O Conto - Teoria e Análise PDF
O Conto - Teoria e Análise PDF
O Conto - Teoria e Análise PDF
03, 16:14
Ficha Tcnica
Ttulo
forma breve N. 1 Revista de Literatura
O Conto Teoria e Anlise
Coordenador
Antnio Manuel Ferreira
Artes Grficas e Servios de PrPress
design | GABINETE de IMAGEM
Fundao Joo Jacinto de Magalhes
direco Jos Antnio Moreira
A???/04
Impresso
,
Edio
Universidade de Aveiro
Campus Universitrio de Santiago
3810-193 Aveiro
1. Edio
???????? de 2004
Tiragem
???? Exemplares
Depsito Legal
???????????/04
ISBN
972-789-???-?
CDU
???
Correspondncia
forma breve Departamento de Lnguas e Culturas
Universidade de Aveiro
3810-193 Aveiro
Aceitam-se permutas
Catalogao recomendada
,
:
/ . 2. . : ,
2003. 206 .
9727890989
// //
371
forna breve N. 1
O Conto
Teoria e Anlise
2004
Publicao com o apoio
Fundao Calouste Gulbenkian
Fundao para a Cincia e a Tecnologia
O conto:
da literatura teoria literria
Palavras-chave: narrativa breve, teoria, lrica, conto, canto.
Keywords: short narrative, theory, lyric, short story, chant
1
Cf. Verglio Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand, 1992, p. 123: Vivemos no tempo do fragmento. Nada inteiro,
consciente, estruturado nos seus elementos. Nada d de si uma garantia no suporte do que lhe aguente a
segurana. Nada tem razo de ser. Um vento de desolao tudo arrancou, ficaram os restos dispersos do
seu passar []. Mas toda a vida feita de farrapos, de bocados, de duas sandes comidas no snack. Ou
lemos durante, para mais depressa. No lemos por inteiro, no pensamos por inteiro, no somos em nada
tudo. Vale, no entanto, a pena recordar que, segundo Roland Barthes, o fragmento, ou, se se preferir, a
reticncia uma das tcnicas da literatura que permite reter o sentido para melhor o deixar difundir-se
em direces abertas (Ensaio Crticos, Lisboa, Edies 70, 1977, p. 20).
Rosa Maria Goulart, O conto: da literatura teoria literria, forma breve 1, 2003, p. 7-13 | 7
2
Essa , entre outras, a posio de Mariano Baquero Goyanes em Qu es la novela, qu es el cuento?, (Madrid,
3. ed., Murcia, Universidade de Murcia, 1998), onde se pode ler que un cuento no se lo imaginauno sin
composicin; una novela es posible sin argumento, sin arquitectura y sin composicin (p. 54).
3
Cf. Carlos Pacheco, Criterios para una conceptualizacin del cuento, in Carlos Pacheco e Luis Barrera Linares
(comp. ), Del cuento y sus alrededores. Aproximaciones a una teora del cuento, 2. ed . revista e ampliada,
Caracas, Monte vila Editores Latinoamericana, 1997, p. 23: Pero la brevedad no puede ser la consecuencia
de una mera decisin del autor de no ser extenso. Es obvio, como ya dijimos, que no cualquier brevedad
es, por s misma, suficiente. La economa es ya un primer paso en direccin hasta esta deseada brevedad
intensa.
4
Julio Cortzar, Del cuento breve y sus alrededores, in Carlos Pacheco e Luis Barrera Linares (comp. ), op.
cit., p. 405.
5
Cf. Del cuento y sus alrededores.
6
Carlos Pacheco, op. cit., p. 19.
7
Cf. op. cit., p. 20: La novela opera por acumulacin, se vale principalmente de la memoria associativa y
requiere de una distensin o respiracin temporal y anmica (de un ser tomada y dejada repetidas veces)
que permita la construccin gradual ahora en la interioridad de quien lee del mundo ficcional repre-
sentado.// Como mecanismo de precisin que es, el cuento, por el contrario, requiere ante todo de la
atencin concentrada del lector. Para poder producr en l aquel efecto preconcebido, nico, intenso,
definido, de que nhabla poe, el cuento debe ser ledo de una assentada.
8
Cf. David Mouro-Ferreira, Os Amantes e Outros Contos, 3. ed., 1981, Lisboa, p. 18.
9
Carta aos Condes de Arnoso e Sabugosa em 8 de Fevereiro de 1895. Citaes a partir do 4. volume da
Obra Completa, ed. da Nova Aguilar, Rio, 1997/2000. Apud Beatriz Berrini, Nota introdutria, in Ea de Queirs.
Antologia, Lisboa, Relgio dgua, 2000, p. 12.
10
No conto tudo precisa ser apontado num risco leve e sbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha
flagrante e definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos apenas o que caiba num olhar,
ou numa dessas palavras que escapa dos lbios e traz todo o ser; da paisagem somente os longes, numa
cor unida. Tu em boa hora seguiste fielmente esta potica, que velhssima, que j vem de Horcio (ibid.,
p. 70).
11
Cf., a propsito, Vtor Manuel de Aguiar e Silva, A estrutura do romance, Coimbra, Almedina, 1974, p. 105-
106: O conto alheio inteno romanesca de representar o fluir do destino humano e a formao e o
amadurecimento de uma personagem, pois a sua concentrao estrutural no comporta a anlise minudente
das vivncias do indivduo e das suas relaes com os outros. Um curto episdio, um caso humano inte-
ressante, uma recordao, etc., constituem o contedo do conto.
12
Verglio Ferreira, Contos, Lisboa, Arcdia, 1976.
2. O conto e o canto
Com frequncia surge, na praxis e na teoria literrias, a metfora do canto como forma
de designar a poesia lrica, numa clara ressonncia da ancestral ligao desta msica. Menos
vulgar , porm, apesar das reiteradas afirmaes de que o conto contitui um gnero propcio
aceitao daquele modo literrio, levadas a cabo pela teoria contempornea, a aplicao
da mesma metfora quela forma de narrativa breve. Contudo, tratando-se de um gnero
narrativo, no ser a forma poemtica a que melhor o serve em termos formais. Da que as
teorias do conto geralmente falem em termos de possibilidade ou de tendncia e um autor
como Mariano Baquero Goyanes afirme que se trata de um gnero intermdio entre poesia
e romance, possuidor de um matiz semipotico, seminovelesco, que s exprimvel nas
dimenses do conto13. E mais adiante o autor, aps ter citado Albert Thibaudet, segundo o
qual entre romance e novela hay la diferencia que existe entre lo que es un mundo y lo
que est en el mundo, conclui que essa qualidade de estar no mundo convm igualmente
ao conto en cuyas reducidas dimensiones suele estar captado algn instante, algn trzo
de vida expresivo e intenso (op. cit., p. 132).
Digno de comentrio o texto desse excelente contista que foi Jorge Lus Borges, Contar
o conto, e sugestivamente includo num livro que, por sua vez, tem por ttulo Este ofcio de
poeta e onde defende o conto como lugar onde se preserva aquilo que no romance se perdeu
e se fragmentou. Isto nos faz lembrar a aproximao, j recorrente nos vrios estudos tericos
sobre o conto, entre este e a poesia, s que agora vista e dita na, como sempre, originalssima
perspectiva borgesiana. Diz-nos, pois, Borges o que j sabamos a respeito das virtualidades
lricas do conto (brevidade e contenso, explorao de situaes ou momentos nicos que,
13
esta a definio de conto que o autor d: El cuento es un preciso gnero literario que sirve para expresar
un tipo especial de emocin, de signo muy semejante a la potica, pero que no siendo apropriada para
ser expuesta poeticamente, encarna en una narrativa prxima a la de la novela, pero diferente de ella en
tcnica e intencin. (op. cit. p. 144).
14
Jorge Lus Borges, Este ofcio de poeta, Lisboa, Teorema, 2002, p. 51-52 [ttulo original: This Craft of Verse].
15
Cf. ibid., p. 59: H outro facto a notar: os poetas parecem esquecer que em tempos contar um conto foi
essencial e que no se considerava contar o conto e dizer poesia duas coisas diferentes. Um homem contou
um conto; cantou-o; e os seus auditores no o consideraram algum que tenta exercer dois ofcios, antes
algum que se esfora numa tarefa que tem dois lados. Ou talvez no sentissem haver dois lados, talvez
pensassem aquilo tudo como uma coisa essencial.
16
Cf. O credo de um poeta, op. cit., p. 130-131: Agora cheguei concluso (e esta concluso pode parecer
triste) de que j no acredito na expresso: s acredito na aluso. Afinal, o que so as palavras? As palavras
so smbolos para memrias partilhadas. Eu uso a palavra e o outro tem que ter alguma experincia do
que a palavra quer dizer. De outro modo, a palavra nada significa. Creio que s podemos aludir, s podemos
tentar fazer o leitor imaginar. O leitor, se for suficientemente rpido, pode satisfazer-se se apenas sugerimos
uma coisa.
17
Segundo este autor, a frmula simplista para distinguir um e outro consiste no seguinte: quando o assunto
se deixa resumir, estaramos em face de um conto; quando tal no possvel, ou no seja fcil, de supor
que se trate de um poema em prosa (cf. op. cit., p. 130).
Resumen: Se realiza un estado de la cuestin de las ltimas No es la primera vez que tengo la oportu-
publicaciones, centradas sobre el cuento actual en Espaa,
tanto en aspectos tericos como anlisis de diferentes cuentos
nidad de estar en Portugal, un pas para m tan
de diversos autores. querido y admirado, por razones personales y
Abstract: In this article we provide an overview of the latest profesionales. Por lo que a estas ltimas se refiere,
publications on the contemporary short story in Spain, citar mi participacin en el I Colquio Luso-Espanhol
covering both theoretical aspects and specific analyses of y II Colquio Luso-Brasileiro de Semitica, celebrado
different short stories by different authors.
en Porto, del 25 al 28 de noviembre de 1985, en
el que present una informacin y un balance de
la Asociacin Espaola de Semitica, fundada por iniciativa ma2 y que por aquel entonces
cumpla sus primeros aos; as como mi intervencin en el III Congresso da Associao Hisp-
nica de Literatura Medieval, que tuvo lugar en Lisboa, del 1 al 5 de octubre de 1991, donde
present un trabajo sobre la presencia de lo medieval en una de las recopilaciones ms
importantes de cuentos de la Espaa del siglo XVI3, que, por cierto, en ocasiones, fue muy
seguida por Gonalo Fernandes Trancoso4, ese gran recopilador portugus de cuentos del
mismo periodo. A estos escenarios se une ahora la universidad de esta bellsima ciudad de Aveiro.
Por ello, quiero expresar mi agradecimiento ms sincero tanto a esta institucin y al
Departamento de Lnguas e Culturas, como, muy especialmente, al profesor y ya querido
1
Se publica el texto de la conferencia pronunciada en el Departamento de Lnguas e Culturas de la Univer-
sidade de Aveiro, el 9 de octubre de 2002.
2
Cf. Jos Romera Castillo, La Asociacin Espaola de Semitica: informacin y balance, in Da Semitica Actas
do I Colquio Luso-Espanhol e do II Colquio Luso-Brasileiro, Lisboa, Vega/Universidade, 1988, p. 153-164.
3
Cf. Jos Romera Castillo, Ecos de la literatura medieval en El Patrauelo, de Timoneda, in Literatura Medieval.
Actas do IV Congresso da Associao Hispnica de Literatura Medieval, Lisboa, Cosmos, vol. III, 1993, p. 203-
207, incluido posteriormente en mi libro, Calas en la literatura espaola del Siglo de Oro, Madrid, UNED, 1998,
p. 329-334.
4
En su obra, Contos e historias de proveito e exemplo, edicin de J. Palma-Ferreira, Lisboa, Impresa Nacional-
Casa da Moeda, 1974.
Jos Romera Castillo, Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo, forma breve 1, 2003, p. 15-38 | 15
5
Madrid, Alfaguara, 2003.
6
Madrid, Alfaguara, 1992.
7
Como constataba Mercedes Monmany, De Lobo Antunes al regreso del padre Amaro, ABC Cultural 558,
2002, p. 17.
8
Por razones de espacio no puedo referirme a otras tipologas de cuentos.
16 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
Como sealaba anteriormente, el cultivo del cuento en la literatura espaola actual goza
de un esplendor inusitado9. Nunca, en Espaa, se haba producido tanta cantidad y calidad
de relatos breves como a finales del siglo pasado e inicios del nuevo. Asimismo, como es
obvio, paralelamente a tan recia produccin se ha producido un fuerte inters por su estudio.
Por ello, me van a permitir que traiga a colacin unos pocos estudios que, desde mi punto
de vista, son muy significativos dentro del panorama de la investigacin sobre la cuentstica
en el pas de Cervantes, con el fin de refrescar la memoria, en algunos casos, y ofrecer nueva
informacin, en otros. Ni que decir tiene que, por razones de espacio, en esta seleccin me
referir exclusivamente a una serie de libros, dejando a un lado, en general, artculos slo
traer a colacin unos pocos , trabajos recogidos en volmenes, prlogos a libros y antologas,
as como tampoco tendr en cuenta los volmenes publicados en estos ltimos aos sobre
la obra cuentstica de un autor determinado de diferentes periodos de la literatura espaola10.
Al referirse a la teora moderna del cuento literario en Espaa dejando a un lado los
estudios sobre narrativa en general en los que se hace alusin a esta tipologa de escritura
y a lo que los escritores postulan sobre ella11 es de obligado cumplimento hacer mencin
a los pasos dados por Mariano Baquero Goyanes, quien tras haber realizado su tesis de
doctorado sobre el cuento espaol del siglo XIX12, se interes por la teora de los gneros
narrativos y public, en Argentina, dos breves eptomes sobre Qu es la novela13 y Qu es el
cuento14, en la misma coleccin en la que, unos aos antes, Enrique Anderson Imbert publicara
El cuento espaol15. Podemos decir, pues, que el breve ensayo de Baquero sera una piedra
angular en el inicio del inters terico en Espaa por esta modalidad de escritura. Afortuna-
damente poseemos una nueva edicin de Qu el cuento16, con un esclarecedor prlogo de
9
Cf. Fernando Valls, El renacimiento del cuento en Espaa (1975-1990), Lucanor 6, 1991, p. 27-42; Juan Jos
Mills, Lo que cuenta el cuento. El auge del relato breve El Pas, 1 de noviembre, 1987, p. 21-22; Medardo
Fraile, El resurgir del cuento?, nsula 512-513, 1989, p. 10, etc.
10
Como por ejemplo los de ngeles Ezama Gil, El cuento de la prensa y otros cuentos. Aproximacin al estudio
del relato breve entre 1890 y 1900, Zaragoza, Universidad, 1992; Rolf Eberenz, Semitica y morfologa textual
del cuento naturalista, Madrid, Gredos, 1989; Brigitte Leguen, Estructuras narrativas en los cuentos de Alarcn,
Madrid, UNED, 1988; Jos Luis Martn Nogales, Los cuentos de Ignacio Aldecoa, Madrid, Ctedra, 1984;
Epcteto Daz Navarro, Del pasado incierto. La narrativa breve de Juan Benet, Madrid, Editorial Complutense,
1992; Antonio Candau, La obra narrativa de Jos Mara Merino, Len, Diputacin Provincial, 1992; Francisco
J. Higuero, La memoria del narrador. La narrativa breve de Jimnez Lozano, Valladolid, mbito, 1993, etc.
11
Cf. Santos Alonso, Potica del cuento. Los escritores actuales meditan sobre el gnero, Lucanor 6,1991, p.
43-54; Jos M. Pozuelo Yvancos, Escritores y tericos: la estabilidad del gnero cuento, in Carmen Becerra
et al. (eds.), Asedios conto, Vigo, Universidade, 1999, p. 37-48, etc.
12
El cuento espaol en el siglo XIX, Madrid, CSIC, 1949. Una puesta al da de los trabajos de Mariano Baquero
Goyanes sobre el cuento la ha realizado su hija, Ana Baquero, bajo el ttulo de El cuento espaol: del
Romanticismo al realismo, Madrid, CSIC, 1992.
13
Buenos Aires, Columba, 1961; con otras dos ediciones en 1966 y 1975.
14
Buenos Aires, Columba, 1967; con otra edicin en 1974.
15
Buenos Aires, Columba, 1959; con otras ediciones en Buenos Aires: Marymar, 1979 y Barcelona: Ariel, 1992,
1996.
16
Murcia, Universidad, 1988.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 17
17
Cf. por ejemplo adems del libro de Nuria Carrillo y las Actas del SELITEN@T, a los que me referir despus-
los trabajos de Catharina V. de Vallejo, El estado actual de la teora cuentstica en lengua castellana, Lucanor
1, 1988, p. 47-60; Fernando Valls, El cuento espaol actual. Bibliografa, Lucanor 6, 1991, p. 93-97; Jos
Romera Castillo, Panorama del anlisis semitico del cuento en Espaa, in Peter Frhlicher y Georges
Gntert (eds.), Teora e interpretacin del cuento, Berna, Peter Lang, 1995, p. 103-124 y El cuento, en su
obra, Enseanza de la Lengua y la Literatura, Madrid, UNED, 1996, p. 167-184; Genara Pulido Tirado, La teora
del cuento en la Espaa de los aos noventa. Un balance, in Jos Romera Castillo y Francisco Gutirrez
Carbajo (eds.), El cuento en la dcada de los noventa, Madrid, Visor Libros, 1993, p. 561-577, etc.
18
Buenos Aires, Columba, 1969.
19
Madrid, Editora Nacional, 1973.
20
Granada, Universidad, 1986.
21
Pamplona, Hierbaola, 1992.
22
Pamplona, Hierbaola, 1993.
23
Sobre el cuento hispanoamericano fuera del alcance de este trabajo conviene recordar adems de las
teorizaciones de eminentes escritores, practicantes del gnero, como, por ejemplo, las del dominicano Juan
Bosch, Teora del cuento, Mrida, Venezuela, Universidad de los Andes, 1967, o Julio Cortzar, La casilla de los
Morelli, 4. ed., Barcelona, Tusquets, 1988, compilacin de Julio Ortega, especialmente los apartados: Algunos
aspectos del cuento, Del cuento breve y sus alrededores; adems de El cuentista, prlogo a la traduccin
de Edgar A. Poe, Cuentos, Madrid, Alianza, 1970 los trabajos de Enrique Anderson Imbert, El cuento espaol,
Barcelona, Ariel, 1996; Emilio Carilla, El cuento fantstico, Buenos Aires, Nova, 1968; Mario A. Lancelotti, De
Poe a Kafka. Para una teora del cuento, Buenos Aires, Eudeba, 1974; Ral Castagnino, Cuento-artefacto y
artificios del cuento, Buenos Aires, Nova, 1977; Edelweis Serra, Tipologa del cuento literario. Textos hispanoa-
mericanos, Madrid, Cupsa, 1978; Carmen de Mora Valcrcel, Teora y prctica del cuento en los relatos de
Cortzar, Sevilla, Publicaciones de la Escuela de Estudios Hispano-Americanos de Sevilla, 1982; Gabriela Mora,
En torno al cuento: de la teora general y de su prctica en Hispanoamrica,Madrid, Porra Turanzas, 1985; con
2. ed. corregida y ampliada en Buenos Aires, Albero Vergara, 1993; Ana Rueda, Relatos desde el vaco: un
estudio crtico del cuento hispnico contemporneo, Vanderbilt University, University Microfilms International,
1985 con versin impresa: Relatos desde el vaco. Un nuevo espacio crtico para el cuento actual, Madrid:
Orgenes, 1992 -; Alfredo Pavn (ed.), El cuento est en no crerselo, Tuxtla Gutirrez, Universidad Autnoma
de Chiapas, 1986 y Teora y prctica del cuento. Encuentro Internacional 1987,Morelia, Instituto Michoacano
de Cultura, 1987; Catharina V. de Vallejo (ed.), Teora cuentstica del siglo XX. Aproximaciones hispnicas, Miami,
Universal, 1989 y Elementos para una semitica del cuento hispanoamericano del siglo XX, Miami, Universal,
1992; Carmen Lugo Filippi, Los cuentistas y el cuento, San Juan de Puerto Rico, Instituto de Cultura Puertorri-
quea, 1991; Lauro Zavala (ed.), Teoras del cuento I: Teoras de los cuentistas, Mxico, UNAM, 1993; 2. ed.,
1995, Teoras del cuento II: La escritura del cuento, Mxico, UNAM, 1995; 2. ed., 1996 y Teoras del cuento III:
Poticas de la brevedad, Mxico, UNAM, 1996; Carlos Pacheco y Luis Barrera Linares (eds.), Del cuento y sus
alrededores. Aproximaciones a una teora del cuento,Caracas, Monte vila, 1997; 1. ed., 1993; Enrique Pupo-
Walker (ed.), El cuento hispanoamericano ante la crtica, Madrid, Castalia, 1995; Eva Valcrcel (ed.), El cuento
hispanoamericano del siglo XX. Teora y prctica, A Corua, Universidade, 1997; Patricio Gayalde Palacios, La
interpretacin, el texto y sus fronteras. Estudios de las interpretaciones crticas de los cuentos de Julio Cortzar,
Madrid, UNED, 2001; Luis Leal, Historia del cuento hispanoamericano, Mxico, Ediciones de Andrea, 1971, etc.
Hay algunas revistas dedicadas a esta modalidad de escritura como, por ejemplo, la mexicana El cuento,
dirigida por Edmundo Valds, centrada en el estudio de crtica y teora literaria del gnero. Un panorama
bibliogrfico al respecto puede verse en Daniel Balderston, The Latinamerican Short Story an Annotated Guide
to Anthologies and Criticism, Nueva York, The Greenwood Press, 1992.
18 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
24
Destacar dos nmeros monogrficos: el n. 6, 1991, sobre El cuento en Espaa 1975-1990 y el n. 11, 1994,
en el que se recogen las ponencias presentadas en el Grand Sminaire sobre El cuento espaol contem-
porneo, celebrado en Neuchtel (Suiza), en mayo de 1993, con trabajos imprescindibles de Jos Luis Martn
Nogales, El cuento espaol actual. Autores y tendencias (p. 43-67); Irene Andres-Surez, Notas sobre el
origen, trayectoria y significacin del cuento brevsimo (p. 69-82); Marco Kunz, Cuentos sobre el cuento (p.
83-99); Luis Lpez Molina, La abandonada en el Rastro un relato ramoniano arquetpico (p. 101-127); Julio
Peate Rivero, Cuento literario y teora de la argumentacin (p. 129-140) y Medardo Fraile, Ochenta
cuentos en busca de su autor (p. 141-156).
25
Para ms datos sobre la revista cf. Carlos Mata Indurin, El cuento en Navarra en los aos noventa, in
Jos Romera Castillo y F. Gutirrez Carbajo (eds.), El cuento en la dcada de los noventa, Madrid, Visor Libros,
2001, p. 91-102, especialmente p. 100-101.
26
Cf. especialmente los nmeros monogrficos: el n. 495, 1988, sobre El estado de la cuestin. El cuento, I en
el que se recoge una seleccin de ponencias del III Encuentro de escritores y crticos de las lenguas de Espaa-
, el n. 496, 1988, sobre El estado de la cuestin. El cuento, II coloquio y el n. 568, 1994, coordinado por
Fernando Valls, sobre El cuento espaol, hoy -en el que conviene ver, muy especialmente, los trabajos de
Jos Luis Martn Nogales, La edicin y difusin del cuento y Nuria Carrillo, La expansin plural de un
gnero: el cuento 1975-1993 (p. 6-9 y 9-11, respectivamente).
27
N. 22, 1988, sobre La situacin de las letras espaolas. El cuento.
28
N. 8, 1988, sobre El cuento hoy en Espaa, con el interesante artculo, entre otros, del escritor Fernando
Quiones, Basta de cuentos (p. 66-67).
29
N. 1, 1996, 3. poca, bajo el lema Del cuento a la novela corta.
30
Berna, Peter Lang, 1995, p. 103-124 (2. ed., 1996).
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 19
31
Vigo, Servicio de Publicacins de la Universidade, 1999.
20 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
32
Especialmente las de Magdalena Aguinaga Alfonso, Gnero y tipologa del cuento literario (p. 49-56); Jos
Manuel Garca Rey, En torno al cuento (p. 233-238) y Antonio Cid, Contar el cuento: la autorreferencialidad
en el cuento espaol (p. 239-244).
33
Madrid/Burgos, F.I.D.E.S.C.U./Universidad de Burgos, 1997.
34
Con dos apartados: uno, primero, en el que se realiza un Primer acercamiento: una sociedad y una literatura
en cambio (p. 15-23) y otro, segundo, sobre El cuento, un gnero en auge? (p. 23-56), con varios epgrafes:
Motivos para el escepticismo (p. 23-36) en donde se estudia La posicin de la crtica (p. 23-28), El
cauce editorial: la cenicienta de nuestras letras? (p. 28-32) y Un potencial lector a la altura de las circuns-
tancias? (p. 33-36)-, Entre la euforia y la moderacin. Algunos motivos para el optimismo (p. 36-56) en
donde se analiza La expectativa lectora (p. 36-40) y Los medios de difusin (p. 40-56)-.
35
De gran inters desde el punto de vista terico al tratar sobre Los difciles lmites del cuento moderno
(p. 57-60), Un gnero sin nombre (p 61-67) y La potica de los cuentistas de los 80 en relacin con el
estado de la cuestin en la crtica hispnica (p. 67-112) -en donde la autora hace Algunas puntualizaciones
sobre Las dimensiones: un dato no meramente externo (p. 67-72), Otras peculiaridades genricas (p.
72-84), Las propiedades del contenido (p. 85-95), Sobre los finales (p. 95-101), Su relacin con otros
gneros (p. 101-107) y El polimorfismo del cuento espaol de los 80 (p. 107-112)-.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 21
Son varios y variados los Seminarios Internacionales que, anualmente y bajo mi direccin,
hemos llevado a cabo38. Uno de ellos, el dcimo, que se celebr en la UNED de Madrid, del
31 de mayo al 2 de junio de 2000, puede leerse en Jos Romera Castillo y Francisco Gutirrez
Carbajo (eds.), El cuento en la dcada de los noventa39, con sesiones plenarias de ngeles
Encinar (Saint Louis University, Campus de Madrid), Fernando Valls (Universidad Autnoma
de Barcelona), Jos Luis Martn Nogales (director de Lucanor y del Centro Asociado a la UNED
de Navarra), Nuria Carrillo (Universidad de Burgos), Luis Beltrn Almera (Universidad de Zaragoza)
ms la participacin de la escritora Clara Snchez y cincuenta y tres comunicaciones40.
Sobre el contenido de estas Actas volver posteriormente.
El Centro edita, anualmente, bajo la direccin del profesor Jos Romera, la revista SIGNA
en dos formatos:
36
En las siguientes ramificaciones: Los cuentos fantsticos (p. 113-168) a travs de una Introduccin (p.
113-119), La ficcin inverosmil (p. 119-162) y La ficcin verosmil (p. 162-168)-; Los cuentos realistas
(p. 169-213) y La estilizacin de la realidad (p. 213-228).
37
Una amplia historia del Centro de Investigacin, realizada por Jos Romera Castillo, puede verse en el n.
8, 1999, p. 151-177. Tambin en http://cervantesvirtual.com/hemeroteca/signa/.
38
Cf. adems las Actas de los otros Seminarios: Jos Romera Castillo et al. (eds.), Ch. S. Peirce y la literatura,
Signa 1, 1992, Semitica(s). Homenaje a Greimas, Madrid, Visor Libros, 1994 y Bajtn y la literatura, Madrid,
Visor Libros, 1995; Escritura autobiogrfica, Madrid, Visor Libros, 1993, Biografas literarias (1975-1997), Madrid,
Visor Libros, 1998 y Poesa histrica y (auto)biogrfica (1975-1999), Madrid, Visor Libros, 2000; La novela histrica
a finales del siglo XX, Madrid, Visor Libros, 1996; Teatro histrico (1975-1998): textos y representaciones, Madrid,
Visor Libros, 1999, Del teatro al cine y la televisin en la segunda mitad del siglo XX, Madrid, Visor Libros, 2002,
Teatro y memoria en la segunda mitad del siglo XX, Madrid, Visor Libros, 2003 y Teatro, prensa y nuevas
tecnologas (1990-2203), Madrid, Visor Libros, 2004, en prensa; as como Literatura y multimedia, Madrid, Visor
Libros, 1997. Distribucin: [email protected] y http://www.visor-libros.com.
39
Madrid, Visor Libros, 2001, 743 pgs. Con reseas de Francisco E. Puertas Moya, en Epos XVII, 2001, p. 491-
194; e Irene Aragn Gonzlez, en Signa 11, 2002, p. 335-340. Las Actas se completan con los dos trabajos
de los investigadores, pertenecientes a nuestro Centro de Investigacin (expuestos en el Seminario Interna-
cional), Felipe Daz Pardo, Francisco Linares Valcrcel y Dolores Romero Lpez, publicados en Signa, a los
que me referir despus.
40
Sobre el contenido del volumen puede verse la amplia Presentacin de Jos Romera, en El cuento en la
dcada de los noventa, Madrid, Visor Libros, 2001, p. 9-30.
22 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
2.3.1. Prlogos
En este apartado sealar que, adems del prlogo al libro de relatos, Cuentos de la
fascinacin y el misterio cotidiano45, de Felipe Serrano, he realizado tres prlogos a las X ediciones
del Premio Narracin Breve Universidad Nacional de Educacin a Distancia sobre el que
aadir algo posteriormente-, recogidos en tres volmenes46; as como hice en la Presentacin,
al volumen de las Actas de uno de nuestros Seminarios sobre el cuento ya mencionadas-
una sntesis del contenido del mismo47.
2.3.2. Edicin y estudios de piezas cuentsticas
Una atencin especial ha recado en la obra cumbre de uno de los autores de la literatura
medieval espaola que mejor cultiv el gnero de la cuentstica. Me refiero a Don Juan
41
Distribucin: [email protected] y [email protected].
42
Como, por ejemplo, el trabajo del terico mexicano Lauro Zavala, Hacia un modelo semitico para la teora
del cuento, Signa 7, 1998, p. 357-366 (tambin en http://cervantesvirtual.com/hemeroteca/signa/).
43
En Signa 11, 2002, p. 71-111 y 113-161, respectivamente. Trabajos que pueden verse en la pgina web: http:/
/cervantesvirtual.com/hemeroteca/signa/.
44
Entre otras actividades relacionadas con esta modalidad de escritura, resear que he impartido diversas
conferencias: Estructura del cuento popular y su adaptacin literaria, en un Seminario sobre el cuento,
celebrado en Madrid, en el Colegio Mayor Isabel de Espaa, del 4 al 6 de febrero de 1980; Los cuentos
de Clarn (2 conferencias), en la Universidad de Deusto (Bilbao), el 28 de marzo de 1985; Anlisis semitico
del relato breve, en el Romanisches Seminar der Universitt Kiel (Kiel, Alemania), el 14 de junio de 1988;
El cuento en la dcada de los noventa, en el Instituto Cervantes (Nueva York), el 17 de mayo de 2002; y
Perspectivas del cuento literario, Departamento de Lnguas e Culturas de la Universidade de Aveiro
(Portugal), el 9 de octubre de 2002. Asimismo he dirigido un Seminario sobre El cuento en Espaa, en el
Centro Asociado a la UNED de Lanzarote (Arrecife), del 22 de abril al 8 de mayo de 1999.
45
Madrid, Libertarias/Prodhufi, 1992, p. 9-11.
46
El ingenio las engendr I y II Premios de Narracin Breve Universidad Nacional de Educacin a Distancia,
Madrid, UNED, 1992, p. 5-7; Las pari mi pluma III, IV y V Premios de Narracin Breve Universidad Nacional
de Educacin a Distancia, Madrid, UNED, 1995, p. 7-9, y Y van creciendo VI, VII, VIII y IX Premios de
Narracin Breve Universidad Nacional de Educacin a Distancia, Madrid, UNED, 1999, p. 9-18).
47
Jos Romera Castillo y F. Gutirrez Carbajo (eds.), El cuento en la dcada de los noventa, Madrid, Visor Libros,
2001, p. 9-30.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 23
Indicar que sobre propuestas metodolgicas para el comentario de textos del cuento,
desde la perspectiva de la semitica, adems de lo reseado en mis estados de la cuestin
-a los que me referir despus-, traer a colacin el modelo que desde esta modalidad crtica
he realizado en varios trabajos. El primero, en Teora y tcnica del anlisis narrativo, en el
volumen colectivo de Jenaro Talens, Jos Romera et alii, Elementos para una semitica del texto
artstico54, en donde, adems del modelo de anlisis, se examina el cuento de Ignacio Viar,
Caperucita azul, una versin actualizada del tradicional relato; el segundo, en Juan Timoneda:
Cmo comentar un texto en prosa: la estructura de un relato55 sobre la patraa segunda ; y
el tercero en Cmo comentar hoy un texto literario y Prctica de comentario de textos:
Anlisis del ejemplo VII de El Conde Lucanor, en mi obra, Didctica de la Lengua y la Literatura56,
en donde se analiza el citado relato de don Juan Manuel. Trabajos que, desde el punto de
vista didctico, se complementan con mi participacin en la sesin plenaria del II Simposio
da Asociacin Galega de Semitica, Algo ms sobre la enseanza del cuento57, sobre el tema
monogrfico Asedios conto, celebrado del 8 al 11 de abril de 1997, en la Universidade de
Vigo, al que me he referido anteriormente.
48
Madrid, UNED, 1980.
49
Cf. Jos Romera Castillo, edicin de El Patrauelo, de Joan Timoneda, Madrid, Ctedra, 1986, 2. ed. corregida
y aumentada; Letras Hispnicas, n. 94.
50
Madrid, UNED, 1983.
51
Incluidos en Jos Romera Castillo, Calas en la literatura espaola del Siglo de Oro, Madrid, UNED, 1998, 1.
reimpresin, julio de 1999, p. 327-502.
52
En Letras de Deusto 32, 1985, pgs. 199-206 (n. extraordinario sobre Clarn. Centenario de La Regenta).
53
En Clarn yLa Regenta en su tiempo (Actas del Simposio Internacional, celebrado en Oviedo, del 26 al 30
de noviembre de 1984), Oviedo, Universidad/Ayuntamiento/Consejera de Cultura, 1987, p. 897-910. Incluido
en mi libro, Literatura, teatro y semitica: Mtodo, prcticas y bibliografa, Madrid, UNED, 1998, p. 152-172).
54
Madrid, Ctedra, 1978, p. 111-152 (con varias reediciones: 5. ed., 1995; 6. ed., 1999).
55
En Jos Rico Verd (ed.), Comentario de textos literarios, Madrid, UNED, 1980, 2. reimpresin en 2002, p. 67-
83.
56
Madrid, Playor, 1992, 8. ed., p. 160-172 y 173-190, respectivamente.
57
Publicado en Carmen Becerra et al. (eds.), Asedios conto, Vigo, Servicio de Publicacins da Universidade,
1999, p. 25-35).
24 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
En el seno del Centro, bajo la direccin y coordinacin de Jos Romera Castillo, trabaja
un grupo de investigadores sobre el cuento. Adems de las publicaciones y trabajos mencio-
nados, se ha llevado a cabo una Memoria de Investigacin, El cuento en El Pas (1976-1980),
de Felipe Daz Pardo (defendida en la UNED el 15 de octubre de 1991), que pronto se convertir
en tesis de doctorado.
58
Kassel, Reichenberger, 1988.
59
Madrid, UNED, 1998, p. 281-305 y 442-481.
60
Berna, Peter Lang, 1995, p. 103-124 (2. ed., 1996); con una versin ampliada en mi libro, Literatura, teatro y
semitica: Mtodo, prcticas y bibliografa, Madrid, UNED, 1998, p. 281-305).
61
Estado de la cuestin que he ampliado en otro posterior, El cuento, en mi libro, Enseanza de la Lengua
y la Literatura (Propuestas metodolgicas y bibliogrficas), Madrid, UNED, 1996, 1999 reimpresin, p. 166-184,
en el que la selecta (para no indigestar) pero abundante bibliografa que el estado de la cuestin agavilla,
est estructurada en tres partes: en la primera, Fundamentos bsicos (p. 167-174), se traen a colacin los
estados de la cuestin, los estudios tericos (producidos en Espaa e Iberoamrica, sobre la cuentstica
escrita en espaol, y las traducciones al espaol de la teora) y un manojo de textos de lectura (una serie
de antologas de cuentos del siglo XX); en la segunda, Didctica del cuento (p. 174-177), se recogen
propuestas metodolgicas, colecciones para trabajar en clase y cuentos de cine; y en la tercera (p. 177-
184), se resea una nmina bibliogrfica (selecta) de los estudios ms importantes dedicados estrictamente
a la enseanza de la cuentstica, as como una seleccin de antologas de narraciones breves para ser
utilizadas en la clase.
62
Dentro del panorama de los certmenes poticos espaoles, el Premio Internacional de Poesa Ciudad de
Melilla, ocupa un lugar muy destacado. Desde 1994 se inici una segunda etapa del mismo, al ser copatroci-
nado por la Ciudad Autnoma de Melilla y la UNED. Adems de haber sido miembro de los jurados de
diferentes aos, desde el citado ao, la coleccin de Poesa Rusadir -que acoge a los poemarios premiados-
inici tambin una segunda etapa, bajo mi direccin, editada por la prestigiosa editorial potica Visor Libros,
con un valor aadido: el libro impreso va acompaado de un Disco Compacto (DC) con la grabacin oral
del poemario por el poeta ganador.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 25
63
En el prlogo de Jos Romera Castillo (p. 9-18) a este tercer volumen se hace un balance de las nueve
ediciones del Premio. En la composicin de los diferentes jurados siempre se ha tenido en cuenta que
estuviesen representados diversos estamentos de la sociedad cultural espaola. As, miembros de la Real
Academia Espaola: Manuel Alvar (III) -entonces Director de la RAE-, Gregorio Salvador (IV), Carlos Bousoo
(V), Emilio Lled (VI) y Domingo Yndurin (IX); escritores: Antonio Hernndez (I), Luis Antonio de Villena (II),
Clara Jans (II), Javier Satu (III), Jos Mara lvarez (IV), Marina Mayoral (V), Almudena Grandes (VI), Antonio
Prieto (VII), Clara Snchez (VII), Luis Alberto de Cuenca (VIII) -director de la Biblioteca Nacional- y Jos Mara
Merino (IX); crticos y periodistas (algunos de ellos tambin escritores): Rafael Conte (I), Mariano Antoln (II),
Blanca Berastegui (III), Javier Alfaya (IV), Manuel Hidalgo (V), Juan Cruz (VI), Miguel Garca-Posada (VII), Laura
Freixas (VIII), Juan Carlos Laviana (VIII) y Carmen Rigalt (IX); as como el editor, Jess Garca Snchez -Chus
Visor- (I). En todas estas convocatorias han sido miembros del jurado, en representacin de la UNED, Miguel
ngel Prez Priego y Jos Romera Castillo (que actu como Secretario o Vocal), catedrticos de Literatura
Espaola.
64
Los volmenes de los premios X-XIII llevan prlogo de Francisco Gutirrez Carbajo.
65
Barcelona, Anagrama, 1992.
26 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
Con un propsito de sntesis, tratar en este apartado sobre algunos rasgos que ha
generado el cuento escrito en Espaa en el final del siglo XX y principios del XXI. Para ello,
me centrar en algunos aspectos no todos plasmados en el volumen de Jos Romera
Castillo y Francisco Gutierrez Carbajo (eds.), El cuento en la dcada de los noventa67 que, como
he citado anteriormente, recoge las sesiones plenarias y las cincuenta y tres comunicaciones
tras previa seleccin del X Seminario Internacional de nuestro Centro de Investigacin de
Semitica Literaria, Teatral y Nuevas Tecnologas. Aunque el lector interesado puede encontrar
una pormenorizada gua de lectura del volumen en la Presentacin de Jos Romera Castillo
(p. 9-30), resear, a continuacin, una breve relacin de los trabajos que lo articulan.
La obra se estructura en dos grandes apartados. El primero, Sobre el cuento (p. 31-
635), se haya fraccionado en diferentes secciones: sobre el cuento (en) espaol (estudios
panormicos, mujeres y cuentos, anlisis de autores y obras y cuentos de cine y cine de
cuentos), relatos breves en diversas lenguas y aspectos tericos; y el segundo, Sobre el
microrrelato (p. 637-742), se divide, a su vez, en varios apartados: Panoramas y anlisis de
obras, as como aspectos tericos. Vayamos por partes.
Por lo que respecta a la primera parte, dedicada al cuento (p. 31-635), el investigador
podr encontrar estudios agrupados bajo diversos rtulos. El primero de ellos versa Sobre
el cuento (en) espaol (p. 33-127) y est dividido en cuatro epgrafes:
Estudios panormicos (p. 33-127) consta de siete interesantes trabajos. Los tres primeros,
constituyen un panorama de la cuentstica en la Espaa de los noventa, a travs de las
aportaciones de Jos Luis Martn Nogales (UNED de Navarra y director de Lucanor), Tendencias
del cuento espaol de los aos noventa (p. 35-45), quien realiza un atinado estado de la
cuestin de esta modalidad de escritura en el contexto literario de fin de siglo y las diversas
tendencias que imperan en su seno, estableciendo que el cuento, en este periodo, se carac-
teriza por la diversidad de frmulas, tcnicas, actitudes narrativas, temas y estilos. Por su
parte, Nuria Carrillo (Universidad de Len) autora del excelente estudio, El cuento literario
espaol en la dcada de los 80, ya citado , en Las antologas del cuento espaol en los noventa
66
Para ms datos sobre este Premio, pueden verse -adems del Prlogo de Jos Romera Castillo en el
volumen tercero, 1999, ya citado- el estudio del miembro del equipo del SELITEN@T, Francisco Ernesto
Puertas Moya, El Premio de Relato Breve UNED: diez aos de historia(s) (especialmente) y las referencias
que hace del mismo Nuria Carrillo Martn, Las antologas del cuento espaol en los noventa, in Jos
Romera Castillo y F. Gutirrez Carbajo (eds.), El cuento en la dcada de los noventa, Madrid, Visor Libros, 2001,
p. 103-114 y 51, respectivamente.
67
Madrid, Visor Libros, 2001.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 27
68
Barcelona, Anagrama, 1996.
69
Barcelona, Tusquest, 1996.
70
Barcelona, Plaza & Jans, 1996.
28 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
71
Cf. Asuncin Castro Dez (Universidad de Castilla-La Mancha), La escritura autorreflexiva de Bernardo Atxaga/
Joseba Irazu (p. 219-228); Noem Montetes Mairal (Universidad de Barcelona), Juan Bonilla, el que enciende
la luz (p. 229-241); ngel-Raimundo Fernndez (Universidad de Navarra), Un ciclo de cuentos para La ruina
del cielo, de Luis Mateo Dez (p. 243-256) y Alicia Molero de la Iglesia (Grupo de Investigacin del SELITEN@T),
El narrador psicolgico de Javier Maras (p. 257-266). Tres trabajos se dedican a la cuentstica de Jos
Mara Merino: Jos Luis Charcn Palacios (Universidad de Len), Temas y modelos clsicos de la literatura
fantstica en los cuentos de Jos Mara Merino (p. 267-276); Natalia lvarez Mndez (Universidad de Len),
Simbologa espacial en El viajero perdido, de Jos Mara Merino (p. 277-285) y Jos Manuel Trabado Cabado
(Universidad de Len), La memoria hecha relato. Escritura especular y esquizofrenia narrativa en El hechizo
de Iris, de Jos Mara Merino (p. 287-297). El resto de los trabajos se dedican a otros autores y obras: Araceli
Caedo (Universidad de Zurich), Una estructura existencial y metaliteraria en Las aguas del olvido, de A.
Muoz Molina (p. 299-309); Fidel Lpez Criado (Universidad de A Corua), Criptograma, criptomnesia y
mythos en Camino de Etiopa, de Jos Luis Olaizola (p. 311-323); Eduardo A. Salas Romo (Universidad de
Jan), La razn narrativa de Antonio Pereira (notas a propsito de Las ciudades de Poniente) (p. 325-332);
Alfredo Martnez Expsito (University of Queensland, Australia), La cuentstica del lvaro Pombo (p. 333-
345); Emilia Ochando Madrigal (Grupo de Investigacin del SELITEN@T), El humor y la stira en El silencio
del patinador, de Juan Manuel de Prada (p. 347-353); Francisco Vicente Gmez (Universidad de Murcia),
Entre la memoria y los objetos. Itinerarios del cuento hispnico: Manuel Rivas (p. 355-365) y Eduardo
Martnez Rico (Universidad Complutense), Francisco Umbral, teora y prctica del cuento: Historias de amor
y Viagra (p. 367-375).
72
Los tres primeros se centran en el estudio de tres autores y obras: la nouvelle Taratuta, de Jos Donoso:
un arte de la paradoja (p. 377-385), la analiza Nadine Dejong (Universit de Lige); Mara dos prazeres:
un cuento peregrino de Gabriel Garca Mrquez (p. 387-396) lo examina Eva Morn Arroyo (Universidad
de Granada) y El proceso escritural en la cuentstica de Orlando Chirinos (p. 397-403) lo estudia Rafael
Jos Alfonzo (Universidad de los Andes, Venezuela) a travs de diversos libros del escritor venezolano.
Finalmente, Carmen Virginia Carrillo (Universidad de los Andes, Trujillo), en Sobre el cuento venezolano en
la dcada de los noventa (p. 405-413), examina cuatro obras de otros tantos escritores del pas, como
botones de muestra seeros.
73
Cf. Francisco Gutirrez Carbajo (Vicedirector del SELITEN@T), en Antologas de cuentos de cine (dcada de
los noventa) (p. 415-437), estudia tres recopilaciones de relatos breves que versan sobre aspectos cinema-
togrficos: la de Rafael Utrera Macas (ed.), De Baroja a Buuel. Cuentos de cine, Madrid, Libros Clan, 1999; y
las dos antologas del cineasta Jos Luis Borau (ed.), Cuentos de cine (Grandes narradores celebran el primer
siglo del cine), Madrid, Alfaguara, 1996 y Cuentos sin cmara, Madrid, Alfaguara, 1999-con textos de directores
de cine: Pedro Almodvar, Alejandro Amenbar, Jaime de Armin, Jos Luis Borau, Isabel Coixet, Fernando
Fernn-Gmez, Jos Luis Garci, Chus Gutirrez, Manuel Gutirrez Aragn, Alex de la Iglesia, Santiago Segura,
Gonzalo Surez, David Trueba y Rosa Vergs-. Otros dos trabajos versan sobre adaptaciones cinematogrficas
de relatos breves: Rosa Ana Martn Vega (I.E.S. de Arvalo), Anlisis textual de un cuento con varios cuentos:
La lengua de las mariposas (p. 439-450) y Emilia Corts Ibez (UNED, Albacete), Relato y cine: Mi nombre
es Sombra, de Gonzalo Surez, y Cachito, de Prez Reverte (p. 451-463).
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 29
74
Cf. Flavia Cartoni (Universidad de Castilla-La Mancha), Contar a ritmo de jazz: Novecento, de A. Baricco (p.
507-513).
75
Cf. Esther Laso y Len (Universidad de Alcal), El cuento regional francs en la dcada de los noventa:
Thalie de Molnes (p. 515-522) y Ana I. Labra (Universidad de Alcal), El cuento recupera la voz. Un cuento
de Desplechin en la clase de francs (p. 523-533).
76
Madrid, Alfaguara, 1996.
77
Dos investigaciones se centran en el anlisis de un libro y de un microrrelato: las de Jos Ignacio Gonzlez
Hurtado (Universidad de Castilla-La Mancha), Las historias mnimas de Javier Tomeo (p. 675-682) y Rita
Catrina Imboden (Universidad de Zrich), La esfinge en Misterios de las noches y los das, de Juan Eduardo
Ziga (p. 683-691). Finalmente, Concepcin Bados Ciria (Universidad de Alcal), en Estado actual de la
minificcin latinoamericana: antologas ms recientes (p. 693-700), examina una serie de recopilaciones
publicadas en este periodo sobre esta modalidad de escritura en Amrica.
30 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
78
Cf. Carlos Jimnez Arribas (Grupo de Investigacin del SELITEN@T), Minicuento y poema en prosa: un esbozo
comparativo (p. 703-711).
79
Cf. Pilar Tejero Alfageme (Universitt Jena, Alemania), Ancdota y microrrelato: dos gneros literarios? (p.
713-728).
80
Cf. Enrique Turpin Avils (Universidad Autnoma de Barcelona), El gnero fbula en los noventa: inflexiones
y propuestas (p. 729-742).
81
Cf. adems el trabajo de Jos Luis Martn Nogales, La edicin y la difusin del cuento, nsula 568, 1994, p.
6-9.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 31
82
Adems de las que contienen microrrelatos -una tendencia cuntica y cualitativamente muy cultivada en
la ltima dcada, de la que no podemos dar cuenta en este trabajo-, han sido de muy diverso cariz y matiz
la publicadas en estos ltimos aos. Adems de las que recopilan cuentos de autores reconocidos (Manuel
Vicent, Juan Madrid, Javier Maras, Antonio Gala, Juan Jos Mills, Daniel Mgica, etc.) que son muchas-,
las antologas temticas (cuentos metaliterarios, amorosos, intimistas y psicolgicos, erticos, fantsticos,
humorsticos, criminales, policiacos, de terror, historicistas, de realismo urbano, de cine, de ftbol, de premios,
etc.) han tenido un gran xito de pblico, destacando las de temas femeninos, escritos fundamentalmente
por mujeres, como muy bien pone de manifiesto la editada por Laura Freixas, Madres e hijas, Barcelona,
Anagrama, 1996.
83
Como, por ejemplo, Acento Editorial, Aguilar, Alfaguara, Alianza, Castalia, Debate, Edelsa/ Edi 6, Editorial
Popular, Grupo 16, Ollero & Ramos, Siruela, Valdemar, etc. (de Madrid); Anagrama, Edhasa, Emec, Grijalbo,
Lumen, Planeta, Tangar, Tusquets, etc. (de Barcelona); Mondadori (Madrid y Barcelona); Pre-Textos (Valencia);
Hierbaola (Pamplona), etc.
84
Nuria Carrillo (2001: 52) pone algunos ejemplos: El Pas Semanal, en 1994, quiso celebrar el primer centenario
de la muerte de Stevenson encargando a cinco narradores -Julio Llamazares, Juan Jos Mills, Juan Mars,
Antonio Muoz Molina y Arturo Prez Reverte- un cuento que rindiera homenaje a La isla del tesoro; relatos
publicados posteriormente bajo el ttulo de Cuentos de la isla del tesoro, Madrid, Alfaguara, 1994. Asimismo,
el mencionado peridico, en el mismo ao, alrededor del tema de la ciudad, seleccion un ramillete de
escritores familiares al lector -Almudena Grandes, Rosa Montero, Manuel Rivas, Bernardo Atxaga y Quim
Monz- para que escribieran cuentos, despus reunidos en el volumen Relatos urbanos,Madrid, Alfaguara,
1994. Por su parte, el diario El Mundo, bajo el tema comn Un verano imborrable, invit a una serie de
autores a escribir relatos breves, luego seleccionados en la antologa Aquel verano, Madrid, Espasa Calpe,
1996. Cf. adems el trabajo, publicado en nuestras Actas, de Pilar Vega Rodrguez, Tipologa de los cuentos
publicados en Blanco y Negro: la dcada de los noventa (p. 115-127).
85
Como, por ejemplo, la aparecida en el nmero 6 de la revista Lucanor (septiembre, 1991), donde se incluyen
cuentos de narradores que publican su primer libro a partir de 1975 (Agustn Cerezales, Luis Mateo Dez,
Cristina Fernndez Cubas, Jos Ferrer-Bermejo, Jos Mara Merino, Jos Antonio Milln, Juan Jos Mills,
Antonio Muoz Molina, lvaro Pombo, Soledad Purtolas, Javier Tomeo, Pedro Zarraluki y Juan Eduardo
Ziga); una nmina que, desde la perspectiva de hoy, recoge la flor y nata de la renovacin del gnero
en el ltimo cuarto del siglo XX, segn seala Nuria Carrillo en nuestras Actas.
86
Sobre la recepcin del cuento en Suplementos Culturales de diversos medios de comunicacin de difusin
nacional pueden verse los trabajos de los miembros de nuestro grupo de investigacin del SELITEN@T, Felipe
Daz Pardo, Reseas de cuentos aparecidas en los diarios ABC (ABC Cultural) y El Pas (Babelia) 1991-1995,
as como Francisco Linares Valcrcel y Dolores Romero Lpez, Reseas de cuentos aparecidas en los diarios
ABC (ABC Cultural) y El Pas (Babelia) 1996-1999, Signa 11, 2002, p. 71-111 y 113-161, respectivamente.
Trabajos que pueden verse tambin en la pgina web: http://cervantesvirtual.com/hemeroteca/signa/
87
El interesado puede consultar en Internet una pgina web con los premios disponibles en la siguiente
direccin electrnica: http://www.escritores.org.
88
Publicada en Madrid: Ediciones y Talleres de Escritura Creativa Fuentetaja, 2002, 326 pgs.
89
Son muy abundantes los premios convocados por Entidades autonmicas, Ayuntamientos, Entidades como
la Red de Ferrocarriles Espaoles, con el premio Antonio Machado, otorgado por RENFE desde 1976 ,
Universidades como el de la Universidad Nacional de Educacin a Distancia desde 1990, por iniciativa
del profesor Jos Romera Castillo-, Organismos privados como el Premio NH de Relatos que la cadena
hotelera convoca desde 1996-, editoriales, la Escuela de Letras de Madrid , etc.
El cuento hay que situarlo, en primer lugar, segn mi modo de ver, en las circunstancias
generales que ha vivido y est viviendo la literatura a finales del siglo XX y comienzos del
nuevo siglo. Me refiero a una de las caractersticas que los tericos han visto en la llamada
posmodernidad. No queda nada puro, ortodoxo, sino que la mixtura, la fusin, lo heterogneo
impera por doquier. Las fronteras de los gneros literarios han saltado por los aires, sus
espacios como los de la Comunidad Europea se han visto anulados: lo narrativo se ha
impregnado de lo lrico, ste de aqul y as sucesivamente.
Esta manifestacin se pone de manifiesto en diferentes aspectos. Sealar, entre otros,
dos. El primero se refiere a la mixtura que se produce en el interior del propio cuento. Es
cierto, como seala en nuestras Actas Martn Nogales (2001: 43), que el pensamiento del fin
de siglo se ha caracterizado por la disgregacin y por la dispersin; los escritores han sido
testigos del derrumbamiento de teoras filosficas, sociales y estticas que parecan inamovibles;
las certezas han quedado desplazadas por una etapa de incertidumbre histrica; la visin de
un mundo cerrado y coherente se ha roto, por lo que stos intentan recomponer los vidrios
rotos de ese paisaje. Y en ese propsito de indagar a travs de la literatura en una realidad
difusa, el cuento se ha mostrado como un cauce apropiado para recoger los fragmentos
dispersos de un mundo escindido. Precisamente porque el cuento se basa en la captacin
de lo fragmentario, porque es la radiografa de un aspecto parcial de la realidad, el reco-
nocimiento de un detalle que pueda ser revelador. Aspecto que se muestra muy evidente
especialmente en los cuentos fantsticos y en los intimistas.
El segundo aspecto al que me referir reside en el apareamiento, en el cruce, entre novela
y cuento que se da en diversas manifestaciones literarias actuales, como es el caso de Luis
Mateo Dez, estudiado en nuestras Actas90. La historia del cuento espaol contemporneo
es la historia de la diversidad como seala Martn Nogales (2001: 38) , de lo heterogneo,
en diferentes aspectos: tanto en el gnero cuentstico en s mismo (diversidad de temas,
registros narrativos y estilo) como con sus cultivadores en su relacin con otros cuentistas y,
tambin, en relacin con su propia produccin cuentstica91.
En consecuencia, podemos afirmar que el gnero de la cuentstica, en los finales del siglo
XX e inicios del presente, ha sido y lo est siendo muy innovador, como indica Manuel
Longares, en Extravos92: el cuento de hoy tiene la vocacin de romper moldes, ya que
muchos de sus autores lo consideran como un laboratorio de pruebas donde si no hay riesgo
es como si faltara el aire y a su sombra se han reclinado diversos creadores que, aunque
fundamentalmente cultivan otros gneros literarios como actividad literaria principal, han
incursionado en el terreno del cuento por razones diversas (a veces por designios editoriales,
colaboraciones periodsticas, etc.)93.
Adems de ello, es preciso sealar que en los cuentos de la ltima hornada, dentro de
la pluralidad y variedad temtica y estilstica que imperan en su seno, son varias sintetizando
90
Cf. el trabajo de ngel-Raimundo Fernndez (Universidad de Navarra), Un ciclo de cuentos para La ruina
del cielo, de Luis Mateo Dez (p. 243-256), en nuestras Actas. Los ejemplos se podran multiplicar: La gran
novela de Barcelona, Barcelona, Anagrama, 1998, de Sergio Pmies, cruza la frontera entre cuento y novela,
para formar un mosaico con las vidas cotidianas de unos personajes doloridos, que estn tratados con una
frialdad objetiva (Martn Nogales, 2001: 41).
91
Cf. Jos Luis Martn Nogales, De la novela al cuento: el reflejo de una quimera, nsula 589-590, 1996, p.
33-35.
92
Madrid, Alfaguara, 1999.
93
Casos como los de los novelistas (Antonio Muoz Molina, Almudena Grandes, Juan Madrid, Juan Manuel
de Prada, Paloma Daz-Mas, Juan Jos Mills, etc.), dramaturgos (Antonio Gala, etc.), poetas (Ramn Irigoyen,
etc.) o polifacticos escritores (Javier Tomeo, etc.) as lo atestiguan.
94
Cf. Jos Luis Martn Nogales, El cuento espaol actual. Autores y tendencias, Lucanor 11, 1994, p. 43-65;
ngeles Encinar, Tendencias en el cuento espaol reciente, Lucanor 13, 1995, p. 103-118, etc.
95
Cf. en nuestras Actas el trabajo de Antonio Domnguez Rey, La violencia y lo macabro en la joven cuentstica
de los noventa (p. 67-78); as como H. D. Fernndez LHoeste, Narrativas de representacin urbana, Berna,
Peter Lang, 1998.
96
El cuento literario espaol en la dcada de los ochenta, Madrid/Burgos, F.I.D.E.S.C.U/Universidad de Burgos,
1997, p. 169-182.
97
Aspectos que vemos ver confirmados, por ejemplo, en antologas como Cuentos urbancolas, Madrid, Editorial
Popular, 1990; edicin de Eduardo Carbonero, Cuadernos del asfalto, Madrid, Grupo 16, 1990; con prlogo
de Juan Madrid, Relatos urbanos, Madrid, Alfaguara, 1994 -una antologa de cuentos, publicados primera-
mente por entregas en el diario El Pas, de Almudena Grandes, Rosa Montero, Manuel Rivas, Bernardo Atxaga,
Antonio Muoz Molina y Arturo Prez Reverte-, etc.
98
Cf. Jos Romera Castillo et al. (eds.), La novela histrica a finales del siglo XX, Madrid, Visor Libros, 1996.
99
Barcelona, Tusquets, 1996.
100
Como, por ejemplo, se puso muy bien de relieve en el nmero monogrfico sobre El cuento fantstico que
le dedic la revista Lucanor 14, 1997, con un interesante estudio, entre otros, de Jos Luis Martn Nogales,
Evolucin del cuento fantstico espaol (p. 11-21). Cf. adems Enriqueta Morillas Ventura (ed.), El relato
fantstico en Espaa e Hispanoamrica, Madrid, Coleccin Encuentros, 1991.
101
Entre los cultivadores ms sobresalientes en estos ltimos aos figuran los nombres de Gonzalo Surez,
Jos Ferrer-Bermejo, Ricardo Domnech, Enrique Vila-Matas, Pedro Zarraluki, Javier Tomeo, Enrique Murillo,
Agustn Cerezales, Juan Jos Mills, Cristina Fernndez Cubas, Jos Mara Merino, Ignacio Martnez de Pisn,
etc. (Martn Nogales, 2001: 42).
102
Cf. Jos Romera Castillo, Investigaciones sobre escritura autobiogrfica en la Universidad Nacional de
Educacin a Distancia, in Miguel Hernando Larramendi et al. (eds.), Autobiografa y literatura rabe,Cuenca,
Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2002, p. 165-183.
36 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
4. Final
103
Para ello puede verse el epgrafe I.1.2 de nuestras Actas sobre Mujeres y cuentos (p. 129-217).
104
Tomo la cita de su artculo, Tengo argumento, ABC Cultural 406, 6 de noviembre, 1999, p. 23 (una diatriba
contra la novela Entre amigas, de Laura Freixas, cuyo argumento es muy paralelo al de su obra del mismo
gnero Nubosidad variable).
105
Barcelona, Destino, 1989.
Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo | 37
38 | Perspectivas de estudio del cuento literario en Espaa en los albores del nuevo siglo | Jos Romera Castillo
D o dit e do lai:
o conto medieval
Palavras-Chave: Dit, Lai, Rutebeuf, Literatura
medieval, Literatura medieval francesa
Keywords: Dit, Lai, Rutebeuf, Medieval literature,
Medieval French literature
Resumo: Alm de uma breve meno ao dit e ao lai, Ao aceitar este desafio espero, a um tempo,
pretende-se, com este trabalho, reunir textos que permitam
inserir no gnero do conto (medieval) alguns dits e alguns lais,
relacionar reflexes e leituras dispersas e contribuir
todos de origem francesa. para a reflexo em curso sobre a narrativa breve.
Para o efeito so utilizados, em particular, o Dit de Freire Antes de iniciar este percurso, tambm rela-
Denize Le Cordelier, de Rutebeuf e o Dit de LEmpereur tivo questo do cdigo dos gneros narrativos,
Coustant. parece-me necessria uma nota prvia relativa
Abstract: Apart from a short description of the dit and the lai, prpria nomenclatura usada.
in this paper we intend to gather a number of French texts
belonging to these genres and show their affinities with the
Empregarei a palavra francesa dit para desig-
medieval forms of the short story. With this purpose in mind nar os textos franceses assim nomeados de que
we referred, in particular, to the Dit de Freire Denize Le aqui falarei. O dito, em portugus, (dito popular
Cordelier, of Rutebeuf and the Dit de LEmpereur Coustant. ou provrbio) encerra uma semntica diversa da
que o vocbulo francs actualiza no discurso, a
saber: pome qui, comme son nom lindique, nest pas destin tre chant1.
A palavra lai encontra-se atestada em portugus atravs dos textos presentes no Cancio-
neiro da Biblioteca Nacional e num cdice da Biblioteca Vaticana2.
A referncia aos dois gneros em ttulo s aparentemente surge bipartida, porquanto
alguns textos usam, a par de conto (ou mesmo de romance), ora um ora outro termo, para
se referirem a um mesmo texto, situao documentada atravs dos trs exemplos seguintes:
Rutebeuf (c.1230-c.1285) em Le Dit de Frre Denise le cordelier, escreve:
1
Michel Zink, Dit in Dictionnaire des Lettres Franaises-Le Moyen ge, Paris, Fayard, 1992, p 385.
Margarida Santos Alpalho, Do dit e do lai: o conto medieval, forma breve 1, 2003, p. 39-46 | 39
E em Milun:
Alm de uma designao fluida e oscilante, importa no esquecer que os textos conside-
rados nos gneros mencionados so, por norma, versificados.
De divergncias e de afinidades entre ambos surge uma parte deste trabalho, ainda muito
parcelar.
A dificuldade de delimitar cada um dos gneros, na poca medieval, compreensvel.
Alm de a fixao das lnguas novilatinas estar ainda em curso na Idade Mdia, a primeira
gramtica de francs, Li Donait franois, data da primeira metade do sculo XV6 , por um
lado so muitos os gneros criados ex novo7 e, por outro, a formalizao terica da versificao
parece ter-se mantido na esfera do latim, ou do grego, ou da sua herana j aculturada,
surgindo tarde na produo escrita medieval nas lnguas romnicas.
Relembro que lArt de Dictier, o mais antigo tratado de versificao conhecido em francs,
data de 25 de Novembro de 13928. E ao longo do sculo quinze e da primeira metade de
2
Anna Ferrari, Lai in Dicionrio da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Ed. Caminho, 1993, p.
375.
3
Michel Zink (ed.), Oeuvres compltes [Document lectronique]. Tome 1/Rutebeuf, disponvel na Internet via
http://gallica.bnf.fr/scripts/ConsultationTout.exe?O=N101490&E=0 Consultado em 3 de Junho de 2003.
4
Laurence Harf-Lancner (ed.), Les Lais de Marie de France, Paris, Le Livre de Poche, Col. Lettres Gothiques, 1990,
p. 27 e 70.
5
Id., ibid., p. 220.
6
Pierre Swiggers, Le Donait franois: la plus ancienne grammaire du franais, Revue des Langues Romanes,
tomo 89-2, 1985, p. 235 ss.
7
C. Segre, Gneros, in Enciclopdia Einaudi Texto, vol. 17, Lisboa, IN-CM, 1989, p. 73.
8
Eustache Deschamps (ed.), LArt de Dictier, in Oeuvres compltes, tomo 7, Paris, Lib. Firmin-Didot et C., 1891,
p. 266-292.
9
Id., ibid., p. 270.
10
Id., ibid., p. 271.
11
Andr Jolles, Formes Simples, Paris, Seuil, 1972, p. 11.
Ou, ainda, vrios dos dits de Rutebeuf de entre os quais, para mencionar apenas mais
um exemplo, destacaremos o Dit de lHerberie (sc. XIII), que mais se assemelha ao discurso
de um vendedor de simples e drogas:
E uma primeira leitura de alguns destes dits mostram-nos, desde logo, que o dit se serve,
com frequncia, de apstrofes e de imperativos, inscrevendo-se num, suposto, discurso directo,
como o caso no exemplo acima. Alm de que, tambm por este meio, estes textos apontam
para um discurso oral, fazendo jus ao seu prprio nome.
Importa aqui, no entanto, analisar os dits considerados narrativos.
Usarei dois exemplos: Le Dit de Frre Denise le Cordelier e Li Dis de lEmpereour Coustant,
ambos do sculo XIII, o primeiro de Rutebeuf.
Le Dit de Frre Denise le Cordelier surge, no mbito de uma reflexo (correspondente aos
20 versos iniciais do texto), a partir do provrbio: o hbito no faz o monge, no original: li
abiz ne fait pas lermite. Nesta reflexo inicial, o narrador anuncia que vai contar une
aventure/ de la plus bele criature/ que hom puisse troveir ne querre.
Vejamos o texto.
De incio uma donzela, Denise, filha de cavaleiro, que vive com a me, recusa o casamento.
O contacto frequente com os franciscanos ofereceu-lhe uma oportunidade de, aparentemente,
realizar o seu desejo: ingressar na vida monstica:
Mas ajudada por um frade plus fel quErodes, cui le Anemis/ contraint et sermont et
arge, Simo, o encantamento condu-la ao espao do duplo e, portanto, ao da negao da
prpria identidade da personagem: que disfarada de frade que Denise consegue entrar
en religion. Ali vive, como companheiro preferido de Simo que lhe ensina a regra da Ordem
e outros novos jogos, a seu belo prazer, enganando todos os outros. A situao altera-se
quando, numa viagem,
() par aventure
Quil vindrent chez .I. chevalier
Qui ot boens vins en son selier
Et volentiers lor en dona.
Et la dame sabandona
A regardeir frere Denize.
Sa chiere et son semblant avise:
Aparsee cest la dame
Que frere Denize estot fame.
Savoir wet ce cest voirs ou fable.17
15
Michel Zink (ed.), Oeuvres compltes [Document lectronique]. Tome 1/Rutebeuf, disponvel na Internet via
http://gallica.bnf.fr/scripts/ConsultationTout.exe?O=N101490&E=0 Consultado em 3 de Junho de 2003.
16
Michel Zink (ed.), Oeuvres compltes [Document lectronique]. Tome 1/Rutebeuf, disponvel na Internet via
http://gallica.bnf.fr/scripts/ConsultationTout.exe?O=N101490&E=0 Consultado em 3 de Junho de 2003.
17
Id., ibid.
Do dit e do lai: o conto medieval | Margarida Santos Alpalho | 43
E porque o pai a pretende preservar, envia-a para um castelo seu, longe de Bizncio, para
ali ser criada. No entanto, numa noite em que pretendia lui un petit oublier, passeando-se
pelas ruas da sua cidade, ouve uma mulher do povo gritar com dores de parto:
Desagradado com o que acabara de ouvir, o rei consegue mandar raptar o recm-nascido,
fere-o de morte e manda-o afogar. No cumprindo o que lhe fora ordenado, o camareiro do
rei deixa a criana porta de uma abadia. Encontrada, a criana tratada e sobrevive e que
18
Id., ibid.
19
Alexandre Wesselofsky (ed.), Le Dit de lEmpereur Coustant, Romania 1877, p. 162-169.
20
Id., ibid., p. 163.
Assim, Floriens vai tentar tudo, para que a morte de Constantino o impea de realizar o
seu destino. E, por ordem do imperador, o prprio que, sem o saber, deve entregar a ordem
da sua morte ao presbtero que o imperador encarregara de educar Sibila. Aguardando para
cumprir a ordem que lhe fora dada, Constantino adormece, visto pela filha de Floriens que
v e l a ordem do pai e, perante a beleza do jovem, a troca por outra, ordenando o seu
prprio casamento com o desconhecido. Desta feita, quando o imperador vai confirmar o
cumprimento da sua ordem.
E, com a morte de Floriens, dois anos depois, Constantino saissi tou liretage, cumprindo
o que os astros lhe haviam destinado. E porque sempre soube reinar com nobreza e bom-
senso
Tambm neste dit encontramos as categorias que nos permitem agrup-lo nos dits
narrativos: as personagens identificadas, assumindo-se como oponentes e adjuvantes; um
espao e um tempo localizveis e, neste caso; um evento que apresenta uma complicao e
uma resoluo, por exemplo. E no caso deste dit, alm da narrativa da infncia de Constantino,
devemos tambm considerar a lenda etiolgica que o encerra. De natureza narrativa, tal como
o dit de Rutebeuf, este revela, no entanto, uma divergncia daquele, pelo facto de a personagem
construir um percurso de maturao previamente anunciado. Mas este aspecto da narrativa no
um elemento novo, porquanto vrios so os heris, no apenas medievais, fadados nascena.
Antes de terminar, gostaria de mencionar que, ainda que no se incluam aqui, agora,
exemplos de lais, bastar pensarmos naqueles de que me servi para documentar a oscilao
21
Id., ibid., p. 164.
22
Id., ibid., p. 165.
23
Id., ibid., p. 169.
24
Id., ibid.
Do dit e do lai: o conto medieval | Margarida Santos Alpalho | 45
D o exemplum ao conto:
O Tesouro
Palavras-chave: Exemplum, novella, conto, Orto do
Esposo, Pardoners Tale, Ea de Queirs, tesouro fatal.
Keywords: Exemplum, novella, short story, Orto do
Esposo, Pardoners Tale, Ea de Queirs, deadly
treasure.
1
Jerome Bruner, The Narrative Construction of Reality, Critical Inquiry 18, 1991, p. 15.
Paulo Alexandre Pereira, Do exemplum ao conto: O Tesouro, forma breve 1, 2003, p. 47-63 | 47
2
Paul Zumthor, La brivet comme forme, in Michelangelo Picone, Giuseppe Di Stefano e Pamela D. Stewart
(orgs.), La nouvelle. Gense, codification et rayonnement dun genre mdival, Montral, Plato Academic Press,
1983, p. 3.
3
Jos Manuel Pedrosa, Existe el hipercuento?: Chaucer, una leyenda andaluza y la historia de El Tesoro Fatal
(AT 763), Revista de potica medieval 2, 1998, p. 196.
4
As verses orientais so substancialmente distintas das ocidentais que antecedem a reescrita chauceriana.
Vd. Frederick Tupper, The Pardoners Tale, in W. F. Bryan, Germaine Dempster (eds.), Sources and Analogues
of Chaucers Canterbury Tales, London, Routledge & Kegan Paul, 1958, p. 415, n.1.
5
Para um repertrio e uma sinopse comparativa dos tratamentos literrios do conto-tipo, vd. Jos Manuel
Pedrosa, Ms reescrituras del cuento de El Tesoro Fatal (AT 763): del Orto do Esposo, Vicente Ferrer y Hans
Sachs a Ea de Queiroz, William Faulkner e Max Aub, Revista de potica medieval 5, 2000, p. 27-43.
6
Bertil Maler cita como fonte provvel do autor alcobacense um exemplum latino que figura, sob o n.98,
no repertrio organizado por Joseph Klapper, Heidelberg, 1911. Cf. Bertil Maler, Orto do Esposo. Texto indito
do fim do sculo XIV ou como do XV. Edio crtica com introduo, anotaes e glossrio, vol. II (Comentrio),
Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1956, p. 136. Num estudo que dedica parbola do ouro e da
morte, Salvatore Battaglia apresenta, para alm desta verso, uma outra, mais elementar, que me parece
revelar mais notrias afinidades com o relato do Orto. Trata-se do exemplum antecedido da rubrica De
duobus sociis qui thesaurum invenerunt. Os dois textos encontram-se integralmente reproduzidos no artigo
de Salvatore Battaglia, La parola delloro e della morte, in La coscienza letteraria del Medioevo, Napoli,
Liguori, 1965, p. 539-40.
7
Bertil Maler (ed.), Orto do Esposo. Texto indito do fim do sculo XIV ou como do XV. Edio crtica com
introduo, anotaes e glossrio, vol. I (Texto crtico), Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1956, p.
140. Todas as citaes do texto se reportam a esta edio.
8
Id., ibid., p. 240.
9
Id., ibid., p. 240.
10
Cristina Sobral, O Orto do Esposo, in Histria da Literatura Portuguesa. Das Origens ao Cancioneiro Geral,
vol. 1, Lisboa, Publicaes Alfa, 2001, p. 416.
11
Ral Cesar Gouveia Fernandes, A pedagogia da alma no Orto do Esposo, in Lnia Mrcia Mongelli (coord.),
A Literatura Doutrinria na Corte de Avis, So Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 79.
12
A expresso utilizada por Ana Maria Machado, O Orto do Esposo e as teorias interpretativas medievais,
in Actas del VI Congreso Internacional de la Asociacin Hispnica de Literatura Medieval, Tomo II, Alcal de
Henares, Universidade de Alcal, 1997, p. 934.
13
Frederick Williams, Breve estudo do Orto do Esposo com um ndice analtico dos exemplos, Ocidente-Revista
Portuguesa, vol. LXXIV, 1968, p. 206.
14
Vd. o prlogo do Orto do Esposo, ed. cit., p. 2.
15
J. Th. Welter, Lexemplum dans la littrature religieuse et didactique du Moyen Age, Genve, Slatkine Reprints,
1973, p. 106.
16
Orto do Esposo, ed. cit., p. 251.
17
Luciano Rossi, A literatura novelstica na Idade Mdia portuguesa, Lisboa, Instituto de Lngua e Cultura Portu-
guesa, 1979, p. 18.
18
Orto do Esposo, ed. cit., p. 241.
19
Afirma Umberto Eco: On court alors le risque du salgarisme. Les personnages de Salgari fuient dans la
fort, traqus par des ennemis et trbuchent sur une racine de baobab: et voil que le narrateur suspend
laction pour nous faire une leon de botanique sur les baobabs. Cest devenu maintenant un topos, plaisant
comme les vices dune personne que lon a aime, mais viter. Cf. Umberto Eco, Apostille au Nom de la
Rose, Paris, ditions Grasset, 1985, p. 46.
20
Orto do Esposo, ed. cit., p. 240.
21
Orto do Esposo, ed. cit., p. 240.
22
Leonor Silvestre Santos, A mulher, o diabo e a luxria nos exempla do Orto do Esposo, Lisboa, Faculdade de
Letras, 2001, p. 17.
3. A hiptese de ter o monge annimo tido acesso ao Pardoners Tale, um dos Canter-
bury Tales de Chaucer, por via oral ou manuscrita, , sem dvida, atraente. Aventa-a Frederick
Williams, destacando os passos da obra alcobacense que indiciam um aprecivel conhecimento
de fontes inglesas, ou relembrando os laos familiares que uniam a casa real portuguesa ao
prprio Chaucer, bem como as assduas relaes luso-britnicas que pontuaram o perodo.
Contudo, a despeito de comungarem de um esquema narrativo homlogo, as diferenas entre
os relatos so indisfarveis e, portanto, como realisticamente conclui o autor, until further
studies reveal otherwise, the version found in the Orto do Esposo stands alone, a unique
Portuguese variant with no direct sources24.
A flutuao discernvel entre as verses de exemplum e tale no se circunscreve a desencon-
tros argumentais mais ou menos epidrmicos; ao invs, encontra-se medularmente ditada,
retomando uma formulao j familiar, pelo estilo de epistemologia que ambos subentendem.
A passagem do Orto a Chaucer, ainda que cronologicamente desabonada, dado apresentarem
ambos os textos datas de composio aproximadas, traduz, no obstante, a mutao da
crislida-exemplum em borboleta novelstica ou romanesca25 e, portanto, o trnsito entre
um perodo dominado pela suspeio relativamente ao contar e um outro em que, de modo
pleno, se afirma o elogio da narrativa.
Por ser tangencial ao meu propsito, contorno a intricada questo da dvida real de
Chaucer para com o legado boccacciano. Mas , em todo o caso, indiscutvel que, tambm
na sua obra, se perscruta uma indita viso do mundo, um mundo anlogo ao do autor do
Decameron, j aliviado do jugo escatolgico, moralmente laicizado, inquieto e problemtico,
que, no momento intersticial que divide ocaso medieval e aurora renascentista, a novella
italiana vem anunciar. Ressalvando a polignese e polimorfismo dos produtos novelescos, as
metamorfoses rastreveis no plano da ideologia da representao e da esttica narrativa
tornam-se neles conspcuas. Assim se poderiam repertoriar os aspectos que distanciam os
universos narrativos recriados por exemplum e novella:
23
G. R. Owst, Literature and Pulpit in Medieval England, Cambridge, Cambridge University Press, 1933, p. 188.
24
Frederick G. Williams, Chaucers The Pardoners Tale and The Tale of the Four Thieves From Portugals
Orto do Esposo Compared, Bulletin des tudes Portugaises et Brsiliennes, Tome 44-45, 1983-1985, p. 107. No
prembulo da sua circunstanciada anlise comparativa dos Canterbury Tales, de Chaucer, com El Conde
Lucanor, de Don Juan Manuel, Jess Serrano Reyes reexamina, aduzindo elementos que reputa como conclu-
dentes, os mltiplos sinais da presena peninsular da obra do poeta ingls. Cf. Jess L. Serrano Reyes,
Didactismo y Moralismo en Geoffrey Chaucer y Don Juan Manuel: Un Estudio Comparativo Textual, Crdoba,
Servicio de Publicaciones-Universidad de Crdoba, 1996. Acentuando a discrepante orientao doutrinria
do exemplum alcobacense e do tale de Chaucer, Jlia Dias Ferreira menciona um conto popular alentejano,
divulgado por Leite de Vasconcelos, mais prximo da verso que se encontra no Il Novellino e nos Canterbury
Tales. Cf. Jlia Dias Ferreira, Another Portuguese Analogue of Chaucers Pardoners Tale, Chaucer Review 11,
1977, p. 258-60.
25
Jacques Berlioz, Marie Anne Polo de Beaulieu (coords.), Les exempla mdivaux: nouvelles perspectives, Paris,
Champion, 1998, p. 14.
O Pardoners Tale de Chaucer possibilita uma estimativa modelar dos efeitos carreados
por esta translao do contar paradigmtico para o contar problemtico. O aplogo do
tesouro fatal aparece agora endossado pela voz de um vendedor de indulgncias que, aps
uma extensa prdica prologal, o relata com funo ancilarmente ilustrativa. primeira vista,
o contexto performativo que acompanha o dbito do conto em Chaucer parece reminiscente
da utilitas pastoral confiada aos exempla do Orto, isto se considerarmos que o Pardoner reifica,
aos olhos de uma assembleia composta pelos peregrinos e pelo estalajadeiro, a eficcia da
demonstrao parabolar na oratria sagrada. Dramatiza-se, portanto, uma ars narrandi in fieri.
No entanto, um conjunto concertado de dispositivos de contratextualidade enceta, ao invs,
uma impiedosa corroso do modelo cannico da comunicao exemplar. Detenhamo-nos neles.
Por um lado, enquanto relato enquadrado na moldura narrativa da peregrinao (que,
no domnio da itinerncia real, conduz os romeiros reunidos no Tabard Inn a Canturia), o
Pardoners Tale no se encontra ao abrigo da contaminao retrica propiciada pela co-
presena das dspares narrativas que compem a comdia humana chauceriana. precisa-
mente a natureza compsita destas que inclui, entre outros, os gneros da fbula e do fabliau,
do romance e da novella, do exemplum, do milagre e da hagiografia que autoriza a explorao
consequente do efeito de dissonncia estilstica entre as histrias, secundado, de resto, pelos
argumentos que, na narrativa de primeiro grau, vo esgrimindo contador indigitado e auditrio27.
Tem, alis, sido discernido um nexo causal entre a progressiva complexificao das molduras
narrativas dos relatos enquadrados e a desestabilizao das estruturas ideolgicas a eles
adjacentes. Se as coleces de exempla se autolegitimavam por via de uma indefectvel e
omnipresente ordem providencial, que apenas lhes competia iluminar alegoricamente, a
novela experimenta j a necessidade de forjar a provisria harmonia de um quadro ficcional,
apto a capturar a anarquia do mundo28. O regime enunciativo instaurado, na obra de Chaucer,
26
Hans-Jrg Neuschfer, Boccace et lorigine de la nouvelle. Le problme de la codification dun genre
mdival, in Michelangelo Picone, Giuseppe Di Stefano e Pamela D. Stewart (orgs.), La nouvelle. Gense,
codification et rayonnement dun genre mdival, Montral, Plato Academic Press, 1983, p. 109.
27
Cf. as seguintes palavras de Joerg O. Fichte, a propsito da funo retrica da estrutura macrotextual dos
Canterbury Tales na recepo das diferentes narrativas enquadradas: The rhetorical situation is set within a
double frame: an inner and an outer one. The outer frame is constituted by the Canterbury Tales in toto.
(). This larger context will consequently determine the meaning of the individual stories, since an audiences
reception of each single tale will surely be guided by the impression it has formed of the collection as a
whole. Thus, the concept of structure, theme, narrator, and genre will play an important role contributing
to the readers formation of a total aesthetic impression which will, in turn, influence his interpretation of
the individual tales. Cf. Joerg O. Fichte, Incident-History-Exemplum-Novella: the Transformation of History
in Chaucers Physicians Tale, Florilegium, vol. 5, 1983, p. 199.
28
Sobre o assunto, vd. as reflexes apresentadas por Margaret Greer, Whos Telling This Story Anyhow? Framing
Tales East and West: Panchatantra to Boccaccio to Zayas, Laberinto. An Electronic Journal of Early Modern
Hispanic Literatures and Culture 1.1-2, 1997.
29
A. C. Spearing (ed.), The Pardoners Prologue and Tale, Cambridge, Cambridge University Press, 1965, p. 54.
Todas citaes do texto de Chaucer seguem esta edio.
30
S. S. Hussey, Chaucer. An Introduction, London & New York, Methuen, 1981, p. 110.
31
Para um conspecto das competncias e situao jurdica dos vendedores de indulgncias na Idade Mdia,
vd. A. C. Spearing (ed.), The Pardoners Prologue and Tale, Cambridge, Cambridge University Press, 1965, p. 5-12.
32
A expresso de A. C. Spearing, The Canterbury Tales IV: Exemplum and Fable, in The Cambridge Chaucer
Companion, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 168.
33
The Pardoners Prologue and Tale, ed. cit., p. 58.
34
The Pardoners Prologue and Tale, ed. cit., p. 59.
35
Como observa Noa Steimatsky, o paradoxo tambm a figura estruturante do conto relatado pelo Pardoner:
The Pardoners tale contains a series of mirror-paradoxes: the rioters quest to kill Death turns out to be
also Deaths quest to kill them, the old man (another liar) who claims he cannot find Death yet has just
met it in a very specific spot and, of course, the tales ending which is simultaneously a full success and a
total failure, since Death has been reached. Cf. Noa Steimatsky, The Name of the Corpse: A Reading of
The Pardoners Tale, Hebrew University Studies in Literature and the Arts, vol. 15, 1987, p. 37.
36
Afirma Alan Fletcher: Chaucer has caught into his work this same traditional crisis felt by the orthodox
whenever they contemplated the disparity between a preachers life and his words; the gulf between the
Pardoners substance and the accident of his sermon would have precipitated familiar difficulties. Over
and again the shadow of hypocrisy touches his words, impinging upon how they are received. Cf. Alan J.
Fletcher, The Preaching of the Pardoner, in Preaching, Politics and Poetry in Late-Medieval England, Dublin,
Four Courts Press, 1998, p. 251.
37
A expresso de Ann W. Astell, The Translatio of Chaucers Pardoner, Exemplaria 4.2, 1992, p. 413.
38
Como refere Noa Steimatsky, () the impotent eunuch is a very competent rhetorician, a master story-
teller, whose self-confidence in his rhetorical powers is so great that he dares abuse his audience () and
to confess his avaricious intentions even as he preaches against avarice. Cf. art. cit., p. 36.
39
Como observa A. C. Spearing The Pardoners homiletic interlude passes through drunkenness, lechery,
gluttony, gambling, blasphemy sins originating in the tavern and intricately interconnected. Cf. A. C. Spearing,
The Canterbury Tales IV: Exemplum and fable, p. 167.
40
Conclui o autor: The Pardoners Tale reflects the medieval sermon structure both in its general design, the
relation of the parts to the whole, and in the methods of developing those parts. () It seems clear at this
point that we should reevaluate the sermon in the Pardoners Tale. It is a sermon, carefully unified, and quite
similar structurally to the university or modern sermons previously referred to. Cf. Robert P. Merrix, Sermon
Structure in the Pardoners Tale, The Chaucer Review, vol. 17.3, 1983, p. 245-47. Siegfried Wenzel modera a
tese da dependncia retrica ou estrutural do discurso do Pardoner, relativamente aos modelos da oratria
sacra, advogando que Chaucer se limitou, para todos os contos, a adoptar technical terms, specific images,
and story plots from contemporary sermon literature. E adverte: () creating a handful of characters who
sound like preachers because they moralize and quote Scripture is not the same as actually borrowing
verbal material from contemporary sermons. Cf. Siegfried Wenzel, Chaucer and the Language of Contem-
porary Preaching, Studies in Philology 73, 1976, p. 139.
41
Cf. Lawrence Besserman, Chaucer and the Bible: Parody and Authority in the Pardoners Tale, in David H.
Hirsch, Nehama Aschkenasy (eds.), Biblical Patterns in Modern Literature, Chico-California, Scholars Press, 1984,
p. 48.
42
Maureen Thum, Frame and Fictive Voice in Chaucers The Pardoners Tale and Kiplings The Kings Ankus,
Philological Quarterly 71, 1992, p. 270.
43
Cf. Lee Patterson, Chaucerian Confession: Penitential Literature and the Pardoner, Medievalia et Humanistica
7, 1976, p. 162.
44
A expresso utilizada por S. Battaglia, op. cit., p. 547.
45
Sabine Volk-Birke, Chaucer and Medieval Preaching. Rhetoric for Listeners in Sermons and Poetry, Tbingen,
Gunter Narr Verlag, 1991, p. 261.
46
Como nota Valerie Edden, do horizonte de expectativas do auditrio fariam, naturalmente, parte componentes
de gnero: But his [the readers] expectations are also controlled by simple generic considerations: that
he already has experience of sermon exempla and of quest stories. Cf. Valerie Edden, Reading the Pardoners
Tale, Malcolm Coulthard (ed.), Talking About the Text, Birmingham, English Language Research, 1986, p. 74.
47
The Man has been identified variously as Death, Old Age, The Wandering Jew, a Wisdom Figure, Despair,
and the Pauline vetus homo. Cf. Ann W. Astell, art. cit., p. 416, n. 14.
48
A. C. Spearing, The Canterbury Tales IV: Exemplum and fable, p. 166.
49
Salvatore Battaglia, op. cit., p. 547.
50
Jlia Dias Ferreira, Uma retrica da tolerncia. Os processos da ironia na obra de Chaucer, Lisboa, Faculdade
de Letras, 1981, p. 274.
51
Por essa razo, afirma Heiner Gillmeister: Thus the exemplum of the Pardoners Tale could be likened to the
third tale of the seventh day in Boccaccios Decameron where a situation is also interpreted differently by
the characters involved in the story, which led Tzvetan Todorov to speak of an instance of syllepsis, thus
also using a linguistic term in order to describe a literary phenomenon. Cf. Heiner Gillmeister, Chaucers
Pardoners Tale as a Poetic Sermon, Poetica: an International Journal of Linguistic-Literary Studies 29/30, 1989,
p. 73. Tambm Jlia Dias Ferreira sublinha que as personagens pervertem a verdade espiritual, interpre-
tando-a literalmente; em vez de procurar vencer a condio mortal, assumindo a imagem de Cristo como
Homem Novo, eles tentam matar a Morte, o que lhes acarreta a sua prpria destruio fsica e condenao
moral. Desse modo, tambm uma leitura crist do conto nos d a sua dimenso irnica. Cf. Uma retrica
da tolerncia, p. 275. A. C. Spearing advoga que o facto de as personagens de Chaucer tomarem, frequen-
temente, como literalidade aquilo que da ordem do metafrico gives the work a primitive, mythological
quality. Cf. A. C. Spearing (ed.), The Pardoners Prologue and Tale, p. 38.
52
A expresso de Sabine Volk-Birke. Cf. op. cit., p. 275.
53
Salvatore Battaglia, op. cit., p. 547.
Mas a verdade que, tal como Frei Genebro, o Tesouro capitaliza a guloseima
esttica57 do passado e, enquanto exerccio de reescrita de um texto fundador (que chega
a aparentar o contador eciano a um narrador-editor de memria romntica), estriba-se nessa
esttica do remake de que fala Luciana Stegagno Picchio. E a concluso a que a que a estudiosa
italiana chega, para o caso de Frei Genebro, no andar muito longe daquilo que se passa
em O Tesouro:
54
Esta arrumao, abandonada por Lus de Magalhes, foi recentemente retomada por Luiz Fagundes Duarte
na sua edio dos Contos. Cf. Luiz Fagundes Duarte (ed.), Ea de Queirs. Contos, Lisboa, Publicaes Dom
Quixote, 2002. A esta edio se referem todas as citaes do conto queirosiano.
55
Como, a propsito desta cmoda catalogao, observa Carlos Reis, ltimo, porque termo de chegada de
uma vasta produo literria comeada em 1886; ltimo tambm, porque determinado pela construo,
certo que algo convencional, de um lapso cronolgico que justamente consideramos o segmento final e
mesmo conclusivo da sua obra. Vd. Carlos Reis, Sobre o ltimo Ea ou o realismo como problema, in
Estudos Queirosianos. Ensaios sobre Ea de Queirs e a sua obra, Lisboa, Editorial Presena, 1999, p. 157.
56
Ea de Queirs, Correspondncia, leitura, coordenao, prefcio e notas de Guilherme de Castilho, 2. vol.,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 327.
57
A expresso de Castelo Branco Chaves, Antnio Nobre e o nacionalismo literrio, in Estudos Crticos,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, p. 142.
58
Luciana Stegagno Picchio, Inveno e remake nos contos de Ea de Queirs: Frei Genebro, in Elza Min,
Benilde Justo Caniato (eds.), 150 Anos com Ea de Queirs. III Encontro Internacional de Queirosianos, Universidade
de So Paulo, So Paulo, 1997, p. 307.
59
Refere Mrio Martins que Ea gostava muito da Idade Mdia, mas superfcie, como quem colhe a flor
dum saral, beira do caminho e segue adiante. Cf. Mrio Martins, As origens remotas duma pgina de
Ea de Queirs, in Estudos de Cultura Medieval, vol. II, Lisboa, Edies Brotria, 1980, p. 41.
60
Cf. Castelo Branco Chaves, Ea de Queirs (Estudos Crticos), in Crtica Inactual, Lisboa, Arcdia, 1981, p. 71
e Antnio Srgio, O Conto de Ea de Queirs O Tesouro lido e comentado por Antnio Srgio, Ocidente,
vol. LXXIX (1970), p. 8. O verbete do Dicionrio de Ea de Queiroz relativo ao conto aponta ainda Chaucer
como a fonte indiscutvel da verso queirosiana. Cf. A. Campos Matos (org.), Dicionrio de Ea de Queiroz,
s.v. (O) Tesouro, Lisboa, Caminho, 1988, p. 899.
61
Vd. Cleonice Berardinelli, Um tesouro de segunda mo, in Elza Min, Benilde Justo Caniato (eds.), 150 Anos
com Ea de Queirs. III Encontro Internacional de Queirosianos, Universidade de So Paulo, So Paulo, 1997, p.
167. A narrativa, que Tefilo Braga reproduz sob o ttulo Os quatro ladres, tem, no volume II, o nmero
143. Cf. Theophilo Braga, Contos tradicionaes do povo portuguez com um estudo sobre a novellistica geral e
notas comparativas, vol. II, Porto, Livraria Universal, s.d., p. 50-51.
62
Mrio Martins, O Tesoiro e Frei Genebro, in Estudos de Cultura Medieval, vol. II, Lisboa, Edies Brotria,
1980, p. 45.
63
Ea de Queirs, Prefcio a Azulejos, do Conde de Arnoso, in Notas Contemporneas, Lisboa, Crculo de
Leitores, 1988, p. 131.
64
Antnio Jos Saraiva, As ideias de Ea de Queirs, Amadora, Livraria Bertrand, 1982, p. 54.
65
Id., ibid., p. 53. Em funo desta concepo do conto como cristalizao essencializada do romance, a tese
dO Primo Baslio encontra-se pelo menos parcialmente no conto No Moinho, e toda A Cidade e as Serras
est no conto Civilizao. Cf. op. cit., p. 56.
66
Como nota Joo Paulo Braga, o narrador no assume explicitamente ou directamente o acto de moralizao;
na estrutura sequencial do conto, no possvel distinguir nenhuma proposio que constitua explicita-
mente a moralidade. Cf. Joo Paulo Braga, O Tesouro,de Ea de Queirs: o deleite de uma histria de
proveito e exemplo, Revista Portuguesa de Humanidades, vol. 5, 2001, p. 359. Tambm Consuelo M. Loureiro
observa que In O Tesouro () the boundaries between good and evil are not directly defined but the
reader unhesitatingly understands the implicit universal values expressed. Cf. Consuelo M. Loureiro, Ea de
Queiroz and the Modern Portuguese Short Story, New York, the City University of New York, 1974, p. 300-301.
A ironia, essa latente () ironia sobre os desgnios humanos73, como estratgia ideol-
gica de veiculao da tese, socorre-se ainda de um sistemtico processo de animalizao do
humano e, inversamente, de humanizao do animal. Os fidalgos so mais bravios que
lobos74, Guanes tem pescoo de grou75, Rostabal ruge e apodado pelo irmo de cerdo.
67
Cf. Luciana Stegagno-Picchio, art. cit., p. 307.
68
Antnio Srgio, art. cit., p. 15.
69
Ea de Queirs, O Tesouro, p. 146. Cf. As seguintes palavras de Consuelo M. Loureiro: In O Tesouro
attention is not limited to the three murders. Equally important are the scenes that precede the events.
Unlike Chaucers The Pardoners Tale, which it resembles, Ea tries to distinguish among the brothers,
characterizing them somewhat through their own words and actions, as well as by the contrast they offer
with a tranquil and benign nature. It is not only the dramatic moments that are underscored, but also the
character of the people involved. Cf. Consuelo M. Loureiro, op. cit., p. 258.
70
Os adjectivos so de Antnio Srgio, art. cit., p. 14.
71
Castelo Branco Chaves, Ea de Queirs (Estudos Crticos), p. 76.
72
Ea de Queirs, O Tesouro, p. 153.
73
Castelo Branco Chaves, Ea de Queirs (Estudos Crticos), p. 77-78.
74
Ea de Queirs, O Tesouro, ed. cit., p. 145.
75
Ea de Queirs, O Tesouro, ed. cit., p. 147.
Desta histria de proveito e exemplo, refere Cleonice Berardinelli, se extraem dois ensina-
mentos: o primeiro, de que h uma justia imanente que faz que o mal seja castigado na
medida em que mais ou menos consciente; o segundo, menos patente, de que o homem
tanto melhor quanto menos consciente, mais prximo do animal77. O explicit do conto (O
tesouro ainda l est, na mata de Roquelanes78) no deixa, igualmente, de projectar num
devir intemporal, a sua tese. A remisso para o presente, claramente discrepante da atmosfera
de um in illo tempore de lenda, que, na narrativa, activa a sua memria folclrica, pode exprimir
a canonicidade da conduta humana e, portanto, asseverar, de modo vicrio, a perenidade da
lio. E esta mais no , nas palavras de Antnio Srgio, a de que Quando os buscamos
como simples instrumentos de satisfao sensvel, todos os tesoiros que ambicionamos
ficam na mata de Roquelanes79.
A fantasia de que Ea reveste esta tese, retomando a ditologia formulada por Antnio
Jos Saraiva, a do estranhamento gtico. So recorrentes, no conto, sinais de um imaginrio
historicista que, desveladamente, se compraz na reconstituio da cor local medieva: a localizao
asturiana e a toponmia arcaizante, os pormenores relativos indumentria e ao ofcio blico,
o pano de fundo social de uma aristocracia guerreira do tempo da Reconquista e, sobretudo,
a omnipresente retrica da desmesura incivilizada e do excesso brbaro que d conta, em
magnificao disfmica, de hbitos e comportamentos subsumveis a um suposto tenebrismo
medieval. A ambientao gtica , alm disso, assistida pela presena insistente de convenes
elocutrias da literatura de transmisso oral e, especialmente, por um cdigo simblico pedido
de emprstimo ao conto popular: os estilemas tpicos da narrao oral que intentam recriar
a melopeia do contar (ora, ento); a valncia simblica do nmero trs, que se comunica ao
prprio formato ternrio do conto; a interferncia de motivos do maravilhoso folclrico (v.g.
a misteriosa inscrio do cofre, portadora de fatalidade), tambm evocativos de uma atmosfera
de medievalismo mourisco:
76
Id., ibid., p. 150.
77
Cleonice Berardinelli, Um tesouro de segunda mo, p. 172.
78
Ea de Queirs, O Tesouro, p. 153.
79
Antnio Srgio, art. cit., p. 15.
80
Ea de Queirs, O Tesouro, p. 145-46.
81
Cleonice Berardinelli, Exerccio de anlise estrutural: O Tesouro de Ea de Queirs, in Estudos de Literatura
Portiuguesa, Lisboa, IN-CM, 1985, p. 95-96.
82
Cf. Maria do Carmo Castelo Branco Vilaa de Sequeira, A Dimenso Fantstica na Obra de Ea de Queirs,
Braga, Universidade do Minho, 2000, p. 291.
83
Antnio Srgio, art. cit., p. 15.
84
Ea de Queirs, O Tesouro, p. 153.
Resumo: Pretende-se, neste texto, proceder a uma reflexo We spend our lives immersed in narratives.
sobre os folhetos de cordel do sculo XVIII, posicionando-os
quer na esteira de prticas narrativas ancestrais, ligadas
Every day, we swim in a sea of stories and tales
transmisso oral e conotadas com a prpria origem do conto that we hear or read or listen to or see () from
literrio, quer na origem de manifestaes literrias conotadas our earliest days to our deaths1.
com a marginalidade do universo literrio, como o caso da A narrativa, aqui entendida como reproduo
literatura de massas.
textual/discursiva de uma aco ou estado de
Abstract: The intention of this paper is to suggest some
reading guidelines of some eighteenth century Portuguese
coisas decorrida numa determinada sequncia
chapbooks. Its our purpose to see them as a reflection and a temporal, tem uma importncia determinante na
continuation of traditional oral culture (where the literary forma como os seres humanos apreendem o
short story has its own origin) as well as predecessors of
mundo e se compreendem a eles prprios2. As
literary (and printing) practices that shape the so-called mass
literature. narrativas, sob diferentes formas contos de fadas,
histrias de aventuras, biografias, histrias policiais,
fico cientfica, banda desenhada, ou outras so uma presena3 constante no quotidiano
do homem, revelando-se como formas que, desde tempos imemoriais, permitiam a organizao
e elaborao do conhecimento, assim como a sua partilha e manuteno ao longo de geraes,
em culturas onde apenas a oralidade existia como possibilidade de comunicao.
1
Arthur Asa Berger, Narratives in Popular Culture, Media, and everyday life, Thousand Oaks/London/New Delhi,
SAGE Publications, 1997, p. 1
2
Arthur Berger ressalta que clearly, narratives are very important to us; they furnish us with both a method
for learning about the world and a way to tell others what we have learned (Arthur Asa Berger, op. cit., p.
10).
3
Confrontar com Numberless are the worlds narratives. First of all, in a prodigious variety of genres, themselves
distributed among different substances, as if any material were appropriate for man to entrust his stories
to it: narrative can be supported by articulated speech, oral or written, by image, fixed or moving, by gesture,
and by the organized mixture of all these substances; it is present in myth, legend, fable, tale, tragedy,
comedy, epic, history, pantomime, painting (), stained glass window, cinema, comic book, news item,
conversation. Further in these almost infinite forms, narrative occurs in all periods, in all places, all societies;
narrative begins with the very history of humanity; there is not, there has never been, any people anywhere
Ana Margarida Ramos, Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII, forma breve 1, 2003, p. 65-78 | 65
without narrative; all classes, all human groups have their narratives, and very often these are enjoyed by
men of different, even opposing culture: narrative never prefers good to bad literature: international, trans-
historical, transcultural, narrative is there, like life (Roland Barthes, The semiotic challenge, New York, Hill &
Wang, 1988, p. 89).
4
Veja-se, por exemplo, a publicao de Alice Vieira, Eu bem vi o nascer do sol antologia da poesia popular
portuguesa, 5. edio (1994 1. edio), Lisboa, Editorial Caminho, 2002.
5
Confrontar com Bruno Bettelheim, Psychanalyse des contes de fes, Paris, Robert Laffont, 1986.
6
Ver Vladimir Propp, Morfologia do Conto, Lisboa, Editorial Vega, 1978.
66 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
7
Confrontar com Andr Jolles, Formes Simples, Paris, ditions du Seuil, 1972, p. 173 ss.
8
O corpus limitado que seleccionmos como ponto de partida para este estudo parcelar da literatura de
cordel enquanto manifestao simultaneamente ligada s prticas narrativas orais e ao nascimento da
literatura de massas composto pelos textos seguintes. Note-se que, tanto nos ttulos como nas citaes
que iro surgir, a grafia destes textos foi sempre actualizada.
1 Relao verdadeira da espantosa fera, que h tempos a esta parte tem aparecido nas vizinhanas de
Chaves: os estragos que tem feito, e diligncias que se fazem para a apanharem: segundo as notcias
participadas por cartas de pessoas fidedignas daquela provncia [annima, Lisboa, Oficina de Jos Filipe,
1760, 16 pginas]
2 Segunda parte da relao da fera que aparece nas vizinhanas de Chaves, em a qual se d com mais
individuao, a verdadeira notcia do seu princpio, e origem, e dos estragos, que tem feito naquela Provncia
[annima, Lisboa, Oficina de Jos Filipe, 1760, 8 pginas]
3 Nova, e verdadeira relao da morte do feroz bicho, que h muitos tempos infesta as vizinhanas de
Chaves. Astcias, ardiloso modo, e engano; que um resoluto e valoroso habitador daquelas terras usou para
o conquistar, levando consigo um menino, e somente doze homens de escolta bem armados. Por notcia
certa, que um amigo mandou da dita provncia a outro desta corte, juntamente com a apropriada, e bem
figurada cpia da fera, a qual aqui vai estampada, e se d a pblico, relatando-se tudo fielmente, conforme
das ditas partes se tem participado, por pessoas fidedignas, e achadas no conflito [annima, Lisboa, Oficina
de Jos Filipe, 1760, 8 pginas]
9
Ver Joo de Melo (org., prefcio e notas), Antologia do Conto Portugus, Lisboa, Edies Dom Quixote, 2002.
Ainda que no prefcio o autor refira que o conto (mesmo enquanto narrativa oral) e a poesia destinada
ao canto estiveram na origem de todos os gneros literrios (p. 11) e ainda que em plena Idade Mdia,
antes de o ser em teoria, j o conto portugus o era na prtica enquanto narrativa oral e popular: caso,
lenda, fbula, prodgio, exemplo, stira, moralidade ou poema para cantar (p. 13), a verdade que insiste
que s no sculo XIX conheceu a autonomia, estilstica, temtica, formal, que lhe permitiu uma identidade
prpria e especfica.
10
De notar que este texto corresponde, tambm ele, a uma adaptao literria de uma narrativa muito mais
antiga, com registos escritos datando, pelo menos, da Idade Mdia.
Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos | 67
11
Michle Simonsen, Le conte populaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1984, p. 9.
12
A este respeito, veja-se por exemplo, a opinio de Catherine Velay-Vallantin, que afirma peremptoriamente
que le conte est dj prsent au Moyen Age: si le roman profane et la prdication nont invent ni la
forme ni la matire du conte, ils ont du moins contribu enrichir sa thmatique et codifier lidologie
qui a suggr certains schmas dintrigue (Catherine Velay-Vallantin, Lhistoire des contes, Paris, Fayard, 1992,
p. 28), insistindo, ainda, que se a forma do conto no visvel, o seu assunto est presente em outros
textos medievais como o caso, por exemplo, da finalidade didctica e moralizante de textos como a
pregao religiosa (sermo) ou mesmo texto de cariz didctico. Tambm no pode ser posta de parte, e
existem alguns estudos sobre o assunto, a ligao do conto aos exempla, ainda que estas fossem apresen-
tadas como narrativas de fundo verdico. Ainda sobre a presena do conto na literatura medieval, veja-se o
estudo realizado por Nuno Jdice, O espao do conto no texto medieval, Lisboa, Vega Editores, 1991.
13
Catherine Velay-Vallantin, op. cit., p. 30.
14
Michle Simonsen, op. cit., p. 10
15
Confrontar a anlise proposta por Havelock para a Odisseia em ric A. Havelock, A musa aprende a escrever.
Reflexes sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente, Lisboa, Gradiva, 1996.
16
Paul Zumthor defende que as tradies orais no s desempenharam uma tarefa fundamental na
manuteno das sociedades arcaicas, como ainda se revelam essenciais, nos nossos dias, assegurando a
sobrevivncia de culturas marginais. Ver Paul Zumthor, Introduction la posie orale, Paris, ditions du Seuil,
1983, p. 10.
68 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
17
ric A. Havelock, op. cit., p. 18.
18
Id., ibid., p. 90.
19
Id., ibid.
20
Parry defende que as canes picas dos Balcs eram compostas no momento da performance, que no
se distingue, neste contexto, da composio: Parrys seminal ideas were that these orally performed Balkan
songs some of them several thousand lines in length were created spontaneously by traditional singers,
the guslari (guslars), who judiously manipulated formulaic verbal constructs (Bruce A. Rosenberg, Folklore
& Literature Rival Siblings, Knoxville, University of Tennessee Press, 1991, p. 131).
21
Albert B. Lord, The singer of Tales, 2. edio (1. 1960), Cambridge/Massachusetts/London, Harvard University
Press, 2000.
22
ric A. Havelock, op. cit.
23
Walter J. Ong, Orality and Literacy: the Technologizing of the Word, London/New York, Routledge, 1982.
24
Walter J. Ong, op. cit., p. 23 e 24.
25
Confrontar com: Oral expression thus carries a load of epithets and other formulary baggage which high
literacy rejects as cumbersome and tiresomely redundant because of its aggregative weight (Walter J. Ong,
op. cit., p. 38).
Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos | 69
26
Ong refere que oral cultures must conceptualize and verbalize all their knowledge with more or less close
reference to the human life world, assimilating the alien, objective world to the more immediate, familiar
interaction of human beings (Walter J. Ong, op. cit., p. 42).
27
Walter Ong refere-se mesmo a uma incompatibilidade entre o enredo linear e a memria oral, mantendo,
por exemplo, o romance de aventuras ou de viagens, pela sua organizao episdica, muitos vestgios desta
oralidade primitiva que caracterizava os textos orais.
28
Walter J. Ong, op. cit., p. 111.
70 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
29
Confrontar Paul, Zumthor, Introduction la posie orale, Paris, ditions du Seuil, 1983, p. 36.
30
Alain-Michel, Boyer, A Paraliteratura, Porto, Rs Editora, s/ data, p. 55
31
Sobre esta questo do modelo narrativo que suporta os folhetos de cordel relativos ao aparecimento de
monstros ver Ana Margarida, Ramos, Aspectos da prosa de cordel do sculo XVIII: os relatos de monstros, in
Maria Saraiva de Jesus (coord.), I Ciclo de Conferncias sobre a Narrativa Breve, Aveiro, Universidade de Aveiro,
2001, p. 21-23 e Ana Margarida Ramos, O retrato de monstros na prosa de cordel do sculo XVIII: tipologias
e estratgias textuais, in Lus Machado de Abreu e Antnio Jos Ribeiro Miranda (coord.), O Discurso em
Anlise Actas do 7. Encontro de Estudos Portugueses, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2001, p. 168.
32
Destacam-se, como elementos fortemente estereotipados, os relativos descrio dos monstros e aos danos
por eles causados.
Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos | 71
33
Sobre este aspecto em particular, atente-se na construo em folhetim que caracteriza obras conotadas
com a literatura de massas.
34
Confrontar com: Chegando a Chaves se apresentou ao Governador, dela a preza, e o valorosssimo, e
industrioso mancebo, que dele, e de todos os demais levou geralmente o louvor, e a palma do trofeu to
esclarecido, como se tinha alcanado pela sua afoiteza, e ardil.
35
Atente-se na seleco dos adjectivos, remetendo para duas qualidades essenciais a qualquer heri: a cora-
gem e a inteligncia. Mais frente, e depois de j alcanada a vitria sobre a fera, os eptetos escolhidos
para a caracterizao do protagonista sero valorosssimo e industrioso mancebo, destacando, novamente,
as mesmas qualidades. Ainda a respeito dos eptetos das personagens principais dos relatos e da sua
reiterao constante, refira-se que, no segundo dos textos do corpus, encontramos exemplos como resoluto,
animoso e valoroso para o catalo Estevo Grizo e nobres e valorosos mancebos para os soldados.
No primeiro texto, encontramos a referncia a um mancebo de agigantadas foras e mais animoso que
afortunado. Este levantamento reveste-se ainda de maior interesse quando comparado, por oposio, com
os eptetos seleccionados para o fenmeno monstruoso, dos quais deixamos aqui s alguns exemplos:
espantosa fera horrvel fera, perversa fera, indmita fera, monstruosa fera (1. folheto); horrorosas
feras (2. folheto); feroz bicho, furioso bicho, espantoso monstro, terrvel bicho (3. folheto), o que
evidencia uma construo organizada em torno dos binmios antitticos tradicionais Bom/Mau.
72 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
36
Daniel Cougnas, Introduction la paralittrature, Paris, ditions du Seuil, 1992, p. 13 e 14.
37
Id., ibid., p. 68.
Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos | 73
38
Id., ibid., p. 67.
39
Confrontar com Umberto Eco, O Super Homem das Massas, Lisboa, Difel, 1990, p. 21 e 22.
40
Id., ibid., p. 18.
74 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
41
Daniel Cougnas, op. cit., p. 92
42
Id., ibid., p. 95
43
Veja-se, por exemplo, que a descrio dos monstro s surge completa no final do terceiro texto do conjunto
de trs que constitui o nosso corpus.
Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos | 75
44
Daniel Cougnas, op. cit., p. 141.
45
Umberto Eco, op. cit., p. 168.
46
Id., ibid., p. 169
47
Neste ponto necessrio ter em conta, entre outros aspectos, a questo da prpria edio dos textos, ao
nvel da qualidade inferior do papel utilizado, a ausncia de capa dura, o reduzido nmero de pginas, a
baixa qualidade da impresso e dos caracteres empregados, o preo acessvel, o formato seleccionado, o
modo de exposio dos textos, a circulao e posterior venda dos mesmos, assim como os elementos,
nomeadamente os cegos, responsveis por estes passos.
76 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
48
Joo Lus Lisboa, Papis de larga circulao no sculo XVIII in Revista de Histria das Ideias, Coimbra,
Instituto de Histria e Teoria das Ideias, vol. 20, 1999, p. 132.
49
Id., ibid.
50
Confrontar com Innocencio Francisco Silva, Jos Freire de Monterroyo Mascarenhas in Diccionario Bibliogra-
phico Portuguez. Estudos applicaveis a Portugal e ao Brasil, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, p. 343-353.
51
Alguns dos ttulos, cuja grafia foi actualizada, relevantes para esta questo, atribudos a este autor so:
Prodigiosas aparies e sucessos espantosos, vistos no presente ano de 1716, e nos fins do passado, em
vrias partes do mundo, Relao de um formidvel e horrendo monstro silvestre, que foi visto e morto
nas vizinhanas de Jerusalm, traduzido fielmente de uma, que se imprimiu em Palermo no reino da Siclia,
e se reimprimiu em Gnova, e em Turim; a que se acrescenta uma carta, escrita de Alepo sobre esta mesma
matria. Com o retrato verdadeiro do dito bicho, Emblema vivente, ou notcia de um portentoso monstro
que da provncia de Anatlia foi mandado ao sulto dos turcos. Com a sua figura, copiada do retrato, que
dele mandou fazer o Biglerbey de Amsia, recebida de Alepo, em uma carta escrita pelo mesmo autor da
que se imprimiu o ano passado, O maior monstro da Natureza, aparecido na costa da Tartria Setentrional
no ms de Agosto do ano passado de 1739. Exposto em uma relao escrita na lngua holandesa pelo
capito Cristiano Shoemaker. Traduzida no idioma portugus para instruo dos curiosos.
Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos | 77
BARTHES, Roland, The semiotic challenge, New York, Hill & Wang, 1988.
BERGER, Arthur Asa, Narratives in Popular Culture, Media, and everyday life, Thousand Oaks/
London/New Delhi, SAGE Publications, 1997.
BETTELHEIM, Bruno, Psychanalyse des contes de fes, Robert Laffont, Paris, 1986.
BOYER, Alain-Michel, A Paraliteratura, Porto, Rs Editora, s/ data.
COUGNAS, Daniel, Introduction la paralittrature, Paris, ditions du Seuil, 1992.
ECO, Umberto, O Super Homem das Massas, Lisboa, Difel, 1990.
HAVELOCK, ric A., A musa aprende a escrever. Reflexes sobre a oralidade e a literacia da Anti-
guidade ao presente, Lisboa, Gradiva, 1996.
JOLLES, Andr, Formes Simples, Paris, ditions du Seuil, 1972.
JDICE, Nuno, O espao do conto no texto medieval, Lisboa, Vega Editores, 1991.
LISBOA, Joo Lus, Papis de larga circulao no sculo XVIII in Revista de Histria das Ideias,
Coimbra, Instituto de Histria e Teoria das Ideias, vol. 20, 1999, p. 131-147.
LORD, Albert B., The singer of Tales, 2. edio (1. 1960), Cambridge/Massachusetts/London,
Harvard University Press, 2000.
MELO, Joo de (org., prefcio e notas), Antologia do Conto Portugus, Lisboa, Edies Dom
Quixote, 2002.
ONG, Walter J., Orality and Literacy: the Technologizing of the Word, London/New York, Routledge,
1982.
PROPP, Vladimir, Morfologia do Conto, Lisboa, Editorial Vega, 1978.
RAMOS, Ana Margarida, Aspectos da prosa de cordel do sculo XVIII: os relatos de monstros, in
JESUS, Maria Saraiva de (coord.), I Ciclo de Conferncias sobre a Narrativa Breve, Aveiro, Uni-
versidade de Aveiro, 2001, p. 11-24.
RAMOS, Ana Margarida: O retrato de monstros na prosa de cordel do sculo XVIII: tipologias
e estratgias textuais, in ABREU, Lus Machado e MIRANDA, Antnio Jos Ribeiro (coord.),
O Discurso em Anlise Actas do 7. Encontro de Estudos Portugueses, Aveiro, Universidade
de Aveiro, 2001, p. 161-175.
ROSENBERG, Bruce A., Folklore & Literature Rival Siblings, Knoxville, University of Tennessee
Press, 1991.
SILVA, Innocencio Francisco, Jos Freire de Monterroyo Mascarenhas in Diccionario Biblio-
graphico Portuguez. Estudos applicaveis a Portugal e ao Brasil, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional,
1860, p. 343-353.
SIMONSEN, Michle, Le conte populaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1984.
VELAY-VALLANTIN, Catherine, Lhistoire des contes, Paris, Fayard, 1992.
VIEIRA, Alice, Eu bem vi o nascer do sol antologia da poesia popular portuguesa, 5. edio
(1994 1. edio), Lisboa, Editorial Caminho, 2002.
ZUMTHOR, Paul, Introduction la posie orale, Paris, ditions du Seuil, 1983.
78 | Na gnese da literatura de massas: organizao narrativa e elementos temticos da prosa de cordel do sculo XVIII | Ana Margarida Ramos
Resumo: Para Victor Hugo e para Baudelaire, a natureza Ce qui mtonne cest que le pote veill
possui um lado enigmtico, oculto, que s a sensibilidade
pode alcanar. Porque a natureza exterior no corresponde ao
ait si rarement profit dans ses oeuvres
ideal dos escritores, estes procuram-no para alm do visvel, des fantaisies du pote endormi, ou du
atravs do sonho e da loucura. Mas, j antes, Nodier havia moins quil ait si rarement avou son
tomado conscincia da oposio entre o princpio positivo e o emprunt, car la ralit de cet emprunt
princpio imaginativo e tentado abrir os horizontes do outro
mundo pelo poder da palavra potica. dans les conceptions les plus audacieuses
Abstract: For Victor Hugo and Baudelaire nature has an
du gnie est une chose que lon ne peut
enigmatic, concealed side that only sensitivity is able to reach. contester.
Since external nature doesnt match the writers ideal, they Charles Nodier, Contes
seek for it beyond the realm of visible things, either through
dream or madness. However, even before that, Nodier had
been conscious of the opposition between the positive and
the imaginative principle, thus trying to widen the horizon of
the other world by resorting to the power of the poetical
word.
Introduo
A reactivao pelos romnticos do idealismo neoplatnico fomenta uma nova concepo
da prtica potica, ao sugerir que a obra de arte constitui um universo paralelo ao da natureza
que o torna outro. O escritor deve, pois, procurar traduzir a verdade espiritual que encontra
no mundo material e j no representar o universo concreto. Victor Hugo soube usar esse
romantismo visionrio, mas foi Baudelaire, com o smbolo e a analogia, quem encontrou a
chave que permitiu a passagem para o outro mundo; assim, o surnaturalisme por ele proposto
vem definitivamente comprometer qualquer representao da realidade. O real , pois, o ponto
de partida que conduz a um sobremundo, sendo este uma resposta tentativa de perverso
do prprio real. Em plena vigncia romntica, Charles Nodier soube aproximar-se desse mundo,
situando-se no limiar do sonho e da realidade, e o seu conto Trilby ou le lutin dArgail participa
dessa nova dinmica, onde o onrico confere uma nova dimenso realidade.
Maria Eugnia Pereira, Trilby ou le lutin dargail: Conto de um sobremundo, forma breve 1, 2003, p. 79-107 | 79
()
Pendant quil sommeillait, Ruth, une moabite,
Stait couche aux pieds de Booz, le sein nu,
Esprant on ne sait quel rayon inconnu,
Quand viendrait du rveil la lumire subite.
1
Victor Hugo, uvres compltes, Posie II, Paris, Robert Laffont, 1985, p. 585-586.
O criador v, pois, o que fazia parte do seu sonho, da sua fantasia, tornar-se realidade,
passar do campo do inacessvel para o acessvel. O desenvolvimento do conhecimento gerou
um desequilbrio no homem, na medida em que este precisa do sonho, do incerto, do inslito,
do inexplicvel para alimentar o seu esprito. Assim, ele ter de, atravs da natureza, saber
inquirir o campo da cincia mais obscura, mais profunda, para desvendar o indefinido, o lado
moral das coisas, a alma da realidade.
O universo, segundo Victor Hugo apresenta-se sob trs aspectos o homem, a natureza
e o sobrenaturalismo sendo que a estes trs aspectos correspondem trs faculdades a
observao, a imaginao e a intuio que s o poeta, tal como Jpiter, tem o dom de
possuir. O poeta recorre imagem de P transformado em Jano para explicar a equao que
regula o universo:
2
Charles Baudelaire, Rflexions sur quelques-uns de mes contemporains I Victor Hugo, uvres compltes,
T. II, Paris, Gallimard, 1976, p. 131.
3
Victor Hugo, Contemplation suprme, in uvres compltes, T. XII, Paris, Gallimard, 1976, p. 117.
4
Jean Gaudon, Victor Hugo et le surnaturalisme, in Le surnaturalisme franais, Neuchtel, La Baconnire,
1979, p. 68.
5
Victor Hugo, Contemplation suprme, op. cit., p. 115.
6
Victor Hugo et le surnaturalisme, in Le surnaturalisme franais, Neuchtel, La Baconnire, 1979, p. 72.
7
Op. cit., p. 78-79.
8
Cf. Charles Baudelaire, uvres compltes, T. II, Paris, Gallimard, 1976, p. 132-134. Baudelaire diz-nos que tout,
forme, mouvement, nombre, couleur, parfum, dans le spirituel comme dans le naturel, est significatif, rci-
proque, converse, correspondant. () Chez les excellents potes, il ny a pas de mtaphore, de comparaison
ou dpithte qui ne soit dune adaptation mathmatiquement exacte dans la circonstance actuelle, parce
que ces comparaisons, ces mtaphores et ces pithtes sont puises dans linpuisable fonds de luniverselle
analogie, et quelles ne peuvent tre puises ailleurs. () dans lhistoire de tous les peuples, [il ny a]
beaucoup de potes qui soient, comme Victor Hugo, un si magnifique rpertoire danalogies humaines et
divines.
9
Ibid., p. 134. A traduo pertence-nos.
10
Ibid., p. 432-433.
Para Baudelaire, tambm a natureza possui um lado enigmtico, oculto, que s a sensibi-
lidade pode descobrir. Por isso, pensamos que o poeta fez uso do adjectivo sobrenaturalista
para marcar a oposio com um outro adjectivo que lhe frontalmente antittico: naturalista.
H, pois, que considerar a faceta de Baudelaire contestatrio e polmico, para entendermos
este seu posicionamento esttico, atravs do qual ele rejeita a reproduo simples da natureza,
a projeco simples de sentimentos.
Para alm da natureza, existe um mundo moral e o escritor tem, pois, de metamorfosear
o material, o aparente, em ordem a desvendar a sua dimenso moral. Como nos diz Michel
Brix, Lesprit des choses, lintrt surnaturel dont lcrivain les revt, ce sont les ides morales
quelles reclent et que la mdiation de lart fait apparatre. Le monde des impressions morales
constitue lui aussi une sur-nature12. Porque a natureza exterior no permite ao escritor
sobrenaturalista encontrar o seu ideal, este procura alcan-lo indo para alm do visvel, graas
ao esprito, s emoes e s sensaes. E o meio ao seu dispor para fazer comunicar os dois
mundos, o visvel e o invisvel, o do sonho e do encantamento.
Baudelaire s voltar a utilizar o termo sobrenaturalismo, novamente adstrito pintura
e a Delacroix, em 1855, no seu artigo sobre a Exposition universelle. Contudo, entre o Salo
de 1846 e este seu ltimo texto, o poeta passou por duas experincias que haveriam de marcar
indelevelmente a sua vida pessoal e literria: iniciou-se nos parasos artificiais e conheceu
Edgar Alan Poe. Apesar de no encontrarmos, no seu texto Du vin et du hachisch, de 1851,
nenhuma referncia ao termo sobrenaturalismo, o prprio subttulo de Du vin et du hachisch,
compars comme moyens de multiplication de lindividualit anuncia dois princpios que lhe so
inerentes: o da intensificao das sensaes, das emoes e o da intensificao entre o eu
e o no-eu13. Assim, no primeiro caso, Baudelaire explica-nos a multiplicao da individua-
lidade da seguinte forma:
11
Ibid., p. 433.
12
Michel Brix, Le romantisme franais, Louvain-Namur, Peeters, 1999, p. 198.
13
Max Milner, Baudelaire et le surnaturalisme, in Le surnaturalisme franais, Neuchtel, La Baconnire, 1979,
p. 36.
14
Charles Baudelaire, Les Paradis artificiels, in uvres compltes, T. I, Paris, Gallimard, 1975, p. 389.
15
Ibid., p. 393.
Assim, como observa Max Milner, se associarmos este arrepio sobrenatural e galvanizador
de Poe esttica pictural de Delacroix e aos parasos artificiais de Baudelaire, obtemos o
sobrenaturalismo, onde:
Tal como para Baudelaire, a droga, para Poe, ajuda a apurar os sentidos e, por tal facto,
transforma a natureza, revestindo-a de uma intensidade sobrenatural, isto , para alm do
natural. O sobrenaturalismo , pois, antes de mais, uma forma de sentir, de apreender o
conhecido, fazendo uso da hiper-sensibilidade, da hiper-emoo, da hiper-sugesto. Baudelaire
descreve, na sua crtica pintura da Exposio universal, de 1855, a experincia existencial
do sobrenaturalismo. Max Milner acrescenta que so vrios os elementos que o compem. O
primeiro de ordem intensiva e eufrica e procura ir sempre para alm da vida conhecida,
da representao mimtica da natureza; o segundo de ordem espacial e gera profundidade
e relevo; o terceiro de ordem temporal e conduz expanso, dilatao; o quarto de ordem
analgica e, vinculado experincia do tempo e do espao, centra-se, essencialmente, na
metfora19. Em suma, o poeta um tradutor, um decifrador de enigmas para quem a imaginao:
16
Baudelaire no deixa de citar outros autores, tais como Hoffmann, Goethe e Balzac (cf. Etudes sur Pe,
Oeuvres compltes, T. II, op. cit., p. 247).
17
Ibid., p. 283-284.
18
Ibid., p. 318.
19
Max Milner, op. cit., p. 40-44.
20
Ibid., p. 44.
O conto, para Nodier, torna-se, pois, o meio expressivo adequado explorao do imaginrio
e, por isso, decide enveredar por este caminho para revelar a sobrenatureza que integra o
outro lado da realidade.
Contudo, a confiana, talvez desmesurada, que depositamos, hoje, na epistemologia, tende
a dificultar a classificao da narrativa de Nodier, se, porventura, no atendermos poca
historico-literria na qual se inscreve. Vejamos, ento, como Trilby ou le lutin dArgail corresponde
a um desafio potico de difcil nomeao, sem atentarmos vontade do prprio escritor.
Ainda que o subttulo escolhido para o relato seja Nouvelle cossaise, consideramos tratar-
se de um conto, embora certos princpios tidos como cannicos na configurao do gnero
(como sejam a unidade de aco e de efeito ou a tendncia para a conciso, compresso,
brevidade e simetria) no se revelem ser os critrios mais seguros na classificao desta
narrativa. O facto que o texto possui uma configurao peculiar que lhe confere uma certa
versatilidade, situando-o, porventura, no limiar do romance, da poesia e do drama, e que torna
ainda mais difcil a distino entre conto e novela.
Partilhamos, ento, da opinio de Ren Godenne quando nos diz:
Au XIXe sicle, (), les deux termes [nouvelle et conte], aussi souvent
associs, recouvrent une mme ralit smantique: lensemble des
recueils qui viennent dtre cits, ceux de Balzac, Nodier, Daudet,
Mirbeau, Mouton, Villiers de LIsle-Adam, ne comportent que des his-
toires vraies comme le sont, par essence, les nouvelles. Par l, le terme
de conte perd la signification gnrique quil possdait au XVIIIe
sicle pour prendre plutt son sens large et courant de rcit de
quelque aventure, de quelque anecdote ()23
De acordo com esta citao, verificamos que Nodier tambm usa indistintamente dos
dois termos: no seu subttulo, recorre ao termo novela, a fim de salientar a particularidade
da sua forma narrativa; mas, no seu Prefcio primeira edio, o rigor terminolgico aban-
donado a favor da novidade:
Le sujet de cette nouvelle est tir dune prface ou dune note des
romans de sir Walter Scott, je ne sais lequel. () Cependant le plaisir
21
Seno vejamos o Cours de belles lettres tenu Dole en 1808-1809, Genve, Droz, 1988.
22
Contes, uvres compltes, XI-XII, Genve, Slatkine Reprints, 1998, p. I.
23
La nouvelle franaise, Paris, PUF, 1974, p. 55.
Il ny a personne parmi vous, mes chers amis, qui nait entendu parler
des drows de Thul et des elfs ou lutins familiers de lEcosse, et qui
ne sache quil y a peu de maisons rustiques dans ces contres qui
ne comptent un follet parmi leurs htes27.
Tal como o subttulo j nos havia informado, o narrador interpela o leitor, com um certo
tom de familiaridade, para o instalar, de imediato, no mundo mgico da Esccia. O autor
remete-nos, desde logo, para as suas fontes de inspirao folclrica e mstica: a Esccia e
Walter Scott. No seu Prefcio primeira edio de 1822, explica-nos, logo na abertura, que o
tema da novela foi decalcado de uma obra desse escritor de lngua inglesa, da qual, todavia,
no se lembra. Contudo, adiante, confessa:
24
Contes, Moscou, Ed. Radouga, 1985, p. 77-78.
25
Cristina Robalo Cordeiro, Lgica do incerto: introduo teoria da novela, Minverva, Coimbra, 2001, p. 34
26
Isabel Caelles acrescenta, a esse repeito: Cuando alguien escucha una voz tiende instintivamente a buscar
sur procedencia; y si no encuentra a nadie detrs de ella, se la atribuye al primero que pilla en este caso,
al escritor , igual que un nio se enfada con su madre con a Caperucita se la come el lobo. Pero en el
caso de las ficciones, (), la procedencia de la voz no tiene ninguna importancia. Lo que importa de ella
es lo que narra y cmo lo narra, y no quin la profiere (La construccin del personaje literario: un camino de
ida y vuelta, Madrid, Ediciones Talleres de Escritura Creativa Fuentetaja, 1999, p. 170).
27
Charles Nodier, Trilby ou le lutin dArgail, Les dmons de la nuit, Paris, Union Gnrale dEditions, 1980, p. 19.
Para o escritor francs, a Esccia ope-se ao seu pas, demasiado domesticado e demasiado
sbio, pelo seu imaginrio selvagem, ignorante e sensvel29. Nodier pretende, pois, fixar impresses
remanescentes da sua viagem e que esto prestes a desaparecer e, por isso, parte procura
do encantamento que ainda lhe resta da superstio, de molde a criar um conto cuja estrutura
antittica seja amparada por dois universos: o real e o sobrenatural.
Por outro lado, porque a inteno de re-contar uma histria lida e/ou ouvida, o autor
tem forosamente de manter o narrador separado do mundo das personagens e, por tal facto,
utiliza a terceira pessoa do singular. Contudo, o controlo que este exerce sobre a narrao
permanente. Deste modo, o autor, atravs da voz interposta do narrador, toma frequentemente
a palavra, quer para justificar um facto:
28
Contes, Moscou, Ed. Radouga, 1985, p. 79.
29
Ibid..
30
Ibid., p. 36.
31
Ibid., p. 37.
32
Ibid., p. 38.
Il stait pass bien des sicles depuis cet vnement quand la destine
des voyages, et peut-tre aussi quelques soucis du cur, me condui-
sirent au cimetire (). La pierre qui surmontait la fosse de Jeannie
a t respecte par le temps, par les cataractes du ciel, et mme
par les hommes. On y lit toujours ces mots tracs dune main pieuse:
Mille ans ne sont quun moment sur la terre pour ceux qui ne doivent
se quitter jamais.34
Si les rcits du XIXe sicle mettent en scne une parole conteuse, cest sans doute parce
que leurs auteurs sont de brillants causeurs35, diz-nos Jean-Pierre Aubrit, e Nodier pertence
a esse grupo de conversadores para quem a magia da voz que conta tem de ser recuperada.
F-lo- ao conferir aos seus relatos a animao, os efeitos, os silncios, as mudanas de tom
e a gesticulao do discurso36. Ameaa, pois, o monoplio da palavra ao contador de histrias
quando tenta reproduzir os efeitos da articulao, da mmica, dos gestos sonoros da linguagem
oral. Veja-se o exemplo seguinte:
33
Ibid., p. 46.
34
Ibid., p. 56-57.
35
Le conte et la nouvelle, Paris, Armand Colin, 1997, p. 129.
36
Esta citao, que ns traduzimos, pertence a Pierre Reboul, mas obtivemo-la atravs da obra de Jean-Pierre
Aubrit, ibid..
37
Trilby, op. cit., p. 20.
Il stait pass bien des sicles depuis cet vnement quand la destine
des voyages, et peut-tre aussi quelques soucis de cur, me condui-
sirent au cimetire. Il est maintenant loin de tous les hameaux, et
cest plus de quatre lieues quon voit flotter sur la mme rive la
fume des hautes chemines de Portincaple. Toutes les murailles de
lancienne enceinte sont dtruites; il nen reste mme que de rares
vestiges,(). Cependant, la pierre qui surmontait la fosse de Jeannie
a t respecte par le temps, par les cataractes du ciel, et mme
par les hommes. On y lit toujours ces mots tracs dune main pieuse:
Mille ans ne sont quun moment sur la terre pour ceux qui ne doivent
se quitter jamais. LArbre du saint est mort, mais quelques arbustes pleins
de vigueur couronnaient sa souche puise de leur riche feuillage ()38
O narrador-contista fala, agora, na primeira pessoa, para facultar o seu testemunho sobre
os acontecimentos que acaba de relatar. Mas, na medida em que esses acontecimentos per-
tencem a um passado longnquo e a uma terra distante, ele tem de justificar o regresso ao
espao e ao tempo actual, ou seja, realidade.
38
Ibid., p. 56-57.
Vimos, pois, anteriormente, como o contista, no incipit desta sua obra, estimula a nossa
ateno. Vejamos, agora, como mantm a expectativa:
A personagem ganha, desde muito cedo, vida na imaginao daquele que l. A despeito
do facto de a sua descrio moral continuar para alm desta citao, podemos, desde j,
verificar que o termo usado para qualificar Trilby, um demnio, se ope aos adjectivos
utilizados para o caracterizar (travesso, terno, prestvel), e instala-nos no mundo da
infncia, antes mesmo de nos reconduzir ao universo maravilhoso do sonho: il se joue ()
troubler de rves incomprhensibles, mais gracieux, le sommeil des jeunes filles41. O narrador
acautela a escolha das palavras que caracterizam directamente a personagem, salientando a
sua principal qualidade: um duende bondoso que, pelo facto de gostar de fazer travessuras,
se assemelha a uma criana a sua estatura, a de um ano, s vem confirmar esta ideia.
Porque a personagem est disposio do escritor para participar no desenrolar da aco,
surge-nos preferencialmente descrita em funo dos seus actos (Il frquente rarement la
demeure des grands; il se joue contrarier les vieilles dames; Il se plait particulirement
dans les tables et il aime traire les vaches; il caracole sur les chevaux () lustre leur
croupe polie42; etc). Mas, se todos estes actos j criaram grande impacto no leitor, um deles
funciona como um alerta: Les chtelaines dArgail et de Lennox en taient si prises que
plusieurs dentre elles se mouraient du regret de ne pas possder dans leur palais le lutin qui
avait enchant leurs songes43. No esqueamos que a citao acima referenciada il se joue
() troubler de rves incomprhensibles, mais gracieux, le sommeil des jeunes filles j
tinha atrado a ateno do leitor pela qualificao dos sonhos e j tinha gerado um efeito
de expectativa. Consideramos, pois, que a reiterao do facto de que o duende invade os
sonhos das jovens mulheres funciona como uma bomba-relgio, pronta a explodir at
porque a informao de que algumas mulheres morrem de tristeza, pelo facto de no possuirem
o duende, pode constituir um prenncio para aquele que l.
Para o leitor, esta personagem fica, seguramente, na memria pelos seus feitos. Assim,
quando o narrador nos anuncia que Trilby tait amoureux de la brune Jeannie44, invade-
39
Potique du conte: Essai sur le conte de tradition orale, Paris, Gallimard, 1999, p. 149.
40
Op. cit., p. 19.
41
Ibid..
42
Ibid., p. 19.
43
Ibid., p. 20.
44
Ibid., p. 20.
45
Termo proposto por Rachel Bouvet, em Etranges rcits, tranges lectures: essai sur leffet fantastique, Montral,
Balzac-Le Griot diteur, 1998.
46
Ibid., p. 99-100.
47
Trilby op. cit..
e que tenta seduzi-la ou, retomando a ideia bachelardiana, inflam-la49 pelos carinhos
e pela splica:
48
Ibid., p. 21.
49
Gaston Bachelard fala-nos de um fogo primitivo sexualizado, onde a chama simboliza o amor: Si lon
enflamme quand on aime, cest la preuve quon a aim quand on enflammait (cf. La psychanalyse du feu,
Paris, Gallimard, 1949, p. 72 e 74).
50
Trilby, op. cit..
51
Ibid., p. 21.
52
Rachel Bouvet, op. cit., p. 136.
53
Procedemos traduo do termo rfrentialisation de Rachel Bouvet, op. cit., p. 132.
54
Trilby, op. cit., p. 19-20.
55
Trata-se, pois de um jogo, no sentido em que o leitor, devido sua experincia ou ao seu prprio conhe-
cimento, aceita, agora, a personagem e os acontecimentos bizarros e encontra uma explicao para os
pormenores anteriormente incompreensveis.
O contista parte em busca de zonas novas de inspirao, tais como o folclore, as lendas,
os mitos e os sonhos para estabelecer uma relao, quer onrica, quer literria com a realidade.
No seu artigo Du fantastique en littrature, Nodier tentar expor a sua nova dinmica literria,
onde a fada da imaginao58 o transporta para alm da natureza palpvel, uma vez que o
escritor acredita que: les rves sont ce quil y a de plus doux et peut-tre de plus vrai dans
la vie59.
Dos confins do sonho nasce um gnero onde Nodier pretende evocar os demnios que
atormentam as suas noites, revelar as zonas mais perturbadoras da sua conscincia. A procura
do estranho adquire um novo fundamento: alcanar o real. Assim sendo, o sobrenatural
recebido como fazendo parte do real, do quotidiano, do habitual, do humano. O sonho surge,
56
Ibid., p. 21-22.
57
Ibid., p. 41.
58
Cf. Charles Nodier, Miscellanes, varits de philosophie, dhistoire et de littrature, uvres compltes, V-VI,
Genve, Slatkine Reprints, 1998, p. 31.
59
Ibid., p. 30.
A segunda srie, assim considerada, concomitante com a realidade humana e, por tal
facto, o contista gosta que ela seja literariamente explorada:
les mythes, par lesquels Nodier exorcisa ses dmons, nont de porte
universelle et daction ensorcelante que dans la mesure justement
o ils sont irrductibles une simple expression de laventure relle.
Ce qui compte, cest luvre et son pouvoir dincantation66
60
Ibid.
61
Prefcio 1. edio de Smarra ou les dmons de la nuit
62
Este termo foi utilizado por Jean-Pierre Aubrit em Le conte et la nouvelle, Paris, Armand Colin, 1997, p. 67.
63
Panorama de la littrature fantastique de langue franaise, Tournai, La Renaissance du Livre, 2000, p. 58.
64
Paris, Corti, 1967 (1951), pp. 121-167.
65
Jean-Yves Tadi explica-nos que Nodier prouv[ait) douloureusement le conflit qui, en lui-mme, en tout
homme, oppose au moi social le moi profond (). Longtemps, il refusa la fois de faire face tout ce
monde bizarre, enfoui en lui-mme, et de lui imposer silence pour se composer un personnage bien adapt
la vie banale (Lme romantique et le rve, Paris, Corti, 1991, p. 457). Mas as profundezas da sua alma no
haveriam de o deixar continuar a viver a sua mentira e, por tal facto, partiu procura das imagens do seu
mito para encontrar o equilbrio da vida.
66
Ibid., p. 458.
So os laos que ligam a inveno dos mitos experincia do sonho que tornam o poeta
ou o artista eternos68. Contudo, Nodier no se abandona por completo ao sonho; prefere no
escolher entre os dois mundos, o do esprito e o da matria, e permanece no limiar dos dois.
67
Ibid., p. 462.
68
Charles Nodier, em De quelques phnomnes du sommeil, faz referncia aos sonhos de alguns clssicos
que deram origem a grandes mitos: Hesodo, Homero, Milton (cf. op. cit., p. 161).
69
Nodier, Trilby, op. cit., p. 20-21.
A incerteza gera o enigma e fomenta a indeciso no leitor: Trilby parece coexistir com a
realidade quotidiana e invadir o mundo real, mas tambm surge como uma criao da prpria
alma de uma personagem, Jeannie, cuja vida sensual tem permanecido em estado de latncia,
entregando-se ao seu fervor pela alucinao.
A dvida aumenta ainda quando a personagem feminina descreve a aproximao do
trasgo, como se de um jogo se tratasse, e o seu fingimento quanto ao sono para facilitar o
seu aparecimento:
Etait-ce un si grand mal, pauvre Trilby, quil se jout le soir avec mon
fuseau, quand, presque endormie, je le laissais chapper de ma main,
ou quil se roult en le couvrant de baisers dans le fil que javais
touch.71
elle napercevait quune ombre sans forme et sans vie qui rompait
et l luniformit du rouge enflamm du foyer, et se dissipait la
moindre agitation de la touffe de bruyres sches quelle faisait siffler
devant le feu pour le ranimer.72
70
Ibid., p. 21-22.
71
Ibid., p. 24.
72
Ibid., p. 25.
Jeannie, pelo sonho, transforma a ideia abstracta em imagem visual cuja sensualidade
ameaa os princpios morais e, porventura, religiosos da personagem. O subconsciente revela
os seus sentimentos mais profundos, os seus desejos mais recalcados e coloca-a perante um
conflito de difcil resoluo: a esposa, fiel, devota ao marido e temendo o pecado, tenta
controlar os seus desejos, o seu amor, mas estes permanecem escondidos nas profundezas
da sua alma, espera que a barreira que separa o consciente do inconsciente seja derrubada.
Apercebendo-se do perigo desta associao misteriosa porque, como o prprio narrador
esclarece, a personagem transmuda-se em falsa imagem de Trilby74 Jeannie sente-se culpada:
A personagem toma, agora, conscincia da verdadeira afeio que a liga a Trilby e avalia
os danos que esta j realizou na sua alma. O mistrio atrai a sua mente para fora do consistente,
do explicvel, por forma a conduzi-la ao reconhecimento:
Esta descoberta atemoriza Jeannie, uma vez que o que era da ordem do sobrenatural
reveste, agora, a aparncia do real. Mas a voz do narrador-contista irrompe para explicar que
todos sabem que a mo que pintou esse retrato no de ordem humana e que foi um
esprito, que baixou terra durante o sonho do artista, que conferiu essa fisionomia perso-
nagem do quadro77. O quadro de referncia do leitor sofre novo golpe, insinuando-se a
incerteza sobre como interpretar este comentrio.
Contudo, no restam dvidas de que a personagem central, Jeannie, est a evadir-se
progressivamente da inconsistncia do mundo do seu marido para aceder ao mundo espiritual
do trasgo. Graas sua aptido ao sonho, a sua alma autonomiza-se, ultrapassa os limites do
seu universo e aproxima-se do desconhecido. Mas, porque ainda no abandonou por completo
o terrestre, recorre religio crist para legitimar a sua aceitao de uma sobrenatureza:
Les clairs dun feu doux qui schappaient des yeux de saint Colom-
bain, la bienveillance universelle qui respirait sur ses lvres palpitantes
de vie, les manations damour et de charit qui descendaient de
lui, et qui disposaient le cur une religieuse tendresse, affermirent
la rsolution dj forme de Jeannie; elle rpta dans sa pense avec
plus de force: AMOUR ET CHARIT.
73
Ibid., p. 26.
74
Cf. ibid., p. 29.
75
Ibid., p. 26.
76
Ibid., p. 36-37.
77
Ibid., p. 38.
() elle livrait aux vents ses longs cheveux noirs dont elle tait fire,
et son cou dune blancheur que le soleil avait faiblement nuance
sans la fltrir slevait avec un clat singulier au-dessus de sa robe
rouge des manufactures dAyr.82
Entregue ao sonho, tal como se entregou s guas do lago, Jeannie detentora de uma
beleza premonitria: as cores preta, branca e vermelha, se, por um lado, realam a sensualidade
da personagem, por outro, pela sua forte carga simblica, vaticinam o seu destino fatdico: a
morte. Estabelece-se, assim, uma unio entre as guas e Jeannie, como se estas a convidassem
78
Ibid., p. 38-39. Albert Bguin, na sua obra Lme romantique et le rve, diz-nos que a prpria Bblia conhece
os ensinamentos do sonho (Paris, Jos Corti, 1991, p. 460). Da que, atravs da crena, consigamos aderir a
todo um misticismo de ordem religiosa.
79
Ibid., p. 39.
80
Potique du conte: essai sur le conte de tradition orale, Paris, Gallimard, 1999, p. 131.
81
Op. cit., p. 39-40.
82
Ibid., p. 40.
Son pied nu, impos sur un des cts du frle btiment, lui imprimait
peine un balancement lger qui repoussait et rappelait la vague
agite, et londe excite par cette rsistance presque insensible revenait
bouillonnante, slevait en blanchissant jusquau pied de Jeannie, et
roulait autour de lui son cume fugitive.84
Porque, poeticamente, j fixmos as regras que nos permitem entrar no mundo do sonho,
aceitamos esta sublimao da personagem como se dos nossos prprios fantasmas se tratasse.
Lauteur en appelle lexprience onirique personnelle de son lecteur85, diz-nos Frdric
Canovas, com o propsito de transformar a matria em sonho, a natureza em sobrenatureza.
As ondas parecem agir, conduzir a aco, fomentar a produo da iluso e, com a ajuda do
tempo, propiciarem o sentimento do sonho:
83
Gaston Bachelard, em Leau et les rves, explica o valor metafrico da associao entre as guas e o sonho
(Paris, Jos Corti, 1991, p. 74 a 80).
84
Ibid..
85
Frdric Canovas, Lcriture rve, Paris, LHarmattan, 2000, p. 50.
86
Trilby, op. cit., p.
87
Pierre-Georges Castex, Le conte fantastique en France: de Nodier Maupassant, Paris, Jos Corti, 1951, p. 127.
Apesar de Baudelaire ainda no ter exposto a sua teoria das correspondncias89, Nodier
soube antecip-la, ou, pelo menos, delinear os seus fundamentos para transmitir o invisvel,
o inalcanvel conscincia. Habituada a contemplar esta paisagem, a personagem, Jeannie,
vai agora filtr-la pelas emoes e v-la sob um novo ngulo; medida que progride para o
sonho, alcana o lado escondido das coisas. A descrio do avano para esse outro lado da
natureza segue as vrias estaes psquicas pelas quais a personagem passa antes de se
abandonar ao sono. O tumulto do subconsciente gera uma sucesso de imagens que transfi-
guram a natureza: as paisagens tornam-se irreais pela forma como a luminosidade outonal,
que nelas recai, filtrada pelas emoes. Surge um outro mundo, pertencendo ao mundo
real, mas que da ordem do espiritual.
Contudo, o abandono ao sono conduzi-la- por guas revoltas, onde figuras mticas as
de Artur e da ninfa tomam forma, como que para a alertar dos perigos da tentao: Il est
facile de comprendre par quelle liaison secrte lhistoire de cet exorcisme ancien et de ses
consquences bien connues du peuple se rattachait aux ides habituelles de Jeannie90,
comenta o narrador. Estamos, certamente, em condies de poder afirmar que este comentrio,
para alm de transp[or] uma confidncia91 do prprio autor, suscita a ateno do leitor pelo
vnculo que estabelece entre o amor infeliz de Artur o gigante e a ninfa e o de Jeannie e
de Trilby. A infelicidade e a morte da personagem nodieriana so definitivamente anunciadas.
Ora, se at ento a poesia das formas e das cores patenteava uma beleza extraordinria
paisagem martima, agora, as guas vo escurecer pela fora de uma noite que se quer
prematura92. A poesia torna-se matria e o sonho das substncias93 est prestes a iniciar-
se: a noite junta-se intimamente s guas do lago para receber as confidncias de Jeannie,
mas tambm para no a deixar mais escapar ao seu destino. Gaston Bachelard explica que,
na potica de Edgar Poe,
88
Trilby, op. cit., p. 40.
89
Este quadro nodieriano fez-nos lembrar um excerto de Les vocations do Spleen de Paris de Baudelaire:
Dans un beau jardin o les rayons dun soleil automnal semblaient sattarder plaisir, sous un ciel dj
verdtre o des nuages dor flottaient comme des continents en voyage, () (uvres compltes, I, Paris,
Gallimard, 1975, p. 332).
90
Trilby, op. cit., p. 43.
91
Estes termos foram traduzidos de Pierre-Georges Castex, op. cit., p. 140. Apesar de sabermos que o conflito
da personagem Jeannie no mais do que o reflexo da crise moral que o autor viveu, ao descobrir o amor
pela sua filha Marie, consideramos, contudo, que o nosso principal interesse reside na forma potica como
esse drama sentimental transposto para o conto e evolui at que atinja, atravs do sonho, uma dimenso
mtica. Jean-Yves Tadi, em Lme romantique et le rve, explica-nos como Nodier procurou alcanar a harmonia,
o equilbrio interior, estabelecendo um contacto entre experincia do sonho e a criao mtica (Paris, Corti,
1991, p. 457 a 459).
92
Cf. Trilby, op. cit., p. 43: les eaux sombres dune nuit si prcoce () commenaient remonter du lac,
gravir les hauteurs qui lenveloppent, voiler les sommets les plus levs.
93
Estes termos, aqui traduzidos, pertencem a Gaston Bachelard em Leau et les rves, Paris, Jos Corti, 1942, p. 75.
E se, at ento, a personagem se tinha deixado conduzir pelas guas, agora ela vai remar
vigorosamente at terra, pois pela capacidade que possui de se metamorfosear que vai
conseguir aceder ao sobrenatural e granjear lugar de eleio na narrativa. Porm, h que
insistir que esta sua opo pelo imaterial tem um preo e que a inteligncia a manter sempre
entre os dois estados: o da natureza e o da sobrenatureza. Ela vai evoluindo para um outro
mundo o do sonho e da iluso , sem deixar, em absoluto, o mundo terreno98.
Ao atingir a outra margem, a noite j se instalou, por forma a favorecer a sua interioridade
e a sua regenerao. Ao passar pelas canas smbolo da moralidade , situadas na margem
das guas profundas e escuras do lago, Jeannie vence o seu ltimo obstculo e liberta-se
dos constrangimentos da existncia real para renascer espiritualmente. Essa estranha vegetao
esconde a sua prpria alma, os seus anseios, os seus desejos, a sua felicidade e o seu fim
inexorvel. Os dois mundos, at ento separados, esto prestes a reunir-se, mas foi Jeannie
quem procurou alcanar a outra margem da realidade, a verdade eterna.
A barca, smbolo da viagem para o sobremundo, da travessia da prpria existncia, recebe
o ano, personificao das manifestaes incontroladas do inconsciente de Jeannie. O consciente
lgico de Jeannie procura uma explicao para o enigma que se lhe apresenta, enquanto
que o leitor desvenda facilmente os indcios que lhe permitem chegar ao reconhecimento:
94
Cf. Trilby, op. cit., p. 40-41.
95
Ibid., p. 43.
96
Cf. Ibid., pp. 40 a 43.
97
Ibid., p. 43.
98
A sua imaginao produz um desvio do real, f-la ter vises, ouvir vozes, mas a conscincia lgica conduzi-
la- a respeitar a evidncia do mundo fsico e a encontrar uma explicao racional (Cf. Ibid., p. 43).
Oh! Jen avais un, ma chre enfant, qui tait bien voisin de ce
rivage, mais on men a cruellement dpossd.99
Porque o leitor j conhece os artifcios usados pelo narrador, compreende que, quer pela
sua idade muito avanada, quer pelo seu isolamento do resto da sociedade, este ente, feito
de mistrio, vive fora do espao e do tempo real. Assim, no se deixa enganar e o reconhe-
cimento do velho imediato. Contudo, descobrimos que este reconhecimento foi, afinal,
intencional por parte do narrador: (car ce voyageur mystrieux tait Trilby lui-mme et je
suis fch davouer que si mon lecteur trouve quelque plaisir cette explication, ce nest
probablement pas celui de la surprise!)100.
O leitor j aderiu ao universo onrico nodieriano, j encontrou o seu quadro de referncia,
por isso, no h qualquer surpresa na identificao, mas antes curiosidade quanto ao desfecho
porque ele sabe que esta personagem misteriosa a representao do desejo recalcado de
Jeannie, que se mantm, voluntariamente, cega, e no consegue desvendar o enigma que a
far penetrar no outro mundo:
Pour revenir parmi nous, il faut aimer quelquun dans cette rgion
des temptes, que les serpents eux-mmes dsertent lapproche
de lhiver. () Les pres, les poux, les amants ne craignent pas cepen-
dant daborder des contres rigoureuses quand ils sattendent y
rencontrer les objets auxquels ils sont attachs; ()101
99
Ibid., p. 44.
100
Ibid., p. 46.
101
Ibid., p. 44-45.
102
Ma haine ! reprit Jeannie en laissant tomber sa main sur la rame et sa tte sur as main. Dieu seul peut
savoir combien je laimais. Ibid., p. 46.
103
Ibid., p. 46.
Jeannie luta contra ela prpria, contra os seus sentimentos, enquanto Trilby a assedia, a
convida ao amor eterno, volpia imortal106. O sonho adquire ento a sua significao
mxima: graas a ele, Jeannie pode alcanar o mundo intemporal do trasgo e a felicidade:
Mille ans ne sont quun moment sur la terre pour ceux qui ne doivent se quitter jamais107.
Dougal irrompe no meio da escurido para quebrar o feitio, para trazer Jeannie de volta
ao mundo terreno, mas ela permanece entre os dois mundos, no conseguindo libertar-se
do torpor do sonho, da lembrana do seu amor por Trilby. E quando o sonho se desdobra:
Jeannie vagueia de iluso em iluso, pensando estar acordada: Je ne dormais pas! dit
Jeannie. Fortune dplorable!109. Os seus escrpulos ligam-na constantemente sua vida
positiva, ao mundo das proibies e impedem-na de ceder volpia do amor etreo. O sonho
confunde-se com a realidade, o amor com a culpa e o destino de Jeannie continua a seguir
o seu caminho: o perjrio, o desespero e a morte sero o seu futuro110.
A tenacidade dos seus sentimentos f-la- correr riscos e chorar aquele que ela julga
estar perdido. Contudo, o conflito moral conduzi-la- a fugir de si prpria e a trancar os seus
104
Cf. Em sonho, Trilby encanta a personagem, mas o medo lev-la- a olhar para a margem onde se encontra
o lado real da natureza, sendo o espao fsico Argail, e o espao moral o seu marido: Jeannie saperut
quelle stait trop loigne du rivage, mais Trilby comprit son inquitude et se hta de la rassurer en se
rfugiant la pointe du bateau (p. 47).
105
Ibid., p. 49.
106
Ibid., p. 50.
107
Ibid., p. 50.
108
Ibid., p. 51.
109
Ibid., p. 52.
110
Cf. p. 52.
Somos pois avisados de que o esprito de Jeannie est prestes a abandonar o seu universo
habitual para se entregar ao eterno. Outros espaos, desconhecidos at ento, esto, doravante,
ao alcance da personagem feminina115 e a harmonia encontrar-se-, precisamente, a, nesse
sobremundo onde o sonho toma a forma de poesia e onde os mistrios no so para desvendar.
Quando o monge, na companhia de Dougal, profere o seu ltimo antema e aprisiona
Trilby numa btula para a posteridade, Jeannie lana-se para uma fossa entregando-se
morte. Smbolo tanto da vida como da morte, esta rvore origina um comentrio por parte
do narrador: () si javais t pote, jaurais voulu que la postrit en conservt le souvenir116.
Inesperadamente, e em tom de provocao, o narrador intervm para se posicionar entre os
dois mundos e eleva o sonho ao plano da poesia117.
A transio para o desfecho trgico do conto far-se-, ento, pela voz do narrador e, mais
precisamente, por uma nica palavra que funciona como um alerta: posteridade. Conduzida
111
Ibid., p. 52.
112
Ibid., p. 55.
113
Ibid., p. 55.
114
Ibid., p. 55.
115
Nodier dir-nos-, a esse respeito: Il me semble que lesprit, offusqu des tnbres de la vie extrieure, ne
sen affranchit jamais avec plus de facilit que sous le doux empire de cette mort intermitente, o il lui est
permis de reposer dans sa propre essence et labri de toutes les influences de la personnalit de convention
que la socit nous a faite
116
Ibid., p. 56.
117
Cf. Albert Bguin, Lme romantique et le rve, Paris, Jos Corti, 1991, p. 455-467.
O trgico intencionalmente atenuado para que vena o mundo das sensaes e, conse-
quentemente, das iluses. O homem, Nodier, torna-se, ento, poeta: procura criar um mundo
novo, um mundo imagem dos seus sonhos. O imaginrio de Trilby ou le lutin dArgail, liberta,
pois, o autor dos constrangimentos da existncia e leva-o a criar um mundo outro, imbudo
dos seus fantasmas e dos seus desejos. Nodier procura ultrapassar o seu drama pessoal pela
poesia, pela fora das imagens e o drama individual transforma-se no drama de toda a
conscincia humana, adquirindo, assim, uma dimenso mtica.
Concluso
118
elle slana dans la fosse qui lattendait sans doute, car personne ne trompe sa destine!, diz-nos o
narrador. Ibid., p. 56.
119
Cf. Le conte fantastique en France, Paris, Jos Corti, 1951, p. 141.
120
Trilby, op. cit., p. 57.
Resumo: Aps a apresentao da colectnea de contos para a Jos Eduardo Agualusa, escritor angolano,
Infncia Estranhes e Bizarrocos da autoria de Jos Eduardo
Agualusa passamos a demonstrar que a aparente utilizao da
exerce a actividade de jornalista, tendo publicado,
pardia e de outros procedimentos de transformao textual de 1989 at agora, uma dezena de romances.
ajudam a criar um modelo complexo de Literatura Fantstica, So eles A Conjura, sua obra de estreia, a que se
adequada a crianas e a adultos. tambm de ressaltar a seguiu A Feira dos Assombrados, Estao das Chuvas,
contribuio fornecida pelas belssimas ilustraes, comple-
mento natural do texto escrito para crianas. Nao Crioula, Fronteiras Perdidas, A Substncia do
Abstract: After the presentation of the short stories volume
Amor, Estranhes e Bizarrocos, O Homem que parecia
for children, Estranhes e Bizarrocos, written by Jos Eduardo um Domingo e O Ano em que Zumbi tomou o Rio.
Agualusa, we will show that the apparent parody as well as Tendo levado algum tempo a definir as suas
other procedures of textual transformation help to define a
preferncias narrativas fez algumas incurses pelo
complex model of Fantastic Literature, suitable for children
and adults alike. We also refer to the contribution given by the romance histrico, pelo romance documental e
very beautiful illustrations included, complementing the pelo romance de realidade, acabando por se
written text. dedicar ao realismo mgico, tingindo o mundo
circundante de toques de pitoresco, de inslito
e de estranho. Sobretudo os seus contos vo dando voz a uma matriz de literatura fantstica
em que a presena do indefinido, do ambguo e frequentemente do inexplicvel coabita com
o real pacificamente, nunca o alterando mas tambm no se dissipando.
O seu ltimo romance O Ano em que Zumbi tomou o Rio (2002) claramente uma parbola
sobre a violncia e a injustia nas sociedades do terceiro mundo e especialmente sobre o
caos institudo. Como todos os seus textos anteriores, tambm este ltimo, de um modo mais
bvio e declarado, expressa uma rejeio dos modelos sociais vigentes, e faz um apelo
renovao e s transgresses possveis.
A obra de Agualusa que vamos agora estudar, Estranhes e Bizarrocos, uma recolha de
contos muito curtos, inicialmente inseridos na revista Pais e Filhos e oportunamente publicados
pela prpria revista com o ttulo pouco imaginativo de Era uma Vez.
Os vinte e dois contos infantis do autor foram organizados nessa colectnea segundo a
sua ordem de publicao na revista, mantendo o formato, os contedos e mesmo o aspecto
grfico originais. Ficamos, alis, com a impresso que pouco ou nada foi feito pelo criador
M. Ftima M. Albuquerque, Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo, forma breve 1, 2003, p. 109-125 | 109
1
G. Mathis, Le Clich, Toulouse, Presses Universitaires, 1998, p. 8.
110 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 111
2
Bruno Bettelheim, Psicanlise dos Contos de Fadas, Lisboa, Bertrand, 1976, p. 31.
112 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
3
Apud Simon Dentith, Bakhtinian Tought, Londres, Routledge, 1995, p. 71 ss.
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 113
4
G. Genette, Palimpsestes: La Littrature au second Degr, Paris, Seuil, 1982, p. 7 ss.
5
Todas as implicaes textuais desta perspectiva do estudioso russo so criticamente desenvolvidas em
Catherine Depretto, LHritage de Bakhtine. Bordeaux, Presses Universitaires, 1997.
114 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 115
116 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 117
First, the text must oblige the reader to consider the world of the
characters as a world of living persons and to hesitate between a
natural and supernatural explanation of the events described. Second,
this hesitation may also be experienced by a character; thus the
readers role is entrusted to a character the hesitation is represented,
it becomes one of the themes of the work. Third, the reader must
adopt a certain attitude with regard to the text: he will reject allegorical
as well as poetic interpretations.
6
T. Todorov, The Fantastic: a Structural Approach to a Literary Genre, Londres, Longman, 1973, p. 33 ss.
7
Segundo Irene Bessire (Le Rcit Fantastique: La Potique de lIncertain) tanto as personagens como o prprio
leitor ficam atravessados entre a realidade e o fantstico, lidando com factos que do origem a interpre-
taes contraditrias. D-se assim, no entender de Georges Bataille une dchirure que no passvel de
soluo.
118 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 119
120 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Logo num primeiro relance se torna visvel a alterao da ordem de colocao dos contos
na transferncia da 1. edio para a 2. edio, apesar de uma leitura atenta revelar que
linguisticamente nada foi alterado, com excepo de o nome de um dos contos em que O
pai que virou me passou a o pai que se tornou me, talvez justificvel por uma tentativa
de fuga ao brasileirismo.
Em termos de organizao literria, o autor suprimiu as histrias que tinham uma concluso
moralizante como o conto O Rei mais pequeno do mundo, por exemplo; alm disso, foram
tambm retiradas do volume definitivo as narrativas em que se utilizam procedimentos de
maravilhoso tradicional, como quando um auxiliar mgico intervm na intriga para repor uma
harmonia que, de outro modo, nunca seria atingida. Tal sucede em estrias do tipo Se eu
tivesse penas podia voar; igualmente, foram suprimidos os contos em que se usaram pastiches
ostensivos, como acontece em O Pombo e a Princesa; finalmente, puseram-se de lado as
histrias de toques surrealistas que poderiam alienar e confundir o pequeno leitor, como o
caso de O menino que caiu do mar.
As dez histrias restantes organizam-se ento volta do conto que deu nome colectnea,
que, como j dissemos, tambm abre caminhos para uma leitura mais esclarecida, sobretudo
atravs do acrescento do aposto inexistente no volume primeiro, e outros seres sem exemplo.
No s este primeiro conto, mas igualmente os outros nove, trataro de seres sem exemplo:
da, camelos sbios, uma menina de peluche, um peixe de aqurio/navegador, uma mosca
transformada em pirilampo, um gato tornado boi, um pai convertido em me, um menino
que v anjos, uma menina que se torna ma. Como base de todas essas experincias, uma
metamorfose, conseguida ou desejada, num mundo que se fosse o ideal, permitia a todos o
acesso felicidade. Metamorfose realmente o arqutipo fundamental destes contos, ou para
evitar o risco de nos metermos em conceitos antropolgicos dificilmente esclarecidos, digamos
que o esquema, como ele definido por Pierre Brunel8.
Como momento charneira da organizao destes contos, o conto nmero cinco, espcie
de clmax narrativo, onde o autor reitera a mensagem indiciada na primeira estria, clarificando-
8
Pierre Brunel, Le Mythe de la Metamorphose, Paris, Armand Colin, 1974, p. 11.
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 121
9
Jaqueline Held, LImaginaire au Pouvoir, Paris, Ed. Ouvrires, 1977, p. 31 ss.
122 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 123
Bibliografia
124 | Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque
Novo conto para crianas: J.E. Agualusa e os seres sem exemplo | M. Ftima M. Albuquerque | 125
Francisco Maciel Silveira, Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan, forma breve 1, 2003, p. 127-134 | 127
2. Ah, ?
Mas, no caso, o autor no vale mesmo as personagens que para si criou? A mais divulgada,
a do Vampiro. Assumida em Quem tem medo de vampiro? (Dinor, 1994) na obliqidade
de terceira pessoa (o outro, a sombra que toda voz diegtica hetero, homo ou auto sempre
da persona civil e tributria), a retocar declaraes de entrevistas que nunca teria concedido:
Vampiro, sim, de almas. Escorpio dos coraes solitrios. Escorpio de bote armado,
eis o contista. S inventa um vampiro que existe (dito, em confidncia, s orelhas de A faca
no corao, 1975).
Apenas estratgia de mercadologia editorial o enfocar o outro, a sombra da persona civil,
cotidiana e tributria que todos somos? o assumir-se vampiro de almas? o distanciamento
de anacoreta? o anonimato s escncaras? a publicidade do silncio? Voc cr que tudo isso
apenas marketing? Nem eu.
Antes indcios de uma estilstica, de uma temtica. A estilstica do tcito, a temtica do
nefando emblematizadas nas personagens do Vampiro e do Anacoreta que para si engendrou.
Uma bala Zequinha, caro leitor? Bolacha Maria com gelia de uva, querida leitora? Ah
pequenas delcias da vida! Ai o arrepio no cu da boca, enquanto lhe frestamos a obra a fim
de lobrigar a temtica do nefando, a estilstica do tcito.
Em 1945 Dalton Trevisan vem a lume com um voluminho de contos intitulado Sonata
ao luar. Renegado, a exemplo das doze narrativas enfeixadas em 7 anos de pastor (Edies
Joaquim, 1948). Entre um e outro livro, a aventura de Joaquim, revista que fundou em abril
de 1946 e durou at dezembro de 1948.
De sua redao, na Rua Emiliano Perneta, 476, saram vinte e um nmeros. Iconoclasta,
revisonista, insurgindo-se contra o academismo dessorado de um ressurgente parnasianismo,
abrigando, a partir do nmero oito, desenhos de Portinari, Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres,
Poty (j presente no segundo nmero), Joaquim decididamente no queria ser expresso do
beletrismo paranista sagrado templo das musas pernetas. Empenhada em divulgar idias
modernas sobre poesia, teatro, pintura, msica, a revista foi calorosamente acolhida por Carlos
Drummond de Andrade, Antnio Cndido, Helena Silveira, Jos Lins do Rego endereos
certeiros, no apangio, para quem quisesse sair do anonimato provinciano.
Lanada em homenagem a todos os Joaquins do Brasil, j se lobriga a o vezo daltoniano
da tipificao no o indivduo, mas o homem no que tem de geral. A dedicatria era um
trailer dos futuros Joo e Maria, j um sintoma de lies flaubertianas que sua fico h de
abrigar, conforme mais adiante veremos.
No reconhecendo nada que publicou antes de Novelas nada exemplares, data, portanto,
de 1959 o incio de sua fico. Descartadas trs antologias (20 contos menores, 1979; Primeiro
livro de contos, 1979; Contos erticos, 1984), vinte e trs livros at agora.
A Novelas nada exemplares, seguem: Cemitrio de elefantes (1964); Morte na praa (1964);
O vampiro de Curitiba, 1965; Desastres do amor (1968); Mistrios de Curitiba (1968); A guerra
128 | Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira
4. Estilstica do tcito
1
August Willemsen, Sobre a evoluo estilstica na obra de Dalton Trevisan e as conseqncias que da
advm para o tradutor, Colquio/Letras 132/133, 1994, p. 31.
2
Escreva primeiro, arrependa-se depois e voc sempre se arrepende. (234, p. 122).
Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira | 129
5. Temtica do nefando
3
Haicai a ejaculao precoce de uma corrura nanica. (234, p. 112).
130 | Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira
4
Moo, voc devia honrar e obedecer em tudo aos pais./ Voc, pai, deve compreender e tudo perdoar aos
filhos./Afinal, quando chegar tua vez? (Ah, ?). Se Pedro, que era Pedro, negou trs vezes a Jesus, e mais
era Jesus, por que no podia ele renegar o pobre pai? (Ah, ?).
Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira | 131
6. Tabus e totem
O universo ficcional de Dalton Trevisan, vinte e tantos livros depois, estrutura-se como
uma novela no encadeamento assindtico, sinusoidal e, portanto, repetitivo de situaes e
personagens. E novela de proveito e exemplo ao ser nada exemplar. A vida, paixo e morte
de suas personagens, crucificadas em relaes sadomasoquistas, servem de escarmento s
baixezas morais de um mundo dessacralizado A besta do Apocalipse, quem diria, reduzida
a cobrar o dzimo dos fiis (Ah, ?) e precito a ponto de abastardar a comunho com o
prximo, transubstanciando-a em vampirismo.
A crueza de suas tranches de vie, a reproduo fotogrfica de coisas mnimas e ignbeis,
o comprazer-se no kitsch e no repugnante, alm do museu de monstros morais (Cf. Quem
tem medo de vampiro?, in Dinor) que so suas personagens, revelam o dilogo da fico
de Dalton Trevisan com a herana realista/naturalista.
Ao cabo, seus Joes e Marias so produto de um meio provinciano e filisteu, tipificando
arqutipos filognicos que compem os totens e tabus da moral e famlia burguesas. Essa
herana (deuteronmica?) personifica-se no Pai, violento, ciumento, o rei da terra, a quem so
devidas, na fora do homem, todas as concubinas peticinhas. Na Me, Maria santssima, herona
e mrtir ou gralha esganiada, castradora das conquistas bomias e crepusculares do rei do
lar. Na Pecadora, Maria adltera, prostituta ou prostituda, s vezes Madalena arrependida de
seus descaminhos. No Gal, amado de todas as taxi-girls, rei cafeto dos randevus, prottipo
do priapismo que faz a fora do homem. No Filho, edipiano Absalo, invejoso do poder do
Pai, ansiando, contraditoriamente, destron-lo e assimil-lo.
Relaes regidas pela (antropo)fagia oral e genital, pela busca de comunho e comunicao5
na incorporao canibalesca do outro, suas personagens (note-se-lhe o matiz naturalista do
vocabulrio) pastam, chupam, devoram, lambem, relincham, babujam, sugam, bufam, fungam
expresses da bestialidade humana, totemizada no Vampiro.
5
O falo ereto nica ponte entre duas almas irms.; Ele mordisca o seio direito: Aqui o po. Depois o
esquerdo: Aqui o vinho. To iguais, por que sabem diferente? Agora molho o po no vinho (Ah,?).
132 | Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira
Leitor, confesso, dos clssicos, Dalton Trevisan no esconde sua admirao pelo virtuosismo
machadiano da meia-frase, do subentendido, da insinuao articuladores, como vimos, de
sua estilstica do tcito. Insere, entre as pequenas delcias da vida, um e outro conto de
Tchekov. Mas deixa tcita uma lio que permeia seu universo ficcional: a de Flaubert.
Na figura que engendrou para si do Anacoreta, pode-se ler a metaforizao de ensinamentos
de Flaubert: o ficcionista deve evitar o prender-se engrenagem social; permanecendo
parte, e num isolamento relativo, que poder observar e pintar com mais justeza e fidelidade
a realidade exterior flaubertianamente reduzida a lembtement et les ignominies de
lexistence!.
Coincidentemente com Flaubert, no transforma a fico em arma de combate ou palanque
de teses sociais, polticas ou econmicas: No escreve (cochicha Dalton orelha de Faca no
corao) para mudar a vida, melhorar o mundo, salvar sua alma. O papel branco vale mais
coberto de palavras? Toda a sua desculpa de escrever. Ou seja, a finalidade bsica de um
escritor escrever leia-se: compor uma obra de arte. O absentesmo no implica, contudo,
alienao ou inexistncia de uma postura tica e moral. Na contraface de suas histrias nada
exemplares estampa-se, tcita, a lio de proveito e exemplo.
O apuro formal preconizado por Flaubert, sob a gide clssica do limae labor et mora,
repercute no incansvel reescrever a que se dedica Trevisan. Flaubert torturava-se dias, semanas,
meses a procurar le mot juste, a burilar uma frase, um pargrafo? Trevisan no fica atrs.
Lembem-se os j citados Escolhe as palavras no cuidado de quem, ao morder, sente um
espinho na doura do peixe. Em busca da palavra certa? Fcil, meu chapa. Siga o fio furtivo
da pulga que costura o plo negro do cachorro (234).
Anacoreta, tambm escreve longe do estril turbilho da rua. E, bilaquiana verso
cabocla de Flaubert, trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua, convicto de que para escrever
o menor dos contos a vida inteira curta. Nunca termina uma histria basta reler para
escrever de novo.
Ser exagero dizer que a conciso e condensao da estilstica do tcito em Trevisan,
sobretudo a praticada ultimamente em seus haicais ou ministrias, corresponde ambio
extrema de Flaubert: compor uma obra que fosse pura forma, abolido o contedo material
fornecido pela observao ou tornado mero pretexto, uma ocasio para o exerccio puro e
simples do estilo, tornado auto-suficiente, autocomunicante?
Um poeta, enfim, cuja obsidente demanda pelo mot juste persegue, Verlaine e, sobretudo,
Flaubert, o fiat lux do Verbo primordial. Sua conciso lapidar o estilo do suicida no ltimo
bilhete , ambiciona ser a inscrio definitiva de uma fatia de vida que, intempestivamente
amputada ao Tempo, deseja eternizar-se, lembrada no mrmore (parnasiano, sim) da Forma.
A fico precita e maldita de Trevisan vem progressivamente cultuando a Arte pela Arte
na sua mais bela acepo clssico-horaciana e flaubertiana do limae labor et mora.
Na beleza formal perseguida, nsita e tcita, a sublimidade moral, como cria Flaubert
soleil [qui] pompe lui toutes les crasses de la terre.
No amante do haicai, ncubo, o poeta wet dream de que virgem anima-maria repri-
mida?6 , capaz de tratar com delicado e comovido lirismo a degradao humana (vejam-se,
a propsito, contos como Os trs presentes, O anjo, A me do menino, Retrato de
Katie, insertos em Os mistrios de Curitiba).
E, em sua raiz flaubertiana, ncubo poeta de parnasiana extrao. (Que Deus me livre e
guarde de suscitar sua ira. Nem me passa equipar-lo a claudicaes emilianamente poticas!)
6
O amor uma corrura no jardim de repente ela canta e muda toda a paisagem.; Solta do pessegueiro
a folha seca volteia sem cair no cho um pardal (Ah, ?).
Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira | 133
Bibliografia
ATADE, Vicente de Paula, Aspectos do conto de Dalton Trevisan, Curitiba, 1969 (tese).
PORTELA, Eduardo, Dimenses II, Rio de Janeiro, Agir, 1959, p. 125-237.
WALDMAN, Berta, Do Vampiro ao Cafageste Uma leitura da obra de Dalton Trevisan, So Paulo,
Editora Hucitec/Editora da Unicamp, 1989.
134 | Do conto ao microconto: a estilstica do tcito, a temtica do nefando em Dalton Trevisan | Francisco Maciel Silveira
Resumo: No conto Uma Galinha, Clarice Lispector, partindo A autora em foco estreou com o gnero ro-
de uma histria muito simples, constri um texto literrio
complexo e sedutor.
mance, apresentando ao pblico leitor a obra
denominada Perto do Corao Selvagem, em 1944.
Abstract: In her short story Uma Galinha, Clarice Lispector
taking a simple storyline as point of departure, succeeds in Na perspectiva de definir em sua trajetria liter-
building up a complex and seductive literary text. ria a narrativa de ndole filosofante e introspectiva,
Clarice Lispector publica o seu primeiro livro de
contos Laos de Famlia, em 1960. Nele encontra-se uma narrativa que, segundo a crtica,
projetou-se como um dos exemplares mais perfeitos do gnero contstico. Trata-se de um
texto intitulado Uma Galinha1.
Tematicamente, este exemplar no representa a totalidade das facetas do universo ficcional
da escritora. No entanto, ao ser focalizado separadamente esclarecer acerca dos fundamentos
da arte contstica de matiz reflexiva e psicolgica. Alm de paradigmatizar as narrativas
posteriores da escritora, essa pequena jia influenciada pela linha existencialista sartriana,
embora, nunca em entrevistas, a autora tivesse afirmado categoricamente esta sua adeso.
O enredo, a partir da decupagem da seqncia das aes, de forma expositiva, retrata
as peripcias de uma galinha que seria o almoo de uma famlia, num domingo qualquer
em uma cidade brasileira. Repentinamente ala vo e foge da cozinha onde estava desde
sbado, encolhida num canto. A trajetria de sua fuga perfaz o roteiro que vai da cozinha
para o terrao do vizinho e em seguida para o telhado das casas do quarteiro. O dono da
casa resolve intercept-la e vai em seu encalo. Aps curta perseguio pelos edifcios e muros
do quarteiro, ela capturada. Quando, ento, acontece um fato inesperado. Exausta e sur-
preendida pela perseguio e conseqente captura, a galinha pe um ovo. Logo em seguida,
afeita instintivamente para esse ato em razo de seu sexo, a maternidade aflora-lhe os sentidos
e assim ela senta-se sobre o ovo para choc-lo . A menina e o pai estarrecidos em vista do
ocorrido se negam a com-la como almoo. A me d de ombros e no a mata. E assim, a
1
Clarice Lispector, Uma Galinha, in Laos de Famlia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 33-36.
Jos Maria Rodrigues Filho, Uma Galinha: um conto modelar de Clarice Lispector, forma breve 1, 2003, p. 135-139 | 135
2
Edgar A. Poe, The philosophy of composition, in The Fall of the House of Usher and other writings, London,
Penguin Books, 1986, p. 480-492.
3
Armando Moreno, Biologia do Conto, Coimbra, Almedina, 1987, p. 48.
4
Clarice Lispector, op. cit., p. 147.
5
Clarice Lispector, Macacos, in Felicidade Clandestina, 8. ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1994, p. 104.
136 | Uma Galinha: um conto modelar de Clarice Lispector | Jos Maria Rodrigues Filho
Pode-se aferir que, por essa declarao, a autora confirma a sua predileo pela temtica
animal/ser humano, bem como pelo gnero de narrativas curtas, ou seja, a crnica e o conto
Ao serem ressaltados os aspectos da economia narrativa, cumpre-se ainda destacar as
frmulas empregadas no conto quanto configurao do espao e do tempo, elementos
polarizadores da ao. O mbito espacial no passa de um quarteiro, de uma cozinha e de
um quintal, descritos somente pelos substantivos diticos, sem informao alguma acerca da
disposio, tamanho e composio dos recintos. O mesmo ocorre com o tempo que construdo
discursivamente, com modelos aspectuais que delineiam a cronometragem da histria no
discurso, por meio de frmulas consagradas pelas literaturas. Para a exemplificao desse trao
basta citar o incio da narrativa que feito por meio de uma frmula tradicional nos contos
maravilhosos, Era uma galinha de domingo. Nesse sintagma, por silepse, esto registradas
as substncias fabulares do era uma vez, bem como uma soluo cronotpica, designada
pelo ditico temporal domingo, retratando o hbito no Brasil de se comer galinha nos fins
de semana, portanto tempo e espao familiares.
Toda essa construo resulta em estratgias narrativas de sumarizao do plano narrativo,
no qual ocorrem as tcnicas do suspense7, juntamente com as regras das trs unidades, como
6
Clarice Lispector, Para no esquecer; crnicas, So Paulo, tica, 1978, p. 57.
7
Sean Ofaolain, The short story, 3. ed., Bristol, Mercier Press, 1972.
Uma Galinha: um conto modelar de Clarice Lispector | Jos Maria Rodrigues Filho | 137
Tal esta estria ordinria, banal e vulgar de uma galinha e seu ovo a despertarem
a conscincia dos leitores para o entendimento simblico das cozinhas, quintais, muros
e quarteires da existncia.
Bibliografia
8
Boris. M. Eikhembaum, Sobre a teoria da prosa, in Teoria da Literatura, formalistas russos, Porto Alegre,
Editora Globo, 1970, p. 147.
9
Norman Friedman, Whats makes a short story short?, The Univ. of Georgia Press, 1958, p. 134.
10
Affonso R. Santanna, Laos de Famlia e legio estrangeira, in Anlise estrutural de romances brasileiros,
5.ed., Petrpolis, Vozes, 1978, p. 182-212.
138 | Uma Galinha: um conto modelar de Clarice Lispector | Jos Maria Rodrigues Filho
Uma Galinha: um conto modelar de Clarice Lispector | Jos Maria Rodrigues Filho | 139
Resumo: A escrita de Angela Carter reconhecidamente I believe that all myths are products of the
comprometida com polticas feministas. Ao visitar novamente
um dos mecanismos emitentes de papis culturais
human mind and reflect only aspects of material
tradicionalmente defensores de uma ordem falocrtica, o human practice. Im in the demythologising business.
conto de fadas, a escritora pretendeu subverter o contedo do Im interested in myths though Im much
mesmo. Contudo uma leitura de The Werewolf permite more interested in folklore just because they are
questionar se, apesar das suas intenes, no ter Angela
Carter transmitido, e portanto reforado, um dos mais comuns extraordinary lies designed to make people unfree.1
mitos: o do sacrifcio feminino. All the mythic versions of women, from the
Abstract: Angela Carters writing was committed to issues myth of the redeeming virgin to that of the healing,
related with gender politics. The writer aimed to subvert the reconciliatory mother, are consolatory nonsenses;
subliminal content of the fairy tale by presenting her own
and consolatory nonsense seems to me a fair
versions since traditionally it has been used as a mechanism
to transmit cultural roles which reinstate a phallocratic social definition of myth, anyway.2
order. However, a close reading of The Werewolf allows one O compromisso de Angela Carter de comba-
to question whether she has not reused inefficaciously and ter os mitos nscios, literalmente sem sentido, de
therefore reinforced a common misogynistic myth, that of
female sacrifice.
que so alvo as mulheres levou-a a reescrever
vrios contos de fadas reunidos em The Bloody
Chamber and Other Stories. Recorrendo mais tradio folclrica transmitida via oral do que
s verses cristalizadas na literatura a autora d-nos a conhecer a sua viso que paradoxalmente
denota admirao pela forma mas desprezo por algum do contedo. Em The Werewolf e
The Company of Wolves, o conto aqui em questo e outra reescrita do Capuchinho Vermelho
pertencente mesma coleco, os dois mitos acima citados (a virgem redentora e a me
conciliadora) so anulados em favor de uma virgem assexuada, outra que utiliza a sua libido
para ela prpria cativar o lobo e de uma av (a segunda me) que emerge como animal
predador. Pela invalidao desses mitos parece inerente a negao da vitimizao feminina
1
Angela Carter: Shaking a Leg, Collected Journalism and Writings, editado por Jenny Uglow, Chatto & Windus,
Londres, 1997, p. 38.
2
Angela Carter, The Sadeian Woman: An Exercise in Cultural History, Londres, Virago Press, 1979, p. 5.
Maria Sofia Pimentel Biscaia, Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter, forma breve 1, 2003, p. 141-150 | 141
It is a northern country; they have cold weather, they have cold hearts.
Cold; tempest; wild beasts in the forest. It is a hard life. Their houses
are built of logs, dark and smoky within. There will be a crude icon
of the virgin behind a guttering candle, the leg of a pig hung up to
cure, a string of drying mushrooms. A bed, a stool, a table. Harsh,
brief, poor lives.3
A brevidade das descries, conseguida quer por uso de ponto e vrgula obrigando a
pausa quer por frases curtssimas, aponta para a agreste simplicidade de uma existncia
humana que se prev lacnica e pouco propensa a deambulaes ontolgicas. A escurido
do Inverno a escurido das suas vidas sem prazer que coloca
as pessoas ao nvel da selvajaria das outras bestas que fazem da floresta a sua casa. As
habitaes, que nos tradicionais contos de fadas aparecem como locais de abrigo ou de
perigo onde uma vez ultrapassado o teste se desencantam, so meras extenses de uma
floresta temerosa, parte desse corpo englobante desprovido de magia. A expresso wild
beasts in the forest pretende portanto definir os lobos, os ursos, os javalis, os vampiros, as
bruxas, at o diabo e abranger tambm os humanos que so repetidamente referidos apenas
como they. At o adjectivo crude usado para descrever a imagem da sua protectora, a
Virgem, indica rudeza, imperfeio e naturalidade.
A religio introduzida no tanto como factor de possvel salvao mas antes no seu
aspecto terrfico, atenta a todos os indcios de danao. Desta maneira, a Virgem ficar reduzida
a esta exgua referncia enquanto o diabo e as bruxas merecem por parte de Carter uma
elaborao vasta tendo em ateno a extenso total do conto. A meno ao clima e a estas
figuras no de todo secundria considerando ainda que so elaboraes que antecedem a
narrativa principal; fazem parte de uma caracterizao indispensvel que a autora salvaguardou
de se perder no conto ao coloc-la no incio. de facto atravs do diabo e particularmente
das bruxas que a noo de sacrifcio introduzida.
O diabo tem uma directa relao com a morte dado que as suas supostas aparies
acontecem no cemitrio, territrio a que os relatos religiosos no o costumam restringir. J
sugerida no clima tempestuoso, na matana presente na carne de porco pendurada para curar
e pelos cogumelos que no so venenosos mas outros h na floresta que o so, a morte
entrelaa-se assim com a figura do diabo que a imaginao aterrorizada se encarrega de
produzir:
3
Angela Carter, The Werewolf, in The Bloody Chamber and Other Stories, Londres, Penguin, 1979, p. 108.
Indicaes futuras relativas paginao sero feitas no corpo do texto entre parntesis.
142 | Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia
Nesta terra de desolao onde nem flores existem a populao recorre s oferendas
votivas, recordando as dedicaes a divindades pags a que determinados sacrifcios aparecem
ligados. Aqui no s morte e vida que esto entrelaados pela oferenda de po nas campas;
existe tambm a representao de um vnculo de caractersticas primordiais entre os humanos
e a floresta; a natureza bravia, na forma do urso, recolhe o po e poupa por algum tempo os
humanos indefesos.
Para alm do primitivismo existencial, existe igualmente uma caracterizao de ambiente
de teor medieval atravs da incluso de supersties populares e crenas crists que pelo
sacrifcio exorcizam um mal que a autora, com o seu sarcasmo denunciador, revela ser inexistente:
4
Walpurgisnacht refere-se ao mito germnico da noite do sabat das bruxas. A vspera da noite de So Joo
assinala o solstcio do Vero e o dia mais longo do ano aps o qual se caminha de novo para o Inverno.
5
Tenho em mente particularmente O Noivo Enbruxado e o Sabat das Bruxas, de Balgung-Grien e A Tentao
de Santo Antnio, de Bosch onde o pintor incluiu a representao de uma missa negra. Outros exemplos
que retratam especificamente a relao do diabo e das bruxas so abundantes. Ulrich Molitor, em 1489, no
seu Von den Unholden und Hexen, ilustrou demnios e bruxas voando juntos para as celebraes do sabat
e o diabo em relaes carnais com uma bruxa.
Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia | 143
Vrios elementos que so relevantes para esta discusso foram devidamente saneados
nas verses impressas: a existncia de um lobisomem em detrimento de um lobo, a inexis-
tncia de capa e de qualquer material de cor vermelha, a matana da av cuja carne
armazenada e o sangue engarrafado para serem consumidos pela neta, o despojar das suas
roupas a pedido do lobisomem e posterior fuga sem ter sido molestada. No parecem residir
portanto dvidas que Angela Carter estava informada dos contornos do conto antes de serem
remodelados por Perrault j que os utilizou ou em The Werewolf ou em The Company of
Wolves. Carter parece ter querido um retorno s origens, realizando um return of the repressed,
sendo que a represso se refere misso civilizacional de imposio de padres de compor-
tamento, maneiras, e auto-disciplina que abonavam os valores e o prestgio social que demarcava
hierarquicamente a burguesia-aristocracia. Neste prisma, Carter pretendeu reavivar uma histria
em que a personagem feminina se vale a si prpria, dos seus recursos e da sua esperteza, e
que sem apoio nem de av nem de couteiro (personagem salvadora criada por Ludwig Tieck
em 1800) se desembaraa da ameaa que pende sobre si8. Por outras palavras, evitar a estrutura
de dominao masculina de textos posteriores que inerentemente responsabilizavam a menina
pela sua tragdia ao atribu-la ociosidade (ela detm-se a colher flores enquanto o lobo
corre para a casa da av), descuido (ela fala com um estranho) e desobedincia (a me havia-
a instrudo para no sair do caminho).
Tendo como base o conto oral, Carter recupera a figura do lobisomem e, atravs deste,
pode tambm introduzir a da bruxa que uma figura que historicamente aparece aliada ao
lobisomem. Na Idade Mdia a crena em lobisomens na Europa, nomeadamente em Frana
(pas que a par de Itlia o bero do Capuchinho Vermelho), era generalizada. Logo se verifica
que a escolha da poca histrica de The Werewolf no casual. Contudo, a associao dos
lobisomens com o diabo s acontece no final da Idade Mdia devido a uma mudana na
teologia crist que, tendo at ento negado a sua existncia, reconheceu na superstio da
licantropia um meio de criar inimigos do diabo, criaturas reais que poderiam ser capturadas
e castigadas em espectculo judicial a que o povo assistia arrebatado. A Igreja conseguia
6
Para mais pormenores sobre as verses de Perrault e dos Grimm e da sua insero no contexto cultural,
poltico e da mentalidade das suas pocas vide a excelente introduo de Jack Zipes em The Trials and
Tribulations of Little Red Riding Hood, Nova Iorque e Londres, Routledge, 1993, p. 1-88, particularmente 25-
37 e 75-83.
7
op. cit., p. 27. Itlico no texto.
8
O conto de Ludwig Tieck, The Life and Death of Little Red Riding Hood: A Tragedy, profundamente
marcado pelo sentimentalismo cristo tal como o , por exemplo, The Story of Little Red Riding Hood de
Richard Henry Stoddard em 1864. Vide Jack Zipes, op. cit., p. 99-128 e 188-192. Em ltima instncia o lobo
sacrificado por falta de f na justia divina que corrigiria os males a que havia sido submetido.
144 | Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia
Whereas people in the early Middle Ages had assumed their nature
to be determined by the social order and had also accepted the unity
of inner and outer nature, the emergence of bourgeois relations of
production and the increasing technological capacity to control nature
brought about a division between human beings as subjects and
the objective outside world. Along with these socio-economic factors,
the Church distinguished human beings as electors distinct from
nature. The task of all good Christians was to subdue nature, drive
out Satan and heretics from the world, restore order, and bring about
Gods kingdom on earth.9
9
op. cit., p. 71.
Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia | 145
A relao da bruxa com o diabo em The Werewolf apresentada como uma coleco
de clichs de modo a realar a falta de base, tal como Girard enuncia, j que a preponderncia
atribuda no vtima mas ao acto sacrificial em si; as motivaes, que nem precisam de
ser realmente credveis, so as crenas de necrofagia, o vampirismo, as orgias na walpur-
gisnacht, um nascimento de mau pressgio (tambm o diabo se diz ter nascimento com os
ps para a frente) de um beb com poderes visionrios e a descoberta real ou imaginria da
marca distintiva da bruxa11. Esta marca a verruga na mo tomada por terceiro mamilo: They
knew the wart on the hand at once for a witchs nipple (109-110). Assim, se confirma a sua
intimidade com o diabo que j era perceptvel quando a neta a descobriu das mantas da
cama e ela se contorceu like a thing possessed (109). claro que ao estabelecer esta ligao
a autora espera que o/a leitor/a identifique a verdadeira causa, a dor.
Martha Reineke em Sacrificed Lives: Kristeva on Women and Violence relata que na Alemanha
do sculo XVI, em pleno frenesim de caa s bruxas, o tribunal inquisitorial impunha duas
condies para que algum fosse considerado/a bruxo/a: trs denncias independentes (nor-
malmente obtidas de mulheres que pela tortura denunciavam outras mulheres conhecidas
pelo seu comportamento excntrico ou fora do vulgar ou por serem mulheres conhecidas
na sociedade, como por exemplo as parteiras) e pela marca do diabo (uma marca de pele
insensvel dor quando picada ou que no sangrasse). Esta marca era com frequncia um
terceiro mamilo. Reineke argumenta convincentemente que as bruxas so vtimas sacrificiais
preferenciais j que estas tendem a viver margem da sociedade e da instituio patriarcal
que protege (ou aprisiona, dependendo da perspectiva) as mulheres: a famlia. Eram vistas
como sendo particularmente perigosas aquelas mulheres que conseguiam sobreviver razoa-
velmente fora do foro marcado pela masculinidade e mais ainda se prosperavam dado que
representavam uma ameaa para a ordem econmica. Sendo que a caa s bruxas tem sido
vista como uma reaco social a uma forma de poder no autorizada nem sancionada por
instituies masculinas desconcertante pensar que ao no defender a bruxa da sua histria
Carter rejeita esse mesmo poder alternativo e feminino.
Em The Werewolf a av portanto a bruxa e o lobisomem (no um mero lobo), ambos
marcando-a como uma figura diablica. Contudo, o nico acto de agressividade ocorre na
forma de animal, quando a av no est na posse das faculdades humanas que lhe permi-
tiriam fazer julgamentos morais. Em momento algum h referncia de agresso contra algum
daqueles que sero os seus assassinos ou contra a prpria neta que determina a sua morte.
O/a lobisomem de The Werewolf desta maneira uma manifestao literria adequada da
interpretao que Zipes dele faz num momento anterior moralizao crist iniciada com
Perrault: Symbolically linked to the devil, the wolf is a powerful agent, but he was not
necessarily used to punish sinners in the folk tradition. The wolf was crucial in archaic thinking
10
Ren Girard, Violence and the Sacred, traduzido por Patrick Gregory, Baltimore, Johns Hopkins UP, 1972, p. 8.
Itlico no texto.
11
Penso que possvel ver na referncia de necrofagia a ligao com o consumo da carne da av do conto
recolhido por Delarue. Uma imagem reminiscente disso mesmo a perna de porco pendurada para curar.
146 | Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia
12
op. cit., p. 33.
13
Angela Carter, The Company of Wolves, in The Bloody Chamber and Other Stories, p. 117. Uma das verses
do conto recolhidas por Charles Joisten nos anos 50 atribui o nome da protagonista ao facto de ela usar
uma papoila nos cabelos. Vide Jack Zipes, op. cit., p 4-5.
14
Esta viso no consensual j que alguns crticos encaram a deciso da menina como a nica possvel.
o caso de Patricia Duncker que v a violao como acto inevitvel e que de modo a minimizar as
consequncias a menina prefere entregar-se. J Robert Clark interpreta o acto sexual como celebrao da
sexualidade por parte da menina mas que depende da aceitao dos parmetros patriarcais que limitam o
poder feminino. Vide respectivamente Re-imagining the Fairy Tales: Angela Carters The Bloody Chamber,
Literature and History 10/1, 1984, p. 3-14 e Angela Carters Desire Machines, Womens Studies 14, p. 147-61.
A perspectiva de Duncker ignora o factor que Clark reconhece, o prazer, e que est bem patente no texto.
Embora reconhecendo a existncia dos problemas que os dois colocam, no considero que apresentem
argumentos definitivos. Sendo uma menina astuta poderia a protagonista de The Company of Wolves
ter arquitectado uma fuga, como a sua homloga da tradio oral. A leitura deste conto parece indicar
uma opo mais do que uma submisso ao auto-sacrifcio.
Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia | 147
15
op. cit., p. 145. Itlico no texto.
16
op. cit., p. 146. Itlico no texto.
17
Os aspectos que mais frequentemente so apontados como os defeitos da menina so a ociosidade e a
vaidade. No entanto tambm o desejo de possuir o que da av aparece como uma das suas faltas em
Little Red Riding Hood de Walter de la Mare (1927). Neste caso a ganncia toma a forma de gula j que
a menina cobia a cesta de alimentos que leva av. Vide Jack Zipes, p. 208-214.
18
Vide comparativamente Ye True Hystorie of Little Red Riding Hood or The Lamb in Wolfs Clothing de
Alfred Mills escrito em 1872. Nesta verso o companheiro da menina, um cordeiro que veste o papel de
lobo e que apesar do seu disfarce ser uma mera partida incua e portanto ter sido perdoado por todos, a
informao dada a rematar o conto que he shed his blood a few months after [] for the good of his
friends, Zipes, op. cit., p. 192. Verifica-se portanto j a co-existncia numa nica personagem do valor
simblico do cordeiro e do lobo, a realizao do sacrifcio apesar da inocncia da aco e o consumo da
carne de um animal antropomorfizado, reminiscente da ingesto usual das duas personagens femininas.
Funcionando o cordeiro tambm como duplo da menina, a quem imitava em tudo incluindo sua maior
falta, a vaidade, deduz-se que a menina sofrer consequncias de ndole anloga se no se emendar.
148 | Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia
the infernal trap inherent in the fairy tale, which fits the form to its
purpose, to be the carrier of ideology, proves too complex and per-
vasive to avoid. Carter is rewriting the tales within the strait-jacket
of their original structures. The characters she re-creates must to
some extent, continue to exist as abstractions. Identity continues to
be defined by role, so that shifting the perspective from the imper-
sonal voice to the inner confessional narrative as she does in several
tales, merely explains, amplifies and re-produces rather than alters
the original, deeply, rigidly sexist psychology of the erotic.19
Makinen defende o uso do conto de fadas por parte de Carter alegando que cada um
incorpora especificidades histricas e que logo no estamos perante uma forma literria
universal e imutvel:
19
op. cit, p. 6.
20
Merja Makinen, Angela Carters The Bloody Chamber and the Decolonization of Feminine Sexuality, Feminist
Review 42, 1992, p. 4-5.
Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia | 149
Bibliografia
CARTER, Angela, The Sadeian Woman: An Exercise in Cultural History, Virago Press, Londres, 1979.
CARTER, Angela, The Werewolf, in The Bloody Chamber and Other Stories, Penguin, Londres,
1979.
CLARK, Robert, Angela Carters Desire Machines, Womens Studies, 14, p. 147-61.
DUNCKER, Patricia, Re-imagining the Fairy Tales: Angela Carters The Bloody Chamber, Lite-
rature and History, 10/1, 1984, p. 3-14.
GIRARD, Ren, Violence and the Sacred, traduzido por Patrick Gregory, Baltimore, Johns Hopkins
UP, 1972.
MAKINEN, Merja, Angela Carters The Bloody Chamber and the Decolonization of Feminine
Sexuality, Feminist Review, 42, 1992, p. 2-15.
UGLOW, Jenny (ed.), Angela Carter: Shaking a Leg, Collected Journalism and Writings, Chatto &
Windus, Londres, 1997.
ZIPES, Jack, The Trials and Tribulations of Little Red Riding Hood, Routledge, Nova York e Londres,
1993.
21
Citado em Jack Zipes, editor, op. cit., p. 93.
150 | Seguindo o rasto do sacrifcio em The Werewolf de Angela Carter | Maria Sofia Pimentel Biscaia
Resumo: O presente estudo explora a teoria do conto em Muitas vezes, o local escolhido para a concre-
David Mouro-Ferreira, tal como foi enunciada no declogo
que faz parte do prefcio que acompanha a obra Os Amantes
tizao do discurso sobre a literatura o prprio
e Outros Contos. Olhamos, assim, em conjunto, a parte da obra texto literrio, outras vezes, poder ser outro
crtica e literria do autor em questo. qualquer tipo de texto, de ndole diversa, que
Abstract: The present study explores David Mouro-Ferreiras com este relacione. Neste ltimo conjunto, ga-
theory of the short story, such as it was formulated in the nham relevo os prefcios, espaos privilegiados
decalogue included in the preface to Os Amantes e Outros
Contos. Therefore, we take a look at part of the authors critical
para a materializao deste mesmo discurso.
and literary work. neste sentido que este estudo se prope analisar
o texto que antecede Os Amantes e Outros Contos,
de David Mouro-Ferreira: Para o Dossier deste Livro1. Estud-lo, porm, no significa que
somente nos detenhamos no que seria apenas uma leitura imanente do texto em questo,
mas sim que o tenhamos em conta tambm no que o transcende. Isto se justifica porque
esta transcendncia se revela de especial importncia no entendimento da obra mencionada
e, sobretudo, na apreenso da totalidade da obra do autor.
Partindo desta considerao, e olhando para os cinco tipos de relaes transtextuais que
Grard Genette distinguiu, interessa-nos particularmente a que denomina de paratextua-
lidade2. Trata-se de um tipo de relao que o texto em si mantm com o seu paratexto, que
se ocupa do seu enquadramento. Este enquadramento tanto pode ser j apontado no ttulo,
1
Este prefcio autoral aqui mencionado est datado de Outubro de 1981. Para este estudo, utilizaremos,
desta mesma obra, a 7. edio, da Editorial Presena,1996. A partir daqui, far-se- apenas referncia ao
nmero de pgina.
2
Sobre a paratextualidade, adianta Genette: Le second type est constitu par la relation, gnralement moins
explicite et plus distante, que, dans lensemble form par une oeuvre littraire, le texte proprement dit
entretient avec ce que lon ne peut gure nommer que son paratexte: titre, sous-titre, intertitres, prfaces,
postfaces, avertissements, avant-propos, etc.; notes marginales, infrapaginales, terminales; pigraphes; illus-
trations; prire dinsrer, bande, jaquette, et bien dautres types de signaux accessoires, autographes ou
alographes, qui procurent au texte un entourage (variable) []. (Grard Genette, Palimpsestes. La littrature
au second degr, Paris, ditions du Seuil, 1982, p. 9).
Nolia Duarte, O Declogo de David Mouro-Ferreira: formulao de uma potica, forma breve 1, 2003, p. 151-161 | 151
3
A expresso de Genette: Je nommerai ici prface [] toute espce de texte liminaire (prliminaire ou
postliminaire), auctorial ou allographe, consistant en un discours produit propos du texte qui suit ou qui
prcde. (Sobre as diversas funes dos diferentes tipos de prefcios, cf. Grard Genette, Seuils, Paris, ditions
du Seuil, 1987, p. 150).
4
A forma escolhida por David Mouro-Ferreira para uma reflexo sobre a narrativa breve foi tambm a
escolhida por Horcio Quiroga, no trabalho intitulado El Manual del Perfecto Cuentista, de que faz parte
o declogo mencionado. Este texto de Quiroga, que aborda tambm aspectos tericos do conto, contrasta,
em determinados pontos, com o de David Mouro-Ferreira. Noutros pontos, porm, demonstra uma afinidade
flagrante e de muito interesse na avaliao do pensamento dos autores sobre a sua arte. A ttulo de exemplo,
deixamos aqui apenas dois dos dez mandamentos do declogo de Quiroga que mais se aproximam
dos de Mouro-Ferreira: III. Resiste cuanto puedas a la imitacin, pro imita si el influjo es demasiado fuerte.;
VII. No adjetives sin necessidad. Intiles sern cuantas colas de color adhieras a un sustantivo dbil. Se as
semelhanas so notrias, os contrastes tambm o so. A falta de espao, porm, leva a que deixemos a
reflexo em aberto. O declogo de Quiroga est na obra Del cuento y sus alredores.
5
O autor elege duas entrevistas, uma das quais dada a um suplemento literrio de um jornal, a outra dada
a uma revista: a entrevista que concedeu a Jacinto Baptista, para o Dirio Popular (de 6-6-1968), e a que
concedeu, mais tarde, a Maria Teresa Horta, inserida na revista Flama (de 28-6-1974). Estas informaes
so dadas pelo prprio autor, no prefcio agora em estudo. (cf. p. 13 e 17).
6
Recorde-se que a 1. edio, que recebeu o ttulo de Os Amantes apenas, de 1968, e que a sua 2. edio,
j Os Amantes e Outros Contos, acrescentadas que foram mais trs narrativas, de Abril de 1974. O livro
parece, de facto, ter acompanhado uma parte significativa da histria recente do pas.
7
Repare-se que as entrevistas so anteriores escrita do prefcio em questo, datado de 1981, e revisto, em
1988, para a 4. edio da obra. O que pretendemos realar que, se o seu modo de pensar tivesse sofrido
uma to grande alterao, a seleco teria sido diferente da que aqui se faz.
8
O autor insistir, como se ver, no aparecimento destas regras como sendo posterior criao, mas delas
se depreende uma conscincia anterior, um conhecimento prvio, que no fere de modo nenhum a espon-
taneidade que pretende evidenciar.
9
A afirmao de Valerie Shaw corrobora este nosso ponto de vista: [] [ T]he short story as an alternative
form is implicitly given an even fuller task to perform: it will not only reflect the disturbed, fragmentary
quality of modern life, it will deal with irreality, a project which clearly includes the possibility of replenishing
the elements of fantasy and the supernatural that have been associated with short story since its inception.
(Valerie Shaw, The Short Story A Critical Introduction, London and New York, Longman, 1992, p. 229.).
10
Meyer-Clason diz: Aqui, o leitor s precisa de trocar as palavras-chave para reconhecer o leitmotiv do
autor: a recusa da poltica colonial do seu pas, e seu desejo de que a frica, maltratada pela Europa, comece
a emancipar-se. Assim, a me da mulata por causa da qual o jovem branco desta aparentemente equvoca
histria de amor e morte participou, numa zona dos trpicos, na rebelio dos dezanove, chama-se frica,
e seu pai, contra cujo dinheiro o jovem vem alertando a sua amante, aconselhando-a a reneg-lo e esta,
para sua satisfao, comea a reagir chama-se Portugal (p. 11-12).
Mais do que isso, trata-se de uma narrativa que nos proporciona o entendimento do 1.
mandamento enunciado. A este entendimento, como sucede as mais das vezes, quando se
trata de David Mouro-Ferreira, somos levados pelas palavras do autor14, que encara o texto
como produto da contaminao do modo narrativo pelo lrico. Esta contaminao passvel
11
Cf., a propsito, a sntese de Oliveira Marques: O problema principal fora agora transferido da Metrpole
para o Ultramar, onde as revoltas africanas, os actos de terrorismo e a participao estrangeira, preocupavam
toda a gente. Comeavam guerrilhas na Guin (1963) e em Moambique (1964), alm das de Angola,
efectivas desde 1961. Em Macau os Comunistas impuseram a sua vontade (1966), embora tolerando uma
soberania portuguesa terica. Aumentou o nmero de anos de servio militar obrigatrio, intensificando-
se o recrutamento. (Antnio H. de Oliveira Marques, Breve Histria de Portugal, Lisboa, Editorial Presena,
1995, p. 638-639).
12
O autor refere ironicamente o episdio da queda de Salazar, episdio que conduziu sua retirada forada:
Simplesmente, em Setembro, graas ao mau funcionamento de uma cadeira de lona e queda que dela
deu ento o Presidente do Conselho, logo estas expectativas [as da publicao prxima de Os Amantes] se
viram goradas []. (David Mouro-Ferreira, op. cit., p. 11).
13
Entrevista a David Mouro-Ferreira, conduzida por Graziana Somai, Colquio/Letras 145-146, 1997, p. 46.
14
Diz o autor: O que tentei nos Amantes no sei se bem se mal foi uma certa coabitao do potico e
do narrativo e at do real e do fantstico ou do quase-fantstico, pelo menos com uma maior predominncia
do imaginrio (ibid., itlico nosso).
Eu assisti cena. Nessa tarde, pela primeira vez, o meu pai levara-
me com ele a um caf em Saint-Germain , um pequeno caf que
me pareceu enorme. E tnhamos acabado de chegar a casa. Embora
eu contasse apenas dez anos, j pela segunda arremetida a Histria
intervinha na minha existncia. A primeira de que naturalmente
me no recordo tinha sido em 1934, durante os motins de 6 de
Fevereiro.
Muito mais tarde, agora mesmo, noites e noites a fioNem tudo Histria na vida de
uma pessoa. E todavia, bem o sei, tambm a Histria pesa muito. (p. 35-36)
Veja-se o jogo e a palavra jogo faz todo o sentido em relao obra de David Mouro-
-Ferreira que se estabelece entre Histria, entendida como histria geral, e a histria, narrativa
15
Ainda na entrevista a Somai: -Podemos, efectivamente, falar duma linguagem ao mesmo tempo onrica e
potica? -Potica porque onrica: talvez, na maior parte dos casos, no em todos, com a recusa de certos
padres realistas que assinalavam as Gaivotas em Terra e indo muito mais para uma atmosfera sobrerreal.
No quer dizer que seja surrealista, surrealista de escola, mas que ter recebido as suas influncias do
surrealismo [] (Graziana Somai, op. cit., p. 46).
16
Por outro lado, e ainda relativamente presena tnue da histria no texto mencionado, escreve Jos
Martins Garcia: David Jos da Silva Ferreira, que desde 1992 colaborava na Seara Nova, assinando David
Ferreira, era Funcionrio da Biblioteca Nacional de Lisboa [.]. Por ter participado na frustrada tentativa
revolucionria de 7 de Fevereiro de 1927, demitido do referido cargo, juntamente com Antnio Srgio, o
facto ocorreu uma semana antes do nascimento do primeiro filho. Em nota, ressalva que este mesmo
episdio, que marcas deixou em David homem, foi [transfigurado] narrativamente, como se viu na passa-
gem antes citada.
17
Ao ser-me perguntado, por exemplo, a razo de no ter adoptado, nos contos de Os Amantes, os processos
narrativos que utilizara nas novelas de Gaivotas em Terra, tivera ocasio de esclarecer o seguinte: Porque
seria demasiado fcil. Porque seria totalmente falso. Persistir numa linha anteriormente ensaiada e que
deu as suas provas, boas ou ms no passaria, em primeiro lugar de reincidir num processo relativamente
seguro, que j deixou de ser dinmico como uma aventura para se tornar esttico, passivo como um simples
moldeEm segundo lugar, seria viver na iluso de ainda ser o outro que utilizou determinado pro-
cessoNo! No me resigno a escrever como j outros escreveram, mesmo que esses outros tenham sido
eu (p. 13).
18
Maria Alzira Seixo reala a proximidade existente entre a novela Tal Qual o Que Era, primeira de Gaivotas
em Terra, e alguns dos procedimentos utilizados pelo autor na sua produo contstica: [] Talvez devamos
exceptuar o primeiro destes textos, porm, onde um processo muito tpico dos contos posteriores de David
Mouro-Ferreira j se afirma: a tonalizao global do texto por uma situao ilocutria central, que em Tal
Qual o Que Era aparece fundada na fala de uma primeira pessoa interveniente e totalizadora, mas cuja
interveno se limita ao seu prprio discurso [] (Maria Alzira Seixo, Os Dedos Quentes de Julho. Leitura
de Trepadeira Submersa de David Mouro-Ferreira, in Outros Erros. Ensaios de Literatura, Porto, Asa Editores,
2001, p. 145).
19
Vd. David Mouro-Ferreira, Obra Potica. 1948-1988, 4. edio, Lisboa, Editorial Presena, 1988, p. 267.
20
Muito embora saibamos que o declogo aponta para o entendimento da obra que acompanha, somos
da opinio de que o mesmo, pela generalidade e abrangncia que permite, pode perfeitamente aplicar-se
s duas obras mencionadas.
21
Helena Malheiro v este conto como um caso hbrido: [] este narrador, longe de ser um narrador
impessoal, omnisciente, como na maior parte das narraes clssicas escritas na terceira pessoa, observa
atravs dos olhos das suas personagens, limitando o seu relato ao que podem ouvir ou sentir os seres que
descreve. [] O narrador aparentemente exterior narrao, no nos ilude: ele usa uma mscara e no
passa do prprio Adriano. A instncia narrativa desta novela no a terceira pessoa que aparenta ser, mas
sim a primeira pessoa que se oculta por trs do narrador. (Helena Malheiro, Os Amantes ou a Arte da Novela
em David Mouro-Ferreira, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 32).
22
Assim o atesta Eduardo Prado Coelho, no posfcio obra: Mas noutros contos o dilogo implcito,
travando-se entre um interlocutor que fala e outro que parece forado ao silncio; em Agora que Nos
Encontramos, o sujeito da enunciao dirige-se a um sujeito inteiramente passivo e desliza sob o rosto dos
vrios sujeitos dos enunciados de fico que desenrola. (p. 147).
23
Maria Alzira Seixo, a propsito do enigma, faz a seguinte observao: A construo coesa de Poe, na sua
costumada urdidura policial ou fantstica, parece emergir em autores posteriores sobretudo atravs de um
efeito de enigma que pode revestir a modalidade de uma situao inexplicvel, se bem que fortemente
ancorado no quotidiano, ou, por vezes, de modo mais lato, de um sentido questionado da existncia que
se apreende no propriamente como situao absurda mas, de forma mais banal, como carente de uma
significao imediata ou de vectores de determinao []. (Maria Alzira Seixo, op. cit., p. 146).
24
Jos Martins Garcia, posfcio a As Quatro Estaes, Lisboa, Editorial Presena, 2001, p. 79.
25
Carlos Pacheco e Luis Barrera Linares, Del cuento y sus alrededores, Caracas, Monte Avila Latinoamericana,
1992, p. 13.
26
Julio Peate Rivero coloca a questo nos seguintes termos: Destaquemos ahora la importancia que posee
la categora de lo implcito y, en particular, la nocin de lo sobreentendido, en la pragmtica del cuento
literario. Reside aqu uno de los componentes textuales que son condicin de la brevedad del cuento: le
ofrece la posibilidad de aludir eludiendo, de sugerir sin necesidad de mencionar. En ello estriba una delas
tareas ms exigentes y estimulantes en la elaboracin de esta modalidad narrativa: elegir el trmino y el
enunciado de mayor potencial alusivo, teniendo en cuenta tanto su riqueza como su pertinencia. (Vd. El
Cuento y la teora de los sistemas: propuestas para una posible articulacin, in Peter Frlicher y Georges
Gntert, Teora e Interpretacin del Cuento, Bern, Berlin, Frankfurt/M, New York, Paris, Wien, Meter Lang, 1997,
p. 61).
27
O mesmo autor reala tambm a importncia fulcral do leitor na descodificao do sentido implcito de
que acima se falou: [] Si, en general, el observador influye en el sistema que estudia, no har menos el
lector del cuento, observador de un sistema que no se mantiene sin su participacin e interpretacin: el
cuento literario no impone sentido sino que ofrece una orientacin sobre l (ibid.).
28
O prprio d conta desta busca pela essencialidade: Trepadeira Submersa e Ao Lado de Clara eram,
alis, muitssimo mais longos em duas verses primitivas. Num caso e noutro, o que precisamente me
interessou foi reduzi-los ao essencial. Sempre profundamente me impressionou esta declarao de Tchekov:
A arte de escrever consiste muito menos na de bem escrever que na de riscar o que est mal escrito (p.
17).
29
Barrera Linares assim o afirma: [] La frase breve, la sugerencia, el significar cosas sin expresarlas, parecen
requisitos inherentes a su lenguaje (el cuento debe mostrar, no decir demasiado ni explicar). Su sintaxis
est constreida por estructuras oracionales muy concretas y directas, con muy poco o ningn escarceo
retrico. Tal condicin viene dada por la exigencia de un ritmo que no admite disonancias. (Luis Barrera
Linares, Apuntes para una teora del cuento, in Del cuento y sus alrededores, Caracas, Monte Avila Latino-
americana, 1992, p. 37).
30
Para que o entendamos, a interveno do autor essencial: [] quer no que respeita a estes contos quer
no que respeita a todos os restantes, nunca a partir de uma ideia (muito menos de uma tese) que em
mim se origina o mecanismo de efabulao: , sim, a partir de um pormenor concreto, da sugesto de
uma imagem, de uma difusa ou obsessiva presena sensorial, da envolvncia de uma atmosfera, da maior
160 ou menor
| O Declogo nitidez
de David de umformulao
Mouro-Ferreira: gesto, de
deumauma figura,
potica de um cenrio que depois me esforo por fixar (p. 18).
| Nolia Duarte
Bibliografia
COELHO, Eduardo Prado, Quando depois do Sol no vem mais nada, in Os Amantes e Outros
Contos, Lisboa Editorial Presena, 1996, p. 139-156.
FRHLICHER, Peter et al., ed., Teora e Interpretacin del Cuento, Bern, Berlin, Frankfurt/M, New
York, Paris, Wien, Peter Lang, 1997.
GARCIA, Jos Martins, Posfcio, in As Quatro Estaes, Lisboa, Editorial Presena, 2001, p. 69-81.
GARCIA, Jos Martins, David Mouro-Ferreira: A Obra e o Homem, 1. edio, Lisboa Arcdia, 1980.
GENETTE, Grard, Palimpsestes. La Littrature au second degr, Paris, ditions du Seuil, 1982.
GENETTE, Grard, Seuils, Paris, ditions du Seuil, 1987.
LINARES, Luis Barrera, Apuntes para una teora del cuento, in Del cuento y sus alrededores,
Caracas, Monte Avila Latinoamericana, 1992, p. 29-41
LOHAFER, Susan e Clarey, Jo Ellyn (eds.), Short Story Theory at a Crossroads, Baton Rouge e
Londres, Louisiana State University Press, 1989.
MALHEIRO, Helena, Os Amantes ou a Arte da Novela em David Mouro-Ferreira, Lisboa. Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1984.
MARQUES, Antnio de H. De Oliveira, Breve Histria de Portugal, Lisboa, Editorial Presena, 1995,
p. 638-639.
MOURO-FERREIRA, David, Para o Dossier deste Livro, in Os Amantes e Outros Contos,
Lisboa, Editorial Presena, 1996.
MOURO-FERREIRA, David, Obra Potica. 1948-1988, 4. edio, Lisboa, Editorial Presena, 2001.
PACHECO, Carlos e Luis Barrera Linares (org.), Del Cuento y sus Alrededores, Caracas, Monte Avila
Latinoamericana, 1992.
PACHECO, Carlos, Criterios para una conceptualizacin del cuento, in Del Cuento y sus Alrede-
dores, Caracas, Monte Avila Latinoamericana, 1992, p. 13-29.
RIBERO, Julio Peate, El Cuento y la teora de los sistemas: propuestas para una posible
articulacin, in Peter Frhlicher y Georges Gntert, Teora e Interpretacin del Cuento, Bern,
Berlin, Frankfurt/M, New York, Wien, Peter Lang, 1997, p. 47-65.
SEIXO, Maria Alzira, Os Dedos Quentes de Julho. Leitura de Trepadeira Submersa de David
Mouro-Ferreira, in Outros Erros. Ensaios de Literatura, Porto, Edies Asa, 2001, p. 145-156.
SHAW, Valerie, The Short Story A Critical Introduction, London and New York, Logman, 1983.
SOMAI, Graziana, Entrevista a David Mouro-Ferreira, in Colquio/Letras 145-146, 1997, p. 9-80.
O s contos
de lamo Oliveira
Palavras-chave: lamo Oliveira; cnone contstico;
conto de temtica aoriana.
Keywords: lamo Oliveira; short story canon; short
story dealing with Azorean themes
Mnica Cabral, Os contos de lamo Oliveira, forma breve 1, 2003, p. 163-178 | 163
1
La teoria genrica del cuento est en nuestra poca y ha estado generalmente en el pasado dominada
por la teora de la novela, o, mejor dicho, por una de las grandes lneas de la teora de la novela: la lnea
retrica. [] Esta concepcin terica se ha desarrollado en los movimientos tericos de naturaleza retrica
el formalismo, la estilstica, el estructuralismo, fundamentalmente e incluso ha buscado definir los
universales de la narracin (El cuento como gnero literario, in Peter Frhlicher e Georges Gntert (eds.),
Teora e Interpretacin del Cuento, Berna, Peter Lang, 1997, p. 18).
2
Esta teoria apresenta trs pontos principais:
1. El cuento es un gnero no slo autnomo de la novela, sino opuesto por su origen, su naturaleza y su historia.
2. Para definir un gnero literario nunca bastan los elementos textuales y el cuento no es una excepcin.
Slo el abanico completo de sus elementos enunciativos puede definir un gnero. Y
3. Comprender la naturaleza del cuento nos debe permitir enunciar lo que A. M. Wright llama un cluster
of characteristics que van ms all de los esquemas retricos de la narracin (ibid., p. 21).
3
El cuento es un gnero forjado en la oralidad y perfectamente dotado de un canon. [] La brevedad
caracterstica esencial y certeza nica de la crtica actual es slo una consecuencia del carcter oral del
canon cuentstico. No se puede tener al auditorio en una espera eterna. Lo mismo se puede decir del efecto
nico y de la conexin principio-fin. Son leyes dictadas por las necesidades de un canon oral (ibid., p. 22
e 23).
4
Cf. Luis Beltrn Almera, art. cit., p. 30-32.
5
ibid., p. 30.
6
Luis Beltrn Almera descreve essa dimenso fantstica: No cabe en el cuento la fantasa producida por la
libre imaginacin, sino una fantasa de corte tradicional, limitada. Esta fantasa limitada no nace de la libertad
creativa sino de una nocin mgica acerca de la naturaleza de la verdad. [] En el cuento se ponen a
prueba las creencias, mediante extraas situaciones cotidianas accidentes, hechos casuales, etc. , es decir,
todo lo que al superar las escasas fuerzas humanas pone de manifiesto el choque entre lo divino y lo
humano. De ah, esa curiosa combinacin de creencias, lo natural cotidiano y lo milagroso, lo inesperado
(ibid., p. 30 e 31).
No conto O perfume da santa, de Com Perfume e com Veneno, o final da histria atribui
ao texto um carcter irreal e at mesmo grotesco, visto que a morte da personagem principal,
uma figura feminina solitria, pura, inocente, a que est associada a ideia de santidade, causa,
de forma miraculosa e bizarra, a morte das personagens que a rodeiam (as freiras do convento):
Este texto parece representar uma subverso de uma forma literria tradicional a lenda.
O fantstico e o grotesco unem-se para tornar esta santa diferente de qualquer outra, pois
a sua morte no apenas lhe atribui esse carcter de santidade, mas sobretudo representa
um castigo infligido s outras freiras, que esqueceram o significado de saudade e provocaram
a morte da pomba branca, figura simblica e companheira da santa.
Como podemos verificar, os elementos fantsticos presentes nestes contos no seguem
a linha tradicional do cnone contstico, devido complexidade que atribuem aos textos,
especialmente s personagens, e ambiguidade que instauram em diversos momentos, no
oferecendo explicao possvel para os acontecimentos que presenciamos. Na maior parte
das vezes, nem somente o fantstico propriamente dito que encontramos mas tambm o
grotesco, isto , a distoro dos esteretipos e da ordem ideal. De facto, nestes contos, encon-
Entre os tipos de conto que apresenta, Massaud Moiss inclui o conto de personagem7,
muito menos comum que o conto de aco. Maria da Assuno Morais Monteiro sublinha
que este tipo de conto privilegia o exame da personagem, sendo, por isso, frequente o uso
da descrio:
7
Cf. Massaud Moiss, A Criao Literria: Prosa, So Paulo, Cultrix, 1983, p. 39 e 40.
Da que possamos afirmar que este tipo de conto transgride as caractersticas tradicionais
do cnone contstico, onde as personagens so caracterizadas de forma mnima de modo a
no retardar o desenrolar da aco. Contudo, lamo Oliveira apresenta-nos vrios contos em
que o elemento central a personagem. Ao longo desses textos, um narrador heterodiegtico
relata-nos o percurso de vida de determinadas personagens, caracteriza-as fsica e psicolo-
gicamente e termina com o momento da sua morte. De facto, nos casos de O coreto,
Cristvo Colombo, de Contos com Desconto, e em Ela, Vida & feitos do bothicaryo de
Odemyra e O engraxador, de Com Perfume e com Veneno, que podem ser considerados
contos de personagem, normalmente o texto termina com a morte da personagem principal,
cuja vida foi resumida nas linhas do conto. Por esse motivo, estas narrativas abrangem um
longo perodo de tempo, contrariamente ao modo como habitualmente tratado o tempo
neste gnero: os acontecimentos narrados no conto costumam ocorrer num curto lapso de
tempo, uma vez que o passado e o futuro no so importantes, como explica Maria da
Assuno Morais Monteiro:
Todavia, em vrias narrativas breves deste autor, essas componentes habituais dos contos
nem sempre so respeitadas, j que o escritor por vezes centra a sua ateno na personagem,
e no na aco, recorrendo pausa descritiva para caracteriz-la. Outro tipo de conto que
d importncia descrio o conto de cenrio ou atmosfera10, que, como a prpria desig-
nao indica, privilegia uma das categorias narrativas: o espao. Podemos encontrar um conto
de cenrio ou atmosfera em Contos com Desconto, que se intitula A catedral estava linda.
Neste texto, no h propriamente uma histria, pois o narrador limita-se a descrever os vrios
momentos da celebrao da eucaristia, focalizando o espao a catedral , cuja descrio
pormenorizada deixa transparecer a denncia do luxo e da riqueza daquele espao, contrrios
aos princpios de um Cristianismo primordial. A crtica implcita dirige-se, pois, desigualdade
social que a prpria catedral, smbolo do materialismo, ajuda a perpetuar. Por conseguinte,
8
Maria da Assuno Morais Monteiro, O Conto no Dirio de Miguel Torga, Vila Real, Universidade de Trs-os-
Montes e Alto Douro, 1998, p. 30.
9
ibid., p. 25.
10
O conto de cenrio ou atmosfera privilegia a descrio do cenrio, do ambiente em que se movem as
personagens e onde a histria decorre, assumindo este um papel de grande relevo em detrimento de outras
componentes, inclusive da prpria personagem. Se no tipo de conto anterior se dava primazia ao retrato
da personagem, o que nos levou a tecer algumas consideraes acerca da velocidade narrativa, tais consi-
deraes aplicam-se igualmente ao conto de cenrio ou atmosfera, j que a pausa descritiva com incidncia
sobre o cenrio retarda o desenrolar da aco, imprimindo ao conto uma velocidade narrativa mais adequada
ao romance, o que contraria as caractersticas habituais do conto, no sendo, pois, de estranhar que textos
exemplificativos desta tipologia sejam mais espordicos (ibid., p. 31).
Estes contos possuem uma dupla funo: por um lado, provocar o riso (ou, pelo menos,
o sorriso), uma vez que o humorismo atravessa vrios textos; e, por outro, despertar a cons-
cincia do leitor para os dramas do quotidiano. Alm disso, a propenso humorstica de vrios
contos apresenta-se de duas formas: um humorismo velado, utilizando o implcito, o suben-
tendido, originando a ironia, a stira, o trocadilho, a caricatura12; ou ento uma comicidade
11
apesar das diferenas que possam existir entre os vrios contos, apesar das tipologias que even-
tualmente sejam propostas, h sempre um elo de unio que os congrega a todos, constitudo por um
conjunto de aspectos e caractersticas que os uniformizam, os individualizam em relao a outros gneros
do mesmo modo, e que esto relacionados com a pragmtica do conto. que, neste gnero do modo
narrativo, tudo converge no sentido de exercer uma certa influncia sobre o receptor, de produzir um
determinado efeito, de conduzir a uma moral (ibid., p. 32 e 33).
12
Por exemplo, no conto Livraria meu amor (Com Perfume e com Veneno), o narrador ridiculariza uma
intelectualidade hipcrita, medocre e feita de aparncias atravs da caricatura de vrias figuras que frequen-
tam uma livraria dos Aores, um local bonito, discreto, personalizado que confere, a quem o frequenta,
um grau de elevada inteligncia (p. 101). O olhar do narrador denuncia esse culto das aparncias atravs
Um final trgico-cmico, do qual se pode retirar uma lio de moral, sucede igualmente
personagem principal de O maior livro das ilhas (Com Perfume e com Veneno): um escritor
ambicioso mas tambm ridicularizado por toda a sociedade aoriana, devido ao peso e
tamanho excessivos do seu ltimo livro, um fracasso de vendas, facto que o leva ao desespero,
loucura e morte. Eis uma das verses da maneira como morreu:
da descrio e da caricatura dos traos mais observveis (e criticveis) dos clientes dessa livraria, como,
por exemplo, a Senhora Quase Cinquentona, o Senhor Sem Dinheiro e o Senhor Bem Informado: Vejo
que a Senhora Quase Cinquentona folheia, junto do escaparate central, a Bblia de Dore. Quando se sentir
isolada do meu olhar, vai certinha estante da esquerda retirar um Jorge Amado da fase porno. O Senhor
sem Dinheiro mais depressivo. Todos os dias l um captulo de um volume sobre astrologia. sada,
pergunta se j receberam o livro que tem ttulo e autor que ningum conhece. Mais interessante o
comportamento do Senhor Bem Informado. Sistematicamente pretende adquirir o que, no momento, no
h. Por isso, leva o Tin Tin e o Pato Donald opo bvia para recompensar a decepo da escolha do
inexistente (p. 102 e 103).
13
Por exemplo, no conto O coreto (Contos com Desconto), um conto de personagem, o narrador relata-nos
um percurso de vida trgico-cmico: a vida atormentada do Joaquim Sacristo, que morreu de desgosto
devido ao embarao que lhe causava um problema de sade uma excessiva flatulncia: Pobre Joaquim
Sacristo que passou sem glria toda uma vida que podia ter sido o reflexo do melhor repicar de sinos.
No teve. Por tabernas e tendas de barba, por cavaqueiras de adro e degraus de Sociedade, as pessoas
recreavam-se com os azares e as desgraas intestinais de Joaquim. Qualquer peido consentido no rancho
do cavaco fazia lembrar mais uma histria: Lembras-te de quando o padre Simo se ajoelhou defronte
do altar para a novena do padroeiro e o Joaquim se apressou a tomar lugar ao lado? e l vinha a
descrio, pormenorizada e basta, de um peido estrondoso que calou as vozes afinadas do grupo coral
que nem o brao do regente fez continuar. Foi a primeira grande gargalhada que se ouviu dentro da igreja
E a novena prosseguiu sem msica nem devoo e com o Joaquim transido de horror lacrimejando na
sacristia (p. 21).
14
Luis Beltrn Almera explica que el cuento es un gnero de naturaleza mixta: srio-cmico. En su seriedad
conecta con la tradicin y con la retrica, en su comicidad conecta con el folclore. El cuento es un gnero
esencialmente folclrico, que slo tardamente se incorpora al dominio literario. El cuento literario conserva
deformada su naturaleza folclrica. [] La risa es la principal manifestacin de esta lnea folclrica y durante
mucho tiempo cuento y risa han sido dos conceptos en interdependencia (Luis Beltrn Almera, art. cit., p.
31 e 32).
Uma outra caracterstica destes contos o dilogo com o intertexto bblico, presente
nos contos A catedral estava linda (Contos com Desconto), Estria de Natal e A incon-
venincia de se chamar No (Com Perfume e com Veneno). No segundo conto, a estria do
nascimento de Jesus vista pelos olhos de uma criana. Trata-se de um olhar puro, inocente,
doce e ingnuo, mas que deixa transparecer uma certa sabedoria. Atento s palavras da me,
que lhe conta a estria, o menino vai fazendo perguntas narradora, dando a sua opinio
sobre os vrios pormenores do relato. As suas observaes e pensamentos revelam uma
maturidade moral pouco normal para uma criana de cinco anos, que recorre ao poder da
imaginao para visionar tudo o que ouve. Em certos momentos do conto, assistimos
intromisso de pormenores que representam uma subverso do discurso bblico, conferindo
ao texto um carcter humorstico:
Encontramos, em Contos com Desconto, dois contos com propenso fabulstica: Cristvo
Colombo e No pra me gabar. Antes de mais, convm relembrar que a fbula est
normalmente associada a uma verdade moral, transcendendo os limites do possvel, visto que,
nesta forma literria tradicional, usual atribuir caractersticas humanas aos animais e seres
inanimados. o que sucede nestes dois contos. Em Cristvo Colombo, um gato aristocrata
morre orgulhosamente de fome por se recusar a roubar para comer e a juntar-se aos gatos
socialistas. Esta pequena sociedade felina no mais do que a representao da sociedade
humana, onde o desenvolvimento do socialismo abalou as estruturas sociais. Este conto possui
claramente uma funo moralizante, aliada crtica ao preconceito social e a uma aristocracia
decadente e faminta mas irremediavelmente orgulhosa.
Para terminar, estas duas obras apresentam um discurso multifacetado e uma diversidade
de vectores temticos e de tipos de narrativas, j que podemos encontrar, nestes textos,
vestgios da lenda, do conto infantil, do texto bblico, do conto de personagem, da stira, do
conto humorstico, da fbula, entre outros. Esta variedade de percursos torna essencial a
confrontao com outros gneros, em especial as formas tradicionais que surgiram da fronteira
entre a oralidade e a escrita, como meio de reconhecer as caractersticas tradicionais destes
contos, ou seja, os traos que sobreviveram, ainda que deformadamente, s tendncias inova-
doras do gnero, assim como as subverses que estes textos apresentam em relao ao
cnone contstico, que, apesar de sofrer uma gradual dissoluo, no deixa de constituir um
ponto de apoio fundamental para conhecer a origem, o desenvolvimento e a essncia deste
gnero cada vez mais complexo. E provavelmente a complexidade, a ambiguidade e a
profundidade destes contos que representam um dos principais desvios em relao ao cnone
do conto de tradio oral, que contm fundamentos amplos, concretos e elementares, contra-
riamente s caractersticas actuais dos contos.
15
A Horta surge, nesta altura, como um centro de contactos com o exterior, promovendo uma grande abertura
dinmica a outros espaos fsicos e culturais. Pedro da Silveira explica como esta cidade se tornou num
centro cultural de criao literria: A Horta, sobretudo, merc dos seus antecedentes (a navegao que
parava pelo seu porto, levando aos naturais as ideias da Revoluo francesa e os produtos das Culturas
europeias, principalmente anglo-saxnica e galesa), estava bem preparada para poder ser o bero da nova
literatura aoriana. E foi a, efectivamente, que surgiram os primeiros ficcionistas insulanos (O conto
aoriano e os seus caminhos, in Estrada Larga Antologia do suplemento Cultura e Arte de O Comrcio
do Porto, org. De Costa Barreto, Porto Editora, s.d., p. 544).
16
Joo de Melo refere como estes escritores se distinguiram dos demais: Com mo segura eles ultrapassam
o provincianismo hbrido e interceptado da maioria dos seus contemporneos, dando-se ento incio a uma
literatura interessada em dar testemunho do tempo e do lugar em que construda (Antologia Panormica
do Conto Aoriano Sculos XIX e XX, org. por Joo de Melo, Porto, Editorial Vega, 1978, p. 19).
17
O contexto em que surgiu esta gerao descrito por Joo de Melo da seguinte maneira: Numa altura
em que o fascismo despertava na juventude aoriana interrogaes e traumatismos de toda a ordem, para
mais com o cadafalso moral que era a perspectiva da guerra nas colnias, nasce uma conscincia colectiva
que se expressa no poema e no conto, de par com outras manifestaes criadoras, tendo como ponto de
partida um projecto que desde logo se afirma pelo desbloqueio das estruturas decrpitas da cultura insular.
Como condio essencial, o princpio da condio aoriana, incapaz de trair ou de se deixar corromper
(ibid., p. 24). Ainda a propsito desta gerao, diz J. H. Santos Barros o seguinte: uma gerao que se
lana conquista da modernidade com firmeza, inicialmente recusando radicalmente toda e qualquer
referncia aos particularismos locais isolados do contexto do pas e do mundo (O Lavrador de Ilhas, Porto,
Secretaria Regional da Educao e Cultura, 1982, p. 62).
lamo Oliveira autor de uma vasta obra, unificada por uma temtica profundamente
aoriana. A condio insular est presente em inmeros momentos dos seus contos. Apesar
de subverter constantemente a Histria19, este escritor deposita nos contos a verdade de uma
comunidade e de uma vivncia, atormentada quer pelas foras sociais e polticas (desigual-
dade social, incompetncia governativa, explorao dos mais fracos, hipocrisia dos membros da
Igreja), quer pelas foras da natureza (sismos, vulces, tempestades), uma manifestao do
poder divino. Na sua maioria, os contos localizam-se em espao insular. Podemos detectar
pormenores de carcter etnogrfico, em especial o culto ao Esprito Santo, assim como a
presena da pronncia micaelense, particularmente nos contos O Coreto e Por um punhado
de Esprito Santo.
Nestes contos, a ilha surge como um microcosmo, em que as pessoas encaram o mesmo
dia-a-dia, pautado pela monotonia, pela solido insular e pequenez do espao. A sobrevivncia
histrica do povo aoriano est representada no conto O Arquiplago das Lapas (Contos
com Desconto). No difcil reconhecer que a histria deste arquiplago muito semelhante
do arquiplago dos Aores, nomeadamente no que diz respeito aos pormenores da desco-
berta, povoamento e desejo de conquista da autonomia. Alm disso, tambm os Laparosos,
os habitantes do Arquiplago das Lapas, tal como os aorianos, passaram, ao longo dos
tempos, por muitas provaes e privaes:
A forte carga irnica e at cmica deste conto passa pela subverso de determinados
pormenores histricos, como o prprio nome dos habitantes deste arquiplago, os Laparosos,
18
Pedro da Silveira, art. cit., p. 547.
19
O que lamo Oliveira pretende mostrar-nos nestes contos no a verso oficial da Histria mas sim a
subverso dessa mesma Histria ou, se quisermos, uma contra-realidade, expressa, na maior parte das vezes,
atravs do recurso ao fantstico, ao irreal, ao estranho, ao absurdo e ao grotesco.
O facto de se ter nascido numa ilha era j para a famlia de No um castigo suficiente:
Para eles, viver numa ilha era j castigo bastante. Tinham que nascer
minados pelo vrus da virtude; viver com a preocupao permanente
de olear os parafusos mentais; morrer motivados de pachorra e per-
manecer deitados. Afinal, de nada lhes servia os mltiplos castigos
de fogo e de lava. (p. 85)
No conto Eureka (Com Perfume e com Veneno), o olhar irnico e crtico do narrador
dirigido a um sector da sociedade: os polticos. Parece que o fatalismo ilhu, que confere aos
habitantes das ilhas um carcter de orfandade em relao a Deus, no encontrava apazi-
guamento atravs das manifestaes de f nem atravs das solues dos polticos que governam
o arquiplago. A imprevisibilidade, a conspirao internacional, que minava a promoo dos
produtos regionais, bem como os castigos divinos, assolam as ilhas constantemente, apesar
de estas revelarem aspectos como os cenrios mais bonitos do mundo, com suas montanhas
cobertas de verde, seus valados exuberantes de flores, casario alvo e desabitado, estradas
tpicas de buracos, lagoas em vias de estiagem e um povo calmo, pachorrento, envelhecido,
completamente desfasado dos turbilhes tumultuosos que infestam os pases desenvolvidos
[] Quando se junta a tudo isto um mar perfeitamente infinito recheado de golfinhos, de
baleias e de histria gloriosa, fica-se triste com a m ventura governativa (p. 127). At ao
dia em que eureka os polticos encontram uma soluo para melhorar a economia: como
cada ilha possui uma identidade prpria, era necessrio reconhecer a especificidade delas e
conceder a cada uma uma determinada funo. Por exemplo, uma ilha seria transformada
em zona de jogo, com a construo de casinos; outra seria convertida em lar para idosos e
outra teria a responsabilidade de promover touradas e festas. Uma das ilhas at seria entregue
Bibliografia
ALMEIDA, Onsimo Teotnio, Aores, Aorianos, Aorianidade, Lisboa, Marinho Matos Brumarte,
1989.
ANDERSON IMBERT, Enrique, Teoria y Tcnica del Cuento, Barcelona, Ariel, 1992.
BAQUERO GOYANES, Mariano, Qu Es el Cuento, Buenos Aires, Editorial Columbia, 1967.
BARROS, J. H. Santos, O Lavrador de Ilhas, Porto, Secretaria Regional da Educao e Cultura,
1982.
BELTRN ALMERA, Luis, El cuento como gnero literario, in Peter Frhlicher, Georges Gntert
(eds.), Teora e Interpretacin del Cuento, Berna, Peter Lang, 1997, p. 17-32.
BENJAMIN, Walter, O narrador Consideraes acerca da obra de Nikolai Leskow, in Teresa
Seruya (org.), Sobre o Romance no Sculo XX A Reflexo dos Escritores Alemes, Lisboa,
Edies Colibri, 1995, p. 49-71.
BETTENCOURT, Urbano, O Gosto das Palavras II (Leituras e Ensaios), Ponta Delgada, Jornal de
Cultura, 1995.
BOOTH, Wayne C., A Rhetoric of Irony, Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1975.
CESERANI, Remo, Lo Fantstico, Trad. De Juan Daz de Atauri, Madrid, Visor, 1999.
DANOW, David K., The Spirit of Carnival: Magical Realism and the Grotesque, Kentucky, The
University Press of Kentucky, 1995.
Resumo: Nuno de Montemor constri a diegese enquadrando Vitorino Nemsio nO Dia, jornal que fundou,
as personagens em trabalho rural de uma aldeia comunitria em pgina que lhe era reservada, compreensi-
beira Estrela. E as caractersticas desse modus vivendi, dos seus
velmente com o ttulo Jornal de Vitorino Nemsio,
costumes so transmitidas sobretudo pelo agir das
personagens, tomando vulto a solidariedade e a generosidade a propsito do centenrio da morte de Jlio Dinis,
das mesmas. discorda da conotao algo minimizante nsita
Abstract: Nuno de Montemor shapes his storyline by placing no de leve com que Ea de Queirs caracterizou
rural characters in a community village. The characteristics of a escrita dinisina. E justifica o facto com a habitual
their customs and lifestyle are mainly conveyed through their
dificuldade em levar as geraes dianteiras
actions, giving special emphasis to their solidarity and
generosity. tolerncia e compreenso das obras das gera-
es recuadas.
Evoco o artigo, adaptando-o mutatis mutandis a um livro de contos de autor hoje esque-
cido, se no de muitos desconhecido, tambm romancista e poeta, em voga sobretudo na
dcada de 30 e primeiros anos de 40 do sculo findo Nuno de Montemor (1881-1964) , que
foi ainda colaborador da 2. srie de A Nao Portuguesa, a par de nomes como Antnio
Sardinha, Afonso Lopes Vieira, Joo Lopes de Azevedo e muitos outros do nosso mundo cultural.
Intitula-se a obra Pobrezinhos de Cristo, ttulo que poder levar, desde logo, dada a suges-
to de simplicidade e de empatia relativamente ao melhor do sentimento humano, a uma
aproximao semanticamente cognata da expresso queirosiana. Integram o volume sete
contos e vou ocupar-me do mais longo A Rosa Riso composto por tambm sete captulos.
De imediato somos introduzidos num espao rural comunitrio duma aldeia beira da
Estrela a eira cenrio de movimentao contnua e intensa, no decurso dos trabalhos da
malha, processo creio que hoje praticamente abandonado para a debulha dos cereais, sobretudo
do trigo e do centeio. Movimentao expressa pelo uso de palavra semntica e gramati-
calmente ajustada como chegavam, trazendo, trepavam, abrangiam, empilhavam,
crescendo, subindo, onde o imperfeito com o gerndio so reis. Isto, sem falar ainda
do uso da onomatopeia, a fazer ouvir os estampidos dos manguais e os arrancos guturais
dos malhadores, ao erguerem e descerem ininterruptamente os mesmos. uma azfama que
reflecte um trabalho penoso do nascer ao pr do sol, e tanto mais que, no momento em
Virgnia de Carvalho Nunes, Rosa Riso, de Nuno de Montemor: um conto de leve, forma breve 1, 2003, p. 179-183 | 179
180 | Rosa Riso, de Nuno de Montemor: um conto de leve | Virgnia de Carvalho Nunes
1
Jacinto do Prado Coelho, Dicionrio de Literatura, Porto, Figueirinhas,1973, p. 514.
2
Joo Mendes, Brotria 23, 1936, p. 16 ss.
Rosa Riso, de Nuno de Montemor: um conto de leve | Virgnia de Carvalho Nunes | 181
3
V. Carvalho Nunes, Disparates ou bom senso de Cames?, Revista da Universidade de Aveiro/Letras 17,
2000, p. 29.
4
Cf. E.Teodoro Wanke, A trova, ed. Pongetti,1973, Rio de Jan., p. 220 e seg.
182 | Rosa Riso, de Nuno de Montemor: um conto de leve | Virgnia de Carvalho Nunes
Rosa Riso, de Nuno de Montemor: um conto de leve | Virgnia de Carvalho Nunes | 183
C ontos comuns
Resumo: Num mesmo gnero literrio, o conto, apresentam-se Porqu essa imensa barreira entre o Eu e o
cinco escritores prximos no tempo e no espao, numa
representao simblica anloga, com uma gradao na
Ns na natural conjugao do verbo ser?
expresso ideolgica consubstanciadora do mesmo Mrio Dionsio, Poemas, 1941.
denominador comum, e com similares actantes.
Abstract: Under the same literary genre, i.e. the short story, in
this article we introduce five writers whose works are akin in
1. Sendo o conto um gnero do modo narra-
terms of time and space, symbolic representation, gradation in
ideological representation and characters depicted. tivo englobante da epopeia, do romance e da
novela, deles usa distinguir-se pela sua caracters-
tica de short story, pela sua capacidade de poder ser contado1. Contudo, se em geral nos
centramos na limitao da extenso, que traz consigo, necessariamente, a determinao da
aco, da personagem e do tempo, enquanto categorias da narrativa, tal conduz-nos tambm
a que a aco em geral seja muito concentrada e linear, com a personagem que raramente
portadora de complexidade e com uma caracterizao elaborada e no definitiva, tendendo
em geral, e pelo contrrio, a ser acentuadamente esttica, facilmente lembrada e inservel na
categoria do tipo2, tantas vezes entendida como componente no dissocivel do espao social,
nomeadamente no Realismo, Naturalismo e Neo-Realismo. Assim sendo, tambm o tempo se
encurta, no o tempo da histria, necessariamente, mas o tempo do discurso que deve ser
gerido pelo narrador com economia, recorrendo frequentemente ao discurso singulativo,
elipse e desvalorizao da pausa descritiva.
1
that the extent should not be less than 50000 words (E.M. Forster, Aspects of the Novel, London, Edward
Arnold,1937).
2
o tipo pode ser entendido como personagem-sntese entre o individual e o colectivo, entre o concreto e
o abstracto, tendo em vista o intuito de ilustrar de uma forma representativa certas dominantes (profissionais,
psicolgicas, culturais e econmicas, etc.) do universo diegtico em que se desenrola a aco, em conexo
estreita com o mundo real com que estabelece uma relao de ndole mimtica (Carlos Reis e A.C.M. Lopes,
Dicionrio de Narratologia, Coimbra, Livraria Almedina, 1987).
Paulo Alexandre Pereira, Do exemplum ao conto: O Tesouro, forma breve 1, 2003, p. 47-63 | 185
3
Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura, 2. ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1997.
4
le type, selon le caractre et la situation, est une synthse originale runissant organiquement luniversel
et le particulier. Le type ne devient pas un type grce son caractre moyen, mais son seul caractre
individuel quelle quen soit la profondeur ny suffit pas non plus; il le devient au contraire parce quen
lui convergent et se rencontrent tous les lments dterminants, humainement et socialement essentiels,
dune priode historique. (G. Lukcs, Balzac et le ralisme franais, Paris F. Maspero, 1973).
5
O Regionalismo, com mais velhas razes de Escola, foi sempre um movimento esttico de interesse restrito,
mais formal do que humano. No regionalismo a paisagem, aquilo a que em linguagem acaciana se chama
cor local, o fundo, o essencial; o humano existe como pormenor, como elemento secundrio, ainda
paisagem O sentimentalismo que anima tal literatura j no se volta para o povo mas para a terra, embora
uma terra decorativa, como tambm o o povo para os populistas. Quer dizer, nos populistas o povo
que serve o talento do artista; no regionalismo antes certo meio fsico, com as suas belezas naturais
etc., etc. (A.R. de Almeida, Notas para o Neo-Realismo, O Diabo 318, 1940).
6
Para estes a arte popular no uma via de evaso, mas uma fonte inspiradora, um meio de conhecer e
atingir as verdadeiras razes do popular, o seu carcter autntico, a sua concepo da vida e do mundo, os
seus anseios e a sua luta (J. Namorado, Poesia e folclore. Garcia Lorca, Vrtice 48, 1947).
7
A arte de escrever regionalismo, hoje, no deve ser a submisso ao expresso na linguagem dos lbuns e
almanaques desertos do pitoresco de um tipo humano; no deve ser a escravizao do escritor somente
ao estilo e ao receio de que, expandindo o seu poder criador, venha a ser considerado algo de indesejvel
O escritor regionalista de hoje deve procurar actuar, principalmente, no convvio com as realidades do seu
tempo, no se importando com as crticas que pretendam faz-lo desprezar a riqueza humana da sua
sensibilidade (A. Da Silva, Breve apontamento sobre uma nova literatura regional, Vrtice 56-57, 1948).
Bibliografia
CUNHA, C. e CINTRA, L., Nova Gramtica do Portugus Contemporneo, Lisboa, Ed. Joo S da
Costa, 1984.
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dictionnaire des Symboles,Paris, d. Robert Laffont et d.
Jupiter, 1982.
REIS, C., Introduo leitura de Uma Abelha na Chuva, Coimbra, Livraria Almedina, 1980.
TORRES, A.P. , O neo-realismo literrio portugus, Lisboa, Moraes Editores, 1977.
TORRES, A.P. , O movimento neo-realista em Portugal na sua primeira fase, Lisboa, ICP, 1977.
LOPES, scar., 5 Motivos de Meditao, Porto, Campo das Letras, SA, 1998.
RIBEIRO, A. Q., Quando ao Gavio Cai a Pena, Amadora, Livraria Bertrand, 1972.
RUSSO, R.M. de A., Arquivo Potico da Grande Guerra, Companhia Portuguesa Editora, Lda., s/ data.
FORSTER, E.M., Aspects of the Novel, London, Eduard Arnold, 1937.
TORRES, A. P. , (prefcio, organizao e notas), Novo Cancioneiro, Lisboa, Caminho, 1989.
REIS, C. e Lopes, A.C.M., Dicionrio de Narratologia, Coimbra, Livraria Almedina, 1987.
REIS, C., O Conhecimento da Literatura, 2. ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1997.
LUKCS, G., Balzac et le ralisme franais, Paris, F. Maspero, 1973.
LUKCS, G., Teoria do Romance, Lisboa, Editorial Presena, s/ data.
ALMEIDA, A.R. de, Notas para o Neo-Realismo, Lisboa., O Diabo 318, 1940.
O florir
do encontro casual
Palavras-chave: Domingos Monteiro, conto, os
filhos da noite
Keywords: Domingos Monteiro, short story, os
filhos da noite
1
lvaro de Campos, Poesia, edio de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assrio & Alvim, 2002, p. 309.
2
vd., por exemplo, os seguintes estudos: Joo Gaspar Simes, Crtica IV contistas, novelistas e outros prosadores
contemporneos, 1942-1979, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, p. 37-80; Antnio Quadros,
Crtica e Verdade, Lisboa, Clssica Editora, 1964, p. 181-186; Lus Forjaz Trigueiros, Novas Perspectivas, Lisboa,
Unio Grfica, 1969, p. 122-127; lvaro Ribeiro, Escritores Doutrinados, Lisboa, Sociedade de Expanso Cultural,
1965, p. 113-239; Massaud Moiss, O Conto Portugus, 2. ed., So Paulo, Editora Cultrix, 1981, p. 296-298;
Ana Cristina Martins de Lemos, (Re)descobrir Domingos Monteiro, Revisitar a Paisagem Social Portuguesa,
dissertao de Mestrado policopiada, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1999; Antnio Cndido Franco, A
Propsito da Poesia em Verso de Domingos Monteiro, in Domingos Monteiro, Poesia, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2000, p. 9-16; Lus Fernando Pinto Salema, Paradigmas do amor: percursos de
Eros na narrativa de Domingos Monteiro, in Antnio Manuel Ferreira (coord.), Percursos de Eros: repre-
sentaes do erotismo, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2003, p. 173-180.
3
David Mouro-Ferreira, Domingos Monteiro: Confessar e Contar, Boletim Cultural 3, VIII srie, Lisboa, Fundao
Calouste Gulbenkian, 1996 (1990), p. 11-15; Domingos Monteiro: na publicao de Histrias Castelhanas,
in Motim Literrio, Lisboa, Editorial Verbo, 1962, p. 103-106.
4
Segundo a desassombrada segurana de Eugnio Lisboa, o escritor Domingos Monteiro um dos nossos
maiores ficcionistas de sempre e, seguramente, o maior contista portugus do sculo XX. (Eugnio Lisboa,
Domingos Monteiro, in Portugaliae Monumenta Frivola, Lisboa, Universitria Editora, 2000, p. 139).
Antnio Manuel Ferreira, O florir do encontro casual, forma breve 1, 2003, p. 197-204 | 197
5
Fora do mbito restrito da literatura, Domingos Monteiro escreveu alguns livros e ensaios sobre diversos
assuntos: Bases da Organizao Poltica dos Regimes Democrticos (1931); A Crise de Idealismo na Arte e na
Vida Social (1933); Paisagem Social Portuguesa (1944); O Livro de Todos os Tempos Histria da Civilizao
(1951); O Homem Contemporneo (1957). de salientar ainda o seu interesse pelo jornalismo e pela edio,
bem como o trabalho desenvolvido no Servio de Bibliotecas Itinerantes da Fundao Calouste Gulbenkian,
uma organizao de elevado mrito cultural, fundada e dirigida por Branquinho da Fonseca. Aps a morte
de Branquinho, em Maio de 1974, Domingos Monteiro assume o cargo que havia sido desempenhado pelo
autor de O Baro.
6
Joo Bigotte Choro, Histrias Deste e de Outro Mundo, in Domingos Monteiro, Contos e Novelas, vol. I,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 18.
7
Uma desmontagem da propalada superioridade do romance em relao ao conto pode ser aferida a partir
da seguinte afirmao do romancista William Faulkner: Im a failed poet. Maybe every novelist wants to
write poetry first, finds he cant, and then tries the short story, which is the most demanding form after
poetry. And failing at that, only then does he take up novel writing. (Apud Thomas A. Gullason, The Short
Story: An Underrated Art, in Charles E. May, (ed.), Short Story Theories, Athens, Ohio University Press, 1976, p. 14.
8
Joo de Melo, Antologia do Conto Portugus, Lisboa, Dom Quixote, 2002.
9
Vasco da Graa Moura, Os Melhores Contos e Novelas Portugueses, Lisboa, Seleces do Readers Digest, 2003.
10
Veja-se a seguinte constatao de Luis Beltrn Almera: Las publicaciones libros y artculos dedicadas
a la teora del cuento son numerosas en comparacin con lo que ha sucedido respecto a otros gneros
literarios. Ni siquiera la novela ha reunido un nmero igual de publicaciones. (Pensar el cuento en los
noventa, in Jos Romera Castillo et al., (eds.), El Cuento en la Dcada de los Noventa, Madrid, Visor Libros,
2001, p. 547).
11
vd. Jean-Pierre Aubrit, Le conte et la nouvelle, Paris, Armand Colin, 1997, p. 81.
12
vd., por exemplo, Peter Frhlicher e Georges Gntert, (eds.), Teora e Interpretacin del Cuento, Bern, Peter
Lang, 1995; Irene Andres-Surez, La Novela y el Cuento Frente a Frente, Lausanne, Hispanica Helvetica, 1995;
Charles E. May, (ed.), The New Short Story Theories, Athens, Ohio University Press, 1994; Mariano Baquero
Goyanes, Qu es el Cuento, Buenos Aires, Editorial Columba, 1967; Dominic Head, The Modernist Short Story
A Study in Theory and Practice, Cambridge, Cambridge University Press, 1992; Carlos Pacheco e Luis B. Linares,
(eds.), Del Cuento y sus Alrededores, Caracas, Monte Avila Latinoamericana, 1993; Valerie Shaw, The Short Story
A Critical Introduction, 7. ed., London/New York, Longman, 1995; Jos Romera Castillo e Francisco Gutirrez
Carbajo, (eds.), El Cuento en la Dcada de los Noventa, Madrid, Visor Libros, 2001; ngel Zapata, El Vacio y el
Centro: Tres Lecturas en torno al Cuento Breve, Madrid, Ediciones Fuentetaja, 2002; Carmen de Mora, En Breve:
Estudios sobre el Cuento Hispanoamericano Contemporaneo, Sevilla, Universidad de Sevilla, 2000.
13
Veja-se, apenas como exemplo ilustrativo, o caso do romance Peregrinao de Barnab das ndias, de Mrio
Cludio (Lisboa, Dom Quixote, 1998), que j havia sido anunciado pelo conto De Barnab, Mestre-Cozi-
nheiro da Nau-Capitnia, na primeira Viagem a Caminho das ndias, inserto no volume Itinerrios, Lisboa,
Dom Quixote, 1993, p. 177-185; bem como as relaes de parentesco existentes entre A Cidade e as Serras
e o conto Civilizao, de Ea de Queirs. Um caso um pouco diferente representado pelo romance Jogo
da Cabra Cega, de Jos Rgio, que ter comeado por ser uma novela, como se depreende de uma carta
de Rgio a Branquinho da Fonseca, datada de 22 de Agosto de 1927. (vd. Lus Amaro, Cartas Inditas de
Jos Rgio, Colquio/Letras 38, 1977, p. 55).
14
David Mouro-Ferreira, Domingos Monteiro: Confessar e Contar p. 11.
15
Joo Gaspar Simes interessou-se por esta questo e, de forma um pouco oscilante, mas motivadora, coligiu
algumas consideraes interessantes nos vrios artigos que escreveu sobre Domingos Monteiro. (Crtica IV,
p. 37-80).
16
Sobre a questo terminolgica, vd. Anne-Marie Quint, Conto, histria, novela dun mot lautre, in Les
voies du conte dans lespace lusophone, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2000, p. 13-26.
17
O livro constitudo pelos contos seguintes: Os Filhos da Noite, O Regresso, Ressurreio, Pater-
nidade, A ladra.
18
Que digam de mim o que quiserem (porque eu no ignoro que a Loucura criticada acerbamente at
mesmo por aqueles que so mais loucos), sou eu contudo, eu s, que pelas minhas influncias divinas,
espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens. (Domingos Monteiro, Contos do Dia e da Noite, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 233).
19
Domingos Monteiro, Contos do Dia e da Noite, p. 242.
20
Massaud Moiss, O Conto Portugus, 2. ed., So Paulo, Editora Cultrix, 1981, p. 297.
21
lvaro de Campos, op. cit., p. 309.
22
Domingos Monteiro, op. cit., p. 249.
23
O tom de oralidade sugerido em vrios passos do conto: Mas, como ia dizendo, eu gosto da noite (p.
237); Fico horas a escut-los e a ouvir as suas histrias sem nexo (p. 238); Aos poucos vou reconhecendo
as vozes. Todas, ou quase todas, j me contaram a sua histria (p. 239).
24
David Mouro-Ferreira, Confessar e Contar, p. 14.
25
Domingos Monteiro, op. cit., p. 238.
26
A incapacidade de responder racionalmente s exigncias diurnas transforma o narrador num ser indis-
ciplinado e exausto. Repare-se nas seguintes passagens do conto: Ocasies h em que no durmo quatro
horas. Nesses dias, levantar-me um verdadeiro horror: a pele parece-me colada cama e sinto-me no
fundo dum poo donde s posso sair subindo por uma corda fora de pulso. Travo ento comigo dilogos
dramticos. () Acabo por me levantar sentindo que pesa sobre mim uma fatalidade invencvel e milenria,
com uma horrvel sensao interior de desconforto e desamparo. (p. 235-236).
27
lvaro de Campos, op. cit., p. 94: Vem, cuidadosa,/Vem, maternal,/P ante p enfermeira antiqussima, que
te sentaste/ cabeceira dos deuses das fs j perdidas.
28
Domingos Monteiro, op. cit., p. 238.
29
Id., ibid., p. 245.
30
Id., ibid., p. 248.
31
Id., ibid., p. 248.
Esta tonalidade lrica surge sobretudo nos momentos em que o narrador se expe, ora
de forma directa (De dia, sou um tmido34), ora de forma indirecta, atravs de reflexes
apresentadas em registo impessoal, mas que resultam da experincia, contribuindo, assim,
para a revelao da sua personalidade. Quando afirma, por exemplo, que A verdade muito
mais contingente do que parece. Nunca se diz quanto se quer: Diz-se por si, nos momentos
mais absurdos, mas no aos amigos ntimos35, tais consideraes ajudam a enquadrar a sua
prpria histria, constituindo, portanto, elementos de um retrato pessoal necessariamente
elptico, porque a economia restritiva do conto no permite nem grandes descries nem a
proliferao de discursos reflexivos que enfraqueam a concentrao narrativa. A narrao
do encontro com a prostituta serve tambm esta necessidade de desafogo, permitindo igual-
mente a inscrio de anotaes realistas, atravs da aluso vida das slfides das ruas36, s
pernas caprinas das Vnus de trottoir37. A histria da fmea esquiva38 enquadra-se no tom
geral do conto: tambm ela uma vtima do fatum; a sua histria cabe toda na seguinte
afirmao: Bem sei que triste ter lutado tanto e ter que continuar nesta vida. Mas no h
nada a fazer: destino39. Mas, tendo participado num encontro casual entre filhos da noite,
32
Antnio Manuel Ferreira, A Outra Cidade: os contos de Tomaz de Figueiredo, Brotria 157, 2003, p. 253-
259; O Involuntrio: um conto de Branquinho da Fonseca, Revista da Universidade de Aveiro/Letras 14,
1997, p. 61-70.
33
Id., ibid., p. 237.
34
Id., ibid., p. 237.
35
Id., ibid., p. 238. No conto Singularidades de Uma Rapariga Loira, de Ea de Queirs, surge uma afirmao
semelhante a esta: No direi os motivos por que ele da a pouco, j deitado, me disse a sua histria. H
um provrbio eslavo da Galcia que diz: o que no contas tua mulher, o que no contas ao teu amigo,
conta-lo a um estranho, na estalagem. (Joo de Melo, Antologia do Conto Portugus, Lisboa, Dom Quixote,
2002, p. 46).
36
Id., ibid., p. 239.
37
Id., ibid., p. 240.
38
Id., ibid., p. 241.
39
Id., ibid., p. 246.
40
A histria da mulher no levada at ao fim. Quando o narrador afirma, perto do remate, Mas nem sequer
esperei pela partida do barco: comeava a estar desinteressado (p. 248), o seu desinteresse pelo desenlace
constitui no s um meio de evitar uma possvel desiluso, mas tambm um sinal que atribui ao episdio
um valor meramente exemplificativo; prevalecendo o seu destino como tema central do conto.
41
Domingos Monteiro, op. cit., p. 249.
Resumo: O exerccio da tenso narrativa constitui, em Contos Inventariada por Italo Calvino entre as seis
do Gin-Tonic e Novos Contos do Gin (1973), a matriz da forma e
da leitura do conto brevssimo que assim mutuamente se
qualidades especficas da literatura, a rapidez d
implicam. afinal na miniatura do conto que Mrio-Henrique nome ao que h de relativo no tempo da fico
Leiria encontra a estratgia poderosa e mordaz de subverter o e de incomensurvel no paralelo com o chamado
poder. tempo real. A escala temporal da fico outra,
Abstract: In Contos do Gin-Tonic and Novos Contos do Gin os acontecimentos so escandidos pelo ritmo da
(1973), the narrative tension shapes the structure and the
reading act of the short short story, which are in fact mutually
tenso narrativa, para tanto dispondo de uma
dependent. It is precisely in the short storys cohesive variedade infinda de ritmos, movimentos lgicos
miniature that Mrio-Henrique Leiria finds the most powerful e nuances descritivas.
and sarcastic means of subverting power.
Da que, no entender de Calvino, o conto
sobressaia, mediante a sua preciso e concretude
de linguagem, como uma operao que se realiza sobre a durao, [] um sortilgio que
actua sobre o passar do tempo, contraindo-o ou dilatando-o1. Em suma, um exemplo maior
de literatura potencial, j que, na sua concentrao, exercita a agilidade desenvolta do estilo
e do pensamento, esse fulmneo percurso dos circuitos mentais que captam e unem entre
si pontos afastados do espao e do tempo2.
Sofre o conto de certa subalternizao face ao romance, definido como uma construo
diminutiva em termos narrativos ou at como uma etapa preliminar no caminho da maturi-
dade de qualquer ficcionista. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes sugerem que tal diminuio
pode encontrar origem remota nas razes socioculturais do conto popular, em confronto com
o romance, gnero que se reclama de uma cultura regida pela dade escrita/leitura, com tudo
o que ela implica, e j no da oralidade que muitas vezes preside ao conto popular3.
1
Italo Calvino, Seis Propostas para o Prximo Milnio Lies Americanas, Lisboa, Teorema, s.d., p. 50-51.
2
Id., ibid., p. 65.
3
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionrio de Narratologia, Coimbra, Almedina, 1987, p. 77.
Carina Infante do Carmo, Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria, forma breve 1, 2003, p. 205-213 | 205
But beyond the formal changes, beyond the changes simply deriving
from the short storys imitation of twentieth rather than nineteenth-
century behaviour, speech, and details of everyday life, the preemi-
nence of the short story as a modernist genre grew out of modern,
highbrow audiences acceptance of fragmentation as an accurate
model of the world, with a concomitant focus on being as in Woolfs
moments of being rather than the becoming that characterizes
the plot of the Romantic and the Victorian novel. The brevity that
marked minor to earlier generations became a badge of the short
storys superior representational capacity. For a brief period, in English
literature, at least, the short story became not just a prestige genre
but the genre that could be said to best represent the essence of
the age, as did drama at the end of the sixteenth century.4
The short story, like the sermon, asks readers to contemplate what
they experience while experiencing it; in other words, they are asked
to be reflective, self-examining, conscious of their apprehension of
story they read: the hallmark of the written form.5
O conto permite pois ajustar a posio do leitor estrutura narrativa concisa e gil, o
que se adensa ainda mais num seu subgnero contemporneo como o conto brevssimo ou
microconto. Em poucas frases, s vezes mesmo numa linha (caso do emblemtico texto do
4
Suzanne Ferguson, The Rise of the Short Story in the Hierarchy of Genres, in Susan Lehafer e Jo Ellyn
Clarey (eds.), Short Story. Theory at a Crossroads, Barton Rouge and London, Louisiana State University Press,
1989, p. 191.
5
William ORourke, Morphological Metaphores for the Short Story: Matters of Production, Reproduction, and
Consumption in Susan Lehafer e Jo Ellyn Clarey (eds.)., ibid., p. 201.
206 | Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo
6
Cf. Kurt Spang, La minimizacin de la narrativa periodstica y literaria, Cahiers dtudes romanes, nouvelle
srie n. 4 Transformations discursives 2, quipe dAccueil tudes Romanes, Universit de Provence (Aix-
Marseille 1), 2000, p. 267-280.
7
Cf. Juan Armando Epple, El cuento breve en Hispanoamrica, Literaturas.com. Revista literaria independente
de los nuevos tiempos (Relatos Hiperbreves), 2002,. http://www.literaturas.com/1Hiperbreve2002 (17 de
Maro 2003).
Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo | 207
Aps ter surripiado por trs vezes a compota da despensa, seu pai
admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da
esquina, seu pai p-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chfer fardado.
Era Director Geral das Polcias. Seu pai teve o enfarte. (p. 19)
8
Mrio-Henrique Leiria, Contos do Gin Tnico, 1973. Ed. ut.: 4. ed, Lisboa, Estampa, [1993]. Indicarei sempre as
pginas citadas no corpo do ensaio, entre parnteses.
208 | Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo
Aqui, a citao da autoridade sofre o efeito retroactivo do desenlace, que a torna objecto
de pardia, e de distncia irnica, invalidando-lhe a seriedade. A ltima frase corta abrupta-
mente a orientao apaziguadora at a delineada. Alm de ser mecanismo de brevidade, a
meno inicial deturpada por uma lgica amoral e mais grave at anti-tica, longe de
qualquer sentimentalismo. O contraste entre a citao e a absurda conjuno coordenativa
conclusiva portanto desautoriza o mandamento da Igreja em prol de um cru humor negro.
Em Novos Contos do Gin podem encontrar-se usos diferentes da citao que accionam a
tenso narrativa e condicionam a sequncia da leitura e a prpria interpretao. Lembro uma
cena de homicdio cujo relato tem um desenlace chocante graas modalizao cnica do
narrador (lcido pensamento) e a uma segurssima coeso textual:
Anfibiologia
Ainda conseguiu voltar superfcie e pr outra vez a cabea fora
de gua.
Ento deram-lhe mais uma bordoada com a p do remo, slida e
certeira, bem no alto da cabea.
Ao mergulhar definitivamente, engolindo gua e sentindo-se ir para
o fundo, teve um ltimo pensamento lcido: que felizes devem ser
os anfbios!. (p. 177)9
9
Mrio-Henrique Leiria, Novos Contos do Gin, 1973. Ed. ut.: 4. ed, Lisboa, Estampa, [1994].
Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo | 209
Neste ltimo caso, h o recurso inverso ao utilizado anteriormente e que refora muito
o nonsense: um dos protagonistas tem nome e nome de pessoa, o que torna mais surpreen-
dente a descrio morfolgica final.
Pelos exemplos avanados se confirma o quanto a contraco narrativa agiliza a leitura
e os seus movimentos de interpretao. Exibe com mais fora o quanto tnue a linha que
separa o moral do amoral, a autoridade da marginalidade, a razo da alienao.
A abrir a sequncia de cinco textos intitulados Saudade da infncia, o conto A flber
trabalha a fora sarcstica do eufemismo, especialmente concentrado na concluso:
Ainda me lembro. O melhor presente que tive foi sem dvida aquela
flber. Toda a garotada da terra colaborou no meu entusiasmo. amos
para o campo, pam pam, pardal aqui, pam pam, pardal ali.
A nica arrelia que tive com ela foi quando um dia, sem querer, pam,
acertei em cheio na tia Albertina.
Para castigo no me deixaram ir ao enterro. (p. 103)
10
Cf. Edgar Allan Poe, On the aim and technique of the short story (1842) in Eugene Current-Garcia e Walton
R. Patrick, What is the Short Story?, Glenview and Brigthon, Scott, Foresman and Company, 1974, p. 7-10.
11
Cf. Guillermo Samperio, Para dar en blanco: la tensin en el cuento moderno, El cuento en red. Estudios
sobre la ficcin breve, n. 6, Outono 2002, p. 3 (13 p. ) http://www.cuentoenred.org (17 Maro 2003).
210 | Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo
12
O hibridismo de gneros, a referncia histrica a ditaduras como o salazarismo e a subverso discursiva da
ordem instituda fazem coincidir este conto em particular com Dinossauro Excelentssimo, publicado um ano
antes. A Cardoso Pires dessacraliza o ditador e a mentira do discurso totalitrio, ao fazer a exibio dialgica
da linguagem e o rebaixamento grotesco do Poder.
Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo | 211
13
Pouco depois chegou Abril. O autor, como j informou na nota 2. edio dos Contos do Gin-Tonic, parou
de escrever porque lhe pareceu haver coisas mais a fazer. At deixou de andar chateado. Tudo era vivo e
as pessoas voltaram a rir. (p. 19)
212 | Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo
Tenso narrativa e subverso do poder no conto brevssimo de Mrio-Henrique Leiria | Carina Infante do Carmo | 213
O monstro-baro, a bela-adormecida
e a rosa mstica
Palavras-chave: Branquinho da Fonseca, O Baro,
conto, misticismo, grotesco.
Keywords: Branquinho da Fonseca, O Baro, Short
Story, mysticism, grotesque.
1
Cf. Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, 17. edio, Porto, Porto Editora,
1996, p. 1016.
2
Ildio Rocha (coord.), Dicionrio Cronolgico de Autores Potugueses, Vol. IV, Mem Martins, Publicaes Europa-
Amrica, 1998, p. 228.
3
Francisco Cota Fagundes refere a histrica, a filosfica e a histrica-psicolgica, para s mencionar as
principais. (A visin esperpntica na elaborao esttica de O Baro, Colquio/Letras 68, 1982, p. 26).
4
Esta caracterstica ter levado Lus de Sttau Monteiro, em 1965, a adaptar o conto para o teatro. Tambm
Francisco Cota Fagundes (art. cit., p. 32) observa que as partes constitutivas da obra sugerem uma estrutura
dramtica, chegando mesmo a exemplificar com um excerto em que os parnteses funcionam como
Anthero Monteiro, O monstro-baro, a bela-adormecida e a rosa mstica, forma breve 1, 2003, p. 215-235 | 215
indicaes cnicas. Sobre esta questo, vd. Maria Saraiva de Jesus, O Baro de Branquinho da Fonseca e de
Lus de Sttau Monteiro: da narratividade hermenutica, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2000.
5
Edgar Allan Poe, Histrias de Mistrio e Imaginao, Livros RTP n. 15, Lisboa, Editorial Verbo, s/d.
6
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionrio de Narratologia, 7. edio, Coimbra, Almedina, 2002, p. 78-81.
7
Esta primeira edio foi includa na coleco de Novelas Inqurito e o frontispcio exibia a indicao: As
melhores novelas dos melhores novelistas.
8
Antnio Manuel Ferreira, A Narrativa de Branquinho da Fonseca: os lugares do conto, Dissertao de douto-
ramento policopiada, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2000, p. 132.
Manuel Laranjeira, entre muitos autores, considera, porm, que Deus pode no ser o
objectivo primeiro do mstico e pode ser substitudo por outras entidades ou valores: para
ele existe um misticismo religioso e um misticismo laico. Falando das caractersticas dos
msticos em geral, observa:
A essncia reside, pois, no ideal. Ora, no ambiente estranhssimo de O Baro, onde todas
as barreiras se desmoronam (no apenas as dos montes, mas tambm as dos mais ntimos
segredos, dos tabus, dos corpos e das almas) e onde todas as personagens se afiguram
grotescas e difusas, porque se movimentam numa penumbra espessa, parece haver pelo
menos um elemento de coeso: uma pequenina luz, como diria Jorge de Sena, que resiste
e se esfora por romper da lama e juntar-se s estrelas do firmamento; um chamamento
mstico, qualquer que ele seja, que intenta atrair os mortais ao mais alto e mais alm; enfim,
um constante apelo ao que existe de grotesco e de animal no humano para que ascenda
beleza do Bem ou ao bem da Beleza, que uma e nica coisa parecem ser.
Seguindo a narrativa, ainda que a passos largos, vejamos como essa ascenso (ascese?)
se vai concretizando (ou no):
9
A. B. Sharpe, M.A., Mysticism: Its True Nature and Value, Jacques Maritain Center, disponvel na web in
<http://www.nd.edu/Departments/Maritain/etext/mystic.htm>.
10
Henri Bergson, Les Deux Sources de la Morale et de la Religion, 8.me d., Paris, Quadrige/PUF, 2000, p. 233
11
Id., ibid.
12
Manuel Laranjeira, A Doena da Santidade in Obras de Manuel Laranjeira, Porto, Edies ASA, 1993, p. 52.
ento que a aco propriamente se inicia, pois ser pouco depois, nesse lugar, que ir
conhecer o Baro, com quem empreender a viagem que verdadeiramente interessa, aquela
estranha aventura que terminar no dia seguinte, com o Sol j alto.
E assim a narrativa se oferece claramente dividida em dois planos o inferior e o superior
, a que correspondem a noite e o dia, termos bem definidos na Criao, sob uma viso
maniquesta, o segundo como algo bom, o primeiro como algo mau e sempre referido como
trevas, termo muitas vezes associado s maldies profticas14:
Deus disse: Faa-se a luz! E a luz foi feita. Deus viu que a luz era
boa e separou a luz das trevas. Deus chamou luz dia, e s trevas
noite. (Gnesis, 3-5)
A chegada ao solar permite ao narrador reflectir sobre os seus conceitos de vida, que
tambm ele separa em duas dimenses. Para ele, o palcio corresponde ao seu sonho de
conforto, intimidade, bem estar: de estabilidade na vida. Independncia e sossego, possi-
bilidade de fazer a vida como seja ao nosso gosto! So os meus ideais impossveis (), que
especifica de outro modo logo a seguir:
13
Neste trabalho, as citaes de O Baro sero sempre extractadas da seguinte edio: Branquinho da Fonseca,
O Baro, Lisboa, Europa-Amrica, 1973.
14
Sirva de exemplo a profecia de Sofonias, que alguns associaram j aos acontecimentos de 11 de Setembro
de 2001, em Nova Iorque: O grande dia do Senhor est perto. Est perto, e se apressa muito a voz do dia
do Senhor; amargamente aclamar ali o homem poderoso. Aquele dia um dia de indignao, dia de
angstia e nsia, dia de alvoroo e de desolao, dia de trevas e escurido, dia de nuvens e de densas
trevas, dia de trombeta e de alarido contra as cidades fortes e contra as torres altas. E angustiarei os homens,
e eles andaro como cegos, porque pecaram contra o Senhor; e o seu sangue se derramar no p, e sua
carne como esterco. (Sofonias, 1: 14 -17)
outra vez a aluso a duas dimenses que se contrapem: a fsica ou material, ligada
aos instintos primrios, e a outra, que se adivinha numa vida de asceta, amante do silncio,
do recato e da solido, e que implicar uma maior elevao do esprito, como se pressupe
do que dito a seguir:
Mas tambm sou uma espcie de mstico sem coragem para renunciar.
O esprito manda-me quebrar estas algemas que trago nos pulsos
e ir para os montes, vaguear entre as coisas da natureza, a v-las
com o deslumbramento de quem comeasse a vida em cada dia.
As flores, os bichos, o sol, a chuva, as fontes, as rvores, as aves, o
azul do cu, as nuvens brancas que o vento leva l ao longe, o mar,
ah! tudo isso! Mas falta-me no sei que fora, no sei que convico
de conquista ou de renncia, pois para conquistar uma coisa preciso
renunciar primeiro a muitas outras. Quantas pessoas, porm, tenho
encontrado que so como eu, quase como eu: negadas a si prprias,
paradas no encontro das foras contrrias, afinal sem a deciso de
quem simplesmente caminha para algum stio onde pensou chegar.
(p. 20 e 21)
O Inspector acha-se, pois, vtima de uma fora, que o amarra s coisas mesquinhas, porque
rentes ao cho, e o impede de se alar, como desejaria, se tivesse coragem, a outros espaos
que tendem para o infinito (o sol, as aves, o cu, as nuvens, o vento, o mar) ou so manifes-
taes livres de uma Natureza livre.
Falta-lhe, contudo, como reconhece, plena convico e a indispensvel capacidade de
renncia para realizar o seu impulso de comunho com a Natureza, esse misticismo csmico
e pantesta de que fala Jean Claude Bologne, quando se refere a Rousseau e Jean-Paul Richter15.
H nele uma sensao que aponta para o eterno, sonha a ascenso da personalidade humana
at divindade16, qualquer que ela seja, mas falta-lhe dar o salto a que alude Henri Bergson.17
15
Jean Claude Bologne, Le Mysticisme Athe, Monaco, ditions du Rocher, 1995, p. 63.
16
Esta uma das definies de misticismo dadas por Manuel Laranjeira: op. cit., p. 18.
17
Cf. nota 11.
Com o Baro, segundo o narrador, ocorria o mesmo combate entre foras antagnicas,
mas havia diferenas substanciais, tendo em conta que uma vida de vcios o afundara na
lama de onde conseguia, s em relances espordicos, olhar para o alto:
Essa afabilidade notara-se, alis, at no modo como recebera o seu hspede, precipitando-
se para a aldeia nas abas da serra, para o vir buscar de carro na prpria noite em que o
Inspector ali chegara.
Por outro lado, o fruto da videira e do trabalho do homem usado at no ritual cristo
da missa, simbolizando o sangue sacrificial do Cordeiro de Deus, e corresponde a um dos
processos orgacos utilizados pelos povos primitivos no processo de aproximao divindade:
a intoxicao. Isso mesmo nos explica Roger Bastide, falando das caractersticas do misticismo
primitivo:
6. Vou regenerar-me
O Baro era tambm um mstico primitivo. Parece que a frase nuclear do conto, repetida
mais adiante, aquela que mais faz mover as personagens, a que d conta das suas intenes
de modificar-se e reabilitar-se, apesar da pouca convico com que pronunciada:
Tinha, afinal, muito de que arrepender-se. Com os vapores etlicos, iria derramar a confisso
outro passo de aproximao comunho com o divino dos mais horrendos crimes, de
que foram vtimas as mulheres da sua vida, e que parecia ir expiando agora com a impossi-
bilidade de se chegar prximo dEla, aquela de quem nem digno de falar, tudo por causa de
rivalidades familiares (Meu pai tinha-lhes dio, a Ela no, ao pai, s a ele ficaremos a saber
mais l para o fim), que fazem lembrar as dos Capuleto e dos Montquio no Romeu e Julieta.
18
Roger Bastide, Les Problmes de la Vie Mystique, Paris, Quadrige/PUF, 1996, p. 26.
Tinha asco de si prprio, talvez remorso, pois at a um animal deve pesar o mal que faz.
o que, pelo menos, assevera La Mettrie:
No era fcil romper com aquela medievalidade, aquela ferocidade de algum que vivia
num covil, nunca tomara a vida a srio e, bem pelo contrrio, h muito afocinhara na lama
do vcio. Bastava reparar quanto a vida de deboche que levara tinha afectado o conceito que
fazia da Mulher, na qual v o seu primeiro inimigo:
19
La Mettrie, O Homem-Mquina, Lisboa, Editorial Estampa, 1982, p. 75-77.
Tambm o conceito da prpria vida fora influenciado negativamente. Para ele a vida no
tinha o mesmo significado que para o Inspector. A vida devorar Sim e beber. A vida
um banquete pantagrulico, mesmo quando, a uma enorme mesa, se sentam apenas dois
o anfitrio e o seu conviva, que era s o pretexto, s para no falar sozinho, como um doido.
No entanto, ter ali algum com quem falar, a quem revelar-se em confidncias, narrar as
suas peripcias e aventuras tinha algo de festivo, porque, alm do mais, revivia, comemorava
o passado.
Bakhtine, falando de Pantagruel em Rabelais e dos seus banquetes, diz que essas imagens
Trata-se, porm, de uma vitria que nada tem de espiritual, que no parece representar,
para o autor russo, uma qualquer conquista mstica:
Assim, o Baro comemorava o passado, fazendo-o reviver nas palavras, mas tambm
preparava o futuro: o alimento e a abundncia so a garantia de renovao do sangue e da
Humanidade, preparao para enfrentar o dia de amanh.
Com o vinho, tantas vezes smbolo do sangue, como vimos, ocorre o mesmo e Bakhtine,
aludindo aos excessos, confirma-o, transcrevendo do Recueil dHippocrate:
20
Mikhal Bakhtine, LOeuvre de Franois Rabelais et la Culture Populaire au Moyen ge et sous la Renaissance,
Paris, Gallimard, 2001, p. 279.
21
Id., ibid., p. 280.
22
Id., ibid., p. 284.
Talvez por isso mesmo, o Baro caminhava, confiante, para a embriaguez, elogiando o
divino nctar, como se recitasse uma ode de Anacreonte, de Alceu ou uma rubai de Omar
Khayyam (O nosso tesouro? O vinho. O nosso palcio? A taberna. Os nossos fiis compa-
nheiros? A sede e a embriaguez.24):
Faltava meia hora para a meia-noite. Os caprichos do Baro (Quem manda aqui sou eu.)
determinam a instituio da bebedeira, que se alcana mais facilmente com a mistura de
vinhos. E ele fora buscar garrafas de marcas e qualidades diversas, incluindo um Porto de 96
anos, que fizera derivar a conversa para o tema das mulheres. Vinhos e mulheres, uns e outras
das mais variadas provenincias, tudo isso constitua a orgia possvel na antecmara da
embriaguez.
23
Id., ibid., p. 285.
24
Omar Khayyam, Rubaiyat Odes ao Vinho, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p. 24. No prefcio da verso
portuguesa de Fernando Castro, E. M. de Melo e Castro explica que rubayiat o plural da palavra persa
rubai (p. 6).
9. A tuna
H muito o Baro exigira a Idalina que mandasse chamar a Tuna e, quando ouvem, ele
e o seu hspede, ao fundo do corredor, ainda longe, um barulho como o rolar de um trovo
que se aproxima, inicia-se a o episdio mais estranho e perturbador do conto.
Tinham ocorrido, j desde o incio, momentos que tambm o foram, aces e reaces
inesperadas e absurdas, mudanas de humor inexplicveis, ameaas permanentes de conflito,
mscaras que caram, sbitas transformaes (com a recorrncia da locuo de repente),
efeitos surpreendentes at ao nvel da narrao (a professora objecto da sindicncia descrita
como uma mulher forte, optimista e infeliz). Enfim, o leitor sente ter entrado num mundo
estranho, mesmo que o narrador no o tenha advertido de que est na presena daquele
homem estranho, no seu velho solar com paredes que tm fantasmas.
The stranged world so as palavras com que Wolfgang Kayser define o grotesco26,
algo que torna difcil viver nesse ambiente (the grotesque instills fear of life rather fear of
death27) e sobretudo neste episdio que essa sensao se adensa.
O recrudescer gradativo daquele rudo transmite uma enorme inquietao espera do
que ia entrar por ali dentro. At que surgiu, num passo lento, um indivduo magro, com um
pano preto sobre o olho esquerdo, embuado num grande capote negro. O sombrio da cor,
o facto de se tratar de um embuado, o pormenor de trazer tapado o olho esquerdo, o lado
associado a algo sinistro, assumem um carcter fortemente ominoso. quele passo lento
25
Apud Roger Bastide, op. cit., p. 7.
26
Wolfgang Kayser, The Grotesque in Art and Literature, Bloomington, Indiana University Press, 1963, p. 184.
27
Id., ibid., p. 185.
Aqueles figurantes eram, afinal, de outro tempo e de outro lugar e aquela lentido e os
gestos exageradamente reverentes mais parecem movimentos de marionetas. Mas logo sofrem
outra transformao: agora so ursos, com aqueles plos hirsutos e aquele caminhar bam-
boleado. Esta fantochizao e animalizao transmitem desassossego. E o silncio abrupto
que se seguiu quela entrada tonitroante no traz mais serenidade. Com o inspector ame-
drontado, espera de uma palavra tranquilizadora, opera-se um fenmeno de cissiparidade,
pelo qual a sua personalidade se biparte e duplica, ficando o seu duplo a observ-lo: eu
via-me melhor a mim prprio do que via os outros. Kayser28 observa casos de destruio da
personalidade nesse mundo do grotesco, como outros de distoro da forma e do tamanho
natural dos objectos, o que ocorre logo de seguida na narrativa, com a criada a colocar na mesa
trs grandes copos, de litro cada um, que ir encher com vinho tinto, ao lado de vrias broas.
Trata-se de um ritual respeitado por todos com o mais rigoroso silncio, como prepa-
rao de um altar para a cerimnia que, da a pouco, ter lugar e que, com estes ingredientes
(vinho e po), se assemelha em tudo a uma comunho crist.
Antes, porm, como num espectculo de mgica, debaixo de todos aqueles capotes
saram os mais variados instrumentos e a msica que deles brotou, tal era a afinao e a
alegria, no s fez com que o Baro se entregasse, inesperadamente, a um ritual de guerra
africana, como desencadeou no Inspector uma sensao de arrebatamento, que se pode
identificar com o xtase mstico, religioso ou no. do conhecimento geral a existncia de
artistas que se entreguem sua obra num verdadeiro xtase, como aquela perfeita comunho
existente entre os dedos do virtuose e as cordas do violino. Porque se identifica com a unidade
sonhada entre o mstico e a divindade, chamam-lhe alguns misticismo de performance. Mas
Bologne conta que, mesmo sendo ateu, viveu ele prprio vrias vezes, de modo espontneo
e no provocado, a experincia suprema do xtase ao ler Mallarm ou a ouvir Beethoven:
Quando o Baro decidiu, a msica, os solos e os coros deram lugar j aludida cerimnia
da comunho secular, como lhe chama Leland Guyer30, finda a qual se fez ouvir mais uma
28
Wolfgang Kayser, op. cit., p. 185.
29
Jean Claude Bologne, op. cit., p. 16 s.
30
Leland Guyer, O Baro and the Dark Night of the Soul, Hispania 3, Vol. 71, 1988, p. 541. Neste trabalho, o
autor faz tambm uma leitura mstica de O Baro, luz do poema En una noche oscura de S. Joo da Cruz.
Aquele quase xtase do narrador no o tornou catalptico. Bem pelo contrrio: saltou
para o meio da sala e ps-se a danar com o Baro e com a criada um bailado animalesco
e demonaco: regressavam os ursos bailarinos e o dono da casa ficaria estendido no solo,
exausto, como um monstro ferido. Neste rebaixamento colectivo, tambm a criada se estatela,
ficando numa posio pouco decente, e o Inspector (veja-se o ridculo: um inspector!), enton-
tecido, ficou tambm sentado no cho. No era possvel descer mais baixo
E h novo sacramento: o baptismo do Baro, sobre cuja cabea um criado comeou
lentamente a despejar uma cascata de vinho branco. Enquanto o Inspector ri s gargalhadas,
com o exagero dum completo desmoronar de todas as minhas limitaes e preconceitos,
mas feito num frangalho e num boneco (de novo a fantochizao), o Baro, parecendo
renovado pela aco do baptismo sacrlego (afinal no era gua), transforma-se no seu
fantasma, um autmato de ferro e lata:
Mas vi-o crescer como um gigante e reparei que ele tinha na cara
e no fato uns estranhos reflexos metlicos. () Baixou-se sobre mim,
pegou-me por um brao e levantou-me do cho to facilmente como
se eu fosse um boneco de papel. (p. 50)
31
Wolfgang Kayser, op. cit., p. 187.
32
Francisco Cota Fagundes, A visin esperpntica na elaborao esttica de O Baro, p. 28 ss. O autor analisa
pormenorizadamente neste trabalho as possveis influncias do teatro de Valle-Incln neste conto de
Branquinho da Fonseca.
33
Antnio Manuel Ferreira, op. cit., p. 317-375.
por isso que, daquele cho da sala, o anfitrio e o seu conviva erguer-se-o para se
abalanar a um lugar mais elevado.
Kayser refere:
34
Roger Bastide, op. cit., p. 26.
35
Id., ibid., p. 28 s.
36
Wolfgang Kayser, Anlise e Interpretao da Obra Literria, 7. edio, Coimbra, Armnio Amado Editora, 1985,
p. 426-427.
37
Wolfgang Kayser, The Grotesque in Art and Literature, p. 188.
Ora, todo este episdio respira um ambiente demonaco. Comea nos rudos atroadores
que mais parecem trovoada e perturbam o silncio do palcio. Continua na figura dos campnios
embuados (no so clebres os disfarces do Diabo?) e em todo aquele ritual que envolveu
uma comunho e um baptismo seculares, uma orgia feita de tudo quanto est conotado com
o pecado e os instintos mais primrios (o vinho, a msica, a dana).
O Baro surge claramente como personificao do Diabo:
No por acaso que o documento mais recente que regula, na Igreja Catlica, a prtica
dos exorcismos De Exorcismis et Supplicationibus Quibusdam continua a considerar que
falar lnguas estrangeiras () e mostrar uma fora incompatvel com a idade e o estado de
sade so ainda razes suficientes para se recorrer ao exorcismo.39 Alis, segundo a Igreja, o
dom espontneo das lnguas est reservado apenas a quem tocado pelo Esprito Santo,
como aconteceu no Pentecostes.
O Baro enfiou mais uma vez o brao no do seu hspede e comeou a arrast-lo l
para onde o chamava a obsesso.
Esta obsesso parece corresponder ao estreitamento do campo da conscincia por parte
dos espritos msticos, a que aludem autores como M. Murisier e Manuel Laranjeira, muito
prximos nas suas teses que, alis, apresentam ttulos muito anlogos, respectivamente Les
Maladies du Sentiment Religieux e A Doena da Santidade. Sucintamente, poder explicarse
pela necessidade que o esprito mstico tem de procurar o apaziguamento psquico, a alegria
38
Susan Corey, The religious dimensons of the grotesque in literature: Toni Morrisons Beloved in James Luther
Adams, Wilson Yates, The Grotesque in Art & Literature Theological Reflections, Grand Rapids, Michigan/
Cambridge, William B. Eerdmans Publishing Company, 1997, p. 228-229.
39
Cf. Mrio Robalo, A Queda do Diabo, Expresso Revista, 13/2/99.
Depressa o Inspector se v abandonado pelo Baro que voltou para trs. Entregue
sua sorte, v-se coagido a fazer uma srie de opes relativamente aos caminhos a tomar
(caminhos, veredas, sendas, atalhos so termos privilegiados pela linguagem bblica, sempre
alusivos via conducente perfeio e salvao).
Primeiro, opta pelo caminho oposto ao do Baro, como sinal de revolta contra o seu
despotismo e entoando a Marselhesa (contre nous de ta tiranie); depois, encontra um
alto porto de ferro, que no consegue transpor e para alm do qual se via a estrada branca.
No se trata de uma qualquer estrada, mas da estrada branca. O branco ope-se cor
negra por tudo quanto esta representou at agora de sinistro. A estrada branca o caminho
da virtude, inacessvel por causa de um porto de ferro: os mltiplos obstculos, incluindo
os agouros das aves nocturnas (o resfolegar das corujas numa torre) que no anunciam
nada de bom. Depois a existncia de outros caminhos confundem o Inspector.
Idalina surge-lhe na noite num dos carreiros do pomar. a tentao. A iminncia do
pecado e de o hspede vir a trair o seu hospedeiro, o que no chega a acontecer.
A criada conduz o visitante ao seu quarto. Ele acende um cigarro e adormece na cama.
Quando acorda, aos berros do Baro, o leito estava a arder. O Baro, que andava sua procura,
salvara-o e ria s gargalhadas: parecia que vinhas do Inferno!.
Do Inferno ningum regressa. Fora mais uma forma de purificao, desta vez pelo fogo.
isso o que significa a palavra Purgatrio, lugar de expiao dos que, no estando totalmente
isentos de pecado, tm o cu garantido: a viso da bem-aventurana.
No entanto, aquela longa preparao para essa viso ltima no parece ainda concluda.
H ainda rituais a cumprir: h champanhe a beber, para festejar a vida salva, h brindes a
fazer, que se transformam em verdadeiras confisses, como o abrir das nossas almas e so
um autntico alvio. Pela primeira vez, o Inspector narra a sua melanclica histria de amor,
que inunda de lgrimas os olhos de ambos.
Agora, sim, parece que esto prontos. Pelo menos o Baro, que leva o amigo recente
pelo brao, e segue como quem obedece a um pensamento: um autmato gigantesco e
desmedido como o sonho em que est preso, num xtase, o seu olhar distante e fixo a
tal obsesso.
40
Cf. Roger Bastide, op. cit., p. 159 ss. sobre a tese de M. Murisier; cf. tambm Manuel Laranjeira, op. cit., p. 35 ss.
Saem para a noite, irmanados, ao que parece, no mesmo ideal. Esto no meio de um
jardim e o Baro comeou a apanhar violetas. Tal gesto s por si denota sensibilidade (no
ele um poeta?). Ajoelhado, a colher aquelas flores humildes, smbolo da modstia, o seu tama-
nho gigantesco de h momentos deve ter-se reduzido: est talvez um pouco desatento (por
vezes ele e o companheiro parecem perder o rumo), a pensar mais em si prprio, um pobre
homem, que s vezes se calca com nojo, do que propriamente numa eventual destinatria.
quando o outro lhe pergunta para quem so que atenta no que Ela representa para
ele. Opta, ento, por uma rosa, porque levar-lhe violetas seria piegas. Uma rosa smbolo
da beleza e da perfeio. Saberemos depois que colher uma rosa branca, flor que o narrador
associar, como , alis, usual, pureza. Destina-se ficamos tambm a sablo, aps um
dilogo aparentemente absurdo, a Ela, com quem o Baro j quis um dia fugir, mas cuja
inocncia deve ter respeitado (E foi por pouco por to pouco!), porque tambm ele, se
sentia diante dela uma criana.
Para salv-la perdeu-se a ele: espojei-me no lodo. Fazia-me bem. Quanto mais lodo
melhor Dava-me distncia adormecia o leo na jaula.
O seu nome esconde-o, pois nem digno de o pronunciar, atitude que se equipara do
crente perante o seu Deus, como Joo Baptista, que se considerava indigno de desatar a
correia da sandlia do Senhor.
Avanam entre as sombras da noite. A rosa branca (e as rosas que tambm o Inspector
colhera e no tinham, afinal, prstimo algum) contrastam com a escurido. de novo o
conflito alvinegro, presente em toda a narrativa: o espiritual e o material, o celeste e o terreno,
a natureza divina e a natureza humana. Dali a pouco, o Baro segurar numa mo a rosa e
na outra a pistola, que ir disparar para afugentar os criados, que o vigiam, ao que parece.
Chama-lhes canalhas (p. 66), expresso que se afigura equivalente a imbecis (p. 30), esta
porventura dirigida aos mesmos destinatrios, quando diz que quer regenerar-se, mas se sente
manietado por algo (por algum?).
Com o clarear da madrugada, chegaram finalmente s imediaes de uma quinta: era
ali Falam de amor e de dio, mais dois contrastes como o branco e o preto e, afinal, aquilo
que faz mover a Humanidade. O Baro recorda a inimizade entre as famlias dele e dEla. O
dio do pai dele para com o pai dEla deitara tudo a perder. Era agora um escravo com esta
alma de rei. Um escravo e um rei na mesma carcaa podre. Uma flor e um escarro.
Sempre a obsesso pela antonmia: o supremo e o nfimo. E ainda mais: O amor que
nos salva ou que nos perde.
As frases so entrecortadas, por efeito da bebedeira e, por isso, mais uma vez, a histria
no tem contornos ntidos.
No entanto, no difcil adivinhar que essa qualidade de escravo lhe advm de uma
renncia:
Julgas que eu era assim como sou hoje? Fiz-me assim para Ela no
se arrepender, para Ela no ser mais infeliz (p. 71)
Um mstico tem que saber renunciar por uma causa. E o medievo Baro, que certamente
conserva alguns valores cortesos, soube abdicar por amor. Como diz Laranjeira:
O Baro, porm, sacrifica a prpria dignidade. No tem outro caminho. Sobrevive; melhor:
subvive (Fui outro nesse tempo E esse que foi eu.), distanciando-se dEla, mas, para
esquecer, distanciando-se tambm das normas morais. por isso que reconhece:
No sei amar, mas sei o que Quando digo esta palavra di-me
aqui dentro. Mas digo. Di, mas digo. uma facada Nunca repa-
raste que tem assim uma luz como um sol? Gostas mais do Sol
ou das estrelas? Eu no, eu gosto mais das estrelas (p. 71)
Do lodo onde caiu, o poeta, mstico e amante, prefere ao Sol as estrelas, que so mais
longnquas e mais sobranceiras, prefere ao dia a noite escura e grvida de segredos, prefere
indiferena a dor irreparvel, prefere ao amor que salva o amor que perde
Restava-lhe apenas a beleza de um gesto que ficasse a atestar, nem que fosse pelo tempo
efmero da vida de uma rosa ftil, aquele amor ainda vivo de algum assassinado que
encontrara ainda fora e coragem para ir depor naquela alta janela o smbolo e simultnea
homenagem pureza e perfeio.
J o Inspector ficara para trs com a recomendao de no sair dali.
H momentos, o Inspector achara aquela rosa ridcula. O Baro partira ofendido e ele ali
ficara, tambm ofendido, confrontando-se mais uma vez com antagonismos, com as ideias
que lhe tumultuavam na cabea, uma cavalgada de clares e sombras, entre vises nebulosas
ou de uma nitidez que feria, mas num outro eu libertado. Reconsiderando, porque os vapores
etlicos comeavam a desaparecer, encontrou, afinal, beleza no gesto e nas palavras do seu
hospedeiro, que era, de facto, tambm um mstico, mais pelo lado da beleza que pelo lado
da virtude. Manuel Laranjeira, para quem o misticismo no est apenas associado s crenas
religiosas, como se disse, escreveu:
41
Manuel Laranjeira, op. cit., p. 37.
42
Manual Laranjeira, Carta a Antnio Carneiro, s/d, Cartas de Manuel Laranjeira, Lisboa, Relgio dgua, 1990,
p. 102.
O narrador conta agora aquilo a que no assistiu: a viso da divindade no est destinada
a qualquer mortal. No por ele que a Bela espera, adormecida enquanto no chegar o
Prncipe Encantado. Ela, afinal, espera pelo Monstro, aquele que, por amor dEla, se fez um
monstro, que, por amor dela, capaz de escalar a muralha do Castelo, onde h um tesouro
guardado e bem defendido, que ele sabe, de antemo, que nunca ser seu.
Para alm da renncia, foi capaz ainda de unir a beleza daquele gesto, portador de uma
rosa mstica, beleza que ali mora, sujeitando-se ao risco de ser morto.
14. Um tiro
Foi, alis, por um triz: um ombro atingido e uma fractura craniana. Isto soube-o o Inspector,
estava o Sol j alto, quando chegou ao solar, cujo caminho encontrara a custo e onde fora
ter, graas a um moleiro (o seu verdadeiro anjo da guarda) que lhe cedera um burro para
aguentar a caminhada. Mais parecia Jesus Cristo, montado num jerico, a entrar em Jerusalm,
a cidade santa, dias antes de se unir ao Pai, alcandorado numa cruz, no alto do Glgota, num
gesto de ddiva (salvou os outros, mas no pde salvar-se a si mesmo dizem as Escrituras).
Tambm o Baro deixara uma rosa l no alto ( Mas ficou na janela), libertando-
se assim do seu eu egosta, mas possivelmente sem ter entrevisto o rosto da sua divindade
sem nome. Tambm sofrera a dor na carme e derramara o sangue do martrio por uma causa.
A ascese do mstico assim: faz-se por lentos patamares e ele no atingiu ainda o nvel
teoptico. Bastide ajuda-nos a compreender porqu:
43
Roger Bastide, op. cit., p. 103-104.
Concluso
Bibliografia
ADAMS, James Luther e YATES, Wilson, The Grotesque in Art and Literature: Theological Reflec-
tions, Grand Rapids/Cambridge, William B. Eerdmans Company, 1997.
44
Cf. Wolfgang Kayser, The Grotesque in Art and Literature, p. 58.
A Casa do Fim:
um conto de Jos Rio Direitinho
Palavras-chave: literatura portuguesa, conto, Jos
Rio Direitinho, A Casa do Fim
Keywords: Portuguese literature, short story, Jos
Rio Direitinho, A Casa do Fim
1
Jos Rio Direitinho, A Casa do Fim, 2.ed., Porto, Edies Asa, 1999.
Catarina Alexandra Monteiro de Oliveira, A Casa do Fim: um conto de Jos Rio Direitinho, forma breve 1, 2003, p. 237-242 | 237
2
Helena Vasconcelos, The rapturous talent of four portuguese writers, [http://www2.storm_magazine.com/
arquivo/Artigos_Julho_Agosto/Artes/a_ago2001_1d.htm].
3
Id., ibid.
238 | A Casa do Fim: um conto de Jos Rio Direitinho | Catarina Alexandra Monteiro de Oliveira
4
Antnio Manuel Ferreira, A Casa do Fim: Os contos de Jos Rio Direitinho, Revista Letras 54, Curitiba, 2000,
p. 41.
5
Id., ibid., p. 41.
6
Id., ibid., p. 38.
A Casa do Fim: um conto de Jos Rio Direitinho | Catarina Alexandra Monteiro de Oliveira | 239
2. Para alm de dar ttulo colectnea, o conto A Casa do Fim , sem dvida, o mais
extenso de todo o volume.
Estrutural e semanticamente fragmentrio, o conto tem incio com o regresso do co-
guia do Velho Casa do Fim. O incipit do texto corresponde, afinal, ao remate, uma vez que
d a conhecer o destino de Job, que desaparecera comido pelo breu aps a morte do dono,
para agora retornar, ao terminar do stimo dia, o ltimo por excelncia. J o famoso mdico
grego Hipcrates se refere ao nmero sete como () a fonte de todas as mudanas, pois
at a lua muda de fase de sete em sete dias. Este nmero influi em todos os seres sublimes8.
Em quase todas as religies, o nmero goza de grande prestgio. So sete os planetas e sete
os pecados capitais. No geral, o sete corresponde ao culminar de um ciclo. Contaminado pela
cegueira do Velho, a quem tinha lambido os olhos antes de falecer, o co volta a casa para
morrer junto do dono. Desta forma, o incio e o fim do texto encontram-se, o que constitui,
alis uma das caractersticas matriciais da tcnica literria de Direitinho.
O segundo pargrafo aproxima duas personagens a Muda, filha de Ester, e Tiago, irmo
de Joo e filho de Zebedeu, o barbeiro num encontro cheio de subentendidos, perto das
runas da azenha, que tem como resultado a circunciso do jovem rapaz. Incapaz de com-
preender o sucedido, Tiago lamenta a sua sorte na taberna, sem chegar a surpreender os
ouvintes, cientes dos estranhos poderes da Muda. Num registo de spero realismo, Tiago
tinha as pernas afastadas e entre as mos o membro ensanguentado que ele ligava com
uma fita de linho novo. Um cuspo viscoso e amarelo como baba de boi escorria-lhe dos dedos
sem agilidade. Mutilado na sua virilidade, dominado por uma espcie de abulia desistente.
Dolorosamente melanclico, divide o seu tempo entre a casa e a barbearia do pai, mudo e
ausente.
Tal como indiciado na epgrafe extrada de Fado Alexandrino, de Antnio Lobo Antunes,
que antecede o conto, numa narrativa que assume traos de um realismo mgico de tons
crepusculares, as mulheres so sempre portadoras de um mistrio:
A Muda, que aos dezasseis anos tinha adquirido todos os poderes da me, chamando a
si a tarefa de resolver os mais estranhos e difceis casos, tem em relao a Tiago um vago
7
Slvia Cavalieri, Leterno ciclo fatale: Jos Rio Direitinho, [http://www2.unibo.it/boll900/numeri/2002-i/W-
bol/Cavalieri1/Cavalieritesto.html].
8
Citado por Juan Eduardo Cirlot, Dicionrio de Smbolos, Lisboa, Publicaes D. Quixote, 2000, p. 329.
240 | A Casa do Fim: um conto de Jos Rio Direitinho | Catarina Alexandra Monteiro de Oliveira
9
Slvia Cavalieri, Leterno ciclo fatale: Jos Rio Direitinho, [http://www2.unibo.it/boll900/numeri/2002-i/W-
bol/Cavalieri1/Cavalieritesto.html].
A Casa do Fim: um conto de Jos Rio Direitinho | Catarina Alexandra Monteiro de Oliveira | 241
Bibliografia
10
Id., ibid.
242 | A Casa do Fim: um conto de Jos Rio Direitinho | Catarina Alexandra Monteiro de Oliveira
Resumo: De acordo com o que Isabel Cristina Pires escreveu Para a IC, que a cada dia viaja comigo at ao
na contracapa de A Casa em Espiral, somos sugados pela
casa, pela famlia, pela teia do amor, pelos medos e pelos
outro lado das coisas
deuses numa espiral de solido que o tempo atravessa e gasta
de um modo cruel, sorridente ou impassvel. Os contos deste Fundo do mar
volume, apesar da aparente previsibilidade dos temas que No fundo do mar h brancos pavores,
abordam, promovem em relao ao real um movimento de
constante transgresso dos seres e das coisas e desenvolvem
Onde as plantas so animais
por isso um processo de descritura fantstica, onde nada do E os animais so flores.
que parece , ou onde tudo o que no o que parece.
Mundo silencioso que no atinge
Abstract: According to Isabel Cristina Piress words shown on A agitao das ondas.
the back cover of A Casa em Espiral we were sucked by our
house, our family, the web of love, by fears and gods in a spiral Abrem-se rindo conchas redondas,
of loneliness that time crosses and wears out in a cruel or Baloia o cavalo-marinho.
laughing fashion. In spite of the apparent predictability of the Um polvo avana
topics dealt with in the short stories included in this volume,
they encourage a movement of perpetual transgression of
No desalinho
things and beings in relation to reality, therefore developing a Dos seus mil braos,
process of fantastic de-scripture, where nothing that Uma flor dana,
appears to be is, or where everything that is is not what it Sem rudo vibram os espaos.
appears to be.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um leno.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
Sophia de Mello Breyner Andresen1
No precisaramos deste poema de Sophia de Mello Breyner para concluirmos que a
realidade do Homem uma realidade de fundo do mar; nela, como no fundo do mar, h
brancos pavores que nem sempre atingem a superfcie das ondas e que nesse limbo de
1
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Potica I, Lisboa, Crculo de Leitores, 1992, p. 50.
Isabel Cristina Rodrigues, Como o fundo do mar: a descritura fantstica de Isabel Cristina Pires, forma breve 1, 2003, p. 243-249 | 243
2
Regina Louro, Maldades familiares, in Pblico, 20-03-92.
3
com estas palavras que a autora conclui o texto que escreveu para a badana do seu segundo livro de
poesia, significativamente intitulado Porta de Nrnia (Lisboa, Caminho, 1995). Ao reino de Nrnia, criado
por C.S.Lewis, tem-se acesso por diversas portas, como recorda a escritora no primeiro texto deste seu
volume de poesia (um guarda-fatos, uma estao de caminho de ferro, um quadro na parede p. 9), e h
aqui obviamente fascnios que se repetem, ou no houvesse j em A Casa em Espiral um conto justamente
chamado A rapariga do armrio, que descreve a travessia de um armrio por uma rapariga que vence o
medo de morrer (porque poderia estar l dentro um subtil convite para morrer (A Casa em espiral, Lisboa,
Caminho, 1991, p. 37) e salta, mais ou menos como Alice, para dentro daquele armrio sem fundo que a
fazia estremecer. So trs as portas de acesso ao outro lado das coisas no segundo livro de poesia de Isabel
Cristina Pires, ocupando cada uma delas um captulo autnomo, designao alis bastante curiosa num
livro que o assumidamente de poesia: Perguntas, Aguarelas, leos e acrlicos e Eros e Tanatos. Que
como quem diz: as portas para Nrnia, para o reino oculto das coisas, encontram-se na capacidade de
questionao (e enviesadamente na linguagem e na palavra), no modo de olhar (comeo a entender o
olhar/como uma inveno to funda como a escrita, (op. cit.., p. 37) e na experincia do amor e da morte
(As duas faces/da mesma porta para Nrnia (ibid., p. 67).
244 | Como o fundo do mar: a descritura fantstica de Isabel Cristina Pires | Isabel Cristina Rodrigues
4
Isabel Cristina Pires, A Casa em Espiral, ed. cit., p. 90.
5
Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, Lisboa, tica, 1978, p. 33.
Como o fundo do mar: a descritura fantstica de Isabel Cristina Pires | Isabel Cristina Rodrigues | 245
6
Isabel Cristina Pires, A Casa em Espiral, ed.cit., p. 19.
7
Harry Belevan, Teora de lo fantstico. Apuntes para una dinmica de la literatura de expresin fantstica,
Barcelona, Anagrama, 1976, p. 86 ss.
8
A forma da espiral uma constante tambm na sua poesia. Veja-se, por exemplo, o poema O tempo de
A Roda do Olhar (Lisboa, Caminho, 1993, p. 41); Maio de Cobra de papel (Lisboa, Caminho, 1997, p. 14) e
O amanhecer de uma cidade de Todas as cores do azul (Lisboa, Caminho, 2001, p. 39).
9
Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea. Academia das Cincias de Lisboa, I Volume, Lisboa, Verbo,
2001, p. 1543.
246 | Como o fundo do mar: a descritura fantstica de Isabel Cristina Pires | Isabel Cristina Rodrigues
10
Isabel Cristina Pires, Op. cit,, p. 17.
11
Regina Louro, art. cit.. O poema da p. 68 de A Roda do Olhar quase uma Arte Potica, apesar de ou mesmo
por causa do seu teor claramente autocontemplativo. Nele se revela um sujeito potico em recusa da
convencional harmonia feita de gencianas no meio de um jardim: Nunca pus sabo nos meus poemas/
nem marujos, nem pimenta branca/nunca falei de outra coisa seno de amor e morte // nunca inventei
gencianas no meio de um jardim,/nunca me debrucei de uma janela/para dizer adeus/nunca sorri // s
falo de sangue ou de tristeza/s escrevo coisas ruins, porque ruins so os amores/que exigem escrita //
nunca me sentei na erva de mo dada,/nunca comi po com doce feito em casa/nunca disse que me
divertia // nunca acarinhei uma criana ou mesmo um boneco de peluche,/nunca toquei ningum e no
deixei que me tocassem;/s olhares sombrios e danas solitrias // sempre falei de abismos, de volpia/de
coisas horrveis com letras capitais/num vermelho e negro, trao grosso // nunca dormi a sesta, a ressonar,
de mos cruzadas/nunca fiz um gesto vagaroso/ou nunca escrevi que o fizera, // no sei falar seno de
amor e morte.
Como o fundo do mar: a descritura fantstica de Isabel Cristina Pires | Isabel Cristina Rodrigues | 247
Embora em forma de novelo, foi no fundo o poder da iluso aquilo que Ariadne ofereceu
a Teseu s portas do labirinto de Creta, sem reparar que os novelos com que por vezes
pretendemos decifrar os labirintos so a seu modo labrirnticas linhas em que fatalmente
viremos a enredar-nos. Quando mais tarde se achou em Naxos, onde o vencedor do Minotauro
a havia abandonado, foi de novo a imagem do labirinto que surgiu a Ariadne, e o mais
indecifrvel dos que foi levada a enfrentar no foi, como sabemos, aquele que ajudou a
desvendar com o desenrolar do fio, mas o do estrangulamento posterior do seu prprio
destino, enrodilhado no emaranhado de linhas que ela prpria julgou dominar. Em Naxos
Ariadne medita sobre a sua sorte, num trgico processo de conhecimento que talvez pudesse
ter-lhe revelado o enigma de si prpria, mas Dionisos, ao t-la levado para a corte celestial,
acabou por suspender esse mesmo processo, deixando um enigmtico desafio para a imaginao
do Homem o labirinto final que Ariadne no desvendou. O labirinto da personagem feminina
do conto O fio de Ariane o labirinto em que se enredou Ariadne depois de vencido o
Minotauro; de certo modo, como se ela pudesse agora regressar a Naxos para concluir o
caminho de conhecimento interrompido por Dionisos. E assim se interroga a personagem
feminina deste conto:
A Ariane de Isabel Cristina Pires , pois, uma personagem de regresso a Naxos e ao tempo
de todos os enigmas, apesar de saber, como a outra talvez no tenha chegado a saber, que:
14
Isabel Cristina Pires, A Roda do olhar, ed. cit., p. 40.
Como o fundo do mar: a descritura fantstica de Isabel Cristina Pires | Isabel Cristina Rodrigues | 249
E spirais
e Labirintos
Foi-me pedido que escrevesse um pequeno texto sobre os contos de A Casa em Espiral.
Escrever sobre o j escrito obriga a uma reflexo mais funda, que um pouco como
abrir uma caixa de pandora: dela brotam cdigos, smbolos, h interpretaes que se clarificam.
Naturalmente que se trata apenas da minha leitura, do meu sentir perante as palavras.
Vejo-os como contos de espirais e labirintos, disse eu, no comentrio que escrevi no livro.
Contos cruis, contos sem histria, fbulas sem moral de qualquer espcie.
Na verdade, todos os personagens so vtimas de tremendas catstrofes; no h culpados
nem inocentes: todos se perdem no labirinto, naquelas rugas imprevisveis que a vida tece.
curioso como a escrita deste comentrio me tornou visvel a importncia (mais invasiva
ainda do que a catstrofe), do aleatrio, da ausncia de arbtrio que os personagens tm
perante a vida, quando uma das ambies do ser humano controlar e prever o seu destino.
Se no conto Os Tigres Gregos a figura feminina punida por no ousar, j no conto As Janeiras
as crianas que resolvem ir aventura so punidas por ousarem O Deus dos Crocodilos, a
inocncia castigada, enquanto que em O Velho Zebion, a rebelio que atrai a clera divina.
Nestas histrias tudo parece catico, sem ordem e sem cdigos. E, no entanto, sabemos
(saberemos?) que existe um caminho possvel e exacto na teia emaranhada.
O conto O Labirinto da Catedral de Chartres foi escrito depois de eu ter visto o labirinto
no cho da prpria catedral, traado com um fio de cobre. Unidimensional, quase humilde,
mas hipntico. Aquele smbolo continua vivo e perturbante.
Ser pela incerteza constante que so to atraentes os labirintos, as espirais, a linha curva,
o abismo, o desafio? Tudo isso so sinnimos de se ser humano: a humanidade arrisca e
curiosa.
No podemos viver sem uma imensa curiosidade, sem a incerteza que a essncia do
sagrado. Cada encruzilhada, real ou metafrica, provoca mistrios e perguntas. Quando se
pinta um quadro, uma pincelada de tinta divide o espao e as cores, gera problemas que
exigem soluo, ergue uma espiral de dvidas.
Num conto, cada acontecimento pergunta por outro de maneira repentina, e esse um
dos prazeres de escrever pequenos contos. Tal como a maior parte dos poemas (que comeam
Isabel Cristina Pires, Espirais e Labirintos, forma breve 1, 2003, p. 251-252 | 251
M ia Couto,
O Gato e o Escuro
Com o pequeno grande livro O Gato e o Escuro, o escritor moambicano Mia Couto
estreia-se no mundo da literatura infantil. E f-lo de um modo simultaneamente amoroso e
convicto, j que o seu discurso esculpido com uma delicadeza evidente, o que se comprova,
por exemplo, atravs de uma inventividade em muitos momentos, ludicidade no plano
vocabular (caracterstica, alis, subjacente totalidade da sua escrita e j apelidada como um
conjunto de brincriaes do maravilhoso), ao servio de uma narrao inovadora que parece
ser dedicada s crianas.
Com efeito, em O Gato e o Escuro, constatamos, para alm de uma brilhante articulao
texto verbal-texto icnico, a presena alguns paradigmas temtico-formais das histrias de
destinatrio extratextual infantil.
Neste sentido, saliente-se no s a proximidade discursiva com o narratrio, traduzida,
tambm, na coloquialidade do registo Vejam, meus filhos -, mas tambm a efabulao
de um cenrio maravilhoso que encerra um conjunto de mistrios. Situamo-nos na fronteira
entre o dia e a noite, entre a luz e o escuro, e a este espao abstracto, profundamente
simblico, que atribuda uma espcie de fisicidade, permitindo que um gato, elemento do
mundo concreto, o percorra ou o invada livremente. , no fundo, uma transgresso que se
afigura, em ltima instncia, como reflexo de uma nsia de conhecimento, de atraco pelo
misterioso ou pelo proibido. Na realidade, o Pintalgato, co-protagonista da diegese (como
sugere o ttulo do conto), no se acomoda e tal determinao permite-lhe alimentar voos
ou sonhos, propiciadores de uma aproximao a uma outra entidade abstracta personificada,
o escuro.
Outro aspecto que parece contribuir para a validao da hiptese de O Gato e o Escuro
possuir como primeiro destinatrio extratextual a criana reside na prpria indeterminao
da situao temporal.
Editorial Caminho, Mia Couto, O Gato e o Escuro, forma breve 1, 2003, p. 253-254 | 253
Bibliografia
1
Roland Barthes, S/Z, Paris, ditions du Seuil, 1970, p. 16.
2
Por exemplo, logo no incio, observa-se a representao de um gato preto, animal cujo simbolismo
heterogneo, em cima de um livro fechado, a sugerir no s a sabedoria, mas tambm, talvez, o mistrio
de um segredo guardado.
1
Nunca demais salientar a beleza dos leos de Manuela Bacelar que ilustram Antnio e o Principezinho.
Julgamos, tambm, interessantes as opes grficas (tipo e textura do papel reciclado -, tamanho, etc.),
evidenciadas nesta edio deste livro de Jos Jorge Letria. Se estes elementos paratextuais so, de facto,
relevantes para a construo de sentidos, no menos importantes so, por exemplo, a dedicatria e a nota
introdutria de ndole explicativa, textos que servem essencialmente para contextualizar, do ponto de vista
histrico, a aco que vai ser narrada.
2
No texto, introduzida, a dado momento, a referncia manh do dia 31 de Julho de 1944 (p. 12).
Bibliografia
GOMES, Jos Antnio, Saint-Exupry: uma descoberta permanente (pela mo de Ruy Belo e
de Jos Jorge Letria, in Livro das Pequenas Viagens, Matosinhos, Contempornea Editora,
1997, p. 119-122.