Dissertacao Beleza e Imprensa Negra
Dissertacao Beleza e Imprensa Negra
Dissertacao Beleza e Imprensa Negra
1
Pontifcia Universidade Catlica- PUC
Programa de Ps Graduao em Histria
2
Sumrio
Introduo..................................................................................................................................................4
3
INTRODUO
Analisar as trajetrias histricas do embelezamento negro a partir da imprensa negra, entre 1920
e 1940, certamente penetrar em um universo pouco explorado. menos explorado ainda quando se
trata de questionar os produtos e os mtodos empregados para o embelezamento da mulher negra. Esta
pesquisa est centrada nas anlises sobre as representaes e prticas do embelezamento negro e suas
relaes com os objetos de ascenso social.
Aps os primeiros contatos com a bibliografia sobre a problemtica do negro na sociedade
brasileira, fomos nos interessando por alguns enfoques e abrindo novas possibilidades de pesquisa, mas
sempre com a inteno de encontrar aspectos da histria do negro no sculo XX e de escrever uma
histria afirmativa sobre o grupo. Por isso, ao passarmos os olhos por alguns estudos da escravido
tnhamos conscincia que no era aquele universo, especificamente, ao qual queramos nos reportar, pois
era constrangedor ter presente conosco aquela situao de inferioridade e de martrio sofrido pela
comunidade negra. Foi esta dificuldade, definitivamente, a responsvel pela desistncia da rpida leitura
que realizvamos da imprensa - (O Estado de So Paulo) -, durante a primeira metade do sculo XX:
cansamos de encontrar a figura negra nas pginas policiais (nas poucas vezes em que registrvamos a sua
presena).
Voltando reflexo do perodo escravocrata, sem querer minimizar o martrio sofrido pelos
escravos, acreditamos ter desistido de construir uma interpretao daquele universo tambm em funo
do peso da evidncia histrica, segundo a qual os senhores conseguiam via de regra dominar os escravos.
Contudo, ao relermos o artigo "Blowi'n in the Wind: E. P. Thompson e a experincia negra no Brasil",
reavaliamos este pensamento ao concordar com Silvia Lara sobre a seguinte idia:
4
desta relao, constituem procedimentos capazes de produzir somente uma verso
(transformada em explicao) deste processo 1."
Tais reflexes, a priori, nos estimularam a prosseguir na leitura sobre o tema e nos auxiliaram no
uso de critrios avaliativos da bibliografia relativa ao tema.
O trecho do pensamento de Lara direcionou o nosso olhar, num segundo momento, para as aes
de resistncia praticadas pelos escravos freqentemente includos no mundo dos dominados. Depois, nos
estimulou a desenvolver a anlise sobre a experincia dos indivduos da poca do ps-abolio, quando
j havamos selecionado os agentes ocultos citados na reflexo da historiadora, tencionando interpretar a
experincia desses agentes de uma perspectiva mais complexa e rica, inserida no mundo das relaes
sociais. Agora, a partir do estudo dos peridicos, analisamos representaes dos negros do sculo XX na
sociedade paulistana. E, nas relaes entre negros e brancos, vamos percebendo que seus confrontos de
maneira nenhuma se estabeleciam a partir da separao entre de dois grupos de pigmentao diferente.
Ou seja, dentro da prpria comunidade negra as disputas e diferenas de pensamento tambm reinaram,
chegando a impossibilitar as concretizaes de projetos e ideais propostos para uma coletividade. Pois,
as discusses tnicas estiveram intimamente relacionadas s questes sociais, em particular quelas da
diviso de classe.
Enquanto analisava os jornais e a literatura acadmica e dos movimentos sociais sobre a
populao negra na primeira metade do sculo XX no deixei de pensar sobre as questes do corpo
negro na bibliografia sobre a escravido, ao interpretar as primeiras referencias bibliofrficas desta
pesquisa. Segundo Fernandes, no universo da escravido o escravo no deveria usar calado, chapu, e
certas roupas sem o consentimento do senhor. Os escravos transitavam pelas ruas paulistanas de cala,
camisa de algodo, ps nus e de cabea descoberta, pois se tornou comum em So Paulo a proibio de
roupas finas e do porte de arma pelos escravos (um documento de 1720 proibia taxativamente o uso de
roupas de seda e de outros vesturios iguais aos dos brancos). Em dias festivos, apenas certos escravos
(como pagem, que acompanhava a famlia Igreja) vestiam-se de modo cerimonioso (no caso, se
apresentava calado e todo fardado). A inteno era marcar atravs da indumentria a posio dos negros
na sociedade, "porque assim perderiam os brios e entenderiam que nasceram para escravos dos brancos".
Sobre as mulheres o viajante Kidder, citado pelo socilogo, asseverava que as senhoras caprichavam em
1
LARA, Silvia Hunold. "Blowin' in the Wind: E.P. Thompson e a experincia negra no Brasil". Projeto Histria, So Paulo,
PUC/SP, n. 12, outubro/1995. O objetivo da historiadora foi estabelecer paralelos entre as interpretaes histricas de
Thompson e a historiografia da experincia negra no Brasil, sobretudo dentro das consideraes j citadas no texto. Acredita
que os estudos da experincia negra devem se basear na proposta da anlise thompsoniana. Ela conclui que a aproximao da
historiografia escrava com o pensamento thompsoniano de ordem terica, poltica e no temtica.
5
bem vestir suas escravas, sobretudo as escravas de maior lao afetivo, que pelos sales e pelas ruas
faziam refulgir o ouro e a pedraria dos seus donos, "em curioso contraste com a pele negra das
domsticas, efmeras e humildes representantes da abastana da famlia" 2. A escravaria era sinnimo de
poder: os corpos e a ornamentao.
Assinalou Dornas Filho, discordando do viajante Kidder, como fez Fernandes, que, nos tempos
colniais, pela Carta Rgia de 3 de setembro de 1709 e pelo bando de 1740, as negras no podiam
usar vestidos de prata e ouro, tecidos de l, holandesas, esguies, jias e etc. Tal falta era punida com
aoites e degredo para So Tom. Contou que um ladro, inclusive, roubou as jias postas para So
Benedito sob o pretexto de que negro no podia ter luxo3.
Nesta direo, Bastide assinalou que a tentativa de marcar distncias entre negros e brancos
nunca chegou a ponto de impedir, s vezes, uma certa indisciplina que perturbava as regras de polidez,
que aproximava as classes e que fazia com que negros tivessem muito mais respeito por seus prprios
chefes, seus ancios, seus feiticeiros, do que por seus prprios patres brancos. Em sua viso, o negro
comeou a se dedicar a destruir a institucionalizao da linha de cor a partir desta data, que foi quando
o vesturio conquistou importncia para o negro, sendo mais caracterstico dele o complexo do sapato.
Finalizando o artigo, com um dado de Gilberto Freyre (Casa grande & senzala), e relacionando o
complexo do sapato religio, o francs escreveu que os negros tiravam seus calados antes de
entrarem em uma igreja e que Freyre via este ato como um resto da influncia islmica. E, embora o
negro tenha abolido uma etiqueta que lhe recordava uma antiga condio inferior, interessa notar que
conservou, em compensao, o gosto dos refinamentos nos sinais de respeito4
Sublinhou o estudioso Pierson que o mulato, por aproximar-se mais do que o preto das
caractersticas dos europeus, teve mais facilidade em apropriar-se de certos smbolos de status o sapato
pequeno e a botina, por exemplo, cujo uso, no Brasil colonial e imprio, era ndice importante de posio
social. A sociedade brasileira assustava-se com ps grandiosos: ps pequenos, especialmente entre as
mulheres, eram e so ainda tidos como elegantes. O autor nos alertou que preciso no negligenciar o
papel do sexo e do amor romntico na ascenso social do mulato, pois a atrao sexual que o mulato
exercia sbre moas de famlias ricas e influentes levou s vezes fuga, ou ocasionalmente, mas com
freqncia cada vez maior, a casamentos com assentimento dos pais. E, de maneira semelhante, as
mulheres mulatas se beneficiaram do mito da potncia sexual dos hbridos e da elevada mortalidade
2
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em So Paulo. Op. Cit., pp. 105.
3
FILHO, Joo Dornas. A influncia Social do Negro Brasileiro. So Paulo: Revista do Arquivo Municipal, ano V, vol. LI,
outubro de 1938, pp. 117.
4
BASTIDE, Roger. Estudos Afro-brasileiros O cerimonial da polidez. In: Revista do Arquivo Municipal, ano X, vol.
XCVIII, 1944 (setembro-outubro), pp. 93-95.
6
das mulheres brancas (principalmente durante o sculo XIX). Fatores que as levavam a contrair
casamentos sucessivos com velhos patriarcas que procuravam um estimulo sexual. Eram cada vez
mais freqentes casos de casamentos de brancos j idosos de famlias ilustres, com mulatas quadrarunas
e octorunas bonitas, vestindo-se com geito de brancas 5.
Pierson ainda enfatizou que o mulato apesar de ter alcanado considerao social e de ter
gozado de certas vantagens da classe superior, era muito sensvel sua origem e ao fato de trazer
consigo, inevitvelmente, em suas caractersticas fsicas, a marca de um status inferior. Exemplificando,
disse que Gonalves Dias foi a vida inteira um inadaptado tristonho. Uma ferida sempre sangrando,
embora escondida pelo crois de doutor. Por isso o mulato fez-se ento notar pelo uso extravagante de
perfumes, o que parece ter sido um excesso de compensao para o cheiro corporal (o assim chamado
catinga ou budum) que se diz ser caracterstico dos africanos6.
Schwarcz, interpretando as representaes do negro nos anncios dos jornais, A Provncia de So
Paulo e o Correio Paulistano, acrescentou, inclusive, uma distino entre as formas de indumentria
desfrutadas pelos escravos domsticos e agrcolas. A pesquisadora escreveu que ficava evidente o bom
trato recebido pelos escravos domsticos, uma vez que vrios anncios destacavam como sinal para uma
possvel apreenso os belos e s vezes elegantes trajes dos cativos, que fugiam com roupas alinhadas,
relgios ou mesmo guarda-chuvas de alpaca com cabo de marfim. J nos anncios dos escravos
agrcolas, no delimitavam com preciso a idade, o cabelo, a altura ou a cor da pele, pois os
proprietrios, s vezes possuam centenas de cativos, pouco conviviam com eles. Reiterava-se nesses
anncios os defeitos fsicos dos escravos.
Por meio dos anncios de compra e venda de escravos para servios domsticos, Gilberto Freyre
percebeu, na coleo de 1825, 30, 35, 40, 50, do Dirio de Pernambuco, a preferncia pelos negros e
negras altas e de formas atraentes bonitas de cara e de corpo e com todos os dentes da frente. O que
mostrava ter havido seleo eugnica e esttica de pajens, mucamas e mulecas para o servio domestico
das casas-grandes. De acordo com o escritor, havia uma preferncia pelo povo sudans para os servios
de contato com brancos. O sudans um dos povos mais altos do mundo. No Senegal vem negros to
altos que parecem estar andando de pernas de pau. So magricelas, dentuos, angulosos, hierrticos.
5
PIERSON, Donald. A ascenso social do mulato brasileiro. IN: Revista do Arquivo Municipal, ano VIII, Vol. LXXXVII,
1942, pp. 118.
6
O socilogo acrescentou que para convencer a si mesmo e aos outros de sua identidade com o estrato superior, o mulato
desenvolveu o arianismo enftico, tornando-se, como Machado de Assiz ou Olavo Bilac, cmplice do branco contra o preto.
PIERSON, Donald. A ascenso social do mulato brasileiro. Op. Cit., pp. 118. H quem afirme que para abstrair as crticas
de Machado de Assis discriminao contra o negro, torna-se necessrio ler nas entrelinhas suas obras, seus trechos
referentes ao assunto.
7
No sul da frica que se encontra gente baixa e redonda. Mulheres culatronas. Redondezas
afrodisacas do corpo. Hotentotes e broximanes verdadeiramente grotescos com as suas ndegas
salientes7
Por vezes Schwarcz encontrou, nos anncios, descries que pouco auxiliavam na captura do
escravo que se evadira, antes evidenciavam a forma como o senhor branco representava o escravo.
Alguns atributos remetiam a dimenso simblica do material, isto , no se referiam diretamente ao
objetivo do anncio, tais como: pernstico, moldes humildes e insinuantes, muito amigo do copo, muito
infludo a danar samba. Essas descries negativas, no entanto, eram ocultadas quando a inteno era
comercializar a pea humana. Nos classificados de venda as peas exibidas eram comumente
valorizadas como robustas, fortes, sadias, inteligentes e boas para qualquer servio 8.
Nas diferentes sees dos jornais era freqente a descrio do negro como alienado, bbado e
imoral: atributos que remetiam s explicaes dos editoriais cientficos, escritos por autores
influenciados pelas teorias darwinistas e positivistas e pelas mximas da antropologia criminal, que
insistiam em analisar o carter hereditrio das taras e degeneraes. A Redempo (1887- jornal ligado
a um grupo de caifazes e a Antonio Bento), em alguns momentos, introjetando as idias da poca sobre o
negro, afirmava que a raa preta desaparecia porque abusando da liberdade entregava-se ao vcio da
embriagus9.
A contenda em torno do uso dos sapatos foi explorada pela historiadora Wissembach. Para ela, de
imediato, a condio de homem livre dos negros seria concretizada na realizao dos desejos aos quais
haviam sido impedidos como escravos. Utilizou para ilustrar esse aspecto uma histria descrita pelo
viajante Le Graffe, que durante a conversa com uma ex-escrava, numa casa de poucos objetos, notou a
presena de um magnfico par de sapatos, de um calibre slido, mas de uma feitura evidentemente
antiga, que se colocava bem em evidncia sobre uma espcie de credncia no salo. Neste sentido, a
razo daquela estranha exibio entrelaava-se s histrias que os libertos contaram para o viajante.
Nos comentrios do francs aps o decreto da libertao, homens e mulheres afluram das fazendas e dos
stios em direo s cidades prximas, e os negros que guardaram pequenas economias tiveram como
primeiro ato correr s lojas de calados, na inteno de se equiparar aos seus senhores de ontem usando
como eles botas e bodequins. Para Le Graffe,
7
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1987, pp. 314-317.
8
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro Jornais, escravos e cidados em So Paulo no final do sculo XIX.
So Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 135-188.
9
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit., pp. 135-188
8
o primeiro gesto da liberdade foi aprisionar os ps nas formas escolhidas e por
conseqncia, menos adaptadas: porque os bons ps dos negros, poucos acostumados a
estarem estreitados, protestaram com estardalhao (...). Negros e negras, em todas as
cidades para as quais se dirigiram, passavam felizes e orgulhosos, com uma postura
altiva, descalos, mas todos levando um par de sapatos por vezes mo, como um porta
jias valioso, ou por vezes a tiracolo, como as bolsas vacilantes da ltima moda
mundana10.
Aps a emancipao a liberdade era um dom a ser orgulhosamente exibido e depois vivenciado.
A mesma exibio foi encontrada por Pierre Verger entre os relatos de forros da Bahia, s que estes, alm
de se calarem como seus ex-senhores, traziam consigo guarda-chuvas, signos de dignidade social
africana, e tambm no sul do pas, em Desterro, Santa Catarina, os jornais comentavam, ironicamente
claro, comportamentos similares dos ex-escravos nas comemoraes que se seguiram ao Treze de
Maio11.
Cunha, citando o viajante Koster detalhou um pouco mais essa explorao em torno do corpo do
escravo. O escravo, possivelmente o rural, recebia duas camisas e dois pares de cales por ano, e
geralmente dois chapus de palha, uma esteira para dormir, uma pea de baeta para se cobrir de noite.
Tinha sua choa que devia mobiliar. Enfim, recebia comida 12: carne seca ou peixe e farinha de
mandioca. Ganhava tudo isso em troca de trabalho ou de punies. Crueldade para o viajante Koster
ia, alm disso.
Na primeira metade do sculo XX no encontramos lei que proibisse o negro de vestir-se igual ao
branco, entretanto, a sociedade paulistana continuava achincalhando os negros que ousavam desfrutar
dos objetos espalhados pelo mercado da indumentria corporal, e, permanecia reforando e criando
estreotipos fsicos negativos do negro. Os achincalhamentos aos corpos negros aconteceram nos
espaos pblicos, sobretudo no centro da cidade, dentro dos locais de trabalho, nos institutos
embelezadores da sociedade mais ampla, nas festas, enfim, no cotidiano, onde negros, brancos e
mestios se relacionavam. Os sales de embelezamento da sociedade branca no atendiam negros de
qualquer posio social. Neste quadro conflituoso os negros procuravam assegurar um espao no
10
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivncia. Sociabilidades e prticas mgico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Tese de Doutoramento em Histria, FFLCH-USP, 1997, pp. 24..
11
WISSEMBACH, Maria Cristina. Op. Cit., pp. 24..
12
Gilberto Freyre, interpretando as relaes entre negros e brancos de forma harmoniosa, fomentou que o escravo negro no
Brasil, mesmo com todas as deficincias do seu regime alimentar, foi o elemento melhor nutrido em nossa sociedade
patriarcal. Explicou que os descendentes dos negros da senzala e da casa grande conservaram bons hbitos alimentares.
Alm do mais, muitas das melhores expresses de vigor ou de beleza fsica no Brasil tinham ascendncia africana. Entre os
bem dotados corporalmente incorporou as mulatas, as baianas, os crioulos, as quadrarunas, as oitavanas, os cabras de
engenho, os fuzileiros navais, os capoeiras, os capangas, os atletas e os estivadores. Em sua viso, da populao mdia,
livre mas miservel, provinham muitos dos piores elementos. Sobre essa populao dbil e incapaz, principalmente, agia,
aproveitando-se da sua fraqueza de gente mal-alimentada, a anemia paldica, o beribri, as verminoses, a sfilis, a bouba.
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala. Op. Cit., pp. 34-44.
9
mercado de produo dos objetos de ornamentao corporal, para que novamente pudessem fugir da
mais baixa posio marcada pela indumentria, bem como buscavam criar seus prprios institutos de
beleza e suas oficinas de costura. certo tambm que outros militantes preferiam canalizar a luta para
outras situaes por entender que a querela corporal era suprflua frente s demais situaes conflitantes
e emergentes. Ao mesmo tempo encontramos discursos profundos que relacionam as representaes e
prticas corporais s dimenses sociais.
Neste processo, as questes que mais nos estimularam a desenvolver esta pesquisa afluram
durante a leitura do texto de Jeferson Bacelar, "A Frente Negra Brasileira na Bahia" 13; em que o autor
estabelece comparaes entre a Frente Negra paulista e baiana, constatando aproximaes nas aes e
distanciamentos no que concerne peculiaridades histricas, quadro social e alcance de suas propostas.
Depois de um estudo bibliogrfico e de fontes chamou ateno como os jornais - escritos por
militantes negros e dirigidos comunidade na tentativa de conquistar uma maior valorizao para a
mesma - estavam influenciados pela cultura, idias e valores da sociedade branca.
Atravs da problemtica proposta na Iniciao Cientfica construmos o projeto que deu origem a
esta dissertao, visando, diante da leitura dos jornais editados por negros na cidade de So Paulo (de
1920 a 1940), analisar aspectos da idealizao do embelezamento negro na viso do Clarim dAlvorada,
do Progresso e d A Voz da Raa. O que nos permite discutir modelos e vias de ascenso social, valores,
traos "raciais" e culturais que deveriam ser assimilados pela comunidade negra paulistana emitidos,
principalmente, pelos jornais alternativos. A meta seguinte foi perceber diferenciaes entre os jornais a
partir das idealizaes do corpo negro
Torna-se difcil definir o que seria um corpo, entretanto, Georges Vigarello respondeu que um
corpo um objeto mltiplo, que pode representar dimenses bastante diferentes da vida, tais como a
sensibilidade, a expresso ou mesmo a verdadeira mecnica ligada ao trabalho. O corpo uma
experincia inabarcvel e no um objeto homogneo. importante estud-lo, pois por meio dele
sabemos como o mundo construdo e pode revelar uma profundidade social inimaginvel. um
arquivo vivo que revela e esconde14.
13
BACELAR, Jeferson. A Frente Negra Brasileira na Bahia. Afro-sia, Salvador, Centro de Estudos Afro-Orientais/UFBA,
n 17, 1996. A Frente Negra Brasileira, com sede em So Paulo e em outros Estados, foi uma associao anti-racista criada
em 16 de setembro de 1931. Diferenciava-se dos movimentos anteriores por seu teor poltico (teve candidato na eleio de
1936). Sua meta era a ascenso social do negro e para tanto, atravs do seu jornal oficial A Voz da Raa (1933 - 1937),
estimulava seu povo a trabalhar, ter casa prpria e progredir. Acreditava que o negro se igualaria ao branco ainda pela
educao.
14
Entrevista com Georges Vigarello realizada por Denise SantAnna. O corpo inscrito na histria Imagens de um arquivo
vivo. In: Projeto Histria, So Paulo: PUC/SP, n. 21, novembro de 2000, pp. 224.
10
O Clarim d'Alvorada, o Progresso e A Voz da Raa anunciavam, principalmente, informaes
referentes as atividades dos movimentos negros: as festas, o carnaval, o esporte; os concursos de beleza
infantil, masculino, feminino; os eventos promovidos pelas associaes, as dvidas e despesas dos jornais
e das associaes, os choques entre militantes e seus projetos; nascimentos, aniversrios, mortes,
formaturas, casamentos, vcios; a educao formal, a educao informal, o trabalho, as polticas
governamentais; as aes dos militantes de outros pases, dos Estados Unidos, da frica; os mitos, o
preconceito, a discriminao, a escravido, a mulher, a religio, etc.
Nesta dissertao, o enfoque dado ao movimento negro se desvincula daquele projeto idealizador
da construo de uma histria das manifestaes negras. O estudo objetiva analisar a relao que o negro
estabelecia com a sociedade atravs da escolha de um tipo de padro de beleza. a partir da adeso a
certos modelos de cuidados com o corpo, em particular, com o embelezamento e com a ornamentao,
que vamos delineando a resistncia, a acomodao, a ascenso ou a adaptao do negro frente s
barreiras e as exigncias da sociedade. A forma como cada indivduo se produzia contribua para recriar
a imagem que o outro (branco ou negro) construa sobre a etnia e a cultura negra.
Dentro dos recortes informativos corporais na imprensa negra teremos uma verso que
veementemente anunciava a transformao do corpo negro, acreditando no branqueamento atravs do
uso dos produtos fabricados para tal fim. Todavia, os produtos divulgados foram fabricados tanto por
negros quanto por brancos15. Logo, outros sujeitos no negros tambm colaboraram na escolha dos
modelos de beleza "apropriados" para os negros. Ou seja, a valorizao de determinados padres de
beleza ligados ao ideal de branqueamento e suas conseqncias envolveu um conjunto social
diversificado. Alm disso, ter uma aparncia bela nem sempre dependia exclusivamente do
branqueamento do corpo. Tal como era moda para as moas brancas da sociedade paulistana, para as
negras, ser bela inclua o uso de roupas e ornamentos considerados adequados aos estilos em voga,
especialmente o francs e o ingls. J a verso da resistncia, que se contrapunha ao branqueamento, por
entender que o corpo negro deveria rememorar e afirmar os traos africanos, divulgou tcnicas e
tratamentos corporais menos contribuidores da transformao dos traos ancestrais, estimulando os
15
Vejamos esta idia nas prprias palavras do militante Jos Correia Leite: o sujeito que descobriu o pente de alisar era um
alemo. Eu conheci at. Ele entrou em contato com O Clarim d'Alvorada. Por ser um jornal de negro, ele procurou fazer um
anncio do seu pente. Antes disso os cabelos eram alisados com tampa de espiriteira ou outros acessrios. At que comearam
a aparecer os inventos norte-americanos. L havia uma preocupao muito grande de alisar cabelo, branquear. Os americanos
descobriram uma pasta que acabou com o uso do ferro. Depois com a luta pelos direitos civis, acabou a idia de alisamento de
cabelo e apareceram os black-power's, um movimento muito importante porque o negro passou a usar o seu cabelo prprio.
No Brasil comearam a imitar sem saber o significado daquele tipo de cabelo. Era a marca de uma revolta, de um sentido do
Poder Negro. Ento o negro que usava o cabelo black-power estava mostrando pertencer a um grupo contrrio s idias
pacficas do Luther King. Cf. CUTI. E disse o velho militante Jos Correia Leite. So Paulo, Secretaria Municipal da
Cultura, 1992, pp. 214.
11
leitores a ter em mente os princpios bsicos de preservao fsica, fazendo referncia apenas higiene,
ao tratamento dentrio, etc. De vez em quando encontraremos as duas verses de embelezamento
presentes num mesmo texto, anncio, poesia ou crnica. Ser por meio das crticas s prticas e as
representaes de uma verso de embelezamento outra, ou de um eloqente discurso em torno de um
nico padro de beleza, que captaremos os limites e as infinidades de cuidados com o corpo negro, bem
como conheceremos os principais pontos de consonncias e dissonncias entre as duas verses de
embelezamento.
Como assinalou Chartier as representaes construdas do mundo social, embora aspirem a
universalidade so sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam. Por isso o
necessrio relacionamento dos discursos proferidos com a posio de quem os utiliza. A representao
a construo de uma rede de relaes e as percepes do social no so discursos neutros: produzem
estratgias e prticas que tendem a legitimar determinado projeto. Ao utilizar os impressos como fonte
primria de investigao, o historiador deve levar em considerao a rede de relaes nas quais vivem os
atores sociais as redes de solidariedade e/ou antagonismo, enfim, as inter-relaes entre os atores, o
texto e o contexto; as lutas de representaes tm tanta importncia quanto as lutas econmicas para a
compreenso dos mecanismos pelos quais um grupo impe, ou tenta impor, sua concepo do mundo
social, seus valores e seu domnio16.
Aps avaliarmos alguns textos da imprensa referente s idealizaes do corpo, em particular, da
beleza fsica, observamos que, prximo do desejo de obter uma aparncia aprazvel para si, os negros
cuidavam e divulgavam a "boa apresentao" em vista das vrias crticas recebidas, excessivamente
depreciativas, por vezes expressas em tom de xingamento. Tal prtica depreciadora no surgiu
especificamente naquele momento histrico e nem sempre se dirigiu aos corpos dos sujeitos em questo.
Contudo, como na poca pesquisada foram eles (os negros) os achincalhados, pretendemos aprofundar a
problemtica dos significados do xingamento por meio de anlise cuidadosa do perodo selecionado para
que seja possvel obtermos, pelo menos, uma noo sobre o sentido das palavras depreciativas e de seus
usos. Nesta trama, os trs jornais alternativos concluram que se a comunidade negra se exclusse das
ridicularizaes fsicas, se adotasse o padro de beleza da poca, poderia igualar-se corporalmente aos
brancos. Nesta etapa final os negros alcanariam o posto do que era ser belo na poca, bem como
garantiriam para si uma integrao maior dentro da sociedade paulistana.
Surgem, ento, algumas indagaes. Por ordem de importncia, a principal indagao elaborada
a seguinte: como foi possvel a sociedade mais ampla vincular a aparncia do negro aos valores
16
CHARTIER, Roger. A histria cultural, Lisboa: Difel. 1990, pp. 17, 180.
12
historicamente considerados refratrios civilidade contempornea? Ou seja, como foi possvel construir
historicamente o vnculo entre a aparncia do negro e a sujeira, entre a aparncia do negro e a selvageria
e a tudo que negativo? Certamente as respostas a estas questes dependem de acontecimentos
histricos que ultrapassam os limites dos objetivos desta pesquisa. As associaes entre o negro e a
sujeira, por exemplo, no so especficas desta poca e nem foram criadas com a imprensa negra. No
entanto, nela, durante a dcada estudada, que os vnculos entre o negro e os valores depreciativos
ganham um novo vigor.
Ficou visvel na divulgao dos valores na imprensa negra, a tentativa da sociedade mais ampla
de afirmar a antiga tendncia de desumanizar corporalmente a figura negra perdesse seus direitos sociais
e espaos de apresentao e ao na cidade. Neste processo de extrema complexidade e preconceitos,
surgiram dvidas gerais e secundrias pensadas da seguinte maneira: o respeito diferena corporal
inexistia nesta sociedade? O discurso da integrao concedida ao negro seria um simulacro? Mesmo
transformando-se, o negro continuaria representando o outro, a imagem distorcida? Aqueles que
aderiram ao modelo branco de beleza se identificavam com os valores da cultura negra? Estiveram
desvinculados de uma luta em prol da comunidade negra, pelos direitos sociais e contra o preconceito e a
discriminao? Construram relevantes estratgias de reivindicao?
O pensamento inverso tambm foi analisado, a partir de questes como estas: os sujeitos
includos na perspectiva da resistncia ao padro de beleza predominante se encontravam identificados
com os valores da cultura negra? Estiveram vinculados s lutas em prol dos direitos sociais? Construram
relevantes estratgias de reivindicao?
A temtica contemplou pesquisas da populao negra sob diversos focos durante a primeira
metade do sculo XX: psicolgico, econmico, cultural, trabalhista, jornalstico. Entre os autores,
destacamos, primeiramente, Florestan Fernandes que, em seu livro O negro no mundo dos brancos,
contou um pouco sobre as dificuldades vivenciadas pelos negros na primeira metade do sculo XX,
assim como a ao dos lderes negros, "mais esclarecidos e bem informados":
17
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1972, pp. 37-97. Este
livro comeou a ser escrito em 1942 e s foi concludo em 1963. Visou estudar as relaes raciais numa sociedade
considerada pelo autor como tipicamente brasileira, com a predominncia do que tradicional e do que moderno.
13
No perodo, de acordo com o autor, e com a percepo dos escritores negros, boa parte da
populao negra e mestia submergiu numa dolorosa era de misria coletiva, de degradao moral e de
vida social desorganizada. O abandono do menor, do doente e do velho, a me solteira, o alcoolismo, a
vadiagem, a prostituio, a criminalidade ocasional ou sistemtica"18.
Vrias situaes influenciaram a construo de imagens estereotipadas do negro. Fernandes disse
que o drama vivido pela comunidade no comoveu o branco e no resultou num controle social direto ou
indireto. Muito pelo contrrio, s serviu para degradar ainda mais o negro e sua imagem. E como as
reivindicaes dos negros eclodiram de forma pacfica, elas no germinaram disposies de "segregao
racial". As manifestaes foram socialmente construtivas, tentando absorver tcnicas sociais e difundir
novas imagens do negro. Ao conhecermos mais profundamente as idias de Fernandes constataremos o
oposto desse pensamento. Ele evidenciou que houve segregao racial na sociedade paulistana antes,
durante e depois a constituio dos movimentos negros. A sociedade visualizava segregao por parte
dos movimentos negros. Essa idia predominante, inclusive, no livro A integrao do negro
sociedade de classes.
Os discursos da imprensa negra visavam "substituir a imagem do antigo preto, mais africano que
Ocidental, mais extico que nacional", e construir a imagem do "novo negro". Talvez, uma imagem
repleta de um racismo, penetrado de valores e normas dos brancos. A mesma hesitao encontrava-se
entre "o enquistamento e a miscigenao". Isto , de um lado defendia-se o "mulatismo", posicionando-
se contra o descendente de imigrantes. De outro lado havia o receio diante do progresso do
branqueamento da populao que eliminava pela mestiagem "os melhores elementos da raa". Por fim,
existia a aceitao da verdade dos esteretipos dos brancos sobre os "pretos", de onde surgia uma intensa
campanha de educao, que alcanava aos conselhos prticos: como se comportar no salo, como assoar
o nariz, insistindo na necessidade de deixar a bebida, de no vadiar, mas, ainda, de instruir-se19 .
Roger Bastide, o precursor do estudo sobre a imprensa negra, em seu artigo "A imprensa negra
do Estado de So Paulo", aprofundou-se na analise das imagens ao debruar-se nos pequenos jornais
para procurar a psicologia afro-brasileira, um "auto-retrato do negro por ele mesmo". Para ele as
reivindicaes permanecem as mesmas no tempo histrico. Atentou em sua pesquisa para o status social
requisitado pelos agentes negros, que ansiavam ser recebidos nos clubes e nas recepes das sociedades
18
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Op. cit., pp. 37-97.
19
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em So Paulo. Op. Cit., pp. 199.
14
porque desejavam provar ao branco que tinham sua honorabilidade, sua vida mundana, que conhecia
as regras de polidez, em resumo, que no era um selvagem20.
A anlise do socilogo foi ainda inquietadora sobre a crtica do branco. O jornal local campineiro
comentou que nas festas de uma associao negra, pairava um certo "cheirinho" no baile que corou uma
rainha de beleza "da raa". Relevante foi a conversa que Bastide estabeleceu entre as idias de um
modernista com as idias dos paulistas negros no tocante a cor da pele, mostrando que o artigo de Mrio
de Andrade esmiuava todo o jogo das sobrevivncias folclricas que agia no inconsciente humano,
inconsciente que atribuia "s cores um valor simblico e ao preto, em particular, um carter diablico".
Os "paulistas de cor" achavam que esse jogo simblico contribuiu para que as pessoas fizessem idia de
que o negro era sinnimo de coisa ruim, chegando ao ponto de trocar a cor ou dar cor alma do
indivduo. Entre as concluses anlogas ao artigo de Andrade argumentaram que na nossa lngua a
indicao de um caso brbaro empregava termos pejorativos, tais como: "atirados na negrido da vida,
um crime negro, ou uma ao negra"21.
Sobre a representao do corpo na viso dos paulistanos negros em comparao com a
representao dos norte-americanos, Bastide explicou sentir uma certa ambivalncia na representao
paulistana, pois, embora os militantes brasileiros reclamassem da metamorfose emplacadora do
progresso norte-americano, o jornal A Voz da Raa estava repleto de anncios do gnero e comentava:
"notvel que, enquanto o branco recorre cancula das praias, e mesmo aos produtos qumicos para
adquirir uma tez amorenada, o negro americano lana mo de um creme o qual, segundo a propaganda,
d mais personalidade"22.
E por fim, aprofundou-se na ambigidade da representao corporal negra nas pginas dos
jornais:
assim por ocasio das festas do Natal e do Ano Novo, reclamar que se oferecem s
crianas no bonecas louras de olhos azuis e faces rosadas, mas sim a boneca preta, de
cabelos encarapinhados, o nico brinquedo admissvel para as crianas de cor. Mas esse
apelo ouvido? E no uma reao contra o que continua a ser o sentimento profundo
de uma raa, a aceitao da superioridade dos valores brancos? 23.
Podemos dizer que na mdia contempornea permanecem os padres de embelezamento
disseminados naquela imprensa alternativa, particularmente, os fenmenos do branqueamento. De cabelo
louro, alisado, visualizamos diversificados "profissionais" negros: cantores (principalmente pagodeiros),
20
BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de So Paulo. In: Estudos Afro-brasileiros. So Paulo: Editora Perspectiva,
1973, pp. 130-143.
21
BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de So Paulo. Op. Cit, pp. 130-143.
22
BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de So Paulo, Op. Cit., pp. 135.
23
BASTIDE, Roger. "A imprensa negra do Estado de So Paulo". Op. Cit., 133.
15
esportistas (jogadores de futebol, de basquete), modelos, jornalistas, etc. Para esta imprensa, como na
primeira metade do sculo XX, estas figuras carregam em seus corpos o modelo de beleza possibilitador
da mobilidade social. Todavia, ainda existe a rememorao e a afirmao ao estilo negro, hoje at os no
negros usam Rastafari24 e roupas coloridas, um estilo que se tornou representante dos diversificados
modelos africanos de indumentria.
Patrcia Birman escreveu que a soluo do branqueamento, vista como original e peculiar
sociedade brasileira, e mesmo como um remdio eficaz para a violncia da luta racial que se apresentava
na sociedade norte-americana, teve como contrapartida o surgimento de uma perspectiva antagnica
que, hoje, referida como negritude. possvel considerar o ano comemorativo do centenrio da
Abolio como um ano que foi privilegiado pela construo da negritude25.
Entre os anos 20 e 40 imaginvamos os modelos brancos de embelezamento sendo utilizados
somente como uma estratgia para alcanar a ascenso social, enquanto a partir da segunda metade do
sculo XX predominavam no mbito da moda. Contudo, fomos percebendo que tal formulao
enganosa, talvez seja mais coerente supor que, no processo histrico, o branqueamento esteve presente
tanto no campo da moda como naquele da estratgia poltica para alcanar a visibilidade social. Na
escalada para a conquista de um espao na sociedade, diversos artistas e jornais pesquisados, cobram do
negro uma aparncia que em nada condiz com aquela da frica ou com aquela originada da sua prpria
inspirao. Esta cobrana no parte unicamente dos brancos. A divulgao de produtos e estilos brancos
aparece na mdia considerada negra, exemplo: Revista Raa Brasil26. O que queremos dizer,
especificamente, que os negros, no tm a liberdade de se adornar livremente se quiserem se enquadrar
no grupo conotado da "boa apresentao".
Numa sociedade que valoriza a brancura da pele, o cabelo liso e os traos do rosto Ocidental, os
negros tm dificuldade de afirmar a sua beleza. H, contudo, diferenas marcantes entre a imprensa do
perodo de 20 a 40 e esta, atual, que utilizamos para traar um curto e grosso paralelo do embelezamento.
Os jornais negros da primeira metade do sculo XX vinculavam junto ao foco corporal problemticas
24
"Os rastas so reconhecidos visualmente pelas longas tranas, mediante a interpretao bblica, pregam o amor natureza,
combatem o consumo de lcool, adotam a ganja (maconha) como elemento de meditao e transcendncia, para se entrar em
contato com Jah, o deus nico. Segundo os pesquisadores, os rastas so como etopes, descendentes da Rainha de Sab e do
rei Salomo. Ao sistema capitalista chamam Babilnia. A origem da palavra foi retirada da dissertao de Salomo Jovino da
Silva, A polifonia do protesto negro - movimentos culturais e musicalidades negras urbanas anos 70/80 - So Paulo,
Salvador e Rio de Janeiro. So Paulo, PUC/SP, 2000, pp. 83. O autor est interpretando o movimento musical do reggae a
partir da pesquisa de Carlos Benedito Rodrigues da Silva. Da terra das primaveras ilha do amor. Campinas,
Unicamp/IFCH, s/d; Sansone registrou que o rastafarianismo um movimento originrio da Jamaica dos anos 20.
SANSONE, Livio. A produo de uma cultura negra. In: Revista de Estudos Afro-Asiticos, n. 20, 1981, pp. 122.
25
BIRMAN, Patrcia. In: Estudos Afro-Asiticos, Op. Cit., pp. 5-6.
26
A revista Raa Brasil comeou a circular a partir da dcada de 90 (do sculo XX). Ver fig. 1 - a mulher negra nua uma
imagem que localizamos na Raa Brasil, ano 5, n. 51, novembro de 2000, pp. 10-11.
16
polticas, discriminatrias, participativas e organizativas ao passo que a Raa Brasil desenha-se como
uma espcie de revista Caras para negros. Neste sentido, vale observar os trabalhos acadmicos que
traam paralelos entre o pensamento da imprensa negra e revista Raa Brasil.
Os divulgadores dos padres de beleza, os divulgadores de produtos, hoje, normalmente, tentam
passar a idia de serem os embelezadores fsicos uma inveno maravilhosa para o corpo negro, como se
quisessem reconhecer ou fazer existir uma especificidade de elementos corporais, que ora precisam ser
tratados e ora precisam ser apagados. Assim, por exemplo, o Vasenol (produto de beleza da atualidade)
amacia a pele negra, mas os cremes para o cabelo (alisadores naturais) extinguem o modelo crespo.
Aquelas especificidades j contidas nos produtos para tratamento dos corpos brancos no servem para o
embelezamento do corpo negro. Acreditam que a diferena de elementos entre um corpo branco e um
corpo negro maior; o rtulo de venda convence os consumidores da especificidade do corpo negro
como um bem, considerando que tais produtos vendem abundantemente. Mais do que isso, demonstra
aos consumidores a necessidade de afirmar os traos negros, os traos africanos. Essa pretensa
preocupao para com o corpo negro esconde tambm o mal causado pelos produtos qumicos
(especialmente os alisantes), pois em seus rtulos nenhuma informao registrada dizendo do mau
cheiro contido, do mal que fazem ao corpo, da queda de cabelo que promovem. A falta de informaes
sobre os males marca de outros produtos. Mais recentemente apareceram no mercado dos cosmticos
produtos para o cabelo com a tarja: "Creme Alisante, Creme Relaxamento e Creme Permanente Afro,
agora sem cheiro de amnia"27. Porm, mesmo assim, eles apareceram de forma amena e fazem parte do
rol dos produtos caros.
Nas dcadas de 40 e 50 encontramos pginas inteiras dos jornais negros destinadas aos institutos
de beleza, aos sales de cabeleireiro, as cabelisadeiras, s barbearias, s alfaiatarias, s modistas. Apesar
de visualizarmos, inicialmente, a rara presena de anncios nos anos 20, escolhemos comear a pesquisa
a partir deste perodo porque sentimos a necessidade de estudar uma poca considerada pelos militantes,
antigos e contemporneos, de grande efervescncia poltica, cultural e recreativa dos movimentos
negros. Entretanto, ao realizarmos uma leitura mais aprofundada nestes jornais selecionados
perceberemos o quanto eles oferecem em termos de crnicas, anncios, textos e poesias para a reflexo
do embelezamento.
Os estudiosos da imprensa negra reconheceram a importncia dos trs jornais selecionados no
combate discriminao e na organizao dos negros na cidade de So Paulo. A luta travada pelos
militantes (jornais e associaes), foi caracterizada como uma Segunda Abolio. Para os mais
27
Revista Raa Brasil, ano 6, n. 53 e 54, janeiro e fevereiro de 2001.
17
frentenegrinos, A Voz da Raa, sua associao e seus militantes constituram o movimento de combate ao
racismo no Brasil. Preferimos dizer que foi possvel extrair de todos os jornais informaes significativas
sobre a populao negra e relaes sociais.
Outra razo para a escolha destes ttulos jornalsticos diz respeito a sua periodicidade, ou seja,
possuem uma periodicidade quase regular e sua publicao abrange um perodo longo. Alm disso,
existe uma coleo significativa desses jornais eleitos em locais de fcil acesso para a pesquisa. O
material para o desenvolvimento do trabalho encontra-se microfilmado no CEDAP (Centro de
Documentao e Apoio Pesquisa) da Unesp de Assis, na Biblioteca Mrio de Andrade, no Centro
Cultural So Paulo e, tambm, no Instituto de Estudos Brasileiros e no CEDIC (Centro de
Documentao da PUC/SP).
No primeiro captulo desta dissertao, denominado de Imagens da Beleza Negra, analisamos a
indstria da beleza no Brasil e, neste mesmo item, com maior profundidade, a indstria da propaganda,
ao alocarmos as caractersticas gerais e especficas dos trs jornais que fazem parte da imprensa negra. A
seguir, interpretamos os modelos de beleza contidos nos exemplares selecionados e na bibliografia sobre
a populao negra, sempre atentando, na escolha de um padro, para as diferenas culturais e de gnero.
Passam por estas imagens discusses referentes aos fentipos negros, especialmente, sobre as vises dos
tratamentos do cabelo e da pele negra na sociedade brasileira.
No segundo captulo, Em Busca De Um Corpo E/Ou De Uma Mulher Ideal, interpretamos os
comentrios dos lderes negros sobre os seus ideais de beleza feminina, traando um paralelo entre esses
ideais com as vises que a sociedade formulava da mulher negra. Buscamos, neste mesmo captulo,
sistematizar rapidamente atravs dos depoimentos de que forma os lderes negros lidavam com as suas
aparncias.
Pretendemos refletir, sobretudo no primeiro e no segundo captulos, a respeito de algumas
imagens que resistiram passagem do tempo e que ganharam destaque junto ao foco central da anlise.
O desafio ser reinseri-las na histria, trat-las como produtos culturais, resultados de interesses
econmicos, polticos, e sociais determinados28. Buscamos para esta reflexo alguns textos da histria, da
literatura, da sociologia e da antropologia, pois a inteno colocar os textos dessas reas em dilogo
com as discusses da imprensa negra comparadoras das imagens negras brasileiras e africanas s
imagens construdas pelo mundo dito civilizado.
Procuramos a partir destes materiais retirar informaes concernentes construo mitolgica
das imagens do corpo negro, traar um paralelo entre a relao que o homem fazia do corpo negro com o
28
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Op. Cit. pp. 83.
18
mundo dos animais, para percebermos nessa relao porque veementemente o corpo era associado e
identificado ao corpo de animais, e/ou porque tanto se associava a beleza da mulher negra
sensualidade, sexualidade. Associaes que eram completamente responsveis pelas denominaes de
exotismo e primitivismo quando outros sujeitos pretendiam diminuir ou folclorizar a figura negra.
Florestan Fernandes, no captulo "Representaes coletivas sobre o negro: o negro na tradio oral" 29,
ainda indica que, atravs dos contos, dos folclores populares percebe-se a forma pela qual a sociedade
paulistana lidava com a aparncia do negro.
No terceiro captulo, intitulado Espaos de Visibilidade da Beleza Negra, apresentamos os
concursos de beleza negra que recorreram s opinies dos organizadores e das candidatas frente
situao e a participao do corpo negro na Capital. No mesmo captulo procuramos traar as
preferncias de embelezamento dos festeiros, as escolhas das danas pautadas pelos tipos ansiados de
comportamento e movimento dentro das sociedades negras. Registramos as recorrncias das
apresentaes das artistas negras internacionais, sobretudo as de Josephina Baker, atentando para as
formas corporais estratgicas que empregavam para cativar o pblico e alcanar a fama.
Foi a partir dos anos 20, e, sobretudo depois dos anos 30, que a indstria da beleza, em particular,
nos Estados Unidos se desenvolveu. Esta indstria fabricou, principalmente, cosmticos, tais como: o
29
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Op. Cit., pp. 201-217.
19
p-de-arroz, o batom, as maquiagens para os olhos, o esmalte colorido, o perfume, o talco, etc. No
Brasil, em 1922, as primeiras bombas de perfume eram lanadas pela Rhodia e em 1919 era criada a
empresa Lopes, primeira empresa nacional de produtos de beleza, construda na poca da valorizao do
lazer urbano e da sugesto do bem estar.30
Na dcada de 30, quando a Atkinsons se estabeleceu no Rio de Janeiro, esses produtos tornaram-
se solidrios valorizao da praticidade; ficaram mais fceis de transportar e de usar. A voga dos
produtos de beleza portteis era, portanto, indicadora de uma tendncia mais ampla, relacionada
presena de mulheres nas ruas, nos restaurantes, escolas, escritrios, etc. A praticidade e o conforto
chegavam como sinnimos mximos da modernidade h muito almejada. A partir dos anos 40, mais do
que um dom, o glamour e a beleza eram considerados os resultados de uma conquista individual e de
um trabalho sem hora e sem lugar para comear ou para acabar". As artistas e as mulheres da alta
sociedade serviram de modelo para a campanha das diversificadas empresas fabricantes. Em meio
colonizao norte-americana, as revistas brasileiras publicavam cosmticos das grandes empresas, como
Max Factor, Avon e Helena Rubinstein, para realar o glamour das misses brasileiras, das vedetes
cariocas, das atrizes da chanchada nacional e das sereias louras de Hollywood31.
A Grande Depresso e a Segunda Guerra no diminuram a importncia da indstria dos
cosmticos. Vrios tratamentos de beleza eram considerados estimuladores da boa moral, bem como
indicadores de emprego seguro e da civilidade urbana. No entanto, nem com todo o sucesso das
indstrias, os observadores deixaram de questionar a qualidade dos cosmticos. Nos anos trinta, a
Americam Association afirmava vigorosamente que muitas manufaturas de cosmticos estavam
falaciosamente anunciando os benefcios para a sade enquanto usavam chumbo e arsnio em seus
produtos. Em 1936, sob presso, o governo federal norte-americano colocou a maquiagem, em geral, sob
regulamentao e aboliu o uso de ingredientes danosos nos produtos e os anncios fraudulentos das
propagandas. Ainda que as empresas de cosmticos testassem seus produtos quanto toxicidade e
potenciais irritaes ao corpo, sempre havia quem admitisse que boa parte da populao era alrgica a
algum ingrediente cosmtico. Mesmo assim, havia mulheres sobrepondo o objetivo de ser bela e jovial,
30
SANTANNA, Denise Bernuzzi de. Propaganda e histria: antigos problemas, novas questes. So Paulo: Projeto
Histria, n. 14, fevereiro de 1997, pp. 110.
31
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "Do glamour ao sex-appel: notas sobre a histria do embelezamento feminino entre
1940 e 1960". Uberlndia: Revista de Histria da UFU, pp. 1-14. Este e outros artigos citados desta pesquisadora so partes
da sua tese de doutorado: La recherche de la beaut. Une contribuition l'historia des pratiques e des reprsentations de
l'embelissement au Brsil - 1900 a 1980, defendida na Universidade de Paris VII, 1994.
20
aos males provocados pelas substncias. Entre os produtos que causavam esses males, estiveram as tintas
de cabelo acusadas de causarem alergias e cncer32.
Enquanto a indstria da beleza se desenvolvia, a cidade de So Paulo se transformava num
importante centro econmico e poltico do pas. "Aglomeravam-se as casas bancrias, os grandes
estabelecimentos de comrcio atacadista, da importao, as fbricas de bens de consumo e o melhor e
mais variado comrcio varejista do Estado". Nos novos espaos de convivncia institudos, ruas
movimentadas, fbricas, oficinas, lojas, associaes recreativas, culturais e polticas, cafs, teatros,
cinematgrafos, escolas, etc, as experincias sociais tornaram-se mais urbanas, permeadas pela presena
da publicidade33.
Em meio ao desenvolvimento da imprensa, emergiram os jornais destinados a fazer parte da
imprensa negra, em geral, de pequeno porte. Os integrantes dos jornais pertenciam aos mais
diversificados setores da sociedade, faziam parte da pequena burguesia, das profisses liberais (letrado,
professor, jornalista, artista), do funcionalismo pblico (escriturrio, motorista, servente); trabalhadores
informais (carregadores, serventes de pedreiros, posseiros e assentadores de trilhos), etc. Alguns sabiam
ler e escrever. Havia, tambm, os que partiram para o autodidatismo. Vieram de diversificados cantos do
pas, uma parte chegou do interior paulista e outra nasceu na Capital.
No desenrolar do texto veremos o quanto, para os escritores negros, o padro de beleza e de
comportamento moral, estava comprometido com o ideal de ascenso social, sem querer negar, no
entanto, que em muitos instantes os jornais apelaram para a educao formal e informal como requisitos
essenciais da formao humana. O apelo para a educao caminhou no sentido de argumentar que os
princpios bsicos, morais e ticos, deveriam ser ensinados em casa. A mulher estaria incumbida desta
tarefa34. Tanto a educao formal quanto a informal serviriam para conquistar grandes postos na
sociedade. Por conta da falta de poltica educacional e institucional ou da acomodao dos negros, este
projeto se distanciava, na viso da imprensa e de muitos negros, que por sua vez estavam fora dos bancos
escolares. Era preciso traz-los para o ensino, para as "escolas" das associaes (particularmente para a
escola da Frente Negra Brasileira e do Centro Cvico Palmares). Quem atendesse a este anseio dos
32
BANNER, Lois W.. "The History Women and Beauty Since 1921". American Beauty. Chicago: Chicago Press, 1984, pp.
271-291.
33
CRUZ, Helosa de Faria. Na cidade, sobre a cidade - Cultura letrada, periodismo e vida urbana. So Paulo, 1890-1915.
Tese de Doutorado em Histria Social. So Paulo: FFLCH/USP, 1994, pp. 10 e 210.
34
Moura escreveu no captulo A imprensa negra em So Paulo que em toda a trajetria dessa imprensa h um constante: a
ascenso do negro dever realizar-se atravs do seu aprimoramento cultural e do seu bom comportamento social. Para que
isso acontea h sempre a recomendao de que a famlia deve educar os filhos, especialmente as moas, para que assim
consigam o reconhecimento social dos brancos. Por outro lado, a educao considerada como uma misso de famlia. A
educao uma questo privada. Quase todas as referencias ao problema educacional vinculam-no a uma obrigao
familiar, ligando-o a um nvel de moral puritano. MOURA, Clvis. Sociologia do negro brasileiro. So Paulo: Editora tica,
pp. 210.
21
militantes e tivesse contato com a imprensa poderia ter seu nome registrado nos jornais no momento de
formatura.
A falta de instruo foi muitas vezes apresentada, pelas primeiras pesquisas sobre esta imprensa,
como fator de derrocada dos movimentos negros. Como se muitos negros, por no saberem ler, e no
militassem, fossem automaticamente alienados. Todavia, observando fotografias dos livros e dos jornais
percebemos a majoritria presena de negros em festividades, em manifestaes, em atividades
promovidas pelas associaes, concluindo que foi expressiva a participao dos negros daquela poca
em diversas atividades sociais.
Reconhecemos, como outros estudiosos, que os militantes foram incisivos na apresentao da
proposta de conquista de valores da classe dominante e universais: a casa prpria, a compra do terreno, o
estmulo educao, a assistncia social, etc. Porm, depois de uma leitura mais detalhada ficamos com
a impresso de ser o teor poltico dos jornais duvidoso, na medida em que o inimigo da comunidade
negra era indicado por alguns como sendo o prprio negro. Esse fator predominava como razo para o
"atraso da raa". A palavra atraso aqui usada propositadamente, porque era assim que os escritores
denominavam os seus "irmos de cor" "desligados" dos movimentos sociais. Desta forma, os escritores
negros, acabavam por justificar a pobreza e o insucesso dos negros como problema pessoal e no social,
j que ser pobre ou fracassado era entendido como conseqncia da falta de esforo individual, da falta
de empenho ou da falta de talento para buscar alternativas que os tirassem da pobreza, da discriminao,
etc.
Uma explicao para encarar o prprio negro como "desmoralizador" do grupo, para expressar
tamanha insatisfao com a baixa posio social e econmica ocupada por alguns, talvez, esteja
relacionada presena significativa de "jornalistas" da "classe mdia" ou da "elite" 35 nos jornais. Eram
parabenizados e merecedores de nota nos jornais apenas aqueles que conseguiam chegar ao ponto mais
alto da hierarquia social. O grupo letrado dos jornais negros incorporou idias do progresso, da evoluo
e da integrao. Maria Isaura Pereira de Queiroz resumiu essa idia da seguinte maneira: "A crena numa
pretensa democracia racial mantinha as possibilidades de uma reivindicao coletiva fundamentada na
35
H na dissertao de Petrnio Domingues uma relevante explicao para o termo elite negra. Segundo este pesquisador o
termo elite negra no significava uma minoria detentora dos meios de produo material. O termo tinha trs sentidos
especficos: primeiro poltico, porque este grupo se configurou como dirigente poltico da comunidade e era aceito como tal
pelos brancos; segundo educacional e cultural, porque este grupo era fundamentalmente alfabetizado e considerado
culturalmente evoludo; terceiro ideolgico, porque este grupo reproduzia muitos dos valores ideolgicos da classe
dominante. A pesquisa de Domingues, que tambm contemplou a imprensa negra, buscou reconstruir a histria do negro em
So Paulo no ps-abolio (1889-1930) centrada, fundamentalmente, em trs questes: o racismo e as relaes de trabalho, o
projeto do branqueamento e o mundo dos negros. DOMINGUES, Petrnio Jos. Uma histria no contada - Negro, racismo
e trabalho no ps-abolio em So Paulo. Dissertao de Mestrado em Histria, FFLCH/USP, 2001, pp. 0 e 163.
22
solidariedade tnica, incentivando ao contrrio o individualismo segundo a crena de que com esforo e
diligncia pessoal era possvel alcanar a ascenso scio-econmica".36
Os jornais alternativos circulavam na capital atravs das assinaturas, das vendas nas redaes e
nas associaes, sendo tambm distribudos para outras cidades por meio dos colaboradores e ainda nos
pontos de encontro da comunidade, onde se trocavam notcias, tais como: a Praa Joo Mendes, a Igreja
dos Remdios, a rua da Glria (sede da Agremiao Paulistana), rua do Lavaps. No centro velho, as
ruas Florncio de Abreu, Libero Badar, a Igreja Santa Efignia, o largo do Paissandu, a Igreja do
Rosrio dos Homens Pretos, indo terminar no Largo do Piques, atual ladeira da Memria, na Praa da
Bandeira.37
Pagava-se pelo jornal no s o preo estipulado pelos seus organizadores, mas o que o pblico
podia, j que muitos eram desprovidos da quantia exigida. Os pobres recebiam o exemplar
gratuitamente. Por causa do pouco dinheiro em caixa, incessantemente, os jornais faziam anncios
implorando para que a populao negra fizesse a assinatura deles e para que o abonados pagassem uma
taxa mais alta do que valia o exemplar. Essa idia nem sempre deu certo, por isso tambm estes jornais
deixaram de circular e tiveram suas estruturas modificadas, que particularmente o caso dClarim
d'Alvorada e d'A Voz da Raa. Os militantes contam que algumas vezes investiam dinheiro do prprio
bolso para garantir a publicao. Em depoimento a Clvis Moura, Raul Joviano do Amaral narrou como
eles conseguiam se manter, explicou as irregularidades das publicaes:
36
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de "Coletividades Negras - A ascenso scio-econmica dos negros no Brasil e em So
Paulo". Op. Cit., pp. 660.
37
GARCIA, Marinalda. Os arcanos da cidadania. A imprensa negra paulistana nos primrdios do sculo XX. Dissertao de
mestrado, FFLCH-USP. So Paulo, 1997, p. 115. A dissertao de Garcia consiste em resgatar as mltiplas tentativas dos
jornalistas negros em construir uma cidadania negra a partir dos instrumentos legais e de acordo com o projeto poltico das
elites paulistas, apesar das adversidades polticas entre negros e brancos.
23
cooperativas. Mas, mesmo assim, foi muito difcil mant-los a base da cooperao
porque o negro no tinha condies econmicas38.
Percebemos ento que uma parte das lideranas dos movimentos sociais enfrentou srios
problemas econmicos. Por isso no pode ser considerada elite negra. No depoimento de Raul Joviano
do Amaral a Clvis Moura, gravado em 15 de junho de 1975, ele falou dos sacrifcios do negro para
viabilizar a imprensa negra:
o seu xito se deve a homens humildes como o Tio Urutu, que era cozinheiro do Instituto
Disciplinar, a Jos Correia Leite, que era auxiliar de uma drogaria, o qual alm de
escrever e orientar jornal tirava dos seus parcos vencimentos uma parcela para mant-lo.
Outros abnegados da imprensa negra foram Jayme de Aguiar, o argentino Celso
Wanderley, (...) Lino Guedes e o Salatiel Campos. Todos contriburam para com
duzentos reis ou um tosto, o mximo um cruzeiro, para que o jornal sasse. O jornal O
Clarim dAlvorada, por isso mesmo, nunca teve caixa e, como o objetivo da imprensa
negra era difundir comunidade negra as suas idias, os seus organizadores nunca
procuraram organizaes financeiras para ajud-la. Tambm no procuravam polticos
da poca. Sem ter praticamente anncios, ela vivia da solidariedade. Foi dentro desse
esprito que a imprensa negra viveu por quase vinte anos 39.
O Clarim d'Alvorada foi criado em 1924, por Jos Correia Leite e Jayme de Aguiar. Chamou-se
inicialmente O Clarim, incorporando j em 1924 a denominao O Clarim d'Alvorada, ttulo que
manteve at o final da publicao em 1940. No cabealho, indicou os seus objetivos: "Orgam literrio,
noticioso e humorstico", apenas em alguns anos acrescentou a inteno de ser propriamente um rgo
para a defesa dos "Homens de Cor", dos "Homens pretos de So Paulo" ou da "Mocidade negra". O
jornal foi dirigido quase sem interrupes por Jos Correia Leite. Cuti informou na biografia deste
militante que ele ainda participou da fundao da Frente Negra Brasileira, da qual se demitiu em razo
da divergncia ideolgica. Em 1932 dirigiu o jornal satrico A Chibata40. No mesmo ano fundou o Clube
Negro da Cultura Social, do qual foi um dos secretrios e orientadores, onde publicou a Revista
Cultura41. Esta associao funcionou at o ano de 1937. Em 1945 colaborou na fundao da Associao
38
MOURA, Clvis. A imprensa negra em So Paulo. In: Sociologia do negro brasileiro, Op. Cit., pp. 214.
39
MOURA, Clvis. A imprensa negra em So Paulo. In: Sociologia do negro brasileiro, Op. Cit., pp. 211.
40
Encontramos 8 pginas do jornal Chibata na coleo imprensa negra. O jornal foi fundado em junho de 1932. Em suas
pginas no constam o endereo da redao e administrao, os nomes dos organizadores e o subttulo.
41
Da Revista Cultura localizamos 33 pginas. Ela carregou o ttulo de Revista da Mocidade Negra. No havia paginao.
Sua redao e administrao funcionavam na Rua Major Quedinho, n. 23. O redator chefe foi Manoel A. Santos, o diretor
Jose A. Barbosa, o gerente Sebastio Oliveira e o redator secretrio Oswaldo Camargo. O nmero do dia valia 400 reis, a
assinatura semestral 6$000 e a anual 10$000. As propagandas do salo de cabeleireiro, das cabelisadeiras e dos remdios
anunciadas nesta revista so quase as mesmas publicadas nO Clarim dAlvorada. O inusitado que apesar das marcas dos
remdios serem as mesmas os desenhos so diferentes.
24
dos Negros Brasileiros que passou a editar o jornal Alvorada. A A. N. B. permaneceu ativa ainda por
volta de 194842.
N O Clarim d'Alvorada Correia Leite exerceu ainda a funo de diretor responsvel, reprter e
grfico junto a Jayme de Aguiar. O endereo da redao era na Rua Major Diogo, n. 13, a assinatura
anual custava 5$000 e o nmero avulso $200. O rgo pretendia ser mensal, porm sua periodicidade era
irregular e apresentou uma composio quase fixa de quatro pginas; de 1932 a 1940 a publicao foi
praticamente nula.
As associaes ligadas ao Clarim d'Alvorada eram: o Clube 13 de Maio, o Auriverde, a Princesa
do Norte, a Elite da Liberdade, a 15 de Novembro, a 28 de Setembro, o Paulistano, o Kosmos, a Princesa
do Norte, a Unio Militar, os Cordes da Unio da Mocidade, Barra Funda (Camisa Verde), Campos
Elyseos; Clubes de Futebol como Cravos Vermelhos; O Centro Humanitrio Jos do Patrocnio e o
Centro Cvico Palmares.
Os projetos esbarraram nas desavenas polticas O Clarim dAlvorada sofreu um
empastelamento. O fundador Jos Correia acusou Arlindo Veiga dos Santos, presidente da Frente
Negra Brasileira, de sua destruio. Os dois no se entendiam politicamente, o primeiro pregava o
socialismo e o segundo o patrianovismo 43. Jos Correia na narrao do episdio expressou que o
empastelamento do seu jornal ocorreu quando publicaram o terceiro nmero, e que no foi apenas um
empastelamento, foi um assalto. "Tinha nego de porrete, jogaram estantes de livros pra rua,
derrubaram mquinas de costura, mquina de escrever, mas a oficininha ficou intacta, no mexeram em
nada, porque tinha um quartinho que era a oficina, l estava uma pgina pronta". Os dois militantes
chegaram a ir para a polcia, com seus respectivos advogados para resolver o impasse44.
42
CUTI. E disse o velho militante Jos Correia Leite. Op. Cit. pp. 299.
43
A Ao Imperial Patrianovista Brasileira, foi um movimento que expressou as idias nacionalistas e autoritrias no final
da dcada de 20 e incio da dcada de 30. Idealizada por Arlindo Veiga dos Santos, visava instaurar uma nova monarquia no
Brasil, baseada numa filosofia poltica conservadora. Seu aparecimento se liga ao centro D. Vital e a revista A Ordem,
fundados respectivamente em 1921 e 1922 por Jackson de Figueiredo. Esse centro que marcou a renovao do pensamento
catlico do pas, assumia um tom polmico em face realidade poltica, social e intelectual do Brasil, mas pretendia a ordem
e no a Revoluo. ROY, Teresa Maria Malatian. A Ao Imperial Patrianovista Brasileira. Dissertao de Mestrado em
Cincias Humanas (Histria), PUC/SP, 1978, pp. 9.
44
BARBOSA, Mrcio. Frente Negra Brasileira - Depoimentos. So Paulo: Quilombhoje, 1998, pp. 69. O pesquisador rene
no livro depoimentos dos militantes: Aristides Barbosa, Francisco Lucrcio, Jos Correia Leite, Marcello Orlando Ribeiro,
Placidino Damaceno Motta.
25
O Progresso foi criado em 1928. Participaram da administrao do jornal, desde o seu incio,
Argentino C. Wanderley (proprietrio), e Lino Guedes45, um poeta editor. Integraram-se depois: o gerente
Heraldo da Cunha e o diretor Euclydes S. dos Santos.
O endereo da redao era na rua Maria Thereza, n. 10, a sua assinatura anual custava 6$000 e a
semestral 3$000. O jornal continha seis pginas, a publicao pretendia ser semestral e sua periodicidade
foi quase regular. Circulou at 1931 e, distintamente dos outros jornais, no manteve um subttulo.
Apresentou uma composio fixa de pginas. Como O Clarim d'Alvorada, manteve um carter
associativo diversificado. Articulou-se com o Centro Cvico Palmares, o Auriverde, a Confraria dos
Remdios, o Clube Atltico Brasil e o Grmio Recreativo Paulistano.46
Seus escritores acreditavam que o desenvolvimento do intelecto poderia ocorrer via
aprendizagem da msica, da dana, do teatro, da literatura, etc. Tanto que nas ltimas edies sugeriram
temas para a educao dentro de uma perspectiva artstica, ou seja, nas instituies escolares poderiam
falar da participao dos negros no cinema e assim por diante. Essa idia vigorava, talvez, por ser forte a
presena dos livros didticos com verses pejorativas sobre o negro, vises presentes no imaginrio da
sociedade brasileira e usadas para ofender uma criana ou um adulto negro. Ou ainda podemos dizer que
parcela da comunidade negra letrada e associada era alheia ao universo das culturas afro no Brasil, por
isso quase sempre propunha para o desenvolvimento do intelecto negro o aprendizado da cultura
Ocidental.
O terceiro peridico analisado foi A Voz da Raa, criado em 1933, por Francisco Costa Santos,
com a colaborao de algumas pessoas que organizaram O Clarim d'Alvorada e o Centro Cvico
Palmares. Da sua administrao participou Deocleciano Nascimento (redao), um poeta que tambm
colaborou n O Clarim d'Alvorada; Mario Campos (redao), Raul Joviano do Amaral (chefia), Francisco
Lucrcio (secretrio), Rubens Costa (diretor) e Antonio M. dos Santos (diretor).
45
Lino Guedes nasceu na cidade de Socorro, interior de So Paulo, em 24 de junho de 1897. Filho de ex-escravos, fez estudos
em Campinas, onde iniciou sua promissora carreira no jornalismo, em 1915. Trabalhou nos jornais Dirio do Povo e no
Correio Popular daquela cidade. Em 1926, transferiu-se para a Capital, passando por diversos rgos da imprensa. Trabalhou
no Jornal do Comercio, nO Combate, no Correio Paulistano e no Dirio de So Paulo, onde chefiou o departamento de
reviso. Dirigiu em conjunto com Gervsio de Moraes, em 1924, o jornal Maligno. Sua carreira de escritor iniciou com o
lanamento, em 1926, de Black, em 1927, o Canto do cisne preto; ainda publicou em 1930, Ressurreio negra, em 1932,
Negro preto cor da noite; em 1936 Urucungo; em 1937, Ristre Domingos, em 1938, O pequeno Bandeirante Sorrisos do
Cativeiro. Foi membro da Sociedade Paulista de Escritores. Faleceu no dia 4 de maro de 1951. Localizamos a biografia de
Lino Guedes na dissertao de Petrnio Domingues, que provavelmente, retirou as informaes da vida do autor na obra O
negro inscrito de Oswaldo de Camargo, publicada em So Paulo: Imesp, 1987, p. 75.
46
CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. A luta contra a apatia - Estudo sobre a instituio do movimento negro anti-
racista na cidade de So Paulo (1915-1931), Dissertao de Mestrado, PUC/ SP, 1993, pp. 138. A pesquisa de Paulino
Cardoso visa compreender as prticas diferenciadas dos jornais, historicizando a transformao das organizaes negras de
seu carter recreativo para as instituies de luta anti-racista.
26
Ainda que muitos textos do jornal no tivessem assinatura, podemos afirmar que uma parte
significativa deles foi escrita e traduzida por Deocleciano Nascimento, Isaltino Veiga dos Santos e
principalmente, por Arlindo Veiga dos Santos47. Ou seja, a maior parte dos textos era de autoria dos
membros48 da Frente Negra Brasileira. Arlindo Veiga dos Santos ocupou o cargo da presidncia da F. N.
B. at 1934 e depois tomou posse Justiniano Costa que, durante a gesto do primeiro presidente, ocupara
a funo de tesoureiro.
O jornal anunciou dois ttulos como slogan: "O Preconceito de cr, s ns, os negros, o podemos
sentir", frase de Isaltino Veiga dos Santos (irmo de Arlindo Veiga dos Santos). A segunda frase
anunciava: "Deus, Ptria, Raa e Famlia", que permaneceu at o final da publicao quando o jornal foi
cortado, levando consigo parte do cabealho.
O preo do peridico do dia era de $200, o nmero atrasado eqivalia $400 e a assinatura anual
5$000. Apesar da proposta de edio semanria teve uma periodicidade irregular, sua composio se
dividia em 4 pginas, assim como a maioria dos jornais alternativos negros.
A administrao e redao localizavam-se na rua Conselheiro Brotero, n. 156. Circulou at
1937. Enquanto O Clarim d'Alvorada declarava ser o jornal de "propriedade da gente negra", este
considerava ser de "Propriedade de uma Companhia em Organisao". Isso significa dizer que A Voz da
Raa atendia mais aos interesses dos associados da F. N. B.
A F. N. B, manteve Departamento de Instruo e Cultura (com professores nomeados pelo
Estado), Departamento Musical, Departamento Esportivo, Departamento Mdico, Departamento de
47
Joaquim Pedro Kiel de Araraquara, numa reportagem especial para A Voz da Raa, escreveu um pouco da tentativa inicial
dos irmos Veiga dos Santos em organizar um jornal. Disse que os conhecia h muito tempo. Quando eram quase meninos
(um com 7 e outro com 15) os irmos Veiga dos Santos fundaram em Itu, juntamente com Kiel, um semanrio intitulado A
Bomba, cujo titulo era alusivo ao distintivo da artilharia montada. A Bomba era quase um rgo oficial do 1O. R. A. M.
Apesar, porm, desse carter, A Bomba corajosamente defendeu a idia da 2a. candidatura de Rui Barbosa a presidncia da
Repblica, contra a opinio geral da oficialidade, que aspirava ver o General Lauro Miler no posto para qual iria ser
escolhido, Epitcio Pessoa. Disse Kiel que A Bomba estava acima dos interesses e das convenincias e defendia a
liberdade de opinio. Os oficiais de superioridade e liberalidade de opinio participavam desse primeiro empreendimento
jornalstico, pois achavam graa no ardor ruibarboseano da modestssima folha e continuaram a comprar os jornais e a dar
preferncia para A Bomba, publicando editais de concorrncia e matrias pagas. Nesse pequenino jornal Arlindo e Isaltino
Veiga dos Santos ensaiaram os seus primeiros passos na imprensa, bem como Kiel, o autor que avaliou as dificuldades
financeiras por qual passaram, as lutas que sustentaram para que o jornal A Bomba no morresse no primeiro numero,
sobrevivesse, pelo menos, at o terceiro ms. Frente Negra, A Voz da Raa, So Paulo: 25 de maro de 1933, p. 4.
48
Arlindo Veiga dos Santos nasceu na cidade de Itu, a 12 de fevereiro de 1902. Nesta cidade iniciou os seus estudos no G. E.
Dr. Cesrio Mota. Em seguida freqentou o colgio So Luiz, dos padres jesutas, e o Ginsio Nossa Senhora do Carmo, dos
padres carmelitas, onde estudou por iniciativa dos professores Jos Pinheiro e Jos Esteves Carramenha. Logo nos primeiros
tempos de estudante manifestou inclinao para a atividade literria, tendo colaborado com os jornais locais A Bomba
(manuscrito) e A Federao, que era editado pela parquia da Nossa Senhora da Candelria. Na cidade de So Paulo fez
curso universitrio na Faculdade de Filosofia e Letras de So Paulo (que se tornaria posteriormente a Faculdade de So
Bento), onde colou grau em Filosofia e Letras em 1926. Ao mudar-se para So Paulo tornou-se membro da Congregao
Mariana da Imaculada Conceio de Santa Efignia, onde havia jovens estudantes que mais tarde vieram a se destacar na
sociedade. Parece ter sido congregado mariano dos mais ativos, chegando mesmo a ocupar a presidncia desse sodalcio em
1940. ROY, Teresa Maria Malatian. A ao imperial patrianovista.Op. Cit., pp. 46.
27
Imprensa, Departamento de Artes e Ofcio, Departamento Dramtico; Companhia da Boa Vontade,
Comisso de Moos, Departamento Jurdico Social, Departamento Doutrinrio. Oferecia servios no
prprio salo de barbeiro e cabeleireiro, nos locais para jogos e divertimentos, nas oficinas de costura, no
posto de alistamento eleitoral, no gabinete dentrio, na caixa beneficente e na cruzada feminina. A Frente
Negra era dirigida por um grande conselho, constitudo de 20 membros, selecionando, dentre eles, o
Chefe e o Secretrio. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital.49
Francisco Lucrcio enfatizou que como fora social, e sabendo que a civilizao e o progresso
eram fatos de inestimvel valor, a F. N. B. caminhou para o campo educacional, criou escolas primrias
com quatro salas de aula, cursos de formao poltico-social, de instruo moral e cvica, de msica,
lnguas e de histria. O objetivo era estimular o ingresso dos negros nas escolas superiores, do saber em
todos os nveis. A F. N. B. realizou a tarefa preliminar de ministrar os conhecimentos necessrios aos
negros, objetivando a sua integrao em todas as atividades do pas, desde o Magistrio at ao Direito, da
Medicina Poltica, aos postos eletivos: vereadores, prefeitos, governadores, presidente da Repblica,
diplomatas, oficiais das Foras Armadas50.
Recebiam a carteira de identificao da associao (carteira com retrato de frente e de perfil) 51, de
preferncia, os indivduos negros de boa conduta na sociedade e com a carteira de trabalho assinada.
Alm disso, os scios inscritos pagavam dois mil ris por ms, importncia arrecadada para manter a
entidade. As delegaes tambm contribuam com sua cota para a sustentao da luta. Todos eram
voluntrios, militantes e at fanticos que davam tudo pela causa.52 Segundo a pesquisadora Pahim, os
militantes falaram que a F. N. B. congregou cerca de,
Em 1926 foi criado o Centro Cvico Palmares, uma instituio de estrutura semelhante F.N.B.
Ela teve biblioteca, escolas com cursos primrios e secundrios, corpo docente de negros; desenvolveu
49
MOURA, Clvis. Uma voz independente para o negro. Op. Cit., pp.72.
50
LUCRCIO, Francisco. Memria Histrica, A Frente Negra Brasileira. In: Revista de Cultura Vozes, ano 83, n. 3, maio-
junho de 1989, pp.334.
51
Ver figura 21- carteira de identificao da Frente Negra Brasileira de Francisco Lucrcio.
52
LUCRCIO, Francisco. Memria Histrica, A Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 335.
53
PINTO, Regina Pahim. A Frente Negra Brasileira. IN: Revista de Cultura Vozes. N. 4, julho-agosto, 1996, pp. 47.
28
palestras, peas teatrais, audies de piano e de canto. Inclusive foi o embrio da F.N.B. Contou
Lucrcio que,
em maio de 1929 um grupo de negros, vindos do Centro Cvico Palmares (...), resolveu
lanar um manifesto dirigido nao e raa negra, visando fundar um rgo que se
relacionasse com as atividades polticas e sociais (...). As reunies sucediam-se em pleno
lampio da Praa da S. Toda noite l estava o grupo de negros, que era cada vez maior,
discutindo a maneira de se organizar. Alugaram uma sala no Palacete Santa Helena, ao
lado direito de quem sai da Igreja da S. Ali foi elaborado o estatuto e escolhido o nome
da entidade: Frente Negra Brasileira. No ano de 1931 a idia j estava amadurecida,
sendo necessria apenas torn-la pblica. Assim foi que em 16 de setembro de 1931, na
presena de milhares de negros, reunidos nos sales das Classes Laboriosas, na rua do
Carmo, foi lido o estatuto e lanado o manifesto. A alegria e os aplausos foram
culminantes quando aclamados os nomes para compor o grande Conselho, que deveria
dirigir a entidade54.
A Voz da Raa e a Frente Negra Brasileira foram os mais elogiados pela bibliografia da imprensa
negra devido ao fato de terem conseguido agregar uma massa negra significativa em torno de seus ideais.
Consideraram suas aes positivas, no sentido de combater o racismo, de conscientizar os negros, de
construir e indicar empregos, enfim, pela grandiosidade da instituio. Entretanto, por tantas aes
ficaram expostos aos questionamentos, principalmente quando os objetivos almejados no se
concretizaram. A forma, tambm, como conduziram as estratgias de luta foi um outro ponto criticado.
Clovis Moura apontou que a Comisso de Moos, possivelmente, era chamada de milcia
frentenegrina, organizao paramilitar. Os seus componentes usavam camisas brancas e recebiam rgido
tratamento, como se fossem soldados. Uma das justificativas para a existncia dessa corporao dizia
respeito incompreenso que pairava com a criao da F. N. B. Diziam que os negros estavam
fazendo racismo ao contrrio. No entanto, com o tempo, os membros da Frente Negra foram adquirindo
a confiana no apenas da comunidade, mas de toda a sociedade paulistana55
O regime de Vargas trancou as portas da Frente e mais do que isso produziu desavenas entre O
Clarim d'Alvorada e A Voz da Raa, especificamente simbolizou as desavenas entre Correia Leite e
Veiga dos Santos. Antes do fechamento, os lderes frentenegrinos incitavam o regime de Vargas a trancar
as portas aos estrangeiros, comandavam uma dura campanha nacionalista contra toda estrangeirada que
maquinava separatismos, bolchevismos, socialismos, para que os negros pudessem conquistar sua
54
LUCRCIO, Francisco. Memria Histrica, A Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 332.
55
MOURA, Clvis. Uma voz independente para o negro. IN: Histria do negro brasileiro. So Paulo: Editora tica, 1989,
pp. 72.
29
posio de direito no pas". o que narra o brasilianista George Reid Andrews, na sua histria
documentada da desigualdade brasileira desde a abolio at o final da dcada de 1980.
Andrews estabeleceu paralelos comuns entre a orientao anti-imigrante da Frente e aquela do
movimento integralista. Os dois movimentos, na sua viso, compartilhavam de um grande menosprezo
pela democracia liberal e a F. N. B., apesar da rejeio s filosofias polticas estrangeiras, teve uma
admirao explcita pelo fascismo europeu. Em um editorial de 1933 saudando a ascenso de Adolfo
Hitler ao poder, Arlindo Veiga dos Santos parabeniza-o por ter salvado a Alemanha das mos do
cosmopolitismo judaico e do pio entorpecente de 14 anos de repblica liberal democrtica. A Voz da
Raa relatou as realizaes do nazismo e do fascismo ao instalar disciplina e patriotismo em seu povo.
Esta admirao pelo autoritarismo estendia-se ao prprio sistema de controle interno da Frente: os
dirigentes no eram escolhidos por eleio, mas por funcionrios encarregados desta tarefa, e a
organizao como um todo, era policiada por uma milcia moldada nos Camisas Verdes integralistas e
comandada por Pedro Paulo Barbosa, um dedicado anticomunista e admirador de Mussolini56.
Segundo Andrews, a F. N. B. e A Voz da Raa aliaram-se cada vez mais ao fascismo e
integralismo, tanto que a organizao chegou a adotar o lema dos integralistas "pela famlia, pelo pas e
por Deus, modificando-o um pouco e acrescentando pela raa. Contudo seria mais coerente dizer que a
organizao adotou ainda os princpios do movimento patrianovista, que impedia as pessoas de
pertencerem ao movimento caso professassem doutrinas polticas contra a Ptria, a Famlia e a
57
Religio. De todo modo, predominou na trajetria da entidade uma viso direitista . Ento,
questionamos: de que forma o arianismo e o autoritarismo influenciaram A Voz da Raa na construo de
suas imagens ideais e reais do corpo? Como isso era tratado nestes jornais?
Entre as imagens divulgadas, os mitos, como a princesa Isabel, foram apresentados como pessoas
que se preocupavam com a aparncia, com a moda. O traquejo social e suas formas corporais eram vistos
pela imprensa como fator positivo, principalmente porque expressaram a libertao. Naquela poca, as
imagens consideradas positivas serviram como exemplo para os negros "desarrumados" da cidade;
56
ANDREWS, Gorge Reid. Negros e Brancos em So Paulo (1888-1988). Bauru: EDUSC, 1998. pp. 238-239. Interessa
perceber na sua pesquisa o percurso das mudanas econmicas, sociais e polticas ocorridas da abolio ao centenrio que
contriburam para alterar a imagem de democracia racial desfrutada na sociedade brasileira. Ver mais sobre a histria das
manifestaes negras e da sua imprensa, no comeo do sculo XX, em MOURA, Clvis. Brasil: as razes do protesto negro.
So Paulo: Editora Global, 1983, pp. 47-76.
57
MOURA, Clvis. Uma voz independente para o negro. Op. Cit., pp. 73.
30
"desarrumados", que desde a escravido eram inferiorizados porque, como informa o trecho "Lus
Gama", possuam uma "epiderme de cor mais escura e traos menos delicados", traos julgados
grosseiros (de m qualidade, malfeitos, rudes, incivis, indelicados) em oposio aos traos delicados
(afveis, corteses, educados):
Lus Gama - (...)Viveu largos annos entre ns, residindo em So Paulo, onde ao lado de
Antnio Bento, lutou com raro denodo pela libertao desses homens cuja inferioridade
consistia numa epiderme de cor mais escura, de traos menos delicados. Casado com
uma francesa, possua a elegncia de um prncipe, trajando habitualmente fraque ou
sobrecasaca e chapo alto e tudo cor de cinza, muito elegante. A tarde descia com uma
pontualidade Ingleza at o Braz, onde, nessa poca residiam os polticos, os jornalistas
e mais homens de distino social, afim de cavaquear com os amigos e tomar uma ou
mais cervejas das boas58.
Semelhante a Lus Gama, o seu companheiro abolicionista Dr. Alfredo Casemiro da Rocha
(deputado estadual, federal, senador e prefeito), um baiano que viveu em So Paulo de 1878 a 1933,
julgava importante as "pessoas de cor e de posio vestir-se bem para diminuir o risco de qiproqus,
como o que se daria com ele". Quando deputado, numa ocasio em que participava de uma comitiva, ele
foi confundido com um carregador de malas e defendido por um terceiro que advertiu de forma alguma
poder "um carregador ou cocheiro se vestir como aquele crioulo", aquele homem que sempre se vestia de
modo cerimonioso como, em geral, as pessoas das classes dominantes e mdias urbanas. Era incapaz de
se apresentar a quem quer que fosse de sua intimidade, "em mangas de camisa", ou seja, sem estar de
camisa, gravata e terno - casaca ou palet, colete e cala - sempre rigorosamente limpos e bem passados.
"Era impossvel v-lo de outro modo, no parlamento, na prefeitura, enfim, em qualquer repartio
pblica, rua ou logradouro, a no ser no consultrio, onde envergava um avental de linho sempre alvo e
engomado, ou por ocasio das viagens, a cavalo, quando usava roupas prprias para cavalgar.
Na categoria dos mitos a frica foi tambm outro elemento edificante no pensamento da
imprensa negra, que nos permitiu formular reflexes significativas acerca das representaes corporais.
Dela teremos a presente reflexo do embelezamento contemplada a partir de um olhar ocidental e de um
outro contrrio a este. Ou ainda vamos encontrar os dois vieses de anlises apresentados de maneira
ambgua, como se formulou no caso seguinte:
O Continente Negro
58
31
A sagrada terra dos nossos avs, to injustamente considerada como um immenso
matagal cheio de feras e de negros imbecis, foi objeto de elogiosas consideraes por
parte do notvel jurisconsulto alemo Dr Mendelssohn Bantholdy. (...).
Os povos que habitam a frica so to negros ou to escuros como os que contriburam
com o seu gnio para as primitivas civilizaes. A histria completa e sincera do que foi
a frica est oculta aos povos modernos pela miservel influncia norte-americana.
(...).
No nos sentimos tristes quando a Poltica Internacional estampa, em seus jornais e
revistas, caricaturas de todos os gneros em que o negro sempre occupa um papel
inferior e ridculo.
No nos sentimos tristes quando nos contam com um sorriso malicioso que os africanos
vendiam seus filhos a troco de alguns lenos vermelhos. E por falar em venda de filhos
no souberam os leitores que agora, em pleno sculo 20, uns olhos azuis e cabellos
louros vindos da Europa civilizada, andavam vendendo aqui no interior do nosso
Estado, suas filhas a 2 ou 3 mil ris? Que belleza! So as lies da histria!
No h raas superiores nem raas inferiores, mas umas mais adeantadas e outras
menos adeantadas. So palavras do ilustre Charles Darwin 59.
Booker
No texto de Booker, a escrita aponta para os leitores que desde as mais antigas civilizaes
(comeando pelos egypcios), os povos de traos negros contriburam para a formao e o
desenvolvimento do continente, desmistificando as argumentaes norte-americanas, que tentavam
apagar essa particularidade dos peles negras. Em relao aos outros pases, a frica era considerada
atrasada devido permanncia de um imenso matagal cheio de feras e de negros imbecis. Para
contestar essa viso depreciativa, o autor baseou-se na pesquisa de um alemo (Dr. Mendelsson
Bantholdy), que teceu elogios ao continente depois de perceber um certo adeantamento da raa negra
em comparao s outras que j ocupavam o topo do progresso. Mas tambm endossou a verso
afirmadora da inferioridade negra, dizendo no se sensibilizar ao olhar, atravs da imprensa, caricaturas
feitas da frica pela poltica internacional, em que os negros apareciam em papis inferiores.
No caso da tatuagem, representadora das fases de transio do costume dos africanos de Bornu
vislumbra-se, em parte, a sofisticao do embelezamento nos corpos negros.
Tatuagem
A tatuagem dos negros um costume assaz generalizado, todavia, em Bornu adquiriu
propores extraordinrias.
Os indgenas de Bornu cobrem completamente o corpo de desenhos esquisitos havendo
alli algumas tribus que excedem todos os exaggeros imaginveis.
A tatuagem completa corresponde aos guerreiros valorosos aos felizes caadores de
cabeas, sendo noutros indivduos em regra circunscripta ao rosto e aos braos.
Os desenhos mais diffceis so executados por intelligentes especialistas, que recortam
primeiramente os moldes em madeira, passando-os depois para a parte do corpo
59
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 15.01. 1927, pp. 4.
32
escolhida. Para esse fim, servem-se de um pedao afiado de bambu, ou de uma agulha,
que molham previamente num pigmento vegetal, preparado com esse fim. O processo
muito doloroso e requer bastante tempo: mas os signaes tornam-se indelveis. A
tatuagem pratica-se nos homens ao entrarem na idade viril, e nas mulheres quando
esto em condio de casar60.
O rei Ras Tafari seria o responsvel por espalhar em seu territrio um estilo moderno, incluindo a
religio e os costumes. Transformaria a Etipia e arrastaria todo o continente para a "civilizao",
particularmente em termos de "usanas" ainda denominadas de primitivas:
60
Progresso, So Paulo: 23.07. 1929, pp. 2.
61
----------; 13.05. 1929, pp. 2.
33
Com a sua personalidade original e rigorosa imprimiu novo rumo a Ethyopia, fazendo-
a figurar na Liga das Naes esforando-se para remoar sua physionomia
introduzindo nella um pouco de dynamismo e da techinica do Occidente 62.
Com este tipo de notcia, o jornal no planejou que os seus leitores esquecessem completamente
o continente. Seria mais conveniente que os mesmos analisassem e rememorassem os corpos da "me
ptria" a partir da perspectiva ocidental. Esse mesmo olhar ocidental deveria influenciar as relaes
paulistanas, impedindo uma segregao. Os costumes, a religio, e as usanas da comunidade negra
paulistana tambm deveriam acompanhar a marcha da "civilizao".
O relato de Francisco Lucrcio63 e a dissertao de Miriam Nicolau Ferrara64, especialmente o
captulo sobre o continente africano, contriburam para compreendermos as razes da histria da frica
aparecer, desdenhosamente e parcimoniosamente, na memria dos escritores negros. Lucrcio indicou
que vigorava a difuso de uma imagem muito negativa do continente naquela poca devido ao
colonialismo europeu. Alm disso, muitas informaes sobre a frica no eram publicadas, passavam
oralmente entre os negros. Isso propiciou uma leitura permeada pelos valores da sociedade branca, ou
seja, os escritores dos trs jornais analisados fizeram uma leitura estereotipada, em termos de vestimenta,
comportamento e costumes, ao divulgar informaes relativas ao continente africano.
Esse olhar dos ativistas dos movimentos sociais para a frica deixou de ser menos estereotipado
a partir da segunda metade do sculo XX, quando as viagens para a frica tornaram-se intensas, o
mesmo ocorrendo no sentindo contrrio, o Brasil passou a receber autoridades africanas, intelectuais,
polticos, turistas, refugiados.
De todo modo, nem sempre a populao negra desejou assemelhar-se esteticamente s figuras
africanas ou brancas. Falando sobre a trajetria desta comunidade, nas primeiras dcadas do sculo
Zeila Demartini, Jos Correia Leite lembrou-se que o ndio era o preferido: "ento todo mulato cabelo
duro, beiudo a queria ser descendente de ndio, no queria ser descendente de negro, no. Quando o
cabelo do negro era muito duro ele mandava raspar a cabea, para dizer que era descendente de ndio".
Tal preferncia pela figura indgena era por causa do romance, naquela poca "ele era parecido com um
heri, um ser diferente"65.
62
Progresso, So Paulo: 16. 12. 1928, pp. 4.
63
BARBOSA, Mrcio. A Frente Negra Brasileira, Op. Cit., 52.
64
FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963), Dissertao de Mestrado, FFLCH -USP, 1986.
Miriam Ferrara, traou a histria desses jornais procurando sublinhar o mundo ideolgico do negro paulista, as suas
esperanas e o seu comportamento. Procurou retratar o contexto das incertezas, das frustraes, das ambigidades e expressar
as particularidades e diferenas culturais, alm dos aspectos sociais e psicolgicos dos afro-brasileiros.
65
DEMARTINI, Zeila de Fabri. "A escolarizao da populao negra na cidade de So Paulo nas primeiras dcadas do
sculo", Revista Andes, ano 8, n. 14, 1989, pp. 57.
34
O conhecido narrador Lucrcio (dentista e associado participante da F. N. B. e do jornal A Voz da
Raa), reafirmou a mania dos negros em tentar se passar por ndio, porque em seu meio de cunho
nacionalista, os pensamentos dos escritores identificados com os personagens indgenas vigoravam.
Esses estudiosos exaltavam a posio ora dos lusitanos, ora dos negros e ora dos ndios, o que lhes fazia
concluir que a formao da raa brasileira derivava dessa trilogia, e que se no temos uma raa
definida, ou uma etnia, temos trs raas como raiz. Entre os estudiosos que escreveram sobre a
formao da raa brasileira o militante cita o maranhense evolucionista Nina Rodrigues, como se esta
figura exaltasse o negro ou o ndio em suas formulaes66.
Observamos que o pensamento evolucionista das teorias raciais sombrearam as representaes
sobre o corpo negro anunciadas na imprensa negra. Mais detalhadamente, Lucrcio relatou que lia muito
o Nina Rodrigues (1862-1906), ou melhor, os intelectuais negros conheciam o assunto de negro por
causa do Nina Rodrigues, do Oliveira Vianna, entre outros. Nina Rodrigues temia ver desaparecida as
fronteiras entre negros e brancos, ou melhor, denunciava sem trguas a possibilidade do negro
transformar o branco, alter-lo, torn-lo outro. Esse mdico criminalista tecia crticas a mistura das
raas, j que considerava o ndio como o menos aproveitvel dos nossos elementos tnicos, e os
brancos como membros de uma civilizao superior, a ordenao das raas torna-se ntida: brancos,
negros e ndios. Dentre os mestios, a dificuldade de Nina Rodrigues era maior para estabelecer a
hierarquia das raas pois, nem sempre era possvel estabelecer com preciso essa origem: em todo
caso, considerava o mestio um desequilibrado. Desde a segunda metade do sculo XIX, e mais
fortemente na passagem para o sculo XX, os intelectuais brasileiros tratavam de transformar escravos
em negros, isto , deixaram de analisa-los como mquinas de trabalho para analis-los como objetos
da cincia. Assim, o estudo de Rodrigues buscava traar um perfil do negro no apenas em termo
racial, mas tambm em termo social e cultural. Rodrigues foi um dos mais radicais defensores da
teoria do branqueamento, apesar de ter sido mestio. Oliveira Vianna, na dcada de 20, tambm
advogava a arianizao progressiva do Brasil devido emigrao e a mortalidade dos negros e
mestios. A teoria do branqueamento, no entanto, teve como principal pressuposto a ambigidade,
porque ao mesmo tempo em que via a mestiagem como um mal que deveria ser extirpado, pregava o
cruzamento das diversas espcies como soluo para o problema racial do pas. Cometemos um
grande engano ao dizermos que os militantes no questionaram os pensamentos dos intelectuais racistas,
pois localizamos no jornal A Voz da Raa um texto assinado por Arlindo Veiga que contesta as idias
dos tericos raciais: H historiadores que negam sistematicamente a influncia negra no Brasil, como
66
CORRA, Mariza. As iluses da liberdade. So Paulo: EDUSF, 1998, pp. 1-88, 168-174.
35
por exemplo, o seu Manuel Bonfim; outros (cousa engraada) negam at perante as naes do mundo,
que haja negros brasileiros no nosso Brasil. Outros perdem a tramontana quando algum francs, ingls
ou outro qualquer aliengena irritado nos chama terra de negros, mulatos e mestios. E ento conspiram
cominacente: PRECISO ARIANIZAR ISTO AQUI ! (sic) Como seu Oliveira Viana e mais alguns
sbios.
O Branco e o negro
Certo dia, Deus, ao ver o mundo to bonito, resolveu povoa-lo para dar mais vida
natureza. Ento fez o branco, aproveitando o barro da terra. O Tinhoso, que sempre anda
espiando o que Deus faz para fazer a mesma coisa, tambm tratou de fazer um boneco
de barro. Quando acabou deu um assopro nele e um monstrengo cambaio, preto e de
cabelo queimado, saiu a correr o mundo. O Diabo ficou danado da vida, pois o de Deus
era branco e bonito, mas a culpa foi sua, porque no reparou que a sua mo queimava.
Numa viso clssica teolgica a criao do corpo branco perfeita porque est associada ao
criador magistral, enquanto a criao do corpo negro tributria do Satans, o anjo rebelde que, segundo
a crena crist, foi banido do cu e sepultado no inferno. O Diabo uma pessoa sem virtudes e feia. Por
isso mesmo sua produo, segundo a crena paulistana, deformada.
67
Fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos, Op. Cit., 206-216.
36
Na verso em que o negro apareceu como criao de Deus, foi representado de forma inferior em
relao aos demais elementos representantes das raas, por uma espcie de retardamento fsico e
mental, os quais o inibia de qualquer iniciativa prpria, vejamos a lenda:
Na primeira metade do sculo XX, na sociedade paulistana, como no sculo XVIII na Europa,
esto presentes as noes populares de criao do homem, que se associaram s cientificas para
enfraquecer a doutrina ortodoxa da singularidade do homem. Segundo o pesquisador Thomas, o
monogenismo (crena teolgica na descendncia de um tronco comum dos homens) no impediu a
emergncia de noes de inferioridade racial, pois a cor negra era comumente encarada como uma
deformidade; era comum encarar que os negros tinham degenerado de seu ancestral comum, Ado,
enquanto, os brancos tinham permanecido constantes, ou mesmo melhorado. O escocs Lineu, que era
monogenista, por exemplo, achava que os africanos eram manhosos, preguiosos e indolentes69.
No prprio jornal A Voz da Raa localizamos uma reflexo a respeito da origem do corpo negro.
Segundo a escritora do texto, Maria de Lourdes Rosrio, a nossa origem foi nica, do casal paradisaco
de que nos fala o Gnesis. Nesta direo, se ao corpo negro fosse atribudo qualquer tipo de
inferioridade o mesmo deveria ser conferido ao branco: E voc meu irmo branco, nega ao negro capaz
pelos caractersticos de raa que legou-lhe a natureza? Negue ao branco boal, cuja formao moral
rastejante no se adapta ao seu meio social, assim como tambm negue ao negro em condies
idnticas. Deste ponto de vista, o homem deveria ser julgado pelos seus princpios morais, religiosos,
patriticos. Pelo seu grau de integralisao Ptria 70. Evidentemente a escritora frentenegrina ratificou
as idias da elite paulistana, vida por espalhar os seus valores e princpios pela sociedade e reagiu como
os europeus ao descobrirem o Novo Mundo (sculo XVI e XVII). Os estrangeiros encaravam os
habitantes desta terra como selvagens por viverem nus e pela condio em que se encontravam. No
68
Fernandes, Florestan. O negro no mundo dos brancos, Op. Cit., 206-216.
69
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Op. Cit., pp. 163.
70
Filosofando. A Voz da Raa, So Paulo: 30 de junho de 1933, p. 3.
37
levavam em considerao as diferenas culturais e materiais: inferiorizam os povos que no estavam no
mesmo grau de progresso e civilizao da Europa 71. Desenvolviam lentamente suas virtudes sociais,
na viso da escritora frentenegrina, brancos e negros deslocados do progresso paulistano.
Jos Carlos Silva registrou no seu texto os ditos do imaginrio que se perpetuaram no tempo na
sociedade paulistana: cada macaco no seu galho, preto que nem um carvo, negro no gente, feder que
nem negro, frango de macumba, tio, urubu; e entendeu que o insulto que associa negro ao animal tem
a inteno de atingir elementos que estejam nos limites entre a natureza e a cultura. Portanto, insultar
uma pessoa com as categorias de animais domsticos denota maior fora simblica, porque a coloca
nestes limites, indicando que ela no pertence ao reino da cultura. Faltam-lhes atributos humanos para
tal. A sua condio no , portanto, muito diferente daquela que ostentada pelos animais domsticos,
incapazes de ingressarem no mundo da civilizao. Os insultos lanados aos negros indicam a tentativa,
numa sociedade plural, de colocar o negro em seu lugar, ou seja, prximo da natureza, posio que
ocupava no perodo escravocrata, quando a sua condio social era melhor definida 72. Atento a esses
insultos inferiorizantes, O Clarim dAlvorada reclamou dos xingamentos dos filhos de italianos dirigidos
aos corpos negros na regio do Brs:
Ento a gente era sempre espesinhado se a gente passava sozinho em qualquer lugar,
que tinha criana branca, nossa eles xingavam a gente. De negro fedido, escondido no
mato, cabea pra fora, parece macaco. Era comum isso a gente ouvir. E isso eu ouvi at
velho. Em 1935, na guerra da Itlia, que a Itlia estava invadindo a Etipia, nossa me,
o que eu sofri naquelle Brs. Aquela crianada, filhos de italiano, o que eles caoavam
de mim por ser negro e me chamavam de negro africato olha o negro africato era
assim73.
Nesta poca Nina Rodrigues j havia escrito que o negro inferior ao branco, entre outros
aspectos, por possuir uma massa enceflica menos pesada e por carregar um aparelho mastigatrio
com caracteres animalescos. E, por mais paradoxal que possa parecer, o prprio autor respondeu,
indiretamente, o quanto esta associao entre o homem e o animal, para a cultura africana, no tem uma
conotao ofensiva. Assim, sublinhou ao se referir religio: o crocodilo um animal sagrado para
71
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. Op. Cit., pp. 157.
72
SILVA, Jos Carlos Gomes da. Os sub urbanos e a outra face da cidade. Negros em So Paulo (1900-1930): cotidiano,
lazer e cidadania. Campinas, Dissertao de mestrado em Histria, IFCH/UNICAMP, 1990, pp. 43. Jos Carlos Gomes
objetiva no seu estudo compreender as formas especficas atravs das quais o negro paulistano experimentou no incio do
sculo a condio de homem pblico. A questo central da sua dissertao entender o que significava ser cidado negro
numa cidade como So Paulo, no a partir de indivduos isolados, mas analisando parcelas da comunidade paulistana, que
possibilitaram aos indivduos participar da vida pblica enquanto cidados, pp. 5.
73
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 15. 01. 1927, pp. 4.
38
muitos povos africanos, chegando mesmo a ser adotado em alguns pontos da frica. Logo, tais
satirizaes corporais no deveriam ofender a comunidade negra associada se esta fosse valorizadora da
cultura africana.
Arthur Ramos, um dos seguidores do pensamento de Nina Rodrigues, admitiu que nos contos
africanos, de grande influncia no Brasil, a presena de animais imensa. Estes animais desempenham
funes humanas nestes contos. Tm sentimentos humanos: astcia, fineza, humor. O coelho, o chacal,
a hiena, o elefante, o crocodilo, com seus nomes prprios a cada dialeto figuram em multido de contos e
fbulas africanas. Ramos ilustrou ainda esta questo no item das danas guerreiras africanas. No
Zambeze existiam verdadeiros danarinos, geis como coras, com as cabeas ornadas de plumas ou
capacetes velhos e vestidos de peles de macaco e de gazela. Traziam os rostos enfarinhados, um escudo
na mo esquerda, e, na destra uma zagaia ou machadinha. Corriam, de um lado para o outro invocando a
alma de algum guerreiro. No deixou, porm, de questionar a cultura africana: Entre os povos
atrasados, o folclore dos animais, revelando um contato estreito entre o homem e o animal, numa espcie
de vida comum, conduz-nos insensivelmente crena nos seres mticos, meio homens, meio animais, de
que esto cheias as lendas da humanidade74.
Freyre escreveu que nem merece contradita sria a superstio de ser o negro, pelos seus
caractres somticos, o tipo de raa mais prxima da incerta forma ancestral do homem, cuja anatomia se
supe semelhante a do chimpanz. Tal superstio se baseia no julgamento desfavorvel que se faz da
capacidade mental do negro. Entretanto os lbios dos macacos so finos como na raa branca e no na
preta e, entre as raas humanas, so os europeus e os australianos os mais peludos de corpo e no os
negros75
Borges Pereira, historicizando o universo radiofnico e a inexpressiva insero da populao
negra em emissoras, disse mais sobre a maneira como um grupo da sociedade lidava com o negro
quando ele no dispensava o mnimo cuidado ao corpo. Durante as primeiras dcadas do sculo, a figura
negra serviu de chacota: "O calouro em si desajeitado e inibido, quase sempre mal trajado e, s vezes, at
mesmo maltrapilho, transformava-se em atrao para o ouvinte, e por isto mesmo, passou a ser
componente programtico obrigatrio em todas as estaes. Na construo deste personagem, o
pesquisador considerou que a imaginao do autor do script tentou retratar o "heri-burlesco" como
sendo o tipo particular do mundo de negros. "L naquele ambiente - esboado sugestivamente pela
imagem ou apenas sugerido pela narrativa - os padres de conduta sofreram estranhas combinaes,
74
RAMOS, Arthur. O folclore negro do Brasil- Demopsicologia e psicanlise. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do
Estudante, 1935, pp 123-181.
75
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala. Op. Cit., pp. 296
39
compondo um estilo de vida que embora romantizado, era inteiramente desabonador ao homem de cor
elaborado, partindo da viso depreciativa que se fazia comumente da vida diria do negro. A
estilizao desse negro era feita base de esteretipos impregnados de aluso esttica: feio, macaco,
tio; ou ligados sua descaracterizao social e sua frouxido de costumes: malandro, rufio,
delinqente, maloqueiro, amasiado, bbado, vagabundo, mandingueiro, pernstico, servil...". O mesmo
autor nos revelou ter surgido destas generalizaes populares, que procuravam identificar caractersticas
"negroides" a traos "simiescos", a expresso macaca de auditrio (principal elo de ligao entre o
negro e o animal), em vista da presena barulhenta das mulheres negras nos auditrios radiofnicos76.
No momento histrico, entre os anos 20 e 40, a comunidade jornalstica esteve observando a
maneira adversa como os negros andavam se comportando, se apresentando, que parecia em nada
condizer com o programado pelos jornais, com as notas recomendativas corporais. E estas imagens
adversas enfocadas pelos jornais (corpo esfarrapado, doente, prostitudo, alcoolizado) eram aproveitadas
ainda pela sociedade mais ampla no processo de construo e reafirmao dos esteretipos em torno da
figura negra. Dos homens, das mulheres, das crianas e dos velhos que perambulavam pelas ruas, pelas
festas e pelas associaes, os lderes negros emitiram opinies, tanto sobre o estilo de ornamentao
pessoal quanto sobre a falta de cuidado com o corpo, cumprindo exatamente uma funo policialesca:
Um dever. Hoje, infelizmente, ainda se vem passar, pelos arredores, mesmo no corao
da cidade, muitos patrcios que so escravos, no daquelles senhores carrascos, mas dos
vcios que os tornam incapazes para tudo: principalmente ao trabalho, que a base
essencial da nossa vida material. Merecem compaixo, causam-nos d! Quais os motivos
que os obrigam a andar maltrapilhos, cobertos de chagas nos bancos pblicos e sendo
muitas vezes pensionistas de polcia? E porque se deixaram dominar pelos vcios. Pela
embriagus constantemente, vemos chefes de famlia abandonarem seus lares; jovens que
poderiam gozar uma velhice feliz, hoje, porm como andam!... tornando-nos inteis
Ptria(...)77.
Moyses Cintra
O militante Correia Leite sustentou uma preocupao exacerbada para com os corpos femininos
negros esfarrapados e dominados pelo vcio do lcool nas ruas. Contudo, sua compaixo figurou-se mais
para o lado masculino, isto , temia a desvalorizao dos sobrenomes dos homens que foram
abandonados pelas esposas decadentes. Sempre a inquietao para com os moradores de rua esteve
relacionada ao temor de uma possvel destruio da famlia negra, da classe social e da ptria brasileira.
76
BORGES PEREIRA, Joo Baptista. Cor, profisso e mobilidade: o negro no rdio de So Paulo. So Paulo:
Pioneira/EDUSP, 1967, pp. 130-155.
77
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 02. 03. 1924, pp. 3.
40
Decadncia. No somente no elemento masculino que devemos pensar para a
organizao social da nossa classe; porque tambm o elemento feminino necessita de
auxlios. Num dos pontos mais tristes, que sempre contemplamos em todos os recantos da
nossa paulicia, sem dvida a decadncia da mulher preta 78. Quantas vezes deparamos,
em pleno corao da cidade, com patrcias errantes, arrastando imundos trajes,
dominadas pelo maldito lcool, que causa de tantas desgraas e que infelizmente
domina muitas que poderiam ser mes exemplares, expondo-se ao ridculo e nos
envergonhando? Quanto de em nossa alma contemplarmos essas victimas da sua
fraqueza, vivendo nesses emperrares, (...) vel-as hoje em completa misria; quantas
esposas abandonam seus lares, illudidas vo se atirar na lama dos vcios, arrastando
para l muitas o bom nome do prprio esposo79.
Corpos tenros e farrapos! So flores em boto que jamais daro frutos sagrados, porque
vivem sem amparo de ningum, pelas ruas crestando-se pelos bailes 80.
Segundo o militante Pedro Rodrigues, dizia o hino frentenegrino que a gente negra era forte
em todos os sentidos, no s anatomicamente falando como forte de inteligncia, forte de sentimentos
afetivos, enfim, forte de corpo e forte de esprito. Uma raa na qual havia indivduos que possuam
uma resistncia orgnica surpreendente. Contudo a raa estava definhando, devido ao abandono e
ignorncia em que se encontrava no Brasil, pois puzeram-na margem da sociedade depois de tudo ela
ter feito pela grandeza desta terra81. O negro ficou livre e, se batendo em seu territrio, nu, sem
dinheiro, sem lar e sem o conforto material para a sua manuteno82.
A tuberculose, entre outros males, inquietava definitivamente a sociedade paulistana, tanto que
sob a orientao da Delegacia de Sade, o Dr. David Teixeira realizou na sede da Frente Negra uma
conferncia sobre a doena. No desenrolar das causas da doena, concluiu que o que melhor alicerava
78
A palavra preta/preto aparece constantemente nesta imprensa, assim como a expresso homem de cor. O que se sabe que
Vicente Ferreira, um importante orador do meio negro daquela poca, condenava o uso da expresso homem de cor,
preferia que se usasse a palavra negro. Acreditava-se ento na existncia de palavras e expresses que tendiam a degradar o
corpo negro. s vezes, palavras e expresses pejorativas tornam-se a-histricas, mas bem verdade que os significados
depreciativos esto mais incutidos nos sujeitos preconceituosos do que nas prprias palavras e expresses. Nos deparamos
quase constantemente tambm com o uso da palavra mulato/mulata na imprensa negra, palavra que, muitas vezes, vem
carregada de significados depreciativos figura do mestio. Mas o que no conseguimos captar foi uma diferenciao entre o
uso da palavra negro/preto/ homem de cor, isto , tanto para elogiar quanto para criticar a figura do negro empregaram os
trs termos, usaram esses termos para falar do negro pobre/rico, feio/bonito, associado/desassociado, etc; Mariza Corra, por
exemplo, diz que, no Brasil, o escravo passou a ser negro, racial e biologicamente definido, depois da abolio. Foi nesse
perodo que o termo negro, e no preto, passou a ser usado na literatura especializada, definindo aqueles que eram
biologicamente inferiores aos brancos. Lilia Schwarcz, atravs da anlise dos jornais do sculo XIX, verificou que a
categoria negro comeou a ser mais empregada para designar aquele escravo fujo, rebelde.
79
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 12. 10. 1924, pp. 1.
80
Progresso, So Paulo: 15. 11. 1931, pp. 2.
81
A raa negra: uma maravilha humana. A Voz da Raa, So Paulo: 22 de abril de 1933, p. 4.
82
O que foi a raa negra. A Voz da Raa, So Paulo: 11 de novembro de 1933, p. 1.
41
to horroroso mal era "o vcio dos alcolicos, as longas noitadas mal passadas ao relento com acrscimo
da m alimentao, alm do notvel desleixo dos bbados em cujo senso j no pode existir a higiene".
Neste nterim, o Departamento de Sade da cidade de So Paulo transmitiu a tarefa de combater a
doena para a Frente Negra e, prximo da instituio anti-racista, acusou unicamente os pobres da cidade
pelo desenvolvimento da doena. Ora, se a peste era branca, como bem disse a reportagem, o que os
negros pobres tinham a ver com a propagao?
83
A Voz da Raa, So Paulo: 31.03. 1934, pp. 4.
84
BRUNO, Ernani Silva. Histria e tradies da cidade de So Paulo (So Paulo de Agora). So Paulo: HUCITEC, 1991, pp.
1363.
42
pinga! e a pobre preta l esteve na Santa Casa de Misericrdia. Horrivelmente
abalada tem a sade pelas vissicitudes de uma vida de miservel abandono.
Os agentes intrnsecos e extrnsecos que roubam da humanidade a sade, no atingem,
por certo, ao negro seno ao agente classificado na ordem dos extrnsecos: a pinga. E
como da pinga podemos e devemos nos abster. Estamos bem85.
Contudo, tanto os fatores internos quanto os externos foram arrolados pelos escritores acerca da
degradao fsica e moral causada pelo alcoolismo. Nas notas mais longas vamos nos assustar com a
quantidade de vezes em que os escritores negros relacionaram o alcoolismo degenerescncia. Destas
associaes entre o vcio e a degenerescncia interpretamos primeiro que os escritores negros
questionavam a idia de que o corpo negro tinha propenso aos vcios e a doena, depois fomos
verificando que os escritores negros assimilavam a idia de degenerescncia e a dirigia para a populao
pobre e sem instruo da cidade, inclusive, para os negros:
85
A Voz da Raa, So Paulo: 19 de agosto de 1933, p. 4.
86
A Voz da Raa, So Paulo: agosto de 1933, p. 4.
43
Para os viciados, a nica sada seria novamente abster-se de ingerir o lcool, seja na forma da
popular e barata caninha que estava ao alcance de todas as bolsas, ou da louca e espumante champagne
que rodava em profuso nas orgias dos magnatas. Seja em que forma fosse 87, o lcool deprimia,
degenerava e at fazia desaparecer os povos inteiros que dele abusavam, como vinha acontecendo com
algumas tribus de pele vermelha e algumas da Oceania. Os povos estavam sumindo, devido ao uso e
abuso do lcool conjuntamente com outras corrupes.88
Apesar de ter seduzido homens e mulheres nobres, o lcool, causava os piores estragos no fsico
e na vida social dos povos no s do Brasil como da regio da frica e da Oceania. Contudo, ficou
evidente que A Voz da Raa no relacionou, diretamente e constantemente, o ato de beber dos ricos e
instrudos s taras e s degeneraes. A Voz da Raa reconheceu os pobres (brancos e negros) como
classes perigosas. nos ncleos destitudos de instruo e educao que esse flagelo social faz a
maioria das vtimas, no sendo porm, privilgios deles, pois existirem senhoras de altas
cavalarias,cheveux blancs et sang bleu, cujos nomes at servem para designar certas especialidades de
vcios e perveres, nos quais foram verdadeiros recordistas89.
A Delegacia de Sade vigiava o comportamento dos meios negros, vigilncia que foi agradecida
e alastrada pela Frente Negra. O sujeito brio, esfarrapado, sem instruo era quem desarmonizava no
somente as relaes familiares e patriticas, como ainda poderia comprometer a moral, a religio e o
"futuro da raa negra":
44
Na observao importante, no sabemos nem a qual festa referiu-se A Voz da Raa, porm nas
entrelinhas captamos que no serviriam a bebida porque tal ato quebraria a principal regra da Liga Anti-
Alcolica: a abstinncia. No dizer d A Voz da Raa a liga Anti-Alcolica doutrinava a comunidade
frentenegrina e as diversas agremiaes negras, que no procuravam estudar a causa da misria moral .
O lcool era a desculpa para todas as coisas, era um verdadeiro milagre para uma raa tarada pelo
lcool92.
E, Rajovia resenhou no texto o Vcio de beber, que, apesar da forte doutrinao, dos
ensinamentos mais sos, dos exemplos mais reais, a campanha contra o lcool, iniciada periodicamente
por diversas agremiaes, havia fracassado, enfatizando sobremaneira a propenso do corpo negro a
vicio, palavra mais contante do que doena. No Brasil o lcool era um mal geral, maior que o mal dos
doutores. Eles entregavam, s vezes, ordenados inteiros numa simples bebedeira, enriquecendo o
botiquineiro ardiloso que dava os mais variados nomes sua droga sem atentar para o prejuzo moral
e fsico93. Rajovia, entre os escritores que refleriam acerca do lcool, foi um dos poucos a assinar um
texto que relacionou o vcio de beber s degeneraes: crime, loucura, doena hereditria. Por vezes,
ficamos com a impresso de estar dialogando, nestes textos sobre o lcool, com mdicos e antroplogos
criminais daquela poca:
Discriminando a verdade acerca do lcool o jornal A Voz da Raa informou que transcreveu as
argumentaes de um mdico, Dr. R., sobre as substncias qumicas danosas ao corpo. Entretanto,
conhecemos apenas a letra inicial do doutor, o que nos levou a pensar que ele no queria responsabilizar-
se completamente pelas observaes comprometedoras, que relacionavam os vcios s taras e as
Com uma certa doze de humor, na sesso de anedotas do prprio jornal A Voz da Raa, algum
satirizou a doutrinao corporal, imposta por parcela dos lderes negros, associada degenerescncia,
aos princpios cristos e a absteno do lcool:
A partir do sculo XX, os indivduos conquistaram uma maior liberdade de modificar seus
corpos. Houve um crescimento das tcnicas e dos produtos de transformao e isso atingiu no apenas o
corpo negro: seios e ndegas siliconados, plstica rejuvenecedora, cabelos artificiais, ginsticas dirias,
"cuidados com a alimentao", uso de remdios emagrecedores... a lista ampla e diversificada,
atingindo o corpo de vrias etnias, classes sociais e todos os sexos.
O francs Bonniol escreveu, ao analisar as variaes, marcas e metamorfoses da beleza e da cor
da pele, que a valorizao imperiosa da brancura quase sempre est sob o efeito de uma dominao
histrica, imposio difcil de se libertar, seja na escrita, seja na expresso gestual do corpo.
Direcionando mais o fenmeno da metamorfose para o corpo do pop-star Michael Jackson, ele entendeu
100
SARTRE, Jean Paul. Reflexes sobre o racismo. 3 ed. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1963.
101
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenso social. Rio de
Janeiro: Editora Graal, 1983, pp. 7. O livro de Neusa Souza torna-se uma anlise psicolgica de dez casos apresentados, tende
a entrelaar os relatos de negros temas como a identidade, a cultura, a brancura, os esteretipos corporais e a "democracia
racial".
48
que a recusa corporal, talvez, tenha muito a ver com a recusa das origens, mas certamente vai alm. a
expresso dos "casos limites", em que o clareamento do rosto e o rigoroso alisamento do cabelo
acompanham uma transformao sistemtica, pelos recursos das cirurgias e uso de produtos qumicos. O
cantor no pode tornar-se branco, "projeta-se uma aparncia improvvel, cujo lado mutante foi
sublinhado. Os signos distintivos da racialidade se apagam e o que se percebe o efmero, baseado na
idia de que todo dia se renova estilisticamente a moda na sociedade contempornea102.
A moda menos signo das ambies de classes do que a sada do mundo da tradio, um desses
espelhos onde se torna visvel aquilo que faz o nosso destino histrico mais singular: a negao do poder
imemorial do passado tradicional, a febre moderna das novidades, a celebrao do presente social.
Durante a dcada de 20 e 30, a liberdade de modificar o corpo em nome da beleza no era ainda
bem aceita pela imprensa. A possibilidade de mudana era limitada aos cosmticos. Mas a pele e o
cabelo ascenderam condio de nobreza nas discusses dos escritores preocupados em recomendar o
cuidado das aparncias negras. Houve, por exemplo, um investimento propagandstico grandioso para
tornar o cabelo e a pele apresentveis socialmente. Mais recentemente h um investimento publicitrio
em torno da boca e do nariz da figura do negro. No entanto, entre os anos 20 e 30, a exigncia dos
cabelos lisos era constante nas reportagens e anncios publicitrios. Por conseguinte, tcnicas e produtos
apropriados para se conseguir um cabelo menos crespo e menos volumoso conquistaram forma e valor.
Vendedores, sales e alisadeiras, que se autodenominavam modernos no ramo, veiculavam a pasta e o
pente quente como mtodos mais seguros para alisar o cabelo e adquirir, aps o alisamento, outros cortes
em voga pelo mundo, ou mais especificamente de acordo com os penteados franceses. Apareceram
poucos anncios de produtos capazes de diminuir a queda dos cabelos, pois quem oferecia esse tipo de
servio moderno, infalvel, rpido e barato, acreditava e anunciava no estar causando nenhum dano ao
cabelo do fregus. Enquanto os anncios de alisamento repetiam-se e multiplicavam-se, os produtos para
reparar os danos sofridos pelos cabelos raras vezes apareciam (com exceo do Dulcabir e da Bela Cor),
assim como tambm foi inexpressiva a veiculao de anncios de alisamento que se contrapusessem aos
mtodos modernos. Entre os produtos considerados modernos, o que monopolizou as pginas da
imprensa foi o Cabelisador (pasta e pente), que ocupou vrios espaos no jornal A Voz da Raa e nO
Clarim d'Alvorada. Neste ltimo, o anncio do Cabelisador ocupou mais de duas pginas do jornal para
explicar sobre os seus efeitos, o modo de usar e a promoo de venda.
BONNIOL, Jean-Luc. "Beaut et couler de la peau: variations, marques et mtamorphoses". Beaut, laideur. Paris:
102
49
No "Instituto Dulce" e no "Salo Brasil" os cabeleireiros j se autodenominavam especialistas em
cabelos de pessoas de "cor preta". Por especialidade em cabelos de pessoas de cor preta" pode-se
entender a diversidade de cortes e penteados oferecidos, isto , alm da onda do alisamento o fregus
poderia, tambm, optar por uma ondulao, escolher qualquer corte em voga ou inventar um corte e
penteado para os seus cabelos (Salo Sol). O que no aparece na veiculao da propaganda a palavra
tranamento. Outra indistino no atendimento dos sales diz respeito ao sexo do fregus: para homens e
mulheres, basicamente, ofereciam os mesmos tipos de servio. O "Instituto Dulce", no atendia pessoas
do sexo masculino e nem indivduos desvinculados das associaes:
A nica maneira segura de alisar o cabello sem perigo com a maravilhosa inveno. O
cabelisador. Um estojo completo pelo menor preo. S nesta redaco: Rua Major Diogo,
131 - So Paulo103.
Salo para alisar cabellos crespos. Systema, Rpido, Infallivel e Barato. Alisamos
qualquer cabello, por mais crespo que seja sem prejudical-o, em 12 horas, a preo
mdico. Entregamos cada vez uma ficha, que, ao fim de certo tempo lhe dar direito a um
CABELISADOR grtis. So Paulo, Praa da S, 16, 2 O.. andar, sala 4. Telephone 2-1706.
Rio de Janeiro - Avenida Passos, n. 88. Sobrado104.
Cabelos Crespos!... Tem quem os quer. Salo cabelisador. Avenida So Joo n. 1781
sobrado. Alisa-se qualquer cabelo crespo sem dor. Ondulaes e Cortes de cabelos.
Preos de conformidade com a crise. Atende-se a qualquer hora. Av. So Joo, 1781- Sob
- Esq. Al. Glete, Bondes: 15, 17, 35, 36, 38, porta. Vende-se aparelho para alisar 105.
O famoso Cabelisador era um pente de ao, mas existia tambm em forma de pasta. A partir de
20$000 os fregueses poderiam alisar os cabelos, sem dor e sem perigo 106. O pente de ao nickelado
custava o mesmo preo do Cabelisador e era vendido na redao do jornal, local onde o vendedor fazia
demonstraes grtis s pessoas interessadas107. Nos sales, por 3$000 o fregus tambm poderia obter o
alisamento, e, inacreditavelmente, sem sofrer qualquer dano ao cabelo (Sem - dor, queimar,
enfraquecer)108. O jornal funcionava, assim, como uma espcie de conto publicitrio difusor de valores
e ideais de beleza fundamental no perodo estudado.
Para ser elegante e moderna a mulher negra deveria apresentar-se no s de cabelos lisos, mas de
cabelos compridos. Aderindo a esse cuidado com a carapinha, a mulher passava a ser considerada bonita.
103
Uma inveno maravilhosa!...O cabelisador. Alisa o cabello mais crespo sem dor. Uma
causa que at agora parecia impossvel e que constitua o sonho dourado de milhares e
milhares de pessoas, j hoje uma realidade irrefutvel. Quem teria jamais imaginado
que seria possvel alisar o cabello por mais crespo que fosse, tornado-o comprido e
sedoso?. Graas maravilhosa inveno do nosso CABELISADOR, consegue-se um
conjunto de Pastas Mgicas, alisa-se todo e qualquer cabello, por mais crespo que
seja. Com o uso deste maravilhoso instrumento, os cabellos no s ficam infallivelmente
lisos, mas tambm compridos. Quem no prefere ter uma cabeleira lisa, sedosa e bonita
em vez de cabellos curtos e crespos? Qual a pessoa que no quer ser elegante e
moderna?109
Os anncios do Cabelisador explicam o modo de usar o produto. Seu estojo continha todo o
necessrio para o alisamento, no havendo necessidades de cabellereiro. Poder-se-ia fazer tudo em
casa, discreto e economicamente. Fabricavam-se duas qualidades de CABELISADOR, uma para o
cabello muito crespo, n. 1, e outra para o cabello menos crespo, n. 2. Tanto o Cabelisador n. 1 quanto
o n.2 custavam um nico preo: 3$700 e estava a disposio da distincta clientela, mediante
pagamento adiantado, em toda a parte do Brasil.
Cabellos lisos a 3$000. Sem queimar, sem enfraquecer, sem fazer mudar a cr. Trabalho
rpido e com perfeio. Servio completamente differente dos que se v pela rua. Corte,
ondulaes e aperfeioamento das sobrancelhas. Instituto Dulce. Alameda Glette, 71 -
Esquina da Avenida So Joo. S attende a senhoras. Bondes, 13 - 15 - 17. Alameda
Anglica, Lapa - 31, 1933111.
109
-Oh! D. Maria, que que a senhora fez, que ficou com o cabello liso, diferente do que se
pela rua.
-Ora Dona Tomazia, fui ao Instituto Dulce, e de l sai assim, com o cabello liso, sem
caspas e sedosos.
-E que achado! Por obsquio, diga-me, onde fica essa excelente casa de belleza.
-Ali na Praa Marechal Deodoro, 41.
-Hoje mesmo irei l, e recomend-la-ei s minhas amiguinhas. Obrigada at loguinho,
sim?112
Virginia Bueno. Alisadora de cabellos. Alisa com toda perfeio preos mdicos, 55.
Rua Domingos de Moraes. So Paulo113.
Cabelos e Unhas. Desejas os vossos cabellos lisos e bem ondulados? As vossas unhas
elegantes e bem cuidadas? No perca tempo. Ides a rua Rego Freitas, 20. n 114.
Segundo os anncios, os produtos para esticar o cabelo ainda serviam para o tratamento de outras
doenas do couro cabeludo, bem como propiciavam uma colorao rejuvenecedora. Os servios de
tratamento dos cabelos, com exceo do domiciliar, localizavam-se praticamente pelas redondezas do
centro da cidade - Major Diogo, Praa da S, Avenida So Joo, Alameda Glete, Rego Freitas,
Brigadeiro Tobias, Amaral Gurgel, Marechal Deodoro e Liberdade-, e tambm existiam em outras
cidades e Estados, como o Rio de Janeiro. Provavelmente, nas periferias da cidade, predominavam os
tipos de servios oferecidos pelas cabelisadeiras e as formas caseiras de embelezamento. Entre os
produtos anunciados, somente a loo "Bela Cor" foi aprovada pelos mdicos e carregou a tarja do
Departamento Nacional de Sade Pblica.
112
Os sales de beleza ocuparam um lugar importante na imprensa negra. Assim, por exemplo, foi
comemorado no dia 14 de janeiro de 1930 o aniversrio do Salo Brasil. O proprietrio do salo,
representante do jornal Progresso, recebeu os cumprimentos pelo acontecimento120.
Salo Brasil. Amplo e confortvel. Esmero capricho para servir a distincta freguesia -
Corta-se cabellos a La Garonne e a Bebe, semi-garonne. Especialista em cabellos de
pessoas de cr. Propriedade de Manoel Simes. Rua Amaral Gurgel, 1A. So Paulo 121.
A Frente Negra Brasileira manteve nos anncios de embelezamento o nome da associao, por
optar dirigir tais tipos de servio apenas aos seus associados. A seleo do fregus realizada pelo
"Instituto Dulce" se assemelhava, ento, a realizada pelo Salo Brasil e pela F.N.B., sendo esta ltima
instituio muito mais rgida no critrio de escolha formulado, atendia somente os associados da Frente.
Instituto Dulce - S para senhoras - tratamento completo de cabello, por mais rebelde
que seja - preos mdicos. Especialidade em tratamento de cabello de pessoas de cor, por
mais crespos que sejam, tornam-se lisos e sedosos. Para conservar o cabello, usem
Dulcabir. Tendo espinha, cravos, toda e qualquer mancha de pelle use creme de Leir. Rua
Marechal Deodoro, 47 - A, casa 107. So Paulo 122. Instituto Dulce - Alameda Glette, 71.
Ver para crer. S attende a senhoras123.
117
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 13.05. 1926, pp. 2.
118
----------: 21.10.1928, pp. 4.
119
Progresso, So Paulo: 23.07.1928, pp. 4.
120
----------: 31.01. 1930, pp. 4.
121
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 13.05. 1926, pp. 2.
122
Progresso, So Paulo: 28.07.1929, pp. 4.
123
53
Salo Frente-Negrino. Barbeiro e Cabeleireiro da Frente Negra Brasileira. Rua
Liberdade, 196 - So Paulo
Homens
Cabelo 1$000
Barba $000
Assignatura mensal 4$500
Com direito a 2 cabelos e 8 barbas ao mez, excepto aos Sbados e Domingos.
Senhoras
Corte de cabelo 1$5000
S aparar atraz $5000
No h fiado - especialidade em corte de cabelo de gente de cor - Vendem-se vales para
barba e cabelo124.
Os sales de embelezamento frentenegrinos se multiplicavam e se tornavam mais sofisticados
(da localidade ao atendimento) para atender sua distinta clientela:
124
A Voz da Raa, So Paulo: 18.03.1933, pp. 2.
125
A Voz da Raa, So Paulo: 23 de junho de 1934, p. 3.
126
Ele entende que a partir dos anos 70, uma imagem de contraste revela um discurso poltico, relacionado aos reflexos do
black is beautiful, movimento cultural e comportamental norte-americano dos anos 60. As cidades de So Paulo e o Rio de
Janeiro foram os dois centros irradiadores da influncia norte-americana, nas quais apareceu o corte black-power cabelo
redondo e cheio, in natura. Por conseguinte, com a crescente valorizao da busca da conscincia racial, procurou-se uma
54
Entretanto, alm do investimento na mudana de cabelo, houve tambm uma forte preocupao
com a cor da pele. A presena da moda, principalmente a europia, argumentou veementemente em favor
do processo de adeso ao branqueamento. No tocante ao clareamento da pele, os indcios foram surgindo
na transmisso dos anncios de vrios produtos, pois, ao mesmo tempo em que serviam para apagar
rugas, manchas, cravos e espinhas, clareavam a pele. O uso excessivo do p-de-arroz para as mulheres
negras parece ter sido a maneira comum de branquear a pele. Nos dias de festa, como anotou Z da
Esquina (pseudnimo de um escritor do Clarim dAlvorada), elas abusavam do uso dos apetrechos
contribuidores da formao de uma aparncia branca at a chegada do liquido "Milagre" no mercado dos
cosmticos, que foi desenvolvido pelos alemes:
Tendo espinha, cravos, toda e qualquer mancha de pelle use creme Leir 127.
Ateno milagre!... Outra grande descoberta deste sculo o creme lquido milagre -
dispensa o p de arroz... Formula Scientifica Allem para o tratamento da pelle usando
uma vez usa sempre. Para combater as sardas, pannos espinhas e rugas. Clarea e amacia
a ctis. Preo de cada vidro para propaganda (?). Pedidos e demonstraes, grtis nesta
redaco. Para tel-a mais 3$000 para o porte128.
Os anncios eram entrecortados por conselhos e, por vezes, por frases carregadas de
preconceitos:
usavam batom nos seus lbios roxos, passavam p nos suas faces pretas, lustravam o
cabelo com brilhantina e faziam tranas feito corda de navio (...) 130.
naturalizao dos cortes, tranados e penteados afro, com repdio ao alisamento, que passou a ser considerado decadente e
prejudicial porque impede o crescimento do cabelo. SANTOS, Joclio Teles. O negro no espelho: imagens e discursos nos
sales de beleza tnicos. Op. Cit., pp. 56.
127
Progresso, So Paulo: 28.07. 1929, pp. 4.
128
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 20.07. 1931, pp. 2.
129
56
Os raios Omega, de sua descoberta, tinham propriedade miraculosa de modificar o cabelo
africano. Com trs aplicaes o mais rebelde pichaim tornava-se no s liso, como ainda
fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influam no
folculo e destruam nele a tendncia de dar forma elptica ao filamento capilar. Vencido
este pendor para a forma elptica, cessava o encarapinhamento, que no passava de mera
conseqncia mecnica132.
Atravs de Miss Jane, personagem que ajuda a descrever a histria do futuro, Lobato conta o
sucesso do novo fenmeno, pois:
LOBATO, Monteiro. O presidente negro ou o choque entre as raas, Romance americano do ano 2228. Op. Cit., pp. 169-
184.
57
cidade das novidades, talvez para agradar os patres dos Bares e Confeitarias, os
rapazes e as moas que servem nesses estabelecimentos cortaram os seus cabellos todos
pelo mesmo systema e, dahi veio o nome de cabello " la garonne". Essa moda irradiou
por todos os pases da Europa e da Amrica, e do universo, e no h quem convena as
nossas patrcias de cr, no cortem seus cabellos, embora sejam carapinhados,
porque, foi o Creador que no-lo deu assim. Sejam imitadores de tudo quanto bom,
bello, e que no nos sirva para desprestigiarmos...Antes procuremos imitar cousas que
possam engrandecer a nossa raa; como sejam as artes, as sciencias e a literatura. E no
em cortes de cabello e systema de moos e moas que servem nos bares e confeitarias de
Paris. Isso uma moda que nos deprime por todos os princpios. A moda deve ser usada,
em se tratando de corte La garonne, de conformidade com predicados preciosos e no
de como pensamos e at aqui temos observado135.
Horcio da
Cunha
Segundo textos como este, para propagar os belos tipos esculturais era preciso que a comunidade
negra criasse o seu prprio instituto de beleza, espao que deveria ser marcado pela afirmao de um tipo
de beleza. Alm do mais, em torno do enfoque ao endeusamento do corpo naturalmente negro sugeriu-se
que o branco poderia se assemelhar beleza negra desde que, pelo menos, adquirisse um pouco do
bronzeamento solar ou desfrutasse dos cremes amorenadores da pele, como vimos em outro texto.
Um grande jornal europeu registrou uma notcia significativa: um patrcio negro aps tomar
uma herva para curar-lhe um mal comeou a embranquecer, sua epiderme comeou a ficar branca e
assim sendo, o sucesso fora uma nova esperana para muitos negros que desejavam ser brancos
tambm. A Voz da Raa comentou,
Ora prezado leitor, amigo!... ser que iremos tambm ns, nos tornar brancos assim, ns
que desejamos a completa ascenso do negro dentro do nosso paiz, notadamente em So
Paulo, onde a nossa luta pela vida um axioma? Negro-branco, pura iluso. Fiquemos
assim. A nossa cor o emblema do nosso valor, a causa do nosso sofrer, mesmo assim,
sejamos negros; negros de epiderme, porm sinceros nos atos e fatos (...) Tratemos de
nossa unio e do progresso do negro sem artifcios para o bem coletivo dos nossos e pela
prosperidade do Brasil.136 Negro sim!
O Clarim dAlvorada fez um discurso, referente valorizao da pele negra, semelhante ao texto
anterior d A Voz da Raa. Virginio Figueiredo, autor do texto Raa negra, argumentou que o negro era
grande como um brazo e sombrio como a cr, estabelecendo uma relao entre a fortaleza do fsico e
a cor da pele. Isto , se por um lado as atribuies corporais garantiam ao negro um aspecto de
superioridade, por outro lado, provocavam espanto aos olhares alheios. raa negra cabia orgulhar-se
135
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 15.11.1925, pp.3.
136
A Voz da Raa, So Paulo: 5 de agosto de 1933, p. 1.
58
dos dotes que a natureza lhe emprestou. A cor negra deveria ser negra de verdade e no
simulada. Para tudo ocorrer assim, cada negro teria a obrigao de procurar conservar o carter com a
mesma fineza que a cr137.
O culto conservao e a afirmao do corpo no se restringia s tcnicas e aos mtodos dos
institutos embelezadores e no era recomendado apenas para os dias de festa. O cuidado com o corpo era
um trabalho a ser realizado no dia-a-dia, principalmente depois de meados dos anos 30. A beleza negra,
alm de ser um dom dado por Deus, tornava-se o resultado de um trabalho constante.
Negros. Em toda a face da Terra, o negro considerado inferior ao seu semelhante. Por
que? Pela ignorncia dos que assim julgam. Fisicamente est provado que o negro de
tima resistncia no sendo caracterstico da raa as molstias sangneas que se
observam em outras raas. sabido que os africanos vivem muito, qualidade que se
estende aos seus descendentes. Moralmente, o que que clama contra a raa nobre?
Ladres assassinos e bandidos h em toda parte, em todas as raas so defeitos dos
homens. Portanto, se trata de um vagabundo, ladro e outras coisas piores, no por ser
negro mas por ser homem. Ser negro um simples acidente da carne. E o que tem isso? A
carne negra por ventura a mais feia? No por que? Ide a frica observar as raas e
cores que bellos tipos. O que nos falta? O cultivo da beleza. Pois, no tem os brancos,
apesar de se considerarem os mais lindos, os seus institutos de beleza? Pois criemos os
nossos como fizeram os negros da Amrica do Norte138.
Mesmo admitindo que o negro no deveria ser considerado inferior ao branco, o autor do texto
anterior o associa a um acidente da carne. Dificilmente os artigos conseguiram escapar completamente
dos esteretipos e divulgou estratgias e produtos que se contrapusessem aos mtodos considerados
modernos de embelezamento. Ou ainda podemos interpretar a expresso acidente da carne no sentido
de acaso, de no ser essencial. Como se o que contribusse para a valorizao do homem fosse a sua
moral e o seu carter.
Conservar a aparncia na verso de rememorao e afirmao do corpo negro significava
denunciar, atravs de uma mulher branca, as prticas de branqueamento utilizadas pelas negras. A
mulher denunciadora foi descrita como tradicional e mestia (apesar de branca tinha os cabelos crespos)
propositadamente:
Esta boa de fato - Benedita conversava com sua amiga branca, sobre namorados; de
repente a conversa envereda pelo lado da moda. - No tinha reparado, Sinh, que os teus
cabelos eram crespos de natureza... que horror. - o caso, minha amiga, voc, que
137
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 13 de maio de 1929, p. 2.
138
----------: 15.10. 1925, pp. 3.
59
negra, alisa o cabelo, por no se conformar com a naturalidade dele, quando eu sou
conservadora at na minha raa139.
Sugeriu-se, no dilogo entre as duas mulheres citadas anteriormente, que Benedita, sendo negra e
no mestia, deveria ser mais conservadora no tocante aos seus traos fsicos, sobretudo, no tocante ao
cabelo.
Observamos que a verso favorvel transformao fsica apareceu mais em forma de anncios,
de propagandas, enquanto a rememoradora e afirmadora dos traos africanos evidenciou-se
principalmente nos textos e na literatura dos militantes da imprensa negra. Ao mesmo tempo, quando a
inteno era branquear a nfase das frases tornou-se mais evidente, ao passo que a tendncia de
rememorar e afirmar os traos negros apareceu em tom meio dbio.
Segundo a pesquisadora Neusa Souza,
nascer com a pele preta e outros caracteres do tipo negride e compartilhar de uma mesma
histria de desenraizamento, escravido e discriminao racial, no organiza, por si s
uma identidade negra. Ser negro alm disso, tomar conscincia do processo ideolgico
que atravs de um discurso mtico acerca de si, engendra uma estrutura de descobrimento,
que o aprisiona numa imagem alienada na qual se reconhece. Ser negro tomar posse
desta conscincia e criar uma nova conscincia que reassegure o respeito s diferenas e
que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nvel de explorao (...) 140.
luz desta narrao de Neusa Santos possvel argumentar que a verso do branqueamento
tomou conscincia do discurso que outros construram a respeito do corpo do negro, porm deixou de
criar uma nova conscincia coletiva que reassegurasse o respeito s diferenas, fazendo uso somente do
discurso igualizador. primeira vista, o grupo resistente ao processo de branqueamento parece ser o
legtimo representante da criao desta conscincia em torno do respeito diferena e, talvez, uma parte,
at tenha mesmo ocupado esse posto (como veremos no item das danas). Mas no podemos esquecer da
insegurana presente na escrita daqueles que pregavam a rememorao aos traos negros, retratando
completamente a impossibilidade de manterem-se coesos, ou seja, de divulgarem imagens
questionadoras dos achincalhamentos, ainda porque se sentiam no dever de explicar ou desculpar-se,
perante a sociedade, pelas suas marcas corporais de nascimento.
Manuela Carneiro da Cunha apresentou uma outra reflexo para pensarmos a questo da
identidade. Segundo ela, o que se ganhou com os estudos de etnicidade foi a noo clara de que a
identidade construda de forma situacional e contrastiva, ou seja, que ela constitui resposta poltica a
139
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 28.04. 1934, pp. 2.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenso social. Op. Cit.,
140
pp. 77.
60
uma conjuntura, resposta articulada com as outras identidades em jogo com as quais forma um
sistema141. Ao deslocarmos tal pensamento para o nosso contraponto em torno do embelezamento,
poderemos propor que a verso de rememorao e afirmao dos traos negros construiu uma identidade
situacional e contrastiva diante dos padres de embelezamento brancos. Quase da mesma forma agiu a
verso do branqueamento na construo de uma identidade, pincelou uma identidade corporal,
evidentemente diferente da verso rememoradora e afirmadora dos traos negros, mas tambm aqum
dos padres de embelezamento brancos da sociedade paulistana, pois o corpo negro mesmo maquiado,
transformado, jamais se igualaria ao branco.
Desde as primeiras pesquisas relativas aos jornais negros falaram no branqueamento do corpo,
essencialmente no que diz respeito ao alisamento dos cabelos, de forma que esse querer parecer com o
"outro", s vezes, colocasse em dvida os projetos dos militantes em termos de originalidade e
afirmao. Isto , duvidava-se que esses homens negros fossem capazes de propor uma firme luta contra
a discriminao, pois tinham horror de ver perambulando pela cidade corpos de pele negra e de cabelo
crespo.
A pesquisa de Isildinha Nogueira, ainda que seja um estudo de casos do final da segunda metade
do sculo XX, apontou uma importante perspectiva para pensarmos essa relao entre a ao poltica e a
aparncia negra. Sua contribuio ao vislumbrar essa relao no foi apresentar argumentos contra a
ao poltica dos negros, mas dizer que a ao poltica pode vir a ser comprometida e limitada pela falta
de conscincia da parte dos negros, do processo de formao, em sua prpria psique, das representaes
imaginrias e simblicas do corpo negro142.
Parte das comunidades negras esteve, ento, de acordo com "a insistncia dos mdicos eugenistas
que direcionavam o valor da brancura da pele". Segundo Sant'Anna, no artigo Ser bela no Brasil (1900-
1960), desde 1919 os Annales do eugenismo "afirmavam que a beleza feminina resultava de uma pele
delicada e branca, de uma aparncia que no tinha a ver com os jambos gorduchos e a pele bronzeada
de certas brasileiras". Os mdicos de inspirao eugenista ditavam os conselhos de beleza e associavam
"a higiene do corpo pureza da raa", na inteno de suplantar o passado colonial marcado pela mistura
racial. Entre os elementos conquistadores do ideal de brancura estiveram "os ps-de-arroz, os sabonetes
e os cremes de beleza". Tambm havia uma srie de receitas caseiras para adquirir o brancor da pele:
141
CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros. So Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 185.
142
NOGUEIRA, Isildinha Baptista. Significaes do corpo negro. Tese de Doutoramento em Psicologia, I.P/ USP, 1998, pp.
120-169.
61
mscaras de leite, de oxignio, da clara de ovo misturada com suco de limo, do leo morno e de
avel"143.
Pensemos que as mulheres negras mais enquadradas nos comportamentos urbanos acataram estes
conselhos que eram dirigidos s classes superiores da sociedade paulistana, pois a palidez era "sinnimo
de prestgio social evocando conforto, tempo livre nas sombras dos jardins de filiao europia". E como
as classes superiores negras estiveram distantes do posto da elite local, conclumos que tanto as mulheres
associadas negras quanto as mais pobres eram enquadradas no grupo indesejado, de pele bronzeada que
lembrava o "duro trabalho sob o sol", enrugadas, moradoras das casas miserveis e insalubres,
freqentadoras dos bailes populares e dos locais promscuos144.
Alm disso, possvel afirmar que mesmo a verso rememoradora e afirmadora dos traos
africanos compactuou com os conselhos de beleza ditados pelos mdicos de inspirao eugenista:
embora no ansiasse pelo ideal de um corpo europeu civilizado, anunciava tcnicas e cuidados com o
corpo em termos de limpeza que combinavam com algumas regras dos manuais de beleza em vigor.
Talvez, seja exatamente nesse ponto que esse estudo da beleza negra apresenta inovaes, aprofundando
a obsesso pelo branqueamento, revelando o culto ao corpo naturalmente negro, evidenciando as prticas
e as representaes do embelezamento da imprensa negra marcados por elementos da cultura.
No artigo "Cuidados de si e embelezamento feminino: fragmentos para uma histria do corpo no
Brasil", um aspecto que Sant'Anna destacou como significativo o culto beleza natural. Durante as
dcadas de 20 e 30, sobretudo, e segundo a imprensa e os manuais de beleza, a verdadeira beleza era
fornecida por Deus e representava o interior de cada pessoa. Sendo assim ela no deveria ser alterada
radicalmente.
At os anos 30, segundo esta autora os anncios sobre as tcnicas e os produtos para se conseguir
uma boa aparncia eram normalmente sigilosos e recomendados por mdicos 145. Acompanhando a
imprensa negra, podemos perceber que apenas a minoria dos anncios e conselhos buscava a valorizao
do fsico negro, posicionando-se contra produtos e tcnicas que alterassem os seus traos fsicos. A
maioria, ao contrrio, pregava a transformao do corpo e se encaixaria muito mais na mentalidade de
embelezamento das dcadas posteriores, informando abertamente toda a comunidade negra sobre as
diversas formas de ornamentos e produtos necessrios para branquear e atribuindo a cada um a
143
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "tre belle au Brsil (1900-1960)". Beaut, laideur. Paris: Communications, 1995, pp.
99-100.
144
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. "tre belle au Brsil (1900-1960)". Beaut, laideur. Paris: Communications, 1995, pp.
99-100.
145
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de (org.). Polticas do Corpo. So Paulo, Estao Liberdade, 1995.
62
responsabilidade pela deciso de como alterar a prpria esttica; ficamos com a impresso de que com o
corpo negro exigi-se, h muito tempo, uma mudana mais radical da aparncia. Como se este corpo, para
ser natural precisasse, primeiro, ser trabalhado e transformado constantemente na sua cor e no seu
cabelo.
Alm disso, nos jornais analisados, as propagandas dos institutos de beleza foram quase
exclusivamente voltadas s mulheres, no querendo dizer, no entanto, que os sales e a imprensa no se
preocupassem com o corpo masculino. A explicao para tudo ocorrer assim, talvez, tenha sua razo na
organizao e administrao dos institutos, realizadas quase exclusivamente por mulheres. E,
principalmente, por serem elas alvo do ufanismo em torno dos costumes, comportamento e
branqueamento.
Sob este ufanismo os jornais concederam espao s propagandas dos produtos e dos locais
eficientes para se conquistar o branqueamento, porm A Voz da Raa e O Clarim dAlvorada no
deixaram de anunciar nomes e locais apropriados para o tratamento do odor, das unhas, das
sobrancelhas, das roupas, etc.
Entre os anos 20 e 40 as recomendaes dos jornais destinadas ao corpo foram variadas. Algumas
eram consideradas essenciais para a sobrevivncia dos indivduos de qualquer poca, tal como o
tratamento dos dentes, da limpeza em geral, incluindo os cuidados com a vestimenta. A crtica aos odores
era fundamental nesta poca em que o higienismo se converteu num dos baluartes do movimento de
cunho evolucionista no combate a degenerao146. Implicitamente os cuidados bsicos para com o corpo
pareciam ser recomendados menos para os associados dos jornais do que para os desassociados,
moradores de rua e/ou pobres da cidade. Uma outra opo de preservao do corpo para os associados
era o servio oferecido pelos dentistas, que atendiam pelas redondezas do centro da cidade.
No consultrio e no gabinete dentrio era preciso que os pacientes apresentassem a carteira de
identificao da instituio anti-racista. Os frentenegrinos acreditavam que os cuidados com os dentes
poderiam prevenir contra vrias anomalias do corpo, conquistando assim o desenvolvimento da "raa": o
146
MELLO, Marina Pereira de Almeida. O ressurgir das cinzas. Negros paulistas no ps-abolio: identidade e alteridade na
imprensa negra paulistana (1915-1923). Dissertao de Mestrado em Histria USP, 1999, pp. 6, 36. Essa historiadora
concebe a imprensa negra como um canal de resistncia e de integrao. Assim investiga as inquietaes e a angustias dessa
imprensa perante a sociedade que celebra o estrangeiro e transforma o elemento negro nacional em um ser invisvel, incapaz e
intil.
63
desenvolvimento fsico e intelectual. Querendo uma assistncia mdica mais geral os pacientes deveriam
pedir uma autorizao para a secretaria da F.N.B:
Departamento de sade. Da Frente Negra Brasileira. Dirigido pelo distinto clinico Dr.
Ferreira Dias. Consultrio Rua Baro de Itapetininga, 18, 8 O. andar. Sala 806. horrio
14 s 16 horas. Os senhores associados que precisarem da assistncia mdica, devem
retirar os seus memorandus na secretaria da F. N. B. sem a qual no sero atendidos
pelos mdicos149.
147
A Voz da Raa, So Paulo: Abril de 1937, pp. 4.
148
-----------: setembro de 1936, pp. 3.
149
----------: maio de 1936, pp. 4.
150
A Voz da Raa, So Paulo: 7 de junho de 1934, p. 2.
151
----------: 31 de dezembro de 1935, p. 4.
64
fraqueza, a magreza, o reumatismo, as dores nas costas, no peito, na cabea, as gripes, as prises de
ventre, os problemas de rins, de fgado, de bexiga, etc:
Nutril Xavier - O brao direito da sade, fora e vigor, receitado pelos mdicos. D
sade e vida a todos os rgos enfraquecidos, efficaz na anemia e falta de appetite.
Desanimo, magresa, neurasthenia - etc152.
S a martello - Para aquelles que se illudem com outras marcas, repetiremos as palavras
do eminente Dr. Mario Graccho. "Atesto que tenho sempre em minha clnica o Emplastro
Fhenix". Obtendo optmos resultados na cura do rheumatismo, dores nas costas e no peito,
constipaes etc. Quando comprar Emplastro exija do seu pharmaceutico esta marca que
a do legitimo emplastro fhenix153.
Alm dos remdios antigos como os emplastros, havia os novos, em certos casos apresentados
em forma de drgeas:
Pastilhas Rinsy. Cura molstias dos rins e da bexiga. Elimina o cido rico e o
arthristimo diurtico. Reconhecido por todos os mdicos. Limpa o organismo das
impurezas e das intoxicaes. O bom resultado depois do terceiro vidro 155.
A Voz da Raa trouxe a reafirmao de Dr. Martins, um naturalista alemo sobre a eficcia das
plantas brasileiras na cura de todos os tipos de doenas. No prprio espao de propaganda da Medicina
Vegetal, imprimiu uma espcie de manual dos remdios eficazes que se encontravam na Farmcia
Catedral da Praa da S e em todas as drogarias, tais como: o Vermfugo Catedral (contra vermes,
amarelo e lombriga), o Guaraton (estimulante aphodisiaco poderoso), as Pastilhas Vegetais (raquitismo
e fraquezas), o Porrum Satirum (depurativo de doenas de pele), o Boldo (Fgado, Basso e Bile), Cactus
(corao e circulao), o Regulador Catedral (doenas de senhoras), o Musa Sapientum (para tosses e
escarros sangneos), Clcio Catedral (doenas do pulmo e acido rico), a Sade do Corpo (preventiva
de arterio esclerose e fortificante), etc. Uma parte desses remdios era produzida com plantas da flora
brasileira:
Medicina Vegetal. Maravilhosa da Flora Brasileira. Do Laboratrio Vegetal Cathedral,
exijam esta marca. No conhece os maravilhosos efeitos da Medicina Vegetal. Procure
conhece-los. O quanto antes possvel, est alcanando um verdadeiro sucesso, superando
com mais eficincia todas as doenas. Palavras de grande sbio e naturalista alemo Dr.
Martins: "As plantas brasileiras no curam, fazem milagres". Distribumos gratuitamente
ao pblico, o nosso Gala "Teraputico da Medicina Vegetal" que carrega em suas
pginas explicaes sobre todas as doenas, regimes e suas curas correspondentes.
Farmcia Catedral Praa da S - 94. Em todas as drogarias Remdios que curam (...).
Consultas gratuitas158.
157
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 13.05. 1929, pp. 2.
.
158
A Voz da Raa, So Paulo: 20. 06. 1935, pp. 4.
66
era formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O estabelecimento funcionava na Avenida
So Joo e abria aos domingos e feriados159.
Os jornais alternativos praticamente no mencionaram o saber indgena e afro-brasileiro sobre
curas e cuidados com o corpo a partir do uso de ervanrios, o que na maioria das vezes ganhou destaque
foram as propagandas dos remdios e dos produtos considerados modernos para o tratamento e
embelezamento do corpo negro. Mesmo assim, por vezes, como no caso apresentado da propaganda
Medicina Vegetal, focalizamos que, embora A Voz da Raa quisesse ratificar o conhecimento do
mdico relativo ao corpo, deixou fluir um saber em torno da eficcia das ervas na preveno do corpo
contra as doenas. Ficou evidente que havia no prprio cotidiano da comunidade negra associada o uso
de produtos industrializados, mas tambm caseiros, rurais. Pressupomos neste ufanismo, de se enquadrar
aos preceitos costumeiros da elite paulistana, que os jornais negros desvalorizavam as receitas caseiras
de embelezamento e cuidados com o corpo, criadas e passadas de gerao em gerao pelas famlias e
comunidades negras. A inteno, dos anncios dos remdios e dos produtos de beleza, era quebrar os
vnculos dos ensinamentos tradicionais vindos at mesmo do continente africano, do perodo
escravocrata. Como se, entre os anos 20 e 40, esses conhecimentos tradicionais fizessem uma forte
oposio aos ensinamentos dos contos publicitrios dos jornais negros em torno do embelezamento. As
propagandas dos remdios e dos cosmticos criariam, ento, o consumidor. Os valores do
embelezamento e de preveno do corpo sairiam das propagandas. Parcela da comunidade negra
comearia a se relacionar com os produtos, com os anncios, e no mais com membros da famlia e da
comunidade negra para tomar conhecimento de tcnicas e produtos para tornar-se apresentvel.
Nestes anncios de remdios h uma exaltao figura do mdico, como se naquela poca a
medicina ditasse as formas, o funcionamento e o comportamento do corpo 160. Sant'Anna revelou que
entre 1900 e 1930, o mdico tinha "um lugar fundamental para a organizao moral e social das famlias
de elite", especialmente o clnico geral. A falta de beleza era traduzida vrias vezes como sendo doena
e, portanto, merecia o tratamento dos mdicos. Alm disso, antes da dcada de 50 o domnio da
cosmetologia no havia conquistado ainda uma autonomia. A influncia da medicina era to forte que na
publicidade, para a correo dos defeitos da aparncia feminina, "as pomadas para afinar a cintura,
branquear a pele, tirar pelos ou escurecer os cabelos brancos" eram comumente chamadas de "remdios".
Na vida cotidiana confirmava-se a importncia dos remdios e da medicina, tanto que, para embelezar,
as mulheres usavam tnicos, loes e ps-higinicos. Os conselhos de beleza se preocupavam menos
159
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 13 de maio de 1924, p. 5.
Sobre a importncia da medicina na gesto dos corpos, ver, por exemplo, FOUCAULT, Michel. "Poder - Corpo".
160
Boa desculpa
O mdico da vila encontra na estrada o Joaquim, que finge no o ver.
-Ol Joaquim! Ento no se cumprimenta mais o mdico?
-Desculpe-me, senhor doutor, balbucia o caipira, tirando o chapu, pensei que o senhor
estivesse zangado comigo porque h muito tempo no fico doente.
Para rir
Num consultrio mdico
O Doutor - os seus beios so grosso de um feitio excepcional... Naturalmente musico?
O Doente V. Ex. advinha!
O Doutor E que instrumento o senhor toca?
O Doente - Bombo162
Para alm do ensinamento mdico acerca do uso de remdios para o tratamento do corpo,
segundo a pesquisadora Wissembach, existia uma poro de ensinamentos ligados medicina mgica
ou caseiras, at porque no havia mdicos e boticas para atender toda a populao paulistana. Partes
das classes populares enfrentavam as adversidades das doenas com receitas caseiras, com ervas,
161
SANT'ANNA, Denise Bernuzzi de. Polticas do Corpo. Op. Cit., pp. 122-123.
162
A Voz da Raa, So Paulo: agosto de 1936, p. 3.
68
excretos dos animais misturados, no mais das vezes, com simpatias e oraes. Ramos localizou as
prticas mgicas do catolicismo popular e as prticas religiosas dos negros, nas quais havia um
amalgama irreconhecvel de oraes. Oraes para a cura do nervo torto, espinhela e campainha
cada, carne trilhada, para tirar um argueiro, para cura de cobreiro, de ngua, espinha na garganta, cura de
bicheira, dr de ventosidade, cura de olhado, etc 163. Nas palavras de Wissembech, essas prticas no
estavam associadas simplesmente permanncia de ritos e crenas, em continuidade com as tradies
do catolicismo popular e dos ritos afro-brasileiros, mas de um processo acentuado de revivescncia das
mais variadas correntes de pensamento mgico ou mstico. No processo de urbanizao da cidade,
crescia espantosamente o numero de habitantes que trazia inscrito o alastramento das vertentes do
pensamento espiritualista: teorias e prticas do espiritismo, do magnetismo, da cincia do ocultismo, da
quiromancia e da cartomancia mesclavam-se s tradies existentes e acabavam por moldar prticas e
figuras sociais multifacetadas164.
As ervas, algumas delas depurativas, outras sudorficas, outras ainda simplesmente simblicas,
eram encontradas nas matas, cultivadas em canteiros e muitas vezes descobertas atravs da observao
de comportamentos de animais ou ento de ensinamentos vindos de tempos imemorveis. Essas ervas
vinham de diversificadas regies brasileiras e estrangeiras e eram competentes na cura de variados
males. Os curandeiros e pitonistas, feiticeiros, macumbeiros e ocultistas, agiam em centros ou
institutos. Costumavam se espalhar pelo Brs, Mooca, Belenzinho, Luz e Santa Efignia; Penha,
Santana, Pinheiros; Cambuci e Barra Funda. As curandeiras e as benzedeiras normalmente habitavam as
regies de So Bernardo, So Caetano e Santo Amaro. Wissembach transcreveu uma propaganda de uma
das importantes lojas de comercializao, a Hervanaria Santa Izabel, localizada rua General Carneiro
nmero 45:
163
RAMOS, Arthur. O negro e o folclore cristo. In: Revista do Arquivo Municipal, ano IV, vol. XLVII, maio de 1938, pp.
64
164
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivncia. Sociabilidades e prticas mgico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 9.
69
oraes de todas as qualidades leo de coco, - azeite de dend chifre de cabra loura
Pemba africana, Pimenta da Costa, Legtimas Pedras de Cevar da frica. (...) remdios
para tirar verrugas cera da terra, -contas de azeveich, favas do Par para aromarizar o
fumo.165
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivncia. Sociabilidades e prticas mgico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 84-112.
167
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivncia. Sociabilidades e prticas mgico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 104.
70
Nina Rodrigues, ao descrever o local no qual funcionava o candombl da Bahia, tambm
enfatizou a falta de higiene dos negros. Ele assinalou que atravs de uma simples observao nos
quartinhos do Gantois era possvel revelar os hbitos dos negros:
168
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira S. A., 1935, pp.
64-6
169
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira S. A., 1935, pp.
64-6
170
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivncia. Sociabilidades e prticas mgico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 8.
171
Tal concluso anloga realizada pela historiadora SantAnna, quando analisou as prticas e representaes do
embelezamento feminino. SANTANNA, Denise Bernuzzi de. Propaganda e histria: antigos problemas, novas questes.
Op. Cit., pp. 99.
71
As representaes dos corpos influenciavam as tramas sociais que envolviam a populao negra.
Por isso mesmo preconceitos e estereotipos para com os negros mais pobres da cidade alastraram-se
para os institutos embelezadores: de um lado, temos a recusa dos institutos embelezadores das
sociedades negras em tratar do corpo negro pobre, e, de outro, a recusa dos sales da sociedade mais
ampla em tratar at o negro de posio social elevada. A imprensa reclamava que se a comunidade no se
embelezasse nos sales das associaes, ficava sem o tipo de servio prestado nos sales de beleza, tanto
nos simples como nos sofisticados, da sociedade mais ampla. Neste tpico, focalizamos a justificativa da
criao, por parte dos associados negros, dos seus prprios locais de embelezamento. A prtica
discriminatria ultrapassou os limites da cidade e dos sales, expandiu-se para as alfaiatarias, sapatarias,
etc.
Neste sentido, O Clarim dAlvorada ressaltou tambm a excluso dos negros em outros Estados.
No Rio Grande do Sul, barbeiros e cabeleireiros se recusavam a prestar servio aos negros, como
informou o integrante dos "Batutas" em uma entrevista cedida para O Clarim d'Alvorada:
Curiosa entrevista dada a critica - Do Rio de Janeiro, pelo pandeirista Alfredo sobre
suas impresses do Rio Grande do Sul.Os Batutas regressaram do Rio Grande do Sul,
onde conseguiram um ruidoso sucesso. Os queridos populares msicos regressaram ante-
hontem, depois de percorrerem as cidades de Porto-Alegre, Pelotas e Rio Grande. Fazem
actualmente parte dos "Batutas": Pechinguinha, (flauta); Donga, (banjo); Venthuil,
(trombone); Martins, (piano); Paulo (pistom); Francisco (tuba); Benecdito, (bateria);
Alfredo, (pandeirista); Paschoal, (saxofone) e Benicio (tenor).
Alfredo nos disse que gosta immenso do Estado Sulino, mas veiu mal impressionado da
cidade Rio Grande.
-Por que? - perguntamos.
-Porque l existe o preconceito estpido de cor.
-Como assim?
-Os barbeiros no barbeiam as pessoas de cr preta!
-Por que?
-S elles sabem (...)173.
172
O Kosmos, So Paulo: 21.11. 1924, pp. 2. O jornal faz parte da coleo imprensa negra.
173
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 03.02. 1929, pp. 2.
72
Pelo interior do Estado paulista os comerciantes adotaram a mesma postura das grandes cidades,
mesmo quando o consumidor apresentava-se bem trajado:
Ainda assim, mesmo com uma significativa parte dos jornais anunciando a discriminao sofrida
pelos negros nos sales da sociedade mais ampla e em outras casas comerciais, um sujeito negro de
bom padro de vida discordou da existncia do preconceito chegando at a pensar que o assunto
desmerecia reflexo:
H males que vem para o bem - O preconceito da cr - Alguns jornaes desta Capital,
no dia 17 do corrente, noticiaram que um coloredman, no pode ser barbeado em um
salo chic, sito Rua da Boa Vista, 18. Essa noticia, muito interessante, depois do
caso do 'O Fanfulla'. Esse patrcio afrontado no mnimo um desses pretos ricos, - ou
tem cisma de ser - que acha inopportuno a realisao do nosso Congresso; coitado foi
tranqilo sentar-se commodamente na poltrona macia, certo que, no Brasil, no h
preconceito de cor. (...) temos ahi a idia da realisao do 1 O. Congresso da Mocidade
Negra Brasileira175.
Houve negligncia por parte dos brancos em oferecer tratamentos embelezadores para os
negros, mas tambm essa negligncia esbarrou no profundo desejo dos negros de no mais ter que
depender dos servios prestados pelos estrangeiros. Tinham a inteno de retir-los do mercado de
trabalho, particularmente do mercado da ornamentao. Era como se a comunidade negra associada
tivesse perto do afeioamento ao estrangeiro (em termos de adornamento) muita restrio ao seu domnio
no mercado de trabalho:
174
----------: 25.01.1930, pp. 2.
175
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 27.10.1929, pp.1.
73
Linhas Ligeiras - Do "The Washington Word", E.U. A:
-os gregos nos vendem melancias e doces
-os israelitas nos vendem roupas e provem os nossos divertimentos
-os italianos concertam os nossos sapatos (...)
-os chinezes lavam e engomam as nossas roupas
Na Bahia de Salvador
-os espanhoes dominam o commercio a retalho de viveres, e espancam os nossos
patrcios e ficam impunes.
-os italianos nos vendem massas alimentcias
-o que fazemos para ns? Andamos descalos, ornamentamos as nossas ruas com
bandeiras estrangeiras, carregamos pianos na cabea e fazemos discursos 176.
Um bahiano
O rancor ao estrangeiro aflorava diante dos seus xingamentos dirigidos aos corpos negros e
devido s ocupaes que o estrangeiro ocupava no mercado das indumentrias e nos institutos de beleza.
E se o negro no queria usufruir do que era produzido pelo estrangeiro, o mesmo fortalecia-se do outro
lado - o estrangeiro no queria que o negro desfrutasse de coisa de branco, inclusive ofcios. Filosofia
assumida at por no brancos subordinados, que "faziam esculhambao" quando as senhoras e as
meninas negras ousavam usar o chapu.
176
O chapu, era de uso, segundo uma mulher branca, daquela Benedita que j havia retirado o
corpo do fogo e vivia exibindo-o para o mundo. isso que exaspera o comentrio da marcha
carnavalesca cantada pela senhora branca: apenas conseguiam vestir-se luxuosamente as mulheres
negras que se prostituam na vida:
179
A Voz da Raa, So Paulo: 1O. 04. 1933, pp. 3.
75
A minha risada no se refere ao seu chapeuzinho; lembrei-me daquela "Marcha
Carnavalesca" que ouvi cantar: "a Benedita j faz Progresso/ Tirou o corpo l do
fogo/Anda na seda, tem um V8/ E sai de brao com o Capito".
Isso no verdade
Quem passeia de braos dados com o Capito so as loiras a oxigen e as belezas
artificiais, que saem dos "cabarets" ao romper da aurora.
Os pretos e as pretas que no carregam o seu belo terno feito no "Imperador da Moda"
ou com os nossos amigos Russos das prestaes, porque so adeptos da "Lei do
Mnimo esforo" e assduos freqentadores das Kermesses, feiras que se realizam das
segundas-feiras aos sbados e no querem teima.
Est claro...
Tudo isso no da minha conta
Mas preciso ser articulado para estimular nossos irmos negros
Graas a Deus, a maioria dos meus irmos negros procura trabalhar para manterem as
suas proles e acompanharem os luxos e etiquetas da nossa paulicia, apresentando-se
com sua Bela Indumentria; porque quem no tem no considerado na roda dos
nossos irmos pretos e chics180.
O direito de ser chic rimava com o dever de trabalhar. Benedita poderia usar o chapu, no
porque virou uma prostituta, e sim, por exemplo, porque conquistou o cargo de professora. Era de direito
dos negros produtores da paulicia desfrutar das novidades oferecidas. O negro que no tinha acesso aos
adornamentos do mundo da moda, era considerado adepto da acomodao, era o freqentador das feiras
e das quermesses, morador dos bairros pobres e perifricos da cidade e, sobretudo, excludo do meio
negro nobre. Ao mesmo tempo que Cunha reagiu contra a sociedade branca, que tentava especificar
um tipo de posio social atravs da indumentria para os negros, ele degradou parte da comunidade
negra impossibilitada financeiramente de participar do imprio da moda e de freqentar os locais de
status da sociedade paulistana.
A marcha carnavalesca presente no texto Dialogo da dA Voz da Raa chama-se Mulatinha da
caserna e dos compositores Martinez Grau e Ariovaldo Pires. A cano de convocao
revolucionria marcou o carnaval de 1937, dcada em que o mestio e sua cultura tornaram-se smbolos
da nacionalidade brasileira. Segundo Tefilo Queiroz o diminutivo mulatinha contm uma rica
ambigidade: a simpatia e a vulgaridade da mulata. A letra constitui, tambm, uma indicao da
ascenso social da mulata. Ela passou de cozinheira a amante de militar graduado, alm do mais,
tornou-se proprietria de automvel (V-8 era a denominao comum dada a linha de automveis de
fabricao FORD). Desde 1924 a mulata aparece em letra de msica, entretanto constava mais no
ttulo da composio. Serve de exemplo o nome da composio Casaco de Mulata de Prestao do
autor Luis Nunes Sampaio. Na anlise das letras de msicas carnavalescas o pesquisador Queiroz afirma
que Lamartine Babo, possivelmente, foi o autor mais favorvel mulata. Sua marcha carnavalesca O
180
A Voz da Raa, So Paulo: novembro de 1936, pp. 3.
76
teu cabelo no nega para o carnaval de 1932 foi produzida em parceria com os irmos Valena.
Expressando idias sobre a figura da mulata fizeram sucesso, ainda, as msicas: A mulata a tal, de
1948, dos autores Joo de Barro em parceria com Antonio de Almeida, Fita Amarela, de 1931, de Noel
Rosa, etc181.
Sob a voz da mulher negra urbana que dialogou com a branca, foi possvel ainda notar o desejo
profundo que o autor anterior sentia de desvincular a comunidade feminina negra das louras oxigenadas
e das mulheres dos "cabarets", desfrutadoras dos artifcios da beleza. No incio do sculo, quase todas as
mulheres de boa famlia tendiam a vestir-se fazendo uso comedido das bijuterias, dos espartilhos e das
roupas presentes na imprensa feminina. O chapu era um desses adornos, aqui a Benedita idealizada por
Horcio esteve includa nos costumes elitistas urbanos.
Descobrimos que as mulheres italianas depoentes de Bernardo, em Memria em branco e
negro, trabalhavam na produo de chapus. D. Adalgisa narrou que desde os oito anos colocava um
xale nas costas e ia trabalhar na fbrica de chapus. Os sapatos foram fabricados por homens negros e,
com o passar dos anos, este ofcio passou para as mos dos italianos. Um dos depoentes negros da
prpria autora conta que desde menino trabalhava como aprendiz de sapateiro na casa Stacchini, na
Rua da Graa, local onde trabalhou durante quinze anos a troco de comida e de alguns tostes. S saiu da
loja porque, em 1927, no Bom Retiro182 e em outras localidades, os italianos ocuparam o lugar dos
negros nas sapatarias e nas alfaiatarias 183. Num dos anncios encontrados por Wissembach sobre as
prticas religiosas, em 1934, Francelino Igncio da Silva, homem negro, explicou que h quatro anos
havia abandonado em definitivo a profisso de sapateiro, de onde j no retirava o necessrio para o
sustento, dedicando-se inteiramente explorao de um centro esprita, denominado de Centro de
Nossa Senhora Aparecida, do qual era presidente, secretrio e tesoureiro184.
Tentando combater o preconceito dos patres, disseminado pela cidade, os militantes se
confrontaram com o governo para conseguir o desejado, que seria, no caso seguinte, a valorizao dos
corpos masculinos. A Frente Negra comunicou ao presidente da nao, em audincia, a respeito do
afastamento dos corpos negros da Guarda Civil. Posteriormente contestao da F.N.B., Getlio Vargas,
181
QUEIROZ JUNIOR, Tefilo. O preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira. So Paulo: Editora tica, 1975, pp.
68-73.
182
Delineou-se na cidade uma concentrao de judeus, sobretudo nos distritos do Bom Retiro e de Santa Efignia. Alm das
sinagogas dominavam um grande nmero de indstrias de roupas e malharias. BRUNO, Ernani Silva. Histria e tradies
da cidade de So Paulo, Op. Cit., pp. 1344.
183
BERNARDO, Teresinha. Memria em branco e negro. Olhares sobre So Paulo. So Paulo: EDUC, FAPESP, UNESP,
1987, pp. 103-119. um livro que narra, via histria oral, a trajetria de descendentes de escravos e de italianos (na faixa dos
70 anos), que viveram na cidade paulistana.
184
WISSEMBACH, Maria Cristina. Ritos de magia e sobrevivncia. Sociabilidades e prticas mgico-religiosas no Brasil
(1890-1940). Op. Cit., pp. 143.
77
por intermdio do comandante da Segunda Regio Militar, Gal. Ges Monteiro, e do chefe da Polcia de
So Paulo, Cordeiro de Farias, ordenou que a Guarda Civil de So Paulo aceitasse a inscrio dos negros
nas suas fileiras. At ento, a maior parte dos elementos que a integravam era estrangeiro, porque "se
exigia dos candidatos uma altura mnima, que o negro no atingia"185.
Tal problema no foi pronunciado apenas pela F.N.B. No governo de Jlio Prestes, os militantes
do O Clarim d'Alvorada tambm se sensibilizaram com o assunto, divulgando mais requisitos que
impediam a participao dos negros nesse concurso pblico. Segundo o texto A cor e a Guarda Civil, a
delegacia regional da cidade de So Paulo recebeu da Chefatura de Polcia uma carta de teor seguinte:
As nicas condies que o governo pde exigir para que um homem, de mais de vinte
um annos, possa servir na guarda civil so: idoneidade moral, robustez physica e
instruo regular. A altura j uma exigncia passvel de crtica. Com effeito, se se
impe a estatura mnima de 1,72, porque no exige tambm o regulamento um peso
mximo e mnimo? Porque no estatua a dolicocephalia ou a brachicephalia?187 .
78
chineses e os africanos eram desautorizados a entrar no pas, no sculo XX a condenao recaiu sobre os
japoneses e os norte-americanos. Argumentou-se que a civilizao japonesa estava em decadncia e que
possua costumes, lnguas e comportamentos dspares da cultura nacional. Dessa forma jamais se
misturariam com o elemento nacional. Segregao era a justificatica corrente tambm para barrar a
entrada dos norte-americanos: poderiam gerar o dio racial ao se agregarem ao negro brasileiro,
produzindo uma ruptura (...) da hierarquia racial e do processo de mistura sobre o qual se definia a
unidade poltica da nao188. Foi nesta direo ento que se desenvolveu o questionamento do jornal O
Clarim dAlvorada, era como se dissesse que polticos e intelectuais brasileiros introjetavam aspectos
das teorias racistas do sculo XVIII, ou melhor, hierarquias das teorias racistas, em que nem todos os
brancos eram considerados iguais. Como na classificao de Lapouge, que inferiorizou todos os
braquicfalos europeus por oposio aos seus superiores arianos dolicocfalos 189. E ainda, que tais
distines entre brancos no existiam para os administradores da Guarda Civil paulistana, preferiam
empregar qualquer tipo de branco a ver perambulando pela cidade um negro com uniforme da
corporao.
O texto denominado de Os barqueiros do Volga pelo escritor dO Clarim dAlvorada discutiu a
presena dos estrangeiros no Brasil: esses homenzarres de olhos gateados e cabellos loiros, que no
se empregam niente no portuense. Disparou contra a participao dos homens negros na Guarda Civil:
Dizem at que alguns creoulos, meio esfolados na cr, foram promovidos a caboclo. Neste processo
de discordncia, o escritor formulou que o negro deveria luctar pelo engrandecimento dos homens de
cor desta terra, pela associao forte e pela classe poderosa, que vivia completamente desunida, ao
invs de ficar criando conflito para fazer parte de uma corporao que mais servia para embellezar uma
cidade mau governada190.
Os Barqueiros do Volga corroborou a fala de Marcello Orlando Ribeiro (Inspetor-chefe da
extinta Guarda Civil e Tenente Coronel da Polcia Militar). Ribeiro tinha uma certa antipatia pela farda
em vista da enorme represso e pancadaria cometidas pela Cavalaria durante os perodos de greve na
cidade. Nesses termos, embora amenizasse a selvageria praticada pela Guarda Civil, admitiu que recebeu
de um dos componentes desta mesma corporao uma bofetada, na Quintino Bocaiva, por estar com
188
RAMOS, Jair. Os males que vem com sangue. As representaes e a categoria do imigrante indesejvel nas concepes
da imigrao da dcada de 20. In: Raa, Cincia e Sociedade, Op. Cit, pp. 59-82.
189
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nao: hierarquias raciais e o papel do racismo na poltica da imigrao e
colonizao. IN: Raa, Cincia e Sociedade. Op. Cit., 41-58.
190
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 17.07.1927, pp. 5.
79
um carrinho em cima de uma casa comercial. Quer dizer, a antipatia que ele tinha pela Cavalaria passou
para a Guarda Civil191.
A ao dos militantes neste concurso teve um final positivo. Encontramos, inclusive, um texto em
que O Clarim d'Alvorada convidou o chefe da polcia para participar de um de seus eventos. Embora
Mario Bastos no tenha comparecido comemorao, o jornal tentou agradec-lo pela ao em prol da
comunidade negra. O jornal queria deixar registrado o reconhecimento a Bastos Cruz, pela maneira
fidalga com que o chefe de polcia recebeu o convite da folha para o vesperal literrio, realizado em
homenagem ao poeta Cruz e Souza. A folha ficou cativada pelo gesto de urbanidade do modelador
incansvel da segurana pblica e pela presena de seu ajudante de ordens Sr. Tenente Jayme Camargo
na pequena festa literria192.
Contribuiu tambm para a entrada dos negros na Guarda Civil o discurso pronunciado pelo
Deputado Orlando de Almeida Prado, na 13a. sesso ordinria da Cmara do Deputados de So Paulo,
em 31 de julho de 1928. A portaria foi revogada ao receber a determinao. O diretor da Guarda Civil
comentou, azedamente, diante de testemunhas: com a entrada dos negros, podemos abrir a porta a
morfticos e a portadores de defeitos fsicos193.
Prohibir o ingresso do negro na Guarda Civil era desconhecer o valor da ao do preto na
formao do nosso paz, quer como elemento de trabalho, quer como fator ethinico. Essa foi a fala do
deputado Prado para o Progresso na Cmara dos Deputados.
Houve um confronto direto entre os militantes e o poder governamental, provocado pelos
administradores do Estado e pela sociedade. Novamente um depoente de Mrcio Barbosa fala da
proibio da entrada dos negros nos rinques de patinao, que tornaram-se moda em So Paulo, na
estao do inverno. Por ser um lugar chic, apenas a entrada de brancos era permitida. Na poca a Frente
Negra estava com muita fora diante do governo de Getlio Vargas e reclamou. Depois de feita a queixa
o chefe de polcia, o Cordeiro de Farias, emitiu uma nota: rinque de patinao que no aceitasse negros
fecharia suas portas, como de fato houve rinques de patinao que foram fechados"194. No depoimento
feito em pblico pelo Dr. Arlindo Veiga colhemos: os negros graas flexibilidade com o corpo, talvez
porque so mesmo do samba tornaram-se logo os maiores patinadores195.
O jornal Chibata publicou uma nota a respeito da entrada dos negros nos rinques de patinao da
Capital, quando j estava franqueada a entrada aos patrcios coloreds. A nota dizia que todos poderiam
191
BARBOSA, Mrcio. Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 84, pp. 5.
192
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 25.01. 1930, pp. 1.
193
FERNANDES, Florestan. A integrao do negro sociedade de classes, Op. Cit., pp. 273.
194
BARBOSA, Mrcio. Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 54.
195
FERNANDES, Florestan. A integrao do negro sociedade de classes, Op. Cit., pp. 351.
80
escorregar com elegncia, em qualquer pista (brancos, pretos, amarelos e todas as matizes). Entretanto,
alguns patrcios ainda receiavam se apresentar nas casas de diverso decentes, procuravam outros
ambientes anty-higienicos, com aspectos impressionantes. O autor annimo informou tambm nesta
nota que o proprietrio do projeto de rinque R. das Palmeiras dizia em roda que os moreninhos estavam
protestando contra o pagamento. Nas palavras deste proprietrio, ditas em pilhria, enquanto umas
casas cobravam 2$200, para ver o Rei Bobi patinar, um chimpanz autentico, outras deixavam patinar
por 600 tantos macacos. O escritor finalizou o texto, influenciado pelas palavras do proprietrio ou
satirizando-as, argumentando que os negros de brio preferiam escorregar em casca de banana a
entrar na baguna196.
Do discurso de Orlando Prado, o Progresso extraiu mais um sinal de averso da sociedade para
com os fsicos negros e pediu para que o presidente do pas colocasse um fim na estratgia dos
cobiadores egostas que tentavam roubar a liberdade corporal e a exposio dos negros num concurso
de beleza infantil. Se tal fato se concretizasse seria uma injustia, visto que muitos brasileiros eram
filhos e descendentes de uma nica me, a me preta. Se os corpos brasileiros saram do mesmo
ventre, logo, todos deveriam ter a mesma oportunidade de apresentao. O Progresso, influenciado pela
idia de democracia racial, afirmou ter a me negra repartido o seu leite e o seu afeto, amigavelmente,
entre o seu filho e o filho do senhor:
196
Com o Rinque Palmeiras. Chibata, So Paulo: junho de 1920, p. 3.
197
Progresso, So Paulo: 12.10. 1928, p. 1.
81
Mais Um Gesto Sympathico do Sr Presidente do Estado em Prol dos Negros
No ltimo concurso de robustez realisado nesta capital, sob os auspcios das
auctoridades de Hygiene Infantil, foi defeso s crianas pretas, concorrerem aos
prmios institudos no alludido certamem.
At a inscripo lhes foi negada!
o cumulo
Evidentemente, isto constituio uma medida de arbtrio a que estavam alheias as
auctoridades competentes.
O "Centro Cvico Palmares", fazendo coro, aos gritos de revolta, que surgiram,
protestou contra a vexatria e inqualificvel deciso dos organizadores do "Concurso
de Robustez Infantil", levando esse protesto at ao senhor presidente do Estado, que
respondeu em carta, cujo texto, j divulgamos.
O Dr. Jlio Prestes, coherente com o seu passado poltico liberal e conhecedor da
justia atirada face dos pretos de So Paulo, ordenou, immediatamente, as
providencias que obstaro a repetio dessa anomalia sem justificao plausvel (...) 198.
82
A eugenia ganhou fora no Brasil, com a fundao da Sociedade Eugnica de So Paulo em
1918. O primeiro congresso brasileiro de eugenia, em 1929, debateu assuntos referentes maternidade e
a infncia. Nestas iniciativas destacou-se a participao do mdico eugenista Renato Kehl, apoiando a
interveno do Estado na produo humana atravs de exames pr-nupciais obrigatrios e na
esterilizao de quem fosse julgado degenerado ou criminoso. At os anos 40, os eugenistas defendiam
posturas mdicas que apontara a necessidade de controle populacional, propondo esterilizaes que
atingiam famlias pobres. Assim, seria garantida, atravs do processo seletivo, a sobrevivncia dos mais
fortes 200. Os projetos que postulavam esterilizaes no deram certo no Brasil, mas foram aprovados
em outros pases que adotavam os modelos eugnicos (Dinamarca, Sua, Estados Unidos). Setenta mil
pessoas foram esterilizadas (estando nesse meio um grande nmero de negros) entre 1907 e o final da
Segunda Guerra Mundial.201
No por acaso, os inscritos no concurso de robustez infantil de So Paulo deveriam ter entre 6
meses e 14 anos e estarem matriculados nos centros de assistncia, onde havia a presena dos mdicos.
Num dos concursos, a primeira classificada era freqentadora do Parque Infantil da Lapa. A entrega de
prmios era realizada no teatro Municipal, onde os pobres no tinham freqncia assdua, depois havia o
desfile das crianas vencedoras pela Avenida Paulista. A prpria historiadora Brites, que nos auxiliou na
compreenso do contexto em que estava inserido o concurso de robustez infantil, afirmou que a me
negra no estava presente no momento de entrega do prmio s crianas vencedoras. As mulheres que
desconheciam os princpios da Puericultura foram indicadas como gente primitiva e desabituadas s
condies higinicas, incapazes de falar do prprio corpo. Apesar disso se verificou tambm, de
acordo com os relatrios Anuais de Diviso e Recreio, que os locais que pretendiam assistir e
disciplinar os corpos das crianas pobres, como os parques infantis, tinham dificuldades em oferecer um
ambiente habitvel: uniforme, gua, chuveiros, aparelhos sanitrios, etc. E alm do mais, nos postos de
sade, faltavam mdicos e o nmero de mortalidade infantil era difcil de ser controlado.
Ento os pronunciadores da imprensa negra interpretaram a conquista da simples inscrio, das
suas crianas, no concurso de robustez infantil, como uma ao positiva. E se o concurso premiava
principalmente as crianas robustas, brancas e de olhos azuis, como ento que os pais das crianas
negras exibiriam seus filhos? Maquiariam tambm s suas crianas com o liquido Milagre, com o p-
de-arroz, com a pasta Bleach? Passariam Cabelisador nas cabeas das crianas? Por outro ngulo, as
mes e os militantes negros, ao requerer a participao das crianas negras, estavam protestando contra o
200
BRITES, Olga. Imagens da Infncia. So Paulo e Rio de Janeiro, 1930 a 1950. Tese de Doutoramento - PUC/SP, 1999, pp.
1-20, 43-141.
201
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas, Op. Cit., pp. 234.
83
padro branco de beleza louvado no concurso? No, estavam acatando os princpios norteadores do
concurso e tentando marcar presena da comunidade negra neste evento.
Os posicionamentos do Progresso e dO Clarim dAlvorada frente ao Concurso de Robustez
Infantil divergiram. Entre os pronunciadores negros do concurso, Arlindo Veiga, foi um discordante,
demonstrando um repdio ao questionamento da salubridade negra e desejando fazer os pais negros
voltarem suas energias para outros problemas vivenciados pela populao negra, problemas mais
urgentes do que a perfeita exposio corporal criada e idealizada pelo Departamento Higienista:
Corpo
202
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 13.05. 1927, pp. 3.
84
Pompas e pompas, pompas soberanas,
Majestade serena da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulncia das prpuras romanas
As formas imortais, claras e ufanas,
Da graa grega, da beleza pura,
Resplendem na arglica brancura
Desse teu corpo de emoes profanas.
(...) E as guias da paixo, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas! (Cruz e Souza)203
Em variadas notas, os letrados negros relacionavam a beleza exterior da mulher aos sentimentos
internos, no sentido de alertar seus companheiros de etnia e sexo das armadilhas que poderiam
proporcionar-lhes as mulheres mascaradas. Ou seja, as mulheres vestidas de acordo com a moda da
poca eram definidas negativamente como belas sedutoras. Nestes comentrios, sobre as relaes
afetivas entre homens e mulheres, predominavam expresses que tencionavam construir ora o modelo de
mulher cobiada, ora o modelo de mulher amada e de famlia.
Segundo o escritor do texto denominado de "Runas", as mulheres muito vaidosas, arruinavam o
corao dos homens, considerados constantes vtimas nas relaes ntimas. Entretanto, as incapazes de
amar tinham caractersticas e estilos similares: eram bonitinhas, de pequena altura, exalavam caprichos,
falavam um pseudovocabulrio amoroso, tinham o hbito de falar dos homens ingnuos conquistados,
eram sagazes, vestiam os mesmos toilletes (vestidos chics e de sedas) e gostavam de sentir fortes
prazeres dos sentidos, da sexualidade. Esses "artifcios de seduo estavam emaranhados com a ganncia
por trs das finas toilletes. A meta desse tipo de mulher era conseguir, cada vez mais, artifcios
corporais para esconder seus defeitos dos almofadinhas, dos "sem juzo e sem instruo, possuidores
dos requisitos para sofrer o golpe, que no era unicamente o da seduo, mas ainda o do interesse
material. Esse tipo de mulher levaria os almofadinhas para a degradao fsica e moral204.
Francisco Souza Reis, tambm caracterizou o tipo de mulher que poderia levar o homem
degradao fsica e moral: era alta, usava "vestido de seda e gaze cor de rosa", cingia a testa com "uma
pequena diadema de flores artificiaes", tinha "uns pezinhos delicados de mestia virgem, morena de
cabellos de azeviche e encaracollados" era "flexvel esbelta, de um physico esculptural".
Por esta mulher, Reis foi seduzido. Ou melhor, deixou ser seduzido por uma mulher considerada
de carter duvidoso que, alm de tudo, se rendia aos caprichos dos homens de carter dbio. No mesmo
texto, Pginas da minha vida, a Maria, caracterizada como sedutora, sem virtuosismos, era aquela que
203
Poemas Escolhidos. So Paulo: Editora Cultrix, sem data, pp. 68.
204
O Clarim d'Alvorada, So Paulo: 03.06. 1928, pp. 2.
85
poderia ser a mulher ideal, a mulher modelo, a me e optima esposa capaz de supportar os mais
horrendos dos suplcios no firme propsito de nunca profanar o thalamo fiel e sagrado de seu esposo205.
Em busca de um corpo ideal, Tuca (o escritor) contestava a postura dos almofadinhas, dos
homens e das mulheres, entendedores da arte do trajar. Desconsiderava que as pessoas de costumes
urbanos tivessem condies de oferecer o amor romntico a seus companheiros. As mulheres da cidade
estavam mais interessadas em tirar proveito das relaes amorosas e, os caipiras, embora satirizados
pelos indivduos da cidade, em virtude da sua simplicidade na ornamentao corporal e no seu estilo
musical, tinham mais condies de transmitir o lirismo do amor romntico, o puro amor206.
Moyses Cintra pensava quase do mesmo modo que o escritor Tuca. Ao referir-se as mulheres
lavadeiras de roupas, Cintra fez exaltao s mulheres mestias e jovens simples. Tinha orgulho de v-
las vestidas humildemente: de ps descalos, tranas cahidas as costas, possuidoras de um semblante
cor de jambo. Enfim, tudo o que a natureza agraciou a mulher formosa sem artifcios. Essas mulheres
eram virtuosas por desconhecerem as modas das cidades chics. Aos sbados entregavam os seus
trabalhos semanaes e recebiam seus salrios. Quando iam a uma festividade religiosa na vila,
acompanhavam os pais. Assim transcorriam suas vidas at que um dia encontrassem um violeiro para
completar a sua felicidade. Na Capital era diferente: as modas despertavam as piores atitudes em jovens
e velhos, desde as ms leituras at outros passatempos perigosos, passatempos que concorriam para
completar as innumeras illuses do mundo. Por isso mesmo, o autor, admirava as jovens simples e
humildes, lavadeiras moreninhas e todas que possuam os dons da natureza sem phantazias207.
Na opinio de R. Asobrac, o quadro das relaes afetivas entrelaadas aos objetos embelezadores
do corpo, na poca do progresso, transferiu-se para o casamento, pois os jovens encontravam o ideal
material como um meio de estabilizar-se na vida. Entretanto, as mulheres tinham em mente o critrio da
moda quando iam escolher seus parceiros, pois no queriam saber de pieguices de Romeus fra de
moda, nem de sua posio social ou moral. Faziam questo das calas largas, jaqueto curto, gravatas
listradas e das costelletas Rodolpho Valentino, o extincto imperador da futilidade.
Quanto aos rapazes, estes, eram menos exigentes, contentavam-se com o charleston e
com o dote, desde que este fosse uma somma regular. Elles por sua vez tinham razo
pois se a vida naquele tempo, custava os olhos da cara; a comear dos alugueres que
custava uma exorbitncia, iam acabar nos gneros de primeira necessidade (...). A vida
estava difficil (...). Mas era foroso casar-se. (...) Pior para elle, casava ou pagava
imposto.O conselho de ministros da bella Itlia, rejovenecida pela forte tempera de
Benito Mussolini, aprovou o projeto de lei que estabeleceu o imposto sobre os
205
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 6.04. 1924, pp. 2.
206
Amor e Jazz. O Clarim dAlvorada, So Paulo; 24.01.1926. pp. 4.
207
As lavadeiras. O Clarim dAlvorada, So Paulo: 27 de dezembro de 1925, pp. 3.
86
solteires; diziam que a dita lei, deveria ser creada aqui no Brasil. Mas a nova
tributao, no attingiu as mulheres, o que no parecia justo. As noticias telegraphicas
diziam: que o bello sexo ficou isento de tal imposto, por ter o conselho reconhecido que
as mulheres no se casavam porque no encontravam quem as queriam". Poder-se-ia
admitir semelhante hypothese?208
O casamento
Cetro da Creoula
E as nossas creoulas, esses tipos que no rendem juros, raros de uma beleza sem par,
no tem o seu valor para se fazer um concurso, para comprovar os seus dons de beleza,
a graa incomparvel do seu sorriso, a que tem nos olhos toda meiguice e nos lbios a
candura imprescindvel de um beijo doce quente e sincero de uma mulher que sabe
amar e ser amada.
(...) J se tem escrito tanto sobre o valor das morenas, dos seus enlevos, dos seus
amores; do encanto das loiras, e da graa das mulatas! (...) da efgie sempre lembrada
da me preta e na atualidade, esses tipos novos que surgem filhas diletas de uma raa
forte, que se ramificara em todos os pontos da grande terra brasileira, ainda continua a
ser ouvidadas nos tempos de hoje. Como so conformadas as nossas irms creoulas.
Elas assistem todas essas transformaes prprias da evoluo do povo brasileiro, com
a indiferena prpria das suas manias com o sorriso de uma reflexo toda adquirida de
um corao magnnimo. A creoula no momento que passa, destinada a ser a mais
conformada sentimentalista209.
Segundo o escritor frentenegrino, anterior, a negra perdeu terreno para as mulheres louras e
mestias devido ao forte sentimentalismo expresso em seu corpo: meiguice nos olhos, candura nos
lbios, beijo doce e quente e saber amar. O que faltava nela para arrebatar as concorrentes, nas relaes
com os homens e nos concursos de beleza, mesmo considerando a fortaleza de seu corpo, era
acompanhar o progresso da apresentao corporal e o traquejo da seduo (conquista, encanto). Essa
reflexo foi apresentada numa nota de carnaval. A loirinha que se fazia presente em todos os recantos
208
87
perdeu a sua graa, e o prestgio da mestia, aquele que nos acompanhava h muito tempo continuava
com seu mandato. Como se as louras de olhos de cristal, em breve, fossem esquecidas. Cogitava-se,
contudo, fazer uma festana, no sbado de aleluia, para coroar-se a paulistana mais linda, estando entre
as fortes candidatas, ainda, a loura e a mestia.
Na imprensa, os homens desprestigiaram os corpos femininos e todo o papel social desenvolvido
pelas mulheres na sociedade, pois at quando exaltaram a sensualidade da mulher negra e mestia
reconheceram que essas poderiam fazer parte do grupo das belas sedutoras, as incapazes de manter
relaes slidas com os homens, as promscuas, valorizadoras dos suplementos embelezadores da moda
e do dinheiro, que levariam o homem para a degradao moral e fsica. Enfim, mulheres que
contrastavam com as possuidoras de virtuosismos, as mulheres simples, fiis, modelos de esposa. certo
ainda que as possuidoras de virtuosismos degradavam as imagens de certos grupos masculinos, pois
apesar de amarem e saberem ser amadas, estavam completamente fora do progresso indumentrio
feminino.
Podemos considerar que uma mulher que conhecia o progresso da ornamentao teria a
possibilidade de carregar as caractersticas positivas atribudas virtuosa, bem como a mulher
simplesmente ornamentada poderia carregar os elementos negativos da bela sedutora. No obstante, o
que temos so construes das imagens idealizadas das mulheres na imprensa.
Preferir a mulher loura para uma slida relao era reconhecer que esta possua virtudes. Mas
ser que esse virtuosismo no vinha acompanhado dos elementos negativos da bela sedutora? Em
segundo lugar, a preferncia destinava-se s mestias, pois acreditava-se que seu tipo de beleza,
aproximava-se do tipo da mulher branca, com o acrscimo da pontinha de fogo, da lasciva atraente que
lhe dava o sangue negro210. Maria Isaura Pereira de Queiroz afirma que, no Brasil, a mulata tem sido
esttica e sexualmente valorizada, podendo-se dizer que em geral encarna o eterno feminino 211.
Reiterando as informaes da antroploga, tem de se lembrar que a "exaltao das mulatas nos
temas populares alcana o humorismo que se avizinha estreitamente do deboche"212. Na verdade, como
diria Tefilo de Queiroz, o mestio um elemento dialtico, constitudo de um processo irreversvel da
miscigenao. A presena da mulata, pelo seus dotes fsicos, tolervel como um mal necessrio. Assim,
ela tratada literalmente como a prpria sntese do elemento social contraditrio e perturbador. Como
tipo literrio, direta e intensamente associada s suas caractersticas tnicas e aos esteretipos
corporais. Nas descries das mulatas assinalam: o colorido de sua pele, distribudo por vrios tons, o
210
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em So Paulo. Op. Cit., pp. 181
211
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Revista Cincia e Cultura, Op. Cit., pp. 655.
212
BORGES PEREIRA, Joo Baptista. Cor, profisso e mobilidade. Op. Cit., pp. 182.
88
bem torneado de braos e pernas, mos e ps pequenos, a cintura fina, o busto insinuante e bem
moldado, a boca sensual, de dentes sadios, os bastos cabelos negros, os olhos grandes e belos e quase
sempre negros. Esse tipo literrio dotado de recursos estticos apesar de perder para a negra, ainda
presa a uma distino do trabalho. Tais atribuies corporais tambm lhe fazem perder para a branca,
que preservada pela moral e pelas leis e reconhecida como a mais dotada para funes nobres: de
esposa e de me de famlia213.
Baseando-se nos dotes estticos e virtuosismos femininos o autor analisou as mestias descritas
por Gregrio de Matos (Boca do Inferno), Manuel Antonio de Almeida (Memria de um Sargento de
Milcias Vidinha), Joo Felcio dos Santos (Joo Abade Maria Olho de Prata), Guimares Rosa (A
Estria de Llio e Lina Jini), Bernardo Guimares (A escrava Isaura), Aluzio Azevedo (O cortio
Rita baiana) e Jorge Amado (Gabriela). Nas descries de Aluzio Azevedo Rita baiana a mulata
bonita, dana com sensualidade, como meneios cheios de graa irresistvel, simples, primitiva, feita toda
de pecado, toda de paraso, com muito de serpente e muito de mulher. A Gabriela, herona de Jorge
Amado, possui o cheiro do cravo e a cor da canela. Ambos, poderosos apelos a exotismos apetitosos,
que aguam a gula e apelam a origens do tipo tnico a que pertence Gabriela. O cravo e a canela
lembram especiarias que se associam facilmente a idias de sensualidade e poderio. A condio desse
tipo de mulata estimula os brancos conquistadores, vidos de satisfao para seus sentidos, no extico
de outras terras, de outros aromas, de outras mulheres214.
No Progresso, a beleza da mulher negra e mestia, brasileira e norte-americana, diz mais respeito
sensualidade, como se ao embranquecer elas perdessem a cor, o principal quesito de seduo, e ao
amorenar-se a mulher branca adquirisse o toque da seduo. Perder um trao africano de tradio aqui
est relacionado sensualidade, tanto que as naturalmente de cor escura estiveram em vantagem
quando comparadas com as que conquistaram o bronzeamento pela tcnica solar. Embora os homens da
imprensa negra preferissem as mulheres brancas para o casamento215, no as consideravam sedutoras:
216
Progresso, So Paulo: 13. 01. 1929, pp. 3.
217
A Voz da Raa, So Paulo: 11 de agosto de 1934, p. 1. Nos anos 30 o mestio transformou-se em cone nacional, em um
smbolo da nossa identidade. Identidade cruzada no sangue e sincrtica na cultura, isto no samba, na capoeira, no
candombl e no futebol. Valorizao que se concretizou no plano verbal e no no cotidiano: as populaes mestias
continuaram discriminadas. A convivncia harmoniosa entre a populao brasileira foi aos poucos sendo gestada como um
verdadeiro mito de Estado. A partir dos anos 30 a idia da democracia racial foi difundida e esteve presente na obra de
Gilberto Freyre. Antes da dcada de 30 a miscigenao significava no mximo uma aposta no branqueamento
218
Sobre o mito da sexualidade desenfreada dos negros importa recorrermos ao pensamento de Frantz Fanon, que em 1952
escreveu que as intenes atribudas ao negro so muitas vezes desejos recalcados dos brancos, so desejos que no tm a
aprovao da moral reinante. As fantasias sexuais dos brancos sombolizam a nostalgia de uma poca em que todo tipo de
liberdades sexuais seria permitido. Orgias sexuais, incestos, etc, so projetados nos negros. O negro simboliza o mal, a
sujidade, isto as profundezas do inconsciente do branco. O comportamento do negrfobo est estreitamente ligado a
conflitos que ele no resolveu. No entanto, todos sabem que a superioridade sexual do negro no real. Nesta situao o
negro reage sob auto-acusao. No processo de auto-acusao o negro recorre a identificao com o branco. A busca do
branqueamento se concretiza. O negro assume a cultura branca. Aquele que amaldioado, negado passa a ser embelezado
por mscaras brancas. Em algumas capitais neocoloniais da frica, um dos produtos mais vendidos na farmcia, passou a ser
o que tinha a faculdade de tornar a pele mais branca; Fanon costumava direcionar seu pensamento sobre o drama do
racismo para os povos colonizados, sobretudo, para os colonizados pela Frana (Martinica e Arglia). Cf. FANON, Frantz.
Pele negra, mscaras brancas. Notas sobre o pensamento de Frantz Fanon Grupo de estudos sobre o pensamento poltico
africano do CEAA. In: Revista de Estudos Afro Asiticos, n. 5, 1981, pp. 5-39.
90
Uns tornavam-se sedutores profissionais, colecionavam virgindades, o que tirava maior nmero era
taxado de macho219.
Menos pela presena do esteretipo do corpo masculino negro e mais pela tentativa em viver
com independncia sexual, algumas das comunidades femininas negras desdenhavam a postura
irresponsvel do homem. As senhoras ouvidas por Teresinha Bernardo, moradoras das regies de
Pinheiros, Penha, Barra Funda, Freguesia do , Brs, Ipiranga, Bom Retiro -Campos Elseos, Casa
Verde, Penha, nas primeiras dcadas do sculo XX, narraram as diversas formas que utilizavam para no
ter filhos indesejados, fato que a pesquisadora interpretou como a negao da prpria cor, isto ,
produto da interiorizao de valores dominantes, ditados pelos brancos. Era o fenmeno de
branqueamento que se refletia na recusa maternidade, na relao afetiva com o homem negro. Em
ltima instncia, a autocondenao extino, no s como indivduo, mas como elo na cadeia de
geraes, tendo muito a ver com a prpria etnia220.
Complacente com a realidade das interlocutoras, a estudiosa justificou esta maneira delas se
portarem, pela vivncia na liberdade sexual, maneira pela qual separavam a sexualidade da procriao e
possuam mtodos contraceptivos. Benedita tomou um remdio chamado garrafada, feito por uma
feiticeira moradora da Freguesia do . E Dona Cacilda, tomava um certo cuidado, mas se caso
engravidasse, fazia aborto, como as brancas, fazia aborto com a parteira. A famlia matrifocal, no dizer
de Bernardo, teve sua raiz na frica e marca profunda no regime escravocrata brasileiro, por isso
relacionou os mtodos abortivos fora dos costumes, dos costumes sobrepostos aos valores da
sociedade inclusiva.
Na Barra Funda, lugar predominantemente de negro, a presena feminina tambm foi marcante
nas habitaes coletivas. Abrigaram diversas tias africanas com seus cls, que praticavam o jongo,
macumba e samba de roda como extenso da prpria vida familiar. Uma das tias africanas mais
populares na Barrra Funda foi a Tia Olimpia, uma negra bonita, com porte de nobreza que organizava
festas num terreiro situado na rua Anhanguera na Barra Funda. Tia Olimpia e as demais tias africanas,
asseguradoras dos traos culturais e simblicos no interior dos pores, cortios e terreiros, trajavam-se
como verdadeiras rainhas africanas221. Embora no tenhamos em discusso a forma como encaravam a
chegada de um filho negro, observamos que nesse universo as mulheres cultuavam a indumentria de
origem africana.
219
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em So Paulo. Op. Cit., pp. 183.
220
BERNARDO, Teresinha. Memria em Branco e Negro, Olhares sobre So Paulo. Op. Cit., pp. 47-117.
221
SILVA, Jos Carlos Gomes da. Os sub urbanos e a outra face da cidade. Negros em So Paulo (1900-1930): cotidiano,
lazer e cidadania. Op. Cit., pp. 59.
91
O pesquisador Nina Rodrigues diria que as mulheres adotaram e conservaram vesturios de
origem africana. As operrias pretas usavam saias de cores vivas, de larga roda. O tronco coberto da
camisa era envolvido no pano da Costa, espcie de comprido chale quadrangular, de grosso tecido de
algodo, importado da frica. Na cabea traziam o torso, triangulo de pano. Este vesturio, sobretudo
usado pelas negras da Bahia, valheu-lhes no resto do pas o qualitativo de baiana. O uso do torso
obrigava as mulheres que no tinham os cabelos carapinhos a traz-los cortados cerce, eliminando
assim os penteados. Nos Estados do Norte, porm, as negras que tinham cabelos mais longos traziam
penteados complicados. O preparo da cabeleireira se convertia num trabalho artstico de execuo bem
demorado. As negras ricas da Bahia carregavam o vesturio a baiana de ricos adornos. Vistosos
braceletes de ouro cobriam os braos at o meio, ou quase todo; volumoso molho de variados
berloques, com a imprescindvel figa. A saia era de seda fina, a camisa de alvo linho, completando o
vesturio, especiais sandlias, que mal comportavam a metade dos ps222.
Outro pesquisador fez uma descrio bem anloga a de Rodrigues sobre a indumentria negra
brasileira que tem origem africana. Segundo Freyre, as vendedoras de guloseimas tambm usavam peas
de roupa e objetos maometanos. Na Bahia, no Rio, no Recife, em Minas, o traje africano de influncia
maometana permaneceu longo tempo entre as pretas doceiras, e entre as vendedoras de alu. Algumas
delas eram amantes de negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e cetim e usavam jias e
cordes de ouro. Figas da Guin contra o mau-olhado. Fieiras de miangas. Colares de bzio.. Na
dcada de 30 quando o autor escreveu o seu livro ainda se encontravam pelas ruas da Bahia negras de
doce com os seus compridos xales de pano-da-Costa. Vestidas de muitas saias: por baixo o linho alvo,
por cima a saia nobre, adamascada, de cores vivas. Rodilha em turbante muulmano. Chinelinha na
ponta do p. Eram, em geral, pretalhonas de elevada estatura, as negras comumente chamadas de
baianas223.
As mulheres interpretadas por Santos tinham um modo de vida bem prximo das interlocutoras
de Bernardo. Analisando a vivncia das mulheres do Bexiga a autora reconstruiu o mundo das mulheres
negras atravs da histria oral, resgatando a visibilidade delas nos cantos escondidos da casa, nos
tanques, nas cozinhas, nas lavanderias, nas mquinas de costura. Outro importante fator para a temtica
desta pesquisa que nos informa da dificuldade das moradoras do Bexiga em comprar roupas novas;
assim eram obrigadas a fazer prestaes com o turco vendedor de roupas, tanto novas quanto velhas. Os
222
RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil, Op. Cit., pp. 119
223
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala, Op. Cit., pp. 316.
92
padrinhos tambm eram responsveis pelo adornamento de alguns corpos, pois alm de cuidar das festas
de aniversrio e batizado dos afilhados, faziam a manuteno das roupas224.
Bem prxima dos anseios dos artistas negros, podemos enquadrar uma parte das mulheres negras,
que desejava dar demonstraes pblicas do seu status, paralelamente pretendia esbanjar do bem estar
material e adequar-se aos padres culturais paulistanos. Quem resistia ao modo de vida paulistano era
logo recriminada. Segundo Deborah Santos as mulheres desassociadas eram desvalorizadas por falar
alto, danar samba, a umbigada, a gafieira, freqentar festas sozinhas em ambiente no familiar, brigar
em pblico, andar com maus elementos, serem analfabetas, freqentar macumba e finalmente vestir-se
sem decoro. O vestir-se sem decoro desenha-se como uma maneira das associadas negras se dirigirem
s outras que no se revestiam da mais fina pelcula. E a referncia imoralidade vem ratificar as vises
dos que incompreendiam poder as pessoas morar em cortios distantes da promiscuidade225.
Sobre as relaes sexuais dos negros interessa trazer as reflexes de Fernandes. Em sua viso a
idia do homem ou da mulher bestial no se aplicava ao seu comrcio ertico, como queria a tradio
cultural. Discordando da tradio cultural o autor fomentou: s errou ao atribuir tal propenso suposta
natureza humana do negro e do mulato, querendo dizer que, os negros agiam de forma desenfreada em
relao ao sexo no porque fossem mais quentes, mas principalmente, porque o sexo se erigiu na
nica rea livre de exerccio das aptides humanas e numa esfera ldica da cultura. Detalhando mais
essa sua generalizao em relao coletividade negra: o que importa o fato elementar de que o negro
foi despojado e excludo de tudo menos do seu corpo e das potencialidades, elementos que o
incoporava condio humana. Tudo acabou girando em torno do sexo e da arte ertica, porque foi
nesse terreno que o negro e o mulato viram abertos diante de si todos os caminhos que os conduziam ao
prazer e perdio, mas tambm os levavam a redeno e ao amor. Relacionou a vivncia sexual dos
negros escravizados das tribos africanas:
tal coisa no sucedia nas tradies tribais perdidas nelas, a vitalidade, a alegria e a
pureza do prazer sexual exprimiam-se segundo certas regras, que incluam o respeito
por si e pelo parceiro da atividade ertica. Foi a escravido que suprimiu essas
barreiras e tda delicadeza ingnua mais refinada que coroa a ligao do homem e da
mulher segundo os modelos tipicamente africanos. Impedindo as escolhas dos parceiros
e at dos momentos para os encontros amorosos 226.
SANTOS, Deborah Silva. Memria e oralidade: mulheres negras no Bexiga - 1930/40/50. So Paulo, Dissertao de
224
226
FERNANDES, Florestan. A integrao do negro sociedade de classes, Op. Cit., pp. 131-135
93
Nesta relao entre o comportamento sexual das tribos africanas com o comportamento da poca
escravocrata o autor concordou com Gilberto Freyre, que comentou: passa por defeito da raa africana,
o erotismo, a luxria, a depravao sexual. Mas o que se tem apurado, entre os povos da frica, como
entre os primitivos em geral, a maior moderao do apetite sexual que entre os europeus. O negro
africano para excitar-se necessita de estimulos picantes. Danas afrodisacas. Culto flico, orgias.
Enquanto que no civilizado o apetite sexual de ordinrio se excita sem grandes provocaes227
A populao negra foi desalojada do Centro Velho de So Paulo quando comearam os trabalhos
de melhoramento da Capital, as grandes operaes de renovao urbana que se iniciaram durante a
administrao de Antonio Prado (1889-1911). As ruas foram alargadas, os mercados demolidos e
transferidos, construram praas e boulevardes. Esboaram o desenho de um centro burgus de ruas
largas e fachadas uniformemente neoclssicas, que seria exclusivo das classes dirigentes: seu espao de
trabalho, diverses, comemoraes cvicas e religiosas. Durante o governo de Raymundo Duprat (1910-
1914) as reformas foram, em sua maioria, realizadas. Para a construo da Praa da S e a remodelao
do Largo Municipal, os cortios, hotis e penses das imediaes foram demolidos. Est ligado a esse
processo de limpeza do centro a expanso e consolidao do Bexiga como territrio negro em So Paulo.
Nas palavras de Raquel Rolnik a imagem da marginalidade foi tambm identificada como
prpria da habitao coletiva: a intensidade de uma vida em grupo no familiar e a densidade dos
contatos do dia-a-dia contrastavam com a organizao da casa burguesa (familiar, isolada, inteiramente
dividida em cmodos com funes e habitantes segregados). A marginalidade era associada a um
conjunto de gestos, um jeito do corpo. Se, para parcela da comunidade negra paulistana, a linguagem do
corpo era elemento de ligao e sustentao do cdigo coletivo, para a classe dominante branca crist a
freqncia com que os negros danavam a umbigada, se requebravam e se abraavam publicamente,
desafiava os padres morais. No aspecto religioso, a presena dos terreiros e das prticas religiosas
africanas completavam o estigma: a crendice, a religio primitiva, afrontava a religio oficial 228. Os
negros menos pobres tentavam incorporar-se aos modos de vida urbano.
De acordo com esta autora,
o cortio jamais foi reconhecido sequer com questo urbana. Durante curtssimo
perodo, as autoridades mdicas usaram como estratgia de combate s epidemias na
cidade a desinfeco dos cortios, o que poderia implicar inclusive sua demolio. J
na segunda metade do sculo, o cortio desapareceu por completo do campo da
interveno urbanstica, embora nos ltimos cem anos no tenha parado de se
reproduzir, reinventar, relocalizar. Dos casares recm abandonados no Velho Centro
subdivididos por sublocadores, os cortios foram ocupando os cases dos Campos
227
FREYRE, Gilberto de Mello. Casa-grande & senzala, Op. Cit., pp. 316
228
ROLNIK, Raquel. Territrios Negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em So Paulo e no Rio de Janeiro). IN:
Estudos Afro-Asiaticos, n. 17, 1989, pp. 33-34.
94
Elseos, da Liberdade, do Cambuci, do Brs. E as sucessivas periferias o
reproduziram229.
Analisando a obra de Alain Corbin Saberes e Odores a pesquisadora informa que segundo
Corbin a partir do sculo XIX, cada vez mais a preocupao com os odores ftidos da terra, da gua
estagnada, do lixo cedeu terreno para os odores da misria, para o fedor do pobre e da habitao infecta.
Deslizamento da vigilncia olfativa da natureza para o social, do exterior para o interior, que induz uma
estratgia disciplinar na qual desinfeco e submisso so assimiladas simbolicamente: o sonho de tornar
o pobre inodoro sugere a possibilidade de construir trabalhador comportado e produtivo.
Traando os territrios negros cidade de So Paulo, Rolnik informou que na dcada de 20, na
Barra Funda, Bexiga, Liberdade, alm de certos pontos da S, no s moravam negros importantes,
como existiam escolas de samba, terreiros, times de futebol e sales de baile. Na dcada de 30 a autora
observou um movimento geral de periferizao das classes populares; o antigo padro do cmodo de
aluguel superdenso e da cidade limitada ao percurso do bonde foi gradativamente cedendo lugar a
chamada expanso perifrica, caracterizada pela abertura de loteamento e pela autoconstruo em bairros
distantes da rea equipada da cidade. Para parcela da comunidade negra a desmarginalizao colocava-
se claramente em termos territoriais era preciso sair dos cmodos e dos pores para organizar um novo
territrio negro, familiar. Esse foi um dos lemas da Frente Negra Brasileira. Uma das aes concretas
dos membros da Frente Negra Brasileira foi comprar terrenos em loteamentos recm-abertos nas
periferias da cidade e fundar ncleos formados por casas prprias. So exemplos dessa nova forma de
territorializao a regio da Casa Verde, Vila Formosa, Parque Peruche, Cruz das Almas e Bosque da
Sade. Bairros inicialmente sem qualquer infra-estrutura e distantes do Centro comearam a edificar
casas prprias em lotes comprados.230
O conforto requerido constantemente, sobretudo pelos militantes dA Voz da Raa, era, no
mnimo, fruto de uma idealizao. Alm de Rolnik, o pesquisador Bruno exasperou diante da infra-
estrutura da Capital nos aspectos transporte coletivo, energia eltrica e gua. Em suas anotaes
encontramos que depois de 1920 o nmero de bondes foi reduzido em conseqncia da crise de energia
eltrica determinada pelo desenvolvimento excepcional da indstria paulistana. Os primeiros nibus
urbano surgiram, ento, em 1924, considerados pelo autor, pequenos, feios, sem nenhum conforto,
comportando em mdia de dez a doze passageiros. Circulavam pela cidade trinta ou quarenta deles,
229
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei Legislao poltica urbana e territrios na cidade de So Paulo . So Paulo: FAPESP,
Estdio Nobel, 1997, pp. 4-185.
230
ROLNIK, Raquel. Territrios Negros nas cidades brasileiras (etnicidade e cidade em So Paulo e no Rio de Janeiro), Op.
Cit., pp. 35-39.
95
montados em geral sobre chssis de caminhes Ford. Quanto ao abastecimento da gua repetiam-se em
torno de 1920 as graves crises, sobretudo na poca da estiagem. Decidiu-se pela construo da adutora
de Rio Claro e resolveu-se apelar para as guas da represa Guarapiranga, em Santo Amaro, cuja aduo
amenizou a situao. A crise no abastecimento retornou em 1937, quando foi feita a aduo de
emergncia do ribeiro Vargem Grande, que cruzava a adutora de Rio Claro, comeando ento a vinda
da gua desde Poo Preto at So Paulo231.
O desemprego estava enraizado nas crises vividas pela populao de So Paulo, o que fazia com
que os negros criassem suas estratgias de sobrevivncia, especialmente as mulheres negras. Os
escritores frentenegrinos vo criticar algumas dessas estratgias. Os suplementos embelezadores
recebidos pelos negros, no entendimento dos frentenegrinos, criavam circunstncias vexatrias e
situaes delicadas, principalmente quando entravam no nvel da troca de favores. Neste sentido, Prola
de Castro, um escritor do jornal A Voz da Raa, em Palavras de Rioclarense, apelou para que o negro
paulista deixasse de dar importncia aos interesses dos polticos brancos porque eles s sabiam
valorizar o negro, quando este era seu capanga, o seu cabo eleitoral. E assim a troco de sapatos e roupas
velhas que nada representavam, foi com grande pesar que viram certos negrides e mulatides
deixarem se levar a troco de quinquilharias232. J Horcio da Cunha reclamou das mulheres negras do
Bexiga, e de outras localidades, que aceitavam objetos em virtude da necessidade de trabalho: Do
meu caminho tenho ouvido muitas das nossas irms negras e mulatas dizer: - Negro!... S para
compadre; sabem meus irmos por qu elas falam assim? porque elas no tiveram quem lhes dessem
um conselho, instruo e educao; somente lhes deram uma roupa para se apresentar na sociedade a
troco de servio233.
As troca de favores criavam situaes mais complicadas. Conta esse fato a depoente de
Bernado, enfocando o acionamento da polcia pelas patroas, na ocasio que davam por falta de qualquer
objeto de adornamento corporal. Assim, exemplarmente, relatou D. Ins das suas lembranas do footing
da Rua Direita e da Rua So Bento:
Na rua, se disputavam trajes. Havia separaes pela roupa. As mulheres mais pobres, as
mais ricas. Pela roupa, eu percebia tudo. s vezes, quando dava pegava escondido a
roupa da patroa. E a eu ia muito chique e muito nervosa, porque dava cadeia. Mas teve
poca que at de chapu eu fui. E os sapatos? J viu preta de sapatos fechados? s vezes
eram nossos, s vezes eram emprestados, s vezes quando dava tambm o sapato eu
tirava do guarda roupa da patroa. Mas como doam os ps! Roupa apertada v-la, mas o
231
BRUNO, Ernani Silva. Histria e tradies da cidade de So Paulo, Op. Cit., pp. 1351-1356.
232
A Voz da Raa, So Paulo: 5.08. 1933, pp. 4.
233
----------: 19. 08. 1933, pp. 4.
96
sapato a perdio! (...) no era bom no, com o p doendo como a gente ia olhar para
os moos?234.
O homem negro, igualmente vaidoso, se lembrou dos passeios dos fins de semana, do lazer e do
crescente achincalhamento em torno da sua figura. Segundo Durvalino, que s trabalhava e nunca tinha
sossego e dinheiro para se divertir, disse que o nico lugar existente para passear era o footing, local que
freqentava aos sbados e domingos, vestido nas suas melhores roupas. Os homens de terno branco, de
linho legtimo e de palheta. Estratgia usada por boa parte dos homens negros e de raro significado para
os jornalistas do Estado de So Paulo e do Correio Paulistano, que registravam a passagem desses
negros como momento de enfeiamento da cidade235.
Em maro de 1937, A Voz da Raa teceu uma crtica s zombarias em torno dos passeios dos
negros pelo centro da cidade, justificando que o intuito no era proclamar passeios integrantes dessa
mesma sociedade, mas reivindicar o direito natural de quem durante a semana se entregava aos rduos
trabalhos, cooperando firmemente para o desenvolvimento da paulicia. Ademais, um
Francisco Lucrcio registrou que a F.N.B chegou a realizar passeatas, protestos e combates nas
ruas de So Paulo, contra a campanha feita pelos lojistas, os quais tentavam proibir a circulao de
elementos negros na rua Direita 237. A rua Direita era um importante centro comercial e a mais chique
234
BERNARDO, Teresinha. Memria em Branco e Negro, Olhares sobre So Paulo. Op. Cit. pp. 47.
235
BERNARDO, Teresinha. Memria em Branco e Negro, Olhares sobre So Paulo. Op. Cit. pp. 117.
236
A Voz da Raa, pp. 1.
237
LUCRCIO, Francisco. Memria histrica, A Frente Negra Brasileira. Op. Cit., pp. 335.
97
da cidade no dizer do cronista Alcntara Machado. Com o passar dos anos perdeu sua posio para a
Baro de Itapetininga238.
O footing tambm foi comentado por Rajovia e creditada aos homens de cor: um dos dados
deplorveis que vem caracterizando os homens de cor da atual gerao , sem dvida, o malfadado
passeio da rua Direita. Isso facilmente verificvel e doloridamente incontestvel. Suas reclamaes
estiveram centradas no aspecto corrompimento social e degradao moral. Acreditava, pois, que no
havia motivos que atenuassem aquela demonstrao de degradao moral, insistindo na culpabilidade
dos sujeitos, no apenas negros, ali presentes. Era necessrio que todos da sociedade conhecessem as
regras de comportamento social para que assim o progresso pudesse vigorar:
Ao mesmo tempo Rajovia aproveitou para denunciar que os negros eram punidos por no
respeitarem os princpios e as normas sociais e coletivas daquela localidade. Num segundo momento,
usando de um tom meio satrico, responsabilizou a gentinha pela desordem que enxergava. A descrio
de Rajovia comeou a comprovar nossa interpretao:
No somos, ainda, uma sociedade forte na estrutura econmica e, por isso mesmo, no
podemos crear antagonismos entre o interesse individual e o interesse social, pois que
se fora assim, em face dessa derrocada, uma fora seria levantada, coagindo, at a
violncia, os indivduos obedincia dos preceitos de sociabilidade e de moral, teis a
conservao e ao equilbrio da sociedade.
A rua Direita. Corrompimento Social/Degradao Moral
Defendeu a punio (a violncia) para as pessoas que desequilibravam a sociedade, que poderiam
contaminar as moas virtuosas e os rapazes honestos. Protestou contra a postura dos homens e das
238
BRUNO, Ernani Silva. Histria e tradies da cidade de So Paulo, Op. Cit., 1364.
239
A Voz da Raa, So Paulo: abril de 1937, p. 1.
98
mulheres que perambulavam pela localidade, pelos bares. Quase disse abertamente estar se referindo aos
moradores de rua e as prostitutas:
240
BERNARDO, Teresinha. Memria em branco e negro, Olhares sobre So Paulo. Op. Cit., 120.
99
seduzidos pelas empregadas negras, as famlias portuguesas ficavam revoltadas com o esteretipo dos
seus antepassados (amantes da Vnus Negra), e despachavam as candidatas do emprego. Francisco
Lucrcio comenta que muitas famlias comearam a aceitar empregadas quando se criou a Frente Negra
Brasileira. Chegou-se a ponto de exigir que essas negras tivessem as carteirinhas da Frente, e alm
disso, ironicamente, afirmou que eram importantes na poca as empregadas domsticas, principalmente
as negras, pois elas sabiam lidar com a cozinha, com a limpeza 241. As empregadas eram preparadas para
repelir os insultos. Da, tambm, resultavam frices e conflitos. O resultado que muitas patroas
passavam a evitar as negras frentenegrinas242.
Nesse cenrio de embates culturais, estticos e hierrquicos envolvendo a mulher negra e a
mulher branca, a confuso era ora resolvida na polcia, ora dirigida para os jornais ou ainda resolvida,
brutalmente, nos interiores das casas de emprego. Na lembrana de D. Ins, emerge o espancamento:
em 1930, nesta cidade, tinha patroa que usava chicote, e a gente ficava quieta! 243.
No caso transcrito do jornal O Dia pelo jornal A Voz da Raa concluiremos que nem todas as
empregadas ficavam quietas perante a violncia da cidade que se queria civilizada, inclusive,
conheceremos mais uma das tcnicas de espancamento utilizadas pelos patres. Izolina da Conceio, de
22 anos de idade, relatou que: na tarde do dia 24, vspera de Natal compareceu Quarta Delegacia de
Polcia, na Avenida Paulista, afim de apresentar uma queixa, pois estava ferida e ensangentada. Depois
de esperar horas na Quarta Delegacia e de ter se dirigido Central, sem conseguir ser atendida, resolveu
procurar o jornal O Dia para contar o episdio e para que tomasse providncias. Segundo O Dia, a
jovem foi sua redao porque o jornal defendia os pobres. Acompanhemos o relato de Izolina:
100
Na primeira pgina, A Voz da Raa continuou comentando o caso de Izolina da Conceio,
baseando-se nos princpios cristos, nos quais as relaes entre patres e empregados deveriam ser
norteadas. Os patres no deveriam explorar os empregados simplesmente porque pagavam a eles um
ordenado no final do ms. Na argumentao do escritor annimo do jornal os princpios cristos
entrelaavam-se aos direitos da trabalhadora Izolina, direitos que tambm foram defendidos
fervorosamente pelo jornal, apagando a argumentao dos patres que ratificavam que a empregada
queria o dinheiro para farrear. Segundo A Voz da Raa cabia a Izolina decidir a qual destino dar seu
salrio:
O modo pelo qual os oradores negros se apresentavam nas cerimnias constituiu um dos fatores
que marcou a incoerncia nas propostas de embelezamento dos militantes e, portanto, da imprensa. Neste
sentido vamos perceber, por meio dos depoimentos dos prprios lderes negros, que um significativo
grupo de escritores da imprensa teve dificuldade financeira para adquirir certos objetos embelezadores,
apesar de reclamar dos transeuntes negros da cidade que estivessem muito aqum dos estilos de
ornamentao em voga. A bibliografia vem mostrando as dificuldades dos lderes em se apresentar bem
trajados para a conquista da ascenso social nas diferentes dimenses da vida.
101
Na entrevista Zeila Demartini, Jos Correia Leite contou, na pesquisa sobre o sistema
educacional da cidade de So Paulo, que desde a infncia teve dificuldade em cuidar da sua
ornamentao pessoal, fator responsvel pela sua ausncia nos bancos escolares, pois no possua nem
mesmo um calado para apresentar-se bem ornamentado245. Ao passo que a condio do presidente da
F.N.B foi contada no depoimento de Raul Joviano do Amaral: Arlindo Veiga dos Santos, chefe de um
movimento internacional, professor do So Bento, s tinha uma cala, um palet e um sapato
desbeiado246.
Outra vez, Raul Joviano do Amaral descreveu Vicente Ferreira como um dos maiores oradores
negros e falou que, quando houve a inaugurao da esttua de Ruy Barbosa no Vale do Anhangaba,
depois dos discursos oficiais e da disperso do pblico, um negro mal vestido, jornais debaixo do brao
tomou a palavra. Era Ferreira. Ele fez uma orao grandiosa sobre o Ruy Barbosa, cuja vida conhecia
muito. Aos poucos foram todos parando e voltaram para ouvir Vicente Ferreira247. No depoimento de
Jos Correia Leite a ambigidade no estilo de Vicente Ferreira: desleixado na maneira de vestir, barba
mal tratada, chapu roto na cabea, alto, quando falava se transformava num semideus. Ele era muito
feio, mas muito elegante...andava mal vestido, mas numa elegncia danada...Todos os negros que
gostavam de falar procuravam imitar Vicente Ferreira, s que eles no tinham o conhecimento de
Vicente Ferreira. Voltou para o Rio e morreu em Petrpolis, tuberculoso, por volta de 1934/35248.
Sendo assim coerente interpretar que para Vicente Ferreira a beleza do indivduo negro
representava-se pelo esplendor do discurso, pelo grau de meditao frente aos problemas emergentes,
nos quais se inseria a populao negra, e/ou o indivduo belo era aquele com pleno desenvolvimento das
capacidades cognitivas. Os cultuadores do seu jeito despojado de se apresentar, pensando nos associados
influenciados pela verso de embelezamento mais constante e menos constante na imprensa negra, os
cultuadores unicamente do embelezamento exterior do corpo, paradoxalmente, estiveram completamente
fora do seu conceito de beleza. Estiveram inseridas nesse conceito as pessoas que valorizavam mais a
beleza interna do que a beleza externa do ser humano. Na mesma fala de Correia Leite, no tocante
ambigidade do estilo de Ferreira, talvez, seja plausvel interpretar que Leite o enquadrou no mesmo
estilo de Arlindo Veiga: apesar de trajar-se socialmente usava terno, gravata e sapatos velhos.
245
DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. "A escolarizao da populao negra na cidade de So Paulo nas primeiras dcadas do
sculo". Op. Cit., pp. 58. Ver figura 16, foto de Jos Correia Leite.
246
PINTO, Regina Pahim. Movimento negro em So Paulo: luta e identidade. Op. Cit., pp. 88. Ver figura 19 imagem de
Arlindo Veiga dos Santos.
247
FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963), Op. Cit., pp. 84. Ver figura 15 imagem de Vicente
Ferreira.
248
FERRARA, Miriam Nicolau, A imprensa negra paulista (1915-1963), Op. Cit., pp. 85.
102
O estilo de Arlindo Veiga foi outro tpico intrigante porque, embora Raul Joviano tenha dito que
ele dispunha apenas de um velho uniforme social, nas fotos das manifestaes negras, podemos perceber
pela colorao e modelo de seus figurinos a diversidade do seu guarda roupa, ora ele apareceu de terno
preto, ora ele apareceu de terno cinza. A justificativa para a afirmao desfavorvel, de Raul Joviano
forma de Arlindo Veiga se adornar, ficou por conta do que se pode chamar de mania do meio negro: era
comum tecer comentrios brincalhes com o estilo de ornamentao do companheiro de movimento.
Esses depoimentos relativos ornamentao dos militantes tiveram uma conotao
homenageadora, crtica e engraada de se rememorar as figuras dos companheiros. Jos Correia Leite
comentou que os desfavorecidos da sociedade compravam na rua XV de Novembro. Naquele tempo
compravam na Belchior, casa de roupas usadas, que uns chamavam de Brao aberto ou Bricabraque.
Na casa adquiriram: bengala, palheta, sapato, vestido, polaina, cala, colete, camisa, chapu, luva - tudo
usado, penhorado e/ou em bom estado. Entretanto, nem todos podiam construir esse tipo de guarda
roupa. Eram obrigados a vestir roupa de brim barata, andar de chinelos ou descalos. Era o pessoal da
periferia: Barra Funda, Bixiga, Liberdade, Bom Retiro, Brs, eram bairros longes. Homens e mulheres
aderiram a esta prtica de comprar roupas dos mais variados estilos para compor um estilo
completamente despojado ou, freqentavam a Bricabraque na inteno de encontrar algumas peas da
moda, como disse Correia Leite: Qualquer coisa que surgia na moda, o negro dava um jeito sua
maneira. Fosse o que fosse: dana, roupa... 249.
Segundo Fernandes, aps a escravido, uma parte da populao negra para conseguir melhores
condies de vida dependia da proteo do branco. A herana das roupas usadas era o cartucho
para um emprego melhor. O problema do vesturio era muito grave e sem boa aparncia o negro no
podia pleitear uma colocao com perspectivas. Naquela poca, o negro nem podia pensar em roupas
de casimira, que eram por demais dispendiosas. Graas ao protetor branco, alguns herdavam at fraque
e cartola, que usavam nas grandes festas250.
Sobressaiu-se dos depoimentos dos militantes a impossibilidade financeira de compor,
minimamente, os seus guarda-roupas. Todavia, na viso de um frentenegrino, a moda beneficiava
sobremaneira o corpo feminino, vejamos:
Crnica Afeminada
De h muito que as mulheres andam implicadas com os homens, pela simples questo
de vestimenta.
No so poucos os momentos angustiosos que eles passam, por questo de uma reunio
ltima, ou mesmo em palestras num crculo onde predomina o elemento feminino.
249
CUTI. E disse o velho militante Jos Correia Leite, Op. Cit., pp. 45
250
FERNANDES, Florestan. A integrao do negro sociedade de classes. Op. Cit., pp. 61.
103
Acham elas...perdo achamos ns porque eu tambm perteno ao sexo fraco o
modo absurdo de como se vestem, de maneira invarivel.
-Cala, colete e palet. A qui variedade, capa; guarda-chuva (...) cinta no meio.
Sempre o mesmo estilo, sempre a mesma coisa do mesmo jeito.
Cala, colete e palet perdo novamente (...) o chapu e as caboclas (?) de quando
em vez.251
O escritor que assinou a crnica, com pseudnimo de Ana, revelou que os homens buscavam
vestir-se adequadamente para agradar, sobretudo, o sexo frgil, responsabilizado pela criao e
propagao da moda da indumentria:
Adornar-se de acordo com os preceitos da moda ou criar a sua prpria moda concedia destaque
para os homens no meio feminino. Os vrios usos de peas compositoras de um estilo simbolizavam para
o homem negro, enfim, o baluarte da seduo. Por isso mesmo, foi atravs da voz feminina, considerada
exmia conhecedora da moda, que o frentenegrino sugeriu aos homens diversificados modelos
masculinos de ornamentao, sobrepondo a importncia do conhecimento da moda s dificuldades em
adquirir peas embelezadoras. Numa segunda leitura do texto possvel perceber uma certa ironia por
parte do autor, questionando os inventores, cultuadores e preceitos da moda.
251
A Voz da Raa, So Paulo: julho de 1936, p. 3.
104
CAPTULO III ESPAOS DE VISIBILIDADE DA BELEZA NEGRA
Brincar com a imagem negra, sob a inteno humorstica, foi tarefa desenvolvida pelO Clarim
d'Alvorada, talvez, na inteno de apresentar os conselhos de beleza propostos pelo jornal e, criticando a
viso que a sociedade fomentava da esttica negra. Com certeza os organizadores do concurso
discordavam da viso depreciativa que se fazia comumente da vida diria do negro. Importante para o
promotor do concurso, o prprio Clarim dAlvorada, era tambm entregar prmio, visando garantir a
presena do participante, criticando de antemo desinteressantes promoes da outra imprensa destinada
ao leitor. de praxe os jornaes, de vez em quando, apresentar aos seus leitores e administradores,
surpresas: prmios aos assignantes concursos de beleza, sympatia, etc., ultimamente se preocupam os
105
jornaes de apresentar aos leitores problemas de formao de phases e perodos por intermdio das
palavras cruzadas252.
Ademais os organizadores associavam as pessoas pretensiosas feira. Sutilmente, era como se
fizessem questionamentos aos corpos que buscavam obter sucesso pela exibio de uma imagem
artificial, e/ou que tentavam exibir-se via uma posio de prestgio.
Alerta!...Muito cuidado; a opinio dos nossos presados leitores que dever nos auxiliar
no grande concurso que iniciaremos brevemente. Qual o preto mais feio e pernstico
desta Capital?...Ao premiado concorrente, daremos um bello prmio e promptificamos a
publicar a sua caricatura conforme no prximo nmero apresentarmos as condies do
determinado concurso253.
Num outro nmero, o peridico publicou o texto com o ttulo Qual o preto mais feio,
conclamando os leitores a apoiarem o concurso, que se encerraria na data de aniversrio do prprio
jornal, ou seja, em janeiro de 1926. Para colaborar, bastaria o leitor amigo adquirir os nmeros do
exemplar at a data do encerramento do concurso e ir votando na pessoa que lhe parecesse mais feia e
pernstica. O eleitor do concurso deveria enviar para a redao o cupom preenchido, indicando o nome,
o endereo e os locais freqentados pelo candidato ao ttulo de feira e de pretenciosidade. Ao vencedor
seriam entregues trs prmios, os quais seriam expostos 15 dias antes do encerramento do concurso na
sede de uma sociedade ou em uma casa comercial . A publicao de caricaturas dos premiados era
offertada como lembrana254. Todavia, o exemplar no apresentou todo o desenrolar da atividade,
assim ficamos impossibilitados de acompanhar as manifestaes do dia da entrega e de nomear o
condecorado com o ttulo. Esse concurso expressou, em segundo plano, um certo desconforto desses
homens dO Clarim dAlvorada em lidar com o cultivo e apresentao da beleza masculina, deixando
evidenciar que, nos concursos de beleza e no jornal, o smbolo do embelezamento era a mulher. Por isso
os concursos femininos foram mais extensos e veremos como essa responsabilidade de ser o smbolo da
beleza negra pesou para as mulheres condecoradas com o ttulo.
No conseguimos excluir a anlise do concurso de beleza feminino da cidade de Campinas, onde
ocorreu o primeiro concurso de beleza negra organizado pelo movimento negro, ou mais especificamente
promovido pelo jornal Getulino255 de 1920. Acompanharemos de que forma se deu esse grande evento,
252
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 27.09.1925, pp. 4.
253
-----------: 27.09. 1925, pp. 4.
254
O Clarim dAlvorada, So Paulo: 15.11. 1925, pp. 4.
255
O Getulino foi criado em 1923 e funcionou at 1926. Seu ttulo era: Orgam para a defesa dos interesses dos homens de
cr. Sua redaco e officina funcionavam na rua Luzitania, 135, em Campinas - (telephone: 315). Os redatores do jornal
eram Lino Guedes (chefe) e Gervsio de Moraes; os diretores proprietrios: Andrade & Moraes. A assinatura custava 10$000
106
conheceremos as candidatas, os escritores das notas dos concursos e, enfim, as reflexes dos homens e
das mulheres em torno do concurso de beleza. As notas do Concurso de Belleza serviram como foco
aglutinador das propostas de atuao negra envolvendo parcela da sociedade negra campineira. O espao
destinado ao culto da beleza negra feminina apresentou, de forma resumida, as problemticas constantes
da imprensa negra: a dana, as festas, os heris, as aes dos negros no processo histrico, a viso da
imprensa branca sobre a atuao do meio negro campineiro, a religio, a famlia, etc. Todos esses temas
estiveram em consonncia com a apresentao do corpo no aspecto fsico, intelectual e moral.
A primeira nota encontrada sobre o concurso foi inquietante, tratou de exibir de antemo, a
suntuosidade do evento, em termos de prmio e ambiente festivo, para que assim as moas negras de
famlia ficassem estimuladas a participar do concurso:
Concurso de Belleza
Como promettemos damos hoje, no completa a lista dos prmios a ser conferidos as
vencedoras em 1O. 2O. e 3O. lugares, no concurso que abrimos: uma barrete, Casa
Gerin; um porta jias e um Kalendario artstico, casa Genoud; um vidro de extracto,
Casa Mouginho e um collar camafeu, Casa Iracema.
Alem de publicarmos o retrato das vencedoras, offerecemo-lhes tambm no final desse
prlio que ser em 6 de Outubro, uma grande festa no Cassino, tomando parte nella o
G. D. Luiz Gama, estando j os ingressos venda.
O elegante theatrinho da empreza Vianna & Bianchi, naquelle dia, receber, alm da
profusa illuminao, cuidada ornamentao prodigalizada pela Floricultura
Campineira, sendo no s o espetculo como a sauterie, abrilhantado por uma
excellente jazz-bands american, completa, sob a direo do maestro Joo do Amaral.
grande o enthusiasmo reinante para o resultado do concurso de belleza, que j
recebemos votos para as seguintes senhorinhas:
Nathalia 15
Zlia Ferreira 13
Ninica Ferreira 10
Sylvana de Assis 10
Bepa Oliveira 9
Luiza Andrade 7
Lais de Moraes 7
Alice de Campos 7
O Getulino funcionou como uma espcie de meio propagandstico para as casas comerciais que
patrocinavam o concurso de beleza negra campineira; o mesmo fenmeno ocorreu, mais tarde, durante a
divulgao das notas do concurso Miss Progresso paulistano.
Encurtamos a lista dos nomes das concorrentes para apresentar as regras do concurso do
Getulino, conduzidoras do processo da votao das candidatas. Para colaborar com a eleio da moa
e a semestral 6$000. Sua periodicidade semanal foi regular, o jornal continha 4 pginas.
107
mais bela, o eleitor deveria encher o cupom e remete-lo redao do jornal, indicando o seu nome e o
nome da beneficiada.256
Enquanto o jornal Progresso admitiu que se inspirou no Getulino para organizar o concurso de
beleza negra da Capital, o Getulino, sem meias palavras, reconheceu ter criado o concurso de beleza
campineira em vista da voga dos concursos de beleza, que era adotada pela imprensa em geral. Estando
a frente de uma grande empreza jornalstica achou opportuno encertar um concurso nas mesmas
condies adoptadas pelos jornaes e revistas modernas 257. Entretanto, em primeiro plano, a maioria das
notas, expressou demasiadamente o orgulho de ter partido do Getulino a primeira iniciativa de divulgar e
criar o Concurso de Belleza negra. O reconhecimento desta primeira ao em torno da criao do
concurso de beleza negra esteve constantemente presente, inclusive, nas notas trazidas de outros jornais
anunciadores da manifestao negra campineira.
A lista de prmios destinados s vencedoras do concurso cresceu constantemente, bem como a
lista dos nomes das concorrentes e os seus votos. De vez em quando, o jornal criou uma certa expectativa
para os leitores e as participantes do evento dizendo no ter espao para divulgar maiores informaes
relativas ao transcorrer do evento, isto , registrando somente os nomes daquelas mulheres que
receberam acima de seis (6) ou de vinte e cinco votos (25). Em todo caso, anunciou que a contagem dos
votos estava se procedendo com a maior lisura possvel, ficando os coupons na redaco ao dispor dos
interessados258.
No momento em que as primeiras candidatas ao ttulo alcanaram mais de cem votos ficamos
sabendo que, na etapa final do concurso, a folha sairia em forma de revista com quarentas pginas
impressas trazendo na capa o retrato da vencedora em primeiro lugar, e, no texto variados portraits-
charges e uma interwien com a mais bella.259 Em vista do grande sucesso que despertou o concurso no
meio social negro, os organizadores passaram a trabalhar com mais afinco para a festa oferecida no
Cassino260.
No foi possvel para se comemorar aquella ephemeridade, que por certo ficaria guardada na
memria de todos, esta folha sair em forma de revista 261. Ao contrrio do que anunciou o jornal, devido
a falta de mo-de-obras, distribuiu apenas um nmero especial impresso em fino papel com copiosos
256
Getulino, Campinas: 5 de agosto de 1923, p. 2.
257
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 5 de agosto de 1923, p. 3.
258
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 12 de Agosto de 1923, p. 3.
259
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 26 de Agosto de 1923, p. 3.
260
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 9 de setembro de 1923, p. 3.
261
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 16 de setembro de 1923, p. 3.
108
artigos e grande nmero de clichs no s de vistas da cidade como das vencedoras e de outras
classificadas. Nesta fase do concurso as candidatas receberam um nmero de votos surpreendente:
No total, quarenta e uma mulheres (41)264 participaram do concurso de beleza. Foram enviados
para a redao do Getulino sete mil trezentos e oitenta e quatro (7.384) votos aproximadamente. Essa foi
tambm a expresso numrica das pessoas envolvidas na eleio do concurso.
Na primeira e na segunda pgina do jornal nos deparamos com uma longa entrevista e com as
fotografias das quatro primeiras vencedoras do Concurso de Belleza, por ordem de classificao.
Normalmente as notas do concurso de beleza ocupavam a terceira pgina do jornal, mas quando
chegamos s comemoraes finais do evento encontramos notas do concurso na primeira pgina do
jornal. Resumindo as impresses de Lais de Moraes nas primeiras linhas da entrevista, Lino Guedes, o
entrevistador, sublinhou as suas caractersticas fsicas e intelectuais:
262
Getulino, Campinas: 23 de setembro de 1923, p.3.
263
Getulino, Campinas: 7 de outubro de 1923, p. 3. Ver figuras 2, 3, 4, 5, 6 e 7 das vencedoras do concurso de beleza de
Campinas.
264
Getulino, Campinas: 7 de outubro de 1923, p. 3.
109
Inteligncia aguda e clara, typo de creatura fina e distincta, exprimindo-se com
facilidade, apiam o colorido da phrase na encantadora mobilidade da physionomia em
que paira, por vezes, um sorriso de ironia leve, ou aza de ideal melancolia brandamente
tosca, para a tornar mais doce e mais bella, se possvel a senhorinha Lais de Moraes, e
em extremo gentil, no se furta, a quem a procura, nem mesmo, as pessoas que
pretendem hostilizal-a, como se ella tivesse culpa de... ser bonita 265
Questionrio
A entrevista foi realizada na casa da primeira colocada do concurso. Lais recebeu os militantes
com transparente satisfao em sua sala de visitas e sem preoccupaes protocollares, liberta das frias
formas da polidez official, estendendo as suas mos bem torneadas, que foram beijadas. A princpio,
disse que na contagem dos coupons, foi classificada, alias merecidamente, outra, cujos predicados
physicos a isso faziam jus. Lino Guedes logo argumentou a Lais que ela no deveria dizer nada,
somente deveria responder o que ele perguntasse. O dilogo tomou outros rumos: falaram da origem e da
importncia do Getulino. Lino Guedes reclamou das pessoas que tentavam atrapalhar o desempenho do
Getulino, do meio negro; falaram das personalidades negras que lutavam pela grandeza da lngua
materna, destacaram como figuras relevantes: Rui Barbosa, Nabuco e afinal Bilac. Neste dialogo entre
Moraes e o jornalista Lino Guedes havia a inteno de igualar as aes dos lderes da dcada de 20 com
outros da poca anterior.
Lais permaneceu aconselhadora e consoladora do inquietante entrevistador, que aventou a rdua
tarefa do Getulino na imprensa. Na inteno de atenuar o ressentimento do entrevistador para com os
adversrios da sociedade negra campineira, Moraes emitiu um discurso pautado no catolicismo, citou as
idias de um General para invocar o Esprito Santo:
Pelo que vejo, meu amiguinho no conhece aquella clebre prhase do General De
Lamoriciere: Quando estaes embaraado, fazei como eu, invocae o Esprito Santo e
confiae no seu auxilio. Na verdade, nas atribulaes a alma que se volta para Deus
encontra a calma e a serenidade, como a guia que se eleva por entre as nuvens em
tempestade. Questionrio
Lino Guedes fez, ento, a seguinte pergunta para Lais: cathlica?, Moraes rapidamente
respondeu:
Apostlica e Romana. E quem no ser nascendo nesta episcopal cidade, neste paiz que
teve como primeiro symbolo de civilisao a cruz a augusta e piedosa cruz que, quinze
sculos antes no cimo melanclico do Calvrio, santificada pelo sangue do Redemptor,
265
Getulino, Campinas: 13 de outubro de 1923, p 1-2.
110
com um brao apontava a aurora nascente dos gozos ineffveis, e outro voltando para
a noite o manto do perdo sobre as injurias...
Questionrio
Num cunho de gentileza, disse para o chefe do jornal: vou lhe poupar o trabalho de estar me
perguntando cousa a cousa dizendo-lhe tudo, do namorado, do baile, da moda, dos filmes, do livro, do
concurso.
No tenho namorados, e nem podia tel-os, pois o escasso tempo que me sobra para
estar em companhia dcil de minha me, que adoro quanto deve adorar uma filha que
bem comprehenda os seus deveres filiaes. No confunda voc, namorados com
amiguinhos pois amiguinhos tenho, e os tenho bastante...
O baile apesar de ser a creao soberba e maravilhosa de Terpsycore, no tem a minha
sympatia, porque os modernos adeptos da dansa no sabem cultivarem-na como era
mister. No estranhe voc ter esta affirmativa partido de uma moa. Adoro os caprichos
da moda.
Quando a jovem afirmou que adorava os caprichos da moda, seu entrevistador logo concordou:
nem podia ser o contrrio, pois em seu corpo de menina habita uma alma de moa. Ela ento
continuou com um discurso meio radical em torno da moda:
A moda a elegncia, todos nos devemos dar culto a elegncia, pelo menos assim
ordena o bom gosto. A cor, a meu entender, bella que agrada a vista o rosa, todavia, a
cor lils linda tambm. Dentre as flores, esse reino divino, que tem o throno a rosa, a
rainha que dirige os nossos destinos, eu vou procurar em que vive a violeta em sua
simplicidade graciosa para ser o alvo da minha admirao.
Questionrio
O primeiro orador da festa foi exatamente um homem com perfil de intelectual. Lacerda
Werneck, pronunciou com particular eloqncia o discurso. Para o intelectual, malditos eram os
brasileiros que julgavam negro patrcio um ser fora da comunho nacional, porque na verdade o
povo tinha em suas artrias o sangue cheio de Santo patriotismo do negro Henrique Dias, o maior
Heroe da Guerra Holandeza, a quem o rei de Portugal recolheu a sua corte. O momento era de
relembrar as figuras negras consideradas relevantes para a formao do povo brasileiro, mas, sobretudo,
de reconhecer outro vulto para as comunidades negras presentes (paulistana, campineira e santista).
267
112
Significativo era fazer o reconhecimento de um mito de carter universal. Com tal prerrogativa o
discursador e o Getulino problematizavam as caractersticas de Jesus para a comunidade negra,
aproximando-a, assim, cada vez mais, de Jesus negro para que o povo catlico aceitasse naquele
momento a figura de Jesus escurecida. Ao mesmo tempo, Werneck difundia o catolicismo entre os
negros e tecia criticas forma como aquela religio representava a sua figura sagrada. Por outro lado, era
como se conversasse com uma massa de negros puramente catlica, no levando em considerao a
possibilidade de no recinto encontrarem-se pessoas que professassem outros credos, como o candombl,
a umbanda, etc. A postura do Getulino tambm no foi muito diferente da de Werneck. Ao divulgar este
discurso, eminentemente catlico, parecia dialogar com leitores somente desta religio.
O clou da festa foi o baile que rythmando por otpmo jazz bands prolongou at a madrugada,
notando-se entre os pares incontveis senhorinhas com deslumbrantes toilletes . Nota chic para a
imprensa local e paulistana que estiveram presentes na sesso solene, as quais foram saudadas pelo chefe
do Getulino. O sr Tasso de Magalhes, secretrio do jornal Dirio do Povo, comeou falando ser a festa
que assistia uma demonstrao de que o preto estava comprehendendo a sua situao na sociedade,
e terminou por felicitar as senhorinhas detentoras da palma da belleza. No entender do sr. Tasso de
Magalhes, foi a ao de empreender o concurso de beleza que viabilizou a mobilidade social da
sociedade negra campineira. Esta parte do discurso do Sr. Tasso de Magalhes o Getulino registrou como
protesto e como aceitao. A aceitao est contida na parte em que o orador aventou que os negros
haviam percebido tarde demais a situao em que permaneciam, afirmando que quase nada os
humildes poderiam fazer para transformar a realidade social. Pela Gazeta de Campinas discursou o sr.
Benedicto Cavalvanti, por uns vinte minutos, de forma exagerada e estereotipada sobre as
contribuies do povo negro ao Brasil. Para ele o progresso de nossa ptria era devido nica e
exclusivamente ao escravo de hontem ao effectivo e carinhoso preto269.
A prxima nota seguiu descrevendo a sesso solene 270. Entre uma manifestao e outra
ofereceram taas de champagne s vencedoras no improvisado refeitrio ao ar livre do theatro
(muitas vezes chamado de Cassino nas notas), servidas pelo distincto advogado Dr. Lucio Peixoto.
Depois de finalizado o grande baile, j ao amiudar dos gallos, iniciou-se as festas
particulares. No domingo, a primeira realizou-se na residncia, a rua Augusto Csar 199, de Lais de
Moraes. Seguiram para a casa de Benedicto Florncio, na qual foi servido aos convidados um lauto
almoo que regado a finssimos vinhos, e no meio da maior cordialidade, terminou s 14 horas.
269
Um dos muitos resultados produzidos pelo grande certamem nacional organizado pelo
A noite e a Revista da Semana e delles, por certo, um dos mais curiosos e menos
esperados foi o interessante concurso de belleza de moas descendentes dos povos da
Getulia e que guardam o corao da epiderme, a tisna dos soes crestadores da frica:
concurso promovido pelo Getulino o primeiro semannario que se edita regulamento no
Brasil com officinas prprias, dirigido, redigido e collaborado exclusivamente por
homens de cor.272 O encerramento das festas officiaes A imprensa do Rio - Notas
271
Concurso de Belleza. Getulino, Campinas: 28 de outubro de 1923, p. 2.
272
Getulino, Campinas: 28 de Outubro de 1923, p. 2.
114
Chicago Defender, as suas escolas e suas instituies. No Brasil no existe essa desintelligncia. 273 Para
a Revista da Semana os negros na dcada de 20 viviam num processo tnico harmonioso com toda a
sociedade brasileira. A prpria revista no conseguiu identificar as causas da criao do Getulino, a luta
dos negros naquele momento por um espao social, poltico, cultural e recreativo. Ainda que o espao
cultural no meio negro fosse, principalmente, permeado por elementos da cultura branca, ocidental
(cultuava a musica norte-americana, pregava o catolicismo, etc).
A viso sobre as relaes raciais nos Estados Unidos era complexa. Foi comum encontrar nestes
jornais alternativos crticas a Amrica do Norte quando estava em questo o fator discriminao e, por
outro lado, elogios em relao prosperidade econmica. A Voz da Raa acrescentou, nesta lista de
exaltao aos norte-americanos negros, os fatores organizao social e independncia. Vejamos: l os
negros tm seus jornais, as suas Universidades, os seus Bancos, o seu comrcio, a sua agricultura, as
suas indstrias, as suas artes. Um grande artista de sangue negro poder encher um teatro enorme
unicamente com gentleman da sua raa. Enquanto no Brasil, o negro no tem formado seno clubes
danantes de arrumadeiras e copeiras e cordes de Carnaval. Segue reclamando da situao econmica
enfrentada pelas coletividades negras brasileiras. E como documento de solidariedade racial e humana,
o mais que conseguiu foi a irmandade do Rosrio, para dar um caixo de pinho, e uma grinalda de papel
aos prias quando morrem274.
Em determinado momento a Revista da Semana e o jornal A Noite seguiram afirmando que a
segregao entre negros e brancos ocorreu, no Brasil, somente na poca da escravido:
Deflue hoje a data genethlaca da senhorinha Petronilha Gomes dos Santos. Portadora
de raros dotes de esprito e de corao, a nataliciante no concurso aberto pelo Getulino
por uma somma de votos, alcanou galhardamente o quarto logar. Entre as numerosas
felicitaes que por certo recebera a senhorinha Petronilha, das pessoas de suas
relaes, inclumos as nossas282.
Alm de Moraes, foi Luiza Andrade quem recebeu um tratamento especial. Contou para o seu
destaque no jornal o seu elo de ligao com os proprietrios dos jornais:
Festeja no dia 9 andante o seu natalcio a senhorinha Luiza de Andrade, Sobrinha do sr.
Leopoldo, Christino de Martinho Andrade, sendo os dous ltimos proprietrios desta
folha. Cumprimentando a distincta nataliciante, que premio de belleza ao concurso
que ultimamente abrimos, cujos echos reboaram por todo o nosso paiz, enviamo-lhes os
nossos283.
Cabe, portanto, perguntarmos quem ganhou o segundo concurso de beleza feminino promovido
Getulino, e se realmente o concurso aconteceu. O evento pretendia congregar as numerosas famlias
pretas, que militavam, em volta da palma da belleza em 1926. Na nica nota que encontramos
constam as regras de eleio (o cupom) e um significativo ttulo: Qual a mulher mais bella de So
Paulo? 284.
279
Progresso, So Paulo: 8 de julho de 1924, p. 1.
280
----------: fevereiro de 1931, p. 4.
281
Getulino, Campinas: 13 de janeiro de 1924, p. 1.
282
----------: 10 de fevereiro de 1924, p. 1.
283
Getulino, Campinas: 6 de julho de 1924, p. 1.
284
----------: 13 de maio de 1926, p. 4.
117
De uma certa forma, o Progresso acatou a responsabilidade de eleger a mulher negra mais bela
da Capital. O concurso de beleza criado pelo Progresso revelou a tentativa de mostrar para o negro que,
no espao das sociedades negras, o seu fsico seria aceito e cultuado e, mais especificamente, que o fsico
das suas mulheres seria homenageado. Tentou de forma menos debochada do que o concurso masculino
dO Clarim dAlvorada falar da comunidade negra. Para participar do concurso bastava candidata ser
uma associada e uma moa de "boa famlia" (quesito da associao), que em breve um admirador (a) da
sua beleza enviaria para a redao seu nome escrito no cupom do concurso:
Miss Progresso
Seguindo o exemplo dos nossos collegas do Getulino de Campinas, abrimos hoje um
concurso para apurarmos qual a moa preta mais bonita de So Paulo.
A vencedora, num festival que se realizar no dia 1 O. de Janeiro. Alm de conferirmos o
ttulo de Miss Progresso, sero entregues diversos prmios, offertas de casas
comerciais.
O que vai ser o concurso do Progresso, informamos mensalmente os leitores, que hoje
nada mais tem que fazer, seno cortar o coupon abaixo e remetel-o nossa redaco 285.
Pelas proximidades da Barra Funda, Santa Ceclia e Vila Buarque, a festa foi organizada com a
inteno de marcar as localidades no instante da condecorao da vencedora. Comerciantes amigos (casa
Otto Schoeinbach e o Photo Raffaeli), raridades na poca, se propuseram a colaborar na premiao da
vencedora, assim como Lino Guedes (Laly) prometeu trazer um espetculo para o dia da comemorao.
Entre as candidatas de "famlia" marcou presena uma mulher de parentesco com o proprietrio do
jornal, Ruth C. Wanderley:
Miss Progresso. Grande a ansiedade em saber qual a senhorita que conquistar esse
ttulo
A lucta portanto est travada tendo lances interessantes que iremos registrando
opportunamente.
A casa de Otto Schoeinbach, j convidou o nosso redactor social para ir escolher um
mimo que por intermdio do Progresso ser offertado aquella que conquistar o primeiro
logar.
O Photo Raffaeli Internacional, far uma ampliao da Miss Progresso.
Ainda outros prmios faro parte do grande patrimnio que est reservado a mais
Bella.
Ao que parece sob a direco artstica do Sr. Messias Ferreira durante o vesperal, ser
levada a scena, o rideau de Laly, Jornal Fallado, onde, entre um ambiente de arte luxo e
esprito, v-se como se faz um hebdomadrio.
At o dia 20, receberam votos as senhorinhas:
Clarizia 23 votos
Malvina Alves 20 votos
285
Miss Progresso
O interesse despertado pelo certamen que abrimos, para escolher entre as senhorinhas
bellas, a quem deve ser dado o ttulo de Miss Progresso continua intenso.
Assim attendendo a solicitaes que nos foram feitas, resolvemos deixar para Fevereiro
a apurao final dando prazo assim que as votaes montem a cifra respeitvel.
A lista dos premios, sero accrescentadas mais algumas prendas que na proporo que
nos chegarem s mos, daremos publicidade.
A festa dedicada a Miss Progresso revestir-se-a de brilho excepcional, estando os
encarregados de leva-la a bom termo, desde j elaborando o programma (...). 287
Focalizamos, na nota anterior, uma frustrao do Progresso com a cifra das votaes do
concurso. Projetava alcanar, ento, uma quantidade considervel de candidatas e de eleitores. Talvez
almejava para o concurso Miss Progresso a mesma expresso numrica do concurso institudo pelo
Getulino. Em termo numrico a soma dos votos do concurso Miss Progresso (1.738-
aproximadamente) foi bem menor se comparado com o resultado do Getulino (7.384).
A festa ocorreu no salo Brinco de Princezas e fora programada para acontecer prxima dos
dias carnavalescos: essa data daria um glamour maior no instante da condecorao, pois os convidados
de exmia famlia, alm de fartarem-se com as surpresas reservadas estariam liberados para cheirar lana
perfume e participar das batalhas de serpentinas:
Miss Progresso
A sua Miss Progresso, offerece no dia 22, rua da Conceio, 5 um grande baile que
ser rythimado por excelente jazz de professores.
Alm de renhidas batalhas de serpentinas confettis lana-perfumes, outras surpresas
esto reservadas para a festa.
Os convites, as exmias famlias podem procura-los rua Maria Theresa, 10 (Res. Do
sr. Euclydes S. dos Santos)288.
286
Progresso, So Paulo: 24.11. 1929, pp. 3.
287
----------: 31.01. 1930, pp. 4.
288
Progresso, So Paulo: 15 de fevereiro de 1930, p. 2.
119
Finalmente chegou o dia da condecorao das representantes de beleza289. Na "festa simples e
tocante", a senhorita Las de Moraes (representante da beleza campineira) entrou nos amplos sales da
rua Conceio pelo brao de Benedito Florncio. s onze e meia da noite as danas foram paralisadas e,
entraram em cena, a senhorita Malvina Alves, Beatriz e Lina Xavier de Carvalho, que foram saudadas
por entusisticas salvas de palmas. Feitas as apresentaes, Las de Moraes ps a faixa simblica de
Miss Progresso 1930 em Malvina Alves. Estiveram presentes importantes lderes negros, tais como:
Gervasio de Moraes, Jayme de Aguiar, Euclydes Santos e Eusbio de Oliveira. O evento foi de grande
importncia para a comunidade. Os professores do jazz-band, anunciados na nota anterior no estiveram
presentes, em seus lugares apresentaram-se os "Sertanejos Paulistas" junto com o grupo "Revistas
Paulistas". "As dansas, depois desses actos, prolongaram-se at o ouvidar dos gallos"290.
Faltou por parte da nota anunciar se os comerciantes citados cumpriram a proposta de entrega de
prmios s vitoriosas, se os organizadores do concurso foram aos estabelecimentos buscar os prmios. A
escrita deixou evidente que as vencedoras receberam prmios, mas no explicitou os tipos nem os
patrocinadores.
Antes do dia da festa, os progressistas entrevistaram as eleitas em suas casas. As vencedoras
aproveitaram a ocasio para denunciar a situao das mulheres frente ao preconceito: do qual serviam
como simples exemplo de beleza para o movimento negro (simples exemplo enfatizado pelo
entrevistador). Para elas, as companheiras tinham algo mais a demonstrar. Malvina Alves, primeira
homenageada e entrevistada na Avenida Anglica, disse que no era com orgulho que recebia o ttulo de
Miss Progresso, mas com satisfao: porque era cheia de responsabilidades. Isto , toda a mulher
gostava de sacrifcios e a faixa simblica era uma cruz. Em seguida agradeceu aos reprteres por
289
O Progresso divulgou apenas, na nota do resultado, os nomes e os votos das doze primeiras candidatas: Malvina Alves (204
votos), Beatriz X. de Carvalho (183), Levica da Silva (175), Evangelina X. de Carvalho (174) Iracema Santos (170), Clarizia
Soares (130), Nair Vieira (128), Alice Silva (128), Ruth C. Wanderley (120), Ritinha Baptista (118), Nen Bordine (104),
Rosalina Aquino (104). Constaram nas primeiras listas de votao os nomes de Maria Olvia da Silva, Felicia Assis, Lina
Xavier de Toledo e Zenaide B. de Andrade.
290
Progresso, So Paulo; 15.02.1930, pp. 3. Ver figuras 8, 9, 10 e 11 das vencedoras do primeiro concurso de beleza do
Progresso.
120
marc-la com o ttulo, para que vissem nela, especialmente suas coleguinhas, no um typo de belleza,
mas a imagem apagada, que encarnava todas as virtudes da abnegada Raa Negra, a que pertencia
prazeirosamente. No final do dilogo, os lindos olhos de Miss Progresso, como dois cysnes pretinhos,
nadavam em lgrimas. Chorava no pela honra que investiram nela, e nem por ela, mas pela sua
gente, e em particular, pela me preta que deveria ser tratada com carinho. Acreditava que se a
sociedade brasileira venerasse a me preta, pelas noites indormidas que passou com as maiores figuras
do Brasil Infante, as filhas legtimas dessa escrava seriam tratadas com justia.
J Beatriz X. de Carvalho mal acreditou na sua vitria ao ser visitada pelos progressistas. Foi
logo dizendo, sorridentemente, que o segundo lugar do concurso era de Clarizia ou Malvina. Confirmada
sua colocao, encheu toda a sala de sua casa com um sorriso argentino. Um dos entrevistadores,
usando uma espcie de gria da poca, confirmou que nenhuma candidata teria o desprazer de tirar o
brilho da boa colocao de Carvalho. No compro bonde, quem que teria o mao gosto de empannar o
brilho de seu certamem tornando-se a vice Miss Progresso. Beatriz aproveitou a oportunidade para falar
com enthusiasmo dos valores da Raa Negra: lembrou-se de urea Pires, a poetisa preta, que escrevia
com alma as mysticas poesias que enriquecia a literatura nacional. Em seguida pediu para os
senhores que caminhavam na vanguarda das grandes emprezas, acrescentarem mais um grande
movimento em favor da mulher preta. Como se dissesse que a mulher negra estivesse precisando sair do
interior do seu lar para participar da vida pblica: Ella precisa libertar-se mais uma vs. Ir para a
regncia das escolas, para os escriptorios, para o caixa dos estabelecimentos commerciaes, para a
bilheteria dos cinemas, para os Centros Telephonicos, enfim, para os logares em que possa por prova a
sua indiscutida capacidade de intelligncia 291.
Nas pginas do Progresso, em que esto includas as entrevistas, as imagens quase apagadas do
microfilme mostram as primeiras vencedoras bem trajadas (com o corpo todo coberto). A primeira
colocada, Malvina Alves, tinha um tom de pele claro, cabelos curtos desencaracolados, lbios e nariz
finos. O fotgrafo do jornal procurou retratar todo o seu rosto, enquanto os corpos das outras duas foram
retratados de forma global; a segunda, Beatriz X. de Carvalho, apresentou um tom de pele mais escuro, o
cabelo alisado e curto, nariz e lbios menos finos. A terceira fotografada (Evangelina X. de Carvalho)
apresentou as mesmas caractersticas da segunda. Tudo leva a crer que era irm gmea de Beatriz X. de
Carvalho.
Em virtude da quantidade de pessoas que pde reunir em torno do concurso anterior, o Progresso
optou pela realizao de um segundo concurso de beleza. Os critrios para a eleio de uma segunda
291
Progresso, So Paulo: 20.08. 1930, pp. 1.
121
representante de beleza negra permaneceram os mesmos. Entretanto, este segundo concurso diferenciou-
se do primeiro, pois foi estendido para as cidades do interior, possibilitando a participao das negras
no paulistanas. O jornal justificou esta iniciativa mais como maneira de elevar o moral da raa atravs
da exposio das mulheres negras de boa famlia, e no apenas como um simples espao condecorador
do fsico feminino. A pretenso do concurso combinava com a fala da vencedora do primeiro concurso,
isto , queria denunciar a imoralidade que reinava no mundo das mulheres e o desamparo a que
estavam submetidas. Vejamos estas idias na fala de Malvina Alves contida no ttulo da entrevista que
concedeu ao Progresso: precisamos cuidar das moas de cr - flores que estiolam sob o peso do trivial
nas estufas senhoreais:
Miss Progresso
Dando cumprimento ao nosso programma, que elevar, por todos os meios a moral da
Raa Negra, abrimos hoje, como fizemos no ano passado, o nosso concurso, para a
escolha da Miss Progresso (...).
As classificadas em 1O. logar nas cidades do interior concorrero nesta capital, ao
ttulo de Miss Progresso.
Nas edies subseqentes daremos mais informaes sobre o concurso cuja finalidade,
repetimos elevar a moral da raa homenageando a mulher negra (...) 292.
Do mesmo modo que So Paulo, Piracicaba, Rio Claro e Itapira elegeram suas mulheres,
respectivamente a Rainha da Espuma, a Princesa do Oeste e a Linda, para participarem do fervoroso
concurso de beleza feminino institudo pelo Progresso. No de se admirar que de So Paulo as
participantes interioranas levaram informaes sobre o que se discutia nas organizaes negras, e/ou de
suas cidades elas traziam informaes concernentes atuao negra. Esse espao pensado, a princpio,
como um nobre lugar de culto beleza negra foi tomando outras propores, redefinindo-se como um
espao de discusso das questes que afligiam o corpo negro e a sua representao, mas, sobretudo,
refletor do papel da mulher negra na famlia, no trabalho e na sociedade. Com a entrada das concorrentes
interioranas, o concurso passou tambm a estimular a concorrncia entre as prprias candidatas no
processo de afirmao dos corpos. Ou seja, os concursos contriburam para ampliar as discusses sobre a
beleza negra e o interesse em classific-la e julg-la:
292
Progresso, So Paulo; 30.11. 1930, pp. 2.
122
Enquanto no interior o movimento toma vulto, no tambm menos na Capital, onde
nos bairros se prev uma acirrada luta.
At ontem as primeiras horas receberam votos as senhoritas:
Leontina Martins Bonilha 11
Zaira Assumpo Mattoso 9
Nair Barbosa 8 (...)293.
Uma reportagem expressou a forte concorrncia das localidades e das candidatas no processo de
arrebatamento do ttulo, manifestando o desejo delas em conquistar o ttulo que lhes eximiriam do
quadro das estioladas pobres e moradoras de rua.
A seguir, nos deparamos com uma nota na qual aparecem os rostos de duas candidatas,
provavelmente o rosto da primeira e da segunda colocadas, e o resultado da apurao final do segundo
concurso Miss Progresso. Consta neste texto que Leontina Martins Bonilha recebeu 481 votos, Maria
Apparecida de Moraes 436 e Ceclia Martins Cruz 395. O escritor da nota afirmou que os progressistas
se sentiam felizes com o vulto a que assumio o concurso. Pois, conseguiram, escolher uma
senhorinha que alm da belleza physica detinha a belleza moral e intellectual. Esta senhorinha,
durante um anno seria a representante da Raa que soffreu para o engrandecimento do Brasil. Os
leitores haviam compreendido a inteno do jornal. Os votos, a princpio raros, augmentaram, depois
consideravelmente. Na fase final, a luta para a conquista de votos, travou-se entre as duas primeiras
colocadas. O movimento no interior foi bem interessante. Piracicaba ao invs de escolher a sua
candidata eliminatria resolveu offerecer seus votos senhorinha Martins Bonilha. Gesto idntico teve
Rio Claro, para com a senhorinha Maria Apparecida Moraes. No prximo nmero publicariam uma
entrevista de cada uma das candidatas, pela qual poderiam avaliar o cultivo intellectual das misses que
o Progresso elegeu. Miss Progresso, 1931 seria oferecido pela direco do jornal, um baile que se
realizaria somente em junho294.
Na ltima reportagem no temos as manifestaes do dia da condecorao da vencedora, a nota
apenas revelou alguns pormenores da vida de Leontina Bonilha, moradora da Rua Visconde de Inhama
(Sade). Anloga s vencedoras dos concursos anteriores, queixou-se para o Progresso da forma como
viviam os negros na Capital, desta vez reclamando da amena participao desta comunidade nos bancos
escolares, fator que desde muito cedo havia retirado sua participao do mundo da instruo formal. Em
decorrncia da desconcertante situao partiu para o autodidatismo, lendo romances e obras polticas.
Junto instruo solitria, anloga s moas de famlia, desenvolveu ainda trabalhos caseiros, entre
293
Progresso, So Paulo: dezembro de 1930, pp. 2.
294
Progresso, So Paulo: abril de 1931, pp. 2.
123
eles a costura, que lhe garantia um pouco de conhecimento sobre roupas. Assim, aproveitou o momento
para dizer que gostava da cor preta e fez aluso ao rosa, porque o rosa tinha um toque mais feminino,
ingnuo e infantil. Ela realmente aparentou ser mais vaidosa do que as antigas misses, sempre
reclamando e preocupando-se com o ngulo da foto, com a maneira pela qual iriam expor o seu corpo no
jornal295.
Na dcada de 30, as mulheres negras ocuparam um espao privilegiado nos concursos de beleza
promovidos pelas sociedades negras da cidade de So Paulo e do Estado de Minas Gerais, nos quais
foram eleitas tambm as Rainhas frentenegrinas:
Na cidade paulistana,
295
O que nos disse Leontina Bonilha, que conquistou o ttulo de "Miss Progresso". Progresso, So Paulo: 30.08.1930, pp.
2. Ver figuras 12 e 13 das vencedoras do segundo concurso de beleza do Progresso.
296
A Voz da Raa: So Paulo, julho de 1937, p. 2.
124
Ao tentarmos buscar uma explicao da palavra rainha dentro do aspecto embelezamento, para o
jornal A Voz da Raa, percebemos a estratgia de colocar suas mulheres, vencedoras das eleies
internas do concurso da F. N. B., no posto mximo da representao da beleza negra. Nessa mesma
perspectiva, a tentativa foi tornar aquelas mulheres representantes da rememorao beleza negra,
pregando sobremaneira o culto ao corpo negro, o corpo que comportava, na opinio do escritor da nota,
sangue azul, azul no sentido nobre: talvez, de legtima representante da nacionalidade brasileira.
Antes de formularmos generalizaes acerca das mulheres brancas e do tamanho de suas notas
nestes jornais alternativos, devemos dizer que Yolanda Pereira, talvez, tenha sido a nica mulher de um
concurso internacional de miss que saiu da linha da contemplao dos militantes enquanto simples
exemplo de beleza feminina, e destacou-se, exatamente, por chegar ao topo do posto da beleza (Miss
Universo). Posto pouco alcanado pelas mulheres consideradas de caractersticas negras. Ela mesma
autodenominou-se negra, ao dizer que foi recebida em sua terra natal pela sua me preta depois da
conquista do ttulo, e que sentiu vontade de abraar a Miss Progresso e toda a gente de ancestrais
negros. Queria abra-la, enlaando assim toda essa gente, compassiva e boa, que enche de poesia o
Brasil grande de nossos avs. Porm, o certo que sua fama lhe concedeu destaque entre o meio negro,
destaque igualmente concedido s misses negras; obteve direito fala no Progresso e junto com os
militantes props-se a arrecadar fundos para a construo da herma a Luiz Gama. Ainda pronunciou-se a
respeito do fervor dos corpos dos homens paulistanos em contraposio aos corpos frios dos ingleses.
Alm de falar em prol da comunidade negra, o que ela fez foi registrar sua assinatura em leques que
seriam leiloados e entregues para duas senhoras de exmia famlia (famlias Joo Alberto e Anhaia
Mello); o pronunciamento em torno da construo da esttua de Luiz Gama comoveu tanto as sociedades
negras quanto a sociedade global297.
Na Revista Cultura Querine, provavelmente nome de uma mulher, teceu severas crticas aos
concursos de beleza femininos ou especificamente ao concurso de beleza que ocorreria, por ocasio do
carnaval, na cosmopolita e laboriosa Piratininga. Um desfile de mulheres bonitas iria atrair a
curiosidade popular. O concurso pouco interessava autora, pois todos percebiam as razes pelas
quais os homens s vezes faziam os concursos de beleza femininos. Os organizadores dos concursos
tinham negcios ou interesses a explorar durante a coroao das mulheres. Assim como no havia
quem no percebesse e no sentisse que esses concursos concediam privilgios raa branca. Isto tipo
de raas brancas. Amarello, pretos, azeitonas, ou luscos-fuscos nos desfiles no figurariam. Portanto
no havia razo para se fazer concurso dessa natureza. Este seu questionamento parece se dirigir aos
297
Miss Universo e a herma a Luiz Gama. Progresso, So Paulo: 31.05. 1931, pp. 2. Ver figura 14 de Yolanda Pereira.
125
concursos da sociedade branca, pois admitiu que os negros no organizavam concurso para coroar a
mais bella, entretanto, informalmente, elegiam suas mulheres bonitas. Demonstrando desconhecer os
diversos concursos de beleza promovidos pelos negros no Estado de So Paulo. Logo seguiu
argumentando que as mulheres negras e mestias no precisavam ser eleitas nos concursos. Elas j
ocupavam, por natureza, o posto de almas encantadoras nacionais. As mulheres
O Progresso registrou mais uma nota sobre um concurso de beleza, ou melhor, transcreveu que
os jornais cariocas protestaram contra o critrio de eleio da representante de beleza. Numa regio do
nordeste, escolhiam uma mulher aparentemente branca. Era, ento, a cor da pele que agia na
determinao fentipica de um corpo. Neste sentido, o caso do Cear foi bem ilustrativo:
Coisa Interessante
Os jornaes do Rio verberam o Ceara por ter escolhido a sua Miss, entre as moas
louras, da terra de Iracema.
No norte do Paiz, commum ver-se brasileiros legtimos, loirinhos como trigos.
Mas o mais surprehendente ver-se filhos de pais caboclos ou cabras apresentarem
laivos de ouro no cabello duro e liso ou mastigado ou at carapinha.
Perto de Fortaleza, na Pajuaara, h filhas de cablocos loiras, mas de um loiro de
trigo, um loiro escandinavo.
Alis, o Cear entre outras terras brasileiras onde h menos negros.
Os pretos retintos so raros. O que h muito so cabras, filhos de pretos com caboclo,
ou como se diz l, de jacar com cobra299. As nossas eleitas
298
As nossas eleitas. Revista Cultura, So Paulo: abril de 1934, nmero 4 e 5
299
Progresso, So Paulo; 28.07. 1929, pp. 2.
126
rastejante, o que concedeu vitria s aparentemente brancas. Aqui est expresso na imaginrio da
populao cearense a idia do mestio como ser hibrido negativado.
Avanaremos na questo da mistura de traos, para mostrar que houve na poca pessoas de pele
morena valorizadoras dos traos brancos, que acreditavam ser unicamente de descendncia europia 300,
apesar da explcita descendncia mestia.
A tendncia considerar execrvel a postura desses indivduos menos escuros de fugir do
grupo mais discriminado. A tentativa no justiar a postura daqueles mestios, mas dizer que nunca foi
fcil tornar-se um negro mobilizador.
Pereira de Queiroz afirma o quanto dificultosa a ascenso das pessoas bem escuras de pele. No
seu entender, tal fator que propicia uma vantagem para os mulatos, pois, dos mais acentuados aos
mais claros, ocuparam no Brasil uma posio superior. Neste ponto a autora faz uma importante
distino entre os traos e a cor da pele, considerando que a pessoa de traos negrides (nariz
achatado, lbio grosso, cabelo encarapinhado), mas cuja cor da pele no carregada, tem mais facilidade
na ascenso scio-econmica, aufere privilgios, em relao quele cujos traos podem ser finos, mas
cuja cor da pele tende para o negro. Quem mais se aproxima dos fentipos brancos aufere privilgios na
sociedade301.
Os argumentos para expressar a identificao do mestio com o grupo negro giravam em torno da
pele, do cabelo, dos traos, da vestimenta, do sentimento de solidariedade para com o negro e do poder
aquisitivo, revelando que os militantes compreendiam que o mestio era exatamente um negro, porque a
sociedade tambm o repudiava. E por isso mesmo os mestios tentavam se apresentar na forma de um
ndio ou de um branco, principalmente, os de posio social elevada, que podiam se diferenciar dos
mestios e negros pobres pela vestimenta e pela adoo das mais requintadas tcnicas de maquiagem
corporal, sendo desta forma ao mesmo tempo achincalhados (na avaliao dos que cultuavam os traos
negros), e aceitos na avaliao de brancos e negras (que valorizavam os padres brancos de
embelezamento). A introjeo dos mestios biologicamente no grupo negro permeou as suas escolhas
polticas; assim, ao aderir s lutas dos negros contra o branco, era imediatamente reconhecido na
comunidade de fentipos negros.
300
Essa mistura de traos para Pereira de Queiroz, no Brasil, alarmante, por isso fica difcil falar de negros puros e de
brancos puros. mais prudente utilizar o conceito de indivduos aparentemente brancos, isto , com traos finos, cabelos
lisos, cor de pele menos escura, e de indivduos aparentemente negros, de pele muito escura. Revista Cincia e Cultura, Op.
Cit., pp. 648.
301
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Revista Cincia e Cultura, Op. Cit., 648
127
Esta forte recusa da identidade negra pelos mestios no perodo fez o autor seguinte louvar,
dentre os mestios, a postura distinta de Viriato. Benjamim Costallat apresentou Viriato Correa como
smbolo de resistncia ao padro de beleza corrente na sociedade:
Parabns, Viriato!
E Viriato proclama e confessa ser um homem de cr.
Viriato diz que a homenagem que recebeu se estendesse a todos os homens pretos do
seu Estado. E atribuiu a sua eleio, no aos mritos litterarios, no sua actividade
jornalstica, e sim, e, exclusivamente, a ser elle um representante legitimo dos negros do
Maranho!
Parabns, Viriato!
Voc veio dar uma formidvel lio a toda essa quantidade immensa de mulatos que
esconde os seus cabellos encaracolados com uma tara vergonhosa!
Voc veio ridicularizar, magistralmente, voc o homem de letras victorioso, o deputado
eleito, e jornalista efficiente, todos esses cavalheiros que, no sendo nada disso,
esticam, com cosmtico, as suas pequenas carapinhas, e negam at a prpria me, para
no passarem por mestio!
Ns devemos acabar, de uma vez por todas, com esse preconceito de cr e de sub-cr.
O chinez deve se orgulhar de ser amarello, o ndio deve se orgulhar de ser vermelho e o
negro de ter a cr que Deus lhe deu.
Eu s sinto no ser mulato para poder proclamal-o
Tambm no temos culpa de ser a cr que somos (...) 302
Benjamim Costallat
Mulato
Mulato, para ser bom,
Precisa ter carapinha
um rigor a condio
Mulato sem carapinha
Vem a ser mulato manco
No negro, no branco
confuso, na certinha! (...)
302
128
Conheo muitos mulatos
Em tima situao
Mas gente sem jeito
Nessa dbia situao
So brancos, mas de mentira!
So negros...mas ningum tira
Da sua boca a confisso...
Conheo muitos mulatos em tima situao
Quando eles passam na rua
Com o seu cabelo liso
Herdeiro da carapinha,
Aquele cabelo liso
Faz um mal a muita gente
Preta e branca, alternadamente,
Derrotando todo siso,
Quando eles passam na rua
Com o seu cabelo liso
Brancos e fricos avs...
Negros de brancos fugidos...
Seu carter e seus atos
Tem de ser tambm fugidos
So meio c, meio l...
So meio l, meio c...
Falsificados mulatos,
Brancos de fricos avs...
Negros e brancos fugidos
Se o mestio no se apresentasse tal como em seu pensamento, seria um mulato manco, um ser
corporalmente confuso, sem ser negro e branco. Dentro dessa complexa representao, figura mestia
incorporou noes de falso e verdadeiro303 no carter e nos atos, para enquadrar o que negava a
carapinha, mostrando que a negao dos traos negros avassalava principalmente o mestio que estava
em tima situao financeira. Para Veiga dos Santos era como se outros elementos corporais, herdados
do branco pelo mestio, no tivessem tanto significados quanto os cabelos, smbolo da identidade negra.
303
Pedro Paulo Barbosa, inclusive, props uma concepo do que seria a verdade baseando-se na caracterizao do mulato
traada pelo presidente da F. N. B. No artigo Bem entendido assim ele escreveu : a VERDADE para ser VERDADE
verdadeira, s mesmo sendo, o que algum disse mulato para ser bom preciso ter carapinha, no quero com isto cabelisar a
VERDADE, nem mesmo por os pingos nos ii, quero somente dizer VERDADES, VERDADEIRAS de todas as
VERDADEIRAS VERDADES. A Voz da Raa, So Paulo: 11 de novembro de 1933, p.1.
129
O presidente da Frente Negra Brasileira seguiu denunciando o mestio de posio social elevada
sem identificao com as caractersticas negras, mas comumente identificado com o grupo indgena, que
o prprio autor denominou de Bugre.
Alisou a carapinha
Que hoje est desta maneira...
E diz a qualquer gentinha
Que lhe pergunta as origens
Que filho de fazendeira
O filho da lavadeira
Neto do jongo africano
Esqueceu a me obreira
Agora filho de Bugre
E atende: "Doutor Fabiano"304 do livro Alma do Negro
Bugre eram os mestios que esticavam suas carapinhas para parecer com ndio. Enquanto o
militante enxergava essa posio do mestio como um repdio identidade negra, o mestio
compreendia o representar-se ndio como valorizao ao elemento considerado genuinamente nacional.
Bugre305 era, ainda, para Veiga os ndios que viviam no mato. Em nome da civilizao e do
nacionalismo, antes defendeu um ditador, porque Hitler no af violento de repor a Alemanha no
caminho de suas tradies, iniciou a campanha da afirmao prtica da raa germnica, nica com qual
pode contar aquela nao afim de realizar a imensa obra de resgate nacional. Assim, fomos logo
concluindo que Veiga defendia o arianismo para o Brasil, tal qual propunham os tericos brasileiros das
idias racistas que vigoravam na poca, e pensando, que o prprio lanava o extermnio dos negros e,
portanto, de si mesmo. Ao transpor a anlise do nacionalismo do autor para Brasil, em seguida,
304
Ficou explcito que o polmico escritor defendeu a mistura de raa, assim como outros tericos
raciais brasileiros, que viam tal mistura como soluo para a questo racial brasileira. Entretanto
enquanto uns defendiam a mistura racial com os alemes, italianos, o militante apostava na mistura
com o portugus. instigante dizer que, de tanto Veiga zombar da figura indgena, terminamos por
acreditar que ele elegia como tipo nacional o elemento descendente da mistura entre o negro e o
portugus. Ou seja, plausvel que idealizasse a mistura entre o negro e o portugus, pois foi um
ardoroso defensor da monarquia e do catolicismo..
A pesquisadora Teresa Malatian sublinhou que para o movimento patrianovista, defendido por
Arlindo Veiga, uma das conseqncias prticas da afirmao da raa brasileira seria a limitao e a
regulamentao da entrada de imigrantes no pas. Estes, para serem admitidos, deveriam ser agricultores
e mesmo assim, desde que no fossem de raa muito diferente da nossa. Em suma, o que o programa de
Ptria-Nova pretendia era o saneamento da Raa e o reerguimento da Ptria por todos os justos processos
modernos, acabando com o cosmopolitismo para atingir o verdadeiro nacionalismo308.
306
Novamente, no texto do bem comportado descoberta da raa, Moura enfatizou que A Voz da Raa chegava ao extremo
da comparao analgica como, por exemplo, a posio de Hitler defendendo a sua raa, e os negros brasileiros, por seu
turno, defendendo tambm a sua. Da chegar ao extremo de acreditar na necessidade do aparecimento de um Moiss do
bano. MOURA, Clvis. In: Sociologia do negro brasileiro, Op. Cit., pp. 211.
307
131
No importava aos negros, de cr ou de corao, as iluses arianas que vinham assombrar
os seus sonhos. Os arianos queriam instituir aqui, na Terra do Negro e do Bugre, os costumes das
gentes de outra Amrica. Era direito absoluto dos construtores da nossa nacionalidade o Bugre o
Negro o Portugus terem partes no destino da Ptria; o Bugre por si, o negro pelo negro e o
portugus pelos seus descendentes. Infeliz era o Bugre: abandonado ao cuidado dos governos que se
sucediam dia aps dia309.
Percebe-se no discurso anterior de Veiga, bem como na analise que Teresa Malatian fez de seu
pensamento que o seu discurso sobre os problemas brasileiros delineava-se o nacionalismo da Ptria-
Nova pautado na afirmao da raa como principal fator de nacionalidade. A raa brasileira seria
formada por indivduos nascidos no mesmo territrio, com tradies, conscincia jurdica, religio,
costumes e lnguas comuns310.
O escritor Pedro Paulo Barbosa dA Voz da Raa tambm protestava contra os mestios que no se
afirmavam como negros, ademais, reclamava dos prprios negros e mestios que desvalorizavam a
descendncia africana e escravocrata. Reconhecer-se negro naquele momento era ter o poder de ao, de
defender as vias de ascenso social propostas pelos lderes da Frente Negra Brasileira. Existia uma
parcela de negros que rivalizava com as aes dos lderes ansiosos por conseguir o que consideravam
fundamental para a populao negra paulistana:
Era necessrio que negros e mestios vivessem como a elite paulistana, ou melhor, idealizassem
da mesma forma que a elite paulistana viver respirando o ar puro dos jardins, uma atmosfera leve
(seguindo a risca o estilo de vida europeu). Fundamental era que os negros desfrutassem do conforto da
309
Discurso que eu no disse Arlindo Veiga. A Voz da Raa, So Paulo: 15 de abril de 1933, p. 1.
310
ROY, Teresa Maria Malatian. A ao imperial patrianovista, Op. Cit., pp. 82.
311
A Voz da Raa, So Paulo: 22 de abril de 1933, p. 3.
132
era moderna: conforto familiar, intelectual e espiritual. O conforto da era moderna tambm era sinnimo
de branqueamento. Para a grandeza da raa o prprio autor apregoava a eugenia. Pela unio familiar os
negros conseguiriam se proliferar, mas tambm se branquear, adquirindo, sobremaneira, os traos
brancos e os elementos culturais defendidos pela elite paulistana: a religio, a propriedade e a instruo.
Por ocasio da festa de So Benedito de 1933 realizada em Sorocaba, A Voz da Raa divulgou um
enorme texto protestando contra o pssimo costume de certos festeiros em institurem o samba, o
batuque em frente s igrejas onde a gente negra e branca inconscientemente era tratada a cachaa. O
escritor frentenegrino afirmava que o seu meio negro era catlico, gostava das festividades e
aconselhava respeito ao ritual religioso. Se os adeptos da cultura do vcio no seguissem a religio de
Cristo ou no professassem qualquer religio, pelos menos, deveriam ser bons brasileiros, trabalhando
lentamente pela regenerao dos costumes. J na festa de 1934, segundo o mesmo escritor, os festeiros
souberam demonstrar o quanto eram frentenegrinos e bons catlicos. A festa de 15 de janeiro de 1934 foi
uma das melhores de Sorocaba, muito solene e impressionante foram todos os atos de culto
principalmente a procisso que percorreu o itinerrio de costume. No houve na vspera o barulhento
samba, o que demonstrava que a gente negra havia compreendido que os reclamadores frentenegrinos
tinham razo de sobra.312
3.2 - Festas e danas
Jos Correia Leite, tinha certeza que a forma de trajar-se e comportar-se, nos dias de festa,
garantiria um lugar melhor para o negro na sociedade, ao comparar o modo de vida dos associados
negros da Barra Funda com os desassociados negros do Bexiga. Correia Leite assustava-se ao ver os
moos e as moas da sociedade Elite Flor da Mocidade bonitos e bem arrumados, pois estava
acostumado com aquelas negras l do Bexiga naqueles pores, naquela labuta tremenda, naquela
promiscuidade, aquela roupinha de brim313.
O polmico militante conduziu os comentrios elogiadores para outra localidade: narrou que no
Largo do Rosrio havia um grande nmero de negros passeando aos domingos, negros que depois
freqentavam os bailes. Era bonito ver as negras de saia-balo, redonda, engomada. Cada uma queria
ser mais vistosa que a outra. Muitas eram cozinheiras de forno e fogo de casa de famlia importante. Os
homens tambm procuravam se trajar bem e alguns tinham uma boa situao social 314.
312
Flores do campo. A Voz da Raa, So Paulo: 17 de fevereiro de 1934, p. 4.
313
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Revista Andes, Op. Cit., pp. 656.
314
CUTI. E disse o velho militante Jos Correia Leite. Op. Cit, pp. 44.
133
Alis, foi atravs das reunies danantes que surgiram certos meios negros. Por volta da
dcada de 20, existiam dois tipos de reunies: a promovida pelas sociedades negras, funcionando nos
sales do centro da cidade e que eram freqentadas por funcionrios pblicos de pequena categoria e
por motoristas das famlias tradicionais. Os homens e as mulheres bem vestidos, de maneiras delicadas
e finas rodopiavam elegantemente ao som de uma orquestra. Ao lado desse tipo de baile, existiam
reunies em casas particulares (em geral cortios) por ocasio de casamentos, aniversrios e batizados,
freqentadas e promovidas pelos negros que usavam roupas de brim, tinham maneiras bruscas e
danavam com sanfona uma dana bastante tosca. O pesquisador Renato Moreira fez uma comparao
entre o baile das associaes negras, que chamou de baile de clube, e o baile de gafieira, caracterizado
pela presena de homens de todos os grupos sociais, inclusive com a presena, na sua grande maioria de
domsticas e comerciarias. E como os padres sociais da gafieira se diferiam dos dominantes, a
sociedade tendia a ver a gafieira de modo generalizado, como antro de imoralidade e perdio. Por este
motivo, nos bailes de clube era terminantemente proibido danar o quadradinho e o modo de danar
sambas nas gafieiras, bem como transgredir as formas de vestimenta (as mulheres deveriam usar meias)
315
.
Maria Aparecida Silva, traando a trajetria da Associao Cultural do Negro (da cidade de So
Paulo) e de outras associaes concluiu que, como os seus interlocutores no eram padro de beleza ou
de elegncia para a sociedade racista, quando se preocupavam com o vesturio, na verdade, estavam
preocupados com sua auto-estima. Ento, ao rememorarem os bailes e seu glamour, os seus
interlocutores buscavam valorizar culturalmente e etnicamente aquela coletividade da qual fizeram parte.
Essa valorizao esttica divergiu das vises que acreditavam ter o negro copiado os padres brancos de
embelezamento da poca, isto , a pesquisadora compreendeu, que os negros buscavam desfrutar das
novidades do ambiente em que procuravam fixar suas razes316.
Para boa parte dos dirigentes negros a indumentria era um critrio para a participao das
festas. Nos bailes das sociedades no havia cobrana de ingresso, mas o traje era a rigor completo: os
homens deveriam portar a cala listrada, palet cinza ou azul-marinho, um colete branco, uma camisa
engomada, com colarinho dobradinho. As mulheres frentenegrinas do Rosas Negras, que organizavam
os bailes na Liga da Lombarda ou no salo das Classes Laboriosas, por exemplo, exibiam-se todas
315
MOREIRA, Renato Jardim. Brancos em bailes de negros. So Paulo: Revista Anhembi, ano VI, n. 71, v. XXIV, out. 1956,
pp.275-278.
316
SILVA, Maria Aparecida Pinto. Visibilidade e respeitabilidade: memria e luta dos negros nas associaes recreativas e
culturais de So Paulo (1930-1968). Op. Cit., pp. 128.
134
vestidas de branco com uma rosa no peito 317. O festival danante promovido, mensalmente, pelo Grupo
Rosas Negras proporcionava momentos agradveis,
a boa msica, num florido salo, seduzia e encantava as damas elegantes, que em
vestidos luxuosos e multicores, borboleteavam: irradiando a sua graa feminil. Rapazes
elegantes e perfilados como lrios, metidos em alinhadas jaquetas Torre,
ostentavam o seu aplombe como cravos dominadores de canteiros. Era bonito o
baile: (..) volteios compassados na dormncia de um tango, no andante de um fox
sincopado, ou na cadncia de uma valsa que se dansava...pisando calos e...coraes. O
que desagradava era a maneira pouco elogivel de certos cavalheiros fricoteiros que se
portavam inconvenientemente. Esses energmenos despidos de elegncia e de civismo
no pertenciam Escola de Educao e de Cultura que era a F. N. B318.
Comentando-Bailes
O escritor d A Voz da Raa admitiu ainda que o pessoal das cidades pequenas gostava, em
dias de festa dos vestidos novos de chita, das gravatas cor de anil, dos sapates amarelos e rangedores.
J. Sotnas, o escritor da nota, no via nenhum mal nisso, mas o povo das cidades grandes, maldosa e
injustamente costumava chamar o pessoal que se vestia neste estilo de caipirada319.
Havia uma grande mistura de trajes, ainda que alguns depoimentos tentassem classificar as
festas das sociedades negras como um lugar de fina elegncia. Depois, sabido que nem todos os
participantes tinham condies de comprar ornamentos da moda europia e/ou ornamentos adequados
para os ambientes de festa. Ficou explcito que todas as formas de trajar-se simbolizavam desavenas,
pois as festas eram freqentadas por pessoas de diferentes preferncias e procedncias.
A verso de rememorao e afirmao aos corpos negros, por exemplo, se pronunciou contra as
mulheres que se apresentavam ornamentadas de acordo com os padres urbanos de embelezamento nas
diversificadas festas da cidade. Z da Esquina (nome fictcio de um militante) reconstruiu claramente
esta passagem, desdenhando as brancas, negras e mulatas que cogitavam as novidades europias: os
ps-de-arroz, os cremes, os alisamentos e as toilletes exticas. Dos homens, a vestimenta a rigor do
almofadismo: palet abotoado:
La vae pu!...
Estamos presentemente numa situao repleta de novidades. H uns dois annos
passados, j se cogitava em todas as cidades europias innumeras novidades s
mulheres e aos homens; hoje as referidas modificaes tm alcanado e continuam
diariamente a agregar concorrentes nesta cidade to progressista.
317
BARBOSA, Mrcio. Frente Negra Brasileira, Op. Cit., pp. 51.
318
A Voz da Raa, So Paulo: junho de 1937, p. 2.
319
Histria, A Voz da Raa, So Paulo: julho de 1937, p.3.
135
a senhora moda que em tudo mette o seu bedelho, dominando por completo todos os
viventes racionais.
Eil-as que surgem...
Por ventura no v o Z da gandaia diariamente passar satisfeito pelas vias da nossa
Paulicia dengosamente vestido ao rigor do almofadismo, com seu palet abotoado
quase no final do boleado e grande a multido de creoulas e mulatas e branquinhas que
aos sbbados e domingos, as quartas e quintas vo aos bailes com seus toiletes to
exticos!
Algumas, referindo-me s mais claras no lhe proporcionam boas risadas? Santo
Deus!... e a carapinha diminuta, o p de arroz, os cremes e as lisadeiras pagas por to
pouco!
Patrcias! Deixem de phantasias sem limites. Vo aos bailes? Pois bem, esta diverso
a nossa predilecta. No assistimos ao nu artstico e muito menos o Velasco: porem
divertimos sempre, essa diverso necessita um pouco mais de polidez 320.
Z da Esquina
Lino Guedes considerou que muitos negros ainda incorporavam o modelo repudiado, casaca de
botes dourados, smoking de contrastes na gola, modelo que em sua opinio s arrebatava pessoas sem
um ideal de vida. Esse intelectual do meio negro desdenhava que os negros sobrepusessem o fascnio
pela moda ao conhecimento da escrita:
Moda Extica
Ora o passado...que passou passou. Cuidemos do presente. Vamos dar satisfao
moda. Arranjar um negro. Bem retinto. Vestil-o de Grom ou Hindu. Cores bem gritantes.
Ensinar-lhes gestos, salamaleques, alguns passos de dansa Oriental, para as recepes.
Uma casaca pesada de botes doirados. Um smoking com contrastes na gola. Esses
trajes para o dia commum. Bonito!
Quantos no se prestaro a esses caprichos da moda! Esses so senhores sem ideal.
Perderam a noo do eu. Para elles tanto faz se lhe d gua de um rio que corra para
cima ou para baixo... Precisamos ter um ideal. Viver unicamente para elle (...). O ideal
o criador dos grandes homens porque o impulsionador dos grandes feitos.
Coitados... se prestam a isso porque no sabem ler e escrever (...)321
Nos bailes, danar ao som da msica era bem visto por uma parte dessa imprensa porque
contribua para o fortalecimento e o delineamento do corpo. Contudo, alguns estilos e locais de danas
foram desaconselhados para a comunidade negra. Entre as crticas ao culto das danas, parte dos letrados
argumentava que os seus associados deveriam dar prioridade ao desenvolvimento do intelecto.
320
Esta regra e seus movimentos desagradaram as famlias nobres de Chicago quando a dana foi
difundida por Miss Kimber:
322
137
O prprio Cunha trouxe o desabono emitido pelas famlias norte-americanas para com a
referida dana, dizendo que o que foi desaprovado na alta sociedade de l deveria ser desaprovado na
sociedade daqui. Frederico Baptista de Souza, apesar de salientar a diferena econmica entre a
sociedade norte americana e a sociedade brasileira negra, compactuou da opinio do autor anterior,
considerando que em termos de moral, pudor e fineza as sociedades deveriam estar no mesmo patamar.
Concordaram ainda em enfatizar a importncia do conselho mdico dispensado ao corpo negro,
assegurando primeiro que se as pessoas desobedecessem aos conselhos cientficos estariam correndo
risco de morte em vista do grande mal provocado pela dana: o charleston sugava muita energia do
passista. Pelas reclamaes de Souza nota-se que nem todas as sociedades ou famlias acatavam as
ordens expressas de aniquilamento da dana, nos permitindo dizer que a modalidade ocupava um lugar
muito especial para os danarinos, ou seja, de maneira sedutora e febril ia adquirindo adeptos pelos
sales e pelas casas familiares.
Houve quem dissesse que a polcia colaborou na proibio da dana, pois na poca a
corporao fazia interferncias pelos sales da sociedade, marcados pela imoralidade. Os comentrios,
da sociedade mais ampla, afirmavam que a ao da polcia ocorrera bem antes da deliberao proibitiva
dos dirigentes das sociedades negras, de modo a argumentar, no terem os lderes e os participantes,
noo do que era determinado como boa conduta e que s agiam movidos por terceiros. Em
contraposio a tal questionamento, o autor enfatizou a rapidez da ao tomada pelas associaes e
apresentou para seus leitores as danas de um outro tempo que foram esquecidas, bem menos feridoras
da moral paulistana. Estiveram entre as danas, de orgulho dos antepassados, a Polka, a Mazulka, a
Quadrilha e, particularmente, o Lanceiro, to cativadoras e obrigatrias nas festas antigas quanto o
indesejado charleston nos anos 20 e 30. Junto com o Elihu Ruth e a Nacionalina, as danas praticadas
pelos antepassados foram trazidas para aquele presente na inteno de estimular a sua prtica nos sales
da comunidade negra, pensadas pelo autor, como ocupadoras da desencantada dana norte-americana.
Souza parabenizou as comunidades de Campinas e Jundiay por terem aderido Quadrilha e ao Lanceiro.
Tinha verdadeiramente horror s danas trazidas pela modernidade325.
Anloga idia dos escritores dO Clarim dAlvorada, em trazer exemplos de estilos de danas
antigas para a comunidade paulistana, um autor do Progresso rememorou de forma negativa a congada
africana desconhecida pelos paulistanos, mas de conhecimento dos interioranos, talvez, os responsveis
em parte pela alterao dos aspectos de sua composio. De qualquer maneira, esta dana era
significativa para a comunidade negra paulistana porque permitia que se revivesse um pouco da
325
O Charleston. O Clarim dAlvorada, So Paulo: 15. 01. 1927, pp. 5.
138
experincia africana em relao ao som propagado pelos tambores, pelas cantigas e pelas usanas: os
enfeites coloridos e espadas, que com o tempo incorporou nos corpos robustos o terno branco e o chapu
de palha. Durante o cerimonial da dana, o rei negro era a figura central, descrita de forma capenga para
denunciar a catica situao da frica.
Pobre rei de uma realeza transitria que come o po de cada dia varrendo as ruas da
cidade. Na funo, elle passeia, orgulhoso, a coroa de metal ordinrio, ativo no manto
escarlate que as traas roeram. elle o senhor do bando. seu o espectro torto. E
pouco se lhe d a lama que respinga da estrada para os reais bigodes. Nem lhe ocorre a
vassoura dura nem se lembra da misria m 326.
13 de maio
Tnhamos sociedades que davam as festividades de hoje o seu valor, o largo da
felicidade era o logar escolhido, para o samba, calpa e congadas, contemplava-se
ento, velhos arcados pelos janeiros idos, com suas carapinhas de neve, e as avosinhas
sorridentes, com seus vestidos engomados e cachimbinhos a deliciar, prasenteiras, a
fumaa das cachimbadas que se deslisavam em borbotes serenos, no azul da noitada
de som de bumbos, urucungos, viva a Princesa Isab, quentes, etc. 327.
Verificamos que as festas promovidas pelas sociedades negras e registradas nestes jornais
alternativos praticamente desprezavam as que ocorriam nos candombls paulistanos, praticamente
desprezavam aspectos das festas consideradas da cultura negra. Bastide compreendia que o estudo das
festas deveria contemplar uma descrio dos vesturios dos orixs. E estes se explicariam pelos mitos. A
descrio congregaria no somente os vesturios, mas ainda os braceletes, os colares, os acessrios das
danas, sabres ou leques, e a forma de sua utilizao. Neste estudo poderia ser acrescentado a queda
dos santos, as transformaes da fisionomia e dos costumes, a durao do transe e a durao da festa.
No poderia faltar tambm uma anlise da iniciao, do momento da entrada do candidato no santurio
326
139
at os ritos da sada e que compreenderia, obrigatoriamente, o estudo dos banhos, quer dizer a magia das
ervas, considerada por alguns como o que h de mais importante na religio do candombl. Interessaria
esmiuar a vida cotidiana dos terreiros, com seus momentos agradveis, o da preparao das festas: a
lavagem das roupas litrgicas, a preparao das refeies pelas cozinheiras espertas, a arrumao dos
caprichosos penteados das mais jovens feita pelas mais velhas. Enfim, os seus momentos de consultas, a
busca da cura328 pelos doentes, etc329.
Nina Rodrigues nos esclarece que cada confraria ou colgio se distingue por preceitos especiais,
seja pela alimentao, pelos deveres religiosos (culto de um santo ou orix) ou pela vestimenta. Assim,
Oubatal requer vestimenta toda branca, com grossas voltas de contas brancas, em torno do pescoo e
dos pulsos (...). Sango vestimenta branca e vermelha e voltas de contas brancas e vermelhas alternadas.
Y-man-j, contas brancas translcidas. Osun, vestes brancas e contas amarellas. O pesquisador
afirmou que sempre via nos candombls, e no Gantois no era diferente, um leito no qual existia uma
grande quantidade de adornos e vestimentas de santos de cores variadas, desde a seda e o veludo custoso
mais at a chita barata. Faixas bordadas de bzio, voltas collossaes de contas e missangas, enfeites
diversos. Sendo assim, depois de conhecido o santo e designado o pai ou mi de terreiro, o iniciado
preparava o guarda-roupa do santo. Preparados os animais dos sacrifcios, a iniciada (o) tinha de tomar
um banho mystico, verdadeira purificao lustral, em que trocava as vestes por outras novas. Colocar
as vestes e o ornamento representava receber a personalidade do seu deus ou santo. Segundo o estudioso,
o banho, em certos ritos africanos, mesmo no Brasil, se d com infuses de plantas que gozam de
propriedades e virtudes fortemente estimulantes, e so tidas como plantas sagradas. Para se obter ou
desenvolver a faculdade medianica so necessrios banhos, ingesto de substncias dotadas de
virtudes especiais, jejuns prolongados, abstinncias sexuais, etc330
Nas notas das festas da imprensa negra, dos bailes e dos espetculos ganharam expresso
algumas personalidades negras, por terem atravs da cultura expandido o que era considerado a arte da
comunidade. Teremos, por exemplo, a condecorao de Josephina Baker, que com seu corpo escultural
de muita agilidade na dana, conquistou o pblico internacional (Paris, Viena, Berlim, Budapeste). Ela
328
Quase sempre se referindo de forma pejorativa ao candombl e seus participantes, o pesquisador Rodrigues anotou que a
ao do feiticeiro era voltada mais para a cura das molstias. Notava-se que o feiticeiro, o adivinho, o sacerdote, o mdico e
o sbio comearam por se confundir num mesmo indivduo. Na sua viso o negro bahiano estava ainda num estado de
evoluo mental em que no admitia que fora das mortes violentas havia molstias e mortes naturaes. A molstia para os
negros era sempre produto da encantao, de um feitio. RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos,
Op. Cit., pp. 92.
329
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros Monografias de candombls. In: Revista do Arquivo Municipal, Op. Cit., pp.
89.
330
RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros bahianos, Op. Cit., pp. 92.
140
foi descrita como uma mulher negra que conseguiu atravs da arte estabilizar-se na vida, por isso os
jornais informaram sobre a sua confortvel estadia nos locais de espetculo (se passeava de carro, se
ganhou bem com a apresentao, etc). Em um telegrama, a artista informou para o Progresso sobre sua
estadia em Berlim local em que fora inaugurar um salo de baile. Tinha necessidade de se apresentar
para a comunidade paulistana como exemplo de uma personalidade negra em ascenso. Em vista do seu
grande sucesso pelo mundo o Progresso atribuiu a ela o ttulo de criao dos estilos de dana, inclusive,
do to criticado charleston:
A representante da vitria da raa no Ocidente cativou o pblico pelo exotismo do seu corpo:
trepidante, diablica na sua cerimnia de comicidade, chocante na sinceridade do seu primitivismo e,
ademais, perturbadora na graa esculptural do seu corpo de bano; e pelo seu estilo de dana,
enquadrados na categoria de arte ligeira por parte dos europeus. A arte ligeira apresentada pela artista
ligou-se ao que fora cultuado pelos seus descendentes, mesclada com a novidade e originalidade dos seus
movimentos e ritmos, mas que por outro lado desagradava e contrapunha-se arte tradicional parisiense.
As figuras contrrias s apresentaes da artista, as reverenciadoras do estilo mais tradicional da arte
ligeira europia foram causadoras da sua sada intempestiva de Paris. Em outros tempos, os cultuadores
da arte europia foram causadores da morte das artistas Regine Flory, Claude France, Jenny Golder, que
no suportaram tais protestos. Josephina Baker contagiava a multido e suas apresentaes causavam
furores: era como se os espectadores no suportassem as emoes provocadas pelo corpo da artista e
nem o prolongado sucesso de uma mulher mestia. Em Budapeste, por exemplo, houve uma reaco
contra a triumphadora. Acharam que suas vestimentas eram demasiado ligeiras. Fallaram em moral, em
perverso dos costumes e outros termos que se vo tornando archaicos, sendo preciso a interveno do
secretrio de Estado, Sr Issekut, para Baker prorrogar as suas apresentaes332.
331
Progresso, So Paulo: 7.09.1924, pp. 2.
332
A musa negra e os seus triumphos na Europa. Como um secretrio de estado beijou a mo de Josephina Baker.
Progresso, So Paulo: 16.11. 1928, pp. 2.
141
Junto com Josephina Baker, Florence Millis encantou Londres (o London Pavillon), Paris (O
Folies Bergres) e o autor do texto. As norte-americanas foram ganhando destaque na modalidade da
dana e colocando em risco o ttulo dos russos. Jlio Dantas, como os outros escritores que escreveram
sobre esta arte, continuou a homenagear estas duas artistas tendo em vista o destaque que elas
conseguiram para a comunidade negra no cenrio internacional, pois para ele, embora praticadas por
estas artistas de renome, o charleston, o fox-trot, o quick-time e o black-botom, ainda eram danas
consideradas excessivamente deturpadoras, sobretudo, do contato discreto entre os sexos, da elegncia e
das boas maneiras. Ademais, essas danas eram consideradas sambas selvagens333, convulses
epilpticas, que foram perdendo pouco a pouco o seu carter artstico africano, perderam a vivacidade
dos ritmos da raa brbara e passaram a consagrar mais os batuques, o requebro e a violncia da
grosseira sensualidade. Estas foram as principais crticas de Dantas, j que todas as caractersticas
apresentadas dessas danas novas contemplaram a graa e a harmonia da beleza branca (representada
pelos corpos mestios norte-americanos, que faziam os movimentos de Kangur, os movimentos do
ventre e das ancas, a ondulao desregrada, de cada passo, os trejeitos, os pinchos, os uivos). Nota-se
que Dantas quis rememorar vrios aspectos da danas africanas (os maxixes: to bellos, cuja
voluptuosidade tem um carter accentuadamente africano), embora questionasse a sensualidade que
visualizava nos seus movimentos334.
Josephina, a negra de pernas geniaes, desagradou os cultores da arte clssica na Argentina e os
abominadores oficiais brasileiros da expresso da sensualidade (partido clerical brasileiro o
espantalho da bailarina negra). Em todo caso, foi nota do Progresso porque poderia servir de espelho
para suas leitoras, se estas aderissem moda norte americana, em termos de saltos, passos e movimentos.
Assim, desmerecia ateno as reclamaes dos latinos americanos pautadas pelo pudor, porque a
Amrica era a mais liberada em termos de amor e seus derivados, apesar da hipocrisia existente.
333
Samba selvagem uma idia que esteve presente no texto denominado de Samba, o hynno nacional da malandragem
divulgado pelo Progresso. Nele percebemos idias paradoxais concernentes a propagao desse estilo musical. A princpio o
escritor enfatizou que o samba era a mais bella msica do mundo. Depois, como se estivesse falando do ponto de vista de
um estrangeiro, enfatizou que o samba exprimia todo o calor e toda a moleza dos trpicos que se alongavam nos seus
rithmos ingnuos, na fora, das suas grandes anedotas brbaras e cheias. Nas canes e nos movimentos corporais do samba
permaneciam a selva lasciva e desordenada e a v exuberncia. O samba era uma filosofia de vida equatorial. E, como todas
as coisas naturais, dotado de complexidade: as suas dansas syncopes musicaes, os seus retorcidos exquisitos, so ao mesmo
tempo, expontneos e complicados. Dentro dessa msica caprichosa, esboava-se uma philosofia brasileira que era preciso
no desprezar. As letras dos nossos sambas cantavam todo um corpo de pensamento: a indiferena pelo dia de amanh, o
horror ao artificialismo da civilizao europea e a resistncia as desventuras do amor. Uma das originalidades do samba
era a de ter transformado as questes econmicas em assunto de poesia popular. Notava-se a insistncia em se falar da falta
de dinheiro. A crise passou a constituir fonte de inspirao para a msica maliciosa. Creou-se, mesmo, uma gyria especial.
Por isso Nota e o Com que roupa, assinalaram poca. Progresso, So Paulo: 31 de julho de 1931, p. 2
334
Progresso, So Paulo; 16.12.1928, pp.2.
142
O autor annimo anterior tambm denominou de inteligente a Europa, por aceitar a propagadora
das novas danas, sem fazer as ressalvas dos autores anteriores sobre a manifestao do pblico
internacional quanto apresentao do tipo de arte da Josephina. Estava por trs desse esquecimento a
idia do progresso que tinha da Europa, ou mais especificamente de Paris, isto , desejava de qualquer
maneira tecer elogios localidade. Na cidade mais requintada do mundo, ella causa as delicias da
multido exigente, que tem visto, atravs da terra, tudo o que a indstria e a intelligncia dos homens
pode descobrir. Discordou ainda dos escritores que escreveram desvalorizando as danas
contemporneas em prol das antigas. Os danarinos de outrora tinham a furlana, o minueto, os
lanceiros, as quadrilhas...Tudo isso era a exteriorizao das almas e das imaginaes cavalheirescas de
outros tempos. Entendeu como positiva a propagao do americanismo, o surgimento do novo nas
danas: hoje o estado do mundo outro. O cortejo ao americanismo acarretou na desvalorizao das
danas antigas, por isso saudou os movimentos da artista trazidos dos seus antepassados norte-
americanos. 335
Littlie Esther foi mais uma bailarina do porte de Josephina e diferenciou-se de Baker somente no
incio da carreira, bem no incio da carreira, porque prematuramente enveredou-se pelos caminhos da
dana (tinha menos de dez anos). Ela, na opinio do escritor, conquistou o pblico (do Empire, do
Cirque dHiver e do Moulin Rouge) pelas caractersticas prprias da raa negra ou das danarinas
negras da poca, que apesar de apresentarem uma estatura baixa, ao subirem no palco encantavam a
multido: cheia de musicas desenfreadas, de requebros vertiginosos, de attitudes surprehendentes. A
rapariguita precoce eletrizava no turbilho da sua dansa (...), cantando em ingls evocaes de lendas
da sua terra (as margens do Mississipi). Temos a impresso de fazer o autor parte do grupo dos que
discordavam da propagao das danas norte- americanas. Portanto, pela construo da escrita passa a
dizer, embora tambm encantado com as expresses das artistas, que a pequena Esther morreu de tanto
praticar o charleston endiabrado pelos cabarets de Paris. Sendo os culpados de sua morte tambm os
briguentos administradores de sua vida, que desde cedo a colocaram no mundo profissional da dana336.
Na segunda apresentao de Baker, em Paris, aconteceu sua consagrao nos moldes da
apresentao de Little ster, no momento em que introduziu no espetculo de dana o canto, apetrecho
assegurador da sua consagrao frente a um pblico maior, ou com o canto arrebatou aqueles que
ficavam indecisos frente a sua figura, que visualizavam apenas o seu estilo de dana denominado de
extico. A prpria fala da artista para os parisienses desmistificou a antiga imagem sedutora que
335
Uma grande artista, cujo valor no pode ser medido por inteligncias medocres. Progresso, So Paulo: 23.06.1929,
pp. 3.
336
Brilhou l no ceo mais uma estrella negra. Pequena rival de Josephina Baker. Progresso, So Paulo: 31.10.1929, pp. 5.
143
visualizavam em seu corpo. Na verdade, suas palavras indicaram que, no recinto de alegria, ela desejava
passar a cada espetculo, um pouco da sua felicidade, um pouco do que expressava o seu corao. Era
como se Josephina Baker ressaltasse o exotismo esperado pelo pblico mas, ao mesmo tempo, o
colocasse em questo.
Novamente rainha
A <reentre> de Josephina Baker, em Paris, foi uma authentico triumpho.
Venceu em toda linha.
Victoriosa da primeira vs, como mera atteno extica, a pequena de So Luiz teve
cuticas agora que s se dedicam as grandes artistas.
E a condessa esta nesse rol,
Oscar Duffene e Henri Varna montaram <Paris SAmuse> no Casino, para o
renascimento da creadora do charleston.
O que ella fs menos foi dansar. Fs a comediante em <Scktches> e cantou com aquela
sua voz de creana, uns versos que a fizeram Rainha de Paris mais uma vs:
Je voudrais, a chaque spectateur
Donner, quel bonheur!
Un peu de mon coeur337.
Orgenes Lessa escreveu um texto indicativo de que tambm na cidade carioca havia discordantes
das apresentaes de Josephina. No Rio de Janeiro Fulano posicionava-se contra a apresentao das
mulatas, enquanto Sicrano para justificar a apresentao delas na Companhia das Rosadas
argumentava, sentimentalmente, ser natural e tradicional expor a beleza das mulatas (mesmo que sem
rosto) como smbolo nacional, bem como o remelexo, o batuque e o samba: de maneira a interferir o
autor a favor, atravs da longa fala de Sicrano, do tipo de papel desenvolvido pelas mestias no palco
(incluindo Josephina), exatamente por elas conseguir seduzir o pblico mais emproado da Europa:
velhos e fidalgos de puro sangue. Ele esqueceu de completar a escrita argumentando que a imagem
da mestia sedutora era construda pelo pblico sem a aprovao da artista, pois, se voltarmos fala de
Josephina, dirigida ao pblico parisiense, compreenderemos que sua inteno no era completamente
expressar a sensualidade e sim transmitir um pouco de felicidade a partir da dana a cada espetculo.
Ento, no eram as apresentaes das mestias que as estragavam no palco como replicou Fulano, e
sim os olhares, os sentimentos e as opinies do pblico que deturpavam as suas imagens, criando outras
completamente representativas dos seus desejos; sem esquecer ainda que tais imagens de exotimo eram
corroboradas pelas artistas para conquista da fama e propagao de sua arte e cultura338
337
Os elementos considerados inatos do negro difundidos por Lessa: remelexo, samba e batuque se
compatibilizaram com a fala de uma mulata entrevistada, candidata cantora, que expressava uma idia
dominante na rdio Bandeirante de que a negritude, aptido para a msica e para o ritmo so atributos
organicamente associados340. Ou seja, a mestia incorporou os esteretipos divulgados sobre o corpo
negro pelo rdio, assim como o Progresso, quando ratificou as idias de Lessa divulgando o texto. Mas
nem por isso tais atributos rendiam cargos para os negros, tendo sido predominante no meio artstico a
cobrana da instruo, da etiqueta e do traquejo social. Tudo isso junto com as caractersticas fsicas
definia o que era ser belo e atraente dentro de um padro cultural. Dentro destas idealizaes, o negro
ocupava o outro plo, da o jornal se reportar excessivamente s poucas figuras do grupo que, na esfera
exposio que relata a vida da artista na Frana, mostrando roupas que usava em shows no Folies Bergres e no Cassino de
Paris e expe tambm a farda de subtenente da Fora Area usada por ela. Finalizando, a reportagem diz: Baker
revolucionou as noites parisienses ao se apresentar praticamente nua vestia apenas um saiote enfeitado com bananas. Os
ornamentos que usava viraram moda em Paris. Revista Raa Brasil, ano 6, n. 55, pp. 16.
339
Progresso, So Paulo: 31. 07. 1930, pp. 3.
340
BORGES PEREIRA, Joo Baptista. Cor, profisso e mobilidade. Op. Cit., pp. 138.
145
artstica, alcanavam destaque. Os valores na poca, responsveis pela excluso do negro no meio
artstico, se contrapunham aos esteretipos implcitos na escrita de Lessa, esteretipos abarcados neste
trecho escrito por Neusa Santos: O privilgio da sensibilidade que se materializa na musicalidade e
ritmicidade do negro, a singular resistncia fsica e extraordinria potncia e desempenhos sexuais, so
atributos que revelam um falso reconhecimento de uma suposta superioridade negra. Todos esses dons
esto associados irracionalidade e primitivismo do negro em oposio racionalidade e refinamento do
branco341.
A falsificao do corpo da mulata na Revista do Brasil, desencadeada no dilogo de Lessa,
tem muito a ver com a histria do rosto enunciada na hiptese de Guatarri e Deleuze, segundo Jos Gil.
Por pequenos exemplos falou daquilo que aparenta ter mera historicidade ou completa plenitude.
Sobre a hiptese do rosto, mencionou a importncia que o rosto branco adquiriu historicamente. O rosto
seria uma inveno do Ocidente, como o rosto de Cristo, e que certo ser uma das caractersticas da
cultura mundial de massa, de hoje, cultura do capitalismo universal, a produo das faces sem rosto 342.
Isto , a face sem rosto seria aquela j enunciada por Bonniol, que se fabrica pelos novos recursos
estticos da cirurgia, da maquiagem, segundo o qual todos os corpos distintos dos padres de
embelezamento Ocidental (europeu) devem se adequar.
341
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenso social.Op. Cit., pp.
30.
342
GIL, Jos. Metamorfoses do corpo. Lisboa, Relgio Dgua Editores, 1997, pp. 172-178.
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Anexos
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