Deus Na Natureza

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DEUS NA NATUREZA
CAMILLE FLAMMARION
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NDICE
Introduo

PRIMEIRA PARTE - A Fora e a Matria


CAPTULO 1 = POSIO DO PROBLEMA
CAPTULO 2 = O CU
CAPTULO 3 = A TERRA

SEGUNDA PARTE - A Vida


CAPTULO 1 = CIRCULAO DA MATRIA
CAPTULO 2 = A ORIGEM DOS SERES

TERCEIRA PARTE - A Alma


CAPTULO 1 = O CREBRO
CAPTULO 2 = A PERSONALIDADE HUMANA
CAPTULO 3 = A VONTADE DO HOMEM

QUARTA PARTE - Destino dos seres e das coisas


CAPTULO 1 = PLANO DA NATUREZA CONSTRUO DOS SERES
VIVOS
CAPTULO 2 = PLANO DA NATUREZA INSTINTO E INTELIGNCIA

QUINTA PARTE - Deus


CAPTULO 1 = DEUS
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Introduo
Destina-se esta obra a representar o estado atual dos nossos
conhecimentos precisos, sobre a Natureza e o homem.
A exposio dos ltimos resultados a que atingiu a inteligncia humana no
estudo da Criao , ao nosso ver, a verdadeira base sobre a qual se h-de
fundar doravante toda a convico filosfica e religiosa. Em nome das leis da
razo, to solidamente justificadas pelo progresso contemporneo e por fora
dos inelutveis princpios constituintes da lgica e do mtodo, pareceu-nos que
s atravs das cincias positivas deveremos prosseguir na pesquisa da
verdade.
Se temos, de fato, a ambio de chegar pessoalmente soluo do maior
dos problemas; se estamos sfregos de atingir, por ns mesmos, uma crena
na qual encontremos repouso e pbulo de vida; se nos anima, ao demais, o
legtimo desejo de transmitir ao prximo a consolao que j encontramos;
no temamos nunca afirm-lo ser na cincia experimental que devemos procu-
rar os elementos de cognio, s com ela devendo marchar.
O cepticismo e a dvida universal imperam no mago de nossa alma e
nosso olhar escrutador, que nenhuma iluso fascina, vigila na cripta dos
nossos pensamentos. No nos despraz que assim seja. No lastimemos que
Deus no nos houvesse tudo revelado ao criar-nos, dando-nos contudo o
direito de discutir. Essa prerrogativa do nosso ser tima em si mesma, como
condio maior de progresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia vigilante,
tambm a necessidade de crena nos atrai.
Podemos duvidar, certo, sem por isso nos isentarmos do insacivel desejo
de conhecer e saber. Uma crena torna-se-nos imprescindvel. Os espritos
que se vangloriam de no a possurem so os mais ameaados de cair na
superstio ou de anular-se na indiferena.
O homem tem, por natureza, uma necessidade to imperiosa de firmar-se
numa convico , particularmente quanto existncia de um coordenador do
mundo e da destinao dos seres que, quando no encontra uma f
satisfatria, experimenta a necessidade de se demonstrar a si mesmo que esse
Deus no existe e busca, ento, repousar o esprito no atesmo e no niilismo.
Diga-se, tambm, j no ser a questo que ora nos apaixona, a de
sabermos qual a forma do Criador, o carter da mediao, a influncia da
graa, nem discutir, to-pouco, o valor de argumentos teolgicos. A verdadeira
questo saber se Deus existe, ou no.
Note-se que, em geral, a negativa patrocinada pelos experimentalistas da
cincia positiva, enquanto a afirmativa se ampara nos indivduos estranhos ao
movimento cientfico.
Qualquer observador atento pode, ao presente, apreciar no mundo
pensante duas tendncias diametralmente Opostas.
De um lado, qumicos ocupados em tratar e triturar, nos seus laboratrios,
os fatos materiais da cincia moderna, por lhes extrair a essncia e quinta-
essncia, a declararem que a presena de Deus jamais se manifesta em suas
manipulaes.
Doutro lado, telogos acocorados entre poeirentos manuscritos de bibliotecas
gticas compulsando, folheando, interrogando, traduzindo, compilando, citando
e recitando versculos dogmticos, e declarando com o anjo Rafael, que, da
pupila esquerda pupila direita do Padre-Eterno medeiam trinta mil lguas de
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um milho de varas, cada qual equivalente a quatro e meia vezes o


comprimento da mo.
Queremos crer que de ambos os lados haja boa f, que os segundos,
como os primeiros, estejam animados do propsito de conhecer a verdade.
Pretendem os primeiros representar a Filosofia do sculo 20, enquanto os
segundos guardam, respeitosos, a do sculo 15. Os primeiros, passam por
Deus sem O ver, como o aeronauta que sulca o espao celeste, enquanto os
segundos focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.
O observador imparcial e independente que procura explicar-lhes suas
tendncias contrrias, adimira-se de os ver obstinados no seu sistema
particular e pergunta a si mesmo se ser verdadeiramente impossvel
interrogar, de um modo direto, este vasto Universo e chegar a ver Deus na
Natureza.
Por ns, isento de qualquer sectarismo, sentimo-nos vontade em
eqacionar o problema. Diante do panorama da vida terrestre; no mbito da
Natureza radiosa luz do Sol, beirando mares bravios ou fontes inrmuras;
entre paisagens de Outono ou floraes de Abril; tanto quanto no silncio das
noites estreladas, temos procurado Deus. A Natureza, interpretada com a
Cincia, foi quem n-lo demonstrou num carter particular. De fato, Ele est
nela, visvel, como a fora ntima de todas as coisas. Temos considerado na
Natureza as relaes harmnicas que constituem a beleza real do mundo, e,
na esttica das coisas, encontrmos a manifestao gloriosa do pensamento
supremo.
Nenhuma poesia humana se nos figurou comparvel verdade natural, e o
Verbo eterno nos falou com mais eloquncia nas mais modestas obras da
Natureza, do que o pudera fazer o homem com seus cantos mais pomposos.
Seja qual for a oportunidade dos estudos que este trabalho objetiva, no
esperamos agradar a toda a gente, certo de haver muitos incapazes de acordar
do seu sono, e outros tantos a quem longe estamos de lhes corresponder aos
pendores.
Acusa-se de indiferentismo a nossa poca. A acusao merecida. Onde
esto, com efeito, os coraes palpitantes de puro amor verdade? Em que
alma perguntamos ainda reina a f? No diremos, j, a f crist, mas uma
crena sincera, seja no que for. Onde se vo os tempos em que as foras da
Natureza, divinizadas, recebiam homenagens universais?
Tempos nos quais o homem, contemplativo e deslumbrado, saudava com
fervor a potncia eterna e manifesta na Criao?
Que feito daqueles tempos em que os homens eram capazes de
derramar o sangue por um princpio, quando as repblicas tinham sua testa
um ideal e no um ambicioso?
Quem se lembra dos tempos em que o gnio de um povo, esculpido em
Notre Dame, ou em So Pedro de Roma, ajoelhava-se e pedia, conchegado
aos seus muros de pedra?
Que feito da virtude patritica dos nossos antepassados abrindo as
portas do Panteo para acolher as cinzas dos heris do pensamento, e re-
legando noite do olvido a falsa glria da ociosidade e das almas?
No coremos de o confessar, j que temos a franqueza de suportar um tal
aviltamento: saturados de egosmo, nossa alma no alimenta outra ambio
que a do interesse pessoal.
Riqueza cuja origem permanece equvoca, louros surpreendidos, antes que
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conquistados, uma doce quietao, uma profunda indiferena pelos princpios,


quem no ver nisso o nosso galardo? A parte, contudo, fora do mundanismo
empolgante e rumoroso, vivem os que no se conformam em baixar a fronte
diante da hipocrisia. Esses, trabalham na solido e esquadrinham em
silenciosa meditao os abismos da Filosofia e, se se mantm fortes, porque
no se atrofiam ao contacto das sombras. Na verdade, um contraste penoso
de assinalar, quando vemos que o progresso magnfico, sem precedentes, das
cincias positivas; que a conquista sucessiva do homem sobre a Natureza, ao
mesmo tempo que to alto nos elevaram a inteligncia, deixaram resvalar o
sentimento a nveis to baixos. Doloroso, sentir que, enquanto por um lado a
inteligncia mais demonstra a sua capacidade, extingue-se por outro lado o
sentimento, e a vida ntima da alma mais se embota na geena da carne.
A causa da nossa decadncia social (passageira, de vez que a Histria no
pode mentir a si mesma) deve-se nossa falta de f. A primeira hora deste
nosso sculo marcou o derradeiro alento da religio de nossos pais. Baldos
sero quaisquer esforos de restaurao e reconstruo. Tudo o que se fizer
no passar de simulacro, pois o que est morto no pode ressurgir. O sopro
de uma revoluo imensa passou sobre as nossas cabeas deitando por terra
nossas velhas crenas, mas, entretanto, fecundando um mundo novo.
Estamos, ao presente, atravessando a fase crtica que precede a toda
renovao. O mundo progride. em vo que homens polticos e homens
eclesisticos imaginam, cada qual do seu lado, prosseguir na representao do
passado, num proscnio em runas. Impossvel impedir que o progresso nos
conduza a todos para uma f superior, que ainda no possumos, mas para a
qual j caminhamos. E essa f, no ser outra que a convico cientfica da
existncia de Deus; numa escalada verdade pelo estudo da Criao.
preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a si e aos outros (quantos
neste caso se encontram!), para no ver e no ajuizar a nossa atualidade
pensante. Foi por ter a superstio matado o culto religioso, que ns o
menosprezmos e abandonmos. E foi porque as caractersticas do verdadeiro
se nos revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um culto mais
puro. E no foi seno por se haverem afirmado diante de ns os imperativos da
justia, que hoje reprovamos institutos brbaros, tais como a guerra, que, ainda
recentemente, recebia a homenagem dos homens. , enfim, porque o
pensamento rompeu os grilhes que o prendiam gleba, que no mais
admitimos, de boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de qualquer
espcie de servilismo. Nada obstante, h em tudo, e sempre, um progresso. Na
incerteza, porem, em que ainda permanecemos, entre as perturbaes que nos
agitam, a maior parte dos homens, ao perceberem que as suas impresses e
tendncias esbarram fatalmente na inrcia do passado, ou se afastam
silenciosos se lhes sobra fora e coragem de o fazerem, ou se deixam arrastar
na corrente geral, pela atrao vigorosa da fortuna. nas pocas crticas que
as lutas se intensificam, intermitentes, sobre os eternos problemas cuja forma
varia feio dos tempos, a revestirem-se de um aspecto caracterstico.
Nesta nossa poca de observao e experimentao, os materialistas
procuram apoiar-se em trabalhos cientficos, e pretendem deduzir da cincia
positiva o seu sistema.
Os espiritualistas, em geral, acreditam, ao invs, poderem pairar acima da
esfera experimental e assomar aos pncaros da razo pura. Ao nosso ver, o
espiritualismo para triunfar deve medir-se com o adversrio no mesmo terreno
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e com as mesmas armas deste. Ele no perder nada do seu carter,


condescendendo em baixar arena, e nada ter a recear nessa justa com a
cincia experimental.
As lutas empenhadas e os erros a combater, longe esto de se tornarem
perigosos para a causa da verdade. Com o exigirem um exame mais rigoroso
das questes versadas, essas lutas nos ensejam a preparao de uma vitria
mais completa.
A Cincia no materialista, nem pode servir ao erro. Como, e porque,
pois, haveriam de tem-la o espiritualismo e a verdadeira religio? Duas ver-
dades no se podem opor a uma terceira.
Se Deus existe, sua existncia no poderia ser suspeitada nem combatida
pela Cincia.
Para ns, temos a convico ntima de que, muito pelo contrrio, no
estabelecimento de conhecimentos exatos sobre a construo do Universo,
sobre a vida e o pensamento, propicia-se atualmente o nico mtodo eficiente
ao aclaramento do problema. S assim poderemos saber se devemos admitir a
soberania da matria universal, ou se importa reconhecer uma inteligncia
organizadora, um plano e um destino imanentes.
Tal, pelo menos, a forma por que o debate se nos apresenta e impe
mente, neste nosso trabalho.
Esperamos que esta tentativa de versar a existncia de Deus pelo mtodo
experimental aproveite ao progresso de nossa poca, por estar de acordo com
as suas tendncias caractersticas.
Ficaremos satisfeito se a leitura deste livro deixar cair uma fagulha
luminosa nos espritos indecisos. Mais, ainda, se depois de haver meditado
fundo estes nossos estudos, alguma fronte se levantar cnscia de sua legtima
dignidade.
Se, regra geral, os idelogos franceses no tm aplicado o mtodo
cientfico aos problemas da filosofia natural, em compensao alguns sbios
trataram o assunto do ponto de vista das relaes gerais manifestadas no
mundo, e que lhe constituem a unidade viva. Com prazer assinalamos, entre as
obras deste gnero, os diversos trabalhos do Sr. A. Langel, aqui mesmo
utilizados vrias vezes.
Problemas da Natureza e problemas da vida no conduzem eles,
efetivamente, ao mximo problema? Examinar as foras ativas no organismo
universal, no ser o mesmo que examinar as diversas modalidades da fora
essencial e original?
As investigaes que focalizam o estudo da Natureza podem aproveitar
Filosofia com maior segurana, s vezes, do que os tratados ou os ditirambos
especialmente consagrados Metafsica. Os prprios escritos dos senhores
Moleschott e Bchner nos ofereceram elementos de refutao.
A circulao da vida, qual a expe o primeiro, mostra na vida uma fora
independente e transmissvel, dirigindo os tomos, mediante leis determinadas
e conforme o tipo das espcies. O exame da Fora e da Matria estabelece,
por outro lado, a soberania da Fora e a inrcia da Matria.
Sendo a Fora e a extenso os primeiros princpios do conhecimento, e
sendo a Filosofia a cincia dos princpios, poderia esta obra ser considerada
antes como um estudo filosfico, se no houvssemos resolvido limitar-nos a
uma discusso puramente cientfica. Este, efetivamente, o seu fim precpuo e
que, por bem dizer, oferece mais atrativos, mau grado aridez aparente do
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trabalho.
Pensamos que o nico meio eficaz de combater o negativismo
contemporneo voltar contra ele o materialismo cientfico e utilizar as suas
prprias armas para derrot-lo.
Esse discrime compete antes Cincia que Filosofia.
A Ideologia, a Metafsica, a Teologia, mesmo a Psicologia, dele se
afastaram quanto possvel.
Ns no razoamos com palavras, mas com fatos.
As verdades significativas da Astronomia da Fsica e da Qumica, como da
Fisiologia, so, de si mesmas, as defensoras intrpidas da realidade essencial
do mundo.
Por mais difcil que primeira vista parea a refutao cientfica do
Materialismo contemporneo, nossa posio belssima, desde que nos colo-
camos no mesmo plano dos nossos adversrios.
E nesta guerra eminentemente pacfica, estamos de
antemo seguros da vitria.
Basta-nos, com efeito, de vez que o inimigo est em falsa posio,
descobrir a fraqueza dessa posio e desequilibr-lo.
O mtodo simples e infalvel, to seguro que no o escondemos:
deslocado o centro de gravidade, sabe qualquer mecnico que o individuo
colhido de surpresa cai, imediatamente, a procur-lo no solo. Eis o quadro que
se nos vai deparar. Crticos houve que pretenderam ver em nosso mtodo
laivos de sorriso e um tanto de ironia.
No podemos ser juiz em causa prpria, mas, ainda que a acusao
tivesse fundamento, no nos caberia culpa alguma e sim, e s, aos
acontecimentos, nos quais o grotesco teria momentaneamente empanado o
srio, graas aos adversrios tantas vezes arrastados s consequncias mais
curiosas.
Referindo-nos forma, devemos pedir ao leitor acredite, que, se por acaso
tratarmos mais asperamente um que outro adversrio, no a ns que a falta
deve ser imputada, visto no utilizarmos esses recursos extremos seno nos
casos (muito frequentes talvez para eles) em que os adversrios se obstinam
em no se deixarem vencer. Somos, ento, bem a nosso pesar, levados a feri-
los com uma ttica mais rude, forando-os a convir, pelos argumentos
irresistveis do mais forte, que so eles de fato os mais fracos nesta guerra de
princpios.
De resto, no h necessidade de acrescentar que so sempre esses
princpios que atacamos, e nunca a personalidade dos que os advogam.
Assim, considerando-se a ndole mesma da questo, exclusas ficam as
pessoas do campo de batalha.
Alm disso, em conscincia, no acreditamos pratiquem os adversrios o
materialismo absoluto o dos seus interesses e das paixes egostas e,
portanto, no temos outra inteno que discutir as suas teorias.
Dividiremos nossa argumentao geral em cinco partes, no intuito de
demonstrar em cada uma a proposio diametralmente contrria sustentada
pelos eminentes advogados do atesmo.
Assim, na primeira, lidaremos por estabelecer, preliminarmente, pelo
movimento dos astros e depois pela observao do mundo inorgnico terrestre,
que a Fora no atributo da Matria, mas, ao contrrio, a sua soberana, a
sua causa diretora.
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Na segunda parte, verificaremos, pelo estudo fisiolgico dos seres, que a


vida no propriedade fortuita das molculas que a compem e sim uma fora
especial a governar tomos, conforme o tipo das espcies. O estudo da origem
e progresso das espcies tambm aproveitar nossa doutrina.
Na terceira parte observaremos, examinando as relaes do pensamento
com o crebro, que h no homem algo mais que a matria, e que as
faculdades intelectuais distinguem-se das afinidades qumicas. A personalidade
da alma afirmar o seu carter e a sua independncia.
A quarta evidenciar em a Natureza um plano, uma destinao geral e
particular, um sistema de combinaes inteligentes, no seio das quais o olhar
desprevenido no pode deixar de admirar, mediante sadia concepo das cau-
sas finais, o poder, a sabedoria e a previdncia que coordenam o Universo.
A quinta parte, enfim, como centro de convergncia das vias precedentes,
nos colocar na posio cientfica mais favorvel para julgar simultaneamente
a misteriosa grandeza do Ente Supremo e a cegueira inconteste dos que
fecham os olhos para se convencerem de que Ele no existe.
O verdadeiro ttulo desta obra deveria ser: A contemplao de Deus
atravs da Natureza.
H alguns anos que se anuncia, como estando no prelo, este trabalho, e
ns lhe temos modificado vrias vezes o ttulo, que, de incio era puramente
cientfico. (Da Fora, no Universo.)
Acabamos, finalmente, por nos fixarmos neste. Sem dvida, um ttulo no
tem essencial importncia para que o autor se explique to formalmente a
respeito.
Mas, no caso vertente, julgamos til declarar desde logo que todos quantos
vissem nas quatro palavras da capa a expresso de uma doutrina, errariam
completamente. Aqui no h pantesmo, nem dogma. Nosso objetivo expor
uma filosofia positiva das cincias, que, em si mesma, comporta uma refutao
no teolgica do materialismo contemporneo. , talvez, imprudentssima
ousadia o tentar assim uma senda isolada, entre os dois extremos, que sempre
aliciaram poderosos sufrgios; mas, de vez que nos sentimos impelidos e
sustentados por uma convico particular, tanto quanto por ardente amor a um
novo aspecto da verdade, podemos, porventura, resistir ao impulso interior que
nos inspira?
Ao leitor compete examinar a obra e decidir se alguma iluso nos seduz e
se nos oculta, sob o prestigio da verdade.
No podemos, todavia, eximir-nos de confessar que, desde que lemos em
Augusto Comte que a Cincia aposentara o Pai da Natureza e acabava de re-
conduzir Deus s suas fronteiras, agradecendo os seus servios provisrios
sentimo-nos algo ofendidos com a vaidade do deus-Comte, e nos deixamos
empolgar pelo prazer de discutir o fundo cientfico de semelhante pretenso.
Verificamos, ento, que o atesmo cientfico um erro e que a iluso
religiosa outro erro. (De passagem digamos, o Cristianismo nos parece ainda
esotrico.) Nossos atuais conhecimentos da Natureza e da vida nos
representaram a idia de Deus sob um prisma cujo valor a teodiceia, como o
atesmo, no podem menosprezar.
Aos nossos olhos, o homem que nega simplesmente a existncia de Deus
e o que definiu esse Desconhecido e lhe debita em conta a explicao
embaraante, so ambos criaturas ingnuas, equivalentes na erronia.
Mas, tambm no compete nos engajarmos aqui assim no mtodo
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antinmico, e, sobretudo, no queremos revestir-nos de aparncias


misteriosas.
Entremos, portanto, sem mais detena no mago do assunto, declarando
que nos esforamos por explanar com a mais sincera independncia o que
acreditamos ser a verdade.
Possam estes estudos ajudar a escalada, na trilha do conhecimento, a
quantos tomam a srio a sua passagem pela Terra e o progresso da Hu-
manidade.

Paris, Maio 1867.


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PRIMEIRA PARTE
A Fora e a Matria
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POSIO DO PROBLEMA
SUMRIO Papel da Cincia na sociedade moderna. Sua
potncia e grandeza. Seus limites e tendncias a ultrapass-los. As
cincias no podem dar nenhuma definio de Deus. Processo geral
do atesmo contemporneo. Objees existncia divina, inferidas da
imutabilidade das leis e da ntima Unio entre a fora e a matria.
Iluso dos que afirmam OU negam. Erros de raciocnio. A questo
geral resume-se em estabelecer as relaes recprocas da fora e da
substncia.

O sculo que vivemos est desde j inscrito com caracteres indelveis


nas pginas da Histria. A partir dos mais remotos tempos, das velhas
civilizaes, nenhuma poca viu, qual a nossa, esse magnfico despertar do
esprito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua fora.
O mundo j no o vale de lgrimas medieval, onde a alma vinha expiar a falta
do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na orao, acreditava
conquistar um lugar no paraso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.
Os frutos da inteligncia j no atestam as longas, abstrusas e infindveis
discusses de estril metafsica, constru das de palitos e escoradas em
sutilezas escolsticas, a que se entregaram cegamente poderosos gnios,
consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim
perderem no apenas o seu tempo, mas o de algumas geraes.
L, onde em murados claustros se concentravam monjes e oratrios, ouve-
se agora o ruido das mquinas, o ranger das engrenagens e o silvo do vapor
das caldeiras combustas.
Se as instituies monsticas tiveram o seu papel no perodo das invases
brbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema, como sucede a
todas as coisas perecveis: o trabalho fecundo do operrio e do agricultor
substitui a decadncia senil pela juvenilidade operosa e fecunda.
No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente os seis
dias da Criao, as lnguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josu, a
passagem do Mar Vermelho, a forma da graa atual, a consubstancialidade, as
indulgncias parciais ou plenrias, etc., etc., e mil assuntos outros difceis de
profundar, vemos hoje instalar-se o laboratrio qumico, no ambiente do qual a
Matria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo
mrmore se desvendam o mecanismo orgnico e as funes vitais; o micros-
cpio do botnico, que surpreende os primeiros, oscilantes passos da esfinge
da Vida; o telescpio do astrnomo, que deixa entrever, para alm dos cus
transparentes, o movimento majestoso dos sis gigantescos, regulados pelas
mesmas leis que acionam a queda de um fruto; a ctedra de ensinamento
experimental, volta da qual as inteligncias populares vm grupar suas filas
atentas.
O prprio globo terrestre transformou-se. Circunavegaram-no, mediram-no,
e j no haver Carlos Magnos que pretendam enfeix-lo na mo, O compasso
do gemetra destituiu o cetro imperial.
Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao impulso das quilhas
levadas por velas pandas, ou pela rotao das hlices potentes e trepidantes.
Tambm drago flamvomo a locomotiva percorre clere os
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continentes e, graas ao telgrafo, podemos falar de um a outro hemisfrio. O


vapor deu vida nova e inesperada a inmeros motores; a eletricidade nos
permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsaes da Humanidade
inteira.
Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta; jamais se repletou
em seu seio, de tanta vida e tanta fora; jamais seu corao enviou, com
tamanha pujana, a luz e o calor s mais longnquas artrias. Nem nunca o seu
olhar se iluminou de um tal claro. Por mais vastos que se deparem os
progressos ainda conquistveis, nossos descendentes sero sempre forados
a reconhecer que a Cincia deve nossa poca o estribo do seu Pgaso e
que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao znite, brilhante
no lhes fora o dia se o no precedera a nossa aurora.
Mas, o que Cincia outorga fora e poder, convm sab-lo, ter por
base de estudo elementos determinados, que no abstraes e fantasmas.
Assim que, na Qumica, ela investe com o volume e peso dos corpos,
examina-lhes as combinaes, determina-lhes as relaes; na Fsica,
investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relaes e as leis que as
regem; na Botnica, aborda o estudo das primeiras condies da vida; na
Zoologia, acompanha as formas existenciais e registra as funes orgnicas
peculiares, os princpios da circulao da matria nos seres vivos, sua
manuteno e metamorfoses; na Antropologia, constata as leis fisiolgicas em
atividade no organismo humano e determina o papel dos diversos aparelhos
que o compem; na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e
da deduz a noo de leis directivas universais; e na Matemtica, finalmente,
formula essas leis e reconduz unidade as relaes numricas das coisas.
Essa exata determinao de objetivo dos seus estudos que d valor e
autoridade Cincia. A temos como e porque a Cincia se engrandece. Mas,
esses ttulos tambm lhe acarretam um imperioso dever. Se, deslembrada
dessa condio de poderio ela se desvia desses objetivos fundamentais para
divagar no vcuo imaginrio, perde simultnea-mente o seu carter e a sua
razo de ser.
E, desde ento, os argumentos que pretende impor, nesses domnios
exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor cientfico, e mais
ainda do que isso, porque ela se desqualifica e j no pode reivindicar o nome
de cincia. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba de abdicar e
no mais a ela que se ouve, mas aos sbios que peroram, o que nem sempre
a mesma coisa. E estes sbios, seja qual for o seu valor, j no sero mais
intrpretes da Cincia, uma vez operando fora da sua esfera.
Ora, esta , precisamente, a situao dos defensores do Materialismo
contemporneo, aplicando a Astronomia, a Qumica, a Fsica, a Fisiologia, a
problemas que elas no podem resolver. E note-se que tais sbios no s
constrangem essas cincias a responderem a problemas que lhes escapam
alada, como ainda as torturam, quais pobres servas, para que confessem a
seu mau grado, e falsamente, proposies de que jamais cogitaram. So,
assim, inquisidores do fato, e no da palavra. Mas, dessarte, no a Cincia,
um simulacro de cincia que manejam.
Nas seguintes controvrsias, demonstraremos que esses cientistas se
encontram absolutamente fora da Cincia, que se enganam e nos enganam,
que os seus raciocnios, dedues e consequncias so ilegtimos, e que no
seu louco amor por essa virginal cincia eles a comprometem simplesmente e
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chegariam a lhe alienar de todo a estima pblica, se no houvesse o cuidado


de mostrar que, ao invs da realidade, eles no possuem dela mais que uma
ilusria sombra.
A circunstncia mais penosa e a razo predominante que nos impelem a
protestar contra as exploraes de um falso rtulo, radicam-se ao fato de
estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente,
universahnente, o papel e a finalidade da Cincia. Compreende-se que, fora
dela, que no h salvao, e que a Humanidade tanto tempo balouada no
oceano do ignorantismo, s tem um porto a proejar o da terra firme do
saber. Tambm por isso, o esprito pblico se volta, convicto e esperanoso,
para a Cincia. Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele recebido, de um
sculo a esta parte, que se predisps a acatar-lhe, com simpatia e
reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso est, precisamente
uma armadilha para o Espiritualismo. que um certo nmero de cultores da
Cincia, que a representam ou que se fazem dela intrpretes, ensinam falsas e
funestas doutrinas.
Os espritos sfregos e despercebidos, que procuram em seus livros os
conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um txico pernicioso e
suscetvel de lhes destruir no mago uma parte dos benefcios do saber.
Eis porque se impe sobrestar um to deplorvel arrastamento, alis,
tendente a universalizar-se.
Eis porque se torna absolutamente indispensvel discutir essas doutrinas e
demonstrar que longe esto elas de entrosar na Cincia, com tanto rigor e
facilidade, quanto pregoam, mas, ao invs, que so o produto grosseiro de
pensamentos sistemticos, que, perptuamente voltados sobre si mesmos, tm
a iluso de se crerem fecundados pela Cincia, embora do radioso sol que ela
simboliza no hajam recebido mais que um tnue raio desviado de sua direo
natural.
H umas tantas questes profundas que, no curso da vida humana, nas
horas de silncio e solitude, se nos apresentam como outros tantos pontos de
interrogao, inquietantes e misteriosos.
Tais os problemas da existncia da alma, do seu futuro destino, da
existncia de Deus e das suas relaes com a Criao.
Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e dominam em sua
imensidade, pois sentimos que nos aguardam e, na ignorncia deles, no
poderemos razovelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.
Assim que, j o dizia Pascal, um desses problemas o da mortalidade
da alma to importante, que preciso haver perdido toda a conscincia
para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se poder dizer
quanto existncia de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou apenas
na possibilidade da sua existncia, elas nos aparecem sob aspecto to
grandioso que a ns mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes,
seres racionais, pensantes, entregar-se uma vida inteira a Interesses
transitrios, sem se abstrairem uma que outra vez da sua apatia para atender a
essas interrogativas preciosas.
Se verdade, qual o temos observado, que h neste mundo homens
absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses proble-
mas, menos no que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles que, no
entanto, mais agravam a bruteza da indiferena e, de caso pensado,
desdenham alar-se ao nvel destes assuntos Importantes, preferindo-lhes os
14

doces gozos da vida material, esses, declaramo-lo alto e bom som ns os


deixamos sem pesar, entregues sua inrcia, para consider-los fora da esfera
intelectual.
O problema da existncia de Deus primacial a todos. Nem por outro
motivo que, contra ele, se assestam as principais, as mais possantes baterias
do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a
cincia positiva, a inexistncia de Deus e que uma tal hiptese no passa de
aberrao da inteligncia humana. Um grande nmero de homens srios,
convencidos do valor desses pretensos raciocnios cientficos, enfileiraram-se
ao redor desses inovadores recidivos, engrossando desmesuradamente as
hostes materialistas, primeiro na Alemanha e depois na Frana, na Inglaterra,
na Sua e na prpria Itlia.
Ora, ns no tememos dizer que, mestres ou discpulos, quantos se
apiam em testemunhos da cincia experimental para concluir que Deus no
existe, cometem a mais grave inconsequncia.
Acusando-os dessa erronia, haveremos de justificar-nos, ainda que os
incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e
respeitveis. De resto, mesmo em nome da cincia experimental que vimos
combat-los.
Deixamos de lado toda a cincia especulativa e colocamo-nos,
exclusivamente, no mesmo terreno dos adversrios.
No pensamos com Demcrito que, vazar os olhos, para evitar as
sedues do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a
Filosofia, e, muito pelo contrrio, permanecemos firmes na esfera da
observao e da experincia.
Nessa posio, declaramos que por um lado no se prende imediatamente
existncia de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos aplicar ao
problema os atuais conhecimentos cientficos, longe de conduzirem negativa,
afirmam eles a inteligncia e sabedoria das leis da Natureza.
A elevao para Deus, mediante o estudo cientfico da Natureza, nos
mantm em situao equidistante dos dois extremos, isto : dos que negam
e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se
houveram sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas,
combatemos duas potncias opostas: o materialismo e a iluso religiosa.
Pensamos que igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil,
quanto negar uma causa primria.
Em vo se nos objetar no podermos afirmar a existncia de uma
entidade que no conhecemos. Precatemo-nos de presunes que tais. Certo,
no conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Tambm no
conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. To-pouco,
conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na
superfcie da Terra.
Longe estou de crer dizia Goethe a Eckermann que tenha uma exata
noo do Ser supremo. Minhas opinies, faladas ou escritas, resumem-se
nisto: Deus incompreensvel e o homem no tem a seu respeito mais que
uma noo vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e ns com ela,
somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela
vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade de
leis eternas, perante as quais representamos um papel ativo e passivo ao
mesmo tempo, quer o reconheamos, quer no. A criana regala-se com o
15

bolo, sem cogitar de quem o fz, o pssaro belisca a cereja, sem imaginar
como a mesma se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma,
essa ntima intuio que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a
exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da
verdade, tantos so os seus inumerveis atributos... Como o Ente supremo, a
que chamamos Deus, manifesta-se no s no homem como no mbito de uma
Natureza rica e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a idia
que dele se faz , evidentemente, exgua.
A idia que os antepassados formavam de Deus, em todas as pocas,
sempre esteve de acordo com o grau de cincia sucessivamente adquirido pela
Humanidade. Tal como o saber humano, essa idia varivel e deve,
necessriamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das noes que
constituem o patrimnio da inteligncia deve seguir a par com o progresso
geral, sob pena de ficar distanciada.
No conjunto de um sistema em movimento, toda a pea que se obstinasse
em estacionar, recuaria realmente. Em nossos dias, j no admissvel dizer-
se, dogmticamente, que tal ou tal noo perfeita e deve guardar o ataque da
infalibilidade: ou se faz, ou se no faz parte da marcha progressiva do esprito.
No primeiro caso, importa acompanh-lo integralmente e, no segundo, h que
confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro.
Digamo-lo francamente: em cincia experimental, Deus no pode ser
admitido a priori e muito menos a destinao, ou finalidade, que presumimos
apreender nas obras da Natureza.
As doutrinas apriorsticas caducaram, j se no admitem.
Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os que tomaram
Deus e no a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia, as
propriedades da matria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles
dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do Sol? se a Terra era plana ou
esfrica? quais os desgnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque,
seria impossvel. Partir de Deus para investigao e exame da Criao
processo baldo de nexo e de sentido. Esse precrio mtodo para estudar a
Natureza e inferir consequncias filosficas, no pressuposto de poder, com
uma simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais,
desacreditou-se, felizmente, h muito tempo.
Mas, pelo fato de havermos substitudo a hiptese precedente pelos
resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos fechar os olhos e
negar a inteligncia, a sabedoria, a harmonia reveladas pela prpria
observao? Haver motivo para repudiar toda e qualquer concluso filosfica
e ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso,
rendermo-nos aos cpticos contemporneos que, sem embargo de evidncia,
rejeitam toda luz e toda concluso?
Pensamos que no. Muito ao contrrio, pelo mtodo que preconizam,
constatamos as suas recusas e inconsequncias.
Antes de qualquer controvrsia, importa determinar as posies recprocas,
por evitar mal-entendidos, esperando ns que as declaraes precedentes
bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.
Combateremos francamente o materialismo, no com as armas da f
religiosa, no com os argumentos da fraseologia escolstica, no com as au-
toridades tradicionais, mas pelos raciocnios que a contemplao cientfica do
Universo inspira e fecunda.
16

Examinemos preliminarmente, num lano-de-olhos, de conjunto, o


processo geral do atesmo hodierno.
Esse processo assemelha-se sensvelmente ao de que se utilizou o baro
de Holbach, nos fins do sculo passado, para fundamentar o seu famoso
Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava
Goethe no haver suficiente desprezo e costumava averbar de legtima
quintessncia da senectude, inepta e insulsa. O novo processo, mais
exclusivamente cientfico, todavia, consiste principalmente em declarar que as
foras que dirigem, no dirigem o mundo, isto : que em vez de governarem a
matria, antes se lhe escravizam e que a matria (inerte, cega, desprovida de
inteligncia) que, movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo
alcance ela no pode, todavia, apreciar.
Pretendem os nossos materialistas atuais que a matria existe de toda a
eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos atributos e que
essas propriedades qualificativas da matria bastam para explicar a existncia,
estado e conservao do mundo.
Dessarte, substituem um Deus-esprito por um Deus-matria.
Ensinam que a matria governa o mundo e que as foras qumicas, fsicas,
mecnicas, no passam de qualidades.
Para refutar um tal sistema, h que tomar, por conseguinte, o partido
contrrio e demonstrar um Deus-esprito, antes que um Deus-matria, in-
compreensvel, a reger a matria; estabelecer que a substncia escrava
antes que proprietria da fora; provar que a direo do mundo no cabe s
molculas cegas que o constituem, mas a foras sob cuja ao transparecem
as leis supremas.
Fundamentalmente, o problema se resume nesta demonstrao e ns
esperamos que ela ressaltar brilhante dos estudos objetivados neste nosso
trabalho.
E de vez que os adversrios se apiam em legtimos fatos cientficos para
estabelecer o erro, cumpre-nos contrabat-los com esses mesmos fatos.
A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo no mais que
um mecanismo material, cujas foras no se conjugam a um motor, mas
remontam a matria, subindo e descendo incessantes num sistema de
motilidade perptua, nem por isso a causa divina estaria perdida.
Contudo, desde os primrdios da Filosofia, a partir de Herclito e
Demcrito, o sistema mecnico do mundo constituiu-se o refgio e o
argumento dos ateus, enquanto o sistema dinmico albergava e escorava os
espiritualistas.
Ns, por princpio, filiamo-nos concepo dinmica e combatemos o
sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente,
diz Caro: (1) por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinaes
e agrupamentos de tomos eternos. Todas as variedades de fenmenos, o
nascimento, a vida, a morte, mais no so que o resultado mecnico de
composies e decomposies,

(1) La Philosophie de Goethe, captulo 6.

a manifestao de sistemas atmicos que se renem e se separam.


O dinamismo, ao contrrio, subordina todos os fenmenos e todos os seres
idia de fora.
17

O mundo a expresso, seja de foras opostas e harmoniosas entre si, ou


seja de uma fora nica, cuja metamorfose perptua engendra a universalidade
dos seres.
Pode constatar-se que, no obstante ser a explicao secundria das
coisas, at certo ponto, independente da primria, ou metafsica, a Histria
atesta o fato constante de uma afinidade natural: de um lado, entre a
explicao mecnica e a hiptese supressiva de Deus; e de outro lado, entre a
teoria dinmica e a hiptese que diviniza o mundo em seu princpio.
A teoria mecnica, estabelecendo a pura necessidade matemtica nas
aes e reaes que formam a vida do mundo, incompleta, por isso que
suprime a causa e dissipa em nvoa o mundo moral. A teoria de uma fora
nica, universal, sempre atual e formando a variedade dos seres pelas suas
metamorfoses, ajusta essa misteriosa universalidade a uma fora primordial.
Poder-se-ia, portanto, acusar simplesmente o processo geral dos nossos
contraditores de um erro gramatical, atribuindo matria um poder s cabvel
fora, e pretendendo no passar esta de mero adjetivo qualificativo, quando lhe
cabem os mesmos direitos daquela, na classe dos substantivos.
Examinemos agora, nesta mesma visada de conjunto, quais os grandes
erros que marcham de paralelo e sustentam essa conduta e que havemos de
encontrar sob vrias formas, no curso das nossas contraditas.
O primeiro erro geral de que abusam os materialistas imaginarem que,
pelo fato de existir Deus, importa atribuir-lhe uma vontade caprichosa e no
constante e imutvel, em sua perfeio.
Ersted, por exemplo, sbio escrutador do mundo fsico, exprimiu
sensatamente as relaes de Deus com a Natureza, dizendo que o mundo
governado por uma razo eterna, cujos efeitos se manifestam nas leis da
Natureza.
O Dr. Bchner ope a esse conceito a seguinte especiosa objeo:
Ningum poderia compreender como uma razo eterna, que governa, se con-
forme com leis imutveis. Ou so as leis naturais que governam, ou a razo
eterna. Que umas ao lado de outras entrariam, a cada instante, em coliso. Se
a razo eterna governasse, suprfluas se tornariam as leis naturais, e se, ao
revs, governam as leis imutveis da Natureza, elas excluem toda interveno
divina. Se uma personalidade governa a matria num determinado sentido
opina Moleschott desaparece da Natureza a lei da necessidade. Cada
fenmeno se torna partilha de jogo do acaso e de uma arbitrariedade sem
pelas.
Havemos de convir que esta grave objeo singularissima.
um raciocnio extravagante que cai pela base. A ns nos parece, pelo
contrrio, que a inteligncia notria nas leis da Natureza demonstra, no
mnimo, a inteligncia da causa a que se devem essas leis, que so, elas
mesmas, precisamente a expresso imutvel dessa inteligncia eterna.
E no ser algo ridculo pretender que essa causa deixe de existir, pelo
motivo do ntimo acordo com essas mesmas leis?
Vejamos, por exemplo, um excelente harpista: a sua virtuosidade to
perfeita que os acordes frementes parecem-nos identificados com a poesia da
sua alma! Diremos, ento, que essa alma no existe, visto que para lhe admitir
existncia fora preciso que ela estivesse eventual e arbitrariamente em
desacordo com as leis da Harmonia! Essa maneira de raciocinar to falsa
que os prprios autores que a utilizam so os primeiros a reconhec-lo
18

implicitamente. Assim que Bchner, referindo-se a milagres e ao fato de


haver o clero ingls solicitado a decretao de um dia de jejum e de preces
para conjurar a clera, elogia Palmaraton por haver respondido que o surto
epidmico dependia mais de fatores naturais, em parte conhecidos, e poderia
melhor jugular-se com providncias sanitrias, antes que com preces.
Muito bem! O autor, melhor ainda, acrescenta: Essa resposta lhe
acarretou a pecha de atesmo e o clero declarou pecado mortal no crer
pudesse a Providncia transgredir, a qualquer tempo, as leis da Natureza.
Mas, que singular idia faz essa gente de Deus que por si criou! Um
legislador supremo a deixar-se comover por preces e soluos, a subverter a
ordem imutvel que ele mesmo instituiu, a violar por suas prprias mos a
atividade das foras naturais! Todo o milagre, se existisse diz tambm
Cotta provaria que a Criao no merece o respeito que lhe tributamos, e os
msticos deveriam deduzir, da imperfeio do criado, a imperfeio do Criador.
A temos os adversrios em contradio consigo mesmos, quando, por um
lado, no querem admitir uma razo eterna em concordncia de leis imutveis,
e por outro pensam conosco, que a idia de imutabilidade ou, pelo menos, a
regularidade, identifica-se muito melhor com a perfeio ideal do ser
desconhecido que denominamos Deus, do que a idia de mutabilidade e
arbitrariedade, que umas tantas crenas pretendem impor-lhe.
Um segundo erro geral, no menos funesto que o precedente e que por
igual ilude nossos contraditores, o de acreditarem que, para existir Deus,
importa coloc-lo fora do mundo.
No vemos pretexto algum racional que possa justificar uma tal
necessidade. E antes do mais, que significa essa idia de uma causa soberana
extra-mundo? Onde os limites do mundo? Pois o mundo, isto , o espao no
qual se movem estrelas e terras, no infinito por sua mesma essncia?
Imaginais um limite a esse mesmo espao e supondes que ele se no
renova alm? Ser, ento, possvel traar limites extenso? Onde, pois, ima-
ginar Deus fora do mundo? Ser fora da matria, o que se quer dizer? Mas,
que a matria em si? agrupamentos de molculas intangveis. Portanto,
impossvel determinar uma semelhante posio. Deus no pode estar fora do
mundo, mas no mesmo lugar do mundo, do qual o sustentculo e a vida.
No fsse temer a pecha de pantesta e ajuntaramos que Deus a alma
do mundo. O Universo vive por Deus, assim como o corpo obedece alma. Em
vo pretendem os telogos que o espao no pode ser infinito, em vo se
apegam os materialistas a um Deus fora do mundo, enquanto sustentamos que
Deus, infinito, est com o mundo, em cada tomo do Universo adoramos
Deus na Natureza.
Entretanto, nossos adversrios combatem estultamente o seu fantasma.
No h considerar o Universo diz Strauss como ordenao regrada por
um esprito fora do mundo, mas, como razo imanente s foras csmicas e s
suas relaes.
A essa razo, chamamo-la Deus, enquanto os modernos atestas
aproveitam essa declarao para sentenciar que, em no existindo fora do
mundo, que Deus no existe.
Tudo, diz H. Tuttle desde a tinha (perdoem a expresso) que baila
aos raios do Sol, inteligncia humana, que verte das massas medulosas do
crebro, est submetido a princpios fixos. Logo, no existe Deus. Logo, existe
dizemos ns Livre cada qual de franquear os limites do mundo visvel
19

pondera Bchner e de procurar fora dele uma razo que governa, uma
potncia absoluta, uma alma mumdial, um Deus pessoal, etc. Mas, que o
que vos fala disso? Nunca, em parte alguma diz o mesmo literato nos
mais longnquos espaos revelados pelo telescpio, pde observar-Se um fato
que fizesse exceo e pudesse justificar a necessidade de uma fora absoluta,
operando fora das coisas.
A fora no impelida por um Deus, no uma essncia das coisas
isoladas do princpio material adverte Moleschott.
Ningum ter viso to limitada afirma ele alhures para enxergar nas
aes da Natureza foras outras no ligadas a um substrato material. Uma
fora, que planasse livremente acima da matria, seria uma concepo
absolutamente balda de sentido.
Positivamente, ainda hoje existem cavaleiros errantes, guisa dos que
outrora manobravam em torno dos castelos do Reno, e de bom grado arre-
metem moinhos de vento. Ldimos heris de Cervantes, visto que, no fim de
contas, qual o filsofo que hoje propugna um Deus ou foras quaisquer fora da
Natureza?
Vemos em Deus a essncia virtual que sustenta o mundo em cada uma de
suas partes microscpicas, da resultando ser o mundo como que por ele
banhado, embebido em todas as suas partes e que Deus est presente na
composio mesma de cada corpo.
Dessarte, a primeira trincheira cavada pelos adversrios para bloquear o
Espiritualismo foi por eles mesmos entulhada; e a segunda, nem sequer
objetiva a cidadela, e os nossos soldados alemes no fazem mais que bater o
campo.
Um terceiro erro, capital e imperdovel em cientistas de certa idade,
imaginarem-se com direito de afirmar sem provas, a embalarem-se com a doce
iluso de serem os outros obrigados a acreditar sob palavra. Coisas que a
verdadeira Cincia profundamente silencia, afirmam-nas eles, categricos.
Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criao, ou como se
fssem os prprios autores dela.
Eis alguns espcimes de raciocnios, cuja infalibilidade to ciosamente
proclamada.
Que os espritos um tanto afeitos prtica cientfica se dem ao trabalho
de analisar as seguintes afirmaes:
Moleschott diz que a fora no um deus que impele, no um ser
separado da substncia material das coisas (quer dizer separado ou distinto?).
a propriedade inseparvel da matria, a ela inerente de toda a eternidade.
Uma fora, no ligada matria, seria um absurdo. O azto, o carbono, o
oxignio, o enxofre e o fsforo tm propriedades que lhes so inerentes de
toda a eternidade... Logo, a matria governa o homem.
Cada uma destas afirmativas, ou negativas, uma petio de princpios, a
depender do sentido que dermos aos termos discutveis, utilizados; mas, em
suma, o que elas resumem que a fora vale como propriedade da matria.
Ora, essa , precisamente, a questo. Os campees da Cincia, que
pretendem represent-la e falar com e por ela, no se dignam de seguir o
mtodo cientfico, que o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu
estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a
saber: toda a proposio no demonstrada experimentalmente s merece
repdio e, no entanto, logo de incio, esquecem a legenda. So pregadores
20

de uma nova espcie: faam o que digo e no o que eu fao.


Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a fora no impulsiona a
matria, exprimem um conceito imaginativo, nada cientfico.
Ouamos, ainda, outras afirmativas gerais: A matria diz Dubois-
Reymond no um veculo ao qual, guisa de cavalos, se atrelassem ou
desatrelassem alternativamente as foras. Suas propriedades so inalienveis,
intransmissveis de toda a eternidade.
Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: Quanto
mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Hu-
manidade, por uma judiciosa associao de cido carbnico, de amonaco e de
outros sais; de cido hmico e de gua, mais se nobilitam a luta e o trabalho,
etc.
E tambm em nosso pas: Uma idia diz a Revista Mdica uma
combinao anloga do cido frmico; o pensamento depende do fsforo; a
virtude, o devotamento, a coragem, so correntes de eletricidade orgnica,
etc.
Quem vos disse tal coisa, senhores redatores? Olhem que os leitores ho-
de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal se no
d, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista cientfico, esses
raciocnios so totalmente nulos. De fato, no se sabe o que mais admirar em
tais expoentes da Cincia: se a singular audcia, se a ingenuidade de suas
presunes.
Newton no se cansava de repetir: parece-nos, e Kpler dizia: submeto-vos
estas hipteses... Aqueles outros, porm dizem: afirmo, nego, isto , aquilo no
, a Cincia julgou, decido, condenou, posto que no que dizem no haja
sombra de argumento cientfico.
Um tal mtodo pode ter o merecimento da clareza, mas ningum o
inquinar de modesto, nem de verdadeiramente cientfico.
que tais senhores tm a ousadia de imputar Cincia a carga pesada
das suas prprias heresias. Se a Cincia vos ouvisse, senhores (mas deve
ouvir, porque sois seus filhos) se a Cincia vos ouve, no pode deixar de
sorrir das vossas iluses.
A Cincia, dizeis, afirma, nega, ordena, probe... Pobre Cincia, em cujos
lbios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao corao um descomunal
orgulho.
No, meus senhores, e vs bem o sabeis (c entre ns) que, nestes
domnios, a Cincia nada afirma, nem nega, porque apenas procura.
Refleti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude os ignorantes e
pode induzir em erro quantos no tiveram a faculdade de perlustrar os vossos
estudos, e considerai que, quando nos arrogamos o ttulo de intrpretes da
Cincia, ficamos na obrigao de no falsear o ttulo, de permanecer-lhe fiel e,
por consequncia, modestos tradutores de uma causa que tem na modstia o
seu primacial merecimento.
Se, da questo da fora, em geral, passarmos da alma, observaremos
que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversrios no vacilam em
afirmar, igualmente sem provas, que no existe personalidade no ser vivente e
pensante; que o esprito, como a vida, mais no que o resultado fsico de
certos grupamentos atmicoS, e que a matria governa o homem to
exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais, O fenmeno
mais curioso o de imaginarem que aclaram o problema com as suas
21

explicaes obscuras:
O esprito, diz o Dr. Hermann Scheffler (2), outra coisa no seno
uma fora da matria, imediatamente resultante da atividade nervosa...
Mas... de onde provm essa atividade nervosa?
Do ter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os atos do esprito
so o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo ter, ou do
movimento deste nos nervos ao qual importa ajuntar uma variao
mecnica, fsica ou qumica, da substncia impondervel dos nervos e de
outros elementos orgnicos...
Eis a, suponho, bem esclarecida a questo. Virchow diz que a vida
no mais que modalidade particular da mecnica; e Bchner afirma que o
homem no passa de produto material; que no pode ser o que os moralistas
pintam; que no tem faculdade alguma privilegiada.
Que h em todos os nervos uma corrente eltrica predica Dubois-
Reymond e que o

(2) Krper und Gelst, etc.

pensamento mais no que movimento da matria. Para Vogt, as faculdades


da alma valem como funes da substncia cerebral e esto para o crebro
como a urina para os rins (3). E Moleschott, assegura que a conscincia, a
noo de si mesmo, mais no que movimentos materiais, ligada a correntes
neuro-eltricas e percebidas pelo crebro.
Teremos ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo
autor sobre o fsforo, o peso do crebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora,
limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.
Admiremos, sobretudo, a concluso fundamental: E a temos ns porque
os sbios definem a fora uma simples propriedade da matria. Qual a
consequncia geral e filosfica desta noo to simples quanto natural? que
aqueles que falam de uma fora criadora, tendo de si mesma originado o
mundo, ignoram o primeiro e mais simples princpio do estudo da Natureza,
baseados na Filosofia e no empirismo.
E, acrescentam qual o homem instrudo, com um conhecimento mesmo
superficial das cincias naturais, capaz de duvidar no seja o mundo
governado como geralmente se afirma, e sim que os movimentos da matria
esto submetidos a uma necessidade absoluta e inerente prpria matria?
Assim, pela s autoridade de alguns alemes, que vm ingenuamente
declarar no admitirem, seja como for, a existncia de Deus e da alma, agar-
rando-se embora a uma sombra de noo cientfica por justificar as suas
fantasias, teramos ns, ao seu ver, de abjurar a Cincia, ou deixar de crer em
Deus.
Tivessem tido apenas a precauo de aplicar as regras do silogismo ao
seu mtodo; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as premissas
irrefutveis e no tirar delas seno uma

(3) Physiologische Briefe.

concluso legtima, e poderamos acompanh-los no raciocnio e conferir-lhes


um prmio de retrica. Mas, vede em que consiste o seu processo:
Maior A fora uma propriedade da matria.
22

Menor Portanto, uma propriedade da matria no pode ser considerada


superior, criadora ou organizadora dessa matria.
Concluso Logo, a idia de Deus uma concepo absurda.
assim que arvoram, antes de tudo, em princpio a tese a discutir.
Combatendo cerradamente os mtodos do Cristianismo, essa gente muito
se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de
Jesus, assim comeavam: Jesus Deus, e desse princpio no provado
extraiam todas as dedues.
Convicto estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando aos
seus postulados as regras do raciocnio, que eles talvez nunca sonharam
seguir.
Tambm poderamos submeter-lhes as pretenses a uma outra forma
mais ingnua, assim:
Antecedente Matria e fora encontram-se sempre associadas.
Consequente Logo, a fora uma qualidade da matria.
A temos, penso, um entimema de novo gnero e de consequncias bem
evidentes, pois no? Mas, assim que os senhores Alemes raciocinam, bem
como os seus clarividentes imitadores, positivistas da nossa moderna Frana.
No primeiro caso, o raciocnio peca pela base; e, no segundo, nm mesmo
faz jus a esse reproche, porque uma infantilidade.
Certo, pesa diz-lo, mas a essa puerilidade, ou melhor perverso da
faculdade de raciocinar que se reduz o movimento materialista dos nossos
tempos. E nunca, como aqui, vem a plo a frase do misantropo que dizia no
ser o homem um animal pensador, mas, falador.
Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste edifcio
heterogneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos crebros sob os es-
combros; toda a fora deste sistema que pretende dominar o mundo, presente
e futuro; todo o seu valor e potncia, repousam nessa assertiva fantasiosa,
arbitrria e jamais demonstrada, de ser a fora uma propriedade da matria.
E fingindo acompanhar a rigor as demonstraes cientficas e s se
apoiar em verdades reconhecidas; confungindo-se ao estandarte da Cincia,
apropriando-se de suas frmulas e atitudes; , enfim, com ela mascarando-se,
que os pontfices do atesmo e do niilismo proclamam as suas belas e
edificantes doutrinas.
Mas a Cincia no uma mascarada. A Cincia fala de viseira erguida,
no reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho. Serena e pura na
sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente, como entidade
consciente do seu valor intrnseco. Nem procura impor-se, e, sobretudo, no
aventa coisas de que no possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar,
investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.
A exposio precedente j deixou adivinhar, sem dvida, a ttica do
atesmo contemporneo.
Ele no fruto direto do estudo cientfico, mas procura insinuar-se com
essa aparncia.
Evidente a iluso, nesses filsofos, pois sabemos que h entre eles uns
tantos conceitos sinceros. fora de quererem conjugar Cincia as suas
teorias, que acabaram por embutir no crebro essa unio clandestina. Estas
teorias no podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas cientficas
da nossa poca e, sem embargo, do-se como resultantes de todo o moderno
trabalho cientfico.
23

Isso repetem, e com essa hermenutica que abusam dos ignorantes e


da juventude desprecavida e entusiasta, tendendo a lhes fazer crer que as
cincias, fora de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que
no h Deus nem alma. So eles que fazem a Cincia.
Dir-se-ia, em os ouvindo, nada haver alm deles. Os grandes homens da
antigidade e da Idade Mdia, tanto como os modernos, so fantasmas, e toda
a Filosofia deve desaparecer diante do atesmo pretensamente cientfico.
Preciso se faz que a imaginao popular no se deixe iludir por simples
jogo de palavras, que mais valem, s vezes, por verdadeira comdia. Importa
que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa
e adquiram a certeza de que os fatos cientficos, perquiridos sem preveno,
no comportam as concluses dogmticas que lhes querem impor.
Vista de perto, a pedra angular a grande custo lanada pelo materialismo
contemporneo deixa entrever que ela no passa de velho e carcomido tronco
de madeira podre, e, no fundo, os partidrios do sistema no esto mais
seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discpulos de Herclito
ou de Epcuro.
Ainda que queiram convencer-nos do contrrio, todo o seu sistema no
passa de hiptese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances
cientficos.
E uma vez que so eles prprios a declarar que toda hiptese deve ser
banida da Cincia, no h como deixarmos de comear por esse banimentO.
Realmente, com que direito fazem da fora atributo da matria?
Com que direito afirmam que a fora est submetida matria, que lhe
obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes,
mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado o nosso direito de inverter-
lhes a proposio, derrubando-lhes o edifcio pela base.
Terminemos assim esta exposio do problema, decidindo que o discrime
se coloca nestes termos fundamentais: a matria que domina a fora, ou
antes esta que domina aquela?
Trata-se de discutir e escolher uma ou outra, ou, para falar com mais
exatido trata-se de observar a Natureza e optar depois.
E, pois que os honrados campees da matria afirmam, com tanta
segurana, o primeiro enunciado, comeamos revocando-o em dvida e pro-
pondo a alegao contrria.

***

No rostro desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:


A fora rege ou regida pela matria? Este o dilema que os fatos de si
mesmos devem resolver.
O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira
demonstrao de soberania da fora e da iluso dos materialistas.
Da matria, nos elevamos s foras que a dirigem; destas, s leis que as
governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.
A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de alguns
nfimos seres humanos recusam-se a escut-los. A mecnica celeste lana, ou-
sadamente, no espao, o arco das rbitas e o olho de um parasita desses
orbes desdenha a grandeza da sua arquitetura.
A luz, o calor, a eletricidade, pontos invisveis projetados de uma a outra
24

esfera, fazem circular nos espaos infinitos o movimento, a atividade, a vida, a


radiao do esplendor e da beleza, e as imbeles criaturas, apenas
desabrochadas superfcie de um parasita desses orbes desdenha a grandeza
a confessar a fulgurncia celeste! loucura ou tolice? orgulho, ou
ignorncia? Qual a origem e a finalidade de to estranha aberrao? Porque a
fora vital, lacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a
manh; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? porque
a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos anelados da
juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? porque negar a
beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligncia? Porque envenenar as
virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo, e eclipsar, tristemente, a
luz imcula que desce dos cus?
Antes de penetrar os mistrios do reino to rico e interessante da vida,
devemos considerar o esboo material do Universo, comeando por de-
monstrar a soberania da fora no tracejar desse mesmo esboo. Dividiremos
esta primeira em duas partes: o Cu e a Terra, para estabelecer em primeiro
lugar, por leis astronmicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que
exista a matria, jamais deixou de ser escrava servil, universalmente dominada
pela energia que a rege. Esta diviso no deve sugerir, de modo algum, a
velha comparao do cu com a Terra, que bem sabemos serem termos
incomparveis. Considerado como valor absoluto, o cu tudo e a Terra nada
. A Terra tomo imperceptvel, perdido no seio do Infinito; o cu a envolve
no ilimitado e a integra na populao astral, sem exceo nem privilgio
particular.
Reunir os dois vocbulos, como dizer: os Alpes so uma pedrinha, o
Oceano uma gota dgua e o Saara um gro de areia. comparar o todo
a um mnimo do mesmo todo.
Importa, portanto, no interpretar literalmente a nossa diviso, que s se
justifica por colimar maior clareza do assunto. Para ns, terricolas, este globo
alguma coisa, assim como para a minscula lagarta, que aflora numa folha,
esta folha que algo vale, mau grado sua insignificncia no conjunto da
pradaria.
Nossa esfera de observao divide-se tambm, naturalmente, em duas
partes: o que pertence e o que no pertence ao nosso mundo.
Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a
matria est em tudo e por toda a parte e no passa de coisa inerte, cega,
morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si mesmos; que
no agem nem pensam por impulso prprio e que, nos sendais invisveis do
espao, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em
tomos, dirige as molculas e conduz os mundos, uma Fora na qual
transparece o plano, a vontade, a inteligncia, a sabedoria e o poder do seu
amor.
25

2
O CU
SUMRIO As harmonias do mundo sideral Leis de Kpler.
Atrao universal. Coordenao dos mundos e dos seus movimentos.
A fora rege a matria. Carter inteligente das leis astronmicas;
condies da estabilidade do Universo. Potncia, ordem, sabedoria.
Negao ateista, inquinaes curiosas ao organizador, objeces
singulares ao mecnico. Ser verdade que no existe no parque da
Natureza sinal qualquer de Inteligncia? Resposta aos julgadores de
Deus.

A contemplao da Natureza oferece ao homem culto,


incontestavelmente, inefveis, particulares encantos. Na organizao dos seres
descobre-Se o incessante movimento dos tomos que os compem, tanto
quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas.
Justa a nossa admirao por tudo o que vive na superfcie da Terra. O
mesmo calor solar, que mantm no estado lquido a gua dos rios e dos mares,
conduz a seiva fronde das rvores e faz pulsar o corao dos abutres e das
pombas. A luz que espalha a viridncia nos prados, e nutre as plantas com um
sopro impalpvel, tambm povoa a atmosfera de maravilhosas belezas areas.
O som que estremece a folhagem, canta na orla dos bosques, ruge nas plagas
marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlao de foras fsicas, que
abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunho das
mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admirao pelo radiamento
da vida planetria, mais extensiva e aplicvel se tornar, em relao aos
mundos que a fulguram acima de nossas cabeas, no cenculo das noites
silenciosas. Esses mundos longnquos que, qual o nosso, se embalam no
mesmo ter, sob o imprio das mesmas energias e das mesmas leis, so
igualmente sedes de atividade e vida. Poderamos apresentar este grandioso e
magnfico espetculo da vida universal como eloquente testemunho da
inteligncia, sabedoria e onipotncia da causa annima, que houve por bem
reverberar, dos primrdios da Criao, o seu mgico esplendor no espelho da
Natureza criada. Mas, no sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o
panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o
nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligncia criadora.
Se, abrindo os olhos diante desse espetculo, eles persistirem em sua
negativa, j no teremos como nos eximir de responder-lhes, em conscincia,
que tmbm duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque, para falar com
franqueza, a inteligncia do Criador nos parece infinitamente mais curta e
incontestvel que a dos ateus franceses e estrangeiros.
E, como o mtodo positivo consiste em no julgar antes de observar os
fatos, corre-nos o dever que examinar primeiro os fatos astronmicos de que
falamos, e depois da interpretao com que se satisfazem os nossos
antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretao satisfizer,
subscreveremos de antemo as suas doutrinas; mas, se, ao contrrio, revelar-
se insensata, temos, como dever de honra e por amor verdade, de a
desmascarar e entregar ao apupo da platia.
Esqueamos por momentos o tomo terrestre, no qual o destino nos fixou
por alguns dias. Que o nosso Esprito se lance ao espao e veja rolar diante de
26

si o mecanismo gigantesco mundos e mundos, sistemas aps sistemas, na


infinita sucesso de universos estrelados. Ouamos, com Pitgoras, as
harmonias siderais nas amplas e cleres revolues das esferas e
contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultneamente
vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas rbitas
ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige estes mundos. Em
torno do nosso sol, centro, foco luminoso, eltrico, calorfico do sistema
planetrio, giram os planetas obedientes. Os mais extraordinrios labores do
esprito humano deram-nos a frmula da lei, que se divide em trs pontos
fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Kpler, operoso sbio
que a descobriu graas ao seu gnio, como sua pacincia, e que discutiu
opiniaticamente, 17 anos, as observaes do seu mestre Ticho-Brahe, antes
que distinguisse sob o vu da matria a fora que a rege.
Esses trs pontos so:

1 Cada planeta descreve em torno do Sol uma rbita elptica, na qual o


centro do Sol ocupa sempre um dos focos.
2 As reas (ou superfcies) descritas pelo raio vector (4) de um planeta
em redor do foco solar so proporcionais aos tempos que levam a descrev-
las.
3 Os quadrados dos tempos de revoluo planetria, em torno do Sol,
so proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitrios.

A sntese destas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a
formular na sua obra imortal sobre os Princpios.
Neste livro, ensina-nos ele como bem adverte Herschel que todos os
movimentos celestes so consequncias da lei, isto : que duas molculas
materiais se atraem na razo direta do volume de suas massas e na inversa do
quadrado das distncias.

(4) Assim se denomina a linha Ideal que liga um planeta ao Sol.

Partindo deste princpio, ele explica como a atrao exercida entre as


grandes massas esfricas, componentes do nosso sistema, regulada por
uma lei cuja expresso exatamente idntica, como os movimentos elpticos
dos planetas ao redor do Sol e dos satlites ao redor dos planetas, tal como os
determinou Kpler, se deduzem consequentes necessrios da mesma lei, e
como as prprias rbitas dos cometas no so mais que casos particulares dos
movimentos planetrios. Passando em seguida s aplicaes difceis, faz-nos
ver como as desigualdades to complicadas do movimento lunar prendem-se
ao perturbadora do Sol, assim como se originam as mars da desigualdade
de atrao que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a
rodeia. E demonstra-nos, enfim, como tambm a precesso dos equincios
no passa de consequncia necessria da mesma lei.
Pois execuo dessas leis que est confiada a harmonia do sistema
planetrio; a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estaes, os
seus dias; nelas que haurem a luz e o calor distribudos em diversos graus
pela fonte cintilante; delas que derivam a ecloso da vida, a forma e
ornamento dos corpos celestes. Sob a ao incoercvel dessas foras
colossais, os mundos se transportam no espao com a rapidez do relmpago e
27

percorrem centenas de mil lguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a
rota certa e prviamente traada por essas mesmas foras.
Se nos fora dado libertar-nos um momento das aparncias, sob cujo
imprio nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se pudramos
abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas,
haveramos de ficar surpreendidos com a imponncia desses movimentos. Aos
nossos olhos maravilhados, enormssimos globos turbilhonariam rpidos sobre
si mesmos, projetados no vcuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas
que uma fora de projeo inimaginvel houvesse enviado ao Infinito.
Admiramo-nos desses comboios ferrovirios que devoram distncias como
drages flamantes e, no entanto, os globos celestes, mais volumosos que a
nossa Terra, deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas,
quanto a destas ultrapassa a das tartarugas. A terra que habitamos, por
exemplo, percorre o espao com a velocidade de seiscentos e cinquenta mil
lguas por dia. Rodeando esseS mundos, veramos satlites em circulao e a
distncias diferentes, mas adstritos e submissos s mesmas leis. E todas
essas repblicas flutuantes inclinam os plos alternativamente para o calor e
para a luz, a gravitarem sobre o prprio eixo, apresentando, cada manh, os
diferentes pontos de sua superfcie ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da com-
binao mesma dos seus movimentos, a renovao da beleza e da juventude;
renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos
invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira; refletem no
espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, s vezes, na
lanugem atmosfrica, fazendo dela um manto protetor, ou transformando-a em
cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfcies imensas a
fora das ondas ocenicas, que, tambm por si, se alteiam sob a atrao dos
astros, qual seio ofegante; iluminam crepsculos com os matizes policrmicos
dos ocasos comburentes, e fremem nos seus plos s palpitaes eltricas
despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam e nutrem a
multido de seres que as povoam; e renovam o filo da vida desde as plantas
fsseis, do passado, at o homem que pensa e sonda o futuro. Todos estes
mundos, todas estas moradas do espao, departamentos da vida, nos
apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo atravs do oceano, celeste
tripulantes que no tm a temer escolhos nem impercias de comando, nem
falta de combustvel, nem fome, nem tempestades.
Estrelas, sis, mundos errantes, cometas flgidos, sistemas estranhos,
astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusadores
de quantos decretam no passar a fora de cego atributo da matria. E
quando, acompanhando as relaes numricas que ligam todos esses mundos
ao Sol qual corao palpitante de um mesmo ser houvermos
personificado o sistema planetrio do prprio Sol foco colossal que a todos
absorve na sua esplendente e poderosa personalidade ento, no
tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trnsito pelos espaos infi-
nitos, o atestado de que todas as estrelas so outros tantos sis, cercados,
como o nosso, de uma famlia que deles recebe luz e vida, e veremos que
todas as estrelas so guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de
ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda
mais cleres que as retro mencionadas.
S ento, o Universo inteiro brilhar aos nossos olhos sob o verdadeiro
prisma, e as foras que o regem proclamaro, com a eloquncia maravi-
28

lhosamente brutal de fato concreto, o seu valor, a sua misso, autoridade e


poder. Diante desses movimentos indescritveis inconcebveis mesmo,
poderamos dizer que transportam pelos desertos do Infinito essa infinidade
de sis; diante dessa catadupa de estrelas do Infinito; diante dessas rotas,
dessas rbitas imensurveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um
relgio, da ma que cai, ou da roda do moinho obedientes lei da gravidade;
diante da submisso dos corpos celestes a regras que a mecnica e as
frmulas analticas podem traar de antemo, bem como da condio suprema
de estabilidade e durao do mundo, quem ousar negar que a Fora no
governe, no dirija soberanamente a Matria, em virtude de uma lei inerente ou
afeta prpria Fora? Quem pretender subordinar a Fora cegueira
constitucional da Matria e afirmar, maneira retrgrada dos peripatticos, que
ela no passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela
se impe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus
tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Fora, deixasse de agir e abdicasse
o seu cetro? A s imaginao desta hiptese dissolve a harmonia do mundo, e
o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, alis, de to insensata
tentativa.
Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e
evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas mars ocenicas
preside s revolues siderais das estrelas duplas, nos latifndios do cu. Tais
duplos, triplos, qudruplos sis giram em conjunto, ao redor do centro comum
de gravidade, obedecendo s mesmas leis que regem o nosso sistema
planetrio. Nada mais prprio do que esses sistemas para nos dar uma idia
da escala da construo dos mundos diz John Herschel.
Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem rbitas
enormes, cujo percurso lhes demanda sculos, somos levados a admitir si-
multneamente que eles preenchem, na Criao, uma finalidade que nos
escapa e que atingimos os limites da humana inteligncia para confessar a
nossa inpia e reconhecer que a mais fecunda imaginao no pode ter do
mundo uma concepo aproximativa sequer, da grandeza do assunto.
Os astrnomos que humildemente remontam ao princpio ignoto das
causas no podem eximir-se de considerar nas mos de um ser inteligente
essa atrao universal, que rege inteligentemente o Cosmos. A lei de
gravitao dizia o saudoso diretor do Observatrio de Toulouse (5)
enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos

(5) F. Petit Trait dAstronomie, 24 et dernlre leon.

celestes, e, por uma dessas coincidncias notveis que so o mais seguro


ndice da verdade longe de temer as excees aparentes, as perturbaes
dos movimentos normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmaes.
Assim que vemos os gemetras modernos explicarem a precesso dos
equincios pela combinao da fora centrfuga, oriunda da rotao da Terra,
com a ao do Sol sobre o nosso menisco equatorial. Assim que vemos,
ainda, explicar-se a nutao por uma influncia anloga, da Lua, sobre a
luminescncia mesma da Terra e, mais: as atraes planetrias, a oscilao
da eclptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Jpiter quan-
do Saturno se acelera, e vice-versa, quando a acelerao se d em Jpiter,
etc. Finalmente, assim que sabemos porque, sob a influncia solar, a mdia
29

do nosso movimento terrqueo se vai acelerando de sculo em sculo e


dever diminuir mais tarde, porque a linha dos ns da Lua perfaz a sua
revoluo em movimento retrgrado dentro de dezoito anos, e porque o
perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (6)
No somente, em resumo, este princpio notvel explica todos os
fenmenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a
observao no indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela
anlise, a constituio do mundo e no nos socorrermos da observao seno
em alguns pontos de referncia, de que se utilizam os gemetras sob a
denominao de constantes,

(6) Curioso que Clairaut, tendo encontrado em seus clculos um


perodo de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente, para
este caso, a gravitao inversa de quadrado da distncia, e que fsse
precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza
no podia ter duas leis diferentes, insistisse com o gemetra para que
revisse os seus clculos. Clairaut, aps um novo exame, reconheceu que
a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas
sries, termos indispensveis.

nos seus clculos. Tudo pois, no Universo, marcha por efeito de uma
organizao admirvel de simplicidade, visto que os movimentos, aparente-
mente mais complicados, resultam da combinao de impulsos primitivos com
uma fora nica agindo sobre cada molcula material; fora nica, com a qual,
e consequentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas,
tambm, que desenvolvimento de poder no requer a produo incessante
dessas foras, cuja existncia no essencialmente inerente matria! Oh!
como deve ser vigilante a mo eterna que sabe, a cada momento, renovar tais
foras, at nos mais impalpveis tomos dos inumerveis astros destinados a
povoar as regies de infinita imensidade. No ser o caso de dizer com o rei-
profeta, inclinando-Se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei?
A partir de Newton e Kpler, sabemos que o Universo um dinamismo
imenso, cujos elementos em sua totalidade no cessam de agir e reagir na
infinidade do tempo e do espao, com atividade indefectvel. Esta a grande
verdade que a Astronomia, a Fsica e a Qumica nos revelam nas imponentes
maravilhas da Criao.
Tal o sublime espetculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua
harmonia. Ora, qual a perfdia de linguagem, ou de raciocnio, que os materia-
listas utilizam para traduzir pr domo sua esses fatos e conclurem pela
ausncia de todo e qualquer pensamento divino?
Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo
materialista que, por seu colorido de Cincia, se tem imposto a muita gente: (7)

Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam, sem


relutncia, sem excees. nem desvios, com esta lei inerente a toda a matria
e a toda partcula de matria, como podemos

(7) Bchner Fora e matria.

experimentar a cada momento. com uma preciso e certeza matemticas


30

que todos esses movimentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os


espiritualistas vem nestes fatos o pensamento de um Deus eterno, que imps
Criao as leis imutveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porm, ao
contrrio, no vem nisso seno a prova de que a idia de Deus no passa de
uma pilhria. Outro fra o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou
rebeldes, se a grande lei que os rege no fsse soberana. fcil (diz Bchner)
conciliar o nascimento, a constelao (?) e o movimento dos orbes com os
processos mais simples que a matria de si mesma nos possibilita. A hiptese
de uma fora pessoal criadora inadmissvel. Porqu? Ningum, jamais, pde
sab-lo. Os espiritualistas admiram o movimento dos astros, a ordem e
harmonia que a eles preside. Ingnuos! No Universo no h ordem nem
harmonia e sim, pelo contrrio, a irregularidade, os acidentes, a desordem, que
excluem a hiptese de uma ao pessoal regida pelas leis da inteligncia,
mesmo humana.

Ponderemos: Coprnico publicou Revolues Celestes, aps trinta anos


de rduos labores; Galileu s depois de vinte anos fecundou a lei do pndulo;
Kpler no levou menos de dezessete para formular suas leis e Newton, j
octogenrio, dizia no ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos
cus; e, depois disso, vm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que
tudo quanto esses gnios possanteS mal puderam encontrar e formular no
revelam no ascendente que as imps matria, uma inteligncia sequer igual
do homem!
E o Sr. Renan escreve ento esta frase: Por mim, penso no haver no
Universo inteligncia superior humana. E ousam compadrinhar-se com
acidentes que propriamente o no so, para afirmarem que no existe
harmonia na construo do mundo.
Que seria, ento, preciso para vos satisfazer, senhores criticistas de Deus?
Vamos diz-lo: primeiro, que no houvesse espao (!) ou que esse espao
fsse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espao no infinito: se
houvramos de atribuir a uma fora criadora individual (diz Bchner) a origem
dos mundos para habitao de homens e animais, importaria saber para que
serve esse espao imenso, deserto, vazio, intil, no qual flutuam planetas e
sis? Porque os Outros planetas do sistema no se tornaram habitveis para o
homem? Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E a temos como
esses senhores se do fantasia de declarar intil o espao, a querer que
todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville j tivera a
mesma idia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os
jupiterianos em excurso a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto
boca. E o anel de Saturno l est como um grande alpendre, onde os
saturninos vo noite refrescar-se. Se esse o desejado universo, cujo
primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetrio; mais avisados
andariam os inventores dirigindo-se seriamente Escola de Pontes e
Caladas, antes que Filosofia.
Que esta, na verdade, nada tem com isso.
Se houvesse um Deus ajuntam , para que serviriam as irregularidades
e despropores enormes de volume e distncia entre os planetas e o nosso
sistema solar? Porque essa completa ausncia de ordem, de simetria, de
beleza? Havemos de convir que preciso ser um tanto pretensioso para
admirar cenografias de bastidores teatrais e recusar ao mesmo tempo a beleza
31

e a simetria s obras da Natureza. Parece-nos mesmo que a primeira


increpao que se faz neste sentido. De resto, esses senhores no nos
oferecem seno negaes. Negao de Deus, da alma, do raciocnio e seus
poderes, sempre, e em tudo, negao. Isso o que propriamente lhes
concerne, e nada mais. Sua pretensa conscincia cientfica simples burla.
Nossos espirituosos adversrios no raro resvalam no plano raso das
puerilidades. Um dentre eles adverte que a luz caminha com a velocidade de
75.000 lguas por segundo, achando que pouco e que ridculo para um
Criador o no poder aceler-la. Outro, acha que a Lua tambm no gira
bastantemente clere. A Lua diz o americano Hudson Tuttle no gira
seno uma vez sobre si mesma, enquanto completa a sua revoluo em torno
da Terra, de sorte que lhe apresenta sempre a mesma face. Assiste-nos
legtimo direito de perguntar porque, pois se houvesse nisso um Intuito
qualquer, a sua execuo deveria ser assinalada. Na verdade, o Criador foi
assaz negligente deixando de admitir esses senhores na intimidade da sua
tcnica. J se viu uma coisa assim?
Deix-los em completa ignorncia dos fins que se props ao fazer rodar
to lerdamente a nossa amvel Luazinha!
Mas, de fato: ser que Deus no poderia ter tido melhor conduta a
benefcio de nossa instruo pessoal? Ns! Porque, perguntamo-nos ainda
(8), a fora criadora no gravou em linhas de fogo (certo em alemo) o seu
nome no cu? Porque no deu aos sistemas siderais uma ordem que nos
desse a conhecer, de maneira evidente, sua Inteno e desgnios? Que
estpida divindade!
Com efeito, senhores, sois admirveis e a vossa maneira de raciocinar
iguala vossa cincia, o que alis no pouco.
Que pena no terdes vs mesmos construdo o Universo! Sim, porque
ento tereis prevenido todos estes Inconvementes...
Mas, dizei-me: estais bem certos de conhecer integralmente a matria para
afirmar que ela substitui Deus, com vantagem?

(8) Kraft und Steft; 8.

Ser que ela vos explica completamente o estado do Universo?


Que respondeis? Bem duvida, atada no nos dado saber ao certo
porque a matria tomou tal movimento em tal momento, mas, a Cincia atada
no dispe a ltima palavra e no impossvel que ela nos revele um dia a
poca em que nasceram os mundos. Tal a definitiva resposta desses se-
nhores. Por ela, ainda se confessam um tanto ignorantes.
Que suceder, ento, quando se compenetrarem de que conhecem tudo,
em absoluto? Cincia! seno estes os frutos da tua rvore?
Aqui, bem o caso de confessar, com o prprio Bchner, que a
comumente invocada profundeza do esprito alemo, antes perturbaO, que
profundeza de esprito. O que os alemes chamam filosofia acrescenta o
mesmo escritor no mais que mania de jogar com idias e palavras, e com
o que se atribuem o direito de olhar outroS povos por cima dos ombros.
No h sabedoria, inteligncia, ordem, harmonia no Universo.
Semelhante acusao ser mesmo feita a srio?
Por ns, temos que lcito duvidar.
Em Outubro de 1604, magnfica estrela surgiu de improviso na constelao
32

da Serpente.
Os astrnomos ficaram assaz surpresos, por isso que uma tal apario
parecia contrria harmonia dos cus. As estrelas variveis ainda no eram
conhecidas. Como, pois, nascera aquela? Fortuitamente? Engendrada ao
acaso? Estas as interrogaes de Kpler, quando sobreveio um pequeno
acidente...
Ontem disse-o ele , no curso das minhas elucubraes, fui chamado
para o jantar. Minha mulher trousse mesa uma salada. Pensas, disse-lhe
eu, que, se desde os primrdios da Criao flutuassem no ar, sem ordem nem
direo, pratos de estanho, folhas de alface, gros de sal, azeite e vinagre e
pedaos de ovo cozido o acaso os juntaria hoje para fazer uma salada? - No
to boa como esta, seguramente respondeu-me a bela esposa.
Ningum ousou considerar a nova estrela como produto do acaso, e hoje
sabemos que o acaso no tem guarida no mecanismo dos astros. Kpler viveu
adorando a harmonia do mundo, e s como extravagncia admitia dvidas a
respeito. Os fundadores da Astronomia Coprnico, Galileu, Tieha-Brah,
Newton, todos se acordam no mesmo culto de Kpler (9)
No so, portanto, os astrnomos que increpam o cu de falta de
harmonia.
mundos esplendorosos! sis do Infinito, e vs, terras habitadas que
gravitais em torno desses focos brilhantes, cessai o vosso movimento
harmonioso, sustai vosso curso. A vida vos irradia da fronte, a inteligncia mora
em vossas tendas, e os vossos campos, recebem, dos multifrios sis que os
iluminam, a seiva fecunda das existncias. Sois levados, no infinito, pela
mesma soberana mo que sustenta o nosso globo, merc da suprema lei que
inclina o gnio adorao da grande causa. Daqui, seguimos os vossos
movimentos, mau grado s inominveis distncias que nos separam e
observamos que esses movimentos so regulados, qual os nossos, pelas trs
regras que a genialidade de Kpler viugou formular. Do fundo abismal dos
cus, vs nos ensinais que uma ordem soberana e universal rege os mundos.
Vs nos contais a glria de Deus em termos que deixam a perder de vista os
com que a proclamava o rei-profeta, escreveis no cu o nome desse ente
desconhecido, que nenhuma criatura pode sequer pressentir. Astros de
movimentao

(9) Quanto mais profunda o homem os segredos da Natureza, mais se lhe


desvenda a universalidade do plano eternal. Si stelles, fixae, diz Newton,
(Phil. nat Principia math, Scholgen) sint centra similium systematum,
hoec omnia simili consilio constructa suberunt uniuns dominio. Cf.
tambm Kpler, Harmonices Mundi.

maravilhosa, gigantescos focos da vida universal, esplendores do cu! vs


nos fazeis genufletir, como crianas, vontade divina, e os vossos beros
balanam confiantes na imensidade, sob o olhar do Onipotente. Percorreis
humildemente a rota a cada qual traada, viajores celestes! e desde os mais
remotos sculos, desde as idades inacessveis em que sastes do primitivo
caos, eis-vos manifestando a previdente sabedoria da lei que vos conduz...
Insensatos! massas inertes, globos cegos, brutos notvagos, que fazeis? Parai,
cessai com esse eterno testemunho...
Detende o turbilho colossal dos vossos cursos mltiplos. Protestai contra a
33

fora que vos avassala. Que significa essa obedincia servil? Ento, filhos da
matria, no ser ela a soberana do espao? Dar-se- que haja leis
inteligentes? Foras diretoras? Nunca, jamais. Laborais num erro insigne,
estrelas do Infinito! sois vtimas do mais ridculo ilusionismo...
Escutai, pois: no fundo dos vastos desertos siderais, dormita obscuro um
pequenino globo desconhecido. No tendes acaso percebido, uma que outra
vez, entre as mirades de estrelas que branqueiam a Via-Lctea, uma
estrelinha de nfima grandeza?
Pois bem, essa estrelinha, como vs, tambm um sol e em torno dele
rolam algumas miniaturas de mundos to pequeninos que rolariam quais gros
de areia, na superfcie de um de vs. Ora, sobre um dos mais microscpicos
planos desses microscpicos mundculos, h uma raa de racionalistas e, no
seio da raa, um ncleo de filsofos que acabam de declarar positivamente,
magnificncias! que o vosso Deus no existe.
Soberbos pigmeus, levantaram-se na ponta dos ps, pensando ver-vos
assim de mais perto. Eles vos acenaram para que vos detvsseis e proclama-
ram, em seguida, que os ouvsseis e que toda a Natureza estava com eles. Alto
e bom som, proclamam-se os intrpretes nicos dessa Natureza imensa. A
lhes darmos crdito, pertence-lhes, doravante, o cetro da razo e o futuro do
pensamento humano est em suas mos. Firmemente convencidos esto eles,
no s da verdade, mas, sobretudo, da utilidade de sua descoberta e da
benfica influncia resultante para o progresso desta pequena humanidade. Ao
demais, fizeram constar que todos quantos lhes no compartilhassem a
opinio, estavam em contradita com a cincia natural, e que a melhor
qualificao cabvel a esses dissidentes retardatrios de ignorantes
obcecados. No vos exponhais, portanto, a serdes to desfavoravelmente
julgadas por esses senhores, portentosas estrelas!
Procedei de maneira a distinguir o nosso imperceptvel sol, o nosso tomo
terrestre, a nossa vermnea racionalidade e, aderindo a esta declarao capital,
paralisai o mecanismo do Universo e com ele a dimenso e harmonia; substitui
o movimento pelo repouso, a luz pela treva, a vida pela morte e, depois,
quando toda a capacidade intelectual for aniquilada, todo o idealismo banido da
Natureza, suprimida toda a lei, atrofiada toda a fora, o Universo se pulverizar,
vs vos dispersereis em p no bojo da noite Infinita, e se o tomo terrestre
ainda subsistir, os senhores filsofos, ltimos viventes, estaro satisfeitos. No
mais se poder dizer que haja inteligncia na Natureza.
34

3
A TERRA
SUMRIO Lei das combinaes qumicas. Propores
definidas. Do infinitamente pequeno e dos tomos. Circulao
molecular sob a ao das foras fsico-quimicas. A Geometria e a
lgebra no reino Inorgnico. A esttica das cincias. O nmero tudo
rege. Harmonia dos sons. Harmonia das cores. Importncia da lei;
menor importncia da Matria, sua inrcia. O primeiro surto da fora
orgnica no reino vegetal.

Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do universo sideral e da


inteligncia da mecnica celeste, por demonstrar o ascendente da fora sobre
a matria, podem colher ao exame dos corpos terrestres. L, era o hino do
infinitamente grande; aqui, a minudncia do infinitamente pequeno. A fora
rege idnticamente os movimentos atmicos e as rbitas imensas das esferas
siderais. Muda de objeto, muda de nome na classificao dos homens, mas
no deixa de ser sempre a mesma fora, isto : a atrao universal.
Chamam-lhe coeso, quando grupa os tomos que constituem as molculas, e
gravitao, quando Impulsa os astros em torno do centro comum de sua gra-
vidade. O nome humano no altera, porm, o fato fsico.
As molculas, de constituio substancial, so formadas por uma reunio
geomtrica de tomos tomados entre os corpos em Qumica chamados
simples. Cada molcula um modelo de simetria e representa um tipo
geomtrico. Assim, por exemplo, a molcula de cido sulfrico mono-hidratado
um slido geomtrico, regular, um heptaedro de base quadrada, composto de
7 tomos SH2O4. Os corpos simples, para formar os compostos, no se podem
combinar seno em nmeros proporcionais, determinados e invariveis.
Sabemos que se designam sob o nome de equivalentes os nmeros que
exprimem quantidades ponderveis dos diversos corpos suscetveis de
entrarem, elas ou seus. mltiplos, nas combinaes qumicas e a se substi-
tuirem mtuamente, para formar compostos quimicamente anlogos.
Cem partes de oxignio, em peso, combinam-se, por exemplo, com 12,50
de hidrognio, para formar a gua. Esta ser sempre, sempre composta nessa
proporo e ningum poder, absolutamente, juntar combinao da molcula
dgua uma partcula a mais de qualquer dos componentes. A gua formada
pela combusto de uma chama , idntica-mente, a mesma das fontes e dos
rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxignio se combinaro com 350 de ferro
para formar o protxido de ferro. Regras so essas, absolutas, s quais a
matria forada a obedecer. A Natureza tem horror ao acaso, tanto quanto ao
vcuo, como se dizia outrora. E no s esses equivalentes representam
numericamente todas as combinaes de corpos com o oxignio, como todas
as desses corpos entre si; de modo que, em nosso exemplo, se o ferro se
combinar com o hidrognio, ser sempre na proporo de 350 (equivalente do
ferro) para 12,50 (equivalente do hidrognio). De resto, todas essas
combinaes obedecem a. regras geomtricas e a cristalizao dos corpos
pode sempre ser levada a um dos seis tipos fundamentais: o cubo, os dois
prismas retos, o ronbide e os dois prismas oblquos.
Para explicar no apenas as combinaes, mas tambm todos os
movimentos mltiplos que se operam nas transformaes incessantes da
35

matria, nos fenmenos de contrao e dilatao, na manifestao das


diversas propriedades dos corpos, admite-se que os tomos no se tocam,
ainda nos corpos mais densos e mais slidos, que esto isolados entre si e
que, em razo de sua pequenez, os intervalos que os permiam guardam a
relatividade, proporcionalmente exata, com os dos corpos celestes. Finalmente,
assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos outros, sem por
isso deixarem de estar unidos num elo solidrio, assim tambm, os tomos
oscilam em torno de sua respectiva posio, sem se afastarem dos limites
regulados pela coeso ou pela afinidade molecular. Entre o mundo das estrelas
e dos tomos no h diferena essencial. Engrossai esse cristal, essa simples
molcula, suponde-a desenvolvendo-se a ponto de atingir o volume do sistema
planetrio e mais de uma nebulosa, e tereis um verdadeiro sistema, com
suas foras e movimentos. Se, ao contrrio, supuserdes que o sistema plane-
trio se contrai, que todas as distncias se encurtam, que todos os corpos que
o integram diminuem e chegam, finalmente, s propores de um agregado
qumico, tereis regressado ao microcosmo. Alm disso, as medidas
expressivas do infinitamente grande, ou pequeno, esto em ns e no na Na-
tureza, de vez que tudo referimos a ns, como a um ponto de comparao. As
noes de grandeza so puramente relativas.
A Natureza no tem essas maneiras de ver.
Os fenmenos do calor, da luz, do som, do magnetismo, explicam-se por
esta concepo dos movimentos atmicos. Sob a influncia dessas foras
exteriores, as molculas se retraem ou se dilatam, e modificam seus
movimentos, tal com fazem os mundos precipitando o curso no periflio, e re-
tardando-o nas longnquas regies do aflio. Quando, por um choque,
produzimos vibraes num corpo sonoro, suas molculas agitam-se em
cadncia, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses tomos so de uma
pequenez inexprimvel. Calculou-se que o nmero de tomos encerrados num
minsculo cubo de matria orgnica do tamanho de uma cabea de alfinete,
deveria atingir a cifra inconcebvel de oito sextilhes, isto , 8 seguido de 21
zeros. Suposto quisssemoS proceder contagem, na proporo de 1.000 por
segundo, haveramos de viver duzentos e cinquenta mil anos para complet-la!
No o vingaramos, portanto. Mas, seja como for, a substncia dos corpos
um pequeno mundo, um mundo analtico, no seio do qual o infinitamente
pequeno regulado por leis to rigorosas quanto as do infinitamente grande, o
sideral. Quando sabemos que uma polegada cbica de trpole contm quarenta
mil milhes de glios fsseis; quando imaginamos que na classe dos infusrios
o microscpio nos faculta distinguir vibries cujo dimetro no excede um
milsimo de milmetro, e que esses minsculos seres se movem ngua, geis,
providos de aparelhos de locomoo, de msculos e de nervos; que se
alimentam e possuem vasos de nutrio; que procuram, perseguem, combatem
a presa nos abismos da gota dgua, com velocidade e fora comparveis a de
um cavalo a galope; quando consideramOS, enfim, que esses pequeninos
seres so providos de rgos sensitivos, j nos no custa crer que as
molculas de gelatina e albumina, que os constituem, so de uma tenuidade
inimaginvel, e que os tomos componentes se integram sem metfora, em
nossa idia do infinitamente pequeno. Ora, esses tomos no se alteram, so
invariveis e imutveis; as molculas dos corpos compostos em formao, das
quais se encontram eles geometricamente associados, no mudam mais, ainda
que passando de um ser para outro. Pela troca perptua, operante em todos os
36

seres da Natureza e que a todos os encadeia sob o imprio de uma comunho


substancial, pela comunicao permanente das coisas entre si, da atmosfera
com as plantas e todos os seres que respiram, das plantas com os animais, da
gua com todas as substncias organizadas, pela nutrio e assimilao que
perpetuam a cadeia das existncias, as molculas entram nos corpos e deles
saem, mudam de proprietrio a cada instante, mas conservam essencialmente
a sua natureza intrnseca. Reconhecemos, com os nossos adversrios, que a
molcula de ferro no varia, quer quando incorporada ao meteorito percorre o
Universo, quer quando retine no trilho ou na roda do vago, ou ainda quando,
em glbulo sanguneo, reponta fronte do poeta. Qualquer que seja, pois, o
habitculo transitrio das molculas, elas conservam a sua natureza e
propriedades essenciais. Os tomos so os infinitamente pequenos, sempre
separados entre si e, todavia, encadeados por essa mesma fora invisvel, que
retm as esferas nas suas rbitas. Toda matria, orgnica ou inorgnica (visto
ser idntica) obedece primacialmente a essa fora. Suas mnimas partculas
so com astros no espao, atraem-se e repelem-se por seus respectivos
movimentos. Sob o vu dessa matria, que se nos figura pesada e densa,
devemos, portanto, lobrigar a fora, que a avassala e rege o mineral, pesa os
elementos, ordena as combinaes, traa regras absolutas e, governando
discricionriamente, faz dela uma escrava imbele, malevel e submissa s leis
prinhgenas que consagram a estabilidade do mundo. indubitvel que os
estados da matria so regulados por leis. J admirastes, alguma vez, os
processos caractersticos da cristalizao? Nunca examinastes ao microscpio
a formao das estrelas de neve e das molculas cristalinas de gelo? Nesse
mundo invisvel, como no universo visvel, cada movimento, cada associao
se efetua sob a direo de uma lei. sempre o mesmo ngulo, as mesmas
linhas e sucesses. Jamais as leis humanas lograram obedincia to
absolutamente passiva.
Nunca gemetra algum construiu figura to perfeita qual a que
naturalmente reveste a mais insignificante molcula.
As leis da Natureza regem o movimento dos tomos nos seres vivos, como
nos inorgnicos: a mesma molcula passa sucessivamente do mineral ao
vegetal e ao animal, neles incorporando-se segundo as leis que organizam
todas as coisas.
A molcula de cido carbnico, a exalar-se do peito opresso do moribundo
em seu leito de dor, vai incorporar-se flor do jardim, relva do prado ao
tronco da floresta. A molcula de oxignio que se desprende dos ltimos ramos
do anoso carvalho, vai incorporar-se ao cabelinho louro do recm-nascido, no
seu bero de sonhos. Nada podemos mudar na composio dos corpos. Nada
nasce, nada morre. S a forma perecvel. S a substncia imortal.
Constitumo-nos da poeira dos antepassados, os mesmssimos tomos e
molculas.
Nada se cria, nada se perde.
Uma vela que ardeu completamente, deixa de existir para os olhos vul-
gares e nem por isso deixar de existir integralmente. Se lhe recolhssemoS as
substncias consumidas, reconstitui-la-amos com o seu peso anterior. Os
tomos viajam de um a outro ser, guiados pelas foras naturais. O acaso no
colhe nessas combinaes e casamentos. E se nesta permuta perptua dos
elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e radiante, subsiste
em sua grandeza, esta potncia peculiar Terra unicamente devida
37

previdncia e rigor das leis que organizam essas transmigraes e etapas


atmicas, de guarnio em guarnio. Se a organizao militar da Frana se
atribui a um concelho inteligente, parece-nos que a organizao qumica dos
seres, alis muito superior quela, atesta um plano inteligente e um
pensamento diretor.
E contudo, o papel que a lei desempenha no Universo anda por a relegado
categoria de fbula pelo autor da Resposta s Cartas de Liebig. Em sua
opinio, o grande qumico no tem motivos para dizer que foi a lei que tudo
construiu (10).

(10) Chemische Brief, pgina 32.

A lei no passaria de uma idia geral, induzida de caracteres sensveis; e como


se no encontra a lei seno depois das experincias, seguir-se-ia que ela na
realidade no existe!
Enquanto acreditarem que a lei fz o mundo, em vez de a considerarem
como resultante dele e por ele iluminando-se, a inteligncia humana dormir
nas trevas e a idia h-de antepor-se experincia.
Para exilar da Natureza o esprito, particularmente o esprito geomtrico,
preciso recusar evidncia o papel representado pelo Nmero, e obstinar-se a
no ouvir a universal harmonia profusamente espalhada nas obras criadas. A
harmonia no to s a fraseologia musical escrita em partituras e executada
por instrumentos humanos; no consiste apenas nessas obras-primas a justo
ttulo admiradas e afloradas nos belos dias de inspirao, dos crebros dos
Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o Universo com os seus acordes.
Antes de tudo, diga-se, a msica propriamente dita , de si mesma e por
inteiro, formada pelo nmero, cada som uma srie de vibraes em
quantidade definida, e as relaes harmnicas dos sons no so mais do que
relaes numricas. A gama uma escala de cifras; e os tons, maior e menor,
so criados pelos nmeros, assim como os acordes no passam, tambm eles,
de uma combinao algbrica. Depois, como a provar a exclusiva soberania do
nmero, vemos que todo compositor h-de obedecer ao compasso. Estas
observaes fundamentais, sugeridas pelo estudo do som, tm aplicao no
menos valiosa no concernente luz.
Assim como os sons derivam do nmero de vibraes sonoras, assim as cores
derivam das vibraes luminosas. O colorido de uma paisagem vale por uma
espcie de msica. A verdura dos prados formada pelo nmero, qual o tema
de uma melodia; a rosa que se desbotou o centro de uma esfera de
vibraes luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que trina
em carcias, projeta no ar as vibraes sonoras caractersticas do seu tnus.
Todo movimento nmero, e todo o nmero harmonia.
No h dvida de que existe, neste estado de coisas, uma parte reservada
s leis fisiolgicas da nossa organizao. Os sons audveis comeam nas
vibraes lentas e acabam nas agudas, que o ouvido pode captar, sejam de 16
a 36.850 por segundo (11).
As cores visveis comeam nas vibraes lentas e extinguem-se com as
mais rpidas que a nossa retina possa apreender, ou sejam, de 458 trilhes por
segundo, a 727 trilhes por segundo (12).
Mas, no haveria como da concluir que haja nisso apenas uma relao
fortuita entre a nossa organizao e os movimentos exteriores.
38

Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites de nossa


organizao, igualmente subordinados a regras numricas. H sons que o
ouvido humano no pode captar, assim com h cores que nos escapam
retina. E no prprio limite de nossas percepes. a relao entre estas e os
nossos sentidos procede, ao menos em nossa opinio, do fato de no ter sido
a construo do nosso organismo alheio ao nmero o elo universal.
Tambm a forma, em suas dissimulaes mais ondeantes, pertence ao
nmero, pois toda figura determinada pelo algarismo.
O sentido inato da esttica que nos inspira, busca as formas mais puras. O
crculo nos encanta com a sua curva graciosa.

(11) Segundo Deprez. As experincias de Savart limitam os sons graves a


8 vibraes duplas por segundo, e a 24000 os agudos.
(12) Tomamos aqui por limites o nmero de ondulaes do infra-vermelho
ao ultra-violeta. Alm deste, nosso globo visual no pode perceber a luz,
que sem embargo, ainda existe.

A Geometria, em nossas construes, no desgarra por veredas


arbitrrias. A Arquitetura apia-se, conforme as suas aplicaes, sobre a forma
esttica do nosso pensamento, ainda que por vezes suceda (como em nossa
poca por exemplo) no ter estilo algum.
At nas figuras simblicas das tradies religiosas, desejamos simetria,
simulando-a s vezes em aparente desordem. Em contemplar um emaranhado
de coisas, a vista logo se nos fatiga, ao passo que se embevece e repousa,
fixando as danas de movimentos melodiosos. Caracterstica peculiar do reino
mineral, a simetria torna-se menos severa ao graduar-se nos reinos orgnicos.
Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma certa latitude
s foras que os modificam, e assim que crescem em duas direes opostas;
as folhas sucedem-se no seu ciclo, em torno da haste, em nmero
caracterstico; suas flores no escapam ordem numrica. Nmero e forma
so as bases da classificao vegetal. Os animais, com o manifestarem o tipo
de cada espcie, do simetria o seu papel e o prprio homem uma unidade
composta por duas metades simetricamente soldadas.
Acima de todas essas formas particulares, soberana se nos manifesta a
unidade de plano.
Nas espcies mais diferentes encontram-se analogias significativas. Nada
menos parecido com a mo humana do que a pata do cavalo e, no entanto, se
dissecardes a pata, l encontrareis um rudimento de mo com os dedos
soldados.
Assim a ordem, a mesma ordem numrica, impera na Terra como nos
cus. No vamos pensar que as harmonias naturais, despercebidas ao ho-
mem, hajam de ser rudos informes e constituam exceo. O vento que suspira
entre os cedros e pinheiros; o lamento das vagas na praia arenosa; o zumbido
do inseto no mbito dos bosques; todos os indefinveis sons que animam a
Natureza, so vibraes sonoras, pertinentes ao reinado do nmero.
O fato na aparncia mais insignificante, tanto quanto o de maior vulto,
resulta de leis determinadas. Com que direito, pois, ousam declarar os
negadores do esprito a materialidade absoluta do Universo? Que pode a
matria s por si? Que ser um tomo de oxignio ou de carbono considerado
revelia de toda e qualquer lei? Em que caos mergulhar a Natureza se
39

aniquilardes a fora que a mantm? Imaginemos por um momento que o


nmero deixa de existir, e esta s conjectura aniquila, de pronto, todas as
harmonias que acabmos de explanar. Ora, perguntamos: pode a faculdade
matemtca pertencer matria? Se assim o julgala, resta dizer-nos que
matria ser essa: oxignio, azoto, carbono, ferro, alumnio. Evidentemente
no, pois a lei supera todos esses corpos e precisamente ela a lei que
os combina, casa, dissocia, separa, visto que os governa. Que vos resta,
ento? Pertencero matria o som, a luz, o magnetismo? Mas a experincia
vos demonstra o contrrio. Nisso, tendes outras tantas modalidades de
movimento. Quem determina um dado movimento ao som e outro luz? Quem
regula essas foras? Aparentemente, sero elas mesmas, ou uma fora
superior que as abranja a todas. A matria no , em todos seus movimentos,
seno o objeto passivo.
Inegvel, portanto, que, na Natureza inorgnica, a matria escrava e a
fora soberana.
Contudo, precisamente o que pem em dvida os nossos campees do
materialismo. J tivemos o ensejo de apreciar o valor de seus argumentos no
que diz com a Natureza inorgnica. Edifiquemo-nos agora, sem tardana, com
a maneira por que explicam a Natureza orgnica.
Quando queimamos cautelosamente uma planta, no raro obtermos o
resduo de um esqueleto silicoso correspondente forma primitiva da haste.
a substncia que a constitua, provemente da substncia do solo. A planta
integral encerra a mais certos corpos determinados por sua natureza: assim,
por exemplo, o trigo contm o glten azotado; a videira, cal; a batata, potassa;
o ch, magnsia; o tabaco, salitre, etc. A cada planta convm uns tantos
elementos minerais e a prpria planta que os sabe escolher. O agricultor
inteligente adapta a sua lavoura natureza do terreno e escolhe os adubos de
acordo com as safras que colima. No conhecimento das necessidades de cada
espcie est o segredo das searas e dos alqueives. Diante disto, os tericos de
que nos ocupamos s se explicam pela metade. A raiz absorve dizem de
acordo com as leis fixas de afinidade, os elementoS que lhe jazem em torno. E,
como se temessem no ser bem compreendido o papel to judiciosamente
atribudo tal afinidade eletiva, acrescentam (ver Moleschott) que a planta
fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Haver, quem, depois
de uma tal declarao, ainda se negue a outorgar fora o ascendente diretivo
que lhe cabe? Pois h, visto que tudo isso dito atribuitivamente matria. A
evaporao que faculta s razes a absoro dos elementos da terra vegetal,
dizem, e a afinidade dos lquidos atravs das paredes celulares que os
separam, tais as faculdades mestras da matria, que engendram o
crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do rochedo: necessita de
sombra, de silncio, de uma certa alimentao de que a separam seixos e
calhaus... Examinem-se-lhe OS vagos, mas, enrgicos desejos: ela procura,
coleia, recua, contorna pedras, desce, sobe, lana-se vida a qualquer ponto
que um qu de instintivo a faz adivinhar, recai por vezes desfalecida, mas logo
se reanima de novos mpetos, derruba todos os obstculos e chega, enfim,
cana prometida. Desde ento a se fixa, implanta-se e afirma seus direitos de
conquista. A rvore mofina que delirava outrora em calafrios de consuno,
retoma prestes o vigor natural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes.
Ousar-se- admitir aqui, mais formalmente ainda do que na cristalizao
mineral, a inexistncia de um princpio inteligente, de uma fora orgnica pe-
40

culiar?
Por ns, confessamo-lo sem reservas: na manifestao dessas tendncias
instintivas saudamos o ser virtual, a fora intrnseca do vegetal, que constrange
a matria a obedecer-lhe.
Parece-nos que sois consequentes atribuindo matria essa afinidade
eletiva (como se a matria discernisse!), quando ns a inferimos no ser vegetal,
que, aflorado nas condies mais dspares, sabe adivinhar por toda a parte os
elementos necessrios existncia da sua espcie.
pretensos sbios! que acreditais fabricar cincia arrastando a
inteligncia em campo raso de dispautrios, deixai que vos acuse e lastime no
terdes sabido ver, nem sentir, os cenrios da Natureza. O aspecto admirvel de
uns tantos stios, nos quais a graa e a beleza se conjugam sob todos os
prismas; a movimentao da vida, na viridncia constante de prados e
florestas; a irisao da luz-clara, marchetada de flocos de ouro; o perfil
silencioso das rvores; o espelho translcido dos lagos que refletem o Sol; o
calor primaveril que aquece a atmosfera; o sendal das selvas e o perfume das
flores: todas as maravilhas, ternuras, carcias da Natureza ficaram estranhas
vossa inrcia. As contemplaes desta natureza terrestre oferecem, contudo,
grandes encantos e acarretam, por vezes, revelaes inesperadas.
Lembro-me e confesso, ainda que possais rir da minha sensibilidade
lembro-me, repito, de haver passado horas deliciosas, admirando
solitariamente umas quantas paisagens. No h categorizar aqui as
impresses de que falo, pois quem tenha olhos de ver, as encontrar por toda
parte. O Sol, no posto ainda, mas nublado, iluminava as alturas, colorindo de
matizes delicadssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cmulus louros a
vogarem lentos, acima dos crrus argenteados. Um vento suave e insensvel
superfcie do solo balouava aqueles grupos polcromos, nos quais os tons de
ferica paleta, do ureo ao rseo, harmonizavam-se no contraste, quais
acordes de um coro celestial. A meus ps fremia a onda translcida do lago
imenso, a sumir-se no horizonte longnquo. Profundo silncio amortalhava a
cena. beira dgua, no longe, alguns capes de rvores e de arbustos
refletiam-se no espelho mbil, com propores gigantescas. A massa eqrea
refletia simultneamente a terra e o cu, opondo s luzes de cima as sombras
de baixo. Quadro digno dos grandes paisagistas, que costumamos admirar nas
telas de um Claudio Lorrain e de um Poussin, mas cuja simplicidade inimitvel
transcende a todo poder imaginativo! s vezes, o silncio ambiente era
quebrado pelo cincerro dos rebanhos distantes, tangidos ao pastoreio, quando
no pelas copias de alados cantores. Diante desse conjunto de tanta beleza,
velada embora; de tanta vivacidade, apesar de aparentemente morto; de tal
eloquncia em meio do silncio, havia um esplendor tamanho e to imperioso,
que eu me senti penetrado da vida universal, difusa no mesmo ar que respirava
por todos os poros. Ela dizia-me que as rvores vivem, que as plantas respiram
e Sonham! Dizia-me que no ar e na luz, em que a supomos inanimada, ela se
eleva e se engrandece para a fase indecisa das primeiras manifestaes do
ser. Eu bem via, com os olhos do qumico, a sucessividade rpida e incessante
dos tomos constituintes do corpo, desde a erva tenra at a nuvem. Sabia que
um dinamismo grandioso e incoercvel lhe pe em circulao turbilhonar as
molculas simples, alternativamente combinadas na sucesso dos corpos.
Contudo, no mago desse movimento, pressentia a fora que o acarreta,
no fundo dessas aparncias admirava a lei diretriz das coisas criadas.
41

Dominado pelo poder mesmo dessas leis, que irradiam a beleza no espao
com a mesma facilidade com que o lavrador semeia em campo frtil; pro-
fundamente emocionado nessa comunho passageira do meu eu com a vida
inconsciente da Natureza, senti-me como que transportado a uma espcie de
xtase, enquanto as imagens areas daquele cu magnfico se me refletiam
nalma, qual se o fizessem na face espelhante de um lago tranqilo.
nesses instantes de contemplao, fugazes e indescritveis, que a idia
esttica de Deus me surge mais luminosa e maiormente me avassala. So
revelaes estas, que no posso exprimir e nem a mim prprio definir, quando
me ocorrem. Sinto-me subjugado pela necessidade de reconhecer uma causa
para essa beleza, uma causa que no posso nomear, e que, nada obstante,
me surge com as caractersticas da prpria beleza, da bondade, da ternura, do
amor e assim tambm com as do poder, da magnitude e da dominao. No
mais, ento, pela inteligncia, mas pelo corao que me compenetro da
existncia de Deus. Deverei confessar que me sinto s vezes surpreso e
acabrunhado por uma emoo profunda? No, por isso que, na opinio dos
contraditores, todo sinal de emoo s tem origem na centralidade varivel do
corao anatmico, ou na secreo da glndula lacrimal, mais ou menos
sensvel por temperamento e que, portanto, todas as maravilhas aqui expen-
didas no passam de cego resultado, baldo de senso, das combinaes
materiais engendradas pela qumica e pela fsica orgnicas!
O Deus eterno, onisciente, onipotente, infinitamente sbio, passou-me
ante os olhos exclamava Linneu, aps seus admirveis trabalhos de
Botnica. No o vi face a face, mas o seu reflexo me saturou o esprito de
pasmo e admirao. AcomPanhei-lhe o trao em todas as coisas criadas, e, em
todas as suas obras, das menores s maiores, e mesmo nas mais
imperceptveis, quanta fora, quanta sabedoria, quanta perfeio indefinvel!
Observei como os seres animados se superpem e se encadeiam no reino
vegetal, os vegetais por sua vez, nos minerais que jazem nas entranhas do glo-
bo, ao mesmo tempo que este globo gravita, num plano invarivel, ao redor do
sol que lhe deu a vida. Enfim, vi o Sol e todos os astros, todo o sistema sideral
imenso, incalculvel na sua infinitude, moverem-Se no espao, suspensos no
vcuo por um motor primrio, incompreensvel, o Ser dos seres, o Guia, o
Conservador do Universo, Mestre e Operrio de toda a obra universal...
Todas as coisas criadas do testemunho do poder e sabedoria divinos, ao
mesmo tempo que se fazem tesouro e pbulo de nossa felicidade. A utilidade
que elas tm, testificam a bondade de quem as fz; a sua beleza demonstra
sabedoria, enquanto que por sua harmonia, conservao, proporcionalidade e
inesgotvel fecundidade, proclamam a grandeza do poder divino!
a isso que quereis chamar Providncia? efetivamente o seu nome, e
no h outro que o seu conselho, para explicar o mundo. , pois, justo
acreditar que h um Deus imenso, eterno, incriado, sem o qual nada existe e
que tenha. feito e coordenado esta obra universal.
Esse Deus escapa-se-nos vista e, no obstante, no-la repleta da sua luz.
S em pensamento podemos aprend-lo e neste profundo santurio que se
oculta a sua majestade.
Nossos adversrios no compreendem estes arroubos dalma. Ao demais,
para sentir a poesia das coisas, preciso, antes de tudo, possuir a poesia
dentro de si mesmo, preciso que a alma entre em vibrao. O esprito que se
degrada funo de produto qumico no suscetvel de emoes que tais.
42

Por consequncia, e j que aqui falamos da esttica da Natureza


inanimada, notemos de passagem um exemplo da tendncia dos nossos qumi-
cos para estender a todas as coisas o rigorismo de suas concepes.
Deixemo-los resvalar do verdadeiro ideal para um realismo irreal.
O Sr. Moleschott , sem favor, o apstolo da realidade fsico-qumica. Diga-
se mesmo, de um realismo assaz exagerado. Julgai-o, pois, pela sua maneira
de poetizar a Natureza.
Gostais, sem dvida, do brilho das flores, dos seus matizes delicados, dos
seus aromas to sutis? Pois bem: mal podeis imaginar o que sucede quando
vos debruais sobre uma rosa para, narinas dilatadas, aspirar-lhe a fragrncia.
Ouamos o qumico:
Quando respiramos o balsmico perfume dos prados, no absorvemos
mais que verdadeiras substncias excrementais dos vegetais.
Seguramente, no temos o direito de nos surpreender ao vermos
colepteros fimcolas e animais outros, de uma ordem superior, comerem
carnia (sic) e excrementos, bem como que todo o reino vegetal viva de
excretos dos animais, uma vez que ns tambm nos deliciamos com
substncias decompostas por efeito da vida vegetal e cuja origem anloga
da urina e das matrias fecais.
Nunca o suspeitastes? Pois a tendes uma coisa bem sria para as flores e
para quantos as estimam e admiram, porque, enfim... (13)
Para retornar ao assunto e terminar pela considerao geral da ao da lei
no ambiente da Terra, lembremo-nos de que essa ao permanente
condicional existncia do mundo, tanto quanto

(13) Ser que esta fsico-qumica no vai muito longe assimilando to


radicalmente funes vegetais e funes animais? Os lrios cndidos e as
mimosas violetas em nada se parecem, trao por trao, com os animais
peludos dos nossos estbulos; nem o perfume dos goivos se exala, pre-
cisamente, do mesmo objeto, que o odor nada equvoco, das pesadas
pipas que rolam meia-noite pelas ruas de Paris. A Qumica, decerto, no
tem falsos decoros e ns queremos admitir que, num captulo sobre a
digesto, o Sr. Moleschott discuta a idia do Sr. Liebig, de identificar o
valor digestivo do alimento pela grossura toda particular dos resduos da
refeio, deixados pelos transeuntes ao longo dos muros. Mas, num
captulo tratando de flores, pensamos no ser necessrio exagerar
similitudes do reino vegetal e animal para o conseguir. De resto, no
passa isto de mera digresso extratextual, para mostrar os adversrios
sob um aspecto particular. Encerremo-la.

de sua beleza. Quando os corpos vibram, quando a corda ressona ao atritar o


arco; quando o sino geme ao toque do badalo, as molculas se agitam
cadenciadas, tal como as esferas no espao. A harmonia das esferas no
uma frase v. Ela efeito de uma fora e essa fora a mesma para os dois
casos, quer se chame coeso, quando grupa molculas, quer se chame
gravitao, quando junge os corpos celestes. Fora primordial, elementar, que
anima toda substncia, ora determinando uma simples aproximao molecular,
ora sujeitando-a a diretivas determinadas, segundo as condies em que
estejam colocadas. Essa fora, podemos denomin-la fsico-qumica. Presto
havemos de verificar a existncia de uma fora distinta, a reger o turbilho da
43

matria nos seres vivos. pelo sistema nervoso que o animal se distingue do
mineral e do vegetal. A partir do estado rudimentar, onde se apresenta com os
zofitos, at o seu mais completo desenvolvimento na espcie humana, o
sistema nervoso o ndice da animalidade e preside aos fenmenos imateriais.
Por ele que percebemos toda e qualquer sensao; ele que possibilita
nossos movimentos voluntrios, por ele, ainda, que manifestamos o
pensamento. Eliminai os nervos e tereis de fato destrudo a sensao. Cortai o
fio telegrfico e j no transmitireis o despacho.
Se o nervo tico paralisar, ainda que intacto o globo ocular, o animal fica
cego; as imagens prosseguiro, formando-se na cmara visual, mas
insensveis. O ouvido pode estar perfeitamente so, fsicamente constitudo
para recolher as vibraes sonoras e, no entanto, no haver sons percept-
veis, desde que l no exista o nervo acstico para os captar e transmitir ao
crebro e tambm que haja um crebro vivo para os receber.
, pois, de crebro e nervos que se utiliza a fora que percebe e julga.
No reino vegetal, particularmente em certas espcies como sejam a
sensitiva, a dioneia, o desmdio, ns reconhecemos uma energia latente, cor-
respondente ao nosso sistema nervoso.
Indiscutvel , todavia, que a fora fsico-qumica, a fora vegetal, a fora
animal, a inteligncia, no so uma s fora-matria. Expliquem-nos, ento,
como uma molcula sucessivamente animada por foras to distintas.
Como admitir que o tomo de ferro, que agora se integra num homem, num
animal ou numa planta, constitusse momentos antes a ferrugem de uma velha
esttua, por exemplo? Se ele ao mesmo tempo matria e fora, e se a fora
nica, como explicar produza fenmenos to distintos?
Acima da matria existe um princpio imaterial, absolutamente distinto. Um
esprito anima a matria, qual o disse Verglio.
Diante da organizao regular dos seres terrestres, no nos cabe mais que
repetir a resposta, j de um sculo, dada ao Sistema da Natureza. A matria
passiva e incapaz de coordenar-se por si mesma num todo regular. Contudo,
ela dotada de umas tantas propriedades que a fazem suscetvel de
obedincia s leis. Ora, como pode a matria cega ter desgnios e tender para
uma finalidade? Como, ininteligente, teria engendrado seres inteligentes?
Como se governaria por leis sbias, se no conhece o que seja sabedoria?
Como reinar uma ordem majestosa entre as suas partes, se ela no conhece a
ordem?
Como, enfim, essa utilidade sensvel e perceptvel em todas as suas
operaes, se ela, de fato, no tem alvo?
A esto uns tantos problemas a que os materialistas hodiernos vo tentar
responder em detalhe nas suas discusses (14).

(14) Proclamando alto e bom som que a fora governa a substncia, no o


fazemos a ponto de pretender. com certos metafsicos, que no existe
substncia e sim, nica-mente, a fora. um exagero para ns to falso
como o dos materialistas. Ouamos por momentos uma demonstrao
metafsica da incoexistncia dos corpos e da extenso. ( de Magy, em
Science et Nature.) Se supusermos que a extenso, assim como a fora,
convm aos objetos da experincia e torna-se dela um elemento
inseparvel, ento, como as propriedades da primeira so precisamente
inversas das da segunda, chega-se a admitir implicitamente que as
44

contraditrias possam coexistir num mesmo objeto erro tpico que


caracteriza de si mesmo o absurdo.
Mas, se, ao contrrio, reconhecermos que s a fora real, de uma
realidade absoluta e substancial, enquanto que a extenso no passa de
ato psicolgico, que s pelo fato de aparecer sob o olhar da conscincia
requer umas tantas condies fsico-fisiolgicas, logo se desvanece a
contradio. De modo que nossa resposta questo de saber qual a
realidade, objetiva da noo de extenso, to estranha primeira vista, ,
no fundo, a nica verdadeiramente racional, visto no admitir recusa sem
colidir, por assim dizer, com a razo em si mesma.
Mas, objetar-se-, esta resposta est em contradio expressa com a
experincia, pois ela reduz a extenso a uma simples aparncia
psicolgica, ao passo que a vista e o fato, relativamente a todos os
corpos que podem atingir, nos atestam uma extenso peculiar a cada
qual e, manifestamente, exterior a alma. No so extensos esses objetos
com os quais estou em relao, ou sejam: este mesmo corpo a que me
ligo pela alma, esta mesa na qual me debruo, esta casa, esta terra, este
sol que me aclara, todo o Universo, enfim? Ser possvel e mesmo
concebvel uma iluso to geral e to constante?
Esta objeo pressupe justamente o que est em jogo, responde o
filsofo. De fato, que nos ensinam a vista e o tato, sobre o grau de
realidade da extenso corporal? Nada, absolutamente, pois uma vez
percebido um corpo, sempre lcito indagar se a Imagem dimensria que
acompanha a percepo no seria uma simples aparncia.
Trata-se dessa aparncia, aqui, no sentido da existente em alguns
fenmenos astronmicos, tal como o movimento solar, de que nos
podemos certificar to facilmente pela rotao da Terra como do Sol.
Quanto prpria experincia, literalmente neutra no caso, o seu pretenso
desacordo com a nossa tese procede, no dos fatos invocados, mas do
sentido arbitrrio que Implicitamente lhes atribuem.
Os elementos constitutivos da matria so, necessAriamente,
inextensivos e puramente dinmicos.
Os mesmos princpios que nos conduziram & verdadeira teoria da
extenso corporal, nos sugerem, igualmente, a explicao da extenso
incorprea, ou seja, do espao.
A extenso corporal simples fenmeno que acompanha a reao
natural dessa fora hiperorgnica chamada alma, contra a ao das
foras que constituem os corpos brutos, e das quais advertida pelas
foras orgnicas do nosso corpo. Mas, se as foras orgnicas, de que o
corpo humano o sistema, suscitam em ns a aparncia de extenso,
quando operam como intermedirias entre a alma e o mundo exterior,
tambm poderiam, por sua atuao Incessante sobre a alma, a que esto
to Intimamente ligadas, poderiam, dizemos, no provocar um fenmeno
anlogo, cujos caracteres especficos seria difcil assinar a priori, mas
que devem, Infalvelmente, encontrar-se entre os fenmenos
psicolgicos? Ora, isto o que precisamente acontece e a conscincia
nos Informa incessantemente. A reao permanente da alma, contra as
foras orgnicas, engendra a todo instante um fenmeno homogneo ao
da extenso corporal. o fenmeno da extenso corporal ou do espao
puro, no qual localizamos naturalmente todos os corpos. O movimento no
45

espao, como qualquer outro fenmeno sensvel, no mais que o sinal


visvel de aes invisveis e de permutas no menos inacessveis aos
nossos rgos, no modo de coexistncia das foras.
Mas, de todas as solues armadas ao problema, a mais notvel, sem
contestao, a de Kant. Este grande pensador, que tanto meditara as
condies primordiais do pensamento entre as quais a noo de espao
lhe pareceu, com razo, uma das principais, foi o primeiro a suspeitar que
ele o espao no poderia ser um objeto extrnseco ao ser, qual o
presumem os fsicos, nem a ordem de coexistncia das coisas, como
pretendia Leibnitz, mas, verdadeiramente, um simples modo do ser
pensante. A Geometria diz uma cincia que determina as
propriedades do espao sinteticamente e, todavia, a priori. Ora, qual
dever ser a representao de espao para que tenhamos a respeito um
conhecimento possvel? Uma intuio primitiva. -
O espao para Kant, como para ns, conclui o escritor, , pois,
essencialmente, uma afeco psicolgica.
Por um lado, segundo a lei objetiva do conhecimento, todas as idias
cientficas se ligam s noes de fora e extenso, nicas
verdadeiramente primordiais e Irredutveis; e por outro lado, segundo o
aprofundado exame a que acabmos de submeter essas duas noes, a
de fora representa o elemento substancial dos seres, e a de extenso um
modo puramente subjetivo de nossa natureza,
Assim se expressam, ainda, os partidrios da interpretao puramente
subjetiva.
Pode-se fazer, a respeito, um reparo assaz curioso e suficiente para
responder a essa teoria algo exagerada e vem a ser que, se a extenso
no existisse, os corpos no tinham como ocupar um lugar, tal como o
ensina a Fsica. Dai se conclui que ns no ocupamos lugar e que no
estamos em parte alguma!
Quanto ao primeiro ponto, que se precatem os teatrlogos; e, quanto
ao segundo, que dele se valham os malfeitores, se bem lhes prouver, para
justificarem a sua metafsica.
Estes argumentos muito se assemelham ao dos fraselogos
modernos, que levantam contendas de palavras acreditando discutir
fatos.
Neste caso, por exemplo, os que repetem com Broussais que Deus e
alma no existem, porque a linguagem humana os designa, algumas
vezes, em termos negativos! O mesmo valeria dizer da Matria,
qualificada impenetrvel nos seus atributos, por ser uma expresso
negativa.
Efetivamente, pura logomaquia.

Assim, para resumir o estado da questo e os princpios de nossa


refutao do ponto de vista do mundo inorgnico, temos estabelecido que, no
cu como na Terra, a fora rege a matria, que a harmonia constituda pelo
Nmero, e que este leva consigo, por toda a parte, o cunho intelectual. Em
parte alguma, porm, a inteligncia criadora aparece to evidente como na
organizao da vida e na existncia do homem.
o que vamos verificar nos captulos seguintes.
46

SEGUNDA PARTE
A Vida
47

1
CIRCULAO DA MATRIA
SUMRIO Viagens Incessantes dos tomos atravs dos
organismos; fraternidade universal dos seres vivos; solidariedade
Indissolvel entre as plantas, os animais e o homem. Vida aparente e
vida Invisvel. O ar, a respirao, a alimentao, a desassimilao. O
corpo, transformao perptua. O equilbrio das funes vitais prova
uma fora diretora. A decomposio cadavrica prova que a vida uma
fora e que essa tora no uma quimera. Homnculos. Fatos e
atitudes da Qumica orgnica. Essa qumica no cria seres nem rgos.
A Matria circula, a Fora governa.

O poder que rege os astros e desata os esplendores de sua riqueza na


imensido dos cus; a fora que regula a construo de minerais e plantas, na
Terra; a ordem que espalha a harmonia no mundo, vo apresentar-se-nos
agora sob um outro aspecto, dando-nos testemunho no menos irresistvel do
princpio inteligente que preside os nossos destinos.
Enquanto o olhar penetrante do telescpio vara os espaos infinitos, a
viso analtica do microscpio visita os habitculos minudentes da vida na
superfcie da Terra.
Aqui, j no apenas a grandeza e o carter formidando da energia que
nos vo falar, mas, antes, o engenho, a beleza do plano, a delicadeza de sua
execuo e, sobretudo, a sabedoria sobre-humana que domina a matria e a
molda s leis de uma vontade onipotente.
Quando penetramos com os olhos da Cincia o espetculo do mundo, toda
a Natureza nos aparece feio de imenso dinamismo, em cujo seio se
associam ou se transformam as foras extraordinrias da Fsica e da Qumica.
Fenmenos efmeros, que ao vulgo parecem isolados, apresentam-se-nos
entramados numa rede nica, cujos fios so mantidos por uma fora mis-
teriosa.
O mundo envolve-se em grande unidade, nenhum elemento est isolado,
nem na extenso presente, nem na Histria.
So irmos a luz e o calor, quer se nos mostrem juntos, numa unio
indefectvel, quer mutuamente se faam o sacrifcio de sua prpria existncia.
A afinidade e o magnetismo casam-se nos mistrios do mundo mineral. A
ponta inquieta do im procura incessantemente o plo. A planta eleva-se
apaixonada para a luz. A Terra volta para o Sol o seu rosto matinal. Estende o
crepsculo o seu manto sobre a noite e os tpidos perfumes dos vales
aquecem os ps gelados da noite. Em aproximando-se a aurora, o beijo do
orvalho deixa o seu trao na corola entreaberta das flores. tomos e mundos
so levados por um s impulso universal. Na atmosfera mil ondulaes se
entrecruzam, mil variedades de fora se combinam. Noite e dia, tarde e manh,
em todas as estaes, o mesmo movimento simultaneamente insensvel e
grandioso, que a nossa vista no apreende e que, aberrante de qualquer
avaliao numrica (15), se

(15) Pudesse o homem apreciar as foras diariamente acionadas na


Natureza e ficaria confundido, em sua admirao. Por no citar mais que
um exemplo fcil de entender, digamos que o valor dgua a elevar-se do
48

solo para formar nuvens, asss nuvens que se resolvem em chuva,


parece no acusar, primeira vista, um deslocamento de energias
colossais. No entanto, admitido que caia anualmente, em toda a superfcie
terrquea, uma camada dgua da espessura de um metro, e que a altura
mdia das nuvens seja de 3000 metros, seria preciso para esse trabalho
uma fora de 1500 bilhes de cavalos, a trabalharem 7 horas dirias. E a
Terra no teria como aliment-los!

vai exercendo no laboratrio do cosmos. Pois o resultado desse movimento A


Vida.
Fora deste resultado, o mundo s oferece uma atrao medocre aos
espritos curiosos. pelos aspectos ou pelas sensaes da vida que o ser pen-
sante se liga Natureza. Se a contemplao dos cus, por noites silenciosas,
nos causa uma tristeza indefinvel; se o aspecto de vastos desertos calcinados
por um sol ardente nos deixa impassvel; se o estudo das mais extraordinrias
combinaes qumicas, operadas numa retorta, nos impressiona menos
intimamente do que a viso de um pssaro em seu ninho, ou ainda a de uma
violeta vicejando humildemente ao p de um tronco, porque essas
manifestaes no revelam uma vida imediata. Nossa alma sobretudo
acessvel s impresses provindas de seres viventes como ns, e, de entre
estes, os que mais se aproximam da nossa natureza, O timbre de uma voz
amada tem maior ressonncia em nosso corao do que o ribombo de um
trovo. Um raio do olhar eleito nos penetra mais fundo do que um raio de Sol.
Um sorriso adorado tem sempre maior encanto que a mais encantadora das
paisagens. No colo, nos braos, nos cabelos da mulher idolatrada, no h
diamantes nem safiras, esmeraldas e prolas, cujo brilho se no degrade ao de
simples pedrarias decorativas. que neste caso, sobretudo, a vida nos apa-
rece sob a sua mais bela e mais esquisita manifestao terrestre, pois que ela
a vida, bem verdadeiramente a grande atrao da Natureza.
Mas, a caracterstica que mais vivamente impressiona o observador, no
conjunto da vida terrestre, a lei geral que preside vida do Universo.
primeira vista, afigura-se-nos que todos os seres esto isolados. O abeto que
colma os cimos alpestres parece nada ter de comum com a lebre que corre nas
planuras. Certo que a rosa dos nossos jardins no conhece o leo dos
desertos. guia e condor dos altiplanos asiticos jamais provaram o fruto dos
nossos pomares. Trigo e vinha, em nada parece ligarem-se vida dos peixes.
E se nos cingirmos a divises menos marcantes, ningum suspeitar qualquer
relao imediata entre a vida do homem e a do vegetal que matiza os campos
e as florestas.
E contudo, a verdadeira realidade que a vida de todos os seres terrcolas
homens, animais, plantas - uma e nica, sujeita a um mesmo sistema,
tendo por ambiente o ar e por base o solo. E essa vida universal outra coisa
no , seno uma permuta constante de matria. Todos os seres se formam
das mesmas molculas, a passarem sucessiva e indiferentemente de uns a
outros, de sorte que nenhum ser dispe de um corpo propriamente seu. Pela
respirao e pela alimentao, ns absorvemos, cada dia, uma certa poro de
alimentos. Pela digesto, pelas secrees e excrees, perdemos outra
determinada poro de alimentos. Assim, renova-se o corpo e, depois de
algum tempo, j no possumos um s grama do corpo material de antes. Sua
renovao foi total, completa. Mediante essa permuta que se entretm a vida.
49

Enquanto o movimento renovador se opera em ns, a mesma coisa se d com


animais e plantas. Os milhes e bilhes de seres viventes na superfcie do
globo mantm-se, portanto, em permuta constante de seus organismos. O
tomo de oxignio, que ora estais respirando, foi ontem, possvelmente,
expirado por alguma das rvores que orlam o bosque, alm. O tomo de
hidrognio que, neste momento, humedece a pupila vigilante do leo do de-
serto, ser o mesmo que, no h muito, molhava os lbios da mais pudica
donzela da austera Aibion. O tomo de carbono que neste instante arde em
meu pulmo, ardeu talvez na candeia que serviu a Newton para as suas
experincias de tica; e as fibras mais preciosas do crebro de Newton talvez
se encontrem, agora, na concha de uma ostra ou numa dessas mirades de
animlculos microscpicos, que povoam os mares fosforescentes. O tomo de
carbono que se escapa, no momento, da combusto do vosso charuto, ter
talvez saido, h alguns anos, do tmulo de Cristvo Colombo, que demora,
como sabeis, na catedral de Havana. Toda a vida no passa de uma constante
permuta de elementos materiais. Fsicamente falando, ns nada possumos de
ns mesmos. S o ser pensante o nosso eu. S ele que nos constitui
verdadeira, imutavelmente. Quanto substncia que nos forma o crebro, os
nervos, os msculos, ossos, membros, carne, essa no a retemos; vai, vem,
passa de um ser a outro. Sem metfora, podemos dizer que as plantas so
nossas razes, que por elas extramos dos campos a albumina do sangue, o cal
dos ossos. O oxignio de sua respirao nos d vigor e beleza, assim como,
reciprocamente, o cido carbnico que restituimos atmosfera vai cobrir de
verdura os vales e as colinas.
Quando se tem a convico profunda dessa permuta universal da matria,
que irmana, do ponto de vista da composio orgnica, a fronde e o pssaro, o
peixe e a plaga, o homem e a fera, considera-se a Natureza sob a impresso
da grande unidade que preside marcha das coisas. Ela, a Natureza, se nos
apresenta, ento, completamente transfigurada, e no deixa de ser com um
interesse mais ntimo que encaramos o sistema geral da vida planetria. A. de
Humboldt traou a sua fisionomia num esboo amplo, que tem o mrito de
reivindicar consideraes especiais a respeito. Quando o homem interroga
com argcia penetrante a Natureza diz ele (16) ou quando mede,

(16) Tableaux de la Natura, parte 4.

na sua imaginao, os vastos espaos da criao orgnica, de todas as


emoes experimentadas a mais poderosa e profunda a da plenitude da vida,
universalmente difundida. Por toda a parte, at nos plos congelados, o ar
repercute o canto das aves e o zumbido dos insetos.
A vida transpira, no somente nas camadas inferiores da atmosfera, onde
flutuam pesados vapores, mas, tambm, nas regies serenas, eterizadas.
Todos quantos remontaram, quer as cumeadas da cordilheira Andina, quer os
pncaros do Monte Branco debruados sobre o lago de Genebra, jamais
deixaram de a encontrar seres animados. No Chimborazo, e numa altitude
excedente de 2600 metros ao pinculo do Etna, vimos borboletas e outros
insetos alados. Mesmo supondo que houvessem sido levados por correntes
areas, e que l errassem como estrangeiros, naquelas paragens a que s o
ardente desejo de conhecer conduz os homens, a sua presena atesta,
todavia, que, mais flexvel, a organizao animal resiste alm dos limites
50

traados vida vegetal. Muitas vezes, vimos o rei dos abutres o condor
planar acima de vossa cabea, em altitudes excedentes aos picos nevados dos
Pireneus, e mesmo dos indianos. O possante carnvoro alado era,
naturalmente, atrado pelos sedosos vigonhos, que s manadas procuram
aquelas pastagens coalhadas de neve.
Esta vida que vemos difundida, em todas as camadas atmosfricas, no
mais que plida imagem da vida mais compacta, que o microscpio nos revela,
Os ventos arrebatam, superfcie das guas em evaporao, turbilhes de
animlculos invisveis, imveis e com todas as aparncias de morte; seres que
flutuam no ar, at que as orvalhadas os devolvam ao solo nutriz, que lhes
dissolve o invlucro e, graas provvelmente ao oxignio sempre contido na
gua, comunica-lhes aos rgos uma nova irritabilidade. Nuvens de
microrganismos cruzam as regies areas do Atlntico e carreiam a vida de um
a outro continente.
Com o autor de Cosmos, podemos acrescentar que, independentemente
dessas existncias, a atmosfera tambm contm inumerveis germes de vida
futura, vulos de insetos e de plantas, que, sustentados por coroas de plos ou
de plumas, garram para as longas peregrinaes do Outono. O plen
fecundante que as flores masculinas semeiam nas espcies de sexo
extremado, tambm, ele prprio, levado pelos ventos e por insetos alados~
atravs de continentes e mares, s plantas femininas que vivem em solido.
Onde quer que o observador da Natureza mergulhe os olhos, a encontrar
vidas, ou um germe pronto a receb-la.
As formas orgnicas penetram no seio da Terra a grandes profundidades,
por toda a parte as guas se espalham e infiltram, seja em interstcios
formados pela Natureza, ou feitos pela mo do homem.
Ningum poderia dizer com segurana qual o ambiente em que a vida se
difundiu com maior profuso. De fato, ela repleta os oceanos, das zonas
tropicais aos gelos polares; o ar povoa-se de germes invisveis e o solo
sulcado por mirades de espcies, quer animais, quer vegetais.
Estes incessantemente procuram dispor, mediante combinaes
harmoniosas, da matria bruta do solo, como que tendo a funo de preparar e
misturar, por virtude de sua energia vital, as substncias que, aps inumerveis
modificaes, ho-de ser elevadas ao estado de fibras nervosas.
Abrangendo no mesmo olhar a camada vegetal que reveste o solo, depara-
se-nos em plenitude a vida animal, nutrida e conservada pelas plantas.
Por intermdio do ar que se operam essas transformaes incessantes,
universais, e no por outro meio que no esse, os elementos podem transitar
de um corpo a outro. Proposio esta, to exata, que os fisiologistas h muito
repetem que todo ser vivo produto do ar organizado. Como se opera essa
organizao? A partir de Lavoisier, sabemos que a respirao do homem e dos
animais ato anlogo s combustes mediante as quais nos aquecemos e
aclaramos. Insistamos um tanto neste ponto. A respirao estabelece uma
solidariedade universal entre os homens, animais e plantas. Ela resultante da
unio do oxignio com o carbono e o hidrognio dos alimentos, tanto quanto a
combusto resulta da unio desse mesmo oxignio com o hidrognio e o
carbono da vela, da madeira, ou combustvel qualquer. A respirao verifica-se
sob a influncia da vida, enquanto a combusto, propriamente dita, se opera
sob a influncia de um calor intenso. Um e outro ato tm por fim produzir calor.
o calor desprendido da nossa respirao que entretm no corpo a
51

temperatura de 37 graus, necessria mantena da vida.


Lavoisier e Lieb demonstraram, h muito tempo, que todo animal um foco
e todo alimento um combustvel. Se a respirao no se acompanha, como a
combusto, de claridades incandescentes, por ser uma combusto lenta,
menos ativa. Mas, por muito lenta que seja equivale, contudo, a de uma dose
assaz forte de carbono. Um homem queima 10 a 12 gramas de carbono por
hora, ou 250 por dia, mais ou menos, alm de uma certa quantidade de
hidrognio.
Combusto e respirao viciam o ar destruindo-lhe o elemento salutfero
o oxignio, substituindo-o por um gs meftico o cido carbnico. Esta e
outras causas espalham na atmosfera, de maneira constante, esse elemento
insalubre. Experincias feitas com o vapor dgua condensada em janelas dos
teatros de Paris, patentearam uma combinao particularmente letfera.
A raa humana retira do ar, anualmente, 160 bilhes de metros cbicos de
oxignio e os permuta por igual volume de cido carbnico. A respirao dos
animais quadruplica o resultado. S a hulha que se extrai do solo fornece mais
ou menos 100 bilhes de metros cbicos de cido carbnico, ao mesmo passo
que outros combustveis aumentam consideravelmente essa cifra. Junte-se-lhe
ainda o produto das decomposies e considere-se que, a despeito, esse gs
no se encontra no ar atmosfrico seno na proporo diminuta de 4 a 5 litros
por 100 hectolitros. O cido carbnico solvel ngua, a chuva o dissolve e
carreia em suas btegas, o transporta aos rios, leva-o enfim aos oceanos. A,
ele une-se cal e temos o carbonato de cal, as pedras calcreas, mrmore,
alabastro, nix, polipeiros, etc.
Os vegetais, a seu turno, preenchem, em escala imensa, funo inversa
respirao dos animais, essencialssima harmonia da Natureza, pois no
somente fixa o hidrognio da gua e subtrai da atmosfera o cido carbnico,
como lhe restitui o oxignio. (Uma folha de nenfar d, em 10 horas, 15
unidades de oxignio, proporcionais ao seu volume.)
A que transformaes submetem os vegetais o carbono, o hidrognio, o
azoto, que eles absorvem do ar? toda uma produo multifria. A Natureza
conjugando cinco molculas de carbono e quatro de hidrognio forma, no citro
e no salgueiro, duas essncias que, diversas radicalmente em odorncia,
provm da mesma composio. Frequentemente, a Natureza junta a estes dois
elementos o oxignio. Assim que, solda doze molculas de carbono e dez de
hidrognio e oxignio, formando, a seu talante, seja a madeira, seja a batata.
Outras vezes, seu trabalho mais complexo e rene os quatro elementos:
carbono, hidrognio, oxignio, azoto, originando os mais diferentes produtos,
tais como o trigo precioso alimento e a estricnina ativssimo txico.
Como explicar, por exemplo, juntando um equivalente de gua substncia
caracterstica da madeira, a celulose (C12H10O10), a Natureza nos d o
acar? Snteses maravilhosas, a Natureza as produz silenciosamente, ao
influxo da vida!
O reino vegetal uma usina imensa. Sob a ao do calor solar, todas as
roldanas entram a movimentar-se. A exemplo do mecnico que nutre a sua
mquina, a Natureza renova o combustvel e os princpios do ar, e estes se
transformam em madeira ou amido, em acar ou veneno, que constituem a
polpa saborosa do fruto, o perfume sutil das flores, o rendilhado das folhas, a
coricea tessitura dos troncos.
Os animais nutrem-se dos vegetais, gaseificam, por assim dizer, o ar
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solidificado e o devolvem atmosfera, onde ele recomea o ciclo das transfor-


maes que, graas a ele o ar agente primaz da vida, elo universal,
jamais se interrompem.
A comparao que Liebig (17) foi o primeiro a fazer, da combusto
respiratria do animal com a dos combustveis de uma fornalha, s exata se
fizermos uma idia material do fogo nesse aparelho. No animal, todo o corpo
arde lentamente, o que no se d com a fornalha, que no arde. Na retorta
humana, continente e contedo queimam juntos, e assim, mais justo
tomarmos a vela como elemento comparativo.
O calor o regulador da vida. Descartes antecipara-se aos progressos da
experimentao escrevendo este significativo conceito: Importa no conceber
nas mquinas humanas outra alma vegetativa nem sensitiva, nem princpio
algum de movimento e vida, alm do sangue e seus espritos, agitados pelo
calor do fogo que arde continuamente no seu corao, e cuja natureza
idntica que inflama os corpos inanimados. (Sabemos que Descartes, como
Plato, considerava a alma humana como retirada num santurio, no mago de
ns mesmos, numa espcie de oposio matria. A vida e as funes
orgnicas dependiam inteiramente

(17) Liebig Chemische Brief, 400.

do corpo, e s o pensamento era atributo do esprito.)


Tal, sumariamente, o papel do ar na Natureza. Assim so os vegetais,
habilssimos fsico-qumicos, a nos prepararem ao mesmo tempo a
alimentao, a respirao, a indumentria, o combustvel e os elementos
materiais da nossa existncia terrestre. Importa, de conseguinte, deixarmos de
considerar a Natureza sob um prisma vulgar, para faz-lo, doravante, com
olhos atentos e apercebidos. Quando fixarmos a ervilha tenra que reponta nos
jardins, no admiraremos apenas o risonho tapete de verdura e a gracilidade
das flores que o esmaltam. Elevaremos mais alto o pensamento, imaginaremos
que cada um desses rebentos, que vamos pisando, um benfeitor silencioso,
pois, se de um lado contribumos para embelez-lo fornecendo-lhe cido
carbnico, sem o qual se estiolaria, por outro lado ele nos d benevolamente
todo o necessrio nossa vida material: imaginaremos que essa harmonia
de uma perfeio sublime, visto que, se umas regies mergulham, longos
meses, nos rigores do Inverno, os ventos no deixam de estabelecer entre
esses pases deserdados e o nosso uma permuta constante, que reconduz aos
nossos bosques e prados o cido carbnico expirado pelo Lapnio e o
Esquim, levando-lhes o oxignio exalado dos milhes de bocas dos nossos
vegetais.
Se acompanharmos a elevao gradativa da matria, haveremos de
reconhecer com os fisiologistas em geral, e com Moleschott em particular, o
seguinte processo das permutas materiais: o amonaco, o cido carbnico, a
gua e alguns sais, eis toda a srie das matrias com as quais a planta
constri o prprio corpo. Albumina e dextrina formam-se custa destas
combinaes simples, por efeito de constante dispndio de oxignio. Essas
duas substncias dissolvem-se nos sucos da planta, que se tornam por isso
mesmo capazes de transportar-se s mais diversas regies, atravs das
hastes, das folhas, ou dos frutos. Merc da albumina, engendram-se corpos
outros albuminosos, quais a legumina, o glten e a albumina vegetal
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coagulada. Estas duas ltimas substncias se depositam, indissolveis, na


semente. Albumina, acar e gordura so os materiais construtivos do animal,
cujo sangue um soluto de albumina, gordura, acar e sais. Uma absoro
mais forte, de oxignio, transforma a albumina em fibrina muscular, em ele-
mentos redutveis, cola de cartilagens e ossos, substncia drinica ou pilosa.
Estas substncias aliadas gordura, aos sais e gua, constituem a totalidade
do organismo animal. Tanto quanto a recomposio progressiva, a
desassimilao fenmeno de evoluo gradativa.
Na planta, a albumina, o acar e a gordura se decompem em alcalides,
cidos, matrias corantes, leos volteis, resina, azoto, cido carbnico e
gua. No animal as mesmas substncias se resolvem em leucina, sirosina,
criatina, hipoxantina, cido rico, frmico, oxlico, uria, amonaco, cido
carbnico e gua. Fora do corpo, a uria decompe-se em cido carbnico e
amonaco.
Assim, graas vida em si, plantas e animais revertem s suas fontes.
Aps a morte, a desassimilao ainda uma evoluo, no menos regular que
durante a vida. O que se d, apenas, que percorre outros graus, at que
chegue ao termo da decomposio.
A putrefao no mais que uma combusto lenta das matrias
orgnicas, a operar-se fora do corpo vivo. Ela representa uma como respirao
depois da morte, e cada tomo vai conformar ou entreter outros corpos.
Tal o esboo qumico da permuta vital nos dois reinos orgnicos. Agora,
abordemos o assunto particular da vida no reino animal. Nestes novos fatos
observados, tanto como nos precedentes, estamos de acordo com os
adversrios. Entretanto, vamos ver as consequncias.
Aqui temos, segundo o prprio autor de A Circulao da Vida, baseado em
recentes trabalhos de fisiologistas alemes, o processo geral de desassi-
milao no animal, ou, para falar mais claramente, os principais fenmenos de
permuta das matrias que constituem a vida. Tratemos aqui, particularmente,
do corpo humano, por ser o que mais nos interessa (18).
Sabemos hoje que a histria da evoluo dos alimentos e das matrias
rejeitadas depois de servirem assimilao, a essncia mesma da fisiologia
da permuta material.
A digesto e formao dos tecidos esto compreendidas entre dois limites:
as substncias alimentcias e as partes constitutivas das secrees.
Assim que todos os elementos anatmicos do corpo se decompem para
se rejuvenescerem sem cessar. O oxignio aspirado, passa da boca pela
traqueia arterial, esta se ramifica e seus ltimos ramnculos desligados so
providos de vesculas laterais e terminais, que s se intercomunicam pelo
ramnculo do tubo areo que as contm.
Deste tubo, o oxignio passa s vesculas pulmonares e destas ao sangue,
atravs da parede dupla de vesculas e vasos capilares, at que entra, com o
sangue, no corao.
Em seguida, o corao impele o sangue oxigenado a todos os territrios
orgnicos, atravs das artrias da grande circulao, que mantm todo o corpo
sob sua dependncia.
Finalmente, o oxignio penetra os tecidos atravs das paredes de vasos
capilares, que rematam as artrias.
Enquanto isso, um fenmeno inverso se verifica, O cido carbnico
provemente do sangue e o ar atmosfrico aspirado se transformam, segundo a
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lei das permutas de gases, ao penetrarem as cavernas pulmonares, os


brnquios e a prpria traquia.

(18) Brief Kreislauf des Lebens, 12.

Depois, o ritmo respiratrio, produzindo a retrao do peito, expele uma coluna


de ar carregado de cido carbnico. Uma curta pausa, e a essa expirao
sucede a aspirao, dilata-se o peito, um ar rico de oxignio substitui o ar
expirado, que perdera uma parte desse oxignio, e o fenmeno prossegue.
Podemos comparar os puhnes a um banco:
o cido carbnico entregue circulao externa,
para alimento das plantas, em troca do oxignio recebido. O sangue provido de
oxignio escoa-se dos pulmes para o ventrculo esquerdo do corao, da
derivando-se para todos os setores do organismo. Comea, ento, a, a
combusto geral que, sob a forma de nutrio aqui, de eliminao acol, vai
acionando as primeiras funes.
possvel medir a intensidade de permuta das matrias de um organismo
humano, pela quantidade de cido carbnico, gua e uria eliminados em dado
tempo. A rapidez das permutas d a medida da vida. Sua maior atividade
verifica-se dos 30 aos 40 anos.
Termo mdio, nessa fase que as energias criadoras do homem atingem o
apogeu.
Pulmes e rins no so os nicos rgos eliminadores; a eles devemos
juntar a pele e o reto. Os cabelos que caem, a epiderme que se escama no
interior como no exterior, as unhas que aparamos, multiplicam os pontos de
eliminao dos princpios azotados.
A atividade eliminatria dos pulmes e dos rins atinge a um quinze avos do
peso total das excrees, e ultrapassa de muito a dos intestinos. Quanto maior
atividade, mais rpida a eliminao.
Os homens entregues a trabalhos de movimento ativo, eliminam pela
epiderme, em 9 horas, tanto cido carbnico quanto o correspondente a 24 ho-
ras de repouso. Num cavalo a trote, a eliminao 117 vezes mais copiosa do
que em repouso. Um parelheiro ingls, que percorrera em 100 horas uma
extenso correspondente a 500 horas de marcha ordinria, no perdeu menos
de 14 quilos depois do feito.
O trabalho mental fatiga tanto ou mais que o corporal. A expresso que
utilizamos, referindo-nos a criaturas de pensamento ardente, justa. Qualquer
acrscimo de trabalho espiritual produz aumento de apetite, qual se d com o
intenso trabalho muscular. O apetite no mais que o sinal de
empobrecimento do sangue e dos tecidos, manifestando-se por meio de uma
sensao. A atividade cerebral, assim como a dos membros do corpo, aumenta
a eliminao da pele, dos pulmes, dos rins.
O sangue, por sua vez, abandona constantemente aos rgos do corpo os
seus componentes, que a atividade dos tecidos vai decompondo em cido
carbnico, uria, gua.
Por fim, as matrias excrementcias atravessam continuamente a corrente
circulatria para atingir os pulmes, os rins, a pele e o reto, de onde se
eliminam.
Preciso se faz, pois, que os tecidos e o sangue experimentem, no curso
regular da vida, uma perda de substncia s compensada pelo processo ali-
55

mentar.
Notvel, a rapidez com que se opera esse intercmbio de matria.
A durao mdia da vida dos que sucumbem de inanio atinge a duas
semanas. Mas, desde que um vertebrado, seja qual for, morra de inanio, o
seu corpo ter perdido quatro dez avos do peso normal.
Nos indivduos alimentados convenientemente, a permuta se opera mais
rpida que nos esgotados pela abstinncia. Moleschott e fisiologistas outros
acreditaram poder concluir de certos fatos que o corpo renova a maior parte de
sua substncia num perodo de 20 a 30 dias.
Impondo-se um regime regular, diversos observadores verificaram uma
perda, em mdia, de um vinte avos do seu peso, em 24 horas.
O alimento ingerido e o oxignio aspirado contrabalanam essa perda. O
sangue, com efeito, no provm apenas das substncias alimentares, mas,
simultneamente, da alimentao e da respirao. uma verdade que mais
avulta no concernente aos tecidos orgnicos.
Perdendo o corpo diariamente um doze avos e no Estio um quatorze avos
do seu peso, todo o corpo estaria renovado dentro de 12 ou 14 dias. Pelos
resultados obtidos com o ltimo observador, seriam precisos vinte e dois dias.
Liebig deduziu dessa rapidez de permutas uma outra considerao. Pode-
se, sem maior dvida, atribuir a um homem idoso 24 libras de sangue. O
oxignio por ns absorvido em 4 ou 5 dias basta para transformar pela
combusto todo o carbono e hidrognio dessas 24 libras de sangue em cido
carbnico e gua. Mas, o sangue corresponde mais ou menos a um quinze
avos do peso do corpo: se, pois, 5 dias bastam para substituir o sangue, com a
troca dos elementos, pode inferir-se que o corpo inteiro se renova em 25 dias.
Moleschott e Malerf verificaram que corpsculos de carneiro, profusamente
injetados na circulao de rs, desapareciam completamente ao fim de 17 dias.
Ora, como a permuta nas rs se opera mais lenta que nos animais de sangue
quente, somos levados a crer que os glbulos vermelhos do sangue humano
se renovam totalmente em menos de 17 dias.
O autor de Circulao da Vida declara, portanto, que a concordncia dos
resultados obtidos, partindo de trs pontos de vista diferentes, uma garantia
positiva de veridicidade da hiptese dos 30 dias necessrios renovao
completa do organismo. Os sete anos que a crena popular fixava a essa
operao, seriam um exagero colossal. Por surpreendente que possa parecer,
primeira vista, essa rapidez diz concorda com a experincia em todos
os pontos. Para Stahl, as andorinhas perdem num dia a gordura aprovisionada
durante a noite. O desenvolvimento das clulas opera-se, no sangue, em 7 ou
8 horas, a expensas das matrias fornecidas pelo quilo. De resto, quem ignora
bastarem poucos dias para que um homem emagrea ao ponto de tornar-se
irreconhecvel?
A rapidez da permuta das matrias, demonstrada em todas as
experincias, o que h de mais prprio para diminuir nossa admirao.
Essas experincias nos ensinam que um adulto, pesando 128 libras,
elimina em 24 horas cerca de 3 libras de saliva, duas e meia de blis, no mni-
mo, e mais de 28 de suco gstrico; de sorte que um fumante, com o mau veso
de escarrar seguidamente, pode, durante o dia, expelir 85 partes do seu peso.
No perodo de 24 horas, corre em nosso corpo perto de um quarto do seu
peso, de suco gstrico a circular do sangue para o estmago, e vice-versa.
A celeridade das permutas difere de indivduo para indivduo.
56

O homem, a mulher, a criana, o velho, manifestam apitdes diferentes:


assim, o homem tem a propriedade de permutar maior quantidade que a
mulher, e o adulto mais que os velhos e as crianas. O operrio e o pensador
recompem o corpo em tempo mais curto que o necessrio aos ociosos e
inativos.
H criaturas de vida acelerada: nelas a esperana, a paixo e o temor,
que se transformam rapidamente em confiana e alegria, precipitam a
circulao do sangue. Vivem apressadas, porque depressa se executa o seu
metabolismo. Enquanto se mantm equilibrado o regime de permutas, o corpo
no padece alterao no seu aprovisionamento. , ordinariamente, esse, o
ritmo do adulto, que se altera com os anos, para romper-se na velhice.
Tambm a digesto vigorosa privilgio da criana. A absoro de slidos
e lquidos igualmente se regula, mui rapidamente, no trabalho digestivo. A ao
do oxignio e a desassimilao dos tecidos, a ela consequente, nunca se
interrompem. Da resulta, imediata, uma diminuio do suco nutritivo, que se
pode verificar no s pelo peso, como por inspeco direta. Na idade
avanada, sofrem tal ou qual depresso, retraem-se. A crnea achata-se, a
miopia atenua-se e pode mesmo chegar ao efeito contrrio presbiopia. Os
ossos, com a velhice, perdem a elasticidade, de vez que menos ricos dgua,
como na mocidade.
Uma vez rompido o equilbrio, o desgaste dos tecidos se processa
inevitvelmente. O maxilar inferior diminui de volume, o mento se torna consi-
dervel, a pele das mos e do rosto torna-se mais flcida, enruga-se, e aos
msculos adelgaados mngua contratilidade. No podem os velhos fletir a
medula espinal e a fronte lhes pende para adiante.
Tambm as cordas vocais, como que se tornam mais secas, perdem em
flexibilidade e elastrio; a voz rouca, surda, ou metlica e spera. Depois dos
50 anos o peso do crebro tambm comea a diminuir.
Tudo deve contribuir, na velhice, para avolumar a desproporo entre a
sanguificao e a desassimilao. Com a matria, a fora decresce.
Suavemente, aproxima-se o fim; a morte um esgotamento resultante do
empobrecimento material. (19)

(19) Eis como se exprime Moleschott, sem uma palavra que venha coroar
a aridez dessa descrio. Pedimos licena para compar-la ao fecho de
captulo anlogo, de outro fisiologista alemo Schleiden e perguntar
para que lado pendem as aspiraes da alma. Nossa percepo da vida e
da morte, diz este, torna-se, na velhice, outra. que no a da mocidade. Os
elementos acumulam-se no corpo, progressivamente; os rgos flcidos,
flexveis, enrijam-se, ossificam-se, recusam-se a trabalhar; a Terra atrai o
corpo sempre maiormente, at que a alma fatigada desse
constrangimento lhe abandona o invlucro j insustentvel. Abandona o
corpo de barro, nascido do p, combusto lenta, a que chamamos
putrefao. S a alma, imortal e incorruptvel, deixa a servitude das leis
materiais e volve-se ao Regulador da liberdade espiritual.

Estas alegaes so contestveis. Ainda no est provado que o corpo


humano se renova completamente no perodo de um ms. Tecidas h que s
se renovam assaz lentamente, dado que todos eles se renovem.
Em todas as idades se tm encontrado clulas embrionrias que, no
57

entanto, se destinam a desaparecer no prprio feto. Os humores da plpebra,


sequentes a pequenas inflamaes (teris), em regra no so reabsorvidos
antes de um ano. As unhas no se renovam em menos de seis meses. No
estado de sade, seu crescimento de 2 milmetros por ms, de sorte que, se
guardssemos a unha do indicador num estojo cilndrico, durante sessenta
anos tal como fazemos para conservar plantas raras no teramos afinal
uma garra excedente de um metro e meio. Assim, poderamos contraditar os
25 dias e solicitar lapso um pouco mais longo para a renovao do organismo.
No , porm, de ms ou de ano que se trata. O tempo no vem ao caso,
como diz a stira francesa, e, muito pelo contrrio, quanto mais rpida e
vultosa se faa a renovao da matria corporal, mais aproveita nossa teoria.
Os materilatras deduzem dos fatos aqui exarados a sua famosa assertiva,
declarando provada a inexistncia da alma, mediante essas transformaes
qumicas. Para ns, ao invs (note-se o contraste), essas mesmas
transformaes induzem a declarar demonstrada, doravante, a existncia da
alma. Antes, porm, de argumentar, apraz-nos contrapor um simples reparo a
to categrica afirmativa adversa, que proclama com tamanha segurana e
com verdade inconteste a s existncia das molculas materiais, e que s elas
constituem o ser vivente, do bero ao tmulo.
Por um lado, afirmais que o corpo vivo no passa de um conjunto de
molculas, e, por outro, dizeis que todo esse corpo se rejuvenesce mensal-
mente... Ao nosso ver, so duas proposies difceis de conciliar. Como
explicar o envelhecimento, se esse corpo material, na sua qualidade de mo-
lculas qumicas, nunca teve mais que um ms de idade? O turbilho vital, na
frase de Cuvier, o qual se sucede constante sob e sobre a nossa pele, nossa
prpria carne, sangue, ossos, cabelos, todo o corpo, qual vestimenta que se
renova de si mesma. O corpo do sexagenrio, ou do octogenrio, no tem mais
que um ms, talqalmente o da criana que apenas comea a andar. So,
assim, sempre novos, os corpos e, certo, no podemos deixar de admirar essa
engenhosa lei da Natureza. Entretanto, tambm indubitvel haver no mundo
pessoas de todas as idades, na escala dos anos. O Sr. Moleschott conta, ao
que presumo, 45 e o Sr. A. Comte deveria orar pelos seus 79. Vs, Sr. Vogt,
nascestes no ano da graa de 1817. Temos assim, cada qual, a nossa idade.
C por mim, sei que carrego menos de 20 lustros, que o Sr. Schopenhauer
registaria muito breve. Ora, se verdade que nosso corpo se renova
mensalmente, ou anualmente se assim o preferirem que que envelhece
em ns?
Digamo-los ainda uma vez: no sero essas molculas constitutivas do
corpo, que ainda h pouco no nos pertenciam e integravam-se num frango ou
numa perdiz, num gro de trigo ou de sal, numa gota de vinho ou de caf, por
ns absorvidos, e que, ao demais, so imutveis e, como coisa morta, no
podem envelhecer. Logo, existe em ns alguma coisa alm dessas molculas.
Nosso organismo tem envelhecido.
Prossigamos e entremos agora no mago da questo. Permiti, antes de
mais, assinalar que a todo instante a fraqueza do vosso sistema se traduz pela
inconsequncia forada das expresses.
Sois os primeiros a conceituar a velhice como uma falta de equilbrio entre
a recomposio e a eliminao. vida, plena, normal, chamais equilbrio
funcional. Ensinais que, havendo equilbrio de sanguificao e eliminao, o
corpo no se altera em sua proviso geral de matria. Esse equilbrio mantm-
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se na idade adulta. possvel pesar um homem de 30 a 40 anos, a longos


intervalos, sem constatar qualquer alterao de peso que se no explique por
ganho ou perda imediatamente precedente.
Pois, muito bem: mas, pergunto eu, quem organiza esse equilbrio?
Pretendeis, bem sei, que no h fora alguma interior a presidir a essa
renovao molecular, mas tenho essa vossa pretenso como vanidade insus-
tentvel. A hiptese puramente materialista, da vida, a assimilao circulatria
das molculas ao movimento do vapor no alambique ou da eletricidade nos
tubos de Geissier, no explica o crescimento nem a vida, nem a decadncia, a
senectude, a morte.
Para que haja equilbrio, para que haja organizao no agenciamento das
molculas, preciso que haja direo. De resto, tanto como Cuvier e Geoffroy
Saint-Hilaire, no ilegais essa direo. Mas, como conceber direo sem fora
motriz? Ousareis neg-lo? Essa fora diretriz no um amlgama de
propriedades confusas, antes soberana, necessria, pois quem rege o
turbilho vital, assim como a atrao rege o turbilho de esferas planetrias.
Se no houvesse em ns uma fora diretora, como explicar a formao e o
desenvolvimento do corpo, nos moldes do tipo orgnico, do bero ao tmulo?
Porque, depois dos 20 anos, esse corpo que absorve tanto ar e tanto alimento,
como dantes, pra de crescer?
Quem distribui harmnica-mente todas as substncias assimiladas? Aps o
crescimento em altura, quem limita a espessura? Quem d fora ao homem
maduro, quem repara de contnuo as peas da mquina animada?
Sem admitir uma fora orgnica, tpica, vital (no nos atenhamos
palavra), como explicar a construo do corpo? O Sr. Scheffer diz que so as
foras qumica e fsica. Cada qual di-lo .ele exerce sobre as outras uma
influncia que d ao organismo, em todas as suas peas, uma certa
uniformidade de ordem mais elevada. As aes especiais das foras individuais
se conjugam, a seguir, num efeito total e formam uma resistncia coordenadora
da multiplicidade das partes num todo unitrio, em que se desenha o tipo
fundamental de toda a propriedade individual. Eis o que se pode chamar uma
luminosa explicao. Somente resta explicar como se produziriam todas essas
maravilhosas combinaes, revelia de uma unidade virtual, organizadora.
Quem constri esse organismo? Como podem as propriedades da matria ope-
rar sobre um plano, em conformidade com uma idia que, por si, no podem
ter? Como sabe o organismo, to seguramente, escolher os alimentos que lhe
convm? Quem determina a reproduo fiel da espcie? portanto mais fcil
admitir todos os acasos, como diz Tissot, do que supor um princpio
essencialmente ativo, dotado de potncia organizadora e com faculdades de
exerc-la no sentido de tal ou tal tipo especfico? No homem, respondem, no
seu contedo material e nas substituies de substncia que nele se operam, a
funo qumica tem o seu papel, produz as partculas corporais capacitadas a
servirem de suporte, ou substrato, de todo o edifcio. Organiza-o a fora vital,
resultante de todas as combinaes e desta organizao que resulta a fora
espiritual. A temos, patente, mero palavreado que nada explica.
Vrios materialistas, e com eles Mulder, riem-se da doutrina da fora vital e
comparam essa fora a uma batalha travada por milhares de combatentes,
como se no estivesse em jogo apenas uma fora que dispara os canhes,
maneja os sabres, etc. O conjunto dos resultados, acrescenta Mulder, no
mais o resultado de uma nica fora, de uma fora de batalha, mas a soma das
59

foras e combinaes inmeras, em atividade num tal acontecimento.


Concluem, assim, que a fora vital no causa, mas efeito.
comparao no falta justeza e tem, ao demais, a inaprecivel virtude de
aproveitar mais a ns do que aos seus prprios imaginadores. De fato,
evidente, o que constitui a fora de um exrcito e ganha a peleja no to s o
esforo particular de cada combatente, mas, sobretudo, a direo global, a
inteligncia do generalssimo, o plano da batalha, a ordem soberana que, do
crebro do organizador, se irradia aos subchefes e vai, atravs dos batalhes,
at aos soldados, molas arregimentadas.
Convencer-se- algum que no foi Napoleo quem venceu em Austerlitz?
Perguntem a Thiers (que sabe mais do que o prprio Napoleo) se essas
batalhas inolvidveis, tanto quanto as ganhas e empenhadas de surpresa no
revelam, acima do valor pessoal de cada combatente, o gnio lgubremente
clebre que vingava atirar ao tmulo, num relance de olhos, milhares de
criaturas em apogeu de fora e atividade.
Se a um exrcito se impe, imprescindvel, o governo de um chefe e que
uma severa disciplina o abranja na unidade de milhares de soldados, com
maior soma de razo importa que uma fora governe a matria, reduzindo
unidade harmnica os milhes de molculas que sucessivamente a con-
formam.
S mediante essa fora que existe o corpo, tal como se d com o
regimento, que, no sendo mais que uma entidade abstrata, existe por virtude
de lei, antes que pelo valor de cada soldado. Chegam os conscritos novos, d-
se baixa aos velhos, e de sete em sete anos est o regimento renovado. Nesse
periodo, h licenas temporrias, engajamentos particulares e uma que outra
modificao nas molculas componentes do exrcito. Desculpem: cada oficial
ou soldado no mais que um nmero, sua personalidade no entra em linha
de conta. Podem os oficiais ser comparados aos zeros da ordem decimal, ou,
por falar com mais elegncia chefes de dezenas ou centenas; mas,
singularmente considerada, sua personalidade pouco mais vale que um
caador. Os prprios coronis mudam, sem que o regimento deixe de existir na
sua forma idntica. Sofrem os generais, igualmente, essas transies, que em
nada prejudicam a existncia das respectivas brigadas e divises. A hierarquia
militar uma unidade e nisso que reside a sua eficincia. Quanto s partes
componentes da unidade, no so conhecidas. Indubitvel, que um coronel
testa do seu regimento, ou um general na ativa, tm mais importncia, do ponto
de vista do servio, do que um simples granadeiro; da mesma forma que um
tomo de gordura cerebral tem maior importncia do que um folculo de unha.
Mas, o que constitui o tronco. ou o n de uma fonte de galhos extensos,
no por si mesmo a fonte integral. Logo, a comparao dos adversos
aproveita mais nossa do que sua tese.
Qual o homem culto, o observador de boa f, que ousar negar seja o
nosso organismo engendrado por uma fora especial? Qual a diferena de um
cadver para um corpo vivo? H duas horas que o corao de tal homem
deixou de bater; ei-lo estendido no leito funerrio, a vida escapou-se-lhe
independente de qualquer leso, sem que houvesse distrbio orgnico. Seu
estado desafia autpsia minuciosa. Quimicamente falando, no h diferena
alguma entre este e o corpo que vivia esta manh. Em que diferem, repito, o
corpo vivo e o cadavrico? Pela vossa teoria, eles no diferem, tm o mesmo
peso, tamanho, forma. So os mesmos tomos, as mesmas molculas, as
60

mesmas propriedades fsico-qumicas. Chegais mesmo a ensinar que essas


propriedades esto inviolvelmente ligadas aos tomos. A temos, portanto, o
mesmo ser!
Mas, no vdes que uma tal consequncia vale por condenao formal do
vosso sistema?
Porque a verdade que um ser vivo difere, evidentemente, de um morto.
Isso coisa to vulgarmente sabida, que no podeis contestar. Confessai, pois,
que uma hiptese que ensina no ser a vida seno um conjunto de
propriedades qumico-atmicas, cai pela base e pela cpola, de vez que,
nascimento e morte, alfa e mega de toda a existncia, protestam
vitoriosamente contra as concluses dessa hiptese.
Chega a ser quase ultrajante para a inteligncia humana a obrigao de
sustentar que um corpo vivo difere de um morto, e que neste j no existe fora
anmica. Afirmar que a vida algo, assim como afirmar que h luz em pleno
dia. Devemos, porm, ensejar a que os antagonistas de alm-Reno venham
pr os pontos nos is.
Preciso se faz que seja a fora constitutiva da vida uma fora muito
especial, visto que, frente a ela, as molculas corporais se distribuem harm-
nicas, numa unidade fecunda; ao passo que em sua ausncia, essas mesmas
molculas se separam, se desconhecem, se combatem e deixam logo cair em
total dissoluo esse organismo que se faz p.
Preciso, tambm, se faz que essa mesma fora exista de uma forma
particularssima, pois que, de um lado, no sendo vivos todos os corpos da
Natureza, e, do outro lado, sendo os corpos vivos compostos com o mesmo
material dos inorgnicos, diferem, contudo, dos primeiros, pelas especiais e
admirveis propriedades da vida.
Preciso, ainda, seja a vida uma fora soberana, visto no passar o corpo de
um turbilho de elementos transitrios, em mutao constante de todas as
suas partes, persistindo ela, enquanto que a matria passa.
Concluir-se-, da, com Buffon, que haja no mundo duas espcies de
molculas, isto : orgnicas e inorgnicas?
Que as primeiras sejam clulas vivas, dotadas de sensibilidade e
irritabilidade, a passarem-se de um a outro ser vivo sem se imiscurem nos
corpos inorgnicos, enquanto que as segundas no entram na constituio
geral da vida?
Mas a Qumica orgnica demonstrou, saciedade, que os elementos da
matria vivificada so os mesmos que os do mundo mineral, ou areo, o que
vale por dizer elementarmente oxignio, hidrognio, azoto, carbono, ferro, cal,
etc.
Dir-se-, ento, com o botnico Dutrochet e com o anatomista Bichat que a
vida seja uma exceo temporria s leis gerais da matria, uma suspenso
acidental das leis fsico-qumicas, que acabam sempre imolando o ser ao
governo da matria? Mas uma idia que no vacilamos em proclamar
errnea, de vez que a vida o alvo mais elevado e mais fulgurante da Criao,
a perpetuar-se atravs das espcies, desde os primrdios do mundo.
De resto, digam e pensem como entenderem, a vida no deixar de ser
uma fora, superior s afinidades elementares da matria.
O que caracteriza os seres vivos a fora orgnica que aglutina essas
molculas, segundo a conformao especfica dos indivduos e conforme o seu
tipo especfico. As verdadeiras molas de nosso organismo dizia Buffon
61

no so estes msculos, artrias e veias, mas foras interiores, que no


obedecem de modo algum s leis da grosseira mecnica por ns imaginada, e
s quais tudo desejaramos subordinar (20). Em vez de procurarem conhecer
as foras por seus efeitos, trataram de as afastar e at banir da Filosofia. Elas
reapareceram, contudo, e mais imponentes que nunca.

(20) Buffon, que nunca foi mecnico, enganou-se neste ponto, pois hoje
sabemos que a Mecnica, tanto como a Qumica, representa um grande
papel na construo do corpo. esse erro, porm, no impede que as
palavras do grande naturalista exprimam a verdade no condizente
preponderncia da Fora.

Cuvier, mais explcito o declara, de vez que observara diretamente no


passar a matria de simples depositria da fora, por esta constrangida, de
antemo, a marchar no mesmo sentido que ela, bem como que a forma dos
corpos lhe mais essencial que a matria, visto que esta transmuda, enquanto
que aquela se conserva.
As experincias de Flourens, sobretudo, evidenciaram a mutabilidade da
matria, a contrastar com a permanncia da fora, que, a bem dizer, o que
tem de essencial o ser. Uma dessas experincias consiste em submeter um
animal, durante trinta dias, ao regime da granza, que, sabemo-lo, uma
substncia que tinge de vermelho os objetos dela impregnados. No fim de um
ms o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe dando, a
seguir, o alimento usual, os ossos entram a branquear, comeando pelo centro,
de vez que a renovao incessante, dos ossos como da carne, opera-se do
interior para o exterior. Outra experincia consiste em descarnar um osso e
rode-lo de um fio de platina. Pouco a pouco, o anel de platina se recobre de
camadas sucessiva-mente formadas e acaba ficando no interior do osso. Eis
que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos moles sofrem uma ao
mais rpida.
Com Quatrefages verificamos duas correntes contrrias a circularem nas
profundezas do ser: uma extraindo incessante, molcula por molcula, alguma
coisa do organismo, e outra reparando, relativamente, todas as brechas que,
por mais extensas, acarretariam a mrte. A fora orgnica, que constitui o
nosso ser, oculta-se sob a vestimenta varivel da carne, mas ns sentimo-la
palpitante em seu ardente vigor. Ela nos conforma, dirige, governa. Atentai
nesses representantes primitivos da escala zoolgica, nesses crustceos pro-
tegidos de uma couraa contra as subverses da crosta terrena; detende-vos
nesses aneldeos, nesses vermes que, seccionados, continuam a viver.
Arrancai lagosta uma pata e esta lhe renascer com todos os seus
caracteres. Cortai-a de uma salamandra e v-la-eis integralmente reconstituida.
Esmagai a cauda de um lagarto, ela lhe renascer. Seccionai a minhoca em
muitos pedaos e cada qual recuperar o que lhe falte. A flor de coral,
destacada de sua matriz, vai, atravs das ondas, constituir nova rvore. Ser a
matria, s por si, que opera tais coisas? Ser que coisas tais no revelam a
ao constante da fora tpica que modela os seres segundo a espcie, e que,
sem dvida, lhe mais essencial do que as molculas orgnicas com as suas
propriedades qumicas?
E, que haveremos de concluir da metamorfose dos insetos, essas formas
transitrias, nas quais s a fora persiste, atravs das fases de letargia e
62

ressurreio? A falena que adeja, no ar luminoso, no ser o mesmo ser h


pouco existente na larva ou na lagarta?
Diante de fatos que tais claro, incontroverso, que uma fora, seja qual for
(o nome pouco importa), organiza a matria, segundo a forma tpica das
espcies, animais vegetais.
Ora, nossos contraditores no vacilam em afirmar que nada existe,
absolutamente, e que tudo se pode explicar com as propriedades qumicas das
molculas. Pretende, Moleschott, que o conjunto das circunstncias, esse
estado mediante o qual a afinidade material engendra as mesmas formas per-
sistentes, recebeu de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de fora tpica.
Esta fora tpica um pequeno passo precedente fora vital, visto comportar
tantos estados de matria, quantos sejam os rgos e as espcies. Mas, a
fora padronal de plantas e animais uma idia to oca, to pueril quanto da
fora vital a que se radica.
O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstio, incapaz de negar parentesco
com a crena demonaca e com a pesquisa da pedra filosofal.
Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha os olhos e
clama: de real s h corpos.
Bois-Reymond, a seu turno, declara, em uma obra sobre a eletricidade
animal, que a pretensa fora vital no passa de quimera.
Se os nossos antagonistas se obstinam em sustentar que os organismos
esto submetidos a foras intrnsecas, no tm mais do que afirmar o seguinte:
a molcula material, entrando no turbilho da vida, recebe por algum tempo
o dom de novas foras e torna a perd-las quando o turbilho da vida,
agastado, a rejeite definitivamente nas plagas da Natureza inanimada.
um raciocnio falso, o desses senhores, de vez que basta molcula a s
entrada no turbilho da vida para que se comporte de conformidade com o tipo
individual que momentaneamente a retm. Para conservar o cepticismo, so
obrigados, qual j o vimos, a fazer vista grossa diferena que distingue o
corpo vivo do cadavrico. No se pode haver mais por duvidosa, na opinio de
Du Bois-Reymond, a questo de saber se a diferena
nica cuja possibilidade admitimos entre os fenmenos da Natureza viva
e morta, existe realmente. Uma diferena dessa espcie no existe. Nos
organismos, foras novas no se agregam s molculas materiais, nem fora
alguma que no esteja em atividade fora dos organismos. Portanto, no h
foras que se possam chamar vitais. A separao entre supositcias naturezas,
orgnica e inorgnica, absolutamente arbitrria. Os que teimam em mant-la,
os que pregam a heresia da fora vital, seja com que rtulo for, fiquem certos
de haver jamais atingido as lindes do prprio raciocnio.
Note-se, de passagem, esta firmeza e mais este leve tom de arrogncia
com que se referem aos que divergem das suas teorias. Veja-se como emitem
as mais contestveis proposies.
As propriedades do azoto, do carbono, do hidrognio, do oxignio, do
enxofre, do fsforo afirmam existem de toda a eternidade. Provem-nos o
contrrio... Calam-se? que no tm razo?. E com isso, est ganha a partida.
As propriedades da matria no podem mudar, quando entra na composio
de vegetais e animais. Logo, evidente que a hiptese de uma fora peculiar
vida absolutamente quimrica!
Objetam, enfim, que essa fora no existe, porque fora sem substrato
material idia abstrada, desprovida de senso.
63

Por ns, no vemos a necessidade de admitir que no exista uma fora


tpica, ou que essa fora seja extrnseca matria. Os nossos negativistas
incidem, aqui, no mesmo erro de quando se trata da existncia de Deus, que
declaram s possvel de conceber fora do mundo. sempre o mesmo princpio
que est em jogo. Ao demais, nos seria fcil demonstrar que todos os
conhecimentos humanos se reduzem, ltima ratio, noo da fora e da
extenso; poderamos invocar o testemunho da Matemtica, da Fsica, da
Qumica, da Histria Natural em seus trs reinos: Mineralogia, Botnica,
Zoologia; a cincia do homem: Psicologia, Esttica, Moral, Teologia natural,
Filosofia; cincias que, todas, iriam esbarrar no mesmo n substancial, isto ,
ou seja a fora e a extenso. No cabe, entretanto, fazer aqui um dicionrio.
Baste-nos considerar do ponto de vista da vida esta dupla questo e notar,
igualmente, o predomnio da fora sobre a extenso.
Bichat definia a vida como conjunto de funes que resistem morte. Sem
tomarmos puerilmente, ao p da letra, essa definio, perguntamos: qual a
primeira imagem que nos oferece o exame da estrutura de um vegetal ou de
um animal? Certo, a coordenao das funes orgnicas que constituem o
ser vivente. E que ser essa coordenao, seno um sistema de foras
destinadas a movimentar a mquina animada?
Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva a idia dinmica. Banida
ela, o que nos fica nada mais que um cadver.
Se, da descrio do rgo apropriado ao seu funcionamento e desse
conceito de foras particulares remontarmos ao conjunto do seu e sua
conservao, desde o comeo ao fim da vida, concluiremos com Cuvier que a
vida um turbilho contnuo, cuja diretiva, por mais complexa que seja,
permanece constante, tal como a espcie de molculas que consigo arrasta,
mas, no as molculas individuais em si mesmas. Aqui, ainda h reconhecer a
presena da fora, que, atravs da incessante mutao dos corpos, lhes
assegura e conserva a identidade da forma. Ela essa fora, pois a
caracterstica principal de todo organismo. E frisamos estas palavras de Cuvier:
as molculas individuais circulam perptuamente, mas a espcie permanece
sempre idntica. Essa permanncia devemo-la fora.
Que sucederia, por exemplo, se apenas a forma se salvaguardasse e
nenhuma direo virtual presidisse eleio das molculas qumicas?
Teramos, a breve trecho, o mais heterogneo dos corpos imaginveis, ainda
que guardando a perfeio da sua formao.
Imaginai, por exemplo, que o elemento essencial de uma face clara de
neve; que o coralino de uns lbios, a gracilidade de uma boca, o matiz ex-
pressivo de uns olhos puleros, fssem, ocasionalmente, refeitos por molculas
de outra espcie, como, por exemplo do iodo, que se torna negro ao
contacto da luz; do cido butrico, fundente ao Sol; ou de um sal qualquer,
solvel pela humidade, etc... Que belos espcimes daria assim a Humanidade!
E contudo, eis a ao que se chega, em negando a existncia de uma fora vital.
Passando do indivduo espcie, ainda a notamos o predomnio
necessrio da fora. Se cada indivduo se mantm vivo, graas sua
dinmica ntima. Se as espcies vegetais ou animais permanecem, graas
fora inicial que, s ela, pode caracterizar a identidade da espcie,
transmissvel descendncia e existente em estado latente, ou sensvel, no
vulo vegetal como no vulo animal.
Como pde este carvalho enorme sair da nfima bolota cada ao solo?
64

Como se fz carvalho, ao lado da fava que expeliu a faia; da batata, que


engendrou o pinheiro; da amndoa, que se fz tumba do pilriteiro desdobrando-
se em bagas escarlates; ou ainda, ao lado do gro de trigo e de aveia, na
mesma terra, com o mesmo sol e a mesma chuva; em suma: nas mesmssimas
condies?
Porque ser que os elefantes de hoje so exatamente idnticos aos de que
Pyrrhus se utilizava, h 20 sculos, e o corvo de No (se que No existiu) se
vestia do mesmo luto destes que a sulcam os nossos cus de Setembro?
Certo, porque o germe orgnico no reside somente na estrutura anatmica,
mas, tambm e sobretudo, em uma fora especial que se encarrega, sem
enganos possveis, da organizao do ser, de modo a no dar a um cavalo
uma cabea de carneiro, nem a um coelho uns ps de pato!
Afirmando to apaixonadamente a inexistncia de uma fora especial nos
seres vivos, e que a vida mais no que o resultado da presena simultnea
das molculas constitutivas do animal ou vegetal, justo seria procurassem, os
arautos de to audaciosas afirmativas, comprov-las experimental e ainda que
modestamente. Improvisai um nico, e o mais nfimo ser vivo, e... ns nos
renderemos. Vejamos: aqui est uma garrafa com carbonato de amonaco,
cloreto de potassa, fosfato de soda, cal, magnsia, ferro, cido sulfrico e
slica.
Sois vs mesmos a confess-lo (21) que nesse frasco est contido o
princpio vital, complto, de plantas e animais. Fazei, portanto, uma plantinha,
um

(21) Circulation de la Vie, T. 2, carta 15.

s bichinho... Como assim? Calai-vos? Nada obstante, sois patrcios de


Goethe! No vos lembrais do lgubre laboratrio de Wagner, atochado de
aparelhos esquisitos, disformes; de fornos e cubos destinados a fantsticas
experincias? Ele, Wagner, j tem nas mos a garrafa.
Apelai para a vossa memria e ouvi a cena maravilhosa do eterno Me-
fistfeles a dialogar com o alquimista.
Wagner, atento ao forno: O sino tangeu, percusso formidvel! Abalou as
paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza desta expectativa to solene no
pode prolongar-se muito. As trevas como que se desfazem, estou a ver no
fundo da lente algo que reduz (22) como carbono vivo, ou, melhor, como
esplndido diamante, a clarear de mil facetas a escurido ambiente. Agora,
uma luz pura, branqussima. Bem, desta vez espero que no escapara... ah!
maldio, quem bate assim porta, justamente...
Mefistfeles: (entrando) Que h?
Wagner: (baixinho) Est-se fabricando um homem...
Mefistfeles: Um homem? Mas, que amoroso casal meteste a nessa
chamin?
Wagner: Ora, valha-me Deus! Essa velha frmula de procriar j foi, h
muito, reconhecida um simples gracejo. O foco sutil de onde brotava a vida, a
fora suave que de si exalava, e tomava e dava, destinada a formar-se por si
mesma, alimentando-se a princpio das substncias circunvizinhas, e, a seguir,
de substncias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestgio. Se o
animal ainda lhe encontra prazer, ao homem convm, por dotado de mais
nobres qualidades, uma origem mais pura e
65

(22) A idia de enclausurar Espritos em frascos muito comum na


feitiaria medieval, O Papa Benedito 9 expeliu sete Espritos, de um
aucareiro.

mais alta. (Voltando-Se para a fornalha) Quanto brilho! veja... Dora em diante,
lcito esperar que, se de cem matrias, e por mistura pois tudo depende da
mistura conseguimos com facilidade compor a massa humana, aprision-la
num alambique, coob-la a preceito, a obra se completar em silncio. (Vol-
tando-se de novo para a fornalha) o que est sucedendo: a mesma clareia-se
e mais convicto me deixa, a cada instante. Tentamos, judiciosamente,
experimentar o que se chamava mistrios da Natureza e o que ela
produzia outrora, organizando, fazemo-lo hoje cristalizando.
Mefistfeles: A experincia vem com a idade e a quem quer que tenha
vivido bastante, nada ocorre de novo, na Terra. Por mim, confesso que nas
minhas viagens encontrei, bastas vezes, muita gente cristalizada...
Wagner: (que no tirara o olho da sua lente) A coisa est
crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais, e a obra estar
consumada. No h ideal grandioso que primeira vista no parea insensato;
contudo, doravante, queremos sobrancear o acaso e dessarte, futuramente, um
pensador no deixar de fabricar um crebro pensante...
(Contemplando a redoma embevecido) O cristal retine, vibra; comove-o uma
fora encantadora, ele como que se perturba e se aclara, O sucesso no tarda.
J estou a ver a forma elegante de um homemzinho gesticulando... Que mais
desejar? Que pode o mundo querer de melhor? Eis o mistrio a desnudar-se!
Ateno! Esse timbre se articula, vozeia, fala!
Homnculo: (de dentro da redoma, para Wagner)
Bom dia, papai! ento sempre era verdade, hein? Toma-me,
aconchega-me ao teu seio com ternura, mas, olha, no me apertes muito, se-
no... quebras o vidro. Isso a propriedade das coisas: ao que natural, s o
Universo pode bastar; mas o artificial, ao contrrio, reclama o limitado.
(Voltando-se para Mefistfeles) Tu aqui? Velhaco... Mas, ainda bem que o
momento azado e graas dou porque boa estrela te trouxe a ns. J que
estou no mundo, quero agir e meter desde logo mos obra. Hbil s tu para
me desbravar o caminho.
Wagner: Uma palavra ainda... At aqui, muitas vezes me vi indeciso,
quando moos e velhos me vm cumular de problemas. Ningum, por
exemplo, ainda compreendeu como a alma. e o corpo, to intimamente
conjugados e ajustados entre si, a ponto de os julgarmos para sempre
inseparveis, vivem em luta sem trguas e chegam a envenenar a prpria
existncia... e depois...
Mefistfeles: Alto l! Eu antes quisera saber a razo por que o homem
e a mulher no se entendem. Esta uma questo que te h-de custar a
resolver. Isso o que vale tentar e opetiz deseja faz-lo...
Voltai, porm, a pgina do libreto. Vamos ao 1 ato, Fausto, a velha e
nova Cincia quem fala:
Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como operam e
cooperam as atividades todas, umas pelas outras! Como sobem e descem as
foras, a permutar de mo em mo seus vasos de ouro, a toc-los com as suas
asas que exalam, nesse vaivm, do cu Terra, uma com bno de universal
66

harmonia!
Estupendo espetculo! Mas... tortura! nada mais que espetculo! Onde
apreender-te, Natureza! fontes de toda a vida! que abranjeis e nutris cus e
terras, onde estais? Para vs se voltam os seios desnutridos, correis aos
borbotes, inundais o mundo, enquanto em vo me consumo.
Sim. Em vo vos consumis, tentando reivindicar para o homem a obra do
Criador. em vo que escreveis: onipotncia criadora a afinidade da vida...
Com todo o vasto conhecimento da matria e das suas propriedades, no
conseguistes engendrar sequer um cogumelo.
Creio, porm, que de o fazer decimais e vos desculpais. O que no
podemos, pode a Natureza, visto que ela ainda mais hbil que ns. (Bela
modstia, na verdade.) Mas, ento, que fazeis da inteligncia, uma vez que,
por outro lado, presumis no haver Esprito na Natureza? Mas vamos adiante.
Demais acrescentais argutamente , se ainda no produzimos seres vivos
por processos qumicos, temos, todavia, produzido matrias como, por exem-
plo, o cido caracterstico da urina, e o leo essencial da mostarda (ter
alilsulfocinico), o que muito nos lisonjeia. Detenhamo-nos, pois, um instante,
nas decisivas manipulaes destes ilustres qumicos.
A partir dos fins do ltimo sculo, como adverte Alfredo Maury (23), tem-se
reconhecido que as matrias que se desenvolvem nos vegetais e nos animais,
recolhidas dos seus restos, encerram quase exclusivamente carbono, oxignio,
hidrognio e azoto. Da se concluiu serem estes quatro corpos os princpios
bsicos elementares de todas as substncias orgnicas, e que se encontram
muitas vezes combinados com alguns outros corpos simples e diversos sais
minerais.
Este primeiro resultado nos ensinou que, se vegetao e vida so foras
parte, insusceptveis de se confundirem com o simples movimento, com a
afinidade e a coeso, elas de si nada criam e apenas apropriam o material do
reino mineral que as rodeia. De fato, os quatro elementos orgnicos existem
inteiramente formados na atmosfera. O ar um composto de oxignio e azoto,
associados

(23) Revue des Deux Mondes 1 de Setembro de 1865.

pequena poro de cido carbnico, ou seja de carbono combinado com o


oxignio. A atmosfera tem, ao demais, em suspenso, o vapor dgua e
ningum ignora que a gua um composto de oxignio e hidrognio. Portanto,
as matrias orgnicas tiram, dessa massa fludica e inorgnica que as envolve
e compenetra o nosso globo, os elementos de sua composio. Quanto s
outras substncias encontradas, por assim dizer, acidentalmente, em sua
trama, so apropriadas do solo. As plantas os sugam e os animais, nutrindo-se
das plantas. os assimilam.
A Qumica pode criar imediatamente esses elementos orgnicos e foi o Sr.
Bchner o primeiro a proclam-lo, com entusiasmo. Os qumicos fizeram o
acar de uva bem como vrios cidos orgnicos. Criaram, dizem, diferentes
bases orgnicas e entre elas a uria, substncia orgnica por excelncia, em
desmentido aos mdicos que os argiam de incapazes de obter produtos do
organismo. Dia a dia vemos aumentarem as experincias qumicas no sentido
de criar combinaes. O Sr. Berthelot conseguiu engendrar, de corpos
inorgnicos, os derivados das combinaes de carbono e hidrognio, e esta
67

descoberta, mau grado ao seu desacordo com a natureza orgnica, forneceu


um ponto de partida para a composio artificial dos corpos orgnicos.
Hoje se fabrica o lcool e perfumes preciosos do carvo vegetal; da ardsia
extraem-se velas; o cido prssico, a uria, a taurina e quantidade de corpos
outros, havidos outrora por s criados de substncias vegetais ou animais,
tornam-se obtenveis de simples elementos da Natureza inorgnica. Assim,
apagou-se, graas a essas manipulaes, a clssica distino entre a Natureza
orgnica e inorgnica.
Em 1828, produzindo uria artificial, Woehler derrubou a velha teoria que
sustentava s possveis as combinaes orgnicas engendradas por corpos
orgnicos. Em 1856, Berthelot criou o cido frmico com substncias
inorgnicas, isto , xido carbnico e gua, aquecendo estas matrias com a
potassa custica e sem cooperao de planta ou animal qualquer. Logo aps,
conseguiram diretamente destes elementos a sntese do lcool. Chegaram
mesmo a produzir a gordura artificial do cido olico e da glicerina, duas
substncias que se podem obter por processos exclusivamente qumicos, e a
temos um dos resultados mais extraordinrios at hoje conseguidos na
Qumica sinttica.
Destes dados, o autor de Fora e Matria concluiu que importa banir da
vida e da Cincia a idia de uma fora orgnica, produtora dos fenmenos da
vida, por maneira arbitrria e independente das leis da Natureza. Tal como ele,
tambm repelimos o arbitrrio, mas guardamos a fora. Ele nos garante que a
pretendida distino rigorosa, entre o orgnico e o inorgnico, meramente
arbitrria. Mas, nisto, tem contra si os representantes da vida terrena, em sua
totalidade.
Sem embargo, Carl Vogt acrescenta que, alegar a fora vital, no passa
de circunlquio para mascarar ignorncia, espcie de alapes de que a
Cincia est cheia e pelos quais se salvam sempre os espritos superficiais,
que recuam ante o exame de uma dificuldade, para somente se contentarem
com milagres imaginrios.
Neste caso, a doutrina da fora vital representaria hoje uma causa perdida.
Nem os esforos dos naturalistas msticos, no intuito de reanimar essa
sombra; nem os lamentos dos metafsicos esconjurando as pretenses e a
irrupo iminente do materialismo fisiolgico e contestando-lhe o contingente
filos fico; nem as vozes isoladas que assinalam fatos da Fisiologia ainda
obscuros; nada disso pode salvar a fora vital de prxima e completa runa.
H alguns anos, Bunsen e Playfer mostraram diz o autor de A
Circulao da Vida, e Rieken confirmou logo aps que possvel obter
cianognio (combinao de azoto e hidrognio) custa de substncia
inorgnica. Por outro lado, sabemos que o hidrognio, no momento em que se
separa das suas combinaes, pode unir-se ao azoto para formar o amonaco.
De resto, pode-se ir do cianognio ao amonaco. Basta expor ao ar o cianog-
nio dissolvido em gua, para que se vejam flocos pardacentos desagregando-
se do lquido, sinais de decomposio, em seguida qual encontramos o cido
carbnico, o prssico, amonaco, oxalato de amonaco e uria, dissolvidos no
lquido. O cido oxlico uma combinao de carbono e oxignio que, pela
mesma quantidade de carbono, no contm seno trs quartos do peso de
oxignio e cido carbnico, O cido oxlico o causador do paladar acidulado
de azeda, da oxlida e de muitas plantas outras. um cido orgnico que,
conforme acabmos de dizer, podemos preparar mediante corpos simples, sem
68

o concurso de qualquer organismo.


Assim, ficamos agora conhecendo trs substncias, exclama Moleschott:
uma base orgnica o amonaco; um principio acidulante orgnico o
cianognio, e um cido orgnico o oxlico, que podemos fabricar com
corpos simples.
No h muitos anos, acreditava-se possvel preparar um e outro mediante
decomposio de combinaes orgnicas as mais complexas, mas ningum
imaginaria obt-las de elementos simples. No amonaco temos uma
combinao de azoto e hidrognio, sem partilha de corpos orgnicos. Este
enigma, que a esfinge da fora vital nos antepunha como espantalho, para
impedir o nosso avano na preparao artificial das combinaes orgnicas, foi
resolvido por Berthelot. Ele derrubou a esfinge e seus adoradores, substituindo-
os por uma pliade de investigadores, a cujas mos passou os fios que lhes
devero servir para levar avante a trama das descobertas, a fim de
reproduzirem todas as peas do mundo orgnico.
Acrescentamos que se obtm hoje o cido actico, fazendo passar por trs
estados um combinado de cloro e carbono, e que so: percloreto de carbono,
cido cloractico e cloreto de carbono, bem como que a combinao direta de
carbono e hidrognio d. a sntese do acetileno (24)
Mais fcil ainda preparar o cido frmico com o s auxlio de corpos
simples, qual o conseguiu o professor do Colgio de Frana, operando com a
potassa hmida sobre o gs xido-carbnico, num globo de vidro prova de
fogo e por espao de setenta e duas horas, temperatura de 100 graus (25).
De resto, a Natureza extrai as substncias orgnicas da mesma fonte a
que recorrem os qumicos em seus experimentos de laboratrios.
Certamente, palmeamos a duas mos (mesmo porque com uma s fora
impossvel) essas admirveis tentativas da Cincia, e no a ns que
poderiam reprochar embargos ao gnio criador do homem. Ele, o homem, est
na Terra para conhecer a Natureza e senhorear a matria. O conhece-te a ti
mesmo dos antigos se traduz em nossos dias pelo estudo do mundo exterior, e
por esse estudo fecundo que verdadeiramente aprenderemos a conhecer-nos
a ns mesmos.
Acreditamos com o Sr. Maury que o alcance de tantas descobertas
compensa de sobejo o esforo para as compreender. Que cincia nos poder
mais cativar do que a que nos revela a matria de que nos constitumos e nos
alimentamos; as substncias com as quais estamos em contacto, os efeitos
fsicos que se operam dentro e fora de ns, onde transitam e como rejeitamos
as partculas incessantemente assimiladas?

(24) Berthelot Chimie Organique Fonde sur la Synthse.


(25) Sobre os recentes progressos da Qumica orgnica, convm
consultar os interessantes relatos das sesses da Academia,
principalmente nestes ltimos tempos.

No so assuntos de somenos, estes, particularistas e momentneos:


antes so problemas que abrangem a humanidade fsica em sua totalldade, o
mundo dos seres a que pertencemos, que est em jogo.
Despendendo amide muito trabalho e inteligncia para penetrar no ddalo
de mesquinhas controvrsias e fatos insignificantes, como descurarmos o que
mais interessa, ou seja, esta maravilhoSa Natureza no seio da qual nascemos,
69

vivemos, morremos; que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a todas as


geraes os princpios essenciais de sua prpria existncia?
Mas, nem por isso, nos associamos s pretensas consequncias que os
senhores materialistas deduzem, conseqncias que os senhores Berthelot e
Pasteur, e os qumicos prticos, so os primeiros a repudiar. Os materialistas
presumem ter a chave mais difcil do enigma, uma vez que podem produzir gs
artificial com os corpos simples. Misturando-se cianato de potassa e sulfato de
amonaco, a potassa combina-se com o cido sulfrico e o cido cinico com o
amonaco. Esta ltima combinao no cianeto de amonaco e sim uria.
Admirai agora a ilao: graas a esta brilhante descoberta que Liebig e
Woehler abriram dilatadas perspectivas nessa via e conquistaram um eterno
galardo, dando, um tanto involuntria e despreconcebidamente, a prova de
que, doravante, a flama da vida se resolve em foras fsicas e qumicas. Que
honra para Liebig e Woehler o serem assim arrastados para as nascentes do
Aqueronte. Nossos inimigos gostam desse rio e das suas margens sombrias.
Certo acrescentam o qumico Isento de preconceitos, que no fala a
servio do trono e do altar, contando tranqilamente com a vitria certa, pode
sorrir do pobre filsofo, cujo saber no ultrapassa o conhecimento da uria e
que acredita impor limites ao poder do fisiologista. Que altar e que trono
nomeariam ministros uns tais lgicos? A prpria Cincia vive retraida em seu
santurio e os deixa rondar o tempo, a repicar o sino e fazer evolues.
Que concluso definitiva tira a escola materialista dessas manipulaes? A
de que a Qumica e a Fsica nos oferecem provas evidentes de que as foras
conhecidas, das substncias inorgnicas, exercem a sua ao, tanto em a
Natureza viva como na morta.
Pela mesma razo que os obrigou a divinizar a matria, em substituio a
Deus, vemo-los animar, sem cerimnias, a matria para destronar a vida.
As cincias diz o autor de Fora e Matria
perseguiram e demonstraram a ao dessas foras no organismo de
plantas e animais e, s vezes, at nas combinaes mais sutis. No presente,
est geralmente constatado que a Fisiologia, ou seja a cincia da vida, j no
pode prescindir da Qumica e da Fsica, e que nenhum processo fisiolgico se
opera revelia das foras qumicas e fsicas.
A Qumica diz a seu turno Miahle tem, incontestavelmente, parte na
criao, no crescimento, na existncia de todos os seres vivos, seja como
causa ou como efeito. As funes da respirao, da digesto, da assimilao e
da secreo, no se realizam seno por meio da Qumica. S ela nos pode
desvendar os segredos das importantssimas funes orgnicas.
O hidrognio, o oxignio, o carbono, o azoto, declaram-no enfaticamente os
materialistas, entram nas mais diversas condies de combinaes nos corpos
e agregam-se, separam-se, atuam obedientes s mesmas leis que os regem
fora desses corpos. Os prprios corpos compostos podem apresentar os
mesmos caracteres. A gua, a mais volumosa substncia de todos os seres
orgnicos, sem a qual no h vida animal nem vegetal, penetra, amolece,
dissolve, adere, cai, segundo as leis do peso e evapora-se, precipita-se, forma-
se dentro como fora dos organismos. As substncias inorgnicas, os sais
calcreos que a gua contm em estado de composio, ela os deposita nos
ossos dos animais ou no vaso das plantas, onde essas substncias afetam a
mesma solidez que no domnio inorgnico. O oxignio da atmosfera, que, nos
pulmes, entra em contacto com o sangue venoso, de cor negra, comunica-lhe
70

a cor vermelha, que o sangue adquire quando agitado num vaso em contacto
com o ar. O carbono existente no sangue sofre, com esse contacto, os mesmos
efeitos da combusto operada em toda parte, transformando-se em cido
carbnico. Pode-se razoavelmente comparar o estmago a uma retorta na qual
as substncias, postas em contacto, se decompem, se combinam, etc.,
segundo as leis gerais de afinidade qumica. Um txico, entrado no estmago,
pode ser neutralizado pelos mesmos processos exteriormente utilizados. A
substncia morbifica porventura l fixada, neutraliza-se, destri-se, mediante
remdios qumicos, como se este processo se operasse num frasco qualquer,
que no no interior de um organismo. A digesto ato de pura qumica. Longe
poderamos prosseguir no assunto. A observao diz Miahle nos ensina
que todas as funes orgnicas se operam mediante processos qumicos, e
que um ser vivo pode comparar-se a um laboratrio de qumica, em que se
processam os atos da vida em seu conjunto. Menos evidentes no so os
processos mecnicos determinados pelos organismos vivos. A circulao do
sangue se realiza pelo mais perfeito mecanismo imaginvel. O aparelho
produtor assemelha-se, perfeitamente, aos aparelhados por mos humanas. O
corao tem vlvulas e mbolos, tal como as mquinas a vapor, e cujo
funcionamento produz rudos distintos. Entrando nos pulmes, o ar fricciona as
paredes dos brnquios e engendra o sopro respiratrio. Inspirao e expirao
so resultantes de foras puramente fsicas. O fluxo ascensional do sangue,
das extremidades inferiores do corpo para o corao, contrrio s leis de
gravidade, no pode verificar-se seno por um aparelho puramente mecnico.
tambm por um processo mecnico que o tubo intestinal, graas a um
movimento peristltico, expele os excrementos de alto a baixo, e ainda por
processo mecnico se verificam os movimentos musculares de homens e
animais.
A estrutura do olho radica nas mesmas leis da cmara-escura, e as
ondulaes do som transmitem-se aos ouvidos como a qualquer outra
cavidade. A Fisiologia tem, pois, absoluta razo concluem Bchner e
Schaller propondo-se provar, hoje, que no mais existe essencial diferena
entre o mundo orgnico e o inorgnico.
No h diferena entre o orgnico e o inorgnico! Mas, convenhamos em
que no pode haver no mundo uma proposio mais falsa.
As reaes operadas nos corpos vivos longe esto de se identificar s que
se operam com os mesmos lquidos numa retorta.
As foras organizadoras, como as denomina. Bichat, esquivam-se ao
clculo, atuam de feio irregular e varivel. Ao invs, as foras fsico-qumicas
obedecem a leis regulares e constantes.
O autor de um parte recente, intitulado A Cincia dos Ateus, evidencia
muito bem esta verdade com os seguintes exemplos: Injetai nas veias do
animal os elementos constitutivos do sangue, exceto o que lhe produz a
sntese, que no se encontra vossa disposio, e em vez de prolongar a vida
do animal t-lo-eis simplesmente matado. Tambm o sangue que fique algum
tempo fora da veia, se for novamente injetado pelo orifcio que o extravasou,
pode ocasionar os mais srios distrbios. Introduzi no estmago do cadver
substncias alimentares e vereis que ao contacto dos tecidos elas se
putrefaro, elas que, no animal vivo, se transformariam em sangue para lhe
manter a vida. Pergunta-se, ento, aos qumicos, como atuam no organismo o
pio, a quinina, a noz-vmica, o enxofre, o iodeto de potssio, etc. Qual a ao
71

qumica da nicotina, do cido prssico, de todos os venenos vegetais que no


deixam vestgios? Como age o curare no ttano?
Porque a ipeca no estmago faz se contraiam desde logo os msculos
inspiradores, etc.? Ao de presena, dizem os fsicos e repetem os qumicos,
acreditando, os sisudos doutores, ter cabalmente respondido!
Atentatria da verdade a pretenso de explicar pela Qumica e pela Fsica
os fenmenos fisiolgicos, afirmando a identidade das reaes intra e extra-
orgnicas. A Qumica e a Fsica se conjugam, porque as mesmas leis presidem
sua fenomenologia; mas um imenso intervalo as separa da cincia biolgica,
porque existe enorme diferena entre as suas leis e as leis da vida.
Dizer que a Fisiologia a fsica animal, dar uma definio to inexata
como se dissssemos que a Astronomia a fsica dos astros. A esse conceito
de Bichat o Dr. Cerise adita: os fenmenos vitais so complexos e as foras
fsicas neles cooperando, incontestavelmente, mas em propores difceis de
medir, os submetem ao imprio de uma fora superior, que os rege em funo
de suas finalidades.
Da mesma opinio os anatomistas Piorry, Malgalgue, Poggiale, Boullaud:
Acima de todas as cincias diz este como acima de todas as leis, a vida
domina, modifica, neutraliza, diminui ou aumenta a intensidade das foras
fsico-qumicas.
Nosso Dumas, qumico eminente, diz algures: Longe de amesquinhar a
importncia dos fatos, aos quais obedece a matria morta, a noo da vida se
altana e ressalta do conhecimento ntimo dessas leis; e a convico da sua
essncia misteriosa e divina se engrandece merc de srios estudos da
Qumica orgnica.
As operaes qumicas, suscetveis de realizar em nosso organismo, no
se devem confundir com s inerentes fisiologia do nosso ser, eis o que
preciso assentar desde logo. Sob o primeiro ponto de vista, a identidade das
foras que concorrem para formar substncias orgnicas e inorgnicas um
fato inconcusso, averiguado. Conformando-se s leis naturais, o qumico
compe uma srie de combinaes tambm encontradas em corpos orgnicos,
e, mais fecundo que a prpria Natureza, pode, a seu alvedrio, operar outras
combinaes inexistentes nos organismos terrestres, assim transportando,
talvez, a sua cincia ao domnio de outros mundos.
Sabe ele que a fermentao um processo geral de interveno que
determina, no apenas os fenmenos da morte e da decomposio, mas tam-
bm os do nascimento e de todas as funes vitais, a partir do gro de trigo
que germina e do vinho que ferve, at levedura do po, da cerveja, e aos
fenmenos de nutrio e digesto. A Qumica orgnica tem as mesmas bases
da Qumica mineral. Ningum melhor que o Sr. Berthelot expe essas
conquistas da cincia dos corpos, assim como ningum lhes traa os limites
ante o problema do nosso ser. Ouamo-lo portanto:
Tudo havia concorrido (26) para que a maioria dos espritos ncarasse
como intransponvel a barreira entre as duas qumicas. Para explicar a nossa
impotncia, inferiam uma raso especiosa da interveno da fora vital, apta,
at ento, a s compor substncias orgnicas. Era, diziam, uma fora
misteriosa, a determinar exclusivamente os fenmenos qumicos observados
nos seres, agindo em virtude de leis essencialmente distintas das que regulam
os movimentos da matria puramente mbil e quiescente. Tal a explicao com
que se pretendia justificar a imperfeio da Qumica orgnica, declarando-a,
72

por assim dizer, irremedivel. Assim proclamando nssa absoluta impotncia


para produzir matrias orgnicas, duas coisas se confundiam:

(26) Chimie Organique Fonde sur la Synthse.

a formao de substncias qumicas, cujo agregado constitui os seres


organizados, e a formao dos prprios rgos. Este ltimo problema no
pertence aos domnios da Qumica. Jamais o qumico pretender fabricar no
seu laboratrio uma folha, um fruto, um msculo, um rgo. Questes so
estas que afetam a Fisiologia, e a esta que compete discutir-lhes as
premissas, desvendar as leis que regem os seres vivos na ntegra, pois que
revelia dessa integridade nenhum rgo teria razo de existir e nem o meio
necessrio sua formao.
Entretanto, o que Qumica no dado fazer no plano orgnico, pode
empreender no fabrico de substncias contidas nos seres vivos.
Se a prpria estrutura de vegetais e animais lhe escapa s aplicaes, no
lhe anula a pretenso de conseguir os princpios imediatos, isto , os materiais
qumicos que constituem os rgos, independentemente da estrutura especial
das fibras e clulas que esses materiais afetam, nos animais e nos vegetais.
Esta mesma formao e a explicao das metamorfoses ponderveis, que a
matria experimenta nos seres vivos, constituem campo assaz vasto e belo
para que a sntese qumica o reivindique inteiramente.
Esta declarao, na qual os adversrios pretendem ver a vitria definitiva
do materialismo, sugere-nos acreditar em dois pontos fundamentais:
1 que a formao das substncias orgnicas pode ser devida s
mesmas leis que regulam o mundo inorgnico e 2 que a prpria formao
dos rgos deriva de uma fora estranha aos domnios da Qumica. Quanto ao
primeiro ponto, triunfa o espiritualismo, qual o vimos, de vez que as foras que
regem o mundo inanimado revelam a existncia de um arquiteto inteligente. E
quanto ao segundo, o triunfo ainda mais brilhante, de vez que a Qumica
orgnica capitula diante do ser vital. Tal como judiciosamente adverte o Sr.
Langel, essa qumica estuda e compe, somente, os materiais da vida, sem se
preocupar com o ser vivo em si mesmo. Esboa, por assim dizer, as tintas do
quadro, tornando-se preciso outra mo que aplique essas tintas, e criem a obra
em que elas se fundem em perfeita unidade.
Quando a Qumica deixou adivinhar no ser humano um alambique no qual
o cido procura a base, as molculas se agrupam de acordo com as leis de
que falamos na primeira parte; quando fizeram ver que o animal vivo no passa
de um vaso de reaes, e que as foras qumicas e fsicas nele se entregam a
perptuo combate em campo fechado; quando mostraram que os fenmenos
da fecundao, da nutrio e da prpria morte, mais no so que fermentaes
ordinrias, j se no sabe mais onde residem essas foras misteriosas que de-
nominamos vida, instinto e conscincia, quando se trata de criaturas humanas.
No tardaremos a entrar no mago desta grave questo. Por enquanto,
confessamos com o Sr. Langel (27) que a Cincia pode arrastar-nos a dvida,
a negaes espantosas, tendo ela mesma os seus mistrios insondveis s
vistas humanas. Tambm ela se contenta com palavras, sempre que no pode
penetrar a essncia mesma dos fenmenos. No nos fala a Qumica,
constantemente, de afinidade? E no temos a uma fora hipottica, uma
entidade to pouco tangvel quanto a vida, ou quanto a alma? A Qumica re-
73

cambia Fisiologia a idia da alma e recusa-se a tratar do assunto, mas,


perguntamos, a idia em torno da qual se desdobra a Qumica tem algo de
mais real? Essa idia , muitas vezes, inapreensvel, no s na essncia como
nos efeitos. Pode-se, por exemplo, meditar um instante nas leis conhecidas
como leis de Berthelot, sem compreender que se est em face de um mistrio
impenetrvel? No

(27) Science et Philosophie.

simples fenmeno de uma combinao, no arrastamento que precipita dois


tomos que se procuram e se renem, escapando aos compostos que os apri-
sionavam, no h o suficiente para nos confundir a inteligncia? Quanto mais
estudamos as cincias na sua metafsica, mais nos podemos convencer que
esta nada tem de inconcilivel com a mais idealista filosofia: as cincias
analisam as relaes, aferem medidas, descobrem as leis que regulam o
mundo fenomenal; mas no h fenmeno algum, por insignificante que seja,
que no as coloque em face de duas idias, sobre as quais o mtodo expe-
rimental carece de eficincia, a saber: 1 a essncia da substncia
modificada pelos fenmenos, e, 2 a fora que provoca essas modificaes.
S conhecemos e vemos, por fora, as aparncias; a verdadeira realidade, a
realidade substancial, a causa, nos escapa. Digno de uma alta filosofia
considerar todas as foras particulares, cujas manifestaes so analisadas
pelas diversas cincias, como oriundas de uma fora primria, eterna, ne-
cessria, fonte de todo o movimento e centro de toda a ao. Em nos
colocando neste ponto de vista, os fenmenos e os prprios seres no so
mais que formas mutveis de uma idia divina.
Pode a unidade a que tende a Qumica fazer-nos pressupor que o mundo
animado e o inanimado sejam regidos por leis idnticas? Deveremos lisonjear-
nos com idia de poder um dia, no apenas refazer artificialmente todas as
matrias orgnicas, mas reproduzir ad libitum as condies em que hajam de
aflorar a vida vegetal ou animal? No, certamente. Tais pretenses seriam
ilusrias. No dispomos da vida. Fisiologia e Qumica so domnios que se
extremam e se. distinguem, como se no distinguiam h um sculo a Qumica
orgnica e a mineral.
Em parte alguma, a planta mais rudimentar, o animal mais nfimo da escala
zoolgica, nasceram do concurso das afinidades qumicas. Por maiores
progressos que faa a Qumica orgnica, ela ser sempre detida pela
impossibilidade de originar a fora vital, de que no dispe.
No, senhores, em que pese vossa atitude afirmativa e audaciosa, vs
no podeis criar a vida, nem sabem, sequer, o que seja a vida, e sois cons-
trangidos a confessar a vossa ignorncia, ao mesmo tempo que ofereceis as
provas da vossa impotncia.
em vo que revidais com fogos ftuos e gratuitas Suposies:
Para sustentar uma fora vital original dizeis invoca-se amide a
nossa impossibilidade de criar plantas e animais; e nada obstante, se
pudssemos senhorear a luz, o calor, a presso atmosfrica, tanto quanto as
relaes de peso da matria, no somente ficaramos aptos a recompor corpos
orgnicos, como capacitados a preencher as condies que engendram o
nascimento desses corpos.
A seguir, acrescentais, sem perceber que as vossas prprias palavras
74

reforam a nossa causa:


Desde que os elementos ditos carbono, hidrognio, oxignio, azoto, se
encontram organizados, as formas fixas da resultantes tm o poder de conser-
var-se no seu estado, e, tal como no-lo ensina a experincia at hoje adquirida,
elas persistem atravs de centenas e milhares de anos. Por meio de sementes,
de brotos e de ovos, essas formas reaparecem numa sucesso determinada.
Por outros termos, duas proposies se evidenciam: a primeira que no
poderamos engendrar a vida seno como legado potencial da Natureza e a
segunda que a vida se mantm, persistente e transmissvel, graas a uma
virtude que lhe prpria.
Tal , verdadeiramente, a questo, e de duas uma: ou o homem , ou no
(nem ser) capaz de originar a vida.
Neste ltimo caso, as pretenses materialistas esto irremissivelmente
condenadas e, no primeiro, por si mesmas se condenam, da seguinte forma:
Laborando na organizao da vida, sois forados a vos submeter s leis
ordenadas e as aplicar passivamente, sem as contrariar de qualquer forma.
Ento, j no seramos ns a originar a vida e sim as leis eternas, das quais
nos arvoraramos, por um instante, em simples mandatrios.
J vos ouo bradar sofisma! e declarar que procuramos escapar pela
tangente. Mas... perdo, senhores, notam em primeiro lugar que se algum se
esquiva num procsso, esse algum s pode ser o acusado e considerai,
depois, que, assim razoando, no ficamos superfcie e penetramos o mago
da questo. Refleti um momento: bem sabeis que neste mundo nada criamos e
apenas aplicamos leis predominantes.
Criais, porventura, o oxignio quando, pelo calor, decompondes o bixido
de mangans e as bolhas afloram no tubo de escapamento? No; apenas rou-
bais ou se preferis pedis ao bixido de mangans o tero de oxignio
nele contido. Criareis o azoto retirando oxignio do ar atmosfrico? O prprio
nome do processo est a indicar que ele consiste numa subtrao. Criais a
gua quando, reunindo no eudimetro o hidrognio ao oxignio, lhe fazeis a
sntese? Ou isso no passa de mera combinao? Com a decomposio do
carbonato de cal, pelo cido clordrico, criareis o carbono? E os cidos oxlico,
actico, ltico, tartrico, tnico, quando os extras dos materiais vegetais ou
animais, mediante agentes oxidantes, acaso os tendes criado? No, mil vezes
no. Se nos servimos, por vezes, do vocbulo criar, por abuso de lingua-
gem. Ora, ainda mesmo que consegusseis fazer um pedao de carne, nem por
isso o tereis criado e sim, apenas, reunido os elementos que constituem a
carne, segundo as leis inexorveis, assinadas organizao da Natureza. E
dado que os psteros possam ver um dia surgir do fundo de suas retortas um
ser vivo, ainda assim, de antemo lhes dizemos que muito se iludiriam se
conclussem pela inexistncia das leis divinas, pois no haveria de ser revelia
delas que houvessem de consumar essa obra-prima da indstria humana.
Enfim, dado que os precedentes raciocnios no sejam suficientes para
caracterizar vossa erronia, consentimos, ao termo desta exposio sobre a cir-
culao da matria, em admitir que a Natureza emprega, para construir seres
vivos, os mesmos processos do homem, isto : trata simplesmente pela
qumica as matrias inorgnicas. Ora, ainda nesta hiptese, no haveria como
negardes a necessidade, para o construtor, de saber o que pretende fazer, ou
de operar com um plano determinado. Pois uma natureza inteligente, ou o
ministro de uma inteligncia, substitui o qumico. A obra do gnio consiste,
75

precisamente, em fazer derivar de um pequeno nmero de princpios,


facilmente formulveis, as mais engenhosas aplicaes, os inventos mais
extraordinrios.
Esse gnio, do qual as mais portentosas inteligncias humanas no
representam seno partculas infinitesimais, reduziu extrema simplicidade,
maior simplicidade possvel, todas as operaes da Natureza. A divina
inteligncia apresenta-se-nos como a conscincia de uma lei nica,
abrangendo o todo universal, e cujas aplicaes indefinidas engendram uma
multido de fenmenos que se aglutinam por analogia, regidos pelas mesmas
leis secundrias, decorrentes da lei primordial. Certo, o qumico ainda no
substitui a vida, nem sabe formar o embreo em que o germe representa um
papel to maravilhoso. Em seus atos, contudo, ele se esfora por substituir a
Natureza. E como? pela inteligncia. Um elemento existe, absolutamente
indispensvel: a inteligncia.
Soberana, ela se impe ao raciocnio de quantos estudam a Natureza. E
torna-se visvel nessas regras que podem ser prviamente determinadas,
calculadas, combinadas, de vez que guardam entre si um encadeamentO
admirvel e so imutveis em condies idnticas, porque receberam a
inflexibilidade da infinita sabedoria.
Est, portanto, demonstrado, saciedade, que a circulao da matria no
se efetua seno sob a direo de uma fora inteligente.
Mas, seja qual for o rumo que trilhemos, o desvio em que nos propusermos
acompanhar-vos, voltamos sempre, a despeito de tudo, formao da
Natureza, causa causal de quanto existe, e aqui o campo se torna mais vasto
ainda. Os processoS humanos j no embaraam a vista. No extremo de todas
as avenidas, chegamos ao ponto capital e trata-Se, agora, de examinar a
origem mesma da vida na Terra. Estaro os seres vivos encerrados na
superfcie do globo? Teriam a surgido em seis dias, ao toque da vara de um
mgico? Despertaram a sbitas do seio das florestas, da margem dos rios, nos
vales adormecidos?
Que mo teria conduzido o primeiro homem do cu aos bosques do den?
Que mo pudera abrir-Se no ar e soltar a chusma canora de lindas plumagens?
Seriam as foras fsico-qumicas, que, num espasmo fecundo, teriam dado
nascimento aos habitantes de mares e continentes? Ns no encontramos
seres que no tenham nascido de um casal, ou cujo nascimento no se ligue
s leis estabelecidas para a reproduo. Como teriam surgido na Terra as
espcies vegetais e animais? Eis a questo que atualmente nos interessa.
Depois de observar a platia e o comentrio dos espectadores, levantemos o
pano que oculta o verdadeiro cenrio e apreciemos a pea. A Natureza
sempre o maquinista invisvel. Tentemos surpreend-la, na esperana de que
ela no seja bastante atilada para subtrair-se nossa perquisio.
76

2
A ORIGEM DOS SERES
SUMRIO A criao segundo -o Materialismo antigo e o
contemporneo. Histria cientfica das geraes espontneas. De
como a hiptese da gerao espontnea no afeta a personalidade de
Deus. Erro e perigo dos que se permitem intermitir Deus em suas
controvrsias. De como a apario sucessiva das espcies pode
resultar de foras naturais, sem que o atesmo algo possa ganhar com
esta hiptese. A Bblia atia? Origem e transformao dos seres.
Reinos vegetal, animal, humano. Ancianidade do homem. Que
todos os fatos da Geologia, da Zoologia ou da Arqueologia no inquietam
a Teologia natural.

Aos primeiros calores da Primavera os volteis de qualquer espcie


alaram-se no espao, libertos do ovo natal. Nos dias estivais, podemos
surpreender a cigarra, rompendo o frgil casulo, partir, cindir os ares vida de
luz e de alimento. No de outro modo a Terra produziu a raa humana; a onda
e o fogo, encerrados no solo, fermentaram e fizeram crescer, nos lugares
propcios, germens fecundados, cujas razes vivas mergulhavam na terra.
Chegado o tempo da maturidade e rompido o invlucro que os
enclausurava, cada embrio deixou o mago hmido da terra e apoderou-se do
ar e da luz. Para eles se dirigem os poros sinuosos da terra, e, reunidos em
suas veias entreabertas, escorrem ondas de leite. Assim, vemos ainda, depois
da gestao, as mes se repletarem de um leite saboroso, porque os
alimentos, convertidos em suco nutritivo, lhes intumesce o seio. A terra,
portanto, alimentou os seus primeiros filhos, que tiveram no calor as primeiras
vestes, e, por bero, a relva abundante e macia.
Assim como a tenra avezinha, ao nascer, se reveste de plumas ou de
sedosa lanugem, assim a terra jovem se recobre de macia ervagem e flbeis
arbustos. E no tarda, tambm, a conceber as espcies animadas, mediante
combinaes inmeras e variadas: a terra incuba os seus habitantes, que no
desceram dos cus nem emergiram dos abismos tenebrosos. pois, a justo
ttulo de reconhecimento, que se lhe d o nome de me. Tudo o que respira, foi
concebido em seu ventre; e se ainda hoje vemos seres vivos lhe brotarem do
limo, quando, molhado da chuva, ele fermenta luz solar, porque nos
admirarmos maiormente que seres mais numerosos e mais robustos lhe
saissem dos flancos, quando ela, a terra e a essncia etrica, ainda se
incendeiam dos ardores da juventude ? (28)
Assim se exprime o corifeu do velho materialismo. Nisso, ele bem o
intrprete fiel do seu mestre, Epcuro, cujo sistema fsico aqui resumimos em
poucas palavras (29):
fora de percorrerem cleres e ao acaso a imensidade, os tomos se
reuniram e se combinaram. Da, massas ainda informes e inorgnicaS, mas j
apreciveis por sua composio. Com o correr dos tempos, essas massas,
diferentes em peso, foram arrastadas a direes diferentes, ou com velo-
cidades diferentes, umas caindo e subindo outras.
Uma vez existente a gua, em virtude da sua fluidez, encaminhou-se para
os lugares mais baixos, para as cavidades mais prprias a cont-la. Outras
vezes, houve ela mesma de preparar o seu leito. As pedras, os metais, os
77

minerais em geral, nasceram no mago do globo, segundo a espcie de


tomos ou de germes nele encerrados, quando a atmosfera se destacou do
cu. Da, essas colinas, montanhas, acidentes numerosos, que diversificam a
superfcie do solo: montes a prumo, ao lado de

(28) Lucrce De Natura Rerum, parte 5, Edio Pongerville.


(29) Resumo de A. Grandsagne, segundo os trabalhos de Gassend acerca
das descobertas de Herculanum.

vales profundos, de extensos altiplanos cobertos de vegetao multifria, que


lhe so indumenta garrida, quanto para ns a seda, as penas, a l, etc. Resta
explicar o nascimento dos animais. verossmil que, contendo a Terra germes
fresqussimos e adequados gerao, produzisse em sua crosta uma espcie
de bolhas cavas, maneira de teros, e que essas bolhas, em atingindo a
maturidade, rebentassem e dessem luz os incipientes animalzinhos.
Intumesceu-se, ento, a Terra de humores semelhantes e os recm-
nascidos viveram a expensas deste alimento.
Os homens, diz Epicuro, no nasceram de outro modo. Pequenas
vesculas maneira de teros, ligados terra pelas razes, avolumaram-se
batidos pelos raios ardentes do Sol, produziram tenros rebentos e mantiveram
sua vida a expensas do lquido lcteo que a Natureza lhes preparara. Os
homens primrios so o talo da espcie humana, que, depois, se propagou por
vias usuais, at hoje.
Eis, creio, uma hiptese bem simplista. Ela explica, simultneamente,
como o homem contemporneo menor e menos robusto que o primitivo. A
espcie humana nascia, ento, espontaneamente, do solo mesmo da terra e
hoje os homens procedem uns dos outros (30).
O pensamento manifesta-se por entrosagem dos movimentos, que,
desenvolvidos primariamente

(30) A origem do homem e dos animais muito preocupou os


antepassados. Plutarco conta que alguns filsofos ensinavam que tudo
nascia do seio da terra humedecida, cuja superfcie enxutada pelo calor
atmosfrico formara uma crosta, que, rachando-se afinal, franqueava
passagem aos germes. Segundo Diodoro da Siclia e Clius Rhodiginus,
assim pensavam os egpcios. Esta velha nao pretendia ser a mais
antiga do mundo e presumia provar com os ratos e rs, que diziam ver
sair do solo da Tebada quando o Nilo baixava, e que primeira vista se
lhes afiguravam seres semi-organizados. Ovdio assim descreve o
fenmeno: Logo que o Nilo de sete bocas abandona os campos
fertilizados com a inundao e volta a encerrar-se no seu leito normal, o
lodo depositado e dissecado pelo astro do dia produz numerosos
animais, que o lavrador vai encontrando em cada sulco. So seres
incompletos, que comeam o desabrochar, privados, em sua maioria, de
vrios rgos vitais e tendo uma parte do corpo animada e outra formada
de grosseira argila. Assim, dizia ele, saram os homens da prpria terra. A
opinio mais abaixo exposta, (Parte 4) de provir dos peixes o gnero
humano, hiptese das mais antigas. Plutarco e Eusbio nos
transmitiram, a respeito, o pensamento de Anaximandro.
(31) Ver particularmente la Libre Pense e o seu poema De Nature Rerum.
78

numa substncia desprovida de racionalidade, acabam reproduzindo-se


artificial e no espontnea e cegamente.
Os movimentos atmicos foram, indubitvelmente, obra do acaso, sem
contingncia de racionalldade e, nada obstante, desde os primrdios do
mundo, existiam animais que se diriam prottipos raciais.
Uma vez formados esses animais pelos tomos errantes em todas as
direes, a engendrarem movimentos de aproximao, de repulso, de
excluso ou de juno, alguns, apenas, vinham adaptar-se e conjugar-se aos
tomos do animal prottipo, isto , os que com estes se identificavam em
natureza. Os outros, ao contrrio, eram repelidos, por dissmeis dos
constitutivos do animal -
Tudo se explica, portanto, exceto a maneira como, nos primrdios do
mundo, se formaram os prottipos. Isto o que Epicuro no explica, ao menos
com raciocnios claros -
Pois sob os auspcios desta filosofia, que ousam colocar-se os senhores
materialistas do sculo 19 (31).
Graas capciosa linguagem de Lucrcio e doutrina simultneamente
estica e displicente de Epcuro, essa gnese simplista conta sempre muitos
partidrios. E no entanto, apesar de tudo, nada existe de menos cientfico.
Reparai, pela manh, num bando de insetos que voam de um torro de argila
esfarelado! o baro de Munchausen pe a mo num montculo de terra, bem
no centro do campo arroteado, e logo uma ninhada de melros brancos, seguida
de aves outras, pe-se a correr pela jeira em fora. At hoje s sabemos de
algum que haja testemunhado um tal nascimento, de um ser nosso irmo:
Cyrano de Bergerac, quando, de sua viagem ao Sol, realizada aos 30 de
Fevereiro de 1649, no momento de l aportar, houve de parar para tomar
flego em um dos planetides que gravitam em torno do astro-rei (32).
Notemos, todavia, que o materialismo de Lucrcio no to grosseiro qual
o interpretam.
A alma do poeta diviniza as foras da Natureza. DHolbach, ao contrrio,
no tem alma; desdenha a fora, no v seno a matria.
Podem seres vivos nascer espontneamente de elementos qumicos como
o hidrognio, o carbono, o amonaco, a lama, a podrido? Houve quem o
acreditasse por muito tempo, e ainda hoje existe uma escola positiva,
empenhada em demonstrar experimentalmente a veracidade da hiptese.
Ouamos alguns corifeus, antigos e modernos.
Colhamo-los ao acaso. Van Helmont diz: se

(32) Esta aventura merece oferecida aos nossos adversrios, Cyrano


encontra um homenzinho que lhe fala mais ou menos nestes termos:
Reparai, atento, neste solo que pisamos! No h muito, era ele uma
informe e confusa massa, um caos de matria indefinvel, uma pasta
negra e viscosa, da qual o Sol se expulgara. Ora, depois que, pelo vigor
dos seus raios, ele misturou e condensou essas numerosas nuvens de
tomos; depois, digo, que mediante uma longa e poderosa coco
separou, nesta bola, os corpos mais dspares e reuniu os mais smeis, a
massa superaquecida transpirou de tal modo que desencadeou um
dilvio de mais de quarenta dias.
Da mistura dessas torrentes humorais formou-se o mar, como o atesta o
79

sal nele contido, que deve ser um amlgama de suor, de vez que todo o
suor salgado. Retiradas as guas, ficou ao solo uma borra graxenta e
fecunda, na qual, incidindo os raios solares, formou-se uma como ampola
que, devido ao frio, deixou de produzir os germes latentes. Ela houve de
receber, contudo, uma nova coao, que, retificando-a mediante uma
mistura mais perfeita, engendrou a germinao. Mas, o Sol, ainda dessa
vez, lhe recusou o crescimento e foi-lhe preciso uma terceira digesto.
Uma vez aquecida forte e bastantemente, de feio a vencer o frio
ambiente, a ampola rebentou e pariu um homem que retm no fgado
sede da alma vegetativa e regio de incidncia da primeira coco a
faculdade do crescimento. No corao, sede da atividade e local da se-
gunda coco, a inteligncia e o raciocnio.
Assim terminou prossegue Cyrano o seu discurso, mas, depois
de uma confidncia sobre segredos mais ntimos, dos quais retenho uma
parte e de outra no me lembro, disse-me ele que ainda trs semanas
antes, num monte de terra emprenhado pelo Sol, tinha ele mesmo
nascido. Veja este tumor E mostrou-me sobre um montculo algo de
intumescido e semelhante a uma pupila. um nascituro, ou, por melhor
dizer, uma matriz que engendra, h nove meses, um conterrneo, e eu
aqui estou para lhe servir de parteira.
Nisso, calou-se, ao notar que o terreno em torno estremecia, o que o
fz julgar que era chegada a hora do parto.

expremermos uma camisa suja (sic) no orifcio de um vaso que contenha gros
de trigo, este se transformar em ratos adultos ao fim de 21 dias, mais ou
menos. Perfurai um buraco num tijolo, metei nele mangerico pilado e
justaponde ao tijolo outro tijolo, de maneira a vedar completamente o buraco,
exponde ao Sol os dois tijolos, e, no fim de alguns dias, o cheiro do
mangerico, operando como fermento, transformar a erva em legtimos
escorpies. O mesmo alquimista pretendia que a gua da fonte mais pura,
lanada em vaso impregnado do odor de um fermento, corrompe-se e en-
gendra vermes.
Dem-me farinha e tutano de carneiro dizia Needham em o seu Novas
Descobertas Microscpicas e eu vos pagarei com enguias.
Voltaire, a sorrir, respondia-lhe que tambm esperava ver um dia a
fabricao, de homens por esse mesmo processo. Sachs ensina que os escor-
pies so produto da decomposio da lagosta.
Na matria dos corpos mortos e decompostos, dizia o prprio Buffon, as
molculas orgnicas, sempre ativas, trabalham para revolver a matria pu-
trecida e formam uma chusma de corpsculos organizados, dos quais alguns,
como as minhocas, os cogumelos, etc., so assaz volumosos. Todos estes
corpos s vivem por gerao espontnea. Presentemente, o Dr. Cohn, de
Breslau, pretende que a morte da mosca comum, no Outono, ocasionada
pela formao de cogumelos no corpo do inseto. H em tudo isso, sem dvida,
como em tantas outras coisas, que traar um limite a essas faculdades dos
elementos organizados; e ns nos disporamos melhormente a crer na
formao dos cogumelos microscpicos sobre o rgo atrofiado da mosca,
tanto quanto do fcus num pulmo enfermo, ou de mofo num tronco de
madeira, do que acreditar com as boas velhas fiandeiras do cnhamo em nos-
sa infncia, quando nos diziam que a crina arrancada cauda de cavalo
80

branco e atirada a um regato se transformava, dentro de trs dias, numa


enguia branca. Este tambm um absurdo bem cotado em algumas regies do
Este da Frana. Lembra-nos de o haver tentado, ao tempo de Lus Filipe, mas,
como s contvamos seis anos de idade, tambm admissvel que a nossa
cndida ignorncia no nos permitisse um legtimo triunfo.
Por no ter levado a termo final as suas observaes, Arstoto manteve-se
na erronia de que os insetos nascem das folhas verdes, assim como os piolhos
da carne e os peixes do lodo. Muito curioso ver at que ponto Plnio, traduzindo
Arstoto, chega descrio desse nascimento imaginrio. A lagarta, diz, sai de
uma gota de orvalho, cada nos primeiros dias da Primavera e que,
condensada pelo Sol, se reduz ao tamanho de um gro de milho. Assim
elaborada, essa gota, estendendo-se, faz-se pequeno verme (ros porrigitur
vermiculus parvua) que, dentro de trs dias, transforma-se em lagarta. Nada,
porm, ultrapassa a argumentao de Plutarco nas Symposiacas, ou Colquios
Mesa, no intuito de resolver a velha questo aventada por Pitgoras, ou seja:
a prioridade do ovo ou da galinha. Esse discrime d uma idia das opinies
suscitadas na antigidade e agora revividas, sem contudo levar em conta o
ultraje irreparvel dos anos.
Plutarco conta-nos, pois, que to logo props a questo, seu amigo Sila o
advertiu de que, por uma causa to simples, qual uma alavanca, haveriam de
acionar a pesada mquina da conformao do mundo, e, por isso, desistia de o
acompanhar.
Aelevandre, irnico, declara que a questo meramente ociosa e Frmus,
seu parente, tomando a palavra, exclama: dai-me, pois, os tomos de Epcuro,
visto que, se importa presumir que minsculos elementos so os geradores de
grandes corpos, bem provvel que o ovo tenha precedido a galinha, e ainda
porque, tanto quando podemos julgar pelos sentidos, ele o mais simples e ela
o mais complexo.
Em regra, o princpio anterior ao que dele procede. Dizem que as veias e
as artrias so as primeiras partes que se formam no animal. possvel,
tambm, que o ovo tenha existido antes do animal, pela razo de que o
continente precede o contedo. As artes comeam por esboos grosseiros e
informes, que se aperfeioam parcialmente, na forma que mais lhes convm.
Dizia o escultor Policleto nada haver mais difcil na sua arte do que dar sua
obra o ltimo toque de perfeio. de crer, assim, que a Natureza, ao imprimir
matria o movimento inicial, tendo-a encontrado menos dcil, s haja
produzido massas informes, sem linhas definidas, quais so os ovos, e que o
animal no viesse a existir seno depois do aperfeioamento dos primeiros
esboos. A lagarta foi a primeira formao: quando, mais tarde, endurecida e
ressequida, parte-se-lhe o casulo, dele se libra o voltil a que chamamos ninfa.
No caso vertente, do mesmo modo, o ovo preexistiu como matria prima de
toda a produo, pois em toda a metamorfose o ser que muda de estado ,
necessriamente, anterior ao de que toma a forma. Vde como o lquen e o
caruncho se engendram nas folhas e nas madeiras, como produtos da
putrefao, ou da coco das partes hmidas, e ningum negar que esta
humidade no seja anterior aos animais que ela origina e que, naturalmente, o
que origina no seja anterior ao originado.
A prioridade do ovo parecia bem estabelecida com este excelente
palanfrrio, quando um tal Sensio se intrometeu a contraditar. natural diz
ele que o perfeito anteceda ao imperfeito, o completo ao incompleto e o todo
81

parte. Insensato supor que a existncia de uma parte preceda do seu


todo. Assim que, ningum diz: o homem do germe, a galinha do ovo, mas,
o OVO da galinha, o germe do homem, por isso que aqueles so posteriores a
estes; devem-lhes o nascimento e pagam, posteriormente, sua dvida Na-
tureza, pela gerao. At ento, no tm o que convm sua natureza e que
lhes d um desejo e um pendor de produzir um ser semelhante ao que os
originou. Eis, porque, tambm se define o germe uma produo tendente a
reproduzir-se. Ora, ningum deseja o que no existe, ou jamais tenha existido.
Ao demais, vemos que os ovos tm uma substncia cuja natureza e
composio so quase as mesmas do animal, e que s lhes falta os mesmos
vasos e rgos. Da, jamais se haver dito, a qualquer tempo e em parte
alguma, que um ovo, seja qual for, tenha sado da terra. Os prprios poetas
inculcam o que originou os Tindaridas como havendo cados do cu. Hoje, a
terra melhor produz animais perfeitos, com sejam os ratos, no Egito, e as
serpentes, rs, cigarras, noutras regies. Um princpio exterior f-la mais apta
para essa produo. Na Siclia, durante a guerra dos escravos, que derramou
tanto sangue, a grande quantidade de corpos insepultos, putrefazendo-se flor
do solo, produziu um nmero prodigioso de gafanhotos, que, espalhando-se
por toda a ilha, devoraram os trigais. Esses insetos nascem da terra e de terra
se nutrem. A fartura do alimento lhes d a faculdade de produzir, e, uma vez
atraidos pelo gozo de se acasalarem, eles produzem, conforme a sua natureza,
ovos ou animais vivos. Isso prova, claramente, que os animais, a princpio
nascidos da terra, tiveram depois, no seu coito, uma outra via de gerao.
Eis porque, perguntar como poderia haver galinhas antes que houvesse
ovos formados, equivale a perguntar como existiram homens e mulheres, antes
dos rgos destinados sua reproduo. Eles so o resultado de certas
coces que alteram a natureza dos alimentos, no sendo possvel que, antes
de nascido o animal, algo nele exista, capaz de justificar uma superabundncia
de nutrio. Acrescento eu que o germe, a certos respeitos, um princpio; ao
passo que o ovo no tem essa propriedade, visto no ser o primeiro a existir. E,
to pouco um todo, pois no possui toda a perfeio. Eis porque, no
dizemos que o animal no tivesse princpio, mas que tem um princpio de sua
produo, que imprime matria a sua primeira transformao e lhe comunica
uma faculdade generativa.
O ovo, ao invs, uma superfectao, que, qual o leite e o sangue,
sobrevm ao animal depois que ele faz a coco dos alimentos. Nunca se viu
ovo sado do lodo, pois s se forma no animal. Entretanto, no lodo nasce uma
infinidade de animais. De parte outros exemplos, considere-se essa quantidade
de enguias apanhadas todos os dias, e entre as quais nenhuma apresentar
um germe ou um ovo. Esgote-se um poo, retire-se-lhe o lodo, e tanto que o
encham novamente dgua, l se engendraro de novo enguias. Portanto, tudo
o que depende de outro elemento para que possa existir, deve ser posterior a
esse elemento e, ao contrrio, tudo o que existe sem dependncia de outrem,
tem prioridade de gerao, pois disto que se trata. Dessarte, podemos crer
que a primeira produo vem da terra, consequente propriedade que tem ela,
a terra, de gerar por si mesma, sem necessidade de rgos e vasos que a
Natureza imaginou mais tarde, a fim de prover a fraqueza dos seres
geradores.
Estes raciocnios, que hoje nos causam pasmo, no so exclusivos de
Plutarco. Todos os autores antigos so concordes neste ponto, e no raro en-
82

contramos os que levam a sua ousadia a representar Minerva batendo o p


para extrair do solo parelhas de cavalos e rebanhos. O relato de Verguio nas
Gergicaa, a respeito de Aristeu, no fantasia potica, expresso geral da
crena de que as abelhas nasciam da carne putrefata. O pastor Aristeu perdera
as suas queridas abelhas, invoca sua divina me, e consegue criar novas col-
meias, imolando novilhos:

Hic verum (subitum ac dictum mirabile monstrum)


Auspcunt liquefacta boum per viscera toto
Stridere apes utero, etc. (33)

Esta velha pendncia das geraes equvocas foi h pouco resumida por
Milne-Edwards sob aspecto assaz interessante. Depois de mostrar que

(33) Ela diz: O pastor vai ento em seus grandes rebanhos. quatro touros
viris imolar prestamente; e outras tantas vitelas, soberbas, que a relva,
mansamente, no campo esmaltado, pastavam. E to logo no cu reponta
a luz da aurora, ao inditoso Orfeu oferta o seu tributo e volta,
esperanoso, floresta profunda. Prodgio! o sangue, ento, com o seu
calor, fecunda Nos flancos animais, um numeroso enxame! Alados
turbilhes a jorrar das entranhas, Como nuvens se espalham a zumbir
pelos ares, E no tronco vizinho em cachos se penduram.

no reino mineral os corpos se formam por simples aderncia molecular:


Todos sabem, diz ele (34) que, quando se trata da formao de uma
rvore, de um cavalo, a matria que constitui essa rvore, esse cavalo, seria
impotente para integrar esse vegetal, esse animal, desde que no fsse atuada
por um corpo j vivente um animal da espcie do que vai nascer, ou um
vegetal da mesma natureza. Assim, na rvore como no cavalo, esta
propriedade particular, a que chamamos vida, transmite-se, evidentemente. O
novo ser engendrado por um parente, que produz um ser semelhante.
H, portanto, uma espcie de sucesso, de transmisso de fora vital,
ininterrupta, entre os indivduos, que formam, no espao e no tempo, uma
cadeia de que se compe cada espcie.
Eis, por conseguinte, uma diferena fundamental, essencial, entre os
corpos brutos e os corpos vivos, O que dizemos da rvore e do cavalo
aplicvel a todos os vegetais e animais conhecidos. Todavia, em dadas
circunstncias, essa espcie de filiao no fcil de verificar e tem escapado
a observadores menos atentos e at, por vezes, aos mais hbeis. Assim,
quando o cadver de qualquer animal entregue influncia atmosfrica do
ar, da humidade, numa temperatura conveniente,
no Estio por exemplo esse cadver sofre uma alterao particular, a que
chamamos putrefao. Em tal caso, vemos manifestarem-se no mago dessa
substncia corpos vermiformes, gozando de todas as propriedades peculiares
aos seres animados e, portanto, animais. Milhes de seres vivos nascem desse
cadver, ao passo que, enquanto vivo o animal, seu corpo nunca apresentou
algo de anlogo.
primeira vista pelo menos, o que parece interromper-se a filiao
geradora. comum
83

(34) Curso da Faculdade de Cincias, V. A. Revista dos Cursos


Cientficos, 5 de Dezembro de 1863.

ver-se nos campos poas dgua, formadas pela chva, logo se coalharem de
insetos, de alguns crustceos.
Outras vezes vemos, tambm, na vizinhana de stios pantanosos,
povoar-se o solo de pequenos rpteis. Na maioria destes casos difcil, pri-
meira vista, explicar por via de gerao normal o surgimento desses novos
seres. To grandes se afiguraram essas dificuldades aos naturalistas de
antanho, que houveram de recorrer a uma hiptese particular para explicar a
origem desses animais. Assim, julgaram indispensvel admitir que a Natureza
no segue o mesmo processo, quando se trata de animais superiores, quais os
que emprega na constituio de espcies inferiores, como os insetos,
morcegos, ratos e mesmo alguns peixes. Entre os filsofos antigos o papel da
gerao espontnea era considerado importantssimo. Os naturalistas e fi-
lsofos da Idade Mdia seguiram de olhos fechados os seus predecessores, e
da resultou que, durante catorze sculos, uma tal opinio imperou inconteste
nas escolas. Admitia-se, como coisa bem comprovada, que os animais
nasciam de duas formas: ora, maneira dos corpos brutos, ora por
transmisso da fora vital, que sabemos existente nos animais que se
engendram sucessivamente, devendo aos progenitores a existncia, a forma, o
tipo. Mas, na poca da Renascena, houve uma grande reviravolta nos
espritos. No sculo 17 constituiu-se em Florena uma sociedade de fsicos, de
naturalistas e mdicos, com o fim de solucionar algumas questes por meios
experimentais. Essa agremiao denominou-se del cimente, isto da
experincia. Um de seus membros, Redi, quis submeter a investigaes
positivas a teoria assaz generalizada da gerao espontnea. Quis saber se os
seres novos eram engendrados sem progenitura de corpos vivos, ou se eram
produto de organizao espontnea da matria morta; verificar, em suma, se a
hiptese dos antigos tinha visos de verdade. Tentou, ento, a produo desses
corpos vermiformes vulgarmente chamados minhoca, que, de modo algum,
pertencem classe dos vermes e so larvas de insetos. Sabe-se que, nas
matrias animais em putrefao, essas larvas logo se revelam temperatura
mais elevada, e isso foi o que observou o naturalista florentino. Notou que
algumas moscas eram atradas de longe pelo cheiro da carne corrompida, ade-
javam-lhe em torno, nela pousavam amide e, contudo, no pareciam
alimentar-se com essa matria. Conjeturou, ento, que os vermes havidos
como espontnea e exclusivamente formados pela matria.. poderiam ser a
prole das ditas moscas. E notou, ainda mais, que esses presumidos vermes,
desenvolvendo, transformavam-se em moscas. So pois, na verdade, filhotes
de mosca. Essa verdade no podia satisfazer ao esprito do naturalista.
Colocou, ento, a carnia em vasos diferentes, uns abertos e outros cobertos
de papel crivado de orifcios impenetrveis s moscas, mas arejveis. Assim
viu que as moscas acorriam procurando insinuar o ventre nos orifcios do papel
e que, neste caso, no se produziu um s corpo vermiforme. Noutra ex-
perincia, utilizou um pano com alguns buraquinhos acessveis operao das
moscas e viu desenvolver-se uma certa quantidade de vulos na carne
apodrecida.
A presena de seres vivos no interior de um corpo ou de uma fruta, tanto
quanto nas regies profundas do cadver animal, era igualmente atribuida
84

gerao espontnea. Supunha-se que matrias orgnicas em putrefao nos


intestinos eram a origem dos vermes.
As observaes de Vallisniri e outros fisiologistas da poca, com frutos e
galhos, desmascararam essa crena. Reconheceu-se que todos esses
parasitas no passavam de vulos depositados por insetos.
O mesmo se verificou com os infusrios, animlculos que parece
formarem-se de elementos em dissoluo ngua. Certa feita, Leuwenhoeck
examinou ao microscpio a gua da chuva cada na sua janela e exposta ao ar
por algum tempo: a princpio, a gua lhe pareceu pura, mas examinando-a ao
fim de alguns dias, notou incalculvel quantidade de pequeninos seres, de uma
tenuidade extrema, a moverem-se vivaces e com as caractersticas de
verdadeiros animais. Tal descoberta teve grande repercusso e foi confirmada
por outros observadores. Leuwenhoeck constatou que, todas as vezes que
expunha ao ar um pouco dgua contendo feno, papel e matrias orgnicas
quaisquer, surgia um turbilho de pequenssimos seres de animalidade bem
caracterizada. Para explicar essa nova populao, importava coligir que esses
animlculos, provindos de seres preexistentes, eram carreados pelo ar
atmosfrico e depositados em germe, a menos que admitissem a hiptese dos
antigos, da gerao espontnea. A primeira teoria ressaltou, em geral, das
observaes mais completas e rigorosas.
Da, para c, durante o ltimo sculo e no transcurso do atual, a tese da
gerao espontnea foi intercorrentemente retomada e interrompida: retomada
a propsito de novas descobertas microscpicas, e interrompida quando as
experincias atestavam a origem animal ou vegetal dos germes
desabrochados. Na hora atual a controvrsia ressurge apaixonadamente,
tratada por diversos experimentalistas, frente dos quais citaremos Pouchet e
Pasteur, o primeiro pr, e o segundo contra. Mas, ei-la j de novo suspensa e
por um motivo que, diga-se, no deixar de parecer pueril para os nossos
descendentes. o caso que os contendores de ambos os campos no
conseguem fazer-se entendidos, com o se reprocharem reciprocamente, e ao
mesmo ttulo de legitimidade, de estar combatendo no vcuo.
As experincias realizadas nestes ltimos anos e que recuaram a questo,
sem resolv-la, podem comparar-se s precedentes, j pela forma, j pelos
resultados colhidos. Sucintamente, eis aqui uma dessas experincias:
Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito delgadas e achatadas
diz o heterogenista Joly um pouco dgua, um pouco de ar e alguns
fragmentos de tecido vegeto-celular.
Fechemos a fogo a extremidade do tubo e observemos o que se vai
passar. Em primeiro lugar, veremos formar-se um amlgama de finas
granulaes, provemente, sem dvida, do tecido vegetal j em desorganizao.
Pouco a pouco, nas bordas do amlgama granuloso, destacar-se-o pequenas
excrescncias de transparncia perfeita, mas, ainda inertes. o bacterum
terma em vias de formao. Esperemos ainda trs ou quatro horas e j os
animlculos livres se agitaro visveis, como se ensaiassem uma existncia;
outros viro juntar-se-lhes e bem depressa o nmero ser tal que no podereis
cont-los. Aps 6 horas de observao contnua, vossos olhos recusaro
obedecer-vos, estareis fatigado como aconteceu a Mantegazza, mas, tanto
quanto ele, maravilhado de haver surpreendido a vida no seu bero.
Qual a origem desses seres vivos, articulados pea a pea sobre essa
matria orgnica, sem filiao de progenitura? Os adversrios respondem que
85

o ar est povoado por mirades de germes em suspenso e que destes germes


provm aqueles seres. Antes que o demonstrem, vo eles ao cume do
Montanvert, fervem as substncias orgnicas e parece que a dita gerao
espontnea no mais se produz.
Eis o em que se resume o debate. Para ns, sem prevenes contra ou a
favor, pensamos haver um fato no qual no se h pensado bastante, nem
talvez de modo algum, e que nos parece digno de representar um papel nesse
drama de microscopia.
A vida est universalmente difundida por toda a Natureza, a Terra nfora
assaz exgua para conter a vida, que desborda em qualquer parte e, no
contente de repletar guas e terras, inorgnica, ela se acumula em si mesma,
vive sua prpria custa, cobre de parasitas animais e plantas, desdobra
florestas no dorso de um elefante e faz, de uma simples folha verde, o pascigo
de rebanhos inumerveis. Ora, essa vida mltipla, insacivel, inumervel,
povoa de animlculos cada espcie de seres e de substncias. Quando, pois,
vemos os saltes crescerem no interior do queijo; vermes aflorarem do
cadver; infusrios flutuarem num lquido, no se trataria de animlculos j
existentes em germe num estado inferior, no leite, no animal vivo, no lquido, e
que se metamorfoseiam por influncia das condies novas em que se
encontram colocados? Sabemos, porventura, quantas espcies de vegetais e
animais vivem em nosso corpo?
O ovo da tnia semeia-se em profuso; nos tecidos do porco e do carneiro
ele o humlimo cisticerco, e s no intestino comea a desenvolver seus
inumerveis anis, vivendo nas duas hospedarias, isto , no animal e no
homem. Ns o absorvemos na costeleta de porco ou na fatia de carneiro, e dai
por diante ela a tnis se instalar em nossa casa, sem outros cuidados
que os de primeiro inquilino.
As moscas da semente de couve e da farinha fazem morada em nosso
estmago. Em sua maioria, estes familiares da nossa intimidade so ino-
fensivos, mas alguns h, prfidos, que acabam matando o seu benfeitor. Quem
no acompanhou a discusso concernente triquinose? Desde a descoberta
do microscpio, quantos parasitas no se ho encontrado em nosso sangue,
em nossa carne, em nosso pulmo; nos dentes, nos olhos, nas papuas nasais?
Nutrimos carnvoros e herbvoros; temos peixes dgua doce a circular em
nossas veias, e peixes dgua salgada a nadarem no oceano de nossas
artrias. H uma espcie de fcus que vegeta nos pulmes tuberculosos. As
excrees da lngua de um febrento compe-se de multido de infusrios. Um
mdico clebre, nosso amigo, tem observado muitas vezes erupes bruscas
de milhares de piolhos em doentes atacados de tifo. (A extraordinria
prolificidade destes pteros bastaria para explicar essa multiplicao.) Os
colepteros no esperam nossa morte para abandonar o seu domiclio habitual.
Imperceptveis insetos penetram-nos os pulmes e a proliferam, de gerao
em gerao. J se encontrou no esfago dos bois famlias inteiras de
sanguessugas, indubitavelmente engolidas em estado microscpico e l
criando o seu habitat. O estmago do cavalo constitui ambiente atmosfrico
insalubre, adequado vida das ostras. Quantas espcies no vivem nos seres
animados, sem que estes os percebam, isto sem falarmos dos parasitas
externos, quais a pulga, o piolho. o percevejo, o sarcopto, etc.? Disse um
filsofo que todas as partes de um ser vivo so individualmente viventes, e que
j ousada temeridade enxergar nos animais superiores um edifcio celular
86

habitado por multido inconcebvel de animais elementares. Ora, assim sendo,


tudo vida na Natureza. No somente no ar como nas guas, corpsculos
flutuantes, elementos orgnicos e inorgnicos so portadores de uma vida
invisvel, espcies que experimentam trs fases comuns ao mundo dos insetos,
a revelarem-se sob uma ou outra dessas metamorfoses, conforme as
condies trmicas de calor e humidade que as envolvam.
Encaradas sob este aspecto, as geraes espontneas deixariam de ter
seu verdadeiro nome, deveriam somente nos representar uma modalidade da
vida universal, que palpita em cada tomo de matria. E esta maneira de
prismar a questo tanto mais fundada quanto cada espcie surge e se
mantm constante, em relao substncia particular que parece pertencer-
lhe. O infusrio do feno no se encontra na sua fervura e o fermento do vinho
no o mesmo que o do queijo.
Mas, seja como for, o mistrio desvendado sob a aparncia da gerao
espontnea est longe de aclarar-se. Qualquer dia e certo sem muita delonga,
ho-de retomar o debate no ponto em que Lquesis acaba de o encerrar.
Quanto ao mais, no p em que est a questo, o que diz com a criao da vida
conserva a sua velha independncia, indene das armas da Heterogenia,
quanto da Panspermia. A luta cessou mngua de recursos. Atualmente
impossvel saber se o ar mais puro, colhido no cume das montanhas nevadas,
no contm germes. Impossvel, igualmente, saber se esses germes no
resistem a temperaturas de mais de cem graus. A ns nos pareceu que os
experimentadores teriam o insucesso (o que de resto natural), e no
operavam com o rigor que teriam se fssem estrangeiros ou adversrios. De
qualquer forma, porm, o problema continuou insolvel. O que mais vivamente
nos impressionou na justa foi a idia preconcebida de ambos os lados, alis,
mais de um que do outro. Pretendia-se encarar de um modo absoluto a
questo, como de natureza teolgica, quando a verdade que o resultado das
experincias em nada afeta a Teologia. uma declarao que vai talvez
surpreender alguns leitores. Entretanto, se profundarmos o assunto,
haveremos de convir que a pecha de atesmo lanada em rosto aos partidrios
da gerao espontnea no cabe aos que, a exemplo ao Sr. Pouchet, no
interpretam teolgicamente tais experincias; e os que assim no procdem,
incidem na maior das vanidades, quando concluem pela inexistncia de Deus
(35).

(35) Andaram mal em deslocar, assim, a questo: O Sr. Pasteur foi ao


ponto de, em plena Sorbonne, trovejar as seguintes acusaes: Que
triunfo para o Materialismo se ele pudesse protestar que se apia sobre o
fato da Matria, organizando-se por si mesma! A Matria, que j em si e de
si contm todas as foras conhecidas! Ah! se pudssemos juntar-lhe
ainda essa outra fora chamada vida e a vida varivel em suas
manifestaes, de conformidade com as nossas experincias! Que pode
haver de mais natural que a deificao dessa matria? Para que recorrer
idia de uma criao primordial, diante de cujo mistrio fora inclinar-
nos?
O Sr. Pouchet, alarmado com o libelo, replicou judicioso:
Afivelar a mscara da Religio, para vencer adversrios, fato
inslito e inaudito, quanto imprprio de ctedras cientficas. Atribuir aos
adversrios opinies que eles sabidamente no possuem Indignidade.
87

Houve quem dissesse que era em conseqncia de uma iluso teolgica


desta espcie que a Academia recusava a gerao espontnea. Corre que
h uns 60 anos Cuvier, secretrio da Universidade, interpelado por um tal
se acreditava na gerao espontnea, respondeu: O imperador no
quer. Oh! libertas libertatum!

Acreditar que seres vivos, vegetais ou animais, possam nascer


espontneamente da combinao de certos elementos, no maior sacrilgio
que acreditar os planetas destacados do Sol, ou que a galga seja prima do co
dos Pireneus, O Ser Supremo nada tem a ver com essas interpretaes
superficiais, que constituem, por assim dizer, o campo de carnagem dos
mticos pensadores.
Os micrgrafos mtuamente desacreditaram a sua causa, fazendo baixar
s suas retortas as potncias criadoras. Acreditaro eles que, dado pudesse a
matria inerte tornar-se semi-organizada, e depois organizada, sob a influncia
de tais e quais foras, teriam suprimido a causa soberana dos domnios da
Natureza? Absolutamente. O que tais experincias inculcam, e eles em sua
maioria ignoram, o protesto contra o Deus humano e a elevao do esprito a
concepes mais puras e mais grandiosas, do misterioso Criador.
Ser rebaixar a idia de Deus o considerar o Universo um como gigantesco
desdobramento de uma obra nica, cujas modalidades se manifestam
multifrias, e cujos poderes se traduzem em foras particulares, distintas? A
substncia primitiva ocupa o espao ilimitado. O plano divino est em que esta
substncia seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a
inteligncia hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a eletricidade, o
magnetismo, a atrao, o movimento sob modalidades desconhecidas
percorrem, atravessam essa substncia primordial, como o vento da Grcia,
que, ao tempo de Pan, timbrava as harpas elias no mbito da noite. Que mo
empunha o arco e preludia o mais magnificente dos coros? No pode a
inteligncia humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longnquo concerto da
Criao.
No amanhecer da Natureza terrestre, j os sis esplendiam, de h muito,
na amplido dos cus, a gravitarem harmnicos em suas rbitas, sob a re-
gncia da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da
Terra. Solides ocenicas, tempestades gneas, rupturas formidveis de guas
e nuvens viram chegar-lhes, alfim, uma paz desconhecida. Raios de ouro
atravessaram as nuvens; um cu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de
prpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Ento, j no eram dias e anos a contar,
pois perodos imensos, incalculveis, j lhe haviam coberto o bero. Os astros
so jovens, ainda quando mirades de gestaes tenham sucumbido. As ilhas
surgiram, ento, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias
o seu manto virginal. Muito tempo depois, das galhadas vindes rebentaram
flores, de cujos lbios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo
profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hspedes fabulosos
dos mares primitivos cruzaram-se no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra
se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e
sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a fora
orgnica, que hoje se transmite de gerao a gerao, tenha aparecido como
uma resultante natural e inevitvel das condies fecundas em que se achava
a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras clulas orgnicas
88

diversamente constitudas, formando tipos primordiais distintos, ainda que sim-


ples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades;
suponhamos, enfim, que todas as espcies vegetais e animais, inclusive a
humana, sejam o resultado de transformaes lentas, operadas sob condies
progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nu-
lificar a necessidade dum criador e organizador imanente? Quem deu essas
leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu Na-
tureza essa tendncia perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos
materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a
arquitetura desses corpos animados, desses edifcios maravilhosos, nos quais
todos os rgos tendem a um mesmo fim? Quem presidiu conservao dos
indivduos e das espcies na trama inimitvel dos tecidos, dos arcabouos, dos
mecanismos pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, en-
fim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo
com o seu papel no cenculo do mundo? Numa palavra: se a fora vital
uma fora da mesma natureza das foras moleculares, insistamos no
perguntar: quem o seu autor? Seria por no haver esse autor fabricado
tudo com as prprias mos, que havereis de o negar?
De boa f, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra, palavra a
palavra, esta obra e envi-la Livraria Acadmica, que a confiou a um
tipgrafo; o qual, por sua vez, entregou-a ao paginador, que, por sua vez, a
confiou aos contra-mestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a
corrigir provas sem falarmos na escolha do papel, do formato, nmero de
pginas, encadernao, tudo enfim que representa a fatura de um livro;
supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trmites,
deixasse eu de ser o seu legtimo autor, bastando apenas quer-lo para que o
plano instantneamente se completasse? Acreditais que, por haver
simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a idia expressa
em tinta, papel, chumbo; agentes inertes e cegos, atuados sob a minha
vigilncia constante se materializou em parte, to invisvelmente quanto me
eclodiu do crebro, me tenha destitudo de legtima autoria desta obra? Por
mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito s com o poder evitar a
reviso das provas, que, j o dizia Balzac, o suplcio infernal dos escritores. E
se algum pndego de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que meu livro
se fizera por si mesmo, eu haveria de rir vontade, e no deixaria de
interessar-me por um to precioso privilgio.
Fsse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu, e creio
que faria coisa assim como comparar uma boneca mecnica Venus de Milus,
viva, ou, ento, as rodas do relgio apresentado a Carlos Magno pelo califa
Haron-al-Raschid, ao mecanismo do sistema universal.
Todavia, no sereis vs quem h-de elevar meu trabalho s alturas da
Criao natural. Se a bonequinha mais insignificante e o mecanismo mais
tosco revelam a Voltaire a existncia de um ou de vrios fabricantes, a que se
reduz a negao dos que recusam identificar um arquiteto na sublimada
harmonia do edifcio csmico?
Assim que, seja qual for o crculo arbitrrio, imaginado em torno da ao
sensvel do Criador e mediante o qual pretendamos limitar a sua presena, a
idia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular sutileza. Essa
propriedade particular da idia do ser incriado manifesta-se em cada concluso
do nosso arrazoado!
89

Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um telogo anglicano


incumbido de ajeitar as coisas e manter em perptuo acordo a conscincia do
naturalista eminente com as pretendidas conseqncias da sua teoria da
seleo natural. De resto, o tradutor feminino da obra, teve o cuidado de nos
advertir que, em vo, protesta o autor no ser o seu sistema em nada contrrio
idia de divindade. Pelo que nos toca, com ntima satisfao que aqui
juntamos s nossas convices pessoais as do autor da Origem das Espcies:
No vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os
sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto so
inconscientes essas impresses, basta lembrar que a maior das descobertas
humanas a da lei de gravitao foi hostilizada pelo prprio Leibnitz como
subversiva da religio natural. Notvel autor sacro escreveu-me, em tempo, ter
chegado gradativamente a convencer-se de que a criao divina das formas
simples, originais, capazes de por si evoluirem e transformarem-se em formas
teis, era concepo mais justa e compatvel com a majestade do Supremo
Ser, do que presumir a necessidade de um novo ato criador, a fim de encher os
vcuos causados pelo funcionamento das suas prprias leis. Autores
eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hiptese da criao
independente, de cada espcie. A meu ver, o que conhecemos das leis im-
postas matria, pelo Criador, est mais de acordo com a formao e extino
dos seres presentes e passados por causas secundrias, semelhantes s que
determinam o nascimento e a morte dos indivduos. Quando encaro todos os
seres no como criaes especiais, mas como descendentes em linha direta
de seres que viveram anteriormente aos depsitos do sistema siluriano, eles
me parecem enobrecidos.
Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:
Que interesse nos desperta o espetculo de uma praia coberta de
vegetao, pssaros cantando, insetos voejando, aneldeos ou larvas
rastejando no solo hmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas
com tanto cuidado, pacincia, habilidade e dependentes umas de outras por
uma srie de relaes complicadas, foram todas produzidas por leis de uma
contnua atividade em torno de ns! Essas leis, tomadas em seu mais lato
sentido, enumeramo-las aqui: de crescimento e reproduo; de
hereditariedade, quase implcita nas precedentes; de variabilidade sob a ao
direta ou indireta das condies exteriores da vida, e do uso ou da falta de
exerccio dos rgos; da multiplicao das espcies em sentido geomtrico, a
produzir a concorrncia vital e a eleio natural e, da, a divergncia de
caracteres e extino das formas especficas.
assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais
admirvel dos efeitos que possamos conceber: a formao lenta dos seres
superiores. No encarar a vida e suas potncias animando originriamente
algumas ou uma nica forma simples, ao influxo do Criador, tambm h
grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus crculos
perptuos, de acordo com as leis fixas da gravitao, formas inumerveis, cada
vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolvero,
mediante uma evoluo sem fim (36).
Declaraes interessantes, que importa registar, para op-las aos nossos
materialistas.
Pretendem estes que a doutrina da gerao espontnea, sustentada pelo
Sr. Pouchet e a da origem das espcies, amparada pelo Sr. Darwin, destrem,
90

ambas, a idia de Deus, e eis que, nem um nem outro admite essa acusao e
protestam contra a iluso dos nossos adversrios. Nisto, pois, como em tudo o
mais, so eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como
novos dados, este duplo e valioso fato. Em primeiro lugar, os materialistas no
tm o direito de se apoiarem na gerao espontnea para concluir pela no
existncia de Deus: 1 porque essa gerao no est provada, e 2
porque, se o estivera, no acarretaria uma tal consequncia. Em segundo
lugar,

(36) Da Origem das Espcies. ltimas notas.

no tm o direito de afeioar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo


das espcies, j porque tal sistema no est provado, e j porque ele no afeta
a questo dominante das origens da vida.
Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores so formados
por gerao espontnea, no mago da matria inorgnica, haveria grandes
probabilidades para crer que assim sucedesse, e com mais forte razo, com a
origem das espcies. Os partidrios das transformaes especficas chegaram
mesmo a apoiar-se na doutrina das geraes espontneas para explicar a
existncia, ainda hoje, de inmeras formas inferiores, apesar da tendncia das
espcies primitivas para se aperfeioarem. Por isso, admitem que a Criao
no completou a sua tarefa e ainda hoje se verifica nesses extremos. Era a
opinio de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento atual no
compartilha tais idias, e nem mesmo acredita na gerao espontnea. A
seleo natural diz Darwin no afeta nenhuma lei necessria e universal
de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer
variao que se apresenta, quando vantajosa espcie ou aos seus represen-
tantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer . declara ele mais alm
que a Cincia em seu estado atual no admite, em geral, que seres vivos,
ainda hoje, se elaborem no seio da matria inorgnica.
Vale notar que no so os sbios, nem mesmo os experimentadores, que
proclamam as doutrinas por ns combatidas e sim pretensos filsofos, que,
apoderando-se dos estudos cientficos daqueles, querem, a toda fora, tirar
concluses repudiadas pelos prprios cientistas. Temos o dever de desmasca-
rar-lhes o jogo e demonstrar com a confisso dos prprios experimentadores
ilustres, que, se o sistema materialista se obstina ingnuamente a exibi-los de
pblico, assentados no seu palco teatral, no passa isso de mero efeito
fantasmagrico, pura iluso tica.
Est neste caso um qumico ilustre, o Sr. Fremy, que pensou ter notado
corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-
organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-
bandeira do materialismo para a hiptese da gerao espontnea. Pois
vejamos o que disse este qumico no Instituto:
Precisarei dizer que recuso, sem hesitao, a idia de gerao
espontnea, tomada no sentido de produo de um ser organizado, por mais
simples que seja, com elementos que no possuem a fora vital. A sntese
qumica permite, sem dvida, reproduzir grande nmero de princpios imediatos
de origem vegetal ou animal, mas a organizao ope, a meu ver, uma barreira
intransponvel s reprodues sintticas. Ao lado dos princpios imediatos,
definidos, que a sntese pode formar, h substncias outras menos estveis
91

que as precedentes, mas tambm muito mais complexas quanto sua


constituio e que podem ser designadas sob o ttulo genrico de corpos semi-
organizados.
Esses corpos apresentam-se em conexo com a organizao, com a
formao dos tecidos, com a produo dos fermentos e a putrefao, quase no
mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar
sinais de vegetao, para germinar logo que submetida s influncias do ar, do
calor e da humidade.
Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado de
imobilidade orgnica durante muito tempo, mas tambm podem sair desse
estado custa da prpria substncia, sob os elementos de organizao, desde
que as circunstncias favoream o desenvolvimento orgnico.
Na atualidade no se pode, portanto, cientificamente, depor a pr nem
contra a gerao espontnea. Esta indeciso forada longe est de esclarecer
a questo da gerao primitiva. O mistrio permanece to profundo como ao
tempo de Pitgoras. Existem seres vivos na Terra, eis o fato. De onde vm
eles? Conhecemos astrlogos (ainda os h) que escreveram grandes
calhamaos para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros
planetas, na asa de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo
aerlito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado
superfcie do orbe terrestre pela fecundao de eflvios planetrios e estelares.
Isso, porm, romantismo. De onde, pois, vm os seres? Responder-nos-o
que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se dificuldade teria contra
si a agravante da falsidade, de vez que as camadas geolgicas nos
apresentam, em fases regressivas, as pocas em que surgiram diferentes
espcies. Se no existe ser orgnico algum sem filiao, quem formou o
primeiro casal de cada espcie? A Bblia responde que foi Deus.
Perfeitamente, mas.
como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: Deus fala?
objetam os gracejadores, lembrando-se de que o som no se propaga no
vcuo... Sbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros
revelados nada tm de explcitos e podemos interpret-los a favor da gerao
espontnea (em que pese aos senhores telogos), tanto como em sentido
contrrio: Deus diz: Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente
e rvores que dem fruto, cada qual da sua espcie, e que encerrem consigo a
sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se faz. A terra, portanto,
produziu a erva contendo a semente de sua espcie, bem assim as rvores,
com as suas sementes peculiares espcie. E Deus viu que isso era bom.
E da noite da manh surgiu o terceiro dia. Disse Deus, ento: Que as
guas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da
terra e sob o firmamento do cu. E os abenoou, dizendo: Crescei e multiplicai,
povoai as guas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.
E da noite e da manh surgiu o quinto dia. Deus disse, ento: Que a terra
produza animais vivos, cada qual na sua espcie, os domsticos, os rpteis e
as feras bravias. E assim foi feito (37).
A temos o que muito se assemelha gerao espontnea. De resto, os
Santos Padres professaram essa doutrina. A de Humboldt achou muito curioso
que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, aps o dilvio, no
se mostrasse muito longe de recorrer hiptese de uma gerao espontnea.
(Generatio aequivoca apontanea atst primaria.) Se os anjos ou os caadores
92

do continente diz esse Pai da Igreja no transportaram animais a essas


ilhas afastadas, fora admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste
caso, pergunta-se: porque encerrar na Arca animais de toda espcie? Dois
sculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compndio de Trogue-
Pompia, j estabelecida a propsito da dissecao primitiva do mundo antigo,
do planalto asitico, analogia com a gerao espontnea ou, seja, uma
conexidade semelhante que se depara na teoria de Linneu, acerca do
Paraso terreal, com as investigaes do sculo 18 sobre a Atlntida fabulosa.
Quanto ao mais, em que pese ignidade dos seus discursos, estes
Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorn-
cia e indeciso absolutas, no que concerne origem da vida. Em vo lanam
sobre o mistrio o vu dos talvez; em vo se entretm a imaginar mil
metamorfoses.
Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo no to
claro quanto o supem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam
perceber confisses que nos permitimos aqui

(37) Gnese.

glosar para edificao do auditrio. Enigma insolvel diz B. Cotta que


no podemos deixar de atribuir potncia imperscrutvel de um Criador, eis o
que se nos afigura sempre a origem da matria, bem como o nascimento dos
seres orgnicos. Eis uma confisso digna de um espiritualista. Bchner, por
outro lado, diz: preciso atribuir gerao espontnea um papel mais im-
portante nos tempos primitivos em relao aos atuais, visto no se poder negar
que ela tenha engendrado, ento, organismos mais perfeitos do que hoje. E
acrescenta logo: Verdade que nos faltam provas e mesmo conjeturas
plausveis dos pormenores desses espcimes, o que estamos longe de negar.
E, voltando idia dominante, declara imediatamente que seja qual for a
nossa ignorncia, devemos dizer convictamente que a criao orgnica pode e
deve ter ocorrido sem interveno de qualquer fora exterior.
Carl Vogt, a exemplo dos pr-citados, reconhece que as foras fsico-
qumicas conhecidas no bastam, s por si, para explicar a origem dos or-
ganismos. Todo ser vivo, vegetal ou animal, tem sua origem essencial na clula
orgnica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem
essencial foi criada, sem sabermos como. S depois dessa premissa admitida
que comeam as demonstraes fsico-qumicas. Se admitirmos que isso
tivesse sucedido uma nica vez diz o autor das Lies sobre o Homem
mediante ao simultnea de fatores diversos, que no conhecemos, lcito
concluir que houvesse podido formar-se uma clula orgnica a expensas dos
elementos qumicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificao
devesse determinar imediata modificao no objeto produzido, isto , na clula.
Mas, como no podemos admitir que, sobre toda a superfcie terrestre, as
mesmas causas tenham atuado e ainda atuem nas mesmas condies e com a
mesma energia, na criao da clula primitiva; e que, por outro lado, a criao
orgnica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessAriamente,
que as primitivas clulas geradoras de organismos deviam ter aptides de
desenvolvimento diferentes.
Wirchow no explica melhor a questo de origem. Em certa fase de
desenvolvimento da Terra diz sobrevieram condies anormais, sob as
93

quais, entrando em novas combinaes, os elementos recebiam o movimento


vital, donde as condies ordinrias se tornaram vtais.
Quanto a Carlos Darwin, em vo temos rebuscado a sua opinio, mesmo
quanto origem das espcies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade
possvel dum certo nmero de tipos primitivos, e uma nota no mnimo
singular, que, em obra to volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, no
se trate absolutamente dessa origem!
O problema obscuro: a distncia do nada a alguma coisa maior que de
alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem nossas crenas
ntimas, espiritualistas ou materialistas, todos estamos assomados pelo
inexplicvel mistrio da vida. Porque no reconhecer com franqueza a nossa
absoluta ignorncia neste particular? E contudo, essa ignorncia deveria
moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma
com menos arrogncia. de convir que, quando nos assoberba uma tal
incerteza, ningum pode cantar vitria. Quisssemos voltar questo e fcil
nos seria pr todas as vantagens do nosso lado; poderamos impor Deus aos
adversrios, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domnio. No
demonstrando a Cincia que as afinidades da matria possam criar a vida, o
papel do Criador, aqui, fica ntegro como nos tempos de Ado e at dos pr-
adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida
deixam ver claramente a existncia de uma fora criadora, ou seja, por outras
palavras, um Deus oculto.
Tal, porm, a fora da nossa ttica, que jamais queremos abusar de uma
posio privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e
de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos
adversrios, para sua edificao. momentnea e baixando, logo a seguir, das
alturas favorveis ao triunfo, para voltar ao plano da organizao da vida, sem
nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma
vida. Ningum dir que, do ponto de vista singular da organizao, a existncia
do ser inteligente no esteja soberanamente demonstrada. Ainda mesmo que,
em virtude de foras desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontnea-mente
em dadas circunstncias materiais, e ainda que os seres primrios se tivessem
formado de uma nica clula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de
circunstncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organizao dos seres vivos
seria uma prova irrefragvel da soberania da fora coordenada. Seria, sempre,
em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e
organizar-se, leis que no traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que
deve, no mnimo, saber o que faz. Assim, tambm, chegasse o homem a des-
cobrir o nascimento espontneo dos infusrios ou dos vermes intestinais, nem
por isso teria criado esses nfimos seres e sim, apenas, constatado que a
Natureza opera sua revelia, com poderes superiores aos seus, e mediante
processos que, a despeito de sua inteligncia, lhe teriam custado sculos a
descobrir (dado que l chegasse).
Mas, finalmente, nem por isso a causa da razo divina restaria mais
esclarecida.
Dado o mistrio que envolve ainda a origem da vida na Terra, ningum h
com autoridade para declarar proscrita a ao do Criador. Suponha-se que os
primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar e que as
variedades sucessivas fssem a cepa das espcies hoje to distintas; ou que
os primeiros pais de cada famlia houvessem despertado voz de comando de
94

um grande mgico, e teremos que estas conjeturas no afetam mais a base da


Teologia natural, do que se admitssemos que essas espcies aqui aportassem
trazidas de outros mundos nas asas de quaquer celeste mensageiro. Quanto
formao ou transformao das espcies, no est por sua vez melhor
conhecida que a origem da vida, qual o confessa Ch. Lyell: O que sabemos da
Paleontologia nada em comparao com o que resta a aprender.
Examinemos, agora, com este gelogo eminente (38), quais os principais
caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint Hilaire acerca da progresso
e transformao das espcies. Os homens superficiais facilmente imaginam
que a Cincia est organizada com regras absolutas e nenhuma dificuldade
encontra em sua marcha ascendente. Nada menos exato. Nem mesmo as
grandes definies tm carter absoluto, Os zologos, por exemplo, no se
entendem sobre os vocbulos espcie e raa. Sucedeu o que Lamarck
predissera declara Lyell quanto mais se multiplicam as novas formas, menos
nos capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espcie. De
fato, zoologistas e botnicos se vem, no s mais embaraados que nunca
por definir a espcie, como tambm para certificar se ela realmente existe na
Natureza, ou se no passa de simples abstrao da inteligncia humana.
Pretendem uns que ela seja constante dentro de certos limites de variabilidade,
restritos e intransponveis; querem-na outros suscetvel de modificaes
indefinidas e ilimitadas. Desde os tempos de Linneu at o comeo deste
sculo, acreditava-se definir suficientemente a espcie, dizendo:
A espcie compe-se de indivduos semelhantes e reproduzindo-se de
seres a eles semelhantes.

(38) Charles Lyell The Antiquity of man... A ancianidade do homem


provada pela Geologia e anotaes sobre a origem das espcies, por
variao.

Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de espcies fsseis, das


quais umas eram idnticas a espcies vivas, enquanto que outras no passa-
vam de variedades, aditou o fator tempo definio de espcie, assim
formulando: Compe-se a espcie de indivduos inteiramente semelhantes
entre si, e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condies de
vida no experimentem alteraes capazes de lhes variar os hbitos, carac-
teres e formas. Finalmente, chega ele a concluir: que, dos animais e plantas
contemporneas, nem um exemplar existe da criao primordial, sendo todos
derivados de formas preexistentes, as quais, depois de haverem reproduzido,
por sculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, experimentado
variaes graduais e consequentes a mudanas de clima e do reino animal,
adaptando-se s novas circunstncias. Alguns, entretanto, com o correr dos
tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora
considerados espcie nova.
Em apoio dessa opinio, apresenta o contraste das plantas agrestes com
as cultivadas, dos animais selvagens com os domsticos, a lembrar como e
quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a estrutura, os
caracteres fisiolgicos e at os instintos, em presena de novos inimigos e sob
a influncia de alimentao e regime de vida diferentes.
Lamarck sustenta, no somente que as espcies foram constantemente
submetidas a alteraes, passando de um a outro perodo, mas, tambm, que
95

houvesse um progresso constante do mundo orgnico, desde os primeiros aos


hodiernos tempos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos mais
baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligncia
s maiores expresses do racionalismo humano. Para ele, o aperfeioamento
teria sido moroso e constante, a prpria raa humana ter-se-ia, enfim,
desgalhado do grupo de mamferos organicamente mais evoludos. Um pro-
fessor da Universidade de Cambridge nos deu um resumo consiso e racional
desta teoria (39).
Encontramos nos antigos depsitos da crosta terrestre diz ele o trao
de uma progresso na organizao das formas viventes, sucessivas. Podemos
notar, por exemplo, a ausncia de mamferos nos grupos mais antigos e as
suas raras aparies nos grupos secundrios mais recentes. Animais de
sangue quente (em grande parte de gneros desconhecidos) encontram-se
bastante espalhados em todas as velhas camadas tercirias e abundam
(frequentemente com formas genricas conhecidas) nas partes superiores da
mesma srie; e, por fim, temos que a apario do homem na superfcie do solo
um fato recente.
Este desenvolvimento histrico, das formas e funes da vida orgnica em
perodos sucessivos, parece-nos indical de uma evoluo gradativa da energia
criadora, a manifestar-se por uma tendncia progressiva para o tipo mais
elevado da organizao animal.
Hugh Miller (40) tambm nota o fato extraordinrio de ser a ordem adotada
por Cuvier, no seu Reino Animal a que coloca as quatro classes de
vertebrados segundo as suas relaes mtuas e categricas a mesma
ordem cronolgica que apresentavam. O crebro, cujo volume em relao ao
da medula est na razo de dois para um, o do peixe, que foi o primeiro a
aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relao mdia de dois e meio por
um, ou seja, o rptil. Em seguida, vem a relao de trs por um, que a das
aves; a mdia de quatro por um, peculiar aos mamferos. Por fim, o ltimo, um
crebro cuja relao mdia de vinte trs por um, o crebro do homem, que
raciocina e calcula.

(39) Professor Sedgwicks Discurse on the Studies of the University of


Cambridge, 1850.
(40) Edinburgh Footprints of the Creator, 1849.

O crebro poderia no ser mais que uma florescncia da medula espinal.


Nas espcies inferiores (rs por exemplo) a faculdade de sentir pertence
medula, quanto ao crebro. Sem dvida, pode-se fazer srias objees
doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e animais menos
perfeitos e surgidos posteriormente a espcies mais perfeitas, tais como o
embrio monocotledneo e os vegetais endgenos, depois do embrio
monocotiledneo e dos vegetais exgenos (o das conferas de caule
glanduloso), bem como a perfeio das mais antigas criptogmicas, o
movimento retrogressivo dos rpteis, o aparecimento da boa (jibia) depois do
iguanodonte, etc. Exemplos no faltam, mas, persuadidos de que essa teoria
no alcana a nossa tese da presena de Deus na Natureza, e simpatizando
com ela, em si mesma, ns a sustentaremos. Consideramo-la com Lyell, no
apenas til mas, no estado atual da Cincia, como hiptese indispensvel, que,
destinada embora a sofrer de futuro muitas e grandes modificaes, jamais
96

poder ser absolutamente aniquilada.


Sem dvida, podero julgar paradoxal que os mais firmes sustentculos da
transmutao (Darwin e Hooker, por exemplo) guardem singular reserva
quanto progresso, e que os maiores apologistas desta combatam, no raro
com veemncia, a transmutao. No podero ser verdadeiras e conciliarem-
se essas duas teorias? Uma e outra nos representam em definitivo os tipos de
vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do
peixe, a mais simples forma, para os mamferos placentrios, at chegar ao
ltimo elo da srie, aos mamferos antropides, e, enfim, ao homem. Este
ltimo grau afigura-se, portanto, nesta hiptese, uma parte integrante da
mesma srie contnua de atos desenvolvidos, anel da mesma cadeia,
coroamento da obra, por isso que entra na mesma e nica srie das
manifestaes da potncia criadora.
Passemos agora teoria da origem das espcies por meio da seleo
natural.
Esta teoria nos apresenta grosso modo a ao da Natureza, observada na
criao e educao dos animais domsticos. Sabem os criadores que pos-
svel, ao fim de algumas geraes, obter uma nova classe de rebanhos, de
chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores de cornos
menos desenvolvidos. Dizem, ento, que assim que opera a Natureza,
alterando no curso das eras as condies da vida, os traos geogrficos de um
pas, seu clima, a associao de animais e plantas e, por consequncia, a
alimentao e os inimigos de uma espcie e o seu modus vivendi. E assim se
vo elegendo certas variedades mais bem adaptveis nova ordem de coisas.
Dessarte, podem as novas raas suplantar, muitas vezes, o tipo original de sua
ascendncia.
Lamarck opinou que o pescoo longo da girafa procede de uma longa srie
de esforos para colher o alimento de rvores cada vez mais altas. Darwin e
Wailace limitam-se a conjeturar que, na intercorrncia de alguma calamidade
sobreviveram os especmenes de pescoo comprido, por lhes ser possvel
pastarem em stios inacessveis aos outros.
Graas a ligeiras modificaes, multiplicadas em curso de milhares de
geraes e transmisso, por hereditariedade, das aquisies novas, supe-
se uma divergncia cada vez maior do tipo primitivo, at resultar em uma nova
espcie, ou em um novo gnero, se mais longo o tempo decorrido, O moderno
autor desta explicao fisiolgica da origem das espcies, Sr. Carlos Darwin,
expe ele prprio (41), como se segue, os fatos gerais em que se baseia.
Na domesticidade, constata-se uma grande variabilidade, que parece
devida ao fato de ser o sistema

(41) On the Origine of species by the mean of natural selection.

reprodutor muitssimo sensvel s mudanas de condies de vida, deixando


de reproduzir exatamente a forma matriz. A variabilidade das formas
especficas governada por um certo nmero de leis muito complexas, tais
como o uso ou a falta de exerccio dos rgos e a ao direta das condies
fsicas da vida. Nossas espcies domsticas sofreram modificaes profundas,
que se transmitiram por hereditariedade, durante perodo assaz longos. Assim,
tambm, enquanto se mantiverem as mesmas condies de vida por perodos
longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma modificao j
97

adquirida durante uma srie quase infinita de graus genealgicos. Por outro
lado, est provado que a variabilidade, uma vez comeando a manifestar-se,
no cessa totalmente de operar, visto como novas variedades ainda se
verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espcies domsticas mais
antigas.
No , porm, o homem que produz a variabilidade. Ele apenas expe, e
muitas vezes sem desgnios, os seres orgnicos a novas condies de vida.
Ento, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz variaes. Podemos
escolher, ento, essas variedades e as acumular na direo que nos prouver.
Assim, adaptamos animais ou plantas, s nossas convenincias, e at aos
nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistemticamente, e mesmo
sem objetivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propsito de alterar a
raa, se conservem de preferncia os indivduos que, num dado tempo, lhe so
os mais teis. Certo que se podem transformar os caracteres de uma espcie
escolhendo-se de cada gerao sucessiva as diferenas individuais; e este
processo seletivo foi o agente principal de produo das raas domsticas,
mais distintas e mais teis, Os princpios que atuaram com tanta eficcia, no
estado de domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de natureza. A
conservao das raas e dos indivduos favorecidos na luta perptuamente
renovada com o meio ambiente, fator poderosssimo, e sempre ativo, de
seleo natural.
A concorrncia vital uma consequncia necessria da multiplicao, em
razo geomtrica mais ou menos elevada, de todos os seres organizados. A
rapidez dessa progresso est provada no s pelo clculo, como pela pronta
multiplicao de muitos animais e plantas durante uma srie de estaes
particulares, ou quando se aclimatavam em novas regies. O nmero dos
indivduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.
Um gro na balana pode determinar a variedade que deve crescer e a
que haja de diminuir. Como os individuos da mesma espcie so os que mais
concorrem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra,
mais severa. Ela o quase tanto entre as variedades da mesma espcie, e
grave, ainda, entre as espcies do mesmo gnero. Mas a luta tambm pode
existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A
mais leve vantagem adquirida por um indivduo, em qualquer idade ou estao,
sobre o seu concorrente; ou uma melhor adaptao ao meio fsico ambiente; o
mais insignificante aperfeioamento, enfim, far pender a concha da balana.
Vantagens aparentemente medocres podem acarretar essa variao
crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haver guerra, as
mais das vezes entre machos, para posse da fmea. Os indivduos mais
vigorosos e os que lutaram com melhor xito contra as condies fsicas
ambientes, ho-de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu xito
tambm depender, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou
de sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mnima vantagem lhes granjear
a vitria.
Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existncia de um poderoso
agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir facilmente que,
variaes algo teis ao indivduo em suas relaes vitais, possam ser
conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com pacincia,
escolher as variaes que lhe sejam mais teis, porque deixaria a Natureza de
escolher as variaes proveitosas aos seus produtos sujeitos a condies
98

mutveis de existncia? Que limites poderamos atribuir a esse poder, quando


ele opera mediante perodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda
a organizao e os hbitos de cada criatura, por favorecer o prestvel e rejeitar
o intil? Parece no haver limite algum a esse poder, cujo efeito a adaptao
lenta e admirvel de toda a forma s mais complexas relaes da vida.
Cada espcie, dada a progresso geomtrica de reproduo que lhe
peculiar, tende a aumentar desordenadamente, e os descendentes modificados
de cada espcie multiplicando-se, tanto mais quanto se diversificam, nos
hbitos e na estrutura, a lei de seleo natural apresenta, por sua vez, uma
tendncia constante para conservar os descendentes mais divergentes, de
qualquer espcie.
Da se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas
modificaes, as mais leves diferenas caractersticas das variedades de uma
espcie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenas, que caracterizam
espcies do mesmo gnero. Variedades novas e mais perfeitas suplantaro e
exterminaro inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e
intermedirias, e, da, tornarem-se as espcies mais bem determinadas e mais
distintas.
Pode objetar-se que ao presente ningum percebe tais mudanas.
O terico responde, porm, que, operando a seleo natural somente por
acmulo de variaes favorveis, leves e sucessivas, no pode produzir
grandes alteraes instantneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei
natural no existiria, sem dvida, se cada espcie houvera sido indepen-
dentemente criada.
O testemunho geolgico apia a teoria da descendncia modificada. As
espcies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenrio
do mundo, e a soma das mudanas efetuadas em tempos iguais muito
diferente nos diversos grupos. A extino de espcies e de grupos inteiros de
espcies, que representou papel to importante na histria do, mundo
orgnico, uma srie quase inevitvel do princpio de seleo natural, pois as
formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem
as espcies isoladas, nem os grupos de espcies podem reaparecer, uma vez
interrompida a cadeia das geraes regulares. A extenso gradual das formas
dominantes e a lenta modificao dos seus descendentes concorrem, depois
de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da
vida houvessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O carter
intermedirio dos fsseis de cada formao, comparados aos de formao
inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela posio mdia que
eles ocupam na cadeia geolgica. O grande fato constatado, de pertencerem
todos os seres extintos ao mesmo sistema dos atuais, integrando-se nos
mesmos grupos, ou nos grupos intermedirios, atesta o parentesco e a
descendncia original.
O autor invoca tambm em seu apoio a importncia nica dos caracteres
embriolgicos, observando que as afinidades reais dos seres organizados so
devidas hereditariedade e comunidade de origem, O sistema natural uma
rvore genealgica cujos lineamentos precisamos descobrir com o auxlio dos
caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importncia vital.
No despreza ele, to-pouco, a analogia. A disposio dos ossos anloga
na mo do homem, na asa do morcego, na membrana natatria da tartaruga e
na perna do cavalo; o mesmo nmero de vrtebras forma o pescoo da girafa e
99

do elefante. Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si mesmos na


teoria da descendncia lenta e sucessivamente modificada. A identidade de
plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a fins to
diferentes; mandbulas e patas de carangueijo, ptalas, estame e pistilo de uma
flor, explicam-se do mesmo modo pela modificao gradual de rgos outrora
semelhantes nos primitivos antepassados de cada classe.
A falta de exerccio, s vezes auxiliada pela seleo natural, tende, amide,
a reduzir as propores de um rgo, que a mudana de hbitos ou as
condies de vida pouco a pouco tornaram intil.
Dessarte, fcil conceber a existncia de rgos rudimentares.
Pode-se, enfim, perguntar at onde se estende a doutrina da modificao
das espcies.
Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos
laos de afinidades e igualmente classificados, em virtude dos mesmos
princpios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin no pode duvidar
que a teoria da descendncia no abranja todos os membros de uma classe.
Ele pensa, at, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos
primitivos, pelo menos, e o reino vegetal de um nmero igual ou mesmo
inferior.
A analogia acrescenta, lev-lo-ia um pouco mais longe, isto , crena
de que todas as plantas e animais descendem de um prottipo nico; mas, que
a analogia pode ser um guia enganador. No mnimo, a verdade que todos os
seres vivos tm muitos atributos comuns: composio qumica, estrutura
celular, leis de crescimento e faculdade de serem afetados por influncias
nocivas.
Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos
conhecimentos atuais, a vescula germinativa uma s. De sorte que, cada
indivduo organizado parte de uma mesma origem.
Mesmo que consideremos as duas principais divises do mundo orgnico,
ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferiores
apresentam caracteres intermdios assaz pronunciados, a ponto de divergirem
os naturalistas na sua respectiva classificao. O professor Cl. Gray notou que
os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possudo,
de incio, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal
equvoca. Assim, partindo do princpio da seleo natural com divergncia de
caracteres, torna-se crivel que animais e plantas tenham de algum modo
derivado de uma forma intermediria, importa admitir tambm que, quantos se-
res lograram viver at hoje, podem descender de uma forma primordial e nica.
Tal conseqncia porm, funda-se principalmente na analogia e pouco importa
seja ou no aceita. Outro tanto no se d com as grandes classes, tais como
articulados, vertebrados, etc., pois a nas leis da Homologia e da Embriologia
que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendncia nica
(42).
Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.

(42) O tradutor francs de Darwin adverte, a propsito da unidade dos


centros de criao especfica, que seria extremamente rigorista a acepo
do termo paternidade nica, por um s Individuo, ou casal nico.
Mais incrvel, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado
comum e arqutipo absoluto da criao viva no tivesse sido
100

representado seno por um nico Individuo. De Onde teria provindo esse


individuo nico? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar
subsistisse um? Se um tal Indivduo existiu, ele s podia ser o planeta.
Nada Impede admitir tenha tido esta matriz universal, em uma de suas
fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um s ponto da sua
superfcie teria auferido o privilgio de produzir germes? Ou deveremos
crer lhe houvessem estes desabrochado do seio? Todas as analogias
levam antes a supor a terra fecunda em toda a sua superfcie; que o seu
invlucro aquoso fosse o primeiro laboratrio, e que inumervel fosse a
produo dos germes, sem dvida semelhantes. Clulas verminativas,
nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas guas, uma
cristalizao orgnica e nada mais. Evidentemente, Um tipo, uma forma,
uma espcie nica, mas no um s Individuo, do qual se formassem
sucessivamente todos, os organismos.
Se se admitir a simplicidade destes germes primitivos, reconhece-se
que as possibilidades de desenvolvimento deveriam apresentar-se entre
um nmero considervel de seres. Em virtude do grande nmero de
esboos orgnicos, o aperfeioamento sucessivo da organizao
seguindo um certo nmero de sries tpicas, paralelas ou mais ou menos
divergentes, nada h de surpreendente no princpio vital repousando em
estado latente em cada germe.
As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hiptese
discutvel, segundo as condies fsicas peculiares ao nosso planeta, ao
mesmo passo que comeasse a divergncia dos tipos necessAriamente
adaptados diversidade pouco profunda dessas condies. A medida
que as raas se houvessem fixado e aperfeioado, teriam diminudo de
nmero, e ao mesmo tempo que cada qual visse diminuir seus
representantes. A posteridade crescente de um certo nmero de cepas
primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raas que
sucumbiam na luta universal, por efeito de inferioridade orgnica relativa.

Se, enfim, a nossa legtima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria


nossa prpria espcie, logo percebemos, num misto de admirao e tristeza,
que talvez descendamos dum exemplar de smio desaparecido.
Indubitvelmente, nossa dignidade sente-se ofendida diante da S
possibilidade de uma tal jerarquia; mas, se observarmos a Natureza, sem
idias preconcebidas, no parece que faamos exceo lei geral? Muitos de
ns preferem descender de um Ado degenerado, antes que de um macaco
aperfeioado. E contudo, a Natureza no nos consultou a respeito.
Pelo que nos toca, jamais dedicmos algumas horas ao estudo da
Embriologia, que no ficssemos assaz impressionado com as suas
abscnditas revelaes. Jamais pudemos comparar embries, em fases
diferentes, que no vssemos neles um vestgio rudimentar das fases
correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em
tempos anteriores.
Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de
esboo, os principais caracteres das quatro grandes classes do entroncamento,
sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoolgicos. Desde o
comeo de sua existncia secreta, a clula germinativa manifesta um sistema
de desenvolvimento caracterstico, sem tomar a forma do verme articulado, do
101

molusco, ou do radirio. Sem dvida, esta sucesso representa uma imagem


das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou
sucessivamente, avanando na escala dos seres. Quem j deixou de
surpreender-se com a semelhana que o embrio humano oferece,
sucessivamente, com o do peixe, do rptil e da ave? A hora presente no seria,
pois, o espelho de um passado longnquo?
No se ousa encarar de frente essa origem e, sem embargo, a questo
assaz importante para merecer um esto de coragem. Examinemos, pois, sob o
seu aspecto geral, a posio do homem na sua natureza terrena. Ao terminar
este captulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continuar mostrando-
nos um governo intelectual na marcha ascendente da Criao.
A hiptese zoolgica que encara o homem como descendente de uma raa
smia, antropide, no imoral nem antiespiritualstica. Os que a abraaram
nestes ltimos tempos no o fizeram com o propsito de hostilldade ao
Cristianismo e por professarem doutrinas pags. Muito ao contrrio, fizeram-no
a despeito de grandes prevenes, favorveis superioridade dos nossos
primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes
abastardados. De resto, no compreendemos como sbios dignos desse nome
possam afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas ao Cristianismo. Pensamos
que a Cincia deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum,
com artigos de f.
Declaremos, antes de tudo, que a primeira caracterstica do homem a sua
inteligncia. Portanto, o seu lugar filosfico no se enquadra nas classificaes
da Histria Natural. Por sua perfectibilidade, que se poder atribuir
linguagem, pela inteligncia racional, por suas faculdades espirituais, em suma,
o homem domina toda a Natureza terrestre. Seu esprito no incide nos
domnios do escalpelo. Seu valor no se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo
fgado ou pelos rins, mas, pelo seu carter intelectual. Descenda, pois, de uma
ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afeta a alma, O mundo da
inteligncia no o mundo da matria. No somos menores por isso, nem me-
nos puros. Somente por estreiteza de esprito que intermitimos na filosofia
psicolgica imaginrios temores, suscitados pela cincia zoolgica. Se nosso
bero terrestre fsse a manjedoura de rstico estbulo, qual o de Jesus, nem
por isso nossa vida e nossa misso seriam menos santas e altanadas. A
superioridade est em nossas faculdades intelectuais.
O corpo humano, diz o naturalista ingls Wallace, estava nu e desprotegido
e foi o esprito que o provisionou de vestes, para preserv-lo das intempries.
O homem no teria podido competir em agilidade com o gamo, em fora com o
touro selvagem, e foi o esprito que lhe deu armas para domar e utilizar estes
animais. Ele era menos apto que outros animais para alimentar-se de ervas e
frutos, que a Natureza espontneamente oferecia, e foi essa faculdade
admirvel que lhe ensinou a governar e adequar a Natureza aos seus fins, dela
extraindo o alimento, quando e onde quer.
Desde o instante em que utilizou a primeira pele na indumentria, a
primeira lana na caada, a primeira semente no plantio, o primeiro tronco na
enxertia, uma grande revoluo se operou na Natureza, revoluo que no
tivera smile em qualquer fase da histria do mundo, de vez que um ser existia
forrado s mutaes do Universo; um ser, at certo ponto superior Natureza,
pois possua os meios de a controlar, de lhe regular as atividades, e podendo
manter-se em harmonia com ela, no modificando a sua forma corporal, mas
102

aperfeioando o seu esprito.


Nisso que vemos, nicamente, a verdadeira grandeza e dignidade do
homem (43)
O lugar anatmico do homem ocupa graus superiores ao em que se
assenta o chimpanz; a diferena entre os crebros do negro e do primata no
maior que a que separa o chimpanz do saju, e, sobretudo, dos lemurianos.
Depois do chimpanz (trogoditas) vm, na ordem decrescente, o orango
(pitcus), o gibon (hilobatos), o seninopteco, o bugio, etc. Tal como escreveu
Geoffroy Saint-Hilaire em polmica clebre com Cuvier, o homem a primeira
famlia da ordem dos primatas, estabelecida por Linneu no sculo passado.
Aqui, cabe dizer que falamos do ponto de vista anatmico, nicamente.
Qualquer outro raciocnio invalida as classificaes precedentes. Somos,
porm, de opinio que, quando se faz anatomia, preciso fazer a anatomia.
No seguinte captulo, teremos ensejo de prosseguir na comparao do
homem com o macaco, pelo estudo do crebro.
O lugar geolgico do homem recua a origem de nossa espcie poca
longnqua em que viviam as raas antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado
de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte ticrnis, o elefante
primgeneo, o mamute,

(43) Grandes homens contemporneos no compartilham destas Idias e


consideram a Humanidade como uma raa degenerada. Permitimo-nos
citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao
iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinio e o Sr. de Lamartine, a
quem propusramos a mesma questo quando corrigamos estas provas
(1867), encara as raas arianas como tendo sido superiores sociedade
atual. O problema ainda est longe de soluo, mas a verdade que, nem
por isso, a caracterstica do homem deixa de consistir na sua Inteligncia
progressiva.

a rena fssil, etc. A mais antiga data conhecida e atestante da presena do


homem, muito posterior fauna e flora atuais. Entretanto, verifica-se no
existirem j, em nossos dias, umas tantas espcies contemporneas do
homem. Os fsseis humanos encontrados nos arrecifes coralneos da Flrida,
nas cavernas do Languedoc e da Blgica, o esqueleto exumado nos arredores
de Dusseldorf, o crnio da caverna de ngis, o de Barreby, na Dinamarca, o
homem fssil de Puy e de Natchez, no Mississipe, os restos humanos em Loes,
indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta
inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporneos e
mesmo dos smios antropides.. Hoje ningum contesta a existncia do
homem anterior ao perodo glacirio e desde o comeo da poca quaternria.
O lugar arqueolgico do homem concorda com os precedentes, a favor da
teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas
quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indstria,
cujos vestgios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderamos
atribuir a esses perodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o
perodo da primeira vegetao, seja a dos pinheiros da Esccia, e, em parte,
com a segunda vegetao a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se
durante a poca do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o
carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele no
103

havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde btula. Quanto


tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou
menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros
utenslios denota uma indstria no j elementar. A fuso dos minerais, a
decorao lenta dos objetos moldados, s poderiam ser conseguidas depois de
longos tateamentos.
A que poca devemos atribuir as cidades lacustres da Suia e as quarenta
mil estacas de Wangen? As escavaes nos tm revelado vinte povoaes no
lago de Genebra, doze no de Neufchtel, dez no de Bienne, contemporneas
das idades da pedra e do bronze.
As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma poca. Essas
povoaes castoreanas deviam oferecer alguma semelhana com as da Nova-
Guin, descritas por Dumont dUrville. Os ossos encontrados por Lartet na
caverna de Aurignac so contemporneos das hienas das cavernas e do
rinoceronte de narinas separadas.
Foi muito tempo depois que Tebas e Mnfis, capitais do alto e baixo Egito,
atingiram o seu grande esplendor, e que as quarenta pirmides foram erigidas
tipificando uma civilizao lentamente desenvolvida, com uma forma especial
de culto, de cerimnias esplndidas, um singular estilo de arquitetura e
inscries, barragem de rios, etc. Essas glrias, entretanto, estavam
desvanecidas muito tempo antes de Homero. Foi preciso diz Lyell para
formao lenta e gradual de raas como a caucsica, a mongol ou a negra, um
lapso de tempo bem mais longo que o possvel de ser abrangido por qualquer
sistema de cronologia popular.
Ao problema cronolgico do aparecimento do homem na Terra, a Cincia
nada responde por enquanto. Demais, se o homem no apareceu
espontaneamente, tal data no existe. Quanto aos vestgios de humanidade,
ou do homem em si mesmo, as opinies (pois que se no trata, no caso, seno
de opinies) so vagas quo variveis. Um tijolo de carvo encontrado entre
Assouan e Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de
existncia, admitindo-se um aumento de 15 centmetros por sculo, no
depsito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do prazo necessrio
a formar o delta do Mississipe de cem mil anos.
O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a 5 metros de
profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, no contaria
menos de cinquenta mil anos, na opinio do Dr. Dower. ( uma cifra
exagerada, ao nosso ver.) Agassiz calculou que a formao dos recifes de
coral da Flrida representa cento e trinta e cinco mil anos, Os silex talhados e
recolhidos em diversas regies do globo, particularmente no vale do Somme,
parece terem servido de armas a uma raa distanciada de cem sculos.
A Arqueologia concorda com os historiadores e poetas da antigidade,
quais Herdoto, Diodoro, schylo Vitrvio, Xenphontes, Plinio, no concernente
ao primitivismo brbaro da raa humana e sua predileo pelas cavernas.
Mas, esse estado ns o podemos considerar fora dos domnios histricos e a
cronologia, que remonta poca j misteriosa das grandes migraes arianas,
a mais de cem sculos pretritos, mergulha em noite profunda, quando tenta
sondar a nossa verdadeira origem.
Tudo quanto podemos afirmar, que a Humanidade muito mais antiga do
que se sups at agora, tendo comeado por graus inferiores, antes que se
elevasse noo de justia e de moral. Se nos fora permitido remontar a essas
104

pocas, no poderamos reconhecer a civilizao da nossa era na caligem das


idades brbaras, quando a inteligncia em seus primrdios esforava por
desprender-se das possantes constries da matria.
Preferimos confessar essa ancianidade e essa possvel origem da nossa
espcie, sem escrpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau
exemplo dos que intrometem as crenas religiosas a propsito de tudo, e
mesmo sem propsito. Constatamos os fatos e a nossa ignorncia, -com
sincera franqueza, persuadidos de que no se podendo antepor duas verdades
entre si, a Cincia da Natureza no pode afetar a causa do Ser supremo. Como
diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do
Universo pela durao e vantagem que da lhes advm; mas a histria dos
sculos transcorridos nos mostra quo insignificante o perodo do advento da
existncia humana, em relao com a idade do planeta.
A Cincia no admite de bom grado a apario miraculosa do primeiro
casal humano. Diz Carlos Lyell que, se a fonte original da espcie humana
tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de
natureza perfectvel, como a de sua posteridade; se a Cincia lhe tivesse sido
inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No
curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimaginveis e os
mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utenslios que ora
procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na poro de leito do
Mediterrneo aflorada nas costas da Sardenha, ao invs da mais grosseira
cermica e dos slex de feitura to defeituosa e incompleta, que mal indiciam
ao observador bisonho um esforo manual voluntrio, encontraramos
esculturas superiores s obras-primas de Fdias e Praxiteles, e caminhos de
ferro e telgrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimveis
apontamentos; microscpios e telescpios aperfeioados como os no
conhecemos na Europa e inmeras provas, outras, de perfeio artstica e
cientfica, que o nosso sculo 19 ainda no logrou testemunhar. Em vo
esgotaramos a imaginao para adivinhar a utilidade de relquias que tais.
Talvez maquinaria de locomoo area ou destinada a clculos aritmticos,
aparelhos desproporcionados s necessidades, e qui concepo dos
matemticos vivos.
Esta explicao fsica da origem das espcies no arrebata o cetro das
mos do Governador do mundo. J assinalmos acima a declarao de Darwin
a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as consequncias
imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes opinio do
mestre que dos discpulos. Carlos Lyell emite os mesmos conceitos, citando
a seguinte declarao do gelogo Asa Grei, em que este evidencia claramente
que a doutrina da variao e da seleo natural no tende a destruir os
alicerces da Teologia natural, e que a hiptese da derivao das espcies em
nada contraria qualquer dos sos princpios da Histria Natural. Podemos
imaginar que os acontecimentos e em geral as operaes da Natureza ocorrem
simplesmente, em virtude de foras comunicadas desde o incio e sem
qualquer ulterior interveno, ou podemos admitir tenha havido, de tempos em
tempos, e somente de tempos em tempos, uma interveno da Divindade. E
podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanas produzidas resultem da
ao metdica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e
criadora.
Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivduo,
105

tanto quanto a de uma espcie ou de um gnero, no se possa explicar seno


por ato direto de uma causa criadora, podem, sem renunciar teoria favorita,
admitir a teoria da transmutao, que lhe no incompatvel. O conjunto e
sucesso dos fenmenos naturais podem no ser mais do que a aplicao
material de um plano preconcebido; e se essa sucesso de fatos pode explicar-
se pela transmutao, a perptua adaptao do mundo orgnico a condies
novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e,
conseguintemente, de um arquiteto. Parece-nos, com efeito, que o tesmo
nada de maior tem a ganhar com esta hiptese, do que com qualquer outra
teoria natural.
Quanto pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da
teoria transformista, j vimos mais acima que a teoria da gravitao e grande
nmero de outras descobertas foram averbadas de subversivas da Religio.
Mas, onde iramos parar se houvssemos de ouvir os lamentos de todos os
teologistas sobressaltados?
Longe de possuir tendncia materialista, esta hiptese da intermisso na
Terra, em pocas geolgicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da
sensao, do instinto e da inteligncia dos mamferos superiores convizinhos
da racionalidade e, finalmente, da razo perfectvel do prprio Homem
parece-nos, ao invs, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-
nos o quadro da predominncia crescente do esprito sobre a matria.
Temos sido assaz prolixo no encarar as relaes do homem com os animais
que o precederam, sem embargo da nvoa de mistrio que ainda as envolve.
que, acreditamos com Pascal, essas comparaes sempre tm algum valor.
perigoso dizia o autor de Pensamento demonstrar ao homem o
quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua
grandeza. Perigoso, tambm, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir
sua baixeza. Mais perigoso, ainda, deix-lo na ignorncia de ambas.
Ainda que o problema da antigidade e origem da espcie humana varie
para o gelogo, para o arquelogo e para o etnlogo, nem por isso deixa de
averiguar-se que a Humanidade procede de poca muito mais remota do que
se pudera crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para
a Zoologia ou para a Teologia, no menos provvel, to-pouco, que os
nossos antepassados foram inferiores a ns, e que o progresso se manifestou
na Humanidade, tal como na escala de toda a Criao. Perguntamos, ento,
aos espritos de boa f: em que, a crena na ancianidade do homem, e
mesmo na sua origem simiesca, colide com a crena num absoluto? Que a
vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis
orgnicas e que, do vegetal ao homem, a criao antidiluviana no tenha
formado seno uma unidade, em que pode esta hiptese destruir a ao
divina? Aqui, como no que precede, a matria no obedeceu s suas foras? E
a vida dos seres no uma fora especial, regente de tomos, diretora de
todos os movimentos? Particularmente, na teoria da seleo natural, no a
fora vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a
matria no a escrava e a fora a soberana?
Mesmo admitindo-se a mais alta influncia dos meios na transformao dos
rgos, essa transformao no ser, sempre, o efeito da vida e vida regida
pela inteligncia e dotada de uma espcie de obedincia ativa lei intelectual
do progresso?
Abordando a tese da apropriao dos rgos s funes que lhes incumbe
106

executar, bem como da construo homognea de cada espcie, dos dentes


aos ps, segundo o seu papel no cenrio do mundo, entramos nos domnios da
destinao dos seres e das coisas. Nosso 4 livro objetivar este vasto
problema.
Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da
circulao na matria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da
vida, esta se constitui de uma Fora nica e central para cada ser, que dispe
a matria organizvel segundo um plano, do qual o indivduo deve ser a
expresso fsica. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos
os pontos dos nossos adversrios. Eles no mais sustentam a sua hiptese
materialista e, com os seus exageros mais temerrios, antes auxiliam a nossa
tese, pois conceituando a matria capaz de tudo fazer, mal se precatam que
apenas substituem a idia da fora. Esperamos que esses inconseqentes
negadores fiquem agora mais satisfeitos com este captulo. E antes de passar
ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificao de sua vaidadezinha, que os
Gregos e o prprio Arstoto lhes marchara frente. visto que para eles as
radicais fora e vida eram sinnimos. O filsofo de Stagira j houvera sus-
tentado que a alma a causa eficiente e o princpio organizador do corpo
vivo.
No vale a pena fazer to grande alarde de cincia, para ficar abaixo dos
Gregos.
107

TERCEIRA PARTE
A Alma
108

1
O CREBRO
SUMRIO Erro dos psiclogos e metafsicos que desdenham os
trabalhos da Fisiologia. Fisiologia antomo-cerebral. Relaes do
crebro com o pensamento. Tais relaes no provam seja o
pensamento um atributo da substncia cerebral. Discusso e provas
contrrias. O Esprito governa o corpo. Errnea a comparao do
pensamento a uma secreo ou combinao qumica. Algumas
definies ingnuas dos materialistas. Absurdidade de sua hiptese e
respectivas conseqncias.

H muito tempo que o gelogo Agassiz emitiu este conceito,


freqentemente justificado: Todas as vezes que um fato novo se revela no
campo da Cincia, logo o averbam de apcrifo; depois, que contrrio
Religio; e, por fim, que h muito era sabido.
Efetivamente, a verdade tem duas espcies de adversrios: os cpticos
do materialismo, e os cpticos do dogma.
Se, com razo, nos admiramos de ver os fisiologistas, adoradores da
matria, ousadamente proclamarem com entonos de autoridade e certeza que
o homem, bem como o parque integral da vida planetria, no passam de
produtos da matria cega, com mais razo devemos estranhar ainda exista, em
nossos tempos, espritos cultos, e mesmo clebres, que se deixem ficar
completamente fora do movimento das cincias fsico-qumicas, a ponto de
fazerem as objees mais banais ao que essas cincias. apresentam ao
idealismo, sem se precatarem das modificaes necessrias e derivadas desse
movimento em todas as concepes do humano pensamento.
Assim, temos ainda hoje sbios, filsofos, telogos, metafsicos e
pensadores, cujos nomes poderamos aqui alinhar se houvesse oportunidade,
que nos falam de Deus, da Providncia, da prece, da alma, da vida futura e
presente, das relaes da Divindade com o mundo, das causas finais, da mar-
cha dos acontecimentos, da independncia do esprito, das frmulas de culto,
das entidades espirituais, etc., no mesmo sentido e nos mesmos termos da
escolstica do sculo 16. Os palradores anquilosados desta espcie, so ainda
mais curiosos e inexplicveis do que os precedentes. Em os ouvindo afirmar,
em tom magistral, as proposies mais contestveis; em lhes observando a
ignorncia das rudes dificuldades que espritos mais clarividentes to
penosamente venceram; em defront-los na sua verve inesgotvel e na calma
ingnua com que asseguram a inexpugnabilidade das suas pretensas
verdades; dir-se-ia estarem eles verdadeiramente adormecidos nesse ano
memorvel em que Coprnico, j moribundo, recebia o primeiro exemplar do
seu De Revolutionibus para s acordarem hoje, na inconscincia das
revolues operadas. Sendo numerosos, ai de ns! esses espritos, e porque
ainda lhes gravite em torno um nmero considervel de partidrios, bom dar
a todos uma idia dos fatos que lhes deveriam interessar, mostrando-lhes no
ser a eles que incumbe guardar o depsito crescente do tesouro humano, uma
vez que persistem adormecidos no seu triste letargo.
Todos os que descrevem, minudentes, a natureza e as funes da alma;
que explicam perfeitamente em que momento e por qual meio ela se incorpora
no ventre materno e a porta por onde se escapa com o derradeiro suspiro; que
109

contam como comparece ela perante Deus e recebe, no outro mundo, o prmio
ou castigo temporrio ou eterno de seus atos neste mundo; que evidenciam o
processo de comunicao com o Criador; que a estimam completamente
independente do organismo e regendo a matria mediante idias inatas, que
traz consigo ao encarnar, e que pode dominar essa matria como coisa
estranha, perseguindo o corpo com o recusar-lhe em jejuns, maceraes e
abstinncias, a satisfao das prprias necessidades; que expem
minuciosamente a histria da alma, puro esprito baixado Terra como a um
vale de provaes; numa palavra, enfim, todos quantos, em qualquer
religio, em qualquer escola, em qualquer pas gastam a sua eloquncia e o
seu tempo a propor solues que nada resolvem e smbolos que nada
significam (44); esses, repito, devem ser convidados a meditar as
observaes de ano em ano carreadas pelo progresso das cincias positivas.
E, como essas observaes constituem precisamente a base das concluses
materialistas, temos o duplo dever de as expor preliminarmente, a fim de julgar
depois se as concluses foram legitimamente concludas.
Em regra, os homens que encaram com desdm e displicncia quaisquer
questes, so os que pretendem opinar com maior segurana, e isto sim-
plesmente porque, no as tendo profundado, so

(44) Preciso confessar, dizia Voltaire com muita franqueza (Dic.


Philosophique art. Am), que, quando examinei o Infalvel Arstoto, o
doutor evanglico, o divino Plato, conclui no passarem tais eptetos de
meros apelidos. No vi em todos esses filsofos que trataram da alma,
mais que cegos cheios de temeridade, e hbeis no esforo de persuadir
que tinham vistas aquilinas. E outros curiosos e loucos, que acreditam de
oitiva, e tambm pensam que vem alguma coisa.

incapazes de avaliar as dificuldades que elas apresentam aos pesquisadores.


Ainda; hoje, temos metafsicos que cerram os olhos para melhor se verem a si
mesmos, e sem noo alguma de mtodo experimental. Esses, pois, que vm
repetindo h 50 anos, sem se precatarem das dificuldades da proposio, que
a alma um ser encarnado no corpo e independente desse corpo, tero muito
o que meditar na sequncia dos fatos que vamos desenvolver.
Seja qual for a opinio a respeito da natureza do esprito, no h duvidar
de que o crebro no seja o rgo das faculdades intelectuais. Examinemos-
lhe a estrutura. Esta, diz Carl Vogt (45), extremamente complicada. No h
no corpo humano nenhum rgo que, com um nmero proporcionalmente to
diminuto de elementos anatmicos a lhe constiturem a substncia, possua
tamanha quantidade de partes diferentemente conformadas e provando,
evidncia, por sua forma exterior e estrutura interna, sua posio e relaes
mtuas, que elas presidem a funes especiais, que ainda no foi possvel
fixar.
Quanto s partes elementares, componentes da substncia cerebral do
homem e dos animais, formam elas dois grupos principais: uma substncia
cinzenta, mais ou menos escura, ou amarelada, que oferece a olho nu uma
aparncia bastante homognea, e uma substncia branca na qual podemos
distinguir feixes mais ou menos aparentes, projetando-se em direes
determinadas. A substncia parda forma, certamente, o ncleo principal da
atividade nervosa, e a branca, ao contrrio, parece ser a parte condutora.
110

Se cogitarmos de conceber as relaes da estrutura cerebral com o


desenvolvimento intelectual, , sobretudo, na substncia parda e nos pontos
em

(45) Leous sur IHomme, 3.

grande parte formados por ela, que importa atentar de preferncia.


O crebro divide-se em dois hemisfrios laterais por um sulco profundo,
que segue sua linha mediana, e na qual se intermite uma dobra da dura-mter,
chamado foice do crebro. Uma segunda prega dessa membrana, tenda do
cerebelo, estende-se horizontalmente na regio posterior do crnio e separa o
cerebelo dos lobos posteriores do crebro, servindo-lhe de suporte.
O crebro propriamente dito forma, assim, um todo completo, que,
conforme o comprovam o desenvolvimento embriolgico e a anatomia compa-
rada, avoluma-se e acaba comprimindo e avassalando as demais partes. Esse
aumento de volume, nos animais, corresponde sua elevao na escala, com
acentuada tendncia para o tipo do crebro humano.
Examinando por cima, cada hemisfrio parece formar uma massa distinta,
apresentando superfcie uma poro de sulcos de contorno, permeando
cordes intestiniformes, ou circunvolues. Comumente, os dois hemisfrios
so semelhantes e se dividem em trs segmentos sucessivos, de diante para
trs: os lobos frontal, parietal e occipital.
Visto de lado, haveria que juntar o lobo inferior temporal e, alm deste, um
pequeno lobo oculto, chamado ilha, ou lobo central.
Os anatomistas antigos pouca ateno ligaram s cicunvolues, ainda
porque, tardaram em reconhecer que os dois hemisfrios no so inteiramente
simtricos. Assim, consideravam fortuita a distribuio das ditas
circunvolues, ou, conforme diz um observador, como um punhado de
intestinos lanados ao acaso, de sorte que os desenhistas costumavam
fantasi-los assim nas suas estampas anatnicas.
As observaes mais aprofundadas destes ltimos tempos ensinaram-nos,
entretanto, que essa bela desordem um efeito artstico da Natureza, e que
existe um plano definido, uma certa lei que ento no fora notada, de vez que
as investigaes se haviam limitado quase exclusivamente ao homem.
D-se com os naturalistas o mesmo que com os homens pouco versados
em Arquitetura, os quais, no meio da profuso de elementos que sobrecar-
regam um estilo, no podem decifrar o plano fundamental.
Segundo as ltimas investigaes, estas circunvolues cerebrais teriam
capital importncia e delas trataremos antes de nos ocuparmos com as
relaes de peso e volume.
Na opinio de Gratiolet, esta conformao cerebral peculiar ao macaco e
ao homem, e existe ao mesmo tempo nas tnicas cerebrais, quando surgem,
uma ordem geral, uma disposio tpica e comum s duas espcies.
Essa uniformidade na disposio das pregas cerebrais, no homem e nos
smios, diz este fisiologista, merece a mais acurada ateno dos filsofos. H
tambm um tipo particular de pregas nos makis, nos ursos, felinos, caninos,
etc.; enfim, para todas as famlias animais. Cada qual tem suas caractersticas,
sua norma, e em cada grupo podemos facilmente reunir as espcies pela s
confrontao das tnicas cerebrais (46)
Parece que o pensamento proporcional ao nmero e irregularidade das
111

circunvolues. O homem, o orangotango e o chimpanz, tm crcunvolues


no lobo mdio, ao passo que nas outras espcies de macacos e nos outros
animais esse lobo absolutamente liso.
A figura desses sulcos e dos que descrevem meandros irregulares nos
outros lobos, tanto mais irregular, quanto mais caracterizado o pensamento.
Os animais gregrios como a foca, os elefantes,. cavalos, renas, carneiros,
golfinhos, apresentam um

(46) Gratiolet Anales des Sciences Natur, 3 srie, t. 14 pgina 186.

desenho menos regular que o dos outros animais. Deste ponto de vista, o que
sobretudo distingue o crebro humano do simiesco, que, entre as
circunvolues que se dirigem do lobo occipital para o temporal, duas h, no
homem, que no se encontram no macaco, sendo este um dos maiores
contrastes que separam os dois crebros (47).
Nas espcies animais e na humana, a superioridade da inteligncia parece
tanto mais elevada, quanto mais sinuosas sejam as anfratuosidades do
crebro, mais profundos os sulcos e mais numerosas as impresses e
ramificaes, a assimetria e irregularidade. As estrias, muito visveis no crebro
do adulto, no se evidenciam no da criana. O crebro de Beethoven
apresentava anfratuosidades duplamente mais profundas que os crebros
comuns (48).
Podero alguns anatomistas responder que grandes animais muito
broncos, tais como o asno, o carneiro, o boi, apresentam maior nmero de
circunvolues que animais de maior inteligncia quais o co, o castor, o gato.
Mas, preciso no esquecer os matemticos e considerar que os volumes so,
entre eles, como os cubos dos dimetros; ao passo que as superfcies so
como os quadrados entre si. O volume do corpo que aumenta, cresce mais
rapidamente que a sua superfcie. Baseemo-nos num exemplo: uma esfera,
com 2 metros de dimetro, mede 12m, 566 de superfcie e 4m,188 de volume;
uma esfera de 3 metros, de dimetro mede 28m, 275 de superfcie e 14m, 113
de volume (4 teros de NR3 sobe mais rapidamente que 4 NR2).
O volume do crebro do tigre est para o seu corpo na mesma razo que o
do gato; mas a superfcie

(47) Tiedemann Das Hirn des Negers mit dem des Europaers und
Ouran-Outang verglichen.
(48) Wagner Procs-verbal de dissetion.

proporcionalmente menor e, para atingir um Igual desenvolvimento, preciso


que ela se retraia e se enrole.
Estas circunvolues tm, sem dvida, a sua importncia, mas era natural
se imaginasse que o peso comparativo do crebro das diferentes espcies
deve ter no menor importncia, e que as suas variantes na espcie humana
devem ser tomadas em considerao.
De fato, parece que os seus efeitos estejam em proporo com a massa.
Assim que, na criana e no velho, ele menor que no homem maduro. A
alma da criana como que se desenvolve, medida que aumenta a substncia
cerebral.
O peso normal de um crebro humano de trs a trs meia libras (49)
112

O peso do crebro dos cretinos desce, por vezes, a uma libra (453
gramas).
O de Cuvier pesava mais de 4 libras.
O tamanho, a forma, o arranjo da composio do crebro, so tambm
invocados pelos anatomistas como correlatos inteligncia (50). A Anatomia

(49) Veja-se Vogt, Hoffmann, Tiedemann e Lauret. Schneider avalia-o em 3


libras; Pozzi em 3 libras e 8 onas; Sennert atribui-lhe 4; Arlet 4 e 3 onas,
Haller 4, Bartholin 4 a 5, Picolhuomini mais de 5. Lelut admite 1 k, 320
gramas para os crebros comuns, de 20 a 25 anos, e Parchappe 1 quilo e
325 gramas.
(50) Preciso , com efeito, reunir estes diferentes caracteres para poder
estabelecer uma relao entre o crebro e o Esprito. No bastaria, para
tanto, o peso real. Afirmou-se outrora, diz Charles Vogt, que, de todos os
animais, o homem era o que tinha o crebro mais pesado. uma verdade,
mas no absoluta, porqanto no tardou que os colossos inteligentes do
reino animal, quais o elefante e os cetceos, demonstrassem o exguo
valor dessa proposio. Disseram ento que, no sendo o peso absoluto,
seria, ao menos, o relativo. Em mdia, o peso do corpo humano est para
o do crebro na razo de 36:1, ao passo que nos mais inteligentes ele
raramente passa de 100:1. Entretanto, se os gigantes contrariam a
primeira proposio, temos que os anes afirmam a segunda. A chusma
de pequenas aves canoras apresenta uma relao de peso muito mais
favorvel do que a cifra normal humana e os pequenos macacos
americanos oferecem um peso muito superior ao do rei da criao. Vogt
pensa, com razo, que, se o peso do crebro pudesse ser comparado
com qualquer outro fator numrico tomado do corpo humano, esse fator
s poderia ser uma extenso, que, inteiramente sujeita flutuao, seria,
por isso mesmo, muito limitado. Melhor conviria, talvez, tomar o
comprimento da coluna vertebral para termo de relao com o peso do
crebro. Homens que nos parecem estar no mesmo nvel intelectual,
podem, certamente, ter crebros de peso desigual; homens notveis
podem apresentar pesos inferiores aos de craveira mediocre; mas isso
no impede que haja uma relao aproximativa do peso com o grau da
inteligncia, e que a determinao dessa relao seja um fator que se
deva, de qualquer forma, desprezar.

comparada mostra-nos, em toda a escala animal, inclusive o homem, que a


energia da inteligncia est em relao constante e ascendente com a
constituio material e o tamanho do crebro. Os acfalos so os que ocupam
o primeiro grau da escala. O homem, supe-se, tem o maior crebro real, pois,
ainda que o de alguns animais, no conjunto, sejam mais volumosos, o humano
o mais considervel nas partes que dizem com as funes do pensamento. O
resultado geral das operaes anatmicas demonstra que a diminuio do
crebro animal aumenta proporo que baixa a escala zoolgica, e que os
animais dos primeiros degraus, como sejam os anfbios e os peixes, so os de
menor crebro.
Estes fatos gerais no deixam de ter exceo, como veremos daqui a
pouco, mas cumpre-nos exp-los conscienciosamente, antes de os discutir ou
explicar.
113

A convico da grande importncia que tem a conformao cerebral, nos


mamferos, chegou a ensejar a proposta de uma nova classificao baseada
nessa conformao. A ns nos parece, contudo, que no tanto no peso
absoluto do crebro, como na sua relatividade com o peso do corpo, que
devemos atentar.
Seja o crebro do elefante ou do hipoptamo mais pesado que o de
qualquer rapariga, no h nisso nenhum carter distintivo, favorvel aos
primeiros. mais razovel considerar as relaes, sem chegar a concluir da
que o crebro de um magro pensaria melhor que o de um gordo. Sob este
aspecto, os macacos e as aves ocupam a primeira linha, O crebro do asno
no pesa mais que 250 partes do corpo; ao passo que o do rato dos campos
corresponde a trinta e uma partes, o que levava o espirituoso Andrieu a dizer
que os ratos tinham um focinho muito espiritual.
Como circunvolues, peso absoluto, peso relativo, deixassem grandes
incertezas sobre as relaes do crebro com o pensamento, supuseram que a
superioridade do ser estaria em relao com a quantidade de gordura contida
no crebro, O homem tem no crebro mais gordura que os mamferos, e estes
mais que as aves.
A massa cerebral do bovino no atinge a 1 sexto da do homem (51).
O que caracteriza o crebro do feto, durante a gestao, o fato de no
conter quase gordura, sobretudo fosforada. Nos recm-nascidos a gordura ja
se encontra assaz aumentada, e, da por diante, avulta rapidamente com a
idade. A distino racial no se nota no crebro da criana, branca ou preta.
So crnios que apresentam as maiores semelhanas.
Balzac (Investigao do Absoluto) j tivera a idia de considerar o fsforo
como o elemento mais importante do intelecto. Fuerbach, ampliando a
importncia deste corpo e referindo-se a um trabalho de Couerbe, que lhe
atribua grande influncia no sistema nervoso, o deu como origem do esprito.
Huart imagina que essa substncia incendeja-se e alumia, com o fogo do
crebro, como

(51) Von Bibra Vergleichend Untersuchungen ber das Gehirn des


Menschen und der Werbetihiere, 129.

se d com um lampio. Mais de espao, veremos a que extremos de exagero


chegou Moleschott. Quanto atualidade, terminemos a observao especial do
crebro com algumas comparaes particulares, dignas de interesse para
nossa raa.
Em muitas espcies, os crnios masculinos se diferenam tanto que
poderiam induzir-nos a classific-los como de espcies diferentes. Na espcie
humana, a diferena igualmente notria. Assim que o crnio feminino
menor, tanto na circunferncia horizontal como na capacidade interna. O
crebro de menor peso, da mulher, aproxima-se da criana. O outro fato
notvel que a disparidade reinante entre os dois sexos, relativamente
capacidade craniana, aumenta com o aperfeioamento da raa, de sorte que o
europeu se distancia da europia, mais que o negro da sua companheira. Carl
Vogt comenta essas experincias de Welcker e adverte que mais fcil mudar
uma forma de governo do que a panela tradicional.
O crebro da mulher pesa, em mdia, duas onas menos que o do homem
(52). Arstoto h muito o previra e a Cincia experimental verificou que o belo
114

sexo tem um crebro mais leve do que o nosso! Talvez convenha acrescentar
que as medidas no foram tomadas pelas mulheres (53).
Acrescentaremos, tambm, que a estatra e o peso mdio da mulher,
sendo inferiores aos do homem, conviria levar em conta essa diferena, van-
tajosa para ela, mulher. Mas, nada obstante, as senhoras se nos avantajam
tanto, pelos dotes de corao, que lhes no custar ceder-nos a fria su-
perioridade do entendimento.
Outra distino se patenteia, igualmente, no tamanho do lobo frontal: a
circunferncia do crnio

(52) Uma ona equivale a 28 gramas e 35 centigramas.


(53) O doutor Boyd depois de haver pesado 2086 crebros de homens e
1061 de mulheres, d 1285 a 1363 gramas para os primeiros e 1127 a 1238
para os segundos.

, em mdia, de 546 milmetros para as inteligncias vulgares, de 544 para os


imbecis, em geral, e de 541 para os do primeiro grau. Estas medidas esto,
porm, longe de significar alguma coisa. Uma caracterstica anatmica mais
geral consiste em que o crebro recobre o cerebelo tanto mais completamente,
quanto mais elevado seja o animal na escala zoolgica. J nos macacos se
encontra um bordo estreito que ultrapassa, atrs e em baixo, os hemisfrios
cerebrais. Nos outros animais ele estende-se ainda, mais a mais. A mesma
observao pode fazer-se do ponto de vista embriolgico. No feto o cerebelo
no recoberto pelo crebro, seno depois do stimo ms (54).
Longe estamos de negar a existncia de uma relao constante, que
parece ligar a inteligncia estrutura do crebro. As cabeas de Vesale, Sha-
kespeare, Hegel, Gthe, so exemplos de superioridade manifestada pelo
desenvolvimento do lobo frontal. Queremos mesmo crer que algumas excees
sejam devidas ao fato de, nem sempre, o desenvolvimento aparente do crebro
corresponder ao seu peso, e que, em dados casos de idiotia, a gua substitui a
substncia cerebral. Em geral, no por uma caracterstica particular que se
manifesta a superioridade intelectual, e sim pelo conjunto de todas as suas
partes. Enfim, podemos admitir, com alguns anatomistas, que o peso do
crebro aumenta at os vinte e cinco anos e se mantm imutvel at aos
cinquenta, para de novo decrescer consideravelmente na senectude.
O crebro insensvel, absolutamente, e s os pednculos cerebrais e as
camadas ticas parece no o serem. Nos profundos ferimentos da cabea, que
apenas interessam este rgo, poderemos tocar-lhe

(54) Tiedemann Anatomie und Bildungsgeschichte des Gehirns im


Foetug des Menschen, etc., pgina 142. Pour la mesure du crne, V.
Lelut Physiologie de la pense, t. 2, pgina 315.

a superfcie e mesmo extrair pedaos, sem que o paciente experimente


qualquer dor. Em compensao, as experincias feitas neste sentido com as
aves, demonstraram que o crebro , evidentemente, a sede nica da
inteligncia. Pssaros e pombos, alimentados artificialmente, puderam so-
breviver um ano respectiva ablao do crebro. O resultado que o animal,
assim privado do crebro, permanece mergulhado em sono profundo, nada v,
nada ouve, tendo embora olhos e ouvidos.
115

Os movimentos conservam-se e combinam-se, ainda, dentro de certos


limites; o animal sente a dor e faz movimentos por evit-la, mas torna-se
estpido e como num estado de sonho, que exclui a conscincia; um
autmato que poder viver desde que o alimentem por processos mecnicos
quaisquer, mas que morrer de fome com a boca no alimento, visto lhe ser
interdito combinar a imagem do alimento e a necessidade de o tomar, com os
movimentos necessrios a esse fim. Em se extraindo, camada a camada, os
dois hemisfrios cerebrais, ver-se- que a atividade intelectual diminui na razo
do volume da massa retirada. Atingindo os ventrlocos, d-se a perda do
conhecimento. A significao e formao dos tecidos so ainda possveis, mas
o animal fica inteiramente inacessvel s impresses do mundo exterior. A
conscincia desapareceu sem deixar trao. Vemos, assim, que, com a retirada
sucessiva, e por camadas, das partes superiores do crebro, as faculdades
diminuram pouco a pouco. Galinhas assim operadas continuaram com vida
vegetativa. A diminuio progressiva da inteligncia integral e proporcionada s
ablaes, antes que de uma que outra faculdade, faz prova negativa da teoria
das localizaes; mas, perguntamos: poder-se- aplicar ao homem o fato
observado com o intelecto de uma galinha? Eis o que nos parece duvidoso.
Diante destas experincias de Flourens, de Valentim e fisiologistas outros,
Bchner exclama: Poder-se- exigir prova mais brilhante para demonstrar a
conexidade absoluta da alma e do crebro, do que a fornecida pelo escalpelo
demonstrando a alma pea por pea?
Uma alterao no crebro acarreta uma alterao correspondente no
pensamento. As enfermidades mentais assinalam-se por umas tantas leses.
Em trezentos e dezoito disseces de alienados, apenas trinta e duas deixaram
de patentear alteraes patolgicas do crebro e das membranas, e cinco
somente no apresentavam anomalia qualquer. (Romain Fischer.)
Leses cerebrais h que produzem, por vezes, efeitos espirituais
surpreendentes. Assim, contam os anais da Fisiologia que no hospital de So
Toms, Londres, um homem gravemente ferido na cabea entrou a falar,
depois de curado, um idioma absolutamente esquecido durante a sua
permanncia de trinta anos naquela cidade. Uma degenerescncia de ambos
os hemisfrios produz sonolncia, debilidade mental e mesmo idiotia completa.
A superabundncia de lquido raquidiano origina a debilidade mental e o
estupor. A ruptura de um vaso sanguneo do crebro causa o estado patolgico
chamado apoplexia. Toda gente sabe que a perda da conscincia uma
consequncia dessa alterao mrbida. A inflamao do crebro causada pela
repleco dos vasos sanguneos e uma excessiva exsudao plstica,
desfecham a febre cerebral e o delrio. Quando os batimentos do corao fra-
quejam, a ponto de ocasionar uma sncope, o sangue aflui escassamente ao
crebro. Tambm a perda dos sentidos acompanha uma sncope. O crebro
dos decapitados morre clere, em consequncia da perda de sangue. Sendo o
oxignio condio indispensvel ao renovamento do sangue, em lhe faltando
este, o encfalo o primeiro a se ressentir e sobrevm, ento, as cefalalgias,
as vertigens, as alucinaes.
O ch influi no discernimento, o caf estimula a potncia artstica do
crebro, e o lcool acarreta a embriaguez com as suas consequncias (55).
Todas as impresses recebidas pelos ouvidos e pelos olhos so influncias
materiais, transmitidas ao crebro pelo sistema nervoso, provocando
modificaes materiais correspondentes.
116

Uma pessoa que nos infunde simpatia, muda-nos o curso das idias.
Quando um pobre habitante dos vales paludosos escala os Alpes, fica
deslumbrado com as suas novas impresses. A msica convida ao sonho; a
baunilha, os ovos, o vinho quente, exaltam os desejos; um cu luminoso nos
alegra, um cu sombrio nos entristece. Desde o momento em que somos
engendrados, entramos num oceano de matria em circulao. O que somos,
devemo-lo em parte aos nossos avs, nossa alimentao, ao nosso pas,
nossa educao, ao ar, ao tempo, ao som, luz, ao nosso regime, s nossas
vestes (56).
Tais os fatos positivos, constatados pelas cincias fisiolgicas e invocados
pela escola materialista, ao declarar que as faculdades intelectuais so produto
da substncia cerebral.
Fizemos este esboo no s no intuito de levantar o combatido adversrio,
como para fornecer cabedal de reflexo a muitos espiritualistas ingnuos, que
acreditam resolvidos todos os problemas.
No captulo seguinte, infligiremos os senhores materialistas, desafiando-os
a responderem a trs questes solidrias que arrasam de alto a baixo o seu
palanque. Mas, enquanto o no fazemos, interessa-nos inquiet-los a pretexto
da solidez de suas pretensiosas explicaes.
Notemos, antes do mais, que nenhuma lei exclusivh existe, acerca da
correspondncia do crebro com o pensamento. No est rigorosamente
demonstrado: 1 que o peso do crebro aumenta

(55) Moleschott, 2, 151.


(56) Ob. cit. pgina 194.

at madureza e decai depois (Sommering lhe fixa o desenvolvimento mximo


aos 3 anos, Wenzel aos 7, Tledemann aos 8, Gratiolet na velhice, etc.); 2
que a Inteligncia esteja em relatividade com o peso (os crnios de Napoleo,
Voltaire, Rafael, no ultrapassaram a mdia); 3 que uma fronte larga seja
ndice de genialidade (Lelut demonstrou que os idiotas apresentam
ordinariamente uma fronte desenvolvida, e que impossvel determinar
relaes exatas entre a inteligncia e as dimenses cranianas); 4 que a
loucura provenha sempre de uma leso cerebral, antes parecendo uma
afeco psquica. (Esquirol, Lelut, Leuret, Georget, Ferrus, constataram que a
loucura no seguida de leses seno quando coincide com enfermidades
orgnicas.)
Nossos adversrios tm conscincia das dificuldades que a questo
apresenta e procuraram, alhures, a causa material da inteligncia, como, por
exemplo, no fsforo, a que j aludimos. Acreditaram ter achado 4% de fsforo
no crebro dos alienados, 23% no crebro normal e 1% no dos imbecis.
Haver, porm, necessidade de frisar que no h lei absoluta, que todas estas
explicaes no satisfazem e que, em suma, no existem essas diferenas?
Vejamos agora se os fatos acima expostos provam, to clara e
peremptoriamente quanto o supem, que o pensamento no passa de funo
fisiolgica, e que a alma atributo da matria.
O n do problema est em decidir se o crebro um rgo ao servio da
inteligncia, ou se esta uma criao do crebro, filha e escrava da substncia
cerebral.
sempre, sob outro aspecto, a mesma questo de fora e matria. Domina
117

a fora? Obedece-lhe a matria? Ou o contrrio que se d?


Esses senhores declararam, sem forma outra de processo, que,
evidentemente, a fora um atributo da deusa Matria e a alma no passa de
iluso de si mesma, a crer na sua personalidade, quando mais no que o
resultado passageiro de um movimento do fsforo, ou da albumina, nos lobos
cerebrais.
Se esta grosseira explicao est to bem demonstrada e to evidente
que os nossos adversrios, confessamos que, ao nosso ver, ela obscura e
nos parece incapaz de algo provar, na atualidade, a esse respeito. No
smente a fisiologia cerebral ainda est na sua infncia, como, no parecer
mesmo dos fisiologistas mais eminentes, as relaeS do crebro com o
pensamento permanecem profundamente desconhecidas.
Sem dvida, o estado da alma prende-se ao estado do crebro; certo, o
enfraquecimento deste acarreta o desfalecimento daquela; as crianas e os
velhos (posto que com excees numerosas) raciocinam com menos clareza e
rigor que os homens maduros; e concebe-se que uma leso cerebral produza a
perda de faculdades correspondentes; mas, que prova tudo isso, uma vez que
o crebro , neste plano, o instrumento necessrio, sine qua non, da
manifestao da alma? Se, em vez de ser a causa, ele apenas a
condio?
Se o melhor msico do mundo s dispusesse de um piano com falta de
algumas teclas, ou de instrumento outro de construo defeituosa, seria lcito
negar talento musical a esse msico s por lhe falhar o instrumento, sobretudo
quando, ao seu lado, outros artistas, por disporem de instrumentos altura de
seus talentos, se fazem admirar por quem os ouve?
Por mais que Broussais moteja do pequenino msico, oculto no fundo do
crebro, no conseguir desatar o n da questo.
Abstenhamo-nos de crculos viciosos. Este, na verdade, o primeiro ponto a
examinar:
ou no a alma uma fora pessoal animando o sistema nervoso?
Uma primeira resposta dada por este fato acima relatado, de oferecerem
os hemisfrios cerebrais tanto mais sinuosidades, meandros e circunvolues
irregulares, quanto mais pensante o portador desse crebro.
No se dir ento, que, precisamente por ser independente e ativo, o
pensamento trabalhou mais fortemente esse crebro?
Que, por se haver ele retrado muitas vezes sobre si mesmo, por ter
tremido de angustiosas nsias, em constries de medo e em xtases de amor;
por haver procurado, meditado, escavado os problemas; por se haver ora
revoltado, ora submetido; por ter, numa palavra, desempenhado rudes labores,
que a substncia, veculo de comunicao com o exterior, guardou os traos
desses movimentos e viglias? Esta a nossa opinio e pensamos que seria
difcil demonstrar-nos o contrrio.
Alberto, um anatomista de Bonn, dissecou crebros de pessoas que se
haviam entregado a trabalhos intelectuais durante alguns anos, e achou em
todos uma substncia muito consistente e a massa parda, bem como os
sulcos, assaz desenvolvidos. Se, por outro lado, observamos com Spurzein,
Gall e Lavter, que a cultura das faculdades superiores do esprito se nos
imprime no crnio e no semblante; se visitarmos o Museu de Antropologia de
Paris e notarmos, atravs da coleo de crnios do abade Frre, que os
progressos da Civilizao redundaram na elevao da parte anterior e na
118

depresso da occipital, poderemos tirar destes fatos uma concluso


diametralmente oposta dos adversrios, para afirmar que o pensamento rege
a substncia cerebral.
No temos a, claro como o dia, o trabalho do esprito sobre a matria? E
as concluses no derivam de si mesmas para abrir passagem triunfal nossa
doutrina?
A propsito de concluses, no podemos eximir-nos de admirar a
facilidade com que se pode tirar dos mesmos fatos cncluses inteiramente
contrrias: tudo depende da disposio de esprito e haveria que desesperar
dos progressos da teoria, se a maioria dos homens tivesse o carter mal
formado. Verificariam, por exemplo, em experincias com alienados, que
alguns haviam recuperado a conscincia e a razo pouco antes de morrer.
Concluram os espiritualistas que as almas desses infelizes voltavam, aps
longo isolamento, ao conhecimento de si mesmas e ao predomnio do corpo,
sendo-lhes permitido, nesse transe supremo, abrirem os olhos da conscincia
ao passarem desta para a outra vida. Os materialistas, ao invs, aproveitaram
o fato, alegando que a aproximao da morte liberta o crebro das influncias
trpidas e mrbidas do corpo (57).
Mais do que se imagina, a prpria Anatomia fisiolgica se embaraa, no
concernente loucura em relao com o estado do crebro. Enquanto num,
como os citados, muito vem; outros, no menos hbeis, nada encontram.
Assim, o alienista Leuret declara que nenhuma alterao cerebral se encontra,
seno nos casos em que a demncia precedida de qualquer outra
enfermidade, e que essas alteraes so to variveis e diferentes que no au-
torizam apresentadas, afirmativamente, como verdadeiras causas. Assim
tambm, a propsito das anfratuosidades h pouco referidas, poder-se-ia no
ver mais que efeitos.
Quando nossos adversrios acrescentam que os casos de demncia
protestam contra a existncia da alma, no esto melhor aparelhados para
defender o seu sistema. Duas hipteses se apresentam para explicar a loucura.
Ou h, ou no h uma leso no crebro. No primeiro caso, a falha do
instrumento no demonstra a inexistncia do artista; e, no segundo, o problema
fica pertencendo ordem mental.

(57) Bchner Ob. cit., pgina 126.

Melhor ainda: o primeiro caso pode enquadrar-se no segundo, se


admitirmos, qual sugere a experincia, que a loucura seja a causada por
uma dor sbita, por um grande susto ou por desesperao profunda tem, em
todos estes casos, sua fonte no ser mental, que reage contra o estado normal
do crebro e lhe acarreta qualquer alterao. Ainda aqui, evidente, que quem
sofre o ser pensante, a determinar no organismo um distrbio correspondente
ao sofrimento.
E de fato, tem-se verificado que as alteraes s se encontram nas
loucuras antigas, com se o esprito a fora o que por toda a parte o movi-
mentador da substncia.
Por outro lado, enquanto os adversrios deduzem da descrio anatmica
do crebro que a faculdade de pensar no mais que propriedade de
movimentos do conjunto, ns vemos, na multiplicidade mesma desses
movimentos, uma submisso do crebro grande lei da diviso do trabalho,
119

por dar a cada rgo a sua funo, de acordo com a respectiva situao,
estrutura, composio, forma, peso, tamanho. Vemos, nessa variedade de
efeitos, um argumento a prol da independncia da alma, de vez que a hiptese
desses fisiologistas no pode, de maneira alguma, conciliar uma tal
complexidade dinmica do crebro com a simplicidade necessria e
reconhecida, do ser intelectual. Falaremos, daqui a pouco, especialmente da
simplicidade do ser pensante, pois que nos resta algo dizer ainda, sobre as
relaes de crebro e alma.
As comparaes de crnios encontrados em antigos cemitrios de Paris,
desde quando o prefeito de Napoleo 3 promoveu a remodelao da cidade,
e, em particular, a diferena entre crnios das valas comuns e dos tmulos
particulares, estabeleceram novamente que os. indivduos votados s cincias
e artes possuem uma capacidade cerebral maior que a dos simples operrios.
As mesmas escavaes revelaram que a capacidade craniana dos parisienses
aumentara, de Filipe-Augusto para c. A capacidade craniana do negro livre
maior que a do escravo. Eis um fato significativo que poderia (em dada
circunstncia) ser invocado a favor da liberdade.
Tendo provas de que as impresses exteriores influem no pensamento,
temo-las por igual de que o pensamento domina os prprios sentidos. Quantas
criaturas no vemos por a, cujo crebro e cujo corpo padecem enfermidade
lenta e rebelde, arrostando uma existncia de misrias e dores e conservando,
sem embargo, fortaleza de nimo, e guardando a flor da virtude, sobranceiras
torrente de lodo que as arrasta, e vencendo pela grandeza do carter os elos
da adversidade?
Negareis, tambm, que haja dores morais que residem, lacerantes, nas
profundezas insondveis da alma? dores ntimas, no causadas por
acidentes fsicos, nem por enfermidade exterior, nem por alterao do crebro,
mas, to s, por uma causa incorprea, qual a perda de um pai, a morte de um
filho, a infidelidade de um ente amado, a ingratido de um protegido, a traio
de um amigo; ou ainda pelo quadro de um infortnio, pela derrota de uma
causa justa, pelo contgio de idias malss; por multido de causas, enfim, que
nada tm de comum com o mundo da matria e no se medem geomtrica e
quimicamente, mas constituem o domnio do mundo intelectual?
No vemos assim, mesmo sob o seu aspecto fsico, a influncia do esprito
sobre o corpo? As paixes refletem-se no semblante. Se empalidecemos de
medo, que este sentimento, manifestando-se por um movimento do crebro,
retrai os vasos capilares da face. Se a clera ou a vergonha purpureiam-nos o
rosto, que os movimentos engendrados dilatam os ditos vasos, conforme o
indivduo. Mas aqui, ainda o esprito que desempenha o principal papel.
Se alguma vez corastes impresso subitnea de um olhar feminino (no h
desdouro em confess-lo), no sentistes que a indiscreta impresso se
transmitia ao crebro por intermdio dos olhos e da descia ao corao para
remontar ao rosto?
Procurai analisar essa sucesso, e mesmo que no coreis tomado de
qualquer sbito temor, aplicai a mesma anlise e concluireis que, sem o que-
rerdes, as impresses vos passam cleres pela mente, antes que se traduzam
exteriormente.
O mesmo se verifica com os sentimentos; no peito e no na cabea que
uma inexprimvel sensao de plenitude ou de vcuo se manifesta, quando, em
certas horas de melancolia, o pensamento se nos desprende e voa para o ser
120

amado.
Mas, como essa sensao no se produz seno depois de pensarmos,
evidente que, ainda aqui, o esprito representa o papel primacial. Sob outros
aspectos, um sbito terror se comunica ao corao e acelera ou retarda o
pulso, podendo mesmo paralis-lo numa sncope. A tristeza e a alegria pro-
duzem lgrimas. O trabalho mental fatiga o crebro, o sangue se empobrece, a
fome se faz sentir. Todas estas, e grande nmero de observaes outras,
induzem-nos a crer que o pensamento, ser imaterial, tem sede no crebro, o
qual lhe serve tanto para receber os despachos do mundo exterior como para
levar-lhe suas ordens.
E de resto, ns j sabemos que o crebro e a medula mais no so que
poderosos feixes de fibras nervosas, nervos que partem desse veio, irradiando
em todos os sentidos para a superfcie do corpo, e nos quais existe uma
corrente anloga corrente eltrica. Os nervos so fios telegrficos que
transmitem conscincia as impresses do interior, enquanto os msculos
executam as ordens do crebro. Ora, Dubois-Reymond mostrou que toda
atividade nervosa manifestada nos msculos, a ttulo de movimento, e no
crebro a titulo de sensao, seguida de uma alterao da corrente neuro-
eltrica. Mas dizer, com o mesmo Dubois, que a conscincia no passa de
produto da transmisso desses movimentos, cometer uma ingenuidade,
como se pretendssemos que a correspondncia telegrfica diriamente
trocada entre os gabinetes de Londres e Paris tivessem por causa a passagem
de uma nuvem tempestuosa, ou de uma bobina de induo para o
manipulador, e que o receptor de si mesmo recambiasse a resposta dos
despachos inteligentes (58).
Proclamar que no h no homem mais que um produto da matria,
assimil-lo a um composto qumico e deduzir que o pensamento uma pro-
duo qumica de certas combinaes materiais, um erro monstruoso.
Todos sabemos que o pensamento no ingrediente de oficina.
Esprito e matria so entidades to estranhas uma outra, que, todas as
lnguas, de todos os tempos, sempre as conceituaram diametralmente opostas.
As leis e foras espirituais existem independentemente das corporais. A
fora de vontade bem distinta da fora muscular. A ambio difere da fome, o
desejo distingue-se da sede. Onde encontrareis as leis morais que regem a
conscincia? Que o crnio caucsico seja oval, o mongol redondo e o negro
alongado, em que que o sentir humano se associa s fibras granulares ou
cilndricas? Que tm de comum as noes de justo e injusto com o cido
carbnico? Em que um tringulo, um crculo,

(58) Em que pesem algumas experincias interessantes, a eletricidade


animal no um fato averiguado. Nada prova que os efeitos observados
no tenham por causa um outro agente. Os eletrforos ainda no
puderam constatar na tremelga, na enguia, etc., nenhum vestgio de
tenso. de polaridade de atrao. Humphry-Davy no pde reconhecer
nenhum desvio da agulha imantada, nem a menor decomposio da gua
pelas tremelgas, ou peixes outros. No h, portanto, que precipitar
concluses e apregoar com tanta nfase a identidade da eletricidade com
a vida e, sobretudo, com o pensamento.

um quadrado, podem afetar a bondade, a generosidade, a coragem? Seria


121

justo dizer que Cronwell tinha 2,231, Byron 2,238 e Cuvier 1,829 gramas de
inteligncia, por serem tais os pesos de seu crebro? Na verdade, quando se
procura sondar o assunto a fundo, fica-se admirado de ver que homens de
pensamento tenham chegado a confundir num s objeto o mundo espiritual e o
material.
Tambm perguntamos se esses experimentalistas (59) aprofundaram bem
o sentido de suas palavras ao anunciarem proposies tais como as basilares
de suas doutrinas:
Todas as faculdades que denominamos atributos da alma no passam
de funes da substncia cerebral. Os pensamentos esto para o crebro,
mais ou menos como a blis para o fgado e a urina para os rins (60).
A secreo do fgado, dos rins diz outro escritor que no ousa atingir
inteiramente a mesma comparao verifica-se nossa revelia e produz uma
matria palpvel, ao passo que a atividade cerebral no se pode verificar sem
a conscincia integral e esta no segrega substncia, mas foras (61).
Que vem a ser segregar foras? Ficaramos gratos a quem n-lo
explicasse. Porque no segregar horas ou quilmetros? Mas, ouamos ainda:
O que denominamos quantidade consciencial, determinado pelos
elementos constitutivos do sangue. Uma prova de que a produo de foras
mentais

(59) Lendo as Leons sur iHomme de Karl Vogt, no duvidamos, merc


dos eloqentes exemplos evidenciados, que essas lies eram
professadas contra o Esprito. Mas, apesar disso, em muitos pontos
dignos de atendo, elas demonstraram que a ao espiritual por sua
atividade, progresso, atuao permanente, influi de modo considervel no
volume, forma e peso do crebro.
(60) Karl Vogt Physiolosgische Briefe fr Gebiidete aller Stnd, 206.
(61) Bchner Kraft un Stoff.

depende diretamente de permutas qumicas, est em que os produtos usados


pelo sangue, e filtrados nos rins, variam segundo a natureza do trabalho
cerebral ((62).
O pensamento um dinamismo da matria. Movimentos materiais,
ligados nos nervos a correntes eltricas, so percebidos no crebro como
sensao e esta sensao o conhecimento de si mesmo, a conscincia. A
vontade a expresso necessria de um estado do crebro, produzida por
influncias exteriores. No h livre arbtrio. (MoZeschott Kreislaf des
Lebens, 2, 156, 181.)
A mesma relao existe (segundo Huschke) entre o pensamento e as
vibraes eltricas dos filamentos do crebro, qual a da cor com az vibraes
do ter.
O pensamento uma secreo do crebro, j o dissera Cabanis h mais
de meio sculo.
Todos os atos humanos so frutos fatais da substncia cerebral,
afirmava Taine ainda h pouco; vcio e virtude valem por vitrolo e acar.
A estas, juntaremos uma ltima proposio, que parece formulada para
explicar todas as outras: a de Nicole, quando assevera justamente que as
maiores tolices encontram sempre inteligncias a elas proporcionadas.
Kant tivera a lembrana de substituir a realidade do mundo exterior pelas
122

idias puramente subjetivas do esprito, e em compensao o autor de Koerper


und Ceiat, Sr. H. Scheffler, ensaia explicar a gnese do esprito pela matria.
No lhe citaremos o processo, um tanto trabalhado, mas o testemunho crtico
que lhe concedeu o defensor atual do animismo, Sr. Tissot. Nesta hiptese
di-lo este uma fora da matria, no uma simples fora, mas uma
resultante das foras simples da matria, reunidas para (quanto mistrio nestas
duas palavras!) formar o organismo humano.

(62) Spencer First Principles, 282.

O esprito no atinge o estado fenomenal seno quando a matria se tem


organizado em corpo humano (que abismo to grande, que no se pode
sequer entrever!), mas a tendncia para esta organizao ou para a produo
espiritual, no existe na matria.
A necessidade de admitir a ao da fora ressalta, em que lhes pese, de
todas as suas definies. E que definies!
Julguem-nas pela precedente. Mais, eis um trao de luz que pode juntar-se
ao fogo de artifcio:
O pensamento, diz Bchner, esprito e alma, nada tem de material, no
matria (bravo), mas (ouvide isto) um complexo de foras heterogneas,
formando uma unidade; o efeito da ao concomitante de muitas substncias
materiais, dotadas de foras ou propriedades. Segundo a judiciosa concluso
do Dr. Hoefer, a temos uma explicao digna de emparelhar com a resposta
de Sganarelle: Ossabundus, nequeis, nequer, potarium, quipsa milus, eis o que
faz seja muda a vossa filha.
Sbios! J Epcuro tinha dito que a natureza de uma pedra cair, porque
ela cai... mas isto no mais cincia, comdia. As galimatias que nos
impingem como definio dalma so uma pilhria detestvel. Adiante. Cada
qual com o seu paladar.
Comparvel a estas definies, s mesmo a proposio de Hgel sobre a
identidade de corpo e esprito. Ei-la: A matria no seno esprito; e o
esprito no seno matria. Logo, so um e outra a mesma coisa!
Este alto raciocnio, que o seu autor qualifica de irrefutvel, l est na sua
Grande Lgica. Famosa lgica, a demonstrar que o puro materialismo est real
e efetivamente puro de todo o esprito!
Como vdes, caro leitor, no faltam definies. Smente estamos ainda a
perguntar que o que elas definem.
Mas valem, ainda assim, para nos provar que toda essa gente sabe tanto
quanto ns da natureza da alma.
Assim, neste captulo, acabmos de ver que, se de um lado a constituio
fsica do crebro est de harmonia com a alma e maravilhosamente apropriada
para que essa alma receba, de modo integral, as impresses do mundo
exterior, julgue-as e. transmita as suas prprias determinaes; por outro lado,
a anatomia do crebro desautoriza a concluir no passe a alma de produto
orgnico, ao passo que a Filosofia deslinda, na trama de incertezas e
contradies do materialismo, a ao evidente do esprito sobre a matria.
Vimos que a loucura no afeco orgnica, porm psquica, e que a alma
tem o seu mundo. de dores e de alegrias: A determinao patente. Ser
crvel, entretanto, que, depois de considerar a loucura uma enfermidade
fisiolgica, ousassem equipar-la ao gnio, havendo, j agora, muitos mdicos
123

que a consideram uma nevrose?


S a nossa poca era capaz destas ousadias. A constituio de muitos
homens de gnio diz. Moreau (de Tours) bem, e realmente a mesma dos
idiotas (63). Desenvolvendo desmesuradamente uma tese do Dr. Lelut, o autor
sustenta que o gnio no pertence aos domnios do esprito, mas. do corpo!
Mas, em que base se firma ele? no fato de (dizem) certos homens de gnio
manifestarem esquisitices, excentricidades, distraes, ou serem enfermios,
raquticos, adiposos, surdos, gagos, ou ainda passveis de alucinaes.
realmente singular aferir o gnio pela singularidade das opinies, pela
originalidade, pelo entusiasmo ou pelo delrio. A ns nos parece que

(63) La Psychologie Morbide.

ele consiste, antes, na sublimidade do pensamento, na elevao da alma aos


cimos do estudo cientfico, na plena posse de si mesma, em face das contem-
plaes intelectuais.
Esta singular identificao do gnio com a loucura foi valorosamente
refutada pelo Sr. Paulo Janet, no seu valioso trabalho sobre O Crebro e o
Pensamento. Esta teoria diz ele tomou a aparncia como realidade, o
acidente pela substncia, os sintomas mais ou menos variveis, pelo
fundamental e essencial. O que constitui o gnio no o entusiasmo (pois este
pode existir nos espritos mais medocres e vazios) e sim a superioridade do
racionalismo, O homem de gnio o que v mais claro, o que percebe maior
contingente de verdade, o que pode relacionar maior nmero de fatos a uma
idia geral, o que encadeia todas as partes de um todo a uma lei comum, e
que, mesmo quando cria, qual se d na poesia, no faz mais que realizar, pela
imaginao, a idia que a sua inteligncia concebeu.
A caracterstica do gnio est no possuir-se a si mesmo e no em ser
arrastado por uma fora fatal e cega; est em governar suas idias e no em
ser subjugado por imagens; est em ter conscincia ntida do que quer e v, e
no em perder-se num xtase vazio e absurdo, semelhante ao dos faquires
indianos.
Certo, o homem de gnio quando compe no pensa mais em si mesmo,
isto , nos seus mesquinhos interesses e paixes, na sua pessoa trivial; pensa
no que pensa, ou, por outra, no seria mais que um eco sonoro e ininteligente,
o que So Paulo admiravelmente qualifica de cymbolum sonans. Numa
palavra: o gnio , para ns, o esprito humano no seu melhor estado de sade
e vigor.
Nada obstante, isolados no seu triste deserto, nossos apaixonados
fisiologistas fazem a noite em torno de si, recusam confessar as faculdades
mais nobres do esprito humano.
Pretendem ser os rigorosos intrpretes da Cincia, ter em suas mos o
futuro da inteligncia, a olharem desdenhosos os pobres mortais, cujo peito
serve de refgio derradeiro f no passado e esperana exilada. Fora do seu
crculo, no h mais que trevas, fantsticas iluses. Eles tm na mo a
lmpada da salvao, sem perceberem (ai de ns!) que o fumo negro que dela
se exala perturba a viso e falseia a rota. Tudo comprimem, fora, para lhe
extrair a essncia, e quando chegam a capacitar-se de que a essncia no
corresponde ao que esperavam, declaram que a essncia das coisas no
existe em si mesma e no passa de relaes, que acreditamos apreender nas
124

transformaes da matria. No h outra lei que a da nossa imaginao, nem


mesmo foras, mas simplesmente propriedades da matria, qualidades ocultas
que, em lugar de nos fazer evoluir, recuam-nos a vinte sculos atrs, ao tempo
de Arstoto.
Suas concluses so meramente arbitrrias, nem a Qumica nem a Fsica
as demonstram, qual do a entender. No, so proposies geomtricas a
derivarem necessriamente umas das outras, como outros tantos corolrios
sucessivos, mas enxertos estranhos, arbitrriamente soldados rvore da
Cincia. Felizmente para ns, eles tambm desconhecem as leis da enxertia.
Essas vergnteas natimortas, de uma espcie extica, so incapazes de
receber a seiva vivificante, e a rvore em crescimento as esquece no seu
progresso. Dito seja que, tambm hoje, elas, essas vergnteas, no oferecem
viabilidade maior que ao tempo de Epcuro e Lucrcio. A posteridade no ter,
jamais, o trabalho de lhes recolher flores e frutos.
Entretanto, a dar-lhes ouvidos, dir-se-ia estarem elas to naturalmente
enxertadas na rvore da Cincia, que se nutrem da sua prpria vida e se
alimentam por seus prprios cuidados, como se uma me inteligente pudesse
consentir em derramar a seiva do seu leite nos lbios de semelhantes
parasitas! Do ponto de vista histrico, a atitude magistral que eles tomam,
diante dos representantes da Cincia moderna, curiosa e digna de ateno. E
fazem sucesso, visto que, nem todos sendo sbios, h entre eles alguns que
ocupam as primeiras linhas da Cincia e, tendo publicado sobre a Fsica obras
de valor, as impem e induzem a aceitar a falsa metafsica desses
experimentadores.
Diante do resultado dessas tendncias, diante da materializao absoluta
de todas as coisas, desse pretenso termo ltimo do progresso cientfico o
aniquilamento da lei criadora e da alma humana, a que se reduzem as mais
nobres aspiraes da Humanidade com as suas crenas mais instintivas e
suas concepes mais antigas e mais grandiosas? Que resta das idias de
Deus, justia, verdade, bem, moralidade, dever, inteligncia, afeio? Nada,
nada mais que poeira vil. Todos ns, pensadores animados do ardente desejo
de saber, no passamos da evaporao de um pedao de graxa fosforada!
Admiremos os panoramas soberbos da Natureza, elevemos o pensamento
a essas alturas luminosas e douradas de sol, nas horas melanclicas da tarde,
escutemos as harmonias da msica humana e deixemo-nos embalar pela
melodia dos ventos e dos zfiros, contemplemos a imensidade mrmura dos
mares, subamos ao cimo esplendente das montanhas, observemos a marcha
to bela e tocante da vida planetria em todas as suas fases, respiremos o
perfume das flores, elevemos o olhar s estrelas radiosas que se ostentam nos
esplendores do azul, ponhamo-nos em comunicao com a Humanidade e sua
histria, respeitemos os gnios ilustres, os sbios que dominaram a matria,
veneremos os moralistas perseguidos, os legisladores de povos e permitamos
ainda amizade reunir coraes, ao amor que palpite em nosso peito, ao
patriotismo e honra que nos inflamem o verbo, e, nessas iluses caducas,
no haver mais que o efeito qumico de uma mistura, ou de uma combinao
de alguns gases. uma questo de peso e de volume nos equivalentes do
oxignio, do hidrognio, do fsforo, do carbono, que se juntam no alambique do
crebro em maiores ou menores propores!
Virtude, coragem, honra, afeto, sensibilidade, desejo, esperanas,
discernimento, inteligncia, genialidade, tudo combinaes qumicas! Saibamo-
125

lo de uma vez por todas, a vida to somente isso.


Que o corao nos paralise, que nossa alma no se preocupe mais com os
bens intelectuais, que o nosso olhar no mais se eleve aos cus. Para qu? A
vida do esprito nada mais que um fantasma...
Demo-nos por felizes, com o saber que no passamos de secreo
impalpvel e inconsistente de trs ou quatro libras de medula branca ou cin-
zenta!...
126

2
A PERSONALIDADE HUMANA
SUMRIO A hiptese da alma como propriedade do crebro
insustentvel diante dos fatos que atestam a personalidade humana.
Contradio da unidade da alma com a multiplicidade dos movimentos
cerebrais. ContradIo da Identidade permanente da alma com a
mutabilidade incessante das partes constitutivas do crebro. Silncio
dos materialistas sobre esse duplo fato. Inanidade da sua teoria.
Audcia de suas explicaes, ante a certeza moral de nossa identidade.
De como a unidade e a identidade da alma demonstram a inanidade da
hiptese materialista.

Felizmente para as grandes e respeitveis verdades de ordem moral, no


estamos reduzidos a curvar a cabea diante de to grosseira concluso.
Como nos dias decantados pelo crebre autor latino das Metamorfoses,
temos nascido para ficar de p e contemplar o cu.
Certo, poderamos invocar aqui o testemunho imponente dos sentimentos
mais profundos da natureza humana; poderamos evidenciar, luz meridiana,
que, nestas doutrinas perniciosas no h mais lugar para a esperana, moral
para a conscincia, luz para os pendores do corao; bondade natural, justia
na ordem universal, consolao para o aflito e mais que a populao do
globo no mais tem sua frente nenhuma finalidade, nenhuma claridade,
nenhuma lei intelectual.
Rolando, por a alm, turbilhonante, levada no espao obscuro pela
rotao e translao rpidas do globo e renovando-se a cada instante pelo
nascimento e morte de seus membros, ela a Humanidade no passa,
superfcie desse globo, de bolorento parasita cegamente desabrochado e per-
petuado por foras qumicas.
Sim. Poderamos, invocando o testemunho dos coraes que ainda
pulsam, e das almas que ainda crem, dispor em linha de batalha os
argumentOS ainda vivazes da Filosofia, da Psicologia e derribar o adversrio,
constrangendo-O a confessar-Se vencido. Todavia, como preferimos combater
no mesmo terreno e com as mesmas armas, pretendendo refut-loS s em
nome da Cincia de que se dizem intrpretes, apraz-nOS permaneCer no
campo exclusivamente cientfico e desdenhar, qual o fazem eles, os silogismOs
da Psicologia.
Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposies adversas e os
comentrios com que as esticam: As leis da Natureza so foras brbaras,
inflexveis; no conhecem a moral nem a benevolncia. (Vogt). A Natureza
no ouve as queixas nem as preces do homem, antes as repele
inexoravelmente em si mesmo. (Fuerbach). Sabemos, por experincias
prprias, que Deus absolutamente no se imiscui, de qualquer forma, nesta
vida terrestre. (Lutero).
A temos conceitos bem consoladores, no assim? Mas, repetimos: o
sentimento no cabedal cientfico e por isso no entraremos nesse captulo.
Esta absteno no nos impede, bem entendido, de convidar o leitor a meditar
e decidir para que lado lhe pendem o corao e a razo.
Mas, apenas do ponto de vista da observao cientfica e deixando de lado
os pendores do corao e os imperativos da conscincia que no deixam de
127

algo ser na histria da alma dizemos que fatos h, nos domnios da


observao pura, completamente inexplicveis na hiptese materialista.
No precedente captulo, o leitor ainda pode ficar suspenso entre as duas
hipteses, porqanto apresentmos fatos mutuamente oscilantes, que deixam
o esprito indeciso, quanto ao centro de gravidade. Agora, porm, o centro de
gravidade vai passar ao corpo das doutrinas espiritualistas, e os que o no
seguirem muito se arriscaro a desequilibrar-se e a cair, rpido, no mais vazio
dos vcuos.
Exponhamos, em primeiro lugar, as afirmativas materialistas contra a
existncia da alma, e, para no falar s dos estranhos e fazer ao mesmo tempo
o histrico do materialismo em nosso pas, escutemos Broussais, cuja obra foi
o primeiro toque de reunir dos nossos modernos epicuristas e inaugurou, em
nosso sculo, a primeira fase desse curso pouco luminoso.
Para Broussais, como para Cabanis, Locke e Condillc, o homem ,
simplesmente, o conjunto de rgos em funo. O eu, a personalidade humana
no um ser suis generis, um fato (64), um resultado, um produto
imputvel a tal ou qual disposio da matria (65). Inteligncia e sensibilidade
so funes do aparelho nervoso, mais ou menos como a transformao dos
alimentos em quilo e sangue funo do aparelho digestivo, ou respiratrio
(66). A existncia da alma no mais que uma hiptese que se no funda em
observao qualquer, que nenhum raciocnio autoriza, por gratuita e at
mesmo destituda de senso (67). Reconhecer no homem mais que um sistema
orgnico, cair nos absurdos da Ontologia (68).
Cabanis, no seu livro bem conhecido, e Destutt de Tracy, na sua anlise
racional das relaes do fsico com o moral, emitem as mesmas opinies, mas,
sob forma menos explcita.
Segundo os exagerados defensores da doutrina

(64) De IIrritation et de la Folie, pgina 153.


(65) Idem, pgina 171.
(66) Idem, Prefcio, 19.
(67) Reponse aux Critiques, pgina 30.
(68) De IIrritation, etc., pgina 122.

da sensao, a pessoa humana confunde-se nas funes orgnicas. Na


realidade, no existe.
Todos os homens, em todos os tempos e por toda a parte, acreditaram na
existncia pessoal, sentiram-se viventes e pensantes; todas as lnguas enun-
ciaram, nas primeiras pginas dos anais humanos, a existncia do pensamento
individual, a alma, a inteligncia, o esprito, no importa sob que nome
(poderamos encher uma pgina de nomes primitivos, arianos, snscritos,
gregos, latinos, celtas, etc., mas, uma tal nomenclatura no se faz necessria,
e nossos leitores certo sabem da existncia desses vocbulos), O bom senso
popular, tanto quanto o gnio filosfico, espontaneamente acreditaram, desde
que o mundo mundo e h seres racionais na Terra, que existe em nosso
corpo algo mais que a matria, uma conscincia prpria, sem a qual no
existiramos e que se comprova a si mesma, pelo s fato da certeza ntima.
Enfim, todos sentiram que o corpo, nem to-pouco o mundo exterior, cons-
tituem a entidade pensante. Entretanto, a Humanidade do passado, como do
presente, parece que no leva em conta a opinio dos materialistas.
128

Felizmente para ns, eles a esto a esclarecer-nos de ora em diante,


convidando-nos a reconsiderar a ingenuidade das nossas crenas. Como bem
o disse um fino espiritualista (o duque de Broglie, nos crits et Discours, t. 1).
At aqui, caros amigos, dizem eles, acreditastes que ezistieis e tnheis um
corpo; mas, desenganai-vos, porque no existis e o corpo que vos possui. S
existis na aparncia, o que chamais o eu, no passa de simples vocbulo, um
no sei qu, destitudo de realidade e consistncia; e o que realmente existe,
no fundo de tudo isso, alguma coisa de que no tendes conscincia, nem ela
to-pouco a tem de vs.
No parecer de Broussais com os seus colegas e discpulos, o eu o
crebro, O pensamento, todos os fenmenos inteligentes, so excitaes da
matria cerebral ou, para usar a mesma linguagem do Autor condensaes
da mesma matria (69). E, seja de que natureza for, toda a percepo mental
est neste caso. Dor, alegria, saudade, julgamento, comparao,
determinao, entusiasmo, desejo, tudo condensao. Se houver fenmenos
complexos nesse laboratrio do pensamento, quais uma srie de raciocnios
sucessivos partidos de uma impresso inicial, mesmo do exterior e culminando
em ato voluntrio, sero ainda condensao de condensaes. Estas so o
prprio pensamento, que no passa de consequncia, de resultante,
condensao mesma das fibras do encfalo... Meu Deus! Que bela coisa a
Cincia e como o Sr. Broussais possua uma imaginao bem condensada!
Sentir-se Sentir, eis a frmula e o nico fato consciencial admitido por
Broussais. Ora, qual o rgo que sente no organismo humano?
Incontestavelmente, o crebro. Logo, ele o eu e todas as percepes do
pensamento no passam de excitaes da substncia cerebral. Coisa que
parece simples, mas desafia um ligeiro reparo.
Temos visto que o crebro massa carnosa, pesando trs libras mais ou
menos e composta de medula, fibras brancas ou pardas, gordura fosforada,
gua, albumina, etc. Ora, entre essas substncias, qual a pensante? A gua? o
fsforo? a albumina? o oxignio? Se a faculdade de pensar est ligada a uma
simples molcula, a um tomo real, no tendes o direito de negar a
imortalidade da alma, pois, neste caso a faculdade de pensar participaria do
destino do tomo indestrutvel. Seria preciso, pois, admitir que esse tomo se
libertou, desde logo, do movimento, para ficar imvel, talvez no fundo da
glndula pineal. Admitindo-se, agora, seja cada molcula capaz de sentir em
conformidade com a natureza das sensaes, esse pretenso eu j no estar
no singular, mas no plural,

(69) Broussais De IIrritation et de la Folie, pgina 214.

haver tantos eus (!) quantas molculas cerebrais. Os lxicos no conheciam


esse vocbulo e, doravante, devero perfilh-lo.
O homem jamais suspeitara que continha em si diversas personalidades,
pois os prprios gregos, com as suas mltiplas designaes possveis, no
tinham visto nisso seno faculdades vrias e diversas maneiras de ser de uma
nica e mesma alma. Mas, cada molcula , por sua vez, um agregado de
tomos, de corpos simples, diversos e diversamente combinados. Teremos,
ento, cada tomo a pensar agora? Eis-nos cados na mais absurda e
inimaginvel das hipteses. Essa contradio entre a unidade inconteste do ser
pensante e a multiplicidade, no menos inconteste, dos elementos cerebrais,
129

reduz a zero a pretenso de fazer da conscincia pessoal uma propriedade do


encfalo.
Nota curiosa: esses senhores no se precatam de que assim racionando
regridem aos arqueus de Van Helmont, a pretexto de progresso. No lhes falta
mais que os espritos animais, dos tempos de Descartes e Malebranche, para
nos vermos recuados a mais de dois sculos, anteriores origem da prpria
Fisiologia.
No temos no mago da conscincia a certeza da nossa unidade?
Percebe-se o pensamento qual mecanismo composto de vrias peas, ou
como um ser simples? Todos os fenmenos ativos de nossa alma depem a
favor dessa unidade pessoal, visto como, na sua variedade e multiplicidade,
esto grupados em torno de uma percepo ntima, de um julgamento e de
uma faculdade de generalizaes nicas. Sentimos, em ns mesmos, essa
unidade pessoal, sem a qual pensamentos e atos no mais se ligariam por
qualquer lao e nenhum valor teriam as nossas determinaes. esse um fato
to firmemente enraizado na conscincia e to inatacvel, que as contradies
aparentes que se lhe podem opor redundam, em definitivo, a seu favor. Se, por
exemplo, certa faculdade de nossa alma se engana em suas apreciaes,
parece poder concluir-se que h complexidade na maneira operatria do
esprito. Mas, se descermos ao fundo do fenmeno do erro, to frequente,
reconheceremos que sempre o mesmo ser, a mesma pessoa a enganar-se e
a reconhecer a sua imprevidncia, assim como, no homem que erra e se
corrige, manifesto que a mesma razo que erra que corrige.
Assim, as mesmas contradies da natureza humana prestam-se, tanto
quanto o foro ntimo, a afirmar a personalidade do nosso ser mental.
Se bem que a afirmao da personalidade do eu prova a existncia da
alma, no se infere da que a constitua. Temos, para ns, que a alma o ser
pensante, ao passo que o eu apenas uma concepo que d para
fenmenos internos o carter de fato consciencial.
A alma poderia existir inconsciente da sua personalidade e, de fato, no
mundo animado h um grande nmero de almas ainda nessa condio.
Dizem outros que o conjunto do crebro e no cada molcula de per si,
que pensa. Mas, que vem a ser o conjunto do crebro seno a reunio das
molculas que o compem? Os que fazem dessa reunio um ser ideal, uma
espcie de sociedade, de exrcito, no podem pretender que essa coletividade
pense, sem que o faam todos e cada qual dos seus membros. Porque, em si,
uma sociedade, um povo, no so entidades reais, mas conglomerado cuja
natureza e cujo valor s se constituem dos membros, componentes. Suprimi o
pensamento aos crebros do povo francs e que ficar a esse povo? Imaginai
que as molculas cerebrais no pensam, e que restar ao crebro? E, se elas
pensam, ento, voltaremos imagem extravagante de uma quantidade
indefinida de eus! (Fora o caso de dizer que este vocbulo, se os vocbulos
pensassem, deveria estranhar o ver-se aqui pluralizado.)
E, para que elas se acordem entre si, veremos instituir a hierarquia militar e
nomear um general que cavalgue qualquer tomo bicudo da glndula pineal,
ou, ento, dir-se- com Syndenham que h no homem um outro homem
interior, dotado das mesmas faculdades e afeces do homem interior. A
pretexto de cincia positiva, imaginar-se-o mil hipteses mais difceis do que
os to critIcados mistrios das velhas religies.
Os materialistas contemporneos so um pouco mais fortes. Declararam,
130

como vimos, que a alma uma fora excretada pelo crebro (?), sem se darem
ao trabalho de elucidar qual a parte ou o elemento do encfalo que possui essa
maravilhosa faculdade. uma resultante do conjunto de movimentos operados
sob diversas influncias, no rgo cerebral. Tal, a opinio da escola
materialista, e mesmo da pantesta. Esta nova hiptese to simplria quanto
as precedentes, e s apresenta uma ligeira falha que , nem mais nem menos,
o ser incompreensvel. Alis, no se do eles ao trabalho de a explicar. Em
1827, quando se opunha a simplicidade da alma multiplicidade dos ele-
mentos cerebrais, nessa poca em que a qumica do pensamento no gozava
a prerrogativa de ser manipulada nas retortas de alm-Reno, Broussais
respondia lealmente: o eu um fato inexplicvel, no pretendo explic-lo (70).
Todavia, s definies supra assinaladas, juntou ele mais esta: O eu um
fenmeno de inervao. Ainda hoje, ningum conseguiu provar, nem explicar,
como pode a conscincia resultar de certas combinaes operadas num
maquinismo automtico. Assim, a unidade da nossa fora pensante no s
protesta energicamente, como destri, de um golpe, a hiptese da secreo
cerebral. Oporemos, agora, mesma hiptese um segundo fato, paralelo a
este e de tanto valor que basta, por si s, para arrasar o colossal exrcito de
argumentos j embotados na defesa da referida teoria.

(70) Reponme aux Critiques, pgina 17.

Ei-lo, esse fato, em termos bem claros.


A substncia cerebral no se mantm duas semanas idntica a si mesma.
O crebro se refunde completamente num prazo mais ou menos longo. Vimos
na segunda parte que, no s o crebro, mas todo o organismo, no passa de
uma sucesso de molculas em mutabilidade constante.
E, nada obstante, a nossa personalidade racional subsiste. Todos temos a
certeza de que, desde que nos entendemos por gente, no mudamos in-
trinsecamente, qual mudaram nossos cabelos, nossa pele, nossa fisionomia,
nossa estatura.
Nas pginas precedentes, demonstrmos a personalidade humana, mau
grado complexidade dos elementos cerebrais e multiplicidade das suas
funes. E vimos que, longe de ser uma resultante, essa personalidade se
afirma de si mesma como fora individual. Vamos agora, de algum modo,
transportar noo do tempo o que dizamos a propsito do espao, para
estabelecer que a unidade da alma no existe somente a cada instante,
considerada em si mesma, mas persiste de um a outro instante, e fica idntica
em si mesma, apesar das mudanas que o tempo acarreta composio da
substncia cerebral.
Trata-se, pois, de conciliar a identidade permanente de nossa
personalidade com a mutabilidade incessante da matria. Os senhores
materialistas seriam de uma gentileza rara se consentissem em subir por um
instante ao palco, a fim de resolverem este pequenino problema.
A ns, muito nos praz fornecer-lhes o enunciado: demonstrar que o
movimento amigo do repouso e que o melhor processo de criar no mundo
uma instituio estvel e slida lanar a idia atravs de um turbilho de
cabeas frvolas.
As rigorosas observaes feitas e comparadas, sob diversos pontos de
vista, demonstrarm no apenas que o corpo se renova sucessiva e comple-
131

tamente, molcula a molcula, mas, tambm, que essa renovao perptua


rapidssima, bastando trinta dias para que se tenha um corpo integralmente
renovado.
Tal, o princpio da desassimilao no animal. Falando a rigor, o homem
corporal no fica dois instantes idntico a si mesmo. Os glbulos sanguneos
que circulam em meus dedos, enquanto escrevo estas linhas, o fsforo mgico
que me trabalha no crebro ao pensar esta frase, j me no pertencero
quando estas pginas forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes,
faam parte dos vossos olhos ou da vossa fronte... talvez, gentil leitora!
enquanto os vossos mimosos dedos dobrarem estas pginas, a dita molcula
de fsforo que, na hiptese dos adversos, teve a fantasia de imaginar a dita
frase, talvez, repito, essa ditosa molcula esteja sob a epiderme sensvel do
vosso indicador, ou, quem sabe, crepite ardentemente nas palpitaes do
vosso corao... (A respeito de molculas itinerantes muito haveria a dizer,
mas, no ousamos alongar o parntese.) O que importa, a srio, recordar
esta verdade: a matria circula perptuamente em todos os seres, e no ser
humano, em particular, no permanece dois dias idntica a si mesma.
Se no estamos enganados, este fato tem sua importncia na questo que
nos ocupa, e com verdadeiro prazer que o alegamos aos adversrios,
convidando-os a que o expliquem.
Como estas interessantes observaes se devem aos prprios campees
do materialismo, a eles, que no a outrem, compete interpret-las em apoio de
sua teoria, caso essa interpretao no lhes requeira um esforo muito
exagerado.
Vejamos:
O sangue rejeita constantemente suas partes constitutivas aos rgos do
corpo, na qualidade de elementos histognicos. A atividade dos tecidos
decompe esses elementos em cido carbnico, uria e gua. Tecidos e
sangue sofrem, na marcha regular da vida, um desperdcio de substncia, s
compensado na proviso dos alimentos. Essa permuta de matrias opera-se
com uma rapidez notvel. Os fatos gerais indicam que o corpo renova a maior
parte de substncia num perodo de vinte a trinta dias. O coronel Lann, por
meio de vrias pesagens, encontrou uma perda mdia de 22% de seu peso,
em 24 horas. A renovao total exigiria, portanto, 22, dias. Liebig deduziu uma
rapidez de 25 dias, considerando as permutas de outra maneira, pela
combusto do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as
observaes concordam em todos os pontos (71).
Assim, sois vs mesmos a ensinar que dentro de alguns dias nosso corpo
se renova inteiramente. Nosso ser material viu dissolver-se e reconstituir-se,
sucessivamente, a sua assemblia constituinte, no lhe ficando uma s
molcula de oxignio, carbono, hidrognio, ferro, carbono, albumina... Essas
molculas aliaram-se a outras substncias, que andam agora embaladas pelas
nuvens, levadas pelas ondas, envolvidas no solo, recolhidas pelas plantas, ou
pelos animais, enquanto que a nossa substncia tambm se encontra
inteiramente mudada.
Em se aplicando essa engenhosa teoria a uns tantos fatos de ordem
social, chega-se a provar que a unio matrimonial deixa de ser um sacramento
eficaz, visto que ao cabo de um ms as duas criaturas, que acreditaram formar
liames eternos, esto corporal e espiritualmente transformadas e vivem como
adlteros. Como esta, concluses outras se podem tirar, edificantes. Ajuntais,
132

de seguida, que, sendo o fsforo a parte do crebro mais caracterizada,


desta substncia que provm o pensamento, assim como potassa se devem
os msculos e as faculdades de locomoo e os ossos ao fosfato de cal, etc., e
vs comparais o ato de

(71) Jac Moleschott La Cireulation de Ia Via, t. 1, pginas 169, 170 e


172.

pensar (secreo do crebro!) secreo da blis pelo fgado, da urina pelos


rins.
Contrariando as vossas pretenses, noto que meu ser pensante, minha
pessoa, meu ego, o mesmo de h cinco, dez, vinte, quarenta anos. E espero
no negareis que vos lembrais de terdes sido criana, de haverdes brincado ao
colo materno, freqentado a escola e feito (l isso no duvido) brilhantes
estudos, para vos tomardes, com o tempo, furiosos paladinos do materialismo.
Sois bem vs que assim vivestes, no verdade? Foi, certo, sobre o vosso
esprito, e no sobre a vossa fronte, que esses anos passaram. Se mudastes
de opinies, de idias, de diretriz, em vossos estudos; se trocastes de pas, de
hbitos, de alimentos, nem por isso deixou de ser a vossa pessoa mesma que
cresceu, viveu, envelheceu; e, se algum audacioso e legtimo partidrio das
vossas doutrinas, tendo-vos roubado, h dez anos, honra e fortuna,
reaparecesse e dissesse que j. no sois o mesmo homem, que tendes
mudado muitas vezes, que no vos conhece e que tambm ele mudou e, por
isso, nada vos deve nem lhe cumpre reparar, certo estou de que no
demorareis a demonstrar-lhe que no assim que entendeis, na prtica, as
vossas teorias.
Com efeito, senhores, essas teorias no nos parecem nem mais nem
menos que absurdas, diante do fato eloquente da identidade do esprito.
Podeis conciliar umas e outro? Podeis pretender que uma secreo de
substncias que apenas transitam pelo organismo possa gozar dessa
faculdade? Ousareis avanar que, considerando o pensamento como atributo
de uma associao de molculas de gordura fosforada, albumina, colesterina,
potassa e gua (72)
molculas trazidas a esse laboratrio pela nutrio e respirao, variveis,
em contnuo movimento, semelhantes a soldados de todas as nes,

(72) Moleschott, 2, 149.

que chegam ao- mesmo campo, armam tendas e seguem adiante para serem
logo substituidos por outros; ousareis, repito, avanar que um tal sistema
pode explicar a identidade, a permanncia do pensamento?
No, no o ousais: nem mesmo o ensaiam, pois muito tenho revolvido em
vossos anais e vejo que prestes vos esquivais ao escolho, deixando quase de
o nomear.
Um dos vossos (73) responde de passagem que a observao feita com os
trepanados demonstrou que certos anos ou fases da existncia se lhes apa-
gava da memria devido perda de quaisquer partes do crebro. Acrescenta
mais, que a velhice acarreta a perda quase total da memria. Sem dvida, diz,
as substncias cerebrais mudam, mas o modo de sua composio deve ser
permanente e determinante do modo da conscincia individual. Depois,
133

confessa que os processos interiores so inexplicveis. Ora pois! eis a uma


confisso que compensa tudo. Essas pretensas explicaes apoiadas em fatos
anormais so as nicas que se permitem dar ao grande fato por ns
assinalado.
Lacuna sensvel, e visto que a vossa maior ambio remover todos os
tropeos e nada abafar em silncio censura que irrogais aos vossos
adversrios concito-vos, a bem mesmo do vosso renome, a no mais deixar
de explicar fsica ou quimicamente como a renovao dos vossos tomos pode
ter a propriedade de engendrar em ser pensante e consciente da permanncia
de sua identidade.
No vemos conciliao possvel entre estes dois termos contrrios, pelo
que, poderamos seguir avante sem nos preocuparmos com o adversrio, para
s consider-lo fora de combate, qual gladiador antigo a esvair-se na arena,
trespassado pelo mortal tridente.

(73) Bchner Fora e Matria.

Todavia, ainda por princpio de caridade, vamos prosseguir na luta e, para


defesa geral da causa, acreditamos til examinar as diversas explicaes
emitidas a respeito, a fim de que saibam nenhuma haver satisfatria, ficando
assim de todo insolvel a hiptese materialista.
A primeira dessas explicaes consiste em dizer que, se as molculas do
corpo esto em perfeita circulao, o mesmo no se d com a forma individual.
Nossos traos ficam gravados no semblante, os olhos conservam a mesma
cor, os cabelos a mesma natureza, a fisionomia o seu tipo fundamental.
Quantos tiveram ensejo de reivindicar glria militar uma cicatriz qualquer,
guardam-lhe a marca, no obstante a renovao dos tecidos. Tal o fato geral
da permanncia e carter fisionmico individual.
Podem os adversrios pretender que, assim sendo com o corpo,
impossvel no seja a identidade do esprito, como resultante de fenmenos
materiais.
Ora, a justamente que est o erro: 1 No se pode provar que a
constncia dos traos seja o resultado de simples fenmenos de assimilao e
desassimilao, e da modificao incessante da substncia; 2 ainda
mesmo que assim fsse, no existiria nisso seno uma identidade de forma,
aparente, conservada pelas molculas sucessivas e no identidade
fundamental, um ser substancial que fica; 3 a alma no uma sucesso de
pensamentos, uma srie de manifestaes mentais e, sim, um ser pessoal com
a conscincia de sua permanncia.
Por consequncia, a diferena que separa da nossa a hiptese
materialista, consiste simplesmente em observar que nada se explica pela
primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica. Como se v, uma diferena
insignificante.
Dir-se- que os tomos materiais, em se substituindo, seguem
precisamente a mesma direo dos precedentes, entrosados no mesmo
turbilho, como sentinelas militares transmitindo-se a senha e que, se o
pensamento apenas uma srie de vibraes, so estas mesmas vibraes a
se perpetuarem, ainda que mude a substncia dos crculos vibrantes. Mas,
uma tal pretenso duplamente insignificante, atento a que no explica melhor
que as primeiras a identidade do eu, e tende a arrastar-nos ao ocultismo,
134

arvorando o corpo em locutrio de moleculazinhas capazes de se entenderem


e concordarem, mau grado tagarelice e leviandade peculiares ao sexo.
Pode ainda dizer-se que, se o crebro muda pouco a pouco, o mesmo
sucede com o nosso carter, tendncias, o prprio esprito. Mas, se de um lado
considerarmos a substncia constitutiva do crebro num dado momento,
teremos que, semanas ou meses depois (no importa o prazo), a metade
dessa substncia, por exemplo, estar mudada e no haver, portanto, seno
outra metade substancial da considerada num dado momento. Depois, um
meio quarto, e assim por diante. De sorte que, nesta hiptese, estaramos
mudados em duas, trs, quatro partes, at que nada restasse da personalidade
primitiva. Ora, quem no v, quem no sente, que se no guardam de tal arte
fragmentos de alma, e que esta una, simples, indivisvel e idntica a si
mesma em qualquer perodo de sua durao? A permanncia do eu ressalta,
ainda uma vez, vitoriosa dessa mixrdia.
Avanaro, enfim, que h no crebro um lugar qualquer, um santurio em
cujo dito fique, isenta das leis gerais, uma molcula imutvel, permanente,
privilegiada entre as demais, dotada de integridade inatacvel, e que essa tal
molcula o centro dos pensamentos e o que constitui a identidade pessoal?
Mas, tal suposio , no apenas arbitrria e balda de sentido, mas
tambm contrria observao cientfica e ndole do mtodo positivo. De
resto, nenhum dos adversrios se decide a lhe assumir a responsabilidade.
Assim, queiram ou no, a identidade permanente do ser mental fato
inconcilivel com a mutabilidade incessante do rgo cerebral, no caso em que
se conceitue o nosso ser mental como atributo orgnico.
Singular audcia de sonhadores, o virem negar, face da conscincia
individual e universal, o grande fato da existncia pessoal da alma! No
sabemos todos, saciedade, que o nosso eu e os nossos rgos so
radicalmente distintos? que a nossa pessoa se reconhece e afirma
independente em si e de si mesma? que ns no somos os nossos rgos,
mas que eles so nossos, o que bem diferente? Negar tal coisa, vale por
negar a luz meridiana. Pr assim em dvida a primeira afirmao de
conscincia, pretender que estejamos iludidos e que, ao invs de uma
existncia pessoal, da posse dos nossos rgos, so estes que nos possuem,
pr em dvida ao mesmo tempo o princpio de toda e qualquer certeza,
reduzir a fumo o secular edifcio dos conhecimentos humanos.
Negado esse primeiro fato de conscincia, nada mais resta Humanidade.
Haver quem desconhea a ousadia de semelhante pilhria?
Se estamos iludidos acerca da prpria personalidade, em que mais
poderamos crer e afirmar nesta vida? Admiramos esses senhores
materialistas, que colocam uma tal dvida em primeiro plano e ousam afirm-la
com pretensas observaes de cincia positiva. No vos parece sejam eles,
por sua vez, joguetes de mirfica iluso quando assim to ingnuamente
sustentam no passar de miragem a identidade pessoal, para que sejamos to
s um adjetivo do elemento cerebral? Sim, porque, persuadidos deveriam estar
de que no lhes sendo as prprias idias mais que produto do fsforo e da
potassa, a natureza das mesmas idias depende da natureza das combinaes
e, consequentemente, no lhes vai bem essa atitude de pregoeiros pessoais.
Essa prerrogativa lhes escapa, e se quisssemos levar o seu mesmo sistema
s suas burlescas consequncias, comearamos por consider-los
pessoalmente inexistentes, e, em lugar de a eles nos dirigirmos como a
135

criaturas pensantes, nos ateramos constituio do seu crebro. Aqui, opor-


tuno lembrar, com Hersehel, no haver absurdo que um alemo no teorize.
Atingidos esses exageros, no h como deixar de olhar para trs e lembrar
a Ontologia no trono que ela abdicou em benefcio da repblica cientfica. Sem
restabelecer o equilbrio, somos tentado a perguntar, com de Broglie (74), se a
Ontologia ser bem uma asneira e se os ontologistas no sero uns loucos,
idiotas, sonhadores. Nem tanto, responderemos com o acadmico. A Ontologia
no coisa que se deva tomar em sentido pejorativo, pois um dos ramos da
Filosofia geral, cincia do ser, em oposio do fenmeno, ou da aparncia.
O homem, dizem os filsofos, aborda diretamente os fenmenos e
apreende-os, seja pelos sentidos, seja pela conscincia; estuda-os, descreve-
os, compara-os. Entretanto, sob o fenmeno h o ser que persiste enquanto
ele o fenmeno muda ou passa. Independentemente dos atributos, das
modificaes, h a substncia que suporta os atributos e sofre as
modificaes. s qualidades e aparncias necessrio um objeto de inerncia,
um suporte, ou o que melhor nome tenha. Enquanto as cincias naturais
descrevem os fenmenos sensveis e a Psicologia descreve os fenmenos
conscienciais, a Ontologia sonda a legitimidade do processo pelo qual
passamos do fenmeno ao ser.
Aqui no queremos, porm, entrar nem conduzir

(74) De IExistence de IAme, pgina 112.

o leitor a essa cripta ainda assaz obscura, da cincia abstrata, pois tememos,
como ningum, as emanaes soporficas que a cripta exala.
Temos, por essencial, permanecer no plano ativo e luminoso da
observao experimental. Notamos mesmo to certo estamos da vitria e de
sobrancear com prazer todas as dificuldades que a autoridade da
conscincia pode, sob um certo prisma, ser posta em dvida e que importa no
aceitar sem controle o testemunho puro e simples do senso ntimo. Como o
princpio pensante sofre a cada instante uma chusma de influncias derivadas
do mundo exterior e no lhe seja possvel descobri-la e remont-la, poder-se-
ia, talvez, pretender que a convico de sua identidade seja uma iluso devida
a uma ignorncia invencvel do respectivo jogo dos elementos componentes. A
essa objeo, responderemos com Magy (75) no encadeamento das
proposies seguintes:
Na alma humana, como em toda a Natureza, encontramos em coexistncia
a fora e a extenso. Os fatos de molde a revelar uma atividade prpria, no ser
pensante, so visveis a cada passo, na marcha de nossos estudos.
Com efeito, a primeira condio do aprendizado , para o nosso esprito,
um esforo espontneo para neutralizar as causas tendentes a nos manter na
inrcia e na ignorncia, tais como os imperativos da vida social, as
necessidades do corpo, as paixes, a falta de aptides, as dificuldades prprias
do estudo.
Esse esforo preliminar no cessa com o incio do estudo, mas, ao
contrrio, mantm-se e avulta no perodo das aquisies.
Preciso se faz uma ateno firme e persistente, para nos penetrarmos dos
conhecimentos a que aspiramos. Essa ateno to indispensvel ao colegial
como ao maior dos gnios. Newton no
136

(75) De la Sciencie et de la Nature, pgina 63.

teria encontrado a atrao universal seno por sua constante tenso espiritual.
Arquimedes, absorvido na investigao de um problema, no d pela tomada
de Siracusa e sucumbe trespassado pelo gldio invasor, como vtima diga-
se do dinamismo da sua alma. Descartes lobriga em todas as coisas um
motivo de meditao. E no sabemos, todos ns, que a Cincia s se adquire a
preo de esforos perseverantes e depois de maturada contenso espiritual
sobre o objeto do estudo?
Mais ainda: essa mesma energia, indispensvel ao esprito para adquirir o
saber, torna-se-lhe necessria para conserv-lo. O melhor meio de reter na
memria a Cincia est no concentrar-se demoradamente em cada idia ou
fato, em dar conta minudente dos processos de pesquisa utilizados pelos
inventores, em lhes apreender o mtodo e fixar, de qualquer modo, o estudo no
crebro. Estes fatos atestam que o ser pensante, no adquirir conhecimentos,
os assimila mediante um trabalho que lhe prprio, comportando-se com fora
individual. Agora, o modo fundamental de ao da causa inteligente prova,
peremptoriamente, que essa fora individual e no um conjunto de foras
distintas.
Todas as operaes da inteligncia humana so anlises sintticas, ou
snteses analticas, isto : consistem essencialmente na decomposio de um
dado todo, ou na coordenao de elementos distintos, em que cada qual
intervm com a sua cota e toma o seu lugar lgico. Qualquer que seja a
cincia focalizada, nela se afirma a lei do esprito humano, sem a qual no
haveria qualquer relao entre os diversos objetos do nosso conhecimento,
nem a prpria Cincia existiria. Desnecessrio exemplificar, no pressuposto de
estarem os leitores assaz habituados com os processos intelectuais ntimos,
para que bem os compreendam simplesmente enunciados na sua profundeza e
universalidade.
Pois bem: se julgarmos a alma pela sua ao intelectual, reconheceremos,
sem hesitao, que a fora pensante no pode ser um agregado de foras
elementares. De fato, como poderia a alma centralizar todas as observaes
que se lhe impem, grupar silogismos secundrios em torno do principal,
associar julgamentos segundo as regras da Lgica, perceber a relao dos
termos convenientemente enunciados, coordenar numa mesma intuio os
fenmenos estudados, formular hipteses, comparar resultados? Como
poderia, em suma, abstrair e generalizar, seno como fora absolutamente
simples, indivisvel e dotada da faculdade de tudo avocar a si, como juiz nico,
em conscincia nica?
Os partidrios da secreo cerebral repetiro, ainda uma vez, que essa
alma pessoal no passa de uma resultante de todas as foras elaboradas pelos
rgos do crebro e Sintonizadas num dinamismo bem regulado, assim
estabelecendo a unidade e harmonia do trabalho intelectual.c
Mas, este singular acordo de todas essas pequeninas almas, para
formarem uma grande alma, hiptese mais complicada, e, por consequncia,
mais afastada que a nossa, da verdade natural. Ao invs de estabelecer a
unidade da alma, ela a destri. Localizando as faculdades nos diversos rgos
do crebro, Gall declarava que todas elas so dotadas da faculdade de
percepo, de ateno, de memria, de recordao, de julgamento e de ima-
ginao! Que bela repblica! Quando uma que tal faculdade sobrepujar as
137

vizinhas (o que a observao demonstra em cada indivduo), estas suportaro


submissas o seu despotismo? Quando duas faculdades se desentenderem, por
exemplo a de n. 5 (pendor para a morte) e a de n. 24 (benevolncia), quem
dominar o antagonismo? H que imaginar logo um generalssimo e, neste
caso, oficiais e soldados tornam-se inteis e o nosso general ficar sendo,
simplesmente ele, o prprio esprito, pois, como acabmos de ver, dado o
modo de ao intelectual da alma, bem como o testemunho da conscincia,
essa alma nica, idntica e indivisvel.
fcil reconhecer o carter dinmico da alma em todas as suas
manifestaes. Se observarmos um esprito culto, o que logo se revela nele
uma sede insacivel de conhecimentos, a fora virtual da alma a traduzir-se
em obras eloquentes.
Se baixarmos s camadas inferiores da sociedade, a essas zonas
penumbrosas onde a flama da instruo ainda no radia, vemos, no mais uma
atividade em funo intelectual, mas passional, um modo de atividade
psicolgica universal.
tendncia passional do indivduo junta-se, ainda, a energia de uma
paixo dominante, e a esta vontade que a combate, ou que a dirige. A facul-
dade de vencer ou de nortear as suas paixes , pois, ainda uma forma
dinmica da essncia da alma. Se, enfim, baixarmos das nossas vontades
particulares aos hbitos que elas engendram e mantm em ns, chegaremos a
reconhecer que todos os atos, desde a obra criadora do pensamento at o
movimento mais simples de um membro, denunciam a fora ntima que nos
governa e se traduz em ato material, por intermdio dos centros nervosos, dos
nervos e dos msculos. Sabemos que a fonte de todo o movimento orgnico
reside no esprito. Ningum ousar negar que meu brao ou minha perna se
movem ao impulso de minha vontade, qual se d com a locomotiva presso
do vapor, dirigida pelo maquinista. Meu corpo em si e por si s, e inerte.
Descartes e Locke, neste ponto, esto de acordo com Leibnitz. O pensamento
ao da alma: ser preciso mais para sustentar que a alma fora? O
prprio Cabanis no anda longe de o confessar, quando diz que para ter uma
idia justa das operaes que originam o pensamento, importa se considere o
crebro como um rgo particular, especialmente destinado a produzi-lo, assim
como o estmago e os intestinos se destinam a operar a digesto; o fgado a
filtrar blis, as partidas e as glndulas maxilares ao preparo da saliva. As
impresses, atingindo o crebro, fazem-no entrar em atividade e sua funo
peculiar perceber cada impresso particular, ligar os sinais, combinar as
diferentes impresses, compar-las entre si e tirar ilaes e determinaes, tal
como a funo dos outros rgos atuar sobre as substncias nutritivas, cuja
presena os estimula, dissolvendo-os e assimilando-lhes os sucos. Cabanis
acrescenta que essa maneira de ver levanta a dificuldade suscitada por
quantos, em considerarem a sensibilidade uma faculdade passiva, no
compreendem como julgar, raciocinar, imaginar, no seja outra coisa que sen-
tir. A dificuldade desaparece quando se reconhece nestas diversas operaes
a ao do crebro sobre as impresses que lhe so transmitidas. Conse-
quentemente, notaremos ns com Magy, segundo os fisiologistas menos
espiritualistas, o crebro um sistema cuja funo produzir e elaborar o
pensamento, que assim se torna, literalmente, dele resultante. A, param eles,
sem perceberem que, por tudo explicarem, s lhes resta uma palavra a acres-
centar.
138

Todos quantos em face da correlao notvel que une a alma ao corpo


em todas as manifestaes destes dois princpios afirmam a identidade
substancial da fora pensante e da energia cerebral, assemelham-se aos que
do matria atributos divinos. Eles transferem ao crebro as faculdades
inerentes ao Ser pensante, que a conscincia revela no fundo de nossa
atividade ntima.
Todas as vossas pretenses se evaporam, o desprezadores da
Inteligncia! A Humanidade em peso vos impe este vocbulo imperecvel
Alma. E cada ser pensante afirma, em particular, o Eu que rege, que centraliza
sua prpria vida. Em vo procurais ligar essa personalidade a um movimento
material da medula espinal! A isso oponho eu, vitoriosamente, a minha
potncia intelectual, que diz:
eu penso, eu julgo, eu quero; essa potncia inatacvel, que considera o visvel
como o invisvel, o material como o imaterial, o presente, o passado, o futuro;
que no pode filiar-se matria, de vez que sua vida e atos se completam no
mundo moral.
Oponho-vos, enfim, meu pensamento, que a vs se dirige fremente pelo
vosso atentado, e que, por esta mesma palavra, atravs destas linhas, atesta-
vos a minha existncia individual, quanto afirma a minha personalidade.
Pretendereis que este protesto possa provir de um lbulo do meu crebro?
No, meus senhores, parai com o gracejo; eu sei (e vs tambm) que
quem aqui vos fala o meu es e no um nervo ou uma fibra...c
Por encerrar este captulo concernente personalidade humana,
poderamos acrescentar algumas reflexes sobre uns tantos motivos de
estudo, ainda misteriosos e nada insignificantes. O Sonambulismo natural, o
Magnetismo e o Espiritismo oferecem aos pesquisadores srios, capazes de
os entestar cientificamente, fatos caractersticos, que bastariam para mostrar a
insuficincia das teorias materialistas.
triste, confessamo-lo, para o observador consciencioso, ver o
charlatanismo descarado intrometer-se, vido e prfido, em causas
respeitveis; triste, assinalar que noventa por cento dos fatos podem ser falsos,
ou imitados. Mas, um s fato, bem averiguado, suficiente para baldar todas
as explicaes. Ora, qual a atitude de uns tantos doutos diante desses fatos?
Neg-los sumriamente.
Cncia est convicta, diz Bchner, em particular, de que todos os
presumidos casos de clarividncia no passam de conluios e trapaas. A
lucidez, por motivos de ordem natural, impossvel. imperativo das leis da
Natureza que os efeitos dos sentidos se adstrinjam a determinados e in-
transponveis limites no espao. A ningum dado adivinhar pensamentos,
nem ver de olhos fechados o que se passa em torno. Verdades so estas bus-
cadas em leis naturais, imutveis e sem excees.
senhor juiz! conheceis vs todas as leis naturais? Nada existir oculto
para vs na Criao? Feliz, vs, que ainda no sucumbistes sobrecarga da
vossa cincia! Mas, como? Eis que viro duas pginas e leio: O
Sonambulismo fenmeno do qual no temos, infelizmente seno
observaes muito inexatas, nada obstante carecermos de noes precisas,
atendendo Importncia que ele tem para a Cincia.
E todavia, sem dados certos (vde bem), lcito relegar conta de fbulas
todos os fatos maravilhosos extraordinrios, que se atribuem aos sonmbulos.
A um s, destes, no permitido escalar os muros, etc.. Sensato que o
139

vosso raciocnio!
E como tereis bem procedido se, antes de escrever, procursseis
conhecer um pouco os assuntos que abordais!
Os observadores filsofos que nos ouvem, sabem que certos fatos da vida
psquica so absolutamente inexplicveis pela hiptese materialista, e que,
uma vez rigorosamente comprovados podem, s por si, desmantelar o bailu.
Sem que se torne preciso aqui insistir sobre este aspecto da questo,
convm notar que impossvel admitir a alma como produto qumico, ou
dinmico, quando sabemos que ela manifesta, em dadas circunstncias uma
personalidade distinta, uma natureza incorprea e faculdades independentes.
Portanto, voltando s concluses precedentes temos: contradio da
unidade psquica com a multiplicidade dos movimentos cerebrais, contradio
entre a identidade constante da alma e a mutabilidade incessante dos
elementos constitutivos do crebro, contradio entre o carter dinmico da
alma e as pretensas secrees orgnicas. Contradies contradies e sempre
contradies!
Se os adversrios acham que elas no bastam, o exame dos fatos de
volio lhes vai facultar um novo discernimento.
140

3
A VONTADE DO HOMEM
SUMRIO Exame e contestao desta assertiva: a Matria
governa o homem. Se verdade que a vontade e o individuo no
passam de Iluso. Se conscincia e julgamento dependem da
alimentao. Exemplos histricos da fora de vontade e carter de
grandes homens. Coragem, perseverana e virtude. As faculdades
Intelectuais e morais nada tm com a Qumica. Divagaes curiosas,
feitas margem do Reno. Influncia dos legumes no progresso
espiritual da Humanidade. Liberdade moral. Aspiraes e afeces
Independentes da Matria. Esprito e corpo.

Dizia Zlter a Goethe que um dos maiores obstculos que impediam os


alemes de falar o seu idioma to espontnea e correntemente como outros
povos, provinha de certa presso da lngua, pelo fato de muito se alimentarem
de vegetais e gorduras. verdade que no temos outra coisa, mas a
sobriedade e a prudncia muito podem remediar e corrigir (76).
com esta advertncia que Moleschott abre o grande captulo epigrafado:
a Matria governa o Homem, sem perceber que a segunda frase do pargrafo
traz consigo a condenao que ele vai especar, das correlaes alimentares
com o estado fsico e intelectual do homem. Quando o velho companheiro de
Goethe lhe observa que a sobriedade e a prudncia podem fazer e corrigir
muitas coisas, prova, por isso mesmo, que ele no se julga to

(76) Briefwchsel ziwischen Goethe und Zelter, 1, 113.

somente uma composio material, mas, tambm, uma fora mental, capaz de
tirar de si mesmo resolues contrrias s tendncias da matria. Vamos, com
efeito, acompanhar a argumentao materialista que, aqui como alhures, peca
sempre pela base e no se mantm seno por uma espcie de equilbrio
instvel, que um piparote de criana pode desmantelar. O adversrio de Liebig
pretende demonstrar que a matria governa o homem, estabelecendo que a
alimentao atua sobre o organismo. Como tema de Fisiologia, estes fatos so
interessantes e instrutivos, e a ns nos praz o ensejo de os resumir aqui; mas,
como tema de Filosofia, eles se nos afiguram o que possa haver de mais
incompleto. Consideremo-lo prviamente: O quadro deste captulo vai oferecer-
nos, por sua prpria natureza, um duplo aspecto. No verso, desenhado pela
Fisiologia contempornea, notaremos a ao fsica dos alimentos no
organismo, e no reverso veremos que a mesma est longe de constituir o
homem integral, e que o ser humano reside numa potncia superior s
transformaes da blis e do quilo, potncia que governa a matria e longe est
de se lhe escravizar.
Invoca-se, em primeiro lugar, a diferena do regime alimentar, vegetariano ou
carnvoro. Legumes e hortalias contm pouca gua, poucas gorduras e
quarenta vezes menos albumina que a carne. Analisando os sais contidos
nestas substncias opostas, concluram que o regime carnvoro aumenta os
fosfatos no sangue, e o vegetariano, pelo contrrio, desenvolve os carbonatos.
De resto, as substncias albuminosas das partes verdes da planta no so a
albumina, nem a fibrina. Preciso , pois, que elas sofram essa primeira
141

transformao, antes de se incorporarem ao sangue. As gorduras vegetais, por


sua vez, no so verdadeiras gorduras, mas to s adipogenias, ou seja,
elementos que originam gordura e, portanto, precisando sofrer uma primeira
transformao. H razo para dizer que a diferena de ao da carne comea
a fazer-se sentir no sangue antes dele formado, isto , na sanguificao, na
digesto.
Esses alimentos sero tanto mais facilmente digeridos, quanto mais os
seus elementos constitutivos se identificarem com os do sangue. Da resulta
que a carne, mais que o po e os legumes, aproveita sanguificao. O
comprimento dos intestinos relaciona-se com este processo de digesto, de
acordo com as substncias, permitindo-nos fazer dele uma idia. Nos
morcegos, que s se nutrem de sangue, o tubo intestinal no passa do triplo do
comprimento do corpo. No homem, cujo regime misto (o que igualmente se
indicia pelo siztema dentrio, composto de caninos e incisivos), o comprimento
do intestino o sxtuplo da altura. No carneiro, herbvoro, o intestino vinte e
oito vezes mais longo que o corpo. Todos os animais carnvoros tm estmago
pequeno. O estmago humano tem a forma de um reservatrio, atravessando a
cavidade abdominal, provido de um beco sem sada, maior que nos pr-citados
animais. Os ruminantes, por guardarem a forragem, tm um estmago de
quatro compartimentos.
O homem tem a construo do onvoro. De passagem, diga-se, as velhas
prescries pitagricas, tanto quanto as modernas proposies de Rousseau e
de Helvtius a favor do regime animal, devem ser rejeitadas como antinaturais.
Sendo os vegetais menos nutrientes que os animais, o po ocupa um lugar
intermedirio. No glten que o compe, dois corpos albuminides se
distinguem: albumina vegetal, insolvel, e cola vegetal. Estas substncias
diferem da fibrina da carne e devem dissolver-se nos sucos, durante a di-
gesto. No po h menos gordura que na carne, mas h o amido e o acar,
que devem transformar-se em gordura ao perderem uma parte de oxignio.
Destas comparaes decorre que o sangue, e com ele os msculos, os nervos,
a carne e todos os tecidos, se renovam mais rapidamente no regime carnvoro.
Infere-se da, que, sendo o sangue o fator dos tecidos, das secrees e
excrees orgnicas, e ainda porque se modela pela alimentao do homem, a
diferena primordial, assinalada entre os regimes vegetal e crneo, deve
estender sua influncia a todos os fenmenos da vida.
Detivessem-se eles nesta concluso e nada teramos a objetar. Dizemos,
com os antagonistas, que o apetite de um homem sadio se apazigua antes com
um bife do que com uma salada. Consentimos em admitir que, se as raas de
ndios caadores revelam fora muscular notvel, ao passo que os insulares do
Pacfico se apresentam fracos (relativamente), porque estes se alimentam de
ervas e frutos e aqueles de muita carne. Concedemos, igualmente, que a
indolncia e falta de carter dos Hindus prenda-se um tanto ao seu regime
herbboro; que o filsofo Haller tivesse razo para acusar uma tal ou qual
inrcia com o vegetarismo de alguns dias; que, por um efeito inverso, uma
diviso do Exrcito a que pertencia Villerm, na guerra de Espanha, fsse
atingida de diarria (relevem a citao que literal), de magreza e debilidade,
por ter sido forado a se alimentar s de carne durante oito dias. Concordamos,
tambm, que os ndios do regon s comem razes, durante um longo perodo
do ano, das quais vinte espcies so nativas com o que muito nos prazemos
e que as tribos se movem de uns a outros lugares para capt-las, visto no
142

maturarem seno sucessivamente. De boamente aceitamos que, vigente ainda,


no Malabar, a crena na metempsicose, por l existam hospitais para animais e
se alimentem, nos templos, ratos cuja vida sagrada. Sabemos, mais, que os
islandeses, Kanitschadales, Lapnios, Samoledos, s podem alimentar-se de
peixe durante um certo perodo do ano, enquanto que os caadores das
plancies americanas s comem carne de biso. Concordamos, enfim, sem
relutncia e sem provas, que basta comer marmelada ou ma para alcalinizar
a urina e que os franceses emitem menos uria que os alemes, alis muito
distanciados dos ingleses o que prova consumir-se em Londres 1,6% da
carne consumida em Paris e, por fim, no estranhamos que as graciosas
passeantes, mais que o transeunte vulgar, encaream a vantagem de
aumentar os mictrios pblicos de Paris ou dar-lhes, no mnimo, outros
dispositivos. Efetivamente vos damos, ou melhor consentimos tomeis,
vontade, tudo quanto pedirdes em Fisiologia... Mas, na verdade, que relao
tem tudo isso com a prova da personalidade humana? Com franqueza:
que aclaramento essas experincias trazem ao assunto? Onde e como essa
qumica demonstra a inexistncia da alma? E que fazeis do mtodo cientfico,
que recomenda no proceder seno por indues ou dedues? Que
mancebia essa com a escolstica dos nossos avs?
Certo, no sabemos o que mais admirar: se a audcia, se o erro destes
fisiologistas, levando-nos borda do abismo e dizendo-nos: saltai! Ser que
acreditem ter lanado uma ponte com algumas teias de aranha? Na verdade,
preciso encarar o esprito humano como um cego de nascena, para pretender
adorment-lo com semelhantes processos. De fato, quem se no admirar de
saber que, como concluso de fatos mais ou menos incompletos, quais os
precedentes, apresentem-nos a seguinte e enftica declarao:

Observaes numerosas e experincias feitas em grande escala, provam


que o homem deve, em parte, a sua privilegiada situao, em relao
aos animais, faculdade de se alimentar ora de vegetais, ora de carne
(77).

(77) Cireulation de la Vie, 2, 69.

* A matria a base de toda a fora espiritual, de toda a grandeza


humana e terrestre (78).
* O vocbulo alma, considerado anatomicamente exprime o conjunto das
funes cerebrais e da medula espinhal, e, fisiologicamente o conjunto das
funes da sensibilidade enceflica (79).
* A anlise no encontra na conscincia, neste augusto instinto, nesta
VOZ imortal, mais que um simples mecanismo, que se desmonta como
qualquer aparelho (80).
A estas afirmaes no falta Ousadia. Mas, depois das declaraes
negativas por ns registadas no captulo anterior, de nada mais nos podemos
admirar.
Se verdade que os temperos auxiliam a digesto - diz Moleschott e o
po de rala, as frutas (especialmente figos) ingeridos em jejum e regados com
um copo dgua fria desenvolvem o ventre; se os rabanetes o alho, a baunilha,
estimulam o sensualismo, e se o vinho o ch e o caf atuam sobre o crebro
claro est que a matria governa o homem...
143

Sobre isso, no tnhamos dvidas. Sabeis o que preciso para adquirir


eloquncia? no comer nozes nem amndoas E como a Voz e a palavra
dependem, ao que parece, dos movimentos musculares da laringe, prefervel
o regime vegetal ao gorduroso
Quereis uma prova da correlatividade essencial de pensamento e matria?
Olhai o fundo da Vossa xcara de caf. Este, tal como o barco a Vapor e o
telgrafo pe em atividade uma srie de pensamentos, origina uma corrente de
idias, de empreendimentos

(78) Force et Matire, captulo 5.


(79) Dictionnaire des Sciences Mdicales.
(80) Taine Philosophes Franais.

com ele. evidente que a necessidade oriunda de uma afinidade eletiva da


Humanidade pelo caf e pelo ch, tornou-se mais imperiosa e generalizada,
proporo que aumentaram as exigncias intelectuais da Civilizao.
Eis ainda um outro fato de importncia capital. Os Kamstchadales e os
Tongouses embriagam-se com o seu aguric vermelho e parece que os
servos, desejosos de conhecerem a sensao dessa bebida, no trepidam em
beber a urina dos seus amos.
Logo, portanto, a matria que governa o homem conclui
espirituosamente o Sr. Moleschott...
Num tal sistema, qual j o temos entrevisto, claro que o livre arbtrio fica
completamente aniquilado. O prprio Moleschott o declara. No somente o ar
que a cada momento respiramos transforma o sangue venoso em arterial; no
s transmuda os msculos em creatina e creatinina; o msculo do corao em
hipoxantina; o tecido do bao em hipoxantina e cido rico; o humor vtreo dos
olhos em uria, como refunde a todo instante a composio do crebro e dos
nervos, O mesmo ar que respiramos, muda diriamente, no nas matas o
que nas cidades, no sobre os mares o que no cimo das montanhas, nem
ao nvel das ruas o que no alto de uma torre. Alimentao. nascimento,
educao, convivncia, tudo, em torno de ns, rola num movimento que se
comunica constantemente.
Proposies verdadeiras, estas, provam que o homem est envolvido
no mago de um mundo a cujas influncias no pode eximir-se, e provam
tambm; quem sabe, que o livre arbtrio no to absoluto quanto afirmam
alguns psiclogos entusiastas. Mas, o que essas verdades no provam, a
inexistncia da vontade humana.
No so todos os materialistas que levam sua excentricidade ao ponto de
afirmar que a criatura humana no tenha Conscincia de que existe, para que
deixe de ter a liberdade de seus prprios atos e resoluo.
Bchner menos exagerado. Dizemos com ele, que o homem obra da
Natureza que a sua pessoa, aes, pensamento e mesmo vontade, esto
submetidos as leis que regem o Universo. As aes e a conduta do indivduo
dependem, incontestvelmente, da sua educao do carter, dos costumes, da
ndole do povo e da nao a que pertence e esta nao e, por sua vez, e de
certo modo, o produto do ambiente em que vive e das relaes exteriores que
lhe entretiveram o desenvolvimento.
Pode-se por exemplo notar com Deser que o tipo americano se
desenvolveu com os primeiros colonos ingleses h dois e meio seculos.
144

um resultado que se pode atribuir a influncias climticas


O tipo americano distingue-se pela sua compleio, pelo pescoo alto,
pelo temperamento dinmico e ardoroso. O pouco desenvolvimento do sistema
glandular, que d s americanas essa expresso terna e vaporosa; a
espessura, o comprimento e a secura do cabelo, podem provir da secura do ar.
H quem Suponha ter notado que a agitao dos americanos aumenta com os
ventos do Nordeste. Destes fatos se infere que o grandioso e rpido progresso
dos Estados Unidos seria, em parte, devido ao meio fsico.
Tal como na Amrica, os ingleses originaram um novo tipo na Austrlia,
notadamente em a Nova-Gales do Sul. A, os homens so altos, magros,
musculosos, e as mulheres belssimas, mas, de uma beleza efmera Os
novos Colonos do-lhes o apelido de Cornstalks (palha de trigo), O carter in-
gls ressentesse do firmantento nebuloso, do ar pesado, dos estreitos limites
da terra natal. O italiano, pelo contrrio, reflete em tudo o cu sempre belo e o
Sol sempre ardente da sua ptria. (E Contudo, os romanos muito tm mudado
de 2000 anos a esta parte.) As idias e contos fantsticos do Oriente, esto
intimamente ligados luxuriante vegetao que lhes moldura o bero. A zona
glacial no produz mais que raquticos arbustos e assim, tambm, uma raa
mofina, nada ou pouco acessvel ao progresso. Os habitantes da zona trrida
tambm pouco se adaptam a uma cultura superior. S nos pases onde o
clima, o solo e as relaes ambientes oferecem um certo meio-termo, pode o
homem equilibrar-se e adquirir um grau de cultura preponderante sobre os
seres e as coisas que a rodeiam.
Todas estas observaes no provam, porm, que a matria governe o
homem e que a vontade e a individualidade sejam uma iluso. Cumpre, mes-
mo, advertir ao autor de Fora e Matria, que, antes so os indivduos que
fazem as naes e no estas os indivduos. Qual o dizia Stuart Mili, o mrito de
um Estado est, em tese, no dos indivduos que o compem. No so as
instituies, nem as leis, nem os governos que fazem a grandeza das naes,
mas o valor e a conduta dos cidados. , pois, da individualidade dos homens
que depende o progresso dos povos, e no de suas condies gerais. Em vo
se dir que esta individualidade mais no que o resultado preciso das
disposies do corpo: educao, instruo, exemplo, fortuna, posio social,
sexo, nacionalidade, clima, solo, poca, etc. No ser humano existe uma fora
transcendente a tudo isso, uma fora que os negativistas no querem ver e
procuram ocultar no nevoeiro de sua paralogia. Assim como a planta dizem
eles depende do terreno em que radica, no somente em relao sua
existncia, mas ainda ao seu tamanho, forma e beleza; assim tambm o animal
grande ou pequeno, manso ou bravo, bonito ou feio, conforme as influncias
extrnsecas, assim tambm o homem fsico e intelectual o fruto dos mesmos
fatores, dos mesmos acidentes e disposies, e nunca o ser espiritual,
independente e livre, que os moralistas nos pintam... Esses senhores
protestam quando lhes chamamos espirituas, e ns persistimos na
amabilidade Mas, sem constituir uma exceo a seu favor, temos o direito de
Sustentar a espiritualidade humana e apagar, com O exemplo de grandes
Vontades, essa teoria crepuscular, que conceitua as resolues do homem
uma funo baromtrica
preciso fechar voluntriamente os olhos aos eventos mais belos e
respeitveis da Histria, preferir tristes abstraes a verdades gloriosas, sacri-
ficar venerandos monumentos do pensamento quimera de uma idia fixa,
145

para ousar assim negar o poder da vontade, o valor de sua energia, a in-
dependncia de sua resoluo, os milagres mesmos de sua persistncia e
substitu-lo por uma sombra difusa e vaga, dependente dum sol teatral. Na ver-
dade, no vemos a vantagem desta substituio. desconhecer a grandeza do
homem o afirmar que os seus atos no passam de resultado necessrio e
fatalstico dos seus pendores fsicos, tendncias orgncas e propenses
materiais. degradar-lhe a dignidade abaixo do nvel da mediania intelectual e
colocar-se em contradio com os exemplos mais brilhantes que constelam a
fronte da Humanidade por coro-la de glria imperecvel Abordemos, em todas
as suas fases, os anais da Humanidade; consultemos, sobretudo, as pginas
do nosso sculo, j to engrandecido de invenes fecundas e entrevistas
Possibilidades logo nos convenceremos de que o gnio no simplesmente
resultante de condies materiais e muito menos de uma enfermidade nervosa,
seno que se afirma por uma fora superior a todas as contingncias e que
muitas vezes o tem dominado guiado e vencido. Longe de encarar o homem
como um ser inerte, cujas obras no passassem de efeitos instintivos, de h-
bitos, necessidades apetites e predisposies orgnicas, ns proclamamos,
com a autoridade dos fatos, que a inteligncia governa a matria, e que o valor
do homem consiste, precisamente, nessa elevao, nessa soberania da
inteligncia.
Para ilustrar o asserto e invalidar, exemplificando, a audaciosa afirmativa
destes campees da matria, lancemos um olhar ao panorama intelectual da
Humanidade, e a todos quantos sentem pulsar-lhe no peito um corao
patritico, apresentemos-lhes bem como aos jovens indecisos, que, mal
transpondo os prticos da vida prtica, pudessem deixar-se embair pela
mentira materialista, acarretando para si a prpria runa apresentemos-lhes,
sim, o quadro to grato aos nossos sentimentos, to til s nossas vistas e to
imponente s nossas aspiraes, desses homens enrgicos sados das mais
nfimas camadas sociais, para elevarem-se, pelo prprio esforo, conquista
do mundo e s culminncias do pensamento soberano.
Num belo livro, cujo ttulo extico no bastante claro nem cativante, mas,
que deveria andar em mos de toda a mocidade francesa (Self-Help, ou
Carter), um homem honrado, que Samuel Smiles, reuniu exemplos desses
vultos valorosos que venceram todos os percalos na vida e foram, por assim
dizer, a refutao viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o homem, em
vez de o elevar. por exemplos tais, que a alma se eleva para a verdade do
seu ideal. Julgamos de nosso dever homenagear aqui esse panteo de
benemritos exemplares, cujo panegrico deveria ser espalhado aos quatro
ventos.
Os fatos a seguir, de ordem geral ou particular, e as consideraes que
eles sugerem, oferecemo-los aos que repetem com Moleschott, Bchner e seu
rancho, que o homem segue os seus pendores e a reflexo nada vale face
das inclinaes e tendncias, sejam naturais ou adquiridas.
Sbios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado das mais
transcendentes verdades e todos quantos se enobreceram pelas virtudes do
corao, jamais sairam privativamente de uma classe ou de uma carreira da
hierarquia social. Ao contrrio, saram indiferentemente da oficina, como da
lavoura, da cabana, como do palcio. E os mais humildes atingiram, por
vezes, os postos mais culminantes, vencendo dificuldades aparentemente
insuperveis, que lhes atravancavam o caminho. Em muitos casos, parece que
146

essas dificuldades foram seus melhores auxiliares, obrigando-os a empregar


todo o esforo possvel no trabalho perseverante, e assim vivificando
faculdades que, de outra forma, poderiam permanecer adormecidas.
O exemplo de obstculos assim transpostos, os triunfos assim alcanados
so to numerosos, que justificam, quase inteiramente, este provrbio: com
boa vontade tudo se consegue.
Grande nmero dos que mais se distinguiram na Cincia, nasceram em
condies sociais havidas como incapazes de proporcionar talentos, mxime
cientficos. Em lugar das combinaes qumicas do hidrognio e fsforo, em
vez dos efeitos da eletricidade dos nervos, apresentamos estes grandes
caracteres, que, do fundo das camadas sociais mais obscuras, se elevaram
aos pinculos da Cincia, a saber: Coprnico, filho de um padeiro polons; Ga-
lileu, perseguido por amor verdade; Kpler, filho de um taberneiro e caixeiro
de taverna, por sua vez, atormentado sempre com a sua misria pecuniria;
dAlembert, enjeitado e encontrado pela mulher de um vidraceiro, nas escadas
de uma igreja, certa noite invernosa; Newton e Laplace, o primeiro, filho de um
pequeno proprietrio de Granthan, e o segundo, de um pobre campnio de
Beaumont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista de Halifax; Arago,
devendo toda sua glria perseverana no estudo desde jovem; Ampre, pes-
quisador solitrio; Humphry Davy, criado de um farmacutico; Faraday,
encadernador; Frnklin, aprendiz de tipgrafo; Diderot, filho de um cutileiro;
Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros; o fsico Hautefeuille, filho de um
padeiro de Orlees; Gassendi, pobre campons dos Baixos-Alpes; o
mineralogista Hy, filho de um tecelo; Buffon, que exigia, para levantar e
combater a preguia, que o acordassem a jatos de gua fria (sua sade, mau
grado ao que dizem nossos adversrios, para nada lhe serviu e seus maiores
trabalhos foram realizados no curso de longa e cruel enfermidade); o qumico
Vauquelin, aldeo de Saint-Andr dHbertot (Calvados), que, depois de
servente de farmcia, chega a Paris de saco s costas, com um escudo na
algibeira.
Em que o azoto e o fsforo entravam na secreo da vontade destes
sbios ilustres, e de que maneira o carbono se comportou para os levar ao
fastgio da projeo intelectual? Mau grado s circunstncias desfavorveis
com que houveram de lutar no incio da vida, estes homens eminentes
alcanaram, pelo s exerccio de suas faculdades, uma reputao slida e
duradoura, qual lhes no granjeariam todos os tesouros da Terra.
De nossa parte, citaremos agora os cirurgies John Hunter, Ambrsio
Par e Dupuytren, nascidos de condies humildes.
Conta-se que Dupuytren, quando no colgio da Marcha, ocupava com
outro colega um quarto que tinha por todo o mobilirio trs cadeiras, mesa. e
uma espcie de cama, na qual se alternavam para o repouso. To exguos
eram seus recursos, que, muitas vezes, passavam a po e gua. Dupuytren
comeava o trabalho s 4 horas da manh e ns sabemos, hoje, que ele foi o
maior cirurgio do seu tempo. Citaremos, ainda, Jos Fourrier, filho de um
alfaiate de Auxerre, o naturalista Coara-do Gesner, cortidor de Zurich.
Citaremos mais Pedro Ramas, Shakespeare, Voltaire, Rousseau, Molire,
Beaumarchais, grandes obreiros do pensamento, que derrubaram,
exclusivamente com a sua fora mental, as barreiras que as castas sociais
opunham ao vulgo.
Fcil nos seria exarar infinitos exemplos deste quilate. Em todos os ramos
147

da atividade humana: - Cincias, Belas-Artes Literatura, Comrcio, Indstria,


eles so to numerosos que chegam a dificultar a escolha entre tantos homens
notveis cujo xito lhes adveio somente do trabalho e paciente esforo (81).
Basta, por exemplo, lanar um olhar aos domnios da Geografia e assinalar
entre os grandes descobridores Cristvo Colombo, filho de um cardador de
Gnova; Cock, caixeiro de uma loja no Yorkshire, e Livingstone operrio de
uma fiao de tecidos perto de Glaacow Entre os papas, Gregrio 7 nasceu de
um carpinteiro Sixto 5 de um pastor e Adriano 6 de um pobre canoeiro. Na
sua juventude, pobrssmo Adriano impossibilitado de comprar uma vela,
preparava as lies ao relento, aproveitando a iluminao pblica. Ninguem
lobriga em tudo isto a influncia do oxignio.
No seno pelo exerccio autnomo de suas faculdades que uma
criatura pode adquirir o saber e a experincia que. reunidos, produzeM a
sabedoria. E, qual dizia Franklin to pueril esperar a posse destes bens sem
esforo e sem trabalho, quanto o seria contar com uma colheita em terreno
sem lavra nem semeadura.
Dois irmos, provindos do mesmo Casal, podem receber a mesma
educao, ter a mesma liberdade de ao, viverem juntos, nutrirem-se do
mesmo ar e dos mesmos alimentos e nada impedir que um se torne ilustre e
outro fique na mediocridade. A quanta gente se poderiam enderear estas
palavras do velho bispo de Lincoln ao irmo, homem indolente, que lhe pedia
fizesse dele um grande homem: certo, se a tua charrua se quebrar, posso
mandar reconsert-la, e se te morrer um boi posso

(81) V. Flammarion Les Heros du Travail, discurso Inaugural da


Associao Politcnica do Alto Marne, (1866) e conferncia pronunciada
no Asilo Imperial de Vincenes Compreende-se que no possamos aqui
chamar a ateno para esses fatos Importantes e antep-los
simplesmente s fantasias materialistas.

comprar-te outro; mas no posso fazer de ti um grande homem, de vez que


lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como tal.
Riquezas e bem-estar no so indispensveis ao desenvolvimento das
altas faculdades humanas, pois, se assim fora, no haveria no mundo, e de
todos os tempos, notabilidades desabrochadas das mais ntimas camadas
sociais. A qumica alimentar nada tem que ver com a produo intelectual.
Longe de ser um mal a pobreza, quando provida de energia e iniciativa
pessoal, pode transformar-se em benefcio, de vez que faz sentir ao homem a
necessidade de lutar com o mundo, onde, a despeito dos que compram o bem-
estar a preos degradantes, tambm h confiana, justia e triunfo para os
valorosos e honestos. A fortuna h mesmo, muitas vezes, prejudicado os seus
privilegiados. Em compensao, encontramos exemplos favorveis nossa
tese, entre aqueles que, inspirados pela f ou ciosos da felicidade do seu
prximo renunciaram, voluntriamente, aos gozos mundanos, aos poderes e
honras da Terra, descendo de sua posio culminante para dedicar-se
beneficncia e instruo das massas.
O mundo escravo da energia, dizia Aleixo de Tocquevlle, nem houve
fase de vida, na qual pudssemos conceber repouso; a luta interior, e mais
ainda a exterior, necessria e tanto maiormente necessria, quanto mais
envelhecemos. Comparo o homem a um viajante que caminha, sem parar, para
148

uma regio cada vez mais fria e que, quanto mais avana, mais precisa agitar-
se. A grande enfermidade da alma o frio e para combater esse mal temvel
preciso, no s manter ativo o esprito pelo trabalho, mas tambm pelo
contacto dos semelhantes e dos negcios temporais.
Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal.
Em plena atividade, ei-lo que perde a vista e, depois, a sade, mas no
perde nunca o amor verdade. Ainda quando combaldo a ponto de ser
carregado ao colo como qualquer criana, a sua indmita coragem no o
abandona Completamente cego e Invlido, nem por isso encerra a sua carreira
literria, justificando-a com estas nobres palavras bem dignas de serem
contrapostas hiptese materialista. Se como me praz acredttar, o interesse
da Cincia se inclui em o nmero dos grandes interesses nacionais, eu dei ao
meu pas o que lhe da o Soldado mutilado no campo de batalha.
Seja qual for o destino dos meus trabalhos, tambm espero que este
exemplo no ficar perdido. Quereria eu que ele servisse para combater essa
debilidade moral, que a molstia da nova gerao; que pudesse reconduzir
ao caminho reto da vida alguma dessas almas enervadas que se lamentam de
lhes faltar a f, sem saberem onde busc-la, e que, procurando por toda a
parte, em parte alguma encontram objeto de Culto e devotamento.
Porque dizer, com tanto amargor, que no h ar para todos os Pulmes,
emprego para todas as inteligncias? No temos a o estudo srio e calmo?
No haver nele um refgio uma esperana, uma carreira ao alcance de todos
ns? Com ele, atravessemos os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele
construmos o destino, usamos nobremente a vida. Eis o que fao e voltaria a
fazer ainda, se houvesse de recomear a marcha, a fim de reencontrar-me
justo onde me encontro. Cego e padecente, Posso dar um testemunho que,
penso, no ser Suspeito: o de haver no mundo algo melhor e mas valioso
que os gozos materiais que a fortuna e at a sade: o devotamento
Cincia.
Preferimos sentimentos que tais qumica da inteligncia. Estendemo-nos
confiadamente nestes exemplos porque, acima de tudo, do testemunho do
verdadeiro carter do homem Superior e da absurdidade dos materialistas que
ousam reduzir esse carter a simples funo da matria, a uma disposio
natural do crebro. No queremos concluir o protesto sem falar em Bernardo
Palissy, homem cuja vida vale por um protesto formal hiptese dos nossos
adversrios.
Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy nasceu em 1510, sendo seu
pai um pobre vidraceiro da Capela Biron. No pde, assim, receber a menor
instruo, no teve, qual confessava ele prprio, outro livro alm do cu e da
terra, que a toda gente dado ler e entender. Aos vinte e oito anos,
pauprrimo, instalou-se numa choupana, em Saintes, como agrimensor e pintor
de vidros. Casado e pai de filhos cuja subsistncia se lhe tornava impossvel,
concebeu a idia fixa de fabricar loua vidrada e imitar Luca della Rbia. Na
impossibilidade de viajar pela Itlia, para aprender a tcnica, houve de
resignar-se a investigar, tateante, no ambiente acanhado em que se
encontrava.
Depois de muito conjeturar sobre as matrias que entravam na
composio do esmalte, fz demoradas experincias e acabou reunindo as
substncias que lhe pareceram adequadas. Comprou potes de barro comum,
quebrou-os e recobriu os fragmentos com as massas que preparava, subme-
149

tendo-as ao forno para tal fim construdo. As tentativas falhavam e o que s


conseguia era potes quebrados, com grande prejuzo de carvo, de subs-
tncias qumicas, alm de tempo e trabalho.
Afrontando as lamentaes da esposa, o choro dos filhos e a ironia dos
vizinhos, nem assim desanimava. Sua companheira no se conformava com o
ver assim dissipar-se em fumo os j minguados recursos domsticos. Contudo,
haveria de submeter-se, de vez que o marido estava empolgado por uma idia
que ningum e nada no mundo lhe deuvaneceria.
As experincias prosseguiam por meses e anos. Descontente com o
primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou outra lenha, esper-
diou outras drogas e potes, perdeu tanto tempo e dinheiro que acabou caindo
em extrema misria. Sem embargo, persistiu. Obstinao cruel!
No mais podendo acender o seu forno, levava o material a uma fbrica
distante lgua e meia e o fracasso continuava. Desapontado, mas no desen-
ganado, resolve, ento, construir um forno para vidro, perto de casa. E o fz ele
mesmo, com as prprias mos. Conduzia da olaria, s costas, o tijolo; ajustava-
o, emboava-o; era pedreiro, carregador, oleiro, tudo! Ao fim de um ano, ei-lo
com o seu novo forno e os vasos preparados para uma nova experincia.
Apesar do esgotamento quase absoluto dos seus recursos, conseguira
acumular grandes reservas de lenha. Acendeu o forno, recomeou o trabalho,
no perdia de vista a tarefa, um minuto que fsse. Dia e noite a postos, vgil, ei-
lo a meter lenha, a graduar o fogo, e contudo o esmalte no derretia. Pela
segunda vez vinha o Sol surpreend-lo na faina e a esposa trazia lhe o parco
almoo. Nada no mundo o tiraria da boca do seu forno, no qual, desesperado,
lanava a lenha acumulada. O Sol recolhia-se e o nosso homem, no. Plido,
desfigurado, barba crescida, sobreexcitado sim, mas hrico, indefesso junto
ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois, seis dias enfim
transcorreram sem alterao. O invicto Palissy continuava a trabalhar, a vigiar,
mau grado ao desmoronamento de suas esperanas.
O esmalte no se fundiu... Ps-se, ento, a contrair dvidas, a comprar
novos vasos, mais lenha...
Os potes devidamente revestidos e cuidadosamente colocados no forno,
ainda uma vez acendeu-se o fogo. Era a ltima tentativa do desespero. Ele fz
um braseiro enorme e, no obstante a alta temperatura, nada conseguiu. A
lenha j escasseava. Como alimentar, at o fim, aquele fogaru infernal? Olhou
em torno, seus olhos incidiram na cerca do jardim, madeira enxuta, facilmente
combustvel. Que poderia valer aquela cerca comparada com a experincia
cujo xito dependeria, talvez, de algumas toras mais? As cercas foram
arrancadas, lanadas na fornalha. Sacrifcio intil!
Ainda no seria dessa vez... Mas dez minutos de calor quem sabe e
tudo estaria conseguido... Lenha, portanto, mais lenha e s lenha, a qualquer
preo, eis o que precisava! Que ardessem os mveis, contanto que no
perdesse aquela experincia. Estrondo horrvel se ouviu em toda a casa, logo
seguido dos gritos da mulher e filhos, j agora temerosos de que o homem
houvesse enlouquecido. Ei-lo que chega, sobraando destroos de mesas e
cadeiras! A fornalha tudo recebe, tudo devora. No se funde o esmalte, ainda
assim? Chega a vez dos assoalhos... A famlia, diante disso, foge espavorida e
vai pelas ruas a gritar que o seu chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor
encontrava-se absolutamente exausto, merc de tantas lutas, jejuns, viglias,
sobressaltos.
150

Endividado e coberto de ridculo, dir-se-ia presa de um desastre


irreparvel. E contudo, acabara por descobrir o segredo, a ltima proviso de
calor derretera o esmalte, Os vasos de barro escuro l estavam transformados
em loua branca, que ele deveria realmente achar belssima. Doravante, podia
afrontar com pacincia todos os remoques, ultrajes e recriminaes. O homem
de gnio, graas tenacidade na sua inspirao, acabava colhendo a palma da
vitria. Arrancara um segredo Natureza e podia com mais calma aguardar os
proventos da sua descoberta.
E no foi seno ao fim de dezesseis anos de labor assduo e penosas
experincias, que, isolado, aprendendo consigo, desajudado de todos, pde
colher o fruto do seu esforo. No tardou, porm, dada a sua independncia de
idias em matria religiosa, fsse denunciado e visse invadida e depredada a
sua oficina por uma turba ignara e fantica, de conivncia com as autoridades.
E enquanto assim lhe destroavam toda uma cermica preciosa, era ele preso
e conduzido a Bordus, onde aguardaria o cadafalso ou a fogueira. Salvou-lhe
a vida o Condestvel de Montmorency, no diga-se em ateno s suas
crenas religiosas, mas s suas falanas.
Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomendados pelo
Condestvel e pela Rainha-me, hospedando-se nas Tulherias, enquanto dura-
ram esses trabalhos. Mas, a guerra incessante que movia aos adeptos da
Astrologia, da Alquimia e da bruxaria, acarretou-lhe uma nova denncia como
hertico. Novamente preso, ficou cinco anos na Bastilha e ali morreu, em 1589,
na idade de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado o inventor
da loua esmaltada e das figulinas (82).
Diante deste magnfico exemplo de coragem e Perseverana no da
coragem proveniente de uma exaltao nervosa, qual a produzem a clera, o
medo, o cheiro da plvora, a msica marcial, visto que nestes casos
espontneos os adversrios poderiam alegar a sensao mas, de uma
energia que se desdobra por dezesseis anos afrontando todos os reveses; de
uma vontade que sobrepuja todos os obstculos como que avassalando o
corpo e as afeies do sangue. Diante desses exemplos, dizemos, diante de
todas as glrias da nossa espcie pensante; diante de todas essas chamas
que se consumiram para brilharem na posteridade das geraes; diante dos
anseios cordiais da Humanidade e diante dos testemunhos da sua prpria
conscincia, com que direito se vem averbar de iluso a vontade e de
subsequente a fora moral?
Com que direito ousam negar a energia independente e o carter
predominante dessas almas de rija tmpera? A que pretexto reduzem a potn-
cia

(82) Este relato parcialmente extrado de Self-help, edio de A.


Talandier. Outros muitos tipos poderamos apresentar como expoentes
da independncia e poder da vontade. Alongamo-nos sobre a vida de
Palissy, por ser um exemplo dos mais eloqentes que contradizem a
teoria adversa.

desses coraes a estados fisiolgicos, quando no a circunstncias fortuitas?


E como se leva a fantasia a estabelecer como princpio que as nossas
resolues variam com o barmetro?
Objetar-se- que o benemrito oleiro, cujo perfil acabmos de traar,
151

representa uma exceo no seio da Humanidade? Mas, uma tal evasiva s


poder provir da ignorncia e carncia de observao. Nomes mais ilustres que
o de Palissy, fulguram por a a ttulos outros e nos quais admira-nos a mesma
obstinao e firmeza.
Buffon escreveu que gnio pacincia. Lembramo-nos, ento, de Kpler
procurando durante dezessete anos as trs leis imortais que o recomendam
posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifndios celestes, onde
se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em
torno da Terra. Falaremos de Newton, modesto, respondendo a quem lhe
perguntava como descobrira a gravitao: foi pensando sempre nela.
Citaremos todos esses ilustres sbios que em suas lutas s tiveram por arma a
inteligncia. Invocaremos os trabalhos solitrios de Harvey, Carlos Bonnet,
Jnner (83). Recontaremos as tremendas dificuldades que houveram de
vencer, animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram Watt,
Jacquard, Girard, Flton, Stplenson? Diremos dos labores intelectuais que
exigiram as nossas vias frreas, a navegao a vapor, a telegrafia, - magnficos

(83) A acolhida que teve a descoberta da vacina um atestado tpico dos


obstculos geralmente antepostos a qualquer Idia nova, de feio a
desanimar inventores e sbios. No faltou, diz Smiles, quem lhe
caricaturasse a descoberta apresentando-a como suscetvel de bestializar
o prximo, com o introduzir no organismo matria putrecida, retirada das
tetas de vacas doentes. Do alto das ctedras, foi a vacina denunciada
como coisa diablica. Chegaram a afirmar que as crianas vacinadas
cresciam com cara de boi, e que na testa lhes sobrevinham tumores,
que indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alterava com mugidos
de touro.

inventos nos quais celebramos o esprito que no a matria? Invocaremos os


arroubos artsticos de um Miguel ngelo, de um Ticiano, de um Celini, de um
Poussain? Recordemos esta frase de Bayle, escrita de Milo, em 1820, a
propsito de um artista chamado Meyerbeer: homem de algum talento
mas no genial, vivendo solitriamente e trabalhando quinze horas por dia.
Contudo, se quisssemos historiar as provas rudes que flagelaram os gnios
mais possantes, haveramos de baixar aos nomes ignorados, de quantos
mergulharam neste pego revolto, vtimas da sorte, no da descrena, como
Chenier decapitado, ou como Gilbert lutando contra o egosmo universal.
Haveramos tambm, de convocar os que sucumbiram gloriosamente.
Giordano Bruno preferindo a morte a uma retratao fictcia, Campanela sete
vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar seus algozes; Joana
DArc que salvou a Frana, Scrates que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta
mentira, Cristvo Colombo expirando no crcere, o velho Pedro Ramus
estrangulado na noite de So Bartolomeu, em que tambm teria perecido
Ambrsio Par se Carlos 9 no levasse em conta os seus prstimos pessoais
e, enfim, todos os mrtires da Cincia, da Religio, do Progresso, Inclusive os
que tombaram nos circos romanos, devorados pelas feras e exorando a Deus
por seus irmos. Fssem quais fssem as crenas, as idias que essas
criaturas defendiam at morte, sem lhes apreciarmos o valor real das causas
que abraavam, sua memria imperecvel s nos merece respeitosa
venerao. So vultos que nos mostram que o homem no somente um
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composto de matria orgnica e que a energia, a perseverana, a coragem, a


virtude, a f, no so atributos da composio qumico-cerebral. Do fundo de
seus sepulcros, eles proclamam que os pretensos sbios, que ousam
identificar o homem com a matria inerte, no se precatam do valor humano e
jazem na mais trevosa ignorncia das verdades que fazem a glria e a
felicidade do ser.
E supondes seja necessrio interrogar a tradio histrica para responder,
tambm com argumentos e exemplos irresistveis, a essa pretenso cega de
negar os fatos de ordem puramente intelectual, conceituando to
superficialmente o Espiritualismo e a Moral?
No; no somente nas altas esferas que o observador admira esses
edificantes exemplos. Em todas s camadas sociais, do prcer da Cincia ao
rstico analfabeto, do trono ao grabato, a vida cotidiana oferece, no santurio
da famlia, esses mesmos padres de coragem e abnegao, de pacincia e
grandeza dalma, de energia e virtude, que, por desconhecidos, no so menos
meritrios no seu valor intrnseco, do que os precedentes.
Quantas almas padecem em segredo sem revelar os seus martrios,
curvadas injustia, vtimas do destino, dessa fatalidade impenetrvel que per-
segue tantas criaturas boas e justas?
Quantos coraes magnnimos palpitam em silncio e abafam chamas
capazes de incendiar o verbo e levantar multides, se, ao invs de definhar na
sombra, se espanejassem ao sol da popularidade? Quantos gnios ignorados
por a dormitam num isolamento Infecundo? Quantas almas santas e puras, a
consagrarem-se a uma vida inteira de abnegao, de amor, de caridade? E
quantos, em recompensa de tamanhas virtudes, de tanta pacincia
humildade, no recebem mais que ingratido e desprezo daqueles mesmos a
quem amam?
O ltimo refgio dos nossos adversrios assenta no sistema dos pendores
naturais, como a declararem que estes fatos de ordem mental no so mais
que o resultado das inclinaes dos espritos credores da nossa admirao. Se
Palissy se obstinou dezesseis anos procura do esmalte, seria a isso
arrastado por uma. inclinao especial. Se Colombo no esmoreceu diante do
cepticismo dos coevos e das revoltas de sua equipagem, que uma tendncia
do seu crebro o encaminhava irrevogvelmente para o Novo Mundo. Se
Dante concluiu a Divina Comdia, ainda que posto a ferros e expatriado,
porque a lembrana de Beatriz e as guerras Civis italianas lhe espicaavam a
fibra potica. Se Galileu, septuagenrio se viu Constrangido a repudiar de
joelhos as suas convices mais ntimas, assinando a sentena inqua que
proibia a Terra de girar, no pensem que houve em tudo isso humilhao, pois
apenas teria experimentado uma ligeira contrariedade das suas inclinaes. O
fato de Carlota Corday partir da sua aldeia para apunhalar Marat em Paris, no
significa que tivesse a Convico ntima de salvar a ptria de um seu
presumido salvador, mas, apenas, que tivesse uma exaltao cerebral. Se,
durante as cenas monstruosas do Terror, viram-se mulheres que pediam ao
carrasco a graa de morrer com os maridos, subindo firmes o patbulo; se, em
todos os tempos histricos, temos visto vtimas voluntrias oferecendo-se para
salvar entes amados, ou. com eles morrer, tudo fruto de inclinao natural, ou
resultado de certos movimentos cerebrais!
Resumindo: os atos mais sublimados de virtude, de piedade filial,
devotamento, amor, grandeza dalma, so oriundos de disposies orgnicas,
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ou de qualquer sbito desvio das funes normais do crebro. Se o Cristo


subiu ao Calvrio, no se considere isso o sacrifcio extraordinrio de um ser
divino, mas simples movimento revolucionrio de algumas molculas
imprudentes .. a escrias mseras, assim, que reduzem as mais ricas gemas
da coroaque cinge a fronte da Humanidade
Esta, contudo, no se deixa assim degradar, no consentir que mos
profanas lhe arrebatem a sua aurola. Para sustentar esses feitos de valor,
algo mais se torna preciso do que uma agregao atmica de carbono ou de
ferro. Algo mais que uma simples combinao molecular. Vade-retro,
negadores insensatos, que pretendeis reduzir a frmulas to inanes a definio
do valor e da foras intelectuais. Predisposies orgnicas, inclinaes
naturais, faculdades mentais, a prpria educao, que representa tudo isso
seno palavras, desde que nos limitemos a manifestaes da matria bruta e
cega e neguemos a existncia do esprito? Que representam a Qumica, a
Fsica, a Mecnica, diante da vontade que dobra o mundo sua lei e dirige a
seu nuto a matria obediente? Ousam sustentar que o valor moral, a potncia
intelectual, o afeto profundo dos coraes, o entusiasmo das almas fervorosas,
a imensidade do olhar inteligente, as pesquisas do pensamento que sonda o
espao e faz esplender as leis universais, as meditaes, as descobertas, as
obras-primas da Cincia e da Poesia se explicam por transformaes qumicas
e quimricas da matria em pensamento? Ser que, para suportar essa
energia anmica, no haja necessidade de uma fora soberana, superior s
alteraes da substncia, capaz de vencer todos os obstculos, cuja influncia
se estenda muito alm da vista fsica e seja mesmo a base desta fora
pensante, seu substrato, seu sustentculo e condio de sua potncia? Ser
que a virtude resida noutro lugar que no na alma? na alma independente,
que as tergiversaes do mundo material no atingem; na alma espiritual, que
ouve a voz da verdade e caminha em reta para o seu ideal, sejam quais forem
os bices que se interponham no caminho, as dificuldades que pretendam
interceptar-lhe a marcha triunfal?
Toda a Humanidade protesta contra estas fteis alegaes e o faz no j
com aquele critrio baseado no testemunho dos sentidos, suscetvel de
enganar-se, como se d, por exemplo, com o movimento dos astros, mas, com
aquele senso ntimo que lhe vem da prpria conscincia.
A nacionalidade, o clima, a natureza dos alimentos, a educao, no
bastam para constituir caracteres inteligentes e indmitos! No carter humano
a energia , realmente, o poder central, o eixo da roda, o centro de gravidade.
S ela d impulso aos atos.
Essa fora mental a base mesma e a condio de toda a esperana
legtima, e se verdade que a esperana o perfume da vida, o poder mental
h-de ser a raiz dessa planta preciosa.
Ainda mesmo que as esperanas se desvaneam e a criatura sucumba
nos seus esforos, resta-lhe a satisfao de haver trabalhado para vencer e,
sobretudo, que, longe de ser escrava da matria, manteve-se fiel s regras por
vezes rduas, que a honestidade impe. Haver espetculo mais belo e digno
de elogios que o de um homem a lutar energicamente com a sorte, a
demonstrar que lhe palpita no seio uma fora imperecvel, a triunfar pela
grandeza de carter e a prosseguir corajoso e resoluto, ainda quando lhe
fraquejam as pernas e sangram os ps?
Em sentido menos generalizado que o destes grandes fatos precedentes,
154

temos visto exemplos particulares de vontades poderosas realizando milagres.


Nossos desejos so, muitas vezes, os precursores da capacidade de
realizao, bastando intensific-los para que a possibilidade se resolva em
realidade.
Se de um lado as vontades de um Napoleo e de um Richelieu riscam dos
dicionrios a palavra impossvel, por outro lado existem os vacilantes, a quem
nada se afigura possvel.
Saiba querer enrgicamente dizia Lamenais a um esprito enfermo ,
fixe a sua vida flutuante e no se deixe levar por todos os ventos, qual folha
murcha desgarrada do tronco.
Pessoalmente, temos conhecido criaturas exaltadas, que, depois de terem
estado com um p na sepultura, recuaram de espanto ante o esplendor da vida
que pretendiam abandonar e resolveram conserv-la. Estes exemplos so
raros, por s possveis quando o corpo no esteja tocado pela mo da morte. E
no entanto, existem. Um escritor ingls, Walker, autor de o Original (e que no
deixa de revelar uma certa originalidade em sua determinao) resolveu um dia
vencer a enfermidade que o acabrunhava, conseguindo pasmar bem dali por
diante.
Os fastos militares oferecem-nos o exemplo de vrios chefes que, velhos
ou enfermos, em ouvindo no instante decisivo da batalha que seus coman-
dados desertavam, atiravam-se para fora da barraca, os reuniam e conduziam
vitria, para logo aps tombarem exaustos e exalarem o ltimo suspiro.
No somente a vontade, mas tambm a imaginao domina a matria,
contradiz o testemunho dos sentidos e origina, s vezes, iluses absolutamente
alheias ao domnio fsico.
Expliquem como pode morrer um homem quando, com uma simples
picada, os mdicos lhe sugerem que o sangue escorre da veia rasgada. (Este e
outros fatos esto judicialmente averiguados.) Que nos expliquem como a
imaginao cria um mundo de quimeras, que atuam ativamente no organismo e
se refletem na sade.
Ao demais, to forte e autnoma a vontade, as influncias ambientes to
precrias se afirmam, para explicar a marcha da vida intelectual, que, as mais
das vezes, no na embaraam e, ao contrrio, nos induzem a proceder com
energia tanto maior, quanto mais prementes so os obstculos que se nos
deparam. Todos quantos se votam a tarefas intelectuais, diro conosco que a
fase em que mais operaram em sua carreira foi precisamente a de maiores
dificuldades na vida prtica, e que a vontade qual os rios que seguem
destruindo e vencendo os acidentes do seu curso, no obedecem a barragens
e at se enerespam e se precipitam mais impetuosos, quanto mais slida e alta
a muralha que se lhes ope. Quando sucesso e glria vm coroar nossos
trabalhos e aps uma faina longamente sustentada a reao vem convidar-nos
ao repouso, deixamo-nos efeminar pelas delcias de Capua e j o fogo da
inspirao no nos acende auroras na mente, O trabalho pessoal da vontade
a condio sine qua non do nosso progresso.
Em um discrime acerca da existncia da vontade, a questo assaz longa e
baldamente controvertida, do livre arbtrio, no pode ficar sem o seu ponto de
interrogao. Os adversrios o negam absolutamente e proclamam, qual vimos
e suficientemente comentmos, que todas as realizaes humanas so O
resultado necessrio de causas ou ensejos emergentes revelia de reflexo, e
sem que esta lhes possa mudar o curso, O pensamento no mais que
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movimento fsico da substncia cerebral. Esse movimento procede do sistema


nervoso, afetado a seu turno por um movimento, exterior.
O movimentopensante por sua vez, reage sobre os nervos e msculos e
determina os atos. Em toda esta sucesso, no h movimentos materiais
transmitidos. Eu imagino de bom grado o encontro de um cristo com um
discpulo de Holbach no desvo de uma dessas oficinas, cuja portada se
protege com a clssica estatueta de Hipcrates travando o seguinte dilogo:
- faclimo demonstrar que o pensamento produto da matria - dir o
holbaquiano. Eis, por exemplo, uma locomotiva que se precipita veloz ao
vosso encontro. A viso da locomotiva ou, para falar fisicamente, o raio
luminoso partido dessa mquina atinge o vosso globo ocular e provoca um
dado movimento distensivo do nervo tico... Por intermdio deste mesmo
nervo, o movimento se transmite ao crebro. Depois, o movimento cerebral,
tornando-se causal, por sua vez aciona os nervos correspondentes s pernas,
e estas entram a correr e a levar-vos fora da linha. Evidente, pois, que em tudo
isso no utilizastes uma partcula de liberdade qualquer. Vossa atitude derivou,
ne cessriamente, da impresso visual da locomotiva.
- Mas, perdo retrucar o outro , e se eu, por um capricho de suicida,
alis comum, tivesse deliberado permanecer na linha at que a locomotiva me
esmagasse? No praticaria dessarte um ato voluntrio e de livre arbtrio?
- Absolutamente. A no ser que houvesse enlouquecido e tivsseis
premeditado e maturado o plano do suicdio, nem por isso ele deixaria de ser o
resultado de causas predisponentes, e, portanto, involuntrio.
- Admitamos que assim seja, quanto ao instante decisivo, de vez que
matar-se a gente sem motivo seria imbecil. Mas, pergunto ainda: quanto ao
gnero de morte, no poderia escolher o barao, o veneno, a queda de uma
torre, a bala, etc., em vez de me atravessar na linha frrea? No terei, pelo
menos, a liberdade de opo?
- Desenganai-vos. Se vos decidirdes pelo esmagamento, ser porque
existe prximo uma linha-frrea; ou por imaginardes ser esse um processo
mais rpido, menos doloroso; ou por vos repugnarem outros gneros de morte,
etc.
- Mas, de qualquer forma, sempre se conclui que escolhe...
Jamais! que uns tantos movimentos se operaram no rgo da
reflexo. Seria um, causado pelo aspecto de uma fora, outro, pelo necrotrio;
pela imagem de um crnio partido, pela hiptese de um tiro falhado, das
angstias da asfixia, e assim por diante. O movimento correspondente ao
esmagamento pelo comboio seria, ento, o que se figurava menos
desagradvel e, dominando os demais, decidiria da vossa sorte.
- Mas, se eu tivesse, por exemplo, agravos de um irmo e, em lugar de
postar-me na linha, fsse, por determinao dos movimentos correspondentes
a tais agravos, levado a atirar sob as rodas do comboio o corpo do meu irmo,
tinha ou no a liberdade de o fazer? Seria responsvel, ou no?
- No entremos em tricas jurdicas...
- Pois muito bem: voltando ao nosso suicdio, dissestes que eu teria
escolhido um gnero de morte determinado por uma causa qualquer. Ora, isso
claro, pois de outro modo, para falar com franqueza, escolher sem causa de-
terminante, estpido. Mas, como podem tais causas atuar materialmente?
- Por um revs da sorte perdeis a tranqilldade e o bem-estar. Habituado
fartura e a todos os regalos do corpo e do esprito, encontrais-vos de chofre na
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maior misria, O constrangimento, as restries do vosso organismo, a


alterao de hbitos, atuam sobre o crebro, que, ante a perspectiva de morte
lenta e miservel, decide antecip-la desde logo. So sempre, como vdes,
movimentos fsicos.
- Mas... se forem desgostos de famlia, decepes amorosas, temor da
desonra, causas de ordem moral, em suma?
- No existe ordem moral.
- J espervamos por essa. E assim que pretendeis nada afirmar sem
provas? assim que presumis interpretar fielmente o ensino da Cincia?
Tomemos um ltimo exemplo, Vde bem! Eis aqui, em descanso, minha mo
direita; nada me obriga a ergu-la... Agora, contudo, quero faz-lo e fao... Agi
livremente, ou no?
No. Houve uma razo determinante, qual a de provar o vosso alvedrio
e suscitada pela vossa conversa anterior. Esta, por sua vez, originando-se de
fatos precedentes, desde que nascestes. A vida mental, como a material, ou
por melhor dizer nica, no passa de uma sucesso necessria de causas e
efeitos a entrosarem-se naturalmente.
- Vde ainda: tenho a mo suspensa. Agora, imaginai que a movimento
num crculo e a espalmo, chapada, na vossa face. Tendes uma sensao de
ardor, exaltamento imediato e j rborizado, gritareis: que isso? Mas, antes
que possais reagir de fato, digo-vos:
de que vos admirais? Ento, este sopapo no consequncia inevitvel
do movimento da mo, da fantasia desse lobo que opera acima do ouvido,
junto das zonas protetoras da apfise mastoidia e da sutura occipto-parietal,
etc.? E tal no se d, de sucesso em sucesso, desde os primrdios do
mundo?
- Caro senhor, tendes na verdade exemplos edificantes, que assaz me
impressionam. Tenho, para mim, que tudo isto no passa de movimento serial
da dipotasshydorylhydroxamina em vosso Lobo frontal e dado que, em
consequncia desses movimentos, tomsseis de uma faca para esfolar-me
vivo, seria cmico que me formalizasse. Mas, para encerrar a questo, uma
vez que preciso retirar-me, dizei-me: no pensais com Spinosa que a nossa
pretensa liberdade no passa de aparncia e que, tendo conscincia de nos-
sos atos, nem por isso lhes conhecemos a causa?.

No admitis, com Hurne, que o homem tem conscincia, no do princpio


de seus atos, mas to somente dos atos em si, apenas como fenmenos?
Todo o movimento cerebral nos vem do exterior, pelos sentidos e a excitao
do crebro; o pensamento um fenmeno material, como o prprio
pensamento. A vontade expresso necessria de um estado cerebral
produzido por influncias exteriores. No h vontade livre; no h
concretizao de vontade independente da soma de influncias que a todo o
instante inspiram o homem e impem, ainda aos mais poderosos, limites
infranqueveis.
Assim falaria, porque assim falam os discpulo de Holbach. No parecer
deste (84), a liberdade no mais que a necessidade encerrada dentro de
ns. No h diferena entre o homem que se atira voluntariamente e o que
atirado de uma sacada abaixo, seno que ao primeiro a impulso lhe vem de
dentro, e ao segundo chega de fora do seu maquinismo.
Entretanto, h casos peremptrios, nos quais pensamos poder constatar o
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livre arbtrio, como, por exemplo, na atitude de um homem que, possudo de


grande sede, repele dos lbios o copo dgua, logo que se lhe diga que esta
contm veneno. Mas, temos o direito de supor que esse homem assim proceda
livremente? A vontade, ou, melhor, o crebro se encontra em estado
comparvel bola que, recebendo um impulso em certa direo, desta se
desvia logo que intervenha uma fora maior que a primeira.
Holbach nos d uma frmula aritmtica da liberdade: As aes do homem
so sempre um misto de energia prpria e dos seres que sobre ele atuam e o
modificam (85).

(84) Systme de la Nature, parte 1, captulo 1, pgina 223.


(85) claro que sem liberdade no h moral nem virtude. Depois de falar
em foras soberanas, leis indestrutveis que constrangem, o Sr. Taine
acrescenta: Quem se revoltar contra a geometria, mxime, contra uma
geometria viva?
Noutro lano, pergunta, a propsito de um trecho de Byron sobre os
amores de Hayda, como se pode deixar de reconhecer a divindade, no
apenas na conscincia e no ato, mas no prprio gozo? Quem h que
tenha lido os amores de Hayda exclama ele e experimentasse outro
pensamento, que no o de invej-la e deplor-la? Quem pode, face das
magnificncias da Natureza que os acolhe e lhes sorri, imaginar por eles
outra coisa alm da sensao que os une!
Bayle admite, por outro lado, que vcios e virtudes tm em ns a
mesma origem a fora das paixes. A esse conceito, adita o casta est
quam nemo rogavit, etc. A mulher mais virtuosa detida, antes pela m
reputao, do que pelo fruto proibido. Ns nos ufanamos de pensar
que a vIrtude mais slida do que estas teorias.
(86) Essai Phylosophique sur la Nature Morale et Intellectuelle de
lHomme.

Respondemos a essa negao integral da liberdade com uma doutrina


que, sem nos investir de um arbtrio absoluto, de vez que as influncias ex-
teriores atuam constantemente para atenuar esse absoluto, nem por isso deixa
de nos dar uma liberdade real, uma responsabilidade ntima, um livre arbtrio
incontestvel. O assunto mais complexo do que parece aos profanos e temds
uma permanente manifestao de sua dificuldade na sucesso secular das
crenas religiosas, que oscilam entre o fatalismo e a graa divina. Maomet
arvorou o estandarte do fatalismo; Calvino s v a predestinao, enquanto
Lutero consagra o livre arbtrio absoluto. A verdade, pensamos, est entre os
extremos. O nmero de partes teolgicos concernentes graa divina
incontvel, e compreende-se que, nesta poca, tempo perdido o que se
emprega nestas elucubraes. Contudo, sempre til saber o que devemos
pensar da liberdade. Ns, pelo menos, assim o consideramos com Spurzheim,
quando a respeito escreveu aquelas pginas judiciosas, quando assim pondera
o contravertido assunto (86).
A palavra liberdade empregada num sentido mais ou menos lato. H
filsofos que atribuem ao homem uma liberdade ilimitada. Ao seu ver, o homem
cria, por assim dizer, a sua prpria natureza, adquire as faculdades que deseja
e age independente de qualquer lei. Uma tal liberdade est em contradio
com um ser criado. Tudo quanto possam dizer a seu favor no passar de
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declamaes enfticas, desprovidas de senso e de vendicidade.


Outros h que admitem uma liberdade absoluta, em virtude da qual o
homem age sem motivo. Isso, porm, presumir efeito sem causa, isentar o
homem da lei de causalidade. Seria uma liberdade contraditria de si mesma,
podendo-se proceder num mesmo caso bem ou mal, mas sempre sem motivo.
Inteis seriam, ento, todos os institutos de finalidade beneficente, individual ou
coletiva. De que serviriam as leis, a Religio, as penalidades e recompensas,
se nada determinasse o homem? Porque esperar de outrem amizade e
fidelidade, antes que dio e perfdia? Promessas, juramentos, votos, tudo
iluso! Uma tal liberdade nada tem de real, no passa de especulativa e
absurda.
Precisamos, ao contrrio, reconhecer uma liberdade acorde com a
natureza humana, liberdade que a legislao pressupe, liberdade raciocinada.
Trs so as condies fundamentais da legtima liberdade: em primeiro
lugar, preciso que a criatura possa escolher entre vrios motivos. Seguindo o
motivo mais forte, ou agindo s por prazer, j se no opera com liberdade. O
prazer no mais que uma falsa aparncia de liberdade. A ovelha que mastiga
a erva com prazer, no est exercendo um ato livre.
Obedecendo a um desejo mais forte, tambm o animal, quanto o homem,
no pratica livremente, to-pouco. A condio precpua da liberdade a
inteligncia, ou a faculdade de conhecer e escolher os motivos. Quanto mais
ativa a inteligncia, mais ampla a liberdade. Os idiotas natos, as crianas at
uma certa idade, tm, s vezes, desejos muito enrgicos, mas ningum os con-
sidera livres, visto no possurem inteligncia bastante para destingir o falso
do verdadeiro. Os homens mais bem educados e os mais inteligentes so os
de quem, mais que dos ignorantes, deploramos as faltas. A medida que se
elevam na srie das faculdades intelectivas, os animais vo-se tornando mais
livres e modificam mais individualmente os seus atos, de acordo com as
circunstncias exteriores e com as lies de sua prvia experincia. Se
empregamos a violncia para impedir o co de perseguir a lebre, ele se
lembrar das pancadas que o aguardam, e rdego e trmulo ao imprio dos
prprios desejos, no deixar de ceder. O homem, superior a todos os seus
irmos da escala zoolgica, , por sua mesma natureza, o ser que goza de li-
berdade no grau mais eminente. S ele procura encadear efeitos e causas,
comparar melhor o presente e o passado, e da tirar concluses para o futuro.
Pesa as razes, detm-se nas que lhe parecem preferveis, conhece a
tradio. Seu raciocnio decide e perfaz a vontade esclarecida, muitas vezes
contrriamente aos seus desejos.
Uma ltima condio da liberdade a influncia da volio sobre os
instrumentos que devam operar suas ordens pessoais. O homem no res-
ponsvel por desejo ou por faculdades afetivas dele independentes. A
responsabilidade individual comea com a reflexo e com a possibilidade de
proceder voluntAriamente. No estado de sade os instrumentos operatrios
subordinam-se influncia da vontade. A fome involuntria, mas, se em
senti-la, eu me abstiver de comer, exero a influncia da minha vontade sobre
os instrumentos do movimento voluntrio. A clera involuntria, mas eu no
sou forado a maltratar quem me provoque, s porque a minha vontade influi
em meus msculos. Perdido o domnio dessa influncia, ento, sim, o homem
j no livre. o que amide sucede com os alienados, que experimentam
desejos, reconhecem a sua inconvenincia, chegam a maldiz-los, mas no
159

tm a fora de restringir os movimentos involuntrios, chegando mesmo,


algumas vezes, a pedir que lhos embarguem.
A liberdade moral a base mesma da sociedade e se ela no passa de
Iluso, todo o gnero humano tanto as naes incipientes como as mais
civilizadas, que cultivam a Cincia e governam a Matria, bem como os povos
remotos, toda a Humanidade, repetimo-lo ter-se-ia deixado iludir pelo
mais colossal dos erros que ainda existiu, depois de enveredar pela senda
mais falsa e injusta que possamos imaginar Mas... que dizemos: injusta?
Neste sistema, essa palavra nada significa e visto que o bom e o mau no
existem; visto no haver ordem moral, claro que todas as palavras
concernentes descrio dessa ordem, todos os pensamentos e julgamentos
carecem de Sentido. E contudo, a menos que abstraiamos a prpria
conscincia, no podemos anuir a semelhantes concluses.
Quaisquer que sejam as concluses tericas a que cheguem os lgicos
na questo do livre arbtrio dizia Samuel Smiles , todos sentimos que
Somos Praticamente livres de escolher entre o bem e o mal. No somos o
seixo que, lanado na torrente, apenas pode indicar seguindo-o o curso das
guas. Ao contrrio, sentimos em ns a fora do nadador, que pode escolher a
direo convinhvel, lutar contra a corrente, ir mais ou menos aonde lhe praza.
Nenhum constrangimento absoluto nos empece a vontade. Sentimos e
sabemos, no concernente aos nossos atos, que no Somos encandeados por
qualquer espcie de magia. Todas as nossas aspiraes para o bem e para o
belo ficariam Paralisadas, se pensssemos de modo diverso. Todos os
negcios nossa Conduta na vida, regime domstico, contratos sociais,
instituies pblicas, tudo, enfim se baseia na noo prtica do livre-arbtrio. E
sem ele, onde estaria a responsabilidade? De que serviria ensinar aconselhar
Predicar, reprimir, punir? Para que leis, se no houvesse uma crena universal
como o prprio fato universal, de que dos homens e de sua determinao de-
pende conformar-se ou no? O homem que melhor evidencia seu valor moral
o que se observa a si mesmo, dirige as suas paixes, vive conforme a regra
que se imps, estuda suas aptides e SUAS falhas.
Eis, verdadeiramente, o homem: sua grandeza est na sua liberdade. No
fora livre o homem, no se lhe permitiria ter fome e sede, nem comer nem
beber; nem senhorear, em coisa alguma, as tendncias do seu corpo. A ordem
social no se teria constitudo.
Mas ns no temos necessidade de prova alguma exterior para afirmar a
nossa liberdade. Ningum melhor o sabe do que a nossa prpria conscincia.
Ela , alis, a nica coisa que possumos completamente nossa, e a boa ou m
direo que lhe damos, em definitivo, s depende de ns. Nossos hbitos e
pendores no so nossos amos, mas servos. Mesmo quando com eles transi-
gimos, a conscincia adverte-nos de que poderamos resistir e que, para
venc-los, no careceramos de fortaleza superior s nossas possibilidades, se
fizssemos finca-p. pelo emprego livre da razo que nos fazemos o que
somos. Se ela apenas propende para o sensualismo que a vontade, forte e
demonaca, subjuga e escraviza a inteligncia. Bem dirigida, porm, essa
mesma vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as faculdades
intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatvel com a natureza
humana.
Este pretenso ateismo cientfico tomou o encargo de rebaixar e destruir
todos os caracteres da grandeza humana. No pode, contudo, impedir a alma
160

de provar o seu valor, de assomar a matria, construindo-se de si mesma com


os elementos do seu meio e do seu, clima.
Ele, o materialismo, no percebe que se a personalidade humana fsse
resultado de influncias fatalsticas da Natureza, a criana e o selvagem, sob o
governo quase exclusivo dessas foras, seriam mais sensatos, mais ntegros
que o sbio, o filsofo, o artista. Uma tal consequncia destri, por si s, a
teoria dos nossos adversrios.
Moleschott ri-se inconsideradamente do qumico espiritualista Liebig, a
propsito desta assertiva do eminente pensador: O homem tem umas tantas
necessidades que radicam na sua natureza espiritual e no podem ser
satisfeitas pelas foras fsicas, necessidades que so as diversas condies de
suas funes intelectuais. claro responde Moleschott que estas
palavras no tm sentido. Pode a ambio humana imaginar um fim mais
orgulhoso que o decorrente de sua prpria elevao a necessidades
impossveis de serem providas por foras naturais?
Certo, o autor de A Circulao da Vida jamais sentiu essas aspiraes
superiores natureza fsica e s foras que a regem. Nunca contemplou o
ideal do bem e do belo, jamais exorbitou da esfera das funes corporais, seja
da assimilao e desassimilao orgnicas. Se assim , ns o lastimamos e
nos contristmos de saber que h, no mundo pensante, criaturas para as quais
o mundo intelectual permanece completamente fechado.
Mas, dirijo-me a vs, espritos pensantes que aqui me ldes, sejais quem
fordes, homem ou mulher, criana ou velho, moa ou rapaz: Concordais em
que todos os anseios dalma, todos os requisitrios do corao, todas as
aspiraes da mente no tendam a fins estranhos e transcendentes s
transformaes da matria? Acreditais que no crculo da sensao e do
sensualismo se encerrem todas as tendncias da nossa personalidade? Se j
amastes na aurora da vida, se j sonhastes os sonhos primaveris, se o cu de
vossa juventude j vos deixou entrever, ainda que por um instante, uma estrela
verdadeiramente celestial em sua aurola atrativa; dizei-me se possvel
aceitar, como expresso de realidade, a palavra de Stendhal, quando diz que o
amor no mais que um contacto de duas epidermes?
Se tendes estudado as obras da Natureza, o cu cujos mundos
incontveis gravitam harmnicos no mbito da luz e da vida, a Terra, a Terra
em cuja superfcie se conjugam e se desdobram de concerto as manifestaes
da fora vital, a atmosfera, cujas leis peridicas regulam o regime geral; as
plantas, ornamento e perfume do solo, base do edifcio das existncias; os
seres vivos, cuja estrutura revela, a cada passo, a maravilhosa adaptao das
funes aos rgos; se tendes estudado as lies grandiosas e o mecanismo
geral desta Natureza to rica e to fecunda, podereis recusar-vos a saudar do
uno de vossa alma a Inteligncia suprema com tamanho imprio manifestada
sob o vu da matria? Se, no silncio eloquente das noites estreladas, vossa
alma se deixou arrebatar num voo olmpico a esses focos de vida
desconhecida; se j fostes alguma vez levado a perguntar quais possam ser as
formas da vida futura, e se j houverdes pressentido que o idealismo de nossas
aspiraes no se realizou neste mundo, porventura no estremecestes idia
do infinito e da eternidade que nos aguardam? Se tendes presenciado as obras
sublimes de devotamento e caridade, que espalham o blsamo da consolao
nos espritos sofredores; que levam os proscritos da Terra a esperar uma
justia imanente; que sustentam o passo vacilante dos feridos e que se
161

consagram de corpo e alma ao alvio das misrias terrenas; dizei-me: no


tendes concludo que o sensualismo e o egosmo indiferente no so tudo o
que encerra o corao humano? Se sentistes, alguma vez, a magia da msica
deixando-vos embalar por essas obras-primas, cujos autores ilustres tm
pontilhado de encantos a travessia ocenica da vida, dizei-me: no vos
parece que h fazes acsticas, harmonias que o ouvido no entendeu e das
quais as melodias terrenas no representam mais que um eco amortecido? Se
tendes vivido a vida da alma, enfim, essa vida entrecortada de xtases e
angstias, sensvel e dominadora ao mesmo tempo; vida que se conturba
com as mgoas do corao e sabe, todavia, calcar a ps os prejuzos vulgares
e dominar triunfante os nadas mundanos. se tendes caminhado de fronte
erguida, fitando o cu, no compreendestes que a inteligncia ultrapassa a
matria, que a alma tem necessidades extracorpreas e que a nossa dignidade
moral no conhece a poeira das praas pblicas, onde os saltimbancos
divertem as turbas vadias com jogos de Fsica recreativa?
Se, qual temos visto, a Cincia do mundo fsico perde, na hiptese da
inexistncia de Deus, a sua base e a sua luz, para resvalar na incapacidade
absoluta de explicar razovelmente a construo do Universo, a cincia do
mundo intelectual perde, maiormente, a sua razo de ser. Esvanecem-se o
verdadeiro, o belo, o bem. Em que bratros tenebrosos mergulham, ento, os
velhos princpios da Filosofia, da Esttica, da Moral?
A meditao das eternas verdades j no passar de um sonho.
O sbio, o pensador e o artista estrebucham na treva e no caos?
Em vo se pretender que a Arte possa colimar outros fins que no sejam
a representao de formas agradveis? Escultura, msica, pintura, apenas
visam deleitar-nos os sentidos? Erro profundo! Qual a beleza, que a nossa
alma contempla na estaturia, no desenho, na harmonia? Qual a magia que
nos atrai atravs das luzes e sombras dos ensaios perecveis? No ser a
beleza ideal, a verdade misteriosamente oculta, da qual temos sede,
procurando v-la em tudo? No ser o ideal puro, translcido, soberano, m
possante, sedutor irresistvel de inteligncia?
A Humanidade no se elevou acima das outras espcies terrenas seno
por sua constante ascenso para o ideal, para a verdade espiritual. A Arte seria
um mito, um engodo, um exerccio mecnico, um nada, se no radicasse na
beleza suprema. Nisto
nisto sobretudo que o homem se afirma por predicados estranhos
matria e confinantes com a esfera do Infinito. Nisto, sobretudo, que o
homem entra em comunho com os esplendores infinitos e os fixa, para
sempre, em louvores Imortais... Tenho diante de mim a poeira vil, a matria
inanimada, um fragmento de argila!
Minha alma, inspirada, concebeu o tipo visvel de uma virtude sobre-
humana, a manifestao do heroismo, do devotamento, do amor, da
adorao... Argila! terra colhida nalgum fosso hmido, em ti vou transfundir a
inspirao de minha alma... Em ti vai encarnar-se a minha inteligncia! Em ti
vai manifestar-se e esplender o tipo sublime que o meu esprito contempla! Em
ti vo fremir as palpitaes do meu pensamento! E enquanto meu despojo
miserando, cado em inominvel ignomnia, vai sumir-se e afastar-se no tempo
e na Histria, dentro ainda de quarenta sculos, os olhos que te contemplarem
em ti vero meu pensamento! Milhes de coraes tero palpitado e palpitaro
ainda, em unssono, com o meu... E diante de ti as almas se inclinaro para
162

saudar a virtude divina, que te deu uma aurola imperecvel!


O apangio mais glorioso da natureza humana no passaria de grosseiro
engodo, se prevaler pudesse a teoria mecnica do Universo. A Verdade, o
Bem, o Belo, desaparecem nela. Em vo os adversrios nos alegam sua
conduta exemplar, inatacvel.
No caso, no se trata das consequncias da sua vida pessoal e sim das de
sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, no pode
o atesmo constituir-se em moral. O materialismo diz judiciosamente
Patrcio Larroque para mais nada presta, seno para tirar vida humana a
sua gravidade e o seu valor, dando razo aos seres miserveis, cuja habilidade
consiste em explicar, com a maior segurana possvel, as misrias e fraquezas
do prximo.
Queremos lealmente acreditar que todos os materialistas, em o serem, no
se tornem s por isso corrompidos. No nos fazemos eco dos que os argem
de viverem mergulhados na embriaguez e no deboche. Conhecemos homens
e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora
no crendo na existncia de Deus e da alma. No, no podemos deixar de
confessar que, no seu prprio sistema, essa honestidade apenas uma
questo de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e
benevolentes, afetuosos e moralizados, em suma, se praticam a caridade, se
no sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a Integridade e a pureza de
carter fortuna ilcita, no devido ao seu sistema e sim a uma convico
ntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua
filosofia. Sim: no so moralizados por serem cpticos, mas, a despeito de o
serem.
Pois na verdade, que significa uma moralidade sem base, sem motivo e
sem finalidade?
Certo, no duvidamos possa haver uma moral independente do
Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confisso
religiosa. O que no cremos na moral independente da idia de Deus. Se s
existissem as verdades de ordem fsica, se msticas fssem as que havemos
como de ordem moral, a prpria moral no Passaria de utopia, e a honestidade
de mera tolice.
Outras propenses existem, porm, que no procedem da matria.
O homem que passa os dias sofrivelmente trabalhando, ou, antes, que
no consome todo o tempo em prover a existncia fsica diz um grande
astrnomo (87) experimenta necessidades nas quais no intervm os
sentidos, penas e gozos, que nada tm de comum com as misrias da vida. E,
uma vez manifestadas com certa intensidade, ele no mais pode confundi-las
com os apetites animais.

(87) Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.

Sente-as como de outra espcie e de uma ordem mais elevada. Mas isto no
tudo. O homem no sensvel somente aos jogos da imaginao, s
suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. No
contempla o mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se
fssem fenmenos seriados e apenas dignos de interesse pelas relaes que
mantm com ele. Ao revs, considera-os como sistematizados, dispostos e
coordenados com desgnio. A harmonia das partes, a sagacidade das
163

combinaes, causam-lhe a mais viva admirao. Assim, levado conjetura


de uma potncia, de uma inteligncia superior sua e capaz de produzir e
conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Infinita, pode chamar a essa
potncia, de vez que lhe no percebe limite nas obras com que se lhe
manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificncias
descobre e mais grandezas lobriga.
V que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existncia e a maior
inteligncia, j como fruto de experincia prpria, j como patrimnio de
esforo alheio, s pode conduzi-lo aos limites da Cincia. Como estranhar,
ento, que um ser assim constitudo comece por agasalhar a esperana e
acabe convicto de que o seu princpio espiritual no acompanhe as vicissitudes
da carcassa, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar se
persuada ele, que, longe de extinguir-se, passar a uma vida nova, na qual,
liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o voo, dotado de sentidos mais
sutis, de faculdades mais altas, se dessedentar na fonte de sabedoria que to
sequioso buscara na Terra?
A hiptese materialista exclui todas estas grandezas morais, todas estas
altas aspiraes e consoladoras esperanas. Nossos adversrios, porm,
tomam facilmente o seu partido: Faamos abstrao diz o autor de Fora e
Matria de toda questo de moral e de utilidade. A Natureza no existe para
a Religio, nem para a Moral, nem para os homens. No seramos ridculos
vejam bem ridculos, se fssemos chorar como crianas s porque as nossas
torradas tm pouca manteiga ? Que tal vos parecem as... torradas? Pelo que
nos toca, confessamos no compreender o gracejo em assunto de tanta
relevncia.
Diante dos grandes fatos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver
perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as virtudes,
aos movimentos da matria. Como atribuir a esse predomnio, com Moleschott
que o homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoolgica,
faculdade de alimentarse tanto de vegetais como de carne? O mesmo vale
dizer, com Helvtius, que o homem s deve conformao das mos a
superioridade que desfruta em relao aos Outros animais.
Como admitir que Bchner, apregoando a matria como base de toda a
fora espiritual, de toda a grandeza terrestre e humana que aquele mesmo
que reconheceu a igualdade do esprito e da matria e julgue hOnroso o ttulo
de materialista, pois ao materialismo que o mundo deve a sua grandeza?
(88).
Como afinar com Spncer nestas declaraes:
O que denominamos quantidade de conscincia determinado pelos
elementos constitutivos do sangue; vemo-lo Claramente na exaltao que se
d quando introduzimos na circulao uns quantos compostos qumicos, como
sejam o lcool e os alcalides vegetais. Como Compartilhar da opinio de Litr
ao declarar que a vontade inerente substncia cerebral, assim como a
contratilidade o dos msculos, e que o livre arbtrio no mais que simples
modalidade do trabalho cerebral? (89)

(88) Force et Matire, ch. V. Dignit de la Matire.


(89) Dictionaire de Nysten, article Volont.

Como reduzir a propores da Qumica e da Fsica orgnicas, a simples


164

fenmenos de nutrio e assimilao, essas realizaes magnficas do gnio e


da virtude?
Terminando este captulo, volvamos ao objetivo com que o encetamos e
constatemos a inconsequncia desses filsofos que imaginam,
arrogantemente, ter lanado uma ponte entre o esprito e a matria, sem
perceberem que apenas lanaram seixos no abismo. Descrevem eles o
movimento atmico das substncias, metamorfoses de combinaes, proces-
sos de assimilao e desassimilao e pretendem que essas transformaes
que levam do pulmo ao crebro uma molcula de ferro, so de molde a
explicar claramente a formao do pensamento. Isto posto, no temem
acrescentar: Temos provas to certas desta verdade, que uma profisso de
f materialista no deve ser considerada apenas como premissa de grande
alcance, nem como arrojada profecia, mas, como fruto de uma convico
profundamente enraizada (90).
Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vs, filsofos e
moralistas! que o homem manufatura do seu alimento, da sua paternidade,
do seu clima, do seu solo e da sua educao. Se afagais o nobre intuito de
colaborar para a melhoria humana, no , precisamente, a graduao do nvel
moral e intelectual do indivduo o que vos deve preocupar, e sim de como vive
e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (j que o ferro uma das
amofinaes maiores da poca e as moas muito necessitam dele; (Carta 11)
se tem fsforo que baste; (j que sangue, crebro, ovos e esperma, todas as
partculas do corpo, em suma, que ocupam os mais altos postos na escala da
vida devem gordura fosforada (91) o seu carter

(90) Moleschott Circulation de la Vie, t. 2, pgina 57.


(91) A propsito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos
aos que os entusiasmo se imaginam que os pescadores da Picardia e da
Bretanha, que comem muito Pescado, se destacam por uma inteligncia
excepcional
(92) Moleschott Loc. cit. conclus. t. 2, pgina 225.

mais essencial) (Carta 11) se tem bastante sal no esprito e acar no


corao...
A questo fundamental alimentar-se bem e estabelecer uma
conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos ento,
nos elementos deste ltimo, os mais ricos de substncias nutrientes e,
sobretudo os que primam por abundncia de fsforo, sem chegar, claro, aos
extremos de engulir cabeas do dito.
Mas, batata, ao arroz, cenoura, ao nabo, s verduras, prefiramos o
feijo, as ervilhas e lentilhas. Eis os trs restauradores do esprito! e eis como
se escreve a respeito destes benemritos legumes.
Ouamos esta tirada: As ervilhas, o feijo e as lentilhas continuam a
florescer em nossos olhos, elas contm aproximadamente tanta albumina (le-
gumina) quanto o nosso sangue; e duas ou trs vezes mais matrias
adipgenas que legumina. Embora mais caras e de preparao mais
dispendiosa, as ervilhas, o feijo e as lentilhas do melhor resultado que as
batatas. Elas so de molde a produzir um bom sangue e a fortificar os
msculos e o crebro, qual o no faz a batata. As ervilhas, o feijo e as
lentilhas, atento s suas qualidades nutritivas, so mais baratos que as batatas,
165

pela mesma razo que o ferro mais barato que a madeira, quando se trate de
fabricar trilhos. Ervilha, feijo e lentilha do energias para o trabalho, pagam
por si mesmos o seu custo; ao passo que um regime longo de batata acarreta
debilidade e decadncia. O homem que, durante quinze dias, s comesse
batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo (92).
O prolator deve ter assinado contrato com algum hortelo (ou talvez
hoteleiro), exclusivamente devotado a estes onipotentes legumes. Que lhes
faa bom proveito...
Sob este novo panegrico das ditas substncias alimentares, o
materialismo desliza suavemente e insinua-se sem rumor. Compararam-no
certa feita (mas ns temos c as nossas dvidas) quela coisa de que nos fala
D. Basilio: um leve rudo resvalando pelo solo, qual andorinha que, prenuncian-
do tempestades, pipila e passa, espalhando em seu curso a semente
envenenada...
Seja, porm, qual for o efeito dos mirficos farinceos, no ser neles que
hajamos de procurar as manifestaes do esprito humano.
Quando, finalmente, concluem que a influncia incontestvel e
incontestada do regime alimentar, sobre o fsico e o moral, basta para justificar,
em absoluto, a suserania da matria, caem nos excessos do sistematismo, a
negarem tudo que se no enquadra no seu sistema, e a torcerem os fatos para
os ajeitar aos seus estreitos moldes. Bastaria, contudo, ponderassem um tanto
mais, para no sustentarem semelhantes erros.
Quaisquer que sejam o carter, o propsito e a persistncia de nimo
daqueles de quem aqui temos falado, seus exemplos valem como protesto de
afirmaes to insensatas.
Eis aqui o grande missionrio das ndias, Francisco Xavier. Sigamo-lo no
barco que o transportou s ndias portuguesas, por ordem de D. Joo 3, a
descer o Tejo, envolvido na sua estamenha remendada e com a s bagagem
do seu brevirio, ele, o generoso gentilhomem, o sbio de 22 anos, o j
consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo
abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os mari-
nheiros e aos marinheiros se devota; noite, dorme no convs e tem por
travesseiro um rolo de cordoalha.
Em Goa se encontra no meio de uma populao miservel, sem outra
preocupao que a de libert-la do miasma moral e material. Mais tarde, em
prosseguimento de abnegada misso, ei-lo a descer as costas de Comorim e
fundando uma igreja no Cabo. Depois, encontramo-lo em Malaca e no Japo, a
defrontar novas raas e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um
rosrio de sofrimentos fsicos e de conquistas espirituais. Fome, sede, torturas
inauditas, barraram a senda do peregrino da F.
Tudo vencia, porm, e Caminhava avante como que impelido por uma
vontade incoercvel Seja qual for a morte, o Suplcio que me reservem dizia
, estou disposto a sofr-lo mil vezes pela salvao de uma s alma. A febre
e a morte detiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos Como
este, que se poderia concluir das teorias do feijo, das ervilhas e lentilhas? Em
que, Como e quando, o regime alimentar teria governado a alma do apstolo?
Teria ele encontrado nessas regies desconhecidas aquela balana metdica
que se oferece ao cidado e que o capitalista preguioso pode encomendar ao
seu Vatel? Que relao pode haver entre Brillat-Savarin e Grimod de la
Reynire com um Incio de Loiola e um Vicente de Paula? Os grandes
166

exploradores, testa dos quais se encontram um Dumont-dUrville, um Cook,


um Livingstone, etc., no vingaram, todos eles, os seus desgnios em
circunstncias e condies fsicas as mais contrrias e variadas?
Poder-se- sustentar que, mudando de terra, de alimentao, de clima, de
meio social, de elementos outros e at de corpo, dado a transformao
molecular, mudassem tambm de alma, de f e de coragem? Pois no
verdade que persistiram ntegros na consecuo do ideal, atravs de
vicissitudes tremendas e dos mais fortes obstculos? (93) Na verdade,
insistirmos seria injuriar o leitor. Exclusive nossos sistemticos adversrios,
nenhum esprito sensato duvida que matria e esprito sejam coisas diferentes.
Ningum ignora que, se a assimilao corporal atua em nosso pensamento,
assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso no
impede seja essa alma um ser pessoal, que chora s vezes quando as aves
cantam e as flores exalam perfumes, e outras vezes se entrega serenamente
ao estudo, enquanto o cu tempestuoso se funde em raios e troves (94).

(93) Moleschott ainda no se penitenciou do seu erro e continua


sustentando as mesmas opinies de 1852. Bom seria que imitasse, at o
fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos que acabmos de citar,
concebe-se que um observador de boa f proponha, em princpio geral, o
seguinte conceito: Em toda a srie animal vemos funes mltiplas da
vida cerebral em correspondncia com as fases de crescimento e
decrescimento do rgo; vemos a sensibilidade, o julgamento, a
conscincia a coragem e o amor mudarem com o regime alimentar e
com o estado de sade. Curso de 1865 na Universidade de Zurich.
(94) A Filosofia no se deixa dominar por esses mistrios. O vitae
philosophia dux exclamava Ccero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix
espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra
morum. et discipline fuisti: ad te confugimus, a te opem pertimus.)

Entendam-nos bem e no venham interpretar infielmente as nossas


alegaes. Ns no dizemos que a matria seja destituda de toda e qualquer
influncia sobre o esprito; no dizemos que a alma humana seja
completamente independente do organismo e nem mesmo estamos com
Plato, a pretender que o esprito estranho ao corpo e que h antipatia entre
eles.
Certo, ningum dir que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a
cantar. Quem duvidar de que, aps uma jornada fatigante, cabeceando de
sono, tenhamos disposio para danar?
Ento no sabemos, todos, que nossa alma se impressiona com e pelos
aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manh som-
bria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra
intimamente, proporcionando-nos gozos calmos? E, dizei: os poemas sonoros,
os amavios da msica, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonadas, nunca vos
arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Ser que, nas vossas dispo-
sies habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca
experimentastes o efeito da alimentao e dos vossos hbitos e misteres? Dar-
se- que a maneira pela qual findastes a vossa tarefa, no tenha afetado os
vossos sonhos?
Numa palavra: ser possvel ao observador negar a influncia permanente
167

e varivel que o mundo exterior, sociedade, relaes, alimento, frio, luz,


obscuridade, cidade ou aldeia e causas mil outras, de ns independentes, no
influam em nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? No. Essas
influncias so reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja
declarao menos exclusiva do que supem, escreveu: Nos pases frios
haver pouca tendncia para os prazeres, que ser mais acentuada nos climas
temperados, e sempre exuberante nas regies quentes. Ouvindo as mesmas
peras na Inglaterra e na Itlia, notei que a mesma msica produzia efeitos
diferentes, isto : enquanto na primeira o auditrio se mantinha calmo, na se-
gunda vibrava de forma inconcebvel. O mesmo se d com relao dor... A
grande estatura e os nervos enrijados dos povos do Norte so menos vibrteis
que os da gente dos pases quentes. L, h menos sensibilidade na dor. Para
sensibilizar um moscovita, h que o esfolar. Mais adiante, porm, acrescenta
que, entre as coisas que governam o homem, importa distinguir a religio, as
leis, as mximas, os exemplos. Concordaremos com o autor de O Esprito das
Leis, com restries, isto , no que concerne a influncias extrnsecas, por
assim dizer; mas da a admitir qu s elas fazem o homem, vai todo um
abismo. Uma coisa dizer que a alma impressionada por causas situadas
fora dela, outra dizer que essa alma no existe. Chegamos mesmo a nos
perguntar como podem os adversrios conciliar as duas proposies, quando,
no fundo, imaginam que a alma no existe e os pensamentos no passam de
produtos da substncia cerebral, variveis com as impresses recebidas. Eis
ao que se reduz o homem!
Abstraindo de todas as provas precedentemente acumuladas, a
testificao da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da fora pensante
que nos anima. O panteismo, fazendo da alma uma partcula da substncia
divina, a escraviza e arrasta, inevitvelmente, ao fatalismo absoluto. O ates-
mo, negando a existncia do esprito, faz da alma a escrava da matria e
conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo. Poderamos, portanto, proceder por
eliminao, e demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forar o
acolhimento da nossa, como a nica que concilia os diversos imperativos de
nossa conscincia. Assim, permitiu a sorte fssem os adversrios batidos em
todos os quadrantes, e que a negao da personalidade ficasse presa ao
pelourinho por todos os elementos de nossa convico.
Concluindo o arrazoado sobre a existncia da alma, afirmamos: a
dignidade humana no permite um semelhante atentado ao que constitui o seu
supremo fanal, antes protesta contra essas tendncias exageradas. As
influncias exageradas atuam mais ou menos em ns, conforme a nossa
sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composio qumica do crebro,
elas no constituem o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa
hiptese, bem como a precedente, basta considerar a potencialidade da nossa
fora mental. S com ela podemos afrontar todas essas influncias e seguir
desdenhosos, de fronte erguida, por entre essas aes e reaes ambientes.
Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos
preocupamos com o estado do cu, que chova ou vente.
Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias ntimas, pouco se nos
d o dia e o ms em que estamos. Quando srios estudos nos absorvem a
ateno, esquecemo-nos de jantar e at de dormir. Quando o som das
fanfarras atroa os ares e a cidade em alvoroo festeja a liberdade, no ocorre
saber se estamos em Julho ou Fevereiro. Quando a ptria periclita, o pavilho
168

francs no se preocupa com a data e o barmetro. A vontade suserana no


cogita dessas pretensas causas. As profundas emoes do corao
desprezam bagatelas. Se a sade excelente condio para bem pensar e
sentir, no quer dizer que ela s por si promova o estado da alma. H, na vida,
horas mais deliciosas que as dos mais pparos banquetes, e nas quais se
esquecem as iguanas deleitosas aos paladares insaciveis; horas que
eclipsam cmaras suntuosas, peles caras, jias brilhantes, todos os regalos do
mundo, enfim, para s nos absorvermos em gozos mais ntimos e mais
vivazes... Quantos, na Terra, fruiram esses momentos de felicidade, sabem
que acima da esfera material existe uma regio inacessvel aos tormentos
inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunho com a Beleza
espiritual e incriada.
169

QUARTA PARTE
Destino dos seres e das coisas
170

1
PLANO DA NATUREZA CONSTRUO DOS SERES
VIVOS
SUMRIO O erro e o ridculo dos que tudo ligam ao homem.
Erro semelhante dos que negam a existncia de um plano natural. As
leis organizadoras da vida revelam uma causa inteligente. Construo
maravilhosa dos rgos e dos sentidos. A vista e o ouvido. Hiptese
da formao dos seres vivos sob o influxo de uma fora instintiva
universal. Hiptese da transformao das espcies. Todas as hi-
pteses so impotentes para destruir a sabedoria do plano divino.

Certa feita, ao deixar uma aldeia tardinha, vi uma dezena de meninas


que corriam e brincavam sob a copa de frondosas e velhas tlias. Qual bando
grrulo de aves inquietas, corriam e casquinavam sob aquelas frondes
seculares, que, indubitavelmente, viram por ali passar sucessivas geraes
infantis. Que pensariam a respeito, aquelas rvores imveis? Quantos sis
teriam visto passar-lhes por sobre as comas verdes? Sonhariam, acaso, com
os esplendores da prstina vegetao que to gloriosamente vestiu a Terra nos
seus dias primaveris? Teriam elas uma vaga conscincia da importncia do
reino vegetal e da grandeza do seu papel no sistema geral da vida terrena?
Talvez... Mas, seguramente, o que no suspeitariam era a opinio que a seu
respeito me externava uma daquelas lindas crianas, quando, metendo-me no
brinquedo, lhe perguntei para que serviam aquelas grandes tlias...
Para brincar de cabra-cega quando a tarde est bonita respondeu
naquele timbre de franqueza que revela as convices profundas.
E logo aps, como a completar seu pensamento de filha amorosa: elas
servem, tambm, para a mame fazer ch. E disse-o, oferecendo-me um
raminho branco e cheiroso, que cara de um galho...
Outra noite, em Paris, um tal M. C... a quem falvamos da imensidade do
cu e da infinidade dos Mundos, entre os quais a Terra vale por tomo
insignificante, respondeu-nos ele com uma ingenuidade menos perdovel que
a precedente, visto provir de um adulto:
Pregais idias desastrosas, quando dizeis que a Terra no
privilegiada, nem pode ser superior aos astros; pois a verdade que ela for-
neceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o da Santa Virgem, e s isso basta para
gradu-la acima de todos os astros, autorizando-nos a afirmar que todos os
astros foram feitos para ela (95).
Simultneamente, outra boa criatura, que o Sr. Le Prieur, possudo das
melhores intenes, presumia que as mars eram dadas ao Oceano a fim de
facilitar a entrada de navios nos portos (96).
A isso, aditava Voltaire, que tambm no havia razo para duvidar fssem
as pernas criadas para enfiar as botas, e o nariz para sustentar os culos; pois
arrazoava ainda (97) , para nos podermos certificar das verdadeiras
causas, no h como desatender continuidade dos seus efeitos, em todos os
tempos e lugares. Igualmente pueril fora agradecer a Deus o ter feito passar os
grandes

(95) Ver Bibliographie catholique, Mars 1866, pgina 225.


171

(96) Spectacle de la Nature.


(97) Dictionnaire Fhilosophique.

rios pelas grandes cidades e encalhar os navios nas regies polares, para
assim fornecer aos Groelandeses a lenha com que se aqueam. Sente-se quo
ridculo fora presumir que a Natureza houvesse, de todos os tempos,
trabalhado para ajustar-se s nossas invenes artsticas e arbitrrias, mas, se
evidentemente os narizes no foram feitos para os culos, foram-no para o
olfato e isso desde que h homens.
Assim, tambm, no tendo sido as mos engendradas para gudio dos
luveiros, destinam-se, evidentemente a todos os usos que o metacarpo, as
falanges digitais e os movimentos musculares do punho nos facultam.
Telogos h que aplicam a causalidade finalista por justificar a existncia
de animais nocivos, qual o fazem com as enfermidades e misrias humanas,
tudo carregando em conta do pecado original.
No parecer de Meyer e Stilling, rpteis e insetos daninhos e venenosos so
frutos da maldio que inquina a Terra cm os terrcolas. As formas no raro
monstruosas de tais seres devem representar a figura do pecado e da
perfeio.
O autor das Cartas a Sofia, Sr. Aim Martin, nos sugere a crena de que
prevendo o Eterno que o homem no poderia habitar a zona trrida, nela
formou as mais altas montanhas, para a lhe proporcionar um clima agradvel.
Mais adiante, acrescenta que, se a chuva escasseia nas regies arenosas,
porque a se tornaria intil.
Na baixa Normandia usual despejar-se o clice do conhaque no caf, e eu
muitas vezes tive ocasio de conjeturar que, se ao bom Deus aprouve fsse a
aguardente mais leve que o caf, no seria seno para que ele pudesse arder
tona e desse, assim, mais um aroma excelente fuso colonial. H ainda um
infinito nmero de fatos no menos importantes, que nos fazem amar as
causas finais. Talvez devamos advertir que nem todos se podem atribuir a
Deus, e alguns antes parecem negcio do diabo, como, por exemplo, o de que
nos falava um epicurista amigo, isto a condensao nas vidraas, da
evaporao noturna, a formar uma discreta cortina de certas carruagens
fechadas.
Segundo Bernardin de Saint-Pierre, os vulces, localizados sempre perto
dos mares, destinam-se a consumir as matrias corrompidas que carreiam e
que poderiam infeccionar a atmosfera.
As tempestades tm a virtude de refrescar a mesma atmosfera, etc.
Pensava ele, tambm, que as pulgas nasceram pretas para que as
pudssemos distinguir na brancura de nossa pele e ento puni-las. A
plumagem retinta dos corvos, na opinio do Sr. Martin, para que perdizes e
lebres, de que se alimentam no Inverno, possam perceb-los, de longe, sobre a
neve. O eloquente autor do Gnio do Cristianismo diz que, vendo-se qual
pequena flama azulada, fugir a serpente ondulante, fcil-mente nos
convencemos de que foi ela quem seduziu a primeira mulher, O autor das
Cartas pr-citadas tambm afirma que os insetos venenosos so feitos para
que o homem desconfie deles.
claro que o Ideal religioso e a doutrina da Providncia nem sempre foram
bem servidos por seus proslitos. Quando se escoram tais sentimentos com
motivos assim pueris, e frvolos, corre-se o risco de comprometer a causa
172

perante os semi-sbios, o que vale por dizer a maioria dos espritos.


Tentativas que tais, no logam seno caricaturar o Ser supremo. A propsito
de uns tantos filsofos do seu tempo, dizia Duclos: Essa gente acabar
levando-me missa. Hoje, diante da opinio de uns tantos devotos, tambm
chegamos a imaginar que: esta gente acabar fazendo-nos duvidar da
Providncia.
So idias que pecam, no apenas por falsidade, mas pelo imperdovel
estigma do ridculo. Assemelham-se queles camponeses de que nos fala
Riehl (98), incapazes de ver no mundo outras belezas alm das roupas
domingueiras das alentadas conterrneas, que tambm vestem as imagens em
certos dias festivos.
O prprio Fenelon no se forra censura. Assim que nos representa o
Sol como regulando expressamente o trabalho e o repouso, as necessidades e
os prazeres. Graas ao seu movimento diurno e anual, um nico sol basta para
toda a Terra. Se fora maior, mesma distncia, abrasaria, pulverizaria o
mundo; se menor, a Terra se congelaria, tornar-se-ia inabitvel Se, do mesmo
tamanho, estivesse mais afastado, deixaramos de viver, mingua de calor.
Que compasso, pois, abrangendo em seu crculo cu e Terra, teria assinalado
medidas to exatas? De fato, ele no beneficia menos as regies das quais se
afasta, do que o faz quelas de que se aproxima por favorec-las com os seus
raios... Destarte, a Natureza adornada em diversas maneiras, oferece
simultneamente to variados espetculos que no d tempo ao homem para
desgostar-se do que possui. Mas, entre os astros, diviso a Lua, que parece
compartilhar com o Sol o cuidado de nos aclarar. Ei-la que surge, ento, com o
seu cortejo estelar, no momento exato em que o Sol vai irradiar noutro
hemisfrio.
Lcito , certamente, pr em dvida o valor absoluto deste raciocnio, pois a
partilha uniforme dos dias e das noites s se verifica no equador, para diminuir
progressvamente e desaparecer nos plos, com todas as suas virtudes e
benefcios. Se l, nos plos, algum dia escreverem para glorificar a Pro-
vidncia, ho-de ver que lhe rendero graas pelos dias e noites semestrais.
Em Mercrio, ou em Netuno, ho-de concluir que o Sol tambm est
distncia convinhvel ecloso da vida ambiente. Era Jpiter, louvaro o
Criador por lhes ter concedido quatro luas, tanto

(98) Die Burgeliche Geseltschaft.

quanto em Saturno agradecero a ddiva de um anel, que rene o til ao


agradvel, etc.
Diante de tais argumentos no h que admirar tenha a causalidade final
cado no mais absoluto descrdito. Eis a, contudo dizia J. B. Biot (99) a
que extremos levaram a mania, hoje to comum, de explicar o como e o porqu
de todas as coisas naturais, conforme o imperfeito e vago sentimento utilitrio
que delas possamos ter. Cada qual, assim, regula a previdncia da Natureza
ao nvel de suas luzes, tornando-a mais ou menos louca, na pauta da prpria
ignorncia. Isso nada representaria, uma vez que tais sonhos fssem in-
culcados pelo seu justo valor e no pretendessem insinu-los como verdades,
como artigos de f, a ponto de considerarem os seus autores uma impiedade,
quando os tachamos de absurdos.
preciso opina Montaigne julgar com muita moderao as coisas
173

divinas. O em que mais se acredita justamente o que menos se conhece;


nem haver pessoas mais autorizadas do que aquelas que nos contam fbulas,
como sejam os alquimistas, os adivinhos, quiromantes, mdicos, id gezus
omne, aos quais de bom grado eu juntaria, se mo permitissem, uma certa
classe de indivduos que se metem a interpretar e controlar os desgnios de
Deus, gabando-se de encontrar as causas de cada acidente e de ver, nos
segredos da vontade divina, a razo incompreensvel da sua obra. Esbarrados
a cada canto, atirados de um lado para outro, merc da variedade e
discordncia contnua dos episdios, nem assim deixam eles de seguir o seu
painel, a pintarem com o mesmo lpis o preto e o branco.
Por terem sido escritas h quatrocentos anos, estas judiciosas palavras do
venerando ancio no deixam de exprimir uma verdade, que tem aplicao a
cada momento. Elas merecem ser juntadas comparao que o mesmo autor
faz do homem com

(99) Mlanges Scientifiques et Litteraires.

o ganso, que se gloria de ser o favorito da Natureza comparao j por ns


desenvolvida (100) a propsito da vaidade humana, que, de longada, construiu
o Universo nos moldes de sua fantasia.
Desde que o homem se deixa arrastar pelo natural pendor de tudo referir a
si, torna-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para faz-lo entrar nos seus
planos estreitos e mesquinhos.
O Sol j no , ento, mais que um seu msero servo; as estrelas no
passam de ornamento para decorao do seu cenrio e servindo-lhe de roteiro
na explorao dos mares. Se a atrao luno-solar, duas vezes por dia, levanta
as guas ocenicas, apenas para facilitar a entrada no Havre dos navios que
chegam de Nova-Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho excreta o
tanino, para que possamos ter bons couros. Se o bmbix fia a seda no seu
casulo, para ofertar belos estojos s mulheres elegantes. O rouxinol sada a
aurora? ento para o encanto auditivo de quem o ouve. A Natureza inteira,
enfim, foi criada visando o homem, e toda ela concorre para ajud-lo e o fazer
feliz.
evidente que, quando se chega a tais excentricidades, a causalidade
final fica singularmente prejudicada. Pretender que tudo tenha sido expres-
samente criado para o homem abusar muito ingnuamente da nossa posio.
Antes de tudo, preciso distinguir a Natureza em duas partes bem
diferentes: o Cu e a Terra.
O Cu o espao infinito, a multido incalculvel de mundos, o conjunto; a
Terra, uma gota dgua no oceano, um gro de areia, um tomo. Que o Cu se
tenha criado para o habitante da Terra, idia absurda, inconcebvel. O Cu
no conhece a Terra e o homem, por sua vez, no conhece a mnima partcula
do Cu. As estrelas so sis, centros de sistema

(100) Mundos Reais e Mundos Imaginrios parte 2, captulo 5.

de outras terras habitadas. Contamo-las por milhes e certificamo-nos de que o


nosso planeta lhes absolutamente desconhecido e insignificante, em relao
a elas que ocupam no espao domnios to vastos que a prpria luz leva
milhares de anos para atravess-los. De sorte que, se o nosso globo deixasse
174

hoje de existir, seu desaparecimento no seria matemticamente percebido


pelos mundos siderais.
O tomo terrestre turbilhona, clere, em torno do Sol, com a docilidade da
funda nas mos de um gigante. Mil revolues siderais se completam
simultaneamente, no infinito, em todas as latitudes imaginveis e distantes
deste tomo... Quando, pois, o homem pretende a imensidade opulenta dos
cus desdobrada no vcuo em sua exclusiva inteno; quando fala de princpio
e fim do mundo, como se se referisse sua pessoa, equipara-se a uma formiga
que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro, traado para
oferecer-lhe belas perspectivas. As rvores floridas foram destinadas ao prazer
da vista, e aquela casinha branca, l mais longe, no foi construda seno para
lhe servir de ponto de referncia; e finalmente: o proprietrio desse campo no
cogitou seno dela formiga inteligente quando organizou o seu habitat
com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desgnio manifesto. Se,
secundriamente, nos restringirmos Terra, a idia de uma finalidade criadora
aqui mais particularista, e no haver absurdidade em pretender o homem
tenha sido ela construda e organizada para sede da vida e da inteligncia.
Pode-se mesmo ajuntar que, no plano terreno, o homem o ser mais elevado.
S ele recebeu o dom da inteligncia. Se desaparecesse da Terra, de crer
que esta perderia a sua razo de ser no concerto universal, a menos que no
viesse outra raa intelectual suceder-lhe, o que leva a crer tenha sido mesmo
destinado para ser habitado.
Temos precisamente demonstrado, em uma obra anterior, que os mundos
foram construdos para moradia do esprito.
Considerando, porm, o homem como o ltimo ser nascido entre os seres
terrcolas, cujo surgimento sucessivo obedeceu lei geral de progresso, e
considerando-o como o mais perfeito da escala, a pressupor-se o centro final
ou pelo menos atual da evoluo terrestre, negamos-lhe, contudo, o
direito de atribuir a Deus as suas mesquinhas concepes, e supor que as
suas mnimas combinaes domsticas participaram do plano divino e eterno.
Nem fora de si que ele dever procurar a razo de sua grandeza: naquilo
mesmo que o distingue, isto , no seu valor intelectual. Se, por sua inteligncia,
se apropriou de uns tantos servios que lhe pode prestar a Natureza, no h
confundir essa apropriao com o plano geral.
A estrela polar no foi criada para nortear navios, mas o navegador soube
utilizar-se da sua posio peculiar. O carvalho no foi feito para aproveitar aos
cortumes, mas o fabricante descobriu, com a sua inteligncia, as propriedades
do tanino no tratamento das peles. A prpura, molusco gastrpodo do
Mediterrneo, no nasceu para tingir o manto real dos potentados, mas a
indstria houve como extrair um colorido brilhante das suas conchas, o
carneiro, o bicho da seda, as aves de pluma, as plantas txteis, o algodoeiro, o
linho, o cnhamo; as minas de ouro, prata, chumbo, nquel; as safiras, rubis,
esmeraldas, etc.; tudo enfim seres e coisas, que a Natureza oferece ao
homem, no foi criado nem posto no mundo com fins particularistas e, se o
homem tem progressivamente se apropriado dos elementos, claro que o
deve s suas faculdades eletivas, sua inteligncia e no a um plano
primordial necessrio, que se houvera de executar fatalmente e, por assim
dizer, revelia da escolha da indstria humana.
Expe-se o homem a cair em erro grosseiro, quando tudo refere a si,
mediante um processo incompleto. Mas, negar um plano Criao s pelo fato
175

de esse plano no se reportar exclusivamente ao homem, cair noutro erro.


Voltaire deplora em belos versos o terremoto de Lisboa e pergunta, com
acrimonia, onde est essa Potncia amiga do homem e de que tanto se fala.
Rousseau responde-lhe, ento, que a culpa s dos homens, pois
ningum lhes mandou edificar num solo assim. Nem um nem outro tem razo.
O homem enganou-se no seu egosmo, nisso estamos de acordo, e at nos
propomos evidenciar a fantasia desse mtodo.
Mas, a falsidade de mtodo no razo bastante para concluir que o
objeto desse mtodo no exista, e que o fundo da doutrina seja um erro.
Ora, isso justamente o que fazem os materialistas, sem perceberem que
se deixam seduzir por uma estranha confuso. Certo, a causalidade final, o
conhecimento do plano da Criao, no to simples como imaginam espritos
superficiais. , assim, de extrema complexidade e apresenta dificuldades
quase insuperveis, mesmo para espritos mais clarividentes. Ns no
assistimos aos desgnios de Deus e no passamos de pobres ignorantes em
face de tanta grandeza. Mas, com franqueza, em que pode a nossa
incapacidade afetar o princpio das causas? Em que os nossos erros diminuem
a idia da onipotncia criadora? Considerais o homem um ser bem importante
para armar este dilema: ou a Natureza gravita para o homem, ou conserva-
se em repouso.
Esqueceis, assim, os vossos prprios princpios e habitual desdm pelas
aspiraes humanas, para nos colocar na alternativa de crer que a destinao
de tudo converge seus raios para ns, ou que no haja nenhum desgnio na
unidade universal! Mas, no... A verdade que deixais o ser humano assaz
envolto nas gangas da matria, para o evidenciardes de um jato no seu
aspecto superior. Tende-lo assaz eclipsado na sua intelectualidade para
poderdes, de improviso, formular essa alternativa. Mas, como explicar a vossa
absoluta negao de qualquer plano da Natureza?
Ei-la a, esta grande, pretensa explicao, mediante a qual imaginam
suprimir toda a idia de finalidade geral e particular! Vamos ver que essa
explicao to frgil quanto as alegaes opostas s eternas verdades, e que
esses mesmos homens que nos increpam de forjadores de hipteses, mais no
fazem, na verdade, que substituir hipteses por hipteses mais complicadas. A
diferena principal, entre ns, est em que eles se atolam no seu labirinto
escuro, enquanto marchamos em reta para o nosso alvo luminoso.
Emmanuel Kant, cuja mo esquerda continha tantos erros quantas
verdades continha a direita (balana invejvel, mesmo em se tratando de ho-
mens privilegiados), no escapou de afirmar, certa feita, que a conformidade
com o desgnio s podia ser criada por um esprito refletido, que, conse-
quentemente, admira um milagre por ele mesmo criado.
Percebeis, por a, a fecundidade de uma semelhante proposio para os
senhores de alm-Reno. Eles vo extrair-lhe um suco abundante, leitoso, que
oferecero como remdio s imaginaes doentias; assim um como elixir para
velhos e crianas, igualmente aperitivo e nutriente dos que madrugam com
fome. Essa declarao genial vai arrasar o secular juzo humano. Abstrai-se de
Deus o pensamento de ordem e harmonia, para d-lo em homenagem
inteligncia humana. Cirurgies de nova espcie abrem a veia ao bom Deus,
para inocular no crebro do feliz habitante da Terra o seu princpio vital.
claro, pois no? . que, se existe ordem na disposio do mundo, e se h
inteligncia na organizao dos seres, ao homem que o devemos atribuir,
176

visto como, evidentemente, no Universo nada pode haver inteligente alm do


homem, e, presumir um Deus a ele superior, fora Insultar a dignidade do
bpede humano.
Ouamo-los ainda um instante. Um dos principais argumentos dos que
admitem deveremos atribuir a origem e conservao do mundo a uma potncia
criadora, tudo governando e regulando Universo diz Bchner sempre foi e
continua a ser a pretena doutrina da destinao dos seres, na Natureza. Toda
flor espanejando as ptalas brilhantes, todo sopro de vento agitando o ar, toda
estrela luzindo na amplido da noite, toda ferida cicatrizando-se, todo som,
tudo enfim, na Natureza, excita a admirao dos partidrios da predestinao,
pela profunda sabedoria dessa potncia superior. A cincia natural dos nossos
dias emancipou-se dessas balofas concepes teolgicas, que apenas se
detm superfcie das coisas, e relega estes inocentes estudos aos que
preferem conciderar a Natureza com os olhos do sentimento e no com os do
entendimento.
Como poderamos falar de conformidade aos fins, objetam-nos, se no
conhecemos aos seres sob esta exclusiva e nica forma e nenhum
pressentimento temos do que seriam eles se de outra forma nos surgissem?
Nosso esprito nem mesmo constrangido a contentar-se com a realidade.
Qual seria o arranjo natural que no pode ainda realizar-se, de qualquer
maneira, mais conforme com o fim? Hoje admiramos os seres, sem nos
advertirmos da infidelidade de outras formas, organizaes, processos que a
Natureza empregou, emprega e empregar na conformidade dos seus fins.
Do acaso depende que eles vinguem, ou no. Ento, no h formas
grandiosas de vegetais e animais mais desaparecidas a muito tempo e que s
conhecemos por destroos fossilizados? Toda essa formosa Natureza,
conformemente ajustada a um fim, acrescentam, no ser possivelmente
destruda por um cataclisma planetrio e no se far preciso ainda uma
eternidade para que essas e outras formas desabrochem do limo?
Ainda mesmo que ela fosse destruda, isso nada provaria contra a nossa
tese. No interrompamos, porm, os locutores e continuemos a ouvir-lhes as
objees.
A seguir, vem o velho argumento dos animais inteis ou nocivos ao
homem, que nada prova, igualmente, contra a inteligncia organizada e cai pe-
rante esta verdade: a de no ser a Terra um mundo perfeito. Animais muito
nocivos, escreve o autor de Fora e Matria, como por exemplo o rato dos
campos, so de uma fecundidade tal, que no podemos prever seu
desaparecimento; os gafanhotos, os pombos errantes, formam bandos
compactos de obscurecer o Sol e levam a devastao, a fome e a morte por
onde passam... Os que s enxergam sabedoria, desgnio, causas finalistas na
Natureza diz Giebel poderiam empregar sua perspiccia no estudo dos
vermes solitrios. Toda a atividade vital desses animais consiste em produzir
ovos prprios para desenvolver-se, e uma tal atividade s pode ser exercida
mediante sofrimento de outros animais. Milhes de ovos perecem inutilizados,
o embrio transforma-se num esclex, que no faz outra coisa que sugar e
engendrar. um processo em que no h beleza, nem sabedoria, nem
conformidade determinativa, na acepo humana.
Para qu? perguntam depois as enfermidades, os males fsicos em
geral? Qual a razo desse ror de crueldades, de atrocidades, que a Natureza
inflige a cada dia, a cada hora, s suas criaturas? O ser que deu ao gato e
177

aranha a crueldade e dotou o homem, essa obra-prima da Criao, de uma


ndole que o faz tantas vezes to brbara e cruel, poder, assim procedendo,
ser um ente bondoso e benvolo, conforme a idia teolgica?
Mas, em que o fato da aranha devorar moscas e os gatos comerem ratos,
tanto quanto o de serem os homens criaturas inferiores, avassalando-se aos
instintos materiais, prova a maldade ou a inexistncia de Deus? Como
demonstrao cientfica, confessemolo, superficialssima.
Depois, procuram nas excees, nas monstruosidades da Natureza, nos
seres atrofiados, de incompleto desenvolvimento, exemplos de inutilidade ca-
pazes de desviar a ateno do plano geral e assim demonstrarem a ausncia
de inteligncia, como se algumas pedras isoladas que, de resto, entram de
si mesmas no plano geral pudessem destruir a simetria do conjunto e
aniquilar o valor arquitetnico do edifcio.
A Anatomia comparada acrescenta o mesmo materialista ocupa-se
principalmente no investigar a conformidade de estrutura das diferentes
espcies de animais, fazendo ver, em cada espcie ou gnero, o princpio
fundamental da sua organizao.
Baseada nestes dados, a Cincia nos mostra em cada ordem animal um
grande nmero de formas, de rgos, etc., que lhe so inteiramente inteis,
no conformes com o seu fim e antes parecendo no passarem de forma
primitiva da sua constituio, de rudimentos de uma disposio, ou de uma
parte do corpo, que atingiu em outra espcie um desenvolvimento capaz de
facultar ao indivduo uma certa e determinada utilidade. A coluna vertebral do
homem termina em pequena ponta de nenhuma utilidade, que muitos
anatomistas consideram como rudimentos da cauda dos vertebrados.
A estrutura corporal dos animais e das plantas oferece inmeros
dispositivos sem finalidade aprecivel. Ningum ainda sabe para que serve o
apndice vermicular, a glndula mamria do homem, o osso clavicular do gato,
a asa de algumas aves incapazes de voar, os dentes da baleia. Vogt adverte
que h animais verdadeiramente hermafroditas, possuindo os rgos de ambos
os sexos e no podendo, contudo, reproduzir-se por si mesmos. Para que
serve uma tal organizao? pergunta ele.
A fecundidade de uns tantos animais tal, que, abandonados a si
mesmos, em poucos anos repletariam os mares e envolveriam a Terra numa
crosta da altura de uma casa. Para que serve essa organizao? Espao e
matria no bastam a uma tal quantidade de animais. Que fim poderia ter a
Natureza desenvolvendo uma glndula mamria nas costas de um homem de
34 anos, fenmeno este recentemente observado e descrito pelo Dr. Hobbe, de
Viena? Porque dar trs Seios completamente formados a uma mulher, e quatro
a uma outra? E porque, num cortio de abelhas, milhares de zanges to s
destinados ao extermnio? Animais h que jamais nadam e, no entanto, tm
patas providas de membranas natatrias, enquanto que aves aquticas
importantes apenas apresentam delgadas membranas.
O ferro da vespa e da abelha apenas lhes serve de arma mortfera ao
inseto que o experimenta, e assim por diante, O desgnio de um Criador
Onipotente e onisciente deveria, antes de tudo, ser possvel de interpretao
racional. Se assim fsse, no daria, certo, rgos inteis aos animais.
Qual a finalidade e utilldade das formas fetais transitorias, nas quais os
mamferos se assemelham aos peixes e aos rpteis, antes de atingirem com-
pleta formao? Para que servem, no feto humano, os arcos bronquiais com
178

suas aberturas? Porque, nos mamferos, rgos rudimentares que s se de-


senvolvem nos rpteis? E porque, nos mamferos machos, rgos genitais
femininos que se no desenvolvem, e vice-versa?
Tuttle no percebe que estas anomalias se integram de si mesmas no
plano geral, cuja lei de progresso princpio e fim.
O autor de Fora e Matria apega-se com unhas e dentes a esses
artifcios, no intuito de dissimular a cambalhota, trazendo baila todos os
monstros de terra e mar.
Um dos fatos mais importantes que desmentem as causas finais da
Natureza so os monstros, A. prova de que o simples bom senso no podia
conciliar a existncia de tais aberraes com a crena de um criador, operando
determinadamente, est em que os povos antigos os consideravam como
expresses de clera dos deuses, e ainda hoje os simplrios vem nesses
fatos um castigo do cu. Vimos no gabinete de um veterinrio uma cabra
recm-nascida, perfeitamente conformada, mas, sem cabea. Haver nada de
mais absurdo e mais contrrio ao fim, do que ensejar a formao perfeita de
um organismo prviamente invivel, permitindo-lhe acesso ao mundo? O
professor Lotze, de Goetting, excede-se a si mesmo ao dizer, a propsito de
monstros, que, quando a um feto falta o crebro, a nica coisa a fazer, digna
de uma potncia absoluta, seria sustar os efeitos, desde que no podia
remediar o fracasso. Um corpo estranho na glote suscetvel de expelir-se
com a tosse provocada; mas, um corpo estranho no esfago pode, excitando
os nervos da laringe, determinar a asfixia.
Cada dia, a toda hora, pode o mdico convencer-se pelas molstias,
deformidades, abortos, etc., do abandono em que a Natureza deixa as suas
criaturas. Outrossim, para que serviriam os mdicos, se a Natureza agisse de
acordo com um fim?
Sob estes argumentos exagerados, h uma verdade constante que ,
certo, uma das maiores dificuldades que se nos podem opor.
Por ns, confessamos que jamais se nos deparou um aleijo, que nos no
sentssemos molestados em nossas convices.
O Gabinete de Anatomia de Estrasburgo, to rico de monstros acfalos e
de espcimes teratolgicos, no nos desperta, neste particular, nenhuma
atrao. Que alma teriam tido esses fetos detidos uns, desviados outros, em
sua evoluo normal? Problema que, nem Santo Agostinho, nem So Toms
nos ajudam a resolver, e que a Cincia pouco elucida. Considerando, porm,
as coisas no seu justo ponto de vista, temos que a militam excees muito
raras, de sorte a no poderem infirmar o ensino de conjunto. Que uma planta
se empole acima de um ligamento; que as veias intumesam compresso do
brao, que impede o retorno do sangue; que um feto paralise a sua evoluo,
ou que um rgo se atrofie em consequncia de particularidade orgnica
qualquer, anomalias so essas mais aparentes que reais, a mostrarem que as
leis so gerais, tanto quanto no ser Deus um ser mesquinho, cuja ao se
modele pelos obstculos passageiros produzidos pelo homem, ou por
quaisquer acidentes, quando por elas induzem a inexistncia de Deus, ou que
Deus deveria proceder de acordo com as idias humanas.
Insistindo mais especialmente acerca das monstruosidades, tambm nos
advertem da possibilidade de as produzir artificialmente com uma simples leso
do ovo ou do feto. A Natureza, dizem, no tem meios de reparar esse mal e,
muito ao contrrio, segue o impulso recebido, continua a operar na falsa
179

direo e acaba engendrando um monstro. Haver quem possa duvidar da


ausncia total de inteligncia e do puro mecanismo deste processo?
Diante de um fato, desta ordem, poder-se- admitir um criador inteligente
governando a matria a seu nuto? Seria, ento, Possvel que essa inteligncia
se deixasse vencer ou desviar pela vontade arbitrria do homem ?
Admiremos aqui, at onde ousam levar esta crtica s obras da Natureza
(101). Para que esses senhores se contentassem e se dignassem fazer justia
inteligncia que rege o mundo, fora preciso que a ordem soberana e inflexvel
cercasse os seres de uma couraa de ao rgido. Admirais a fina tessitura da
pele, uma ctis acetinada, sua alvura e sensibilidade ao menor contacto. E, na
verdade, no tendes razo. Essas qualidades, no provam que a Natureza
tenha operado inteligentemente e preparado ao mesmo tempo as condies
sanitrias de um corpo bem constitudo, assim como as sensaes teis ou
agradveis, que essa carne vibrtil venha a experimentar. No. Esses filsofos
haveriam de preferir o mrmore ou o ferro: a Natureza poderia ter agido de
forma que as balas esfusiassem do corpo e as espadas acutilassem sem ferir
(102). Que tal esta crtica? Eis aqui uma criana que acaba de nascer: se lhe
decepardes a cabea, essa cabea no tornar a nascer. Estpida Natureza!
que se deixa assim . anular pelo arbitrrio capricho humano... E, quereis ainda
conhecer uma outra prova da ininteligncia de Deus e da futilidade dos que
nele acreditam? Ei-la e tomai bem nota, porque prova irresistvel. A luz,
cuja velocidade se estima em 75.000 lguas por segundo, no vai assaz
rapulamente. A luz atravessa to lentamente o Universo, que seriam precisos
milhes de anos para chegar de uma a outra estrela. Que se h-de pensar
destas restries to pouco Sbias, como manifestaes de uma vontade
criadora? (103).

(101) J registamos que esta crtica velha quanto o mundo. Diz


Lucrcio: (parte 5) como que as vagas dos elementos criadores
fundaram o cu, a Terra, cavaram o fundo oceano e dirigiram o curso do
Sol e dos astros? Repito: este conjunto no pode ser obra de inteligncia
os elementos do Universo no poderiam ter meditado a ordem que a eles
preside, no Combinaram de antemo o surto e o movimento que
deveriam sustentar mutuamente a verdade, porm, que, infinitos em
nmero, esses elementos Sacudidos em todas as direes, submetidos
de toda a eternidade, a choques estranhos levados pelo prprio peso,
atrados, reunidos em todos os sentidos tentaram, tomaram,
abandonaram e retomaram todas as combinaes, e, custa. de
movimentos conjuntivos, coordenando-se, engendraram essas grandes
massas, que se tornaram mais ou menos no primitivo esboo da Terra, do
cu, dos mares e das espcies animadas.
(102) Bchner Fora e Matria, captulo 11.
(103) Idem, idem.

Talvez objeteis, ingnuo leitor, que a maior ou menor velocidade da luz


nada tem que ver com a inexistncia de uma vontade criadora. Mas, nesse
caso, que no percebestes que esses escritores julgam que Deus, se
existisse, deveria ter as mesmas nossas fantasias. E como ao Sr. Bchner no
lhe apraz que a luz apenas percorra 4.620.000 lguas por minuto, claro que
ela deveria correr mais. Arrastando-se assim penosamente no espao,
180

porque no existe Criador. Isto posto, podeis perguntar qual a cifra que
agradaria ao talentoso crtico e sabereis que o prprio Sr. B... no o sabe ao
certo, e o que s deseja, para o momento, que a luz caminhe mais depressa.
Mas, a despeito de tudo, no nos devemos formalizar por esta inocente
fantasia, antes, pelo contrrio, compartilhar do mesmo nobre desejo. Assim,
confessamos que veramos com prazer quaisquer progressos de rapidez na
luz, mesmo aqui por baixo.
A esto, dir-se-, objees meramente ridculas. Entretanto, as mais
srias dificuldades desaparecem por si mesmas, quando o homem deixa de
apresentar-se como ponto de referncia. E isso o que se lhe impe, de vez
que , ele prprio, parte integrante de um plano geral, extensivo a outroS
mundos, na imensidade da Criao. Se o Cid, se ndrmaco advertimos
com E. Bersot (104) ressuscitassem para se verem representados por Corneille
e Racine tendo em vista o belo papel que lhes atribuiram, o relevo em
relao a outras personagens, a predileo do poeta neles concentrada
diriam, seguramente, que Corneille e Racine tiveram em mira erguer um
monumento sua glria, e mais que so eles finalidade da obra, a sua mola
real, e que os demais comparsas apenas vm cena por causa deles... A
verdade que o objetivo do autor realizar o belo, cuja perspectiva o inflama;
traduzir na linguagem dos homens o ideal invisvel. As personagens no
passam de instrumentos. No temos a uma justa imagem da Criao? Tem
graa, ento, ver como algum dos

(104) Du Spiritualisme et de la Nature.

atores, chamados cena para balbuciar um s vocbulo em toda a pea,


imagina que o teatro foi construdo e ornamentado para ele e que estivera
vazio at ento, etc.
A iluso dos sentidos e a vaidade a se juntam para induzir-nos em erro, O
fim da Cincia libertar-nos da mais funesta superstio, dos inimigos da
verdade. Deixem-se os telogos de invocar as causas finais, pois no h como
ser juiz e parte ao mesmo tempo. O mundo organizado toda uma harmonia
imensa; os monstros de que falmos, so atestados de unidade da lei e do
plano da Natureza, Os seres inteis e os nocivos ao homem so manifestaes
da fora criadora e das etapas gradativas. O conjunto o que importa
considerar, e no o habitat humano. face desse panorama, esvanecem-se
todas as objees derivadas de uma acanhada aplicao ao homem.
Concentremos agora a nossa ateno na construtividade inteligente dos
rgos destinados a transmitir ao crebro o conhecimento do mundo exterior,
isto , dos sentidos e, particularmente, da vista. A beleza da conformao tica
do olho, no h quem a possa contestar. Afirmar que ele foi feito para ver,
como o ouvido para ouvir, cometer pleonasmo. Repetir que a sua
organizao mais perfeita que a de qualquer cmara fotogrfica incidir em
banalidade. Mas, para combater o adversrio no mesmo p e no mesmo
terreno, importa entrar em detalhes por um momento e invocar a descrio
anatmica do olho.
A viso nos olhos do homem, como nos do animal dizia Euler coisa
maravilhosa. A forma do globo , em geral, esfrica e compe-se de trs
folhetos. A membrana mais superficial chama-se esclertica (branco do olho),
opaca, assaz espessa e cerca mais ou menos os trs quartos posteriores do
181

globo visual, dando-lhe consistncia e forma. Sua parte anterior apresenta uma
abertura. arredondada, na qual se embute a crnea transparente. A essa
membrana esto ligados os msculos destinados a movimentar o globo. Por
baixo dessa primeira membrana fica a coride, de cor negra retinta, que faz do
olho uma verdadeira cmara-escura, absorvendo os raios que pudessem irritar
a retina; em sua parte anterior, ela forma um como repartimento diafragmtico,
chamado ris, disco circular com um orifcio central e colorido de diversos
matizes, cuja suave atrao , s vezes, maravilhosamente poderosa.
O orifcio central a chamada pupila (ou menina dos olhos) e ns
sabemos que ela nada tem de objetivo, como se afigura, e sim, apenas, uma
abertura que se dilata, mais ou menos, conforme a quantidade de luz que os
olhos recebem, pois que a ris goza da propriedade curiosa de se contrair ou
dilatar para tornar-se, assim, um graduador indispensvel. por essa abertura
varivel da ris que os raios luminosos penetram na cmara-escura que lhe fica
por trs. Uma lente biconvexa l est suspensa, para receber esses raios
o cristalino.
Toda a parte posterior, a partir dessa lente at o fundo do olho, est cheia
de massa gelatinosa, difana, semelhante clara de ovo e conhecida por
humor vtreo.
Finalmente, atrs desse humor e defronte da pupila, localiza-se a mais
delicada e importante das membranas, a placa sensvel, que recebe a imagem
e, comunicando-se com o crebro, lhe d a percepo: a retina, uma florao
do nervo tico, proveniente do crebro. V-se, pois, sem metfora, que o
crebro que se vem colocar janela para ver o mundo exterior.
O prolongamento da retina forra toda a zona posterior e interna dos olhos.
O cristalino, lente pela qual passam todos os raios luminosos, a fim de
chegar retina, pode, com extraordinria facilidade, modificar a cada instante a
sua flexo, de maneira a adaptar-se distncia e levar constantemente retina
uma imagem ntida. Mas, como concebermos possa esse cristal orgnico
dilatar-se e retrair-se assim, sua vontade? Sem concebermos esta
possibilidade, fora preciso uma estrutura ainda mais admirvel que o prprio
efeito. preciso saber que esse globo lenticular no nenhum slido
constituindo uma pea inteiria, mas, antes, uma associao de finissimas
lminas transparentes, justapostas e to delgadas que preciso fora reunir um
milhar para perfazer a espessura de uma unha, e que, na realidade, o cristalino
contm assim uma como bagatela de cinco milhes. Considere-se, a mais, que
essas lminas por sua vez se compem de pequenos fragmentos soldados
entre si, e que o jogo desses fragmentos que produz a extraordinria
mobilidade interna dessa lente difana.
A esto as criaes maravilhosas, das quais se repleta a Natureza, e que
passam comumente despercebidas!
Mediante essa estrutura engenhosa quo inimitvel da vista, os objetos
exteriores passam do campo fsico ao mental, tornam-se acessveis ao esprito
e deixam-se tatear, como se deles no nos separasse qualquer distncia. um
mecanismo que se molda a todas as contingncias. De si mesmo e a nosso
nuto, ele se adapta s variaes de luz, como as de espao, e faz o que
nenhum outro instrumento capaz de fazer, isto , sabe distinguir os corpos
celestes a distncias enormes, tanto quanto os seres microscpicos que se lhe
acercam de centmetros.
Brewster tem razo quando o denomina sentinela que guarda a
182

passagem entre os mundos material e espiritual, executando a. permuta de


suas comunicaes.
Ns compreendemos que, depois de haver ponderado a estrutura do
rgo visual, Euler d arras sua admirao, dizendo: O olho ultrapassa, por-
tanto, infinitamente, todas as mquinas que o engenho humano possa
construir. As diversas matrias transparentes de que ele se compe, tm, no
apenas um grau de densidade capaz de causar refraes diferentes, como
bem determinada se apresenta a sua configurao, de sorte que todos os raios
sados de um ponto do objeto so exatamente reunidos num mesmo ponto,
ainda que o objeto esteja mais ou menos distante, situado direta ou
oblqamente, e que seus raios sofram refrao diferente. mnima alterao
que se operasse na natureza e na configurao das matrias transparentes, o
olho perderia desde logo todas as vantagens que acabmos de admirar.
Nada obstante, os ateus ousam sustentar que os olhos, bem como o
mundo inteiro, no passam de obra de mero acaso. Nada encontram eles, em
tudo isso, digno de sua ateno. No reconhecem na estrutura do globo visual
indcio qualquer de sabedoria, antes acreditam haver motivo para lastimar-lhe a
imperfeio, de vez que no domina a obscuridade, no atravessa uma parede,
no distingue as particularidades de um objeto mais distanciado, quais a Lua e
outros corpos celestes. Gritam eles, alto e bom som, que o olho nada que
indique um desgnio e foi feito ao acaso, como qualquer fruto silvestre, pelo que
fora absurdo dizer que tivemos olhos para podermos ver. O que se conclui
que, ao invs, tendo recebido ocasionalmente os rgos, deles nos
aproveitamos tanto quanto o permite a Natureza. intil discutir com essa
gente: inabalvel nas suas convices, ela despreza as coisas mais
respeitveis. Suas presnes a respeito dos olhos, v-se, so absurdas quan-
to injustas (105).
Os raios que ao nosso crebro transmitem o aspecto dos objetos,
penetram no olho, obedecendo s leis da refrao, em virtude das quais as
substncias do olho se encontram de si mesmas dispostas. A ris enche o
globo ocular e exerce, em relao

(105) Lettre une Princesse dAliemagne, 41.

aos raios luminosos, o papel de diafragma. A chispa central, luminosa, que


atravessa a pupila, atinge logo o cristalino; esses raios so fortemente
aproximados por essa lente biconvexa, mas, sem que da resulte
decomposio de raios luminosos, assim facultando a colorao prismtica
objetiva. Este perfeito acromatismo, to rara e dificilmente obtido na construo
das objetivas, devido diferena de densidade das numerosas camadas con-
cntricas do cristalino. Os raios luminosos, tornando-se fortemente
convergentes ao atravessarem o cristalino e, mais ainda, pelo humor vtreo que
se lhe segue, tendem a reunir-se num foco comum e a formar uma imagem que
se vai desenhar na superfcie da retina. O olho se adapta, pois, de si mesmo,
s distncias, seja pela contrao da ris, seja pelo alongamento ou retrao do
eixo do cristalino. Ao demais, exposto, devido sua posio, a numerosas
alteraes, a Natureza tomou as maiores precaues em sua garantia. Assim,
para subtrai-lo a uma excessiva excitao luminosa, disps na parte anterior as
plpebras movedias, guarnecendo-as de clios protetores, e cujo interior se
forra de membrana delicadssima, lubrificada com a secreo de uma glndula
183

situada na abbada orbitria, a verter de seis ou sete pequeninos canais que


se abrem ao alto da plpebra superior.
Ante a descrio anatmica do globo visual, que desejaramos poder
ilustrar direta ou grficamente, a ns mesmos nos perguntamos como Newton,
se o olho poderia ser feito sem conhecimento da tica, para responder com o
ilustre pensador que essa estrutura demonstra, sem contestao possvel, no
s a existncia de uma inteligncia conhecedora da tica, como capaz de lhe
submeter s leis todos os movimentos da matria.
Efetivamente, preciso audcia para diante da construo portentosa do
rgo visual, pretend-la originria de uma fora cega e ignorante, simples jogo
da matria e independente de inteligncia Se a luneta astronmica, que no
passa de grosseiro arranjo de lentculas, testifica ao senso comum a
interveno de um tcnico, como poderia a lente do homem, infinitamente
superior a todo e qualquer aparelho fsico, ser considerada obra espontnea do
acaso? Pois isso pesa diz-lo o que propugna a escola materialista!
O olho formou-se por si mesmo! Este fato importante uma aquisio
dessa meia-cincia, realizada em duas fases, a primeira com Darwin e a
segunda com Bchner. Este nos diz que ao escrever, h sete anos, sobre a
inexistncia de Deus, no esperava que os progressos constantes da Natureza
lhe fornecessem, to cedo, provas to exatas e convincentes, em apoio de
sua doutrina, e essas provas Darwin quem se encarrega de as editar. Est,
enfim, provado (?) que o olho, rgo dos mais perfeitos do corpo animal (o Sr.
B. confessa-o) desenvolveu-se insensvelmente de um simples nervo sensitivo!
O Sr. Bchner exulta de alegria com esse feito, ou por melhor dizer, com essa
teoria que lhe prova, ao seu ver, a inexistncia de Deus. Ouamos o prprio
Darwin, vejamos se o fato est bem comprovado e se, mesmo neste caso, a
explicao secundria suprime a existncia de Deus.
Antes de mais, diz o naturalista (106), parece, confesso, estranhvel
absurdo supormos que o olho, to admirvelmente construdo para suportar
mais ou menos luz, para ajustar o foco dos raios visuais a diferentes distncias
e a corrigir a aberrao esfrica e cromtica, possa formar-se por seleo
natural.
E contudo, quando pela primeira vez foi dito que o Sol estava imvel e a
Terra girava, o bom senso declarou falsa a teoria. Todos os filsofos sabem
que, em matria de Cincia, no podemos

(106) On the origin of species by means of natural seleotion.

confiar no velho adgio vor populi, vor Dei. A razo me diz e assegura
podermos demonstrar inmeros graus de transio entre o globo mais perfeito
e complicado e o mais simples e imperfeito. Cada um desses graus de
perfeio aproveita tilmente a quem o desfruta. Se, de resto, o olho varia
algumas vezes, por pouco que seja, e se as variaes se herdam, o que se
pode demonstrar por fatos; se, enfim, as variaes ou modificaes do rgo
jamais puderam ter alguma utilidade para um animal colocado em condies
mutveis de existncia; desde logo ressalta o pressuposto de que um olho
perfeito e complicado pode ter sido formado por seleo natural e esta
rigorosamente considerada como verdadeira. Como pode um nervo tornar-se
sensvel luz? um problema que nos importa to pouco quanto o da origem
da vida em si mesma.
184

Devo apenas dizer que vrios fatos me levam a crer que os nervos
sensveis ao contacto podem tornar-se sensveis luz, bem como s vibraes
menos sutis, produtoras do som.
Darwin no tem razo de julgar que a origem do rgo visual importa to
pouco quanto a da prpria vida, e ns gostaramos de saber se, para ele, essa
origem elementar oferece alguma semelhana com a sensibilidade do iodo
luz, verificada na chapa fotogrfica. Mas, visto que ele se cala, vamos admitir
provisoriamente a possibilidade do fato, e ouamos o desenvolvimento da
teoria do progresso.
Entre os vertebrados vivos no encontramos grande variedade de olhos;
nos articulados, porm, podemos acompanhar toda uma srie, partindo do
simples nervo tico, recoberto de camada pigmentar e formando, s vezes,
uma espcie de pupila, embora sempre desprovido de lente ou qualquer
mecanismo tico. Depois desse olho rudimentar, capaz apenas de s
diferenar a luz da obscuridade, deparam-se-nos duas sries paralelas de
rgos visuais, cada vez mais perfeitos, entre as quais, Muller diz haver
diferenas fundamentais: a dos olhos chamados simples, providos de lente e
crnea, e a dos complexos que excluem os raios convergentes de todo o
campo visual, exceto o pincel luminoso, que chega retina seguindo uma linha
perpendicular ao seu plano.
O grande advogado da seleo natural pensa que, admitindo
originariamente, nos primeiros organismos a existncia de um nervo sensvel
luz, pder-se- admitir que a Natureza, em virtude dessa lei organizadora do
progresso chega, insensivelmente aos aparelhos ticos, sejam cnicos, sejam
lenticulares, perfeitos
Os seres favorecidos com esse nervo maravilhoso dele se utilizaram e o
aperfeioaram em benefcio prprio. Se refletirmos, diz ele na variedade de
graus que apresenta a estrutura ocular dos nossos crustceos e nos
lembrarmos do nmero de espcies extintas, no vejo dificuldade alguma, e,
sobretudo, uma dificuldade maior que a relativa a outro rgo em admitir que a
seleo natural haja transformado um aparelho simples, apenas constitudo de
um nervo tico Pigmentado e revestido de membrana transparente, num
Instrumento to perfeito qual o podem Possuir quaisquer representantes da
grande famlia dos articulados.
Parece muito natural comparar o rgo Visual a um telescpio. Ora,
sabemos ns que este instrumento tem sido sucessivamente aperfeioado gra-
as a esforos perseverantes de inteligncias humanas, de ordem superior, e
assim inferimos a formao do olho mediante anlogo processo. Ser uma
induo muito presunosa? pergunta ele com alguma razo. Que direito
temos de afirmar que O Criador opera com o concurso das mesmas faculdades
intelectuais do homem? Nada obstante a advertncia, Darwn prossegue
apllcando obra divina as idias afloradas em seu crebro Eis como expe ele
a formao lenta, nas espcies vivas, do instrumento tico que nos faz ver.
uma hiptese sem maldade preconcebida. Precisamos figurar, diz, um nervo
sensvel luz, colocado atrs de espessa camada de tecidos transparentes,
contendo espaos cheios de fluidos; depois, au poremos que cada parte dessa
camada transparente muda? contnua e lentamente, de densidade, de maneira
a separar-se em camadas parciais, diferentes em densidade e espessura,
colocadas a distncias variveis entre si e cujas duplas superfcies mudam
lenta-mente de forma. Alm disso, preciso admitir exista um poder inteligente
185

e esse poder inteligente a seleo natural, constantemente alertada de toda e


qualquer alterao acidental das camadas transparentes, a fim de escolher,
solcitas, aquelas que por circunstncias diversas podem, de algum modo e em
grau qualquer, favorecer a produo de imagens mais ntidas. Podemos ainda
supor que esse instrumento foi multiplicado por um milho, em cada um desses
estados de perfectibilidade, e que cada uma dessas formas se perpetuasse,
at que se lhe apresentasse ensejo de melhora, permitindo o quase imediato
abandono e destruio da antiga.
Nos seres vivos, a variabilidade produzir as ligeiras modificaes do
instrumento natural, a descendncia multiplic-la- ao infinito, assim modifi-
cada, e a seleo natural escolher, com infalvel habilidade, cada novo
aperfeioamento realizado. Que este processo continue operante por milhes e
milhes de anos e, em cada ano, influindo sobre milhes de indivduos de
todas as espcies, j no ser impossvel acreditar possa constituir-se assim
um aparelho de tica viva, com requisitos superiores aos de nossa manufatura,
ou seja, com a superioridade caracterstica das obras divinas em relao s
humanas.
Os observadores podem assinalar no sistema darwiniano uma certa
reserva favorvel a Deus, mas essa reserva no quadra aos materialistas ra-
dicais. At o seu tradutor francs, senhorita Clemncia Royer, censura-o com
veemncia, por desviar-se em to bela rota e ainda se deixar levar pela idia
de um Ser supremo. O Sr. Darwin no me parece bastante corajoso diz ela
no seu prefcio. Ser por prudncia que no vai ao fim do seu sistema,
detendo-se a meio da cadeia das respectivas consequncias? Quando
espritos ardorosos, seno mais lgicos, formularam consequncias extremas,
o mundo dos puritanos, escandalizado com a tese de que o planeta no
descendia em linha reta da coxa de algum deus, protestou em altos brados,
etc... Essa moa, ao menos, vai at o fim; no tolera que ainda se possa tomar
Deus a srio, ridiculiza igualmente os telatras, sapateia sobre os destroos do
tesmo e fulmina os defensores de uma Entidade suprema. Vira a cara a todo e
qualquer sintoma de idia religiosa e abre os braos aos declamadores
alemes. O cura Meslier toca violo no seu tonel, e a dana prossegue
maravilhosa...
S h um pequeno defeito de lgica nestes exmios pensadores, qual o de
ser essa presumida, rigorosa lgica, soberanamente ilgica, ainda mais quando
os fatos e teorias consignados pelos darwinistas no comportam as
consequncias ridculas que lhes atribuem. E o mais curioso em tudo isto e que
esses espritos fortes atordoados com a sua exaltao no percebem a
lacuna que persistem em manter, entre as premissas e concluses do seu
raciocnio. Sua maneira de falar compara-se a uma rota traada em altiplano e
seccionada a meio do seu curso por um abismo profundo, qual os que soem
separar bruscamente duas galerias. As extremidades da rota no estariam ml
feitas nem mal traadas, mas, infelizmente, no se pode caminhar de ponta a
ponta, de vez que o abismo as isola irremedivelmente. E isso porque, lanar
a uma ponte, mais difcil do que parece.
Ao pensar dos mestres, no h soluo de continuidade e a ao
puramente constante de Deus vale para explicar tanto a origem como a
sucessividade das coisas: os discpulos, porm, pretendem (ultrapassar os
mestres e desnaturam as teorias de que se dizem defensores. Pobres
defensores! Temos j visto como raciocinam os experimentadores. Vamos
186

registar a opinio do autor da teoria da unidade de plano, Geoffroy Saint-


Hilaire. Ao invs de pender para as negaes que hoje nos opem, o sbio
fisiologista se julga no dever de afirmar bem alto, que, antes, v na sucesso
das espcies uma das mais gloriosas manifestaes da potncia criadora,
tanto quanto um motivo de maior admirao, de reconhecimento e de amor
(107).
Digamo-lo com firmeza: mesmo admitindo, sem reservas, todos os fatos
invocados pelos materialistas; mesmo perfilando-nos ao lado de Darwin, Owen,
Lamarck, Saint-Hilaire e, sobretudo, com estes (porque h sempre gente mais
realista do que o rei), para supor que os olhos, os sentidos, os homens, os
animais, seres e plantas vivos, em suma, se tenham formado pela ao
permanente de uma fora natural, nem por isso se provaria a inexistncia de
Deus, e, sim, ao invs, que Deus existe. Somente, o que se d que, em vez
de se nos revelar como pedreiro, ele se nos antolha como arquiteto. E com
isso, cremos, nada perde, nem muito, nem pouco.
Em nosso estudo geral da Fora e da Matria (segunda parte, captulo II),
acompanhmos essa metamorfose da idia de Deus. Do ponto de vista da
destinao dos seres e das coisas, a idia correlativa sofre a mesma
progresso; longe de enfraquecer a antiga beleza do plano criador, ela o
desenvolve e refora grandemente. Se, em vez de uma mo a construir o
prottipo de cada espcie animal e vegetal, admitirmos uma fora ntima,
aplicada matria, isso em nada afeta a idia de uma inteligncia criadora e da
finalidade da Criao. Porque,

(107) Principes de Philosophie Zoologique.

na verdade, preciso cerrar preconcebidamente os olhos, para que se no


veja nessa fora ntima da Natureza o efeito de um pensamento inteligente.
preciso ser cego para desprezar o ndice evidente de uma causa poderosa e
eterna.
Pretender que a Natureza se forme de si mesma e progrida instintivamente,
numa direo constante para resultados cada vez mais perfeitos, confessar
em parte que ela se encaminha a esse ideal devido a uma causa inteligente.
Como poderia a matria inerte ter tido a idia de se enformar sucessivamente
como vegetal, como animal, como homem, engendrando todos esses rgos
que constituem o ser vivente e conservam a vida atravs dos sculos? Como
construir esses aparelhos mediante os quais o ser vivo se comunica permanen-
temente com as causas que o no constituem? Por que capricho do acaso
esses rgos se teriam gradativa e lentamente formado para essa comunica-
o dos sentidos, ligados ao crebro pensante, que, s ele, conhece e julga?
Como explicar a tcnica perfeita dessas construes? Porque completos e no
falhos, esses aparelhos, em sua grande maioria? Como, em sua integridade,
por gerao, se perpetuam esses organismos vivos? Porque a Criao
composta de gneros, de espcies, de famlia? Porque pode o esprito humano
estabelecer classificao baseada no conjunto dos seres? Como reconhe-
cemos em tudo isso uma ordem geral? Porque a Natureza no representa um
caos de monstruosidades?
A todas estas perguntas, respondem-nos com a lei de seleo natural.
Explicam todos os problemas repetindo que a Natureza arrastada a um
progresso incessante, que despreza o mau pelo bom e tende sempre a realizar
187

formas mais perfeitas.


Mas, em suma, que que vem a ser essa tendncia, esse progresso
instintivo, essa necessidade de engrandecimento, seno o ato de uma fora
universal dirigindo o mundo para o ideal? Que significa essa marcha
simultnea de todos os seres para a perfeio, seno a revelao eloquente de
uma causa, que sabe onde e como conduz o carro, sem que a matria servil
pudesse jamais opor-lhe o mnimo obstculo?
O que acabamos de expender com relao vista, pode tambm aplicar-
se ao ouvido, que no menos admirvelmente construdo, conforme as leis
da Acstica. Poderamos, qui, conceder que os ignorantes, os que jamais
fizeram observaes antomo-fisiolgicas e desconhecem a Fsica, tivessem a
fantasia de acreditar que olhos e ouvidos no foram feitos. para ver e ouvir.
Mas, que homens instrudos, depois de escalpelarem, de observarem e
tatearem esses rgos, nos venham dizer que eles so produto de foras
cegas, isso o que nos parece aberrao de esprito, dificilmente justificvel.
No teriam visto que a s modelagem ceroplstica de um desses maravilhosos
aparelhos basta para exaltar-nos o esprito e lev-lo a reconhecer a existncia
de um mecnico conhecedor das leis da Natureza? Quem j se no sentiu
tomado de admirao emocional em contemplando o mecanismo auditivo? O
pavilho exterior, cujas graciosas ondulaes carreiaxn as ondas sonoras at o
centro, mais no que destinado a servir ao conduto auditivo. Este,
transportando o som, do orifcio do ouvido membrana do tmpano, o transmite
integral ao nervo que deve realizar a sensao, forrado de uma substncia
mucosa, onde as glndulas segregam um humor destinado a moderar a
impresso muito irritante do ar, bem como a interditar a entrada de corpos
estranhos. Atrs do tmpano fica uma pequena cmara com duas janelas, uma
redonda e outra oval, contrapostas ao tmpano e comunicando-se com o ouvido
interno. Este compe-se, em primeiro lugar, de uma cavidade ssea
contornada em espiral, chamada caracol; e depois, de trs cavidades
semicirculares, finalmente, de uma cavidade central, cheia de lquido aquoso,
no qual se banha o nervo acstico que l termina. As vibraes snicas
chegam s membranas da janela oval e da redonda, deslizam pela rampa do
caracol, da pelos canais semicirculares, chegando, finalmente, cavidade
central cheia do lquido aquoso, que transmite as vibraes ao nervo acstico.
Este apenas timbrado, e a impresso transmitida ao crebro o que constitui
a audio. Tal, em seu conjunto, o mecanismo da audio. No entramos em
pormenores, para no aumentar complicaes. Mesmo nos limites desta
singela descrio, que esprito culto ousar contestar, a Srio, que um tal
mecanismo no prova que seu construtor soubesse que o som consiste em
vibraes, e que estas no poderiam transmitir-se seno mediante uns tantos
dispositivos; bem como, que, para torn-lo integralmente perceptvel ao
crebro, impunha-se um aparelho acstico fronteiro ao nervo?
Que homem sensato recusar admitir que esse instrumento no podia
construir-se de si mesmo, por acaso, sob o impulso de qualquer fora bruta e
sem plano preconcebido de construo (108).
E, se, abstraindo-se do aspecto fsico do ser pensante, dssemos aos
adversrios a honra embaraosa de penetrarem no carter ntimo do pensa-
mento? Se lhes perguntssemos como pode um som falar ao esprito e este
atender ao ouvido? Se os convidssemos a demonstrar que o homem no
uma inteligncia servida pelos rgos, duvidamos pudessem eles safar-se
188

airosamente, a menos que se no valessem dos subterfgios prprios dos


maus combatentes.

(108) Voltaire no podia sopitar a sua admirao diante dos negadores de


uma causalidade geral. Em Filosofia, diz ele (Diccionaire Fhilosophique,
Dieu). confesso que Lucrcio me parece muito inferior a um porteiro de
colgio. Afirmou que olho, ouvido, estmago, no foram feitos para ver,
ouvir e digerir; no o maior dos absurdos, a mais revoltante das
loucuras do esprito humano? Por muito cptico que sou, essa loucura
me parece evidente e no vacilo em apont-la.

Mas, ainda quando estivessem com a verdade, acerca das relaes de


rgo e funo, ainda mesmo que provado ficasse serem os rgos desenvol-
vidos e constitudos pelo jogo das funes; ainda assim, restaria por explicar
um fato bem mais geral e considervel. Que funo explicaria a organizao
total da vida terrestre? Vde essas massas flocosas suspensas no firmamento
como edifcios de prata, vaporosos, nuvens cuja sombra tempera o calor
mortificante do dia. Elas nos vm dos mares, trazidas sobre as vagas da
atmosfera, dirigidas pelos ventos para os continentes e terras habitadas. Sob
ao de uma fora cega, que sucederia se elas deixassem de espalhar a chuva
fecundante nos campos e nos prados? Prestes, uma seca impiedosa crestaria
o solo, a vegetao se fanaria, toda a seiva de vida estaria morta.
Se a organizao geral da planta no regulada por um esprito superior,
ousaro presumir que foi fora de rolar no espao que a Terra adquiriu
sucessivamente a faculdade de viver e renovar-se em sentido constante e
progressivo? Ainda nisto, opomos aos antagonistas ignorantes, ou sis-
temticos, o testemunho dos exploradores do mundo fsico, dos que
descobriram o regime das correntes areas e martimas. Depois da
constatao, to evidente, da ordem que preside economia fsica do planeta
diz o comandante Maury poder-se-ia admitir que as rodas e peas de um
relgio foram construdas e articuladas por acaso, dando-se ao mesmo acaso
uma direo nos fenmenos da Natureza? Tudo obedece a leis conformadas
ao fim supremo, to claramente indicado pelo Criador, que quis fazer da Terra
uma habitao para o homem (109).

(109) No podemos, a propsito, deixar de assinalar a confisso de um


navegador ao comandante Maury: Vossas descobertas diz ele
no nos ensinam apenas a seguir as rotas martimas mais diretas e mais
seguras, como tambm a conhecer as melhores manifestaces da
sabedoria e bondade divinas, que nos rodeiam constantemente. H muito
comando um navio e jamais fui insensvel aos espetculos da Natureza.
Contudo, confesso que, antes de ler vossos trabalhos, atravessava o
Oceano como um cego. No via, no concebia a magnfica harmonia das
obras daquele a quem to justamente denominais o grande
Pensamento primrio. Sinto, muito acima da satisfao e dos benefcios
devidos aos vossos trabalhos, que eles fizeram de mim um homem
melhor. Ensinastes-me a ver por toda parte, em torno de mim, e a
reconhecer a Providncia em todos os elementos que me rodeiam. (Geo-
graphie Physique.)
Ajuntaremos, com dois outros oficiais de marinha, os Senhores
189

Zurcher e Margoll, que o estudo das obras de Maury exala a sua


elevao de vistas, a sua f religiosa, para aproxim-lo dos gnios que,
como Cersted, Herschel, Geoffroy Saint Hilaire, Ampre, Goethe, nos
revelam a suprema sabedoria, com o desvelarem a magnificncia das
obras divinas. Herschel dizia: Quanto mais se alarga o campo da cincia,
mais numerosas e Irrecusveis se tornam as demonstraes de uma vida
eterna, de uma inteligncia criadora e onipotente. Gelogos, matemticos,
astrnomos, naturalistas, todos carrearam a sua pedra para o grande
templo da cincia, erguido ao mesmo Deus.
(110) Force et Matire, captulo 6.

O panorama das obras da Natureza, de eloquente e irresistvel beleza, no


lhes fala ao corao nem razo. Depois de o contemplarem declaram, sem
cerimnia, que os fatos apenas atestam formaes orgnicas e inorgnicas,
em renovaes permanentes, sem que haja nisso ao direta de inteligncia
qualquer.
O instinto natural de criar prescrito formalmente, afirmam eles (110) sem
perceberem que suas mesmas afirmativas deixam entrever a necessidade de
uma lei ordenadora na Natureza.
De resto, com eles, no h conjeturar explicaes de um plano qualquer
na Natureza. As idias de finalidade devem ser recusadas como fermento
azedo, j o dizia G. Foster; e o autor de Lehre der Nahrungsmittel fr das Volk,
reiterando essa declarao, acrescenta que, quanto mais nos habituamos a
combater, mais devemos temer as tentativas surdamente feitas para introduzir
na Cincia a idia de uma finalidade, a fim de esclarecer os fenmenos da
Natureza.
Eis, numa palavra, o que eles tanto temem a luz! Quanto mais escuro o
labirinto, quanto mais cerrado o nevoeiro, tanto melhor para os alemes.
Quisssemos levar a defesa da nossa causa ao mago das suas trincheiras,
ficaramos de antemo to bem colocados que as nossas perguntas haveriam
de parecer ridculas.
Explicai-nos, por exemplo, conspcuos juizes, porque os olhos no
brotaram nos ps e os ouvidos nos joelhos. Circunstncias devidas medula
espinal, ....... Vamos l, pois: ser que a medula saiba o que faz? Dizei porque
as plpebras e sobrancelhas no se formaram com o pavilho auricular e
porque este, sua vez, no se contrai como aquelas. Sorrides, creio... Ainda
bem, pois a mais espiritual das respostas que nos pudestes dar at o
presente.
A adaptao do rgo s funes que devem preencher o estado orgnico
do ser, segundo a sua funo na economia geral, constituem exemplos to
evidentes do plano da Natureza, que preciso limitar-se a uma observao
muito completa para desautorizar a nossa tese. Por qualquer aspecto que
encaremos os seres vivos, esse plano se evidencia em caracteres bem
legveis. Sem a idia de finalidade geral, o fisiologista no poderia determinar o
jogo de qualquer rgo e a Cincia se esterilizaria. Elevando-nos dos fatos
particulares aos fatos gerais, se considerarmos no j um rgo especial, mas
um ser na sua individualidade integral, segundo a sua funo na Natureza o
sexo, por exemplo haveremos de reconhecer que tudo, nesse indivduo,
concorre para um fim determinado. No precisamos estender-nos mais sobre
este delicado aspecto da questo, ainda que prviamente seguros da vitria,
190

sobretudo se tomarmos por estalo o tipo mdio do gnero humano,


sensivelmente diferente do nosso, quer no seu carter anatmico, quer na sua
maleabilidade espiritual. De fato, o plano criacional est to universalmente
assinalado, que Rabelais poderia provar a existncia de Deus pela imoralidade
de umas tantas descres. Mas... basta neste particular.
O velho problema da origem das espcies interessa mais ainda que o da
adaptao dos rgos aos seus fins. J vimos que a vida planetria s se pode
explicar mediante uma causa Primria.
Do Ponto de vista das causas finais, aqui falamos Somente da
organizao das espcies segundo o clima e o meio, e do enigma de sua
transformao segundo os perodos geolgicos. Os que negam a existncia de
um poder inteligente na direo do mundo, pretendem que as espcies podem
transformar-se umas nas outras, a partir do mais baixo nvel da escala
zoolgca impelidas pelo meio e circunstncias dominantes. uma hiptese
que, por incidir imedatamente no ponto nodal do problema, explica a
adaptao ao meio, pois ensina que os seres so o produto desse meio. Vde,
por exemplo, esta girafa: se tem um pescoo assim longo, porque a primitiva
espcie de que descende habitou regies onde no havia frondes baixas.
Obrigada a levantar constantemente a cabea, o pescoo se foi
sucessivamente alongando at chegar ao que hoje. Tal pescoo no foi,
portanto, dado girafa tendo em vista a natureza da alimentao, mas O
resultado definitivo desse processo alimentar. Uma guia cinde o espao em
voo rpido: admiras a construo engenhosa desse aparelho at agora
inimitvel aparelho complexo, que faculta aos voltivolos o domnio dos ares
(111). Pois bem: as asas no foram dadas s aves para que voassem, e elas
s voam porque tem asas. Como as adquiriram? Uma primeira espcie teria
comeado a saltitar e ter-se-ia comprazido com essa novidade.

(111) Que nos diria hoje o eminente astrnomo diante dos progressos da
aviao, com o mais leve e com o mais pesado que o ar? Nota do
Tradutor

Primeiro, pulinhos curtos. Depois, exercitando-se, foi dando maior


desenvolvimento aos membros anteriores e assim prosseguindo, por milhes
de anos, acabaria provendo-se de uma transformao radical nos ditos rgos
anteriores. E a est como as asas so o resultado do voo. Essa gente coloca o
Criador em situao embaraosa, visto que ele, o bom Deus, dera as asas para
voar e eis que elas, por se adaptarem perfeitamente ao seu fim, acabam por
no provar, mas, contraprovar a inteligncia de quem as fz! puridade,
senhores, querereis mesmo que ele fizesse voar as aves com os vossos
roupes de banho? Prossigamos ainda um instante.
Tendo o mar recoberto outrora todas as regies do globo, natural conjeturar
que todas as espcies, vegetais e animais, inclusive o homem, comearam
pela vida do peixe. Admira-vos a transformao de peixes em cavalos e
homens? Pois no h motivo, que fatos h, mais maravilhosos na Natureza.
Dignai-vos, ao menos, prestar um pouco de ateno ao editor responsvel
desta teoria, o falecido Sr. Maillet. No h animal voltil ou rasteiro que no
tenha no mar espcies semelhantes, ou aparentadas, e cuja transio de um
para outro elemento seja impossvel e, dir-se-ia, at provvel com exemplos
numerosos. No nos referimos somente aos anfbios, serpentes, crocodilos,
191

lontras, focas e muitos outros que vivem tanto ngua como em terra, ou no ar,
mas, tambm aos de vida area exclusiva. Sabemos que o mar produz dois
generos de animais: os que nadam, viajam, passeiam, caam, e os que
rastejam no fundo, dai no se afastam, ou raramente o fazem, sem qualquer
propenso natatria. Como duvidar que, do gnero dos peixes volteis tenham
provindo as nossas aves e que dos rastejantes descendam os nossos animais
terrestres, sem pendor nem habilidade para alar-se? Para nos convencermos
de que uns e outros passaram do elemento eqreo ao terrestre, basta
analisar-lhes a forma, as disposies e tendncias recprocas, confrontando-as
de conjunto.
Para comear pelos volteis, atentai, se vos prouver, no s na forma de
todas as espcies de ave, mas tambm na diversidade da plumagem e das
inclinaes peculiares. No encontrareis uma s que no pudsseis encontrar
no mar.
Observai, ainda, que a transio do ambiente eqreo para o areo
muito mais natural do que comumente se presume.
O ar que envolve o globo est impregnado de muitas partculas dgua.
Esta, dir-se ia, um ar carregado de partculas mais grosseiras, mais hmidas
e mais pesadas que o fluido superior, que denominamos ar, posto que uma e
outro no sejam mais que a mesma coisa, para as necessidades tericas de
Telliamed. fcil, portanto, conceber que animais habituados ao ambiente
eqreo tenham podido conservar a vida respirando um ar dessa qualidade. O
ar inferior no seno gua difundida. hmido porque provm da gua, e
quente porque no to frio como poderia ser, transformando-se em gua.
Mais abaixo, acrescenta:
H no mar peixes de formas semelhantes a de quase todos os animais
terrestres, mesmo pssaros. Tambm l existem plantas, flores e alguns
frutos: a urtiga, a rosa, o cravo, o melo, a uva, l encontram seus congneres.
Acrescentemos a isso as disposies favorveis que se podem encontrar
em dadas regies, facilitando a passagem do meio aqutico para o areo; a
necessidade mesmo dessa passagem em dadas circunstncias, como, por
exemplo, o isolamento em lagos cuja seca progressiva obrigasse a viver em
terra; ou ainda por qualquer acidente dos que se no podem considerar como
extraordinrios, dar-se-ia que os peixes voadores, caando ou sendo caados,
no mar fssem, pelo temor ou pelo desejo de presa, arremessados a maior
distncia das praias, entre canios e pedregais, na impossibilidade de
regressar ao habitat, tirassem do prprio esforo para o conseguirem uma
faculdade maior de voo. Neste caso, no mais banhadas pela gua as bar-
batanas fenderam-se, ressecaram e caram. Enquanto encontraram, em o novo
meio, algum alimento que os nutrisse, as cnulas das barabatanas separaram-
se, prolongaram-se e revestiram-se de plumas, ou, por melhor dizer, as
membranas, antes coladas entre si, metamorfosearam-se.
O plo formado dessas pelculas arqueadas alongou-se por si mesmo; a
pele revestiu-se insensvelmente de uma penugem da mesma cor original, e
essa penugem cresceu tambm. As pequenas barbatanas ventrais, que, como
as natatrias, lhes auxiliavam a cortar as guas, transmutaram-se em ps e
lhes serviram para percorrer o solo. Ainda outras pequenas alteraes lhes
sobrevieram na conformao. O bico e o pescoo de uns alongaram-se e os
outros retrairam-se. A mesma coisa se deu com o corpo. Contudo, a
conformidade primria subsiste no todo, e sempre fcil reconhec-la.
192

A respeito dos animais que rastejam ou canilnham, a transio do meio


lquido ainda mais fcil de conceber. No custa crer, por exemplo, que
serpentes e rpteis pudessem viver igualmente num e noutro elemento. As
experincias no permitem dvidas a respeito.
Quanto aos quadrpedes, no s encontramos no mar espcies
semelhantes, com os mesmos pendores, nutrindo-se dos mesmos alimentos
que utilizam em terra, como ainda temos cem outros exemplos de espcies que
vivem no ar, como nas guas. No tm os macacos marinhos o mesmo
aspecto dos terrestres? H at mais de uma espcie. O leo, o cavalo, o porco,
o lobo, o gato, o co, a cabra, o carneiro, tambm tm no mar os seus afins.
A histria romana menciona focas aprisionadas e exibidas ao povo nos
espetculos, a saud-lo com os seus gritos e mesuras, ao mando de um treina-
dor, tal como se pratica com outros animais adestrados para esse fim. E no
sabemos que elas se afeioam a quem delas cuida, como o fazem os ces a
seus donos?
Compreende-se que esse progresso, obtenvel com as focas, a Natureza
o possa realizar por si mesma e que, em certas ocasies, obrigado a viver
alguns dias fora dgua, no seja de todo impossvel ao animal identificar-se
com o novo ambiente, quando ao antigo no possa regressar. Foi assim,
decerto, que todos os animais terrestres passaram do meio eqreo ao etreo
e, por efeito da respirao do ar, adquiriram a faculdade de mugir, uivar, ladrar,
faculdade que antes tinham imperfeitas (112).
No iremos mais longe para ouvir este escritor, maiormente celebrizado
pelas stiras de Voltaire, do que pelo seu filsofo indiano. Diremos apenas que
ele prossegue com uma srie de historietas e contos mais ou menos
autnticos, de homens selvagens, homens de cauda, imberbes, unpedes,
manetas, pretos, gigantes, anes, etc., para culminar na transmigrao dos
homens e macacos marinhos para a terra firme. Cuvier, o mais ilustre dos
gelogos, consignou a sua opinio sobre esta renovada teoria dos Gregos,
agora proposta sob aspecto algo diferente, a saber: Naturalistas
materializados em suas idias, permaneceram como sectrios humildes de
Maillet; vendo que o exerccio mais ou menos intenso de um rgo lhe
aumenta ou diminui, por vezes, a fora e o volume, imaginaram que o hbito e
as influncias exteriores por muito tempo combinados, puderam alterar
gradatvamente as formas animais, a ponto de atingirem o que demonstram
hoje as diferentes espcies. a mais v e, Porventura, a mais superficial de
quantas idias temos tido ensejo de refutar. Nela, os corpos so considerados
simples massa, pasta argilosa que se pudesse modelar entre os dedos.

(112) Telliamed ou entretien dun Philosophe Indien avec un Missionaire


franais, 1748

E assim que, quando autores outros tentaram entrar em mincias,


caram no ridculo. Quem quer que ouse afirmar a srio que um peixe, fora
de jazer em seco, poderia ver as escamas fenderem-se e transformarem-se em
penas, tornando-se ele mesmo em ave ou quadrpede; e que fora de
esgueirar-se por fendas estreitas, no intuito de regressar ao velho habitat,
houvera de tornar-se em serpente; quem assim conjetura, repetimos, s faz
prova de ignorncia cabal do que seja Anatomia.
Essa teoria, contra a qual se levantam tantas dificuldades, pressupe que
193

todos os seres derivam dum tipo primordial, merc de uma srie de trans-
formaes sucessivas, constituindo a unidade orgnica.
Olho e ouvido no passam de nervo sensorial desenvolvido pelo exerccio;
fronte e crnio foram modelados pelo crebro, e este mais no que um
desdobramento da medula espinal.
Mas objetaremos com Paulo Janet como pode o hbito operar
semelhante metamorfose e mudar a vrtebra superior da coluna em cavidade
capaz de conter o encfalo? Eis, para tanto, o que importaria presumir: que um
animal, apenas provido de uma medula espinal, fora de exercit-la,
conseguiu produzir essa expanso de matria nervosa a que chamamos
crebro; que, medida que essa parte superior se alargasse, iria recalcando
primeiramente as paredes moles que a revestem, at obrig-las a tomar sua
prpria conformao de caixa craniana... Mas, quantas hipteses nesta
hiptese!
Em primeiro lugar, teramos de imaginar animais com medula espinal sem
crebro, pois de outro modo tanto podemos considerar a medula um pro-
longamento do crebro, como este mesmo crebro um prolongamento da
medula. Isso, alis, parece indiciar-se quando encontramos algo de anlogo ao
crebro, em animais desprovidos de medula, quais os moluscos e os
aneldeos. Ora, se o crebro preexiste nos vertebrados, preexiste o crnio, e
no , portanto originrio do hbito. Acrescentai que dificilmente se podem
admitir exerccio e hbito sem crebro, como produtos que so da vontade,
pois no h como negar seja o crebro o rgo da Vontade. Tende em conta,
finalmente, que ainda restaria admitir que a matria ssea tivesse antes sido
cartilaginosa, a fim de prestar-se s dilataes sucessivamente requeridas pelo
progresso do sistema nervoso, o que implicaria notvel acomodao nessa
primitiva maleabilidade ssea, sem o que, impossvel se tornaria qualquer
desenvolvimento do sistema nervoso.
rgos e funes se tm manifestado de paralelo, segundo o plano geral.
A causalidade parece-nos to evidente que, a bem dizer, nossos adversrios
mereceriam que a Natureza os privasse, algum tempo, de uns tantos msculos
(digamos o esfncter), forando-os assim a confessar que os mais
Insignificantes rgos tm uma finalidade a preencher.
No queremos retomar neste captulo a questo primria da origem da
vida em nosso globo, bem como do seu entretenimento e progresso sob o
guante de leis providenciais.
Examinmos essa questo sob todos os seus aspectos num captulo
Sobre a Origem dos seres, e chegmos concluso inatacvel (ver pgina
138) de que a vida terrestre Constituda por uma fora, nica e central para
cada ser, condicionando a matria segundo um tipo do qual o individuo deve
ser a expresso fsica. Vimos que a lei de progresso nos seres organizados da
planta ao homem, atesta a inteligncia divina e evidencia a presena Constante
de Deus na Natureza, jamais induzindo negao de uma potncia criadora.
Em nosso caso particular (Plano da Natureza construo de seres
vivos), temos uma afirmao ainda mais direta da ao inteligente na
maravilhosa organizao dos corpos animados, atento a que essa ao
igualmente necessria nos casos em que as espcies se houvessem
sucessivamente transformado em ascenso zoolgica (hiptese que est longe
de ser admitida), e naqueles em que o primeiro casal de cada espcie fsse o
produto de uma fora particular, que no nos dado apreciar. Temos, assim, o
194

direito de fechar esta controvrsia da adaptao de cada espcie ao seu


gnero de vida, com a declarao de que, mesmo supondo uma progresso
natural, instintiva, lenta e insensvel; uma plasticidade normal do organismo e
obedincia cega de cada espcie s foras dominantes, a hiptese materialista
nada adianta com isso. A apropriao da matria organizada s causas
exteriores demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria nos desgnios e
nos feitos do Criador. Se, como acima lhes perguntvamos, os seres fssem
de ferro ou de mrmore, haveria crticos que com isso se contentariam. E
contudo, que sucederia? Qualquer mudana de clima, de temperatura, de
ambiente, de alimentao, seria uma parada mortal para essas espcies
inflexveis, O junco verga, enquanto que o carvalho derrancado pelo aquilo.
Longe, pois, de ver ausncia de pensamento e desgnio nessa flexibilidade
maravilhosa do organismo vivo, nessa faculdade imperecvel de tirar o melhor
partido das circunstncias mais incmodas, vencer obstculos e plantar, a
despeito de tudo, o estandarte da vida no solo mais sfaro e mais ingrato, o
que reconhecemos o depoimento irrecusvel da causa onipotente, que, a
partir dos primeiros tempos, houve por bem que os mundos se embalassem
harmnicamente na amplido do infinito e fssem envolvidos em carcias da
vida.
A inteligncia criadora e ordenadora, que denominamos Deus, permanece,
portanto, como lei primordial e eterna, fora intrnseca, universal, constituindo a
unidade viva do mundo. Toda dificuldade desaparece, substituindo-se a idia
de plano geral de causalidade humana rgos e funes, espcies e
indivduos, tudo conduzido na mesma direo.
O Universo o desdobro de um s pensamento e a unidade de tipo
sensvel sob todas as formas particulares da vida terrestre Em que direo nos
conduz o pensamento eterno?
o que tentaremos entrever, ao terminar este estudo sobre a finalidade
dos Seres e das coisas.
195

2
PLANO DA NATUREZA INSTINTO E INTELIGNCIA
SUMRIO Leis que presidem conservao das espcies.
Faculdades Instintivas especiais. No se explica o Instinto pela
suposio de hbitos hereditrios. Distino fundamental entre os
fatos instintivos e racionais. Desgnio nas obras da Natureza. - Ordem
geral e harmonias universais. Qual a distino geral do mundo?
Magnitude do problema. Insuficincia da razo humana.

A construo lenta e progressiva dos seres e a formao das espcies


duradouras estabelecem a presena permanente da causa criadora e procla-
mam, eloqentemente, a sua sabedoria e inteligncia.
Se deixarmos agora de parta a organizao do indivduo para estudarmos
a da famlia, penetraremos nos mistrios do instinto e, ainda a, encontraremos
o plano do Criador brilhantemente caracterizado.
Muito se h discutido sobre a alma animal, depois que Descartes, Leibnitz
e a seguir Reaniur, se deram ao trabalho de observar in natura, diretamente, a
vida e costumes dos animais. , sobretudo, pela observao direta que nos
podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espcies vivas, que lhes
assegura conservao, e basta constatar os sinais evidentes dessa lei
universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desgnios da Criao.
Antes de tudo, convm distinguir inteligncia e instinto. Os animais
possuem uma e outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam,
refletem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experincia, amam,
odeiam, julgam, por processos anlogos aos da inteligncia humana; com a
segunda, operam obedecendo a uma impulso ntima, sem apreenso, sem
conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado de seus atos. Fixemos
alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.
Eis com nos fala Buffon de um orangotango ainda novo, por ele observado:
Vi-o apresentar a mo para conduzir as pessoas que o visitavam e passear
com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se mesa,
tomar o guardanapo, limpar os lbios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o
copo e toc-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o buscar uma chvena,
deitar-lhe o acar e o ch, aguardando que este esfriasse para ento beb-lo.
Tudo isso, sem outra instigao que a palavra e a mmica do seu dono, e,
algumas vezes, por si mesmo. No molestava a quem quer que fsse;
mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.
O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoolgico um orango notvel pela
inteligncia: meigo, amante de carcias, principalmente das crianas, com elas
brincava procurando imitar quanto via, etc. Assim que sabia manejar a chave
do seu compartimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se
acontecia pendurarem a chave na chamin, l trepava por meio de uma corda
presa ao teto, e que lhe servia comumente de balano. Certa feita, deram na
corda um n, para faz-lo mais curta, e ele o desatou imediatamente. Tal como
o de Buffon, no revelava a impacincia e petulncia prprias da espcie,
antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.
O professor foi visit-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancio, que
era tambm um observador sagas e profundo.
Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto arqueado do
196

visitante, logo despertaram a ateno do smio. Prestou-se ele, complacente, a


tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objeto de sua
curiosidade. Quando nos amos retirar e ele mais se aproximou do novo
visitante, tomou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se
nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento, como procurando
imitar o meu velho amigo.
Depois, de si mesmo restituiu-lhe a bengala. Evidente que ele tambm
sabia observar...
Cuvier, por sua vez, observou fatos no menos curiosos. Seu orangotango
se divertia trepando nas rvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia,
fizeram meno de l o buscarem e ele logo se ps a sacudir a rvore, assim
procedendo sempre que tentavam apanh-lo. De qualquer modo diz Cuvier
que consideremos esse ato, no ser possvel neg-lo como resultante de
uma combinao de idias, para reconhecer que o animal possui a faculdade
de generalizar.
De fato, o orango, aqui, conclua de si para outrem: mais de uma feita, o
abalo violento dos corpos, em que se houvera apoiado, t-lo-ia espavorido,
levando-o a concluir que esse mesmo temor atingiria a outrem, ou por
melhor dizer com Cuvier de uma circunstncia particular ele fazia uma regra
geral.
Flourens cita o exemplo de um curioso indcio de inteligncia, observado
no Jardim Zoolgico. Julgado excessivo o nmero de ursos l existentes, ficou
resolvida a eliminao de dois exemplares. O veneno seria o cido prssico,
ministrado em pequenos bolos. vista dos bolos, os animais logo se ergueram
nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos.
Entretanto, logo rejeitaram o manjar e puseram-se em fuga. Dir-se-ia que no
seriam mais tentados a tocar na iguaria, e, contudo, ei-los a empurrar com as
patas os bolos para dentro do tanque, e, depois de muito revolverem a gua,
iam comendo os bolos, medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem
assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a
revogao da sentena.
Plutarco afirma ter visto um co lanar pedrinhas dentro de uma talha, no
completamente cheia de leo, admirando-se de como o co pudesse induzir
que o peso das pedras haveria de fazer subir e transbordar o contedo.
Buffon escreveu belas pginas sobre a inteligncia do co, mas no lhe
interpretou o alto valor. H, nos fastos da espcie canina, exemplos de
inteligncia, habilidade raciocnio, julgamento, e tambm de afeio,
devotamento bondade e reconhecimento, dignos de serem apontados como
modelo a uma grande parte do gnero humano.
Poder-seia escrever uma srie de volumes e nem assim se esgotaria o
acervo de fatos comprobatrios da inteligncia animal, notadamente do co. De
resto, os adversrios esto conosco em admitir esses fatos. Citemos aqui o
exemplo interessante de uma deliberao de andorinha, contado pelo autor de
Fora e Matria. Um casal de andorinhas tinha comeado a construir o ninho
na cumeira da casa. Um dia, entra por l um bando de Companheiras e travam
longa discusso com as posseiras do ninho. Reunidas no forro da casa e no
longe do ninho disputado, fizeram uma algazarra infernal. Depois de algum
tempo, enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspecionar O
ninho, dissolveu-se a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho
comeado, entrando logo a construir outro em lugar qui mais adequado.
197

Um fato ainda mais notvel veio baila recentemente. Nos arredores de uma
granja de Weddendorg, perto de Magdebourg as cegonhas, aps srio debate,
julgaram uma companheira adltera. Mataram-na a bicadas e lanaram-na fora
do ninho (113).
Agassiz, mais que ningum, exalta as faculdades intelectuais dos animais.
Depois de mostrar as dificuldades que ainda no permitem estabelecer uma
comparao cientfica entre instintos e faculdades humanas e animais, emite
ele as seguintes idias: O desenvolvimento das paixes to extenso no
animal, quanto no homem, e eu me encontraria sriamente embaraado para
lhes apreender diferenas especficas, naturais, ainda que as haja, e grandes,
no graduamento das manifestaes e na forma de expresso. Ao demais, a
gradao das faculdades morais entre os animais e o homem to
imperceptvel, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de
responsabilidade e conscincia, fora, certo, exagerar a diferena. Alm disso,
h neles limitadas s suas respectivas capacidades,

(113) Temos numerosos documentos comprovantes da inteligncia dos


animais. Aqui, porm, no nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo
precedente, acrescentemOS que a dar crdito a uns tantos barqueiros
ingleses, chamados panters, os patos selvagens fazem reunies parla-
mentares e votam. Estes, como todos os animais, tm expresses
prprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, cime, etc. Esses
termos variam, conforme as espcies. Antes da revoada matinal, uma
discusso muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e s
depois de assente uma resoluo que se opera a debandada. Conta-se,
tambm, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para
uma outra, que, procurando aleit-la, ficou a seu lado por uma hora mais
ou menos, at que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos
tm inflexes e tonalidades vocais muito variadas. O co alegre late de
modo mui diverso de quando est raivoso. A linguagem mmica e snica
dos insetos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio das antenas
e movimentos de asas, , como sabemos, muito rica e variada. No
iremos ao extremo de os traduzir em francs com Dupont de Nemours,
mas a verdade que se no pode negar que os animais se permutem as
suas impresseS. Eles tm mesmo, sobre ns, o privilgio de
compreender nossas palavras, ao passo que ns no compreendemos as
suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um
francs no compreende um alemo, nem um chins.

individualidades to definidas como no homem, Os criadores de cavalos, os


guardadores de animais, pastores, etc., a esto para confirm-lo.
E a temos argunento dos mais fortes a favor da existncia de um princpio
imaterial em todos os animais anlogo ao que, por excelncia e faculdades
superiores coloca o homem em plano eminente. A mor parte dos argumentos
filosficos em prol da imortalidade do homem, aplica-se igualmente,
indestrutibilidade desse principio nos outros Seres Vivos (114).
Quem se atreveria hoje a pr em dvida a inteligncia animal? S um
tmido esprito de sistema, temeroso das consequncias dessa verdade, em
relao a umas tantas crenas, pode fechar os olhos evidncia A ns,
cumpria-nos Constatar antes de tudo essa verdade, a fim de mais livremente
198

podermos falar do instinto e derrocar a argumentao dos que presumem que


o inStinto no existe.
H, certamente uma grande diferena entre atos instintivos e atos
racionais. No que esses dois caracteres da fora viva se encontrem isolados
(nada o est na Natureza), mas por no se encontrarem na mesma graduao
e no se poderem confundir No devemos insistir, maiormente aqui, a respeito
dos fatos de ordem intelectual Vamos, porem, compar-los aos fatos inerentes
ao domnio do instinto, e que revelam existir uma providncia universal
presidindo vida em geral e que no explicam de modo algum, pela instruo,
o raciocnio ou o julgamento nos animais em que se deparam.
Chama-se instinto ao conjunto das diretivas que impelem O animal,
obedecendo a uma necessidade constante. O instinto inato, atua revelia da
Instruo, inexperiente e invarivelmente e no realiza progresso algum. em
tudo a anttese da

(114) Contribuitions to the Natural History of the United States of North


America volume 1 1 parte.

inteligncia. Tanto mais notveis so os fenmenos do instinto, quanto mais se


afirmam inteiramente involuntrios. No podemos fazer uma idia ntida do
instinto dizia Georges Cuvier seno admitindo que os animais sejam
submetidos a imagens ou sensaes inatas constantes, que os obrigam a
proceder como levados por sensaes acidentais. uma espcie de sonho ou
viso que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto,
podemos julgar os animais assim uma espcie de sonmbulos.
Frederico Cuvier consagrou parte da vida a descobrir a linha que separa o
instinto da inteligncia. Pode dizer-se, sem paradoxo, que no h linhas
divisrias na Natureza. Aqui, porm, no se trata de metafsica. Contentemo-
nos, assim, em ouvir o que diz o Sr. Flourens, das laboriosas observaes do
esforado naturalista.
O castor um mamfero da ordem dos roedores, isto , da ordem menos
inteligente, e, contudo, possui um instinto maravilhoso, qual o de construir uma
cabana sobre gua, com caladas, diques, e tudo merc de uma indstria que
demandaria inteligncia elevadssima, se de inteligncia dependesse.
O essencial, portanto, fora provar essa independncia e foi isso o que fz
F. Cuvier. Tomou castores muito novos, educados longe de seus pares e, por
conseguinte, nada havendo com eles ou deles aprendido. Esses castores,
assim isolados, solitrios, postos numa jaula expressamente destinada
experincia e de forma a dispens-los do seu trabalho peculiar construtivo,
no se forraram de o realizar, impelidos por uma fora maquinal cega, ou seja
um puro instinto.
A mais completa anttese separa o instinto da inteligncia. No instinto tudo
cego, necessrio, invarivel; na inteligncia tudo elevado, condicional,
modificvel. O castor que constri uma cabana, o pssaro que constri um
ninho, s o fazem por instinto. O co e o cavalo que chegam a compreender o
sentido de algumas palavras e nos obedecem, o fazem por inteligncia.
No instinto tudo inato: o castor constri sem haver aprendido. Dir-se-ia
que o faz por uma fatalidade, dirigido por uma fora constante e incoercvel.
Na inteligncia tudo o resultado da experincia e da instruo: o co
obedece quando ensinado. E a tudo livre, o co obedece porque quer.
199

Finalmente, tudo no instinto particular; essa indstria admirvel que o


castor utiliza no construir a cabana no pode ele utiliz-la seno com esse fim;
ao passo que, na inteligncia, tudo se generaliza, de vez que essa mesma
maleabilidade de ateno e de concepo do cavalo e do cachorro pode
aproveitar-lhes para fazer coisas diversas.
Distino que se impunha, esta. Na histria da Natureza importa reconhecer
em cada qual o que lhe pertence e exatamente o que lhe pertence, sem
restrio sistemtica, sem preveno tendenciosa. Descartes e Buffon (este
contraditrio s vezes) negam aos animais qualquer partcula de inteligncia.
Condilac e G. Leroy, ao contrrio, chegam a conceder-lhes operaes
intelectuais das mais elevadas. um erro duplo. Os animais no so plantas
nem so homens. Weinband no tem razo em pretender que isso que
designamos como instinto no passa de indolncia do esprito para forrar-se
aos penosos esforos que o estado da alma animal reclama. No na tem, to-
pouco, Sachus, quando adita que no h necessidade imediata, resultante da
organizao intelectual, nem pendores cegos e arbitrrios que impulsem os
animais. No hesitamos em reconhecer que esta questo, como todos os
grandes problemas da Natureza, difcil de resolver. Pensamos que, no seu
estudo, como de resto em outras questes sucede, o homem se tem pago mais
com palavras que com idias. Quando no se compreende o ato inteligente de
um animal, comum forrar-se ao embarao, utilizando a palavra instinto, assim
como um vu lanado ao objeto que se quer examinar; mas, parte este
processo ilusrio, restam fatos que no so certamente resultado de reflexo,
nem de julgamento. Em vo o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o
instinto um hbito hereditrio. Essa explicao no transfere o instinto aos
domnios da Inteligncia, e, ainda menos, aos domnios do materialismo puro.
To-pouco est demonstrado seja o. instinto um hbito hereditrio.
Consideremos essas borboletas que vivem no ar, e que, chegando terceira
fase da sua maravilhosa existncia, entreabrem-se aos beijos da luz e aos
eflvios do amor.
Presto, depositaro em crculos concntricos minsculos ovos brancos,
sobre talos ou folhas. Esses ovos no vingaro antes da prxima estao,
quando surgem as pequenas lagartas, e isso depois de transcorridos muitos
dias, quando as borboletas j dormem na poeira o sono da morte. Que voz
teria ensinado a estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem,
ho-de encontrar tal ou tal alimentao? Quem lhes aponta os talos e folhas
em que hajam de depositar seus ovos? Os pais? Mas, se os no conhecem?
Ser, ento, das folhas e talos que lhes advm a memria?
Que memria, porm, se elas viveram trs existncias aps essa poca
longnqua, e substituiram os alimentos inferiores pelo manjar delicado das
corolas olentes? Eis aqui, porm, espcies outras que protestam, ainda mais
vivamente, contra as explicaes humanas. Os necrforos (nome lgubre).
morrem imediatamente aps a postura e as geraes jamais se conhecem.
Nenhum ser desta espcie viu me nem ver filhos, e, contudo, as mes tm
grande cuidado em dispor cadveres ao lado dos ovos, para que aos filhos no
falte alimento logo ao nascer. Em que parte aprenderam esses necrforos que
os seus ovos contm germe de insetos que em tudo se lhes semelham? H
outras espcies, nas quais o regime alimentar inteiramente oposto, para a
larva e para o inseto. Nos pompildeos as mes so herbvoras e os filhos car-
nvoros. Em fazerem a postura sobre cadveres, contrariam os prprios
200

hbitos. E aqui no colhe admitir o acaso, nem hbito lentamente adquirido.


Qualquer espcie que aberrasse desta lei no poderia subsistir, visto que os
rebentos morreriam de fome logo aps o nascimento. A estes insetos, po-
demos juntar os odneros e os sphex. As larvas destes ltimos so carnvoras e
o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa condio, a
fmea que vai desovar busca uma presa convinhvel, tendo o cuidado de no
a matar, limitando-se a feri-la de paralisia irremedivel. Coloca, depois, sobre
cada ovo um certo nmero desses enfermos incapazes de se defenderem da
larva que os h-de devorar, mas, com vida bastante para que o corpo no se
corrompa. Em algumas famlias acresce o cuidado pela alimentao da presa,
at ecloso da larva.
Nossos elementos de argumentao, neste particular, so to numerosos
que impossvel seria reuni-los todos. Limitamo-nos, assim, a citar alguns
exemplos, convidando o leitor a tirar da letra o esprito. Entre estes exemplos,
incluamos o da abelha xilfaga, com a qual o Sr. Milne Edwards entreteve
recentemente, na Sorbone, a curiosidade dos seus ouvintes.
Essa abelha que vemos adejar na Primavera, que vive solitria e pouco
sobrevive postura, no viu jamais os genitores e no viver o tempo sufi-
ciente para assistir ao nascimento das pequeninas larvas vermiformes,
desprovidas de patas e incapazes, no s de se protegerem, como de angariar
alimento. E contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano,
numa habitao bem fechada, sob pena de extinguir-se a espcie.
Como, ento, supor que a abelha gestante, antes de pr o primeiro ovo,
tenha podido adivinhar as necessidades da prole futura e o que deve fazer para
assegurar-lhe o bem-estar? Tivesse ela em partilha a inteligncia humana, e
nada soubera a tal respeito, visto que todo o raciocnio requer premissas. Este
inseto, que nada pde aprender, tudo prepara e opera sem hesitao, como se
o futuro lhe estivera devassado e uma previdncia racional a norteasse.
Apenas lhe despontam as asas e logo a xilfaga trata de preparar a casa dos
filhos. Com as mandbulas, broca um tronco de madeira exposto ao Sol,
excava uma longa galeria e vai depois buscar, longe, no plen das flores, o
nctar aucarado. o cibo do recm-nascido e que lhe h-de bastar, o
quantum satis, para bem-viver at Primavera prxima.
Uma vez provida a despensa, a deposita o ovo e ei-la amalgamando com
terra a serragem prudentemente guardada, e fazendo uma como argamassa,
de maneira que o leito dessa primeira cela se transforme em teto de uma
segunda despensa, e bero da larva a nascer de outro ovo. Assim se constri
um edifcio de alguns andares, no qual cada alojamento recolhe um ovo e
servir, mais tarde, larva desse ovo.
Admira diz Edwards como diante de fatos to significativos e
numerosos ainda haja quem nos venha dizer que todas as maravilhas da Natu-
reza no passam de obras do acaso, ou, ento, de consequncias das
propriedades gerais da matria; desta Natureza que faz a substncia da pedra
como da madeira, e que os instintos da abelha, assim como as mais altas
expresses da genialidade humana, no so mais que resultados de um jogo
de foras fsicas, ou qumicas, as mesmas que determinam a congelao da
gua, a combusto do carvo e a queda dos corpos... Essas hipteses balofas,
ou melhor, essas aberraes do esprito, que se mascaram, s vezes, com o
nome de cincia positiva, s podem ser repelidas pela verdadeira Cincia. O
naturalista no poderia acredit-lo.
201

Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde se


esconde o dbil inseto, nele ouvimos distintamente a voz da Providncia
ditando s criaturas a sua conduta diria.
Em todas as provncias da vida acrescentamos ns a mo do Criador
inteligente e previdente se revela aos olhos que sabem verdadeiramente ver. E
sempre que a dvida nos perturbe, nada melhor se nos impe que o estudo
acurado da Natureza, porqanto, todos os que tiverem consigo o sentimento do
belo e verdadeiro, ante o espetculo maravilhoso da Criao, logo tero dissi-
padas as nuvens cai florao de luz.
Enquanto trao estas linhas, aqui, dentro de pequeno bosque cujas aves
me conhecem, tenho defronte um ninho de rouxinis.
Quatro filhotes implumes, trmulos, ali se premem to conchegados que
mal se lhes distingue as cabeas volumosas, relativamente, e os olhos negros,
ainda mais. Nascidos de ante-ontem, nada vem, nada sabem ainda, se h
arvoredos e luz.
Se fssem abandonados assim, no tardariam a perecer. O corao dos
genitores, porm, freme por eles em anseios verdadeiramente maternos. Eles
l esto, ambos, pai e me, borda do ninho e conchegados tambm. Enfiam
o bico nos quatro biquinhos escancarados, e de notar a fora que lhes
sustenta e alonga os pescocitos. Pai e me, trazendo-lhes no papo a proviso,
ministram-lhes dessarte, durante alguns minutos, os primeiros alimentos o mel
e o leite que os h-de nutrir no futuro. Que famlia encantadora! E como
prezam a vida todos os seis! Os raios solares coam-se atravs dos ramos, do
vale evolam-se perfumes, a vida a espanejar-se em luz e nesta temperatura
tpida de Maio. Por vezes, o minsculo casal suspende a tarefa e contempla os
filhotes com ar de contentamento e movimentos de cabea significativos -
Tambm se fitam silenciosos, colam-se as cabeas e confundem-se os bicos,
como num beijo de amor.. Depois, ei-los como a se consultarem. Uma nuvem
refrescou a atmosfera. O pai voou, a me aninhou-se, abrindo as asas de
maneira a cobrir todo o ninho e, todavia, alto mantendo a cabea, por ver o
horizonte e sondar as redondezas. Mas, agora, eis que regressa o rouxinol e se
coloca, tal como antes, na beira do ninho, a procurar o bico da companheira.
que, chegou a hora do jantar da famlia e o chefe solcito lhe traz o cibo
preferido. Quanto a ela, parece no lhe desprazer o regime, de vez que aspira,
como inebriada, o manjar que lhe trazem. Tremem-lhe as asas, todo o corpo
lhe palpita, enquanto o marido vai e volta num af constante, carreando-lhe no
bico um repasto completo. Muito lhes cabe fazer pela prole. Agora. ei-los
srios. H 15 dias, passavam o tempo a cantar, a saltitar de galho em galho, a
brincar, a amar... Agora, nada fazem assim, esto casados, chefes de famlia,
responsveis por uma nova gerao. At que os filhotes emplumem, precisam
levar-lhes boca o que mais convm na sua idade, e preocupam-se j com o
seu destino. Amam-nos e talvez eles no compreendam aquela afeio ma-
ternal. possvel que voem, to logo a me lhes ensine a voar; possvel que
sbitamente a releguem a uma solido definitiva, sem jamais se lembrarem da
infncia. A afeio como os rios; desce e no sobe.
Em que pensam, hoje, esse rouxinol e a sua companheira? Sem dvida,
ao cogitarem do futuro dos filhos, no tm em mente as profisses sociais e os
princpios de honorabilidade que devem nor-tear todas as carreiras. Sem
dvida que no sero atormentados por clculos econmicos, tantas vezes
falaciosos para o homem. Mas aos que negam o instinto, perguntaremos: em
202

que escola essa esposa, antes de ser me, aprendeu a construir o ninho que
lhe haja de receber os ovos?
Ela tem apenas um ano e ainda no chocou:
quem lhe ensinou a fazer esse ninho, precisamente assim e no de outro
modo? Quem lhe teria falado de temperatura necessria incubao e ecloso
do ovo fecundado? Quem lhe diria que chocando, aquecendo por 15 dias
aqueles ovos, facultaria a sua gerao? Posio de constrangimento, apesar
do alvio que experimenta, tornar-se-ia insuportvel sua vivacidade, se um
determinismo instintivo no a amparasse. E quando os ovos vingaram, quem
lhe disse que precisava sair do ninho e que, vivos e precisando subsistir os
pequeninos seres, importava granjear-lhes alimentao adequada? Quem a
forou a passar mais quinze noites de asa aberta sobre o ninho, na mais
fatigante das posies para uma ave que deve dormir sobre as patas? A estas,
poderamos juntar mil outras advertncias. Ho-de responder-nos que a
primeira espcie aprendeu tudo isso pelo hbito, e que as tendncias se
transmitem por hereditariedade; mas recair no mistrio das geraes, no
mais que recuar o problema primeira espcie, ou melhor ainda, se o quise-
rem aos primeiros tipos, supostos geradores de todas as variedades. Ora,
admitindo-se mesmo, contra toda a probabilidade, que a construo dos ni-
nhos, a incubao e os primeiros cuidados com a prole sejam mostras de
inteligncia, no do instinto, e que as espcies tenham, sucessivamente,
aprendido a proceder dessa maneira o que, di-gamo-lo ainda uma vez, nos
parece inadmissvel como resolver as questes atinentes formao do ser
dentro do ovo? Quem construiu o ovo, bero de uma gerao futura? Quem
criou e colocou o germe no centro desse ovo? Mediante um poder misterioso,
um ser da mesma natureza dos pais vai mover-se neste fluido, o ovo incipiente
vai sofrer a mais maravilhosa das metamorfoses, vai viver! Completada a
transformao, surge uma ave! Assaz dbil para expor-se fora, no se
exterioriza e, enquanto aguarda, ei-la cercada pela clara do ovo, que
precisamente o alimento que lhe convm at o nascimento.
Assim, pouco a pouco, se forma inteiramente, asas e patas se desligam, a
cabea sobreleva o peito, s lhe resta deixar a priso e para isso o bico se
reveste de um esmalte, que cai logo depois do nascimento. Com o bico assim
aparelhado, ele se pe a quebrar a casca do ovo, at que consegue pr de fora
a cabea. Utiliza, ento, as asas e acaba por libertar-se inteiramente.
Pois bem: que os adversrios, em tudo isto se esfalfem por formular as
mais vastas e interminveis teorias, que acumulem hipteses sobre hipteses,
que recusem chamar instinto aos atos do nascituro, como da ave que o
engendrou; que embrulhem o assunto com explicaes tortuosas, confusas, e
nem por isso deixamos de a ter um fato natural, eloquente na sua simplicidade
e que eles, os adversrios, no podero derrocar. Aquele que criou o rouxinol e
quis nos alegrasse ele com o seu canto vespertino, criou o mundo e houve por
bem dar-lhe as leis da prpria conservao. No h idia mais simples e
majestosa, nem que mais satisfaa a nossa necessidade de conhecimento.
Negar as leis conservadoras da vida negar toda a Natureza. A ns nos
parece, que, para ir a tais extremos, preciso ser estlido ou vtima de aber-
rao espiritual. A verdadeira Cincia est muito longe de tais negaes! Seria,
na verdade, uma desgraa se o fruto da sabedoria redundasse em ani-
quilamento das leis que regem o Universo e constituem a sua unidade viva.
Porque, pois, em face de fatos to irresistveis, quanto os do instinto
203

animal, no confessar uma verdade bela e tocante ao mesmo tempo? Ser


precisamente por bela e tocante que a recusam? Seramos quase levados a
sup-lo, pois nestas teorias materialistas, basta seja uma coisa agradvel ao
esprito, para logo ser repelida. Esta, contudo, no uma razo assaz
suficiente. Para ns, ao contrrio, contemplamos a Natureza em todos os seus
aspectos. A verdade no pode deixar de ser bela. e no s Plato a pensar
que o belo o esplendor da verdade. A Natureza verdadeiramente bela.
Longe de desviar os olhos sempre que encontramos uma forma expressiva da
beleza eterna, admiramo-la e reconhecemo-la to sinceramente, quanto o
fazemos a uma verdade matemtica. No a Natureza a nossa me? Onde j
passmos horas mais deliciosas e instrutivas do que as vividas intimamente
com ela, no seio das matas silenciosas?
Contemplai, na sua maravilhosa harmonia, a lei de continuidade da espcie
humana, procurai por-fundar a ordem misteriosa que preside nossa gerao
e crescimento. Que maior prova de habilidade pudera dar a Natureza ao
envolver cada sexo nessa atrao indefinvel, que o escraviza suavemente aos
seus desgnios soberanos? Que sabedoria no nos testemunha ela,
organizando, em bases rgidas, a vida oculta do ser em formao, que, at o
dia do nascimento, se beneficia de uma existncia inteiramente diversa da de
todos os outros seres vivos? Que previdncia no demonstra ao criar, para nu-
trio do tesouro oculto, rgos diferentes dos que lhe havero de servir na
vida atmosfrica, e ao preparar para os primeiros dias a mais pura das
ambrosias? Perguntai s jovens mes quantos cuidados requerem esses
recm-nacidos fraglimos e trmulos. E, contudo, a Natureza ainda ser a mais
vigilante das mes. Qual a afeio mais tenra, o amor mais carinhoso, o
devotamento mais extremado, de me; qual a inteligncia mais lcida, a
previdncia mais sbia de um pai, que poderiam rivalizar com os cuidados
incessantes e universais da Natureza, to profusa, infatigvel e prdigamente
despendidos na proteo individual, ativa, a cada um de seus filhos?
Sobre a previdncia da Natureza, poderamos escrever grossos in-flios.
Poderamos perguntar se por acaso e sem objetivo que as espcies mais
fracas e expostas morte so precisamente as mais fecundas, como sejam
galinceos, perdizes, etc., pondo dezenas de ovos fecundados e deixando, ao
fim de um ano, centenas de rebentos, enquanto as aves de rapina, condores,
guias, etc., se apresentam, comparativamente, quase estreis. Poderamos,
tambm, perguntar se s cegas que a Natureza decora de encantos
particulares os pequeninos seres sem fora e sem amparo, despertando-nos
interesse e ateno para essas cabecitas louras, que, privadas de assistncia,
acabariam dormindo em seu bero um sono eterno. Poderamos, ainda, invocar
aqui o espetculo integral da Criao vivente, mas, intimamente convencido da
adeso dos leitores, neste particular, no insistiremos inutilmente.
Parece-nos que esses eminentes trabalhadores fizeram entusiasmados o
maior trecho do caminho e que, no possuindo vista telescpica capaz de
distinguir o fim, esquecem que o progresso das cincias tem verdadeiramente
um rim, e estacam, inertes, depois de provarem uma capacidade ativa
incontestvel. Por terem verificado que as causas finais, imaginadas pela
vaidade humana, s lhe tm servido, h tantos sculos, de redana por emba-
lar-se displicentemente; depois de se haverem certificado que os deuses-
escravos do orgulho, as criaes da fantasia e as ilusrias teorias de um
pensamento mesquinho mais no so que simulacros sem realidade, sombras,
204

fantasmas que um raio de luz das cincias basta para diluir concluram no
haver diretriz nem finalidade na Criao. Porque o homem se enganou na
soluo de um problema, decidiram eles que no h problema nem soluo.
Confundindo inexplicavelmente a verdade com a noo do que nos dado
saber; confundindo, igualmente, a grandeza real de uma obra com a idia que
fazemos dela, tal como os telogos da Idade Mdia a confundirem a idia
religiosa, em si mesma, com a forma catlica particularista, proclamam eles
que a falsidade das nossas noes individuais acarretam a runa do prprio
objeto dessas noes. Na verdade, para espritos habituados aos rigores do
raciocnio; para homens sbios, que parece procurarem com absoluto
desinteresse a verdade to longamente dissimulada, dir-se- que no provam,
dessarte, excelncia nem superioridade de vistas. Antes, pelo contrrio,
evidenciam diretamente a estreiteza da esfera que habitam, dispostos a
recusar-lhe qualquer ampliao, obstinados em lhe vedar toda e qualquer luz,
como se temessem que essa luz viesse espalhar reveladoras claridades no
horizonte e recuar, para muito alm dos seus recursos, os limites do Universo.
Nossos opugnadores pretendem fazer cincia quando declaram que a
organizao dos seres no justifica o ascendente de um desgnio na Natureza.
Em lugar de cincia, o que eles fazem puro sistematismo, arbitrrio, nisto
como em tudo o mais.
De fato: em que consista o mtodo cientfico? Que ser uma teoria em
Astronomia, em Fsica, em Qumica? Observamos os fatos, e quando possu-
mos um conjunto de observaes suficientes, procuramos relig-los
mtuamente entre si, mediante uma lei. Vemos essa lei? Nunca, jamais.
Adivinhamo-la pela discusso dos fatos e talvez a denominao que lhe damos
no seja a que melhor convenha.
Esta teoria, pela qual nosso esprito insacivel sente a necessidade de
explicar todas as coisas, no , antes de tudo, seno uma hiptese cujo valor
consiste, principalmente, na satisfao que nos proporciona a explicao
natural dos fatos estudados.
Por muito tempo ela no passa de hiptese, inconsistente e frgil, que o
mais leve sopro pode derrubar, para s elevar-se verdadeira teoria quando
suficientemente examinada, experimentada e sancionada pelo estudo. De outra
forma, resvala para o campo das erronias imaginrias.
Vejamos, por exemplo, os movimentos dos corpos celestes.
Notamos que eles descrevem elipses de que o Sol se constitui um dos focos;
notamos que as superfcies percorridas so proporcionais aos tempos, e
notamos que estes tempos de revoluo, multiplicados por si mesmos, esto
entre si como os grandes eixos multiplicados trs vezes por si mesmos. Para
explicar os movimentos da mecnica celeste, emite-se a hiptese de que os
corpos se atraem na razo direta das massas e inversa do quadrado das
distncias. Enunciar esta hiptese, vale simplesmente por dizer que as coisas
se passam como se os astros se atrassem. Depois, explicando essa hiptese,
perfeitamente, todos os fatos observados e dando cnta de todas as
circunstncias do problema, torna-se ela uma teoria.
Enfim, achando-se esta lei universalmente demonstrada, tanto pelo balano
das estrelas gmeas, na profundeza dos cus, como pela queda de uma ma
na superfcie da Terra, afirma-se que a lei chamada gravitao representa, de
fato, a fora reguladora dos mundos.
Idntico o processo que empregamos, ao declarar que os organismos
205

vivos so construdos como se a causa, fsse ela qual fsse, que as condicio-
nou, teria tido em vista uma destinao dos rgos em relao vida peculiar
de cada ser, tanto quanto existncia global de todos os seres em conjunto.
As verdadeiras causas finais so, portanto, um resultado da observao
cientfica, O mtodo o mesmo, e, como bem o disse Flourens, preciso partir
no das causas finais para os fatos, mas destes para aquelas. Induzir do
conhecido para o desconhecido, eis o nico mtodo positivo. Ora, o resultado
deste mtodo, seja ele qual for, merece ser proclamado como cientfico. Pode
suceder que a revelao de um plano e de uma finalidade na Natureza no
agrade a Fulano ou Beltrano, mas isso pouco importa. Fulano e Beltrano esto
no mais falso dos erros, quando nos acusam de no proceder de acordo com a
Cincia experimental, e incidem na mais fatal das iluses quando imaginam
proceder de acordo com essa cincia. Trocam, assim, os papis pr domo sua,
como si vulgarmente acontecer.
A verdade, porm, despreza-lhes as tendncias e fica inalteravelmente
idntica, sem se preocupar com os prismas atravs dos quais a encaram olhos
interessados em v-la abaixo da sua posio real.
Esquisitice inexplicvel em homens judiciosos, pretenderem que, admitindo
a existncia de Deus, sejamos obrigados a admitir o arbtrio na Natureza, como
se a vontade suprema no fsse necessria e infinitamente sbia, e, por
consequncia, universalmente regular. Os que s vem em todos os
movimentos da Natureza os meios de atingir um fim diz Moleschott
chegam mui logicamente noo de uma personalidade, que, num tal pro-
psito, confere matria as suas propriedades. Esta personalidade tambm
designar o fim.
Se assim , se uma personalidade designa os fins escolhe os meios, a
lei de necessidade desaparece da Natureza. Cada fenmeno se torna partilha
de um jogo do acaso e de um arbtrio sem finalidade.
J. B. Biot afigura-se-nos mais bem inspirado quando assim conclui o
exame da Natureza: (115) Por mim, quanto mais considero a harmonia, a
imensidade do Universo e as maravilhas da Criao, tanto mais admiro esse
concerto maravilhoso, e menos apto me julgo para explic-lo. Ousarei dizer,
mesmo por hav-lo experimentado, que essas explicaes imperfeitas, esses
vagos ou falsos relatrios, que alguns modernos escritores querem inculcar
como harmonias sublimes, nunca nos pareceram mais temerrios e fteis do
que quando defrontamos a Natureza. Quando se h tido a ventura de conhecer
e sentir as verdadeiras belezas que ela ostenta, somos tentados a conceituar,
como profanadores e mpios, quantos a desfiguram com indignos disfarces.
Assim que, todos os seres organizados

(115) Mlanges Scientifiques et Litteraires, t. 2.

tiveram seus meios prprios de vida, to numerosos e to multiplicados na


variao do mecanismo, quanto as estrelas do cu.
E note-se que isto o que percebemos exteriormente, pois o mais
maravilhoso nos fica oculto. Quem, jamais, pde compreender a ao qumica
das membranas vivas, a causa dos movimentos voluntrios e Involuntrios
que digo eu? o voo da mosca, os torneios da borboleta? Quando nossa
inteligncia mal pode atingir o conhecimento das disposies exteriores do
organismo e mal pode apreender as relaes entre si, de alguma das peas
206

que o compem, seria, parece-nos, ilgico no ver no mago desse conjunto o


princpio inteligente, como o ordenador e regulador de tudo. Por mim quero, ao
menos, possuir a filosofia da minha ignorncia.
A ordem verificada nos fatos no produzidos pelo homem advertiremos
ainda com ilustre escritor (116) mostra-nos que as correlaes apresentadas
pelo mundo material resultam de aes

(116) J. M. de la Codre Les Dessems de Dieu. Este ensaio de filosofia


religiosa e prtica caracteriza uma das felizes tendncias
contemporneas, contra a Invaso do ateismo. Os argumentos, a
desenvolvidos, resumem-se no seguinte: No existe o impossvel; no
Universo h ordem e a ordem s pode emanar de uma inteligncia. O
Universo , portanto, obra de uma inteligncia. Essa ordem resulta da
execuo de uma lei, ou do concerto de vrias leis, e as leis so sempre,
e necessriamente, obra de uma vontade inteligente. O autor do Universo,
Deus, sendo uma Inteligncia, teve indubitvelmente um fim, criando o
Universo. Esse fim seria fazer-nos felizes, como no-lo atestam as nossas
aspiraes e faculdades, no que possuem de mais elevado. Todos os
seres dotados de sensibilidade so, por conseguinte, convocados
felicidade. E ns vemos, de fato, que eles so at certo ponto felizes, por
isso que todos vivem e amam a vida, assegurando-a e defendendo-a at
os limites extremos. A felicidade, porm, no igual para todos os seres:
H, notadamente, uma diferena marcante entre a felicidade dos animais
e a presumida felicidade humana. Aquela se adstringe a estreitos limites,
uma felicidade simplesmente dada, enquanto que esta toma vastas
propores e reveste outro carter; uma felicidade merecida.
Compreender-se- facilmente esta distino diz o Autor
observando os fatos e comparando os raros e Incompletos prazeres de
que compartilham os seres puramente sensitivos, com os gozos serenos,
infinitos, que a alma humana encontra no cumprimento do dever, na pie-
dade, nos doces afetos da famlia. A mor parte dos sofrimentos nos
sobrevm quando, por ignorncia ou rebeldia, contravimos s leis do
criador.
Da perpetuidade dessa aspirao a uma felicidade completa e
indefinita, e da faculdade de aperfeioamento moral, bem como de
conhecimento progressivo; uma vez que essa felicidade no pode
existir na Terra devemos concluir que o homem no perecer neste
mundo com o seu invlucro corporal. A esta hermenutica, podemos
ajuntar o seguinte, que o autor nos exps em carta prticular:
A Natureza ao mesmo tempo o laboratrio e o operrio de Deus, assim
como a oficina provida de um preparador o laboratrio do fsico ou do
qumico. Tanto mais superiores so os produtos brotados da Natureza,
em relao aos de nossas oficinas, quanto mais exaltam e atestam o
poder e a inteligncia divinos, em relao aos de nossos sbios. Estes,
com os materiais que lhes oferece a Natureza, no conseguem fazer o que
faz o operrio de Deus sob a sua direo.

D:H::N:O

Deus est para o homem como os produtos da Natureza esto para


207

os da oficina.

D:N::H:B

Deus atua sobre a Natureza como a vontade do homem, guiada pela


sua inteligncia, atua sobre os seus olhos e braos.
Num captulo de Os Desgnios de Deus, consagrado Pluralidade dos
Mundos habitados, o Autor contradita a nossa opinio sobre a variedade
dos organismos no Universo e a idia de uma semelhana entre todas as
humanidades. Baseia-se ele no seguinte raciocnio: se os habitantes dou-
tros mundos no tm a forma terrestre e se estamos destinados a viver
tambm nesses mundos, no poderemos l reconhecer os amigos
caros... A objeo mais sentimental que cientfica e no cabe discuti-la
aqui. Podemos, nada obstante, repetir que, em virtude da diversidade de
ao das foras naturais, noutros planetas, quase certo que a srie
zoolgica l se tenha construdo sobre um tipo anlogo ao da srie
terrestre.

e reaes que, combinadas, regem-se por leis. Pela experincia contnua da


vida, sabemos que sempre as correlaes, as harmonias, as leis, so obra de
uma inteligncia cujo poder proporcionado extenso dos fatos e das
harmonias coordenadas. Temos assim, por evidente, que o Universo gover-
nado por uma inteligncia. Estas correlaes e estas harmonias esto em
correspondncia com as propriedades intrnsecas da matria e a elas se ligam
de tal sorte que deixariam de existir, se essas propriedades substanciais
fssem outras. Da conclumos que a matria com as suas propriedades
intrnsecas tambm obra da Inteligncia, que lhe estabeleceu as leis. O bom
senso decreta, imperiosamente, e no que pesem s alegaes contrrias, que
no podemos atribuir a uma circunstncia molecular, fortuita, a atrao, a
eletricidade, o calor, a composio do ar, fatos csmicos perfeitamente
apropriados vegetao das plantas, vida animal, pela mesma razo que
ningum admitiria pudessem milhares de tipos de impresso, espalhados ao
acaso, produzir a ilada ou a Jerusalm Libertada. Se, para fugir a concluses
lgicas, nos dissessem que essas qualidades so efeitos inerentes, nem por
isso elidiriam a necessidade lgica de uma interveno suprema e inteligente.
Juntemos a esta imagem um aforismo pouco discutvel: todo fim supe
uma inteno, toda inteno, uma conscincia, e toda conscincia uma
personalidade.
O problema das causas finais, repitamo-lo, de soluo mais difcil e
complicada do que se prefigura a muitos imaginativos apressados. Ele se
traduz, como diriam os antepassados, antes em potencial do que em ato, Os
fatos gerais o decidem, e os particulares o dificultam. Para bem o apreender,
importa ao esprito adstringir-se a um exame severo e, de um golpe de vista,
abranger, seno a totalidade, pelo menos a maioria das coisas conhecidas, sob
o duplo aspecto do tempo e do espao.
O primeiro efeito desse rigoroso estudo crtico , precisamente, afast-lo de
toda a crena e resguard-lo dessas mesquinhas interpretaes humanas, que
levam a criatura a referir tudo a si mesma, como eixo central da Criao.
Assim procedendo, poderemos, ento, rir das iluses, vaidades e tentativas
insensatas do orgulho humano. Esse, o primeiro resultado do estudo geral dos
208

seres.
Mas, quando prosseguimos investigando, at perceber as foras ntimas
que sustentam cada ser criado, at descobrirmos as leis universais que regem
simultaneamente o edifcio total e cada uma das partes desse imenso edifcio,
ento, distinguiremos as linhas de um plano geral, perceberemos, aqui e ali, os
elos de solidariedade que entrosam num s desgnio os corpos mais distantes,
reconheceremos a unidade do pensamento que presidiu ou melhor que
preside eternamente o condicionado universal e governa, na rota do infinito, o
carro imensurvel da Criao. Enfim, acostumando-nos a essas contemplaes
essenciais, tambm chegaremos a concluir que esta noo da divindade ainda
muito humana para que seja verdadeira, e que essa fora que sustenta o
mundo, essa potncia que lhe d vida, essa sabedoria que o dirige, essa
vontade que o impele eternamente para uma perfeio inacessvel, essa
unidade de pensamento que se revela sob as formas transitrias da matria
no so uma fora, um poder, uma sabedoria, uma vontade humana, mas
atributos inerentes a um ser inominvel, incompreensvel, incognoscvel, de
cuja natureza nada podemos razoar, e cujo conhecimento para ns
cientificamente inabordvel.
Este resultado final das investigaes positivas explica porque e como,
nesta discusso, se afigura que estendemos a mo esquerda a Berlim e a di-
reita a Roma. A quem no-lo objete, responderemos que se no trata aqui seno
de um fato geogrfico, resultante do nosso pendor para visualizar sempre o
Oriente. Sem dvida, esta atitude nos granjeia o qualificativo de hertico,
conferido pelos doutores que se repoltreiam em sua ctedra secular, mesmo
porque, seus olhos modorrentos vm de h muito preferindo a suavidade das
meias tintas crepusculares aos flamneos raios aurorescentes.
A lealdade, porm, obriga-nos a proclamar que o exagero dogmtico to
falso como o cepticismo, e que a trilha do pensador oscila equidistante desses
extremos. Sim, oscila... Os que se presumem mais firmes nesse terreno, so
os que mais prximo esto da queda. Para o homem que estuda, nada h
definitivo neste mundo. Quanto mais progride a Cincia, mais o homem
percebe a sua ignorncia.
Todavia, parar morrer. Caminhar, mesmo contramarchando s vezes,
realizar o fim mais nobre da existncia.
Em Filosofia, como em Mecnica, o equilbrio no passa, jamais, de um
equilbrio instvel.
Na sua tendncia para tudo referir sua pessoa como centro exclusivo, o
homem restringe os fatos e as idias. Vimos que a sua teoria da causalidade
disso um exemplo e dos mais famosos. Quando se pretende que os frangos
foram feitos para o espeto, no deixa de haver um tanto de personismo na
afirmao. Pode dizer-se, verdade de vez que o homem onvoro e que
sua constituio orgnica exige alimentao mista que os animais e plantas
de que se nutre destinam-se, efetivamente, a lhe prover a existncia e que,
sem eles, a espcie humana logo se extinguiria. Descer, porm, a mincias
particulares e afirmar que as perdizes fssem criadas para combinar com os
temperos da culinria de Vatel; dizer que os bovinos foram principalmente
destinados ao caldo gordo, ao bife com batatas, etc.; que os quartos do car-
neiro e assados de vitela correspondem finalidade originria das espcies
ovina e bovina; que os feijes para nada prestariam se no fssem temperados
e que as ameixas s foram douradas pelo Sol para serem saboreadas frescas
209

ou em compota, e assim por diante, incidir no vulgar; esquecer o sistema


geral da Natureza e acreditar que s o homem vive no Universo.
Assim, vamos terminar, lembrando nossa proposio, que substituir a
idia de causalidade particular pela idia de plano geral.
No tomamos posio pr nem contra a teoria da transformao das
espcies; apenas conclumos que, sem o princpio da destinao dos seres e
dos astros, impossvel algo explicar, desde a anatomia mecnica celeste:
nenhuma causa exterior, nenhuma influncia mesolgica se isenta dessa
grande lei. A teoria da seleo natural substitui, simplesmente, a interveno
miraculosa da causa criadora para. cada espcie, por uma lei inteligente,
universal.
Ela deixa na Natureza o pensamento organizador do mundo sensvel ao
comeo, ao meio como ao fim das coisas.
Esta concepo do desenvolvimento do mundo, mais positiva e cientfica,
no se baseia no casual nem no arbitrrio. Apresenta o Universo como unidade
viva, cuja existncia se desenvolve e se eleva eternamente a um ideal
inacessvel, de conformidade com a idia primordial. Origem e fim coexistem,
simultaneamente, no atual. Do inorgnico ao orgnico, do orgnico ao vivente e
do ser vivente ao inteligente, h um. ciclo, uma circulao material e uma
ascenso intelectual, obedientes a uma razo dominadora. O mundo no um
jogo de disparates, um poema no seio do qual no passamos de
humilssimos comparsas, e cujo autor invisvel nos envolve na sua radiao
imensa, como a esses gros de poeira que vemos flutuar numa rstea de sol.
Ousemos confess-lo! O destino integral, absoluto, dos seres problema
insolvel na atualidade. um problema que se abre insensivelmente como um
abismo, quando procuramos sondar-lhe as profundezas... Uma noite, em Paris,
antes do pr-do-sol, contemplava eu o Sena, debruado ponte do Instituto, de
onde o panorama se apresenta s vezes maravilhoso, O horizonte purpurizado
derramava uma luz rsea nas encarneiradas nuvens que se espalhavam pelo
cu azul, e essa luz, banhando a atmosfera da grande urbs, dava um aspecto
mgico aos edifcios silenciosos. O rio, qual enorme rubi, rolava morosamente
para Oeste, sumindo-se no indeciso da distncia, onde se casavam a luz e a
sombra. minha esquerda, o zimbrio sombrio cinzentava o casario e, alm,
duas flexas gticas espetavam o cu. minha direita, as janelas do Louvre,
reverberando uma iluminao ferica, emprestavam ao velho edifcio
desmesurada extenso. O bosque escuro das Tulherias e as alturas vaporosas
de uma colina alm, prolongavam a perspectiva at s brumas do horizonte.
Este panorama apresentava-se-me com duplo sentido: era a idia grandiosa
da Natureza pairando sobre a massa de uma grande cidade humana. Pouco a
pouco, sentia-me identificado com esse espetculo de uma existncia
simultnea da Natureza e da cidade, existncia permanente e contudo velha,
mas cujo contraste no me houvera tocado ainda, to vivamente. E
contemplando esse duplo espetculo, acompanhava os movimentos reais,
quanto os aparentes, da Natureza. O Sol descia, lento, atrs das colinas; as
nuvens se coloriam de um matiz mais rseo, o rio deslizava docemente para o
mar distante; o ar refrescado agitava-se brando, como um ritmo respiratrio.
Esse movimento geral impressionava-me, por isso que o imaginava extensivo a
toda a Natureza, e como que me desvendava a circulao total da vida
planetria. Mas o motivo predominante da minha ateno era a idia de que
todo esse movimento se completava, como se o homem ali no estivesse.
210

Em pleno centro de Paris, o homem afigurou-se-me um cifro da Natureza.


Os transeuntes que por mim passavam, ali, naquela mesma ponte, no
admirariam, certamente, aquele magnfico pr-de-sol. Os homens de negcios
pervagavam absortos nos seus clculos. Os dois milhes de almas que
formigam a dentro da cinta fortificada no me pareciam mais que um turbilho
efmero neste setor do nosso globo. E eu dizia de mim para mim: eis que
assim vai a Terra girando em torno da sua rbita e apresentando cada pas, por
sua vez, fecundao solar; as nuvens percorrem a atmosfera, as plantas
obedecem ao ciclo das estaes; os rios correm para o mar, dias e noites se
alternam, a harmonia terrena segue o seu curso regular, perptuo... Mas,
porque tudo isso? Os insetos com suas mandbulas estrafegam ptalas, os
passarinhos devoram os insetos, o gavio devora os passarinhos, ruge o leo
nos desertos, baleias caam na amplido dos mares... Porque e para que?
Fontes lmpidas ostentam, na solido das matas, espelhos translcidos em
molduras de pervincas; regatos mrmuros despenham-se das colinas, ribeiros
prateados misturam-se com os grandes rios para carem nos abismos
ocenicos e a perderem a existncia e o nome; ricas floraes repontam e
morrem no fundo tenebroso dos mares, apenas visitados por madrporas e
corais, e, sob a atrao celeste, o fluxo e refluxo dos mares desloca, de
continentes a continentes, a massa lquida e formidvel. Mas... que utilidade
haver em tudo isso? Essa vastssima Natureza caminha impassvel, me-
canismo colossal, as coisas se renovam sem trguas, o prprio homem no
passa de tomo efmero, que surge e funde-se num relmpago. Deste
universo imenso, o homem quase nada conhece, posto suponha conhecer
tudo, e, de resto, empregando o tempo noutras cogitaes. Antes que surgisse
o homem, j essas mesmas harmonias vibravam como ao presente. Para que
ouvidos, porm? Tudo existia antes dele e qui sem ele. Tudo existir depois
dele! Porque existe, aqui, esta Criao? Porque, sondando-lhe a profundeza,
no posso eu idelizar qualquer resposta? Porque haveria Deus criado a Terra e
a multido infinita de outros mundos? E porque, vendo a inquietude da minha
alma, deixa-a debater-se no abismo da ignorncia, como se no conhecesse
Ele, o Criador, esse pensamento, qual o do gro de areia levado pelo vento, ou
da gotcula dgua deste rio que aqui resvala, a meus ps? Porque e para que
serve tudo isto? Que importar a Deus haja um, milhes, ou nem um mundo?
Qual a finalidade desta obra? Ainda uma vez porque, Deus! existe a Criao?
E, contudo, este conjunto formidvel tem uma finalidade. Este vu oculta um
problema grandioso, que nos envolve e aniquila. Nesse dia, retirei-me
silencioso, olhos cerrados, em nada mais atentando. Desaparecera
o Sol, o Sena prosseguiu em seu curso, o manto da noite envolveu a cidade e
logo entrei a ouvir o barulho ambiente. Mais tarde, muitas vezes, fui assaltado
por essas mesmas reflexes, muitas vezes me vi constrangido a repetir a
pergunta irretorquvel porque existe o mundo? E sempre o silncio e o vcuo
por nica resposta!
Pois qu! Sempre que tentava uma resposta, questo mais grave se me
impunha, consequente. Acompanhando esse movimento impassvel da Na-
tureza, minha alma por vezes se emancipou do tempo para interrogar-se onde
estaria daqui a cem anos e, prosseguindo avante, imaginou, aterrada, o que
poderia aguard-la num milnio. Perpetuando o seu tesouro, viu que poderia
viver ainda cem mil anos e perguntou o que seria nessa poca.
Sonhando mais longe o abismo, l se foi ela, infatigvel, por beirar um
211

milho de anos, de sculos! E alm dessas lindes, desses pontos j inaces-


sveis ao pensamento, ei-la a imaginar nova linha de igual extenso; depois,
uma segunda, terceira, quarta, dcima, centsima, milsima... J na
eternidade, ento, percebeu que o tempo no existe e que a eternidade
imvel... Devo dizer que, por vezes, este ltimo pensamento se tornava to
aterrador, diante do inexorvel destino, que me aniquilava a noo de
personalidade, como se esse quadro insustentvel nos convidasse a esperar o
repouso na morte, ou como se essa contemplao, muito vasta para o crebro
humano, o houvesse espedaado e suprimido do nmero dos crebros
inteligentes. Talvez no me assista o direito de assim vos entreter com as
minhas impresses pessoais. No fundo, porm, no se trata aqui de um caso
pessoal, mas de um estudo anlogo ao do anatomista que sonda
profundamente uma chaga desconhecida. Se o astrnomo se baseia em obser-
vaes pessoais para fixar o seu sistema; se o qumico fala pelo testemunho
das suas retortas e anlises particulares; se o fsico examina a Natureza com
seus prprios olhos, natural se torna que o pensador, a exemplo deles, conte o
resultado de suas elucubraes e confie, eventualmente, aos que o ouvem, as
inquietaes e labores do seu esprito. No mnimo, h nisto um ato de
sinceridade e o penhor de uma opinio, independente de qualquer sectarismo.
Sim! O vasto problema da destinao dos seres e coisas envolve-nos na
sua profundeza, sem que o possamos julgar nem resolver. Ele nos arrasta,
quais infusrios microscpicos, perdidos no bojo dos oceanos, a procurarem
compreender e explicar o fluxo e refluxo das guas.
212

QUINTA PARTE
Deus
213

1
DEUS
SUMRIO Deus na Natureza, fora viva e pessoal, causa dos
movimentos atmicos, lei dos fenmenos, ordenador da harmonia,
virtude e sustentculo do mundo. O homem criando Deus sua
imagem. Erro antropomrfico. O filsofo grego Zenfanes h. 2400
anos. A natureza de Deus incognoscvel. Nenhum sistema humano
poder defini-la. Diferentes modalidades da idia de Deus, segundo os
homens. ltimas perspectivas doutrinrias. Concluso geral.
Epilogo.

O prisma atravs, do qual nos permitimos concluir a nossa demonstrao


geral antes sntese que perorao; e se verdade que a Cincia e a Poesia
esto intimamente associadas na contemplao da Natureza, no podemos,
judiciosamente, impedir o sentimento potico de se manifestar nestas ltimas
impresses que o panorama do mundo nos sugere.
Apenas, necessrio fra nos consagrssemos, agora, a um estudo
especial da causa divina, visto que por essa causa temos combatido de incio,
neste longo arrazoado, e todas as concluses atingiram esse alvo supremo.
Contudo, vale enfech-las numa concluso geral. Assim como o naturalista, o
botnico, o gemetra, o lavrador, o operrio ou o poeta, depois de examinar as
particularidades de uma paisagem e galgar a colina de cujo cimo se abrange os
pontos estudados, volta-se por contemplar de conjunto a distribuio, o plano e
a beleza do panorama, assim tambm, aps o estudo particularizado das leis
da matria e da vida, apraz-nos a ele voltar e calmamente admir-lo.
Aos olhos da alma apraz embevecer-se na radiao celeste, que inunda
toda a Natureza. Aqui, j no a discusso, mas a contemplao recolhida da
luz e da vida resplandecentes na atmosfera, que brilham no cromatismo das
flores e refulgem nos seus matizes; que circulam na folhagem dos bosques e
envolvem num beijo universal os inumerveis seres palpitantes no seio da
Natureza. Depois da potncia, da sabedoria, da inteligncia, a bondade
inefvel o que se faz sentir; a universal ternura de um ser misterioso sempre,
fazendo sucederem-se na superfcie do globo as formas inumerveis de uma
vida que se perpetua por amor, e que jamais se extingue.
A correlao das foras fsicas nos mostrou a unidade de Deus, sob todas
as formas transitrias do movimento. Pela sntese, o esprito se eleva noo
de uma lei nica lei e fora universais, que valem por expresso ativa do
pensamento divino. Luz, calor, eletricidade, magnetismo, atrao, afinidade,
vida vegetal, instinto, inteligncia, tudo deriva de Deus. O sentimento do belo, a
estesia das cincias, a harmonia matemtica, a geometria, iluminam essas
foras mltiplas e lhes do o perfume do ideal. Seja qual for o prisma pelo qual
o pensador observe a Natureza, encontra uma trilha conducente a Deus
fora viva, cujas palpitaes, atravs de todas as formas, ele as sentir no
estremecer da sensitiva, como no canto matinal dos passarinhos.
Tudo nmero, correspondncia, harmonia, relao de uma causa
inteligente, agindo universal e eternamente.
Deus no , pois, como dizia Lutero, um quadro vazio, sem outra inscrio
alm da que lhe apomos. Deus , ao contrrio, a fora inteligente, universal e
invisvel, que constri sem cessar a obra da Natureza. sentindo-lhe a
214

presena eterna que compreendemos as palavras de Leibnitz: h metafsica,


geometria e moral por toda a parte bem como o velho aforismo de Plato,
que poderemos assim traduzir: Deus o gemetra que opera eternamente.
fora dos tumultos da sociedade mundana, no silncio das profundas
meditaes que a alma pode rever-se, em face da glria do invisvel, ma-
nifestada pelo visvel.
nessa visualizao da presena de Deus na Terra, que a alma se eleva
noo do verdadeiro (117). O rudo longnquo do oceano, a paisagem solitria,
as guas cujos murmrios valem sorrisos, o sono das florestas entrecortado de
anseios, suspirosos, a altivez impassvel das montanhas, tudo abrangendo de
alto, so manifestaes sensveis da fora que vela no mago de todas as
coisas. Abandonei-me, algumas vezes, a contemplar-vos, esplendores
vividos da Natureza! e sempre vos senti envoltos e banhados de inefvel
poesia! Quando meu esprito se deixava seduzir pela magia da vossa beleza,
ouvia acordes desconhecidos escapando-se do vosso concerto.
Sombras noturnas que flutuais pela encosta das montanhas, perfumes que
baixais das florestas, flores pendidas que cerrais os lbios, surdos rumores
ocenicos que nunca vos calais, calmarias profundas de noites eStreladas,
tendes-me falado de Deus, certo, com eloquncia mais ntima e mais
empolgante que todos os livros humanos! Em vs encontrei ternuras maternais,
blndcias de inocncia, e, sempre que me deixava adormecer no vosso
regao, despertava alegre e venturoso. Coloridos de esplndidos crepsculos,
deslumbramentos de clarores

(117) Bellarmin Ascencio mentis in Deum per scalas rerum creatarum.

moribundos, vises de stios ermos, que deliciosos momentos de ebriedade


no concedeis aos que vos amam! O lrio desabrocha e bebe, em xtase, a luz
que derrama dos cus! Nessas horas contemplativas, a alma transforma-se em
flor, aspirando, vida, as irradiaes celestes.
A atmosfera j no , to somente, uma mistura de gases; as plantas
deixam de ser simples agregados atmicos de carbono ou hidrognio; os
perfumes no se reduzem a molculas impalpveis e s derramados noite,
para resguardar as flores da friagem; a brisa embalsamada significa algo mais
que uma simples corrente de ar; as nuvens no representam apenas vesculas
de aquoso vapor; a Natureza no se oferece exclusivamente qual laboratrio
de qumica, ou gabinete de fsica... Antes, pelo contrrio, pressentimos em tudo
uma lei de harmonia soberana, que governa a marcha simultnea de todas as
coisas, que cerca os mais ntimos seres de uma vigilncia instintiva, que
guarda ciosamente o tesouro da vida em plenitude de pujana e que, por seu
perptuo rejuvenescimento, desdobra em potncia imutvel a fecundidade
criada. Em toda esta Natureza h uma espcie de beleza universal, que a
nossa alma respira e identifica, como se essa beleza ideal pertencesse
unicamente, ao domiclio da inteligncia.
Vsper que antecedes a noite! carro do Setentrio! Magnificncias
estelares! Misteriosas perspectivas de abismo insondvel! Que olhar, aper-
cebido de vossas munificncias, poderia fitar-vos indiferente? Quantos olhares
sonhadores se tm perdido nos vossos desertos, solides do espao!
Quantos ansiosos pensamentos tm viajado de ilha em ilha, no vosso
luminoso arquiplago! E nas horas da saudade e da melancolia, quantas
215

pupilas molhadas tm baixado sobre os olhos fitos numa estrela predileta!


que a Natureza tem nos lbios palavras doces, no olhar tesouros de
amor, e no corao sentimentos afetivos de uma preciosidade esquisita, e isso
porque ela, a Natureza, no consiste somente numa organizao corporal, mas
tambm tem alma e vida. Quem quer que s a tenha entrevisto no seu aspecto
material, atenas lhe conhece a metade. A beleza ntima das coisas to
verdadeira e positiva como a sua composio qumica. A harmonia do mundo
no menos digna de apreo do que o seu movimento mecnico. A direo
inteligente do Universo deve ser constatada ao mesmo ttulo das frmulas
matemticas. Obstinar-se em s considerar a criatura com os olhos do corpo e
jamais com os do Esprito, parar voluntriamente superfcie. Bem sabemos
que os adversrios vo objetar-nos que o Esprito no tem olhos, que um
cego de nascena e que toda afirmativa, no originria dos rgos visuais,
perde todo o valor. Mas, isto tambm no passa de um conceito arbitrrio, e,
ao demais, infundado. Temos visto que possvel, de boa f, pr em dvida as
verdades de ordem intelectual, e que em nosso prprio senso que se forma a
convico de toda e qualquer verdade.
Transporemos, portanto, sem receio, estas mofinas objees. Para ns a
Natureza um ser vivo e animado, e mais ainda um ser amigo. Onipresente,
fala-nos pelas suas cores, pelos sons e pelos movimentos; tem sorrisos para
as nossas alegrias, gemidos para as nossas tristezas, simpatia para todas as
nossas aspiraes. Filhos da Terra, nosso organismo est em consonncias
vibratrias com todos os movimentos que constituem a vida da Natureza: ele
os compreende e deles compartilhamos, de modo a nos deixarem nalma uma
repercusso profunda, a menos que o artifcio nos tenha atrofiado. Congnita
do princpio da criao, nossa alma reencontra o infinito na Natureza.
Para a cincia espiritualista, no mais se defrontam um mecanismo
automtico e um Deus retrado na sua imobilidade absoluta. Deus potncia e
ato naturais; vive na Natureza, como nele vive ela. O Esprito se faz pressentir
atravs das formas materiais, mutveis. Sim, a Natureza tem harmonias para a
alma, tem quadros para o pensamento, tem tesouros para as ambies do
Esprito e ternuras para as aspiraes do corao. Sim, ela os tem, porque no
nos estranha, no est de ns segregada e somos um com ela.
Ora, a fora viva da Natureza, essa vida mental que reside nela, essa
organizao peculiar ao destino dos seres, essa sabedoria e onipotncia no
entretenimento da criao, essa comunicao ntima de um esprito universal
entre todos os seres, que coisa, outra, poder significar seno a revelao da
existncia de Deus, a manifestao de um pensamento criador, eterno,
imenso? Que significam a faculdade eletiva das plantas, o instinto inexplicvel
dos animais, a genialidade do homem? Que ser o governo da vida terrestre,
sua direo em torno do seu foco de luz e de calor, as revolues solares, a
movimentao de mundos incontveis a gravitarem conjugados no infinito?
Que significar tudo isso, seno a demonstrao viva, imperiosa, de uma von-
tade que subordina o mundo inteiro sua potncia, como envolve as nossas
obscuridades na sua luz? Que ser o aspecto espiritual da Natureza, seno
plida radiao da beleza eterna? esplendor desconhecido, que os nossos
olhos, desviados por falsas claridades da Terra, mal podem entrever, nas horas
santas e benditas em que o divino Ser nos permite sentir sua presena.
As leis da Natureza nos tm provado que existe uma inteligncia
ordenadora. Essas leis, diz John Herschel (118), so, no somente constantes,
216

mas concordantes e inteligveis. E so fceis de apreender com o auxlio de


algumas pesquisas, mais prprias a estimular que a extinguir a curiosidade. Se
pertencssemos a outro planeta e de sbito nos

(118) On the Study of the Natural Fhilosophy.

transportssemos a um dos nossos meios sociais no intuito de observar o que


neles ocorre, ficaramos desde logo embaraados para dizer se uma tal so-
ciedade se regeria por quaisquer leis. Se chegssemos a descobrir que ela
presumia t-las, haveramos, ento, de procurar, na sua conduta e
consequncias dela decorrentes, quais poderiam ser essas leis, em que
sentido foram concebidas e no teramos, talvez, grandes dificuldades no
descobrir regras aplicveis aos casos particulares; mas, se quisssemos
generalizar, se tentssemos apreender alguns princpios salientes, a massa de
absurdos, de contradies jorrantes de todos os lados, presto nos desviaria de
um amplo exame, ou nos convenceria da inexistncia do objeto de nossa
pesquisa. Com a Natureza d-se inteiramente o contrrio. Nela no h
dissonncia nem contradies e, sim, e s, harmonia. No temos jamais de
esquecer o que soubemos uma vez. Quando as regras se generalizam, as
excees aparentes tornam-se regulares. Qualquer equvoco na sua legislao
portentosa to inaudito como um ato mal entendido.
Os grandes fatos da moderna Cincia tm, por conseguinte, transformado
a idia de Deus, apresentando-o, ao demais, sob um aspecto bem diverso do
encarado at agora. Esse aspecto ao mesmo tempo mais grandioso e mais
difcil de apreender.
E, contudo, ns podemos ao menos conceber, seno esboar, o conjunto
dessa metamorfose progressiva.
A ignorncia havia humanizado Deus e a Cincia diviniza-o se que o
pleonasmo no escandaliza os senhores gramticos.
Outrora, Deus foi homem; hoje, Deus Deus. A f do carvoeiro, ainda to
gabada, no mais a verdadeira f. O credo quia absurdum absurdo
duplicado. O Ser supremo, criado imagem do homem, hoje v apagar-se
pouco a pouco essa imagem, substituda por uma realidade sem forma. Pois a
forma, a definio; o tempo, a durao, a medida, o grau de potncia ou
atividade, a descrio, o conhecimento, no mais se aplicam a Deus e mal
comeam a ser percebidos. O prprio nome oculta uma idia incompleta e
preciso fora falar de Deus sem nome-lo. Outrora, Jpiter empunhava o raio,
Apolo conduzia o Sol, Netuno senhoreava os mares... Na idolatria dos budistas,
Deus ressuscitava um mrto sobre o tmulo de um santo, fazia falar um mudo,
ouvir um surdo, crescer um carvalho numa noite, emergir dgua um afogado...
Desvendava a um esttico as zonas do terceiro cu, imunizava do fogo, so e
salvo, um santo mrtir, transportava um pregador, num abrir e fechar de olhos,
a cem lguas de distncia, e derrogava, a cada momento, as suas prprias,
eternas leis... Ainda hoje, l no Tibet longnquo, adoram Maitreya. A mo deste
deus refreia as ondas enfurecidas, abenoa um exrcito e amaldioa o rival;
dirige as chuvas em rogativas de procisses e, qual hbil jardineiro, rega aqui,
ensombra ali, poda acol, ajusta, enxerta, combina, seleciona e mantm um
cadastro herldico de nomes e datas (119). A maioria dos crentes em Deus o
conceituam como um super-homem, alhures assentado acima das nossas
cabeas, presidindo os nossos atos. Dotado de excelente vista e no inferior
217

ouvido, mantm as rdeas do mundo e, em caso de necessidade, chama um


anjo servial e o envia a consertar qualquer pea desarranjada do seu
mecanismo. A darmos crdito s tradies do Damapadam e s inscries
dAschoka, o Buda tem um filho Bodisatva mediador assentado sua
direita, alm de uma terceira pessoa Buda Manouschi a realizao de

(119) Neste lano o Autor no justo. O nosso catolicismo de hoje


(estamos em 1939 e este livro de 1867) principalmente aqui, no Brasil,
continua a abenoar espadas e abenoar ou amaldioar governos e
revolues. Oportunista e mimetista, sempre, no h partido que lhe no
quadre ao seu deus, exceto, claro, os que acreditam em Deus e lhe
dispensam os cnones. Nota do Tradutor

Deus pelo homem. Todos eles vivem nas alturas do Nirvana eterno, rodeados
de Espritos, tronos, apstolos, mrtires, pontfices, confessores, dominaes,
potncias, magos do culto precursor, videntes da filosofia sakhya, que foram
purificados, etc.; tudo isso eternamente esquemado e graduado, segundo os
mritos de uma vida efmera.
A histria da idia de Deus mostra-nos que ela sempre foi relativa ao gru
intelectual dos povos e de seus legisladores, correspondendo aos movimentos
civilizadores, poesia dos climas, s raas, florescncia de diferentes povos;
enfim, aos progressos espirituais da Humanidade. Descendo pelo curso dos
tempos, assistimos sucessivamente aos desfalecimentoS e tergiversaes
dessa idia imperecvel, que, s vezes fulgurante e outras vezes eclipsada,
pode, todavia, ser identificada sempre, nos fastos da Humanidade. Notamos,
ento, que esta idia relativa difere do absoluto nico, sem o qual impossvel,
hoje, conceber-Se a personalidade divina.
Esse absoluto importa afirm-lo nestas ltimas pginas absoluto
mesmo e ns no o conhecemos. Ele no o Varouna dos rias, o Elim dos
Egpcios, o Tien dos Chineses, o Ahoura-Mazda dos Persas, o Brama ou Buda
dos Indianos, o Jeov dos Hebreus, o Zus dos Gregos, o Jpiter dos Latinos,
nem o que os pintores da Idade Mdio entronizaram na cspide dos cus.
Nosso Deus um Deus ainda desconhecido, qual o era para os Vedas e
para os sbios do Arepago de Atenas. A noo de alguns eminentes pais da
Igreja crist e de alguns esclarecidos telogos modernos, aproxima-se, mais
que outras quaisquer, desse Deus desconhecido. Mas, como compreend-lo,
quando nenhum Esprito criado, nem mesmo os anjos (se que existem)
poderiam faz-lo?
No cabe aqui entreter-nos com as moradas imaginadas para a pessoa de
Deus. No abordaremos o potico cu dos gregos, povoado de figuras ideais,
onde os deuses sempre jovens e belos se divertem, combatem e gozam com o
tomar parte nos destinos humanos. No falaremos do sombrio e iracundo
Jeov dos Judeus, que pune at terceira ou quarta gerao. Nada diremos,
to-pouco, do cu dos Orientais, que reserva aos crentes numerosas huris,
num ambiente de beleza e delcias eternas.
Omitiremos o cu dos Groelandeses, no qual a maior ventura consiste
numa grande quantidade de peixes e de leo de baleia, bem como o cu do In-
diano caador, que se paga com abundncia de caa, e o do Germano que, no
Walhalla, faz do crnio do inimigo a sua taa de hidromel.
Se o simples bom senso humano no pode, jamais, fazer uma idia pura e
218

abstrata do absoluto, as tentativas da Filosofia, por sua vez, pouco ou mesmo


nada tm conseguido. Quem se desse ao trabalho de catalogar as idias
acerca de Deus, do absoluto ou daquilo a que os filsofos chamam alma do
mundo, ficaria pasmo da quantidade e variedade de sistemas que, desde a
origem dos tempos histricos, at os nossos dias, a despeito dos progressos
cientficos, se imaginaram por oferecer poucos raciocnios novos, e raramente
razoveis.
Dizia Goethe (120) que os homens tratam Deus como se o Ente supremo,
o Ser incompreensvel, fsse a eles semelhante, pois de outro modo no
diriam, o Senhor Deus, o nosso, o bom Deus.
Para eles e sobretudo para a gente beata, que o tem sempre nos lbios,
Deus torna-se um simples vocbulo, uma expresso habitual, desligada de
qualquer sentido. Entretanto, se estivessem compenetrados da grandeza de
Deus, silenciariam e, respeitosamente, se abateriam de o vocalizar.
Wirchow no est com a verdade quando diz que o homem nada pode
conceber do que est fora

(120) Entretiens de Goethe et dEckemann, 1, 8.

dele, e que tudo que est fora do homem transcendental.


O homem se retrata nos seus Deuses, ainda Schiller quem o diz.
A natureza de Deus, bem como a sua prpria existncia, est, em nosso
sculo, no mesmo p em que se encontrava ao alvorecer da Filosofia. J se
pode observar, no curso geral desta obra, que o nosso fim , hoje, o mesmo
que Xenfanes colimava, seiscentos anos antes da nossa era; isto , opor uma
convico pura e racional aos dois erros capitais, que so o atesmo absoluto e
o antropomorfismo. H muito tempo que este filsofo (121), fundador da escola
de Ela, protestou judiciosamente contra essas duas iluses funestas. Parece
que os homens que criaram os deuses, atribuindo-lhes as suas paixes, a
sua voz, a sua fisionomia (122). Se os bois e os lees tivessem mos, se
soubessem pintar e trabalhar com as mos, como fazem os homens, os
cavalos utilizariam cavalos e os bois aproveitariam os bois para representar
seus deuses, dando-lhes corpo idntico ao seu. Ele refutou as supersties
que consistiam em atribuir aos deuses a prpria cor, como, por exemplo, a dos
Etopes que, em serem negros de nariz chato, assim representavam os seus
deuses; os Trcios, que lhes emprestavam olhos azuis e cabelos ruivos, e os
Medas e Persas, que no fugiam regra.

H um s Deus que a tudo mais supera,


Aos deuses no somente, como aos homens,
E que aos mortais em nada se assemelha,
Nem na forma exterior e nem na essncia.

Clemente de Alexandria, que nos guardou estes versos, muito bem os


caracteriza quando diz que

(121) V. Cln. Alex. Strom. V. Eusbe. Proep. Evang. 13.


(122) Theodor De Affect. Curat, 3.

Xenfanes a predica a unidade e a espiritualidade divina. Onde encontrar num


219

filsofo jnio, antes de Anaxgoras, um pensamento como este: Sem fatigar-


se, ele tudo dirige pela potncia intelectual.
Arstoto, Simplcius e Thofrasto conservaram-nos a estrutura da
argumentao pela qual Xenfanes demonstrava que Deus no tivera princpio
nem poderia ter nascido. Impossvel diz V. Cousin (123) no
experimentar uma profunda, quase solene impresso, diante desses argumen-
tos, quando se diz que eles representam, ao menos para a Grcia, a primeira
tentativa do esprito humano para analisar sua f e converter suas crenas em
teorias.
natural, acrescenta o filsofo ecltico, quando temos a noo da vida e
desta existncia to grandiosa e variada, da qual compartilhamos; quando
consideramos a extenso deste mundo visvel, a par da harmonia que nele
reina e da beleza que reluz em todas as suas partes; quando nos detemos
onde se detm os nossos sentidos imaginativos; natural, repetimos, concluir
que os seres componentes deste mundo so os nicos que existem, que este
grande todo, to harmonioso e uno, o verdadeiro objeto e a ltima aplicao
do conceito de unidade, e que, numa palavra, esse tudo Deus. Exprima-se
esta tirada em lngua grega e a teremos o pantesmo, que a concepo do
todo como Deus nico. Por outro lado, quando descobrimos que a unidade
aparente do todo no seno uma harmonia que comporta variedade infinita,
assemelhando-se a uma guerra e a uma revoluo permanentes, ento, j no
natural destacar do mundo o conceito de unidade, que indestrutvel em ns,
e, assim destacada do modelo imperfeito deste mundo visvel, lig-la a um ser
invisvel, tipo sagrado da unidade absoluta, alm da qual nada mais h que
conceber e investigar.

(123) Fragments de Philosophie Ancienne.

Estas duas solues exclusivistas do problema fundamental, sempre


vieram tona em todas as grandes pocas da histria da Filosofia, alterada,
fato, com o progresso dos tempos, mas no fundo sempre idnticas, de modo a
poder dizer-se que a histria do seu perptuo litgio com alternativas de
predomnio de uma ou de outra foi, at o presente, a histria mesma da
Filosofia. E justamente por estarem no mago do pensamento, que essas
duas solues se reproduzem constantemente, incapazes de se separarem e
de se satisfazerem.
Pela documentao de Arstoto, vemos que a grande preocupao de
Xenfanes era no identificar Deus com o mundo, sem contudo conceitu-lo
uma abstrao. A idia de um ser infinito, fora do movimento, parecia-lhe uma
idia puramente negativa, e, por isso, receava aplic-la a Deus. Ao mesmo
tempo, como pitagrico, repugnava-lhe fazer dele um ser finito, mbil e
nicamente dotado de atributos mundanos. Simplcius lembrou dois versos do
filsofo, nos quais parece admitir a imobilidade do primeiro princpio: Ele
permanece imutvel em si mesmo, no se desloca de um lugar para outro, de
vez que idntico a si mesmo. Xenfanes preocupou-se principalmente com o
mundo exterior, mas, no estranho s especulaes pitagricas, soube
entrevisar a inteligncia, a harmonia e a unidade deste mundo, chamando
Deus a essa unidade, tal como a entrevia e sentia, isto : em relao ntima
com o mundo, sem negar que fsse essencialmente distinta, mas to-pouco
afirmando que o fsse.
220

Todos os historigrafos concordam em atribuir a Xenfanes a inveno do


cepticismo universal, ao mesmo tempo que o acusam de pantesmo. Valer,
talvez, frisar aqui a extravagncia dessa forma de acusao, que comea por
irrogar a um homem o seu ferrenho dogmatismo, e acaba censurando-o por
haver introduzido na Filosofia a doutrina da incompreensibilidade de todas as
coisas. Sxtus cita em apoio desta opinio um texto de Xenfanes:
Nenhum homem soube nem saber nada de certo a respeito dos deuses e
de tudo quanto falo. E o que melhor fala nada sabe, e o que predomina em
tudo a opinio.
O prprio filsofo, tambm ele, no se explica de um modo claro. Pois no
diz tratar-se daqueles deuses aos quais sabemos que ele movia uma guerra
encarniada? O lao que o prendia s duas escolas de que fazia parte era. o
cepticismo, e nessas escolas vigorava, com frmula convencionada, que a
crena nos deuses era extra-cientfica. Hoje, estamos na mesma situao: h
deuses humanos a desmascarar e um Deus verdadeiro a revelar.
Hoje ainda, como no tempo de Xenfanes, importa combater essas
tendncias do homem para tudo referir a si, e para transportar as suas idias
imperfeitas ao domnio do Criador. A cincia iconociasta derruba as nossas
imagens pueris. A Cincia, verdade, no se ocupa diretamente com as
nossas crenas; ningum duvida tenha ela outros motivos de estudo menos
incompreensveis e mais positivos. Mas, por suas conquistas no plano fsico e
por seu esprito de anlise, ela modifica, necessriamente, a nossa forma de
ver e no mais podemos conciliar o carter do esprito cientfico com essas
encarnaes de idias pueris e indignas do absoluto. Nisso consiste,
precisamente, a sua tendncia geral. E aqui, como se d em relao s causas
finais, temos a tristeza de observar que um certo nmero de cientistas,
reconhecendo os erros humanos, dos quais acabmos de assinalar alguns
tipos, abandonaram ao mesmo tempo os erros e a crena. Como se a iluso e
a incapacidade da nossa penria implicassem a queda da causa primria, que
elas mesmas desfiguraram! Ao demais, pois que a oportunidade se apresenta,
ajuntemos que este exagero de cepticismo no deve ser rigorosamente
imputado a um deliberado propsito dos que caram to baixo, de vez que a
isso foram compelidos por uma espcie de reao aos exageros da parte
contrria. A principal fora do atesmo provm, indubitvelmente, dos excessos
mesmos do Espiritualismo, a desafiarem uma inevitvel quo legtima correo.
Como tm tratado a Natureza os imprudentes espiritualistas? Admitiram uma
eternidade inativa, uma criao espontnea do Universo: no vcuo infinito, uma
vontade arbitrria estabelece a sucesso, a durao e a extenso. O mundo
no radica no passado e aparece-nos como puro acidente. Mas, no s: o
espiritualismo exclusivista comporta concepes ainda mais temerrias, tais,
como a negao da matria, que j entrevimos na primeira parte (pgina 81.)
Berkley (124) emitiu estas duas afirmaes:
H verdades to perto de ns e to fceis de alcanar, que basta abrir os
olhos para as perceber. Entre as mais importantes, parece-me encontrar-se a
de que a luminosa abbada celeste, a Terra e quanto nela se contm; tudo, em
suma, que compe este Universo esplndido, no tem realidade fora do nosso
Esprito. Confessemos que levar o paradoxo a esse ponto provocar o
excesso contrrio, que no demora a rebatida violenta sob o prisma do
atesmo. Fanticos outros h, que, no s acreditam firmemente nos mais
clamorosos absurdos, como se presumem em relao direta com o prprio
221

Deus e se conferem, por virtude dessa mesma graa, um privilgio de


Infalibilidade. Esses Espritos pecos imaginam, ingnuamente, que o fantasma
que eles forjaram o verdadeiro Deus, criador do cu e da Terra, e, ao mnimo
pretexto, averbam doutoralmente, de ateus e mpios, quantos com eles no
comungam.
Em os ouvindo, preciso acreditar nas suas pataratas, ou de tudo descrer.
No h meios termos. Todo Esprito que se no veste pelo seu figurino
antema. Chegam mesmo a declarar que preferem o mais obstinado incrdulo
ao crente que

(124) Princ. Conn. Hum.

diverge das suas opinies. No sabem distinguir o formal do essencial. Se, por
exemplo, escrevermos esta profisso de f: cremos de todo o corao na
existncia de Deus, mas, no conhecemos o Ser misterioso, assim
denominado e julgamos impossvel que o homem consiga compreend-lo
estamos certo de que os zelotes da religio e da moral vo de pronto gritar
blasfmia, iniquidade! e interditar s suas ovelhas a leitura deste livro.
No nos detivesse aqui um escrpulo todo pessoal e poderamos, assim,
de antemo citar o ttulo dos jornais e o nome dos escritores que nos vo
increpar de blasfemo. Espritos assim tacanhos, encontramo-los em todas as
confisses e. em todos os dogmas; nos catlicos e protestantes da Irlanda ou
da Alemanha, como nos judeus ou nos muulmanos do Cairo e de
Constantinopla. Toda bandeira tem os seus imprudentes.
Todavia, a investigao imparcial da verdade exclui de seus domnios os
exageros do fanatismo, tanto quanto os do cepticismo. Ela prossegue na sua
tarefa laboriosa e fecunda, e expe sincera-mente o ensinamento recolhido das
suas descobertas sucessivas.
Dos progressos gerais da Cincia resulta, dizamos, que a idia comum,
acerca de Deus, est atrasada e tornou-se at mesquinha e inaceitvel, face
desses enormes progressos.
A medida que se amplia o conhecimento da Natureza, faz-se necessrio
desenvolver a concepo do seu Autor. So noes paralelas, que participam,
necessariamente, dos mesmos movimentos. Assim como nada existe de
absoluto em os nossos conhecimentos da criao, assim, tambm, nada
absoluto podemos idealizar sobre o Criador. E a Cincia, longe de destruir a
velha idia da existncia de Deus, desenvolve-a e torna-a gradualmente menos
indigna da majestade que lhe apangio.
Assim, no mais um ser humano, no mais uma personagem real que a
inteligncia atilada lobriga na cimeira da criao. Nossos mais altos conceitos
de hierarquia, de soberania, de cetros e tronos, perderam toda a capacidade de
comparao; os mais nobres sentimentos de santidade, grandeza, poder,
bondade, justia, abatem-se estreis perante o ser desconhecido. Quando
pronunciamos a palavra infinito, queremos referir um atributo cujo carter
ignoramos totalmente. A soma integral dos nossos pensamentos menos que
zero no cmputo do absoluto. Comparados realidade desse absoluto, esto
dele mais infinitamente distantes, do que estariam dos nossos os de um msero
peixe nas profundezas ocenicas. nessa altura que as revelaes da Cincia
nos convidam a crer.
Dilatando-se a esfera de nossa contemplao e espalhando uma luz mais
222

instrutiva sobre a composio geral do Universo, tambm avulta e aclara-se-


nos o senso ntimo da divindade. Ora, ainda que a Cincia no nos houvera
prestado outros servios, ainda assim, enorme seria a sua influncia, visto que,
ensejando o desmoronamento dos velhos andaimes para substitui-los e
entremostrar o edifcio ideal da verdade, ela desloca o eixo do mundo e renova
a superfcie do terreno intelectual. ao esprito cientfico que se aplica
doravante o Renovabis faciem terrae.
Passando dos domnios dos seres criados para os do Esprito puro, a
noo de Deus sofre uma metamorfose correlata noo das foras da Natu-
reza. Estas foras no so mais elos materiais, nem mesmo fludicos. Deus
aparece-nos sob a idia de um Esprito permanente e residente no mago das
coisas. Deixa de ser o soberano a governar das alturas celestes, para ser a lei
invisvel dos fenmenos. No habita um Paraso povoado de anjos e de eleitos
e sim a amplido infinita, repleta da sua presena, ubiqidade imvel,
totalizada em cada ponto do Espao, em cada instante do tempo, ou, por
melhor dizer eternamente infinita e sobranceira a tempo, espao e ordem de
sucesso, qualquer Passado e futuro existem para ns, seres sujeitos a. tempo
e medida, no para o Eterno. O espao oferece-nos dimenses variadas e o
Infinito, no. No so afirmaes metafsicas de cuja solidez possamos
suspeitar, mas, antes, dedues inevitveis e resultantes dos prprios dados
da Cincia sobre a relatividade dos movimentos e a universalidade das leis.
A ordem universal reinante na Natureza, a inteligncia revelada na
construo dos seres, a sabedoria espalhada em todo o conjunto, qual uma
aurora luminosa e, sobretudo, a universidade do plano geral regida pela
harmoniosa lei da perfectibilidade constante, apresenta-nos, j agora, a oni-
potncia divina como sustentculo invisvel da Natureza, lei organizadora, fora
essencial, da qual derivam todas as foras fsicas, como outras tantas
manifestaes particulares suas.
Podemos, assim, encarar Deus como um pensamento imanente, residente
inatacvel na essncia mesma das coisas, sustentando e organizando, ele
mesmo, as mais humildes criaturas, tanto quanto os mais vastos sistemas
solares, de vez que as leis da Natureza no mais seriam concebveis fora
desse pensamento, antes so dele eterna expresso.
Esta convico, adquirimo-la no exame e anlise dos fenmenos da
Natureza. Para ns, Deus no est fora do mundo, nem a sua personalidade
se confunde na ordem fsica das coisas. Ele o pensamento incognoscvel, do
qual as leis diretivas do mundo representam uma forma de atividade.
Tentar a definio desse pensamento e explicar o seu processo operatrio,
pretender discutir seus atributos ou procurar os seus caracteres, resolver o
abismo infinito na esperana de poder satisfazer nossa avidez de
conhecimento, seria, ao nosso ver, empresa no apenas insensata, mas at
ridcula. Um tal ensaio demonstraria que o seu autor no compreendera a
distino essencial que separa o infinito do finito. Entre estes dois termos h
uma distncia que ponte alguma poderia cobrir. Deus , por sua natureza
mesma, incognoscvel e incompreensvel para ns.
No preciso mergulhar no labirinto do desconhecido para chegarmos
certeza da existncia de Deus. Em o fazer, talvez houvesse mesmo algum
perigo, se se obstinassem a viver nas sombras de um mistrio impenetrvel.
Certo, j dificlimo inferir do Ser supremo a noo cientfica que aqui
deixamos entrever. Os prprios Espritos mais ponderados experimentam
223

ridos obstculos para assim penetrar no desconhecido pelo conhecido, no


invisvel pelo visvel, na lei pensada pela lei manifestada, na fora original pela
fora sensvel. E ns estamos to intimamente convencidos do trabalho
necessrio ao intelecto humano para chegar noo filosfica do Deus da
Natureza, que nos abstivemos de profundar mais a sua concepo, temendo
que uma forada contenso de Esprito pudesse empanar a prpria idia.
Concepo s acessvel, portanto, s almas que compreendem a importncia e
o interesse destes problemas, sonhando, nas horas de solitude, com a
revoluo de Deus pela cincia da Natureza e descendo ou elevando-se (em
Astronomia a mesma coisa) atravs do velrio das aparncias corpreas, at
causa virtual que tudo movimenta em plano de ordem e harmonia, tudo
dispondo consoante seu peso e medida.
Esta concepo do pensamento eterno poder parecer racional (assim o
esperamos) a quantos estejam habituados ao mtodo das cincias positivas e
no se tenham transviado nelas, a ponto de obliterar a noo de causa
primria.
prognie dos que mtuamente se incendiaram nos tempos de Joo Huss
e de Miguel Cervet, a nossa concepo h-de parecer hertica. Eles nos
inquinaro de pantesta, sem querer compreender que no identificamos a
personalidade divina com as transformaes da matria. Ho-de declarar que
pretendemos que tudo Deus e que todo o mundo se governa por si mesmo.
Outros, tero a fantasia de nos qualificar de ateu e corruptor da moral evan-
glica, incapazes, que so, de compreender a adorao a outro Deus que no
o seu.
Uma terceira categoria, ainda mais radicalista e exagerada, tratar de
malfeitores a quantos se deixarem levar pela idia acima formulada. Mas,
aonde iramos parar se houvssemos de revidar a toda essa gente? Na
realidade, toda essa atoarda s significa uma coisa: que estamos caminhando
para a frente.
Nesta, como nas obras precedentes, os leitores podero notar a voluntria
ausncia de nomenclaturas escolsticas. Houve quem nos chamasse dina-
mista e quem fsse alm, dizendo-nos duo-dinamista. Reconhecem-nos, uns,
tendncias para o mais evidente animismo, enquanto outros nos rotulam de
organicista. Eis, agora, o vitalismo, que nos convida a declarar francamente se
a ele temos aderido. A maioria acusa-nos de ecletismo. Deixamos de parte os
ttulos de pantesta e testa em contradio aos de materialista e ateu, que nos
foram irrogados de campos opostos. A posio de um Esprito que busca
unicamente a verdade, s pode ser a de um grande isolado. Ele expe-se a ser
tratado como protestante pelos catlicos, e como romancista pelos reformados;
os cristos tacham-no de hertico e os filsofos averbam-no de cristo. Ao
critrio de cada qual, ele no pode deixar de pertencer a um sistema, a uma
seita, a uma escola.
Ora, francamente declaramos; a ningum pertencemos.
Porque nos privarmos de recolher o bom e combater o mau onde quer que os
encontremos? Porque nos convidarem a respeitar o erro pela s razo de sua
antigidade? Porque pretender encerrar-nos num crculo de antemo
preconcebido? Que significam barreiras, dogmas, bandeiras que tais? Iluso e
nada mais. Sistemas? jamais. Apenas, e s apenas, independncia absoluta
na investigao e culto da verdade.
O que tem prejudicado a um grande nmero de Espritos essa propenso
224

ou essa condenao para encarrilar-se numa senda. Certo, h necessidade de


seguir um mtodo pessoal, apoiar-se em verdades tradicionalmente
reconhecidas, conhecer o objeto positivo dos nossos estudos e trabalhar sem
esmorecimentos na conquista do saber. Ns, porm, no nos revestimos de
ouropis fictcios, nem ocultamos o nosso cu sob uma bandeira. Estudamos
pouco a pouco a Natureza, atravs de todas as suas formas, em todos os seus
aspectos, exprimindo com sinceridade o resultado do nosso estudo, sem nos
preocuparmos com as palavras em disputa de pontos e vrgulas. A andorinha
que volta aos penates na estao prpria, singra livremente a amplido do
Espao...
Que sucederia se a obrigssemos a torcer as asas, a baixar os olhos, a
levar na pata um galhardete e a rebocar consigo uma fileira de bales?
A doutrina aqui professada pode considerar-se um atesmo ontolgico, o
esforo do homem para conhecer o Ente absoluto. uma forma necessria,
imposta pelo tesmo racional. O argumento extrado da Teologia prova um
Deus universal, autor de todas as coisas e o argumento da Ontologia prova a
infinidade de Deus. No podemos admitir um sem outro, quaisquer que sejam
as dificuldades para conciliar as respectivas concluses. Essas dificuldades
decorrem da grandeza do assunto, e ainda que no podendo ir alm do
alcance da nossa vista, no razo para fechar os olhos ao que se torna
evidente. Trocando o vocbulo pantesmo por tesmo, confessamos, com um
pastor anglicano (125), que o tesmo , por toda parte, reconhecido como
teologia da razo, razo que poder

(125) Reverendo John Hunt An Essai on Pantheism, 1866.

ser impotente, mas, em definitiva, a nica que possumos.


O tesmo a filosofia da religio, de todas as religies, alvo da verdade.
Preciso se nos faz pensar, ou deixar de pensar e raciocinar acerca de todos os
problemas da criao. Podem as criaturas deter-se no smbolo; Igrejas e seitas
podem lutar e tolher a meio caminho as conscincias, apelando para Escrituras
ou tentando fixar limites ao pensamento religioso, mas, Deus, esse, no os tem
fixado.
A razo humana, todavia, incoercvel e inevitvel no seu progredir, como no
seu divino amor liberdade, quebra todas as cadeias e vence todos os
entraves.
Se, ao invs de tomar por objeto de estudo Deus, na Natureza,
preferssemos aqui apresentar Deus segundo os homens, competiria discutir,
agora, a idia que os filsofos contemporneos formularam, a respeito do Ente
supremo. E seria, na verdade, um exame digno do maior interesse. Mas, os
limites sempre crescentes desta obra nos foram a restringir a argumentao
ao seu objetivo precpuo. Nosso dever, portanto, aqui juntar simplesmente o
esboo das figuras em que se fixaram os nossos pensadores, para representar
a personificao divina.
A opinio que proclama a identidade substancial de Deus com o mundo e
que recentemente tem tido uma revivescncia favorvel, no passa de
pantesmo absoluto, na sua forma simples e ntegra. Quaisquer que sejam as
palavras com que o expressem, um esprito judicioso jamais se iludiria. Se
Deus e o mundo no so mais que um mesmo e nico ser, Deus no existe.
Outra concepo baseada na precedente, porm, elevada a um grau de
225

extrema sutileza, a do Deus-ideal, a afirmar que Deus e o mundo so


substancial, mas no logicamente idnticos. Deus seria, assim, a idia do
mundo, para que o mundo fsse a realidade de Deus. Esse Deus que um
filsofo nos inculca relegado em seu trono, em plenitude de eternidade
silenciosa e vazia, no tem outra realidade que no a idia, nem trono outro
alm do Esprito. Deus, a, separa-se do mundo, mediante uma operao
intelectual do homem.
um ideal criado pela lgica. Pensando em Deus, crimo-lo. No existisse
o homem e Deus to-pouco existiria.
Assim, com esta hiptese, o Deus real, idntico a mundo, no Deus, e o
Deus ideal, distinto do mundo, em realidade no existe.
j de si, como vemos, uma teoria alambicada. A que goza agora de maior
conceito, para uma certa categoria de Espritos convencidos de sua
superioridade, , porm, a que reverencia com a maior polidez o Deus vulgar,
pessoal e humano, que venera os grandes princpios da Moral, da Filosofia e
da Esttica, declarando, todavia, que Deus, tal como o Bem, o Belo, a Verdade,
ainda no existem, mas esto bica. Kant, na Crtica da Razo Pura,
demonstrou que o homem est invencivelmente disposto a supor reais os
objetos de sua crena, sendo estes embora puramente subjetivos. Hgel
retomou a grande mxima do velho Protgoras, que diz ser o homem a
medida de todas as coisas, e ensinou que o indivduo tende a erigir-se em
princpio absoluto, reportando tudo a si, mostrando aos clarividentes
Germanos, de olhar prevenido nesse sentido, a idia a desenvolver-se no
Universo. A escola a que nos referimos, atualmente representada por Vacherot,
Renan, Taine, Scherer e talvez Saint-Beuve, ensina o desenvolvimento da idia
na Natureza, o futuro universal. O Universo caminha para a perfeio, revelia
de qualquer direo inteligente. Deus um filsofo sem sabedoria, inferior
mesmo ao heri de Sedan, visto que no se conhece a si mesmo e no tem
existncia pessoal. simplesmente Divino; portanto, uma qualidade e no um
ser. Nem h uma verdade absoluta, mas nuanas e metamorfoses. O pensador
que contempla esse vago progresso o mais ditoso e o mais santo dos
homens. O Sr. Caro definiu bem esta religio, dizendo-a a alucinao do Divino
ou o quietismo cientfico. A Cincia, porm, no admite semelhante quietismo,
nem uma tal alucinao. uma hiptese que se desvanece diante da crtica
severa. J evidenciamos: a tendncia geral e progressiva do tomo para a
mnada animada e desta para o homem, no se pode explicar sem a
existncia de um pensamento diretor e, em todos os casos, bem mais difcil de
aceitar que o do prprio Deus.
Uma quarta escola a que se intitula positivista e que resolveu fato
virgem pela primeira vez, construir uma religio atia, engendrando uma
nova classificao dos conhecimentos humanos, fundada na observao pura
e isenta de toda e qualquer investigao causal.
Mau grado ao seu sistema, algo vaidoso, de eliminao e negao, essa
escola no prescindiu de cultuar um Deus; a Humanidade e cujo profeta
Augusto Comte. um Deus que tem altares, culto, sacerdotes (tanto verdade
que os extremos se tocam), calendrio, festividades. O oramento de
antemo regulado, cabendo aos vigrios seis mil e aos curas doze mil francos.
O gro-sacerdote, que no caso o Sr. Comte, tem sessenta mil francos, etc.
Aqui, no h outro Deus seno a Humanidade.
Essas teorias, para os espritos afeitos a especulaes metafsicas, ainda
226

guardam um aspecto compreensvel. Outros h que, sublimados e quin-


tessenciados, resolvem o pantesmo, numa espcie de vapor transparente,
elevam a metfora a um tal ponto que Deus deixa completamente de existir,
para que s domine a sua metfora transcendente.
No acume das coisas, nos pncaros do ter luminoso e inacessvel,
pronuncia-se o axioma eterno e a repercusso prolongada desta frmula
criadora compe, por suas ondulaes inexaurveis, a imensidade do Universo.
Todas as sries de coisas provm dela, religadas pelos divinos anis de urea
cadeia. Certo, seria difcil imaginar como este misterioso axioma pode extrair
de sua abstrao o mundo real e como, ondeando no seu vcuo eterno, cria e
aciona as leis gerais do mundo. Ao nosso ver, quando acusamos a teologia
catlica de haver tirado o mundo do nada, no adianta a troca, substituindo um
milagre pelo outro.
A hiptese do axioma eterno mais que pantesta, tem mais jus ao ttulo
de atia, e podemos exorn-la com o qualificativo de atesmo filosfico.
poderanlos, ainda, ajuntar-lhe aqui duas outras formas, quais as de tesmo
cosmolgico e atesmo fisiolgico.
O primeiro, consiste em substituir as palavras do apstolo pelo seguinte
versculo: no princpio era o tomo, e o tomo era de si mesmo, e o tomo o
gerador do mundo. O segundo, consiste em substituir a direo de uma causa
inteligente por foras naturais inconscientes. Estas duas espcies de atesmo,
temo-las alternativamente evidenciado no curso desta obra, e, com o haver
feito justia s suas pretenses, dispensamo-nos de as reconsiderar.
Por fim, vejamos o atesmo absoluto, que se afirma quadradamente, sem
pestanejar, e vai at blasfmia. Eis um exemplo:
A anlise metafsica reduziu a nada o velho dogma. Reduzindo Deus a
entidade incondicionada, demonstrou-o impossvel; provou que os seus atri-
butos so os mesmos do nosso ser... Com que direito me viriam agora dizer
seja santo porque eu o sou? Mentiroso! dir-lhe-ia eu Deus imbecil, teu
reino findou, procura outras vtimas entre os animais... Se que Sat existe, o
Sat s tu. Outrora, podias triunfar, mas hoje, eis-te destronado. Teu nome que
foi, por tanto tempo, a ltima palavra do sbio, a sano do juiz, a fora do
prncipe, a esperana do pobre, o refgio do pecador repeso; esse nome
Intransmissvel, inalienvel, de agora em diante est fadado ao desprezo, ao
antema, ao apupo dos homens.
Porque Deus asneira e covardia, hipocrisia e mentira, misria e tirania; ,
em suma, o mal. Enquanto a Humanidade se prosternar diante de um altar, a
Humanidade ser rproba. Retira-te de mim, pois hoje, curado do teu temor e
feito sbio, eu juro, de mos levantadas para o cu, que no passas de
carrasco da minha razo, espectro da minha conscincia! (126)
Esta clera nada tem de cientfica, salvo, talvez, do ponto de vista mdico,
em relao aos cuidados que reclama a alienao mental. Presumimos que os
nossos argumentos fizeram justia a essa negao absoluta de pensamentos,
na Natureza.
De resto, a que se reduz a negao materialista? Buscando o mago das
coisas, percebemos logo que essas negaes no podem ser to abso-
lutamente negativas quanto o pretendem, O insensato no o ser jamais
impunemente e no to fcil, quanto possa parecer, uma convico profunda
no atesmo. Na maioria dos casos, o que ocorre o deslocamento da questo
e nada mais. Em vez de chamar Deus direo das foras que regem o
227

mundo, os convencidos de atesmo deixam de o nomear, e, em vez de atribuir


a um ser inteligente a inteligncia dessas foras, outorgam-na prpria
matria. Removem, assim, mas no resolvem, o problema, pois os fatos
continuam irrevogveis. Negam a Deus, mas no podem negar a fora.
Apenas, em lugar de proclamarem a soberania dessa fora, consideram-na
escrava da matria inerte. Nisto reside todo o n da questo, n que ainda no
foi desatado pelos materialistas nem pelos espiritualistas, visto que a
observao

(126) Proudhon Systme des Contradictions Economiques, ou


Philosophie de la Misre.

direta da retina humana no vai at l. A diferena principal que os divide no


discrime, est em que os primeiros no explicam a criao, nem o plano, nem a
conservao da Natureza, enquanto que os segundos o fazem plausivelmente.
Consideradas como duas hipteses, as duas doutrinas contrrias no se
equivalem, e todo o homem sincero h-de inclinar-se sempre para a que
admite um Criador. Porque esta , no s mais completa, como mais franca.
Todas as propriedades instintivas ou intelectuais que os nossos
adversrios no podem deixar de atribuir matria para explicar a ao desta,
sua tendncia progressiva, seu mtodo selectivo, desde a formao do vegetal
humilde formao de um crebro humano, so atributos que eles extraem do
Ignoto que ns denominamos Deus, e que eles homenageiam chamando-lhe
matria. Mas, em abstrairem do mundo a idia de ordem, verdade, beleza,
perfeio, harmonia espiritual e corporal, eles arrebatam ao mundo a sua alma
e a sua vida. Ns, porm, no vemos a vantagem de substituir um ser vivo por
um cadver. Seu Universo assemelha-se aos enforcados, com os quais
fizemos experincias eltricas, h algum tempo. Eles como que.
ressuscitavam, aparentemente, graas aplicao da eletricidade ao sistema
nervoso, que lhes movimentava todo o corpo.
Gesticulavam, agitavam braos e pernas, como quem acordasse; abriam
os olhos e a boca num perfeito simulacro de vida... Ora, fazendo circular no
organismo universal as foras pelas quais substituem a genuna vida, os ateus
hodiernos oferecem-nos um simulacro, no qual esto obrigados a simular a
vida que abstraem. Sob este aspecto, uma questo de palavras. Para ns,
um cadver sempre cadver, mesmo que esteja eletrizado. Emprestando
matria atributos s cabveis fora suprema, eles reduzem o Universo a um
estado lastimoso. Se Deus deixasse ele existir um momento, toda a vida
universal ficaria suspensa. Seria curioso ver como esses bravos materialistas
ressuscitariam e fariam circular uma vida facticia no corpo colossal de que
somos, eles e ns, nfimos parasitas.
Depois de haver visualizado a ordem universal, chegamos a confessar,
levados por uma evidncia irresistvel, que, para uma criatura racional, o
cmulo do contra-senso supor que exista a razo. Parece-nos absurdo integral
a crena de que o Esprito pudesse surgir no crebro humano e manifestar-se
nas leis do Universo, se no existisse de toda a eternidade. Nem sempre h
que desdenhar os telogos, e neste lano o pregador da Notre-Dame de Paris,
parece-nos aplicar o seu talento na defesa da verdade. A fora cega, diz o
Padre Flix, produzindo a harmonia csmica e levando-a aos ltimos
desdobros, at o aparecimento do ser pensante... Mas, santo Deus! que
228

vamos fazer da nossa razo se doravante nos foram a admitir uma tal
reviravolta de idias e perverso de linguagem? Como admitir uma fora
ininteligente dando o que no tem, nem pode ter, isto inteligncia? Como
poderiam tais foras, ininteligentes e cegas, arrastando-se umas por outras,
entrosando-se num mecanismo incompreensvel, chegar a produzir, ao termo
de elaboraes espontneas, o pensamento, tal como a flor que desabrocha e
se balana na ponta do hastil?
Pois qu! Ser possvel que o vosso critrio filosfico possa tomar a srio a
hiptese ridiculamente metafsica da pr-existncia de uma ordem universal,
sem que houvesse um pensamento para conceb-la, uma inteligncia para
compreend-la, um olhar para contempl-la e uma alma para am-la? Pois
qu! Ser essa Natureza, assim cega, inconsciente, escravizada, sem olhos de
ver nem corao de amar, que vai, num silncio eterno, tecendo a malha divina
de tudo o que existe? Temo-la ento, a cega Natureza originando sem o
querer, nem saber, uma harmonia, at que finalmente, da base ao cimo do
cosmos, como filho da cega fatalidade, surja o homem para ouvir a harmonia
que no fz, e tomar conhecimento dessa ordem que no procede dele, porque
lhe precede!
No mnimo, h no Universo a razo espiritual dos que se elevaram
descoberta das leis que o regem e estas, por sua vez, existem, realmente. Se
assim no fora, todo o edifcio da razo humana ruiria pela base. Os processos
de induo, que nos levam da anlise sntese, devem ter, com efeito,
objetivos reais de aplicao, sem o que s podemos raciocinar no vcuo.
Generalizar uma lei parcialmente observada, acreditar simplesmente que o Sol
se levantar amanh porque se levantou ontem; ou que o trigo semeado neste
outono germinar antes do inverno e ser colhido no prximo vero; traduzir os
fatos naturais em frmulas matemticas, supor que a Natureza subordina-se
a uma ordem racional, e que o relgio marcar a hora acorde com a construo
do relojoeiro.
O prprio processo de induo cientfica um silogismo transportado dos
domnios humanos aos da Natureza, reduz-se a este tipo fundamental; o
mundo regido por uma ordem racional; ora, a sucesso ou generalizao de
uns tantos fatos observados torna a entrar na ordem racional e, portanto, essa
sucesso ou generalizao existe.
Se o homem s vezes se engana nas aplicaes deste processo, que ele
no se limita s aplicaes imediatas, ou no tem uma base suficiente de
observaes diretas. Todas as cincias e sinteses indutivas do homem
repousam na convico de que a Natureza est subordinada a um plano
racional
A organizao maravilhosa do mundo no vos obriga a confessar a
existncia do Ser supremo? Por nossa parte, muita vez temos perguntado,
como se pode recusar to obstinadamente essa existncia. Quais as
vantagens do atesmo?
Em que pode ele preterir o tesmo? Que pode a Humanidade lucrar com o
renegar, doravante, a crena em Deus? Qual o melhor homem: o que cr, ou
o que no cr? Ser, ento, um ato de fraqueza o sermos lgicos com a nossa
conscincia?
Falta grave, o senso comum? possvel que esses Espritos fortes,
galgando o cu por uma escada de paradoxos, acreditem estar bem alto...
Enganam-se, porm, redondamente, com essa iluso comparvel quela
229

antiga prova manica, que era percorrer o iniciado uma escada de cento e
cinquenta degraus descendentes, de sorte que, ao fim do percurso, no
momento de atirar-se ao vcuo, apenas tocava o solo. No, senhores, vossa
escalada no mais terrvel do que essa e apenas pode acarretar maus
resultados para os homens de vistas curtas, incapazes de perceber o vosso
erro e at considerando-vos as fnix da Cincia. Fsse agradvel a vossa
iluso, consoladoras as vossas doutrinas; capazes, as vossas idias, de
estimular a emulao da Humanidade pensante para elevar-se a um ideal
supremo, e talvez se pudesse perdoar-vos a teraputica. Mas, com franqueza:
em que vos parece funesta, inteligncia humana, a crena em Deus?
Onde e como verificastes que o conhecimento da verdade pode enfermar o
crebro? Despojando a Humanidade do seu tesouro mais precioso, banindo do
Universo a vida, rechaando da Natureza o Esprito, no admitindo mais que a
matria cega e foras zanagas, privais a famlia humana de ter paternidade e o
mundo de ter um princpio e uma finalidade. Gnio e virtude, reflexos de um
esplendor maior, eclipsam-se convosco, e o mundo moral, tanto quanto o
fsico, no sero mais que um caos imenso, digno da noite primitiva de
Epcuro.
Mas, ainda bem que o atesmo absoluto s pode ser uma loucura nominal e
o Esprito mais negativista no pode, realmente, atribuir matria seno o que
pertence ao Esprito, criando assim um deus-matria, sua imagem e
semelhana. Assim, temos visto que, desde o pantesmo mstico ao mais
rigoroso atesmo, os erros humanos a respeito da personalidade divina no
puderam, seno, velar, ou desnaturar a revelao do Universo, sem aniquil-la.
Nosso Deus da Natureza permanece inatacvel, no seio mesmo da Natureza,
fora intrnseca e universal governando cada tomo, formando organismos e
mundos, princpio e fim das criaes que passam, luz incriada a brilhar no
mundo invisvel e para a qual, oscilantes, se dirigem as almas, como a agulha
imantada, que no mais repousa enquanto no se encontra identificada com o
plano do plo magntico.

***

Acercando-nos do fim deste livro, detenhamo-nos um instante por bem nos


compenetrar das verdades adquiridas em nossa argumentao, guardando a
legtima impresso deste arrozoado cientfico. Vigem hoje no mundo dois
grandes erros, to vivazes, e profundos como nos tempos mais obscuros da
Histria, isto , nas pocas recuadas em que a inteligncia humana ainda no
podia formular nenhuma concepo exata da Natureza.
Esses dois erros, por ns combatidos paralelamente, so: de um lado o
atesmo, que nega a existncia do Esprito; e do outro, a superstio religiosa,
que concebeu um Deusinho semelhante a ela e fz do Universo uma lanterna
mgica, para uso e gozo da Humanidade.
Como esses dois erros igualmente funestos posto que primeira vista
paream incuos e seja o segundo essencialmente orgulhoso procuram
agora apoiar-se em princpios slidos da Cincia contempornea, impusemo-
nos o dever de mostrar que eles no podem reivindicar tais princpios em seu
favor; que jazem fatalmente isolados da cincia positiva e desarticulam-se ao
primeiro embate, qual castelo de cartas, enquanto idia central continua
em linha reta o espiritualismo cientfico.
230

Resumamos nossa argumentao. Constatamos, de comeo, locando o


problema, que o essencial consiste em distinguir fora e matria, e examinar se
a matria que rege a fora, ou, ao invs, se esta que governa aquela. As
afirmativas materialistas, decalcadas na primeira das premissas, pareceram-
nos desde logo puramente arbitrrais, como simples peties de princpios,
fceis de desmascarar.
Nosso exame do papel da fora, na Natureza, comeou pela perspectiva
das grandezas celestes. Vimos que na imensidade do Espao os mundos
obedecem a uma lei matemtica e que execuo dessa lei que devemos a
harmonia dos movimentos celestes, a fecundidade dos astros, a manutenncia
dos seres em cada mundo, a vida e a beleza do Universo, em suma. A matria
inerte no se nos figurou capaz de compreender e aplicar o clculo
infinitesimal, e ento conclumos que a ordem numrica da organizao
astronmica devida a um Esprito, indubitavelmente superior ao dos astr-
nomos que descobriram a frmula dessas leis. As contraditas que nos opem,
refutam-se de si mesmas, por suas respectivas puerilidades.
O exame das leis que presidem s combinaes qumicas, do papel da
lgebra e da geometria no microcosmo, das foras que regem os fenmenos
do mundo inorgnico e ordenam as viagens atmicas, das harmonias
reveladas nas vibraes luminosas, como nas cnicas, e do primeiro surto da
fora orgnica no rei vegetal, nos demonstrou que na Terra, como no cu, uma
inteligncia desconhecida tudo ordena e se traduz em beleza e grandeza
mximas.
O estabelecimento da verdadeira teoria das relaes entre a fora e a
matria tem, por epgrafe, a velha divisa dos Pitagricos Os nmeros regem
o mundo.
Penetrando, ento, nos domnios da vida, a primeira perspectiva que nos
dominou foi a da unidade que abranje todos os seres. Sua substncia pareceu-
nos, muita vez, no lhes pertencer como propriamente deles e transitar,
constante, de uns a outros, sendo o ar o veculo da organizao vital do
planeta. Os processos de respirao e alimentao nos demonstraram a
solidariedade existente entre os animais e as plantas. O corpo humano
apresenta-se-nos em transformao constante. O grande fenmeno da
circulao da matria estabeleceu que a existncia de uma fora central, cons-
tituindo a vida em cada ser, faz-se absolutamente necessria para explicar a
permanncia do organismo, o equilbrio das funes vitais, a prpria existncia
enfim. Essa fora orgnica s transmissvel pela gerao.
O quadro das ltimas conquistas da Qumica orgnica continuou afirmando
a Fora, qual a estabelecera a Fisiologia.
Remontando, ento, para alm da vida atual, para a origem dos seres, a
causa espiritualista revelou num crescendo a sua necessidade e veridicidade.
Comparamos com a nova a velha hiptese materialista, e achamos que no
so mais que uma e nica hiptese, alis, insuficientes.
A mesma perquirio nos levou ao problema, no resolvido, das geraes
espontneas. O ponto essencial da questo est no havermos constatado que,
mesmo na hiptese da organizao autnoma da matria, a teologia natural
no atingida e a fora diretiva continua a impor-se como absolutamente
necessria. Vimos, ao demais, que no so os mestres que opem teorias
contrrias admisso de um Deus, e sim os discpulos inexperientes, de vez
que a lei tanto impera na transformao e progresso das espcies, como na
231

sua criao separada. E quanto ao homem em si mesmo, vemos que o seu


posto caracterstico na criao afirma-se, menos pelos ndices anatmicos que
por seu valor intelectual, tendo-se em vista a sua racionalidade e os progressos
que capaz de realizar.
Esse estudo geral da vida terrestre tem por epgrafe a proposio
fundamental da obra de Arstoto: A alma a causa eficiente e o princpio
organizador dos Corpos vivos.
Mas, sobretudo no prprio homem que temos reconhecido mais evidente
e inatacvel soberania da fora. Nosso exame do crebro revelou, desde logo,
a iluso dos metafsicos que desdenham o laboratrio e a dissecao,
pretendendo limitar a Natureza a uma simples definio. Esse exame serviu
para estabelecer as relaes do crebro com o pensamento, e mostrou que a
sua composio, forma, volume e peso, esto longe de ser estranhos alma. A
ao do Esprito sobre o crebro ressaltou, ntegra, da fisiologia para afirmar-se
no seu real valor. As hipteses que resultaram na conceituao do pensamento
como secreo de substncia cerebral, ou como dinamismo nervoso, s
conseguiram notabilizar-se pela sua inanidade. A presena da alma
evidenciou-se at nos fenmenos de loucura. O gnio apareceu-nos como a
faculdade mxima de pensar.
Depois, a personalidade humana veio afirmar-se no seu valor. Temos visto
que existimos, realmente, que no somos apenas a qualidade varivel da
substncia cerebral.
A alma afirmou sua unidade e personalidade. A contradio entre essa
unidade e a multiplicidade dos movimentos cerebrais, sobretudo entre a
identidade permanente da alma e a troca incessante das partes constitutivas do
crebro, reduziu a hiptese materialista a extrema pentiria. Em vo tentaram
det-la. Temos analisado a nulidade de suas explicaes, face dos grandes
feitos afirmativos de uma conscincia em ns.
Por fim, para aniquilar at os fundamentos a singular e triste pretenso de
ser o homem governado pela matria, discutimos, socorrendo-nos de fatos e
exemplos, se poderia admitir-se no fssem a vontade e a individualidade mais
que iluso, e que a conscincia e o julgamento dependessem da alimentao.
Os exemplos histricos de homens enrgicos, dotados de grande fora de
vontade, de fortes expresses de carter, de perseverana e de virtudes,
desmentiram essas ltimas objees do materialismo contemporneo e
mostraram que as faculdades intelectuais e morais nada tm a ver com a
Qumica, e que o Esprito reside num mundo distinto do material, superior s
vicissitudes e movimentos transitrios do mundo fsico.
Nossa alma no permitiu que a dignidade humana, a liberdade, os
sagrados princpios do belo, do bom, do verdadeiro, fssem envolvidos no caos
da hiptese materialista.
Esta declarao dos direitos da alma tem por epgrafe a proposio do
doutor anglico: a alma conforma o corpo e nele se contm em ato e em
potncia.
As trs grandes divises que vimos de resumir, tiveram por complemento
natural as nossas consideraes sobre a destinao dos seres e das coisas.
Comentamos o erro e o ridculo dos que tudo ligam ao homem, bem como o
seu oposto, que nega a existncia de um plano na Natureza. As leis orga-
nizadoras da vida, a maravilhosa construo dos rgos e dos sentidos, nos
revelam uma causa inteligente na instalao da vida planetria. A hiptese da
232

formao dos seres vivos sob a ao de uma fora universal instintiva, e da


transformao das espcies, longe de anularem a idia do Criador, deixaram
intactas a sua onipotncia e sabedoria.
E assim, o plano da Natureza foi anunciado pela construo dos seres
vivos.
Mais eloqentemente ainda, foi esse plano afirmado pelas provas do instinto no
reino animal. A criao, a, nos surgiu magnificamente completada por leis
assecuratrias da sua durao e grandeza. Mas, ao mesmo tempo que a
presena de Deus se manifestava mais imponente aos nossos olhos, o
problema geral da finalidade do mundo surgia mais vasto e temeroso.
Sentimos, ento, a insignificncia comparativa, e assim fomos levados, natural-
mente, pela diretriz do arrazoado, a retomar a idia dominante do nosso ponto
de partida, isto , demonstrar conjuntamente o erro do atesmo e da
Superstio religiosa.
Este exame da causalidade final teve por epgrafe o ttulo da obra do
grande fsico e filsofo Ested O Esprito na Natureza.
A fora espiritual que vive na essncia das coisas e governa o Universo em
suas partculas infinitesimais, revelou-se assim, sucessivamente, nos mundos
sideral, inorgnico, vegetal, animal, pensante. Esperamos que o observador de
boa f, desprevenido do esprito de sistema, se contentar com esta exposio
dos ltimos resultados da Cincia contempornea, confirmativos da soberania
da fora e da passividade da matria.
Temos ntima convico de que a idia de Deus se apresentou a seus
olhos maior e mais pura que toda e qualquer imagem simblica e dogmtica, e
que a criao universal, misteriosa filha do mesmo pensamento, lhe surgiu
mais ampla e mais bela.
O Universo desdobra-se na sua realidade, como a manifestao de uma
idia una, de um plano nico e de uma s vontade. Possa este quadro da vida
eterna da natureza de Deus afastar o leitor dos erros grosseiros que o
materialismo espalha por toda parte, robustecendo-lhe o intelcto no culto puro
da Verdade. Possam os nossos espritos se compenetrarem, cada vez mais, do
Belo manifestado na Natureza e santificarem-se no Bem, com o apreciarem
mais completamente a unidade da obra divina, fazendo uma idia mais justa do
nosso destino espiritual, e conhecendo a nossa categoria na Terra em relao
ao conjunto dos mundos, e sabendo, finalmente, que a nossa grandeza est
em nos elevarmos constantemente na posse e pela posse dos bens
imperecveis, que so apangio da inteligncia.

***

Uma tarde de vero, deixara eu as flreas vertentes de Sainte-Adresse,


deliciosa vila litoreana recortada em colinas, para galgar as grimpas do cabo
Heve, que ao poente lhe demoram. Quando, de sua base contemplamos os
cabeos desses penhascos, acreditamos estar vendo colossos de granito
avermelhados pelo sol, quais gigantes imveis que assistissem, petrificados,
aos bramidos do oceano que vem morrer a seus ps. No seu isolamento, esses
macissos enormes e inacessveis pelo lado do mar, parecem talhados para
dominar o soberbo panorama. A seu lado, fronteando o oceano, o homem
sente-se to insignificante que acaba perdendo de vista a prpria existncia e
confundindo-se com a vida abstrata, que paira acima dos bramidos ocenicos.
233

Sempre a subir, cheguei ao plano superior, onde ficam os semforos que


avisam, longe, aos navios o movimento horrio das vagas costeiras, O onde os
faris se acendem boca da noite, quais estrelas permanentes na amplido
das trevas. O Sol, glorioso, ainda se pendurava rubro das nuvens iacendidas,
posto que j oculto para o Havre e para as planuras que bordam o esturio do
Sena. Ao alto, o cu azul me coroava com a sua pureza. Em baixo, a mata,
fervilhante de insetos, exalava em ondas o seu perfume. Caminhei at
escarpa, ao fundo da qual se mostram os abismos. Do cairel da rocha em
vertical, o olhar domina a imensido dos mares, desdobrados esquerda, de
sueste a nordeste. Mergulhando-o perpendicularmente, ele se perde na
profundeza de massas verdes, rochedos e brenhas escuras tapete rstico
estendido a trezentos ps abaixo dos contrafortes dessa muralha. O gemido
das vagas mal nos chega nestas alturas, nosso ouvido apenas percebe um
rumor uniforme, que o vento gradua de intensidade. um silncio que canta,
longe do mar.
A Natureza estava atenta ao derradeiro adeus, que o prncipe da luz
enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono para sumir-se no
horizonte lquido. Calma e concentrada, ela assistia prece universal dos
seres, pois que eles a fazem a santa prece do reconhecimento ao
receberem os ltimos olhares do Sol. E todos, desde a flbil e solitria medusa
e a estrela-do-mar policroma, at os gafanhotos saltitantes e os alcones de
neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, ento, um como incenso a
subir das vagas e dos montes, parecendo que os rudos temperados da plaga,
a brisa que soprava do continente, a atmosfera embalsamada, a luz palescente
na serenidade do cu azul, o refrigrio crepuscular e tudo o mais vinha,
naquele stio, conscincia de vida, comungando contrita e amorosamente da
adorao universal.
Mentalmente, nesse holocausto da Terra, eu sentia as recprocas atraes
dos mundos; no apenas as que alternativamente afastam e aproximam nosso
orbe do foco solar, como as de todos os astros que gravitam na imensido dos
cus. Acima de minha cabea, desdobravam-se as sublimes harmonias e as
gigantescas translaes dos corpos celestes! A Terra era qual tomo flutuante
no infinito! Deste tomo, porm, a todos os sis do espao, queles cuja luz
leva milhes de anos para chegar at ns, aos que jazem desconhecidos para
alm da nossa visibilidade, eu sentia um lao invisvel abrangendo, num s
halo vivificante, todos os universos e todas as almas. E a prece celestial,
grandiosa, imensurvel, tinha a sua repercusso, a sua. estrofe, a sua
representao visvel naquela vida terrena que palpitava em torno de mim, no
rugido do mar, no perfume das selvas, no canto das aves, na melodia confusa
dos insetos, no conjunto emocionante do cenrio e, sobre tudo, na luminosa
tonalidade daquele extraordinrio crepsculo!
Fitava-o embevecido, sim... mas, sentia-me to pequeno no meio de tantas
graas e grandezas, que acabei por entristecer-me. Senti como que esvanecer-
ae a minha personalidade diante da imensidade da Natureza. No me tardou a
impresso de j no poder falar, nem pensar.
O vasto mar fugia para o infinito. Eu no mais existia, meus olhos se
velavam... E, como as faces se me inundavam de pranto, sem que me pudesse
explicar porque chorava, ajoelhei-me e, prosternado ante o cu, confundi minha
fronte com as ervas... o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.
E o Sol, fonte dessa luz e dessa vida, espiou uma ltima vez l da faixa
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marinha do horizonte, como que satisfeito com aquela homenagem que nem
um ser ousara recusar-lhe... E assim, contente da jornada, mergulhou
orgulhoso no hemisfrio de outros povos.
Fz-se, ento, grande silncio em toda a Natureza. Nuvens de ouro e
prpura evolaram-se s paragens reais e ocultaram os ltimos timbres
avermelhados. A sombra descia do alto. As ondas adormeceram, porque o
vento abrandara. Os pequeninos seres alados adormeceram tambm, e Vs-
per, nncia da noite, comeou a luciluzir no ter.
misterioso Incgnito! exclamei grande, imenso Ser, que somos
ns, pois? Supremo autor da harmonia, quem s tu, se to grandiosa a tua
obra? Pobres mitos humanos os que supem conhecer-te Deus! tomos,
nada mais que tomos, como somos nfimos! E como tu s grande! Quem,
pois, ousou nomear-te pela primeira vez?
Que orgulhoso insensato pretendeu definir-te, Deus! meu Deus, todo
poder e ternura, imensidade sublime e inconcebvel!
E, como qualificar os que vos tm negado, que em vs no crem, que
vivem fora do vosso pensamento e jamais sentiram vossa presena Pai da
Natureza!
Amo-te! amo-te! Causa suprema e desconhecida, Ser que palavra alguma
pode traduzir, eu vos amo, divino Princpio! mas... sou to pequenino, que no
sei se me ouvireis, se me entendereis..
Como estes pensamentos se precipitavam fora de mim, para fundirem-se
na afirmao grandiosa de toda a Natureza, as nuvens se esgararam no
poente e a radiao urea das regies iluminadas inundou a montanha.
Sim! tu me ouves, Criador! tu que ds a beleza e o perfume florinha
silvestre! A voz do oceano no abafa a minha voz e meu pensamento a ti se
eleva, Deus! com a prece coletiva.
Do todo do Cabo, minha vista se estendia ao Sul como ao Ocidente, na
plancie como sobre o mar. Voltando-me, lobriguei as cidades humanas, meio
adormecidas nas plagas. No Havre, as ruas comerciais se iluminavam, e alm,
na margem oposta, Trouville acendia o seu parque de diverses.
E enquanto a Natureza se mostrava reconhecida ao seu Autor com o
saudar a misso de um dos seus astros fiis; enquanto todos os seres lhe
enviavam suas preces e o rugido dos mares misturava-se ao vento, em ao
de graas ao termo de um belo dia; enquanto a obra criada, unnime e
recolhida, se oferecera ao Criador, a criatura imortal e responsvel ser
privilegiado da Criao, expoente do pensamento o Homem, vivia mar-
gem, indiferente a tantos esplendores, sem olhos de ver nem ouvidos de ouvir,
parecendo ignorar essa harmonia universal, em cujo seio deveria encontrar a
sua felicidade e a sua glria.

Fim

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