Escrita Acadêmica PDF
Escrita Acadêmica PDF
Escrita Acadêmica PDF
A escrita acadmica
do excessivo ao razovel
Minha contribuio com este ensaio no pretende muito mais que ajudar a
colocar em questo um aspecto muito particular da escrita: a relatividade do valor de
verdade no mbito da escrita acadmica. Longe de esgotar a questo, vou me inscrever
em um debate interminvel sobre o poder da palavra. E, para isso, vou tambm me
servir da palavra: a palavra para tratar da palavra. E essa circularidade vai contribuir
para fazer aparecer em nosso caminho um sem-nmero de armadilhas que, na
maior parte das vezes, vou apenas mencionar e deixar vir tona. Vou comear pela
indicao de dois extremos e, a partir disso, chafurdar em algumas possibilidades
que surgem nesse infinito campo, limitado por esses extremos.
Em um extremo, a palavra representa a priso do pensamento. Violncia contra
o movimento infinito e intensivo que o fluxo da conscincia, ela fixa, demarca,
regula e constrange o pensamento. Se o exerccio do pensar da ordem do ensaio
e da criao, a palavra surge a como a marca de uma positividade castradora, o
exerccio do limite. Nesse caso, parto do suposto de que nenhuma palavra basta,
ou seja, nenhuma palavra bastante para dizer tudo aquilo (na extenso e na inten-
sidade) que ela pretende dizer. A palavra, nesse caso, uma cornucpia ao contrrio:
tenta-se colocar dentro dela, em sua forma limitada, o infinito de significaes e
sentidos que provm da vida e do mundo.
Em outro extremo, a palavra representa a liberdade do pensamento. A palavra
d vida, a palavra faz ver, a palavra cria. A palavra d corpo ao conceito, ao pensa-
estados plenos de bem-estar pessoal, para criar bem os filhos, para superar dramas
cotidianos e outros problemas. No raro, servem-se de referncias espiritualistas
ou de recursos universalistas, abusando das generalizaes e das figuras caricatas.
Os segundos so corruptelas de manuais de educao corporativa que anunciam
frmulas mgicas e estratgias milagrosas para obter sucesso nas vendas, na gesto
e na carreira profissional. Frteis em simplificaes e apresentando o mundo como
um ambiente bvio e previsvel, ensinam a atingir os objetivos como num passe de
mgica. Uns e outros so exemplares na arte da persuaso e da promessa de efeitos
sem maiores consequncias, comprometendo a seriedade encontrada em seus mo-
delos originrios, o espiritualismo e a teoria corporativa.
A terceira ocorre em alguns exemplares de textos pretensamente filosficos
que, na maioria das vezes, no passam de exerccios de uma escrita fundamentalista
com exagero de sofismas que prescindem da ponderao e da contingncia. Neolo-
gismos, construes frasais barrocas e hermticas e cadeias argumentativas ancoradas
em particularismos elevados condio universal, esses textos costumam seduzir
pelo exotismo e pelo ar vanguardista que, via de regra, favorecem uma arrogncia
que afasta tanto quanto uma soberba que diminui o leitor.
isso no significa um relativismo liberal em que tudo pode. Se cada existncia uma
situao histrica e cultural que constitui um paradigma especfico, por sua vez,
ela determina singularmente uma forma de racionalidade. Ento, tudo plausvel
se consideramos que essa plausibilidade est ancorada em um regime de verdade
produzido no contexto e na contingncia de um paradigma. Como no existe um
metaparadigma que possa abarcar todos os paradigmas, ento, resulta aquilo que
podemos chamar de relativismo crtico.
Diferentes paradigmas s podem ser reunidos entre si em um debate crti-
co, mas no reduzidos, organizados, ou submetidos uns ao juzo dos outros (idem,
p.250), sob pena de se converterem em sintagmas, segmentos argumentativos rela-
cionados com outros enunciados dentro do mesmo contexto. Um relativismo crtico
, talvez, a forma de racionalidade mais plausvel se quisermos ser coerentes com o
que temos em realidade subjetiva. Obviamente, sempre corremos o risco de resvalar
em um particularismo ou em uma totalidade em que no possvel negociar: no
particularismo, a negociao no possvel porque o que vale a especificidade do
particular; na totalidade, porque o sentido da totalizao justamente no conceber
que nada tenha lugar fora dela.
E essa ideia de que a verdade sobre o mundo corresponde a um sentido
produzido no contexto de uma certa experincia nos leva a uma condio de rela-
tivizao que nada tem de permissiva ou leviana. Diferentemente, essa relativizao
exige de ns um debate crtico rigoroso que nos coloque frente a frente com a nossa
prpria experincia, nossa prpria histria e nosso prprio exerccio de racionaliza-
o. Ao contrrio de nos levar na direo de um relativismo absoluto (isso, alis, uma
contradio, figura prpria de um campo sintagmtico esse que aqui j critiquei
e que tambm pode produzir tautologias, repeties e superfluidades), queremos
ir na direo de um relativismo esclarecido, um exerccio de crtica e autocrtica no
interior de uma realidade partilhada que poder ser compreendida e interpretada
em termos de verossimilhana ou inferncia (idem, ibidem).
Se autores como Gilles Deleuze (1997, p. 11) afirmaram que escrever sempre
um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se, ou que devemos
escrever para inventar um povo que falta (idem, p. 14), ou que devemos operar
como estrangeiros em nossa prpria lngua (idem, p. 16), eles referiam-se muito
propriamente escrita literria. Seu propsito foi justamente descolar a escrita
formal (seja a definio de um conceito, na filosofia, seja o enunciado de uma pro-
posio, na cincia) da escrita literria (a passagem de afectos e perceptos para a
materialidade da lngua) (Deleuze; Guattari, 1992). S que isso proporcionou um
alastramento incontido de escritos que buscaram, pela analogia entre a literatura, a
filosofia e a cincia, transpor modos de escrita de um campo a outro. E com o empu-
nhamento de um linguajar muito caracterstico em que os fluxos,os territrios,
os incompossveis, a disrupo e os agenciamentos encharcam ostextos criando
uma ciso entre os iniciados ou entendidos e os no iniciados ou no entendidos. De
fato, um exerccio de soberba acadmica que, antes de mais nada, afugenta qualquer
interessado mais srio e atrai cada vez mais leitores incautos.
Em que pese o risco da deselegncia, tomo a liberdade de recorrer a mim
mesmo como exemplo desse tipo de movimento. A seguir, recorto um fragmento
de minha tese de doutoramento que, julgo, bem ilustra o que estou pretendendo
qualificar como um hermetismo que favorece a arrogncia e a soberba:
Contedo e expresso so as duas variveis de uma funo de estratificao, di-
zem os autores. Ou seja, a matria pura informada, se adensa, se intensifica e
gera um estrato. Essa estratificao responde a uma dupla articulao: por um
lado, em funo das conexes entre as foras, alguns pontos singulares so ativa-
dos, num ato de diferenciao. So pulsares, pontos de potncia mxima (aquelas
unidades quase moleculares metaestveis) que se alinham em uma curva integral,
uma linha de atualizao, uma linha de devir (aquela ordem estatstica de ligaes e
sucesses). Dessa maneira, produz-se o contedo de um estrato. Simultaneamente,
essa integralizao demanda uma dobra, ou seja, demanda um adensamento re-
lativamente estvel (aquela instaurao de estruturas compactas e funcionais) para
possibilitar a atualizao, a molarizao, a institucionalizao dessas estruturas
(aqueles compostos molares onde as estruturas se atualizam). Enfim, constitui-se a
expresso do estrato. (Pereira, 1996, p. 14, grifos para esta anlise)
Blanchot, Von Kleist, Friedrich Nietzsche, Lewis Carroll e outros tantos. Sem falar
em Clarice Lispector, Fernando Pessoa e Manoel de Barros, que facilmente foram
absorvidos por esse campo atrator de elevada cultura e iniciao.
O recurso comumente utilizado , ao tratar de um tema qualquer (a sala de aula
da educao infantil, o cotidiano de uma comunidade de pescadores no sculoXIX, a
importncia do ensino de fsica), invocar a analogia com uma teoria filosfica ou for-
mulao cientfica que possa representar uma contribuio revolucionria ou um efeito
controvertido, de preferncia de autoria de um autor extico e impressionante. Logo
depois, algumas linhas adiante, reiterar que o uso feito dessa teoria ou desse autor
apenas metafrico e no deve ser tomado ao p da letra pelo leitor (Bouveresse, 2005).
No que a metfora ou a analogia no tenham valor. Evidentemente, tm.
Aquilo a que me refiro, aqui, necessidade de sermos honestos no trato do co-
nhecimento. Uma metfora implica que o termo empregado deve conservar,no
campo em que for aplicado, todas as relaes formais que tinha com os termos
nocampo original. Qualquer digresso ou deriva j resvala para a alegoria, em que
predomina o valor (digamos) potico aqui tomado no sentido da permissividade
criativa. Mas essa licena potica exige uma medida de rigor muito mais firme, de
modo que a univocidade do postulado no se perca em ambiguidades e equvocos
de interpretao. O problema desses excessos so as confuses que proliferam, mais
atrapalhando que ajudando a produzir-se um entendimento razovel acerca do
objeto que se est estudando.
Uma das autoras criticadas por Sokal e Bricmont, Julia Kristeva (apud
Bouveresse, 2005, p. 105), diz-nos que a cincia das cincias humanas nunca foi
pura. Ela introduz uma subjetividade mais prxima da literatura que da cincia.
Bem apontado, j que a subjetividade duplicada do sujeito e do objeto suscita uma
condio compreensiva que bem justifica a reabilitao do estilo ensastico inau-
gurado por Montaigne e abre espao para a escrita livre dos preceitos formais da
cincia positiva. Entretanto, dizer que a subjetividade se coloca mais prxima da
literatura que da cincia no quer dizer que se troca uma coisa pela outra.
A literatura continua sendo literatura e a cincia continua sendo cincia. O
recurso metafrico no deve suplantar o exerccio de uma inteleco conceitual (no
caso da filosofia) ou proposicional (no caso da cincia). indispensvel o exerccio
do juzo e da argumentao, ainda que no tanto pelo que se julga (porque um
ensaio), mas pelo exerccio do juzo e do argumento. Como instncia de produo
de conhecimento, o ensaio acadmico necessariamente deve articular pensamento
e escrita, enunciando um problema e, em seguida, exercitando o juzo de modo
que explore ponderaes, posies possveis e concluses plausveis. O movimento
argumentativo ser o recurso pelo qual o autor vai estabelecer a negociao com seu
leitor. O que no admissvel uma postura arrogante que tome como ferramenta
slogans cientficos ou filosficos, frases feitas e palavras de ordem como argumento
de autoridade intimidadores do leitor.
Por fim, quero destacar os efeitos que podemos verificar quando um es-
crito acadmico, em favor de uma estilizao ou estetizao superficial (Welsch,
1995), se afasta daquilo que seria seu propsito original. Quando se torna mais
importante demonstrar o domnio do vocabulrio ou a performance do estilo,
em detrimento do contedo ou das normas epistmicas, alcanamos um estado
equivalente ao cinismo em moral (Bouveresse, 2005, p. 132). Pretender que
textos cientficos ou filosficos sejam avaliados antes pelo prazer quase literrio
que proporcionam apostar na demagogia, reforando a falsa impresso de que
a cincia e a filosofia em sua formulao mais tradicional so elitistas e que a
escrita literria mais popular.
A escrita acadmica deixa de ser acadmica se for descolada dos regimes de
verdade que a sustentam. O expediente da representao, ainda que exija ser sempre
colocado em questo, imprescindvel quando se trata da filosofia e da cincia.
Deleuze e Foucault, no clebre debate Os intelectuais e o poder, repetem incan-
savelmente que uma teoria uma caixa de ferramentas, isto , preciso que sirva,
preciso que funcione (Foucault, 1993b, p. 71). Uma teoria no deve ser meramente
um enfileiramento de termos que querem dizer alguma coisa. Um texto no tem por
que ser um exerccio de ventriloquismo ou mimetismo acadmico, mas de outro
modo, um exerccio analtico e argumentativo que permita que o autor fale por si.
Ou seja, falar em primeira pessoa, nesse caso, no tem nada a ver com fazer da
escrita um confessionrio nem um palco narcsico, mas um equipamento de enun-
ciaes, ponderaes, postulados e argumentos que, em ltima anlise, atualizam
uma negociao com o leitor.
REFERNCIAS
Bouveresse, Jacques. Vertigens e prodgios da analogia: o abuso das belas-letras no
pensamento. So Paulo: Martins Fontes, 2005.
Breton, Philippe. A manipulao da palavra. So Paulo: Loyola, 1999.
Deleuze, Gilles. Crtica e clnica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
.; Guattari, Felix. O que a filosofia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
. A geologia da moral. In: Deleuze, Gilles. Mil Plats. Rio de Janeiro: Editora
34, 1995. p. 51-90, v. 1.
Foucault, Michel. Verdade e poder. In: . Microfsica do poder. 11. ed. Rio de
Janeiro: Edies Graal, 1993a. p. 1-14.
. Os intelectuais e o poder. In: _______. Microfsica do poder. 11. ed. Rio de Janeiro:
Edies Graal, 1993b. p. 69-78.
. A ordem do discurso. 2. ed. So Paulo: Edies Loyola, 1996.
Grafton, Anthony. As origens trgicas da erudio: pequeno tratado sobre a nota de
rodap. Campinas: Papirus, 1998.
Habermas, Jrgen. Teoria de la accin comunicativa I. Madrid: Taurus, 1987.
Murcho, Desidrio. Pensar outra vez: filosofia, valor e verdade. Vilanova de Famalico:
Quasi, 2006. Disponvel em: <http://criticanarede.com/log_epistargument.html>. Acesso
em: 7 jul. 2011.
Pegoraro, Olinto. tica dos maiores mestres atravs da histria. Petrpolis: Vozes, 2006.
Pereira, Marcos Villela. A esttica da professoralidade: um estudo interdisciplinar sobre a
formao do professor. 1996. Tese (Doutorado em Educao Superviso e Currculo),
Pontficia Universidade Catlida de So Paulo, So Paulo, 1996.
. Utopias contemporneas para a vida coletiva. Travessias, Cascavel, n. 2, 2008.
Disponvel em: <http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/
ed_002/cultura/utopiascomtemporaneas.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2011.
Ratto, Cleber Gibbon; Henning, Paula Corra. (In)comunicabilidade e tolerncia
na educao. Notas a partir de Nietzsche e Merleau-Ponty. Pro-Posies, Campinas,
UNICAMP, v. 22, n. 1 (64), p. 117-130, jan./abr. 2011.
SOBRE O AUTOR