Jane Austen - Mansfield Park
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Mansfield Park
Jane Austen
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
O novo amigo, o ilustre John Yates, não tinha muito que
recomendasse além dos hábitos de sociedade e de ser o filho mais moço
de um lorde com relativa independência; Sir Thomas provavelmente não
teria aprovado de forma alguma a sua apresentação em Mansfield. Mr.
Bertram travara relações com ele em Weymount, onde, durante dez dias,
tinham freqüentado a mesma sociedade e amizade, se amizade podia se
chamar, tinha-se estabelecido e consolidado com o convite feito a Mr.
Yates de passar por Mansfield quando tivesse oportunidade, e ele
apareceu até muito mais cedo do que era de esperar, em conseqüência de
se ter dissolvido um grande grupo ao qual se juntara ao sair de Weymount
e que se reunira em casa de outro amigo. Veio muito desapontado e com a
cabeça cheia de idéias de teatro, pois o divertimento da reunião tinha
sido ensaiar cenas teatrais. A peça em que ele tomava parte devia ser
representada dali a dois dias, quando a morte repentina de um dos
parentes mais próximos da família destruiu o projeto e dispersou os
atores. Estar tão perto da felicidade, tão perto da fama, tão próximo de
um longo artigo elogiando os amadores de Ecclesford, que naturalmente
imortalizaria todo o grupo por no mínimo doze meses! E estando assim
tão próximo, perder tudo, era uma injustiça das mais cruéis. Yates não
sabia falar de outra coisa. Ecclesford com o teatro, os preparativos e
vestuários, ensaios e pilhérias, era o seu assunto interminável e o consolo
era contar vantagem do passado.
Felizmente para ele, o gosto pelo teatro é tão geral, o desejo de
representar tão forte entre as pessoas jovens, que ele podia falar à
vontade sem cansar os ouvintes. Desde o início da combinação das partes
até o epílogo, tudo era fascinante e poucos havia que não tivessem
desejado tomar parte na representação, ou que hesitassem experimentar
seus talentos. A peça escolhida tinha sido a “Lover’s Vows” (Juras de
Amor), e Mr. Yates faria o papel de Conde Cassel.
– Um papel muito insignificante – disse ele – de que eu não gostei
absolutamente e que certamente não aceitaria de novo; mas estava
disposto a não criar dificuldades. Lorde Ravenshaw e o duque, quando eu
cheguei em Ecclesford, já se tinham apropriado dos dois únicos papéis
que valiam a pena representar; e embora Lorde Ravenshaw se oferecesse
para me ceder o seu papel, era impossível aceitar, vocês sabem. Tinha
pena dele por ter se enganado tanto no julgamento de suas capacidades,
pois se assemelhava tanto ao Barão como... – é um homenzinho com uma
voz muito fraca, sempre rouco depois dos primeiros dez minutos.
Materialmente deveria estragar a peça; eu porém tinha resolvido não
fazer as coisas difíceis. Sir Henry achou que o duque não podia
representar o papel de Frederico, mas o caso é que Sir Henry queria o
papel para si próprio; no entanto o papel estava em boas mãos.
Surpreendeu-me ver como Sir Henry é obstinado. Felizmente a força da
peça não dependia dele. A nossa Agatha era incomparável e muitos
acharam o duque muito bom. No todo, a peça certamente seria levada
admiravelmente.
“Foi um caso sério, palavra”; e “Concordo que os senhores foram
realmente dignos de pena”, eram as simpáticas manifestações dos
ouvintes.
– Não vale a pena lastimar; mas por certo a velha megera não
poderia ter morrido em pior ocasião. Era impossível não se desejar que a
notícia fosse abafada por mais três dias. Apenas três dias; e afinal de
contas, era apenas a avó, e a morte, tendo ocorrido a trezentos e tantos
quilômetros de distância, creio que não haveria grande prejuízo. Sei até
que houve quem sugerisse isso; mas Lorde Ravenshaw, que é, suponho
eu, um dos homens mais corretos da Inglaterra, não quis saber de tal
história.
– Uma tragédia em vez de comédia – disse Mr. Bertram. – “Juras de
Amor” posta de lado e Lorde Ravenshaw e senhora representando “Minha
Avó” em família. Bem, a herança o deve consolar; e, entre nós ele já
estivesse temendo o fracasso e os pulmões no papel do Barão e até tenha
gostado de acabar com o brinquedo; e para você não ficar triste, Yates,
proponho fazermos um pouco de teatro aqui em Mansfield e o convido
para nos dirigir.
Isto, embora fosse idéia de momento, não terminou ali; pois a
disposição para representar tinha despertado em todos e em ninguém
com mais força do que nele próprio, que agora era o chefe da casa; tão
poucas eram suas preocupações, que encontrava prazer em qualquer
novidade; e além disso tinha um talento e um gosto para coisas cômicas
que se adaptava exatamente à novidade de representar. A idéia se repetiu
freqüentes vezes. – Oh, poder fazer uma experiência como a de
Ecclesford! – As duas irmãs foram logo a favor; e Henry Crawford para
quem em todo o tumulto de seus prazeres, este era ainda desconhecido,
ficou animadíssimo com a idéia.
– Acredito sinceramente – disse ele – que neste momento estou
suficientemente louco para fazer qualquer papel jamais escrito, desde
Shylock ou Ricardo III até ao trovador de uma farsa, com sua capa
escarlate e chapéu de pena. Sinto que poderia representar qualquer coisa
ou todas as coisas; que poderia declamar, ou suspirar, ou dizer tolices em
qualquer tragédia ou comédia escrita em língua inglesa. Vamos fazer
qualquer coisa. Que seja a metade de uma peça, um ato, uma cena
apenas; que é que nos impede? Não há de ser por causa desses
semblantes, acrescentou virando-se para Miss Bertram. E quanto ao
teatro, que significa um teatro? Vamos apenas nos divertir. Qualquer sala
desta casa serve.
– Precisamos de uma cortina – disse Tom Bertram; – alguns metros
de feltro verde para fazer um pano e talvez seja o bastante.
– Ora, mais que suficiente! – exclamou Mr. Yates, – com apenas um
bastidor ou duas saídas, e três ou quatro cenários para trocar; não se
precisaria mais nada para uma representação como esta. Para nos
divertirmos entre nós mesmos, não precisamos de mais nada.
– Acho que até com menos ficaríamos satisfeitos – disse Maria. –
Não se tem muito tempo e poderiam aparecer outras dificuldades.
Devíamos de preferência adotar a idéia de Mr. Crawford e fazer apenas
um representação, e não um teatro. Muitas partes das nossas melhores
peças são independentes de cenários.
– Nada disso – disse Edmund que começava a ficar alarmado. – Não
devemos fazer nada pela metade. Se temos que representar, que seja num
teatro completamente instalado com ponto, camarote a galerias e com
uma peça completa do princípio ao fim; que seja uma boa peça alemã,
não importa qual, com uma cena final bem frívola, artificial, e um número
de dança, com gaita de fole e uma canção nos intervalos. Se não fizermos
mais do que Ecclesford, não faremos nada.
– Ora, Edmund, não seja implicante – disse Julia. – Ninguém gosta
mais de teatro do que você.
– Realmente, mais para ver teatro de verdade, para ver uma boa
peça bem representada; mas por coisa alguma me abalaria desta sala
para a sala pegada para assistir aos esforços de gente inexperiente que
não nasceu para o ofício; um grupo de cavalheiros e senhoras que teriam
de lutar contra todas as desvantagens da educação e do decoro.
Depois de um intervalo, porém, o assunto ainda persistia e foi
discutido com o mesmo entusiasmo, o interesse de cada um aumentando
com a discussão e o conhecimento do interesse dos outros; embora nada
ficasse estabelecido senão que Tom Bertram preferia uma comédia e as
irmãs e Henry Crawford preferiam drama e que nada seria mais fácil do
que encontrar uma peça que satisfizesse a todos, a resolução de
representarem qualquer coisa parecia tão decidida, que Edmund se
sentiu embaraçado. Estava resolvido a impedir, se possível, que levassem
a idéia avante, apesar de sua mãe, que igualmente ouvia a conversa, não
mostrar a mínima desaprovação.
Naquela mesma noite teve oportunidade de experimentar sua
autoridade. Maria, Julia, Henry Crawford e Mr. Yates estavam na sala de
bilhar. Tom, ao voltar para a sala de visitas, onde Edmund se achava
pensativamente junto à lareira, enquanto Lady Bertram no sofá, um
pouco distante, com Fanny a seu lado, se ocupava de um trabalho
qualquer, foi dizendo logo à entrada:
– Uma mesa de bilhar tão horrivelmente abjeta como a nossa não
deveria existir. Não a suporto mais, e acho, posso dizer, que nada me
induzirá a aproximar-me dela de novo; mas de uma coisa estou certo:
aquela é exatamente a sala indicada para um teatro, precisamente da
forma e do comprimento para isto; e as portas do fundo, comunicando
uma com a outra, como se arranjará em cinco minutos, unicamente com a
remoção da estante de livros no gabinete de papai, é perfeita para o que
nós queremos. Se ao menos tivéssemos chegado a um acordo! E o
gabinete de papai seria um excelente bastidor. Parece que está de
propósito ao lado da sala de bilhar.
– Você não está levando a sério, Tom, esta idéia de representação? –
disse Edmund em voz baixa quando o irmão se aproximou da lareira.
– Se estou levando a sério! Nunca estive tão sério, posso lhe
assegurar. Por que você se surpreende tanto com isto?
– Acho que seria um grande erro. Num ponto de vista geral, as
comédias de salão já estão sujeitas a muitas objeções, mas nas
circunstâncias em que nos achamos, acho que seria a maior falta de juízo,
mais do que falta de juízo, tentar qualquer coisa neste gênero. Seria
mostrar uma grande falta de respeito a papai, estando ele ausente e por
assim dizer em constante perigo; além disso, seria imprudente, parece-
me com respeito a Maria, cuja situação é muito delicada, – considerando
tudo, – extremamente delicada.
– Você leva tudo tão a sério! Como se nós fôssemos representar três
vezes por semana até papai voltar e convidar toda a vizinhança. Mas não
se pretende fazer uma exibição desta espécie. Não queremos senão nos
divertir entre nós mesmos, apenas para variar um pouco e experimentar
nosso talentos em alguma coisa nova. Não queremos nem assistência nem
publicidade. Acho que teremos bom senso suficiente para escolher
alguma peça que seja perfeitamente irrepreensível; e não concebo maior
prejuízo ou perigo para qualquer de nós conversar na linguagem elegante
escrita por qualquer autor respeitável em vez de tagarelarmos com
nossas próprias palavras. Não tenho receios nem escrúpulos. E quanto ao
fato de papai estar ausente, está tão longe de ser uma objeção que não a
considero um obstáculo; até ao contrário, esse período de ansiedade por
que mamãe está passando até ele chegar, deve ser horrível para ela; se
nós pudermos distrai-la um pouco dessa ansiedade e manter o seu ânimo
erguido durante essas duas semanas que faltam, acho que nosso tempo
terá sido bem empregado e estou certo que o será. É um período de
grande inquietação para ela.
Ao dizer isto, ambos olharam para a mãe. Lady Bertram, afundada
num dos cantos do sofá, perfeita imagem da saúde, opulência, bem estar
e tranqüilidade, estava começando a cochilar docemente, enquanto Fanny
se incumbia do trabalho dela.
Edmund sorriu e sacudiu a cabeça.
– Por Júpiter! Isto não adianta – exclamou Tom jogando-se numa
cadeira com uma risada. – Para falar a verdade, minha boa mãe, a sua
ansiedade – qual, não tive sorte.
– Que foi? – perguntou ela com a voz abafada de quem está meio
dormindo. – Eu não estava dormindo, não.
– Oh não, querida mamãe, ninguém está dizendo isto! Bem Edmund,
– continuou ele, voltando ao assunto, à atitude e à voz anterior, logo que a
mãe recomeçou o cochilo – mas uma coisa eu mantenho: é que não
havemos de fazer nada que possa causar qualquer dano.
– Não concordo com você; estou convencido de que papai não
aprovaria a idéia de forma alguma.
– Pois estou convencido do contrário. Ninguém tem mais gosto em
exercitar o talento das pessoas jovens e estou certo que ele sempre
demonstrou prazer por qualquer coisa no gênero de representações,
declamações e recitações. Quando nós éramos criança ele era o primeiro
a nos animar para essas coisas. Quantas vezes choramos sobre o cadáver
de Julio César nesta mesma sala, para divertimento dele?
– Mas aquilo era muito diferente. Você mesmo sabe que era
diferente. Papai queria que nós, como estudantes, falássemos bem, mas
nunca desejaria ver suas filhas moças representando peças de teatro.
Sabe como ele é severo nestas questões de decoro.
– Sei tudo isto, – disse Tom aborrecido – conheço papai tão bem
quanto você; e terei o cuidado de ver que as filhas dele não façam nada
que o possam contrariar. Cuide de seus próprios interesses e deixe o
resto da família por minha conta.
– Se você está resolvido a representar, – insistiu Edmund – espero
ao menos que o faça de modo ligeiro e quietamente; e sou de opinião que
não deviam pensar em fazer um teatro. Seria tomar liberdades com a
casa na ausência de papai, o que não se justifica.
– Assumo a responsabilidade por tudo o que acontecer – disse Tom
decidido. – A casa não será maculada. Meu interesse em cuidar desta
casa é tão grande quanto o seu; e quanto às alterações que acabei de
sugerir, tais como remover uma estante ou abrir uma porta, ou mesmo
usar a sala de bilhar durante uma semana para outro fim, você podia do
mesmo modo supor que papai fizesse objeção a que nós
permanecêssemos mais nesta sala do que na sala de almoço como
fazíamos antes dele partir, ou que o piano de minha irmã fosse removido
de um lado da sala para o outro. Tolices!
– A inovação, se não é um erro como inovação, sê-lo-á pela despesa.
– Sim, a despesa de um tal empreendimento seria prodigiosa!
Talvez não custe ao todo umas vinte libras. Alguma coisa que se pareça
com um teatro teremos que arranjar, isto não há dúvida, mas será tudo
muito simples; uma cortina verde e algum trabalho de carpintaria e é
tudo; e como o trabalho de carpintaria pode ser todo feito aqui mesmo
por Christopher Jackson, é até absurdo falar em despesa; contanto que
empreguemos Jackson, Sir Thomas não terá nada a dizer. Não imagine
que ninguém nesta casa possa ver ou julgar senão você. Você próprio não
precisa tomar parte, se não quiser, mas não queira governar os outros.
– Não, e quanto a eu mesmo representar, – disse Edmund – a isto eu
sou absolutamente contra.
Tom saiu da sala deixando Edmund sentado junto à lareira,
mergulhado em profunda meditação.
Fanny que ouvira tudo e que estava de acordo com Edmund, através
de toda a discussão, tentou neste momento confortá-lo dizendo:
– Talvez eles não consigam encontrar nenhuma peça que lhes sirva.
As opiniões de seu irmão e as de suas irmãs parecem muito diferentes.
– Não tenho esperança neste ponto, Fanny. Se eles persistirem no
projeto, acabarão encontrando alguma coisa. Falarei com minhas irmãs e
tentarei dissuadi-las. É tudo que posso fazer.
– Tenho para mim que a tia Norris ficará de seu lado.
– Acredito que sim, mas ela não tem bastante influência nem com
Tom nem com minhas irmãs para poder conseguir alguma coisa; e se eu
mesmo não conseguir convencê-los, deixarei que as coisas tomem seu
rumo, sem pedir a interferência dela. Briga de família é a maior desgraça
que há e é melhor que se faça alguma coisa do que depois ter de puxar as
orelhas.
As irmãs, a quem ele falou na manhã seguinte, se mostraram
inteiramente solidárias com Tom. A mãe não fazia objeção ao projeto e
elas não tinham o menor receio da desaprovação do pai. Não poderia
haver mal numa coisa que tinha sido feita em casa de tantas famílias
respeitáveis e por tantas senhoras da melhor sociedade; e devia ser
excesso de escrúpulos ver alguma coisa que censurar num plano como o
deles, em que só eram incluídos irmãos, irmãs e amigos íntimos e que
nunca passaria deles mesmos. Julia, achou que de fato a situação de
Maria poderia exigir certo cuidado e delicadeza – mas ela não tinha nada
com isto – ela era livre; e Maria evidentemente considerava que seu
noivado, ao contrário, a elevava muito acima de qualquer
constrangimento e dava-lhe mais direito do que a Julia, de consultar pai
ou mãe. Edmund tinha pouca esperança mas continuava a discutir o
assunto quando Henry Crawford entrou na sala exclamando:
– Já não nos falta auxílio para o nosso teatro, Miss Bertram. Já
temos reforços; minha irmã manda lembranças e espera ser admitida na
companhia, e se sentirá feliz se lhe derem o papel de qualquer velha ama
ou dócil confidente, que as senhoritas mesmas não queiram desempenhar.
Maria lançou um olhar para Edmund que significava “E agora o que
diz? Será que ainda estamos errados, se Mary Crawford pensa como
nós?” E Edmund, obrigado a calar-se, teve que reconhecer que a sedução
do teatro era capaz de fascinar até os gênios; e na ingenuidade de seu
amor, apoiou-se mais na delicadeza e gentileza do recado do que em
qualquer outra coisa, para acomodar seus escrúpulos.
O projeto progredia. Oposição era inútil; e quanto a Mrs. Norris ele
se enganara pensando que faria alguma coisa. Não opunha dificuldades
que não fossem em cinco minutos dissuadidas por seus sobrinhos mais
velhos, que tinham toda a força contra ela. E como o empreendimento só
traria pequena despesa para todos e nenhuma para si própria, como
previa no projeto um mundo de consolo na pressa, barulho e importância,
e deduzira a vantagem imediata de imaginar-se obrigada a deixar sua
própria casa, onde estava vivendo há um mês à sua própria custa e
hospedar-se no Park, a fim de ficar à disposição deles, Mrs. Norris sentiu-
se, de fato, excessivamente encantada com o projeto.
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
Na verdade foi um dia de triunfo para Mr. Bertram e Maria. Uma tal
vitória sobre a prudência de Edmund estava acima de suas expectativas e
foi muito divertido. Agora já não havia mais nada para lhes perturbar o
projeto e, com grande júbilo congratularam-se entre eles pelo ciúme ao
qual atribuíam a mudança. Edmund ainda poderia se mostrar grave e
declarar que não aprovava a idéia em geral e particularmente desaprovar
a escolha da peça; a questão estava ganha; ele iria representar e tinha
sido impelido a isto unicamente por força de um sentimento egoísta.
Edmund descera daquela elevação moral em que se mantinha antes, e
ambos sentiam-se mais que felizes com esta descida.
Na ocasião, porém, portaram-se decentemente com ele, não dando
a perceber a excessiva alegria senão por um pequeno e disfarçado sorriso
e declarando estarem muito contentes por se verem livres da intrusão de
Charles Maddox, como se houvessem sido obrigados a admiti-lo contra a
vontade, na companhia. O que desejavam particularmente era que o
plano não saísse do círculo da própria família. Um estranho entre eles
teria sido um grande constrangimento; e quando Edmund, aproveitando-
se daquela idéia, insinuou que se deveria limitar os assistentes, eles, para
o agradar prontamente, prometeram submeter-se a qualquer coisa que
ele quisesse. Estavam todos de bom humor e animados. Mrs. Norris
ofereceu-se para arranjar o traje, Mr. Yates declarou que a última cena de
Anhalt com o Barão requeria muita ação e ênfase, o Mr. Rushworth se
encarregou de lhe contar os diálogos.
– Talvez agora Fanny consinta em nos auxiliar – disse Tom. – Talvez
você a possa persuadir.
– Não, ela está absolutamente decidida. Não representará, com toda
a certeza.
– Oh! Então está bem. – E não se disse mais nada; porém Fanny
sentiu-se novamente em perigo e a sua indiferença ao perigo já começava
a lhe faltar.
No Presbitério não houve menos sorrisos do que no Park em vista
da mudança de Edmund; Miss Crawford mostrou-se encantadora e
imediatamente começou a falar no assunto com grande demonstração de
alegria, o que não podia produzir senão um efeito sobre ele. Bem tivera
razão em respeitar tais sentimentos; estava contente por se ter resolvido.
E a manhã correu cheia de contentamentos que, se não eram muito
verdadeiros, pelo menos eram bastante suaves. Para Fanny resultou disso
tudo uma vantagem; em vista dos insistentes pedidos de Miss Crawford,
Mrs. Grant, com seu usual bom humor, concordou em desempenhar a
parte que estivera reservada para Fanny; e isto foi tudo o que ocorreu
durante o dia para lhe alegrar o coração; e mesmo isto, quando lhe foi
comunicado por Edmund, veio acompanhado por um sofrimento, pois foi
a Miss Crawford a quem teve de agradecer; foi Miss Crawford, cujos
bondosos esforços mereceram a sua gratidão e cujo mérito em os envidar
foi louvado com admiração ardente. Ela estava salva; mas a paz e a
salvação ali não se combinavam. Nunca sua consciência esteve mais
afastada da paz. Ela não podia deixar de se julgar com a razão, mas
estava inquieta sobre todos os pontos. Seu coração e sua consciência
estavam contra a decisão de Edmund: não se podia conformar com a falta
de firmeza dele e o seu contentamento acabrunhava-a. Estava agitada,
cheia de ciúmes. Miss Crawford parecia querer insultá-la com seus ares
de despreocupada alegria e às expressões amigáveis que lhe dirigia ela
dificilmente poderia responder com serenidade. Todos ao redor dela
estavam alegres, ocupados, florescentes e importantes; cada um tinha
seus interesses, sua parte, seu traje, sua cena favorita, seus amigos e
parceiros: todos estavam ocupados com as consultas e comparações e
divertiam-se com as cômicas concepções que das mesmas faziam. Ela era
a única triste e insignificante; não tomava parte em coisa alguma; podia
estar ou não presente; podia estar no meio da balbúrdia ou refugiar-se na
solidão da sala de Leste, sem que ninguém a visse ou desse pela sua falta.
Chegava quase a pensar que qualquer outra coisa seria preferível a essa
indiferença. Mrs. Grant estava importante; a sua boa vontade foi
mencionada com louvor; ela era procurada, seguida e elogiada; e Fanny, a
princípio, esteve em perigo de invejar a situação em que a outra se
colocara, aceitando o papel. Mas a reflexão trouxe-lhe melhores
sentimentos e mostrou-lhe que Mrs. Grant merecia consideração, o que
com ela não se teria dado; e que, por maior consideração que lhe dessem,
nunca se sentiria à vontade se viesse a associar-se a um plano que,
considerando apenas o tio, devia condenar inteiramente.
Mas o coração de Fanny não era, entre todos, o único entristecido,
como ela logo percebeu. Julia estava sofrendo também, embora não tão
inteiramente sem culpa.
Henry Crawford zombara de seus sentimentos; ela havia consentido
e até mesmo procurado as atenções dele, sabendo que havia razões para
ter ciúme da irmã, o que devia bastar para a ter curado; e agora que se
convencera da preferência dele por Maria, resignava-se, sem se
preocupar com a situação da irmã, ou sem qualquer esforço razoável pela
sua própria tranqüilidade. Permanecia em sombrio silêncio, mergulhada
numa gravidade que nada poderia subjugar, e nem mesmo a curiosidade,
nem as pilhérias a distraiam; ou então, consentindo nas atenções de Mr.
Yates, falava apenas com ele, esforçando-se por parecer alegre e
ridicularizando os outros.
Por um ou dois dias depois da afronta, Henry Crawford procurou
destruí-la com a sua habitual galanteria, mas não estava tão empenhado a
ponto de insistir depois de algumas repulsas; e em seguida, ficando
demasiadamente ocupado com a peça para ter tempo de cuidar de mais
de um namoro, tornou-se indiferente ou antes, pensou que era até uma
sorte poder terminar tranquilamente uma brincadeira que dentro em
pouco iria fazer com que outros além de Mrs. Grant nutrissem
esperanças. Esta não ficara satisfeita ao ver Julia excluída da peça, e
andando por ali desprezada. Mas como não era questão que realmente
envolvesse a sua felicidade, como Henry devia ser o melhor juiz da sua
própria felicidade e como ele lhe tinha assegurado, com o mais
persuasivo dos sorrisos, que nem ele nem Julia jamais haviam pensado
seriamente em qualquer coisa, Mrs. Grant não fez senão renovar suas
precauções anteriores sobre a irmã mais velha, aconselhando-a a não
arriscar a própria tranqüilidade demonstrando por ela demasiada
admiração; depois alegremente se dispôs a tomar parte em qualquer
coisa que trouxesse alegria ao pessoal jovem em geral e que
particularmente proporcionasse prazer aos dois a quem ela tanto amava.
– Admiro-me de que Julia não esteja apaixonada por Henry –
observou ela a Mary.
– Garanto que está – respondeu Mary friamente. – Suponho que
ambas o estão.
– Ambas! Não, não, não pode ser. Não insinue isto a ele. Pense em
Mr. Rushworth!
– É melhor que você diga a Miss Bertram que pense em Mr.
Rushworth. Talvez lhe traga algum benefício. Várias vezes penso na
propriedade e na independência de Mr. Rushworth e desejaria que
estivessem em melhores mãos; mas nele próprio não penso nunca. Um
homem com tais meios podia representar o Estado.
– Acredito que ele em breve entrará para o Parlamento. Quando Sir
Thomas vier, suponho que irá candidatá-lo a uma eleição qualquer, mas
até agora ninguém ainda se lembrou dele.
– Sir Thomas vai fazer grandes coisas quando voltar para casa –
disse Mary depois de um intervalo. – Você se lembra do “Adress to
Tobacco”, de Hawkins Brawne, na imitação de Pope?
“Bless leaf! whose aromatic gales dispense
To Templars modesty, to Parsons sense”.
Não acha que está bem, Mrs. Grant? Tudo parece depender da volta
de Sir Thomas.
– Quando você o vir garanto que lhe achará a importância muito
justa e razoável. Não estou certa de que as coisas estejam indo muito
bem sem a presença dele. Tem uma grande dignidade, tal como convém
ao chefe de uma casa como aquela, e sabe manter cada um em seus
lugares. Lady Bertram, agora, parece ainda mais nula do que quando ele
está em casa; e ninguém senão ele é capaz de conter Mrs. Norris. Mas
Mary, não imagine que Maria goste de Henry. Que Julia não goste dele
estou certa; do contrário não namoraria Mr. Yates como o fez ontem à
noite; e apesar de ele e Maria serem muito bons amigos, acho que ela
gosta demais de Sotherton, para ser inconstante.
– Eu não daria muito pela sorte de Mr. Rushworth, se Henry
resolvesse se declarar antes de terem corrido os papéis.
– Se você tem esta suspeita, precisamos fazer qualquer coisa; e logo
que termine esse negócio de teatro, falaremos com ele seriamente e o
faremos refletir sobre isto; se ele não tiver nenhuma intenção, embora ele
seja Henry, nós o mandaremos viajar por algum tempo.
Julia contudo sofreu, apesar de Mrs. Grant não o perceber e embora
muitos da sua própria família não terem igualmente notado. Tinha amado
e ainda amava, e estava passando por todos os sofrimentos que um
temperamento ardente e um caráter altivo poderiam suportar sob o
desapontamento de uma acariciada, embora irracional esperança. Seu
coração estava triste, magoado, a ela não encontrava consolo senão o
rancor. A irmã, com quem ela sempre estivera nos melhores termos de
intimidade, era agora sua maior inimiga; estavam separadas; e Julia se
comprazia com a esperança de que aquele namoro, que ainda continuava,
viesse a ter um mau fim, castigando Maria pelo procedimento vergonhoso
que estava tendo tanto com ele como para com Mr. Rushworth. Sem
efeito essencial de caráter ou divergente de opinião que as impedisse de
serem muito amigas enquanto seus interesses eram os mesmos, as duas
irmãs, submetidas a uma prova como essa, não tinham suficiente afetos
nem princípios que as fizessem julgar com clemência ou justiça, que lhes
dessem dignidade ou compaixão. Maria sentia o triunfo e prosseguia em
seu propósito, sem se preocupar com Julia; e Julia sem poder tolerar a
preferência de Henry Crawford por Maria, tinha esperança de que daí
surgisse uma ciumada e tudo acabasse num grande escândalo.
Fanny via e lastimava tudo isso em Julia; mas não havia entre elas
nenhuma espécie de camaradagem. Julia não era comunicativa e Fanny
não tomava liberdades. E as duas ficavam a sofrer isoladamente, ou
ligadas apenas pela consciência de Fanny.
O descuido dos dois irmãos e da tia pelo sofrimento de Julia e a sua
cegueira quanto à verdadeira causa, devia ser atribuído aos muitos
problemas de que suas cabeças viviam cheias. Estavam totalmente
preocupados. Tom, absorvido pelos interesses do seu teatro, não via
senão aquilo que imediatamente se relacionasse com ele. Edmund, na
alternativa do papel teatral e de seu papel real – entre os direitos de Miss
Crawford e a sua própria conduta – entre o amor e a compostura, vivia
igualmente alheio; e Mrs. Norris estando demasiadamente ocupada em
orientar e dirigir todos os pequenos arranjos da companhia,
superintendendo os diversos vestuários com econômico expediente, que
ninguém agradecia, e economizando para Sir Thomas, com admirável
probidade, meia coroa daqui e dali, não tinha tempo para observar o
procedimento sem defender a felicidade das sobrinhas.
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
O baile passou e o almoço, também, logo depois, passou; o último
beijo foi dado e William havia partido. Mr. Crawford, como o prometera,
tinha sido muito pontual; curta e agradável fora a refeição.
Depois de ver William até o último momento, Fanny voltou à sala do
almoço com o coração apertado e ficou a meditar sobre a triste mudança;
e ali o tio bondosamente a deixou chorar em paz, julgando, talvez, que as
cadeiras onde um dos rapazes havia sentado poderiam influir sobre o seu
terno entusiasmo e que as suas emoções se dividiriam entre os restos de
carne e mostarda do prato de William e as cascas de ovo do prato de Mr.
Crawford. Ela sentou-se e chorou “com amor” fraternal e não outro.
Agora que William havia partido, ela se sentia como se houvesse perdido
metade da visita do irmão em inúteis desvelos e solicitudes pessoais, que
não diziam respeito a ele.
Fanny estava numa tal disposição de espírito que não podia nem
mesmo pensar em sua tia Norris, na pobreza e melancolia de sua
pequena casa, sem exprobrar por algumas pequenas faltas de atenção a
ela na última vez em que estiveram juntas; muito menos podia seu
sentimento absolvê-la de não ter agido, dito e pensado tudo por William,
como o deveria ter feito durante toda uma quinzena.
O dia foi triste, pesado. Logo depois do segundo almoço, Edmund
despediu-se deles por uma semana, montou em seu cavalo e partiu para
Peterborough, e, então, todos tinham partido. Nada mais restava da
última noite senão as lembranças, que ela não podia compartilhar com
ninguém. Conversou com a tia Bertram, precisava falar com alguém
sobre o baile; mas a tia tinha visto tão pouco do que se passara e era tão
pouco curiosa, que a conversa não progredia. Lady Bertram não se
lembrava do vestuário de ninguém, nem dos lugares que tinham ocupado
na mesa da ceia, nem de coisa alguma, exceto o que se referia a si
mesma. “Não podia lembrar-se do que foi que ouvira sobre uma das
Misses Maddox, ou o que Lady Prescott havia notado em Fanny; não
estava certa se o Coronel Harrison se referia a Mr. Crawford ou a
William, quando disse que ele era o rapaz mais elegante do baile; alguém
havia cochichado qualquer coisa em seu ouvido; esquecera de perguntar
a Sir Thomas o que teria sido”. E essas eram as suas frases mais longas e
as comunicações mais claras: o resto era apenas um lânguido “Sim, sim;
muito bem; ah! você fez? Ele disse? Eu não notei isto; não faço diferença
entre uma e outra”. A conversa foi péssima. Só foi melhor do que seriam
as acerbas respostas de Mrs. Norris; e como esta havia voltado para casa
com todas as sobras de geléias para os dar a uma empregada doente,
houve paz e bom humor na pequena reunião das duas, se bem que tenha
havido só isto.
O serão não foi menos pesado do que o dia:
– Não sei o que se está passando comigo – disse Lady Bertram,
depois que a mesa do chá foi retirada. – Sinto-me inteiramente estúpida.
Talvez seja porque me deitei tão tarde ontem. Fanny, você precisa fazer
qualquer coisa para me conservar acordada. Não posso trabalhar. Traga
as cartas; estou tão estúpida.
Veio o baralho e Fanny jogou com a tia até à hora de dormir; e como
Sir Thomas estava lento, não se ouviu na sala durante duas horas, senão
a contagem do jogo:
– E com esta são trinta e um; quatro na mão e oito no baralho. É a
sua vez de jogar, titia; quer que eu jogue pela senhora?
Fanny não parava de pensar na diferença que vinte e quatro horas
haviam feito naquele salão e em toda a casa. Na noite precedente
houvera esperança e sorrisos, barulho e movimento, brilho, tanto no salão
como fora e em toda parte. Agora era a tristeza e tudo apenas solidão.
Com uma noite bem dormida ficou mais animada. Já podia, no dia
seguinte, pensar em William com menos tristeza; e como de manhã teve
oportunidade de falar com Mrs. Grant e Miss Crawford sobre a noite de
quinta feira, num estilo diferente e melhor, com todos os acréscimos de
imaginação e as risadas pelas pilhérias que são tão essenciais aos
comentários de um baile passado, ela pôde, depois disso, sem grande
esforço, voltar ao seu natural e facilmente conformar-se com a
tranqüilidade e a quietude da semana que corria.
Na verdade eles agora formavam um grupo muito menor do que ela
jamais vira ali, no decorrer de um dia inteiro e ele, de quem
principalmente dependiam o conforto e a animação de cada uma das
reuniões da família, havia partido. A isto, porém, ela teria que se
acostumar. Muito breve ele partiria para sempre; e ela agradecia ainda
agora poder estar na mesma sala com o tio, ouvir a sua voz e mesmo
responder às suas perguntas sem se sentir tão infeliz como antigamente.
– Nossos dois rapazes estão fazendo falta – observou Sir Thomas,
tanto no primeiro como no segundo dia, quando, depois do jantar, se
achavam num círculo muito reduzido; e em consideração aos olhos de
Fanny que estavam cheios d'água, não se disse mais nada no primeiro
dia, além de beberem a saúde dos ausentes; mas no dia seguinte o
assunto se prolongou. William foi muito elogiado e falaram de sua
promoção com grande esperança. – E não há motivo para supor –
acrescentou Sir Thomas – que ele não nos possa visitar agora mais
freqüentemente. Quanto a Edmund, temos que nos habituar a viver sem
ele. Este inverno será o último que ele passará conosco.
– É – disse Lady Bertram – mas eu preferia que ele não fosse
embora. Estão todos indo, parece. Preferia que ficassem em casa.
Este desejo se referia principalmente a Julia, que justamente havia
pedido permissão para ir com Maria para a cidade; e como Sir Thomas
achara melhor para cada uma das filhas que a permissão fosse concedida,
Lady Bertram, embora por sua vontade não o tivesse impedido,
lamentava-se pela mudança havida na projetada volta de Julia, que do
contrário deveria por este tempo estar em casa. Sir Thomas expôs um
grande número de motivos para convencer a esposa a concordar com a
combinação. Tudo que um pai atento tinha que sentir foi exposto para
convencê-la e tudo que uma mãe afetuosa devia sentir ao proporcionar
alegrias a seus filhos foi atribuído ao temperamento dela. Lady Bertram
concordava com tudo com um calmo “Sim” e no fim de um quarto de hora
de muda consideração, observava espontaneamente:
– Sir Thomas, eu estive pensando – e estou muito contente por
termos trazido Fanny para casa, pois agora que todos os outros estão fora
é que podemos avaliar o bem que isto nos traz.
Sir Thomas imediatamente aperfeiçoou este cumprimento,
acrescentando:
– É verdade. Mostramos a Fanny que a achamos uma boa moça,
fazendo-lhe elogios na frente dela; ela agora é para nós uma companhia
inestimável. Se fomos bons para ela, ela agora, por outro lado, nos é
inteiramente necessária.
– Sim – respondeu Lady Bertram; – e é um consolo pensar que
nunca a perderemos.
Sir Thomas calou-se, sorriu, olhou a sobrinha de soslaio e então
respondeu seriamente:
– Espero que nunca nos deixe, até que seja convidada a morar em
outro lugar que a torne mais feliz do que se sente aqui.
– E isto não é muito provável de acontecer, Sir Thomas. Pois quem a
iria convidar? Maria talvez gostasse de a receber em Sotherton uma vez
ou outra, mas nunca a pensaria em convidá-la para morar lá; estou certa
de que ela aqui está muito melhor e, além disso, não posso passar sem
Fanny.
A semana que passou tão tranqüila e pacífica na casa grande de
Mansfield, teve um caráter muito diferente no Presbitério. Para cada uma
das moças das duas famílias, pelo menos, trouxe emoções muito
diferentes. O que para Fanny era tranqüilidade e conforto, para Mary era
tédio e aborrecimento. Questão de diferença de temperamento e hábito;
uma tão fácil de satisfazer, a outra desabituada a sofrer; mas alguma
coisa mais podia ainda ser atribuída à diferença de circunstâncias. Em
alguns pontos de interesse pessoal elas eram completamente opostas.
Para Fanny, a ausência de Edmund, justamente por seu motivo e
tendência, era realmente um alívio. Para Mary era dolorosa em todos os
sentidos. Ela sentia a falta da companhia dele, todos os dias, quase todas
as horas e irritava-se só em pensar no motivo por que ele havia partido.
Edmund não teria podido inventar nada mais capaz de aumentar o seu
prestígio do que esta semana de ausência, ocorrida, como foi, justamente
na ocasião em que o irmão dela havia partido, que William Price também
partira e completando aquela espécie de rompimento geral de um grupo
que fora tão animado. Sentia amargamente. Eles eram agora um trio
miserável, trancados dentro de casa por uma série de chuvas e neve, sem
nada que fazer e nenhuma esperança. Zangada que estivesse com
Edmund por ele seguir a própria vontade em desafio a ela (havia-se
aborrecido tanto com ele que depois do baile se tinham separado quase
como inimigos), assim mesmo, não podia deixar de pensar continuamente
no moço ausente, estendendo-se sobre as suas qualidades e afeto,
desejando de novo intensamente os encontros quase diários que tinham
ultimamente. A sua ausência não deveria ser tão longa. Ele não devia ter
planejado uma tal ausência; não deveria ter saído de casa, sabendo que
ela mesma partiria de Mansfield dentro de poucos dias. Depois começava
a culpar-se. Não lhe devia ter falado tão calorosamente na sua última
conversa. Receava ter usado de algumas expressões muito fortes e
desrespeitosas ao se referir ao clero e isto não era direito. Demonstrava
falta de educação; estava errado. Desejava de todo coração poder
desdizer tais palavras.
Seus aborrecimentos não terminaram com a semana. Tudo isto foi
muito ruim, porém ainda passou por pior quando de novo chegou a sexta
feira e Edmund não veio; quando chegou o sábado e ainda nada de
Edmund, Mary ficou sabendo, através da breve comunicação obtida no
domingo pela outra família, que Edmund havia escrito avisando que
adiara a volta, tendo prometido ficar mais alguns dias com o amigo.
Se ela estivera impaciente e arrependida antes – se havia sofrido
pelo que dissera e receara que o efeito sobre ele fosse demasiadamente
forte – agora sofria e receava dez vezes mais. Tinha, além do mais, que
enfrentar uma emoção desagradável e inteiramente nova para si – o
ciúme. O amigo dele, Mr. Owen, tinha irmãs; ele talvez as achasse
bonitas. De qualquer modo, ficar ausente numa ocasião em que, de
acordo com todos os planos anteriores, ela devia mudar-se para Londres,
significava qualquer coisa que não podia suportar. Se Henry tivesse
voltado, como prometera, no fim de três ou quatro dias, ela estaria agora
longe de Mansfield. Era imperioso que procurasse Fanny para saber
alguma coisa mais. Não poderia viver um minuto mais nesta triste
miséria; e encaminhou-se para o Park, atravessando mil dificuldades pelo
caminho que julgara intransponível uma semana antes, só com o fim de
poder ouvir um pouco mais, só com a esperança de, pelo menos, ouvir o
nome dele.
A primeira meia hora foi perdida, pois Fanny e Lady Bertram
estavam juntas e a menos que ficasse sozinha com Fanny, Mary não
poderia esperar coisa alguma. Finalmente porém Lady Bertram saiu da
sala e então, quase imediatamente, Miss Crawford começou, dando à voz,
quanto possível, um tom natural:
– E você, como suporta uma ausência tão longa de seu primo
Edmund? Sendo a única pessoa moça nesta casa, creio que é você a que
mais sofre. Deve sentir muita falta! Não está admirada de que demore
tanto?
– Não sei – respondeu Fanny hesitando. – Sim; não tinha realmente
esperado isto.
– Talvez ele tenha o costume de sempre se demorar mais do que
promete. É o que geralmente todos os rapazes fazem.
– Na última vez que Edmund foi visitar Mr. Owen, não fez isto.
– Deve ter achado o ambiente mais agradável agora. Demais, ele
próprio é um rapaz muito – muito agradável. E eu não posso deixar de
sentir pena por não o ver ainda antes de ir para Londres, como sem
dúvida acontecerá. Estou esperando Henry todos os dias e logo que ele
venha, nada me prenderá a Mansfield. Confesso que gostaria de o ver
mais uma vez. Fica você encarregada de lhe transmitir minhas
lembranças. Sim; creio que devem ser lembranças. Não acha, Miss Price,
que falta alguma coisa no nosso idioma – uma palavra entre lembrança e
saudades – que se adapte a esta sorte de camaradagem que tivemos?
Tantos meses! Mas no caso são suficientes as lembranças. A carta dele foi
muito longa? Ele lhe conta muitas coisas do que está fazendo? É por
causa das festas de Natal que vai ficar?
– Só tomei conhecimento de uma parte da carta, que foi dirigida a
meu tio; creio, porém, que foi muito curta; na verdade, penso que eram
apenas algumas linhas. Tudo que ouvi foi que o amigo tinha insistido para
que ele ficasse mais tempo e ele havia concordado. Poucos dias ou alguns
dias a mais, não tenho bem certeza.
– Oh! Se ele escreveu para o pai – eu pensei que tinha escrito a
Lady Bertram ou a você. Mas se escreveu para o pai, não admira que
tenha sido conciso. Quem se atreveria a tagarelar numa carta para Sir
Thomas? Se ele lhe tivesse escrito decerto havia mais detalhes. Você teria
conhecimento dos bailes e reuniões, pois ele lhe mandaria uma descrição
de tudo e de todos. Quantas são as Misses Owen?
– São três, já crescidas.
– Elas gostam de música?
– Não sei. Nunca ouvi dizer.
– Você sabe que é a primeira pergunta – disse Miss Crawford,
procurando mostrar-se alegre e desinteressada – que qualquer mulher
que sabe tocar, se lembra de fazer das outras. Mas é tolice fazer tal
pergunta sobre essas moças – sobre essas três irmãs apenas saídas da
infância; pois já se sabe, sem que seja preciso dizer, exatamente o que
elas são: todas três muito prendadas e interessantes e uma muito bonita.
Sempre há uma beleza em todas as famílias; é uma coisa natural. Duas
tocam piano e uma harpa; e todas cantam ou cantariam se tivessem
aprendido, e cantam justamente melhor porque não aprenderam; ou
qualquer coisa semelhante.
– Não sei nada a respeito das Misses Owen – disse Fanny
calmamente.
– Não sabe nada e ainda menos se interessa, como se costuma dizer.
De fato, que interesse se pode ter por pessoas que nunca se viu? Bem,
quando seu primo voltar, vai achar Mansfield quieto demais; todos os
barulhentos estarão ausentes, seu irmão, o meu e eu mesma. Agora que o
dia está perto, fico triste de deixar Mrs. Grant. Ela não se conforma com a
minha partida.
Fanny sentiu-se obrigada a falar:
– Você não pode duvidar de que muita gente vai sentir a sua
ausência – disse ela. – Vai nos fazer muita falta.
Miss Crawford olhou ao redor como se quisesse ouvir ou ver mais
alguma coisa, depois disse rindo:
– Oh sim! Sentirão a minha falta como se sente a falta do barulho
depois que ele se acaba; isto é, sentirão uma grande diferença. Não, não
estou lançando a isca; não precisa me elogiar. Se alguém sentir a minha
falta, logo se saberá. Aqueles que querem saber de mim, saberão me
descobrir. Não sei estar em nenhum lugar desconhecido, nem distante,
nem inacessível.
Fanny não achou o que responder e Miss Crawford ficou
desapontada; pois que ela esperava ouvir alguma agradável afirmação de
seu poder, da boca daquela que supunha bem informada, e seu espírito
ficou novamente nublado.
– Por falar nas Misses Owen – disse ela logo depois; – suponha que
você viesse a ver uma das Misses Owen instalada em Thorton Lacey: que
tal acharia isto? Têm acontecido coisas tão estranhas! Não duvido que
elas estejam tentando conseguir tal fim. E têm toda a razão, pois seria
uma linda situação. Não me admiro nem as censuro absolutamente. A
obrigação de todos é fazer tudo por si. Um filho de Sir Thomas é alguém;
e Edmund, além disso, segue a carreira tradicional da família delas. O pai
é pastor, o irmão é pastor, e todos eles juntos o são. Por direito ele lhes
pertence; e é natural que lhes pertença. Você não fala, Fanny? Miss Price,
você não diz nada? Diga, sinceramente, não acha que isto é mais provável
do que o contrário?
– Não – disse Fanny com firmeza – não creio absolutamente que seja
provável.
– Não crê absolutamente! – exclamou Miss Crawford com
alacridade. – Admiro-me! Mas aposto que sabe exatamente – eu sempre
imagino que você – que talvez você não acredite que ele algum dia se
case.
– Não, não acredito – disse Fanny docemente, esperando não se ter
enganado nem na crença nem na confissão desta.
Sua companheira olhou-a fixamente; e recobrando maior ânimo com
o rubor que esse seu olhar havia produzido, disse apenas:
– Ele assim está melhor – e mudou de assunto.
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
O final estava quase ilegível pelo aumento de temor, pois viu que
Mr. Crawford, sob pretexto de receber a carta, vinha em direção a ela.
– Não pense que eu quero apressá-la – disse ele abaixando a voz, ao
perceber a espantosa rapidez com que ela escrevia; – não pode pensar
que eu tenha uma tal intenção. Peço que não se apresse.
– Oh, não! Muito obrigada; já escrevi, acabei de escrever; num
momento estará pronta; fico-lhe muito obrigada se me fizer o favor de
entregar isto a Miss Crawford.
A carta estava entregue e devia ser levada; e como Fanny desviava
propositalmente o olhar quando voltou para junto da lareira onde os
outros se achavam, ele não teve outra coisa a fazer senão sair na maior
das aflições.
Fanny refletiu em que nunca havia tido um dia de maior agitação,
tanto de tristezas como de alegrias; felizmente, porém, as alegrias não
eram de sorte a morrer com o dia; pois cada dia que viesse havia de
fortalecer o conhecimento dos progressos de William, enquanto que as
tristezas, ela tinha esperança de que não voltariam mais. Não duvidava
de que sua carta parecesse extremamente mal escrita, que as expressões
não seriam dignas nem de uma criança, pois que, com a sua perturbação,
não pudera cuidar da composição; ao menos, porém, havia de persuadir a
ambos que ela não tinha ficado nem impressionada nem agradecida pelas
atenções de Mr. Crawford.
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
A entrevista não foi nem tão curta nem tão conclusiva quanto a
moça havia suposto. Henry não se conformava facilmente. Era tão
perseverante quanto Sir Thomas desejaria que ele o fosse. Era vaidoso, o
que muito contribuía para, em primeiro lugar, não acreditar que Fanny
não o amasse, embora, talvez, sem se aperceber disso; e depois, forçado
afinal a admitir que ela presentemente estava segura de seus próprios
sentimentos, tinha a convicção de poder, com o tempo, modificar como
quisesse aqueles sentimentos.
Estava apaixonado, muito apaixonado; e essa paixão, agindo sobre
um espírito vivo, cheio de confiança, mais ardente do que delicado,
duplicava a importância do amor que ela lhe recusava.
Não perdia a esperança; não desistiria. Tinha uma excelente base
para uma sólida afeição; sabia que Fanny possuía todas as virtudes que
justificariam as mais ardentes esperanças numa felicidade permanente; a
conduta dela, naquele momento, ao demonstrar o desinteresse e a
delicadeza de seu caráter (qualidades que ele julgava das mais raras), era
de sorte a lhe aumentar todos os desejos e o confirmar em todas as suas
resoluções. Não sabia que teria de enfrentar um coração já
comprometido. Sobre isto não tinha suspeitas. Considerava-a como
alguém que nunca houvesse pensado seriamente no assunto para estar
em perigo; que estava protegida pela juventude, uma juventude de
consciência tão adorável quanto a de pessoa; sua modéstia a tinha
impedido de compreender as atenções do seu apaixonado, e que ainda
estava esmagada pela rapidez das declarações, tão inteiramente
inesperadas, e a novidade de uma situação em que a sua imaginação
nunca cogitara.
Não seria pois de esperar que, depois que fosse compreendido,
haveria naturalmente de vencer? Acreditava plenamente nisso. Um amor
como o seu, num homem como ele, tinha que ser retribuído e não
demoraria muito; e ele estava tão encantado com a idéia de a obrigar a
amá-lo dentro de pouco tempo, que já nem se importava com que ela o
não amasse. Uma pequena dificuldade para vencer não constituía
desgraça para Henry Crawford. Antes o animava. Estava acostumado a
conquistar corações com demasiada facilidade. Esta situação era nova e
animadora.
Para Fanny, porém, cuja vida fora cheia demais de oposições para
encontrar qualquer encanto em tal situação, tudo isto era
incompreensível. Viu que Henry tencionava insistir; mas como poderia
ele, depois das expressões a que ela se vira obrigada a usar? Ela não
conseguia compreender. Disse-lhe que não o amava, que não o poderia
amar e que estava certa de que nunca o poder amar; que era
absolutamente impossível mudar; que o assunto lhe era muito doloroso;
que ela lhe suplicava nuca mais o mencionar, pedira-lhe permissão para
se afastar imediatamente, e pedira-lhe mais que considerasse a questão
como terminada para sempre. E depois, ao ser novamente instada,
acrescentava que, na sua opinião, havia entre eles uma tal
incompatibilidade de gênio, que seria impossível qualquer tentativa de
mútua afeição; que pela natureza, educação e hábitos, eles eram
inteiramente diferentes. Tudo isso Fanny o dissera e com a mais
veemente sinceridade; entretanto aquilo não fora o bastante, pois ele
imediatamente negara que houvesse qualquer incompatibilidade entre os
seus gênios ou qualquer ou qualquer coisa hostil nas suas situações; e
positivamente declarara que ainda a amaria e ainda teria esperanças!
Fanny estava senhora das próprias intenções mas não podia julgar
suas próprias maneiras. Ela era incuravelmente gentil; não percebia
quanto as suas maneiras encobriam a severidade de seus propósitos. Sua
modéstia, sua gratidão e delicadeza, faziam com que cada expressão de
indiferença parecesse quase um esforço de abnegação; parecia, pelo
menos, estar dando quase tanta pena a si própria quanto a ele. Mr.
Crawford já não era o Mr. Crawford a quem, como clandestino, insidioso,
pérfido admirador de Maria Bertram, ela havia abominado, a quem odiara
ver ou falar, em quem ela não acreditava existir nenhuma boa qualidade e
cujo poder, mesmo de sedução, ela mal reconhecera. Agora se
transformara no Mr. Crawford que lhe falava com um amor ardente,
desinteressado; cujos sentimentos se haviam transformado em tudo que
há de mais honrado e leal, cujas perspectivas de felicidade se fixavam
todas sobre um casamento por amor; que exaltava as qualidades dela,
repetindo a descrição de seu afeto, provando, também, tanto quanto o
poderia provar por meio de palavras, a linguagem, o tom e o espírito de
um homem de talento, que a procurava por sua nobreza e bondade; e
para completar, era agora o Mr. Crawford que havia conseguido a
promoção de William!
Ele mudara, pois, completamente, e suas pretensões não poderiam
senão surtir efeito! Poderia tê-lo desprezado com toda a dignidade de
uma virtude ofendida nos jardins de Sotherton ou no teatro de Mansfield
Park; mas agora aproximava-se dela com direitos que exigiam um
tratamento diferente. Devia ser cortês, devia ter compaixão. Devia sentir-
se honrada e, quer pensando em si própria ou no irmão, devia demonstrar
uma grande gratidão. O resultado de tudo foi demonstrar-se tão
compassiva e perturbada e misturar com a sua recusa palavras tão
expressivas de gratidão e interesse, que, para um temperamento vaidoso
e confiante como o de Mr. Crawford, a verdade, ou pelo menos a extensão
da indiferença dela, poderia muito bem ser discutida; de modo que ele
não se mostrou, na realidade, desarrazoado quanto Fanny o considerava,
nos protestos de afeição perseverante, assídua e esperançada, com que
terminou a entrevista.
Foi com relutância que a viu sair; mas no momento da separação
não houve um olhar que desmentisse as suas palavras ou que desse à
moça a esperança de ele ser menos extravagante do que se havia
mostrado.
Ela agora estava zangada. Um certo ressentimento causado por
aquela insistência tão egoísta e mesquinha. Ali estava novamente a falta
de delicadeza e interesse pelos outros que a princípio a havia assombrado
e desgostado. Ali estava novamente algo do mesmo Mr. Crawford que ela
antes tanto condenara. Como era evidente a sua grande falta de
sentimento e de humanidade, quando seu próprio prazer estava em jogo!
Mesmo que seu coração estivesse livre, como talvez devesse estar, ele
nunca teria podido prendê-lo.
Assim pensava Fanny, com toda sinceridade, quando se achava
sentada, meditando junto ao fogo que a extravagante indulgência do tio
fizera acender na sua sala; admirando-se do passado e presente;
admirando-se do que ainda estaria para vir e numa grande agitação que
não a deixava ver senão que jamais, em nenhuma circunstância, seria
capaz de amar Mr. Crawford e que felizmente agora tinha uma lareira
junto à qual podia sentar-se a refletir.
Sir Thomas foi obrigado, ou obrigou-se a espera até o dia seguinte
para saber o que se havia passado entre os dois jovens. Então viu Mr.
Crawford e recebeu as suas impressões. A sua primeira sensação foi de
desapontamento; tinha esperado coisa melhor; pensara que uma hora de
suplicas de um rapaz como Crawford não poderia operar tão pequena
mudança sobre uma pequena dócil como Fanny; mas logo recobrou
esperanças ante a determinação e ardente perseverança do pretendente;
e ao ver a confiança que ele tinha de vencer, Sir Thomas também
começou a contar com o sucesso.
De sua parte não omitiu cordialidade, cumprimentos e bondades
que pudessem auxiliar o plano. A firmeza do caráter de Mr. Crawford foi
glorificada, Fanny elogiada e a aliança era ainda a mais desejável do
mundo. Em Mansfield Park , Mr. Crawford seria sempre bem recebido; só
teria que consultar seu próprio julgamento e sentimentos quanto à
freqüência de suas visitas no presente ou no futuro. Para todos da família
e amigos da sua sobrinha não poderia haver senão uma opinião, um único
desejo sobre a questão; a influência de todos que a amavam devia
inclinar-se para um único lado.
Tudo que pudesse reforçar a coragem foi dito. Todo estímulo foi
recebido com grato prazer e os dois cavalheiros se separaram na maior
das amizades.
Certo de que a causa agora estava indo bem, absteve-se de
novamente importunar a sobrinha e demonstrar francamente qualquer
interferência. Para um temperamento como o dela, acreditou que a
melhor forma de a conquistar seria por meio de bondade. As súplicas só
poderiam caber de um único lado. A aprovação de sua família, com
respeito a cujos desejos ela não poderia ter a menor dúvida, podia
também, de outro modo, ser um meio dos mais certos para chegar ao fim.
Baseado pois neste princípio, Sir Thomas aproveitou a primeira
oportunidade de dizer a Fanny, com suave gravidade, calculada para a
dominar:
– Bem, Fanny, estive novamente com Mr. Crawford e por ele soube
exatamente como andam as coisas entre vocês. Acho-o um rapaz
extraordinário e qualquer que seja o resultado, você deve sentir que
inspirou um afeto muito pouco comum; embora, sendo jovem como é e
pouco familiar com a natureza efêmera, inconstante, irregular do amor,
que geralmente há por aí, você não se pode impressionar como eu com o
que há de admirável numa perseverança dessa espécie, contra a sua
indiferença. Ali, vê-se apenas uma questão de sentimento; não se gaba;
talvez não tenha de se gabar. Contudo, tendo feito tão boa escolha, a
constância dele se justifica. Se a escolha fosse menos excepcional eu o
censuraria por insistir.
– Na verdade, meu tio – disse Fanny – sinto muito que Mr. Crawford
ainda continue a... Sei que devo ficar muito honrada e assim me sinto,
conquanto não o mereça; estou, porém, tão certa, como já lhe disse, a ele,
de que nunca serei capaz.
– Minha querida – interrompeu Sir Thomas – não há necessidade
disso. Estou tão a par de seus sentimentos quanto você deve estar de
meus desejos e pesares. Não há mais nada a dizer ou fazer. De agora em
diante não tocaremos mais no assunto. Você não tem nada a temer ou a
afligir-se. Não suponha que eu seja capaz de procurar persuadi-la a casar-
se contra sua vontade. Sua felicidade e vantagens são tudo que eu tenho
em vista e nada mais lhe é pedido senão que suporte as tentativas de Mr.
Crawford para convencê-la. Ele age por sua própria conta e risco. Você
está em terreno seguro. Eu me comprometi, apenas, a fazer com que você
o veja, sempre que ele vier aqui, como se nada disso houvesse acontecido.
Você estará com ele na presença de todos nós, da mesma maneira e,
tanto quanto possa, procurando esquecer qualquer coisa que lhe seja
desagradável. Dentro de tão poucos dias ele deixará o Northamptonshire,
de modo que mesmo este pequeno sacrifício não lhe será exigido muitas
vezes. O futuro pode ser incerto. E agora, minha cara Fanny, o assunto
está encerrado entre nós.
A prometida ausência foi tudo do que Fanny se lembrou com
satisfação. As bondosas expressões e a paciência do tio foram
reconhecidas com toda sinceridade. E ao considerar o quanto da verdade
ele desconhecia, acreditou que não tinha o direito de admirar-se da linha
de conduta que Sir Thomas seguia. Dele, que havia dado em casamento
uma filha a Mr. Rushworth, não se poderia, certamente, esperar nenhuma
delicadeza romântica. Ela devia cumprir com seu dever e esperar que o
tempo o tornasse mais leve do que agora.
Embora apenas com dezoito anos, Fanny não podia acreditar que a
afeição de Mr. Crawford durasse para sempre; não podia senão imaginar
que se ela firmemente, continuamente o desanimasse, com o tempo tudo
estaria terminado. E quanto tempo esperava ela que ele a esquecesse, já
é outra questão. Não seria bonito inquirir sobre a exata avaliação que
uma moça faz de seus próprios predicados.
Apesar de seu prometido silêncio, Sir Thomas viu-se, mais uma vez,
obrigado a mencionar o assunto a sua sobrinha, a fim de a preparar para
a notícia de que o caso seria comunicado às tias; medida essa que ele
teria ainda evitado, se lhe fosse possível, mas que se tornara necessária
em vista da idéia inteiramente contrária de Mr. Crawford, de não fazer
segredo de seu procedimento. Ele não queria ocultar nada. No
Presbitério, onde adorava conversar com as duas irmãs sobre o futuro,
todos já conheciam os seus sentimentos e para ele era antes um prazer
ter testemunhas do progresso de seus sucessos. Ao saber disso, Sir
Thomas sentiu a necessidade de por, sem demora, a esposa e a cunhada a
par do negócio, – conquanto ele quase temesse, como a própria Fanny, o
efeito que essa comunicação ia causar sobre Mrs. Norris. Sir Thomas, na
verdade, por esse tempo, não estava muito longe de classificar Mrs
Norris como uma dessas pessoas bem intencionadas mas que estão
sempre fazendo coisas erradas e muito desagradáveis.
Mrs. Norris, porém, o sossegou. Ele exigiu o mais estrito silêncio e
paciência para com a sobrinha; ela não só o prometeu como o cumpriu.
Apenas demonstrou maior má vontade. Furiosa ela estava; amargamente
furiosa; mas se sentia mais aborrecida com Fanny por ter recebido tal
proposta do que por a ter rejeitado. Aquilo era uma injúria, uma afronta a
Julia, que deveria ter sido a escolhida por Mr. Crawford; e
independentemente disso, odiava Fanny por que ela a havia esquecido;
não teria permitido uma tal elevação a uma pessoa que sempre procurara
deprimir.
Sir Thomas, na ocasião, deu mais crédito do que devia à discrição
dela; e Fanny lhe ficou muito grata por ter apenas que sentir a sua cólera
e não a ouvir.
Lady Bertram recebeu a notícia de modo diferente. Ela, durante
toda sua vida, havia sido uma beleza e uma próspera beleza; e beleza e
fortuna eram tudo que poderia interessá-la. O conhecimento de que
Fanny havia sido pedida em casamento por um homem de fortuna, por
isso, elevou-a muito em seu conceito. Por se ter convencido que Fanny era
muito bonita, o que ela havia duvidado antes, e que faria um casamento
vantajoso, fê-la sentir uma espécie de honra em se dirigir à sobrinha.
– Muito bem, Fanny – disse ela, logo depois que ficaram sozinhas (e
realmente estivera impaciente por este momento, como demonstrava a
extraordinária vivacidade de seu semblante). – Muito bem, Fanny, hoje de
manhã, tive uma surpresa muito agradável. Só posso falar sobre isso uma
vez; prometi a Sir Thomas que só falaria uma vez e depois não falarei
mais. Desejo-lhe toda felicidade, minha querida sobrinha. – E olhando
para ela com complacência, acrescentou: – Hein! Nós de fato somos uma
família admirável!
Fanny corou e a princípio não soube o que dizer; depois, esperando
atingi-la no ponto fraco, respondeu:
– Minha querida tia, a senhora não pode desejar que eu proceda de
maneira diferente da que procedi. Tenho a certeza. A senhora não pode
desejar que eu me case; pois iria sentir minha falta, não? Sim, tenho
certeza de que sentiria demais a minha falta para desejar isso.
– Não, minha querida, não teria coragem de impedi-la, quando uma
proposta desta ordem lhe é feita. Poderei passar perfeitamente sem você,
desde que se case com um homem tão rico como é Mr. Crawford. E você
deve saber, Fanny, que toda moça tem a obrigação de aceitar um pedido
tão irrepreensível quanto este.
Essa foi talvez a única regra de conduta, o único conselho que
Fanny recebeu da tia, no período de oito anos e meio. Ficou calada. Viu
que seria inútil discutir. Se a tia se colocava contra ela, de nada adiantava
procurar fazê-la compreender. Lady Bertram estava com uma grande
loquacidade.
– E lhe direi mais, Fanny – disse ela – aposto que ele se apaixonou
por você, na noite do baile; estou certa de que o mal começou naquela
noite. Você estava muito bonita. Todos disseram. Até Sir Thomas. E você
sabe, foi Chapman quem a ajudou a vestir-se. Fico contente por ter
mandado Chapman ajudá-la. Vou dizer a Sir Thomas que tenho a certeza
de que o negócio começou naquela noite. – E ainda prosseguindo nestes
alegres pensamentos, acrescentou logo depois: – E vou lhe prometer,
Fanny, uma coisa que não fiz com Maria: na próxima vez em que Pug tiver
uma ninhada, você terá um filhote.
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
Os Prices mal saíam de casa, em direção à igreja, no dia seguinte,
quando novamente lhes apareceu Mr. Crawford. Chegou, e em vez de os
fazer parar, para um cumprimento ligeiro, acompanhou-os; pediu
permissão para irem juntos até Garrison Chapel, que era igualmente o
seu destino. Saíram caminhando todos.
Naquele momento a família aparecia num ângulo muito favorável. A
natureza lhes dera um grande quinhão de beleza, e os trajes claros de
domingo lhes dava um encanto particular. O domingo sempre trouxera
uma sensação de alegria a Fanny, sensação que, naquele domingo
especial, era talvez maior. Sua pobre mãe não parecia agora tão diferente
do que deveria ser uma irmã de Lady Bertram; muitas vezes seu coração
se afligira ao pensar no contraste que havia entre as duas; a idéia que, se
a natureza estabelecera tão pequena diferença entre ambas, as
circunstancias, entretanto, haviam criado diferenças tão grandes, e que
sua mãe, tão bonita quanto Lady Bertram, e muitos anos mais jovem,
tivesse uma aparência tão mal vestida e desbotada, tão desmazelada, tão
gasta. Porém o domingo lhe alterava inteiramente o aspecto; Mrs. Price
caminhava junto a um lindo grupo de crianças, livre por algum tempo dos
seus afazeres diários, perdendo um pouco a linha apenas quando via os
pequenos correrem algum perigo, ou ao ver passar Rebecca com uma flor
no chapéu.
Na capela, foram obrigados a dividir-se, porém Mr. Crawford tomou
cuidado em não ser afastado do grupo feminino; e depois do serviço
divino continuou em companhia delas, tomando parte no passeio que a
família deu até as fortificações.
Mrs. Price, durante os domingos bonitos do ano, costumava dar o
seu passeio semanal às fortificações, encaminhando-se para lá, muitas
vezes, logo à saída da igreja e voltando apenas à hora do jantar. Era lá a
sua praça pública, o seu centro social; lá se avistava com as conhecidas,
ouvia as novidades, falava sobre as deficiências das criadas de
Portsmouth, e cobrava ânimo para os trabalhos da semana a começar.
Chegaram afinal; Mr. Crawford sentindo-se feliz por ter ambas as
Misses Price entregues ao seu cuidado particular; pois, percorrido uma
parte do caminho, sem que Fanny pudesse dizer como aquilo se dera, sem
acreditar no que via, as irmãs caminhavam de braço dado com ele, e ela
não sabia absolutamente como poria fim àquela intimidade. Aquilo a
incomodou um pouco, de início, – mas, afinal, eram liberdades do passeio,
e depressa Fanny se convenceu disso, e tranqüilizou-se.
O dia era estranhamente bonito. Estavam de fato em março, porém
o ar livre era abril; soprava uma brisa fresca, um lindo sol luzia,
encoberto apenas de longe em longe por alguma nuvem. Tudo parecia
lindíssimo sob a influência de tal céu; os efeitos de sombras perseguindo-
se uns aos outros, nos navios do Spithead, ou em torno da ilha, as matizes
cambiantes sempre variadas da cor do mar, o dorso rápido de uma vaga
dançando sobre as águas e indo esmagar-se com fragor de encontro ao
quebra-mar, formavam para o espírito de Fanny um tal conjunto de
encantos, que a iam tornando cada vez mais descuidada das
circunstancias sobre as quais se sentia. E até mesmo, tendo tentado
caminhar sem o braço de Crawford, verificou que necessitava dele, pois
aquelas duas horas de passeio a tinham fatigado, vindo assim, depois de
uma semana de inatividade. Aliás Fanny estava começando a sentir os
efeitos da falta de seu habitual exercício. Já não gozava a mesma saúde
do tempo em que chegara a Portsmouth. E se não fosse o apoio de Mr.
Crawford e a beleza do tempo, sentir-se-ia estafada.
O encanto do dia fazia com que o rapaz se sentisse quase como se
sentia Fanny. Muitas vezes eles pararam, levados pelo mesmo sentimento
e pelos mesmos gostos, demorando vários minutos sobre o muro da
fortificação, olhando e admirando; e considerando que ele não era e nem
podia ser Edmund, Fanny o julgava suficientemente aberto aos encantos
da natureza e plenamente apto para exprimir essa admiração. A moça
entregava-se de vem em quando a doces abstrações e ele aproveitava-se
da vantagem que tais abstrações lhe concediam para lhe fitar o rosto sem
rebuços; e constatava, por esses olhares, que, embora encantadora como
sempre, a fisionomia de Fanny estava menos saudável do que deveria
estar. Ela dizia se sentir muito bem, e não havia modos de provar o
contrário; porém Crawford, intimamente, estava convencido de que a sua
presente residência não lhe poderia ser confortável nem saudável, e
sentia-se ansioso para que ela voltasse a Mansfield, onde a sua felicidade,
e a dele, ao vê-la lá, seria muito maior.
– Miss Fanny está aqui há um mês, creio eu? – perguntou ele.
– Não, Ainda não faz um mês. Amanhã é que faz quatro semanas
que eu deixei Mansfield.
– A senhorita é a calculadora mais minuciosa e honesta que
conheço; porque eu chamaria a isso um mês.
– Só cheguei aqui terça feira à noite.
– E veio para uma estadia de dois meses, não?
– Sim. Meu tio falou em dois meses. Creio que não poderá ser
menos.
– E como irá de volta para lá? Quem a acompanhará?
– Não sei. Minha tia não me disse nada a esse respeito. Talvez eu
tenha que demorar mais um pouco. Talvez não seja conveniente eu ir
embora logo que fizer exatamente dois meses.
Depois de um momento de reflexão, Mr. Crawford tornou:
– Conheço Mansfield, conheço o ambiente lá, conheço as faltas dos
de lá para consigo, Miss Fanny. Sei do perigo que corre de ser esquecida
por muito tempo, afastada do conforto, de que precisa, a pretexto da
imaginária conveniência de uma demora maior no seio da família. Receio
que a deixem aqui semana após semana, caso Sir Thomas não possa
arranjar as coisas para a vir buscar ele próprio, ou mandar a criada de
sua tia; basta que isso determine a menor alteração nas providências que
devem ser tomadas para a próxima estação. E isso não deve acontecer.
Dois meses já são uma estadia grande; creio mesmo que seis semanas
seriam o bastante. Estou pensando na saúde de sua irmã – acrescentou
ele dirigindo-se a Susan – porque acho que este isolamento em
Portsmouth não lhe está fazendo bem. Ela precisa de exercício constante.
Se você a conhecesse tão bem quanto eu, estou certo de quer também
acharia que Miss Fanny não pode estar muito tempo afastada do ar livre e
da liberdade do campo. Se por acaso – falou ele então, volvendo-se para
Fanny – não se sentir bem aqui, e aparecerem dificuldades para o seu
regresso a Mansfield, antes que os dois meses tenham acabado, isso não
deve ser encarado como um obstáculo: basta que a minha irmã tenha
conhecimento disso, que lhe dê a menor demonstração de que deseja ir,
imediatamente ela e eu viremos aqui e a acompanharemos até Mansfield.
Sabe a felicidade e o prazer com que faremos isso; sabe tudo o que
sentiremos nessa oportunidade.
Fanny agradeceu e tentou dar uma risada.
– Estou falando muito sério – tornou ele. – Sabe muito bem disso. E
espero que não vá esconder alguma indisposição que sinta. Sei que não
fará isso; não estará em seu poder. Sempre que disser positivamente, em
suas cartas a Mary “vou passando bem” eu, que a sei incapaz de afirmar
uma falsidade, acreditarei que estará bem.
Fanny lhe agradeceu novamente, porém estava comovida e
mortificada a tal ponto que lhe seria impossível falar muito, e aliás, não
sabia bem o que deveria dizer. Isso se deu já ao fim do passeio. Ele as
acompanhou até à porta de casa, recusando-se porém a entrar, alegando
que um amigo o esperava para jantar.
– Espero que não esteja muito cansada – disse ele – retendo um
pouco Fanny, depois que os outros entraram em casa. Desejo
infinitamente que esteja se sentindo muito bem. Quer alguma coisa para
a sua cidade? Estou com a idéia de ir logo para Norfolk. Não estou
satisfeito com Maddison. Tenho a certeza de que ele quer agir à minha
revelia o mais que puder, e tenciona por um primo morando num certo
moinho que eu destino a uma outra pessoa. Preciso ir lá e me entender
com ele. É preciso que ele saiba que eu não consentirei em ser
embrulhado no lado sul de Everingham, como não o serei no lado norte;
quero ser o dono do que é meu. Ainda não nos explicamos bastante a esse
respeito, até agora. O mal que um administrador pode fazer tanto ao
crédito do seu patrão quanto ao bem estar dos pobres é incalculável.
Estou pensando na verdade em ir diretamente para Norfolk e lá arranjar
as coisas de modo a que não possam ser facilmente alteradas. Maddison
não é um mau sujeito; não o quero dispensar, mas preciso providenciar
para que ele não tente me dispensar a mim. Era preciso ser tolo para me
deixar lograr por um homem que não tem nenhum direito a isso; e mais
do que tolo, se consentisse que me pusesse um sujeito qualquer como
rendeiro, justamente no lugar que eu já mais ou menos prometi a um
homem de bem. Não acha que seria realmente mais que tolice? Devo ir?
Qual é a sua opinião?
– Minha opinião? O senhor sabe muito bem que é isso o que deve
fazer.
– Sim. Quando você concorda, eu já sei que é direito. Seu
julgamento é o critério de direito que sigo.
– Oh, não! Não diga isso. Em nós mesmos nós encontramos um guia
muito melhor, se o queremos, do que o que outra qualquer pessoa possa
nos dar. Adeus. Desejo que tenha um dia muito agradável amanhã.
– Então não quer nada para a cidade?
– Nada. Mas lhe agradeço muito.
– Não quer mandar um recado para ninguém?
– Muitas recomendações para sua irmã, por favor. E, se vir meu
primo, – meu primo Edmund, espero que tenha a bondade de lhe dizer
que estou esperando notícias dele.
– Conte com isso; e se ele for preguiçoso ou negligente, eu próprio
lhe escreverei, mandando-lhe as desculpas.
Ele não pôde dizer mais nada, porque Fanny não quis demorar
mais. Apertou-lhe a mão, olhou-lhe o rosto e foi embora. E então, em
companhia de seus novos companheiros, esperou mais três horas pelo
excelente jantar da hospedaria; enquanto ela, imediatamente, foi sentar-
se à modesta refeição caseira.
Pudesse Henry Crawford suspeitar quantas privações, afora essa do
exercício, era Fanny obrigada a suportar em casa do pai, admirar-se-ia de
que seu rosto não estivesse muito mais abatido. Não havia diferença dos
pudins de Rebecca para os picadinhos de Rebecca, atirados à mesa junto
aos pratos meio lavados e aos talheres meio areados; e muitas vezes a
moça adiava o jantar até à noite, para quando pudesse mandar um dos
irmãos lhe comprar biscoitos ou bolos. Depois de se ter criado em
Mansfield, era tarde demais para se habituar aos duros métodos de
Portsmouth; e o próprio Sir Thomas, se por acaso tivesse conhecimento
disso, vendo embora que a sobrinha, trilhando o mais prometedor
caminho ao depauperamento físico e moral, daria agora um justo valor à
fortuna e à companhia de Mr. Crawford, recearia levar a experiência
avante, com medo de a matar com a cura.
Fanny ficou perturbada durante todo o resto do dia. Embora mais
ou menos certa de não se avistar com Mr. Crawford, não pôde vencer o
desânimo; ele, ao partir, assumira um pouco as qualidades de um amigo;
e embora, por um lado estimasse vê-lo ir embora, parecia-lhe que agora
estava desamparada por todos; parecia-lhe, hoje, ter sido novamente
separada de Mansfield; e Fanny não podia pensar no regresso dele à
cidade, convivendo com Mary e Edmund, sem sentir em seu coração
sentimentos tão parecidos com a inveja, que a faziam odiar-se a si
própria, por alimentá-los.
Seu desânimo não interessou ninguém em torno dela; um ou dois
amigos do pai, como acontecia sempre que não saía ele próprio a
procurá-los, passaram lá a infindável noitada. E desde seis horas até às
nove e meia poucos intervalos houve entre a conversa e a bebida. Fanny
sentia-se muito deprimida. O maravilhoso aperfeiçoamento que ela
julgara perceber em Mr. Crawford , era a única coisa que poderia
confortá-la, dentro da atual direção dos seus pensamentos. Sem pensar
em quão diferente era o círculo em que o vira evoluir antes, nem que
muito do efeito era devido ao contraste, Fanny estava inteiramente
persuadida de que ele se tornara espantosamente mais amável e mais
atento aos outros do que anteriormente. E se mudara nas pequenas
coisas, por que também não nas grandes? Tão ansioso pela sua saúde e
seu conforto, tão sensível quanto se mostrara, e realmente o parecia
estar, talvez não fosse loucura imaginar que ele talvez não precisasse
esperar muito para conseguir prendê-la.
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
Sete semanas, das oito que comporiam os dois meses, já se tinham
passado quase, quando Fanny recebeu a primeira carta de Edmund, tão
longamente esperada. Ao abri-la, ao lhe ver o conteúdo, preparou-se para
um longo minuto de felicidade, e sentiu no coração uma maré montante
de amor e gratidão pela criatura que era agora a senhora do seu destino.
Eis o que dizia a carta:
“Mansfield Park
Minha querida Fanny: Desculpe-me se não escrevi antes. Crawford
me disse que você queria saber notícias minhas, porém julguei impossível
escrever-lhe de Londres, e supus que você compreenderia o meu silêncio.
Pudesse eu lhe ter feito apenas algumas linhas despreocupadas, você as
teria recebido; mas coisas dessa natureza não estão em meu poder.
Voltei para Mansfield, num estado de muito maior insegurança do
que saíra daqui. Minhas esperanças estão hoje ainda mais fracas; aliás
você já devia ter imaginado isso. Miss Crawford, que lhe tem tanta
afeição, naturalmente já lhe deu a perceber o bastante, a respeito dos
seus próprios sentimentos, para lhe permitir fazer suficientes conjecturas
a respeito dos meus. De maneira que eu não estaria me antecipando se
lhe fizesse minhas próprias confidências. Nossa confiança em você não
precisa ser posta à prova; não lhe faço perguntas. Basta o conforto que
me dá a idéia de que temos ambos a mesma amiga, e apesar das infelizes
divergências de opiniões que existem entre mim e elas, sentimo-nos
unidos na afeição por você.
Será pois para mim um consolo contar-lhe como vão as coisas, e
quais são meus planos atuais, – se posso dizer que tenho planos. Voltei
desde sábado. Passei três semanas em Londres, e me avistei com ela
muito freqüentemente (do ponto de vista de quem está em Londres). Fui
tratado com tanta atenção pelos Frasers como seria de esperar
razoavelmente. Digo ‘razoavelmente’ porque eram desarrazoadas as
esperanças que eu levava de ter com ela o mesmo convívio que tínhamos
em Mansfield. A diferença estava mais nos meus modos, aliás, do que na
raridade dos encontros. O fato é que ela mudou radicalmente; a minha
primeira recepção foi tão diferente do que eu tinha esperado, que quase
me resolvi a deixar Londres imediatamente. Não quero entrar em
minúcias. Você conhece o lado fraco do caráter dela, e pode imaginar os
sentimentos e expressões com que me torturou. Cheia de verve e bom
humor, via-se cercada por gente que estava sempre pronta a apoiar
levianamente a sua vivacidade talvez excessiva. Não gostei de Mrs.
Fraser. É uma mulher fria e frívola, que se casou apenas por
conveniência, e que é evidentemente infeliz no casamento; mas em vez de
atribuir sua infelicidade a desencontros de opiniões, de temperamento,
ou à desproporção de idade, atribui-a apenas à falta de influência social;
e vive a invejar a importância das amigas, especialmente a da irmã, Lady
Stornaway, e é a protetora de todo mercenário e ambicioso que encontra,
conquanto que seja suficientemente mercenário e ambicioso.
Considero a intimidade com essas duas irmãs a maior infelicidade
tanto para a vida dela, como para a minha. Há anos que a procuram
desencaminhar. Deus permita que ela possa se desligar de tal gente; e
muitas vezes não desespero disso, porque a afeição me parece existir
principalmente do lado das duas irmãs. São íntimas dela; mas tenho
certeza de que Mary não gosta tanto das duas quanto elas gostam de si.
Quanto penso no carinho sempre crescente que ela tem por você, na sua
conduta judiciosa e correta como irmã, aparece-me como uma criatura
completamente diversa, capaz de tudo que é nobre, e me maldigo a mim
mesmo por ousar me queixar de alguma coisa. Não posso me desligar
dela, Fanny. Ela é, no mundo inteiro, a única mulher que eu pensei tornar
minha. Se eu acreditasse que Mary nunca olhara para mim, talvez não
dissesse isto; porém acredito que me olhou. Tenho a certeza de que ela
me prefere a outros; não tenho ciúmes de ninguém. O que me dá ciúmes
é o círculo elegante e frívolo que a cerca; o que eu receio são os hábitos
de luxo. Suas idéias não estão acima das garantias que lhe dá a sua
própria fortuna, mas estão muito acima do que estaria a fortuna de nós
dois, ela e eu. Aliás, isto me dá algum consolo; e recebo melhor a idéia de
perdê-la porque não sou bastante rico do que por causa da minha
profissão; e isto prova pelo menos que a sua afeição não é igual aos
sacrifícios, que pensando bem, não tenho o direito de lhe pedir. Se eu for
recusado, sei que será esse o motivo real. Seus preconceitos, bem o sei,
não são tão fortes.
Você está recebendo os meus pensamentos tais como eles me vão
brotando no coração, querida Fanny; talvez sejam às vezes contraditórios,
mas nem por isso representarão uma pintura menos fiel do meu espírito.
E já que comecei, dá-me prazer lhe contar tudo que sinto. Não posso me
afastar dela; ligados como já estamos, e segundo o espero, como o
estaremos mais ainda, afastar-me de Mary Crawford significaria afastar-
me dos amigos que me são mais queridos; seria me exilar das casas e dos
amigos que, em caso de quaisquer outros desgostos, eu procuraria para
que me consolasse. A perda de Mary deve significar para mim a perda de
Crawford e Fanny. Porém quando a sua recusa for um fato consumado,
espero encontrar forças para tentar diminuir o poder que ela tem sobre
meu coração, e talvez, dentro de alguns anos... mas estou escrevendo
disparates. Mesmo que eu seja repelido, tenho que fazer uma tentativa
perante ela, e enquanto não o sou, não posso deixar de pensar nisso; esta
é a verdade. A única questão é: Como? Qual será a maneira melhor? Já
pensei muitas vezes em ir ainda uma vez a Londres, antes da Páscoa;
outras vezes julgo melhor não fazer nada até à volta dela a Mansfield.
Agora mesmo em Londres falou-me com alegria em sua vinda a Mansfield
em junho. Porém junho ainda está muito longe, e creio que talvez eu tente
me corresponder com Mary. Estou quase resolvido a expor os meus
sentimentos numa carta. Uma certeza qualquer será o melhor que me
pode suceder; ando num estado miserável de aborrecimento.
Considerando tudo, creio bem que uma carta será o melhor meio de
explicação. Saberei escrever muitas coisas que não consigo dizer; e tendo
ela tempo para refletir, antes de se resolver a me responder, tenho menos
medo do que me dirá, do que se falasse sob um impulso apressado. Creio
que será o melhor. O maior perigo que corro será se ela consultar Mrs.
Fraser; e dada a distância, a dificuldade em que fico de defender minha
causa. Uma carta está exposta aos perigos resultantes de uma consulta,
quando quem a receber não está certo ainda de sua decisão e recorre a
um conselheiro; um mau conselheiro pode, em certos momentos, nos
levar a tomar decisões que mais tarde nos arrependemos. Devo também
procurar resumir meus sentimentos em poucas linhas. Uma longa carta,
cheia apenas de meus sentimentos e opiniões, pode cansar até a própria
amizade de uma Fanny. A última vez em que vi Crawford foi na festa de
Mrs. Fraser. Fiquei cada vez mais satisfeito com tudo que vi e ouvi dele.
Não há uma sombra de dúvida; ele sabe perfeitamente o que quer, e age
de acordo com as suas resoluções, o que considero uma qualidade
inestimável. Não o pude ver junto à minha irmã mais velha, na mesma
sala, sem pensar em tudo o que você me disse, e reconheço que não se
encontraram como amigos. Notava-se uma marcante frieza da parte dela;
pouco falaram, e surpreso, vi afastar-se. Lamentei muito que Mrs.
Rushworth possa ressentir ainda os efeitos de uma leviandade praticada
por Miss Bertram. Você gostará de saber a minha opinião sobre a vida de
Maria como mulher casada. Não parecem infelizes, e espero que
continuem dando-se bem juntos. Jantei duas vezes em Wimpole Street, e
estive lá mais três vezes, porém confesso que é mortificante ter
Rushworth como irmão. Julia parece divertir-se extraordinariamente em
Londres.
Nós, aqui, não constituímos um grupo muito alegre. Sua falta é
sentida enormemente. Eu então, sinto muito mais a sua ausência do que o
poderia dizer. Minha mãe manda afetuosas lembranças e deseja receber
logo suas notícias. Fala em seu nome constantemente, e fico muito triste
só ao pensar em quantas semanas ainda ela estará sem você. Meu pai
pensa em trazê-la ele próprio, o que, entretanto, não poderá ser senão
depois da Páscoa, quando terá negócios a resolver em Londres.
Espero que você esteja contente em Portsmouth, porém a sua
estadia aí não deve prolongar-se demais. Preciso de você em casa, e
preciso de sua opinião a respeito de Thorton Lacey. Não desejo fazer lá
grandes melhoramentos, senão depois que eu tiver a certeza de que a
casa terá uma dona.
Penso realmente em fazer a tal carta. É coisa certa a ida dos Grants
para Bath. Partem segunda feira de Mansfield. Estimo isso. Não estou
disposto a conviver com ninguém, atualmente. Sua tia, entretanto,
lamenta que um capítulo tão importante das notícias de Mansfield, me
caia da pena, num fim de carta, em vez de ser aproveitado por ela. Seu
sempre, minha queridíssima Fanny...”
– Nunca, nunca mais desejarei receber carta nenhuma – foi a
declaração secreta de Fanny, quando acabou de ler a carta de Edmund. –
Só me trazem desapontamento e tristeza! Só depois da Páscoa! Como
suportarei isso? E a pobre titia, chamando por mim a toda hora!
Fanny fazia o possível para afastar esses pensamentos, mas não se
passava um minuto sem que lhe ocorresse que Sir Thomas era tão mau
para ela quanto para a tia. E o assunto principal da carta não contribuía
em nada para acalmar essa irritação. Afligia-se com a cólera que sentia
contra Edmund:
– Não vejo nada de bom nesta demora – dizia de si para si. – Por que
não casa logo ele? Está cego, e nada lhe abrirá os olhos. Nada, nada, já
que tantas verdades lhe foram em vão postas diante dos olhos. Quer
casar com Miss Crawford, e ser pobre e infeliz. Deus permita que a
influência dela não o estrague também!
Olhou de novo para a carta:
– Ela tem profunda afeição por mim! Que disparate! Ela só gosta no
mundo de si própria e do irmão. Há anos que a procuram
desencaminhar... Pode dizer que elas o conseguiram. Ou então que elas
três se corromperam uma às outras: porém que elas gostem mais de
Mary do que Mary delas, considero Miss Crawford a pessoa menos capaz
de ser atingida por isso, a menos que não o seja pelas lisonjas. ‘Ela é, no
mundo inteiro, a única mulher que já pensei tornar minha.’ Acredito
firmemente nisso. É uma afeição que lhe influirá na vida inteira. Aceito ou
recusado, o seu coração será sempre dela... ‘A perda de Mary deve
significar para mim a perda de Crawford e Fanny’. Edmund, você não me
conhece. Não haverá parentesco nenhum entre as famílias se não for
você o responsável por ele. Oh, escreva, escreva! Acabe de uma vez!
Ponha um fim a esta insanidade. Prenda-se, encarcere-se a si próprio.
Essas sensações emanavam diretamente do ressentimento que há
muito vinha guiando os solilóquios de Fanny. Sentia-se cada vez mais
fraca e mais triste. Seu ardente olhar, suas afetuosas expressões, seu
tratamento confidencial tinham-na tocado profundamente. Ele era sempre
tão bom para todos! Era uma carta, em suma, que ela não trocaria por
nada no mundo, pois nada a equivale em valor.
Quem quer que se dedique à arte da correspondência, e não
disponha de muitas coisas a contar – e isso inclui grande parte do mundo
feminino, – deverá sentir, como Lady Bertram, que assunto tão
importante entre as notícias de Mansfield, como a partida dos Grants
para Bath, ocorresse num momento em que ela não o pudesse aproveitar;
e deve-se admitir que haveria de ser muito mortificante para Sua
Senhoria tal assunto ser presa do seu displicente filho, e tratado o mais
concisamente possível no fim de uma longa carta, em vez de ser
desenvolvido na parte principal de uma missiva escrita por ela própria. É
verdade que Lady Bertram não brilhava muito no gênero epistolar: casara
muito cedo, o que a impedira de dar a esse gênero o seu emprego mais
usual; e Sir Thomas, devido à sua situação no Parlamento, assumira ele
próprio o encargo da correspondência, deixando muito pouco o que fazer
à mulher. É verdade que ela não ficou inteiramente sem nada que
escrever; muitas vezes era-lhe forçoso traçar algumas linhas, – para a
sobrinha, por exemplo. E ver-se privada dos sintomas de gota do Dr.
Grant, e das dores matinais de Mrs. Grant, para suas necessidades
epistolares, era realmente uma lástima.
Havia entretanto uma boa desforra preparada para Sua Senhoria.
Chegou também a hora de sorte para Lady Bertram. Poucos dias depois
de ter recebido a carta de Edmund, veio ter às mãos de Fanny uma carta
da tia, que assim começava:
CAPÍTULO 45
“P.S. Estava fechando minha carta quando chegou Henry; ele porém
não me trouxe nenhuma notícia que me evitasse a necessidade de lha
enviar. Mrs. R., com quem ele esteve pela manhã, sabe que se receia uma
tuberculose; sua prima deve voltar hoje para Wimpole Street, pois a sogra
está para chegar. Agora não vá se aborrecer porque ele passou vários
dias em Richmond; Henry faz isso todas as primaveras. Pode estar certa
de que ele não pensa em ninguém senão em você. Neste mesmo instante
está louco para vê-la, preocupado apenas em descobrir uma maneira de o
conseguir, e o seu maior prazer seria acompanhá-la até aos seus. E insiste
no convite que lhe fez em Portsmouth, a respeito da sua volta a
Mansfield, convite ao qual eu me associo de todo coração. Querida Fanny,
escreva imediatamente, e diga-nos se poderemos ir. Para nós será fácil e
agradável. Ele e eu poderemos ir para o Presbitério, você bem o sabe,
sem perigo de importunar nossos amigos em Mansfield Park. Eu gostaria
imensamente de os rever, e um pouco de companhia talvez fosse
infinitamente útil a eles todos. Quanto a você, deve saber que a sua
presença é tão desejada lá que não pode, em sã consciência (coisa que
não lhe falta) permanecer longe, uma vez que tem meios de regressar.
Não tenho tempo nem paciência para lhe transmitir a metade sequer dos
recados de Henry; contente-se em saber que o espírito de cada um deles,
como de todos, traduz a mesma inalterável afeição.”
CAPÍTULO 46
CAPÍTULO 47
CAPÍTULO 48
Deixemos que outras penas descrevam o crime e o desgosto. Eu por
mim abandono esses odiosos temas o mais rapidamente que posso,
impaciente por restituir todos os que não foram propriamente pecadores
a um tolerável bem estar.
No que se refere à minha Fanny, com efeito, tenho a satisfação de
dizer que era feliz, a despeito de tudo. Ela tinha que ser uma criatura
feliz, a despeito de tudo que sentia, ou através do que sentia pela
infelicidade dos que lhe viviam ao redor. Tinha fontes naturais de alegria
que lhe exigiam uma saída qualquer. Voltara a Mansfield Park, era feliz,
era amada; livrara-se de Mr. Crawford; e quando Sir Thomas voltou,
apesar do melancólico estado de espírito do tio, ela teve provas
constantes de sua aprovação completa através dos contínuos olhares que
lhe lançava. E por mais felicidade que isso tudo lhe trouxesse, Fanny se
sentiria feliz sem nada disso, apenas graças à satisfação de imaginar que
Edmund já não era mais o joguete de Miss Crawford.
É verdade que Edmund estava ainda muito longe de se sentir feliz.
Ele sofria desapontamento e saudade, lamentando o que se passara e
suspirando pelo que já não mais viria. Ela sabia o que era isso, o que lhe
dava tristeza. Era porém uma tristeza baseada em satisfação, com tal
tendência otimista, e tão mais em harmonia com outras sensações
agradáveis, que quase se felicitava por ela.
Sir Thomas, pobre Sir Thomas, pai que era, e cônscio dos seus erros
como pai, era o que mais intensamente sofria. Sentia que não devia nunca
ter consentido no casamento; que o conhecimento que tivera dos
sentimentos da filha era o suficiente para o tornar culpado pelo
consentimento dado; que ao autorizá-lo, sacrificara o direito à
conveniência, e se deixara dominar por motivos egoístas e de ambição
mundana. Essas meditações requeriam bastante tempo para serem
aliviadas. Porém o tempo faz quase tudo. E apesar do pequeno consolo
que poderia ter, relativamente à Mrs. Rushworth e à desgraça que ela
provocara, fora-lhe mais fácil acomodar as coisas em relação à outra
filha. O casamento de Julia mostrou ser uma questão muito menos
desesperadora do que parecera a princípio. Ela era humilde e desejava
ser perdoada; e Mr. Yates, desejoso de ser realmente recebido na família,
estava disposto a olhar menos para si, e decidido a deixar-se guiar. Não
tinha um caráter sólido, mas havia esperanças de que se tornasse menos
fútil, e se tornasse mais tolerável na intimidade, e mais discreto; de certo
modo, foi um consolo descobrir que a sua fortuna era muito melhor, e
suas dívidas muito menores do que se receara a princípio; e considerado
e tratado como amigo, haveria de melhorar, decerto muito. O estado de
Tom era também consolador: sua saúde voltava, sem que ele tornasse à
negligência e ao egoísmo dos seus hábitos antigos. A doença o fizera
melhor do que nunca o fora antes. Sofrera, e aprendera a pensar: duas
vantagens que ele nunca conhecera outrora. E as censuras que fez a si
mesmo por ocasião do deplorável acontecimento de Wimpole Street, no
qual ele colaborara muito graças à perigosa intimidade proporcionada
pelo seu injustificável teatro, impressionaram-lhe fortemente o espírito.
Como tinha apenas vinte e seis anos, e não lhe faltavam inteligência nem
boas companhias, os efeitos produzidos por essas reflexões e sofrimentos
foras excelentes e duradouros. Tom tornou-se no que realmente deveria
ser: útil ao pai, firme e austero, deixando de viver apenas para si próprio.
E ainda havia mais outra alegria. Porque, ao mesmo tempo que Sir
Thomas progredia nesses caminhos de consolo, Edmund contribuía
também para o seu alívio, melhorando singularmente no único ponto em
que contristara o pai: mudando de estado de espírito. Depois de passear e
de se sentar sob as árvores, em companhia de Fanny, durante todas as
tardes do verão, ele por tal forma dominava o espírito, que já se podia
mostrar toleravelmente alegre.
Eram essas as circunstâncias e as esperanças que gradualmente
reanimavam Sir Thomas, destruindo-lhe a mágoa pelo que perdera, e
reconciliando-o em parte com si próprio, pois verificava que o desgosto
provocado pela convicção dos seus próprios erros na educação dos filhos
não era inteiramente justificado.
Depressa começou a compreender como pode ser desfavorável ao
caráter dos jovens o contraste entre os dois diversos tratamentos que
Maria e Julia haviam recebido em casa: a excessiva indulgência e lisonja
da tia em oposição constante à severidade paterna. Viu quão mal ele
raciocinara, supondo vencer o que havia de errado no sistema de Mrs.
Norris pelo seu sistema oposto; viu claramente que não fizera senão
aumentar o mal, ensinando-as a se reprimirem em sua presença,
mantendo-lhe desconhecidas as suas tendências reais, e entregando-as à
indulgência de uma criatura que só seria capaz de prendê-las graças à
cegueira de sua afeição e aos excessos de adulação.
Fora esse o erro mais ponderável; mas, por pior que fosse, Sir
Thomas gradualmente começou a enxergar que não fora esse erro
sozinho o principal engano do seu plano de educação. Algo faltara, ou
fora destruído pelos maus efeitos do tempo. Ele receava que um
princípio, um princípio ativo, houvesse faltado; elas nunca haviam
propriamente aprendido a governar suas inclinações e temperamentos
por amor a esse sentimento do dever que, só ele, pode suprir tudo.
Haviam sido instruídas teoricamente na sua religião, porém nunca lhes
haviam exigido uma prática religiosa diária; a distinção obtida graças à
elegância e prendas – objetivo autorizado à juventude, – pode não ter
influência útil nem efeito moral sobre o espírito. Ele quisera encaminhar
bem as filhas, porém os seus cuidados se tinham dirigidos aos
conhecimentos e às maneiras, e não aos sentimentos; e por necessidade
de justificativa e humildade, o pai receava que jamais as filhas houvessem
escutado, dos lábios de quem quer que fosse, algo que lhes pudesse
servir moralmente.
Deplorava amargamente uma deficiência que dificilmente o poderia
compreender agora como é que ela fora possível. E sentia,
desgraçadamente, que apesar de todo o dinheiro e cuidados que gastara
numa atenta e dispendiosa educação, ele afastara as filhas da
compreensão dos seus deveres elementares e não aproveitara nem o seu
caráter nem o seu temperamento.
O ardente espírito e as fortes paixões de Mrs. Rushworth,
especialmente, só lhe chegaram ao conhecimento através dos seus maus
resultados. Não houve como persuadi-la a deixar Mr. Crawford. Esperava
a princípio casar-se com ele, e viveram juntos até que ela se convencesse
que tal esperança era vã; o desapontamento e o desgosto que lhe trouxe
tal convicção lhe azedaram por tal modo o gênio, e lhe encheram o
coração de tanto ódio por ele, que durante algum tempo esse seu mau
gênio constituiu a punição recíproca de ambos, e acabou por induzi-los a
uma separação voluntária.
Ela vivera com ele sob a acusação de ter arruinado todas as suas
esperanças de felicidade com Fanny, e ao deixá-lo, não levava consigo
outra consolação senão de os ter separado. E que poderá superar a
desventura de um espírito de uma mulher, em tal situação?
Mr. Rushworth não teve dificuldades em obter um divórcio; e assim
viu terminado um casamento, do qual o melhor que poderia dizer era que
felizmente fora cancelado. Ela o menosprezara, amara outro; e ele fora
muito bem merecedor disso. As indignidades da estupidez e os
desapontamentos de uma paixão como o egoísmo só podem provocar uma
medíocre piedade. A punição lhe seguiu a conduta, e uma punição muito
mais séria seguiu o crime muito mais sério da sua esposa. Ele porém não
se sentia livre da obrigação de estar mortificado e infeliz, até que outra
linda moça conseguiu atrai-lo; e tentando um outro casamento, ele
contava, – e era de esperar – fazê-lo sob melhores auspícios do que o
primeiro: se fosse enganado, que o fosse ao menos com bom humor e boa
sorte; enquanto ela teve que lutar com sentimentos muito mais fortes, e
ingressar numa vida de recolhimento, sob a censura geral, – males que
não poderiam jamais ser aliviados por um novo florescimento de
esperanças ou de caráter.
O lugar onde ela poderia viver tornou-se um motivo da mais
melancólica e oportuna cogitação; Mrs. Norris, cuja afeição parecia
aumentar na razão inversa dos méritos da sobrinha, pretendeu que ela
fosse recebida em Mansfield, e respeitada por todos. Sir Thomas porém
não lhe deu ouvidos; e o ódio de Mrs. Norris por Fanny aumentou,
pensando que a residência dela, lá, era motivo da recusa. E insistiu em
atribuir a Fanny a razão dos escrúpulos do pai, embora Sir Thomas lhe
garantisse que mesmo que não tivesse uma moça em casa, mesmo que
nenhuma pessoa da casa fosse ameaçada pelos perigos da convivência
com Mrs. Rushworth, nunca insultaria a sua vizinhança com o espetáculo
da sua presença lá. Como filha, – e como penitente, ele o esperava, – ela
seria protegida por ele, teria o seu conforto assegurado, e apoiada por
todo estímulo a que tivesse direito e que as suas situações respectivas
admitissem; porém mais do que isso não poderia fazer. Maria destruíra
sua reputação; e ele não iria, numa vã tentativa de reabilitar o que não
poderia ser reabilitado, sancionar o pecado, ou tentar diminuir o seu
opróbrio, arriscando outra família, mediante tal exemplo, a sofrer
desgraça idêntica à sua.
Terminou a questão com a partida de Mrs. Norris, que deixou
Mansfield resolvida a dedicar-se à infortunada Maria; ambas foram
instaladas em outra região, longínqua e pouco conhecida, onde,
freqüentando pouca gente, faltando afeição a uma, e à outra um juízo são,
poder-se-ia razoavelmente supor que os seus temperamentos recíprocos
seriam a sua recíproca punição. A mudança de Mrs. Norris de Mansfield
foi um toque suplementar para o consolo da vida de Sir Thomas. Suas
opiniões a respeito da cunhada tinham baixado muito, desde o dia de sua
chegada de Antigua; em cada transação em que se haviam empenhado
desde então, no convívio diário, em negócios, e até mesmo na palestra,
ela fora sempre perdendo terreno na sua estima; convencera-se de que
lhe superestimara o valor e se deslumbrara com as suas maneiras,
outrora. Passara a considerá-la uma desgraça, que parecia não dever
cessar senão com a vida; ela lhe parecia uma parte dele próprio, que ele
deveria carregar consigo para sempre. E ver-se portanto aliviado de tal
fardo, era uma felicidade tão grande, que não houvesse ela deixado tão
amargas recordações após si, teria havido perigo que bendissesse o mal
que lhe trouxera um tal benefício.
Mrs. Norris não deixava saudades a ninguém, em Mansfield. Nunca
conseguira prender nem mesmo a quem mais amava, e desde a fuga de
Mrs. Rushworth, seus nervos viviam num tal estado de irritação que
constituíam um tormento para todos. Nem sequer Fanny teve lágrimas
para a tia Norris, – mesmo quando ela partia para sempre.
O fato de Julia ter tido melhor sorte que Maria, era devido, em
grande parte, a uma favorável diferença de disposição e circunstâncias;
porém era também devido a ter sido ela querida da tia, menos adulada e
menos estragada. Sua beleza e prendas só lhe tinham valido um segundo
lugar. Ela própria já se acostumara a se considerar um pouco inferior a
Maria. O seu gênio era naturalmente o melhor, entre as duas; seus
sentimentos, embora vivazes, eram mais controláveis e a educação que
recebera não lhe dera uma tão alta idéia da sua própria importância.
Recebera muito melhor o desapontamento que lhe causara Henry
Crawford. Depois da primeira amargura, ao convencer-se que fora
tratada levianamente, conseguira mais ou menos bem pensar em outras
coisas e esquecê-lo; e quando o convívio se reatou, e a casa de Mr.
Rushworth voltou a ser freqüentada constantemente por Crawford, ela
teve o mérito de afastar-se dele, e escolheu esse tempo para pagar a
visita a outros amigos, a fim de evitar ver-se de novo atraída pelo rapaz.
Por essa razão fora para a casa dos primos. O entendimento com Mr.
Yates não tivera nada em comum com isso; ela vinha há algum tempo
recebendo as suas atenções, porém com pouca idéia de o aceitar; a
conduta da irmã precipitara os fatos e o seu crescente terror pelo pai e
pela volta à sua casa, em tais circunstâncias, fê-la imaginar que as
imediatas conseqüências do fato seriam um aumento de severidade e
restrições; por isso procurou de qualquer modo e a qualquer risco evitar
tais horrores que a ameaçavam; se não fora isso, provavelmente Mr. Yates
nunca teria obtido nada. Ela não fugira senão levada por esses alarmas
do egoísmo: a fuga lhe aparecera como a única coisa que poderia fazer. O
crime de Maria provocara a loucura de Julia.
Henry Crawford, arruinado por uma excessiva independência e pelo
mau exemplo doméstico, entregou-se por um tempo mais longo aos
caprichos da sua fria vaidade. Uma vez essa vaidade o guiara, embora
imerecidamente, para os caminhos da felicidade; se se houvesse satisfeito
com a amigável afeição de uma mulher, se houvesse encontrado em si
mesmo estímulo suficiente para vencer a sua relutância, trabalhando para
obter a estima e a ternura de Fanny Price, – teria tido todas as
probabilidades de felicidade e êxito. Sua afeição já conquistara terreno.
Sua influência sobre ele, já provocara, reciprocamente, alguma influência
dele sobre ela. Houvesse servido melhor, e não há dúvidas que teria
obtido muito mais, especialmente depois de realizado o casamento dando-
lhe a assistência da consciência dela, dominando a primeira inclinação da
moça, e unindo-se, e unindo-os para sempre. Tivesse ele perseverado, e
Fanny teria sido o seu prêmio, e um prêmio voluntariamente concedido,
depois de um razoável período após o casamento de Edmund e Mary.
Houvesse ele feito o que pretendia, e houvesse cumprido o que devia,
indo para Everingham depois de sua volta de Portsmouth, teria decidido o
seu destino dum modo a lhe trazer felicidade. Porém ele não quis perder
a festa de Mrs. Fraser; e a sua demora tivera as mais graves
conseqüências, pois provocara o encontro com Mrs. Rushworth.
Curiosidade e vaidade entraram em jogo, e a tentação de um prazer
imediato era forte demais para um espírito jamais habituado a fazer
sacrifícios ao dever; por isso Henry resolvera adiar a viagem a Norfolk;
resolvera depois realizar seus propósitos por escrito, sem ir lá; e decidira
afinal que tais propósitos não tinham importância, e ficou. Viu Mrs.
Rushworth, foi recebido por ela com uma frieza que o deveria ter
afastado e estabelecido para sempre, entre eles, uma aparente
indiferença; ele porém se sentira mortificado, e não pôde suportar ver-se
assim tratado pela mulher cujos sorrisos haviam sido seus; sentiu-se
induzido a vencer aquele orgulho que mascarava um ressentimento;
estava encolerizado por causa de Fanny; podia vingar-se disso, e
transformar Mrs. Rushworth na antiga Miss Bertram.
Com tais idéias iniciou o ataque, e, perseverante, em breve
restabeleceu-se a antiga troca de galanterias e de convívio íntimo, de
flerte, a que se limitavam os seus desígnios; mas triunfando da discrição
da moça, que, embora significasse ódio, poderia ser a salvação de ambos,
Henry se pusera sob o domínio de sentimentos que, do lado de Maria,
eram muito mais fortes do que ele o supusera. Maria o amava; e ele fora
arrastado apenas pela vaidade, sem, durante um minuto sequer, afastar o
seu pensamento de Fanny. O seu primeiro objetivo foi manter Fanny e os
Bertrams na ignorância do que se estava passando. E para a reputação de
Mrs. Rushworth, nada seria melhor do que aquele segredo, que ele
procurava em benefício de si próprio. Quando Henry voltou de Richmond,
gostaria de nunca mais se avistar com Mrs. Rushworth. Tudo o que se
seguiu depois foi resultado da imprudência dela; e se ele concordou em
fugir com Maria, ao fim de tudo, foi porque já não o poderia evitar; a todo
momento lamentava a perda de Fanny, porém começou a lamentá-la
muito mais quando o alarido do escândalo já se acalmara e vários meses
já o haviam ensinado, pela força dos contrastes, a dar o mais alto valor à
meiguice do seu gênio, à pureza do seu espírito, e à excelência dos seus
princípios.
Aquela outra punição, a punição pública ao erro, embora numa
medida justa aquinhoasse a parte dele no crime, não é, nós todos o
sabemos, uma das barreiras com que a sociedade cerca a virtude.
Na sociedade raramente o castigo é proporcional ao crime; porém,
sem exigir demais para o futuro, pode-se facilmente considerar que um
homem de inteligência como Henry Crawford, angariara, por seu ato,
uma volumosa provisão de vexame e de mágoa; vexame oriundo, na
maioria das vezes, da censura íntima; mágoa e vergonha por ter desse
modo pago a hospitalidade e ferido a paz de uma família; custara-lhe o
seu ato a sua melhor, mais estimável, mais querida amizade, custara-lhe a
perda da mulher que ele amara tão sincera e apaixonadamente.
Depois do que se passara, separando e envergonhando tanto as
duas famílias, teria sido muito penosa a continuação daquelas íntimas
relações de vizinhança entre os Bertrams e os Grants. Os Grants porém
resolveram se afastar deliberadamente durante vários meses,
afastamento que terminou, por felicidade, se transformando numa
mudança definitiva. O Dr. Grant, que há muito perdera a esperança de ver
realizada essa promessa, foi nomeado para um canonicato em
Westminster, o qual, proporcionando-lhe uma oportunidade de deixar
Mansfield, um pretexto para a sua atual residência em Londres, e um
acréscimo de renda que justificava a mudança, era uma desculpa
aceitável tanto para os que ficavam como para os que partiam.
Mrs. Grant, com um gênio que a destinava a amar e a ser amada,
deveria se ter afastado com muitas saudades dos lugares e das pessoas a
que já estava tão habituada; porém essas mesmas ditosas disposições
tornavam-na apta a se sentir feliz em qualquer lugar, e em qualquer
companhia; além disso, ela tinha ainda um lar para oferecer a Mary;
Mary, que já estava farta dos seus amigos, farta de vaidade, ambição,
amor e desapontamento com que se vira cercada nesses últimos seis
meses, carecia bem do sincero coração da irmã e da ajuizada
tranqüilidade de suas opiniões. Passaram a morar juntas; e quando o Dr.
Grant morreu, vítima de uma apoplexia, em conseqüência de três jantares
oficiais na mesma semana, continuaram juntas, ainda. Porque Mary,
embora absolutamente determinada a não se prender jamais a nenhum
outro filho segundo, custava muito a encontrar entre os elegantes e
conhecidos ociosos herdeiros que viviam submetidos à sua beleza e ao
seu dote de vinte mil libras, alguém que lhe satisfizesse o gosto apurado
pelo convívio em Mansfield, alguém cujo caráter e cujas maneiras lhe
dessem esperanças daquela felicidade doméstica que ela aprendera a
apreciar, – alguém que afastasse definitivamente de sua lembrança a
figura de Edmund Bertram.
Edmund tinha sobre ela uma grande vantagem, nessa questão.
Fanny não teve que esperar, de coração vazio, por uma nova afeição,
digna dela. Mal, um dia, começava a falar, diante de Fanny, das suas
saudades de Miss Crawford e a lhe dizer como considerava impossível
encontrar jamais outra mulher igual a ela, feriu-o de súbito uma dúvida:
se uma mulher completamente diferente não seria a mesma coisa para o
seu coração, ou talvez muito melhor; e se a própria Fanny não se estava
tornando mais querida, mais importante para ele do que Miss Crawford
nunca o fora, com seus sorrisos e suas opiniões ousadas. E se não seria
realizável a empresa de a persuadir que o seu quente e fraternal olhar
para o primo era uma base excelente para um grande amor conjugal.
Faço questão de me abster de datas, ao contar isso. Cada leitor
deve ter a liberdade de fixar suas próprias datas, calculando para a cura
de paixões infelizes, e a mudança de imutáveis afeições; a duração dessas
coisas tem que variar muito, de pessoa para pessoa, de maneira que deixo
a cada um a faculdade de pensar que a modificação sobreveio exatamente
no tempo em que seria natural que ela se operasse; que Edmund, sem
uma semana só de antecedência ao tempo devido, deixou de pensar em
Miss Crawford , e começou a ficar tão ansioso de casar com Fanny quanto
a própria Fanny o poderia desejar.
Com o olhar dela, é verdade, – o olhar com que ela há muito o
olhava, onde se traduziam os mais ternos apelos da inocência e do
carinho, que seria mais natural do que essa mudança?
Amando- a, guiando-a, protegendo-a como ele o fazia desde que
Fanny tinha dez anos de idade, com o espírito em tão grande parte
formado graças aos cuidados dele, seu consolo dependendo da bondade
do primo, constituindo para ele um objeto de tão cerrado e singular
interesse, mais querido por essa importância pessoal perante ela do que
qualquer outra pessoa em Mansfield, não será preciso acrescentar senão
que ele precisava apenas aprender a preferir uns meigos olhos claros a
outros olhos de luz escura e ardente. E como vivia sempre na companhia
dela, falando-lhe confidencialmente, com os seus sentimentos naquele
estado favorável que um desapontamento traz, os olhos claros e meigos
não demoraram muito a obter absoluta preeminência.
Realizado isso, nada mais haveria a detê-lo no caminho da
felicidade: nenhuma dúvida sobre a nobreza de alma de Fanny, nenhum
receio sobre incompatibilidades de gostos ou de temperamentos. O
espírito dela, suas disposições, opiniões, hábitos não precisavam ser
disfarçados a meio; não haveria decepções presentes, nem desconfianças
para o futuro. Mesmo no auge da sua paixão anterior, nunca deixara de
reconhecer a superioridade de espírito de Fanny. Imagine-se como sentia
ele tal superioridade, agora! Ela era, naturalmente, boa demais para ele;
porém como não havia mais ninguém suficientemente digno dela,
prosseguia firmemente nos esforços para obter tal benção dos céus, e
seria possível que o consentimento dela se fizesse esperar muito tempo.
Tímida, medrosa, desconfiada de si como ela era, era contudo impossível
que uma ternura como a de Edmund não percebesse a sua fortíssima
esperança de êxito. Fanny, entretanto passou ainda algum tempo para lhe
dizer toda a deliciosa e admirável verdade.
A felicidade dele ao saber que era há tempo amado por um tal
coração deveria ser grande bastante para lhe garantir uma esplêndida
eloqüência a fim de a descrever a Fanny ou a si próprio; e era realmente
uma delirante alegria. Porém havia além da dele outra alegria que
descrição nenhuma pode igualar. Imagine-se quais seriam os sentimentos
de uma moça recebendo as juras de um amor sobre o qual nunca se
permitira ter esperanças.
Ajustados os seus sentimentos, não havia dificuldades em torno,
nenhum recuo devido a pobreza ou parentela. Era um casamento que os
desejos de Sir Thomas haviam antecipado. Ferido por ambiciosas e
mercenárias uniões, prezado cada vez mais o bem supremo que emana
dos princípios e do espírito, e principalmente, ansioso por ligar por laços
mais fortes o que lhe restava de felicidade doméstica, ele há muito
cogitava com íntima satisfação na possibilidade de encontrarem os dois
amigos mútua consolação ante os recíprocos desapontamentos que ambos
haviam sofrido. E o seu alegre consentimento ao pedido de Edmund, a
sua confiança de ter feito uma importante aquisição obtendo Fanny como
filha, realizavam um contraste com as suas antigas opiniões a esse
respeito, quando a pobre pequenina lhe chegara em casa; é próprio do
tempo alterar os planos e decisões dos mortais, para o seu próprio
aprendizado e divertimento dos outros.
Fanny era de fato a filha que ele desejava. Sua caridosa meiguice
fora o primeiro consolo para o seu coração de pai, tão magoado. A
liberalidade do nobre senhor foi pois ricamente paga, e a bondade de
suas intenções para com ela não foram perdidas. Ele poderia ter feito a
sua meninice mais feliz; porém um erro de julgamento dera-lhe um
aspecto de rudeza, privando-o dos primeiros anos do seu carinho; e
agora, quando ambos realmente se conheciam um ao outro, a sua afeição
mútua tornou-se muito forte. Depois de a ter estabelecido em Thorton
Lacey , com os mais ternos cuidados pelo bem estar dos filhos, o seu
objetivo diário era ir até lá, visitá-la, ou trazê-la até Mansfield.
Egoísta como era a estima que tinha a Fanny, Lady Bertram não a
pôde vir partir de coração alegre. Felicidade nenhuma da sobrinha ou do
filho poderiam fazê-la desejar tal casamento. Porém foi possível realizar a
separação porque Susan ficou para substituir a irmã. Susan tornou-se a
sobrinha estacionária, e muito contente com isso. E era igualmente
dotada para esse destino graças à correção do seu espírito, à sua
prestabilidade natural, como Fanny o fora pela meiguice de gênio e fortes
sentimentos de gratidão. Susan nunca pôde ser dispensada. Primeiro
como companhia para Fanny, depois como auxiliar, no fim como sua
substituta, estabeleceu-se em Mansfield sob as mesmas aparências da
irmã e com igual permanência. Sua natureza menos tímida e nervos mais
sólidos tornaram-lhe as coisas muito mais fáceis do que para a outra.
Compreendeu rapidamente o gênio daqueles com quem ia conviver, e sem
nenhuma timidez que a inibisse, depressa se tornou utilíssima a todos; e
depois do casamento de Fanny, substituiu-a tão naturalmente junto à tia,
que gradualmente se foi tornando talvez até a mais querida das duas. Ela
era indispensável, Fanny era um anjo, William continuava sempre correto
e subindo na carreira, e todos os outros membros da família eram em
geral bem sucedidos, uns sempre auxiliando a ascensão dos outros; Sir
Thomas só enxergava motivos para se felicitar pelo que fizera por todos, e
reconhecia as vantagens de uma precoce disciplina e dificuldade de vida,
e a consciência de se ter nascido para lutar e sofrer.
Baseada em tantas qualidades verdadeiras e tão verdadeiro amor,
sem cobiça de fortuna nem de amigos, a felicidade dos primos casados
merecia ser considerada como uma das coisas mais sólidas deste pobre
mundo. Formados igualmente para a vida doméstica, amantes dos
prazeres do campo, seu lar era a casa do amor e do bem estar. E para
completar tanta ventura, a morte de Mr. Grant, e a conseqüente vacância
da paróquia de Mansfield ocorreram justamente quando Edmund e Fanny
já estavam casados a tempo suficiente para desejarem um aumento de
renda, e considerarem uma inconveniência a distância em que viviam da
casa paterna.
Mudaram-se então para Mansfield. E o Presbitério, do qual, sob os
seus antigos donos, Fanny jamais se aproximara sem uma penosa
sensação de constrangimento ou de alarma, depressa se tornou querido
ao seu coração e tão perfeito aos seus olhos quanto o eram todas as
coisas que viviam sob as vistas e o patrocínio de Mansfield Park.
FIM