Invenção Do Orfeu

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Jorge de Lima

Inveno de Orfeu

estabelecimento de texto e posfcio


Fbio de Souza Andrade

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Copyright 2017 by herdeiros de Jorge de Lima

Textos de Jos Guilherme Merquior publicados sob a licena generosamente cedida pela
Editora Realizaes.

Esta edio manteve a grafia original do autor.

A Companhia das Letras agradece Cosac Naify pelo material cedido para esta edio.

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Imagem de capa
Inverno A passagem do Atlntico de Gonalo Ivo (2009).
Aquarela sobre papel, detalhe de uma obra de 35 x 24 cm.
Acervo do artista. Reproduo: Jean-Louis Losi.

Estabelecimento de texto e posfcio


Fbio de Souza Andrade

Preparao
Eduardo Rosal

Reviso
Jane Pessoa
Fernando Nuno

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)


(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Lima, Jorge de, 1893-1953


Inveno de Orfeu / Jorge de Lima. 1a ed. Rio de
Janeiro : Alfaguara, 2017.

isbn 978-85-5652-042-5

1. Poesia 2. Poesia brasileira. i. Ttulo.

17-03481 cdd-869.1

ndice para catlogo sistemtico:


1. Poesia : Literatura brasileira 869.1

[2017]
Todos os direitos desta edio reservados
editora schwarcz s.a.
Praa Floriano, 19 Sala 3001
20031-050 Rio de Janeiro rj
Telefone: (21) 3993-7510
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Inveno de Orfeu

ou

Biografia pica,
Biografia Total e No
Uma Simples Descrio de Viagem
Ou de Aventuras.
Biografia com Sondagens;
Relativo, Absoluto e Uno
Mesmo o Maior Canto
Denominado Biografia

A
Murilo Mendes

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Sumrio

canto i Fundao da Ilha 13


canto ii Subsolo e Supersolo 81
canto iii Poemas Relativos 121
canto iv As Aparies 149
canto v Poemas da Vicissitude 189
canto vi Canto da Desapario 215
canto vii Audio de Orfeu 237
canto viii Biografia 265
canto ix Permanncia de Ins 345
canto x Misso e Promisso 353

Anotaes do autor na 1 edio 405

murilo mendes
Inveno de orfeu 411
A luta com o anjo 415
Os trabalhos do poeta 419

jos guilherme merquior


O modernismo e trs dos seus poetas (excerto) 423

fbio de souza andrade


Posfcio Ovo de formiga, olho do sol 429

Bibliografia selecionada 443


ndice de primeiros versos 445

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Na pgina seguinte, a nomenclatura i a iv Reis deve-se traduo do grego e do
latim que coloca os livros i e ii Samuel (no original hebraico) como i e ii Reis e o
habitual i e ii Reis (no original hebraico) como iii e iv Reis. A equivalncia com a
Bblia de Jerusalm seria, respectivamente, i Reis, cap. 6, v. 7; i Reis, cap. 6, v. 16;
i Reis, cap. 7, vv.36-9 e Isaas, cap. 42, v. 10. (n. e.)

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E, quando a casa se edificava, faziam-na de pedras lavradas e perfeitas; e no
se ouviu martelo nem machado, nem instrumento algum de ferro, enquanto
ela se edificava.
iii reis, 7

E revestiu com tbuas de cedro os vinte cvados a partir do fundo do templo,


desde o pavimento at ao mais alto, e destinou-o para a casa interna do
orculo, ou Santo dos Santos.
iii reis, 16

Lavrou tambm nas superfcies, que eram de bronze, e nos cantos, querubins,
e lees, e palmas, apresentando como que a figura de um homem em p, e com
tal arte que no pareciam gravados, mas sobrepostos ao redor. Deste modo fez
dez bases do mesmo molde da mesma medida, e de escultura semelhante. Fez
tambm dez bacias de bronze, cada uma das quais continha quarenta batos,
e era de quatro cvados; e ps cada bacia sobre cada uma das dez. E, das dez
bases, ps cinco na parte direita do templo, e cinco na esquerda; e ps o mar
na parte direita do templo entre o oriente e o meio-dia.
iii reis, 36, 37, 38 e 39

Eu anuncio coisas novas, ilhas cantai um canto novo.


9. isaas, xlii, 10

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Jtais gant. Les insulaires memmenrent dans leurs vergers pour que
je cueillisse des fruits semblables des femmes. Et lle, la drive, alla
combler un golfe o du sable aussitt poussrent des arbres rouges. Une
bte molle couverte de plumes blanches chantait ineffablement et tout un
peuple ladmirait sans se lasser. Je retrouvai sur le sol la tte faite dune seule
perle qui pleurait. Je brandis le fleuve et la foule se dispersa. Des vieillards
mangeaient lache et immortels souffraient pas plus que les morts. Je me sentis
libre, libre comme une fleur en sa saison. Le soleil ntait pas plus libre quun
fruit mr. Un troupeau darbres broutait les toiles invisibles et laurore
donnait la main la tempte. Dans les myrtaies, on subissait linfluence de
lombre. Tout un peuple entass dans un pressoir saignait en chantant. Des
hommes naquirent de la liqueur qui coulait du pressoir. Ils brandissaient
dautres fleuves qui sentrechoquaient avec un bruit argentin.
guillaume apollinaire
IL Y A pp. 240-1 Onirocritique.

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canto i
Fundao da Ilha

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1
Um baro assinalado
sem braso, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que de aqum e de alm-mar
a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memrias,


vai lembrado de seus dias,
dias que so as histrias,
histrias que so porfias
de passados e futuros,
naufrgios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, l vo
a todas as naus alertas
de vria mastreao,
mastros que apontam caminhos
a pases de outros vinhos.
Esta a bria embarcao.

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Baro brio, mas baro,
de manchas condecorado;
entre o mar, o cu e o cho
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mo.

2
A ilha ningum achou
porque todos a sabamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar


qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos,


mesmo sem vagas e areias,
h sempre um copo de mar
para um homem navegar.

Nem achada e nem no vista


nem descrita nem viagem,
h aventuras de partidas
porm nunca acontecidas.

Chegados nunca chegamos


eu e a ilha movedia. >

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Mvel terra, cu incerto,
mundo jamais descoberto.

Indcios de canibais,
sinais de cu e sargaos,
aqui um mundo escondido
geme num bzio perdido.

Rosa de ventos na testa,


mar rasa, aljofre, prolas,
domingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!

Afinal: ilha de praias.


Quereis outros achamentos
alm dessas ventanias
to tristes, to alegrias?

3
E depois das infensas geografias
e do vento indo e vindo nos rosais
e das pedras dormidas e das ramas
e das aves nos ninhos intencionais
e dos sumos maduros e das chuvas
e das coisas contidas nessas coisas
refletidas nas faces dos espelhos
sete vezes por sete renegados,
reinventamos o mar com seus colombos,
e columbas revoando sobre as ondas,
e as ondas envolvendo o peixe, e o peixe
( misterioso ser assinalado), >

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com linguagem dos livros ignorada;
reinventamos o mar para essa ilha
que possui cabos-no a ser dobrados
e terras e brasis com boa aguada
para as naves que vo para o oriente.

E demos esse mar s travessias


e aos mapas-mndi sempre inacabados;
e criamos o convs e o marinheiro
e em torno ao marinheiro a lenda esquiva
que ele quer povoar com seus selvagens.

Empreendemos com a ajuda dos acasos


as travessias nunca projetadas,
sem roteiros, sem mapas e astrolbios
e sem carta a El-Rei contando a viagem.
Bastam velas e dados de jogar
e o salitre nas vigas e o hagiolgio,
e a f ardendo em claro, nas bandeiras.
O mais: A meia quilha entre os naufrgios
que to bastantes varram os pavores.
O mais: Esse farol com o feixe largo
que to unido varre a embarcao.
Eis o mar: era morto e renasceu.
Eis o mar: era prdigo e o encontrei.
Sua voz? que voz convalescida!
Que lamrias to fortes nessas gveas!
Que coqueiros gemendo em suas palmas!
Que chegar de luares e de redes!

Contemos uma histria. Mas que histria?


A histria maldormida de uma viagem.

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4
Vs sabeis onde esto as latitudes,
longitudes, limites, tordesilhas
e as fronteiras fechadas para as ilhas.
Mas alm dessas firmes certitudes,

h o tnel que Virglio descobriu


e onde o dio torcicola as criaturas,
suor e pranto correndo num s rio;
e h as bocas sagitais corolas duras,

os lbios quais dois calos, e as ilhargas


como as asas dos pssaros convulsos,
patas ungueadas, breves mas amargas,
agarradas a si, de si expulsas

pelo tubo das ventas que tremeu


um bramido to fundo, to danado
que o prprio dio desencarcerado,
ziguezagueou do inferno que o ferveu.

5
No esqueais escribas os somenos,
as geografias pobres, os nordestes
vagos, os setentries desabitados
e essas flores ptreas antilhanas.

H nesses mapas nmeros pequenos,


uns tempos esbraseados para pestes >

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e muitos ossos tbios chamuscados,
faces perdidas, formas inumanas.

No esqueais, escribas, ir contando


nas cartas o que est aparente, ao lado
das invenes em seu fictcio arranjo.

E os pequenos orgulhos, sempre quando


quereis fugir ao mundo persignado,
impenitente e despenhado arcanjo.

6
A proa que ,
que timo
furando em cheio,
furando em vo.

A proa que ave,


peixe de velas,
velas e penas,
tudo o que a nave.

A proa em si,
em si andada.
Ave poesia,
ela e mais nada.

Soa que soa


fendendo a vaga,
peixe que voa,
ave, voo, som.

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Proa sem quilha,
ave em si e proa,
peixe sonoro
que em si reboa.

Peixe veleiro,
que tudo o deixe
ser s o que :
anterior peixe.

7
As estradas pertencem aos vizinhos,
as minas aos feudais, domina o centro
o famoso vulco, e tudo j
pertenceu a algum cu e h gelo e h ouro
e h presdios e h tropas: No h paz.
E h desertos de pedras e umas savanas.
Populao: Uns dez bilhes de escravos,
e seu descobridor entre os antpodas,
entre as febres, da jorra a montanha
com seus mares em torno, e vinho e vinho.
E eis os climas por dentro de outros climas,
e no mago dos magos esse ovo,
e esse silncio trgico nesse ovo,
todavia raspemos esse pelo
que h na face de todas as criaturas,
e os bigodes que afogam as crianas,
e os vus fixos nos olhos das mulheres.
Os pincens so vistos nesse instante,
no cavalgando ventos mas as ventas
que inda querem sorver as madrugadas.

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8
Na oscilao das noites e dos dias,
ouve-se a avena suave, distribuda
sobre esse tempo como estrela exata,
to gaia estrela, to ocaso frio.
Contempla-se o ondulante movimento
das cabras, belas cabras recolhendo-se.
Seus olhares sensveis colhem lrios
que lhes perfumam os chavelhos altos.

Dirige-se a cano por onde nunca


nem as cabras subiram nem os ecos,
campo alegre com ris e bonanas,
bocas leves de flautas dissolvidas,
mos nas mos, manjeronas e aves mansas,
e desejados peixes que pastassem
e encantados penedos que ressoassem
com silvestres planetas refloridos.

Ovos nas relvas com seus olhos mansos,


pequenas nuvens baixas, e uma ondina
sonmbula, inocente, com dois pssaros
nas mos com abundncias, leites, mbares.
preciso que a prpria natureza
seja nossa com sortes de aucenas;
e ela aqui est, seus pulsos latejando,
como em tudo, provando poesia.

Indicados desejos singulares


mesmo em reinos inanes; e sibilos,
gros de aventura ubrrimos no vento. >

22

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Coisas rorejam. Ablues repetem-se.
Uns certos descantares solicitam
abandonos sem culpa, pois nos cactos
a densa nvoa fura-se em segredo.
Foi preciso que tu, natureza,

cios provisionados transmitisses


e nos contaminasses com esses vios
de setas mergulhadas nas ilhargas,
no peito, como santos reeditados.
Milagre d-se, d-se o dom jucundo,
coisas de luz somente, coisas de ar,
leis revogadas pelas mos infantes,
lidos pmpanos e to lidos zfiros.

O sol to ali perto em ramo de asas


baixado at consultas de corolas,
at despetalado entre sorrisos
de meninas suspensas em bailados
de bucles aoitados por algum
apelo em lbios, natureza e vida,
ciclo total de jbilos largados
nos vus dos speros convites. Prdigos.

Nem sei de pensamento mais lavado,


de face mais rociada de epiderme,
e mos sem temer crespas expresses,
as palmas encerradas com as promessas.
Ah! os juramentos, votos dados. Voar.
Direo de voar, prevaricato
contra a nossa lerdice postednica,
e um doce refrigrio amanhecido.

23

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Larguei-me de mim mesmo renunciado
dos sentidos comuns. Ido na ptria,
considero-me lcito no instante;
pelo menos sem ver-me, restituo-me
ps que nunca possu, mos foragidas,
pensamento de ldima poesia
envolvendo o profundo da alegria,
pelo fundo dos mares e dos cus.

Entrepus-me a diversos sentimentos;


h uma loucura amada e repetida
sem descrio possvel nem notcia:
como leve apuro, leve lado
com destinos no tidos, to tumulturia
placidez, que a sondagem do universo
como esse metro, mo inexistente
dedilhando-o cano desconhecida.

9
H umas coisas parindo, ningum sabe
em que leito, em que chuvas, em que ms.
Coisas aparecidas. Cus morados.
As presenas destilam. Chamam de onde?

Em que tero fundo este ovo cabe,


no regao alcanado em que te vs?
A porta aberta, os vales saturados,
e um gemido bivalve que se esconde.

Fios para as aranhas orvalhadas.


Rosas florindo pelos. Graves molhos
mugidos sob as rbitas dos bois.

24

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H apelos nas pelejas procuradas
na multiplicidade de cem olhos
refletidos na espreita. Choram dois.

10
Os rios que passam,
os rios que descem,
j foram cantados
por muitos.

Os rios parados
na face do tempo,
porm mais velozes,
so rios.

Os seus afogados
jamais conseguiram
descer apressados
pra o mar.

As luas que neles


se espelham constantes
no tm suas fases,
no mudam.

Pois que esses rios


so rios do espao
com as guas do tempo
velozes.

25

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