DAMISCH. O Desaparecimento Da Imagem
DAMISCH. O Desaparecimento Da Imagem
DAMISCH. O Desaparecimento Da Imagem
Hubert Damisch
No exergo de algumas observaes sobre o des- THE DISAPPEARANCE OF THE IMAGE | Art
tino das imagens, o seu desaparecimento, mas historians are not necessarily visual in the
tambm a sua volta, a sua circulao, invocarei o Freudian sense of the word. However, the history
of art shares with hysteria, or rather, with the
testemunho de Ernst Jnger: A onde as imagens cure of hysteria, the circumstance of promoting
desaparecem, elas devem ser substitudas por an unprecedented return of images. A material
imagens, caso contrrio h ameaa de perda.1 return, since, through its intermediation, several
O problema consiste em saber a que contexto, images are reintroduced into the market and
critical circuit; but also an emotional return,
individual ou coletivo, se refere essa afirmao e
in the true archaeological sense, in the form
o que se deve entender aqui por imagens, as- of remembering, anamnesis, invention. |
sim como por seu desaparecimento, para nada Psychoanalysis and history of art, a looking
dizer da perda, que poderia ser seu corolrio. exercise, translation into images.
Pois existem mltiplas formas de imagens, como
existem, para as imagens, mltiplas maneiras de desaparecer. O tempo apaga as imagens, como tambm
apaga os escritos. Seu desaparecimento material, entretanto, no implica a permanncia de nenhum
trao na memria dos homens. Assim como escreve ainda Ernst Jnger a propsito da poesia ou das
imagens da arte, alguma coisa de indelvel produziu-se. O indivduo pode esquecer que um grande
poema ou a Mona Lisa o entusiasmaram. Isso o transformou apesar de tudo (...) Talvez tenha at esque-
cido seu prprio nome o envelhecimento no apenas desentulho; tambm ordenao.2 O que nos
remete ao problema contrrio ao do desaparecimento, o da conservao no psiquismo que abre
O mal-estar na civilizao, acerca do pretenso sentimento ocenico e das repercusses que podem
suscitar no registro do imaginrio. Uma imagem pode no estar mais presente na conscincia; nem
que ningum prestava ateno: tal como A Vnus ocorrer de outro modo quando se trata do traba-
adormecida, de Dresde, por muito tempo conde- lho de interpretao. E como admitir, efetivamen-
nada ao anonimato, como sob o efeito de uma te, ao menos no campo dos estudos sobre a arte,
perturbao de memria, e que bastaria ostentar que a anlise possa ter como consequncia o fato
novamente o prestigioso nome de Giorgione para de as imagens se desfazerem pouco a pouco e
que retornasse, no final do sculo passado, ple- se tornarem cada vez mais esmaecidas, at que
na luz dos sales de exposio. desapaream completamente, ao modo seria
preciso repeti-lo? Sim, sem dvida, e teremos de
Se insisto no trabalho propriamente arqueolgico
conservar algo de tocante (eu disse bem: tocante),
que se encontra no ponto de partida da histria
o modo de presena que pode ser o das imagens
da arte, sem que por essa razo ela a isso se re-
da arte de um Geist, um espectro, um fantasma,
duza, e que lhe fornece o material que lhe indis-
um retornante, que, ao ser liberto, redimido (mas
pensvel e, ao mesmo tempo, um olhar exercido em erlsen h lsen: desatar, desenredar, re-
desde o primeiro contato, porque, evidente- solver, como se diria de um problema ou de um
mente, tal trabalho apresenta, com relao psi- enigma), encontraria finalmente descanso. Se a
canlise, uma forte carga metafrica. Ora, parece interpretao e a prpria descrio tm um sen-
tade, tema pintado pelo mesmo Giorgione, cujo assim dizer inslito (e enfatizo aqui a palavra as-
nome acabamos de evocar a propsito de A pecto), sob o qual se apresentava a cena tal como
Vnus adormecida: La tempesta interpretata.4 fora pintada por Giorgione para satisfazer enco-
Tratando-se de um quadro to clebre quanto o menda que lhe havia sido feita do quadro:
intitulado A tempestade, a ideia de um retorno Em A tempestade, como em Picco dela Miran-
da imagem, de uma volta, s claras, s salas de dola, Ado no ergue o rosto arrogante do re-
exposio, , certamente, desprovida de sentido. belde na direo da clera divina; ele apresen-
E, no entanto, se imagem existe nesse caso par- tado, no comeo da histria humana, depois da
ticular, o problema ocasionado pelo que chama- expulso do den, cercado de hierglifos que
mos, de modo to equvoco, de seu assunto, es- traam os limites de seu destino, ou seja, o tra-
tar de volta do modo mais insistente na literatura balho, o sofrimento, o pecado e a morte. Sob o
sobre a arte, antes mesmo daquele dia de 1932 em clamor da voz divina, a conscincia de si parece
que A tempestade entrou nas colees da Galeria traduzir-se, em primeiro lugar, por uma medita-
de Veneza: como se a obscuridade das reservas em o sobre o lugar do homem no mundo.5
que estava encerrada a Vnus em Dresde tivesse
sido substituda, no caso, por essa, mais densa ain- O enigma que A tempestade representou durante
da, do enigma que esse quadro proporia. muito tempo para os historiadores da arte, an-
tes que Settis tivesse a inteno de tornar visvel
No tenho a inteno de discutir aqui a soluo
o que chama de tema escondido, esse enigma,
encontrada por Settis, isto , de que se trataria, no
que o ttulo do quadro vem duplicar, correspon-
caso, de um exemplo particularmente bem reali-
deria, desse modo, ao que teria sido o programa
zado dos jogos eruditos com que se entretinham
da obra at mesmo em sua forma, seu princpio,
os nobres venezianos que eram os comanditrios
sua estrutura: sendo de responsabilidade do pin-
de Giorgione, e dos mistrios ou dos enigmas sob
tor transformar um esquema iconogrfico tradi-
cujos vus eles ofereceriam a seu cenculo mat-
cional e dele fazer uma imagem cifrada que cor-
ria para interrogar-se e meditar. Se levssemos em
responda ao anseio do comanditrio. Ora, seja o
conta a demonstrao que ele pretende fazer a
que for que Settis pretenda, e ainda que a soluo
partir de fontes iconogrficas bem-vindas, A tem-
a que ele chegou comportasse, como se diz, uma
pestade reduzir-se-ia a uma imagem de Ado e
parcela de verdade (mas essa verdade, como
Eva em trajes modernos (ao menos, no caso de
entend-la, e como lev-la em conta?), essa inter-
Ado, pois vestida a pretensa Eva quase no est),
como por negligncia, wie durch Nachalssigkeit os outros aspectos da imagem, um detalhe at en-
(enfatizo), apresentava num buraco, e, ao qual, o to negligenciado. H, nesse sentido, na Tempes-
paciente deveria acrescentar depois uma cabea, tade de Settis, um caso de serpente acerca do qual
designando com isso uma pessoa, indicando uma o mnimo que se pode dizer que est mal escla-
relao.10 recido. Mas como compreender que uma imagem
que era primeiramente esmaecida (undeutlich) e
A histria da arte no procede de outro modo: a incompleta (unvollstndig), como o pode ser a
pesquisa das fontes ou a constituio de um cor- percepo fugidia que se tem de um quadro, num
pus iconogrfico supe que se deixe de lado, por museu pelo qual apenas se passa, como compre-
meio de um jogo de associaes que pode condu- ender que essa imagem possa ganhar em nitidez
zir a acentuar, por um efeito de emolduramento e enriquecer-se progressivamente; e, ao mesmo
caracterizado, que expulsa para fora do campo tempo, que a prpria descrio que o paciente
Giorgione, Festa campestre, 1508-1509, 110 x 138cm. Museu do Louvre, Paris. Concert champtre
atualmente atribudo a um trabalho da juventude de Ticiano, discpulo de Giorgione
3 Freud, Sigmund Freud; Breuer, Joseph. Stdien 9 Freud, Breuer, op. cit.: 86; ed. francesa: 5.
ber Hysterie, G. W., I: 282-283/tudes sur lhysterie,
10 Idem, ibidem: 284; ed. francesa: 228.
Paris:, 1967: 226-227.
11 Freud, Sigmund. Linterprtation des rves. Paris:
4 Settis, Salvatore. La tempest interpretata. Turim,
1967: 1.
1978. O editor francs quis, sem sombra de dvi-
da, desfazer a armadilha que esse ttulo por demais 12 Freud, Breuer, ed. francesa, op. cit.: 151.
seguro e peremptrio encobria, substituindo-o por 13 Joyce, James. Ulysse. Paris: 1948: 179.
outro, cuja ambiguidade, do nosso ponto de vista,
14 Freud, 1967, op. cit.: 52.
reveladora: A inveno de um quadro: A tempesta-
de, de Giogione, 1987. 15 Idem, ibidem: 90.
5 Settis, op. cit.: 13. 16 Leiris, Michel. Journal. Paris: , 1992: 82.