VII RELAEF Renato Pugliese
VII RELAEF Renato Pugliese
VII RELAEF Renato Pugliese
Consumindo a Física na Escola Básica: a sociedade do
espetáculo e as novas propostas curriculares.
Renato Marcon Pugliese1
João Zanetic2
Apresentação
O presente texto serviu como base da apresentação desta construção de pesquisa na VII
Reunião LatinoAmericana sobre Ensino de Física. Inicialmente apresentamos um levantamento
geral dos motivos que nos levaram a essa temática, discutimos o andamento da pesquisa, as
alterações e melhorias no projeto, além da fundamentação teórica estrutural. Ademais, incluímos a
metodologia utilizada para tratar os dados e dar continuidade à pesquisa, bem como alguns
resultados parciais retirados da vivência e dos trabalhos em sala de aula, necessários ao andamento
das análises.
Iniciamos um estudo sociológico e pedagógico com a finalidade de buscar identificar razões,
“externas” à física e ao seu ensino, que justifiquem a crescente necessidade de mudanças propostas
para esse ensino nos últimos tempos, frequentemente atribuídas ao dito fracasso escolar. Com base
no livro Sociedade do Espetáculo do sociólogo francês Guy Debord (19311994), pretendemos
analisar a estrutura da sociedade moderna e como esta organização social influi no fracasso escolar.
Além desse referencial, trabalhamos com conceitos e idéias dos educadores Paulo Freire e Georges
Snyders para contrapormos as formas atuais de organização escolar/social com formas que
acreditamos serem mais democráticas, dialógicas e que promovam a autonomia.
Este texto foi escrito também com a intenção de exemplificar o início da transformação de
um professor de física do Ensino Médio recém formado em um pesquisador em ensino de física, que
desenvolve seu trabalho de pesquisa junto ao Programa de PósGraduação Interunidades em Ensino
de Ciências da Universidade de São Paulo.
Introdução
Após trabalharmos, em caráter de iniciação científica na graduação, num projeto de pesquisa
onde foram elaboradas propostas de atividades envolvendo letras de música popular e conceitos
físicos, iniciamos um projeto de pesquisa visando à escrita de uma dissertação para obtenção do
título de mestre que estaria fundamentado nestas atividades, sua aplicação e análise teórica.
Esse projeto tinha como objetivo estabelecer relações interdisciplinares entre arte e ciência,
em especial entre física e música popular, no que diz respeito ao processo de ensinoaprendizagem
de conceitos científicos, explorando o diálogo entre as letras de música popular e o tratamento de
temas físicos referenciados em cada letra de música. Esse objetivo foi traçado com ênfase nas
indicações das Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais
(MEC, 2000), na notável necessidade da elaboração de novas propostas curriculares e novas
concepções sobre didática, além da percepção cotidiana do desgaste do modelo tradicional de
ensino de física, pautado no excesso de algoritmos, pouca discussão conceitual e quase nenhuma
experimentação.
Além desta objetivação, conjuntamente ao ingresso no programa de pósgraduação, foi
1
Email: [email protected], Mestrando IFFEUSP.
2
Email: [email protected], Docente IFUSP.
1
2
iniciada a ponte entre pesquisa e docência, no caso como professor da rede estadual de ensino do
Estado de São Paulo, nível médio, o que nos permitia uma relação entre teoria e prática bem mais
sólida do que anteriormente, visto que poderíamos agora experimentar as relações entre arte e
ciência na prática, com a possibilidade de acompanhar o andamento da aprendizagem, avaliar, re
estruturar, etc.
Nossa hipótese inicial girava em torno da idéia de que alunos não tão atraídos pelo
algoritmo e pela experimentação poderiam se aproximar da física, da aprendizagem de seus
conceitos, teorias e análises, se tivessem oportunidade de conhecer as relações da física com outras
áreas do conhecimento humano, tal como a arte em sua manifestação musical. Essa hipótese tinha
como principal referencial teórico o educador Paulo Freire que, em muitas de suas obras (1970;
2005), discutia a necessidade de valorização da diversidade cultural em sala de aula, bem como na
ausente discussão sobre a diversidade das áreas do conhecimento humano.
No entanto, durante o passar dos meses, algumas disciplinas cursadas no programa de pós
graduação tiveram papel fundamental no desenvolvimento da pesquisa, seja no sentido de auxiliar
na evolução do tema, seja no de interromper o percurso, voltar e seguir outro rumo. Em especial, a
disciplina3 ministrada pelo professor Manoel R. Robilotta, no Instituto de Física da USP, trouxe à
tona questões conceituais sobre o conhecimento humano, em especial sobre o conhecimento físico,
que permitiu olhar para a atividade realizada enquanto pesquisador da prática docente, fazendonos
repensar alguns tópicos do nosso projeto inicial.
Dessa forma, a partir das discussões sobre a construção do conhecimento humano nestas
aulas, foi repensado o fluxo da pesquisa e decidimos então investigar o porquê da recusa ou rejeição
da grande maioria da estudantada de nível médio em adentrar esse mundo novo do conhecimento
físico. Cabe aqui ressaltar que um dos nossos principais referenciais teóricos, o educador Paulo
Freire, discute a questão da rejeição à invasão cultural em todos os sentidos, inclusive no quesito de
invadir os estudantes com um diferente modo de pensar o mundo, como pode acontecer com a física
acadêmica, matemática, filosófica, etc. Precisaríamos compreender o que acontece nas escolas de
hoje que não favorece o salto intelectual da cultura primeira à cultura elaborada (Snyders, 1988).
Um pouco mais adiante, durante o segundo semestre de 2008, uma disciplina cursada na
Faculdade de Educação da USP foi decisiva para redirecionarmos o fluxo da revisão bibliográfica,
dos temas a serem investigados. Nesta disciplina4, ministrada pela professora Lúcia E. N. B. Bruno,
estivemos em contato com o pensamento da escola situacionista francesa, com destaque para o
conceito de sociedade do espetáculo teorizado por Guy Debord nos fins da década de 1960 na
França.
Decidimos então utilizar a teoria do espetáculo de Debord para analisar a influência das
atuais formas de produção, inclusive de artefatos e políticas educacionais, sobre a sociedade, buscar
eventuais saídas políticopedagógicas para enfrentar esta estrutura espetacular e discutir se a física
ensinada nas escolas pode ou não ser agradável de estudar, no sentido de obtenção de satisfação
plena motivada pelo alcance da cultura elaborada (Snyders, 1988).
Fundamentação teórica
Com base na sua análise sóciocultural, Debord argumenta que as formas modernas de
produção capitalista, principalmente a partir da década de 1940 do pósguerra, levaram a sociedade
a se organizar em torno da hegemonia das imagens, o que ocasionou um distanciamento em muitos
aspectos do mundo vivido e experimentado do mundo das representações.
Neste sentido, tudo o que existe (coisa, pessoa, produto, teoria, instituição...) que não possui
3
ECF57111 Complementos de Relatividade. De 03/03/2008 a 24/06/2008
4
EDA57354 A Educação Frente às Transformações na Dinâmica do Capitalismo. De 14/08/2008 a 26/11/2008.
2
3
uma imagem coerente com as formas de produção em massa perde valor e qualidade, de forma que
socialmente todos esses elementos ficam divididos entre os que aparecem (bons) e os que não
aparecem (ruins).5 A publicidade e o turismo vão ganhando cada vez mais espaço e poder,
concretizando o monopólio da imagem. Assim, as grandes corporações definem o que é bom e o
que não é bom a partir do instante em que detêm o controle da imagem e dos meios de
comunicação. Debord afirma que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação
social entre pessoas, mediada por imagens” (pg. 14).
Quando as grandes empresas e governos percebem o poder da imagem e a desvinculação
desta com os fatos e sensações reais (vividas), é iniciada uma fase de produção de imagens falsas de
produtos (coisas, pessoas, instituições, projetos...) que funcionam como determinantes no processo
de comercialização e distribuição em massa destes. Essas imagens falsas vão se distanciando cada
vez mais do produto real, mas continuam permitindo uma relação entre pessoas/consumidores e
produtos de forma real, ou seja, apesar da imagem relacionada a determinado produto ser falsa, o
consumidor adquire o produto e não questiona a falsidade/veracidade da imagem que permitiu o elo
de ligação entre ele e o produto. Assim, a essência (real, vivida) do produto consumido se perde,
permanecendo apenas a aparência (falsa, pseudovivida).
Embora sua análise tenha ocorrido pouco antes e durante os dramáticos acontecimentos do
ano de 1968, particularmente relacionada com a realidade francesa, consideramos que ela seja atual
e útil nestes tempos da dita pósmodernidade. Coerente com essa avaliação, cabe aqui reproduzir
um trecho da apresentação da edição brasileira de A Sociedade do Espetáculo (1997):
“Debord estava certo: nunca a tirania das imagens e a submissão alienante ao
império da mídia foram tão fortes como agora. Nunca os profissionais do
espetáculo tiveram tanto poder: invadiram todas as fronteiras e conquistaram
todos os domínios – da arte à economia da vida cotidiana à política , passando
a organizar de forma consciente e sistemática o império da passividade moderna.
O que o leitor tem em mãos é a mais aguda crítica à sociedade que se organiza
em torno dessa falsificação geral da vida comum.”
Entendemos que a base dessa teoria social está de acordo com a crítica formulada por Paulo
Freire quando afirma que a escola atual, principalmente nos modos tradicionais de ensino, não
favorece o diálogo entre as diversas culturas, o que ocasiona a chamada invasão cultural (Freire,
1970) e faz com que os alunos rejeitem, mesmo sem terem consciência disso, a investida na aventura
do conhecimento científico. Do mesmo modo, esse ensino não dialógico acaba por manter a
separação de classes, fazendo com que os já oprimidos alunos de esferas periféricas da população
mantenhamse oprimidos, enquanto a classe dominante detém o poder e as formas de produção de
conhecimento (Freire, 2005).
Nesta mesma direção, a falta de diálogo imposta pelo monopólio da imagem faz com que a
satisfação que a escola poderia fornecer aos alunos e à comunidade como um todo, por meio da
inserção na cultura elaborada, não aconteça e acaba por manter o distanciamento e produzir as
satisfações diretas da cultura primeira, fazendo com que a escola perca o sentido de produtora de
conhecimento e passe simplesmente a reproduzir situações simples da vida comum (Snyders, 1988;
2005). Assim,
5
Obviamente que a mídia televisiva representa a maior parte da responsabilidade atualmente pelo que “aparece” e
pelo que “não aparece”, mas as mídias radiofônicas, impressas e, muito em voga, interligadas em rede (internet),
também têm sua parcela de responsabilidade. Por outro lado, discutiremos futuramente o papel de quem controla
essas mídias (classe dominante), bem como de quem regulamenta (governo).
3
4
“o sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do
isolamento. (...) Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo
sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das
condições de isolamento das “multidões solitárias”. (...) O espetáculo reúne o
separado, mas o reúne como separado” (Debord, 1997, pg. 23).
Estudaremos então alguns dos materiais utilizados didaticamente nas escolas do Estado de
São Paulo em física para discutirmos se eles se apresentam como elementos do espetáculo e,
consequentemente, mantenedores da separação de classes e do ensino autoritário, no sentido do
conceito de educação bancária freireano ou se promovem a dialogicidade tão valorizada pelos
educadores que temos como referenciais.
Metodologia
Dentre os materiais utilizados atualmente nas escolas públicas do Estado de São Paulo, dois
deles estão presentes na totalidade das unidades escolares, a saber, as novas propostas curriculares
do Governo estadual adotadas a partir do início de 2008, bem como os livros oferecidos pelo
Programa Nacional de Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM 2007). Faremos uma análise
que possivelmente nos fornecerá argumentos a respeito do caráter espetacular das abordagens dos
temas do conhecimento físico ou a ausência do mesmo. Em ambos os casos estudaremos tanto a
implementação das propostas quanto seu conteúdo.
A proposta estadual de física para ensino médio está dividida em 12 cadernos, sendo 4 por
ano para cada série. Esses cadernos são distribuídos de duas formas distintas: os professores
recebem o caderno completo, com as propostas de atividades, as recomendações e sugestões de
aplicação destas propostas, as resoluções de exercícios, exemplos e textos para serem trabalhados; já
os alunos recebem uma versão resumida, com exercícios para resolver, roteiros de atividades e
alguns textos.
Esta proposta está estruturada em roteiros de atividades, que ora envolvem 2 aulas, ora
envolvem outras quantidades que, na soma bimestral, variam entre 16 e 20 aulas. O material foi
produzido por pesquisadores da área de ensino de física, professorespesquisadores universitários,
doutorandos, mestrandos, além de equipe técnica especializada.
No segundo caso, estão os livros distribuídos por todo o Brasil pelo PNLEM. Como
estudaremos os livros didáticos de física para o ensino médio, nos referimos ao PNLEM 2007, ano
em que foram selecionados pelo Governo Federal os livros que se adequavam à proposta. Uma
versão de cada obra selecionada foi enviada às escolas em 2008 para escolha por
adequação/preferência unitária, e em 2009 foram entregues aos alunos para possível utilização em
sala de aula. Dos livros oferecidos pelo MEC para escolha das unidades escolares, constavam os
seguintes:
PNLEM 2007
Sampaio, J. L. P. e Calçada, C. S. V. Universo da Física. Vol. 1, 2 e 3. Ed. Saraiva, São
Paulo, 2005.
Penteado, P. C. M. e Torres, C. M. A. Física – Ciência e Tecnologia, Vol. 1, 2 e 3. Ed.
Moderna, São Paulo, 2005.
Ribeiro da Luz, A. M. e Álvares, B. A. Física. Vol. 1, 2 e 3. Ed. Scipione. São Paulo, 2005.
Sampaio, J. L. P. e Calçada, C. S. V. Física. Vol. Único. Ed. Saraiva, São Paulo, 2005.
Gaspar, A. Física. Vol. Único. Ed. Ática. São Paulo, 2005.
Filho, A. G. e Toscano. C. Física. Vol. Único. Ed. Scipione. São Paulo, 2005.
4
5
Destes livros, três são versões divididas em três volumes para o ensino médio, sendo um
volume para cada série, e os outros três são versões em volume único, resumidas em comparação
com as versões em volumes separados, mas ainda extensas se comparadas aos cadernos distribuídos
pelo governo estadual, ainda que sejam propostas diferentes. Na sequência do trabalho discutiremos
as seguintes questões/hipóteses preliminares:
I. Será que a problemática do ensino de física e da necessidade de novas propostas e
alternativas não está colocada devido a um ensino de física que se tornou espetacular e se afastou da
física enquanto ciência?
II. Se há tamanha rejeição na aprendizagem da física escolar, será que esta física não está, a
partir da invasão cultural nela implicada, seguindo a estrutura lógica do espetáculo?
III. Será que esta física, escolar, não é apenas uma representação visual de uma física que
deixou de ser vivida?
Resultados parciais/preliminares (quanto à implementação)
Como a pesquisa entrou há poucos meses no campo metodológico, os resultados ainda são
parciais, contudo, cremos que já fornecem indicações suficientes para percebermos que
caminhamos corretamente, visto que estamos conseguindo observar o espetáculo (no sentido
debordiano) presente no ensino de física, ora conscientemente, ora inconscientemente.
No caso da implementação tanto a proposta estadual quanto a proposta federal chegaram até
as unidades escolares de forma hierárquica, como um produto final de um processo que não
permitiu a participação de diretores, professores ou conselhos escolares. No mesmo sentido, em
algumas situações o material foi entregue sem prévio aviso, aparecendo de surpresa nas escolas.
Como consequência, avaliações e seleção de professores estão sendo realizadas com base
nestas propostas, o que significa uma imposição, ainda que não declarada, de um projeto político
pedagógico não construído pelos professores, diretores e comunidade escolar, o que inclusive vai de
encontro ao que consta na Constituição Federal quando, no inciso III do artigo 206, afirma que o
ensino deve atender ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”.
Podemos aferir que, se concluirmos que a implementação destas propostas segue a estrutura
lógica do espetáculo, as escolas continuam sendo levadas à não dialogicidade e à manutenção das
formas modernas de produção, o que promove a manutenção da separação de classes e o
fechamento do círculo espetacular, não permitindo a crítica, a autonomia e o diálogo entre homem
homem e homemnatureza. Isso pois, no espetáculo, os homens dialogam com imagens
(representações falsas de um mundo pseudovivido), não mais com outros homens ou com a
natureza (mundo vivido, experimentado).
Resultados parciais/preliminares (quanto ao conteúdo)
Como breves exemplos, utilizaremos dois temas comuns ao ensino de física nas escolas
básicas:
Tema 1: Som, ondas sonoras, características físicas das ondas, acústica.
Tema 2: Luz e cor, cor luz, cor pigmento, adição e subtração de cores.
Tema 1
O primeiro tema será explorado no Caderno do professor: física, ensino médio – 2a. Série,
5
6
3o. Bimestre (SEE/SP, 2009). Dentro do tema 1, temos algumas situações de aprendizagem e nosso
exemplo situase na Situação de Aprendizagem 3 – Uma aula do barulho (pág. 17). Essa atividade
tem como objetivo discutir os seguintes conteúdos e temas: caracterização física de ondas sonoras
por meio dos conceitos de amplitude, comprimento de onda, frequência e velocidade de propagação.
No decorrer do texto, um dos assuntos trabalhados se refere aos conceitos de ruído e de
música. Destacamos o seguinte trecho, situado após se discutir os conceitos de intensidade e altura
de um som (pág. 19):
“(...) É preciso ressaltar que as figuras apresentadas até agora representam
sons simples, isto é, emitem apenas uma única frequência.
Neste ponto, podese obter uma diferença objetiva entre ruído e som
musical. Quando um objeto vibra de forma desordenada, ele produz um som que
é o somatório de um número muito grande de frequências. A frequência pode
então ser uma medida objetiva utilizada para categorizar os sons. Assim, o som
produzido por esta vibração desordenada é chamado de ruído, como o barulho
de um trovão ou de um ronco. Isso pode ser analisado com a Figura 3.
(…) A ideia aqui não é que o gráfico represente exatamente como seria, por
exemplo, a onda formada por um espirro; pretendese que represente o ruído
como um conjunto irregular, desordenado de vibrações, algo como apresentado
na parte superior da Figura 3.
Figura 3 – Ruído e música
Neste momento, é possível fazer uma problematização importante, que pode
ser explorada nas discussões seguintes, sobre harmônicos e timbre. Pergunte aos
alunos como eles acham que seria a onda sonora emitida por um violão. Será que
os sons musicais são do tipo que desenhamos até agora? Serão tão simples
assim? A ideia é que um instrumento musical também pode produzir grande
número de frequências; contudo, a diferença é que os sons musicais utilizam
apenas algumas entre as inúmeras frequências possíveis 6 . (...)”
6
Grifo nosso.
6
7
Podemos observar que os autores utilizam duas imagens que representam o que seria um
exemplo de ruído e um exemplo de som musical (Figura 3). No parágrafo posterior à figura,
detalham, contudo, que os sons musicais nem sempre são tão simples assim, podendo ser formados
por mais de uma frequência de oscilação. A questão principal é: Será que no mundo vivido, no
mundo experimentado, essa figura é coerente? Consideramos que esta questão poderia exemplificar
uma possível problematização que pode ser feita com os recursos a seguir mencionados.
As figuras que seguem referemse a ondas musicais retiradas da música Construção, de
Chico Buarque (Disponível no álbum Construção, de 1971, lançado pela gravadora Philips), em
diferentes escalas de tempo (horizontal) e de intensidade (decibéis, na vertical)7:
Figura A: Início do primeiro acorde tocado no violão na música Construção de Chico Buarque,
escala de tempo em segundos (aproximadamente 0,05s de música).
Figura B: Primeiro acorde tocado no violão na mesma música (aproximadamente 0,38s de música).
7
O software utilizado para obtenção destes gráficos foi o Audacity 1.2.6, disponível em
http://audacity.sourceforge.net. Vale ressaltar que esse software interpreta a corrente elétrica que geraria a produção
do som no autofahttp://farm3.static.flickr.com/2589/4176004889_ab9a0ae666.jpglante, mas que condiz com as
transformações de energia.
7
8
Figura C: Três primeiros acordes da mesma música (aproximadamente 1,5s).
Figura D: Trecho da mesma música das figuras anteriores, selecionado quando vários instrumentos
estão sendo tocados, além da letra cantada (aproximadamente 0,05s de música).
Percebemos que este trecho da música se torna muito mais irregular do que o citado
anteriormente, onde apenas um violão era tocado.
Observemos agora a onda sonora num pequeno intervalo de tempo de um trovão8:
8
Disponível em: http://www.partnersinrhyme.com/soundfx/weather_sounds/thunder_Storm_exclamation.shtml
8
9
Figura E: Onda sonora de um trovão, num intervalo de tempo de aproximadamente 0,04s.
Esta onda, se observada desta maneira e neste intervalo de tempo9, mais se assemelha a um
som musical do que a um ruído, como o apresentado no Caderno do professor da Secretaria da
Educação do Estado de São Paulo.
Desta forma, concluímos que no mundo vivido, no diálogo homemmundo, as ondas de uma
música parecem diferir significativamente da representação apresentada no texto. Cremos que seria
uma alternativa a ser explorada em sala de aula.
Tema 2
Como outro exemplo de representação, temos a questão das cores dos objetos. Este consta no
Caderno do professor: física, ensino médio – 2a. Série, 4o. Bimestre (SEE/SP, 2009).
A figura (Fig. 11) abaixo mostra como seria visto um objeto amarelo, neste caso um Melão,
quando iluminado por luz branca, luz vermelha e luz verde.
Percebese que houve um trabalho gráfico digital, onde um Melão foi desenhado com brilho
9
Intervalo propositalmente escolhido.
9
10
e diferentes iluminações. A pergunta se mantém como no exemplo anterior: Será que no mundo
vivido as cores se apresentam desta forma?
Com uma câmera de fotografia digital comum, e envolvendo uma lâmpada fluorescente com
filtros coloridos (papel celofane), obtivemos as seguintes imagens:
Podemos perceber que há uma diferença com relação as figuras apresentadas no caderno do
professor quando da aparência colorida do melão iluminado por diferentes tipos de luz. Neste
mesmo capítulo, algumas páginas antes, há uma demonstração gráfica de como se dá a mistura de
cores primárias de luz (verde, azul e vermelho). Neste trecho do texto, é mostrado que a luz verde
somada à luz vermelha (superposição de ondas) nos dá a luz amarela, o que justifica o fato de que,
se o melão reflete luz amarela quando incidido por luz branca, e esta luz amarela é o resultado da
soma de verde e vermelho, logo ele deve refletir também o verde isoladamente e o vermelho
isoladamente. Isso aparentemente foi verificado quando tiramos nossas fotografias, ou seja, quando
problematizamos o diálogo homemnatureza. Vale notar que, quando iluminado por luz azul, o
objeto se apresenta de cor preta, pois não reflete as ondas correspondentes ao azul.
Ainda nesta temática, temos outros exemplos retirados dos livros escolhidos pelo PNLEM
2007, como se segue:
Texto: Sampaio, José Luiz e Calçada, Caio Sérgio. Universo da Física 2. Ed. Atual, São
Paulo, 2005.
“Exemplo 6, pg. 346: Duas bolas, quando iluminadas pela luz solar,
apresentamse branca e amarela (pura). Essas bolas são levadas para uma sala
que não recebe luz externa, sendo então iluminadas com luz verde pura. Quais
passarão a ser as cores das bolas nessas condições?
Resolução (do próprio livro): A bola que é branca sob luz solar reflete
todas as cores; assim, ao ser iluminada por luz verde, refletirá o verde e
apresentarseá verde. A bola que, sob luz solar, tem cor amarela pura, reflete o
amarelo e absorve todas as outras cores. Assim, ao ser iluminada por luz verde
pura, absorverá essa luz e apresentarseá negra.”
Este exemplo pode ser facilmente comparado com o exemplo do melão citado anteriormente,
pois a bola amarela pode ser representada pelo melão, e nos permite notar o mesmo equívoco, pois
não aparenta ter sido trabalhado em diálogo com a natureza, e sim em diálogo com representações
falsas.
Um outro caso é o seguinte, também parte dos livros selecionados pelo PNLEM 2007:
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11
Texto: Máximo, Antônio e Alvarenga, Beatriz. Física – ensino médio – Vol.2. Ed. Scipione,
São Paulo, 2007.
“Exercício 18, pg. 255: Suponha que a bandeira do Brasil seja colocada em
um quarto escuro e iluminada com a luz monocromática amarela. Diga a cor com
a qual se apresentarão as seguintes partes da bandeira:
a) o círculo central;
b) o losango;
c) a faixa do círculo central e as estrelas;
d) o restante da bandeira.
Respostas (no próprio livro):
a) preto;
b) amarelo;
c) amarelas;
d) preto.”
Problematizamos neste exercício a alternativa d, quando fotografamos com filtros, obtendo
as seguintes imagens:
Quando fazemos estas imagens percebemos, de forma muito bela, como os objetos refletem
algumas cores e absorvem outras, somando ou subtraindo em cada caso, as cores primárias e
secundárias. Dessa forma, quando iluminada por luz amarela (última figura) o retângulo verde da
bandeira continua se apresentando como verde, o que possibilita problematizar a alternativa d do
exercício.
Para finalizar esse tema, cabe citar o exemplo abaixo:
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12
Texto: Gonçalves Filho, Aurélio e Toscano, Carlos. Física. Volume único. Ed. Scipione, São
Paulo, 2009.
Figura contida na página 262:
Percebemos que, neste livro, os autores dialogaram com a natureza no sentido de que, a
partir de fotografias com pimentões de cores distintas, iluminados com luz branca e vermelha,
permitindo também que problematizemos o conteúdo das outras obras.
Conclusões preliminares
O problema desta discussão, no caso das ondas sonoras, não está no fato de que as escalas
são diferentes ou a seleção do trecho foi escolhida propositalmente, mas reside na esfera de que na
sociedade do espetáculo, as imagens fazem a mediação entre os sujeitos e as relações sociais e,
neste caso – aula de física, o professor precisa vender uma imagem de que o produto oferecido para
o consumo, a saber, a física, permite estudar a natureza de forma mais simples e ordenada, como se
as ondas musicais fossem quase tão simples como a proposta na Figura 3. Além disso, a física
apresentada na escola média, a física escolar (Zanetic, 1989), tornase cada vez mais distante da
física real. Há então uma falsidade no ensino de física? É o que pretendemos analisar futuramente
com base na conceituação dos referenciais teóricos indicados acima.
Ainda de forma preliminar, podemos indicar que estes exemplos, tanto quanto à
implementação destas propostas, quanto ao conteúdo nelas contido, nos mostram que há uma
espetacularização do ensino (como um todo) e do ensino de física, possivelmente enraizada nos
professores, autores, pesquisadores e governo, quando se prendem em representações de um mundo
pseudovivido e se distanciam da dialogicidade que permitiu à ciência a criação de tantas teorias e o
desenvolvimento de tamanha tecnologia. O diálogo inteligente com essas teorias tem que ser
mediatizado por meio da história e da filosofia da ciência e com o estabelecimento de uma ponte
entre as duas culturas, a científica e a literária, por exemplo.
O conceito de sociedade do espetáculo explicitado por Debord nos permite frisar que a
ausência das problematizações e dos demais elementos que favorecem o diálogo sinalizam que esses
materiais podem ter algo do espetáculo onde “tudo o que era vivido diretamente tornouse uma
representação” (Debord, 1997, pg. 13). Concordamos que
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13
“quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens
tornamse seres reais (...). O espetáculo, como tendência a fazer ver (por
diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar
diretamente, servese da visão como o sentido privilegiado da pessoa humana.
(...) Mas o espetáculo não pode ser identificado pelo simples olhar, mesmo que
este esteja acoplado à escuta. Ele escapa à atividade do homem, à
reconsideração e à correção de sua obra. É o contrário do diálogo. Sempre que
haja representação independente, o espetáculo se reconstitui. (pg. 18).”
“Estou convencido de que cada geração de um país subdesenvolvido tem de ser
dotada de um espírito de inconformismo em maior intensidade, e de mais
impaciência, do que a que a precedeu, como tem de estudar e trabalhar mais a
fundo, para ser mais competente e estar à altura do desafio que não deixa de lhe
lançar continuadamente, cada dia que passa, o mundo que se desenvolve e
adquire maior poder de subjugação. (...) Os cientistas, os intelectuais de tais
países não podem deixar de partilhar desse inconformismo. De outro modo não
estaríamos à altura das responsabilidades que nos legaram os grandes
humanistas.”
José Leite Lopes (1969, p. 66/67)
13
14
Bibliografia
Debord, G. A Sociedade do espetáculo e Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Ed.
Contraponto, Rio de Janeiro, 1997.
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