Merleau-Ponty - Movimentos Do Corpo e Do Pensamento
Merleau-Ponty - Movimentos Do Corpo e Do Pensamento
Merleau-Ponty - Movimentos Do Corpo e Do Pensamento
Resumo
O artigo caracteriza-se como um pequeno ensaio em torno dos
movimentos do pensamento sobre o corpo na obra do filsofo
francs Maurice Merleau-Ponty. O primeiro movimento diz respeito
a alguns dados biogrficos, seu envolvimento com a poltica, com a
histria, com a cultura. O segundo movimento trata das relaes
corpo-conscincia e do abandono da tese da percepo em
direo a experimentao do corpo no mundo. O terceiro
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movimento anuncia o sensvel, a estesia do corpo e do
movimentar-se.
vivncia
Palavras-chaves: Merleau-Ponty; corpo; fenomenologia.
Abstract
The article is characterized as a small test around the movements
thought on the body from the French philosopher Maurice Merleau- 127
Ponty works. The first motion relates to some biographical data
about Merleau-Ponty, his involvement with politics, with history and
with culture. The second motion deals with the body-consciousness
relation and the abandonment of the perception thesis towards
experimentation of the body in the world. The third movement
announces the sensitive and aesthesia of the body and the moving
around.
keywords: Merleau-Ponty; body; phenomenology.
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Toda comemorao tambm traio...
Esse ano comemora-se o centenrio de nascimento do filsofo francs
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Nessas ocasies comemorativas, vale
lembrar a advertncia do prprio Merleau-Ponty (1991, p.175), dirigindo-se ao
pensamento de Husserl, sobre o risco da traio:
Diante de um filsofo, cujo empreendimento despertou tantos
ecos (...), toda comemorao tambm traio, seja porque
lhe prestamos a homenagem suprflua de nossos
pensamentos (...), seja porque, ao contrrio, com um respeito
cheio de distncia, o reduzimos muito estritamente ao que ele
prprio quis e disse.
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Entre 1942 e 1945 publica duas importantes obras: A Estrutura do
comportamento e Fenomenologia da Percepo, ambas voltadas para a reflexo
sobre o corpo, a conscincia, a racionalidade.
Merleau-Ponty lecionou em importantes instituies como a Sorbonne e o
Collge de France, influenciando uma gerao de novos alunos, sendo que alguns
deles, mais tarde, tornaram-se grandes pensadores, tais como Foucault, Le
Breton, Pontalis, Lefort, entre outros.
Foucault acompanhou vrios cursos de Merleau-Ponty, entre eles o
famoso curso sobre as cincias do homem e fenomenologia. Esse texto foi
publicado no Brasil pela primeira vez, sob os cuidados de Salma Tannus Muchail e
recentemente recebeu uma nova edio (Merleau-Ponty, 1973; 2006).
Ele exercia sobre ns uma fascinao, diz Foucault (2006) sobre
Merleau-Ponty em Ditos e Escritos. Fascinao que no o impediu de fazer
importantes crticas fenomenologia e fenomenologia de Merleau-Ponty, em
particular sobre a significao.
Essa crtica merece um estudo mais especfico sobre a fenomenologia de
Merleau-Ponty. Em obras como A prosa do mundo (1969), em cursos ministrados
sobre a linguagem ou sobre a natureza, encontramos uma compreenso de
linguagem e de significao que ultrapassa a idia de um sujeito consciente ou de
significaes no plano lingstico.
Outro aspecto da vida e do pensamento de Merleau-Ponty diz respeito
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poltica. Merleau-Ponty viveu a Segunda Guerra Mundial e a ocupao da Frana
pelos alemes. Junto com Sartre e outros intelectuais franceses fez parte da
vivncia
Resistncia, em um grupo chamado Socialismo e Liberdade. Com o fim da
Guerra, funda com Sartre a Revista Les Temps Moderns da qual ser o editor
poltico at 1952.
uma poca de vigor do pensamento marxista, escreve vrios artigos,
publicados em Humanismo e Terror (1947) e As aventuras da Dialtica (1955).
Nestes escritos, marca suas divergncias polticas com Sartre ao criticar as 129
interpretaes mecanicistas do marxismo que afetam a compreenso da dialtica,
dos movimentos revolucionrios e da Histria.
Em 15 de janeiro de 1952, Merleau-Ponty pronuncia no Collge de
France sua aula inaugural intitulada O elogio da filosofia, cujo texto foi publicado em
1953. Neste ensaio, diz que o que caracteriza o filsofo o movimento que leva
incessantemente do saber ignorncia, da ignorncia ao saber e certo repouso
neste movimento, anunciado um novo estilo de exercer o ofcio da filosofia: como
movimento na histria (Merleau-Ponty, 1953).
Por ocasio da eleio de Merleau-Ponty para o Collge de France, a
Acadmie des Sciences Morales inverteu a ordem dos eleitos e definiu o segundo
colocado como titular, o mesmo ocorreu com a eleio de Foucault, em 1969. Em
casos de conflito como estes, o Ministrio da Educao o fiel da balana e
tradicionalmente define-se em favor da posio dos membros do Collge, como
aconteceu com Merleau-Ponty e com Foucault.
Merleau-Ponty teve uma atuao decisiva na eleio de Lvi-Strauss
para o Collge de France, ao escrever o memorial para a criao de uma ctedra
sobre antropologia social, lido por ele na Assemblia dos professores, em 1958.
Em entrevista concedida a Didier Eribon, em 1988, Lvi-Strauss (2005, p. 93)
ressalta o empenho de Merleau-Ponty na criao da referida ctedra:
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No apenas apresentou como sacrificou trs meses de uma
vida cujo fio ia romper-se muito brevemente (...). Merleau-
Ponty empenhou-se muito, fez visitas, escreveu cartas, to
bem que no houve proposta de criao da cadeira em
oposio dele.
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Merleau-Ponty da revista e mesmo do convvio com Sartre. Encontraram-se em
poucas ocasies e falaram algumas vezes por telefone, como na ocasio da morte
da me de Merleau-Ponty; ocasio de profundo pesar e mesmo de uma despedida
de suas doces lembranas da infncia, como comenta Sartre. Mesmo com o
afastamento entre ambos, por ocasio da morte de Merleau-Ponty, Sartre reafirma
o afeto e o respeito pelo amigo e pelo filsofo que, para ele, continuava e
continuaria sempre muito vivo.
No Psfcio de O Visvel e o Invisvel, Claude Lefort diz que a morte de
um amigo nos pe beira de um abismo. Tanto mais que nada a fazia supor, o
que ocorreu no se pode imputar doena, velhice. Ainda mais quando aquele
que morre est vivo a ponto de ligar nossos pensamentos aos seus, de nele
procurarmos as foras que carecemos. Tal foi a repentina morte de Maurice
Merleau-Ponty. A obra est a termo e o termo veio depressa demais, mas esse
lamento nada pode contra a evidncia de que a obra nasce no momento em que
se encerra.
Com a obra a termo, cabe-nos a tarefa de buscar o movimento das idias
e da prpria reflexo. Nas primeiras obras Merleau-Ponty se manteve no campo da
filosofia da conscincia - conscincia perceptiva, o que j representava uma
ruptura com a tradio filosfica, mas ele mesmo no deixou de apontar as
dificuldades para mover-se no interior desses parmetros que era objeto de sua
crtica, a saber: o cogito, a conscincia, a racionalidade, a percepo, a linguagem.
Em entrevista concedida a Madeleine Chapsal, em fevereiro de 1958,
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Merleau-Ponty (2000 a, p. 287) afirma que a vida filosfica no deve se destacar
da vida cotidiana e que o filsofo deve pensar o mundo de toda a gente.
Expresso que se refere necessidade da filosofia dialogar com a cultura, com a vivncia
experincia vivida, com a histria e com as produes do conhecimento. Merleau-
Ponty ir insistir na abertura da filosofia vida, cincia, historicidade,
subjetividade e cultura.
O dilogo com a literatura, o cinema, a pintura provocou deslocamentos
em sua fenomenologia. A explorao da pintura, da poesia, das imagens do cinema
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nos d uma nova viso do tempo e do homem, bem como outras maneiras de
perceber a cincia e a filosofia. Em obras como Signos, O olho e o Esprito, O
Visvel e o Invisvel encontra-se um acerto de contas com a fenomenologia de
Husserl e o deslocamento de uma filosofia da conscincia para uma profunda
meditao sobre o corpo e sua experincia cinestsica, cuja estesia ser
expressiva de uma nova filosofia ou de uma nova maneira de fazer filosofia.
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como posse intelectual do mundo por um sujeito consciente. Far esse
questionamento por meio da percepo, compreendida como cinestsica, ligada
ao corpo e sua capacidade de criar movimentos.
Nessa crtica a uma viso mecanicista do corpo, destacam-se noes
importantes, tais como a noo de corpo-prprio e a noo de motricidade. A noo
de corpo-prprio envolve as relaes entre ter e ser corpo. No estou diante do
meu corpo, sou meu corpo. Merleau-Ponty (1945), assim como fizera Nietzsche
anteriormente, afirma uma ontologia do corpo, uma afirmao do sujeito no pelo
cogito, razo ou conscincia, mas pela sua condio corprea.
A ontologia do corpo apresentada por Merleau-Ponty ir se afastar das
noes de sujeito ou de conscincia, tomando como referncia a percepo dos
movimentos do corpo. Nesse contexto, a noo de motricidade refere-se
intencionalidade do movimento e do gesto, no sentido de mover-se no mundo, criar
horizontes, alargar a experincia vivida, em direo aos projetos, expresso,
sexualidade. No se trata de uma intencionalidade de juzos, raciocnios lgicos,
mas de uma cinestesia possvel pela nossa condio corprea. Essas noes iro
alargar a materialidade biolgica e contribuir para problematizar os determinismos
cientficos faces experincia do corpo vivo. Merleau-Ponty ultrapassa o
determinismo biolgico, a viso naturalista ou inata para tratar do corpo, do seu
movimento, dos seus afetos.
Uma leitura mais atenta da obra do filsofo indica que j na
Fenomenologia da Percepo, Merleau-Ponty (1945) apresenta movimentos da
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experimentao de um sujeito encarnado, sujeito que corpo, visvel e invisvel
para si prprio (presena e ausncia de si), um corpo imbricado no mundo, um
corpo que se move.
Merleau-Ponty (1992, p. 21) afirma que antes da cincia do corpo que
implica a relao com outrem -, a experincia de minha carne como ganga de
minha percepo ensinou-me que a percepo no nasce em qualquer lugar, mas
emerge no recesso de um corpo.
A descrio dessa experincia vai alm do domnio cientfico, filosfico,
discursivo ou da lingstica. A criana compreende muito alm do que sabe dizer,
muito alm do que poderia definir e, alis, com o adulto, as coisas no se passam
de modo diferente (p.24). A vida da linguagem no se restringe ao domnio do
pensamento, exigindo a comunicao silenciosa do corpo.
A vida da linguagem, tal como a vida perceptiva, feita de
afastamentos (corrigidos, no de significaes), de
combinao de significaes acabadas. A origem da
linguagem mtica, ou seja, existe sempre uma linguagem
antes da linguagem que a percepo. Arquitetnica da
linguagem (Merleau-Ponty, 2000b, p. 353).
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objetiva tambm pode ser considerada como empobrecimento (Merleau-Ponty,
2006).
A imbricao entre o corpo e o mundo a propsito do tempo, do espao, vivncia
do movimento, das relaes com o outro , apresentada nesta compreenso da
fenomenologia de Merleau-Ponty, tm impulsionado novas prticas em reas
como a educao fsica, novas maneiras de se movimentar para alm do
deslocamento mecnico das partes do corpo no espao, dos contedos e mtodos
de ensino tradicional, dos preconceitos em relao aptido fsica, padres 133
corporais, relaes de gnero, ensino da leitura e da escrita, entre outros aspectos
que configuram certas prticas educativas.
As experincias com a formao de professores de arte e de educao
fsica que temos desenvolvido mostram possibilidades de convivncia com o corpo
que se inspiram nas teses fenomenolgicas. Nestas, a experimentao das
tcnicas corporais procura aprofundar a relao do ser-no-mundo, compreender a
espacialidade do corpo, a tonicidade, a linguagem do gesto, do silncio e da voz. As
experincias do contato humano, dos gestos construdos em diferentes culturas
amplificam o olhar como campo da experincia sensvel e as dobras entre corpo,
mundo, relaes com o outro. Este apenas um exemplo de como o pensamento
de Merleau-Ponty tem impulsionado novos movimentos contemporneos, prticas
e projetos educativos que estendem o alcance da filosofia e que tambm
disponibilizam sentidos para a reflexo filosfica.
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O poema Os acrobatas, de Vincius de Moraes, com a interpretao
magnfica de Camila Morgado, no filme de Miguel Faria Jnior, um exemplo da
estesia do corpo, nesse caso como acontecimento da obra de arte, em particular da
poesia, do teatro e do cinema. Na cena, a materializao da palavra pulsa na voz,
no corpo da atriz. Ela nos transporta, os nossos sentidos se mobilizam.
(...) Subamos! Subamos acima
Subamos alm, subamos acima do alm, subamos!
Como dois atletas. O rosto petrificado no plido sorriso do
esforo
Subamos acima, com a posse fsica dos braos e os msculos
desmesurados, na calma convulsa da ascenso (...).
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empiria e h uma carne da contingncia, uma virtude prpria
do plano esboado que no impedem a pluralidade de
interpretaes, que so mesmo sua razo profunda, que fazem
desse plano um tema durvel da vida histrica e tm direito a
um estatuto filosfico (Merleau-Ponty, 2004, p. 34).
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So referncias que podem contaminar uma compreenso de uma
educao fsica, entendida como cultura de movimento, cujos limites, contornos,
vivncia
posies no espao no sejam unificadas ou unificadoras, mas permitam
diferentes aproximaes, pontos de vista, trajetrias, linhas de fora, novos
investimentos na sensorialidade, na capacidade fisiolgica, simblica, histrica,
afetiva de impresso dos sentidos (tocar, olhar, sentir), e assim criar outros modos
de ser corpo, de conhecer, de desejar, de viver.
Talvez essa fenomenologia do corpo possa animar, movimentar as 135
nossas estruturas corporais e espirituais, bem como as estruturas dos espaos
educativos, dos currculos, dos horrios, dos exames. Confundir as nossas
categorias lgicas, como fez Maria Petrova, em Paris 1994, como faz tantos outros
sujeitos annimos, professores e professoras em suas salas de aula, como fez
Merleau-Ponty em sua obra.
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