Real, Ideal e Fotografia
Real, Ideal e Fotografia
Real, Ideal e Fotografia
Marcel Aniceto *
RESUMO
Este trabalho apresenta uma análise revisada sobre a a edição digital de fotografias, o Real
e o Ideal partindo de teorias semióticas e semiológias, comunicacionais, éticas e
filosóficas, apresentando um estudo de caso concluindo com uma questão da fotografia
erótica como obra de arte, questionando o Real e apontando uma necessidade de uma
pesquisa antropológica.
*
Marcel Aniceto é Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Metodista de Piracicaba e Concluinte da
Especialização em Publicidade e Mercado – Poéticas Visuais na Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo. E-mail: [email protected]
1. Introdução
Se pensarmos filosoficamente e pela etimologia o real é tudo que é concreto, não falso ou
então genuíno. Encaixando essa etimologia na semiótica, o “Referente fotográfico” de Barthes não
é nada mais que os signos (pierceanos) do real que foram o alvo do fotógrafo.
Na fotografia tradicional, que necessita do processo físico-químico, apesar das influências
da mira do fotógrafo, o instante capturado é um “rastro do real” (Sotag, 1986), ainda mesmo uma
prova que determinada cena aconteceu. A foto deveria transmitir ao expectador os mesmos índices
que o referente transmite, mas ela também serve como ícone na medida em que ela tem sua
simbologia para com o expectador.
No caso de uma revista masculina, definida desta forma pelas fotos de nudez de uma
modelo do sexo feminino que geralmente famosa, um corpo midiático, as fotografias encenam uma
história narrada por um texto secundário e muitas vezes desnecessário. A foto se transforma num
signo iconico utilitário, pronto para seguir seus objetivos mercadológicos.
Mas como o Real se transformou no Ideal?
A resposta encontra-se nas transformações culturais da última década quando com o
barateamento das tecnologias digitais de manipulação de imagens, juntamente com o crescimento
das mídias e das grandes propagandas relativas ao corpo saudável, mudaram o enfoque do “gosto”
de acordo, principalmente, com a exposição dos meios de comunicação, assim como afirma
Novaes.
A fotografia encanta e torna-se também uma máquina de criar sonhos e desejos. Quando o
Referente passa a transmitir signos quais a tornam simbólica, estética e epistêmica, esta vai
ultrapassar seu reconhecimento e encontrar-se com as expectativas do espectador transformando-a
em rememoração gerando e decodificando o esquema.2
É o Desejo pela falta.
Mas quais são as expectativas do espectador de uma revista masculina?
A figura abaixo mostra o perfil dos leitores da Revista Playboy em 2004:
1
NOVAES, Sylvia Caiuby. O uso da imagem na artopologia. In: SAMAIN, Etienne (org.) O Fotográfico. São
Paulo: HUCITEC, 1998.
2
AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993. p. 80-84
Tabela 1- Público Playboy 2004 - http://publicidade.abril.com.br/geral_perfil_leitor.php - em 17/06/2004
Um público notadamente masculino, jovem e de alto poder aquisitivo requere, assim como
em sua relação com a moda e demais produtos de consumo, novidades trazidas pelo mass-media.
Lipovetsky com o assunto da moda discursa muito bem sobre a cultura de massa e sobre essa troca
constante de gostos e de consumo.
“A cultura de massa é ainda mais representativa do processo
de moda do que a própria fashion. Toda cultura mass-midiática
tornou-se um formidável maquina comandada pela lei da renovação
acelerada, do sucesso efêmero, da sedução, da diferença marginal...
para a música e os livros, a cada mês um disco expulso o outro, um
livro um outro livro – a obsolescência aí reina como em nenhuma
outra parte.”3
Essa alteração também se confirma quando as modelos que posam nuas já eram corpos
midiáticos, famosas por serem atrizes, como por exemplo, Juliana Paes ou a Flávia Monteiro, a
jogadora de basquete Hortência ou a assistente de palco do programa Caldeirão do Huck Ana de
Biase, ou ainda outras celebridades que marcaram sua época e que ainda causam seu frisson.
Se a fotografia utiliza-se do potencial de criar sonhos, os receptores aderem a esse
propósito com todo o afinco, entrando no ambiente de sedução e realizando os seus mais intrínsecos
desejos. Essa adaptação ocorre individualmente e depende totalmente dos conhecimentos e histórias
de vida de cada receptor sobre o referente. Boris Kossoy defende essa pluralidade de sentidos: “as
imagens fotográficas, por sua natureza polissêmica permitem sempre uma leitura plural,
3
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 205
dependendo de quem as aprecie. Estes já trazem embutido no espírito, suas próprias imagens
mentais preconcebidas acerca de determinados assuntos.” 4
Mas se o propósito do sonho é o ideal e as mudanças sociológicas discutidas anteriormente
requerem a utopia do “corpo perfeito”, como esse sonho pode se tornar o mais ideal possível?
A resposta para essa pergunta é clara. A manipulação ou edição digital das fotos.
Gastando hoje aproximadamente Mil Dólares ou quase 3 Mil Reais para comprar um
computador e uma maquina fotográfica digital, é possível a qualquer pobre conhecedor da
informática corrigir imperfeições nas fotos como olhos vermelhos, iluminação, cor e imperfeições
de pele. Em um nível mais avançado, já se pode fazer alterações mais profundas como consertar
silhuetas, retirar graves imperfeições e arrumar brilho e coloração da pele, realmente alongar
pernas, braços, corrigir estrias, celulites... enfim, tudo o que a imaginação mandar.
Em geral, o público consumidor da Playboy já tem o conhecimento, se não a certeza, de
que isso pode estar ocorrendo com as revistas masculinas, mas da mesma forma não se importam
por isso já ter virado hábito, por exemplo ao publicar suas fotos em seu blog pessoal ou ainda
realizar montagens nas fotos dos amigos e brincar lhes mandando por e-mail.
Então chegamos ao ponto da história onde o fotógrafo deixa de ser o principal agente
nestas mediações simbólica e divide junto ao especialista digital os objetivos das mensagens que a
foto emite.
Seguindo as idéias de Flusser (1985: 28-29) e Santaella & Nöth (1997: 119) se o fotógrafo
é o aparelho, e é o fruto de sua ação, produzindo símbolos, concluo que o especialista de software
se torna vital na parte de ajustar esses símbolos e criar até novos não imaginados pelo aparelho
primário. Torna-se desta forma uma nova construção de aparelho-instrumento, a primeira constitui-
se de máquina fotográfica e fotógrafo e a segunda de hardware/software e especialista digital, ou
operador do computador.
Essas mudanças criam profissionalmente mudanças profundas e inegáveis. Camargo
elucida bem essa questão em sua Dissertação:
“A abordagem digital da fotografia remexe com o campo
perceptivo, e chega ao conceitual, cujo código da representação
organiza-se em um novo discurso – o que tem deixado atônitos os
fotógrafos que se dirigem para o novo mundo das imagens – é que as
relações do homem com o mundo não são mais as mesmas depois do
surgimento da tecnologia digital: a simulação e a virtualidade
repercutem sensivelmente nos novos sentidos da imagem, a realidade
4
KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Cotia, Ateliê Editorial, 1999. p. 44
em que vivemos é regulada por uma estratégia digital invisível, que
provoca efeitos em um plano real.” 5
Um destes efeitos é o caso de uma das atuais musas da mídia brasileira, a atriz Juliana
Paes, que também foi analisado na monografia.
Conhecida por várias participações em novelas da Rede Globo, conquistou os sonhos dos
espectadores em senas de sedução e erotismo onde mostrava partes de seu corpo.
Após muitas ofertas da Editora Abril, mais especificamente da Revista Playboy, Juliana
aceitou a proposta e foi capa e modelo principal da revista em maio de 2004. O público estava todo
na expectativa e algumas matérias e entrevistas prévias até citaram que a Playboy afirmou não ter
existido a necessidade de retoques nas fotos pela beleza e perfeição da modelo, mas nem uma
semana após o lançamento da edição surgem na internet fotos da atriz, tiradas no mesmo dia, pelo
mesmo fotógrafo, para uma campanha publicitária da Cerveja Antártica, sem a manipulação digital,
causando um rebuliço em toda a imprensa.
O fato foi comprovado pela própria Juliana Paes que admitiu ter celulite, mas comprovou
que não participou nem viu as fotos da internet. Mas se a posição de um veículo de comunicação
forte como a Playboy, que já chegou a ter tiragem de mais de 1 milhão de cópias mensais assumiu
publicamente que não houve retoques nas fotos, como fica a ética? Barros Filho exemplifica bem
esse processo:
“No caso hipotético da adoção da mentira como regra do
processo comunicativo, o real deixaria de ser referência. Nesse caso
a percepção da realidade seria inútil para a seqüência da relação
intersubjetiva. A construção mental, que assume o papel de
referência, rompe com a realidade e institui a “falta absoluta”
(Legendre) como única certeza do processo comunicativo. Para
alguns autores, a ruptura com o real quebra o processo
comunicacional.”6
Mas em um cotidiano das mass-media as coisas não funcionam bem assim, como explica
Santaella:
“A lógica da mídia é brutalista, desconhece as sutilezas das
diferenças. Atende cegamente aos ditames do consumo. Se uma
imagem é um bom produto, se vende bem, essa imagem será
perseguida sem tréguas e sem limites. Quanto a isso, entretanto, não
5
CAMARGO, Denise Conceição Ferra de. Rito Dígito. A fotografia sob o impacto da tecnologia digital. São Paulo:
USP, 2001. p.64
6
BARROS FILHO, Clóvis de. Ética na Comunicação. – 4ª Ed. – São Paulo: Summus, 2003. p. 38.
há novidade nenhuma. Os mecanismos da mídia já foram
esquadrinhados, criticados, vivipendiados à sociedade e, muitas
vezes, por agentes que atuam na própria mídia, dela fazendo
necessárias autocríticas. Mas a lógicas das mídias é também uma
lógica de auto-sobrevivência: é vender ou perecer.” 7
Nesse momento prova-se que o “Real” realmente não existe. Fica a critério do
interpretante gerado - no caso em relação aos leitores - a decidir ou se iludir com sua filtragem pelas
categorias universais ou, de outra maneira, de acordo com as associações das funções dos fatores
contitutivos da comunicação em relação ao repertório do leitor, que irá ou não causar uma inversão
dos eixos paradigma-sintagma pela função estética.
Este é o momento onde uma análise ainda mais aprofundada sobre como a virtualidade
causada pelas novas tecnologias, assim como sua interação com o Real se faz necessária para
compreendermos, ou chegarmos um pouco mais próximos de uma teoria, das mudanças dos
conceitos estéticos e sociais e suas relações antropológicas.
Marcel Aniceto
Janeiro de 2006
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS FILHO, Clóvis de. Ética na Comunicação. – 4ª Ed. – São Paulo: Summus, 2003.
CAMARGO, Denise C. F. de. Rito Digital. A fotografia sob o impacto da tecnologia digital. São
Paulo: Edusp, 2001.
CAMARGO, Denise Conceição Ferra de. Rito Dígito. A fotografia sob o impacto da tecnologia
digital. São Paulo: USP, 2001.
KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Cotia, Ateliê Editorial, 1999.
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
NOVAES, Sylvia Caiuby. O uso da imagem na artopologia. In: SAMAIN, Etienne (org.) O
Fotográfico. São Paulo: HUCITEC, 1998.
NÚ. Enciclopédia de Artes Visuais. Instituto Itaú Cultural, 2003. Disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fuseaction=
Detalhe&CD_Verbete=3880. Acessado em 15 jan 2005.
SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004.