecidos com a inveja, que a faziam odiar-se a si
própria, por alimentá-los.
Seu desânimo não interessou ninguém em torno dela; um ou dois
amigos do pai, como acontecia sempre que não saía ele próprio a
procurá-los, passaram lá a infindável noitada. E desde seis horas até às
nove e meia poucos intervalos houve entre a conversa e a bebida. Fanny
sentia-se muito deprimida. O maravilhoso aperfeiçoamento que ela
julgara perceber em Mr. Crawford , era a única coisa que poderia
confortá-la, dentro da atual direção dos seus pensamentos. Sem pensar
em quão diferente era o círculo em que o vira evoluir antes, nem que
muito do efeito era devido ao contraste, Fanny estava inteiramente
persuadida de que ele se tornara espantosamente mais amável e mais
atento aos outros do que anteriormente. E se mudara nas pequenas
coisas, por que também não nas grandes? Tão ansioso pela sua saúde e
seu conforto, tão sensível quanto se mostrara, e realmente o parecia
estar, talvez não fosse loucura imaginar que ele talvez não precisasse
esperar muito para conseguir prendê-la.

CAPÍTULO 43

Era de presumir que Mr. Crawford houvesse viajado no dia seguinte


para Londres, pois não apareceu mais em casa de Mr. Price; e dois dias
depois tal suposição era uma certeza para Fanny, graças à seguinte carta
que recebera de Mary, carta aberta e lida com a mais ansiosa
curiosidade.
“Devo informá-la, caríssima Fanny, de que Henry foi à Portsmouth
apenas para vê-la; chegou contando ter feito no sábado um lindíssimo
passeio em sua companhia, até aos estaleiros; e que domingo haviam
passeado ainda mais agradavelmente pelas fortificações; e o ar
balsâmico, o mar escumante, o seu doce rosto, suas doces palavras,
alternavam-se na mais deliciosa harmonia, que ainda hoje lhe despertam
sensações retrospectivas bem próximas do êxtase. Isto conforme o
percebi, é o essencial da minha informação. Porque ele exige que eu lhe
escreva, porém nada mais me disse em que eu lhe pudesse falar, senão a
visita a Portsmouth, os supracitados passeios, e a apresentação dele à sua
família, principalmente à uma irmãzinha de quinze anos, que, imagino,
tomou no tal passeio às fortificações, em sua primeira lição de amor. Não
tenho muito tempo para escrever; e esta carta eu a poderia chamar ‘de
negócios’ pois deve ser portadora de uma notificação indispensável, que
não poderia ser adiada sem perigo de dano. Minha queridíssima Fanny, se
a tivesse aqui, como teria de que lhe falar! Você teria que me escutar até
cansar-se, e teria que me aconselhar até ficar mais cansada ainda! Mas é
impossível por no papel uma centésima parte das minhas preocupações;
de forma que prefiro me abster de as contar e deixá-la conjecturar o que
quiser. Não tenho tido notícias suas. Você aí tem relações, decerto; e seria
maldade fatigá-la com a discriminação das pessoas e das festas com que
tenho preenchido o tempo aqui. Deveria lhe ter mandado uma descrição
da primeira festa dada por sua prima, mas tive preguiça na ocasião, e
agora já faz muito tempo que a coisa se passou; basta que lhe diga, pois,
que tudo correu como devia, em alto estilo, com grande satisfação de
todos os convidados; e os trajes e as maneiras de sua prima lhe
granjearam os maiores elogios. Conto, depois da Páscoa, ir fazer uma
estadia em casa de Lady Stornaway; ela parece que vai muito bem,
felicíssima. Creio que Lord S. é sempre muito bem humorado e agradável,
no seio da própria família, e não creio que ele pareça tão abatido quanto
eu, ou quanto alguém mais; – seu primo Edmund, por exemplo. Acerca
desse herói, que lhe poderei dizer? Se eu evitar inteiramente qualquer
referência ao seu nome, poderei provocar suspeitas. Dir-lhe-ei pois que
nos avistamos umas duas ou três vezes, e que os meus amigos daqui
apreciaram muito a sua aparência fidalga. Mrs. Fraser, (que não é mau
juiz) declara que talvez não conheça na cidade três outros cavalheiros
que se possam gabar de uma figura tão agradável, tanta distinção, tanta
nobreza; e eu devo confessar que quando ele jantou aqui, outro dia, não
havia ninguém com quem de pudesse compará-lo – e éramos dezesseis
pessoas. Felizmente não é a roupa que faz o homem, hoje em dia porém...
Sua, afetuosamente, etc.”
“Tinha quase esquecido de aludir, (por culpa de Edmund: ele me
vive na cabeça mais do que devia) da tal notificação em que lhe falei a
princípio. Refere-se a um fato que tem preocupado a Henry e a mim: a
sua volta. Minha queridinha, não fique em Portsmouth, perdendo suas
boas cores. Essas cidades à beira mar são a ruína da beleza e da saúde.
Minha pobre tia, bastava estar a dez milhas do mar para se sentir
afetada, – coisa em que o Almirante não acreditava nunca, naturalmente,
– mas que eu compreendia muito bem. Henry e eu estamos à sua
disposição, ao menor sinal seu. Poderíamos fazer um pequeno circuito e à
volta lhe mostrar Everingham. E talvez, se você não se importa que
atravessemos Londres, veremos o interior de St. George, em Hanover
Square. Apenas , peço-lhe que retenha o seu primo Edmund durante esse
tempo; eu não o poderia avistar sem tentação. Que carta comprida! Uma
palavra mais: Henry tem, creio eu, a idéia de ir a Norfolk para tratar de
certos negócios que você aprova, porém isso não lhe será possível antes
do meio da próxima semana; isto é, não estará livre até ao dia 14, porque
nós daremos uma recepção nesse dia. Você não pode conceber a
importância da presença de um homem como Henry numa dessas
ocasiões; pode acreditar em mim quando lhe digo que é inestimável.
Nessa reunião ele se irá encontrar com os Rushworths, o que eu não
lamento, – pois tenho nisso até uma certa curiosidade. Ele também a tem,
embora não o reconheça. – M”
Aquilo era uma carta para ser percorrida com impaciência, para
ser lida deliberadamente, dando matéria a muita reflexão, e deixando
tudo mais suspenso do que nunca. A única certeza que se poderia deduzir
de sua leitura é que nada de decisivo se sucedera. Edmund não falara
ainda. Quais seriam os sentimentos reais de Miss Crawford, como
tencionava ela agir, ou se agiria contra as suas intenções; se a
importância dos seus sentimentos era exatamente a mesma de antes da
última separação; se estavam em decadência, se tenderiam a cair mais,
ou a recobrar-se, tudo isso era pretexto para conjecturas sem fim, que
atravessaram aquele dia e os dias subseqüentes, sem resultarem em
nenhuma conclusão. O pensamento que mais freqüentemente ocorria à
moça era que Miss Crawford, depois de se por à prova ela própria, fria e
deliberadamente, por uma volta aos seus hábitos londrinos, queria ainda
fazer uma experiência da sua afeição por Edmund, tentando renunciar.
Tentaria ser mais ambiciosa do que o seu coração. Hesitaria, modificar-
se-ia, imporia condições, exigiria muito, porém acabaria aceitando.
Esta era a mais freqüente previsão de Fanny. Uma casa na cidade,
isto, pensava ela, deveria ser impossível. Mas não jurava que Miss
Crawford não o exigiria. O futuro do primo lhe parecia cada vez mais
ameaçador. A sua amada falava nele, mas falava-lhe apenas na aparência.
Que vergonhosa afeição! Uma afeição que carecia do apoio dos frívolos
elogios de Mrs. Fraser! Ela, que o conhecera intimamente durante seis
meses! Fanny sentia-se envergonhada pela outra. Os trechos da carta
referentes a ela própria e a Mr. Crawford, a impressionaram
relativamente muito pouco. Se Mr. Crawford ia ou não ia a Norfolk antes
do dia 14, – ela não tinha nada com isso, embora, pensando bem, ele
devesse ir lá, sem demora. E o fato de Miss Crawford diligenciar por
provocar um encontro entre ele e Mrs. Rushworth, parecia-lhe uma
péssima iniciativa, um erro grosseiro, um mau pensamento. Ela porém
esperava que Henry não estivesse influenciado por nenhuma curiosidade
degradante. Deveria bastar que ele negasse tal curiosidade para a irmã
lhe dar crédito; aliás ela tinha obrigação de lhe atribuir melhores
sentimentos que os seus próprios.
E, depois de receber essa carta, Fanny tornou-se mais impaciente
por saber de notícias, do que o estava antes. Ficou tão suspensa a pensar
no que poderia estar acontecendo, no que aconteceria, que suas habituais
conversas e leituras com Susan foram muito interrompidas, durante
vários dias. Não podia dirigir a atenção, como o desejava. Se Mr.
Crawford dera o seu recado ao primo, seria provável, “mais que provável”
que ele lhe escrevesse, contando tudo; e a coisa era ainda mais provável,
dada a habitual solicitude dele; mas aos poucos ela se foi afastando dessa
idéia, porque não apareceu nenhuma carta depois de três, quatro dias; e
em cada dia a pobre pequena se sentia mais inquieta, mais ansiosa.
Por fim, conseguiu obter alguma serenidade. Era forçoso vencer as
dúvidas, não a permitir que a dominassem de todo, inutilizando-a. O
tempo fez alguma coisa, suas reprimendas íntimas o fizeram ainda mais,
ela concentrou sua atenção em Susan, e conseguiu recuperar o mesmo
interesse pela irmã.
Susan cada dia aprendia mais; e embora não encontrasse nos livros
o profundo prazer que neles achava Fanny; embora muito menos
inclinada que a irmã às meditações sedentárias, ou à indagação pelo
mero prazer da indagação, Susan tinha um desejo tão forte de não
parecer ignorante, o qual, junto a uma inteligência clara, a tornava a mais
atenta, a mais proveitosa, a mais grata das discípulas. Fanny era o seu
oráculo. As explicações de Fanny ou os seus comentários eram a parte
mais importante de cada ensaio, de cada capítulo de história. O que
Fanny lhe dizia sobre os tempos passados se lhe gravava muito mais na
memória do que qualquer página de Goldsmith; e ela pegava os elogios
da irmã preferindo o seu estilo ao de qualquer outro autor impresso.
As conversas das duas, entretanto, não tratavam exclusivamente de
temas tão elevados quanto a história ou moral. Outros assuntos tinham a
sua hora; mas nenhum outro aparecia tão freqüentemente nas palestras
das irmãs nem tão longamente permanecia quanto Mansfield Park. Susan,
que tinha uma predileção nata por tudo que era fino, distinto, estava
sempre pronta para ouvir, e Fanny não podia senão condescender com os
seus próprios sentimentos, abordando um tema tão amado. Esperava não
estar fazendo mal. Porém depois de algum tempo, verificando a enorme
admiração de Susan por tudo que fosse dito ou feito na casa do tio, e o
seu ardente desejo de ir a Northamptonshire, censurou-se severamente
por estar despertando sentimentos que não poderiam ser recompensados.
Pobre Susan, não se adaptava à sua casa muito melhor do que a
irmã mais velha; e à medida que ia se confirmando essa convicção, Fanny
começou a sentir que, quando se libertasse de Portsmouth, sua felicidade
seria muito estragada pela idéia de lá deixar Susan. Desolava-a cada dia
mais imaginar que uma rapariga tão capaz de aperfeiçoamento e
progresso ficasse entregue a tais mãos. Como gostaria de ter sua própria
casa para a levar para lá! Que coisa abençoada seria! E era bem possível
que tal pensamento trabalhasse muito melhor para os interesses de Mr.
Crawford, do que o cuidado dos seus próprios confortos e interesses.
Fanny já o considerava um ótimo caráter, e já o associava a planos
de certo modo muito agradáveis.

CAPÍTULO 44
Sete semanas, das oito que comporiam os dois meses, já se tinham
passado quase, quando Fanny recebeu a primeira carta de Edmund, tão
longamente esperada. Ao abri-la, ao lhe ver o conteúdo, preparou-se para
um longo minuto de felicidade, e sentiu no coração uma maré montante
de amor e gratidão pela criatura que era agora a senhora do seu destino.
Eis o que dizia a carta:

“Mansfield Park
Minha querida Fanny: Desculpe-me se não escrevi antes. Crawford
me disse que você queria saber notícias minhas, porém julguei impossível
escrever-lhe de Londres, e supus que você compreenderia o meu silêncio.
Pudesse eu lhe ter feito apenas algumas linhas despreocupadas, você as
teria recebido; mas coisas dessa natureza não estão em meu poder.
Voltei para Mansfield, num estado de muito maior insegurança do
que saíra daqui. Minhas esperanças estão hoje ainda mais fracas; aliás
você já devia ter imaginado isso. Miss Crawford, que lhe tem tanta
afeição, naturalmente já lhe deu a perceber o bastante, a respeito dos
seus próprios sentimentos, para lhe permitir fazer suficientes conjecturas
a respeito dos meus. De maneira que eu não estaria me antecipando se
lhe fizesse minhas próprias confidências. Nossa confiança em você não
precisa ser posta à prova; não lhe faço perguntas. Basta o conforto que
me dá a idéia de que temos ambos a mesma amiga, e apesar das infelizes
divergências de opiniões que existem entre mim e elas, sentimo-nos
unidos na afeição por você.
Será pois para mim um consolo contar-lhe como vão as coisas, e
quais são meus planos atuais, – se posso dizer que tenho planos. Voltei
desde sábado. Passei três semanas em Londres, e me avistei com ela
muito freqüentemente (do ponto de vista de quem está em Londres). Fui
tratado com tanta atenção pelos Frasers como seria de esperar
razoavelmente. Digo ‘razoavelmente’ porque eram desarrazoadas as
esperanças que eu levava de ter com ela o mesmo convívio que tínhamos
em Mansfield. A diferença estava mais nos meus modos, aliás, do que na
raridade dos encontros. O fato é que ela mudou radicalmente; a minha
primeira recepção foi tão diferente do que eu tinha esperado, que quase
me resolvi a deixar Londres imediatamente. Não quero entrar em
minúcias. Você conhece o lado fraco do caráter dela, e pode imaginar os
sentimentos e expressões com que me torturou. Cheia de verve e bom
humor, via-se cercada por gente que estava sempre pronta a apoiar
levianamente a sua vivacidade talvez excessiva. Não gostei de Mrs.
Fraser. É uma mulher fria e frívola, que se casou apenas por
conveniência, e que é evidentemente infeliz no casamento; mas em vez de
atribuir sua infelicidade a desencontros de opiniões, de temperamento,
ou à desproporção de idade, atribui-a apenas à falta de influência social;
e vive a invejar a importância das amigas, especialmente a da irmã, Lady
Stornaway, e é a protetora de todo mercenário e ambicioso que encontra,
conquanto que seja suficientemente mercenário e ambicioso.
Considero a intimidade com essas duas irmãs a maior infelicidade
tanto para a vida dela, como para a minha. Há anos que a procuram
desencaminhar. Deus permita que ela possa se desligar de tal gente; e
muitas vezes não desespero disso, porque a afeição me parece existir
principalmente do lado das duas irmãs. São íntimas dela; mas tenho
certeza de que Mary não gosta tanto das duas quanto elas gostam de si.
Quanto penso no carinho sempre crescente que ela tem por você, na sua
conduta judiciosa e correta como irmã, aparece-me como uma criatura
completamente diversa, capaz de tudo que é nobre, e me maldigo a mim
mesmo por ousar me queixar de alguma coisa. Não posso me desligar
dela, Fanny. Ela é, no mundo inteiro, a única mulher que eu pensei tornar
minha. Se eu acreditasse que Mary nunca olhara para mim, talvez não
dissesse isto; porém acredito que me olhou. Tenho a certeza de que ela
me prefere a outros; não tenho ciúmes de ninguém. O que me dá ciúmes
é o círculo elegante e frívolo que a cerca; o que eu receio são os hábitos
de luxo. Suas idéias não estão acima das garantias que lhe dá a sua
própria fortuna, mas estão muito acima do que estaria a fortuna de nós
dois, ela e eu. Aliás, isto me dá algum consolo; e recebo melhor a idéia de
perdê-la porque não sou bastante rico do que por causa da minha
profissão; e isto prova pelo menos que a sua afeição não é igual aos
sacrifícios, que pensando bem, não tenho o direito de lhe pedir. Se eu for
recusado, sei que será esse o motivo real. Seus preconceitos, bem o sei,
não são tão fortes.
Você está recebendo os meus pensamentos tais como eles me vão
brotando no coração, querida Fanny; talvez sejam às vezes contraditórios,
mas nem por isso representarão uma pintura menos fiel do meu espírito.
E já que comecei, dá-me prazer lhe contar tudo que sinto. Não posso me
afastar dela; ligados como já estamos, e segundo o espero, como o
estaremos mais ainda, afastar-me de Mary Crawford significaria afastar-
me dos amigos que me são mais queridos; seria me exilar das casas e dos
amigos que, em caso de quaisquer outros desgostos, eu procuraria para
que me consolasse. A perda de Mary deve significar para mim a perda de
Crawford e Fanny. Porém quando a sua recusa for um fato consumado,
espero encontrar forças para tentar diminuir o poder que ela tem sobre
meu coração, e talvez, dentro de alguns anos... mas estou escrevendo
disparates. Mesmo que eu seja repelido, tenho que fazer uma tentativa
perante ela, e enquanto não o sou, não posso deixar de pensar nisso; esta
é a verdade. A única questão é: Como? Qual será a maneira melhor? Já
pensei muitas vezes em ir ainda uma vez a Londres, antes da Páscoa;
outras vezes julgo melhor não fazer nada até à volta dela a Mansfield.
Agora mesmo em Londres falou-me com alegria em sua vinda a Mansfield
em junho. Porém junho ainda está muito longe, e creio que talvez eu tente
me corresponder com Mary. Estou quase resolvido a expor os meus
sentimentos numa carta. Uma certeza qualquer será o melhor que me
pode suceder; ando num estado miserável de aborrecimento.
Considerando tudo, creio bem que uma carta será o melhor meio de
explicação. Saberei escrever muitas coisas que não consigo dizer; e tendo
ela tempo para refletir, antes de se resolver a me responder, tenho menos
medo do que me dirá, do que se falasse sob um impulso apressado. Creio
que será o melhor. O maior perigo que corro será se ela consultar Mrs.
Fraser; e dada a distância, a dificuldade em que fico de defender minha
causa. Uma carta está exposta aos perigos resultantes de uma consulta,
quando quem a receber não está certo ainda de sua decisão e recorre a
um conselheiro; um mau conselheiro pode, em certos momentos, nos
levar a tomar decisões que mais tarde nos arrependemos. Devo também
procurar resumir meus sentimentos em poucas linhas. Uma longa carta,
cheia apenas de meus sentimentos e opiniões, pode cansar até a própria
amizade de uma Fanny. A última vez em que vi Crawford foi na festa de
Mrs. Fraser. Fiquei cada vez mais satisfeito com tudo que vi e ouvi dele.
Não há uma sombra de dúvida; ele sabe perfeitamente o que quer, e age
de acordo com as suas resoluções, o que considero uma qualidade
inestimável. Não o pude ver junto à minha irmã mais velha, na mesma
sala, sem pensar em tudo o que você me disse, e reconheço que não se
encontraram como amigos. Notava-se uma marcante frieza da parte dela;
pouco falaram, e surpreso, vi afastar-se. Lamentei muito que Mrs.
Rushworth possa ressentir ainda os efeitos de uma leviandade praticada
por Miss Bertram. Você gostará de saber a minha opinião sobre a vida de
Maria como mulher casada. Não parecem infelizes, e espero que
continuem dando-se bem juntos. Jantei duas vezes em Wimpole Street, e
estive lá mais três vezes, porém confesso que é mortificante ter
Rushworth como irmão. Julia parece divertir-se extraordinariamente em
Londres.
Nós, aqui, não constituímos um grupo muito alegre. Sua falta é
sentida enormemente. Eu então, sinto muito mais a sua ausência do que o
poderia dizer. Minha mãe manda afetuosas lembranças e deseja receber
logo suas notícias. Fala em seu nome constantemente, e fico muito triste
só ao pensar em quantas semanas ainda ela estará sem você. Meu pai
pensa em trazê-la ele próprio, o que, entretanto, não poderá ser senão
depois da Páscoa, quando terá negócios a resolver em Londres.
Espero que você esteja contente em Portsmouth, porém a sua
estadia aí não deve prolongar-se demais. Preciso de você em casa, e
preciso de sua opinião a respeito de Thorton Lacey. Não desejo fazer lá
grandes melhoramentos, senão depois que eu tiver a certeza de que a
casa terá uma dona.
Penso realmente em fazer a tal carta. É coisa certa a ida dos Grants
para Bath. Partem segunda feira de Mansfield. Estimo isso. Não estou
disposto a conviver com ninguém, atualmente. Sua tia, entretanto,
lamenta que um capítulo tão importante das notícias de Mansfield, me
caia da pena, num fim de carta, em vez de ser aproveitado por ela. Seu
sempre, minha queridíssima Fanny...”
– Nunca, nunca mais desejarei receber carta nenhuma – foi a
declaração secreta de Fanny, quando acabou de ler a carta de Edmund. –
Só me trazem desapontamento e tristeza! Só depois da Páscoa! Como
suportarei isso? E a pobre titia, chamando por mim a toda hora!
Fanny fazia o possível para afastar esses pensamentos, mas não se
passava um minuto sem que lhe ocorresse que Sir Thomas era tão mau
para ela quanto para a tia. E o assunto principal da carta não contribuía
em nada para acalmar essa irritação. Afligia-se com a cólera que sentia
contra Edmund:
– Não vejo nada de bom nesta demora – dizia de si para si. – Por que
não casa logo ele? Está cego, e nada lhe abrirá os olhos. Nada, nada, já
que tantas verdades lhe foram em vão postas diante dos olhos. Quer
casar com Miss Crawford, e ser pobre e infeliz. Deus permita que a
influência dela não o estrague também!
Olhou de novo para a carta:
– Ela tem profunda afeição por mim! Que disparate! Ela só gosta no
mundo de si própria e do irmão. Há anos que a procuram
desencaminhar... Pode dizer que elas o conseguiram. Ou então que elas
três se corromperam uma às outras: porém que elas gostem mais de
Mary do que Mary delas, considero Miss Crawford a pessoa menos capaz
de ser atingida por isso, a menos que não o seja pelas lisonjas. ‘Ela é, no
mundo inteiro, a única mulher que já pensei tornar minha.’ Acredito
firmemente nisso. É uma afeição que lhe influirá na vida inteira. Aceito ou
recusado, o seu coração será sempre dela... ‘A perda de Mary deve
significar para mim a perda de Crawford e Fanny’. Edmund, você não me
conhece. Não haverá parentesco nenhum entre as famílias se não for
você o responsável por ele. Oh, escreva, escreva! Acabe de uma vez!
Ponha um fim a esta insanidade. Prenda-se, encarcere-se a si próprio.
Essas sensações emanavam diretamente do ressentimento que há
muito vinha guiando os solilóquios de Fanny. Sentia-se cada vez mais
fraca e mais triste. Seu ardente olhar, suas afetuosas expressões, seu
tratamento confidencial tinham-na tocado profundamente. Ele era sempre
tão bom para todos! Era uma carta, em suma, que ela não trocaria por
nada no mundo, pois nada a equivale em valor.
Quem quer que se dedique à arte da correspondência, e não
disponha de muitas coisas a contar – e isso inclui grande parte do mundo
feminino, – deverá sentir, como Lady Bertram, que assunto tão
importante entre as notícias de Mansfield, como a partida dos Grants
para Bath, ocorresse num momento em que ela não o pudesse aproveitar;
e deve-se admitir que haveria de ser muito mortificante para Sua
Senhoria tal assunto ser presa do seu displicente filho, e tratado o mais
concisamente possível no fim de uma longa carta, em vez de ser
desenvolvido na parte principal de uma missiva escrita por ela própria. É
verdade que Lady Bertram não brilhava muito no gênero epistolar: casara
muito cedo, o que a impedira de dar a esse gênero o seu emprego mais
usual; e Sir Thomas, devido à sua situação no Parlamento, assumira ele
próprio o encargo da correspondência, deixando muito pouco o que fazer
à mulher. É verdade que ela não ficou inteiramente sem nada que
escrever; muitas vezes era-lhe forçoso traçar algumas linhas, – para a
sobrinha, por exemplo. E ver-se privada dos sintomas de gota do Dr.
Grant, e das dores matinais de Mrs. Grant, para suas necessidades
epistolares, era realmente uma lástima.
Havia entretanto uma boa desforra preparada para Sua Senhoria.
Chegou também a hora de sorte para Lady Bertram. Poucos dias depois
de ter recebido a carta de Edmund, veio ter às mãos de Fanny uma carta
da tia, que assim começava:

“Minha querida Fanny: Tomo da pena para lhe comunicar certas


notícias alarmantes que recebemos e que, sem dúvida nenhuma, hão de
lhe interessar”.

Isto era muito melhor do que tomar da pena para comunicar a


Fanny as particularidades da futura viagem dos Grants, porque as
presentes notícias eram de natureza a garantir ocupação para a pena por
muitos dias seguidos, tratando-se – como tratava – de perigosa doença do
filho mais velho da casa, da qual tinham recebido comunicação expressa
poucas horas antes.
Tom partira de Londres para Newmarkett, em companhia de um
rancho de rapazes; lá, uma queda mal tratada e uma bebedeira
subseqüente lhe tinham trazido uma fortíssima febre; e quando o grupo
foi embora, ele, incapaz de viajar, ficou na casa de um desses rapazes,
tendo como único conforto a doença e a solidão, e como cuidados apenas
os dos criados. E em vez de melhorar logo, como esperara, a fim de poder
acompanhar os amigos, sua doença aumentou consideravelmente; o
médico, alarmado, despachou uma carta para Mansfield.

“Essa alarmante notícia, como você bem o compreende”, observada


Sua Senhoria, depois de narrar a substância do fato, “nos agitou
extremamente; e não podemos esperar diminuição do nosso receio e
alarme, com o estado do nosso pobre enfermo, pois, na opinião de Sir
Thomas, tal estado deve ser dos mais críticos. Edmund, bondosamente,
propôs-se a ir imediatamente assistir o irmão; e felizmente, Sir Thomas
não se afastou do meu lado nesta dolorosa ocasião, o que seria duro
demais para mim. Sentimos muitíssimo a falta de Edmund, no nosso
círculo já tão pequeno, porém confio e espero que ele vá encontrar o
nosso pobre doente numa situação menos alarmante do que o receamos,
e o possa trazer brevemente para Mansfield, como é do desejo de Sir
Thomas, que considera essa a melhor solução; tenho esperanças também
de que o nosso pobre sofredor suporte a viagem sem inconveniências
materiais e sem sofrimento. Se eu tivesse a menor dúvida sobre os seus
sentimentos a nosso respeito, minha querida Fanny, nestas desoladoras
circunstâncias, ter-lhe-ia escrito ainda muito cedo.”

Os sentimentos de Fanny, nessa oportunidade, eram com efeito


muitíssimo mais ardentes e sinceros do que o estilo epistolar da tia.
Sentiu profundamente o sucedido. Tom perigosamente doente, Edmund
ausente para o assistir, o triste grupo ansioso para ficar em Mansfield,
eram cuidados mais que capazes de expulsar quaisquer outros cuidados,
ou quase todos os outros.
E Fanny mal conseguiu ter presença de espírito bastante para
perguntar a si própria se Edmund teria escrito a Miss Crawford antes de
receber as malfadadas novas; porque os sentimentos que prevaleciam no
seu coração eram apenas pura afeição e desinteressada ansiedade.
A tia não a esqueceu; escreveu-a continuamente; recebiam
freqüentes comunicações de Edmund, e essas comunicações eram
regularmente transmitidas a Fanny, no mesmo estilo difuso, na mesma
mistura de crenças, esperanças e receios, seguindo-se ao acaso uns aos
outros. Era uma espécie de jogo aterrorizante. Os sofrimentos a que Lady
Bertram não podia assistir tinham precário poder sobre sua imaginação;
de forma que ela escrevia com muito pequeno incômodo a respeito de
agitação e ansiedade, pobres doentes, até que Tom foi transportado a
Mansfield e ela viu com os próprios olhos a alteração havida na aparência
do filho. Nesse dia, então, a carta que anteriormente já estava sendo
preparada para Fanny foi terminada num estilo muito diverso, na
linguagem dum sentimento real e dum real alarme; a mãe escreveu como
deveria ter falado: “Ele acaba de chegar, minha querida Fanny; levaram-
no para cima. Tive um choque tão profundo ao vê-lo, que nem sei o que
fazer. Tenho a certeza de que meu filho está muito mal. Pobre Tom! Estou
aflitíssima por causa dele, e tão assustado quanto eu está Sir Thomas;
como gostaria que você estivesse aqui, para me animar! Sir Thomas
espera, entretanto, que Tom amanhã esteja melhor, e diz que temos que
levar em conta a fadiga da viagem que o deve ter abatido mais.”
A solicitude real que despertara no coração maternal de Lady
Bertram não se acalmou depressa. A impaciência excessiva em que
estava Tom de ser removido para Mansfield, o seu desejo de sentir
imediatamente no conforto da família e do lar – conforto que tão pouco
nos preocupa quando gozamos de uma ininterrupta saúde, – fizeram com
que ele viajasse mais cedo do que o deveria provocando a volta da febre;
e durante mais de uma semana esteve num estado ainda mais alarmante
do que antes. Todos em casa se sentiam seriamente assustados. Lady
Bertram descrevia diariamente os seus terrores à sobrinha, que
praticamente passou a viver de cartas, gastando o seu tempo entre os
sofrimentos de hoje e esperando os de amanhã. Embora não sentisse
nenhuma afeição particular pelo primo mais velho, sua ternura de
coração não lhe permitia esquecê-lo, e a pureza dos seus princípios
tornava sua solicitude ainda mais profunda, ao pensar em quão pouco útil
e pouco altruísta fora a vida de Tom até então.
Susan era a sua única companheira e confidente. Susan sempre
estava pronta para ouvir e compartilhar suas mágoas. Ninguém mais se
poderia interessar por um desgosto tão remoto quanto uma doença numa
família a mais de cento e sessenta quilômetros de distância. Nem mesmo
Mrs. Price, que se contentava em fazer alguma pergunta rápida, quando
via a filha com uma carta na mão, e uma vez ou outra, esta serena
observação: “Minha pobre irmã Bertram deve estar numa grande
atrapalhação.”
Há tanto tempo divididos, e situados a tão grande distância, os
laços de sangue lhe eram pouco mais que nada. A afeição entre as irmãs,
– afeição já de início tão tranqüila quanto os seus temperamentos
recíprocos – tornara-se com o tempo meramente nominal. Mrs. Price
sentiu por Lady Bertram exatamente o que Lady Bertram sentiria por
Mrs. Price. Três ou quatro jovens Prices poderiam ser varridos deste
mundo, ou mesmo todos eles, exceto Fanny ou William, e Lady Bertram
pouco se preocuparia com isso; ou talvez aceitasse a hipócrita declaração
de Mrs. Norris de que era uma felicidade o fato de ter a pobre e querida
irmã Price tantos outros filhos para se consolar.

CAPÍTULO 45

Cerca de uma semana depois de sua volta a Mansfield, o perigo


mais imediato que ameaçava Tom já estava passado; e bastou que fosse
ele declarado salvo para que a mãe ficasse completamente tranqüila.
Estando já agora acostumada a vê-lo em estado desesperador, ao ouvir
notícias de melhoras, e não se detendo nunca em examinar o que ouvia,
sem disposições para alarmes nem aptidão para sofrimentos, Lady
Bertram era a criatura mais receptiva deste mundo para declarações de
médicos. A febre fora dominada; e a febre era o seu mal. Logo ele só
poderia ir agora melhorando sempre. Lady Bertram não podia pensar
nada além disso, e Fanny participou da segurança da tia, até receber
algumas linhas da mão de Edmund, escritas propositalmente para lhe
darem uma idéia mais clara da situação do irmão, e transmitir-lhe as
inquietações em que ele e o pai estavam mergulhados em vista de fortes
sintomas tísicos de que lhes falara o médico, – sintomas que agora,
passada a febre, lhes monopolizavam receios.
Pai e filho julgaram melhor não alarmar Lady Bertram com tais
receios, que segundo o esperavam, poderiam ser infundados. Mas não
havia razão para que Fanny não conhecesse a verdade: estavam muito
apreensivos quanto aos pulmões de Tom.
As poucas linhas de Edmund deram a Fanny uma visão muito mais
nítida do doente e da sua alcova de enfermo, do que o tinham feito todas
as folhas de papel escritas por Lady Bertram; Sua Senhoria, o máximo
que podia fazer era deslizar em silêncio, e olhar para o filho; porque,
quando ele já estava capaz de ouvir e conversar, ou de escutar uma
leitura, era Edmund o seu companheiro preferido. A tia o apavorava com
os seus cuidados excessivos, e Sir Thomas não sabia adaptar sua
conversa e seu tom de voz ao nível que exigia a irritação e a fraqueza do
doente. Era Edmund que servia para tudo; Fanny o percebeu bem, e sua
estima pelo primo cresceu ainda mais, ao sabê-lo o assistente, o apoio, o
estímulo do irmão enfermo. Porque não era apenas a debilidade
decorrente da doença que ele assistia: era mais, como ela o compreendia
agora, eram os nervos afetadíssimos de Tom; era ao seu espírito
deprimido, que era mister acalmar e levantar. E a imaginação de Fanny
lhe representava aos olhos o que deveria ser um cérebro perdido,
precisando de ser novamente encaminhado.
Sabendo que a família não era predisposta à tísica, ela se sentia
mais inclinada à esperança do que ao receio, em relação ao primo, salvo
quando pensou em Miss Crawford; porque Miss Crawford lhe dava a
impressão de ser uma filha dileta da fortuna, e para o egoísmo e a
vaidade de Mary, seria uma sorte ficar Edmund como filho único.
Mesmo no quarto do doente, a feliz Mary não era esquecida. A carta
de Edmund trazia um post-scriptum:
“A respeito do que lhe falei da última vez, posso lhe dizer que
comecei uma carta, interrompendo-a entretanto por causa da doença de
Tom. Mudei de idéia, porém, nestes dias, e pus-me de novo a recear a
influência dos amigos. Quando Tom estiver melhor, irei lá.”
Era essa a situação de Mansfield, e assim continuou, com escassa
diferença até a Páscoa. Uma linha acrescentada ocasionalmente por
Edmund às cartas de Lady Bertram era o bastante para a informação de
Fanny. A convalescença de Tom era assustadoramente lenta.
A Páscoa chegou particularmente tarde, naquele ano, e Fanny
tristemente foi informada de que não teria probabilidades de deixar
Portsmouth antes do fim dela. O fim chegou, e nada lhe falavam a
respeito, nem mesmo na ida do tio para Londres, que deveria
necessariamente preceder a sua viagem de volta a Mansfield. A tia, de
vez em quando, aludia à falta que lhe fazia Fanny, porém nenhum recado,
nenhum sinal lhe vinha do tio, de quem dependia tudo. Segundo Fanny
supunha, Sir Thomas não podia abandonar o filho, mas para ela o
adiamento era cruel, terrível. O fim de abril estava chegando; e
brevemente se completariam não dois meses, mas três meses, que estava
ausente de todos eles, e os seus dias se passavam como em penitência;
porém Fanny os amava muito para os perturbar com as suas queixas; e
quando teriam eles vagar para pensar nela e a trazerem de volta?
Seu ardor, sua impaciência, seus anseios por estar junto deles,
trazia-lhe constantemente aos lábios uma linha ou duas do Tirocinium de
Cowper: “Com que intenso desejo aspirava ela ao seu lar” murmurava
constantemente; e Fanny não podia imaginar que nenhum coração de
colegial pudesse sentir melhor que o seu a profunda veracidade daquela
descrição.
Quando chegara a Portsmouth, gostara de chamar a casa dos pais
de “seu lar” e de dizer que “viera para casa”. Agora, a palavra se tornara
ainda mais querida para Fanny, porém aplicava-a a Mansfield. Lá, agora,
é que era o seu lar. Portsmouth era Portsmouth. Mansfield era o lar. A
mudança se operara dentro da indulgência das suas meditações secretas,
e nada era mais consolador para a moça do que ver a tia usar uma
linguagem idêntica: “não posso senão dizer que lamento muitíssimo a sua
ausência de casa nestes infelizes dias, que tanto me têm dado que sofrer.
Tenho a certeza, espero e sinceramente desejo que você não continue
fora de casa por mais tempo”, eram os períodos mais deliciosos das
cartas de Lady Bertram. Fanny entretanto fazia disso uma alegria secreta,
pois seria indelicada para com os pais se traísse as suas preferências pela
casa dos tios. E dizia: “Quando eu voltar para o Northamptonshire”, ou
“quando eu voltar para Mansfield, farei isto e aquilo”; durante muito
tempo não passou destas referências, porém depois a saudade foi
aumentando e varrendo precauções, fazendo com que ela se
surpreendesse a falar no que faria “quando voltasse para casa”, coisa que
evitava cuidadosamente antes. Censurava-se a si própria, corava, e
olhava assustada para o pai e para a mãe. Não tinha entretanto razão
para se incomodar. Não via sinais de desprazer, nem mesmo de que a
estavam escutando. Os Prices sentiam-se completamente livres de
qualquer ciúme de Mansfield e recebiam muito bem o desejo da filha de
estar onde deveria estar.
Fazia muita falta à saúde de Fanny os prazeres da primavera, que
perdia. Antes ela não poderia imaginar os divertimentos que teria de
perder passando março e abril na cidade. Só então compreendia como o
aspecto do brotar e do crescimento da vegetação a deleitavam. Que
animação, de corpo e de espírito, derivava daquela estação que, a
despeito de sua caprichosa irregularidade, não podia deixar de ser
apreciada, com o escrúpulo da beleza crescente das primeiras flores nas
estufas do jardim de Lady Bertram, ou do rebentar das folhas tenras nas
plantações do tio, ou o glorioso esplendor dos bosques de Mansfield.
Sentir-se privada desses prazeres já não era pouco; mas ser privada
deles para estar entre o encerramento e o barulho, ter apenas
isolamento, mau ar, mau cheiro em substituição à liberdade, frescura,
fragrância e verdura, era infinitamente pior. Porém todas as causas de
desgosto eram fracas, comparadas com as que lhe advinham do fato de
estar fazendo falta aos seus melhores amigos, e a tristeza de não lhes ser
útil quando precisavam dela!
Pudesse ela estar em Mansfield, e se poria a serviço de todas as
pessoas da casa. Sentia bem que deveria ser útil a todos. Todos eles
deveriam estar sentindo qualquer coisa. E afora qualquer outro cuidado,
bastava a obrigação de amparar a tia Bertram dos perigos da solidão, ou
do perigo ainda maior de uma companhia inquieta e oficiosa, sempre
pronta a aumentar o perigo para enaltecer sua importância, sua valiosa
influência no bem estar geral. Gostava de imaginar lendo para a tia,
conversando com ela, procurando fazê-la aceitar corajosamente o que já
acontecera, e lhe preparando o espírito para o que poderia acontecer,
quantas subidas e descidas aos andares de cima lhe pouparia, quantos
recados teria feito para ela!
Espantara-a que as irmãs de Tom pudessem se satisfazer em
permanecer em Londres em tal época, através de uma doença que, em
diferentes graus de perigo, já durava várias semanas. Elas deveriam ter
voltado a Mansfield, como estava combinado. A viagem não poderia ser
coisa difícil para elas, e Fanny não podia compreender como ambas ainda
demoravam fora de casa.
Se Mrs. Rushworth supunha ter algum impedimento, Julia, essa,
decerto poderia sair de Londres quando bem o quisesse. Segundo o que
lhe contou a tia numa das cartas, Fanny inferiu que Julia se oferecera
para voltar, caso precisassem dela, porém isso foi tudo. Era evidente que
Julia queria absolutamente permanecer onde estava.
Fanny estava inclinada a crer que a influência de Londres era
inteiramente contrária a todas as afeições respeitáveis. Via a prova disso
em Miss Crawford, tanto quanto nas primas; a afeição dela para com
Edmund era respeitável, o lado mais respeitável do seu caráter; sua
amizade para com ela, Fanny, era ultimamente irrepreensível. E o que era
feito de um outro desses sentimentos, agora? Já fazia tanto tempo que
Fanny não recebia dela uma única carta, que tinha toda razão ao pensar
ligeiramente numa amizade que durara tão pouco. Fazia semanas que não
ouvia nada a respeito de Miss Crawford nem dos seus parentes, senão
através de notícias recebidas de Mansfield, e ela estava começando a
imaginar que nunca saberia se Mr. Crawford fora ou não a Norfolk,
depois que se haviam encontrado, e supunha não receber mais nenhuma
palavra da irmã, durante toda aquele primavera, quando chegou a
seguinte carta, para lhe provocar novas sensações e reavivar velhas
lembranças.

“Perdoe-me, minha querida Fanny, meu longo silêncio, e logo que


lhe seja possível, prove diretamente que me perdoou. É este o meu
modesto pedido e minha esperança, porque você é tão boa que eu tenho a
certeza de que serei tratada melhor do que o mereço; escrevo pois agora
pedindo resposta imediata. Desejo muito saber do estado em que estão as
coisas em Mansfield Park, e você, sem nenhuma dúvida, está
perfeitamente à altura de me dar tal informação. Só quem tivesse um
coração de fera não se apiedaria dos desgostos por que eles têm passado;
e segundo o que eu soube, o pobre Mr. Bertram tem poucas
probabilidades de um completo restabelecimento. A princípio preocupei-
me pouco com a doença dele. Sempre o imaginei dessa espécie de gente
que faz espalhafato com qualquer doença insignificante, como
espalhafato também deveriam fazer, dado a posição que ele ocupa, –
todas as pessoas mais ou menos responsáveis por sua saúde. Porém
garantiram-me confidencialmente que ele de fato está tuberculoso, que os
sintomas são os mais alarmantes, e que parte da família estava prevenida
disso. Se isso é certo, tenho a certeza de que você está incluída nessa
parte – a parte que sabe a verdade, – e logicamente não se recusará a me
dizer até que ponto minha informação é verídica. Você deve estar bem
informada.
Não preciso dizer quanto ficaria contente se me desse um
desmentido, porém o meu informante é tão digno de crédito que confesso
o meu receio de não o receber. É triste ver um tão belo rapaz com os seus
dias contados, na flor da vida. Pobre Sir Thomas, deve sentir mortalmente
isso. Sinto-me na verdade absolutamente aflita com tudo. Fanny, Fanny,
vejo o seu sorriso e o seu olhar malicioso, mas juro-lhe pela minha honra
que nunca na minha vida subornei um médico. Pobre rapaz! Se ele
morrer haverá a menos dois pobres rapazes neste mundo; e com a face
desassombrada e a voz tranqüila, eu posso dizer que a fortuna e a posição
de Tom podem passar para mãos mais merecedoras delas. Tudo o que
Edmund fez no último Natal foi loucura. Porém o mal de poucos dias pode
ser reparado depressa. Verniz e douraduras podem esconder muitas
coisas. E podem até encobrir, para Edmund, a perda do Esquire depois do
nome. E com uma afeição sincera, tal qual a minha, querida Fanny, muito
mais pode ser esquecido.
Escreva-me pela volta do correio, pense na minha ansiedade e não
brinque com ela. Diga-me a verdade, que você deve conhecer de fonte
limpa. E por favor não se envergonhe nem se perturbe com os seus
sentimentos ou com os meus. Acredite-me, tais sentimentos não são
apenas naturais, são filantrópicos e virtuosos. Apelo para a sua
consciência e pergunto-lhe se ‘Sir Edmund’ não fica muito mais de acordo
com o proprietário de Mansfield Park do que com qualquer outro ‘Sir’. Se
os Grants estivessem em casa, eu não a incomodaria, mas você é
atualmente a única pessoa a quem posso perguntar a verdade, já que as
irmãs dele não estão ao meu alcance. Mrs. R. está passando a Páscoa com
os Aylmers em Twickenham (segundo soube) e ainda não voltou; e Julia
está com uns primos que vivem perto de Bedford Square, porém esqueci
o nome da rua. Aliás, porque me impressiona desagradavelmente a má
vontade que eles manifestam em interromper os seus divertimentos por
amor do irmão, e em fechar os olhos à verdade. Creio que as férias de
Páscoa de Mrs. Rushworth não se prolongarão por mais tempo; é verdade
que para ela todo tempo é de férias. Os Aylmers são pessoas agradáveis;
e, com o marido longe, ela não pode senão divertir-se. Sei, e isso a honra,
que foi ela a promotora da ida de Mr. Rushworth a Bath, a fim de trazer
de lá a mãe; mas como se entenderão as duas, nora e sogra, dentro de
casa?
Henry não tem andado visível, e por isso não lhe dou notícias dele.
Você não saberá se Edmund pensa em vir a Londres logo, apesar da
doença em casa?
Sua sempre
Mary”

“P.S. Estava fechando minha carta quando chegou Henry; ele porém
não me trouxe nenhuma notícia que me evitasse a necessidade de lha
enviar. Mrs. R., com quem ele esteve pela manhã, sabe que se receia uma
tuberculose; sua prima deve voltar hoje para Wimpole Street, pois a sogra
está para chegar. Agora não vá se aborrecer porque ele passou vários
dias em Richmond; Henry faz isso todas as primaveras. Pode estar certa
de que ele não pensa em ninguém senão em você. Neste mesmo instante
está louco para vê-la, preocupado apenas em descobrir uma maneira de o
conseguir, e o seu maior prazer seria acompanhá-la até aos seus. E insiste
no convite que lhe fez em Portsmouth, a respeito da sua volta a
Mansfield, convite ao qual eu me associo de todo coração. Querida Fanny,
escreva imediatamente, e diga-nos se poderemos ir. Para nós será fácil e
agradável. Ele e eu poderemos ir para o Presbitério, você bem o sabe,
sem perigo de importunar nossos amigos em Mansfield Park. Eu gostaria
imensamente de os rever, e um pouco de companhia talvez fosse
infinitamente útil a eles todos. Quanto a você, deve saber que a sua
presença é tão desejada lá que não pode, em sã consciência (coisa que
não lhe falta) permanecer longe, uma vez que tem meios de regressar.
Não tenho tempo nem paciência para lhe transmitir a metade sequer dos
recados de Henry; contente-se em saber que o espírito de cada um deles,
como de todos, traduz a mesma inalterável afeição.”

O imenso desgosto que causou a Fanny a maior parte dessa carta,


junto à sua extrema relutância de reunir a autora dela a seu primo
Edmund, tornou-a (segundo ela concluiu) incapaz de resolver se o
oferecimento que lhe faziam deveria ser aceito ou não. Para ela própria,
individualmente, era dos mais tentadores. Ver-se dentro de três dias,
talvez, conduzida até Mansfield, era uma imagem da maior felicidade,
contrabalançada porém pelo fato de tal felicidade ser devida a pessoas
cujos sentimentos e conduta, até aquele momento, muito lhe tinham dado
que condenar; os sentimentos da irmã, a conduta do irmão, a fria ambição
dela, a fútil vaidade dele. Ter procurado de novo aproximar-se, flertar,
talvez, com Mrs. Rushworth! Sentia-se mortificada. Pensara melhor dele.
Felizmente, entretanto, não se deixou estar a pensar e decidir a respeito
de suas inclinações contraditórias e de uma duvidosa noção de direito;
não era momento para indagar se devia ou não afastar Edmund de Mary.
Tinha uma regra para aplicar a si, regra que a guiava em tudo. O medo
pelo tio, o receio de tomar com ele uma certa liberdade a que não tinha
direito, instantaneamente lhe ensinaram o que devia fazer. Tinha a
absoluta obrigação de declinar a proposta. Se o tio precisasse dela,
chamá-la-ia; e mesmo a oferta de um fácil retorno a Mansfield não
deveria justificar tal ousada iniciativa. Agradeceu a Miss Crawford,
porém lhe mandou uma negativa decidida. “O tio, segundo sabia, pensava
em vir buscá-la; e já há muito o primo estava doente, sem que
precisassem dela; de maneira que supunha a sua volta desnecessária por
ora, e talvez a sua presença lá fosse até atrapalhar.”
Suas afirmações a respeito do estado do primo foram exatamente o
que ela própria acreditava; e os seus receios estavam exatamente de
acordo com os desejos em que ardia a imaginação de sua correspondente.
Seria perdoada a Edmund a sua qualidade de sacerdote, ao que
parecia, em certas condições de fortuna. E isso, – suspeitava Fanny, era
toda vitória sobre preconceito, vitória pela qual ela tão depressa se
congratulara. Ela não aprendera a dar importância a nada, senão a
dinheiro.

CAPÍTULO 46

Embora Fanny estivesse certa de que a sua resposta seria portadora


de um real desapontamento, tinha também a certeza, dado o seu
conhecimento do temperamento de Miss Crawford, de que ainda seria
interrogada. E apesar de não haver chegado nenhuma carta no período
de uma semana, não se mudara a sua segurança de que tal carta
chegaria.
Ao recebê-la, viu logo, pelo ligeiro conteúdo, que a sua
correspondente desejava dar a entender que tinha escrito às pressas,
para assunto de importância.
Esse assunto era indiscutível; e dois momentos eram bastantes para
anunciar apenas a próxima chegada deles a Portsmouth em tal dia, e
mergulhá-la em agitação e dúvida para decidir o que deveria fazer nessa
conjuntura. Porém se dois momentos podem vir cercados de dificuldades,
um terceiro pode dispersá-las; e antes de abrir a carta, a possibilidade de
terem Miss e Mr. Crawford apelado para Sir Thomas e obtido sua
permissão, fora afastada. Era esta a carta:

“Um escandalosíssimo, perverso e pavoroso boato acaba de me


chegar aos ouvidos, e estou lhe escrevendo, minha querida Fanny, para
avisá-la que evite dar crédito a tais notícias se lhe chegarem até aí. Não
pode deixar de ser um equívoco qualquer, que dentro de um dia ou dois
estará esclarecido; esclarecido a qualquer custo, pois Henry tem sido
irrepreensível, e a despeito de alguns momentos de étourderie, não pensa
senão em você. Não diga uma palavra a ninguém. Não ouça nada, não
desconfie de nada, não murmure nada, até que eu lhe escreva novamente.
Estou certa de que tudo será posto a limpo, e nada ficará provado, senão
a loucura de Rushworth. Se eles partiram, aposto até minha vida que não
foram senão até Mansfield Park, e que Julia foi com eles. Por que você
não consentiu que a fôssemos buscar? Deus queira que não se arrependa
por isso. Sua, etc.”

Fanny ficou aterrada. Nenhum boato escandaloso ou perverso lhe


chegara aos ouvidos, e era-lhe impossível entender muita coisa daquela
estranha carta. Pôde quando muito perceber que se referia a Wimpole
Street e Mr. Crawford, e conjeturar que ocorrera qualquer grande
imprudência, capaz de lhe despertar ciúmes – no entender de Miss
Crawford, – se ela o escutasse. Porém Miss Crawford não precisava se
alarmar a seu respeito. Ela sentiria apenas pelas partes implicadas e por
Mansfield, se o boato a atingisse, porém esperava não chegar a ouvir
nada. Se os Rushworths haviam ido para Mansfield, segundo se poderia
inferir das palavras de Miss Crawford, não era provável que nada de
desagradável ou houvesse precedido, ou pudesse dar essa impressão.
Quanto a Mr. Crawford, ela esperava que esse fato lhe desse
conhecimento dos seus próprios sentimentos, que o convencesse de que
ele não era capaz de se prender a nenhuma mulher no mundo, e o
envergonhasse por sua persistência, impedindo-o de a procurar no futuro.
Era tão esquisito! Ela começava a pensar que ele realmente a
amava, e a imaginar a sua afeição como algo diferente do comum; a
própria irmã ainda dizia que ele não queria a ninguém senão a Fanny.
Deveria ter mostrado atenções excessivas para com sua prima, deveria
ter cometido alguma grave indiscrição, pois a sua correspondente não
daria importância a alguma leve imprudência.
Sentia-se profundamente inquieta e deveria continuar assim, até
receber novas notícias de Miss Crawford. Era-lhe impossível banir a carta
dos seus pensamentos, e ela não podia se aliviar falando nos seus receios
a nenhum ser humano. Miss Crawford não precisava lhe ter pedido
segredo com tanto ardor; deveria ter confiado no seu bom senso, e no
sentimento do que ela devia à prima.
O dia seguinte não trouxe nenhuma carta. Fanny ficou desapontada.
De manhã, mal pôde pensar em outras coisas. Porém quando o pai
chegou, à tarde, trazendo o jornal, como de costume ela estava tão longe
de esperar qualquer elucidação por tal meio, que o assunto, por
momento, lhe saíra da cabeça.
Estava mergulhada em uma cisma diferente. Ocorrera-lhe a
lembrança de sua primeira noite naquela mesma sala, de seu pai, com o
jornal. Não havia necessidade de vela, agora. O sol estava ainda uma hora
e meia acima do horizonte. E ela pensou que, afinal de contas, já estava
há três meses ali. E os raios do sol, caindo fortemente através da entrada,
em vez de a alegrarem, tornavam-na ainda mais melancólica, porque a
sua luz lhe parecia uma coisa completamente diferente na cidade e no
campo. Sentou-se dentro de uma chama opressiva, numa nuvem de poeira
luminosa, e os seus olhos não poderiam senão vaguear pelas paredes,
marcadas pela cabeça do pai, pela mesa, cortada e manchada pelos
irmãos, onde pousava o bule de chá, sempre mal lavado, as xícaras e
pires rachados, o leite, o pão e a manteiga ficando a cada minuto mais
gordurosos do que quando saíram das mãos de Rebecca. Seu pai lia o
jornal, a mãe enquanto o chá corava, lamentava-se como de costume a
respeito do tapete esfarrapado, e reclamando porque Rebecca não o
remendava. Fanny despertou ouvindo que a chamavam; o pai, que lia com
especial atenção um parágrafo do jornal, perguntou:
– Como é o nome dos seus primos que moram em Londres, Fan?
Um instante de recomposição tornou-a capaz de responder:
– Rushworth, meu pai.
– E eles não moram em Wimpole Street?
– Moram, sim senhor.
– Então o diabo anda à solta lá, ao que parece! Está aqui – e brandia
o jornal. – Belos parentes tem você! Não sei o que pensará Sir Thomas
dessas coisas. Ele deve ser um cavalheiro fino demais para fazer qualquer
coisa com a filha... Mas, com todos os diabos! Se ela fosse minha filha,
uma boa corda haveria de ensiná-la! Uma boa surra, tanto para moças
como para rapazes é o melhor método para prevenir esses acidentes!
Fanny por seu turno leu o seguinte: “O jornal sentia infinitamente
ter que anuncia ao mundo social um desastre matrimonial, ocorrido na
família R., em Wimpole Street. A linda Mrs. R., cujo nome não fazia muito
tempo entrara na lista do Himeneu, e que prometia tornar-se uma figura
tão brilhante à frente da sociedade elegante, havia abandonado o teto
conjugal, em companhia do conhecido e cativante Mr. C., amigo íntimo de
Mr. R. Era completamente ignorado, até mesmo para o redator do jornal,
o destino que haviam tomado os fugitivos.”
– Isto é um engano, meu pai – disse imediatamente Fanny. – Há de
ser um engano, não pode ser verdade. Deve se referir a outras pessoas.
Falava sob o instintivo desejo de esconder a verdade, num ímpeto
de desespero, porque ela própria não acreditava, não podia acreditar
naquilo. Porém quando leu a notícia, teve o choque da convicção. A
verdade irrompeu nela; e como pôde falar, depois daquilo, como pôde
mesmo respirar, foi coisa que não podia compreender.
Mr. Price estava muito preocupado com a notícia para lhe dar uma
resposta longa:
– Talvez haja alguma mentira – concordou – mas, atualmente, tantas
lindas ladies têm levado o diabo por esse caminho, que a coisa já não
surpreende ninguém.
– Com efeito, espero que seja mentiras – disse Mrs. Price,
penalizada; – seria realmente horroroso! Será que ainda preciso falar com
Rebecca a respeito desse tapete? Já lhe falei nisso pelo menos umas doze
vezes, não Betsey? E é trabalho para dez minutos.
O horror de um espírito como o de Fanny, recebendo a convicção de
tal crime, e tomando a sua parte nos horrores que deveriam seguir, não
pode ser descrito. De início, era apenas uma espécie de estupefação. Mas
cada momento ia lhe abrindo a percepção a respeito do horrível sucesso.
Não podia duvidar, não podia acariciar nenhuma esperança de que a nota
fosse falsa. A carta de Miss Crawford, que ela relera tantas vezes que a
chegara a decorar, estava em apavorante conformidade com o jornal. Sua
enérgica defesa do irmão, a sua esperança de que o caso fosse abafado,
sua evidente agitação, constituíam as diversas peças de uma convicção
terrível. E se havia no mundo uma mulher capaz de tratar como simples
bagatela uma pecado de tal magnitude, que tentasse lhe diminuir a
importância, que desejasse vê-lo impune, essa mulher seria Miss
Crawford! Agora ela compreendia o seu próprio engano a respeito de
“quem” partira, ou se dizia ter partido. Não se tratava de Mrs. e Mr.
Rushworth, mas de Mrs. Rushworth e de Mr. Crawford.
Jamais Fanny havia sofrido um choque assim; não encarava mais a
possibilidade de repouso. A noite toda passou, sem uma pausa na aflição,
sem um momento de sono. E ela oscilava entre uma sensação de náusea e
estremecimentos de horror; do calor da febre ao tiritar do frio. Os
acontecimentos eram tão chocantes, que, por momentos, o seu coração se
revoltava, declarando-o impossível. Que aquilo não se podia ter passado.
Uma moça casada há apenas seis meses; um homem publicamente
apaixonado, e até mesmo comprometido com uma outra; essa outra, uma
parente próxima; toda a família, ambas as famílias ligadas como aquelas o
eram por laço após laço; todos amigos, todos íntimos! Era confusão de
crime horrível demais, uma demasiada grande complicação de malícia,
para ser realizada por naturezas humanas já saídas do estado de
barbárie. Porém o seu raciocínio dizia-lhe que o fato se passara
realmente. De um lado, as inseguras afeições dele, vogando ao sabor da
sua vaidade, e de outro, a paixão inegável de Maria, – sem ter sólidos
princípios que a apoiassem, – tornavam tudo possível. E a carta de Miss
Crawford confirmava tudo.
Quais seriam as conseqüências? Quem não seria ferido? Quais os
planos que não seriam afetados? Qual a paz que não seria cortada para
sempre? A própria Miss Crawford, Edmund... era perigoso, porém,
arriscar-se nesse campo. E ela limitou-se, ou tentou limitar-se, a pensar
apenas na vergonha e na desolação da família, que envolveria todos, se
aquilo fosse realmente um crime confirmado e um escândalo público. Os
sofrimentos da mãe, do pai; e Fanny estacava pensando neles; o
sofrimento de Julia, de Tom, de Edmund; e Fanny fazia uma pausa maior
ao evocá-los. O pai e Edmund seriam os dois mais terrivelmente afetados;
a solicitude paternal de Sir Thomas, seu alto senso de honra e de decoro;
e os severíssimos princípios por que se guiava Edmund, seu
temperamento confiante, a lealdade dos seus sentimentos, tornavam-no
praticamente incapaz de suportar a vida e a razão sob tal desgraça; e
parecia a Fanny que a maior benção que poderia ser concedida aos
infelizes parentes de Mrs. Rushworth seria um imediato aniquilamento.
Nada sucedeu no dia seguinte, nem no dia imediato, para lhe
atenuar os terrores; dois correios chegaram, sem trazer nenhuma
refutação, pública ou privada. Não chegou uma segunda carta de Miss
Crawford para explicar o que fora meio dito na primeira. Não veio
nenhuma notícia de Mansfield, embora já houvesse muito tempo para lhe
chegar alguma linha da tia. Aquilo era um mau agouro. Fanny tinha uma
sombra de esperança a lhe aliviar o espírito; e estava reduzida a um tal
estado de trêmulo pânico que nenhuma mãe, ninguém, – só talvez uma
mãe como Mrs. Price não o teria percebido quando no terceiro dia
bateram à porta e uma carta foi posta nas mãos da moça. Trazia carimbo
de Londres e o remetente era Edmund.

“Querida Fanny: Você já sabe da nossa desgraça. Possa Deus ajudá-


la a carregar o seu fardo! Estamos aqui há dois dias, porém não há nada a
fazer. Não há rastro deles. Você também deve ter sabido do último golpe:
a fuga de Julia. Foi embora para a Escócia em companhia de Yates.
Deixou Londres poucas horas antes de chegarmos aqui. Em outra
qualquer oportunidade, teríamos sentido isso mortalmente. Agora, parece
insignificante; e entretanto é uma agravação de desastres. Meu pai não
está completamente aniquilado; e mais não se pode esperar. Ainda está
capaz de agir e pensar. E eu escrevo, por ordem dele, a fim de lhe propor
a sua volta para casa. Ele está ansioso para garantir a sua presença junto
de minha mãe. Conto estar em Portsmouth no dia seguinte ao que você
receber esta carta, e espero encontrá-la já pronta para o regresso a
Mansfield. Meu pai deseja que você convide Susan para acompanhá-la
durante alguns meses. Arranje isso como quiser; diga o que for
necessário. Você pode calcular mais ou menos qual é o meu estado, neste
momento. Não há de haver um fim, para a vergonha que caiu sobre nós.
Você me há de ver amanhã cedo, pela diligência. Seu, etc...”

Nunca Fanny desejou tanto um cordial consolo. Nunca ela sentira o


que lhe provocava o conteúdo daquela carta. Amanhã! Deixar Portsmouth
amanhã! Ela se sentia, sabia que estava em grande perigo de se
considerar estranhamente feliz, enquanto os outros continuavam
mergulhados em tal sofrimento. A desgraça tornara-se quase um bem
para ela! E a moça espantava-se ao descobrir até que ponto era
insensível. Ir embora tão depressa, voltar, tão ternamente chamada,
voltar ao conforto, e voltar podendo levar Susan consigo, parecia-lhe uma
tal combinação de bênçãos, que lhe mergulhava o coração em êxtase,
êxtase que, durante algum tempo, pareceu expulsar qualquer dor,
tornando-a incapaz de compartilhar até mesmo a tristeza daqueles cujas
tristezas a afetavam mais. A fuga de Julia, comparativamente, afetou-a
pouco: ficara espantada e chocada; mas aquilo não pôde preocupá-la
muito, não pôde se apoderar do seu espírito. Sentia-se obrigada a apelar
para si mesma a fim de pensar nisso, para compreender quanto tal fato
era igualmente terrível e vergonhosos – mas as felizes preocupações
insidiosamente se insinuavam, entre um sermão e outro.
Não existe nada como uma ocupação, uma ativa e indispensável
ocupação para afastar tristezas. Um trabalho, mesmo melancólico, pode
afastar a melancolia, e o trabalho de Fanny não era melancólico. Tinha
tanto o que fazer que a horrível história de Mrs. Rushworth (já agora
confirmada até o último ponto) não podia afetá-la com a mesma
intensidade do princípio. Durante vinte e quatro horas estava esperando
partir. Tinha que falar com o pai e a mãe, preparar Susan, pôr tudo em
ordem. Ocupação seguia ocupação; e o dia ainda era bastante longo. A
felicidade que sentia em partir, o alegre consentimento do pai e da mãe à
ida de Susan em companhia da irmã, a geral satisfação com que a partida
de ambas parecia ser encarada, o êxtase de Susan, tudo isso servia muito
para lhe amparar o espírito.
O desgosto dos Bertrams fora pouco sentido na família. Mrs. Price,
durante alguns rápidos minutos, falou em sua pobre irmã, porém ocupava
muito mais seus pensamentos a idéia de descobrir onde poria as roupas
de Susan, pois Rebecca tinha o costume de se apropriar de todas as
caixas que apareciam em casa; quanto a Susan, agraciada subitamente
com a realização do seu mais querido sonho, – sem conhecer
pessoalmente nem os que haviam pecado, nem os que estavam sofrendo,
– apenas sentia alegria – e era o máximo que se pode exigir da virtude
humana, aos quatorze anos.
Como nada foi realmente entregue à decisão de Mrs. Price ou aos
bons ofícios de Rebecca, tudo foi racional e devidamente realizado, e,
pela manhã, as raparigas estavam prontas. Foi-lhes entretanto impossível
dormir bastante, para enfrentar a viagem. O primo, que viajara ao
encontro delas, pouco pôde se inteirar dos seus agitados espíritos, – um
dominado inteiramente pela felicidade, o outro entre as variações da mais
indescritível perturbação.
Às oito da manhã chegou Edmund. As moças o ouviram entrar, e
Fanny veio à porta. A idéia de o ir ver imediatamente, junto à consciência
de que ele estava sofrendo, afastou-lhe quaisquer sentimentos a respeito
de si própria. Ele tão perto, e tão infeliz! Estava prestes a cair quando
entrou na saleta. Edmund estava só, e foi ao seu encontro imediatamente;
e Fanny viu-se apertada contra o coração do primo, e ouvia apenas estas
poucas palavras, mal articuladas:
– Minha Fanny, minha única irmã; meu único consolo, agora!
Ela não pôde falar nada, nem ele pôde dizer mais, durante vários
minutos.
Edmund virou-se para recuperar a calma e quando novamente
falou, embora sua voz ainda estivesse embargada, o seu todo atraía o
domínio sobre si e a resolução de evitar qualquer alusão ulterior.
– Você já almoçou? Quando estaremos prontos? Susan vai? – eram
perguntas que rapidamente se sucediam umas às outras.
O seu maior objetivo era partir o mais rapidamente possível.
Quando pensava em Mansfield, considerava o tempo precioso; e no
estado de espírito em que estava, só encontrava alívio no movimento.
Resolveu-se que ele poderia pedir a carruagem à porta para dentro
de meia hora. Fanny responsabilizava-se para dentro de meia hora
estarem almoçadas e prontas. Ele já se alimentara e recusou tomar parte
na refeição. Queria dar um giro pelas fortificações, e viria buscá-la com o
carro. E o rapaz saiu, satisfeito por se afastar até mesmo da presença de
Fanny.
Parecia muito abatido; e evidentemente sofria violentas emoções
que estava resolvido a recalcar. Fanny sabia que o seu dever era
exatamente esse, mas aquilo lhe parecia terrível.
O carro chegou; e Edmund entrou em casa no mesmo momento que
ele, exatamente a tempo de gastar alguns minutos com a família e
testemunhar – é verdade que ele não via nada – o modo tranqüilo como
partiram as filhas da casa, e exatamente em tempo de evitar que se
sentassem à mesa do almoço que, dada a desusada atividade, fora adiado,
e posto apenas no momento em que a carruagem chegava à porta. Desse
modo, a última refeição de Fanny no lar paterno assumia o mesmo
caráter que a primeira; e despediram-se dela tão hospitaleiramente
quanto a haviam recebido.
Compreende-se pois facilmente que o seu coração rebentasse de
alegria e gratidão, quando ultrapassou as barreiras de Portsmouth; e que
o rosto de Susan exibisse o mais amplo dos sorrisos. É verdade que
estava sentada na almofada da frente, e o seu sorriso, escondido pelo
boné, não era visto por ninguém.
A viagem prosseguia silenciosa. O olhar profundo de Edmund
muitas vezes procurava Fanny. Se ele estivesse sozinho com ela, ter-lhe-ia
aberto o coração, a despeito das resoluções tomadas. Porém a presença
de Susan o obrigava a fechar-se consigo próprio, e foi-lhe impossível
prosseguir nas tentativas de falar sobre assuntos indiferentes.
Fanny o vigiava com uma incansável solicitude, e apanhando-lhe o
olhar, devolvia-o com um sorriso afetuoso, que o confortava; mas o
primeiro dia da viagem passou sem que ela ouvisse dele uma palavra a
respeito daquele assunto que o esmagava. A manhã seguinte foi um
pouco mais íntima. Pouco antes que eles saíssem de Oxford, enquanto
Susan parava a uma das janelas, assistindo à partida da estalagem de
uma grande família, ou outros dois ficaram em pé, junto ao fogo. E
Edmund, particularmente impressionado pela alteração nas feições de
Fanny, ignorando os detalhes da estadia da moça em casa dos pais,
atribuindo indevidamente toda a mudança dela aos recentes
acontecimentos, tomou-lhe a mão, e disse-lhe em voz baixa, mas
expressiva:
– Não é de admirar... você deve sentir isso... deve sofrer... Como um
homem que já a amou pode abandoná-la! Porém os seus... o seu olhar
agora, comparado com... Fanny, pense em mim!
A primeira parte da jornada ocupara um longo tempo e os levara,
quase estafados, a Oxford; porém a segunda parte estava terminada
muito mais cedo. Estavam nas cercanias de Mansfield muito antes da
hora habitual do jantar, e quando se aproximaram daquele amado lugar
os corações das duas irmãs bateram um pouco mais. Fanny começou a
pensar no seu encontro com Tom e as tias, sob tão pavorosa humilhação;
e Susan, ansiosamente cogitava em que todas as suas boas maneiras,
todos os seus recentes conhecimentos sobre os hábitos de Mansfield
estavam no momento de serem postos em ação. Apareciam-lhe ante os
olhos visões de boa e má educação, velhas vulgaridades e novas
gentilezas; e meditava sobre garfos de prata, guardanapos e “lavandes”.
Fanny, em toda parte, notava as diferenças ocorridas na região, desde
fevereiro. Quando, porém, entrou no Park, suas percepções e seus
prazeres atingiram um grau agudíssimo. Fazia três meses, três meses
completos que ela partira dali, e entre eles o tempo passara do inverno
para o verão. Seu olhar caía, em toda parte, sobre prados e plantações do
mais lindo verde; e as árvores, embora ainda mal enfolhadas, estavam
naquele belo momento em que a folhagem mais ampla se anunciava, na
época em que, embora muito já esteja à vista, muito mais é sugerido à
imaginação. Aquela alegria, entretanto, era apenas sua; Edmund não
podia ver nada. Olhou para ele, mas este estava de costas à paisagem,
mergulhado numa depressão mais profunda do que antes, com os olhos
fechados, como se a visão da felicidade o oprimisse, quisesse afastar dos
olhos as amáveis cenas do parque natal.
Essa visão tornou-a também melancólica. E a consciência do
sofrimento que grassava naquela casa por mais moderna, arejada e bem
situada que fosse, envolvia-a num melancólico aspecto.
Pelo menos por uma certa parte dos sofredores, eram os viajantes
esperados com uma impaciência que aquela casa nunca conhecera antes.
Mal Fanny passara entre a solene ala de criados, Lady Bertram veio
ao seu encontro, irrompendo a sala. Caminhava em passos sem
indolência. E agarrando-se ao pescoço da moça, exclamou:
– Fanny querida! Agora vou ter consolo.

CAPÍTULO 47

Formavam um desventurado grupo, cada um dos três se


imaginando mais desditoso. Mrs. Norris, entretanto, a mais ligada a
Maria, era quem sofria mais. Maria era o seu ídolo, a mais querida de
todos. Aquele casamento fora idéia sua, pensar nele, ou nele falar enchia-
lhe o coração de orgulho, e aquela conclusão quase a esmagava.
Transformara-se numa criatura diferente, silenciosa, estupidificada,
indiferente a tudo que se passava. De nada lhe servia agora ter ficado
cuidando da irmã e do sobrinho, com toda a casa sob sua
responsabilidade. Sentia-se incapaz de dirigir ou ordenar nada, e até
mesmo de se fingir de útil. Quando era realmente atingida pela aflição,
toda a sua atividade ficava entorpecida, e nem Lady Bertram nem Tom
receberam dela o menor amparo, ou sequer uma tentativa de amparo.
Não fazia mais por eles do que eles faziam um pelo outro. Todos estavam
solitários, desesperados, e igualmente desamparados; e agora a chegada
dos outros estabelecia apenas para Mrs. Norris a sua superioridade na
desgraça. Seus companheiros estarem aliviados porém nada lhe servia a
ela. Edmund foi quase tão bem recebido pelo irmão quanto Fanny pela
tia. Mas Mrs. Norris, em vez de procurar consolar-se com alguém, sentia-
se ainda mais irritada ao contemplar a pessoa que, na cegueira do seu
ódio, desempenhara no drama o papel de demônio. Houvesse Fanny
aceito Mr. Crawford, e nada teria acontecido.
Susan, também, era um agravo. Não lhe concedeu senão uns poucos
olhares de repulsa, porém via na pequena uma espiã, uma intrusa, uma
sobrinha indigente, – qualidades todas odiosas. Pela outra tia, Susan foi
recebida com serena bondade. Lady Bertram não lhe pôde dispensar
muito tempo, nem muitas palavras mas a fez sentir, como irmã de Fanny,
ter um título seguro à boa vontade de Mansfield, e estava pronta à beijá-
la e a amá-la. E Susan sentia-se mais que satisfeita, pois já estava
inteiramente ciente de que não deveria esperar senão mau humor da
parte da tia Norris. E tinha em si uma tal provisão de felicidade, um tal
contingente de alegria, um tal refúgio contra inevitáveis aborrecimentos,
que teria afrontado impavidamente uma dose de indiferença muito maior
do que a recebida.
Ficou entregue a si mesma, a fim de tomar conhecimento da casa e
do jardim, como melhor o pudesse; e gastou alegremente vários dias
nesse ofício, pois todos que poderiam se preocupar com ela estavam
atarefados demais em cuidar das pessoas a seu cargo; Edmund, tentando
abafar seus próprios sentimentos em palavras de estímulo ao irmão, e
Fanny, inteiramente devotada à tia Bertram, voltando ao seu antigo
encargo com mais zelo ainda que outrora, e pensando que nunca faria o
suficiente para aquela que parecia tanto carecer do seu auxílio.
Todo o consolo de Lady Bertram consistia em falar com Fanny a
respeito do terrível acontecimento, falar e lamentar-se. Ouvi-la e ampará-
la, dizer-lhe em resposta palavras de simpatia e bondade era tudo o que
Fanny podia fazer em seu benefício. Consolo de outra espécie estava fora
de questão; o caso não o admitia. Lady Bertram não era capaz por si só
de raciocinar profundamente a respeito de qualquer coisa; porém, guiada
por Sir Thomas, pensava com justeza a respeito de vários pontos
importantes; e via portanto, em toda a sua enormidade, o que acontecera,
e de modo nenhum diligenciava, nem pedia a Fanny que a ajudasse a
atenuar a importância do crime e da infâmia.
Suas afeições não eram agudas nem o seu espírito tenaz. Depois de
algum tempo, Fanny já não considerava impossível guiar-lhe os
pensamentos noutra direção, ou reviver o antigo interesse pelas suas
ocupações habituais; mas enquanto Lady Bertram estava ainda fixada no
caso, só podia enxergá-lo a uma única luz: a perda de uma filha, e uma
vergonha que nunca poderia ser apagada.
Fanny soube por ela todas as particularidades que já haviam
transpirado. A tia não era uma narradora metódica, porém com o auxílio
de várias cartas escritas ou recebidas por Sir Thomas e com o que ela
própria já sabia, e podia razoavelmente combinar, Fanny pôde em breve
compreender tudo quanto desejava a respeito das circunstâncias
referentes à história.
Mrs. Rushworth partira, para Twickenham, a fim de lá passar as
férias da Páscoa, com uma família com a qual acabava de estreitar
amizade; uma família de maneiras vivas e agradáveis, e provavelmente de
moral e de discrição como seria de desejar, porque na casa deles Mr.
Crawford tinha acesso constante, em qualquer tempo. Lá os dois
conviviam, como vizinhos, do modo que Fanny já conhecia. Enquanto isso,
Mr. Rushworth fora para Bath, para lá passar alguns dias em companhia
da mãe, e trazê-la depois de volta para a cidade, deixando Maria em
poder de tais amigos, sem nenhuma restrição, sem nem sequer a
companhia de Julia; Julia voltara para Wimpole Street, há uma ou duas
semanas atrás, em visita a alguns parentes de Sir Thomas; mudança essa
que atualmente o pai e a mãe inclinavam-se a supor que fora feita para
facilitar a aproximação com Mr. Yates. Pouco depois da volta dos
Rushworths a Wimpole Street, Sir Thomas recebera uma carta de um
velho e particular amigo seu, de Londres, o qual tendo ouvido falar a
respeito de coisas seriamente alarmantes, recomendava a imediata ida de
Sir Thomas a Londres, a fim de usar sua influência junto à filha contra
uma certa intimidade que já a estava expondo a comentários
desagradáveis, e que evidentemente colocavam mal Mr. Rushworth.
Sir Thomas preparava-se para agir de acordo com o que lhe
recomendava a carta, sem ter comunicado o seu conteúdo a pessoa
nenhuma de Mansfield, quando recebeu nova missiva, enviada pelo
mesmo amigo, que lhe participava a quase desesperada situação em que
estava o negócio do pessoal jovem. Mrs. Rushworth abandonara o teto
conjugal; Mr. Rushworth estava em grande cólera e mortificação contra
ele (Mr. Harding) pelo seu aviso; Mr. Harding, aliás, receava realmente
ter cometido em suma, uma flagrantíssima indiscrição. A criada de Mrs.
Rushworth (mãe) fazia ameaças alarmantes; ele fizera tudo que estava
em seu poder para pacificar as coisas, com esperança na volta de Mrs.
Rushworth, mas se sentia fortemente combatido em Wimpole Street
graças à influência da velha Mrs. Rushworth; desse modo, as piores
conseqüências eram de recear.
Essa terrível comunicação não pôde ser escondida do resto da
família. Sir Thomas partiu, Edmund acompanhou-o e os outros ficaram
num estado de horrorosa ansiedade, inferior contudo ao que se seguiu ao
recebimento das cartas vindas de Londres. Tudo agora estava público; a
criada de Mrs. Rushworth mãe, tinha conhecimento dos fatos todos, e,
apoiada pela patroa, não silenciara nada. As duas senhoras, no curto
espaço de tempo em que haviam vivido juntas, não se tinham estimado; e
a amargura da sogra contra a nora era talvez muito mais devida ao pouco
respeito com que fora tratada do que a sentimento pelo filho.
Por isso ou por aquilo, estava indomável; mas fosse a velha embora
menos obstinada, e fosse menos dura com o filho, que sempre se deixava
guiar pelo seu último conselheiro, o caso parecia sem esperanças, porque
Mrs. Rushworth não aparecera ainda, e havia razão de sobra para se
concluir que ela entrara em entendimento com Mr. Crawford, que
também deixara a casa do tio, alegando uma viagem, no próprio dia em
que Maria se ausentara.
Sir Thomas, apesar de tudo, continuava ainda um pouco mais em
Londres, na esperança de descobri-la e arrebatá-la a novos destinos,
embora tudo já estivesse perdido no que se referia ao seu bom nome.
Fanny podia bem imaginar qual seria o presente estado de espírito
do tio. Não havia senão um dos seus filhos que não fosse para ele uma
fonte de desventura. A doença de Tom piorara muito com o choque
recebido graças à conduta da irmã; e a sua convalescença fora tão
grandemente retardada, que a própria Lady Bertram se alarmara com
isso, transmitindo fielmente ao marido todos os seus sustos.
E a fuga de Julia, o golpe adicional que o ferira justamente por
ocasião de sua chegada a Londres, embora, dadas as circunstâncias do
momento, a sua força se houvesse amortecido, Fanny sabia bem que o
devia ter afetado profundamente. As cartas do tio exprimiam bem quanto
ele o deplorava. Sob outras circunstâncias, não seria aquela uma aliança
mal recebida; mas o fato de tê-la combinado tão clandestinamente, ter
escolhido um tal período para a sua realização, colocava os sentimentos
de Julia numa luz desfavorabilíssima, e agravava severamente a loucura
da sua escolha. Sir Thomas considerava aquilo uma ação má, feita da pior
maneira, e no pior tempo; e embora Julia fosse mais perdoável do que
Maria, mais louca do que perdida, ele não podia deixar de considerar o
passo que ela dera como a abertura das piores possibilidades, que a
poderiam levar a um fim idêntico ao da irmã. E Fanny aliava-se ao tio, e
compartilhava de sua apreensão.
Por isso, sofria mais agudamente por ele; o pobre pai só em
Edmund poderia encontrar consolo. Cada um dos outros filhos lhe
torturava o coração. Felizmente o desagrado do tio contra ela própria,
Fanny o esperava, raciocinando ao inverso de Mrs. Norris, deveria ter
desaparecido. Ela deveria estar justificada. Mr. Crawford confirmara
amplamente, com sua conduta, a recusa de Fanny, porém isso, embora
muito importante para ela própria, deveria ser um pobre consolo para Sir
Thomas. O desgraçado do tio era terrível para ela; mas que poderiam
fazer em seu benefício a justificação, ou a gratidão e o afeto da sobrinha
por ele? Só Edmund é que poderia consolar.
Ela estava enganada, entretanto, quando supunha que Edmund não
dava também desgostos ao pai, naquele momento. Eram desgostos de
natureza muito menos pungente do que os proporcionados pelos outros;
porém Sir Thomas pensava na felicidade do filho, tão profundamente
atingida pela conduta da irmã e do amigo; via-se afastado para sempre da
mulher a quem cortejava com indiscutível afeição e com fortes
probabilidades de êxito; uma mulher que, em todos os pontos, menos ao
que se referia ao seu desprezível irmão, representava uma escolha
excelente. Sir Thomas tinha a certeza de que Edmund sofria por sua
própria conta, em adição a tudo o mais, enquanto estavam ambos em
Londres: vira ou adivinhara os sentimentos do filho; e tendo razão de
pensar que se realizara uma entrevista com Miss Crawford, dessa
entrevista decorrera para Edmund uma crescente tristeza; por isso o pai,
ansioso por afastá-lo da cidade, pedira-lhe que levasse Fanny para a
companhia da tia, visando não só aliviar à mulher como ao filho.
Fanny não estava no segredo dos sentimentos do seu tio, nem Sir
Thomas no segredo do caráter de Miss Crawford. Houvesse ele assistido
às conversas da moça com o filho, e não desejaria esse casamento,
embora o seu dote de vinte mil libras subisse a quarenta mil.
Era assunto fora de dúvida, para Fanny, que Edmund deveria se
considerar para sempre afastado de Miss Crawford; e embora ela
soubesse que ele pensava da mesma maneira, a sua própria convicção era
insuficiente. Ela pensava que ele devia proceder assim, mas quis ter a
certeza. Se ele lhe falasse com a mesma ausência de reservas que
empregava dantes, seria mais consolador; porém isso já não acontecia.
Raramente o via; e nunca o via só. Ele provavelmente evitava ficar só em
companhia da prima. Que poderia Fanny inferir daí? Que o espírito de
Edmund estava inteiramente dominado pela sua parte especial e mais
amarga naquela aflição de família; mas que esse sentimento era por
demais profundo para ser tratado ligeiramente. Tal seria decerto o seu
estado de espírito. Ele deveria gemer de dor, mas dessa espécie de
sofrimentos dos quais não se pode falar. Tinha ainda que esperar muito
para ouvir dos lábios de Edmund o nome de Miss Crawford, e para que se
restabelecesse a onda de confidências que eles dantes mutuamente
trocavam.
E aquilo durava. Haviam chegado a Mansfield na quinta feira e já
estavam na noite de domingo, quando Edmund começou a lhe falar sobre
o assunto. Sentado em companhia dela, durante toda a tarde do domingo,
era uma oportunidade que qualquer pessoa aproveitaria, tendo um amigo
ao alcance da mão, para abrir o coração e dizer tudo que havia a dizer.
Ninguém mais estava na sala, só Lady Bertram que, depois de ouvir um
sermão comovente, fazia questão de dormir. Era impossível deixar de
falar. E Edmund começou a falar com os preâmbulos habituais, chegando
dificilmente ao ponto que visava, depois da usual declaração de que só a
importunaria por alguns poucos minutos, e nunca mais ocuparia sua boa
vontade com o mesmo assunto; ela não deveria recear uma repetição;
seria um assunto doravante inteiramente proibido entre eles; entrou
depois num luxo de minúcias e sensações do máximo interesse para ele
próprio e também para aquela com cuja afetuosa simpatia ele
inteiramente contava.
Pode-se imaginar com que curiosidade Fanny o escutava, com
quanta dor e quanta delícia, com que atenção lhe observava a voz,
embora os olhos dela de fixassem cuidadosamente em qualquer outro
objeto, menos no primo. O exórdio era alarmente. Ele vira Miss Crawford.
Fora convidado a visitá-la. Lady Stornaway lhe mandara um bilhete,
transmitindo-lhe o convite. E considerando essa entrevista como o último
encontro amigável que eles poderiam ter, atribuindo-lhe todos os
sentimentos de vergonha e desolação naturais naquele momento à irmã
de Crawford, procurara-a num estado de espírito idêntico, tão
enternecido, tão devotado, que nesse passo da narração foi impossível a
Fanny não se assustar com o desenlace da entrevista. Mas quando ele
prosseguiu na história, os seus receios se apagaram. Mary o recebera,
com um ar sério, é bem verdade, – sério e agitado, porém antes que ele
lhe pudesse dirigir uma palavra inteligível, ela entrara pelo assunto com
uma desenvoltura que o chocara.
– “Soube que estava na cidade”, disse a moça, “Queria muito vê-lo.
Precisamos falar sobre esse triste negócio. Que é no mundo que se pode
igualar à loucura dos nossos dois irmãos?” Eu não pude responder –
prosseguiu Edmund – porém creio que meus olhos falaram, e ela sentiu
como eu a censurava. Como sente ela as coisas rapidamente! Com um
olhar mais grave, acrescentou então: “Não pretendi defender Henry às
expensas da sua irmã”. Pôs-se então a falar, embora o que ela dissesse
não fosse inconveniente, seria difícil poder repeti-lo a você. Não me posso
recordar das suas palavras. E se as recordasse, não gostaria de me
demorar nelas. A substância do que me disse era sobre a sua cólera ante
a “loucura” dos dois. Censurava a loucura do irmão fugindo com uma
mulher de quem não gostava, abandonando a mulher a quem adorava;
porém censurava ainda mais a loucura da pobre Maria, sacrificando uma
situação como a que tinha, metendo-se em tais dificuldades, acreditando
no amor de um homem que, entretanto, há tão pouco tempo claramente
lhe mostrara a sua indiferença. Eu próprio deveria ter percebido isso. –
Ah, Fanny, ouvir a mulher amada não achar para aquilo outro nome senão
“loucura”! Descrever aquilo tão voluntariamente, tão friamente, tão
livremente! Sem relutância, sem horror, sem timidez feminina, e, ousarei
dizê-lo? sem modéstia nem repugnância! Eis o que o mundo faz de uma
moça! Onde encontraríamos entretanto, Fanny, uma mulher tão
ricamente dotada pela natureza? Corrompida! Corrompida!
Depois de um instante de reflexão, ele mergulhou numa espécie de
calma desesperada.
– Quero contar tudo a você; depois o assunto ficará encerrado para
sempre. Ela via no caso não só apenas uma loucura, mas loucura selada
pelo escândalo. Lamentava a falta de discrição, de cuidado, a ida dele
para Richmond, ao mesmo tempo em que ela fora para Twickenham; ter-
se ela posto a mercê de uma criada; eram em suma esses erros, e não o
crime, – oh, Fanny! – que Mary reprovava. Reprovava a imprudência que
levara as coisas a tal extremidade, e obrigara o irmão a abandonar todos
os seus mais queridos projetos, para acompanhá-la na fuga.
Edmund parou.
– E então – perguntou Fanny, supondo-se obrigada a dizer alguma
coisa – que lhe disse você?
– Nada, nada de compreensível. Eu estava como um homem
siderado. Ela então começou a falar em você, lamentando, tanto quanto o
podia, a perda de... falou muito racionalmente. Mas fez justiça a você:
“Ele foi desprezado”, disse ela, “por uma mulher como jamais tinha
encontrado outra igual, antes. Ela o teria assentado, tê-lo-ia feito feliz
para sempre”. Minha queridíssima Fanny, espero estar lhe dando mais
prazer do que desgosto com esse retrospecto que deveria ser feito, mas
que jamais será renovado. Você preferiria que eu calasse? Se o quer,
basta que me lance um olhar, ou diga uma palavra, e eu me calarei.
Não lhe foi dado um olhar, nem uma palavra.
– Graças a Deus – continuou ele. – Sempre nos admiramos das
coisas, mas me parece uma das mais misericordiosas decisões da
Providência ter permitido que o coração que não conheceu malícia,
também não sofresse. Ela falou a seu respeito com muito apreço e com a
mais cálida afeição; mas mesmo nisso, havia um traço de maldade;
porque, a meio do que dizia, ela exclamou: “Por que Fanny não o quis? Foi
tudo culpa dela. Menina tola! Nunca a perdoarei. Se ela o houvesse
aceito, como o devia, estariam agora prestes a casar, e Henry estaria tão
feliz e tão entretido que não pensaria em mais coisa nenhuma. Ele, antes,
não gastara o menor esforço para fazer as pazes com Mrs. Rushworth.
Tudo teria terminado num flerte normal, durante futuras estadias em
Sotherton e em Everingham”. Você imagina isso possível, Fanny? Porém
agora o encanto está quebrado. Meus olhos se abriram.
– Mulher “cruel” – disse Fanny. – Alma crudelíssima! Num momento
como esse, achar lugar para ironias, falar com leviandade, e
principalmente a você! Crueldade consumada!
– Você acha isso crueldade? Pois divergimos nesse ponto. Não, ela
não é de natureza cruel. Ela naturalmente não imaginava que iria chocar
meus sentimentos. O mal jaz mais profundamente, jaz na sua ignorância
total, na sua absoluta incompreensão da existência de tais sentimentos;
na perversão de espírito que faz lhe parecer muito natural tratar um tal
assunto da maneira como o tratou. Ela falou como costuma falar a
respeito de outros temas, como imagina que qualquer outra pessoa
falaria. Não há nisso nenhuma intenção maléfica. Ela não queria,
voluntariamente, proporcionar desgostos desnecessários a ninguém, e,
embora eu me engane, não posso pensar senão que quanto a mim, quanto
aos meus sentimentos, ela... O que lhe falta, a ela, são princípios, Fanny;
tem o sentimento da delicadeza embotado, o espírito corrompido, viciado.
Talvez assim seja melhor para mim, porque a sua perda me causa muito
menos desgosto. Digo menos desgosto, mas não sei; porque eu preferia
sofrer desgostos dobrados, por perdê-la, do que pensar dela o que penso
atualmente. E eu lhe disse.
– Você disse?
– Sim. Quando partia, disse-o.
– Quanto tempo vocês estiveram juntos?
– Vinte e cinco minutos. Ela começou a dizer que o que restava a
fazer, era tentar casá-los aos dois. E falou nisso, Fanny, com uma voz tão
firme que eu não a posso reproduzir aqui.
E Edmund foi obrigado a silenciar mais uma vez, para acalmar-se, e
continuar depois:
– “Podemos persuadir Henry a casar com ela”, continuou Mary,
“apelando para a sua honra; e se eu tiver a certeza de que ele afastou
para sempre a idéia de Fanny, não desesperarei de obter isso. Ele tem
que desistir de Fanny. Não acredito agora que mesmo ele possa ter mais
êxito com uma moça da espécie dela, de modo que espero não
encontraremos dificuldades insuperáveis. Minha influência, que não é
pequena, será toda dirigida nesse sentido. E uma vez casados, e
devidamente apoiados pelas famílias, – famílias respeitáveis, como todos
nós somos – podem de certo modo recuperar a sua posição na sociedade.
É verdade que nunca serão admitidos em certos círculos; mas, com bons
jantares, grandes festas, haverá sempre muita gente que há de apreciar o
seu convívio; nessas questões há hoje muito mais liberdade e
condescendência que antigamente. Segundo eu soube, seu pai está
calmo; não o deixe intervir para estragar a própria causa. Convença-o a
deixar que as coisas sigam o seu próprio curso. Se ele, de qualquer
forma, induzi-la a deixar a proteção de Henry, haverá então muito menos
probabilidades de se casarem, do que se continuarem vivendo juntos. Eu
sei que só dessa maneira ele pode ser influenciado. Faça com que Sir
Thomas confie nos sentimentos de honra e compaixão do meu irmão, e
tudo acabará bem; porém se ele procurar recuperar a filha, tudo estará
estragado”.
Depois de repetir isso Edmund estava tão emocionado que Fanny,
fitando-o silenciosa mas ternamente, chegava quase a lamentar que se
tivesse falado em tal assunto. Afinal, ele continuou:
– Agora, Fanny, está quase tudo dito. Já lhe contei o principal do que
ela me disse. Logo que pude falar, disse-lhe que ao entrar em sua casa, eu
julgaria impossível que coisa alguma no mundo fosse capaz de me fazer
sofrer mais intensamente do que eu sofria; porém cada uma das suas
frases me havia vibrado um golpe mais profundo. Que, embora durante
todo o tempo do nosso conhecimento eu houvesse observado que nossas
opiniões freqüentemente divergiam, nunca chegara a supor que a
divergência pudesse chegar a um tal extremo. O modo pelo qual ela
tratava o terrível crime cometido por seu irmão e minha irmã (sobre a
qual pesava a maior responsabilidade, eu não o pretendia negar), – o
modo pelo qual ela ainda aludia ao próprio crime, censurando-o, mas
justificando-o; considerando todas as suas dolorosas conseqüências
apenas para estudar meios de afrontá-las e limitá-las, num desafio à
decência, e a imprudência no erro; e no fim de tudo, e acima de tudo,
recomendando-nos a nós todos cumplicidade, condescendência,
aquiescência à continuação do pecado, em consideração a um casamento,
que, sabendo o que sei de Crawford, deveria antes ser evitado do que
desejado; tudo isso tristemente me convencia de que eu nunca a
compreendera realmente antes, e que a moça a quem eu estava pronto a
me prender para sempre, desde alguns meses atrás, não era Miss
Crawford, mas uma criatura inventada por minha imaginação. Isso,
talvez, era melhor para mim; teria menos a lamentar pela perda de uma
amizade, sentimentos, esperanças, que de certo modo, me estariam agora
atormentando. E entretanto eu devia e queria confessar, preferiria
infinitamente ver de muito aumentado o meu desgosto ao partir, e tê-la no
mesmo conceito em que a tinha antes, conservando o direito de lhe
conceder a mesma estima e ternura. Foi isso o que eu disse, pelo menos o
essencial do que disse; mas você há de imaginar que não falei calma e
metodicamente como o estou repetindo aqui. Ela estava estupefata,
inteiramente estupefata, – mais até do que isso. Vi a mudança de sua
atitude. Ficou rubra; e eu imaginava ver se desenrolando nela num misto
de sentimentos diversos, uma curta porém forte luta: em parte o desejo
de gritar a verdade, em parte uma noção de vergonha; mas o hábito, o
hábito venceu tudo. Ela queria rir, se o pudesse. E foi numa espécie de
riso que me respondeu: “Fez-me uma boa leitura, palavra de honra. É
parte do seu último sermão? Desse jeito, depressa o senhor converterá
todo o mundo, em Mansfield Park e Thorton Lacey; e da próxima vez em
que ouvir falar no seu nome, será como um famoso pregador, em alguma
grande sociedade de metodistas, ou como missionário, nalgum país
estrangeiro”. Tentou falar asperamente, mas não conseguia ser tão
áspera quanto o desejava. Eu lhe respondi apenas que, do fundo do meu
coração, desejava a sua felicidade; que espetava firmemente vê-la um dia
pensando com mais justeza; que lhe devia o melhor dos conhecimentos
que se pode adquirir: o conhecimento de mim mesmo e do meu dever,
através das lições da aflição; e deixei imediatamente a sala. Mal eu tinha
dado alguns passos, Fanny, quando ouvi abrirem a porta, atrás de mim.
“Mr. Bertram!” Olhei para trás. “Mr. Bertram”, disse ela com um sorriso,
mas o sorriso acompanhava mal a conversa que se travara entre nós – um
sorriso provocante, destinado decerto a me subjugar; pelo menos foi isso
que me pareceu. Eu resisti. No momento, era o meu impulso único
resistir, e continuei a caminhar. Desde então, muitas vezes, lamentei não
ter voltado atrás, porém sei que fiz bem, e que aquilo foi o fim de nossas
relações. Que relações aquelas! Como me decepcionaram. Irmão e irmã
me decepcionaram igualmente. Agradeço a sua paciência, Fanny. Esta
conversa foi para mim um imenso alívio. Agora acabamos com o assunto.
E tal era a dependência de Fanny das palavras dele que, durante
cinco minutos, pensou que o assunto estava acabado. Mas apesar disso,
ele voltou ao tema, ou a algo muito parecido, e nada, senão o despertar
súbito de Lady Bertram pôde realmente encerrar a conversa. Antes que
isso acontecesse, puseram-se a falar de Miss Crawford, de como ela o
prendera, de como a natureza a fizera encantadora, e que excelente
criatura não teria sido se, a tempo, houvesse caído em boas mãos. Fanny,
tendo agora a liberdade de falar abertamente, julgou-se mais que
justificada em acrescentar ao atual conhecimento de Edmund sob o
caráter real da moça, algumas explicações sobre o papel que teria
desempenhado o estado de saúde de Tom sobre os desejos de uma
completa reconciliação por parte de Mary. Aquilo não era uma insinuação
agradável; e a natureza das criaturas sempre resiste a suspeitas dessa
natureza. Sempre fora muito grato a Edmund o espetáculo do grande
desinteresse de Mary na sua afeição por ele; porém sua vaidade não era
forte bastante para lhe levar de vencida a razão. Ele acabou por admitir
que a doença de Tom deveria tê-la influenciado – reservando para si
apenas este pensamento consolador: que considerando-se as
incompatibilidades recíprocas ela, decerto, afeiçoara-se muito mais a ele
do que seria de esperar, e por essa razão estivera muito próxima de agir
com correção. Fanny pensava identicamente; como ambos também
ficaram inteiramente de acordo no irreparável efeito, na indelével
impressão que aquele desapontamento deixaria no espírito de Edmund. O
tempo, indubitavelmente, abranda muitos sofrimentos, mas havia naquela
mágoa algo que nunca poderia ser vencido: jamais ele poderia encontrar
outra mulher que... era-lhe impossível imaginar isso sem indignação. A
amizade de Fanny seria a única coisa a que ele se apegaria, doravante.

CAPÍTULO 48
Deixemos que outras penas descrevam o crime e o desgosto. Eu por
mim abandono esses odiosos temas o mais rapidamente que posso,
impaciente por restituir todos os que não foram propriamente pecadores
a um tolerável bem estar.
No que se refere à minha Fanny, com efeito, tenho a satisfação de
dizer que era feliz, a despeito de tudo. Ela tinha que ser uma criatura
feliz, a despeito de tudo que sentia, ou através do que sentia pela
infelicidade dos que lhe viviam ao redor. Tinha fontes naturais de alegria
que lhe exigiam uma saída qualquer. Voltara a Mansfield Park, era feliz,
era amada; livrara-se de Mr. Crawford; e quando Sir Thomas voltou,
apesar do melancólico estado de espírito do tio, ela teve provas
constantes de sua aprovação completa através dos contínuos olhares que
lhe lançava. E por mais felicidade que isso tudo lhe trouxesse, Fanny se
sentiria feliz sem nada disso, apenas graças à satisfação de imaginar que
Edmund já não era mais o joguete de Miss Crawford.
É verdade que Edmund estava ainda muito longe de se sentir feliz.
Ele sofria desapontamento e saudade, lamentando o que se passara e
suspirando pelo que já não mais viria. Ela sabia o que era isso, o que lhe
dava tristeza. Era porém uma tristeza baseada em satisfação, com tal
tendência otimista, e tão mais em harmonia com outras sensações
agradáveis, que quase se felicitava por ela.
Sir Thomas, pobre Sir Thomas, pai que era, e cônscio dos seus erros
como pai, era o que mais intensamente sofria. Sentia que não devia nunca
ter consentido no casamento; que o conhecimento que tivera dos
sentimentos da filha era o suficiente para o tornar culpado pelo
consentimento dado; que ao autorizá-lo, sacrificara o direito à
conveniência, e se deixara dominar por motivos egoístas e de ambição
mundana. Essas meditações requeriam bastante tempo para serem
aliviadas. Porém o tempo faz quase tudo. E apesar do pequeno consolo
que poderia ter, relativamente à Mrs. Rushworth e à desgraça que ela
provocara, fora-lhe mais fácil acomodar as coisas em relação à outra
filha. O casamento de Julia mostrou ser uma questão muito menos
desesperadora do que parecera a princípio. Ela era humilde e desejava
ser perdoada; e Mr. Yates, desejoso de ser realmente recebido na família,
estava disposto a olhar menos para si, e decidido a deixar-se guiar. Não
tinha um caráter sólido, mas havia esperanças de que se tornasse menos
fútil, e se tornasse mais tolerável na intimidade, e mais discreto; de certo
modo, foi um consolo descobrir que a sua fortuna era muito melhor, e
suas dívidas muito menores do que se receara a princípio; e considerado
e tratado como amigo, haveria de melhorar, decerto muito. O estado de
Tom era também consolador: sua saúde voltava, sem que ele tornasse à
negligência e ao egoísmo dos seus hábitos antigos. A doença o fizera
melhor do que nunca o fora antes. Sofrera, e aprendera a pensar: duas
vantagens que ele nunca conhecera outrora. E as censuras que fez a si
mesmo por ocasião do deplorável acontecimento de Wimpole Street, no
qual ele colaborara muito graças à perigosa intimidade proporcionada
pelo seu injustificável teatro, impressionaram-lhe fortemente o espírito.
Como tinha apenas vinte e seis anos, e não lhe faltavam inteligência nem
boas companhias, os efeitos produzidos por essas reflexões e sofrimentos
foras excelentes e duradouros. Tom tornou-se no que realmente deveria
ser: útil ao pai, firme e austero, deixando de viver apenas para si próprio.
E ainda havia mais outra alegria. Porque, ao mesmo tempo que Sir
Thomas progredia nesses caminhos de consolo, Edmund contribuía
também para o seu alívio, melhorando singularmente no único ponto em
que contristara o pai: mudando de estado de espírito. Depois de passear e
de se sentar sob as árvores, em companhia de Fanny, durante todas as
tardes do verão, ele por tal forma dominava o espírito, que já se podia
mostrar toleravelmente alegre.
Eram essas as circunstâncias e as esperanças que gradualmente
reanimavam Sir Thomas, destruindo-lhe a mágoa pelo que perdera, e
reconciliando-o em parte com si próprio, pois verificava que o desgosto
provocado pela convicção dos seus próprios erros na educação dos filhos
não era inteiramente justificado.
Depressa começou a compreender como pode ser desfavorável ao
caráter dos jovens o contraste entre os dois diversos tratamentos que
Maria e Julia haviam recebido em casa: a excessiva indulgência e lisonja
da tia em oposição constante à severidade paterna. Viu quão mal ele
raciocinara, supondo vencer o que havia de errado no sistema de Mrs.
Norris pelo seu sistema oposto; viu claramente que não fizera senão
aumentar o mal, ensinando-as a se reprimirem em sua presença,
mantendo-lhe desconhecidas as suas tendências reais, e entregando-as à
indulgência de uma criatura que só seria capaz de prendê-las graças à
cegueira de sua afeição e aos excessos de adulação.
Fora esse o erro mais ponderável; mas, por pior que fosse, Sir
Thomas gradualmente começou a enxergar que não fora esse erro
sozinho o principal engano do seu plano de educação. Algo faltara, ou
fora destruído pelos maus efeitos do tempo. Ele receava que um
princípio, um princípio ativo, houvesse faltado; elas nunca haviam
propriamente aprendido a governar suas inclinações e temperamentos
por amor a esse sentimento do dever que, só ele, pode suprir tudo.
Haviam sido instruídas teoricamente na sua religião, porém nunca lhes
haviam exigido uma prática religiosa diária; a distinção obtida graças à
elegância e prendas – objetivo autorizado à juventude, – pode não ter
influência útil nem efeito moral sobre o espírito. Ele quisera encaminhar
bem as filhas, porém os seus cuidados se tinham dirigidos aos
conhecimentos e às maneiras, e não aos sentimentos; e por necessidade
de justificativa e humildade, o pai receava que jamais as filhas houvessem
escutado, dos lábios de quem quer que fosse, algo que lhes pudesse
servir moralmente.
Deplorava amargamente uma deficiência que dificilmente o poderia
compreender agora como é que ela fora possível. E sentia,
desgraçadamente, que apesar de todo o dinheiro e cuidados que gastara
numa atenta e dispendiosa educação, ele afastara as filhas da
compreensão dos seus deveres elementares e não aproveitara nem o seu
caráter nem o seu temperamento.
O ardente espírito e as fortes paixões de Mrs. Rushworth,
especialmente, só lhe chegaram ao conhecimento através dos seus maus
resultados. Não houve como persuadi-la a deixar Mr. Crawford. Esperava
a princípio casar-se com ele, e viveram juntos até que ela se convencesse
que tal esperança era vã; o desapontamento e o desgosto que lhe trouxe
tal convicção lhe azedaram por tal modo o gênio, e lhe encheram o
coração de tanto ódio por ele, que durante algum tempo esse seu mau
gênio constituiu a punição recíproca de ambos, e acabou por induzi-los a
uma separação voluntária.
Ela vivera com ele sob a acusação de ter arruinado todas as suas
esperanças de felicidade com Fanny, e ao deixá-lo, não levava consigo
outra consolação senão de os ter separado. E que poderá superar a
desventura de um espírito de uma mulher, em tal situação?
Mr. Rushworth não teve dificuldades em obter um divórcio; e assim
viu terminado um casamento, do qual o melhor que poderia dizer era que
felizmente fora cancelado. Ela o menosprezara, amara outro; e ele fora
muito bem merecedor disso. As indignidades da estupidez e os
desapontamentos de uma paixão como o egoísmo só podem provocar uma
medíocre piedade. A punição lhe seguiu a conduta, e uma punição muito
mais séria seguiu o crime muito mais sério da sua esposa. Ele porém não
se sentia livre da obrigação de estar mortificado e infeliz, até que outra
linda moça conseguiu atrai-lo; e tentando um outro casamento, ele
contava, – e era de esperar – fazê-lo sob melhores auspícios do que o
primeiro: se fosse enganado, que o fosse ao menos com bom humor e boa
sorte; enquanto ela teve que lutar com sentimentos muito mais fortes, e
ingressar numa vida de recolhimento, sob a censura geral, – males que
não poderiam jamais ser aliviados por um novo florescimento de
esperanças ou de caráter.
O lugar onde ela poderia viver tornou-se um motivo da mais
melancólica e oportuna cogitação; Mrs. Norris, cuja afeição parecia
aumentar na razão inversa dos méritos da sobrinha, pretendeu que ela
fosse recebida em Mansfield, e respeitada por todos. Sir Thomas porém
não lhe deu ouvidos; e o ódio de Mrs. Norris por Fanny aumentou,
pensando que a residência dela, lá, era motivo da recusa. E insistiu em
atribuir a Fanny a razão dos escrúpulos do pai, embora Sir Thomas lhe
garantisse que mesmo que não tivesse uma moça em casa, mesmo que
nenhuma pessoa da casa fosse ameaçada pelos perigos da convivência
com Mrs. Rushworth, nunca insultaria a sua vizinhança com o espetáculo
da sua presença lá. Como filha, – e como penitente, ele o esperava, – ela
seria protegida por ele, teria o seu conforto assegurado, e apoiada por
todo estímulo a que tivesse direito e que as suas situações respectivas
admitissem; porém mais do que isso não poderia fazer. Maria destruíra
sua reputação; e ele não iria, numa vã tentativa de reabilitar o que não
poderia ser reabilitado, sancionar o pecado, ou tentar diminuir o seu
opróbrio, arriscando outra família, mediante tal exemplo, a sofrer
desgraça idêntica à sua.
Terminou a questão com a partida de Mrs. Norris, que deixou
Mansfield resolvida a dedicar-se à infortunada Maria; ambas foram
instaladas em outra região, longínqua e pouco conhecida, onde,
freqüentando pouca gente, faltando afeição a uma, e à outra um juízo são,
poder-se-ia razoavelmente supor que os seus temperamentos recíprocos
seriam a sua recíproca punição. A mudança de Mrs. Norris de Mansfield
foi um toque suplementar para o consolo da vida de Sir Thomas. Suas
opiniões a respeito da cunhada tinham baixado muito, desde o dia de sua
chegada de Antigua; em cada transação em que se haviam empenhado
desde então, no convívio diário, em negócios, e até mesmo na palestra,
ela fora sempre perdendo terreno na sua estima; convencera-se de que
lhe superestimara o valor e se deslumbrara com as suas maneiras,
outrora. Passara a considerá-la uma desgraça, que parecia não dever
cessar senão com a vida; ela lhe parecia uma parte dele próprio, que ele
deveria carregar consigo para sempre. E ver-se portanto aliviado de tal
fardo, era uma felicidade tão grande, que não houvesse ela deixado tão
amargas recordações após si, teria havido perigo que bendissesse o mal
que lhe trouxera um tal benefício.
Mrs. Norris não deixava saudades a ninguém, em Mansfield. Nunca
conseguira prender nem mesmo a quem mais amava, e desde a fuga de
Mrs. Rushworth, seus nervos viviam num tal estado de irritação que
constituíam um tormento para todos. Nem sequer Fanny teve lágrimas
para a tia Norris, – mesmo quando ela partia para sempre.
O fato de Julia ter tido melhor sorte que Maria, era devido, em
grande parte, a uma favorável diferença de disposição e circunstâncias;
porém era também devido a ter sido ela querida da tia, menos adulada e
menos estragada. Sua beleza e prendas só lhe tinham valido um segundo
lugar. Ela própria já se acostumara a se considerar um pouco inferior a
Maria. O seu gênio era naturalmente o melhor, entre as duas; seus
sentimentos, embora vivazes, eram mais controláveis e a educação que
recebera não lhe dera uma tão alta idéia da sua própria importância.
Recebera muito melhor o desapontamento que lhe causara Henry
Crawford. Depois da primeira amargura, ao convencer-se que fora
tratada levianamente, conseguira mais ou menos bem pensar em outras
coisas e esquecê-lo; e quando o convívio se reatou, e a casa de Mr.
Rushworth voltou a ser freqüentada constantemente por Crawford, ela
teve o mérito de afastar-se dele, e escolheu esse tempo para pagar a
visita a outros amigos, a fim de evitar ver-se de novo atraída pelo rapaz.
Por essa razão fora para a casa dos primos. O entendimento com Mr.
Yates não tivera nada em comum com isso; ela vinha há algum tempo
recebendo as suas atenções, porém com pouca idéia de o aceitar; a
conduta da irmã precipitara os fatos e o seu crescente terror pelo pai e
pela volta à sua casa, em tais circunstâncias, fê-la imaginar que as
imediatas conseqüências do fato seriam um aumento de severidade e
restrições; por isso procurou de qualquer modo e a qualquer risco evitar
tais horrores que a ameaçavam; se não fora isso, provavelmente Mr. Yates
nunca teria obtido nada. Ela não fugira senão levada por esses alarmas
do egoísmo: a fuga lhe aparecera como a única coisa que poderia fazer. O
crime de Maria provocara a loucura de Julia.
Henry Crawford, arruinado por uma excessiva independência e pelo
mau exemplo doméstico, entregou-se por um tempo mais longo aos
caprichos da sua fria vaidade. Uma vez essa vaidade o guiara, embora
imerecidamente, para os caminhos da felicidade; se se houvesse satisfeito
com a amigável afeição de uma mulher, se houvesse encontrado em si
mesmo estímulo suficiente para vencer a sua relutância, trabalhando para
obter a estima e a ternura de Fanny Price, – teria tido todas as
probabilidades de felicidade e êxito. Sua afeição já conquistara terreno.
Sua influência sobre ele, já provocara, reciprocamente, alguma influência
dele sobre ela. Houvesse servido melhor, e não há dúvidas que teria
obtido muito mais, especialmente depois de realizado o casamento dando-
lhe a assistência da consciência dela, dominando a primeira inclinação da
moça, e unindo-se, e unindo-os para sempre. Tivesse ele perseverado, e
Fanny teria sido o seu prêmio, e um prêmio voluntariamente concedido,
depois de um razoável período após o casamento de Edmund e Mary.
Houvesse ele feito o que pretendia, e houvesse cumprido o que devia,
indo para Everingham depois de sua volta de Portsmouth, teria decidido o
seu destino dum modo a lhe trazer felicidade. Porém ele não quis perder
a festa de Mrs. Fraser; e a sua demora tivera as mais graves
conseqüências, pois provocara o encontro com Mrs. Rushworth.
Curiosidade e vaidade entraram em jogo, e a tentação de um prazer
imediato era forte demais para um espírito jamais habituado a fazer
sacrifícios ao dever; por isso Henry resolvera adiar a viagem a Norfolk;
resolvera depois realizar seus propósitos por escrito, sem ir lá; e decidira
afinal que tais propósitos não tinham importância, e ficou. Viu Mrs.
Rushworth, foi recebido por ela com uma frieza que o deveria ter
afastado e estabelecido para sempre, entre eles, uma aparente
indiferença; ele porém se sentira mortificado, e não pôde suportar ver-se
assim tratado pela mulher cujos sorrisos haviam sido seus; sentiu-se
induzido a vencer aquele orgulho que mascarava um ressentimento;
estava encolerizado por causa de Fanny; podia vingar-se disso, e
transformar Mrs. Rushworth na antiga Miss Bertram.
Com tais idéias iniciou o ataque, e, perseverante, em breve
restabeleceu-se a antiga troca de galanterias e de convívio íntimo, de
flerte, a que se limitavam os seus desígnios; mas triunfando da discrição
da moça, que, embora significasse ódio, poderia ser a salvação de ambos,
Henry se pusera sob o domínio de sentimentos que, do lado de Maria,
eram muito mais fortes do que ele o supusera. Maria o amava; e ele fora
arrastado apenas pela vaidade, sem, durante um minuto sequer, afastar o
seu pensamento de Fanny. O seu primeiro objetivo foi manter Fanny e os
Bertrams na ignorância do que se estava passando. E para a reputação de
Mrs. Rushworth, nada seria melhor do que aquele segredo, que ele
procurava em benefício de si próprio. Quando Henry voltou de Richmond,
gostaria de nunca mais se avistar com Mrs. Rushworth. Tudo o que se
seguiu depois foi resultado da imprudência dela; e se ele concordou em
fugir com Maria, ao fim de tudo, foi porque já não o poderia evitar; a todo
momento lamentava a perda de Fanny, porém começou a lamentá-la
muito mais quando o alarido do escândalo já se acalmara e vários meses
já o haviam ensinado, pela força dos contrastes, a dar o mais alto valor à
meiguice do seu gênio, à pureza do seu espírito, e à excelência dos seus
princípios.
Aquela outra punição, a punição pública ao erro, embora numa
medida justa aquinhoasse a parte dele no crime, não é, nós todos o
sabemos, uma das barreiras com que a sociedade cerca a virtude.
Na sociedade raramente o castigo é proporcional ao crime; porém,
sem exigir demais para o futuro, pode-se facilmente considerar que um
homem de inteligência como Henry Crawford, angariara, por seu ato,
uma volumosa provisão de vexame e de mágoa; vexame oriundo, na
maioria das vezes, da censura íntima; mágoa e vergonha por ter desse
modo pago a hospitalidade e ferido a paz de uma família; custara-lhe o
seu ato a sua melhor, mais estimável, mais querida amizade, custara-lhe a
perda da mulher que ele amara tão sincera e apaixonadamente.
Depois do que se passara, separando e envergonhando tanto as
duas famílias, teria sido muito penosa a continuação daquelas íntimas
relações de vizinhança entre os Bertrams e os Grants. Os Grants porém
resolveram se afastar deliberadamente durante vários meses,
afastamento que terminou, por felicidade, se transformando numa
mudança definitiva. O Dr. Grant, que há muito perdera a esperança de ver
realizada essa promessa, foi nomeado para um canonicato em
Westminster, o qual, proporcionando-lhe uma oportunidade de deixar
Mansfield, um pretexto para a sua atual residência em Londres, e um
acréscimo de renda que justificava a mudança, era uma desculpa
aceitável tanto para os que ficavam como para os que partiam.
Mrs. Grant, com um gênio que a destinava a amar e a ser amada,
deveria se ter afastado com muitas saudades dos lugares e das pessoas a
que já estava tão habituada; porém essas mesmas ditosas disposições
tornavam-na apta a se sentir feliz em qualquer lugar, e em qualquer
companhia; além disso, ela tinha ainda um lar para oferecer a Mary;
Mary, que já estava farta dos seus amigos, farta de vaidade, ambição,
amor e desapontamento com que se vira cercada nesses últimos seis
meses, carecia bem do sincero coração da irmã e da ajuizada
tranqüilidade de suas opiniões. Passaram a morar juntas; e quando o Dr.
Grant morreu, vítima de uma apoplexia, em conseqüência de três jantares
oficiais na mesma semana, continuaram juntas, ainda. Porque Mary,
embora absolutamente determinada a não se prender jamais a nenhum
outro filho segundo, custava muito a encontrar entre os elegantes e
conhecidos ociosos herdeiros que viviam submetidos à sua beleza e ao
seu dote de vinte mil libras, alguém que lhe satisfizesse o gosto apurado
pelo convívio em Mansfield, alguém cujo caráter e cujas maneiras lhe
dessem esperanças daquela felicidade doméstica que ela aprendera a
apreciar, – alguém que afastasse definitivamente de sua lembrança a
figura de Edmund Bertram.
Edmund tinha sobre ela uma grande vantagem, nessa questão.
Fanny não teve que esperar, de coração vazio, por uma nova afeição,
digna dela. Mal, um dia, começava a falar, diante de Fanny, das suas
saudades de Miss Crawford e a lhe dizer como considerava impossível
encontrar jamais outra mulher igual a ela, feriu-o de súbito uma dúvida:
se uma mulher completamente diferente não seria a mesma coisa para o
seu coração, ou talvez muito melhor; e se a própria Fanny não se estava
tornando mais querida, mais importante para ele do que Miss Crawford
nunca o fora, com seus sorrisos e suas opiniões ousadas. E se não seria
realizável a empresa de a persuadir que o seu quente e fraternal olhar
para o primo era uma base excelente para um grande amor conjugal.
Faço questão de me abster de datas, ao contar isso. Cada leitor
deve ter a liberdade de fixar suas próprias datas, calculando para a cura
de paixões infelizes, e a mudança de imutáveis afeições; a duração dessas
coisas tem que variar muito, de pessoa para pessoa, de maneira que deixo
a cada um a faculdade de pensar que a modificação sobreveio exatamente
no tempo em que seria natural que ela se operasse; que Edmund, sem
uma semana só de antecedência ao tempo devido, deixou de pensar em
Miss Crawford , e começou a ficar tão ansioso de casar com Fanny quanto
a própria Fanny o poderia desejar.
Com o olhar dela, é verdade, – o olhar com que ela há muito o
olhava, onde se traduziam os mais ternos apelos da inocência e do
carinho, que seria mais natural do que essa mudança?
Amando- a, guiando-a, protegendo-a como ele o fazia desde que
Fanny tinha dez anos de idade, com o espírito em tão grande parte
formado graças aos cuidados dele, seu consolo dependendo da bondade
do primo, constituindo para ele um objeto de tão cerrado e singular
interesse, mais querido por essa importância pessoal perante ela do que
qualquer outra pessoa em Mansfield, não será preciso acrescentar senão
que ele precisava apenas aprender a preferir uns meigos olhos claros a
outros olhos de luz escura e ardente. E como vivia sempre na companhia
dela, falando-lhe confidencialmente, com os seus sentimentos naquele
estado favorável que um desapontamento traz, os olhos claros e meigos
não demoraram muito a obter absoluta preeminência.
Realizado isso, nada mais haveria a detê-lo no caminho da
felicidade: nenhuma dúvida sobre a nobreza de alma de Fanny, nenhum
receio sobre incompatibilidades de gostos ou de temperamentos. O
espírito dela, suas disposições, opiniões, hábitos não precisavam ser
disfarçados a meio; não haveria decepções presentes, nem desconfianças
para o futuro. Mesmo no auge da sua paixão anterior, nunca deixara de
reconhecer a superioridade de espírito de Fanny. Imagine-se como sentia
ele tal superioridade, agora! Ela era, naturalmente, boa demais para ele;
porém como não havia mais ninguém suficientemente digno dela,
prosseguia firmemente nos esforços para obter tal benção dos céus, e
seria possível que o consentimento dela se fizesse esperar muito tempo.
Tímida, medrosa, desconfiada de si como ela era, era contudo impossível
que uma ternura como a de Edmund não percebesse a sua fortíssima
esperança de êxito. Fanny, entretanto passou ainda algum tempo para lhe
dizer toda a deliciosa e admirável verdade.
A felicidade dele ao saber que era há tempo amado por um tal
coração deveria ser grande bastante para lhe garantir uma esplêndida
eloqüência a fim de a descrever a Fanny ou a si próprio; e era realmente
uma delirante alegria. Porém havia além da dele outra alegria que
descrição nenhuma pode igualar. Imagine-se quais seriam os sentimentos
de uma moça recebendo as juras de um amor sobre o qual nunca se
permitira ter esperanças.
Ajustados os seus sentimentos, não havia dificuldades em torno,
nenhum recuo devido a pobreza ou parentela. Era um casamento que os
desejos de Sir Thomas haviam antecipado. Ferido por ambiciosas e
mercenárias uniões, prezado cada vez mais o bem supremo que emana
dos princípios e do espírito, e principalmente, ansioso por ligar por laços
mais fortes o que lhe restava de felicidade doméstica, ele há muito
cogitava com íntima satisfação na possibilidade de encontrarem os dois
amigos mútua consolação ante os recíprocos desapontamentos que ambos
haviam sofrido. E o seu alegre consentimento ao pedido de Edmund, a
sua confiança de ter feito uma importante aquisição obtendo Fanny como
filha, realizavam um contraste com as suas antigas opiniões a esse
respeito, quando a pobre pequenina lhe chegara em casa; é próprio do
tempo alterar os planos e decisões dos mortais, para o seu próprio
aprendizado e divertimento dos outros.
Fanny era de fato a filha que ele desejava. Sua caridosa meiguice
fora o primeiro consolo para o seu coração de pai, tão magoado. A
liberalidade do nobre senhor foi pois ricamente paga, e a bondade de
suas intenções para com ela não foram perdidas. Ele poderia ter feito a
sua meninice mais feliz; porém um erro de julgamento dera-lhe um
aspecto de rudeza, privando-o dos primeiros anos do seu carinho; e
agora, quando ambos realmente se conheciam um ao outro, a sua afeição
mútua tornou-se muito forte. Depois de a ter estabelecido em Thorton
Lacey , com os mais ternos cuidados pelo bem estar dos filhos, o seu
objetivo diário era ir até lá, visitá-la, ou trazê-la até Mansfield.
Egoísta como era a estima que tinha a Fanny, Lady Bertram não a
pôde vir partir de coração alegre. Felicidade nenhuma da sobrinha ou do
filho poderiam fazê-la desejar tal casamento. Porém foi possível realizar a
separação porque Susan ficou para substituir a irmã. Susan tornou-se a
sobrinha estacionária, e muito contente com isso. E era igualmente
dotada para esse destino graças à correção do seu espírito, à sua
prestabilidade natural, como Fanny o fora pela meiguice de gênio e fortes
sentimentos de gratidão. Susan nunca pôde ser dispensada. Primeiro
como companhia para Fanny, depois como auxiliar, no fim como sua
substituta, estabeleceu-se em Mansfield sob as mesmas aparências da
irmã e com igual permanência. Sua natureza menos tímida e nervos mais
sólidos tornaram-lhe as coisas muito mais fáceis do que para a outra.
Compreendeu rapidamente o gênio daqueles com quem ia conviver, e sem
nenhuma timidez que a inibisse, depressa se tornou utilíssima a todos; e
depois do casamento de Fanny, substituiu-a tão naturalmente junto à tia,
que gradualmente se foi tornando talvez até a mais querida das duas. Ela
era indispensável, Fanny era um anjo, William continuava sempre correto
e subindo na carreira, e todos os outros membros da família eram em
geral bem sucedidos, uns sempre auxiliando a ascensão dos outros; Sir
Thomas só enxergava motivos para se felicitar pelo que fizera por todos, e
reconhecia as vantagens de uma precoce disciplina e dificuldade de vida,
e a consciência de se ter nascido para lutar e sofrer.
Baseada em tantas qualidades verdadeiras e tão verdadeiro amor,
sem cobiça de fortuna nem de amigos, a felicidade dos primos casados
merecia ser considerada como uma das coisas mais sólidas deste pobre
mundo. Formados igualmente para a vida doméstica, amantes dos
prazeres do campo, seu lar era a casa do amor e do bem estar. E para
completar tanta ventura, a morte de Mr. Grant, e a conseqüente vacância
da paróquia de Mansfield ocorreram justamente quando Edmund e Fanny
já estavam casados a tempo suficiente para desejarem um aumento de
renda, e considerarem uma inconveniência a distância em que viviam da
casa paterna.
Mudaram-se então para Mansfield. E o Presbitério, do qual, sob os
seus antigos donos, Fanny jamais se aproximara sem uma penosa
sensação de constrangimento ou de alarma, depressa se tornou querido
ao seu coração e tão perfeito aos seus olhos quanto o eram todas as
coisas que viviam sob as vistas e o patrocínio de Mansfield Park.
FIM

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