Pobreza e Grossura
Pobreza e Grossura
Pobreza e Grossura
Olavo de Carvalho
Neste pas voc no pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado
a um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e
comece a lhe dar conselhos, a ralhar com voc chamando-o de irresponsvel,
leviano e miolo-mole. E d graas a Deus de que ele o faa em tom bonacho
e no transforme a humilhao sutil em massacre ostensivo. Finda a cena,
ele sai todo satisfeito com a conscincia do dever cumprido e considera-se
dispensado de lhe arranjar o emprego ou o dinheiro. E voc? Bem, voc sai
duro, desempregado... e culpado.
Esse mesmo sujeito capaz de, na mesma noite, oferecer um jantar tomando
o mximo cuidado para que a arrumao da mesa e a distribuio dos
convidados obedeam estritamente s regras da mais fina etiqueta.
Meu pai era um sujeito relaxado, que s vezes ia de pijama receber as visitas.
Mas ele chamava de "senhor" cada mendigo que o abordava na rua, e sem
que ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades
necessitava de mais demonstraes de respeito do que as pessoas em
situao normal. Quanto mais respeitoso, mais cuidadoso, mais escrupuloso
cada um no deveria ser ento com um amigo que, vencendo a natural
resistncia de mostrar inferioridade, vem lhe pedir ajuda! Esta regra
elementar sistematicamente ignorada entre as nossas classes mdias e
altas, principalmente por aquelas pessoas que se imaginam as mais cultas,
as mais civilizadas e valha-me Deus! as mais amigas dos pobres.
Ainda h quem diga: "Mas se voc d dinheiro o sujeito vai beber na primeira
esquina!" Pois que beba! To logo ele o embolsou, o dinheiro dele. Vocs
querem educar o pobre "para a cidadania" e comeam por lhe negar o direito
de gastar o prprio dinheiro como bem entenda? Querem educ-lo sem
primeiro respeit-lo como um cidado livre que atormentado pela misria
tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um
banqueiro falido? Querem educ-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de
que sua pobreza uma espcie de menoridade, de inferioridade biolgica
que o incapacita para administrar os trs ou quatro reais que lhe deram de
esmola? No! Se querem educ-lo, comecem pelo mais bvio: sejam
educados. Digam "senhor", "senhora", perguntem onde mora, se o dinheiro
que lhes deram basta para chegar l, se precisa de um sanduche, de um
remdio, de uma amizade. Faam isso todos os dias e em trs meses vero
esse homem, essa mulher, erguer-se da condio miservel, endireitar a
espinha, lutar por um emprego, vencer.
O mesmo pobre que pode comer um frango por dia tem de com-lo na
calada, com os ces, porque no tem acesso aos lugares reservados aos
seres humanos. Est certo que voc, gerente do restaurante, fique
constrangido de botar um sujeito estropiado e fedido no meio dos seus
clientes distintos. Mas no v que mand-lo comer na rua mais falta de
educao ainda? Pelo menos d-lhe de comer num cantinho discreto,
converse com ele sobre as dificuldades da vida, oferea-lhe uma camisa, uma
cala. Seja educado, caramba! Pois se voc, que est bem empregado e bem
vestido, tem o direito de ser grosso, que primores de polidez pode esperar do
pobre? Se um dia, cansado de levar chutes, ele o manda tomar naquele
lugar, no se pode dizer que esteja privado do senso das propores. E no
me venha com aquela histria de "Se eu tratar bem um s mendigo, no dia
seguinte haver uma fila deles na minha porta". Isso pode ser verdade em
casos isolados, mas no no cmputo final: se todos os restaurantes tratarem
bem os mendigos, logo haver mais restaurantes que mendigos. Conte os
mendigos e os restaurantes da Avenida Atlntica e diga se no tenho razo.
Isto sem que entrem no clculo os bares e padarias.
O brasileiro de classe mdia e alta est virando uma gente estpida que
clama contra a misria no meio da abundncia porque cada um no quer
usar seus recursos para aliviar a desgraa de quem est ao seu alcance, e
todos ficam esperando a soluo mgica que, num relance, mudar o quadro
geral. Sofrem de platonismo outrance: crem na existncia de um geral em
si, dotado de substncia metafsica prpria, independente dos casos
particulares que o compem.
Por isso que quando a propaganda do Collor inventou aquela coisa de "No
votem em Lula porque ele vai obrigar cada famlia de classe alta a adotar um
menino de rua", eu me disse a mim mesmo: "Raios, se isso fosse verdade eu
ficaria satisfeito de votar no Lula." S acredito em gente ajudar gente, uma
por uma, no na mgica platnica das "mudanas estruturais", pretexto de
revolues e matanas que resultam sempre em mais pobreza ainda.