Psicanálise e Mitologia Grega
Psicanálise e Mitologia Grega
Psicanálise e Mitologia Grega
M yths are the nothing that represents everything. Psychoanalysis owes much
to the Greeks, especially in relation to their mythology. Myths are the
cornucopia where Freud found several of his main prototypes, developed in his
brilliant metaphors and presented as the basis for many of the central concepts
of psychoanalysis. Our aim in this paper is to describe psychoanalytical myths,
such as those of Oedipus, the Phallus and Castration, the Primal Horde, Primal
Phantasies, the Primal Scene, Narcissus, the Instincts, Eros, Thanatos and, finally,
the Unconscious, which is the truly central myth of psychoanalysis.
Key words: mythology, psychoanalysis, Greek mythology, Freud
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crita, enquanto um trabalho dedicado para si aquela que foi feita s para ele.
exclusivamente ao complexo e todos Que dele e de mais ningum. Esse al-
seus desdobramentos. No entanto, com- gum, pai terrvel, capaz de tudo para
parece em diferentes obras como: A in- mant-la s para si. Ele a exige. Ele a
terpretao dos sonhos (1900), Trs monopoliza. Ele a tiraniza. Ele a impede
ensaios sobre a teoria da sexualidade de entregar-se para o filho. Ele a domi-
(1905), Contribuies psicologia do na e a obriga a am-lo. Ele a convence
amor (1912), Totem e tabu (1912), a fazer coisas terrveis, entregar-se para
Psicologia das massas e anlise do ego ele. Ele a toma, a usa, a ama. Ele, esse
(1921), A dissoluo do complexo de pai todo-poderoso, a quer como mulher.
dipo (1924), O ego e o id (1923), E o filho seu rival. Luta de Tits se
Algumas conseqncias psquicas da arma. Pai e filho na arena. Do combate
diferena sexual anatmica (1925), terrvel s pode sair um vencedor.
Inibio, sintoma e angstia (1926), O Complexo de Electra. Esse complexo
As conferncias introdutrias (1917) e no existe. Proposto por Jung, foi rejei-
as Novas conferncias (1933) etc. tado por Freud, que concebia o mesmo
Talvez o mito de dipo seja o fio de complexo de dipo tanto para os meni-
Ariadne para quem percorre o labirinto nos, como para as meninas. Assim, o
das mais de duzentas obras publicadas que existe complexo de dipo femini-
por Freud. Devemos discutir esse com- no. Naturalmente, nas mulheres o com-
plexo atentando para sua expresso no plexo mais complexo. Mais rico, mais
masculino e no feminino: intrincado, mais instigante. A mulher
O Complexo de dipo. Um menininho olha ama outra mulher, sua me. Quer tudo
sua me se penteando. Nenhuma outra dela, sua beleza, sua fora, seu fascnio,
mulher parece to bela como aquela, ne- seu marido. Percebe, com inquietante
nhuma se iguala quela em graa, em certeza, que aquele ser que gera um
possibilidade de amor, em reserva de poo. Poo dos desejos, poo da vida,
proteo carinhosa, em abismos de ter- poo dos prazeres, poo de dor, poo
nura. Quer essa mulher, quer tanto e to dos possveis. A pequena mulher rivali-
profundamente que seu sentimento no za com a me. A quer para si, e quer
cabe dentro dele. Quer possu-la, quer suplant-la. De repente percebe (veja-se
conhec-la, quer fundir-se nela, quer a seguir uma descrio disso) que essa
control-la, quer satisfaz-la, quer mer- mulher castrada, como ela. Volta-se
gulhar nela. Sonha acordado e dormindo imediatamente para o pai. Passa a desej-
com ela. Devaneia. Deseja. Anseia. Seu lo e a desejar ser desejada por ele. Quer
amor ciumento e possessivo e logo a boneca, o filho e o rgo mgico que
descobre o que est no seu caminho. produz filhos. Quer ser mulher e me.
Existe algum. Existe um ser odiado e Feminiliza-se. Aprende as manhas, as
temido que se interps e reclama toda artimanhas e a arte de ser a mulher-fon-
Psicanlise e mitologia grega 11
te, a mulher-terra, aquela que d, ori- e Febe de urea coroa e Ttis amorosa.
gem. E aps com timas armas Cronos de curvo
O Mito do Falo e da Castrao: No incio, pensar,
diz Hesodo, Urano, pai poderoso e cruel, filho o mais terrvel: detestou o florescen-
devorava cada um dos filhos que Ga, a te pai.
(...)
Terra, lhe dava. Um dia esta esconde
Veio com a noite o grande Cu, ao redor da
Cronos, deus do Tempo, que assim que
Terra
se torna forte, luta contra e ir castrar Desejando amor sobrepairou e estendeu-se
seu pai, assumindo seu lugar. Assume a tudo. Da tocaia o filho alcanou com a
tambm sua arrogante egolatria e engo- mo
le os filhos que Ra, a Terra, concebe. esquerda, com a destra pegou a prodigio-
Essa tambm esconde um filho e Zeus, sa foice
forte um dia, o enfrenta e o castra com longa e dentada. E do pai o pnis
uma foice de ouro. Zeus d incio, ento, ceifou com mpeto e lanou a esmo para trs.
ao Ciclo dos Olimpianos, os deuses do (Hesodo, 1992: 113 segs.)
Olimpo. Freud mostrou as conexes da
O Complexo de Castrao. Nos homens
castrao com a vida mental dos meni-
esse poderoso complexo o que auxilia
nos e das meninas, falou, para fria dos
o menino a renunciar me. Abandona
seus contemporneos e de muitos ps-
a me, para encontrar a mulher. Median-
teros, que a castrao o que organiza
te seu amor por si mesmo, e a essa par-
a identidade sexual. O falo, e no o p-
tezinha to poderosa e valorizada,
nis, o organizador da sexualidade. A
consente em ceder a me ao pai e a pre-
anatomia o destino, diz o helnico
servar-se inteiro. Narciso re-encontrado,
Freud.
mas excludo do paraso, vai em busca
Terra primeiro pariu igual a si mesma de sua identidade. Heri que perambula
Cu constelado, para cerc-la toda ao redor pela Grcia de sua juventude, exilado do
e ser aos Deuses venturosos sede irresva- lar, em busca da aventura que o afirmar
lvel sempre. como homem. Quem se castra simboli-
Pariu altas Montanhas, belos abrigos das camente pode partir liberto. Pode procu-
Deusas rar-se.
ninfas que moram nas montanhas frondo-
O complexo de castrao nas mulheres
sas.
desencadeia-se pela descoberta da dife-
E pariu a infecunda plancie impetuosa de
ondas
rena sexual anatmica. A menina olha o
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu menino, se olha, compara ambos os cor-
do coito com Cu: Oceano de fundos re- pos. V nele uma coisa externa, interes-
moinhos sante, produtora de prazer e de inusitada
e Coios e Crios e Hiprios e Jpeto vida prpria. Olha para si e v a gruta,
e Tia e Ria e Tmis e Memria que ainda no sabe que um poo. a
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ainda hoje em dia s parcialmente. (Ibid.: Estruturas fantasmticas tpicas (vida in-
1589 traduo minha) trauterina, cena originria, castrao, sedu-
o) que a psicanlise descobre organizan-
Na mitologia grega no encontramos um
do a vida fantasmtica, sejam quais forem
exato paralelo com o mito da horda pri- as experincias pessoais dos indivduos: a
mitiva, mas sem dvida essa forma de universalidade destes fantasmas explica-
organizao social era a que os cultos se, segundo Freud, pelo facto de consti-
gregos supunham que prevalecia nos turem um patrimnio transmitido filoge-
povos brbaros fora da Hlade. Por neticamente. (Laplanche & Pontalis, 1976:
exemplo, na Odissia, Homero descre- 486-7)
ve que os ogros eram devoradores de
As protofantasias so uma idia maravi-
carne humana, e por isso desconheciam
lhosa: h algo estruturante, anterior ao
qualquer lei, qualquer ordem social. Edith
Hamilton, em sua magistral Mitologia, ser humano individual, algo que o mode-
tambm acentua que o sacrifcio huma- la como o destino para os gregos. Esse
no, seguido de devorao, era a mais alta algo o impulsiona, o obriga, o conforma:
ofensa que se poderia infringir a quem essa constituio que o homem traz des-
quer que fosse, inclusive e principalmen- de que nasce , ao mesmo tempo, aqui-
te, aos deuses. Estes puniam ao ofensor lo que sua liberdade, sua afirmao.
no apenas com sua prpria vida, mas Seremos os escultores desse barro com
pelas geraes vindouras, podendo atin- o qual somos feitos.
gir os descendentes at da quinta gera- Mircea Eliade pensa as origens do mito
o. Foi o que se deu com Tntalo, rei em simetria:
da Ldia, que lanou sua casa real em O indivduo evoca a presena dos persona-
desgraa. (Hamilton, 1983, A casa dos gens dos mitos e torna-se contemporneo
tridas, p. 357 e segs.) deles. Isso implica igualmente que ele dei-
O Mito das Protofantasias: No umbigo do xa de viver no tempo cronolgico, passan-
inconsciente se abrigam certas fantasias do a viver no Tempo primordial, no Tempo
muito arcaicas, so as Urphantasien, as em que o evento teve lugar pela primeira
protofantasias. So elas: a fantasia do vez. por isso que se pode falar no tem-
assassinato do pai (que tanto remete ao po forte do mito: o Tempo prodigioso,
complexo de dipo quanto ao mito da sagrado em que algo de novo, de forte e
de significativo se manifestou plenamente.
horda primitiva), a fantasia da seduo
Reviver esse tempo, reintegr-lo o mais fre-
da me (obviamente, aquelas mulheres
qentemente possvel, assistir novamente
todas deviam buscar atrair outros ma- ao espetculo das obras divinas, reencon-
chos, e no h dipo sem uma Jocasta), trar os Entes Sobrenaturais e reaprender
o mito da Cena Primria, o mito da vi- sua lio criadora o desejo que se pode
vncia do feto no interior do tero e o ler em filigrana em todas as reiteraes ri-
Mito da Castrao. Laplanche e Pontalis tuais dos mitos. Em suma, os mitos reve-
as descrevem da seguinte forma: lam que o mundo, o homem e a vida tm
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uma origem e uma histria sobrenaturais, e siado, assombrado, governa nossas fan-
que essa histria significativa, preciosa e tasias de origem. Freud a concebeu, ini-
exemplar. (Eliade, 1972: 22) cialmente, como uma encenao que
O Mito da Cena Primria: No incio h procura dar conta de vivncias infantis
sempre uma relao. de uma relao traumatizantes, porque a criana no
que nasce tudo o que vive. Na origem do capaz de lidar com a angstia emergen-
ser humano est a relao sexual. Em te frente sua sexualidade, e projeta so-
sua origem mtica h tambm uma rela- bre seus pais seus fantasmas de
o sexual mtica, fundante. Para os n- concepo, nascimento e vida sexual.
dios Yanomami existiam dois gmeos Ao longo de sua obra, Freud vai desen-
primordiais, e um teve que copular na volver a noo da cena primria como
barriga da perna do outro para poder dar um dos organizadores bsicos da se-
xualidade infantil. Assim, a encontramos
origem a todos os homens. Na mitologia
nos escritos de 1908, sobre as teorias
grega o cu e a terra se conjugando
sexuais infantis, sobre a curiosidade se-
em abrao amoroso.
xual, e explorao das diferenas sexuais
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois anatmicas, e posteriormente em diver-
tambm sos outros trabalhos. Mas no caso cl-
Terra de amplo seio, de todos sede irresva- nico O homem dos lobos (1918) que
lvel sempre, encontraremos o mais dramtico relato
Dos imortais que tm a cabea do Olimpo
da importncia crucial da cena originria
nevado,
para a constituio de aspectos do psi-
E Trtaro nevoento no fundo do cho de
amplas vias,
quismo infantil e da organizao da neu-
E Eros: o mais belo entre Deuses imortais, rose. O pequeno paciente, quando tem
(...) apenas um ano e meio, semidesperta em
Ria submetida a Cronos pariu brilhantes seu bero e presencia seus pais no enlace
filhos: amoroso. A curiosa posio em que se
Hstia, Demter e Hera de ureas sandlias, encontra o casal lana o menino em de-
O forte Hades que sob o cho habita um vaneios excitados que, mais tarde, con-
palcio jugando-se s suas pulses pr-genitais,
Com impiedoso corao, o troante Treme- formaro uma estrutura complexa, onde
terra o pai ser representado como um lobo,
E o sbio Zeus, pai dos Deuses e dos ho- sexualizado e temido, fonte de fobia e de
mens, fascinao, e revivescncia de estruturas
Sob cujo trovo at a ampla terra se abala.
totmicas, herdadas filogeneticamente. O
(Hesodo, 1992: 111 e 131)
desvendamento da recordao dessa
Na psicanlise, a cena primria ou origi- cena o que permitir ao homem-lobo a
nria o pai e a me no ato amoroso que reconstruo de sua histria e o levanta-
nos gerou. Esse ato imaginado, fanta- mento da configurao de sua vida fan-
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