Sangue Inocente - James Rollins
Sangue Inocente - James Rollins
Sangue Inocente - James Rollins
Sobre a obra:
Sobre ns:
Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n. 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
Tel. 217 626 000 Fax 217 626 150
ISBN: 978-972-25-3090-3
James
A Carolyn McCray, pela sua inspirao, encorajamento
e amizade sem limites
Rebecca
Ao meu marido, filho e gato Twinkle
Olhai, Deus recebeu o vosso sacrifcio das mos
de um sacerdote ou seja, de um ministro do erro.
EVANGELHO DE JUDAS 5: 15
PRLOGO
Quando o sol mergulhava no horizonte, Bernard avistou por fim a sua meta.
Estremeceu do esforo, quase esgotado apesar da sua imensa fora. No final da estrada,
para l de onde os ltimos defensores da cidade se batiam ferozmente, a cpula plmbea
de uma mesquita erguia-se contra um indiferente cu azul. Manchas escuras de sangue
maculavam a sua fachada nvea. Mesmo quela distncia, sentia o pulsar assustado de
homens, mulheres e crianas refugiados no interior das grossas paredes do templo.
Enquanto se pressionava contra a carroa, ouvia as preces de misericrdia a um deus
distante. No obteriam nenhuma da besta no carro.
Nem dele.
As suas pequenas vidas pouco contavam vista do prmio procurado uma arma
que prometia livrar o mundo de todo o mal.
Distrado por essa esperana, no pde impedir a roda dianteira do carro de cair
num sulco fundo da estrada, alojando-se teimosamente entre as pedras. A carroa estacou
com sobressalto.
Como que percebendo a vantagem, os infiis penetraram a falange protetora em redor
do carro. Um homem esguio de cabelo negro revolto lanou-se contra Bernard, a sua
lmina curva a reluzir ao sol, disposto a proteger a mesquita e a famlia com a prpria
vida.
Bernard aceitou esse pagamento, esventrando-o com um relampejante golpe de ao.
O sangue quente salpicou as vestes sacerdotais de Bernard. Embora fosse proibido,
salvo em circunstncias e necessidade extremas, tocou o tecido manchado e levou os
dedos aos lbios. Lambeu o lquido carmesim das pontas dos dedos. S o sangue lhe
poderia dar fora para continuar a avanar. Mais tarde cumpriria penitncia, por cem
anos, se preciso fosse.
Pela lngua, o fogo penetrou-o, alimentando-lhe os membros de fora renovada,
apurando-lhe a viso. Encostou o ombro ao carro e, com impressionante mpeto, voltou
a p-lo em movimento.
Uma prece cruzou-lhe os lbios implorando pela durao das suas foras, pelo
perdo do pecado cometido.
Impeliu o carro para diante, enquanto os seus irmos abriam caminho.
As portas da mesquita surgiram diante dele, os seus ltimos defensores moribundos
na soleira. Bernard abandonou a carroa, deu as ltimas passadas at ao templo e abriu a
pontap a porta barrada, com uma fora que nenhum homem comum poderia invocar.
Do interior, gritos aterrorizados ecoaram pelas paredes ornamentadas. As pulsaes
uniam-se no pavor demasiadas, demasiado aceleradas para distinguir uma s. Fundiam-
se num batimento nico, como o rugido do mar. Olhares assustados fitavam-no de volta,
da escurido sob a cpula.
Estacou entrada, para que o pudessem ver iluminado em contraluz pelas chamas da
cidade. Impunha-se que reconhecessem as suas vestes de sacerdote e a cruz de prata, que
compreendessem que os cristos os tinham vencido.
Mas mais do que isso, importava que entendessem que no podiam escapar.
Os seus confrades sanguinistas alcanaram-no, postando-se ombro a ombro atrs
dele, entrada da mesquita. Ningum escaparia. O cheiro a terror preenchia o amplo
espao, do cho de ladrilhos larga cpula l no alto.
De um salto, Bernard regressou carroa. Soltou a gaiola e arrastou-a escadas acima
at porta, com o fundo de ferro a guinchar, traando longas linhas negras nos degraus
de pedra. A barreira de sanguinistas abriu-se para o receber e fechou-se de novo atrs
dele.
Equilibrou a gaiola na vertical, sobre os ladrilhos de mrmore polido. A espada
decepou o ferrolho com um s golpe. Recuando, fez abrir a porta ferrugenta da gaiola. O
rangido abafou a pulsao, a respirao.
A criatura avanou, livre pela primeira vez em muitos meses. Os longos braos
tateavam o ar, como que procurando as to familiares barras.
Bernard mal conseguia imaginar que aquela coisa fora outrora humana a sua pele
lvida como a dos mortos, o cabelo dourado tornado longo e enredado pelas costas
abaixo, os membros delgados como os de uma aranha.
Aterrorizada, a multido recuou para longe da vista da besta, comprimindo-se contra
as paredes distantes, esmagando outros com o seu receio e pnico. O dbil odor do
sangue e do medo irradiava deles.
Bernard ergueu a espada e esperou que a criatura o encarasse. A criatura no podia
escapar para as ruas. O seu trabalho era ali. Tinha de trazer o mal e a blasfmia quele
lugar sagrado. Tinha de destruir qualquer vestgio de sacralidade que ainda restasse. S
ento o lugar poderia ser novamente consagrado ao Deus de Bernard.
Como se lhe lesse o pensamento, a besta ergueu o rosto enrugado para Bernard. Um
par de olhos de um branco leitoso. H muito que fora privado do sol e h muito que se
tinha metamorfoseado.
Um beb choramingou no espao que se abria pela frente.
A besta no podia resistir tentao.
Com um dardejar dos membros esquelticos, voltou-se na direo oposta e
precipitou-se sobre a presa.
Bernard baixou a espada, j no precisando dela para manter o monstro distncia. A
promessa de sangue e de dor mant-lo-ia confinado quelas paredes, por enquanto.
Forou os seus ps a avanar, seguindo no encalo da besta assassina. Ao cruzar a
cpula, bloqueou os ouvidos aos gritos e preces. Desviou a vista da carne dilacerada, dos
corpos que pisava. Recusou-se a reagir malcia do sangue que pairava no ar.
Contudo, o monstro dentro de si, alimentado h pouco com umas gotas da seiva
carmesim, no podia ser totalmente ignorado. Ele ansiava por se juntar ao outro
monstro, alimentar-se e entregar-se a uma necessidade simples.
Ficar saciado, verdadeiramente saciado, pela primeira vez em anos.
Bernard apressou-se, atravessando o espao, receoso de perder o controlo, de
sucumbir ao desejo, at que chegou aos degraus no lado oposto.
A, o silncio deteve-o.
Atrs dele, todos os batimentos cardacos cessaram. A quietude aprisionou-o e ele
estacou, incapaz de se mover, subjugado pela culpa.
Ento, um grito sobrenatural ecoou da cpula, enquanto os sanguinistas matavam por
fim a besta que cumprira a sua funo.
Que Deus me perdoe...
Liberto do silncio, precipitou-se pelos degraus e passagens tortuosas, nas
profundezas da mesquita. O rumo trilhado levava-o mais fundo nas entranhas da cidade.
O denso odor da carnificina perseguia-o, um espectro nas sombras.
Depois, por fim, sentiu um outro odor.
gua.
Deixou-se cair de gatas, rastejou por um tnel apertado e vislumbrou o tremular de
uma chama, mais adiante. Esta incitava-o a avanar, como a uma traa. No final do tnel,
abria-se uma caverna, suficientemente alta para se poder levantar.
Arrastou-se para fora do tnel e ps-se de p. Uma tocha feita de junco estava
suspensa de uma parede, lanando uma luz trmula sobre uma lagoa de guas negras.
Geraes de fuligem maculavam o teto alto.
Comeou a avanar quando uma mulher se ergueu de trs de um penedo. Tranas de
um negro lustroso, cadas sobre os ombros da sua simples tnica branca, e uma pele
escura, de brilho suave e perfeito. Um fragmento de metal, do comprimento da palma da
mo, pendia de uma fina corrente de ouro presa em torno do seu pescoo esguio.
Repousava entre os seios, que se insinuavam contra o fino corpete de linho.
H muito que era sacerdote, mas o seu corpo reagiu beleza da mulher. Com grande
esforo, obrigou o seu olhar a enfrentar o dela. Os seus olhos claros fitaram os dele.
Quem s? perguntou ele.
No lhe ouvia o bater do corao, mas sabia tambm instintivamente que ela no era
como a besta enjaulada, nem como ele prprio. Mesmo quela distncia, sentia o calor
irradiado pelo corpo da mulher.
s a Senhora do Poo?
Era o nome que descobrira escrito num antigo pedao de papiro, juntamente com um
mapa do que se encontrava nas profundezas.
Ela ignorou as perguntas.
No ests preparado para o que procuras disse-lhe simplesmente. As palavras
eram em latim, mas a pronncia parecia antiga, mais do que a sua prpria.
Apenas procuro o conhecimento contraps ele.
Conhecimento? Aquela simples palavra soou to lgubre quanto um cntico
fnebre. Aqui, s encontrars desiluso.
Porm, deve ter reconhecido a determinao dele. Afastou-se e apontou-lhe o lago
com a mo morena, os seus dedos longos e graciosos. Uma fina tira de ouro rodeava-lhe
o brao.
Ele passou por ela, o seu ombro quase tocando o dela. A fragrncia de botes de
ltus danava no ar clido que a envolvia.
Deixa para trs as vestes ordenou ela. Tens de entrar na gua nu como dela
saste.
borda da gua, ele tateou desajeitadamente o hbito, lutando contra os pensamentos
impuros que lhe povoavam a mente.
Ela recusou-se a desviar o olhar.
Trouxeste muita morte a este lugar sagrado, ministro da cruz.
Ser purificado disse ele, procurando apazigu-la. E consagrado ao nico Deus.
nico? A mgoa despertou nos seus olhos profundos. Pareces to certo.
Estou.
Ela encolheu os ombros. O pequeno gesto desprendeu-lhe a fina tnica dos ombros.
Caiu com um sussurro sobre o spero cho de pedra. A luz da tocha revelou um corpo
de tal perfeio, que ele esqueceu os votos e o contemplou sem pudor, os olhos
demorando-se na curva dos seios plenos, no ventre, no longo contorno musculado das
coxas.
Ela voltou-se e mergulhou na gua escura, quase sem provocar ondulao.
Agora s, ele desapertou apressadamente o cinto, sacudiu dos ps as botas
ensanguentadas e arrancou a veste. Uma vez nu, saltou atrs dela, mergulhando fundo. A
gua gelada lavou-lhe o sangue da pele e batizou-o na inocncia.
Expulsou o ar dos pulmes, pois no necessitava dele enquanto sanguinista. Desceu
rapidamente, nadando atrs dela. Nas profundezas, membros nus reluziram por um
instante depois ela desviou-se para o lado, rpida como um peixe, e desapareceu.
Ele impeliu-se para mais fundo, mas ela desaparecera. Ele tocou na cruz e rogou por
orientao divina. Deveria procur-la ou prosseguir com a sua misso?
A resposta foi simples.
Virou-se e nadou para diante, atravs de passagens tortuosas, seguindo o mapa na sua
cabea, aprendido de antigos fragmentos de papiro, na direo das profundezas secretas
sob Jerusalm.
Deslocava-se to clere quanto ousava, na mais absoluta escurido, por passagens
complexas. Um homem mortal teria morrido repetidas vezes. Uma mo varria a pedra,
contando as passagens. Por duas vezes, chegou a becos sem sada e teve de voltar atrs.
Combateu o pnico, dizendo que lera mal o mapa, prometendo a si prprio que o lugar
procurado existia.
O seu desespero atingiu o ponto limite e, ento, uma figura passou rapidamente por
ele, nas guas geladas, como uma corrente a percorrer-lhe a pele, retrocedendo na direo
de onde ele viera. Assustado, procurou a espada, lembrando-se tarde demais que a
deixara junto com o amontoado de roupas.
Tentou alcan-la, mas sabia que ela se fora.
Voltando-se na direo de onde ela viera, impeliu-se para frente com renovado vigor.
Abriu caminho por entre o medo crescente de nadar para todo o sempre no meio da
escurido sem nunca encontrar o que procurava.
Finalmente, chegou a uma vasta caverna, as suas paredes abrindo-se amplamente para
cada um dos lados.
Embora cego, sabia que encontrara o lugar certo. A gua era mais quente, ardendo
com uma sacralidade que lhe irritava a pele. Nadando para um dos lados, ergueu as mos
trmulas e explorou a parede.
Sob as mos, sentiu um desenho gravado na pedra.
Por fim...
As pontas dos dedos percorreram a pedra, procurando entender as imagens a
gravadas.
Imagens que os poderiam salvar.
Imagens que o poderiam levar arma secreta.
Sob os dedos, sentiu a forma de uma cruz, percebeu uma figura crucificada e, acima
dela, a mesma figura, com o rosto erguido ao alto e os braos estendidos para o cu.
Entre os corpos, uma linha ligava a alma em ascenso ao corpo pregado l em baixo.
Enquanto seguia aquele curso, as pontas dos dedos ardiam, revelando que a linha era
feita da mais pura prata. A partir da cruz, o curso gneo estendia-se pela parede curva da
caverna at um desenho contguo. A, descobriu um grupo de homens com espadas,
vindos para prender Cristo. A mo do Salvador tocava na tmpora de um dos homens.
Bernard sabia o que representava.
A cura de Malco.
O ltimo milagre de Cristo, antes da ressurreio.
Nadando ao longo da parede, Bernard seguiu a linha argntea atravs dos muitos
milagres realizados por Jesus, durante a sua vida: a multiplicao dos pes e peixes, a
ressurreio dos mortos, a cura dos leprosos. Traava cada um deles na sua mente, como
se os tivesse visto. Esforou-se por conter a esperana, a exaltao.
Por fim, chegou representao das bodas de Can, onde Jesus transformara a gua
em vinho. O primeiro milagre do Salvador de que havia registo.
Porm, o curso de prata prosseguia para l de Can, ardendo atravs da escurido.
Mas para onde? Revelaria milagres desconhecidos?
Bernard seguiu-o descobrindo apenas um largo espao de rocha fragmentada sob os
dedos. Desesperado, passou as mos pela parede em arcos cada vez mais amplos.
Fragmentos de prata incrustada na pedra marcaram a sua pele a fogo. A dor f-lo
recuperar a razo, forando-o a enfrentar o seu maior receio.
Aquela parte da gravao fora destruda.
Espalmou as mos contra a parede, tateando em busca de mais. Segundo os antigos
fragmentos de papiro, a histria dos milagres de Cristo revelaria o lugar onde se escondia
a arma mais sagrada de todas uma arma capaz de destruir a alma danada mais poderosa
pelo simples toque.
Permaneceu na gua, ciente da verdade.
O segredo fora destrudo.
E ele sabia por quem.
As palavras dela ecoaram na sua mente.
Conhecimento? Aqui, s encontrars desiluso.
Achando-o indigno, ela devia ter vindo direta ali e apagado a imagem sagrada, antes
que ele a pudesse ver. As suas lgrimas misturavam-se com a gua glida no pelo que
se perdera, mas por uma verdade mais dura.
Falhei.
Todas as mortes deste dia foram em vo.
PRIMEIRA PARTE
MATEUS 27: 4
CAPTULO 1
O sargento Jordan Stone sentia-se uma fraude ao marchar no seu uniforme de gala.
Hoje, enterraria o ltimo membro da sua antiga unidade um jovem cabo de nome
Sanderson. semelhana dos outros companheiros da unidade, o corpo de Sanderson
nunca fora encontrado.
Depois de alguns meses de buscas por entre as toneladas de entulho que outrora
formaram a montanha de Massada, os militares tinham desistido. O caixo vazio de
Sanderson comprimia-se dolorosamente contra a perna de Jordan, enquanto marchava em
cadncia com os restantes portadores do caixo.
Um nevo de dezembro cobrira de branco os terrenos do Cemitrio Nacional de
Arlington, escondendo a erva parda e amontoando-se nos troncos de rvores sem folhas.
A neve acumulava-se sobre o contorno arqueado das placas fnebres de mrmore, mais
placas do que conseguia contar. Cada campa estava numerada, a maioria tinha nome e
todos aqueles soldados tinham sido sepultados no descanso eterno com honra e
dignidade.
Um deles era a sua mulher, Karen, morta em combate h um ano. No houvera restos
mortais suficientes para enterrar, apenas as placas de identificao militares. O seu caixo
estava to vazio quanto o de Sanderson. Em certos dias, Jordan no conseguia acreditar
que ela tinha partido, que no voltaria a trazer-lhe flores e a receber um demorado beijo
em agradecimento. Em vez disso, as nicas flores que lhe traria acabariam na sua campa.
Depositara a rosas vermelhas, antes de se dirigir para o funeral de Sanderson.
Recordou o rosto sardento de Sanderson. O seu jovem companheiro de unidade fora
um homem sempre pronto a agradar e cumpridor do dever, que dera o seu melhor. Em
troca, tivera uma morte solitria no topo de uma montanha em Israel. Jordan estreitou o
aperto sobre a pega fria do caixo, desejando que a misso tivesse terminado de outra
forma.
Mais alguns passos para l das rvores nuas e ele e os companheiros carregaram o
caixo para o interior de uma capela glida. Sentia-se mais reconfortado dentro daquelas
simples paredes brancas do que se sentira nas sumptuosas igrejas da Europa. Sanderson
tambm se teria sentido mais aconchegado ali.
A me e a irm de Sanderson esperavam-nos no interior. Envergavam vestidos pretos
quase idnticos e finos sapatos formais, apesar da neve e do frio. Ambas tinham a tez
clara de Sanderson, com as faces cobertas de sardas mesmo no inverno. Os narizes e os
olhos estavam avermelhados.
Sentiam a falta dele.
Desejou que no tivessem de a sentir.
Ao lado delas, o seu superior, o capito Stanley, mantinha-se em sentido. O capito
estivera do lado esquerdo de Jordan em todos os funerais, os seus lbios comprimidos
numa estreita linha enquanto os caixes eram descidos terra. Bons soldados, todos eles.
Era um comandante que seguia escrupulosamente as regras e tratara o depoimento de
Jordan com toda a retido. Por seu lado, Jordan fizera o seu melhor por se manter fiel
mentira elaborada pelo Vaticano: a montanha desabara num terramoto e todos tinham
morrido. Ele e Erin tinham ficado num recesso que no rura, tendo sido salvos trs dias
mais tarde por uma equipa de resgate do Vaticano.
Bastante simples.
Mas no era verdade. Infelizmente, mentia mal e o seu superior suspeitava que ele no
tinha revelado tudo o que acontecera em Massada ou aps o salvamento.
Jordan fora j dispensado do ativo e colocado sob acompanhamento psiquitrico.
Algum o vigiava permanentemente, espera que se fosse abaixo. O que ele mais queria
era voltar ao ativo e fazer o seu trabalho. Enquanto membro do Centro Forense
Expedicionrio Conjunto no Afeganisto, tratara e investigara cenrios de crime militares.
Era bom no que fazia e queria voltar a faz-lo.
Tudo para se manter ocupado, em atividade.
Em vez disso, postava-se de novo em sentido ao lado de mais um caixo, o frio do
cho de mrmore a infiltrar-se pelos dedos dos ps. A irm de Sanderson tremia ao seu
lado. Desejou poder oferecer-lhe o casaco da sua farda.
Ouvia o tom sombrio da voz do capelo militar, mais do que as suas palavras. O
sacerdote dispunha de apenas vinte minutos para celebrar a cerimnia. Arlington tinha
muitos funerais por dia e seguia um horrio rigoroso.
Rapidamente, viu-se no exterior da capela em direo ao cemitrio. Fizera aquela
marcha tantas vezes que os ps encontraram o caminho da campa sem ter de pensar
muito. O caixo de Sanderson aguardava num monte de terra castanha limpa de neve, ao
lado de uma cova coberta pela bandeira.
Um vento frio soprava sobre a neve, encaracolando os flocos em enleios, como
cirros, o tipo de nuvens altas to comum no deserto onde Sanderson morrera. Jordan
esperou pelo resto da cerimnia, ouviu a salva de trs tiros, o corneteiro a entoar o
Toque do Silncio e observou o capelo a entregar a bandeira dobrada me de
Sanderson.
Jordan vivera a mesma cena por cada um dos companheiros perdidos.
No se tornava mais fcil.
No final, Jordan apertou a mo da me de Sanderson. Sentiu-a fria e frgil, e receou
quebr-la.
Sinto muito pela sua perda. O cabo Sanderson era um bom soldado e um excelente
homem.
Ele gostava de si disse ela, dirigindo-lhe um sorriso triste. Achava-o inteligente e
corajoso.
Jordan forou o rosto rgido a corresponder ao sorriso.
bom ouvir isso, minha senhora. Ele tambm era inteligente e corajoso.
Ela pestanejou para afastar as lgrimas e virou costas. Ele preparou-se para a seguir,
embora incerto do que lhe iria dizer, mas antes que pudesse faz-lo, o capelo cravou-lhe
a mo no ombro.
Penso que temos assuntos a discutir, Sargento.
Voltando-se, Jordan examinou o jovem capelo. Envergava o uniforme de gala, tal
como Jordan, s que com cruzes pregadas nas lapelas do casaco. Olhando-o agora mais
de perto, Jordan apercebeu-se da sua pele lvida demais, mesmo para o inverno, do cabelo
escuro um pouco longo demais, da postura pouco militar. Ao olh-lo de volta, os olhos
verdes do capelo no pestanejaram.
Jordan sentiu os pelos do pescoo eriarem-se.
O gelo da mo do capelo infiltrava-se atravs da luva. No era como uma mo que
tivesse estado demasiado tempo exposta, num dia frio, mas como uma mo que no tinha
calor h anos.
Jordan j conhecera muitos do gnero. O que tinha diante de si era um predador
morto-vivo, uma criatura vamprica denominada strigoi. Mas, para estar ali luz do dia,
devia ser um sanguinista um strigoi que fizera um voto de deixar de beber sangue
humano para servir a Igreja Catlica e alimentar-se unicamente do sangue de Cristo, ou
mais exatamente do vinho consagrado pelo sacramento da Eucaristia no sangue de Cristo.
Tal voto tornava aquela criatura menos perigosa.
Mas no muito menos.
No tenho assim tanta certeza de que tenhamos mais assuntos a discutir disse
Jordan.
Afastou-se do capelo e colocou-se em posio, pronto para lutar se necessrio fosse.
J vira sanguinistas a lutar. Sem dvida que aquele capelo franzino podia acabar com ele,
mas isso no significava que Jordan se deixasse vencer facilmente.
O capito Stanley interps-se entre eles e clareou a garganta.
Foi esclarecido at ao topo da hierarquia, sargento Stone.
O qu, capito?
Ele explicar-lhe- tudo respondeu o capito, gesticulando na direo do capelo.
Acompanhe-o.
E se eu recusar? Jordan susteve a respirao, esperando uma resposta favorvel.
uma ordem, sargento. Olhou Jordan diretamente nos olhos. Est totalmente
fora do meu controlo.
Jordan reprimiu um gemido.
Lamento, capito.
O capito Stanley recurvou um canto minsculo da boca, equivalente gargalhada
sonora de um homem mais alegre.
Disso tenho a certeza, sargento.
Jordan fez-lhe continncia, perguntando-se se seria a ltima vez, e seguiu o capelo at
uma limusina preta estacionada na berma. Os sanguinistas pareciam ter invadido
novamente a sua vida, dispostos a espezinhar o que restava da sua carreira com os seus
ps imortais.
O capelo segurou-lhe a porta aberta e Jordan entrou. O interior cheirava a couro,
brandy e charutos caros. No o que se esperaria do carro de um sacerdote.
Jordan deslizou para o outro extremo do banco. O separador de vidro estava subido e
tudo o que conseguia ver do motorista era a parte de trs de um pescoo grosso, o cabelo
louro curto e o bon do uniforme.
O capelo puxou para cima as pernas das calas, para conservar o vinco, antes de
entrar. Com uma mo, fechou a porta com estrondo, aprisionando Jordan consigo no
interior.
Por favor, ligue o aquecimento para o nosso convidado disse o capelo ao
motorista. Depois, desabotoou o casaco da farda de gala e recostou-se.
O meu capito disse que me explicaria tudo. Jordan cruzou os braos. Fora.
Isso praticamente impossvel.
O jovem capelo serviu um brandy. Levou o copo ao nariz e inspirou. Com um
suspiro, baixou o copo e ofereceu-o a Jordan.
Uma bela colheita.
Beba-o, ento.
O capelo girou o brandy no copo, seguindo com os olhos o lquido acastanhado.
Sabe que no posso faz-lo, por muito que queira.
E essa explicao? insistiu.
O capelo ergueu a mo e o carro ps-se em movimento.
Lamento toda esta histria de capa e espada. Ou melhor de hbito e cruz, talvez seja
o termo mais adequado.
Sorriu melancolicamente, enquanto aspirava de novo o brandy.
Jordan franziu a testa ao ver os maneirismos do seu interlocutor. Parecia
decididamente menos carrancudo e formal do que os outros sanguinistas que conhecera.
O capelo tirou a luva branca e estendeu a mo.
O meu nome Christian.
Jordan ignorou o convite.
Apercebendo-se disso, o capelo afastou a mo e passou os dedos pela farta cabeleira.
Sim, compreendo a ironia. Um sanguinista com um nome que significa cristo. Foi
como a minha me o planeou.
O homem bufou.
Jordan no estava muito certo do que pensar daquele sanguinista.
Quase nos cruzmos na Abadia de Ettal disse o capelo. Mas, na Alemanha,
Rhun escolheu a Nadia e o Emmanuel para formar o resto do trio.
Jordan visualizou as feies sombrias de Nadia e a atitude ainda mais sombria de
Emmanuel.
Christian abanou a cabea.
Nada de surpreendente, suponho.
Como assim?
O outro ergueu uma sobrancelha.
Parece que no me cubro suficientemente de cinzas e burel para o padre Rhun
Korza.
Jordan reprimiu um sorriso.
Posso perceber como isso o incomodaria.
Christian pousou o brandy numa bandeja junto porta e inclinou-se para diante, com
os olhos verdes srios.
Na verdade, o padre Korza a razo de eu estar aqui.
Ele enviou-o?
De alguma forma, Jordan no o conseguia imaginar. Duvidava que Rhun quisesse ter
mais o que fosse a tratar com ele. No se tinham separado no melhor dos termos.
No exatamente. Christian pousou os cotovelos magros nos joelhos. O cardeal
Bernard est a tentar manter a discrio, mas Rhun desapareceu sem uma palavra.
Era de esperar... Ele no era propriamente do tipo comunicativo.
Ele contactou-o desde que deixou Roma, em outubro? indagou Christian.
Porque haveria de me contactar?
O outro inclinou a cabea para o lado.
Porque no haveria?
Eu odeio-o. Jordan no viu razo para mentir. E ele sabe-o.
O Rhun uma pessoa difcil de se gostar admitiu Christian. Mas o que fez ele
para o fazer odi-lo?
Para alm de quase matar a Erin?
As sobrancelhas de Christian franziram-se de preocupao.
Pensei que ele tinha salvado a vida dela... e a sua.
Jordan cerrou os maxilares. Recordou Erin cada no cho, com a pele lvida, o cabelo
ensopado de sangue.
O Rhun mordeu-a explicou Jordan com aspereza. Sugou-a e deixou-a a morrer
nos tneis debaixo de Roma. Se eu e o irmo Leopold no a tivssemos encontrado
quando encontrmos, ela estaria morta.
O padre Korza alimentou-se da Erin? Christian vacilou para trs, a surpresa
marcada no seu rosto. Observou Jordan por vrios segundos sem falar, claramente
desorientado com a revelao daquele pecado.
Tem a certeza? Talvez...
Ambos o admitiram. Erin e Rhun. Jordan cruzou os braos. No sou eu quem
mente.
Christian ergueu as mos num gesto conciliador.
Peo desculpa. No estava a duvidar de si. S que ... invulgar.
No para o Rhun. Pousou as mos nos joelhos. O seu eleito j cometeu erros
antes.
Uma nica vez. E o caso de Elizabeth Bathory foi h sculos.
Christian pegou no copo de brandy e estudou-o.
Est a dizer que o irmo Leopold sabia de tudo isto?
Sabia pois.
Aparentemente, Leopold devia ter encoberto Rhun. Jordan sentiu desiluso, mas no
surpresa. Os sanguinistas protegiam-se uns aos outros.
Ele alimentou-se dela... Christian fitava o copo como se pudesse encontrar a a
resposta. Isso significa que Rhun est impregnado do sangue dela.
Jordan estremeceu, perturbado com a ideia.
Isso muda tudo. Temos de ir ter com ela. J. Christian inclinou-se para diante e
bateu no separador para chamar a ateno do motorista. Para o aeroporto! Agora!
Obedecendo prontamente, o motorista acelerou, a parte de baixo do carro raspou no
cho ao transpor uma elevao, e dirigiu-se para fora do cemitrio.
Christian olhou de relance para Jordan.
Seguiremos caminhos distintos no aeroporto. Consegue ir para casa pelos seus
meios, certo?
Consigo concordou. Mas, se a Erin est envolvida nisto, eu vou consigo.
Christian inspirou e expirou longamente. Tirou o telemvel do bolso e marcou
alguns nmeros.
Estou certo de que, da ltima vez, o cardeal Bernard lhe fez todo o discurso sobre
os perigos para a sua vida e alma de se envolver nos nossos assuntos.
Fez, de facto.
Ento, poupemos tempo e finjamos que lho fiz de novo. Christian levou o
telefone ao ouvido. Preciso imediatamente de um avio para a Califrnia.
Quer dizer que no se ope a que v consigo?
Ama a Erin e quer proteg-la. Quem sou eu para o impedir?
Para um tipo morto, Christian revelava-se bastante aceitvel.
Contudo, medida que a limusina acelerava pela cidade varrida pela neve, a ansiedade
de Jordan adensava-se a cada quilmetro vencido.
Erin estava em perigo.
De novo.
E provavelmente por causa das aes de Rhun Korza.
Talvez fosse melhor que o canalha continuasse desaparecido.
CAPTULO 3
A luz da vela era refletida pelo globo adornado de joias ao lado da mesa de trabalho.
Girou a esfera antiga lentamente, desejando estar em qualquer lugar que no ali. Olhou
para os seus livros antigos, os seus pergaminhos, a sua espada na parede, que remontava
ao tempo das Cruzadas objetos que colecionara durante sculos de servio Igreja.
Servi por muito tempo, mas terei servido bem?
O cheiro a tinta de jornal chamou-lhe a ateno de volta para as pginas. Os detalhes
perturbaram-no ainda mais. Cada uma das mulheres apresentava a garganta cortada e o
corpo esvaziado de sangue. Eram todas belas e jovens, de cabelo negro e olhos azuis.
Provinham de todas as esferas sociais, mas todas tinham morrido na zona mais antiga de
Roma, nas horas mais obscuras entre o pr e o nascer do Sol.
Vinte no total, de acordo com a imprensa.
Mas Bernard conseguira ocultar muito mais mortes. Desde finais de outubro, somava-
se uma nova vtima a cada dia.
No podia ignorar o momento em que acontecera.
Finais de outubro.
As mortes tinham comeado logo aps a batalha travada nas criptas sob a Baslica de
S. Pedro, uma luta pela posse do Evangelho de Sangue. Os sanguinistas tinham ganho a
batalha contra a Belial, uma fora conjunta de humanos e strigoi, dirigida por um lder
desconhecido que continuava a atormentar a ordem.
Pouco depois da batalha, o padre Rhun Korza tinha-se eclipsado.
Onde estaria? O que teria feito?
Bernard afastou aquele pensamento.
Olhou para a pilha de jornais. Teria um strigoi solitrio escapado da batalha,
percorrendo as ruas de Roma caa dessas jovens mulheres? Eram tantas as bestas nos
tneis. Uma podia ter escapado sua rede.
Parte dele rezava para que fosse verdade.
No ousava pensar na alternativa. Aquele medo mantinha-o na expectativa, na
indeciso, enquanto mais raparigas inocentes morriam.
Uma mo bateu porta.
Cardeal?
Reconheceu a voz e o vagaroso batimento cardaco que lhe pertencia.
Entre, padre Ambrose.
O sacerdote humano abriu a porta de madeira com uma mo, a outra fechada num
punho frouxo.
Lamento incomod-lo.
Mas o assistente no parecia lamentar. Na verdade, a sua voz tinha um tom de
satisfao mal disfarada. Embora Ambrose o amasse claramente e servisse o cardeal com
zelo, persistia no homem um minsculo trao que encontrava um prazer perverso nas
desgraas alheias.
Bernard reprimiu um suspiro.
Sim?
Ambrose entrou no gabinete. O seu corpo bojudo inclinava-se para diante como um
co a seguir o faro. Olhou em torno da sala iluminada por velas, provavelmente
certificando-se de que Bernard estava sozinho. Como Ambrose prezava os seus segredos.
Mas talvez fosse por isso que prezava tanto Bernard. Passados tantos sculos, as suas veias
eram percorridas por tantos segredos como sangue negro.
Por fim satisfeito, o assistente inclinou a cabea em deferncia.
Os nossos encontraram isto no local do crime mais recente.
Ambrose encaminhou-se para a mesa e estendeu o brao. Lentamente, voltou a mo e
abriu os dedos.
Na palma da sua mo estava uma faca. A sua lmina encurvada lembrava uma garra de
tigre. O gancho afiado tinha uma abertura numa das extremidades, por onde um guerreiro
podia enfiar o dedo, permitindo ao manejador arremeter a lmina numa infinidade de
golpes mortais. Era uma antiga arma designada karambit, cujas origens remontavam a
sculos atrs. E pela ptina que lhe cobria a superfcie, aquela em concreto era bem antiga
mas no era nenhuma pea de museu. Estava claramente marcada pelas batalhas e pelo
uso intenso.
Bernard tirou-a da mo de Ambrose. O ardor nas pontas dos dedos confirmou o seu
pior receio. A lmina era revestida a prata, a arma de um sanguinista.
Evocou os rostos das raparigas mortas, das suas gargantas abertas de lado a lado.
Fechou os dedos sobre a prata ardente.
Em toda a ordem, apenas um sanguinista carregava tal arma, o homem que
desaparecera quando os assassnios tinham comeado.
Rhun Korza.
CAPTULO 4
Montada no seu cavalo favorito, Erin galopava por prados pintados de um castanho
dourado pelo inverno seco da Califrnia. Respondendo mais pequena variao do seu
peso, o negro corcel alongou o passo.
isso mesmo, Blackjack.
Mantinha o animal alojado nuns estbulos s portas de Palo Alto. Montava-o sempre
que tinha oportunidade, sabendo que ele precisava do exerccio, mas sobretudo pelo
puro prazer de voar pelos campos em cima do musculado corcel. Blackjack no era
montado h dias e transbordava de energia.
Olhou para trs por cima do ombro. Nate seguia no muito atrs dela, montado
numa gua cinzenta chamada Gunsmoke. Criado no Texas, ele prprio era um cavaleiro
experiente e estava claramente a pr a montada prova.
Ela deixou simplesmente Blackjack gastar todo o vigor, procurando concentrar-se no
vento que lhe batia no rosto, no arrebatador cheiro do cavalo, na ligao natural entre ela
e a montada. Adorava montar desde muito pequena. Ajudava-a a pensar. Hoje,
questionava-se sobre as vises, tentando perceber o que fazer com elas. Sabia que no
eram simples efeito do stresse ps-traumtico. Significavam algo mais.
sua frente, o sol tocava o topo dos montes.
Temos de voltar daqui a nada! gritou-lhe Nate. O Sol pe-se daqui a meia hora!
Ela percebeu um toque de ansiedade na sua voz. Em Roma, Nate ficara preso na
escurido durante dias e fora torturado nas sombras. A noite encerrava, provavelmente,
um certo terror para ele.
Reconhecendo-o agora, percebeu que no devia ter concordado em deix-lo vir. Mas
ao incio da tarde, no conseguindo contactar o cardeal Bernard por telefone, sara do
gabinete para libertar alguma ansiedade. Nate perguntara-lhe onde ia e insensatamente
permitira-lhe acompanh-la.
Nesses ltimos meses, tinha dificuldade em dizer-lhe que no. Depois dos trgicos
acontecimentos em Israel e Roma, ele continuava a ter dificuldades, ainda mais do que ela,
embora raramente falasse sobre isso. Ela tentava dar-lhe apoio, ajud-lo a suportar as
memrias que lhe tinham sido impostas. Era o mnimo que podia fazer.
No passado, a sua relao fora descontrada desde que fingisse no perceber a
atrao que ele tinha por ela. Mas quando ela se apaixonara por Jordan, Nate recuara para
um profissionalismo distante. Seria por sentimentos feridos, raiva ou por outro motivo?
Infelizmente, depois dessa noite, talvez no importasse mais.
Suspirou. Talvez tivesse sido bom que Nate a acompanhasse na cavalgada. O momento
oferecia-lhe a oportunidade perfeita para lhe falar em privado.
Abrandou Blackjack imprimindo uma ligeira tenso s rdeas. Nate colocou-se ao seu
lado com Gunsmoke. Ele sorriu-lhe, despedaando-lhe um pouco o corao. Mas tinha de
lhe dizer. Era melhor dizer-lho agora, antes das frias de Natal, para lhe dar tempo de se
habituar ideia.
Ela inspirou fundo.
Nate, preciso de te dizer uma coisa.
Nate puxou para cima o Stetson de palha e olhou-a de esguelha. Os cavalos seguiam a
passo, lado a lado, pelo trilho amplo.
O que ?
Falei com o reitor esta manh. Sugeri-lhe nomes de outros professores com quem
poderias querer trabalhar.
As sobrancelhas dele franziram-se de preocupao.
Fiz alguma coisa de errado? Tem sido difcil, desde que voltmos, mas...
O teu trabalho sempre foi excelente. No tem a ver contigo.
Diria que sim, tendo em conta o meu envolvimento e tudo o mais.
Ela mantinha o olhar focado num ponto entre as orelhas negras e macias do cavalo.
Depois do que aconteceu em Israel... no estou muito certa de que seja a melhor
escolha para ti.
Ele agarrou na brida de Blackjack e refreou os dois cavalos at os fazer parar.
De que est a falar?
Erin encarou-o. Parecia preocupado e zangado.
Ouve, Nate. A universidade no est contente comigo por ter perdido dois alunos.
No foi culpa sua.
Ela falou por cima dele.
O reitor acha que melhor eu fazer uma pausa sabtica para pr a cabea em
ordem.
Ento, eu espero. Nate cruzou as mos sobre o apoio da sela. No h problema.
No ests a perceber.
Ela remexia nas rdeas, desejando arrebat-las e fugir a galope daquela conversa, mas
deixou que a dura verdade a segurasse no lugar.
Nate, acho que o primeiro passo da universidade no sentido de me dispensar.
Ele ficou boquiaberto.
Ela falou rapidamente, deitando tudo para fora.
No podes querer a tua tese associada a um professor prestes a ser excludo. Tu s
um cientista brilhante, Nate, e estou certa de que vais encontrar um orientador mais
adequado... algum que te possa abrir portas que eu j no posso abrir.
Mas...
Agradeo a tua lealdade disse ela , mas no merecida.
Ele explodiu, revoltado.
pois!
Nate, o facto de ficares no me vai ajudar. O que tiver de acontecer com a minha
carreira, acontecer.
Mas eu escolhi-a como minha orientadora porque a melhor do ramo. A raiva
brotava dele, fazendo-o vacilar na sela. A melhor. E isso no mudou.
Quem sabe? Pode ser esquecido com o tempo.
Na verdade, Erin no achava que assim fosse, nem tinha a certeza de querer que assim
fosse. No incio da sua carreira, a vida acadmica oferecera-lhe a segurana da
racionalidade depois de uma rgida educao religiosa, mas j no parecia suficiente.
Recordou a dificuldade em lecionar no semestre passado. No podia continuar a ensinar
mentiras.
E no podia ser menos verdadeira com Nate agora.
Mesmo que o incidente seja esquecido disse ela , ters perdido oportunidades
valiosas at l. No vou permitir que isso acontea.
Nate pareceu prestes a argumentar, a protestar. Talvez sentindo a sua perturbao, a
gua sacudiu a cabea e danou levemente sobre as patas dianteiras.
No tornes isto mais difcil do que j terminou ela.
Nate esfregou o lbio superior, incapaz de a fitar. Finalmente, abanou a cabea, virou
Gunsmoke e afastou-se a galope, sem dizer palavra, na direo do estbulo.
Blackjack relinchou atrs deles, mas ela segurou firmemente o cavalo, sabendo que
Nate precisaria de algum tempo a ss. Deu-lhes alguma distncia, antes de deixar Blackjack
percorrer a passo o caminho de volta.
Os ltimos raios do dia mergulharam por fim atrs dos montes, mas restava luz
suficiente para impedir Blackjack de cair numa toca de toupeira. Desconfortvel, mudou
de posio na sela. Sentiu o amuleto da sorte de Amy no bolso da frente das calas. Tinha-
se esquecido de que o pusera a, ainda incerta do que fazer com ele. Pensara devolv-lo
aos pais de Amy, mas retirariam da algum bem? O pedao de mbar seria sempre uma
evocao de que a filha escolhera uma profisso que acabara por a matar, o seu sangue
derramado em areias longnquas.
Erin no podia fazer-lhes tal coisa nem queria guardar o talism, esse pesado
testemunho do seu papel na morte de Amy.
Ainda sem saber o que fazer com isso, voltou a pensar em Nate. Em Roma, ela salvara
a vida de Nate e agora faria o que pudesse para lhe salvar a carreira, por muito revoltado
que ele ficasse. Esperava que Nate estivesse mais resignado quando chegasse ao estbulo.
Fosse como fosse, enviar-lhe-ia um e-mail mais tarde, nessa noite, com a lista de nomes.
Eram arquelogos de renome e a sua recomendao teria peso junto deles.
Nate ficaria bem.
E quanto mais se distanciasse dela, melhor seria para ele.
Resignada e decidida, afagou o pescoo de Blackjack.
Vamos l arranjar-te aveia e dar-te uma boa escovadela. O que me dizes?
As orelhas de Blackjack agitaram-se para trs. O cavalo retesou-se subitamente debaixo
dela.
Sem pensar, apertou os joelhos.
Blackjack resfolegou e danou para o lado, revirando os olhos.
Algo o assustara.
Erin abarcou o prado aberto num movimento rpido. sua direita, estendia-se uma
fileira sombria de carvalhos de folha persistente, nuvens de visco prateado pendentes dos
ramos. Tudo poderia esconder-se ali.
Ouviu um estalido, vindo da linha de rvores, o quebrar de um galho a rasgar a noite
silenciosa.
Sacou a arma do coldre do tornozelo e desbloqueou o travo de segurana,
procurando um alvo por entre os carvalhos. Mas estava demasiado escuro para ver o que
quer que fosse. Com o corao a ressoar-lhe nos ouvidos, lanou um rpido olhar aos
estbulos distantes.
Nate j l estaria, provavelmente.
Blackjack empinou-se de sbito, quase a arremessando para fora da sela. Ela
debruou-se sobre o seu pescoo quando o animal disparou em direo aos estbulos.
No o tentou abrandar ou travar.
O medo estreitava-lhe a viso, ao mesmo tempo que se esforava por olhar
atentamente em todas as direes. Sentiu o sabor do sangue na lngua ao morder o lbio.
Depois, o odor a vinho inundou-lhe as narinas.
No, no, no...
Lutou para no se perder, sentindo um novo ataque a aproximar-se. O pnico f-la
apertar mais as rdeas de Blackjack. Se perdesse o controlo agora, cairia por terra.
Ento, sobreveio um terror maior.
Um ronco cavernoso ressoou no meio da noite, estendendo-se dos montes na sua
direo. O grito gutural no provinha de uma garganta comum, mas de algo horrendo...
... e prximo.
CAPTULO 5
Rhun lanou-se cambaleante para cima e para diante. A cabea bateu em pedra lisa. O
golpe abriu-lhe uma ferida na tmpora e f-lo cair para trs no escaldante banho de vinho.
Acordara assim repetidas vezes, preso no interior de um sarcfago de pedra, com o
corpo meio submerso em vinho vinho abenoado e convertido no sangue de Cristo.
A sua carne maldita ardia naquela sacralidade, flutuando num mar de dor escarlate.
Parte dele queria lutar, mas parte sabia que o merecia. Pecara sculos antes e, agora,
encontrara a verdadeira penitncia.
Mas quanto tempo passara?
Horas, dias, anos?
A dor recusava-se a cessar. Pecara muito, portanto deveria ser punido muito. Ento,
poderia ter descanso. O seu corpo ansiava por descanso um fim para a dor, um fim
para o pecado.
Contudo, quando se sentiu perder, lutou contra isso, sentindo que no podia render-
se. Tinha um dever.
Mas para com quem?
Forou os olhos a manterem-se abertos, a enfrentarem uma escurido que mesmo a
sua viso sobrenatural no conseguia penetrar. A agonia continuava a atormentar o seu
corpo enfraquecido, mas ele afastava-a com a f.
Procurou com uma mo a pesada cruz de prata que usava sempre ao peito e
encontrou apenas a roupa molhada. Lembrou-se. Algum lhe roubara o crucifixo, o
rosrio, todas as provas da sua f. Mas no precisava delas para apelar aos cus. Proferiu
uma outra prece no silncio e ponderou o seu destino.
Onde estou? Quando...
Tinha o peso dos anos atrs de si, mais do que os humanos podiam imaginar.
Vidas inteiras de pecado e de servio.
As memrias assaltavam-no, enquanto se demorava naquele mar ardente. Entrava e
saa delas.
... uma charrete atolada na lama. Ele lanava casca de rvore debaixo das rodas de
madeira, enquanto a irm lhe sorria, as suas longas tranas danando de um lado para o outro.
... uma pedra tumular com um nome de mulher inscrito. O dessa mesma irm
sorridente. Mas desta vez usava um hbito de sacerdote.
... apanhando alfazema nos campos e falando de intrigas da corte. Mos brancas e plidas
colocando os raminhos roxos numa cesta feita mo.
... comboios, automveis, avies. Viajando cada vez mais depressa pela superfcie da Terra,
vendo cada vez menos dela.
... uma mulher de cabelo louro e olhos cor de mbar, olhos que viam o que ele no podia
ver.
Libertou-se da opresso de tais memrias.
S aquele momento importava.
S aquele lugar.
Tinha de persistir naquela dor, naquele corpo.
Tateou em volta, as suas mos mergulhando no lquido frio, que queimava como se
fervesse. Ele era um Cavaleiro de Cristo, desde aquela noite iluminada pela lua em que
visitara a campa da irm. E embora o sangue de Cristo o tivesse sustentado ao longo dos
infindveis sculos, o mesmo vinho consagrado insurgia-se sempre contra ele, a sua
sacralidade em guerra com o mal profundo que o habitava.
Inspirou fundo, sentindo o cheiro da pedra e do seu prprio sangue. Estendeu os
braos e tateou as superfcies polidas sua volta. Embateu no mrmore liso como
vidro. No cimo da sua priso, encontrou um rendilhado de prata incrustada. Queimava-
lhe a ponta dos dedos.
Ainda assim, pressionou as palmas das mos contra os traados e empurrou a tampa
de pedra do sarcfago. Tinha a vaga sensao de j o ter feito muitas vezes antes e, tal
como nessas outras tentativas, falhou de novo. O peso no se deixava mover.
Debilitado mesmo por aquele nfimo esforo, caiu para trs afundando-se no vinho.
Ps as mos em concha e levou o amargo lquido ardente aos lbios. O sangue de
Cristo dar-lhe-ia foras, mas tambm o foraria a reviver os seus piores pecados.
Preparando-se para a penitncia que se seguiria, bebeu. Enquanto a garganta lhe ardia com
esse fogo, juntou as mos em prece.
Com qual dos pecados o vinho o torturaria desta vez?
Deixando-se ir, percebeu que a penitncia revelava um pecado com centenas de anos.
Os servos do castelo de achtice acotovelavam-se do lado de fora da porta de ao da cmara
sem janelas da torre. L dentro, a sua antiga senhora fora aprisionada, acusada da morte de
centenas de raparigas. Como membro da nobreza hngara, a condessa no podia ser executada,
apenas excluda do mundo pelos seus crimes, num lugar onde o seu desejo de sangue pudesse
ser contido atrs de tijolo e ao.
Rhun viera ali com um nico propsito: livrar o mundo dessa criatura, expiar o seu papel
na transformao de uma mulher de doce esprito, dotada nas artes da cura, numa besta que
assolava as terras circundantes tirando a vida a jovens raparigas.
Encontrava-se agora diante da condessa, fechado dentro da cmara com ela. Comprara o
silncio dos criados com ouro e promessas de liberdade. Queriam-na longe do castelo, tanto
quanto ele.
Tambm eles sabiam no que ela se tornara, encolhidos do lado de fora.
Rhun trouxera igualmente uma ddiva para a condessa, algo que ela exigira para cooperar.
Para a aplacar, ele encontrara uma jovem, ardente de febre, moribunda, num orfanato
vizinho, e trouxera-a ao monstro.
Postado ao lado do catre da priso, Rhun ficou escuta enquanto o corao da rapariga
vacilava e refreava. Nada fez para a salvar. Tinha de esperar. Odiou-se, mas permaneceu
imvel.
Por fim, o dbil corao deu o derradeiro batimento.
Sers a sua ltima vtima, prometeu.
Ela prpria beira da morte, faminta pelo longo aprisionamento, a condessa afastou a cara
do pescoo da rapariga. Prolas de sangue escorreram-lhe do queixo lvido. Os seus olhos
argnteos refletiam um ar saciado e sonhador, uma expresso que ele j lhe vira antes. No
pensaria demasiado no assunto. Rezou para que ela estivesse suficientemente distrada para
conseguir pr fim quilo e para que ele tivesse foras suficientes para o fazer.
No podia falhar de novo.
Inclinou-se sobre o catre e afastou-a da rapariga morta. Levantou suavemente a forma fria
da condessa nos seus braos e carregou-a para longe da cama maculada.
Ela encostou a face dele, os lbios junto sua orelha.
bom estar nos teus braos de novo sussurrou, e ele acreditou nela. Os seus olhos
argnteos fitaram-no.
Quebrars de novo os teus votos?
Ela obsequiou-o com um sorriso indolente, demorado, belo e hipntico. Ele reagiu, preso
no seu encanto por um instante.
Recordou o seu amor por ela, como num momento de presuno se julgara capaz de
quebrar o seu voto como sanguinista e deitar-se com ela como um homem comum. Mas na
luxria do momento, apertado contra ela, dentro dela, perdera o controlo e deixara o demnio
dentro de si quebrar as amarras. Dentes rasgaram o seu pescoo macio e ele bebeu
profundamente, at a fonte estar quase vazia e a mulher debaixo dele estar s portas da morte.
Para a salvar, transformara-a num monstro, dando-lhe a beber do seu prprio sangue para a
manter consigo, rezando para que ela fizesse os mesmos votos e se juntasse aos sanguinistas ao
seu lado.
Ela no o fez.
Um restolhar do outro lado da pesada porta trouxe-o de volta cmara, rapariga morta
sobre a cama, s muitas outras que tinham partilhado o mesmo destino.
Bateu na porta com a biqueira da bota e os criados destrancaram-na. Ele abriu a porta com
o ombro, enquanto eles fugiam pelas escadas sombrias da torre.
Deixado para trs, do lado de fora da porta, um sarcfago de mrmore repousava no cho
coberto de junco. Anteriormente, ele enchera o caixo de vinho consagrado e deixara-o aberto.
Ao ver o que a esperava, ela levantou a cabea, aturdida pelo desejo de sangue.
Rhun?
Eu vou salvar-te disse ele. E salvar a tua alma.
No quero salvar a minha alma disse ela, cravando os dedos nele.
Antes que ela pudesse reagir, ele ergueu-a sobre o sarcfago aberto e mergulhou-a no
vinho. Ela gritou quando o vinho consagrado lhe tocou a pele. Ele cerrou os maxilares, sabendo
o quanto era doloroso para ela, desejando ainda tirar-lhe essa agonia e reclam-la para si
mesmo.
Ela debateu-se sob as suas mos, mas no seu estado debilitado no podia fazer frente fora
dele. Vinho espalhava-se pelos lados. Ele empurrou-a contra o fundo de pedra, ignorando o
escaldante ardor do vinho. Estava grato por no lhe conseguir ver o rosto, afundado sob a mar
escarlate.
Segurou-a ali... at que, por fim, ela se aquietou.
Agora, repousaria num longo sono at que ele encontrasse forma de inverter o que fizera,
de devolver a vida ao seu corao morto.
Com lgrimas nos olhos, colocou a pesada tampa de pedra no stio e prendeu-a com tiras de
prata. Feito isso, pousou as palmas das mos frias sobre o mrmore e rezou pela alma dela.
E pela sua.
Lentamente, Rhun voltou a si. Lembrava-se perfeitamente de como chegara at ali,
aprisionado no mesmo sarcfago que usara para prender a condessa, sculos antes.
Lembrava-se de retornar ao sarcfago, ao local onde o sepultara, no interior de uma
cripta selada a tijolo, bem nas profundezas da Cidade do Vaticano, escondendo o seu
segredo de todos os olhares.
Viera at ali seguindo as palavras de uma profecia.
A condessa ainda parecia desempenhar um papel naquele mundo.
Na sequncia da batalha pelo Evangelho de Sangue, ele aventurara-se sozinho at onde
tinha sepultado o seu maior pecado. Derrubara os tijolos, quebrara os selos do sarcfago
e decantara-a do banho de vinho antigo. Visualizou os seus olhos argnteos abrindo-se
pela primeira vez em sculos e fitando os dele. Nesse breve momento, deixou cair as
defesas, recuando a veres h muito partidos, a um tempo em que acreditara poder ser
mais do que era, poder amar sem causar destruio.
Nesse lapso de tempo, no vira o tijolo estilhaado aninhado na sua mo. E moveu-se
demasiado devagar, quando ela lanou a pedra, dura com um dio alimentado por
sculos ou talvez ele soubesse simplesmente que o merecia.
Ento, acordara ali e, agora, sabia finalmente a verdade.
Ela sentenciou-me mesma priso.
Embora parte dele soubesse que merecia aquele destino, sabia que tinha de escapar.
Mais que no fosse porque libertara de novo o monstro num mundo ignorante.
Ainda assim, imaginou-a como a conhecera em tempos, to cheia de vida, radiosa
como o Sol. Sempre lhe chamara Elisabeta, mas a histria batizara-a com um novo nome,
um epitfio mais sombrio.
Elizabeth Bathory a Condessa Sanguinria.
02h22, CET
Roma, Itlia
Como convinha ao seu nobre estatuto, o apartamento que Elisabeta escolhera era
sumptuoso. Espessos cortinados de veludo carmesim velavam as altas janelas em arco. O
soalho de carvalho sob os seus ps frios irradiava um suave tom dourado e exalava calor.
Instalou-se numa cadeira de cabedal, a pele bem curtida, com a reconfortante fragrncia
do animal h muito morto sob o odor qumico.
Na mesa de mogno sua frente, um crio branco crepitava, prximo de se extinguir.
Levou uma vela intacta chama moribunda. Uma vez aceso o pavio, pressionou o alto
crio sobre a cera derretida do antigo. Aproximou-se da pequena chama, preferindo a luz
do fogo ao brilho intenso que irradiava da Roma moderna.
Reclamara aqueles aposentos depois de matar os antigos inquilinos. Seguidamente,
pilhara as gavetas repletas de objetos no familiares, tentando sondar aquele estranho
sculo, procurando reconstituir uma civilizao perdida a partir do estudo dos seus
artefactos.
No entanto, as pistas para aquela era no seriam todas descobertas em gavetas.
Do outro lado da mesa, a luz da vela tremulava sobre montes desiguais, cada qual
retirado dos bolsos e corpos das ltimas vtimas. Voltou a sua ateno para uma pilha
encimada por uma cruz de prata. Estendeu a mo nessa direo, mas manteve os dedos
longe do calor ardente do metal e da bno que carregava.
Deixou que a ponta de um nico dedo acariciasse a prata. Queimou-se, mas no se
importou pois outro sofria bastante mais pela sua perda.
Sorriu, a dor arrastou-a para a memria.
Braos fortes ergueram-na do caixo de vinho, arrancando-a dormncia, despertando-a.
Como toda a criatura ameaada, mantivera-se imvel, sabendo que a dissimulao seria a sua
melhor vantagem.
Quando abriu os olhos, reconheceu o seu benfeitor, tanto pelo colarinho de sacerdote
catlico romano, como pelos olhos escuros e rosto duro.
O padre Rhun Korza.
O mesmo homem que a aprisionara naquele caixo.
Mas h quanto tempo?
Quando ele a ergueu, ela deixou o brao cair at ao cho. As costas da mo pousaram
numa pedra solta.
Ela sorriu-lhe. Ele sorriu-lhe de volta, com o amor a cintilar-lhe nos olhos.
Com uma celeridade sobrenatural, esmagou-lhe a pedra contra a tmpora. A sua outra
mo insinuou-se pela manga dele acima, onde sempre guardava a faca de prata. Agarrou-a
antes que ele a largasse. Mais um golpe e ele caiu.
Rapidamente, rolou para cima dele, procurando com os dentes a carne glida da sua
garganta embranquecida. Uma vez penetrada a pele, o destino dele estava nas suas mos.
Precisou de muita fora para parar de beber antes de o matar, pacincia para esvaziar metade
do vinho do caixo antes de o fechar l dentro. Mas tinha de ser. Se ficasse totalmente imerso
em vinho, ficaria meramente adormecido at ser resgatado, como acontecera com ela.
Em vez disso, deixara-lhe uma magra camada de vinho, sabendo que ele em breve
despertaria no seu solitrio tmulo para morrer lentamente fome, como acontecera com ela
aprisionada na torre do castelo.
Retirando o dedo da cruz que lhe roubara, permitiu-se um momento de fria
satisfao. Ao mover o brao, os seus dedos arrastaram-se para um sapato gasto no cimo
de outra pilha.
O pequeno pedao de couro marcava a sua primeira vtima naquela nova era.
Saboreou o momento.
Enquanto fugia pelas catacumbas obscuras sem saber onde estava, em que tempo se
encontrava as pedras speras cortaram a fina sola de couro dos sapatos e feriram-lhe os ps.
No lhes prestou ateno. S tinha aquela oportunidade para escapar.
No sabia para onde corria, mas reconhecia a textura do cho sagrado sob os seus ps. Este
enfraquecia-lhe os msculos e abrandava-lhe os passos. Porm, sentia-se mais poderosa do que
nunca. O tempo passado no vinho fortalecera-a, no sabia ao certo quanto.
Ento, o som de um batimento cardaco deteve a sua precipitada fuga pelos tneis escuros.
Humano.
O corao pulsava regular e calmo. No sentira a sua presena. Enfraquecida pela fome,
encostou-se parede do tnel. Lambeu os lbios, sentindo o sangue amargo do sanguinista.
Ansiava por saborear algo mais doce, mais quente.
O tremular de uma vela distante clareou a escurido. Ouviu o rudo surdo de sapatos a
aproximarem-se.
Ento, um nome foi chamado.
Rhun?
Espalmou-se contra a pedra fria. Algum procurava o padre.
Deslizou para diante e avistou uma figura indistinta a contornar uma esquina distante na
sua direo. Numa mo levantada, a figura segurava uma vela num castial, revelando as
vestes acastanhadas de um monge.
No a vendo, ele seguiu em frente, alheado do perigo.
Quando estava suficientemente perto, ela lanou-se para diante atirando o corpo quente do
homem ao cho. Antes que ele pudesse sequer reagir, os dentes dela encontraram a sua
voluptuosa garganta. O sangue invadiu-a vaga aps vaga, fortalecendo-a ainda mais. Exultou de
felicidade, como sempre acontecia desde a primeira vez. S queria rir de tanta satisfao.
Rhun quisera que ela trocasse aquele poder pelo vinho ardente, por uma vida de servido
sua Igreja.
Nunca.
Extenuada, largou a carcaa humana, os seus dedos curiosos demorando-se no tecido da
veste. No parecia linho. Detetou um toque lustroso, como o da seda, mas diferente da seda.
Um indcio de desconforto insinuou-se por ela.
A vela extinguira-se durante a queda do homem, mas a incandescncia na ponta do pavio
ainda brilhava rubra. Ela soprou, aclarando o brilho para um tnue laranja.
quela luz fraca, tateou o corpo arrefecido, de novo incomodada com o toque lustroso do
tecido. Descobriu uma cruz peitoral de prata, mas abandonou o seu toque cauterizante.
Percorreu-lhe as pernas e tirou o sapato do p sem vida, sentindo tambm a estranheza.
Aproximou-o da luz. A parte de cima era de couro coado e banal, mas a sola era feita de uma
grossa substncia esponjosa. Nunca vira nada assim. Pressionou o material entre o polegar e o
indicador. Este cedeu e depois retomou a forma, como um rebento de rvore.
Sentou-se de ccoras, pensativa. Essa substncia peculiar no existia quando Rhun a
aprisionara no caixo de vinho, mas agora devia ser suficientemente banal para ser usada por
um modesto monge.
Subitamente, teve vontade de gritar, ao perceber o abismo que a separava do seu passado.
Soube que no adormecera por dias, semanas ou mesmo meses.
Tinham sido anos, dcadas, talvez sculos.
Aceitou essa verdade brutal, e reconheceu ainda outra.
Teria de ser extremamente cautelosa naquele estranho novo mundo.
E fora-o. Desviando-se do sapato, pegou numa bola branca com uma estrela vermelha
que havia em cima da mesa. A superfcie parecia pele humana, mas mais macia.
Repugnava-a, mas obrigou-se a segur-la, lanando-a ao ar e voltando a agarr-la.
Ao deixar as catacumbas, sentira-se to assustada.
Mas rapidamente os outros se sentiram assustados com ela.
Rastejara pelos tneis, esperando mais monges. Mas no encontrara nenhum, enquanto
seguia o murmrio cada vez mais prximo do bater de coraes.
Finalmente, chegou a uma pesada porta de madeira, que atravessou sem dificuldade e
saiu para o ar livre. Este acariciou-lhe o corpo, secou-lhe o vinho no vestido e trouxe-lhe os
odores familiares dos humanos, dos perfumes, da pedra, do rio. Mas tambm odores que nunca
sentira antes odores acres que imaginara apenas existirem na oficina de um alquimista. O
cheiro intenso f-la encostar-se porta e quase transpor o limiar de volta ao abrigo dos tneis
escuros.
A estranheza aterrorizava-a.
Mas uma condessa nunca se acobarda, nunca mostra medo.
Endireitou as costas e avanou como uma senhora, as mos cruzadas sua frente, os olhos e
ouvidos atentos ao perigo.
Enquanto se afastava da porta, reconheceu de imediato as colunas de ambos os lados, a
imponente cpula que se erguia esquerda, at mesmo o obelisco na praa diante de si. O pilar
egpcio fora erigido na piazza no mesmo ano em que a sua filha Anna nascera.
Relaxou ao ver tudo aquilo, sabendo onde se encontrava.
Na praa de So Pedro.
Um divertimento sardnico animou-a.
Rhun escondera-a debaixo da Cidade Santa.
Continuou em direo piazza. Postes altos iluminavam a praa com uma chama spera e
pouco natural. A luz feria-lhe os olhos, pelo que se desviou, mantendo-se junto colunata que
emoldurava a praa.
Um casal passou despreocupadamente por ela.
Perturbada, deslizou para trs de uma coluna de mrmore. A mulher usava calas, como
um homem. O seu cabelo curto roava-lhe os ombros e o companheiro segurava-lhe a mo
enquanto conversavam.
Nunca vira uma mulher to alta.
Escondida pela coluna, estudou outras figuras que se movimentavam pela praa. Todas
vestidas de cores vivas, envoltas em casacos espessos de aspeto requintado. Numa rua vizinha,
estranhas carruagens deslizavam, precedidas por feixes de luz sobrenaturais e no eram
puxadas por animais.
Estremecendo, encostou-se coluna. Aquele novo mundo ameaava esmag-la, paralis-la.
Deixou pender a cabea e forou-se a respirar. Tinha de se abstrair de tudo aquilo e
determinar um objetivo simples... e execut-lo.
O cheiro nauseabundo a vinho atingiu-lhe as narinas. Tocou o vestido ensopado. No
serviria. Olhou de novo a praa, para as mulheres com trajes to estranhos. Para escapar dali,
tinha de ser um lobo vestido com pele de cordeiro, pois se adivinhassem quem ela era, seguir-
se-ia a morte.
Por muitos anos que tivessem passado, essa certeza permanecia inalterada.
As suas unhas enterraram-se nas palmas das mos. No queria deixar o que lhe era
familiar. Sentia que o que se encontrava para l da praa lhe seria ainda mais estranho do que
o que ali via.
Mas tinha de ir.
Uma condessa nunca se esquivava ao dever.
E o seu dever era sobreviver.
Percebendo que restavam horas at ao amanhecer, deixou-se cair nas sombras da colunata.
Sentou-se, sem respirar, sem se mover, imvel como uma esttua, escutando os caticos
batimentos cardacos humanos, as palavras de inmeras lnguas, o riso frequente.
Aquelas pessoas eram to diferentes dos homens e mulheres do seu tempo.
Mais altas, mais ruidosas, mais fortes e bem alimentadas.
As mulheres, sobretudo, fascinavam-na. Usavam roupas de homem: calas e camisas.
Caminhavam sem medo. Falavam rispidamente com os homens sem serem censuradas e agiam
como se fossem suas iguais no da forma calculista que fora obrigada a usar no seu tempo,
mas de uma forma despreocupada, como se fosse usual e aceite.
Aquela era parecia promissora.
Uma jovem mulher aproximou-se descontrada com uma criana pequena a reboque. A
mulher estava envolta num casaco de l cor de vinho e usava botas de montar, embora pelo
cheiro nunca tivessem estado perto de um cavalo.
Pequena para uma mulher daquele tempo, aproximava-se da estatura de Elisabeta.
A criana deixou cair a bola branca com uma estrela vermelha, que rolou para as sombras,
detendo-se a centmetros dos sapatos esfarrapados de Elisabeta. A bola cheirava sola dos sapatos
do monge. A criana recusou-se a ir atrs do brinquedo, como que pressentindo a besta
escondida nas sombras.
A me instigou-a num italiano de sotaque bizarro, gesticulando no sentido da floresta de
colunas. Mesmo assim, a menina abanou a cabea.
Elisabeta passou a lngua pelos dentes afiados, desejando que a me viesse atrs do
brinquedo. Poderia tirar-lhe a vida e ficar-lhe com os adornos, antes que a criana rf pudesse
gritar por ajuda.
Nas sombras, saboreou os batimentos aterrorizados da criana, ouvindo o tom da voz da
me tornar-se mais impaciente.
Esperou pelo momento certo, naquele tempo estranho.
Depois atacou.
Elisabeta pousou a bola na mesa, suspirando, perdendo o interesse nos seus trofus.
Levantando-se, dirigiu-se ao vasto guarda-fatos no quarto de dormir, recheado de
sedas, veludos, peles, tudo roubado das suas vtimas naquelas muitas semanas. A cada
noite, ataviava-se diante dos irrepreensveis espelhos prateados e escolhia um novo
conjunto para usar. Alguns trajes eram quase familiares, outros to remotos como a
vestimenta de um menestrel.
Nessa noite, escolheu umas calas azuis macias, uma camisa de seda a condizer com
os seus olhos argnteos e umas delicadas botas de cabedal. Passou um pente pelo espesso
cabelo escuro. Cortara-o pela altura dos ombros, copiando o estilo de uma mulher que
matara debaixo de uma ponte.
Como parecia diferente. O que diriam Anna, Katalin e Paul se a vissem? Os seus
prprios filhos no a reconheceriam.
Contudo, recordou-se: Eu sou a condessa Elisabeta de Ecsed.
Os seus olhos semicerraram-se.
No.
Elizabeth..., murmurou ao seu reflexo, recordando-se de que aquele era um novo
tempo e de que, para sobreviver, tinha de seguir os usos. Assim, adotaria esse nome mais
moderno e us-lo-ia como usava o novo penteado e maneira de vestir. Era quem se
tornaria. Desempenhara muitos papis desde que fora prometida em casamento a Ferenc,
aos onze anos rapariga impulsiva, esposa solitria, estudiosa de lnguas, curandeira
experiente, me devotada , mais papis do que conseguia enumerar. Este era apenas mais
um.
Voltou-se ligeiramente para apreciar a sua nova identidade ao espelho. Com cabelo
curto e calas, parecia um homem. Mas no era homem nenhum e j no invejava aos
homens a sua fora e poder.
Tinha a sua prpria fora e poder.
Caminhou at s janelas de sacada e puxou para trs os cortinados macios. Fitou o
brilho das gloriosas luzes criadas pelo Homem da nova Roma. A estranheza ainda a
aterrorizava, mas dominara-a o suficiente para conseguir viver, descansar, aprender.
Retirava a sua fora de uma caracterstica nica da cidade, a nica cadncia que
permanecera inalterada ao longo dos sculos. Fechou os olhos e escutou mil pulsares de
corao, batendo ritmados como mil relgios, dizendo-lhe que afinal a marcha do tempo
pouco importava.
Sabia que tempo era aquele, que tempo era sempre para um predador como ela.
Abriu as janelas de sacada para a noite.
Era tempo de caar.
CAPTULO 6
Cidade do Vaticano
Com uma antiga pina de relojoeiro na mo, o lder da Belial estava curvado sobre o
espao de trabalho na sua mesa. Segurava uma lente de ampliao num dos olhos. Com
extrema percia, enroscou cuidadosamente uma minscula mola no interior de um
mecanismo do tamanho de um polegar.
A mola retesou-se e prendeu.
Sorriu de satisfao e fechou as duas metades do mecanismo, formando o que
aparentava ser a escultura metlica de um inseto, com seis patas articuladas e uma cabea
sem olhos. Esta ltima era guarnecida de uma probscide de prata da espessura de uma
agulha e coroada pelo suave movimento de um par de leves antenas de cobre.
Abenoado com mos firmes, desviou-se para outro recanto da zona de trabalho e
pegou com a pina na asa anterior desarticulada de uma traa, pousada numa cama de
seda branca. Levou a iridescente ptala ao feixe de halognio da lmpada de trabalho. As
escamas de um verde prateado brilhavam, mal ocultando o delicado rendilhar da sua
estrutura interna, caracterstica do belo padro da Actias luna, a borboleta lunar. Com
uma envergadura total de asas de dez centmetros, era uma das maiores borboletas do
mundo.
Com movimentos pacientes e astutos, fixou a frgil asa em minsculos grampos,
alinhados no trax de cobre e prata da sua criao mecnica. Repetiu o mesmo com a
outra asa anterior e mais duas asas posteriores. O mecanismo no interior do trax
continha centenas de engrenagens, rodas e molas, espera para voltar a dar vida quelas
extraordinrias asas orgnicas.
Terminada a operao, os seus olhos demoraram-se em cada pea. Venerava a
preciso das suas criaes, o modo como cada pea se encaixava na outra, engrenadas
num projeto maior. Durante anos, construra relgios, precisando de ver o tempo
medido num dispositivo, j que no era medido no seu prprio corpo. Desde ento,
desviara o seu interesse e engenho para a criao daqueles minsculos autmatos
metade mquinas, metade criaturas vivas condenados eternidade segundo a sua
vontade.
Normalmente, encontrava paz naquele trabalho minucioso, concentrando-se
facilmente. Mas naquela noite, essa calma escapava-lhe. Nem mesmo o suave tilintar de
uma fonte prxima conseguia sosseg-lo. O seu plano de sculos to intricado e
delicado como qualquer dos seus mecanismos estava em risco.
Enquando fazia uma pequena correo na sua ltima criao, a extremidade da pina
vacilou e rasgou a delicada asa anterior, espalhando iridescentes escamas esverdeadas
sobre a seda branca. Proferiu uma praga que no era ouvida desde os dias da Roma antiga
e largou a pina no tampo de vidro da mesa.
Inspirou fundo, buscando de novo a paz.
Mas ela fugia-lhe.
Como se fosse de propsito, o telefone tocou na secretria.
Massajou as tmporas com os dedos, procurando alcanar calma a partir do exterior.
S, Renate?
O padre Leopold est l em baixo na antecmara, senhor.
O tom aborrecido da sua bela rececionista ecoou pelo altifalante. Ele resgatara-a de
uma vida de escravido sexual nas ruas da Turquia e ela retribua-lhe com um servio leal,
embora indiferente. Em todos os anos que a conhecera, ela nunca expressara surpresa.
Era um trao que ele apreciava.
Faa-o subir.
Pondo-se de p, esticou-se e caminhou at fileira de janelas atrs da sua secretria. A
sua empresa a Argentum Corporation detinha o arranha-cus mais alto de Roma e o
seu gabinete ocupava o ltimo piso. A penthouse contemplava a Cidade Eterna atravs de
paredes de vidro prova de bala. Sob os seus ps, o piso era de um mrmore vermelho-
violceo, o prfiro imperial, to raro que se encontrava num nico lugar do mundo, uma
montanha egpcia a que os romanos chamaram Mons Porphyrites. Fora descoberto no
tempo de vida de Cristo e tornara-se o mrmore de reis, imperadores e deuses.
Cinquenta anos antes, ele desenhara e projetara aquele pinculo em conjunto com um
arquiteto de renome mundial. Esse homem estava agora morto, evidentemente. Mas ele
permanecia, inalterado.
Estudou o seu reflexo. No seu tempo de vida natural, marcas de um flagelo da infncia
tinham-lhe tomado o rosto, mas as imperfeies desapareceram quando enfrentou a
maldio da eternidade. Agora, no se conseguia lembrar do lugar dessas marcas. Via
apenas pele lisa e sem mcula, umas poucas rugas que nunca se adensavam em torno dos
olhos cinzento-prateados, um rosto severo e anguloso, e uma massa de espesso cabelo
grisalho.
Pensamentos amargos percorreram-no. Aquele rosto tivera muitos nomes ao longo
dos sculos, vestira muitas identidades. Mas passados dois milnios, retornara quele que
a sua me lhe dera.
Judas Iscariotes.
Embora esse nome se tivesse tornado sinnimo de traio, ele percorrera o crculo
completo desde a negao at aceitao dessa verdade sobretudo depois de descobrir o
caminho para a sua prpria redeno.
Sculos antes, descobrira finalmente porque Cristo o condenara imortalidade.
Para que pudesse fazer o que tinha a fazer nos dias vindouros.
Assumindo essa responsabilidade, encostou a fronte ao vidro frio. Em tempos, tivera
um administrador que tinha tanto medo de cair, que no se chegava a menos de dois
metros das janelas.
Judas no tinha medo de cair. Ele cara inmeras vezes para o que deveria ter sido a
sua morte.
Contemplou atravs do vidro a cidade l em baixo, as resplandecentes ruas
conhecidas pela sua decadncia desde antes da era de Cristo. Roma sempre irradiara luz
noite, embora a intensa eletricidade branca tivesse h muito substitudo o fogo quente e
ureo de tochas e velas.
Se o seu plano resultasse, todas essas luzes se apagariam finalmente.
O brilho e o fogo eram caractersticas que os povos modernos achavam que lhes
pertenciam, mas h muito que o homem iluminara o mundo tambm com a sua vontade.
Por vezes, pelo progresso, outras por trivialidade.
Ali postado, recordou as festas fulgurantes a que assistira, sculos delas, e todos os
frequentadores to certos de terem atingido o auge do glamour. Com a sua aparncia e
riqueza, nunca lhe faltaram convites, nem companhia feminina, mas essas companhias
exigiam frequentemente mais do que ele tinha para dar.
Vira tantas amantes envelhecerem e morrerem, extinguindo toda a esperana do amor
eterno.
No final, nunca valera o preo a pagar.
Exceto uma vez.
Assistira a uma festa na Veneza medieval, onde uma mulher capturara o seu corao
eterno e lhe mostrara que o amor valia qualquer preo. Olhou para as luzes coloridas da
cidade l em baixo, at se tornarem um borro indistinto que o transportou para as suas
memrias.
Judas deteve-se no limiar do salo de baile veneziano, deixando as cores rodopiarem diante
dele. Vermelho-carmesim, dourados intensos, azuis que evocavam o mar ao entardecer, negros
que devoravam a luz e o brilho prola de ombros nus. Em nenhum outro lugar, as mulheres se
vestiam to vivamente e revelavam tanta pele como em Veneza.
O salo de baile parecia igual ao que fora cem anos antes. As nicas alteraes eram os trs
novos quadros a leo pendurados nas majestosas paredes. As pinturas retratavam membros
austeros ou alegres daquela famlia veneziana, cada qual vestido com a elegncia do seu tempo.
Todos h muito falecidos. sua direita, estava um retrato de Giuseppe, partido h trinta anos,
o rosto imobilizado aos quarenta pelos leos e talento de um pintor h muito falecido. Os olhos
castanhos de Giuseppe, sempre prontos para a diverso, contrariavam a fronte rgida e postura
fleumtica. Judas conhecera-o bem, ou to bem quanto era possvel conhecer algum em dez
anos.
Era o tempo que Judas se permitia ficar numa cidade. Depois disso, as pessoas podiam
perguntar-se porque no envelhecia. Um homem que no ganhava rugas nem morria seria
apelidado de bruxo ou pior. Assim, viajava de norte a sul, de este a oeste, em crculos que se
alargavam medida que os limites da civilizao se expandiam. Em algumas cidades,
representava o solitrio, noutras o artista, noutras ainda o errante. Vestia os papis como capas.
E cansava-se de todos eles.
As suas elegantes botas de cabedal preto cruzaram o soalho de madeira com um -vontade
estudado. Um criado mascarado surgiu com uma bandeja carregada de copos de vinho. Judas
pegou num, recordando a excelncia da adega do seu anfitrio de outra era. Bebeu um gole,
deixando os aromas acariciarem-lhe a lngua felizmente, as caves de Giuseppe no tinham
entrado em declnio com a sua morte. Judas esvaziou o copo e pegou noutro.
Na sua outra mo, escondida atrs das costas, o dedo apertava-se firmemente em torno de
um minsculo objeto negro.
Viera ali com um propsito maior que o baile.
Tinha vindo para fazer o luto.
Deslizou por entre os mascarados que danavam enquanto se dirigia para a janela. O longo
nariz da sua mscara retorcido para baixo como o bico de um corvo. O odor do couro bem
trabalhado de que era feita invadia-lhe as narinas. Uma mulher passou por ele, a sua
fragrncia forte demorando-se no ar bem depois de ela e o seu acompanhante se terem
afastado.
Judas conhecia aquelas danas e inmeras outras. Mais tarde, depois de mais vinho,
juntar-se-ia aos danarinos. Escolheria uma jovem cortes, talvez uma outra moura, se a
conseguisse achar. Faria o seu melhor por se perder nesses passos familiares.
Cinquenta anos antes, na sua ltima passagem por Veneza, conheceu a mais encantadora
mulher que alguma vez conhecera na sua longa vida. Tambm ela era moura a pele
morena, com uns luminosos olhos castanhos-escuros e tranas negras que lhe desciam pelos
ombros nus at cintura fina. Usava um vestido verde-esmeralda debruado a ouro, cingido na
cintura como era moda, mas entre os seios, pendente de uma fina corrente dourada ao
pescoo, repousava um fragmento de prata refulgente, como um pedao de espelho partido, um
adorno invulgar. Um aroma a flores de ltus, fragrncia que no sentia desde a sua estadia no
Oriente, pairava em redor dela.
Ele e a mulher misteriosa tinham danado durante horas, nenhum deles necessitando de
parceiro diferente. Quando ela falava, tinha um sotaque curioso que ele no conseguia
localizar. Em breve esqueceu o sotaque, escutando apenas as suas palavras. Ela sabia mais do que
qualquer outra que tivesse conhecido histria, filosofia e os mistrios do corao humano. A
serenidade e a sabedoria habitavam a sua silhueta esguia, e ele queria captar a sua paz. Talvez
atravs dela pudesse encontrar forma de recuperar os interesses comuns de homens mortais.
Depois do baile, naquela mesma janela, ela tirara a mscara para que ele lhe pudesse ver o
resto do rosto e ele tirou a sua. Fitara-a num momento de silncio mais ntimo do que alguma
vez partilhara com algum. Ento, ela dera-lhe a sua mscara, desculpara-se e desaparecera por
entre a multido.
S ento se apercebeu de que no sabia o seu nome.
Ela nunca voltou. Durante mais de um ano, vasculhara Veneza sua procura, pagara
somas exorbitantes por informaes incorretas. Era a neta de um doge. Era uma escrava do
Oriente. Era uma judia que fugira do gueto por uma noite. No era nenhuma delas.
Destroado, fugira da cidade das mscaras e procurara esquec-la nos braos de uma
centena de diferentes mulheres algumas de pele morena como mouras, outras de pele alva
como a neve. Escutara milhares de histrias delas, favorecera algumas e abandonara outras.
Nenhuma lhe tocara o corao e deixara-as a todas antes de se confrontar com a sua velhice e
morte.
Mas, agora, voltava a Veneza para a banir dos seus pensamentos, cinquenta anos depois de
danar com ela por aquele soalho de madeira. Nesta altura, sabia-o, ela estaria provavelmente
morta ou seria uma velha mulher encarquilhada e cega, h muito esquecida daquela noite
mgica. Tudo o que ele prprio retinha dessa noite era a sua memria e a velha mscara de
couro dela.
Revirava agora a mscara nas mos. Negra e acetinada, era uma densa faixa lisa de couro,
aberta na zona dos olhos, com uma pequena joia reluzente pregada no canto de cada olho. Um
desenho ousado, a sua simplicidade destoando das elaboradas mscaras usadas pelas mulheres
desse tempo.
Mas ela no precisara de mais adorno.
Ele regressara quelas salas refulgentes para lanar a sua mscara ao canal naquela noite e
expulsar esse fantasma para a biblioteca do seu passado. Apertando o velho couro, olhou pela
janela aberta. L em baixo, um gondoleiro impelia a sua esguia embarcao pela gua escura, a
ondulao tornada prata pela luz do luar.
Pelas margens do canal, figuras apressavam-se, cruzando o pavimento de pedra ou
atravessando as pontes. Pessoas em misteriosas demandas. Pessoas em demandas banais. Ele no
sabia, no queria saber. Como tudo o mais, cansava-o. Por um nico momento, acreditara que
podia encontrar uma ligao, at que ela partiu.
Agora, relutante em separar-se dela, acariciou a mscara com o indicador. Repousara no
fundo do seu ba durante anos, envolta na mais fina seda. De incio, conseguira sentir a
fragrncia das flores de ltus, mas at isso se dissipara. Levou a mscara s narinas e aspirou
uma ltima vez esperando inalar os odores do couro envelhecido e do cedro do ba.
Mas em vez disso, brotou dela o aroma a flores de ltus.
Voltou a cabea, receoso de olhar, o movimento to lento que no perturbaria nem mesmo
um tmido pssaro. Sentia o corao martelar-lhe aos ouvidos, to alto que achou que o som
atrairia todos os olhares para si.
Ela estava diante dele, sem mscara e inalterada, o seu sorriso sereno igual ao de meio
sculo antes. A mscara deslizou-lhe dos dedos para o cho. A sua respirao ficou suspensa na
garganta. Os danarinos rodopiavam em volta, mas ele permanecia imvel.
No podia ser.
Seria a filha daquela mesma mulher?
Descartou a possibilidade.
No com tamanha semelhana.
Um pensamento mais sombrio insinuou-se. Tinha conhecimento das bestas mpias que
partilhavam a sua marcha pelo tempo, to imortais quanto ele, mas com um cobarde desejo de
sangue e loucura.
De novo, baniu a hiptese da sua mente.
Nunca esquecera o calor do seu corpo atravs do vestido de veludo quando danou com
ela.
Ento, o que era ela? Amaldioada como ele? Imortal?
Milhares de questes danavam na sua mente, por fim substitudas pela nica que
importava verdadeiramente, a questo que no colocara cinquenta anos antes.
Qual o seu nome? sussurrou, receoso de quebrar o momento em estilhaos como
aquele que ela carregava ao pescoo esguio.
Esta noite Anna. A sua voz soou com o mesmo sotaque estranho.
Mas no o seu verdadeiro nome. No o quer partilhar comigo?
Se quiser.
Os seus luminosos olhos castanhos observaram longamente os dele, no seduzindo, mas
avaliando o seu mrito. Lentamente, ele inclinou a cabea em sinal de acordo, rezando para
que ela o achasse digno.
Arella disse ela num tom sussurrado.
Ele repetiu-lhe o nome, reproduzindo a entoao slaba a slaba.
Arella.
Ela sorriu. Provavelmente, no ouvia o seu nome dito em voz alta por outro h muitas
vidas mortais. Os seus olhos procuraram os dele, exigindo o preo prometido pela revelao do
seu nome verdadeiro.
Pela primeira vez, em mil anos, ele disse-o em voz alta, tambm.
Judas.
O filho amaldioado de Simo Iscariotes concluiu ela, no parecendo surpreendida e
esboando um leve sorriso.
Estendeu-lhe uma mo.
Quer danar?
Com os segredos revelados, comeara a sua relao.
Mas esses segredos escondiam outros, mais profundos e mais sombrios.
Segredos sem fim, a condizer com as suas vidas eternas.
As enormes portas abriram-se de rompante atrs dele, refletidas na janela,
transportando-o da Veneza antiga para a Roma moderna. Judas martelou os dedos no frio
vidro prova de bala, perguntando-se o que os vidreiros venezianos dos tempos
medievais pensariam daquilo.
No reflexo, viu Renate emoldurada pelo umbral. Vestia um fato formal tom de amora
e um top de seda castanha. Embora tivesse passado de mulher jovem a madura ao seu
servio, achava-a atraente. Percebeu, subitamente, que era por lhe fazer lembrar Arella. A
sua rececionista tinha a mesma pele morena e olhos escuros, a mesma calma.
Como no o percebi antes?
O monge louro entrou na sala atrs dela, exibindo um rosto bem mais jovem do que
os seus anos. Nervoso, o sanguinista beliscou a haste dos seus pequenos culos. A sua
face redonda denotava traos de preocupao que pareciam deslocados em algum de
aparncia to jovem, traindo as dcadas escondidas por detrs da pele macia.
Renate saiu e fechou a porta silenciosamente.
Judas gesticulou para que avanasse.
Vem, irmo Leopold.
O monge lambeu os lbios, alisou o tecido da sua humilde tnica castanha com capuz
e obedeceu. Passou a fonte e deteve-se diante da imponente secretria. Sabia bem que no
devia sentar-se sem ser convidado.
Conforme as suas instrues, apanhei o primeiro comboio vindo da Alemanha,
Damnatus.
Leopold inclinou a cabea, usando o antigo ttulo que assinalava o passado de Judas.
O latim traduzia-se vagamente como o condenado, o desventurado, o amaldioado. Embora
outros pudessem tomar o ttulo como um insulto, Judas usava-o com orgulho.
Fora Cristo quem lho dera.
Judas moveu uma cadeira atrs da secretria, voltando ao seu espao de trabalho, e
sentou-se. Manteve o monge espera, enquanto focava de novo a ateno no projeto
anterior. Com destreza e percia, desprendeu a asa anterior que rasgara antes e deixou-a
cair ao cho. Abriu a sua gaveta de espcimes e retirou outra Actias luna. Separou-lhe a asa
anterior e usou-a para substituir a que tinha danificado, devolvendo sua criao a mais
absoluta perfeio.
Agora, tinha de reparar outra coisa arruinada.
Tenho uma nova misso para ti, irmo Leopold.
O monge permanecia em silncio sua frente, com a quietude que s os sanguinistas
conseguiam alcanar.
Sim?
Pelo que me dado entender, a tua ordem est segura de que o padre Korza o
profetizado Cavaleiro de Cristo e esse soldado americano, Jordan Stone, o Homem
Guerreiro. Mas permanecem dvidas quanto identidade da terceira figura mencionada na
profecia do Evangelho de Sangue. A Mulher Sbia. Devo entender que no a professora
Erin Granger, como se suspeitou inicialmente durante a busca pelo Evangelho perdido de
Cristo?
Leopold baixou a cabea, em desculpa.
Ouvi tais dvidas e penso serem legtimas.
Se assim for, preciso encontrar a verdadeira Mulher Sbia.
Ser feito.
Judas retirou uma lmina de prata de outra gaveta e golpeou a ponta do seu dedo.
Segurou-o sobre o inseto que construra de metal e asas delicadas. Uma nica e brilhante
gota de sangue caiu sobre o dorso da sua criao, infiltrando-se por orifcios ao longo do
trax e desaparecendo.
O monge recuou.
Receias o meu sangue.
Todos os strigoi o receavam.
Sculos antes, Judas aprendera que uma simples gota do seu sangue era fatal para
qualquer uma dessas criaturas malditas, mesmo para os poucos que se tinham convertido
ao servio da Igreja como sanguinistas.
O sangue encerra um grande poder, no verdade, irmo Leopold?
verdade.
Os olhos do monge vacilavam inquietos. Devia ser perturbador para ele estar to
perto de algo que podia pr termo sua vida imortal.
Judas invejava-lhe esse medo. Condenado por Cristo imortalidade, teria sacrificado
muito para ter a escolha de morrer.
Porque no me disseste, ento, que essa trindade est agora ligada pelo sangue?
Judas fez deslizar dedos cuidadosos por baixo da sua criao. Esta ganhou vida na
palma da sua mo, alimentada pelo seu prprio sangue. O zunir de minsculas
engrenagens vibrou, quase impercetvel sob o gotejar da fonte. As asas ergueram-se e
uniram-se sobre o dorso, e depois abriram-se na sua plenitude.
O monge estremeceu.
Uma to bela criatura da noite, a singela traa disse Judas.
O autmato bateu as asas e elevou-se da palma da sua mo. Lentamente, circundou a
mesa, as suas asas captando cada partcula de luz e irradiando-a de volta a cada batimento.
Leopold seguiu-lhe o curso, desejando claramente fugir, mas sabendo que no o devia
fazer.
Judas ergueu a mo e a traa voltou, pousando na ponta do seu dedo estendido. As
suas patas de metal eram leves como fio de aranha na sua pele.
To delicada, porm imensamente poderosa.
Os olhos do monge mantinham-se fixos nas asas reluzentes, a sua voz trmula.
Lamento. No achei que tivesse importncia que Rhun bebesse da arqueloga.
Achei... achei que ela no era a verdadeira Mulher Sbia.
Contudo, o seu sangue corre pelas veias de Rhun Korza e, graas tua imprudente
transfuso, o sangue do sargento Jordan corre pelas veias dela. No achas curioso tal
acaso? Talvez mesmo significativo?
Obedecendo vontade do seu criador, a traa ergueu-se de novo do dedo de Judas e
esvoaou pelo gabinete. Danou pelas correntes de ar, tal como Judas danara, outrora,
pelos sales de baile do mundo.
O monge engoliu o seu terror.
Talvez prosseguiu Judas. Talvez essa arqueloga seja a Mulher Sbia, afinal.
Lamento...
A traa desceu do ar e pousou no ombro esquerdo do monge, as suas minsculas
patas agarrando-se ao tecido grosseiro do seu hbito.
Tentei mat-la esta noite. Judas brincava com as pequenas engrenagens na sua
mesa. Com um blasphemare felino. Achas que uma simples mulher conseguiria escapar
a tal besta?
No vejo como.
Nem eu.
mnima provocao, a traa trespassaria o monge com a sua probscide afiada,
libertando uma nica gota de sangue e matando-o instantaneamente.
Contudo, ela sobreviveu concluiu Judas. E est agora reunida com o Guerreiro,
embora no ainda com o Cavaleiro. Sabes porque ainda no se reuniram com o padre
Rhun Korza?
No.
O monge baixou os olhos para o seu rosrio. Se morresse agora, em pecado e no em
batalha sagrada, a sua alma ficaria amaldioada para toda a eternidade. Ele devia estar a
pensar o mesmo.
Judas concedeu-lhe mais um instante para ponderar, depois explicou.
Porque Rhun Korza est desaparecido.
Desaparecido? Pela primeira vez, o monge pareceu surpreendido.
Poucos dias depois de Korza se ter alimentado dela, ele desapareceu de vista da
Igreja. E de todos os outros.
As asas da traa estremeceram passagem do ar.
Agora, cadveres juncam as ruas de Roma, enquanto um monstro ousa atacar nos
limites da prpria Cidade Sagrada. No nenhum strigoi sob o meu controlo ou sob o
controlo deles. Eles receiam que seja o seu precioso Rhun Korza, retornado a um estado
selvtico.
O irmo Leopold olhou-o nos olhos.
O que quer que eu faa? Que o mate?
Como se pudesses... No, meu caro irmo, essa misso caber a outro. A tua
misso vigiar e informar. E no voltes a omitir-me nenhum detalhe.
Ergueu a mo e a traa levantou voo do ombro do monge e retornou palma da mo
estendida do seu criador.
Se me falhares, falhars a Cristo.
O irmo Leopold fitou-o, os seus olhos expressando alvio e exultao.
No voltarei a falhar.
CAPTULO 8
19 de dezembro, 06h32
Oceano rtico
Os dentes de Tommy Bolar doam-lhe do frio. No sabia que tal era possvel. De p
junto amurada do navio, na escurido do despontar da manh rtica, um vento rude
fustigava-lhe as faces expostas. O gelo branco estendia-se adiante no horizonte. Para trs,
um rasto esmagado de gelo azulado e gua escura marcava a passagem do quebra-gelo
atravs da paisagem glacial.
Olhava em volta, desesperado. No fazia ideia de onde estava.
Ou mesmo do que era.
Tudo o que sabia era que no era o mesmo rapaz de catorze anos que vira os pais
morrerem nos seus braos, sobre as runas de Massada, vtimas de um gs venenoso que
os matara e que o salvara a ele. Olhou para o pedao de pele nua, que se adivinhava entre
as luvas de camura e as mangas da sua sofisticada parka de penas. Em tempos, uma
mancha escura de melanoma persistira no pulso plido, revelando a sua condio
terminal agora, desaparecera por completo, como o resto do cancro. At mesmo o
cabelo, perdido na quimioterapia, recomeara a crescer.
Tinha sido curado.
Ou amaldioado. Dependendo da perspetiva.
Desejava ter morrido no cimo daquela montanha com os pais. Em vez disso, fora
sequestrado de um hospital militar israelita, arrancado aos mdicos que tentavam
perceber a sua milagrosa sobrevivncia. Os seus mais recentes carcereiros alegavam que
fizera mais do que sobreviver tragdia de Massada, insistiam que fora mais do que curado
do cancro.
Diziam que nunca morreria.
E pior do que isso, comeara a acreditar neles.
Uma lgrima rolou-lhe pela face, deixando um rasto quente na sua pele gelada.
Limpou-a com as costas da luva, sentindo-se revoltado, frustrado, querendo gritar
para aquela vastido sem fim no por ajuda, mas por libertao, para ver de novo os
seus pais.
Dois meses antes, algum o drogara, e acordara ali, naquele imenso quebra-gelo no
meio de um oceano gelado. O navio tinha sido pintado recentemente, quase totalmente de
negro, com as cabinas empilhadas no convs como peas de Lego vermelhas. At ao
momento contara aproximadamente uma centena de membros da tripulao a bordo,
memorizando as caras, aprendendo a rotina do navio.
Por agora, a fuga era impossvel mas o conhecimento significava poder.
Era uma das razes por que passava tanto tempo na biblioteca da embarcao,
esquadrinhando os poucos livros em ingls, tentando aprender o mximo que podia.
Todas as outras investigaes se tinham deparado com o silncio. A tripulao falava
russo e ningum lhe dirigia a palavra. Apenas duas pessoas a bordo do quebra-gelo
tinham comunicado com ele e deixavam-no aterrorizado, embora fizesse o melhor por
dissimul-lo.
Como que convocado pelos seus pensamentos, Alyosha juntou-se a ele na amurada.
Trazia dois floretes e deu-lhe um. O rapaz russo parecia da mesma idade de Tommy, mas
a aparncia era ilusria. Alyosha era bem mais velho, dcadas mais velho. Provando a sua
inumanidade, Alyosha usava calas de flanela cinzenta e uma camisa branca perfeitamente
engomada, aberta no colarinho, expondo o pescoo plido ao vento glido que varria
aquele recanto vazio do convs gelado. Uma pessoa real morreria congelada naqueles
trajes.
Tommy aceitou o florete, sabendo que, se tocasse a mo nua de Alyosha, a
encontraria to glida quanto a amurada coberta de gelo do navio.
Alyosha era uma criatura imperecvel chamada strigoi.
Imortal, tal como Tommy, mas muito diferente dele.
Pouco depois do rapto de Tommy, Alyosha pressionara-lhe a mo contra o seu peito
sem calor, revelando a inexistncia de batimento cardaco. Mostrara a Tommy as suas
presas, a forma como os seus caninos podiam recolher ou sair para fora das gengivas,
segundo a sua vontade. Mas a maior diferena entre eles era que Alyosha se alimentava de
sangue humano.
Tommy era muito diferente.
Continuava a comer comida normal, continuava a ter batimento cardaco, continuava
a ter os mesmos dentes.
Ento, o que sou eu?
O seu prprio captor o mestre de Alyosha no parecia saber. Ou pelo menos,
nunca partilhara esse conhecimento.
Alyosha tocou-lhe na cabea com o punho da espada para lhe chamar a ateno.
Tens de estar atento ao que te digo. Temos de praticar.
Tommy seguiu-o at zona de treino improvisada no convs do navio e assumiu
posio.
No! censurou o seu adversrio. Alarga mais! E mantm o florete erguido para
te protegeres.
Aparentemente, Alyosha aborrecia-se no imenso navio e ensinava-lhe as maneiras de
um nobre russo. Para alm das lies de esgrima, ensinava-lhe uma srie de termos sobre
cavalos, selaria e formao cavaleira.
Tommy entendia a obsesso do outro. Fora-lhe dito o verdadeiro nome de Alyosha:
Alexei Nikolaevich Romanov. Na biblioteca, encontrara um texto sobre a histria russa e
descobrira mais sobre aquele rapaz. Cem anos antes, fora o filho do czar Nicolau II, um
prncipe real do Imprio Russo. Em criana, Alyosha sofria de hemofilia e, segundo o
livro, apenas uma pessoa o conseguia aliviar das dolorosas crises de hemorragia interna,
o mesmo homem que mais tarde se tornaria seu mestre, transformando o prncipe num
monstro.
Visualizou o mestre de Alyosha, com a sua espessa barba e tez escura, refundido num
outro ponto daquele barco, como uma aranha negra na sua teia. No incio de 1900, era
conhecido como o Monge Louco da Rssia, mas o seu verdadeiro nome era Grigori
Yefimovich Rasputine. Os textos histricos detalhavam a forma como o monge travara
amizade com os Romanov, tornando-se um inestimvel conselheiro do czar. Mas outros
textos insinuavam a peculiaridade sexual de Rasputine e as intrigas polticas, que acabaram
por conduzir a uma tentativa de assassnio por parte de um grupo de nobres.
O monge fora envenenado, atingido a tiro na cabea, espancado com uma clava e
lanado a um rio gelado para apenas sair a cuspir gua, ainda com vida. Os livros
diziam que ele acabara por se afogar nesse mesmo rio, mas Tommy conhecia a verdade.
No era assim to fcil matar um monstro.
Como o rapaz prncipe, Rasputine era um strigoi.
Ligeiro como uma cobra, Alyosha lanou-se pelo tapete de esgrima improvisado,
simulando direita, depois deslocando-se esquerda, quase rpido demais para ser
percebido. A ponta do seu florete aterrou no centro do peito de Tommy, a extremidade
forando a parka e atingindo a pele. Aquelas no eram espadas de treino embotadas.
Tommy sabia que Alyosha lhe podia ter espetado o corao, se quisesse.
No que o tivesse matado.
T-lo-ia magoado, provavelmente deixado de cama e fraco por um ou dois dias, mas
teria sarado, amaldioado como fora em Massada com uma vida imortal.
Alyosha sorriu e deu um passo atrs, brandindo o seu florete com um movimento
triunfante. Tinha uma estatura prxima da de Tommy, com braos e pernas esguios. Mas
era bastante mais forte e rpido.
A maldio de Tommy no lhe oferecia vantagens como a fora e a velocidade.
Contudo, fez o melhor por se esquivar aos ataques seguintes. Danavam para trs e
para diante no tapete de esgrima. Tommy rapidamente se sentiu extenuado, consumido
pelo frio.
Quando pararam para tomar flego, um sonoro rudo fraturante chamou a ateno de
Tommy para l da amurada de estibordo. O convs inclinou-se sob os seus ps. A proa
do navio ergueu-se ligeiramente, depois desceu violentamente sobre as densas placas de
gelo. Os poderosos motores faziam avanar o barco, prosseguindo na sua lenta passagem
pelo mar rtico.
Observou os grandes lenis de gelo a serem retalhados e a rasparem ao longo do
casco e perguntou-se o que aconteceria se saltasse.
Morreria?
O medo impediu-o de experimentar. Embora pudesse no conseguir morrer,
conseguia sofrer. Esperaria por uma melhor oportunidade.
Alyosha lanou-se para diante e atingiu-o na face com a espada.
A vergastada relembrou-o de que a vida era dor.
Basta! decidiu Alyosha. Mantm-te alerta, amigo!
Amigo...
Tommy quis escarnecer de tal ttulo, mas manteve-se em silncio. Sabia que, de certa
forma, o jovem prncipe se sentia s, apreciando a companhia, mesmo que forada, de
um outro jovem.
Porm, Tommy no se deixava iludir.
Alyosha no era um rapaz jovem.
Assim, retomou a posio defensiva no seu lado do tapete. Era a sua nica opo por
agora. Esperaria pela sua hora, aprenderia o que pudesse e manter-se-ia em forma.
At poder escapar.
CAPTULO 10
07h18
Bem abaixo da Baslica de So Pedro, Rhun rastejava de gatas por um tnel escuro, a
cabea to baixa que o nariz chegava a roar o cho de pedra.
Porm, murmurava preces de agradecimento.
Erin estava a salvo.
A urgncia que o impelira para fora da agonizante priso desvanecera-se. A pura fora
de vontade incitava-o, agora, a erguer cada mo sangrenta, a arrastar cada joelho ferido.
Centmetro a centmetro, avanava pela passagem, procurando a luz.
Parando um momento para descansar, encostou o ombro parede de pedra. Tocou o
pescoo, recordando a ferida, agora sarada. Elisabeta bebera tanto do seu sangue. Deixara-
o propositadamente incapacitado, mas vivo.
Para sofrer.
A agonia tornara-se a sua nova arte. Recorda os rostos das muitas jovens raparigas
que tinham morrido pelas suas mos. Essa encarnao sinistra da sua radiosa Elisabeta
aprendera a esculpir a dor, como outros esculpiam o mrmore. Todas essas mortes
horrveis pesavam na sua conscincia.
Quantas mais mortes teria de acrescentar contagem, enquanto ela corria solta pelas
ruas de Roma?
Ainda dentro do tmulo, captara sussurros do seu deleite, do xtase da sua saciao.
Ela bebera dele, carregando o seu sangue dentro de si, ligando-os.
Sabia que ela forjara essa ligao intencionalmente.
Quisera arrast-lo nas suas perseguies, forando-o a testemunhar as suas
depravaes e assassnios. Felizmente, medida que ela se alimentava, derramando novo
sangue sobre o antigo, a ligao enfraquecia, apenas permitindo que as emoes mais
fortes dela o atingissem.
Como que avivado por esses pensamentos, Rhun sentiu os limites da viso
estreitarem-se, assaltado por um pnico aterrorizado no o seu, mas o de outro. Fraca
como era a ligao, podia ter resistido ao mpeto, mas tal oposio correria o risco de
esgotar ainda mais as suas j exauridas reservas.
Ento, deixou-se levar.
Para preservar as suas foras e para outro propsito, tambm.
Onde ests, Elisabeta?
Tencionava usar a frgil ligao para a descobrir, para acabar com toda aquela
violncia, uma vez reencontrada a luz. Por agora, deixou-se arrastar voluntariamente para
a escurido partilhada.
Uma onda de criaturas sombrias avanava na sua direo. Presas brancas brilhavam na
escurido, vorazes, prontas a morder. Ele saltou para longe, cruzando o ar.
O cu clareava a leste, anunciando um novo dia.
Devia encerrar-se antes que tal acontecesse, ocultado do sol ardente.
Aterrou num telhado. As telhas de terracota quebraram-se sob as suas botas, as suas mos.
Fragmentos derramaram-se borda fora, despedaando-se na pedra cinzenta da praa em baixo.
Correu pelo telhado com passo seguro. Atrs dele, um dos perseguidores tentou o salto,
falhou e embateu no solo com um baque repulsivo.
Outros tentaram.
Muitos caram, mas alguns conseguiram.
Alcanara o extremo oposto do telhado e saltou para o seguinte. O frio ar da noite
banhou-lhe as faces. Se esquecesse os perseguidores, poderia apreciar toda aquela beleza,
correndo pelo topo de Roma.
Mas no os podia esquecer, por isso correu para diante.
Sempre para ocidente.
O objetivo erguia-se alto no cu ruborizado.
Rhun regressou sua prpria pele, afundando-se no tnel. Ergueu-se sobre mos e
joelhos, sabendo que no era o suficiente. Penetrando nos ltimos resqucios da sua
fora declinante, levantou-se. Com uma mo na parede, seguiu tropegamente para diante.
Tinha de avisar os outros.
Elisabeta conduzia uma matilha de strigoi diretamente para a Cidade do Vaticano.
07h32
Nada a deteve enquanto corria por cima dos telhados, em direo a ocidente, fugindo
do sol nascente a leste e perseguida por uma horda furiosa. A surpresa da sua escalada ao
obelisco conquistara-lhe alguns segundos preciosos.
Se a apanhassem, estava morta.
Saltava de telhado em telhado, quebrando telhas, dobrando goteiras. Nunca correra
assim na sua vida natural ou sobrenatural. Parecia que aqueles sculos aprisionada no
sarcfago a tinham tornado mais forte e veloz.
A exultao apoderou-se dela, reprimindo o medo.
Estendeu os braos ao lado como asas, apreciando a carcia do vento sua passagem.
Se sobrevivesse, iria faz-lo todas as noites. Pressentia ser mais velha do que aqueles que a
perseguiam, tambm mais rpida decerto no o suficiente para os manter eternamente
distncia, mas talvez o bastante para chegar ao seu destino.
Lanou-se sobre o telhado seguinte, aterrando pesadamente. Um bando de pombos
assustou-se e levantou voo. As penas rodearam-na como uma nuvem, cegando-a.
Momentaneamente distrada, prendeu a bota na fenda de uma fileira de telhas. Teve de
parar para a soltar, rasgando o couro.
Um olhar de relance para trs revelou que o avano se esfumara.
A matilha estava quase a alcan-la, nos seus calcanhares, agora.
Correu, com a dor a subir-lhe pelo tornozelo. A perna no conseguiria aguentar o
peso. Amaldioou a fraqueza, saltando agora mais do que correndo, impelindo-se com a
perna intacta, aterrando sobre a lesionada, castigando-a por lhe falhar.
A leste, o cu estava do mesmo cinzento-claro das asas dos pombos.
Se os strigoi no a abatessem, o sol encarregar-se-ia disso.
Lanou-se furiosamente para a frente. No desistiria, deixando que aqueles que a
perseguiam a reclamassem. Tais bestas no tinham legitimidade para acabar com a sua
vida.
Concentrou-se no objetivo diante de si.
Poucas ruas a separavam dos muros da Cidade do Vaticano.
Os sanguinistas nunca deixariam tal corja de strigoi invadir a sua Cidade Santa. Extirp-
los-iam como ervas daninhas. Correu para l, com uma esperana no seu corao
silencioso.
Ela sabia o segredo da localizao de Rhun.
Seria o suficiente para desviar as espadas da sua garganta?
No sabia.
CAPTULO 11
Rhun estremeceu com a bno, perdido no fluido carmesim que lhe percorria as
veias negras. Queria rebelar-se, reconhecendo o pecado na sua lngua. Mas as memrias
enevoavam-se: os seus lbios sobre um pescoo aveludado, o ceder da carne sob os seus
dentes afiados. O sangue e os sonhos arrastaram para longe a dor. Gemeu de prazer,
cavalgando as ondas de xtase que pulsavam por cada fibra do seu ser.
Negado a esse deleite h tanto tempo, o corpo no o queria largar.
Mas o enlevo acabou por refrear, deixando para trs um vazio, um poo de desejo
sinistro. Rhun debatia-se para ganhar flego para falar, mas antes que o conseguisse, a
escurido apoderou-se dele. Enquanto esta o consumia, rezava para que o corpo infestado
pelo pecado pudesse resistir penitncia que se avizinhava.
Rhun passava pelo jardim de ervas do mosteiro, a caminho das oraes do meio da manh.
Demorou-se, deixando o sol de vero aquecer-lhe o rosto. Correu a mo pelos ps de alfazema
roxos que ladeavam o caminho de gravilha, enquanto a delicada fragrncia se intensificava
sua passagem. Levou os dedos assim contaminados ao rosto para apreciar o aroma.
Sorriu ao lembrar-se de casa.
Na casa de famlia, a sua irm repreendia-o frequentemente por se perder na horta, rindo-
se quando ele se tentava desculpar. Como adorara atorment-lo, mas sempre fazendo-o rir.
Talvez a pudesse ver nesse domingo, o ventre redondo a crescer com o seu primeiro filho.
Uma gorda abelha dourada esvoaou em torno de um boto roxo-escuro, uma outra abelha
pousando no mesmo p. O caule dobrou-se sob o seu peso e oscilou na brisa, mas as abelhas
pouco se importaram. Trabalhavam diligentemente, seguras do seu lugar no plano divino.
A primeira abelha levantou da flor e sobrevoou a alfazema.
Sabia para onde ia.
Seguindo-lhe o rumo deambulante, Rhun alcanou o muro coberto de lquenes ao fundo
do jardim. A abelha desapareceu pela abertura redonda de uma das colmeias cnicas amarelo-
douradas, de palha, alinhadas no topo do muro de pedra.
Rhun construra aquele cortio ele prprio, no final do ltimo vero. Apreciara a simples
tarefa de entretecer a palha em tranas, torcendo as mechas em espirais e dando-lhes a forma
de colmeia cnica. Encontrava paz nessas tarefas simples e executava-as bem.
O irmo Thomas observara o mesmo:
Os seus dedos geis esto talhados para este tipo de obra.
Fechou os olhos e inalou o aroma intenso do mel. O ruidoso zunido das abelhas envolveu-
o. Tinha outras obras a executar, mas ali ficou por um longo momento, repleto de satisfao.
Quando voltou a si, Rhun sorriu. Esquecera aquele momento. Era um simples
fragmento de uma outra vida, h sculos, antes de se tornar um strigoi e perder a sua
alma.
Sentiu de novo o doce e rico aroma do mel, o toque suave da alfazema. Recordou o
calor do sol na sua pele, quando a sua luz ainda no era um misto de dor. Mas acima de
tudo, pensou na irm a sorrir.
Sentia saudades dessa vida singela apenas para reconhecer que nunca a teria.
E com esse duro reconhecimento, veio um outro.
Os olhos abriram-se bruscamente, sentindo o sabor do sangue na sua lngua, e
confrontou Bernard.
O que fez... pecado.
O cardeal afagou-lhe a mo.
Pecado meu, no seu. Aceitarei de bom grado o fardo para o ter ao meu lado no
combate que se aproxima.
Rhun permaneceu imvel, debatendo-se com as palavras de Bernard, querendo
acreditar nelas, mas sabendo que o gesto fora errado. Sentou-se, descobrindo uma fora
renovada na carne e nos ossos. A maioria das feridas tinha sarado. Inspirou o ar para
aquietar a mente em tumulto.
Bernard estendeu a mo, revelando uma familiar forma curva de prata manchada.
Era a karambit de Rhun.
Se se sentir suficientemente recuperado disse Bernard , poder juntar-se a ns na
batalha que se avizinha. Para se vingar daqueles que o trataram to brutalmente. Referiu
uma mulher.
Rhun pegou na arma, evitando o olhar penetrante do cardeal, demasiado
envergonhado, mesmo agora, para proferir o nome dela. Tateou o gume afiado da lmina.
Elisabeta tirara-lha.
Como que Bernard a encontrara?
O soar estridente de uma campainha de alarme quebrou o momento.
As perguntas teriam de esperar.
Bernard atravessou o compartimento num relampejar de tecido escarlate e retirou a
sua antiga espada da parede. Rhun ps-se de p, surpreso com a ligeireza do seu corpo
depois de beber o sangue, como se pudesse voar. Apertou com mais fora a sua prpria
arma.
Assentiu para Bernard, confirmando que se sentia suficientemente bem para lutar, e
partiram rapidamente. Percorreram os reluzentes corredores de madeira dos aposentos
papais, transpuseram as portas de bronze e saram para a praa.
Para evitar os olhares de um punhado de pessoas que circulavam pelo espao aberto,
Rhun seguiu Bernard para o refgio umbroso da colunata de Bernini que ladeava a praa.
As enormes colunas toscanas, em quatro fiadas, deveriam manter oculta a sua veloz
passagem sobrenatural. Bernard juntou-se a um contingente de outros sanguinistas que
esperavam o cardeal nas sombras. Em grupo, apressaram-se ao longo do curso da
colunata em direo entrada da Cidade Santa.
Uma vez alcanada a baixa vedao que separava a cidade-estado do Vaticano da Roma
propriamente dita, os olhos de Rhun perscrutaram os telhados mais prximos. Recordou
a viso partilhada que tivera com Elisabeta, dela a saltar de telhado em telhado.
O som furioso de uma buzina de automvel chamou-lhe a ateno para baixo, para a
rua de pedra que conduzia ao lugar.
A uns cinquenta metros dali, o pequeno vulto de uma mulher corria pelo centro da
Via della Conciliazione, coxeando sobre uma perna. Embora o cabelo fosse mais curto,
ele no teve dificuldade em reconhecer Elisabeta. Um carro branco guinou para a evitar.
Ela no lhe prestou ateno, determinada em chegar Praa de So Pedro.
Atrs dela, uma dezena de strigoi corria e saltava a toda a velocidade.
Queria irromper da colunata e correr para ela, mas Bernard colocou-lhe uma mo
firme no brao.
Espere avisou o cardeal, como que lendo os seus pensamentos. H humanos na
rua e naquelas casas. Vero a batalha e sabero. Temos milnios de sigilo a proteger.
Deixe que a batalha venha at ns.
Enquanto observava, Rhun reconheceu a dor nos lbios comprimidos de Elisabeta, os
olhares receosos que lanava para trs. Recordou-se do mesmo pnico ao ver pelos olhos
dela.
Ela no est a conduzir a matilha est a tentar escapar-lhe.
Apesar de tudo o que ela lhe fizera e aos inocentes da cidade, uma vontade impulsiva
de a proteger brotou no seu ntimo. Os dedos de Bernard fincaram-se no seu ombro,
talvez sentindo-o tender para diante, pronto a lanar-se em sua defesa.
Por fim, Elisabeta chegou ao fundo da rua. Os outros strigoi estavam quase sobre ela.
Sem abrandar, saltou o muro que marcava os limites da Cidade do Vaticano e aterrou,
meio encolhida, encarando a ameaadora matilha.
Escarneceu, expondo as presas e disse, em tom de provocao:
Sigam-me, se ousarem.
A matilha estacou repentinamente atrs da vedao. Alguns deram um passo cauteloso
adiante, depois de novo atrs, sentindo a debilitante sacralidade do solo consagrado do
outro lado. Queriam-na, mas ousariam entrar na Cidade do Vaticano para a ter?
O solo sagrado no era tudo o que tinham a temer.
A fora sanguinista esperava de cada lado de Rhun e Bernard, imveis como esttuas
entre as colunas. Se os strigoi entrassem na cidade, as bestas seriam arrastadas para essa
escura floresta de pedra e chacinadas.
Elisabeta recuou da vedao, mas colocou demasiado peso sobre a perna magoada e o
tornozelo cedeu, por fim, fazendo-a tombar no pavimento.
O sinal de fraqueza foi demasiado para os strigoi resistirem. Como lees a atacarem
uma gazela ferida, a matilha precipitou-se para diante.
Rhun libertou-se da priso de Bernard e irrompeu pelo espao aberto. Voou em
direo a Elisabeta, to criatura de instinto quanto os strigoi. Alcanou-a, ao mesmo
tempo que o lder da matilha, uma figura imensa de grossos msculos e tatuagens negras
azuladas, saltou a vedao e aterrou do outro lado da condessa, revelando os dentes.
Mais strigoi seguiram-lhe o exemplo, voando sobre o muro.
Rhun agarrou-a pelo brao e recuou em direo colunata, arrastando-a, na esperana
de atrair a matilha para a floresta de pedra.
O lder gritou uma ordem e uma besta zelosa avanou prontamente.
Oscilando um dos braos, Rhun atirou Elisabeta como uma boneca de trapos para a
colunata e desferiu a sua karambit. A lmina de prata cortou o ar e depois a carne. A
jovem criatura selvtica caiu para trs, agarrando a garganta, enquanto ar e sangue
borbulhavam para fora do pescoo decepado.
Outros strigoi precipitaram-se para a frente, enquanto Rhun recuava para se
depararem com Bernard e os outros sanguinistas no limite da colunata.
Uma breve batalha grassou por entre as colunas. Mas com a matilha apanhada de
surpresa e enfraquecida pelo solo sagrado, foi uma chacina. Alguns escaparam, saltando a
vedao e dispersando-se pelas ruas como vermes, fugindo da luta e do sol.
Rhun viu-se confrontado com o corpulento lder. No seu peito nu, tinha tatuada uma
pintura de Hieronymus Bosch, um cenrio infernal de morte e castigo, que ganhava vida
com a agitao dos seus msculos ao erguer a pesada lmina.
A lmina de Rhun parecia desprezivelmente pequena comparada com aquela extenso
de ao.
Como se o soubesse, o despeito gerou um brilho perverso nos olhos escuros do
outro. Lanou-se sobre Rhun, desferindo a espada sobre a cabea deste, disposto a rach-
la em duas.
Mas a sacralidade abrandou o ataque do strigoi, dando a Rhun tempo de mergulhar na
guarda do outro. Virou o gancho da sua karambit para cima e penetrou o ventre do
adversrio. Rasgando mais, cortou a grotesca tela a meio e lanou o corpo para longe.
O vulto estripado tombou para o limite das colunas, um dos braos estendendo-se
para a luz a luz do sol. O membro irrompeu em chamas. Um outro sanguinista ajudou
Rhun a puxar o corpo de volta s sombras e estancou as chamas, antes que o fogo atrasse
atenes indesejadas.
Alguns rostos voltaram-se na direo das sombras, mas a maioria permanecia alheada
da brusca e mortal batalha no interior da colunata. Enquanto Rhun fitava a luz do sol a
clarear a praa, o medo apoderou-se dele.
Elisabeta...
Voltou-se, descobrindo Bernard sobre o seu vulto encolhido e com o rosto contra o
cho. Sentia certamente o esplendor do novo dia, sentia o seu ardor. Por agora, a sua
nica segurana residia no abrigo sombrio da colunata. Sair dali seria a morte.
Bernard agarrou-a pelo ombro, pronto a lan-la para a praa, para enfrentar o
julgamento do novo dia. Os sanguinistas reuniam-se sua volta, a tresandar a vinho e a
incenso. Nenhum deles impediria o cardeal se ele decidisse mat-la. Ela conduzira strigoi
at cidade mais sagrada da Europa.
Bernard enterrou uma mo no seu cabelo curto, puxou-lhe a cabea para trs e
encostou a lmina ao seu pescoo macio e plido.
No! gritou Rhun, precipitando-se para a frente, empurrando os outros.
Mas no foi o seu grito que deteve a espada do cardeal.
07h52
APOCALIPSE 16: 6
CAPTULO 12
Erin partilhava o banco de trs do Fiat vermelho com Jordan. Christian ia sentado
frente com o motorista. O sanguinista tinha a cabea fora da janela aberta e falava com um
guarda suo de uniforme azul-escuro e bon. O jovem carregava uma espingarda
automtica ao ombro, guardando o Porto de Santa Ana, uma das entradas da Cidade do
Vaticano.
Por norma, os guardas ali no andavam abertamente armados.
Ento, porqu a segurana reforada?
O guarda anuiu, deu um passo atrs e fez sinal para o carro avanar.
Christian sussurrou para o motorista e entraram na Cidade Santa, passando pela
arcada de ferro de um verde acinzentado. Uma vez em movimento, Christian voltou a
aproximar o telemvel do ouvido, onde estivera colado desde que o voo fretado aterrara
no pequeno aeroporto de Ciampino, em Roma. O motorista aguardava-os num Fiat
descaracterizado e em minutos f-los chegar aos portes da Cidade do Vaticano.
Jordan segurava a mo de Erin no banco de trs, olhando para o exterior, enquanto o
carro passava pelo banco do Vaticano e pela estao dos correios, contornando por trs a
grande Baslica de So Pedro.
Ela estudou os edifcios antigos, imaginando os segredos escondidos para l das
resplandecentes paredes de estuque. Enquanto arqueloga, desvendava a verdade camada a
camada, mas a descoberta da existncia de strigoi e sanguinistas ensinara-lhe que a histria
tinha camadas ainda mais profundas do que alguma vez pensara.
Mas uma pergunta ocupava um lugar de destaque na sua mente.
Jordan expressou-a.
Onde nos leva Christian?
Ela estava igualmente curiosa. Pensara que se dirigiriam diretamente aos aposentos
papais para se encontrarem com o cardeal Bernard no seu gabinete, mas em vez disso o
veculo seguiu para mais longe, para os terrenos por trs da baslica.
Erin inclinou-se para diante, interrompendo Christian ao telefone. Estava demasiado
cansada para mostrar cortesia e irritada por todos os subterfgios seguidos para chegar
ali.
Para onde vamos? perguntou, tocando no ombro do sanguinista.
Estamos quase l.
L, onde? insistiu ela.
Christian apontou o telefone em diante.
Erin baixou-se mais para estudar a aproximao a um edifcio de mrmore branco
italiano com telhado de telha vermelha. Uma srie de carris por detrs do edifcio
revelaram a funo da estrutura.
Era a Stazione Vaticano, a nica estao ferroviria na linha que servia o Vaticano.
Fora construda durante o papado de Pio XI, no incio da dcada de 1930. Atualmente, era
sobretudo usada para o transporte de mercadorias, embora os ltimos papas tivessem
realizado algumas viagens cerimoniais a partir dali, a bordo de um comboio papal
especial.
Erin viu esse mesmo comboio atualmente parado naquelas linhas.
Trs carruagens verde-escuras alinhavam-se atrs de uma antiga mquina preta que
soprava fumo. Noutra altura, teria ficado entusiasmada com a viso, mas naquele instante
tinha uma preocupao mais premente: o destino de Rhun. Durante a viagem at ali, no
tivera mais vises e receava o que isso significaria em relao a Rhun.
O Fiat foi direito plataforma e estacou. Christian saltou para fora do carro,
arrastando Jordan e Erin consigo. Com o telefone de volta ao ouvido, Christian conduziu-
os plataforma. O sanguinista trocara o uniforme militar esfarrapado por uma camisa de
padre e calas pretas. O traje assentava-lhe melhor.
Ao chegar ao comboio, baixou o telefone e apontou para a carruagem do meio com
um sorriso travesso.
Todos a bordo!
Erin olhou para trs, para a cpula da baslica.
No compreendo. Vamos j partir? E Rhun?
O esguio sanguinista encolheu os ombros.
Neste momento, sei tanto quanto vocs. O cardeal pediu-me para os trazer at aqui e
embarc-los. Est previsto partir assim que embarcarmos.
Jordan pousou-lhe a mo quente no fundo das costas. Ela apoiou-se nela, grata pelo
toque do que era familiar, compreensvel.
Que mais esperavas de Bernard? disse ele. Se procurares necessidade de saber no
dicionrio, encontrars o seu rosto sorridente. O tipo adora os seus segredos.
E os segredos matavam pessoas.
Erin tateou a pequena esfera de mbar no bolso das suas calas, recordando o sorriso
hesitante de Amy sob o sol do deserto.
Por agora prosseguiu Jordan , mais vale fazermos o que o cardeal nos pede.
Podemos sempre vir embora, se no gostarmos do que ele tem para nos dizer.
Ela assentiu. Jordan conseguia sempre apontar o caminho mais prtico. Beijou-o na
face, a barba parecendo-lhe spera junto aos lbios, terminando com um beijo suave na
boca.
Christian aproximou-se da porta e abriu-a.
Para evitar atenes indesejadas, o Vaticano divulgou a histria de que o comboio
vai ser transferido para um estaleiro de manuteno fora de Roma. Mas quanto mais
depressa partirmos, mais feliz ficarei.
Sem outra escolha, Erin subiu os degraus de metal, seguida por Jordan. Entrou numa
sumptuosa carruagem-restaurante. As cortinas de veludo dourado estavam apanhadas ao
lado de cada janela e o compartimento resplandecia luz da manh desde o teto
amarelo leitoso at rica carpintaria de carvalho. O ar cheirava ao limo do polimento e a
madeira antiga.
Jordan assobiou.
Parece que o papa sabe viajar. A nica coisa que poderia melhorar o cenrio, seria
uma cafeteira a fumegar numa dessas mesas.
Concordo plenamente disse Erin.
Sentem-se disse Christian, passando por eles e apontando para a mesa preparada.
Vou tratar da concretizao dos vossos desejos.
Enquanto se dirigia para a carruagem da frente, Erin descobriu um lugar banhado de
sol e sentou-se, apreciando o calor depois da corrida pela cidade fria. Percorreu com um
dedo a toalha de mesa de linho branco. Estavam postos quatro lugares, com baixela de
prata e fina porcelana decorada com o selo papal.
Jordan alisou o uniforme azul, tentando parecer apresentvel, enquanto tomava lugar
ao lado dela. Contudo, ela percebeu a dureza na sua expresso ao olhar para fora da
janela, constantemente espreita do perigo, embora tentasse no o mostrar.
Por fim, aquietou-se.
Espero que a comida aqui seja melhor do que naquele lugar hippie onde o Christian
nos levou em So Francisco. Comida vegetariana? A srio? Eu sou do tipo de bife com
batatas fritas. E, no meu caso particular, mais inclinado para o lado carnvoro da equao.
Estamos em Itlia. Algo me diz que poders ter sorte com a comida.
Ter com certeza! bradou uma nova voz atrs deles, da porta de ligao
carruagem da frente.
Sobressaltado, Jordan esteve a ponto de irromper do lugar e desferir um golpe para
trs, mas at ele reconheceu o ligeiro sotaque alemo naquelas poucas palavras.
Irmo Leopold! exclamou Erin, encantada por ver o monge, para alm da bandeja
que este trazia com um servio de caf.
No voltara a ver o monge alemo desde o dia em que ele lhe salvara a vida. Parecia
igual com os seus culos de armao metlica, o singelo hbito castanho e o sorriso de
garoto.
Nada temam. O pequeno-almoo ser servido dentro de instantes. Leopold ergueu
a bandeja. Mas, antes de mais, Christian referiu que estavam ambos desesperados por
uma dose de cafena depois da vossa longa viagem.
Se define dose como uma cafeteira cheia de caf, est bem certo. Jordan sorriu.
bom voltar a v-lo, Leopold.
Igualmente.
O monge apressou-se para junto deles e encheu as chvenas de porcelana com uma
mistura fumegante de caf torrado escuro. O comboio pusera-se lentamente em
movimento, o rudo dos motores a intensificar-se.
Christian reapareceu e sentou-se no lugar em frente a Erin, fixando intencionalmente a
chvena fumegante que ela segurava nas mos.
Familiarizada com a sua rotina, ela passou-lhe a chvena de porcelana branca. Ele
levou-a ao nariz, fechou os olhos e inspirou profundamente a espiral de fumo. Uma
expresso de contentamento atravessou-lhe o rosto.
Obrigado disse ele, devolvendo-lhe a chvena.
Como jovem sanguinista que era, no estava assim to distanciado dos simples
prazeres humanos, como o caf. Ela apreciava isso.
Novidades? perguntou-lhe Jordan. Como o local para onde vamos?
Foi-me dito que uma vez fora de Roma, saberemos mais. Entretanto, o melhor
saborear a calma.
Como a que antecede a tormenta? inquiriu Erin.
Christian riu-se.
Muito provavelmente.
Jordan pareceu suficientemente satisfeito com a resposta. Durante a viagem at ali, ele
e Christian tinham-se tornado rapidamente amigos; inusitado, tendo em conta a antipatia
e desconfiana de Jordan pelos sanguinistas, depois de Rhun a ter mordido.
medida que a fila de carruagens saa lentamente da estao, o comboio dirigiu-se
para um par de portas de ao, que bloqueavam a via a umas centenas de metros adiante,
cravadas nos macios muros que circundavam a Cidade Santa. O porto ostentava rebites
e pregos, parecendo destinado a guardar um castelo medieval.
Um silvo de comboio soou e as portas abriram-se pesadamente, deslizando de
encontro ao muro de tijolo. O porto marcava a fronteira entre a Cidade do Vaticano e
Roma.
Passando pela arcada sob uma cobertura de fumo, o comboio ganhou velocidade e
entrou em Roma. Atravessou a cidade como qualquer comboio comum s que aquele
era composto por apenas trs carruagens: a locomotiva frente, o vago-restaurante a
meio e um terceiro compartimento atrs. Do exterior, a ltima carruagem parecia igual s
restantes, mas as cortinas tinham sido corridas e uma slida porta de metal separava esta
carruagem da sua.
Enquanto a olhava, agora, tentava ignorar o medo crescente que lhe apertava o
estmago.
O que estaria ali?
Ah exclamou o irmo Leopold, chamando a sua ateno. Conforme
prometido... o pequeno-almoo.
Da locomotiva, emergiu uma nova figura to familiar quanto Leopold, embora no to
bem-vinda.
O padre Ambrose assistente do cardeal Bernard entrou vindo da locomotiva, com
um tabuleiro de omeletas, brioches, manteiga e compota. A cara redonda do sacerdote
parecia mais corada do que o habitual, humedecida pelo suor ou talvez pelo vapor da
cozinha. No parecia feliz com o seu papel de empregado de mesa.
Bom dia, padre Ambrose exclamou Erin. Que bom voltar a v-lo.
Fez os possveis por parecer sincera.
Ambrose nem se deu ao trabalho.
Doutora Granger, sargento Stone disse com indiferena, inclinando a cabea
ligeiramente para cada um deles.
O sacerdote deixou a comida e regressou locomotiva.
Claramente, no estava interessado em conversar.
Ela perguntou-se se a sua presena indicaria que o cardeal Bernard j estava a bordo.
Olhou de novo para a porta de ao que conduzia carruagem seguinte.
Ao seu lado, Jordan atirava-se omeleta, como se no fosse voltar a ver comida nos
prximos dias o que, considerando as experincias passadas com sanguinistas, podia
ser verdade.
Seguindo-lhe o exemplo, ela espalhou compota numa metade de brioche.
Christian observava tudo, transpirando inveja.
Quando os pratos ficaram vazios, o comboio tinha serpenteado para fora de Roma e
parecia dirigir-se para sul.
A mo de Jordan encontrou de novo a sua por baixo da mesa. Ela fez correr as pontas
dos dedos pela palma da mo dele, apreciando o sorriso que isso provocou. Por muito
que a ideia de uma relao a assustasse, por ele estava pronta a correr o risco.
Mas uma certa estranheza permanecia entre eles. Por muito que se esforasse por o
impedir, o seu pensamento voltava frequentemente ao momento em que Rhun a mordera.
Nenhum homem mortal alguma vez a fizera sentir assim. Mas o ato nada significara, uma
mera necessidade. Perguntava-se se essa felicidade profunda seria um artifcio dos strigoi
para desarmar as suas vtimas, torn-las fracas e impotentes.
Os seus dedos viram-se a tocar instintivamente as marcas no pescoo.
Queria perguntar a algum. Mas a quem? A Jordan no, certamente. Ponderara
perguntar a Christian, indagar como tinha sido para ele quando fora mordido pela
primeira vez. No restaurante em So Francisco, ele parecera pressentir aqueles
pensamentos, mas ela recusava-se discutir uma experincia to ertica com qualquer
homem, sobretudo um padre.
Porm, nem toda a hesitao era embarao.
Ela sabia que parte de si no queria conhecer a verdade.
E se o sentimento de ligao que experimentara no fosse simplesmente um
mecanismo para aquietar a presa? E se fosse outra coisa?
10h47
Rhun acordou com uma sensao de terror e pnico. Os braos lanaram-se para
cima e para os lados, esperando sentir as paredes de pedra a enclausur-lo.
As memrias voltaram.
Estava livre.
Enquanto escutava o estalo das rodas de ao sobre os carris, recordou-se da batalha
nos limites da Cidade Santa. Sofrera ferimentos menores, mas, pior que tudo, a luta
esgotara-lhe os ltimos resqucios de fora, devolvendo-o a um estado enfraquecido. O
cardeal Bernard insistira para que descansasse, enquanto esperavam pela chegada de Erin
e Jordan.
Mesmo agora, conseguia ouvir o bater surdo de coraes humanos, a cadncia do seu
pulsar to familiar aos seus ouvidos apurados como qualquer melodia. Correu as mos
pelo corpo. Vestia roupa seca, livre do odor a vinho apodrecido. Levantou-se devagar,
testando cada vrtebra enquanto o fazia.
Cuidado, meu filho disse Bernard da escurido da carruagem. Ainda no ests
totalmente recuperado.
medida que a viso de Rhun se ajustava e focava, reconheceu a carruagem-cama do
comboio papal, equipada com uma cama de casal sobre a qual descansara. Havia tambm
uma pequena secretria e um par de cadeires de seda a ladear um sof.
Detetou uma figura familiar atrs de Bernard, sua cabeceira. Ela envergava uma
armadura de couro justa e um cinto de corrente em prata. O cabelo preto estava puxado
para trs numa trana, revelando as linhas severas do seu rosto tisnado.
Nadia? Crocitou ele.
Quando chegara ela?
Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos disse Nadia com um sorriso malicioso.
Ou o mais prximo dos vivos que um sanguinista pode chegar.
Rhun tocou a fronte.
H quanto...?
Foi interrompido pela ltima figura que havia naquele espao. Alongava-se no sof,
com uma perna estendida para cima, provida de uma tala. Recordou o seu coxear pela rua
de pedra, ao fugir em direo Cidade Santa.
Hell, az n szeretett disse Elisabeta, falando hngaro, cada slaba to familiar
como se a tivesse ouvido no dia anterior e no h centenas de anos.
Ol, meu querido.
No havia calor nas suas palavras, apenas desdm.
Elisabeta mudou para o italiano, embora o dialeto fosse tambm antigo.
Espero que no tenhas achado a tua breve estadia na minha priso demasiado
opressiva. Mas enfim, acabaste com a minha vida, destruste a minha alma e depois
roubaste-me quatrocentos anos.
Os seus olhos argnteos fitavam-no na escurido.
Como tal, duvido que tenhas sido punido o suficiente.
Cada palavra dilacerava-o com a sua verdade. Ele fizera-lhe tudo aquilo, a uma mulher
que em tempos amara que ainda amava, ainda que talvez apenas a memria do seu
antigo ser. Procurou a cruz peitoral, descobriu uma nova pendente do seu pescoo e
rogou por perdo por esses pecados.
Cristo tem sido de algum conforto nestas ltimas centenas de anos? inquiriu ela.
No pareces mais feliz do que no meu castelo, h sculos.
meu dever servi-Lo, como sempre foi.
Um dos cantos da boca dela torceu-se num meio sorriso.
Ds-me a resposta politicamente correta, padre Korza. Contudo, no prometemos
em tempos dizer a verdade um ao outro? No me deves ao menos isso?
Devia-lhe muito mais.
Nadia fitou Elisabeta com uma irritao no disfarada.
No esquea que ela o deixou naquele caixo para sofrer e morrer. Nem todas as
mulheres que ela matou nas ruas de Roma.
essa a sua natureza, agora retorquiu ele.
Eu tornei-a assim.
Ele pervertera-a. Todos os crimes dela pesavam na sua conscincia no passado e no
presente.
Podemos controlar a nossa natureza contraps Nadia, tocando a delicada cruz de
prata ao seu pescoo. Eu controlo a minha todos os dias. Voc tambm. Ela
perfeitamente capaz de fazer o mesmo, mas escolhe no o fazer.
Eu nunca mudarei prometeu Elisabeta. Devias ter-me matado no castelo.
Foi o que me ordenaram disse-lhe Rhun. Foi a misericrdia que me levou a
esconder-te.
Confio pouco na tua misericrdia.
Ela agitou-se no assento, erguendo as mos juntas para afastar uma madeixa de cabelo
da testa, antes de voltar a pous-las sobre o colo. Ele viu que ela estava algemada.
Basta. Bernard gesticulou para Nadia.
Aproximou-se mais do sof e ps Elisabeta de p sem grande delicadeza. Nadia
manteve-a firmemente agarrada. No subestimaria Elisabeta como ele fizera, quando a
retirara do vinho.
A condessa simplesmente sorriu, mostrando as algemas a Rhun.
Acorrentada como um animal disse ela. Foi ao que me levou o teu amor.
10h55
Logo que o padre Ambrose saiu, o cardeal Bernard gesticulou para as sombras para
l da porta de ao aberta.
Erin ficou tensa, os seus dedos fincaram-se na mo de Jordan. De sbito, sentiu-se
imensamente feliz por Jordan ter aberto a cortina. Porm, apesar da torrente de luz solar,
sentiu-se a gelar.
Da escurido, um sacerdote vestido de preto entrou na carruagem iluminada. Era
esqueleticamente magro, com uma descarnada mo plida a segurar o bordo do capuz
contra a claridade. Movia-se com passos vacilantes, mas persistia nele uma certa graa,
uma familiaridade nos gestos.
Ento, deixou cair a mo e revelou o rosto. O cabelo negro corredio pendia-lhe sobre
os olhos escuros e fundos. A pele estava esticada sobre os largos ossos malares e os
lbios pareciam emagrecidos, exangues.
Lembrou-se de beijar esses lbios quando eram mais cheios.
Rhun...
O choque f-la erguer-se. Ele parecia ter envelhecido vrios anos.
Jordan levantou-se e manteve-se ao lado dela.
Rhun fez sinal a todos para que se sentassem. Depois coxeou, assistido por Bernard, e
deixou-se cair pesadamente no lugar vago ao lado de Christian. Erin notou que ele se
mantinha afastado da luz mais forte. Embora os sanguinistas conseguissem tolerar a luz
do sol, esta enfraquecia-os e Rhun tinha, claramente, poucas reservas para dispensar.
Do outro lado da mesa, olhos familiares fixaram-se nos dela. Viu neles exausto, a par
de uma certa mgoa.
Rhun falou, com voz fraca:
Soube pelo cardeal Bernard que acabmos por estabelecer uma ligao de sangue.
Peo desculpa por todo o sofrimento que possa ter-lhe causado.
Est tudo bem, Rhun asseverou ela. Eu estou bem. Mas voc...
Os seus lbios descorados ergueram-se numa espectral tentativa de sorriso.
J me senti mais vigoroso do que agora, mas com a ajuda de Cristo, em breve
recuperarei todas as foras.
Jordan agarrou na mo dela por cima da mesa, tornando clara a sua reivindicao
sobre ela. Fixou Rhun, sem mostrar piedade. Em vez disso, voltou-se para Bernard, que
estava de p ao lado da mesa.
Cardeal, se sabia que Rhun estava desaparecido h tantas semanas, porque esperou
tanto para nos contactar? Podia ter dito alguma coisa, antes de ele chegar a este estado
deplorvel.
O cardeal entrelaou os dedos enluvados.
At h poucas horas, eu no sabia do obscuro ato cometido contra a doutora
Granger nos tneis sob So Pedro. No podia saber de nenhuma ligao entre ele e Erin.
Mas as aes de Rhun ofereceram esperana ao mundo.
Rhun baixou o olhar para a mesa, parecendo mortificado.
Do que estava o cardeal a falar?
Bernard ergueu os braos para abarcar o comboio.
Com todos os que esto aqui reunidos, a profetizada trindade, podemos agora
buscar o Primeiro Anjo.
Jordan olhou em volta para a mesa.
Por outras palavras, o bando est junto de novo. O Cavaleiro de Cristo, o Homem
Guerreiro e a Mulher Sbia.
meno do ltimo dos trs, apertou os dedos de Erin.
Ela soltou a mo.
No necessariamente recordou Erin a todos.
Ouviu o disparo da pistola na sua mente, visualizou Bathory Darabont a sucumbir
naquele tnel. Eu assassinei a ltima da linhagem Bathory.
Rhun fitou-a.
Ns os trs j conseguimos muito.
Nisso, Jordan pareceu de acordo.
uma certeza danada.
Podiam ter razo, mas era a parte danada que a inquietava.
11h15
11h22
12h05
Porque ser mais difcil? perguntou Erin, pressentindo que no ia gostar da
resposta.
Bernard suspirou, com pesar.
Porque j no est sob a custdia dos israelitas.
Ento, onde est? insistiu ela.
Em vez de responder, o cardeal voltou-se para o irmo Leopold. O monge alemo
tinha permanecido em silncio ao fundo da carruagem.
Leopold, s o mais hbil com computadores. O meu porttil est junto da minha
bagagem. O padre Ambrose tem as passwords. Preciso de aceder aos meus ficheiros do
Vaticano. Podes ajudar-me?
Leopold assentiu.
Posso certamente tentar.
O monge apressou-se a deixar a carruagem-restaurante em direo locomotiva.
Bernard voltou-se para os outros.
Mantnhamos vigilncia sobre o rapaz, permanecendo em contacto com os israelitas
que o estavam a estudar num hospital militar. Chama-se Thomas Bolar. O pessoal mdico
estava a tentar descobrir como que ele tinha sobrevivido ao gs venenoso. E ento...
Leopold irrompeu de novo na carruagem, carregando na mo um simples
computador porttil preto. Aproximou-se deles, pousou-o na mesa e ligou-o. Ajustando
os culos de armao metlica, Leopold teclou com a velocidade que s um sanguinista
conseguia atingir. Os seus dedos eram uma mancha difusa sobre o teclado, acedendo
Internet, introduzindo passwords, fazendo a ligao ao servidor do Vaticano.
Bernard observava por cima do ombro, orientando-o aqui e ali.
Erin achou estranho ver aqueles homens idosos de vestes sacerdotais a usar
tecnologia moderna. Era como se os sanguinistas devessem assombrar igrejas e
cemitrios, e no navegar na Internet. Mas Leopold parecia saber o que fazia. Em poucos
minutos, tinha uma janela aberta no ecr contendo um vdeo acinzentado e com pouca
definio.
Erin aproximou-se para ver, como todos os outros.
Apenas a condessa ficou para trs. Pela sua expresso inquieta, aquela tecnologia devia
enerv-la. No tinha vivido longos anos como os restantes, para poder assimilar as
mudanas com o passar do tempo. Erin perguntou-se qual seria a sensao de ser atirada
do sculo XVI para o sculo XXI. Tinha de reconhecer o mrito mulher. Tanto quanto
percebia, a condessa parecia estar a ajustar-se com facilidade, mostrando surpreendente
resilincia e determinao. Erin teria de se recordar disso no futuro tratamento com ela.
De momento, mantinha a ateno fixa no computador porttil.
um vdeo de vigilncia das instalaes mdicas israelitas disse Bernard. Vejam.
Depois, explicarei melhor.
No ecr, um rapaz estava sentado numa cama de hospital. Vestia uma fina bata de
internado que prendia nas costas. Enquanto observavam, o rapaz limpou as lgrimas dos
olhos, depois levantou-se e arrastou o suporte de soro at janela. Encostou a cabea ao
vidro e olhou a noite l fora.
Erin sentiu pena do rapaz ambos os pais tinham morrido nos seus braos e agora
estava encurralado, sozinho, num hospital militar. Ficou feliz por Rhun ter dispensado
alguns minutos a falar com o rapaz, confortando-o, antes de tudo ter acontecido.
Subitamente, uma outra figura pequena surgiu ao lado do rapaz, junto janela. O
rosto do recm-chegado estava de costas para a cmara. Aparecera do nada, como se
algum tivesse cortado parte do vdeo.
O estranho vestia um fato escuro de casaco e calas. Thomas recuou, claramente
assustado. Num movimento demasiado rpido para seguir, uma faca cintilou luz. O
rapaz agarrou-se garganta, com o sangue a esguichar, ensopando-lhe a bata de hospital.
Erin encolheu os ombros, mas no desviou o olhar do ecr. Jordan puxou-a para
mais perto de si, confortando-a. Ele j vira a sua quota-parte de derramamento de sangue
e assassnio de crianas no Afeganisto e sabia como era duro assistir a tal crueldade.
No ecr, Thomas cambaleara para longe do estranho e arrancara uma srie de fios que
tinha ligados ao peito. Luzes dispararam nas mquinas ao lado da cama. O rapaz estava a
tentar chamar ajuda.
Astuto.
Dois soldados israelitas entraram de rompante no quarto, de armas em riste.
O estranho lanou uma cadeira contra a janela, agarrou em Thomas e atirou-o pela
janela fora antes que os soldados pudessem abrir fogo.
Pela velocidade do atacante, s podia ser um strigoi.
O estranho voltou-se para encarar os soldados, mostrando finalmente o rosto. Parecia
ser tambm um rapaz, com no mais de catorze anos. Esboou uma pequena vnia antes
de saltar tambm pela janela.
Qual a altura da queda? perguntou Jordan, observando os soldados a correrem
para a janela e comearem a disparar para baixo em silncio.
Quatro andares respondeu o cardeal.
Ento o Thomas deve estar morto observou Jordan. No pode ser o Primeiro
Anjo.
Erin no estava to certa. Olhou para Bernard, enquanto este sussurrava a Leopold. Se
Thomas estivesse morto, porqu perder tempo a mostrar aquele vdeo?
O rapaz sobreviveu queda explicou o cardeal, apontando para o ecr.
Um outro ficheiro de vdeo surgiu, este de uma cmara do parque de estacionamento,
ao nvel do solo.
Visto daquele ngulo, Thomas caiu pelo ar, a bata de hospital ensopada em sangue a
esvoaar em volta do corpo como asas, antes de cair de cabea no asfalto negro. Estilhaos
de vidro partido cintilaram e danaram em seu redor.
Enquanto eles observavam, o rapaz mexeu-se, claramente vivo.
Uma frao de segundo depois, o estranho de fato aterrou, de p, ao lado dele.
Agarrou em Thomas por um brao e correu com ele em direo ao deserto,
desaparecendo rapidamente de vista.
Acreditamos que o raptor era um strigoi, provavelmente ao servio da Belial
acrescentou o cardeal. Mas sabemos com toda a certeza que a criana que sobreviveu a
Massada no era strigoi. Foi encontrado luz do sol. E as mquinas hospitalares israelitas
mostraram que tinha batimento cardaco.
Tambm o ouvi confirmou Rhun. Segurei-lhe a mo. Tinha calor. Ele estava vivo.
Mas nenhum humano sobreviveria a tal queda disse Leopold, impressionado,
ainda teclando velozmente, como se procurasse respostas.
Erin vislumbrou uma caixa de texto a ser aberta, uma mensagem enviada, depois
fechada de novo. Tudo to rpido, em menos de dois segundos, que no conseguiu
perceber uma nica palavra.
Mas o Thomas sobreviveu disse Jordan. Tal como em Massada.
Como se estivesse sob algum tipo de proteo divina. Erin tocou o ombro de
Leopold. Mostre-me o primeiro vdeo de novo. Quero ver o rosto do atacante.
O monge aquiesceu.
Quando o estranho se voltou para a cmara, Leopold parou a imagem e ampliou-a. O
raptor tinha um rosto atraente, oval, com sobrancelhas escuras, uma mais erguida do que
a outra. Tinha olhos claros, cabelo escuro e curto, penteado de risco ao lado.
No lhe parecia familiar, mas Rhun e Bernard retesaram-se ao reconhec-lo.
Alexei Romanov disse Bernard.
Erin deixou que o choque ecoasse por ela.
O filho do czar Nicolau II...
Rhun fechou os olhos, visivelmente amargurado com um sbito entendimento.
Deve ter sido por isso que Rasputine desistiu do Evangelho de Sangue to
facilmente, em So Petersburgo. J tinha posto em movimento o plano para raptar o
rapaz. Estava envolvido num jogo totalmente diferente do nosso, mantendo as cartas bem
escondidas na manga. Devia ter suspeitado na altura.
Falam dos Romanov interrompeu a condessa. No meu tempo, a famlia real
russa perdeu o poder e foi exilada para o Norte. Regressaram ao trono?
Reinaram de 1612 a 1917 esclareceu Rhun.
E a minha famlia? A condessa inclinou-se para diante. O que lhes aconteceu?
Tambm regressmos ao poder?
Rhun abanou a cabea, parecendo relutante em dizer mais.
Nadia, pelo contrrio, estava mais do que disposta a estender os ramos da rvore
genealgica da condessa, a suprir a histria perdida.
Os seus filhos foram acusados de traio pelos crimes da me, despojados dos seus
bens e exilados da Hungria. Durante uma centena de anos, foi proibido mencionar o seu
nome na sua terra natal.
A condessa levantou o queixo uns milmetros, mas no deu qualquer outro sinal de
se importar. Porm, algo no seu olhar quebrou, quando virou o rosto, revelando um
poo de dor por detrs da postura fria, um vislumbre da sua anterior humanidade.
Erin mudou de assunto.
Ento, Rasputine raptou o rapaz. Mas porqu? Com que fim?
Ningum respondeu, mas no os censurou, recordando o seu prprio encontro com
Rasputine. O monge era arguto, calculista e totalmente egocntrico. Para adivinhar as
intenes perversas do Monge Louco da Rssia, s algum igualmente louco.
Ou, no mnimo, uma alma gmea.
A condessa agitou-se e olhou em volta.
Presumo que o fez porque vos odeia a todos.
CAPTULO 15
Rhun agiu primeira alterao no ar, ao primeiro sinal da exploso. Cavalgou a onda
da detonao, enquanto o tempo abrandava para a espessura de vidro liquefeito.
Lanou-se sobre a mesa, deitando ambos os braos em torno de Erin e embateu na
janela fechada com o ombro. A grossa cortina enrolou-se no seu corpo enquanto ele
chocava contra ela. O vidro cortou-lhe os braos e as costas. As chamas e o rugido
despejaram-no no mundo.
Sob os seus ps, quando saltou, a carruagem expandiu-se, dilatando-se
impossivelmente at a casca se fender e fumo e fuligem e madeira irromperem numa
imensa exploso.
Atirado para cima, Rhun voltou o corpo de lado e embateu no cho a rolar, um brao
em torno das costas de Erin, o outro puxando-lhe a cabea para junto do seu peito. Rolou
com Erin pelo restolho de um campo cultivado que ladeava os trilhos.
A breve fragrncia da erva seca foi rapidamente calcinada pelo odor amargo e gredoso
dos explosivos, o arranhar do carvo e o inconfundvel cheiro da carne humana
queimada.
O comboio explodira.
Algum, talvez todos, poderiam ter morrido.
Nos seus braos, Erin arquejava e tossia.
Contudo, ela estava viva e isso deixou-o bastante mais feliz do que deveria.
Passou as mos pelo corpo dela, procurando ossos partidos, sangue. Encontrou
arranhes, alguns cortes e pisaduras. Nada mais. Os seus dedos entrelaados nos dela,
querendo tranquiliz-la, sentindo o choque a roubar-lhe o calor do corpo.
Puxou-a mais para si, protegendo-a.
S ento se virou para trs, para encarar o desastre espalhado pelos campos.
Fragmentos de metal enegrecidos de fuligem trespassavam a erva amarelecida,
juncavam os carris e espalhavam-se pelos campos que ardiam em fogo lento. Pedaos
negros da mquina a vapor tinham sido projetados para longe da via. A caldeira jazia a
uma centena de metros adiante, o buraco aberto no seu bojo metlico escancarado ao cu.
Retalhos de fogo devoravam os campos, enquanto fragmentos de vidro choviam do
alto, como granizo cristalino, misturado com sangue. Recordou a citao bblica do
Apocalipse: Saraiva e fogo, misturados com sangue, foram lanados sobre a terra.
Seria a isso que assistia agora?
Poeria e fumo erguiam-se dos trilhos. Um pedao de metal aterrara a poucos passos,
o vapor a sibilar onde a superfcie ardente tocava a erva hmida.
Um apito agudo soava-lhe ininterruptamente aos ouvidos. Com uma mo, sacudiu o
vidro das vestes e arrancou estilhaos do seu outro brao. Ainda envolvendo Erin,
perscrutou em volta, mas nada se mexeu.
O que acontecera aos outros?
Tocou o rosrio e rezou pela sua segurana.
Finalmente, soltou Erin. Ela sentou-se na erva, os braos em torno dos joelhos. Os
seus membros estavam sujos de lama e sangue. Ela afastou o cabelo da testa. O rosto
estava intocado, protegido como estivera enquanto a segurara junto ao seu corpo.
Est ferida? perguntou-lhe, consciente de que falava muito alto, para se fazer ouvir
por cima do apito que tinia nos seus ouvidos.
Ela estremeceu e ele quis tom-la de novo nos braos e acalm-la, mas a fragrncia do
sangue exalava do seu corpo e no ousou faz-lo.
Em vez disso, os olhos argnteos dela encontraram os seus. Ele olhou-os
profundamente, pela primeira vez desde que a deixara no cho do tnel a morrer, meses
antes.
Os lbios dela formaram uma nica palavra.
Jordan.
Ela ergueu-se com esforo e cambaleou em direo aos carris. Ele seguiu-lhe no
encalo, esquadrinhando os destroos, querendo estar por perto quando ela o
encontrasse.
Ele no via como o soldado podia ter sobrevivido... como algum podia ter
sobrevivido.
12h37
12h47
Rhun viu Erin agarrar-se ao soldado. O primeiro pensamento dela fora para Jordan,
como deveria ser. De igual modo, Rhun tinha as suas responsabilidades.
Onde est a condessa? perguntou a Christian.
Ele abanou a cabea.
Quando a carruagem explodiu, vi-a ser projetada para fora com a Nadia.
Para a luz do sol.
Christian apontou para l dos destroos centrais.
A trajetria t-las-ia lanado para o lado mais distante da linha.
Rhun fitou Erin e Jordan.
Vo disse Erin. Ajudou Jordan a sentar-se e comear a pr-se de p, vacilante.
Encontramo-nos junto do cardeal Bernard.
Liberto daquela responsabilidade, Rhun partiu com Christian. O jovem sanguinista
corria pelo terreno, saltando sobre valas, ligeiro como um potro. Parecia no ter sido
afetado pela exploso, ao passo que Rhun tinha dores em todo o corpo.
Uma vez para l da linha frrea, Christian disparou subitamente para a esquerda,
talvez detetando alguma coisa. Rhun esforou-se por segui-lo.
Sada do pano de fumo, uma figura esguia vestida de preto coxeava na direo deles.
Nadia.
Christian alcanou-a primeiro e abraou-a com fora. Ele e Nadia tinham servido
juntos em misses anteriores para a Igreja.
Rhun alcanou-os finalmente.
Elisabeta?
A condessa demonaca ainda vive. Nadia apontou um monte, a uns cem metros de
distncia. Mas est gravemente queimada.
Ele correu para junto do seu corpo encoberto.
Christian seguiu-o com Nadia, pondo-a a par da situao da equipa.
E Leopold? indagou Nadia.
A expresso de Christian ensombrou-se.
Ele estava na locomotiva, mais perto da exploso.
Continuarei a procur-lo disse Nadia. Vocs os dois podem cuidar de Sua
Majestade. Preparem-na para partir.
Enquanto Nadia andava em direo ao fumo, Rhun percorreu o resto da distncia at
Elisabeta. Nadia cobrira Elisabeta com o manto de viagem da condessa. Ajoelhou-se junto
ao montculo, sentido o cheiro a carne queimada.
Rhun tocou a superfcie do manto.
Elisabeta?
Um gemido respondeu-lhe. Foi tomado por um sentimento de piedade. Elisabeta era
lendria pela sua capacidade de suportar a dor. Para estar reduzida quilo, a agonia devia
ser tremenda.
Ela vai precisar de sangue para sarar Rhun disse a Christian.
No lhe vou oferecer o meu disse Christian. E voc no tem nenhum para
dispensar.
Rhun inclinou-se sobre o manto. No ousava levant-lo para examinar a extenso dos
ferimentos. Porm, deslizou uma mo sob a capa e encontrou a mo dela. Apesar da dor
que lhe devia causar, ela apertou-lhe os dedos, agarrando-se a ele.
Levar-te-ei para um lugar seguro, prometeu ele.
Fitou os cus do meio-dia, o azul vivo mascarrado de fumo.
Para onde poderiam ir?
12h52
Rhun carregava Elisabeta por uma passagem escura, que cheirava a madeira e vinho
envelhecido. Aquela zona dos nveis subterrneos do castelo servira, em tempos, como
adega pessoal do papa. Alguns compartimentos h muito esquecidos ainda abrigavam
grandes pipas de carvalho ou filas de garrafas verdes carregadas de p.
Seguiu Nadia por mais um lano de escadas, em direo ao piso reservado sua
ordem. Sentia os braos a tremer, enquanto segurava Elisabeta. Bebera um rpido gole de
vinho consagrado, a bordo do helicptero. Fortificara-o o suficiente para fazer aquela
viagem ao subsolo, mas a fraqueza ainda o atormentava.
Por fim, depois de percorrer uma passagem de pedra escavada no leito vulcnico,
Nadia estacou numa arcada emparedada a tijolo, um aparente beco sem sada.
Eu posso pagar a penitncia ofereceu Rhun.
Nadia ignorou-o e tocou quatro tijolos, um junto cabea, um junto ao estmago e
um junto a cada ombro formando uma cruz.
Depois, pressionou a pedra do centro e sussurrou palavras proferidas pelos
membros da sua ordem, desde o tempo de Cristo.
Tomai e bebei todos.
O tijolo central deslizou para trs, revelando uma minscula bacia escavada no tijolo
de baixo.
Nadia desembainhou a sua adaga e espetou a ponta no centro da palma da sua mo,
no lugar onde outrora os pregos foram cravados nas mos de Cristo. Colocou a mo em
concha, at conter vrias gotas do seu sangue, depois verteu a poa carmesim na bacia de
pedra.
Nos braos de Rhun, Elisabeta ficou tensa, provavelmente sentindo o odor do sangue
de Nadia.
Ele recuou alguns passos, permitindo que Nadia terminasse.
Pois este o clice do meu sangue prosseguiu ela , do novo e eterno Testamento.
Com a ltima palavra da prece, fendas surgiram entre os tijolos da arcada formando
os contornos de uma estreita porta.
Mysterium fidei concluiu Nadia e empurrou.
A pedra a raspar contra o tijolo, enquanto a porta girava para o interior.
Nadia deslizou para dentro primeiro e ele seguiu-a, tomando cuidado para no bater
com o corpo de Elisabeta nas paredes de ambos os lados. Transposto o limiar, Elisabeta
descontraiu nos seus braos. Devia ter percebido que estava, agora, bem fundo no
subsolo, onde o sol no a poderia atingir.
A delgada silhueta de Nadia deslizava adiante, revelando a gil velocidade e fora de
membros que possua, em comparao com ele. Passou apressadamente alm da entrada
para a capela sanguinista do castelo, conduzindo Rhun a um domnio raramente
trespassado as celas.
Ele seguiu-a. Por muito graves que fossem as suas feridas, Elisabeta continuava a ser
uma prisioneira.
Embora as celas raramente fossem usadas nestes tempos, o cho de pedra estava
polido e reluzente dos sculos de botas que por ali tinham passado. Quantos strigoi
teriam sido ali aprisionados e sujeitados questo? Tais prisioneiros entravam como
strigoi e ou aceitavam a proposta de se juntarem aos sanguinistas ou morriam ali como
almas danadas.
Nadia alcanou a cela mais prxima e abriu uma porta de ferro macia. Os pesados
gonzos e robusta tranca eram suficientemente fortes para conterem at os mais poderosos
strigoi.
Rhun carregou Elisabeta para o interior e pousou-a sobre a solitria enxerga. Ele
sentiu o cheiro da palha fresca e dos lenis novos. Algum preparara o quarto. Ao lado
da cama, uma vela de cera de abelha repousava sobre a tosca mesa de madeira, lanando
uma luz tremulante pela cela.
Vou buscar unguentos para tratar as queimaduras disse Nadia. seguro deix-
lo sozinho com ela?
Primeiro, a indignao cresceu dentro de si, mas controlou-a. Nadia estava certa em
preocupar-se.
Sim.
Satisfeita, ela desapareceu, a porta fechando-se com estrondo atrs de si. Ele ouviu a
chave rodar na fechadura. Nadia no corria riscos.
Agora a ss, sentou-se ao lado de Elisabeta na enxerga e, suavemente, moveu o manto
para expor as delicadas mos. Estremeceu vista do lquido que vertia das bolhas
rebentadas, a pele por baixo destas em carne viva. Sentiu o calor que lhe irradiava do
corpo, como se quisesse expulsar a luz do sol.
Ele retirou o resto do manto, mas ela desviou-se, a cabea escondida no capuz da sua
capa de veludo.
No quero que me vejas o rosto disse ela, a sua voz rouca e spera.
Mas eu posso ajudar-te.
A Nadia que o faa.
Porqu?
Porque e desviou-se mais ainda o meu aspeto ir repugnar-te.
Achas que isso me importa?
A mim importa murmurou ela, as suas palavras pouco mais sonoras que o
flego.
Honrando o seu desejo, ele no moveu o capuz e tomou uma das mos queimadas
dela na sua, notando que a palma estava intacta. Imaginou-a a cerrar as mos em agonia,
enquanto o sol a engolia com o seu fogo. Ele encostou-se aos tijolos de pedra e
descansou, continuando a segurar-lhe a mo.
Os dedos dela fecharam-se, lentamente, sobre os dele.
Um cansao profundo penetrou-o at medula. A dor disse-lhe onde fora ferido
laceraes nos ombros, escoriaes nos braos, algumas queimaduras nas costas. Os
olhos comeavam a fechar-se, quando uma brusca pancada soou na porta. Uma chave
rodou na fechadura e os gonzos chiaram.
Nadia entrou no compartimento. Semicerrou os olhos, ao ver a mo de Rhun
entrelaada na de Elisabeta, mas nada disse. Transportava uma taa de barro coberta com
um pano de linho acastanhado. O odor fluiu pela cela, inundando o espao.
O corpo dele acelerou e Elisabeta rosnou ao seu lado.
Sangue enchia aquela taa.
Sangue quente, fresco, humano.
Nadia devia t-lo colhido de algum voluntrio entre o pessoal do castelo.
Cruzou o espao at enxerga e passou-lhe a taa.
Ele recusou-se a tom-la.
Elisabeta prefere que seja voc a tratar-lhe as feridas.
Nadia arqueou uma sobrancelha.
E eu prefiro no o fazer. J lhe salvei a sua real vida. Nada mais farei.
Ela soltou um cantil de couro e estendeu-lho.
Vinho consagrado para si. Quer tom-lo agora ou depois de atender a condessa
Bathory?
Ele pousou o frasco na mesa.
No a vou deixar sofrer mais.
Ento, virei busc-lo mais tarde.
Ela retrocedeu para a porta e saiu de novo, voltando a trancar a cela.
Um gemido de Elisabeta relembrou-lhe a sua misso.
Mergulhou o pano de linho na taa, ensopando-o generosamente no sangue. O odor
frreo penetrava-lhe as narinas, mesmo sustendo a respirao. Para se fortalecer contra o
desejo que se agigantava no seu ntimo, tocou a cruz peitoral e murmurou uma prece para
ganhar foras.
Depois, pegou na mo que segurara e fez deslizar o pano por ela, o tecido raspando-
lhe a pele.
Ela arquejou, a voz abafada pelo capuz.
Magoei-te?
Sim sussurrou ela. No pares.
Ele lavou-lhe uma mo, depois a outra. Onde tocava, as bolhas regrediam e a pele
ferida sarava. Terminado isso, estendeu por fim a mo para a borda do capuz.
Ela agarrou-lhe o pulso com os seus dedos manchados de sangue.
No olhes.
Sabendo que no podia faz-lo, puxou o capuz para trs, revelando primeiro o queixo
alvo, manchado de fuligem e encarniado do ardor. Os seus lbios macios tinham gretado
e sangrado. O sangue secara em regatos escuros pelos cantos da boca.
Ele retesou-se e retirou de uma vez o capuz. A luz da vela recaiu sobre os seus ossos
malares salientes. Onde antes a lmpida e alva pele o cativara ao toque, via agora uma runa
enegrecida e empolada, tudo coberto por uma camada de fuligem. As suaves ondas do seu
cabelo quase tinham desaparecido por completo, consumidas pelo sol.
Os seus olhos argnteos encontraram os dele, as crneas enevoadas, quase cegas.
Contudo, ele leu a o medo.
Sou repugnante para ti, agora? perguntou.
Nunca.
Ele ensopou o pano e levou-o ao seu rosto devastado. Mantendo o toque leve, passou-
o pela fronte, pelas faces, pela garganta. O sangue cobria-lhe a pele, impregnava-se nas
bolhas e tingia-lhe a zona nvea sob o queixo.
O cheiro inebriava-o. O seu calor excitava-lhe os dedos frios, aquecia-lhe as palmas
das mos, incitando-o a sabore-lo. Todo o seu corpo ansiava por isso.
S uma gota.
Passou de novo o pano pelo rosto dela. A primeira passagem quase s lavara a
fuligem. Agora, ele tratava a sua pele arruinada. Lavou-lhe o rosto, uma e outra vez,
contemplando em assombro a cada passagem, vendo a runa dissipar-se e surgir
lentamente pele imaculada. Um campo de caracis negros ganhou raiz, cobrindo-lhe o
escalpe com a promessa de um novo florescimento. Mas era o seu rosto que o encantava,
to perfeito como no dia em que por ela se apaixonara, num roseiral h muito morto,
beira de um castelo agora em runas.
Delineou os lbios dela com o pano macio, deixando para trs um delicado brilho de
sangue. Os seus olhos argnteos abriram-se para ele, lmpidos de novo, mas agora
enevoados de desejo. Inclinou-se sobre os lbios dela e esmagou-os contra os seus.
O gosto do fogo carmesim espalhou-se pelo seu corpo, to rpido como um fsforo
lanado em erva seca. Ela entrelaou os dedos hmidos de sangue no seu cabelo,
abraando-o numa nvoa de fome e desejo.
A boca dela abriu-se sob o seu beijo e ele perdeu-se no cheiro, no sangue, na macieza
dela. Ele no tinha tempo para brandura e ela no a pediu. Ele esperara tanto para a ela se
unir de novo, e ela a ele.
Naquele momento, jurou exercer vingana implacvel sobre quem a lanara ao fogo
do sol.
Mas at l...
Caiu sobre ela, deixando o fogo e o desejo queimarem todo o pensamento.
CAPTULO 19
Enterrado fundo no gigantesco fardo de feno, Leopold procurou uma posio mais
confortvel. A palha penetrava a roupa e macerava-lhe as leves queimaduras. Contudo,
no ousava abandonar aquele abrigo.
Quando o comboio explodira, ele saltara para longe, cavalgando a onda de detonao
por uma larga extenso de campos cobertos de restolho. Por mera interveno divina,
estava do lado oposto da caldeira, quando esta rebentara. O reservatrio metlico sofreu o
embate da exploso, salvando-o de ser incinerado na hora.
Em vez disso, fora cuspido para fora da carruagem. Revoluteara pelo ar, queimado e
ferido, e resvalara pela lama fria dos campos invernosos. Atordoado e ensurdecido,
rastejara para um fardo de feno para se esconder, pensar, planear.
No sabia, ento, se seria o nico sobrevivente.
Enquanto esperava, estancara o sangue que brotava das suas muitas feridas. Por fim,
quando o retinir nos seus ouvidos se desvaneceu, ouviu o som ritmado de um
helicptero a aterrar, abafado pela palha que o rodeava.
No sabia se a aeronave tinha sido convocada pelo cardeal ou se assinalava a chegada
de equipas de resgate. Fosse como fosse, manteve-se escondido. Embora no tivesse sido
ele a detonar a bomba, sabia que era culpado pelo ataque. Assim que enviara uma
mensagem ao Damnatus, a inform-lo de que estavam todos a bordo, para alm de
partilhar a teoria relativa identidade do Primeiro Anjo, o comboio explodira
apanhando Leopold totalmente de surpresa.
Talvez devesse t-lo esperado.
Quando o Damnatus detetava a presa que queria, entrava a matar.
Nunca hesitava.
Depois de o helicptero levantar voo e se afastar, ouviu o cardeal Bernard a chamar o
seu nome, a dor palpvel na sua voz. Leopold queria correr para ele, mitigar o seu
sofrimento, pedir o seu perdo e reunir-se verdadeiramente aos sanguinistas.
Mas, evidentemente, no o fez.
Embora brutal, o objetivo do Damnatus era justo e puro.
Na hora seguinte, mais helicpteros chegaram, seguidos de veculos de emergncia
com sirenes, gritos de homens e o retumbar de passos. Encolheu-se mais no feno. A
agitao encobriria quaisquer sons que produzisse na sua penitncia.
Finalmente, pde beber o vinho sagrado e sarar.
Com alguma dificuldade, libertou o seu cantil de couro e levou-o aos lbios.
Servindo-se dos dentes, desenroscou a tampa, cuspiu-a fora, e bebeu sofregamente,
deixando que o fogo o levasse para longe.
Nas profundezas da cidade de Dresden, Leopold ajoelhava-se numa cripta hmida,
iluminada por uma solitria vela. Desde que soara a sirene de ataque areo, ningum ousava
acender uma luz, com receio de atrair a ira dos bombardeiros britnicos sobre si.
Enquanto escutava, uma bomba explodiu ao longe, o estrondo sacudindo pedras soltas do
teto. A igreja que ficava por cima tinha sido atingida semanas antes. Apenas aquela cripta fora
poupada, a sua entrada escavada a partir de dentro pelos sanguinistas que a viviam.
Leopold estava ajoelhado entre dois outros homens. Tal como ele, eram ambos strigoi,
preparando-se para tomar os votos finais de sanguinistas, naquela escura e violenta noite. Diante
dele, estava um sacerdote sanguinista, envergando belas vestes e segurando um clice de ouro
nas mos alvas e puras.
Um dos strigoi ao seu lado estremeceu. Teria receio de que a sua f no fosse forte o
suficiente, que o seu primeiro gole do sangue de Cristo fosse o ltimo?
Chegada a sua vez, Leopold inclinou a cabea e enumerou os seus pecados. Tinha muitos.
Na sua vida mortal, fora um mdico alemo. No incio da guerra, ignorara os nazis, resistira-
lhes. Mas o regime acabou por recrut-lo e envi-lo para os campos de batalha, para tratar de
jovens soldados dilacerados por armas e bombas ou assolados pela doena, pela fome e pelo frio.
Numa noite invernosa, uma cruel matilha de strigoi atacou a sua pequena unidade nos
Alpes Bvaros. Os enregelados soldados lutaram com fuzis e baionetas, mas a batalha no
durara mais de uns poucos minutos. Na primeira investida das bestas, Leopold ficara ferido,
com a coluna fraturada, incapaz de se mover ou lutar. Apenas podia assistir ao massacre,
sabendo que a sua vez se seguiria.
Ento, um strigoi do tamanho de uma criana arrastara-o pelas botas para uma floresta
deserta e fria. Morrera a, o seu sangue abrindo buracos na neve branca conspurcada. Durante
todo esse tempo, a criana cantara com uma voz lmpida e aguda uma msica popular alem.
Deveria ter sido o fim da vida miservel de Leopold, mas o rapaz decidira transform-lo num
monstro.
Debateu-se contra o sangue que lhe era vertido na boca at que a repugnncia se tornou
nsia e beatitude. Enquanto Leopold bebia, a criana continuou a cantar.
No final, o tempo de guerra era um paraso para os strigoi.
Para sua grande vergonha, Leopold entregara-se ao banquete.
Ento, um dia, encontrou um homem que no podia morder. Os seus instintos diziam-lhe
que uma gota do sangue desse homem o mataria. O estranho intrigava-o. Como mdico, queria
compreender os segredos daquele outro. Assim, procurou-o, noite aps noite, vigiando-o
durante semanas antes de ousar dirigir-lhe a palavra. Quando, finalmente, confrontou o
estranho, o homem escutou as palavras de Leopold e entendeu a repugnncia por aquilo em
que se tornara.
Por sua vez, o estranho confessara-lhe o verdadeiro nome, um nome to amaldioado por
Cristo, que Leopold ousava ainda apenas pensar nele como o Damnatus. Nessa altura, ele
ofereceu a Leopold um caminho para a salvao, uma forma de servir Cristo em segredo.
Fora isso que o levara quela cripta sob Dresden.
Ajoelhado, enumerando os seus pecados, ao lado dos outros.
Leopold recebera instrues para procurar os sanguinistas e imiscuir-se no meio deles, mas
continuando a ser os olhos e ouvidos do Damnatus na ordem.
Jurara obedincia na altura como devia jurar de novo naquela noite.
Mais uma bomba caiu superfcie, sacudindo fragmentos do teto da cripta. O penitente
sua esquerda gemeu. Leopold permaneceu em silncio. No receava a morte. Ele fora chamado
a um propsito maior. Cumpriria um destino estendido por milnios.
O penitente forou-se a recuperar o controlo, fez o sinal da cruz e terminou a sua litania
de pecados. Por fim, as suas palavras estancaram. Confessara os seus pecados a Deus. Agora,
poderia ser purificado.
Arrependes-te dos teus pecados por verdadeiro amor a Deus e no por receio da
condenao? entoou o sacerdote sanguinista ao companheiro de Leopold.
Sim, arrependo-me respondeu o homem.
Ento, levanta-te e enfrenta o julgamento.
O rosto do sacerdote mantinha-se invisvel debaixo do capuz.
O penitente ergueu-se, trmulo, e abriu a boca. O sacerdote ergueu o clice dourado e
verteu-lhe o plido vinho na lngua.
De imediato, o homem comeou a gritar, o fumo erguendo-se da sua boca. Ou a criatura
no se arrependera por completo ou mentira totalmente. Qualquer que fosse a razo, a sua
alma fora julgada maculada de pecado, pelo que o corpo no era digno de aceitar a sacralidade
do sangue de Cristo.
Era o risco que todos corriam ao aderirem ordem.
A criatura sucumbiu sobre o cho de pedra e contorceu-se, os seus guinchos ecoando pelas
paredes nuas. Leopold baixou-se para o tocar, para o acalmar, mas, antes que a mo o
alcanasse, o seu corpo desfez-se em cinzas.
Leopold disse uma prece pelo strigoi que quisera mudar de rumo, ainda que o seu corao
fosse impuro. Ajoelhou-se, ento, e juntou de novo as mos.
Terminou a sua prpria longa confisso e esperou pelo vinho. Se o seu percurso fosse
considerado digno, no arderia em cinzas diante daquele sagrado sanguinista. Se ele e aquele
que servia estivessem errados, uma simples gota de vinho revel-lo-ia.
Abriu a boca, deixando que Cristo fosse vertido no seu corpo.
E viveu.
Leopold regressou ao seu corpo trmulo, comprimido pelo aguado feno. Nunca
considerara a sua converso de strigoi em sanguinista como pecado, como algo que
exigisse penitncia.
Porque lhe enviara Deus aquela viso?
Porqu agora?
Por um angustiante momento, receou que fosse porque Deus sabia que a sua
converso fora feita sob falsos pretextos, que Leopold estava destinado a trair a ordem,
como o Damnatus trara Cristo.
Deixou-se ficar ali por muito tempo, ponderando tudo aquilo, depois engoliu os seus
medos.
No.
Tivera aquela viso, precisamente porque a sua misso era verdadeira.
Deus poupara-lhe a vida, ento, para servir o Damnatus e poupava-a de novo, agora.
Depois de o Sol se pr e as equipas de emergncia partirem naquela noite, deixaria o
fardo de feno a coberto da escurido e continuaria a sua misso, a todo o custo.
Porque Deus assim lho dissera.
CAPTULO 20
Sobre o rio Tibre, Judas puxava os remos para trs e o esguio barco de madeira
disparava ligeiro pelas guas. A luz do sol refletia-se do rio prateado e ofuscava-lhe o
olhar. Naquela altura tardia do ano, apreciava a sua luminosidade e calor declinante.
Um bando de corvos volteou adiante, desaparecendo entre os ramos nus de um
parque na margem, antes de se elevar contra o vivo cu de inverno.
Em baixo, mantinha o corpo a trabalhar ritmado, movendo-se ao longo do Tibre,
aumentando a cadncia ao cruzar a esteira de outro barco a passar. Embarcaes maiores
sulcavam o rio sua volta. O seu frgil casco de madeira poderia facilmente ser reduzido a
fsforos, em segundos. Naquela altura do ano, ele era o nico remador que enfrentava as
glidas temperaturas de inverno e o risco de ser abalroado por lanchas rpidas, ferries e
cargueiros.
O telemvel vibrou com mais uma mensagem de texto da rececionista.
Suspirando, soube o que dizia, sem sequer a ler. Vira-o nas notcias, antes de subir
para o barco. O comboio papal fora destrudo. S o cardeal sobrevivera. Todos os outros
tinham morrido.
Impeliu de novo os remos na gua.
Com a trindade proftica eliminada, nada se interpunha no seu caminho.
A ltima mensagem do irmo Leopold mencionara o Primeiro Anjo, aquele que
estava destinado a usar o livro como arma na Guerra dos Cus que se avizinhava. Com a
profecia quebrada, esse anjo no representaria provavelmente mais ameaa, mas Judas no
gostava de pontas soltas.
O capito de um ferry soou a sirene e Judas ergueu uma mo em saudao. O homem
endireitou o bon preto e acenou de volta. Cumprimentavam-se quase todos os dias, h
vinte anos. Judas vira-o crescer de franzino rapazola, incerto do seu comando, para um
imponente homem maduro. Porm, nunca lhe conhecera o nome.
Aprendera a entender a solido, enquanto via a famlia e os amigos morrerem.
Aprendera a manter a distncia dos outros, depois de geraes de amizades terem
terminado em morte.
Mas e esse rapaz imortal de que Leopold falara?
Thomas Bolar.
Judas queria-o. Negociaria com Rasputine, pagaria o que o monge exigisse e traria
aquela criana imortal para sua casa. O seu corao acelerou ante o pensamento de
conhecer outro como ele, mas tambm por conhecer o papel que o rapaz estava destinado
a desempenhar.
Ajudar a conduzir o mundo ao seu fim.
Era uma pena que no tivesse conhecido esse rapaz mais cedo na sua longa vida, para
ter algum com quem partilhar a interminvel sucesso dos anos, outro algum sem idade
e no sujeito priso do tempo.
Porm, tal oportunidade fora-lhe oferecida sculos antes e ele desperdiara-a.
Talvez esta seja a minha penitncia.
Enquanto puxava os remos, recordou a pele escura e os olhos ureos de Arella.
Lembrou a primeira viagem que fizera com ela, na noite em que se reuniram de novo no
baile de mscaras veneziano. Tambm nessa altura, manobrara um barco de madeira,
dirigira a embarcao para onde queria, nunca se dando conta do pouco controlo que
tinha.
A gndola deslizava sobre as guas serenas de um sombrio canal, as estrelas brilhando no
alto, uma lua cheia e chamativa. Enquanto impelia a embarcao pela leve nvoa, passando
junto de uma grandiosa casa veneziana, o fedor a excrementos e dejetos varreu a barca,
invadindo aquela agradvel noite como uma sombra sulfrea.
Fez uma careta ao ver o cano de esgoto vertendo tpido no canal.
Notando a ateno e expresso dele, Arella rira:
Esta cidade no suficientemente refinada para o seu gosto?
Ele gesticulou para os quartos acima repletos de riso e decadncia, depois para a imundcie
conspurcando as guas em baixo.
H maneiras melhores de se livrarem deste lixo.
E a devido tempo, encontr-las-o.
Eles encontraram-nas e perderam-nas.
A voz de Judas continha a amargura que adquirira ao assistir ao destino dos homens.
Ela arrastou os dedos longos e morenos pelo negro lacado do casco.
Fala das antigas maravilhas de Roma, quando a cidade estava no seu maior esplendor.
Ele impeliu a embarcao para longe das casas iluminadas, de volta sua estalagem.
Muito se perdeu, quando essa cidade caiu.
Ela encolheu os ombros.
Ser ganho de novo. A seu tempo.
Em tempos passados, os curandeiros de Roma sabiam curar doenas de que os homens
desta era ainda sofrem e morrem.
Ele suspirou por tanto que se perdera para aquela era de treva. Desejava ter estudado
Medicina, poder ter preservado tal conhecimento, depois de os livros terem sido queimados e os
homens sbios mortos pela espada.
Esta era passar asseverou Arella. E o conhecimento ser recuperado.
A luz prateada do luar brilhava no seu cabelo e ombros nus, deixando-o intrigado quanto
bela e misteriosa mulher diante de si. Depois de se descobrirem de novo, tinham danado
quase toda a noite, flutuando por soalhos de madeira, at se encontrarem ali ao despontar da
aurora.
Por fim, abordou o tema que estivera relutante em evocar toda a noite, receoso da resposta.
Arella...
Ele abrandou o curso do barco e deixou-o deriva pela nvoa, to livre como uma folha de
rvore.
S pelo meu nome conhece o meu pecado, o meu crime, e a maldio que me foi
imposta por Cristo, de viver eternamente. Mas como pode voc... o que que...?
Nem conseguia formular por completo a pergunta.
Contudo, ela compreendeu e sorriu.
O que lhe diz o meu nome?
Arella repetiu ele, deixando-o rolar para fora da lngua. um nome bonito. Antigo.
Em hebraico antigo, significa mensageiro de Deus.
E um nome apropriado disse ela. Carreguei frequentemente mensagens de Deus.
Tambm nisso somos semelhantes. Ambos servos dos cus, obrigados pelo nosso dever.
Judas fez um breve riso escarninho.
Ao contrrio de si, no recebi mensagens do alto.
E como desejava ter recebido. Uma vez desvanecida a amargura da maldio, perguntara-
se muitas vezes porque tal punio lhe fora imposta na carne, tornando-o incapaz de morrer.
Seria mero castigo pelo seu pecado ou teria algum propsito, um fim que ele ainda no
percebera?
afortunado disse ela. Eu teria aceitado de bom grado tal silncio.
Porqu? insistiu ele.
Ela suspirou e tocou o fragmento de prata que lhe pendia do pescoo.
Pode ser uma maldio ver vislumbres do futuro, saber de uma tragdia que vai
acontecer, sem saber como a afastar.
Ento, uma profetisa?
Fui, em tempos disse ela, os seus olhos escuros olhando de relance para a Lua no alto.
Ou, deveria dizer, em muitos tempos. No passado, usei o ttulo de Orculo de Delfos, de
Sibila da Eritreia, mas tive muitos outros nomes ao longo das eras.
Em choque, ele deixou-se cair no banco sua frente. Mantendo uma mo no longo remo
na gua, tomou a dela na sua outra mo. Apesar da noite fria, sentiu o calor que lhe irradiava
do corpo, bem mais quente do que o toque da maioria dos homens e mulheres, do que
qualquer humano.
Os lbios dela curvaram-se no j familiar meio sorriso.
Duvida de mim? Voc que viveu o tempo de ver o mundo mudar e voltar a mudar?
O mais extraordinrio era que no duvidava.
Enquanto a gndola deslizava silenciosamente ao luar, um meio sorriso desenhava-se nos
lbios dela, como se lhe conhecesse os pensamentos, adivinhando o que ele comeara a
suspeitar.
Ela esperou.
No pretendo saber tais coisas comeou ele, imaginando-a nos seus braos, danando
com ela. Mas...
Ela mexeu-se no lugar.
O que no pretende saber?
Ele sentiu o calor intenso da palma da mo e dos dedos.
A natureza de algum como voc. Algum que recebe mensagens de Deus. Algum que
resiste ao longo das eras. Algum de tal perfeio.
Ele corou ao dizer essas ltimas palavras.
Ela riu.
Ento, sou assim to diferente de si?
No seu ntimo, ele sabia que sim por natureza e por carter. Ela era a personificao do
bem, enquanto ele fizera coisas terrveis. Contemplou a maravilha diante de si, ciente de outro
nome para um mensageiro de Deus, um outro nome para Arella.
Forou-se a proferi-lo em voz alta.
um anjo.
Ela uniu as mos sua frente, como em orao. Lentamente, uma suave luz dourada
emanou do seu corpo. Inundou a gndola, a gua, o rosto dele. O calor desse toque inundou-o
de alegria e santidade.
Ali estava outro ser eterno mas ela no era como ele.
Enquanto ele era o mal, ela era o bem.
Enquanto ele era escurido, ela era luz.
Ele fechou os olhos e bebeu desse esplendor.
Porque veio at mim? Porque est aqui?
Ele abriu os olhos e fitou a gua, as casas, a imundcie no canal, depois ela de novo
aquela beleza mpar.
Porque est na Terra e no no Cu?
A luz desvaneceu-se e ela pareceu de novo uma mulher comum.
Os anjos podem descer Terra. Ela olhou-o. Ou podem cair.
Sublinhou essa ltima palavra.
Caiu?
H muito acrescentou ela, lendo o choque e a surpresa no seu rosto. Juntamente com
a Estrela da Manh.
Era outro nome de Lcifer.
Judas recusava-se a acreditar que ela tivesse sido expulsa do Cu.
Mas sinto apenas bondade em si.
Ela fixou-o, os seus olhos pacientes.
Porque caiu? insistiu ele, como se fosse uma pergunta simples numa simples noite.
No pode ter feito mal.
Ela baixou o olhar para as mos.
Mantive o meu conhecimento do orgulho de Lcifer escondido no meu corao. Previ a
sua rebelio, contudo fiquei em silncio.
Judas procurou imaginar tal acontecimento. Ela ocultara a Deus uma profecia relativa
Guerra dos Cus e, por isso, fora expulsa.
Arella levantou a cabea e falou de novo.
Foi um castigo justo. Mas ao contrrio da Estrela da Manh, no desejei mal
humanidade. Decidi usar o meu exlio para cuidar do rebanho de Deus aqui, para continuar a
servir os Cus como pudesse.
Como serve os Cus?
Como posso. Ela sacudiu um gro de p da saia. O meu ato mais grandioso foi
durante a sua era, quando protegi o Cristo criana do mal, zelando por ele quando ainda era
beb, indefeso neste mundo cruel.
Judas baixou a cabea envergonhado, recordado de como falhara em fazer o mesmo,
quando Jesus era mais velho. Judas trara no apenas o Filho de Deus, mas, tambm, o seu mais
querido amigo. Sentiu de novo o peso da bolsa de moedas de prata que os sacerdotes lhe tinham
dado, o calor da face de Cristo sob os seus lbios, quando o beijou para o assinalar ao carrasco.
Incapaz de afastar o cime da voz, indagou:
Mas como protegeu Cristo? No compreendo.
Apareci a Maria e Jos em Belm, pouco depois de Cristo ter nascido. Disse-lhes o que
antevira, o sacrifcio dos inocentes pelo rei Herodes.
Judas engoliu em seco, conhecendo a histria, reconhecendo de novo quem com ele
partilhava o barco.
o anjo que lhes disse para fugirem para o Egito.
Tambm os conduzi a, levando-os para onde o filho pudesse crescer protegido do mal.
Judas compreendia, agora, quo diferente ela era de si.
Ela salvara Jesus.
Judas matara-o.
A respirao tornou-se opressiva. Tinha de se levantar de novo, de se mover. Recomeou a
impelir lentamente a gndola pelo canal, tentando imaginar a vida dela ali na Terra, uma
extenso de tempo bem mais longa do que a sua curta existncia.
Por fim, colocou-lhe outra questo, igualmente importante para si.
Como suporta o tempo?
Passo por ele, tal como voc. Tateou de novo o fragmento pendente do pescoo. Por
tempos indefinidos, servi a humanidade como vidente, profetisa, orculo.
Ele imaginou-a nesse papel, envergando as simples vestes de uma sacerdotisa dlfica,
partilhando palavras profticas.
Contudo, j no o faz?
Ela olhou para alm das guas escuras.
Ainda vejo vislumbres ocasionais do que est para vir, do tempo que se estende minha
frente, to certo quanto o que est para trs. No posso evitar tais vises. Uma linha de mgoa
desenhou-se entre as sobrancelhas. Mas j no as partilho. Conhecer essas profecias trouxe
mais sofrimento do que satisfao humanidade, pelo que mantenho tais futuros em segredo.
A estalagem surgiu por entre a nvoa. Manobrou a gndola em direo ao cais de pedra.
Uma vez de travs, dois homens de libr apressaram-se a amarrar o barco. Um deles estendeu
uma mo enluvada bela senhora. Judas amparou-a com uma mo encostada curva das
costas.
Ento, sombras surgiram da escurido mais acima e aterraram no cais, tomando a forma
de homens mas no eram homens. Ele vislumbrou os dentes afiados, os rostos plidos e
selvagens.
Muitas vezes lutara contra tais criaturas e muitas vezes perdera. Porm, com a sua
imortalidade, acabava sempre por sarar e o seu sangue impuro sempre os destrua.
Puxou Arella para trs de si, no barco, deixando as bestas apanharem os homens do hotel.
Ele no os podia salvar, mas talvez pudesse salv-la a ela.
Balanou o longo remo como uma clava, enquanto as belas mos de Arella lutavam com as
cordas que os amarravam ao cais. Uma vez soltas, ele impeliu a gndola para longe. Inclinou-se
sobre um dos lados, depois endireitou-se.
Mas no eram suficientemente rpidos.
As criaturas saltaram sobre a gua. Era uma distncia impossvel para um homem, mas
fcil para essas bestas.
Sacou de um punhal da bainha na sua bota e espetou-o fundo no peito da maior de duas
criaturas. Sangue glido espalhou-se pela sua mo e pelo brao, ensopando-lhe a elegante camisa
branca.
Nenhum homem teria sobrevivido ao golpe, mas a criatura mal abrandou, derrubando-lhe
o brao e arrancando o punhal do seu prprio corpo.
Atrs dele, a segunda besta tinha deitado Arella por terra e rastejava pelo seu corpo macio.
No sussurrou ela. Deixe-nos.
Arrancou o fragmento de prata do pescoo e passou o seu gume afiado pela goela da
criatura.
Um guincho irrompeu-lhe da garganta rasgada, seguido de chamas que rapidamente
varreram aquele corpo maldito. Inteiramente em chamas, lanou-se escurido fria do canal,
mas apenas cinzas caram gua, o corpo j totalmente consumido.
Ao v-lo, a besta maior saltou alto, alcanando a margem prxima e partiu na direo da
cidade escura.
Arella mergulhou o fragmento no canal e limpou-o saia.
Ele escrutinou a prata nas mos dela.
Como?
um pedao de lmina sagrada explicou ela, pendurando-o de novo ao pescoo.
Mata qualquer criatura que penetre.
O corao de Judas acelerou.
Poderia matar o que no podia ser morto como ele?
Ou ela?
A mgoa atravessou o rosto dela, como se lhe tivesse lido os pensamentos, confirmando o
que ele acabara de imaginar. Ela carregava o instrumento da sua prpria destruio em volta
do delgado pescoo, uma forma de escapar quela priso de anos infinitos. E pela expresso dela,
devia ter-se sentido violentamente tentada a us-lo, em certos momentos.
Ele compreendia esse desejo. Por incontveis anos, procurara pr fim sua vida,
suportando indescritvel dor nessas tentativas. Porm, continuava a viver. O simples direito
morte era garantido a todas as outras criaturas. Mesmo as bestas que ali tinham combatido,
podiam simplesmente caminhar para a luz do dia e acabar com a sua existncia pecaminosa.
O seu olhar recaiu de novo sobre a prata reluzente entre os seios dela, sabendo que a morte
que desejara por tanto tempo estava prxima. Bastava agarr-la.
Em vez disso, estendeu a mo e pegou na mo dela, puxando-a para ele, para os seus lbios.
Beijou-a, feliz por estar vivo.
Sobre o Tibre, no cintilar do sol do meio-dia, Judas rememorou esse momento, esse
beijo na escurido. A mgoa cresceu dentro de si, sabendo o que se seguiria, que aquela
relao terminaria to mal.
Talvez devesse ter agarrado no fragmento e no na mo dela.
Nunca soube onde ela o obtivera, nem nada mais sobre aquela lmina sagrada. Afinal,
cada qual tinha segredos a guardar.
Tateou o bolso do peito e retirou uma pedra glida, da dimenso e forma de um
baralho de cartas. Era feita de um cristal verde-claro, como uma esmeralda, mas bem no
centro apresentava uma mancha, um veio negro-bano. Ergueu a pedra contra o sol,
revirando-a de vrios lados. A marca negra tremulou luz, refluindo para um pequeno
ponto, mas presente. Uma vez devolvido o cristal s sombras do bolso, a mancha
cresceria de novo.
Como uma coisa viva.
S que aquele mistrio medrava na escurido, no na luz.
Ele encontrara a pedra nos anos que se seguiram a Arella, depois de descobrir porque
percorria aquele longo caminho na Terra. Durante esse tempo obscuro da sua vida,
perdera-se no estudo da alquimia, ensinado pelos pares de Isaac Newton e Roger Bacon.
Aprendera imenso, inclusive a animar as suas criaturas automatizadas, a manipular o
poder contido no seu sangue.
Encontrara o cristal ao procurar a mtica pedra filosofal, uma substncia que se dizia
garantir a vida eterna. Esperara que lhe fornecesse uma pista para a sua prpria
imortalidade. Desenterrara o cristal debaixo da pedra angular de uma igreja em runas.
Afinal, no era a pedra filosofal, mas algo bem mais poderoso, ligado morte e no
vida imortal. Passou o polegar pela marca escavada na parte inferior da pedra. Depois de
anos a estudar o smbolo e a pedra, descobrira muitos dos seus segredos mas no
todos.
Porm, sabia que, nas mos certas, aquela singela pedra verde poderia perturbar o
equilbrio da vida na Terra. Durante sculos, esperara pelo momento certo para libertar
esse mal no mundo, para terminar a misso pela qual fora colocado na Terra.
Guardou a pedra no bolso e fitou o Sol.
Por fim, era chegado o momento.
Mas, primeiro, tinha de amarrar dois anjos.
Um do passado, outro do presente.
CAPTULO 21
Jordan espreguiou-se debaixo dos lenis, cada parte do seu corpo nu em contacto
com o corpo de Erin. Ela murmurou no sono e ele puxou-a para mais perto de si.
Como sentira a falta dela.
Uma pancada na porta acordou Erin, assustando-a claramente. Sentou-se de sbito. O
cabelo louro varreu-lhe os ombros e a coberta caiu do peito nu. luz esbatida que
entrava pela janela entaipada, ela era bela.
Procurou-a, incapaz de se conter.
Christian falou do outro lado da porta, em tom divertido.
Tm quinze minutos. Por isso, terminem o que comearam... ou comecem o que
quiserem terminar. Seja qual for o caso, foram devidamente avisados.
Obrigado! respondeu Jordan, sorrindo a Erin. Sabes que pecado mortal
desobedecer ordem direta de um sacerdote.
De certa forma, no me parece que tal seja verdade contraps ela, com um sorriso
descontrado e apontando, depois, o chuveiro e a promessa de gua quente, sabo e pele
nua. Mas, para o bem das nossas almas, talvez seja melhor jogar pelo seguro.
Ele sorriu-lhe, levantou-a nos braos e levou-a para a casa de banho.
Quando Christian voltou a bater porta, estavam ambos de banho tomado, vestidos e
equipados com as novas armas. Apesar das feridas e pisaduras, Jordan no se sentia to
bem h muito.
Uma vez no corredor, Christian levou um dedo aos lbios e passou a cada um deles
uma pequena lanterna.
Para que ser isto?, perguntou-se Jordan.
Porm, confiava o suficiente em Christian para no questionar as aes do homem.
Jordan e Erin seguiram-no at ao fim da passagem, por uma srie de escadas abaixo e por
um longo tnel sem luz.
Jordan ligou a sua lanterna e Erin fez o mesmo.
Christian imps um passo esgotante ao longo da passagem. Parecia escavada no leito
rochoso natural e estendia-se, pelo menos, por um quilmetro e meio. Por fim, Christian
alcanou uma porta de ao e estacou. Introduziu dgitos num teclado eletrnico e deu um
passo atrs. A porta girou silenciosamente para dentro. Tinha cerca de 30 cm de espessura
e, provavelmente, conseguiria suportar a detonao de uma bomba.
A radiosa luz do dia inundou a passagem escura.
Jordan sentiu a fragrncia de pinheiros e terra argilosa.
Devia ser uma sada de emergncia, possivelmente destinada a pr rapidamente o papa
a salvo em caso de ameaa ao castelo.
Christian transps o limiar, gesticulando para se manterem prximos.
Inquieto com tanto subterfgio, Jordan ergueu a espingarda automtica, mantendo
Erin entre si e Christian. Ele queria-a protegida de todos os lados.
Entraram numa densa floresta de rvores perenes. Fazia frio naquela estufa sombria.
medida que caminhavam, o hlito ficava suspenso no ar parado. Um tapete de agulhas
de pinheiro cadas abafava o som dos seus ps.
Erin correu at cima o fecho do bluso de pele de lobo.
Mesmo esse som subtil foi demasiado ruidoso para aquela floresta silenciosa.
Mais frente, trs figuras saram das sombras. Enquanto Christian relaxava, Jordan
mantinha o pulso firme sobre a espingarda. Depois viu que era Nadia, conduzindo Rhun
e Bathory. Ou pelo menos presumiu que fosse a condessa, j que a mulher estava velada
da cabea aos ps contra o sol. Mas a algema de prata ligada a um dos seus delgados
pulsos deixava pouca dvida de que se tratava de Bathory. A outra algema estava presa a
Rhun.
Os sanguinistas no corriam riscos com a condessa.
Pessoalmente, Jordan preferia estar algemado a uma cobra.
Nadia fez sinal a Jordan para trs do macio tronco de um pinheiro para uma reunio
privada. Era enervante que ningum falasse. Apertou brevemente o cotovelo de Erin,
deixando-a com Christian, e depois seguiu Nadia.
Uma vez fora de vista, Nadia puxou para fora uma nica folha de papel grossa,
dobrada e selada com lacre vermelho, exibindo a insgnia de uma coroa e duas chaves
cruzadas.
O selo papal.
Com uma longa unha, ela quebrou o selo e desdobrou o papel para revelar um mapa
de Itlia traado mo. Uma linha azul partia de Castel Gandolfo para norte, terminando
prximo de Roma. Inclua indicaes rodovirias numricas e um plano temporal.
Nadia ergueu um isqueiro e fez brotar uma chama, pronta a queimar o papel, de
olhos postos nele.
Claramente, esperava que ele memorizasse o mapa.
Suspirando sem emitir som, memorizou as indicaes rodovirias e temporais. Uma
vez terminado, olhou nos olhos dela.
Ela imitou o gesto de guiar e apontou para ele.
Parece que terei de guiar.
Ela levou o isqueiro pgina. Chamas amareladas lamberam o espesso papel,
reduzindo-o a cinzas. O propsito de toda aquela pantomina era claro. Jordan e Nadia, e
quem quer que tivesse escrito a nota provavelmente o cardeal eram os nicos
autorizados a conhecer o destino e rota.
No iam dar ao bombista outra oportunidade de os eliminar a todos.
Com o assunto resolvido, Nadia conduziu-o de volta a onde os outros aguardavam.
Uma vez todos juntos, atravessaram a floresta em direo a um parque de
estacionamento. Havia apenas dois veculos estacionados a: um SUV Mercedes preto com
vidros escurecidos e uma moto Ducati, igualmente preta, com linhas que gritavam
velocidade.
Ele contemplou desejosamente a mota, mas sabia que iria ficar com o SUV.
Comprovando-o, Nadia lanou uma perna sobre o motociclo e ergueu uma
sobrancelha na sua direo. Ele sorriu, recordando a louca corrida pela Baviera, alguns
meses antes. Nunca se sentira to assustado ou inflamado. Os seus reflexos sobrenaturais
permitiam-lhe conduzir a mquina a velocidades que no imaginara possveis.
Mas no ia ser assim naquele dia.
Ela atirou-lhe as chaves do SUV, antes de ligar a moto e arrancar com estrpito.
O grupo de Jordan encaminhou-se para o SUV. Rhun ajudou a condessa a subir para
trs, flanqueada do outro lado por Christian. Jordan segurou a porta do passageiro da
frente para Erin. No estava disposto a deix-la sentar-se no banco de trs com Rhun e a
condessa.
Mesmo o banco da frente era demasiado perto desse par.
15h14
Enquanto o veculo subia veloz uma estrada de alcatro preto e suave, Elizabeth
cerrou o punho da mo no algemada. Os automveis aterrorizavam-na. Em Roma, fugira
do seu revoltante odor, dos motores roncantes. No tinha qualquer desejo de se
aproximar de nenhum deles e agora estava dentro de um.
Era bastante como uma carruagem do seu tempo, s que as carruagens nunca foram
to rpidas. Nunca um cavalo galgara o cho a um tal ritmo. Como que o soldado o
conseguia controlar? Ela sabia que o veculo era um dispositivo mecnico, como um
relgio, mas no conseguia evitar pensar que os iria cuspir para fora daquele casulo de
couro, arrojando os seus crebros de encontro estrada dura.
Vigiou o corao dos humanos no banco da frente, usando-os como forma de avaliar
potencial perigo. Naquele momento, ambos os coraes batiam a um ritmo lento,
tranquilo. No receavam aquela besta expetorante e roncante.
Fez os possveis por imitar as suas emoes.
Se eles no mostravam medo, tambm no se podia permitir faz-lo.
medida que os minutos passavam, o terror inicial desvaneceu-se, dando lugar a um
simples tdio. A faixa negra de estrada desenrolava-se diante dela com uma misteriosa
monotonia. rvores, localidades e outros automveis passavam de ambos os lados, sem
serem notados, sem se fazerem notar.
Uma vez amansado o receio, os seus pensamentos voltaram a Rhun. Recordou-se dele
a segurar-lhe a mo, dos seus lbios na garganta dela. No era to desprovido de paixo e
dedicado Igreja quanto aparentava no agora e no outrora. Chegara de novo muito
perto de quebrar os seus votos na cela.
Ela sabia que no era simples sede de sangue.
Ele desejava-a.
Ainda me ama.
De toda a estranheza daquele mundo moderno, essa era a que mais a assombrava.
Pensava nisso agora, ciente de que esperaria pela oportunidade certa para tirar partido da
situao.
Para se libertar.
Talvez para os libertar a ambos.
O automvel passou por um alinhamento de casas italianas rsticas. Em algumas
janelas, vislumbrou gente movendo-se no interior. Invejava-lhes a simplicidade da
existncia mas tambm reconhecia como eram reprimidos, encurralados pela durao
de um tempo de vida, vivendo vidas de fragilidade, para sempre desgastados pelo passar
dos anos.
Como eram criaturas frgeis e fugazes, aqueles humanos.
Depois de mais um tempo de conduo, o automvel penetrou num vasto campo
revestido do mesmo material rijo da estrada e parou ao lado de uma estrutura de metal
gigante, com imponentes portas abertas.
O soldado rodou a chave e o roncar do automvel calou-se.
Que lugar este? perguntou ela.
Rhun respondeu:
um hangar. Um lugar que abriga aeronaves.
Ela assentiu. Sabia o que eram aeronaves, tendo visto frequentemente as suas luzes no
cu noturno de Roma. No seu pequeno apartamento, estudara atentamente fotografias
delas, fascinada com os prodgios daquela era.
Nas sombras do hangar, vislumbrou um pequeno aeroplano branco com uma risca
azul no casco.
De uma porta lateral, Nadia surgiu, no topo de uma srie de degraus. As presas de
Elizabeth cresceram uma frao, o seu corpo recordando as incontveis pequenas
humilhaes a que a esguia mulher a sujeitara.
Rhun guiou Elizabeth para fora do automvel, os seus movimentos desajeitados pelas
ardentes correntes que os ligavam. Seguiram os outros pelas sombras profundas do
edifcio.
Nadia juntou-se-lhes.
Verifiquei minuciosamente a aeronave. segura.
Rhun voltou-se para Elizabeth.
Est suficientemente escuro aqui dentro. Se quiser, pode retirar o vu.
Feliz por poder faz-lo, ergueu a mo livre e afastou o pano. O ar fresco fluiu pelo seu
rosto e lbios, trazendo consigo o odor a pez e alcatro, e outros odores que eram acres,
amargos e queimados. Aquele era um tempo que parecia funcionar a fogo e leo
queimado.
Ela mantinha o rosto desviado das portas abertas. Mesmo a luz difusa do sol a feria,
mas fez o possvel por esconder a dor.
Em vez disso, observou o soldado enquanto este esticava as costas e fazia regressar o
sangue s pernas aps a viagem. Lembrava-lhe um garanho inquieto, solto depois de
estar preso num estbulo tempo demais. O ttulo Homem Guerreiro assentava-lhe
bem.
Ele mantinha-se perto da mulher, Erin Granger. Estava claramente enamorado por ela
e mesmo Rhun parecia mais atento presena da mulher do que agradava a Elizabeth.
Porm, Elizabeth tinha de admitir que a historiadora tinha uma certa graa atltica e
uma mente astuta. Num outro tempo, numa outra vida, poderiam ter sido amigas.
Nadia voltou a encaminhar-se para o aparelho.
Se quisermos chegar ao ponto de encontro no tempo previsto, temos de partir de
imediato.
O grupo seguiu-a pelas escadas acima e entrou na aeronave.
Encolhida no interior, Elizabeth olhou para a esquerda, para um pequeno
compartimento com duas minsculas cadeiras, janelas angulares e manivelas e botes
vermelhos e pretos.
o cockpit explicou Rhun. O piloto comanda o avio a partir da.
Ela viu o mais novo dos sanguinistas, aquele de nome Christian, tomar lugar ali
dentro. As capacidades dos sanguinistas pareciam ter-se adaptado quela nova era.
Virou costas e dirigiu-se ao espao principal. Requintados assentos de pele alinhavam-
se de cada lado da pequena aeronave, com uma estreita passagem pelo meio. Prestou
ateno s pequenas janelas, imaginando como seria ver o mundo do ar, as nuvens de
cima, as estrelas do cu.
Aquele era sem dvida um tempo de prodgios.
Os seus olhos vaguearam para l dos lugares e pousaram numa longa caixa negra ao
fundo, com pegas nas extremidades. A caixa era claramente de construo moderna, mas a
forma no mudara desde muito antes do seu prprio tempo.
Era um caixo.
Estacou to subitamente que Rhun colidiu com ela.
Perdo disse ele em voz baixa.
Os olhos dela no tinham deixado o caixo. Farejou. A caixa no continha nenhum
corpo ou t-lo-ia cheirado.
Porque est aqui?
Ento, Nadia sorriu e Elizabeth compreendeu de imediato.
Lanou-se para trs, embatendo bruscamente em Rhun. Com a mo esquerda, puxou-
lhe a lmina curva da bainha da manga. Num movimento rpido, desferiu-a na direo de
Nadia. Mas o alvo danou para trs, a lmina acertando-lhe no queixo, fazendo sangue.
Mas no o suficiente.
Elizabeth amaldioou a inpcia da sua mo esquerda.
Atrs dela, uma porta bateu. Voltou-se e viu que Christian enfiara os dois humanos
no cockpit por precauo. Sentiu-se lisonjeada por ele a considerar tamanha ameaa.
Apertou com mais fora a faca e enfrentou Nadia.
A mulher soltara uma extenso de corrente, aprontando-a como um chicote, e
empunhava uma espada curta na outra mo.
No! bradou Rhun, a sua voz ecoando no espao confinado.
Elizabeth manteve a posio. Recordou o sarcfago de onde irrompera para aquele
novo mundo. Relembrou a cela emparedada na torre do seu castelo onde morrera
lentamente fome. No seria de novo aprisionada, encurralada.
Da ltima vez que me puseste num caixo cuspiu a Rhun , perdi quatrocentos
anos.
s durante viagem prometeu Rhun. O avio viajar acima das nuvens. No
haver como escapar ao sol enquanto voamos.
Porm, sentia pnico s de pensar em ser encerrada de novo, incapaz de se controlar.
Lutou com a corrente de prata que a ligava a ele.
Prefiro morrer.
Nadia aproximou-se.
Se assim prefere.
Com um rpido golpe da sua curta espada, a mulher cortou a garganta de Elizabeth. A
prata queimou-lhe a pele e o sangue jorrou da ferida, tentando purgar a santidade do seu
corpo. Elizabeth parou de lutar, a lmina deslizando-lhe da ponta dos dedos. Rhun estava
l, aplicando-lhe uma mo sobre a garganta, contendo o sangue.
O que foi fazer? sibilou para Nadia.
Ela sobreviver respondeu Nadia. O corte superficial. Assim, ser mais fcil
met-la na caixa, sem lutas desnecessrias.
Nadia levantou a tampa articulada.
Elizabeth resmoneou, mas, mutilada pela prata, no tinha foras para mais.
Rhun ergueu-a nos braos e carregou-a at ao caixo.
Prometo vir tir-la daqui disse ele. Dentro de horas.
Baixou-a suavemente para o interior do caixo. Um estalido e a algema deixou-lhe o
pulso.
Ela quis sentar-se, lutar, mas no conseguiu reunir foras para isso.
A tampa fechou-se sobre a caixa e a escurido engoliu-a de novo.
CAPTULO 24
Com o sol posto h mais de uma hora, Leopold assombrava os limites da residncia
de vero do papa. O prprio terreno envolvente era mais extenso do que toda a Cidade do
Vaticano, oferecendo uma imensidade de lugares onde se esquivar, esconder e vigiar. De
momento, encontrava-se no cimo de uma das gigantescas azinheiras que cobriam a
propriedade, usando os ramos e grosso tronco para se manter escondido na penumbra.
A rvore erguia-se a poucos metros do edifcio principal.
Mais cedo, quando o sol se punha, ele rastejara para fora do fardo de feno. A coberto
da escurido, fora fcil esgueirar-se at barricada policial em torno dos destroos do
comboio. Os seus ouvidos detetavam facilmente os batimentos cardacos dos
investigadores da equipa de resgate, permitindo-lhe evit-los e fugir sem ser visto. Do
fardo de feno, ouvira o cardeal referir que ia para Castel Gandolfo, onde poderia chorar e
rezar pelas almas daqueles que tinham perdido a vida naquele dia.
Assim, Leopold seguira-o, depois de o Sol se pr, movendo-se com a celeridade
apenas possvel a um sanguinista, cruzando os vrios quilmetros at ao pequeno
lugarejo encimado pelo castelo papal.
Na ltima meia hora, observara a residncia distncia, circundando-a lenta e
totalmente. No se atrevia a chegar mais perto, receando que os sanguinistas no interior
sentissem a sua presena.
Mas com os ouvidos apurados, ele escutava muito do que se passava l dentro,
pedaos de conversas, os mexericos entre o pessoal. Pouco a pouco, foi-se inteirando do
que sabiam sobre os trgicos acontecimentos. Parecia que s o cardeal Bernard tinha
escapado com vida. A polcia encontrara os corpos dos maquinistas do comboio.
Leopold recordava-se de ouvir um helicptero chegar e partir, antes de as equipas de
resgate entrarem em cena. O cardeal devia ter recolhido os seus mortos. Bernard no
deixaria os corpos de sanguinistas carem nas mos da Polcia italiana. Leopold ouviu
mesmo uma criada referir um corpo, brevemente vislumbrado por ela, antes de Bernard
o levar para fora de vista para as entranhas do castelo.
Leopold mudou de posio no seu ramo e rezou pelas almas assassinadas. Ele sabia
que as mortes eram necessrias, para servir um propsito maior, mas chorava por Erin e
Jordan, e pelos colegas sanguinistas Rhun, Nadia e Christian. Mesmo o irascvel padre
Ambrose no merecera tal destino.
Agora, escutava os sons de uma missa fnebre, a rica e inconfundvel entoao italiana
do cardeal, mesmo quela distncia. Os lbios de Leopold moveram-se em orao para o
acompanhar, assistindo ele prprio missa do seu alto pouso na rvore. Todo o tempo,
procurara as vozes de Erin e Jordan, caso o pessoal estivesse enganado. Tentara captar o
seu batimento cardaco, por entre a tapearia de sons dos servidores humanos do papa.
Nada.
Apenas ouvia as preces do cardeal.
Quando a missa fnebre chegou ao fim, desceu da rvore e saiu dos terrenos,
dirigindo-se localidade prxima. Procurou e encontrou uma cabina telefnica discreta,
ao lado de uma estao de servio. Marcou um nmero que memorizara.
A ligao foi atendida de imediato.
Sobreviveste? exclamou o Damnatus, parecendo mais contrariado do que aliviado.
Mais algum?
Claro que essa seria a maior preocupao do Damnatus. Era evidente que receava que
se Leopold tinha sobrevivido, outros poderiam ter sobrevivido tambm, como a trindade
proftica. Leopold no esperava um pedido de desculpas por ter sido apanhado na
mesma armadilha embora julgasse merec-lo. Mas ambos sabiam que o caminho
seguido era o justo. Independentemente dos seus sentimentos, Leopold tinha de agir em
consonncia com o Damnatus, ainda que o homem quase o tivesse matado para atingir o
objetivo.
Ciente disso, Leopold explicou tudo o que soubera.
Pelo que consegui determinar, apenas o cardeal sobreviveu. Uma criada viu um
corpo a ser trazido dos destroos para aqui. Pode haver mais.
Volta ao castelo e averigua o que puderes sobre esse corpo ordenou o Damnatus.
Confirma que os outros esto mortos. Traz-me provas.
Leopold devia ter pensado nisso, mas entrar na residncia colocava-o em grande risco
de ser descoberto. Contudo, fez ao Damnatus a promessa.
Assim farei.
Minutos mais tarde, Leopold viu-se no porto secreto que conduzia ala subterrnea
do castelo reservada aos sanguinistas. Rezou para que ningum estivesse de guarda
porta. Uma vez a, golpeou a tenra carne da palma da sua mo e verteu algumas preciosas
gotas de sangue na antiga taa de pedra. Sussurrou as preces necessrias, depois
esgueirou-se pela entrada, quando esta se abriu.
Estacou no limiar e aguou os sentidos: escutando batimentos de corao, cheirando
a presena de outros, perscrutando cada recanto escuro.
Uma vez convicto de estar sozinho, Leopold abriu caminho at capela sanguinista.
Quaisquer corpos recuperados da exploso teriam sido trazidos para ali. Recordou-se do
funeral que escutara.
Receando que outros da sua ordem ainda circulassem por ali, tirou para fora a curta
lmina e apertou-a com fora. Matara muitos homens e strigoi na sua longa vida, mas
nunca matara outro sanguinista. Preparou-se para essa possibilidade.
Continuou silenciosamente pelo tnel final, inalando os familiares odores
subterrneos da terra hmida, excrementos de rato e um vestgio de incenso da missa
recente. Quando se aproximava da entrada da capela, abrandou os passos.
Preces apagadas fluram at ele, fazendo-o estacar.
Reconheceu a voz do solitrio enlutado.
O cardeal Bernard.
Leopold moveu-se at porta fechada e espreitou pelo minsculo culo. Para l de
uma fila de bancos corridos, um pano branco de altar cobria uma mesa de pedra,
iluminada por velas de cera de abelha em ambos os extremos. Um clice dourado erguia-
se no centro, cheio de vinho at borda.
A luz tremulante das chamas refletia-se das janelas de vitral engastadas nas paredes de
pedra de ambos os lados e de um caixo de bano deposto frente ao altar.
Reparou na singela cruz de prata afixa ao topo.
Era um caixo de sanguinista.
Sabia que o corpo no interior seria em breve embarcado para Roma e sepultado no
santurio sob a Baslica de So Pedro, o nico lugar na Terra suficientemente seguro para
guardar esses segredos.
Mas algum no estava ainda pronto para se despedir.
Bernard ajoelhava-se diante do caixo, a sua cabea branca inclinada, murmurando
oraes. Parecia diminudo, despido do seu alto estatuto de cardeal para uma mgoa
profunda e pessoal.
Ali confrontado com a prova fsica dos seus atos, a dor penetrou Leopold. Um
guerreiro da Igreja jazia morto e era como se fosse por obra direta das suas mos.
Embora tal morte ao servio da Igreja trouxesse a paz final a um sanguinista, Leopold no
encontrava consolo em tal pensamento.
As vestes escarlates de Bernard engelharam-se quando este se inclinou para diante e
pousou uma mo no pano lateral do caixo.
Adeus, meu filho.
Leopold imaginou os companheiros sanguinistas a bordo do comboio. Pelas palavras
finais de despedida do cardeal, devia ser Rhun ou Christian naquele caixo.
Bernard ergueu-se e deixou a capela, os ombros curvados pela dor.
Leopold recuou para um compartimento contguo, atulhado de pipas de vinho.
Esperou at que o som dos passos do cardeal se desvanecesse claramente ao longe, para
voltar capela vazia e entrar.
Moveu-se em direo ao caixo, as pernas pesando-lhe da mgoa e da culpa. Sabia que
o Damnatus desejaria que fosse Rhun naquele caixo, o profetizado Cavaleiro de Cristo. O
destino dos outros no era certo, mas Leopold suspeitava que no tivessem sobrado
restos suficientes para serem trazidos at ali.
Alcanando a urna, fez deslizar a mo pela sua superfcie suave e fria, murmurando
uma prece de expiao. Depois de terminada, susteve a respirao e olhou para o interior,
retesando-se.
Estava vazio.
Em choque, Leopold perscrutou a capela, procurando uma armadilha, sem encontrar
nenhuma.
Voltando de novo a ateno para a urna, viu que no estava inteiramente vazia.
Um simples rosrio repousava disposto com grande cuidado no fundo, as contas
claramente gastas, a pequena cruz de prata romba das dcadas de frico de um polegar
em orao. Imaginou Bernard a apanhar o rosrio da lama fria dos campos invernosos,
tudo o que restara do sanguinista que outrora o usara.
Leopold no precisou de lhe tocar para saber a quem pertencia.
Era-lhe to familiar quanto a sua prpria mo.
Era o seu prprio rosrio, perdido quando saltara do comboio.
Fechou os olhos.
Como ca fundo, Senhor...
Recordou Bernard to prostrado de pesar, to ferido de dor.
Por mim... um traidor.
Fechou a tampa do caixo e cambaleou para fora da capela, para fora do castelo.
S ento chorou.
TERCEIRA PARTE
SALMOS 147: 17
CAPTULO 25
20h38
21h11
Elizabeth corria pelo labirinto, arrastando Rhun pelas algemas de prata. Nadia seguia
atrs, a sua eterna sombra negra. Os adversrios humanos nunca poderiam superar a
velocidade sobrenatural do seu grupo. Elizabeth no deveria ter dificuldade em alcanar o
centro muito antes da erudita loura.
Embora pouco se importasse com as ambies dos sanguinistas, sabia que tinha de
vencer aquela competio. Se o cardeal Bernard decidisse que ela no era a Mulher Sbia, a
sua vida seria confiscada. Os dedos vaguearam de novo at ao leno macio que lhe cobria
a ferida na garganta. Era um golpe superficial, um relembrar da fragilidade da confiana
que a ordem nela depositava. Se a f de Bernard em si vacilasse, o prximo golpe seria
bem mais fundo.
Assim, estabeleceu um passo rpido, memorizando cada volta no escuro. No
precisava de luz, enquanto avanava velozmente. Mas a cada passo, a garganta recentemente
sarada doa-lhe do frio. O sangue de Erin reavivara-a, mas no o suficiente, nada que se
parecesse com o suficiente. Surpreendera-a que a mulher tivesse oferecido tal ddiva e
ainda mais que Erin reconhecesse a natureza gravosa do ataque dos sanguinistas sua
integridade.
A mulher era cada vez mais intrigante para ela. Elizabeth comeara at a compreender
o fascnio de Rhun por ela. Porm, isso no impediria Elizabeth de derrotar a humana
naquela misso.
As botas de Elizabeth trotavam pela neve, as suas pernas apressando-se em diante.
Ignorou as distraes pelo caminho, aquelas cmaras esculpidas para atrair o olhar e
excitar a imaginao. Apenas uma cmara lhe abrandara o passo. Era um espao que
albergava um carrossel de cavalos escala real, feito de gelo. Recordava-se de ter visto algo
assim em Paris, no vero de 1605, quando tais atraes comearam a substituir as antigas
justas medievais. Recordou o deleite no rosto do filho Paul ao ver os resplandecentes
trajes e corcis empinados.
Uma mgoa pela famlia perdida, pelos filhos h muito mortos e netos nunca
conhecidos, cresceu no seu ntimo.
Mas a dor e a raiva impeliam-na para a frente.
Continuando velozmente, espreitava pelas vrias janelas de gelo, cada qual
habilidosamente trabalhada, mas nenhuma fornecia pistas quanto direo a seguir. Nas
encruzilhadas, farejava o cheiro do frio e da neve, tentando encontrar no vento uma pista
do caminho correto.
Ento, do espao sua frente, chegou-lhe um vago ressoar, apontando uma presena
furtiva. Nenhum pulsar acompanhava o rudo.
Strigoi.
Devia estar prximo do centro do labirinto.
Concentrando-se nos sons, acelerou de novo o passo ento, algo lhe captou a
ateno pelo canto do olho. Algo congelado numa das janelas de vidro, como uma mosca
no mbar. Parou para o examinar, fazendo estacar Rhun, tambm.
Suspenso no meio do gelo, estava um objeto retangular do tamanho das suas duas
mos juntas. Um lustroso tecido negro envolvia-o estreitamente, atado por um cordo
escarlate sujo. Ela sabia o que continha.
O seu dirio.
O que est aqui a fazer?
Era suficientemente difcil imaginar que o livro tivesse sobrevivido aos estragos de
sculos. E ainda mais difcil conceber que algum o tivesse arrancado do seu esconderijo
e trazido at ali.
Porqu?
O tecido lustroso era um oleado. As pontas dos dedos recordaram a sua superfcie
viscosa e visualizou a primeira pgina to claramente como se a tivesse traado no dia
anterior.
Era um desenho de uma folha de amieiro, a par de um diagrama das suas razes e
caules.
Aquelas primeiras pginas tinham contido desenhos de ervas, listando as suas
propriedades, os segredos dos seus usos, os lugares onde se poderiam encontrar no
terreno do seu castelo. Ela prpria desenhara as plantas e flores e escrevera as instrues
com a sua melhor caligrafia, luz de velas, durante as longas horas de inverno. Mas no
se detivera por a, recordando quando os seus estudos se tornaram mais obscuros, tal
como o corao que Rhun obscurecera.
Elizabeth escrevera a ltima nota enquanto a jovem camponesa morria diante de si, o
sangue brotando de uma centena de golpes. Elizabeth julgara-a mais forte do que isso.
Calculara mal a morte da rapariga e o resultado revelara-se um fracasso. Sentiu uma pontada
de impacincia, mas recordou-se de que mesmo tais fracassos lhe traziam conhecimento.
Atrs dela, uma outra rapariga choramingava na sua cela. Seria a prxima vtima, mas o
seu destino poderia esperar pelo dia seguinte. Como que pressentindo-o, a rapariga encarcerada
aquietou-se, pondo os braos em volta dos joelhos e embalando-se.
Elizabeth escrevinhou observaes luz da lareira, registando cada pormenor quo
rapidamente a primeira rapariga morrera, quanto tempo podia esperar antes de tornar
semelhante vtima num strigoi, quanto tempo levava at cada vtima sucumbir nesse estado.
Elizabeth fazia experincias continuamente, com diferentes raparigas.
Lenta e cuidadosamente, aprendia os segredos de quem era, do que era.
Tal conhecimento s a tornaria mais forte.
Elizabeth ergueu a mo para tocar o gelo. No pensara voltar a ver o seu dirio.
Escondera-o no castelo quando o seu julgamento se iniciara. Continha mais de seiscentos
nomes, muito mais raparigas do que as que fora acusada de matar. Guardara-o em
segurana nas profundezas do castelo, debaixo de uma pedra to macia que nenhum
mortal a poderia levantar.
Mas algum o fizera.
Provavelmente, a mesma pessoa que o trouxera para aquele labirinto, que ali o deixara
para ela encontrar.
Quem? E porqu?
O que est a fazer? perguntou Rhun, notando o seu interesse.
O livro meu disse ela. Quero-o de volta.
Nadia impeliu-a para a frente.
No temos tempo para essas distraes.
Elizabeth recuou para a janela de gelo, marcando posio. Ela queria-o de volta. O seu
trabalho ainda podia ser de valor.
Temos, sim insistiu ela, raspando a extremidade da algema pelo gelo, removendo
a camada superior. Eu sou a Mulher Sbia e eu decido como gastamos o nosso tempo.
Sou eu quem est a ser testada.
Ela tem razo acrescentou Rhun. Rasputine no quereria que interferssemos.
Ela deve sair-se bem ou fracassar por si mesma.
Ento, seja breve aquiesceu Nadia.
Rhun juntou a sua fora de Elizabeth. Juntos, rapidamente furaram o gelo cristalino,
at libertarem o livro. Com ambas as mos, Elizabeth arrancou o precioso dirio da sua
glida priso.
Quando o segurou, notou formas indistintas ao longe. Embora distorcidas pelo gelo,
as formas eram claramente mulheres e homens. Mais uma vez, no ouviu pulsaes.
Deviam ser os strigoi que pressentira antes.
Subitamente, compreendeu que no havia necessidade de continuar a seguir aquele
detestvel labirinto. Havia um caminho mais direto para a vitria. Lanando o brao livre
para trs, esmagou o cotovelo na janela de gelo, despedaando-a.
Estilhaos de gelo voaram pela neve suja do corao do labirinto.
Rhun e Nadia inclinaram-se ao seu lado, espreitando pela abertura.
Elizabeth regozijou-se no meio deles.
Ganhmos.
CAPTULO 27
21h24
21h44
Rhun olhou para Elisabeta e Erin, reconhecendo a cruel armadilha urdida por
Rasputine. O monge era uma aranha que tecia palavras para iludir e torturar. Sabia, agora,
que Rasputine viera ali tanto para o atormentar a ele, como pela absolvio prometida por
Bernard. O russo entregaria o rapaz, mas no antes de fazer Rhun sofrer.
Como posso escolher?
Mas com o destino do mundo em jogo, como poderia no o fazer?
Ele viu como as linhas de batalha tinham sido traadas na neve: strigoi de um lado,
sanguinistas do outro. Estes ltimos em inferioridade numrica, apanhados sem armas.
Mesmo alcanando a vitria, ambas as mulheres seriam provavelmente mortas ou o rapaz
seria rapidamente levado pelas foras de Rasputine durante a luta.
No silncio que se estendeu, um estranho intruso insinuou-se no espao, esvoaando
por entre os flocos de neve flutuantes, atravessando-se no meio dos dois pequenos
exrcitos. As suas asas verde-esmeralda captavam cada partcula de luz e refletiam-na. Era
uma enorme traa, muito bizarra naquela paisagem glacial. O ouvido apurado de Rhun
captou o tnue zunido vindo do interior, acompanhado pelo suave bater das asas
iridescentes.
Ningum se movia, cativados como estavam pela sua beleza.
Esvoaava mais perto dos sanguinistas, como que escolhendo um lado na batalha que
se avizinhava. Pousou no bluso de Nadia, no ombro, exibindo as extremidades das asas
em cauda de andorinha, as escamas esmeralda cobertas de um toque de prata.
Antes que algum pudesse reagir, exprimir-se quanto estranheza, mais criaturas
daquelas irromperam no espao, uma vindas das passagens a toda a volta, outras
descendo do alto com os flocos de neve.
Em breve, toda a cmara se agitava desses minsculos fragmentos de brilho, danando
pelo ar, pousando aqui e ali, batendo as asas.
O zunido que Rhun notara antes tornou-se mais evidente.
Rhun estudou a traa pousada em Nadia, notou a matiz metalizada em torno do
corpo.
Apesar das asas verdadeiras, aqueles invasores no eram criaturas vivas, mas
construes artificiais, criadas por mo desconhecida.
Mas de quem?
Como que em resposta questo, um homem alto penetrou no torreo de gelo pela
mesma entrada usada por Erin. Rhun ouvia agora o bater do seu corao, no o tendo
detetado antes no meio de toda aquela estranheza. Era um humano.
O homem usava um leno verde-claro e um casaco de caxemira cinzento, que lhe
chegava aos joelhos. Os tons realavam o cabelo grisalho e os olhos de um azul-
metalizado.
Rhun notou que Bathory estremeceu ao ver o homem, retesando-se ligeiramente,
como se o conhecesse. Mas como poderia? Ele era claramente humano, daquele tempo.
Teria encontrado o estranho durante os meses em que deambulara livre pelas ruas de
Roma? T-lo-ia chamado para a libertar? Se assim fora, o estranho dificilmente podia
esperar vencer contra os strigoi de Rasputine e os sanguinistas.
No entanto, no parecia minimamente nervoso.
Rasputine reagiu, tambm, chegada do homem com uma expresso ainda mais
incomodada do que Bathory. O monge afastou-se para a parede mais recuada, a sua
habitual expresso sinistramente divertida transformada em horror.
Rhun gelou.
Nada naquele mundo alguma vez perturbava Rasputine.
Sabendo-o, Rhun lanou um olhar circunspecto ao estranho. Moveu-se para se
colocar ao lado de Erin e do rapaz, pronto para os proteger dessa nova ameaa.
O homem falou, em ingls com um leve sotaque britnico, formal e estudado.
Vim pelo anjo proferiu com uma calma mortal.
Os outros sanguinistas postaram-se de cada lado de Rhun.
Jordan ajudou Erin a levantar-se, claramente preparando-se para fugir ou lutar. O
rapaz estava sentado na neve aos seus ps, aturdido da debilitao e da morfina, envolto
no bluso de pele de Jordan. Rhun sabia que Erin no deixaria o rapaz.
Por sua vez, os strigoi agruparam as suas pequenas formas diante de Rasputine,
formando um escudo entre ele e o homem misterioso, as suas armas apontadas ao
estranho.
O homem permaneceu imperturbado, de olhos postos em Rasputine.
Grigori, por vezes, demasiado astuto para seu prprio bem. O homem
gesticulou em direo ao rapaz. Encontrou um outro imortal como eu h meses e s me
alertou h horas...
Rhun esforava-se por compreender.
Um outro imortal como eu...
Fitou o homem. Como era possvel?
O estranho queixou-se tristemente.
Pensei que tnhamos um acordo no que toca a tais assuntos, tovarishch.
A boca de Rasputine abriu-se, mas no saiu nenhuma palavra.
Uma outra coisa rara para o monge de lngua afiada.
Christian e Nadia trocaram um rpido olhar com Rhun, confirmando a mtua
confuso. Nenhum deles sabia nada daquele homem, daquele presumvel imortal.
Bathory limitava-se a observar, com uma pequena linha calculista entre as
sobrancelhas. Sabia algo, mas mantinha-se em silncio, claramente disposta a ver como o
caso se desenrolaria antes de reagir.
Os olhos do homem encontraram os dela e um sorriso cordial suavizou-lhe o
semblante gelado.
Ah, condessa Elizabeth Bathory de Ecsed pronunciou formalmente. Continua
to bela como quando a vi pela primeira vez.
Reconheo que tambm se mantm inalterado retorquiu ela. Contudo, ouo o
bater do seu corao e no consigo compreender como tal possvel, uma vez que nos
conhecemos h muito tempo.
Ele entrelaou as mos atrs das costas, transpirando descontrao. Respondeu-lhe,
mas as palavras dirigiam-se a todos.
semelhana de si, sou imortal. Ao contrrio de si, no sou strigoi. A minha
imortalidade foi uma ddiva de Cristo em sinal do meu servio Sua pessoa.
Atrs dele, Erin arquejou.
Rhun tambm no conseguiu evitar o choque no seu rosto.
Porque concederia Jesus a imortalidade quele homem?
Nadia falou, fazendo uma nova pergunta.
Que servio foi esse que prestou? insistiu ela. O que fez para que Nosso Senhor
o abenoasse com a eternidade?
Abenoasse? escarneceu ele. Sabe melhor do que ningum que a imortalidade
no uma bno. uma maldio.
Rhun no podia argumentar contra aquilo.
Ento, porque foi amaldioado?
Um sorriso desenhou-se-lhe nos lbios.
So duas perguntas ocultas numa s. Primeiro, pergunta o que fiz para ser
amaldioado. Segundo, porque me foi dado tal castigo?
Rhun queria as respostas a ambas.
Como que lendo a sua mente, o sorriso dele alargou-se.
A resposta primeira fcil. A segunda foi uma questo que me atormentou
durante milnios. Tive de cruzar muitos sculos por esta Terra antes que a verdade do
meu desgnio se tornasse evidente.
Ento, responda primeira instou Rhun. O que fez para ser amaldioado?
Ele enfrentou o olhar de Rhun, imperturbvel.
Tra Cristo com um beijo no Jardim do Getsmani. Certamente conhece a histria
bblica, padre.
Nadia arquejou, enquanto Rhun vacilava de horror.
No podia ser.
Nesse silncio atnito, Erin avanou, como que encarando a verdade da impossvel
existncia daquele homem.
E porque lhe foi imposta essa punio, essa eternidade?
O Traidor de Cristo voltou-se para Erin.
Pelas minhas palavras, expulsei Cristo deste mundo. Pelos meus atos, irei traz-lo
de volta. esse o desgnio da minha maldio. Abrir os portes do Inferno e preparar o
mundo para o Seu regresso, para a Segunda Vinda de Cristo.
Para seu horror, Rhun compreendeu.
Ele tenciona desencadear o Armagedo.
CAPTULO 28
Erin debatia-se com o peso da histria que se agigantava diante de si, para impedir
que esse peso a reduzisse imobilidade. Se aquele homem falasse a verdade e no fosse
alguma alma iludida, diante de si estava Judas Iscariotes, o homem mais infame de toda a
histria, o traidor que enviara Cristo para a cruz.
Ela ouvira a sua confisso, o seu objetivo de acabar com o mundo.
E acredita que esse o seu desgnio? desafiou-o. Acredita que Cristo o colocou
nesse longo calvrio para orquestrar o Seu regresso?
Ao longe, ouviu-se o queixume de sirenes da polcia, relembrando-a daquele mundo
moderno, daquele tempo em que poucos acreditavam em santos e demnios. Contudo,
diante dela, estava um homem que alegava abarcar ambos. Se ele falasse a verdade, os seus
olhos teriam testemunhado os milagres de Cristo, os seus ouvidos teriam escutado as
Suas parbolas e lies, aqueles mesmos lbios teriam beijado Jesus no Jardim do
Getsmani, condenando o Cristo morte.
As sirenes tornaram-se mais fortes, aproximando-se deles.
Teria a sua invaso sido notada pelos vizinhos? Teria sido dado o alarme?
O olhar de Iscariotes voltou-se nessa direo, depois focou-se de novo neles.
O tempo da discusso acabou. Vou pegar no anjo e desaparecer daqui.
Pressentindo a ameaa por detrs das palavras, strigoi e sanguinistas prepararam-se
para a batalha.
Jordan puxou Erin para trs de si.
Iscariotes limitou-se a erguer o dedo indicador, como quem chama o empregado de
mesa mas em vez disso convocou o estranho bando que precedeu a sua chegada. O
esvoaar de traas no ar imobilizou-se sobre as foras ali reunidas.
Uma delas pousou na mo de Erin quando ela levantou o brao, protegendo-se de
toda a ameaa que aqueles fragmentos de brilho colocassem. Minsculas patas de cobre
danaram sobre a l da sua luva, at encontrarem um pedao de pele exposta na ponta da
manga. Uma diminuta probscide de prata atingiu-lhe a pele, penetrando profundamente.
Ela baixou o brao e agitou a mo da picada.
A traa desprendeu-se e, com um vagaroso bater de asas, voou para longe.
Que diabo?
Ela examinou a gota de sangue que se adensava no ponto da picada.
Jordan praguejou, dando uma palmada na parte de trs do pescoo, esmagando uma
traa que caiu na neve. Observou enquanto os outros eram similarmente atacados. Mas
ainda no conseguia entender a ameaa at que viu Olga afastar-se a cambalear do grupo
de crianas strigoi.
Asas verde-esmeralda agitavam-se sobre a sua face mida. Ento ela gritou, caindo de
joelhos. A traa ergueu-se do seu pouso no nariz da criana e voou para longe. Uma
corrupo negra iniciou-se na face, devorando-lhe rapidamente o rosto, expondo os
ossos, o sangue a fervilhar por entre as fissuras. O seu pequeno vulto convulsionava-se.
Mais membros do bando de Rasputine caram por terra, contorcendo-se, sucumbindo na
neve.
Erin fitou o ponto de sangue no seu pulso, percebendo o que acontecia.
Veneno.
As borboletas carregavam um tipo de material txico.
Friccionou o brao, mas continuava a no ser afetada.
Tal como Jordan.
Rasputine caiu entre o seu bando, no por ao do veneno, mas pela mgoa.
Para! gemeu.
Erin recordou-se de outra criatura que morrera por uma corrupo semelhante.
Recordou o lobo nos tneis sob o Vaticano. Ela matara a besta com balas tingidas do
sangue de Bathory Darabont. A mulher carregava alguma forma de veneno no seu sangue
que era mortal para os strigoi e mesmo para os sanguinistas.
Em pnico, voltou-se para Rhun, para os outros sanguinistas.
Nadia estava de joelhos, amparada por Christian, enquanto Rhun se batia contra a
tormenta cor de esmeralda em seu redor, usando o bluso de pele reforado como
escudo.
Erin apressou-se para eles, arrastando Jordan consigo.
Ajuda-os! incitou. Enquanto humanos, pareciam imunes ao veneno. Afasta as
traas!
Porm, recordou a primeira traa, as suas asas esmeralda pousando sobre Nadia.
Queima gemeu a mulher. Os seus dedos aferravam-se garganta enegrecida,
apertando como se pudesse deter o veneno.
Mas era intil. A negrura subiu-lhe s faces, consumindo-a embora se espalhasse
mais lentamente do que com os strigoi, parecia inevitvel.
Christian olhou impotente para Erin.
O que podemos fazer?
A resposta chegou-lhe do lado distante da tormenta.
Nada disse Iscariotes, escutando o apelo. A no ser v-la morrer.
O corpo de Nadia arqueou-se, entrando em convulso.
Algo atingiu Erin de lado. Um rapaz pequeno agarrava-se a ela, um dos strigoi, metade
do seu rosto desaparecido. As lgrimas corriam do seu nico olho. Ela baixou-se e
amparou-o, a sua pequena mo agarrando a dela, talvez sabendo que no podia salv-lo,
mas no querendo estar s. Ele levantou o olhar para ela, com o seu nico olho azul-cu.
Ela segurou-lhe firmemente as mos frias, at ele se imobilizar, a corrupo consumindo-
o por completo.
Erin olhou a neve em volta.
Nenhuma das crianas se movia agora e os seus corpos devastados cobriam a neve.
Nadia exalou um suspiro final depois imobilizou-se, sem vida.
Christian inclinou-se sobre ela, com os olhos cintilantes de lgrimas.
Erin soltou as minsculas mos do strigoi ou o que restava delas.
Obedecendo a algum sinal silencioso, as traas ergueram-se em torno deles, subindo
alto, mas mantendo a ameaa. Ela contou os poucos sobreviventes: Rasputine e os outros
sanguinistas. Suspeitava que apenas tinham sobrevivido porque o mestre das pequenas
criaturas assim o quisera.
Levantou-se e encarou Iscariotes.
Porqu?
Judas estendeu a mo e uma traa aterrou-lhe graciosamente na palma, as asas verde-
metalizadas abrindo e fechando.
uma lio para todos. Apontou o corpo de Nadia. Para provar aos
sanguinistas que a sua bno no os proteger da minha maldio, do meu sangue.
Ento, era o sangue conspurcado dele no interior dos insetos.
Erin assistiu, enquanto o corpo de Nadia se transformava em cinzas e ossos. A
destemida mulher salvara-lhe a vida inmeras vezes. No merecia uma morte to ignbil e
sem sentido.
E no fora s ela.
Rasputine gemia, de joelhos entre as suas crianas cadas.
Ento, para qu isto? Que lio me quer ensinar?
Nenhuma lio, Grigori. Apenas castigo. Por esconderes segredos de mim.
Os insetos rodopiavam mais baixo de novo, ameaadores. Um deles adejava sobre o
ombro de Rhun.
A mente de Erin disparou, pressentindo que Iscariotes no terminara com eles.
Evocou a impresso da palma da mo enegrecida na garganta de Bathory Darabont,
assinalando o seu sangue contaminado. Erin pressentiu que a palma da mo pertencia a
Iscariotes. Teria usado uma alquimia do seu prprio sangue para corromper o da
mulher, para a proteger entre os strigoi que comandara? Darabont servira a Belial, um
grupo de strigoi e humanos que trabalhavam em conjunto, manipulados por um mestre
desconhecido.
Erin visualizou de novo a impresso da palma da mo escura e olhou para Iscariotes.
Voc o lder da Belial.
As suas palavras chamaram-lhe a ateno.
Parece que o seu precedente ttulo de Mulher Sbia no era injustificado, doutora
Granger. Encarou os sobreviventes. Mas ainda no terminei aqui.
Antes que algum se pudesse mover, as traas desceram dos cus e cobriram os
sanguinistas, pousando sobre Rasputine e at mesmo sobre Bathory, demasiadas para
serem travadas. Quando eles comearam a debater-se de novo, Iscariotes gritou uma
ordem:
Parem! ameaou. Se resistirem, morrero todos! Reconhecendo a inutilidade
dos seus esforos, obedeceram, imobilizando-se. As traas esvoaaram, empoleirando-se
em ombros e membros.
No desejo mat-los a todos, mas matarei se a tal for obrigado.
Iscariotes mantinha o olhar fixo em Rhun, que permanecia ereto como uma
armadura, um verdadeiro Cavaleiro de Cristo.
Apontou um dedo a Rhun.
Agora, tempo de o Cavaleiro de Cristo se reunir sua irm de hbito. De deixar
este mundo em paz e ascender ao seu lugar nos cus.
Os olhos de Rhun fixaram-se nela, como que para se despedir.
Espere disse Erin. Por favor.
Iscariotes voltou-se para ela.
Erin tinha apenas uma carta a jogar, recordando as negociaes anteriores de
Rasputine com a Belial. Em So Petersburgo, o monge entregara o Evangelho de Sangue e
Erin a Bathory Darabont, mas apenas depois de obter dela uma promessa. Erin evocou as
palavras de Rasputine, da dvida jurada.
Prometo-lhe o livro em gesto de boa vontade... se um dia, em retorno, o seu mestre me
conceder a vida de quem eu escolher, um dia.
Assim fora acordado.
Erin voltou-se para Rasputine. Estaria o monge disposto a reclamar a dvida agora,
para salvar Rhun? Honraria Iscariotes a promessa? No tinha escolha, seno expor o seu
caso.
Encarou Iscariotes.
H dois meses, Rasputine fez um trato com as suas foras da Belial. Em troca da sua
cooperao, ser-lhe-ia concedida a vida de quem escolhesse. O pacto foi acordado.
Testemunhado por todos.
Iscariotes fitou Rasputine, ajoelhado entre os corpos das suas crianas. As lgrimas
corriam-lhe pelas faces, desaparecendo-lhe na barba. Apesar da crueldade, ele amara
aquelas crianas como um verdadeiro pai e vira-as morrer em agonia, vtimas da sua
prpria maquinao.
esse o seu desejo, Grigori? indagou Judas. Ir lanar esse vu de proteo
sobre Rhun Korza? a vida dele que ir reclamar?
Rasputine levantou a cabea para enfrentar o olhar do homem.
Por favor, desejou ela. Diz que sim. Salva uma vida esta noite.
O monge russo fitou longamente Iscariotes e ainda mais longamente Rhun. A dada
altura, ele e Rhun tinham sido amigos, trabalhando juntos enquanto sanguinistas.
Finalmente, Rasputine falou, a sua voz debilitada pela dor.
Demasiados foram os que morreram hoje.
Iscariotes suspirou, os lbios comprimindo-se de irritao.
Quebrei a minha palavra uma vez... e fui amaldioado por isso. Jurei no mais a
quebrar. E no o farei agora. Apesar do que possam pensar, no sou um cobarde.
Inclinou a cabea na direo de Rasputine. Honro a minha dvida e concedo-lhe o seu
desejo.
Erin libertou a respirao sustida, fechando os olhos.
Rhun viveria.
Iscariotes ergueu o brao e dois homens corpulentos entraram na cmara, um de
cabelo escuro, outro de cabelo claro. Eram ambos altos e de constituio macia, com
pescoos e braos grossos. Cruzaram o espao em direo ao rapaz, prontos a recolher o
prmio de Iscariotes.
Erin fez meno de os impedir, mas Jordan agarrou-lhe o brao.
No era uma batalha que pudessem vencer e qualquer agresso podia terminar com
os amigos mortos pelas traas.
O imponente par examinou o corpo inerte do rapaz com rspida ateno, arrancando
um queixume do seu vulto aturdido e drogado. Puseram-no de p, bruscamente.
O que quer dele? perguntou Erin.
No da sua conta.
Acho que o podemos transportar disse um dos homens. Perdeu muito sangue,
mas parece suficientemente forte.
Muito bem. Iscariotes estendeu uma mo em convite a Bathory. Quer
acompanhar-me?
Bathory endireitou-se.
Teria todo o prazer em retomar o seu conhecimento. Ergueu o brao, exibindo as
algemas. Mas, de momento, estou ligada a outro.
Libertem-na.
Christian hesitou, mas Rhun assentiu.
Faa como ele diz.
Ningum queria provocar mais o homem. Christian baixou-se, tateou no bolso de
Nadia e retirou uma pequena chave. A condessa estendeu a mo, como se exibisse uma
valiosa bracelete. Christian abriu as algemas.
Uma vez livre, Bathory encaminhou-se para junto de Iscariotes.
Agradeo, senhor, pela amabilidade que me demonstra agora e que sempre
demonstrou pela minha famlia.
Iscariotes mal lhe prestou ateno, o que provocou um nfimo crispar de irritao
nos lbios da condessa. Em vez disso, o homem sacou de uma imponente arma do bolso,
apontou-a e disparou.
Erin estremeceu com o estampido mas a arma no fora apontada a ela.
O aperto de Jordan no seu brao desfez-se.
Ele caiu na neve ao seu lado.
Gritando, ela caiu de joelhos junto dele. Uma mancha hmida espalhava-se pelo lado
esquerdo do peito. Ela abriu-lhe a camisa, revelando o ferimento de bala. O sangue
jorrava do buraco, atravessando as linhas azuladas da sua tatuagem de flor relmpago,
derramando-se pelo peito e formando um lago sob ele.
Ela pressionou as mos com fora contra a ferida. O sangue quente e fugidio cobriu-
lhe os dedos. Ele ficaria bem. Tinha de ficar. Mas o seu corao sabia que no era
verdade.
Porqu? gritou a Iscariotes.
Lamento disse friamente. Segundo as palavras da profecia, so os nicos trs no
mundo com alguma esperana de me fazer face, de impedir o Armagedo. Para quebrar a
profecia, um desses trs teria de morrer. Feito isso, os outros dois tornam-se irrelevantes.
Assim, ofereo-vos a vossa vida. Como afirmei, no sou um cobarde, meramente
pragmtico.
Encolheu os ombros.
Erin cobriu o rosto com as mos, mas no poderia esconder to facilmente a verdade.
Ela matara Jordan com a sua astcia. Ao salvar Rhun, condenara o homem que amava.
Iscariotes no se deixava deter.
Se o Cavaleiro de Cristo vivia, o Homem Guerreiro tinha de morrer.
Sob as suas mos, o peito de Jordan deixara de subir e descer. O sangue continuava a
espalhar-se, fumegando sobre a neve fria. Um floco de neve caiu sobre o seu olho azul
aberto e derreteu-se a.
Ele no pestanejou.
No pode ajud-lo sussurrou Christian.
Ela recusou-se a acreditar.
Eu posso ajud-lo. Tenho de ajud-lo.
Enquanto as lgrimas lhe corriam pelas faces, ela no conseguia respirar. Jordan no
podia partir. Ele era sempre forte, conseguia sempre superar. No podia morrer de um
simples tiro. No podia ser e ela no deixaria que assim fosse.
Levantou o olhar para Christian, agarrando-lhe a perna das calas com uma mo
ensanguentada.
Pode traz-lo de volta vida. Torne-o um dos seus.
Ele fitou-a horrorizado.
Ela no se importou.
Torne-o um dos seus. Deve-lhe isso. Deve-me isso.
Christian abanou a cabea.
Mesmo que no fosse proibido, no poderia fazer nada. O seu corao j parou de
bater. tarde demais.
Ela fitou-o incrdula, tentando dar sentido s palavras.
Lamento, Erin disse Rhun. Mas o Jordan j partiu.
O som de neve a ser esmagada indicou-lhe que algum se movia na sua direo, mas
no quis saber quem. Uma mo, com a pele estalada e ensanguentada, tocou o peito de
Jordan.
Ela ergueu a cabea para encontrar o rapaz agachado ao seu lado, mal se segurando de
p. Tirou o casaco dos ombros o casaco de Jordan e devolveu-o ao seu antigo dono,
colocando-o gentilmente sobre a ferida.
O rapaz lambeu os lbios gretados.
Obrigado.
Erin sabia que ele agradecia a Jordan por muito mais do que o casaco.
Basta disse Iscariotes, enquanto as sirenes explodiam mais ntidas sua volta.
Tragam-no.
Um dos corpulentos assistentes pegou no rapaz como se fosse um saco de batatas,
carregando-o nos braos. O rapaz gemeu do rude tratamento, sangue fresco vertendo das
suas inmeras feridas e abrindo buracos na neve.
Erin levantou-se parcialmente, querendo ir com ele.
Por favor, no lhe faa mal.
Mas foi ignorada. Iscariotes virou costas e estendeu a mo, e Bathory tomou-a, a sua
mo plida repousando sobre a dele, fazendo a sua escolha de quem seguir.
Fica, Elisabeta pediu Rhun. No conheces esse homem.
A condessa tocou o leno que cobria a recm-sarada inciso no pescoo.
Mas conheo-te a ti, meu querido.
Ameaado pelas traas, Rhun apenas podia v-los partir.
Erin voltou ao corpo de Jordan. Acariciou-lhe a face sem vida, o restolho da barba
rijo sob as pontas dos seus dedos. Tocou-lhe o lbio superior, depois inclinou-se para
diante, beijando-o uma ltima vez, os lbios j frios, mais como os de Rhun.
Apressou-se a afastar esse pensamento.
Atrs do seu ombro, os dois sanguinistas entoavam uma prece. Reconhecia as
palavras, mas permaneceu muda. As preces no a confortavam.
Jordan estava morto.
Nenhuma das suas palavras podia mudar isso.
CAPTULO 29
Leopold encontrava-se nas margens de um lago azul no sul de Itlia, com o luar a
refletir-se nas guas tranquilas. Inspirou fundo, preparando-se para o que teria de vir.
Notou os vestgios de enxofre no ar, o odor demasiado tnue para ser detetado por
sentidos mortais, mas ainda presente, revelando a natureza vulcnica do lago Averno.
Densa vegetao erguia-se ao longo das margens ngremes da antiga cratera. Do outro lado
da gua, a disperso de luzes assinalava herdades e quintas distantes e, bem mais ao longe,
a cidade de Npoles cintilava no horizonte.
No passado, o lago fumegara intensamente de gases vulcnicos, de tal forma que as
aves que passassem por cima cairiam dos cus. O prprio nome avernus significava sem
aves. Os antigos romanos acreditavam que a entrada para o Inferno se encontrava perto
daquele lago.
Como estavam certos...
Examinou as imperturbadas guas de anil, imaginando aquele lugar tranquilo nascido
do fogo, criado de lava explodida aos cus, queimando a terra, matando qualquer criatura
que rastejasse, caminhasse ou voasse. Agora, tornara-se um vale sossegado, oferecendo
abrigo a aves, peixes, veados e coelhos. Os pinheiros e arbustos em redor abundavam de
nova vida.
Tomou a lio a peito.
Por vezes, o fogo era necessrio para purgar, para garantir uma paz duradoura.
Essa era a esperana de Leopold: trazer a salvao ao mundo atravs do fogo do
Armagedo.
Fitou o lago, interrompendo a sua tarefa de agradecimento a Deus por poupar a vida
daqueles que seguiam no comboio. Ligara ao Damnatus, depois de ver o seu prprio
caixo em Castel Gandolfo, ficando a saber que os outros tinham sobrevivido e que o
Damnatus fizera um pacto com o monge russo para os emboscar em Estocolmo.
Resolvido a fazer o que tinha de ser feito, virou costas ao lago. As suas sandlias de
couro roavam o solo vulcnico avermelhado, enquanto ele seguia o caminho que
conduzia Grotta di Cocceio. Era um antigo tnel romano, de um quilmetro de
comprimento, construdo antes do nascimento de Cristo, estendendo-se desde o lago at
s runas da antiga Cumas, no lado distante da vertente da cratera. Danificado durante a
Segunda Guerra Mundial, o tnel fora fechado ao pblico, sendo agora um local perfeito
para ocultar segredos.
Leopold alcanou a entrada, uma arcada de pedra escura selada por um porto de
ferro.
Exigiu-lhe pouca fora arrombar a fechadura e penetrar no interior. Uma vez l
dentro, teve de rastejar e atravessar uma desolada paisagem rochosa, at chegar ao tnel
principal. Com o caminho agora desimpedido, apressou-se pela escurido, no se dando
ao trabalho de dissimular a sua velocidade sobrenatural. Ningum o veria ali.
Os seus passos abrandaram quando se aproximou do extremo oposto, onde o tnel
abria para um complexo de runas no exterior da cratera. Saiu para a brisa fresca do mar
vizinho. Mais acima, empoleirado na crista do vale, erguia-se um templo a Apolo, um
antigo emaranhado de pilares partidos, anfiteatros de pedra destrudos e fundaes
esboroadas de estruturas h muito desaparecidas. Mas no era esse o seu destino. sada
do tnel, virou direita, mergulhando num outro tnel. A passagem aqui fora aberta na
rocha ocre, escavada em forma trapezoidal, estreita na base com as paredes a inclinar para
fora.
Era a entrada da gruta da Sibila de Cumas, a intemporal profetisa mencionada por
Virglio, cuja imagem estava pintada na Capela Sistina, assinalando-a como um dos cinco
ugures que previram o nascimento de Cristo.
Leopold recebera instrues precisas sobre o que tinha de fazer a partir dali. Por essa
altura, o Damnatus j devia ter capturado o Primeiro Anjo. Leopold devia fazer o mesmo
com o outro. Um arrepio percorreu-lhe a pele fria, quase o levando a retroceder.
Como posso ousar atacar tal outro?
Mas recordou o lago Averno, onde a paz e a graa tinham nascido do fogo e do
enxofre. Ele no podia falhar quando o objetivo estava to prximo.
A passagem estendia-se uma centena de metros pelas profundezas abaixo da cratera.
Segundo Virglio, o caminho para a sibila era cntuplo, aludindo ao labirinto enterrado
sob aquelas runas. O que era visvel aos turistas era uma nfima frao do verdadeiro
covil da profetisa.
No entanto, chegou ao fundo do tnel e arrastou-se pelo que era considerado o
santurio privado da sibila. Estacando no limiar, examinou as arcadas esculpidas e os
bancos de pedra vazios. Outrora fora grandioso, cheio de frescos e flores. Belas ofertas
teriam coberto as paredes. Botes teriam exalado a sua fragrncia pelo ar subterrneo.
Frutos teriam amadurecido e apodrecido ali.
Do lado oposto, erguia-se o trono entalhado, um simples assento de pedra.
Visualizou a Sibila de Cumas a entoar ali as suas profecias, imaginando o agitar de
folhas que se dizia acompanhar tais predies, folhas em que ela registava as suas vises
do futuro.
Apesar dos relatos antigos, Leopold sabia que o verdadeiro poder no residia naquele
espao, mas bastante mais fundo. A sibila escolhera aquele lugar por causa do que se
escondia no corao da sua cova, algo que ela protegia do mundo em geral.
Antes que perdesse a coragem, apressou-se a atravessar a sala at ao trono, at
arcada por detrs dele. Abeirando-se da parede do fundo, estudou o padro das pedras a
dispostas. Seguindo as diretrizes transmitidas pelo Damnatus, pressionou para dentro
uma srie de pedras, formando o smbolo grosseiro de uma taa, o antigo cone que
representava aquela sibila.
Quando empurrou a ltima pedra, ouviu um estalar e desenharam-se linhas escuras,
libertando poeira e assinalando uma porta. Sabia que existiam outros acessos secretos ao
labirinto profundo, mas o Damnatus tinha deixado claro que ele tinha de se dirigir a ela
por aquela via. O Damnatus conhecia-a de uma outra vida, aprendera sobre aquele
santurio. Ao longo dos sculos, ele seguira-lhe os passos pela Terra, sabia que ela residia
a agora, provavelmente aguardando-os.
Leopold empurrou a porta, abrindo-a com um raspar de pedra, mas permaneceu no
limiar. No ousava entrar no domnio dela sem permisso. Recuou at diante do trono e
ajoelhou-se.
Sacou de uma faca e golpeou o pulso.
Sangue escuro brotou para fora, deixando transparecer a bno de Cristo.
Ouvi a minha prece, Sibila! entoou. chegada a hora de a vossa profecia final
se tornar realidade.
Esperou, de joelhos, pelo que lhe pareceram horas, mas foram provavelmente
minutos.
Por fim, ao seu ouvido apurado, chegou o som abafado de ps descalos sobre a
pedra.
Olhou para l do trono, para o limiar escurecido.
Um pedao de sombra dissolveu-se, tornando-se visvel, revelando a bela perfeio de
uma mulher de pele escura. Envergava uma simples tnica de linho. As nicas peas de
adorno eram uma pulseira de ouro na parte superior do brao e um fragmento de prata,
pendente de uma corrente urea. No que precisasse de tais acessrios. A beleza escura da
mulher cativou toda a sua imaginao, instigando mesmo pensamentos pecaminosos.
Como podia um homem resistir-lhe? Ela era me, amante, filha, a encarnao absoluta da
natureza da mulher.
Mas no era nenhuma mulher.
Ele no lhe ouviu o pulsar do corao, quando ela se aproximou e se sentou no
trono.
Ela era algo bem mais grandioso.
Baixou o rosto perante tal beleza.
Perdoai-me, Divina.
Ele sabia o seu nome Arella , mas no ousava proferi-lo, sentindo-se indigno.
O meu perdo no aliviar os teus fardos disse ela, suavemente. Tens de te
despir deles por tua prpria vontade.
Sabeis que no o posso fazer.
E ele enviou-te em seu lugar, incapaz de vir ele prprio.
Ele ergueu o rosto, reconhecendo a profundeza da mgoa nos seus olhos.
Lamento, abenoada Senhora.
Ela riu docemente, um simples som que prometia ventura e paz.
Estou alm das tuas bnos, padre. Estars tu alm das minhas? Ainda podes pr
de parte essa misso de que ele te incumbiu. No tarde demais.
No posso. Do fogo surgir a paz duradoura.
Ela suspirou, como que repreendendo uma criana.
Do fogo surge apenas a runa. S o amor pode trazer a paz. No o aprendeste
Daquele que abenoa o prprio sangue que derramaste minha entrada?
Tudo o que procuramos trazer o Seu amor de volta a este mundo.
Destruindo-o?
Ele permaneceu em silncio, resoluto.
O Damnatus incumbira-o daquela misso e de uma outra. Sentiu o peso da pedra
esmeralda no bolso interior da sua veste. Teria de esperar. Antes de mais, tinha de
concluir o primeiro dever, por muito que lhe custasse.
Encarou a sibila.
Ela ter lido a sua inabalvel determinao. Com um olhar de profunda tristeza,
limitou-se a estender os pulsos.
Ento, que se inicie. No interferirei. As crianas devem cometer os seus prprios
erros. Mesmo tu.
Odiando-se, Leopold levantou-se e atou-lhe os pulsos com suaves tiras de couro. Ao
contrrio dele, ela no possua fora sobrenatural para resistir, para lutar. A fragrncia de
botes de ltus desprendeu-se da sua pele, enquanto se ps delicadamente de p. Ele
segurou a tira ligada s suas mos atadas e guiou-a, as pernas tremendo-lhe da
impertinncia, de volta ao limiar obscurecido.
Quando o transps frente dela, um manto de enxofre e vapores sulfreos varreu o
suave aroma do ltus. Impedindo-se de o engolir, desceu para a escurido, rumo a um
destino de fogo e caos.
CAPTULO 30
22h23
A neve esmagava-se debaixo dos ps de Rhun. Ele escutava o pulsar dos coraes de
Erin e Jordan, enquanto eles corriam. Firmes e fortes, embora acelerados do esforo.
O corao de Jordan soava como qualquer outro. Mas Rhun sabia que o ouvira parar.
Ele ouvira o silncio da sua morte. Ele soubera que aquele corao calado no voltaria a
bater mas voltara.
Era um verdadeiro milagre.
Evocou o rosto do rapaz, do Primeiro Anjo, imaginando tal dom, trazer de volta
vida. Saberia o rapaz que possua tal poder? Rhun sabia que esse milagre se devia, em
ltima instncia, vontade de Deus. Seria aquela ressurreio um sinal de que a trindade
servia, verdadeiramente, o Seu desgnio?
Mas quem formava a trindade?
Estudou as costas de Erin, ao mesmo tempo que evocava a partida de Elisabeta. No
olhara sequer para trs, quando se fora. Porm, ele sabia que merecera tal desero.
Finalmente, a sada avultou-se. Fugiram do impressionante palcio de gelo para o
escuro emaranhado de ruas adiante. Grigori conduziu-os a um monovolume azul
estacionado numa ruela deserta. Precipitaram-se para o interior pelas portas de todos os
lados.
Grigori assumiu o volante e arrancou rumo cidade escurecida.
Christian inclinou-se do banco de trs.
Leve-nos para a Catedral de So Nicolau. A, ficaremos a salvo por algum tempo.
Deixo-vos l disse Grigori, entorpecido pelo choque da perda. Eu tenho o meu
prprio alojamento.
Pelo espelho retrovisor, os olhos azuis ensombrados de Grigori encontraram os de
Rhun, o arrependimento visvel, a par da profunda dor. Rhun queria castigar o monge
por ter estendido aquela armadilha, mas o seu velho amigo tambm o salvara h pouco,
usando o favor que lhe era devido para poupar a sua vida. Em ltima anlise, no havia
pior castigo do que aquele que o monge j sofrera no interior do labirinto.
Algumas voltas adiante, o monovolume estacou frente catedral de Estocolmo: a
Igreja de So Nicolau. A estrutura era mais simples do que a das igrejas de Roma,
construda de tijolo ao estilo gtico. Quatro candeeiros de rua faziam incidir a sua luz
dourada sobre as fachadas ocre. Janelas em arco engastavam-se firmemente na pedra,
flanqueando uma grande roseta de vitrais ao centro.
Rhun esperou que todos os outros sassem. Uma vez a ss, inclinou-se para diante e
tocou o ombro de Grigori.
Lamento, por todos aqueles que perdeste hoje. Rezarei pelas suas almas.
Grigori assentiu em agradecimento, fitando Alexei. O monge apertou a pequena mo
do rapaz, como que receando perd-lo, tambm.
Nunca pensei que ele prprio viesse sussurrou Grigori. Em pessoa.
Rhun visualizou o semblante glido de Iscariotes.
Eu apenas queria desafiar Deus disse o monge. Ver a Sua mo agir, lanando
tudo no caos pelas minhas prprias mos. Ver se Ele o repararia.
Rhun apertou o ombro do seu velho amigo, consciente de que sempre existiria um
fosso entre eles. Grigori estava demasiado revoltado com Deus, tendo sido demasiado
ferido no passado pelos Seus servos na Terra. Nunca se poderiam reconciliar totalmente,
mas por aquela noite, separar-se-iam nos melhores termos possveis.
Grigori observou Jordan a afastar-se.
Afinal, talvez tenha visto a mo de Deus.
O rosto do monge voltou-se ligeiramente para Rhun, as suas faces manchadas de
lgrimas.
Com um aperto final de despedida, Rhun saiu, fechando a porta com fora. A
carrinha arrancou rua abaixo, abandonando-os noite.
A um passo de distncia, Christian segurava a cabea encoberta de Nadia contra o seu
ombro, como se ela dormisse, com uma mo a amparar-lhe a base do pescoo.
Tambm Rhun travara inmeras batalhas ao lado dela. De muitas maneiras, ela fora a
mais forte de entre eles, no atormentada pela dvida. A sua dedicao ao propsito era
intensa e inabalvel. A sua perda como sanguinista e como amiga era incalculvel.
Temos de sair da rua alertou Jordan.
Rhun assentiu e Christian encaminhou-se para a lateral da igreja, passando sob os
ramos esquelticos de rvores desnudas pelo inverno. Rhun inclinou a cabea para
admirar as janelas da catedral. Por dentro, era um espao imensamente belo, com tetos
caiados de branco e arcadas de tijolo vermelho. As preces por Nadia encontrariam a
lugar adequado.
Nas traseiras da catedral, diante de uma parede incaracterstica, Rhun procedeu ao
ritual, golpeando a palma da mo e abrindo a porta secreta sanguinista. Recordou-se de
Nadia o ter feito meio dia antes, nenhum dos dois sabendo que seria a sua ltima vez.
Christian apressou-se a entrar e a descer os degraus sombrios.
Jordan acendeu uma lanterna e seguiu-o. Erin segurava a mo do soldado com uma
intimidade descontrada. Rhun recordou-se de ouvir o seu corao, aferindo a
profundidade imensa da sua dor. Porm, contra todas as expectativas, Jordan fora-lhe
restitudo.
A inveja dardejou por ele. Sculos atrs, perdera o seu amor, mas quando ela lhe fora
restituda, mudara para sempre.
Para ele, no havia retorno.
Rhun penetrou na capela subterrnea secreta. Tal como a igreja superfcie, tinha teto
abobadado, pintado de um azul sereno sculos antes, para relembrar os sanguinistas do
cu, da graa de Deus que lhes fora restituda. De ambos os lados, tijolos vermelhos
cobriam as paredes do cho ao teto. Ao fundo, o singelo altar continha uma pintura de
Lzaro a erguer-se dos mortos com um Cristo resplandecente diante dele.
Passando frente, Rhun alisou o pano do altar, depois Christian pousou os restos
mortais de Nadia delicadamente em cima dele, mantendo-a coberta. Rezaram por ela. Com
a sua morte, toda a profanidade a abandonara por fim.
Na morte, ela fora libertada.
Erin e Jordan inclinaram igualmente a cabea naquelas ltimas preces, com as mos
postas. A dor ecoava em cada flego, em cada batimento, enquanto a choravam tambm.
Uma vez terminado, Christian recuou do altar.
Temos de ir.
No vamos ficar aqui? indagou Jordan, parecendo exausto.
No podemos correr esse risco disse Christian. Se quisermos salvar o rapaz,
temos de seguir.
Rhun concordou, relembrando-os:
Continua a haver um traidor dentro da Igreja. No podemos arriscar permanecer
no mesmo stio por muito tempo. Especialmente aqui.
E o corpo da Nadia? perguntou Erin.
Os sacerdotes locais compreendero asseverou-lhe Rhun. Eles trataro de a
enviar para Roma.
Rhun baixou a cabea uma vez mais para a homenagear, depois deixou o seu corpo
frio sozinho sobre o altar e seguiu os outros dali para fora.
Agora, tinha de cuidar dos vivos.
CAPTULO 31
Erin seguia por uma rua bem iluminada, para longe da proteo e do calor da
catedral. A neve caa agora mais intensamente, estreitando o mundo em redor. Os flocos
em breve lhe cobriram o cabelo e os ombros. Alguns centmetros acumulavam-se sob os
ps.
Poucos carros passavam pela rua quela hora tardia, os pneus ressoando sobre as
pedras da calada, os faris abrindo buracos por entre a neve cadente.
Mantinha um firme aperto sobre Jordan para evitar escorregar no pavimento gelado
e para se certificar de que no sonhava. Enquanto avanavam, ela observava o bafo quente
que exalava dos lbios dele, tornado branco no ar frio.
H menos de uma hora, ele estivera morto sem respirao, sem pulsao.
Observou Jordan pelo canto do olho.
A sua mente lgica lutava para entender aquele milagre, coloc-lo num contexto
cientfico, compreender as suas regras. Mas, por agora, agarrava-se simplesmente a ele
com firmeza, grata por estar quente e vivo.
Rhun seguia do seu outro lado. Parecia derrubado, mais enfraquecido do que a
recente perda de sangue podia explicar. Ela conseguia adivinhar porqu. Bathory causara-
lhe muito dano e no apenas ao corpo. Claramente, ele ainda a amava e a condessa
parecia determinada a usar esses sentimentos para o ferir.
Por fim, Christian estacou diante de uma frente de loja profusamente iluminada.
Onde estamos? perguntou Jordan.
Num cibercaf. Christian abriu a porta, fazendo tocar uma campainha presa
ombreira. Foi o mais prximo que consegui encontrar a esta hora da noite.
Feliz por escapar neve, Erin apressou-se a entrar no edifcio aquecido. L dentro,
parecia mais uma loja de convenincia do que um cibercaf prateleiras de comida
estendiam-se esquerda e um armrio frigorfico cobria uma das paredes. Mas ao fundo,
duas cadeiras desdobrveis de metal aguardavam diante de monitores de computador e
teclados, dispostos numa comprida mesa de jogo.
Christian falou com a mulher entediada atrs do balco. Vestia-se de preto, com um
piercing prateado na lngua, que cintilava enquanto ela falava. Christian comprou um
telemvel, fazendo perguntas concisas em sueco. Quando terminou, passou-lhe uma nota
de cem euros e dirigiu-se ao fundo da loja.
Ao balco, Jordan pediu quatro salsichas do espeto rotativo, onde pareciam rodar
desde o incio do milnio. Erin adicionou duas coca-colas, pacotes de batatas fritas e um
punhado de chocolates ao pedido.
Podia no ter oportunidade de comer de novo por muito tempo.
Jordan transportou o jantar num tabuleiro at ao posto dos computadores. Christian
j estava sentado diante de um monitor, os seus dedos voando velozmente sobre as teclas.
Rhun pairava-lhe sobre o ombro.
O que est a fazer? perguntou Jordan, devorando uma salsicha.
A verificar o plano de contingncia que tracei com o cardeal Bernard.
Que plano de contingncia? Pressionou Erin, esquecendo por um momento o
chocolate desembrulhado.
O cardeal queria manter a nossa querida condessa sob rdea curta explicou
Christian. Caso ela cortasse as amarras e tentasse escapar, idealizei uma forma de lhe
seguirmos o rasto.
Jordan apertou o ombro do jovem sanguinista com uma mo gordurosa, sorrindo.
Colocou-lhe um localizador, no foi?
Christian sorriu.
No interior do manto.
Erin retribuiu o sorriso. Se conseguissem seguir Bathory, havia uma boa
possibilidade de localizarem o rapaz.
Rhun encarou o sanguinista mais jovem.
Porque no fui informado disso?
Ter de o esclarecer com Bernard. Bernard baixou mais a cabea, parecendo
envergonhado com o subterfgio.
Rhun suspirou pesadamente, irradiando raiva. Erin leu o entendimento nos olhos
dele. O cardeal no confiara que Rhun no escaparia com a condessa. Depois de Rhun ter
escondido Bathory durante sculos, Bernard no podia ser censurado por tal precauo.
Pode demorar alguns minutos a apanhar o sinal e a fix-lo avisou Christian. Por
isso, ponham-se confortveis.
Foi exatamente o que Erin fez, deslizando o brao em torno a cintura de Jordan e
descansando a cabea no calor do seu peito, ouvindo o pulsar do corao, apreciando
cada slida batida.
Aps dez minutos a dedilhar no teclado e de lamrias sussurradas sobre velocidades
de ligao, Christian deu um murro na mesa no de raiva, mas de satisfao.
Apanhei-o! declarou. Apanhei o sinal dela no aeroporto.
Rhun deu meia-volta agitando a sua veste negra, arrastando consigo Christian, que
rapidamente desligou o computador. Os dois sanguinistas apressaram-se, sem se darem
ao trabalho de esconder a sua velocidade sobrenatural da empregada do balco.
Alheada, a rapariga tinha o nariz afundado num livro de capa mole e cantos
dobrados, com os auriculares do iPod firmemente enfiados nos ouvidos.
Jordan correu atrs deles, resmungando.
s vezes, s gostava que estes tipos precisassem de comer e dormir.
Ela agarrou-lhe de novo a mo e correram em direo porta, acenando em
despedida rapariga atrs do balco. Erin foi igualmente ignorada pelo desprezo da
juventude.
Reprimiu um sorriso, sentindo subitamente a falta dos seus alunos.
23h18
Elizabeth acomodou-se num assento junto janela do avio. O espao era bastante
similar quele em que viajara anteriormente para ir at ali: luxuosos assentos de pele, com
pequenas mesas acopladas. S que, desta vez, no estava prisioneira num caixo. Ao tocar
o leno em volta do pescoo, a raiva inflamou-se dentro dela.
Olhou para fora da janela redonda. As luzes do aeroporto cintilavam, cada qual
envolta num halo tremeluzente de neve. Encaixou o estranho cinto no stio, cruzando o
colo. Nunca usara tal restrio, mas Iscariotes e o rapaz tinham posto os deles, pelo que
presumiu que tambm devia faz-lo.
Olhou para a criana sentada ao seu lado, tentando entender o que a tornava to
especial. Ele era o Primeiro Anjo, um outro imortal, mas exteriormente parecia apenas
um rapaz comum. Ouvia mesmo o seu corao a bater ao ritmo do medo e da dor.
Depois de lhe ligarem as feridas piores, os seus novos captores deram-lhe um conjunto
de roupas cinzentas para vestir, macias e soltas para no agredir a sua pele em carne viva.
Sweats, como lhes chamaram.
Voltou a ateno para o mistrio sentado diante de si.
Judas Iscariotes.
Ele despira o casaco exterior e vestia um moderno fato de caxemira, de bom corte. Na
mesinha entre eles estava pousada uma caixa de vidro, contendo a sua coleo de traas,
parte das trs que esvoaavam pela cabina. Ela sabia que aquelas permaneciam solta
como evocao do preo por qualquer desobedincia, como se no o andasse a pagar h
sculos.
O avio acelerou pelo terreno s escuras e coberto de neve. Ela apertou as mos sobre
o colo, deixando que o manto casse sobre elas, para que Iscariotes no notasse o seu
nervosismo. Procurou no imaginar aquele engenho metlico a lanar-se no ar e arrojar-
se por centenas de milhas sobre mar e terra.
A natureza nunca previra tal coisa.
A seu lado, o rapaz reclinou o assento, claramente indiferente ao aeroplano e ao seu
funcionamento. Diversos pontos de carmesim manchavam a sua roupa cinzenta, vertendo
das centenas de fendas na sua pele queimada do gelo. O odor do seu sangue enchia a
cabina, mas estranhamente no a tentava.
Seria o sangue dos anjos diferente do de todos os outros?
Ele afastou o cabelo castanho dos olhos. Era mais velho do que ela julgara a
princpio, talvez tivesse catorze anos. A angstia no seu rosto lembrou-lhe o filho, Paul,
quando sofria. A tristeza avultou dentro dela face memria, sabendo que o filho estava
agora morto, como todos os seus filhos. Perguntava-se o que teria sido feito do filho.
Teria tido vida longa? Teria sido feliz? Teria casado e tido filhos?
Desejava conhecer esses simples factos. A amargura subiu-lhe garganta. Rhun
roubara-lhe tudo isso, com um simples ato irrefletido. Ela perdera as filhas, o filho,
todos aqueles que amara.
O rapaz mexeu-se no seu lugar com um leve gemido. Tal como ela, tambm ele
perdera tudo. Rhun contara-lhe como os pais tinham morrido diante dele, envenenados
por um terrvel gs.
Tocou-lhe suavemente no ombro.
Sentes muita dor?
Olhos incrdulos encontraram os dela.
Claro que sentia dor.
Um golpe sobre a sobrancelha coagulara e secara. Ele j sarava. Ela tocou a garganta,
ainda latejante da ferida infligida por Nadia. Tambm ela estava a sarar, mas necessitaria de
mais sangue.
Como que lendo os seus pensamentos, Iscariotes fitou-a rapidamente.
As bebidas sero servidas dentro de momentos, minha cara.
Para l da cabina, os motores tornaram-se mais ruidosos e o avio lanou-se
suavemente no ar. Ela susteve a respirao, como se ajudasse o aeroplano a pairar. A nave
subiu mais alto. O estmago afundou-se e depois estabilizou. A sensao recordava-a de
saltar vedaes montada na sua querida gua.
Finalmente, a trajetria estabilizou num suave deslizar, como um falco no ar.
Ela retomou a respirao, devagar.
Iscariotes levantou a mo e o corpulento homem louro que os acompanhava desde o
labirinto surgiu pesadamente na parte de trs do avio.
Por favor, Henrik, traz bebidas para os nossos convidados. Talvez algo quente,
depois de todo o gelo e frio.
O homem inclinou a cabea e desapareceu.
A ateno dela regressou janela, atrada pelas luzes que se tornavam cada vez mais
pequenas l em baixo. Voavam mais alto do que qualquer ave. A exaltao inundou-a.
Henrik regressou minutos depois.
Chocolate quente disse ele, inclinando-se para pousar uma caneca fumegante nas
mos do rapaz.
Depois ergueu uma pequena taa na direo dela. A arrebatadora fragrncia do sangue
quente flutuou at si. Notou o adesivo branco na curva do robusto brao do bruto,
manchado de uma gota de sangue. Parecia haver pouco que os servos no fizessem pelo
seu senhor. A opinio que tinha de Iscariotes engrandeceu.
Aceitou a taa e esvaziou o seu contedo clido de um s gole. O calor e a beatitude
estenderam-se do ventre aos braos, s pernas, s pontas dos dedos. A dor persistente no
pescoo desvaneceu-se. Ela vibrava agora de fora e deleite.
Como podiam os sanguinistas recusar tal prazer?
Rejuvenescida, voltou a ateno para o jovem companheiro. Recordou a conversa a
bordo do comboio.
O teu nome Thomas Bolar.
Tommy corrigiu ele, brandamente, propondo algo mais ntimo.
Ela props-lhe o mesmo.
Ento, podes tratar-me por Elizabeth.
O olhar dele focou-se mais intensamente nela. Por seu lado, ela estudou-o. Podia
tornar-se um aliado valioso. A Igreja queria-o e se ele fosse verdadeiramente o Primeiro
Anjo, podia ter poderes que ela ainda no conseguia abarcar.
Devias beber disse ela, apontando a caneca nas mos dele. Vai aquecer-te.
Ainda fixando-a, ele levantou a caneca e sorveu delicadamente, estremecendo um
pouco com a temperatura.
Muito bem disse ela, voltando-se para Henrik. Traz-me toalhas limpas e gua
quente.
O louro mostrou-se surpreendido com o tom. Olhou para o seu senhor.
Traz-lhe o que ela quer ordenou Iscariotes.
Ela saboreou a pequena vitria e, momentos mais tarde, Henrik regressou com um
recipiente e uma pilha de toalhas brancas. Ela embebeu a primeira toalha e estendeu-a a
Tommy.
Limpa o rosto e as mos. Com cuidado.
Tommy pareceu prestes a recusar, mas ela manteve o brao estendido, at que, com
um suspiro cansado, ele pegou na toalha. Pousando a caneca, cingiu o calor da toalha nas
mos e pressionou-a contra o rosto. Em breve, passava uma segunda toalha pelos braos
acima, enfiando-a por dentro da camisola e deslizando-a sobre o peito. A expresso
suavizou-se pelo simples prazer do calor hmido.
O seu olhar, tambm suavizado agora, encontrou de novo o dela.
Obrigado.
Ela assentiu subtilmente com a cabea e voltou a ateno para o homem de cabelo
grisalho sua frente. Quando o vira pela ltima vez, quatrocentos anos antes, ele
envergava uma tnica de seda de tom pardo de nobre. Pareciam-lhe apenas meses, depois
de perder sculos encurralada na armadilha de Rhun. Nessa altura, um anel de rubi
adornava-lhe um dos dedos, anel que ele dera filha mais nova de Elizabeth, Anna, em
sinal do seu compromisso em proteger a famlia Bathory.
Mas porqu?
Perguntou-o agora.
Porque me foi ver, quando eu estava presa no castelo de achtice?
Ele estudou-a por um longo momento, antes de responder.
O seu destino interessou-me.
Por causa da profecia?
Muitos falavam das suas capacidades curativas, mente astuta e olhar penetrante. Ouvi
murmrios do interesse da Igreja em si, na sua famlia. Assim, decidi ver por mim
mesmo se os rumores da sua sabedoria eram verdadeiros.
Ento, ele fora farejar o rasto da profecia, como um co de caa na pista de uma
presa.
E o que concluiu? perguntou ela.
Conclu que o interesse da Igreja podia ter validade. E decidi zelar pelas mulheres
da sua linhagem.
As minhas filhas. Anna e Katalin.
Ele anuiu.
E muitas depois delas.
Um desejo intenso e doloroso invadiu-a, o de colmatar as lacunas do seu passado,
conhecer o destino da sua famlia.
O que foi feito delas? De Anna e Katalin?
Anna no teve descendncia. Mas a sua filha mais velha, Katalin, teve duas filhas e
um filho.
Ela desviou o rosto, desejando ter podido v-los, o grmen e sangue da nobre casa de
Bathory. Teriam possudo a beleza simples e encanto suave de Katalin? Nunca o saberia,
pois tambm eles estavam h muito mortos.
Tudo por causa de Rhun.
E o meu filho, Paul?
Casou. A esposa deu-lhe trs filhos e uma filha.
O alvio percorreu-a, sabendo agora que todos eles tinham vivido, tido vidas depois
dela. Receava perguntar quanto tempo tinham vivido, como se tinham desenrolado as suas
vidas. Por agora, contentou-se em saber que a sua linhagem no fora cortada.
Tommy largou a toalha na bacia ao lado do seu lugar e recostou-se na cadeira,
cruzando os braos, parecendo mais tranquilo.
Devias terminar a tua bebida censurou ela, apontando a caneca. Ajudar-te- a
recuperar foras.
Que me interessam as foras? murmurou ele. Sou um simples prisioneiro.
Ela ergueu a caneca e estendeu-lha.
Tal como eu. E os prisioneiros tm de preservar as suas foras a todo o custo.
Ele aceitou a caneca das suas mos, os olhos castanhos curiosos. Talvez no tivesse
percebido que ela era to prisioneira quanto ele.
Iscariotes mexeu-se no seu assento.
No so prisioneiros. So meus convidados.
Tal como tinham dito todos os outros captores.
Tommy no parecia mais aliviado do que ela. Rodava a caneca, hipnotizado pelo seu
contedo. Fora claramente um menino muito amado, era bvio. Depois, fora arrebatado,
ferido e abalado na confiana.
Por fim, Tommy ergueu o olhar, preparado para encarar aquele outro.
Para onde nos leva?
Para o vosso destino respondeu Iscariotes, juntando os dedos em pirmide e
fixando o rapaz por cima deles. So afortunados por estarem presentes num momento
to crucial.
No me sinto afortunado.
Por vezes, no conseguimos entender o destino at estarmos perante ele.
Tommy limitou-se a suspirar audivelmente e a olhar pela janela, l para fora. Passado
muito tempo, Elizabeth notou-o a fix-la, estudando as suas mos, o seu rosto, tentando
no o mostrar.
O que ? perguntou, finalmente.
Ele contraiu o semblante.
Que idade tem?
Ela sorriu perante a descorts pergunta, compreendendo a sua curiosidade,
apreciando o seu descaramento.
Nasci em 1560.
Ele inspirou ruidosamente e ergueu as sobrancelhas de espanto.
Mas dormi durante grande parte desses sculos. No compreendo este mundo
moderno como devia.
Como a histria da Bela Adormecida observou ele.
No conheo essa histria retorquiu ela, merecendo um novo erguer de
sobrancelhas. Conta-ma. Depois, talvez me possas contar mais sobre esta era, mostrar-
me como aprender a viver nela.
Ele assentiu, parecendo feliz pela distrao e talvez ela precisasse do
desanuviamento, tambm. Ele respirou fundo e comeou. Enquanto ela ouvia atentamente
a sua narrao de fadas e encantamentos, a sua mo quente deslizou sobre o brao da
cadeira e aninhou-se na dela.
Ela sentiu os dedos quentes fechados sobre os seus. Para l do seu poder e destino
desconhecido, viu que ele era tambm um rapazinho jovem e solitrio, privado de pai,
privado de me.
Tal como Paul, aps o seu julgamento.
Os seus dedos apertaram mais intensamente os dele, um sentimento raro a crescer
dentro de si.
Proteo.
23h32
Assim que o jato alcanou a altitude de cruzeiro, Rhun desapertou o cinto. Precisava
de se mexer, de libertar a sua frustrao. Anteriormente, mal conseguira conter a
ansiedade enquanto Christian executava a interminvel verificao pr-voo e Jordan
examinava o avio com um sensor para detetar possveis explosivos ocultos. Eram ambas
precaues sensatas, mas Rhun sentia-se nervoso com atrasos adicionais, sentindo
Elisabeta a fugir para mais longe a cada minuto que passava.
Visualizou o semblante presunoso do homem que matara Nadia. Elisabeta estava
agora debaixo da sua alada, de um homem que a podia matar com um simples gesto.
Porque a levara ele?
Porque fora ela com ele?
Rhun compreendia, pelo menos, a resposta a essa ltima pergunta. Olhou para o
caixo vazio na retaguarda do avio, onde Elisabeta fora aprisionada na viagem at ali.
Falhei em proteg-la.
Mas quem era verdadeiramente aquele homem?
Durante a corrida at ao aeroporto, Grigori enviara uma mensagem para o telemvel
de Rhun. Era uma simples imagem de uma ncora antiga.
23h58
PROVRBIOS 7: 27
CAPTULO 33
Com a face cheia da Lua a brilhar sobre o mar da meia-noite, Elizabeth encaminhou-
se para a proa do estranho barco acerado e perscrutou a antiguidade intemporal do
Mediterrneo. Reconfortou-se com a sua imutabilidade. As luzes da cidade de Npoles
desapareceram rapidamente para trs, levando consigo a costa escura.
O avio tocara de novo o cho a meio da noite, h menos de uma hora, aterrando
numa metrpole invernosa sem qualquer semelhana com a cidade do seu passado.
Ela tinha de deixar de olhar para esse passado.
Aquele era um mundo novo.
Enquanto permanecia de p na proa, o vento frio acariciava-lhe o cabelo. Lambeu os
salpicos de sal dos lbios, assombrada com a velocidade da embarcao. O navio embateu
numa onda alta. Estremeceu do impacto. Depois prosseguiu, como um cavalo avanando
a custo pela neve funda.
Ela sorriu face s imensas ondas negras.
Aquele sculo tinha muitas maravilhas para lhe oferecer. Sentiu-se tola por se ter
limitado durante tanto tempo s ruas da antiga Roma. Ela devia ter-se lanado naquele
novo mundo, no tentado acobardar-se no antigo.
Inspirada, puxou o manto sanguinista dos ombros. Protegera-a da luz do sol, mas o
velho corte e l densa no pertenciam quele mundo. Ergueu o manto ao vento. O pano
negro agitava-se no ar como um pssaro monstruoso.
Largou-o, libertando-se do seu passado.
O manto rodopiou num golpe de vento, depois foi arrastado e aterrou na gua.
Descansou a um instante, um crculo preto mascarrado sobre as ondas iluminadas pela
lua, antes de o mar o tragar.
Agora, nada carregava dos sanguinistas, nada desse velho mundo.
Voltou a olhar em frente, correndo a palma da mo pela amurada de ao do barco.
Olhou ao longo dos lados do casco, para os estabilizadores sobre os quais a embarcao
voava pela gua.
Chama-se um hidroflio disse Tommy, aproximando-se dela vindo de trs.
De tal forma enlevada pelo vento e pelo assombro, no escutara o acercar da sua
pulsao.
como uma gara-real, deslizando sobre a gua.
Ela olhou-o, rindo com o prazer de tudo aquilo.
Para uma prisioneira, parece demasiado feliz observou Tommy.
Ela estendeu a mo e desgrenhou-lhe o cabelo.
Comparada com a minha antiga priso, esta maravilhosa.
Ele parecia pouco convencido.
Temos de saborear cada momento que nos proporcionado frisou ela. No
sabemos onde termina esta viagem, por isso temos de extrair da cada pedacinho de
felicidade, enquanto dura.
Ele chegou-se mais perto e ela viu-se a passar o brao em torno dele. Juntos,
partilharam as ondas escuras que se erguiam e abatiam diante da embarcao, o vento frio
arrojando para trs os cabelos.
Passado um breve momento, ela sentiu-o estremecer nos seus braos, ouviu-lhe o
bater dos dentes, recordando que ele no possua a sua natureza insensvel.
Temos de te aquecer disse ela. Ainda morres de frio.
No morro, no retorquiu ele, lanando-lhe um olhar divertido. Pode acreditar.
Finalmente, sorriu.
Ela sorriu-lhe de volta.
Seja como for, melhor levar-te para dentro, para longe deste vento, para onde
fiques mais confortvel.
Ela conduziu-o pelo convs, por uma porta de escotilha, descendo at cabina
principal. Cheirava a homens e a caf e a leo de motor. Iscariotes estava sentado num
banco ao lado de uma mesa, bebericando de uma grossa caneca branca. O corpulento
servo pairava por perto de uma pequena cozinha.
Traz ch quente para o rapaz ordenou a Henrik.
Eu no gosto de ch disse Tommy.
Ento, seguras simplesmente na caneca retorquiu ela. Vai aquecer-te na mesma.
Henrik obedeceu, regressando com uma caneca fumegante. Tommy pegou-lhe com
ambas as mos e abeirou-se de uma das janelas, observando Iscariotes com visvel
suspeita.
O homem parecia absorto, movendo um brao, convidando Elizabeth a sentar-se
sua mesa. Ela aceitou a oferta e deslizou para o assento.
Qual o nosso destino? perguntou ela.
Uma das minhas muitas casas disse ele. Longe de olhares indiscretos.
Ela fitou pela janela o mar iluminado pela lua. Adiante, no havia nada alm da
escurido. Aquela casa devia ficar longe de tudo.
Porque vamos para l?
O rapaz tem de recuperar da sua provao no gelo. Judas olhou para onde estava
Tommy. Ele perdeu muito sangue.
Ento, o sangue dele tem valor para si? Uma preocupao sbita pelo rapaz
assaltou-a.
Tem certamente valor para ele.
Notou que ele no respondera sua questo, mas esqueceu-a por uma preocupao
mais urgente.
Conseguiro os sanguinistas encontrar-nos l?
Iscariotes passou a mo pelo cabelo argnteo.
Duvido que consigam.
E diga-me, por favor, o que deseja de mim? Compreendo que cobice o Primeiro
Anjo, mas que utilidade poderei ter para si?
Nenhuma, cara senhora asseverou ele. Mas tive sempre uma mulher Bathory ao
meu lado, durante quatrocentos anos, dezoito mulheres no total, e sei como podem ser
um poderoso aliado. Se escolher ficar, proteg-la-ei dos sanguinistas e talvez me possa
proteger de mim prprio.
Mais enigmas.
Antes que ela pudesse aprofundar, Tommy apontou pela janela da frente.
Vejam!
Ela levantou-se para ver melhor. Sada da escurido, iluminada por centenas de luzes,
uma monstruosa estrutura de ao emergia das ondas. Quatro pilares cinzentos
projetavam-se do mar, como as pernas de uma besta gigantesca. Os impressionantes
pilares suportavam uma plataforma plana, mais extensa do que a Baslica de So Pedro.
No topo dessa plataforma, assentava um aglomerado de vigas e blocos pintados.
uma plataforma petrolfera disse Tommy.
Foi, em tempos, uma plataforma petrolfera corrigiu-o Iscariotes. Transformei-a
numa residncia particular. No consta de nenhum mapa. Totalmente afastada das
preocupaes do mundo.
Elizabeth examinou as luzes tremeluzindo no centro da plataforma e que definiam as
muralhas de um castelo de ao, formado por blocos. Contemplou a extenso de gua
escura a toda a volta, depois de novo a plataforma petrolfera.
Ser esta a minha nova cela?
02h38
Elizabeth instalou-se numa cadeira em frente do rapaz, junto lareira, enquanto este
comia. Mantinha as mos estendidas para o agradvel calor. As chamas reais aqueciam-na
como nenhum dispositivo moderno conseguia. Fechou os olhos e deixou que o corpo
absorvesse o fogo, imaginando o sol num dia quente de vero.
Agora quente e alimentada, devia sentir-se satisfeita mas no sentia.
No estou segura aqui nem o rapaz.
Surpreendia-a o quanto esse ltimo facto a perturbava. Iscariotes tinha planos para
ambos e comeava a suspeitar que ele no a trataria com mais brandura do que os
sanguinistas.
Rodou o tornozelo lesado. Sarara o suficiente para no a retardar, se tivesse de fugir.
Mas e o rapaz? Observou Tommy. Mostrava modos constrangedores, devorando tudo o
que tinha no prato. O odor a carne grelhada e ao leo da fritura repugnava-a, mas no o
mostrou. Ela sabia que grande parte do apetite do rapaz era instigada pelo mesmo
objetivo que o seu, manter-se forte e pronto para escapar.
Mas surgir a oportunidade para o fazer?
Iscariotes vigiava-os como um falco faminto, mesmo enquanto tomava a sua prpria
refeio: um bife mal passado e vegetais em manteiga. Usava faca e garfo de prata, os
utenslios brasonados com uma ncora.
Por fim, Tommy suspirou de grande satisfao e reclinou-se na cadeira.
Ela estudou-lhe o rosto jovem. A cor regressara-lhe de novo s faces. Era estranho,
mesmo para ela, a rapidez com que ele sarava. A comida dera-lhe claramente foras.
No consigo comer mais declarou ele, abafando um arroto com o punho.
Tornou-se, em vez disso, num longo bocejo.
Devias descansar disse Iscariotes. Temos de estar de novo a p antes do
amanhecer.
Os olhos cansados de Tommy encontraram os dela. No sabia, claramente, como
responder.
Ela acenou impercetivelmente com a cabea.
No era o momento de confrontar o novo captor.
Est bem disse ele, levantando-se e esticando as costas.
Iscariotes gesticulou para Henrik.
Leva o rapaz para o quarto de hspedes e d-lhe roupas lavadas.
Tommy examinou as suas calas e camisola, manchadas de sangue seco. Precisava
claramente de roupa lavada.
Resignado, Tommy seguiu Henrik, no sem antes lanar um olhar preocupado a
Elizabeth. Um olhar que feriu o corao silencioso dela.
Quando o rapaz partiu, Iscariotes moveu-se no sof para mais perto da cadeira dela.
Um pouco de sono ir fazer-lhe bem. Ele enfrentou-a com os seus olhos azul-
prateados. Mas voc tem muitas perguntas a fazer-me. Perguntas que melhor colocar e
responder sem o rapaz presente.
Ela cruzou as mos no colo e decidiu comear pelo passado, antes de abordar o
presente ou o futuro.
Gostaria de saber mais sobre o destino da minha famlia.
Ele assentiu e, no decurso de longos e dolorosos minutos, contou-lhe sobre os filhos
e os filhos deles, os casamentos, nascimentos e mortes. Era uma narrativa sobretudo
trgica, de uma famlia cada em desgraa, uma vasta trama urdida com os fios dos
pecados dela.
Este o meu legado.
Manteve a expresso estoica e enterrou as palavras dele bem no seu ntimo. As
Bathory no revelavam a sua dor. Dissera-o inmeras vezes aos filhos, mesmo quando os
quisera segurar nos braos e limpar-lhes as lgrimas. Mas no aprendera o consolo com a
sua me e no o ensinara aos seus filhos. Essa fora pesara-lhe, mas tambm a salvara.
Terminada a narrativa dos descendentes, ele perguntou:
Mas no est curiosa sobre o mundo moderno?
Sim reconheceu ela , mas estou ainda mais curiosa sobre o meu papel neste novo
mundo.
E suspeito que queira conhecer o papel do rapaz, tambm.
Ela encolheu os ombros, no admitindo nada. Permitiu-se um vestgio de sarcasmo
na voz.
Que tipo de monstro seria eu, se no me importasse com um rapaz to corajoso?
Que tipo de monstro, sem dvida. Uma insinuao de sorriso atravessou-lhe os
lbios.
Ela percebeu a sua expresso satisfeita, deixando-o acreditar que ela era esse tipo de
monstro, que pouco se importava com aquele rapaz. Pois era, de facto, tal monstro ela
matara muitos, pouco mais velhos do que Thomas. Mas por ele sentia uma estranha
proximidade, e os que lhe eram prximos eram sagrados.
Iscariotes fixou-a com um olhar mais duro.
O seu papel, minha cara condessa Bathory, antes e acima de mais mant-lo calmo e
obediente.
Devo, ento, servir de ama.
Mantendo a irritao afastada da voz, ela perguntou:
O que planeia fazer com ele que exija tais servios balsmicos?
Antes da madrugada, seguiremos para a costa, para as runas de Cumas. A, ele
encontrar o seu destino, um destino de que poder querer fugir. E embora a fuga seja
impossvel, se resistir, tornar-se- mais difcil para ele.
Elizabeth voltou-se para as chamas.
As runas de Cumas.
Um fio de memria insinuou-se por ela, do tempo em que lera os antigos escritos de
Virglio e a histria da Europa, como era preceito de toda a mulher nobre. Uma famosa
profetisa vivera, outrora, em Cumas, uma sibila que previra o nascimento de Cristo. No
tempo de Elizabeth, o lugar cara em runas, as muralhas da cidade h muito destrudas.
Mas algo mais a incomodava, uma outra histria de Cumas. O medo insinuou-se nos
seus ossos, porm escondeu-o do rosto.
Qual o destino do rapaz em Cumas? indagou ela.
E qual o meu?
Ele o Primeiro Anjo recordou-lhe Judas. E voc, a Mulher Sbia. Juntos,
forjaremos o destino de que Cristo me incumbiu, de O trazer de volta ao Seu mundo, de
trazer o Seu Juzo sobre todos ns.
Ela evocou a confisso anterior de Iscariotes de to grandioso propsito.
Pretende iniciar o Armagedo. Mas como?
Ele apenas sorriu, recusando-se a responder.
Porm, ela recordou o ltimo pormenor relativo a Cumas. Segundo as lendas
romanas, o trono da sibila ocultava a entrada para o mundo dos mortos.
A porta de entrada para o Inferno.
CAPTULO 35
O cardeal Bernard caminhava a passos largos pelo aeroporto quase deserto, nos
arredores de Npoles. As lmpadas engastadas lanavam um matiz azulado sobre os
poucos viajantes da madrugada, emprestando-lhes um ar doentio. Ningum lhe prestou
ateno, enquanto passava velozmente em direo ao trio de chegadas. Trocara o
carmesim das suas vestes formais pelo azul-escuro de um moderno fato de executivo.
No entanto, no viera a Npoles como cardeal ou homem de negcios, mas como
guerreiro.
Sob a seda do seu fato, envergava uma armadura.
Suspeitando de um espio na ordem, viajara at ali em segredo, escapando da Cidade
do Vaticano por um longo tnel em desuso e atravessando as ruas tardias de Roma, por
onde passara despercebido. Viajara em avio comercial em vez de um jato privado,
usando documentos falsos. Arrastava uma mala, contendo dois conjuntos de armadura
sanguinista, especialmente preparados para aquela viagem.
Prximo da sada do aeroporto, reconheceu de imediato Erin e Jordan, escutando-
lhes o revelador batimento cardaco, antes de eles transporem as portas de vidro.
Rhun e Christian flanqueavam o par.
Jordan alcanou-o primeiro, movendo-se sobre as suas fortes pernas.
Que bom voltar a v-lo, cardeal.
Por agora, sou simplesmente Bernard.
Olhou em volta, depois passou a mala a Rhun e apontou para uma casa de banho.
Troquem de roupa. Mantenham a armadura sob as roupas civis.
Depois de partirem, apertou a mo a Jordan, notando o intenso calor da sua palma,
quase febril, como se estivesse em chamas.
Sente-se bem? perguntou-lhe.
Tendo em conta que acabei de voltar dos mortos, sinto-me fantstico.
Bernard notou uma ligeira hesitao na postura do homem. Ocultava claramente
alguma coisa, mas Bernard deixou passar.
Estou grato por estar bem... e igualmente grato pelo seu esforo em ajudar-nos a
compreender esta ameaa nica colocada pelos autmatos de Iscariotes.
Bernard ainda tinha dificuldade em aceitar que Judas Iscariotes caminhava pela Terra,
que Cristo tinha amaldioado o Seu traidor com a eternidade. Mas a ameaa que o
homem colocava no podia ser negada ou ignorada.
Com tempo e instalaes mais adequadas disse Jordan , poderei saber mais
sobre essas criaes.
Ter de bastar. O tempo escasseia. Temos de achar o Primeiro Anjo e reuni-lo com
o livro.
As palavras da profecia do Evangelho surgiram-lhe na mente, em traos flamejantes:
A trindade profetizada levar o livro ao Primeiro Anjo para que o abenoe. S assim podero
garantir a salvao do mundo.
Nada mais importava.
Erin parecia triste.
Para que tal acontea, temos de descobrir onde Iscariotes o escondeu e perceber o
que ele quer do rapaz.
E porque o canalha veio at aqui com a criana acrescentou Jordan.
Erin assentiu.
Deve ser importante.
Rhun e Christian regressaram, as suas roupas mais justas do que antes, escondendo a
nova armadura, de um material resistente ao golpe, sugerido por Jordan como defesa
contra a picada das traas.
Bernard gesticulou na direo da porta.
Aluguei um helicptero para nos levar s coordenadas do ponto onde Christian
detetou a condessa pela ltima vez. Seguiremos para oeste pelo mesmo caminho,
procurando pistas.
Conduzindo o caminho, Bernard embarcou-os numa carrinha-txi, que os levou a um
aerdromo prximo, onde o helicptero os aguardava. Era um aparelho azul e laranja,
com um nariz curiosamente longo e janelas em flecha, delineando uma cabina ampla.
Christian saiu da carrinha e assobiou em sinal de apreo.
Lindo! Um AW-193.
Sabe pilotar um helicptero? indagou Jordan.
Desde que voc ainda andava de cales. Gesticulou em direo aeronave.
Subam!
Erin subiu primeiro. Estacou bruscamente, ao avistar uma longa caixa negra presa
entre os assentos.
Preparei um caixo para a condessa Bathory explicou Bernard. Para o caso de a
encontrarmos durante esta viagem.
Vamos traz-la de volta? questionou Jordan.
Ela pode ser a Mulher Sbia retorquiu Bernard.
Ele no estava disposto a correr riscos.
Rhun tocou a caixa com uma mo, uma expresso dorida no rosto. Bernard ouvira os
relatrios de Christian sobre como Nadia cortara a garganta da mulher, uma mulher por
quem Rhun ainda sentia, claramente, profundo afeto.
Bernard tinha de se manter atento a essa ligao.
04h44
Rhun apertou o cinto ao lado de Erin, enquanto Christian tomava o lugar do piloto.
O motor ganhou vida e as ps comearam a girar mais e mais depressa. Momentos mais
tarde, estavam no ar, deslizando velozmente em direo s guas escuras do Mediterrneo.
Quando se aproximavam da linha da costa, Christian gritou para trs:
Foi daqui que partiram para o mar! Perdi-lhe o sinal a poucas milhas mais para
oeste!
Rhun fitou as ondas negras l em baixo. O luar cintilava em tons de prata nas cristas
brancas.
Viajaram em silncio por vrios minutos, mas as guas permaneciam vazias, no
mostrando indcio dos outros. Imaginou Iscariotes a lanar Elisabeta ao mar obscuro,
livrando-se dela.
Christian bradou.
Foi aqui que o sinal se interrompeu.
Fez o aparelho descrever um crculo lento sobre a gua. Todos os olhos procuraram
em baixo quaisquer vestgios, qualquer prova do curso seguido pelo grupo de Iscariotes.
Jordan falou olhando em frente.
Devamos consultar mapas das correntes locais. Se um barco se afundou ou um
helicptero ou avioneta se despenharam aqui, teremos de seguir as correntes costeiras
mas, por agora, sugiro que continuemos pela sua trajetria original.
Entendido. Christian inclinou o aparelho e partiu para oeste.
Rhun continuou a sua viglia, o olhar penetrante varrendo cada onda.
Rezou por esperana.
Rezou por ela.
CAPTULO 36
Judas estava no seu quarto, de novo vestido aps um breve sono de uma hora.
Sentia-se refrescado, pleno de esperana.
Enquanto apertava a gravata, mantinha as costas voltadas para a imponente cama de
quatro colunas. Para o ajudar a vestir-se, usava o reflexo no relgio gigante que cobria
uma das paredes. A face superior de cristal estendia-se por quase dois metros e meio.
Com as suas prprias mos, construra-o e reconstrura-o em vinte moradas diferentes. O
mostrador do relgio era igualmente de vidro, revelando as engrenagens e encaixes
internos, todos de bronze, cobre e ao. Ele gostava de observar os mecanismos a marcar a
interminvel passagem da sua vida.
Agora, com uma mo precisa, parou o relgio. J no precisava dele. A sua vida
terminaria em breve. Depois de anos a rogar por aquele momento, em breve descansaria.
Uma pancada na porta perturbou os seus pensamentos.
Entre! bradou.
Voltou-se para ver Henrik a empurrar o Primeiro Anjo para dentro do quarto. Com
o nascer do dia a poucas horas, ordenara que lhe trouxessem o rapaz.
Tommy esfregava os olhos, claramente ainda aturdido de sono.
O que quer de mim?
Apenas conversar.
O rapaz deixava transparecer que preferiria dormir mais.
Judas arrastou-o para a sua pequena secretria. Possua um escritrio mais amplo
para tratar de negcios, noutra parte da plataforma, mas, por vezes, preferia a intimidade
tranquila do seu prprio quarto.
Ns os dois, Tommy, somos nicos neste mundo.
O que quer dizer?
Judas pegou numa faca afiada para papel e golpeou o centro da palma da prpria mo.
O sangue jorrou intensamente, mas ele limitou-se a usar um leno para o limpar. A
pequena ferida fechou rapidamente, sarando quase de imediato.
Sou imortal, mas no como a tua condessa. Eu sou como tu.
Como prova, ele pegou na mo do rapaz com firmeza e colocou a palma da mo dele
contra o seu peito.
Sentes o meu corao?
Tommy assentiu, claramente intimidado, mas intrigado.
Tal como tu, nasci como um rapazinho vulgar. Foi uma maldio que me concedeu
a imortalidade, mas gostava de saber o que fizeste tu para merecer igual infortnio.
Judas ouvira um relato geral da histria do rapaz, mas queria ouvir os detalhes da
prpria fonte.
Tommy mordeu o lbio inferior, visivelmente hesitante, mas o rapaz ansiava por
compreender o que lhe acontecera.
Aconteceu em Israel comeou ele e, lentamente, contou a histria da visita a
Massada com os pais, do tremor de terra e do gs venenoso.
Nada nesse relato explicava a sua sbita imortalidade.
Fala-me mais sobre o que aconteceu, antes do tremor de terra pressionou Judas.
Uma expresso de culpa cobriu-lhe o semblante.
Eu... fui a um lugar onde no devia ir. Sabia que no devia. Mas havia uma pomba
branca no cho e achei que estivesse ferida. Quis lev-la dali para fora e pedir ajuda.
O corao de Judas martelava contra as costelas.
Uma pomba branca com a asa partida?
Como sabe? Os olhos de Tommy semicerraram-se.
Judas afundou-se de encontro mesa, as suas palavras carregadas de memria.
H dois mil anos, vi uma pomba assim. Quando era rapaz.
No atribura importncia ao encontro, mal pensando nisso, exceto que ocorrera na
manh em que conhecera Cristo, quando era apenas um rapaz de catorze anos, quando se
tornaram rapidamente amigos.
Eu tinha a mesma idade que o Tommy, apercebeu-se repentinamente.
Evocava, agora, aquela manh, com todo o pormenor: como as ruas ainda estavam
sombrias, com o sol ainda no tinha nascido, como os despejos fediam nos drenos,
como as estrelas ainda brilhavam.
E a pomba que viu disse o rapaz , tambm tinha uma asa partida?
Tinha. Judas visualizou o branco fantasmagrico das suas penas na noite, a nica
coisa que se movia na rua escura. Ela arrastava a asa pelas pedras lamacentas. Apanhei-a.
Sentiu-lhe a plumagem agora, roando-lhe as mos. A ave ficara quieta, a cabea contra
o polegar de Judas, fitando-o com um nico olho esverdeado.
Tentou ajud-la? perguntou Tommy.
Apertei-lhe o pescoo.
O rapaz recuou meio passo, arregalando os olhos.
Assim, sem mais nem menos?
Havia ratos e ces. Ela teria sido despedaada. Salvei-a dessa desgraa. Foi um ato de
misericrdia.
Contudo, recordou-se de como depois se sentira perturbado. Correra para o templo
para procurar consolo junto do pai, que era um fariseu. Fora a que vira Cristo pela
primeira vez, um rapaz da mesma idade, que impressionava o seu pai e muitos outros
com as Suas palavras. Depois disso, os dois tornaram-se amigos, raramente se separando.
At ao fim.
Agora, tenho de o corrigir.
O rapaz, a pomba, era tudo sinais de que o seu rumo era o correto.
Judas encaminhou o rapaz de volta porta, de volta ao cuidado de Henrik.
Prepara-o para a nossa partida.
Quando Tommy saiu, Judas regressou secretria. Pegou num pedao de cristal, que
lhe cabia perfeitamente na palma da mo. Era a sua posse mais valiosa. Retirara-o do cofre
do seu escritrio e voltaria a guard-lo antes de partir. Mas precisava do seu
encorajamento naquela manh em germe, precisando de sentir a sua solidez e peso nas
prprias mos.
O cristal continha uma frgil folha castanha suspensa no interior, protegida dos
sculos pelo vidro. Ergueu-o altura dos olhos e leu as palavras gravadas na superfcie,
outrora verde, com uma aguada faca de pedra.
Segurou o objeto entre as mos, pensando na mulher que escrevera aquelas palavras,
evocando a sua luminosa pele escura, os seus olhos cintilando com um brilho tranquilo.
Tal como ele, ela entendia verdades que mais ningum podia entender. Tal como ele, ela
vivera muitas vidas, vira muitos amigos morrerem. Sozinha na Terra, ela era sua igual.
Arella.
Mas aquela simples folha pusera fim ao melhor sculo da sua longa vida aquele que
partilhara com ela. Fora em Creta, onde a casa deles dava para o oceano. Ela odiava estar
longe do mar. Ele mudara-se com ela de Veneza para Alexandria, para Constantinopla,
para outras cidades que davam para as ondas. Teria vivido em qualquer lugar para a ver
feliz. Naquela dcada em particular, ela quisera simplicidade e quietude.
Ento, ele escolhera Creta.
Olhou pela janela do quarto, agora, fitando as ondas escuras. Desde esses dias,
tambm ele nunca estivera longe do mar. Mas nesses tempos, ele contemplara-a mais
intensamente do que as guas em perptua mudana. Naquela noite, ela estava diante de
uma janela, com as portadas abertas sobre a noite.
Judas abriu agora a sua prpria janela e inspirou o ar salgado, recordando os sons e
aromas dessa noite de h muito.
Da sua cama, ele contemplou a silhueta dela a mover-se contra o cu estrelado.
O cheiro do oceano inundou o quarto, a par do suave desenrolar das ondas na areia. Ali
perto, uma coruja chamou a companheira e foi correspondida. Uma semana antes, ele vira o
par sobre uma oliveira, cada ave pouco maior do que dois punhos juntos.
Ouves as nossas corujas? perguntou ela, voltando-se para ele.
A luz da Lua refletia-se do seu cabelo cor de bano, um anel caprichoso caindo-lhe sobre o
rosto. Ela ergueu a mo para o afastar, um gesto que ele vira milhares de vezes. Mas a mo
deteve-se, o corpo retesando-se de uma forma igualmente familiar.
Judas abafou uma imprecao e levantou-se rapidamente.
Quando se abeirou dela, viu os seus belos olhos vazios.
Tambm isso era familiar.
Agora, as profecias derramar-se-iam por ela. De cada vez, ele odiava aquilo, pois nesse
estado, ela ficava para l do seu alcance, para l do alcance de si mesma, varrida pelas ondas do
tempo, essa fora de mar a que era impossvel resistir.
Como sempre, ele seguia as instrues dela. Retirava folhas frescas de um cesto de junco no
canto e pressionava-as contra o seu clido brao esquerdo. Todos os dias, ela apanhava folhas
para esse fim, embora as profecias apenas ocorressem uma ou duas vezes por ano.
Ele dobrava-lhe os dedos da mo direita em torno da antiga faca de pedra.
Depois, deixava-a sozinha.
Mantinha uma silenciosa viglia porta do quarto. Por vezes, as vises duravam meros
minutos, outras vezes, horas. Demorasse o que tempo que demorasse, ela no devia ser
interrompida.
Felizmente, nessa noite, ela foi poupada.
Aps um nico minuto, ela voltou a si e pediu-lhe que entrasse.
Quando ele entrou no quarto, ela estava deitada na cama, enrolada numa bola. Ele tomou-
a nos seus braos e acariciou-lhe o longo e espesso cabelo. Ela voltou o rosto contra o peito dele e
chorou. Ele embalou-a de um lado para o outro e esperou que a tormenta passasse. Sabia que
no devia perguntar-lhe sobre a origem da sua mgoa. Era uma maldio que ela tinha de
suportar sozinha.
Geralmente, as folhas em que ela escrevia as suas profecias jaziam espalhadas pelo cho e
ele reunia-as, enquanto ela dormia, e queimava-as no fogo.
Era como ela desejava, como ela lhe pedira. Nenhum bem alguma vez adviera do seu
dom, dissera-lhe ela. As profecias eram meras vises, no encerrando certezas, mas o seu
conhecimento levara muitos homens a forarem a sua concretizao, frequentemente sob o
aspeto mais maligno.
Porm, em segredo, ele lia cada folha antes de a queimar, registando muitas das suas
palavras, e mesmo imagens por ela desenhadas, num dirio de couro grosso que usava para as
contas da casa. Ela nunca lia aquele livro, nunca se preocupando com detalhes financeiros.
Confiava nele.
Naquela noite, quando a respirao dela se aquietou no sono, ele desenleou-se do seu abrao
e levantou-se para apanhar a nica folha, que jazia beira do fogo.
Uma nica profecia, nessa noite.
Sentiu a folha macia sob as pontas dos seus dedos. O aroma a rvores verdejantes flutuou
at ele. As frases inscritas chamavam-no. Segurando a folha junto s chamas da lareira, ele leu
as palavras que lhe percorriam a superfcie em linhas incertas.
Depois de as Suas palavras, escritas com sangue, serem retiradas da priso de pedra,
aquele que O levou deste mundo intervir para O trazer de volta, desencadeando uma era
de fogo e sangue, lanando um pano morturio sobre a Terra e todas as suas criaturas.
Incrdulo, delineou cada palavra com um dedo trmulo. Leu-as uma e outra vez,
desejando que o seu sentido no fosse to claro. J sabia que Cristo escrevera um Evangelho com
o Seu prprio sangue e o aprisionara na pedra. Judas registara outras profecias relativas a esse
livro, que ela inscrevera em folhas no sculo findo, mas no lhes atribura importncia. Nunca
pensara que as profecias dela lhe poderiam dizer respeito, at quela linha que dizia: Aquele
que O levou deste mundo.
No podia ser outro que no aquele que trara Cristo.
Todos os outros envolvidos na morte de Jesus, h muito que se tinham tornado p, mas
Judas perdurara. Fora poupado para um propsito.
Para aquele propsito.
To poucas palavras, mas cada uma delas confirmava os seus piores receios sobre a
maldio. Uma vez desenterrado o Evangelho perdido, Judas tinha de trazer Cristo de volta.
Para tal, era o seu dever dar incio ao fim dos tempos uma era de fogo e sangue.
Um restolhar de folhas chamou a sua ateno. Ela estava sentada, to bela luz do fogo
como a qualquer luz.
Os olhos dela viram o que os seus dedos seguravam.
Leste isso?
Ele desviou o rosto, mas sentiu o olhar dela a queim-lo.
Leste-as todas? questionou ela.
No lhe podia mentir, voltando-se para ela.
Eu queria preserv-las, para o caso de mudares de ideias, para que o teu dom no se
perdesse para o mundo.
Dom? No nenhum dom. E cabia-me a mim decidir o que fazer com ele. Acreditei
que tu, mais do que qualquer homem no mundo, o compreenderias.
Pensei que te prestava um favor.
Como? Quando? Durante cem anos, traste-me.
Um fio de lgrimas cintilou luz do fogo. Ela passou as costas da mo por uma das faces
macias. Ele fora contra os seus mais profundos desejos, uma e outra vez. Ele leu nos seus olhos
que no haveria perdo para os seus atos.
Fi-lo por ti murmurou ele.
Por mim? A voz dela endureceu. No pela tua prpria curiosidade?
Ele no tinha resposta a essa questo, em vez disso colocou-lhe uma outra. Ergueu a folha.
Quanto tempo? Quanto tempo at que esta profecia se cumpra?
No passa de uma profecia. O seu rosto era uma ardsia em branco, onde ele no
conseguia ler nada. Uma possvel viso do futuro. No implica certeza, nem necessidade.
Ser assim insistiu ele.
Ele reconhecera a sua verdade no instante em que lera as palavras.
Ele trara Jesus.
Agora, tinha de trair o mundo dos homens.
No podes sab-lo. Ela cruzou o espao para se colocar diante dele. No podes fazer
essa coisa obscura baseado nas minhas palavras. Nada neste mundo est definido. Como todos os
homens, foste imbudo de livre vontade por Deus.
A minha vontade no importa. Tenho de encontrar o Evangelho de Cristo. Tenho de pr
esses acontecimentos em movimento.
Uma profecia no pode ser forada. A voz dela ergueu-se, de raiva. Mesmo com toda
a tua arrogncia, deves sab-lo.
Ele ergueu de novo a folha, igualando a sua raiva.
Eu vejo isto. Eu sei isto. Temos de fazer o que fomos destinados a fazer. Eu sou um
traidor. Tu s uma profetisa. No desafiaste Deus ao no partilhares a tua profecia sobre a
traio de Lcifer? No caste em desgraa por causa disso? E agora, queres desafi-Lo de novo!
Ferida, ela fitou-o. Ele sabia que tinha posto a nu e em voz alta o maior receio dela e
desejou poder recuar no que dissera.
As lgrimas avolumavam-se-lhe nos olhos brilhantes, mas ela afastou-as com um pestanejar.
Virou costas, puxou o capuz do manto para esconder o rosto e correu porta fora para a noite
estrelada.
Ele esperou que ela voltasse, que a sua raiva se dissipasse, que lhe pudesse pedir perdo. Mas
quando o sol da manh se ergueu, ela no voltou e ele soube que nunca mais voltaria.
Judas inspirou profundamente o ar da noite, recordando tudo.
Depois de Arella o deixar, ele viajou pela Europa, onde passou muitos anos em busca
de rumores sussurrados do Evangelho perdido de Cristo. Tomou conhecimento de uma
outra profecia relacionada com o livro, uma que falava de uma trindade sagrada.
Ento, procurou-a tambm.
Numa noite de outono, seguindo um rumor entre os sanguinistas, procurou a
condessa Elizabeth Bathory a mulher sbia casada com um poderoso guerreiro e ligada a
um cavaleiro de Cristo.
semelhana da Igreja, achou que poderiam ser a trindade profetizada at o padre
Korza transformar a condessa em strigoi e esta ser supostamente assassinada.
Contudo, continuava convicto do poder da famlia Bathory. A cada gerao, escolhia
uma mulher dessa linhagem para preparar e proteger, envenenando o seu sangue contra
os strigoi, para garantir que nunca seria convertida, como a sua antepassada.
A maioria dessas mulheres tinha-o servido bem, at a linhagem ser interrompida com
Bathory Darabont. Mas, por essa altura, o Evangelho perdido de Cristo tinha sido trazido
de volta ao mundo, anunciando o que Judas devia fazer em seguida.
Ergueu o pedao de vidro e leu as palavras.
Aquele que O levou deste mundo, intervir para O trazer de volta, desencadeando uma
era de fogo e sangue, lanando um pano morturio sobre a Terra e todas as suas criaturas.
Por fim, essa hora chegara.
CAPTULO 37
Tommy estremeceu com a brisa que soprava pela superfcie aberta da plataforma
petrolfera, o vento afugentando os ltimos resqucios de sono.
Fitava um helicptero cinzento-metalizado estacionado do outro lado da estrutura
elevada. Tinha janelas com vidros fumados e uma imensido de antenas de radar a brotar-
lhe do nariz. Pelas linhas polidas e caractersticas invulgares, parecia personalizado e
dispendioso. Um piloto postava-se ao lado do aparelho, envergando um uniforme de voo
preto, incluindo capacete e luvas.
Nem uma rstia de pele vista, sugerindo que era como Elizabeth e Alexei.
Strigoi.
Elizabeth encontrava-se ao seu lado. Embora ainda faltassem duas horas para o nascer
do Sol, estava igualmente coberta dos ps cabea. Vestia botas altas, calas pretas, uma
tnica de manga comprida e luvas, a par de um vu que lhe tapava o rosto. Este tinha uma
abertura para os olhos, mas segurava na mo um par de culos de sol, a postos para a
chegada do amanhecer.
Iscariotes gesticulou na direo da aeronave estacionada.
Todos a bordo.
Sem escolha, Tommy encolheu-se por baixo das hlices, que comeavam a girar, e
subiu para o helicptero. O medo insinuou-se por ele. Para onde o levavam? Evocava as
palavras de Iscariotes sobre um destino e, de alguma forma, sabia que no lhe ia agradar.
Enquanto se prendia, notou que Elizabeth se exasperava com os cintos de ombro e
cintura.
Precisa de ajuda? ofereceu ele.
mais complicado do que colocar arreios numa parelha de cavalos desabafou ela,
mas conseguiu desenvencilhar-se e prendeu-se em segurana ao lado dele.
Iscariotes falou ao piloto, depois subiu para a cabina, levando consigo os dois
corpulentos guarda-costas. Quando fechou a porta, toda a cabina ficou mergulhada na
escurido. Nenhuma luz entrava pelas janelas e Tommy no conseguia ver nada para fora.
Sentiu-se aliviado quando as luzes artificiais foram ligadas.
Elizabeth retirou lentamente o vu e os culos de sol.
Iscariotes passou a cada um deles um conjunto de pesados auscultadores sem fios.
Tommy colocou os seus e Elizabeth seguiu-lhe o exemplo, claramente observando
cada gesto dele.
O rudo do motor aumentou de volume e levantaram do heliporto com um saco.
Com as janelas escurecidas, Tommy serviu-se do estmago para avaliar o quanto subiam,
quando estabilizavam e quando voltaram a descer para terra.
Tommy inclinou-se para diante e espreitou. O para-brisas estava igualmente tingido de
um negro compacto. Como sabia o piloto para onde iam?
Iscariotes viu para onde ele olhava. A sua voz chegou pelos auscultadores.
H uma cmara digital montada no nariz do helicptero. Vou mostrar-te.
Estendendo-se para l de Tommy, premiu um interruptor junto do apoio de brao.
Um monitor desceu diante de Tommy. Ganhou vida, exibindo uma extenso de ondas
iluminadas pelo luar e um horizonte aclarado adiante.
Tens um pequeno joystick junto tua mo direita acrescentou Iscariotes. Podes
mover a cmara com ele.
Testando-o, Tommy rodou o joystick num crculo e as imagens no monitor rodaram
360 graus. Viu ondas perseguindo ondas. O horizonte era gua e cu. Para trs do
helicptero, as luzes tremulantes da plataforma petrolfera tornavam-se cada vez mais
pequenas. Quando rodou de novo a cmara para diante, avistou uma srie de tnues luzes
correndo baixo, sobre a gua, na direo deles.
Um outro helicptero.
Iscariotes endireitou-se no lugar, depois inclinou-se para o piloto, na frente.
Quem ?
No sei respondeu o piloto. Percorri-o com o dispositivo de viso noturna.
No tem marcas distintivas no casco, mas parece um aparelho fretado. Podem ser turistas.
Iscariotes escarneceu.
Antes do nascer do dia? Leva-nos mais perto.
A aeronave mergulhou e partiu em direo ao outro aparelho, em rota de interceo.
Iscariotes afastou a mo de Tommy do joystick e comandou-o. Premiu um interruptor
e a imagem tornou-se mais clara, em gradaes de cinzento-prateado.
Viso noturna.
Subitamente, a imagem foi ampliada, centrando-se no para-brisas da outra aeronave.
Tommy conseguiu perceber as feies do piloto, recordando-o do labirinto de gelo.
O choque do reconhecimento depressa se tornou esperana. Era um dos sacerdotes,
um dos que ajudara a libert-lo do gelo.
Encontraram-me!
No sabia como, mas pouco importava.
Talvez me possam salvar... nos possam salvar.
Olhou de relance para Elizabeth, que tambm fitava o ecr. Exibia um meio sorriso,
como se no o pudesse evitar.
Os sanguinistas descobriram-nos.
A raiva inflamou a voz de Iscariotes e enrubesceu-lhe as faces.
Abate-os!
No canto do ecr, surgiu um cone amarelo de quatro msseis.
Por baixo, trs simples palavras:
Fogo do Inferno.
05h35
05h37
Judas estudou os destroos arrasados, a mancha negra que alastrava na gua escura. O
piloto fez pairar o helicptero, varrendo lentamente a rea, procurando sobreviventes.
Senhor? questionou o piloto.
Judas pesou as probabilidades de algum ter sobrevivido ltima exploso de mssil.
Parecia ter atingido em cheio a cauda do aparelho. Nada poderia ter sobrevivido a um
ataque to direto; nem mesmo os obstinados corpos dos sanguinistas conseguiriam sarar,
depois de feitos em tiras pelo metal dilacerado.
Alm de que verificou o Rolex Yacht Master de platina no seu pulso , nada daquilo
importava.
Mesmo que houvesse sobreviventes, j no o poderiam deter. O amanhecer estava a
menos de duas horas. Mesmo que os sanguinistas conseguissem sobreviver, no o
poderiam alcanar.
Ainda assim...
Contacta o pessoal que ficou na plataforma ordenou. Eles que vasculhem e
vigiem estas guas.
Entendido, senhor.
Depois, prossegue para a costa.
Judas fitou o rapaz, que parecia plido aps o ataque.
Ningum te pode salvar agora.
CAPTULO 38
05h42
Rhun lutou contra a fora da gua e iou o caixo pela janela quebrada. Ficou preso.
Uma das pegas exteriores, normalmente usadas pelos portadores do caixo, enganchou
num pedao retorcido de metal.
Olhou para o lado e viu Bernard a subir por entre as guas escuras, batendo as pernas
e carregando o corpo inerte de Christian nos braos. O cardeal rebocava, igualmente, uma
jangada de emergncia selada e esvaziada, atada por uma corda cintura.
S, Rhun posicionou os ps de cada lado do caixo, escorando-se contra a parede
lateral dos destroos, enquanto estes se afundavam cada vez mais.
Usando toda a fora das suas pernas e costas, impeliu a caixa, dobrando o pedao
retorcido de metal e vendo a pega exterior partir. Receou que a caixa se fendesse,
imaginando a gua a irromper pelo interior e a afogar Erin e Jordan.
Escutou o martelar assustado dos seus coraes.
No lhes podia falhar.
Deu novo impulso, alimentado pelos fracassos anteriores, recusando repeti-los.
Por fim, o caixo libertou-se to repentinamente, que o largou.
Rodou para trs pela gua e viu a caixa comear a flutuar para cima, lenta, demasiado
lentamente. Bateu as pernas e deu aos braos e alcanou o caixo. Empurrando por baixo,
impeliu a caixa para cima, em busca do tnue reluzir de uma Lua distante.
A superfcie parecia a uma distncia impossvel, apenas visvel pela sua capacidade
sobrenatural. Sabia que pouco ar restava no caixo, muito dele contaminado pelo fumo da
cabina encurralada.
Tinha de se apressar.
Durante todo esse tempo, escutava o pulsar dos seus coraes, cada qual distinto do
outro, mas soando de algum modo em sintonia. Rezou para que esse coro silencioso
perdurasse at alcanar a superfcie.
05h45
Jordan sentiu o veculo de fuga romper as ondas. A firme trajetria ascendente cedeu
de sbito, o seu estmago revolveu-se para se adaptar ao rolar do mar para l daquela
priso. Um momento depois, ouviu os fechos soltarem-se e a tampa abriu-se de repente.
Enquanto flutuavam, ele inspirou fundo o puro ar salgado, saboreando a presso do
corpo de Erin contra o seu. Mas um tremor percorreu-a. Ele friccionou-lhe as costas,
tentando expulsar o medo. Sentira o corpo dela lutar contra o pnico o tempo todo.
Rhun agarrou uma extremidade do caixo e iou-se para espreitar.
Esto os dois bem?
Jordan assentiu.
Obrigado pela boleia.
Erin soltou uma breve gargalhada, embora menos de divertimento pela piada seca, do
que pela euforia do alvio. Mesmo assim, fora o melhor som que ouvira em muito tempo.
Ela fez fora contra ele e sentou-se.
Rhun apontou para a esquerda.
Bernard insuflou uma jangada de emergncia. Vou empurrar-vos at l.
A cabea escura de Rhun balanceava para cima e para baixo como uma foca, medida
que os impelia em direo a uma jangada redonda, um disco amarelo brilhante a rodar
sobre a gua. Viu que Bernard tinha o corpo de Christian estendido sobre ela, uma
mancha escura contra o fundo amarelo.
A inquietao pelo seu novo amigo gelava-o por dentro.
J tinham morrido demasiados sanguinistas.
Perscrutou o horizonte, mas aparentemente o outro helicptero desaparecera h
muito.
Ainda assim, no estavam sozinhos.
O rudo ecoante de um motor chegou-lhes aos ouvidos. Jordan olhou para l da
jangada, uma luz isolada precipitando-se na sua direo, oscilando sobre as ondas. Uma
lancha semirrgida Zodiac. Claramente, viera da gigantesca plataforma petrolfera ao longe.
O mesmo local de onde o helicptero atacante levantara voo.
Nada bom.
Rhun! gritou Jordan, sabendo que o sacerdote estava demasiado fundo na gua
para o detetar. Temos companhia a vir direita a ns!
Se havia dvidas quanto a serem amigveis, foram dissipadas com o irromper de
disparos, pontilhando a gua escura, apontados ao alvo maior e mais reluzente da
jangada.
Bernard mergulhou subitamente para o lado e desapareceu, abandonando Christian.
Significaria aquilo que o jovem sanguinista j estava morto?
Rhun abrandara a aproximao jangada.
Vamos deix-los com Bernard. Entretanto, temos de ser um alvo menos evidente.
Sem aviso, o sacerdote ergueu-se sobre o caixo, despejando-os a ambos no mar
glido. Embora Jordan entendesse a necessidade, no aprovou necessariamente o mtodo.
Expulsou uma golfada de gua quando veio superfcie. Apressou-se para Erin, sabendo
que no era uma forte nadadora, nem entusiasta da gua em geral.
Mas ela emergiu suavemente, os olhos assustados, mas determinados.
Rhun juntou-se-lhes.
Alcancem a jangada, mas mantenham-na entre vocs e quem quer que aparea.
O padre seguiu frente.
Em poucas braadas, o grupo alcanou o refgio flutuante, sem ousar subir para ele.
Jordan espreitou por cima do bordo, enquanto o Zodiac encurtava a distncia,
abrandando. Avistou trs homens: um piloto e dois atiradores com armas automticas.
Na gua, eram alvos fceis.
Mas os recm-chegados desconheciam que havia, igualmente, um tubaro naquelas
guas.
Bernard elevou-se subitamente a estibordo, uma longa lmina reluzindo ao luar.
Rpido como um relmpago, golpeou todo o comprimento da lancha desse lado. O
Zodiac inclinou-se de travs, o motor engasgando, desequilibrando os homens armados.
Uma mo lanou-se da gua, agarrou um tornozelo e arrebatou um homem do barco. Foi
atirado ao ar, mas no antes de Bernard lhe decepar a perna pelo joelho com um golpe
selvagem.
O outro atirador disparou, mas Bernard j tinha desaparecido.
Enquanto o Zodiac continuava a estrebuchar, o segundo atirador rodava num crculo
atento, vigiando as guas em volta. Ento, subitamente, o barco abriu-se debaixo do
homem, o fundo de lona dilacerando-se por baixo dele. O seu corpo foi abruptamente
puxado por essa nova abertura e desapareceu.
O ltimo homem o piloto injetou o motor a fundo e deu meia-volta ao barco,
claramente desejando escapar para a segurana da plataforma petrolfera. Mas Bernard
elevou-se do mar, como um golfinho em acrobacia. Aterrou por trs do piloto,
agarrando-lhe o cabelo e golpeando-o no pescoo, quase lhe arrancando a cabea.
Bernard lanou o corpo gua com um s brao.
Jordan tentou conciliar a imagem do piedoso homem de hbito com a daquele
carniceiro selvtico.
Nadem para o outro barco! gritou Rhun, suficientemente alto para Bernard o
ouvir. Rpido. Eu agarro Christian e encontramo-nos l.
O sacerdote saltou e rolou sobre a jangada.
Erin e Jordan nadaram para o Zodiac. Bernard ajudou-os a subir para a embarcao
arruinada. Jordan sabia que os Zodiac eram barcos resistentes, capazes de navegar com
apenas um flutuador. Quando Jordan subiu atrs de Erin, Rhun j l estava, rebocando
Christian por um brao.
Ajudou Rhun a iar o jovem sanguinista para bordo.
E agora? questionou Jordan, enquanto Erin e Bernard assistiam Christian.
Consegue pilotar esta embarcao? perguntou Rhun.
Sem problema respondeu Jordan.
O sacerdote apontou a plataforma petrolfera.
Estamos demasiado longe da costa. Nunca conseguiremos chegar a terra com este
pequeno motor. Temos de arranjar outro meio de transporte para alcanar a costa.
Jordan fitou a estrutura altaneira. Apesar de o poder de fogo da equipa estar
sepultado no fundo do oceano, tinham de ir para aquele ninho de vespas.
Ciente disso, Jordan cruzou o espao e assumiu o volante, enquanto Erin se
debruava sobre o corpo de Christian.
Ainda est vivo? perguntou ela.
difcil dizer admitiu Rhun, ajoelhando-se entre ela e Bernard.
Os olhos de Christian permaneciam fechados. Um golpe profundo atravessava-lhe a
fronte. Jordan sabia que era intil verificar a respirao ou o batimento cardaco. Os
sanguinistas no tinham nenhum deles.
O cardeal colocou a sua cruz de prata sobre a testa de Christian, como se lhe fosse
administrar os ltimos ritos. Passado um instante, Bernard ergueu a cruz, revelando uma
marca cauterizada da sua forma sobre a pele do jovem sanguinista.
Ele vive declarou Bernard.
Rhun explicou, com alvio palpvel na voz:
Quando morremos ao servio da Igreja, ficamos purificados. A prata abenoada no
nos queima.
Erin pegou na mo de Christian.
Mas ele precisa de cuidados mdicos alertou Rhun, fitando Jordan, enquanto este
punha o motor a trabalhar. A sua vida ainda pode ser reclamada.
Jordan apontou para a plataforma petrolfera.
Ento, vamos fazer uma visita aos nossos vizinhos.
CAPTULO 39
06h12
Erin segurava a cabea pesada de Christian no seu colo, enquanto Jordan conduzia
lentamente o barco adernado em direo obscura doca da plataforma petrolfera.
Estavam os trs sozinhos no barco. Rhun e Bernard tinham deslizado para dentro de
gua, a cerca de cem metros de distncia, nadando at doca. De longe, ela vira um breve
tumulto entre sombras, um grito estrangulado depois, Rhun fizera sinais de luz
indicando que era seguro prosseguir at doca.
Jordan impeliu o barco para diante.
Os dois sanguinistas tinham deixado claro que ela e Jordan deveriam manter-se
afastados at o caminho estar desimpedido. Os sentidos apurados de Rhun e Bernard
detetariam e eliminariam quaisquer ameaas.
Mantm-te em baixo avisou Jordan, quando penetraram na sombra da plataforma
em cima. Ele tinha uma mo no volante, a outra numa espingarda, a arma largada por um
dos homens que Bernard eliminara antes. Ela baixou a cabea sobre Christian,
observando Jordan.
Os olhos de Jordan vigiavam cada tirante e passadio em cima, claramente no
confiando por completo nos sanguinistas para garantir a sua segurana. A imponncia da
macia estrutura parecia pesar sobre eles. Bem no alto, brilhavam luzes eltricas, mas a
rea inferior estava em grande parte mergulhada na escurido, um mundo sombrio de
pilares de beto, escadas de ao e um labirinto de rampas e pontes.
O Zodiac ultrapassou lentamente o vulto de um imenso hidroflio de luxo, atracado
num ancoradouro vizinho.
Jordan examinou-o atentamente e talvez com alguma inveja.
O tipo trata-se bem murmurou, numa dbil tentativa de leviandade.
Ela esboou um breve sorriso, para lhe mostrar que tinha apreciado o gesto. Ele
vigiou atentamente por mais uns longos minutos, depois fez-lhe sinal para se levantar.
Erin endireitou-se. Soube-lhe bem o vento salgado contra o rosto.
Jordan saltou para fora, colocando a arma ao ombro e amarrando rapidamente o
barco. Depois acocorou-se junto dela no barco. Deviam aguardar pelo regresso de Rhun e
Bernard.
No demorou muito.
Uma sombra desprendeu-se de cima e aterrou silenciosamente no piso de ao da
doca. Rhun juntou-se a eles, seguido instantes mais tarde por Bernard. Ambos tinham
facas desembainhadas e sangrentas. Erin perguntou-se quantos homens teriam matado
nessa noite.
Bernard guardou a sua lmina e ajudou Erin a iar rapidamente Christian para fora
do barco, e depois o cardeal carregou o corpo sozinho.
O caminho at l acima deve estar desimpedido disse Rhun. Mas temos de estar
atentos ao chegarmos estrutura no topo.
Conduziu-os a uma longa escada de metal, espiralada em torno de um pilar de beto
prximo, em direo plataforma l em cima. Uma vez nas escadas, Rhun passou a
Jordan uma pistola automtica. Devia t-la confiscado a um dos guardas.
Jordan voltou a colocar a espingarda ao ombro e empunhou a arma mais gil.
No dispare a menos que seja necessrio aconselhou Rhun. A minha lmina
mais silenciosa.
Ele assentiu, como se falassem de tacos de golfe.
Enquanto subiam cada vez mais alto, Erin concentrava-se em agarrar firmemente o
frio e escorregadio corrimo de metal. Os ventos atacavam-na com rajadas sbitas.
Deparou-se com um patamar manchado de sangue e contornou cuidadosamente a mcula,
procurando no imaginar a carnificina.
sua frente, as botas de Jordan subiam com mais confiana. Atrs dela, o cardeal no
parecia ter dificuldade em trepar, carregando Christian ao ombro.
Rhun desaparecera de novo mais adiante, mas a sua presena era evidente. Ela ouviu
um baque surdo, algures acima da sua cabea. Momentos depois, chegaram ao topo das
serpenteantes escadas. As luzes eltricas pareciam demasiado intensas e glidas, depois
das sombras l em baixo.
Rhun estava sobre o corpo de mais um guarda.
Jordan reuniu-se a ele, agachado, de pistola em riste.
Erin acotovelava-se com Bernard no topo das escadas, enquanto os outros dois faziam
uma rpida prospeo da rea imediata. quela altura, os ventos esmagavam-se contra ela,
chicoteando-lhe o cabelo, mordendo-lhe o bluso de pele.
Por fim, Rhun e Jordan voltaram.
O lugar est deserto disse Jordan. Devem manter aqui apenas um mnimo de
pessoal.
Rhun apontou a superestrutura no alto.
H ali uma porta.
Cruzaram rapidamente, em grupo, o espao aberto. A estrutura diante deles parecia
uma rplica de um castelo de proa de veleiro antigo, com as suas janelas altas, cordames
falsos e at mesmo o gurups com uma figura de proa. Assemelhava-se a um navio
irrompendo de um mar de ao.
Rhun conduziu-os a uma porta. Abriu-a com um rangido, revelando um longo
corredor. Apressou-os a transpor o limiar, fechando a porta atrs de si, mas reteve-os
entrada.
Ergueu uma mo e trocou um olhar significativo com Bernard. Erin conjeturou que
deviam ter ouvido algo, possivelmente um batimento cardaco ou algum sinal de vida.
Com um acenar de cabea de Bernard, Rhun precipitou-se para diante como um co solto
sobre uma raposa. Desapareceu nas sombras. Ao longe, uma porta fechou-se com fora,
acompanhada de um estrondo do que pareciam ser tachos e panelas.
Rhun regressou um momento depois, deslizando da escurido e fazendo-lhes sinal
para avanarem.
Jordan olhou Rhun intensamente.
Um cozinheiro. Rhun ergueu o brao, revelando uma esverdeada garrafa de vinho.
E encontrei isto.
Bernard tomou-o rapidamente.
Erin sabia que o vinho podia ser consagrado e usado para ajudar Christian a sarar.
Esperou que fosse suficiente.
No ouo mais nada disse Rhun. Nem um arrastar de ps, respirar ou pulsar.
Bernard concordou.
Acho que estamos sozinhos.
De qualquer forma, melhor termos cuidado alertou Jordan.
Enquanto avanavam pelo corredor, Erin percebeu o significado da ausncia de
qualquer presena viva.
Isso significa que o Tommy no est aqui?
Ou Iscariotes ou Elizabeth.
Recordou o helicptero que os atacara.
Estariam eles a bordo? Se sim, para onde se dirigiam?
Temos de procurar minuciosamente, para termos a certeza observou Rhun. E se
no estiverem aqui, temos de tentar descobrir para onde foram.
E porque Judas arrebatou o Primeiro Anjo, antes de mais acrescentou Bernard,
ajustando o peso de Christian no seu ombro. Em que que o rapaz faz parte do seu
plano?
O plano do Armagedo, recordou-se Erin.
A passagem terminava num imenso salo, delineado por estantes de livros de ambos
os lados, com janelas arqueadas sobre o mar l em baixo. Uma impressionante roda de
leme erguia-se diante das janelas. Pelos expositores contendo antigos objetos nuticos,
parecia um museu.
Rhun cruzou o espao at enorme lareira disposta entre as estantes, estendendo a
mo.
Ainda est quente.
O chefe saiu claramente pressa comentou Jordan. Devia estar naquele outro
helicptero.
Mas porqu?
Vou tratar do Christian aqui disse Bernard, carregando o corpo para junto da
lareira e depositando-o num sof. Vejam o que conseguem descobrir.
Erin j estava em movimento, vislumbrando um par de portas de elevador direita,
emolduradas por um ornado gradeamento de bronze. Outras portas fechadas alinhavam-
se pelas paredes, provavelmente conduzindo a um labirinto de quartos e corredores.
Ignorando-as, avanou at roda do leme. Esta marcava o posto simblico do capito
daquele navio encerrado em ao. As altaneiras janelas ofereciam uma vista dominante
sobre o mar, viradas a leste, na direo da costa distante, onde as estrelas tinham
comeado a desvanecer-se com a aproximao do novo dia.
Sentindo o tempo a esgotar-se, olhou para a direita, para a porta mais prxima. Talvez
o capito conservasse os seus espaos mais valiosos perto do seu posto de comando.
Dirigiu-se a essa porta e encontrou-a trancada.
Jordan notou a sua frustrao, enquanto lutava para a abrir.
Com licena disse Jordan. Eu tenho uma chave.
Ela voltou-se para ele. Como...?
Ele baixou a espingarda, apontou fechadura e disparou.
A detonao f-la saltar, mas o resultado arrancou-lhe um sorriso. A fechadura foi
rebentada, deixando um buraco na porta.
Abriu-a facilmente, revelando um escritrio privado forrado a lambris de nogueira
num requintado estilo vitoriano, com um mural botnico intricadamente pintado na
parede, representando realistas flores, folhas e tortuosas trepadeiras, misturadas com
borboletas e abelhas. Parecia menos decorativo do que educativo, como algo que se
encontraria num texto renascentista sobre Botnica.
Erin foi direta imensa secretria, uma pea slida com pernas trabalhadas e um
tampo de couro juncado de papis.
Jordan seguiu-a.
Rhun aproximou-se do limiar, atrado pela comoo.
Cuidado avisou ele. No sabemos...
Subitamente, as delicadas pinturas na parede ganharam vida. As folhas desprenderam-
se dos ramos, as flores libertaram-se girando dos caules, uma disperso de borboletas e
abelhas saiu da parede.
Todo o motivo era uma colagem mortal.
Encheu o ar num atordoante caleidoscpio de movimento e cor.
E investiu sobre Rhun.
CAPTULO 41
06h58
Judas estacou junto da pedra de altar, incapaz de se aproximar mais dela. Tinham
passado sculos desde que a vira pela ltima vez em carne e osso. Por um instante,
considerou esquecer tudo e correr para ela, implorando o seu perdo.
Ela ofereceu-lhe essa via, agora.
Meu amor, ainda h tempo para impedir tudo isto.
Uma traa esvoaou diante dos olhos dele, quebrando o poo de olhar escuro com
asas de esmeralda. Ele recuou um passo.
No...
Todos os sculos desperdiados, em que podamos ter estado juntos. Tudo para
servir este obscuro destino.
Depois do regresso de Cristo, podemos passar a eternidade juntos.
Ela fitou-o tristemente.
Acontea o que acontecer, nunca ser assim. O que fazes est errado.
Como pode ser? Nos sculos que se passaram, aps a tua revelao do meu
desgnio, recolhi pedaos e fragmentos de outras profecias para compreender o que devia
fazer, como trazer ao mundo o Armagedo. Procurei ugures de todas as idades e cada
um deles confirmou o meu destino. Contudo, s quando soube do rapaz, deste imortal
to semelhante, porm to diferente de mim, recordei algo que tu me mostraste, meu
amor. Uma das primeiras predies, antes de fugires do meu lado. Eu tinha-o esquecido,
considerara-o de pouca importncia.
Ele voltou-se para o Primeiro Anjo.
Depois, veio este rapaz prodigioso.
Tu vs as sombras que eu lano e pronuncia-las como reais contraps ela. Elas
so apenas um caminho, uma sombra de possibilidade. Nada mais. So as tuas aes
obscuras que lhes do corpo, que as imbuem de significado e peso.
Est certo que o faa, mesmo pela mais nfima possibilidade de trazer Cristo de
volta.
No entanto, construste tudo isso na tua mente apenas, baseando todos esses atos
nas profecias que roubaste de mim. Como poderia algo de bom advir de tal quebra de
confiana?
Por outras palavras, um ato de traio. Ele sorriu, quase vacilando com as
primeiras palavras dela, mas agora libertado. Pois eu sou o Traidor, no vs? O meu
primeiro pecado levou ao perdo de todos os pecados, com a morte de Cristo na cruz.
Agora, pecarei de novo para O trazer de volta.
Ela fraquejou contra a parede, desnudando as correntes que a prendiam, claramente
reconhecendo a determinao nele.
Ento, porque me prendeste aqui? S para me atormentar, forando-me a assistir?
Por fim, Iscariotes encontrou foras para chegar at ela. Inspirou a fragrncia do
ltus, da pele que outrora beijara e acariciara. Estendeu a mo e tocou-lhe a clavcula nua,
ousando tal violao com apenas um dedo.
Ela inclinou-se para ele, como que para o persuadir com o corpo, onde as palavras
tinham falhado.
Em vez disso, ele deslizou o dedo para a volta do seu colar de ouro e fechou o punho
em torno dele, fazendo oscilar o fragmento de prata entre os seus seios perfeitos.
Os olhos dela dardejaram, inundados de entendimento e horror. Ela afastou-se,
comprimindo as costas contra a parede.
No.
Ele puxou com fora e quebrou a corrente. Recuou com o prmio, deixando o ouro
deslizar por entre os dedos, at segurar apenas o fragmento de prata.
Com esta lmina, posso matar anjos e revolver os prprios cus.
Ela voltou-se para Tommy, mas as suas palavras eram para Judas.
Meu amor, tu no sabes nada. Moves-te na escurido e chamas-lhe dia.
s palavras dela, Judas virou costas e caminhou para o rapaz, preparado para
cumprir o seu destino.
Por fim.
07h04
Elizabeth viu Iscariotes agarrar Tommy por um brao e arrast-lo bruscamente para a
pedra negra, no centro da cmara. Ela sentia o manto de malignidade em torno do altar
negro, to denso que mesmo o cho de pedra por baixo parecia incapaz de suportar o seu
peso sacrlego, abrindo-se numa disperso de pequenas fendas.
Tommy gritou, no se querendo aproximar.
O seu apelo incendiou algo dentro dela. Lanou-se para diante, disposta a libert-lo.
Antes que pudesse dar dois passos, ouviu uma ordem sussurrada a ecoar dos
escuros tneis que desembocavam ali, apontando para mais uma aranha naquela teia
obscura, algum mantido oculto at ao momento. A voz pareceu-lhe familiar, mas antes
que o pudesse ponderar, quatro figuras duas de cada tnel de ambos os lados
irromperam diante dela, revelando as presas.
Strigoi.
Eram bestas imponentes, de peito nu e tatuado com blasfmias. Exibiam cicatrizes e
pedaos de metal voluntariamente espetados na carne. Formaram uma parede entre ela e
Tommy.
Para l deles, Iscariotes arrastava o rapaz para a pedra negra. A sua superfcie
enviesada estava polida dos muitos corpos a sacrificados. Uma ligeira concavidade fora
cavada junto da base, onde milhares de cabeas tinham repousado, descobrindo as
gargantas ao teto.
Impelido pelo terror, Tommy arrancou-se ao aperto de Iscariotes. Sabia o que lhe ia
ser exigido. O rapaz no era ingnuo.
No. No me obrigue a fazer isto.
Iscariotes manteve-se afastado e ergueu os braos, o pedao de prata cintilando luz
das tochas.
Eu no te posso obrigar. Tens de fazer este sacrifcio de tua livre vontade.
Ento, escolho no o fazer.
Elizabeth sorriu perante a sua tenacidade.
Deixa-me persuadir-te disse Iscariotes.
As restantes traas caram sobre Elizabeth, na face, na prega do pescoo, vrias nos
braos e ombros.
Num segundo, mat-la-o asseverou Iscariotes. O seu sangue ferver. Ela
morrer em agonia. isso que escolhes?
Elizabeth compreendeu, repentinamente, que Iscariotes no lhe pedira para cuidar do
rapaz para o manter calmo, mas para conquistar o seu corao, de modo a que a pudesse
usar como arma. Para seu horror, percebeu quo bem se encaixara na armadilha.
Os olhos de Tommy encontraram os seus.
No o faas por mim disse, friamente. No significas nada para mim, Thomas
Bolar. Nada alm de diverso, algo com que brincar antes de devorar.
Ela mostrou-lhe as presas.
Tommy encolheu-se com as suas palavras, ao ver os dentes. Porm, os olhos nunca se
desviaram dos dela. Manteve o olhar fixo nela por um longo momento, depois voltou-se
para Iscariotes.
O que quer que eu faa? perguntou Tommy.
Maldito sejas, rapaz.
Ela semicerrou os olhos sobre a parede de strigoi diante de si, calculando a sua fora
jovem contra a dela. Pesou quanto tempo levariam os ferres a mat-la. Conseguiria
libertar Tommy a tempo? Os seus ouvidos apurados detetaram um arrastar de passos do
lado do rio ardente, atrs de si.
Mais strigoi espreitavam nos tneis do outro lado.
Tommy nunca conseguiria escapar para o exterior sozinho.
Deita-te nesta pedra disse Iscariotes. tudo o que tens de fazer. Eu farei o resto
e ela viver. Prometo-te isso.
Quando o rapaz avanava, ela gritou-lhe de novo:
Tommy, podemos no sair deste lugar com vida, mas isso no significa que
tenhamos de nos submeter vontade dele.
Iscariotes riu, um riso vindo do fundo.
Vocs, mulheres Bathory! Se alguma coisa aprendi, foi que as vossas alianas so to
volveis como o vento.
Ento, o meu sangue verdadeiro!
Elizabeth girou para o lado, o seu vulto um borro. Rasgou a garganta de Henrik,
antes que ele a pudesse ver. Os outros strigoi atiraram-se a ela, o mais prximo agarrando-
lhe o brao. Ela arrancou-lhe o membro do encaixe, atirando-o para o lado. Dois outros
saltaram alto e esmagaram-na contra o cho. Ela lanou-se contra eles, conseguindo repeli-
los um passo, mas outras bestas irromperam dos tneis vizinhos e prenderam-lhe os
braos e as pernas.
Ela debateu-se, mas sabia que era intil.
Falhara no apenas por no libertar Tommy, como tambm por no morrer. Com a
sua morte, Iscariotes no teria mais domnio emocional sobre Tommy. O rapaz poderia
recusar-se.
Iscariotes devia ter adivinhado a inteno dela.
Observou uma traa arrastar-se pela sua face, depois erguer-se suavemente nas
delicadas asas e afastar-se.
Ele precisava dela viva.
07h10
07h26
07h52
07h53
Erin puxou Jordan para longe da pira fria de fumo negro. Recuperou suficientemente
as foras para se levantar, mas continuava a friccionar o peito. Estaria a esforar-se
demasiado aps a sua recente provao? Ela experimentou alvio ao sentir a sua mo
hmida ganhar calor na dela.
Uma voz ergueu-se para l da nvoa.
No se podem aproximar mais.
Vinha da mulher acorrentada parede. Vestia uma simples tnica branca e sandlias
de couro, parecendo sada de uma urna da Grcia Antiga.
Erin circundou a nuvem escura o suficiente para lhe ver melhor o rosto.
Inequivocamente, era a mulher do retrato, do quadro a leo de Iscariotes e,
provavelmente, a mulher que Bernard encontrara em Jerusalm. Estava amarrada a uma
argola de ferro fixa pedra, aparentemente to prisioneira quanto o rapaz.
Mas o que era ela?
As suas meditaes foram interrompidas quando Rhun lanou um strigoi alto no ar,
fazendo-o voar pela bruma sobre o altar. Ao atingir a nuvem, um grito irrompeu da
garganta da besta. O corpo imobilizou-se de imediato num gesto de agonia. Por um
instante, Erin pensou ver uma sombra enegrecida brotar-lhe dos lbios e narinas,
redemoinhando para se juntar ao negrume sobre Tommy. Recordou os esboos de
Elizabeth no seu macabro dirio de pesquisa, como ela descrevera a mesma essncia
enegrecida associada aos strigoi.
Depois, o corpo embateu na parede distante e despedaou-se como porcelana.
Horrorizada, Erin deu um passo atrs.
Como iam conseguir salvar o rapaz? Estaria sequer vivo?
Como que lendo os seus receios, a mulher falou.
Eu posso alcan-lo.
Erin fitou-a.
Ela ergueu os braos atados.
Liberte-me.
Erin e Jordan olharam-se.
Jordan encolheu os ombros, mantendo a arma apontada luta do outro lado da
cmara. Rhun combatia ao lado de Bernard e Elizabeth, para livrar a caverna dos
derradeiros strigoi.
Nesta altura disse ele , qualquer inimigo de Iscariotes meu amigo.
Porm, Erin hesitava, recordando o quadro a leo, com o brao de Iscariotes em
torno dela, olhando-a ternamente.
Algum tem de ir at l e salvar o rapaz relembrou-lhe Jordan.
Ela assentiu, apressou-se em diante e, usando um punhal de Jordan, atacou a grossa
corda que prendia as mos da mulher argola de ferro. Jordan continuou a vigi-la.
Os olhos da mulher encontraram os de Erin, enquanto esta trabalhava, irradiando paz
por entre todo o derramar de sangue.
Erin engoliu em seco, reconhecendo quem procurava libertar, mas necessitando da
confirmao.
a Sibila de Cumas.
O queixo da mulher inclinou-se ligeiramente em reconhecimento.
um dos muitos nomes que carreguei ao longo dos sculos. De momento, prefiro
Arella.
E ajudar o rapaz?
Erin olhou o dbil vulto deste sobre a pedra.
Tenho de o ajudar... tal como ajudei um outro rapaz, h muito tempo.
As mos de Arella soltaram-se, por fim, e ela juntou as palmas como que em orao,
os dedos indicadores a milmetros do rosto.
Jordan e Erin recuaram, sentindo algo a avultar-se no interior daquela outra.
Uma luz dourada irradiou, subitamente, do corpo da sibila, impelindo-os mais para
trs. O crculo exterior dessa luz tocou Erin, expulsando o frio dos seus ossos, como o
calor aveludado de um sol de vero, cheirando a erva e a trevo. Erin sorveu o ar. Sentiu-se
inundada de jbilo, recordando-se do momento em que o Evangelho de Sangue se
transformara de um simples bloco de chumbo num tomo encerrando as palavras de
Cristo.
Por fim, achou o termo para descrever o que sentia.
Sacralidade.
Ela estava na presena da verdadeira sacralidade.
Ao seu lado, Jordan sorria, seguramente sentindo o mesmo. Por instantes, no meio
da batalha, houve paz. Encostou-se a ele, partilhando calor e fora e amor.
H alguma coisa que possamos fazer para ajudar? perguntou Erin.
Voltou toda a sua graa para Erin.
No. Nem vocs nem os sacerdotes podem salvar o rapaz. S eu o posso fazer.
A mulher Arella afastou-se da parede e avanou na direo da pira ascendente de
fria escurido. Os poucos liames de negrume nas bordas foram queimados pela
aproximao do seu brilho. Outros tentculos retraram-se de volta nuvem, como que
receosos do seu contacto.
Depois, ela impeliu-se pela prpria bruma, o seu esplendor mais intenso, rechaando
a escurido que rodopiava em volta. O seu brilho estendeu-se para cima de ambos os
lados, emplumando-se contra o negrume, assumindo uma forma familiar.
Erin visualizou o desenho antigo retirado do cofre.
Asas.
Como podia tal ser existir na Terra?
Compreendeu que fora mais fcil para ela acreditar em strigoi, na presena do mal
sacrlego tornado carne, do que aceitar a presena do bem. Mas no podia negar o que
agora presenciava.
Arella avanou para o altar, para o lado do rapaz.
A escurido fechou-se sobre ela, ferindo o seu brilho.
Um brado ergueu-se do lado distante.
No... Arella... no...
Iscariotes ps-se de p, o sangue ensopando-lhe a camisa. Recuou, mergulhando num
tnel atrs de si e desaparecendo.
Jordan preparou-se para o perseguir, mas Erin agarrou-lhe o brao, querendo-o por
perto.
Ele sabe que est perdido, mas o rapaz pode precisar de ns.
Jordan esboou um esgar de frustrao, mas assentiu, mantendo a arma apontada ao
tnel.
Arella ajoelhou-se no cho spero. As suas asas dobraram-se, formando um manto
protetor em torno do rapaz. Tommy jazia deitado de costas, com uma pesada rede a
cobrir-lhe o corpo. A sua pele exibia um tom creo e azulado, como se j tivesse
morrido.
demasiado tarde.
A garganta de Erin estreitou-se.
Mas a sibila tocou-lhe o rosto plido e a cor floresceu a, alastrando da ponta dos
seus dedos, prometendo, pelo menos, esperana para o rapaz.
Arella levantou-lhe a cabea da pedra, amparando-lhe o pescoo, expondo um
refulgente fragmento de prata que lhe penetrava a garganta descorada, o sangue vertendo
da ferida. A sua outra mo soltou um dos cantos da rede. Parecia j ter sido arrancada.
Fez deslizar o brao por baixo e, gentilmente, puxou para fora o corpo magro do rapaz.
Mas a escurido no estava disposta a deixar escapar a sua presa to facilmente.
Quando ela lhe pegou e se levantou, a escurido fundiu-se em garras negras, que se
enterraram fundo na sua luz, rasgando e dilacerando.
Arella arquejou, caindo sobre um joelho.
As costas da sua tnica rasgaram-se, revelando golpes escuros nos ombros.
Erin quis ajudar, mas os braos caram-lhe, compreendendo que no havia nada que
pudesse fazer.
Arella lutou por se voltar a pr de p, erguendo o rapaz nos seus braos. A sua luz
dourada era agora mais fraca, devorada nos limites numa renda de frangalhos. Arqueou-
se contra a tormenta, que se tornava cada vez mais feroz em seu redor. A nuvem
encerrou-se mais densamente, tentando sufocar-lhe o brilho, atacando-a como uma
dilacerante tempestade de gelo.
Arella deu um passo vacilante, depois outro.
Parecia concentrar o resto do seu brilho em torno do rapaz, ficando indefesa face
violenta investida.
Deu mais um passo depois, saiu finalmente da escurido, caindo de joelhos,
aninhando o rapaz no seu colo. A sua tnica eram farrapos, a pele mosqueada de negras
pstulas e escuros rasges, o cabelo azeviche tornado num branco espectral.
Erin precipitou-se para a frente, enquanto a mulher tombava para o lado. Agarrou
Tommy por debaixo dos braos e arrastou a sua forma inerte para mais longe da
escurido.
Jordan pegou em Arella e fez o mesmo.
Temos de os tirar daqui disse Erin. Para o mais longe possvel deste lugar
horrendo.
Por essa altura, o combate cessara na caverna.
Os strigoi restantes pareciam ter fugido, na sequncia da retirada de Iscariotes.
Rhun e Bernard juntaram-se a ela, mas a condessa abriu caminho por entre eles,
chegando rapidamente ao lado do rapaz.
O seu corao disse Elizabeth, os olhos verdadeiramente assustados. Est a ficar
mais fraco.
Rhun anuiu, como que pressentindo o mesmo.
Ele no pode sarar com isso ainda cravado alertou Elizabeth.
Antes que algum pudesse impor cautela, a condessa agarrou o fragmento, arrancou-o
do pescoo do rapaz, e lanou-o pelo espao. O sangue continuava a verter da ferida de
Tommy.
Porque no est a sarar? questionou Erin.
Olharam para a lmina.
De um tnel prximo do lugar onde jazia, surgiu uma figura, materializando-se da
escurido.
Iscariotes fitou-os com uma fria glida.
Depois, fitou Arella em farrapos no cho e rapidamente recuperou o pedao de prata
largado. Distrado pela dor, Iscariotes cortou-se na lmina. Golpeou-lhe o dedo, que
verteu douradas gotas de luz, em vez de sangue.
Com um grito de choque, caiu para trs.
Jordan disparou contra ele, os tiros faiscando na pedra.
Rhun precipitou-se para a frente, cruzando o espao com a velocidade que s um
sanguinista podia dominar, a sua karambit reluzindo argntea luz das tochas.
Ento, Iscariotes foi agarrado e puxado de volta ao tnel.
E um outro irrompeu da, para enfrentar Rhun em seu lugar.
08h06
Com uma mo sobre a garganta e lgrimas nos olhos, Erin viu o corpo de Leopold
afundar-se no cho. Recordou um homem mais brando, o enrugar estudioso do seu
olhar, o seu rebuscado humor autodepreciativo. Recordou acordar nos tneis sob Roma,
certa de estar morta, descobrindo-o a segurar-lhe a mo e a usar os seus conhecimentos
mdicos para a reanimar.
O homem salvara-lhe a vida.
Contudo, os seus segredos tinham causado a morte a tantos.
Subitamente, o cho sacudiu-se violentamente, como se um punho tivesse sido
desferido por debaixo dos ps. A nuvem negra em torno do altar contorceu-se e
revoluteou, retalhando e vergastando. O ranger da rocha e o estrondear da pedra a cair
ecoou dos tneis em redor.
Hora de partir, pessoal! bradou Jordan.
Erin ajudou Elizabeth com Tommy, enquanto corriam para a ponte. Rhun abria
caminho, enquanto Bernard e Jordan seguiam atrs, com Arella suspensa entre eles. O
cho continuava a tremer. Adiante, uma fenda abriu-se sobre o arco de pedra transpondo
o rio, que se erguia cada vez mais alto das margens de pedra.
Depressa! gritou Erin.
Apressaram-se. Elizabeth distanciou-se rapidamente dela, mesmo sobrecarregada com
o rapaz. Voou pela ponte, ultrapassando mesmo Rhun, que agora seguia nos seus
calcanhares. Reuniram-se ao punhado de sanguinistas que guardavam os tneis de
regresso superfcie, onde se encontrariam com Christian.
Erin correu, deparando-se com a parede fumegante do calor sulfreo, abrasador
depois do gelo da caverna. Receava a rocha escorregadia, mas no abrandou sobretudo
quando um pedao de ponte se desmoronou, mergulhando na ebulio em baixo. Mais
fendas se abriam sob os seus ps.
Subitamente, um grande abalo derrubou-a. Na ponta dos seus dedos, a extenso
adiante caiu. Ela mediu o fosso impossvel, enquanto um redemoinhar de vapor e gua
explodia do fundo.
Ento, surgiu Rhun, voando pelo espao como um corvo escuro. Aterrou junto a ela,
p-la de p, depois nos seus braos e saltou sobre o fosso, de um mpeto. Estatelou-se
com ela no lado distante, amortecendo o impacto com o ombro e rolando-a para
segurana.
Jordan...
Bernard saltou para junto deles, com a sibila nos seus braos. Jordan surgiu a voar ao
seu lado. Ambos os homens aterraram de p embora Jordan tivesse de dar vrios
passos curtos para se equilibrar.
Atrs deles, todo o vo se despedaou e esboroou no rio.
O calor e o vapor crestavam a pele de Erin e queimavam-lhe os pulmes.
Continuem! ordenou Bernard.
Como um todo, recuaram rapidamente pelo labirinto. Os receios latentes impeliam-
na mais e mais para cima. Sentia o contnuo estremecer debaixo dos ps. Imaginou a
escurido a agitar-se nas profundezas. Porque no cessava?
Seria tarde demais?
Estariam os portes do Inferno ainda abertos?
08h15
Rhun corria ao lado de Elisabeta, enquanto esta carregava nos braos Tommy, o
profetizado Primeiro Anjo. Lembrou-se de a ouvir gritar quando entrara na caverna fria.
Salva o rapaz!
Ele sabia, pela angstia na sua voz, que no fora a profecia a despoletar a necessidade
de proteger o rapaz. Ela apertava Tommy contra o peito, a sua boca crispada numa linha
de preocupao. O pulsar do rapaz persistia inconstante, fraco mas determinado,
sintonizado com a expresso de Elisabeta. Rhun vigiava cada passo seu, pronto a segur-la
se fraquejasse. O sangue vertia de um milhar de golpes, mas ela parecia retirar foras de
um poo bem mais fundo do que o de um strigoi.
Era o de uma me decidida a salvar o filho a todo o custo.
Erin e Jordan seguiam-nos e, no fim, o cardeal, que carregava a mulher de tez escura.
Recordou a luz dourada que irradiara dela, evocando a convico de Bernard de que ela
era um anjo. No entanto, conhecia claramente Iscariotes e tinha alguma relao com ele.
Mas porque procuraria um anjo o Traidor de Cristo?
Porque o procuraria quem quer que fosse?
Rhun fitou o sangue que lhe manchava a manga.
O sangue de Leopold.
Havia tanto por conhecer.
Finalmente, alcanaram o final do tnel e escaparam pelo ninho de pedras at praia.
O cu permanecia negro, escondendo o Sol. Olhou para Elisabeta. Por agora, mantinha-se
a salvo do dia ocultado. Mas por fim caiu de joelhos com o rapaz, na areia. O sol
levantado ainda pesava, claramente, sobre ela, debilitando mesmo a sua imensa fora.
Rhun perscrutou o cu. O fumo alastrara pelo horizonte. O que quer que Iscariotes
tivesse posto em ao, tirar o Primeiro Anjo do templo no o travara.
Parecendo igualmente preocupado, Bernard reuniu-se a eles e baixou a mulher sobre
a areia. Ela no abriu os olhos, mas um brao moveu-se debilmente, roando a face,
como que para afastar teias de aranha.
Ela ainda vivia.
Elisabeta pousou delicadamente o rapaz junto dela, deitando-lhe a cabea na areia e
examinando-lhe o ferimento na garganta. Continuava a derramar sangue, embora talvez
ligeiramente menos. Mas seria porque sarava ou porque simplesmente se esgotava de
vida?
Elisabeta segurou-lhe a mo. Rhun no duvidava de que ela mataria quem quer que
tentasse fazer mal ao rapaz. Recordou o feroz instinto protetor dela em relao aos filhos,
mesmo quando assassinava os filhos dos outros. As suas lealdades eram inexplicveis
para ele.
O vento agitou-lhe a capa e um feixe de luz do dia filtrada incidiu-lhe sobre a face.
Rhun correu para ela, mas a sua pele no ardia. Evidentemente, havia suficientes cinzas
impuras a cobrir o ar para permitir aos strigoi caminhar sob aquele temvel cu.
Ele imaginou a nuvem de cinza a rodear o mundo, despertando horrores h muito
adormecidos em criptas, sepulturas e outros lugares desprovidos de Sol.
Elisabeta sentiu tambm a mudana, erguendo o rosto ao cu pardacento. Mesmo
toldado de cinza, era o primeiro cu diurno que ela contemplava a olho nu h sculos.
Examinou-o por um longo momento, antes de voltar a sua ateno para o rapaz ferido na
areia.
Bernard avanou para o outro lado de Tommy. Despiu o casaco do fato e desapertou
a camisa branca manchada de sangue, revelando a armadura oculta. Abriu o fecho de um
compartimento estanque sobre o corao e tirou para fora um simples livro encadernado
a couro.
Rhun arquejou face ao objeto.
Era o Evangelho de Sangue.
08h21
Era uma tocha desenhada apressadamente e encoberta pela cinza, mostrava um feixe
de juncos atado e em chamas.
Atrs dela, Bernard dizia:
Podemos ligar o rapaz aqui e aplicar-lhe presso sobre a ferida durante a viagem.
Ele ir... dever sobreviver viagem at Roma.
Christian apontou um segundo helicptero parado na praia. Devia ter sido trazido
pelos reforos do cardeal.
Vou buscar o estojo de primeiros socorros. O aparelho deve ter combustvel
suficiente para chegar Cidade do Vaticano. No mais de uma hora de voo. Uma vez no
ar, alertarei o pessoal mdico para estar a postos.
Bathory escarneceu.
O rapaz no tem um ferimento natural. No pode ser curado com a vossa medicina
moderna.
Por uma vez, Erin viu-se a concordar com a condessa. Mesmo sem as capacidades
curativas de Tommy, a ferida j devia ter comeado a coagular.
Considerou novamente o smbolo.
Esto todos errados.
Enquanto Christian corria a buscar o estojo de primeiros socorros, Bernard
experimentava deitar vinho consagrado na ferida, murmurando preces em latim. Limpou-
a com a sua manga.
O sangue avolumou-se, fluindo agora mais intensamente.
Erin notou um vago brilho dourado, apenas evidente devido obscuridade. Talvez
assinalasse a sua peculiar essncia angelical, o milagre que sustentava a sua vida, o mesmo
milagre que, possivelmente, salvara Jordan em Estocolmo.
No sabe o que est a fazer disse Bathory, arrancando as mos de Bernard do
rapaz. Apontou Arella. Ela carregava a lmina que o feriu. Ela deve saber mais sobre
isso. Despertem-na.
Erin tentou, abanando o ombro da mulher, mas no obteve resposta.
Temos de tirar o rapaz destas areias malditas e lev-lo para Roma exigiu Bernard,
quando Christian regressou. A poderemos salv-lo.
Erin recordou o aviso anterior de Arella.
Nem vocs, nem os sacerdotes podem salvar o rapaz. S eu o posso fazer.
Erin voltou-se para Bernard e expressou em voz alta aquilo em que comeara a
acreditar.
Esto todos errados.
Como que ouvindo a sua prpria mensagem pronunciada, Arella moveu-se. O seu
brao tombou debilmente na direo de Tommy, da sua garganta ensanguentada. Com o
toque, uma gota de sangue parou de se derramar da ferida. Susteve-se a. Depois, os dedos
deslizaram e a gota inflou e derramou-se pela sua pele sem cor.
Ela pode cur-lo insistiu Erin.
Bathory anuiu.
Foi uma arma de anjos que o feriu. S um anjo poder cur-lo.
Como? Questionou Bernard.
Erin fitou o smbolo, sabendo que era importante. A mulher no o teria traado sem
inteno. A sibila nunca traava nada que no fosse importante. Recordou o esboo
encontrado no cofre de Iscariotes.
Uma tocha!
Erin chamou os outros a si e apontou a areia.
Era um dos cinco smbolos inscritos no desenho, representando as cinco sibilas.
E o que quer dizer? indagou Bernard, enquanto Christian regressava.
Ela est a tentar mostrar-nos para onde ir, como cur-lo. A tocha em chamas o
smbolo da Sibila Lbia, uma das profetisas que preconizaram a vinda de Cristo. Segundo a
mitologia local, essas guas tm, supostamente, propriedades curativas milagrosas. Alguns
acreditam que Cristo permaneceu a, com Maria e Jos, depois de fugir ao massacre de
Herodes.
Conheo essas histrias disse Bernard. Mas a Sibila Lbia estabeleceu morada
em Siwa, um osis nos desertos do atual Egito. Do outro lado do Mediterrneo. O rapaz
nunca conseguir sobreviver a to longa viagem.
Erin reconheceu essa verdade e permaneceu em silncio.
Tomando-o como aquiescncia, Bernard endireitou-se.
Levaremos ambos para Roma.
Gesticulou para Christian.
Carregue o rapaz. Eu levo a mulher.
Bathory interps-se entre Christian e Tommy.
No far tal coisa.
Bernard olhou-a em fria.
Se o rapaz no pode ser curado aqui, se no consegue chegar a Siwa, o qu ento?
insistiu ele. Pelo menos se o levarmos at Roma, Baslica de So Pedro, talvez possa
viver o suficiente para abenoar o livro e revelar os segredos contidos nele.
Ento no lhe importa verdadeiramente se o rapaz sobrevive? contraps Jordan.
Desde que cumpra a sua funo.
A expresso irada de Bernard respondeu-lhe.
Erin juntou-se a Bathory.
A vida desta criana mais importante do que quaisquer segredos.
Bernard confrontou-os, agitando um brao na direo do manto fnebre que alastrava
no cu.
As cinzas continuam a cair. Aquilo que foi corrompido, ainda no foi sanado.
Vimos os portes do Inferno escancararem-se debaixo do rapaz. O processo foi travado,
mas inevitvel. Aquilo que foi aberto, tem de ser encerrado. Temos at ao pr do Sol
para o impedir.
Porqu o pr do Sol? perguntou Erin.
Bernard olhou para os cus.
Li as narrativas sobre este lugar. Se os portes do Inferno forem abertos durante o
dia, devem ser fechados at ltima luz do dia ou no mais podero ser encerrados. E
isso mais importante do que qualquer vida, incluindo a do rapaz. A menos que atuemos
agora, sero incontveis as vtimas inocentes.
Mas esse ato que me parece duvidoso disse ela.
Jordan manteve-se do seu lado.
Estou com a Erin nisto.
A condessa manteve-se firme.
Tal como eu.
Rhun olhou-os, incerto, hesitando entre eles e Bernard, que tinha o peso de uma
dezena de sanguinistas atrs de si.
O que prope, ento, Erin?
Esqueamos o Evangelho, a profecia, a salvao do mundo. Centremos todas as
nossas foras em salvar este rapaz, uma criana que sofreu imensamente. Devemos-lhe
isso. Ele foi martirizado com a imortalidade pelo simples ato de tentar salvar uma pomba
ferida. Para mim, ele essa pomba. No vou deix-lo morrer.
A mo fria de Bathory encontrou a sua. Os dedos quentes de Jordan cingiram-lhe a
outra.
Diz-se que as guas curativas de Siwa so to poderosas, que a prpria sibila as
usava para se regenerar, para se manter imortal. Erin baixou o olhar para a mulher,
perguntando-se como um anjo podia parecer to apagado e frgil. Ainda podemos lev-
los at l, antes do pr do Sol. Cur-los a ambos.
O rapaz morrer seguramente, antes chegar ao destino argumentou Bernard.
Roma fica apenas...
Rhun cortou-lhe a palavra.
Como planeia curar o rapaz em Roma?
Temos mdicos. Temos sacerdotes. Mas mesmo que no os houvesse, o mais
importante seria abenoar o livro na Baslica de So Pedro.
Rhun franziu a fronte de desagrado.
O que o torna to certo de que o livro revelar os seus segredos em Roma?
Porque tem de ser assim. O cardeal tocou a sua cruz peitoral. Ou tudo estar
verdadeiramente perdido.
O olhar de Rhun oscilou entre Erin e Bathory.
Bernard, est a dar demasiada importncia a chegar baslica.
Foi onde o Evangelho de Sangue foi aberto e restitudo ao mundo.
Mas o livro foi levado at a com base nas palavras de Erin e Bathory Darabont.
Contudo, aqui estamos ns, com Erin de novo e outra mulher da famlia Bathory, ambas
dizendo para levar o rapaz at Siwa. Embora no saibamos com certeza quem a Mulher
Sbia, neste caso pouco importa. Ambas instam a que se leve o rapaz para o Egito.
No somos s ns acrescentou Erin, apontando Arella. Uma outra mulher f-lo
tambm. Um anjo que, nas suas prprias palavras, o achou indigno no passado.
Bernard deu um passo atrs face s suas palavras, mas estas pareceram atiar ainda
mais a sua fria.
Roma est a apenas uma hora de distncia insistiu. Vamos para a Baslica de So
Pedro e prestaremos ao rapaz os cuidados de que necessita. Se eu estiver errado, pode ser
a preparado para a longa viagem at Siwa.
Nessa altura, poder ser tarde demais argumentou Erin, gesticulando para o Sol
toldado.
Christian desviou-se, fitando esses mesmos cus.
O que quer que decidam, vou aquecer o helicptero. Depois, dizem-me para onde
ir.
O Christian tem razo disse Jordan, medida que as cinzas caam cada vez mais
intensamente sua volta. Este ar conspurcado pode tomar a deciso por ns. Se a cinza
se adensar mais, no vamos a lado nenhum.
Reconhecendo essa verdade, todos seguiram Christian. Rhun carregava Arella,
enquanto Bathory mantinha a posse do rapaz. Momentos mais tarde, o motor do
helicptero expetorava roucamente na praia, sufocado pela cinza, antes de roncar de volta
vida. Erin protegeu os olhos da areia e cinzas agitadas pelas hlices.
Tornou-se impossvel falar.
Uma vez junto ao helicptero, todos subiram a bordo. Bathory passou Tommy a
Erin, enquanto Bernard ajudava Rhun a instalar Arella sobre uma fila de assentos.
Christian mal lhes deu tempo de se sentarem, antes de injetar os esforados motores.
Levantou voo da praia e dirigiu-se para as guas plmbeas, fugindo ao turbilho de fogo e
fumo.
Para onde? bradou Christian da frente.
Roma! gritou Bernard, fitando o outro lado da cabina, desafiando-os a contestar.
Bathory fitou Erin com um brilho maligno no olhar. Ela retraiu-se, temendo o pior.
Mas no era ela o alvo da condessa. Movendo-se num borro veloz, Bathory virou-se
sobre o vizinho, lanou um brao volta da sua cintura e abriu de rompante a porta ao
lado dele. Nenhum deles tinha posto o cinto ainda e ambos, Bathory e Bernard,
tombaram de cabea porta fora, agarrados um ao outro.
Erin debruou-se presa pelo cinto, enquanto Christian virava o helicptero, a porta
batendo e abrindo ao vento. Ela viu os dois mergulharem na gua em baixo e depois
voltarem superfcie, ainda a lutar.
Jordan estendeu o brao e agarrou a porta, trancando-a.
Isso resolve a questo avanou ele, sorrindo, visivelmente apreciando o arrojado
gesto de Bathory para pr fim ao impasse.
Os trs entreolharam-se.
Christian fitou-os, uma pergunta bailando-lhe nos olhos verdes.
Erin inclinou-se para diante e tocou o ombro do jovem sanguinista.
Siwa disse firmemente.
Christian fitou Rhun e Jordan, obtendo acenos de confirmao. Virou-se para a frente
e encolheu os ombros.
Quem sou eu para contestar a trindade da profecia?
CAPTULO 47
... Um anjo do Senhor apareceu em sonhos a Jos e disse-lhe: Levanta-te, toma o Menino
e Sua me, foge para o Egito e fica l at que eu te avise, pois Herodes procurar o Menino
para O matar. E ele levantou-se, de noite, tomou o Menino e Sua me e partiu para o
Egito, permanecendo a at morte de Herodes. Assim se cumpriu o que o Senhor
anunciou pelo profeta: Do Egito, chamei o Meu filho.
MATEUS 2: 13-15
CAPTULO 48
14h07
Rhun virou-se num crculo lento, olhando com assombro a cratera varrida pela areia,
imaginando as suas fundaes de misterioso vidro. Mesmo quando ajudara Erin e Jordan
a desenterrar a entrada para o poo das guas curativas, sentira um ligeiro ardor emanado
do vidro. Quis ignor-lo como sendo o calor das areias, do sol escaldante, mas
reconhecia aquele ardor familiar, dos sculos a segurar a sua cruz.
O vidro queimava-o da sacralidade.
Sentira o mesmo do poo... e daquela estranha mulher angelical. Quando ela o roou
para curar Tommy, a gua gotejou-lhe das pontas dos dedos, salpicando na areia com tal
sacralidade, que ele tivera de dar um passo atrs, receoso.
Christian sentia claramente o mesmo, contemplando-a com um misto de
maravilhamento e respeito.
Rhun estremecia, sentindo todo o peso da natureza sagrada da cratera.
O seu prprio sangue, contaminado como era, ardia face divindade daquele lugar.
Temos de afastar a areia! bradou Erin.
Ela j estava de joelhos, desimpedindo uma seco de teste, revelando a salincia de
algo gravado em relevo no vidro. Fez-lhes sinal para que se espalhassem num crculo em
volta do poo.
Todos se lanaram ao trabalho, mesmo Tommy.
S Arella se manteve para trs, no mostrando interesse na escavao. Mas afinal, ela
j conhecia os segredos ali escondidos h muitas eras. Em vez disso, os seus olhos
mantinham-se fixos nos cus tingidos de cinzas, fitando a norte, quase expectante.
mais fcil se no lutarem contra a areia explicou Erin. Trabalhem com a sua
tendncia natural para fluir para baixo.
Ela demonstrou, impelindo a areia por entre as pernas como um co, empurrando-a
para a vertente mais baixa. Rhun e os outros seguiram-lhe o exemplo. Os gros de areia
queimavam sob as mos deste, com um calor que provinha de mais do que o Sol l no
alto.
Rhun escavou at ao leito de vidro da cratera. Mais do esboo que Erin revelara
surgiu, profundamente gravado na superfcie exposta. Varreu os gros, reconhecendo um
estilo egpcio na tcnica. Afastou mais areia, revelando um painel quadrado contendo uma
cena nica.
O resto da equipa desenterrou quadros similares, inscritos na superfcie urea.
Formavam um crculo de painis em torno do poo, narrando uma histria h muito
oculta.
Todos se puseram de p, tentando compreender.
Aparentemente atrada pela perplexidade deles, Arella avanou para o painel mais
prximo de Erin. Baixou-se e, suavemente, varreu a areia de uma pequena figura. O rapaz
encarava-os, mas o rosto estava de perfil, tpico do traado egpcio.
Parecem hierglifos murmurou Tommy.
Mas ali a histria no era de faras ou deuses egpcios. Gravado no vidro, um rapaz
de cabelo encaracolado trepava por uma duna estilizada, com um plano de gua a aguard-
lo do outro lado.
Mas no era um rapaz qualquer.
Cristo em criana? perguntou Erin.
Arella ergueu o rosto para eles.
Isto conta como um menino foi sozinho para o deserto procura de uma fonte
escondida. Ainda no tinha onze anos e brincava pelas areias, pelos lagos, como qualquer
menino.
O sangue de Rhun agitou-se ante o pensamento de Jesus em menino, a brincar no
deserto como qualquer outra criana inocente.
Arella aproximou-se do painel seguinte, arrastando-os com ela. A, o rapaz de cabelo
encaracolado chegava fonte de gua. Uma ave descansava do lado oposto, com linhas
entalhadas irradiando do seu corpo.
Erin estudou o desenho, uma ruga marcando-lhe a fronte.
O que aconteceu?
Voc a Mulher Sbia disse Arella. Diga-mo.
Erin baixou-se sobre um joelho e seguiu com o dedo os traos do painel,
descobrindo mais detalhes.
O rapaz tem uma funda na mo direita e pedras na esquerda. Devia estar a caar...
ou talvez a brincar. A representar a luta de David contra Golias.
Arella sorriu, irradiando paz.
Exato. Mas no havia nenhum Golias neste deserto. Apenas uma pequena pomba
branca com reluzentes olhos de esmeralda.
Tommy arquejou, fitando a mulher.
Eu vi uma pomba assim, em Massada... com uma asa partida.
O sorriso dela esmoreceu para a tristeza.
Como um outro, muito antes de ti.
Est a falar de Judas... Tommy baixou-se ao lado de Erin, observando a ave mais
de perto. Ele disse que vira uma, tambm. Quando era um rapaz. Na manh em que
conhecera Jesus.
Erin fitou Tommy, depois Arella.
A pomba foi sempre o smbolo do Esprito Santo para a Igreja.
Rhun esforava-se por compreender como aquela mesma ave podia ligar os trs
rapazes. E mais importante do que isso, porqu?
Arella simplesmente virou costas, o rosto impassvel, passando ao painel seguinte,
fazendo-os segui-la.
Nesse quadrado de vidro, uma pedra voou da funda do rapaz e atingiu a ave,
deixando-lhe uma asa claramente partida.
Ele atingiu a ave disse Erin, soando chocada.
Ele queria apenas acertar por perto, assust-la. Mas as intenes no bastam.
O que quer isso dizer? perguntou Tommy.
Erin explicou.
S porque queremos que algo acontea de uma determinada maneira, no significa
necessariamente que assim seja.
Rhun sentiu a angstia no bater de corao de Tommy. O rapaz j aprendera bem a
sua lio.
Tal como eu.
O painel seguinte contava um final mais terrvel para aquela brincadeira de criana. A,
o rapaz de cabelo encaracolado segurava a pomba nas suas mos, o pescoo desta
pendendo inerte.
A pedra fez mais do que partir-lhe a asa observou Erin. Matou-a.
Como ele desejava poder desfazer o que fizera disse Arella.
Rhun compreendeu o sentimento, tambm, evocando o rosto de Elisabeta luz do
sol.
Tommy voltou-se para Arella, os olhos semicerrando-se.
Como sabe o que Jesus fez, o que ele pensou?
Podia dizer que era por ser velha e sbia ou por ser profetisa. Mas sei-o, porque a
criana me contou. Ele veio a correr do deserto, coberto de areia e fuligem, e esta foi a Sua
histria.
Erin olhou a mulher com assombro.
Ento, fez mais do que conduzir a famlia sagrada at Siwa. Permaneceu aqui,
cuidando deles.
Arella inclinou a cabea.
Christian fez o sinal da cruz. At a mo de Rhun se ergueu involuntariamente para a
cruz pendente do seu pescoo. Aquela mulher conhecera Cristo, partilhara os Seus
primeiros triunfos e mgoas. Ela era bem mais santificada do que Rhun alguma vez
poderia aspirar ser.
Arella moveu o brao em torno da cratera.
Jesus encontrava-se, ento, onde nos encontramos agora.
Rhun visualizou o poo e o plano de gua que teria formado outrora. Imaginou a ave
e o rapaz nas suas margens. Mas o que acontecera depois?
Arella prosseguiu no crculo de painis. O prximo revelava o rapaz a erguer os
braos ao alto. Feixes, entalhados no vidro, disparavam para cima das suas mos. E entre
esses raios, a pomba voava alto, as asas estendidas.
Ele curou-a disse Erin.
No corrigiu Arella. Ele devolveu-lhe a vida.
O primeiro milagre exclamou Rhun.
De facto. Ela no pareceu exultante com o ato. Mas a luz desse milagre captou o
olhar obscuro de um outro, algum que o procurava desde o momento em que o anjo
aparecera a Maria e lhe anunciara a boa nova.
O rei Herodes? questionou Jordan.
No, um inimigo bem mais poderoso do que Herodes alguma vez poderia ser.
Portanto, no um homem, presumo? aventou Erin.
Arella conduziu-os ao painel seguinte, onde o rapaz encarava uma figura esfumada
com olhos de fogo.
No era nenhum homem, de facto, mas um inimigo implacvel, que armou uma
cilada ao rapaz, no por dio ao Cristo criana, mas pela vontade inabalvel de destruir o
Pai.
Est a falar de Lcifer compreendeu Erin, a sua voz abafada de temor.
Rhun fitou o vidro, o anjo negro a desafiar o Cristo criana como Satans faria de
novo, ao tentar Cristo no deserto, com o Salvador feito homem.
O Pai da Falsidade veio at aqui, pronto para a batalha explicou Arella. Mas
algum surgiu em defesa do rapaz.
Ela avanou no crculo gravado, revelando um rapaz agora envolto nas asas de um
anjo, tal como a sibila envolvera Tommy nessa mesma manh.
Um outro anjo veio em seu auxlio. Erin voltou-se para Arella. Foi voc?
O rosto da outra suavizou-se.
Desejava ter sido, mas no fui.
Rhun compreendeu a mgoa na sua voz. Que privilgio teria sido poder salvar Cristo.
Quem foi, ento? insistiu Erin.
Arella acenou para o painel. Ainda estava parcialmente encoberto pela areia deriva.
Rhun ajudou Erin a afast-la, a sacralidade queimando-lhe as palmas das mos.
Erin removeu os ltimos gros, notando que no eram apenas asas que protegiam o
rapaz, mas uma espada, empunhada pelo anjo.
Erin levantou o olhar para Arella.
O arcanjo Miguel. O anjo que lutou contra Lcifer durante a batalha nos cus. O
nico que conseguiu ferir Lcifer, atingindo-o no flanco com uma espada.
Arella inspirou fundo.
O arcanjo Miguel foi sempre a primeira e melhor espada do Cu, e assim foi desta
vez. Ele desceu Terra e protegeu o rapaz do seu antigo adversrio.
O que aconteceu? perguntou Jordan.
Arella baixou a cabea, como que relutante em contar. Rhun escutou o sussurro do
vento pela areia, o bater de corao dos humanos. Sons to eternos como a prpria sibila.
Quando teve a certeza de que ela no falaria mais, passou ao painel seguinte, quente
do sol. Representava uma exploso emanando do rapaz, as linhas quebrando-se a partir
da sua forma esguia, eliminando tudo o resto no painel.
Rhun levantou o rosto e passou o olhar pela cratera. Tentou imaginar uma exploso
com violncia suficiente para fundir a areia em vidro. O que poderia sobreviver a tal?
Imaginou as asas do anjo a protegerem o rapaz mortal.
Mas e o defensor de Cristo?
Rhun voltou-se para Arella.
Como pde o arcanjo Miguel resistir a to assombrosa detonao?
No resistiu. Ela suspirou suavemente, virando as costas ao crculo gravado.
Miguel foi feito em pedaos.
Feito em pedaos?
Tudo o que restou dele foi a espada, deixada abandonada aqui na cratera.
Rhun abeirou-se do ltimo painel. Mostrava simplesmente uma espada fendida,
cravada de ponta para baixo na cratera. Percorreu com o olhar o crculo da histria,
procurando compreender.
O ato misericordioso de Cristo para salvar uma simples pomba resultara na
destruio de um anjo. Como poderia o rapaz perdoar-se? T-lo-ia aquilo atormentado?
Rhun viu-se de joelhos diante daquele ltimo painel, cobrindo o rosto. Ele destrura
Elisabeta, uma simples mulher, e isso ainda o martirizava ao longo dos sculos. Ele era
responsvel por destruir a vida dela e todas as vidas que se seguiram no seu rasto
sangrento. Contudo, naquele momento, as suas mos no escondiam a mgoa e a
vergonha, mas o alvio, ao reconhecer o pequeno consolo que aquela histria lhe oferecia.
Obrigado, Senhor.
O simples facto de saber que o prprio Cristo podia cometer erros, aliviou o seu
fardo. Esse entendimento no perdoava os pecados de Rhun, mas tornava-os mais fceis
de carregar.
Erin falou.
O que aconteceu espada do arcanjo Miguel?
O rapaz veio ter comigo depois, trazendo um fragmento dessa espada nas mos.
Arella tocou o peito.
Era o fragmento que usava ao pescoo compreendeu Erin. Aquele usado para
golpear o Tommy.
Ela olhou-o, arrependida.
Sim.
Um pedao dessa espada angelical.
Onde est o resto da espada? indagou Jordan, sempre o guerreiro.
A voz serena de Arella vacilou, como se a memria se turvasse.
O rapaz disse-me que pecara quando matara a pomba... e pecara de novo, quando
lhe devolvera a vida. E que no estava preparado para a responsabilidade de tais milagres.
Ento, est a dizer que o primeiro milagre de Cristo foi um pecado? questionou
Jordan.
Ele pensou que o era. Mas afinal, de vrias formas, ele era apenas um rapaz
assustado e atormentado pela culpa. No me cabe a mim julgar a verdade.
Erin instou-a a continuar.
O que aconteceu depois?
Ele contou-me o resto da histria. Abarcou com o brao o crculo. Depois,
acalmei o rapaz e deitei-o na cama, e fui procurar a verdade por detrs das suas palavras.
Encontrei esta cratera e a espada no seu centro fumegante. Procurando mais longe,
descobri as pegadas de Lcifer para sul, manchadas pelo derramar do seu sangue negro.
Rhun olhou para sul. Agora alertado para isso, vislumbrou um corte infecto naquela
sacralidade nessa direo, esbatido mas presente.
Esse sangue derramado ainda estaria ali?
Mas de Miguel prosseguiu Arella , no encontrei vestgio.
E da espada?
Permanece escondida disse ela. At o Primeiro Anjo regressar Terra.
Mas no sou eu? perguntou Tommy.
Os olhos escuros de Arella demoraram-se sobre Tommy por um longo momento,
depois falou.
Tu carregas o melhor dele dentro de ti, mas no s o Primeiro Anjo.
No compreendo disse Tommy.
Erin fitou Rhun.
Nenhum deles compreendia.
No era de admirar que o rapaz no conseguisse abenoar o livro.
Um amargo desapontamento invadiu Rhun. Todas as mortes para levar Tommy at ali
tinham sido em vo. Tantos tinham sofrido, sangrado e morrido na perseguio do anjo
errado. E com os portes do Inferno a continuarem a abrir-se, a condenao do mundo
era agora certa.
Eles tinham falhado.
Helicptero disse Christian, retesando-se ao seu lado.
Arella voltou o olhar para norte, para onde tinha estado a olhar insistentemente,
como se o esperasse.
Todos chegam, por fim. Para ver se o que foi outrora quebrado pode ser reparado.
E se no puder? indagou Erin. Ela observou o Sol no muito distante do
horizonte. O pr do Sol estava a menos de uma hora.
Rhun receou a resposta.
Se no puder Arella passou as mos pela sua tnica branca manchada , ser o
fim do domnio dos homens na Terra.
CAPTULO 50
16h04
16h08
16h31
16h34
Bem fundo na garganta do poo, Tommy corria a toda a velocidade, descendo cada vez
mais. O choque inicial depois de a estranha mulher o empurrar ali para dentro e o
arrastar para baixo de gua desvanecera-se. Agora, procurava simplesmente segui-la.
Apesar do sbito mergulho, confiava estranhamente nela.
No sabia se ela era realmente um anjo, mas salvara-lhe a vida, por isso, por agora,
dar-lhe-ia o benefcio da dvida.
Dos lados, as paredes do poo pareciam de vidro de areia, ainda toscas, mas
demasiado suaves para serem rocha. Imaginou a exploso impressa superfcie, de uma
batalha entre Lcifer e o arcanjo Miguel. Essa mesma deflagrao devia ter penetrado
fundo debaixo da terra, selando aquele lago onde Cristo estivera e fundindo em vidro
tudo sua volta.
Queria duvidar dessa histria, tambm, exceto por duas coisas.
Primeira, a gua tornava-se mais quente quanto mais fundo mergulhava.
Segunda, abaixo dele, iluminando o seu caminho, avultava um brilho dourado,
contornando as pernas esguias da mulher.
Seguiu atrs dela, at os seus pulmes estarem prestes a rebentar e os ouvidos a
pungir da presso.
Desceu mais e mais.
Por fim, chegou ao fundo, desesperado por ar.
Ela apontou para uma caverna lateral, que se abria a uns metros de distncia. Com os
pulmes a arder, ele encolheu-se pela estreita passagem empurrando as paredes macias e
impelindo-se do fundo. A fonte da luz advinha da, atraindo-o como uma chama a uma
traa.
Mas no era uma chama que ele procurava.
Era ar.
Ele mergulhara com o seu pai ao largo da costa de Catalina, nas cavernas marinhas
que pontilhavam a ilha, recordando-se de se encolher por entre a rocha para encontrar
uma caverna batida pela gua, no fundo, e uma bolsa de ar, em cima.
Rezava por encontrar o mesmo ali, alguma caverna secreta onde pudesse permanecer
com aquela mulher, at a batalha estar terminada e ser seguro.
Seguro...
H quanto tempo no se sentia seguro?
Os pulmes gritavam-lhe, enquanto percorria atabalhoadamente a ltima distncia,
rastejando pela entrada para a caverna. A viso comeou a estreitar-se, cada vez mais
diminuta, centelhas danando. Sabia que no tinha ar suficiente sequer para regressar
superfcie. Agora, estava comprometido. O pai dissera-lhe, um dia, que o mais importante
na vida era encontrar o caminho certo e comprometer-se em segui-lo.
De alguma forma, pai, no creio que fosse isto que querias dizer.
O pnico emprestou-lhe fora extra aos braos e pernas. Penetrou na pequena
caverna, delineada por vidro dourado e juncada de areia no fundo. Sabendo que devia
haver ar em cima seno, porqu arrast-lo at ali? , empurrou o fundo com fora.
Lanou-se para cima e a cabea embateu contra o teto.
Apalpou o topo, procurando a mais pequena bolsa, o mais nfimo flego de ar.
No havia nenhum.
16h35
16h36
Rhun correu a toda a velocidade em defesa de Jordan. Por um canto do olho, vira
Agmundr cair e o soldado saltar em sua ajuda para enfrentar as mesmas mandbulas
que tinham tomado a vida do poderoso viquingue.
Rhun lanou-se contra o flanco do imenso chacal. As mandbulas deste fecharam-se a
menos de trs centmetros da cara de Jordan. A fera resvalou na areia, rodando para o
enfrentar, as garras enterrando-se na areia e raspando o vidro por baixo.
Rhun empunhou a karambit sua frente e rezou por fora para proteger os outros. O
prprio ar estava impregnado de sangue, enquanto Christian, Bernard e Wingu
continuavam a sua dana entre a obscura horda. A bruma carmesim apelava ao seu
prprio sangue, instando-o a beber sofregamente dessa fonte.
Rhun refreou os seus instintos.
Diante dele, os olhos avermelhados e raivosos do chacal fitaram os seus. Pelo
cinzento eriou-se no cachao arqueado. Um rosnar revelou os dentes amarelos numa
mandbula poderosa.
Quando a besta saltou, Rhun manteve-se firme na areia e ergueu o brao, impelindo a
karambit fundo, entre os dentes afiados e a boca da criatura. Com toda a fora que pde
convocar, arremessou a lmina pelo cu da boca at ao crebro depois puxou a mo
para fora.
A fera sucumbiu, o sangue negro espumando-lhe da boca e maculando a areia. As
patas dianteiras esgravatavam as maxilas, gemendo de dor.
A piedade cresceu dentro de Rhun face a uma das criaturas de Deus transformada
numa monstruosidade to sofrida. Finalmente, o brilho carmesim esmoreceu para um
castanho cego, enquanto a fera era libertada da sua maldio.
Rhun no tinha tempo para se regozijar com a sua libertao.
Uma fora bruta lanou-o areia, vinda de trs, fazendo-o cair de cara sobre o sangue
escuro do chacal. Garras rasparam-lhe as costas, rasgando-lhe a armadura e a pele, uma
longa unha em gancho atingindo-lhe as costelas.
Rhun urrou, enquanto um leo rugia triunfante sobre ele.
CAPTULO 52
16h39
Sem balas, Erin arrebatou a longa espada de Agmundr. Precisou de ambas as mos
para a levantar. Balanando com um movimento da anca, lanou os braos e a lmina pelo
ar, golpeando o espao entre si e o strigoi mais prximo.
O monstro riu-se, deu um passo atrs e carregou sobre Christian, ignorando-a.
Ela procurou algum para atacar.
Nenhum dos strigoi ou blasphemare se aproximava dela, obedecendo s ordens de
Iscariotes para no a matarem. As suas tropas manteriam a distncia, at ele descer para a
reclamar.
Talvez essa seja a minha melhor arma.
O urro de um leo f-la voltar-se. A alguns metros de distncia, Rhun debatia-se,
encurralado debaixo de um dos lgubres lees blasphemare. Jordan precipitou-se em sua
ajuda, brandindo a pistola como uma clava.
Ela largou a pesada espada e correu para eles.
Jordan foi enxotado como um moscardo, garras penetrando-lhe o bluso de pele e
quase lhe arrancando uma manga. Aterrou de costas. Mas a distrao permitiu a Rhun
rolar e soltar-se, perdendo uma larga extenso de pele.
O leo lanou-se sobre a presa em fuga.
E Erin fez a coisa mais estpida da sua vida.
Interps-se entre Rhun e o leo, abrindo os braos e bradando, empinando o peito
como um lutador de espetculo cheio de bazfia.
O leo agachou-se, silvando, os quadris em riste e a cauda vergastando furiosamente.
No me podes atacar, pois no? desafiava ela.
Encurvou os lbios negros e rosnou, recuando, sobretudo quando Christian deslizou
em seu auxlio.
Olhou-a de relance.
No sabia que domar lees fazia parte do seu currculo.
Ela sorriu, baixando a guarda cedo demais.
O leo disparou, atingindo habilmente Christian, ao mesmo tempo que rasgava o
ombro dela ao passar, derrubando-a.
Erin caiu de joelhos e agarrou-se ferida. O sangue quente escorria-lhe por entre os
dedos e descia-lhe pelo brao e pelo peito. Percebeu o erro das suas aes. Iscariotes
dissera que ela no podia ser morta mas no dissera nada sobre mutil-la.
Ao seu lado, Rhun e Christian lutavam contra o leo.
Jordan gritou o seu nome.
O mundo abrandou.
Caiu de lado, na areia. A textura arenosa sob a face confortou-a. Estava no deserto. Ela
adorava o deserto.
16h40
Jordan correu para Erin e deslizou de joelhos para o seu lado. Ele sabia que era tarde
demais para vir em sua defesa. O sangue jorrava-lhe do ombro e ensopava a areia
dourada.
Erin levantou a cabea.
Os seus olhos cor de caramelo encontraram os dele depois olharam para alm dele.
O deslumbramento inundou-lhe o rosto, inexplicvel com todo o sangue, uivos e
gritos que enchiam o ar. Ela ergueu uma mo sangrenta e apontou por cima do ombro
dele.
Jordan virou-se para perceber.
Mas que...?
Da boca do poo, a simples curva de uma chama alaranjada ergueu-se da escurido l
no fundo. Espiralava como um estreito turbilho, perfeitamente vertical em direo ao cu
negro.
Jordan no conseguia desviar o olhar.
A prpria batalha abrandou, enquanto uma calma cautelosa e temente se estendia do
centro at s extremidades.
Olhos e rostos voltaram-se na sua direo.
Quando a chama alcanou o comprimento de um brao, uma mo surgiu do fundo,
como se empurrasse a labareda para cima. A lngua de fogo continuou a subir. O
estranho portador da tocha foi arrastado de baixo com ela, erguido do poo e suavemente
baixado na borda.
Tommy.
Quando os seus ps tocaram o cho, o fogo extinguiu-se, para revelar uma espada de
prata erguida ao alto, algumas rstias de chama ainda a deline-la, danando refulgentes ao
longo de todo o comprimento.
Os olhos do rapaz encontraram os de Jordan.
O fogo danava a, tambm.
Penso que isto lhe pertence! bradou Tommy, meio rapaz, meio algo temvel.
O mido se que ainda era um mido puxou o brao atrs e lanou a espada para
cima. Ela girou sobre si mesma. Jordan quis baixar-se, mas em vez disso o seu brao
esquerdo ergueu-se, com vontade prpria. O punho aterrou perfeitamente na palma da
sua mo, como se sempre estivesse destinado a assentar a. O ardor latente na sua
tatuagem tornou-se fogo vivo. Por um rasgo no casaco e camisa, ele viu os traos
ondeantes da sua velha marca de relmpago inflamarem-se com uma chama interna.
A fora fluiu pelo seu corpo.
Jordan agitou a espada em seu redor num padro de fogo e ao, como se lanasse um
feitio arcano. Ele nunca empunhara uma espada na vida.
Um leo rugiu, voltando-se para ir novamente atrs de Erin.
Jordan pensou em bloque-lo e em segundos estava l.
Desferiu a espada contra a pata do leo, quando este lha lanou com fria.
Assim que a lmina lhe penetrou a pele, a criatura urrou em agonia. Seguiram-se
chamas na linha aberta pela espada que depois alastraram perna e a todo o corpo.
Enlouquecido pela dor, o leo saltou para trs e fugiu por entre o exrcito obscuro,
abrindo um trilho de fogo entre eles, inflamando tudo sua passagem.
Jordan examinou a espada.
Era uma espada infernal!
Ou melhor, celestial.
Jordan rodou num crculo, atingindo um strigoi no brao, outro na coxa. Ambos
uivaram, enquanto labaredas brotavam das suas feridas. Foi arremetendo para fora,
movendo-se sobre pernas que desafiavam ossos e msculos.
To veloz como qualquer strigoi, como qualquer sanguinista.
Criatura aps criatura tombava face sua lmina.
Depois atacou mais fundo atrs do seu verdadeiro inimigo.
Iscariotes.
16h42
Judas viu o Homem Guerreiro cruzar a passos largos o terreno de batalha. As bestas
fugiam do seu caminho, dispersando-se pelo deserto. As poucas que permaneciam eram
perseguidas pelos outros. Viu a condessa agarrar o rapaz, o brilho angelical nos olhos da
criana tendo esmorecido, depois de entregar a espada ao seu portador na Terra. O rapaz
abraou com fora a criatura antiga.
Judas no sentia medo.
Chegara o momento.
Passara sculos a tentar encontrar um propsito para a sua longa vida e outros tantos
sculos a tentar trazer o mundo quele limiar de condenao em que poderia morrer.
E agora o tempo esgotava-se para ele.
O soldado mat-lo-ia, mas apenas se lhe desse luta. No era homem para eliminar um
inimigo desarmado. Ento, Judas baixou-se e pegou numa lmina abandonada, uma antiga
cimitarra quebrada.
O ltimo dos seus guarda-costas tentou juntar-se a ele, erguendo uma espingarda
automtica. O seu parceiro, Henrik, morrera na caverna em Cumas, mas aquele
sobrevivera, escapando com ele.
Vai-te embora ordenou-lhe Iscariotes.
O meu lugar sempre ao seu lado.
Perdoa-me.
Judas balanou a espada e decapitou o homem. Afastou-se do corpo. Ningum
interferiria no seu destino.
Os olhos do Homem Guerreiro arregalaram-se de espanto, mas ele no abrandou o
passo.
Outros juntaram-se atrs dele, incluindo a doutora Granger, segurando um farrapo
ensopado contra o ombro.
Afasta-te, Erin bradou Jordan. Esta luta minha.
A mulher pareceu querer argumentar, mas no o fez.
Judas ergueu a sua espada sangrenta, em guarda.
Quantas vezes tenho de o matar, sargento Stone?
Podia perguntar-lhe o mesmo.
A espada cintilava rubra-branca nas suas mos, cuspindo fascas gneas.
Judas estremeceu de ansiedade.
O soldado rodeou-o, a suspeita ntida no seu rosto, como se desconfiasse de algum
ardil.
Cumpre o teu papel, Guerreiro. No me desiludas.
Para o garantir, Judas lanou-se sobre ele e o homem esquivou-se. Era anormalmente
rpido. Ciente disso, Judas lutou mais intensamente, no mais precisando de fingir
inpcia. Fora treinado por muitos mestres de espada diferentes, ao longo dos sculos.
Atacou uma e outra vez, apreciando o verdadeiro desafio, o derradeiro. Era justo
encontrar um adversrio digno. Mas no era esse o seu destino. Permitiu-se baixar a
guarda, como que por acidente.
Jordan atacou.
A lmina penetrou o flanco de Judas.
O mesmo ponto onde um soldado romano atingira Cristo na cruz.
Judas ofereceu uma breve orao de graas, antes de tombar sobre os joelhos. Sangue
vermelho-vivo derramou-se do ferimento. Ensopou-lhe a camisa. Ele largou a espada.
Jordan erguia-se diante dele.
Estamos quites.
No disse Judas, estendendo uma mo perna daquele. Ficarei para sempre em
dvida contigo.
Caiu de lado, rolando depois de costas. O cu sombrio encheu-lhe a viso. Ele criara-
o. Aquele mundo rodeado de cinzas e sangue. O Sol estava a minutos de se pr. Nada
poderia impedir o que ele iniciara.
A minha morte proclama o meu sucesso.
Tomou-o como um sinal, a sua recompensa por abrir os portes do Inferno e trazer
o Dia do Juzo Final.
A dor flamejante no seu flanco no se comparava a nada que tivesse experienciado,
mas aceitou-a. Em breve, estaria em paz. Acolheu-a de bom grado. Deixou que os olhos se
fechassem.
Depois, uma sombra derramou-se sobre ele, trazendo consigo uma fragrncia a flores
de ltus.
Arella.
Abriu os olhos e contemplou a sua beleza, outra recompensa pelo cumprimento do
seu desgnio.
As mos quentes dela tomaram as suas.
Meu amor.
Aconteceu tal como previste disse ele.
Enquanto ela se debruava sobre ele, as suas lgrimas caram-lhe sobre a face.
Saboreou cada lgrima quente.
Oh, meu amor! disse ela. Amaldioo a viso que te levou a isto.
Ele procurou-lhe os olhos escuros.
Esta foi a vontade de Cristo, no a tua.
Esta foi a tua vontade insistiu ela. Podias ter seguido por um caminho diferente.
Ele tocou-lhe a face hmida.
Eu segui sempre por um caminho diferente. Mas estou grato pelos anos em que
percorremos esse caminho juntos.
Ela esforou-se por sorrir.
No te culpes pediu ele. Se puderes conceder-me um favor, concede-me isso. s
inocente em tudo isto.
O queixo dela contraiu-se, como sempre quando escondia os seus sentimentos.
Ele estendeu a mo por entre a dor e enrolou um fio do seu longo cabelo em volta do
dedo.
Somos simplesmente Seus instrumentos.
Ela colocou-lhe a mo sobre a ferida.
Eu podia ir buscar gua do poo para te curar.
O medo percorreu-lhe o corpo. Procurou palavras astutas para a persuadir contra tal
caminho, mas ela conhecia-o bem. Assim, decidiu-se por uma nica palavra, depositando
toda a sua vontade nela, deixando a verdade transparecer dos seus olhos.
Por favor.
Ela inclinou-se e beijou-lhe os lbios, depois caiu nos seus braos uma ltima vez.
16h49
Rhun agarrou Elisabeta pela cintura quando esta se precipitou para eles.
Tommy caiu no cho, deslizando da lmina, derramando sangue vermelho pela areia
escura. Uma clara cintilao dourada misturava-se a tambm. O outro lado da cratera
irradiava um brilho similar, uma gradao urea mais escura a envolver as silhuetas de
Judas e Arella.
Porqu? soluou Elisabeta, agarrada a ele.
Rhun baixou-a at ao rapaz.
A espada perfurara-lhe diretamente o corao. Rhun ouvia agora o seu ltimo dbil
vacilar, depois parou.
Jordan caiu de joelhos diante do corpo, largando a espada, agarrando-se ao seu lado
esquerdo.
Erin baixou-se.
O que se passa...?
Rhun sentiu-o momentos antes de acontecer uma emanao de um poder
inimaginvel e ps um brao sobre os olhos, protegendo Elisabeta com o seu corpo.
Depois veio a exploso de luz.
A magnificncia feriu-lhe os olhos.
O sangue ferveu-lhe nas veias.
Elisabeta gritava estridentemente nos seus braos, o som ecoado pelos outros num
coro de dor e medo.
Vergado pelo esplendor, cado de joelhos, Rhun implorava por perdo, enquanto
rezava por entre o sofrimento. Cada pecado seu era uma indignidade face a tal brilho
sagrado, nada podia permanecer escondido. O seu maior pecado era uma escurido sem
limites, capaz de o consumir por inteiro. Mesmo aquela luz no o poderia vencer.
Por favor, basta...
Finalmente, aps o que pareceu uma eternidade, a luz deu lugar a uma misericordiosa
escurido. Ele abriu os olhos. Corpos mortos de strigoi e blasphemare estavam espalhados
pela cratera; mesmo os que haviam fugido para l dela tinham sido dizimados pela
exploso. Rhun moveu-se, a dor ainda a assolar o seu corpo.
Queimava com o mais sagrado dos ardores.
Perscrutou a cratera. Erin estrava prostrada ao lado do corpo cado de Tommy, com
Jordan ajoelhado ao seu lado e agarrado ao ombro esquerdo. Pareciam ambos abalados,
mas intocados pelo brilho. No tendo sangue contaminado, teriam provavelmente sido
poupados ao maior impacto da sua fora.
Elisabeta jazia, inerte, nos seus braos.
Ela era strigoi, sem sequer a aceitao do amor de Cristo para a escudar daquele fogo.
Tal como as outras criaturas amaldioadas, devia estar morta.
Por favor, implorou, no a Elisabeta.
Encostou-a contra o seu peito. Ele afastara-a do seu tempo, do seu castelo,
aprisionara-a durante centenas de anos, para a ver morrer num deserto solitrio, longe de
tudo e de todos os que alguma vez amara.
Quantas vezes a tinham amaldioado as aes dele?
Afastou-lhe o cabelo curto encaracolado da testa plida e varreu-lhe a areia das faces
descoradas. H muito tempo, segurara-a da mesma forma, ela moribunda num cho de
pedra no castelo de achtice. Devia t-la deixado morrer ento, mas mesmo agora, sabia
que faria tudo para a ter de volta.
Inclusive pecar de novo.
Como que em resposta a esse pensamento blasfemo, ela mexeu-se. Os seus olhos
argnteos pestanejaram e os lbios ganharam cor, esboando um sorriso hesitante. O
olhar ficou-lhe momentaneamente perdido, deslocado no tempo e no espao.
Contudo, naquele momento, ele soube a verdade.
Apesar de tudo, ela amava-o.
Encostou a mo ao seu rosto. Mas como sobrevivera ela ao cauterizante brilho no seu
estado amaldioado? T-la-ia ele protegido com o seu corpo? Ou o seu amor por ela?
Fosse como fosse, a felicidade inundou-o ao mergulhar nos seus olhos cor de prata,
deixando que o deserto se desvanecesse sua volta. Naquele instante, ela era tudo o que
importava. A mo dela ergueu-se. As pontas dos dedos macias tocaram-lhe a face.
Meu amor... sussurrou ela.
17h03
Erin desviou o olhar de Rhun e da condessa. Ainda estava meio cega pela exploso de
luz, jurando por momentos ter visto um movimento de asas erguer-se das areias. Fitou as
estrelas l em cima.
Estrelas.
Endireitou-se e rodou num crculo lento, vendo o manto obscuro desvanecer-se do
cu noturno que se estendia em todas as direes. Imaginou o cu a clarear, dali at
Cumas.
Teriam conseguido encerrar os portes?
Jordan levantou-se ao seu lado. Ele fletia e esticava o brao, sacudindo-o ligeiramente,
relembrando-a de uma preocupao mais imediata. Recordou como ele cara de joelhos,
agarrando-se ao flanco, como se sofresse um ataque cardaco.
Ests bem? perguntou ela.
Ele olhou o rapaz em baixo, o sangue.
Quando ele sucumbiu, senti-me como se algo fosse arrancado de mim. Achei que ia
morrer.
De novo.
Ela examinou o rosto plido de Tommy. Os seus olhos estavam fechados, como se
estivesse simplesmente adormecido. Em Estocolmo, o toque do rapaz, o seu sangue,
tinham ressuscitado e curado Jordan. Ela notou que a poa de sangue j no irradiava
brilho. Infiltrava-se, simplesmente, frio pela areia.
Ela estendeu a mo e apertou a de Jordan, sentindo o seu calor, grata por isso.
Penso que a essncia anglica de que o Tommy te impregnou foi arrancada de ti
durante a exploso de luz.
Onde est a espada? perguntou Jordan, olhando em volta aos seus ps.
Tinha desaparecido tambm.
Ela voltou a recordar aquelas asas de luz.
Acho que foi devolvida ao dono original.
Bernard juntou-se a eles, de olhos postos nos cus.
Fomos poupados.
Ela esperou que ele tivesse razo, mas nem todos tinham tido a mesma sorte.
Baixou um joelho e tocou a camisa ensopada de sangue de Tommy. Levou os dedos
ao seu rosto jovem, parecendo ainda mais novo na morte, as feies descontradas,
finalmente em paz. A sua pele ainda estava quente ao toque.
Quente.
Pousou a mo contra a garganta dele, recordando-se de fazer o mesmo com Jordan.
Ainda est quente.
Procurou em baixo, abrindo-lhe bruscamente a camisa, arrancando os botes.
A ferida desapareceu!
Tommy sacudiu-se subitamente, sentando-se, afastando-a, claramente assustado, o seu
olhar fixando-se em todos eles. O medo desvaneceu-se, em reconhecimento.
Ento... balbuciou, fitando o seu peito nu.
Os dedos sondaram tambm.
Elizabeth afastou-se de Rhun e aterrou de joelhos, tomando a sua outra mo.
Ests bem, rapaz?
Ele apertou-lhe os dedos, chegando-se para mais perto dela, ainda assustado.
Eu... eu no sei. Acho que sim.
Jordan sorriu.
A mim, pareces-me bem, mido.
Christian juntou-se a eles com Wingu. O par terminara uma rpida inspeo da
cratera e da crista, para se certificar de que no havia perigo.
Consigo ouvir-lhe o bater do corao.
Rhun e Bernard confirmaram-no com um aceno.
O alvio percorreu Erin.
Graas a Deus!
Ou, neste caso, graas a Miguel. Jordan fez deslizar um brao em torno dela.
A condessa repreendeu Tommy.
No voltes a fazer nada assim!
A sua seriedade ensombrou o sorriso de Tommy.
Prometo. Ergueu uma mo. Nunca mais me lanarei contra uma espada.
Christian chegou-se mais para perto de Erin.
O sangue dele j no tem um odor... anglico. novamente mortal.
Penso que foi por termos libertado o esprito que o habitava. Para se poder reunir
sua outra metade. Ela fitou Iscariotes. Isso significa que Judas sarou igualmente?
Christian abanou a cabea.
Verifiquei-o quando fiz a minha ronda com Wingu. Ainda vive, mas por pouco.
Neste preciso momento, sinto o seu corao prestes a ceder.
Rhun fixou os olhos em Judas.
A sua recompensa no foi a vida.
17h07
Pela primeira vez em milhares de anos, Judas sabia que a morte estava perto. Uma
sensao de formigueiro espalhava-se do ferimento no flanco e corria-lhe pelas veias como
gua gelada.
Tenho frio sussurrou.
Arella puxou-o mais para o seu abrao quente.
Com grande esforo, ele levantou o brao diante dos olhos debilitados. As costas da
sua mo estavam cobertas de manchas acastanhadas da idade. A sua pele pendia em
frouxas dobras dos ossos.
Era o brao frgil de um homem velho.
Com dedos tremulantes, sentiu o rosto, descobrindo sulcos onde outrora existira
pele macia, em torno da boca, nos cantos dos olhos. Definhara assim.
Continuas belo, meu velho vaidoso.
Sorriu brandamente, face s palavras dela, face ao gentil sarcasmo.
Ele substitura a maldio da imortalidade pela maldio da velhice. Os ossos doam-
lhe e os pulmes chocalhavam. O corao marchava vacilante como um bbado andando
no escuro.
Contemplou Arella, linda como sempre. Parecia-lhe impossvel que ela alguma vez o
tivesse amado, que ainda o amasse. Errara ao deix-la partir.
Errei em tudo.
Acreditara que o seu desgnio era trazer Cristo de volta Terra. Todos os seus
pensamentos se dirigiram exclusivamente nesse sentido. Empenhara sculos ao servio
dessa misso sagrada.
Mas esse no fora o seu desgnio, apenas a sua presuno.
Cristo concedera-lhe aquele dom, no para acabar com o mundo, no como
penitncia pela sua traio, mas para desfazer o erro que o prprio Cristo cometera
enquanto criana.
Reparar o que fora quebrado.
E agora, cumpri-o.
Eram esses a sua verdadeira penitncia e verdadeiro desgnio, e eram bem mais do
que ele merecia. Fora chamado a devolver a vida e no a trazer a morte.
A paz inundou-o, enquanto fechava os olhos e confessava, em silncio, os seus
pecados.
Eram tantos.
Quando voltou a abrir os olhos, cataratas cinzentas toldavam-lhe a viso. Arella era
um borro indistinto, desvanecendo-se j cruelmente da sua vista, medida que o fim se
aproximava.
Ela abraou-o com mais fora, como que para o reter ali.
Soubeste sempre a verdade sussurrou ele.
No, mas tinha esperana sussurrou-lhe ela de volta. A profecia nunca clara.
Ele tossiu medida que os pulmes se engelhavam dentro de si. A sua voz era um
crocitar.
A minha nica mgoa no poder passar a eternidade contigo.
Agora demasiado fraco, Judas fechou os olhos no para a escurido, mas para uma
luz dourada. O frio e a dor recuaram face quele brilho, deixando apenas beatitude.
As palavras foram-lhe sussurradas ao ouvido.
Como sabes como vamos passar a eternidade?
Ele abriu os olhos, uma ltima vez. Ela resplandecia, agora, por entre as cataratas, em
toda a sua glria, cintilando de graa celestial.
Tambm eu fui perdoada entoou ela. Por fim, sou chamada a casa.
Ela ergueu-se dele, para longe dele. Ele procurou por ela, descobrindo o seu prprio
brao feito luz. Ela pegou-lhe na mo e puxou-o do seu casulo mortal para o seu abrao
eterno. Inundados de amor e esperana, partiram rumo paz final.
Juntos.
17h09
Ningum falou.
Tal como Erin, todos tinham visto Arella irromper em luz, inundando a cratera com
um calor que exalava a flores de ltus. Depois, desapareceu.
O corpo de Judas permaneceu, mas desfazia-se em p naquele preciso momento,
agitado pelo vento do deserto que o misturava com a areia eterna, assinalando o seu lugar
de descanso final.
O que lhe aconteceu? A voz de Tommy estava tensa de preocupao.
Envelheceu at sua idade natural explicou Rhun. De novo a velho em instantes.
Isso vai acontecer-me? Tommy parecia aterrado.
Eu no me preocuparia com tal coisa, mido tranquilizou-o Jordan. S foste
imortal por uns meses.
verdade? Ele voltou-se para a condessa.
Parece-me que sim disse Elizabeth. As palavras do soldado so vlidas.
E a mulher anjo? Tommy procurou o seu lugar vazio no deserto. O que lhe
aconteceu?
Se tivesse de adivinhar disse Erin , diria que ela e Judas foram levados juntos
para o alto.
Ele teria gostado disso notou Tommy.
Tambm acho que sim.
Erin entrelaou os seus dedos nos de Jordan.
Ele apertou-os com fora.
Mas isso significa que j no temos anjos aqui. Pelo menos um deles no tem de
abenoar o livro?
Erin voltou-se para Bernard.
Talvez j o tenham feito. Os cus clarearam de novo no horizonte.
Bernard meteu a mo por entre as roupas rasgadas at armadura que usava por
baixo. Agarrou o fecho, parecendo a ponto de o arrancar. Por fim, conseguiu abri-lo e
tirou para fora o Evangelho de Sangue.
Segurou-o nas mos trmulas, com os olhos inquietos.
O volume encadernado a couro parecia inalterado.
Mas todos sabiam que a verdade estaria contida no interior.
Bernard levou-o at Tommy e depositou-o, reverentemente, nas mos do rapaz, com
uma expresso arrependida.
Abre-o. Mereceste-o.
Sem dvida.
Tommy baixou-se sobre os joelhos e pousou o livro no colo. Com um dedo,
levantou lentamente a capa, como que receoso do que poderia revelar.
Erin olhava por cima do seu ombro, igualmente inquieta, o corao acelerado.
Tommy baixou a capa at ao joelho, revelando a primeira pgina. A passagem original
escrita mo cintilava no escuro com um brilho suave, cada letra perfeitamente clara.
No h nada de novo a comentou Bernard, parecendo desalentado e perturbado.
Talvez signifique que tudo terminou props Jordan. No temos de fazer mais
nada.
Se assim fosse...
Porm, Erin sabia que no era assim.
Vira a pgina.
Tommy passou a lngua pelo lbio superior e obedeceu, levantando a primeira pgina
e expondo a seguinte.
Tambm essa estava inalterada, em branco ento, palavras em carmesim profundo
surgiram, percorrendo a pgina em linhas delicadamente inscritas. Ela imaginou Cristo a
desenhar aquelas letras gregas, a sua pena mergulhada no prprio sangue para redigir
aquele evangelho milagroso.
Linha aps linha, encheram rapidamente a pgina, bem mais do que da primeira vez
que o livro revelara a sua mensagem. Trs breves cantos ganharam forma, acompanhados
de uma mensagem final.
Tommy levantou o livro para Erin.
Consegue ler, certo?
Jordan pousou-lhe uma mo sobre o ombro bom.
claro que consegue. Ela a Mulher Sbia.
Por uma vez, Erin no sentiu o impulso de o corrigir.
Sou.
Quando pegou no livro, uma estranha energia emanou da capa para as suas mos. As
palavras ganharam um brilho mais intenso, como se sempre tivesse estado destinada a ler
o que ali estava escrito. Sentiu-se subitamente possessiva em relao ao livro, quelas
palavras.
Traduziu do grego antigo e leu em voz alta o primeiro canto:
A Mulher Sbia est agora ligada ao livro e ningum o poder separar dela.
O que quer isso dizer? indagou Bernard.
Ela encolheu ligeiramente os ombros, to desconcertada quanto ele.
Jordan tirou-lhe o livro das mos. Assim que o Evangelho deixou os seus dedos, as
palavras desapareceram.
Bernard abriu a boca de espanto.
Erin voltou a pegar rapidamente no livro e as palavras voltaram a ganhar vida.
Jordan dirigiu um sorriso a Bernard.
Ainda duvida de quem ela seja?
Bernard fitava simplesmente o livro, parecendo angustiado, como se o amor da sua
vida lhe tivesse sido arrancado. E talvez tivesse. Erin recordou como se sentira quando foi
enviada de volta Califrnia, considerada indigna de se envolver com aquele livro
milagroso.
O que mais diz? perguntou Tommy.
Ela respirou fundo e passou ao segundo canto.
O Homem Guerreiro... Olhou de relance para Jordan, esperando que fosse algo
bom. O Homem Guerreiro est do mesmo modo ligado aos anjos, a quem deve a sua vida
mortal.
Proferida essa ltima palavra, Jordan estremeceu subitamente, arrancando o resto da
manga esfrangalhada do seu brao esquerdo. Arquejou. A tatuagem a traada inflamara-
se, irradiando um brilho dourado. Um instante depois, apagou-se, deixando apenas as
linhas de tinta azul e preta na sua pele.
Ele friccionou o brao e agitou os dedos.
Ainda sinto o ardor l bem no fundo. Como quando o Tommy me trouxe de volta
vida.
O que quer isso dizer? perguntou Erin, olhando os outros.
Pelas suas expresses, nenhum sabia.
Christian avanou o nico parecer.
O sangue de Jordan continua a cheirar ao mesmo, pelo que no imortal ou algo
assim.
Jordan franziu o sobrolho.
Pare de me cheirar.
Deixando esse mistrio momentaneamente de parte, Erin passou ao terceiro e ltimo
canto, que leu em voz alta.
Mas o Cavaleiro de Cristo tem de fazer uma escolha. Pela sua palavra, ele poder
desfazer o seu maior pecado e restituir o que se pensou para sempre perdido.
Fitou Rhun.
O olhar dele encontrou o seu, os seus olhos escuros, duros como obsidiana. Ela leu
algum entendimento nesse fulgor escuro, mas ele manteve-se em silncio.
Tommy apontou para o fundo da pgina.
E o que isso escrito a em baixo?
Ela leu-o, tambm. Estava separado dos trs cantos, claramente uma mensagem ou
aviso final.
Em conjunto, a Trindade deve enfrentar a derradeira busca. As grilhetas de Lcifer
foram soltas e o seu Clice continua perdido. Ser necessria a luz dos trs para forjar o Clice e
bani-lo de novo para a escurido eterna.
Jordan suspirou pesadamente.
Ento, o nosso trabalho ainda no est terminado.
Erin segurou o clido livro nas suas mos e releu a ltima passagem vrias vezes. O
que era aquele Clice? Ela sabia que teria de passar longas horas a tentar perceber o
significado daquelas poucas linhas, a extrair o seu sentido.
Mas, de momento, isso podia esperar.
Jordan fitou Rhun.
Que histria essa do seu maior pecado?
Rhun manteve-se em silncio e voltou-se para o deserto vazio.
Bernard respondeu.
O seu maior pecado foi quando se tornou strigoi. Cingiu firmemente o ombro de
Rhun. Meu filho, penso que o Livro te prope uma vida mortal, para te devolver a alma.
Mas aceit-lo-ia?
Erin leu de novo esse ltimo canto.
O Cavaleiro de Cristo tem de fazer uma escolha...
CAPTULO 54
17h48
Erin fechou o livro e afastou-se dos outros. Jordan preparou-se para a seguir, mas ela
pediu-lhe privacidade. Fitou no alto as estrelas e a Lua emergente, enquanto caminhava
pela cratera, o nico lugar onde no havia corpos e longe do caos de emoes deixado
para trs.
Precisava de um momento de paz.
Alcanou o poo aberto.
A sacralidade ali presente, provavelmente advinda da espada preservada no fundo,
mantivera a luta margem do lugar. Olhou para trs, para a carnificina, de bestas e strigoi.
O seu grupo pagara um preo terrvel, mas tinham sobrevivido.
S que no todos.
Os seus olhos recaram sobre o pobre Agmundr, evocando o seu imenso sorriso.
Obrigada por nos protegeres.
Recordou Nadia na neve e mesmo Leopold no cho da caverna. Tinham encontrado o
fim longe da sua terra natal e longe daqueles que os tinham amado.
Tal como Amy.
Ajoelhou-se na borda da fonte e espreitou a gua lmpida. As estrelas refletiam-se a,
uma pincelada de Via Lctea refulgindo da gua, recordando-a, simultaneamente, da
pequenez e grandiosidade da vida. As estrelas l no alto eram eternas. Escutou o silvar das
areias pelas dunas em volta, sussurrando como milnios antes.
Aquele lugar fora por muito tempo um lugar sagrado e de paz.
Erin contemplou os painis que contavam a histria do primeiro milagre de Cristo e
do que se seguira. Era um relembrar de que qualquer um podia cometer um erro, dar um
passo em falso. Tal como Cristo, ela desconhecera as consequncias fatais das suas aes
em Massada, ignorara como os eventos trariam morte e repercusses futuras.
Olhou Bernard e um pensamento pouco caridoso atravessou-lhe a mente. Tanto
derramamento de sangue teria sido poupado se o cardeal no tivesse ocultado tantos
segredos. Se tivesse conhecido a importncia da informao fatal que partilhara com Amy,
Erin poderia ter sido mais cautelosa. Em vez disso, os segredos que os sanguinistas lhe
tinham ocultado custaram a vida a Amy e a outros.
Centrou-se no livro que tinha nas mos. Aceitando o manto de Mulher Sbia, no
mais permitiria que as verdades lhe fossem ocultadas. As autoridades do Vaticano teriam
de lhe abrir as suas bibliotecas e revelar todos os seus segredos, ou ela no cooperaria
mais com eles.
O livro estava agora ligado a ela e us-lo-ia para derrubar todas as portas.
Devia isso a Amy.
Procurou no bolso e tirou para fora a esfera de mbar. Segurou-a luz do luar,
revelando a delicada pena no interior. O mbar aprisionara-a, to seguramente como as
suas memrias guardavam Amy: para sempre preservada, nunca libertada para flutuar
para longe.
Embora nunca fosse esquecer a sua aluna, talvez pudesse libertar-se de algo.
Inclinou a palma da mo para a frente, at o mbar lhe deslizar para as pontas dos
dedos. Depois, tombou para l deles e caiu na fonte de gua. Ela inclinou-se e observou a
esfera a quebrar o reflexo de estrelas e a desaparecer naquela eternidade.
Agora, parte de Amy ficaria para sempre ali, no Egito, descansando num dos lugares
mais sagrados da Terra, perto de segredos antigos que podiam nunca vir a ser
descobertos.
Erin olhou para dentro do poo, fazendo uma promessa.
Nunca mais.
No seria derramado mais sangue inocente para preservar os segredos dos
sanguinistas. Estava na altura de a verdade se revelar.
Agarrou firmemente o livro e levantou-se.
Preparada para mudar o mundo.
DIA DE NATAL
12h04, CET
Cidade do Vaticano
14h17
Roma
Tommy corria os canais na minscula televiso de Elizabeth. Todos eles exibiam uma
celebrao de Natal em italiano. Fora assim todo o dia nada para ver. Suspirou e
desligou o televisor.
Elizabeth estava sentada muito direita no sof, ao lado dele. Nunca a vira desleixar a
postura, nem permitia que ele a descurasse.
Ambos os ps assentes no cho, sempre, advertira-o ela com firmeza.
Esperavas programao diferente? perguntou ela.
No esperava. Mas tinha esperana.
Alm do mais, ele era judeu e no celebrava aquele feriado, mas sentia falta do
Hanukkah, tambm. O nico reconhecimento da poca a chegar-lhe viera da fonte mais
inesperada, um carto de Natal enviado por Grigori Rasputine. De alguma forma, o russo
descobrira que ele estava naquele apartamento, na Cidade do Vaticano.
Elizabeth franzira o sobrolho ao encontrar o carto colado porta do apartamento.
Escrito na frente do envelope, lia-se: Feliz Natal, meu anjo!
O carto mostrava um anjo com uma aurola dourada.
Ele no sabia se havia de o considerar ameaa, brincadeira ou sincero.
Tendo em conta de quem se tratava, provavelmente os trs.
Passou o comando a Elizabeth, mas ela pousou-o na mesinha de apoio. Ele ensinara-a
a us-lo e ela aprendia rpido. Era curiosa em relao a tudo naquele mundo moderno e
ele tinha prazer em ensin-la.
Depois de deixar os desertos do Egito, Tommy acabara em Roma, num apartamento
disponibilizado pela Igreja. Tinham-lhe feito anlises ao sangue por diversas vezes, desde
que voltara, mas fora isso deixavam-no em paz. Agora, era apenas um rapaz rfo.
Propuseram-lhe outro alojamento temporrio, um lugar onde ficar sozinho at ser
reenviado para os Estados Unidos, mas preferira ficar com Elizabeth.
Aborrecido, perguntou-lhe:
Quer aprender a usar o micro-ondas?
Isso no um aparelho para cozinhar refeies? Ela comprimiu os lbios. Isso
funo de servos.
Tommy ergueu uma sobrancelha. Ela precisava, claramente, de aprender bastante mais
sobre o mundo moderno, do que simplesmente a tecnologia.
Acha que no vai ter de cozinhar para si prpria?
Os seus olhos ensombraram-se.
Porqu perder tempo com tais trivialidades?
Ele agitou o brao para abarcar o espao.
No pode viver aqui para sempre. E quando sair daqui, vai ter de arranjar um
emprego e ganhar dinheiro e cozinhar para si.
A Igreja no faz teno de se livrar de mim disse ela.
Porqu? Vo livrar-se de mim. Ele ia ser enviado para casa dos tios, em Santa
Brbara, pessoas que mal conhecia.
Tu s apenas uma criana. No te veem como uma ameaa. Por isso, enviam-te para
essa tal Califrnia, sem receio.
Ele suspirou, tentando no se lamentar. Elizabeth odiava queixumes. Por fim, limitou-
se a suspirar.
Eu no quero ir.
Ela voltou-se para ele.
Mas vais.
Eu no conheo essas pessoas. De todo. Acho que s os vi uma vez.
Eles vo cuidar de ti, como seu dever de famlia.
Mas no me vo amar, pensou. No como o pai e a me.
Quando partes? perguntou ela.
Amanh. Ele deixou pender a cabea.
Ela deu-lhe um toque no queixo.
Senta-te direito. Seno ficas corcunda.
Contudo, viu que ela o fez tambm para esconder o choque. Aparentemente, ningum
lhe dissera.
Eu prprio s o soube hoje de manh disse ele. Feliz Natal para ns.
Ela olhou-o de testa franzida.
Porque haveria de sentir outra coisa que no felicidade, quando te vais reunir com a
tua famlia?
Por nenhuma razo murmurou.
Ele levantou-se e foi at cozinha. No tinha mais o que fazer. No tinha nada para
emalar, s umas roupas que Christian lhe trouxera e um punhado de livros que Erin lhe
dera, antes de partir com Jordan para os Estados Unidos.
Tommy. Elizabeth ps-se de p e abeirou-se dele. Podes achar difcil viver com
essas pessoas, mas so a tua famlia. melhor do que estares aqui encurralado... comigo.
Ele abriu e fechou um armrio, no que precisasse de algo, apenas para fazer alguma
coisa. Bateu a porta com demasiada fora.
Ela virou-o pelos ombros e agarrou-lhe o queixo.
Porque ests to zangado? O que ? Queres que chore na nossa despedida? Que te
implore para ficares comigo?
Talvez um pouco.
No.
Tais manifestaes de histeria no aconteceram quando eu era menina afirmou
ela. J assisti a muito desse disparate na vossa televiso, mas acho estpido.
Tudo bem disse ele.
Ela tocou-lhe o brao.
Vou sentir a falta da tua presena. Ensinaste-me muito e trouxeste-me alegria.
Presumiu que as palavras dela equivalessem a uma mulher moderna a atirar-se para o
cho a chorar.
Vou sentir a sua falta, tambm disse ele.
Ela tirou uma caixa cinzenta do bolso e colocou-a na mo dele.
um presente de despedida, j que no celebras o Natal.
Tommy retirou o papel de embrulho com todo o cuidado. Era um telemvel pr-
pago.
Se precisares de mim prometeu ela , liga e eu irei.
Pensei que era prisioneira.
Ela escarneceu.
Como se alguma vez me pudessem manter presa.
Tommy sentiu as lgrimas a ameaarem sair e esforou-se por reprimi-las.
Ela curvou-se para o olhar nos olhos.
H poucos neste mundo dignos de confiana. Mas eu confio em ti.
E eu em si.
Fora por isso que ficara ali com ela. Os outros eram leais s suas convices, mas ela
era-lhe leal a ele.
Abraou-a para esconder as lgrimas.
Que tolice disse ela, mas apertou-o ainda mais.
10h12, CST
Des Moines, Iowa
Erin estava sentada nas escadas alcatifadas da casa dos pais de Jordan. Escondia-se da
ao na sala de baixo, aproveitando o momento para se recompor do caos da manh de
Natal. Aspirou o odor doce do po de gengibre acabado de cozer e o aroma sedutor do
caf acabado de fazer. Contudo, deixou-se ficar.
Demorou-se nas escadas, a estudar as fotografias penduradas na parede prxima.
Mostravam Jordan em diferentes idades, a par de vrios irmos e irms. Toda a sua
infncia estava ali imortalizada, desde os jogos de baseball, s excurses de pesca, ao baile
de finalistas.
Erin no tinha uma nica fotografia sua de criana.
Um olhar para baixo revelou-lhe as sobrinhas e sobrinhos de Jordan a saltarem pela
sala de estar como pipocas, carregados de acar das guloseimas nas suas meias de Natal.
Era o tipo de coisa que Erin apenas vira em filmes. Quando era criana, o Natal era um
dia de oraes suplementares, no de presentes ou meias ou Pai Natal.
Enfiou uma mo no bolso da sua nova tnica de l. O outro brao estava numa tala. O
ombro estava quase curado do ataque do leo. Jordan acabara de lhe mudar a ligadura no
quarto e j tinha descido, arrastado pelo sobrinho Bart. Erin prometera segui-lo
prontamente, mas era tranquilo ali nos degraus.
Finalmente, Jordan espetou a cabea pela esquina, descobrindo-a e juntando-se a ela
na escada. Prendeu as pontas da sua nova tnica entre as pernas, quando se sentou.
Ambas as tnicas tinham sido presente da me de Jordan.
No te podes esconder para sempre disse ele. Os meus sobrinhos e sobrinhas
vo caar-te. Eles sentem o cheiro do medo.
Ela sorriu e deu-lhe um encontro com o ombro.
Est tudo muito alegre l em baixo.
Eu sei, eles so um pouco excessivos.
No, so divertidos. Era sincera, mas a famlia dele parecia to normal, to
diferente da sua. Apenas requerem alguma habituao.
Jordan acariciou-lhe as costas da mo com o polegar, esse simples toque
relembrando-a porque gostava tanto dele.
Ests a dizer-me que enfrentaste lees e lobos e ursos, e todo o tipo de mortos-
vivos, mas tens medo de ir at ali com quatro crianas pequenas, os respetivos pais
exaustos e a minha me?
Isso resume praticamente tudo.
Ele puxou-a para os seus braos e ela descansou a face no seu peito coberto de flanela.
O corao dele batia firme ao seu ouvido. Ela saboreou o som, sabendo quo perto
estivera de o perder. Ps os braos em volta dele.
Ele falou-lhe com voz profunda.
Enfim... podemos sempre mudar-nos para um hotel, um lugar com uma cama para
ns dois?
Ela sorriu-lhe. Na vspera, quando chegaram, a me dele insistira em que dormissem
em quartos separados.
muito tentador. Mas de certa forma divertido ver-te no teu ambiente nativo.
Uma voz de criana soprou vinda de baixo, exigente.
Onde est o tio Jordan?
A menina Olivia parece estar a ficar impaciente. Ele puxou-a para a levantar.
Vamos l. Eles no mordem. A no ser, talvez, os mais pequenos.
A sua mo estava quente e segura na dele, enquanto a conduzia pelos ltimos degraus
e para dentro da ruidosa sala. Ele guiou-a para l da rvore de Natal decorada, at um
sof.
melhor ficares fora da zona de combate alertou Jordan.
A me dele, Cheryl, sorriu-lhe. Estava sentada numa cadeira de couro castanho, com
uma manta tricotada sobre os joelhos. Parecia plida e frgil. Erin sabia que ela lutava
contra o cancro e ningum sabia ao certo se veria outro Natal.
O meu filho tem razo disse Cheryl. Evite a rvore at a loucura acalmar.
Av! berrou Olivia com toda a fora dos seus pulmes. J podemos abrir os
presentes?
Um coro similar ergueu-se das outras crianas.
Cheryl levantou finalmente uma mo.
Pronto. Est bem. Ataquem!
Como lees sobre uma gazela abatida, as crianas atiraram-se aos presentes. Papel foi
rasgado. Gritos de alegria encheram o ar e uma voz desapontada bradou: Meias?
Erin tentou imaginar que tipo de pessoa seria se tivesse crescido ali.
Olivia depositou um unicrnio de plstico no colo de Erin.
Este o Twilight Sparkle.
Ol, Twilight.
O tio Jordan diz que tens pontos. Posso ver? Quantos so? Di?
Jordan salvou-a do tormento.
Olivia, os pontos esto debaixo das ligaduras, portanto no se podem ver.
Ela pareceu desalentada, como uma criana poderia parecer.
Erin chegou-se mais perto.
So vinte e quatro pontos.
Os olhos da criana arregalaram-se de espanto.
Isso imenso! Depois, semicerrou um olho, suspeitosa. Como que os
arranjaste?
Erin honrou o seu prprio compromisso com a verdade.
Foi um leo.
A me de Jordan quase deixou cair a chvena do caf.
Um leo?
Fixe! exclamou Olivia. Depois, passou a Jordan outro pnei de plstico. Segura
no Applejack.
E correu a buscar mais dos seus cavalos de brincar.
Conquistaste-a, claramente confessou-lhe Jordan.
Olivia voltou e empilhou pneis no colo de Erin, recitando nomes: Fluttershy,
Rainbow Dash e Pinkie Pie. Erin fez o seu melhor por brincar com eles, mas era-lhe to
estranho como costumes tribais aborgenes.
Cheryl falou por cima do ombro de Olivia.
O Jordan disse-me que foi destacado para uma unidade especial de proteo no
Vaticano.
verdade admitiu Erin. Eu vou trabalhar com ele.
Me disse Jordan , pare de tentar sacar informao da Erin. Natal.
Cheryl sorriu.
S lhe quero agradecer por te conseguir destacar para um lugar seguro.
Erin pensou na quantidade de experincias de proximidade com a morte a que os
dois tinham sobrevivido desde que se tinham encontrado em Massada.
No sei se seguro ser o termo adequado. Alm de que, se fosse completamente
seguro, o Jordan no o quereria fazer.
A me de Jordan deu-lhe uma palmadinha no brao.
O Jordan nunca toma o caminho mais fcil.
Olivia estava farta de ser ignorada e puxou a manga de Erin. Apontou um dedo
acusador ao nariz dela.
Ao menos sabes montar a cavalo?
Sei. Tenho mesmo uma grande gua chamada Gunsmoke.
Recordou Blackjack e sentiu uma pontada de dor e perda.
Posso conhecer a Gunsmoke? perguntou Olivia.
Ela vive na Califrnia, onde eu trabalho. Erin corrigiu-se. Onde costumava
trabalhar.
Erin falara brevemente com Nate Highsmith, na noite anterior, para lhe desejar um
feliz Natal. Ele j conhecera um dos professores alternativos que ela lhe sugerira e parecia
conformado com a sua partida. Agora, independentemente do que lhe acontecesse, ele
ficaria bem.
O que fazes? continuou Olivia. s soldado como o tio Jordan?
Sou arqueloga. Desenterro ossos e outros mistrios para tentar descobrir o
passado.
Isso divertido?
Erin olhou o rosto descontrado e feliz de Jordan.
A maior parte do tempo.
timo. Olivia acotovelou o joelho de Jordan. Ele precisa de mais diverso.
Com aquelas palavras profundas, a menina regressou sua pilha de brinquedos
debaixo da rvore.
Jordan inclinou-se para Erin e sussurrou-lhe ao ouvido.
Ele precisa seguramente de mais diverso.
Erin sorriu para os seus olhos azuis e disse a verdade.
Tambm eu.
E ENTO...
Bem nas profundezas das runas de Cumas, Leopold retomava e perdia conscincia.
Nos ltimos poucos dias, cavalgara por ondas de escurido e dor, subindo para voltar a
cair, sempre e de novo.
A lmina de Rhun atingira-o suficientemente fundo para o matar, mas no morrera.
De cada vez que lhe parecia certo afundar-se na escurido final, preparado para aceitar o
sofrimento eterno pelo seu fracasso despertava de novo. E forava-se a arrastar o corpo
e a alimentar-se dos cadveres deixados na caverna e de um ocasional rato menos
afortunado.
Esses animais inquietos ofereciam pouca substncia, mas davam-lhe esperana.
Achara-se selado ali na sequncia dos abalos, sem possibilidade de fuga. Mas por
onde um rato rastejava, ele podia escavar. S precisava de recuperar as foras.
Mas como?
Debaixo de si, ouviu as pedras ressoarem bem fundo, rangendo como dentes gigantes,
como que chamando-o ao dever. Forou as pesadas plpebras a abrirem-se. As tochas h
muito que se tinham extinguido, deixando apenas o odor do fumo. Mas mal se notava
contra o fedor sulfreo e o apodrecer dos corpos.
Procurou no bolso e tirou para fora uma pequena lanterna. Os dedos torpes de
Leopold tatearam-na desajeitadamente, por agonizantes segundos, antes de a conseguir
acender.
A luz ofuscou-o. Fechou as plpebras, esperando at que o brilho deixasse de lhe
ferir os olhos. Depois, abriu-as de novo.
Perscrutou o cho em torno da pedra de altar negra. A rede que amarrara um anjo
ainda ali estava. As fendas que tinham sido abertas pelo sangue desse mesmo anjo tinham
fechado de novo. A escurido rodopiante tambm desaparecera, novamente selada.
Tudo sinais do meu fracasso.
Fraco como um pequeno gato indefeso, rolou de costas e procurou no bolso interior
da sua veste o que a escondia o seu peso. O Damnatus incumbira-o dessa segunda
misso. A primeira fora agarrar a sibila e aprision-la ali em baixo.
Essa misso destinava-se a ser cumprida, antes do sacrifcio.
A segunda responsabilidade devia ser cumprida, depois.
No sabia se ainda importava, mas fizera um juramento e no renunciaria a ele, nem
mesmo agora. Do bolso, retirou uma pedra verde turva, um pouco maior que um
baralho de cartas. Era uma posse valiosa do Damnatus, descoberta no deserto egpcio,
negociada por muitas mos, escondida e revelada vezes sem conta, at acabar nas mos do
Traidor de Cristo.
E agora nas minhas.
Ergueu a pedra luz. Observou a escurido no interior agitar-se e afastar-se da luz.
Quando desviou o feixe da lanterna, a mancha no interior cresceu, vibrando com uma
fora terrvel.
Era algo das trevas.
Tal como eu.
Ele conhecia os rumores sobre aquela pedra, que se dizia conter uma nica gota do
sangue de Lcifer. No sabia se era verdade. Apenas sabia o que lhe fora ordenado fazer
com ela.
Mas terei foras para o cumprir?
Nos ltimos dias, suportara a escurido e a dor, alimentara-se para se sustentar,
tornando-se gradualmente mais forte, ansiando pelo poder de msculo e osso, para
cumprir a ltima misso que lhe fora exigida pelo Damnatus. A necessidade de tal ato
nunca lhe fora revelada, mas sabia que se no o tentasse agora, debilitar-se-ia inescapvel e
lentamente at morrer de fome na escurido.
Voltou a pedra para estudar o estranho esboo do outro lado, tenuemente gravado no
cristal.
Tinha a forma de uma taa ou talvez de um clice. Mas no era nenhuma taa, como
aquela de onde Leopold tantas vezes bebera o sangue de Cristo. Ele sabia que a taa ali
representada era bem mais antiga que o prprio Cristo e que aquela pedra era um nfimo
fragmento desse mistrio maior, a chave para a sua verdade.
Ergueu a pedra ao alto e baixou o brao com fora, esmagando o cristal contra o cho
de rocha. Conseguiu lasc-la um pouco, mas no o suficiente.
Por favor, Senhor, dai-me fora.
Leopold repetiu a ao uma e outra vez, chorando de frustrao. No podia falhar de
novo. Ergueu o brao e esmagou-a no cho. Desta vez, sentiu o cristal quebrar dentro da
sua mo, separando-se em metades grosseiras.
Obrigado...
Virou a cabea o suficiente para ver. Virou a mo. O cristal quebrara pelo centro. O
lquido negro derramou-se do vidro esmeralda e encontrou a sua mo.
Gritou quando este lhe tocou.
No de dor, mas de perfeito e puro xtase.
Naquele glorioso momento, soube que os rumores eram verdadeiros.
Observou a gota do sangue de Lcifer penetrar-lhe na carne, reclamando-o,
consumindo-o totalmente com a sua treva, deixando para trs apenas um propsito.
E um novo nome.
Levantou-se, agora animado por uma fora terrvel, a sua plida pele tornada negra
como bano. Ergueu o rosto e bradou o seu novo nome ao mundo, despedaando as
pedras em volta s com a voz.
Eu sou Legio, o destruidor de mundos.