Martin Heidegger - Conferências e Escritos Filosóficos
Martin Heidegger - Conferências e Escritos Filosóficos
Martin Heidegger - Conferências e Escritos Filosóficos
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CONFERENCIAS E ,,,,,.
ESCRITOS FILOSOFICOS
sempre consegue fugir a esta tentao. o que muitas vezes mais chama a ateno e
encobre sua enorme contribuio para o pensamento do sculo XX.
Alm de recolocar a questo do ser numa dimenso que a libertou das iluses de
uma ontoteologia; alm de estabelecer uma distino clara entre as questes ontolgicas
e as questes nticas; alm de libertar definitivamente a filosofia e de separ-la das
vises de mundo; Heidegger destruiu o sentido ilusrio da metfora da reconciliao de
histria e natureza, enquanto ela implica uma busca de identidade absoluta. Esta metfo-
ra, base de todas as utopias, retoma, nele, suas verdadeiras dimenses: o_fz9merrz deve
assumir-se na finitude. de lamentar que tudo isto tenha permanecido implcito em seu
pensaniento,faltando-lhe o sentido da mediao, a impacincia do conceito,para dar-lhe
forma na praxis histrica .
.Dp_.!:J:IJmento do futuro, to visceral em Ser e Tempo, nunca chegou a ser concreti-
zado-em possveis formas histricas de reflexo. No podendo superar Hegel - tendo,
contudo, nas mos, o remdio para a cura da doena do absoluto-, nunca o enfientou
deveras; sempre acabou contornando-o. Por isso tornou-se to difcil o dilogo com o
pensamento marxista no-dogmtico e com os neo-hegelianos de Frankfurt. neles que
a idia utpica de uma reconciliao do homem com a natureza em sentido absoluto deu
lugar idia da maioridade, do processo de emancipao, da convivncia e comunicao
sem repressividade. Heidegger abriu o caminho, mas demasiadamente fiel a si mesmo,
no chegou dimenso crtica, onde tomamforma as interrogaes humanas no campo
da cincia, da tcnica, do processo emancipatrio, do humanismo, da praxis, enfim.
Boa parte do caminho que a est-se trilhando foi antecipado in nuce pelo filsofo
da Floresta Negra. Mas este no pde saltar sobre sua sombra. Talvez nesta fidelidade
a si mesmo esconda-se a grandeza de Heidegger; nela, porm, abriu ele os maiores flan-
cos para a crtica.
Os textos reunidos neste volume, que cobrem meio sculo, devem ser vistos e
compreendidos nesta perspectiva. Eles representam realmente todos os passos fundamen-
tais do pensador. So apenas uma pequena parte do que escreveu; mas so a concentra-
o de todos os temas centrais que Heidegger desenvolveu desde a grande aurora de Ser
e Tempo.
A presena de Sartre e Heidegger num s volume pode ser discutida. Mas so pala-
vras textuais deste: "Aprecio muito a Sartre"; isto sign(fica, certamente, tambm e sobre-
tudo, sua obra. na Carta sobre o Humanismo que se d o confronto direto do mestre
com um i11co11fundfrel disdpulo que, na sua perspecti1a, superou omisses do mestre.
Deste confi'onto, lana-se uma luz que poder dar a envergadura do debate e da anlise
fecunda que poder aproximar textos to distantes.
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QUE E ISTO-
A FILOSOFIA?
Nota do Tradutor
afinal, o caminho do questionamento porque por ela somos carregados e somente na me-
dida em que tornarmos transparente este ser possudo pela palavra somos capazes de
co-responder de maneira conveniente ao que a coisa mesma nos pe como tarefa.
H, finalmente, ainda um outro elemento que se repete nas trs exposies do filso-
fo: a questo do fundamento. Na primeira: por que o ser chegou a ser determinado como
fundamento no sentido de causa? Na segunda: por que o trao de identidade no ser se
trnou o princpio do fundamento? Na terceira: por que o ser tornou-se fundamento
fundamentante, enquanto causa sui? Em sntese: por que entificou a tradio metafisica
o ser do ente, essencializando-o?
Uma palavra de Holderlin serve-nos de sugesto para uma leitura ainda mais pro-
funda da unidade destes trs textos de Heidegger. O poeta diz no Hyprion: "A grande
palavra, o hen diaphron heaut (traduzo: o uno que em si mesmo se diferencia), de
Herclito, somente um grego pde descobrir; pois a essncia da beleza e antes de ter
sido encontrada no havia filosofia". O texto tirado do Banquete (187 a) de Plato,
onde se l: "Hen diaphermenon aut aut symphresthai''. "O uno", diz Herclito, "se
reencontra consigo mesmo, ainda quando tende para a diferena".
A identidade na diferena para Holder!in a essncia da beleza. Beleza significa
para o poeta, naquela poca, ser. Antes que se descobrisse que o enigma do ser est no
fato de ocultar em si mesmo a identidade e a diferena, no havia filosofia. Ou, ainda, o
ser somente ser porque em si mesmo identidade e diferena; a tarefa da filosofia
questionar o ser nesta dimenso, porque dela brota sua prpria possibilidade.
Quando Heidegger pergunta: Que isto - a filosofia?, ele acena imediatamente
para a questo da diferena ontolgica. Somente na correspondncia ao ser do ente o
homem pode filosofar e isto saber o que filosofia. Na questo da diferena ontolgica
se impem como plos determinantes a questo da identidade e a questo da diferena.
Desta maneira, pode-se concluir que os trs trabalhos de Heidegger, aqui reunidos,
devem ser meditados, no apenas nas questes que isoladamente levantam, nem mesmo
s nas questes que objetivamente abordam corrio comuns, mas tambm, e talvez sobre-
tudo, naquela unidade originria que os funde num s bloco: Hen diaphron heaut. Par-
tindo da pergunta da filosofia em geral, o filsofo vai ao princpio de identidade e deste
para a diferena. A questo: que isto - a filosofia? recebe sua resposta na anlise das
questes da identidade e da diferena. Como as questes da identidade e da diferena s
podem ser respondidas pela interrogao filosfica, pode-se concluir que as trs questes
se imbricam numa relao circular. Uma pressupe a outra. No h filosofia sem as
questes da identidade e diferena ontolgicas; mas tambm no se levantam estas ques-
tes sem a filosofia. O fato de estas questes sempre terem sidO postas implicitamente
pela humanidade aponta para a universalidade da atitude filosfica. Somente quando ho-
mens se puseram a interrogar explicitamente em torno delas comeou a filosofia. Para
Heidegger, entretanto, a metafisica se afastou deste comeo, esquecendo a questo da
diferena, dando, em conseqncia, uma resposta equvoca questo da identidade.
Retornar a estas questes pelo passo de volta revolver o solo em que mergulham as ra-
zes da metafisica ocidental.
Os problemas da traduo apresentados por estes textos so os mesmos de outros
do filsofo. Mais dificil foi a escolha de determinados termos que trouxessem no vern-
culo a carga e o poder evocador dos usados no original, quando o sentido lhes imposto
de fora. As notas que acrescentei ao texto podero apontar para a direo de onde vem
a traduo. Estou convencido de que a traduo de textos filosficos no garantida em
sua qualidade pelo simples domnio das duas lnguas em contato. preciso saber colo-
~--
210 HEIDEGGER
car-se na situao hermenutica adequada ao texto. Isto quer dizer: preciso saber ante-
cipar e projetar um sentido sobre a totalidade do tema que o texto aborda. Muitas luzes
para a traduo adequada s nascem desta capacidade antecipadora com que se envolve
o texto num sentido que a traduo das partes aos poucos confirma. A melhor traduo
sob o ponto de vista tcnico pode despersonalizar completamente um texto. E, por outro
lado, muitos textos filosficos terminam apresentando na traduo um carter diferente
do original porque o tradutor no assumiu a situao hermenutica adequada e projetou
a obra num falso horizonte hermenutico. nisto que se concentra a responsabilidade e
o risco do tradutor. Ele no apenas a ponte entre a lngua-fonte e a lngua-meta; tam-
bm, por excelncia, o mensageiro (Hermes) que veicula o sentido.
ERNILDO STEIN
1
Qu'EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE?
Com esta questo tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeter-
minado. Por ser indeterminado, podemos trat-lo sob os mais diferentes pontos de vista
e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema to
amplo, se interpenetrarem todas as opinies possveis, corremos o risco de nosso dilogo
perder a devida concentrao.
Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questo. Desta maneira,
levaremos o dilogo para uma direo segura. Procedendo assim, o dilogo conduzido
a um caminho. Digo: a um caminho. Assim concedemos que este no o nico caminho.
Deve ficar mesmo em aberto se o caminho para o qual desejaria chamar a ateno, no
que segue, na verdade um caminho que nos permite levantar a questo e respond-la.
Suponhamos que seramos capazes de encontrar um caminho para responder mais
exatamente questo; ento se levanta imediatamente uma grave objeo contra o tema
de nosso encontro. Quando perguntamos: Que isto - a filosofia?, falamos sobre a filo-
sofia. Perguntando desta maneira, permanecemos num ponto acima da filosofia e isto
quer dizer fora dela. Porm, a meta de nossa questo penetrar na filosofia, demorar-
mo-nos nela, submeter nosso comportamento s suas leis, quer dizer, "filosofar". O
caminho de nossa discusso deve ter por isso no apenas uma direo bem clara, mas
esta direo deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos tambm a garantia de que nos move-
mos no mbito da filosofia, e no fora e em torno dela.
O caminho de nossa discusso deve ser, portanto, de tal tipo e direo que aquilo de
que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque (naus touche), 2 e justa-
mente em nosso ser.
Mas no se transforma assim a filosofia num objeto de nosso mundo afetivo e
sentimental?
"Com os belos sentimentos faz-se a m literatura." "C 'est avec les beaux sentiments
que l'onfait la mauvaise littrature. "Esta palavra de Andr Gide no vale s para a lite-
ratura; vale ainda mais para a filosofia. Mesmo os mais belos sentimentos no pertencem
filosofia. Diz-se que os sentimentos so algo de irracional. A filosofia, pelo contrrio,
no apenas algo racional, mas a prpria guarda da ratio. Afirmando isto decidimos
sem querer algo sobre o que a filosofia. Com nossa pergunta j nos antecipamos res-
posta. Qualquer uma ter por certa a afirmao de que a filosofia tarefa da ratio. E,
contudo, esta afirmao talvez uma resposta apressada e descontrolada pergunta:
1
Em francs, no texto original.
2
Palavras e citaes gregas, latinas e francesas, que ocorrem no original alemo, so mantidas no texto
portugus.
212 HEIDEGGER
Que isto - a filosofia? Pois a esta resposta podemos contrapor novas questes. Que
isto - a ratio, a razo? Onde e por quem foi decidido o que a razo? Arvorou-se a
ratio mesma em senhora da filosofia? Em caso afirmativo, com que direito? Se negativa
a resposta, de onde recebe ela sua misso e seu papel? Se aquilo que se apresenta como
ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua histria, ento
no de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negcio da ratio. Todavia, to logo
pomos em suspeio a caracterizao da filosofia como um comportamento racional,
torna-se, da mesma maneira, tambm duvidoso se a filosofia pertence esfera do irracio-
nal. Pois quem quiser determinar a filosofia como irracional, toma como padro para a
determinao o racional, e isto de um tal modo que novamente pressupe como bvio o
.
que seJa -
a razao.
Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia
se refere concerne a ns homens em nosso ser e nos toca, ento poderia ser que esta
maneira de ser afetado no tem absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se
designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional.
Do que foi dito deduzimos primeiro apenas isto: necessrio maior cuidado se
ousamos inaugurar um encontro com o ttulo: "Que isto - a filosofia?"
Um tal cuidado exige primeiro que procuremos situar a questo num caminho cla-
ramente orientado, para no vagarmos atravs de representaes arbitrrias e ocasionais
a respeito da filosofia. Como, porm, encontraremos o caminho no qual poderemos
determinar de maneira segura a questo?
O caminho para o qual desejaria apontar agora est imediatamente diante de ns. E
precisamente pelo fato de ser o mais prximo o achamos difcil. Mesmo quando o encon-
tramos, moVmo-nos, contudo, ainda sempre desajeitadamente nele. Perguntamos: Que
isto - a filosofia? Pronunciamos assaz freqentes vezes a palavra "filosofia". Se,
porm, agora no mais empregarmos a palavra "filosofia" como um termo gasto; se em
vez disso escutarmos a palavra "filosofia" em sua origem, ento, ela soa philosopha. A
palavra "filosofia" fala agora atravs do grego. A palavra grega , enquanto palavra
grega, um caminho. De um lado, esse caminho se estende diante de ns, pois a palavra
j foi proferida h muito tempo. De outro lado, ele j se estende atrs de ns, pois ouvi-
mos e pronunciamos esta palavra desde os primrdios de nossa civilizao. Desta manei-
ra, a palavra grega philosopha um caminho sobre o qual estamos a caminho. Conhece-
mos, porm, este caminho apenas confusamente, ainda que possuamos muitos
conhecimentos histricos sobre a filosofia grega e os possamos difundir.
A palavra philosopha diz-nos que a filosofia algo que pela primeira vez e antes de
tudo vinca a existncia do mundo grego. No s isto - aphilosopha determina tambm
a linha mestra de nossa histria ocidental-europia. A batida expresso "filosofia ociden-
tal-europia" , na verdade, uma tautologia. Por qu? Porque a "filosofia" grega em
sua essncia - e grego aqui significa: a filosofia nas origens de sua essncia de tal
natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e s dele, usando-o para se
desenvolver.
Mas a essncia originariamente grega da filosofia dirigida e dominada, na poca
de sua vigncia na Modernidade Europia, por representaes do cristianismo. A hege-
monia destas representaes mediada pela Idade Mdia. Entretanto, no se pode dizer
que por isto a filosofia se tornou crist, quer dizer, uma tarefa da f na revelao e na
autoridade da Igreja. A frase: a filosofia grega em sua essncia, no diz outra coisa
que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, so, na marcha mais ntima de sua histria,
originariamente "filosficos". Isto atestado pelo surto e domnio das cincias. Pelo fato
QUE ISTO - A FILOSOFIA? 213
de elas brotarem da marcha mais ntima da histria ocidental-europia, o que vale dizer
do processo da filosofia, so elas capazes de marcar hoje, com seu cunho especfico, a
histria da humanidade pelo orbe terrestre.
Consideremos por um momento o que significa o fato de caracterizarmos uma era
da histria humana de "era atmica". A energia atmica descoberta e liberada pelas
cincias representada como aquele poder que deve determinar a marcha da histria.
Entretanto, a cincia nunca existiria se a filosofia no a tivesse precedido e antecipado.
A filosofia, porm, : he philosopha. Esta palavra grega liga nosso dilogo a uma tradi-
o historial. Pelo fato de esta tradio permanecer nica, ela tambm unvoca. A tra-
dio designada pelo nome grego philosopha, tradio nomeada pela palavra historial
philosopha, mostra-nos a direo de um caminho, no qual perguntamos: Que isto -
a filosofia?
A tradio no nos entrega priso do passado e irrevogvel. Transmitir, dli-
3
vrer, um libertar para a liberdade do dilogo com o que foi e continua sendo. Se esti-
vermos verdadeiramente atentos palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome "filoso-
fia" nos convoca para penetrarmos na histria da origem grega da filosofia. A palavra
philosopha est, de certa maneira, na certido de nascimento de nossa prpria histria;
podemos mesmo dizer: ela est na certido de nascimento da atual poca da histria uni-
versal que se chama era atmica. Por isso somente podemos levantar a questo: Que
isto - a filosofia?, se comeamos um dilogo com o pensamento do mundo grego.
Porm, no apenas aquilo que est em questo, a filosofia, grego em sua origem,
mas tambm a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar
ainda grega.
Perguntamos: que isto ... ? Em grego isto : t estin. A questo relativa ao que
algo seja permanece, todavia, multvoca. Podemos perguntar, por perguntar, por exem-
plo: que aquilo l longe? Obtemos ento a resposta: uma rvore. A resposta consiste
em darmos o nome a uma coisa que no conhecemos exatamente.
Podemos, entretanto, questionar mais: que aquilo que designamos "rvore"? Com
a questo agora posta avanamos para a proximidade do t estin grego. aquela forma
de questionar desenvolvida por Scrates, Plato e Aristteles. Estes perguntam, por
exemplo: Que isto - o belo? Que isto - o conhecimento? Que isto - a natureza?
Que isto - o movimento?
Agora, porm, devemos prestar ateno para o fato de que nas questes acima no
se procura apenas uma delimitao mais exata do que natureza, movimento, beleza;
mas preciso cuidar para que ao mesmo tempo se d uma explicao sobre o que signi-
fica o "que", em que sentido se deve compreender o t. Aquilo que o "que" significa se
designa o quid est, t quid: a quidditas, a qididade. Entretanto, a quidditas se determina
diversamente nas diversas pocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Plato
uma interpretao caracterstica daquilo que quer dizer o t. Ele significa precisamente
a ida. O fato de ns, quando perguntamos pelo t, pelo quid, nos referirmos "ida "no
absolutamente evidente. Aristteles d uma outra explicao do t que Plato. Outra
ainda d Kant e tambm Hegel explica o t de modo diferente. Sempre se deve determinar
novamente aquilo que questionado atravs do fio condutor que representa o t, o quid,
o "que". Em todo caso: quando, referindo-nos filosofia, perguntamos: que isto?,
levantamos uma questo originariamente grega.
3
Em francs, no texto.
214 HEIDEGGER
Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogao: "a filosofia", como o modo
como perguntamos: "que isto ... ?'' - ambos permanecem gregos em sua prove-
nincia. Ns mesmos fazemos parte desta origem, mesmo ento quando nem chegamos
a dizer a palavra "filosofia". Somos propriamente chamados de volta para esta origem,
reclamados para ela e por ela, to logo pronunciemos a pergunta: Que isto - a filoso-
fia? no apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo.
[A questo: que filosofia? no uma questo que uma espcie de conhecimento se
coloca a si mesmo (filosofia da filosofia). A questo tambm no de cunho histrico;
no se interessa em resolver como comeou e se desenvolveu aquilo que se chama "filo-
sofia". A questo carregada de historicidade, historial, quer dizer, carrega em si um
destino, nosso destino. Ainda mais: ela no "uma", ela a questo historial de nossa
existncia ocidental-europia.l
Se penetrarmos no sentido pleno e originrio da questo: Que isto - a filosofia?
ento nosso questionar encontrou, em sua provenincia historial, uma direo para nosso
futuro historial. Encontramos um caminho. A questo mesma um caminho. Ele conduz
da existncia prpria ao mundo grego at ns, quando no para alm de ns mesmos.
Estamos - se perseverarmos na questo - a caminho, num caminho claramente orien-
tado. Todavia, no nos d isto uma garantia de que j, desde agora, sejamos capazes de
trilhar este caminho de maneira correta. J desde h muito tempo costuma-se caracte-
rizar a pergunta pelo que algo , como a questo da essncia. A questo da essncia tor-
na-se mais viva quando aquilo por cuja essncia se interroga, se obscurece e confunde,
quando ao mesmo tempo a relao do homem para com o que questionado se mostra
vacilante e abalada.
A questo de nosso encontro refere-se essncia da filosofia. Se esta questo brota
realmente de uma indigncia e se no est fadada a continuar apenas um simulacro de
questo para alimentar uma conversa, ento a filosofia deve ter-se tornado para ns
problemtica, enquanto filosofia. isto exato? Em caso afirmativo, em que medida se
tornou a filosofia problemtica para ns? Isto evidentemente s podemos declarar se j
lanamos um olhar para dentro da filosofia. Para isso necessrio que antes saibamos
que isto - a filosofia. Desta maneira somos estranhamente acossados dentro de um
crculo. A filosofia mesma parece ser este crculo. Suponhamos que no nos podemos
libertar imediatamente do cerco deste crculo; entretanto, -nos permitido olhar para este
crculo. Para onde se dirigir nosso olhar? A palavra grega philosopha mostra-nos a
direo.
Aqui se impe uma observao fundamental. Se ns agora ou mais tarde prestamos
ateno s palavras da lngua grega, penetramos numa esfera privilegiada. Lentamente
vislu~bramos em nossa reflexo que a lngua grega no uma simples lngua como as
europias que conhecemos. A lngua grega, e somente ela, lgos. Disto ainda devere-
mos tratar ainda mais profundamente em nossas discusses. Para o momento sirva a
A palavra grega philosopha remonta palavra philsophos. Originariamente esta
palavra um adjetivo como philrgyros, o que ama a prata, como philtimos, o que ama
a honra. A palavra philsophos foi presumivelmente criada pOr Herclito. Isto quer dizer
indicao: o que dito na lngua grega , de modo privilegiado, simultaneamente aquilo
que em dizendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, ento
seguimos seu lgein, o que expe sem intermedirios. O que ela expe o que est a
diante de ns. Pela palavra grega verdadeiramente ouvida de maneira grega, estamos
imediatamente sem presena da coisa mesma, a diante de ns, e no primeiro apenas
diante de uma simples significao verbal.
QUE ISTO - A FILOSOFIA? 215
4
Em francs, no texto.
QUE ISTO - A FILOSOFIA? 217
De nenhum modo afirmamos C'om isto que a definio aristotlica de filosofia tenha
valor absoluto. Pois ela j em meio histria do pensamento grego uma determinada
explicao daquele pensamento e do que lhe foi dado como tarefa. A caracterizao aris-
totlica da filosofia no se deixa absolutamente retraduzir no pensamento de Herclito e
de Parmnides; p~lo contrrio, a _definio aristot~li~-de filos_o(ia certamente livre
continuao da_aurora do pensamento e seu encerramento. Q.igo livre continuao por-
que de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente e
as pocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo
dialtico.
Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a
questo: Que isto - a filosofia? Primeiramente um ponto: no podemos ater-nos ape-
nas definio de Aristteles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das
primeiras e posteriores definies de filosofia. E depois? Depois alcanaremos uma fr-
mula vazia, que serve para qualquer tipo de filosofia. E ento? Ento estaremos o mais
longe possvel de uma resposta nossa questo. Por que se chega a isto? Porque, pelo
processo h pouco referido, somente reunimos historicamente as definies que esto a
prontas e as dissolvemos numa frmula geral. Isto se pode realmente fazer quando se dis-
pe de grande erudio e auxiliado por verificaes certas. Nesta empresa no precisa-
mos, nem em grau mnimo, penetrar na filosofia de .tal modo que meditemos sobre a
essncia da filosofia. Procedendo daquela maneira nos enriquecemos cor conhecimentos
muito mais variados e slidos e at mais teis sobre as formas como a filosofia foi repre-
sentada no curso de sua histria. Mas por esta via nunca chegaremos a uma resposta
autntica, isto , legtima, para a questo: Que isto - a filosofia? A resposta somente
pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto res-posta filosofa por ela
mesma. Mas como compreender esta afirmao? Em que medida uma resposta pode, na
medida em que res-posta, filosofar? Procurarei esclarecer isto agora provisoriamente
por algumas indicaes. Aquilo que tenho em mente e a que me refiro sempre perturbar
novamente nosso dilogo. Ser at a pedra de toque para averiguar se nosso encontro
tem chance de se tornar um encontro verdadeiramente filosfico. Coisa que no est
absolutamente em nosso poder.
Quando que a resposta questo: Que isto - a filosofia? uma resposta filoso-
fante? Quando filosofamos ns? Manifestamente apenas ento quando entramos em di-
logo com os filsofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este
debat~ em-c~~rn sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, tarefa espec-
fica dos filsofos, o falar, o lgein no sentido do dialfesthdi, falar como dilogo. Se
e quando o dilogo necessariamente uma dialtica, isto deixamos em aberto.
Uma coisa verificar opinies dos filsofos <:descrev-las. Outra coisa bem dife-
rente debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam.
Supondo, portanto, que os filsofos so interpelados pelo ser do ente para que
digam o que o ente , enquanto , ento tam,bm nosso dilogo com os filsofos deve ser
interpelado pelo ser do ente. Ns mesmos devemos vir com nosso pensamento ao encon-
tro daquilo para onde a filosofia est a caminho. Nosso falar deve co-responder quilo
pelo qual os filsofos so interpelados. Se formos felizes neste o-rsponder, res-pon-
demos de maneira autntica questo: Que isto - a filosofia? A palavra alem "ant-
worten", responder, significa propriamente a mesma coisa que ,e7?t-spreche11,co-respon-
der. A resposta nossa questo no se esgota numa afirmao que res-ponde questo
com uma verificao sobre o que se deve representar quando se ouve o conceito "filoso-
fia". A resposta no uma afirmao que replica (11 'est pas une rponse), a resposta
218 HEIDEGGER
5
Disposio (Stimmung) um originrio modo de ser do ser-a, vinculado ao sentimento de situao
(Befindlichkeit) que acompanha a derelico (Gewoifenheit). Pela disposio (que nada tem a ver com
QUE ISTO - A FILOSOFIA? 219
Dis-pos significa aqui literalmente: ex-posto, iluminado e com isto entregue ao servio
daquilo que . O ente enquanto tal dis-pe de tal maneira o falar que o dizer se harmo-
niza (accorder) com o ser do ente. O corresponder , necessariamente e sempre e no ape-
nas ocasionalmente e de vez em quando, um corresponder dis-posto. Ele est numa
disposio. E s com base na dis-posio ( dis-position) o dizer da correspondncia rece-
be sua preciso, sua vocao.
Enquanto dis-posta e con-vocada, a correspondncia essencialmente uma dis-posi-
o. Por isso o nosso comportamento cada vez dis-posto desta ou daquela maneira. A
dis-posio no um concerto de sentimentos que emergem casualmente, que apenas
acompanham a correspondncia. Se caracterizamos a filosofia como a correspondncia
dis-posta, no absolutamente inteno nossa entregar o pensamento s mudanas for-
tuitas e vacilaes de estados de nimo. Antes, trata-se unicamente de apontar para o
fato de que toda preciso do dizer se funda numa disposio da correspondncia, da
correspondance, digo eu, escuta do apelo.
Antes de mais nada, porm, convm notar que a referncia essencial dis-posio
da correspondncia no uma inveno apenas de nossos dias. J os pensadores gregos.
Plato e Aristteles, chamaram a ateno para o fato de que a filosofia e o filosofar
fazem parte de uma dimenso do homem, que designamos dis-posio (no sentido de
uma tonalidade afetiva que nos harmoniza e nos convoca por um apelo).
Plato diz (Teeteto, 155 d): mla gr philosphou touto t pthos, t thaumzein,
ou gr lle arkhe philosophas he hate. " verdadeiramente de um filsofo este pthos
- o espanto; pois no h outra origem imperante da filosofia que este".
O espanto , enquanto pthos, a arkh da filosofia. Devemos compreender, em seu
pleno sentido, a palavra grega arkh. Designa aquilo de onde algo surge. Mas este "de
onde" no deixado para trs no surgir; antes, a arkh torna-se aquilo que expresso
pelo verbo arkhein, o que impera. O pthos do espanto no est simplesmente no comeo
da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mos precede a operao do cirurgio. O
espanto carrega a filosofia e impera em seu interior.
Aristteles diz o mesmo (Metafisica, I, 2, 982 b 12 ss.): di gr t thaumzein hoi
nthropoi kaz' nyn kaz' prton rcsanto philosophefo. "Pelo espanto os homens chegam
agora e chegaram antigamente origem imperante do filosofar" (quilo de onde nasce o
filosofar e que constantemente determina sua marcha).
Seria muito superficial e, sobretudo, uma atitude mental pouco grega se quiss-
semos pensar que Plato e Aristteles apenas constatam que o espanto a causa do filo-
sofar. Se esta fosse a opinio deles, ento diriam: um belo dia os homens se espantaram,
a saber, sobre o ente e sobre o fato de ele ser e de que ele seja. Impelidos por este espanto,
comearam eles a filosofar. To logo a filosofia se ps em marcha, tornou-se o espanto
suprfluo como impulso, desaparecendo por isso. Pde desaparecer j que fora apenas
um estmulo. Entretanto: o espanto arkh - ele perpassa qualquer passo da filosofia.
O espanto pthos. Traduzimos habitualmente pthos por paixo, turbilho afetivo.
Mas pthos remonta a pskhein, sofrer, agentar, suportar, tolerar, deixar-se levar por,
deixar-se con-vocar por. ousado, como sempre em tais casos, traduzir pthos por
tonalidades psicolgicas). o ser-no-mundo radicalmente aberto. Esta abertura antecede o conhecer e o querer e
condii"iu de J)lh"ihilid~1dc de qua!LJULT 1.i1ic11tar :-ic para prl\)r1, 1 d;i intcnciun~ilidalk (\c,ia :-ic ,\'er .' Tenzpo,
29). Jogando com a riqueza semntica das derivaes ,.k S!i111111ung: bestimmt, ges1i1111111, abslimmen,
Gestimmtheit, Bestimmtlzeit, Heidegger procura tornar claro como esta disposio uma abertura que deter-
mina a correspondncia ao ser, na medida em que instaurada pela voz (Stimme) do ser. O filsofo toca aqui
nas razes do comportamento filosfico, da atitude originante do filosofar.
220 HEIDEGGER
dis-posio, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos
harmoniza e nos cun-voca por um apelo. Devemos, todavia, ousar esta traduo porque
s ela nos impede de representarmos pthos psicologicamente no sentido da moderni-
dade. Somente se compreendermos pthos como dis-posio ( dis-position) podemos tam-
bm caracterizar melhor o thaumzein, o espanto. No espanto detemo-nos (tre en arrt).
como se retrocedssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e no de outra
maneira. O espanto tambm no se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no
prprio ato de retroceder e manter-se em suspenso ao mesmo tempo atrado e como que
fascinado por aquilo diante do que recua. Assim o espanto adis-posio na qual e para
a qual o ser do ente se abre. O espanto a dis-posio em meio qual estava garantida
para os filsofos gregos a correspondncia ao ser do ente.
De bem outra espcie aquela dis-posio que levou o pensamento a colocar a
questo tradicional do que seja o ente enquanto , de um modo novo, e a comear assim
uma nova poca da filosofia. Descartes, em suas meditaes, no pergunta apenas e em
primeiro lugar t t n - que o ente, enquanto ? Descartes pergunta: qual aquele
ente que no sentido do ens certum o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se
transformou a essncia da certitudo. Pois na Idade Mdia certitudo no significava certe-
za, mas a segura delimitao de um ente naquilo que ele . Aqui certitudo ainda coincide
com a significao de essentia. Mas, para Descartes, aquilo que verdadeiramente se
mede de uma outra maneira. Para ele a dvida se torna aquela dis-posio em que vibra
o acordo com o ens certum, o ente que com toda certeza. A certitudo torna-se aquela
fixao do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego
do homem. Assim o ego se transforma no sub-iectum por excelncia, e, desta maneira, a
essncia do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da
egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinao de
um clare et distincte percipere. A dis-posio afetiva da dvida o positivo acordo com
a certeza. Da em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-po-
sio afetiva da confiana na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acess-
vel permanece o pthos e com isso a arkh da filosofia moderna.
Mas em que consiste o tlos, a consumao da filosofia moderna, caso disto nos
seja permitido falar? este termo determinado por uma outra dispo-sio? Onde deve-
mos ns procurar a consumao da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas na filosofia
dos ltimos anos de Schelling? E que acontece com Marx e Nietzsche? J se movimen-
tam eles fora da rbita da filosofia moderna? Se no. como determinar seu lugar?
Parece at que levantamos apenas questes histricas. Mas na verdade meditamos
o destino essencial da filosofia. Procuramos pr-nos escuta da voz do ser. Qual a
dis-posio em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta unvoca a esta per-
gunta praticamente impossvel. Provavelmente impera uma dis-posio afetiva funda-
mental. Ela, porm, permanece oculta para ns. Isto seria um sinal para o fato de que
nosso pensamento atual ainda no encontrou seu claro caminho. O que encontramos so
apenas dis-posies do pensamento de diversas tonalidades. Dvida e desespero de um
lado e cega possesso por princpios, no submetidos a exame, de outro, se confrontam.
Medo e angstia misturam-se com esperana e confiana. Muitas vezes e quase por toda
parte reina a idia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representao e cl-
culo puramente lgicos absolutamente livre de qualquer dis-posio. Mas tambm a
frieza do clculo, tambm a sobriedade prosaica da planificao so sinais de um tipo de
dis-posio. No apenas isto; mesmo a razo que se mantm livre de toda influncia das
QUE ISTO - A FILOSOFIA? 221
Agora, porm, haveria boas razes para exigir que nosso encontro se limitasse
questo que trata da filosofia. Esta restrio seria s ento possvel e at necessria, se
do dilogo resultasse que a filosofia no aquilo que aqui lhe atribumos: uma corres-
pondncia, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente.
Com outras palavras: nosso encontro no se prope a tarefa de desenvolver um pro-
grama fixo. Mas ele quisera ser um esforo de preparar todos os participantes para um
recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos o ser do ente.
Nomeando isto, pensamos no que j Aristteles diz:
"O sendo-ser torna-se, de mltiplos modos, fenmeno".
T n lgetai pollakhs.
QUE METAFSICA?
NOTA DO TRADUTOR
dar. Procuramos fazer um solitrio esforo para atingir um nvel aceitvel na traduo,
tornando-a ao menos um instrumento til para leitores indulgentes e para o exerccio de
anlise de textos na universidade. Tradues como estas exigiram o trabalho combinado
de filsofos e fillogos. No para carregar as pginas com notas, mas para elaborar um
texto em que se transportassem com fidelidade os contedos expressos em alemo para
uma lngua romnica. Tempos melhores talvez permitiro que se tratem com a seriedade
exigida os textos clssicos que devemos usar no Brasil. Temos presente as exigncias e
no esquecemos as inconvenincias de uma traduo. O texto poder ser aprimorado
pelo auxlio que prestarem os estudiosos, apontando erros e sugerindo modos mais claros
e menos equvocos de dizer pensamentos dificeis.
Utilizamos para a traduo a redao da stima edio alem e no fazemos alu-
ses a redaes anteriores. A discusso de certas modificaes seria interessante, mas
no se faz necessria para compreendermos o texto que traduzimos.
Alguns talvez estranharo a distribuio da matria no volume que apresentamos.
Colocamos a introduo no fim do volume, em primeiro lugar, porque quisemos respei-
tar a ordem cronolgica do aparecimento dos textos; em segundo lugar, porque, ainda
que interligados entre si, o texto da introduo tem sentido independente; em terceiro
lugar, porque o texto que ser mais usado para o estudo o da preleo. Poderamos
acrescentar um quarto argumento: num volume editado pela Editora Vittorio Kloster-
mann, em 1967, e que contm grande parte dos trabalhos menores de Heidegger, os trs
textos em questo so apresentados na ordem cronolgica de sua publicao. 1
Finalmente, sugerimos, para a compreenso deste volume, a leitura de Sobre o Pro-
blema do Ser. H ali referncias explcitas a Que Metafisica?, que constituem preciosas
elucidaes.
rem o prprio ente para, conforme seu contedo essencial e seu modo de ser, transfor-
m-lo em objeto de investigao e determinao fundante. Nas cincias se realiza - no
plano das idias - uma aproximao daquilo que essencial em todas as coisas.
Esta privilegiada referncia de mundo ao prprio ente sustentada e conduzida por
um comportamento da existncia humana livremente escolhido. Tambm a atividade pr
e extracientfica do homem possui um determinado comportamento para com o ente. A
cincia, porm, se caracteriza pelo fato de dar, de um modo que lhe prprio, expressa
e unicamente, prpria coisa a primeira e ltima palavra. Em to objetiva maneira de
perguntar, determinar e fundar o ente, se realiza uma submisso peculiarmente limitada
ao prprio ente, para que este realmente se manifeste. Este pr-se a servio da pesquisa
e do ensino se constitui em fndamento da possibilidade de um comando prprio, ainda
que delimitado, na totalidade da existncia humana. A particular referncia ao mundo
que caracteriza a cincia e o comportamento do homem que a rege, os entendemos,
evidentemente apenas ento plenamente, quando vemos e compreendemos o que acon-
tece na referncia ao mundo, assim sustentada. O homem - um ente entre outros -
"faz cincia". Neste "fazer" ocorre nada menos que a irrupo de um ente, chamado
homem, na totalidade do ente, mas de tal maneira que, na e atravs desta irrupo, se
descobre o ente naquilo que em seu modo de ser. Esta irrupo reveladora o que, em
primeiro lugar, colabora, a seu modo, para que o ente chegue a si mesmo.
Estas trs dimenses - ,eferncia ao mundo, comportamento, irrupo - trazem,
em sua radical unidade, uma clara simplicidade e severidade do ser-a, na existncia cien-
tfica. Se quisermos apoderar-nos expressamente da existncia cientfica, assim esclare-
cida, ento devemos dizer:
Aquilo para onde se dirige a referncia ao mundo o prprio ente - e nada mais.
Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientao o prprio ente -
e alm dele nada.
Aquilo com que a discusso investigadora acontece na irrupo o prprio ente -
e alm dele nada.
Mas o estranho que precisamente, no modo como o cientista se assegura o que lhe
mais prprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas o ente e mais - nada;
somente o ente e alm dele - nada; unicamente o ente e alm disso - nada.
Que acontece com este nada? , por acaso, que espontaneamente falamos assim?
apenas um modo de falar - e mais nada?
Mas, por que nos preocupamos com este nada? O nada justamente rejeitado pela
cincia e abandonado como o elemento nadificante. E quando, assim, abandonamos o
nada, no o admitimos precisamente ento? Mas podemos ns falar de que admitimos
algo, se nada admitimos? Talvez j se perca tal insegurana da linguagem numa vazia
querela de palavras. Contra isto deve agora a cincia afirmar novamente sua seriedade e
sobriedade: ela se ocupa unicamente do ente. O nada - que outra coisa poder ser para
a cincia que horror e fantasmagoria? Se a cincia tem razo, ento uma coisa indiscu-
tvel: a cincia nada quer saber do nada. Esta , afinal, a rigorosa concepo cientfica do
nada. Dele sabemos, enquanto dele, do nada, nada queremos saber.
A cincia nada quer saber do nada. Mas no menos certo tambm que, justa-
mente, ali, onde ela procura expressar sua prpria essncia, ela recorre ao nada. Aquilo
que ela rejeita, ela leva em considerao. Que essncia ambivalente se revela ali?
Ao refletirmos sobre nossa existncia presente - enquanto uma existncia determi-
nada pela cincia-, desembocamos num paradoxo. Atravs deste paradoxo j se desen-
volveu uma interrogao. A questo exige apenas uma formulao adequada: Que acon-
tece com este nada?
QUE METAFSICA? 235
A Elaborao da Questo
A angstia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim,
justamente, nos acossa o nada, em sua presena, emudece qualquer dico do "". O fato
de ns procurarmos muitas vezes, na estranheza da angstia, romper o vazio silncio
com palavras sem nexo apenas o testemunho da presena do nada. Que a angstia reve-
la o nada confirmado imediatamente pelo prprio homem quando a angstia se afas-
tou. Na posse da claridade do olhar, a lembrana recente nos leva a dizer: Diante de que
e por que ns nos angustivamos era "propriamente" - nada. Efetivamente: o nada
mesmo - enquanto tal - estava a.
Com a determinao da disposio de humor fundamental da angstia atingimos o
acontecer do ser-a no qual o nada est manifesto e a partir do qual deve ser questionado.
Que acontece com o nada?
A Resposta Questo
240 HEIDEGGER
j de antemo, tem visado ao "no"? Mas o "no" somente pode revelar-se quando sua
origem, o nadificar do nada em geral e com isto o prprio nada foram arrancados de seu
velamento. O "no" no surge pela negao, mas a negao se funda no "no" que, por
sua vez, se origina do nadificar do nada. Mas a negao tambm apenas um modo de
uma relao nadificadora, isto quer dizer, previamente fundado no nadificar do nada.
Com isto est demonstrada, em seus elementos bsicos, a tese acima: o nada a ori-
gem da negao e no vice-versa, a negao a origem do nada. Se assim se rompe o
poder do entendimento no campo da interrogao pelo nada e pelo ser, ento se decide
tambm, com isto, o destino do domnio da "lgica" no seio da filosofia. A idia da "l-
gica" mesma se dissolve no redemoinho de uma interrogao mais originria.
Por muito e diversamente que a negao - expressamente ou no - atravesse
todo o pensamento, ela, de nenhum modo, por si s, o testemunho vlido para a revela-
o do nada pertencente essencialmente ao ser-a. Pois a negao no pode ser procla-
mada nem o nico, nem mesmo o comportamento nadificador condutor, pelo qual o ser-
a sacudido pelo nadificar do nada. Mais abissal que a pura convenincia da negao
pensante a dureza da contra-atividade e a agudeza da execrao. Mais esponsvel a
dor da frustrao e a inclemncia do proibir. Mais importuna a aspereza da privao.
Estas possibilidades do comportamento nadificador - foras em que o ser-a sus-
tenta seu estar-jogado, ainda que no o domine - no so modos de pura negao. Mas
isto no as impede de se expressar no "no" e na negao. Atravs delas que se trai,
sem dvida, de modo mais radical, o vazio e a amplido da negao. Este estar o ser-a
totalmente perpassado pelo comportamento nadificador testemunha a constante e, sem
dvida, obscurecida revelao do nada, que somente a angstia originariamente desvela.
Nisto, porm, est: esta originria angstia o mais das vezes sufocada no ser-a. A
angstia est a. Ela apenas dorme. Seu hlito palpita sem cessar atravs do ser-a: mas
raramente seu tremor perpassa a medrosa e imperceptvel atitude do ser-a agitado envol-
vido pelo "sim, sim" e pelo "no, no"; bem mais cedo perpassa o ser-a senhor de si
mesmo; com maior certeza surpreende, com seu estremecimento, o ser-a radicalmente
audaz. Mas, no ltimo caso, somente acontece originado por aquilo por que o ser-a se
prodigaliza, para assim conservar-lhe a derradeira grandeza.
A angstia do audaz no tolera nenhuma contraposio alegria ou mesmo agra-
dvel diverso do tranqilo abandonar-se deriva. Ela situa-se - aqum de tais posi-
es - na secreta aliana da serenidade e doura do anelo criador. A angstia originria
pode despertar a qualquer momento no ser-a. Para isto ela no necessita ser despertada
por um acontecimento inusitado. profundidade de seu imperar corresponde paradoxal-
mente a insignificncia do elemento que pode provoc-la. Ela est continuamente
espreita e, contudo, apenas raramente salta sobre ns para arrastar-nos situao em
que nos sentimos suspensos.
O estar suspenso do ser-a no nada originado pela angstia escondida transforma o
homem no lugar-tenente do nada. To finitos somos ns que precisamente no somos
capazes de nos colocarmos originariamente diante do nada por deciso e vontade pr-
prias. To insondavelmente a finitizao escava as razes do ser-a que a mais genuna e
profunda finitude escapa nossa liberdade.
O estar suspenso do ser-a dentro do nada originado pela angstia escondida o
ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendncia.
Nossa interrogao pelo nada tem por meta apresentar-nos a prpria metafisica. O
nome "metafisica" vem do grego: t met physik. Esta surpreendente expresso foi mais
tarde interpretada como caracterizao da interrogao que vai met - trans "alm" do
ente enquanto tal.
QUE MET AFSIC?c: ' 241
Metafisica o perguntar alm do ente para recuper-lo, enquanto tal e em 5ua totali-
dade, para a compreenso.
N, pergunta pelo nada acontece um tal ir para fora alm do ente enquanto ente em
sua totalidade. Com isto prova-se que ela uma questo "metafisica". De questes deste
tipo dvamos, no incio, uma dupla caracterstica: cada questo metafisica compreende,
de um lado, sempre toda a metafisica. Em cada questo metafisica, de outro lado, sempre
vem envolvido o ser-a que interroga.
Em que medida perpassa e compreende a questo do nada a totalidade da
metafisica?
Soqre o nada a metafisica se expressa desde a Antiguidade numa enunciao, sem
dvida, multvoca: ex nihilo nihil fit, do nada nada vem. Ainda que, na discusso do
enunciado, o nada, em si mesmo, nunca se torne problema, expressa ele, contudo, a partir
do respectivo ponto de vista sobre o nada, a concepo fundamental do ente que aqui
condutora. A metafisica antiga concebe o nada no sentido do no-ente, quer dizer, da
matria informe, que a si mesma no pode dar forma de um ente com carter de figura,
que, desta maneira, oferece um aspecto (eidos). Ente a figura que se forma a si mesma,
que enquanto tal se apresenta como imagem. Origem, justificao e limites desta concep-
o de ser so to pouco discutidos como o o prprio nada. A dogmtica crist, pelo
contrrio, nega a verdade do enunciado: ex nihilo nihilfit e d, com isto, uma significa-
o modificada ao nada, que ento passa a significar a absoluta ausncia de ente fora de
Deus: ex nihilo fit - ens creatum. O nada torna-se agora o conceito oposto ao ente
verdadeiro, ao summum ens, a Deus enquanto ens increatum. Tambm a explicao do
nada indica a concepo fundamental do ente. A discusso metafisica do ente mantm-
se, porm, ao mesmo nvel que a questo do nada. As questes do ser e do nada enquanto
tais no tm lugar. por isso que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus
cria do nada, justamente precisa poder entrar em relao com o nada. Se, porm, Deus
Deus, no pode ele conhecer o nada, se certo que o "absoluto" exclui de si tudo o que
tem carter de nada.
A superficial recordao histrica mostra o nada como conceito oposto ao ente
verdadeiro, quer dizer, como sua negao. Se, porm, o nada de algum modo se torna
problema, ento esta contraposio no experimenta apenas uma determinao mais
clara, mas ento primeiramente se suscita a verdadeira questo metafisica a respeito do
ser do ente. O nada no permanece o indeterminado oposto do ente, mas se desvela como
pertencente ao ser do ente.
"O puro ser e o puro nada so, portanto, o mesmo." Esta frase de Hegel (Cincia da
Lgica, Livro I, WW III, p. 74) enuncia algo certo. Ser e nada copertencem, mas no
porque ambos - vistos a partir da concepo hegeliana do pensamento - coincidem
em sua determinao e imediatidade, mas porque o ser mesmo finito em sua manifesta-
i'io no ente (Wesen), e somente se manifesta na transcendncia do ser-a suspenso dentro
do nada.
Se, de outro lado, a questo do ser enquanto tal a questo que envolve a metafi-
sica, ento est demonstrado que a questo do nada uma questo do tipo que com-
preende a totalidade da metafisica. A questo do nada pervade, porm, ao mesmo tempo,
a totalidade da metafisica, na medida em que nos fora a enfrentar o problema da origem
da negao, isto quer dizer, nos coloca fundamentalmente diante da deciso sobre a legi-
timidade com que a "lgica" impera na metafisica.
A velha frase ex nihilo nihil fit contm ento um outro sentido que atinge o prprio
problema do ser e diz: ex nihilo omne ens qua ens fit. Somente no nada do ser-a o ente
em sua totalidade chega a si mesmo, conforme sua mais prpria possibilidade, isto , de
242
modo finito. Em que medida ento a questo do nada, se for uma questo metafisica, j
envolveu em si mesma nossa existncia interrogante? Ns caracterizamos nossa existn-
cia, aqui e agora experimentada, como essencialmente determinada pela cincia. Se
nossa existncia assim determinada est colocada na questo do nada, deve ento ter-se
tornado problemtica por causa desta questo.
A existncia cientfica recebe sua simplicidade e acribia do fato de se relacionar
com o ente e unicamente com ele de modo especialssimo. A cincia quisera abandonar,
com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porm, se torna patente, na interrogao, que
esta existncia cientfica somente possvel se se suspende previamente dentro do nada.
Apenas ento compreende ela realmente o que quando no abandona o nada. A apa-
rente sobriedade e superioridade da cincia se transforma em ridculo, se no leva a srio
o nada. Somente porque o nada se revelou, pode a cincia transformar o prprio ente em
objeto de pesquisa. Somente se a cincia existe graas metafsica, ela capaz de con-
quistar sempre novamente sua tarefa essencial que no consiste primeiramente em reco-
lher e ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo o espao da verdade da natu-
reza e da histria, cuja realizao sempre se deve renovar.
Somente porque o nada est manifesto nas razes do ser-a pode sobrevir-nos a
absoluta estranheza do ente. Somente quando a estranheza do ente nos acossa, desperta
e atrai ele a admirao. Somente baseado na admirao - quer dizer, fundado na reve-
lao do nada - surge o "porqu". Somente porque possvel o "porqu" enquanto tal,
podemos ns perguntar, de maneira determinada, pelas razes e fundamentar. Somente
porque podemos perguntar e fundamentar foi entregue nossa existncia o destino do
pesquisador.
A questo do nada pe a ns mesmos - que perguntamos - em questo. Ela
uma questo metafsica.
O ser-a humano somente pode entrar em relao com o ente se se suspende dentro
do nada. O ultrapassar o ente acontece na essncia do ser-a. Este ultrapassar, porm,
a prpria metafsica. Nisto reside o fato de que a metafsica pertence "natureza do
homem". Ela no uma disciplina da filosofia "acadmica", nem um campo de idias
arbitrariamente excogitadas. A metafsica o acontecimento essencial no mbito de ser-
a. Ela o prprio ser-a. Pelo fato de a verdade da metafsica residir neste fundamento
abissal possui ela, como vizinhana mais prxima, sempre espreita, a possibilidade do
erro mais profundo. por isso que nenhum rigor de qualquer cincia alcana a seriedade
da metafsica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padro da idia da cincia.
Se realmente acompanhamos, com nossa interrogao, a questo desenvolvida em
torno do nada, ento no nos teremos representado a metafsica apenas do exterior. Nem
nos transportamos tambm simplesmente para dentro dela. Nem somos disso capazes
porque - na medida em que existimos - j sempre estamos colocados dentro dela.
Physei gr, o phle, nest tis philosopha te toi andrs dinoia (Plato, Fedro 279a). Na
medida em que o homem existe, acontece, de certa maneira, o filosofar. Filosofia - o
que ns assim designamos - apenas o pr em marcha a metafsica, na qual a filosofia
toma conscincia de si e conquista seus temas expressos. A filosofia somente se pe em
movimento por um peculiar salto da prpria existncia nas possibilidades fundamentais
do ser-a, em sua totalidade. Para este salto so decisivos: primeiro, o dar espao para o
ente em sua totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o liber-
tar-se dos dolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se sub-repticia-
mente; e, por ltimo, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constante-
mente retorne questo fundamental da metafisica que domina o prprio nada:
Por que existe afinal ente e no antes Nada?
,,,.
POSFACIO
(1943)
A pergunta "Que metafisica?" permanece uma pergunta. O seguinte posfcio ,
para aquele que acompanha a questo, um prefcio mais originrio. A pergunta "Que
metafisica?" interroga para alm da metafisica. Ela nasce de um pensamento que j
penetrou na superao da metafisica. essncia de tais transies pertence o fato de, em
certos limites, terem que falar ainda a linguagem daquilo que auxiliam a superar.
A especial oportunidade na qual discutida a questo da essncia da metafisica no
deve induzir opinio de que tal questionar esteja condenado a tomar seu ponto de parti-
da das cincias. A investigao moderna est engajada, com outros modos de represen-
tao e com outras espcies de produo do ente, no elemento caracterstico daquela ver-
dade, conforme a qual todo ente se caracteriza pela vontade de vontade. Como forma
antecipadora, comeou a aparecer a "vontade de poder". "Vontade", compreendida
como trao bsico da entidade do ente, , to radicalmente, a identificao do ente com
o que atual, que a atualidade do atual transformada em incondicional factibilidade da
geral objetivao. A cincia moderna nem serve a um fim que lhe primeiramente pro-
posto, nem procura uma "verdade em si". Ela , enquanto um modo de objetivao
calculadora do ente, uma condio estabelecida pela prpria vontade de vontade, atravs
da qual esta garante o domnio de sua essncia. Mas pelo fato de toda objetivao do
ente se exaurir na produo e garantia do ente, conquistando, desta maneira, as possibili-
dades de seu progresso, permanece a objetivao apenas junto ao ente e j o julga o ser.
Todo comportamento que se relaciona com o ente testemunha, desta maneira, j um
certo saber do ser, mas atesta simultaneamente a incapacidade de, por suas prprias for-
as, permanecer na lei da verdade deste saber. Esta verdade a verdade sobre o ente. A
metafisica a histria desta verdade. Ela diz o que o ente , enquanto ela conceitua a
entidade do ente. Na entidade do ente pensa a metafisica o ser, sem contudo, poder consi-
derar, pela sua maneira de pensar, a verdade do ser. A metafisica se move, em toda parte,
no mbito da verdade do ser que lhe permanece o fundamento desconhecido e infundado.
Suposto, porm, que no apenas o ente emerge do ser, mas que tambm, e ainda mais
originariamente, o prprio ser reside em sua verdade e que a verdade do ser se desdobra
(west) como o ser da verdade, ento, necessria a pergunta pelo que seja a metafisica
em seus fundamentos. Este interrogar deve pensar metafisicamente e, ao mesmo tempo,
deve pensar a partir dos fundamentos da metafisica, vale dizer, no mais metafisica-
mente. Num sentido essencial, um tal questionar permanece ambivalente.
Toda tentativa, portanto, de acompanhar a marcha da preleo se chocar, por isso,
com dificuldades. Isto bom. O interrogar torna-se, com isto, mais autntico. Cada per-
gunta objetiva j uma ponte para a resposta. Respostas essenciais so, constantemente,
apenas o ltimo passo das prprias questes. Este passo, porm, permanece irrealizvel
246 HEIDEGGER
sem a longa srie dos primeiros passos e dos que seguem. A resposta essencial haure sua
fora sustentadora na in-sistncia do perguntar. A resposta essencial apenas o comeo
de uma responsabilidade. Nela o interrogar desperta mais originariamente. tambm,
por isso, que a questo autntica no suprimida pela resposta encontrada.
As dificuldades para acompanhar o pensamento da preleo so de duas espcies.
Umas surgem dos enigmas que se ocultam no mbito do que aqui pensado. As outras
se originam da incapacidade e tambm, muitas vezes, da m vontade para pensar. Na es-
fera do interrogar pensante podem j ajudar objees passageiras, mas certamente, entre
estas, aquelas que forem cuidadosamente meditadas. Tambm opinies grosseiras e fal-
sas frutificam de algum modo, mesmo que sejam proclamadas na raiva de uma polmica
cega. A reflexo deve apenas recolher tudo na serena tranqilidade da longnima
meditao.
Podemos reunir em trs proposies bsicas as objees e falsas opinies sobre esta
preleo. Diz-se:
1 - a preleo transforma "o nada" em nico objeto da metafisica. Entretanto,
porque o nada absolutamente nadificante, leva este pensamento opinio de que tudo
nada, de tal maneira que no '!ale a pena, quer viver quer morrer. Uma "filosofia do
nada" um acabado "niilismo'';
2 - a preleo eleva uma disposio de humor isolada e ainda por cima depri-
mente, a angstia, ao privilgio de nica disposio de humor fundamental. Entretanto,
porque a angstia o estado de nimo do "medroso" e covarde, renega este pensamento
a confiante atitude da coragem. Uma "filosofia da angstia" paralisa a vontade para a
aao;
3 - a preleo toma posio contra a "lgica". Entretanto, porque o entendimento
contm os padres de todo clculo e ordem, este pensamento transfere o juzo sobre a
verdade para a aleatria disposio de humor. Uma "filosofia do puro sentimento" pe
em perigo o pensamento "exato" e a segurana do agir.
A postura correta diante destas proposies surge de uma renovada meditao da
preleo. Ela deve examinar se o nada, que dispe a angstia em sua essncia, se esgota
numa vazia negao de tudo o que , ou se - o que jamais e em parte alguma um ente
-. se desvela como aquilo que se distingue de todo ente e que ns chamamos o ser. Em
qualquer lugar e em qualquer amplitude em que a pesquisa explore o ente, em parte algu-
ma, encontra ela o ser. Ela apenas atinge sempre o ente porque, antecipadamente, j na
inteno de sua explicao, permanece junto do ente. O ser, porm, no uma qualidade
ntica do ente. O ser no se deixa representar e produzir objetivamente semelhana do
ente. O absolutamente outro com relao ao ente o no-ente. Mas este se desdobra
(west) como ser. Com demasiada pressa renunciamos ao pensamento quando fazemos
passar, numa explicao superficial, o nada pelo puramente nadificador e o igualamos ao
que no tem substncia. Em vez de cedermos a esta pressa de uma perspiccia vazia e
sacrificarmos a enigmtica multivocidade do nada, devemos armar-nos com a disposio
nica de experimentarmos no nada a amplido daquilo que garante a todo ente (a possi-
bilidade de) ser. Isto o prprio ser. Sem o ser, cuja essncia abissal, mas ainda no
desenvolvida, o nada nos envia na angstia essencial, todo ente permaneceria na indi-
gncia do ser. Mas mesmo esta indigncia do ser, enquanto abandono do ser, no , por
sua vez, um nada nadificador, se certo que verdade do ser pertence o fato de que o ser
nunca se manifesta (west) sem o ente, de que jamais o ente sem o ser.
A angstia d-nos uma experincia de ser como o outro com relao a todo ente,
suposto que - por causa da "angstia" diante da angstia, quer dizer, na pura atitude
QUE METAFSICA? 247
medrosa do temor - ns no nos esquivemos, fugindo da voz silenciosa que nos dispe
para o espanto do abismo. Se abandonarmos arbitrariamente o curso do pensamento
desta preleo, ao nos referirmos a esta angstia fundamental, se despojarmos a angs-
tia, enquanto disposio de humor instaurada por aquela voz, da referncia ao nada,
ento nos resta apenas a angstia como "sentimento" isolado que podemos distinguir e
separar de outros sentimentos, no conhecido sortimento de estados de nimo vistos
psicologicamente. Tomando como guia a simplista diferena entre "em cima" e "embai-
xo", podemos registrar, ento, as "disposies de humor" nas classes das que elevam e
das que deprimem. Sempre haver presa para a caa entusiasmada de "tipos" e "antiti-
pos" de "sentimentos", de espcies e subespcies destes "tipos". Contudo, esta explora-
o antropolgica do homem nunca ter possibilidades de acompanhar o curso do pen-
samento desta preleo; pois esta pensa a partir da ateno voz do ser; ela assume a
disposio de humor que vem desta voz; esta disposio de humor apela ao homem em
sua essncia para que aprenda a experimentar o ser no nada.
A disposio para a angstia o sim insistncia para realizar o supremo apelo, o
unico que atinge a essncia do homem. Somente o homem, em meio a todos os entes,
experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: que o ente
. Aquele que assim chamado em sua essncia para a verdade do ser est, por isso,
continuamente envolvido, de maneira fundamental, na disposio de humor. A clara
coragem para a angstia essencial garante a misteriosa possibilidade da experincia do
ser. Pois, prximo angstia essencial, como espanto do abismo, reside o respeito humil-
de. Ele ilumina e protege aquele lugar da essncia do homem no seio do qual ele perma-
nece familiar no permanente.
A "angstia" em face da angstia, pelo contrrio, pode enganar-se de tal modo que
desconhea as simples referncias na esfera essencial da angstia. Que seria toda cora-
gem se no tivesse, na experincia da angstia fundamental, seu constante elemento de
confronto? Na medida em que diminumos a angstia fundamental e a referncia do ser
ao homem, nela iluminada, aviltamos a essncia da coragem. Mas esta capaz de supor-
tar o nada. A coragem reconhece, no abismo do espanto, o espao do ser apenas entre-
visto, a partir de cuja iluminao cada ente primeiramente retorna quilo que e capaz
de ser. A preleo nem se compraz numa "filosofia da angstia", nem procura insinuar
a impresso de uma "filosofia herica". Ela pensa apenas aquilo que apareceu ao pensa-
mento ocidental, desde o comeo, como aquilo que deve ser pensado e permaneceu,
entretanto, esquecido: o ser. Mas o ser no produto do pensamento. Pelo contrrio, o
pensamento essencial um acontecimento provocado pelo ser.
por isso que tambm se torna necessria a formulao do que at agora foi silen-
ciado: situa-se este pensamento j na lei de sua verdade se apenas segue aquele pensa-
mento compreendido pela "lgica". em suas formas e regras? Por que pe a preleo esta
expresso entre aspas? Para assinalar que a "lgica" apenas uma das explicaes da
essncia do pensamento; aquela que j, o seu nome o mostra, se funda na experincia do
ser realizado pelo pensamento grego. A suspeita contra a lgica -- como sua conse-
qente degenerescncia pode valer a logstica - emana do conhecimento daquele pensa-
mento que tem sua fonte na experincia da verdade do ser e no na considerao da obje-
tividade do ente. De nenhum modo o pensamento exato o pensamento mais rigoroso, se
verdade que o rigor recebe sua essncia daquela espcie de esforo com que o saber
sempre observa a relao com o elemento fundamental do ente. O pensamento exato se
prende unicamente ao clculo do ente e a este serve exclusivamente. Qualquer clculo
reduz todo o numervel ao enumerado, para utiliz-lo para a prxima enumerao. O
248 HEIDEGGER
clculo no admite outra coisa que o enumervel. Cada coisa apenas aquilo que se
pode enumerar. O que a cada momento enumerado assegura o progresso na enumera-
o. Esta utiliza progressivamente os nmeros e , em si mesma, um contnuo consumir-
se. O resultado do clculo com o ente vale como o enumervel e consome o enumerado
para a enumerao. Este uso consumidor do ente revela o carter destruidor do clculo.
Apenas pelo fato de o nmero poder ser multiplicado infinitamente e isto indistintamente
na direo do mximo ou do mnimo, pode ocultar-se a essncia destruidora do clculo
atrs de seus produtos e emprestar ao pensamento calculador a aparncia da produtivi-
dade, enquanto, na verdade, faz valer, j antecipando e no em seus resultados subse-
qentes, todo ente apenas na forma do que pode ser produzido e consumido. O pensa-
mento calculador submete-se a si mesmo ordem de tudo dominar a partir da lgica de
seu procedimento. Ele no capaz de suspeitar que todo o calculvel do clculo j ,
antes de suas somas e produtos calculados, num todo cuja unidade, sem dvida, pertence
ao incalculvel que se subtrai a si e sua estranheza das garras do clculo. O que, entre-
tanto, em toda parte e constantemente, se fechou de antemo s exigncias do clculo e
que, contudo, j a todo momento, , em sua misteriosa condio de desconhecido, mais
prximo do homem que todo ente, no qual ele se instala a si e a seus projetos, pode, de
tempos em tempos, dispor a essncia do homem para um pensamento cuja verdade
nenhuma "lgica" capaz de compreender. Chamemos de pensamento fundamental
aquele cujos pensamentos no apenas calculam, mas so determinados pelo outro do
ente. Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela
verdade do ser. Este pensamento responde ao apelo do ser enquanto o homem entrega
sua essncia historial simplicidade da nica necessidade que no violenta enquanto
submete, mas que cria o despojamento que se plenifica na liberdade do sacrificio.
preciso que seja preservada a verdade do ser, acontea o que acontecer ao homem
e a todo ente. O sacrificio destitudo de toda violncia porque a dissipao da essn-
cia do homem - que emana do abismo da liberdade - para a defesa da verdade do ser
para o ente. No sacrificio se realiza o oculto reconhecimento, nico capaz de honrar o
dom em que o ser se entrega essncia do homem, no pensamento, para que o homem
assuma, na referncia ao ser, a guarda do ser.
O pensamento originrio o eco do favor do ser pelo qual se ilumina e pode ser
apropriado o nico acontecimento: que o ente . Este eco a resposta humana palavra
da voz silenciosa do ser. A resposta do pensamento a origem da palavra humana; pala-
vra que primeiramente faz surgir a linguagem como manifestao da palavra nas
palavras.
Se, de tempos em tempos, no houvesse um pensamento oculto no fundamento
essencial do homem historial, ento ele jamais seria capaz do reconhecimento, suposto
que, em toda reflexo e em todo agradecimento, deve existir um pensamento que pensa
originariamente a verdade do ser. Mas de que outro modo encontraria, um dia, uma
humanidade o caminho para o reconhecimento originrio que no pelo fato de o favor do
ser oferecer ao homem, pela aberta referncia a si mesma, a nobreza do despojamento,
no qual a liberdade do sacrifcio esconde o tesouro de sua essncia? O sacrificio ades-
pedida do ente em marcha para a defesa do favor do ser. O sacrificio pode, sem dvida,
ser preparado e servido pelo agir e produzir na esfera do ente, mas jamais pode ser por
ele realizado. Sua realizao emana da in-sistncia a partir da qual todo homem historial
age - tambm o r,ensamento essencial um agir - protegendo o ser-a instaurado para
a defesa da dignidade do ser. Esta in-sistncia a impassibilidade que no permite que
seja contestada a oculta disposio para a despedida prpria de cada sacrifcio. O sacri-
QUE METAFSICA? 249
fcio tem sua terra natal na essncia daquele acontecimento que o ser chamando o
homem para a verdade do ser. por isso que o sacrifcio no admite clculo algum pelo
qual seria calculada sua utilidade ou inutilidade, sejam os fins visados mesquinhos ou
elevados. Tal clculo desfigura a essncia do sacrifcio. A mania dos fins confunde a lim-
peza do respeito humilde (preparado para a angstia) da coragem para o sacrifcio, que
presume morar na vizinhana do indestrutvel.
O pensamento do ser no procura apoio no ente. O pensamento essencial presta
ateno aos lentos sinais do que no pode ser calculado e nele reconhece o advento do
inelutvel, que no pode ser antecipado pelo pensamento. Este pensamento est atento
verdae do ser e auxilia, desta maneira, o ser da verdade para que encontre seu lugar na
humanidade historial. O auxlio que este pensamento presta no provoca sucessos por-
que no precisa de repercusso. O pensamento essencial auxilia com sua simples in-sis-
tncia no ser-a na medida em que nela se desencadeia o que lhe semelhante, sem que
ela, entretanto, disso pudesse dispor ou mesmo apenas saber.
O pensamento, dcil voz do ser, procura encontrar-lhe a palavra atravs da qual
a verdade do ser chegue linguagem. Apenas quando a linguagem do homem historial
emana da palavra, est ela inserida no destino que lhe foi traado. Atingido, porm, este
equilbrio em seu destino, ento lhe acena a garantia da voz silenciosa de ocultas fontes.
O pensamento do ser protege a palavra e cumpre nesta solicitude seu destino. Este o
cuidado pelo uso da linguagem. O dizer do pensamento vem do silncio longamente
guardado e da cuidadosa clarificao do mbito nele aberto. De igual origem o nomear
do poeta. Mas, pelo fato de o igual somente ser igual enquanto distinto, e o poetar e o
pensar terem a mais pura igualdade no cuidado da palavra, esto ambos, ao mesmo
tempo, maximamente separados em sua essncia. O pensador diz o ser. O poeta nomeia
o sagrado. No podemos analisar aqui. sem dvida, como, pensado a partir do
acontecimento .(Wesen) do do ser, o poetar e o reconhecer e o pensar esto referidos
um ao outro e ao mesmo tempo separados. Provavelmente o reconhecer e o poetar se ori-
ginam, ainda que de maneira diversa, do pensamento originrio que utilizam, sem contu-
do, poderem ser, para si mesmos, um pensamento.
Conhecemos, claro, muita coisa sobre a relao entre filosofia e poesia. No sabe-
mos, porm, do dilogo dos poetas e dos pensadores que "moram prximos nas monta-
nhas mais separadas".
Um dos lugares fundamentais em que reina a indigncia da linguagem a angstia,
no sentido do espanto, no qual o abismo do nada dispe o homem. O nada, enquanto o
outro do ente, o vu do ser. No ser j todo o destino do ente chegou originariamente
sua plenitude.
A ltima poesia do ltimo poeta da Grcia antiga, dipo em Colonos, de Sfocles,
encerra com a palavra que incompreensivelmente se volta sobre a oculta histria deste
povo e conserva seu comeo na ignota verdade do ser:
All 'apopayete med 'epz'pleo
threnon egerete
pants gr khei tde k)ro.
ela se esquece em favor da rvore. Tambm a raiz ainda pertence rvore, mesmo que
a seu modo se entregue ao elemento do solo. Ela dissipa seu elemento e a si mesma pela
rvore. Como raiz ela no se volta para o solo; ao menos no de modo tal como se fosse
sua essncia desenvolver-se apenas para si mesma neste elemento. Provavelmente, tam-
bm o solo no tal elemento sem que o perpasse a raiz.
Na medida em que, constantemente, apenas representa o ente enquanto ente, a
metafsica no pensa no prprio ser. A filosofia no se recolhe em seu fundamento. Ela
o abandona continuamente e o faz pela metafsica. Dele, porm, jamais consegue fugir.
Na medida em que um pensamento se pe em marcha para experimentar o fundamento
da metafsica, na medida em que um pensamento procura pensar na prpria verdade do
ser, em vez de apenas representar o ente enquanto ente, ele abandonou, de certa maneira,
a metafsica. Visto da parte da metafsica, o pensamento se dirige de volta para o funda-
mento da metafsica. Mas, aquilo que assim aparece como fundamento, se experimen-
tado a partir de si mesmo, provavelmente outra coisa at agora no dita, segundo a
qual a essncia da metafsica bem outra coisa que a metafsica. Um pensamento que
pensa na verdade do ser no se contenta certamente mais com a metafsica; um tal pensa-
mento tambm no pensa contra a metafsica. Para voltarmos imagem anterior, ele no
arranca a raiz da filosofia. Ele lhe cava o cho e lhe lavra o solo. A metafsica permanece
a primeira instncia da filosofia. No alcana, porm, a primeira instncia do pensa-
mento. No pensamento da verdade do ser a metafsica est superada. Torna-se caduca a
pretenso da metafsica de controlar a referncia decisiva com o ser e de determinar
adequadamente toda a relao com o ente enquanto tal. Esta "superao da metafsica",
contudo, no rejeita a metafsica. Enquanto o homem permanecer animal rationale ele
animal metaphysicum. Enquanto o homem se compreender como animal racional, per-
tence a metafsica, na palavra de Kant, natureza do homem. Se bem sucedido, talvez
fosse possvel ao pensamento retornar ao fundamento da metafisica, provocando uma
mudana da essncia do homem de cuja metamorfose poderia resultar uma transfor-
mao da metafsica.
Quando se falar assim, no desenvolvimento da questo da verdade do ser, de uma
superao da metafsica, isto ento significa: Pensar no prprio ser. Um tal modo de pen-
sar ultrapassa o pensamento atual que no pensa no cho em que se desenvolve a raiz da
filosofia. O pensamento tentado em Ser e Tempo pe-se em marcha para preparar a supe-
rao da metafsica assim entendida. Aquilo, porm, a que este pensamento d o impulso
necessrio somente pode ser aquilo mesmo que deve ser pensado. O fato e a maneira de
o ser mesmo abordar um pensamento nunca dependem primeira e unicamente do pensa-
mento. Se o ser atinge um pensamento e o modo como o consegue, pe-no em marcha
para sua matriz que vem do prprio ser, para, desta maneira, corresponder ao ser
enquanto tal.
Mas por que, afinal, necessria uma tal espcie de superao da metafsica? Deve-
r, desta maneira ser apenas substituda e fundamentada atravs de disciplina mais origi-
nria aquela disciplina da filosofia que at agora foi a raiz? Trata-se de uma modificao
do corpo doutrinrio da filosofia? No. Ou dever ser descoberto, pelo retorno ao funda-
mento da metafsica, um pressuposto da filosofia at agora esquecido para mostrar-lhe
que ainda no assenta sobre seu fundamento inconcusso, no podendo, por isso, ainda
ser a cincia absoluta? No.
Com o advento ou a ausncia da verdade do ser, est em jogo outra coisa: no a
constituio da filosofia, no apenas a prpria filosofia, mas a proximidade ou distncia
daquilo de que a filosofia. como o pensamento que representa o ente enquanto tal, recebe
QUE METAFSICA? 255
sua essncia e sua necessidade. O que se deve decidir se o prprio ser pode realizar, a
partir da verdade que lhe prpria, sua relao com a essncia do homem ou se a metafi-
sica, desviando-se de seu fundamento, impedir, no futuro, que a relao do ser com o
homem chegue, atravs da essncia desta mesma relao, a uma claridade que leve o
homem pertena ao ser.
J antes de suas respostas questo do ente enquanto tal a metafisica representou
o ser. Ela expressa necessariamente o ser e, por isso mesmo, o faz constantemente. Mas
a metafisica no leva o ser mesmo a falar, porque no considera o ser em sua verdade e
a verdade como o desvelamento e este em sua essncia. A essncia da verdade sempre
aparece metafisica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da enun-
ciao. O desvelamento, porm, poderia ser algo mais originrio que a verdade no senti-
do da veritas. Altheia talvez fosse a palavra que d o aceno ainda no experimentado
para a essncia impensada do esse. Se a coisa fosse assim, sem dvida o pensamento da
metafisica que apenas representa jamais poderia alcanar esta essncia da verdade, por
mais afanosamente que se empenhasse historicamente pela filosofia pr-socrtica; pois
no se trata de algum renascimento do pensamento pr-socrtico - tal projeto seria vo
e sem sentido - , trata-se, isto sim, de prestar ateno ao advento da ainda no enun-
ciada essncia do desvelamento que o modo como o ser se anunciou. Entretanto, velada
permanece para a metafisica a verdade do ser ao longo de sua histria, de Anaximandro
a Nietzsche. Por que no pensa a metafisica na verdade do ser? Depende uma tal omis-
so apenas da espcie de pensamento que o metafisico? Ou pertence ao destino essen-
cial da metafisica, que se lhe subtraia seu prprio fundamento, porque em toda a ecloso
do desvelamento permanece ausente sua essncia, o velamento, e isto em favor do que foi
desvelado e aparece como o ente?
Entretanto, a metafisica expressa o ser constantemente e das mais diversas formas.
Ela mesma suscita e fortalece a aparncia de que a questo do ser foi por ela levantada
e respondida. Mas a metafisica no responde, em nenhum lugar, questo da verdade do
ser, porque nem a suscita como questo. Ela no problematiza por que que somente
pensa o ser enquanto representa o ente enquanto ente. Ela visa ao ente em sua totalidade
e fala do ser. Ela nomeia o ser e tem em mira o ente enquanto ente. Os enunciados da
metafisica se desenvolvem de maneira estranha, desde o comeo at sua plenitude, numa
geral troca do ente pelo ser. Esta troca, sem dvida, deve ser pensada como aconteci-
mento e no como engano. Ela, de maneira alguma, tem suas razes numa simples negli-
gncia do pensamento ou numa exatido no dizer. Em conseqncia desta geral troca, a
representao atinge o auge da confuso quando se afirma que a metafisica realmente
pe a questo do ser.
At parece que a metafisica, sem seu conhecimento, est condenada a ser, pela
maneira como pensa o ente, a barreira que impede que o homem atinja a originria rela-
o do ser com o ser humano.
Que seria, porm, se a ausncia desta relao e o esquecimento desta ausncia desde
h muito determinassem os tempos modernos? Que seria, se a ausncia do ser entregasse
o homem, sempre mais exclusivamente, apenas ao ente, de tal modo que o ser humano
fosse abandonado pela relao do ser com sua (do homem) essncia, ficando, ao mesmo
tempo, tal abandono velado? Que seria, se assim fosse e se desde h muito tempo esti-
vesse persistindo tal situao? Que seria, se houvesse sinais mostrando que tal esqueci-
mento se instalar para o futuro ainda mais decisivamente no esquecimento?
Existiria ainda ocasio para um pensador se deixar conduzir presunosamente por
este destino do ser? Se as coisas estivessem neste p, haveria ainda motivo para, em tal
256 HEIDEGGER
abandono do ser, se fantasiar ainda outra coisa e isto levado at por uma disposio de
humor elevado mas artificial? Se esta fosse a situao em torno do abandono do ser, no
haveria motivo bastante para que o pensamento, que pensa no ser, casse no espanto que
o paralisaria de tal modo que no fosse mais capaz de outra coisa que sustentar na
angstia este destino do ser para, antes de tudo, levar a uma deciso o pensamento que
se ocupa do esquecimento do ser? Mas seria disto capaz um pensamento enquanto a
angstia, herdada como destino, fosse apenas uma deprimente disposio de humor?
Que tem a ver o destino do ser com psicologia e psicanlise?
Suposto, porm, que superao da metafisica corresponda o esforo de primeira-
mente aprender a prestar ateno ao esquecimento do ser, para experiment-lo, assumir
esta experincia na relao do ser com o homem e nela a conservar, ento a pergunta
"Que metafisica?" permaneceria na indigncia do esquecimento do ser, talvez contudo
o mais necessrio de tudo o que necessrio para o pensamento.
Assim, tudo depende de que, em seu tempo oportuno, o pensamento se torne mais
pensamento. A isto chega o pensamento se, em vez de preparar um grau maior de esfor-
o, se dirige para outra origem. Ento, o pensamento suscitado pelo ente enquanto tal,
que por isso representa e esclarece o ente, ser substitudo por um pensamento instau-
rado pelo prprio ser e por isso dcil voz do ser.
Perdem-se no vazio consideraes sobre o modo como se poderia levar a agir sobre
a vida cotidiana e pblica de modo efetivo e til, o pensamento ainda e apenas metafi-
sico. Pois, quanto mais o pensamento pensamento, quanto mais se realiza a partir da
relao do ser consigo, tanto mais puramente encontra-se, por si mesmo, engajado no
nico agir que lhe apropriado: na ao de pensar aquilo que lhe foi destinado e que por
isso j foi pensado.
Mas quem pensa ainda no que foi pensado? Inventam-se coisas. O pensamento ten-
tado em Ser e Tempo est "a caminho" para situar o pensamento num caminho em cuja
marcha possa alcanar o interior da relao da verdade do ser com a essncia do
homem; est em marcha para abrir ao pensamento uma senda na qual medite consenta-
neamente o ser mesmo em sua verdade. Neste caminho, e isto quer dizer, a servio da
questo da verdade do ser, torna-se necessria uma reflexo sobre a essncia do homem;
pois a experincia do esquecimento do ser, ainda no expressa porque exigindo demons-
trao, encerra em si a conjetura da qual tudo depende, de que, conforme o desvelamento
do ser, a relao do ser com o homem pertence ao prprio ser. Mas como poderia esta
conjetura aventada tornar-se mesmo apenas uma pergunta expressa sem que antes se
empenhassem todos os esforos para libertar a determinao fundamental do homem da
subjetividade e da definio do animal rationale . .. ?
Para reunir, ao mesmo tempo, numa palavra, tanto a relao do ser com a essncia
do homem, como tambm a referncia fundamental do homem abertura ("a") do ser
enquanto tal, foi escolhido para o mbito essencial, em que se situa o homem enquanto
homem, o nome "ser-a". Isto foi feito, apesar de a metafisica usar este nome para aquilo
que em geral designado existentia, atualidade, realidade e objetividade, no obstante at
se falar, na linguagem comum, em "ser-a humano", repetindo o significado metafisico
da palavra. Por isso obvia toda possibilidade de se pensar o que ns entendemos quem
se contenta apenas em averiguar que em Ser e Tempo usa-se, em vez de "conscincia",
a palavra "ser-a". Como se aqui estivesse apenas em jogo o uso de palavras diferentes,
como se no se tratasse desta coisa nica: da relao do ser com a essncia do homem
e com isto, visto a partir de ns, como se no se tratasse de levar o pensamento primeira-
mente diante da experincia essencial do homem, suficiente para a interrogao decisiva.
QUE METAFSICA? 257
Nem a palavra "ser-a" tomou o lugar da palavra "conscincia", nem a "coisa" chamada
"ser-a" passou a ocupar o lugar daquilo que representado sob o nome "conscincia".
Muito antes, com o "ser-a" designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experi-
mentado como mbito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim deve ser
adequadamente pensado.
Aquilo em que se pensa com a palavra "ser-a" atravs de todo o tratado de Ser e
Tempo recebe j uma luz desta proposio decisiva (p. 42), que diz: "A 'essncia' do
ser-a consiste em sua existncia".
Se se considera que na linguagem da metafsica a palavra .. existncia designa o
mesmo que "ser-a", a saber, a atualidade de tudo o que atual, desde Deus at o gro
de areia claro que apenas se desloca - quando se entende a frase linearmente - a difi-
culdade do que deve ser pensado da palavra "ser-a" para a palavra "existncia". O
nome "existncia" usado, em Ser e Tempo, exclusivamente como caracterizao do ser
do homem. A partir da "existncia" corretamente pensada se revela a "essncia" do ser-
a, em cuja abertura o ser se revela e oculta, se oferece e subtrai, sem que esta verdade do
ser no ser-a se esgote ou se deixe identificar com o ser-a ao modo do princpio metaf-
sico: toda objetividade , enquanto tal, subjetividade.
Que significa "existncia" em Ser e Tempo? A palavra designa um modo de ser e,
sem dvida, do ser daquele ente que est aberto para a abertura do ser, na qual se situa,
enquanto a sustenta. Este sustentar experimentado sob o nome "preocupao". A
essncia eksttica do ser-a pensada a partir da "preocupao" assim como, vice-versa,
a preocupao somente pode ser experimentada, de modo satisfatrio, em sua essncia
eksttica. O sustentar assim compreendido a essncia da kstasis que deve ser pensada.
A essncia eksttica da existncia , por isso. ainda ento insuficientemente entendida,
quando representada apenas como "situar-se fora de", concebendo o "fora de" como o
"afastado da" interioridade de uma imanncia da conscincia e do esprito; pois, assim
entendida, a existncia ainda sempre seria representada a partir da "subjetividade" e da
"substncia", quando o "fora" deve ser pensado como o espao da abertura do prprio
ser. Por mais estranho que isto soe, a stsis do eksttico se funda no in-sistir no "fora"
e "a" do desvelamento que o modo de o prprio ser acontecer (west). Aquilo que deve
ser pensado sob o nome "existncia", quando a palavra usada no seio do pensamento
que pensa na direo da verdade do ser e a partir dela, poderia ser designado, do modo
mais belo, pela palavra "in-sistncia".
Mas ento devemos pensar em sua unidade e como plena essncia da existncia,
sobretudo, o in-sistir na abertura do ser, o sustentar da in-sistncia (preocupao) e a
per-sistncia na situao suprema (ser para a morte).
O ente que ao modo da existncia o homem. Somente o homem existe. O roche-
do , mas no existe. A rvore , mas no existe. O anjo , mas no existe. Deus , mas
no existe. A frase: "Somente o homem existe" de nenhum modo significa apenas que o
homem um ente real, e que todos os entes restantes so irreais e apenas uma aparncia
ou a representao do homem. A frase: "O homem existe" significa: o homem aquele
ente cujo ser assinalado pela in-sistncia ex-sistente no desvelamento do ser a partir do
ser e no ser. A essncia existencial do homem a razo pela qual o homem representa o
ente enquanto tal e pode ter conscincia do que representado. Toda conscincia pressu-
pe a existncia pensada ekstaticamente como a essentia do homem, significando ento
essentia aquilo que o modo prprio de o homem ser (west) na medida em que homem.
A conscincia, pelo contrrio. nem a primeira a criar a abertura do ente, nem a pri-
meira que d ao homem o estar aberto para o ente. Pois, qual seria a meta, o lugar de ori-
258 HEIDEGGER
suspeita mais grave que todo o zelo contra a angstia e o nada? Pela questo final
vemo-nos colocados diante da suspeita de que uma reflexo que procura pensar o ser,
seguindo o caminho do nada, retorne no fim novamente a uma questo sobre o ente. Na
medida em que esta questo, ainda no estilo tradicional de questionar da metafsica, per-
gunta causalmente conduzida pelo "porqu", o pensamento do ser totalmente negado
em favor do conhecimento representador do ente a partir do ente. Para cmulo de tudo,
a questo final , sem dvida, aquela que o metafsico Leibniz formulou em seu Prncipes
de la Nature e de la Grace: "Pourquoi il y a plutt quelque chose que rien ?" (Edio
Gerhardt, tomo VI, 602, nmero 7).
No fica, assim, a preleo aqum de seus propsitos? Isto poderia acontecer visto
a dificuldade da passagem da metafsica para o outro pensamento. No formula a expo-
sio em seu final, com Leibniz, a questo metafsica da causa suprema de tudo o que ?
Por que, ento, o que seria conveniente, no citado o nome de Leibniz?
Ou ser que a pergunta formulada em sentido inteiramente diferente? Se ela no
interroga pelo ente e no esclarece a ltima causa ntica deste, ento deve a pergunta
partir daquilo que no o ente. Tal coisa a pergunta nomeia e o escreve com letra mais-
cula: O Nada que a preleo meditou como seu nico tema. preciso meditar o final
desta preleo a partir do ponto de vista que lhe prprio e que em tudo a orienta. Ento
aquilo que citado como a questo fundamental da metafsica deveria ser formulado na
perspectiva da ontologia fundamental, como a questo que brota do fundamento da
metafsica e como a questo que por este fundamento interroga.
Como devemos ns, ento, compreender a questo que encerra a preleo, se esta-
mos de acordo que esta, no seu final, retorna a seu objetivo prprio?
O teor da questo o seguinte: Por que afinal ente e no antes Nada? Suposto que
no pensamos a verdade do ser mais no mbito da metafsica e metafisicamente como de
costume, mas a partir da essncia e da verdade da metafsica, ento o sentido da questo
que encerra a preleo pode ser o seguinte: Donde vem, que, em toda parte, o ente tem
a hegemonia e reivindica para si todo o "", enquanto fica esquecido aquilo que no um
ente, o nada aqui pensado como o prprio ser. Donde vem que propriamente nada com
o ser e que o nada propriamente no (west)? No vem daqui a aparncia inabalvel
para a metafsica de que o "ser" evidente e que, em conseqncia disso, o nada se torna
menos problemtico que o ente? Tal realmente a situao em torno do ser e do nada.
Se as coisas fossem diferentes para a metafsica, ento Leibniz no poderia dizer, na pas-
sagem referida, esclarecendo: "C ar le rien est plus simple et plus facile que quelque
chose".
O que permanece mais enigmtico, o fato de que o ente ou o fato de que o ser ?
Ou no chegamos tambm, nem mesmo com esta reflexo, at a proximidade do enigma
que aconteceu com o ser do ente?
Seja qual for um dia a resposta, o tempo, entretanto, se ter tornado mais maduro
para pensar a combatida preleo Que Metafisica?, uma vez a partir de seu final, a par-
tir de seu final, no a partir de um final qualquer imaginado.
O FIM DA FILOSOFIA
E A TAREFA
DO PENSAMENTO*
* A conferncia O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento s apareceu at agora numa traduo de Jean
Beaufret e Franois Fdier, impressa no volume coletivo Kierkegaard Vivant, Colloque organis par
l'Unesco Paris du 21 au 23 avril 1964, Gallimard, Paris, 1966, pp. 165 ss.
Introduo
O que importa para o Filsofo manter articulados entre si estes dois genitivos
ocultos na expresso "questo do pensamento". Teremos ento, no fim da Filosofia
como Metafisica, nem apenas um novo questionamento do que pensamento, nem ape-
nas um novo voltar-se do pensamento sobre si mesmo para se autoquestionar. Resta, em
sntese, a unidade de uma questo que se pensa e de um pensamento que se questiona.
No teremos apenas uma questo do pensamento simplesmente dada, mas tambm, e tal-
vez sobretudo uma questo do pensamento, em que este desempenha uma funo
eminentemente ativa na constituio da questo.
na unidade dialogal, no ntimo espao entre os dois mencionados sentidos do
genitivo, que se deve buscar a determinao das relaes entre questo e pensamento.
,,., ..,,
_
. -, i
Nem o pensamento puro constitudo, nem a questo pura constituio. Nem o pensa-
mento permanece exterior questo, nem a questo permanece exterior ao pensamento.
Os nomes a que Heidegger recorre para designar esta unidade dialogal, este ntimo
espao, so sobretudo aproximaes. Mas talvez na palavra Ereignis, enquanto tradu-
zida por acontecimento-apropriao, o Filsofo mais se avizinhe do elemento nodal que
se esconde na expresso "questo do pensamento". A ambigidade essencial que per-
passa todos os nomes fundamentais com que Heidegger procura dizer a "questo do
pensamento" est, porm, escondida e concentrada no nome Altheia, lido filolgico-fi-
losoficamente.
Se em Marx o fim da Filosofia se anunciou como supresso, e em Wittgenstein
como desaparecimento, em Heidegger o fim da Filosofia a "ltima possibilidade" que,
enfrentada, torna-se a "primeira possibilidade", a partir da qual se refaz toda a "questo
do pensamento".
ERNILDO STEIN
O ttulo nomeia uma tentativa de meditao que se demora no questionamento.
As questes so caminhos para sua resposta. Estas questes deveriam, caso um dia real-
mente tomem forma, consistir numa transformao do pensamento e no se reduzir
simples enunciao de um estado de coisas.
O texto que segue faz parte de um contexto mais amplo. a tentativa, sempre repe-
tida desde 1930, de dar uma forma mais radical ao questionamento de Ser e Tempo. Isto
significa: submeter o ponto de partida da questo articulada em Ser e Tempo a uma cr-
tica imanente. Atravs disto deve esclarecer-se em que medida a questo crtica que per-
gunta pela questo do pensamento pertence necessria e constantemente ao pensamento.
Em conseqncia disto se modificar o ttulo da tarefa Ser e Tempo.
Levantamos duas questes:
1. Em que medida entrou a Filosofia, na poca atual, em seu estgio final?
2. Que tarefa ainda permanece reservada para o pensamento no fim da Filosofia?
II
1
Dizem respeito a esta questo vrias das ltimas manifestaes de Heidegger. Uma delas, que causou bas-
tante impacto. foi feita numa pequena alocuo, na passagem dos festejos de seus oitenta anos. a 26 de
setembro de 1969. Ver tambm ci final da carta ao Professor Kojima.
O FIM DA FILOSOFIA 273
em ltima instncia, e isto quer dizer: segundo a questo, cm primeiro lugar, para "a
cincia da lgica''.
No chamado " questo mesma'' a tnica cai sobre o "se!bst ", 'mesmo". Em seu
sentido superficial este chamado possui sentido defensivo. Rejeitam-se relaes inade-
quadas questo da Filosofia. A elas pertence o simples falar sobre o fim da Filosofia;
dela, porm, tambm faz parte o simples relatrio sobre os resultados do pensamento
filosfico. Ambos jamais constituem o verdadeiro todo da Filosofia. O todo mostra-se,
primeiramente e apenas, em seu tornar-se. Tal ocorre no processo de exposio deta-
lhada da questo. Na exposio, tema e mtodo tornam-se idnticos. Esta identidade
chama-se em Hegel: o pensamento pensado. Com ele a questo ''mesma" da Filosofia
torna-se manifesta. Esta questo contudo determinada historialmente: a subjetividade.
Com o ego cogito de Descartes, diz Hegel, a Filosofia pisou pela primeira vez terra
firme, onde pode estar em casa. Se com o ego cogito, como subjectum por excelncia,
atingido o fundamentum absolutum, isto quer dizer: o sujeito o hypokemenon transfe-
rido para a conscincia, o que verdadeiramente se presenta, o que na linguagem tradi-
cional se chama, de maneira mui pouco clara, de substncia.
Quando Hegel declara no prefcio (Ed. Hoffmeister, p. 19): "O verdadeiro (da Filo-
sofia) no deve ser concebido e expresso como substncia, mas do mesmo modo como
sujeito", isto significa: o ser do ente, a presena do que se presenta, somente ento
manifesto, e com isto presena plena, quando esta como tal se torna presente para si
mesma na idia absoluta. Desde Descartes, porm, idea quer dizer: perceptio. O tornar
para si mesmo do ser acontece na dialtica especulativa. Apenas o movimento do pensa-
mento, o mtodo, a questo mesma. O chamado "questo mesma" exige o mtodo
adequado da Filosofia. 2
Todavia, o que a questo da Filosofia se aceita j por decidido previamente. A
questo da Filosofia como metafsica o ser do ente, sua presena, na forma da substan-
cialidade e subjetividade.
Cem anos depois, ouve-se novamete o chamado " questo mesma'', no tratado de
Husserl, A Filosofia como Cincia Rigorosa, publicado no primeiro volume da revista
Logos, no ano de 1910/11 (p. 289 ss.). Novamente o chamado tem sentido defensivo.
Mas aqui tem-se em mira outra direo que em Hegel. O chamado procura precaver con-
tra a psicologia naturalstica que pretendia ser o autntico mtodo para a explorao da
conscincia. Pois este mtodo encontra j, de antemo, o acesso aos fenmenos da cons-
cincia intencional. O chamado " questo mesma" dirige-se, ao mesmo tempo, contra
o historicismo que se perde nos debates sobre os pontos de vista da Filosofia e na diviso
dos tipos de viso de mundo filosficos. A isto se refere Husserl grifando a frase: "No
das filosofias que deve partir o impulso para a pesquisa, mas das questes e dos proble-
mas "(op. cit., p. 340).
E qual a questo da pesquisa filosfica? para Husserl como para Hegel, de
acordo com a mesma tradio, a subjetividade da conscincia. As Meditaes Carte-
sianas no foram para Husserl apenas o tema das conferncias de Paris de fevereiro de
1929, mas, em seu esprito, acompanharam, desde os anos posteriores s Investigaes
Lgicas, o caminho apaixonado de suas pesquisas filosficas at o fim da vida. O chama-
do " questo mesma" visa, tanto em seu sentido negativo como positivo, garantia e
elaborao do mtodo, tem em vista o modo de proceder da Filosofia atravs do qual
primeiramente a questo mesma chega a tornar-se um dado comprovvel. Para Husserl,
2
Ver o texto mais adiante: Protocolo do seminrio sobre a conferncia Tempo e Ser.
274 HEIDEGGER
3
Waldung equivale a floresta. regio de florestas. Feldung: campo, zona de campo, expresso dialetal que
no mais consta nos lxicos.
4
Dickung: provm de dick, grosso, espesso, cerrado.
5
Licht: claro; leicht: leve. L onde existe vegetao leve (leicht), pode-se falar em /icht (claro).
276 HEIDEGGER
de. Pois a verdade mesma, assim como ser e pensar, somente pode ser o que , no ele-
mento de clareira. Evidncia, certeza de qualquer grau, qualquer espcie de verificao
da veritas, movem-se j com esta no mbito da clareira que impera.
Altheia, desvelamento pensado como clareira da presena, ainda no a verdade.
a Altheia ento menos que verdade? Ou mais, j que somente ela possibilita verdade
como adaequatio e certitudo, j que no pode haver presena e presentifieao fora do
mbito da clareira?
Fique esta questo entregue como tarefa ao pensamento. O pensamento deve consi-
derar se capaz de levantar esta questo como tal, enquanto pensa filosoficamente, isto
, no sentido estrito da metafisica, a qual apenas questiona o que se presenta sob o ponto
de vista de sua presena.
Seja como for, uma coisa se torna clara: a questo da Altheia, a questo do desve-
lamento como tal, no a questo da verdade. Foi por isso inadequado e, por conse-
guinte, enganoso, denominar a Altheia, no sentido da clareira, de verdade. O discurso
sobre a "verdade do ser" tem seu sentido justificado na Cincia da Lgica de Hegel, por-
que nela verdade significa a certeza do saber absoluto. Mas tampouco Hegel como Hus-
serl questionam, como tambm no o faz qualquer metafisica, o ser do ente, isto , no
perguntam em que medida pode haver presena como tal. S h presena quando impera
clareira. Esta, no h dvida, nomeada com a Altheia, com o desvelamento, mas no
como tal pensada.
O conceito natural de verdade no designa desvelamento tambm na Filosofia dos
gregos. Insiste-se em apontar, e com razo, o fato de que j em Homero a palavra aleths
apenas e sempre usada com os verba dicendi, com a enunciao, e por isso no sentido
da certeza e da confiana que nela se pode ter, e no no sentido de desvelamento. Mas
esta observao significa, primeiro, apenas que nem os poetas nem o uso ordinrio da
linguagem, nem mesmo a Filosofia, se vem colocados diante da tarefa de questionar em
que medida a verdade, isto , a retitude da enunciao, s permanece garantida no ele-
mento da clareira da presena.
No horizonte desta questo deve ser reconhecido que a Altheia, o desvelamento no
sentido da clareira da presena, foi imediatamente e apenas experimentada como orth-
tes, como a retitude da representao e da enunciao. Ento tambm no sustentvel
a afirmativa de uma transformao essencial da verdade, isto , a passagem do desvela-
mento para a retitude. Em vez disso, deve-se dizer: a Altheia, enquanto clareira de pre-
sena e a presentificao no pensar e dizer, logo desemboca na perspectiva da adequa-
o, no sentido da concordncia entre o representar e o que se presenta.
Mas este processo impe justamente esta questo: onde est a causa de, para a
experincia natural e o dizer do homem, a Altheia, o desvelamento, s se manifestar
como retitude e segurana? Reside isto no fato de o morar ec-sttico do homem na
abertura do presentar-se s estar voltado para aquilo que se presenta e para a presentifi-
cao objetiva do que se presenta? Que mais significa isto seno o fato de a presena
como tal, e com mais razo ainda a clareira que a garante, no serem considerados?
Experimentado e pensado apenas aquilo que Altheia como clareira garante, no aqui-
lo que ela como tal .
Isto permanece oculto. Ser por acaso? Acontece apenas como conseqncia de
uma negligncia do pensamento humano? Ou acontece porque o ocultar-se, o velamento,
a Lthe, faz parte da A-ltheia, no como um puro acrscimo, no como a sombra faz
parte da luz, mas como o corao da Altheia. E no impera neste ocultar-se da clareira
da presena at mesmo um proteger e conservar, nico mbito no qual o desvelamento
pode ser garantido, podendo s assim manifestar-se. em sua presena, aquilo que se
presenta?
O FIM DA FILOSOFIA 279
Se for assim, ento a clareira no ser pura clareira da presena, mas clareira da
presena que se vela, clareira da proteo que se vela.
Mas, se for assim, ento apenas com um tal questionamento poderemos atingir o
caminho que se dirige para a tarefa do pensamento no fim da Filosofia.
Mas no isto tudo mstica infundada ou mitologia de m qualidade; em todo caso
funesto irracionalismo e negao da Ratio?
Respondo com uma pergunta: Que significa ratio, nos, noeii, entender? Que signi-
fica razo e princpio de todos os princpios? Pode ser isto algum dia satisfatoriamente
determinado sem que experimentemos a Altheia de maneira grega como desvelamento,
para pens-la ento, para alm dos gregos, como clareira do ocultar-se? Enquanto a
Ratio e o racional permanecerem duvidosos no que possuem de prprio, fica tambm
sem fundamento falar irracionalismo. A racionalizao tcnico-cientfica que domina a
era atual justifica-se, sem dvida, de maneira cada vez mais surpreendente atravs de sua
inegvel eficcia. Mas tal eficcia nada diz ainda daquilo que primeiro ga1 ante a possibi-
lidade do racional e irracional. A eficcia demonstra a retitude da racionalizao tcni-
co-cientfica. Esgota-se, no entanto, o carter de revelado daquilo que , na demonstrabi-
lidade? No tranca a insistncia sobre o demonstrvel justamente o caminho para aquilo
que ?
Talvez exista um pensamento mais sbrio do que a corrida desenfreada da raciona-
lizao e o prestgio da ciberntica que tudo arrasta consigo. Justamente esta doida dis-
parada extremamente irracional.
Talvez exista um pensamento fora da distino entre racional e irracional, mais s-
brio ainda do que a tcnica apoiada na cincia, mais sbrio e por isso parte, sem a efi-
ccia e, contudo, constituindo uma urgente necessidade provinda dele mesmo. Se pergun-
tarmos pela tarefa deste pensamento, ento ser questionado primeiro, no apenas este
pensamento, mas tambm o prprio perguntar por ele. Perante toda a tradio da filoso-
fia isto significa:
Ns todos precisamos de uma disciplina para o pensamento e antes disso de saber
o que significa uma disciplina ou falta de disciplina no pensamento. Para isto Aristteles
nos d um sinal no Livro IV de sua Metafisica (1006 ss.). Ei-lo: sti gr apaideusa t me
gignskein tnon def ka zetem apdeicsin kaz' tnon ou def " falta de disciplina no ter
olhos para aquilo com relao a que necessrio procurar uma prova e com relao a
que isto no necessrio."
Esta palavra exige uma cuidadosa meditao. Pois ainda no se decidiu qual a
maneira por que deve ser experimentado aquilo que no necessita de prova para se tornar
acessvel ao pensamento. ela a mediao dialtica ou a intuio que d de modo origi-
nrio, ou nenhum dos dois? Aqui a deciso s pode vir da maneira de ser prpria daquilo
que antes de qualquer outra coisa requer que lhe deixemos livre o acesso. Como, porm,
pode isto possibilitar-nos a deciso antes que o tenhamos admitido? Em que crculo
movemo-nos e, na verdade, de maneira inevitvel?
isto o eukkleos Alethee, o prprio desvelamento perfeitamente esfrico, pensado
como a clareira?
Mas ento o ttulo para a tarefa do pensamento deve ser em vez de Ser e Tempo:
Clareira e Presena? 6
De onde, porm, vem e como se d a clareira? O que fala no d-se?
A tarefa do pensamento seria ento a entrega do pensamento, como foi at agora,
determinao da questo do pensamento.
6
A conferncia Tempo e Ser prope-se como tarefa fundamental explorar esta passagem de Ser e Tempo
para Clareira e Presena.
,,....
SOBRE A ESSENCIA
DO FUNDAMENTO*
*Ttulo do original alemo: Vom Wesen des Grundes. Contribmo para o volume comemorativo dos seten-
ta anos de Edmund Husserl: Ergiinzungsband zum Jahrbuchfiir Philosophie und phiinomenologische Fors-
chung, Halle 1929, pp. 71-100. Apareceu ao mesmo tempo como separata na Max Niemeyer, Halle (Salle);
desde a terceira edio (1949) na Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main. Quinta edio. O texto para a
traduo foi extrado do volume Wegmarken, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main 1967, pp. 21-71.
que contm boa parte dos textos menores de Martin Heidegger.
Introduo ao Mtodo Fenomenolgico Heideggeriano
meiro se perfila sob a influncia cada vez maior das cincias sociais, sobretudo da ,,ocio-
logia; o segundo se apia nas conquistas no campo da lingstica, nos processos de
formalizao e nos domnios da lgica. A polarizao entre sociologismo dialtico e
positivismo lgico parece cada vez maior. E para o futuro prximo anuncia-se uma "per-
feita disjuno na oposio entre dialtica e lgica". "No h dvida que se destacam
dos dogmticos de viseira, de um e do outro arraial, aqueles que tm em mira uma 'snte-
se'. Mas justamente esta meta pode ser unicamente estabelecida com base na idia de que
lgica e dialtica juntas constituem o todo da filosofia, que hoje ainda merece ser discuti-
da. O que no se resolve nesta alternativa, ou no filosofia ou 'de ontem'." (Michael
Theunissen, in Phil. Rundschau, ano 15,janeiro 1968, cad. 1/2, p. 136).
Heidegger por muitos julgado como um filsofo "de ontem" e isto, no em ltimo
lugar, por causa de seu mtodo. relativamente fcil distinguir entre o mtodo fenome-
nolgico como Husserl o entendia e as pretenses metodolgicas dos analistas lgicos da
linguagem. Husserl quer atingir a verdade mediante uma anlise crtica da intenciona-
lidade da conscincia. A analtica da linguagem procura a verdade pela anlise crtica da
linguagem. Trata-se do deslocamento de interesses, de uma rea para outra, com o qual
se prometem melhores resultados e mais rigor sob o ponto de vista do mtodo. Mas adis-
tncia que separa as duas posturas metodolgicas enorme. A oposio chega a ser de
vontade; depende de motivaes. Exemplo para isto: Quando Merleau-Ponty perguntou
a Ryle: "No nosso programa o mesmo?", este respondeu: "Espero que no". Mas o
mtodo fenomenolgico, assim como o entende Heidegger, to radicalmente recusado
pelos analistas da linguagem que nem mesmo um tal dilogo sobre as pretenses de
ambos possvel. A fenomenologia, assim como Heidegger a formula como mtodo, pa-
rece ser definitivamente "de ontem" para os que se ocupam em pr clareza e ordem nas
proposies filosficas.
J a determinao inicial do mtodo fenomenolgico leva Heidegger a delimitar
seus contornos de maneira tal que fica evidente: a) a verdade que busca o mtodo
fenomenolgico no se pode comparar com, e de maneira alguma , a v,erdade que resul-
ta como conseqncia do mtodo dialtico; b) nem a verdade, que se pretende atingir
com a argumentao lgico-formal, a certeza como retitude e exatido. O 7 de Ser e
Tempo o diz claramente: a verdade o desvelamento daquilo que a partir de si mesmo
se mostra velado. O mtodo fenomenolgico exige o passo de volta, para trs dos fen-
menos no sentido vulgar, onde se move a lgica, para o mbito em que o fenmeno no
sentido fenomenolgico , antes, aquilo que se oculta. Isto traz como conseqncia inter-
na ao prprio mtodo uma ambigidade, que, superficialmente, j se revela no fato de o
filsofo s poder desenvolver as anlises com seu mtodo utilizando a linguagem que
controlada pelas regras da lgica mesma. Ao nvel do prprio discurso se insinua uma
ambigidade que perpassar todas as proposies. Desta maneira, a prpria determina-
o do mtodo fenomenolgico heideggeriano parece fugir, em seu momento decisivo, ao
controle da lgica das proposies. No apenas isto; a lgica mesma torna-se ambiva-
lente e querem-se descobrir nela dois nveis: o nvel mais prnfundo determina e condi-
ciona o outro. um crculo que vem afirmado na prpria lgica. A lgica que deve con-
trolar as proposies s o pode na medida em que pressupe o nvel profundo destas
mesmas proposies como condio de sua prpria possibilidade. Esta ambigidade do
mtodo fenomenolgico, como j fora definido provisoriamente em Ser e Tempo, perpas-
sar toda a obra de Heidegger.
Mas a frustrao da lgica das proposies, ou melhor, a problematizao com que
ela nada pode fazer, no deve levar para uma tentativa de interpretar dialeticamente o
286 HEIDEGGER
e assim barra a possibilidade de uma revelao de ser. A atitude do filsofo, para contor-
nar a fuga do ser-a de si mesmo, partir da anlise da cotidianeidade e descobrir nela
o homem no movimento de fuga. Somente, uma vez realizada a analtica do ser-a coti-
diano, se descobre como o ser-a pode assumir-se pela deciso enrgica, na sua verdade,
para descobrir que sempre est simultaneamente na no-verdade. Este interesse pela no-
verdade o sinal da fuga de si mesmo.
O existencial em que se concentra a possibilidade de sucesso do mtodo fenomeno-
lgico o da compreenso. Desde sempre o homem compreenso, compreende-se em
seu ser e nele j antecipa uma implcita compreenso de ser em geral. O que importa
explicitar esta compreenso. atravs dela que se atinge, no apenas o ser-a numa ins-
tncia decisiva, mas, ao mesmo tempo, "a transparncia metdica do processo
compreensivo-explicativo da interpretao do ser" (ST, 230). Por que reside no
compreender a possibilidade da transparncia metdica do mtodo fenomenolgico?
do objeto. O ser-ai impe, por causa de sua estrutura particular, que a considerao
metdica se realize dentro da sistemtica anlise de seu ser e sentido. A introduo ao
mtodo fenomenolgico , portanto, somente possvel na medida em que de sua aplica-
o se obtiveram os primeiros resultados. Isto constitui sua ambigidade e sua intrnseca
circularidade. A "constituio fundamental do objeto" e o "modo de ser do ente temati-
zado" esto implicados na exposio do mtodo. Mas, como a "constituio e o modo de
ser" do ser-a s resultam de uma anlise existencial, deve primeiro ser suposto o mto-
do. Sua explicitao s ter lugar no momento em que tiver sido atingida a situao
hermenutica necessria.
Uma comparao poder esclarecer a questo. Wittgenstein diz na sentena nmero
6.54 de seu Tractatus: "Minhas proposies se elucidam do seguinte modo: quem me
entende, por fim as reconhecer como absurdas, quando graas a elas - por elas -
tiver escalado para alm delas. ( preciso por assim dizer jogar fora a escada depois de
ter subido por ela.)" (Traduo de J. A. Giannotti.) Tornadas claras as proposies obs-
curas com o auxlio das anlises do Tractatus, joga-se fora a escada que conduziu para
a clareza. A filosofia no trata propriamente de contedos. Ela importa como caminho,
como mtodo. Uma vez que o mtodo prestou seu servio, torna-se intil. S se fala
daquilo de que se pode falar claramente. "Deve-se calar sobre aquilo de que no se
capaz de falar", a ltima sentena do Tractatus.
A postura de Heidegger, em Ser e Tempo, absolutamente diferente. O filsofo pre-
para provisoriamente seu mtodo para penetrar na analtica existencial. Uma vez reali-
zada parte da anlise, isto , atingida a situao hermenutica que permite determinar o
sentido do ser do ser-a, o filsofo pra. Descobre que o mtodo se determina a partir da
coisa mesma. A escada para penetrar nas estruturas existenciais do ser-a manejada
pelo prprio ser-a e no pode ser preparada fora para depois se penetrar no objeto. No
h propriamente escada que sirva para penetrar no seu "sistema". A escada j est impli-
cada naquilo para onde deveria conduzir. O objeto, o ser-a, traz consigo a escada. H
uma relao circular. Somente subimos para dentro das estruturas do ser-a, porque j
nos movemos nelas. apenas uma questo de explicitao. A anlise do ser-a est sus-
pensa no ar. O ser-a se levanta pelos cabelos. (A analogia com o Baro de Mnchhausen
no ironia; quer apenas lembrar que a circularidade - absurdo e tautologia aparentes
- faz parte da condio humana.)
Aps a anlise da morte, da conscincia e da culpa (na segunda seo de ST), Hei-
degger atingiu a posio metdica, isto , a situao hermenutica, necessria para a
explicitao do sentido do ser do ser-a, que propriamente a meta perseguida em toda
a anlise anterior. Agora o mtodo alcanou a necessria profundidade e expresso para-
lelamente anlise para que serviu. "O ser-a est colocado originariamente dentro da
aquisio prvia, isto , sob o ponto de vista de seu autntico poder-ser-total; a vista pr-
via condutora, a idia da existncia, conquistou sua determinidade atravs da clarifica-
o do seu mais autntico poder-ser; com a estrutura ontolgica do ser-a concretamente
elaborada, tornou-se to distinta sua particularidade ontolgica, em face de todos os
entes puramente subsistentes, que a antecipao sobre a existencialidade do ser-a pos-
sua uma articulao suficiente para conduzir com segurana a elaborao conceituai
dos existenciais" (p. 311).
Este resumo do que foi, at ento, atingido mostra que a antecipao realizada pelo
filsofo, ao iniciar a analtica da cotidianeidade, realmente conduziu a um ponto em que
o mtodo recebe. na verdade, sua transparncia a partir de dentro da prpria marcha da
analtica. Por isso a exposio do mtodo s podia ser provisria e exterior, provisria
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 291
porque exterior. "O caminho at a percorrido" (311), analisando o ser-a, revelou tam-
bm por que o mtodo fenomenolgico foi, de incio, provisrio. Heidegger expe como
teve que lutar com o primado da tendncia para o encobrimento que reside no ser-a. Era
preciso romper a atitude da fuga e da recusa de se assumir que caracteriza seu ser coti-
diano. "Metodicamente se exigiu" (313), para isto, "violncia".
S aps tal "violncia" (311 e 313), que repousava sobre uma hiptese, o mtodo
intimamente ligado ao ser-a e pr-compreenso de ser teria conquistado seu estatuto
fundamental. S a descoberta da tendncia para o encobrimento e a fuga prpria ao ser-
a daria razo ao mtodo, antes apenas esboado.
A ambigidade e complexidade do mtodo fenomenolgico heideggeriano se fun-
dam certamente na hegemonia da tendncia para o encobrimento; mas tal tendncia
destacada porque somente assim se pode instaurar uma distncia entre o fenmeno no
sentido vulgar e o fenmeno no sentido fenomenolgico, entre os mltiplos entes e o ser.
Pois no se trata de alcanar o ser por um processo de abstrao (no possvel, porque
j acompanha e condiciona a abstrao), mas a partir do ser-a, das estruturas origin-
rias que o constituem. E este est, primeiro, e o mais das vezes, envolvido na articulao
dos entes, ocupado com a sua familiaridade. Assim o mtodo fenomenolgico heidegge-
riano, em contraste com todos os mtodos que se propem em filosofia, deve se adequar
a um fenmeno que s se mostra sob o velamento. Distancia-se, dessa forma, tanto do
mtodo do positivismo lgico, que deliberadamente foge das anlises de seus pressupos-
tos, para optar por um sistema fechado de referncias, em que predominam a unvoci-
dade e a clareza; como tambm do mtodo dialtico que, de antemo, aposta numa tota-
lidade, a partir da qual suas proposies se iluminam e na qual se apiam, mantendo,
contudo, ao nvel em que so enunciadas, uma contradio que apenas se resolve no
todo.
A ambigidade das proposies basilares do pensamento heideggeriano no nasce
de algum secreto amor ao crepuscular e nebuloso. Nem amplia o filsofo o conceito de
verdade como desvelamento, at o indefinido, porque julgue suprflua a verdade que se
legitima e define operacionalmente. Nem pretendem suas tiradas profticas e afirmaes
enfticas abafar as conquistas delimitadas e restritas de uma linguagem que lida com
moeda mida e s d passos em regies j iluminadas. A clareza com que viu a fixidez
de um pensamento ontolgico e, contudo, a convico de que de algum modo a ontologia
ainda era necessria fizeram-no enveredar pelo caminho da radicalizao fenomenol-
gica. O fato de seu mtodo fenomenolgico ser sustentado entre as duas alternativas
metodolgicas atuais torna sua compreenso mais difcil, mas no o dispensa de sua
contribuio necessria.
1
Ver 0 trabalho de li\Tc-clocncia do tradutor: Compreenso e Finitude -- Es/rullira e ivlol'imento da
Interrogao Heideggeriana, ca Impressora. Porto Alegre. 196 7. (N. do T.)
Prefcio terceira edio
(1949)
5
O que a lngua alem exprime com o mesmo termo Grund deve ser expresso no vernculo umas vezes por
fundamento, outras por razo. (N. do T.)
6
Vide Opuscula philosophico-theologica antea seorsum edita nunc secundis curis et copiose aucta. Lipsiae,
1750,p. 152 ss. (N. do A.)
296 HEIDEGGER
te" (I 813). 7 Se, porm, o problema do fundamento est imbricado com as questes cen-
trais da metafisica em geral, ento deve tambm estar vivo mesmo l onde no tratado
expressamente na forma conhecida. Assim Kant. aparentemente, dedicou interesse mni-
mo ao "princpio da razo", mesmo que o analise tanto no comeo 8 de seu filosofar
como pelo fim. 9 E. contudo. situa-se ele no centro da Crtica da Razo Pura. 1 0 De no
menos importncia. porm. so, para o problema, as Investigaes Filosficas sobre a
Essncia da Liberdade Humana e os Objetos com Ela em Conexo de Schelling
(1809). 11
J a referncia a Kant e a Schelling torna problemtico se o problema do funda-
mento coincide com o do .. princpio da razo" ou se com ele, quando muito, posto. Se
este no o caso. ento o problema do fundamento precisa ser primeiro levantado, o que
no exclui que para isto uma discusso do "princpio da razo" possa dar motivos e
proporcionar uma primeira indicao. A exposio e anlise do problema de igual
importncia obteno e delimitao do mbito, em cujo seio se tratar da essncia do
fundamento, sem a pretenso de p-lo, com um s golpe, diante dos olhos. Como sendo
tal mbito ser evidenciada a transcendncia. Isto quer, ao mesmo tempo, dizer: ela
mesma ser justamente determinada de modo mais originrio e amplo atravs do pro-
blema do fundamento. Toda a clarificao da essncia deve, enquanto filosofante, quer
dizer, como um esforo intimamente finito, testemunhar tambm sempre necessaria-
mente a desordem (Unwesen) que o conhecimento humano insinua em qualquer essncia
(vVesen). 12
Como conseqncia do que foi dito, resultou a articulao do que segue:
1 O problema do fundamento.
2 A transcendncia como mbito da questo da essncia do fundamento.
3 Sobre a essncia do fundamento.
7
Segunda edio. 184 7: terceira edio. dirigida por J ui, Frnucnstiidt. 1864. (N. do A.)
8
Principiorum primorum cog11itio11is melaplzysicae nova dilucida!io, 1755. (N. do A.)
9
Sobre uma descoberta, sC'gwzdo a qual toda acrlica nova da razio pura dever se tomar dispensvel atra-
vs da mais antiga, 1790. (N. do A.)
10
Vide mais adiante a aniise de Kant. (N. do A.)
1 1
Vide Obras, vol. 7. p. 333416. (N. do A..)
12
Ainda que Wesen designe. de per si. essncia e Unwesen (no-essncia) desordem, Heidegger carrega os
dois termos com um sentido fenomenolgico. De acordo com sua compreenso do mtodo fenomenolgico,
passam a ter fora verbal. Wesen significar ento: acontecer. imperar. revelar-se. a manifestao fenomeno-
lgica: Unwesen (treiben) frustrar e perturbar o acontecer. o imperar, dissimulao do que de si se revela.
ocultao "fenomenolgica. Wesen e Unwesen exprimem. assim. de maneira decidida, um trao bsico do
pensamento heideggeriano. Apontam sobretudo tambm para a superao da tradio essencialista. A nova
carga semntica os transforma numa cl1ve (ou clave) que desloca toda a linguagem do filsofo para dentro
de um novo horizonte conotador. Todo o contedo ontolgico tradicional se torna fenomenolgico. Ontolo-
gia se torna fenomenologia. Na nova postura se revela. j desde o incio. seminalmente. a destruio, trans-
formao, repetio em outro nvel. de toda a metafsica ocidental. Esta violenta metamorfose das palavras
transfere toda a linguagem filosfica para um novo comeo: e dele emerge o impulso do pensamento existen-
cial como Heidegger o compreende. Quem l ento as expresses essncia da verdade, essncia do funda-
mento, deve saber transpor-se para dentro desta nova situao. Toda a problemtica do fundamento arran-
cada de sua perspectiva metafsica essencialista. Fala-se de fundamento no mais buscando razes, causas,
mas descobrindo-se nele um acontecer originrio ligado transcendncia, melhor, existncia. ao ser-a.
Esta subverso das estruturas nodais da ontologia tradicional deixa entrever o impacto radical e. paralela-
mente, a dificuldade de compreenso da pretenso heideggeriana. Nesta passagem o filsofo aponta a "de-
sordem', a dissimulao do acontecer do fundamento, provocada pelo conhecimento humano finito. Mais
adiante este processo sera atribudo tambm liberdade finita. O mtodo fenomenolgico ocupa-se em des-
vendar o enigma do velamcnto e desvelamcnto que assim acontecem. (N. do T.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 297
1. O problema do fundamento
Hoc autem verum est in omni veritate a.ffimativa universali aut singulari, necessaria
aut contingente, et in denominatione tam intrnseca quam extrnseca. Et latet hic arca-
num mirabile a quo natura contingentiae seu essentiale discrimen veritatum necessarium
et contingentium continetur et difficultas de fatali rerum etiam liberarum necessitate
tollitur.
Ex his propter nimiam facilitatem suam non satis consideratis multa consequuntur
magni momenti. Statim enim hic nascitur axioma receptum, nihil esse sine ratione seu
nullum effectum esse absque causa. Alioqui veritas daretur, quae non potest probari a
priori, seu quae non resolveretur in identicas, quod est contra naturam veritatis, quae
semper vel expresse vel implicite identica est.
Leibniz, de um modo que lhe caracterstico, d aqui, junto com a determinao
das "primeiras verdades", uma determinao daquilo que verdade primeiramente e em
geral , e isto com a inteno de demonstrar o "nascimento" do principium rationis da
natura veritatis. E, justamente nesta empresa, tem ele por necessrio apontar para o fato
de que a aparente evidncia de conceitos tais como "verdade", "identidade", impede uma
clarificao dos mesmos, que seria suficiente para apresentar a origem do principium
rationis e dos outros axiomas. Mas, para a presente considerao, no est em questo
a deduo do principium rationis, mas a explicao articuladora do problema do funda-
mento. Em que medida oferece a passagem citada um fio condutor para isto?
O principium rationis subsiste porque sem sua subsistncia haveria entes que deve-
riam ser sem fundamento (sem razo). Isto quer dizer para Leibniz: haveria algo verda-
deiro que se oporia a uma reduo a identidades, haveria verdades que deveriam infringir
a "natureza" da verdade. J que isto impossvel e a verdade subsiste, por isso tambm
o principium rationis tem subsistncia, porque se origina da essncia da verdade. A
essncia da verdade, porm, reside na connexio (symplok) de sujeito e predicado. Leib-
niz concebe, por conseguinte, a verdade desde o comeo e com expressa, ainda que no
justificada, referncia a Aristteles, como verdade da enunciao (proposio). Deter-
mina o nexus como "inesse "do P no S, o "inesse ", porm, como "idem esse''. Identidade
como essncia da verdade proposicional no designa aqui certamente mesmidade vazia
de algo consigo mesmo, mas unidade, no sentido da harmonia (unio) do que faz parte
de uma comum-unidade. Verdade significa, por conseguinte, acordo que somente tal
enquanto con-cordncia com aquilo que na identidade se manifesta como unido. As
"verdades" - enunciaes verdadeiras - recebem sua natureza por referncia a algo
em razo do qual podem ser acordos. Em cada verdade a unio que separa o que ,
sempre em razo de ... , isto , como algo que se "fundamenta". Na verdade reside, por
conseguinte, uma referncia essencial a algo semelhante como 'fundamento''. Isto leva o
problema da verdade necessariamente para a "proximidade" do problema do funda-
mento. Por isso, quanto mais originariamente nos apoderarmos da essncia da verdade
tanto mais urgente se tornar o problema do fundamento.
Pode-se, entretanto, conseguir algo ainda mais originrio sobre a delimitao da
essncia da verdade como carter da enunciao? Nada menos que a compreenso de
que esta determinao essencial da verdade - seja formulada como for em particular -
, por certo, ineludvel, mas, todavia, derivada. 1 4 A concordncia do nexus com o ente
e, como conseqncia, seu acordo, no tornam como tais primeiramente acessvel o ente.
1 4
Cf. M. Heidegger, Ser e Tempo I, 1927 (Anurio de Filosofia e Pesquisa Fenomenolgica, vol. VIII),
44, pp. 212-230; sobre a enunciao 33. p. 154 ss. - A paginao concorda com a edio em separado
da obra. (N. do A.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 299
Este deve, muito antes, como possvel objeto (Worber) de uma determinao predica-
tiva, estar manifesto antes desta predicao e para ela. A predicao deve, para tornar-se
possvel, radicar-se num mbito revelador, que possui carter no predicativo. A verdade
da proposio est radicada numa verdade mais originria (desvelamento), na revelao
antepredicativa do ente que podemos chamar de verdade ntica. De acordo com as diver-
sas espcies e reas do ente modifica-se o carter de seu possvel grau de revelao e dos
modos de determinao explicativa que dele fazem parte. Assim se distingue, por exem-
plo, a verdade do puramente subsistente (por exemplo, as coisas materiais) como desco-
berta, especificamente da verdade do ente que ns mesmos somos, da abertura, do ser-a
existente. 1 5 Por mais variadas que sejam as diferenas de ambas as espcies de verdade
ntica, para toda revelao antepredicativa vale o fato de que o mbito revelador nunca
possui, primariamente, o carter de uma pura representao (intuio), nem mesmo na
contemplao "esttica". A caracterizao da verdade antepredicativa como intuio se
insinua com facilidade pelo fato de a verdade ntica, e aparentemente a verdade propria-
mente dita, ser determinada como verdade proposicional, isto , como "unio da repre-
sentao': O mais simples em face desta , ento, um puro representar, livre de toda
unio predicativa. Este representar tem, no h dvida, sua funo prpria para a objeti-
vao do ente, certamente, ento j sempre necessariamente revelado. A revelao ntica
mesma, porm, acontece num sentir-se situado em meio ao ente, marcado pela disposi-
o de humor, pela impulsividade e em comportamentos em face do ente, tendncias e
volitivos que se fundam naquele sentimento de situao. 1 6 Contudo, mesmo estes
comportamentos no seriam capazes de tornar acessvel o ente em si mesmo, interpre-
tados como antepredicativos ou como predicativos, se sua ao reveladora no fosse
sempre antes iluminada e conduzida por uma compreenso do ser (constituio do ser:
que-ser e como-ser) do ente. Desvelamento do ser o que primeiramente possibilita o
grau de revelao do ente. Este desvelamento como verdade sobre o ser chamado ver-
dade ontolgica. No h dvida, os termos "ontologia" e "ontolgico" so multvocos,
e de tal maneira que, justamente, escondem o problema propriamente dito de uma onto-
logia. Lgos do n significa: o interpelar (lgein) do ente enquanto ente, significa, porm,
ao mesmo tempo o horizonte (woraujhin) em direo do qual o ente interpelado (leg-
menon). Interpelar algo enquanto algo no significa ainda necessariamente: compreender
o assim interpelado em sua essncia. A compreenso do ser (lgos num sentido bem
amplo), que previamente ilumina e orienta todo o comportamento para com o ente, no
nem um captar o ser como tal, nem um reduzir ao conceito o assim captado (lgos no
sentido mais estrito - conceito "ontolgico"). A compreenso do ser, ainda no redu-
zida ao conceito, designamos, por isso, compreenso pr-ontolgica ou tambm ontol-
gica, em sentido mais amplo. Conceituar o ser pressupe que a compreenso do ser se
tenha elaborado a si mesma e que tenha transformado propriamente em tema e problema
o ser nela compreendido, projetado em geral e de alguma maneira desvelado. Entre
compreenso pr-ontolgica do ser e expressa problematizao da conceituao do ser,
h muitos graus. Um grau caracterstico , por exemplo, o projeto da. constituio do ser
do ente, atravs do qual , concomitantemente, delimitado um determinado campo (natu-
reza, histria) como rea de possvel objetivao atravs do conhecimento cientfico. A
prvia determinao do ser (que-ser e como-ser) da natureza em geral se fixa nos "con-
ceitos fundamentais" da respectiva cincia. Nestes conceitos so, por exemplo, delimi-
tados espao, lugar, tempo, movimento, massa, fora, velocidade; todavia, a essncia do
1 7
Quando hoje se toma em considerao "ontologia'" e "ontolgico" como clich e nome para movimen-
tos, ento tais expresses so usadas com bastante superficialidade e com desconhecimento de qualquer
problemtica. -se da opinio falsa de que ontologia como questionamento do ser do ente significa "postu-
ra" "realista" (ingnua ou crtica) em oposio a "idealista". Problemtica ontolgica tem to pouco a ver
com "realismo" que justamente Kant em e com seu questionamento transcendental pode realizar o primeiro
passo decisivo para uma expressa fundamentao da ontologia, desde Plato e Aristteles. Pelo fato de a
gente se empenhar pela "realidade do mundo exterior" no se est ainda orientado ontologicamente. "Onto-
lgico" - tomado no sentido popular-filosfico - significa, contudo - e nisto se revela sua desesperada
confuso-, isto que muito antes deve ser chamado de ntico, isto , uma postura, que deixa o ente ser em
si, o que e como ele . Mas com isto no se levantou ainda nenhum problema do ser, e muito menos se con-
quistou assim o fundamento para a possibilidade de uma ontologia. (N. do A.)
18
Cf. ibidem, 69, p. 364 ss. e ainda p. 363, nota. (N. do A.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 301
dela, no sentido de uma propriedade da enunciao, quereria admitir. Se, porm, a essn-
cia do fundamento possui uma relao interna com a essncia da verdade, ento tambm
o problema do fundamento somente pode residir l, onde a essncia da verdade haure sua
possibilidade interna, na essncia da transcendncia. A questo da essncia do funda-
mento tran,forma-sc no problema da transcendncia.
E este entrelaamento de verdade, fundamento, transcendncia de uma unidade
originria, ento tambm o encadeamento dos respectivos problemas deve irromper
luz, em toda parte, onde a questo do "fundamento" - e seja apenas na forma de uma
expressa discusso do princpio da razo - abordada com mais deciso.
J a passagem citada de Leibniz trai o parentesco entre problema do "fundamento"
e problema do ser. Verum esse significa inesse qua idem esse. Verum esse - Ser verda-
deiro, porm, significa ao mesmo tempo ser "na verdade" - esse simplesmente. Ento,
a idia de ser em geral interpretada por inesse qua idem esse. O que torna um ens um
ens a "identidade", a unidade bem entendida, que, enquanto simples, unifica originaria-
mente e, neste unificar, simultaneamente individua. A unificao que originaria (anteci-
pando) e simplesmente individua, que constitui a essncia do ente enquanto tal, , porm,
a essncia da "subjetividade" do subjectum (substancialidade da substncia) monadolo-
gicamente entendida. A deduo leibniziana do principium rationis da essncia da verda-
de proposicional revela, desta maneira, que tem por fundamento uma idia bem determi-
nada de ser em geral, a cuja luz somente possvel aquela "deduo". Apenas na
metafisica de Kant mostra-se realmente a conexo entre "fundamento" e "ser". No h
dvida que em seus escritos "crticos" se estaria praticamente inclinado a afirmar a falta
de um tratamento expresso do "principio da razo"; a no ser que se faa valer a prova
da segunda analogia como compensao para esta falta quase incompreensvel. Mas
Kant certamente discutiu o princpio da razo e, numa passagem excelente de sua Crtica
da Razo Pura, sob o ttulo de "Supremo princpio de todos os juzos sintticos", d
notvel indicao de investigaes que ainda se deveriam realizar na metafisica. 1 9 Este
princpio explica o que em geral - no mbito e ao nvel do questionamento ontolgico
de Kant - faz parte do ser do ente, que acessvel na experincia. Kant d neste princ-
pio uma definio real da verdade transcendental, isto , determina sua possibilidade
interna atravs da unidade do tempo, fora da imaginao e "Eu penso". 20 O que Kant
diz do princpio, vale, por sua vez, para seu prprio princpio supremo de todo conheci-
mento sinttico, na medida em que nele se oculta o problema da conexo essencial de ser,
verdade e fundamento. Uma questo que apenas disso pode ser derivada , ento, aquela
que trata da relao originria de lgica formal e transcendental, respectivamente, o
direito de uma tal distino em geral.
A breve exposio da deduo leibniziana do princpio da razo, partindo da essn-
cia da verdade, tinha como meta elucidar a conexo do problema do fundamento com a
questo da possibilidade interna da verdade ontolgica, isto quer afinal dizer, com a
questo ainda mais originria e, por conseguinte, ainda mais ampla da essncia da trans-
cendncia. A trancendncia , assim, o mbito em cujo seio o problema do fundamento
dever ser encontrado. Este mbito deve agora ser exposto em suas linhas capitais.
19
Cf. Heidegger. Kant e o Problema da Metafisica, 1929. (N. do A.)
2
Cf.
Kant, Sobre uma descoberta, segundo a qual toda a nova crtica da razo pura dever tornar-se
dispensvel atravs da mais antiga, 1790, considerao final sobre as trs importantes caractersticas da
metafisica do senhor von Leibniz. Cf. tambm a obra premiada sobre os progressos da metafisica, Parte I.
(N. do A.)
302 HEIDEGGER
21
Selbst, Selbstheit: traduzo-os por mesmo e mesmidade. Ambos os termos referem-se aqui identidade
pessoal. Em outros textos o filsofo fala de "das Se/be ; que significa o mesmo referido identidade em geral
(ver a conferncia "O Princpio da Identidade", Livraria Duas Cidades, So Paulo, 1971). Um mal-enten-
dido no possvel no presente trabalho. Temos no vernculo ipseidade que corresponde a Selbstheit; e
ipsesmo como identidade prpria. Decido-me, no entanto, pela uniformizao baseado num fato etimol-
gico. Mesmo e mesmidade originam-se do latim vulgar metipsimu, superlativo de metipse, resultante da
combinao do demonstrativo ipse, mesmo, com a partcula met. De um lado, portanto, tm origem seme-
lhante a de ipseidade e ipsesmo, levando, de outro lado, a vantagem de vir de um superlativo, devendo ser
justamente considerada superlativa a identidade pessoal em face do princpio geral da identidade. (N. do T.)
304 HEIDEGGER
riamente acompanhada por uma elaborao mais originria da idia da ontologia e, por
conseguinte, da metafisica.
A expresso "ser-no-mundo" que caracteriza a transcendncia nomeia um "estado
de coisas" e, na verdade, um que aparentemente se compreende com facilidade. Contudo,
o que com isto visado depende da condio de o conceito de mundo ser tomado num
sentido pr-filosfico vulgar ou num sentido transcendental. A anlise de uma dupla
significao do discurso sobre o ser-no-mundo pode esclarecer isto.
Transcendncia, concebida como ser-no-mundo, quer atribuir-se ao ser-a humano.
Isto , porm, afinal o mais trivial e o mais vazio que se deixa enunciar: o ser-a tambm
aparece entre os outros entes e por isso tambm encontrvel. Transcendncia significa
ento: fazer parte do resto do ente que j subsiste puramente ou que respectivamente
pode ser multiplicado continuamente at o ilimitado. Mundo , ento, a expresso que re-
sume tudo o que , a totalidade, como unidade que determina o "tudo" como uma reu-
nio e nada mais alm. Se se toma como base para o discurso sobre o ser-no-mundo este
conceito de mundo, ento, sem dvida, a "transcendncia" deve ser atribuda a cada ente
como puramente subsistente. Puramente subsistente, isto , o que ocorre entre outras coi-
sas, "est no mundo': Se "transcendente" no diz nada mais que "fazendo parte dos res-
tantes entes", ento evidentemente impossvel predicar a transcendncia como consti-
tuio essencial caracterstica do ser-a humano. A proposio: da essncia do ser-a
humano faz parte o ser-no-mundo ento mesmo evidentemente falsa. Pois no essen-
cialmente necessrio que entes como o ser-a humano existam faticamente. claro que
pode no ser.
Se, no entanto, por outro lado, o ser-no-mundo predicado do ser-a com razo e
exclusividade, e em verdade como constituio fundamental, ento esta expresso no
pode ter a significao acima citada. Ento mundo tambm significa algo diferente que
a totalidade do ente subsistente, que por acaso subsiste.
Predicar do ser-a o ser-no-mundo como constituio fundamental significa enun-
ciar algo sobre sua essncia (sua mais prpria possibilidade interna enquanto ser-a).
Neste caso no se pode justamente considerar-se como instncia orientadora se e qual
ser-a, agora justamente, existe faticamente ou no. O discurso que trata do ser-no-
mundo no uma verificao da ocorrncia ftica de ser-a; , alis, de maneira alguma,
uma enunciao ntica. Ela se refere a um estado de coisas essencial (Wesensverhalt)
que determina o ser-a em geral e tem como conseqncia o carter de uma tese ontol-
gica. Por conseguinte, importa: o ser-a no um ser-no-mundo pelo fato de, e apenas
pelo fato de, existir faticamente; mas, pelo contrrio, somente pode ser como existente,
isto , como ser-a, porque sua constituio essencial reside no ser-no-mundo.
A proposio: o ser-a ftico est num mundo (ocorre entre outros entes) se trai
como uma tautologia que nada diz. A enunciao: faz parte da essncia do ser-a o fato
de estar no mundo (de tambm ocorrer "ao lado" de outros entes) se mostra falsa. A tese:
da essncia do ser-a como tal faz parte o ser-no-mundo contm o problema de
transcendncia.
A tese originria e simples. Disto no segue a facilidade de sua revelao, ainda
que o ser-no-mundo somente possa - sempre apenas num nico projeto com diferentes
graus de transparncia - ser elevado ao nvel de uma compreenso preparatria a ser
novamente (em verdade sempre relativamente) complementada conceitualmente.
Com a caracterizao de ser-no-mundo realizada at agora, a transcendncia do
ser-ai foi determinada apenas defensivamente. Da transcendncia faz parte mundo, como
o horizonte em direo do qual acontece a ultrapassagem. O problema positivo do que se
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 305
deve entender por mundo, de como se deve determinar a "referncia" do ser-a ao mundo,
isto , de como deve ser compreendido o ser-no-mundo como constituio do ser-a origi-
nariamente unida, tudo isto somente ser analisado por ns naquela direo e nos limites
que so exigidos pelo problema do fundamento que nos orienta. Com esta inteno tenta-
remos uma interpretao do fenmeno do mundo, que dever ser de utilidade para a
clarificao da transcendncia como tal.
Para nos orientarmos na anlise deste fenmeno transcendental do mundo. vamos
antecipar uma caracterizao, sem dvida necessariamente incompleta, das principais
significaes que se impem na histria do conceito de mundo. No caso de tais conceitos
elementares, no a significao vulgar, o mais das vezes, a originria e essencial. Esta
ltima sempre de novo encoberta e somente chega a ser conceituada com muito esforo
e assaz raramente.
J nos decisivos comeos da filosofia antiga se mostra algo essencial. 2 2 Ksmos
no quer dizer este ou aquele ente mesmo que irrompe e se impe com insistncia, nem
quer dizer tambm tudo isto reunido; mas significa "estado", isto , o como, em que o
ente, e em verdade, na totalidade, . Ksmos hoiitos no designa, por isso, este mbito de
entes em contraste com outro, mas este mundo dos entes diferena de um outro mundo
do mesmo ente, o en mesmo kat ksmon. 23 O mundo enquanto este "como em sua
totalidade" j est na base de toda possvel diviso do ente: c'1c1 no destri o mundo.
mas sempre dele carece. Aquilo que est en t heni ksmo 2 4 no o formou primeira-
mente por um processo de aglomerao, mas dominado prvia e inteiramente pelo
mundo. Herclito reconhece um outro rasgo essencial do ksmos: 2 5 h Herakleits
phesi tais egregorsin hna kat ksmon einai, tn de koimomnon hkaston eis dion
apostrphesthai. "Aos despertos pertence um mundo comum; cada um dos que dormem,
no entanto, volta-se para seu prprio mundo." Aqui o mundo est posto em relao com
modos fundamentais em que o ser-a humano existe faticamente. Na viglia o ente se
mostra num como sempre unssono, em geral acessvel a cada um. No sono o mundo do
ente exclusivamente individuado para cada ente em particular.
Estas breves indicaes tornaram visveis vrios aspectos: 1. Modo quer dizer,
muito antes, um como do ser do ente, que o prprio ente. 2. Este como determina o ente
em sua totalidade. , em ltima anlise, a possibilidade de cada como em geral enquanto
limite e medida. 3. Este como em sua totalidade , de certa rirnneira,prvio. 4. Este como
prvio, em sua totalidade, ele mesmo relativo ao ser-a humano. O mudo, por conse-
guinte, pertence ao ser-a humano, ainda que abarque todos os entes, tambm o ser-a, em
sua totalidade.
Por mais certo que seja o resumo que se possa fazer desta compreenso, sem dvi-
da, ainda pouco explcita e crepuscular, do ksmos nos significados acima mencionados,
to inegvel tambm que esta palavra nomeia muitas vezes apenas o ente mesmo que
se experimenta no tal como.
No , porm, nenhum acaso que no contexto da nova compreenso ntica da exis-
tncia que irrompeu no cristianismo, se radicalizasse e esclarecesse a relao de ksmos
e ser-a humano e com isto o conceito de mundo em geral. A relao experimentada to
originariamente, que ksmos passa a ser usado, de agora em diante, diretamente como
2 2
CL K. Reinhardt Parmnides e a Hist. da Filos. Grega, 1916. p. 174 ss. e 216. nota. (N. do A.)
23
Cf. Diels, Fragmentos dos Pr-socrticos: Melissos, Fragm. 7; Parmnides, Fragm. 2. (N. du A.)
2 4
Ibidem, Anaxgoras, Fragm. 8. (N. do A.)
2 5
Ibidem, Herclito, Fragm. 89. (N. do A.)
306 HEIDEGGER
suum sidera, quern co11ji1e11tur daemonia? Omnia undique tesrimonia perlzibuerun:. Sed
qui non cognoverunt? Qui amando mundum dicti sunt mundus. Amando enim habita-
mus carde: amando autem, hoc appellari meruerunt quod ille, ubi habitabant. Quomodo
dicimus, mala est illa domus, aut, bana est ilia domus, non in illa quam dicimus malam
parietes accusamus, aut in illa, quam dicimus banam, parietes laudamus, sed malam
domum: inhabitantes malas, et banam domum: inhabitantes banas. Sic et mundum, ipsi
enim carde habitant in mundo. Nam qui non diligunt mundwn, carne versantur in
mundo, sed carde inhabitant coelum. 29
Mundo significa, por conseguinte: o ente em sua totalidade e, na verdade, enquanto
o decisivo como, de acordo com qual o ser-a humano se manifesta ao ente e com ele se
relaciona. Do mesmo modo Toms de Aquino usa mundus uma vez com a significao
igual universum, universitas creaturarum; mas, ao lado disto, tambm com o signifi-
cado de saeculum (mentalidade mundana) quod mundi nomine amatores mundi signifi-
cantur. Mundanus (saecularis) aqui antnimo de spiritualis. 3 0
Sem nos determos no conceito de mundo em Leibniz, lembremos a determinao de
mundo da metafisica escolstica. Baumgarten define: mundus (universum, pan) est series
(multitudo, totum) actualiumfinitorum, quae non est pars alterius. 31 Mundo aqui iden-
tificado com a totalidade do que subsiste, e, na verdade, no sentido de ens creatum. Isto,
porm, diz: a concepo da noo de mundo depende da compreenso e da possibilidade
das provas da existncia de Deus. Isto se torna particularmente claro em Chr. A. Cru-
sius, que define assim o conceito de um mundo: "um mundo significa uma real juno de
coisas finitas, a qual, por sua vez, no novamente uma parte de outra, da qual faria
parte por meio de uma real juno". 32 O mundo , por conseguinte, oposto a Deus
mesmo. Mas ele tambm distinto de uma "criatura individual': e no menos de "mlti-
plas criaturas que so ao mesmo tempo" e que no possuem nenhum "encadeamento";
e finalmente distingue-se tambm o mundo de um tal conceito compreensivo de criaturas
"que apenas uma parte de um outro com o qual est em encadeamento real". 3 3
O que. porm, constitui as determinaes essenciais de um tal mundo deve poder
derivar-se de uma dupla fonte. Em cada mundo deve, de um lado, subsistir "aquilo que
decorre da essncia geral das coisas". De outro, tudo aquilo que "se reconhece como
necessrio na posio de certas criaturas, a partir das propriedades essenciais de
Deus". 3 4 Por isso tambm a "doutrina do mundo" , no conjunto da metafisica, posta
aps a ontologia (a doutrina da essncia e das distines mais gerais das coisas em geral)
e a "teologia natural teortica". Mundo , por conseguinte, o nome que exprime a regio
da suprema unidade encadeada da totalidade do ente criado.
Se, desta maneira, o conceito de mundo faz o papel de uma noo fundamental da
metafisica (da cosmologia racional como disciplina da metaphysica specialis), e se a Cr-
tica da Razo Pura de Kant, porm, expe uma fundamentao da metafisica em sua
totalidade, 3 5 ento deve, aqui, o problema do conceito de mundo receber uma forma
modificada, correspondente transformao da idia da metafisica. Sobre isto exige-se,
29
Tract., IL cap. 1, n. 11. tomo III, 1393. (N. do A.)
3
Cf.. J). ex. Suma Teolgica II 2 , qu. CLXXXVIII. a 2. ad. 3: dup/cter aliquis potes/ esse n saccu/o: uno
modo per praesentiam corpora/em, alio modo per mentis affectum. (N. do A.)
31
Metafisica, ed. II, 1743, 354, p. 87. (N. do A.)
32
Esboo das necessrias verdades da razo, na medida em que se contrapem s contingentes. Leipzig,
1745, 350, p. 657. (N. do A.)
33
Ibidem, 349, p. 654 ss. (N. do A.)
3 4
Ibidem, 348, p. 653. (N. do A.)
3 5
Cf. sobre isto: Kant e o Problema da Metafsica, 1929. (N. do A.)
308 HEIDEGGER
porm, tanto mais, uma indicao ainda que, sem dvida, muito breve, quando mais
certo que irrompe, ao lado da significao "cosmolgica" de "mundo", na antropologia
de Kant, novamente a significao existencial, liberta, claro, da especfica colorao
crist.
J na Dissertao de !770, onde a caracterizao introdutria do conceito de
mundo em parte ainda se move inteiramente no roteiro da tradicional metafisica ntica,
toca Kant numa dificuldade que se esconde no conceito de mundo, que mais tarde, na
Crtica da Razo Pura, toma a gravidade e amplido de um problema central. Kant ini-
cia a anlise do conceito de mundo na Dissertao com uma determinao formal daqui-
lo que se compreende com "mundo": mundo como "termo" est essencialmente referido
"sntese": ln composito substantiali, quemadmodum Analysis non terminatur nisi
parte quae est totum, h.e. Simplici, ita synthesis non nisi tato quod non est pars, i.e.
Mundo. 3 6 No 2 determina o filsofo aqueles "momentos" que so essenciais para uma
definio do conceito de mundo: 1. Materia (in sensu transcendentali) h.e. partes, quae
hic summuntur esse substantiae. 2. Forma, quae consistir in substantiarum coordina-
tione, non subordinatione. 3. Universitas, quae est omnitudo compartium absoluta. Com
relao a este terceiro momentCJ nota Kant: Totalitas haec absoluta, quamquam concep-
tus quotidiani et facile obvi speciem prae se ferat, praesertim cum negative enuntiatur, '
sicutifit in definitione, tamen penitus perpensa crucemfigere philosopho videtur.
Esta "cruz" pesa o decnio seguinte sobre Kant; pois, a Crtica da Razo Pura tor-
na-se justamente esta universitas mundi problema e sob vrios aspectos. Trata-se de acla-
rar: 1. A que (Worauj) se refere a totalidade representada sob o nome "mundo", respecti-
vamente, a que pode ela unicamente referir-se? 2. O que, de acordo com isto,
representado no conceito de mundo? 3. Que carter possui este representar de tal totali-
dade, isto . qual a estrutura conceitual do conceito de mundo como tal?
As respostas de Kant a estas questes, por ele no formuladas to expressamente,
trazem consigo uma absoluta modificao do problema do mundo. No h dvida que
tambm para o conceito de mundo de Kant se mantm o fato de que a totalidade nele
representada se refere s coisas finitas subsistentes. Mas esta relao com a finitude, to
essencial para o contedo do conceito de mundo, recebe um novo sentido. A finitude das
coisas puramente subsistentes no determinada pela via de uma demonstrao ntica
de seu ser-criado por Deus, mas explicada levando em conta o fato de que e em que me-
dida as coisas so objeto possvel para um conhecimento finito, isto , para um tal conhe-
cimento, que deve primeiramente deixar-se d-ias enquanto j subsistentes. Este ente
mesmo, dependente sob o ponto de vista de sua acessibilidade, de uma passiva receptivi-
dade (intuio finita), designa Kant como "fenmenos", isto , "coisas em sua apario".
Todavia, o mesmo ente, entendido como possvel "objeto" de uma intuio, absoluta,
isto , criadora, ele o chama "coisa em si". A unidade do complexo de fenmenos, isto
, a constituio ontolgica do ente acessvel ao conhecimento finito, determinada
pelos princpios ontolgicos, isto quer dizer, pelo sistema dos conhecimentos sintticos a
priori. 3 7 O contedo objetivo representado a priori nestes "princpios sintticos", sua
"realidade" no sentido antigo, justamente retido por Kant, de coisidade, se pode apresen-
tar, sem a experincia, intuitivamente a partir dos objetos, isto , a partir daquilo que
necessariamente intudo a priori com eles, a partir da pura intuio do "tempo". Sua rea-
3 6
De mundi sensibilis atque intelligibi!is forma et principiis, Sectio I, De notione mundi generatim, 1,
2. (N. do A.)
3 7
Ver o ensaio do Tradutor A Finitude na Revoluo Kantiana, in Revista Brasileira de Filosofia, Volume
XX (1970), pp.515-526. (N. do T.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 309
!idade uma realidade objetiva, representvel a partir dos objetos. No obstante, a uni-
dade dos fenmenos, j que necessariamente dependente de um dar-se faticamente
contingente, sempre condicionada e fundamentalmente imperfeita. Se agora esta unidade
da multiplicidade dos fenmenos for representada como perfeita, ento surge a represen-
tao de um conceito compreensivo, cujo contedo (realidade) no se deixa projetar
numa imagem, isto , em algo intuvel. A representao "transcendente". Na medida,
porm, em que esta representao de uma perfeio , contudo, a priori necessria, pos-
sui ela, ainda que transcendente, no entanto, realidade transcendental. As representaes
deste carter Kant denomina "idias''. Ela "contm uma certa perfeio a que no tem
acesso nenhum conhecimento emprico possvel, e a razo persegue com isto apenas uma
unidade sistemtica, da qual procura aproximar a unidade emprica possvel, sem jamais
poder atingi-la de maneira completa". 38 "Eu, porm, entendo por sistema a unidade dos
conhecimentos mltiplos sob uma idia. Esta conceito racional da forma de um
todo." 39 Esta unidade e totalidade representada nas idias no pode tambm nunca, por-
que "jamais pode ser projetada na imagem", 40 referir-se imediatamente a algo intuvel.
Ela concerne, por conseguinte, enquanto unidade superior, sempre apenas unidade da
sntese do entendimento. Mas estas idias "no so inventadas arbitrariamente, mas
impostas pela natureza da razo mesma e se referem, portanto, necessariamente a todo
o uso do entendimento". 41 Como puros conceitos do entendimento, elas no brotam da
reflexo do entendimento, ainda sempre referido ao que dado, mas emergem do puro
procedimento da razo enquanto conclusiva. Kant denomina, por isso, as idias, dife-
rena dos conceitos "refletidos" do entendimento, conceitos "obtidos por concluso". 42
No procedimento conclusivo, porm, a razo visa a conquistar o incondicionado para as
condies. As idias, como puros conceitos racionais da totalidade, so, por isso, repre-
sentaes do incondicionado. "Portanto, o conceito transcendental da razo no outro
seno aquele da totalidade das condies para um condicionado dado. Pelo fato de o
incondicionado poder unicamente tornar possvel a totalidade das condies, e vice-
versa, a totalidade das condies ser sempre, ela mesma, incondicionada, pode um puro
conceito da razo como tal ser explicado pelo conceito incondicionado, na medida em
que contm um fundamento da sntese do condicionado." 43
Idias so como representaes da totalidade incondicionada de um mbito do
ente, representaes necessrias. Na medida em que possvel uma trplice relao das
representaes com algo, com o sujeito e com o objeto e com este novamente de duas
maneiras, de maneira finita (fenmenos) e de maneira absoluta (coisa em si), surgem trs
classes de idias, com as quais se deixam harmonizar as trs disciplinas da metaphysica
specialis da tradio. A idia de mundo , de acordo com isto, aquela em que represen-
tada a priori a totalidade absoluta dos objetos acessveis no conhecimento finito. Mundo
designa. por conseguinte, tanto "conjunto de todos os fenmenos" 4 4 como "conjunto de
todos os objetos da experincia possvel". 4 5 Denomina todas as idias transcendentais,
na medida em que se referem totalidade absoluta na sntese por fenmenos, "conceitos
38
Cf. Crtica da Razo Pura, A 568, B 596. (N. do A.)
39
Ibidem, A 832, B 860. (N. do A.)
40
Ibidem, A 328,, A 328, B 384. (N. do A.)
41
Jbidem,A327,B384.(N.doA.. )
42
Ibidem, A 310, B 367; ainda A 333, B 390. (N. do A.)
43
Ibidem, A 322, B 379. - Quanto integrao da "idia", como uma determinada "espcie de represen-
tao" na "escala" das representaes, cf. ibidem, A 320, B 376 e ss. (N. do A.)
4 4
Ibidem, A 334. B 391. (N. do A.)
4 5
Que significa: orientar-se no pensamento?, 1786. Obras Completas (Cassirer), IV, p. 355. (N. do A.)
310 HEIDEGGER
de mundo". 4 6 Mas pelo fato de o ente acessvel ao conhecimento finito poder ser consi-
derado ontologicamente, tanto sob o ponto de vista de sua qididade (essentia) como sob
o ponto de vista de sua existncia (existentia) ou, de acordo com a formulao kantiana
desta diferena, segundo a qual ele tambm divide as categorias e princpios da analtica
transcendental, "matematicamente" e "dinamicamente", 4 7 surge como resultado uma
diviso de conceitos de mundo em matemticos e dinmicos. Os conceitos de mundo
matemticos so os conceitos de mundo "em sentido estrito", diferena dos dinmicos,
que o filsofo tambm denomina "conceitos transcendentais da natureza". 48 Contudo,
Kant acha "muito conveniente" denominar estas idias "em conjunto" conceitos de
mundo, "porque com mundo se entende o conceito compreensivo de todos os fenmenos,
e nossas idias tambm se dirigem somente ao incondicionado sob os fenmenos"; em
parte tambm porque a palavra "mundo" significa, no entendimento transcendental, a
absoluta totalidade do conjunto das coisas existentes, e porque ns dirigimos nossa aten-
o unicamente para a perfeio da sntese (ainda que propriamente apenas no regresso
s condies). 4 9
Nesta nota, vem luz no apenas a conexo do conceito kantiano de mundo com
a metafisica tradicional, mas, com a mesma clareza, a transformao realizada na Cr-
tica da Razo Pura, isto , a originria interpretao ontolgica do conceito de mundo,
que agora, em resposta breve s questes acima colocadas, pode ser assim caracterizada:
l. O conceito de mundo no um encadeamento ntico das coisas em si, mas um con-
ceito compreensivo transcendental (ontolgico) das coisas como fenmenos. 2. No con-
ceito de mundo no apresentada uma "coordenao" das substncias, mas justamente
uma subordinao, e, a saber, "a srie ascendente" das condies da sntese para o
incondicionado. 3. O conceito de mundo no uma representao "racional" indetermi-
nada em sua conceitualidade, mas determinado como idia, isto , como puro conceito
sinttico da razo e distinto dos conceitos do entendimento.
E, desta maneira, tirado do conceito de mundus agora tambm o carter de
universitas (totalidade), que antigamente lhe era atribudo, e reservado para uma classe
ainda mais alta de idias transcendentais, para as quais o conceito de mundo mesmo pos-
sui uma indicao e que Kant denomina de "ideal transcendental". 5 0
Neste lugar, preciso renunciar a uma interpretao deste momento supremo da
metafisica especulativa de Kant. Somente uma coisa deve ser lembrada, para pr, com
mais clareza, em relevo, o carter essencial de mundo, a finitude.
Como idia o conceito de mundo a representao de uma totalidade incondicio-
nada. Contudo, no representa ele simples e "propriamente" o incondicionado, na medi-
da em que a totalidade nele pensada, o objeto possvel do conhecimento finito, perma-
nece referida a fenmenos. Mundo como idia , na verdade, transcendente, ultrapassa os
4 6
Clitica da Razo Pura, A 407 ss .. B 434. (N. do A.)
4 7
"Na aplicao dos conceitos puros do entendimento experincia possvel, o uso de sua sntese, ou
matemtico ou dinmico: pois eles se dirigem em parte intuio, em parte existncia de um fenmeno em
geral." ibidem, A 160, B 199. ~ No que diz respeito correspondente distino dos "princpios", diz Kant:
"Deve-se. entretanto, notar que no tenho diante de meus olhos. aqui, tampouco os princpios da matem-
tica, num caso, quanto os princpios da dinmica geral (fsica) no outro, mas apenas os princpios do puro
entendimento em sua relao com o sentido interno (sem distino das representaes nele dadas), dos quais
aqueles, reunidos, recebem sua possibilidade. Denomino-os. portanto, levando mais em considerao sua
aplicao que seu contedo ... "Ibidem, A 162, B 302. ~ Cf., justamente no que respeita a uma problem-
tica mais radical do conceito de mundo e do ente em sua totalidade, a diferena entre o sublime-matemtico
e o sublime-dinmico. Crtica da Fora do Juzo, particularmente 28. (N. do A.)
48
Ib1de1n, A 419 ss. B 446 ss. (N-. do A.)
1
49
Ibidem. (N. do A.)
50
Ibidem, A 572, B 600, nota. (N. do A.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 311
fenmenos. mas de tal maneira que como totalidade deles a eles retroreferido. Trans-
cendncia, no sentido kantiano do ultrapassar da experincia , porm, ambgua. De um
lado, pode significar: ultrapassar, em meio experincia, aquilo que nela dado como
tal, a multiplicidade dos fenmenos. Isto vale da representao "mundo". De outro lado,
porm, transcendncia significa: sair da experincia como conhecimento finito em geral
e representar a possvel totalidade de todas as coisas como "objeto" do intuitus origina-
rius. Nesta transcendncia emerge o ideal transcendental, em face do qual mundo repre-
senta uma restrio e torna-se expresso do conhecimento finito humano em sua totali-
dade. O conceito de mundo est como que entre a "possibilidade da experincia" e o
"ideal transcendental" e significa assim, em seu ncleo, a totalidade da finitude do ser
humano.
A partir daqui se descerra o vu para a segunda significao especificamente exis-
tencial que em Kant recebe o conceito de mundo ao lado do "cosmolgico".
"O objeto mais importante no mundo, a que o homem pode aplicar todos os pro-
gressos na cultura, o homem, porque ele seu prprio fim ltimo. - Conhec-lo, por-
tanto, como habitante da terra, dotado de razo segundo sua espcie, merece ser particu-
larmente chamado conhecimento do mundo, ainda que apenas constitua uma parte dos
seres terrestres." 51 Conhecimento do homem, e isto, precisamente, sob o ponto de vista
"daquilo, que ele como ser que age com liberdade, faz de si ou pode e deve fazer", por-
tanto, precisamente no o conhecimento do homem sob o ponto de vista "fisiolgico",
aqui denominado conhecimento do mundo. Conhecimento significa o mesmo que antro-
pologia pragmtica (cincia do homem). "Uma tal antropologia, considerada como
conhecimento do mundo . .. , no propriamente ainda ento denominada de pragm-
tica, quando contm um conhecimento ampliado das coisas no mundo, por exemplo, dos
animais, plantas e minerais em diversos pases e climas, mas quando contm conheci-
mento do homem como cidado do mundo. " 52
O fato de "mundo" significar justamente a existncia do homem no convvio hist-
rico e no como fenmeno csmico, como espcie e ser vivo, torna-se ainda particular-
mente claro a partir das expresses que Kant aduz para a clarificao deste conceito
existencial do mundo: "Conhecer mundo" e "possuir mundo". Ambas as expresses
significam, ainda que ambas visem existncia do homem, algo diferente, "enquanto um
(o que conhece o mundo) apenas compreende o jogo a que assistiu, o outro, porm,
tomou parte do jogo". 53 Mundo aqui o nome para o jogo do ser-a, cotidiano. para este
mesmo.
De acordo com isto distingue Kant a "sabedoria do mundo" da "sabedoria priva-
da". A primeira habilidade de um homem para influenciar outros, para us-los para
seus "propsitos". 5 4 Ademais: "Pragmaticamente uma histria est redigida quando
torna sbio, isto , quando instrui o mundo, como pode procurar sua vantagem melhor
ou ao menos to bem como o mundo que o precedeu''. 5 5
5 1 Antropologia redigida sob o ponto de vista pragmtico, 1800, segunda edio, prefcio. Obras Comple-
A.)
5 5
Ibidem, p. 274, nota. (N. do A.)
312 HEIDEGGER
5 6
Cf. as prelees sobre antropologia que citamos, p. 72. (N. do A.)
5 7
Critica da Razo Pura, A 839. B 867 - Cf. tambm Lgica (ed. por G. B. Jasche), Introduo, Sees
III. (N. do A.)
58
Ibidem, A 569, B 597. (N. do A.)
59
Ibidem, A 840, B 868, nota. (N. do A.)
60
As questes: 1. Em que medida faz parte da essncia do ser-a, como ser-no-mundo, algo tal como "viso
de mundo''? 2. De que modo deve, tendo presente a transcendncia do ser-a, ser delimitada a essncia da
viso de mundo em geral e fundamentada em sua possibilidade interna? 3. Como se relaciona, de acordo
com seu carter transcendental, a viso de mundo com a filosofia? - no podem ser aqui elaboradas, nem
mesmo respondidas. (N. do A.)
61
Se porventura se identifica a conexo ntica das coisas de uso, do utenslio, com o mundo e se se expli-
cita o ser-no-mundo como trato com as coisas de uso, ento certamente fica sem perspectiva uma compreen-
so da transcendncia como ser-no-mundo, no sentido de uma "constituio fundamental do ser-a".
Pelo contrrio, a estrutura do ente "'mundano ambiente" - na medida em que est descoberto como utens-
lio - tem, para uma primeira caracterizao do fenmeno do mundo, a vantagem de servir de transio
para a anlise deste fenmeno e de preparar o problema transcendental do mundo. Isto tambm a nica e,
na articulao e disposio dos 14-24 de Ser e Tempo com suficiente clareza apontada, inteno da an-
lise do mundo ambiente; esta anlise permanece no todo e tendo em vista a meta condutora, de importncia
secundria.
Se, porm, falta aparentemente a natureza na analtica do ser-a assim orientada - no apenas a natureza
como objeto das cincias naturais. mas tambm a natureza num sentido mais originrio (cf. para isto Ser e
Tempo, p. 65, embaixo)-. ento h razes para isto. A razo decisiva reside no fato de no se poder encon-
trar natureza, nem no crculo do mundo ambiente, nem em geral, primariamente, como algo a que nos rela-
cionamos. Natureza est originariamente revelada no ser-a, pelo fato de este existir, como situado e disposto
em meio ao ente. Na medida, porm, em que sentimento de situao (derelico) faz parte da essncia do
ser-a e se expressa na unidade do conceito pleno de preocupao (cuidado), pode somente aqui ser conquis-
tada primeiramente a base para o problema da natureza. (N. do A.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 313
possibilidade da egoidade, que sempre apenas se revela no tu. Nunca, porm, a mesmi-
dade est relacionada com o tu, mas - porque possibilita isto - neutra em face do
ser-eu e ser-tu e ainda com mais razo em face da "sexualidade". Todas as proposies
de uma analtica ontolgica do ser-a no homem tomam este ente de antemo nesta
neutralidade.
Como se determina a referncia do ser-a ao mundo? J que ele no ente e j que
deve fazer parte do ser-a, no pode, manifestamente, esta referncia ser pensada como a
relao entre o ser-a como um ente e o mundo como o outro. Se isto no possvel, no
ento o mundo levado para dentro do ser-a (sujeito) e declarado como algo puramente
"subjetivo"? Trata-se, contudo, de primeiro conquistar pela clarificao da transcen-
dncia uma possibilidade para a determinao daquilo que significam "sujeito" e "subje-
tivo". No fim o conceito de mundo deve ser assim entendido, que o mundo realmente seja
subjetivo, mas que justamente por causa disso no caia como ente na esfera interna de
um sujeito "subjetivo". Pelo mesmo motivo, porm, no o mundo tambm puramente
objetivo, se isto significa: fazendo parte dos objetos que so.
O mundo , enquanto a respectiva totalidade do em-vista-de de um ser-a, posto por
ele mesmo diante dele mesmo. Este pr-diante-de-si-mesmo de mundo o projeto origi-
nrio das possibilidades do ser-a, na medida em que em meio ao ente se deve poder com-
portar em face dele. O projeto de mundo, porm, , da mesma maneira como no capta
propriamente o projetado, tambm sempre trans-(pro)-jeto do mundo projetado sobre o
ente. Este prvio trans-(pro )-jeto o que apenas possibilita que o ente como tal se revele.
Este acontecer do trans-(pro )-jeto projetante, em que o ser-a se temporaliza, o ser-no-
mundo. "O ser-a transcende" significa: ele , na essncia de seu ser formador de mundo,
e "formador" no sentido mltiplo de que deixa acontecer o mundo, de que com o mundo
se d uma vista originria (imagem), que no capta propriamente, se bem que funcione
justamente como pr-imagem (modelo revelador, Vor-bild) para todo ente revelado, do
qual o ser-a mesmo faz por sua vez parte.
O ente, digamos a natureza no sentido mais amplo, no poderia revelar-se de manei-
ra alguma, se no encontrasse ocasio de entrar num mundo. Por isso, falamos de uma
possvel e ocasional entrada no mundo (Welteingang) do ente. Entrada no mundo no
algo que ocorre no ente que entra, mas algo que "acontece" "com" o ente. E este aconte-
cer o existir do ser-~, que como existente transcende. Somente quando, na totalidade
do ente, o ente se torna "mais ente" ao modo da temporalizao do ser-a, dia e hora
da entrada no mundo pelo ente. E somente quando acontece esta histria primordial, a
transcendncia, isto , quando ente com o carter do ser-no-mundo irrompe para dentro
do ente, existe a possibilidade de o ente se revelar. 6 2
J a clarificao da transcendncia realizada at agora deixa entender que ela, se
verdade que somente nela o ente enquanto ente pode vir luz, constitui um mbito privi-
legiado para a elaborao de todas as questes que se referem ao ente como tal, isto ,
em seu ser. Antes de explicitarmos o problema principal do fundamento no mbito da
transcendncia e com isto radicalizarmos o problema da transcendncia sob um determi-
nado ponto de vista, vamos familiarizar-nos ainda mais com a transcendncia do ser-a
atravs de uma nova lembrana histrica.
62
Atravs da interpretao ontolgica do ser-a corno ser-no-mundo no caiu, nem positiva nem negativa-
mente, a deciso sobre um possvel ser para Deus. Mas pela clarificao da transcendncia se alcana
primeiramente um adequado conceito do ser-a, o qual, levado em considerao. permite ento perguntar
qual , sob o ponto de vista ontolgico, o estado da relao do ser-a com Deus. (N. do A.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 315
68 Boden-nehmen: tomar-cho. Traduzo assim para salvar o que se sugere com a expresso alem. Trata-
se aqui de dois modos de fundar. O primeiro como erigir, projetar, transcender, corno excesso; o segundo
como tornar-cho. ser ocupado pelo ente, fundassentar (permito-me recorrer a esta sugestiva criao de J.C.
de Melo Neto), subtrao. retrao. A relao originria entre ambos os modos de fundar faz com que
reciprocamente se revelem, um provocado pelo outro. O fundar como transcender revela-se como excesso em
face do fundar como tomar-cho; e este revela-se como subtrao em face daquele. Estes dois comporta-
mentos em face do fundar, ou melhor, o fundar como estes dois comportamentos, revelam a estrutura ambi-
valente da finitude. No h transcendncia sem rescendncia e vice-versa: a transcendncia exige o tornar-
cho como sua possibilidade e o tomar-cho recorre transcendncia para sua auto-revelao. (Ver E. Stein:
Em Busca de uma Ontologia da Finitude, in Revista Brasileira de Filosofia, volume XIX, J 969, pp. 399-420.
(N.doT.)
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 319
to". Este "segundo" fundar no surge aps o "primeiro", mas com ele "simultneo".
Com isto no se quer dizer que eles existem no mesmo agora, mas: projeto de mundo e
ocupao pelo ente fazem, como modos de fundar, respectivamente, parte de uma tempo-
ralidade, na medida em que constituem sua temporalizao (Zeitigung). Mas, do mesmo
modo como o futuro precede "no" tempo, mas somente se temporaliza na medida em que
justamente tempo, isto , tambm passado e presente se temporalizam na especfica
unidade-do-tempo, assim tambm os modos de fundar que se originam na transcendncia
mostram esta conexo. Esta correspondncia, porm, subsiste porque a transcendncia
radica na essncia do tempo, isto , em sua constituio ek-sttico-horizontal. 69
O ser-a no poderia, enquanto ente, ser pelo ente perpassado pela disposio e, em
conseqncia, por exemplo, ser por ele cercado, por ele ocupado e por ele atravessado -
faltar-lhe-ia, alis, espao para isso - , se esta ocupao pelo ente no fosse acompa-
nhada por uma irrupo de mundo, ainda que fosse um mundo apenas crepuscular.
Mesmo que o mundo desvelado tenha pouca ou nenhuma transparncia conceitua!;
mesmo que mundo seja at interpretado como um ente entre outros; pode faltar um saber
expresso em torno do transcender do ser-a; a liberdade do ser-a, que traz consigo o pro-
jeto de mundo, pode estar apenas desperta - o ser-a , contudo, ocupado pelo ente, ape-
nas como ser-no-mundo. O ser-a funda (erige) mundo apenas enquanto se autofunda em
meio ao ente.
No fundar com o carter de erigir, como projeto da possibilidade de si mesmo, resi-
de, entretanto, o fato de o ser-a sempre se exceder (berschwingt). O projeto de possibili-
dades , segundo sua essncia, sempre mais rico que a posse que repousa naquele que
projeta. Mas uma tal posse prpria do ser-a, porque se encontra situado, como proje-
tante, em meio ao ente. Com isto j esto subtradas ao ser-a certas outras possibili-
dades - e isto simplesmente atravs de sua prpria faticidade. Mas somente esta subtra-
o (privao) de certas possibilidades de seu poder-ser-no-mundo, decididas na
ocupao pelo ente, traz para o ser-a, como seu mundo, as possibilidades "realmente"
acessveis do projeto de mundo. A privao justamente consegue, para a obrigatoriedade
do ante-(pro )-jeto que permanece projetado a fora de seu imperar no mbito existencial
do ser-a. A transcendncia , conforme aos dois modos de fundar, ao mesmo tempo,
aquilo que excede e que priva. Que o projeto de mundo, cada vez se excedendo, somente
se torne poderoso e posse na privao, , ao mesmo tempo, um documento transcen-
dental dafinitude da liberdade do ser-a. Ser que no se manifesta nisto, at mesmo, a
essnciafinita da liberdade em geral?
Para a explicitao do diverso fundar da liberdade primeiramente essencial ver a
unidade dos modos de fundar, at aqui examinados. vinda luz na harmonia transcen-
dental de excesso e privao.
O ser-a, entretanto, no um ente que apenas se acha situado em meio ao ente; ele
se relaciona tambm com o ente e, desta maneira, consigo mesmo. Este relacionar-se
com o ente , primeiramente e o mais das vezes, equiparado transcendncia. Mesmo
que isto revele um desconhecimento da essncia da transcendncia, contudo, deve ser
examinada como problema a possibilidade transcendental do comportamento intencio-
nal. E se, realmente, a intencionalidade um privilegiado elemento constituinte da exis-
tncia do ser-a. no pode ser omitida numa clarificao da transcendncia.
O projeto de mundo possibilita, certamente - o que aqui no pode ser mostrado
- , a prvia compreenso do ser do ente. mas ele mesmo no referncia do ser-a ao
69
A interpretao temporal da transcendncia fica total e intencionalmente de bdo nesta considerao. (N.
do A.)
320 HEIDEGGER
ente. Do mesmo modo, a ocupao que faz o ser-a situar-se em meio ao ente (e, na ver-
dade, nunca sem desvelamento do mundo) e ser por ele disposto no um comporta-
mento em face do ente. Mas ambos so - na sua unidade qu caracterizamos - a
possibilitao transcendental da intencionalidade, e isto de maneira tal que, como modos
de fundar, temporalizam juntamente com eles um terceiro modo: o fundar como funda-
mentar. Neste a transcendncia do ser-a assume a possibilitao da revelao do ente
em si mesmo, a possibilidade da verdade ntica.
"Fundamentar" no ser tomado aqui no estreito e derivado sentido do demonstrar
de proposies ntico-teorticas, mas numa significao fundamentalmente originria.
De acordo com isto, fundamentao significa tanto como possibilitao da questo do
porqu em geral. Tornar visvel o carter prprio originariamente fundador do funda-
mentar, quer dizer, conforme isso, clarificar a origem transcendental do porqu como tal.
Procurados no so, portanto, os motivos da irrupo ftica da questo do porqu no
ser-a, mas procura-se a possibilidade transcendental o porqu em geral. Por isso deve
ser interrogada a transcendncia mesma, na medida em que foi determinada atravs dos
dois modos de fundar at aqui examinados. O fundar que erige antecipa, como projeto de
mundo, possibilidades de existncia. Existir significa sempre: situado em meio ao ente,
comportar-se em face dele -- do ente que no possui o carter do ser-a, de si mesmo e
de seu semelhante - de tal maneira que neste comportamento situado sempre esteja em
mira o poder-ser do ser-a. No projeto de mundo dado um excesso de possvel, em vista
do qual e no ser perpassado pelo imperar do ente (real), que de todos os lados nos cerca
no sentimento de situao brota o porqu.
Mas, pelo fato de os dois modos de fundar, primeiro examinados,fazeremparte de
uma unidade na transcendncia, a origem do porqu transcendentalmente necessria.
Com sua origem o porqu tambm j se diversifica. As formas fundamentais so: por
que assim e no assado? Por que isto e no aquilo? Por que qfinal algo e no nada?
Neste porqu, seja de que modo for expresso, j reside, porm, uma pr-compreenso,
ainda que pr-conceitua!, do que-ser, como-ser e ser (nada) em geral. Isto, porm, quer
dizer: j contm a resposta primordial, primeira e ltima para todo o questionar. A
compreenso do ser d, como resposia que a tudo precede simplesmente, a primeira e l-
tima fundamentao. Nela a transcendncia fundamentante enquanto tal. Porque nisso
ser e constituio de ser so desvelados, chama-se o fundamentar transcendental verdade
ontolgica.
Este fundamentar est " base'' de todo o comportamento em face do ente, de tal
modo que somente na claridade da compreenso do ser o ente pode ser revelado em si
mesmo (isto , enquanto o ente que ele e como o ). Porque, entretanto, todo o revelar-
se do ente (verdade ntica) , de antemo, perpassado transcendentalmente pelo imperar
do fundamentar que caracterizamos, por isso, devem, todo o descobrir e revelar nticos,
ser sua maneira "fundantes'' . isto , devem legitimar-se. Na legitimao se realiza a
aduo do ente exigida respectivamente pelo que-ser e como-ser do referido ente e do
modo de desvelamenro (verdade) que lhe prprio; um ta! ente ento, por exemplo, se
manifesta como "causa' e "motivo" (Beweggrund) para uma j revelada conexo de
entes. Pelo fato de a 1ranscendncia do ser-a, enquanto projeta e est situada, enquanto
elabora compreenso de ser, fundamenta, e pelo fato de estefundar ser co-originrio com
os dois primeiros citados, na unidade da transcendncia, isto , pelo fato de brotar da
liberdade finita do ser-a. por isso pode o ser-a, em suas iegitimaes fticas e justifica-
es, desembaraar-se das "razes", SL,focar o apelo a elas, transtorn-las e encobri-las.
Em comeqi.incia desta origem da fundamentao e. por c011seguinte, tambm da legiti-
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 321
mao, fica, em cada situao, entregue liberdade, at que ponto a legitimao exer-
cida e se ela consente na fundamentao propriamente dita, isto , no desvelamento de
sua possibilidade transcendental. Ainda que ser sempre esteja desvelado na transcen-
dncia, no necessria, contudo, uma formulao ontolgico-conceituai. Assim, pois,
de resto, a transcendncia pode ficar oculta como tal e somente ser conhecida numa
explicitao "indireta". Mas mesmo ento ela est desvelada, pois, ela justamente deixa
irromper o ente na constituio fundamental do ser-no-mundo, em que se manifesta o
autodesvelamento da transcendncia. Propriamente se desvela, porm, a transcendncia
como origem do fundar, quando este levado a eclodir em seu originar-se, na sua triplici-
dade. De acordo com isto, fundamento quer dizer:possibilidade, cho, legitimao. Ape-
nas o fundar da transcendncia, triplamente disperso, causa, enquanto originariamente
unifica, o todo em que o ser-a sempre deve poder existir. Liberdade , neste trplice
modo, liberdade para o fundamento. O acontecer da transcendncia como fundar o for-
mar-se do espao em que pode irromper o respectivo manter-se ftico do ser-a ftico em
meio ao ente como totalidade.
Reduzimos, por conseguinte, o tradicional nmero quatro de fundamentos a trs, ou
coincidem os trs modos de fundar com as trs modificaes do prton hthen em Aris-
tteles? To extrnsecamente no se pode fazer a comparao; pois caracterstica pr-
pria da primeira exposio dos "quatro fundamentos" que, ao se faz-lo, no se distingue
ainda fundamentalmente entre os fundamentos transcendentais e as causas especifica-
mente nticas. Aqueles so apenas os "mais gerais" com relao a estas. A origina-
riedade dos fundamentos transcendentais e seu carter especfico de fundamento ficam
ainda encobertos sob a caracterizao formal de "primeiros" e "supremos" princpios.
Por isso tambm lhes falta a unidade. Ela somente pode subsistir na co-originariedade da
origem transcendental do trplice fundar. A essncia "do" fundamento no se deixa nem
procurar e muito menos achar pelo fato de se perguntar por um gnero universal que
deveria surgir como resultado pela via de uma "abstrao". A essncia do fimdamento
a trplice distribuio do fundar em projeto de mundo, ocupao no (pelo) ente e funda-
mentao ontolgica do ente que brota transcendentalmente.
E somente por isso j o mais antigo interrogar pela essncia do fundamento mos-
tra-se imbricado com a tarefa de uma clarificao da essncia de ser e verdade.
No se poder, porm, perguntar, contudo, ainda agora, por que estes trs elemen-
tos determinantes da transcendncia que fazem parte de uma unidade so designados
com a mesma expresso "fundamentos"? Subsiste aqui apenas ainda uma comunidade
verbal artificial e forada e que se reduz a jogo de palavras? Ou so os trs modos de
fundar, contudo, ainda idnticos numa perspectiva - ainda que isto seja, em cada caso,
diferente? A pergunta deve realmente receber resposta positiva. A clarificao do signifi-
cado, porm, com respeito ao qual os trs modos inseparveis de fundar se correspondem
unitariamente e, contudo, diversificados, no se deixa concretizar ao "nvel" da presente
considerao. Baste, como aluso, a indicao de que o erigir, tomar-cho e legitimao
brotam, cada um a seu modo, do cuidado pela estabilidade e consistncia, o qual, por sua
vez, somente possvel como temporalidade.
Afastando-nos intencionalmente desta rea de problemas, analisaremos agora
brevemente, num retrospecto sobre o ponto de partida de nossa investigao, se alguma
coisa e o que foi ganho para o problema "do princpio da razo" atravs da tentada clari-
ficao da "essncia" do fundamento. O princpio diz: todo ente tem sua razo (funda-
mento). Pelo que precedeu, primeiro esclarecido por que isto assim. Pelo fato de ser,
originariamente, enquanto previamente compreendido, primordialmente fundar, anuncia
322 HEIDEGGER
cada ente enquanto ente, sua maneira, "razes", quer sejam elas propriamente captadas
e adequadamente determinadas, quer no. Pelo fato de "fundamento" ser um essencial
carter transcendental do ser em geral, por isso vale o princpio da razo do ente.
essncia do ser, porm, pertence fundamento, porque ser (no ente) somente se d na
transcendncia como o fundar situado que projeta mundo.
Em seguida, tornou-se claro, no que se refere ao princpio da razo, que o "lugar de
origem" deste princpio no est, nem na essncia da enunciao, nem na verdade da
proposio, mas na verdade ontolgica, isto, porm, quer dizer, na prpria transcen-
dncia. A liberdade a fonte do princpio do fundamento; pois nela, na unidade de exces-
so e privao, se funda o fundamentar que se configura como verdade ontolgica:
Se partirmos desta fonte, no compreenderemos o princpio apenas em sua possibi-
lidade interna, mas nossos olhos se abriro para o digno de nota que at agora no cha-
mou a ateno, de suas formulaes, que nas frmulas vulgares certamente reprimido.
Justamente em Leibniz se encontram formulaes do princpio que expressam um
momento aparentemente irrelevante de seu contedo. Numa justaposio esquemtica
so os seguintes: ratio est cur hoc potius existi! quam aliud; ratio est cur sic potius existit
quam aliter; ratio est cur aliquid potius existi! quam nihil. O curse exterioriza como cur
potius quam. Tambm aqui o primeiro problema no por que via e com que meios se
decidiro estas questes, cada vez faticamente postas em comportamentos nticos. Preci-
sa de explicitao, primeiro, qual a razo de se ter podido juntar ao curo potius quam.
Toda legitimao deve se mover na esfera do possvel, porque ela j, como compor-
tamento intencional em face do ente, tributria, no que se refere sua possibilidade, de
uma fundamentao (ontolgica) expressa ou tcita. Essa oferece, de acordo com sua
essncia, necessariamente e sempre, campos de desenvolvimento (Ausschlagbereiche) do
possvel - no que o carter de possibilidade se modifica conforme a constituio onto-
lgica do ente a ser desvelado - , porque o ser (constituio do ser), que fundamenta,
como compromisso transcendental, radica, em favor do ser, em sua liberdade. O reflexo
desta origem da essncia do fundamento no fundar da liberdade finita mostra-se no "po-
tius quam" da frmula do princpio de razo. Mas novamente impele a clarificao das
concretas conexes transcendentais entre "razo" e "antes que", para a explicitao da
idia de ser em geral (que-ser, como-ser, algo, nada e nulidade).
Conforme sua forma e papel tradicionais, o princpio da razo ficou prisioneiro da
exteriorizao, que traz consigo necessariamente uma primeira clarificao de tudo "que
possui carter de princpio". Pois tambm o proclamar uma proposio como "princ-
pio" e, porventura, junt-la com o princpio de identidade e o de no-contradio ou
mesmo dele deduzi-lo no conduz para a origem, mas se assemelha a um corte de todo
o questionamento posterior. Aqui preciso atentar, alm disso, para o fato de que os
princpios de identidade e de no contradio no so tambm apenas transcendentais,
mas apontam para trs, para algo mais originrio, que no possui carter proposicional,
e que muito antes faz parte do acontecer da transcendncia como tal (temporalidade).
Assim, pois, tambm o princpio da razo continua perturbando a essncia do fun-
damento e sufoca, na sua forma sancionada de princpio, uma problemtica que primeiro
sacudiria a ele mesmo. Mas esta "desordem" e perturbao no devem, porventura, ser
imputadas presumvel "superficialidade" de filsofos isolados e no podem por isso
tambm ser superados por um assim-dito "progresso" ("Weiterkommen '; mais radical.
O fundamento tem sua desordem (no-essncia) porque brota da liberdade finita. Ela
mesmo no se pode subtrair ao que dela assim brota. O fundamento, que transcendendo
brota, remonta prpria liberdade, e esta, como origem, se transforma ela mesma em
SOBRE A ESSNCIA DO FUNDAMENTO 323
SOBRE A ESSENCIA
DA VERDADE*
* A primeira edio deste trabalho foi impressa em 1943. Encerra o texto,,diversas vezes revisto, de uma
conferncia pblica que, sobre o mesmo ttulo, foi repetidas vezes proferida, desde 1930. A presente edio
aparece sem modificaes. O primeiro pargrafo da observao final falta no texto anterior.
Nota do Tradutor
ERNILDO STEIN
329
Introduo
comumeme vlida que nenhuma teoria perturba e que protege sua evidncia. Se, enfim,
tomarmos a reduo da verdade da proposio verdade da coisa, por aquilo que ela
significa ordinariamente, a saber, por uma explicao teolgica, e se procurarmos man-
ter inteiramente depurada a determinao filosfica da essncia de qualquer intromisso
da teologia e se restringirmos o conceito de verdade verdade da proposio, ento nos
encontramos, ao mesmo tempo, com uma tradio antiga do pensamento, ainda que no
a mais antiga, seg:mdo a qual a verdade consiste na concordncia (omiosis) de uma
enunciao (lgos) com o seu objeto (pragma). Que nos restar para investigar se admi-
tirmos que sabemos o que significa a concordncia de uma enunciao com uma coisa?
Mas sabemos ns isto?
assim se ope a ns deve, sob este modo de posio, cobrir um mbito aberto para nosso
encontro, mas permanecer, ao mesmo tempo, tambm a coisa em si mesma e se manifes-
tar em sua estabilidade. Esta apario da coisa, enquanto cobre (mede) um mbito para
o encontro, se realiza no seio de uma abertura cuja natureza de ser aberto no foi criado
pela apresentao, mas investido e assumido por ela como campo de relao. A relao
da enunciao apresentativa com a coisa a realizao desta referncia; esta se realiza,
originariamente e cada vez, como o desencadear de um comportamento. Todo o compor-
tamento, porm, se caracteriza pelo fato de, estabelecido no seio do aberto, se manter
referido quilo que manifesto enquanto tal. Somente isto que, assim, no sentido estrito
da palavra, est manifesto foi experimentado precocemente pelo pensamento ocidental
como "aquilo que est presente" e j, desde h muito tempo, chamado "ente".
O comportamento est aberto sobre o ente. Toda relao de abertura, pela qual se
instaura a abertura para algo, um comportamento. A abertura que o homem mantm
se diferencia conforme a natureza do ente e o modo do comportamento. Todo trabalho
e toda realizao, toda ao e toda previso, se mantm na abertura de um mbito aberto
no seio do qual o ente se pe propriamente e se torna suscetvel de ser expresso naquilo
que e como . Isto somente acontece quando o ente mesmo se pro-pe, na enunciao
que o apresenta, de tal maneira que esta enunciao se submete ordem de exprimir o
ente assim como . Na medida em que a enunciao obedece a tal ordem, ela se con-
forma ao ente. O dizer que se submete a tal ordem conforme (verdadeiro). O que assim
dito conforme (verdadeiro).
A enunciao recebe sua conformidade da abertura do comportamento. Pois,
somente atravs dela, o que manifesto pode tornar-se, de maneira geral, a medida dire-
tora de uma apresentao adequada. Mas o comportamento aberto mesmo deve deixar-
se guiar por esta medida. Isto quer dizer: o comportamento mesmo deve receber anteci-
padamente o dom prvio desta medida diretora de toda apresentao. Isto faz parte da
abertura que o comportamento mantm. Mas se somente pela abertura que o comporta-
mento mantm se torna possvel a conformidade da enunciao, ento aquilo que torna
possvel a conformidade possui um direito mais original de ser considerado como a
essncia da verdade.
Assim, cai por terra a atribuio tradicional e exclusiva da verdade enunciao,
tida como o nico lugar essencial da verdade. A verdade originria no tem sua morada
original na proposio. Mas surge simultaneamente a seguinte questo: qual o funda-
mento da possibilidade intrnseca da abertura que mantm o comportamento e que se d
antecipadamente uma medida? somente desta possibilidade intrnseca da abertura do
comportamento que a conformidade da proposio recebe a aparncia de realizar a
essncia da verdade.
3. O fundamento da possibilitao
de uma conformidade
De onde recebe a enunciao apresentativa a ordem de se orientar para o objeto, de
se pr de acordo segundo a lei da conformidade? Por que este acordo co-determmante
da essncia da verdade? Como pode unicamente efetuar-se a antecipao do dom de uma
medida e como surge a injuno de se ter que pr de acordo? isto que somente se reali-
zar se esta doao prvia nos tiver instaurado CO!llO livres, dentro do aberto, para algo
que nele se manifesta e que vincula toda apresentao. Liberar-se para uma medida que
SOBRE A ESSNCIA DA VERDADE 335
vincula somente possvel se se est livre para aquilo que est manifesto no seio do aber-
to. Maneira semelhante de ser livre se refere essncia at agora incompreendida da
liberdade. A abertura que mantm o comportamento, aquilo que torna intrinsecamente
possvel a conformidade, se funda na liberdade. A essncia da verdade a liberdade.
No substitui, porm, esta afirmao sobre a essncia da conformidade uma "evi-
dncia" por outra? Uma ao obviamente no se pode realizar a no ser atravs da liber-
dade de quem age. O mesmo acontece com a ao de enunciar apresentando, e com a
ao de consentir ou recusar uma "verdade".
Esta tese, entretanto, no significa que para levar a termo uma enunciao, para
comunic-la ou assimil-la, se deva agir sem constrangimento. A afirmao diz: a liber-
dade a prpria essncia da verdade. Entendamos aqui por "essncia" o fundamento da
possibilidade intrnseca daquilo que imediata e geralmente admitido como conhecido.
Todavia, no conceito de liberdade ns no pensamos a verdade e muito inenos sua essn-
cia. A tese segundo a qual a essncia da verdade (a conformidade da enunciao) a
liberdade deve, portanto, surpreender.
Situar a essncia da verdade na liberdade no significa, por acaso, entregar a verda-
de ao arbtrio humano? Pode-se sabotar mais profundamente a verdade do que a abando-
nando ao arbtrio deste "canio instvel"? O que constantemente se imps ao bom senso
durante a discusso manifesta-se agora de modo mais claro: a verdade aqui deslocada
para a subjetividade do sujeito humano. Mesmo que este sujeito tenha acesso a uma obje-
tividade, ela permanece, porm, do mesmo modo humana como esta subjetividade e
posta disposio do homem.
Pe-se, sem dvida, na conta do homem, a falsidade e a hipocrisia, a mentira e o
engano, o logro e a simulao, numa palavra, todos os modos da no-verdade. Mas j
que a no-verdade o contrrio da verdade, tem-se o direito de afast-la do mbito de
interrogao pela pura essncia da verdade com relao qual aquela inessencial. Esta
origem humana da no-verdade apenas confirma, por oposio, que a essncia da verda-
de "em si" reina "acima" do homem. Ela tida pela metafisica como eterna e imperec-
vel, e jamais poder ser edificada sobre a instabilidade do frgil ser humano. Como pode,
ainda assim, a essncia da verdade encontrar seu apoio e fundamento na liberdade do
homem?
A hostilidade contra a tese que diz que a essncia da verdade a liberdade apia-se
em preconceitos dos quais os mais obstinados so: a liberdade uma propriedade do
homem; a essncia da liberdade no necessita nem tolera mais amplo exame; o que o
homem, cada qual sabe.
4. A essncia da liberdade
como liberdade a ex-posio ao carter desvelado do ente como tal. Ainda incom-
preendida e nem mesmo carecendo de fundamentao essencial, a ek-sistncia do homem
historial comea naquele momento em que o primeiro pensador tocado pelo desvela-
mento do ente e se pergunta o que o ente. Nesta pergunta o ente pela primeira vez
experimentado em seu desvelamento. O ente em sua totalidade se revela como physis,
"natureza", que aqui no aponta um domnio especfico do ente, mas o ente enquanto tal
em sua totalidade, percebido sob a forma de uma presena que eclode. Somente onde o
prprio ente expressamente elevado e mantido em seu desvelamento, somente l onde
tal sustentao compreendida luz de uma pergunta pelo ente enquanto tal, comea a
histria. O desvelamento inicial do ente em sua totalidade, a interrogao pelo ente
enquanto tal e o comeo da histria ocidental so uma e mesma coisa; eles se efetuam ao
mesmo "tempo", mas este tempo, em si mesmo no mensurvel, abre a possibilidade de
toda medida.
Se, entretanto, o ser-a ek-sistente, como deixar-ser do ente, libera o homem para a
sua "liberdade", quer oferecendo sua escolha alguma coisa possvel (ente), quer impon-
do-lhe alguma coisa necessria (ente), no ento o arbtrio humano que dispe da liber-
dade. O homem no possui a liberdade como uma propriedade, mas antes, pelo contr-
rio: a liberdade, o ser--a, ek-sistente e desvelador, possui o homem, e isto t_o
originariamente que somente ela permite a uma humanidade inaugurar a relao com o
ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboa toda a histria.
Somente o homem ek-sistente historial. A "natureza" no tem histria.
A liberdade assim compreendida, como deixar-ser do ente, realiza e efetua a essn-
cia da verdade sob a forma do desvelamento do ente. A "verdade" no uma caracte-
rstica de uma proposio conforme, enunciada por um "sujeito" relativamente a um
"objeto" e que ento "vale" no se sabe em que mbito; a verdade o desvelamento do
ente graas ao qual se realiza uma abertura. Em seu mbito se desenvolve, ex-pondo-se,
todo o comportamento, toda tomada de posio do homem. por isso que o homem
ao modo da ek-sistncia.
Pelo fato de todo comportamento humano sempre estar aberto a seu modo e se pr
em harmonia com aquilo a que se refere, o comport;:,mento fundamental do deixar-ser,
quer dizer, a liberdade, lhe comunicou como dom a diretiva intrnseca de conformar sua
apresentao ao ente. O homem ek-siste significa agora: a histria das possibilidades
essenciais da humanidade historial se encontra protegida e conservada para ela no desve-
lamento do ente em sua totalidade. Conforme a maneira do desdobramento originrio da
essncia da verdade, irrompem as raras, simples e capitais decises da histria.
Porque a verdade liberdade em sua essncia, o homem historial pode tambm, dei-
xando que o ente seja, no deix-lo-ser naquilo que ele e assim como . O ente, ento,
encoberto e dissimulado. A aparncia passa assim a dominar. Sob seu domnio surge
a no-essncia da verdade. Pelo fato de a liberdade ek-sistente como essncia da verdade
no ser uma propriedade do homem, e ainda pelo fato de o homem no ek-sistir a no ser
.enquanto possudo por esta liberdade e somente assim tornar-se capaz de histria, a
no-essncia no poderia nascer subsidiariamente da simples incapacidade e da negli-
gncia do homem. A no-verdade deve, antes pelo contrrio, derivar da essncia da ver-
dade. pelo fato de a verdade e no-verdade no serem indiferentes um para o outro em
sua essncia, mas copertencerem, que, no fundo, uma proposio verdadeira pode se
encontrar em extrema oposio com a correlativa proposio no-verdadeira. Por isso, a
questo da essncia da verdade atinge, somente ento, o domnio original do que real-
338 HEIDEGGER
mente perguntado, quando a vista prvia da plena essncia da verdade permite englobar
tambm a reflexo sobre a no-verdade no desvelamento da essncia da verdade. O
exame da no-essncia da verdade no vem preencher tardiamente uma lacuna, mas ele
constitui o passo decisivo na posio adequada da questo da essncia da verdade. Mas
como devemos ns conceber a no-essncia na essncia da verdade? Se a essncia da
verdade no se esgota na conformidade da enunciao, ento a no-verdade tambm no
pode ser igualada com a no-conformidade do juzo.
5. A essncia da verdade
pre deixa o ente, a que se refere, ser, em cada comportamento individual, e com isto o
desoculta, dissimula ele o ente em sua totalidade. O deixar-ser , em si mesmo, simulta-
neamente, uma dissimulao. Na liberdade ek-sistente do ser-a acontece a dissimulao
do ente em sua totalidade, o velamento.
vidade, ele, contudo, procura as diretivas para tal nos estreitos limites de seus projetos e
necessidades correntes.
Instalar-se na vida corrente , entretanto, em si mesmo o no deixar imperar a dissi-
mulao do que est velado. Sem dvida, tambm na vida corrente existem enigmas,
obscuridades, questes no decididas e coisas duvidosas. Mas todas estas questes, que
no surgem de nenhuma inquietude e esto seguras de si mesmas, so apenas transies
e situaes intermedirias nos movimentos da vida corrente e, portanto, inessenciais. L
onde o velamento do ente em sua totalidade tolerado sob a forma de um limite que
acidentalmente se anuncia, a dissimulao como acontecimento fundamental caiu no
esquecimento.
Mas o mistrio esquecido do ser-a no eliminado pelo esquecimento. Este, pelo
contrrio, d~ ao aparente desaparecimento uma presena prpria. Enquanto o mistrio se
subtrai retraindo-se no esquecimento e para o esquecimento, leva o homem historial a
permanecer na vida corrente e distrado com suas criaes. Assim abandonada, a huma-
nidade completa "seu mundo" a partir de suas necessidades e de suas intenes mais
recentes e o enche de seus projetos e clculos. Deles o homem retira ento suas medidas,
esquecido do ente em sua totalidade. Nestes projetos e clculos o homem se fixa munin-
do-se constantemente com novas medidas, sem meditar o fundamento prprio desta to-
mada de medidas e a essncia do que d estas medidas. Apesar do progresso em direo
a novas medidas e novas metas, o homem se ilude no que diz respeito essncia autn-
tica destas medidas. O homem se engana nas medidas tanto mais quanto mais exclusiva-
mente toma a si mesmo, enquanto sujeito, como medida para todos os entes. Neste
desmesurado esquecimento, a humanidade insiste em assegurar-se atravs de si mesma,
graas quilo que lhe acessvel na vida corrente. Esta persistncia encontra seu apoio,
apoio que ela mesma desconhece, na relao pela qual o homem no somente ek-siste,
mas ao mesmo tempo in-siste, isto , petrifica-se apoiando-se sobre aquilo que o ente,
manifesto como que por si e em si mesmo, oferece.
Ek-sistente, o ser-a in-sistente. Mesmo na existncia insistente reina o mistrio,
mas como a essncia esquecida, e assim ornada "inessencial", da verdade.
Insistente, o homem est voltado para o que o mais corrente em meio ao ente. Ele,
porm, somente pode insistir na medida em que j ek-sistente, isto , enquanto ele, con-
tudo, toma como medida diretora o ente como tal. Mas a humanidade, enquanto toma
medida, est desviada do mistrio. Este insistente dirigir-se ao que corrente e o ek-sis-
tente afastar-se do mistrio se copertencem. So uma e mesma coisa. Esta maneira de se
voltar e se afastar resulta, no fundo, da agitao inquieta que caracterstica do ser-a.
Este vaivm do homem no qual ele se afasta do mistrio e se dirige para a realidade cor-
rente, corre de um objeto da vida cotidiana para outro, desviando-se do mistrio, o
errar.
O homem erra. O homem no cai na errncia num momento dado. Ele somente se
move dentro da errncia porque in-siste ek-sistindo e j se encontra, desta maneira, sem-
pre na errncia. A errncia em cujo seio o homem se movimenta no algo semelhante
a um abismo ao longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando. Pelo
contrrio, a errncia participa da constituio ntima do ser-a qual o homem historial
SOBRE A ESSNCIA DA VERDADE 341
est abandonado. A errncia o espao de jogo deste vaivm no qual a ek-sistncia insis-
tente se movimenta constantemente, se esquece e se engana sempre novamente. A dissi-
mulao do ente em sua totalidade, ela mesma velada, se afirma no desvelamento do ente
particular que, como esquecimento da dissimulao, constitui a errncia.
A errncia a antiessncia fundamental que se ope essncia da verdade. A errn-
cia se revela como o espao aberto para tudo o que se ope verdade essencial. A errn-
cia o cenrio e o fundamento do erro. O erro no uma falta ocasional, mas o imprio
desta histria onde se entrelaam, confundidas, todas as modalidades do errar.
Todo o comportamento possui sua maneira de errar, correspondente abertura que
mantm e sua relao com o ente em sua totalidade. O erro se estende desde o mais
comum engano, inadvertncia, erro de clculo, at o desgarramento e o perder-se de nos-
sas atitudes e nossas decises essenciais. Aquilo que o hbito e as doutrinas filosficas
chamam erro, isto , a no-conformidade do juzo e a falsidade do conhecimento, ape-
nas um modo e ainda o mais superficial de errar. A errncia na qual a humanidade histo-
rial se deve movimentar para que se possa dizer que sua marcha errante uma compo-
nente essencial da abertura do ser-a. A errncia domina o homem enquanto o leva a se
desgarrar. Mas pelo desgarramento a errncia contribui tambm para fazer nascer esta
possibilidade que o homem pode tirar da ek-sistncia e que consiste em no se deixar
levar pelo desgarramento. O homem no sucumbe no desgarramento se for capaz de pro-
var a errncia enquanto tal e no desconhecer o mistrio do ser-a.
Pelo fato de a ek-sistncia in-sistente do homem marchar na errncia e pelo fato de
esta enquanto desgarramento ameaar sempre o homem de alguma maneira, a ek-sis-
tncia est plena de mistrio e de um mistrio esquecido. Eis por que o homem est sub-
misso, na ek-sistncia de seu ser-a, ao mesmo tempo ao reino do mistrio e ameaa que
irrompe da errncia. Tanto o mistrio como a ameaa de desgarramento mantm o
homem na indigncia do constrangimento. A plena essncia da verdade, incluindo sua
prpria antiessncia, mantm o ser-a na indigncia, pela constante oscilao do vaivm
entre o mistrio e a ameaa de desgarramento. O ser-a o voltar-se para a indigncia.
Somente do ser-a do homem brota o desvelamento da necessidade e por ela a existncia
humana pode ser levada para a esfera do inelutvel.
O desvelamento do ente enquanto tal , ao mesmo tempo e em si mesmo, a dissimu-
lao do ente em sua totalidade. nesta simultaneidade do desvelamento e da dissimula-
o que se afirma a errncia. A dissimulao do que est velado e a errncia pertencem
essncia originria da verdade. A liberdade, compreendida a partir da ek-sistncia
insistente do ser-a, somente a essncia da verdade (como conformidade da apresenta-
o) pelo fato de a prpria liberdade irromper da originria essncia da verdade, do reino
do mistrio da errncia. O deixar-ser do ente se realiza pelo nosso comportamento no
mbito do aberto. Entretanto, o deixar-ser do ente como tal e em sua totalidade acontece,
autenticamente, apenas ento, quando, de tempos em tempos, assumido em sua essn-
cia originria. Ento a deciso enrgica pelo mistrio se pe em marcha para a errncia
que reconheceu enquanto tal. Neste momento a questo da essncia da verdade posta
mais originariamente. Ento se revela, afinal, o fundamento da imbricao da essncia
da verdade com a verdade da essncia. A perspectiva sobre o mistrio, que se descerra a
partir da errncia, pe o problema da questo que unicamente importa: que o ente
enquanto tal em sua totalidade? Uma tal interrogao pensa o problema essencialmente
desconcertante e por isso no dominado ainda em sua ambivalncia: a questo do ser do
ente. O pensamento do qual emana originariamente tal interrogao se concebe, desde
Plato, como "filosofia", e recebeu mais tarde o nome de "metafisica".
HEIDEGGER
9. Observao
I
tao tcnica do pensar, cujos primrdios recuam at Plato e Aristteles. O prprio
pensar tido, ali, como uma tkhne, o processo da reflexo a servio do fazer e do ope-
1
Trad.: O engajamento pelo ser para o ser. (N. do E.)
2
Trad.: O engajamento na ao. (N. do E.)
348 HEIDEGGER
rar. A reflexo, j aqui, vista desde o ponto de vista da praxis e poesis. Por isso, o
pensamento, tomado em si, no "prtico''. A caracterizao do pensar como theoria e
a determinao do conhecer como postura "terica" j ocorrem no seio da interpretao
"tcnica" do pensar. uma tentativa reacional, visando a salvar tambm o pensar, dan-
do-lhe ainda uma autonomia em face do agir e operar. Desde ento, a "Filosofia" est
constantemente na contingncia de justificar sua existncia em face das "Cincias". Ela
c,: que isto se realizaria da maneira mais segura, elevando-se ela mesma condio de
uma cincia. Este empenho, porm, o abandono da essncia do pensar. A filosofia
perseguida pelo temor de perder em prestgio e importncia, se no for cincia. O no ser
cincia considerado uma deficincia que identificada com a falta de cientficidade. Na
interpretao tcnica do pensar, abandonado o ser como o elemento do pensar. A "L-
gica" a sano desta interpretao que comea com a Sofstica e Plato. Julga-se o pen-
sar de acordo com uma medida que lhe inadequada. Um tal julgamento se assemelha
a um procedimento que procura avaliar a natureza e as faculdades do peixe, de acordo
com sua capacidade de viver em terra seca. J h muito tempo, demasiado tempo, o pen-.
sar est fora de seu elemento. Ser possvel chamar de "irracionalismo" o reconduzir
pensar ao seu elemento?
As questes levantadas em sua carta poderiam ser mais facilmente elucidadas numa
conversa direta. No papel, o pensar sacrifica facilmente sua mobilidade. Mas sobretudo,
nestas condies, s com muita dificuldade poder conservar a pluridimensionalidade de
seu mbito que lhe prpria. Em comparao com as cincias, o rigor do pensar no s
consiste na exatido artificial, isto , tcnico-terica dos coneitos, mas repousa no fato
de o dizer permanecer, de modo puro, no elemento do ser, deixando imperar o simples de
suas mltiplas dimenses. Mas, por outro lado, a forma escrita oferece a salutar coero
para formulaes lingsticas cuidadosas. Para hoje, gostaria de escolher apenas uma de
suas questes. A anlise desta talvez jogue uma luz tambm sobre as outras.
Voc pergunta: Comment redonner un sens au mot "Humanisme"? 3 Esta questo
nasce da inteno de conservar a palavra "Humanismo". Pergunto-me se isto necess-
rio. Ou ser que no se manifesta, ainda, de modo suficiente, a desgraa que expresses
desta natureza provocam? No h dvida, de h muito j se desconfia dos "-ismos". Mas
o mercado da opinio pblica exige constantemente novos. E sempre se est disposto a
cobrir esta necessidade. Tambm os nomes como "Lgica", "tica", "Fsica", apenas
surgem quando o pensar originrio chega ao fim. Em sua gloriosa era, os gregos pensa-
ram sem tais ttulos. Nem mesmo de "Filosofia" chamavam o pensar. Este termina ao
sair de seu elemento. O elemento aquilo a partir do qual o pensar capaz de ser um
pensar. O elemento o que propriamente pode: o poder. Ele assume o pensar e o conduz,
assim, para sua essncia. Dito de maneira simples, o pensar o pensar do ser. O genitivo
diz duas coisas. O pensar do ser na medida em que o pensar, apropriado e manifestado
pelo ser, pertence ao ser. O pensar , ao mesmo tempo, pensar do ser na medida em que
o pensar, pertencendo ao ser, escuta o ser. Escutando o ser e a ele pertencendo, o ser
aquilo que ele , conforme sua origem essencial. O pensar - isto quer dizer: o ser
encarregou-se, dcil ao destino e por ele dispensado da essncia do pensar. Encarregar-se
de uma "coisa" ou de uma "pessoa" em sua essncia significa: am-la, quer-la. Este
querer significa, quando pensado mais originariamente: gratificar a essncia. Tal querer
a essncia propriamente dita do poder, o qual no apenas capaz de produzir isto ou
aquilo. mas capaz de deixar que algo desdobre seu ser em sua pro-venincia, isto signi-
3
Trad.: Como tornar a dar sentido palavra "Humanismo? (N. do E.)
SOBRE O "HUMANISMO" 349
fica, que capaz de deixar-ser. O poder do querer aquilo graas ao qual alguma coisa
propriamente capaz de ser. Este poder o propriamente possvel; aquele possvel cuja
essncia repousa no querer.;_ a partir deste querer que o ser capaz do pensar. Aquele
possibilita este. O ser como o que pode e quer o "pos-svel". O ser como o elemento
a "fora silenciosa" de poder que quer dizer, isto , do possvel. Nossos termos "poss-
vel" e "possibilidade" so, sem dvida, pensados sob o imprio da "Lgica" e "Metafisi-
ca", distinguindo-se da "atualidade"; isto significa, a partir de uma determinada interpre-
tao - a metafisica - do ser, como actus e potentia, distino que identificada com
a de existentia e essentia. Quando falo da "fora silenciosa do possvel", no me refiro ao
possibile de uma possibilitas apenas representada, nem potentia enquanto essentia de
um actus da existentia, refiro-me ao prprio ser que, pelo seu querer, impera com seu
poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essncia do homem, e isto quer dizer,
sobre sua relao com o ser. foder algo significa aqui: guard-lo em sua essncia,
conserv-lo em seu elemento.
Quando o pensar chega ao fim, na medida em que sai de seu elemento, compensa
esta perda, valorizando-se como tkhne, como instrumento de formao, e por este moti-
vo, como atividade acadmica e, mais tarde, como atividade cultural. A Filosofia vai
transformar-se em uma tcnica de explicao pelas causas ltimas. No mais se pensa;
a gente se ocupa com "Filosofia". Na concorrncia destas ocupaes, elas ento se exi-
bem publicamente como "ismos", procurando uma sobrepujar a outra. O domnio destas
expresses no casual. Ele reside, e isto particularmente nos tempos modernos, na sin-
gular ditadura da opinio pblica. A assim chamada "existncia privada" no , entre-
tanto, j o ser-homem essencial e livre. Ela simplesmente crispa-se numa negao do que
pblico. Ela permanece o chanto dele dependente e alimenta-se apenas do recuo diante
do que pblico. Ela atesta, assim, contra sua prpria vontade, sua subjugao opinio
pblica. Ela mesma, porm. a instaurao e dominao metafsicamente condicionadas
- porque originando-se do domnio da subjetividade - da abertura do ente, na incondi-
cional objetivao de tudo. Por isso, a linguagem termina a servio da mediao das vias
de comunicao, nas quais se espraia a objetivao, como o acesso uniforme de tudo
para todos, sob o desprezo de qualquer limite. Deste modo, a linguagem cai sob a dita-
dura da opinio pblica. Esta decide previamente o que compreensvel e o que deve ser
desprezado como incompreensvel.
Aquilo que se diz, em Ser e Tempo (1927), 27 e 35. sobre o "a gente'' no quer
fornecer, de maneira alguma, apenas uma contribuio incidental para a Sociologia.
Tampouco o "a gente" significa apenas a figura oposta, compreendida de modo tico-
existencialista, ao ser-si-mesmo da pessoa. O que foi dito contm, ao contrrio. a indica-
o, pensada a partir da questo da verdade do ser, para o pertencer originrio da pala-
vra ao ser. Esta relao permanece oculta sob o domnio da subjetividade que se
apresenta como a opinio pblica. Se, todavia, a verdade do ser tomou-se digna de ser
pensada para o pensar, deve tambm a reflexo sobre a essncia da linguagem alcanar
um outro nvel. Ela no pode continuar sendo apenas pura filosofia da linguagem.
somente por isso que Ser e Tempo ( 34) contm uma indicao para a dimenso essen-
cial da linguagem e toca a simples questo que pergunta, em que modo de ser, afinal. a
linguagem enquanto linguagem , em cada situao. O esvaziamento da linguagem, que
grassa em toda parte e rapidamente, no corri apenas a responsabilidade esttica e
moral em qualquer uso da linguagem. Ela provm de uma ameaa essncia do homem.
Um simples uso cultivado da linguagem no demonstra, ainda, que conseguimos escapar
a este perigo essencial. Um certo requinte no estilo poderia hoje, ao contrrio, at signifi-
350 HEIDEGGER
car que ainda no vemos o perigo, nem somos capazes de v-lo, porque ainda no ousa-
mos jamais enfrentar seu olhar. A decomposio da linguagem, atualmente to falada e
isto bastante tarde, no , contudo, a razo, mas j uma conseqncia do fato de que a
linguagem, sob o donnio da metafisica moderna da subjetividade, se extravia, quase
invencivelmente, de seu elemento. A linguagem recusa-nos ainda sua essncia: isto , que
ela a casa da verdade do ser. A linguagem abandona-se, ao contrrio, a nosso puro que-
rer e nossa atividade, como um instrumento de dominao sobre o ente. Este prprio
ente aparece como o efetivamente real no sistema de atuao de causa e efeito. Encon-
tramos o ente como o efetivamente real tanto quando calculamos e agimos, como quan-
do procedemos cientificamente e filosofamos com explicaes e fundamentaes. A elas
tambm pertence o garantir que algo seja inexplicvel. Com tais afirmaes pensamos
estar diante do mistrio. Como se j estivesse estabelecido que a verdade do ser se pudes-
se fundamentar, de qualquer modo, sobre causas e razes explicativas, ou, o que d no
mesmo sobre a impossibilidade de sua apreenso.
Caso o homem encontre, ainda uma vez, o caminho para a proximidade do ser,
ento deve antes aprender a existir no inefvel. Ter que reconhecer, de maneira igual,
tanto a seduo pela opinio pblica quanto a impotncia do que privado. Antes de
falar, o homem deve novamente escutar, primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dcil a
este apelo, pouco ou raramente algo lhe restar a dizer. Somente assim ser devolvido
palavra o valor de sua essncia e o homem ser gratificado com a devoluo da hab_ita-
o para o residir na verdade do ser.
No residem, no entanto, neste apelo ao homem, no se escondem nesta tentativa de
preparar o homem para este apelo um empenho e uma solicitude pelo homem? Para onde
se dirige "o cuidado", seno no sentido de reconduzir o homem novamente para sua
essncia? Que outra coisa significa isto, a no ser que o homem (homo) se torne humano
(humanus)? Deste modo ento, contudo, a humanitas permanece a preocupao de um
tal pensar; pois humanismo isto: meditar, e cuidar para que o homem seja humano e
no des-humano, inumano, isto , situado fora de sua essncia. Entretanto, em que con-
siste a humanidade do homem? Ela repousa em sua essncia.
Mas de onde e como se determina a essncia do homem? Marx exige que o "homem
humano", seja conhecido e reconhecido. Ele o encontra na "sociedade". O homem
"socializado" para ele o homem "natural". na "sociedade" que a "natureza" do
homem, isto , a totalidade de "suas necessidades naturais" (alimentao, vesturio,
reproduo, subsistncia econmica) eqitativamente assegurada. O cristo v a huma-
nidade do homem, a humanitas do homo, desde o ponto de vista de sua distino da Dei-
tas. Ele , sob o ponto de vista da histria da salvao, homem como "filho de Deus",
que, em Cristo, escuta e assume o apelo do Pai. O homem no deste mundo, na medida
em que o "mundo" pensado terica e platonicamente apenas uma passagem provisria
para o Alm.
Somente na poca da repblica romana, humanitas , pela primeira vez, expressa-
mente pensada e visada sob este nome. Contrape-se o homo humanus ao homo barba-
rus. O homo humanus, , aqui, o romano que eleva e enobrece a virtus romana atravs
da "incorporao" da paidia herdada dos gregos. Estes gregos so os gregos do helenis-
mo, cuja cultura era ensinada nas escolas filosficas. Ela refere-se erudito et institutio
in honas artes. A paidia assim entendida traduzida por humanitas. A romanidade
propriamente dita do homo romanus consiste em tal humanitas. Em Roma, encontramos
o primeiro humanismo. Ele permanece, por isso, em sua essncia, um fenmeno especifi-
came1Jte romano, que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo. A
SOBRE O "HUMANISMO" 351
assim chamada Renascena dos sculos XIV e XV, na Itlia, uma renascentia romani-
tatis. Como o que importa a romanitas, trata-se da humanitas e, por isso, da paidia
grega. Mas a grecidade sempre vista em sua forma tardia, sendo esta mesma vista de
maneira romana. Tambm o homo romanus do Renascimento est numa oposio com
o homo barbarus. Todavia, o in-umano , agora, o assim chamado barbarismo da Esco-
lstica Gtica da Idade Mdia. Do humanismo, entendido historicamente, faz sempre
parte um studium humanitatis; este estudo recorre, de uma certa maneira, Antiguidade,
tomando-se assim, em cada caso, tambm um renascimento da grecidade. Isto se mostra
no humanismo do sculo XVIII, aqui entre ns, sustentado por Winckelmenn, Goethe e
Schiller. H'lderlin, ao contrrio, no faz parte do "humanismo", e isto, pelo fato de pen-
sar o destino da essncia do homem mais radicalmente do que este "humanismo"
capaz.
Se, porm, se entende por humanismo, de modo geral, o empenho para que o
homem se torne livre para sua humanidade, para nela encontrar sua dignidade, ento o
humanismo se distingue, em cada caso, segundo a concepo da "liberdade" e da "natu-
reza" do homem. Distinguem-se, ento do mesmo modo, as vias para sua realizao. O
humanismo de Marx no carece de retorno Antiguidade, como tambm no o huma-
nismo que Sartre entende quando fala em Existencialismo. Neste sentido amplo, em
questo, tambm o cristianismo um humanismo, na medida em que, segundo sua dou-
trina, tudo depende da salvao da alma (salus aeterna) do homem, aparecendo a histria
da moldura da histria da salvao. Por mais que se distingam estas espcies de huma-
nismo, segundo suas metas e fundamentos, segundo a maneira e os meios de cada reali-
zao, segundo a forma de sua doutrina, todas elas coincidem nisto que a humanitas do
homo humanus determinada a partir do ponto de vista de uma interpretao fixa da
natureza, da histria, do mundo, do fundamento do mundo, e isto significa, desde o
ponto de vista do ente em sua totalidade.
Todo humanismo funda-se ou numa Metafisica ou ele mesmo se postula como fun-
damento de uma tal. Toda determinao da essncia do homem que j pressupe a inter-
pretao do ente, sem a questo da verdade do ser, e o faz sabendo ou no sabendo,
Metafisica. Por isso, mostra-se, e isto no tocante ao modo como determinada a essncia
do homem, o elemento mais prprio de toda Metafisica, no fato de ser "humanstica". De
acordo com isto, qualquer humanismo permanece metafisico. Na determinao da
humanidade do homem, o humanismo no apenas deixa de questionar a relao do ser
com o ser humano. Mas o humanismo tolhe mesmo esta questo, pelo fato de, por causa
de sua origem da Metafisica, no conhec-la nem compreend-la. E vice-versa, a necessi-
dade e a natureza particular da questo da verdade do ser, esquecida na Metafisica e
atravs dela, s pode vir luz, levantando-se, em meio ao domnio da Metafisica, a ques-
to "Que Metafisica?" De incio at qualquer questo do "ser", tambm aquela da ver-
dade do ser, deve ser introduzida como uma questo "metafisica".
O primeiro humanismo, a saber, o romano, e todos os tipos de humanismo que,
desde ento at o presente, tm surgido, pressupem como bvia a "essncia" mais uni-
versal do homem. O homem tomado como animal rationale. Esta determinao no
apenas a traduo latina da expresso grega zon lgon khon, mas uma interpretao
metafisica. Esta determinao essencial do homem no falsa. Mas ela condicionada
pela Metafisica, cuja origem essencial e no apenas cujos limites tornaram-se, contudo,
em Ser e Tempo, dignos de serem questionados. O digno de ser questionado foi primeiro,
confiado ao pensar como aquilo que ele deve pensar; mas de maneira alguma jogado ao
consumo de uma inane compulso de dvida.
352 HEIDEGGER
A Metafisica realmente representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente.
Mas ela no pensa a diferena de ambos (vide Sobre a Essncia do Fundamento, 1929, p.
8, e mais Kant e o Problema da Metafisica, 1929, p. 225, e ainda Ser e Tempo, p. 230).
A Metafisica no levanta a questo da verdade do ser mesmo. Por isso ela tambm ja-
mais questiona o modo como a essncia do homem pertence verdade do ser. Estaques-
to a Metafisica, at agora, ainda no levantou. Esta questo inacessvel para a Metafi-
sica enquanto Metafisica. O ser ainda est espera de que ele mesmo se torne digno de
ser pensado pelo homem. Seja de que maneira se determine a ratio do animal e a razo
do ser vivo, tendo em mira a determinao essencial do homem, quer como "faculdade
dos princpios", quer como "faculdade das categorias" ou de outra maneira, em toda
parte, e cada vez, a essncia da razo se funda no fato de que, para toda percepo do
ente em seu ser, ser mesmo j se iluminou e acontece historialmente em sua verdade.
Do mesmo modo com "animal''. zon, j se pro-ps uma interpretao da "vida"
que repousa necessariamente sobre uma interpretao do ente como zo e physis, em
meio qual se manifesta o ser vivo. Alm disto e antes de qualquer outra coisa, resta,
enfim, perguntar se a essncia do homem como tal, originalmente - e com isto deci-
dindo previamente tudo - realmente se funda na dimenso da animalitas. Estamos ns
no caminho certo para a essncia do homem, quando distinguimos o homem e enquanto
o distinguimos, como ser vivo entre outros, da planta, do animal e de Deus? Pode-se pro-
ceder assim, pode-se situar, desta maneira, o homem, em meio ao ente, como um ente
entre outros. Com isto se poder afirmar, constantemente, coisas acertadas sobre o
homem. preciso, porm, ter bem claramente presente que o homem permanece assim
relegado definitivamente para o mbito essencial da animalitas; o que acontecer,
mesmo que no seja equiparado ao animal e se lhe atribuir uma diferena especfica.
Pensa-se, em princpio, sempre o homo anima/is, mesmo que anima seja posta como ani-
mus sive mens e mesmo que estes, mais tarde, sejam postos como sujeito, como pessoa.
como esprito. Um tal pr o modo prprio da Metafisica. Mas com isto a essncia do
homem minimizada e no pensada em sua origem. Esta origem essencial permanecer
sempre a origem essencial para a humanidade historial. A Metafisica pensa o homem a
partir da animalitas; ela no pensa em direo de sua humanitas.
A Metafisica cerra-se para o simples dado essencial de que o homem somente des-
dobra seu ser em sua essncia, enquanto recebe o apelo do ser. Somente na intimidade
deste apelo, j "tem" ele encontrado sempre aquilo em que mora sua essncia. Somente
deste morar "possui" ele "linguagem" como a habitao que preserva o ec-sttico para
sua essncia. O estar postado na clareira do ser denomino eu a ec-sistncia do homem.
Este modo de ser s prprio do homem. A ec-sistncia assim entendida no apenas
o fundamento da possibilidade da razo, ratio, mas a ec-sistncia aquilo em que a
essncia do homem conserva a origem de sua determinao.
A ec-sistncia somente deixa-se dizer a partir da essncia do homem, isto , somente
a partir do modo humano de "ser"; pois, apenas o homem, ao menos tanto quanto sabe-
mos, nos limites de nossa experincia, est iniciado no destino da ec-sistncia. por isso
que a ec-sistncia nunca poder ser pensada como uma maneira especfica de ser entre
outras espcies de seres vivos; isto naturalmente suposto que o homem foi assim disposto
que deve pensar a essncia de seu ser e no apenas realizar relatrios sobre a natureza e
histria de sua constituio e de suas atividades. Desta maneira, funda-se na essncia da
ec-sistncia tambm aquilo que atribwmos ao homem, mediante a comparao com o
"animal". O corpo do homem algo essencialmente diferente do organismo animal. O
erro do biologismo no est superado quando se ajunta ao elemento corporal do homem
SOBREO "HUMANISMO" 353
nunca esto inseridos livremente na clareira do ser - e s assim "mundo" - , por isso,
falta-lhes a linguagem. E no porque lhes falta a linguagem, esto eles suspensos sem
mundo em seu ambiente. Mas nesta palavra "ambiente" concentra-se toda dimenso
enigmtica do ser vivo. Em sua essncia, a linguagem no nem exteriorizao de um
organismo nem expresso de um ser vivo. Por isso, ela tambm no pode ser pensada em
harmonia com sua essncia, nem a partir de carter semasiolgico, e talvez nem mesmo
a partir de seu carter semntico. Linguagem advento iluminador-velador do prprio
ser.
A ec-sistncia, pensada ec-staticamente, no se cobre, nem quanto ao contedo,
nem quanto forma, com a existentia. Ec-sistncia significa, sob o ponto de vista de seu
contedo, estar exposto na verdade do ser. Existentia (existence) quer, ao contrrio, dizer
actua!itas, realidade efetiva, diferena com a pura possibilidade da idia. Ec-sistncia
nomeia a determinao daquilo que o homem no destino da verdade. Existentia perma-
nece o nome para a efetivao daquilo que alguma coisa , enquanto se manifesta em sua
idia. A frase: "O homem ec-siste" no responde pergunta se o homem efetivamente
ou no, mas responde questo da "essncia" do homem. Costumamos levantar esta
questo inadequadamente, quer perguntemos pelo que o homem, quer perguntemos
quem o homem. Pois no quem? e no qu? j temos em vista algo que possui carter de
pessoa ou que possui carter de objeto. Mas o elemento pessoal falha e obstrui, ao
mesmo tempo, o desdobramento do ser da ec-sistncia ontolgico-historial, e no menos
que o que possui carter objetivo. Com cautela escreve, por isso, a frase citada, em Ser
e Tempo (p. 42) a palavra "Wesen" entre aspas. Isto assinala que agora "essncia"
no se determina nem a partir do esse essentiae, nem a partir do esse existentiae, mas a
partir do elemento ec-sttico do ser-a. Como ec-sistente o homem sustenta o ser-a,
enquanto toma sob seu "cuidado" o a enquanto a clareira do ser. Mas o ser-a mesmo
, enquanto "jogado". Desdobra seu ser no lance do ser que dispensa o destino e a ele
toma dcil.
A suprema confuso seria, se se quisesse explicar a frase sobre a essncia ec-sistente
do homem, como se fosse uma transposio secularizada de um pensamento expresso
pela teologia crist sobre Deus (Deus est suum esse), 4 para aplic-lo ao homem; a ec-sis-
tncia no nem uma realizao efetiva de uma essncia nem causa e pe a ec-sistncia
mesma, o que essencial (Essentielle). Se se compreende o "projeto" nomeado em Ser e
Tempo como um pr que representa, ento se o toma como a produo da subjetividade
e no se pensa como a "compreenso do ser", no mbito da "analtica existencial" do
"ser-no-mundo", unicamente pode ser pensada, a saber, como a relao ec-sttica com a
clareira do ser. A tarefa de repetir e acompanhar, de maneira adequada e suficiente, este
outro pensar que abandona a subjetividade foi sem dvida dificultada pelo fato de, na
publicao de Ser e Tempo, eu haver retido a Terceira Seo da Primeira Parte, Tempo
e Ser (vide Ser e Tempo, p. 39). Aqui o todo se inverte. A seo problemtica foi retida,
porque o dizer suficiente desta viravolta fracassou e no teve sucesso com o auxlio da
linguagem da Metafisica. A conferncia Sobre a Essncia da Verdade, pensada e levada
a pblico em 1930, mas apenas impressa em 1943, oferece uma certa perspectiva sobre o
pensamento da viravolta de Ser e Tempo para Tempo e Ser. Esta viravolta no uma
mudana do ponto de vista de Ser e Tempo; mas, nesta viravolta, o pensar ousado alcan-
a o lugar do mbito a partir do qual Ser e Tempo foi compreendido e, na verdade,
compreendido a partir da experincia fundamental do esquecimento do ser.
4
Trad.: Deus o seu prprio ser. (N. do E.)
SOBRE O "HUMANISMO" 355
to que o mais longquo para o pensamento corrente, esta proximidade mesma: a verda-
de do ser.
- 'I O esquecimento da verdade do ser, em favor da agresso do ente impensado em sua
essncia, o sentido da "decada" nomeada em Ser e Tempo. A palavra no se refere a
uma queda do homem, entendida sob o ponto de vista da "filosofia moral" e ao mesmo
tempo secularizado, mas nomeia uma relao essencial do homem com o ser no seio da
referncia do ser essncia do homem. Por conseguinte, as expresses preparatrias
"autenticidade" e "inautenticidade", usadas como preldio, no significam uma distin-
o moral-existencialista, nem "antropolgica", mas a relao "ec-sttica" do ser huma-
no com a verdade do ser que a primeira a ter que ser pensada, porque at agora oculta
para a Filosofia. Mas esta relao como , no em razo da ec-sistncia, mas a essncia
da ec-sistncia existencial ec-staticamente a partir da essncia da verdade do ser.
A nica coisa que o pensar que, pela primeira vez, procura expressar-se em Ser e
Tempo gostaria de alcanar algo simples. Como tal o ser permanece misteriosamente
a singela proximidade de um imperar que no se impe fora. Esta proximidade desdo-
bra seu ser como a prpria linguagem. Mas a linguagem no apenas linguagem, no sen-
tido em que a concebemos, quando muito, como a unidade de fonema (grafema), melodia
e ritmo e significao (sentido). Pensamos fonema e grafema como o corpo da palavra;
melodia e ritmo como a alma e o que possui significao adequada, como o esprito da
linguagem. Pensamos comumente a linguagem a partir da correspondncia essncia do
homem, na medida em que esta apresentada como animal rationale, isto , como a uni-
dade de corpo-alma-esprito. Todavia, assim como na humanitas do homo anima/is a
es~sistncia permanece oculta e, atravs dela, a relao da verdade do ser com o homem, /
assim encobre a interpretao metafisico-animal da linguagem sua essncia ontolgico- ,\ z,
historial. De acordo com ela, a linguagem a casa do ser manifestada e apropriada pelo . \:/:, .,.p'
ser e por el_e d_isposta. Por _isso, trata-se de pensar a ess?ci_a da linguagem ~ pa.rtir da) _-."
correspondencia ao ser a isto, enquanto tal correspondencia, o que quer dizer. como__,, v
habitao da essncia do homem.
O homem, porm, no apenas um ser vivo; ao lado de outras faculdades, tambm
possui a linguagem. Ao contrrio, a linguagem a casa do ser; nela morando, o homem
ec-siste enquanto pertence verdade do ser, protegendo-a.
Assim, o que importa na determinao da humanidade do homem enquanto ec-sis-
tncia que no o homem o essencial, mas o ser enquanto a dimenso do elemento ec-
sttico da ec-sistncia. A dimenso, todavia, no o conhecido elemento espacial. Ao
contrrio, tudo que espacial e todo espao de tempo desdobra seu ser no elemento
dimensional que a prpria maneira de o ser ser. .,
O pensar atenta para estas simples relaes. Para elas procura ele a palavra ade-
quada em meio linguagem tradicional da Metafisica e da Gramtica que vem de longe.
problemtico se um tal pensar - supondo que ainda importa uma expresso como tal
- ainda se deixa denominar humanismo. Certamente no. enquanto o humanismo
metafisico. Certamente no, se for Existencialismo e defende a frase que Sartre ex-
prime: Prcisment nous sommes sur un plan ou il y a seulement des hommes 5
(L 'Existencialisme Est un Humanisme, p. 36). Em vez disso, pensando a partir de Ser e
Tempo, dever-se-ia dizer: Prcisment naus sommes sur un planou il y a principalement ', r
l'tre. Mas de onde vem e o que le plan? L 'tre et le plan so o mesmo. Em Ser e
Tempo, vem dito intencionalmente e com cuidado (p. 212); il y a l 'tre: "d-se" o ser. O
5
Trad.: Ns estamos precisamente num plano onde h apenas homens. (N. do E.)
358 HEIDEGGER
il y a traduz o "d-se" de modo impreciso. Pois o "se" que aqui "d" o prprio ser. O
"d", contudo, nomeia aquilo que d, a essncia do ser que garante a sua verdade. O
dar-se ao aberto, com ele mesmo, o prprio ser.
Emprega-se, ao mesmo tempo, o "d-se" para, provisoriamente, evitar a expresso:
"o ser "; pois comumente diz-se o "" das coisas que so. Estas ns as designamos de
ente. Mas o ser justamente no "" "o ente". Se o "" vem dito, sem maior explicao,
do ser, ento o ser representado com demasiada facilidade como um "ente", ao modo
do ente conhecido, que opera como causa e operado como efeito. Contudo, j Parm-
nides afirma nos primrdios do pensamento: stin gr efnai. ", a saber, o ser." Nesta
palavra esconde-se o mistrio originrio para todo pensar. Talvez o "" s possa ser dito,
de maneira adequada, apenas do ser, de maneira tal que todo ente jamais propriamente
"". Mas como o pensamento ainda deve atingir a dimenso em que dir o ser em sua
verdade, em vez de explic-lo como um ente a partir do ente, deve ficar aberta para a
solicitude do pensar a questo, se e como o ser .
O stin gr einai de Parmnides permanece ainda hoje impensado. Por a pode-se
medir como se d o progresso da Filosofia. Ela no progride de forma alguma, caso res-
peite sua essncia. Ela marca passo para sempre pensar o mesmo. O progredir, a saber,
afastando-se do lugar, um erro que segue o pensar como a sombra que ele mesmo proje-
ta. Porque o ser est ainda impensado, diz-se tambm, em Ser e Tempo, do ser: "d-se".
Sobre este il y a no se pode especular sem mais e sem apoio. Este "d-se" impera como
o destino do ser, cuja histria se manifesta na linguagem pela palavra dos pensadores
essenciais. por isso que o pensar que pensa, penetrando na verdade do ser, , enquanto
pensar, historial. No existe um pensar "sistemtico" e, ao lado, para ilustrao, uma
histria das opinies passadas. Mas tambm no existe, como pensa Hegel, uma sistem-
tica que seria capaz de fazer da lei de seu pensar uma lei da histria e que pudesse
sobressumir, ao mesmo tempo, esta no sistema:; Existe, se pensarmos mais radicalmente,
a histria do ser qual o pensar, como memria desta histria, pertence, acontecendo
atravs da posterior recordao da histria, no sentido do que teve lugar no passado. A
histria no acontece primeiro como um evento. E este no um simples passar. O even-
to da histria se desdobra em ser como o destino da verdade do ser, a partir dele (vide
Conferncia sobre o Hino de Hlderlin "Como num dia de festa ... ", 1941, p. 31). Ao
destino chega o ser, na medida em que ele, o ser, se d. Mas isto significa, quando pen-
sando com docilidade ao destino: ele d-se e recusa-se simultaneamente. Entretanto, a
determinao hegeliana de histria, como desenvolvimento do "esprito", no desti-
tuda de verdade. Ela, porm, tambm no em parte certa e parte falsa. Ela to verda-
deira, como verdadeira a Metafsica que, pela primeira vez, em Hegel, traz linguagem
sua essncia pensada de modo absoluto, no sistema. A Metafsica absoluta faz parte -
com suas inverses, atravs de Marx e Nietzsche - da histria da verdade do ser. O que
dela provm no se deixa atingir por refutaes ou mesmo afastar. Somente deixa-se
assumir, na medida em que se recolhe sua verdade, mais radicalmente no ser mesmo,
retirando-a da esfera de uma opinio apenas humana. Nscia toda refutao no campo
do pensar essencial. A disputa entre pensadores a "disputa amorosa" da questo
mesma. Ela auxilia-os alternadamente a penetrar na simples participao no mesmo, a
partir do qual eles encontram a docilidade no destino do ser.
Suponho que o homem. no futuro, seja capaz de pensar a verdade do ser, ento ele
pensa a partir da ec-sistncia. Ec-sistindo est ele postado no destino do ser. A ec-sis-
tncia do homem , enquanto ec-sistncia historial, mas isto no, em primeiro lugar e
apenas pelo fato de. no decurso do tempo, muitas coisas acontecerem com o homem e as
SOBRE O "HUMANISMO" 359
coisas humanas. Pelo fato de tratar-se de pensar a ec-sistncia do ser-a, por isso o pen-
sar, em Ser e Tempo, est to fundamente interessado em que seja experimentada a histo-
ricidade do ser-a.
No se diz, porem, em Ser e Tempo (212), onde se fala do "d-se": "Somente
enquanto ser-a, d-se ser"? Sem dvida. Isto significa: somente enquanto se manifesta
a clareira do ser, este se transpropria ao homem. Mas o fato de o a, a clareira enquanto
a verdade do prprio ser, acontecer e manifestar-se, a destinao do prprio ser. Este
o destino da clareira tradicional de existentia e no sentido moderno como a realidade
efetiva do ego cogito, aquele ente atravs do qual o ser primeiramente criado. A frase
no afirma que o ser um produto do homem. Na Introduo a Ser e Tempo (38) est
escrita de maneira simples e clara e at em grifo: "Ser o transcendente como tal''.
Assim como a abertura da proximidade espacial ultrapassa qualquer coisa prxima ou
distante, quando vista a partir desta, assim o ser fundamentalmente mais amplo que
todo ente, porque a prpria clareira. Neste caso, ainda se pensa, de acordo com o ponto
de partida inicialmente inevitvel, situado na Metafisica ainda dominante, o ser a partir
do ente. Somente a partir de tal perspectiva mostra-se o ser num ultrapassar e como este
mesmo.
A determinao introdutria "Ser o transcendente como tal" rene, numa simples
frase, a maneira como at agora a essncia do ser se manifestou ao homem. Esta determi-
nao retrospectiva da essncia do ser permanece incontornvel para o ponto de partida
antecipador da questo da verdade do ser. Longe dele est a presuno de querer come-
ar tudo desde o incio e declarar falsa toda a filosofia anterior. Para um pensar que pro-
cura pensar a verdade do ser, a nica questo que permanece se a determinao do ser
como o simplesmente transcendente j nomeia a simples essncia da verdade do ser. Por
isso, tambm se diz, pgina 230, que somente a partir do "sentido", isto , a partir da
verdade do ser, se pode compreender como o ser . O ser se manifesta ao homem no pro-
jeto ec-sttico. Mas este projeto no instaura o ser.
E, alm disso, o projeto essencialmente um projeto jogado. Aquele que joga no
projetar no o homem, mas o prprio ser que destina o homem para a ec-existncia do
ser-a como sua essncia. Este destino acontece como a clareira do ser, forma sob a qual
o destino . Ela garante a proximidade ao ser. Nesta proximidade, na clareira do "a",
mora o homem como o ec-sistente, sem que j hoje seja capaz de experimentar propria-
mente este morar e assumi-lo. A proximidade "do" ser, modo como o "a" do ser-a,
pensada na conferncia sobre a elegia de Hilderlin "Retorno" (1943) a partir de Ser e
Tempo; a partir da poesia do poeta que esta proximidade do ser percebida numa lin-
guagem mais radical e nomeada a "ptria" a partir da experincia do esquecimento do
ser. Esta palavra pensada aqui num sentido mais originrio, no com acento patritico,
nem nacionalista, mas de acordo com a histria do ser. Mas a essncia da ptria , ao
mesmo tempo, nomeada com a inteno de pensar a apatridade do homem moderno a
partir da histria do ser. O ltimo a experimentar esta apatridade foi Nietzsche. Ela no
foi capaz de encontrar, no seio da Metafisica, outra sada dela que a inverso da Metafi-
sica. Mas isto a consumao da perplexidade. Todavia, Hlderlin se preocupa, ao com-
por o "Retorno", para que seus "contemporneos" reencontrem o lugar de seu desdobra-
mento essencial. Isto ele no procura, de maneira alguma, no egosmo de seu povo. Ele
o v, ao contrrio, a partir da condio de eles fazerem parte do Ocidente. Mas Ocidente
nao e pensado reg10na1 e geograicamente, enquanto o ocidental ope-se ao oriental;
tambm no pensado como a Europa, mas na perspectiva da histria universal a partir
da proximidade com a origem. Ns praticamente ainda no comeamos a pensar as
360 HEIDEGGER
tempo, negativamente sobre o mbito de toda e qualquer possvel oposio a eie. Num
tal procedimento esconde-se a recusa de submeter a uma reflexo o que, por preconceito,
se julga "positivo", juntamente com posio e oposio, dade esta em que pensa estar a
salvo. Com o constante apelo ao elemento lgico, suscita-se a aparncia de um empenho
ao pensar, quando, ento, justamente, se renunciou ao pensar.
Destas observaes deve ter resultado um pouco mais claro que a oposio ao "hu-
manismo" no implica, de maneira alguma, a defesa de inumano, mas abre outras
perspectivas.
A "Lgica" entende o pensar como a representao do ente em seu ser, pensar que
se apresenta o representar na generalidade do conceito. Mas o que acontece com a medi-
tao sobre o prprio ser, e isto quer dizer, com o pensar que pensa a verdade do ser?
Somente este pensar atinge a essncia originria do lgos, que, em Plato e Aristteles,
os fundadores da "Lgica", j foi entulhada e perdida. Pensar contra "a Lgica'' no sig-
nifica quebrar lanas em defesa do ilgico, mas significa apenas: meditar sobre o lgos,
e sua essncia nos primrdios do pensamento; significa: empenhar-se. primeiro, na
preparao de um tal me-ditar. Que sentido possuem para ns todos os sistemas da Lgi-
ca, por mais amplos que sejam, quando se subtraem, e mesmo sem o saber, j de ante-
mo, da tarefa de primeiro questionar, mesmo que seja apenas isto, a essncia do lgos?
Quisssemos devolver na mesma moeda, com objees, o que certamente improdutivo,
ento, com maior razo, se poderia dizer: o irracionalismo como renncia ratio impera
desconhecido e indiscutido, quando se defende aquela "Lgica" que pensa poder esqui-
var-se de uma meditao sobre o lgos e sobre a essncia da ratio que nele se
fundamenta.
O pensar contra "os valores" no afirma que tudo aquilo que se declara como "va-
lores", a "cultura", a "arte", a "cincia", a "dignidade do homem", "mundo" e "Deus",
seja em valor. Ao contrrio, importa, finalmente, reconhecer que, justamente pela carac-
terizao de algo como "valor", rouba-se a dignidade daquilo que assim valorado. Isto
quer dizer: ao avaliar algo como valor, aquilo que foi valorado apenas admitido como
objeto para a avaliao pelo homem. Mas aquilo que algo em seu ser no se esgota em
sua objetividade e, sobretudo, de modo algum, ento, quando a objetividade tem o car-
ter de valor. Todo valorar, mesmo onde um valorar positivamente, uma subjetivao.
O valorar no deixa o ente ser, mas todo valorar deixa apenas valer o ente como objeto
de seu operar. O esdrxulo empenho em demonstrar a objetividade dos valores no sabe
o que faz. Quando se proclama "Deus" como "o valor supremo", isto significa uma
degradao de Deus. O pensar atravs de valores , aqui, e em qualquer outra situao,
a maior blasfmia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores no signi-
fica, portanto, propagar que o ente destitudo de valor e que sem importncia; mas
isto significa: levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjetiva-
o do ente em simples objeto.
Chamar a ateno para o "ser-no-mundo" como o trao fundamental da humanitas
do homo humanus no significa afirmar que o homem apenas um ser "mundano", no
sentido cristo; portanto, um ser afastado de Deus e at desligado da "transferncia".
Com esta palavra pensa-se o que mais claramente foi denominado o transcendente. O
transcendente o ente supra-sensvel. Este vale como o ente supremo no sentido da causa
primeira de todos os entes. Deus pensado como esta causa primeira. "Mundo", todavia,
na expresso "ser-no-mundo", no significa, de maneira alguma, o ente terreno, dife-
rena do celeste, nem mesmo o "mundano", diferena do "espiritual". "Mundo",
naquela expresso, no significa, de modo algum, um ente e nenhum mbito do ente, mas
366 HEIDEGGER
a abertura do ser. O homem e homem enquanto o ec-sistente. Ele est postado, num
processo de ultrapassagem, na abertura do ser, que o modo como o prprio ser ; este
jogou a essncia do homem, como um lance, no "cuidado" de si. Jogado desta maneira,
o homem est postado "na" abertura do ser. "Mundo" a clareira do ser na qual o
homem penetrou a partir da condio de ser-jogado de sua essncia. O "ser-no-mundo"
nomeia a essncia da ec-sistncia, com vistas dimenso iluminada, desde a qual desdo-
bra seu ser o "ec" da ec-sistncia. Pensado a partir da ec-sistncia, "mundo" , justa-
mente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ec-sistncia. O homem jamais
primeiramente do lado de c do mundo como um "sujeito", pensa-se este como "eu" ou
como "ns". Nunca tambm primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre
se refere, ao mesmo tempo, a objetos, de tal maneira que sua essncia consistiria na rela-
o sujeito-objeto. Ao contrrio, o homem primeiro , em sua essncia, ec-sistente na
abertura do ser, cujo aberto ilumina o "entre" em cujo seio pode "ser" uma "relao" de
sujeito e objeto.
A frase: A essncia do homem reside no ser-no-mundo tambm no contm uma
deciso sobre a hiptese se o homem , no sentido teolgico-metafisico, um ser deste
mundo ou do outro.
Com a determinao existencial da essncia do homem, por isso, ainda nada est
decidido sobre a "existncia de Deus" ou seu "no-ser", como tampouco sobre a possibi-
lidade ou impossibilidade de deuses. Por isso no apenas apressado, mas j falso no
modo de proceder, afirmar que a interpretao da essncia do homem, a partir da relao
desta ess~ncia com a verdade do ser, atesmo. A esta classificao arbitrria, ademais,
falta cuidado na leitura. No h preocupao com o fato de que, desde 1929, est escrito,
no texto Sobre a Essncia do Fundamento (28, nota 1), o seguinte: "Atravs da interpre-
tao ontolgica do ser-a como ser-no-mundo no se decidiu nada, nem positiva nem
negativamente, sobre um possvel ser-para-Deus. Mas s pela clarificao da transcen-
dncia se alcana um adequado conceito do ser-a, que, levado em considerao, permite,
ento, perguntar qual , sob o ponto de vista ontolgico, o estado da relao do ser-a
com Deus". Se tambm se interpreta, como de costume, tambm esta observao, de
maneira mesquinha, ir explicar-se: esta filosofia no se decide nem a favor nem contra
a existncia de Deus. Ela permanece presa indiferena. E um tal indiferentismo, contu-
do, torna-se vtima do niilismo.
Ora, ensina a observao que aduzimos o indiferentismo? Por que grifamos ento
palavras isoladas determinadas e no qualquer uma? Pois, foi apenas para insinuar que
o pensar que pensa desde a questo da verdade do ser pensa mais radical e originaria-
mente do que a Metafisica capaz de questionar.
Somer, a partir da verdade do ser deixa-se pensar a essncia do sagrado. E somen-
te a partir o, essncia do sagrado deve ser pensada a essncia da divindade. E, final-
mente, somente na luz da essncia da divindade pode ser pensado e dito o que deve no-
mear a palavra "Deus". Ou ser que no deveremos ser capazes de, primeiro, entender e
escutar com cuidado estas palavras, se ns homens, isto , como seres ec-sistentes, qui-
sermos ter acesso a uma experincia de uma relao de Deus para com o homem? Pois,
como poderia o homem da atual histria mundial mesmo apenas questionar, com serie-
dade e rigor, se o Deus se aproxima ou se subtrai, se o homem deixa de lado pensar pri-
meiro para dentro da dimenso, na qual aquela questo unicamente pode ser desenca-
deada? Esta dimenso, porm, a dimenso do sagrado, que mesmo como dimenso j
permanece fechada. caso no se clarear o aberto do ser para, em sua clareira, estar pr-
ximo do homem. Talvez o elemento mais marcante desta idade do mundo consista no r-
gido fechamento para a dimenso da graa. Talvez seja esta a nica desgraa.
SOBRE O "HUMANISMO" 367
Todavia, com esta indicao no se quer j ter decidido, de maneira alguma, pelo
tesmo, o pensar que, antecipando, aponta para a verdade do ser como o que deve ser
pensado. Ele no pode ser testa nem atesta. Isto, porm, no levado por uma atitude de
indiferena, mas por respeito aos limites, postos ao pensar enquanto pensar, e isto atra-
vs daquilo que se lhe d a pensar pela verdade do ser. Na medida em que o pensar se
contenta com a sua tarefa, d ele, no momento do presente destino mundial, ao homem,
uma orientao para a dimenso originria de sua morada historial. Com dizer desta
forma a verdade do ser, o pensar se entregou quilo que mais essencial que todos os
valores e que qualquer ente. O pensar no supera a Metafisica, enquanto ainda mais a
exacerba, ultrapassa e a sobressume em qualquer lugar, mas enquanto recua para a
proximidade do mais prximo. A descida bem mais difcil e perigosa, particularmente
ali onde o homem perdeu-se na subjetividade. A descida conduz pobreza da ec-sis-
tncia do homo humanus. Na ec-sistncia abandonado o mbito do homo animalis da
Metafisica. O imprio deste mbito a razo indireta e de conseqncias que recuam
longe, para a obliterao e arbitrariedade daquilo que se pode caracterizar como biolo-
gismo e tambm para aquilo que se conhece pela expresso pragmatismo. Pensar a ver-
dade do ser significa, ao mesmo tempo: pensar a humanitas do homo humanus. Importa
a humanitas a servio da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido metafisico.
Se, porm, a humanitas est to essencialmente no campo visual do pensar do ser,
no deve ento a "Ontologia" ser completada por uma "tica"? No seria ento seu
empenho, que exprime em sua frase, muito essencial: "Ce queje cherche faire, depuis
longtemps dj, e 'est prciser le rapport de l 'ontologie avec une thique possible "? 7
Logo aps a publicao de Ser e Tempo, perguntou-me um jovem amigo: "Quando
escrever o senhor uma tica?" L onde a essncia do homem pensada to essencial-
mente, a saber, unicamente a partir da questo da verdade do ser, mas onde, contudo, o
homem no foi elevado para o centro do ente, deve realmente despertar a aspirao por
uma orientao segura e por regras que dizem como o homem, experimentado a partir da
ec-sistncia para o ser, deve viver convenientemente ou de acordo com o destino. A aspi-
rao por uma tica urge com tanto mais pressa por uma realizao, quanto mais a
perplexidade manifesta do homem e, no menos, a oculta, se exacerba para alm de toda
medida. Deve dedicar-se todo cuidado possibilidade de criar uma tica de carter obri-
gatrio, uma vez que o homem da tcnica entregue aos meios de comunicao de massa
somente pode ser levado a uma estabilidade segura atravs de um recolhimento e ordena-
o de seu planejar e agir como um todo, correspondente tcnica.
Quem poderia deixar de perceber a indigncia desta situao? No seria conve-
niente poupar e garantir os laos estabelecidos, ainda que somente consigam manter a
unidade do ser humano precariamente e apenas na situao de hoje? Sem dvida. Mas j
desobriga esta indigncia o pensar de considerar aquilo que principalmente deve ser pen-
sado e que permanece, enquanto o ser, mais que todo ente, garantia e verdade? Ser que
o pensar pode ainda continuar a esquivar-se de pensar o ser, quando este se manteve
escondido em longo esquecimento e ao mesmo tempo se anuncia, neste momento da his-
tria universal, atravs da comoo de todos os entes?
Antes de procurarmos determinar mais exatamente as relaes entre "a Ontologia"
e "a tica", devemos perguntar o que so a prpria "Ontologia" e a prpria "tica".
Impe-se considerar se aquilo que nomeado nestas duas expresses ainda permanece
7 Trad.: O que procuro fazer, j h muito tempo, precisar a relao da Ontologia com uma tica possvel.
(N. do E.)
368 HEIDEGGER
adequado e prximo para aquilo que foi entregue ao pensar como tarefa, que como pen-
sar deve, antes de tudo, pensar a verdade do ser.
Caso, tanto "a Ontologia" como "a tica", junto com todo o pensar por disciplinas,
se tornassem caducas, adquirindo, assim, nosso pensar mais disciplina, qual seria, ento,
a situao da questo da relao das duas disciplinas mencionadas com a Filosofia?
A "tica" surge junto com a "Lgica" e a "Fsica", pela primeira vez, na escola de
Plato. As disciplinas surgem ao tempo que permite a transformao do pensar em
"Filosofia", a Filosofia em epistme (Cincia) e a Cincia mesma em um assunto de es-
cola e de atividade escolar. Na passagem por esta Filosofia assim entendida, surge a
Cincia e passa o pensar. Os pensadores desta poca no conhecem nem uma "Lgica",
nem uma "tica", nem uma "Fsica". E, contudo, seu pensar no nem ilgico e imoral.
A "ph_ysis" era, porm, pensada por eles, numa profundidade e amplitude, que toda "F-
sica" posterior nunca mais foi capaz de alcanar. As tragdias de Sfocles ocultam -
permita-se-me uma tal comparao-, em seu dizer, o ethos, de modo mais originrio
que as prelees de Aristteles sobre a "tica". Uma sentena de Herclito que consiste
apenas em trs palavras diz algo to simples que dela brota e chega luz, de maneira
imediata, a essncia do ethos.
A sentena de Herclito a seguinte (Fragmento 119): Ethos anthrpo dafmon. De
maneira geral costuma-se traduzir: "O modo prprio de ser para o homem o demnio".
Esta traduo pensa de maneira moderna e no de modo grego. Ethos significa morada,
lugar da habitao. A palavra nomeia o mbito aberto onde o homem habita. O aberto
de sua morada torna manifesto aquilo que vem ao encontro da essncia do homem e
assim, aproximando-se, demora-se em sua proximidade. A morada do homem contm e
conserva o advento daquilo a que o homem pertence em sua essncia. Isto , segundo a
palavra de Herclito, o damon, o Deus. A sentena diz: o homem habita, na medida em
que homem, na proximidade de Deus. Com esta sentena de Herclito concorda uma
histria que Aristteles relata (Das Partes do Animais A 5, 645 a 17). a seguinte:
Herkletos lgetai prs tos xnous eipefn tos boulomnous enty khezn aut ho epeide
prosintes eon autn thevmenon prs t ipn stesan, ekleue gr autos eisinai thar-
roiintas: eznai gr kaz' entatha teos . ..
"Narra-se de Herclito uma palavra que teria dito aos forasteiros que queriam che-
gar at ele. Aproximando-se, viram-no como se aquecia junto ao forno. Detiveram-se
surpresos; isto, sobretudo, porque Herclito ainda os encorajou - a eles que hesitavam
- , convidando-os a entrar, com as palavras: Pois tambm aqui esto presentes
deuses . .. "
Esta narrativa fala por si; destaquemos, contudo, alguns aspectos.
O grupo de visitantes est frustrado e desconcertado na curiosidade que os levou a
dirigirem-se ao pensador; o desconcerto provocado pelo aspecto de sua moradia. O
grupo cria ter que encontrar o pensador em circunstncias que, ao contrrio do simples
viver dos homens comuns, deveriam mostrar, em tudo, os traos do excepcional e do raro
e por isso do emocionante. O grupo traz a esperana de, com sua visita, encontrar junto
do pensador coisas que - ao menos por um certo tempo - forneceriam assunto para
uma conversa divertida e animada. Os estranhos que querem visitar o pensador esperam
v-lo talvez justamente no momento em que ele, mergulhado em profundas meditaes.
pensa. Os visitantes querem "viver" isto, no para serem atingidos pelo pensar, mas
simplesmente para poderem dizer que viram e ouviram algum. do qual igualmente ape-
nas diz-se que um pensador.
2rn \ez disso, os curiosos encontram Herclito junto ao forno. um lugar banal e
bastante comum. Sem dvida. nele se assa o po. Ele est a apenas para se aquecer.
SOBRE O "HUMANISMO" 369
Assim revela ele neste lugar, sem dvida, comum, toda a indigncia de sua vida. A vista
de um pensador passando frio oferece muito pouco de interessante. Os curiosos perdem,
pois, com esta viso frustrante, logo a vontade de se aproximarem mais. Que faro ali?
Este fato, comum e sem encanto, de algum estar com frio e estar perto do forno, qual-
quer um pode reviv-lo, em qualquer tempo, em casa. Para que ento procurar um pensa-
dor? Os visitantes se aprestam para se afastarem. Herclito l a curiosidade frustrada em
seus rostos. Sabe que para uma multido j basta a falta de uma sensao esperada, para
fazer com que os que recm-chegados imediatamente voltassem sobre seus passos. Por
isso, infunde-lhes coragem. Ele mesmo os convida a entrar, contudo, dizendo: eznai gr
kaz' entatha theos. "Os deuses tambm esto aqui presentes.''
Esta palavra situa a morada (ethos) do pensador e seu agir numa outra luz. A hist-
ria no conta se os visitantes imediatamente ou se alguma vez entenderam esta palavra,
vendo ento tudo numa outra luz. Mas se esta histria foi contada e transmitida at ns,
contemporneos, isto reside no fato de que daquilo que relata provm da atmosfera deste
pensacor e caracteriza: Kaz' entarha, "Tambm aqui", junto ao forno. neste lugar corri-
queiro, onde cada coisa e cada circunstncia. cada agir e cada pensar. so costumeiros
e banais, isto , familiares (pois, tambm aqui), no mbito familiar einai theozs, a coisa
de tal modo, "'que os deuses esto presentes".
thos anthrpo damon, diz o prprio Herclito: "A habituao (familiar) para o
homem o aberto para a presentificao do Deus (o no-familiar)".
Se, portanto, de acordo com a significao fundamental da palavra ethos, o nome
tica diz que medita a habitao do homem, ento aquele pensar que pensa a verdade do
ser como o elemento primordial do homem enquanto algum que ec-siste j em si a
tica originria. Mas este pensar no apenas ento tica, porque Ontonlogia. Pois a
Ontologia pensa sempre apenas o ente (n) em seu ser. Enquanto no tiver sido pensada,
contudo, a verdade do ser, permanece toda Ontologia sem seu fundamento. esta a
razo por que o pensamento, que com Ser e Tempo procurava antecipar o pensar para
dentro da verdade do ser, se caracterizava assim mesmo como Ontologia Fundamental.
Esta tende a penetrar no fundamento essencial do qual provm o pensamento da verdade
do ser. J pelo ponto de partida do outro questionar, afasta-se este pensar da "Ontolo-
gia" da Metafisica (daquela de Kant). A "Ontologia", porm, quer seja ela transcen-
dental ou pr-crtica, est submetida crtica, no porque e2, pensa o ser do ente e fora
assim o ser para dentro do conceito, mas porque no conhece a verdade do ser, desco-
nhecendo, assim, que existe um pensar que mais rigoroso que o pensar conceituai. O
pensar que procura antecipar-se, pelo pensar, na verdade do ser. s consegue, na indi-
gncia de seu primeiro esforo, transformar em linguagem pouca coisa da dimenso
absolutamente diferente. Esta ainda falsifica-se a si mesma, na medida em que no tem
sucesso em reter a essencial ajuda do ver fenomenolgico e, contudo, deixar de lado, por-
que sem sentido e inadequada, a preocupao em ser "Cincia" e "Pesquisa". Todavia,
para tornar conhecida e compreensvel esta tentativa do pensar, no seio da filosofia esta-
belecida, s foi possvel, primeiro, falar desde o horizonte do estabelecido e recorrendo s
expresses que lhe eram familiares.
Entretanto, aprendi a ver que justamente estas expresses tinham que levar direta e
inevitavelmente para a errncia. Pois as expresses e a linguagem conceitua! nelas inte-
grada no foram re-pensadas, pelos leitores, a partir da coisa propriamente dita que tinha
que ser pensada; ao contrrio, a coisa propriamente dita foi representada a partir das
expresses que foram mantidas com suas significaes correntes.
O pensar que questiona a verdade do ser e nisto determina o lugar essencial do
homem, a partir do ser e em direo a ele, no nem tica nem Ontologia. Por isso a
370 HEIDEGGER
questo da relao de ambas entre si no possui mais cho neste mbito. E, contudo, sua
pergunta, pensada mais originariamente, retm um sentido e um peso fundamentais.
Pois deve-se perguntar: se o pensar, pensando a verdade do ser, determina a essn-
cia da humanitas como ec-sistncia a partir do fato de pertencer ao ser, permanece ento
este pensar apenas um representar terico do ser e do homem, ou possvel retirar, ao
mesmo tempo, de um tal conhecimento, indicaes para a vida ativa?
A resposta : este pensamento no nem terico, nem prtico. antes desta dis-
tino que ele acontece e se realiza. Este pensar , na medida em que , a lembrana do
ser e nada alm disto. Pertencendo ao ser, porque, por ele jogado na guarda de sua verda-
de e para ela requisitado, pensa ele o ser. Um tal pensar no chega a um resultado; no
produz efeito. Ele satisfaz sua essncia, enquanto . Mas ele na medida em que diz a
sua coisa propriamente dita. questo propriamente dita do pensar pertence apenas
uma saga (Sage), aquela que adequada ao que constitui a essncia da questo. Sua
constringncia essencialmente mais alta que a validade das cincias, porque mais livre.
Pois ela deixa que o ser - seja.
O pensar trabalha na edificao da casa do ser; como tal casa que a juntura do ser
dispe, sempre de acordo com o destino, a essncia do homem para morar na verdade do
ser. Este morar a essncia do "Ser-no-mundo" (Ser e 1 empo, 54). A indicao para o
"ser-em" como o "morar", que l aparece, no um simples jogo etimolgico. A indica-
o que aparece na conferncia de 1936, sobre a palavra de Holderlin, "Cheio de mri-
tos, todavia poeticamente, habita o homem nesta terra", no um enfeite de um pensar
que foge da Cincia, salvando-se na Poesia. O discurso sobre a casa do ser no uma
transposio da imagem da "casa" para o ser; ao contrrio, um dia seremos mais capa-
zes de pensar o que "casa" e "habitar" a partir da essncia do 'Ser adequadamente
pensada.
Sem embargo, o pensar jamais cria a casa do ser. O pensar conduz a ec-sistncia
historial, isto , a humanitas do homo humanus, para o mbito onde nasce o que
salutar.
Com o salutar - o bom - , particularmente, se manifesta, na clareira do ser, o
mal. A essncia do mal no consiste na simples maldade do agir humano, mas reside na
ruindade da grima. Ambos, o bom e a grima, somente podem desdobrar seu ser no seio
do ser na medida em que o prprio ser o que est em conflito. Nisto se esconde a ori-
gem essencial do nadificar. Aquilo que nadifica se ilumina como o que possui carter
nadificador. Isto pode ser expresso no "no". O "no" (Nicht) no emana, de maneira
alguma, do dizer-no da negao. Cada "no" (Nein) que no corrompe o seu sentido,
enquanto uma teimosa insistncia sobre o poder constituinte da subjetividade, mas que
permanece como algo que deixa-se.r a ec-sistncia, responde ao apelo do nadificar clarifi-
cado. Todo dizer no apenas a afirmao do no (Nicht). Cada afirmao repousa num
reconhecer. Este deixa que venha a si aquilo para onde se dirige. Pensa-se que, em parte
alguma do ente, se pode encontrar o nadificar. Isto exato, enquanto se procura o nadifi-
car como um ente, como uma caracterstica ntica no ente. Mas, procurando assim, no
se procura o nadificar. Tambm o ser no uma caracterstica ntica que se pode verifi-
car no ente. E, contudo, o ser mais que qualquer ente. Porque o nadificar desdobra seu
ser no prprio ser. por isso no podemos verific-la como algo ntico no ente. E. alm
de tudo, prova a mdicao para a impossibilidade de jamais o no provir do dizer-no.
Esta demonstrao parece ter apenas ento validez quando se funda o ente como a obje-
tividade da subjetividade. Conclui-se ento da alternativa de que cada no, porque nunca
aparece como algo objetivo, deve inelutavelmente ser o produto de um ato do sujeito. Se,
SOBRE O "HUMANISMO" 371
A expresso "trazer linguagem", aqui usada, deve ser tomada agora bem literal-
mente. O ser chega, iluminando-se, linguagem. Ele est constantemente a caminho para
ela. Isto que est constantemente em advento o pensar ec-sistente, por sua vez, traz, em
seu dizer, linguagem. Esta assim elevada para a clareira do ser. Somente assim a lin-
guagem daquela maneira misteriosa e que, contudo, constantemente, nos perpassa com
seu imperar. Portanto, enquanto a linguagem levada plenamente sua essncia histo-
rial, o ser guardado na lembrana. A ec-sistncia habita, pensando, a casa do ser. Em
tudo isto, as coisas permanecem como se nada tivesse acontecido atravs do dizer
pensante.
Todavia, h pouco mostrou-se-nos um exemplo para este invisvel agir do pensar.
Pois, enquanto pensamos de maneira apropriada a expresso "trazer linguagem" que
foi destinada linguagem, apenas isto e nada mais, enquanto conservamos isto que pen-
samos como o que no futuro deve ser constantemente pensado, na ateno de nosso
dizer, trouxemos linguagem algo essencial do prprio ser.
O estranho, neste pensamento do ser, a sua simplicidade, justamente ela nos man-
tm dele afastados. Pois procuramos o pensar que tem seu prestgio universal sob o nome
"Filosofia", na forma do inabitual que apenas acessvel aos iniciados. Representamo-
nos, ao mesmo tempo, o pensar maneira do conhecimento cientfico e seus empreendi-
mentos de pesquisa. Medimos o agir na produo impressionante e cheia de sucesso da
praxis. Mas o agir do pensar no nem terico nem prtico, nem a imbricao dos
dois modos de comportamento.
Pelo seu modo simples de ser, o pensar do ser se faz para ns irreconhecvel. Se,
contudo, nos tornamos amigos do no-costumeiro do simples, ento nos assalta imedia-
tamente uma outra preocupao. Surge a suspeita de que este pensamento do ser torna-se
vtima da arbitrariedade, pois no pode encontrar apoio no ente. Onde busca o pensar
sua medida? Qual a lei de seu agir?
Aqui se deve escutar a terceira pergunta de sua carta: Comment sauver l 'lment
d 'aventure que comporte toute recherche sans faire de la philosophie une simple aventu-
riere ?8 S de passagem vamos nomear agora a Poesia. Ela se confronta com as mesmas
questes e, da mesma maneira, como o pensar. Mas ainda sempre vale a pouco meditada
palavra de Aristteles em sua Potica: que o poematizar mais verdadeiro que o investi-
gar o ente.
Mas o pensar no apenas une aventure, enquanto procurar e perguntar para alm,
para o desconhecido. O pensar , em sua essncia, enquanto o pensar do ser, por este
requisitado. O pensar est referido ao ser como o que est em advento (l'avenant). O pen-
sar enquanto pensar no advento do ser est ligado ao ser como advento. O ser j se desti-
nou ao pensamento. O ser como o destino do pensar. O destino, porm, em si histo-
rial. Sua histria j chegou linguagem, no dizer dos pensadores.
A nica tarefa do pensar trazer linguagem, sempre novamente, este advento do
ser que permanece e em seu permanecer espera pelo homem. Por isso, os pensadores
essenciais dizem sempre o mesmo. Isto, porm, no quer dizer: o igual. No h dvida
que eles s o dizem a quem se empenha em meditar sobre eles. Na medida em que o pen-
sar, rememorando historialmente, presta ateno ao destino do ser, ele j se vinculou ao
bem disposto que adequado ao destino. E, contudo, permanece o elemento aventureiro,
a saber, como o constante risco do pensar. De que modo este simples, certamente no em
8
Trad.: Como salvar o elemento de aventura que toda procura encerra cm si sem fazer da Filosofia uma
simples aventureira? (N. do E.)
SOBRE O "HUMANISMO" 373
si, mas para o homem, no deveria permanecer o mais perigoso? Continuemos pensando
na palavra de Hlderlin sobre a linguagem, no fragmento "Mas em choupanas mora o
homem". O poeta a denomina "O mais perigoso dos bens".
A boa disposio do dizer do ser enquanto o destino da verdade a primeira lei do
pensar, e no as regras da Lgica que apenas se tornam regras a partir da lei do ser.
Atentar para o bem disposto do dizer pensante no apenas inclui que meditemos cada
vez o que se deve dizer do ser e como isto deve ser dito. Deve-se pensar com a mesma
radicalidade se aquilo que deve ser pensado, em que medida, em que momento da hist-
ria do ser, em que dilogo com ela e a partir de que apelo, pode ser dito. Aquele trplice
elemento a que acenou uma carta anterior determinado em seu comum-pertencer a par-
tir da lei da docilidade do pensar ontolgico-historial ao destino: o rigor da meditao,
o cuidado do dizer, a parcimnia da palavra.
J tempo de desacostumar-se de supervalorizar a Filosofia e de, por isso, lhe vir
com exigncias demasiadas. Na presente indigncia do mundo, necessrio: menos Filo-
sofia, mas mais desvelo do pensar; menos literatura, e mais cultivo da letra.
O pensamento futuro no mais Filosofia, porque pensa mais originariamente que
a "Metafisica", nome que diz o mesmo. O pensar futuro tambm no pode mais, como
exigia Hegel, deixar de lado o nome do "amor pela sabedoria" e nem ter-se tornado a
prpria sabedoria na forma do saber absoluto. O pensar est na descida para a pobreza
de sua essncia precursora. O pensar recolhe a linguagem para junto do simples dizer. A
linguagem assim a linguagem do ser, como as nuvens so as nuvens do cu. Com seu
dizer, o pensar abre sulcos invisveis na linguagem. Eles so mais invisveis que os sulcos
que o campons, a passo lento, traa pelo campo.
IDENTIDADE E
DIFERENCA
_,. *
* O texto de Identidade e Diferena (ttulo da e ;,npilao original publicada pela editora Gn-
ther Neske, Pfullingen) aparece aqui desdobrado em duas partes: O Princpio da Identidade, que
contm o texto original de uma conferncia pronunciada por ocasio do qingentsimo jubileu da
Universidade de Freiburg, no Dia das Faculdades, 2 7 de junho de 19 57, e A Constituio Onto-
teo-lgica da Metafisica, que reproduz a anlise reelaborada em alguns pontos, que encerrou um
exerccio de seminrio do semestre de inverno de 1956/57, sobre a Cincia da Lgica de Hegel.
A exposio teve lugar no dia 24 de fevereiro de 1957, em Todtnauberg.
PRINCPIO DA IDENTIDADE
1
Zusammengeh"rigkeit traduzimos aqui por comum-pertencer. Com esta expresso, quer-se acentuar: a)
que ser e pensar esto imbricados numa reciprocidade; b) que, atravs deste recproco pertencer-se, fazem
parte de uma unidade, da identidade, do mesmo.
2
Atravs do deslocamento do acento principal de um para outro elemento da palavra composta, Heidegger
procura destacar os dois sentidos que nela quer ler. Comum-pertencer (Zusammengehiirigkeit) mostra poss-
vel sentido hegeliano da identidade entre ser e pensar, ser e homem: identidade. resultado de um processo, de
uma mediao conduzindo a uma sntese. Comum-pertencer (Zusammengeh'rigkeit) aponta para um mbito
(o mesmo) do qual fazem parte homem e ser; a identidade heideggeriana que resulta do passo de volta. A
diversa leitura da palavra Zusammengeh'rigkeit procura mostrar os dois caminhos - ambos recusando a
identidade como esttico trao do ser; um em direo de um tlos (fim). de uma sntese suprema (Hegel),
outro em direo da arkh (comeo), do fundamento. Para Heidegger trata-se de um Riick-gang (re-gresso),
para Hegel de um Fort-gang (pro-gresso). Ou compreende Hegel o pensamento como um movimento "ambi-
direcional" (gegen/iiufige Bewegung) de progresso e regresso, como expressamente diz na Lgica "que o
pro-gresso na filosofia um re-gresso''? (Ver a excelente obra de L. Bruno Puntel, Analogie und Geschicht-
lichkeil, [, ed. Herder, Freiburg, 1969.)
380 HEIDEGGER
questo est mais prxima do que pensamos, sem que, no entanto, seja bvia. sufi-
ciente agora que esta indicao nos faa notar a possibilidade de no mais representar o
pertencer a partir da unidade da comunidade, mas de experimentar esta comunidade a
partir do pertencer. Mas esta indicao no se esgota num vazio jogo de palavras que
algo inventa, a que falta qualquer apoio num estado de coisas verificvel.
Assim realmente parece, at que concentramos o olhar e deixamos falar as coisas.
O pensamento em um comum-pertencer no sentido de comum-pertencer surge da
considerao de um estado de coisas, que j foi mencionado. , evidentemente, difcil
concentrar-se nele, por causa de sua simplicidade. Podemos, entretanto, ver este estado
de coisas mais de perto, se atentarmos para o seguinte: na elucidao do comum-per-
tencer como comum-pertencer, j tnhamos, seguindo o aceno de Parmnides, em mente
tanto pensar como ser, portanto, aquilo que reciprocamente se pertence no seio do
mesmo.
Se compreendermos o pensar como a caracterstica do homem, ento refletimos
sobre um comum-pertencer que se refere a homem e ser. No mesmo instante nos surge a
questo: que significa ser? Quem ou o que o homem? Qualquer um v facilmente que,
sem a suficiente resposta a estas perguntas falta-nos o cho em que possamos decidir.
algo seguro sobre o comum-pertencer de homem e ser. Contudo, enquanto questio-
narmos desta maneira ficamos presos tentativa de representar a comunidade de homem
e ser como uma integrao e de dispor esta ou a partir do homem ou a partir do ser e
assim explicit-la. Nisto os conceitos tradicionais de homem e ser formam os pontos de
apoio para a integrao de ambos.
E que seria se ns, em vez de continuamente representarmos uma coordenao de
ambos, para refazer sua unidade, prestssemos uma vez ateno se e como nesta comuni-
dade est, antes de tudo, em jogo um recproco pertencer? Existe at a possibilidade de
entrever, ainda que a distncia, o comum-pertencer de homem e ser j na determinao
tradicional de sua essncia. At que ponto?
O homem manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do ser, como
a pedra, a rvore e a guia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas o ele-
mento distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto
para o ser, est posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corres-
ponde. O homem propriamente esta relao de correspondncia, e somente isto. "So-
mente" no significa limitao, mas uma plenitude. No homem impera um pertencer ao
ser: este pertencer escuta ao ser, porque a ele est entregue como propriedade. E o ser?
Pensemos o ser em seu sentido primordial como presentar. O ser se presenta ao homem,
nem acidentalmente nem por exceo. Ser somente e permanece enquanto aborda o
homem pelo apelo. Pois somente o homem, aberto para o ser, propicia-lhe o advento
enquanto presentar. Tal presentar necessita o aberto de uma clareira e permanece assim,
por esta necessidade, entregue ao ser humano, como propriedade. Isto no significa abso-
lutamente que o ser primeira e unicamente posto pelo homem. Pelo contrrio, torna-se
claro.
Homem e ser esto entregues reciprocamente um ao outro como propriedade. Per-
tencem um ao outro. Deste pertencer-se reciprocamente homem e ser receberam, antes de
tudo, aquelas determinaes de sua essncia, nas quais foram compreendidas metafsica-
mente pela filosofia.
Este preponderante comum-pertencer de homem e ser por ns teimosamente igno-
rado enquanto tudo representarmos em seqncias e mediaes, seja com ou sem dial-
O PRINCPIO DA IDENTIDADE 381
tica. Ento encontramos apenas encadeamentos que ou so urdidos por iniciativa do ser
ou do homem e apresentam o comum-pertencer de homem e ser como entrelaamento.
No penetramos ainda no comum-pertencer. Como, porm, acontece uma tal entra-
da? Pelo fato de nos distanciarmos da atitude do pensamento que representa. Este distan-
ciar-se se verifica como um salto. Ele salta, afastando-se da comum representao do
homem como animal rationale, que na modernidade tornou-se sujeito para seus objetos.
O salto distancia-se ao mesmo tempo do ser. Este, entretanto, interpretado desde os
primrdios do pensamento ocidental como fundamento em que todo o ser do ente se
funda.
Para onde salta o salto, se se distancia do fundamento? Salta num abismo (sem-
fundamento )? 3 Sim, enquanto apenas representarmos o salto e isto no horizonte do pen-
samento metafisico. No, enquanto saltamos e nos abandonamos. Para onde? Para l
onde j fomos admitidos: ao pertencer ao ser. O ser mesmo, porm, pertence a ns; pois
somente junto a ns pode ele ser como ser, isto , pre-sentar-se.
Assim, pois, torna-se necessrio um salto para se experimentar o comum-pertencer
de homem e ser, propriamente. Este salto a subitaneidade da entrada no mediada
naquele pertencer cuja misso dispensar uma reciprocidade de homem e ser e instaurar
a constelao de ambos. O salto a sbita penetrao no mbito a partir do qual homem
e ser desde sempre atingiram juntos a sua essncia, porque ambos foram reciprocamente
entregues como propriedade a partir de um gesto que d. A penetrao no mbito desta
entrega como propriedade dis-pe e harmoniza a experincia do pensar.
Estranho salto, que provavelmente nos convencer que ainda no nos demoramos
bastante ali, onde propriamente j estamos. Onde estamos ns? Em que constelao de
ser e homem?
Hoje, ao menos assim parece, no necessitamos mais, como ainda h alguns anos,
de indicaes detalhadas para descobrirmos a constelao na qual homem e ser se inter-
pelam mutuamente. Basta, assim se gostaria de crer, citar a palavra era atmica para
fazer saber como o ser se presenta a ns hoje, no universo da tcnica. Mas ser permitido
identificarmos, sem mais, o universo tcnico com o ser? Manifestamente no, tambm
no quando representamos este mundo como a totalidade em que se fundem energia at-
mica, planificao calculadora do homem e automatizao. Por que uma referncia
desta natureza ao mundo tcnico, por mais amplamente que o analise, no absoluta-
mente capaz de abrir os olhos para a constelao de ser e homem? Porque toda anlise
da situao no atinge o objetivo, na medida em que a mencionada totalidade do uni-
verso tcnico interpretada antecipadamente a partir do homem, como obra sua. O tc-
nico, representado no sentido mais amplo e segundo suas mltiplas manifestaes,
considerado como o plano que o homem projeta; este plano finalmente o fora a decidir
entre tornar-se escravo de seu plano ou permanecer senhor dele.
Pela representao da totalidade do universo tcnico reduz-se tudo ao homem e che-
ga-se, quando muito, a reivindicar uma tica para o universo da tcnica. Cativos desta
3
O salto no abismo, no sem-fundamento (Ab-grund), o jogar-se no ser, assumir o pertencer ao ser.
Compreende-se isto quando se l em O Princpio da Razo: "Ser e fundamento pertencem unidade. Do fato
de fazer parte do ser o fundamento recebe sua essncia. E vice-versa, da essncia do fundamento surge o
domnio do ser enquanto ser. Fundamento e ser ('so') o mesmo, no o igual, o que j indica a diversidade
dos nomes 'ser' e 'fundamento'. Ser '' essencialmente: fundamento. Assim, o ser nunca pode primeiro ter um
fundamento que o fundamente. O fundamento fica, desta maneira, afastado do ser. O fundamento fica ausen-
te do ser. No sentido de uma tal ausncia de fundamento do ser, o ser '' sem-fundamento (Ab-grund), abis-
mo. Na medida em que o ser enquanto tal fundamento em si mesmo, permanece eie mesmo sem-funda-
mento". (Der Satz vom Grwzd, pp. 92-93.)
HEIDEGGER
\'
O PRINCPIO DA IDENTIDADE 383
6
O filsofo procura delimitar aquele mbito em que homem e ser acontecem e se apropriam reciproca-
mente (no caso da relao homem-tcnica, chamado arrazoamento) pela palavra Ereignis. Traduzo-a por
acontecimento-apropriao, como os franceses por evnment-appropriation. Na palavra alem se escondem
ambos os plos expressos pelo termo composto, usado pelas duas lnguas romnicas em questo. Em seu
livro Unterwegs zur Sprache Heidegger comenta seu uso da palavra Ereignis: "Hoje, quando aquilo que
ainda quase no foi pensado ou pensado pela metade logo entregue apressadamente a toda forma de publi-
cidade, parecer a muitos inacreditvel o fato de o autor ter utilizado j, em seus manuscritos, h mais de
vinte e cinco anos, a palavra acontecimento-apropriao para a coisa que aqui pensa. Esta coisa,JilllJ:j_a_J;JJ.!~
simples em si mesma, permanece, em primeiro lugar, difcil de ser pensada porque o pensamento deve
desacostumar-se a cair no rngaoo de___JJJ~uj3~jl_~~cr-'-fgm9_11cnutecimentocapropriao~Q~11Qnteki-
~ntQ,agroQriari,9 ~_ess~ncial11;ent~outra_c_cij,Jl_Qrn!-ie_.!!1J!10-maisric_CJgt.1_e_g_l!_:!lg~er_p,0.ssY.eL@termi@_,o
metafisica do ser. Pelo contrrio, o ser pode ser pensado, no que respeita a sua origem essencial, a partir do
acontecimento-apropriao" (p. 260).
384 HEIDEGGER
cacto, mas tambm mais frgil, que tudo retm na construo suspensa do acontecimen-
to-apropriao. Na medida em que nossa essncia est entregue linguagem como
propriedade, residimos no acontecimento-apropriao.
Atingimos agora um ponto de nossa caminhada, em que se impe a questo, ainda
que aproximativa, mas inevitvel: que tem a ver o lJ,Ot1tecj_mento-apro_pri_ao ,com a
identidade? Resposta: nada. Pelo contrrio, a identidade tem muito, quando no tudo, a
ver com o acontecimento-apropriao. Em que medida? Respondemos retornando uns
poucos passos pelo caminho andado.
O acontecimento-apropriao apropria homem e ser em sua essencial comunidade.
Um primeiro e embaraoso claro do acontecimento-apropriao descobrimos no arra-
zoamento. Este constitui a essncia do universo moderno da tcnica. No arrazoamento
entrevemos um comum-pertencer de homem e ser, em que o deixar pertencer primeira-
mente determina a espcie de comunidade e sua unidade. Acompanhou-nos na questo
pelo comum-pertencer, em que o pertencer tem prioridade sobre a comunidade, o dito de
Parmnides: "Pois o mesmo tanto pensar como ser". A questo do sentido deste
mesmo a questo da essncia da identidade. _A doutrina da. metafsicaJillresentet_3!Jgen-
tidade ~orno um trao fumkmental no ser. Mas agora se mostra: ser com o pensar faz
parte de uma identidade, cuja essncia brota daquele comum-pertencer que designamos
acontecimento-apropriao. A essncia da identidade uma propriedade do aconteci-
mento-apropriao.
Caso, em nosso ensaio de conduzir nosso pensamento ao lugar de origem da essn-
cia da identidade, algo tiver consistncia, que ter ento acontecido com o ttulo da
conferncia? O sentido do ttulo "O Princpio da Identidade" se teria transformado.
O princpio se apresenta primeiro na forma de um primeiro princpio que pressupe
a identidade como um trao no ser, quer dizer, no fundamento do ente. Este princpio no
sentido de um enunciado transformou-se a caminho num princpio que uma espcie de
salto que, distanciando-se do ser como fundamento do ente, salta no abismo (sem-funda-
mento ). Mas este abismo no nem o nada vazio nem o negro caos, mas: o acontecimen-
to-apropriao. No acontecimento-apropriao vibra a essncia daquilo que a linguagem
fala, a linguagem que certa vez designamos como a casa do ser. Princpio da identidade
diz agora: um salto exigido pela essncia da identidade porque dele necessita, se, entre-
tanto, o comum-pertencer de homem e ser for destinado a alcanar a luz essencial do
acontecimento-apropriao.
O pensamento se transformou a caminho desde o princpio como uma enunciao
sobre a identidade para o princpio como salto para dentro da origem essencial da identi-
dade. Por isso o pensamento descobre, encarando o presente, alm da situao do
homem. a constelao de ser e homem, a partir daquilo que a ambos apropria numa
comunidade, a partir do acontecimento-apropriao. Supondo que nos aguarde a possibi-
lidade de que o arrazoamento. recproca provocao de homem e ser para o clculo do
que calculvel, nos convoque e se nos explicite como acontecimento-apropriao que
desapropria homem e ser entregando-os quilo que lhes prprio, ento estaria livre o
caminho em que o homem experimenta de maneira mais originria o ente, a totalidade
do moderno universo da tcnica, da natureza e da histria, e, antes de todos, o ser deles.
Enquanto a meditao sobre o universo da era atmica apenas aspira~ ainda que
com toda a seriedade da responsabilidade (mas tmbm com isso se tranqiliza como se
tivesse atingido a meta) ~ a realizar o emprego pacfico da energia atmica, o pensa-
mento permanece a meio caminho. Por essa mediocridade o universo tcnico confir-
mado ainda mais e_ para o futuro, em seu predomnio metafsico.
O PRINCPIO DA IDENTIDADE 385
Mas. onde foi decidido que a natureza enquanto tal deve permanecer, para todo
sempre, a natureza da fsica moderna e que a histria somente se deve apresentar como
objeto da historiografia? verdade que no podemos nem rejeitar o moderno universo
da tcnica como obra do demnio, nem destru-lo, caso ele mesmo disso no se
encarregue.
Mas ainda menos nos permitido perseguir a idia de que o universo da tcnica
de tal espcie que impede absolutamente dele nos libertarmos. Esta opinio, possuda
pelo que atual, tem-no como o unicamente real. Esta convico , alis, fantstica;
mas, pelo contrrio, no o um pensamento precursor, que encara com esperana aquilo
que vem ao nosso encontro como o apelo da essncia da identidade de homem e ser.
Mais de dois mil anos precisou o pensamento para entender verdadeiramente uma
relao to simples como a mediao no seio da identidade. Podemos ns ento pensar
que a penetrao na origem essencial da identidade pelo pensamento se deixa realizar
num dia? Precisamente pelo fato de esta penetrao exigir um salto, ela precisa de seu
tempo, o tempo do pensamento, que bem outro do que aquele do clculo que hoje em
dia, por toda parte. mantm tenso nosso pensamento. Um computador calcula hoje num
segundo milhares de relaes. Apesar de sua utilidade para a tcnica, no tem contedo.
Que quer que pensemos e qualquer que seja a maneira como procuramos pensar.
sempre nos movimentamos no mbito da tradio. Ela impera quando nos liberta do
pensamento que olha para trs e nos libera para um pensamento do futuro. que no
mais planificao.
Mas, somente se nos voltarmos pensando para u j ;,ensadc,. ,ere:~,,.,s Cc'I1\ ocaclos
para o que ainda est para ser pen sadn.
A CONSTITUIAO NTO-TEO-LGICA DA METAFSICA
Este seminrio procurou iniciar um dilogo com Hegel. O dilogo com um pensa-
dor somente pode tratar do objeto do pensamento. "Objeto" significa, conforme a deter-
minao dada, o caso em controvrsia, o controvertido, o que por excelncia o caso
para o pensamento, que interessa ao pensamento. 1 A controvrsia disto que controver-
tido, porm, de modo algum, procurada pelo pensamento, por assim dizer, por razes
fteis. Nossa palavra controvrsia (alemo arcaico Strit) significa precipuamente ur:-:a
situao premente e no discrdia. O objeto do pensamento urge o pensarr:er:::. de :al
maneira que o conduz, primeiro,~~u Q.b.iflo e. a partir deste. as: ~.c:srr:C'.
;,_-<! .,G_ --
B ~
. - ~--
~'' ~- -'. ~.. ---- ."'\
'-
Para Hegel o objeto do pensamento : o pensa:::c::::: ::r::__ a:::: :a:. P2.:-'- :-.c.:
pretarmos mal, atravs de um enfoque psicolgico e gr:.osio'.{~:. c:s:2. ::cc:::-:-.::.: i: d:
objeto, a saber, o pensamento enquanto tal, devemos acrescenta: c,2:no esci2.-ccc::-::::::-.::::
pensamento enquanto tal - na plenitude desenvolvida do car,e:.- ::e pcTsado d: ::-e::-.s,>
do. Somente a partir ckK_anLp.o_demos..enteu<lerc..0_QU~_,ilqll_i significa Q__e_arteLe_~--_::_::-~s-'-_c::_
clo.~pensa.do; a partir da essncia do transcendental, q u e , ~ emreta_nto.:.._pens2, c_,:,_:"'lo
bsolt1_to, isto quer dizer, para ele, especulativo. isto que Hegel tem em JTra q~:ando
diz, do pensamento do pensamento enquanto tal, qy~.tl~_s.e....des.enYOlve.::pu-r:-amn-le4lG
elemento do pensamento" (Enciclopdia, Introduo, 14). Dito numa expresso mais
concisa, mas difcil de representar de maneira pertinente, isto quer dizer: O objeto do
pensamento para H~el__~_'g_~_!lflJll...en.to". Pgrm, es.te. desen.volvidQ.at....a..s~maJi.bi.i-
~ade de seu ser___a_'_:J_gfa._A.b-~11.ita". Dela diz Hegel, perto do fim da Cincia da Lgica
(Ed~tasson, vol. II, 484): "Somente a Idia Absoluta ser, perene vida, verdade que se
sabe a si mesma, e toda a verdade''. Assim, pois, Hegel mesmo e expressamente d ao
objeto de seu pensamento aquele nome, que encima o objeto do pensamento ocidental, o
nome: ser.
imediatidade" .. Ser yisto a.q.uLlLJ:larr do_ mediar determinante, isto_., a_p_artiL.do .con-
ei19_ab~ol__L1J_9_~)_pos S_S_Q, n----dire_iio d_~le: "A verdade do ser a essncia". quer dizer, a
reflexo absoluta. A verdade da essncia o conceito no sentido do infinito autoconheci-
mento. S~LtO_bsqluJQJllltQpensar:s~ Q() pensJ!l~rito. Somente o pensamento absoluto
a verdade do ser. "" ser. Aqui. verdade significa, em toda parte: o conhecimento cons-
ciente de si do cognoscvel. enquanto tal.) ,J.")- .'-,f'.,r-.
{/ .; '
2
Este um dos raros momentos em que o filsofo realiza uma auto-interpretao, usando o pensamento
hegeliano como contraste. De resto. Hegel acompanha a interrogao heideggeriana como uma presena
sempre na iminncia de tornar-se "uma pedra no meio do caminho".
390 HEIDEGGER
de cada pensador naquilo que por ele foi pensado, na medida em que, como degrau sin-
gular, pode ser sobressumido no pensamento absoluto. Este somente absoluto porque
se move em seu processo dialtico-especulativo e para isto exige a gradao.
Para ns a medida para o dilogo com a tradio historial a mesma, enquanto se
trata de penetrar na fora do pensamento antigo. Mas ns no procuramos a fora no
que foi pensado, mas em algo impensado, do qual o que foi pensado recebe seu espao
essencial. Mas somente o j pensado prepara o ainda impensado que sempre de modos
novos se manifesta em sua superabundncia. A medida do impensado no conduz a uma
incluso do anteriormente pensado num desenvolvimento e sistemtica sempre mais
altos e superados, mas exige a libertadora entrega do pensamento tradicional ao mbito
do que dele j foi e continua reservado. Este passado-presente perpassa originariamente
a tradio, constantemente a precede, sem, contudo, ser pensado propriamente e
enquanto o originrio.
toda parte, atravs de toda esta histria do pensamento, no foi questionado. Designa-
mo-lo provisria e inevitavelmente na linguagem da tradio. Falamos da diferena entre
o ser e o ente. O passo de volta vai do impensado, da diferena enquanto tal, para dentro
do que deve ser pensado. Isto o esquecimento da diferena. O esquecimento a ser aqui
pensado o velamento da diferena enquanto tal, pensado a partir da lthe (oculta-
mento), velamento que por sua vez originariamente se subtrai. O esquecimento faz parte
da diferena porque esta faz parte daquele. O esquecimento no surpreende a diferena,
apenas posteriormente, em conseqncia de uma distrao do pensamento humano.
A diferena de ente e ser o mbito no seio do qual a metafisica, o pensamento oci-
dental em sua totalidade essencial, pode ser aquilo que . O passo de volta, portanto, se
movimenta para fora da metafisica e para dentro da essncia da metafisica. A observa-
o sobre o emprego que Hegel faz da palavra-guia "ser", em sua pluralidade de senti-
dos, permite reconhecer que o discurso sobre ser e ente jamais se deixa fixar numa poca
da histria reveladora de "ser". O discurso do "ser" tambm jamais compreende este
nome no sentido de um gnero, sob cuja vazia universalidade se alinham, como casos
individuais, as doutrinas do ente historicamente apresentadas. "Ser" fala sempre histo-
rialmente e, por isso, perpassado pela tradio.
Ora, o passo de volta da metafisica para dentro de sua essncia exige uma durao
e perseverana cuja medida ns no conhecemos. Somente uma coisa est bem clara: o
passo carece de uma preparao que deve ser tentada aqui e agora: isto, entretanto. em
face do ente enquanto tal em sua totalidade, como agora e como rapidamente e de
maneira mais inequvoca comea a mostrar-se. O que ago,a Yai sendo caracterizado
pela dominao da essncia da tcnica moderna. dominao que se avesenta j em
todas as esferas da vida, atravs de mltiplos sinais que podem ser nomeados: funcionali-
zao, perfeio, automatizao, burocratizao, informao. Assim como chamamos
de Biologia a representao do que vivo, assim pode ser chamada Tecnologia a apre-
sentao e aperfeioamento do ente perpassado pela essncia da tcnica. A expresso
pode servir como caracterizao para a metafisica da era atmica. O passo de volta da
metafisica para dentro da essncia da metafisica, visto a partir dos dias atuais e assu-
mido a partir de sua compreenso, o passo da Tecnologia e da descrio e interpre-
tao tecnolgicas da nossa era para dentro da essncia da tcnica moderna que ainda
deve ser pensada.
Com esta explicao quer-se manter distncia a outra interpretao falsa da
expresso "passo de volta", que facilmente se insinua; a saber, a opinio de que o passo
de volta consiste no retorno histrico aos primeiros pensadores da filosofia ocidental.
Sem dvida, o "para onde" ao qual conduz o passo de volta somente se desenvolve e se
mostra atravs do exerccio do passo.
....
392 HEIDEGGER
5
Ver Que Metafisica?
A CONSTITUIO ONTO-TEO-LGICA 393
Em que medida possvel que tal esclarecimento seja bem sucedido? Na medida em
que atentamos para o seguinte: o objeto do pensamento o ente enquanto tal, quer dizer,
o ser. Isto se mostra na natureza do fundamento. Conforme ela o objeto do pensamento,
o ser como fundamento, somente ento radicalmente pensado quando o fundamento
representado como o primeiro fundamento, prte arkh. O objeto originrio do pensa-
mento mostra-se como a causa originria como a causa prima, que corresponde volta
fundamentante ultima ratio, ao ltimo prestar contas. O ser do ente somente represen-
tado radicalmente, no sentido do fundamento, como causa sui. Com isto designamos o
conceito metafisico de Deus. A metafisica deve ultrapassar, com seu pensamento, tudo
em direo de Deus, pelo fato de que o objeto do pensamento o ser; este, porm, se
torna fenmeno de mltiplas maneiras, enquanto fundamento: como lgos, como
hypokemenon, como substncia, como sujeito.
Este esclarecimento toca provavelmente em algo certo, mas permanece absoluta-
mente insuficiente para a discusso da essncia da metafisica. Pois ela no apenas
teo-lgica, mas tambm onto-lgica. A metafisica no apenas tambm uma e outra
coisa. Muito antes, ela teo-lgica, porque onto-lgica. Ela isto, porque aquilo. A
constituio onto-teolgica da essncia da metafisica no pode ser esclarecida nem a
partir da teolgica, nem partindo da ontolgica, caso aqui algum dia uma explicao
baste para aquilo que fica para ser considerado.
Ainda permanece impensado de que unidade emerg_e o comum-pertencer de onto-
lgica e teolgica; impensada tambm a origem desta unidade, impensada a diferena do
diferente, que as unifica. Pois, manifestamente, no se trata primeiro de uma reunio de
duas disciplinas da metafisica autnomas, mas da unidade daquilo que na ontolgica e
A CONSTITUIO ONTO-TEO-LGICA 395
tambm a fazer isto. Nosso pensamento est livre para deixar impensada a diferena ou
para consider-la propriamente enquanto tal. Mas esta liberdade no vigora para todos
os casos. Imprevistamente pode dar-se o fato de que o pensamento se veja chamado a
enfrentar a questo: o que, pois, significa este to falado "ser"? Mostra-se aqui imediata-
mente o ser como ser ... , por conseguinte, no genitivo da diferena; ento a questo
anterior pode ser formulada mais objetivamente assim: que pensais da diferena, se tanto
o ser como o ente, cada um a seu modo, tornam-se fenmenos emergindo da diferena?
Para estarmos altura desta pergunta, devemos primeiro colocar-nos num confronto
objetivo com a diferena. Este confronto abre-se-nos se realizarmos o passo de volta.
Pois somente atravs da distncia por ele trazida se d o prximo enquanto tal, a proxi-
midade chega sua primeira manifestao. Pelo passo de volta, liberamos o objeto do
pensamento, o ser da diferena, para um confronto, que absolutamente pode permanecer
inobjetivado.
Olhando ainda sempre a diferena e, contudo, liberando-a j pelo passo de volta
para dentro do que deve ser pensado, podemos dizer: ser do ente quer dizer: ser que o
ente. O "" fala aqui transitivamente, ultrapassando. O ser se manifesta como fenmeno
ao modo de uma ultrapassagem para o ente. Contudo, o ser no passa para o outro lado,
para junto do ente, deixando seu lugar, como se o ente pudesse, subsistindo primeiro sem
o ser, ser apenas ento abordado por ele. Ser ultrapassa (aquilo) para, sobrevm desocul-
tando (aquilo) que unicamente atravs de tal sobrevento advm como desvelado a partir
de si. Advento quer dizer: ocultar-se no desvelamento; portanto, demorar-se oculto no
presente: ser ente.
Ser mostra-se como sobrevento desocultante. Ente enquanto tal aparece ao modo do
advento que se oculta no desvelamento. 6
Ser no sentido do sobrevento desocultante e ente enquanto tal, no sentido do adven-
to que se esconde, acontecem como fenmenos enquanto so assim diferenciados a partir
do mesmo, a partir da di-ferena. Somente esta d e mantm separado o "entre" em que
sobrevento e advento so conservados na unidade, em que so sustentados distintos e
identificados. A diferena entre ser e ente , enquanto diferena entre sobrevento e adven-
to, a de-ciso desocultante-ocultante de ambos. Na de-ciso impera a revelao do que se
fecha e se vela; este imperar d a separao e unio de sobrevento e advento.
Enquanto procuramos considerar a diferena enquanto tal, no a conseguimos fazer
desaparecer, mas a perseguimos na sua origem essencial. A caminho dela pensamos a
de-ciso de sobre-vento e ad-vento. Isto o objeto do pensamento pensado por um passo
de volta mais objetivamente: ser pensado a partir da diferena.
Aqui se exige, no resta dvida, uma observao intermediria que diz respeito ao
nosso discurso sobre o objeto do pensamento, observao que sempre novamente recla-
6
Heidegger procura captar a ambivalncia que se oculta na di-ferena (entre ser e ente) com as palavras
"sobrcvento" e "advento. Sobrevento (berkommnis), como acontecimento inesperado, o ecsaiphnes (de
repente) que manifesta o advento (Ankunft). O ser o sobrevento que desoculta o ente e assim desvela aquilo
que oculta: o advento do ente. Chega-se ento a uma soluo. que logo se torna dis-soluo; por isso traduzo
A ustrag por d_e-ciso, que designa a insuprimvel di-ferena entre ser e ente. Por causa disso a identidade
hcidcggeriana dnmea. O !1lsufo apela. quase desesperadamente. a no,as formas de dizer para assinalar
um estado de coisas (Sachn'rha/1) que tornou corno tarefa para seu pensamento. Mais de um lembrar aqui
a frase de Wittgcnstein que encerra seu Tractatus: ''Deve-se calar sobre aquilo de que no se capaz de
falar". No feriu, porm. Wittgenstein esta regra j ao enunci-la?
A CONSTITUIO ONTO-TE0-1.GICA 397
O que agora unicamente interessa para nosso plano a penetrao numa possibili-
dade de pensar de tal modo a diferena como de-ciso que se torne claro em que medida
a constituio onto-teo-lgica da metafisica tem sua origem essencial na de-ciso. que
inicia a histria da metafisica, perpassa suas pocas, e, no entanto, em toda parte, pcrma-
398 HEIDEGGER
nece velada enquanto a de-ciso e, deste modo, esquecida por um esquecimento que a si
mesmo ainda subtrai.
Para facilitar a compreenso do acima referido, consideramos o ser e nele a dife-
rena e nesta a de-ciso, a partir daquele cunho do ser pelo qual ele se revelou como
lgos, como o fundamento. O ser mostra-se no sobrevento desocultante como deixar-es-
tar-a do que advm, como o fundar nos mltiplos modos do a-duzir e pro-duzir. O ente
enquanto tal, o advento que se oculta no desvelamento, o fundado que, como fundado
e assim como obrado, funda a seu modo, a saber, obra, isto , causa. A de-ciso entre
fundante e fundado enquanto tais no mantm apenas ambos separados, ela os mantm
na unio recproca. Os elementos sustentados na separao so de tal modo imbricados
na de-ciso que no somente ser enquanto fundamento funda o ente, mas que o ente por
seu lado funda sua maneira o ser, causa-o. Tal coisa o ente apenas pode, na medida em
que "" a plenitude do ser: como o mais ente.
Aqui nossa reflexo atinge um encadeamento surpreendente. Ser se manifesta como
fenmeno com o cunho do lgos no sentido do fundamento, no sentido do deixar-estar-a.
O mesmo lgos , enquanto recolhimento do unificante, o hn. Este hn, entretanto, tem
uma estrutura dupla: de um lado o uno unificante no sentido do primeiro, em toda
parte, e assim o mais geral e ao mesmo tempo o uno unificante no sentido do supremo
(Zeus). O lgos recolhe fundando tudo no universal e recolhe fundando tudo a partir do
nico. Observemos, apenas de passagem, que o mesmo lgos oculta em si, alm disto, a
origem essencial da marca distintiva da linguagem e que o lgos determina deste modo,
em sentido mais amplo, os modos do dizer enquanto um dizer lgico.
Na medida em que ser acontece como fenmeno como ser do ente, como diferena,
como de-ciso, perdura a separao e unio do fundar e fundamentar; o ser funda o ente.
este, enquanto o mais ente, fundamenta o ser. Um sobre-vm ao outro, um ad-vm no
outro. Sobrevento e advento aparecem mutuamente enviscerados no re-flexo que os ope.
Dito a partir da diferena, isto significa: a de-ciso um circular, um circular de ser e
ente, um em torno do outro.
O fundar mesmo aparece no seio da revelao da de-ciso como algo que e que
assim por si mesmo exige, enquanto ente, a correspondente fundao pelo ente, quer
dizer, a causao, e, na verdade, a causao pela causa suprema.
Uma das provas clssicas para este estado de coisas na histria da metafisica
encontra-se num texto, pouco considerado, de Leibniz, que ns, por amor brevidade,
chamamos As Vinte e Quatro Teses da Metafisica. (Gerh, Phil., VII, 289; e ss.; cf. para
isso: O P:-fncpio de Razo, 1957, p. 51 e ss.)
o
A metafisica corresponde ao ser enquanto lgos e conforme isto, em sua caracte-
rstica principal, em toda parte lgica, mas lgica que pensa o ser do ente e, de acordo
com isto, a lgica, determinada pelo diferente da diferena: onto-teo-lgica.
Na medida em que a metafisica pensa o ente enquanto tal, no todo, ela representa
o ente a partir do olhar voltado para o diferente da diferena, sem levar em considerao
a diferena enquanto diferena.
O diferente mostra-se como o ser do ente em geral e como o ser do ente supremo.
Porque o ser aparece como fundamento, o ente o fundamentado; mas o ente supre-
mo o fundamentante no sentido da primeira causa. Pensa a metafisica o ente no que
respeita seu fundamento, comum a cada ente enquanto tal, ela lgica como onto-lgica.
A CONSTITUIO ONTO-TEO-lGICA 399
Pensa a metafisica o ente enquanto tal no todo, quer dizer, no que respeita o supremo
(que o) ente que a tudo fundamenta, ela lgica como teo-lgica.
A metafisica , a partir da unidade unificadora da de-ciso, unitria e simultanea-
mente ontologia e teologia, porque o pensamento da metafisica permanece engajado na
diferena como tal impensada.
A constituio onto-teolgica da metafisica emerge do imperar da diferena que
sustenta separados e unidos ser como fundamento e ente como fundado-fundamentante,
sustentao que a de-ciso consuma.
O que assim designado remete nosso pensamento para o mbito que no pode
mais ser dito pelas palavras-guias da metafisica, ser e ente, fundamento-fundado. Pois o
que estas palavras designam, o que representa o modo de pensar por elas orientado,
nasce como o diferente da diferena. A origem da diferena no mais se deixa pensar no
horizonte da metafisica.
Caia atravs desta observao um pouco de luz sobre o caminho para onde se dirige
um pensamento, que realiza o passo de volta; de volta da metafisica para dentro da
essncia da metafisica; de volta do esquecimento da diferena enquanto tal para dentro
do destino do ocultamento da de-ciso, ocultamento que se subtrai.
A ningum dado saber se e quando e onde e como este passo do pensamento se
desdobra em autntico (utilizado no acontecimento-apropriao) caminho e marcha e
abertura de novos caminhos. Talvez a dominao da metafisica antes ainda se fortifique
e isto sob a forma da tcnica moderna e seu frentico desenvolvimento imprevisvel. Tal-
vez tambm tudo o que se d no caminho do passo de volta seja apenas utilizado e c::1,c\Jo-
7 Heidegger faz aqui uma transposio semntica com base na etimologia irrepelvel no vcr:1(1CL1:,,.
originria (Ur-sache) , enquanto tal, causa (Ursache).
400 HEIDEGGER
8
Ver A Tese de Kant Sobre o Ser.
9
O filsofo adverte o citor contra o vcio de transformar uma linguagem flutuante. essencialmente experi-
mental, num jargo em que se quisera aprisionar aquilo que. como objeto do pensamento. sempre est em
quc,to.
HEGEL E OS GREGOS*
* Ttulo do original alemo: Hegel und die Griechen, conferncia pronunciada na sesso geral da A2adc,i:i
Heidelbergense de Cincias, no dia 26 de julho de 1958; apareceu em 1960 como contribuio do ;i\To
comemorativo dos sessenta anos de Hans-Georg Gadamer: Die gegenwart der Griechen im neueren Deni:21:,
Editora J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), Tbingen, 1960, pp. 43-57. O texto para a traduo foi extrado de, \O-
lume Wegmarken, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1967, pp. 255-272. que contm boa parte dos
textos menores de Martin Heidegger.
O ttulo da conferncia pode ser transformado numa pergunta. Seu teor seria: como
apresenta Hegel, no horizonte de sua filosofia, a filosofia dos gregos? Podemos respon-
der a esta questo considerando a filosofia de Hegel de um ponto de vista contempo-
rneo, historiograficamente, analisando assim a situao em que Hegel, por sua vez,
representa a filosofia grega historiograficamente. De um tal procedimento resulta uma
anlise sobre conexes histricas. Tal projeto tem sua prpria justificativa e suas
vantagens.
Outra coisa, entretanto, est aqui em jogo. Ao dizermos "os gregos" pensamos no
comeo da filosofia, e ao nome de "Hegel" associamos sua consumao. Hegel mesmo
compreende sua filosofia sob o signo do acabamento.
No ttulo Hegel e os Gregos, nos acena a totalidade da filosofia em sua histria e
isto agora, num tempo em que a decomposio da filosofia torna-se manifesta; pois ela
emigra para o mbito da Logstica, Psicologia e Sociologia. Estas esferas autnomas de
pesquisa se garantem seu crescente valor e a mltipla influncia como formas de funo
e instrumentos de sucesso do mundo poltico-econmico, isto , do mundo num sentido
fundamental tcnico.
Entretanto, a decomposio da filosofia, de longa data determinada e irresistvel,
no j o fim do pensamento; bem antes outra coisa, que, todavia, foge verificabi-
lidade pblica. Sobre isto quer refletir por um momento o que vai dito r,o que segue,
numa tentativa de despertar o olhar para a questo do pensamento. es:a que est em
jogo. Questo significa aqui: aquilo que a partir de si reclama discuss?.o. Para corres-
ponder a uma tal exigncia impe-se que nos deixemos visar pela questo do pensamento
e nos tornemos disponveis para permitir que o pensamento se transforme, na medida em
que determinado pela sua questo.
O que se segue se limita a apontar uma possibilidade, a partir d& qual a questo do
pensamento se mostre acessvel. Mas para que, ento, o desvio sobre Hce-el e os gregos
para se alcanar a questo do pensamento? Porque precisamos deste caminho, que certa-
mente em sua essncia no um desvio; pois a tradio corretamente experimentada nos
d como resultado o presente, aquilo que espera por um encontro conosco, como ,. ques-
to do pensamento, e est desta maneira em jogo. Autntica tradio de maneira algi.;P1a
a seqela de cargas do passado; , pelo contrrio, aquilo que nos liberta para o que est
nossa espera, tornando-se, desta maneira, a orientadora que nos conduz para o mbito
da questo do pensamento.
Hegel e os gregos - isto soa como: Kant e os gregos, Leibniz e os gregos, a esco-
lstica medieval e os gregos. Soa assim e , contudo, algo bem diferente. Pois Hegel pela
primeira vez pensa a filosofia dos gregos como um todo e este sob o ponto de .vista filos-
404 HEIDEGGER
fico. Como isto possvel? Pelo fato de Hegel determinar a histria enquanto tal de
modo que ela deva ser filosfica em seu rasgo essencial. A histria da filosofia para
Hegel o em si unitrio, e por isso necessrio processo, do avano do esprito em direo
de si mesmo. A histria da filosofia no uma pura sucesso das mais diversas opinies
e doutrinas, que se alternam sem conexo alguma.
Hegel, afirma, numa introduo a suas prelees de Berlim sobre a histria da filo-
sofia: "A histria, que temos diante de ns, a histria do auto-encontrar-se do pensa-
mento". (Prelees Sobre a Histria da Filosofia, Ed. Hoffmeister, 1940, vol. I, pg. 81,
nota). "Pois somente a histria da filosofia desenvolve a filosofia mesma." (Op. cit. pg.
235 ss.) De acordo com isto, a filosofia, enquanto autodesenvolvimento do esprito em
saber absoluto, e a histria da filosofia so idnticas para Hegel. Nenhum filsofo, antes
de Hegel, assumira tal postura fundamental da filosofia, que possibilita e exige do filoso-
far que se mova simultaneamente em sua histria e que este movimento seja a prpria
filosofia. A filosofia, porm, tem, segundo a palavra de Hegel na introduo sua pri-
meira preleo aqui em Heidelberg, por "meta": "a verdade" (op. cit., pg. 14).
A filosofia , enquanto sua histria, como Hegel diz numa nota margem do
manuscrito desta preleo, o "reina da pura verdade - no os atos da realidade exterior,
mas o ntimo permanecer-junto-de-si-mesmo do esprito" (op. cit. pg. 6, nota). "A ver-
dade" - isto quer dizer aqui: o verdadeiro na sua pura realizao, que simultaneamente
expe a verdade do verdadeiro, sua essncia.
Ser-nos- permitido ento aceitar a determinao hegeliana da meta da filosofia,
que a verdade, como um aceno para uma considerao da questo do pensamento?
Provavelmente sim, to logo tivermos suficientemente elucidado o tema "Hegel e os Gre-
gos", que agora quer dizer a filosofia na totalidade de seu destino, na perspectiva de sua
meta, a verdade.
Esta a razo por que perguntamos primeiramente: em que medida deve a histria
da filosofia, enquanto histria, ser filosfica em seu rasgo essencial? Que quer aqui dizer
"filosfico"? Que significa aqui "histria"?
As respostas devem resultar breves, mesmo sob o perigo de dizerem algo aparente-
mente conhecido. Entretanto, em momento algum existe para o pensamento algo conhe-
cido. Hegel declara: "Com ele (a saber, com Descartes) cruzamos propriamente o um-
bral de uma filosofia independente. . . Aqui, podemos dizer, estamos em casa e
podemos. como o navegante aps longo priplo por mar proceloso. exclamar terra' ... "
(WW. XV, 328). Com esta imagem, Hegel quer dar a entender: O "ego cogito, sum ", o
"eu penso, eu sou" o cho firme em que a filosofia pode habitar em verdade e plena-
mente. Na filosofia de Descartes, o Ego torna-se o subiectum-critrio, isto , o que desde
o princpio j sub-(pr)-jaz. Este sujeito, contudo, somente assumido de maneira adequa-
da, a saber, no sentido kantiano, transcendental e plenamente, o que quer dizer no senti-
do do idealismo especulativo, quando toda a estrutura e movimento da subjetividade do
sujeito se desdobraram e foram elevados para dentro do auto-saber-se absoluto. Quando
o sujeito se sabe, enquanto tal, saber que condiciona toda a objetividade, ele enquanto
tal saber: o absoluto mesmo. O verdadeiro ser o pensamento que se pensa a si mesmo
absolutamente. Ser e pensar so para Hegel o mesmo, e, na verdade, no sentido de que
tudo recebido de volta no pensamento e determinado a ser o que Hegel simplesmente
designa o "pensamento pensado".
A subjetividade como ego cogito, a conscincia que algo representa, retro-refere o
r,:pr~s.:ntado a si mesmo e assim o recolhe junto a si. Recolher significa, em grego, Z-
Recolher o mltiplo para o eu levando-o para dentro dele significa, expresso na voz
HEGEL E OS GREGOS 405
mdia, lgesthai. O eu pensante recolhe o representado, enquanto por ele passa, e o per-
passa, na sua representabilidade. "Atravs de algo" quer dizer em grego: di. Dialges-
thai, dialtica, significa aqui que o sujeito num tal processo e enquanto o faz surgir sua
subjetividade, a produz.
A dialtica o processo de produo da subjetividade do sujeito absoluto e,
enquanto tal, a sua "necessria ao". De acordo com a estrutura da subjetividade, o
processo de produo tem trs nveis. Primeiro, o sujeito, enquanto conscincia, se refere
imediatamente a seus objetos. O que imediato e, contudo, representado de maneira
indeterminada, designado por Hegel tambm por "o ser", o geral, o abstrato. Pois nisto
ainda se abstrai da relao do objeto com o sujeito. Somente atravs desta retro-refe
rncia, que a reflexo, o objeto representado enquanto objeto para o sujeito e este
para si mesmo, e isto quer dizer, enquanto se referindo ao objeto. Enquanto, todavia, s
distinguirmos objeto e sujeito, ser e reflexo, opondo-os um ao outro, e nos fixarmos
nesta distino, o movimento do objeto em direo do sujeito ainda no manifestou a
totalidade da subjetividade para ela. O objeto, o ser. est, no h dvida, mediado pela
reflexo com o sujeito, mas a prpria mediao ainda no est representada enquanto o
mais ntimo movimento do sujeito para este. Somente quando a tese do objeto e a ant-
tese do sujeito so descobertas em sua necessria sntese est o movimento da subjetivi-
dade da relao-objeto-sujeito plenamente em marcha. A marcha partida da tese, avan-
o em direo anttese e passagem para dentro da sntese e desta, como totalidade, o
retorno da posio posta, a si mesma. Esta marcha recolhe a totalidade da subjetividade
em sua unidade desdobrada. Desta maneira, ela con-cresce, con-crescit, torna-se concre-
ta. De tal modo a dialtica especulativa. Pois speculari quer dizer procurar ver, receber
dentro do campo visual, compreender, con-ceber. Hegel diz, na introduo Cincia da
Lgica (Ed. Lasson, vol. I, pg. 38): a especulao consiste "no compreender o oposto
em sua unidade". A caracterizao hegeliana da especulao toma contornos mais preci-
sos, se atentarmos para o fato de que na especulao no apenas importante a
compreenso da unidade, a fase da sntese, mas que antes e sempre importa o
compreender "do que se ope" enquanto tal. Disto faz parte o compreender do aparecer
da oposio e imbricao do que oposto - como tal impera a anttese, que exposta
na "lgica da essncia" (quer dizer, a lgica da reflexo). Do aparecer reflexivo, quer
dizer, do espelhar recebe o specu!ari (speculum: o espelho) sua suficiente determinao.
Pensada assim, a especulao a positiva totalidade daquilo que a "dialtica" quer aqui
significar: no um modo de pensar transcendental, criticamente restritivo ou mesmo
polmico, mas o espelhamento e unificao do que se ope como processo da produo
do prprio esprito.
Hegel designa a "dialtica especulativa" tambm simplesmente como "o mtodo".
Com esta expresso ele no se refere nem a um instrumento da representao, nem ape-
nas a uma particular maneira de a filosofia proceder. "O mtodo" o mais ntimo movi-
mento da subjetividade, "a alma do ser'", o processo de produo atravs do qual a
tessitura da totalidade da realidade do absoluto efetivada. "O mtodo": "a alma do ser"
- isto soa fantasia. Pensamos que nossa poca j abandonou tais aberraes da espe-
culao. Vivemos, no entanto, no corao desta suposta fantasia.
Na tentativa da fisica moderna em buscar a frmula do universo revela-se: o ser do
ente se dissolveu no mtodo da total calculabilidade. O primeiro livro de Descartes, fil-
sofo atravs do qual, segundo Hegel, a filosofia e, com ela, a cincia moderna pisaram
terra firme, traz o ttulo: Discours de la Mthode (1637). O mtodo, quer dizer, a dial-
tica especulativa, para Hegel o rasgo essencial de toda a realidade. O mtodo determi-
na, por isso, enquanto tal movimenta tudo o que acontece, isto , a histria.
406 HEIDEGGER
Agora torna-se claro em que medida a histria da filosofia o mais ntimo movi-
mento na marcha do esprito, quer dizer, da subjetividade absoluta em direo a si
mesma. Ponto de partida, avano, passagem, retorno desta marcha, tudo determinado
especulativo-dialeticamente.
Hegel diz: "Na filosofia enquanto tal, na presente, na derradeira, est contido tudo
o que o labor de milnios produziu; ela o resultado de tudo o que antecedeu". (Hoff-
meister, op. cit., pg. 118.) No sistema do idealismo especulativo, a filosofia chegou
sua plenitude, atingiu em outras palavras seu ponto mais alto e est, a partir dele, encer-
rada. A proposio hegeliana da consumao da filosofia escandaliza. Julgam-na preten-
siosa e caracterizam-na como equvoco que j h tempo foi refutado pela histria. Pois,
aps a poca de Hegel, continuou existindo e ainda o continua, filosofia. Mas a proposi-
o sobre a consumao no quer dizer que a filosofia chegou ao fim, no sentido de um
deixar de existir e de uma interrupo. Antes, a consumao oferece justamente :1 11()ssi
bilidade de mltiplas novas formas, at as mais simples: a brutal inverso e a lllacia
contraposio. Marx e Kierkegaard so os maiores entre os hegelianos. So-no contra
sua vontade. A consumao da filosofia no nem seu fim, nem consiste apenas no siste-
ma isolado do idealismo especulativo. A consumao somente como marcha total da
histria da filosofia, marcha na qual o comeo permanece to essencial como a consu-
mao: Hegel e os gregos.
Como se determina, portanto, a filosofia dos gregos a partir do trao fundamental
especulativo-dialtico da histria? Na marcha desta histria o sistema metafisico de
Hegel o momento mais alto, o da sntese. Precede-o o momento da anttese que se inicia
com Descartes, porque a sua filosofia pe pela primeira vez o sujeito enquanto sujeito. E
somente atravs deste passo que os objetos se tornam representveis enquanto objetos.
A relao sujeito-objeto surge agora enquanto contra-posio, como anttese. Toda filo-
sofia antes de Descartes se esgota, pelo contrrio, na pura representao do objetivo.
Tambm alma e esprito so representados como objetos ainda que no enquanto obje-
tos. De acordo com isto, segundo Hegel, tambm j aqui atua, por toda parte, o sujeito
pensante, mas no ainda concebido como sujeito, no como aquilo em que radica toda
a objetividade. Hegel afirma, em suas prelees sobre a histria da filosofia: "O homem
(do mundo grego) no estava ainda to voltado sobre si mesmo como em nossa poca.
Era, fora de dvida, sujeito, mas no se havia posto como tal". (Hoffmeister, op. cit.,
pg. 144.) A anttese de sujeito e objeto no ainda, na filosofia antes de Descartes, o
cho firme. O momento que precede a anttese o momento da tese. Com ela comea a
"autntica" filosofia. O pleno desdobramento deste comeo a filosofia dos gregos.
Aquilo que concerne aos gregos e desencadeia o comeo da filosofia , segundo Hegel, o
puramente objetivo; a primeira "manifestao", a primeira "emergncia" do esprito,
aquilo em que todos os objetos concordam e coincidem. Hegel a denomina "a universa-
lidade como tal". Pelo fato de ainda no estar referido ao sujeito enquanto tal, de ainda
no ser concebido enquanto estabelecido e mediado pelo sujeito, e isto quer dizer, con-
crescido, de ainda no ser concreto, o universal permanece "o abstrato". "A primeira
manifestao necessariamente a mais abstrata; o mais simples, o mais pobre, a que se
contra-pe o concreto." Neste sentido Hegel observa: "E, desta maneira, os filsofos
mais antigos so os mais pobres". O momento da "conscincia" grega, o momento da
tese, "o momento da abstrao". Ao mesmo tempo, porm, Hegel caracteriza "o
momento a conscincia grega" como "momento a beleza" (WW. Xlll, pg. 17 5).
Como podem ambos ser harmonizados? O belo e o abstrato no so. certamente,
idnticos. So-no, entretanto, desde que um e outro se3am eompreencl.icl.os no sencl.o que
HEGEL E OS GREGOS 407
Hn a palavra de Parmnides.
Lgos a palavra de Herclito.
Ida a palavra de Plato.
Enrgeia a palavra de Arstteles.
comeou o filosofar propriamente dito ... Este comeo. no h dvida. ainda turvo e
indeterminado" (WW. XIII. pg. 269 e ss.).
A palavra fundamental de Herclito : Lgos, o recolhimento que torna presente e
manifesto tudo o que em sua totalidade enquanto ente. Lgos o nome que Herclito
d ao ser do ente. Mas a interpretao hegeliana da filosofia de Herclito justamente no
se orienta na direo do lgos. Isto estranho, tanto mais estranho quanto Hegel conclui
o prefcio sua interpretao de Herclito com as palavras: "No h proposio alguma
de Herclito que eu no tenha includo na minha lgica". (Op. cit., pg. 328.) Mas para
esta "lgica'" de Hegel o lgos a razo no sentido da subjetividade absoluta; a "lgica"
mesma, todavia. a dialtica especulativa atravs de cujo movimento o imediatamente
universal e abstrato. o ser, refletido enquanto objetivo na oposio com relao ao
sujeito; esta reflexo . por sua vez. determinada enquanto a mediao no sentido do vir-
a-ser em que o oposto se aproxima. torna-se concreto. alcanando assim a unidade. Cap-
tar esta unidade constitui a essncia da especulao que se desdobra como dialtica.
No juzo de Hegel Herclito o primeiro que reconhece a dialtica como princpio
e com isto progride para alm de Parmnides. O filsofo declara: o ser (corno o pensa
Parmnides) o uno. o primeiro: e segundo o vir-a-ser - para esta determinao avan-
ou Herclito. Isto o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se realiza a unidade
dos opostos. Nele (Herclito) pode encontrar-se. pela primeira vez. a idia filosfica em
sua forma especulativa (op. cit., pg. 328). Desta maneira coloca Hegel o acento princi-
pal de sua interpretao de Herclito nas proposies em que se exprime o elemento di-
letico, a unidade e unificao das contradies.
A palavra fundamental de Plato : Ida. Para a interpretao hegeliana da filoso-
fia platnica de notar-se que ele compreende as idias como 'o universal em si determi-
nado"; "em si determinado"' quer dizer: as idias so pensadas em sua comum-unidade;
elas no so prato-imagens simplesmente em-si-sendo. mas so ''o cm-si e para-si-mesmo
sendo'' diferena do que existe sensivelmente'" (WW, XIV, pg. 199). 'Em-si e para-
si" -- nisto reside um vir-a-ser-para-si-mesmo, a saber. o con-ceber-se. De acordo com
isto, Hegel pode declarar: as idias "no esto imediatamente na conscincia (a saber
como intuies), mas elas esto (mediadas na conscincia) no conhecimento". Por isso,
"no as possumos, mas so produzidas pelo conhecimento no esprito" (op. cit., pg.
201 ). Este produzir o conceber enquanto atividade do saber absoluto, quer dizer, "da
cincia". Por isso, diz Hegel: "Com Plato comea a cincia filosfica enquanto cincia"
(op. cit., pg. 169). o elemento prprio da filosofia platnica a orientao para o
mundo intelectual, supra-sensvel ... "(op. cit., pg. 170).
A palavra fundamental de Aristteles : Enrgeia, que Hegel traduz por "realidade
efetiva" (latim actus). A Enrgeia "ainda mais determinada que a "entelquia" (entel-
cheia), que em si fim e realizao do fim. A enrgeia "a pura eficacidade que emerge
de si mesma'. somente a energia, a forma. a atividauc. ::quilo que efetiva, a negativi-
dade auto-referente" (op. cit., pg. 321).
Aqui a enrgeia igualmente pensada desde a dialtica especulativa como a pura
atividade do sujeito absoluto. Quando a tese negada pela anttese e esta por sua vez ne-
gada pela sntese, impera num tal processo de negao aquilo que Hegel designa "a nega-
tividade auto-referente... Fia no nada de negativo. A negao da negao
antes aquela posio na qual o esprito, pela sua atividade mesma, se pe enquanto abso-
luto. Hegel descobre na enrgeia de Aristteles a instncia prvia do automovimento
absoluto do esprito. isto , da realidade efetiva em-si e para-si. O juzo que Hegel faz da
totalictade da filosofia aristotlica testemunhado por esta proposio: "Se a filosofia
HEGEL E OS GREGOS 409
fosse um dia encarada com seriedade, nada seria mais digno que dar aulas sobre Arist-
teles" (op. cit., pg. 314).
"Seriamente"' se encara a filosofia, segundo Hegel, quando esta no mais se perde
nos objetos e na reflexo subjetiva sobre eles, mas se exerce como atividade do absoluto.
A elucidao das quatro palavras fundamentais revela: Hegel compreende Hn,
Lgos, Ida, Enrgeia, no horizonte do ser que concebe como o universal abstrato. O ser
e, por conseguinte, aquilo que representado nas palavras fundamentais no ainda
determinado e no ainda mediado atravs e para dentro do movimento dialtico da
subjetividade absoluta. A filosofia dos gregos a instncia deste "ainda no". Ela no
ainda a consumao. mas, contudo, unicamente concebida do ponto de vista desta
consumao que se definiu como o sistema do idealismo especulativo.
Segundo Hegel, ntimo "impulso", "a necessidade" do esprito, de desligar-se do
abstrato, enquanto se ab-solve para dentro do concreto da subjetividade absoluta, liber-
tando-se assim para si mesmo. Da Hegel pode afirmar: " ... a filosofia o que mais se
ope ao abstrato; ela justamente a luta contra o abstrato, a guerra constante com a
reflexo do entendimento" (Hoffmeister, op. cit., pg. 113). No universo grego, na verda-
de, o esprito chega. pela primeira vez, aberta oposio com o ser. Mas o esprito no
atinge ainda propriamente como o sujeito que se sabe a si mesmo a absoluta evidncia de
si mesmo. Somente onde acontece isto, no sistema da metafsica especulativo-dialtica, a
filosofia torna-se aquilo que ela : "o mais sagrado, e mais ntimo do prprio esprito"
(op. cit., pg. 125).
Hegel determina como "meta" da filosofia: "a verdade". Esta somente atingida no
momento da plenitude. O momento da filosofia grega permanece no "ainda no''. Eia
enquanto instncia da beleza, no ainda a instncia da verdade.
Se atravessarmos com um olhar a totalidade da histria da filosofia, Hegel e os Gre-
gos, consumao e comeo desta histria, tornamo-nos pensativos e perguntamos: no se
alteia sobre o comeo do caminho da filosofia em Parmnides a aitheia, a verdade? Por
que no a deixa Hegel tomar a palavra? Compreende ele com a palavra "verdade" outra
coisa que desvelamento? Sem dvida. Verdade para Hegel a evidncia absoluta do
sujeito que se sabe a si mesmo. Para os gregos, porm, segundo sua explicao, o sujeito
ainda no se manifesta enquanto sujeito. Por conseguinte, a A ltheia no pode ser o ele-
mento determinante para a verdade no sentido da certeza.
Este o estado da questo para Hegel. Se, porm, a Altheia, encoberta e impen-
sada como for, impera sobre o comeo da filosofia grega, devemos ento perguntar: no
depende justamente a certeza, em sua essncia, da Altheia, uma vez estabelecido que
no a interpretemos de maneira indefinida e arbitrria como verdade no sentido de certe-
za -- mas a pensemos como desocultao? Se ousarmos pensar a Altheia desta manei-
ra, ento ser necessrio atentar antecipadamente para dua~ coisas: de um lado, a expe-
rincia da Altheia como desvelamento e desocultao no se funda, de maneira alguma,
sobnc: a etimologia de uma palavra escolhida ao acaso, mas sobre a questo que aqui
deve ser pensada, questo da qual nem mesmo a filosofia hegeliana se pde subtrair intei-
ramente. Se Hegel caracteriza o ser como a primeira emergncia e a primeira manifesta-
o do esprito, ento deve-se considerar se nesta emergncia e automanifestar j no
est em jogo a desocultao, aqui nada menos que no puro resplendor da beleza que.
segundo Hegel, determina o primeiro momento da "conscincia'" grega. Se Hegel faz cul-
minar a posio fundamental de seu sistema na idia absoluta, na plena automanifes-
tao do esprito, isto nos urge a perguntar se no tambm ainda neste resplender. isto
, na fenomenologia do esprito e por conseguinte no absoluto auto-saber e sua certeza.
410 HEIDEGGER
que a desocultao deve estar em jogo. E logo a seguir se impe esta outra pr :gunta: ter
a desocultao seu lugar no esprito concebido como sujeito absoluto, ou ela mesma o
lugar e aponta para o lugar em que algo semelhante a um sujeito capaz de representao
pode somente "ser" aquilo que ?
Com isto j deparamos com aquilo que deve ser tomado em conta, to logo a Al-
theia enquanto desocultao passe a ser discutida. O que este nome designa no a gros-
seira chave que decifra todos os enigmas do pensamento, mas a Altheia o prprio
enigma - a questo do pensamento.
Mas no somos ns que fixamos esta questo como a questo do pensamento. Ela,
de longa data, nossa herana e nos foi transmitida atravs de toda a histria da filoso-
fia. Trata-se apenas de nos afundarmos com nosso ouvido atento na tradio e assim
examinar os pr-conceitos em que qualquer pensamento a seu modo se deve demorar.
Sem dvida, tambm um tal exame jamais se pode arvorar em tribunal que decida sobre
a essncia da histria e sobre uma possvel relao com ela; pois este exame tem seus
limites que assim podem ser circunscritos: quanto mais um pensamento se dedica
meditao, isto , quanto mais recebe o apelo de sua linguagem, tanto mais decisivo ser
para ele o impensado e at mesmo o para ele impensvel.
Quando Hegel interpreta o ser a partir da subjetividade absoluta especulativo-diale-
ticamente como o indeterminado imediato, o universal abstrato e neste horizonte da filo-
sofia moderna, explica as palavras gregas fundamentais para o ser: Hn, Lgos, Ida,
Enrgeia, somos tentados a julgar que tal interpretao historicamente incorreta.
Ora, qualquer enunciao histrica e sua fundamentao j se movem numa relao
com a histria. Antes da deciso sobre a correo histrica da representao necessita
ela por isso de uma reflexo sobre o fato e o modo como a histria experimentada, de
onde ela determinada em seus rasgos fundamentais.
No que se refere a Hegel e aos gregos isto significa: precede a todas as enunciaes
certas ou erradas sobre a histria o fato de que Hegel experimentou a essncia da histria
a partir da essncia do ser no sentido da subjetividade absoluta. At o momento no exis-
te uma experincia da histria que, sob o ponto de vista filosfico, corresponda a esta
experincia hegeliana da histria. Mas a determinao especulativo-dialtica da histria
traz justamente como conseqncia o fato de para Hegel ter sido vedado descobrir a Al-
theia e seu imperar propriamente como a questo do pensamento; isto aconteceu exata-
mente na filosofia que determinara "o reino da pura verdade" como "a meta" da filoso-
fia. Pois Hegel experimenta o ser quando o concebe como o indeterminado imediato,
como posto pelo sujeito que determina e compreende. Conseqentemente no ele capaz
de libertar o ser no sentido grego, o einai, da referncia ao sujeito para ento entreg-lo
liberdade de seu prprio acontecer fenomenolgico. Este, porm, o pre-sentar, quer
dizer, o surgir contnuo desde o velamento para o desvelamento. No pre-sentar se mani-
festa a desocultao. Ela acontece no Hn e no Lgos, isto , no jazer-a unificando e
recolhendo - quer dizer, no deixar demorar-se como presena. A Altheia acontece na
Jda e na koinonia das idias, na medida em que estas se manifestam umas s outras,
constituindo, desta maneira, o ente-ser, o ntos n. A Altheia acontece na Enrgeia, que
nada tem a ver com actus e nada com atividade, mas somente com o rgon experimen-
tado em seu sentido grego e seu carter de ser-pro-duzido para dentro do pre-sentar.
Mas a Altheia, a desocultao, no acontece apenas nas palavras fundamentais do
pensamento grego, acontece na totalidade da lngua grega, que fala diferente to logo dei-
xamos fora de jogo as maneiras de representar, romanas, medievais e modernas, ao inter-
pret-la, e to logo deixamos de procurar por personalidades e pela conscincia no
mundo grego.
HEGEL E OS GREGOS 41 1
Mas qual , ento, a situao desta enigmtica Altheia mesma que se tornou um
escndalo para os intrpretes do mundo grego, pelo fato de se aterem apenas a esta pala-
vra isolada e sua etimologia, em vez de pensarem a partir da questo para a qual apon-
tam palavras como desvelamento e velamento? a Altheia enquanto desvelamento o
mesmo que ser, isto , pre-sentar?
Isto vem confirmado pelo fato de ainda Aristteles entender com t nta, o ente,
aquilo que se presenta, o mesmo que com t aletha, aquilo que est desvelado. No
entanto, de que maneira desvelamento e presena, altheia e ousa, esto ligados entre si?
So ambos da mesma classe de ser? Ou s depende a presena do desvelamento e no
vice-versa, este daquela? Ento o ser tinha, na verdade, algo a ver com a desocultao,
mas nada a desocultao com o ser? Ainda mais: se a essncia da verdade como retitude
e certeza que muito cedo se afirmou s puder subsistir no mbito do desvelamento,
ento, sem dvida, a verdade tem algo a ver com a Altheia, mas nada esta com a
verdade.
Qual o lugar da Altheia mesma se libertada da perspectiva sobre a verdade e o ser
tiver que ser entregue liberdade que lhe prpria? Possui j o pensamento o horizonte
para ao menos conjeturar sobre o que acontece na desocultao e mesmo na ocultao
de que necessita qualquer desocultao?
O enigmtico da Altheia se torna mais compreensvel, mas ao mesmo tempo o
risco de ns a hipostasiarmos num ser fantstico se torna maior.
Observou-se ainda, j vrias vezes, que no poderia dar-se um desvelamento em si,
que desvelamento sempre desvelamento "para algum''. E com isto estaria provada sua
"subjetivao".
Deve, todavia, ser o homem em que aqui se pensa necessariamente determinado
como sujeito? Significa "para o homem" j obrigatoriamente: posto pelo homem?
Ambas as coisas podemos negar e nos vemos levados a lembrar que a Altheia, pensada
em sentido grego, sem dvida alguma, impera para o homem, mas que o homem perma-
nece determinado pelo lgos. O homem aquele que diz. Dizer, no alemo arcaico
sagan, significa: mostrar, fazer aparecer e ver. O homem o ser que pelo dizer faz surgir
o presente em sua presena e assim percebe o a-jaz-presente. O homem apenas sabe falar
na medida em que aquele que diz.
As mais antigas referncias a alethee e aleths, desvelamento e desvelado, encon-
tramos em Homero e, na verdade, no contexto com verbos que significam dizer. Disto se
concluiu apressadamente demais: portanto, o desvelamento "dependente" dos verba
dicendi. 1 Que significa aqui "dependente" quando dizer o deixar aparecer e, em conse-
qncia, tal tambm o disfarar e o encobrir? No o desvelamento "dependente" do
dizer, mas qualquer dizer j precisa do mbito do desvelamento. Apenas l onde esta j
impera pode algo tornar-se dizvel, visvel, mostrvel, perceptvel. Se mantivermos na
mira o enigmtico imperar da Altheia, do desvelamento, ento podemos at suspeitar
que mesmo toda a essncia da linguagem repousa nades-ocultao, no imperar da Al-
theia. Entretanto, mesmo a conversa sobre o imperar permanece ainda um expediente, j
que a maneira como acontece o imperar recebe sua determinao da desocultao
mesma, isto , da clareira do autovelar-se.
Hegel e os Gregos - parece que, entretanto, longe do tema, discutimos coisas
estranhas. Estamos todavia mais prximos do tema do que antes. Na introduo da
conferncia foi dito:
1 Assim fala P. Friedliinder, Plato, vol. 1. 2." edio, 1954. pg. 235. seguindo a trilha de W. Luther, que
em sua dissertao de Gottingcn, 1935, pg. 8 e ss., v mais claramente o estado de coisas.
412 HEIDEGGER
* Ttulo do original Aus der letzten Marburger Vor/esung. A preleo foi proferida no semestre de vero de
1928 sobre Leibniz; apareceu como contribuio para o livro comemorativo dos oitenta anos de Rudolf
Bultmann: Zeil und Geschichte, na Editora l.C.8. Mohr (Paul Sicbcck). Tbingcn 1964, pp. 497-507. O
texto para a traduo foi extrado do volume Wegmarken, Vittorio Klostcrmann. Frankfurt am Main, 1967,
que contm boa parte dos textos menores de Martin Heidegger.
Esta preleo se props, durante o semestre de vero de 1928, a tarefa de experi-
mentar uma discusso com Leibniz. Orientada era a tarefa na considerao do eksttico
ser-no-mundo do homem, desde o ponto de vista da questo do ser.
O primeiro semestre em Marburgo (1923-1924) tentou a adequada discusso com
Descartes, a qual ento passou a fazer parte de Ser e Tempo( 19-21).
Esta e outras interpretaes eram determinadas pela convico de que, no pensa-
mento da filosofia, ns somos um dilogo com o pensamento do passado. Tal dilogo
quer dizer outra coisa que complementao de uma filosofia sistemtica pela exposio
historiogrfica de sua histria. No pode, porm, ser tambm comparada com a singular
identidade que Hegel alcanou para a mentao de seu pensamento e do pensamento da
histria.
A metafisica que Leibniz desenvolveu , de acordo com a tradio, uma interpre-
tao da substancialidade da substncia.
O texto que segue, extrado da mencionada preleo e revisto, procura mostrar a
partir de que projeto e segundo que fio condutor Leibniz determina o ser do ente.
J a palavra que Leibniz esolhe para identificar a substancialidade da substncia
caracterstica. A substncia mnada. A palavra grega monas significa: o simples, a
unidade, o um, mas tambm: o separado, o solitrio. Leibniz utiliza apenas a palavra
mnada depois que sua metafisica da substncia j tomara forma definitiva, a saber,
desde 1696. O que Leibniz entende por mnada engloba como que em si todos os signifi-
cados gregos fundamentais: a essncia da substncia consiste no fato de que ela mna-
da. O ente propriamente dito possui o carter de simples unidade do indivduo separado.
Antecipando: mnada o elemento unificador simplesmente originrio que previamente
individualiza e separa.
De a~,,rdu curn i,tu. deve se reter, para a suficiente dcfmiu da mnada. um tr
piice elemento:
1. As mnadas, as unidades, os pontos, no necessitam da unio, mas so aquilo
que d unidade. So capazes de algo.
2. As unidades que do unio so elas prprias originariamente unificantes, de
certa maneira ativas. Por isso que Leibniz caracteriza estes pontos como vis primitiva,
force primitive, fora originria.
3. A concepo da mnada revela uma inteno metafisica, ontolgica. Leibniz.
por conseguinte, no designa tambm os pontos, pontos matemticos, mas points
mtaphysiques, "pontos metafsicos" (Gerhardt IV, 482; Erdmann, 126). Ainda so cha-
mados "tomos formais", no materiais; no so partes ltimas e elementares da hyle,
da matria, mas o originrio e inseparvel princpio da formao, da forma, do eidos.
416 HEIDEGGER
Cada ente separado se constitui como mnada. Leibniz diz (Gerh. II, 262): ipsum
persistens . .. primitivam vim habet. Cada ente separado dotado de fora.
A compreenso do sentido metafisico da doutrina das mnadas depende da maneira
exata como se compreende o conceito de vis primitiva.
O problema da substancialidade da substncia deve ser solucionado positivamente,
e este problema para Leibniz um problema da unidade, da mnada. Deste horizonte de
problemas de uma determinao positiva da unidade da substncia, deve ser entendido
tudo o que foi dito sobre a fora e sua funo metafisica. O carter de fora deve ser pen-
sado a partir do problema da unidade que se esconde na substancialidade. Leibniz desta-
ca seu conceito de vis activa do conceito escolstico de potentia activa. Desde o ponto de
vista terminolgico, vis activa e potentia activa parecem significar o mesmo. Mas: Dif-
Jert enim vis activa a potentia mula vulgo scholis cognita, quod potentia activa scholasti-
corum, seu facultas, nihil aliud est quarn propinqua agendipossibilitas, quae tamen alie-
na excitatione et velut stimulo indiget, ut in actum transferatur (Gerh. IV, 469). "Pois a
vis activa se distingue da nua potncia pura para agir, que de comum conhecimento na
escolstica. porque a potncia ativa ou possibilidade de agir da escolstica no outra
coisa que a possibilidade prxima de agir, a qual contudo necessita de um impulso estra-
nho, como que de um estmulo para tornar-se ato."
A potentia activa da escolstica um puro ser-capaz de agir, mas de maneira tal
que este ser-capaz de ... justamente est para agir. mas ainda no age. Ela uma capa-
cidade existente nas coisas que ainda no entrou em ao.
Sed vis activa actum quemdam sive entelcheiam continet, atque inter facultatem
agendi actionemque ipsam media est, et conatum involvit (ih.). "A vis activa, porm,
contm um certo agir j real ou uma entelquia. ela se situa entre a pura capacidade de
agir e o agir mesmo e encerra em si um conatus, uma tentativa."
A vis activa . por conseguinte, um certo agir, mas no a ao na realizao
propriamente dita: ela uma capacidade, mas no uma capacidade em repouso. Desig-
namos o que Leibniz aqui visa o tender para .... melhor ainda, para poder exprimir o
especfico, de certa maneira j efetivado, momento de agir, o impelir, pulso. 1 No
nenhuma disposio nem um processo espontneo, mas o empenhar-se desde dentro (a
saber, por prpria iniciativa e por si mesmo). o dispor a si para si mesmo ("ele insiste
nisso"), instaurar-se na proximidade de si mesmo. 2
1
Dra11g o te,mo que Heidegger explora para extrair toda a riqueza de sentido da vis de Leibniz. Drang
equivale originariamente ao termo grego lwrme, que vem de hormo: excitar. Desta forma verbal grega se
origina a palavra portuguesa hormnio: princpio ativo das secrees internas. Traduzo Drang por pulso,
que vem de pulsar: impelir, repelir. Bater. ferir. tocar. tanger. Palpitar. latejar, arquejar. Pulso como Drang
distingue-se e se ope a instinto porque no exige um objeto correlato. O termo pulso, alm de reproduzir
o sentido de Dra11g, possui a vantagem de permitir o jogo scmntico que o filsofo realiza pelo uso de prefi-
xos com Dra11g. Alm das formas verbais, podemos formar. em portugus: com-pulso. ex-pulso, im-pul-
so. re-pulso. A longa histria da palavra Drang deu-lhe uma variedade de conotaes que dificilmente so
percebidas por uma lngua com outra histria. Desde o termo medieval dra11g at a explorao que dele faz
Max Scheler. Drang passa pelo movimento da literatura alem Sturm und Dra11g (i 767-1785), pelo idea-
lismo (Shelling). pela filosofia da vida (Dilthcy). Heidegger usa a palavra Drang livre ele conotaes biol-
gicas ou irracionalistas. acentuando-lhe a dimenso transcendental de que necessita para analisar a questo
do ser do ente uo pensamento de Leibniz. no horizonte ele sua ontologia fundamental. (Agradeo ao Prof.
Hermann Zeltner. ela Universidade de Erangcn-Nrnberg. sempre disponvel para clarificar no dilogo ques-
tes como esta.) (N. do T.)
2
Heidegger procura circunscreve: a din1ensi'in constituinte da 1'is, do l)rang, da pu!so, distinguindu-a: a)
do processo mecnico espontneo: b) da esfera biolgica que: (desde a hxis: estado. caracterstica, ter uma
disposio, de Aristteles) facilmente se insinua quando se fala ele fora. instinto. pulso: e determinando-a
A DETERMINAO DO SER DO ENTE 417
sionar paralelo de outras mnadas , em sua possvel relao com cada uma das outras
mnadas individuais, essencialmente negativo. Nenhuma substncia capaz de dar
outra sua pulso, isto , o que possui de essencial. Ela somente capaz de simplesmente
desenfrear ou frear, mas mesmo nesta maneira negativa ela sempre apenas funciona
indiretamente. A relao de uma substncia com a outra unicamente aquela de uma
delimitao, por conseguinte, uma determinao negativa.
A respeito disto Leibniz se revela bem claro: Apparebit etiam ex nostris meditatio-
nibus, substantiam creatam ab alia substantia creata non ipsam vim agendi, sed praeexis-
tentis iam nisus sui, sive virtutis agendi, limites tantummodo ac determinationem accipe-
re. Decisivo o praeexistens nisus. Leibniz encerra: ut talia nunc taceam ad solvendum
illud problema difficile, de substantiarum operatione in se invicem, profutura.
NB: a vis activa tambm caracterizada como entelcheia, aludindo-se a Arist-
teles (cf. p. ex. Systeme Nouveau, 3). Na Monadologia ( 18) assim formulada a
razo para tal designao: "car elles ont en elles une certaine perfection (khousi t ente-
ls) ", "pois as mnadas tm em si certa perfeio, carregam em si, de certa maneira, uma
perfeio, na medida em que cada mnada, como se ir mostrar, j carrega consigo seu
elemento positivo. e. na verdade. de maneira tal que este. segundo sua possihilidade. o
/ . . ..
propno urnverso .
Esta interpretao da entelcheia no corresponde verdadeira tendncia de Arist-
teles. Por outro lado, assume Leibniz esta expresso com novo significado em sua
Monadologia.
J no Renascimento entelcheia traduzido com o sentido que Leibniz lhe d:
perfectihabia: A Monadologia cita ( 48) Hermolaus Barbarus como tradutor. Este
Hermolaus Barbarus traduz e comenta, no Renascimento, Aristteles e o comentrio de
Themistius (320-390) e precisamente com a inteno de afirmar o Aristteles grego con-
tra a escolstica medieval. Sem dvida, sua obra esteve ligada a grandes dificuldades.
Conta-se que ele - na carncia e perplexidade diante da significao filosfica do termo
entelcheia - invocou o diabo para lhe prestar esclarecimentos.
Esclarecemos agora, de maneira geral, o conceito de vis activa: 1. vis activa signi-
fica "pulso". 2. O carter desta pulso reside em cada substncia enquanto substncia.
3. Desta pulso brota constantemente um exerccio.
Mas abordemos agora a problemtica metafisica propriamente dita da substancia-
lidade, isto , a questo da unidade da substncia enquanto ente primeiro. O que no
substncia chamado por Leibniz de fenmeno, o que quer dizer, emanao, derivao.
A unidade da mnada no o resultado de uma agregao, no algo suplementar,
mas aquilo que a priori d unidade. A unidade enquanto aquilo que d unidade ativa,
vis activa, pulso enquanto primum constitutivum da unidade da substncia. Aqui est
o problema central da Monadologia. o problema da pulso e dc1 substancialidade.
O carter fundamental desta atividade tornou-se compreensvel. Obscuro perma-
nece como justamente a pulso mesma pode dar unidade. Uma outra questo de decisiva
importncia a seguinte: como se constitui, com base nesta mnada unida e concentrada
em si mesma, a totalidade do universo em sua conexo?
Antes necessria uma considerao intermdia. J mais vezes foi acentuado: o
sentido metafisico da Monadologia s pode ser atingido se for tentada uma construo
das principais conexes e perspectivas, e isto pelo fio condutor daquilo que para Leibniz
mesmo era determinante no projeto da Monadologia.
A Monadologia quer elucidar o ser do ente. Por isso preciso adquirir, seja por que
via for, uma idia exemplar de ser. Ela foi encontrada ali, onde algo semelhante ao ser se
A DETERMINAO DO SER DO ENTE 419
"Se pensarmos, por isso, as formas substanciais (vis primitiva) como algo anlogo
s almas, ento permitido duvidar se as recusamos com razo." (Leibniz a Bernoulli,
29 de julho de 1698, Gerh. Escritos lvf.atemticos III, 521, Livro II, 366). As formas
substanciais no so, por conseguinte, simplesmente almas, respectivamente, por si mes-
mas novas coisas ou pequenos corpos, mas algo correspondente alma. Ela apenas a
ocasio para o projeto da estrutura fundamental da mnada .
. . . et e 'est ainsi qu 'en pensant naus, naus pensons l 'Estre, la substance, au
simple ou au compos, l'immateriel et Dieu mme, en concevant que ce qui est born
en naus, est en !ui sans bornes (Monadologia, 30).
" ... ao pensarmos desta maneira em ns, captamos com isto, ao mesmo tempo, o
pensamento do ser. da substncia, do simples ou do composto, do imaterial, sim, at de
Deus mesmo, ao representarmos que aquilo que em ns est presente nele contido sem
limites" (via eminentiae).
De onde retira, portanto, Leibniz o fio condutor para a determinao do ser do
ente? Ser interpretado em analogia com alma, vida e esprito. O fio condutor o ego.
O fato de tambm os conceitos e a verdade no terem sua origem nos sentidos, mas
brotarem do eu e do entendimento, mostrado na carta Rainha Sofia Carlota da Prs-
sia, Lettre touchant ce qui est indpendant des se,zs et de la Matiere, "Referente quilo
que reside alm dos sentidos e da matria" (1702, Gerh. VI, 499 ss., Livro II, 410 ss.).
Esta carta de grande importncia para todo o problema da funo de fio condutor
prpria da auto-reflexo e da autoconscincia como tais.
Nela diz Leibniz: Cette pense de moy qui m 'apperois des objets sensibles, et de
ma propre action qui en resulte, adjoute quelque chose aux objets dessens. Penser quel-
que couleur et considerer qu 'on y pense, ce sont deux penses tres differentes, autant que
la couleur mme dijfere de moy qui y pense. Et comme je conois que d'autres Estres
peuvent aussi avoir le droit de dire moy, ou qu 'on pourroit le dire pour eux, e 'est par l
que je conois ce qu 'on appelle la substance en general, et e 'est aussi la considration de
moy mme, qui me fournit d'autres notions de mtaphysique comme de cause, effect,
actio11, 1i111iillule, ele., e! mme cel!es de la Logique et de la Morak (Gcrh. Vl, 502,
Livro!L414).
Este pensamento de mim mesmo, do qual tomo conscincia, percebendo os objetos
sensveis e de minha prpria atividade que disso resulta acrescenta algo aos objetos dos
sentidos. bem diferente pensar numa cor e ao mesmo tempo refletir sobre este pensa-
mento: to diferente como o a cor mesma do eu que a pensa. E ja que compreendo que
outros seres tambm tenham direito de dizer eu, ou de que se possa diz-lo por eles,
assim compreendo, em conseqncia disto, o que se designa de maneira geral como subs-
tncia. Alm disto, a considerao de mim mesmo que me fornece igualmente outros
conceitos metafsicos como os de causa, efeito, atividade, similitude, etc., e at os concei-
tos fundamentais de Lgica e de Moral."
L'Estre mme et la Vrit ne s 'apprend pas tout fait par les sens (ib.). "O ser
mesmo e a verdade no podem ser compreendidos apenas atravs dos sentidos."
Cette conception de l'Estre et de la Vrit se trouve dane dans ce Moy, et dans
l 'Entendement plustost que dans les sens externes et dans la perception des objets exte-
rieurs (ib. 503, Livro II, 415). "Este conceito do ser e da verdade encontra-se antes no
'eu' e no entendimento do que nos sentidos exteriores e na percepo dos objetos
exteriores."
No que se refere ao conhecimento do ser em geral, diz Leibniz em 1Vouveaux Essais
(Livro I, cap. 1 23); Etje voudrois bien savoir, comment naus pourrons avor l'ide de
A DETERMINAO DO SER DO ENTE 421
l'estre, si nous n 'estions des Estres nous mmes, et ne trouvions ansi l'estre en n0us (cf.
tambm 21, bem como Monadologia, 30). Tambm aqui so juntados ser e subjetivi-
dade, ainda que equvocamente. No teramos a idia de ser se ns mesmos no fssemos
entes e no encontrssemos o ente em ns.
claro que ns devemos ser - pensa Leibniz - para podermos possuir a idia de
ser. Dito metafisicamente: constitui justamente essncia o fato de no podermos ser aqui-
lo que somos sem a idia do ser. A compreenso constitutiva para o ser-a (Discours,
27).
Disto, porm, no se segue que cheguemos idia do ser pela volta sobre ns mes-
mos enquanto entes.
Ns mesmos somos a fonte da idia de ser. - Mas esta fonte deve ser entendida
como a transcendncia do ser-a ek-sttico. somente no fundamento da transcendncia
que se d a articulao dos diversos modos de ser. Um problema difcil e ltimo a
determinao da idia de ser como tal.
Pelo fato de a compreenso do ser fazer parte do sujeito enquanto o ser-a que trans-
cende, pode a idia de ser ser tirada do sujeito.
Que resulta de tudo isto? Primeiramente, que Leibniz - mantidas todas as diferen-
as em face de Descartes - retm com este a certeza que o eu possui de si mesmo como
a primeira certeza que ele v, como Descartes, no eu, no ego cogito, a dimenso da qual
devem ser tomados todos os conceitos metafsicos fundamentais. Procura-se resolver o
problema do ser como o problema fundamental da metafisica no retorno ao sujeito. Ape-
sar disso, permanece em Leibniz, como em seus precursores e sucessores, ambguo este
retorno ao eu, pelo fato de o eu no ser captado em sua estrutura essencial e seu modo
especfico de ser.
A funo de fio condutor do ego , porm, sob muitos pontos de vista, ambgua. Em
relao ao problema do ser o sujeito o ente exemplar. Ele mesmo d, enquanto ente,
com seu ser a idia de ser como tal. De outro lado, porm, o sujeito enquanto aquele
que compreende o ser; enquanto ente de natureza especial, o sujeito tem a compreenso
do ser em seu ser; o que no quer dizer que ser apenas designe: ser-a existente.
Apesar do realce dado a autnticos fenmenos nticos, o prprio conceito de sujeito
permanece ontologicamente no esclarecido.
Por isso surge justamente em Leibniz a impresso de que a interpretao monadol-
gica do ente simplesmente um antropomorfismo, uma pan-animao em analogia com
o eu. Isto, porm, seria uma compreenso extrinsecista e arbitrria. Leibniz mesmo pro-
cura fundamentar metafisicamente esta considerao analogizante: cum rerum natura sit
uniforms nec ab aliis substantiis simplicibus ex qubus totum consistit Universum, nos-
tra infinite dijferre possit. "Pois, dado o fato de a natureza das coisas ser uniforme, no
pode a nossa prpria essncia ser infinitamente diferente das outras substncias simples
de que se compe todo o universo" (carta a de Volder, dia 30 de junho de 1704, Gerh.
II, 270, Livro II, 34 7). O princpio ontolgico universal aduzido por Leibniz para a
fundamentao necessitaria, sem dvida, por sua vez, de ser fundamentado.
Em vez de se mostrar satisfeito com a simplificante afirmao de um antropomor-
fismo, preciso perguntar: quais so as estruturas do prprio ser-a que devem tornar-se
relevantes para a interpretao do ser da substncia? Como se modificam estas estrutu-
ras, para adquirirem a qualidade de tornar monadologicamente compreensvel qualquer
ente, todos os graus do ser?
O problema central que precisa ser retomado o seguinte: como deve a pulso que
caracteriza a substncia como tal dar unidade? Como deve ser determinada a pulso
mesma?
422 HEIDEGGER
Se a pulso ou aquilo que determinado como pulsionante tem o papel de dar uni-
dade, na medida em que aquilo que pulsiona, ento ela mesma deve ser simples, no
deve possuir partes como um agregado, um aglomerado. O primum constitutivum (Gerh.
II, 342) deve ser uma indivisvel unidade.
Quae res in plura (actu iam existentia) dividi potest, ex pluribus est aggregata, et res
quae ex pluribus aggregata est, non est unum nisi mente nec habet realitatem nisi a con-
tentis mutuatam (a de Volder, Gerh. II, 267). O que divisvel s possui um contedo
objetivo emprestado.
Hinc jam inferebam, ergo da11tur in rebus wzitates indivisibiles, quia alioqui nu/la
erit in rebus unitas vera, nec realitas non mutuara. Quod est absurdum (ibJ.
La Monade dont naus parlerons ici, n 'est autre chose qu 'une substance simple, qui
entre dans les composs; simple, e 'est dire, sans parties (Monadologie, 1). "A mna-
da, da qual aqui falaremos, no outra coisa seno uma substncia simples, que entra no
composto. Ela simples, quer dizer, no possui partes."
Se porm, a substncia simplesmente unificante, deve haver tambm j algo mlti-
plo, que por ela unificado. Pois, de outra maneira, o problema da unificao seria
suprfluo e sem sentido. Aquilo que unifica, cuja essncia unificao, deve ter uma rela-
o fundamental com o mltiplo. Justamente na mnada como simplesmente unificadora
deve haver algo de mltiplo. A mnada que unifica por essncia deve, como tal, exibir a
possibilidade de uma multiplicidade.
A pulso simplesmente unificadora deve, enquanto pulsionar, levar em seu bojo o
mltiplo, deve ser mltiplo. Ento, porm, tambm o mltiplo deve ter o carter de pul-
so, de com-pulsado e im-pulsionado, de mobilidade como tal. Multiplicidade movi-
mento, o mutvel e o que est em transformao. O com-pulsado na pulso a prpria
pulso. A modificao da pulso, aquilo que se modifica na com-pulso, o
im-pulsionado.
A pulso como primum constitutivum deve ser simplesmente unificante e, ao
mesmo tempo, origem e modo de ser do que mutvel.
"Simplesmente unificante" quer dizer: a unidade no deve ser um ajuntamento ulte-
rior de um aglomerado, mas unificao originria e organizadora. O princpio constitu-
tivo de unificao deve ser anterior quilo que depende da possvel unificao. O que
unifica deve estar antecipado, deve, de antemo, estar estendido em direo quilo de que
tudo o que mltiplo j recebeu sua unidade. Aquilo que simplesmente unifica deve abrir
originariamente uma dimenso e como tal ser, desde o princpio, abarcador, e isto de tal
modo que toda a multiplicidade j sempre se esteja multiplicando a partir deste mbito
abarcador. Enquanto antecipao do mbito que abarca , de antemo, o que sobressai,
substantia praeeminens (a de Volder, Gerh. II, 252, Schmalenbach II, 35).
A pulso, a vis primitiva como primum constitutivum da unificao originria,
deve, por conseguinte, ser aquilo que abre uma dimenso e abarca. Leibniz exprime isto
da seguinte maneira: a mnada , no fundamento de sua essncia, re-presentadora.
O mais ntimo motivo metafisico para o carter representativo da mnada a fun-
o ontolgica unificadora da pulso. Leibniz mesmo no se deu conta desta motivao.
De acordo com a coisa mesma, no entanto, somente isto pode ser motivo, e no esta
considerao: a mnada , como fora, algo vivo; do vivo faz parte a alma e da alma faz
parte a representao. Se fosse assim, tudo se resumiria numa transposio extrnseca do
elemento anmico para o ente como tal.
Pelo fato de a pulso ter que ser aquilo que originaria e simplesmente unifica, deve
ela ser o que abre a dimenso e abarca, deve ser "re-presentadora". Re-presentar no
A DETERMINAO DO SER DO ENTE 423
deve ser tomado aqui como faculdade particular da alma, mas sob o ponto de vista
ontolgico-estrutural Em conseqncia disso, a mnada no alma em sua essncia
metafisica, mas d-se o contrrio: alma uma possvel modificao de mnada. A pul-
so no um acontecer que ocasionalmente tambm representa ou at produz represen-
taes; ela por natureza representadora. A estrutura do prprio acontecer pulsivo se
caracteriza pelo abrir dimenses, eksttica. O re-presentar no um puro fixar os olhos
em ... , mas unificao no que simples, unificao que antecipa edis-pe para si o ml-
tiplo. Nos Prncipes de la Nature et de la Grce diz Leibniz ( 2): ... les actions inter-
nes . .. ne peuvent estre autre chose que ses perceptions (c 'est dire les reprsentations
du compos, ou de ce qui est dehors, dans le simple) . .. A des Bosses escreve: Perceptio
nihil aliud quam multorum in uno expressio (Gerh. II, 311) e: Nunquam versatur percep-
tio circa objectum, i11 quo non sit aliqua varietas seu multitudo (ib. 317).
Assim como o 'representar", tambm o "aspirar a" faz parte da estrutura da pulso
(nesis - rexis). Leibniz nomeia ao lado da perceptio (repraesentatio), ainda expressa-
mente, uma segunda faculdade, o appetitus. Leibniz deve acentuar ainda particularmente
o appetitus porque ele mesmo no capta logo, com suficiente radicalidade, a essncia da
vis activa - apesar da clareza com que a destaca da potentia activa e actio. A fora
ainda permanece aparentemente algo de substancial, um ncleo, que dotado de repre-
sentao e tendncia para ... , enquanto a pulso , em si mesma, tendncia para ...
representadora e representao que tende para ... No h dvida que o carter do appe-
titus possui ainda um significado particular, no tem a mesma significao que pulso.
Appetitus significa um momento prprio e essencial da pulso como a perceptio.
A pulso originariamente unificadora deve-se antecipar a qualquer possvel multi-
plicidade deve estar-lhe altura segundo a possibilidade, deve t-la sobressado e ultra-
passado. A pulso deve carregar de certa maneira a multiplicidade em si e faz-la nascer
em si pela ex-pulso. Importa ver a origem essencial da multiplicidade na pulso como
tal.
Lembremos novamente: a pulso que antecipa e ultrapassa originariamente unida-
de unificadora, isto , a mnada substantia. Substantiae non tota sunt quae contineant
partes formaliter, sed res to tales quae partiales continent eminenter (a de Volder, 21 de
janeiro de 1704, Gerh. II, 263).
A pulso a natureza, isto . a essncia da substncia. Corno pulso ela, de certa
maneira, ativa, mas este elemento ativo sempre originariamente re-presentador (Prnci-
pes de la Nature . .. 2: Schmalenbach II, 122). Na carta a de Volder, acima citada,
Leibniz continua: Si nihil sua natura activum est, nihil omnino activum erit; quae enim
tandem ratio actionis si non in natura rei? Limitationem tamen adjicis, ut res sua natura
activa esse possit si actio sernper se habeat eodern modo. Sed cum omnis actio mutatio-
nem contineat, ergo habemus quae negare videbaris, tendentiam ad mutationem inter-
nam, et temporale sequens ex rei natura. Aqui se afirma claramente: a atividade da m-
nada , enquanto pulso em si, pulso para mudana.
Pulso com-pele por natureza para o outro, pulso que se ultrapassa. Isto quer
dizer: o mltiplo se origina naquilo que (irn-)pulsiona, sendo ele mesmo (im-)pulsionante.
A substncia successioni obnoxia entregue ao contnuo suceder. A pulso se entrega
como pulso ao que se sucede, no como a algo diferente dela mesma, mas corno a algo
que dela faz parte. Aquilo que a pulso procura ex-pulsar submete-se a si mesmo suces-
so temporal. O mltiplo no lhe estranho, ela a multiplicidade mesma.
Na pulso mesma reside a tendncia para a ultrapassagem de ... para ... Esta ten-
dncia para a ultrapassagem o que Leibniz entende por appetitus. Appetitus e perceptio
424 HEIDEGGER
ERNILDO STEIN
A TESE DE KANT SOBRE O SER
Pelo ttulo pode-se ver que esta exposio enfocar um aspecto doutrinal da filoso-
fia de Kant. Ela nos instruir sobre uma filosofia do passado. Isto poder ter sua utilida-
de; mas, sem dvida, apenas no caso de ainda continuar desperto o sentido para o que
nos vem pela tradio.
Precisamente isto acontece muito raramente e ainda menos ali onde est em jogo a
tradio daquilo que, embora desde a Antiguidade e constantemente e em qualquer situa-
o toque de perto a ns homens, contudo no recebe, de nossa parte, a ateno que
propriamente merece.
Ns o designamos pela palavra "ser". O vocbulo designa aquilo que visamos
quando dizemos "" e "tem sido" e "est por vir". Tudo, tanto o que nos alcana como
aquilo que alcanamos atravessa o "isto " pronunciado ou impronunciado. Em parte al-
guma e jamais podemos fugir ao fato de que a situao esta. O "" nos permanece
familiar em todas as suas derivaes manifestas e ocultas. E, todavia, to logo esta pala-
vra "ser" fira nosso ouvido, juramos que com ela nada podemos representar, nem algo
pensar.
Esta apressada constatao est provavelmente certa; ela justifica a irritao que
provoca o discurso - para no dizer a tagarelice -- em torno do "ser", irritao que
cresce at se transformar o "ser" em algo ridculo. Se no se medita sobre o ser, se no
nos encontramos num caminho que conduza o pensamento at l, arvoramo-nos em ins-
tncia que decide se a palavra "ser" fala ou no fala. So raros os que se escandalizam
diante do fato de a ausncia de pensamento estar sendo guindada a princpio.
Levados ao extremo de, aquilo que um dia foi a fonte de nossa existncia historial,
assorear-se no escrnio, parece aconselhvel aprofundarmo-nos numa simples considera-
ao.
No se pode pensar nada com a palavra "ser". E o que dizer da conjetura de que
a tarefa dos pensadores lanar alguma luz sobre o que significa "ser"?
Caso um tal esclarecimento parea bastante difcil, at para os pensadores, poderia
ao menos continuar sua tarefa o seguinte: mostrar sempre de novo o ser como o que dev.e
ser pensado, e mostrar isto de tal modo que o deve ser pensado permanea enquanto tal
no horizonte do homem.
Seguimos a conjetura aventada e pomo-nos escuta de um pensador para ouvirmos
o que nos tem a dizer sobre o ser. Pomo-nos escuta de Kant.
Por que passamos a ouvir Kant para aprender algo sobre o ser? Fazemo-lo por duas
razes. De um lado, Kant deu, na discusso do ser, um passo de grandes conseqncias.
De outro, este passo de Kant resulta da fidelidade tradio. isto quer, ao mesmo tempo.
dizer, num confronto com ela, atravs do qual se mostrou numa nova luz. Ambas as
434 HEIDEGGER
razes para uma referncia tese de Kant sobre o ser fornecem-nos um impulso para a
reflexo.
Segundo a forma que tomou em sua obra principal, a Crtica da Razo Pura (1781),
a tese de Kant sobre o ser se enuncia assim:
A tese de Kant sobre o ser parece-nos, em face do que hoje , do que nos urge como
ente e como possvel no-ser, nos ameaa, abstrata, pobre e sem brilho. Pois, entremen-
tes, tambm se exigiu da filosofia que ela no mais se reduza a interpretar o mundo e a
vagar em abstratas especulaes; mas que importa transformar praticamente o mundo.
Entretanto, a transformao do mundo assim visada exige, antes, que o pensamento se
transforme, assim como j se oculta uma modificao do pensamento atrs da aludida
exigncia. (Cf. Karl Marx, Ideologia Alem: Teses Sobre Feuerbach ad Feuerbach, 11:
"Os filsofos somente interpretaram de diversas maneiras o mundo; o que importaria
transform-lo ':)
De que maneira, entretanto, deve o pensamento transformar-se, se no se pe a
caminho para o que deve ser pensado? Mas o fato de agora o ser se oferecer como o que
deve ser pensado no nem uma pressuposio qualquer, nem uma inveno arbitrria.
o veredicto de uma tradio que ainda hoje nos determina, e isto de maneira muito
mais decisiva do que se quereria reconhecer.
A tese de Kant provoca somente ento estranheza, parecendo abstrata e pobre, se
desistimos de meditar sobre aquilo que Kant diz para sua elucidao e sobre o modo
como o diz. Devemos seguir o caminho de sua elucidao da tese. Devemos representar-
nos claramente o mbito em que seu caminho se desdobra. Devemos refletir sobre o
lugar a que pertence aquilo que Kant analisa sob o nome de "ser".
Se tentarmos tal coisa, mostrar-se- algo estranho. Kant elucida sua tese apenas
episodicamente, isto , na forma de suplementos, notas, apndices, apostos a suas obras
principais. A tese no estabelecida, como conviria a seu contedo e seu alcance, como
a proposio bsica de um sistema, e no desenvolvida num sistema. O que parece uma
lacuna possui, entretanto, a vantagem de permitir que nas diversas passagens episdicas
se exprima cada vez uma originria reflexo de Kant, que jamais pretende ser a
derradeira.
A este modo de Kant proceder deve se adaptar a exposio que segue. Orienta-a a
inteno de mostrar como, atravs de todas as elucidaes de Kant, isto , atravs de sua
postura filosfica fundamental, em qualquer parte de sua obra, se filtra o pensamento
axial de sua tese; isto acontece, apesar de ela no formar o arcabouo propriamente
construdo da arquitetnica de sua obra. Por isso, o procedimento aqui seguido visa a
contrapor de tal maneira os textos apropriados que estes se eliminem reciprocamente e
que atravs disto chegue a manifestar-se aquilo que no pode ser expresso de maneira
imediata.
Somente se pensarmos detidamente, desta maneira, a tese de Kant, chegaremos ao
conhecimento de toda a dificuldade que a questo do ser oferece, mas experimentaremos
tambm o carter decisivo e a problematicidade da questo do ser. Ento a reflexo
descobrir se, e em que medida, o pensamento atual est habilitado a tentar uma discus-
so com a tese de Kant, isto quer dizer, a perguntar em que se fundamenta a tese de Kant
A TESE DE KANT SOBRE O SER 435
sobre o ser, em que sentido permite uma fundamentao, de que maneira pode ser eluci-
dada. As tarefas do pensamento, assim definidas, ultrapassam as possibilidades de uma
primeira tentativa para expor, e ultrapassam tambm as capacidades do pensamento que
ainda hoje corrente. Tanto mais urgente permanece, ento, uma reflexo que se pe
escuta da tradio, que no seja arrastada pelo passado, mas que medite o presente.
Repitamos a tese de Kant:
tesco com o que ns chamamos fundamento. Positio, ponere, quer dizer: pr, colocar,
dispor, estar disposto, estar pro-posto, estar posto como fundamento.
No transcurso da histria do questionamento ontoteolgico impe-se a tarefa de
mostrar no apenas o que o ente supremo, mas de demonstrar que este mais ente de
todos os entes , que Deus existe. As palavras existncia, ser-a, atualidade, designam um
modo do ser.
No ano de 1763, quase dois anos antes do aparecimento da Crtica da Razo Pura,
Kant publicou um trabalho sob o ttulo "O nico argumento possvel para uma demons-
trao da existncia de Deus". A "primeira considerao" deste trabalho trata dos con-
ceitos de "existncia em geral" e de "ser em geral". Encontramos j aqui a tese kantiana
sobre o ser e tambm j sob a dupla forma do enunciado negativo e afirmativo. A formu-
lao dos dois enunciados concorda, de certa maneira, com aquela da Crtica da Razo
Pura. O enunciado negativo no escrito pr-crtico se formula: "A existncia no absolu-
tamente um predicado ou uma determinao de qualquer objeto que seja". O enunciado
afirmativo diz: "O conceito de posio perfeitamente simples e uma e mesma coisa
com o ser em geral".
At aqui, e primeiramente, trntava-se de indicar que Kant exprime sua tese no con-
texto das questes da teologia filosfica. Esta domina a totalidade da questo do ser do
ente, quer dizer, a metafisica em seu contedo nuclear. Disto nasce a evidncia de que a
tese sobre o ser no um aspecto doutrinal acessrio e abstrato, como a formulao,
primeira vista, facilmente nos poderia fazer crer.
Na C1itica da Razo Pura, o enunciado negativo e restritivo introduzido por
"evidentemente". Portanto, aquilo que aqui se enuncia deve, ao mesmo tempo, ser claro
para cada um: Ser - "evidentemente' no um predicado real. Para ns, homens de
hoje, esta proposio no , de maneira alguma, imediatamente inteligvel. Ser - isto
significa evidentemente realidade. Como pode o ser no ter, ento, o valor de um predi-
cado real? que para Kant a palavra "real" guarda ainda sua significao original. Ele
indica aquilo que pertence a uma res, a uma coisa, ao contedo positivo de uma coisa.
Um predicado real, uma determinao que pertence coisa, , por exemplo, o predicado
"pesada" relacionado com a pedra, pouco importando se a pedra existe efetivamente ou
no. Assim, na tese kantiana, "real" no significa aquilo que hoje entendemos quando
falamos de poltica realista, que leva em conta os fatos, do que existe efetivamente. Reali-
dade no significa para Kant o que existe efetivamente, mas aquilo que pertence coisa.
Um predicado real o que faz parte do contedo positivo de uma coisa e que lhe pode
ser atribudo. O contedo objetivo de uma coisa ns no-lo representamos em seu concei-
to. Podemos representar-nos o que designam as palavras "uma pedra" sem que isto, que
representado, tenha que existir como uma pedra que jaz precisamente nossa frente.
Existncia, ser-a, isto , diz a tese de Kant, "evidentemente no um predicado real". A
evidncia deste enunciado negativo se impe to logo pensamos a palavra "real" no sen-
tido de Kant. Ser no nada real.
Entretanto, como isto possvel? Pois dizemos de uma pedra que jaz aqui na nossa
frente: ela, esta pedra aqui, existe. Esta pedra . De acordo com isto, o "", isto quer
dizer, o ser como predicado, se mostra tambm em sua evidncia, no enunciado que faze-
mos desta pedra, enquanto sujeito da proposio. Kant tambm no nega, na Cdtica da
Razo Pura, que a existncia enunciada de uma pedra que jaz, aqui, na nossa frente seja
um predicado. O "", porm, no um predicado "real". De que , ento, predicado o
""? Evidentemente da pedra que jaz aqui. E o que diz este "" na proposio "a pedra
aqui "? Ela nada diz daquilo que a pedra enquanto pedra; diz, todavia, que aqui aqui-
A TESE DE KANT SOBRE O SER 437
lo que pertence pedra existe, . Que significa, ento, ser? Kant responde com e enun-
ciado afirmativo de sua tese: Ser " somente a posio de uma coisa, ou de certas deter-
minaes em si mesmas".
Os termos deste enunciado conduzem facilmente opinio de que ser enquanto "so-
mente posio de uma coisa" concerne coisa, no sentido de coisa em si e para si. Este
sentido a tese, na medida em que expressa na Critica da Razo Pura, no pode ter.
Coisa designa aqui algo assim como: algo, que Kant tambm substitui por: objeto. Kant
tambm no diz que a posio se refere coisa com todas as suas determinaes reais;
Kant diz, pelo contrrio: somente a posio da coisa ou de certas determinaes em si
mesmas. Deixamos, por ora, aberta a questo de como deve ser explicada a expresso
"ou de certas determinaes".
A frmula "em si mesmas" no significa: alguma coisa "em si", alguma coisa que
existe sem relao com uma conscincia. O "em si mesmas" deve ser compreendido
como a determinao oposta quilo que representado enquanto isto ou aquilo com rela-
o outra coisa. Este sentido de "em si mesmas" j se exprime pelo fato de Kant dizer:
Ser " somente a posio". Este "somente" parece, primeira vista, soar como uma
restrio, como se a posio fosse alguma coisa inferior em contraposio com a realida-
de, isto , o contedo objetivo de uma coisa. O "somente" indica, entretanto, que o ser
no se deixa explicar a partir daquilo que um ente , em cada situao concreta, isto para
Kant quer dizer a partir do conceito. O "somente" no restringe, mas remete o ser a uma
dimenso que a nica a partir da qual ele pode ser caracterizado em sua pureza. "So-
mente" designa aqui: puramente. "Ser" e "" pertencem, com todas as suas significaes
e modalidades, a uma dimenso prpria. Nada so do que tenha carter de coisa, quer
dizer, para Kant: nada objetivo.
preciso, por conseguinte, para pensar "ser" e "", um outro olhar, um olhar que
no se deixe guiar pela pura considerao das coisas e do contar com elas. Podemos
explorar e examinar, sob todos os ngulos, uma pedra que se encontra na nossa frente e
que obviamente "",jamais nela descobriremos o "". E. todavia. esta pedra .
De onde recebe "ser" o sentido de "somente posio"? A partir de que e como se
define o sentido da expresso "pura posio"? No permanece a explicao de ser como
posio estranha, arbitrria at, de qualquer maneira plurvoca e, por isso, imprecisa?
Kant mesmo traduz, verdade, "posio" por Setzung. Mas isto no ajuda para se
avanar muito. Pois nossa palavra alem Setzung dotada da mesma plurivocidade que
a latina positio. Esta pode. significar: 1) Pr, colocar. dispor enquanto ao. 2) O que foi
posto, o tema. 3) O carter de ser posto, a situao, a constituio. Mas podemos
compreender posio e Setzung de tal modo que univocamente se entenda: o pr de algo
que posto enquanto tal em seu carter de ser posto.
Em cada caso, a caracterizao de ser como posio manifesta uma plurivocidade
que no acidental e que no nos desconhecida. Pois ela tem seu papel importante no
mbito daquele pr e colocar que conhecemos como representar. O vocabulrio tcnico
da filosofia dispe para isto de dois termos especficos: representar percipere, perceptio,
tomar algo a si, compreender; e: repraesentare, opor-se algo, presentear-se algo. No ato
de representao representamo-nos algo de tal modo que se oponha a ns enquanto
assim colocado (posto), enquanto objeto. Ser como posio indica a qualidade de ser
posto de alguma coisa na representao que pe. Conforme o que e o modo como se pe
a posio, a Setzung, o ser, possui um outro sentido. por isso que Kant, depois de esta-
belecer sua tese sobre o ser, prossegue no texto da Cn'tica da Razo Pura:
438 HEIDEGGER
"No uso lgico, ele [a saber, o ser enquanto "somente a posio"] simples-
mente a cpula de um juzo. A proposio: Deus todo-poderoso contm
dois conceitos que possuem seus objetos: Deus e a onipotncia; a palavrinha
no , ainda por cima, um predicado, mas somente aquilo que pe o predi-
cado [acusativo] em relao com o sujeito".
Numa nota no datada (WW, Edio da Academia XVIII, nmero 6276), Kant re-
sume brevemente o que at aqui foi exposto:
Ora bem, a questo de saber se e como e em que limites a proposio "Deus "
como posio absoluta possvel torna-se e permanece para Kant o aguilho secreto que
impulsiona todo o pensamento da Crtica da Razo Pura e anima as principais obras que
seguem. O fato de se falar do ser como posio absoluta, diferena da posio relativa
enquanto posio lgica, faz crer, verdade, que nenhuma relao posta na posio
absoluta. Mas quando, no caso da posio absoluta, se trata do uso objetivo do ser, no
sentido de existncia e de ser-a, ento torna-se no somente claro para a reflexo crtica,
mas a ela se impe a evidncia de que, tambm aqui, posta uma relao e que, por
conseguinte, o "" recebe o carter de um predicado, ainda que no o de um predicado
real.
No uso lgico do ser (a e b) trata-se da posio da relao entre o sujeito da propo-
A TESE DE KANT SOBRE O SER 439
"To simples este conceito [de ser-a e existncia], que nada se pode dizer
para explicit-lo".
Kant acrescenta mesmo uma nota fundamental, que nos d uma idia de sua posi-
o filosfica, antes da poca da apario da Crtica da Razo Pura:
Mas exatamente tal elucidao tentada por Kant mesmo ainda em sua fase pr-
crtica. Entrementes convenceu-se que a relao do ser e dos modos de ser unicamente
440 HEIDEGGER
Sem essa intuio falta aos conceitos de ser a relao com um objeto, e somente
esta relao pode conferir-lhes aquilo que Kant chama "significao". verdade que
"ser" designa "posio", carter de ser posto no ato de pr que realizado pelo pensa-
mento como operao do entendimento. Mas esta posio somente capaz de pr algo
como objeto, quer dizer, como o-posto, e desta maneira faz-lo surgir em seu estado de
ob-stante, se posio dado, atravs da intuio sensvel, isto , atravs da afeco dos
sentidos, algo que possa ser posto. Somente a posio como posio de uma afeco
permite-nos compreender o que significa, para Kant, ser do ente.
Entretanto, atravs da afeco por nossos sentidos -nos dada uma multiplicidade
de representaes. Para que o dado "confuso", a torrente desta multiplicidade, chegue a
se estabilizar e mostrar se possa um ob-stante, o mltiplo deve ser ordenado, quer dizer,
ligado. Esta ligao, todavia, jamais pode originar-se dos sentidos. Segundo Kant, todo
o ligar se origina daquela faculdade de representao que se chama entendimento. Sua
caracterstica fundamental o ato de pr enquanto sntese. A posio tem o carter da
proposio, isto , do juzo, atravs do qual algo pro-posto enquanto algo, pelo qual um
predicado atribudo a um sujeito pelo "". Mas, na medida em que a posio como
proposio se refere necessariamente ao dado na afeco, para que um objeto possa ser
conhecido por ns. o "" como cpula adquire, a partir disto, um sentido novo. Somente
na segunda edio da Crtica da Razo Pura( 19, B 140 ss.) Kant determina este senti-
do novo. Escreve no incio do 19:
No que se refere a esta explicao, Kant descobre "que aqui permanece indetermi-
nado aquilo em que consiste esta relao". Kant experimenta, na explicao lgica do
juzo, a ausncia daquilo em que se fundamenta a posio do predicado e sua relao
com o sujeito. O sujeito gramatical da proposio somente pode exercer o ato de fundar
enquanto objeto para o eu-sujeito que conhece. por isso que Kant prossegue, abrindo
um novo pargrafo no texto:
__.
A TESE DE KANT SOBRE O SER 441
Enquanto Kant, em seu trabalho pr-crtico, se satisfaz ainda em dizer que ser e
existncia, em sua relao com as capacidades do entendimento, no podem ser explica-
das mais amplamente, chegou, pela Crtica da Razo Pura, no apenas a clarificar mais
especialmente os poderes do entendimento, mas, ainda, a explicar a prpria possibilidade
do entendimento a partir de seu fundamento. Neste retorno ao lugar da possibilidade do
442 HEIDEGGER
nelas se recorda a relao com o eu-sujeito pensante, relao da qual o ser como posio
recebe seu sentido.
Enquanto a essncia da posio se determina a partir da apercepo transcendental
vinculada com a afeco sensvel, como proposio objetiva, como expresso objetiva de
um juzo, necessrio tambm que o "ponto mais elevado" do pensamento, isto , a
possibilidade mesma do entendimento, se revele como o fundamento de todas as proposi-
es possveis e. por conseguinte, como o prncpofundamental. Assim se enuncia o ttu-
lo do pargrafo 17(8136):
que este algo "concorda com" aquilo que se d nas formas puras 'da intuio, isto , o es-
pao e o tempo, e, enquanto se d assim, se deixa determinar segundo as formas puras do
pensamento, isto , das categorias.
O ser-atual de um objeto o carter de ser posto de algo possvel de tal maneira que
o que posto esteja em conexo com a percepo sensvel.
O ser-necessrio de um objeto o carter de ser posto daquilo que encadeado com
o atual, segundo as leis gerais da experincia.
Em cada uma das modalidades impera a posio de uma relao, cada vez diferen-
te, com aquilo que exigido para a existncia de um objeto da experincia. As modali-
dades so os predicados de uma relao do que, em cada situao, deve ser exigido. Os
princpios que explicam estes predicados exigem aquilo que deve ser exigido para a exis-
tncia possvel, atual, necessria de um objeto. Por isso, Kant justifica estes princpios
com o nome de postulados. So postulados do pensamento em dois sentidos: de um lado,
as exigncias procedem do entendimento como da fonte do pensamento e, de outro lado,
valem igualmente para o pensamento, na medida em que, pelas suas categorias, ele deve
determinar o dado da experincia para ser um objeto que existe. "Postulado do pensa-
mento emprico em geral" - o "em geral" significa: certo que os postulados so ape-
nas nomeados na tbua dos princpios do entendimento, em quarto e ltimo lugar; entre-
tanto, segundo a ordem, so os primeiros, na medida em que todo juzo relativo a um
objeto da experincia deve, desde o comeo, estar de acordo om eles.
Os postulados designam o que, desde o princpio, exigido para a posio de um
objeto da experincia. Os postulados designam o ser que pertence existncia do ente,
que, enquanto fenmeno, objeto para o sujeito que conhece. A tese de Kant sobre o ser
sempre vlida: ele "somente a posio". Agora, porm, a tese mostra seu contedo
mais rico. O "somente" significa a pura relao da objetividade do objeto com a subjeti-
vidade do conhecimento humano. Possibrlidade, atualidade, necessidade, so as pQsies
dos diferentes modos desta relao. Os diferentes caracteres do ser-posto so determi-
nados a partir da fonte da posio originria. Esta a pura sntese da apercepo trans-
cendental. o ato originrio do pensamento que conhece.
Pelo fato de o ser no ser um predicado real, sendo todavia predicado, atribuindo-
se, portanto, ao objeto, sem, contud, poder-se tir-lo do contedo positivo do objeto,
no podem os predicados ontolgicos da modalidade originar-se do objeto; muito antes,
enquanto modalidades da posio, eles recebem sua origem da subjetividade. A posio
e suas modalidades de existncia se determinam a partir do pensamento. Sem ser explici-
tamente formulada, ressoa, pois, na tese de Kant sobre o ser, a palavra-guia: Ser e
Pensar.
Na "elucidao" dos postulados e, j antes, na exposio da tbua das categorias,
Kant distingue possibilidade, atualidade e necessidade, sem que se diga ou mesmo se per-
gunte em que reside o fundamento da distino entre ser-possvel e ser-atual.
Somente dez anos aps a Crtica da Razo Pura, pelo fim de sua terceira obra prin-
cipal, a Crtica do Juzo (1790), Kant torna a referir-se a esta questo, e isto novamente
"de forma incidental", no 76, que se intitula "Nota". E Schelling, aos vinte anos de
idade, termina a nota final de sua primeira obra, que apareceu cinco anos mais tarde, em
A TESE DE KANT SOBRE O SER
Pelo fato de ser verdade o que Schelling aqui diz, no devemos pretender repensar,
de modo adequado, este 76. Permanecendo fiis inteno desta exposio, trata-se
somente de fazer ver como Kant continua a manter, na afirmao sobre o ser a que nos
referimos, a determinao-chave do ser como posio. Kant diz:
"Ora bem, toda a nossa distino, entre aquilo que simplesmente possvel e
aquilo que atual, repouss sobre o fato de o primeiro significar somente a
posio da representao de uma coisa relativamente a nosso conceito e em
geral nossa capacidade de pensar, mas o ltimo [o atual] posio da coisa
em si mesma (fora deste conceito)".
"Para que um conhecimento possa ter uma realidade objetiva, isto , para que
possa relacionar-se com um objeto e ter em si sentido e significao, necessrio
que o objeto possa, de alguma maneira, ser dado" (A 155, B 194).
"Estes so dois conceitos que servem de fundamento para toda outra reflexo,
to inseparavelmente esto ligados com todo o uso do entendimento. O pri-
meiro [a matria) significa o determinvel em geral, o segundo sua determina-
o" (A 266, B 322).
tra-se a reflexo atravs da qual Kant elucida e situa pela discusso o ser como posio,
como uma reflexo sobre a reflexo, como um pensamento do pensamento relacionado
com a percepo. A palavra-guia, j diversas vezes citada, que Kant utiliza para a inter-
pretao do ser, a expresso ser e pensar, fala agora mais claramente em seu contedo
mais rico. Entretanto, a expresso-guia permanece ainda obscura em seu sentido decisi-
vo. Pois em sua verso formalista se oculta uma ambigidade que deve ser meditada se
a expresso ser e pensar no se deve limitar caracterizao da interpretao kantiana
do ser, mas designar o trao fundamental que forma o movimento de toda a histria da
filosofia.
Antes de, na concluso, elucidarmos a referida ambigidade, parece de utilidade
mostrar, ainda que em grandes traos, como fala, na interpretao kantiana do ser como
posio, a tradio. J do primeiro texto de Kant, o Argumento, podemos concluir que
a explicao do ser se efetua em funo da existncia, pelo fato de ser tema de considera-
o a "demonstrao do ser-a (existncia) de Deus". Em vez de "ser-a" diz a linguagem
metafisica tambm existncia. Basta lembrar esta palavra para reconhecer no sistere, no
pr, a ligao com o ponere e a posio; a exsistentia o actus, quo res sstitur, ponitur
extra statum possibilitatis (cf. Heidegger, Nietzsche, 1961, vai. II, pg. 417 e ss.).
claro que devemos renunciar, em tais remisses, relao instrumental e calcula-
dora, que impera por tudo, com a linguagem, e permanecer abertos para a fora e ampli-
tude de seu dizer que, desde muito longe, nos acena com seu domnio secreto.
Na lngua espanhola a palavra que expressa o ser : ser. Ela se deriva de sedere,
estar sentado. Ns falamos de "residncia". Assim se denomina o lugar onde se demora
o habitar. Demorar-se estar presente junto a ... Holderlin quereria "cantar as sedes
dos prncipes e de seus antepassados". Seria, porm, insensato pensar que a questo do
ser poderia ser formulada atravs de uma anlise de significaes de palavras. Entre-
tanto, a escuta do dizer da linguagem pode dar-nos, tomadas as precaues necessrias
e quando atentos ao contexto do dizer, acenos que apontam para a tarefa do pensamento.
O pensamento deve perguntar: Que quer, pois, dizer ser quando se deixa determinar
a partir da representao enquanto posio e carter de ser posto? Esta uma questo
que Kant no mais levanta, tampouco as que seguem: Que significa, pois, ser se a posi-
o se deixa determinar pela estrutura de forma e matria? Que significa, pois, ser se, na
determinao do carter de ser posto do que foi posto, esta surge na dupla forma do
sujeito, de um lado, como sujeito da proposio em sua relao com o predicado, de
outro lado, como eu-sujeito na relao com o objeto? Que resignifica, pois, ser se se
torna determinvel a partir do subiectum, isto , do hypokimenon no grego? Este aqui-
lo que, j de antemo, jaz a, porque o constantemente presente. Pelo fato de ser ser
determinado como presena, o ente o que jaz hypokimenon. A relao com o ente con-
siste no deixar que algo esteja a enquanto maneira de pr, ponere. Nisto est implcita
a possibilidade do pr e colocar. Porque ser se ilumina como presena, pode a relao
com o ente, enquanto o que est a, transformar-se em pr, colocar, representar e propor.
Na tese de Kant sobre o ser como posio, mas tambm em todo o mbito de sua inter-
pretao do ser do ente como objetividade e realidade objetiva, impera o ser no sentido
da presena que dura.
Ser enquanto somente posio se desdobra nas modalidades. O ente posto em sua
posio atravs da proposio dependente da afeco sensvel, quer dizer, atravs da
fora emprica do juzo no uso emprico do entendimento, no pensamento assim determi-
nado. Ser elucidado e discutido a partir de sua relao com o pensamento. Elucidao
e discusso possuem o carter de reflexo, que se manifesta como pensamento sobre o
pensamento.
A TESE DE KANT SOBRE O SER 451
pensamento "lgica". Se, entretanto, o pensamento, em sua relao com o ser, amb-
guo: enquanto antecipao de horizonte e enquanto rganon, no permanecer, na pers-
pectiva citada, tambm ambguo aquilo que se chama "lgica"? No se torna absoluta-
mente problemtica "a lgica" enquanto rganon e enquanto horizonte da interpretao
do ser? Uma considerao que procura dirigir-se nesta direo no se volta contra a lgi-
ca, mas se aplica a determinar de maneira suficiente o lgos, isto , aquele dizer no qual
o ser se manifesta na linguagem como o mais digno de ser pensado.
No invisvel "" se oculta tudo o que deve ser pensado no ser. Entretanto, o mais
digno de ser pensado permanece o fato de ns perguntarmos se "ser", se o "" mesmo
pode ser, ou se ser jamais "", permanecendo, contudo, verdadeiro: D-se ser.
Todavia, donde vem, a quem se dirige o dom no "d-se", e segundo que maneira de
dar?
Ser no pode ser. Se fosse (ser), no mais permaneceria ser, mas seria um ente.
Todavia, no diz aquele pensador que pela primeira vez pensou o ser, no diz
Parmnides (Frg. 6): esn' gar eihai, ", a saber, ser" - "presenta-se, a saber, presentar-
se"? Se considerarmos que, no ehai, presentar-se, fala propriamente a altheia, o desve-
lar-se, ento o presentar-se, que no est, se diz enfaticamente do efnai, significa: o presen-
tificar. Ser - propriamente: o que d presena.
Anuncia-se aqui ser, que , como algum ente ou . o ser. to aut (o mesmo),
kath 'haut, dito aqui, com relao a si mesmo (autopredicado)? Fala aqui uma tautolo-
gia? Certamente. Contudo, a tautologia no sentido supremo, que, em vez de nada dizer,
diz tudo: aquilo que d a medida para o pensamento, tanto nos primrdios como no futu-
ro. por isso que esta tautologia oculta em si o no-dito, o no-pensado, o no-pergun-
tado. "Presenta-se, a saber, presentar-se."
Que significa aqui presena? Presente? A partir de onde se determina tal coisa?
Mostra-se, ou mais exatamente: oculta-se aqui um carter impensado de uma velada
essncia de tempo?
Se a situao esta, a questo do ser deve subordinar-se expresso: Ser e Tempo.
E a tese de Kant sobre o ser como pura posio?
Se o carter de ser posto, a objetividade se mostra como derivao de presena,
ento a tese de Kant sobre o ser pertence quilo que permanece impensado em toda a
metafisica.
A expresso-guia da determinao metafisica do ser do ente, "ser e pensar", no
suficiente nem mesmo para lanar a questo do ser, e muito menos para encontrar uma
resposta.
Entretanto, a tese de Kant sobre o ser como pura posio permanece o cimo, de
onde o olhar alcana para trs at a determinao do ser como hypokisthai, e mostra
para a frente, at dentro da interpretao especulativo-dialtica do ser como conceito
absoluto.
A TESE DE KANT
SOBRE O SER*
ERNILDO STEIN
A TESE DE KANT SOBRE O SER
Pelo ttulo pode-se ver que esta exposio enfocar um aspecto doutrinal da filoso-
fia de Kant. Ela nos instruir sobre uma filosofia do passado. Isto poder ter sua utilida-
de; mas, sem dvida, apenas no caso de ainda continuar desperto o sentido para o que
nos vem pela tradio.
Precisamente isto acontece muito raramente e ainda menos ali onde est em jogo a
tradio daquilo que, embora desde a Antiguidade e constantemente e em qualquer situa-
o toque de perto a ns homens, contudo no recebe, de nossa parte, a ateno que
propriamente merece.
Ns o designamos pela palavra "ser". O vocbulo designa aquilo que visamos
quando dizemos "" e "tem sido" e "est por vir". Tudo, tanto o que nos alcana como
aquilo que alcanamos atravessa o "isto " pronunciado ou impronunciado. Em parte al-
guma e jamais podemos fugir ao fato de que a situao esta. O "" nos permanece
familiar em todas as suas derivaes manifestas e ocultas. E, todavia, to logo esta pala-
vra "ser" fira nosso ouvido, juramos que com ela nada podemos representar, nem algo
pensar.
Esta apressada constatao est provavelmente certa; ela justifica a irritao que
provoca o discurso - para no dizer a tagarelice -- em torno do "ser", irritao que
cresce at se transformar o "ser" em algo ridculo. Se no se medita sobre o ser, se no
nos encontramos num caminho que conduza o pensamento at l, arvoramo-nos em ins-
tncia que decide se a palavra "ser" fala ou no fala. So raros os que se escandalizam
diante do fato de a ausncia de pensamento estar sendo guindada a princpio.
Levados ao extremo de, aquilo que um dia foi a fonte de nossa existncia historial,
assorear-se no escrnio, parece aconselhvel aprofundarmo-nos numa simples considera-
ao.
No se pode pensar nada com a palavra "ser". E o que dizer da conjetura de que
a tarefa dos pensadores lanar alguma luz sobre o que significa "ser"?
Caso um tal esclarecimento parea bastante difcil, at para os pensadores, poderia
ao menos continuar sua tarefa o seguinte: mostrar sempre de novo o ser como o que dev.e
ser pensado, e mostrar isto de tal modo que o deve ser pensado permanea enquanto tal
no horizonte do homem.
Seguimos a conjetura aventada e pomo-nos escuta de um pensador para ouvirmos
o que nos tem a dizer sobre o ser. Pomo-nos escuta de Kant.
Por que passamos a ouvir Kant para aprender algo sobre o ser? Fazemo-lo por duas
razes. De um lado, Kant deu, na discusso do ser, um passo de grandes conseqncias.
De outro, este passo de Kant resulta da fidelidade tradio. isto quer, ao mesmo tempo.
dizer, num confronto com ela, atravs do qual se mostrou numa nova luz. Ambas as
434 HEIDEGGER
razes para uma referncia tese de Kant sobre o ser fornecem-nos um impulso para a
reflexo.
Segundo a forma que tomou em sua obra principal, a Crtica da Razo Pura (1781),
a tese de Kant sobre o ser se enuncia assim:
A tese de Kant sobre o ser parece-nos, em face do que hoje , do que nos urge como
ente e como possvel no-ser, nos ameaa, abstrata, pobre e sem brilho. Pois, entremen-
tes, tambm se exigiu da filosofia que ela no mais se reduza a interpretar o mundo e a
vagar em abstratas especulaes; mas que importa transformar praticamente o mundo.
Entretanto, a transformao do mundo assim visada exige, antes, que o pensamento se
transforme, assim como j se oculta uma modificao do pensamento atrs da aludida
exigncia. (Cf. Karl Marx, Ideologia Alem: Teses Sobre Feuerbach ad Feuerbach, 11:
"Os filsofos somente interpretaram de diversas maneiras o mundo; o que importaria
transform-lo ':)
De que maneira, entretanto, deve o pensamento transformar-se, se no se pe a
caminho para o que deve ser pensado? Mas o fato de agora o ser se oferecer como o que
deve ser pensado no nem uma pressuposio qualquer, nem uma inveno arbitrria.
o veredicto de uma tradio que ainda hoje nos determina, e isto de maneira muito
mais decisiva do que se quereria reconhecer.
A tese de Kant provoca somente ento estranheza, parecendo abstrata e pobre, se
desistimos de meditar sobre aquilo que Kant diz para sua elucidao e sobre o modo
como o diz. Devemos seguir o caminho de sua elucidao da tese. Devemos representar-
nos claramente o mbito em que seu caminho se desdobra. Devemos refletir sobre o
lugar a que pertence aquilo que Kant analisa sob o nome de "ser".
Se tentarmos tal coisa, mostrar-se- algo estranho. Kant elucida sua tese apenas
episodicamente, isto , na forma de suplementos, notas, apndices, apostos a suas obras
principais. A tese no estabelecida, como conviria a seu contedo e seu alcance, como
a proposio bsica de um sistema, e no desenvolvida num sistema. O que parece uma
lacuna possui, entretanto, a vantagem de permitir que nas diversas passagens episdicas
se exprima cada vez uma originria reflexo de Kant, que jamais pretende ser a
derradeira.
A este modo de Kant proceder deve se adaptar a exposio que segue. Orienta-a a
inteno de mostrar como, atravs de todas as elucidaes de Kant, isto , atravs de sua
postura filosfica fundamental, em qualquer parte de sua obra, se filtra o pensamento
axial de sua tese; isto acontece, apesar de ela no formar o arcabouo propriamente
construdo da arquitetnica de sua obra. Por isso, o procedimento aqui seguido visa a
contrapor de tal maneira os textos apropriados que estes se eliminem reciprocamente e
que atravs disto chegue a manifestar-se aquilo que no pode ser expresso de maneira
imediata.
Somente se pensarmos detidamente, desta maneira, a tese de Kant, chegaremos ao
conhecimento de toda a dificuldade que a questo do ser oferece, mas experimentaremos
tambm o carter decisivo e a problematicidade da questo do ser. Ento a reflexo
descobrir se, e em que medida, o pensamento atual est habilitado a tentar uma discus-
so com a tese de Kant, isto quer dizer, a perguntar em que se fundamenta a tese de Kant
A TESE DE KANT SOBRE O SER 435
sobre o ser, em que sentido permite uma fundamentao, de que maneira pode ser eluci-
dada. As tarefas do pensamento, assim definidas, ultrapassam as possibilidades de uma
primeira tentativa para expor, e ultrapassam tambm as capacidades do pensamento que
ainda hoje corrente. Tanto mais urgente permanece, ento, uma reflexo que se pe
escuta da tradio, que no seja arrastada pelo passado, mas que medite o presente.
Repitamos a tese de Kant:
tesco com o que ns chamamos fundamento. Positio, ponere, quer dizer: pr, colocar,
dispor, estar disposto, estar pro-posto, estar posto como fundamento.
No transcurso da histria do questionamento ontoteolgico impe-se a tarefa de
mostrar no apenas o que o ente supremo, mas de demonstrar que este mais ente de
todos os entes , que Deus existe. As palavras existncia, ser-a, atualidade, designam um
modo do ser.
No ano de 1763, quase dois anos antes do aparecimento da Crtica da Razo Pura,
Kant publicou um trabalho sob o ttulo "O nico argumento possvel para uma demons-
trao da existncia de Deus". A "primeira considerao" deste trabalho trata dos con-
ceitos de "existncia em geral" e de "ser em geral". Encontramos j aqui a tese kantiana
sobre o ser e tambm j sob a dupla forma do enunciado negativo e afirmativo. A formu-
lao dos dois enunciados concorda, de certa maneira, com aquela da Crtica da Razo
Pura. O enunciado negativo no escrito pr-crtico se formula: "A existncia no absolu-
tamente um predicado ou uma determinao de qualquer objeto que seja". O enunciado
afirmativo diz: "O conceito de posio perfeitamente simples e uma e mesma coisa
com o ser em geral".
At aqui, e primeiramente, trntava-se de indicar que Kant exprime sua tese no con-
texto das questes da teologia filosfica. Esta domina a totalidade da questo do ser do
ente, quer dizer, a metafisica em seu contedo nuclear. Disto nasce a evidncia de que a
tese sobre o ser no um aspecto doutrinal acessrio e abstrato, como a formulao,
primeira vista, facilmente nos poderia fazer crer.
Na C1itica da Razo Pura, o enunciado negativo e restritivo introduzido por
"evidentemente". Portanto, aquilo que aqui se enuncia deve, ao mesmo tempo, ser claro
para cada um: Ser - "evidentemente' no um predicado real. Para ns, homens de
hoje, esta proposio no , de maneira alguma, imediatamente inteligvel. Ser - isto
significa evidentemente realidade. Como pode o ser no ter, ento, o valor de um predi-
cado real? que para Kant a palavra "real" guarda ainda sua significao original. Ele
indica aquilo que pertence a uma res, a uma coisa, ao contedo positivo de uma coisa.
Um predicado real, uma determinao que pertence coisa, , por exemplo, o predicado
"pesada" relacionado com a pedra, pouco importando se a pedra existe efetivamente ou
no. Assim, na tese kantiana, "real" no significa aquilo que hoje entendemos quando
falamos de poltica realista, que leva em conta os fatos, do que existe efetivamente. Reali-
dade no significa para Kant o que existe efetivamente, mas aquilo que pertence coisa.
Um predicado real o que faz parte do contedo positivo de uma coisa e que lhe pode
ser atribudo. O contedo objetivo de uma coisa ns no-lo representamos em seu concei-
to. Podemos representar-nos o que designam as palavras "uma pedra" sem que isto, que
representado, tenha que existir como uma pedra que jaz precisamente nossa frente.
Existncia, ser-a, isto , diz a tese de Kant, "evidentemente no um predicado real". A
evidncia deste enunciado negativo se impe to logo pensamos a palavra "real" no sen-
tido de Kant. Ser no nada real.
Entretanto, como isto possvel? Pois dizemos de uma pedra que jaz aqui na nossa
frente: ela, esta pedra aqui, existe. Esta pedra . De acordo com isto, o "", isto quer
dizer, o ser como predicado, se mostra tambm em sua evidncia, no enunciado que faze-
mos desta pedra, enquanto sujeito da proposio. Kant tambm no nega, na Cdtica da
Razo Pura, que a existncia enunciada de uma pedra que jaz, aqui, na nossa frente seja
um predicado. O "", porm, no um predicado "real". De que , ento, predicado o
""? Evidentemente da pedra que jaz aqui. E o que diz este "" na proposio "a pedra
aqui "? Ela nada diz daquilo que a pedra enquanto pedra; diz, todavia, que aqui aqui-
A TESE DE KANT SOBRE O SER 437
lo que pertence pedra existe, . Que significa, ento, ser? Kant responde com e enun-
ciado afirmativo de sua tese: Ser " somente a posio de uma coisa, ou de certas deter-
minaes em si mesmas".
Os termos deste enunciado conduzem facilmente opinio de que ser enquanto "so-
mente posio de uma coisa" concerne coisa, no sentido de coisa em si e para si. Este
sentido a tese, na medida em que expressa na Critica da Razo Pura, no pode ter.
Coisa designa aqui algo assim como: algo, que Kant tambm substitui por: objeto. Kant
tambm no diz que a posio se refere coisa com todas as suas determinaes reais;
Kant diz, pelo contrrio: somente a posio da coisa ou de certas determinaes em si
mesmas. Deixamos, por ora, aberta a questo de como deve ser explicada a expresso
"ou de certas determinaes".
A frmula "em si mesmas" no significa: alguma coisa "em si", alguma coisa que
existe sem relao com uma conscincia. O "em si mesmas" deve ser compreendido
como a determinao oposta quilo que representado enquanto isto ou aquilo com rela-
o outra coisa. Este sentido de "em si mesmas" j se exprime pelo fato de Kant dizer:
Ser " somente a posio". Este "somente" parece, primeira vista, soar como uma
restrio, como se a posio fosse alguma coisa inferior em contraposio com a realida-
de, isto , o contedo objetivo de uma coisa. O "somente" indica, entretanto, que o ser
no se deixa explicar a partir daquilo que um ente , em cada situao concreta, isto para
Kant quer dizer a partir do conceito. O "somente" no restringe, mas remete o ser a uma
dimenso que a nica a partir da qual ele pode ser caracterizado em sua pureza. "So-
mente" designa aqui: puramente. "Ser" e "" pertencem, com todas as suas significaes
e modalidades, a uma dimenso prpria. Nada so do que tenha carter de coisa, quer
dizer, para Kant: nada objetivo.
preciso, por conseguinte, para pensar "ser" e "", um outro olhar, um olhar que
no se deixe guiar pela pura considerao das coisas e do contar com elas. Podemos
explorar e examinar, sob todos os ngulos, uma pedra que se encontra na nossa frente e
que obviamente "",jamais nela descobriremos o "". E. todavia. esta pedra .
De onde recebe "ser" o sentido de "somente posio"? A partir de que e como se
define o sentido da expresso "pura posio"? No permanece a explicao de ser como
posio estranha, arbitrria at, de qualquer maneira plurvoca e, por isso, imprecisa?
Kant mesmo traduz, verdade, "posio" por Setzung. Mas isto no ajuda para se
avanar muito. Pois nossa palavra alem Setzung dotada da mesma plurivocidade que
a latina positio. Esta pode. significar: 1) Pr, colocar. dispor enquanto ao. 2) O que foi
posto, o tema. 3) O carter de ser posto, a situao, a constituio. Mas podemos
compreender posio e Setzung de tal modo que univocamente se entenda: o pr de algo
que posto enquanto tal em seu carter de ser posto.
Em cada caso, a caracterizao de ser como posio manifesta uma plurivocidade
que no acidental e que no nos desconhecida. Pois ela tem seu papel importante no
mbito daquele pr e colocar que conhecemos como representar. O vocabulrio tcnico
da filosofia dispe para isto de dois termos especficos: representar percipere, perceptio,
tomar algo a si, compreender; e: repraesentare, opor-se algo, presentear-se algo. No ato
de representao representamo-nos algo de tal modo que se oponha a ns enquanto
assim colocado (posto), enquanto objeto. Ser como posio indica a qualidade de ser
posto de alguma coisa na representao que pe. Conforme o que e o modo como se pe
a posio, a Setzung, o ser, possui um outro sentido. por isso que Kant, depois de esta-
belecer sua tese sobre o ser, prossegue no texto da Cn'tica da Razo Pura:
438 HEIDEGGER
"No uso lgico, ele [a saber, o ser enquanto "somente a posio"] simples-
mente a cpula de um juzo. A proposio: Deus todo-poderoso contm
dois conceitos que possuem seus objetos: Deus e a onipotncia; a palavrinha
no , ainda por cima, um predicado, mas somente aquilo que pe o predi-
cado [acusativo] em relao com o sujeito".
Numa nota no datada (WW, Edio da Academia XVIII, nmero 6276), Kant re-
sume brevemente o que at aqui foi exposto:
Ora bem, a questo de saber se e como e em que limites a proposio "Deus "
como posio absoluta possvel torna-se e permanece para Kant o aguilho secreto que
impulsiona todo o pensamento da Crtica da Razo Pura e anima as principais obras que
seguem. O fato de se falar do ser como posio absoluta, diferena da posio relativa
enquanto posio lgica, faz crer, verdade, que nenhuma relao posta na posio
absoluta. Mas quando, no caso da posio absoluta, se trata do uso objetivo do ser, no
sentido de existncia e de ser-a, ento torna-se no somente claro para a reflexo crtica,
mas a ela se impe a evidncia de que, tambm aqui, posta uma relao e que, por
conseguinte, o "" recebe o carter de um predicado, ainda que no o de um predicado
real.
No uso lgico do ser (a e b) trata-se da posio da relao entre o sujeito da propo-
A TESE DE KANT SOBRE O SER 439
"To simples este conceito [de ser-a e existncia], que nada se pode dizer
para explicit-lo".
Kant acrescenta mesmo uma nota fundamental, que nos d uma idia de sua posi-
o filosfica, antes da poca da apario da Crtica da Razo Pura:
Mas exatamente tal elucidao tentada por Kant mesmo ainda em sua fase pr-
crtica. Entrementes convenceu-se que a relao do ser e dos modos de ser unicamente
440 HEIDEGGER
Sem essa intuio falta aos conceitos de ser a relao com um objeto, e somente
esta relao pode conferir-lhes aquilo que Kant chama "significao". verdade que
"ser" designa "posio", carter de ser posto no ato de pr que realizado pelo pensa-
mento como operao do entendimento. Mas esta posio somente capaz de pr algo
como objeto, quer dizer, como o-posto, e desta maneira faz-lo surgir em seu estado de
ob-stante, se posio dado, atravs da intuio sensvel, isto , atravs da afeco dos
sentidos, algo que possa ser posto. Somente a posio como posio de uma afeco
permite-nos compreender o que significa, para Kant, ser do ente.
Entretanto, atravs da afeco por nossos sentidos -nos dada uma multiplicidade
de representaes. Para que o dado "confuso", a torrente desta multiplicidade, chegue a
se estabilizar e mostrar se possa um ob-stante, o mltiplo deve ser ordenado, quer dizer,
ligado. Esta ligao, todavia, jamais pode originar-se dos sentidos. Segundo Kant, todo
o ligar se origina daquela faculdade de representao que se chama entendimento. Sua
caracterstica fundamental o ato de pr enquanto sntese. A posio tem o carter da
proposio, isto , do juzo, atravs do qual algo pro-posto enquanto algo, pelo qual um
predicado atribudo a um sujeito pelo "". Mas, na medida em que a posio como
proposio se refere necessariamente ao dado na afeco, para que um objeto possa ser
conhecido por ns. o "" como cpula adquire, a partir disto, um sentido novo. Somente
na segunda edio da Crtica da Razo Pura( 19, B 140 ss.) Kant determina este senti-
do novo. Escreve no incio do 19:
No que se refere a esta explicao, Kant descobre "que aqui permanece indetermi-
nado aquilo em que consiste esta relao". Kant experimenta, na explicao lgica do
juzo, a ausncia daquilo em que se fundamenta a posio do predicado e sua relao
com o sujeito. O sujeito gramatical da proposio somente pode exercer o ato de fundar
enquanto objeto para o eu-sujeito que conhece. por isso que Kant prossegue, abrindo
um novo pargrafo no texto:
__.
A TESE DE KANT SOBRE O SER 441
Enquanto Kant, em seu trabalho pr-crtico, se satisfaz ainda em dizer que ser e
existncia, em sua relao com as capacidades do entendimento, no podem ser explica-
das mais amplamente, chegou, pela Crtica da Razo Pura, no apenas a clarificar mais
especialmente os poderes do entendimento, mas, ainda, a explicar a prpria possibilidade
do entendimento a partir de seu fundamento. Neste retorno ao lugar da possibilidade do
442 HEIDEGGER
nelas se recorda a relao com o eu-sujeito pensante, relao da qual o ser como posio
recebe seu sentido.
Enquanto a essncia da posio se determina a partir da apercepo transcendental
vinculada com a afeco sensvel, como proposio objetiva, como expresso objetiva de
um juzo, necessrio tambm que o "ponto mais elevado" do pensamento, isto , a
possibilidade mesma do entendimento, se revele como o fundamento de todas as proposi-
es possveis e. por conseguinte, como o prncpofundamental. Assim se enuncia o ttu-
lo do pargrafo 17(8136):
que este algo "concorda com" aquilo que se d nas formas puras 'da intuio, isto , o es-
pao e o tempo, e, enquanto se d assim, se deixa determinar segundo as formas puras do
pensamento, isto , das categorias.
O ser-atual de um objeto o carter de ser posto de algo possvel de tal maneira que
o que posto esteja em conexo com a percepo sensvel.
O ser-necessrio de um objeto o carter de ser posto daquilo que encadeado com
o atual, segundo as leis gerais da experincia.
Em cada uma das modalidades impera a posio de uma relao, cada vez diferen-
te, com aquilo que exigido para a existncia de um objeto da experincia. As modali-
dades so os predicados de uma relao do que, em cada situao, deve ser exigido. Os
princpios que explicam estes predicados exigem aquilo que deve ser exigido para a exis-
tncia possvel, atual, necessria de um objeto. Por isso, Kant justifica estes princpios
com o nome de postulados. So postulados do pensamento em dois sentidos: de um lado,
as exigncias procedem do entendimento como da fonte do pensamento e, de outro lado,
valem igualmente para o pensamento, na medida em que, pelas suas categorias, ele deve
determinar o dado da experincia para ser um objeto que existe. "Postulado do pensa-
mento emprico em geral" - o "em geral" significa: certo que os postulados so ape-
nas nomeados na tbua dos princpios do entendimento, em quarto e ltimo lugar; entre-
tanto, segundo a ordem, so os primeiros, na medida em que todo juzo relativo a um
objeto da experincia deve, desde o comeo, estar de acordo om eles.
Os postulados designam o que, desde o princpio, exigido para a posio de um
objeto da experincia. Os postulados designam o ser que pertence existncia do ente,
que, enquanto fenmeno, objeto para o sujeito que conhece. A tese de Kant sobre o ser
sempre vlida: ele "somente a posio". Agora, porm, a tese mostra seu contedo
mais rico. O "somente" significa a pura relao da objetividade do objeto com a subjeti-
vidade do conhecimento humano. Possibrlidade, atualidade, necessidade, so as pQsies
dos diferentes modos desta relao. Os diferentes caracteres do ser-posto so determi-
nados a partir da fonte da posio originria. Esta a pura sntese da apercepo trans-
cendental. o ato originrio do pensamento que conhece.
Pelo fato de o ser no ser um predicado real, sendo todavia predicado, atribuindo-
se, portanto, ao objeto, sem, contud, poder-se tir-lo do contedo positivo do objeto,
no podem os predicados ontolgicos da modalidade originar-se do objeto; muito antes,
enquanto modalidades da posio, eles recebem sua origem da subjetividade. A posio
e suas modalidades de existncia se determinam a partir do pensamento. Sem ser explici-
tamente formulada, ressoa, pois, na tese de Kant sobre o ser, a palavra-guia: Ser e
Pensar.
Na "elucidao" dos postulados e, j antes, na exposio da tbua das categorias,
Kant distingue possibilidade, atualidade e necessidade, sem que se diga ou mesmo se per-
gunte em que reside o fundamento da distino entre ser-possvel e ser-atual.
Somente dez anos aps a Crtica da Razo Pura, pelo fim de sua terceira obra prin-
cipal, a Crtica do Juzo (1790), Kant torna a referir-se a esta questo, e isto novamente
"de forma incidental", no 76, que se intitula "Nota". E Schelling, aos vinte anos de
idade, termina a nota final de sua primeira obra, que apareceu cinco anos mais tarde, em
A TESE DE KANT SOBRE O SER
Pelo fato de ser verdade o que Schelling aqui diz, no devemos pretender repensar,
de modo adequado, este 76. Permanecendo fiis inteno desta exposio, trata-se
somente de fazer ver como Kant continua a manter, na afirmao sobre o ser a que nos
referimos, a determinao-chave do ser como posio. Kant diz:
"Ora bem, toda a nossa distino, entre aquilo que simplesmente possvel e
aquilo que atual, repouss sobre o fato de o primeiro significar somente a
posio da representao de uma coisa relativamente a nosso conceito e em
geral nossa capacidade de pensar, mas o ltimo [o atual] posio da coisa
em si mesma (fora deste conceito)".
"Para que um conhecimento possa ter uma realidade objetiva, isto , para que
possa relacionar-se com um objeto e ter em si sentido e significao, necessrio
que o objeto possa, de alguma maneira, ser dado" (A 155, B 194).
"Estes so dois conceitos que servem de fundamento para toda outra reflexo,
to inseparavelmente esto ligados com todo o uso do entendimento. O pri-
meiro [a matria) significa o determinvel em geral, o segundo sua determina-
o" (A 266, B 322).
tra-se a reflexo atravs da qual Kant elucida e situa pela discusso o ser como posio,
como uma reflexo sobre a reflexo, como um pensamento do pensamento relacionado
com a percepo. A palavra-guia, j diversas vezes citada, que Kant utiliza para a inter-
pretao do ser, a expresso ser e pensar, fala agora mais claramente em seu contedo
mais rico. Entretanto, a expresso-guia permanece ainda obscura em seu sentido decisi-
vo. Pois em sua verso formalista se oculta uma ambigidade que deve ser meditada se
a expresso ser e pensar no se deve limitar caracterizao da interpretao kantiana
do ser, mas designar o trao fundamental que forma o movimento de toda a histria da
filosofia.
Antes de, na concluso, elucidarmos a referida ambigidade, parece de utilidade
mostrar, ainda que em grandes traos, como fala, na interpretao kantiana do ser como
posio, a tradio. J do primeiro texto de Kant, o Argumento, podemos concluir que
a explicao do ser se efetua em funo da existncia, pelo fato de ser tema de considera-
o a "demonstrao do ser-a (existncia) de Deus". Em vez de "ser-a" diz a linguagem
metafisica tambm existncia. Basta lembrar esta palavra para reconhecer no sistere, no
pr, a ligao com o ponere e a posio; a exsistentia o actus, quo res sstitur, ponitur
extra statum possibilitatis (cf. Heidegger, Nietzsche, 1961, vai. II, pg. 417 e ss.).
claro que devemos renunciar, em tais remisses, relao instrumental e calcula-
dora, que impera por tudo, com a linguagem, e permanecer abertos para a fora e ampli-
tude de seu dizer que, desde muito longe, nos acena com seu domnio secreto.
Na lngua espanhola a palavra que expressa o ser : ser. Ela se deriva de sedere,
estar sentado. Ns falamos de "residncia". Assim se denomina o lugar onde se demora
o habitar. Demorar-se estar presente junto a ... Holderlin quereria "cantar as sedes
dos prncipes e de seus antepassados". Seria, porm, insensato pensar que a questo do
ser poderia ser formulada atravs de uma anlise de significaes de palavras. Entre-
tanto, a escuta do dizer da linguagem pode dar-nos, tomadas as precaues necessrias
e quando atentos ao contexto do dizer, acenos que apontam para a tarefa do pensamento.
O pensamento deve perguntar: Que quer, pois, dizer ser quando se deixa determinar
a partir da representao enquanto posio e carter de ser posto? Esta uma questo
que Kant no mais levanta, tampouco as que seguem: Que significa, pois, ser se a posi-
o se deixa determinar pela estrutura de forma e matria? Que significa, pois, ser se, na
determinao do carter de ser posto do que foi posto, esta surge na dupla forma do
sujeito, de um lado, como sujeito da proposio em sua relao com o predicado, de
outro lado, como eu-sujeito na relao com o objeto? Que resignifica, pois, ser se se
torna determinvel a partir do subiectum, isto , do hypokimenon no grego? Este aqui-
lo que, j de antemo, jaz a, porque o constantemente presente. Pelo fato de ser ser
determinado como presena, o ente o que jaz hypokimenon. A relao com o ente con-
siste no deixar que algo esteja a enquanto maneira de pr, ponere. Nisto est implcita
a possibilidade do pr e colocar. Porque ser se ilumina como presena, pode a relao
com o ente, enquanto o que est a, transformar-se em pr, colocar, representar e propor.
Na tese de Kant sobre o ser como posio, mas tambm em todo o mbito de sua inter-
pretao do ser do ente como objetividade e realidade objetiva, impera o ser no sentido
da presena que dura.
Ser enquanto somente posio se desdobra nas modalidades. O ente posto em sua
posio atravs da proposio dependente da afeco sensvel, quer dizer, atravs da
fora emprica do juzo no uso emprico do entendimento, no pensamento assim determi-
nado. Ser elucidado e discutido a partir de sua relao com o pensamento. Elucidao
e discusso possuem o carter de reflexo, que se manifesta como pensamento sobre o
pensamento.
A TESE DE KANT SOBRE O SER 451
pensamento "lgica". Se, entretanto, o pensamento, em sua relao com o ser, amb-
guo: enquanto antecipao de horizonte e enquanto rganon, no permanecer, na pers-
pectiva citada, tambm ambguo aquilo que se chama "lgica"? No se torna absoluta-
mente problemtica "a lgica" enquanto rganon e enquanto horizonte da interpretao
do ser? Uma considerao que procura dirigir-se nesta direo no se volta contra a lgi-
ca, mas se aplica a determinar de maneira suficiente o lgos, isto , aquele dizer no qual
o ser se manifesta na linguagem como o mais digno de ser pensado.
No invisvel "" se oculta tudo o que deve ser pensado no ser. Entretanto, o mais
digno de ser pensado permanece o fato de ns perguntarmos se "ser", se o "" mesmo
pode ser, ou se ser jamais "", permanecendo, contudo, verdadeiro: D-se ser.
Todavia, donde vem, a quem se dirige o dom no "d-se", e segundo que maneira de
dar?
Ser no pode ser. Se fosse (ser), no mais permaneceria ser, mas seria um ente.
Todavia, no diz aquele pensador que pela primeira vez pensou o ser, no diz
Parmnides (Frg. 6): esn' gar eihai, ", a saber, ser" - "presenta-se, a saber, presentar-
se"? Se considerarmos que, no ehai, presentar-se, fala propriamente a altheia, o desve-
lar-se, ento o presentar-se, que no est, se diz enfaticamente do efnai, significa: o presen-
tificar. Ser - propriamente: o que d presena.
Anuncia-se aqui ser, que , como algum ente ou . o ser. to aut (o mesmo),
kath 'haut, dito aqui, com relao a si mesmo (autopredicado)? Fala aqui uma tautolo-
gia? Certamente. Contudo, a tautologia no sentido supremo, que, em vez de nada dizer,
diz tudo: aquilo que d a medida para o pensamento, tanto nos primrdios como no futu-
ro. por isso que esta tautologia oculta em si o no-dito, o no-pensado, o no-pergun-
tado. "Presenta-se, a saber, presentar-se."
Que significa aqui presena? Presente? A partir de onde se determina tal coisa?
Mostra-se, ou mais exatamente: oculta-se aqui um carter impensado de uma velada
essncia de tempo?
Se a situao esta, a questo do ser deve subordinar-se expresso: Ser e Tempo.
E a tese de Kant sobre o ser como pura posio?
Se o carter de ser posto, a objetividade se mostra como derivao de presena,
ento a tese de Kant sobre o ser pertence quilo que permanece impensado em toda a
metafisica.
A expresso-guia da determinao metafisica do ser do ente, "ser e pensar", no
suficiente nem mesmo para lanar a questo do ser, e muito menos para encontrar uma
resposta.
Entretanto, a tese de Kant sobre o ser como pura posio permanece o cimo, de
onde o olhar alcana para trs at a determinao do ser como hypokisthai, e mostra
para a frente, at dentro da interpretao especulativo-dialtica do ser como conceito
absoluto.
TEMPO E SER*
* A conferncia Tempo e Ser foi proferida a 31 de janeiro de 1962, no Studium Gerierale da Universidade
de Freiburg im Breisgau, dirigido por Eugen Fink. O ttulo Tempo e Ser caracteriza, no resumo do tratado
Ser e Tempo (1927), p. 39, a terceira seo da primeira parte do tratado. O autor no estava naquela poca
preparado para uma suficiente elaborao do tema nomeado no ttulo Tempo e Ser. A publicao de Ser e
Tempo foi interrompida neste ponto.
O contedo da conferncia escrita aps sete lustros no encontra mais ligao com o texto Ser e Tempo.
claro que a questo-guia permanece a mesma, o que, contudo, apenas significa: a questo tornou-se ainda
mais digna de ser colocada e mais estranha ao esprito do tempo. Os perodos entre parnteses, no texto,
foram redigidos ao mesmo tempo que a conferncia, mas no foram expostos.
Uma primeira impresso do texto alemo, tendo ao lado a traduo francesa realizada por Franois Fdier,
aparece no livro de homenagem a Jean Beaufrct, publicado pela Editora Plon, Paris, 1968, sob o ttulo:
"L 'Endurance de la Pense ".
A conferncia que segue exige um breve prlogo. Se nos mostrassem agora dois
quadros que Paul Klee criou no ano de sua morte: a aquarela Santa atravs de um Vitral
e a tmpera sobre estopa Morte e Fogo - desejaramos permanecer longo tempo diante
deles, abandonando qualquer vontade de compreenso imediata.
Se agora nos pudesse ser recitada, talvez pelo prprio poeta Georg Trakel, o poema
Canto Setenrio da Morte, gostaramos de ouvi-lo muitas vezes e abandonaramos toda
1
O que nos leva a nomear juntos tempo e ser? Ser significa, desde a aurora do pensa-
mento ocidental-europeu at hoje, o mesmo que presentar. De dentro do presentar e da
1
Vide protocolo do seminrio sobre a conferncia Tempo e Ser, neste volume.
456 HEIDEGGER
Ser, pelo qual assinalado todo ente singular como tal, ser significa pre-sentar. Pen-
sado sob o ponto de vista do que se presenta, pre-sentar se mostra como pre-sentificar.
Trata-se, porm, agora de pensar este pre-sentificar propriamente, na medida em que
facultado pre-sentar. Pre-sentificar mostra-se no que lhe prprio pelo fato de levar para
o desvelamento. Pre-sentificar significa: desvelar, levar ao aberto. No desvelar est em
jogo um dar, a saber, aquele que no presentijicar d o pre-sentar, isto , ser.
(Pensar a questo "ser", naquilo que lhe prprio, exige que nossa meditao obe-
dea orientao que se mostra no presentificar. Esta faz aparecer o desocultar no
presentificar. Do interior do desvelar, porm, fala um dar, um d-Se.)
Entretanto, para ns o dar a que agora nos referimos permanece ainda to obscuro
como o "Se", agora citado, que d.
O ser, pens-lo propriamente, exige que. se afastem os olhos do ser na medida em
que, como em toda metafsica, explorado e explicitado apenas a partir do ente e em fun-
o deste, como seu fundamento. Pensar o ser propriamente exige que se abandone o ser
como o fundamento do ente em favor do dar que joga velado no desvelar, isto , em favor
458 HEIDEGGER
do d-Se. Ser, como dom deste d-Se, faz parte do dar-se. Ser enquanto dom no expul-
so do dar. Ser, pre-s-ena transformado. Como presentificar faz parte do desocultar,
permanece includo no dar como seu dom. Ser no . Ser d-Se como o desocultar do
pre-s-entar. 2
O "d-Se ser" poderia mostrar-se, de maneira bem mais precisa, to logo medits-
semos ainda mais decididamente sobre o dar a que aqui nos referimos. Isto torna-se vi-
vel se atentarmos profuso de transformaes daquilo que de maneira muito indetermi-
nada se designa ser; isto se desconhece, no que lhe mais prprio, quando o tomamos
como o mais vazio de todos os conceitos. Esta representao de ser como o abstrato
enquanto tal no abandonada em princpio, mas apenas confirmada, mesmo quando o
ser sobressumido, como o abstrato enquanto tal, no concreto enquanto tal da realidade
do esprito absoluto, o que se realizou no pensamento mais poderoso da Modernidade, na
dialtica especulativa de Hegel, e foi exposto em sua Cincia da Lgica.
Uma tentativa de meditar sobre a profuso de transformaes do ser conquista seu
primeiro e ao mesmo tempo orientador apoio pelo fato de pensarmos ser no sentido de
pre-s-entar.
(Pensar - insisto - e no apenas repetir, fazendo assim como se a interpretao
de ser como pre-s-entar se compreendesse por si mesma.)
De onde nos vem a justificativa para caracterizarmos o ser como pre-s-entar? Esta
questo levantada tarde demais. Pois este carter do ser j se decidiu h muito, sem
nossa interveno ou nosso mrito. De acordo com isto estamos comprometidos com a
caracterizao do ser como pre-s-entar. Esta recebeu sua legitimao dos incios do
desvelamento do ser como algo dizvel, isto , pensvel. Desde o comeo do pensamento
ocidental junto aos gregos, toda a dico de "ser" e "" se mantm na lembrana da
determinao do ser como pre-s-entar que compromete o pensamento. Isto vale tambm
para o pensamento que conduz a tcnica moderna e a indstria; mas, claro, apenas em
certo sentido. Depois que a tcnica moderna instalou sua expanso e domnio sobre toda
a Terra, no giram agora somente os sputniks e seus derivados em torno de nosso plane-
ta; mas o ser como pre-s-entar, no sentido de fundos calculveis, provocar em breve, de
maneira uniforme, a todos os habitantes da Terra, sem que aqueles que habitam os conti-
nentes, fora a Europa, saibam propriamente disto ou mesmo possam e queiram saber da
origem dessa determinao do ser. (Menos simpatia encontra um tal saber, certamente,
junto aos que se ocupam com a ajuda ao desenvolvimento, que impelem aos hoje ditos
subdesenvolvidos at o mbito daquele apelo do ser que se faz ouvir no seio daquilo que
mais prprio da tcnica moderna.)
De maneira alguma percebemos ser como pre-s-entar, somente e pela primeira vez,
na lembrana da primeira apresentao do desvelamento do ser realizada pelos gregos.
Percebemos o pre-s-entar em cada simples reflexo suficientemente livre de preconceitos, 0
pensar previamente, a partir de Ser e Tempo, o pensamento posterior que trata do desti-
no-do-ser, isto , pensar em sua radicalidade aquilo que em Ser e Tempo exposto sobre
a destruio da doutrina ontolgica do ser do ente.
Quando Plato representa o ser como ida e como koinona das idias, Aristteles
como enrgeia, Kant como posio, Hegel como Conceito absoluto, Nietzsche como
Vontade de Poder, no se trata de doutrinas produzidas ao acaso, mas palavras do ser,
que respondem a um apelo que fala no destinar que a si mesmo oculta, que fala no "Se
d ser". Cada vez retido na destinao que se subtrai, o ser se libera da retrao para o
pensamento com sua multiplicidade epocal de transformaes. O pensamento permanece
ligado tradio das pocas do destino-do-ser, l mesmo e justamente l onde se apro-
funda no fato de como e a partir de onde o prprio ser recebe cada vez suas prprias
determinaes, a saber, a partir do: Se d ser. O dar mostrou-se como um destinar.
Como, porm, deve ser pensado o "Se" que d ser? A nota introdutria a propsito
da aproximao de Tempo e Ser apontou ao fato de que ser como pre-s-ena, pre-s-ente,
foi marcado num sentido ainda no determinado, por um carter temporal e por conse-
guinte pelo tempo. A partir da cresce a conjetura de que o Se, que d ser, que determina
ser como pre-s-entar e presentificar, poderia ser encontrado na palavra "tempo" que apa-
rece no ttulo Tempo e Ser.
Seguimos esta conjetura e meditamos sobre o tempo. "Tempo" do mesmo modo que
"ser", nos conhecido atravs de representaes correntes, mas tambm, do mesmo
modo, desconhecido, to logo empreendamos a discusso do que prprio ao tempo.
Enquanto, h pouco, meditvamos sobre o ser, mostrou-se: aquilo que prprio do ser,
aquilo a que pertence e onde est contido, mostra-se no d-Se e seu dar, como destinar.
O prprio do ser nada tem de carter ntico. Se meditarmos realmente sobre o ser, nesse
caso o objeto mesmo nos afasta, de certo modo, do ser e passamos a pensar no destino
que d ser como dom. Na medida em que atentamos a isto, preparamo-nos para o fato
de que tambm o que prprio do tempo no se deixa j determinar com o auxlio da
caracterstica corrente do tempo, comumente representada. A justaposio de tempo e
ser contm, no obstante, a indicao para discutir o tempo no que lhe prprio, com os
olhos voltados para o que foi dito sobre o ser. Ser quer dizer: pre-s-entar, presenti-ficar,
pre-s-ena. Lemos, por exemplo, em algum lugar, a comunicao: "Com a presena de
muitos convivas celebrou-se a festa". A frase tambm poderia ser enunciada: "Com a
participao" ou "estando presentes" numerosos convivas.
Presente - mal acabamos de nome-lo isoladamente, j pensamos em passado e
futuro, o antes e o depois diferena do agora. Mas o presente que se pensa a partir do
agora no , de maneira alguma, o mesmo que o presente no sentido da presena dos
convivas. . . Pois tambm no dizemos nunca, nem podemos diz-lo: "No agora de
numerosos convivas celebrou-se a festa".
Mas se necessitarmos caracterizar o tempo a partir do presente compreendemos o
presente como o agora diferena do no-mais-agora do passado e do ainda-no-agora
do futuro. Presente, significa, porm, ao mesmo tempo, pre-s-ena. No estamos, contu-
do, acostumados a determinar o que prprio do tempo, tomando como ponto de refe-
rncia o presente no sentido de pre-s-ena. Representamos, muito antes, o tempo - a
unidade de presente, passado, futuro - a partir do agora. J Aristteles diz que aquilo
que do tempo , isto , se pre-s-enta, cada agora. Passado e futuro so um me n ti: algo
no ente, certamente no simplesmente nada, mas, antes, o que se presenta e a que algo
falta, carncia que designada atravs do "no-mais" - e do "ainda-no" - agora.
TEMPO ESER 461
Visto desta maneira, o tempo aparece como a sucesso de "agoras", cada um dos quais,
apenas nomeado, j flui para o "h pouco" e j perseguido pelo "logo a seguir". Kant
diz do tempo, assim representado: "Ele tem apenas uma dimenso" (Crtica da Razo
Pura, A 31, B 4 7). Entende-se o tempo conhecido como a sucesso na seqncia de ago-
ras, quando se mede e calcula o tempo. Temos o tempo calculado - ao menos assim pa-
rece - imediatamente mo, diante de ns, quando tomamos na mo o relgio, o medi-
dor do tempo e, olhando para a posio dos ponteiros, constatamos: "Agora so 20
horas e 50 minutos".
Dizemos "agora" e pensamos no tempo. Mas em parte alguma do relgio que nos
indica o tempo encontramos o tempo, nem no mostrador nem no mecanismo. Tampouco
encontramos o tempo nos cronmetros da tcnica moderna. Impe-se a afirmao: quan-
to maior a perfeio tcnica, isto , quanto mais exatos no efeito de medio, tanto
menor ser a oportunidade para meditar sobre o que prprio do tempo.
Onde, porm, est o tempo? , alis, o tempo e possui ele algum lugar? O tempo,
sem dvida, no nada. Por isso procuramos ser cautelosos e dissemos: D-se tempo.
Acautelamo-nos ainda mais e olhamos cuidadosamente para aquilo que se nos mostra
como tempo, enquanto adiantamos nosso olhar sobre o ser, no sentido de presena, pre-
sente. Mas o presente como presena se distingue tanto do presente no sentido do agora,
que de maneira alguma o presente enquanto presena pode ser determinado a partir do
presente enquanto agora. Antes, pare.ce possvel o contrrio (cf. Ser e Tempo, 81). Se
tal fosse o caso, ento o presente enquanto presena e tudo o que faz parte de tal pre-
sena deveriam significar o tempo autntico, ainda que nada de imediato tenha sido
tempo comumente representado, no sentido da sucesso da seqncia-de-agoras
calculveis.
Mas at agora deixamos de mostrar, de maneira mais clara, o que significa presente
no sentido de presena: Atravs desta, o ser uniformemente determinado como pre-s-
entar e presenti-ficar, isto , desvelamento. Que coisa pensamos quando dizemos pre-s-
entar? (Pre-s)-entar significa demorar. Mas com demasiada facilidade nos tranqili-
zamos, concebendo demorar como puro e simples e guiados pela representao
costumeira do tempo, como um lapso de tempo de um agora para o agora seguinte.
Quando, porm, se fala de pre-s-entar, exige-se que percebamos, no demorar enquanto
aproximar-se pelo durar, o permanecer e o durar permanecendo. Presentar se aproxima
de ns; presente quer dizer: demorar-se ao nosso encontro, ao encontro de ns, os
homens.
Quem somos ns? Continuamos cautelosos com a resposta. Pois a situao poderia
ser tal que se determinasse o que caracteriza o homem enquanto homem, justamente, a
partir daquilo que agora devemos considerar: o homem, abordado pela presena, o qual,
a partir de tal abordagem, se presenta, ele mesmo, sua maneira, a tudo que se presenta
e ausenta.
O homem est postado de tal modo, no interior da abordagem pela presena, que re-
cebe como dom o presentar que d-Se, enquanto percebe aquilo que aparece no presen-
ti-ficar. No fosse o homem o constante destinatrio do dom que brota do "d-Se-pre-
sena", no alcanaria ao homem aquilo que alcanado no dom, nesse caso o ser no
apenas ficaria oculto na ausncia deste dom, nem apenas tambm fechado, mas o homem
permaneceria excludo do mbito e do alcance do: D-Se ser. 3 O homem no seria
homem.
3 Se s vezes falo em "se d ser", fao-o para acentuar a importncia do Se na expresso "D-Se ser". Em
si elas so equivalentes.
462 HEIDEGGER
Agora, porm, parece que ns, com a referncia feita ao homem, nos desviamos do
caminho no qual quereramos meditar sobre o que prprio do tempo. De certo modo
isto exato. No obstante estamos mais prximos da questo que se chama tempo e que
deve mostrar-se propriamente a partir do presente como presena.
Presena significa o constante permanecer que se enderea ao homem, que o alcan-
a e alcanado. 4 Mas de onde vem este alcanar que alcana, ao qual pertence o pre-
sente como presena, na medida em que h presena? Na verdade, o presentar de tudo
que se presenta sempre aborda o homem, sem que ele atente propriamente nisto ao pre-
sentar como tal. Mas com a mesma freqncia, isto , constantemente, tambm nos abor-
da o ausentar. De incio aborda-nos de maneira tal que muita coisa no mais se presenta
de forma que conhecemos do presentar, no sentido do presente. E, cont1;1do, tambm este
no-mais-presente se presenta imediatamente em seu ausentar, a saber, ao modo do "que
foi" e nos aborda. Este no desaparece do anterior agora, como o puramente passado. O
que foi se presenta, entretanto, sua maneira prpria. No que foi alcanado presentar.
Mas o ausentar tambm se enderea a ns, no sentido do ainda-no-presente, ao
modo do presentar, no sentido do vir-ao-nosso-encontro. assim que se ouve dizer: O fu-
turo j comeou; o que no o caso, porque o futuro jamais comea primeiro, na medida
em que o ausentar do ainda-no-presente j sempre, de algum modo, nos aborda, quer
dizer, se presenta to imediatamente como o que foi. No futuro, no vir-ao-nosso-en-
contro, alcanado presentar.
Se atentamos com mais precauo ao que foi dito, ento encontramos no ausentar,
seja aquilo que foi, seja o futuro, uma maneira de presentar e de abordar (dirigir a) que,
de modo algum, coincide com o presentar no sentido do presente imediato. De acordo
com isto, trata-se de observar: nem todo presentar necessariamente presente; coisa
estranha. No obstante, encontramos tal presentar, a saber, a abordagem que nos alcan-
a, tambm no presente. Tambm nele -nos alcanado presentar.
Como determinaremos este jogo de alcanar-nos o presentar, no presente, no passa-
do e no futuro? Repousa este alcanar no fato de nos alcanar, ou nos alcana porque
em si um alcanar? Vale a segunda alternativa. Advir, enquanto ainda no presente,
alcana e traz, ao mesmo tempo, presente. "Ao mesmo tempo", dizemos e atribumos,
com isto, ao recproco-alcanar-se de futuro, passado e presente, isto , sua prpria uni-
dade, um carter temporal.
Este procedimento no corresponde, sem dvida, realidade objetiva, admitindo-se
que tenhamos que designar "tempo", a unidade do alcanar agora mostrada, e precisa-
mente esta. Pois o tempo mesmo no nada de temporal, assim como tampouco algo
entitativo. Por isso fica-nos vedado dizer: futuro, passado, presente, subsistem "simulta-
neamente". No obstante, fazem parte de uma unidade em seu recproco-alcanar-se.
Sua unidade unificante s pode determinar-se a partir do que lhes prprio, do fato de
reciprocamente se alcanarem. Mas o que se alcanam uns aos outros?
Nada mais que a si mesmos, e isto quer dizer: o pre-s-entar neles alcanado. Com
isto se ilumina o que denominamos espao-de-tempo. Com a palavra "tempo", porm, j
no significamos a sucesso da seqncia de agoras. De acordo com isto, espao-de-
tempo tambm no significa mais apenas a distncia entre dois pontos de agoras do
tempo calculado, distncia que assinalamos quando, por exemplo, verificamos: No espa-
o de tempo de cinqenta anos, aconteceram tais e tais coisas. Espao-de-tempo designa
Refchen e erreichen, dois termos com que Heidegger joga em toda a conferncia, vm traduzidos por "al-
canar", que significa, ao mesmo tempo, a) chegar a, atingir (erreichen); b) estender (reichen).
--
TEMPO E SER 463
autntico, alcanar que ilumina e oculta. Na medida em que o prprio alcanar um dar,
oculta-se, no tempo autntico, o dar de um dar.
Onde, porm, d-Se e tempo e o espao-de-tempo? Por mais urgente que uma tal
questo possa parecer, primeira vista, j no podemos perguntar, desta maneira, por
um "onde", por um lugar do tempo. Pois o prprio tempo autntico, o mbito de seu tr-
plice alcanar determinado pela proximidade que aproxima, o lugar pr-espacial, que
condio primeira, atravs da qual d-se um possvel "onde".
Sem dvida, a Filosofia, desde seu comeo, sempre que meditou sobre o tempo, per-
guntou onde situ-lo. Tinha-se com isto principalmente em vista o tempo calculado como
o fluir da sucesso da seqncia de "agoras". Explicava-se que este tempo numerado
com que calculamos no podia dar-se sem a psych, sem o animus, sem a alma, sem a
conscincia, sem o esprito. Tempo no se d sem o homem. Mas o que significa este
"no-sem"? o homem o doador do tempo ou seu destinatrio? E, se for este ltimo,
como recebe o homem o tempo? o homem primeiro homem para ento, ocasional-
mente, isto , em qualquer tempo, acolher o tempo e assumir a relao com ele? O tempo
autntico a proximidade unificante do trplice alcanar iluminador de presena a partir
do presente, do passado e do futuro. Esse tempo j alcanou o homem enquanto tal, de
tal maneira que ele s pode ser homem enquanto est colocado no trplice alcanar, e
sustenta a proximidade que, recusando e retendo, determina este alcanar. O tempo no
obra do homem; o homem no obra do tempo. Aqui no h um obrar. Somente h o
dar, no sentido do supramencionado alcanar que ilumina o espao-de-tempo.
Mas uma vez concedido que o modo de dar, em que d-Se tempo, exige a caracteri-
zao exposta, permanecemos ainda sempre confrontados com o enigmtico "Se" que
nomeamos quando dizemos: D-Se tempo. D-Se ser. Aumenta o risco de, com esta
denominao do "Se", criarmos arbitrariamente uma fora indeterminada, que teria por
funo realizar tudo que se refere ao dar de ser e de tempo. Fugiremos, no entanto,
indeterminao, e evitaremos o arbtrio, enquanto nos ativermos s determinaes do dar
que procuramos mostrar, e isto precisamente a partir da viso antecipadora sobre o ser
como presena, e sobre o tempo no mbito do alcanar da clareira de um mltiplo pre-
sentar. O dar no "d-Se ser" revelou-se como destinar e como destino de presena, em
suas transformaes epocais.
(Ou estamos agora perplexos somente porque nos deixamos induzir em erro pela
lngua_ ou mais exatamente pela interpretao gramatical da lngua; erro pelo qual
somos levados a fixar hipnoticamente um Se que tem por funo dar, mas que enquanto
tal no existe? Se dizemos: D-se ser, d-se tempo, enunciamos proposies. Segundo a
gramtica, uma proposio constitui-se de sujeito e predicado. O sujeito da proposio
no precisa necessariamente ser um sujeito, no sentido de um eu e de uma pessoa. por
esta razo que a gramtica e a lgica compreendem as proposies com o "Se", como
proposies impessoais e sem sujeito. Em outras lnguas indo-germnicas, no grego e no
latim, falta o "Se", ao menos enquanto palavra individualizada e estrutura fontica - o
que no significa, contudo, de maneira alguma, que aquilo que visado no "Se" no seja
pensado: no latim,pluit, chove; no grego chr, necessrio.
Entretanto, que significa este "Se"? A lingstica e a filosofia da linguagem refleti-
ram abundantemente a respeito, sem descobrirem esclarecimento vlido algum. O mbi-
to significativo intendido no "Se" estende-se desde a insignificncia at o demnico. O
"Se" pronunciado quando se diz "d-Se ser", "d-Se tempo", nomeia provavelmente al-
guma coisa excepcional que no pode ser discutida aqui a fundo. por isso que aqui nos
contentamos com uma considerao de princpio.
Segundo a interpretao lgico-gramatical. aquilo de que alguma coisa se enuncia
aparece como sujeito: hypokemenon, o que j est a, o que, de alguma maneira, se pre-
senta. O que atribudo ao sujeito como predicado aparece como aquilo que se co-pre-
senta com aquilo que se presenta, o symbebeks, accidens: "O auditrio est iluminado".
No "Se" de "d-Se ser" fala um presentar de algo real que se presenta, portanto, de uma
certa maneira de ser. Se ns o colocarmos em lugar do "Se", ento a frase "d-Se ser"
diz: Ser d ser. Com isto somos devolvidos quelas dificuldades que mencionvamos no
incio da conferncia: Ser . Mas ser "" to pouco como tempo "". Por isso abando-
namos agora a tentativa de determinar o "Se" isoladamente e para si. No perderemos,
contudo, de vista: O "Se" nomeia, ao menos na interpretao de que dispomos por ora,
uma pre-s-ena de au-s-ncia.
Em face do fato de no dizer: "d-Se ser", "d-Se tempo", no se trata de enunciados
sobre o ente; mas que a estrutura proposicional dos enunciados, entretanto, foi transmi-
tida e comunicada pelos gramticos greco-romanos, exclusivamente na perspectiva de
tais enunciados versarem sobre o ente, tomamos ao mesmo tempo em considerao a
possibilidade de que no dizer do "d-Se ser", "d-Se tempo" - contra toda aparncia -
no se trata de enunciados que so constantemente fixados na estrutura proposicional da
relao sujeito-predicado. De que maneira, entretanto, podemos penetrar naquilo que, no
mencionado dizer "d-Se ser", "d-Se tempo", expresso como "Se"? Simplesmente
pensando o "Se" a partir da espcie de dar que dele faz parte: o dar como destino, o dar
como alcanar iluminador. Ambos fazem parte de uma unidade, na medida em que aque-
le, o destino, repousa neste, o alcanar iluminador.)
5
Ainda que Ereignis possa ser traduzido por acontecimento-apropriao, mantm-se doravante o termo
alemo, pois de maneira alguma possvel transpor para o vernculo toda a riqueza de conotaes do termo
original. Heidegger mesmo d-me razo: "Ereignis como palavra-guia deixa-se to pouco traduzir quanto a
palavra-guia grega lgos ou a chinesa Tao". Vide Que Isto - a Filosofia? - Identidade e Diferena.
466 HEIDEGGER
esta palavra, somente podemos pensar agora a partir daquilo que se manifesta na vista
prvia sobre ser e sobre tempo como destino e como alcanar, onde o lugar de tempo
e ser. A ambos, tanto ser como tempo, denominamos questes. O "e" entre ambos deixou
sua relao recproca no indeterminado.
Agora finalmente mostra-se: O que vincula ambas as questes mutuamente, aquilo
que conduz ambas as questes no apenas para o interior daquilo que lhes prprio, mas
que as conserva em sua comum-unidade e ali as sustenta, a relao de amhas as ques-
tes, o estado de coisas, o Ereignis. O estado de coisas no se vem juntar posterior-
mente, como uma relao construda, a ser e tempo. O estado de coisas faz com que
primeiramente ser e tempo aconteam a partir de sua relao e no ntimo do que lhes
prprio; e isto atravs do acontecer apropriador que se oculta no destino e no alcanar
iluminador. De acordo com isto, manifesta-se o "Se" que d, no "d-Se ser", "d-Se
tempo", como o Ereignis. A afirmao certa, e, contudo, inverdica, isto , nos esconde
o estado de coisas; pois, inadvertidamente, representamo-lo como algo que se presenta,
enquanto precisamente procuramos pensar a presena como tal. Mas talvez fiquemos de
uma s vez libertos de tocias as dificuldades, de todas as anlises importunas e aparente-
mente estreis, se levantarmos a simples questo, j por demais madura, e a responder-
mos: Que o Ereignis?
Permitam-me aqui uma questo intermediria. Que significa "responder" e "respos-
ta"? Responder, quer dizer, o dizer, que corresponde ao estado de coisas, que aqui deve
ser pensado, isto , ao Ereignis. Se, no entanto, o estado de coisas probe falar-se dele, ao
modo de uma enunciao, seremos levados a renunciar proposio por cuja enuncia-
o se espera, ao levantar a questo. Isto todavia significa confessar a impotncia de pen-
sar, de maneira adequada, aquilo que aqui deve s-lo. Ou ser, por acaso, de melhor con-
selho, no apenas renunciar resposta, mas j prpria pergunta? Pois qual a situao
da questo, claramente justificvel e posta livremente: Que o Ereignis? Com isto
perguntamos pela essncia, pelo modo como o Ereignis , isto , se presenta.
Com a questo aparentemente inofensiva: Que o Ereignis?, exigimos uma infor-
mao sobre o ser do Ereignis. Mas se agora o ser mesmo se apresenta como algo que
pertence ao Ereignis, e somente a partir dele recebe a determinao de presena, ento
regredimos, com a questo levantada, at aquilo que, em primeiro lugar, exige sua deter-
minao: o ser a partir do tempo. Esta determinao mostrou-se, a partir da vista prvia
sobre o "Se", que d, pelo exame dos modos de dar mutuamente imbricados, o destinar
e o alcanar. Destinar do ser repousa no alcanar iluminador do mltiplo presentar, no
mbito aberto do espao-de-tempo. O alcanar, porm, repousa, junto ao destinar, no
acontecimento-apropriao, no acontecer-apropriar. Este, isto , o elemento caracte-
rstico do Ereignis, determina tambm o sentido daquilo que aqui denominado: o
repousar.
O que acabamos de dizer permite, obriga at, de certo modo, a dizer como o Ereig-
nis no deve ser pensado. No podemos representar o que vem designado com o nome de
Ereignis, guiados pela semntica ordinria; pois esta compreende Ereignis no sentido de
acontecimento e fato - e no a partir do apropriar como o alcanar e destinar ilumina-
dor e protetor.
Assim, ouviu-se, por exemplo, proclamar recentemente que a pretendida unificao
da Comunidade Econmica Europia um acontecimento europeu de significao hist-
rica universal. Se, porm, a palavra Ereignis usada no contexto de uma anlise do ser,
se se ouve esta palavra apenas em sua significao ordinria, ento, literalmente se
impe falar do Ereignis do ser. Pois sem o ser ente algum como tal capaz de ser. Desta
forma, pode o ser ser apresentado como o mais alto e mais significativo acontecimento.
TEMPO E SER 467
Mas a nica inteno desta conferncia visa a chegar ao exame do prprio ser
enquanto o Ereignis. Mas aquilo que nomeado com a palavra o "Ereignis" diz algo
bem diferente. Nesta mesma direo deve tambm ser pensado o insignificante e por isso
sempre capcioso, porque plurvoco, "enquanto" (als). 6 Admitindo-se que abandonemos,
para a discusso de ser e tempo, a significao ordinria da palavra Ereignis, e que siga-
mos, em vez disso, o sentido que se anuncia no destinar da presena e no alcanar ilumi-
nador do espao-de-tempo; ento, mesmo assim, ainda permanece indeterminado falar
do "ser enquanto Ereignis ".
"Ser enquanto o Ereignis" - outrora pensou a Filosofia o ser enquanto ida,
enquanto enrgeia, enquanto actualitas, enquanto vontade, sempre a partir do ente, e
agora - poder-se-ia dizer - pensa o ser enquanto Ereignis. Assim compreendido,
Ereignis significa uma explicao derivada do ser, a qual, caso apresente foros de legiti-
midade, representa a continuao da metafsica. O "enquanto" significa neste caso:
Ereignis como uma espcie de ser, subordinado ao ser, que constitui o conceito central
ainda retido. Pensemos, contudo, como foi tentado, ser no sentido de presentar e presen-
tificar, que se do no destino, o qual, por sua vez, repousa no iluminador-velador alcan-
ar do tempo autntico, ento o ser faz parte do acontecer apropriador. dele que o dar
e o seu dom recebem sua determinao. Nesse caso o ser seria uma espcie de Ereignis
e no o Ereignis uma espcie de ser.
Mas o refgio numa tal imerso seria pouco sria. Esta falseia o verdadeiro estado
de coisas. Ereignis no conceito supremo abarcador, sob o qual seria possvel inserir
ser e tempo. Relaes lgicas de ordem no dizem nada aqui. Pois, ao meditarmos sobre
o prprio ser e perseguirmos o que lhe prprio, mostra-se ele como o dom do destino
de presena garantido pelo alcanar do tempo. O dom do presentar propriedade do
acontecer-apropriando. Ser desaparece no Ereignis. Na expresso: "Ser enquanto o
Ereignis : o "enquanto" quer agora dizer: Ser, presentificar destinado no acontecer que
apropria, tempo alcanado no acontecer que apropria. Tempo e ser acontecem apro-
priados no Ereignis. E quanto a este mesmo? Pode-se dizer mais do Ereignis?
Durante a exposio j foi pensado mais, mas no foi propriamente dito, a saber, o
seguinte: que ao dar como destinar pertence a suspenso, isto , no alcanar do passado
e do porvir acontece o jogo da recusa do presente e da reteno de presente. O agora
nomeado: suspenso, recusa, reteno, mostra algo como subtrair-se, em resumo: a
retrao. Mas na medida em que os modos de dar por ele determinados, o destinar e o
alcanar, residem no acontecer apropriador, deve a retrao fazer parte do que espec-
fico do Ereignis. Analis-lo no mais tarefa desta conferncia.
(Com a mxima brevidade e ~e maneira insuficiente para uma conferncia, seja- nos
permitido apontar em direo do elemento especfico do Ereignis.
O destinar no destino do ser foi cara,cterizado como um dar, em que aquilo quedes-
tina retm-se a si mesmo e nesta suspenso se subtrai desocultao.
No tempo autntico e seu espao-de-tempo, mostrou-se o alcanar do que foi, por-
tanto, do no-mais-presente, a recusa deste. No alcanar do futuro, mostrou-se, portanto,
do ainda-no-presente, a reteno deste. Recusa e reteno revelam o mesmo trao que
a suspenso no destinar: a saber, o subtrair-se.
Na medida em que agora destino do ser reside no alcanar do tempo e este com
aquele residem no Ereignis, manifesta-se, no acontecimento-apropriador, o elemento
especfico: ele subtrai o que lhe mais prprio ao desvelamento sem limites. Pensando a
partir do acontecer apropriador, isto quer dizer: Ele sedes-apropria, no sentido meneio-
s Sobre ais (enquanto), ver Ser e Tempo, 32, e Tugendhar, E. - Tikata Tins, Freiburg/Mnchen, 1958.
468 HEIDEGGER
nado, de si mesmo. Do Ereignis enquanto tal faz parte a Enteignis, o no-acontecer des-
apropriador. Atravs deste ltimo o Ereignis no se abandona, mas guarda sua
propriedade.
O outro elemento especfico no Ereignis, vislumbramo-lo to logo meditemos, com
suficiente clareza, algo j dito. No ser como presentar manifesta-se a abordagem, que
aborda a ns humanos, de tal modo que no perceber e assumir desta abordagem alcana-
mos aquilo que especfico do ser homem. Este assumir a abordagem da presena reside,
porm, no in-sistir no mbito do alcanar, alcanar que o modo como nos alcanou o
tempo autntico quadridimensional.
Na medida em que ser e tempo s se do no acontecer apropriador, deste faz parte
o elemento caracterstico que consiste em levar o homem, como aquele que percebe ser,
in-sistindo no tempo autntiLo, ao interior do que lhe prprio. Assim apropriado, o
homem pertence ao Ereignis.
Este pertencer a reside na reapropriao que caracteriza o Ereignis. Por esta o
homem est entregue ao mbito do Ereignis. A isto se deve o fato de nunca sermos capa-
zes de colocar o Ereignis diante de ns, nem como algo que se ope a ns, nem como
algo que a tudo abarca. por esta razo que o pensamento que representa e fundamenta
corresponde to pouco ao Ereignis quanto o dizer simplesmente enunciador.
Na medida em que tempo, tanto quanto ser, enquanto dons do acontecer apropria-
dor, somente podem ser pensados a partir deste, deve tambm ser pensada, de maneira
correspondente, a relao do espao com o Ereignis. Isto naturalmente s pode ter suces-
so se antes tivermos visto claramente a origem do espao, a partir do que especfico do
lugar suficientemente pensado (cf. "Construir, Morar, Pensar", 195 I, em Ensaios e
Conferncias, 1954, p. 145 ss.).
A tentativa do 70 de Ser e Tempo de reduzir a espacialidade do ser-a temporali-
dade no pode ser mais sustentada.
Sem dvida, tornou-se agora visvel que o que quer dizer Ereignis, passado pela
anlise do prprio ser e do prprio tempo, pela penetrao do destino do ser e no alcan-
ar do espao-de-tempo. Mas chegamos ns, por esta via, algo mais que a puros pensa-
mentos fantasiosos? No fundo desta suspeita fala a opinio de que o Ereignis, contudo,
deveria "ser" algo entitativo. Entretanto o Ereignis nem , nem se d. Dizer um como o
outro significa uma distoro do estado de coisas, como se quisssemos fazer a fonte
derivar do rio.
Que resta dizer? Apenas isto: O Ereignis acontece-apropria. Com isto dizemos, a
partir do mesmo, para o mesmo, o mesmo. Aparentemente, isto no diz nada. Realmente
no diz nada enquanto ouvirmos o que foi dito como uma simples enunciao, proposi-
o, e o entregarmos ao interrogatrio da lgica. Que sucederia, porm, se assumssemos
incansavelmente o que foi, como fulcro para a reflexo, e com isto refletssemos sobre o
fato de que este mesmo nem chega a ser algo de novo, mas o mais antigo da Antigui-
dade do pensamento ocidentl: O originariamente antigo que se oculta no nome de Al-
theia? (A-ltheia). Atravs daquilo que predito por este mais originrio de todos os leit-
motive do pensamento, fala um lao - lao que liga todo pensamento, admitindo-se que
este se submeta ao apelo do que deve ser pensado.
Tratou-se de pensar o ser, passando pela anlise do tempo autntico, naquilo que
lhe mais prprio - a partir do Ereignis - , sem levar em considerao a relao do ser
com o ente.
Pensar ser sem o ente, quer dizer: pensar ser sem levar em considerao a metafi-
sica. Mas uma tal considerao impera ainda mesmo na inteno de superar a metafi-
TEMPO ESER 469
sica. Por esta razo trata-se de deixar de lado a idia da superao da metafisica e de
abandonar a metafisica a si mesma.
Se alguma superao permanece necessria, ento interessa aquele pensamento que
propriamente se insere no Ereignis, para diz-lo a partir dele e em direo a ele.
Trata-se de superar incansavelmente os empecilhos que to facilmente tomam um
tal dizer insuficiente. 7
Um empeciiho de tal natureza permanece tambm o dizer algo do Ereignis ao
modo de uma conferncia. Esta apenas falou por proposies enunciativas.
Referncias
7
Eis o motivo de escndalo para todos os que se ocupam com a anlise lgica da linguagem. Vide Marten.
R. - Existieren, Wahrsein und Verstehen, Berlim, 1971, particularmente pp. 211-250.
--
PROTOCOLO DO ~
SEMINARIO SOBRE
A CONFERNCIA
,,TEMPO E SER"*
* O protocolo do seminrio sobre a conferncia Tempo e Ser foi redigido pelo Dr. Alfredo Guzoni. O texto.
por mim examinado, encontra-se completado em algumas passagens. O seminrio teve lugar em Todtna'J-
berg (Floresta Negra), de li a 13 de setembro de 1962, em seis sesses. A publicao do protocolo tem"
inteno de clarificar e profundar aquilo que merece ser questionado no texto da conferncia.
L__
--
Primeira sesso
algo que jamais foi pensado - , mas enquanto um despertar no , de outro lado, um
extinguir o esquecimento do ser, mas um postar-se nele e nele permanecer. Assim odes-
pertar do esquecimento do ser o acordar para dentro do Ereignis. Apenas no pensar o
prprio ser, o Ereignis, torna-se experimentvel o esquecimento do ser como tal.
O carter deste pensamento foi determinado, diversas vezes, como "passo de volta".
Este se compreende primeiro como um "afastar-se de ... " e um "dirigir-se para ... ".
Sendo assim, o pensamento de Heidegger seria o movimento que se afasta da manifesta-
o do ente e se dirige manifestao que permanece velada no ente manifestado. A
expresso "passo de volta" pensada aqui ainda em outro sentido. O passo de volta
recua, conquista distncia, em face daquilo que ainda est por vir. A conquista da distn-
cia um desafastamento, a liberao do aproximar-se daquilo que deve ser pensado.
No passo de volta comea a brilhar, como aquilo que deve ser pensado, a manifesta-
o como tal. Mas em que direo brilha ela?, quer dizer, pensando a partir do passo de
volta, para onde conduz ele? O "para onde" no pode ser constatado (fixado). S pode
determinar-se na realizao do passo de volta, mas isto quer dizer entregar-se, a partir da
correspondncia, quilo que, no passo de volta, chega sua revelao.
No que diz respeito determinao deste "para onde" apresentou-se uma dificul-
dade bsica. Subsiste esta indeterminao para o conhecimento, de tal maneira que o
lugar da revelao est, em si, determinado, mas ainda oculto para o conhecimento? Se,
ao contrrio, esta indeterminao no subsiste apenas para o conhecimento, mas uma
indeterminao do modo de ser do prprio "para onde", nesse caso impe-se a questo
de como um tal ser-indeterminado, que, portanto, no deve ser apenas entendido como
brotando da indigncia de nosso ainda-no-conhecer, pode ser pensado.
Na proporo em que se chegou a uma clarificao - apesar da inadequao des-
tas expresses - , poder-se-ia dizer: O fato do lugar do "para onde" est fixado, mas
ainda permanece oculto para o conhecimento como este lugar, e no pode ser decidido
se o "como", o modo de ser do lugar, j est fixado (no sendo, porm, ainda congnosc-
vel), ou se ele mesmo apenas resulta da realizao do passo que se efetua no despertar
para dentro do Ereignis.
Novamente foi tentada uma caracterizao da inteno fundamental e do movi-
mento da conferncia, o que mais uma vez levou a uma reflexo sobre Ser e Tempo.
A partir do modo de pensar metafisico, todo o caminho da conferncia, e isto quer
dizer, a determinao do ser a partir do Ereignis, pode ser interpretado como o retorno
ao fundamento, origem. A relao entre Ereignis e ser seria ento a relao do a priori
com o a posteriori, no devendo-se, no entanto, compreender por a priori apenas o a
priori do conhecimento e para o conhecimento, que passou a imperar na Filosofia
Moderna. Trata-se, portanto, de um complexo de fundao, que, visto a partir de Hegel,
poderia ser determinado, de modo mais preciso, como o reassumir (re-assumir) e o
sobressumir do ser no interior do Ereignis.
Esta interpretao parece tambm ser sugerida em virtude de haverem sido caracte-
rizados inteno e modo de proceder de Ser e Tempo atravs da expresso "Ontologia
fundamental" - expresso que logo, e precisamente com o intuito de afastar este mal-
entendido, foi abandonada. O decisivo que nisto deve ser considerado a relao da
ontologia fundamental com a nica questo do sentido do ser, preparada em Ser e
Tempo. Segundo Ser e Tempo, a ontologia fundamental a analtica ontolgica do ser-
a. "Por isso a ontologiafundamental, da qual todas as outras ontologias apenas podem
originar-se, deve ser procurada na analtica existencial do ser-a" (Ser e Tempo, p. 13).
Esta passagem parece sugerir que a ontologia fundamental o fundamento para a onto-
SEMINRIO SOBRE TEMPO E SER 477
logia que ainda falta mas que deve ser edificada sobre aquela. Pois, se se trata da questo
do sentido do ser, se sentido projetado, se o projeto acontece na e como compreenso,
se a compreenso do ser constitui o trao fundamental do ser-a, ento a elaborao do
horizonte da compreenso do ser-a a condio de qualquer elaborao da ontologia,
sendo que esta, como poderia parecer, somente pode ser edificada sobre a ontologia
fundamental do ser-a. Desta maneira, a relao da ontologia fundamental com a no
mais publicada clarificao do sentido do ser seria anloga, digamos, com a relao que
subsiste entre teologia fundamental e teologia sistemtica.
Mas a situao no esta, ainda que no se possa negar que isto no chegou a ser
examinado claramente em Ser e Tempo mesmo. Ser e Tempo est muito antes a caminho
para l; a caminho para encontrar, passando pela temporalidade do ser-a, na interpre-
tao do ser como temporalidade, um conceito de tempo, aquele elemento prprio do
"tempo", a partir do qual re-sulta "ser" como presena. Com isto est, porm, dito que
aquilo que chamado fundamental na ontologia fundamental no suporta que sobre ele
se edifique algo. Em vez disso, deveria ser repetida toda a analtica do ser-a de maneira
mais radical e bem diversa, depois de ter sido clarificado o sentido do ser.
Pelo fato de o fundamento da ontologia fundamental no ser fundamento sobre o
qual algo se possa edificar, nenhumfundamentum inconcussum, muito antes umfunda-
mentum concussum; pelo fato, portanto, de a retomada da analtica fundamental j fazer
parte conjunta do ponto de partida de Ser e Tempo, mas a palavra "fundamento" estar
em contradio com o carter provisrio da analtica, foi por isso abandonada a expres-
so "ontologia fundamental".
No fim da primeira sesso foram comentadas algumas passagens, cuja inteleco
no fcil, mas que so indispensveis compreenso da conferncia.
Na parte final da introduo conferncia, a alnea "Trata-se ... de determinar de
maneira suficiente" oferece algumas dificuldades.
Primeiramente reside uma crassa contradio na frase: "A tentativa de pensar ser
sem o ente impe-se porque, de outra maneira, penso no haver possibilidade de abrir
propriamente os olhos para o ser daquilo que ao redor do globo terrestre". A necessi-
dade e a possibilidade desta contradio no foram mais longamente esclarecidas; apon-
tou-se apenas o fato de que est em conexo com a ambigidade do arrazoamento, 1
neste que se pensa, ao ser usada a expresso "o ser daquilo que hoje ... ''. O arrazoa-
mento como o fenmeno precursor do Ereignis , de resto, aquilo que toma possvel esta
tentativa. No portanto - como primeira vista se poderia deduzir do texto - , a
necessidade de compreender o fenmeno atual a motivao propriamente dita do ensaio.
Colocou-se tambm a questo se a expresso "o ser daquilo que hoje ao redor do
globo terrestre "no significa reduo, um estreitamento do problema universal do ser ao
pequeno planeta, o minsculo gro de areia que se chama Terra; se esta reduo no
brota de um interesse antropolgico. Mas esta questo no se examinou mais detida-
mente. No se esclareceu como o arrazoamento, que constitui a essncia da tcnica
moderna e que, portanto, acontece, ao menos na medida em que est ao alcance de nosso
conhecimento, apenas sobre a Terra, pode ser um nome para o ser universal.
Em seguida elucidou-se a expresso "pensar o ser sem o ente". Esta , assim como
a expresso usada mais adiante - "sem tomar em considerao a relao do ser com o
ente" - , a frmula abreviada para: "pensar o ser sem tomar em considerao uma
fundamentao do ser a partir do ente". Pensar o ser sem o ente no quer dizer, portanto,
1
Vjde a explicao do termo em O Princpio de Identidade, nota 4.
478 HEIDEGGER
que para o ser a relao com o ente seja inessencial, que no se deve tomar em considera-
o esta relao; significa, muito antes, no pensar o ser como a metafisica o pensa.
Com a fundamentao do ser a partir do ente no pensado apenas - ainda que o seja
antes de tudo - o momento teolgico da metafisica, portanto, isto, que o summum ens
fornece como causa sui a fundamentao de todo ente como tal (vide as assim chamadas
24 teses de Leibniz em Heidegger, Nietzsche, vo!. II, pp. 454 ss.). Pensa-se, sobretudo, no
carter metafisico da diferena ontolgica, segundo a qual o ser pens~do e concebido
em funo do ente, de maneira tal que o ser, apesar de se lhe reconhecer seu carter de
fundamento, posto sob a dominao do ente.
As primeiras frases da conferncia - aps a introduo - tambm ofereceram
certas dificuldades.
Primeiro diz-se sem mais: "Ser significa, desde a aurora do pensamento ocidental-
europeu at hoje, o mesmo que pre-sentar". Que dizer deste enunciado? Significa ser
exclusivamente, ou ao menos com tal primazia, algo assim como presentar, de maneira
que se passem por alto outras determinaes? Resulta a determinao do ser como pre-
sentar, nica admitida na conferncia, apenas da inteno da conferncia que procura
pensar, numa unidade, ser e tempo? Ou possui o presentar, na totalidade da determina-
o do ser, uma primazia "objetiva", independente da inteno da conferncia? E, qual
a situao, sobretudo, da determinao do ser como fundamento?
Presentar, presena, fala em todos os conceitos metafisicos de ser; mescla-se a todas
as det~rminaes de ser. Mesmo o fundamento enquanto aquilo que j est a diante,
enquanto aquilo que subjaz como base, conduz, quando considerado em si mesmo, para
o permanecer, o demorar e durar, para o tempo, para o presente. No apenas nas deter-
minaes gregas do ser, mas tambm, por exemplo, na "posio" kantiana e na dialtica
de Hegel como movimento de tese, antz'tese e sntese (portanto, tambm aqui revelando-se
o carter de posio), fala presente, manifesta-se uma primazia do presentar (vide Nietzs-
che, II, pp. 399 ss. e ainda: Marcos do Caminho (Wegmarken), 1967; vide pp. 273 ss., A
Tese de Kant sobre o Sei).
Nestas indicaes apenas alusivas, j se revela uma primazia do presentar que
codeterminante em todas as caracterizaes do ser. Como e de que maneira subsiste esta
determinao, qual o sentido que possui a primazia da presena que se manifesta, ainda
est impensado. A primazia do presentar permanece, portanto, na conferncia Tempo e
Ser, uma afirmao, mas enquanto tal questo e tarefa para o pensamento, a saber, a de
meditar se e a partir de onde, e em que medida, a primazia do presentar subsiste.
O primeiro perodo da conferncia continua aps a j citada frase: "A partir do pre-
sentar, da presena fala presente". Esta frase plurvoca. De um lado pode ser
compreendida assim, que presentar como presena (praesenz) seja pensado em funo
daquele que percebe, de sua represena. Presente seria ento uma determinao, conse-
qncia do presentar, e nomearia a relao deste, na perspectiva do homem que percebe.
De outro lado, pode ser assim compreendido, que - de maneira bem geral - do presen-
tar fale tempo, ficando no caso em aberto como e de que maneira "ser como presena ~
determinado pelo tempo". A conferncia visa a este segundo sentido. A plurivocidade,
contudo, e a dificuldade da exposio do problema, o fato, portanto, de que, nas primei-
ras frases, no se trata de uma concluso, mas de um primeiro tatear e medir o mbito
temtico, podem conduzir a mal-entendidos, cuja eliminao somente possvel quando
o olhar se mantm constantemente concentrado na temtica da conferncia como um
todo.
SEMINRIO SOBRE TEMPO E SER 479
Segunda sesso
ponto de vista do Ereignis, entretanto, esta relao mostra-se como a relan e:--_::c:
mundo e coisa, relao que, de incio, ainda poderia ser concebida, de certa manei:a.
como a relao de ser e ente; mas nisto se perderia aquilo que lhe prprio.
Terceira sesso
A terceira sesso, no segundo dia, foi iniciada com algumas indicaes. A dificul-
dade no ouvir e ler a conferncia vai paralela, de maneira singular, com a simplicidade
da questo de que se trata. Por isso se fazia, antes de mais nada, muito premente, o
munir-se da simplicidade do olhar.
A expresso "questo", "questo do pensamento", que se repete muitas vezes na
conferncia, significa, partindo do sentido antigo da palavra (questo - caso de direito,
causa jurdica), o caso controverso, o controvertido, aquilo de que se trata. A questo ,
portanto, para o pensamento ainda indeterminado, aquilo que deve ser pensado, aquilo a
partir de onde recebe suas determinaes.
Para a provisoriedade (precursoriedade) do pensamento de Heidegger poder-se-ia
transpor, com o cuidado exigido e com as necessrias reservas, aquilo que Holderlin
escreve em sua carta a Bohlendorf(outono de 1802):
"Meu caro, penso que ns no mais comentaremos os poetas dos tempos passados;
a maneira mesma de cantar que ir tomar um carter diferente ... "
As anlises da hora moviam-se sobretudo em torno da expresso "d-se" que, na
conferncia, a palavra que conduz, de maneira decisiva, o movimento todo. Tentou-se
clarificar o uso lingstico ordinrio.
J a maneira como o "d-se" aparece no uso da linguagem ordinria, aponta para
uma riqueza de relaes que se ocultam sob o sentido teortico, geral e apagado, do puro
subsistir-a, do puro ocorrer. Se, por exemplo, se diz: "No riacho h trutas", no apenas
se constata o puro "ser" de trutas. Antes disso, e numa espcie de unidade com isso, vem
expressa nesta frase uma caracterstica de riacho; ele vem caracterizado como riacho de
trutas, e assim, como um riacho particular, um riacho no qual se pode pescar. No uso
imediato de "d-se" (h, E.S.) j reside a relao com o homem.
Esta relao , em geral, o estar disponvel, a relao com um possvel apossamento
por parte do homem. Aquilo que h (d-se) no puramente subsistente; interessa muito
antes ao homem. Por causa da relao com o homem, que jaz na expresso, o "d-se"
(h) designa, no uso lingstico imediato, o ser, de maneira mais clara, que o puro "ser",
o "". Mas, na linguagem potica, mostra-se tambm o "" nem sempre e nem somente
no sentido teortico e descolorido da constatao de uma pura subsistncia. Trakel diz:
"H uma luz que o vento apagou.
H um cntaro na campina, que ao entardecer um embriagado abandona.
H um vinhedo, queimado e negro com covas cheias de aranhas.
H um espao, que caiaram com leite".
Estes versos encontram-se nas primeiras estrofes do poema Salmo.
Num outro poema intitulado De Profundis, que faz parte do mesmo ciclo do poema
anterior. Trakel diz:
"H um restolhal em que uma chuva negra cai.
H uma rvore sombria a fincada solitria.
H um vento sibilando, rondando vazias choupanas -
Como triste esta noite.
482 HEIDEGGER
Quarta sesso
No seu incio, mais uma questo solicitou novamente que se meditasse sobre a
inteno da conferncia.
Na Carta sobre o Humanismo, vem dito: "Pois o Se que aqui d, o ser mesmo".
Esta clara afirmao - assim se argumentou - no concorda com a conferncia
Tempo e Ser, na qual a inteno de pensar o ser como Ereignis leva a um domnio do
Ereignis e a um desaparecimento do ser. O desaparecimento do ser no apenas est em
harmonia com a passagem da Carta sobre o Humanismo, mas tambm com a passagem
da conferncia, onde se diz que sua nica inteno era "chegar ao exame do prprio ser
enquanto Ereignis ':
A esse respeito se disse que primeiro a expresso "o ser mesmo", na passagem ques-
tionada na Carta sobre o Humanismo, como em quase todas as passagens, j nomeia o
Ereignis. (As referncias a contextos que constituem a estrutura bsica do Ereignis foram
elaboradas entre 1936 e 1938.) E que depois justamente se trata de ver que, no momento
em que se passa a examinar o ser como o Ereignis, o ser desaparece enquanto ser. Entre
ambas as afirmaes no subsiste, portanto, a contradio. Ambos designam, por manei-
ras diferentes de expresso, o mesmo estado de coisas.
Tampouco pode-se dizer que o ttulo Tempo e Ser contradiz ou se ope ao desapare-
cimento do ser. Este ttulo quer ser um sinal do progresso do pensamento de Ser e
Tempo. No significa que "ser" e "tempo" devam ser mantidos e retidos e devam vir
novamente baila no final da conferncia.
Muito antes, o Ereignis deve ser pensado de tal maneira que no pode ser retido,
nem como ser, nem como tempo. , por assim dizer, um "neutra/e tantum : o neutra/e
"e", no ttulo Tempo e Ser. Isto, contudo, no exclui que no Ereignis seja tambm pensa-
do propriamente o destinar e o alcanar, de tal maneira que tambm ser e tempo conti-
nuam, de certo modo, subsistindo.
Recordaram-se as passagens de Ser e Tempo nas quais j foi usado o "d-se", sem
ser pensado diretamente em funo do Ereignis. Estas passagens mostram-se hoje como
meias-tentativas - tentativas de elaborao da questo do ser, tentativas de lhe mostrar
a direo adequada, que ainda permaneceram na incompletude. Importa por isso, hoje,
ver nessas tentativas a temtica e os motivos que apontam para a questo do ser e por ela
esto determinados. Pois, de outra maneira, somos tomados com demasiada facilidade
pela idia de que as investigaes de Ser e Tempo so tratados autnomos, que deveriam
ser rejeitados como incompletos. Assim, por exemplo, a idia da morte somente objeto
de anlise nos limites e a partir dos motivos que resultam do projeto da elaborao da
temporalidade do ser-a.
hoje j muito difcil representar-se a amplido das dificuldades que barravam o
caminho do questionamento da questo do ser, seu ponto de partida e sua realizao. No
horizonte do neokantismo daquela poca, uma filosofia, para encontrar ouvidos, devia
satisfazer expectativa, pensando kantiana, crtica e transcendentalmente. Ontologia era
uma expresso proibida. Husserl mesmo, que, nas Investigaes Lgicas - antes de
tudo na VI - , muito se aproximara da questo do ser propriamente dita, no pde man-
ter-se firme na atmosfera filosfica daquele tempo; terminou sob a influncia de Natorp
e realizou a virada para a fenomenologia transcendental, que atingiu seu primeiro ponto
SEMINRIO SOBRE TEMPO E SER 485
alto nas Idias. Com isto, porm, foi abandonado o princpio da Fenomenologia. Esta
irrupo da filosofia (na forma do neokantismo) no mbito da fenomenologia teve como
conseqncia que Scheler e muitos outros se separassem de Husserl; mas, em tudo isto,
fica em aberto se e como a secesso foi coerente com o princpio "s questes do pensa-
mento". Tudo isto foi lembrado para classificar a possvel questo pelo modo de proce-
der na conferncia. Este procedimento pode ser caracterizado como fenomenolgico, na
medida em que sob o nome Fenomenologia no se compreende uma espcie particular e
um movimento da Filosofia, mas algo que impera em toda Filosofia. Este algo pode ser
nomeado da maneira mais apropriada com o conhecido dito "s coisas mesmas". Foi
exatamente neste sentido que as investigaes de Husserl se destacaram, em face do
procedimento do neokantismo, como algo novo e extraordinariamente sugestivo; foi
assim que Dilthey, o primeiro, as viu em 1905. E neste sentido que se pode dizer que
Heidegger preserva a Fenomenologia propriamente dita. Com efeito, sem a postura
fenomenolgica fundamental, a questo do ser no teria sido possvel.
O desvio de Husserl para a problemtica do neokantismo - inicialmente mostrado
no importante ensaio, hoje minimizado, "Filosofia como Cincia Rigorosa" (Lgos, I,
1910/11) - e o fato de a Husserl faltar qualquer relao viva com a histria causaram
a ruptura com Dilthey. Neste contexto, paralelamente a muita outra coisa, foi tambm
lembrado que Husserl, no mbito de sua concepo das ontologias regionais, recebeu Ser
e Tempo como uma ontologia regional do histrico.
A quarta sesso foi dominada pela anlise de uma questo relativa passagem
importante, antes j citada: "Ser pelo qual ... " at " ... quer dizer, d ser". A questo
teve em mira a relao de ser e tempo com o Ereignis perguntando-se se entre os concei-
tos ali citados - presentar, presentificar, desvelar (desocultar), dar e acontecer.-
apropriar - subsiste uma gradao, no sentido de uma sempre maior radicalidade.
Perguntou-se tmbm se o movimento, que no perodo problemtico conduz do presentar
passando pelo presentificar, etc., at o acontecer-apropriar, a reconduo at aquele
fundamento radical.
Caso no se tratar cada vez de algo radical, coloca-se a questo: quais so, nesse
caso, a diferena e a relao entre os conceitos nomeados? Estes no representam nenhu-
ma gradao, mas estaes num caminho de retorno que, passando pelo provisrio (pre-
cursor), est aberto para o interior do Ereignis.
A discusso que se seguiu referiu-se, no essencial, ao sentido do determinar que resi-
de no modo como, em meio metafsica, o presentar determina aquilo que se presenta.
Atravs disto, tinha-se por meta tornar mais distinto, pelo contraste, qual o carter que
possui o retorno do presentar para o acontecer-apropriar, que, com demasiada facilidade,
mal entendido como a preparao de um fundamento cada vez mais radical.
O presentar do que se presenta - quer dizer, o presentificar: aquilo que se presenta
- interpretado em Aristteles como poesis. Esta, mais tarde reinterpretada como
creatio, conduz, numa linha de grandiosa simplicidade, at a posio que constitui a
conscincia transcendental dos objetos. Assim, mostra-se que o trao fundamental do
presentificar na metafsica o pro-duzir, em suas mais diferentes formas. Contra isto se
argumentou que, ainda que em suas obras tardias - antes de tudo nos Nmoi - , o
carter "poitico" do nos j sempre se faa mais presente, a relao de determinao
que subsiste entre presentar e aquilo que se presenta no se compreende em Plato como
poesis. No t kal t kal s viria expressa a parousa, o estar-junto do kaln junto aos
kal, sem que se atribua a este estar-junto o sentido do "poitico", sob o ponto de vista
daquilo que se presenta. Mas isto prova que em Plato o determinar permanece impensa-
do. Pois nada est nele elaborado que possa ser a parousa propriamente dita; nada est
486 HEIDEGGER
dito sobre o que a parousa produz, no que se refere aos nta. Esta lacuna no se fecha
pelo fato de Plato procurar captar a relao do presentar com aquilo que se presenta na
metfora da luz - quer dizer, no como poesis, fazer, etc., mas como luz-, ainda que
nisto se oferea, sem dvida, uma proximidade com Heidegger. Pois o presentificar pen-
sado por Heidegger, ainda que, naquela passagem problemtica da conferncia, seja
compreendido como neutral e esteja e deva estar aberto em face de todos os modos do
fazer, da constituio, etc., um levar-para-dentro-do-aberto. Nisto mostrou-se, portan-
to, agora, de maneira expressa o elemento grego, a luz e o brilhar. Fica, entretanto, aber-
ta a pergunta pelo que querer dizer a indicao metafrica para a luz, mas que ainda
no capaz de dizer.
Pela relao do presentificar com a altheia, toda a questo do ser do ente tirada
do questionamento kantiano sobre a constituio dos objetos, ainda que a prpria posi-
o kantiana - retrospectivamente - deva ser compreendida a partir do aletheein, o
que vem provar a tnica posta sobre a fora da imaginao, no livro a respeito de Kant.
Neste ponto perguntou-se se seria suficiente conceber a relao do presentr com
aquilo que se presenta, como revelar, se este tomado em si, isto , se no novamente
determinado quanto a seu contedo. Se o revelar j reside em todos os modos da poesis,
do fazer, do causar, como ser possvel excluir estes modos e reter o revelar (desvelar)
puramente para si? Que significaria, ento, este desvelar, na medida em que no nova-
mente determinado relativamente a seu contedo? Com referncia a isto, foi feita uma
importante distino entre o desvelar que, por exemplo, faz parte da poesis e o desvelar
que visado por Heidegger. Enquanto o primeiro se refere ao edos - este que, na
poesis, exibido e desvelado - , refere-se o desvelar pensado por Heidegger a todo o
ente. A partir da mencionou-se a distino entre o fato de ser (Dass-sein) e o que-ser
(Was-sein), cuja origem obscura e impensada (vide Heidegger, Nietzsche, vol. II, pp.
399 ss.).
Todavia, no que se refere inteno da dvida que se esconde na questo, foi dito
que, ainda que o desvelar, na passagem em questo, seja apenas retido como trao funda-
mental, de maneira que se retire ao -ficar (lacere, E.S.), no presenti-ficar, o carter de
causa, contudo, ainda devem ser pensados os diversos modos do desvelar determinados,
relativamente a seu contedo. Com o passo do presentar para o presentificar e deste para
o desvelar, nada decidido sobre o carter de presena das diversas reas do ente. Per-
manece uma tarefa para o pensamento: determinar o desvelamento das diversas esferas
da coisa.
O mesmo tipo de mobilidade que reside no passo do presentar para o presentificar
mostra-se na passagem do presentificar para o desvelar e deste para o dar. Cada vez o
pensamento realiza um passo de volta. Assim, o modo de proceder deste pensamento
poderia ser visto em analogia com o mtodo da teologia negativa. Isto j se mostraria no
fato e na maneira como os modelos nticos dados na linguagem so demolidos e destru-
dos. Chama ateno, por exemplo, o uso de verbos como "alcanar", "destinar", "sus-
pender", "acontecer-apropriar", que no revelam apenas como palavras que como tais
exprimem tempo, uma forma temporal, mas, alm disso, mostram um sentido expressa-
mente temporal para algo que no nada de temporal.
Quinta sesso
A quinta sesso foi aberta com um relatrio de Jean Beaufret, que deveria servir de
base para a discusso da semelhana, sempre de novo afirmada, entre o pensamento de
Heidegger e de Hegel. O relator informa como esta semelhana vista na Frana.
SEMINRIO SOBRE TEMPO E SER 487
488 HEIDEGGER
Qual a relao do homem com o Ereignis? Nisto se mostraria, ento, uma diferena
intransponvel. Na medida em que, para Hegel, o homem o lugar do vir-a-si-mesmo do
absoluto, isto conduz supresso da finitude do homem. Em Heidegger, pelo contrrio,
a finitude justamente tornada visvel - e, na verdade, no apenas a do homem, mas a
do prprio Ereignis.
O debate sobre Hegel tornou-se ocasio para colocar-se novamente a pergunta: se
a entrada no Ereignis significa o fim da histria do ser. Nisto parece subsistir uma seme-
lhana com Hegel, que, contudo, deve ser vista sobre o pano de fundo da fundamental
diferena. Se h razes para subsistir, de pleno direito, a tese de que somente se poderia
falar ali de um fim da histria onde - como se d no caso de Hegel - impera uma real
identificao de ser e pensar. ficou em aberto.
De qualquer maneira, o fim da histria do ser no sentido de Heidegger algo bem
diferente. O Ereignis oculta, na verdade, possibilidades de desvelamento que o pensa-
mento no pode resolver, e neste sentido no se deve, sem dvida, dizer que, com a entra-
da do pensamento no Ereignis, as destinaes fiquem "paralisadas". Resta, entretanto,
para meditar, se aps a entrada ainda se pode falar do ser e, assim, de histria do ser, se
a histria do ser compreendida como a histria das destinaes, nas quais se oculta o
Ereignis.
Retomou-se novamente a discusso apresentada em sesso anterior, sobre os mode-
los nticos - por exemplo, o alcanar, dom, etc., como processos nticos no tempo. Um
pensamento que pensa em modelos no deve j por isso ser imediatamente caracterizado
como um pensamento tcnico, porque, no caso, modelo no deve ser compreendido no
sentido tcnico, como reproduo ou projeto de algo em escala menor. Modelo , muito
antes, aquilo de que se deve distanciar necessariamente o pensamento como pressuposto
natural, a saber, de tal maneira que aquilo de que o pensamento se distancia , ao mesmo
tempo, aquilo com que se distancia. A necessidade de o pensamento utilizar modelos est
em conexo com a linguagem. A linguagem do pensamento somente pode partir da lin-
guagem natural. Esta, porm, , no fundo, historial e metafisica. Nela j est previamente
dado um tipo de explicitao que assume as formas do bvio. Visto a partir daqui s
existe para o pensamento a possibilidade de procurar modelos, para demoli-los e, assim,
realizar a passagem para o mbito do especulativo. Como exemplos para estados de coi-
sas pensados com recurso a modelos, foram citados:
1. a proposio especulativa em Hegel desenvolvida com o modelo da proposio
ordinria, e de tal maneira que esta oferece o modelo que deve ser eliminado para a
proposio especulativa;
2. a maneira de se movimentar do nous, como vem analisada nos Nmoi de Plato,
isto , no modelo do automovimento dos seres vivos.
O que o modelo como tal e como deve ser compreendida sua funo para o pensa-
mento somente pode ser pensado a partir de uma explicitao fundamental da linguagem.
Desta maneira, a discusso continuou ocupando-se com a linguagem, mais exata-
mente, com a relao entre a assim chamada linguagem natural e a linguagem do pensa-
mento. Falar de modelos nticos pressupe que a linguagem tenha originalmente mode-
los nticos, de maneira que o pensamento, que somente pode mostrar, passando pela
palavra, aquilo que quer dizer ontologicamente, encontra-se na situao de nisto ter que
utilizar modelos nticos.
Mesmo no levando em conta que a linguagem no apenas ntica, mas desde o
incio ntico-ontolgica, deve-se perguntar se no poderia existir uma linguagem do pen-
samtnto que fala o simples da linguagem, de maneira tal que a linguagem do pensamento
SEMINRIO SOBRE TEMPO E SER 489
justamente torne visvel a limitao da linguagem metafisica. Mas sobre isto no se pode
falar. Isto se decide no fato de um tal dizer ter sucesso ou no. No que, enfim, se refere
linguagem natural, ela no apenas por si metafisica. Muito antes, nossa interpretao
da linguagem ordinria est metafisicamente ligada ontologia grega. A relao do
homem com a linguagem poderia transformar-se, porm, de maneira anloga transfor-
mao da relao com o ser.
No fim da sesso foi lida uma carta de Heidegger a ser publicada no livro de
Richardson, Heidegger - O Caminho atravs da Fenomenologia para Pensamento do
Ser. Esta carta, que responde sobretudo a duas questes - a) qual foi o primeiro impul-
so que determinou seu pensamento e b) a questo da viravolta-, clarificou as conexes
que esto na base do texto comentado, o qual percorre o caminho de Ser e Tempo para
Tempo e Ser, e da para o Ereignis.
Sexta sesso
nitude, mas como finitude em si mesma: finitude, fim, limite, aquilo que prprio - o
estar protegido dentro do que prprio. Nesta direo - quer dizer, a partir do prprio
Ereignis, a partir do conceito de propriedade - pensado o novo conceito de finitude.
"Mas o acusado fez sinal que no. Era necessrio estar presente, disse ele, quando
se fosse chamado; mas tomar a iniciativa de chamar seria o maior erro que se poderia
fazer." (Erich Nossak - Audincia Impossvel.)
MEU CAMINHO PARA
A FENOMENOLOGIA*
* Meu Caminho para a Fenomenologia foi publicado como contribuio homenagem, aparecida em tira-
gem privada, a "Hermann Niemeyer, por ocasio de seu octogsimo aniversrio, a 16 de abril de 1963".
495
Dele ouvi, pela primeira vez, por ocasio de alguns passeios a p em que me foi dado
acompanh-lo, algo sobre a importncia de Schelling e de Hegel para a teologia especu-
lativa, em contraste com o sistema doutrinal da escolstica. Desta maneira, a tenso
entre ontologia e teologia especulativa como estrutura da metafsica passou ao horizonte
de meu questionamento.
Temporariamente, contudo, este domnio foi sendo abandonado, devido quilo que
Heinrich Rickert tratava nos exerccios de seminrio: eram os textos de seu discpulo
E mil Lask, que em 1915 tombou como simples soldado na frente da Galcia. Rickert
dedicou "ao querido amigo" sua obra O Objeto do Conhecimento. Introduo Filoso-
fia Transcendental, que aparecera, naquele mesmo ano, em terceira edio inteiramente
reelaborada. A dedicatria tinha, ao mesmo tempo, como funo, testemunhar os impl-
sos que o professor recebera do aluno. Ambos os escritos de Emil Lask: A Lgica da
Filosofia e a Doutrina das Categorias. Um Estudo Sobre o mbito de Validez das For-
mas Lgicas (1911) e A Doutrina do Juzo (1912) manisfestam, por sua vez, com bas-
tante evidncia, a influncia das Investigaes Lgicas de Husserl.
Esta situao obrigou-me a voltar novamente obra de Husserl. Entretanto, tam-
bm esta abordagem repetida permaneceu insatisfatria, pois no conseguia superar uma
dificuldade capital. Esta referia-se simples questo de como se deveriam realizar os
modos de proceder do pensamento denominado "Fenomenologia". O elemento inquie-
tante desta questo resultava da ambigidade que a obra de Husserl revela primeira
vista.
O primeiro volume, aparecido em 1900, traz a refutao do psicologismo na lgica,
procurando mostrar que a doutrina do pensamento e do conhecimento no pode fundar-
se na psicologia. Opondo-se a isto, o segundo volume, aparecido no ano seguinte, e trs
vezes maior, contm a descrio dos atos conscientes essenciais para a edificao do
conhecimento. Portanto, parecia impor-se uma psicologia. A que outra finalidade servi-
ria o 9 da Quinta Investigao sobre: "O significado da delimitao dos 'fenmenos
psquicos' de Brentano"? Conseqncia lgica: Husserl recai, com sua descrio
fenomenolgica dos fenmenos conscientes, na posio do psicologismo que precisa-
mente procurara antes refutar. Se, no entanto, erro to grosseiro no pode ser atribudo
obra de Husserl, que ento a descrio fenomenolgica de atos conscientes? Em que
consiste o elemento individualizador da Fenomenologia, j que esta no nem Lgica
nem Psicologia? Manifesta-se aqui uma disciplina filosfica inteiramente nova e que pos-
sui dignidade e nvel prprios?
No encontrava uma soluo para estas questes; perplexo e sem orientao, nem
mesmo era capaz de articul-las com a clareza com que aqui as formulo.
Ento, o ano de 1913 trouxe uma resposta. Na Editora Max Niemeyer comeou a
ser publicado o "Anurio de Filosofia e Pesquisa Fenomenolgica", editado por Husserl.
O primeiro volume inaugurado com o tratado de Husserl que j manifesta, no ttulo, o
elemento caracterizador e o alcance da Fenomenologia: Idias a Propsito de uma Feno-
menologia Pura e de uma Filosofia Fenomenolgica.
A "fenomenologia pura" a "cincia bsica" da filosofia por ela marcada. "Pura"
significa: "fenomenologia transcendental". "Transcendental" a "subjetividade" do
sujeito que conhece, age e valora. Ambos os ttulos, "subjetividade" e "transcendental",
indicam que a "fenomenologia" se encaminhava, consciente e decididamente, na esteira
da tradio da Filosofia Moderna; fazia-o, no h dvida, de tal maneira, que a "subjeti-
vidade transcendental" atinge, atravs da fenomenologia, uma possibilidade de determi-
nao mais originria e universal. A Fenomenologia retm as "vivncias conscientes"
MEU CAMINHO PARA A FENOMENOLOGIA 497
como rea temtica; mas, j agora no mbito da pesquisa da estrutura dos atos vivencia-
dos, sistematicamente projetada e garantida, e isto conjugado pesquisa dos objetos
vivenciados nos atos, sob o ponto de vista de sua objetividade.
Neste projeto universal de uma filosofia fenomenolgica, podia ser apontado o
lugar sistemtico das Investigaes Lgicas que haviam como que permanecido neutras
do ponto de vista filosfico. Apareceram, no mesmo ano, 1913, em segunda edio, na
mesma editora. A maioria das investigaes havia sido submetida a "profundas reelabo-
raes". A Sexta Investigao, "a mais importante no que se refere fenomenologia"
(prefcio da segunda edio), foi, entretanto, mantida. Por outro lado, o ensaio Filosofia
como Cincia Rigorosa (1910/11), publicado no primeiro volume da recm-fundada
revista Logos, recebeu, somente com a publicao das Idias para uma Fenomenologia
Pura, a devida fundamentao de suas teses programticas.
Ainda em 1913, apareceu, na Editora Max Niemeyer, a significativa anlise de
Scheler: "A propsito da fenomenologia dos sentimentos de simpatia e de dio. Com um
apndice sobre a razo da aceitao da existncia de um eu estranho".
A edio das obras citadas colocou o trabalho editorial de Niemeyer na primeira
fila das editoras de Filosofia. Muitas vezes, ouviu-se naquele tempo a afirmao, que
parecia impor-se, de que com a "fenomenologia" surgira um novo movimento no seio da
filosofia europia. Quem teria ousado negar a veracidade de tal afirmao?
Mas um clculo histrico deste tipo no precisa aquilo que com a "fenomenologia",
isto , j com as Investigaes Lgicas, acontecera. Isto permanece inexpresso desde
aquela poca e dificilmente tambm hoje deixa-se dizer. As explicaes programticas e
as exposies metodolgicas de Husserl reforaram antes o equvoco de que com a
"fenomenologia" se reivindicava um comeo para a filosofia, comeo que negaria todo
pensamento anterior.
Ainda aps o aparecimento das Idias para uma Fenomenologia Pura, manteve-me
fascinado o encanto insistente que as Investigaes Lgicas irradiavam. Provocava uma
inquietao que desconbecfa sua razo de ser, ajnda que deixasse pressentir que se origi-
nava da incapacidade de chegar, pela pura leitura da literatura filosfica, a realizar o
processo de pensamento que se designava como "fenomenologia".
A perplexidade desapareceu muito lentamente, trabalhosamente solveu-se a confu-
so, a partir do momento em que pude entrar pessoalmente em contato com Husserl em
seu centro de trabalho.
Husserl veio a Freiburg im Breisgau em 1916, como sucessor de Heinrich Rickert,
que assumira a ctedra de Windelband, em Heidelberg. A atividade docente de Husserl
consistia no progressivo exerccio e na aprendizagem do "ver" fenomenolgico; ele exi-
gia tanto a renncia a todo uso no crtico de conhecimentos filosficos como impunha
no trazer-se, para o dilogo, a autoridade dos grandes pensadores. Eu, entretanto,
menos podia separar-me de Aristteles e de outros pensadores gregos, quanto mais clara-
mente a crescente intimidade com o ver fenomenolgico fecundava a interpretao dos
textos aristotlicos. Na verdade, no conseguia ainda abranger, de imediato, que conse-
qncias decisivas traria o repetido retorno a Aristteles.
Desde 1919 passei a dedicar-me pessoalmente s atividades docentes na proximi-
dade de Husserl; nestas, aprendia o ver fenomenolgico, nele me exercitando e ao mesmo
tempo experimentando uma nova compreenso de Aristteles; foi a que meu interesse se
voltou novamente s Investigaes Lgicas, sobretudo Sexta Investigao da primeira
edio. A distino que Husserl a constri entre intuio sensvel e categorial revelou-
me seu alcance para a determinao do "significado mltiplo do ente".
498 HEIDEGGER
Por isso insistimos - amigos e alunos - para que o mestre reeditasse a Sexta
Investigao, naquela poca dificilmente encontrvel. Numa comprovada disponibi-
lidade aos interesses da fenomenologia, a Editora Max Niemeyer publicou, em 1922, a
ltima parte das Investigaes Lgicas. Husserl nota no prefcio: "Na situao atual,
cedi insistncia de amigos da presente obra, e decidi-me a possibilitar novamente o
acesso sua parte final, na forma primitiva". Com a expresso "amigos da presente
obra" Husserl quis ao mesmo tempo significar que, desde a publicao das Idias, ele
prprio no mais se sentia to ligado s Investigaes Lgicas. Pois, com dedicao sem
igual, empenhava, na nova sede de sua atividade acadmica, sua paixo pelo pensamento
e seu esforo na elaborao sistemtica do projeto apresentado nas Idias. Por isso Hus-
serl pde escrever no prefcio Sexta Investigao acima referido: "Tambm minha ati-
vidade docente em Freiburg orientou meu interesse aos elementos-guias da universa-
lidade e ao sistema".
Assim pois, Husserl, compreensivo, mas no fundo reticente, observava como eu,
paralelamente s minhas aulas e exerccios de seminrio, aprofundava, todas as semanas,
com alunos mais adiantados, as Investigaes Lgicas, em grupos privados de trabalho.
Principalmente a preparao deste trabalho foi-me muito fecunda. Nela descobri -
antes conduzido por um pressentimento do que orientado por uma compreenso fundada
- o seguinte: o que para a fenomenologia dos atos conscientes se realiza como o
automostrar-se dos fenmenos pensado mais originariamente por Aristteles e por todo
o pensamento e existncia dos gregos como Altheia, como o desvelamento do que se
pre-senta, seu desocultamento e seu mostrar-se. Aquilo que as Investigaes redesco-
briram como a atitude bsica do pensamento revela-se como o trao fundamental do
pensamento grego, quando no da Filosofia como tal.
Quanto mais decisivamente esta convico se definia, tanto mais insistente torna-
va-se a questo: De onde e de que maneira se determina aquilo que, de acordo com o
princpio da fenomenologia, deve ser experimentado como "a coisa mesma"? ela a
conscincia e sua objetividade, ou o ser do ente em seu desvelamento e ocultao?
Deste modo fui levado ao caminho da questo do ser, iluminado pela atitude
fenomenolgica, sempre de novo e cada vez de maneira diferente, inquietado pelas ques-
tes emanadas da dissertao de Brentano. O caminho do questionamento tornou-se,
porm, bem mais longo do que presumia. Exigia muitas paradas, desvios e sendas perdi-
das. Tudo aquilo que foi tentado nas prelees da primeira fase de Freiburg, e nas de
Marburg, mostra, embora de maneira indireta, qual foi o caminho.
"Colega Heidegger, agora torna-se necessrio que o senhor publique algo. Dispe
de um manuscrito pronto?" Com estas palavras entrou em minha sala de estudos o deca-
no da Faculdade de Filosofia de Marburg, em certo dia do semestre de inverno de
1925/26. "Certamente", respondi-lhe. E o decano novamente: "H que imprimi-lo com
urgncia". A faculdade havia-me proposto unico loco como sucessor de Nicolai Hart-
mann no ordinariado I de Filosofia. O Ministrio de Cultura de Berlim recusara, entre-
tanto, a proposta com o argumento de que eu havia dez anos nada mais havia publicado.
Chegara, pois, a hora de enfrentar o pblico com o trabalho longamente cultivado.
A Editora Max Niemeyer estava disposta, atravs da mediao de Husserl, a imprimir
logo os primeiros cinqenta cadernos do texto, que deveriam aparecer no "Anurio" de
Husserl. Sem demora, a Faculdade encaminhou ao Ministrio dois exemplares do que es-
tava impresso. Aps certo tempo foram, contudo, devolvidos Faculdade, com a obser-
vao: "Insuficiente". Em fevereiro do ano seguinte (1927) apareceu ento o texto com-
pleto de Ser e Tempo, no oitavo volume do "Anurio" de Husserl, e como separata.
MEU CAMINHO PARA A FENOMENOLOGIA 499
Aps meio ano, o Ministrio retirou seu juzo negativo, efetivando meu chamado
ctedra.
Por ocasio da singular publicao de Ser e Tempo, entrei pela primeira vez em
contato direto com a Editora Max Niemeyer. O que no primeiro semestre de meus estu-
dos acadmicos era apenas um nome na pgina-ttulo da fascinante obra de Husserl
mostrava-se, agora e da em diante, amplamente no trabalho editorial realizado com cui-
dado e segurana, com generosidade e simplicidade.
No vero de 1928, durante meu ltimo semestre em Marburg, foi preparado o volu-
me comemorativo dos setenta anos de Husserl. No incio deste semestre, morreu inespe-
radamente Max Scheler, um dos co-responsveis pela edio do "Anurio" de Husserl,
que havia publicado no primeiro e segundo volumes (1916) seu grande tratado O Forma-
lismo na tica e a tica Material dos Valores. Ao lado das Idias de Husserl constitui
esta a mais importante contribuio para o "Anurio", o qual, atravs de sua ampla
repercusso, tambm mostrou sob nova luz a grande viso e eficincia da Editora Max
Niemeyer.
O volume comemorativo do aniversrio de Edmund Husserl saiu pontualmente a
lume no dia natalcio, como volume complementar do "Anurio". Tive a honra de entre-
g-lo ao professor festejado, no dia 8 de abril de 1929, em meio ao crculo de seus disc-
pulos e amigos.
Nos anos seguintes evitei toda publicao maior, at que a Editora Max Niemeyer
arriscou imprimir, em 1941, minha interpretao do hino de Holderlin "Como num dia
de festa ... ", sem, entretanto, indicar a data da edio. Eu havia proferido esta confern-
cia, em maio do mesmo ano, como professor visitante na Universidade de Leipzig. O
proprietrio da Editora, Hermann Niemeyer, veio de Halle para assistir a ela, e logo
combinamos a sua publicao.
Ao me decidir, doze anos mais tarde, a editar parte de minhas antigas aulas, no
tive dvida em escolher para tal empresa a Editora Max Niemeyer. Mas agora no se lia
mais nas primeiras pginas de seus livros, "Halle a.d. Saale" - cidade em cuja universi-
dade lecionou, na ltima dcada do sculo passado, o ento livre-docente Edmund Hus-
serl. Muitas vezes contou mais tarde, em Freiburg, a histria que est na origem das
Investigaes Lgicas. Nunca esquecia de, nestas ocasies, lembrar com gratido e
admirao, Max Niemeyer que, na passagem do sculo, assumiu o risco de editar a volu-
mosa obra de um desconhecido livre-docente, que enveredara por caminhos inusuais,
provocando, com isto, estranheza no seio da filosofia contempornea; muita coisa acon-
teceu a esta obra, no decurso dos anos seguintes, at Dilthey reconhecer sua importncia.
Naquela poca a editora no podia saber que, no futuro, seu nome permaneceria ligado
Fenomenologia, a qual muito em breve passou a determinar o esprito da poca, nas
mais diversas reas e em geral de maneira silenciosa.
E hoje? Parece que o tempo da filosofia fenomenolgica passou. J julgada como
algo passado, que apenas consignado ainda historiograficamente ao lado de outros
movimentos filosficos. Entretanto, a Fenomenologia no nenhum movimento, naquilo
que lhe mais prprio. Ela a possibilidade do pensamento - que periodicamente se
transforma e somente assim permanece - de corresponder ao apelo do que deve ser pen-
sado. Se a Fenomenologia for assim compreendida e guardada, ento pode desaparecer
como expresso, para dar lugar questo do pensamento, cuja manifestao permanece
um mistrio.
500 HEIDEGGER
O sentido da ltima frase j vem expresso em Ser e Tempo (1927), pg. 38:
"O essencial para ela (a Fenomenologia) no consiste em realizar-se como 'movi-
mento' filosfico. Acima da atualidade est a possibilidade. Compreender a Fenomeno-
logia quer unicamente dizer: capt-la como possibilidade".
ndice
JEAN-PAUL SARTRE
A IMAGINAO .............................................. . 39
Introduo .................................................. . 41
I. Os grandes sistemas metafsicos ................................. . 45
II. O problema da imagem e o esforo dos psiclogos para encontrar
um me'to d o pos1"t'1vo ......................................... . 51
III. As contradies da concepo clssica .......................... . 79
IV. Husserl .................................................. . 103
Concluso ..................................................... . 113
MARTIN HEIDEGGER
QUE ISTO- A FILOSOFIA? .................................... 205
Nota do tradutor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207