O Enigma Do Santo Sudario - David Zurdo
O Enigma Do Santo Sudario - David Zurdo
O Enigma Do Santo Sudario - David Zurdo
Sobre a obra:
Sobre ns:
1888, Paris
1502, Florena
1888, Paris
1502, Florena
1888, Paris
1502, Florena
Aquela foi uma noite ruim para Leonardo. Todos os fantasmas se reuniram
para castig-lo em um tormento sem piedade. Teve pesadelos, repletos de
figuras grotescas, diablicas e monstruosas. O tempo, simbolizado por um relgio
de perversas esferas, avisava constantemente o passar das horas. Um abismo
escuro e profundo tragava milhares de seres perdidos que, atrados por um
magnetismo pavoroso, se desvaneciam com um gemido de dor.
A figura de Csar Brgia tambm estava presente no sonho, vvida e
opressiva, rindo a gargalhadas enquanto os mortais caam no buraco. Seu riso
estridente se transformava em um agudo lamento, em um grito angustiante,
vindo da distante escurido. Mas Leonardo no sentia medo. Notava que as
ameaas de Csar estavam cheias de deboche; Brgia estava perdido e, como
um animal vtima de terrveis feridas, tentava defender-se com suas ltimas
energias, simulando uma ferocidade que j no possua.
A mente castigada do Divino, presa de uma estranha sensao de vertigem,
produzia cenas dantescas, mrbidas, carregadas de fatalismo. Mas logo uma luz
celestial inundou o espao onrico. Das alturas surgiu uma imagem tnue,
fantasmagrica: era parecida a um dos muitos desenhos com que costumava
apresentar seus inventos e artefatos, uma espcie de plano superior em que o
cavalo de Francisco Sforza era visto de ambos os lados de uma grande lente
luminosa. Ento, Leonardo o viu claramente.
Assustado e molhado de suor, o Divino despertou de seu sonho. Ficou por uns
instantes quieto no leito, com os olhos muito abertos. Seu corao palpitava
freneticamente. No sabia se estava totalmente acordado, se havia voltado
realidade e sado do mundo dos sonhos.
Por algum tempo tentou assimilar a idia que se apresentara to clara e
evidente. As peas se uniram sozinhas, sem esforo, e ele finalmente
compreendeu, com o fulgor de um relmpago, de modo repentino, como um
autntico pensamento racional e no um mero pensamento: seu erro estava na
distncia em que havia posto o modelo e a lmina sensvel, de cada lado da lente,
na cmara escura. Por isso as imagens saam to desproporcionais e distorcidas.
Com um nimo inesperado, no meio da noite, Leonardo pulou da cama como
um rapaz que fosse visitar, em segredo, sua amada. Apertou a cabea com as
duas mos, pensando como podia haver sido to estpido. E ao mesmo tempo
estava feliz e satisfeito consigo mesmo. No havia problema que no pudesse
solucionar, nem desafio difcil o suficiente para escapar de sua genialidade. Todo
artista leva em seu interior um cu e um inferno.
Quando, na manh seguinte, Salai despertou, seu mestre j estava h horas
fazendo clculos e desenhos. Estava desenhando uma lente esfrica que
permitisse obter uma imagem na mesma escala do objeto material. Para isso
teve de medir a profundidade da cmara escura, entre o orifcio e a parede que
ficava do outro lado. No cmodo ao lado fez uma marca no cho, que tinha
aproximadamente a mesma distncia.
Para provar sua teoria, Leonardo mandou que Salai e outros dois discpulos
que desconheciam completamente o projeto de seu mestre,Csar de Sesto e
Zoroastro, preparassem com rapidez uma nova lente segundo suas orientaes.
Se o resultado fosse satisfatrio, o Divino compraria um bloco de vidro veneziano
da melhor qualidade, o poliria com o mximo de cuidado e mediria com
exatido a distncia a que deveria estar da Sndone.
Mesmo que tudo isso desse certo, teria ainda um outro problema para
solucionar: a direo exata do modelo. A lmina impregnada de iodeto de prata
deveria estar exatamente paralela que sustentasse o Sudrio. E ambas teriam
de estar perpendiculares ao eixo da lente em seu centro. Se no fosse assim, a
imagem da cpia ficaria deslocada ou distorcida, reduzida ou ampliada em
algumas partes, como se se observasse de uma certa perspectiva.
Com extremo cuidado, e ao mesmo tempo com rapidez, Leonardo fixou a
lente recm-terminada na posio adequada. Depois, aps colocar uma lmina
sensvel na cmara escura, efetuou a exposio. Foram momentos de tenso.
Com exceo de Salai, seus discpulos estavam admirados com tanta
expectativa. Mas Leonardo era um homem de personalidade rara, humor
instvel e certa excentricidade, que em pblico ficava oculta sob sua notvel
elegncia.
Dessa vez no houve erros. Leonardo j havia compreendido o problema, e a
soluo para ele era certa. Com a nova lente prepara da por seus ajudantes, a
imagem projetada na lmina sensvel ficara muito mais definida do que nos
testes anteriores. E tambm havia sido correto o clculo das distncias, j que
entre o modelo e a cpia a diferena de tamanho era quase imperceptvel. Sem
tempo a perder, j totalmente livre de seus medos e dvidas, exultante, o Divino
entregou a Salai cem ducados de ouro, quantidade mais que suficiente, fosse qual
fosse o preo, e o enviou a Veneza para comprar um bloco de vidro da mais alta
qualidade existente. Enquanto isso, ele se encarregaria de construir armaes
para a Sndone e o lenol dos Scevola e desenharia o sistema de localizao
espacial de ambos os lenos.
Os venezianos produziam os melhores vidros de toda a Europa, tanto em sua
qualidade material como em seu corte e decorao. Apesar disso, Leonardo deu
a seu enviado algumas indicaes muito precisas para a fabricao do bloco em
que lavraria a lente. Durante o processo, o vidro deveria ser tratado com
mangans para eliminar a cor devido s impurezas e ao mesmo tempo aumentar
sua transparncia; tambm seria necessrio acrescentar arsnico, j que esse
elemento impede a formao de bolhas, um ponto muito essencial na fabricao
de lentes, e finalmente deveria ganhar um segundo cozimento para eliminar
tenses internas e aumentar sua homogeneidade.
Salai demoraria, se no houvesse nenhum contratempo, ao menos trs dias
entre a viagem a Veneza e o regresso a Florena com o bloco de vidro, um dia
para ir, um para esperar que se fabricasse o material e outro para voltar.
Portanto, esse era o tempo que Leonardo investiria no desenho e na construo
das armaes.
Em primeiro lugar, confeccionou uma armao de grossos sarrafos de
carvalho perfeitamente perpendiculares. Depois colocou, com pregos muito
finos e uma borracha que ele mesmo havia inventado, travesses na largura e no
comprimento de toda a armao, acertando os que se cruzavam com os que j
estavam acoplados para que todos juntos formassem uma malha plana. Alisou
toda a superfcie com uma escova de carpinteiro e lixou-a tomando cuidado para
que nenhuma farpa se levantasse. Para assegurar-se ainda mais, envernizou a
estrutura com uma substncia resinosa que ao secar adquiria extrema dureza e
que Leonardo costumava empregar quando pintava murais, j que odiava a
tcnica do afresco.
Leonardo realizara, desde quando era jovem, muitos estudos sobre a
gravidade. Mesmo que nunca tenha chegado a justificar seu sentido fsico, pde
pelo menos compreender suas propriedades. Seguindo um de seus lemas
favoritosmais longe, mais difcil, mais novo, mais pessoa l-, realizou testes em
vrios perodos de tempo ao longo de toda sua vida. Comprovou que todo corpo
tende a cair sobre a superfcie da Terra na direo de seu centro, e sempre pelo
caminho mais curto, percorrendo o caminho vertical, ou seja, seguindo a linha
imaginria que une o znite e o nadir. De fato era isso que acontecia, exceto
quando foras interiores interferiam, como no lanamento de um projtil, cuja
trajetria regida pelo impulso inicial e a atrao gravitacional. .
Seu amigo Paulo del Pozzo Toscanelli (Cosmgrafo florentino que defendia a
teoria de que o Atlntico fosse estreito e portanto que seria possvel chegar sia
pelo Ocidente, por um caminho mais curto), autor do mapa que se supe haja
instigado a imaginao de Cristvo Colombo, estava convencido de que a fora
da gravidade se devia falta de equilbrio entre os cus e os infernos. O homem,
e tudo que material, marcado com o estigma do pecado, era atrado para o
reino das profundidades e das trevas.
A parede de fundo da cmara escura no era perfeitamente lisa, e a lmina
sensvel deveria estar apoiada nela, mesma altura que a Sndone no cmodo ao
lado. Leonardo resolveu esse pequeno problema aplicando uma nova camada de
gesso cuidadosamente plana e sem ondulaes.
Depois, com a ajuda de uma comprida vara, o Divino mediu a distncia
entre a parede com o orifcio da cmara escura e a parede oposta, no interior do
cmodo fechado. Para obter a verdadeira distncia perpendicular, a mnima, ps
a vara no cho e fixou uma de suas pontas. Logo traou com ela um arco e
procurou o ponto em que a parede a impedia de continuar. Foi aparando a vara
aos poucos at que ficasse exatamente do tamanho que tocasse as duas paredes,
porm sem ficar presa. Depois, transportou essa distncia para o cmodo ao
lado, repetindo o processo com a vara fixa em vrios pontos diferentes da parede
e da lente, e foi marcando no cho com giz o trao de cada um desses pontos.
Dez repeties foram suficientes para que conseguisse que a superposio dos
arcos se assemelhasse a uma linha reta.
Na frente do risco de giz colocou logo uma base de madeira formada por um
grosso travesso que tinha mais de um palmo de altura. Sua altura era maior que
a largura da armao do Sudrio. Prendeu-o no cho por trs, onde havia feito
uns rebaixamentos, e marcou nele, mais ou menos, a linha que definiria o eixo
da lente, uma vez presa parede. Tendo essa marca como centro, e com a ajuda
de uma corda, transportou ao travesso a posio dos orifcios da placa metlica
superior da armao. Antes de pendurar o Lenol, tinha de projetar os tais pontos
no teto na mesma posio vertical que eles ocupavam abaixo. Isso ele conseguiu
fazer facilmente, usando um prumo muito bem alinhado, por aproximaes
sucessivas, at que seu extremo apontou com exatido para as marcas na tbua.
Como a armao pesaria mais do lado em que estivesse o Sudrio, este se
inclinaria um pouco quando estivesse pendurado. Para evitar que isso
acontecesse, Leonardo havia pensado em pendurar pequenos pesos em sua face
contrria o mais embaixo possvel, onde exerceriam mais fora, compensando a
desigualdade de massa do conjunto. No instante em que o sarrafo inferior da
armao tocasse o travesso preso ao solo, a Sndone haveria alcanado sua
localizao ideal.
Ainda no estava pronto. Outro problema que o Divino teve de solucionar foi
medir a altura e a posio em que deveria colocar a lente. Em testes anteriores,
o orifcio da cmara escura, ao ser fixado em uma parede, no mudava sua
posio, e eram os objetos que se elevavam ou se deslocavam para a direita ou
para a esquerda at ficarem alinhados com seu centro, ou seja, com o eixo da
lente que estava ali fixa. Porm, o tamanho da Sndone impossibilitava fazer o
mesmo, por isso Leonardo precisou tapar a abertura original e abrir outra, cujo
centro coincidia, em projeo horizontal, com o mesmo ponto da armao j
instalado, ou seja, a interseco das diagonais, e elevado a altura adequada do
solo. Para isso empregou um grande esquadro de madeira, que construiu com o
lado maior igual ao comprimento da vara usada antes.
Se tudo parecia difcil, ao menos havia algo que seria relativamente simples,
que era expor o lenol novo envolvido em iodeto de prata at que registrasse a
Impresso da Sndone. Para isso, bastaria conferir a cada certo tempo o grau de
escurecimento do suporte, entrando na sala mesmo que isso fizesse penetrar nela
um pouco de luz exterior, pois o iodeto de prata era um reagente to lento que as
verificaes ocasionais no o deteriorariam.
8
1888, Paris
1502, Florena
1888, Paris
ARMAS: Escudo em cruz, com cruzes de Malta sobre fundo de prata e lees
inclinados de ouro no campo oposto.
Os anos seguintes foram muito difceis para a famlia Charny. Muitos de seus
membros, tambm cavaleiros templrios, viram-se despojados de seus bens e
obrigados a jurar, diante de vrias testemunhas e do bispo de Rvena, que no
haviam cometido nenhuma heresia. Comeou ento um outro espao de tempo em
branco, que termina com outro Godofredo de Charny, cavaleiro que morreu
defendendo a seu rei, Juan II, na batalha de Poitiers, contra os ingleses. Anos
antes, fora preso por estes e conseguira escapar de um modo milagroso da
fortaleza onde estava preso. Certo da interveno divina em sua fuga, ordenou a
construo de uma igreja na pequena localidade de Lirey. Nela mandou edificar
uma capela onde se guardaria o Santo Sudrio de Cristo que, de um modo nunca
esclarecido, havia chegado s mos da famlia Chamy.
1502, Florena
1888, Paris
1888, Paris
1507, Granada
1888, Paris
1507,
Granada,
Poblet
Frei Bartolomeu esteve no calabouo por dois dias, acorrentado a uma das
paredes. A distncia das correntes no lhe permitia mais que estar curvado ou
ajoelhado. O ambiente fedia a excrementos e o cho estava mido de urina.
Uma vez por dia, o carcereiro abria uma pequena janela no p da porta e
passava uma vasilha com um pedao de po amanhecido, um pedao de
toucinho e um pouco de gua.
A dor do corpo, flagelante a princpio, tornou-se surda, distante. Suas
roupas estavam sujas e ensangentadas. Como homem, fora reduzido a um
estado infame. No compreendia como se podia agir de tal modo em nome
da religio. O poder, o poder secular, poltico, necessitava braos executores
que garantissem sua conservao, porm no se deviam valer de qualquer
meio para chegar a seus fins.
Se ele lutara por tudo isso, ainda que sem saber, sem sofrer em sua prpria
pele, agora se arrependia. A glria somente uma miragem; a maldade e a
barbrie humanas prevalecem.
Assim, sozinho na cela, sozinho realmente e pela primeira vez em sua vida,
frei Bartolomeu fez uma promessa orgulhosa a Deus, seu nico interlocutor
nesses terrveis momentos: entregar sua vida sem fraquejar, suportar as torturas
e humilhaes, ser sempre fiel a Seu nome.
O segundo interrogatrio comeou do mesmo modo que o primeiro. Os
aguazis foram buscar frei Bartolomeu no calabouo e o conduziram a um
mesquinho cmodo onde os inquisidores o esperavam novamente. S havia
mudado uma coisa: a arrogncia do cavaleiro, vencida pelo tormento e
convertida em serena resignao. Sua roupa tambm mostrava um aspecto to
apagado quanto seu esprito.
Estais hoje disposto a colaborar, frei Bartolomeu? Compreendeis que a
ns di tanto quanto a vs tudo issodisse o fiscal com falsa doura.
Estou certo disso, senhorrespondeu o cavaleiro ironicamente com um
fio de voz e com o olhar fixo no cho.
O fiscal calou-se por uns instantes. Esse caminho no era o mais adequado.
Depois de uma pequena reflexo, falou de novo:
Eu vos perguntarei uma vez mais: estais disposto a confessar vossos
delitos?
Meus delitos so haver defendido a Deus e a meu rei. Eu j disse...
Chega!gritou encolerizado o inquisidor.Se no quereis confessar, eu
vos lerei vossa acusao.
Quem me acusa?
Calai agora! Isso no importa. Respondei somente s perguntas que eu vos
faa.
Frei Bartolomeu sabia que, em determinado momento, o tribunal deveria
comunicar ao processado suas acusaes. Mas tambm estava certo de que,
nesse ponto do processo, devia estar presente um advogado defensor.
Onde est meu advogado?protestou, levantando um pouco a voz.
O fiscal o encarou, levantando-se de seu assento. Sua cabea encapuzada
saiu um pouco das sombras. Frei Bartolomeu esperava seus gritos, porm o
inquisidor falou com calma:
No estais em posio de exigir nada deste tribunal. Respondei a nossas
perguntas com sinceridade, rogando a Deus que vos ilumine, e tudo terminar
logovoltou a seu lugar na cadeira e comeou a formular as acusaes:
verdade que estivestes em Npoles junto do general Fernandez de Crdoba no
dia em que prendeu Csar Brgia?
O cavaleiro esteve a ponto de responder, mas no o fez. A princpio a
pergunta pareceu trivial, porm logo compreendeu a causa de seu processo.
No eram seus antepassados judeus nem a suspeita de heresia: de algum modo
a Inquisio se inteirara do encontro do Santo Sudrio em Npoles. Ante sua
negativa em responder, o fiscal continuou fazendo as perguntas que levavam
implcitas as respostas, elevando pouco a pouco a voz at gritar:
verdade que, numa das paredes do poro de sua residncia, apareceu o
rosto de Jesus Cristo Nosso Senhor? verdade que o que foi encontrado atrs da
parede foi trazido por vs e por frei Domingo Lopez de Tejada Espanha?
verdade que o Grande Capito ocultou isso do rei Fernando?
O inquisidor estava to enfurecido e falava to rapidamente que o secretrio
quase no podia tomar nota de todas as suas palavras. Afinal ps-se de p e,
aproximando-se do cavaleiro, acrescentou:
Mais vale para vs confessar e dizer-nos o que foi encontrado e onde est
agora. Do contrrio, seremos obrigados a tortur-lo de novo.
Frei Bartolomeu continuou em silncio. Percebeu que o inquisidor no sabia
tanto quanto ele pensou a princpio. Alm disso, com toda certeza sua sentena j
estava dada antecipadamente. O processo s tinha o objetivo de arrancar-lhe a
informao que o fiscal queria. Mas ele no cederia: manter-se-ia firme em sua
promessa ao Senhor e fiel a seus princpios como cavaleiro.
A nova sesso de tortura foi ainda mais terrvel que a anterior. Na cmara de
tortura, os aguazis amarraram frei Bartolomeu a uma estreita mesa de madeira.
O carrasco tinha um trapo mido na mo, que introduziu na boca do cavaleiro at
que chegou ao fundo de sua garganta. Ento colocou um funil sobre ele, sobre o
qual comeou a derramar gua. O trapo tinha como funo impedir que o
torturado cuspisse o lquido, que o encheria dolorosamente.
Durante a tortura, frei Bartolomeu urinou para cima e caiu-lhe sobre o
ventre. O ar, por si s j viciado, tornou-se irrespirvel. Era o fedor do
sofrimento e do medo, um fedor to agradvel aos inquisidores como o aroma
das mais frescas rosas, pois indicava que a vtima comeava a fraquejar. Porm,
o cavaleiro no o fez. Por mais jarras de gua que o tenham feito engolir, no
revelou nada do que o fiscal queria saber. Somente repetiu uma vez mais,
entrecortadamente e entre soluos, com os olhos cheios de lgrimas, que seu
nico delito fora servir a Deus e ao rei.
Sculo I, Jerusalm
Poucos dias antes da ltima Pscoa que Jesus celebraria entre os homens,
chegou a Jerusalm Labeu, embaixador da cidade de Edessa. Tempos atrs, o
rei da tal cidade, o jovem Abgar Ukhamn, ouvira falar, por viajantes e
comerciantes, a respeito do rabi da Galilia, de seus ensinamentos e
parbolas. Movido pelo desejo de acolher aquele homem santo, odiado em
sua terra, chamado de falso profeta, o rei decidiu enviar um embaixador com
a misso de convenc-lo a deixar a Galilia e a instalar-se em Edessa, onde
poderia expressar e divulgar sua doutrina livremente.
Os caminhos da Judia eram ermos e rudes. O sol do meio-dia, apesar da
poca do ano, abrasava os caminhantes, que tinham de manter a cabea
coberta e o resto do corpo com roupas amplas e de cor clara. Quando Labeu
chegou muralha de Jerusalm, incomodava-o a poeira da viagem que
penetrara em suas sandlias e parecia entrar por todos os seus poros. Tinha a
boca seca e os olhos avermelhados, a barba esbranquiada e os cabelos sujos
e speros, pela mistura de suor, gordura e p.
Deteve-se uns instantes na fonte de Gihon, a sudeste de Jerusalm, do lado
de fora da muralha. Sacudiu suas sandlias e sua tnica, tirou o capuz e lavou
bem os braos e o rosto. Ao refrescar a nuca, as foras pareceram retornar
um pouco a seu cansado corpo. A viagem havia sido muito longa e cansativa,
porm seu destino j estava muito prximo.
Depois de observar a cidade por alguns momentos, entrou nela atravessando
a muralha pela Porta das guas, que ficava bem perto da fonte de Gihon. sua
direita levantava-se o Templo de Jerusalm, imponente amontoado de pedra de
bela serenidade, e sua esquerda ficava o bairro conhecido como Cidade Velha
de Davi, fundada pelo mtico rei hebreu em tempos imemoriais e mais felizes
para os filhos de Jud.
Enquanto caminhava, Labeu encontrou-se com uma patrulha romana que
saa de um dos estreitos becos da Cidade de Davi, composta por dez legionrios e
um decurio (Chefe da decria, corpo militar da cavalaria e infantaria entre os
Romanos). Este levava o capacete nas mos e esfregava a calva cabea
tentando enxugar o suor. O calor era quase insuportvel. Em seu rosto se notava
o dio quela regio, mais provavelmente por sua dureza geogrfica do que por
sua gente.
O embaixador tentou informar-se com o decurio, mas este o afastou com
o brao quando se dirigiu a ele com um perfeito latim. Talvez para os romanos
todo o mundo fosse escravo seu em certo sentido, e Labeu nem sequer teve a
oportunidade de dizer quem era. Contrariado pela atitude do militar, continuou
andando at o palcio dos Asmoneos, situado no centro de Jerusalm. Ali,
perguntou a um mercador pela residncia do governador romano da regio. O
homem hesitou por uns instantes, acreditando tratar-se de uma brincadeira, mas
finalmente lhe respondeu com muita amabilidade. Certamente eram suas
roupas, iguais s de qualquer outro hebreu, que o faziam parecer pessoa
comum, ocultando sua verdadeira condio.
A residncia do governador romano estava localizada junto ao muro norte
do Templo. Era a chamada Torre Antnia, uma colossal massa ptrea que se
erguia majestosa e ameaadora muito acima da muralha da cidade. Para
chegar a ela, Labeu teve de percorrer toda a frente do Templo. Em sua
esplanada interior, os mercadores judeus e gentiosainda que estes ltimos no
pudessem adentrar ao interior do santuriovendiam cordeiros e cabras para o
sacrifcio pascal, alm de todo tipo de artesanato, ferramentas, tecidos, enfeites
e miudezas. Labeu observou o trnsito no Templo e pensou que tais atividades
no correspondiam a um lugar sagrado e de culto como aquele.
Antes de chegar Torre Antnia, Labeu teve de deter-se para que passasse
uma guarnio romana que retornava ao quartel. As pessoas, sem muito
entusiasmo, cessaram suas atividades, transformando-se em espectadores de
um acontecimento que presenciavam h anos. Seus rostos revelavam cansao e
resignao, a expresso da dor que se padece por tanto tempo que at se torna
crnica.
O embaixador tinha a seu lado um homem de porte altivo, contrastando
com seus outros compatriotas, ainda jovem, alto, moreno e de aquilino e
proeminente nariz.
Todo dia a mesma coisa...ouviu dizer uma voz recolhida, triste e
apagada, melanclica.
Vejo que no se conforma, como os demais, com o domnio imperial-
disse Labu, dirigindo-se ao desconhecido.
O homem o encarou com um leve sorriso, que expressava ao mesmo tempo
dissentimento e ironia.
No sei quem voc nem de onde vem, estrangeiro, mas se conhecesse
bem os judeus saberia que nunca estaro satisfeitos vivendo sob o domnio de
outro povo. Assim tem sido durante toda nossa histria e assim continuar sendo
para sempre.
Suponho que conhece bem a seu povo e deve ser como diz. Meu nome
Labeu e venho como embaixador de Edessa procura do rabi conhecido como
Jesus de Nazar.
Se voc procura esse homem, creio que no posso ajud-lo, Labeu.
Ningum sabe onde estar nem quando. seguido por vrios homens aos quais
chama de discpulos. Usam qualquer colina para suas pregaes. Mas, antes de
ir, permita-me que me apresente: meu nome Simo Ben Matatias, e perteno
ao Sindrio (Entre os antigos judeus, era o tribunal, em Jerusalm, formado por
sacerdotes, ancios e escribas, que julgava as questes criminais e
administrativas de uma cidade). Dar-me-ia a honra de almoar em minha
casa, Labeu? L conversaremos mais sobre Jesus.
Agradeo o convite. A honra seria minha. Mas antes devo ir residncia
do governador Pncio Pilatos para entregar-lhe uma carta do meu rei.
Esperarei que termine sua misso, ento. Minha casa no fica longe da
Torre Antnia. Permita-me acompanh-lo e no caminho lhe mostrarei onde
moro.
1888,
Poblet
Sculo I, Arimatia
Depois do almoo com Simo Ben Matatias, que foi menos prolongado do
que Labeu desejava, para evitar que a noite o surpreendesse no caminho, este
se dirigiu casa de Jos de Arimatia, o membro do Sindrio pelo qual Jesus
tinha profundo carinho e que vivia fora dos muros da cidade. Ainda que o
edesseno (Habitante da cidade de Edessa) tenha resistido, acreditando j estar
abusando de sua amabilidade, Simo o obrigou a instalar-se em sua casa
durante o tempo que ficasse em Jerusalm. A hospitalidade judia era bem
famosa e no havia como resistir a ela.
Jos morava, quando no estava em Jerusalm, em sua aldeia natal,
Arimatia, situada a uns trinta quilmetros a noroeste da cidade, perto da
estrada que a ligava a Jafa, na costa mediterrnea. Mesmo o terreno no sendo
muito acidentado, os duros e ridos caminhos e o clima seco e quente davam a
impresso de aumentar a distncia. Alm disso, era muito provvel que Jesus
no estivesse ali. Simo s havia dito que o rabi e Jos de Arimatia eram bons
amigos e que a Pscoa seria preparada na casa deste ltimo. Mas no tinha
garantia de encontrar a quem buscava com tanto interesse. Talvez at
pudessem pensar que era um espio. Talvez corresse perigo. Porm, apesar
dos pensamentos mais negativos, Labeu desejava cumprir a misso de seu rei
na mesma medida em que ansiava conhecer por fim ao homem santo a quem
todos pareciam odiar ou temer.
No meio do caminho, o embaixador viu um homem sentado junto estrada.
Vestia uma gasta tnica negra e levava uma vara de azevinho, que tinha
apoiada sobre seus joelhos numa posio horizontal; estava encurvado, com a
cabea baixa, distrado. Seu olhar estava vidrado e se perdia na estrada
poeirenta. Quando chegou at o indivduo de to miserveis vestimentas, Labeu
se deteve para perguntar se estava no caminho certo para Arimatia. Ento
percebeu que o homem tinha no rosto os sinais da mais terrvel das
enfermidades, a lepra, que consumia sua carne e seu esprito pouco a pouco,
implacavelmente.
Diante da expresso horrorizada do embaixador, o homem voltou realidade,
olhou para ele e sorriu com doura.
No tema, caminhantedisse com voz pausada, a voz de um homem
cuja alma est em paz.As marcas de meu corpo revelam somente um
padecimento distante.
Mas... a lepra no tem cura... Como pode haver-se curado?perguntou
Labeu intrigado e ainda temeroso.
O que para o homem impossvel, insignificante para Deus Todo-
Poderoso. A salvao de minha carne e de meu esprito eu devo a seu enviado,
Jesus de Nazar, o Messiasproclamou o homem de dentro de si.
Voc conhece a Jesus? Estou procurando por ele.
Uma vez se aproximou de mim e disse: "A enfermidade de que padeceis
vos faz sofrer, mas em verdade vos digo que esse sofrimento vosso, se tendes f
no Pai, se tomar felicidade no cu". Depois passou a mo pelo meu rosto e a
lepra se deteve. Foi um milagre que mostrou aos incrdulos o poder do Filho de
Deus.
Labeu no era de se impressionar com facilidade, mas aquilo, se era como
dizia o leproso curado, o deixou atnito. A lepra no parava antes de haver
comido todo o corpo, sem piedade, at que este no pudesse agentar-se mais e
chegava o seu fim, carcomido, transformado em morto vivo, em um espectro
grosseiro e repulsivo.
Voc deve estar muito agradecido a Jesus. O que fez com voc , como
se diz, um verdadeiro milagre. Voc sabe se ele est agora na casa de Jos de
Arimatia?
O homem voltou de seu xtase contemplativo, produzido em sua mente
pelas recordaes de Cristo, e logo mudou de expresso, apesar de no variar
seu doce tom ao dizer:
Para que o procura? Que quer dele?
Sou embaixador de um distante reino do norte. Meu rei ama a doutrina de
Jesus e envia-me para oferecer a Jesus a sua proteo real, caso ele me
acompanhe at meu pas.
Que pouco voc sabe a respeito de Jesus...
Por qu? Falei algo que o ofendeu?
No, meu bom caminhante, no. Mas Jesus no ir com voc. Ele se
negar a deixar a Judia: aqui o aguarda seu destino. Ele mesmo me revelou
isso.
Ainda assim, gostaria de falar com ele. Tenho de cumprir as ordens de
meu senhor.
Est certo. Eu o compreendo. Mas ainda assim lhe digo, todos os seus
esforos sero inteis.
Havia nas palavras daquele homem certa comiserao talvez por ter
certeza de que um estrangeiro fosse incapaz de compreender em sua
verdadeira dimenso a figura do rabi.
Se voc for por esse atalho andando rpido, em menos de uma hora
estar em Arimatia. Ali, pergunte novamente por Jos. Mas sua casa fcil de
ser identificada, j que a maior do povoado e ocupa mais ou menos seu
centro.
Aps o encontro com o ex-leproso, chamado Sem, como o filho de No,
nome que deriva dos semitas, Labeu seguiu seu caminho. No sabia por que,
mas uma profunda sensao de calma enchia seu corao. Caminhava alegre;
sem um motivo aparente, mas transbordando de vigor. Pela primeira vez olhava
o caminho pedregoso e empoeirado que tinha pela frente sem desanimar.
Estava ansioso por encontrar Jesus, falar com ele, conhecer a seus discpulos e
escutar seus ensinamentos.
1888,
Poblet
1888,
Poblet
Sculo I, Jerusalm
1888, Poblet
Quando o irmo Jos foi cham-lo em sua cela, Gilles j estava vestido. No
refeitrio, quase no tocou no caf da manh. O que havia descoberto ficava
dando voltas em sua cabea, e, por isso, ele estava morrendo de vontade de ir
procurar a passagem. O frade deve ter notado algo estranho, pois perguntou-lhe
vrias vezes se estava tudo bem. Bossuet percebeu que frei Alessandro o esteve
observando durante todo o caf da manh, apesar de no lhe ter dirigido uma
nica palavra.
Que gostaria de fazer hoje?perguntou irmo Jos, aps deixarem o
refeitrio.No sei mais o que lhe posso mostrar; voc j conhece praticamente
todo o mosteiro.
Gilles viu que aquela era uma oportunidade perfeita. J que no podia livrar-
se do frade, ao menos lhe tiraria melhor proveito.
Bomrespondeu com expresso pensativa, como se acabasse de ter uma
idia,ainda no vi as imediaes do mosteiro, nem as muralhas exteriores.
Verdade que quer ver tudo isso? E com esse tempo? interrogou o monge
no muito convencido.H alguns lugares pitorescos nos arredores, como La
Pena, de onde se tem uma vista fabulosa, mas as proximidades do convento no
tm nada interessante. E as muralhas tambm no tm nada de especial. Creio
que antigamente eram rodeadas por um fosso, mas faz muito tempo que ele
deixou de existir.
No importainsistiu Bossuet, tentando no deixar transparecer sua
impacincia. Tenho certeza de que a vista ser muito instrutiva.
Est bem. Se voc quer...terminou por render-se o irmo Jos.
Fantstico!exclamou Gilles acelerando o passo.
O frade voltou a lanar-lhe um olhar interrogativo. Abriu a boca como se
fosse perguntar algo, mas no chegou a faz-lo. E limitou-se a apertar o passo
para alcanar Bossuet.
Ao redor do permetro exterior corria um estreito e pouco transitado caminho
de terra, invadido em muitos trechos por plantas silvestres. Gilles se alegrou de
que tivesse pensado em trocar as sandlias por um calado mais apropriado ao
deplorvel tempo. A chuva noturna havia piorado mais ainda o estado do
caminho e o transformara em um traioeiro lamaal. Diante deste panorama,
frei Jos tentou convencer Gilles a voltar ao acolhedor e seco abrigo do mosteiro,
mas voltou a ceder diante de sua obstinada insistncia.
Contornaram a muralha comeando pela regio norte. Bossuet ia na frente
em bom ritmo, com o monge, que havia arregaado os saiotes de seu hbito at
quase os joelhos para evitar suj-los com barro, uns metros mais atrs, tentando
a duras penas segui-lo.
Voc parece uma das senhoritas de monsieur Lautrecdisse
Gilles divertido.
O frade pareceu no o ouvir, porque no fez nenhum comentrio. Sua vista
estava pregada no cho e em seu rosto havia uma expresso sria enquanto
saltava de um lado a outro para evitar as poas. Bossuet resistiu tentao de
zombar de novo do irmo, mas a graciosa imagem do frei Jos danando o can-
can no Moulin Rouge ficou em sua mente por um bom tempo.
Como lhe dissera o monge, no havia nada interessante nas muralhas, e
praticamente no se distinguiam das que j vira na praa maior: muros de mais
de dez metros de altura com grandes silhares de pedra, onde havia uma ou outra
torre. S a parte meridional se diferenciava do restante. Nela, sobressaa do muro
um enorme torreo de formato quadrado, em cujos ps se encontrava um
grande porto de madeira. Bossuet lembrou-se de haver visto essa estrutura na
gravura do livro. Aquele era o lugar de onde deveria medir a distncia at a
entrada da passagem.
Esta era a entrada dos fundos do mosteiroinformou o frade, enquanto
tentava tirar o barro do sapato, batendo-o contra o muro.A torre se liga
diretamente com o cruzeiro da igreja acrescentou, olhando com inquietao o
cu cinzento, que anunciava um novo temporal.
Dissimuladamente, Gilles encostou-se na porta e comeou a contar em
silncio os passos que dava. Cada um deles equivalia a um metro. Ao fazer isso,
ia observando a paisagem ao seu redor para dar a impresso de estar s
passeando. Dos lados erguiam-se pequenos arbustos e uma ou outra rvore. S
mais frente, no sop da montanha, se enxergava o incio de um denso e escuro
bosque, que abrangia toda a encosta, chegando quase ao topo. Enquanto isso, o
monge no prestava nenhuma ateno a ele e continuava de p ao lado da
muralha, tentando dessa vez limpar o barro que, apesar de seus esforos,
grudara na barra de seu branco hbito.
...quarenta e nove, cinqentasussurrou Gilles.
O lugar era aquele, mas no havia nenhuma entrada ou nada que se
parecesse com uma. Tentou descobrir onde havia errado, e o resultado no foi
muito animador, pois percebeu que a lista de possibilidades era longa. A
passagem podia estar h anos sepultada ou talvez j no fosse mais acessvel
mesmo que ainda existisse. Talvez, at, a planta de sua localizao fosse falsa
ou estivesse errada. Bossuet se surpreendeu de no haver pensado antes nessa
possibilidade.
Na melhor das hipteses, disse a si mesmo, a entrada continuava ali e a
planta estava correta, porm ele teria cometido algum erro. Provavelmente
havia um erro ao no seguir uma trajetria estritamente perpendicular
muralha. Mas aquilo no podia significar, ao todo, mais que uma dezena de
metros e, nessa rea ao seu redor, a paisagem era quase idntica e no havia o
menor vestgio da entrada. Retrocedeu seus passos at a muralha, contando-os
novamente um por um, ainda que achasse que aquilo no fazia o menor
sentido.
Voc est bem?perguntou frei Jos preocupado.Est com uma cara...
Sim, estou perfeitamente bemmentiu Gilles, conseguindo esboar um
leve sorriso. que est fazendo muito frio. Vamos voltar ao mosteiro.
O monge concordou imediatamente, dirigindo-se de novo pelo lamacento
caminho. Bossuet o seguiu cabisbaixo e com passo lento. Pouco antes, tinha
certeza de que encontraria a entrada. Sem dvida, esperava que fosse pouco
visvel, ou nunca teria pensado em ir com o irmo, mas no estava preparado
para no encontrar nada. Sentia-se profundamente decepcionado, e o pior de
tudo que no sabia o que faria depois. Em todo caso, teria de examinar
novamente a gravura e refazer os clculos. Tambm leria os livros que
faltavam, para ver se algum deles mencionava o castelo de Santa Ana, para
tentar descobrir outras pistas que pudessem ser teis. Tinha certeza de que nada
disso adiantaria, mas faria de qualquer jeito.
Novamente no mosteiro, aps o almoo, Gilles voltou a retirar-se em sua
cela. Frei Jos tentou acompanh-lo. Sabia que Bossuet no estava bem, apesar
das negativas deste. Durante todo o caminho, Gilles percebeu que o monge
tentava anim-lo contando anedotas sobre o mosteiro e fazendo contnuas
perguntas sobre Paris. Mesmo que Bossuet estivesse realmente grato a ele por
isso, suas palavras no conseguiram anim-lo. No fazia nada mais que repetir
a si mesmo uma e outra vez que tinha certeza de que encontraria a entrada, e
no podia desviar-se desse pensamento.
A tertlia!exclamou o frade com um gesto triunfal.
Como?inquiriu Gilles, sem saber do que falava o irmo.
J sei o que vai anim-lodisse o frei Jos com grande otimismo,
convencido de suas palavras.Todas as sextas-feiras, antes do jantar, reunimo-
nos na sala capitular; um lugar que fica em frente biblioteca, junto ao claustro.
Normalmente se prope um tema para discusso, mas muito comum que
surjam outros temas a partir das argumentaes de uns e outros. muito
interessante, e estou certo de que voc se divertir.
Bossuet no achava que fosse assim; participar de infindveis dissertaes
dogmticas era a ltima coisa que queria fazer, e muito menos nesse dia.
Recusaria o convite, mas no pde. Simplesmente no teve coragem ao ver a
expresso de entusiasmo nos olhos do jovem frade.
Sim, claro, ireiafirmou Gilles, demonstrando toda a emoo que foi
possvel.
assim que eu gosto! No se arrepender. Ento, depois nos
encontraremos no claustro maior. s seis e meia. Combinado?
Muito bem. Ali nos encontraremos.
A primeira coisa que Bossuet fez ao voltar sua cela foi conferir as
medies. Para isso, marcou novamente na beirada da folha a longitude do
segmento de referncia, repetindo a operao vrias vezes e tomando especial
cuidado para que o final de um segmento coincidisse exatamente com o incio do
outro. Utilizando o mtodo de Tales, dividiu cada segmento marcado em dez
partes idnticas e, por ltimo, colocou a improvisada rgua sobre a gravura do
livro, para determinar a distncia do torreo at a entrada da passagem. O valor
que obteve tinha menos de um metro de diferena do que havia calculado antes,
o que era mais que aceitvel.
No conseguiu encontrar nenhuma outra referncia fortaleza de Santa
Ana nos demais livros. De fato, a maior parte deles relatava quase os mesmos
acontecimentos j lidos por Gilles nos outros volumes; dados sobre o mosteiro
de Poblet, que conhecia muito bem e no traziam nenhuma luz.
Mais desiludido que nunca, dirigiu-se pouco antes das seis e meia para o
claustro, para encontrar-se com frei Jos. A praa maior tinha um aspecto
desolado, afogada em uma penumbra cinza-chumbo que parecia cobrir tudo e
que quase o fez duvidar sobre onde terminava a pedra e comeava o cu.
Aquele tempo horrvel era o perfeito reflexo de seu nimo. Cinza sobre cinza.
E, pensou, ele tampouco se diferenciava do resto.
Quando chegou ao claustro, o monge j estava esperando por ele. Estava de
p perto de um arco. Dos dois lados, abertas para o claustro, havia duas janelas
atravs das quais se podia ver a sala capitular, um cmodo quadrado em que
umas colunas centrais, dispostas em pares, sustentavam o teto de arcos. Dentro
dele, os irmos dirigiam-se a seus assentos com sua habitual parcimnia. No
entrou ningum mais depois de Gilles e frei Jos, e no entanto estavam livres
quase todos os bancos. Somente trs fileiras, na parte oposta entrada, estavam
ocupadas.
- Bem-vindos, irmosouviu-se dizer um dos monges.
Gilles se levantou de seu assento e espiou entre as coroas raspadas dos
monges para v-lo. Quem falava era o mesmo frade que lera o Evangelho na
igreja na noite anterior. Estava sentado esquerda do abade em uma cadeira de
madeira de aparncia incmoda e com um encosto que se estendia acima de sua
cabea. Suas mos, elegantes e de longos dedos, penduravam-se languidamente
para fora dos apoios de brao da cadeira. Do outro lado do abade, como de
costume, se encontrava frei Alessandro. As trs figuras estavam situadas sobre
um tablado, elevados uns centmetros do solo, como mostra de sua dignidade
hierrquica. Bossuet passeou os olhos de um lado a outro e percebeu que o frade
que estava falando desviava seu olhar quando se fixou nele. "Afinal, reuniram-se
os implacveis guardies", pensou Gilles. Eram eles trs, somente esses trs
frades. Apostaria sua vida nisso. Os demais monges no eram mais que meros
expectadores, pees manipulados pelas mos espertas de to consumados
jogadores na partida que Deus, ou quem fosse, lhes oferecera.
Bossuet notou que a inquietao crescia em seu interior. S ento comeava
a perceber o que significava no ter encontrado a passagem secreta: tudo aquilo
que acontecera, tudo aquilo que o levara a terras to distantes estava perdido.
De repente. Como se um malfico vento o tivesse arrebatado e deixado
somente um profundo e terrvel vazio que o fazia perguntar-se como poderia
continuar vivendo. O vazio deu lugar fria, uma fria sem autnticos
culpados; o nico sentimento suficientemente poderoso para combater sua dor.
E a dirigiu contra a soberba desses trs homens, esses homens que acreditavam
ter o direito de ocultar a verdade em nome de seu Deus.
Hoje falaremos da virtude de ser justocontinuou o frade.De acordo
com os ensinamentos de Santo Agostinho...
Justia?exclamou Gilles entre dentes, levantando-se, incapaz de
controlar por mais tempo sua ira.
O movimento foi to repentino que frei Jos deu um salto, assustado. Ao ouvir
as palavras de Bossuet, permaneceu um instante em p, em dvida se deveria
sentar-se ou no. Finalmente voltou a seu lugar, mas em nenhum momento
deixou de observar Gilles com uma expresso de absoluta incredulidade, como
se pensasse que este havia enlouquecido.
Faa o favor de sentar-sebronqueou o frade com voz severa.Ainda
no terminei minha exposio.
Justiarepetiu Bossuet quase murmurando, saboreando a palavra.Que
sabeis vs de justia?inquiriu desafiante. Seu rosto estava incendiado pela
clera.
A pergunta de Gilles obteve como resposta um murmrio de reprovao por
parte dos monges. O irmo Jos permaneceu em silncio. Tambm se
mantiveram calados o abade e frei Alessandro, ainda que este se tenha remexido
incomodado em sua cadeira.
Como se atreve a profanar este lugar sagrado com o veneno de suas
palavras?rosnou o frade, com cara de poucos amigos.Se bem que no de
se estranharprosseguiu, dirigindo-se congregao em um inquietante tom de
confidncia.Estas so as aberraes que produz esse lugar de perdio!
gritou ainda mais alto levantando seu punho.Paris! Como no? A cidade dos
sete pecados capitais, chamam-na. E em verdade vos digo, assim . Como pode
ento um francsdisse apontando a Bossuet com desprezovir a dar-nos lies
de justia?
Os cabelos do frade, que caam lisos de ambos os lados da cabea,
encontravam-se agora alvoroados. Uma grossa mecha de cabelos estava
grudada em sua suada testa, sobre as povoadas sobrancelhas. Os irmos
concordaram veementemente com as palavras do monge, ao mesmo tempo que
aumentavam o volume de seus comentrios. Seus rostos abandonaram o frade do
tablado para dirigirem-se outra vez a Gilles, esperando sua resposta. Frei Jos
aproximou-se dele e, dissimuladamente, puxou-lhe o saiote enquanto lhe
implorava que se sentasse em uma voz quase inaudvel e olhando para a frente.
Ah!proferiu Gilles, com um sorriso macabro, ignorando o conselho do
irmo Jos. -A cidade dos sete pecados capitais? Valha-me Deus! Por acaso
esteve alguma vez em Paris?
No preciso!bradou o monge.Posso notar daqui sua pestilncia.
Eis a a justia espanholadisse Bossuet, apontando para o frade com os
braos estendidos, em um tom surpreendentemente tranqilo,ou a justia
divinaacrescentou,que para os espanhis a mesma.
Dito isso, voltou-se para o frei Jos e em voz baixa disse:
Sinto muito.
Depois, sem dizer mais uma palavra, dirigiu-se para a sada com passo
firme, entre o rebulio generalizado dos monges.
Senhor Bossuet!trovejou uma voz em suas costas, diferente da do frade
do tablado.Gilleschamou a voz com doura quando este continuou andando.
Bossuet se deteve no meio do corredor e virou-se lentamente. Era o abade
quem falava. Havia descido do tablado e se encontrava tambm no corredor, a
poucos metros dele. Gilles contemplou a nobre figura do ancio. Apesar de sua
terrvel fria, no podia deixar de faz-lo. Ento ouviu uma voz em seu interior,
uma voz amvel que tentou acalm-lo, dizendo-lhe que estava confuso e que
suas duras palavras no eram to honestas quanto ele achava. Aquela voz lhe
soou um tanto familiar. Como uma que achou ter ouvido certa vez, fazia muito
tempo, em um laboratrio de qumica em sua distante e querida universidade.
Gillescomeou a dizer o abade,voc deve deixar este mosteiro para
que a paz volte a reinar neleno havia rancor em suas palavras, e sim um
profundo pesar que surpreendeu Bossuet. Pode ficar ainda esta noite, se desejar,
e...
Que se v agora mesmo!interrompeu o frade com o qual Gilles havia
discutido.
O abade o fez calar com um gesto e voltou a repetir seu oferecimento:
Pode ficar esta noite e sair amanh pela manh.
Eu agradeodisse Bossuet sinceramente.Assim o farei.
Todos os irmos observaram a cena em silncio, inclusive frei Jos. A tristeza
de seu rosto cortou o corao de Gilles. Mas no havia como voltar atrs; todos os
seus navios jaziam queimados no fundo do mar.
To logo deixou o local, comeou a ouvir de novo os comentrios dos
monges. Acelerou o passo e atravessou o claustro como alma que transporta o
diabo, e no voltou a olhar para trs at chegar a sua cela.
26
Labeu decidiu postergar uns dias sua partida. Desejava receber o batismo
das mos de um dos discpulos de Jesus, porm todos, exceto Joo, que ainda
era um garoto, se encontravam desaparecidos. Jos de Arimatia no teve
notcias deles at a noite de sbado, quando Pedro o procurou e revelou onde
estavam escondidos. Mas Jos no disse nada a ningum at a segunda-feira
seguinte, um dia depois da Ressurreio.
Por sua vez, Simo Ben Matatias tomara a firme deciso de renunciar a seu
lugar no Sindrio. Depois do que havia acontecido, no desejava pertencer ao
Conselho, impuro e criminoso, que se esquecera do verdadeiro sentido das leis
antigas. Com sua respeitvel fortuna, compraria outra fazenda longe de
Jerusalm, conforme pensara fazer em tantas ocasies, pois assim terminaria
seus dias dedicado totalmente ao cultivo de sua horta e ao estudo das Escrituras.
O povo judeu, to amado por ele, mostrara no merecer seu trabalho nem seu
esforo. Talvez fosse melhor que os romanos, mesmo sendo idlatras e
mesquinhos, mantivessem seu domnio para sempre.
A morte de Jesus e as circunstncias to deplorveis em que se produzira
mostravam muito mais do que se podia imaginar. Nas piores e mais difceis
situaes que os homens mostram seu verdadeiro interior. O homem nobre
redobra sua grandeza de esprito, enquanto o ruim, sua vilania. E parecia que,
entre os filhos de Israel, havia poucos homens que mereciam ser chamados de
nobres. Jerusalm parecia haver-se convertido em uma nova Sodoma pela
iniqidade, baixeza e degradao de seus habitantes, que auguravam desastres
terrveis e maiores que os jamais visto antes. Pois o agricultor, ao podar e
arrancar o sarmento seco, favorece as futuras colheitas; porm, se abandona
sua terra, dela s obter poucos frutos e, mesmo assim, enfermos, e a erva
daninha se enraizar.
A vida sempre continua, mesmo que se perca o melhor dos homens. No
entanto, Labeu contemplava com repulsa as pessoas de Jerusalm. Pouco antes,
exatamente como lhe contara Simo, aclamaram a chegada de Jesus; agora,
pareciam t-lo esquecido, antes mesmo que o corpo se esfriasse em seu
tmulo. Sua lembrana se reduzia aos prodgios ocorridos durante a
crucificao: a repentina mudana no tempo, os fortes troves sem sinal de
temporal, o pequeno tremor de terra. Todos estavam intrigados com o fato de
que, ao expirar o rabi na cruz, se houvesse rasgado em duas partes, de cima a
baixo, o vu sagrado do Templo... Alm disso, havia tambm o suicdio de Judas
Iscariotes, o traidor, desesperado pela insuportvel culpa. Parecia que os judeus
necessitavam sempre de um sacerdote para interpretar os sinais de Deus, por
mais evidentes que fossem.
1888,
Poblet
Estava duro de frio. Os dentes batiam com fora e tinha os braos cruzados
com as mos embaixo das axilas, em uma tentativa de dar-se um pouco de
calor. Virou-se sem sair do lugar para inspecionar o fundo. A escurido era
tanta, que quase no viu um corredor que havia atrs de si. Antes de entrar por
ele, olhou pela ltima vez para cima. A abertura parecia muito pequena vista l
de baixo, e achou que suas beiradas estavam de alguma maneira arredondadas.
Era s um efeito visual devido ao contraste entre a luz do dia e a escurido do
poo, mas nem por isso deixava de ser perturbador.
Um pequeno arco dava acesso ao corredor, cuja altura era exgua. Tanto
que Bossuet se viu obrigado a caminhar ligeiramente encurvado. Tinha os ps
gelados e sentia o corpo endurecido pelo frio. Cada passo exigia um grande
esforo para superar a fora da gua. O ar mido tinha um cheiro diferente por
causa da m ventilao, que se acentuava medida que adentrava mais e mais
a galeria subterrnea. Gilles caminhava com os braos estendidos, tateando s
cegas as paredes e sentindo sua textura spera. Entre as pedras corriam fios de
gua que se infiltravam do terreno. Do teto, caam incessantemente glidas
gotas que produziam um incomodo rudo ao chocar-se contra a superfcie da
gua. Em muitos lugares, os blocos de pedra estavam cobertos por musgos ou
alguma planta similar, de textura desagradvel. Bossuet tambm notara outras
coisas, que se amassavam com um horrvel rangido quando ele apoiava as
mos, soltando pegajosos e repugnantes fluidos. Achava melhor nem pensar
muito sobre o que poderiam ser, nem ficar tentando imaginar de que tipo de
seres imundos poderia tratar-se.
O onipresente som que produzia o gotejamento intensificou-se. Estava
chovendo outra vez. S ento Gilles percebeu que o cho da galeria no era
plano, mas que estava construdo em uma leve inclinao quase imperceptvel,
suficiente para que a gua corresse de um modo vertiginoso. No entanto,
felizmente, o nvel de gua era menor e diminua conforme Bossuet avanava.
Chegou um momento em que o fluxo de gua do teto parou. E foi de um modo
to repentino que s podia ser porque j se encontrava sob os pores do
mosteiro.
Gilles percebeu que alm de inclinada a passagem fazia uma progressiva
curva para a direita. Por esse motivo no viu a fraca luz que vinha do fundo
antes de percorrer um bom pedao. A princpio sentiu-se aliviado por aquela
impenetrvel escurido ter realmente um fim, mas no demorou a perceber a
ameaa que poderia representar. Subitamente assustado, grudou as costas na
parede e se manteve quieto. Essa era a nica maneira de averiguar se a luz se
dirigia ou no a ele. Ficou observando durantes vrios e tensos minutos, mas a
luz se manteve imvel. Deu graas a Deus por isso, pois s a idia de ter de
voltar lhe era insuportvel.
Com cuidado, continuou avanando. Com alvio comprovou que a passagem
terminava um pouco mais frente em uma escadaria de pedra, que levava
sala de onde vinha a claridade. Os degraus brilhavam pelo desgaste e tinham as
bordas quebradas, como se j tivessem sido utilizados muitas vezes. Na parte
central, havia inclusive uns pedaos afundados, devido s pisadas. Aquilo dava a
idia do tempo e do esforo que exigiu a construo da passagem.
Bossuet subiu os degraus conservando-se junto parede e deixando em seu
caminho as midas marcas de seus sapatos. De onde estava, perto de um dos
pilares do arco de acesso, viu o que parecia ser uma ante-sala. O cho estava
coberto por grandes pedras polidas, que contrastavam com a sobriedade dos
opacos muros de granito. Ali, sustentadas precariamente por aros comidos pela
ferrugem, havia trs pares de tochas, que iluminavam uma imagem de Cristo
crucificado e um pequeno altar, coberto por um pano com o smbolo da cruz. No
lado oposto passagem, abria-se uma estreita e baixa porta de metal, salpicada
em muitos lugares por marcas de corroso, como se se tratasse de uma
enfermidade que a estivesse consumindo pouco a pouco. Na parte superior, tinha
uma pequena abertura de finas barras de ferro, que antigamente devia ter
servido para averiguar a identidade de quem entrasse pela passagem.
As roupas de Gilles estavam completamente encharcadas e sua tremedeira
havia piorado. Aproximou-se o mais que pde das tochas, agradecendo pelo
morno calor que saa delas. Tinha tanto frio que, por uns instantes, nem se
importou com o fato de poder entrar algum e descobri-lo. Desejava somente
ficar sob o calor da chama ardente e teve de usar toda sua fora de vontade
para obrigar-se a sair dali. Ainda gelado, aproximou-se da grade da porta para
ver atravs dela a sala ao lado. Era muito maior que o lugar onde estava ele,
ainda que no pudesse v-la inteira. Tambm podia ver s o comeo de uma
escadaria na parede oposta. O cmodo estava quase s escuras, e vazio, com
exceo de um pequeno mvel ao lado da escadaria.
Gilles no via ningum do outro lado, apesar de haver a possibilidade de ter
algum escondido nas partes mais aprofundadas que ele no podia enxergar.
Movimentou-se de um lado a outro da grade para fazer uma ltima
investigao e ento notou uma fresta de luz nas bordas da porta. "Est aberta",
pensou surpreso. Sem dvida no esperava que fosse to fcil. A sorte lhe sorria
apesar de, depois do que acontecera nos ltimos tempos, estar convencido de
que a sorte tivesse pouco a ver com tudo aquilo e que tudo o que acontece tem
sua razo. Ainda assim, no pde evitar sentir-se como um profanador de
tmulos quando empurrou suavemente a porta e esta se abriu com um leve
rangido.
A porta de ferro que atravessara estava embutida no grosso muro, em um
nvel inferior ao do cho da sala anexa, de modo que Bossuet ficava poucos
metros acima do piso. Naquele alapo se sentiu vulnervel e olhou
nervosamente para todos os lados para ter certeza de que estava sozinho ali.
Sem perder de vista a escadaria da sala, subiu por uns inclinados e estreitos
degraus e se moveu sem fazer o menor rudo at uma regio mais escura.
Provavelmente no adiantaria muito se algum aparecesse, mas o cmodo
estava to vazio que essa era a nica maneira de esconder-se. Inclusive as
paredes estavam quase nuas, enfeitadas somente pelas tochas, mais funcionais
que decorativas, que emitiam uma luz azulada. Pensou que tantas precaues
talvez no fizessem o menor sentido. Afinal, o irmo Jos sabia que ele tentaria
entrar na cmara subterrnea. Contudo, se o frade lhe confessara o segredo da
passagem, que sentido teria agora delat-lo? Gilles pensava que nenhum; mas
ainda assim o mais prudente era continuar sendo cuidadoso e fazer o possvel
para no ser descoberto.
Como lhe parecera quando olhou pela grade, a sala era espaosa. O teto,
baixo e abobadado, era formado por pequenos pedaos de pedras to prximos
que nem parecia haver argamassa entre eles. O acesso a uma nova sala ficava
esquerda. Nessa parede se abria uma grande porta de madeira ricamente
talhada e dividida em duas folhas que se encontravam abertas, presas por
cordis de uma intensa cor vermelha. Bossuet inclinou-se ligeiramente para a
frente para tentar ver, de onde estava, o interior da sala. Mas no conseguiu; as
grossas e volumosas cortinas de cor prpura o impediam. Foi at elas,
caminhando sempre pelas sombras e parando vrias vezes para vigiar as
escadas e escutar se vinha algum barulho do andar superior. Com a mo
trmula, no sabia se pelo frio ou pelo nervoso, separou as cortinas um pouco
para observar a sala atravs da fresta.
Nesse momento estava muito exposto luz e, muito agitado, alternava o
olhar entre as escadas s suas costas e a sala. Pde ver que se tratava de uma
sala muito ampla, quase toda envolta na penumbra, com sombras ameaadoras
e impossveis de investigar e que ocultavam grande parte do ambiente. Dos dois
lados da entrada, aps as cortinas, erguiam-se duas grossas e altas colunas de
estrutura retorcida que pareciam no combinar com a sbria arquitetura do
mosteiro, como se tivessem aparecido ali vindas de um distante e extico pas.
Mas o mais inslito de tudo era o altar que havia na parede em frente, apesar de
no estar certo de que esse era o nome que deveria dar-lhe. Ocupando um
lugar central, havia uma grande cadeira de aspecto macio muito parecida
com as que vira na tribuna da sala capitular. Atrs dela, pendurado na parede,
um belo tapete com desconhecidos e raros smbolos e, sobre ele, gravados na
pedra, apareciam um tringulo com o onisciente Olho de Deus e uns desenhos
em forma de estrela a seu redor, que Gilles, como bom matemtico e
astrnomo, reconheceu de imediato: era a constelao de Gmeos. Aquela
parte do cmodo estava iluminada por uma luz quente e fantasmagrica que
no parecia sair das tochas na parede. Bossuet contemplava a cena
maravilhado e s ento compreendeu realmente. E, no mais profundo de seu
corao, perdoou aos homens que havia chamado de injustos e pediu perdo
tambm para ele mesmo ao Deus que por tanto tempo negara.
Entrou na sala com passo decidido, sem esconder-se, pois j no sentia medo
nem temor algum. As velhas bandeiras penduradas nos muros de pedra junto aos
escudos de armas se agitaram levemente, movidas por uma brisa to sbita
como inexplicvel. O ambiente se encheu com envolventes odores suaves e
vozes de tempos passados. Vozes amigas, que lhe davam as boas-vindas. A luz das
tochas se extinguia conforme ele passava, deixando para trs um rastro de
escurido. Quando chegou ao fundo da sala, o estranho fulgor que vira antes se
tornou mais intenso por um momento antes de desvanecer. A sala ficou ento em
completa escurido enquanto Gilles aguardava ansioso, com os olhos muito
abertos. Da parede surgiram, de repente, dois fios de luz paralelos no lugar onde
estava pendurado o tapete. Dirigiu-se at eles desviando-se da cadeira mesmo
no podendo v-la. Depois estendeu o brao e a escurido pareceu aumentar. Era
o tapete que se afastava, deixando ver o portal que escondia. O acesso era
estreito e coroado por um baixo arco de meio ponto. Bossuet teve de agachar-se
para atravess-lo, levantando-se logo do outro lado. A luz era escassa, mas
deslumbrante diante da escurido da qual sara. No conseguia identificar os
detalhes do interior da sala. Uma parede esbranquiada ao fundo, oposta
entrada, era a nica coisa que podia ver. No entanto, medida que seus olhos se
acostumavam luz, um desenho vaporoso e quase imperceptvel foi aparecendo
diante dele. Era o Lenol Sagrado, o Sudrio de Cristo, sua Impresso; a relquia
que buscava h to pouco tempo e que, no entanto, parecia que fazia muito.
Emudecido pela emoo e por uma venerao que ele mesmo no era
capaz de compreender, como uma cor nova e nunca vista, sentiu que estava
beira de um desmaio. Cambaleou estremecido, atingido por um turbilho de
idias to tnues quanto a imagem do Lenol. E, movido por uma fora to
clara e evidente como sua prpria vida, mas inexplicvel e misteriosa,
ajoelhou-se com os olhos cheios de lgrimas. Em vo tentou lembrar-se das
oraes que aprendera quando criana. Nunca fora um homem religioso. E, no
entanto, orou. Orou sem palavras, com o corao, elevando uma prece inefvel
e verdadeira, cheia de sinceridade.
De repente uma voz o assustou. Era o abade do mosteiro, sentado em uma
cadeira lavrada na pedra, atrs dele:
Eu o estava esperandodisse sossegadamente, majestoso.
Gilles no soube o que responder. Por uns momentos os dois homens se
mantiveram em silncio, enquanto contemplavam a imagem do Sudrio.
bela, no?falou de novo com seu tom de voz suave.
Sim, muitoconseguiu responder Gilles, sem se virar.
Tinha certeza de que conseguiria, meu amigo. E que suas intenes eram
piedosas. Vi isso escrito em seu rosto, quando chegou.
Sou somente um professor de matemtica. Um parisiense acostumado
com o barulho do mundo. Um ateu...Gilles abaixara a cabea e tinha os olhos
fechados. As lgrimas escapavam por entre as plpebras e percorriam-lhe as
faces at precipitar-se ao estranhamente clido cho de pedra.
Verdade?perguntou o abade j sabendo a resposta. Os ateus no
costumam ajoelhar-se diante das imagens sagradas disse levantando-se e
aproximando-se de Bossuet, colocando afavelmente a mo em seu ombro.
Nem orar. Muito menos com devoo. Diga-me, meu filho, no sente a energia
que sai dele?falou, observando o Lenol com verdadeiro amor.
A voz do abade ecoou no ambiente, profunda e bondosa, como a expresso do
rosto do homem do Santo Sudrio. E Gilles pensou que assim era, podia sentir seu
poder. O corao batia com fria no peito, apesar de sentir uma sensao de paz
profunda e indefinvel. As lembranas de toda sua vida passaram, agitadas e
vertiginosas, por sua mente. Parecia estranho a si mesmo. Havia mudado, quase
de repente. Ou talvez no? Pela primeira vez em sua existncia era incapaz de
julgar racionalmente o que acontecia. Isso perturbaria e irritaria o velho Gilles
Bossuet. Porm agora, nas profundidades daquele mosteiro, sentiu como se
tivesse encontrado algo que perdera h muito tempo; encontrara a si mesmo, e
soube naquele momento que jamais se afastaria da Imagem de Cristo.
TERCEIRA PARTE
28
1997, Madri
Querido
Gilles:
J faz quase um ano que no tenho notcias suas. Sei que me havia dito, em sua
primeira carta, que tambm seria a ltima. Mas tenho certeza de que voc ficar
contente em ler estas letras que lhe escrevo.
S desejo parabeniz-lo outra vez, depois de tudo, por sua deciso. E esperar
da Providncia que o proteja e guie para sempre, agora que compreende, e
compartilha comigo, os benefcios da vida na f.
Sculo I,
Edessa
944,
Constantinopla
1204, So
Joo do Acre
O Santo Sudrio foi levado a Edessa por Tadeu. Ali, o rei Abgar, entristecido
pela morte de Jesus, ordenou que fosse construdo, junto ao rio Daisan, um
pequeno santurio consagrado relquia. Nele, uma chama acesa
permanentemente em memria do rabi daria testemunho de sua venerao.
Mas a chama, com o passar dos sculos, extinguiu-se. Durante mais de
trezentos anos o Santo Sudrio, transportado parte mais alta das muralhas da
cidade para ser protegido de uma inundao, ficou esquecido. A Impresso de
Cristo ainda no desaparecera do tecido. Somente durante uma guerra, estando a
cidade cercada, redescobriu-se entre os muros, com a milagrosa e estranha
imagem, qual se atriburam a resistncia e a vitria de Edessa contra os
inimigos. Em toda a cristandade houve notcia do Lenol: a Impresso Edessena,
o Sudrio com que se amortalhou Jesus no sepulcro, perdido durante sculos.
Edessa conservou o Lenol durante quase mil anos, cercada de lendas e
inspiradora de narraes fantsticas. Porm, em 943, esquecida j a febre
iconoclasta dos Isurios, Romano Lecapeno, imperador de Bizncio, ordenou que
o Sudrio lhe fosse entregue. Os edessenos se negaram veementemente a isso: o
imperador no tinha direito algum de exigir a relquia, que pertencia a Edessa
desde tempos imemoriais.
Romano Lecapeno, com as notcias de seus embaixadores, respondeu
mandando um exrcito que sitiou a ousada cidade que se atrevia a desafiar seu
poder. O bloqueio durou quase um ano. Durante esse perodo os edessenos
tentaram confundir o imperador em vrias ocasies, com cpias pintadas do
Lenol. Porm este, mesmo quando ainda no havia visto a Impresso de Cristo,
no se deixou enganar com as grotescas imitaes. O cerco se prolongou at 944,
quando, exausta e vtima de todo tipo de penrias, Edessa se rendeu e no teve
outra opo seno entregar a relquia a Bizncio.
Romano Lecapeno regressou capital do Imprio, Constantinopla, com o
Sudrio em seu poder. Era 16 de agosto. A entrada foi triunfal. Todos os cidados
saram s ruas para receber seu imperador. A curiosidade e o fervor religioso,
em partes iguais, faziam aumentar a expectativa nas pessoas. Romano foi
aclamado como um conquistador que voltava, de uma terra distante, trazendo
consigo os maiores despojos de guerra que se pode imaginar. Muitos cidados o
esperavam nas ruas; outros, sobre as mais altas muralhas. Milhares de almas se
aglomeravam ao longo do itinerrio que o Lenol Sagrado deveria percorrer.
O exrcito imperial entrou em Constantinopla pela Porta de Ouro. Aps
passar pelo umbral, Romano entregou a relquia s autoridades religiosas, que a
conduziram, escoltada tambm pelos senadores, at a igreja de Santa Sofia. Ao
chegar, diante da entrada principal, o Sudrio foi desdobrado com grande
cerimnia e mostrado ao povo, ansioso por ver a Impresso de Cristo o mais
perto possvel. Muitos ficaram decepcionados. A imagem era to tnue que se
tornava quase invisvel. S viam as manchas de sangue. Alguns, muito poucos, no
entanto, puderam compreender o significado da vaga e nebulosa figura.
Antes de anoitecer, em solene procisso, o Santo Sudrio voltou a ser dobrado
e foi conduzido ao Bucoleon, palcio e residncia do imperador.
O sol estava prximo do ocaso, acobreado e flamejante no horizonte, quando
a maior relquia da cristandade atravessava as portas do Bucoleon para descansar
na capela imperial de Santa Maria do Farol. Em dois sculos e meio ningum
voltaria a v-la fora desse lugar.
1997,
Madri
A batalha dos cruzados contra o exrcito bizantino foi breve, porm cruel.
As tropas de ambos os lados se encontraram diante das muralhas de
Constantinopla pelo noroeste. No porto, o grande Chifre de Ouro, a armada
veneziana, encurralou os navios imperiais. A superioridade numrica cruzada
era esmagadora, e logo o exrcito bizantino bateu em retirada, indo para o
interior da cidade. No campo de batalha ficaram centenas de homens mortos,
sacrificados em uma luta intil e que estava perdida antes de comear.
A resistncia dentro dos muros tambm no se prolongou muito. Nos
coraes dos sitiados, o desnimo aumentava rapidamente. Seu antigo poder
acabara. O grande imprio de outrora jazia agora desfeito em mil pedaos.
Alm disso, a idia de ser conquistado pelos cruzados no era to ruim. Ao
menos para os cristos, como eles, apesar de terem caractersticas um pouco
diferentes. Em qualquer caso, era melhor que fossem eles do que os turcos,
sanguinrios e infiis.
O nmero de cavaleiros do Templo que se uniram s tropas cruzadas era de
cem, totalmente equipados, armados e com montarias turcomanas, as melhores
do mundo para a guerra. Antes da batalha, Guilherme de Charny escolheu oito
desses cavaleiros para que o acompanhassem em sua misso secreta, todos eles
de absoluta confiana. Cada um deles foi recrutado da mesma maneira: ele
perguntava se o cavaleiro desejava ir com ele e, caso no quisesse, que
mantivesse o segredo com a ajuda de Deus. Todos aceitaram.
Os templrios lutavam na frente do exrcito invasor. Por isso, foram os
primeiros a cruzar as portas de Constantinopla, vencida sua frgil resistncia.
Nenhum caiu na batalha. Eram soldados bravos e experientes, endurecidos nas
guerras da Terra Santa contra os sarracenos. Uma vez l dentro, os oito
cavaleiros e Charny se separaram furtivamente dos demais e trocaram seus
trajes militares por tnicas de fino linho. Para orientar-se na cidade, tinham um
mapa desenhado por um turcople (soldado indgena) convertido ao cristianismo,
que a conhecia bem e que costumava desenhar mapas para um grande mestre
do Templo.
O caminho que deveriam seguir, se no aparecesse nenhum contratempo,
estava traado de antemo. As vielas escolhidas eram to tortuosas e
secundrias que com certeza evitariam encontros com soldados bizantinos. Em
todo caso, estava previsto um caminho alternativo se a situao obrigasse a isso.
Era de vital importncia que chegassem ao palcio misturados entre os
assustados moradores da cidade.
No porto, uma densa fumaceira e um forte resplendor anunciavam a
destruio da frota imperial. As ruas estavam lotadas de cidados, que corriam
apavorados com alguns de seus pertences, os mais valiosos. A gritaria era
ensurdecedora e quase cobria o barulho das exploses. Boa parte dos edifcios
situados na regio da muralha pela qual se empreendera o ataque ardia em
chamas.
Charny e seus homens avanavam com rapidez entre a multido. Na
confuso que reinava, passavam despercebidos. Ningum reparava neles,
exceto para dizer-lhes que fugissem e se salvassem. O caminho foi longo:
Constantinopla era uma das maiores cidades do mundo antigo. Porm, enfim
apareceu, diante de seus olhos, o Bucoleon, cheio de harmonia, beleza e
grandiosidade.
Os poucos soldados que guardavam o palcio estavam muito ocupados em
seus postos para proteger a capela imperial; apesar de ser totalmente intil, pois
o imperador, vendo que a situao estava perdida, fugira dali. Por isso, Charny
e seus homens tiveram muita facilidade para entrar sem que ningum notasse,
j que s tiveram de acertar e deixar sem sentido apenas dois guardas que
vigiavam a entrada de carruagens.
Se o exterior do Bucoleon era belo, o interior refletia todo o antigo
esplendor, luxuoso e deslumbrante, do Imprio do Oriente. Sigilosamente, os
cavaleiros atravessaram o ptio de armas e alcanaram a igreja sem nenhum
contratempo. Dentro dela j no havia ningum. Nenhum sacerdote
permaneceu no lugar de seu ministrio. Parecia que a f se quebrava
facilmente diante dos exrcitos terrenos.
Conforme o relato do rei Amaury, o altar de mrmore, to brilhante como
os carros dourados da aurora e to branco como a pureza, estava diante deles,
no fundo da nave. Apressando-se, os cavaleiros se aproximaram e retiraram o
Lenol que o cobria. Embaixo surgiram as figuras dos Apstolos, cada um com
seu selo correspondente. O rei de Jerusalm havia dito ao grande mestre que
era necessrio apertar vrios selos de uma vez; mas no se lembrava quais. De
fato, nem sequer os vira diretamente quando lhe foi mostrada a Sndone, j que
estava do outro lado do altar.
O tempo corria. Charny tinha a idia preconcebida de apertar o primeiro
selo e, sem solt-lo, ir apertando os outros. Se no desse certo com o primeiro,
tentariam com os demais da mesma maneira. Se a combinao que acionava o
mecanismo de fechamento era composta somente por dois selos, aquilo deveria
abrir em algum momento. Porm, como suspeitava, o sistema no era to
simples. Fizeram as mesmas tentativas com trs selos e o resultado era o
mesmo. O tempo estava acabando, e no conseguiam mover o altar.
Os cavaleiros estavam nervosos e abatidos. Seu plano funcionara
perfeitamente at aquele instante, e seria muito triste ter de ir embora sem
alcanar o objetivo. Alguns pressionavam os selos aleatoriamente, sem que a
pesada rocha se abrisse. Enquanto isso, Charny refletia, tentando pensar em
alguma coisa, j que o caminho dos selos no tinha dado certo.
De repente, como a asa de um pssaro fugaz, um pensamento to claro e
bvio quanto absurdo roou sua mente. Aps uns segundos de meditao, j que
no havia tempo para mais, explicou sua idia aos outros. Era muito simples,
mas antes de p-la em prtica todos se ajoelharam e se benzeram.
Perdoe-nos, Senhor, pelo sacrilgio que vamos cometer disse Charny,
elevando ao cu sua prece.
Dito isso, fez um sinal aos cavaleiros mais fortes para que fizessem o que
haviam combinado, seu ltimo recurso. Os dois homens, grandes como
montanhas, agarraram com firmeza pesados candelabros de ferro, da altura de
uma pessoa, e comearam a bater com golpes terrveis contra o altar. Os
pedaos de mrmore pulavam, arremessados a distncias inimaginveis. Aos
poucos, com um barulho estrondoso, aumentado pelo eco da nave, o altar
comeou a rachar. Depois de uma dezena de golpes, a sagrada mesa se desfez
em duas partes.
Sob os fragmentos, retirados pelos cavaleiros, apareceu a entrada,
exatamente como dissera Amaury. A escurido era total. Charny pegou uma
tocha e introduziu-se na passagem. Um de seus homens o seguia com outra
tocha. A descida, por uma escada em caracol, era longa. A cmara subterrnea
devia estar a uma profundidade considervel.
Por fim, abriu-se diante de seus olhos um espao que quebrava a monotonia
aborrecedora e angustiante da escadaria. O lugar era maior do que
suspeitavam. O ouro e as pedras preciosas cintilavam luz das chamas. No
centro do local, sobre uma espcie de coluna grossa e achatada, o Lenol
repousava coberto por um vu de seda quase transparente. Tudo parecia irreal,
criado num mundo de sonhos e fantasia.
Os dois cavaleiros se ajoelharam diante do Sudrio, murmurando, cada um,
uma improvisada e fervorosa orao. Recobrado do encantamento que a
relquia e o lugar produziam, Charny retirou o suave vu e, com muito cuidado,
levantou-o, pondo-o em cima de seu brao direito, enquanto com o esquerdo
segurava a tocha. Quando retomaram superfcie, todos os demais
ajoelharam-se, piedosamente, diante do estranho e maravilhoso rosto de Jesus
Cristo.
Conseguiram. Mas ainda tinham de sair do palcio, e o tempo se esgotava.
Cada vez era mais prximo o barulho da batalha. Terminada a breve adorao,
em honra ao Filho de Deus, Charny colocou a Sndone em seu peito, sob suas
roupas. Esse era o melhor modo de transport-la sem risco de perd-la. Sua
proteo no poderia ser melhor, pois, se tentassem tom-la, teriam antes de
arrancar-lhe a vida.
Satisfeitos pelo xito de sua misso, os templrios conseguiram deixar o
Bucoleon sem a menor resistncia. As tropas invasoras ainda no haviam
chegado ao palcio quando eles saram. No havendo mais nada a ser feito, os
nove homens dirigiram-se a um lugar prximo ao porto. Ali esperaram outros
irmos que trariam seus cavalos e roupas. Novamente como cavaleiros
templrios, Chamy e seus homens deixaram Constantinopla. Tinham orientao
para levar a Sndone Frana, onde estava estabelecido o ncleo poltico
europeu do Templo.
Os cavaleiros cavalgaram desde o estreito de Bsforo at o noroeste,
atravessando os Blcs. Passaram pela Macednia e Srvia. Ao parar para
descansar durante a noite, algumas vezes o faziam em casas do Templo e outras
pelo caminho, agasalhados por grossas mantas de l. Na Hungria, reino
libertado h vinte e cinco anos do jugo bizantino com a morte do imperador
Manuel Comneno, hospedaram-se em um convento templrio situado aos ps
das montanhas de Mecsek, muito prximo cidade de Pecs, que era conhecida
pelos monges por seu nome alemo, Fnfkirchen, ou seja, "Cinco Igrejas".
Ali, Charny encontrou-se com um velho amigo, o companheiro construtor
Laszlo de Oroszlany. O recm-eleito rei da Hungria, Andr II, decidira
reformar a catedral romnica, abalada por um terremoto, como oferenda a
Deus por sua ascenso ao trono e como ao de graas pela libertao de seu
povo, e era normal que a Ordem do Templo desse asilo e proteo aos
companheiros construtores. De fato, os homens mais bem preparados e sbios
de ambos os grupos compartilhavam conhecimentos e aspiraes e estavam
unidos por fortes laos de amizade que, com o passar do tempo, ficavam cada
vez mais estreitos.
Laszlo era um homem franco e afvel, simptico e muito amigvel, que
parecia mais jovem do que era por sua forte constituio fsica. Ascendeu de
suas origens humildes, como simples pedreiro, a mestre de obras, um grau
muito respeitvel que testemunhava suas aptides como arquiteto. Guilherme
de Charny e ele se conheceram dez anos antes em Magncia, durante a
construo de uma casa templria.
O encontro com o amigo fez nascer uma idia na mente do cavaleiro: o
Santo Sudrio necessitava de um ba onde se pudesse transport-o e proteg-lo
como merecia. O cofre deveria ser fundido em metal nobre, mas a falta de
condies de Charny nesse momento e a delicada situao financeira do
convento de Pecs o obrigaram a optar pela prata, que talvez no fosse o metal
mais adequado para uma das maiores relquias da cristandade, mas a f e a
devoo dignificariam o metal.
Quando Charny pediu a Laszlo que fizesse o ba, este estranhou que o
pedisse a ele, que trabalhava com pedras, e no com metais; alm disso, queria
saber para que uso se destinaria. O cavaleiro respondeu que guardaria relquias
sagradas. O esclarecimento satisfez o mestre construtor, incapaz de imaginar o
verdadeiro contedo do cofre uma vez fundido. E, sobre a pergunta que o
mestre fizera sobre a escolha dele para tal atividade, Charny disse que o
considerava um artista e que na arte a nica coisa que importa a inspirao.
Essas palavras no solucionavam o problema, mas Laszlo agradeceu muito os
elogios de seu amigo, absolutamente sinceros.
Na casa do Templo havia uma forja. O mestre, informado por Charny de
sua necessidade de us-la, no ps objeo alguma a isso, apesar de tampouco
ter recebido uma explicao mais detalhada do que aquela que o mestre de
obras recebera. Este usara uma rocha, oca em seu interior, para lavrar o
modelo do ba. Por indicao de Charny, estava decorada com baixo-relevos
dos Apstolos. Depois, com argila de alta qualidade, fez o molde. Uma vez
endurecido no forno, a prata foi despejada com a ajuda de um ferreiro do
convento. A operao foi um sucesso. Lasz10 usou o mesmo sistema para
confeccionar a tampa do cofre, unida a este por duas dobradias, e prendeu
finalmente uma fechadura de tranca vertical que se encaixava em uma
salincia da caixa.
A prata utilizada era de lei, muito boa para a poca, mas continha certas
impurezas que lhe davam levemente uma cor de palha. O trabalho estava
aceitvel; talvez no fosse uma obra de arte, mas estava apresentvel, levando-
se em conta as circunstncias. Aps agradecer a Laszlo pelo trabalho e ao
mestre da casa de Pecs pela ajuda, Charny seguiu viagem junto dos demais
cavaleiros que o acompanhavam at ento.
Atravessaram lentamente as amplas terras germanas, contornando os Alpes,
e chegaram por fim Frana, trmino de sua jornada. Ali, a famlia dos
Charny possua extensas e ricas terras. O grande mestre do Templo ordenara a
Guilherme que escondesse a relquia em sua casa por um tempo. Era prudente
esperar pelos prximos acontecimentos. Os templrios no deviam se ver
envolvidos no desaparecimento do Sudrio. Ningum deveria ter notcias dele
at que a situao se acalmasse.
32
O txi parou no cruzamento das estreitas ruas Martin de las Heras e San
Miguel. Henrique desceu em uma esquina. A porta era de ferro fundido. Nela,
com letras formadas por pedaos de pedra, como um mosaico, dizia: "Colgio
Frei Luis de Leon". Era um edifcio de cinco andares, srio e austero, que exibia
em uma parte de sua fachada, como uma grinalda sobre o andar de baixo,
desenhos abstratos prprios dos anos sessenta, que causavam um contraste
peculiar.
A porta de entrada dava para um vestbulo que, ao fundo, se transformava
em um corredor. direita, um busto de bronze do fundador da Ordem parecia
estar colocado para observar e assustar os alunos que passassem por ele: "A
partir daqui, comporte-se bem", esquerda, junto a umas escadas que
desciam, havia uma cabine, com a recepcionista em seu interior. Henrique se
dirigiu a ela e perguntou pelo padre Arranz. A mulher tirou o fone de ouvido e
avisou o sacerdote; depois disse a Henrique que ele desceria em seguida.
Poucos minutos depois, a figura solene do religioso apareceu, vindo pelo
corredor. Vestia calas e camisa preta e usava colarinho clerical, um costume
quase perdido entre os padres seculares. Dava uma sensao de Antigidade, de
anacronismo. Seu rosto estava envelhecido e caminhava devagar, com alguma
dificuldade, ainda que harmoniosamente. No entanto, seu brao direito parecia
sofrer uma leve tremedeira, que se acentuou ao estender a mo a Henrique: era
o sinal evidente do mal de Parkinson, ainda incipiente.
Espero que desta vez suas perguntas sejam sensveis disse o padre, com
gesto amvel.
E eu que suas respostas sejam menos complexasacrescentou Henrique
sorrindo. Alegrava-se realmente de ver aquele homem cujo modo de expor os
fatos histricos o entusiasmou tanto, apesar de ter assistido somente a sua ltima
conferncia.
O padre Arranz pediu a Henrique que o acompanhasse. Conduziu-o at uma
pequena sala, cuja porta ficava no corredor que levava igreja paroquial. As
paredes estavam decoradas por grandes avisos emoldurados dos diferentes
eventos do centro.
Bem, Henrique, que diz a carta de que me falou e que tanto o intriga?
inquiriu o padre, quando se sentaram em sbrias poltronas de tecido verde.
Com certeza deve ser uma pista falsa. Como disse, encontrei em um
velho manuscritodisse, passando a cpia do documento ao religioso e tentando
disfarar a excitao.
O padre Arranz ps uns pequenos culos, que tirou do bolso de sua camisa, e
leu a carta com ateno. Teve de segur-la com a mo esquerda para evitar o
movimento causado por seus tremores. Seus vivos olhos se moviam atrs das
lentes seguindo as palavras.
Interessante... Papel francs. De final do ano 1889, concretamente.
Henrique estava surpreso. Todos esses dados eram to corretos. Apesar de
logo reconsiderar e concordar que um homem com a sabedoria de Arranz era
capaz de reconhecer o tipo de papel sem duvidar e deduzir a data pela
referncia torre Eiffel. Mas se espantou de que, aparentemente, no houvesse
prestado muita ateno meno ao Santo Sudrio.
De fato, professor. Suas dedues so exatas. Mas o que me chamou a
ateno...
a linha que fala da Sndone. Estou enganado? interveio o padre
Arranz, terminando a frase de Henrique.
No, no est. Deixe-me explicar-lhe minhas averiguaes. Comprovei
que o Santo Sudrio se encontra, desde 1453, em poder dos duques de Sabia.
Estava em Chambery e depois em Turim. Nesta ltima cidade est guardado
desde 1578.
Continue.
Bem, sei que em toda a Europa h uma infinidade de cpias da Sndone
espalhadas por todos os lados. Isso, supondo que se conservava a mortalha de
verdade, naturalmente. Em geral, admite-se que esta, a de Turim, seja a
verdadeira. Mas recentemente sua origem foi datada como do sculo XVI.
Alguns estudos, mais superficiais e no concludentes, so capazes de localiz-la
no tempo. Por outro lado, os templrios, mais precisamente a Casa de Charny,
guardaram a relquia por mais de um sculo. E por isso queria v-lo. Esta
manh me lembrei de sua palestra em Monterrey, onde citava o mosteiro
cisterciense de Poblet: o mesmo que se menciona na carta. Acredita que
poderia haver uma cpia do Lenol no catalogada?
O padre Arranz olhou para Henrique com um sorriso maroto.
Ou o Lenol verdadeiro.
As palavras do padre Arranz ecoaram na mente de Henrique como todos os
sinos de uma catedral. Em sua primeira conversa, o religioso dispunha de pouco
tempo, j que tinha de estar no arcebispado uma hora depois do horrio do
encontro com Henrique. O caso que lhe apresentou o professor mexicano o
interessou profundamente, e quis que voltassem a se encontrar o quanto antes.
Como tiveram de terminar logo a conversa, combinaram de almoar juntos no
dia seguinte.
No sei o que Csar fez com o Lenol. egosta, e o quer para ele.
ambicioso... Nunca me diz nada, exceto quando necessita meu selo e o poder de
meu cargo. Disse-me que os Sabia esto contentes. Que continuem assim!
1314, Paris
1315, Champenard
1997, Poblet
Pedro chegou a sua casa antes do jantar. Subiu direto para seus aposentos. O
empregado que estava escovando os cavalos surpreendeu-se de ver seu senhor
to sujo e despenteado. Perguntou, assustado, se acontecera algo, mas Pedro
nem o escutou. Tinha a cabea em outro lugar. Agora que conseguira o ba, via
com mais claridade os incompreensveis acontecimentos recentes.
Em seu quarto, retirou o pano e observou o ba demoradamente. Era de
metal; certamente prata, pensou. E, diante dele, teve vontade de abri-lo. Ps as
mos sobre a tampa e a acariciou com ternura, muito lentamente. Em sua
mente ecoavam as palavras de Godofredo: "Voc no deve abri-lo...". Conteve-
se. Deveria cumprir fielmente as orientaes de seu irmo. Ainda assim,
perguntava-se que tesouro haveria dentro dele. Seu valor devia ser incalculvel,
para suscitar tantos cuidados. Pelo menos, ficaria sabendo no dia do casamento
de seu filho.
Continuava absorto em suas reflexes e recordaes quando um rudo
caracterstico em seu estmago lembrou-o de que estava faminto. No comera
nada desde o dia anterior. Embrulhou outra vez o ba cuidadosamente,
amarrando-o com um barbante, e o fechou no armrio. Pediria que lhe
trouxessem o jantar e, enquanto saciava seu apetite, teria tempo para decidir
onde o esconderia. Seu filho tinha apenas dez anos, e ainda faltava muito tempo
para seu casamento.
Estava cansado e tinha sono. Esfregou os olhos com a palma das mos e
percebeu, admirado, que as cruzes haviam desaparecido.
36
1997, Poblet
1327, Champenard
1453, Lirey
Pedro de Charny tinha motivos para estar contente. Era o dia do casamento
de seu filho. A noiva era uma garota doce e bela, chamada Joana, da Casa de
Vergy. Alm disso, saberia finalmente o que continha o ba dos templrios.
Godofredo no havia dito nada contra o rapaz abrir o ba e mostrar a Pedro o
que havia dentro. Ao rapaz estava destinado e ele poderia fazer o que bem
entendesse. No ia negar a seu pai compartilhar to precioso presente.
No entanto, a alegria de Pedro duraria pouco, como tambm a prpria e
natural alegria de um casamento. Durante o banquete, que foi celebrado no
jardim de sua propriedade, rindo de uma brincadeira, engasgou-se com um
osso de cordeiro e morreu asfixiado sem que ningum pudesse fazer nada para
salv-lo. Como havia ali muitos sacerdotes, que oficializaram o casamento,
Pedro pde receber a extrema-uno enquanto lutava para conseguir um
pouco de ar e escapar das garras da morte. Mas no conseguiu. A felicidade se
transformou em tristeza; o branco da pureza nupcial, em negro fnebre.
Naquela mesma manh, chamara seu filho e lhe mostrara o ba, que
durante mais de uma dcada permanecera trancado no poro, em um cofre da
despensa, rodeado de barris e garrafas de vinho. S lhe disse, repetindo as
palavras de seu irmo, que o contedo estava destinado a ele por Deus.
Godofredo aceitou o presente sem compreender de que se tratava. Diversas
idias passaram por sua mente, todas elas vagas e equivocadas. Tinha certeza
de que era algum tipo de legado familiar, algum objeto muito antigo e valioso;
quanto a esta ltima opinio estava certo, apesar de ser incapaz de suspeitar a
verdadeira natureza.
A morte do pai deixou Godofredo em uma profunda tristeza. O dia mais feliz
de sua vida fora tambm o mais doloroso. Em Champenard, depois das
exquias, o luto durou um ms inteiro. Muitas mulheres do povoado choraram
desconsoladamente no enterro. Pedro conquistara a admirao de seus servos
por seu temperamento alegre e cordial, sempre justo e compreensivo. Apesar
de se ter tornado mais srio desde a apario de seu irmo, no perdeu suas
caractersticas, mas voltou-as na direo de uma grande devoo religiosa.
Mas impossvel lutar contra as invencveis leis da vida e do destino.
Godofredo teve de ser forte e, junto de sua esposa, vencer a dor e seguir em
frente. Joana lhe deu muito apoio e compartilhou com ele a surpresa do legado
de Pedro: o Santo Sudrio. Nunca souberam como fora parar em suas mos
nem o inexplicvel segredo que o cercava. Consideravam-se honrados e
afortunados por possu-lo. A Providncia trabalharia para iluminar e guiar seus
passos.
Ningum mais teve notcias da Sndone durante outro quarto de sculo.
Godofredo no sabia o que deveria fazer com a relquia. Considerou,
incentivado por Joana, a possibilidade de envi-la ao papa, mas ela estava
"destinada a ele por Deus". A grande pergunta estava formulada, e ambos
acreditavam que, quando chegasse o momento certo, saberiam o que fazer, pois
a soluo se apresentaria como uma revelao, de um modo claro e evidente.
Tinham razo.
1997, Poblet
1998,
Paris
J fazia seis meses que o professor Henrique Castro tinha enviado o Santo
Sudrio para o Vaticano. Desde ento, no ficou sabendo de mais nada sobre ele,
apesar de seus pensamentos sempre regressarem ao Lenol em busca de paz e
sossego para sua alma. As grandes perguntas da humanidade tinham sempre
respostas estranhas e complexas. No simplesmente creditar tudo razo ou
f. Talvez o ser humano esteja condenado a no poder entender a si mesmo,
cegado irremediavelmente pelo vu de sua essncia. Ou pode ser que seja como
um peixe no aqurio, imerso em um pequeno mundo sem perceber que, mais
alm, h um universo insondvel. Em todo caso, pensava Henrique, cada homem
deve, com verdadeira honestidade e na medida de suas possibilidades, levantar
seu olhar ao cu para tentar ver o que existe sobre sua cabea.
O encontro da Sndone fora um ponto de inflexo em sua vida, tanto pessoal e
profissional quanto espiritual. Mais de um pilar que acreditava slido em seu
modo de pensar abalara-se, chegando inclusive a cair, quebrando-se em
pedaos. Continuava sendo um homem eminentemente racional, mas agora
compreendia que a inteligncia deve fazer uso de todas as realidades do mundo,
sem excluir qualquer delas s porque cause dificuldades na construo do
edifcio mental. Agora, apesar de seu pensamento estar menos slido, livrara-se
da escravido da lgica excessivamente rgida e demasiadamente humana.
s vezes no era capaz de entender como se atrevera a ir to longe,
desenterrando em segredo e em plena noite, sob aquele pavoroso temporal, o
atade que continha o Lenol, ou atravessando, no aeroporto de Barajas, os
detectores de segurana com ele na mala, camuflado entre suas coisas. Se a
polcia aduaneira tivesse descoberto, ele talvez estivesse preso por espoliar o
patrimnio histrico-artstico da Espanha. Apesar de a Sndone, pensava,
pertencer humanidade como um todo, no devendo, portanto, permanecer
escondida. Assim pensava tambm German Arranz, que tanto o ajudara em
sua investigao e que concordara que a estudasse a fundo em seu pas. Assim,
ele guardou na Espanha o ba de prata que abrigou o Lenol at que este foi
enviado a Roma. Como historiador, Henrique sempre defendeu a idia de que
todo monumento, livro antigo ou objeto arqueolgico deve estar ao alcance de
qualquer pessoa. Protegidos de qualquer atentado contra sua integridade ou
possvel roubo, sim, mas no tanto que impea seu desfrute. O contrrio seria
quase como perd-los.
No caso do Santo Sudrio, esta idia era ainda mais forte. Todos, crentes e
ateus, deveriam contempl-lo em sua majestosidade.
Henrique estava convicto de que sua deciso, apoiada pelo padre Arranz, de
devolv-lo ao Vaticano, seu legtimo dono moral, fora certa. No entanto, estava
admirado de que a assessoria de imprensa do lugar no houvesse noticiado sua
recuperao. Um tempo de estudos para comprovar sua autenticidade era
compreensvel, mas j havia se passado meio ano que o enviara a Roma. E isso,
alm de ter includo uma cpia do informativo que, em segredo, ele e diversos
colegas da Universidade Autnoma do Mxico, especializados em diferentes
reas, e sem nenhum interesse de notoriedade, realizaram sobre a Sndone,
obtendo resultados muito surpreendentes e inclusive desconcertantes.
Suas dvidas eram profundas. Mas naquela segunda-feira, 25 de maio de
1998, seriam dissipadas. Estava em Paris passando uns dias de frias com
Mercedes, sua esposa. Haviam visitado a Torre Eiffel, o "monstro" de ferro
forjado que pesava mais de seis mil toneladas. Depois de tomar um delicioso,
porm caro, caf au lait no luxuoso restaurante da torre, foram ao museu do
Louvre. Ali contemplaram a Gioconda, a mais clebre pintura de Leonardo da
Vinci, protegida por um grosso cristal blindado para evitar atentados contra sua
integridade, o que j acontecera antes. E, como todos que tinham oportunidade
de observ-la de perto, ficaram fascinados pela expresso de seu rosto. Seus
olhos e seu sorriso podiam evocar tanto uma cndida simpatia como uma
perturbadora maldade. Era um enigma que, com certeza, nunca seria elucidado
por completo.
A visita ao Louvre foi muito agradvel para o intelecto, mas muito cansativa
para as pernas. Ao sair, no entanto, e porque sua esposa queria muito, foram at
o Sena, onde os populares bouquinistes (livreiros) vendem em seus estandes
coloridos todo tipo de objetos antigos, livros, gravuras, moedas... Quase pela
hora do almoo, sentaram-se exaustos em um banco na beira do rio. Henrique
tinha comprado um jornal e o folheava com desinteresse quando viu uma
notcia que lhe chamou a ateno. Era uma pequena crnica da ltima visita do
papa Joo Paulo II ao Santo Sudrio de Turim... O Santo Sudrio falsificado no
sculo XVI.
Aclamado por milhares de fiis, o papa visitou pela terceira vez o Santo
Sudrio em Turim, acompanhado pelo primeiro ministro da Itlia, Romano Prodi,
e pelo cardeal Giovanni Saldarini, arcebispo da cidade e responsvel pela
relquia. Visivelmente cansado e dando sinais de seu delicado estado de sade, o
pontfice ajoelhou-se diante do Santo Sudrio, um dos mais venerados smbolos
da cristandade e pelo qual professa uma devoo especial.
Informativo
Gilles
Tecido
da
Sndone
Anlises do Lenol
Caractersticas fsicas
Compleio atltica.
Alto.
Ombros e quadris largos.
Cabea comprida (dolicocfalo ndice ceflico inferior a 0,77).
Pele clara.
Cabelo castanho-claro, ligeiramente ondulado.
Barba quase loura.
Nariz comprido.
Lbios mdios.
Orelhas pequenas.
Sobrancelhas negras e arredondadas.
Olhos verdes acinzentados.
Grupo sangneo AB, fator Rh+.
Todos os sistemas fsicos potencialmente aptos.
Nenhuma alterao cromossmica.
Nenhuma anomalia congnita monognica nem polignica.Alta
resistncia a alergias.
Ausncia de genes de doenas hereditrias.
Caractersticas psquicas
Mateus
(No palcio de Caifs.) Ento comearam a cuspir-lhe no rosto e a dar
bofetadas; outros davam socos, dizendo: "Adivinhe, Cristo, quem te bateu?".
(No palcio de Pilatos.) Ento soltou Barrabs; e Jesus, que depois de
surrado, foi entregue para ser crucificado. / Depois de despi-lo, vestiram-no
com uma tnica vermelha e, confeccionando uma coroa de espinhos,
puseram-na em sua cabea. / Cuspiam nele, tomavam-lhe o cajado com o
qual batiam na cabea do crucificado.
(Via crucis.) Depois de zombar bastante dele, tiraram sua tnica, puseram
de novo suas roupas e o levaram para ser crucificado.
(Crucificao.) Os que o crucificaram dividiram suas roupas.
(Referncia ao Santo Sudrio.) Jos [de Arimatia] pegou o corpo,
envolveu-o em um lenol limpo e o ps em seu prprio sepulcro novo, que
havia mandado construir na rocha.
Marcos
Lucas
Joo