Introdução A Fenomenologia Do Espírito
Introdução A Fenomenologia Do Espírito
Introdução A Fenomenologia Do Espírito
Vivemos alis numa poca em que a universalidade do esprito est fortemente consolidada, e a singularidade, como convm, tornou-se tanto mais insignificante; poca em que a universalidade se aferra a toda a sua extenso e riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe atividade do indivduo na obra total do esprito s pode ser mnima. Assim, ele deve esquecer-se, como j o implica a natureza da cincia. Na verdade, o indivduo deve vir-a-ser, e tambm deve fazer o que lhe for possvel; mas no se deve exigir muito dele, j que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo1. A fim de introduzir algumas questes e mtodos que nos guiaro neste curso, convm partirmos destas afirmaes. Convm partirmos destas afirmaes porque elas parecem sintetizar tudo aquilo que vrias linhas hegemnicas do pensamento filosfico do sculo XX imputaram a Hegel. Filsofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da diferena e das aspiraes de reconhecimento do individual s estratgias de sntese do conceito. Terico de uma modernidade que se realizaria no totalitarismo de um Estado Universal que se julga a encarnao da obra total do esprito. Expresso mais bem acabada da crena filosfica de que s seria possvel pensar atravs da articulao de sistemas fortemente hierrquicos e teleolgicos, com o conseqente desprezo pela dignidade ontolgica do contingente, deste contingente que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo. Poderamos ainda desdobrar uma lista aparentemente infindvel de acusaes que o pensamento do sculo XX levantou contra Hegel: tentativa de ressuscitar uma metafsica pr-crtica de forte matiz teolgico, hipstase da filosofia da conscincia, crena em uma histria onde o presente apresentaria uma universalidade do esprito fortemente consolidada, histria teleolgica esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda fossem possveis. A este respeito, Habermas, por exemplo, falar: de um esprito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta auto referncia as diversas contradies atuais apenas para faze-las perder o seu carter de
HEGEL, Fenomenologia I, p. 62
realidade, para transforma-las no modus da transparncia fantasmagrica de um passado recordado e para lhes tirar toda a seriedade2. Mesmo as tradies filosficas que se reclamam do hegelianismo nunca aceitaram o que poderamos chamar de um hegelianismo sem reservas. Se a tradio marxista, por exemplo, encontrou em Hegel uma antropologia filosfica capaz de expor o processo histrico de formao da conscincia em suas expectativas cognitivoinstrumental, prtico-moral e esttico-expressiva, ela logo procurou claramente tomar distncia do que seria holismo esttico da metafsica especulativa resultante do sistema. Por sua vez, o chamado hegelianismo de direita (que vai desde Rozenkranz at Joachim Ritter) faz, de uma certa forma, a operao inversa e insiste na substancialidade de laos comunitrios metafisicamente fundamentados contra a centralidade da temporalidade histrica no pensamento dialtico..Como se, mesmo entre os neo-hegelianos, a imagem de Hegel fosse a de um pensamento impossvel de chegar perto demais. Tudo isto nos leva a colocar uma questo central para a orientao deste curso: O que significa ler Hegel hoje?. Devemos aqui nos restringir economia interna dos textos e ignorar como a auto-compreenso filosfica da contemporaneidade afirmou-se insistentemente como anti-hegeliana? Como se nosso tempo exigisse no se reconhecer no diagnstico de poca e no permitisse deixar-se ler atravs das categorias fornecidas por Hegel. Ou seja, possvel ler Hegel hoje sem levar em conta como nosso momento filosfico organizou-se, entre outras estratgias, atravs dos mltiplos regimes de contraposio filosofia hegeliana? No estaramos assim perdendo a oportunidade de entender como a auto-compreenso de um tempo depende, em larga escala, da maneira com que se decide o destino de textos filosficos de geraes anteriores? Compreender como um tempo se define, entre outras operaes, atravs da maneira com que os filsofos lem os filsofos: prova maior de que a histria da filosofia , em larga medida, figura da reflexo filosfica sobre o presente? Sim, ler Hegel sem levar em conta o peso que o presente impe seria perder muita coisa. E aqui no poderamos deixar de fazer ressoar a constatao de Foucault: Toda nossa poca, que seja pela lgica ou pela epistemologia, que seja atravs de Marx ou atravs de Nietzsche, tenta escapar de Hegel (...) Mas realmente escapar de Hegel supe apreciar de maneira exata quanto custa se desvincular dele; isto supe saber at onde Hegel, talvez de maneira insidiosa, aproximou-se de ns; supe saber o que
ainda hegeliano naquilo que nos permite de pensar contra Hegel e de medir em que nosso recuso contra ele ainda uma astcia que ele mesmo nos ope e ao final da qual ele mesmo nos espera, imvel3. Neste curso, no faremos outra coisa que levar estas palavras a srio.
Chamar nossa poca de anti-hegeliana no me parece uma simples concesso retrica para dramatizar um pouco o incio de um curso sobre um texto reconhecidamente rduo. Neste sentido, no sem valor lembrar como as trs grandes tradies da filosofia ocidentais contempornea (francesa, alem, anglo-sax) tm em comum a distncia, s vezes ambgua, s vezes taxativa, em relao a Hegel. Se quisermos oferecer uma certa geografia do anti-hegelianismo, o melhor pas a comear , sem dvida, a Frana. Pois a histria da recepo de Hegel na Frana a histria espetacular de uma reviravolta. Em seu Relatrio sobre o estado dos estudos hegelianos na Frana, de 1930, Alexandre Koyr comea em tom desolador: Temo um pouco que aps os relatrios, to ricos em fatos e em nomes, dos meus colegas alemes, ingleses e intalianos, meu prprio relatrio sobre o estado dos estudos hegelianos na Frana lhes parea relativamente muito magro e muito pobre 4. A magreza e pobreza do hegelianismo francs se contrapunha a robustez de uma filosofia universitria marcadamente neo-kantiana. No entanto, ao reimprimir seu texto na dcada de sessenta, Koyr foi obrigado a acrescentar um post-scriptum que comeava da seguinte maneira: Desde a publicao deste relatrio (1930), a situao de Hegel no mundo da filosofia europia, e particularmente francesa, mudou completamente: a filosofia hegeliana conheceu um verdadeiro renascimento, ou melhor, ressurreio, e s perde para o existencialismo ao qual, alis, ela s vezes procura se unir. De fato, a partir de meados dos anos trinta e at o incio dos anos sessenta, a Frana foi hegeliana. Um hegelianismo absolutamente particular pois baseado na Fenomenologia do Esprito, livro que at ento era visto como texto menor da bibliografia hegeliana pois desprovido do esforo sistemtico presente na Cincia da lgica e, principalmente, na Enciclopdia. Ao insistir na centralidade da Fenomenologia, em especial na figuras figuras da conscincia-de-si, como o Senhor e o
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FOUCAULT, Lordre du discours, pp. 74-75 KOYR, Estudos de histria do pensamento filosfico, p. 178
escravo e a conscincia infeliz, o pensamento francs podia transformar Hegel no terico da intersubjetividade e da crtica ao solipsismo. Intersubjetividade de um desejo e de um trabalho que so manifestaes da negatividade de sujeitos no mais determinados por atributos substanciais. A negatividade do sujeito em suas operaes de desejo e trabalho, assim como a constituio de estruturas sociais universais capazes de suportar o reconhecimento intersubjetivo deste desejo e deste trabalho, apareciam como a grande contribuio de Hegel compreenso das estruturas sociais da modernidade, de seus processos de constituio e de suas promessas de reconciliao. Foi Alexandre Kojve com seu curso sobre a Fenomenologia do Esprito que marcou o pensamento francs com esta temtica em grande parte derivada de uma improvvel leitura heideggero-marxista de Hegel. Para termos uma idia do tamanho desta influncia, basta lembrarmos de alguns freqentadores destes seminrios: Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Georges Bataille, Pierre Klossowski, Raymond Aron, Eric Weil, Raymond Queneau, Jean Hyppolite, Andr Breton e, de uma maneira espordica, Jean-Paul Sartre. Todos eles tero seus projetos intelectuais marcados de maneira profunda por este contato com a fenomenologia hegeliana. Raramente, um comentrio de texto foi to decisivo na estruturao da experincia intelectual de uma gerao. No entanto, a partir do comeo dos anos sessenta, a configurao do pensamento filosfico francs ir novamente modificar-se de maneira radical e o ponto de viragem ser novamente Hegel. O advento do estruturalismo j colocava em questo a herana hegeliano-fenomenolgica ao relativizar a centralidade dos sujeitos agentes e desejantes na vida social. Althusser, por exemplo, colocara em circulao um marxismo desprovido de toda e qualquer raiz hegeliana ao insistir que Marx trouxera, nO capital, a noo de sistemas que funcionam revelia dos sujeitos e que, na verdade, mostrara como sujeito com suas crenas de autonomia da ao era a categoria ideolgica por excelncia. Mas a hegemonia do que posteriormente foi chamado de ps-estruturalismo selou definitivamente o segundo ostracismo de Hegel em solo francs. Para Deleuze, Lyotard, Derrida e Foucault (em menor grau), Hegel e a dialtica eram, em larga medida, as figuras maiores do imprio do Universal, das totalizaes e do pensamento da identidade. Hegel como o construtor do sonho de uma meta-narrativa absoluta animada pela crena inabalvel na unidade da razo. Para os ps-estruturalistas, a negatividade do sujeito hegeliano era apenas a ltima estratgia para submeter as
singularidades ao imprio do Universal, da mesma forma como a ltima palavra da dialtica seria sempre a sntese que reconciliaria contradies. Pois esta negatividade estava fadada a ser recuperada pelas estruturas sociais da modernidade com suas aspiraes universalizantes. Contra isto, o ps-estruturalismo no cansou de contrapor o pensamento da diferena pura (Derrida), do sensvel (Lyotard), dos fluxos noestruturados de intensidade (Deleuze) e da imbricao aparentemente irredutvel entre razo e poder (Foucault). Se levarmos em conta a importncia crucial que o psestruturalismo ainda tem na auto-compreenso do nosso tempo, podemos imaginar o peso destas confrontaes na determinao do destino contemporneo da influncia de Hegel. verdade, nunca devemos esquecer de um julgamento tardio de Foucault ao reconhecer que Hegel estaria na raiz de um outro modo de interrogao crtica que nasce com a modernidade e que poderia ser resumido atravs das questes: o que nossa atualidade? Qual o campo atual de experincias possveis?. Algo distinto da analtica da verdade de inspirao kantiana. Uma ontologia do presente, proj eto no interior do qual, finalmente, o prprio Foucault se ver5. Mas tal reconhecimento no implicou em retorno a Hegel e a sua compreenso da modernidade e seus desafios. Por outro lado, se voltarmos os olhos tradio alem, o cenrio de recusa a Hegel no deixar de se fazer sentir. Heidegger, responsvel em larga medida pela recuperao da importncia da Fenomenologia do Esprito, livro ao qual ele dedicou um curso no ano letivo de 1930-1931, ver Hegel como o pice da metafsica do sujeito e do esquecimento do ser. Neste sentido, a sada do quadro epocal da metafsica ocidental deveria ser feita em um movimento, em larga medida contra Hegel e sua noo de sujeito. A Escola de Frankfurt, por sua vez, no deixar de ter uma postura ambgua e dilacerada em relao herana do hegelianismo. Neste sentido, o exemplo mais forte Adorno. O mesmo Adorno que tentar salvar a dialtica de seus dispositivos de sntese totalizante, insistindo na irredutibilidade das negaes e que nunca deixar de ter palavras duras em relao a Hegel. Pois, tal como na tradio ps-estruturalista (mas por outras vias), Adorno compreende Hegel como aquele que, de uma certa forma, trair seu prprio mtodo a fim de retornar a um pensamento da identidade. Basta lembrarmos aqui desta afirmao escrita pensando no trecho que abriu nossa aula: Se Hegel tivesse
levado a doutrina da identidade entre o universal e o particular at uma dialtica no interior do prprio particular, o particular teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito tal como um pai repreendendo seu filho: Voc se cr um ser particular -, ele o abaixe ao nvel de simples paixo e psicologize o direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto no apenas um pecado original individual do filsofo6. Isto no um pecado individual do filsofo porque um pecado de todo seu sistema. Se os ps-estruturalista contrapuseram Hegel a um pensamento das singularidades puras, nico pensamento que seria capaz de dar conta das aspiraes de um tempo que procura ir para alm do projeto da modernidade, Adorno contrape Hegel a um pensamento da no-identidade com suas exigncias de irredutibilidade do singular. Se o diagnstico adorniano de Hegel parece, pelo menos a primeira vista, alinhar-se com aquele sugerido pelos ps-estruturalistas, o diagnstico de Habermas e seus seguidores, procuravam (sem nunca ter realmente problematizado esta articulao) desqualificar a leitura proposta pela primeira gerao dos hegelianos franceses. Pois, contrariamente a Hyppolite e Kojve, Habermas no cansar de ver Hegel como uma espcie de Moiss que na sua juventude vira a terra prometida da intersubjetividade comunicacional capaz de fundamentar as aspiraes universalistas da modernidade, mas que, a partir, da Fenomenologia, teria retornado a uma filosofia centrada no sujeito e a um conceito mentalista do Si-mesmo e de auto-reflexo que restringe a compreenso da razo em suas aspiraes cognitivo-instrumentais dimenso das confrontaes entre sujeito-objeto. Ou seja, mesmo entre os defensores da modernidade, a via hegeliana no parecia mais capaz de fornecer estruturas seguras de orientao. Se voltarmos, por fim, os olhos tradio anglo-sax o cenrio era, at bem pouco tempo, praticamente desolador. No entanto, antes da I Guerra Mundial, Hegel foi um filsofo central em Oxford e Cambridge (Bradley, McTaggart, Green) por fornecer uma alternativa ao empirismo e ao individualismo. Por sua vez, o pragmatismo norteamericano tambm foi receptivo a Hegel e John Dewey encontrou no conceito hegeliano de eticidade a idia, central para o desenvolvimento de seu pensamento, de que as prticas substancialmente arraigadas na comunidade (e mo exatamente no Estado) expressam as normas determinantes para a formao da identidade dos indivduos.
Estas leituras de Hegel foram soterradas pela guinada analtica da filosofia anglo-sax. Para uma tradio que, em larga medida, compreendia os problemas filosficos como problemas gramaticais, Hegel parecia simplesmente indicar um retorno pr-crtico metafsica com fortes matizes teolgicas, isto quando a dialtica no era simplesmente vista como um equvoco lgico (Russell). E mesmo autores como Wittgenstein iro imputar a Hegel um pensamento da identidade e do Mesmo, imputao idntica quela que parece animar as crticas de setores relevantes do pensamento francs e alemo contemporneos. Lembremos, por exemplo, da seguinte afirmao de Wittgenstein: No, no acredito que tenha algo a ver com Hegel. Para mim, Hegel parece sempre dizer que coisas que parecem diferentes so, na realidade, idnticas. Meu interesse est em mostra que coisas que parecem idnticas so diferentes7. O autor da noo de jogos de linguagem v, na estratgia hegeliana que conservao das aspiraes universalizantes da razo, apenas uma figura totalitria da unidade. No que diz respeito a Hegel, autores to distantes ente si e to centrais para a constituio dos esquemas de auto-compreenso da contemporaneidade quanto Wittgenstein, os frankfurtianos e os ps-estruturalistas parecem estar de acordo.
Ler
Depois desta longa digresso, podemos voltar a nossa questo inicial a fim de tentar responde-la: o que significa e como ler Hegel em uma poca profundamente anti-hegeliana? Pois, se certo que no somos contemporneos de Hegel, impossvel deixar de levar em conta esta estratgia de determinar as aspiraes do presente atravs de sua recusa em submeter-se quilo que foi trazido atravs da experincia intelectual hegeliana em sua integralidade. Esta questo nos levar, necessariamente, a um problema de mtodo que toca a prpria compreenso do que uma leitura de textos da tradio filosfica, ainda mais textos que procuram fundar uma ontologia do presente, tal como o caso da Fenomenologia do Esprito. Creio que esta uma questo de suma importncia porque vocs esto no interior de um processo de aprendizagem de leitura. Vocs aprendero tcnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosfico de leitura de textos da tradio :
saber identificar o tempo lgico que nos ensina a reconstituir a ordem das razes internas a um sistema filosfico, pensar duas vezes antes de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o mtodo se encontra em ato no prprio movimento estrutural do pensamento filosfico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a constituio daquilo que chamamos de rigor interpretativo que respeita a autonomia do texto filosfico enquanto sistema de proposies e no se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de compreender est sempre subordinado ao exerccio de explicar. Mas ele no define o campo geral dos modos filosficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da formao de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele o incio irredutvel de todo fazer filosfico mas, por mais que isto possa parecer bvio, o fazer filosfico vai alm do seu incio. Lembremos, por exemplo, do que diz Kant a respeito de seu modo de leitura dos textos filosficos : No raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque no determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou at pensou contra sua prpria inteno8. Este comentrio aparentemente inocente a exposio de todo um programa de leitura que, aparentemente, no est totalmente de acordo com as regras do rigor interpretativo. Afinal, Kant reconhece que sua leitura , digamos, sintomal. Ele ir procurar aqueles pontos da superfcie do texto nos quais a letra no condiz com o esprito, nos quais o autor estranhamente pensou contra sua prpria inteno. Mas o que significa admitir um pensamento que se descola de sua prpria inteno e que deixa traos deste descolamento nos textos que produz? Podemos dizer que significa, principalmente, estar atento s regies textuais nas quais o projeto do sistema filosfico trado pelo encadeamento implacvel do conceito que insiste em abrir novas direes. Ao menos neste ponto, difcil estar de acordo com Goldsmith, para quem : as asseres de um sistema no podem ter por causas, tanto prximas quanto imaginrias, seno conhecidas do filsofo e alegadas por ele9. A histria da filosofia, ao contrrio, mostra que sim possvel pensar a partir daquilo que o autor produz sem o saber, ou sem o reconhecer. Pensar deslocando conscientemente a ordem das razes de um filsofo para que a radicalidade de certas conquistas possa aparecer com mais fora.
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KANT, Crtica da razo pura, A 314 GOLDSMITH, Tempo lgico e tempo histrico na interpretao dos sistemas filosficos, p. 141
Mas um filsofo pode estar atento quilo que outro filsofo produziu sem o saber porque, para alm do tempo lgico, ele admite uma espcie de tempo transversal atravs do qual o presente pode colocar questes e rever as respostas do passado. A transversalidade fundamental do tempo filosfico indica que o presente pode, sem deixar de reconhecer a tenso inerente a tal operao, aproximar os textos da tradio e procurar traos de construes potenciais que foram deixadas pelo caminho. Ou seja, podemos ler um texto da tradio filosfica tendo em vista seu destino. Encontraremos nele, em um movimento retrospectivo, as marcas de debates posteriores. Mapearemos a maneira com que o texto em sua vida autnoma foi inserindo-se em debates que lhe pareceriam, a primeira vista, estranhos. Isto implica em compreender como programas filosficos que lhe sucederam foram construdos atravs de um embate sobre o sentido da letra deste texto que teima em no querer pertencer ao passado. Compreender que a histria da recepo de um texto filosfico no externa constituio do sentido deste texto. Pois os textos filosficos tm uma peculiaridade maior: seus processos de negociao no se do apenas com os atores que compem a cena da sua escrita; eles se do tambm com atores que s se constituiro no futuro. Est segunda orientao metodolgica fornecer as balizas para o nosso curso. Seguir tal orientao metodolgica significa, na verdade, levar a srio a afirmao de Adorno a respeito da arte de ler Hegel: A arte de ler Hegel deveria estar atenta ao momento no qual intervm o novo, o substancial e distingui-lo do momento no qual continua a funcionar uma mquina que no se v como uma e que no deveria continuar funcionando. necessrio a todo momento tomar em considerao duas mximas aparentemente incompatveis : a imerso minuciosa e a distncia livre10. Nada mais difcil em filosofia do que compatibilizar o esforo minucioso e disciplinado de leitura com a certeza daqueles que sabem que s se enxerga uma obra distncia. Mas, como veremos neste curso, assim, nesta coreografia fundada em sequncias de distncia e proximidade, que os filsofos lem os filsofos. Por outro lado, esta perspectiva que pode impor tanto uma imerso minuciosa capaz de seguir, se for o caso, o trajeto da escrita em todos os seus meandros quanto uma distncia livre que procura estabelecer, no texto, pontos destacveis nos quais se ancorar, perspectiva que escava, no interior do texto, o novo e o separa do maqunico s pode vir de uma recusa da atemporalidade da escrita filosfica pensada como sistema de
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proposies. Volto a insistir, o tempo da filosofia transversal e permite que o presente reordene as respostas do passado. s a partir desta transversalidade do tempo que possvel ao leitor ocupar o papel de dois atores: aqueles que fazem parte da cena da escrita e aqueles que se constituem apenas a posteriori. No que diz respeito leitura da Fenomenologia do Esprito, tal abordagem metodolgica implicar em anlises que obedecero a um movimento duplo. Algumas figuras sero privilegiadas e, nestes pontos, o comentrio de texto ser articulado horizontalmente e verticalmente. Horizontalmente, no sentido de re-construir o campo de questes que Hegel tinha em mente ao sintetizar tais figuras. Verticalmente, no sentido de transcender o contexto local tendo em vista a reconstituio de alguns momentos maiores na histria da recepo de tais figuras e da constelao de problemas que elas foam capazes de encarnar. No entanto, este trabalho de dupla articulao dos dispositivos de leitura exigir,.por sua vez, que a costura que sustenta a Fenomenologia do Esprito seja apreendida em movimentos amplos de identificao de eixos gerais. Neste sentido, trata-se apenas de servir-se de um movimento de distenso e de contrao presente na economia interna da prpria Fenomenologia. Economia marcada pela sucesso entre distenses de figuras abordadas em riquezas de detalhes e contraes que procuram dar conta da rememorao da trajetria da conscincia.
Estrutura do curso
A fim de levar a cabo tais objetivos, este curso ser dividido em cinco mdulos. Cada mdulo ter, em mdia, durao de 3 aulas expositivas. Este curso no prev a realizao de seminrios e o sistema de avaliao resume-se monografia de final de curso. Cada mdulo foi organizado a partir de uma questo central, uma ou mais figuras privilegiadas e um conjunto de textos de introduo e de desdobramento dos debates propostos. No primeiro mdulo trabalharemos algumas questes apresentadas no Prefcio e na Introduo relativas a auto-compreenso hegeliana da peculiaridade de seu projeto filosfico. Levaremos a srio a afirmao de Gerard Lebrun, para quem a filosofia hegeliana e seu mtodo dialtico propunha, fundamentalmente, uma certa mudana de gramtica filosfica capaz de dissolver as dicotomias do entendimento e do pensar representativo: Tal a nica surpresa que a passagem ao especulativo reserva: esta
lenta alterao que parece metamorfosear as palavras que usvamos inicialmente, sem que, no entanto, devamos renunciar a elas ou inventar outras11. Isto nos levar a eleger como questo central deste mdulo: O que significa mudar de gramtica filosfica?. Trs textos serviro de apoio a nossa discusso, sendo que eles esto dispostos em ordem de complexidade. So eles: Notas a respeito da lngua e da terminologia hegeliana, de Alexandre Koyr; Skoteinos ou como ler, de Adorno e Hegel e seu conceito de experincia, de Heidegger. No segundo mdulo, trabalharemos a seo Conscincia privilegiando uma anlise detalhada da figura da conscincia sensvel. Meu objetivo demonstrar que devemos levar em conta como o trajeto fenomenolgico da conscincia em direo ao saber absoluto comea atravs da experincia do descompasso irredutvel entre designao e significao nos atos de fala. Isto demonstra a centralidade do problema da linguagem no interior da reflexo hegeliana. Est ser nossa questo central. Veremos qual a teoria da linguagem que sustenta a maneira como Hegel pensa a confrontao cognitiva entre conscincia e objeto para alm de todo e qualquer inferencialismo, assim como a importncia de tal descompasso entre designao e significao enquanto motor do processo dialtico na Fenomenologia. Novamente, teremos trs textos de apoio: Entre o nome e a frase, de Paulo Arantes; Dialtica, index, referncia, de JeanFranois Lyotard e Holismo e idealismo na Fenomenologia de Hegel, de Robert Brandom. No terceiro mdulo, trabalharemos a seo Conscincia-de-si privilegiando uma anlise detalhada da figura da Dialtica do Senhor e do Escravo. Trata-se de um momento privilegiado da Fenomenologia por tematizar o incio da submisso da estrutura congnitivo-instrumental da conscincia a uma estrutura intersubjetiva de reconhecimento engendrada pelo conflito. Conflito articulado a partir das categorias do trabalho e do desejo. Nossa questo central ir girar em torno do problema de reconhecimento do trabalho e do desejo na Fenomenologia. Veremos como a lgica do reconhecimento do trabalho e do desejo obedece, por sua vez, a estrutura lgica posta nas reflexes hegelianas sobre a linguagem. Novamente, teremos trs textos de apoio: A guisa de introduo, de Alexandre Kojve; Caminhos da destranscendentalizao, de Habermas e Crtica da dialtica e da filosofia hegelianas em geral, captulo dos Manuscritos econmico-filosficos de Marx. Um texto que
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servir como guia de leitura ser Os primeiros combates do reconhecimento, de PierreJean Labarrire e Gwendoline Jarczyk: texto que se prope a fazer um comentrio linha a linha do trecho que estudaremos. No quarto mdulo trabalharemos a seo Razo. Se, na seo Conscincia, questo da anlise da relao cognitivo-instrumental da conscincia com o objeto, e, na seo Conscincia-de-si, questo da relao de reconhecimento entre conscincias como condio prvia para o conhecimento de objetos, a seo Razo pode ser compreendida como a anlise das operaes da razo em seus processos de categorizao. Neste sentido, trata-se de um momento privilegiado do texto para analisarmos a complexa relao crtica entre Kant e Hegel no que diz respeito estrutura categorial do entendimento enquanto base para o saber cognitivo-instrumental. A questo central que nos nortear na anlise da desta seo ser as distines que Hegel opera entre o transcendental e o especulativo. Neste sentido, analisaremos, enquanto figura privilegiada, o modus operandi da crtica hegeliana a duas cincias bastante em voga em sua poca: a frenologia e a fisiognomia. Escolha que se justifica devido maneira com que Hegel transforma a crtica linguagem representativa em elemento central de crtica aos pressupostos de uma cincia emprica determinada. Teremos, como textos de apoio, o captulo dedicado a Kant nas Lies sobre a histria da filosofia, do prprio Hegel, Crtica de Kant por Hegel, captulo de Conhecimento e interesse, de Habermas Por fim, o quinto mdulo ser dedicado seo Esprito. Esta longa seo na qual vemos o processo de rememorao histrica como fundamento para a formao das estruturas de orientao do julgamento traz uma srie de questes articuladas de maneira cerrada. Aqui, vemos mais claramente a razo na histria, ou seja, a metanarrativa hegeliana de formao agora a partir do Esprito consciente-de-si que analisa suas figuras no tempo histrico. Das vrias questes que a peculiaridade da abordagem hegeliana suscita, gostaria de me ater a uma em especial. Trata-se de mostrar como toda a seo Esprito estruturada a partir da exigncia em pensar o sensvel e a contingncia em sua irredutibilidade, e no, como se tende a ver, enquanto uma tentativa de esgotar toda e qualquer dignidade ontolgica do sensvel e do contingente em prol de um conceito totalizante de histria racional. Para tanto, deveremos centrar nossa leitura em duas figuras centrais da Fenomenologia hegeliana que se encontram no incio e no final da nossa seo: a ruptura da eticidade da polis grega atravs de Antgona e a crtica ao formalismo da moral kantiana atravs das consideraes sobre a
Gewissen. Como textos de apoio, proponho, primeiramente, um exerccio de leitura comparativa. Trata-se de comparar a leitura hegeliana de Antgona a uma leitura contempornea proposta por Jacques Lacan e articulada como contraposio leitura hegeliana. Teremos como texto de apoio, pois, duas sees do seminrio sobre A tica da psicanlise, dedicados a Antgona. Teremos ainda alguns pargrafos escolhidos de Esprito do mundo e histria da natureza: digresso sobre Hegel, capitulo da Dialtica Negativa, de Adorno
Mas gostaria ainda de aproveitar esta primeira aula para explicar a razo pela qual a introduo ao pensamento de Hegel deve ser feita preferencialmente atravs da Fenomenologia do Esprito. Pois esta escolha no por si s evidente. Durante todo o sculo XIX, boa parte dos leitores de Hegel portavam sua ateno principalmente aos textos de maturidade, como A cincia da Lgica e a Enciclopdia. A Fenomenologia era vista como um texto onde questes centrais da filosofia hegeliana, como o papel do Estado enquanto realizao do Esprito Objetivo, no eram suficientemente abordadas. Escrito em 1806 em condies extremamente precrias, o texto no fornecia de maneira clara o sistema holista da cincia em sua quietude hierarquizada, como vemos, por exemplo, na Enciclopdia. Por outro lado, o prprio plano da Fenomenologia ser parcialmente absorvido por obras posteriores de Hegel, em especial a ltima verso da Enciclopdia. L, ela aparecer claramente como uma parte do sistema, entre a antropologia e a psicologia. Seu desenvolvimento ser desmembrado. As sees Esprito, Religio e Saber absoluto no sero mais tratadas como momentos da fenomenologia que, por seu lado, ser apenas um momento do Esprito Subjetivo. A grande articulao histrica do processo de formao da estrutura de orientao do julgamento (Esprito) dar luga r a uma descrio sistmica da estrutura do direito, das reivindicaes morais da subjetividade e do Estado. Religio e Saber Absoluto tero tratamento parte enquanto manifestaes do Esprito Absoluto. No entanto, a Fenomenologia deve ser vista como a melhor introduo ao pensamento hegeliano no apenas porque ela foi realmente escrita como uma introduo ao sistema que, aos poucos, foi ganhando autonomia. Introduo que deveria descrever o trajeto de formao da conscincia em direo a um saber onde lgica e ontologia se
encontram. A Fenomenologia a melhor introduo ao pensamento hegeliano porque, por um lado: A Fenomenologia era para Hegel consciente ou inconscientemente, o meio de oferecer ao pblico; no um sistema j pronto, mas a histria de seu prprio desenvolvimento12. Mas por outro lado, e esta me parece a razo mais forte, a Fenomenologia oferece um modo de pensar e articular problemas filosficos que ser a marca da experincia intelectual hegeliana. Modo que pode ser inicialmente abordado atravs de algumas consideraes sobre o estilo da escrita filosfica da Fenomenologia em particular e de Hegel em geral. Na verdade, gostaria de terminar a aula de hoje com algumas consideraes a respeito do estilo de Hegel. Pois uma leitura filosfica deve estar atenta no s a ordem das razes, mas tambm aos estilos da escrita. As exigncias do estilo no so consideraes externas aos objetos com os quais um pensamento se defronta. Isto talvez nos esclarea porque o estilo de Hegel desconhece um certo regime de clareza na escrita conceitual. No se trata aqui de fazer uma apologia da obscuridade, mas valeria a pena lembrar a relevncia da questo a respeito da adequao entre clareza e objeto. Todos os objetos da experincia podem ser expostos atravs de uma linguagem de mxima visibilidade ? Eu lembraria que, em vrios momentos, a resposta da filosofia foi negativa. Por exemplo, ns conhecemos claramente a recusa de Hegel em descrever os objetos da experincia atravs da clareza de uma linguagem de inspirao matemtica, geometria retrica fundamentada atravs de analogias com os dispositivos da geometria euclidiana. A apreenso conceitual dos objetos da experincia exige uma compreenso especulativa da estrutura proposicional que nada tem a ver com exigncias abstratas de clareza. Ao contrrio, a clareza de inspirao matemtica que guia o uso ordinrio da linguagem do senso comum mistificadora, pois clarifica o que no objetivamente claro, procura utilizar categorizaes estanques para apreender aquilo que s pode aparecer de maneira negativa ou atravs de significaes fluidas13. Assim, o estabelecimento de uma gramtica filosfica adequada acaba por se confundir com um movimento amplo de crtica da linguagem clara do entendimento. Da porque: no difcil de perceber que a maneira de expor um princpio, de defend-lo com argumentos, de refutar tambm com argumentos o princpio oposto, no a forma na qual a verdade
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HYPPOLITE, Gnese e estrutura da Fenomenologia do Esprito, p. 68 Sobre este ponto, ver FAUSTO, Ruy, Marx : lgica e poltica tomo III
pode se manifestar. A verdade o movimento dela mesma nela mesma, enquanto que este mtodo o conhecimento exterior matria. por isto que ele particular matemtica e devemos deix-lo matemtica14. Neste sentido, podemos seguir Gerard Lebrun e dizer que o verdadeiro objetivo da Fenomenologia a refutao de toda uma gramtica filosfica atravs de um movimento de esgotamento interno. Adorno foi talvez aquele que melhor compreendeu a necessidade da articulao entre estilo e objeto do pensamento em Hegel. Hegel sem dvida o nico dentre os grandes filsofos que, em alguns momentos, no sabemos e no podemos decidir sobre o que ele fala exatamente, o nico a respeito de quem a prpria possibilidade de tal deciso no assegurada15. Proposio aparentemente paradoxal por insistir na existncia de uma opacidade constitutiva do estilo hegeliano, existncia de regies de silncio legveis da textura do texto. Para Adorno, estamos diante de uma opacidade cuja estrutura deve ser deduzida do prprio contedo da filosofia hegeliana: J que cada proposio singular da filosofia hegeliana reconhece sua prpria inadequao a esta unidade [da totalidade], a forma exprime esta inadequao (Unangemessenheit) na medida em que ela no pode apreender nenhum contedo de maneira adequada16. Mas este bloqueio na apreenso do contedo um fato inscrito na linguagem especulativa. A sensao de evanescimento da referncia que todo leitor de Hegel conhece bem, esta impresso de que o estilo da escrita parece destruir a determinao dos objetos a respeito dos quais falvamos com relativa segurana at h pouco, , de uma certa forma, a experincia-motor da dialtica hegeliana. A clareza e a distino tm por modelo uma conscincia reificada (dinghaftes Bewutsein) do objeto17, dir Adorno a respeito de Hegel. Como se houvesse certos objetos que s podem ser apreendidos atravs de uma toro da lngua, atravs de uma experincia de fracasso reiterado de posio de determinaes conceituais. Em Hegel, o conceito traz as cicatrizes do fracasso reiterado em apreender aquilo que se d como contedo da experincia. E se as feridas do esprito se curam sem deixar cicatrizes porque o conceito aprende que, em certos momentos, fracassar a apreenso do contedo a nica maneira de manifestar aquilo que da ordem da essncia dos objetos. H um fracasso que a nica forma de termo uma experincia do objeto. isto o que leva Adorno a dizer: Se um dia fosse possvel definir a filosofia, ela seria o esforo para dizer aquilo
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HEGEL, Fenomenologia do esprito - prefcio ADORNO, Drei Studien ber Hegel, GS 5, p. 326 16 idem, p. 328 17 idem, p. 334
sobre o qual no se pode falar, esforo para levar o no-idntico expresso, mesmo quando a expresso procura identific-lo. isto o que Hegel tenta fazer18. Alguns vero nesta estratgia do conceito em integrar aquilo que o nega uma forma astuta de totalizao. Mas ns poderemos perguntar: se nossa poca profundamente antihegeliana, no seria por temer identidades construdas com as marcas deste trabalho do negativo que parece nunca ter fim e nos exilar de nossa prpria gramtica? Em um certo momento, Adorno compara o estilo de Hegel ao uso que um imigrante faz de uma lngua estrangeira. Por impacincia e necessidade, ele l deixando para trs palavras indeterminadas que s sero relativamente compreendidas atravs da reconstituio lenta e demorada de contextos. Muitas palavras ficaro para sempre opacas e apenas seu uso conjugado ser apreensvel. Outras ganharo uma sobredeterminao que o falante nativo no tinha mais a distncia necessria para desvelar. Este estranhamento diante dos objetos do pensamento que a posio hegeliana de imigrante na sua prpria lngua pressupe talvez nos diga muito a respeito das estratgias discursivas que compe a experincia intelectual de Hegel. Terminemos hoje com esta famosa descrio fornecida por Hotho a respeito de seu professor, Hegel. Ela talvez nos diga muito a respeito deste fazer filosfico que ser nosso objeto de estudos durante um semestre: A cabea abaixada como se estivesse dobrada sobre si mesma, o ar cansado; ele estava l de p e, enquanto falava, procurava continuamente nos seus grandes cadernos percorrendo-os sem parar em todos os sentidos, uma tosse incessante interrompia o desenvolvimento do discurso; a frase estava l, isolada, ela vinha com dificuldade, como se fosse arrancada. Cada palavra, cada slaba s de soltava a contragolpes, pronunciada por uma voz metlica, para em seguida receber no amplo dialtico subio uma ressonncia surpreendentemente presente, como se, a cada vez, o essencial estivesse l. O primeiro passo para ler Hegel compreender a necessidade destas palavras que teimam em no se submeter superfcie.
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idem, p. 337
Na aula de hoje, ser questo de um comentrio de questes centrais que aparecem na primeira parte do Prefcio, ou seja, neste trecho que vai dos pargrafos 1 at o 17. Na prxima aula, comentares o trecho que vai do pargrafo 27 at o pargrafo 38. Este trecho importante para ns por trs razes. Primeiro, Hegel fornece um primeiro quadro de eixos centrais do debate filosfico da poca. Vemos como, no interior do debate a respeito dos desdobramentos do ps-kantismo, Hegel oferece largas reflexes a respeito da peculiaridade de sua posio em contraposio a Schelling e a um certo intuicionismo que se legitimava atravs de seu nome. Operao ainda mais central se lembrarmos que, at ento, Hegel era visto apenas como um seguidor privilegiado de Schelling, a quem estava ligado por laos de amizade desde a poca em que os dois, juntamente com Hlderlin, eram seminaristas em Tbigen. Por outro lado, esta reflexo a respeito do debate filosfico da poca vai aos poucos sendo enquadrada em uma reflexo mais ampla sobre as expectativas daquilo que ento se colocava como o nosso tempo, ou seja, a modernidade. Esta uma articulao central, j que Hegel , de uma certa forma, o primeiro filsofo a transformar o pensamento a respeito das aspiraes da modernidade em problema filosfico central. O que orienta o debate filosfico com sua procura em orientar o julgamento nas dimenses cognitivo-instrumental, prtico-moral e esttico-expressiva , na verdade, a procura da modernidade em fornecer os critrios de certificao de si mesma sem, para isto, depender do recurso constante a esquemas herdados da tradio e de situaes que no do voz s exigncias portadas pelos tempos modernos. Ou seja, o diagnstico sobre o que constitui nossa poca transforma-se, em Hegel, necessariamente em setor de compreenso do sentido do debate filosfico. Por fim, atravs desta articulao cruzada entre diagnstico de poca e configurao das linhas mestras do debate filosfico, Hegel comea a fornecer algumas caractersticas maiores sobre seu mtodo filosfico e sobre aquilo que ele compreende como sendo tarefa principal para um programa filosfico de seu tempo. A insistncia hegeliana no carter aparentemente inadequado de se escrever um prefcio em filosofia aparece como oportunidade para discusses a respeito da maneira de apreender e refletir sobre objetos da experincia. Logo no incio, vemos Hegel s voltas com as tentativas
de escapar de dois erros complementares: o formalismo de inspirao kantiana e o intuicionismo de inspirao schellinguiana. Vamos pois analisar cada um destes trs aspectos.
Escrever um prefcio Numa obra filosfica, em razo da natureza da Coisa (Sache), parece no s suprfluo, mas at inadequado e contraproducente um prefcio : esse esclarecimento preliminar do autor sobre o fim que se prope, as circunstncias de sua obra, as relaes que julga encontrar com as anteriores e atuais sobre o mesmo tema. Com efeito, no se pode considerar vlido, em relao ao modo como deve ser exposta a verdade filosfica, o que num prefcio seria conveniente dizer sobre a filosofia; por exemplo, fazer um esboo geral da tendncia e do ponto de vista, do contedo geral e resultado da obra, um agregado de afirmaes esparsas e asseres sobre a verdade. Alm do que, por residir a filosofia essencialmente no elemento da universalidade que em si inclui o particular, isso suscita nela, mais que em outras cincias, a aparncia de que no fim e nos resultados ltimos que se expressa a Coisa mesma (Sache selbst) em sua essncia perfeita. Frente a qual o desenvolvimento da exposio seria, propriamente falando, o inessencial (Unwesentliche)19.
Em um movimento sintomtico, Hegel comea a escrever a Fenomenologia problematizando seu prprio ato de escrever, ou seja reconhecendo que no se sente vontade naquilo que poderia se compreender como a forma geral da escrita filosfica. Hegel no pode deixar de comear aquele que o livro que marca enfim sua entrada em cena no debate filosfico de sua poca com uma constatao de que ele tem a dizer algo que parece exigir uma profunda reconfigurao na forma do dizer. Reconfigurao paradoxal pois leva a forma a mostrar aquilo que ela mostra sem o saber. Tem-se habitualmente a aparncia de que a filosofia expressa seu objeto, a Coisa mesma, no fim e nos resultados ltimos que apresenta. Seu desenvolvimento seria o inessencial. Passemos diretamente do prefcio concluso. Ou, se for necessrio expor o desenvolvimento, o essencial poderia ser objeto de esboos gerais capazes de fornecer
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 21
grandes quadros de orientao. Mas nada disto adequado para a apresentao do objeto da experincia intelectual de Hegel. Desta forma, haver um prefcio, mas um prefcio que procura no ser exatamente um. Hegel no ir tentar resumir o trajeto da conscincia em direo cincia, objeto central da Fenomenologia. E mesmo que certos resultados sejam expostos, tais resultados sero, na verdade, a exposio da inadequao de pensar proposies filosficas como resultados que possam ser comparados para que uma verdade aparea a partir da confrontao de sistemas antagnicos de proposies. Tudo isto seria exterior filosofia e sua escrita. Tal maneira de pensar o objeto da experincia filosfica implica necessariamente em outra relao com o que pode aparecer como histria da filosofia. Do mesmo modo, a determinao das relaes que uma obra filosfica julga ter com outras sobre o mesmo objeto introduz um interesse estranho e obscurece o que importa ao conhecimento da verdade. Com a mesma rigidez com que a opinio comum (Meinung) se prende oposio entre o verdadeiro e o falso, costuma tambm cobrar, ante um sistema filosfico dado, uma atitude de aprovao ou rejeio (Widerspruch). Acha que qualquer esclarecimento a respeito do sistema s pode ser uma ou outra. No concebe a diversidade dos sistemas filosficos como desenvolvimento progressivo da verdade, mas s v diversidade e contradio [mas s v contradio nesta diversidade]20.
Hegel ser o primeiro filsofo a ver a reflexo a respeito da histria da filosofia como movimento central no interior do prprio fazer filosfico. Para Hegel, sistemas filosficos no so passveis de simples refutao, mas colocam para si uma integralidade fixa de problemas: Cada filosofia em si completa e tem, como uma autntica obra de arte, a totalidade em si21. Hegel ser ainda mais claro em sua proposio da sistematicidade e comensuralibilidade dos sistemas filosficos: Mas se o absoluto, tal como a sua manifestao, a razo, eternamente um e o mesmo, como de fato , ento, cada razo que se dirige e se conhece a si mesma produziu uma
verdadeira filosofia e resolveu para si a tarefa que, tal como a sua soluo, a mesma
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para todas as pocas22. Isto implicar em um fazer filosfico que ver a histria da filosofia como histria do movimento da razo em direo sua auto-determinao enquanto cincia (Wissenschaft). A rememorao de cada momento necessria na compreenso do que se coloca a um tempo como tarefa filosfica. Este o sentido que podemos dar a metfora usada por Hegel a fim de descrever o que est em jogo na passagem histrica de um sistema filosfico a outro: O boto desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-a (Dasein) da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor; essas formas no s se distinguem, mas tambm se repelem (verdrngen mas cada uma recalca a outra) como incompatveis entre si. Porm, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgnica, na qual, longe de se contradizerem (widerstreiten- longe de entrarem em conflito), todos so igualmente necessrios23.
Esta metfora do desenvolvimento orgnico que demonstra a necessidade de cada momento na constituio de uma situao que se coloca no presente fundamental para compreendermos a noo hegeliana de histria da filosofia. No entanto, este desenvolvimento progressivo da verdade, do qual fala Hegel, no reconstituio linear da seqncia histrica dos sistemas filosficos. O desenvolvimento da razo no idntico aos desenvolvimentos contingentes da histria. Ao contrrio, o esforo da filosofia na compreenso dos modos de realizao da verdade consiste em reconstituir seus momentos a partir do ponto de vista da razo. Claro est que fica como questo saber como fundamentar esta perspectiva meta-histria que permite a constituio de uma histria da razo em sua tentativa de reconciliar-se com a experincia. Neste estgio, podemos insistir em um ponto central. A perspectiva de constituio de uma certa histria da razo no se dar, para Hegel, de maneira transcendente; como se ela obedecesse a um conjunto de proposies a-histricas capaz de orientar a prpria narrao da histria. Digamos, neste estgio, que Hegel tenta implementar uma perspectiva imanente de compreenso do desenvolvimento das figuras da razo em sua histria, ou ainda, simplesmente da razo na histria. Ou seja, trata-se
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de compreender o impulso que ordena as passagens de uma figura da razo outra atravs de tenses internas. Ao tentar se efetivar seu conceito, uma figura da razo produz experincias que no se deixam apreender completamente pelo conceito que a anima. Trata-se ento de comparar a figura consigo mesma, insistir na contradio entre o conceito e aquilo que se coloca como campo de experincia para a conscincia de um certo momento. Trata-se pois de mostrar como uma determinada figura da razo no foi capaz de realizar seu prprio conceito. Esta , de uma certa forma, o cerne de uma perspectiva imanente na compreenso do desenvolvimento da razo em sua histria. Tal compreenso da racionalidade interna da histria da filosofia e do pensar, levar Hegel a procurar definir a reflexo filosfica como a tentativa de apreender, fundamentalmente, o processo de formao de seus objetos, ou seja, os objetos tais como eles aparecem no tempo. Da a afirmao central: A Coisa no se esgota em seu fim, mas em sua atualizao (Ausfrhrung); nem o resultado o todo efetivo, mas sim o resultado junto com seu vir-a-ser (Werden - devir). O fim para si [ou seja, apenas subjetivamente pressuposto] o universal sem vida [j que lhe falta a objetividade], como a tendncia [enquanto indeterminado] o mero impulso (Treiben) ainda carente da sua efetividade; o resultado nu o cadver que a tendncia deixou atrs de si [porque a tendncia no se coloca mais no resultado]. Igualmente, a diversidade [de determinaes que no podem ser unificadas a partir de um universal] , antes, o limite da Coisa; est ali onde a coisa deixar de ser; ou o que a mesma no (...) Nada mais fcil que julgar (beurteilen) o que tem contedo e solidez; apreend-lo (fassen) mais difcil; e o que h de mais difcil produzir sua exposio (Darstellung - apresentao), que unifica ambos24.
Se Hegel exige uma histria da filosofia que no seja mera narrativa da sucesso de sistemas tendo em vista a descrio de um pretenso aprimoramento contnuo, mas a exposio de um processo de formao no qual todos os momentos so necessrios, porque o prprio objeto da reflexo filosfica aquilo que no se esgota em seu fim, mas em sua atualizao, objeto que s pode ser apresentado de maneira adequada atravs da unificao entre o resultado e o devir. Pois emitir julgamentos a respeito do
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 23
que se deixa colocar na solidez de determinaes fixas no a tarefa fundamental do pensar. De fato, o primeiro esforo do pensamento consiste em ordenar previamente o campo possvel de determinaes atravs de princpios gerais e universais postos de maneira transcendental. Esta ordenao permite termos a experincia de uma Coisa em geral, da mesma maneira com que a estruturao de categorias a determinao de predicados possvel para um objeto geral. Mas o verdadeiro incio da experincia de formao (Bildung) no se d como resultado de uma experincia de objetos em geral. Hegel no cansar de insistir que a filosofia tem a exigncia de pensar o particular, de adentrar na experincia da Coisa mesma (Sache selbst). O que implica em pensar aquilo que no se deixa pr como experincia de objetos em geral. Neste sentido, se Hegel afirma que: A verdadeira figura em que a verdade existe s pode ser o seu sistema cientfico, devemos j estar atento para a peculiaridade hegeliana a respeito da noo de sistema. No se trata de pensar a constituio de um sistema de proposies que d conta, de maneira coerente, das articulaes internas do saber. O verdadeiro sistema da cincia aquele capaz de portar, em si mesmo, o que parece negar a articulao do saber em sistema, ou seja, a compreenso do objeto como devir que no se esgota em sua determinao como caso de uma noo geral de objeto. O verdadeiro sistema deve dar conta daquilo que o nega, deve ser capaz de dar a forma do conceito quilo que parece apresentar-se como no-conceitual. No entanto, para que a filosofia como sistema cientfico possa vir luz, no basta a necessidade interna das motivaes individuais. Ele deve responder necessidade externa do seu prprio tempo. Ou seja, Hegel deve mostrar que o tempo presente pode elevar a filosofia condio de cincia, desta cincia que ser apresentada, na Fenomenologia do Esprito, em sua realizao enquanto Saber Absoluto. Neste sentido, a reflexo hegeliana deve aparecer como reflexo sobre as exigncias de um tempo presente cuja melhor denominao modernidade. A reflexo filosfica deve se colocar como reflexo sobre a modernidade em suas aspiraes e em seus impasses. Chegou o tempo de elevar a filosofia condio de cincia
O primeiro filsofo a desenvolver um conceito preciso de modernidade foi Hegel25. De fato, esta afirmao de Habermas precisa por lembrar como, em Hegel, a definio de seu programa filosfico s possvel atravs da apreenso daquilo que se coloca como situao da modernidade. Vemos claramente tal operao entre os pargrafos 6 e 13 da Fenomenologia. Tomemos, por exemplo, este diagnstico de poca que aparece no pargrafo 7: Tomando a manifestao dessa exigncia [do Absoluto] em seu contexto mais geral e no nvel em que presentemente se encontra o esprito consciente-de-si [ou seja, trata-se de compreender o que o presente coloca como exigncia do esprito], vemos que esse foi alm da vida substancial que antes levava no elemento do pensamento; alm desta imediatez de sua f, alm da satisfao e segurana da certeza que a conscincia possua devido sua reconciliao com a essncia e a presena universal dela interior e exterior. O esprito no s foi alm passando ao outro extremo da reflexo, carente-de-substncia, de si sobre si mesmo mas ultrapassou tambm isso. No somente est perdida para ele sua vida essencial; est tambm consciente dessa perda e da finitude que seu contedo. [Como o filho prdigo], rejeitando os restos da comida, confessando sua abjeo e maldizendo-a, o esprito agora exige da filosofia no tanto o saber do que ele , quanto resgatar por meio dela, aquela substancialidade e densidade do ser [que tinha perdido]26.
Como vemos, Hegel compreende a modernidade como um momento de ciso. O esprito perdeu a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparea mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as vrias esferas de valores sociais. Ao contrrio, a modernidade pode ser compreendida como este momento que est necessariamente s voltas com o problema da sua auto-ceritificao. Ela no pode mais procurar em outras pocas os critrios para a racionalizao e para a produo do sentido de suas esferas de valores. Ela deve criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais aparentemente no-problemticos est fundamentalmente perdida. Como dir, cem anos depois, Max Weber: O destino de
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nossos tempos caracterizado pela racionalizao e intelectualizao e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo. Precisamente, os valores ltimos e mais sublimes retiraram-se da vida pblica, seja para o reino transcendental da vida mstica, seja para a fraternidade das relaes humanas e pessoais27. Ou seja, aquilo que fornecia o
enraizamento dos sujeitos atravs da fundamentao das prticas e critrios da vida social no mais substancialmente assegurado. Em uma anlise hoje clssica, Hegel indica trs acontecimentos que foram paulatinamente moldando a modernidade em suas exigncias: a reforma protestante [com sua confrontao direta entre o crente e Deus atravs da subjetividade da f], a revoluo francesa [que colocava o problema do Estado Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspiraes de universalidade da Lei e exigncias dos indivduos] e o Iluminismo [que, segundo Hegel, ter em Kant sua realizao mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece impulsiona-los o aparecimento do que poderamos chamar de subjetividade. De fato, para Hegel, a subjetividade aparece como o princpio dos tempos modernos. No por outra razo que Hegel falar, a propsito de Descartes com seu cogito: Aqui j podemos sentir em casa e gritar, como o navegante depois de uma larga e penosa travessia por mares turbulentos: - Terra!. Com Descartes comea a cultura dos tempos modernos, o pensamento da filosofia moderna, depois de ter andando por muito tempo em outros caminhos28. A metfora aqui no poderia ser mais adequada. De fato, o princpio de subjetividade com seu primado de que a verdade submeta-se reflexo, de que o ser submeta-se ao pensamento, a terra firme, o fundamento a partir do qual a filosofia poder reconstruir seus alicerces. Faz-se necessrio que o fundamento da nova liberdade seja o que assegurado por uma certeza [subjetiva] que satisfaa s exigncias da essncia da verdade 29. Este fundamento no estar em operao apenas como sujeito do conhecimento, mas guiar tambm a redefinio das mltiplas esferas de valores da vida social. Afirmar que o princpio de subjetividade o fundamento significa assim dizer que nada pode aspirar validade se no for transparente reflexo subjetiva. O que nos coloca com um problema inicial sobre o prprio conceito de reflexo e suas conseqncias.
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WEBER, Cincia como vocao in Ensaios de sociologia, p. 182 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - Descartes 29 HEIDEGGER, Nietzsche II
Muito ainda haver a se dizer a respeito desta questo. Mas podemos introduzila atravs de algumas consideraes feitas por Heidegger a respeito deste mesmo problema, j que, em larga medida, elas no so estranhas quilo que Hegel tem em mente ao lembrar que o esprito est consciente da perda de sua vida essencial e da finitude de seu contedo. Em uma passagem clebre, Heidegger insiste que a estrutura da reflexo que nasce com o princpio moderno de subjetividade fundamentalmente posicional. Refletir por diante de si no interior da representao, como se colocssemos algo diante de um olho da mente. Seguindo os rastros de texto cartesiano, ele nos lembra que, em vrias passagens, Descartes usa cogitare e percipere como termos correlatos. Um uso necessariamente prenhe de consequncias. De fato, Heidegger deve pensar aqui, primeiro, na maneira peculiar com que Descartes utiliza o termo latim percipere. Ele raramente utilizado para designar processos sensoriais, como viso e audio (nestes casos, Descartes prefere utilizar o termo sentire). Percipere designa, normalmente, a apreenso puramente mental do intelecto, j que, em Descartes, a inspeo intelectual que apreende os objetos, e no as sensaes. Assim, por exemplo, na meditao terceira, ao falar daquilo que aparece ao pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: todas as vezes que volto para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal modo persuadido delas ...30. Mas, de fato, penso conceber a traduo no muito fiel de percipere31. Da mesma forma, Descartes, mais a frente falar de : tudo aquilo que concebo clara e distintamente32 pelo pensamento. Mas, novamente, o termo conceber uma traduo aproximada de percipere, j que o texto latim diz: illa omnia quae clare percipio. De onde se v como percipere serve, nestes casos, para descrever o prprio ato mental do pensamento. Heidegger sensvel a este uso peculiar de percipere por Descartes pois a reconstruo etimolgica do termo nos mostra que ele significa: tomar posse de algo, apoderar-se (bemchtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zustellen) [lembremos que Sicherstellen confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)33. Desta forma, a compreenso de cogitare por Vor-stellen (re-presentar/por diante de si) estaria mais prxima do
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DESCARTES, Meditaes, p. 108 Conforme o texto em latin: Quoties vero ad ipsas res, que valde clare percipere arbitror ... 32 ibidem, p. 116 33 HEIDEGGER, Nietzsche II
verdadeiro sentido deste fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia moderna. Tais aproximaes permitem a Heidegger interpretar o cogitare cartesiano como uma representao que compreende o ente como aquilo que essencialmente representvel, como aquilo que pode ser essencialmente disposto no espao da representao. assim que devemos compreender a frase-chave: O cogitare um dispor-para-si do representvel34. Assim, cogitare no seria apenas um processo geral de representao, mas seria um ato de determinao da essncia do todo ente como aquilo que acede a representao. Isto indicaria como todo ato de pensar um ato de dominar atravs da submisso da coisa representao. O diagnstico de Heidegger seria claro: algo s para o homem na medida em que estabelecido e assegurad o como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambincia (Umkreis) de seu dispor, a todo instante e sem equvoco ou dvida, reinar como mestre35. Pois a compreenso do pensamento como capacidade de articular representaes, como competncia representacional impe um modo especfico de manifestao dos entes ao pensamento. O ente ser, a partir de agora, aquilo que aparece, para um sujeito cognoscente, como objeto adequado de uma representao categorizada em coordenadas espao-temporais extremamente precisas. Neste sentido: o homem se coloca si mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se apresentar (vor-stellen, prsetieren)36. Da porque Heidegger pode afirmar que o cogito traz uma nova maneira da essncia da verdade. Nada disto estranho a Hegel quando este compreende os tempos modernos como este tempo no qual o esprito perdeu sua vida essencial e est consciente desta perda e da finitude de seu contedo. Pois, para Hegel, a reflexo, enquanto disposio posicional dos entes diante de um sujeito, no pode deixar de operar dicotomias e divises no interior do que se oferece como objeto da experincia entre aquilo que para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se d atravs da receptividade da intuio e aquilo que ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas estruturas reflexivas de representao, entre o que da ordem do esprito e o que da ordem da natureza, entre o que acessvel reflexo e o que Absoluto.
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Para a gerao de Hegel, a filosofia moderna deve ultrapassar um sistema de dicotomias que encontrou sua figura mais bem acabada na filosofia kantiana. Hegel partilha o diagnstico de ps-kantianos como Fichte e Schelling de que, na filosofia kantiana, o primado da reflexo e da subjetividade, produziu cises irreparveis. Da porque o nico interesse da razo o de suspender antteses rgidas37. Alm disto, Hegel tem a peculiaridade de compreende tais cises como a formalizao filosfica de dicotomias nas quais a modernidade havia se enredado. Isto nos explica porque: Hegel v na filosofia kantiana a essncia do mundo moderno concentrada como num foco 38. Veremos este ponto de maneira mais sistemtica quando comentarmos os primeiros pargrafos da Introduo da Fenomenologia.
Contra Schelling
No entanto, Hegel no est disposto a abandonar o solo de uma filosofia da reflexo. Ele no acredita que podemos nos curar das feridas da elevao do princpio moderno de subjetividade condio de fundamento da cincia simplesmente pregando alguma forma de retorno a uma origem pr-reflexiva e pr-conceitual. Por isto, Hegel ser to duro com a idia segunda a qual Com efeito, se o verdadeiro s existe no que (ou melhor, como o que) se chama quer intuio, quer saber imediato do absoluto, religio, ser (...) ento o que se exige para a exposio da filosofia , antes, o contrrio da forma do conceito. O absoluto no deve ser conceitualizado, mas somente sentido e intudo, no o seu conceito, mas seu sentimento e intuio que devem falar em seu nome e ter expresso. (...) Para atender a essa necessidade (...) deve, sobretudo, misturar as distines do pensamento, reprimir o conceito que diferencia, restaurar o sentimento da essncia, garantir mo tanto a perspiccia quanto a edificao. O belo, o sagrado, a religio, o amor so a isca requerida para despertar o prazer de mordiscar. No o conceito, mas o xtase, no a necessidade fria e metdica da Coisa que deve constituir a fora que sustm e transmite a riqueza da substncia, mas sim o entusiasmo abrasador39.
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HEGEL, Diferena dos sistemas filosficos de Fichte e Schelling, p. 38 HABERMAS, O discurso filosfico da mdoernidade, p. 30 39 HEGEL, Fenomenologia I, pp. 24-25
Nesta longa diatribe, que ser retomada em vrios momentos do prefcio, Hegel est, na verdade, acertando contas com seu passado. Esta idia de que, ao invs da reflexo prpria ao conceito, a filosofia deve procurar tematizar a auto-intuio do absoluto atravs um certo regime de retorno a um plano de imanncia que no pode ser objeto de diferenciao , na verdade, a ressonncia do programa crtico schellinguiano. De fato, Hegel foi primeiramente visto como um schellinguiano e a Fenomenologia do Esprito, em particular seu prefcio, aparece como o locus da ruptura entre os dois. Em carta a Schelling, Hegel insistir que se tratava de fornecer uma mquina de guerra contra aqueles que deturpariam o pensamento de Schelling ao transform-lo em arauto de uma filosofia do imediato. No entanto, Schelling no deixar de dizer: Na medida em que voc prprio menciona a parte polmica deste [seu livro], eu devia fazer muito pouco caso de mim mesmo para aplicar esta polmica minha pessoa40. No entanto, a polmica era, de fato, endereada a Schelling. De maneira esquemtica, podemos dizer que, pelo menos aos olhos de Hegel, Schelling procura ultrapassar as dicotomias da reflexo atravs do recurso a um plano de imanncia a partir do qual o subjetivo e o objetivo se extraem. O sujeito emergiu de um mundo indiferente que agora ele confronta e conhece atravs da reflexo. Da segue, por exemplo, a definio schellinguiana do Absoluto que aparece como indiferena absoluta entre sujeito e objeto. a natureza que marca este ponto de indiferena entre sujeito e objeto no qual se encontra o Absoluto. Ou seja, contra o esvaziamento da dignidade ontolgica da natureza produzida por Kant, Schelling prope o resgate da filosofia da natureza como momento da auto-intuio do Absoluto. A atividade da natureza como momento de auto-intuio do Absoluto. O conceito central aqui intuio. Schelling insiste que h uma intuio intelectual que no reflexo, que no posicional, mas que modo de posio da unidade sem mediao entre sujeito e objeto. Este recurso intuio nos leva a questo a respeito do modo de objetividade daquilo que s poderia aparecer intuio desprovida de conceito. Schelling insistir ento no papel central da arte como espao no qual se realiza a objetividade da intuio intelectual. A arte, como objetividade da
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razo, pe a existncia sensvel como expresso da espiritualidade em uma intuio que no conhecimento-de-si, mas manifestao do Absoluto. De fato, Hegel no pode aceitar tanto o conceito schellinguiano de Absoluto, quanto a maneira com que o recurso a intuio se d s espessas do trabalho do conceito, como se o recurso intuio fosse modo de recuperao daquilo que o conceito perde ao operar. Para Hegel, no se trata de abandonar a dimenso conceitual, mas de distinguir conceito e representao, fazendo assim com que a prpria noo de reflexo subjetiva seja revista e, com ela, a noo moderna de sujeito. Neste sentido, um aspecto central de sua crtica a Schelling no est no reconhecimento de que o objeto da filosofia e o Absoluto enquanto ponto de identidade entre o sujeito e o objeto, mas est no fato de Schelling o pressupe de modo imanente e previamente acessvel. Para Hegel, haver de fato uma imanncia com o Absoluto (pois o pensamento no pode pensar sem construir totalidades), mas ela ser conquistada como resultado da experincia, ele ser marcado pelo trajeto desta experincia, e no aparecer como resultado previamente posto. Quando filosofamos, pretendemos provar que a coisa assim. Mas, se a arrancamos da intuio intelectual, isto no passar de um orculo (...) A prova verdadeira de que esta identidade do subjetivo e do objetivo a verdade s pode ser trazida investigando cada coisa por si mesma, em suas determinaes lgicas, essenciais; ento veramos necessariamente que o subjetivo consiste em converter-se no objetivo, e que o objetivo no permanece sempre como tal, mas que tende a converter-se no subjetivo41. Esta identidade entre o sujeito e objeto, para alm da submisso do objeto uma reflexo que aparece como dispor-diante-de-si s poder ser alcanado por um sistema filosfico capaz de pensar a identidade se instaurando no interior de um processo histrico-racional, o que no tem nada a ver com um recurso origem pr-reflexiva. Novamente, encontramos a compreenso do objeto da filosofia como um devir que se constri e que s pode ser apreendido no interior de um trajeto. isto o que Hegel tem em vista ao afirmar que: O comeo do novo esprito em o produto de uma ampla transformao de mltiplas formas de cultura, o prmio de um itinerrio muito complexo, e tambm de um esforo e de uma fadiga multiformes. Esse comeo o todo [ou o
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Absoluto], que retornou a si mesmo de sua sucesso [no tempo] e de sua extenso [no espao]; o conceito que veio-a-ser (gewordne) conceito simples do todo42.
Muito ainda haver a se dizer a respeito desta instaurao da unidade do todo em um conceito simples. No entanto, lembremos ainda de um ponto central. Eu havia dito que a modernidade aparece para Hegel como momento histrico no qual o princpio de subjetividade pode se pr como fundamento. No entanto, este sujeito no apenas a condio transcendental de toda representao (ou seja, no um sujeito psicolgico, um indivduo, mas a possibilidade de que, ao representar objetos, eu apreenda tambm as regras de organizao da experincia de representao). Na verdade, Hegel lembrar que o sujeito aquilo que faz com que o esprito nunca esteja em repouso porque so suas exigncias que instauram um processo no qual o esprito rompe com o mundo do seu ser-a e do seu representar. Tais exigncias podem ser melhor compreendida se lembrarmos como o sujeito moderno no era simplesmente fundamento certo do saber, mas tambm entidade que marcado pela indeterminao substancial. Ele aquilo que nasce atravs da transcendncia em relao a toda e qualquer naturalidade com atributos fsicos, psicolgicos ou substanciais. Como dir vrias vezes Hegel, o sujeito aquilo que aparece como negatividade que cinde o campo da experincia e faz com que nenhuma determinao subsista. Na Filosofia do Esprito, de 1805, ele no deixar de encontrar metforas para falar deste sujeito que aparece como o que desprovido de substancialidade e de determinao fixa: O homem esta noite, este nada vazio que contm tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de representaes, de imagens infinitamente mltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao esprito, ou que no existem como efetivamente presentes (...) esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se torna terrvel, a noite do mundo que se avana diante de ns43. Depois de Hegel, a modernidade ser cada vez mais identificada com o efmero, com o tempo que faz com que tudo o que slido se desmanche no ar. O mpeto desta destruio, a modernidade o tira do sujeito enquanto entidade no substancial que lembra, positividade do mundo, a fora de uma noite que avana. Pensar altura da
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modernidade ser, para Hegel, pensar uma realidade animada por aquilo que no se deixa apreender como substncia (o que nos coloca diante da proposio chave de Hegel apreender a substncia como sujeito o conceito que advm conceito simples do todo). Mas tal como a coruja de Minerva que s voa noite, ser apenas quando a noite do mundo chegar que a filosofia poder realizar sua verdadeira tarefa.
Na aula passada, comeamos a leitura da Fenomenologia do esprito atravs de um trecho de seu prefcio que vai do primeiro pargrafo at o pargrafo 17. Nele, vimos Hegel definir, como objeto privilegiado da reflexo filosfica, as expectativas da modernidade e de seus modos de racionalizao das dimenses cognitivo-instrumental, prtico-moral e esttico-expressiva. Uma reflexo que deveria apreender tais expectativas e processos a partir de uma perspectiva capaz de revel-los como resultados de processos de formao legveis no interior de uma compreenso racional da histria. No entanto, vimos como Hegel definia a modernidade como um momento de ciso. O esprito perdeu a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as vrias esferas de valores sociais. Ao contrrio, para Hegel, a modernidade deve ser compreendida como este momento que est necessariamente s voltas com o problema da sua auto-certificao. Ela no pode mais procurar em outras pocas os critrios para a racionalizao e para a produo do sentido de suas esferas de valores. Ela deve criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais aparentemente no-problemticos est fundamentalmente perdida. Em uma anlise hoje clssica, Hegel indica trs acontecimentos que foram paulatinamente moldando a modernidade em suas exigncias: a reforma protestante [com sua confrontao direta entre o crente e Deus atravs da subjetividade da f], a revoluo francesa [que colocava o problema do Estado Justo enquanto aquele capaz de conciliar aspiraes de universalidade da Lei e exigncias dos indivduos] e o
Iluminismo [que, segundo Hegel, ter em Kant sua realizao mais bem acabada]. Em todos estes acontecimentos, o que parece impulsiona-los o aparecimento do que poderamos chamar de subjetividade. De fato, para Hegel, a subjetividade aparece como o princpio dos tempos modernos. No por outra razo que Hegel falar, a propsito de Descartes com seu cogito: Aqui j podemos sentir em casa e gritar, como o navegante depois de uma larga e penosa travessia por mares turbulentos: - Terra!. Com Descartes comea a cultura dos tempos modernos, o pensamento da filosofia moderna, depois de ter andando por muito tempo em outros caminhos44. Analisamos alguns elementos da estrutura reflexiva do princpio de subjetividade a luz de certas consideraes de Heidegger a respeito da reflexo como representao com sua conseqente compreenso do ser como objeto para um sujeito cognoscente. Insisti com vocs que o diagnstico heideggeriano era simtrico aquele que animava Hegel. Todos os dois viam, no advento do princpio de subjetividade enquanto fundamento da modernidade e de seus processos de racionalizao reflexiva, o cerne das cises nas quais a modernidade havia se enredado. Pois, para Hegel, a reflexo, enquanto disposio posicional dos entes diante de um sujeito, no pode deixar de operar dicotomias e divises no interior do que se oferece como objeto da experincia entre aquilo que para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se d atravs da receptividade da intuio e aquilo que ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas estruturas reflexivas de representao, entre o que da ordem do esprito e o que da ordem da natureza, entre o que acessvel reflexo e o que Absoluto. Desta forma, lembrei para vocs que Hegel partilhava o diagnstico de pskantianos como Fichte e Schelling, para quem o primado da reflexo e da subjetividade, produziu cises irreparveis. Da porque o nico interesse da razo o de suspender antteses rgidas45. No entanto, Hegel no estava disposto a abandonar o solo de uma filosofia da reflexo. Ele no acreditava que podemos nos curar das feridas da elevao do princpio moderno de subjetividade condio de fundamento da cincia simplesmente pregando alguma forma de retorno a uma origem pr-reflexiva e prconceitual. Neste sentido, Hegel deve iniciar sua Fenomenologia do Esprito, livro
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HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - Descartes HEGEL, Diferena dos sistemas filosficos de Fichte e Schelling, p. 38
que marca enfim sua entrada em cena no debate filosfico alemo, com uma ruptura clara em relao a Schelling, a quem Hegel foi to intelectualmente ligado at ento. Eu havia lembrado de que, ao menos aos olhos de Hegel, Schelling procurava ultrapassar as dicotomias da reflexo atravs do recurso a um plano de imanncia a partir do qual o subjetivo e o objetivo se extraem. O sujeito emergiu de um mundo indiferente que agora ele confronta e conhece atravs da reflexo. Da segue, por exemplo, a definio schellinguiana do Absoluto que aparece como indiferena absoluta entre sujeito e objeto. a natureza que marcaria este ponto de indiferena entre sujeito e objeto no qual se encontra o Absoluto. Ou seja, contra o esvaziamento da dignidade ontolgica da natureza produzida por Kant, Schelling prope o resgate da filosofia da natureza como momento da auto-intuio do Absoluto. O conceito central aqui intuio. Schelling insiste que h uma intuio intelectual que no reflexo, que no posicional, mas que modo de posio da unidade sem mediao entre sujeito e objeto. De fato, Hegel no pode aceitar tanto o conceito schellinguiano de Absoluto, quanto a maneira com que o recurso a intuio se d s espessas do trabalho do conceito, como se o recurso intuio fosse modo de recuperao daquilo que o conceito perde ao operar. Para Hegel, no se trata de abandonar a dimenso conceitual, mas de distinguir conceito e representao, fazendo assim com que a prpria noo de reflexo subjetiva seja revista e, com ela, a noo moderna de sujeito.A reconciliao das cises da modernidade no ser feita atravs do abandono do solo do pensamento conceitual, mas atravs da reconstituio da noo de pensamento conceitual. Isto implicar em uma reorientao a respeito deste princpio que aparece como fundamento para o advento da modernidade, ou seja, o princpio de modernidade. Podemos dizer que a contribuio central de Hegel encontra-se na tentativa de recompor a noo de subjetividade e tirar da conseqncias maiores para o prprio funcionamento da razo. Neste sentido, terminei a aula lembrando para vocs um ponto que ser retomado de maneira mais elaborada na aula de hoje. Eu havia dito que a modernidade aparece para Hegel como momento histrico no qual o princpio de subjetividade pode se pr como fundamento. No entanto, este sujeito no era apenas a condio transcendental de toda representao. Na verdade, Hegel lembrar que o sujeito aquilo que faz com que o esprito nunca esteja em repouso porque so suas exigncias que
instauram um processo no qual o esprito rompe com o mundo do seu ser-a e do seu representar. Tais exigncias podem ser melhor compreendidas se lembrarmos como o sujeito moderno no era simplesmente fundamento certo do saber, mas tambm entidade que marcado pela indeterminao substancial. Ele aquilo que nasce atravs da transcendncia em relao a toda e qualquer naturalidade com atributos fsicos, psicolgicos ou substanciais. Como dir vrias vezes Hegel, o sujeito aquilo que aparece como negatividade que cinde o campo da experincia e faz com que nenhuma determinao subsista. Na Filosofia do Esprito, de 1805, ele no deixar de encontrar metforas para falar deste sujeito que aparece como o que desprovido de substancialidade e de determinao fixa: O homem esta noite, este nada vazio que contm tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de representaes, de imagens infinitamente mltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao esprito, ou que no existem como efetivamente presentes (...) esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se torna terrvel, a noite do mundo que se avana diante de ns46. Depois de Hegel, a modernidade ser cada vez mais identificada com o efmero, com o tempo que faz com que tudo o que slido se desmanche no ar. O mpeto desta destruio, a modernidade o tira do sujeito enquanto entidade no substancial que lembra, positividade do mundo, a fora de uma noite que avana. Pensar altura da modernidade ser, para Hegel, pensar uma realidade animada por aquilo que no se deixa apreender como substncia.
tendo tais problemas em mente que gostaria de retornar ao texto da Fenomenologia para comentar este trecho que vai do pargrafo 27 at o pargrafo 38. Trecho fundamental por nos expor alguns traos maiores das noes hegelianas de fenomenologia e de experincia. Dois conceitos que nos auxiliaro na definio do modo com que Hegel espera curar a modernidade de suas cises, alm de aprofundar
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nossa compreenso do modo com que tais divises seriam engendradas. Partamos pois o incio do pargrafo 27:
O que esta Fenomenologia do Esprito apresenta o devir da cincia em geral ou do saber [ou seja, o processo de formao da conscincia em direo a este ponto no qual pensar e ser podem reconciliar-se]. O saber como inicialmente ou o esprito imediato - algo desprovido de esprito (geistlose), a conscincia sensvel [o primeiro estgio das figuras da conscincia]. Para tornar-se saber autntico, ou para produzir o elemento da cincia, que para a cincia o seu conceito puro, o saber tem de percorrer um longo e rduo caminho. Esse devir, como ser apresentado em seu contedo e nas figuras (Gestalten) que nele se mostram, no ser o que obviamente se espera de uma introduo da conscincia no-cientfica cincia, e tambm ser algo diverso do estabelecimento dos fundamentos da cincia. Alm disso, no ter nada a ver com o entusiasmo que irrompe imediatamente com o saber absoluto como num tiro de pistola e descarta os outros pontos de vistas, declarando que no quer saber nada deles47.
A Fenomenologia aparece aqui como o movimento de apresentao da cincia, ou seja, da reconciliao entre pensar e ser, em seu devir. Esta apresentao no simples introduo cincia para uma conscincia que ainda nada sabe, nem apresentao prvia do que seriam os fundamentos de todo e qualquer pensamento cientfico. Como vimos na aula passada, ela menos ainda a tematizao da imanncia de um saber do Absoluto que se d atravs de intuies intelectuais. A apresentao do devir em direo cincia a rememorao deste longo e rduo caminho que vai da conscincia em seu estado mais imediato at o esprito realizado. Cada uma das etapas deste caminho fornece um contedo de experincia e pode ser exposto atravs de uma figurao, ou seja, cada uma destas etapas fornece uma figura da conscincia. Veremos de maneira mais detalhada o que so tais figuras na aula que vem atravs do comentrio de certas passagens da Introduo. Por enquanto vale a pena insistir em dois pontos. Primeiro, a fenomenologia implica inicialmente na aceitao
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 36
da perspectiva de um certo primado da conscincia. Trata-se fundamentalmente de descrever o que aparece (Erscheinung termo que pode ser traduzido tanto por fenmeno quanto por o que aparece) conscincia a partir das posies que ela adota diante da efetividade, posies que trazem em seu interior contedos determinados de experincia enquanto contedos de modos de vida em suas dimenses morais, cognitivas, estticas, etc. Assim, se a fenomenologia poder ser definida por Hegel como cincia da experincia da conscincia (este era, por sinal, o ttulo originrio do livro que aparece na primeira edio de 1807), porque ela a exposio das configuraes dos campos de experincia da conscincia a partir do eixo da formao da conscincia para o saber, ou ainda, para a filosofia. Notemos ainda que o campo do que aparece conscincia modifica-se ao ritmo dos fracassos da prpria conscincia em apreender o que se coloca a partir do seu conceito de experincia. Digamos que ela encontra sempre algo a mais do que seu conceito de experincia parecia pressupor. Enquanto ela acreditar encontrar o que nega, o que no se submete ao seu conceito abstrato de experincia, isto ao invs de produzir tal negao, a conscincia continuar nos descaminhos do no-saber e no compreender como novos objetos podem aparecer ao seu campo de experincia. isto o que Hegel tem em mente ao dizer, na Enciclopdia: estando dado que o Eu, para si mesmo, apenas identidade formal; o movimento dialtico do conceito a determinao progressiva da conscincia no para ele sua atividade, mas em-si e, para ele, modificao do objeto48. No entanto, h ainda um ponto que deve ser ressaltado. Embora adote a perspectiva da descrio do que aparece conscincia no interior de seu campo de experincias, Hegel no se v escrevendo uma Fenomenologia da conscincia, mas uma Fenomenologia do Esprito. Esta distino implica, entre outras coisas, que haver um nvel de experincias que s poder ser corretamente tematizada a partir do momento em que a conscincia abandonar seu primado a fim de dar lugar ao que Hegel chama de Esprito (Geist). Ou seja, o acesso ao saber pressupe o abandono da centralidade da noo de conscincia, de seus modos de percepo e reflexo, em prol do advento do Esprito (que no espcie alguma de conscincia absolutizada). [aqui h uma possibilidade de distinguir fenomenologia hegeliana das
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noes de fenomenologia prprias ao sculo XX/ Lebrun e a noo de que, para a fenomenologia moderna, a noo hegeliana de Saber Absoluto terrorismo] Esta passagem, assim como a prpria compreenso do que Hegel quer dizer por Esprito, podem ser melhor compreendidos se levarmos em conta o que Hegel procura desenvolver no pargrafo 28:
A tarefa de conduzir o indivduo, deste seu estado inculto (ungebildeten no formado) at o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de considerar o indivduo universal, o esprito consciente-de-si (Weltgeist - o esprito do mundo) na sua formao cultural. No que toca relao entre os dois indivduos, cada momento do indivduo universal se mostra conforme o modo como [o esprito universal] obtm sua forma (Form) concreta e sua figurao (Gestaltung) prpria. O indivduo particular o esprito incompleto, uma figura (Gestalt) concreta: uma s determinidade predomina em todo seu ser-a, enquanto outras determinidades ali s ocorrem como traos rasurados. (...) O indivduo cuja substncia o esprito situado no mais alto, percorre esse passado da mesma maneira como quem se apresta a adquirir uma cincia superior, percorre os conhecimentos preparatrios que h muito tem dentro de si, para fazer seu contedo presente; evoca de novo sua rememorao (Erinnerung), sem no entanto ter a seu interesse ou demorar-se neles. O singular deve tambm percorrer os degraus de formao cultural do esprito universal, conforme seu contedo; porm, como figuras j depositadas pelo esprito, como plataformas de um caminho j preparado e aplainado. (...) Esse ser-a passado propriedade j adquirida do esprito universal (...) Conforme esse ponto de vista, a formao cultural considerada a partir do indivduo consiste em adquirir o que lhe apresentado, consumindo em si mesmo sua natureza inorgnica e apropriando-se dela49.
Como no devemos compreender este trecho? Primeiro, fato que Hegel pressupe um certo paralelismo ente ontognese e filognese. Pois a substncia dos indivduos concretos um esprito do mundo que, a primeira vista, parece absorver
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um processo racional de formao que j se desenvolveu na histria. De fato, a conscincia deve compreender que o presente no o nico modo de presena e que se trata, fundamentalmente, de compreender uma noo de presena no mais dependente da visibilidade do que se d como imagem no presente. Uma leitura tradicional diria ento que caberia ao indivduo apenas rememorar este processo, estas plataformas de um caminho j aplainado apropriando-se de um esprito que age no indivduo, mas sua revelia. A verdadeira experincia seria, no fundo, uma rememorao de formas j trabalhas pelo desenvolvimento histrico do esprito. Neste momento, o indivduo deixaria de orientar seu agir e seu julgamento como conscincia individual para orientar-se como encarnao de um esprito do mundo que v sua ao como posio de uma histria universal que funciona como elemento privilegiado de mediao. O indivduo singular transformar-se em conscincia do esprito de seu tempo. O que s poderia significar uma absolutizao do sujeito que deixa de ser apenas eu individual para ser aquele capaz de narrar a histria universal e ocupar sua perspectiva privilegiada de avaliao. E a que chegaramos se levssemos ao p da letra afirmaes de comentadores como Jean Hyppolite, para quem: A histria do mundo se realizou; preciso somente que o indivduo singular a reencontre em si mesmo (...) A Fenomenologia o desenvolvimento concreto e explcito da cultura do indivduo, a elevao de seu eu finito ao eu absoluto, mas essa elevao no possvel seno ao utilizar os momento da histria do mundo que so imanentes a essa conscincia individual50. Enfim, tudo se passaria como se a experincia da conscincia fosse rememorao e esta, por sua vez, fosse historicizao capaz de nos levar a compreender como o passado determina nosso agir e nossos padres atuais de racionalidade. Como se a palavra que traz o Saber Absoluto fosse: No fundo, eu sempre soube. No entanto, gostaria de insistir que esta leitura fundamentalmente equivocada e no validada pelo desdobramento do texto da Fenomenologia. Para tanto, devemos levar em conta dois pontos. Primeiro, se fato que, para Hegel, a experincia da conscincia uma certa forma de rememorao, no se segue da que a rememorao hegeliana seja historicizao. Por outro lado, o conceito de esprito do mundo (Weltgeist) no tem necessariamente a ressonncia metafsica que o termo parece
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carregar, algo como um sujeito absoluto capaz de garantir as experincias de sentido. Vejamos estes dois pontos com mais calma.
Quando Hegel fala em esprito do mundo, ou esprito universal, podemos compreender isto, a princpio, de uma maneira no-metafsica. Atualmente, quando falamos sobre sujeitos socializados que procuram julgar e orientar suas aes, lembramos necessariamente do que poderamos chamar de background, ou seja, um "sistema de expectativas" fundamentado na existncia de um saber prtico cultural e de um conjunto de pressupostos que define, de modo pr-intencional, o contexto de significao. Este background indica que toda ao e todo julgamento pressupem um espao social partilhado capaz de garantir a significao da ao e do julgamento. por pressupor um background comum que posso ter a garantia de que a inteno de minha ao, ou seja, aquilo que ela para-mim, possa dizer algo a respeito de seu valor em-si, ou seja, tal como ela ser percebida neste espao social. Este background , em larga medida, pr-intencional e pr-reflexivo. No colocamos normalmente a questo sobre a gnese deste saber prtico cultural que fundamenta nossos espaos sociais. Sua validade no aparece como objeto de problematizao. No entanto, podemos imaginar uma situao na qual os sujeitos socializados procuram apreender de maneira reflexiva aquilo que aparece a eles como fundamento para suas prticas e julgamentos racionais, podemos pensar uma situao na qual eles procurem compreender o processo de formao cultural que nos levou a tais modos de orientao racional da conduta. Podemos ainda achar que tais modos de orientao no devem ter apenas uma validade historicamente determinada e restrita a espaos sociais particulares, mas s podem ser vlidos se puderem ser defendidos enquanto universais. Neste momento, estaremos muito prximo daquilo que Hegel compreende por Esprito. Podemos assim seguir a definio de um comentador astuto de Hegel: Esprito uma forma de vida auto-consciente, ou seja, uma forma de vida que desenvolveu vrias prticas sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por legtimo/vlido (authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas prticas podem dar conta de suas prprias aspiraes e realizar os objetivos que elas
colocaram para si mesmas (...) Esprito no denota, para Hegel, uma entidade metafsica, mas uma relao fundamental entre pessoas que mediam suas conscincias-de-si, um meio atravs do qual pessoas refletem sobre o que elas tomaram por vlidos para si mesmas51. Se lembrarmos do que eu disse na aula passada a respeito a modernidade como um tempo que coloca, para si mesmo, o problema de sua auto-certificao, ou seja, da validade dos seus critrios racionais de ao e julgamento, ento o esprito do mundo s pode aparecer para sujeitos socializados em uma modernidade que se compreende como o momento histrico de problematizao do fundamento da razo. Mas se lembrarmos ainda que vimos como a fundamentao do saber racional era fornecido pelo princpio de subjetividade, ento teremos nosso problema armado. Pois o esprito consciente-de-si seria esta situao histrica na qual os sujeitos compreendem que o que fundamenta a racionalidade de suas prticas sociais a aspirao da subjetividade em ser reconhecida enquanto tal. Mas para melhor compreendermos este ponto, devemos operar um certo curtocircuito. Voltaremos a esta questo atravs de um desvio. Vimos como a experincia da conscincia cujo trajeto descrito pela fenomenologia , a princpio, uma certa forma de rememorao do processo de formao em direo cincia. Mas o que Hegel entenderia por rememorao? Primeiro, devemos insistir: o que Hegel compreende por rememorao em nada corresponde a reminiscncia no seu sentido tradicional. No se trata de atualizar formas fixas do saber que a conscincia deteria em um fundo de inconscincia. Como se aprender fosse, no fundo, recordar o que j sabamos52. Que estas formas sejam inatas, como o quer Plato, ou resultado de um processo histrico de formao, isto no mudaria um dado central: haveria um determinismo essencial na determinao do campo de experincias possveis da conscincia e nos modos de determinao de um sentido que j foi definido e que deve ser simplesmente subjetivamente assumido. Posio que pareceria ser corroborada por afirmaes de Hegel como: Sendo um j pensado, o contedo [da experincia] propriedade do Indivduo, j no o ser-a que deve ser convertido na forma do ser-em-si, o ser-
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PINKARD, Hegels phenomenology: the sociability of reason, p. 9 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - Plato
em-si no sendo mais simplesmente o originrio ou o imerso no ser-a, mas presente na rememorao que deve ser convertido na forma do ser-para-si. Mas vejamos como Hegel encaminha o problema da rememorao. Todas as vezes que usa o termo Er-innerung, Hegel insiste no profundo sentido conceitual desta palavra que indica o converter-se em algo de interior, entrar-se em si mesmo53. No entanto, esta internalizao do que aparece conscincia no pode ser compreendida a partir da representao, como ato de representar e, assim dispordiante-de-si (Vors-sich-stellen) o representvel. O saber, ao contrrio, est dirigido contra a representao assim constitudo, contra esse ser-bem-conhecido54. Ou seja, a internalizao prpria rememorao no deve ser uma disposio do objeto da experincia como aquilo que se submete representao de um sujeito. A rememorao no uma representao.
Contra a representao
O que Hegel compreende por representao fundamentalmente o pensar prprio ao entendimento. Muito haver ainda a se dizer a respeito da crtica hegeliana ao entendimento. Mas gostaria aqui de insistir apenas como nosso trecho conjuga, ao mesmo tempo, uma crtica e uma defesa do entendimento. Primeiro, Hegel critica o entendimento porque ele opera com representaes. O entendimento compreende o conhecer como categorizao do diverso da experincia a partir de predicados gerais (categorias, ou ainda, representaes gerais de objeto) que se colocam como naturalmente dados e arbitrariamente justapostos. Como diz Hegel, apreender e examinar consistem assim em verificar se cada um encontra o que previamente se define na representao. No entanto: o bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, no reconhecido55. De fato, o entendimento sabe que a representao aquilo que est l onde a coisa no est, ela um signo, e no a presena da coisa mesma. Da porque o pensar representativo do entendimento deve cindir a coisa e falar daquilo que se submete representao (o fenmeno) e daquilo que permanece na exterioridade do saber (a
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coisa-em-si). No entanto, esta estratgia no abole um ponto essencial: o sentido continua a ser pensado como presena. Simplesmente, a representao coloca a presena da referncia como aquilo que no pode ser realizado, como aquilo que no se d nos limites da razo. Da porque Lebrun nos lembrar que: A dialtica no diminui ou anula distncia alguma: ela simplesmente cessa de pensar a diferena sob o fundo de distncia. Ela no pretende destruir o imediato presente [ou pensar a partir da sua ausncia]: ela se ataca ao sentido que dvamos a sua presena56. Veremos este ponto com mais calma nas prximas aulas. Aqui, gostaria de lembrar que Hegel insiste, no nosso trecho, no vnculo entre pensar representativo e identidade abstrata (aquilo que ele chama de contedo fixo). A representaes organizam-se atravs de um sistema fixo de diferenas e oposies que deve ser transparente a um Eu que, por sua vez, aparece como unidade sinttica de representaes, como Eu penso que deve acompanhar todas as minhas representaes. Desta forma, o diverso da experincia deve conformar-se a um sistema fixo de diferenas e oposies e deve se submeter a forma da intuio do Eu penso. isto que Hegel tem em vista ao afirmar que se faz necessrio desvencilharse do: Fixo do concreto puro, que o prprio Eu em oposio (Gegensatze) ao contedo distinto, quanto o fixo das diferenas, que postas no elemento do puro pensar partilham dessa incondicionalidade do Eu57. A falsidade da representao consiste em ver o representado como propriedade, como aquilo que se submete pura forma do Eu (como vemos no incio do pargrafo 33). Por isto que Hegel, insiste: hoje, o indivduo encontra a pura forma abstrata pronta. O trabalho do pensar no consiste atualmente em purificar os indivduos do peso do sensvel, mas de espiritualizar o universal, ou seja, recuperar a irredutibilidade do sensvel a fim de operar uma reconciliao possvel com a abstrao do universal. Podemos compreender melhor este ponto se levarmos em conta que Hegel no deixa de reconhecer uma certa importncia ao trabalho do entendimento. Ela est enunciada netas afirmaes aparentemente surpreendentes:
Mas um momento essencial esse separado, que tambm inefetivo; uma vez que o concreto, s porque se divide e se faz inefetivo, que se move. A
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atividade do dividir a fora o trabalho do entendimento, a fora maior e mais maravilhosa, ou melhor, a potncia absoluta58.
Ou seja, o mesmo Hegel que via, na supresso das cises produzidas pelo entendimento e pela representao, o cerne de um programa filosfico a altura de seu tempo, o mesmo que afirmara que o nico interesse da razo o de suspender antteses rgidas, v agora, nas divises produzidas pelo entendimento representativo a fora maior e mais maravilhosa, a potncia absoluta que faz com que o concreto se mova. Como podemos entender esta reviravolta? Dentre as vrias interpretaes possveis, fiquemos com uma. A estrutura de organizao categorial do entendimento (que divide o concreto), assim como sua definio do Eu como pura unidade sinttica desprovida de realidade psicolgica e conaturalidade, a nica fora capaz de retirar o sujeito da aderncia ao imediato e das relaes nas quais o sentido aparece como positividade oferecida a uma intuio imediata. O crculo que fechado em si repousa a relao imediata e portanto nada maravilhosa, dir Hegel logo em seguida. Por ser uma ruptura com o imediato, o entendimento pode ser o incio do saber. Lembremos, por exemplo, da distino hegeliana entre o signo e o smbolo. Para Hegel, o signo est ligado lgica da representao. De onde se segue a definio: O signo uma intuio imediata mas que representa um contedo absolutamente distinto daquele que a intuio tem para si; ele a pirmide para a qual uma alma estrangeira foi transferida e conservada59. A relao arbitrria que o signo sustenta assim evidente, j que ele representa um contedo distinto do que aparece intuio. Estranha intuio imediata esta posta pelo signo, j que ela uma intuio que conserva a distncia entre o contedo intudo e o contedo representado, entre o que visado (Meinung) e o que efetivamente dito. Contra o arbitrrio do signo, Hegel contrape inicialmente o carter motivado do smbolo, no qual o contedo da intuio mais ou menos apresentado no que o smbolo exprime. Mas no atravs das vias do simbolismo que a dialtica hegeliana passar.
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Retornemos ao Curso de esttica a fim de compreender a necessidade hegeliana de ultrapassar a linguagem simblica. Aqui, descobrimos como a adequao entre significao e imagem sensvel nas formas simblicas ainda imperfeita pois, na verdade, a motivao do smbolo contextual. Ela depende de uma conveno partilhada j que o smbolo uma metonmia articulada atravs de relaes analgicas entre a significao e um atributo no interior de uma multiplicidade de atributos do que imediatamente representado pela imagem sensvel. A fora um dos atributos da multiplicidade que compe o leo. Na verdade, o smbolo o caso mais visvel de um problema geral denunciado pela filosofia hegeliana: a impossibilidade de fundar o sentido atravs da pressuposio do imediato de uma referncia naturalizada. A experincia imediata no possui a unidade de um domnio autnomo. O apelo referncia sempre indeterminado, ela sempre desliza atravs do infinito ruim da multiplicidade de perspectivas possveis de apreenso. A linguagem alegrica do smbolo esconde sempre uma hermenutica capaz de fornecer um ponto de basta capaz de parar a fuga infinita do sentido. A imagem sensvel do tringulo em uma igreja crist pressupe a existncia de um texto escondido que nos permite passar do tringulo Trindade. No pargrafo em questo da Enciclopdia, Hegel parece mais interessado na atividade criadora dos signos. Atividade que consiste em negar o imediato da intuio sensvel a fim de possibilitar a produo de um outro contedo como significao e alma. apenas desta maneira que a conscincia pode se liberar da iluso da imanncia da particularidade prpria certeza sensvel, do vnculo ao imediato e aceder ao incio do saber. Podemos aqui seguir Derrida: A produo de signos arbitrrios manifesta a liberdade do esprito. E h mais liberdade na produo do signo do que na produo do smbolo. Na primeira, o esprito mais independente e mais perto de si mesmo. Ao contrrio, no smbolo, ele est um pouco mais exilado na natureza 60. Esta liberdade do esprito a potncia absoluta que marca o trabalho do entendimento. No entanto, a dialtica no um conhecimento por signos. Como havia dito anteriormente, pensar atravs de signos ainda pensar sobre o fundo da distncia. O que Hegel procura , ao contrrio, uma gramtica filosfica capaz de reconciliar, atravs de uma noo de unidade negativa, esta ciso, to prpria ao signo, entre sentido e
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referncia. Para Hegel, claro que o conhecimento por signos afirma mais do que admite. No fundo, o signo esconde uma perspectiva externalista na compreenso da relao entre linguagem e referncia. Pois a partir de uma perspectiva externalista que posso afirmar que o signo ser sempre arbitrrio se comparado intuio sensvel. Precisamos aqui de uma gramtica que anule a necessidade de um vocabulrio do arbitrrio sem que isto signifique entrar nas vias de uma linguagem fundada no carter motivado e expressivo do smbolo.
Sujeito e negao
Como Hegel tentar operar tal reconciliao? Este um dos pontos mais complexos de nosso texto, mas, sem dvida, um dos mais importantes. Ele pode comear a ser compreendido atravs da seguinte afirmao:
Mas o fato de que, separado de seu contorno (Umfnge), o acidental como tal o que est vinculado, o que s efetivo em sua conexo com outra coisa ganhe um ser-a prprio e uma liberdade parte, eis a a fora portentosa do negativo: a energia do pensar, do puro Eu.
O que Hegel quer dizer : a atividade do entendimento, a disponibilizao dos entes sob a forma da representao, produz uma separao, uma ciso no interior do objeto. O que no acede representao no simplesmente expulso do campo da experincia do sujeito. Na verdade, ele aparece como algo que no se submete forma da representao e que, por isto, tem uma liberdade parte, como um acidental que ganhou uma presena prpria. A energia do pensar no consiste apenas em disponibilizar os entes sob a forma da representao, mas consiste tambm em levar o sujeito a se confrontar com aquilo que s aparece como fora portentosa do negativo. Este parece ser o sentido de um dos trechos mais enigmticos de toda a Fenomenologia:
A morte se assim quisermos chamar esta inefetividade [ou seja, esse acidental que no se submete representao] a coisa mais terrvel; e suster o que est morto requer a fora mxima. A beleza sem-fora detesta o entendimento porque lhe cobra o que no tem condies de cumprir [pois o recurso filosfico a arte procura alcanar o que escapa representao atravs de uma intuio imediata que anule a ciso operada pelo entendimento e que instaure uma positividade]. Porm, a vida do esprito no a que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastao, mas a vida que suporta a morte e nela se conserva. O esprito s alcana sua verdade medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto [ou seja, as cises produzidas pelo entendimento so absolutamente necessrias]. Ele no essa potncia como o positivo que se afasta do negativo como ao dizer de alguma coisa que nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrrio, o esprito s essa potncia enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Ele demorar-se o poder mgico que converte o negativo em ser61.
Primeiro, que Hegel fala em morte ele pensa na manifestao fenomenolgica prpria indeterminao fenomenal do que nunca apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica uma experincia do que no se submete aos contornos auto-idnticos da representao, a morte como aquilo que no se submete determinao do Eu. Digamos que, contrariamente a Freud, para quem, nunca podamos podemos ter a experincia da prpria morte, j que, mesmo ao representar nossa prpria morte, continuamos vivos como espectadores desta representao, Hegel dir que h uma experincia de confrontao com o indeterminado, com um ponto no qual o pensar do puro Eu no consegue projetar sua prpria imagem, que equivale morte. Ao trazer este termo para o interior de uma discusso at ento epistmica sobre os limites do pensar representativo, Hegel quer conscientemente mostrar que o problema do pensar representativo prprio ao entendimento no apenas um problema epistmico, mas toca o prprio modo de enraizamento do sujeito naquilo que aparece a ele como mundo. A morte a experincia da fragilidade das imagens do mundo.
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 38
Ao falar que a vida do esprito aquela vida que suporta a morte e nela se conserva, Hegel quer dizer que o esprito capaz de internalizar e conservar a negao do que no se submete ao mundo organizado pela representao e fundamentado pela forma auto-idntica do Eu. Internalizar, aqui, no outra coisa do que rememorar. O que o esprito procura sempre esquecer no apenas seu processo histrico de formao, mas aquilo que o move, ou seja, a negao como fora de fragilizao das vises de mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de prticas sociais de ao e justificao. Se os antigos no estavam totalmente errados em conceber o vazio como motor, porque eles estavam perto de compreender a negao como motor do desenvolvimento das figuraes do esprito. Rememorar assim no apenas internalizar o negativo, mas transform-lo em ser, dot-lo de determinao objetiva. Mas rememorar esta negao que aparece aqui como morte s possvel se o pensar abandonar o primado da representao [no se trata simplesmente de rememorar o processo histrico de formao de nossos critrios de orientao que aspiram racionalidade, trata-se de rememorar a forma vazia do tempo que dissolve toda determinidade]. Este abandono da representao no significa, para Hegel, retorno simples ao imediato, mas procura em determinar um modo de operao do conceito que no seja pensar atravs de representaes. Claro que muito ainda h a se dizer a respeito do que Hegel entende exatamente por negao, assim como quais as diferentes formas de negao que Hegel apresenta. Mas aqui podemos voltar a esta idia, anteriormente posta, de que o esprito consciente-de-si seria esta situao histrica na qual os sujeitos compreendem que o que fundamenta a racionalidade de suas prticas sociais a aspirao da subjetividade em ser reconhecida enquanto tal. Lembremos de como Hegel termina seu raciocnio a respeito da exigncia de transformar o negativo em ser:
Trata-se do mesmo poder que acima se denominou sujeito, e que ao dar, em seu elemento, ser-a a determinidade, suprime (aufhebt) a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que apenas ente em geral.
J vimos na aula passada como, em Hegel, o sujeito , ao mesmo tempo, fundamento dos processos de racionalizao na modernidade e princpio de negatividade. Aqui,
Hegel retorna a este dualidade a fim de insistir que sujeito no simplesmente a auto-transparncia imediata da conscincia capaz de fundar o Eu como espao da identidade imediata de si a si. Sujeito , fundamentalmente, o nome desta negao que no se deixa objetivar sob a forma da representao, desta noite do mundo que anula a imediatez de toda figurao, para falar como a Filosofia do Esprito de 1807. Como vimos na aula passada, Hegel sensvel maneira com que o princpio de subjetividade se constitui na modernidade a partir de um impulso de transcendncia em relao a toda e qualquer determinidade, a todo e qualquer imediato. Este impulso contra o imediato partilhado pelo entendimento, Mas o entendimento afasta-se do imediato para entificar a identidade no domnio da representao Inserir o sujeito em prticas sociais reflexivamente fundamentadas significa compreender, como racional, um agir e um julgar que se orienta atravs da negatividade dos sujeitos. Proposio paradoxal que nos coloca diante de um problema maior: como dar estabilidade a tais exigncias vinda da compreenso do locus da subjetividade como espao privilegiado da negatividade, como no transform-las em movimento perptuo de destruio de toda tentativa de estabilizar critrios de orientao da conduta e do julgar? Estas respostas precisaro esperam mais um pouco. Mas so elas que guiaro o trajeto da Fenomenologia do Esprito. Guardemos pois estas questes. Sero elas que nos levaro a compreender o que Hegel procura atravs de uma operao de reatualizao da dialtica que comearemos a compreender melhor a partir da prxima aula.
As trs aulas anteriores foram dedicadas a uma apresentao geral de certas questes centrais para a introduo compreenso do programa filosfico hegeliano. Comecei insistindo na necessidade de abandonarmos temporariamente alguns motivos hegemnicos da compreenso contempornea da experincia intelectual hegeliana. Ou seja, pedi que vocs no tomassem por no-problemticas consideraes sobre Hegel como: filsofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade
da diferena e das aspiraes de reconhecimento do individual s estratgias de sntese do conceito; terico de uma modernidade que se realizaria no totalitarismo de um Estado Universal que se julga a encarnao da obra total do esprito; expresso mais bem acabada da crena filosfica de que s seria possvel pensar atravs da articulao de sistemas fortemente hierrquicos e teleolgicos, com o conseqente desprezo pela dignidade ontolgica do contingente. Da mesma forma, havia pedido que vocs no aceitassem sem reservas outras acusaes como: tentativa de ressuscitar uma metafsica pr-crtica de forte matiz teolgico, hipstase da filosofia da conscincia, crena em uma histria onde o presente apresentaria uma universalidade do esprito fortemente consolidada, histria teleolgica esvaziada da capacidade em apreender um tempo no qual acontecimentos ainda fossem possveis.Esta insistncia em abrir mo, inicialmente, do diagnstico contemporneo a respeito da filosofia hegeliana aparece como condio primeira para a possibilidade de lermos um texto central de um autor que parece, para ns, ter seu destino j traado. Neste sentido, talvez s seja possvel ler Hegel hoje condio de operar esta grande colocao entre parnteses. A partir da, tivemos duas aulas dedicadas a leitura de certos trechos do Prefcio Fenomenologia do Esprito. Nestes trechos, foi questo fundamentalmente da maneira com que Hegel define seu programa filosfico a partir de um diagnstico a respeito das cises que marcariam o seu prprio tempo, ou seja, a modernidade. Vimos como o diagnstico da modernidade aparecia, em Hegel, como base para a reflexo filosfica e para a determinao de suas tarefas. Operao que levou alguns, como Foucault, a ver em Hegel uma verdadeira ontologia do presente enquanto esforo de reconstruo das categorias ontolgicas a partir da situao dos modos de racionalizao das mltiplas esferas de valores tais como se apresentam para uma determinada conscincia histrica. No interior deste diagnstico de poca, a ateno maior foi dada a esta operao de compreenso da modernidade como experincia histrica animada por um problema de auto-certificao que procura se resolver atravs da fundamentao das expectativas de racionalizao a partir da centralidade do princpio de subjetividade. Insisti com vocs que esta posio do sujeito como fundamento deveria ser compreendida em um sentido duplo. Duplicidade muitas vezes negligenciada por comentadores. O sujeito , por um lado, condio prvia de representaes, posio derivada da sua estrutura de unidade sinttica de apercepes e representaes, de Eu penso que deve acompanhar todas as minhas representaes. Ele assim aquilo que me garante a possibilidade de apropriao reflexiva da estrutura do saber em todo ato do saber. Um saber reflexivo
(como necessariamente reflexivo o saber racional que advm com o princpio moderno de subjetividade) assim um saber capaz, de direito, de por a todo momento as estruturas e regras que orientam as expectativas cognitivas do saber. No entanto, Hegel insistia que a prpria constituio do sujeito enquanto pura condio formal de um saber que seria eminentemente representativo exigia uma operao de negatividade. Podemos inicialmente compreender tal negatividade como a posio da inadequao entre as expectativas de reconhecimento do sujeito e o campo de determinaes fenomenais. Neste sentido, Hegel poderia simplesmente compreender esta negatividade que supera a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que apenas ente em geral62 como transcendentalidade, tal como fizera, antes dele, Kant ao insistir, por exemplo, na clivagem necessria entre eu emprico e eu transcendental. Mas a negatividade hegeliana no a transcendentalidade kantiana. Para compreender melhor este ponto, deveremos ser capazes de determinar as distines entre o especulativo e o transcendental, o que s faremos mais a frente. Por enquanto, gostaria apenas de relembrar o que foi dito na ltima aula a respeito das relaes entre sujeito como negatividade/ experincia de indeterminao fenomenal/fundamento. Ns havamos visto que Hegel est disposto a dar continuidade idia de que o princpio de subjetividade fundamento das expectativas de racionalizao que suportam a experincia histrica da modernidade. No entanto, este fundamento s pode ser posto de maneira reflexiva atravs de uma longa e rdua experincia, j que a conscincia nada sabe, nada concebe, que no esteja em sua experincia 63. No se trata assim de tentar deduzir aquilo que fundamenta nossas prticas e critrios de validade na modernidade. Trata-se de constituir a experincia que permitir a tal fundamento aparecer. Quando for capaz de por o fundamento e instauram um espao social partilhado de prticas e critrios de julgamento partilhados, ento o trabalho da razo ter sido realizado. Este trabalho realizado o prprio advento do esprito (Geist). Vimos como Hegel insiste que a experincia capaz de permitir a posio do fundamento das expectativas da razo moderna uma experincia de rememorao (Erinnerung) e, para Hegel, toda experincia , no fundo, uma rememorao. Por um lado, isto significa insistir que aquilo que fundamento as aspiraes racionais de nossos critrios de validade e nossas aes s poder ser posto atravs da reconstituies de um processo histrico de formao acessvel conscincia individual. Esta a verso mais
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conhecida da temtica da rememorao: seu carter de totalizao da experincia histrica enquanto movimento de desvelamento do sentido do presente. No entanto, isto no d conta de maneira integral da articulao hegeliana entre fundamento/sujeito/negatividade. Pois, para que o fundamento possa ser posto necessrio converter o negativo em ser64, ou seja, fazer com que a negatividade do sujeito venha-a-ser. Vimos como Hegel est disposto a falar desta experincia de posio da negatividade do fundamento atravs de figuras como: confrontao com a morte, dilasceramento absoluto etc. Isto indica, entre outras coisa, que, para Hegel, a expectativa da modernidade em auto-fundamentar suas prticas sociais e seus critrios de validade no pode ser realizada atravs de uma rememorao histrica totalizante que seria capaz de determinar um espao positivo de determinao do sentido da ao e julgamento de sujeitos socializados. A modernidade deve saber encontrar e se legitimar atravs de fundamentos marcados pela negatividade prpria s exigncias de reconhecimento da subjetividade. Digamos que esta uma das faces do programa filosfico que Hegel tentar implementar atravs de seu sistema da cincia. No devemos perd-la pois ela nos auxiliar na compreenso do desenvolvimento da Fenomenologia.
Introduo ao sistema
Na aula de hoje, gostaria de enfim entrar na leitura da Fenomenologia do Esprito. Digo isto porque sabemos que o Prefcio tem uma posio peculiar no interior da economia discursiva da obra. Escrito posteriormente ao final da obra, ele no participa do desenvolvimento interno da obra. Na verdade, sua funo consiste em sistematizar um trajeto, no interior do qual, o prprio projeto hegeliano foi mudando. Neste sentido, o prefcio quase como uma tentativa de costurar um texto cujo sentido foi objeto de mutaes no prprio interior do seu processo de composio. Por outro lado, esta costura no s interna, mas deve dar conta tambm do projeto mais amplo de Hegel no sentido de constituir um sistema da cincia. A primeira edio do livro, em 1807, trazia o seguinte ttulo: Sistema da cincia. Primeira parte: a Fenomenologia do Esprito. Hegel havia composto este ttulo quanto a obra estava em impresso. O ttulo original seria Sistema da cincia. Primeira
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HEGEL, idem,par. 32
parte: cincia da experincia da conscincia. Foi apenas na edio post-mortem de 832 que o livro adquiriu ento o ttulo que conhecemos: Fenomenologia do esprito. Por outro lado, o que hoje chamamos de Introduo era, na verdade, o comentrio ao ttulo da obra cincia da experincia da conscincia. Contrariamente ao prefcio, este trecho no foi escrito posteriormente nem foi remanejado.. Neste sentido, ele tem o estranho estatuto de comentrio de um ttulo que acabou no existindo. Analisemos pois primeiramente o ttulo e suas modificaes. O livro que temos em mo teria sido concebido ento como primeira parte de um sistema da cincia. Uma primeira parte que ela mesma cincia, o que nos leva concluso de que, para Hegel, a cincia aparece sob duas figuras. Como nos lembra Heidegger: Uma e outra figura s podem constituir o todo do sistema e a totalidade de sua efetividade atravs de uma correspondncia mtua e no vnculo desta correspondncia65. No entanto, qual seria a segunda parte do sistema da cincia. Hegel parece claro, neste sentido. Lembremos do que ele escreve no prefcio primeira edio da Cincia da Lgica, de 1812: No que concerne a relao externa, a primeira parte do Sistema da Cincia, que compreende a Fenomenologia, devia ser seguida de uma segunda parte compreendendo a Lgica e as duas cincia reais [que analisa a realidade concreta, j que a Lgica analisaria idealidades] da filosofia, a filosofia da natureza e a filosofia do esprito, o que teria realizado o Sistema da Cincia. Mas a extenso necessria que a Lgica exigiu me levou a public-la a parte; ela constitui pois, segundo um plano alargado, a primeira seqncia Fenomenologia do Esprito. Posteriormente, darei seqncia s duas cincia reais da filosofia mencionadas acima66. Ou seja, o sistema seria composto de uma fenomenologia e de algo muito prximo ao que chamvamos de metaphysica specialisou seja, psicologia especulativa, cosmologia especulativa e teologia especulativa, isto em oposio a metaphysica generalis, ou seja, a ontologia. Ao invs de psicologia, cosmologia e teologia especulativas, Hegel proporia uma filosofia do esprito, uma filosofia da natureza e uma Lgica que seria algo como a articulao conjunta entre teologia e ontologia. No entanto, a distino no totalmente correta, j que a Lgica parece absorver motivos prprios a uma filosofia da natureza, como o mecanismo, o qumico, a atrao, a vida, entre outros.
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Notemos, por outro lado, que o ttulo da Cincia da Lgica no ser, como poderamos esperar: Sistema da cincia. Segunda parte, volume I: A cincia da Lgica. Acrescentemos a isto o fato de que a Enciclopdia das cincias filosfica em compndio, este livro editado em 1817 e que parece enfim realizar a exposio sistemtica da cincia ao dar conta da Lgica, da filosofia da natureza e da filosofia do esprito parece transformar a fenomenologia em mero momento interno filosofia do esprito. Nas suas duas tlimas edies, de 1837 e de 1830, aparece, entre a antropologia e a psicologia, uma seo intitulada: Fenomenologia do Esprito a conscincia. O projeto inicial, assim como o lugar da Fenomenologia do Esprito no sistema, pareciam assim dever ser totalmente revistos. No entanto, devemos levar em conta algumas questes. Primeiro, dos trs livros que compem a base do corpus hegeliano, a Enciclopdia exatamente aquele cujo estatuto o mais problemtico. Basta levarmos em conta o que o prprio Hegel diz no prefcio primeira edio: no caso de um compndio, entra mais simplesmente em considerao uma finalidade externa da organizao e da disposio, quando um contedo j pressuposto e bem conhecido que deve ser exposto com a brevidade desejada (...) Por isso, se as circunstncias tivessem permitido, eu poderia ter julgado mais vantajoso, com referncia ao pblico, fazer editar antes um trabalho mais desenvolvido sobre as outras partes da filosofia tal como o que publiquei sobre a primeira parte do todo, a Lgica67. No prefcio segunda edio, de 1827, Hegel continuar insistindo na inadequao da forma da Enciclopdia: trata-se de um livrotexto que serve apenas de base para uma exposio oral sua forma precria (o que atesta as profundas mudanas que o texto passou em suas trs edies). Como sabemos que, em Hegel, forma da escrita e objeto da experincia so indissociveis, podemos facilmente deduzir que a Enciclopdia no o modo adequado de apresentao do que est em questo na experincia intelectual hegeliana. Ou seja, ela no o modo adequado de apresentao do sistema da cincia. A precariedade da forma precariedade do contedo. Neste sentido, Hegel no procura destinatrios que sejam capazes de dar conta da tarefa filosfica posta pelo nosso tempo. Os destinatrios da Enciclopdia so alunos de filosofia. A deciso hegeliana de realizar uma nova edio da Fenomenologia, trabalho que no foi realizado devido morte de Hegel, apenas demonstra que a Fenomenologia
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do Esprito continuava como pea fundamental do projeto filosfico hegeliano. E se sabemos da inteno de Hegel em retirar do ttulo : Sistema da cincia. Primeira parte porque a Fenomenologia j nos fornece um sistema de apresentao da cincia que autnomo em relao a um sistema enciclopdico. Podemos continuar na idia de uma dupla figura do sistema e afirmar que o saber fenomenolgico no se deixa absorver completamente pelo saber enciclopdico, mas estabelece uma experincia filosfica autnoma. Neste sentido, devemos leva a srio estas palavras de Heidegger: Na concepo hegeliana da Fenomenologia do Esprito, o esprito no o objeto da fenomenologia, nem fenomenologia o ttulo de uma pesquisa e de uma cincia sobre algo, como o esprito, por exemplo, mas a Fenomenologia a modalidade (e no apenas um modo dentre outros) segundo a qual o esprito . A fenomenologia do esprito desgina a entrada em cena, o aparece verdadeiro e integral do esprito68. Tais colocaes so fundamentais para compreendermos o que ser exposto na Introduo. Pois o comentrio desta cincia da experincia da conscincia no visa ser um mero prembulo para a realizao de um saber enciclopdico que no se guiar mais ento a partir do ritmo da experincia da conscincia. Ela visa dar conta da possibilidade da tematizao de um saber no mais dependente da gramtica filosfica do entendimento, saber que possa produzir sua prpria gramtica; e esta gramtica ser a Cincia da Lgica, e no a Enciclopdia.
Esta experincia filosfica que a Introduo j comea diretamente por tematizar e que ser o motor da experincia fenomenolgica do saber diz respeito quilo que podemos chamar de modificao da gramtica filosfica. Para que a conscincia seja capaz de compreender os limites do seu saber como algo mais do que simples limites, para que ela seja capaz de compreender o advento de nossos objetos da experincia como algo mais do que simples descobertas, faz-se necessrio que ela compreende que o impulso filosfico inicial consiste na disposio em pensar atravs de outra gramtica filosfica. Ou seja, para que haja uma cincia da experincia da conscincia, faz-se necessrio uma profunda mudana na gramtica filosfica que suporta a conscincia que procura apreender cientificamente tal experincia. Por isto que: para a conscincia natural,
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confiar-se imediatamente cincia uma tentativa que ela faz de andar de cabea para baixo69. Mas o que exatamente isto, uma gramtica filosfica? Podemos responder esta pergunta a partir do comentrio do trecho que abre a Introduo:
Segundo uma representao natural (natrliche Vorstellung), a filosofia, antes de abordar a Coisa mesma ou seja, o conhecimento efetivo do que , em verdade necessita primeiro pr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera ou um instrumento (Werkzeug) com que se domina o absoluto ou um meio (Mittel) atravs do qual o absoluto contemplado. Parece correto esse cuidado, pois h, possivelmente, diversos tipos de conhecimentos. Alguns poderiam ser mais idneos que outros para a obteno do fim ltimo, e por isso seria possvel uma falsa escolha entre eles. H tambm outro motivo: sendo o conhecer uma faculdade (Vermgen) de espcie e de mbito determinados, sem uma
determinao mais exata de sua natureza e de seus limites, h o risco de alcanar as nuvens do erro em lugar do cu da verdade. Ora esse cuidado chega at a transformar-se na convico (berzeugung) de que constitui um contra-senso, em seu conceito, todo empreendimento visando conquistas para a conscincia o que em si, mediante o conhecer; e que entre o conhecer e o absoluto passa uma ntida linha divisria70. Hegel comea assim colocando-se no nvel da representao natural, ou seja, do que se apresentava em seu tempo como uma evidncia ao saber filosfico e estruturao de seus modos de pensar. Criou-se um modo natural de pensar que produz certas convices, poderia dizer Hegel. Parece natural, por exemplo, ver no conhecer ou um instrumento ativo de transformao da Coisa ou um meio passivo de participao com a Coisa. Parece tambm natural compreender o erro como uma inadequao entre pensar e o ser resultante de postulados equivocados do pensar. Tais representaes naturais chegam a determinar que entre o conhecer e o absoluto passa uma ntida linha divisria, como se o objeto do conhecer humano fosse, naturalmente, o que finito. Podemos dizer que tais representaes e convices naturais que se colocam como evidncia primeira para guiar as operaes do saber so resultados da internalizao de uma
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gramtica filosfica que visa fornecer ao pensar suas leis bsicas de orientao. No entanto, como insistir Hegel, esta gramtica produzir sua prpria superao. No segredo para ningum que, quando Hegel fala da representao do conhecimento como instrumento, ele tem em mente a filosofia crtica kantiana e sua compreenso de que a submisso necessria do objeto ao sujeito cognoscente , na verdade, submisso dos fenmenos s categorias do entendimento. Nas Lies sobre a histria da filosoifa, Hegel dir que, em Kant: O conhecimento apresentado como um instrumento, como uma maneira que temos de nos apoderar da verdade; no entanto, antes de irmos em direo verdade, devemos conhecer a natureza e a funo deste instrumento71. Este conhecimento prvio do instrumento, ou seja, esta exigncia de um conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos que do nosso modo de os conhecer na medida em que este deve ser possvel a priori72 exatamente uma das definies fornecidas por Kant para o transcendental. Para Hegel, este modo kantiano de reflexo vinculada a um encaminhamento transcendental, que no incio do sculo XIX aparecia como uma representao natural do pensar (o que no deve nos estranhar j que, para Hegel, o kantismo a reflexo filosfica da essncia da modernidade e de suas cises) , no fundo, dependente do que poderamos chamar de uma gramtica da finitude que transforma a filosofia em uma crtica do conhecimento incapaz de tematizar de maneira adequada o absoluto e pronta a abrir s portas para uma espcie de ceticismo transcendental.. De maneira sumria, podemos lembrar de alguns traos gerais da experincia intelectual kantiana que Hegel tem em mente a ver nela a exposio mais bem acabada de uma gramtica da finitude. Digamos que Kant comea por perguntar: qual o fato do conhecimento (quid facti)? O fato do conhecimento consiste em termos representaes a partir graas s quais julgamos. Conhecer no descrever experincias, mas poder ultrapassar o dado atravs de princpios a priori. No entanto, no basta ter princpios, faz-se necessrio que tenhamos a ocasio de exerc-los. Meros princpios subjetivos ligados estrutura de nossa psicologia de nada serviriam para dar objetividade ao conhecimento. Como nos lembra Deleuze: o que nos apresenta de maneira a formar uma Natureza deve necessariamente obedecer a princpios do mesmo gnero (mais ainda, aos mesmos princpios) que aqueles que regulam o curso das nossas
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HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia, vol. III, seo Kant KANT, Crtica da razo pura, B 25
representaes73. Desta forma, trata-se de substituir a idia de uma harmonia entre sujeito e objeto por uma submisso necessria do objeto ao sujeito. Operao que serve de base para o que Kant chama de revoluo copernicana . No entanto, tal submisso no pode nos levar a um idealismo subjetivista. As coisas no so simples produtos de nossas atividades. As exigncias do realismo devem ser respeitadas. Kant tentar preencher tais exigncias atravs de uma anlise das faculdades do conhecimento (sensibilidade, imaginao, entendimento e razo) e de suas relaes internas. Como se o problema da relao entre sujeito e objeto tendesse a ser internalizado e convertido em um problema de relaes entre faculdades. Kant insiste que h uma faculdade passiva (sensibilidade) e trs faculdades ativas. A faculdade passiva recebe a matria que dar origem aos objetos, assim como as faculdades ativas sintetizam a forma dos objetos atravs da intuio no espao e no tempo e atravs da categorizao como predicao de todo objeto possvel experincia. Assim, do ponto de vista da forma, o que aparece conscincia, ou seja, os fenmenos, s podem estar submetidos s categorias do entendimento. No entanto, do ponto de vista da matria, a harmonia s pode ser postulada de maneira ideal pelas idias da razo, que so apenas idias reguladoras.A razo a faculdade que diz: tudo se passa como se.... As idias da razo no so simples fices, elas tm valor regulador, mas seu objeto indeterminado e problemtico (a coisa em-si). Ao tentar legislar diretamente sobre a sensibilidade, a razo produz apenas falsos problemas e iluses (paralogismos e antinomias). O resultado pois a possibilidade de falarmos de leis que: a priori fundamentam a natureza, tomada como conjunto de objetos da experincia74. Mas o preo a ser pago ser o reconhecimento de que a experincia refere-se apenas a fenmenos, e no a coisas em-si, que se mantm para ns incognoscveis. De fato, a razo procura saber o absoluto, ou seja, o incondicionado que ultrapassa as determinaes da representao da experincia pelo entendimento. A aspirao das idias da razo exatamente alcanar este incondicionado. Mas ela no pode realizar tais aspiraes na dimenso cognitiva. Hegel ver nesta impossibilidade kantiana das idias da razo alcanarem realidade objetiva um sintoma do que poderamos chamar de ceticismo transcendental que, no fundo, esconde, como veremos, uma perspectiva externalista na compreenso da
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relao entre linguagem e mundo. Por outro lado, tal perspectiva s capaz de admitir que tem realidade objetiva aquilo que se submete condio de objeto finito, intudo no espao e no tempo e categorizado pelo entendimento. Por isto, Hegel insistir: Kant nunca levantou a menor dvida sobre o fato do Entendimento ser o absoluto do esprito humano, ele , ao contrrio, a finitude da razo humana fixada de maneira absoluta e insupervel75. Hegel dever mostrar que, conscincia, aparece mais do que o que pode ser representado pelo entendimento. H uma experincia do da ordem do incondicionado e do absoluto. Mas para tanto um modo de aparecer (uma fenomenologia) ligada finitude deve ser abandonado. Hegel passa ento todo o resto do nosso pargrafo insistindo que no se trata apenas de tentar corrigir uma noo de conhecimento compreendida como instrumento ativo que conforma o objeto ou como meio passivo de contemplao da Coisa.
Sem dvida, prece possvel remediar esse inconveniente [um conhecimento que nos perpetua na separao do absoluto] pelo conhecimento do modo-de-atuao do instrumento, o que permitiria descontar no resultado a contribuio o instrumento para a representao do absoluto que por meio dele fazemos, obtendo o verdadeiro em sua pureza. S que essa correo nos levaria, de fato, aonde antes estvamos. Ao retirar novamente , de uma coisa elaborada, o que o instrumento operou nela, ento essa coisa no caso o absoluto fica para ns exatamente como era antes desse esforo, que, portanto, foi intil76.
Esta idia pressupe uma noo de absoluto como o que est antes do conhecer, na origem. E se o absoluto est na origem, ento, relao imediata que devemos recorrer para alcan-lo, e no relaes estruturadas de conhecimento. No entanto, o problema diz respeito s pressuposies postas em operao por esta figura do conhecer ligado a uma gramtica naturalizada da finitude. Pressuposies no examinadas, dadas como naturais, a respeito da natureza do absoluto e sua relao com o conhecimento. Hegel passa, ento, a enumerao de tais pressuposies:
[Esta figura do conhecimento] Pressupe, por exemplo, representaes sobre o conhecer como instrumento e meio e tambm uma diferena (Unterschied) entre
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ns mesmos e esse conhecer, mas sobretudo, que o absoluto esteja de um lado e o conhecer do outro lado para si e separado do absoluto e mesmo assim seja algo real (Reelles). Pressupe com isto que o conhecimento, que, enquanto fora do absoluto, est tambm fora da verdade, seja verdadeiro (wahrhaft verdico)77.
Na verdade, Hegel afirma que esta figura do conhecimento absolutiza o finito, j que ela pode distinguir finito e absoluto a fim de afirmar que o conhecimento que est fora do absoluto ainda pode aspirar validade. Como se aceitssemos um conhecimento em geral que, embora incapaz de apreender o absoluto, seja capaz de outra verdade. A este respeito, Hegel levanta dois pontos. Primeiro, diferenciar conhecer. Afirmar que o conhecer no tem parte com o absoluto, que ele arbitrrio em relao ao absoluto, significa pressupor um conhecimento prvio do que o absoluto . Isto pressupe, por sua vez, o que poderamos chamar de perspectiva externalista na compreenso do conhecimento. Tudo se passa como se eu pudesse sair dos limites do meu conhecimento compar-lo com o absoluto e afirmar que o primeiro arbitrrio em relao ao segundo. Heidegger compreendeu bem isto ao afirmar, sobre o nosso trecho: No fundo, o exame do meio no sabe o que faz. Ele precisar medir o conhecimento do absoluto a partir da conformidade ao absoluto. Assim, ele precisa ter reconhecido o absoluto, enquanto absoluto, seno toda delimitao crtica cairia no vazio78. Neste sentido, a temtica da limitao da razo contraditria por apoiar em uma perspectiva externalista no fundamentada. Por outro lado, ao pressupor que o conhecimento que, enquanto fora do absoluto, est tambm fora da verdade, seja verdico, esta representao natural do saber afirma: h o finito e h o infinito, entre os dois passa uma ntida linha divisria, no entanto, o finito tem um ser que independe do infinito, o finito tem um ser absoluto em relao ao infinito (se compreendermos aqui absoluto por aquilo que no depende de outro para ser). Lebrun percebeu isso claramente ao insistir que Hegel age como quem diz: Vocs dizem que o Finito escorre e passa, mas vocs apenas dizem isto e fazem deste no-ser um atributo imperecvel (unvergnglich) e absoluto; sua linguagem e sua melancolia no esto de acordo com sua ontologia79. Tudo se passa como se o
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HEGEL, idem, par. 74 HEIDEGGER, Hegel e seu conceito de experincia 79 LEBRUN, LA patience du concept, p. 191
finito fosse assegurado em uma dimenso autnoma que lhe fosse prpria. Defender a partilha ontolgica entre o finito e o infinito e, mesmo assim, afirmar que o finito , que ele tem um ser que lhe prprio que reina soberano no interior do saber, eis o que Hegel no pode aceitar: Esta humildade, dir Hegel, , na verdade orgulho, pois excluo de mim o Verdadeiro, mas de maneira tal que apenas eu no aqum sou o afirmativo e ente para-si e em-si, em relao ao qual todo Outro desaparece80. Hegel j havia levantado questes parecidas ao criticar certas crticas em relao ao pantesmo de Spinoza; Quando se representa o pensamento de Spinoza como confundindo Deus, a natureza e o mundo finito, presume-se por a que o mundo finito verdadeiramente real, tem uma realidade positiva81; sendo que verdadeira esforo da filosofia consistiria em mostrar como o mundo finito resultado de uma figura determinada do pensar, como a compreenso correta do finito nos leva auto-anulao do finito. De uma certa forma, o finito , para Hegel, apenas um erro gramatical resultante da hipstase de um entendimento que: tem o costume de parar o exame das significaes antes de ser forado a efetuar identificaes que, do ponto de vista representativo, seriam dementes82. Como se o entendimento temesse perder a todo momento o solo seguro das representaes. Da porque Hegel lembrar:
O temor de errar introduz uma desconfiana na cincia, que, sem tais escrpulos, se entrega espontaneamente sua tarefa, e conhece efetivamente. Entretanto, deveria ser levada em conta a posio inversa: por que no cuidar de introduzir uma desconfiana nessa desconfiana, e no temer que esse temor de errar j seja o prprio erro? (...) suposio que d a conhecer que o assim chamado medo do erro , antes, medo da verdade83.
Mas o que seria ento, para Hegel, um modo do saber no animado pelo medo da verdade? Digamos que se trata primeiramente de um saber que no determina o erro como simples figura da inadequao, desprovida de valor cognitivo, entre representao e coisa. Esta inadequao, se bem compreendida, ser o motor da manifestao fenomenolgica da apresentao da verdade. A verdade aquilo que se pode se
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HEGEL, Filosofia da religio HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - Spinoza 82 LEBRUN, La patience du concept, p. 202 83 HEGEL, Fenomenologia, par. 74
apresentar depois um trajeto marcado por clivagens e cises, ela aquilo que se produz como resultado de tais clivagens, por isto, ela aquilo que nunca aparece cedo demais. Hegel insiste bastante neste ponto ao afirmar que:
a cincia, pelo fato de entrar em cena, ela mesma uma aparncia (Erscheinung lembremos que o primeiro uso da palavra fenomenologia dizia respeito a uma teoria da aparncia); seu entrar em cena no ainda cincia realizada e desenvolvida em sua verdade (...) Mas a cincia deve libertar-se desta aparncia (Schein), e s pode faz-lo voltando-se contra ele84.
No entanto, nesta libertao da aparncia, a cincia deve operar atravs de uma perspectiva internalista que no faa apelo a nenhum saber pressuposto. Isto implicar na aceitao de que seus conceitos e pressupostos iniciais devero ser vistos como provisrios e passveis de contnua reorientao. Da porque Hegel insiste que ela deve estar disposta a operar com uma outra gramtica filosfica. Uma gramtica na qual os termos fundamentais do saber s podero definir suas significaes atravs do uso que deles faremos no interior do campo fenomenolgico. E como apelo a uma mudana de gramtica filosfica enquanto condio inicial para o saber fenomenolgico que devemos compreender esta afirmao central de Hegel:
Melhor seria rejeita tudo isso [as divises estanques do entendimento] como rperesentaes contingentes e arbitrrias, e como engano o uso a isso unido de palavras (Worten) como o absoluto, o conhecer, e tambm o objetivo e o subjetivo e inmeros outros cuja significao dada como geralmente conhecida. Com efeito, dando a entender, de um lado, que sua significao universalmente conhecida e, de outro lado, que se possui at mesmo seu conceito, parece antes um esquivar-se tarefa principal que fornecer esse conceito85.
Ou seja, a verdadeira tarefa filosfica no consiste em tentar esclarecer previamente a significao de conceitos primeiros para a estruturao de todo saber possvel. Como veremos, a verdadeira tarefa filosfica consiste em partir do uso ordinrio desses
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conceitos para mostrar como sua significao no universalmente conhecida, como poderia parecer primeiramente. No entanto, a filosofia no deve ser uma crtica representao natural do saber a partir da crena de j possuir uma representao adequada do saber. Ao contrrio, ela deve mostrar que a produo dos conceitos que norteiam o saber o resultado de um processo, e no a pressuposio de uma evidncia. A dialtica deve comear sem conceitos prprios, apenas conjugando os conceitos do entendimento em outra gramtica. Na verdade, h ao menos uma pressuposio que guia Hegel: S o absoluto verdade, ou s o verdadeiro absoluto. Esta afirmao no demonstrada, mas apenas postulada. E., de fato, a perspectiva hegeliana uma perspectiva holista. O absoluto pressupe uma perspectiva holista do saber. No entanto, devemos lembrar que existem, ao menos, dois modos possveis de holismo. Em um sentido fraco do termo, o holismo uma perspectiva sem maiores implicaes metafsicas. Ele pressupe que nunca conhecemos objetos isolados, mas sempre relaes de objetos. Assim, s podemos conhecer um objeto ao conhecermos o conjunto de relaes que determinam a significao dos objetos. Podemos, a partir da, afirmar que o conhecimento das relaes condio necessria para o conhecimento do contedo da experincia. Teremos ento um holismo fraco. Mas podemos tambm dizer que o conhecimento das relaes condio suficiente para a determinao do contedo da experincia. Teremos ento aquilo que Robert Brandom chamou, em relao a Hegel, de holismo semntico. Talvez seja por isto que Hegel afirmar em relao a Kant: Kant concebe o pensamento como o que traz em si mesmo a diferenciao [ou seja, o conhecimento das relaes de diferena e semelhana], mas no compreende que toda realidade consiste nesta diferenciao86. Este holismo semntico o nico pressuposto da gramtica filosfica hegeliana. Veremos na prxima aula como ele procura justific-lo.
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Continuamos hoje com a leitura da Introduo Fenomenologia do Esprito. Na aula passada, comentei os quatro primeiros pargrafos da Introduo. Eu havia insistido com vocs que a Introduo j comea por tematizar diretamente uma experincia filosfica que ser o motor da experincia fenomenolgica do saber. Ela diz respeito quilo que pode ser chamado de modificao da gramtica filosfica. Para que haja uma cincia da experincia da conscincia, faz-se necessrio uma profunda mudana na gramtica filosfica que suporta a conscincia que procura apreender cientificamente tal experincia. Por gramtica filosfica podemos compreender o conjunto de pressupostos no problematizados que serve de orientao para o pensar e para a constituio de seus modos de encaminhamento. De uma certa forma, ela o campo de pressuposies de uma sintaxe para o pensar, campo este to naturalizado que normalmente aparece ao pensar como uma representao natural. Vimos, ento, como Hegel procurava partir da necessidade de problematizar aquilo que se colocava em seu tempo como representao natural do pensar. Criou-se um modo natural de pensar que produz certas convices, comeava afirmando Hegel. Parece natural, por exemplo, ver no conhecer ou um instrumento ativo de transformao da Coisa ou um meio passivo de participao com a Coisa. Parece tambm natural compreender o erro como uma inadequao entre pensar e o ser resultante de postulados equivocados do pensar. Tais representaes naturais chegam a determinar que entre o conhecer e o absoluto passa uma ntida linha divisria, como se o objeto do conhecer humano fosse, naturalmente, o que finito. Vimos ainda como, para Hegel, esta representao natural do pensar era, na verdade, uma figura da filosofia kantiana. O que no deve nos estranhar se lembrarmos que Hegel compreende a filosofia kantiana como reflexo filosfica da essncia da modernidade com suas cises e impasses. Partindo deste ponto, tentei mostrar para vocs como Hegel compreendia filosofia kantiana como operao filosfica dependente do que podemos chamar de gramtica da finitude. Ao reconstituir alguns traos gerais da experincia intelectual kantiana, segundo Hegel, vimos como tratava de insistir que a estratgia kantiana de reconhecer que a experincia refere-se apenas a fenmenos, e no a coisas em-si, que se mantm para ns incognoscveis implicaria em uma absolutizao do finito. Tal perspectiva s capaz de admitir que tem realidade objetiva aquilo que se submete condio de objeto finito, intudo no espao e no tempo e categorizado pelo entendimento. Por isto, Hegel insistir: Kant nunca levantou a menor dvida sobre o fato do Entendimento ser o absoluto do esprito humano, ele , ao contrrio, a finitude
da razo humana fixada de maneira absoluta e insupervel87. Ou seja, esta figura do conhecimento absolutiza o finito por distinguir finito e absoluto a fim de afirmar que o conhecimento que est fora do absoluto ainda pode aspirar validade. Como se aceitssemos um conhecimento em geral que, embora incapaz de apreender o absoluto, seja capaz de outra verdade. Tudo se passa como se o finito fosse assegurado em uma dimenso autnoma que lhe fosse prpria. Defender a partilha ontolgica entre o finito e o infinito e, mesmo assim, afirmar que o finito , que ele tem um ser que lhe prprio que reina soberano no interior do saber, eis o que Hegel no pode aceitar; at porque, diferenciar conhecer, e s posso dizer que o finito no tem parte com o infinito ao assumir uma perspectiva externalista em relao ao que parece aparecer como limites da min h linguagem. Ao contrrio, Hegel quer mostrar que o finito apenas um erro gramatical que desaparecer quando a conscincia for capaz de tematizar aquilo que aparece na experincia para alm do que o que pode ser representado pelo entendimento. Da porque: o expor a contradio dentro do finito um dos pontos essenciais do mtodo especulativo dialtico88. Hegel sempre insistir neste ponto: no h como a conscincia assegurar-se de que ela est exilada de uma experincia da ordem do incondicionado e do absoluto. Mas como a conscincia pode saber estar diante do incondicionado ou do absoluto? Sabemos que Hegel descarta a hiptese de Schelling a respeito do absoluto como plano de imanncia, indiferenciao originria entre sujeito e objeto acessvel atravs de uma intuio intelectual pr-reflexiva. Para Hegel, h um saber do absoluto, no entanto, devemos lembrar que o absoluto no aquilo que se d na origem, mas aquilo que se constitui no interior de uma trajetria de experincias. No h uma revelao do absoluto, mas, de uma certa forma, uma produo do absoluto. Proposio paradoxal pois pode parece querer dizer que a conscincia eleva o que se d no interior do seu campo determinado de experincia condio de absoluto. Ainda mais se lembrarmos do que eu havia dito na aula passada a respeito do holismo semntico que aparece como pressuposto da nova gramtica filosfica que Hegel v como condio necessria para o advento do sabe fenomenolgico. Holismo semntico que consiste em dizer que o conhecimento das relaes condio suficiente para a determinao do contedo da experincia.
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HEGEL, Glauben und Wissen, HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia o ceticismo
Eu havia dito a vocs que, para Hegel, o conhecimento das relaes no pode se dar previamente experincia, como se fosse questo de uma deduo transcendental das estruturas possveis de relao sob a forma de categorias. O conhecimento das relaes o fato da experincia, ou seja, s atravs dela podemos conhecer relaes. No entanto, ainda no sabemos o que Hegel entende por relao. Este um ponto central j que quem diz relao diz necessariamente identidade e diferena: categorias que so os alvos primeiros de problematizao do pensamento dialtico. Voltaremos a esta questo. Por enquanto, podemos colocar uma outra questo. Pois ao afirmar que o conhecimento das relaes o fato da experincia parece que esquecemos que s h experincia porque h uma pressuposio prvia de estruturas de relaes. Sem elas, no seramos capazes sequer de o diverso da intuio sensvel sob o nome de objeto. Afirmar estar diante de um objeto j pressupe uma capacidade comparativa e diferenciadora que s se adquire ao postularmos relaes. O caminho da dvida ou, com mais propriedade, o caminho do desespero
Hegel tem clara conscincia disto, por isto, a Fenomenologia do Esprito deve partir das representaes naturais do saber da conscincia. Ela deve partir do exame das tentativas da conscincia de atualizar suas estruturas de relaes na experincia. neste sentido que podemos compreender o incio do pargrafo 78:
A conscincia natural vai mostrar-se como sendo apenas conceito do saber, ou saber no real (nich reales Wissen). Mas medida que se toma imediatamente por saber real, esse caminho tem para ela antes significado (Bedeutung) negativo: o que a realizao do conceito vale para ela antes como perda de si mesma, j que nesse caminho perde sua verdade89. A conscincia natural apenas conceito do saber. Como facilmente percebemos, esta afirmao tem conotao claramente negativa. Ser apenas conceito significa aqui no ser saber da efetividade. No entanto, como ela toma imediatamente e previamente seu conceito de saber por saber da efetividade, a realizao do conceito de saber, ou seja, a tentativa de efetiv-lo atravs da experincia ser necessariamente um fracasso. No um
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simples erro, mas uma perda radical daquilo que para a conscincia aparece como verdade. Ou seja, Hegel ter que mostrar como o objeto da experincia est necessariamente em descompasso no em relao a um saber realizado tal como ele apareceria para ns, conscincias que apreendem todo o trajeto fenomenolgico da experincia, mas em relao prpria representao natural do saber. Podemos dizer assim que o primeiro passo para saber fenomenolgico a compreenso de que a representao natural do saber enquanto estruturas de relaes deve fracassar na sua tentativa de dar conta da experincia. No entanto, este fracasso no deve ser apenas inadequao regional do saber ao objeto, mas negao absoluta da gramtica filosfica que suporta as figuras naturais do saber. Da porque Hegel afirmar:
Esse caminho [de tentativa de realizao do conceito natural de saber] pode ser considerado como o caminho da dvida (Zweifeln) ou, com mais propriedade, caminho do desespero (Verzweilflung); pois nele no ocorre o que se costuma entender por dvida: um vacilar nessa ou naquela pretensa verdade, seguindo de um conveniente desvanecer-de-novo (Wiederverschwinden) da duvida e um regresso quela verdade, de forma que, no fim, a Coisa seja tomada como era antes. Ao contrrio, essa dvida a penetrao conscincia na inverdade do saber fenomenal (erscheinenden Wissen): para esse saber, o que h de mais real (Reellste) antes somente o conceito irrealizado90.
Hegel apresenta aqui uma dicotomia prenhe de conseqncias entre dvida e desespero. Podemos perceber claramente que Hegel, ao falar de uma dvida que regressa Coisa tal como era antes, faz aluso dvida metdica cartesiana, ou seja, a esta disposio em: desfazer seriamente uma vez na vida todas as opinies at ento recebidas em minha crena e comear tudo de novo desde os fundamentos, isto se eu quiser estabelecer algo de firme e constante nas cincias91. A dvida assim o ponto de partida em direo a um fundamento que se apresenta como solo firme da cincia. Sua medida a clareza e a distino da certeza subjetiva da pura forma do pensar do Eu. Clareza e distino que aparecem como medidas indubitveis do saber e seriam ndices de uma intuio imediata e revelao interior92. Hegel insiste que este propsito de
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HEGEL, idem DESCARTES, Meditao primeira 92 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - Descartes
no se entregar na cincia autoridade do pensamento alheio, e s seguir sua prpria convico93 no toca no ponto central: o modo com que a verdade manifesta-se a um pensar submetido s regras sintticas de clareza e distino prprias s representaes do entendimento. Contra esta figura da dvida, Hegel insiste que a conscincia deve experimentar algo da ordem do desespero. Neste contexto, desespero indica no s a fragilizao absoluta das imagens do mundo (isto j podemos encontrar na primeira meditao de Descartes), mas o colocar em questo as bases da gramtica que sustentava o pensar da conscincia natural e seu modo de estruturar relaes. Este desespero no assim apenas a fragilizao das imagens do mundo, mas tambm fragilizao da certeza de si e, fundamentalmente, dos modos de orientao do pensar o que implica em um trabalho do negativo muito mais profundo do que a simples dvida a respeito da adequao de nossas representaes. De fato, podemos defender Descartes desta crtica hegeliana lembrando que a figura do gnio maligno j implica em uma suspenso dos modos de orientao do pensar j que at mesmo as certeza da matemtica e da adequao das representaes ao mundo so postas em dvida. Se lembrarmos de um texto hoje clssico de Derrida, Cogito e histria da loucura, poderemos dizer que esta dvida j desespero por impedir que o sujeito esteja certo de no ser louco, j que a figura do gnio maligno suspende o sujeito de toda e qualquer certeza substantiva. No entanto, podemos lembrar novamente que, para Hegel, um ponto fundamental permanece. Em momento algum a conscincia duvida de que o pensar uma questo de dispor de representaes e que a clareza e a distino so critrios para a orientao do pensar. O desespero hegeliano, no entanto, quer ir at este ponto. Da porque Hegel pode afirmar: Seguir sua prpria opinio [berzeugung convico] , em todo o caso, bem melhor do que se abandonar autoridade, mas com a mudana [Verkherung inverso] do crer na autoridade para o crer na prpria convico, no fica necessariamente mudado o contedo da convico [j que no se trata de um problema de autonomia ou de heteronomia do pensar, mas de um problema de conjugao de uma gramtica filosfica naturalizada, ou seja, de um problema
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do pensar como contedo para si mesmo]; nem fica a verdade introduzida em lugar do erro94.
Desta forma, o desespero, ou ainda a angstia (Angst), aparece para Hegel como condio necessria para a conscincia entrar neste saber fenomenolgico que modo de manifestao do esprito em direo ao saber de si. Aqui, entretanto, uma distino deve ser feita. Ao confrontar-se com o desespero, a conscincia pode simplesmente aferrar-se crena e certeza absoluta de si de maneira tal que nenhuma dvida possa doravante colocar o saber em movimento. Ela pode recuar e tentar salvar o que est ameaada de perder95. Neste sentido, ela defende-se do desespero atravs da loucura. Mas se a conscincia for capaz de compreender a negatividade que ela sentiu ao ver a fragilizao de seu mundo e de sua linguagem como manifestao do esprito, deste esprito que s se manifesta destruindo toda determinidade fixa, ento a conscincia poder entrar no ritmo do saber fenomenolgico. Neste sentido, podemos mesmo dizer que, para Hegel, s possvel se desesperar na modernidade, j que ele a experincia fenomenolgica central de uma modernidade disposta a problematizar tudo o que se pe na posio de fundamento para os critrios de orientao do julgar e do agir. Mas se voltarmos ao pargrafo 78, veremos Hegel definir este desespero como caminho em direo realizao do saber como ceticismo que atingiu a perfeio (vollbringende Skeptizismus), um ceticismo que incide sobre todo o mbito da
conscincia fenomenal [e] torna o esprito capaz de examinar o que verdade, enquanto leva a um desespero, a respeito da representaes, pensamentos e opinies pretensamente naturais96. Este um ponto central. Podemos dizer que se trata aqui de insistir que o pensar especulativo procura apropriar-se do trabalho do negativo em operao no ceticismo, isto a ponto de insistir que a dialtica deve internalizar o ceticismo como seu momento inicial. Hegel chegar mesmo a dizer que: o verdadeiro conhecimento da Idia esta negatividade que se encontra em casa no ceticismo97. A dialtica como resposta da conscincia filosfica ao ceticismo.
Ceticismo
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HEGEL, Fenomenologia, par. 78 HEGEL. Fenomenologia, par. 80 96 HEGEL, Fenomenologia, par. 78 97 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia o ceticismo
Antes de iniciarmos, vale a pena lembrar que Hegel distingue ceticismo moderno (representado principalmente por Schulze e, em certa medida, Maimon) e o ceticismo antigo. Para Hegel, o ceticismo moderno seria uma postura que v como verdadeiro apenas o ser sensvel, aquilo que a conscincia sensvel nos entrega, duvidando de todo o mais. Isto implica em deixar com que a realidade da empiria subsista intacta e indubitvel. Neste sentido, seu positivismo no poderia estar mais distante do pensamento especulativo. J o ceticismo antigo, ao insistir nas contradies necessrias e irrefutveis que nos deparamos ao procurar falar sobre a essncia do que aparece, opera uma crtica da finitude fundamental para a dialtica. Hegel sabe muito bem que o ceticismo antigo no consiste em afirmar a mera irrealidade do acontecimento. Por exemplo, ao afirmar que o conceito de movimento contraditrio, o ctico no pode ser refutado partir do momento em que comeamos a andar. Para Hegel, o que o ceticismo nega a determinao essencial da significao do acontecimento, o que no quer dizer que nossas representaes mentais no tenham realidade objetiva para ns neste momento e sob condies determinadas de percepo. Digo que as coisas me aparecem e que eu suspendo o juzo sobre a sua significao, dir o ctico a partir de suas operaes de epokh. Lembremos do que diz Lebrun, o ceticismo: de demora diante da significao das palavras utilizadas, isto ao invs de ir diretamente ao encontro do que elas designam, ele se coloca no ponto de unio do dizer e do dito98. Para Hegel, isto implica necessariamente no reconhecimento das contradies que nos enredamos ao nos aferrarmos s representaes finitas da linguagem do entendimento. Neste sentido, ceticismo significa demorar-se diante das palavras, dicotomias e relaes que apareciam conscincia natural como claramente fundamentadas em sua significao. Se o ctico pode afirmar: Uma teoria por momentos nos seduz e nos parece persuasiva? Um pouco de investigao serena logo nos faz encontrar argumentos que a contradigam com no menos persuasividade99 porque se trata de mostrar que a determinao finita que compreende o pensar como conjunto de teses no pode deixar de mostrar seu carter vacilante e inseguro. Todas as representaes da verdade se encontram expostas a que se demonstre seu carter finito,
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j que todas contm uma negao , portanto, uma contradio100. Lembremos desta idia central de Hegel, o dogmatismo consiste em afirmar como verdadeiro um contedo determinado e, com isto, absolutizar o finito. Neste sentido, a crtica ctica s pode ser bem vinda a um pensamento dialtico, principalmente se pensarmos em dois de seus tropos principais: a regresso ao infinito e a hiptese. O primeiro consiste em considerar que a prova a que o dogmtico quiser recorrer, remete a uma outra prova, e assim ao infinito. O segundo diz respeito tentativa dogmtica de parar a regresso ao infinito atravs da posio de proposies com valor de axiomas; axiomas contra os quais os cticos iro desvelar o carter de mero pressuposto. Hegel compreende estes dois tropos como argumentos fortes contra a estrutura dedutiva do entendimento. No entanto, Hegel levanta duas crticas ao ceticismo antigo. Primeiro, ele v o ceticismo como uma certa figura da filosofia da subjetividade que, para alm da epokh em relao a determinao essencial de todo fenmeno, assenta-se na segurana da certeza da conscincia de si. Esta crtica pode ser problematizada, mas aquela que realmente nos interessa outra. Hegel insiste que a crtica s representaes finitas do entendimento s pode produzir uma suspenso ctica do juzo porque o ceticismo continua aferrado gramtica filosfica que ele critica. Ao compreender a contradio como resultado da tentativa do pensar em dar conta do mundo fenomnico, ela s v a contradio como puro nada, tal como duas proposies contraditrias sobre o mesmo objeto resultariam necessariamente em um objeto vazio sem conceito ou ainda um conceito que se
contradiz em si mesmo (nihil negativum). O ceticismo est certo em ver na fenomenalidade o espao da contradio, e com isto nos levar ao desespero em relao a representaes, pensamento e opinies pretensamente naturais, mas est errado na sua maneira de compreender o valor da contradio. Neste sentido, Hegel dever insistir que a apresentao da conscincia no verdadeira em sua inverdade no um movimento puramente negativo pois
O ceticismo que termina com a abstrao do nada ou do esvaziamento no pode ir alm disso, mas tem de esperar que algo de novo se lhe apresente e que novo seja esse para joga-lo no abismo vazio. Porm quando o resultado apreendido como em verdade como negao determinada que ento j surgiu uma
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nova forma imediatamente, e se abriu na negao a passagem pela qual, atravs da srie completa das figuras [da conscincia], o processo se produz por si mesmo101.
Anteriormente, Hegel havia dito que o ceticismo diferencia-se do especulativo porque este ltimo capaz de compreender o nada como algo determinado e que tem um contedo. Mas o que poderia significar uma negao determinada ou um nada determinado? Percebemos que este conceito importante no interior da economia do nosso texto. Hegel havia dito que o caminho da conscincia em direo realizao do saber um caminho do desespero, pois deve dissolver no s as imagens do mundo da conscincia, mas tambm indicar a fragilizao da certeza de si e, fundamentalmente, dos modos de orientao do pensar. Neste sentido, o caminho do saber foi comparado a um ceticismo que demonstra a instabilidade das determinaes finitas do saber. No entanto, o ceticismo para l onde deveria continuar, j que ele v a contradio resultante da experincia fenomnica da conscincia, contradio resultante da tentativa da conscincia natural em no ser apenas conceito de saber, mas saber realizado, como figura do puro nada. Para Hegel, resta ao ceticismo apenas o retorno em direo certeza da conscincia de si. Mas conscincia que procurar apreender fenomenalmente o saber, resta compreender a contradio como uma negao determinada. Mas o que exatamente esta negao determinada que permite a passagem da srie completa das figuras da conscincia a partir da sua prpria auto-produo?
Negao determinada
Antes de abordarmos diretamente esta questo, vale a pena configurar melhor o uso que Hegel procura fazer desta noo: negao determinada. Logo aps afirmar que a negao determinada exatamente este movimento interno de passagem de uma figura do saber fenomenal a outra (o que poderia ser dito de outra maneira, a saber, a negao determinada o que estabelece o regime de relao de um objeto da experincia a outro ela esta operao que constri processos de relao na experincia, e no dedues de relaes), Hegel lembra que esta passagem deve nos
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levar necessariamente a uma meta (Ziel). A meta est ali onde o saber no necessita ir alm de si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o conceito corresponde (entspricht) ao objeto e o objeto ao conceito102. Ou seja, a negao determinada este modo de estruturar relaes entre objetos, a partir de processos, que permite a realizao da correspondncia final entre conceito e objeto. Isto s possvel porque se trata de afirmar que a negao determinada modo de estruturar relaes entre objetos a partir da dinmica do conceito. O conceito, em Hegel, no aquilo que submete o diverso da intuio sob a forma de uma representao genrica. Antes, ele estrutura de relaes pensadas a partir da negao determinada. Este vocabulrio da correspondncia pode parecer estranho. Afinal, o pensar representativo que compreende a relao entre objeto e conceito a partir da correspondncia, da adequatio entre minhas imagens mentais e estados de coisas independentes. Por que Hegel recorre aqui ao vocabulrio da correspondncia? Vejamos o que mais Hegel diz pargrafo 80. Ele lembra que o processo em direo tal correspondncia no pode ser detido. Pois:
a conscincia para si mesma seu conceito, por isso imediatamente o ir-alm do limitado e - j que este limite lhe pertence o ir alm de si mesma (...) Essa violncia que a conscincia sofre de se lhe estragar toda satisfao limitada vem dela mesma103.
Notamos que este a conscincia para si mesma seu conceito no tem o mesmo sentido do anterior a conscincia natural apenas conceito de saber. Agora, conceito significa: o aparecer a si mesmo da conscincia em sua verdade104. O que antes era apenas conceito, agora pode se afirmar como o que guia a experincia em direo meta. Este conceito o que leva a conscincia a suportar a violncia que estraga sua satisfao limitada, violncia que anteriormente chamamos de desespero. Mas se a violncia vem dela mesma (e no simplesmente do objeto que resiste ao conceito) tambm porque o que parece ocorrer fora dela ser uma
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HEGEL, Fenomenologia, par. 80 HEGEL, Fenomenologia, par. 80 104 HEIDEGGER, Hegel e seu conceito de experincia
atividade dirigida contra ela - o seu prprio agir105. Isto pode significar duas coisas distintas: a conscincia est diante de um objeto que seu prprio saber criou, neste sentido, a violncia da tentativa de fazer corresponder o conceito ao objeto algo que se passa no interior da prpria conscincia, isto na melhor tradio de um idealismo subjetivista. Ou podemos dizer: o conceito j traz em si uma negatividade simtrica quela que a conscincia encontra ao compreender que seu saber natural no corresponde ao objeto. A negatividade prpria confrontao entre conceito e objeto j deve ser interna aos modos de estruturao do conceito. Esta a segunda parte da proposio exposta na aula passada a respeito do holismo semntico de Hegel, ou seja, esta idia de que a compreenso das relaes condio suficiente para a compreenso do contedo da experincia. Esta proposio s possvel condio de compreendermos as relaes como processos que se estruturam a partir de negaes determinadas. Ns avaliaremos melhor o modo de funcionamento desta hiptese na prxima aula, quando terminarmos a leitura da Introduo. Por enquanto, gostaria de terminar esta aula tecendo algumas consideraes sobre esta noo to central para a compreenso da filosofia hegeliana: a negao determinada. Quando Hegel fala de negao determinada ele faz sempre aluso e uma negao que, de uma certa, conserva aquilo que nega, tal como em uma operao de Aufhebung. Ou seja, a negao no aparece aqui simplesmente como figura da privao (nihil privativum), da falta, do vazio ou do nada. A negao determinada um modo relacional de passagem de um termo a outro. Neste sentido, aquilo que negado deve ficar pressuposto no interior de uma relao. Lembremos que colocar termos em relao implica em admitir posies de oposio e de excluso. Assim, por exemplo, na proposio o individual no o Universal, a negao aparece como operao que permite ao sujeito gramatical estabelecer seu limite e sua identidade atravs da oposio ao predicado, ou ainda, atravs de incompatibilidade matterial. Hegel pensa nestas operaes quando afirma que: a determinidade essencialmente o limite, e tem o seu ser-outro como fundamento106. A determinidade essencialmente o limite porque as individuaes de termos so
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fundamentalmente relaes de oposio. assim que Hegel compreende o princpio medieval (e spinozista) omnis determination est negatio. Mas notemos que podemos simplesmente afirmar que negaes opositivas pressupem relaes de incompatibilidade material que trazem conseqentemente modalidades de individuao de termos. A individuao de um termo sempre pressupe virtualmente uma rede de relaes opositivas que operam mediaes na determinao da identidade dos termos. Uma estrutura de negaes opositivas faz a mediao entre termos. Aqui pode parecer que estaramos caminhando para uma concluso relativamente trivial, ou seja, a negao determinada hegeliana seria apenas uma espcie de negao opositiva por ser negao que opera a estruturao de relaes atravs de incompatibilidades materiais. No entanto, nada mais errado, e isto no explicaria como relaes internas ao conceito podem dar conta da negatividade prpria confrontao entre conceito e objeto. Aqui comea a teoria dialtica das negaes, motor central do pensamento hegeliano. Pois a negao determinada tem uma diferena fundamental em relao oposio: ela no expulso para fora de si do oposto na determinao da identidade. Mas para compreender este ponto de maneira adequada precisamos analisar calmamente a maneira com que Hegel estabelece diferenas entre a negao determinada e a oposio (que ele chama vrias vezes de negao abstrata ou negao simples). Esta distino, que nos obrigar a entre em um momento central do debate entre Kant e Hegel a respeito da teoria das negaes, ser o objeto da nossa prxima aula.
Nesta aula, terminaremos o comentrio da Introduo Fenomenologia do Esprito dando conta, assim, do trecho que vai do pargrafo 81 ao pargrafo 89. Vimos, at agora, como Hegel parte da necessidade da conscincia operar aquilo que chamamos de modificao da gramtica filosfica. Para que haja uma cincia da experincia da conscincia, faz-se necessrio uma profunda mudana na gramtica filosfica que
suporta as expectativas de racionalizao que animam a conscincia em seu agir e em seu julgar. Por gramtica filosfica podemos compreender o conjunto de pressupostos no problematizados que serve de orientao para o pensar e para a constituio de seus modos de encaminhamento. De uma certa forma, ela o campo de pressuposies de uma sintaxe para o pensar, campo este to naturalizado que normalmente aparece ao pensar como uma representao natural. Vimos ento como Hegel partia desta representao natural do pensar. Criou-se um modo natural de pensar que produz certas convices, comeava afirmando Hegel logo no primeiro pargrafo da Introduo. Parece natural, por exemplo, ver no conhecer ou um instrumento ativo de transformao da Coisa ou um meio passivo de participao com a Coisa. Parece tambm natural compreender o erro como uma inadequao entre pensar e o ser resultante de postulados equivocados do pensar. Tais representaes naturais chegam a determinar que entre o conhecer e o absoluto passa uma ntida linha divisria, como se o objeto do conhecer humano fosse, naturalmente, o que finito. Vimos ainda como, para Hegel, esta representao natural do pensar era, na verdade, uma figura da filosofia kantiana. Partindo deste ponto, tentei mostrar para vocs como Hegel compreendia filosofia kantiana como operao filosfica dependente do que podemos chamar de gramtica da finitude. Ao reconstituir alguns traos gerais da experincia intelectual kantiana, segundo Hegel, vimos como tratava de insistir que a estratgia kantiana de reconhecer que a experincia refere-se apenas a fenmenos, e no a coisas em-si, que se mantm para ns incognoscveis implicaria em uma absolutizao do finito. Tal perspectiva s capaz de admitir que tem realidade objetiva aquilo que se submete condio de objeto finito, intudo no espao e no tempo e categorizado pelo entendimento. Ou seja, esta figura do conhecimento absolutiza o finito por distinguir finito e absoluto a fim de afirmar que o conhecimento que est fora do absoluto ainda pode aspirar validade. Hegel, por sua vez, quer mostrar que o finito apenas um erro gramatical que desaparecer quando a conscincia for capaz de tematizar aquilo que aparece na experincia para alm do que o que pode ser representado pelo entendimento. Para Hegel, no h nenhuma razo para a conscincia assegurar-se de estar exilada de uma experincia da ordem do incondicionado e do absoluto.
Apresentei ento um primeiro modo de encaminhamento para a questo do absoluto em Hegel. Vimos como Hegel parte de uma pressuposio que podemos chamar, juntamente com Robert Brandom, de holismo semntico. Neste sentido, podemos dizer que, para Hegel, saber o absoluto s possvel condio de aceitarmos que o conhecimento das relaes entre objetos da experincia condio suficiente para a determinao do contedo da experincia. De uma certa forma, passei nossa ltima aula discutindo com vocs o modo de encaminhamento desta idia. Lembremos aqui de alguns pontos fundamentais da nossa leitura. Primeiro, este conhecimento das relaes no pode ser, para Hegel, o resultado de uma deduo prvia experincia, como se fosse questo de uma deduo transcendental das estruturas possveis de relao sob a forma de categorias. O conhecimento das relaes o fato da experincia, ou seja, s atravs dela podemos conhecer relaes. Proposio aparentemente sem sentido, j que, ao afirmar que o conhecimento das relaes o fato da experincia, parece que esquecemos que s h experincia porque h uma pressuposio prvia de estruturas de relaes. Sem elas, no seramos capazes sequer de o diverso da intuio sensvel sob o nome de objeto. Afirmar estar diante de um objeto j pressupe uma capacidade comparativa e diferenciadora que s se adquire ao postularmos relaes. Crticos do hegelianismo insistem que a experincia fenomenolgica j desde sempre organizada a partir da perspectiva a posteriori de uma conscincia que rememora o a integralidade do processo histrico de formao em direo ao saber. Neste sentido, o conhecimento das relaes j estaria previamente pr-determinado, sendo o trajeto fenomenolgico apenas a confirmao do que a conscincia histrica j tem condies de determinar. Neste sentido, para defender Hegel, devemos mostrar que o caminho fenomenolgico em direo ao saber pode ser trilhado pela conscincia individual sem a necessidade de uma perspectiva estruturada como uma meta-narrativa histrica. Sugeri que podemos compreender a estratgia hegeliana ao levar a srio a idia de que o caminho da experincia fenomenolgica do saber o caminho do desespero. Neste contexto, desespero (ou, em outras situaes, angstia) indica uma fragilizao absoluta das imagens do mundo que permite o colocar em questo as bases da gramtica que sustentava o pensar da conscincia natural e seu modo de estruturar relaes. Este desespero pode ser assim tambm fragilizao da certeza de si e,
fundamentalmente, dos modos de orientao do pensar. Sem este trabalho do negativo, a conscincia continuar sempre aferrada s representaes naturais do pensar. No entanto, dizer isto ainda dizer pouco. Pois poderamos simplesmente dizer que este desespero em relao a representaes, pensamentos e opinies pretensamente naturais no necessariamente nos levar ao saber absoluto, mas simplesmente ao ceticismo. Este mesmo ceticismo que s v contradio l onde o pensar procura determinar a essncia do que aparece e que, com isto, leva a conscincia suspender o juzo (epokh) como estratgia para alcanar um porto para alm do desespero. Hegel compreende claramente este ponto. Tanto que podemos afirmar que o pensar especulativo procura apropriar-se do trabalho do negativo em operao no ceticismo, isto a ponto de insistir que a dialtica deve internalizar o ceticismo como seu momento inicial. No entanto, seus resultados sero diametralmente opostos, ao invs da suspenso do juzo, Hegel quer levar a conscincia absolutizao do saber. Para tanto, ele deve compreender o ceticismo a partir de duas perspectivas. Primeiro, o ceticismo estaria certo ao mostrar como toda tentativa de compreender a experincia a partir de determinaes finitas, toda tentativa de simplesmente aplicar conceitos experincia fenomenal, nos leva a contradio. No entanto, ele estaria errado em compreender esta contradio apenas como o puro nada, da mesma forma como duas proposies produziriam necessariamente um objeto vazio desprovido de conceito. Isto seria apenas a prova de que o ceticismo ainda estaria preso a uma gramtica filosfica dependente da entificao de postulados como: o princpio de identidade, de no-contradio e do terceiro excludo. Da porque Hegel apresenta, contra o ceticismo, o conceito de negao determinada. Este o conceito mais importante da Introduo e ele que deve nos explicar como o caminho do desespero no deve levar a conscincia ao ceticismo (ou, na pior das hipteses, loucura), mas a esta meta na qual: o saber no necessita ir alm de si mesmo, onde a si mesmo se encontra, onde o conceito corresponde (entspricht) ao objeto e o objeto ao conceito. Antes pois de retomar o comentrio do nosso texto, gostaria de expor, de maneira mais sistemtica, a noo hegeliana de negao determinada.
Negao determinada
Um dos fundamentos da experincia intelectual hegeliana est na sua teoria das negaes. Hegel est disposto a levar s ltimas conseqncias o questionamento de idias clssicas como: a realidade algo, a negao nada. Ele compreende que a tentativa de recusar dignidade ontolgica ao negativo s pode ser compreendida no interior de um modo de pensar que determina o saber como presena diante de si do objeto atravs da representao. Presena que se molda a partir da visibilidade das coisas que se do no espao. Afirmar, como quer Hegel, que a negao , que ela tem um ser que lhe prprio, significa admitir que nem tudo se adequa visibilidade de uma presena que tende a reduzir todo ser ao regime de disponibilidade prprio ao espao. Veremos no decorrer do curso como Hegel estrutura sua teoria das negaes e as conseqncias dela para uma teoria da linguagem e do conhecimento. Por enquanto, gostaria de trabalhar uma das figuras centrais da negao hegeliana: a negao determinada. [os trs nveis da negao, segundo Hegel: negao abstrata/ negao determinada: Verkehrung e Aufhebung negao absoluta]. Retornemos primeiramente hiptese do holismo semntico, ou seja, esta noo de que a compreenso das relaes entre objetos condio suficiente para a determinao do contedo da experincia. Vimos que Hegel definia a meta do saber fenomenolgico como este ponto onde o conceito corresponde ao objeto e o objeto corresponde ao conceito. Uma primeira leitura parece nos indicar que o saber absoluto hegeliano seria a realizao da adequao total do conceito (compreenso de relaes lembremos que, para Hegel, o conceito no subsuno do diverso da experincia sob a forma de objeto, mas posio de estruturas de relaes) ao objeto (o contedo da experincia). No entanto, esta adequao s seria possvel condio de compreendermos as relaes de objetos como negaes determinadas. Ou seja, a negao determinada aquilo que permite, ao conceito, estruturar relaes entre objetos. A princpio esta definio mais trivial do que parece. Tomemos, por exemplo, duas proposies negativas: A mulher no alta A mulher no homem
Percebemos claramente que h aqui dois usos distintos da negao, um uso indeterminado e um uso determinado. Eles so resultados de dois modos distintos de uso do verbo ser: um como predicao e outro como posio de identidade. A
negao que incide sobre o verbo ser no interior de uma relao de predicao indeterminada. A negao de um termo no me d automaticamente o outro termo. No posso passar de mulher para alta vice-versa. J a negao que incide sobre o verbo ser no interior de uma relao de identidade determinada. A negao de um termo me faz passar automaticamente a um outro termo, neste sentido, a negao conserva o termo que ela nega. No nosso exemplo, a negao do sujeito gramatical mulher me faz necessariamente passar ao termo posto no predicado. Isto porque, ao negarmos o verbo ser no interior de uma relao de identidade, estamos necessariamente estabelecendo uma relao de oposio ou de contrariedade. Passar de um termo a outro indica aqui a existncia de uma relao de solidariedade entre dois termos contrrios: homem e mulher, Um e mltiplo, ser e nada. O Um inicialmente negao do mltiplo, o ser inicialmente negao do nada. Isto nos mostra que uma determinao s pode ser posta atravs da oposio, ou seja, ela deve aceitar a realidade de seu oposto. A positividade da identidade a si suportada pela fora de uma negao interna que, na verdade, sempre pressupe a diferena pensada como alteridade. Assim, quando dizemos: a negao determinada aquilo que permite, ao conceito, estruturar relaes de objetos, parece que estamos dizendo, simplesmente que toda relao capaz de determinar identidades necessariamente uma relao de oposio. Poderamos mesmo dizer, com Deleuze, que: Hegel determina a diferena por oposio dos extremos ou dos contrrios107, como se toda diferena essencial pudesse ser submetida a relaes de oposio. Falar de uma negao que conserva o termo negado seria simplesmente uma maneira mais nebulosa de dizer que, em toda relao de oposio, a posio de um termo pressupe a realidade de seu oposto como limite sua significao. Neste sentido, poderamos compreender tentativas, como a de Robert Brandom, de definir a negao determinada como a simples reflexo sobre as conseqncias de assumirmos o carter estruturante de relaes de incompatibilidade material. Lembremos do que ele afirma: Hegel aceita o princpio medieval (e spinozista) omni determinatio est negatio. Mas a mera diferena ainda no a negao que a determinidade exige de acordo com esse princpio. Essencialmente, a propriedade definidora da negao a exclusividade codificada no princpio de no-contradio: p exclui-se de no-p; eles so incompatveis108. Assim: o conceito de incompatibilidade
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DELEUZE, Diffrence et rptition, p. 64 BRANDOM, Holism and idealism in Hegel Phenomenology, p. 179
material ou, como Hegel o designa, de negao determinada seu mais fundamental instrumento conceitual109. No entanto, esta compreenso da negao determinada como figura da oposio falha sob vrios aspectos. Ela til para nos lembrar como a negao pode estruturar relaes conceituais, mas ela no d conta de dois pontos centrais. Primeiro, a negao determinada no apenas o modo de relao entre dois termos, mas fundamentalmente o modo de relao entre conceito e objeto. Neste sentido, lembremos da idia central de Hegel: o conhecimento das relaes no o resultado de dedues, mas s possvel no interior da experincia. Conhecer relaes no consiste em deduzir, mas em compreender processos. A negao determinada diz respeito fundamentalmente aos modos de efetivao do conceito na experincia. Isto indica que, ao tentar indexar o conceito a um objeto, ao tentar realizar o conceito na experincia, a conscincia ver o conceito passar no seu oposto e engendrar um outro objeto (da porque a negao determinada o locus da passagem de uma figura da conscincia outra). Neste sentido, a conscincia nunca consegue aplicar seu conceito ao caso sem engendrar uma situao que contradiga as aspiraes iniciais de significao do conceito. A experincia exatamente o campo destas inverses. Lembremos: Hegel est interessado em compreender como o sentido dos conceitos modifica-se a partir do momento em que eles procuram se realizar na experincia. Como j vimos anteriormente, internalizar o sentido da experincia significa, para Hegel, estruturar relaes conceituais atravs das inverses que a efetividade impe ao conceito. De uma certa forma, no o conceito que molda a experincia, mas a experincia que molda o conceito ao impor uma reordenao nas possibilidades de aplicao do conceito. Por outro lado, Hegel construiu a noo de negao determinada exatamente como dispositivo de crtica idia de que as oposies do conta da estruturao integral das relaes. Pois a oposio pode admitir que s possvel por um termo atravs da pressuposio da realidade do seu oposto, que aparece aqui como limite de significao. Assim, ela admite que toda determinao da identidade de um termo s possvel atravs da mediao atravs da alteridade (no apenas do oposto, mas da estrutura de determinaes pressupostas). Mas a oposio no pode admitir que a identidade de um termo a passagem no seu oposto. No entanto, a negao
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idem, p. 180
determinada significa exatamente isto: que o termo, ao realizar-se, ou seja, ao se referir experincia, passa necessariamente no seu oposto e esta passagem , ao mesmo tempo, a perda do seu sentido e a realizao do seu sentido. Percebe-se que assumir tal possibilidade implica em problematizar a prpria noo de estruturas de relao. De fato, nesta perspectiva, a noo de negao determinada parece naturalmente obscura. Afinal, como possvel dizer que a realizao de um termo, no sentido de sua referencializao na experincia uma passagem no oposto? Aqui, podemos notar de maneira mais clara a necessidade de uma fenomenologia. Hegel acredita que a exposio adequada deste movimento depende de uma compreenso dos modos como o campo da experincia se estrutura para um sujeito. Veremos isto claramente ao seguirmos o trajeto fenomenolgico da conscincia a partir da aula que vem. Por enquanto, vale esboar algumas consideraes introdutrias para melhor apreendermos o lugar da negao determinada.
Os ltimos pargrafos da Introduo so dedicados a uma reflexo sobre aquilo que Hegel chama de mtodo de desenvolvimento da Fenomenologia. Novamente, Hegel retorna necessidade da conscincia ter, no seu prprio campo de experincias, aquilo que permitir sua superao em direo realizao como Esprito:
Parece que esta apresentao (Darstellung), vista como um procedimento da cincia em relao ao saber fenomenal e como investigao e exame da realidade do conhecer no se pode efetuar sem um certo pressuposto colocado na base (no fundamento Grunde) como medida (Masstab) (...) Mas nesse ponto onde a cincia apenas est surgindo, nem ela nem seja o que for se justifica como a essncia ou o em si. Ora, sem isso, para que no pode ocorrer nenhum exame110.
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Ou seja, a princpio parece que a Fenomenologia precisa apresentar o fundamento como medida de avaliao entre os descaminhos da conscincia e a efetividade do saber. O fundamento aparece aqui como medida, ou seja, como aquilo que permite ao pensar estabelecer os entes na disposio do seu olhar. A medida o solo no problemtico que oferece ao pensar uma positividade que lhe permitir estabelecer relaes de diferena e de identidade. No entanto, esta medida, Hegel insiste que ela no est disponvel conscincia. Logo no pargrafo seguinte, Hegel completa: verdade que a conscincia parece no ter sua disposio uma medida que sirva de fundamento para o saber. Mas, por outro lado: a conscincia distingue algo de si e ao mesmo tempo se relaciona com ele; ou, exprimindo de outro modo, ele algo para a conscincia111. A esta relao, para a conscincia, entre termos distintos, Hegel chama de saber. Este saber teria mero valor subjetivo se no pudesse ser medido por uma verdade que deve ter valor objetivo. Esta verdade como medida apresentada, na economia do nosso texto, primeiramente atravs do recurso ao para ns: Ns porm distinguimos desse ser para um outro, o ser-em-si; o que relacionado com o saber tambm se distingue dele e se pe como ente, mesmo fora dessa relao: o lado desse em-si chama-se verdade. Ns, que avaliamos a experincia na posteridade, vemos que h algo fora da relao do saber. Isto que est fora o em-si do objeto. No entanto, de onde tiramos a medida que permite avaliar o que o objeto para-a-conscincia com o que ele em-si? Notemos que Hegel, no pargrafo seguinte, ir abandonar esta via. Dizer que temos uma medida de verdade que nos permite de reconfigurar a experincia fenomenolgica a partir dela resultaria apenas em comparar o saber com um outro saber do objeto, mas agora um saber para ns, saber de uma conscincia hipostasiada: O em-si do saber resultante dessa investigao seria, antes, seu ser para ns, o que afirmssemos como sua essncia no seria sua verdade, mas sim nosso saber sobre ele. Todo saber um dispor-diante-de-si, um Vors-sich-stellen. Da porque Hegel deve recusar tal fundamento prvio que aparece atravs da perspectiva do para ns e afirmar que a prpria natureza do objeto da experincia da conscincia j fornece a medida de comparao entre a verdade e o saber. neste sentido que devemos compreender a afirmao central:
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A conscincia fornece, em si mesma, sua prpria medida; motivo pelo qual a investigao se torna uma comparao de si consigo mesma, j que a distino que acaba de ser feita [entre saber e verdade] incide na conscincia. H na conscincia um para um outro, isto , a conscincia tem em geral (berhaupt) a determinidade do momento do saber. Ao mesmo tempo, para a conscincia, esse outro no somente para ela, mas tambm fora dessa relao, ou seja, em si: o momento da verdade112.
A princpio, esta reviravolta parece surpreendente. Ao afirmar que a conscincia fornece, em si mesma, sua prpria medida, Hegel no deixa de aludir a afirmaes anteriores, que analisamos na aula passada, como, por exemplo: a conscincia para si seu prprio conceito ou a violncia que a conscincia sofre vem dela mesma. J sabemos que esta medida no um solo no problemtico que oferece uma positividade ao pensar, nem mesmo um solo que s poderia estar pressuposto na perspectiva do para ns. A nica coisa que Hegel lembra que a conscincia traz em si sua prpria medida porque h nela um para um outro. H uma alteridade que no se determina completamente no interior de uma relao de saber pensada como representao do objeto pelo sujeito. Ao dizer que a conscincia para si seu prprio conceito, Hegel esta pois afirmando que a conscincia tem dentro de si um outro que no pode ser totalmente posto como objeto no interior de uma relao cognitiva, j que aquilo que totalmente posto disposto para-a-conscincia. Tentar refletir sobre este outro que fornece a medida da distncia entre o saber e a verdade , assim, para a conscincia, uma violncia que estranhamente vem dela mesma. Hegel faz ento uma considerao ainda mais surpreendente. indiferente definir o saber como conceito e o em-si, o verdadeiro, como objeto ou, inversamente, o em-si como conceito e o saber para-a-conscincia como objeto. No entanto, a princpio, a diferena total: ela a distncia que vai de um modo de conhecer que v a determinao do objeto como aquilo ao qual o conceito deve se adequar (como no empirismo) e um modo de conhecer no qual o contedo de verdade fornecido pela determinao prvia do conceito (racionalismo). Hegel simplesmente afirma que tal distino indiferente porque os dois plos incidem no interior do saber investigado. Podemos dizer que isto apenas indica que a alteridade no uma
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experincia que se coloca apenas na confrontao do sujeito com o objeto, mas interna ao prprio conceito. No entanto, at aqui no podemos deixar de nos sentir diante de um certo passe de mgica. Hegel parece afirmar, ao mesmo tempo, que h uma diviso na conscincia entre saber e verdade, mas esta diviso, por ser interna conscincia, no uma diviso irreconcilivel. Tudo parece ficar mais evidente quando Hegel afirma, no pargrafo seguinte:
Com efeito, a conscincia, por um lado, conscincia de objeto; por outro, conscincia de si mesma; conscincia do que verdadeiro para ela e conscincia do seu saber da verdade. Enquanto ambos so para a conscincia, ela mesma sua comparao113.
Ou seja, a diviso da conscincia seria simplesmente uma diviso entre conscincia e conscincia de si; entre a experincia do objeto [na pura intuio] e o saber de objetos em geral. Mas notemos: esta conscincia de objeto conscincia do objeto como uma alteridade que permanece fora das relaes de saber de objetos em geral. Esta alteridade aparecer como uma realidade ontolgica. Da porque Hegel insiste tanto na etimologia do termo Gegenstand: o que est em posio contrria. Assim, no basta apenas tentar adequar o saber de objeto em geral ao objeto como plo de alteridade. De uma certa forma, a inadequao ir se perpetuar, mesmo com as mudanas na figura do saber:
Caso os dois momentos no se correspondam nessa comparao, parece que a conscincia deva ento mudar o seu saber para adequ-lo ao objeto. Porm, na mudana do saber, de fato se muda tambm para ele o objeto, pois o saber presente era essencialmente saber do objeto; junto com o saber, o objeto se torna tambm um outro pois pertencia essencialmente a esse saber114.
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Ao descobrir necessariamente que aquilo que ela tomava por em-si, enquanto conscincia de objeto, era um em-si para-a-conscincia no ocorre uma conciliao, mas algo leva a conscincia a deparar-se novamente com um objeto que se torna outro. Esta reiterao s pode ser compreensvel se lembrarmos que a relao entre conceito e objeto sempre uma negao determinada. Ou seja, a efetivao do conceito deve sempre ser passagem no oposto, experincia de que as representaes fixas de adequao do conceito so sempre incompletas. O conceito s se realizar ao deparar-se com um objeto que a formalizao da prpria negao do conceito.
desta forma que podemos compreender o pargrafo 86. Nele. Hegel utiliza pela primeira vez o termo dialtica. Ele usado para se referir a essas estruturas de inverses prprias experincia. A prpria experincia definida como um movimento, que a conscincia exercita em si mesma, tanto em seu saber como em seu objeto. Movimento de aplicao do conceito e de fracasso desta aplicao atravs da produo de um novo objeto verdadeiro. Hegel j havia fornecido uma definio muito semelhante de experincia no pargrafo 36: experincia justamente o nome desse movimento em que o imediato, o no-experimentado, ou seja, abstrato se aliena e depois retorna a si dessa alienao (Entfremdung); e por isso somente ento exposto em sua efetividade e verdade. No entanto, a conscincia pode retornar a si da alienao exatamente porque o objeto operou uma negao determinada e mostrou que a realizao daquilo que foi negado necessariamente sua prpria negao. Como podemos ver, isto implica em uma noo de negao como modo de manifestao da essncia, e no como simples indicao da privao, da falta ou do nada. Sigamos, por exemplo, a descrio fornecida por Hegel a respeito do movimento da experincia:
A conscincia sabe algo: esse objeto a essncia ou o em-si [estamos diante de um saber imediato da conscincia, ela julga ter o objeto imediatamente diante de si em sua essncia]; mas tambm o em-si da conscincia; com isso entra em cena a ambiguidade (Zweideutigkeit) desse verdadeiro. Vemos que a conscincia tem agora dois objetos: um, o primeiro em-si [o objeto imediato], o segundo, o ser para ela desse em-si. [No entanto] esse ltimo parece, de incio, apenas a
reflexo da conscincia sobre si mesma, uma representao (Vorstellen) no de um objeto, mas apenas de seu saber sobre o primeiro objeto [ou seja, no uma apreenso do objeto, mas uma reflexo sobre a estrutura do saber de objetos em geral, estamos assim diante da diviso entre conscincia e conscincia de si. Mas admitindo tal diviso, a conscincia no pode permanecer com a crena de ter acesso imediato ao objeto, por isto] (...) o primeiro objeto se altera ali para a conscincia [ele se torna um em-si para a conscincia. Assim, o verdadeiro ou a essncia o ser para a conscincia do em-si. Poderia parecer que entramos assim em um movimento no qual a conscincia simplesmente descobre que a essncia do objeto posta por ela mesma. Mas se assim fosse, no haveria dialtica, nem negao determinada, nem fundamento como negao, apenas desvelamento de que a essncia do objeto apenas uma projeo da conscincia. para evitar tal leitura que devemos dar todo o peso correto afirmao] Esse novo objeto contm a aniquilao (Nichtigkeit) do primeiro [o novo objeto apenas a apresentao do aniquilamento do primeiro objeto, ele a forma dessa negao, e isto j a essncia do objeto pois a essncia do objeto uma negao que pode se apresentar enquanto tal na efetividade]115.
Esta leitura que proponho fica mais clara no prximo pargrafo. Hegel afirma que pode parecer que a transio do primeiro objeto para o segundo no seja uma passagem relacional, mas apenas uma negao simples do primeiro objeto pelo segundo. Como se no houvesse relao alguma entre os dois. Como se o resultado da primeira tentativa de efetivao do primeiro objeto fosse um nada vazio. De fato, assim que a conscincia compreende a experincia, j que ela opera com uma gramtica de negaes que v o fracasso da realizao do conceito apenas como negao simples. Da porque Hegel pode afirmar que: a gnese do novo objeto se apresenta conscincia sem que ela saiba como lhe acontece. Para ns, como se isso lhe transcorresse por trs das costas. E, de fato, a conscincia no capaz ainda de compreender o que est em jogo nas passagens de um objeto a outro, por isto que no movimento da conscincia ocorre um momento do ser-em-si ou do ser-para-ns que no se apresenta conscincia. Mas este momento no se apresenta em seu aspecto formal, embora ele se apresente como contedo atravs do aparecer de um novo objeto e atravs
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da negao do primeiro objeto. Quando a conscincia for capaz de elevar esta negao que aparece como contedo condio de forma, ento teremos uma compreenso dialtica da experincia. A dialtica consiste exatamente em apreender as contradies engendradas pela realizao do conceito na experincia, ou seja, o fato de que a efetivao do conceito de um objeto necessariamente sua negao, como realizao do prprio conceito. Isto exige, por um lado, uma noo de essncia como negao em-si, s assim podemos dizer que o conceito apreende seu objeto exatamente ao fracassar sua tentativa de apreenso. Por outro lado, ela exige uma noo de relao que no pensada como mera oposio (pois por isto que a conscincia no compreende o movimento que se passa s suas costas), mas que pensada como uma passagem no oposto. Mas para que esta passagem seja possvel, faz-se necessrio compreender que a negao de um termo pode ser seu modo de manifestao. Da porque precisamos de um conceito de essncia como negao em-si. Neste ponto, podemos voltar a algumas consideraes sobre a diferena entre negao determinada e oposio que haviam ficado em suspenso. atravs delas que gostaria de terminar a aula de hoje. Eu havia afirmado anteriormente que Hegel desenvolve suas consideraes sobre a negao determinada tendo em vista, principalmente, o conceito kantiano de oposio real. Para Kant, uma oposio real indica que dois predicados de um sujeito so opostos de maneira contrria, mas sem contradio lgica. Assim: a fora motriz de um corpo que tende a um certo ponto e um esforo semelhante deste corpo para se mover em direo oposta no se contradizem, sendo ao mesmo tempo possveis como predicados de um mesmo corpo116. Tal oposio descrita em linguagem matemtica atravs dos signos + e - (+A e -A) a fim de mostrar como uma predicao pode destruir outra predicao, chegando a uma conseqncia cujo valor zero, mas sem que seja necessrio admitir um conceito que se contradiz em si mesmo (nihil negativum). Isto permitir a Kant sublinhar que o conflito resultante de um princpio real que destri o efeito de outro princpio no nvel da intuio no pressupe uma contradio no nvel das condies transcendentais de constituio do objeto do conhecimento117. Este
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KANT, Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur ngative, Paris: Vrin 1949, pp. 19-20 117 De onde se segue a afirmao: S na intuio sensvel, em que dada realidade (por exemplo, o movimento), se encontram condies (direes opostas) de que se abstraiu no conceito de movimento em geral, que podem provocar uma contradio, no lgica alis, suscetvel de transformar em zero=0 algo
conflito real, ou oposio real, a boa negao; que permite ao entendimento constituir objetos "118, j que, contrariamente contradio lgica (pensada como objeto vazio sem conceito), esta negao deixa fora de seu julgamento a questo da existncia do sujeito do julgamento. Mas se Kant afirma que os predicados opostos so contrrios sem serem contraditrios, porque eles se misturam como foras positivas determinadas no resultado de uma realidade final. Os opostos reais so, para Kant, propriedade igualmente positivas, eles correspondem a referncias objetivas determinadas119. No h realidade ontolgica do negativo. A averso e a dor so to positivas (no sentido de se referirem a objetos positivos) quanto o prazer. Elas tm uma subsistncia positiva como objetos sensveis que no redutvel relao de oposio. Hegel est atento maneira com que a oposio real no modifica a noo de determinao fixa opositiva. Mesmo reconhecendo a existncia de uma solidariedade entre contrrios no processo de definio do sentido dos opostos (ao afirmar que : a morte um nascimento negativo120, Kant reconhece que o sentido da morte depende da determinao do sentido do nascimento), a noo de oposio nos impede de perguntar como a identidade dos objetos modifica-se quando o pensamento leva em conta relaes de oposio. Ela nos impede de colocar a questo: como os objetos so redefinidos, reconstitudos pelo fato de se inscreverem em relaes? Quais transformaes a noo de objeto recebe pelo fato de assim ser reconstituda pelo pensamento?121. Como nos diz Lebrun: Que cada um dos termos s possa ter sentido ao ligar-se ao seu oposto, isto o Entendimento concede, esta situao figurvel. Mas que cada um advenha o que significa o outro, aqui comea o no-figurvel122. Da porque: Mesmo admitindo, contra os clssicos que o positivo pode se suprimir e que o negativo possui de alguma maneira um valor de realidade, Kant jamais colocar em questo o axioma: A realidade algo, a negao no nada. Essa proposio at mesmo a base do escrito sobre as
bem positivo; e no se poder dizer que todas as realidades concordam entre si, s porque entre seus conceitos no h contradio (KANT, Crtica da razo pura, B338/A282). 118 DAVID-MNARD, La folie dans la raison pure:Kant lecteur de Swedenborg, Paris: Vrin, 1990, p. 41 119 As grandezas negativas no so negaes de grandezas, como a analogia da expresso pode deixar supor, mas, ao contrrio, algo de realmente positivo em si que simplesmente oposto a outra grandeza positiva (KANT, Essai pour introduire en philosophie le concept de grandeur ngative, Paris: Vrin, 1997, p. 16) 120 KANT, idem, p. 24 121 LONGUENESSE, Hegel et la critique de la mtaphysique, Paris:Vrin, 1981, p. 80 122 LEBRUN, La patience du concept, op.cit, p. 292
grandezas negativas: ela a condio necessria sem a qual no se poderia discernir a oposio lgica da oposio real123. Neste sentido, podemos dizer que Hegel procurar desdobrar todas as conseqncias possveis de um pensamento da relao. Pois a produo da identidade atravs da mediao pelo oposto, tal como vemos na oposio real, reflexo-no-outro. Um recurso alteridade que aparece como constitutivo da determinao da identidade, j que: "cada um apenas na medida em que seu no-ser , e ele em uma relao idntica124. O que promete uma interverso (Umschlagen) da identidade na posio da diferena. A negao abstrata passa no seu contrrio, j que ela deve reconhecer a presena do excludo como limite que configura a identidade. Como nos dir Henrich, o primeiro passo deste movimento dialtico consiste em passar de algo que se distingue do outro enquanto seu limite para algo que apenas limite125. Tal passagem advm possvel porque Hegel submete a negao funcional-veritativa noo de alteridade, seguindo a uma tradio que remonta ao Sofista, de Plato126: "Contrariamente negao funcional-veritativa [fundada na idia de excluso simples], a alteridade uma relao entre dois termos. Faz-se necessrio ao menos dois termos para que possamos dizer que algo outro"127. Tal submisso da negao alteridade nos explica porque a figura maior da negao em Hegel no exatamente o nada ou a privao, mas a contradio128.
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LEBRUN, Kant e o fim da metafsica, p. 266 HEGEL, Science de la logique, op.cit, pp. 60-61 125 Ver HENRICH, Hegel im Kontext, Frankfurt: Surkhamp, 1967, p. 112 126 Como vemos na afirmao: Quando enunciamos o no -ser, no enunciamos algo contrrio ao ser, mas apenas algo de outro (PLATO, Sofista, 257b) 127 HENRICH, Hegel im kontext, op.cit, p. 133 128 Neste sentido, Dubarle notou claramente que o termo que teria valor de termo nulo est ausente da doutrina hegeliana do Conceito (DUBARLE et DOZ, Logique et dialectique, Paris: Larousse:, 1972, pp.134-145). Isto acontece porque, em Hegel, o termo negado nunca alcana o valor zero, j que esta funo do zero ser criticada por Hegel como sendo um nada abstrato (abstrakte Nichts). Neste sentido, o interesse hegeliano pelo clculo infinitesimal estaria ligado maneira com que Hegel estrutura sua compreenso da negao como um impulso ao limite da determinidade. A negao hegeliana nunca alcana o valor zero porque ela leva o nada ao limite do surgir (Entstehen) e o ser ao limite do desaparecer (Vergehen) (cf. HEGEL, Science de la logique I, op.cit, pp. 79-80). Na verdade, ela a exposio deste movimento no qual o ser est desaparecendo (ou em fading, se quisssemos falar com Lacan) e onde o nada esta manifestando-se em uma determinidade. Movimento cuja exposio exige uma outra compreenso do que um objeto (para alm da idia do objeto como polo fixo de identidade). De onde segue tambm a importncia dada por Hegel noo de grandeza evanescente na compreenso da dinmica da dialtica do devir (Werden). Como dir Hegel: Estas grandezas foram determinadas como grandezas que so em seu desaparecer (die in ihrem Verschbwinden sind), no antes de seu desaparecer, pois ento elas seriam grandezas finitas nem aps seu desaparecer, pois ento elas seriam nada" (HEGEL, Science de la logique I, p. 78). Para uma anlise detalhada do papel dos infinitesimais na Lgica de Hegel, ver FAUSTO, Sur le concept de capital: ide d'une logique dialectique, Paris: L'Harmattan, 1996, pp. 23-25. Sobre esta questo da impossibilidade da negao hegeliana alcanar o valor zero, lembremos ainda da maneira com que Hegel determina o vazio (das Leere): "O vazio no o
Contradio que aparece quando tentamos pensar a identidade em uma gramtica filosfica que submete a negao alteridade. Nesta gramtica, s h identidade quando uma relao reflexiva entre dois termos pode ser compreendida como relao simples e auto-referencial, ou seja, s h identidade l onde h reconhecimento reflexivo da contradio.
Na aula de hoje, iniciaremos o segundo mdulo do nosso curso, este dedicado leitura da seo Conscincia com seus trs captulos: A certeza sensvel ou O isto e o visar (Meinen), A percepo ou A coisa (Ding) e a iluso e Fora e Entendimento, fenmeno e mundo suprasensvel. Faremos uma leitura mais detalhada do primeiro captulo. Os outros dois sero expostos em suas articulaes gerais e em seus movimentos principais. A previso de que este mdulo seja composto de quatro aulas, talvez cinco. Como textos de apoio, lembro que havia sugerido: Entre o nome e a frase, de Paulo Arantes; Dialtica, index, referncia, de Jean-Franois Lyotard e Holismo e idealismo na Fenomenologia de Hegel, de Robert Brandom. Os dois primeiros textos so, basicamente, comentrios do primeiro captulo da Fenomenologia, este dedicado certeza sensvel. Sua leitura assim imediatamente recomendvel. J o ltimo texto diz respeito, sobretudo, a passagem da conscincia conscincia-de-si e deve ser lido, de preferncia, quando trabalharmos o terceiro captulo, Fora e entendimento. Relembro ainda que a leitura dos captulos de Gnese e Estrutura da Fenomenologia do Esprito, de Jean Hyppolite, dedicados seo Conscincia , neste estgio, extremamente til do ponto de vista didtico. Antes de iniciarmos a leitura do captulo dedicado quilo que Hegel chama de certeza sensvel devemos retomar a exposio do plano geral da Fenomenologia,
imediato, indiferente para si em face do Um, mas ele o relacionar-se-a-outra-coisa deste Um ou seu limite (HEGEL, Science de la logique I, Op. cit., p. 135).Lembremos tambm que Lacan, ao usar a negao sobretudo como falta, mas raramente como nada, afirmar que: A negao, isto no um zero, nunca, lingisticamente, mas um no-um. (LACAN, S IX, sesso de 21/02/62)
assim como compreender melhor a funo da seo conscincia. H algumas aulas atrs, eu havia sugerido para voc um plano operacional composto da seguinte forma: Conscincia: foco na anlise da relao cognitivo-instrumental da conscincia com o objeto. Conscincia-de-si: compreenso da relao de reconhecimento entre
conscincias como condio prvia para o conhecimento de objetos. Esta relao, que fundamentalmente social, aparece inicialmente sob a forma do conflito e da dessimetria. s ao final da seo Esprito que poderemos falar em relaes simtricas de reconhecimento. Razo: primeiro nvel de sntese. As expectativas cognitivas da conscincia, assim como suas aspiraes de racionalidade nas esferas prtico-finalista e jurdica, so sustentadas por processos de categorizao. Nesta seo, tudo se passa como se Hegel apresentasse a critica a concepo moderna de razo. Esprito: descrio do movimento de rememorao histrica dos processos de formao das estruturas de orientao do julgamento e da ao da conscincia. Tudo se passa como se Hegel apresentasse aqui um conceito alternativo de razo na modernidade. Religio: justificao teleolgica da orientao histrica que anima o Esprito em seu trabalho de rememorao. Notemos ainda que cada um destes estgios retoma posies e figuras de estgios precedentes. Isto demonstra que no se trata aqui de organizar a Fenomenologia a partir de uma srie cronolgica, mas de o processo de retomada da tematizao das figuras da conscincia a partir das mudanas de perspectiva em relao compreenso do saber. Isto nos explica porque certas figuras retornam no interior do trajeto fenomenolgico, mas sempre de maneiras distintas. Eu havia ainda lembrado a vocs que o Saber Absoluto no deve ser visto como mais um momento no movimento fenomenolgico que visa a reconciliao entre ser e pensar. O Saber Absoluto no um momento a mais, mas um movimento capaz de atualizar e internalizar aquilo que permanece como negao das figuras anteriores do saber. Ele assim a presena simultnea do objeto em suas mltiplas figuras (objeto da conscincia, da conscincia-de-si, da razo, do Esprito e da religio). neste contexto que devemos compreender o que est em jogo na seo Conscincia. Hegel parte da crena de que a conscincia sabe certos contedos independentemente de qualquer prtica social particular como, por exemplo, se
conhecssemos naturalmente objetos sensoriais independentemente de qualquer pressuposto scio-cultural. Ele parte tambm da crena de que este tipo de saber serviria de fundamento para todas as outras aspiraes de conhecimento. Como afirma Terry Pinkard, a seo Conscincia estruturada a partir da anlise da crena de que: H uma essncia metafsica bsica do mundo que todo ser humano possuidor dos poderes da reflexo racional poderia conhecer independentemente de prticas sociais ou mesmo de situaes histricas das quais participa129. Por outro lado, este saber da conscincia interpretado fundamentalmente em termos de sujeitos individuais que se confrontam a objetos independentes atravs da representao. De fato, como veremos na aula de hoje, a seo Conscincia parte da hiptese de que este saber seria imediato, pura intuio da singularidade do objeto para alm das estruturas reflexivas da representao. Hyppolite chega mesma a dizer, a este respeito, que: esta igualdade a igualdade da certeza (subjetiva) e da verdade (objetiva). Todo o desenvolvimento fenomenolgico se deve a esta origem e tende a reconstru-la, pois no comeo tem seu prprio fim como sua meta130. No entanto, a conscincia ter logo a experincia de que este saber, que aparecia como puramente imediato, no-inferencial e intuitivo, absolutamente inferencial, mediado pelas estruturas de determinaes de relaes prprias ao saber. Isto impulsionar a passagem da certeza sensvel percepo e desta, por sua vez, ao entendimento. Nestas passagens, esboa-se o deslocamento do que poderamos chamar de centro gravitacional da estrutura do saber. Ele deixa de pressupor seu fundamento na faculdade da sensibilidade e em operaes de intuio para passar, ao final, pressupor tal fundamento na faculdade do entendimento. Mas sabemos que Hegel no quer apenas criticar do exterior tal pressuposto bsico do saber como confrontao cognitivo-instrumental entre sujeito e objetos do mundo. Ele quer mostrar como a tentativa de efetivao desta figura do saber produz necessariamente uma passagem em direo a outra cena. Ou seja, trata-se de encontrar uma perspectiva crtica que funcione do interior. Ao final da seo, veremos como Hegel defender a idia de que a tarefa epistemolgica fundamental no consiste em procurar teorias sobre como adequar nossas representaes a estados de coisas, mas em tentar compreender qual o processo atravs do qual vemos a maneira com que agimos e
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conhecemos como legtima e fundamentada. Este o primeiro significado que podemos dar para a passagem da Conscincia Conscincia-de-si.
Comear
O saber que, de incio ou imediatamente nosso objeto, no pode ser nenhum outro seno o saber que tambm imediato: saber do imediato ou do ente. Devemos proceder tambm de forma imediata e receptiva, nada mudando assim na maneira como ele se oferece, e afastando de nosso apreender o conceituar131.
Tal como vimos no incio da Introduo, a filosofia deve partir daquilo que aparece ao pensar como representao natural. O saber que, de incio, nosso objeto s pode ser o saber que aparece de maneira imediata. No entanto, se compararmos este primeiro pargrafo com o primeiro pargrafo da Introduo, veremos uma mudana significativa de foco. Na Introduo, o modo de saber que aparecia como representao natural do pensar no era outro que aquele assentado na gramtica da finitude prpria ao entendimento, que no reconhece saber algum do imediato. No entanto, e saber assentado na faculdade do entendimento s ser tematizado ao final da seo dedicada Conscincia. Podemos dizer que esta distino resultante da procura hegeliana em expor as condies que transformaram o conhecimento fundamentado nas operaes do entendimento em representao natural. Para tanto, o primeiro passo consiste em examinar a figura da conscincia que procura afirmar a possibilidade da imediticidade entre pensar e ser. Devemos assim proceder de forma imediata a fim de ver se possvel um saber que se articula atravs da pura receptividade que ignora todo trabalho prvio do conceito. Saber que apreende de maneira imediata seu objeto. Como dir Heidegger: O saber imediato tem precisamente este trao em si, este modo de saber: deixar o objeto completamente a si mesmo. O objeto se sustenta em si como o que no tem necessidade alguma de ser para uma conscincia, e exatamente ao toma-lo como tal, como o que se d em si que a conscincia o sabe imediatamente132. a impossibilidade deste saber que deixa o objeto completamente a si mesmo que nos levar compreenso da necessidade do entendimento e de sua gramtica.
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No entanto, a conscincia acredita que o contedo concreto deste saber um conhecimento de riqueza infinda, para o qual impossvel achar limite. Este saber apresentado como uma certeza sensvel (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que a presena do ser se d atravs da receptividade da sensibilidade. Presena integral do ser, j que do objeto nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude, diante de si.Presena que, por se dar atravs de uma intuio imediata, no se completa atravs do desdobramento do espao e do tempo ou da inspeo detalhada de suas partes. Ao tematizar o que chama de certeza sensvel, Hegel procura assim dar conta de toda tentativa de pensar a tarefa filosfica como retorno espontaneidade do ser, retorno origem muda graas a receptividade plena de uma intuio no-dependente do trabalho do conceito. Ao contrrio, Hegel quer mostrar que:
Essa certeza se revela expressamente como a verdade mais abstrata e mais pobre. Do que ela sabe, s exprime (sagt) isto: ele . Sua verdade contm apenas o ser da Coisa; a conscincia, por seu lado, s est nessa certeza como puro Eu, ou seja, Eu s estou ali como puro este, e o objeto, igualmente apenas como puro isto133.
Notemos aqui trs operaes importantes. Inicialmente, o que da ordem do saber s pode ter validade objetiva se for expresso. Ou seja, as possibilidades postas pela expresso aparecem como medida para a objetividade do saber. Hegel claro neste ponto: aquilo que no pode ser apresentado no campo da linguagem no tem realidade objetiva. Aquilo que expresso de maneira pobre necessariamente tambm pobre em contedo. O saber nada tem a fazer com o que se pe como inefvel a no ser v-lo como o que se apresenta de forma imperfeita. Da porque Hegel insiste na importncia da operao de pr (setzen) o que pressuposto, ou seja, de expressar o que se aloja na pura inteno. Da porque Hegel insiste que toda teoria da linguagem uma teoria da enunciao, de onde se segue que as condies de verdade s podero ser bem compreendidas como condies de enunciao. claro que isto no nos economiza a necessidade de problematizarmos os modos possveis de estruturao do campo da linguagem. Ao contrrio, como vimos desde o incio, Hegel est disposto a questionar
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as bases naturais da gramtica que serve de sintaxe ao pensar. Mas este questionamento feito exatamente porque questo de sustentar o primado do que pode ser expresso. Por outro lado, o saber imediato do ser da Coisa, que aparentemente seria o saber mais rico e completo , na verdade, o saber mais pobre, j que afirma da Coisa apenas sua existncia: a Coisa , este ser o que se apresenta diante de mim em uma pura intuio. Mas este apresentar sem determinidade, o puro apresentar-se que s se determina como um isto sem qualificao. Eis a um dos motivos mais recorrentes do pensamento hegeliano: o puro ser no marca de plenitude, mas completa indeterminao e esvaziamento. Para Hegel, toda filosofia que proclama o primado do ser sobre o pensar (como ser mais a frente a filosofia heideggeriana) s pode nos colocar diante da hipstase do totalmente indeterminado. Pois, se do ser no posso dizer nada, a no ser que ele , ento: o puro ser e o puro nada so a mesma coisa, j que o nada, ao ser intudo, est no nosso pensar, no sentido de que ele uma intuio vazia de objeto (ens imaginarium) ou, ainda, a forma pura da intuio. Neste sentido, a Fenomenologia do Esprito e a Cincia da lgica se encontram nos seus respectivos pontos de partida. Se a Fenomenologia inicia seu trajeto atravs da tematizao do saber imediato do puro ser, a Lgica tambm parte do puro ser a fim de mostrar como ele equivale ao nada indeterminado (e no ao nada determinado que vimos na Introduo). Lembremos do que Hegel fala a respeito do ser, na Cincia da Lgica: Ser, puro ser: sem nenhuma determinao outra. Na sua imediatez indeterminada, ele s igual a si mesmo e no desigual em relao a outra coisa; ele no tem diversidade alguma no interior de si (...) Qualquer determinao ou contedo que seriam postos nele como diferentes, ou atravs do qual ele seria posto como diferente de um outro no lhe permitiria manter-se em sua pureza. Ele indeterminidade e vacuidade puras. No h nada a intuir nele (...) ou ele apenas este prprio intuir, puro e vazio (...) O ser, o imediato indeterminado , na verdade, nada, no mais nem menos que nada134. neste sentido que devemos compreender afirmaes no nosso texto da Fenomenologia como: a Coisa no tem a significao de uma multido de diversas propriedades ou A Coisa , para o saber sensvel isto o essencial; esse puro ser, ou essa imediatez simples, constitui sua verdade. claro que Hegel ter que mostrar como a conscincia ter a experincia de que o puro ser e o puro nada so o mesmo. Pois de nada adianta colocar tal aproximao
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como axioma. Para a conscincia, ao contrrio, como j vimos, o puro ser aparece como o conhecimento mais rico. Mas antes de passarmos a este ponto, lembremos ainda de outra operao fundamental na certeza sensvel, a saber, a conscincia s est nesta certeza como puro Eu. Toda figura do objeto pressupe uma figura determinada do sujeito enquanto sujeito do conhecimento. Assim, a conscincia que tem diante de si o puro ser enquanto seu objeto s pode se pr como um Eu indeterminado, um Eu a respeito do qual nada podemos dizer de determinado, indexador de um lugar vazio. Vejamos pois como a conscincia faz a experincia da vacuidade das determinaes da sua intuio imediata. No pargrafo 92, Hegel lembra que a conscincia acredita ter muito mais do que o puro ser que constitui a essncia da sua certeza sensvel: Uma certeza sensvel efetiva (wirkliche sinnliche Gewissheit) no apenas essa pura imediatez, mas um exemplo (Beispiel; bei-spiel o que est perto/ao lado da cena/do jogo) da mesma135. Ou seja, a conscincia acreditar ter uma colocao em cena desta imediatez, o que demonstraria que no estvamos diante de um puramente indeterminado. Esta colocao em cena operada atravs da capacidade que teria a conscincia de indicar o ser atravs de diticos como isto, este. Atravs deles, a conscincia quer indicar, de maneira ostensiva, a significao do ser que lhe aparece intuio. Da porque Hegel pode dizer que, para alm de diferenas inumerveis e inessenciais, a conscincia teria a sua disposio esta que a diferena capital (Hauptverschiedenheit): a saber, que para fora desta certeza [sensvel] ressaltam logo para fora do puro ser os dois estes j mencionados: um este como Eu, e um este como objeto136. O isto e o este aparecem como diferena capital porque eles produziriam a determinao
diferenciadora da singularidade do ser. No estamos mais exatamente diante do puro ser. Como veremos, colocar em cena a imediatez necessariamente diferenciar, colocar o ser em relao e romper o absoluto. Heidegger compreender bem esta procura da conscincia em colocar em cena a imediatez ao afirmar que a certeza sensvel a cada vez em si e enquanto efetiva um exemplo137. Na medida em que ela sempre visa isto, sua visada sempre exemplificadora.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 91 HEGEL, Fenomenologia, par. 92 137 HEIDEGGER, A Fenomenologia do Esprito de Hegel, p. 105
Este processo de indicar o ser visado (meinen), ou seja, a capacidade de expressar aquilo que aparece inteno da conscincia de maneira imediata ser o motor do movimento dialtico da conscincia sensvel. Para ns, dir Hegel, esta expresso do ser indicado vai se mostrar no como expresso do imediato, mas como pura mediao, ou seja, como uma operao inferencial. Eu determinarei a Coisa a partir da estrutura de apreenso do Eu e determinarei o Eu a partir do modo com que a Coisa aparece ao pensar. Mas estas colocaes so extemporneas ao ritmo da experincia
fenomenolgica. A diferenciao da essncia atravs do exemplo, da designao ostensiva, deve obedecer o movimento da experincia da conscincia. Para esta, a essncia uma determinao dos objetos (e no uma produo do pensar). Mesmo que a certeza sensvel postule uma relao de imanncia entre o intuir e o ser, ela admite que o objeto traz a medida do saber. Ele o verdadeiro e a essncia, tanto faz que seja conhecido ou no. A verdade revelao do objeto atravs da intuio imediata. Intuio que poderia mostrar aquilo que intui, mesmo que ela no possa conceitualizar de maneira completa o intudo. Da porque Hegel afirmar:
O objeto portanto deve ser examinado [devemos medir o objeto ao seu conceito], a ver se de fato, na certeza sensvel mesma, aquela essncia que ela lhe atribui; e se esse seu conceito de ser uma essncia corresponde (entspricht) ao modo como se encontra na certeza sensvel138.
Novamente, Hegel retoma o vocabulrio da correspondncia para saber se o conceito do objeto corresponde ao modo como ele aparece no interior da experincia da certeza sensvel. Temos pois que nos atentar s coordenadas desta experincia, j que sabemos que o conceito do objeto ser pura imediatez que pode ser mostrada no campo da expresso. Por isto a perguntar a ser feita conscincia sensvel : qual a natureza do que se oferece ao mostrar? Que o isto?
Designar
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A partir do
conscincia sensvel. E vemos que ela fundamentalmente a exposio de um problema lingstico ligado natureza do que podemos chamar de designao ostensiva. Chamamos de designao ostensiva esta tentativa de fundar a significao de um termo atravs da indicao de um caso que cairia sob a extenso do uso do referido termo. Ou seja, trata-se de tentar definir a significao atravs da indicao da referncia, ou ainda, da designao ostensiva da referncia. De uma certa forma, todo capitulo sobre a certeza sensvel uma longa reflexo sobre a impossibilidade de designaes ostensiva e a conseqncia disto para a compreenso da maneira com que o conceito pode reconciliar-se com a Coisa. Notemos, por outro lado, este dado fundamental: no por acaso que a dialtica comea necessariamente atravs de uma reflexo sobre a relao entre as palavras e as coisas. Trata-se de mostrar como a dialtica dependente de um questionamento a respeito dos modos de funcionamento da linguagem em suas expectativas referenciais, ela nasce atravs deste questionamento e da maneira com que tal problematizao das expectativas referenciais da linguagem nos obriga a rever conceitos ontolgicos centrais como ser, nada e essncia. Veremos como este problema da compreenso das expectativas refereciaonais da linguagem nos levar a compreender que: A Fenomenologia do Esprito inicia a pertir do reconhecimento de uma exterioridade irredutvel do sensvel ao dizvel139. Vejamos pois como tal problematizao inicialmente apresentada. Sabemos que a conscincia cr ter a intuio imediata do ser. Ela cr tambm poder mostrar tal intuio atravs de uma designao. Da porque Hegel afirma: devemos perguntar conscincia o que o isto (Was ist das Dieses)?:
Se o tomarmos na dupla forma (Gestalt) de seu ser, como o agora e como o aqui, a dialtica que tem nele vai tomar uma forma to inteligvel quanto o ser mesmo. pergunta: o que o agora? respondemos com um exemplo (Beispiel): o agora a noite. Para tirar a prova da verdade dessa certeza sensvel basta uma experincia simples. Anotamos por escrito essa verdade; uma verdade nada perde por ser anotada, nem tampouco porque a guardamos. Vejamos de novo, agora, neste meio-dia, a verdade anotada: devemos dizer, ento, que se tornou vazia. O agora que noite foi conversado (aufbewahrt), isto , foi tratado tal
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como se ofereceu, como um ente; mas se mostra, antes, como um no-ente. O prprio agora, bem que se mantm, mas como um agora que no noite. Tambm em relao ao dia que agora, ele se mantm como um agora que no dia, ou seja, mantm-se como um negativo em geral (...) Ns denominamos um universal um tal Simples que por meio da negao; nem isto nem aquilo um no-isto e indiferente tambm a ser isto ou aquilo. O universal, portanto, de fato, o verdadeiro da certeza sensvel140.
O que esta passagem quer dizer? Primeiro, notemos como Hegel introduz o problema da designao a partir da dupla forma da intuio, ou seja, o espao (aqui) e o tempo (agora). Trata-se assim de, primeiramente, compreender o que acontece a uma Coisa quando a intumos no espao e no tempo. Para tanto, precisamos primeiro responder: como se d a intuio da experincia no interior do tempo e do espao. Hegel nos fornece o exemplo da intuio dos momentos no tempo, ela que lhe serve de paradigma (invertendo aqui o procedimento kantiano de comear a tematizao da estrutura da intuio atravs do espao, isto a fim de compreender o tempo a partir da justaposio de pontos no espao tempo como uma linha). Intuir algo no tempo ter a experincia de que h algo diante de mim agora. No entanto, o agora no modo de presena do singular. De uma certa forma, o agora o nome que indica a negao de todos os instantes. Posso tentar designar este instante afirmando: Este instante o agora, no entanto, o agora deixa de ser enquanto era indicado, ele passa diretamente para a referncia de outro instante. Ele no a designao do outro-instante, mas apenas a passagem incessante no outro. isto que Hegel tem em mente ao afirmar que agora , na verdade, a forma do negativo em geral; figura do negativo que deve ser compreendida como a manifestao do que no pode ser nem isto nem aquilo, mas no-isto (nicht dieses). Assim, l onde a conscincia sensvel acreditava designar a particularidade irredutvel do instante, deste instante do qual s podemos dizer que ele o agora, ela estava, na verdade, tendo a experincia do descompasso incessante entre o agora e o instante. Experincia da impossibilidade de designar a particularidade do instante. Da porque Hegel pode afirmar que a conscincia, ao tentar enunciar a particularidade, apenas tinha a experincia de estar enunciando a universalidade que se abstrai de todo
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particular. Ao tentar designar o sensvel, a conscincia apenas fez a experincia de s poder enunciar o puramente abstrato. isto que podemos entender como exterioridade irredutvel do sensvel ao dizvel que aparece como motor da dialtica. Da porque Hegel deve completar:
Enunciamos tambm o sensvel como um universal. O que dizemos : isto, quer dizer, o isto universal; ou ento: ele , ou seja, o ser em geral. Com isto, no nos representamos, de certo, o isto universal, ou o ser em geral [pois no tenho a extenso de todos os objetos que caem sob o isto ou sob o ser], mas enunciamos o universal; ou, por outra, no falamos pura e simplesmente tal como ns os visamos na certeza sensvel [a conscincia tem assim a experincia do descompasso necessrio entre intencionalidade e expresso]. Mas, como vemos, o mais verdadeiro a linguagem: nela refutamos imediatamente nosso visar, e porque o universal o verdadeiro da certeza sensvel, e a linguagem s exprime esse verdadeiro, est pois totalmente excludo que possamos dizer o ser sensvel que visamos [assim como est excludo que possamos fundar a significao em uma designao ostensiva]141.
Por um lado, Hegel no faz outra coisa que aproveitar aqui a caracterstica de ditico (ou de shifter) de termos como agora, isto, eu. Tais termos tm um modo particular de funcionamento porque so o que hoje chamaramos de shifters, ou seja, uma unidade gramatical que no pode ser definida fora da referncia a uma mensagem e, por conseqncia, ao ato de enunciao. Sua natureza dupla. De um lado, ele funciona como smbolo devido a sua relao convencional referncia. Por outro lado, ele funciona como index devido a sua relao existencial referncia particularizada pelo contexto. Este uso de shifter no deveria nos colocar maiores problemas. Ele deveria apenas nos mostrar como precisamos estruturar contextos para compreender o sentido de designaes ostensivas. Mas Hegel tira da uma srie de conseqncias importantes. Primeiro, a necessidade atualizar o contexto de enunciao apenas mostra como devemos pressupor estruturas de relaes antes de qualquer tentativa de designao. Se digo que para entender O que o isto?, preciso atualizar contextos, ento isto
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significa que preciso mostrar como o isto est em relao a ..., p reciso saber diferenciar e comparar situaes, ou seja, preciso ter diante de mim todo o sistema de organizao simblica que estrutura a linguagem, Chegamos assim idia paradoxal de que preciso operar mediaes complexas para dar conta do que aspira a aparecer como pura imediatez. Como dir Paulo Arantes: o ditico agora no remete realidade, nem a posies objetivas no tempo, mas enunciao, cada vez nica, que o contm e assim reflete seu prprio emprego, ou seja, remete mensagem, enfim auto-referencial ou, na lngua hegeliana, mostra-se como simplicidade mediatizada142. Para Hegel, isto significa que est totalmente excludo que possamos dizer o ser sensvel que visamos. De fato, Hegel apia-se em uma propriedade do termo agora, isto enquanto a conscincia sensvel acreditava referir-se simplesmente Coisa. Mas notemos um ponto fundamental que aparece de maneira mais clara no pargrafo 98. Ele diz respeito ao destino da referncia. Ao afirmar que est excludo que possamos dizer o ser sensvel, parece que Hegel nos leva a afirmar que a linguagem no pode dar conta de maneira satisfatria do problema da referncia. Ao tentar dizer esta referncia singular, a conscincia tem a experincia de que a linguagem apenas enuncia o universal. Poderamos deduzir da que h uma arbitrariedade fundamental da linguagem que nos impede de estabelecermos relaes com a Coisa, ou ainda, que a verdade da Coisa est no Eu, no sentido de que ela apenas o que se determina no interior das formas de intuio espao-temporais do Eu. E a este ponto que parecemos chegar, tanto que Hegel afirma que, devido enunciao da certeza sensvel, a relao entre saber e objeto se inverteu (umgekehrt). O objeto no parece mais ser o essencial, j que ele no acede palavra, mas sua verdade parece estar na condio de ser meu objeto, ou seja, [sua verdade est] no visar: o objeto porque Eu sei dele143. Esta inverso apenas o resultado fenomenolgico da noo hegeliana de negao como passagem no oposto. No entanto, esta passagem no oposto no representa uma superao da posio da conscincia sensvel. Como veremos, a conscincia acredita agora que a significao pode ser derivada da individualidade da intencionalidade: o agora dia porque Eu o vejo, o aqui uma rvore pelo mesmo motivo144.
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ARANTES, Entre o nome e a frase, p. 389 HEGEL, Fenomenologia, par. 100 144 HEGEL, Fenomenologia, par. 101
No entanto, Hegel havia apresentado um outro modo muito particular de presena da referncia. Ela est enunciada da seguinte maneira:
Um Eu universal
Na aula passada, iniciamos a leitura da seo Conscincia atravs do captulo dedicado certeza sensvel. Vimos como era questo de partir daquilo que aparece ao pensar como representao natural. Esta representao natural dizia respeito crena na presena integral do ser atravs da pura intuio sensvel. O saber que, de incio, nosso objeto s pode ser o saber que pe a imanncia originria entre pensar e ser. Este saber apresentado como uma certeza sensvel (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que a presena do ser se d atravs da receptividade da sensibilidade. Presena integral do ser, j que do objeto nada ainda deixou de lado, mas o tem em toda a sua plenitude, diante de si. Vimos como Hegel procurava mostrar como este saber do puro ser da Coisa, que aparentemente seria o saber mais rico e completo era, na verdade, o saber mais pobre, j que s pode afirmar da Coisa sua existncia: a Coisa , este ser o que se apresenta diante de mim em uma pura intuio. Mas este apresentar sem determinidade, o puro apresentar-se que s se determina como um isto sem qualificao. Vimos como este era um dos motivos mais recorrentes do pensamento hegeliano: o puro ser no marca de plenitude, mas completa indeterminao e esvaziamento. Para Hegel, toda filosofia que proclama o primado do ser sobre o pensar (como ser mais a frente a filosofia heideggeriana) s poder nos colocar diante da hipstase do totalmente indeterminado. Pois, se do ser no posso dizer nada, a no ser que ele , ento: o puro ser e o puro nada so a mesma coisa, j que o nada, ao ser intudo, est no nosso pensar, no sentido de que ele uma intuio vazia de objeto (ens imaginarium) ou, ainda, a forma pura da
intuio. A experincia da certeza sensvel exatamente esta experincia de desvelamento do ser da pura intuio sensvel como puro nada. Esta experincia, tal como Hegel a apresentava, era uma experi~encia eminentemente lingstica. A fim de passar da certeza (subjetiva) verdade (objetiva), a conscincia deveria ser capaz de expressar sua certeza sensvel no campo da linguagem pblica. Hegel claro neste ponto: aquilo que no pode ser apresentado no campo da linguagem no tem realidade objetiva. Aquilo que expresso de maneira pobre necessariamente tambm pobre em contedo. O saber nada tem a fazer com o que se pe como inefvel a no ser v-lo como o que se apresenta de forma imperfeita. Da porque Hegel insiste na importncia da operao de pr (setzen) o que pressuposto, ou seja, de expressar o que se aloja na pura inteno. Da porque Hegel insiste na operao de explicitar o que implicitamente vivenciado pela conscincia como certeza. Esta expresso apresentada a partir das operaes aparentemente mais elementares da linguagem: estas vinculadas designao (que aparece no nosso texto como o ato de visar Meinen ou simplesmente ato de indicar zeigen, anzeigen). Este processo de indicar o ser visado (meinen), ou seja, a capacidade de expressar aquilo que aparece inteno da conscincia de maneira imediata ser o motor do movimento dialtico da conscincia sensvel. Para ns, dir Hegel, esta expresso do ser indicado vai se mostrar no como expresso do imediato, mas como pura mediao, ou seja, como uma operao inferencial. Eu determinarei a Coisa a partir da estrutura de apreenso do Eu e determinarei o Eu a partir do modo com que a Coisa aparece ao pensar. Neste sentido, insisti com vocs que nosso capitulo dizia respeito a um problema lingstico ligado natureza do que podemos chamar de designao ostensiva. Chamamos de designao ostensiva esta tentativa de fundar a significao de um termo atravs da indicao de um caso que cairia sob a extenso do uso do referido termo. Ou seja, trata-se de tentar definir a significao atravs da indicao da referncia, ou ainda, da designao ostensiva da referncia. De uma certa forma, todo capitulo sobre a certeza sensvel uma longa reflexo sobre a impossibilidade de designaes ostensiva e a conseqncia disto para a compreenso da maneira com que o conceito pode reconciliar-se com a Coisa. Insisti, por outro lado, neste dado fundamental: no por acaso que a dialtica comea necessariamente atravs de uma reflexo sobre a relao entre as palavras e as coisas. Trata-se de mostrar como a dialtica dependente de um questionamento a respeito dos modos de funcionamento
da linguagem em suas expectativas referenciais, ela nasce atravs deste questionamento e da maneira com que tal problematizao das expectativas referenciais da linguagem nos obriga a rever conceitos ontolgicos centrais como ser, nada e essncia. Para Hegel, questionar a imediaticidade da designao ostensiva exige, incilamente , a compreenso do que est em jogo na pura intuio sensvel. Intuir, lembra Hegel, intuir objetos no espao e no tempo (as duas formas da intuio). Hegel parte do exemplo da intuio dos momentos no tempo, ela que lhe serve de paradigma (invertendo aqui o procedimento kantiano de comear a tematizao da estrutura da intuio atravs do espao, isto a fim de compreender o tempo a partir da justaposio de pontos no espao tempo como uma linha). Intuir algo no tempo ter a experincia de que h algo diante de mim agora. No entanto, o agora no modo de presena do singular. De uma certa forma, o agora o nome que indica a negao de todos os instantes. Posso tentar designar este instante afirmando: Este instante o agora, no entanto, o agora deixa de ser enquanto era indicado, ele passa diretamente para a referncia de outro instante. Ele no a designao do outro-instante, mas apenas a passagem incessante no outro. isto que Hegel tem em mente ao afirmar que agora , na verdade, a forma do negativo em geral; figura do negativo que deve ser compreendida como a manifestao do que no pode ser nem isto nem aquilo, mas no-isto (nicht dieses). Por isto, podemos dizer que o agora a forma do desvanecimento de todo instante. Intuir objetos no tempo assim ter a experincia do que s no sendo (segundo a proposio hegeliana: o tempo aquilo que, no sendo, ). Assim, l onde a conscincia sensvel acreditava designar a particularidade irredutvel do instante, deste instante do qual s podemos dizer que ele o agora, ela estava, na verdade, tendo a experincia do descompasso incessante entre o agora e o instante, descompasso entre a significao e a designao. Experincia da impossibilidade de designar a particularidade do instante. Da porque Hegel pode afirmar que a conscincia, ao tentar enunciar a particularidade, apenas tinha a experincia de estar enunciando a universalidade que se abstrai de todo particular. Ao tentar designar o sensvel, a conscincia apenas fez a experincia de s poder enunciar o puramente abstrato. Podemos ver, nesta experincia, a exterioridade irredutvel do sensvel ao dizvel enquanto aparece como motor da dialtica. Encontramos a mesma dinmica no que diz respeito ao modo hegeliano de estrutura intuies no espao. Intuir algo no espao ter a experincia de que algo est
diante de mim aqui. Da mesma forma como o agora, o isto no pode expressar o ser sensvel que se pe como pura imediatez. Isto ser mostrado apenas como um significante vazio que que coloca atravs da abstrao de todo ente determinado, todo objeto referente: O aqui, dir Hegel, algo que permanece (bleibend) no desvanecer da casa, da rvore e indiferente quanto a ser casa ou rvore. Ele a marca de que o ser designado aparece sob a forma do seu desvanecimento. Eu havia finalizado a aula passada afirmando que no se tratava a simplesmente de dizer que a linguagem nega o referente atravs de uma negao simples. Um pouco como acreditava Kojve ao afirmar que a palavra o assassinato da Coisa, j que a Coisa est no aqui e no agora, enquanto a palavra transforma este aqui e este agora em universais que anulam toda singularidade. Trata-se, na verdade, de dizer que a linguagem apresenta a referncia como aquilo que desvanece ou seja, como aquilo que est desaparecendo ao passar no seu oposto. Este desaparecimento modo de presena. O sensvel , na verdade, o que desvanece diante do conceito, no no sentido de ser aquilo que p conceito expulsa, mas de ser o que o conceito apresenta em desvanecimento. Veremos se esta perspectiva de anlise pode nos guiar na compreenso do resto do nosso capitulo.
Inverses e estruturas
Havamos terminado a ltima aula no comentrio do pargrafo 101. A conscincia, ao ter a experincia da impossibilidade de convergir significao e designao, procura um outro solo para assentar a noo de que o saber garantido em uma relao de imanncia com a essncia. Desta forma, se a significao no pode mais ser fundamentada na designao, ela ser fundamentada na intencionalidade: ser o Eu e sua forma de apreenso que aparecer como o essencial. No entanto, esta crena ser logo descartada, j que no a intencionalidade que funda significaes partilhadas. A significao no um estado mental vinculado transparncia da intencionalidade. Para demonstrar isto, Hegel contrape duas intencionalidades opostas na determinao do mesmo termo: Eu, este, vejo a rvore e afirmo a rvore como tal, mas um outro Eu v a casa e afirma: o aqui no uma rvore, mas uma casa. As duas verdades tm a mesma
credibilidade, isto , a imediatez do ver (...) uma porm desvanece na outra 145.Hegel utilizar tal descrio para mostrar como o sujeito em questo nas operaes cognitivas no o sujeito psicolgico assentado na particularidade das estruturas sensoriais, mas um Eu abstrato, sujeito do conhecimento. Ou seja, l onde a conscincia julgava tratar do Eu particular, ela estava diante do sujeito como condio geral de todo ato de representar. Tal posio de duplo impasse permite a Hegel afirmar:
A certeza sensvel experimenta, assim, que sua essncia nem est no objeto nem no Eu e que a imediatez nem imediatez de um nem de outro, pois o que viso em ambos , antes, um inessencial. Ora, o objeto e o Eu so universais: neles o agora, o aqui e o Eu que viso no se sustm [no permanecem bleibt], ou no so146.
Posto como resultado a impossibilidade da conscincia e pr a imediaticidade da essencialidade do saber no objeto ou no Eu, resta ainda voltar ao ponto de partida, quer dizer, pr a relao imediata entre o saber e seu objeto, sem pretender distinguir neles o termo inessencial e o essencial147. Da porque a conscincia tentara pr como essncia da prpria certeza sensvel a sua totalidade, sem procurar distinguir seus momentos. Esta posio, que leva a conscincia ao mutismo de uma posio que, para assegurar sua certeza, submerso no silncio de quem no compara, no diferencia, mas apenas encerra-se em uma certeza que no pode ser partilhada. Hegel ento diz novamente que tal posio ser desmentida a partir do momento em que for questo da conscincia interagir socialmente. como se Hegel dissesse: Se essa certeza sensvel no quer dar mais um passo em nossa direo, se ela quer aferrarse no mutismo, ento vamos esperar que ela entre em interao social, pois ento ela dever ao menos indicar, para uma outra conscincia, aquilo sobre a qual est certa. E ao entrar em interao, a conscincia far o contrrio do que visa: o que demonstra como, para Hegel, a significao um fato vinculado dimenso da prxis, um pouco no sentido behaviorista de disposio de comportamento (estou agindo de uma forma que legvel sem apelo necessrio a estados mentais no entanto, no caso hegeliano, o
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HEGEL, Fenomenologia, par. 101 HEGEL, Fenomenologia, par. 103 147 HYPPOLITE, Gnese e estrutura da Fenomenologia do Esprito, p. 112
correto seria: estou agindo de uma forma que demonstra como minha intencionalidade inverte-se ao ser realizada). Esta indicao (Bezeichnen), ns j vimos, a operao mnima da pragmtica da linguagem e diz respeito a tentativa imediata de dar conta das aspiraes referenciais da linguagem. Indicar a certeza sensvel para uma outra conscincia significa fazer com que esta penetre no mesmo ponto do tempo ou do espao, indic-lo (zeigen) a ns. Mas, com isto, retornaremos invariavelmente aos impasses da intuio do imediato no espao e no tempo. E a respeito deste impasse que Hegel escreve nos pargrafos seguintes:
O agora indicado: este agora. Agora: j deixou de ser enquanto era indicado. O agora que , um outro que o indicado e vemos que o agora precisamente isto: enquanto , j no ser mais. (...) Vemos, pois, nesse indicar s um movimento e seu curso, que o seguinte: 1) indico o agora, que afirmado como o verdadeiro; mas o indico como o que-j-foi [gewesenes particpio passado de sein o indico como o passado], ou como um superado. Supero a primeira verdade, 2) agora afirmo como segunda verdade que ele foi, que est superado, 3) mas o-que-foi no . Supero o ser-que-foi ou o ser-superado a segunda verdade, nego com isso a negao do agora e retorno primeira afirmao de que o agora 148.
Ou seja, vemos novamente a reflexo sobre o descompasso entre designao e significao. Ao tentar intuir momentos no tempo atravs do agora percebo que nunca consigo adequar o agora designao do instante. Quando era indicado, o instante deixou de ser e este instante designado outro em relao quele que inicialmente foi visado. Da porque Hegel afirma claramente: o agora esta contradio que indica um ser que nunca , que nunca se apresenta positivamente no intuir. Esboa-se assim uma dialtica na determinao dos objetos no tempo. Procuro inicialmente designar o que viso, ou seja, procuro intu-lo no tempo e no espao. Mas a experincia que tenho do desvanecimento da referncia visada: s consigo indic-la como o que passou, como o que no se deixa submeter forma da minha intuio. A primeira tentativa de indicar a referncia foi negada. Posso apenas afirmar: a referncia o que foi negada pela forma
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da intuio. Mas se posso superar esta negao e retornar designao do instante, porque esta passagem de um instante a outro que foi objeto da experincia na designao do agora j a prpria verdade do agora. O agora no o que indica um instante, mas o que indica como cada instante a passagem necessria no outro, pese este mas sempre um outro que posto. O agora apenas a formalizao desta passagem, ele a figura de uma relao entre mltiplos instantes a partir da negao determinada, e no a indexao de um instante isolado. Da porque Hegel poder afirmar que a verdade do agora ser: um agora que absolutamente muitos agoras [ou ainda, muitos instantes] (...) uma pluralidade de agoras unidos (zusammengefasst)149. Dizer que o agora algo refletido em si significa aqui que ele internaliza o que nega a indexao simples do instante. O que Hegel quer dizer , no fundo, simples. Ns vimos, na aula passada, como agora, aqui, eu so unidades gramaticais muito particulares. Como vimos, eles so shifters, ou seja, unidades gramaticais que no podem ser definidas fora da referncia a uma mensagem e, por conseqncia, ao ato de enunciao. Sua natureza dupla. De um lado, eles funcionam como smbolos devido a sua relao convencional referncia. Por outro lado, eles funcionam como index devido a sua relao existencial referncia particularizada pelo contexto. Neste sentido, os shifters nos mostrariam como seria possvel designar o singular atravs do uso de termos universais, no sentido de no se referirem inicialmente a nenhum termo em particular e poderem ser universalmente usados para todo e qualquer objeto (todo e qualquer objeto um isto, algo que pode estar no aqui e no agora). No entanto, mesmo que a conscincia sensvel envie a significao de seus termos ao ato de indicao, a designao do singular no pode se realizar. Hegel sabe que as coordenadas que identificam o lugar lgico do ato de indicao so, desde o incio, articuladas no interior de uma estrutura dada como condio a priori para a experincia. O que vemos quando ele afirma, por exemplo, que:
O aqui indicado, que retenho com firmeza, tambm um este aqui que de fato no este aqui, mas um diante e atrs, uma acima e abaixo, um direita e esquerda. O acima, por sua vez, tambm este mltiplo ser-Outro, com acima, abaixo etc., O aqui que deveria ser indicado desvanece em outros aqui; mas
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esses desvanecem igualmente. O indicado, o retido, o permanente um este negativo [ele outro do outro, ele aquilo que os outros no so] que s tal porque os aquis so tomados como devem ser, mas nisso se supera, constituindo um complexo simples de muitos aquis (einfache Komplexion vieler Hier) 150.
Hegel est simplesmente dizendo que no h singularidade que no passe a priori pelo genrico da estrutura (estrutura que pode aparecer, por exemplo, como um complexo simples de muitos aquis), j que toda indicao feita em um tempo e em um espao estruturalmente coordenados. Tudo se passa como se Hegel houvesse percebido o problema de Quine sobre a inescrutabilidade da referncia. Lembremos como Quine nos afirma que: a referncia sem sentido, salvo em relao a um sistema de coordenadas (...) Procurar uma referncia de maneira mais absoluta seria como querer uma posio absoluta ou uma velocidade absoluta ao invs da posio ou da velocidade em relao a um quadro referencial dado151. Isto permite a Quine deduzir que ser ser valor em uma varivel, o que nos leva a uma relativizao da ontologia. Hegel, de sua parte, compreende inicialmente o resultado como a experincia do fracasso da apresentao positiva imediata do acontecimento singular (ou da referncia enquanto ser sensvel) [isto para nos jogar em uma naturalizao do background enquanto resposta para questes como: qual o sistema de coordenadas do sistema de coordenadas?]. A instncia singular referida no acede palavra. Hegel tira assim as consequncias gerais da experincia da defasagem entre significao e ato ostensivo de designao152. A exterioridade do sensvel em relao ao sistema diferencial ser o motor da dialtica. Digamos, com Bourgeois, que o especulativo: enraza-se na visada indicativa, infradiscursiva do isto sensvel, para ser, em todo seu discurso, a explicao dos requisitos da afirmao original, , h"153. De qualquer forma, esta exterioridade ser garantia para uma recuperao da ontologia. A partir da, Hegel dedica os dois ltimos pargrafos do nosso captulo a criticar toda posio filosfica que procure fundamentar o saber atravs do primado do sensvel,
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HEGEL, Fenomenologia, par. 108 QUINE, A relatividade ontolgica, p. 144 152 Neste sentido, Hegel pode admitir a afirmao de Frege: no nos contentamos com o sentido, supomos uma denotao (FREGE, crits logiques et philosophiques, Paris: Seuil, 1971, p. 107). Mas nos parece que ele no pode aceitar que: com o signo, exprimimos o sentido do nome e designamos a denotao" (idem, p. 107). exatamente a impossibilidade de convergir sentido e designao no signo que anima a dialtica. Para Hegel, o objeto desvanece quando designado pelo signo, ele s poder ser recuperado como negao 153 BOURGEOIS, La spculation hglienne in Etudes hgliennes, Paris: PUF, 1992, p. 89
como seria o caso do ceticismo moderno de Schulze, que insistiria que o ser sensvel e a experincia imediata teriam uma verdade absoluta para a conscincia. Uma afirmao destas diz o contrrio do que quer dizer, dir Hegel. L onde ela julga enunciar a ancoragem do saber no sensvel, ela enuncia (devido prpria dinmica dos shifters) o primado do conhecimento das relaes sobre o conhecimento do contedo da experincia. Hegel passa ento necessidade de consumar o sensvel. ele chegar mesmo a falar da sabedoria dos animais que, na plena certeza do nada da realidade sensvel, simplesmente a consomem: E a natureza toda celebra com eles esses mistrios revelados, que ensinam qual a verdade das coisas sensveis154. Hegel termina ento reafirmando a impossibilidade da designao do singular e a essencialidade da linguagem enquanto sistema de coordenadas: Se quisessem dizer efetivamente este pedao de papel que visam e se quisessem dizer mesmo isso seria impossvel, porque o isto sensvel, que visado, inatingvel pela linguagem, que pertence conscincia e ao universal em si [Pois] Quando digo: uma coisa singular eu a enuncio antes como de todo universal, pois uma coisa singular todas so, esta coisa tudo o que se quiser. Determinando mais exatamente, como este pedao de papel, nesse caso, todo e cada papel um este pedao de papel, e o que eu disse foi sempre e somente o universal. O falar tem a natureza divina de inverter imediatamente o visar, de torna-lo algo diverso, no o deixando assim aceder palavra155.
Esta perspectiva que parece no levar a srio o sensvel ser usada contra Hegel, principalmente atravs dos ps-estruturalistas. Esta uma digresso interessante por nos mostrar um aspecto da maneira com que a contemporaneidade compreende o que estaria em jogo no interior da experincia intelectual hegeliana. Lyotard, por exemplo, dizia a respeito de Hegel : a exterioridade do objeto do qual se fala no diz respeito significao, mas designao156. Pois a referncia: pertence ao mostrar, no ao
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HEGEL, Fenomenologia, par. 109 HEGEL, Fenomenologia, par. 110 156 LYOTARD, Dialectique, index, forme in Discours, figure, Paris: Klicksieck, 1985, p. 50.
significar, ela insignificvel157. Hegel pode facilmente admitir que a referncia diz respeito designao e que ela , a princpio, insignificvel. Para ele, o fundamento da negao dialtica a negao que vem do fracasso da designao. No entanto, como vimos, ele no pode aceitar a pretenso de imanncia da designao que se resolve no mostrar, j que a dialtica no pode assumir a perspectiva externalista que cr poder sair dos limites da linguagem para apreender a exterioridade do objeto. Isto no significa que a aposta dialtica seja fundada em uma totalizao simples que seria um retorno ao pensamento da adequao e da identidade. Lyotard insiste no fato de que a Aufzeigen capaz de nos abrir a uma experincia da ordem do sensvel nunca ser totalizada em uma linguagem dialtica. Mas deveramos dizer que a dialtica visa a possibilidade de apresentao deste impossvel (representado pelo que Lyotard chama de negatividade transcendental que suporta toda relao referncia) em uma linguagem que porta em si sua prpria negao, conservando-a como negao. Podemos sempre denunciar esta internalizao do negativo como uma maneira astuta de esconder o corte entre saber e realidade fenomenal, o que Lyotard far: Mas no porque o objeto adquire um significado no interior do sistema que este perde sua relao de arbitrrio com o objeto. A imotivao inscrita na linguagem como sua dimenso de exterioridade em relao aos objetos. Este exterioridade uma vez significada certamente interiorizada na linguagem, mas esta no ter perdido sua borda, e sua borda sua face olhando para alm158. correto dizer que, em Hegel, a clivagem entre significao e designao est fadada a uma certa reconciliao atravs do conceito. Mas dizer isto dizer muito pouco. Pois a verdade questo consiste em saber qual o regime de reconciliao capaz de curar as cicatrizes desta clivagem, ou seja, como a reconciliao pode superar a negatividade do sensvel. Por outro lado, no que concerne perspectiva de Lyotard, podemos sustentar que seu problema pressupor muita coisa. Por exemplo, ela pressupe a possibilidade de uma experincia imediata acessvel fora dos limites de minha linguagem. Ela pressupe tambm uma integralidade do sensvel que ficaria livre da interferncia da linguagem, ou seja, uma imanncia do sensvel que se abriria em sua integralidade experincia: tal como vemos na crtica de Lyotard ao fato do sistema hegeliano no deixar o objeto no exterior como seu outro. Dizer que o objeto deve ser conservado no
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exterior do sistema pressupe uma alteridade indiferente das diferenas, o que o prprio Hegel j havia criticado na Doutrina da essncia, no captulo sobre a diversidade. Esta alteridade indiferente esconde a necessidade da perspectiva de um terceiro (que Hegel chama de das Vergleichende) enquanto lugar que permite a comparao entre a exterioridade e a interioridade do sistema. Este terceiro anula a indiferena do diverso e estabelece uma unidade negativa entre o objeto da experincia sensvel e a linguagem. Tal unidade negativa se transforma em oposio estruturada. E verdade que, quando Lyotard fala deste deixar-estar do objeto fora da linguagem (que tambm deixar-estar do desejo), ele no entra na hipstase do inefvel. Sua estratgia consiste antes em colocar um espao figural que pode se manifestar tambm na ordem da linguagem: No entanto, no como significao, mas como expresso159. Algo que se mostra, ao invs de se deixar dizer. Podemos perguntar se este retorno expresso, retorno que mostra como a atividade sensvel um Dasein, e no uma Bedeutung, no nos envia a uma linguagem da imanncia. Talvez o problema maior desta leitura de Hegel venha de uma certa confuso, prpria a Lyotard, entre negao opositiva e negatividade absoluta enquanto contradio que se manifesta, inicialmente, no interior do objeto e que reconhece que o objeto tambm algo fora do sistema. Os exemplos hegelianos so claros e instrutivos neste ponto.
Temas do trabalho: Experincia justamente o nome desse movimento em que o imediato, o noexperimentado, ou seja, o abstrato quer do ser sensvel, quer do Simples apenas pensado se aliena e depois retorna a si dessa alienao; e por isso como tambm propriedade da conscincia somente ento exposto em sua efetividade e verdade (Fenomenologia, pargrafo 36)
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LYOTARD, Idem, p. 51
O indivduo que no arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas no alcanou a verdade desse reconhecimento como uma conscincia-de-si independente (Fenomenologia, pargrafo 187)
Aula 9 A Aula de hoje ser dedicada apresentao do captulo A percepo ou A coisa e a iluso, segundo captulo da seo Conscincia. Como havia dito anteriormente, esta apresentao visa fornecer um esquema geral de leitura e interpretao, e no se organiza como uma leitura detalhada de texto, tal como foi o caso do comentrio do capitulo A certeza sensvel ou O isto e o visar. O objetivo central assim, atravs da apresentao deste esquema, permitir que vocs possam ler diretamente o trecho em questo por conta prpria e risco. Neste sentido, iremos insistir em trs aspectos complementares: O regime de passagem da figura da conscincia assentada na certeza sensvel figura assentada na percepo As contradies internas percepo e a maneira com que elas aparecem no interior do campo de experincias da conscincia O modo de encaminhamento da percepo figura que ir supera-la, ou seja, aquela apresentada no captulo Fora e entendimento: fenmeno e mundo supra-sensvel
Vimos, na aula passada, em que condies a conscincia que assentava suas expectativas cognitivo-instrumentais na certeza sensvel foi deixada. A descrio fenomenolgica da experincia da conscincia partiu daquilo que aparece ao pensar como representao natural. Esta representao natural dizia respeito crena na presena integral do ser atravs da pura intuio sensvel. O saber que, de incio, nosso objeto s pode ser o saber que pe a imanncia originria entre pensar e ser. Este saber apresentado como uma certeza sensvel (sinnliche Gewissheit), ou seja, certeza de que a presena do ser se d atravs da receptividade da sensibilidade.
No entanto, a fim de passar da certeza (subjetiva) verdade (objetiva), a conscincia deveria ser capaz de expressar sua certeza sensvel no campo da linguagem pblica. Hegel claro neste ponto: aquilo que no pode ser apresentado no campo da linguagem no tem realidade objetiva. O saber nada tem a fazer com o que se pe como inefvel a no ser v-lo como o que se apresenta de forma imperfeita. Da porque Hegel insiste na importncia da operao de pr (setzen) o que pressuposto, ou seja, de expressar o que se aloja na pura inteno. Da porque Hegel insiste na operao de explicitar o que implicitamente vivenciado pela conscincia como certeza. Isto nos levou a compreender a experincia em jogo no interior da certeza sensvel como um problema eminentemente lingstico ligado aos modos de expresso do que aparece conscincia como presena imediata do ser em sua integralidade. Vimos como esta expresso era apresentada a partir das operaes aparentemente mais elementares da linguagem: estas vinculadas designao (que aparece no nosso texto como o ato de visar Meinen ou simplesmente ato de indicar zeigen, anzeigen). Este processo de indicar o ser visado (meinen), ou seja, a capacidade de expressar aquilo que aparece inteno da conscincia de maneira imediata era assim o motor do movimento dialtico da conscincia sensvel. Para ns, dir Hegel, esta expresso do ser indicado vai se mostrar no como expresso do imediato, mas como pura mediao, ou seja, como uma operao inferencial. Atravs da impossibilidade da linguagem em fundamentar significaes a partir de designaes ostensivas, Hegel nos colocava no cerne da dialtica entre o particular e o universal. A conscincia visa sempre um caso particular que lhe aparece de forma imediata intuio sensvel. No entanto, ao tentar enunciar o particular visado, ela enunciava, necessariamente, sempre o universal (j que a linguagem estaria necessariamente vinculada operaes universalizantes do signo). Mesmo os modos de intuio no espao e no tempo atravs do aqui e do agora seriam, princpio, experimentados como submisso do diverso da experincia estruturas gerais de apreenso. Podemos dizer que, enquanto o particular encontrava-se do lado da
designao, o universal era o nico espao possvel da significao e do sentido. Hegel terminava ento reafirmando a impossibilidade da designao do particular e a essencialidade da linguagem enquanto plo de produo de sentido: Se quisessem dizer efetivamente este pedao de papel que visam e se quisessem dizer mesmo isso seria impossvel, porque o isto sensvel, que
visado, inatingvel pela linguagem, que pertence conscincia e ao universal em si [Pois] Quando digo: uma coisa singular eu a enuncio antes como de todo universal, pois uma coisa singular todas so, esta coisa tudo o que se quiser. Determinando mais exatamente, como este pedao de papel, nesse caso, todo e cada papel um este pedao de papel, e o que eu disse foi sempre e somente o universal. O falar tem a natureza divina de inverter imediatamente o visar, de torna-lo algo diverso, no o deixando assim aceder palavra160.
Desta forma, podemos dizer que a certeza sensvel no realiza o seu prprio conceito, que consistia em apreender o particular que se coloca sob a designao. Esta impossibilidade de designao direta do particular e a essencialidade do universal sero o que levar a conscincia a modificar seu modo de orientao na confrontao cognitivo-instrumental com o objeto. Entramos, com isto, no solo da percepo. O primeiro ponto a notar que a conscincia continua a pensar a confrontao com o objeto como uma operao absolutamente independente de prticas sociais ou de determinaes restritivas da estrutura da nossa linguagem. Tal como na certeza sensvel, a conscincia cr dar conta da apreenso do objeto em sua verdade simplesmente a partir da perspectiva de sujeitos isolados confrontando-se com objetos ou com estados de coisas. Sujeitos isolados devem encontrar uma perspectiva de adequao direta entre suas representaes mentais e os objetos do mundo. Da porque o conhecimento comear a ser compreendido como um problema de correspondncia de representaes s coisas. A fim de iniciarmos nosso trajeto, devemos inicialmente perguntar: o que Hegel entende por percepo (Warhnehmung)? Um comentrio do ttulo do nosso captulo pode ser til neste sentido. Hegel fornece um ttulo complementar prenhe de significao: a coisa e a iluso (das Ding und die Tuschung). A percepo um modo de apreenso da coisa, mas um modo de apreenso marcado pela conscincia da iluso e do erro. No estamos mais diante da certeza imediata e aparentemente segura do captulo anterior. A conscincia j se desiludiu a respeito da imediaticidade do puro ser que se ofereceria atravs da pura designao. Ela sabe que o conhecer uma operao de comparao entre representaes mentais e estados naturalizados de coisas.
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Neste sentido, ela sabe que o conhecer da coisa est sempre regulado pela possibilidade da iluso, do tomar a coisa por outra coisa do que ela . Mas devemos ainda colocar uma questo simples: para a percepo, o que significa conhecer uma coisa? J temos algumas indicaes importantes no primeiro pargrafo do nosso captulo:
A certeza sensvel no se apossa do verdadeiro; j que sua verdade o universal mas ela quer apreender (nehmen) o isto. A percepo, ao contrrio, toma como universal o que para ela o ente. Como a universalidade seu princpio em geral, assim tambm so universais seus momentos que nela se distinguem imediatamente: o Eu um universal e o objeto um universal161.
Ou seja, a percepo parte da noo de que conhecer uma coisa predicar universais, da porque a universalidade seu princpio. Precisamos, no entanto, entender o que Hegel compreende, neste contexto, por universal. Hegel afirma que tal universalidade emergiu como resultado da certeza sensvel, ela resultante da experincia de que a linguagem s enuncia o universal. No entanto, a conscincia permanece aferrada noo de que a essncia est no objeto, e no no conhecer ou na linguagem que se disponibiliza ao conhecer. Isto indica que o universal deve aparecer como universal da coisa, e no como universais sintetizados pelo pensar. Para que isto seja possvel, Hegel precisa operar um certo deslizamento. No captulo sobre a certeza sensvel, vimos como os universais apareciam inicialmente atravs dos diticos (ou shifters) como aqui, agora, eu. Estes, eram universais no exatamente por serem predicaes universais de classes de objetos, mas por serem o que se abstrai de todo e qualquer particular. Eles no se referem inicialmente a termo em particular algum, podem ser universalmente usados para todo e qualquer objeto ou sujeito e no podem ser vistos como universais da coisa. No entanto, no nosso captulo, Hegel fala dos universais como propriedades gerais de objetos (. isto que o permite afirmar: O princpio do objeto o universal em sua simplicidade um mediatizado; assim tem de exprimir isto nele, como sua natureza: por conseguinte se mostra como a coisa de muitas propriedades162.
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O objeto, ou a coisa, uma simplicidade mediatizada, no sentido de ser um simples s apreensvel atravs da mediao, atravs de operaes de inferncia. Isto, aparentemente, s possvel porque os universais so, agora, propriedades ou atributos que me permitem apreender a coisa em sua singularidade. Isto no seria possvel se a conscincia continuasse a compreender apenas os diticos como universais. graas a compreenso da coisa como o simples com mltiplas propriedades que chegamos a definio da percepo como a conscincia de individuais atravs de universais. Conhecer uma coisa , assim, ter conscincia de individuais atravs de universais. E, desta forma, ao passar de uma figura dos universais pensados a partir dos diticos, aos universais pensados a partir de propriedades gerais, a percepo poderia dar conta do que a certeza sensvel no foi capaz, ou seja, de designar particulares, mesmo sabendo que a linguagem s enuncia o universal. Na verdade, Hegel apela aqui estrutura categorial das propriedades, um pouco como Aristteles lembrava que as categorias eram os gneros mais gerais do ser que permitia a individualizao de substncias [ exatamente a compreenso das atribuies de propriedades sobre o pano de fundo do problema da subsuno categorial que leva Hegel a afirmar que: O grau mais preciso no qual a filosofia kantiana apreende o esprito o perceber, que constitui em geral o ponto de vista de nossa conscincia ordinria e, mais ou menos, das cincias163]. Hegel defende ento, no pargrafo 113, que o isto da certeza sensvel superado pela noo de propriedade distinta determinada prpria percepo. Se podemos falar aqui em superao, porque a conscincia conservou as expectativas referenciais que animavam o uso do isto na certeza sensvel [a predicao como negao determinada da designao]. Ela cr agora poder realizar o que a simples designao no foi capaz, j que, contrariamente ao isto, a propriedade uma universalidade determinada. Notemos ainda que, neste momento, Hegel fornece, pela primeira vez, uma definio operacional de Aufhebung:
O superar apresenta sua dupla significao verdadeira que vimos no negativo: ao mesmo tempo um negar (Negieren) e um conservar (Aufbewahren). O nada, como nada do isto (Nichts des Diesen), conserva a imediatez e , ele prprio, sensvel; porm uma imediatez universal164.
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Vimos pois como se d a reflexo sobre a passagem da certeza sensvel percepo. A exposio fenomenolgica visa expor a necessidade desta passagem enquanto tentativa de realizao de um conceito de experincia que j estava presente na certeza sensvel, ou seja, a experincia como adequao do pensar a essencialidade de estados de coisa dotados de autonomia metafsica em relao ao prprio pensar. Tanto na certeza sensvel quanto na percepo, a conscincia no coloca em questo a existncia de um mundo dotado de autonomia metafsica que deve servir de eixo de orientao para a conformao do saber. Em relao certeza sensvel, a percepo procura convergir a estrutura universalizante da linguagem com a particularidade da experincia do mundo atravs da compreenso dos universais como propriedades gerais de objetos. A coisa aparece assim como um individual capaz de ser descrito e apreendido por universais, ou ainda, como uma coisa com mltiplas propriedades. Mas Hegel quer demonstrar como tambm a percepo no ser capaz de realizar seu prprio conceito, ou seja, tematizar de maneira adequada a particularidade da experincia sem precisar recorrer a algo outro do que a prpria percepo. Para tanto, ele dever demonstrar como o conceito de objeto prprio percepo contraditrio, alm de demonstrar como a conscincia ter a experincia desta contradio. O primeiro passo consiste em descrever o que significa conhecer um objeto atravs de predicaes. Sigamos Hegel em sua descrio:
Este sal um aqui simples e, ao mesmo tempo, mltiplo: branco e tambm picante, tambm cubiforme, tambm tem peso determinado etc. Todas essas propriedades mltiplas esto em um aqui simples no qual assim se interpenetram: nenhuma tem um aqui diverso da outra, pois cada uma est sempre onde a outra est [ou seja, a coisa , ao mesmo tempo, a diversidade dos predicados e a igualdade consigo mesma do sujeito que no passa integralmente no predicado]. Igualmente, sem que estejam separadas por aquis diversos, no se afetam mutuamente por essa interpenetrao [aparentemente, uma propriedade no deduzida da outra, elas so indiferentes umas s outras]. O branco no afeta nem altera o cbico, os dois no afetam o sabor salgado etc. mas por ser, cada um, simples relacionar consigo, deixa os outros quietos, e com eles se relaciona atravs do indiferente tambm (Ausch). Esse
tambm portanto o puro universal mesmo, ou o meio: a coisidade (Dingheit) que assim engloba todas essas propriedades165.
Se conhecer predicar universais, ento a coisa ser, ao mesmo tempo, o conjunto de predicados e o meio, a substncia ou a coisidade a respeito da qual se predica. Tal sntese de um diverso efetuada pela conscincia, eis o ato de perceber; esta mesma sntese como fixa, eis a coisa percebida166. O que apenas nos demonstra esta proposio empirista central a respeito da qual o conhecer se serve, principalmente, da forma da anlise. Hegel chega mesma a falar da anlise como decomposio de determinaes167. No entanto, esta coisidade s aparece experincia como um tambm que liga propriedades que so, aparentemente, indiferentes entre si. Este tambm mo nos remete apenas idia de uma substncia que se exprima atravs de seus atributos. Por outro lado, tambm indica que a coisa sempre aquilo que ultrapassa a somatria de suas propriedades, j que eu sempre posso dizer que a coisa tambm mais uma propriedade. O sal no apenas aquilo que branco, picante, cubiforme, mas ele tambm aquilo que est no mar, que adstringente etc. Nunca esgotaremos a coisa atravs da enumerao de suas propriedades. A coisa, por sua vez, no apenas um tambm que engloba mltiplas propriedades. Como sabemos, uma determinao sempre necessariamente articulada atravs de negaes. As propriedades determinam-se atravs de negaes opositivas: o que branco, no preto; o que salgado, no doce. Por outro lado, elas se determinam atravs de negaes entre si: a quantidade no qualidade, no localizao, no modalidade [Hegel ir depois discutir a aparente indiferena das categorias nas suas determinaes recprocas]. Isto demonstra como a coisa no apenas um simples relacionar-se consigo mesmo, mas ela tambm uma unidade excludente, ou seja, ela aquilo que nega sua identidade com outra coisa. Neste sentido, ela no apenas um tambm, universalidade passiva e indiferente; mas, alm disto, ela um Um (das Eins), unidade que exclui o Outro enquanto excluir das propriedades opostas. Assim, Hegel pode afirmar:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 113 HYPPOLITE, Gnese e estrutura... p. 123 167 HEGEL, Enciclopdia, par. 38
Na propriedade, a negao est, como determinidade, imediatamente unida com a imediatez do ser o qual, por ser essa unidade com a negao, a universalidade [a propriedade determina-se atravs da negao, o ser definido pela propriedade imediatamente universalidade determinada]. Mas a negao est, como Um, quando se liberta desta unidade com seu contrrio [a imediatez do ser] e em si e para si mesma168.
A tentativa de unificar esta dupla acepo da coisa, como tambm e como Um, como multiplicidade aberta e como unidade excludente, ser o motor da experincia dialtica da conscincia. Podemos dizer que a conscincia procura perceber a coisa como o que se oferece imediatamente percepo, mas ela descobrir que s percebemos coisas (determinadas) em relao com outras coisas, ou seja, coisas no interior de um sistema de coordenadas e relaes. No limite, isto levar conscincia a ter que assumir a diviso da coisa em coisa tal como em si (fora de um sistema de relaes) e coisa tal como aparece fenomenalmente conscincia (dentro de um sistema de relaes). A coisa tal com em si ser incognoscvel e indeterminada. Vejamos como Hegel descreve o trajeto da experincia fenomenolgica da conscincia na percepo. Tal trajeto encontra-se no pargrafo 117. Antes, Hegel lembra que a medida do saber da conscincia a igualdade com o objeto e, principalmente, a igualdade do objeto consigo mesmo. Mas como o apreender o correlacionar o diverso das propriedades sob a unidade da coisa, a iluso s pode ser compreendida como atribuio de propriedades que no so da coisa. Isto significa tomar a coisa por outra coisa do que ela . A iluso aparece assim como um erro do saber na sua operao de atribuio de propriedades a uma coisa. No entanto, a prpria compreenso da coisa como o que individualizado atravs da atribuio de propriedades uma iluso, j que: uma coisa tem propriedades; elas so, em primeiro lugar, suas relaes determinadas a outra coisa; a propriedade est presente apenas como um modo de ser-em-relao j que uma coisa tem a propriedade de efetuar isto ou aquilo em outra e de se exteriorizar (ussern) de uma maneira prpria em sua relao169. Ou seja, as propriedades no so exatamente propriedades da coisa, mas propriedades de uma relao. Este ser o resultado da experincia fenomenolgica. Isto fica muito claro mais a frente, quando Hegel dizer:
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cada coisa se determina como sendo ela mesma algo diferente, e tem nela a distino essencial em relao s outras; mas ao mesmo tempo no tem em si esta diferena, de modo que fosse uma oposio nela mesma [j que esta diferena est expulsa para fora de si, em um Outro]. Ao contrrio: para si uma determinidade simples, a qual constitui seu carter essencial, distinguindo-a das outras170.
No entanto, a conscincia perceber o carter insustentvel desta posio. Primeiro o objeto percebido apreendido como puro Um idntico a si mesmo. Mas a simples determinao deste Um atravs de propriedades (como o faz necessariamente a percepo) j uma ruptura da pura singularidade. O Um enquanto essncia da coisa deve ser visto como um conjunto de propriedades, uma comunidade em geral (Gemeischaft berhaupt), como um tambm que engloba a diversidade das propriedades. Mas, por sua vez, percebo a propriedade como determinada, oposta a Outro e excluindo-o. Assim, a essncia objetiva no apenas a continuidade do conjunto de propriedades, mas unidade excludente em relao ao oposto. No entanto, encontro na coisa propriedades determinadas indiferentes entre si e, se assim for, o que encontro no pode ser nem propriedade, nem determinado (j que o Outro foi negado como inessencial ao Um, ele no pode fornecer assim o fundamento da determinao). A conscincia retorna a indiferenciao prpria ao visar da certeza sensvel. Mas como o visar nos leva diretamente percepo, todo o movimento retorna como em um crculo perptuo. A nica maneira de quebrar o crculo tentar distinguir o que da ordem da verdade do objeto e o que da ordem da iluso da conscincia. A conscincia procura, ao apreender o objeto, separar o que seria iluso resultante dos nossos modos de apreenso. Da porque Hegel afirma: O comportamento dessa conscincia, a ser tratado de agora em diante, de tal modo constitudo que a conscincia j no percebe simplesmente; seno que tambm conscincia de sua reflexo-sobre-si e a separa da simples apreenso171. Assim, por exemplo, a conscincia pode dizer que a coisa Um e que a diversidade das propriedades apenas para ns: De fato, esta coisa branca s para
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nossos olhos e tambm tem gosto salgado para nossa lngua, tambm cbica para nosso tato etc. Toda a diversidade desses aspectos, no tomamos da coisa, mas de ns172. Assim, a coerncia da conscincia parece salva e a verdade de ser Um da coisa preservada. Desta forma: A coisa sempre ser o verdadeiro e o igual a si mesmo, mas o conhecimento que disso tomo ser perturbado por minha reflexo em mim mesmo. Minha percepo j no ser considerada uma apreenso pura e simples, mas uma apreenso mesclada a uma reflexo que altera a coisa e faz com que, para mim, seja outra coisa do que aquilo que em si173. Mas Hegel logo completa lembrando que dizer que a coisa Um j implica em determin-la, a unidade aparece como propriedade. Assim, quem diz: A coisa Um, diz necessariamente que a coisa tem propriedades que a diferencia das demais coisas: As prprias coisas so determinadas em si e para si; tm propriedades pelas quais se diferenciam das outras174. O Um s pode se diferenciar atravs do que determinado e que tem, com isto, existncia autnoma em relao percepo da coisa. A conscincia poder ainda inverter o seu conceituar e se ver como o que sintetiza a percepo em um objeto, enquanto a coisa seria apenas uma multiplicidade de matrias independentes, matrias calricas, qumicas, eltricas, etc. Nos dois casos, temos a experincia de uma clivagem e de uma contradio descrita por Hegel nos seguintes termos: a coisa se apresenta de um modo determinado, mas ela est ao mesmo tempo, fora do modo como se apresenta, e refletida sobre si mesma. Quer dizer: a coisa tem nela mesma uma verdade oposta175. Ou ainda, de maneira mais explcita: O objeto , antes, sob o mesmo e nico ponto de vista, o oposto de si mesmo: para si enquanto para Outro; e para Outro enquanto para si176.
Da percepo ao entendimento
Neste ponto, podemos dar conta do ltimo aspecto que havia proposto: o modo de encaminhamento da percepo figura que ir supera-la, a saber, o entendimento. J vemos nesta clivagem no interior da coisa um regime de passagem ao entendimento. Basta que esta clivagem entre o Um e o mltiplo como determinaes da coisa seja
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HEGEL, Fenomenologia, par. 119 HYPPOLITE, Gnese, p. 128 174 HEGEL, Fenomenologia, par. 119 175 HEGEL, Fenomenologia, par. 122 176 HEGEL, Fenomenologia, par. 128
compreendida como distino entre a coisa-em-si e a coisa para-um-outro, tal como se manifesta conscincia, ou seja, a coisa como fenmeno. Isto implica em aceitar a coisa-em-si como o puro indeterminado (de onde viria, segundo Hegel, a necessidade do seu carter incognoscvel). Da porque Hegel ir afirmar: a coisa em si enquanto tal apenas a abstrao vazia de toda determinidade, aquilo a respeito do qual no podemos nada saber justamente porque ela deve ser a abstrao de toda determinao. Assim que a coisa-em-si encontra-se pressuposta como indeterminado, toda determinao cai fora dela em uma reflexo que lhe exterior e a respeito da qual ela indiferente177. Ou seja, a gnese da coisa-em-si, para Hegel, deve ser procurada inicialmente no puro ser da certeza sensvel; este puro ser que indicava o totalmente indeterminado e que, na percepo, aparece como o Um indiferente que procura resistir a toda determinao da coisa atravs da posio de propriedades. Entre estas trs representaes, encontramos a mesma crena na essencialidade do que se oferece como imediato. S que agora, a conscincia tem a experincia de que este imediato no est ao alcance do saber. A conscincia no abandona o vnculo entre presena imediata, essncia e sentido. Ao passar ao entendimento, ela ir simplesmente negar que esta presena lhe seja acessvel. No entanto, como vimos desde a certeza sensvel, Hegel quer mostrar que este totalmente indeterminado no outra coisa que o puro nada. Esta experincia, a conscincia ainda no teve.A conscincia ainda no compreendeu que:
[O objeto] tornou-se um universal a partir do ser sensvel; porm esse universal, por se originar do sensvel, essencialmente por ele condicionado, e por isso, em geral, no verdadeiramente igual a si mesmo, mas universalidade afetada de um oposto; a qual se separa, por esse motivo, nos extremos da singularidade e da universalidade, do Um das propriedades e do tambm das matrias livres178.
Ao invs de oscilar entre esses plos contraditrios, o conscincia poder encontrar uma estabilidade se admitir que um dos plos inacessvel e que o outro, embora sendo inessencial, j que indica apenas o que o objeto para-um-Outro, dever aparecer como necessrio ao saber. Com isto, passamos da percepo ao entendimento.
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Na aula de hoje, iniciaremos a leitura do ltimo captulo da seo Conscincia, este cujo ttulo : Fora e entendimento: fenmeno e mundo supra-sensvel. Tal como foi questo na aula passada, a apresentao deste captulo no seguir a lgica da exposio detalhada de texto. Aqui, ser questo sobretudo de expor as articulaes gerais do captulo, isto na expectativa de que vocs podero ento compreend-lo atravs de leituras individuais. Fora e entendimento certamente o captulo mais complexo da seo Conscincia. A ele, dedicaremos duas aulas. Grosso modo, a aula de hoje o comentrio do trecho que vai dos pargrafos 132 a 149. A aula seguinte ser o comentrio do restante final do captulo. Como comentadores para a compreenso deste captulo, estarei deixando disposio de vocs os captulos dedicados a este trecho da Fenomenologia do Esprito dos livros The sociality of reason, de Terry Pinkard, e A Fenomenologia do Esprito de Hegel, de Martin Heidegger. Alm de comentar este primeiro trecho do nosso captulo, gostaria, na aula de hoje, de re-expor a articulao da passagem da figura da conscincia assentada na percepo figura assentada no entendimento. A aula que vem ser dedicada tambm compreenso do esgotamento do modo cognitivo-instrumental de confrontao entre sujeitos individuais e objetos que guiou as expectativas racionais do saber da conscincia. A respeito desta questo, eu havia sugerido a leitura do texto Holism and Idealism in Hegels Phenomenology, de Robert Brandom. Deixarei tambm um outro texto de Brandom sobre o assunto, Some pragmatist themes in Hegels idealism, que talvez seja, inclusive, mais fcil.
Da percepo ao entendimento
Vimos na aula passada como a conscincia cuja capacidade cognitiva esta assentada na percepo, ou seja, esta conscincia para a qual o conhecer uma questo de predicao de individuais atravs de propriedades universais tinha, diante de si, um objeto cindido entre unidade (Um) e multiplicidade (tambm). Ela oscilava continuamente entre o reconhecimento da essencialidade do Um/inessencialidade das propriedades predicadas (o objeto Um e sua multiplicidade de propriedades resultado de meus modos de
apreenso) e da essencialidade das propriedades predicadas/inessencialidade do Um (h matrias que so sintetizadas sob a forma de objeto pelos sujeitos cognoscentes). Na verdade, essa oscilao era resultante de uma percepo que no podia mais deixar de contar com operaes de reflexo. Ns vimos, nesta clivagem no interior da coisa, um regime de passagem ao entendimento. Insisti com voc que bastaria compreender esta clivagem entre o Um e o mltiplo como distino entre a coisa-em-si e a coisa para-um-outro, tal como se manifesta conscincia, ou seja, a coisa como fenmeno. Isto implicava em aceitar a coisa-em-si como o puro indeterminado (de onde viria, segundo Hegel, a necessidade do seu carter incognoscvel). Da porque Hegel ir afirmar: a coisa em si enquanto tal apenas a abstrao vazia de toda determinidade, aquilo a respeito do qual no podemos nada saber justamente porque ela deve ser a abstrao de toda determinao. Assim que a coisa-em-si encontra-se pressuposta como indeterminado, toda determinao cai fora dela em uma reflexo que lhe exterior e a respeito da qual ela indiferente179. Ou seja, a gnese da coisa-em-si, para Hegel, deveria ser procurada inicialmente no puro ser da certeza sensvel; este puro ser que indicava o totalmente indeterminado e que, na percepo, apareceu como o Um indiferente que procurava resistir a toda determinao da coisa atravs da posio de propriedades. Entre estas trs representaes, encontramos a mesma crena na essencialidade do que se oferece como imediato. S que agora, a conscincia tem a experincia de que este imediato no est ao alcance do saber. A conscincia no abandona o vnculo entre presena imediata, essncia e sentido. Ao passar ao entendimento, ela ir simplesmente negar que esta presena lhe seja acessvel. No entanto, como vimos desde a certeza sensvel, Hegel quer mostrar que este totalmente indeterminado no outra coisa que o puro nada. No entanto, esta experincia, a conscincia ainda no teve. Ela a ter apenas no final do nosso captulo, quando Hegel escrever:
Levanta-se, pois, essa cortina [dos fenmenos] sobre o interior [a coisa-em-si] e dse o olhar do interior para dentro do interior (...) Fica patente que por trs da assim chamada cortina que deve cobrir o interior nada h para ver; a no ser que ns
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entremos l dentro tanto para ver como para que haja algo ali atrs que possa ser visto180.
Mas para que esta experincia de desvelamento de que a estrutura do objeto idntica estrutura da conscincia seja possvel, faz-se necessrio um longo trajeto que tematizado pelo nosso captulo. A ttulo de introduo, lembremos do problema maior legado pela percepo: a conscincia tem diante de si um objeto do conhecimento clivado entre Um e mltiplo, entre substncia e atributos, ou ainda, um objeto da experincia que no realiza o prprio conceito de experincia pressuposto pela percepo (determinao do particular atravs de universais). Da mesma forma com que a percepo tentou realizar o conceito de experincia prprio certeza sensvel, o entendimento tentar realizar o conceito de experincia prprio percepo. E ele tentar realizar tal conceito atravs da idia de que os objetos devem ser inicialmente compreendidos a partir da noo de fora. Da porque o captulo em questo traz como ttulo Fora e entendimento. Assim, a verdade do isto era a coisa, e a verdade coisa a fora. J logo no primeiro pargrafo, Hegel nos explica como espera que a noo de fora atue para a unificao dos dois momentos separados pela intuio. Ele parte da afirmao de que, a partir da percepo, a conscincia, pela primeira vez, tem o pensamento que a coloca diante do Universal incondicionado. Na percepo, o momento do universal era sempre condicionado pelo seu oposto, condicionado por aquilo que est fora dele. Se o universal era visto como o Um indiferente, este Um, em seu aparecer, estava condicionado pela multiplicidade inessencial de propriedades. Por sua vez, se o universal era visto como universalidade determinada das propriedades, ela estava condicionada pela singularidade da coisa que tais propriedades procuravam apreender. Como vemos, este condicionamento est necessariamente vinculado estrutura da coisa enquanto Um e mltiplo. Com o conceito de fora enquanto objeto do entendimento, samos da dicotomia prpria coisa da percepo. Hegel joga aqui com a acepo etimolgica de unbedingt (incondicionado), ou seja, o que no uma coisa. por ser fora que o objeto do entendimento ser capaz de unificar o que apareceu conscincia como dicotomia entre
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o Um e o mltiplo. Da porque Hegel lembra que ser questo, no captulo da articulao entre fora e entendimento. Por outro lado, a duplicao do ttulo fenmeno e mundo supra-sensvel nos auxilia na circunscrio do que est em jogo atravs do uso do conceito de fora. Se lembrarmos que o mundo fenomenal necessariamente o mundo tal como aparece conscincia em determinaes finitas e que o mundo supra-sensvel o que se colocaria como essncia do que se manifesta sob a forma de objeto fenomenal, ento podemos dizer que o conceito de fora seria o que nos permitiria estabelecer, segundo a perspectiva do entendimento, a relao entre a essncia e seus modos de manifestao. Desta forma, a fora estaria diretamente ligada ao problema dos modos de determinao da essncia das coisas, fornecendo, com isto, um fundamento incondicional e universal (ou seja, no-sensvel) s expectativas de unidade da razo. Pois ela seria responsvel pela explicao do sentido do que se oferece na dimenso da aparncia. nesta direo que devemos compreender a afirmao de Hegel, em um escrito de juventude: A fora exprime a idia da relao. Ela seria o conceito no-emprico capaz de servir de princpio de unificao entre fenmenos e mundo supra-sensvel. Heidegger comenta esta afirmao lembrando: O contedo especulativo do conceito de fora a relao, vista ela mesma de maneira especulativa181. Precisamos ainda entender como o conceito de fora capaz de se colocar exatamente como a idia de relao entre a essncia e seus modos de manifestao. No entanto, entes de passarmos a uma anlise mais longa dos usos hegelianos do conceito de fora, faz-se necessrio comentar esta afirmao que abre nosso captulo: este Universal incondicionado [disponibilizado atravs do conceito de fora], que de agora em diante o objeto verdadeiro da conscincia, ainda est como objeto dessa conscincia a qual ainda no apreendeu o conceito como conceito182. Ou seja, sob a figura do entendimento, a conscincia no apreende este Universal incondicionado como o prprio movimento do conceito, como aquilo que posto pelo movimento mesmo do pensar. Ao contrrio, trata-se ainda de uma confrontao de sujeitos individuais e de suas representaes mentais com estados de coisas dotados de autonomia metafsica. No entanto, como veremos na prxima aula: Hegel espera mostrar que a conscincia, em seu uso necessrio de conceitos no-sensveis na efetuao de discriminaes de objetos, no est contando com o que transcende a
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conscincia, seja em um sentido emprico ou metafsico, mas est ocupada apenas consigo mesmo183.
Antes de iniciarmos o comentrio da noo hegeliana de fora, gostaria de lembrar que nosso captulo est dividido, a grosso modo, em trs partes. Cada uma destas partes tenta dar conta de modificaes na determinao do objeto do entendimento. Inicialmente, tal objeto aparece como fora (ou jogo de foras). Esta exposio vai at o pargrafo 149. Em seguida, o objeto do entendimento ser compreendido como Lei (pargrafos 150 a 160). Por fim, o conceito de Lei se mostrar como sendo, na verdade, a manifestao da infinitude (a partir do pargrafo 161 at o final). E ao ter a infinitude como objeto, a conscincia deixar de ser compreendida como conscincia para ser tematizada atravs da noo de conscincia-de-si. Como o caso em praticamente todo conceito hegeliano central presente na Fenomenologia, a noo de fora alude, ao mesmo tempo, a uma multiplicidade de conceitos especficos da histria da idias (a entelquia de Aristteles, a fora em Leibniz, em Newton, em Herder, as leis de Kant, a funo da polaridade em Schelling), mas no se esgota na atualizao de nenhum deles. Por outro lado, mais do que fazer um levantamento arqueolgico da gnese dos conceitos hegelianos na histria da filosofia, proponho-me a compreender, preferencialmente, como Hegel apropria-se de certas discusses da histria da filosofia e as re-orienta a partir de seu prprio interesse. Podemos inicialmente lembrar que uma teoria no-substancialista e metafsica da fora o que anima Hegel neste captulo. Em Hegel, a fora no uma substncia coisificada, mas uma causa provida de relaes necessrias com o que se manifesta e com os regimes de tais manifestaes. A fora causa que se expressa na exterioridade de seus efeitos, ela expe a essncia das relaes de causalidade e, por isto, pode ser definida da seguinte forma:
A fora o Universal incondicionado, que igualmente para si mesmo [ na interioridade de uma fora recalcada Zurckgedrangte] o que para um
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Outro [como fora exteriorizada], ou que tem nele a diferena, pois essa no outra coisa que o ser-para-um-Outro184.
Ou seja, a fora ela mesma, em sua exteriorizao, um diferenciar-se. No possvel fora no se exteriorizar. Como dir Nietzsche, pedir fora que no atue enquanto tal pedir que a fora no seja fora. Neste sentido, Hegel pode afirmar que a fora tem em si mesma sua prpria diferena (j que, para Hegel, nenhuma exteriorizao posio imediata do exteriorizado, ao contrrio, toda exteriorizao Entusserung alienao Entfremdung; isto no sentido de que toda exteriorizao um diferenciar-se em relao representao imediata). Mas, por outro lado, se podemos dizer que a fora seria a determinao da essncia do que aparece conscincia, ento devemos tambm lembrar que a determinao essencial da possibilidade do que aparece conscincia j havia sido definida por Kant atravs da noo de categorias185. Esta lembrana importante por indicar a tentativa de apreenso especulativa daquilo que Kant nos fornece atravs da noo de categorias dinmicas (categorias de relao) que se diferenciariam das categorias matemticas categorias de quantidade, qualidade e de modalidade) por tematizarem os modos de ser de objetos em relao. Sabemos que tais categorias so em nmero de trs: inerncia e substncia (substantia et accidens); causalidade e dependncia (causa e efeito) e comunidade (ao recproca entre o agente e o paciente). Podemos ainda dizer que Hegel tematizou a primeira destas categorias (substncia e atributos) no captulo dedicado percepo. Aqui, ser questo da reflexo especulativa sobre os dois ltimos. No entanto, Hegel insiste que, se a fora parece poder unificar os dois momentos da coisa atravs da noo de causalidade, ela s aparece inicialmente conscincia e ao entendimento como um dos plos, tanto que Hegel fala de dois momentos da fora da seguinte forma: a fora como expanso das matrias, como exteriorizao e a fora recalcada em si ou a fora propriamente dita. Este o resultado da maneira com que o entendimento compreende inicialmente a fora. No entanto, esta perspectiva no poder ser sustentada. De fato, esta fora propriamente dita, ou o Um prvio a exteriorizao, deve ser solicitado a exprimir-se atravs de uma fora solicitante. Esta articulao entre foras
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solicitantes e foras solicitadas ser chamado por Hegel de jogo de foras ( Spiel der beiden)na qual uma fora atua na outra. No entanto, Hegel no deixa de levar a cabo as exigncias de unidade prprias fora ao afirmar:
Deve-se abandonar [esse modo de ver em] que a fora posta como um Um e sua essncia, o exteriorizar-se [sich zu ussern], como um outro vindo do exterior. A fora , antes, ela mesma esse meio universal do subsistir dos momentos como matrias. Dito de outro modo: a fora j se exteriorizou; e o que devia ser outro Solicitante , antes ela mesma186.
Hegel pode conservar esta exigncia de unidade prpria ao conceito de fora, insistindo que a fora solicitante , na verdade, a prpria fora solicitada que se exteriorizou, porque ele opera aqui com uma compreenso especulativa das relaes de oposio. J vimos isto ao discutir a crtica hegeliana ao conceito kantiano de oposio real, assim como a noo de que relaes opositivas, compreendidas de maneira especulativa, so, na verdade, relaes de negao determinada. Um termo no apenas atravs da pressuposio do seu outro como limite (o que o entendimento pode conceber); ele atravs da determinao do outro como momento interno de sua auto-determinao. Ao pressupor o outro como seu oposto, um plo passa necessariamente no seu oposto, j que o oposto o que aparece como plo essencial da relao. A duplicao deste movimento redunda em uma situao descrita por Hegel nos seguintes termos:
Os extremos nada so em si, segundo esses dois lados; mas ao contrrio, esses lados em que deveria subsistir sua essncia diferente, so apenas momentos evanescentes (verschwindende Momente) uma passagem imediata de cada lado para o seu oposto187.
Esta uma afirmao central. Por no ter nenhuma realidade substancial autnoma, nenhuma substncia prpria que a sustente e conserve, o ser da fora equivalente ao desaparecer do que esta mesma fora pressupunha inicialmente. por isto que Heidegger poder dizer, por exemplo, que: a verdade da fora consiste justamente em
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que ela perde, a ttulo de extremo substanciado, sua efetividade188. O vocabulrio do desvanecimento, ou do desaparecimento, aqui central. Hegel bastante claro neste sentido:
O conceito de fora se torna efetivo atravs da duplicao em duas foras e o modo como se torna tal. Ambas essas foras existem como essncias sendo para si, mas sua existncia um movimento tal, de uma relao outra, que seu ser antes um puro ser-posto (Gesetztsein) mediante um outro, isto , seu ser tem, antes, a pura significao (Bedeutung) do desvanecer189.
Ou seja, a efetivao da fora, seu passar realidade, implica na duplicao da fora, isto no sentido da posio do seu oposto. Esse modo de efetivao implica em uma noo de ser como aquilo que desvanece no seu oposto. Da porque Hegel pode afirmar que o ser da fora tem a pura significao do desvanecer. J se trata de um conceito especulativo de significao, algo prximo do que vimos no captulo da certeza sensvel quando Hegel apresentou a noo de que o desvanecimento da referncia podia aparecer como significao do ser. Tudo isto nos demonstra que, para a dialtica hegeliana, a verdadeira expresso aquela que se pe como negao dialtica do expresso, e no como mera realizao expressiva do que se aloja inicialmente na inteno. Se esses movimentos de evanescimento podem produzir significaes, porque o pensamento especulativo desenvolve significaes-limite, significaes que se do no limite da passagem de um termo a outro, no limite entre destruio e criao. O resultado no poderia ser outro: A realizao da fora , ao mesmo tempo, a perda da realidade (Die Realisierung der Kraft ist also zugleich Verluss der Realitt).190
Da fora ao fenmeno
No entanto, o entendimento ir compreender, de uma maneira extremamente sintomtica, esta fora que desvanece atravs da sua realizao. Pois ele compreender que a fora se realiza como fenmeno. De fato, a conscincia ainda est aferrada a finitude e fixidez do pensar representativo, ela no tem para si um modo de pensar
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HEIDEGGER, op. cit., p. 182 HEGEL, Fenomenologia, par. 141 190 HEGEL, Fenomenologia, par. 141
capaz de dar conta do que no se coloca integralmente em uma determinao fixa. Por isto, ela compreende a realizao das determinaes essenciais como fenmenos, no sentido daquilo que apenas para-a-conscincia. O desvanecimento da fora aparece apenas como perda (e no tambm como realizao) e o que da ordem das determinaes essenciais parece ter se alojado no interior das coisas. Mas Hegel j nos leva desde o incio a uma compreenso especulativa do fenmeno. Lembremos, por exemplo, da maneira com que Hegel apresenta pela primeira vez sua concepo de fenmeno:
[O fenmeno] o ser da fora desenvolvido, que doravante para o entendimento um evanescente (Verschwinden). Por isso se chama fenmeno (Erscheinung), pois a aparncia (Schein) o nome dado ao ser que imediatamente em si mesmo um no-ser (Nischtsein)191.
A verdade do fenmeno ser o ser desenvolvido da fora. No entanto, para o entendimento, ele apenas um evanescente, ele o que marca um desaparecimento. Da porque Hegel joga com os termos manifestao, aparecimento (Erscheinung) e aparncia (Schein) a fim de caracterizar o que da ordem do fenmeno. O fenmeno pode ento ser visto como um ser que traz em si as marcas da ausncia do ser, um ser que imediatamente em si mesmo um no-ser. Podemos aqui seguir novamente Heidegger e afirmar que: Aparecer significa surgir para re-desaparecer; desaparecer para assim dar lugar a um outro, mais elevado192. neste ponto que se joga uma das operaes centrais de diferenciao entre o entendimento e o pensamento dialtico. Por se aferrar a uma noo de presena como o que se d na integralidade do que se dispe diante da conscincia, uma presena como visibilidade, como j disse em aulas anteriores, o entendimento no enxerga a negatividade do fenmeno como o que permite a passagem em direo essncia. Ela no v, como bem nos mostrou Dieter Henrich, que a nulidade da aparncia no outra coisa que a natureza negativa da essncia"193. Ao contrrio, sobre o mundo aparente dos fenmenos, o entendimento pe o mundo supra-sensvel:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 143 HEIDEGGER, op. cit. pag. 170 193 HENRICH, Hegel im Kontext, Surkhamp: Frankfurt, p. 117
Patenteia-se sobre o aqum evanescente o alm permanente: um Em-si que a primeira, e portanto inacabada, manifestao (Erscheinung) da razo, ou seja, apenas o puro elemento em que a verdade tem sua essncia194.
Trata-se da manifestao inacabada da razo porque a conscincia compreende que a essncia est l onde a negao se manifesta na efetividade, mas esta negao ainda apenas a distncia em relao positividade de uma essncia que nunca se oferece.
Para a conscincia, o interior ainda um puro alm, porquanto nele no encontra ainda a si mesma [ele no o apreende a partir da sua estrutura cognitiva, esta baseada no primado do entendimento]: vazio (leer) por ser apenas o nada do fenmeno, positivamente ele o Universal simples [ou indeterminado]. Essa maneira de ser do interior est imediatamente em consonncia com alguns, para quem o interior das coisas incognoscvel, s que o fundamento disso deveria ser entendido diversamente195.
De fato, esse interior das coisas aparece como incognoscvel porque ele foi determinado como o puro vazio, como um nada indeterminado. Mas ele apenas um vazio em relao a um conceito de plenitude assentado na presena como visibilidade do que se oferece sob a representao. Como j vimos, o primeiro passo da dialtica consiste exatamente em abandonar este conceito de presena. Da porque Hegel pode lembrar que este vazio do mundo supra-sensvel apenas o resto do esvaziamento das coisas objetivas e, por conseqncia, esvaziamento de todas as estruturas de diferenciao prprias ao saber da conscincia. Prenunciando, com isto, uma guinada materialista da crtica s dicotomias kantiana, guinada que animar tanto Feuerbach quanto Marx, Hegel afirmar:
Para que haja algo nesse vazio total, que tambm se denomina sagrado [ ou seja, Hegel, sem muitas delongas insinua que a natureza da distino entre fenmeno e mundo supra-sensvel tem natureza teolgica], h que preench-lo, ao menos com devaneios: fenmenos que a prpria conscincia para si produz. Deveria
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ficar contente de ser to maltratada, pois nada merc de melhor. Afinal, os prprios devaneios ainda valem mais que se esvaziamento196.
impossvel deixar de ouvir aqui os pressgios da noo de que o que ganha autonomia metafsica e teolgica no outra coisa que projees da prpria conscincia. Da porque a conscincia s alcanar a verdade quando se perguntar sobre quais so os processos sociais que sustentam suas expectativas cognitivo-instrumentais. No estamos longe de Marx quando este afirma: Partimos dos homens em sua atividade real, a partir de seu processo de vida real que representamos tambm o desenvolvimento dos reflexos e das repercusses ideolgicas desse processo vital [relaes sociais pautadas pelo conflito]. E mesmo as fantasmagorias existentes no crebro humano so sublimaes resultantes necessariamente do processo de sua vida material, que podemos constatar materialmente e que repousa em bases materiais197. No entanto, teremos que esperar at a sesso Conscincia-de-si para vermos a realizao deste processo. No nosso captulo, Hegel est mais interessado em insistir nas conseqncias da recompreenso especulativa da noo de fenmeno (operao central para uma fenomenologia). Isto fica claro no prximo pargrafo:
Mas o interior, ou alm supra-sensvel j surgiu; provm do fenmeno e esse sua mediao. Quer dizer, o fenmeno sua essncia e, de fato, sua implementao. O supra-sensvel o sensvel e o percebido posto tais como so em verdade; pois a verdade do sensvel e do percebido serem fenmeno. O supra-sensvel pois o fenmeno como fenmeno198.
Hegel no poderia ser mais claro. Para uma compreenso especulativa do fenmeno, a negao da essncia atravs da posio do fenmeno j a realizao da essncia. O isto da certeza sensvel e a coisa da percepo tm um momento de verdade que consiste em insistir que o objeto da experincia no pode ser corretamente tematizado atravs de representaes fixas de objetos. A apreenso dialtica do objeto da experincia pede que o prprio campo da experincia seja reconfigurado atravs da reconfigurao da noo mesma de presena e de finitude. Se podemos dizer que, ao
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HEGEL, Fenomenologia, par. 146 MARX, A ideologia alem, p. 19 198 HEGEL, Fenomenologia, par. 147
tomar o fenmeno como fenmeno, veremos necessariamente o mundo supra-sensvel surgir diante de ns, no apenas porque ele se mostrar como sendo a inverdade de um fenmeno que hipostasiou seu prprio conceito. Fundamentalmente, podemos dizer que este surgir e desaparecer prprio ao fenmeno nos demonstra como a negao prpria ao supra-sensvel j est em operao no mundo dos fenmenos e isto sua verdade. Mas, antes de chegar a tanto, devemos ainda prosseguir no nosso captulo. O prximo passo ser a tentativa de pensar os impasses da noo de fora atravs da compresso da Lei como essncia do mundo supra-sensvel.
Curso Hegel Aula 11 Na aula de hoje, vamos finalizar a leitura do captulo Fora e entendimento: fenmeno e mundo supra-sensvel. Isto nos permitir tecer algumas consideraes a respeito do que est em jogo na passagem da conscincia conscincia-de-si, j que este o ltimo dos trs captulos que compem a seo Conscincia. Ns aprofundaremos alguns motivos desta passagem na aula que vem. No entanto, antes de iniciarmos o trajeto da nossa aula, faz-se necessrio uma recapitulao do que j vimos a respeito do nosso captulo. Vimos, na aula passada, como o entendimento procurava resolver, atravs do uso da noo de fora, as dicotomias herdadas pela percepo e seu conceito de objeto que oscilava entre a posio do Um e a posio do mltiplo. Vimos, como era o caso em praticamente todo conceito hegeliano central presente na Fenomenologia, que a noo de fora aludia, ao mesmo tempo, a uma multiplicidade de conceitos especficos da histria da idias (a entelquia de Aristteles, a fora em Leibniz, em Newton, em Herder, as leis de Kant, a funo da polaridade em Schelling), mas no se esgotava na atualizao de nenhum deles. Por outro lado, mais do que fazer um levantamento arqueolgico da gnese dos conceitos hegelianos na histria da filosofia, propus-me a compreender, preferencialmente, como Hegel apropria-se de certas discusses da histria da filosofia e as re-orienta a partir de seu prprio interesse. Lembrei inicialmente que uma teoria no-substancialista e metafsica da fora o que animava Hegel neste captulo. Em Hegel, a fora no uma substncia
coisificada, mas uma causa provida de relaes necessrias com o que se manifesta e com os regimes de tais manifestaes. A fora causa que se expressa na exterioridade de seus efeitos, ela expe a essncia das relaes de causalidade e, por isto, pode ser definida da seguinte forma:
A fora o Universal incondicionado, que igualmente para si mesmo [ na interioridade de uma fora recalcada Zurckgedrangte] o que para um Outro [como fora exteriorizada], ou que tem nele a diferena, pois essa no outra coisa que o ser-para-um-Outro199.
Ou seja, a fora ela mesma, em sua exteriorizao, um diferenciar-se. No possvel fora no se exteriorizar. Como dir Nietzsche, pedir fora que no atue enquanto tal pedir que a fora no seja fora. Neste sentido, Hegel pode afirmar que a fora tem em si mesma sua prpria diferena (j que, para Hegel, nenhuma exteriorizao posio imediata do exteriorizado, ao contrrio, toda exteriorizao Entusserung alienao Entfremdung; isto no sentido de que toda exteriorizao um diferenciar-se em relao representao imediata). No entanto, Hegel insistia que, se a fora parece poder unificar os dois momentos da coisa atravs da noo de causalidade, ela s aparece inicialmente conscincia aferrada ao entendimento como um dos plos, tanto que Hegel fala de dois momentos da fora da seguinte forma: a fora como expanso das matrias, como exteriorizao e a fora recalcada em si ou a fora propriamente dita. Este o resultado da maneira com que o entendimento compreende inicialmente a fora. No entanto, esta perspectiva no poder ser sustentada. De fato, esta fora propriamente dita, ou o Um prvio a exteriorizao, deve ser solicitado a exprimir-se atravs de uma fora solicitante. Esta articulao entre foras solicitantes e foras solicitadas era chamado por Hegel de jogo de foras (Spiel der beiden)na qual uma fora atua na outra. No entanto, Hegel no deixa de levar a cabo as exigncias de unidade prprias fora ao afirmar:
Deve-se abandonar [esse modo de ver em] que a fora posta como um Um e sua essncia, o exteriorizar-se [sich zu ussern], como um outro vindo do
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exterior. A fora , antes, ela mesma esse meio universal do subsistir dos momentos como matrias. Dito de outro modo: a fora j se exteriorizou; e o que devia ser outro Solicitante , antes ela mesma200.
Vimos que Hegel podia conservar esta exigncia de unidade prpria ao conceito de fora, insistindo que a fora solicitante , na verdade, a prpria fora solicitada que se exteriorizou, por operar aqui com uma compreenso especulativa das relaes de oposio. Havamos visto isto antes ao discutir a crtica hegeliana ao conceito kantiano de oposio real, assim como a noo de que relaes opositivas, compreendidas de maneira especulativa, so, na verdade, relaes de negao determinada. Um termo no apenas atravs da pressuposio do seu outro como limite (o que o entendimento pode conceber); ele atravs da determinao do outro como momento interno de sua autodeterminao. Ao pressupor o outro como seu oposto, um plo passa necessariamente no seu oposto, j que o oposto o que aparece como plo essencial da relao. A duplicao deste movimento redunda em uma situao descrita por Hegel nos seguintes termos:
Os extremos nada so em si, segundo esses dois lados; mas ao contrrio, esses lados em que deveria subsistir sua essncia diferente, so apenas momentos evanescentes (verschwindende Momente) uma passagem imediata de cada lado para o seu oposto201.
Esta uma afirmao central. Por no ter nenhuma realidade substancial autnoma, nenhuma substncia prpria que a sustente e conserve, o ser da fora era equivalente ao desaparecer do que esta mesma fora pressupunha inicialmente. O resultado no poderia ser outro: A realizao da fora , ao mesmo tempo, a perda da realidade (Die Realisierung der Kraft ist also zugleich Verluss der Realitt).202 No entanto, o entendimento compreendeu, de uma maneira extremamente sintomtica, esta fora que desvanece atravs da sua realizao. Pois ele compreender que a fora se realiza como fenmeno. De fato, a conscincia ainda estava aferrada a finitude e fixidez do pensar representativo, ela no tinha para si um modo de pensar
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HEGEL, Fenomenologia, par. 137 HEGEL, Fenomenologia, par. 140 202 HEGEL, Fenomenologia, par. 141
capaz de dar conta do que no se coloca integralmente em uma determinao fixa. Por isto, ela compreendeu a realizao das determinaes essenciais como fenmenos, no sentido daquilo que apenas para-a-conscincia. O desvanecimento da fora aparece apenas como perda (e no tambm como realizao) e o que da ordem das determinaes essenciais parece ter se alojado no interior das coisas. Ns analisamos, na aula passada, a definio de fenmenos fornecida por Hegel:
[O fenmeno] o ser da fora desenvolvido, que doravante para o entendimento um evanescente (Verschwinden). Por isso se chama fenmeno (Erscheinung), pois a aparncia (Schein) o nome dado ao ser que imediatamente em si mesmo um no-ser (Nischtsein)203.
A verdade do fenmeno ser o ser desenvolvido da fora. No entanto, para o entendimento, ele apenas um evanescente, ele o que marca um desaparecimento. Da porque Hegel joga com os termos manifestao, aparecimento (Erscheinung) e aparncia (Schein) a fim de caracterizar o que da ordem do fenmeno. O fenmeno pode ento ser visto como um ser que traz em si as marcas da ausncia do ser, um ser que imediatamente em si mesmo um no-ser. Podemos aqui seguir Heidegger e afirmar que: Aparecer significa surgir para re-desaparecer; desaparecer para assim dar lugar a um outro, mais elevado204. neste ponto que se joga uma das operaes centrais de diferenciao entre o entendimento e o pensamento dialtico. Por se aferrar a uma noo de presena como o que se d na integralidade do que se dispe diante da conscincia, uma presena como visibilidade, como j disse em aulas anteriores, o entendimento no enxerga a negatividade do fenmeno como o que permite a passagem em direo essncia. Ela no v, como bem nos mostrou Dieter Henrich, que a nulidade da aparncia no outra coisa que a natureza negativa da essncia"205. Ao contrrio, sobre o mundo aparente dos fenmenos, o entendimento pe o mundo supra-sensvel:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 143 HEIDEGGER, op. cit. pag. 170 205 HENRICH, Hegel im Kontext, Surkhamp: Frankfurt, p. 117
Patenteia-se sobre o aqum evanescente o alm permanente: um Em-si que a primeira, e portanto inacabada, manifestao (Erscheinung) da razo, ou seja, apenas o puro elemento em que a verdade tem sua essncia206.
Vimos como Hegel introduzia neste ponto consideraes importantes sobre a natureza deste mundo supra-sensvel. Ele insistia que este mundo supra-sensvel era vazio por ser o puramente indeterminado. Neste sentido, sua realidade seria apenas o resultado de devaneios da prpria conscincia mas que, claro, no so reconhecidos enquanto tal. Vimos como, alimentando uma longa tradio de reduo materialista da metafsica, Hegel afirmava que a conscincia projetava realidades autnomas: Para que haja algo nesse vazio total, que tambm se denomina sagrado, h que preench-lo, ao menos com devaneios: fenmenos que a prpria conscincia para si produz. Por outro lado, eu insistira que Hegel no queria apenas operar uma reduo materialista do que se aloja no campo da metafsica. Ao afirmar que o mundo suprasensvel era o fenmeno como fenmeno, havia ai uma tentativa de dizer que o surgir e desaparecer prprio ao fenmeno nos demonstra como a negao prpria ao suprasensvel j est em operao no mundo dos fenmenos e isto sua verdade. este caminho que nos levar infintude.
Mas antes de chegar infinitude como a realidade do fenmeno, a conscincia tenta ainda salvar a distino entre mundo supra-sensvel e mundo fenomnico. Atravs da compreenso do modo de manifestao da fora como jogo de foras na qual uma fora solicitada se exterioriza e passa no seu oposto perdendo-se na dimenso do fenmeno, a conscincia apreende o dinamismo geral das foras. Ela abstrai da considerao de foras particulares e a diferena da fora converge em uma diferena nica. Desta forma, o que aparece a diferena como universal (Unterschied als allgemeiner), ou ainda diferena universal (allgemainer Unterschied). Quer dizer, a conscincia apreende a essencialidade do descompasso geral entre o que se manifesta e o que estaria alojado no interior das coisas.
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Notemos como esta primeira manifestao da diferena universal eminentemente negativa (da porque Hegel deve afirmar que a negao momento essencial do Universal). Esta diferena nada afirma sobre a positividade do mundo fenomnico (que instvel, constante surgir e desaparecer), ainda nada sei a respeito da essencialidade do mundo tal como ele aparece a mim. Sei apenas que entre o que aparece e o que essencial h uma diferena constante e universal. No entanto, a conscincia ir transformar esta diferena universal, imagem constante do fenmeno instvel, em figura da lei (Gesetz, no Recht). Esta passagem de uma diferena que eminentemente negativa positividade da lei abrupta. Mas Hegel parece nos indicar que ela necessariamente abrupta, tanto que a negatividade da diferena universal ir marcar o imprio da lei. neste sentido que podemos compreender porque: a lei no preenche completamente o fenmeno. A lei est nele presente, mas no toda a sua presena, sob situaes sempre outras, [o fenmeno] tem sempre outra realidade (Wirklichkeit)207. Hegel parece querer dizer que a lei no esgota toda a realidade do fenmeno, h algo no fenmeno que sempre ultrapassa a determinao da lei. Trata-se fundamentalmente de um problema de aplicao da lei ao caso. Por nascer da abstrao de todo fenmeno, a lei parece no ser capaz de aplicar-se de maneira plenamente adequada a fenmeno algum. Da porque: Esta falta (Mangel) prpria lei tem de ressaltar tambm nela. O que parece faltar-lhe que, embora, tenha em si a diferena mesma, s a tem como universal, como indeterminado208. Esta lei que internaliza reflexivamente a prpria negao vinda do caso, isto atravs da noo de falta no est disponvel ao entendimento. Ao contrrio, o que ele tentar anular a abstrao da lei atravs da enunciao de pluralidade indeterminada de leis que deveriam legislar sobre a especificidade de casos concretos. S que esta pluralidade uma falta, dir Hegel (ela a prpria figura da falta), j que o princpio do entendimento consiste em procurar unificar a pluralidade da lei sob a universalidade de leis gerais: o entendimento deve fazer coincidir as mltiplas leis numa lei s. Podemos resumir isto dizendo que o entendimento, enquanto determinao atravs da unidade, reduz os fenmenos a leis que se pem como fundamento do jogo de foras. Este re-enviar dos fenmenos lei o ato de explicar. No que diz respeito ao problema da lei geral e da lei determinada, Hegel traz um exemplo prprio fsica newtoniana. Trata-se da unificao da lei da queda dos corpos
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e a lei do movimento dos corpos celestes sob a lei da atrao universal. Desde sua dissertao sobre As rbitas dos planetas, Hegel atentara-se para a natureza desta lei enunciada por Newton. No entanto, a seu ver tratava-se apenas de uma frmula abstrata que tem o mrito de enunciar a legalidade enquanto legalidade, mas que faz com que toda diferena qualitativa de contedo desaparea.
A atrao universal diz apenas que tudo tem uma diferena constante com Outro. O entendimento pensa ter a descoberto ume lei universal, que exprime a universal efetividade como tal. Mas, na verdade, s encontrou o conceito da lei mesma. como se dissesse que em si mesma toda efetividade regida por lei209.
Hegel compreende a posio desta pura lei, ou ainda, deste conceito puro de lei, como algo que retira a essencialidade das leis determinadas. Da porque ele pode afirmar que: o conceito de lei se voltou contra a lei mesma. O que leva a dizer que a lei est presente de duas maneiras: uma vez como lei determinada que legisla regionalmente sobre um conjunto restrito de caso , outra vez, na forma de uma universalidade abstrata. Tal dualidade permite a Hegel passar a uma espcie de crtica quilo que poderamos chamar de forma geral da lei. Primeiro, ele lembra que, se o conceito puro da lei aquilo que posto como necessrio e se a lei determinada indica o modo de ser, ento o conceito indiferente ao modo de ser (j que ele poderia ser de mltiplas formas). Da lei geral, no deduzo a necessidade de uma lei particular determinada. Segundo, (no pargrafo 153), Hegel afirma que a indiferena entre conceito e ser est indicada ainda de outra maneira, o que nos leva ao problema da conexo necessria. A forma geral da lei uma igualdade do tipo (F=m.a). Aqui, massa e acelerao (ou ainda, espao e tempo) so partes independentes e indiferentes entre si, elas no exprimem nelas sua origem em comum, nem so deduzidas uma das outras. Elas agem como propriedades independentes de um mesmo sujeito. A fora aparece assim apenas como a unidade de uma operao entre termos distintos e autnomos. Explicar atravs desta proposio de igualdade parece apenas decompor o Um em variveis mltiplas. Tal decomposio uma operao que diz respeito ao modo de compreenso do entendimento. Hegel afirma que ela no algo que apreende o movimento prprio do objeto do conhecimento. Podemos dizer que o entendimento
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idem
parece apenas traduzir um termo em uma operao sobre dois termos, sem que isto implique em alguma modificao na prpria essncia do objeto do conhecimento. O entendimento parece muito mais descrever seu prprio modo de funcionamento do que apreender a essencialidade do objeto. Da porque Hegel afirma:
Neste momento tautolgico, o entendimento persiste na unidade tranqila de seu objeto, e o movimento s recai no entendimento, no no objeto: um explicar que no somente nada explica, como tambm to claro que ao fazer meno de dizer algo diferente do que j foi dito, antes nada diz, mas apenas repete o mesmo210.
Por um lado, isto indica a compreenso hegeliana de como o explicar, enquanto subsuno de casos a leis, uma operao vazia que no diz respeito aos modos de apreenso da Coisa e de realizao do conceito. Mas, por outro lado, Hegel insiste que toda tautologia , na verdade, posio da diferena, pois faz com que o sujeito abstrato passe em um predicado que realizao fenomenal do existente. Isto serve tambm para Hegel criticar a noo de analiticidade. Na verdade, trata-se de insistir na contradio entre o contedo proposicional de igualdade e aquilo que Hegel chama de forma geral da proposio, e que diz respeito s diferenas categoriais qualitativas entre singular e universal. Como dir claramente Hegel: J a frmula da proposio est em contradio com ela [a proposio A=A], pois uma proposio promete tambm uma diferena entre sujeito e predicado; ora, esta no fornece o que sua prpria forma exige211. Aceito isto, Hegel simplesmente lembra que uma proposio de igualdade do tipo (F=m.a) indica a passagem de um conceito do mundo supra-sensvel (fora) a conceitos do mundo fenomnico (massa e acelerao). No entanto, o explicar prprio ao entendimento parece assim ser a realizao do mundo supra-sensvel no mundo fenomnico, um realizar que no implicaria em mudana alguma da Coisa, j que seria uma simples posio de igualdade. Da porque Hegel afirma que:
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Essa mudana no ainda uma mudana da Coisa mesma, mas antes, se apresenta justamente como mudana pura, j que o contedo dos momentos da mudana permanece o mesmo212.
No entanto, ns sabemos que este explicar a posio de uma proposio de igualdade que faz com que a essencialidade de um termo passe necessariamente no outro. Chegamos ento a seguinte concluso: se a lei apareceu como o resultado da abstrao das diferenas dos fenmenos (a diferena universal como fundamento da lei), agora esta diferena parece anular-se atravs do prprio movimento de determinao do fenmeno. Assim, ou a conscincia encontrou um modo adequado e integral de aplicao entre lei e fenmeno (o que implicaria na anulao da prpria noo de mundo fenomnico e da idia de que aquilo que aparecia como mundo fenomnico era, na verdade, o mundo supra-sensvel) ou a conscincia admite que no sabia o que dizia ao falar de diferena universal e igualdade. Nos dois casos, ela v seu mundo simplesmente desabar, j que ela no sabe mais como conceitu-lo.
Digamos que Hegel nos fornece duas figuras deste desabamento. A primeira a noo de mundo invertido, a segunda a prpria noo de que o objeto do entendimento no um objeto finito capaz de ser apreendido por determinaes fixas, mas a prpria noo de infinitude. Sobre o mundo invertido, muito haveria a se dizer. Sabemos como se trata de um termo popular que dizia respeito a estas inverses do curso do mundo e da lei operada por festas anmicas como o carnaval. Hegel sintetiza tal dinmica de inverses ao afirmar:
Conforme a lei desse mundo invertido, o homnimo do primeiro mundo assim o desigual de si mesmo [a identidade diferena]; e o desigual desse primeiro mundo tambm desigual a si mesmo, ou advm igual a si [a diferena identidade]213.
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Atravs da figura do mundo invertido, tudo se passa como se Hegel zombasse da ltima tentativa do entendimento em conservar um pensar aferrado determinidade fixa da representao. Pois o entendimento pode ainda inverter as determinaes do mundo, transvalorar seus valores, perverter o significado de tudo o que parecia, at ento, fundamentado. No entanto, ele estar apenas invertendo um mundo que continua funcionado como fundamento, mas agora como fundamento negativo, como se simplesmente trocssemos de sinal em uma operao matemtica. Esta a ltima astcia do entendimento e consiste simplesmente em passar no oposto, em inverter tudo em sua determinao oposta. Esta passagem no oposto, no entanto, ainda no dialtica, j que o oposto conservado fora da posio da determinidade. Por isto que Hegel, introduz aqui a necessidade de distinguir a inverso (Verkehrung) e a contradio (Widerspruch): H que se pensar a mudana pura, ou a oposio em si mesma: a contradio. Veremos mais a frente o que Hegel entende exatamente por contradio. Neste ponto, podemos apenas insistir que Hegel procura um modo de pensar capaz de mostrar como as diferenas so internas determinidade, e no postas externamente sob a figura da oposio. Por isto, ele dever recuperar a noo de contradio como identidade entre a identidade e a diferena. Esta noo de uma determinidade que porta em si mesma sua prpria diferena a definio do conceito mesmo de infinitude. Infinito aquilo que porta em si mesmo sua prpria negao e que, ao invs de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. Da porque Hegel pode afirmar, em uma frase chave:
A infinitude, ou essa inquietao absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que determinado de qualquer modo por exemplo, como ser seja antes o contrrio dessa determinidade214.
No entanto, como veremos mais a frente, a infinitude no consiste em uma passagem incessante e inquieta no contrrio. Consiste, antes, neste delrio bquico, onde no h membro que no esteja brio; e porque cada membro, ao separar-se, tambm imediatamente se dissolve, esse delrio ao mesmo tempo repouso translcido e simples215. Esta apenas uma maneira mais inspirada de dizer que:
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Cada qual um contrrio o contrrio de um Outro de forme que em cada um o Outro j enunciado ao mesmo tempo que ele. Ou seja, um no o contrrio de um Outro, mas somento o contrrio puro, e assim, cada um , em si mesmo, o contrrio de si. Ou, de modo geral, no um contrrio, seno puramente para si, uma pura essncia igual-a-si-mesma, que no tem nela diferena nenhuma216.
Este ser que , ao mesmo tempo, idntico a si e o contrrio de si , no entanto, impossvel de ser representado pelo entendimento. Chegamos assim as seguinte situao: a consci~encia. Durante toda a seo Conscincia, procurou fundamentar suas expectativas cognitivo-instrumentais atravs da confrontao sujeito/objeto. Iniciando atravs de operaes lingsticas elementares (como a designao ostensiva), a conscincia percebeu que as operaes cognitivas estavam fundamentada no entendimento enquanto reflexo sobre relaes (causalidade) e aplicao de leis. No entanto, tais modos de aplicao e de estruturao de relaes levaram a conscincia compreenso da ausncia de fundamento de suas estruturas do saber. Depois de inverter tudo o que lhe parecia seguro e fixo, ela ficou diante de um objeto que um impensvel contrrio de si. No final do captulo Hegel indicar ento o caminho por onde a fenomenologia andar a fim de sair deste impasse. Ele dir que este objeto tem a estrutura do sujeito, estrutura de unidade a partir da internalizao da diferena: quando a infinitude finalmente o objeto para a conscincia, ento a conscincia conscincia-de-si. No entanto, no se trata mais sujeitos individuais, mas de sujeitos apreendidos a partir de suas prticas sociais, sujeitos que se confrontam a todo momento com a diferena que vem de outros sujeitos. Sairemos ento da confrontao direta entre sujeito e objeto para passarmos maneira com que prticas sociais so configuradas e legitimadas a partir de estruturas gerais (e no ainda histricas) de interao com a diferena. Isto nos levar a um Eu que descobrir em si mesmo as marcas da alteridade.
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Na aula de hoje, iniciaremos a anlise da seo Conscincia de si. Para tanto, precisaremos das ltimas cinco aulas. Elas sero divididas da seguinte maneira: A aula de hoje: anlise do trecho que vai do pargrafo 166 a 177 As aulas n. 13 e 14: anlise da dialtica do Senhor e do Escravo (pargrafo 178 a 196) Aula n. 15 : anlise das figuras do estoicismo e do ceticismo (pargrafo 197 a 206) Aula n. 16: anlise da figura da conscincia infeliz (pargrafo 207 a 230) Eu havia sugerido, como leitura de base, os textos: A guisa de introduo, de Alexandre Kojve; Caminhos da destranscendentalizao, de Habermas e Crtica da dialtica e da filosofia hegelianas em geral, captulo dos Manuscritos econmicofilosficos de Marx. Os dois primeiros textos so leituras obrigatrias, o ltimo serve de encaminhamento para discusses que sero aprofundadas posteriormente. H ainda um comentrio que deve nos de guia de leitura para as aulas 13 e 14: Os primeiros combates do reconhecimento, de Pierre-Jean Labarrire e Gwendoline Jarczyk. Na aula de hoje, ser pois necessrio dar conta de quatro questes maiores postas pelo trecho inicial da seo Conscincia de si. Duas delas dizem respeito estrutura e funo desta seo central: o problema da superao de uma dinmica fenomenolgica assentada na conscincia uma dinmica assentada na conscincia de si e o modo de organizao da experincia sob o primado da conscincia de si. As duas outras questes dizem respeito ao aparecimento do desejo como conceito de base para a compreenso das operaes prprias conscincia-de-si e, por fim, descrio que Hegel fornece em nosso trecho sobre a vida como conceito imperfeito para a compreenso da estrutura intersubjetiva pressuposta pela conscincia de si.
Eu e objeto como duplos B. Conscincia de si: a verdade da certeza de si mesmo. Este era o ttulo original da nossa seo. Neste sentido, ele se diferencia da seo precedente: A. Conscincia, com seus trs captulos dedicados certeza sensvel, percepo e ao entendimento. O subttulo da seo , na verdade, um comentrio do seu sentido. Hegel
usar expediente semelhante apenas em outra seo: C. (AA) Razo: certeza e verdade da razo. No caso da conscincia de si, o subttulo no poderia ser mais apropriado. Com a conscincia de si, entramos naquilo que Hegel chama de terra ptria da verdade. Ou seja, a verdade encontra enfim seu fundamento. Ao contrrio, na seo Conscincia, a verdade encontrava-se alienada em solo estranho, j que ela sempre era pensada como adequao a um objeto independente que trazia, em si mesmo, a verdadeira medida do saber. Mas vemos que, inicialmente, esta verdade no apresentada como a verdade do objeto, mas a verdade da certeza de si mesmo; quer dizer, a conscincia de si apresenta a natureza verdadeira da certeza subjetiva de si, da certeza subjetiva da minha prpria auto-identidade e auto-constituio. Neste sentido, podemos dizer que nossa seo visa mostrar como o desvelamento da verdadeira natureza da certeza subjetiva de si ser o fundamento para a re-orientao do saber verdadeiro sobre os objetos do mundo. Operao possvel devido ao postulado idealista de que a estrutura e unidade do conceito [descrio de estados do mundo] idntica a estrutura e unidade do eu217. Assim, o questionamento sobre a verdade da certeza de si ser, necessariamente, questionamento a respeito da verdade sobre o saber dos objetos. tendo tais questes em vista que devemos ler o primeiro pargrafo do nosso trecho:
Nos modos precedentes da certeza, o verdadeiro para a conscincia algo outro que ela mesma. Mas o conceito deste verdadeiro desvanece na experincia que a conscincia faz dele. O objeto se mostra, antes, no ser em verdade com era imediatamente em si: o ente da certeza sensvel, a coisa concreta da percepo, a fora do entendimento, pois esse Em-si resulta ser uma maneira, como o objeto somente para um outro. O conceito de objeto se eleva (hebt sich) ao objeto efetivo, a primeira representao imediata se eleva experincia e a certeza vem a perder-se na verdade. Surgiu porm agora o que no emerge nas relaes anteriores, a saber, uma certeza [subjetiva] igual sua verdade [objetiva], j que a certeza para si mesma seu objeto, e a conscincia para si mesma a verdade. Sem dvida, a conscincia tambm nisso um ser-outro, isto , a conscincia diferencia (unterscheidet) [algo de si mesmo] mas de tal forma que ela , ao
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mesmo tempo, um no-diferenciar (nicht Unterschiedenes) [j que este algo diferente ainda ela mesma]218.
Encontramos aqui um resumo que visa mostrar o que realmente estava em jogo na seo precedente. Enquanto conscincia, a medida da verdade era fornecida pela adequao entre representaes mentais e objetos (vimos isto principalmente nos captulos dedicados percepo e ao entendimento). No entanto, ns vimos como o objeto da experincia sempre ultrapassava (ou melhor, sempre invertia) as representaes naturais do pensar. O isto da certeza sensvel mostrou ter sua verdade na universalidade da linguagem. A coisa da percepo mostrou ter sua verdade na clivagem do objeto, entre Um e multiplicidade de propriedades predicadas. Por fim, a fora do entendimento mostrou-se como contradio para as operaes categoriais do prprio entendimento. Em cada um destes momentos, a conscincia parecia perder a objetividade da sua certeza, ou seja, a crena de que seu saber era capaz de descrever estados de coisas independentes e dotados de autonomia metafsica. Ao final do captulo dedicado certeza sensvel, por exemplo, a conscincia se viu na impossibilidade de nomear a particularidade da experincia sensvel devido estrutura universalizante da prpria linguagem. Ao final do captulo dedicado percepo, a conscincia se viu na impossibilidade de apreender um objeto que aparecia, ao mesmo tempo, como Um e como multiplicidade de propriedades predicveis, a no ser que apenas um dos plos fosse dotado de essencialidade, e o outro fosse inessencial (o que implicava em abandonar as expectativas cognitivas depositadas no primado da percepo). Enfim, ao final no captulo dedicado ao entendimento, a conscincia se viu na impossibilidade de sustentar uma diviso estrita entre fenmeno e mundo supra-sensvel, entre o que da ordem do transcendental e o que da ordem do emprico. O que a obrigava a compreender o objeto da experincia a partir de categorias impossveis de serem articuladas no interior do primado do entendimento. No entanto, Hegel afirma que surgiu agora aquilo que, na Introduo, ele havia chamado de meta: onde o saber no necessita ir alm de si mesmo, onde o conceito corresponde ao objeto e o objeto ao conceito219, ou seja, surgiu uma certeza igual verdade. Este surgir eclode quando o saber compreende que seu objeto a prpria conscincia e que l onde ele acreditava estar lidando com objetos autnomos, ele
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estava lidando com a prpria estrutura do saber enquanto o que determina a configurao do que pode aparecer no interior do campo da experincia. para a conscincia que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro so o mesmo220. Da porque no se trata mais de tematizar a conscincia como conscincia de objeto, mas como conscincia de conscincia, conscincia das estruturas do pensar da conscincia, ou ainda, conscincia de si (Selbstbewustssein). Hegel afirma ento que, enquanto conscincia de si:
O Eu o contedo da relao e a relao mesma, defronta um Outro [pois toma a si mesmo como objeto] e ao mesmo tempo o ultrapassa; e esse Outro, para o Eu, apenas ele prprio [j que ele toma a si mesmo como objeto]221.
Afirmaes desta natureza podem se prestar a vrios mal-entendidos. Pode parecer que Hegel afirma, em uma bela demonstrao de idealismo absoluto, que o Eu no apenas o que fornece a forma do que aparece (como em Kant ao insistir que o objeto qualquer das categorias do entendimento era o correlato do Eu penso ou da unidade da conscincia), mas tambm o contedo, a matria do que aparece. S assim Hegel poderia afirmar que o Eu , ao mesmo tempo, o contedo da relao (entre saber e objeto) e a prpria relao (a forma atravs da qual o saber dispe o que aparece). No entanto, a prpria economia do texto hegeliano nos demonstra que tal leitura equivocada ou, ao menos, ela no leva em conta o que realmente est em jogo neste momento da trajetria fenomenolgica. Lembremos aqui como surgiu inicialmente esta certeza igual verdade. No final do captulo dedicado ao entendimento, a conscincia tem a experincia de que as determinaes e dicotomias do saber (fenmeno e mundo supra-sensvel, essncia e aparncia etc.) so constantemente invertidas pela experincia. Dois caminhos ento se abrem: ou simplesmente inverter todas suas expectativas cognitivo-intrumentais e operar em um mundo invertido ou reconhecer que o objeto da experincia j manifesta o que Hegel entende por infinitude. Vimos como, para Hegel, infinito era exatamente aquilo que porta em si mesmo sua prpria negao e que, ao invs de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. Da porque ele podia afirmar, em uma frase chave: A infinitude, ou essa inquietao absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que
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determinado de qualquer modo por exemplo, como ser seja antes o contrrio dessa determinidade222. De uma maneira abrupta, Hegel ento afirmava que: quando a infinitude finalmente o objeto para a conscincia, ento a conscincia conscincia-de-si. Este ponto deve ser salientado: a passagem da conscincia conscincia-de-si no se d quando o sujeito tem a experincia de uma subsuno integral do objeto ao Eu. A verdadeira experincia de uma certa duplicao. A conscincia tem a experincia de que o objeto tem a mesma estrutura da conscincia-de-si. O objeto, de uma certa forma, a duplicao da estrutura da conscincia-de-si e, enquanto duplicao, a reflexo sobre a estrutura da conscincia-de-si ser, necessariamente, uma reflexo sobre a estrutura do objeto. Isto significa, entre outras coisas, que algo da resistncia do objeto sentido pela conscincia atravs das tentativas de aplicao do conceito experincia ser internalizado pela conscincia-de-si. Hegel opera tal duplicao recorrendo Fichte, isto a fim de lembrar que o que tem em si sua prpria negao deve ser estruturalmente idntico ao Eu. Da a necessidade desta passagem extremamente fichteana ao final do captulo dedicado ao entendimento: Eu me distingo de mim mesmo, e nisso imediatamente para mim que este diferente no diferente. Eu, o homnimo, me expulso de mim mesmo; mas esse diferente, esse posto-como-desigual imediatamente, enquanto diferente, nenhuma diferena para mim223. Hegel retomar colocaes desta natureza no pargrafo 167, ao lembrar que a conscincia-de-si no e apenas a tautologia sem movimento do Eu sou Eu pois enquanto para ela a diferena no tem a figura do ser, ela no conscincia-de-si. A partir da, Hegel pode ento fornecer sua definio de conscincia-de-si:
A conscincia-de-si a reflexo, a partir do ser do mundo sensvel e percebido; essencialmente o retorno a partir do ser-Outro224.
Ou seja, a conscincia-de-si este movimento de refletir-se no ser do mundo sensvel e percebido e retornar a si desta alienao no que tem valor de um Outro, de um oposto conscincia. Como vemos, esta definio de conscincia-de-si (e de reflexo como
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HEGEL, Fenomenologia, par. 163 HEGEL, Fenomenologia, par. 117 224 HEGEL, Fenomenologia, par. 167
alienao e internalizao j que a auto-reflexo significa apercepo, a conscincia de que tenho conscincia de algo225) idntica definio hegeliana de experincia: Experincia justamente o nome desse movimento em que o imediato, o noexperimentado, ou seja, o abstrato quer do ser sensvel, quer do Simples apenas pensado se aliena e depois retorna a si dessa alienao; e por isso como tambm propriedade da conscincia somente ento exposto em sua efetividade e verdade226. Isto apenas demonstra como a experincia fenomenolgica necessariamente experincia de constituio reflexiva da conscincia-de-si.
No entanto, h ainda uma segunda razo para a passagem da conscincia conscincia-de-si. No se trata apenas de dizer que, em um dado momento do trajeto fenomenolgico, a conscincia descobre que o objeto tem a mesma estrutura do Eu (sendo que este mesmo implica em uma igualdade especulativa, igualdade que internaliza a diferena). Como eu dissera anteriormente, a grosso modo, a conscincia compreende que sua expectativas cognitivo-instrumentais so dependentes de modos de interao social e de prticas sociais. Em ltima anlise, toda operao de conhecimento depende de uma configurao prvia de um background normativo socialmente partilhado, no qual todas as prticas sociais aceitas como racionais esto enraizadas, e aparentemente no-problemtico que orienta as aspiraes da razo em dimenses amplas. Esta idia foi posta de maneira elegante por Robert Brandom ao afirmar que: Toda constituio transcendental uma instituio social227, no sentido de que tudo o que tem status normativo uma realizao social. Esta dupla articulao s ser possvel se mostrarmos que a estrutura do Eu j , desde o incio, uma estrutura social e que a idia do Eu como individualidade simplesmente constraposta universalidade da estrutura social rapidamente posta em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que est em jogo na gnese do processo de individualizao de Eus socializados. Hegel, de fato, quer levar ltimas conseqncias esta idia de que o Eu j desde o incio uma estrutura social mostrando as conseqncias desta proposio para a compreenso do
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HABERMAS, Caminhos da destranscendentalizao, p. 186 HEGEL, Fenomenologia, par. 36 227 BRANDOM, idem
sujeito do conhecimento, do sujeito da experincia moral, o sujeito do vnculo poltico e o sujeito da fruio esttica. O Eu nunca uma pura individualidade, mas: os indivduos so eles mesmos de natureza espiritual e contm neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o extremo da universalidade que conhece e quer o que substancial228. No entanto, nada disto nos foi apresentado at agora no interior do texto da Fenomenologia do Esprito. Novamente, os primeiros passos desta operao complexa ser apresentado de maneira abrupta. No pargrafo 167, ao lembrar que a noo de fenmeno, enquanto diferena que no tem em si nenhum ser (j que apenas o aparecer para-um-Outro) no era figura da unidade da conscincia-de-si consigo mesma mas, ao contrrio, a prpria clivagem (j que a essencialidade est sempre em um Outro inacessvel ao saber), Hegel afirma: Essa unidade [da conscincia-de-si] deve vir-a-ser essencial a ela, o que significa: a conscincia-de-si desejo em geral (Begierde berhaupt)229. O que significa esta introduo do que Hegel chama aqui de desejo em geral, ou seja, no desejo deste ou daquele objeto, mas desejo tomado em seu sentido geral, como modo de relao entre sujeito e objeto? A partir do contexto, podemos compreender que a unidade da conscincia-de-si com o que havia se alojado no interior das Coisas como essncia para alm dos fenmenos, unidade entre o saber e a determinao essencial dos objetos s ser possvel a partir do momento em que compreendermos as relaes entre sujeito e objeto no apenas como relaes de conhecimento, mas primeiramente como relaes de desejo e satisfao. Percebemos agora o tamanho da inflexo em jogo na passagem da conscincia conscincia-de-si A princpio, uma afirmao desta natureza pareceria algo totalmente temerrio. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prtico-finalistas? Ou estaria ele insistindo, e a na melhor tradio que encontramos tambm em Nietzsche e Freud, que a razo configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que racional e legtimo) atravs dos interesses postos na realizao de fins prticos, interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosfica da categoria de desejo? De fato, esta segunda alternativa parece ser o caso.. Neste sentido, podemos seguir um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: Hegel parece estar
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Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Ngation et individualit dans la pense poltique hglienne HEGEL, Fenomenologia, par. 167
dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma reivindicao objetiva o problema de satisfao do desejo, que a verdade totalmente relativizada por fins pragmticos (...) Tudo se passa como se Hegel estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos sculos XIX e XX, que o que conta como explicaes bem-sucedidas dependem de quais problemas prticos queremos resolver (...) que o conhecimento uma funo de interesses humanos230. No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois ps em alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a contingncia de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A no ser que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses prticos no so guiados pelo particularismo de apetites e inclinaes mas que, ao se engajar na dimenso prtica tendo em vista a satisfao de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as aspiraes universalizantes da razo. Mas como defender tal posio partindo da centralidade do desejo na constituio da conscincia-de-si? Claro est que precisaramos aqui adentrar na especificao do conceito hegeliano de desejo. No entanto, Hegel no faz exatamente isto nos pargrafos seguintes. S teremos uma descrio mais adequada do processo do desejo entre os pargrafos 174 e 177. Neste trecho, teremos mais indicaes a respeito deste modo de relao entre sujeito e seu-Outro (no caso, o objeto) que Hegel j havia tematizado no captulo precedente ao falar da infinitude. A sua maneira, o desejo em Hegel ser a posio desta infinitude tematizada no final do captulo sobre o entendimento. Mas Hegel ser agora obrigado a, de uma certa forma, distinguir duas modalidades de desejo (o desejo vinculado consumao do Outro e o desejo que forma ou seja, o trabalho), da mesma forma com que ele ter de distinguir duas modalidade de infinitude: uma verdadeira e outra ruim.
O ciclo da vida
Mas antes de entrarmos nestas consideraes sobre a noo hegeliana de desejo, devemos seguir o texto da Fenomenologia a fim de dar conta do que est posto em seguida, nos pargrafos 168 a 172. Ao apresentar a noo de que a conscincia-de-si desejo em geral, Hegel afirma que a conscincia tem pois diante de si um duplo objeto:
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um ela mesma (j que ela conscincia-de-si), o outro o objeto da certeza sensvel e da percepo, ou seja, este objeto tal como aparece imediatamente conscincia. No entanto, este objeto est marcado com o sinal do negativo: ele foi negado enquanto objeto autnomo. Mas, para ns, ou seja, para aquele que avalia o trajeto fenomenolgico da conscincia na posteridade, esta negao no era uma negao simples (o que nos levaria a uma anulao simples de toda independncia do objeto), ela era uma negao dialtica. Ao negar a pura particularidade da certeza sensvel, ao ter a experincia da clivagem do objeto em unidade e multiplicidade, a conscincia no estava apenas tendo a experincia da inadequao do seu saber sobre as coisas. Ela estava tendo a experincia da manifestao da vida. Por isto, Hegel pode afirmar:
Para ns, ou em si, o objeto que a para conscincia-de-si o negativo retornou sobre si mesmo, do seu lado; como do outro lado, a conscincia tambm fez o mesmo. Mediante esta reflexo sobre si (Reflexion in sich), o objeto veio-a-ser (geworden) vida. O que a conscincia-de-si diferencia de si como ente no tem apenas, enquanto posto como ente, o modo da certeza sensvel e da percepo, mas tambm ser refletido sobre si; o objeto do desejo imediato um ser vivo231.
Dito pois que o desejo forneceria a nova perspectiva de estruturao das relaes entre conscincia e objeto, agora sob o primado da conscincia-de-si, Hegel procura determinar qual a primeira forma de apario do objeto do desejo. Esta primeira forma de apario no um objeto autnomo ou uma outra conscincia-de-si. Na verdade, o primeiro objeto do desejo a vida. Neste ponto, Hegel retorna a antigas colocaes que animaram seus escritos de juventude. Na sua juventude, Hegel j tinha para si alguns traos gerais da tarefa filosfica que ir anima-lo a partir da Fenomenologia do Esprito. Vimos, nas primeiras aulas, como Hegel compreendia que a tarefa filosfica fundamental do seu tempo era fornecer uma sada para as dicotomias nas quais a razo moderna havia se enredado. Lembremos como Hegel definia os tempos modernos, ou seja, seu prprio tempo, como
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este tempo no qual o esprito perdeu sua vida essencial e est consciente desta perda e da finitude de seu contedo. Vimos at agora como a Fenomenologia do Esprito apresentava algumas destas dicotomia. O saber pensado como representao, ou seja, enquanto disposio posicional dos entes diante de um sujeito, no podia deixar de operar dicotomias e divises no interior do que se oferece como objeto da experincia entre aquilo que para-mim e aquilo que seria em-si, entre o que se d atravs da receptividade da intuio e aquilo que ordenado pela espontaneidade do entendimento com suas estruturas reflexivas de representao, entre o que da ordem do esprito e o que da ordem da natureza, entre o que acessvel linguagem e o que pura particularidade inefvel. Para a gerao de Hegel, a filosofia moderna deve ultrapassar um sistema de dicotomias que encontrou sua figura mais bem acabada na maneira kantiana de definio do primado da faculdade do entendimento na orientao da capacidade cognitiva da conscincia. Hegel partilha o diagnstico de ps-kantianos como Fichte e Schelling de que, na filosofia kantiana, o primado da reflexo e do entendimento, produziu cises irreparveis. Da porque o nico interesse da razo o de suspender antteses rgidas232. Alm disto, Hegel tem a peculiaridade de compreende tais cises como a formalizao filosfica de dicotomias nas quais a modernidade havia se enredado. Isto nos explica porque: Hegel v na filosofia kantiana a essncia do mundo moderno concentrada como num foco233. Em Hegel, uma das primeiras formas de definio do modo de anulao de tais dicotomias foi a tematizao de uma espcie de solo comum, de fundamento primeiro, a partir do qual sujeito e objeto se extrairiam, isto na mais clara tradio schellinguiana. Este fundamento primeiro era a vida. Da porque Hegel poder afirmar, na juventude: Pensar a pura vida, eis a tarefa, j que A conscincia desta pura vida seria a conscincia do que o homem . Como bem viu Hyppolite: a pura vida supera essa separao [produzida pelo primado do entendimento] ou tal aparncia de separao; a unidade concreta que o Hegel dos trabalhos de juventude ainda no consegue exprimir sob forma dialtica234. A vida supera esta separao porque ela forneceria o solo comum no qual sujeito e objeto se encontram: todos eles estariam substancialmente enraizados no ciclo da vida que, por sua vez, forneceria, uma perspectiva privilegiada de
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HEGEL, Diferena dos sistemas filosficos de Fichte e Schelling, p. 38 HABERMAS, O discurso filosfico da mdoernidade, p. 30 234 HYPPOLITE, Gnese e estrutura, p. 162
compreenso racional do que se apresenta. Ter a vida por objeto do desejo reconhecer, no prprio objeto, a substncia que forma conscincias-de-si. Neste sentido, no por outra razo que Hegel apresenta a vida logo na entrada da seo dedicada conscincia-de-si. Enquanto conscincia que reconhece as dicotomias nas quais uma razo compreendida a partir da confrontao entre sujeito e objeto se enredara, a conscincia-de-si procura um background normativo intersubjetivamente partilhado a partir do qual todos os modos de interao entre sujeito e objeto se extraem. A vida aparece inicialmente como este background. O que Habermas vira muito bem ao afirmar: Contra a encarnao autoritria da razo centrada no sujeito, Hegel apresenta o poder unificador de uma intersubjetividade que se manifesta sob o ttulo de amor e vida235. No entanto, a vida ainda uma figura incompleta porque seu movimento no para-si, ou seja, no reflexivamente posto e apreendido. Mas no se trata, por outro lado, de simplesmente negar, atravs de uma negao simples, o que a reflexo sobre a vida traz. De fato, h uma certa continuidade entre a vida e a conscincia-de-si claramente posta por Hegel nos seguintes termos: A conscincia-de-si a unidade para a qual a infinita unidade das diferenas, mas a vida apenas essa unidade mesma, de tal forma que no ao mesmo tempo para si mesma236. Mas antes de avanarmos, devemos nos perguntar: como Hegel compreende a vida e seu movimento, seu ciclo? De maneira esquemtica, podemos dizer que a vida fundamentalmente compreendida a partir da tenso entre a universalidade da unidade da vida e a particularidade do indivduo ou da multiplicidade diferenciadora das formas viventes. Por isto, ela pode aparecer como figura da infinitude, j que cada um encarnao da contradio entre unidade e indivduo [lembrar dos estudos posteriores de biologia, em especial os de Weismann, sobre soma substncia mortal- e plasma substncia imortal]. Isto nos explica porque Hegel havia dito, ao apresentar o conceito de infinitude no captulo sobre o entendimento: Essa infinitude simples ou o conceito absoluto deve-se chamar a essncia simples da vida, a lama do mundo, o sangue universal237. No nosso trecho, Hegel descreve o ciclo da vida do pargrafo 169:
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HABERMAS, O discurso filosfico da modernidade, p. 39 HEGEL, Fenomenologia, par. 168 237 HEGEL, Fenomenologia, par. 162
Seu ciclo se encerra nos momentos seguintes. A essncia a infinitude, como ser-suprimido de todas as diferenas [a vida o que retorna sempre a si na multiplicidade de diferenas do vivente], o puro movimento de rotao, a quietude de si mesma como infinitude absolutamente inquieta, a independncia mesma em que se dissolvem as diferenas do movimento; a essncia simples do tempo que tem, nessa igualdade-consigo-mesma, a figura slida do espao. Porm, nesse meio simples e universal, as diferenas tambm esto como diferenas, pois essa universal fluidez [da vida como unidade] s possui sua natureza negativa enquanto um suprimir das mesmas, mas no pode suprimir as diferenas se essas no tm um subsistir238.
Todo o desenvolvimento do pargrafo 170 at o pargrafo 172 uma longa descrio sobre este processo de afirmao das diferenas contra o fundo de unidade da vida e de dissoluo, ou o perecimento, das mesmas diferenas atravs da afirmao do fluxo contnuo da vida enquanto fluxo de multiplicidade de figuras que no subsistem. Como bem lembra Hyppolite: Pode-se partir da vida como todo (natura naturans) e chegar aos indivduos separados (natura naturata) e pode-se igualmente partir do indivduo separado e reencontrar nela esta totalidade da vida239. Da porque Hegel poder afirmar, ao final, que a vida: o todo que se desenvolve, que dissolve seu desenvolvimento e que se conserva simples nesse movimento240. Mas, como vimos, a vida s esta infinitude para a conscincia-de-si, ela no para-si. Neste sentido, a infinitude presente na vida deve se manifestar conscincia-desi. Como a vida o prprio meio do qual a conscincia-de-si faz parte, ela deve descobrir inicialmente em si mesma tal infinitude. E a primeira manifestao de tal infinitude se dar atravs do desejo. Uma manifestao ainda imperfeita pois solidria do aparecimento de um infinito ruim. Mas como pode uma infinitude ser ruim?
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HEGEL, Fenomenologia, par. 169 in HEGEL, Phnomnologie de lEsprit, p. 148, nota 9 240 HEGEL, Fenomenologia, par. 171
O Eu simples esse gnero, ou o Universal simples, para o qual as diferenas no so nenhuma, somente enquanto ele a essncia negativa dos momentos independentes formados. Assim a conscincia-de-si certa de si mesma somente atravs do suprimir desse Outro que se lhe apresenta como vida independente: a conscincia-de-si desejo241.
Ou seja, a conscincia-de-si enquanto individualidade que procura apenas pr-se referindo-se apenas a si mesma , inicialmente, certa de si, certa de ser idntica a si mesma atravs da negao da sua dependncia ao que se coloca fora ela enquanto Outro. Neste sentido, se j sabemos que a conscincia-de-si desejo, ou seja, relao necessria a um objeto, ento este desejo s pode ser satisfeito como consumao, como aniquilao da essencialidade do Outro. O Outro apenas um objeto que consumo e sua essencialidade est a, em ser objeto do meu desejo. Mas, seguindo uma longa tradio que remonta a Plato, podemos dizer que, para Hegel, quem diz desejo diz necessariamente falta. Da porque:
O desejo e a certeza de si mesma alcanada na satisfao do desejo [notemos esta articulao fundamental: a certeza de si mesmo estritamente vinculada aos modos de satisfao do desejo] so condicionados pelo objeto, pois a satisfao ocorre atravs do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A conscincia-de-si no pode assim suprimir o objeto atravs de sua relao negativa para com ele, pois essa relao antes reproduz o objeto, assim como o desejo242.
Se desejo falta, ento o objeto desejado aparece como a determinao essencial da conscincia-de-si. Faz-se necessrio pois reconhecer um ser ao Outro e por mais que a conscincia-de-si procure destruir a essencialidade deste Outro., reduzindo a alteridade ao mesmo, ela apenas reitera que a essncia do desejo um Outro que a conscincia-de-si, ou seja, ela apenas reitera como est alienada no objeto do desejo. Vemos assim que, quando o desejo aparece na Fenomenologia, ele marcado por um carter destrutivo e egosta que visa aniquilar (vernichtet) a objetividade dada a fim de permitir subjetividade gozar de uma identidade abstrata que roava o nada. Tal
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operao de aniquilamento leva a conscincia aos impasses de um movimento infinito ruim que se desenvolve sempre no ritmo da perpetuao da falta (Mangel). De fato, s haver uma sada possvel:
Em razo da independncia do objeto, a conscincia-de-si s pode alcanar satisfao quando esse objeto leva a cabo a negao de si mesmo, nela, e deve levar a cabo em si tal negao de si mesmo, pois em si o negativo, e deve ser para o Outro o que ele 243.
Na aula passada, iniciamos as consideraes sobre o captulo dedicado conscinciade-si. Vimos o que estava em jogo na passagem da conscincia conscincia-de-si. No se tratava apenas de dizer que, em um dado momento do trajeto fenomenolgico, a conscincia descobria que o objeto da experincia tinha a mesma estrutura do Eu pressuposto bsico de todo e qualquer idealismo. Um pressuposto que no queria dizer que a passagem da conscincia conscincia-de-si se dava a partir do momento em que o sujeito tinha a experincia de uma subsuno integral do objeto ao Eu. A verdadeira experincia de uma certa duplicao. A conscincia tem a experincia de que o objeto tem a mesma estrutura da conscincia-de-si. O objeto, de uma certa forma, a duplicao da estrutura da conscincia-de-si e, enquanto duplicao, a reflexo sobre a estrutura da conscincia-de-si ser, necessariamente, uma reflexo sobre a estrutura do objeto. No entanto, como vimos na aula passada havia algo a mais em jogo. Como eu dissera anteriormente, a grosso modo, a conscincia compreende que sua expectativas cognitivo-instrumentais so dependentes de modos de interao social e de prticas sociais. Em ltima anlise, toda operao de conhecimento depende de uma configurao prvia de um background normativo socialmente partilhado, no qual todas as prticas sociais aceitas como racionais esto enraizadas, e aparentemente no-
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problemtico que orienta as aspiraes da razo em dimenses amplas. Esta idia foi posta de maneira elegante por Robert Brandom ao afirmar que: Toda constituio transcendental uma instituio social244, no sentido de que tudo o que tem status normativo uma realizao social. Ao tentar articular esta dependncia das expectativas cognitivas racionais em relao aos modos de interao social dos a duplicao entre a estrutura do objeto e do Eu, tentei mostrar como esta dupla articulao s ser possvel se mostrarmos que a estrutura do Eu j , desde o incio, uma estrutura social e que a idia do Eu como individualidade simplesmente constraposta universalidade da estrutura social rapidamente posta em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que est em jogo na gnese do processo de individualizao de Eus socializados. Hegel, de fato, quer levar ltimas conseqncias esta idia de que o Eu j desde o incio uma estrutura social mostrando as conseqncias desta proposio para a compreenso do sujeito do conhecimento, do sujeito da experincia moral, o sujeito do vnculo poltico e o sujeito da fruio esttica. O Eu nunca uma pura individualidade, mas: os indivduos so eles mesmos de natureza espiritual e contm neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o extremo da universalidade que conhece e quer o que substancial245. Como vimos, era neste ponto que Hegel apresentava a categoria central do desejo como primeiro operador de estruturao dos modos de interao social. Chegamos mesmo a ver como, para Hegel, a unidade da conscincia-de-si com o que havia se alojado no interior das Coisas como essncia para alm dos fenmenos, unidade entre o saber e a determinao essencial dos objetos s seria possvel a partir do momento em que compreendermos as relaes entre sujeito e objeto no apenas como relaes de conhecimento, mas primeiramente como relaes de desejo e satisfao. A princpio, esta afirmao parecia algo totalmente temerrio. Estaria Hegel colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que submete as expectativas cognitivas a interesses prtico-finalistas? Ou estaria ele insistindo, e a na melhor tradio que encontramos tambm em Nietzsche e Freud, que a razo configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que racional e legtimo) atravs dos interesses postos na realizao de fins prticos, interesses que nos leva a recuperar a dignidade filosfica da categoria de desejo?
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BRANDOM, idem Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Ngation et individualit dans la pense poltique hglienne
De fato, insisti nesta segunda alternativa. Neste sentido, lembrei para vocs um comentador que viu isto claramente, Robert Pippin: Hegel parece estar dizendo que o problema da objetividade, do que estamos dispostos a contar como uma reivindicao objetiva o problema de satisfao do desejo, que a verdade totalmente relativizada por fins pragmticos (...) Tudo se passa como se Hegel estivesse reivindicando, como muitos fizeram nos sculos XIX e XX, que o que conta como explicaes bemsucedidas dependem de quais problemas prticos queremos resolver (...) que o conhecimento uma funo de interesses humanos246. No entanto, parece que Hegel estaria assim entrando com os dois ps em alguma forma de relativismo que submete expectativas universalizantes de verdade a contingncia de contextos marcados por interesses e desejos particulares. A no ser que Hegel seja capaz de mostrar que os interesses prticos no so guiados pelo particularismo de apetites e inclinaes mas que, ao se engajar na dimenso prtica tendo em vista a satisfao de seus desejos, os sujeitos realizam necessariamente as aspiraes universalizantes da razo. Mas como defender tal posio partindo da centralidade do desejo na constituio da conscincia-de-si? Terminamos a ltima aula discutindo a estrutura da noo hegeliana de desejo. Gostaria de voltar a este ponto a fim de sistematizar melhor o que Hegel tem em mente ao falar sobre o desejo.
Hegel e o desejo
Para Hegel, o desejo (Begierde) a maneira atravs da qual a conscincia-de-si aparece em seu primeiro grau de desenvolvimento. Neste sentido, ele , ao mesmo tempo, modo de interao social e modo de relao ao objeto. Alm do desejo, Hegel apresenta, ao menos, outros dois operadores reflexivos de determinao da conscinciade-si: o trabalho e a linguagem. Na aula passada, insisti que Hegel vinculava-se a uma longa tradio que remonta a Plato e compreende o desejo como manifestao da falta. Isto fica muito claro em um trecho da Enciclopdia. L, ao falar sobre o desejo, Hegel afirma:
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O sujeito intui no objeto sua prpria falta (Mangel), sua prpria unilateralidade ele v no objeto algo que pertence sua prpria essncia e que, no entanto, lhe falta. A conscincia-de-si pode suprimir esta contradio por no ser um ser, mas uma atividade absoluta247. A colocao no poderia ser mais clara. O que move o desejo a falta que aparece intuda no objeto. Um objeto que, por isto, pode se pr como aquilo que determina a essencialidade do sujeito. Ter a sua essncia em um Outro (o objeto) uma contradio que a conscincia pode suprimir por no ser exatamente um ser, mas uma atividade, isto no sentido de ser uma reflexo que, por ser posicional, toma a si mesma por objeto. Mas, dizer isto ainda dizer muito pouco. Pois se o desejo falta e o objeto aparece como a determinao essencial desta falta, ento deveramos dizer que, na consumao do objeto, a conscincia encontra sua satisfao. No entanto, no isto o que ocorre:
O desejo e a certeza de si mesma alcanada na satisfao do desejo [notemos esta articulao fundamental: a certeza de si mesmo estritamente vinculada aos modos de satisfao do desejo] so condicionados pelo objeto, pois a satisfao ocorre atravs do suprimir desse Outro, para que haja suprimir, esse Outro deve ser. A conscincia-de-si no pode assim suprimir o objeto atravs de sua relao negativa para com ele, pois essa relao antes reproduz o objeto, assim como o desejo248.
A contradio encontra-se aqui na seguinte operao: o desejo no apenas uma funo intencional ligada satisfao da necessidade animal, como se a falta fosse vinculada positividade de um objeto natural. Ele operao de auto-posio da conscincia: atravs do desejo a conscincia procura se intuir no objeto, tomar a si mesma como objeto e este o verdadeiro motor da satisfao. Atravs do desejo, na verdade, a conscincia procura a si mesma. Da porque Hegel pode afirmar que, inicialmente, o desejo aparece em seu carter egosta. J na Filosofia do esprito, de 1805, Hegel oferece a estrutura lgica deste movimento que serve de motor para a figura do desejo: "O desejante quer, ou seja, ele quer se pr (es will sich setzen), se fazer
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objeto (Gegenstande machen)"249. Isto implica inicialmente em tentar destruir o Outro (o objeto) enquanto essncia autnoma. No entanto, satisfazer-se com um Outro aferrado positividade de uma condio de mero objeto (no sentido representacional) significa no realizar a auto-posio da conscincia enquanto conscincia. A conscincia s poder se pr se ela desejar um objeto que duplica a prpria estrutura da conscincia. Ela s poder se satisfazer ao desejar uma outra conscincia, ao intuir a si mesmo em uma outra conscincia. A conscincia-de-si s alcana satisfao em uma outra conscincia-de-si. Da porque:
A satisfao do desejo a reflexo da conscincia de si sobre si mesma, ou a certeza que veio a ser verdade. Mas a verdade dessa certeza antes a reflexo redobrada (gedoppelte Reflexion), a duplicao da conscincia-de-si250.
Podemos entender melhor este ponto se levarmos a srio a relao necessria entre desejo e impulso (Trieb termo de difcil traduo que atualmente, devido influncia psicanaltica, normalmente traduzido por pulso). Tanto na Filosofia do Esprito de 1805 quanto no livro da Enciclopdia dedicado Filosofia do Esprito, Hegel insiste na distino entre desejo e impulso. Distino que visa apenas mostrar como o segundo a verdade do primeiro. O primeiro ainda estaria aferrado a uma dicotomia no superada entre o subjetivo e o objetivo. Da porque a objetividade aparece como o que deve ser destrudo para que a subjetividade possa se pr. Neste sentido, sob o imprio do desejo, a subjetividade exatamente o que privado de outro, privado de contedo e ela sente esta falta251. Ou seja, a falta enquanto desejo a primeira manifestao de uma subjetividade que j no se reconhece mais no que posto como determinidade, ou que j no se confunde como o fluxo simples e contnuo da vida. A subjetividade que desejo aparece ento como abstrao de toda determinidade, mas uma abstrao que, por ser desejo, procura se intuir no objeto e esta a contradio que anima a conscincia-de-si entre ser algo que puramente para-si e algo que tambm em-si. Por outro lado, o impulso , ao mesmo tempo, o fundamento e a superao do desejo. Em 1805, Hegel afirmava que o desejo tinha ainda algo de animal por cair na
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HEGEL, Jenaer Realphilosophie, Hamburg: Felix Meiner, 1969, p. 194 HEGEL, Fenomenologia, par. 176 251 HEGEL, Filosofia do Esprito,
iluso de que sua satisfao estava em um objeto externo e particular (da a contradio na qual ele necessariamente se enredava). J o impulso procede da oposio suprimida entre subjetivo e objetivo, o que significa, entre outras coisas, que sua satisfao no mais marcada exclusivamente pela particularidade do objeto, mas se revela como portando algo de universal. Ou seja, o impulso implica em uma tentativa de reconciliao com o objeto atravs da realizao desta intuio da falta no objeto. Da porque: "L onde um [ser] idntico a si mesmo comporta em si mesmo uma contradio e pleno do sentimento de sua identidade sendo-em-si com si mesmo, assim como do sentimento oposto de sua contradio interna [vinda do vnculo ao objeto], j surge necessariamente o impulso (Trieb) em suprimir tal contradio. O [ser] no-vivo no tem impulso algum, pois ele no pode suportar a contradio, mas perece quando o Outro de si irrompe em si"252. [lembrar como Hegel nunca operou com distines estritas entre impulso e vontade livre - entre desejo patolgico por objetos e vontade ligada pura forma de uma lei que a conscincia erige para si mesma]. Mas voltemos noo de que a satisfao do desejo a reflexo da conscincia de si sobre si mesma, ou ainda, reflexo redobrada. Hegel procurava com isto fornecer uma sada para o problema da conscincia-de-si, ou seja, da conscincia que toma a si mesma como objeto, que no fosse tributria da clivagem entre eu emprico (objeto para a conscincia) e eu transcendental. De fato: quando a conscincia-de-si o objeto, tanto Eu como objeto, mas como operar tal dualidade sem cair na dicotomia entre emprico e transcendental? Inicialmente, Hegel apresentou, atravs da vida, a idia de um fundamento comum a partir do qual sujeito e objeto se extraem. Ou seja, ao invs da fundamentao das operaes de auto-determinao atravs da posio de estruturas transcendentais, Hegel apresentou um solo comum que se expressa tanto no sujeito quanto no objeto. No entanto, a vida um fundamento imperfeito, pois no reflexivo, no pode ser posto reflexivamente, j que a vida no para si. Hegel apresenta ento a noo, mais completa, de reflexo redobrada, ou seja, a noo de que a conscincia s pode se pr em um objeto que no seja exatamente um objeto, mas que seja por sua vez uma reflexo, um movimento de passar ao outro e de retornar a si desta alienao. Da porque a conscincia s pode ser conscincia-de-si ao se pr em uma outra conscincia-de-si. O objeto deve se mostrar como em si mesmo
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negao, no sentido de portar esta falta que o leva a procurar sua essncia no seu serOutro. Sobre a noo de reflexo redobrada podemos especific-la mais afirmando se tratar de um movimento que , ao mesmo tempo, reflexo-em-si e reflexo-no-Outro. A reflexo-em-si, Hegel a define na Enciclopdia, a prpria identidade, quer dizer, esta referncia-a-si que subsiste atravs do excluir de toda a diferena. J a reflexo-noOutro o momento mesmo da diferena ou do ser-fora-de-si. Logo, a reflexo duplicada nada mais do que esta referncia-a-si que , ao mesmo tempo, referncia-aOutro. Uma espcie de jogo de espelhos duplicado. Toda vez que a conscincia tenta fazer referncia a si ela acaba fazendo referncia a um Outro e vice-versa. Neste sentido, o problema do fundamento da conscincia-de-si s pode ser resolvido atravs de um recurso dinmica de reconhecimento entre desejos. Dinmica de reconhecimento que nos levar a um Eu que ns e um ns que eu. Por trs deste eu que ns e de um ns que eu, h a certeza de que a conscincia s pode ser reconhecida quando seu desejo no for mais desejo por um objeto do mundo, mas desejo de outro desejo, ou antes, desejo de reconhecimento. Assim, entramos no dia espiritual da presena. A experincia fenomenolgica do advento deste dia espiritual da presena o tema do que ficou conhecido como a dialtica do Senhor e do Escravo.
A conscincia-de-si em si e para si quando e porque em si e para si para uma Outra, quer dizer, s como algo reconhecido253.
Esta afirmao sintetiza todo o processo que se desdobrar atravs da figura da conscincia-de-si. A conscincia-de-si s na medida em que se pe para uma Outro e como uma Outra. Ela , neste sentido, a realizao da noo de infinitude (enquanto o ter em si a negao de si sem, com isto, produzir um objeto desprovido de conceito). Esta dinmica da infinitude, ou ainda, esta unidade na duplicao, se dar atravs de operaes simtricas de reconhecimento. No entanto, elas no esto disponveis conscincia-de-si. Neste sentido, extremamente sintomtico que Hegel no faa preceder a dinmica do reconhecimento de consideraes sobre o amor, tal como
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acontece na Filosofia do Esprito de 1805. Pois o amor seria esta posio de reconhecimento mtuo na qual cada se sabe no outro e cada um renunciou a si mesmo254. Ele poderia fornecer uma base de socializao humana que nos permitiria pensar processos sociais mais amplos de reconhecimento. Ao contrrio, Hegel no dar lugar algum para o amor nas suas consideraes fenomenolgicas sobre a dinmica do reconhecimento. Atualmente, conhecemos projetos filosficos (Habermas, Honneth) que vem nisto o sinal do abandono de um conceito forte de intersubjetividade primitiva da vida humana em prol de uma perspectiva centrada nos processos de auto-mediao da conscincia individual. No entanto, podemos partir de outra perspectiva. Podemos dizer que Hegel age como quem acredita agora que os processos mais elementares de interao social s so legveis no interior de dinmicas de conflito (o que no estranho a um Thomas Hobbes, por exemplo). Ou seja, o conflito o primeiro dado na constituio dos processos de interao social. E mesmo a vida enquanto fundamento de onde se extraem sujeito e objeto foi pensada a partir do conflito entre a universalidade simples da vida e a multiplicidade de suas figuraes diferenciadoras. Hegel pode dizer que os processos mais elementares de interao social so necessariamente conflituais porque, para ele, tudo se passa como se toda individuao fosse necessariamente uma alienao. Conseqncia simples do fato de que toda exteriorizao necessariamente alienao. A conscincia-de-si s pode ser reconhecida enquanto conscincia-de-si se se submeter alienao de si. Da porque Hegel pode dizer, a respeito das interaes elementares entre conscincias-de-si:
Para a conscincia-de-si, h uma outra conscincia-de-si, ou seja, ela veio para fora de si [ela se v como algo que vem da exterioridade, Hegel chega a falar em ser-fora-de-si - Aussersichsein]. Isso tem dupla significao: primeiro, ela se perdeu a si mesma, pois se acha em uma outra essncia [ou seja, ela se alienou a ver que ela primeiramente para uma outra conscincia]. Segundo, com isso ela suprimiu o Outro, pois no v o Outro como essncia, mas a si mesma que v no Outro [ela s v, no outro, a projeo de si]255.
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Ou seja, a primeira manifestao do Outro como aquele que me leva perda de mim mesmo por me fazer defrontar com algo de mim que se d na minha exterioridade. Vejo no Outro apenas a imagem de mim mesmo, ou apenas a imagem de mim como um outro. J vimos esta dinmica quando falamos do desejo. Agora, Hegel lembra que a perda de si tambm perda do Outro [j que o Outro tambm s enquanto reconhecido]. A conscincia-de-si deve superar esse seu-ser-Outro. Esta superao ou des-alienao da conscincia necessariamente retorno a si atravs da construo de um conceito renovado de auto-identidade (no mais a auto-identidade enquanto experincia imediata de si a si, mas a identidade enquanto o que reconhecido pelo Outro). No mesmo movimento, ela reconhecimento da sua diferena para com o Outro. Diferena que poder ser ento reconhecida porque a conscincia sabe que ela traz e si mesma a diferena em relao a si mesma. ela ver no Outro a mesma diferena que ela encontra nas suas relaes si.
Mas esse movimento da conscincia-de-si em relao a uma outra conscinciade-si se representa, desse modo, como o agir (Tun) de uma delas. Porm esse agir de uma tem o duplo sentido (gedoppelte Bedeutung um sentido/referncia redobrado) de ser tanto o seu agir como o agir da outra; pois a outra tambm independente, encerrada em si mesma, nada h nela que no mediante ela mesma256.
O processo de reconhecimento passar ento por uma certa pragmtica pois o agir que realiza a posio da conscincia. Hegel apenas lembra aqui que o problema da reconhecimento deve ser necessariamente um problema de como prticas sociais so constitudas. Podemos falar aqui em prticas sociais porque Hegel nos lembra, com propriedade, que todo agir tem um sentido redobrado: ele , ao mesmo tempo agir do sujeito e agir do Outro. Todo agir pressupe um campo partilhado de significao no qual o agir se inscreve. Pois todo agir pressupe destinatrios, agir feito para um Outro e inscrito em um campo que no s meu, mas tambm campo de um Outro. A significao do ato no assim resultado da intencionalidade dos agentes, mas determinao que s se define na exterioridade da inteno.
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Por conseguinte, o agir tem duplo sentido (doppelsinnig), no s enquanto agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas tambm enquanto indivisamente o agir tanto de um quanto do Outro257.
Hegel no teme em pensar a anatomia do ato atravs da dinmica de ao e reao prpria ao jogo de foras, na qual a posio da fora solicitada expressava-se necessariamente na posio da fora solicitante e na qual um plo servia de determinao essencial ao outro plo. Este movimento duplicado demonstrava como a realizao da fora era necessariamente o desaparecer do seu conceito simples inicial, ou ainda como o desaparecer da fora era a realizao do seu conceito. No caso da interao entre conscincias, veremos como a alienao de cada conscincia no Outro j a realizao da conscincia-de-si. Isto apenas demonstra como:
Cada extremo para o Outro o meio termo, mediante o qual consigo mesmo mediatizado e concludo, cada um para si e para o Outro, essncia imediata sendo para si, que ao mesmo tempo s para si atravs dessa mediao. Eles se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente258.
A partir do pargrafo 185, Hegel prope-se a analisar o processo de manifestao, para a conscincia-de-si, deste puro conceito de reconhecimento, desta duplicao da conscincia-de-si em sua unidade. a partir de agora que teremos uma descrio fenomenolgica da experincia de reconhecimento da conscincia-de-si. Tal descrio visa fornecer algo como a forma geral dos processos de reconhecimento e de interao social. No se trata exatamente de uma antropognese, como encontramos na leitura de Alexandre Kojve, sem dvida, uma das mais clebres a respeito deste trecho da Fenomenologia do Esprito. No se trata de uma antropognese, mas da exposio de uma lgica do reconhecimento que ser retomada em vrios momentos da Fenomenologia do Esprito, como nas figuras da conscincia infeliz, na confrontao entre a conscincia vil e a conscincia que julga, entre outros.
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Por outro lado, uma leitura atenta do nosso trecho demonstra como o verdadeiro alvo de Hegel encontra-se na crtica ao pensamento representativo e na meditao sobre as condies lgicas de passagem do pensamento representativo ao pensamento especulativo atravs de consideraes sobre o lugar lgico do reconhecimento. O que nos explica por que, na perspectiva do para ns (fr uns), a DSE nos leva em direo ao advento de uma nova figura da conscincia, uma conscincia que pensa e, neste momento, Hegel faz uma distino importante entre objeto do pensamento (especulativo) e representao: Para o pensar, o objeto no se move em representaes ou em figuras, mas sim em conceitos, o que significa: em um ser-em-si diferente, que imediatamente para a conscincia no nada diferente dela259. Se no levamos em conta este primado, a via se abre para a antropologizao excessiva do discurso hegeliano em detrimento de consideraes sobre sua articulao lgica. Vejamos, por exemplo, como Hegel inicia a descrio deste movimento dialtico:
De incio, a conscincia-de-si ser-para-si simples, igual a si mesma mediante o excluir de si de todo o outro. Para ela, sua essncia e objeto absoluto o Eu, e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si um singular. O que Outro para, est como objeto inessencial, marcado com o sinal do negativo260.
Ns j vimos uma descrio semelhante exatamente no incio da certeza sensvel: o primeiro captulo do nosso livro. L lemos:
O saber que, de incio ou imediatamente nosso objeto no pode ser nenhum outro seno o saber que tambm imediato: saber do imediato ou do ente (...) nem o Eu nem a coisa tem aqui a significao de uma mediao multiforme (...) A conscincia Eu, nada mais: um puro este. O singular sabe o puro este, ou seja, sabe o singular261.
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 134. "Dem Denken sich des Gegenstand nicht in Vorstellungen, oder Gestalten, sondern in Begriffen, das heit in einem unterschiednen Ansichsein, welches unmittelbar fr das Be wutsein kein unterschiednes von ihm ist" (HEGEL, PhG, p. 137) 260 HEGEL, Fenomenologia, par. 186 261 HEGEL, Fenomenologia, par. 90-91
Esta semelhana de famlia nos mostra que estamos diante de problemas simtrico. Eu havia dito que a Fenomenologia estruturada como um movimento circular que retomado sempre em estgios mais englobantes. De uma certa forma, a conscincia-desi vai agora retomar uma experincia, de uma certa forma, j apresentada no captulo dedicado certeza sensvel. Se analisarmos a dialtica do Senhor e do Escravo com cuidado, veremos que seu problema fenomenolgico consiste na possibilidade de apresentao (Darstellung o termo vrias vezes utilizado por Hegel no texto) da conscincia como pura abstrao, como puro Eu. Hegel muito claro no que diz respeito importncia deste movimento de: apresentar-se a si mesmo como pura abstrao262 que o motor da ao da conscincia. Mas desde o primeiro captulo da Fenomenologia sobre a conscincia sensvel, sabemos que o espao de apresentao do puro Eu a linguagem (o ser-a do puro Eu), assim como sabemos que a linguagem este meio de apresentao diante de um Outro. Neste sentido, a coreografia de alienao prpria dialtica do Senhor e do Escravo repete o movimento dialtico que indica o momento no qual o Eu procura apresentar-se atravs da linguagem e acaba por alienar-se como Eu em geral, nome como nome. Sendo assim, no possvel apreender a estrutura lgica dos processos de reconhecimento sem levar em considerao o que poderamos chamar de teoria hegeliana da linguagem e da enunciao.Veremos mais a frente como tal aproximao pode nos servir. No entanto, voltemos ao texto. Esta apresentao como pura abstrao , na verdade, o fundamento da autodeterminao da subjetividade. A subjetividade s aparece como movimento absoluto de abstrao ( por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda aderncia imediata empiria que Hegel continua vinculado noo moderna de sujeito0. O primeiro movimento de auto-determinao da subjetividade consiste pois em negar toda sua aderncia com a determinao emprica, consiste em transcender o que a enraza em contextos e situaes determinadas para ser apenas o puro ser negativo da conscincia igual-a-si-mesma. Para Hegel, a individualidade (Individualitt) aparece sempre, em um primeiro momento, como negao que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade emprica. Por isto, Hegel deve afirmar:
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HEGEL, Fenomenologia do esprito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen Abstraction ...
A apresentao de si como pura abstrao da conscincia-de-si consiste em mostrar-se como pura negao de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que no est vinculado a nenhum ser-a (Dasein) determinado, nem singularidade universal do ser-ai em geral, nem vida263.
Lembremos do que dissera em aulas anteriores. Para Hegel, o sujeito moderno no era simplesmente fundamento certo do saber, mas tambm entidade que marcado pela indeterminao substancial. Ele aquilo que nasce atravs da transcendncia em relao a toda e qualquer naturalidade com atributos fsicos, psicolgicos ou substanciais. Como dir vrias vezes Hegel, o sujeito aquilo que aparece como negatividade que cinde o campo da experincia e faz com que nenhuma determinao subsista. Na Filosofia do Esprito, de 1805, ele no deixar de encontrar metforas para falar deste sujeito que aparece como o que desprovido de substancialidade e de determinao fixa: O homem esta noite, este nada vazio que contm tudo na simplicidade desta noite, uma riqueza de representaes, de imagens infinitamente mltiplas, nenhuma das quais lhe vem precisamente ao esprito, ou que no existem como efetivamente presentes (...) esta noite que descobrimos quando olhamos um homem nos olhos, uma noite que se torna terrvel, a noite do mundo que se avana diante de ns264. Para alm da ressonncia potica do trecho, devemos simplesmente lembrar como Hegel insistia que a prpria constituio do sujeito enquanto pura condio formal de um saber que seria eminentemente representativo (como o saber na modernidade) exigia uma operao de negatividade. Podemos inicialmente compreender tal negatividade como a posio da inadequao entre as expectativas de reconhecimento do sujeito e o campo de determinaes fenomenais. Neste sentido, Hegel poderia simplesmente compreender esta negatividade que supera a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que apenas ente em geral 265 como transcendentalidade, tal como fizera, antes dele, Kant ao insistir, por exemplo, na clivagem necessria entre eu emprico e eu transcendental. Mas a negatividade hegeliana no a transcendentalidade kantiana. Ela manifestao, na empiria, daquilo que fundamenta a posio dos sujeitos.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 187 HEGEL, Filosofia do esprito, p. 13 265 HEGEL, Fenomenologia I, par. 32
Por isto, a apresentao de si deve aparecer inicialmente como um ato/um agir que tende morte do Outro [ negao completa da essencialidade da perspectiva do Outro] e inclui o arriscar a prpria vida, j que afirmao de si atravs da negao de todo enraizamente em um Dasein natural. Na Filosofia do Esprito, Hegel chega a falar: um suicdio na medida em que a conscincia se expe ao perigo. Esta luta de vida e morte entre as conscincias assim fundamentalmente um problema de auto-determinao de uma subjetividade cujo fundamento pensado enquanto negao [o problema do crime]. Hegel bastante claro neste sentido ao afirmar:
S mediante o pr a vida em risco, a liberdade se conquista e se prova que a essncia da conscincia-de-si no o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expanso da vida, mas que nada h para a conscincia que no seja para ela momento evanescente (verschwindendes Moment; que ela somente puro ser-para-si. O indivduo que no arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa [ou seja, como membro do vnculo social], mas no alcanou a verdade desse reconhecimento como uma conscincia-de-si independente [o que demonstra que no se trata de descrever simplesmente o advento dos modos de sociabilidade, mas de compreender como a conscincia pode ter a experincia da sua estrutura]266.
Ns havamos visto que Hegel est disposto a dar continuidade idia de que o princpio de subjetividade fundamento das expectativas de racionalizao que suportam a experincia histrica da modernidade. No entanto, vimos tambm como Hegel est disposto a falar desta experincia de posio da negatividade do fundamento atravs de figuras como: confrontao com a morte. Em termos lgicos e estritamente hegelianos, o que aconteceu aqui foi que, ao deter-se diante da Morte, a conscincia chegou ao fundamento da existncia mesma. No a toa que Hegel joga, deliberadamente, com os termos zugrundgeher (aniquilar-se) e zu Grund geher (chegar ao fundamento). O fundamento , na filosofia hegeliana, esta determinao da reflexo que: (...) no tem nenhum contedo determinado em si e para si; tambm no fim, por conseguinte no ativo nem produtivo267. Ou seja, trata-se da pura forma,
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preexistente a qualquer contedo que venha preench-la. O que a conscincia experimentou ao chegar ao fundamento que apreender esta pura forma , invariavelmente, aniquilar-se enquanto aderncia ao ser-a natural e se descobrir como negao de si em si mesmo. O problema, aqui, como elevar o fundamento existncia. Lembremos como Hegel usa de maneira bastante precisa esta experincia da negao absoluta que a morte. Quando, neste contexto, Hegel fala em morte, ele pensa na manifestao fenomenolgica prpria indeterminao fenomenal do que nunca apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica uma experincia do que no se submete aos contornos auto-idnticos da representao, a morte como aquilo que no se submete determinao do Eu. Este fundamento que no tem nenhum contedo determinado em si e para si, ao se manifestar, toca o prprio modo de enraizamento do sujeito naquilo que aparece a ele como mundo. A morte a experincia da fragilidade das imagens do mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de prticas sociais de ao e justificao. Ela assim um movimento fundamental para a constituio da estrutura moderna da subejtividade. Ns retormaremos a este ponto na aula que vem. Para finalizar, gostaria apenas de rebater uma crtica de Honneth, para quem esta leitura de Hegel no explicaria porque a antecipao da morte, seja a do prprio sujeito seja a do Outro deveria conduzir a um reconhecimento da reivindicao de direitos individuais268. De fato, a questo no pode ser respondida se compreendermos o que exige reconhecimento como sendo direitos individuais que no encontram posio em situaes normativas determinadas. Mas no parece que isto que Hegel coloca em questo em seu texto. Ao contrrio, nos parece que se trata fundamentalmente de mostrar como a constituio dos sujeitos solidria da confrontao com algo que no se esgota na atualizao de direitos individuais positivos, mas que s se pe em experincias de negatividade e des-enraizamento que se assemelham confrontao com o que fragiliza nossos contextos particulares e nossas vises determinadas de mundo. A astcia de Hegel consistir em mostrar como o demorar-se diante desta negatividade condio para a constituio de um pensamento do que pode ter validade universal para os sujeitos.
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Na aula de hoje, continuaremos a leitura dos pargrafos que compe a chamada dialtica do Senhor e do Escravo (Knecht cuja traduo mais correta seria servo). Na aula passada, havamos chegado at o pargrafo 187. Vimos, at ento, como uma anlise cuidadosa da dialtica do Senhor e do Escravo nos mostra que seu problema fenomenolgico consiste na possibilidade de apresentao (Darstellung o termo vrias vezes utilizado por Hegel no texto) da conscincia como pura abstrao, como puro Eu. Hegel muito claro no que diz respeito importncia deste movimento de: apresentar-se a si mesmo como pura abstrao269 que o motor da ao da conscincia. Pois tal apresentao , na verdade, o fundamento da auto-determinao da subjetividade. A subjetividade s aparece como movimento absoluto de abstrao ( por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda aderncia imediata empiria que Hegel continua vinculado noo moderna de sujeito). O primeiro movimento de autodeterminao da subjetividade consiste pois em negar toda sua aderncia com a determinao emprica, consiste em transcender o que a enraza em contextos e situaes determinadas para ser apenas o puro ser negativo da conscincia igual-a-simesma. Tal aderncia a determinao emprica chega mesmo a ser definida como a corporeidade da conscincia na qual esta tem seu sentimento de si mas que a faz existir maneira de coisas dispostas diante de uma potncia que lhes estranha 270. O imperativo de anular a imediaticidade de sua existncia corporal pode nos explicar porque, para Hegel, a individualidade (Individualitt) aparece sempre, em um primeiro momento, como negao que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade emprica. Por isto, vimos como Hegel afirmava:
A apresentao de si como pura abstrao da conscincia-de-si consiste em mostrar-se como pura negao de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar
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HEGEL, Fenomenologia do esprito I, p. 159 - Die Darstellung seiner aber als der reinen Abstraction ... 270 Ver HEGEL, Enciclopdia, par. 431
que no est vinculado a nenhum ser-a (Dasein) determinado, nem singularidade universal do ser-ai em geral, nem vida271.
Lembremos do que dissera em aulas anteriores. Para Hegel, o sujeito moderno no era simplesmente fundamento certo do saber, mas tambm entidade que marcado pela indeterminao substancial. Ele aquilo que nasce atravs da transcendncia em relao a toda e qualquer naturalidade com atributos fsicos, psicolgicos ou substanciais. Como dir vrias vezes Hegel, o sujeito aquilo que aparece como negatividade que cinde o campo da experincia e faz com que nenhuma determinao subsista. Hegel insiste que a prpria constituio do sujeito enquanto pura condio formal de um saber que seria eminentemente representativo (como o saber na modernidade) exigia uma operao de negatividade. Podemos inicialmente compreender tal negatividade como a posio da inadequao entre as expectativas de reconhecimento do sujeito e o campo de determinaes fenomenais. Neste sentido, Hegel poderia simplesmente compreender esta negatividade que supera a imediatez abstrata, quer dizer, a imediatez que apenas ente em geral272 como transcendentalidade, tal como fizera, antes dele, Kant ao insistir, por exemplo, na clivagem necessria entre eu emprico e eu transcendental. Mas vimos como a negatividade hegeliana no a transcendentalidade kantiana. Ela manifestao, na empiria, daquilo que fundamenta a posio dos sujeitos. Por isto, a apresentao de si deve aparecer inicialmente como um ato/um agir que tende morte do Outro [ negao completa da essencialidade da perspectiva do Outro] e inclui o arriscar a prpria vida, j que afirmao de si atravs da negao de todo enraizamente em um Dasein natural. Este ato uma verdadeira luta de vida e morte. Uma luta entre conscincias que aparece assim fundamentalmente um o resultado do problema dos modos de auto-determinao disponveis a uma subjetividade cujo fundamento pensado enquanto negao. Hegel bastante claro neste sentido ao afirmar:
S mediante o pr a vida em risco, a liberdade se conquista e se prova que a essncia da conscincia-de-si no o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expanso da vida, mas que nada h para a
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conscincia que no seja para ela momento evanescente (verschwindendes Moment; que ela somente puro ser-para-si. O indivduo que no arriscou a vida pode ser bem reconhecido como pessoa [ou seja, como membro do vnculo social], mas no alcanou a verdade desse reconhecimento como uma conscincia-de-si independente [o que demonstra que no se trata de descrever simplesmente o advento dos modos de sociabilidade, mas de compreender como a conscincia pode ter a experincia da sua estrutura]273.
Ns havamos visto que Hegel est disposto a dar continuidade idia de que o princpio de subjetividade fundamento das expectativas universalizantes de racionalizao que suportam a experincia histrica da modernidade. Ele est em linha direta em relao noo kantiana de que o fundamento das operaes do que racional fornecido pela unidade sinttica de apercepes. No entanto, vimos tambm como Hegel est disposto a falar desta experincia de posio da negatividade do fundamento atravs de figuras como a confrontao com a morte. Em termos lgicos e estritamente hegelianos, o que aconteceu aqui foi que, ao deter-se diante da Morte, a conscincia chegou ao fundamento da existncia mesma. No a toa que Hegel joga, deliberadamente, com os termos zugrundgeher (aniquilar-se) e zu Grund geher (chegar ao fundamento). O fundamento , na filosofia hegeliana, esta determinao da reflexo que: (...) no tem nenhum contedo determinado em si e para si; tambm no fim, por conseguinte no ativo nem produtivo274. Ou seja, trata-se da pura forma, preexistente a qualquer contedo que venha preench-la. O que a conscincia experimentou ao chegar ao fundamento que apreender esta pura forma , invariavelmente, aniquilar-se enquanto aderncia ao ser-a natural e se descobrir como negao de si em si mesmo. O problema, aqui, como elevar o fundamento existncia. Lembremos como Hegel usa de maneira bastante precisa esta experincia da negao absoluta que a morte. Quando, neste contexto, Hegel fala em morte, ele pensa na manifestao fenomenolgica prpria indeterminao fenomenal do que nunca apenas um simples ente. Ou seja, a morte indica uma experincia do que no se submete aos contornos auto-idnticos da representao, a morte como aquilo que no se submete determinao do Eu. Este fundamento que no tem nenhum
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contedo determinado em si e para si, ao se manifestar, toca o prprio modo de enraizamento do sujeito naquilo que aparece a ele como mundo. A morte a experincia da fragilidade das imagens do mundo e dos sistemas substancialmente enraizados de prticas sociais de ao e justificao. Ela assim um movimento fundamental para a constituio da estrutura moderna da subejtividade. No entanto, essa comprovao por meio da morte suprime [heben erheben termo no totalmente convergente com aufheben. Hegel usa o termo para indicar uma negao imediata que no implica em conservao] justamente a verdade que dela deveria resultar. O puro aniquilamento de si atravs da morte bloqueia a auto-posio de si como fundamento. A pura morte do outro anula a possibilidade do reconhecimento de tal processo de auto-posio e, por conseqncia, do reconhecimento da liberdade implicada neste processo de auto-posio. Da porque Hegel afirma que a conscincia faz a experincia de que a vida a posio natural da conscincia, a independncia sem a negatividade absoluta e que a morte apenas uma negao natural. Atravs da luta de vida e morte, a conscincia procura suprimir o que lhe aparece como essencialidade alheia. Hegel joga com um duplo movimento de supresso que necessariamente convergente. Por um lado, a conscincia procura suprimir seu vnculo essencial vida como Dasein natural, ela procura afirmar-se atravs da distncia em relao a tudo o que est preso ao ciclo irreflexivo da vida. Por outro lado, a conscincia-de-si procura suprimir seu vnculo essencial outra conscincia-de-si a fim de afirmar-se em sua pura imediatez idntica a si mesma. A convergncia destes dois movimentos fica explcita se lembrarmos que a vida fornece a determinao emprica da conscincia-de-si, ela fornece o em-si cuja objetividade implica necessariamente na presena do Outro. Assim, negar a vida para se pr como pura abstrao , necessariamente, um movimento que envolve o negar da essencialidade do Outro. No entanto, o contrrio tambm verdadeiro. Como vimos no pargrafo 186, a imerso integral da conscincia no elemento da vida implicava na impossibilidade do reconhecimento do Outro como conscincia-de-si independente. Surgindo assim imediatamente, os indivduos so um para outro maneira de objetos comuns, figuras independentes, conscincias imersas no ser da vida275. Isto apenas nos lembra como a confrontao com a negatividade da morte tem um carter formador para a conscincia275
de-si; fato que ficar ainda mais evidente no desdobrar da dialtica do Senhor e do Escravo. Podemos mesmo dizer que o reconhecimento no implica exatamente no afastarse da morte, at porque a vida do esprito : a vida que suporta a morte e nela se conserva276. O que ele implica , na verdade, a compreenso de que o que est em jogo na experincia fenomenolgica da confrontao com a morte no uma negao abstrata: termo central que indica uma compreenso no-especulativa de relaes de oposio. A negao abstrata da vida produz uma situao na qual os opostos (vida e morte): no se do nem se recebem de volta, um ao outro reciprocamente, atravs da conscincia, mas deixam um ao outro indiferentemente livres, como coisas (Dinge)277. Ou seja, a significao dos termos opostos no passa uma na outra. Esta operao no aquilo que Hegel chama aqui de negao da conscincia (Negation des Bewustssein), ou seja, esta negao determinada que supera de tal modo que guarda e mantm o superado e, com isto, sobrevive a seu vir-a-ser superado278. A conscincia deve pois negar a vida de maneira determinada, o que implica em compreender a vida como espao no qual o negativo pode ser convertido em ser. A vida deve ser inicialmente negada para ser recuperada no mais como plo positividade de doao imanente de sentido, como fundamento originrio, mas como locus de manifestao da negatividade do sujeito, como vida do esprito.
Dominao e servido Mas esta realizao ainda est longe. De fato: nessa experincia, vem a ser para a conscincia que a vida lhe to essencial quanto a pura conscincia-de-si279. Isto implica em uma clivagem: a conscncia reconhece a essencialidade tanto da vida quanto da pura abstrao em relao ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala da dissoluo da unidade do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto absoluto da conscincia. Eu simples representado pela tautologia do Eu=Eu [lembra da estrutura proposicional da igualdade/ a determinao particular idntica representao universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois momentos: uma pura conscincia-de-si, independente e para quem o ser para-si a essncia e uma conscincia para-um-outro,
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HEGEL, Fenomenologia, par. 32 HEGEL, Fenomenologia, par. 188 278 HEGEL, Fenomenologia, par. 188 279 HEGEL, Fenomenologia,par. 189
conscincia aferrada coisidade (Dingheit) e para quem o essencial a vida ou o serpara-um-outro. Esses dois momentos so como duas figuras opostas da consicncia (...) Uma o Senhor, outra o Escravo280. Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigidade deste como se. Hegel joga, em vrios momentos do texto, com uma dupla acepo do antagonismo figurado na dialtica do Senhor e do Escravo. Por um lado, ele parece ser a exteriorizao de uma clivagem interna conscincia na sua diviso entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida quanto da posio de pura abstrao. Por outro lado, ele aparece como o resultado de uma confrontao entre duas conscincias-de-si independentes em um movimento fundador dos processos de interao social. Esta duplicidade indica, na verdade, que estamos diante de um modo de interao social que , ao mesmo tempo, processo de formao da conscincia-de-si. Como dissera anteriormente, estruturao de modos de socializao e processos de constituio do Eu convergem necessariamente em Hegel, j que este no reconhece nenhuma unidade originria da conscincia-de-si. Por outro lado, vale a pena relativizar leituras que procuram encontrar, neste momento da Fenomenologia do Esprito, as bases normativas de uma teoria da gnese do social. No como deixar de notar diferenas profundas de inflexo entre esta verso do problema do reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela apresentada tanto na Filosofia do Esprito, de 1805, e na Enciclopdia em sua verso de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Esprito, de 1805, o problema do reconhecimento apresentado de maneira explcita em termos legais e polticos, j que a luta pro reconhecimento se organiza a partir de conceitos como: crime, lei, bens e constituio. Nada disto desempenha papel central na apresentao prpria Fenomenologia do Esprito. Podemos mesmo falar que: Nesta verso do problema do reconhecimento, Hegel est primariamente interessado no problema da universalidade, a maneira atravs da qual a atividade determinada introduzida na seo precedente, ainda que mediada atravs formas de interao social, pode ser bem sucedida em sua determinao apenas se o que Hegel chama de vontade particular se transforme em vontade universal e essencial281. claro que isto no exclui problemas polticos e legais, mas eles s podem ser compreendidos de maneira correta (e reconfigurados em sua extenso) se apresentarmos primeiro os problemas centrais que determinaro as bases mais amplas
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dos processos de reconhecimento: eles tocam a questo do desejo, da relao vida e morte e do trabalho. Os prximos seis pargrafos so extremamente condensados e tentam dar conta dos desdobramentos da dissoluo unidade inicial do Eu simples. Eles so organizados em duas perspectivas distintas. Entre os pargrafos 190 e 193, Hegel expe os impasses do reconhecimento do ponto de vista do Senhor. Dos pargrafos 194 a 196, Hegel expe como o conceito de reconhecimento poder ser realizado atravs do Escravo. O Senhor logo apresentado como uma conscincia que vive algo como um impasse existencial ligado ao carter parcial do seu reconhecimento. Enquanto conscincia que ainda procura realizar a noo de auto-identidade como pura abstrao de si, conscincia que procura sustentar uma relao imediata de si a si, o Senhor certo de si atravs da afirmao da inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta certeza dependente da negao reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negao que no a destruio pura e simples do Outro, mas a sua dominao enquanto desprezo pela sua essencialidade independente. Como sabemos, a necessidade desta dominao contradiz a aspirao do Senhor em ser reconhecido como pura identidade de si a si, j que ele reconhecido como Senhor apenas por uma conscincia inessencial. Este conceito de reconhecimento no pode aspirar validade universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse. Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua independncia e sua dominao no interior de dois processos: na confrontao com outra conscincia-de-si e na confrontao com o objeto (que, no interior da seo conscincia-de-si aparece necessariamente como tendo sua verdade enquanto objeto do desejo). Tais processos de dominao so organizados como silogismos. O primeiro enunciado da seguinte forma:
O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser independente, pois justamente ali o escravo est retido; essa sua cadeia, da qual no podia abstrair-se na luta, e por isto se mostrou dependente, por ter sua independncia na coisidade282.
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Ou seja, o Senhor domina o Escravo atravs da negao daquilo que lhe essencial (ao escravo): a coisa enquanto Dasein natural. A dominao , na verdade, negao daquilo que, para o Outro, tem valor essencial, se mostrar como potncia que est por cima desse ser. Este silogismo da dominao tem a estrutura que pode ser descrita da seguinte forma: a) O senhor nega/domina a coisa ao negar sua essencialidade independente (a coisa apenas objeto da particularidade do meu desejo), b) O escravo v sua essncia na coisa, c) O senhor nega/domina o escravo ao negar/dominar aquilo que, para o escravo, tem valor essencial. Mas a primeira proposio deste silogismo pede um desdobramento importante. Como sabemos, a coisa aparece aqui como objeto do desejo do Senhor. Neg-la e domina-la significa, na verdade, consumi-la, tal como vimos anteriormente no momento de apresentao da satisfao do desejo como consumao. Hegel demonstra continuar neste registro ao lembrar que a relao imediata de si a si do senhor deve ser posta como: pura negao da coisa, ou como gozo (Genuss). O gozo aparece como satisfao posta na identidade imediata de si a si, retorno indiferenciao generalizada entre sujeito e objeto atravs da destruio do objeto. No entanto, como vimos em aulas anteriores, o Senhor pode gozar da coisa e realizar a certeza de si mesmo ligada satisfao do desejo somente se esta coisa duplicar a estrutura da conscincia-de-si (j que o desejo , na verdade, um modo de auto-posio do sujeito). A astcia do Senhor consiste pois em interpor o escravo entre ele e a coisa. Desta forma, o Escravo trabalha a coisa e oferece, ao gozo do Senhor, uma coisa trabalhada: o senhor introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se conclui somente com a dependncia da coisa, e puramente a goza: enquanto o lado da independncia deixa-o ao escravo, que a trabalha283. S uma coisa trabalhada pode satisfazer um desejo compreendido fundamentalmente como modo de auto-posio (at porque: o trabalho o ato de se fazer coisa284). Isto demonstra como o Senhor s pode negar/dominar a coisa, isto no sentido de intuir no objeto sua prpria falta, atravs do trabalho do Escravo. O gozo do Senhor, enquanto posio imediata de si na coisa, pois, em ltima instncia, impossvel. Gozo impossvel porque ele s pode ser alcanado atravs da mediao resultante do trabalho do Escravo que, como veremos, se pe na coisa [ esta conscincia posta que o senhor deseja].
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O impasse existencial do Senhor demonstra-se ento nesta posio que consiste em depender da mediao do Outro para realizar uma satisfao que se quer imediata. A conscincia inessencial fornece a verdade da certeza de si mesmo do Senhor. A verdade da sua independncia pois dependncia, a verdade de sua imediatez pois mediao. Da porque Hegel pode falar: claro que ali onde o senhor se realizou plenamente ele encontra algo totalmente diverso de uma conscincia independente, o que para ele no uma conscincia independente, mas uma conscincia dependente285. Hegel ento lembra que estamos a diante de um processo parcial de reconhecimento. Como vimos, o reconhecimento uma reflexo duplicada que comporta quatro momentos: a reflexo do ser para-si no ser em-si da primeira conscincia, a reflexo do ser para-si no ser em-si da segunda conscincia, a reflexo do ser em-si da primeira conscincia no ser para-si da segunda conscincia e a reflexo do ser em-si da segunda conscincia no ser para-si da primeira conscincia. Estes dois ltimos movimentos so resultantes da compreenso de que a dimenso do em-si, enquanto espao do que se pe como objetividade, um espao de interao social suportado pela presena reguladora da alteridade. Neste sentido, temos aqui apenas a realizao de dois processos: a reflexo do ser para-si no ser em-si da segunda conscincia (o Escravo atravs do trabalho) e a reflexo do ser em-si da segunda conscincia no ser para-si da primeira conscincia (o Senhor atravs da consumao e do gozo da coisa trabalhada pelo Escravo). Da porque Hegel afirma:
Para o reconhecimento propriamente dito, falta o momento em que o senhor opera sobre o outro o que o outro opera sobre si mesmo; e o escravo faz sobre si o que tambm faz o sobre outro. Portanto, o que se efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual286.
A dominao mostra-se assim ser o inverso do que parecia ser, j que a completa autonomia se confunde com a completa dependncia.
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neste ponto que Hegel deixa o Senhor em seu impasse e passa anlise do movimento dialtica a partir da perspectiva do Escravo. Sem dvida, este aparece de incio fora de si, e no como a verdade da conscincia-de-si. Mas ele entrar em si como conscincia recalcada sobre si mesma e se converter em verdadeira independncia287. Ou seja, pelas vias da servido, a conscincia ir realizar a reconciliao com a objetividade necessria para a realizao do conceito de conscincia-de-si em sua estrutura de reconhecimento. Hegel comea lembrando que a essencialidade do escravo parece estar depositada no Senhor. ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu fazer. Quer dizer, seu fazer lhe estranho, assim como o objeto com o qual ela confronta lhe estranho. Por um lado, isto implica que o escravo se elevou para alm de sua singularidade, j que: Enquanto que4 o escravo trabalha para o senhor, ou seja, no no interesse exclusivo da sua prpria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em no ser apenas o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro288. No entanto, ter seu desejo vinculado ao desejo de um outro ainda no nos fornece a universalidade do reconhecimento almejado pela conscincia. Faz-se necessrio que este outro no seja apenas um outro desejo particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que essencial. Hegel ento se serve de um certo deslizamento que consiste em dizer que, no interior desta experincia particular, j h algo da ordem de uma necessidade universal que toca ao modo de manifestao do que essencial. Isto o permite operar um certo giro de perspectiva que consiste em dizer: l onde a conscincia encontra-se totalmente alienada, l que ela pode encontrar-se a si mesma, j que: o esprito s alcana sua verdade medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto289. Esta idia de que a conscincia deve se perder para poder se encontrar est intimamente vinculada maneira com que Hegel compreende a noo central de essncia. O pargrafo 194 muito ilustrativo neste sentido. Hegel comea lembrando que, para a conscincia
escrava, a essncia est fora dela mesma, est neste Senhor que encarna o puro para-si e que despreza o agir da conscincia escrava que aparece, para ela mesma, como algo de puramente estranho e oposto. Ela traz assim a oposio dentro de si e no se reconhece mais em seu agir, que lhe aparece como agir-para-um-Outro. Contudo, Hegel afirma
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HEGEL, Fenomenologia, par. 193 HEGEL, Enciclopdia, par. 433 - adendo 289 HEGEL, Fenomenologia, par. 32
que esta condio necessria para que ela experimente a essncia e tenha nela mesma essa verdade da pura negatividade e do ser-para-si. Logo em seguida, complementa:
Essa conscincia sentiu a angstia, no por isto ou aquilo, no por este ou aquele instante, mas sim atravs de sua essncia toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. A se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir a essncia simples da conscincia-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si que assim nessa conscincia290.
Este trecho talvez desvele seu real foco se lembrarmos que, para Hegel, a essncia no uma substncia auto-idntica que determina as possibilidades dos modos de ser. A essncia a realizao de um movimento de reflexo. Neste sentido, contrariamente ao ser que procurava sua fundamentao em determinaes fixas, a essncia se pe como determinao reflexiva e relacional. Em outras palavras, a essncia a unificao deste movimento reflexivo de pr seu ser em um outro, cindir-se e retornar a si desta posio. Da porque Hegel pode afirmar que, quando o ser encontrase determinado como essncia, ele aparece como: um ser que em si est negado todo determinado e todo finito291, ou ainda, como ser que pela negatividade de si mesmo se mediatiza consigo292. Neste sentido, Hegel insiste que a internalizao da negao de si prpria configurao da essncia deve se manifestar inicialmente como negatividade absoluta diante da permanncia de toda determinidade. neste sentido que a angstia deve ser compreendida como a manifestao fenomenolgica inicial desta essncia que s pode se pr atravs do fluidificar absoluto de todo subsistir, ou seja, do negar a essencialidade de toda determinidade aferrada em identidades opositivas. Manifestao inicial, da porque Hegel fala de essncia simples, mas manifestao absolutamente necessria. A angstia pode aqui ter esta funo porque no se trata de um tremor por isto ou aquilo, por este ou aquele instante, mas se trata aqui de uma fragilizao completa de seus vnculos ao mundo e imagem de si mesmo. esta fragilizao que traduz de maneira mais perfeita o que est em jogo
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HEGEL, Fenomenologia, par. 194 HEGEL, Cincia da lgica doutrina da essncia 292 HEGEL, Enciclopdia, par. 112
neste medo diante da morte, do senhor absoluto. O termo angstia tem aqui um uso feliz porque ele indica exatamente esta posio existencial na qual o sujeito parece perder todo vnculo do desejo em relao a um objeto, como se estivssemos diante de um desejo no mais desprovido de forma. No entanto, se a conscincia for capaz de compreender a angstia que ela sentiu ao ver a fragilizao de seu mundo e de sua linguagem como primeira manifestao do esprito, deste esprito que s se manifesta destruindo toda determinidade fixa, ento a conscincia poder compreender que este caminho do desespero , no fundo, internalizao do negativo como determinao essencial do ser. Da porque: o temor do senhor o incio [mas apenas o incio] da sabedoria293. Neste sentido, podemos mesmo dizer que, para Hegel, s possvel se desesperar na modernidade, j que ele a experincia fenomenolgica central de uma modernidade disposta a problematizar tudo o que se pe na posio de fundamento para os critrios de orientao do julgar e do agir. No entanto, ainda no tocamos em um ponto essencial que ir estabilizar esta dialtica. Pois a angstia sentida pela conscincia escrava no fica apenas em uma:
universal dissoluo em geral, mas ela se implementa efetivamente no servir (Dienen). Servindo, suprime (hebt) em todos os momentos sal aderncia ao sera natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potncia absoluta em geral, e em particular o do servio, apenas a dissoluo em si e embora o temor do senhor seja , sem dvida, o incio da sabedoria, a conscincia a para ela mesma, mas no ainda o ser para-si; ela porm encontra-se a si mesma por meio do trabalho294.
Nestes ltimos pargrafos, Hegel far uma gradao extremamente significativa que diz respeito ao agir da conscincia nas suas potencialidades expressivas. Hegel fala do servio (Dienen), do trabalho (Arbeiten) e do formar (Formieren). Esta trade marca uma realizao progressiva das possibilidades de auto-posio da conscincia no objeto do seu agir. O servio apenas a dissoluo de si no sentido da completa alienao de si no interior do agir, que aparece como puro agir-para-um-outro e como-um-outro. O trabalho implica em uma auto-posio reflexiva de si. No entanto, notemos aqui um dado essencial: Hegel no parece operar exatamente com uma noo expressivista de
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trabalho que veria sua realizao mais perfeita em uma certa compreenso do fazer esttico como manifestao das capacidades expressivas dos sujeitos. De uma certa forma, a categoria hegeliana de trabalho est marcada por ser uma certa defesa contra a angstia ou, ainda, uma superao dialtica da angstia, j que ele auto-posio de uma subjetividade que sentiu o desaparecer de todo vnculo imediato ao Dasein natural, que sentiu o tremor da dissoluo de si [algo prximo da categoria weberiana de trabalho asctico]. Lembremos desta afirmao central de Hegel:
O trabalho desejo refreado, um desvanecer contido, ou seja, o trabalho forma. A relao negativa para com o objeto toma a forma do objeto e permanente, porque justamente o objeto tem independncia para o trabalhador. Esse meiotermo negativo ou agir formativo , ao mesmo tempo, a singularidade, ou o puro-ser-para-si da conscincia que agora no trabalho se transfere para fora de si no elemento do permanecer; a conscincia trabalhadora chega assim intuio do ser independente como intuio de si mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua prpria negatividade295.
Nota-se claramente aqui o papel de sntese que o trabalho desempenha, j que ele permite a intuio de si atravs da intuio do objeto, ou ainda, a intuio do ser independente como intuio de si mesmo. Por refrear o impulso destrutivo do desejo, o trabalho forma, isto no sentido de permitir a auto-objetivao da estrutura da conscincia-de-si em um objeto que sua duplicao. A realizao da unidade da conscincia-de-si na diferena realizada assim pelas estruturas materiais do trabalho. Esta sada das dicotomias da conscincia-de-si atravs da configurao de uma sntese materialista devido recuperao da centralidade da categoria do trabalho ser de suma importncia para os passos posteriores da filosofia alem, em especial aqueles que nos conduzem a Marx. No entanto, sobre o conceito hegeliano de trabalho, vale a pena perceber como ele no est vinculado ao vitalismo de um conceito expressivista, mas a uma idia peculiar de auto-objetivao da negatividade do sujeito exposta atravs da angstia diante do senhor absoluto. Da porque Hegel pode dizer:
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Se no suportou o medo absoluto, mas somente alguma angstia, a essncia negativa ficou sendo para ela algo exterior, sua subsistncia no foi integralmente contaminada por ela. Enquanto todos os contedos de sua conscincia natural no forem abalados, essa conscincia pertence ainda, em si, ao ser determinado296.
De uma certa forma, o carter alienado do trabalho, relao ao objeto marcada pelo estranhamento diante de uma essncia alheia (Fremde) aparece assim como momento essencial para a formao da conscincia-de-si. Se no suportou o medo absoluto da despossesso de si, a conscincia no pode se reencontrar atravs do trabalho, j que ela estar diante de um objeto que no duplica sua prpria estrutura. Assim, ao invs de um conceito expressivista de trabalho, Hegel parece operar com um conceito muito prximo ao seu conceito de linguagem: a negao determinada do que se aloja na inteno incio da verdade absoluta de uma conscincia-de-si que traz em si mesma sua prpria negao. Da porque: Linguagem e trabalho so exteriorizaes (uerungen) nas quais o indivduo no se conserva mais e no se possui mais a si mesmo; seno que nessas exteriorizaes faz o interior sair totalmente de si, e o abandona a Outro297. No entanto, este conceito de trabalho ser duramente criticado por Marx., tal como veremos na prxima aula.
Na aula de hoje, trata-se de dar conta de dois objetivos. Primeiro, gostaria de aprofundar a discusso a respeito do uso hegeliano da categoria de trabalho enquanto figura de sntese entre sujeito e objeto. Para tanto, devemos analisar as crticas de Narx a respeito do carter abstrato do trabalho em Hegel. Por outro lado, trata-se de avanar em nossa leitura da Fenomenologia do Esprito atravs da apresentao destas duas figuras da conscincia que seguem a dialtica do Senhor e do Escravo, ou seja, o estoicismo e o ceticismo. Com dissera anteriormente, a ltima aula de nosso semestre ser dedicada
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apresentao, em linhas gerais, da figura que encerra a seo Conscincia-de-si, a saber, a conscincia infeliz. Na aula passada, terminamos a exposio da dialtica do Senhor e do escravo. Vimos como a conscincia estava s voltas com o problema do estatuto de seus processos de auto-determinao e de auto-posio. Processos estes pensados a partir da exigncia inicial de apresentar-se a si mesmo como pura abstrao298. Pois tal apresentao , na verdade, o fundamento da auto-determinao da subjetividade. A subjetividade s aparece como movimento absoluto de abstrao ( por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda aderncia imediata empiria que Hegel continua vinculado noo moderna de sujeito). O primeiro movimento de auto-determinao da subjetividade consiste pois em negar toda sua aderncia com a determinao emprica, consiste em transcender o que a enraza em contextos e situaes determinadas para ser apenas o puro ser negativo da conscincia igual-a-si-mesma. Vimos como tal aderncia a determinao emprica chegava mesmo a ser definida como a corporeidade da conscincia na qual esta tem seu sentimento de si mas que a faz existir maneira de coisas dispostas diante de uma potncia que lhes estranha299. O imperativo de anular a imediaticidade de sua existncia corporal pode nos explicar porque, para Hegel, a individualidade (Individualitt) aparece sempre, em um primeiro momento, como negao que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade emprica. Recapitulemos o problema central que anima a seo Conscincia-de-si. A conscincia mo age mais como quem acredita que o fundamento do saber deve ser procurado atravs da confrontao entre representaes mentais e estados de coisas dotados tanto de autonomia metafsica quanto de acessibilidade epistmica. Como dir Hegel logo no incio da nossa seo: Nos modos precedentes da certeza, o verdadeiro para a conscincia algo outro que ela mesma [j que a medida da verdade dada pelo objeto e pela adequao do saber ele]. (...) Surgiu porm agora o que no emerge nas relaes anteriores, a saber, uma certeza [subjetiva] igual sua verdade [objetiva], j que a certeza para si mesma seu objeto, e a conscincia para si mesma a verdade300. Dizer que a certeza para si mesma seu objeto e que a conscincia para si mesma a verdade implica em dizer que l onde o saber acreditava estar lidando com objetos autnomos, ele estava lidando com a prpria estrutura da conscincia enquanto
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HEGEL, Fenomenologia do esprito, par. 187 - Die Darstellung seiner aber als der reinen Abstraction ... 299 Ver HEGEL, Enciclopdia, par. 431 300 HEGEL, Fenomenologia, par. 166
o que determina a configurao do que pode aparecer no interior do campo da experincia. No entanto, eu dissera que no devemos compreender isto como a realizao de uma subsuno integral do objeto conscincia, tal como faz Heidegger ao afirmar, sobre Hegel: A verdade do saber, ou seja, o saber como verdade, s alcanado a partir do momento em que o prprio saber advm objeto para si, em que a certeza no mais certeza sensvel, mas certeza de si mesmo301. Devamos compreender esta noo da conscincia-de-si como terra ptria da verdade atravs da idia de que a experincia fenomenolgica demonstra, conscincia, que a estrutura do objeto duplica a estrutura do eu. Quem diz duplicao no diz exatamente subsuno. Quem diz duplicao diz simplesmente que a experincia de inadequao entre objeto da experincia e representao que determina identidades, uma constante durante os trs captulos da seo conscincia que nos levou compreenso do objeto como uma contradio em-si (isto ao final do captulo Fora e entendimento), ser agora sentida no interior do prprio Eu. Quem diz duplicao diz que a experincia de referncia-a-si ser configurada da mesma maneira que a experincia de confrontao entre Eu e objeto. Ou seja, em ltima instncia, todos os impasses na confrontao com o objeto so transportados para as operaes de autoreferncia. Mas, por outro lado, vimos que a conscincia-de-si era a terra ptria da verdade no apenas porque a estrutura do objeto duplicava a estrutura do eu. Hegel insistia, desde o incio que: a conscincia-de-si em si e para si quando e porque em si e para si para uma Outra, quer dizer, s como algo reconhecido302. A conscincia-de-si no era fruto de uma deduo transcendental ou de uma experincia de auto-posio da certeza absoluta de si mesma. Ela era o resultado de um processo social de reconhecimento realizado no interior de prticas de interao social. Como disse Robert Brandon: toda constituio transcendental uma instituio social. Esta compreenso era uma contribuio original de Hegel ao problema da autodeterminao da subjetividade moderna. Tratava-se, em ltima instncia, de afirmar que o sujeito era resultado de uma gnese emprica cuja lgica estava assentada nas dinmicas de reconhecimento. Por outro lado, isto implicava em dizer que a estrutura do Eu s poderia ser apreendida enquanto estrutura de interao social com o Outro: esta
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figura da alteridade que representa a presena de outro sujeito em geral. [submeter a produo da identidade a uma alteridade primeira e estruturante] A partir da, Hegel podia dar um passo decisivo para o encaminhamento do problema da fundamentao absoluta do saber. Se a estrutura do objeto duplica a estrutura do eu e se a estrutura do eu uma estrutura de interao social, ento poderamos dizer que as aspiraes cognitivo-instrumentais da razo derivam da racionalidade em operao nos modos mais elementares de interao social. Ou seja, trata-se em ltima instncia de admitir que a configurao do conhecimento uma questo de implementao de interesses prticos socialmente reconhecidos. Em ltima instncia, isto implica em submeter as operaes de conhecimento aos critrios de reconhecimento intersubjetivo (o que no pode ser reconhecido intersubjetivamente no tem realidade para a conscincia). Como lembrar Habermas: O sujeito est sempre j enredado em processos de encontro e troca, e descobre-se j situado em contextos. A rede de relaes sujeito-objeto j est posta, as ligaes possvel com objeto j esto estabelecidas antes que o sujeito se envolva efetivamente em relaes e entre, de fato, em contato com o mundo (...) No lugar das estreis controvrsias da teoria do conhecimento, Hegel pretende dirigir a dioscusso para os meios que estruturam as relaes entre sujeito e objeto j antes de todo encontro efetivo303. No entanto, vimos como isto levava Hegel a afirmar que, a partir de agora, a relao entre conscincia e objeto no deveria ser compreendida apenas como relaes de conhecimento, mas como relaes de desejo e satisfao. Foi assim que compreendemos a afirmao na qual a oposio entre fenmeno e verdade era apresentada como tendo por essncia a unidade da conscincia-de-si consigo mesma (ou seja, no s o fenmeno era algo apenas para a conscincia, mas a verdade do mundo supra-sensvel tambm era algo apenas para a conscincia).Uma unidade que: deve vira-ser essencial a ela, o que significa: a conscincia-de-si desejo em geral304. Ou seja, uma unidade que s se realiza no momento em que compreendemos as relaes de objeto como relaes de desejo e satisfao. Notemos quo arriscada era a estratgia hegeliana. Pois ela poderia facilmente nos levar a um certo relativismo que submete as expectativas universalizantes da razo particularidade de interesses prtico-finalistas animados pelo desejo. Por isto Hegel precisa mostrar que, ao seguir a particularidade de seu desejo, a conscincia vai
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necessariamente realizar aquilo que pode aspirar validade universal e racionalmente fundamentada Toda a seo Conscincia-de-si pode ser apreendida a partir desta perspectiva: trata-se de entender como a conscincia parte do particularismo de uma posio baseada na simples procura de satisfao de seu desejo e de sua perspectiva particular de interesses e alcana a universalidade de uma posio na qual ela compreende sua ao como ao de um Eu que Ns e de um Ns que Eu, ou seja, ao de um Esprito que nada mais do que o conjunto de prticas sociais e processos de interao reflexivamente apreendidos e fundamentados. O primeiro passo fornecido por Hegel consistiu em aprofundar a idia de que a verdade do desejo no era exatamente ser desejo por um objeto particular determinado, mas ser desejo de reconhecimento, da porque: a conscincia-de-si s alcana sua satisfao em uma outra conscincia-de-si305. Sendo o desejo compreendido, no interior de uma longa tradio que remonta Plato, como manifestao da falta (falta esta que determina o objeto como essencialidade do que falta conscincia), abria-se as portas para Hegel determinar o desejo como um movimento de auto-posio da conscincia (j que, atravs da satisfao do desejo, a conscincia determina a essencialidade do que lhe constitui como falta). Neste sentido,a conscincia-de-si s pode intuir a si mesma em um objeto que duplica a estrutura da conscincia-de-si, ela s pode intuir a si mesma em um objeto que se estrutura como uma outra conscincia-desi. Isto implica em dizer que o particularismo do desejo uma iluso j que o que anima a conscincia em sua ao e conduta so exigncias universalizantes de reconhecimento de si pelo Outro, exigncia de ser reconhecida no apenas enquanto pessoa no interior de ordenamentos jurdicos contextuais e de instituies presas a situaes sciohistricas determinadas, mas como conscincia-de-si singular em toda e qualquer situao scio-histrica e para alm de todo e qualquer contexto. Para tanto, ela precisar ser reconhecida por um outro que no seja apenas uma outra particularidade, mas um Outro que possa suportar aspiraes universalizantes de reconhecimento. Este processo de reconhecimento ser, no entanto, marcado desde o incio pelo conflito e pelo antagonismo. Conflito que pode aparecer sob a figura da dominao (dialtica do Senhor e do Escravo), do afastamento do mundo (autarkeia estica e ctica) ou da conscincia de estar aprisionada no que inessencial (conscincia infeliz). A necessidade do conflito pode ser compreendida se lembrarmos que realizar tais
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aspiraes universalizantes de reconhecimento significa, inicialmente, abstrair-se de toda e qualquer determinao contextual, apresentar-se a si mesmo como pura negao da maneira de ser objetiva, como pura transcendncia e em relao, inclusive, perspectiva do Outro. No entanto, vimos como este movimento leva a conscincia a uma posio insustentvel caracterizada por Hegel atravs da figura da confrontao com a morte. Confrontao necessria j que s mediante o pr a vida em risco que a liberdade se conquista mas que bloqueia as possibilidades de reconhecimento j que retira o solo do vnculo determinao emprica, base para a objetividade do que emsi. Na verdade, encontramos aqui este movimento tipicamente hegeliano de derivar a posio da universalidade de experincias iniciais de negao. pelas vias da negatividade que, inicialmente, a universalidade se apresenta, embora ainda de maneira abstrata. Pois a negatividade fornece as bases da experincia da incondicionalidade, ou seja, do que no se esgota na atualizao de nenhuma determinao particular. A questo consiste em saber como tal experincia pode fornecer parmetros para a configura da racionalidade da dimenso prtica. Para tanto, devemos passar desta noo de universalidade como pura abstrao para uma universalidade capaz de se encarnar em uma determinao concreta. Hegel nos oferece duas figuras da posio desta negatividade no interior da dialtica do Senhor e do Escravo. A primeira configura a posio do Senhor e temrinar em uma impasse (no sentido daquilo que no pode realizar seu prprio conceito), a segunda configura a posio do Escravo e permitir a continuao da experincia fenomenolgica. Vimos como, enquanto Senhor, a conscincia procura ainda realizar a noo de auto-identidade como pura abstrao de si. Mas enquanto relao imediata de si a si, o Senhor certo de si atravs da afirmao da inessencialidade de toda alteridade, certeza que dependente da negao reiterada da inessencialidade do Outro. Uma negao que no a destruio pura e simples do Outro, mas a sua dominao enquanto desprezo pela sua essencialidade independente. Como vimos, a necessidade desta dominao contradiz a aspirao do Senhor em ser reconhecido como pura identidade de si a si, j que ele reconhecido como Senhor apenas por uma conscincia inessencial. Por outro lado, ele s realizao tal identidade atravs de um gozo destrutivo em relao essencialidade da coisa. Mas a coisa que objeto do gozo do Senhor uma coisa trabalhada pelo Escravo, coisa na qual o Escravo se pe. Assim, o objeto que duplica o
Senhor um objeto no qual o Escravo est posto. Sua identidade imediata assim mediada pelo Escravo, O Senhor consome um objeto no qual o Escravo se encontra. Ele consome como um Escravo. A realizao do seu conceito a interverso do seu conceito. Por outro lado, o Escravo fornece uma via capaz de nos fazer passar da universalidade abstrata universalidade concreta. Hegel comea lembrando que a essencialidade do escravo parece estar depositada no Senhor. ele quem domina o seu fazer e consome o objeto de seu fazer. Quer dizer, seu fazer lhe estranho, assim como o objeto com o qual ela confronta lhe estranho. Por um lado, isto implica que o escravo se elevou para alm de sua particularidade, j que: Enquanto que o escravo trabalha para o senhor, ou seja, no no interesse exclusivo da sua prpria singularidade, seu desejo recebe esta amplitude consistindo em no ser apenas o desejo de um este, mas de conter em si o desejo de um outro306. No entanto, ter seu desejo vinculado ao desejo de um outro ainda no nos fornece a universalidade do reconhecimento almejado pela conscincia. Faz-se necessrio que este outro no seja apenas um outro desejo particular, mas que ele tenha algo da universalidade incondicional do que essencial Isto possvel na medida em que Hegel insiste que o Escravo est submetido no apenas a este Senhor particular, mas a um Senhor Absoluto. De uma certa forma, ele age em nome deste Senhor Absoluto. Lembremos desta passagem central para a dialtica do Senhor e do Escravo:
Essa conscincia sentiu a angstia, no por isto ou aquilo, no por este ou aquele instante, mas sim atravs de sua essncia toda, pois sentiu o medo da morte, do senhor absoluto. A se dissolveu interiormente, em si mesma tremeu em sua totalidade e tudo o que havia de fixo, nela vacilou. Entretanto, esse movimento universal puro, o fluidificar-se absoluto de todo subsistir a essncia simples da conscincia-de-si, a negatividade absoluta, o puro ser-para-si que assim nessa conscincia307.
Vimos, na aula passada, a funo positiva desta angstia diante do um Senhor que tem valor absoluto.Ela era primeiro modo de manifestao fenomenolgica de uma essncia cuja reflexividade se pe necessariamente como fluidificar-se absoluto de toda
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determinidade simples que implica em uma fragilizao absoluta do que aparecia conscincia como representao natural de si e do mundo. Mas vimos tambm como esta angstia no ficava apenas em uma universal dissoluo em geral, mas ela era implementada atravs do servir, do trabalho e do formar. Neste ponto, terminamos a aula passada. Eu insistira na importncia do aparecimento da categoria do trabalho neste contexto. Sua funo era realizar, ainda que de maneira imperfeita, o que o desejo no era capaz de fazer, ou seja, realizar a autoposio da conscincia-de-si em suas exigncias de universalidade. A prpria definio do trabalho j mostrava como ele estava na linha direta dos desdobramentos do desejo, j que o trabalho , fundamentalmente: desejo refreado, um desaparecer contido no qual
a relao negativa para com o objeto [advinda da tentativa de submisso da matria forma, e da resistncia da matria forma] torna-se a forma do objeto e algo permanente (...) a conscincia trabalhadora chega assim intuio do ser independente como intuio de si mesma (...) no formar da coisa, torna-se objeto para o escravo sua prpria negatividade308.
Esta era uma maneira peculiar de Hegel conservar a idia do trabalho como auto-posio das capacidades expressivas dos sujeitos, duplicao da conscincia em um objeto que espelha sua prpria estrutura. A realizao da unidade da conscincia-desi na diferena podia assim ser realizada pelas estruturas materiais do trabalho (que um agira que necessariamente apresenta-se como modo de interao social). No entanto, Hegel, de uma certa forma, esvaziou a dimenso da expressividade j que o afeto que parece determinar a conscincia em seu para-si a angstia. ela que faz com que, no formar, o posto seja a prpria negatividade (e no a realizao autnoma de um projeto alojado na intencionalidade da conscincia). A alienao no trabalho, a confrontao com o agir enquanto uma essncia estranha, enquanto agir para-um-Outro absoluto (e no apenas para uma Outra particularidade) tem carter formador por abrir a conscincia experincia de uma alteridade interna como momento fundamental para a posio da identidade. Da porque: o temor do Senhor (absoluto) o incio da sabedoria.
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neste ponto que devemos introduzir algumas consideraes do jovem Marx sobre o uso hegeliano da categoria do trabalho. Lembremos, inicialmente, que o jovem Marx pensa o trabalho atravs de uma teoria de cunho expressivista. O paradigma da auto-posio do sujeito auto-referente pensado a partir de um certo modo de conceber a atividade criadora do artista. A idia expressivista da formao cultura reaparece como uma esttica da produo. Ela serve de modelo normativo para diferenciar objetivao de foras vitais (Marx fala de energia espiritual e fsica309) e alienao.H assim um pensamento da identidade guiando as expectativas normativas no interior da esfera do trabalho no-alienado. Da porque Marx fala da alienao como sentimento de seu prprio produto como de uma coisa estranha. Na alienao, o poder social, a fora produtiva aparece como uma fora estranha ao indivduo, situada fora dele: A alienao aparece tanto no fato de que meu meio de vida de outro, que meu desejo a posse inacessvel de outro, como no fato de que cada coisa outra que ela mesma, que minha atividade outra coisa310. Este ser-fora-de-si, que em Hegel aparecia como momento ontolgico fundamental das determinaes de reflexo que estruturam o movimento dialtico de auto-referncia vinculado, por Marx, ao resultado da situao do trabalho em um modo especfico de produo: o capitalismo. Certamente, outros modos de produo desenvolveram outras formas de alienao, mas certo que a superao da alienao s poderia se dar atravs da reconstruo das relaes de produo. Da a crtica superao abstrata, inefetiva, da superao hegeliana da alienao: em Hegel, a negao da negao no confirmao da verdadeira essncia, precisamente mediante a negao da essncia aparente, mas a confirmao da essncia aparente ou da essncia alienada de si em sua negao311. Marx pensa, por exemplo, nesta primeira posio do trabalho na Fenomenologia do Esprito. Vemos claramente como a superao da alienao atravs do trabalho est vinculada a uma certa re-compreenso do significado da alienao do trabalho (e no atravs da posio de uma mudana no modo de produo). A conscincia percebe,
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no trabalho alienado, a posio do seu vnculo essencial a uma exteriorizao que confrontao com uma alteridade constitutiva das relaes de si a si. De fato, tudo o que Hegel afirma que: Surgiu, para ns, uma nova figura da conscincia (...) uma conscincia que pensa ou uma conscincia-de-si livre312. Isto poderia nos levar concluso de que, como o ato de reconciliao formal (ele apenas uma nova orientao no pensamento que faz com que a relao negativa para com o objeto transforme-se em objetivao do que no sujeito aparece inicialmente como negatividade), a superao da alienao atravs de um trabalho que forma converte-se em confirmao da alienao. isto que Marx tem em mente ao afirmar que, em Hegel, o ato apenas formal: porque vale como um ato abstrato, porque o ser humano mesmo s vale como ser abstrato pensante, como conscincia-de-si e, em segundo lugar, porque a apreenso formal e abstrata, assim a superao da exteriorizao torna-se uma confirmao da exteriorizao ou, para Hegel, aquele movimento de auto-produo, de auto-objetivao como auto-exteriorizao e auto-alienao a absoluta e, por isto, a ltima exteriorizao da vida humana313. Mas Hegel opera assim por pensar a superao da alienao no a partir da reformulao das condies materiais de produo, mas atravs de uma reconfigurao dialtica das relaes de identidade e diferena diante do objeto da experincia. Sem negar a importncia do telos da modificao dos modos de produo, podemos lembrar tambm que a posio de relaes de imanncia entre sujeito e objeto (tal como em uma perspectiva expressivista) tambm uma forma de alienao. [Adorno] H ainda uma questo a levantar sobre os usos da categoria de trabalho em Hegel e Marx. Sabemos como, para Marx, o que determina o fato da alienao no capitalismo a diviso do trabalho e o trabalho abstrato pensado como mercadoria. Este uso visa dar conta da seguinte questo: o que significa falar do trabalho como modo de auto-posio da conscincia-de-si em uma situao histria dominada pela diviso do trabalho e pelo trabalho abstrato? Significa necessariamente em compreender que tal reconciliao exige configuraes profundas nos modos de produo. A diviso do trabalho indica como as foras produtivas e a racionalidade orientada para fins assumem uma forma indiferente ao comrcio dos indivduos enquanto indivduos. Por outro lado, ela consolida nosso prprio produto em uma fora objetiva que nos domina, fixando a atividade social em uma particularidade que
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bloqueia a manifestao da essncia. Da porque Marx afirma que, na sociedade comunista, os indivduos no teriam uma esfera de atividade exclusiva: o que cria para mim a possibilidade de hoje fazer uma coisa, amanh outra, caar de manh, pescar na parte da tarde, cuidar do gado ao anoitecer, fazer crtica aps as refeies, a meu belprazer, sem nunca me tornar caador, pescador ou crtico314. De fato, Hegel tambm procura dar conta do problema da diviso do trabalho. Embora ele no interfira diretamente no encaminhamento da Fenomenologia do Esprito, ele aparece claramente na Filosofia do Esprito, de 1805, assim como nas Lies sobre a filosofia do direito, ocasio da apresentao do conceito de sistema de necessidades. Ele chagar a dizer que: atravs da abstrao do trabalho, o singular mais mecanizado, mais embrutecido, mais privado de esprito. O espiritual, esta vida realizada consciente-de-si, advm um fazer vazio, a fora do si consiste na riqueza de seu empreendimento, tal fora se perde315. ocasio, Hegel sugere um pesado sistema fiscal de tributaes a fim de impedir que domnios da economia sejam prejudicados pelo desenvolvimento desigual, levando os trabalhadores a trabalhos cada vez mais embrutecedores. No entanto, contrariamente a Marx, Hegel acredita que, em um estado capaz de realizar as aspiraes racionais de fundamentao dos sistemas de interao social, a diviso do trabalho pode aparecer como relao mtua de indivduos que precisam coordenar o agir a fim de alcanar satisfao coletiva (ver, por exemplo, par. 199 da Filosofia do direito).
Mas o que nos interessa aqui o primeiro aspecto da crtica de Marx, este que diz respeito ao carter puramente abstrato e formal fornecido por Hegel reconciliao atravs do trabalho. Este ponto nos interessa pois ele foi, de uma certa, adiantado pelo prprio Hegel na seqncia de nosso texto, em especial atravs do comentrio da figura da conscincia representada pelo estoicismo. Neste ponto, podemos voltar ao comentrio de texto. Ao finalizar a dialtica do Senhor e do Escravo, Hegel introduz novamente a perspectiva do para ns a fim de fornecer uma avaliao do que estava realmente em jogo no interior do processo dialtico que analisamos:
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Surgiu, assim, para ns, uma nova figura da conscincia-de-si: uma conscincia que para si mesma a essncia como infinitude ou puro movimento da conscincia, uma conscincia que pensa, ou uma conscincia-de-si livre. Pois isto o que pensar significa: no ser objeto para si como Eu abstrato, mas como Eu que tem ao mesmo tempo o significado de ser em-si ou que se relaciona com a essncia objetiva de modo que ela tenha o significado do ser para-si da conscincia. Para o pensar, o objeto no se move em representaes ou figuras, mas sim em conceitos, o que significa: num ser em-si diferente que imediatamente para a conscincia no nada diferente dela316.
Ou seja, a conscincia s pode realmente apreender o que estava em jogo atravs do trabalho se ela abandonar o pensar representativo e sua perspectiva de adequao entre representaes mentais de um Eu abstrato e estados de coisas, isto a fim de aceder ao pensar especulativo que realiza esta noo de infinitude, comentada anterioremente, enquanto ter em-si sua prpria negao (o objeto) atravs da duplicao entre Eu e objeto. O trabalho compreendido como auto-posio na qual a relao negativa para com o objeto torna-se a forma do objeto fornece as bases da a experincia da infinitude do conceito. Para compreendermos este ponto, lembremos desta noo hegeliana do conceito como uma estrutura de relaes entre objetos articuladas a partir de negaes determinadas que se do no desdobramento de processos da experincia. Lembremos tambm da proposio sobre o holismo semntico de Hegel, proposio segundo a qual a compreenso das relaes j condio suficiente para a compreenso do contedo da experincia. Agora Hegel afirma que, atravs de uma compreenso especulativa do trabalho, temos a apresentao deste movimento do conceito. Isto a ponto de podermos seguir Hyppolite e dizer que: O conceito o trabalho do pensamento. Como podemos compreender estes pontos? J sabemos que, atravs do trabalho, a conscincia no agiu de acordo com aquilo que os pragmticos chamam de princpio de expressibilidade. Ela no realizou de maneira performativa o que estava em sua inteno (a auto-posio de si). Do objeto trabalhado, veio uma experincia de independncia, de resistncia ao conceito simples
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do Eu: o objeto era como um Outro. No entanto, este Outro a negao determinada do Eu, atravs do formar, percebo este Outro diante do meu agir, ele me nega ( Outro) e me conserva ( interno a mim, est no meu agir, por isto, eu mesmo). Atravs do trabalho, posso refletir-me em meu ser-Outro [que tanto a resistncia do sensvel quanto a presena de uma outras conscincias que descentram o significado da minha ao pois a coloca no interior de relaes sociais os dois nveis devem se articular]. Desta forma, o trabalho nos mostra como o conceito pode estabelecer relaes de negao determinada com os objetos aos quais ele se refere. No entanto, a conscincia pode operar algo como uma reconciliao formal e abstrata, tal como dissera Marx (at porque o trabalho foi apresentado inicialmente como posio de uma universalidade abstrata, negatividade em geral vinda da angstia diante da morte). Ao pensar nisto, Hegel fala em uma conscincia pensante em geral (abstrata) cujo objeto apenas a unidade imediata entre ser em-si e ser para-si. Esta conscincia , para Hegel, o estoicismo. Hegel compreende o estoicismo de Zeno de Ccio, Crsipo, Epteto e de Marco Aurlio como, no fundo, uma filosofia da resignao. Grosso modo, o estoicismo compreende a razo (logos) como princpio que rege uma Natureza identificada com a divindade. O curso do mundo obedece assim um determinismo racional. A virtude consiste em viver de acordo com a natureza racional aceitando o curso do mundo, ou seja, aceitando o destino despojando-se de suas paixes a fim de alcanar a apatia e a ataraxia. A autarkeia estica (influenciada pelos cnicos e pela sua concepo de autodeterminao como afastamento do nomos e dos prazeres) aparece assim como: liberdade, este momento negativo de abstrao da existncia317. Mesmo que a liberdade aparea definida como a possibilidade de agir a partir de sua vontade 318, a vontade virtuosa aquela que se reconcilia com o determinismo racional do curso do mundo. O que explica como indiferente para o estico ser Escravo (Epteto) ou Senhor (Marco Aurlio). Seu agir livre no trono como nas cadeias e em toda forma de dependncia do Dasein singular. Uma indiferena no pode levar a outra coisa que uma independncia e liberdade interiores319 que, para Hegel, sinal do aparecimento do princpio de subjetividade.
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HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo Digenes LARCIO, Vida e lenda de filsofos ilustres- Zeno 319 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo
Seu princpio que a conscincia essncia pensante e que uma coisa s tem essencialidade, ou s verdadeira e boa para ela medida que a conscincia ai se comporta como essncia pensante320.
Nota-se como esta afirmao parece corroborar a exigncia hegeliana de que a conscincia-de-si seja posta como essncia da verdade. Ainda mais se lembrarmos da afirmao hegeliana segundo a qual a elevao estica ao plano do pensamento: consiste em que no seja a natureza imediata o contedo nem a forma do verdadeiro ser da conscincia, mas que a racionalidade da natureza seja aceita pelo pensamento de tal modo que tudo seja verdadeiro e bom na simplicidade do pensamento321. Com isto, o estoicismo apreende a diferena constante entre o pensar e o que se d na efetivao fenomenal. Nisto, ele a primeira posio afirmativa da abstrao. Mas esta diferena constante, a conscincia a compreende como posio de Leis gerais que revelam a racionalidade da natureza, ou ainda, diferena simples que est no puro movimento do pensar. Retomamos assim um movimento apresentado no captulo Fora e entendimento: aps ter a experincia de uma universalidade eminentemente negativa em relao s determinaes fenomenais, a conscincia transforma tal diferena em Lei abstrata, com os problemas de aplicao da Lei ao caso que vimos anteriormente. No entanto, Hegel est mais interessado, ao menos nesta parte da Fenomenologia, nos impasses esticos a respeito da determinao da racionalidade em sua dimenso prtica. Sobre a autarkeia estica de uma conscincia que se compreende como essencialidade, Hegel dir: Seu agir conservar-se na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do pensamento322. A este respeito, Hegel chegar a afirmar que: a grandeza da filosofia estica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantm firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim323.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 198 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo 322 HEGEL, Fenomenologia, par. 199 323 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo
Mas Hegel no deixa de lembrar que uma des-alienao que se realiza apenas atravs do formalismo de um pensar que se retira do movimento do Dasein s pode aparecer como conformao quilo que no pode, por mim, ser modificado. Hegel apresenta assim uma crtica que ser, em vrias situaes, dirigida contra ele prprio: A liberdade da conscincia indiferente quanto ao Dasein natural; por isto igualmente o deixou livre,e a reflexo a reflexo duplicada. A liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua verdade, e verdade sem a implementao da vida324. Apenas como exemplo desta mesma crtica contra Hegel, lembremos do final de La patience du concept, de Gerard Lebrun: Enquanto a lgica designava at agora a instncia que havia transformado o desdobramento do logos em um discurso predicativo sobre o entes, a Lgica nova no julga mais os entes nos quais se investiro as categorias. Ela cessa de relacionar estas a objetos e de formar a trama de uma conscincia-de-coisas. Ou ainda. Sobre a Fenomenologia: o que tomvamos por uma narrativa de viagem no nos leva a nada, como se, ao final da Odissia, taca fosse fosse um nome, ao invs de uma ilha.As coisas mesmas a respeito das quais espervamos uma revelao, ei-las transmutadas em linguagem325. O estoicismo tem algo da infinitude, j que o Eu tem nele o ser-outro. Mas tratase de uma reflexo duplicada baseada na indiferena entre os plos. A essncia apenas a forma como tal, que se afastou da independncia da coisa. Mas a individualidade atuante deveria encontrar no conceito um princpio de indexao sobre o contedo que lhe seria adequado. Mas aqui o conceito abstrao, e no conceito determinado. Para sair da clausura do pensamento, o conceito deve saber determinar-se.
Hoje, terminamos a primeira parte do nosso curso. Continuaremos no semestre que vem a leitura da Fenomenologia do Esprito no ponto em que paramos, ou seja, o estoicismo e o ceticismo como figuras da experincia fenomenolgica em direo fundamentao
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absoluta do saber. Nosso projeto completar a leitura do texto hegeliano servindo-se sempre de um duplo movimento que articula apreenses de esquematizao geral e comentrio pontual de texto. No semestre que vem, discutiremos pois o encaminhamento da experincia fenomenolgica nas sees posteriores (Razo, Esprito, Religio e Saber absoluto). Isto nos levar a apreender a especificidade de conceitos centrais para a dialtica hegeliana, como: irredutibilidade do princpio de subjetividade, racionalidade do movimento histrico, interverses de processos de racionalizao dependentes da posio normativa de critrios de justificao. Retomaremos ainda o problema das relaes entre ontologia e teoria das negaes tendo em vistas certos desdobramentos da dialtica no pensamento do sculo XX. Neste sentido, gostaria de primeiramente comentar os tpicos que serviro de eixo de discusso para o prximo semestre e que esto apresentados na ementa do curso:
Razo categorial e razo dialtica: sobre a natureza das distines entre o transcendental e o especulativo e da crtica hegeliana s dicotomias do conceito kantiano de entendimento. A seo Razo e a crtica hegeliana ao processo de modernizao em suas dimenses: cognitivo-instrumental, prtico-finalista e jurdica.
A seo Esprito e a primeira apresentao de um conceito positivo de razo. Geist como prticas sociais legitimadas de maneira auto-reflexiva. Razo, histria e a natureza da Erinnerung hegeliana. Deleuze, crtico de Hegel: a diferena entre a repetio e a rememorao.
Sobre o fracasso da polis grega como espao de realizao da substncia tica. Antgona entre Hegel e Lacan: duas leituras sobre o conflito entre aspiraes da singularidade, norma familiar e ordenamento jurdico.
Os impasses da norma na dimenso prtica da razo. Hegel como terico das interverses da moralidade: a linguagem do dilaceramento de O sobrinho de Rameau, a anlise das clivagens da Gewissen e o advento da palavra de reconciliao. Ironia e dialtica ou Por que no rir da filosofia?
A teoria hegeliana do reconhecimento como abandono de uma teoria da intersubjetividade. Habermas, crtico de Hegel e a incompreenso a respeito da critica hegeliana a um processo de racionalizao pensado a partir da posio a
priori de critrios normativos de justificao da dimenso prticaFilosofia e teologia em Hegel. O conceito hegeliano de religio nos fornece uma teleologia da razo? Sobre o problema da contingncia em Hegel ou Por que as feridas do Esprito so curadas sem deixar cicatrizes? O esprito do cristianismo e seu destino na modernidade. O ser do Eu uma coisa enquanto julgamento infinito e palavra de reconciliao. Retorno ao problema dos destinos das noes de contingncia, de sensvel e de temporalidade na posio do Saber Absoluto. Que tipo de sntese o Saber Absoluto opera ou O que exatamente um conceito? Adorno, crtico da noo hegeliana de totalidade sistmica. Teoria das negaes e ontologia em Hegel e Adorno.
Mas eu gostaria de usar a aula de hoje para realizar dois objetivos. Primeiro, trata-se de fornecer, principalmente queles que, por alguma razo, no acompanharo o desdobramento deste curso no segundo semestre, uma avaliao parcial do que foi objeto do nosso trajeto at agora. Segundo, trata-se de avanar mais um pouco em nossa leitura e apresentar o que est em jogo na figura da conscincia apresentada por Hegel sob o nome de ceticismo.
O fim e o incio Vivemos alis numa poca em que a universalidade do esprito est fortemente consolidada, e a singularidade, como convm, tornou-se tanto mais insignificante; poca em que a universalidade se aferra a toda a sua extenso e riqueza acumulada e as reivindica para si. A parte que cabe atividade do indivduo na obra total do esprito s pode ser mnima. Assim, ele deve esquecer-se, como j o implica a natureza da cincia. Na verdade, o indivduo deve vir-a-ser, e tambm deve fazer o que lhe for possvel; mas no se deve exigir muito dele, j que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo326. Foi com esta frase de Hegel que iniciamos nosso curso. Partimos desta frase porque ela parecia sintetizar tudo aquilo que vrias linhas hegemnicas do pensamento filosfico do sculo XX imputaram a Hegel. Filsofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da diferena e das aspiraes de
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 62
reconhecimento do individual s estratgias de sntese do conceito. Terico de uma modernidade que se realizaria no totalitarismo de um Estado Universal que se julga a encarnao da obra total do esprito. Expresso mais bem acabada da crena filosfica de que s seria possvel pensar atravs da articulao de sistemas fortemente hierrquicos e teleolgicos, com o conseqente desprezo pela dignidade ontolgica do contingente, deste contingente que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo. Mas o que podemos dizer a respeito destes diagnsticos agora, depois de uma leitura atenta das partes iniciais desta que , juntamente com a Cincia da Lgica e da Enciclopdia, uma das trs grandes obras de Hegel? claro que uma resposta absolutamente segura exigiria a compreenso no s da integralidade da nossa obra, mas tambm de sua articulao com as outras obras, o lugar correto da Fenomenologia no interior do sistema,. assim como a apreenso do desenvolvimento temporal do pensamento hegeliano. Mas, por um lado, sabemos que Hegel nunca recusou esta obra que inaugura seu perodo de maturidade. Ela fornece a base para a constituio de um programa filosfico (a crtica ao primado do entendimento atravs da reflexividade unificadora do conceito, crtica extensiva a todos os processos de racionalizao na modernidade) e de um procedimento de encaminhamento de questes (a dialtica renovada atravs da reconsiderao de categorias como contradio, oposio e negao) que nunca ser abandonado por Hegel. Ou seja, a Fenomenologia oferece um modo de pensar e articular problemas filosficos que ser a marca da experincia intelectual hegeliana. Neste sentido, a compreenso do que est em jogo em seus primeiros captulos j nos fornece um quadro seguro das questes que preocuparo Hegel desde ento. Lembremos ainda, para reforar nossa hiptese, que a deciso hegeliana de realizar uma nova edio da Fenomenologia, trabalho que no foi realizado devido morte de Hegel, apenas demonstrava que a Fenomenologia do Esprito continuava como pea fundamental do projeto filosfico hegeliano. E se sabemos da inteno de Hegel em retirar do ttulo : Sistema da cincia. Primeira parte porque a Fenomenologia j nos fornece um sistema de apresentao da cincia que autnomo em relao a um sistema enciclopdico. Podemos continuar na idia de uma dupla figura do sistema e afirmar que o saber fenomenolgico no se deixa absorver completamente pelo saber enciclopdico, mas estabelece uma experincia filosfica autnoma. Neste sentido, devemos leva a srio estas palavras de Heidegger: Na concepo hegeliana da Fenomenologia do Esprito, o esprito no o objeto da
fenomenologia, nem fenomenologia o ttulo de uma pesquisa e de uma cincia sobre algo, como o esprito, por exemplo, mas a Fenomenologia a modalidade (e no apenas um modo dentre outros) segundo a qual o esprito . A fenomenologia do esprito designa a entrada em cena, o aparece verdadeiro e integral do esprito327. Mas antes de retornar a uma interpretao do empreendimento hegeliano, agora a partir do saldo de nossas leituras dos primeiros captulos da Fenomenologia, gostaria de lembrar como tal operao nos permite adiantar uma resposta provisria para uma questo que havia posto na primeira de nossas aulas: O que significa ler Hegel hoje?. Pois deveramos ter nos restringido economia interna dos textos e ignorado como a auto-compreenso filosfica da contemporaneidade afirmou-se insistentemente como anti-hegeliana? Como se nosso tempo exigisse no se reconhecer no diagnstico de poca e no permitisse deixar-se ler atravs das categorias fornecidas por Hegel. Ou seja, possvel ler Hegel hoje sem levar em conta como nosso momento filosfico organizou-se, entre outras estratgias, atravs dos mltiplos regimes de contraposio filosofia hegeliana? No estaramos assim perdendo a oportunidade de entender como a auto-compreenso de um tempo depende, em larga escala, da maneira com que se decide o destino de textos filosficos de geraes anteriores? Compreender como um tempo se define, entre outras operaes, atravs da maneira com que os filsofos lem os filsofos: prova maior de que a histria da filosofia , em larga medida, figura da reflexo filosfica sobre o presente? Dito isto, podemos retornar a nossa leitura a fim de ver em que ela nos permite reorientarmos nas estratgias contemporneas de compreenso do hegelianismo. Partamos desta crtica vrias vezes repetida contra Hegel: filsofo da totalidade do Saber Absoluto, incapaz de dar conta da irredutibilidade da diferena e das aspiraes de reconhecimento do individual s estratgias de sntese do conceito. Uma crtica que levou, por exemplo, Heidegger a falar, a respeito da figura do para ns que comenta a experincia fenomenolgica, de um sintoma claro da orientao prvia da experincia em direo a um conceito j decidido de Absoluto: O objeto para ns, nosso objeto, o objeto para estes (ns) que, desde o incio, sabem, comportando-se de maneira mediatizante, ou seja, a partir do modo da superao j caracterizada328. Como se o recurso perspectiva do para ns no interior do nosso texto demonstrasse a necessidade de que o trajeto fenomenolgico j fosse, desde o incio traado na
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segurana de um dispor que esvazia toda possibilidade de reorientao de uma experincia previamente traada. No entanto, vimos como a afirmao de que a conscincia para si mesma sua prpria medida implicava na idia de que o ritmo da experincia deveria ser determinado pela prpria experincia. Tentem lembrar se, em algum momento, o recurso perspectiva do para ns foi necessrio para o desdobramento da experincia fenomenolgica. Ao contrrio, vimos como as interverses e inverses que guiam o desdobramento da Fenomenologia do Esprito so resultantes do prprio processo de tentativa de indexao direta da efetividade s representaes naturais do que mero conceito. Vimos como a saber fenomenolgico deve operar com uma perspectiva internalista que praticamente no faz uso de nenhum saber pressuposto o que demonstra como a noo de que o saber absoluto est l posto desde o incio suprflua, desnecessria. verdade que, como vimos, Hegel lembra que o trajeto fenomenolgico s pode ser configurado se a Fenomenologia aceitar abandonar uma gramtica filosfica da finitude, prpria ao entendimento. Mas lembremos que, at agora, os descaminhos da experincia da conscincia no foram, em momento algum, marcados pelo peso da conjugao forada de outra gramtica filosfica. O ponto do qual Hegel parte , digamos, pragmtico. Ele consiste em dizer que os termos fundamentais do saber s podero definir suas significaes atravs do uso que deles faremos no interior do campo fenomenolgico. Ou seja, a verdadeira tarefa filosfica no consiste em tentar esclarecer previamente a significao de conceitos primeiros para a estruturao de todo saber possvel. A verdadeira tarefa filosfica consiste em partir do uso ordinrio desses conceitos para mostrar como sua significao no universalmente conhecida, como poderia parecer primeiramente. No entanto, a filosofia no deve ser uma crtica representao natural do saber a partir da crena de j possuir uma representao adequada do saber. Ao contrrio, ela deve mostrar que a produo dos conceitos que norteiam o saber o resultado de um processo, e no a pressuposio de uma evidncia. A dialtica deve comear sem conceitos prprios, apenas conjugando os conceitos do entendimento em outra gramtica. Na verdade, esta afirmao no est totalmente correta. H ao menos duas pressuposies que guiam Hegel. A primeira diz respeito compreenso de que
identidades so produzidas atravs de relaes configuradas a partir da noo de negao determinada, e no atravs de oposies. Mas,de fato, no se trata totalmente de um pressuposto porque Hegel quer mostrar a inconsistncia lgica da noo de extenso que sustenta as operaes de determinao de identidades a partir de oposio. Mas h de fato um pressuposto: S o absoluto verdade, ou s o verdadeiro absoluto. Esta afirmao no demonstrada, mas apenas postulada. E., de fato, a perspectiva hegeliana uma perspectiva holista. O absoluto pressupe uma perspectiva holista do saber. Isto implica em dizer que o saber s ser assegurado em seu fundamento se ele for absolutamente fundamentado. Falar em Saber absoluto no implica em falar em uma absolutizao do saber que implicaria na crena em uma deduo integral da efetividade a partir das categorias do saber. Falar em Saber Absoluto implica em dizer que o nico saber objetivo aquele que pode ser absolutamente fundamentado, ou seja, assegurado em um fundamento incondicional, universal e concreto (no sentido de algo que tem, em si, a norma de sua determinao concreta). claro, podemos ter conhecimento de situaes condicionadas e regionais. A partir de tais situaes, podemos procurar generalizaes que nos permita esboar quadros de previses, nos orientar em aes cotidianas, entre outros. Mas, para Hegel, s poderemos falar em um saber verdadeiro se o que determina a verdade deste saber for reconhecido em toda e qualquer condio e em todo e qualquer contexto. O que constitui o campo do saber aquilo que pode aspirar validade incondicional, universal e concreta. Mas vrias questes se pem a partir desta pressuposio holista. A primeira : quem fala a partir desta perspectiva meta-contextual? Segundo, poderia parecer que Hegel entraria a necessariamente nesta crtica da contemporaneidade a uma figura do pensar que aniquila as singularidades puras, a contingncia, a no-identidade e o sensvel em prol de uma hipstase do Absoluto e do Universal. Ou seja, uma figura que aniquila a independncia da coisa em prol da absolutizao das estruturas cognitivas do sujeito. Como dir Adorno: Se Hegel tivesse levado a doutrina da identidade entre o universal e o particular at uma dialtica no interior do prprio particular, o particular teria recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito tal como um pai repreendendo seu filho: Voc se cr um ser particular -, ele o abaixe ao nvel de
simples paixo e psicologize o direito da humanidade como se fosse narcisismo, isto no apenas um pecado original individual do filsofo329. Mas lembremos mais uma vez do que vimos no interior do nosso trajeto filosfico. Hegel partia das expectativas da conscincia em fundamentar o saber a partir do que lhe aparece de maneira imediata enquanto certeza sensvel. Ela julga ter diante de si a particularidade que determinaria a essencialidade da coisa mesma. No entanto, ela faz a experincia de que no h nenhuma designao ostensiva possvel da particularidade, de que a linguagem s enuncia o universal. Da porque: O falar tem a natureza divina de inverter imediatamente o visar, de torna-lo algo diverso, no o deixando assim aceder palavra330. O que acontece ento a partir da? Como a conscincia acredita que a medida da verdade dada pelo objeto, ela procura ento um saber capaz de dar conta de uma coisa que , ao mesmo tempo, aquilo que suporta atribuies predicativas universais que me permitiriam apreender a singularidade. Na verdade, Hegel apela aqui estrutura categorial das propriedades, um pouco como Aristteles lembrava que as categorias eram os gneros mais gerais do ser que permitia a individualizao de substncias Em relao certeza sensvel, a percepo procura convergir a estrutura universalizante da linguagem com a particularidade da experincia do mundo atravs da compreenso dos universais como propriedades gerais de objetos. A coisa aparece assim como um individual capaz de ser descrito e apreendido por universais, ou ainda, como uma coisa com mltiplas propriedades. Notamos que a exigncia de pensar o que resiste ao conceito o que move a conscincia. Vimos ainda como isto levava a conscincia a estruturar o objeto da percepo a partir da dicotomia entre Um e mltiplo. Uma dicotomia que nos levava diretamente para fora da percepo enquanto operao que fundamentaria o saber. Entrvamos assim diretamente nas consideraes hegelianas sobre o primado do entendimento. Na passagem em direo ao entendimento, vimos que o motor continuava sendo a exigncia de pensar o que resiste ao conceito. No entanto, a conscincia assumia a humildade de uma certa figura do saber que compreende a crtica como determinao dos limites do que funciona como expectativa da razo. A coisa que aparecia clivada na percepo entre Um e mltiplo era cindida entre a essencialidade de uma coisa-em-si,
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ADORNO, Negative Dialektik, p. 323 {traduo modificada] HEGEL, Fenomenologia, par. 110
incondicional indeterminado, e a coisa enquanto aquilo que para-um-outro, ou seja, como fenmeno, ser que imediatamente em si mesmo um no-ser (Nischtsein)331.. Diante da distino entre fenmeno e coisa-em-si, Hegel procurava demonstrar que se tratava do resultado de uma compreenso do sentido como o que se d na integralidade do dispor diante do sujeito (Vor-sich-stellen). .Por se aferrar a uma noo de presena como o que se d na integralidade do que se dispe diante da conscincia, uma presena como visibilidade da representao, o entendimento no enxerga a negatividade do fenmeno como o que permite a passagem em direo essncia, mas como o que a exilava da essncia: Fascinado pelo obstculo, o entendimento no adivinha que este encontro j a promessa deum ajuste, de uma reconciliao332. A conscincia ainda estava aferrada a finitude e fixidez do pensar representativo, ela no tinha para si um modo de pensar capaz de dar conta do que no se coloca integralmente em uma determinao fixa. O passo fundamental da dialtica consistia exatamente em abandonar este conceito de presena prprio a uma gramtica da finitude. No entanto, Hegel no apresentava a exigncia de tal abandono como um postulado exterior ao trajeto fenomenolgico. Vimos atravs da temtica do mundo invertido como Hegel procurava mostrar que o pensar aferrado s dicotomias do entendimento entrava necessariamente em contradio ao tentar fundamentar operaes cognitivas que tomavam o que finito (fenmeno) de maneira absoluta, ou seja, que absolutizava a finitude. O passo em direo compreenso do objeto como infinitude, passo que implicava em entrar no domnio do pensar especulativo, implica em uma recompreenso da essencialidade da contradio. Da porque o conceito de infinito era reconstrudo a partir do conceito de contradio: A infinitude, ou essa inquietao absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que determinado de qualquer modo por exemplo, como ser seja antes o contrrio dessa determinidade333. Da a noo central: infinito o que porta em si mesmo sua prpria negao e conserva-se em uma determinidade, ao invs de produzir um objeto vazio de conceito. Notemos como nada disto implicava em esvaziar a dignidade ontolgica do que no se submete ao sujeito. Ao contrrio, se Hegel poderia afirmar que quando a infinitude objeto para a conscincia ela necessariamente conscincia-de-si, isto
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HEGEL, Fenomenologia, par. 143 LEBRUN, Vivre dans luniversel, p. 85 333 HEGEL, Fenomenologia par. 163
significava que a experincia de confrontao entre sujeito e objeto servir de parmetro para a estruturao das relaes a si. Da porque insisti que a verdadeira frmula hegeliana era: a estrutura do objeto duplica a estrutura do Eu, e no:o Eu submete o objeto ao seu primado. A infinitude que consiste em ter em si mesmo um Outro que o nega enquanto identidade fixa ao mesmo tempo em que o constitui enquanto estrutura social, eis no que consiste a experincia da conscincia-de-si. Por fim, vimos como a estrutura de formao da conscincia-de-si apresentava, ao mesmo tempo, o princpio da infinitude atravs de uma conscincia que, por s ser conscincia-de-si enquanto reconhecida por uma outra conscincia-de-si, trazia em si mesma seu prprio oposto, e o princpio de universalidade, j que este Outro no era apenas outra singularidade, mas Outro com valor absoluto, que a levava a ser reconhecida para alm de todo contexto e situao determinada. Ainda no vimos onde isto nos levar. Mas, para tanto, devemos esperar o prximo semestre e a anlise da figura da conscincia infeliz.
Mas antes de terminar este curso, gostaria de abordar alguns aspectos do problema do Saber Absoluto, isto a fim de mostrar a inadequao deste diagnstico contemporneo que v, a, a prova mxima de uma figura totalizante de uma razo centrada no sujeito. Sabemos que o Saber Absoluto no um absoluto de saber, isto no sentido, de uma figura do saber capaz de deduzir de si tudo o que da ordem da contingncia e da efetividade. Neste sentido, basta lembrarmos da famosa querela da pena de Krug. Este ltimo acusava o idealismo transcendental de tentar deduzir o sistema completo de nossas representaes a partir da noo de Absoluto. De onde seguia seu desafio em exigir que o idealismo transcendental deduzisse a pena com a qual ele escrevia naquele momento. A este respeito, Hegel afirmava que a exigncia de deduo da contingncia a partir do Absoluto era o mais completo contra-senso. Longe de procurar produzir uma deduo transcendental da contingncia, o idealismo transcendental reconhecia o contingente exatamente como contingente; ou seja, como o que aparece como negatividade necessariamente fora de sentido. O contigente (zufllig) o que est destinado a cair (zu fallen) para fora do conceito, o que Hegel no cessa de nos lembrar.
Na verdade, a temtica do Saber Absoluto implica no reconhecimento da necessidade de um saber que seja fundamentado de maneira incondicional, universal e concreta, isto se quiser aspirar validade como base para os processos de racionalizao e para o estabelecimento dos critrios de racionalidade. Lembremos do diagnstico de poca que anima o programa filosfico hegeliano: vivemos em uma poca na qual o esprito perdeu a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as vrias esferas de valores sociais. Ao contrrio, a modernidade pode ser compreendida como este momento que est necessariamente s voltas com o problema da sua auto-certificao. Ela no pode mais procurar em outras pocas os critrios para a racionalizao e para a produo do sentido de suas esferas de valores. Ela deve criar e fundamentar suas normas a partir de si mesma. Isto significa que a substancialidade que outrora enraizava os sujeitos em contextos sociais aparentemente no-problemticos est fundamentalmente perdida. Como dir, cem anos depois, Max Weber: O destino de nossos tempos caracterizado pela racionalizao e intelectualizao e, acima de tudo, pelo desencantamento do mundo. Precisamente, os valores ltimos e mais sublimes retiraram-se da vida pblica, seja para o reino transcendental da vida mstica, seja para a fraternidade das relaes humanas e pessoais334. Ou seja, aquilo que fornecia o
enraizamento dos sujeitos atravs da fundamentao das prticas e critrios da vida social no mais substancialmente assegurado. Este fundamento que fornece o solo da unidade da razo e de seus processos de racionalizao em todas as esferas da vida social o princpio de subjetividade. Quando Hegel afirma que o saber absoluto capaz de apreender a substncia como sujeito [como o que tem a estrutura do sujeito], isto apenas demonstra como a apreenso do que essencial encontra sua forma no sujeito. Durante toda a seo conscincia, vimos como a conscincia perdia-se a procurar o fundamento do saber no objeto atravs da tentativa de conformar representaes mentais a estados de coisas. Mas, ao entrar na seo conscincia-de-si, vimos que o fundamento do saber, este fundamento que fornece o solo da terra ptria da verdade, no era um sujeito assegurado em sua identidade atravs de dedues transcendentais ou intuies imediatas. Ele era um sujeito social, desde o incio engajado em prticas de interao social formadoras de sua prpria condio. Hegel ir pois transformar este sujeito que se
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constitui atravs de prticas de interao social em fundamento absoluto do que pode ter validade objetiva para o saber. Isto ao ponto da noo de Esprito no ser outra coisa do que um campo de prticas sociais de interao reflexivamente fundamentadas, ou seja> Um Eu que Ns, um Ns que Eu. Ficava ento a questo: o que significava para Hegel pensar o sujeito enquanto sujeito social? Significava inicialmente compreender que, atravs da centralidade das dinmicas do desejo e do trabalho, revela-se que: os indivduos so eles mesmos de natureza espiritual e, nisto, contm neles o duplo momento do extremo da singularidade que sabe e quer para si e o extremo da universalidade que sabe e quer o substancial 335. Ou seja, indivduo o nome desta contradio entre exigncias de reconhecimento da singularidade e posio de relaes constitutivas com um Outro que encarna a universalidade. Hegel nos oferece um exemplo a respeito destes indivduos que o locus da contradio entre singular e universal. Retornemos, por exemplo, a certos exemplos que Hegel nos fornece no momento de explicar como algo poderia conter em si a contradio. Notemos a importncia da afirmao de Hegel a respeito da presena imediata da contradio nas determinaes de relao: Pai outro do filho e filho outro do pai, cada termo apenas como outro do outro (...). [No entanto] O pai, para alm da relao ao filho tambm algo para si (etwas fr sich); mas assim ele no pai, mas homem em geral (Mann berhaupt). Hegel se serve do mesmo raciocnio em outro exemplo que toca de maneira direta o problema da designao: Alto o que no baixo, alto determinado apenas a no ser baixo, e s na medida em que h baixo; e inversamento, em uma determinao encontra-se seu contrrio". Mas : "alto e baixo, direita e esquerda, tambm so termos refletidos em si, algo fora da relao [itlico meu]; mas apenas lugares em geral" 336. Os dois exemplos convergem em uma intuio maior: as determinidades so, ao mesmo tempo, algo em uma oposio real e algo para si, fora do sistema reflexivo de determinaes opositivas. Elas tm um modo particular de subsistir prprio irredutvel. Hegel j tinha sublinhado este ponto ao comentar a oposio entre o positivo e o negativo enquanto determinaes-de-reflexo autnomas: "o negativo tambm tem, sem relao ao positivo [itlico meu], um subsistir prprio"337. Ou seja, o negativo no
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HEGEL, Princpios da filosofia do direito, par. 264 HEGEL, Science de la logique II, op.cit, p. 84 337 HEGEL, ibidem, p. 77
simples privao de determinao ou um positivo em si que aparece como negativo apenas no interior de uma relao. Ele tambm um negativo em si, fora de sua oposio ao positivo, e est a base da operao de restituio da dimenso ontolgico do negativo. Tais frases so muito importantes para a compreenso do verdadeiro carter da contradio hegeliana. A identidade sempre enunciada com seu contrrio no porque, por exemplo, o pai o contrrio do filho e sempre que pomos o pai deveramos pressupor o filho. A contradio encontra-se no fato de que o pai , ao mesmo tempo, determinao para os outros (enquanto significante pai que se determina atravs de oposies entre outros significantes: me, filho, tio) e indeterminao para si (enquanto ele pode sempre se identificar com a negatividade da indeterminao do homem em geral). Como nos indicou Zizek: no sou apenas pai, esta determinao particular, mas para alm de seus mandatos simblicos, no sou nada mais do que o vazio que deles escapam (e que como tal um produto retroativo)"338. Como se a inscrio da individualidade em um sistema estrutural de oposies produzisse sempre uma espcie de resto, de fracasso reiterado da inscrio que Hegel teria reconhecido atravs desta maneira de conceber a contradio. Pode parecer estranho que termos como homem em geral e lugar em geral sejam vistos como pontos de excesso da tentativa de inscrever a singularidade em um sistema estrutural. Pode parecer, por exemplo, que Hegel queira simplesmente mostrar como os sujeitos so, ao mesmo tempo, singulares individualizados em um universo estrutural de identidades e diferenas (pai de..., filho de...), e pessoa em geral que tem em comum com outras pessoas propriedades essenciais. No entanto, se assim fosse, no haveria sentido algum em falar de contradio neste caso. Se Hegel v aqui um exemplo privilegiado de contradio porque homem em geral um lugar vazio que aparece como excesso s determinaes relacionais e nos envia dialtica do fundamento (Grund), que se segue s reflexes de Hegel sobre a contradio. Assim, servindo-se de um witz famoso do idealismo alemo, Hegel dir: Estas determinaesde-reflexo se superam e a determinao que vai ao abismo (zu Grunde gegangene) a verdadeira determinao da essncia"339. Ou ainda: "A essncia, enquanto se determina como fundamento, determina-se como o no-determinado, e apenas o superar de seu
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ser-determinado que seu determinar"340. Ou seja, isto nos permite deduzir que homem em geral apenas indica o que no se determina atravs de predicaes e individualizaes, mas permanece indeterminado e negativo. Isto nos explica a razo pela qual, do ponto de vista fenomenolgico, a operao de ir ao abismo e pr o fundamento aparea como medo da morte. Podemos criticar esta estratgia hegeliana afirmando que ele reduz o que est fora do sistema a um ponto vazio, a uma presena pura desprovida de individualidade predicvel. Neste sentido, no seria um acaso o fato de Hegel comparar o horror habitual do pensamento representativo diante da contradio ao horror da natureza diante do vcuo341. Mas tal estratgia pode ser explicada se aceitamos que, do ponto de vista do conceito, o sensvel e o contingente aparecem necessariamente como pura opacidade que resiste a toda determinidade. O que contingente no objeto da experincia s se manifesta no interior do saber como o que vazio de conceito. Se Hegel foi capaz de fazer um jogo de palavras para afirmar que contingente (zufllig) o que deve cair (zu fallen), porque o contingente o que cai do conceito, uma queda no vazio do que no conceito. Sendo assim, o problema hegeliano consiste em saber como apresentar o que vazio de conceito em uma determinidade conceitual, e no como anular o noconceitual atravs do imprio total do conceito. possvel conservar o no-conceitual sem entrar em sua hipstase? Eis uma problemtica hegeliana por excelncia. Como bem sublinhou Mabille, h, no interior mesmo da ontologia hegeliana, um risco de indeterminao que sempre devemos inicialmente assumir para poder aps conjurar. Pois: Cada vez que Hegel chega a um momento de perfeio no qual a identidade parece fechar-se em si mesmo para um gozo autrquico, a negao desta identidade que salva o Absoluto da abstrao e da indeterminao342. Neste sentido, o Saber absoluto, fundamentado de maneira incondicional, universal e concreta o saber que reconhece a racionalidade do que nega o conceito. A unidade do conceito unidade negativa com seu limite. Certamente, tal limite pode ser posto de maneira reflexiva e ento se dissolver enquanto tal. Hegel sempre insiste no fato de que aquilo que o conceito deixa escapar um limite seu e, conseqentemente,
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idem, p. 89 HEGEL, Science de la logique II, p. 85 342 (MABILLE, Idalisme spculatif, subjectivit et ngations, in GODDARD (org.) Le transcendantal, Paris:Vrin, 1999, p. 170)
nada o impede de reparar a diviso que ele prprio produziu. E o prprio movimento de reabsoro infinita do negativo no interior do conceito (movimento pensado como pulsao infinitamente repetida entre alienao - Entfremdung e rememorao Erinnerung) j a sntese conceitual e a realizao do sentido. Rememorar, para Hegel, lembremos mais uma vez, no uma reminiscncia do que j ocorreu e no encontrou compreenso reflexiva adequada. Rememorar no dispor o acontecimento na forma de representaes. Rememorar internalizar o negativo, transform-lo em ser, dotando-o de determinao objetiva. Este o verdadeiro trabalho do pensar. A respeito do qual muito ainda teremos o que dizer no prximo semestre. Fica aqui, ao final, a pergunta sobre o que significa, depois deste nosso trajeto, ler Hegel hoje. Se certo que Hegel foi, em larga medida, aquele que marcou o ponto de diferenciao a partir do qual a contemporaneidade procura pensar-se a si mesma, se bem possvel que no estaremos incorrendo em erro ao afirmar que nossa poca profundamente anti-hegeliana, talvez seja porque ela tenha medo do exlio. Refiro-me a este exlio no qual a dialtica hegeliana parece nos colocar: ao mesmo tempo longe do imediato, longe de uma crtica modernidade calcada no retorno a alguma forma de pr-reflexividade que nos asseguraria no cerne da imanncia; imanncia do ser, das multiplicidades no estruturadas e das singularidades puras. No. A reflexividade do conceito dever fazer seu trabalho e operar suas snteses. O que aspira validade racional deve fundamentar-se na reflexo. No devemos abandonar as exigncias do universal. No entanto, esta reflexo no encontra suas diretrizes asseguradas em procedimentos de fundamentao transcendental. O que vlido incondicionalmente e universalmente para um sujeito, ele s descobrir atravs da experincia, no campo da pragmtica do desejo, do trabalho e da linguagem. Mas uma experincia na qual nossas intenes parecem a todo momento se voltar contra ns mesmos, onde nossos atos teimam em produzir o que no espervamos, onde nossa linguagem desmente o que visvamos, onde o trabalho no expresso prometica das potencialidades expressivas de eus assegurados em suas identidades, onde a experincia do negativo acaba por se manifestar como o caminho para alcanar o que essencialmente determinado.
Quanto ao nosso tempo e seus impasses, poderamos terminar lembrando Foucault, o mesmo Foucault que ocasio de sua nomeao para o Collge de France, no lugar de Jean Hyppolite, no pode deixar de reconhecer: Toda nossa poca, que seja pela lgica ou pela epistemologia, que seja atravs de Marx ou atravs de Nietzsche, tenta escapar de Hegel (...) Mas realmente escapar de Hegel supe apreciar de maneira exata quanto custa se desvincular dele; isto supe saber at onde Hegel, talvez de maneira insidiosa, aproximou-se de ns; supe saber o que ainda hegeliano naquilo que nos permite pensar contra Hegel e de medir em que nosso recuso contra ele ainda uma astcia que ele mesmo nos ope e ao final da qual ele mesmo nos espera, imvel343. Este talvez seja o sentido do retorno aos clssicos; descobrir, como dizia Lacan, que a verdade sempre nova.
Com esta aula, retornamos leitura da Fenomenologia do Esprito do ponto em que interrompemos no semestre passado. Como vocs devem lembrar, chegamos at o comentrio da figura do esprito designada por estoicismo, deixando para este semestre o trmino da seo conscincia-de-si atravs do comentrio das duas ltimas figuras que compem esta seo, a saber, o ceticismo e a conscincia infeliz. Utilizaremos esta aula para analisar a primeira figura e dedicaremos a aula seguinte para a conscincia infeliz. No entanto, antes de re-iniciarmos este nosso processo de leituras, gostaria de expor o regime de organizao do curso neste semestre, fornecendo assim uma viso panormica do que est por vir.
Estrutura do curso
Como foi dito, esta aula e a prxima sero dedicadas ao trmino do comentrio das figuras que compem a seo conscincia. A partir de ento, tentarei dar conta das
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quatro ltimas sees da Fenomenologia (razo, Esprito, religio e Saber Absoluto), sendo que cada uma delas ser objeto de um mdulo especfico de, aproximadamente, quatro aulas. O ltimo mdulo, este dedicado ao Saber Absoluto, ter apenas duas aulas; o que faz com que nosso curso tenha, ao todo, 16 aulas. No primeiro mdulo trabalharemos a seo Razo. Se, na seo Conscincia, foi questo da anlise da relao cognitivo-instrumental da conscincia com o objeto, e, na seo Conscincia-de-si, questo da relao de reconhecimento entre conscincias como condio prvia para o conhecimento de objetos, a seo Razo pode ser compreendida como a anlise das operaes da razo moderna em seus processos de racionalizao; razo agora reflexivamente fundamentada no princpio de uma subjetividade consciente-de-si.. Neste sentido, encontramos aqui o que poderamos chamar de crtica hegeliana ao processo de modernizao em suas dimenses: cognitivo-instrumental (razo observadora), prtico-finalista (razo ativa) e jurdica (razo legisladora que , sua maneira, um desdobramento da segunda). A modernidade, enquanto momento que procura realizar expectativas de autofundamentao nas mltiplas esferas da vida social, vista por Hegel como processo histrico animado pelas promessas de uma razo una do ponto de vista de suas dinmicas de racionalizao. Isto significa, por exemplo, que os processos de racionalizao que fornecem os fundamentos descritivos para a cincia moderna e seus mtodos de observao so compreendidos como simtricos aos processos de racionalizao em operao nos campos de interao social e na concepo de formas modernas de vida social. Isto significa tambm que os equvocos do primeiro sero simtricos aos equvocos do segundo. Podemos dizer que esta a perspectiva geral assumida por Hegel neste captulo. A prpria maneira com que o captulo organizado mostra isto claramente. Veremos como Hegel parte de reflexes sobre certos protocolos de observao racional da natureza na fsica, na biologia e no que chamaramos hoje de psicologia (fisiognomia, frenologia) a fim de alcanar a problemtica do que conta como ao racional para os indivduos em sociedade. O recurso individualidade neste contexto fundamental. o seu aparecimento com a exigncia de s aceitar como vlido o que pode ser reflexivamente posto que anima a constituio de formas modernas de vida social que aspiram fundamentao racional. Neste captulo, Hegel passar em revista, de forma crtica, a vrias figuras
do individualismo moderna em sua dimenso prtica: o hedonismo faustiano, o sentimentalismo, a recuperao do discurso da virtude natural e o individualismo romntico. Ao final, veremos como estruturas sociais s podero ser racionalmente fundamentadas quando passarmos do primado da individualidade ao primado do Esprito. No interior do nosso captulo, daremos especial ateno a quatro momentos do texto: os pargrafos introdutrios (at n. 243), a discusso sobre a frenologia e a fisiognomia, o subcaptulo entitulado O prazer e a necessidade, com seus desdobramentos e o subcaptulo O reino animal do esprito e a impostura ou a Coisa mesma. Como se trata aqui de fornecer a anlise crtica das operaes da razo moderna em seus processos de racionalizao e como sabemos que, para Hegel, Kant fornece a reflexo filosfica mais bem acabada da modernidade, este captulo se inicia com a posio no-declarada da complexa relao crtica entre Kant e Hegel no que diz respeito estrutura categorial do entendimento enquanto base para o saber cognitivoinstrumental. Estaremos atentos a esta articulao e, para tanto, pediria a leitura, como textos de apoio, do captulo dedicado a Kant nas Lies sobre a histria da filosofia, do prprio Hegel, Crtica de Kant por Hegel, captulo de Conhecimento e interesse, de Habermas. O segundo mdulo ser dedicado seo Esprito. Esta longa seo na qual vemos o processo de rememorao histrica como fundamento para a formao das estruturas de orientao do julgamento traz uma srie de questes articuladas de maneira cerrada. Ela uma seo central para a Fenomenologia, isto na medida em que traz, pela primeira vez, as balizas para a elaborao de um conceito positivo de razo atravs da reflexo sobre os modos de auto-posio do esprito. Aqui, vemos mais claramente a razo na histria, ou seja, a meta-narrativa hegeliana de formao agora a partir do Esprito consciente-de-si que analisa suas figuras no tempo histrico. Para tanto, uma discusso prvia sobre o regime do recurso hegeliano histria, assim como rememorao, aparece como operao necessria. Das vrias questes que a peculiaridade da abordagem hegeliana suscita, gostaria de me ater a uma em especial. Trata-se de mostrar como toda a seo Esprito estruturada a partir da exigncia em pensar o sensvel e a contingncia em sua irredutibilidade, e no, como se tende a ver, enquanto uma tentativa de esgotar toda e
qualquer dignidade ontolgica do sensvel e do contingente em prol de um conceito totalizante de histria racional. Para tanto, deveremos centrar nossa leitura em trs figuras centrais da Fenomenologia hegeliana que se encontram no incio e no final da nossa seo: a ruptura da eticidade da polis grega atravs de Antgona, a leitura hegeliana do cinismo ilustrado de O sobrinho de Rameau, de Diderot, e a crtica ao formalismo da moral kantiana atravs das consideraes sobre a Gewissen e os processos de interverso da moralidade:. Veremos como se tratam de trs exemplos distintos de um mesmo problema: os impasses da norma na dimenso prtica da razo. Tais exemplos inscrevem-se no interior de uma tentativa hegeliana mais ampla de problematizar o vnculo, que aparece indissolvel modernidade, entre racionalizao e normatizao, ou seja, posio a priori de critrios normativos de justificao.
Como textos de apoio, proponho, primeiramente, um exerccio de leitura comparativa. Trata-se de comparar a leitura hegeliana de Antgona a uma leitura contempornea proposta por Jacques Lacan e articulada como contraposio leitura hegeliana, isto a fim de apresentar duas leituras distintas sobre o conflito entre aspiraes da singularidade, norma familiar e ordenamento jurdico. Teremos como texto de apoio, pois, duas sees do seminrio sobre A tica da psicanlise, dedicados a Antgona. Duas maneiras de encaminhar o problema do destino da singularidade
aparecero claramente. Quando for questo do comentrio sobre a leitura hegeliana de O sobrinho de Rameau, sugiro dois textos de professores do nosso departamento: sombra do iluminismo, de Rubens Rodrigues Torres Filho, e Paradoxo do intelectual, de Paulo Eduardo Arantes. Por fim, quando for questo das crticas hegelianas moralidade kantiana, procurarei mostrar como elas podem ser compreendidas como a demonstrao de que a teoria hegeliana do reconhecimento deve ser distinta de uma teoria da intersubjetividade de moldes habermasianos. Neste momento, uma leitura dos captulos do Discurso filosfico da modernidade dedicados Hegel se far necessria. O terceiro mdulo ser dedicado seo Religio. De fato, a posio da religio como penltimo captulo da Fenomenologia pode nos levar a crer que ela simplesmente fornece uma teleologia da razo e dos processos de rememorao histrica que guiaram a seo precedente. No entanto, Hegel no mais parece interessado em alguma forma de retorno eticidade de antigas scio-comunidades religiosas, tal como fora o caso em sua juventude. O que o interessa apropriar-se de algo presente na religio, a saber, a auto-reflexividade de prticas sociais nas quais uma
comunidade pode pr o que aparece a ela como fundamento absoluto e incondicional da multiplicidade de suas crenas e desejos. O que interessa a Hegel a religio como estrutura de reconciliao. Proposio que perde seu carter paradoxal se lembrarmos que Hegel nos oferece aqui uma estrutura tridica (religio natural, religio da arte e religio revelada) que culmina em uma reflexo, absolutamente heterodoxa, sobre a estrutura de reconciliao entre esprito e natureza posta pela figura do Cristo. Uma anlise da relao entre cristianismo e modernidade em Hegel se faz necessria. Voltaremos a um texto de juventude; O esprito do cristianismo e seu destino a fim de analisar tal ponto. Como textos de apoio, teremos um captulo de La patience du concept intitulado Ce vieux mot dathisme... e um trecho de As idades do mundo, de Schelling. Por fim, o ltimo mdulo ser dedicado seo Saber absoluto. Uma ateno especial ser dada aos modos de reconciliao entre sensvel e conceito, assim como as relaes entre tempo e espao postuladas nesta seo. Neste estgio, teremos uma viso mais articulada da dialtica hegeliana, o que nos permitir avalia-la luz de outras matrizes da dialtica no sculo XX, como o caso da dialtica negativa de Adorno. Para tanto, sugiro, como texto de apoio, um captulo da Dialtica negativa intitulado: Esprito do mundo e histria da natureza: digresso sobre Hegel
Da dominao ao ceticismo Vimos, no semestre passado, como a seo conscincia-de-si visava dar conta das consequncias da experincia de que o objeto da certeza sensvel, da percepo e do entendimento tinha a mesma estrutura da conscincia-de-si. O objeto, de uma certa forma, era a duplicao da estrutura da conscincia-de-si e, enquanto duplicao, a reflexo sobre a estrutura da conscincia-de-si era, necessariamente, uma reflexo sobre a estrutura do objeto. Este pressuposto idealista bsico que consiste em afirmar que o objeto da experincia tem a mesma estrutura do Eu servia para Hegel dar um passo alm e afirmar que as expectativas cognitivo-instrumentais da conscincia eram dependentes de modos de interao social e de prticas sociais. O problema da confrontao entre conscincia e objeto aparecia agora subordinado a uma reflexo ampla sobre a natureza da racionalidade em operao nos modos de interao social. Da porque tratava-se em ltima instncia de admitir que a configurao do conhecimento uma questo de implementao de interesses prticos socialmente reconhecidos. Em ltima instncia,
isto implicava em submeter as operaes de conhecimento aos critrios de reconhecimento intersubjetivo (o que no pode ser reconhecido intersubjetivamente no tem realidade para a conscincia).. Passo que era possvel medida em que Hegel insistira na caracterstica profundamente relacional e intersubjetiva do Eu. A conscincia-de-si, no cansava de dizer Hegel, s na medida em que se pe para uma Outra e como uma Outra. A conscincia-de-si s enquanto conscincia-de-si reconhecida. Vimos como, para Hegel, a estrutura do Eu j era, desde o incio, uma estrutura social e que a idia do Eu como individualidade simplesmente constraposta universalidade da estrutura social era rapidamente posta em cheque a partir do momento em que compreendemos, de maneira correta, o que estava em jogo na gnese do processo de individualizao de Eus socializados. Nunca demais lembrar que o Eu no uma pura individualidade, mas: os indivduos so eles mesmos de natureza espiritual e contm neles estes dois momentos: o extremo da singularidade que conhece e quer para si e o extremo da universalidade que conhece e quer o que substancial344. No entanto, a complexidade da abordagem de Hegel vinha da defesa de que os processos mais elementares de interao social e de reconhecimento so necessariamente conflituais, antagnicos. Ou seja, o conflito o primeiro dado na constituio dos processos de interao social. Repetia-se assim a tendncia em compreender as relaes da conscincia com seu outro (seja o objeto, seja outra conscincia) como figuras da dominao e da subsuno da alteridade ao mesmo. Vimos como tais figuras apareciam inicialmente sob a forma de uma dialtica do Senhor e do escravo; dialtica que visava fornecer algo como a forma geral dos processos de reconhecimento e de interao social. As outras figuras da conscinciade-si (estoicismo, ceticismo e conscincia infeliz) so, a seu modo desdobramentos dos problemas postos pela dialtica do Senhor e do Escravo. Da porque vale a pena retornarmos ela antes de entrarmos na leitura hegeliana do ceticismo. Ao analisar a DSE, vimos como a matriz do conflito que lhe servia de motor encontrava-se no fato de que os sujeitos procuram se fazer reconhecer como o que capaz de abstrair-se de toda e qualquer determinao contextual, apresentar-se a si mesmo como pura negao da maneira de ser objetiva, como pura transcendncia e em relao, inclusive, perspectiva particularizadora do Outro. No entanto, vimos como
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Ver a este respeito SOUCHE-DAGUES, Ngation et individualit dans la pense poltique hglienne
este movimento leva a conscincia a uma posio insustentvel caracterizada por Hegel atravs da figura da confrontao com a morte. Confrontao necessria j que s mediante o pr a vida em risco que a liberdade se conquista mas que bloqueia as possibilidades de reconhecimento j que retira o solo do vnculo determinao emprica, base para a objetividade do que em-si. Na verdade, encontramos aqui este movimento tipicamente hegeliano de derivar a posio da universalidade de experincias iniciais de negao. pelas vias da negatividade que, inicialmente, a universalidade se apresenta, embora ainda de maneira abstrata. Pois a negatividade fornece as bases da experincia da incondicionalidade, ou seja, do que no se esgota na atualizao de nenhuma determinao particular. A questo consiste em saber como tal experincia pode fornecer parmetros para a configura da racionalidade da dimenso prtica. Para tanto, devemos passar desta noo de universalidade como pura abstrao para uma universalidade capaz de se encarnar em uma determinao concreta. Hegel nos oferece duas figuras da posio desta negatividade no interior da dialtica do Senhor e do Escravo. A primeira configura a posio do Senhor e temrinar em uma impasse (no sentido daquilo que no pode realizar seu prprio conceito), a segunda configura a posio do Escravo e permitir a continuao da experincia fenomenolgica. Vimos como a categoria do trabalho aparecia como o saldo fundamental da experincia levada a cabo pela conscincia posta na posio de Escravo. A funo do trabalho consistia em realizar, ainda que de maneira imperfeita, a auto-posio da conscincia-de-si em suas exigncias de reconhecimento, j que trabalho inicialmente visto como auto-posio das capacidades expressivas dos sujeitos, duplicao da conscincia em um objeto que espelha sua prpria estrutura. No entanto, e este era um ponto essencial, Hegel apresentava atravs da DSE um conceito no-expressvista de trabalho. A conscincia que trabalha no expressa a positividade de seus afetos em um objeto que circular no tecido social. Hegel esvaziou a dimenso da expressividade como chave para a compreenso do trabalho. Antes, o trabalho a figura de um ser-fora-de-si necessrio, de uma alienao formadora. Lembrem desta temtica fundamental em Hegel: o escravo trabalha para calar a angstia diante da negatividade absoluta da morte, diante da desterritorializao completa de si. a angstia que faz com que, no formar, o posto seja a prpria negatividade (e no a realizao autnoma de um projeto alojado na intencionalidade da conscincia). Ao
trabalhar, a conscincia prefere aferrar-se a uma essncia estranha (da porque a primeira figura do trabalho o servio) a tentar sustentar-se como pura negatividade absoluta. O giro dialtico, neste sentido, consiste em que dizer que a alienao no trabalho, a confrontao com o agir enquanto uma essncia estranha, enquanto agir para-um-Outro absoluto (e no apenas para uma Outra particularidade) tem carter formador por abrir a conscincia experincia de uma alteridade interna como momento fundamental para a posio da identidade. Ao se ver essencialmente aferrada ao que lhe outro, a conscincia tem as condies de passar de uma noo de Si como espao da auto-identidade a uma noo de Si como infinitude que traz no seu interior aquilo que o nega. Lebrun chega a falar do trabalho hegeliano como o que: desarma o estranhamento sem anula a alteridade, mas isto apenas para insistir no carter abstrato desta reconciliao com a efetividade: s h consolao relativa a um mal reconhecido como mal e o que se trata de compreender a irrealizao do mal345. Foi a partir deste problema do carter abstrato da reconciliao proposta pelo trabalho que abordamos a figura da conscincia chamada por Hegel de estoicismo. Eu dissera que, de uma certa forma, as trs figuras que sucedem a DSE so desdobramentos hegelianos de impasses do reconhecimento. Todas elas demonstram o carter parcial das solues postas pela DSE, o que joga o problema da realizao das exigncias de reconhecimento para momentos posteriores da Fenomenologia. Afastamento do mundo (estoicismo) aniquilamento do mundo (ceticismo) e aprisionamento no mundo (conscincia infeliz) sero trs posies da conscincia diante de expectativas no realizadas de reconhecimento. Vimos como Hegel compreendia o estoicismo de Zeno de Ccio, Crsipo, Epteto e de Marco Aurlio como, no fundo, uma filosofia da resignao. Grosso modo, o estoicismo compreende a razo (logos) como princpio que rege uma Natureza identificada com a divindade. O curso do mundo obedece assim um determinismo racional. A virtude consiste em viver de acordo com a natureza racional aceitando o curso do mundo, ou seja, aceitando o destino despojando-se de suas paixes a fim de alcanar a apatia e a ataraxia. A autarkeia estica (influenciada pelos cnicos e pela sua concepo de auto-determinao como afastamento do nomos e dos prazeres) aparece assim como: liberdade, este momento negativo de abstrao da existncia346. Mesmo
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LEBRUN, Vivre dans luniversel, p. 105 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo
que a liberdade aparea definida como a possibilidade de agir a partir d e sua vontade347, a vontade virtuosa aquela que se reconcilia com o determinismo racional do curso do mundo. O que explica como indiferente para o estico ser Escravo (Epteto) ou Senhor (Marco Aurlio). Seu agir livre no trono como nas cadeias e em toda forma de dependncia do Dasein singular. Uma indiferena no pode levar a outra coisa que uma independncia e liberdade interiores348 que, para Hegel, sinal do aparecimento do princpio de subjetividade. Sobre a autarkeia estica de uma conscincia que se compreende como essencialidade, Hegel dir: Seu agir conservarse na impassibilidade que continuamente se retira do movimento do Dasein, do atuar como do padecer, para a essencialidade simples do pensamento349. A este respeito, Hegel chegar a afirmar que: a grandeza da filosofia estica consiste que nada pode quebrar a vontade se esta se mantm firme (...) e que sequer o afastamento da dor pode ser considerado um fim350. Mas Hegel no deixa de lembrar que uma des-alienao que se realiza apenas atravs do formalismo de um pensar que se retira do movimento do Dasein s pode aparecer como conformao quilo que no pode, por mim, ser modificado. Hegel apresenta assim uma crtica que ser, em vrias situaes, dirigida contra ele prprio: A liberdade da conscincia indiferente quanto ao Dasein natural; por isto igualmente o deixou livre, e a reflexo a reflexo duplicada. A liberdade do pensamento tem somente o puro pensamento por sua verdade, e verdade sem a implementao da vida351. O estoicismo tem algo da infinitude, j que o Eu tem nele o ser-outro. Mas trata-se de uma reflexo duplicada baseada na indiferena entre os plos. A essncia apenas a forma como tal, que se afastou da independncia da coisa.
Niilismo e ceticismo
no interior desta problemtica que devemos compreender a transformao hegeliana do ceticismo como figura da conscincia. Antes de iniciarmos, vale a pena lembrar dois pontos. Primeiro, j sabemos que Hegel distingue ceticismo moderno (representado principalmente por Schulze e, em certa medida, Maimon) e o ceticismo antigo. Para
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Digenes LARCIO, Vida e lenda de filsofos ilustres- Zeno HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo 349 HEGEL, Fenomenologia, par. 199 350 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia O estoicismo 351 HEGEL, Fenomenologia, par. 200
Hegel, o ceticismo moderno seria uma postura que v como verdadeiro apenas o ser sensvel, aquilo que a conscincia sensvel nos entrega, duvidando de todo o mais. Isto implica em deixar com que a realidade da empiria subsista intacta e indubitvel. Neste sentido, seu positivismo no poderia estar mais distante do pensamento especulativo. J o ceticismo antigo, ao insistir nas contradies necessrias e irrefutveis que nos deparamos ao procurar falar sobre a essncia do que aparece, opera uma crtica da finitude fundamental para a dialtica. Assim, j na Introduo, Hegel havia reconhecido uma certa aproximao entre dialtica e ceticismo. Ele chega mesmo a dizer que a negatividade dialtica um ceticismo que atingiu a perfeio, um ceticismo que incide sobre todo o mbito da conscincia fenomenal [e] torna o esprito capaz de examinar o que verdade, enquanto leva a um desespero, a respeito da representaes, pensamentos e opinies pretensamente naturais352. J em um escrito de juventude, A relao entre ceticismo e filosofia, Hegel era claro a respeito da necessidade em reconhecer a proximidade entre negatividade dialtica e negatividade ctica: A verdadeira filosofia tem
necessariamente ao mesmo tempo um lado negativo dirigido contra tudo o que limitado e contra o amontoado de fatos da conscincia e de suas certezas irrefutveis353. No entanto, como veremos, o reconhecimento de uma certa proximidade com a potncia ctica de crtica ao dogmatismo das representaes naturais da conscincia comum no implica em posio de simetria entre ceticismo e dialtica. At porque, se o recurso ao estoicismo funcionava como antecipao da crtica ao carter abstrato da reconciliao hegeliana, o recurso ao ceticismo , por sua vez, como veremos, antecipao possvel acusao de niilismo vinda dos detratores da dialtica. Partamos pois da maneira com que Hegel apresenta o ceticismo em nosso trecho: O ceticismo a realizao do que o estoicismo era somente o conceito e a experincia efetiva do que a liberdade do pensamento: liberdade que em-si o negativo e que assim deve apresentar-se (...) Agora, no ceticismo, vem-a-ser para a conscincia a total no-autonomia desse Outro [o Dasein independente] . O pensamento torna-se pensar que aniquila o ser do mundo multideterminado; e
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nessa multiforme figurao da vida, a negatividade da conscincia-de-si livre torna-se a negatividade real354.
Se o estoicismo foi apresentado como indiferena em relao ao Dasein natural que nos levaria a uma autarkeia vista como independncia e liberdade interiores, ceticismo poderia ser visto como realizao do conceito de liberdade e autonomia presentes no estoicismo a partir do momento em que ele coloca-se como negao da essencialidade do que aparece. Da porque Hegel pode falar que, no ceticismo, a negatividade da conscincia-de-si livre no trono como nas cadeias e em toda forma de dependncia do Dasein singular tornou-se negatividade real, pensar que aniquila o ser do mundo multideterminado. Aqui vale uma preciso. Hegel sabe muito bem que o ceticismo antigo no consiste em afirmar a mera irrealidade do acontecimento. Por exemplo, ao afirmar que o conceito de movimento contraditrio, o ctico no pode ser refutado a partir do momento em que comeamos a andar. Para Hegel, o que o ceticismo nega a determinao essencial da significao do acontecimento, o que no quer dizer que nossas representaes mentais no tenham realidade objetiva para ns neste momento e sob condies determinadas de percepo. Digo que as coisas me aparecem e que eu suspendo o juzo sobre a sua significao, dir o ctico a partir de suas operaes de epokh. O que a epokh no admite que o que aparece (o fenmeno) seja tomado como determinao essencial. No se discute sobre o fenmeno, que se reconhece, mas sobre sua interpretao, concedendo-se que algo aparece, investiga-se sobre se o objeto tal qual aparece. O ctico sente a doura do mel e assente que o mel lhe aparece como doce, mas matria de dvida e investiga se ele doce, no que concerne sua essncia ou razo355. neste sentido que Hegel pode dizer que o ceticismo parece realizar aquilo que nem o desejo e o trabalho foram capazes, ou seja, negar a substancialidade do Outro sem afirmar sua dependncia para com este Outro. Para Hegel, o ceticismo simplesmente destri a essencialidade do que aparece como Outro, j que ele retira a pretenso de universalidade do que aparece como fenmeno. Nos prximos dois pargrafos (203 e 204), Hegel coloca em circulao um movimento de aproximao e de distanciamento entre ceticismo e dialtica. Por um lado, o ceticismo mostra/indica (aufzeigen);
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o movimento dialtico que so a certeza sensvel, a percepo e o entendimento; e tambm a inessencialidade do que tem valor na relao de dominao e de servido, e do que para o pensamento abstrato vale como algo determinado356.
Contra as figuras da conscincia que compreendiam o saber como adequao entre representaes mentais e estados de coisas dotados de determinao essencial (certeza sensvel, percepo, entendimento), o ceticismo insiste no carter contraditrio do que aparece ao pensar como representao natural; embora o valor da contradio no seja posto em questo. J vimos em outra aula que, ao compreender a contradio como resultado da tentativa do pensar em dar conta do mundo fenomnico, o ceticismo s v a contradio como puro nada, tal como duas proposies contraditrias sobre o mesmo objeto resultariam necessariamente em um objeto vazio sem conceito ou ainda um conceito que se contradiz em si mesmo (nihil negativum). O ceticismo est certo em ver na fenomenalidade o espao da contradio, e com isto nos levar ao desespero em relao a representaes, pensamento e opinies pretensamente naturais, mas est errado na sua maneira de compreender o valor da contradio). Segundo Hegel, por isto que ele pode ver uma negao simples como resultado da afirmao: Uma teoria [descrio de estado de coisas] por momentos nos seduz e nos parece persuasiva? Um pouco de investigao serena logo nos faz encontrar argumentos que a contradigam com no menos persuasividade357. Por outro lado, contra a tentativa estica de determinar a essncia a partir das leis gerais do pensamento abstrato ou de uma teoria causal da percepo fundada em representaes privilegiadas (lembremos que o ceticismo se afirma contra o pano de fundo da teoria estica do conhecimento), o ceticismo lembra das incertezas nas quais o pensamento terico se enreda j que toda representao no apenas de um objeto, mas tambm de algum. No entanto, Hegel levanta uma diferena maior entre ceticismo e dialtica. Ela diz respeito quilo que poderamos chamar de origem da experincia da negatividade:
O dialtico, como movimento negativo, tal como imediatamente, revela-se [erscheint manifesta-se/aparece] de incio conscincia como algo a que ela
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est entregue; e que no por meio da conscincia mesma. Como ceticismo, ao contrrio, o movimento dialtico momento da conscincia-de-si para a qual j no acontece, sem saber como, que desvanea/desaparea seu verdadeiro e real (Reelles). Pois essa conscincia-de-si que na certeza de sua liberdade faz desvanecer/desaparecer at esse outro que se fazia passar por real358.
Ou seja, na perspectiva dialtica, o movimento negativo algo que aparece conscincia vindo do prprio objeto, trata-se de um movimento impulsionado pela coisa mesma, em um certo sentido, a negatividade vem da coisa. Por isto, a conscincia parece estar entregue a uma fora que opera s suas costas. Ela deve reconhecer a essencialidade desta negao que vem da coisa mesma, isto ao ponto de tal experincia com negatividade reonfigurar as estruturas de relao da conscincia si mesma. No ceticismo, a negao consciente de si (Selbstbewusstsein Negation) no sentido de ser um projeto conscientemente realizado pela prpria conscincia. Isto explica, segundo Hegel, a impossibilidade da conscincia-de-si modificar seu modos de relao si a partir desta experincia da negatividade. Por isto que Hegel ir falar da ataraxia do pensar-se a si mesmo, a imutvel e verdadeira certeza de si mesmo. Em outras palavras, mesmo que o aparecer se manifeste ao ctico como espao da contradio, a conscincia, por sua vez, o que no contraditrio, o que : determinidade frente ao desigual. Ou seja, para Hegel, o ceticismo , em ltima instncia, um certo retorno posio do Senhor que procura assegurar a pura certeza imediata de si, certeza da interioridade atravs da aniquilao da sua dependncia ao objeto. assim que Hegel compreende a ataraxia ctica: a natureza do ceticismo consiste em crer que, quando o objetivo desaparece, o que se tomava por verdade, o ser ou o determinado, todo o afirmativo, e quando o esprito suspende seu assentimento, a conscincia de si alcana um estado de segurana e de imutabilidade359. Notamos aqui esta estratgia tipicamente hegeliana de compreender certos aspectos da histria da filosofia a partir de problemticas prprias filosofia moderna da subjetividade. No entanto, Hegel insiste que a verdade da conscincia ctica ser uma conscincia clivada j que, na dimenso da ao, ela uma:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 204 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - o ceticismo
conscincia que emprica, dirigida para o que no tem para ela realidade alguma; obedece quilo que para ela no nenhuma essncia, faz e leva efetividade o que para ela no tem verdade alguma360.
Ou seja, mesmo reconhecendo a impossibilidade de afirmar a essencialidade do que aparece, ela age como se aceitasse a essencialidade do que aparece, j que o que aparece, aparece de maneira essencial para mim. Mesmo sob regime de epokh, a conscincia no deixa de engajar-se na ao tal como aqueles que confundem o que aparece como o que se determina essencialmente. Em ltima instncia, segundo Hegel, a dimenso da ao entra em contradio com a dimenso da justificao. Da porque Hegel afirma que o ceticismo aparece como um bewusstlose Faselei (um falatrio desprovido de conscincia isto no sentido de algum que no sabe o que diz). Diramos hoje que sua posio equivale a uma contradio performativa, j que:
Seu agir e suas palavras se contradizem sempre e, desse modo, ela mesma tem uma conscincia duplicada contraditria da imutabilidade e igualdade; e da completa contingncia e desigualdade consigo mesmo361. Assim, quando Hegel afirma que o ctico declara a nulidade do ver, do ouvir etc., e ela mesma v, ouve, etc., ele quer apenas insistir nesta posio clivada de quem se v aprisionado em um mundo cuja realidade essencial parece no poder ser fundamentada, j que absolutamente vinculada dimenso do fenmeno. Esta clivagem, para Hegel, s pode resultar na infelicidade de quem se v necessariamente distante do que possa ter fundamento absoluto e incondicionado. Esta clivagem s pode resultar em uma conscincia infeliz.
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Vimos, na aula passada, como Hegel apresentava a figura da conscincia vinculada ao ceticismo enquanto desdobramento dos impasses de reconhecimento herdados da dialtica do Senhor e do Escravo. J havamos visto como o trabalho abstrato do Escravo levava a conscincia a uma autonomia do pensar que encontrava sua melhor realizao na autarkeia estica com sua indiferena em relao aquilo que Hegel chama de Dasein natural. Era no interior deste contexto que podamos compreender a afirmao: O ceticismo a realizao do que o estoicismo era somente o conceito e a experincia efetiva do que a liberdade do pensamento: liberdade que em-si o negativo e que assim deve apresentar-se (...) Agora, no ceticismo, vem-a-ser para a conscincia a total no-autonomia desse Outro [o Dasein independente] . O pensamento torna-se pensar que aniquila o ser do mundo multideterminado; e nessa multiforme figurao da vida, a negatividade da conscincia-de-si livre torna-se a negatividade real362.
Se o estoicismo foi apresentado como indiferena em relao ao Dasein natural que nos levaria a uma autarkeia vista como independncia e liberdade interiores, ceticismo poderia ser visto como realizao do conceito de liberdade e autonomia presentes no estoicismo a partir do momento em que ele coloca-se como negao da essencialidade do que aparece. Da porque Hegel pode falar que, no ceticismo, a negatividade da conscincia-de-si livre no trono como nas cadeias e em toda forma de dependncia do Dasein singular tornou-se negatividade real, pensar que aniquila o ser do mundo multideterminado. Mas tratava-se, principalmente, de mostrar as distines entre a negatividade dialtica e esta negatividade ctica. Vimos como, por um lado, o ceticismo indicava (aufzeigen);
o movimento dialtico que so a certeza sensvel, a percepo e o entendimento; e tambm a inessencialidade do que tem valor na relao de dominao e de servido, e do que para o pensamento abstrato vale como algo determinado363.
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Contra as figuras dogmticas da conscincia que compreendiam o saber como adequao entre representaes mentais e estados de coisas dotados de determinao essencial (certeza sensvel, percepo, entendimento), o ceticismo insistia no carter contraditrio do que aparece ao pensar como representao natural; embora o valor da contradio no seja posto em questo. O ceticismo est certo em ver na fenomenalidade o espao da contradio, e com isto nos levar ao desespero em relao a representaes, pensamento e opinies pretensamente naturais, mas est errado na sua maneira de compreender o valor da contradio. Segundo Hegel, por isto que ele pode ver uma negao simples como resultado da afirmao: Uma teoria [descrio de estado de coisas] por momentos nos seduz e nos parece persuasiva? Um pouco de investigao serena logo nos faz encontrar argumentos que a contradigam com no menos persuasividade364. Por outro lado, contra a tentativa estica de determinar a essncia a partir das leis gerais do pensamento abstrato ou de uma teoria causal da percepo fundada em representaes privilegiadas), o ceticismo lembrava das incertezas nas quais o pensamento terico se enreda j que toda representao no apenas de um objeto, mas tambm de algum. Vimos como Hegel levantava, ento, uma diferena maior entre ceticismo e dialtica. Ela diz respeito quilo que poderamos chamar de origem da experincia da negatividade:
O dialtico, como movimento negativo, tal como imediatamente, revela-se [erscheint manifesta-se/aparece] de incio conscincia como algo a que ela est entregue; e que no por meio da conscincia mesma. Como ceticismo, ao contrrio, o movimento dialtico momento da conscincia-de-si para a qual j no acontece, sem saber como, que desvanea/desaparea seu verdadeiro e real (Reelles). Pois essa conscincia-de-si que na certeza de sua liberdade faz desvanecer/desaparecer at esse outro que se fazia passar por real365.
Ou seja, na perspectiva dialtica, o movimento negativo algo que aparece conscincia vindo do prprio objeto, trata-se de um movimento impulsionado pela coisa mesma, em um certo sentido, a negatividade vem da coisa. Por isto, a conscincia parece estar entregue a uma fora que opera s suas costas. Ela deve reconhecer a
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essencialidade desta negao que vem da coisa mesma, isto ao ponto de tal experincia com negatividade reonfigurar as estruturas de relao da conscincia si mesma. No ceticismo, a negao consciente de si (Selbstbewusstsein Negation) no sentido de ser um projeto conscientemente realizado pela prpria conscincia. Isto explica, segundo Hegel, a impossibilidade da conscincia-de-si modificar seu modos de relao si a partir desta experincia da negatividade. Por isto que Hegel ir falar da ataraxia do pensar-se a si mesmo, a imutvel e verdadeira certeza de si mesmo. Em outras palavras, mesmo que o aparecer se manifeste ao ctico como espao da contradio, a conscincia, por sua vez, o que no contraditrio, o que : determinidade frente ao desigual. Ou seja, para Hegel, o ceticismo , em ltima instncia, um certo retorno posio do Senhor que procura assegurar a pura certeza imediata de si, certeza da interioridade atravs da aniquilao da sua dependncia ao objeto. assim que Hegel compreendia a ataraxia ctica. No entanto, Hegel insistia que a verdade da conscincia ctica era ser uma conscincia clivada j que, na dimenso da ao, ela era uma:
conscincia que emprica, dirigida para o que no tem para ela realidade alguma; obedece quilo que para ela no nenhuma essncia, faz e leva efetividade o que para ela no tem verdade alguma366.
Ou seja, mesmo reconhecendo a impossibilidade de afirmar a essencialidade do que aparece, ela age como se aceitasse a essencialidade do que aparece, j que o que aparece, aparece de maneira essencial para mim. Mesmo sob regime de epokh, a conscincia no deixa de engajar-se na ao tal como aqueles que confundem o que aparece como o que se determina essencialmente. Em ltima instncia, segundo Hegel, a dimenso da ao entra em contradio com a dimenso da justificao. Da porque Hegel afirma que o ceticismo aparece como um bewusstlose Faselei (um falatrio desprovido de conscincia isto no sentido de algum que no sabe o que diz). Diramos hoje que sua posio equivale a uma contradio performativa, j que:
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Seu agir e suas palavras se contradizem sempre e, desse modo, ela mesma tem uma conscincia duplicada contraditria da imutabilidade e igualdade; e da completa contingncia e desigualdade consigo mesmo367. Assim, quando Hegel afirma que o ctico declara a nulidade do ver, do ouvir etc., e ela mesma v, ouve, etc., ele quer apenas insistir nesta posio clivada de quem se v aprisionado em um mundo cuja realidade essencial parece no poder ser fundamentada, j que absolutamente vinculada dimenso do fenmeno. Esta clivagem, para Hegel, s pode resultar na infelicidade de quem se v necessariamente distante do que possa ter fundamento absoluto e incondicionado. Esta clivagem s pode resultar em uma conscincia infeliz. Conscincia que reconhece a parcialidade de sua perspectiva de vinculao ao mundo, mas que no pode dar realidade efetiva a uma perspectiva fundamentada de maneira incondicional e absoluta.
A infelicidade da clivagem da conscincia A conscincia infeliz o tema fundamental da Fenomenologia do Esprito. Como efeito, no tendo ainda chegado identidade concreta da certeza e da verdade, visando portanto a um alm de si mesma, conscincia enquanto tal sempre , em seu princpio, conscincia infeliz e a conscincia feliz ou uma conscincia ingnua, que ignora ainda sua infelicidade, ou uma conscincia que tansps sua dualidade e reencontrou a unidade para alm da separao368. Esta afirmao de Hyppolite demonstra como alguns comentadores procuraram transformar a conscincia infeliz, com seu desespero em relao sua prpria perspectiva de apreenso do mundo, em figura central para a compreenso hegeliana da conscincia. Via aberta, na verdade, por Jean Wahl, com seu livro cannico Le malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel, de 1929. De fato, a conscincia infeliz ocupa uma posio importante na economia do texto da Fenomenologia, j que ela marca a passagem da seo conscincia-de-si seo razo. Neste sentido, ela esgota as expectativas que animaram o trajeto fenomenolgico na primeira seo e indica as condies para a consolidao de um novo parmetro de organizao para as aspiraes da razo em fornecer um critrio fundamentado de correspondncia entre conceito e objeto.
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Vimos como a seo conscincia-de-si estava marcada pela compreenso de que a racionalidade das operaes cognitivo-instrumentais da conscincia dependia da racionalidade dos modos de interao social entre conscincias: conseqncia hegeliana do postulado idealista a respeito do qual a estrutura do objeto duplica a estrutura do Eu. Mas vimos, desde o incio, que tais modos de interao social, para servirem de fundamento para as aspiraes da razo, no poderiam aparecer apenas como modos de interao entre conscincias particulares. Ele deveria poder preencher exigncias gerais de validade universal. Isto implicava em pensar modos de relao da conscincia com aquilo que universal. Vimos, j na dialtica do Senhor e do Escravo como o movimento de confrontao entre conscincias era relativizado a partir do momento em que um Outro absoluto (a morte) e universal (ainda que uma universalidade abstrata) aparecia na posio de Senhor a ser reconhecido, permitindo o advento de um trabalho abstrato. Vimos, no estoicismo, como tal noo de trabalho fornecia as condies para o advento de uma subjetividade cuja manifestao mais clara era a interioridade da autarkeia. Vimos, por fim, no ceticismo, como a conscincia chegava clivagem de reconhecer a inessencialidade de seu agir e a parcialidade de sua perspectiva. Mas se ela reconhece sua posio particular porque ela tem um conceito de universalidade que a ela se contrape (um pouco como Descartes que afirmava ver a prova da existncia de Deus da conscincia da minha finitude). A conscincia infeliz ser marcada pois pela tentativa de unificar sua posio particular e a universalidade do que no ceticismo s aparecia de maneira negativa. Tal unificao permitir o advento da razo enquanto primeira tentativa de fundamentar a universalidade da ao e do conhecer de conscincias-de-si. Dito isto, devemos entrar no comentrio do texto a fim de compreender como esta passagem se estrutura. Inicialmente, lembremos que a figura da conscincia infeliz marca uma guinada abrupta do encaminhamento do trajeto da conscincia em direo reflexo sobre estruturas prprias religio. Vrios comentadores j apontaram a incidncia de temticas desenvolvidas inicialmente por Hegel em seus escritos teolgicos de juventude ligadas ao judasmo e ao cristianismo. Isto apenas indica como, para Hegel, a religio a primeira manifestao de expectativas de fundamentao absoluta e incondicional de prticas sociais e critrios de justificao. A conscincia compreende a perspectiva universalista com a qual ela se relaciona: como a perspectiva do olho de Deus que, se algum alcan-lo, ser capaz de afirmar o que verdadeiro e
vlido, assim como o que no 369. Fundamentao imperfeita pois ainda marcada pelo pensamento da representao. Mas caminho necessrio em direo realizao da cincia. De qualquer forma, percebemos que, para Hegel, filosofia e religio so diferentes formas de prticas sociais atravs das quais sujeitos procuram alcanar reflexivamente a posio do que fundamenta, de maneira absoluta, suas condutas e julgamentos. Nosso trecho est, grosso modo, dividido em trs partes. A primeira via at o pargrafo 209 e visa apresentar a ciso que caracteriza a conscincia infeliz. Ela reconhece, ao mesmo tempo, a particularidade de sua perspectiva (Hegel fala em mutabilidade walndelbare - e inessencialidade)e a imutabilidade e a essencialidade da conscincia de uma Outra conscincia (que no mais Outra conscincia particular como no caso do Senhor da Dialtica do Senhor e do Escravo mas conscincia que se afirma como universal). Esta ciso entre o imutvel e o particular (no caso, a singularidade) receber uma primeira tentativa de conciliao atravs do que Hegel chama de figurao do imutvel na singularidade. Este o assunto central do trecho que vai do pargrafo 210 ao 213. No entanto, como veremos, a figurao no anula a ciso. Os prximos 16 pargrafos (214/230) descrevero trs tentativas da conscincia anular a ciso, seja atravs da presena do imutvel atravs do fervor e do sentimento (215/217), seja atravs de um agir ritualizado que encontra sua expresso mais bem acabada na ao de graas (218/222), seja atravs do sacrifcio de si mesmo, sacrifcio de sua prpria singularidade (223/230). atravs das vias do sacrifcio de si que as condies objetivas para a passagem em direo razo estaro postas.
Um luta interna
Logo no incio de nosso trecho, Hegel expe claramente a estrutura da conscincia infeliz:
Essa conscincia infeliz, cindida dentro de si, j que essa contradio de sua essncia , para ela, uma conscincia, deve ter numa conscincia sempre tambm a outra; de tal maneira que desalojada imediatamente de cada uma quando pensa ter chegado vitria e quietude da unidade. Mas seu verdadeiro
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retorno a si mesma, ou a reconciliao consigo, representar o conceito do esprito que se tornou um ser vivo e entrou na esfera da existncia; porque nela mesma como uma conscincia indivisa j ao mesmo tempo uma conscincia duplicada. Ela mesma o intuir de uma conscincia-de-si numa outra; e ela mesma ambas, e a unidade de ambas tambm para ela a essncia. Contudo, para-si, ainda no a essncia mesma, ainda no a unidade das duas370.
A conscincia infeliz tem, em relao s outras figuras da conscincia, a peculiaridade de ter internalizado a ciso entre conscincia e essncia. Essncia esta figurada em uma outra conscincia-de-si que se afirma como aquela que tem para si a perspectiva universal de validao de condutas e julgamentos. Por ter internalizado esta perspectiva de uma outra conscincia essencial, ela pode intuir a si mesma em uma outra, ser ao mesmo tempo ambas. Ou seja, a clivagem incide na conscincia e, por incidir nela, pode ser superada. No entanto, tal internalizao no foi reflexivamente apreendida. Por isto, Hegel afirma que para-si a conscincia infeliz ainda no a unidade com a determinao essencial. Por outro lado, as condies objetivas para tal unidade j esto dadas desde o ceticismo, j que s possvel ser ctico ao reconhecer a essencialidade de um ponto de vista universal (que no pode ser assumido por nenhum dos sujeitos). O trajeto da conscincia infeliz ser pois a apreenso reflexiva de tal processo de internalizao. Ns j vimos como se apresenta a clivagem da conscincia infeliz: ela ao mesmo reconhecimento de si como conscincia inessencial, perspectiva particular e contextual, e reconhecimento da essencialidade, da imutabilidade de uma perspectiva que nega seu particularismo. Mas como conscincia da imutabilidade ou da essncia simples, [a conscincia infeliz] deve ao mesmo tempo proceder a libertar-se do inessencial, libertar-se de si mesma371. Ou seja, a conscincia no pode repousar-se na ataraxia de quem se sabe aprisionado em um inessencial inexpugnvel. Da porque Hegel pode dizer:
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a conscincia da vida, de ser Dasein e de seu agir somente a dor em relao a esse Dasein e agir, pois nisso s possui a conscincia de seu contrrio como sendo a essncia, e a conscincia da prpria nulidade372. Esta inquietude de quem procura se livrar do aprisionamento no inessencial leva a conscincia ascenso rumo ao imutvel, reconciliao com a essncia
Figurao do imutvel
A primeira forma de reconciliao com a essncia aquilo que Hegel chama de figurao (Gstaltung) do imutvel na dimenso da singularidade (Einzelnheit). Ou seja, trata-se de um conformar-se da essncia determinao particular. neste sentido que devemos interpretar a afirmao de Hegel: Nesse movimento a conscincia experimenta justamente o surgir da singularidade no imutvel e do imutvel na singularidade373. Hegel tem claramente em mente um exemplo de tal processo: a encarnao do Cristo, presena de Deus na figurao do humano. Na verdade, o esquema da trindade crist orienta todo o desdobramento deste sub-captulo na configurao do movimento de reconciliao da conscincia infeliz. Isto fica claro na afirmao:
O primeiro imutvel para a conscincia apenas a essncia estranha (fremde) que condena a singularidade [o Deus distante do judasmo o imutvel oposto singularidade em geral], enquanto o segundo imutvel uma figura da singularidade, tal como a prpria conscincia [o Cristo o imutvel um singular oposto a outro singular]; eis que no terceiro imutvel [o esprito santo o imutvel um s com o singular] a conscincia ver-a-ser esprito, tem a alegria de ali se encontrar e se torna consciente de ter reconciliado sua singularidade com o universal374.
Hegel insiste que esta figurao do imutvel uma reconciliao imperfeita. De fato, o imutvel adquire a figura da singularidade. Mas ele aparece como um outro
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HEGEL, Fenomenologia, par. 209 HEGEL, Fenomenologia, par. 210 374 HEGEL, Fenomenologia, par. 210
singular diante da conscincia, e no como uma posio da essncia qual a conscincia infeliz enfim participa. Da porque Hegel lembra que:
atravs da figurao do imutvel, o momento do alm no s permanece mas ainda se refora, pois, se pela figura da efetividade singular parece de um lado achegar-se mais conscincia singular, de outro est frente a ela como um impenetrvel Uno sensvel, com toda a rigidez do Efetivo375.
Ou seja, a simples manifestao da essncia no campo do que fenomenalmente determinado no basta para termos nossa disposio um protocolo geral de reconciliao. Isto apenas em geral um acontecer (berhaupt ein Geschehen), acontecimento que aparece como apresentar-se da essncia, mas que ainda no indica as modalidades de apreenso reflexiva de tal apresentar-se. A conscincia ainda se v distante de tal acontecimento. Da porque ela deve levar unidade sua relao inicialmente exterior com o imutvel figurado como uma efetividade/uma realidade estranha376.
O esforo de reconciliao
A partir do pargrafo 214, Hegel descreve o movimento atravs do qual a conscincia infeliz se esfora em atingir a unidade com a essncia. Tal movimento trplice, devido trplice configurao dos modos de relao com o que aparece como alm. Primeiro, como pura conscincia atravs do sentimento. Segundo, como conscincia prtica e desejante que, atravs do agir, procura unificar-se com a essncia. Por fim, como conscincia de seu ser-para-si atravs do sacrifcio de si. Hegel assim descreve o primeiro modo de relao com o que aparece como alm:
Nessa primeira modalidade em que a tratamos como pura conscincia, a conscincia infeliz no se relaciona com seu objeto como pensante (...) A conscincia, por assim dizer, apenas caminha na direo do pensar e fervor devoto. Seu pensamento, sendo tal, fica em um uniforme (gestaltlose informe)
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badalar de sinos ou emanao de clidos vapores; um pensar musical que no chega ao conceito, o qual seria a nica modalidade objetiva imanente. Sem dvida, seu objeto vir ao encontro desse sentimento (Fhlen) interior puro e infinito, mas no se apresentar como conceitual, surgir pois como algo estranho377.
Tal como vimos no captulo dedicado certeza sensvel, novamente a conscincia cr aproximar-se do essencial atravs da imanncia do que se apresenta de maneira pr-conceitual, atravs do puro intuir do sentimento. Este intuir manifesta-se atravs da devoo de um fervor que mais se assemelha a um pensar musical que no chega ao conceito. Esta figura do pensar musical extremamente ilustrativa. H uma clara contraposio entre forma musical e conceito que perpassa vrios momentos da filosofia hegeliana. A anlise de tal contraposio pode nos esclarecer certos aspectos do que est em jogo neste momento do nosso texto Segundo Hegel, a msica seria a mais subjetiva das artes, linguagem da pura interioridade, j que seu contedo seria o puro Eu, inteiramente vazio de determinaes objetivas. Lembremos, por exemplo, como Hegel insiste no fato da msica no produzir uma objetividade espacialmente durvel. Pois o som uma exteriorizao que, precisamente converge o momento de sua exteriorizao com o momento de seu desaparecimento. A msica seria muito prxima deste elemento de liberdade formal para no ser: de todas as artes, aquela que mais apta a se liberar (...) da expresso de todo contedo determinado378. Ao contrrio da poesia, onde o significante fnico continua sendo a designao de uma representao e no aspira significao apenas por si mesmo, a msica permite forma sonora de transformar-se em fim essencial enquanto edifcio sonoro. Mas ela perde a objetividade interior dos conceitos e representaes que a linguagem potica apresenta conscincia. A msica aparece assim como linguagem da interioridade subjetiva da sensao. Fora da arte, o som (grito, exclamao etc.) j exteriorizao imediata de estados de alma e de sensaes. Mas, na sensao, a distino entre o eu e o objeto no pode ser posta. Desta forma, na msica. A conscincia, que no tendo mais nenhum
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objeto em face dela, tragada pelo fluxo contnuo de sons379. A msica, e este seria o seu pecado maior, no permitiria com isto a reflexividade que funda a conscincia-de-si, ainda mais porque ela levaria a conscincia percepo abstrata de si. Eis o ponto central: seu pressentimento do infinito e sua tentativa de ser uma lngua para alm da linguagem seria, segundo Hegel, fundada sobre a ausncia de reflexividade prpria forma musical. Hegel termina esta exposio da primeira modalidade de unificao com a essncia lembrando que a informidade de um pensar musical fevoroso pode inverter-se em objetificao da essncia: singular como objeto ou como um efetivo, objeto da certeza sensvel imediata. A conscincia sai ento procura de objetos que possa representar a essncia. No entanto, ela encontra apenas o sepulcro de sua vida. [As cruzadas como smbolo histrico de uma verdade metafsica/ mas tambm o signo como tmulo de pedra que guarda em si uma alma estranha que, no entanto, fonte de significado]. Esta experincia de que a representao material da essncia no mundo um sepulcro impulsiona o advento do segundo modo de esforo de unificao. A conscincia agora no mais tenta apreender a essncia atravs da certeza imediata do sentimento. Ela conscincia que deseja e trabalha, ou seja, conscincia que nega o mundo como sepulcro. No entanto:
A efetividade contra a qual se voltam o desejo e o trabalho j no uma nulidade em si que ela apenas deva superar (Aufzuhebendes) e consumir. uma efetividade cindida em dois pedaos, tal como a prpria conscincia: s por um lado ela em si nula, mas pelo outro lado um mundo consagrado, a figura do imutvel380.
Ou seja, o mundo aparece, ao mesmo tempo, como nada e sagrado, como sepulcro e como o que deve ser consagrado ao imutvel [a transubstanciao]. O sentido do agir da conscincia no apenas a negao do mundo, mas o construir a comunho atravs de um trabalho que consagrao ao imutvel, trabalho que santificao. Isto possvel porque: A existncia sensvel tornou-se um smbolo, no o que ; e se ela
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se entrega conscincia porque o prprio imutvel faz disso um dom para a conscincia381. Hegel insiste que esta clivagem do objeto (entre o que deve ser negado e o que deve ser consagrado) apenas duplica uma clivagem da prpria conscincia. Na dimenso do agir, a conscincia, v suas faculdades e foras como: um dom estranho (eine fremde Gabe) que o imutvel concede conscincia para que dele goze382. H um avano aqui pois a conscincia no v mais o imutvel como o que se manifesta diante dela. Ele est internalizado na prpria conscincia atravs de um agir que dom divino. A essncia no est mais em um alm da conscincia singular. No entanto, Deus quem age atravs da conscincia, assim como o Senhor era o verdadeiro sujeito da ao do Escravo. Da porque Hegel afirma: nega a satisfao da conscincia de sua independncia e transfere a essncia de seu agir de si para o alm 383. O agir da conscincia aparece, de uma certa forma, como a prpria negao da conscincia. Esta negao e consagrao do mundo atravs de um agir que dom estranho tem sua figurao perfeita na ao de graas. Todo o agir da conscincia neste estgio , em ltima instncia, uma ao de graas. Ao atravs da qual o sujeito oferece Deus o fruto de seu prprio dom. No entanto, Hegel insiste que, na ao de graas, a renncia satisfao do sentimento-de-si apenas aparente. De fato, a conscincia reconhece que seu agir agir de um Outro, mas ela quem reconhece. a prpria conscincia que, de maneira reflexiva, reconhece a essencialidade do Outro atravs do seu prprio agir particular. Por isto, Hegel no deixa de insistir que: o movimento completo se reflete no extremo da singularidade, j que o imutvel, este, no reflete para-si no singular. Neste sentido, a passividade da conscincia era a iluso de uma renncia aparente e, por isto, inefetiva.
O ltimo movimento do nosso texto , na verdade, um aprofundamento deste movimento de despossesso de si que foi apenas encenado de maneira aparente atravs da ao de graas. Hegel pensa, aqui, processos de reconciliao efetiva com o universal
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HYPPOLITE, Gnese ... p. 225 HEGEL, Fenomenologia, par. 220 383 HEGEL, Fenomenologia, par. 222
atravs do sacrifcio de si devido ao ascetismo e culpabilidade. Vejamos como isto se d. Hegel afirma que este terceiro estgio organiza-se atravs de uma relao na qual a conscincia aparece como nulidade (Nichtigkeit). Por isto, agir e gozo perdem todo contedo e sentidos universais pois assim teriam um ser-em-si e para-si, e ambos se retiram sua singularidade, qual a conscincia est dirigida para super-la384.
A conscincia percebe seu agir e seu gozar como sempre aferrado particularidade, sensibilidade, ao clculo do prazer. Ou seja, agir e gozar sempre marcado pela animalidade (que aparece como o inimigo no interior do si mesmo). Atravs da culpabilidade e da mortificao asctica, a conscincia adentra em uma luta contra si mesmo que s pode produzir misria e infelicidade. No entanto, algo de positivo se esboa neste luta de si contra si mesmo, pois ao sentimento de sua infelicidade e misria de seu agir junta-se a ambos tambm a conscincia da sua unidade com o imutvel385, j que esta tentativa de aniquilao imediata do ser sensvel feita em nome do pensamento do imutvel, um pensamento a respeito do qual a conscincia no conhece determinidade alguma [Deus um Deus escondido]. Hegel ainda lembra que a mediao entre o pensamento do imutvel e a inefetividade do vnculo ao sensvel no ocorre inicialmente na conscincia, mas em um meio-termo (o ministro, ou ainda, a igreja). Mediao tambm ilusria, mas necessria. Necessria porque a conscincia ir, de uma certa forma, transformar a sua relao com o meio-termo em modo de efetivao e determinao do imutvel. Ela submete-se ao meio-termo como suplemento submisso impossvel a um imutvel que no pode se determinar de maneira plena. Nesta submisso ao meio-termo, a conscincia se pe a fazer algo totalmente estranho, algo que no compreende at ter a certeza de; ter-se exteriorizado (entussert) verdadeiramente de seu Eu, e de ter feito de sua conscincia-de-si imediata uma coisa (Dinge) um ser objetificado (gegenstndlichen Sein)386. Neste sacrifcio de si atravs da alienao do seu agir, alienao resultante de uma deciso que ela mesma
384 385
HEGEL, Fenomenologia, par. 225 HEGEL, Fenomenologia, par. 226 386 HEGEL, Fenomenologia,par. 229
toma de pr sua vontade como um Outro, de ter em si sua prpria negao, Hegel indica o caminho para a reconciliao. Pois ela no trocou sua perspectiva particular, por outra perspectiva particular. Ao contrrio, na confrontao com o automatismo da ao desprovida de sentido, de um agir que no posio da expressividade de nenhum sujeito, a conscincia pode alcanar a universalidade do que abstrato. A razo pode ento comear a aparecer. Um caminho que a conscincia ainda no apreende reflexivamente. Para ela, o agir continua sendo um agir miservel. No entanto,
A partir desta aula, iniciaremos a anlise da quinta seo da Fenomenologia do Esprito: Conscincia e verdade da razo. Trata-se de uma seo extensa, tanto em tamanho quanto em aspiraes. Se, na seo Conscincia, foi questo da anlise da relao cognitivo-instrumental da conscincia com o objeto, e, na seo Conscincia-de-si, questo da relao de reconhecimento entre conscincias como condio prvia para o conhecimento de objetos, a seo Razo pode ser compreendida como a anlise das operaes da razo moderna em seus processos de racionalizao; razo agora reflexivamente fundamentada no princpio de uma subjetividade consciente-de-si.. Neste sentido, encontramos aqui o que poderamos chamar de crtica hegeliana ao processo de modernizao em suas dimenses: cognitivo-instrumental (razo observadora), prtico-finalista (razo ativa) e jurdica (razo legisladora que , sua maneira, um desdobramento da segunda). Tais dimenses correspondem, grosso modo, s trs subdivises da nossa seo: Razo observadora Razo ativa ou A efetivao da conscincia-de-si racional atravs de si mesma A individualidade que real em si e para si mesma (embora, nesta subseo, o captulo O reino animal do esprito permanea mais prximo de
Lembremos, neste sentido, de um ponto j tematizado anteriormente. A modernidade, enquanto momento que procura realizar expectativas de autofundamentao nas mltiplas esferas da vida social, vista por Hegel como processo histrico animado pelas promessas de uma razo una do ponto de vista de suas dinmicas de racionalizao. Isto significa, por exemplo, que os processos de racionalizao que fornecem os fundamentos descritivos para a cincia moderna e seus mtodos de observao so compreendidos como simtricos aos processos de racionalizao em operao nos campos de interao social e na concepo de formas modernas de vida social. Isto significa tambm que os equvocos do primeiro sero simtricos aos equvocos do segundo. Podemos dizer que esta a perspectiva geral assumida por Hegel neste captulo. A prpria maneira com que o captulo organizado mostra isto claramente. Hegel parte de reflexes sobre certos protocolos de observao racional da natureza na fsica, na biologia e no que chamaramos hoje de psicologia (fisiognomia, frenologia) a fim de alcanar a problemtica do que conta como ao racional para os indivduos em sociedade. O recurso individualidade neste contexto fundamental. o seu aparecimento com a exigncia de s aceitar como vlido o que pode ser reflexivamente posto que anima a constituio de formas modernas de vida social que aspiram fundamentao racional. Neste captulo, que se inicia com uma reflexo sobre o primado da subjetividade transcendental no idealismo, Hegel passar em revista, de forma crtica, a vrias figuras do individualismo moderno em sua dimenso prtica: o hedonismo faustiano, o sentimentalismo da Lei do corao, a recuperao do discurso da virtude natural e o individualismo romntico (O reino animal do esprito). Ao final, veremos como estruturas sociais s podero ser racionalmente fundamentadas quando passarmos do primado da individualidade ao primado do Esprito. As aulas deste mdulo sero em nmero de quatro e sero organizadas da seguinte forma: a aula de hoje ser um comentrio dos primeiros pargrafos da seo (at n. 239). A segunda aula visar fornecer um panorama geral da subseo A razo
observadora. Pediria uma ateno especial para o ltimo captulo desta subseo: Observao da relao da conscincia-de-si com sua efetividade imediata: fisiognomia e frenologia pois nos demoraremos mais nele. A terceira aula, ser dedicada subseo a razo ativa e a nfase principal ser dada ao subcaptulo entitulado O prazer e a necessidade. Por fim, a quarta aula ser dedicada subseo A individualidade que real em si e para si mesma e a ateno especial ser dada ao subcaptulo O reino animal do esprito e a impostura ou a Coisa mesma. No entanto, antes de iniciarmos nossa leitura, gostaria de fazer algumas consideraes gerais sobre a seo em questo e os desdobramentos do projeto inicial do livro. Estas questes so pertinentes porque, a partir deste ponto, a estruturao do livro segue uma diviso diferente do que foi anteriormente posto. Em um ndice anexado posteriormente impresso da obra, Hegel havia divido a Fenomenologia em trs partes: A . Conscincia. B. Conscincia-de-si, mas C. ficou, de uma certa forma, vazio, j que o livro divide-se, a partir da, em C (AA) Razo, C (BB) Esprito, C (CC) Religio e C(DD) Saber absoluto. Por outro lado, o captulo da Enciclopdia de 1830 dedicado Fenomenologia do Esprito tem apenas trs partes e termina em uma seo intitulada razo Isto levou alguns comentadores a acreditar que o projeto original do nosso livro terminaria na seo razo e que Hegel teria, no prprio processo de redao, modificado o projeto acrescentando as novas sees. O que certo que, a partir da seo razo, chegamos a um estdio de unidade entre conscincia e conscincia-de-si cuja realizao perfeita nos levar ao saber absoluto. H, de fato, uma unidade de propsito nestas quatro sees finais, j que cada uma mostrar modos distintos de posio deste princpio de unidade. Neste sentido, o carter progressivo q ue animava o desenvolvimento da Fenomenologia d lugar a uma procura pela perspectiva possvel de fundamentao de um programa positivo para as aspiraes de fundamentao da razo. Da porque: apenas aps o captulo sobre a razo que a Fenomenologia chega ao ponto que Hegel tinha inicialmente situado no captulo sobre a conscincia-de-si: essncia e fenmeno se respondem, o esprito se mostra essncia absoluta sustentando-se a si mesmo387. A partir de ento, ser a seo esprito que passar condio de centro de gravidade da obra.
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Idealismo como modernismo No pensamento que captou de que a conscincia singular em si a essncia absoluta -, a conscincia retorna a si mesma. Para a conscincia infeliz o ser emsi o alm dela mesma. Porm seu movimento nela implementou a singularidade em seu completo desenvolvimento, ou a singularidade que a conscincia efetiva, como o negativo de si mesma; quer dizer, como um extremo objetivo posto. Em outras palavras, arrancou de si seu ser para-si e fez dele um ser. Nesse processo veio a ser tambm para a conscincia sua unidade com esse universal (...) e como a conscincia se conserva a si mesma em sua negatividade, essa unidade constitui na conscincia como tal sua essncia388.
Ns vimos na aula passada o resultado final do movimento prprio figura da conscincia infeliz. A conscincia infeliz tinha, em relao s outras figuras da conscincia, a peculiaridade de ter internalizado a ciso entre a particularidade da perspectiva da conscincia e a universalidade de uma perspectiva vinculada essncia, fundamentada de maneira incondicional e absoluta. Essncia esta figurada em uma outra conscincia-de-si (o imutvel) que se afirma como aquela que tem para si a perspectiva universal de validao de condutas e julgamentos. Por ter internalizado esta perspectiva de uma outra conscincia essencial, ela pode intuir a si mesma em uma outra, ser ao mesmo tempo ambas. Ou seja, a clivagem incide na conscincia e, por incidir nela, pode ser superada. Depois de um longo movimento onde a tentativa de reconciliao e de anulao da ciso levou a conscincia infeliz a aproximar-se da essncia seja atravs da imanncia do que se apresenta de maneira pr-conceitual, atravs do puro intuir do sentimento, seja atravs da negao do mundo a partir de um desejo e de um trabalho que so figuras de um agir no qual a conscincia renuncia a si, vimos como o texto caminhava para a exposio de uma estrutura peculiar de reconciliao. Ns vimos como a conscincia infeliz podia, ao final, retornar a si e ser conscincia singular que em si a essncia absoluta. Tal operao dependia da posio da singularidade (da conscincia aferrada ao particularismo de sua perspectiva)
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como o negativo de si mesma. Atravs desta negao de si, a conscincia podia tecer e internalizar uma unidade com a essncia. Ao final da seo conscincia-de-si, tal negao ganhou a figura do sacrifcio de si atravs da alienao completa do seu agir e mortificao de si pelas vias do ascetismo e da culpabilidade. No entanto, esta alienao e este sacrifcio no foram feitos em nome da internalizao da perspectiva de uma outra conscincia que se colocaria na posio de dominao. Para alm disto, este sacrifcio de si atravs da alienao do seu agir foi alienao resultante de uma deciso, tomada pela prpria conscincia, de pr sua vontade como um Outro, de ter em si sua prpria negao. Mas neste pr sua vontade como um Outro, a conscincia no trocou sua perspectiva particular por outra perspectiva particular. Ao contrrio, ao fazer algo que no compreende, algo totalmente estranho, rituais que lhe traz representaes e fala linguagem sem sentido a conscincia se confrontou com o automatismo de um agir desprovido de sentido, de um agir que no posio da expressividade de nenhum sujeito. De forma, ela pode alcanar a universalidade do que abstrato, desprovido de todo vnculo essencial ao sensvel. Assim, da dialtica do Senhor e do Escravo (ncleo motor da seo conscincia-de-si) at a figura da conscincia infeliz, temos o aprofundamento de um movimento de formao que passa pela auto-posio de si como pura negatividade (auto-posio que Hegel alude ao dizer que a conscincia arrancou de si seu ser para-si e fez dele um ser). Auto-posio que s se completa quando a conscincia se v agindo e desejando a partir de um Outro incondicional e absoluto, Outro que a primeira figura, no interior do campo de experincias da conscincia, do universal. Dito Isto Hegel pode ento iniciar esta nova seo afirmando:
Porque a conscincia-de-si razo, sua relao [Verhltnis], at agora negativa frente ao ser-outro [seja a perspectiva de uma outra conscincia singular, seja as determinaes empricas do mundo], se converte em uma atitude positiva. At agora, s se preocupava com sua independncia e sua liberdade, a fim de salvar-se e conservar-se para si mesma, s custas do mundo ou de sua prpria efetividade, j que ambos lhe pareciam o negativo de sua essncia. Mas como razo segura de si mesma, a conscincia-de-si encontrou a paz em relao a ambos, e pode suport-los, pois est certa de si mesma como sendo a realidade
(Realitt), ou seja, est certa de que toda a efetividade no outra coisa que ela389. Aqui, j encontramos a definio operacional de razo com a qual Hegel trabalhar na Fenomenologia do Esprito: a razo a certeza da conscincia ser toda a realidade, ou seja, certeza de que o que aparece como outro tem a mesma estrutura da conscincia-de-si. Ns voltamos aqui quilo que apresentei como postulado fundamental do idealismo: A estrutura do objeto duplica a estrutura do Eu, e no por outra razo que Hegel compreende o idealismo como figura da razo, como momento histrico de posio do conceito da razo. Momento histrico este dependente dos processos de subejtivao socialmente postos pela f crist. Neste pargrafo vemos Hegel descrevendo uma mudana brutal de perspectiva: a conscincia negava toda sua dependncia essencial em relao ao ser-outro. Negao que a levou a afirmar-se contra o ser-outro, seja atravs de uma liberdade interior que era apenas figura do afastamento e da aniquilao do mundo (estoicismo e ceticismo), seja atravs de uma procura pela independncia abstrata. No entanto, agora, a conscincia est segura de ter se reconciliado com a realidade, ou seja: est certa de que toda a efetividade no outra coisa que ela, a conscincia tem a certeza de que s a si experimenta no mundo. A primeira questo que devemos responder : o que aconteceu conscincia para que tal reconciliao fosse possvel? Se no partirmos desta questo, poderemos nos desviar do verdadeiro alvo da indagao hegeliana. Pois, sem ela, fcil interpretarmos de maneira equivocada afirmaes como:
Do mesmo modo que a conscincia que vem cena como razo tem em si essa certeza imediatamente, assim tambm o idealismo a enuncia da forma imediata: Eu sou Eu, no sentido de que Eu objeto para mim. No no sentido de objeto da conscincia-de-si em geral, que seria um objeto vazio em geral [o Eu como auto-intuio abstrata de si], nem de objeto da conscincia de si livre, que retirado dos outro que ainda tem valor [a auto-objetificao de si atravs da liberdade absoluta que se aferra a um contingente; mas sim que o Eu objeto,
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com a conscincia do no-ser [da nulidade] que qualquer outro objeto; o objeto nico, toda a realidade e presena390.
A princpio, pode parecer que, a partir de agora, o Eu tem a conscincia de encontrar sua imagem auto-idntica em toda a realidade e presena, como se o Eu aparecesse enfim como fundamento e solo da visibilidade do que se pe como presena. Afinal, a comparao do saber com o objeto no havia sido definida anteriormente por Hegel como comparao da conscincia consigo mesma? No entanto, sabemos que no exatamente isto que Hegel tem em mente. Vimos, na seo conscincia-de-si, como Hegel insistia que o Eu e seu sentimento de auto-identidade eram resultados de um longo processo de socializao e de
interao social (entre conscincias e interao sujeito/objeto). Tal perspectiva que apreende o processo de formao do Eu procurava deixar evidente seu carter fundamentalmente relacional e anti-solipsista. Hegel chegava mesmo a insistir que tais processos formadores de socializao se estruturavam a partir de dinmicas de alienao do agir e do desejo (as duas faculdades expressivas fundamentais at agora) atravs da internalizao da perspectiva do Outro. Mas a formao do sujeito moderno s chega a seu resultado final atravs da internalizao da perspectiva de um Outro cujo desejo e agir so incondicionais. Da porque Lebrun podia afirmar: em troca de seus sofrimentos, o gozo do universal que se oferece conscincia... belo presente391. Desta forma, os sujeitos modernos apareciam como locus de exigncias abstratas de universalidade conjugadas e assumidas no particular, universalidade que dependia da vinculao dos sujeitos ao particular para se afirmar enquanto tal. Este era o valor positivo dos processos de mortificao e culpabilidade: a conscincia no pode aniquilar seu vnculo particularidade [comparar a conscincia infeliz com o movimento final da seo esprito]. Eles eram, assim, a identidade entre a identidade e a diferena. Era esta abolio da auto-identidade imediata que permitia ao Eu duplicar a estrutura do objeto e ter, assim, a certeza de ser toda a realidade. No que ele pudesse, a partir da, deduzir toda a realidade; mas ele tinha a possibilidade reconhecer a racionalidade da irredutibilidade do sensvel. Racionalidade que nos levava a esta noo de infinitude do pensar enquanto capacidade do conceito em absorver aquilo que o nega sem, com isto, dissolver-se na posio de um objeto vazio de conceito.
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Hegel insiste ento que o idealismo nos traz este conceito renovado de conscincia-de-si enquanto fundamento do saber, enquanto condio para a conscincia de objeto e enquanto princpio de racionalizao de todas as esferas sociais de valores. Da porque Hegel parte, na seo razo, de uma re-compreenso da proposio fundamental de auto-identidade do sujeito (Eu=Eu). Trata-se de insistir que a correta elaborao do processo de formao da conscincia nos impede de compreender esta auto-identidade do sujeito como posio imediata da auto-percepo de si. Para tanto, um debate entre Hegel, Fichte e, principalmente, Kant desenha-se neste momento do nosso texto. Hegel afirma que o idealismo apareceu at agora como o resultado de um longo esquecimento do que estava em jogo no processo de formao da conscincia-de-si. Da porque ele pode dizer que a conscincia: deixou para trs esse caminho [de sua formao] e o esqueceu, ao surgir imediatamente como razo392. Ou ainda, que o idealismo: que comea por tal assero (Eu=Eu) sem mostrar aquele caminho [do processo de formao do Eu] por isto tambm pura assera que no se concebe a si mesma393. Na verdade, Hegel quer contrapor uma compreenso transcendental das estruturas da razo descrio fenomenologia do processo de formao de seus conceitos, em especial do processo de formao deste princpio fundamental que a auto-identidade imediata do Eu penso e da centralidade da estrutura categorial do entendimento. Neste sentido, Hyppolite tem razo ao lembrar que Hegel procura enquadrar o idealismo, em especial o kantiano, como um fenmeno da histria do esprito, como uma figura da conscincia, e no apenas como tese filosfica 394. Para tanto, vale a pena traar os traos gerais da maneira com que Hegel compreende as articulaes entre entendimento e conscincia-de-si em Kant.
De maneira sumria, podemos lembrar de alguns traos gerais da experincia intelectual kantiana que Hegel tem em mente. Digamos que Kant comea por perguntar: qual o fato do conhecimento (quid facti)?. O fato do conhecimento consiste em
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HEGEL, Fenomenologia, par. 233 HEGEL, Fenomenologia, par. 234 394 Ver, HYPPOLITE, Gnese, p. 240
termos representaes graas s quais julgamos. Julgar, aqui, significa principalmente reportar o diverso da intuio a representaes, a conceitos. Representaes e conceitos cuja funo consiste basicamente em serem predicados de juzos possveis para todo e qualquer objeto. No entanto, sabemos que estes predicados de juzos possveis, para poderem responder a aspiraes de universalidade, no devem ser resultantes de alguma forma de gnese emprica ou de induo a partir de situaes empricas contextuais. Tais predicados (ou predicamentos) devem ter realidade transcendental, isto se lembrarmos que transcendental diz respeito ao conhecimento a priori de como certas representaes e conceito so aplicados ou possveis. Em ltima instncia, podemos representar a priori todo objeto possvel da intuio pois podemos deduzir a priori as formas da percepo. A conscincia de um objeto no pode ser entendida simplesmente nos termos de possuir um determinado estado mental. Ter conscincia de um objeto significa capacidade de representar objetos em suas diferenas estruturadas, unificar objetos a partir de regras reflexivamente apreendidas pela conscincia. Isto significa submeter a conscincia conscincia-de-si (j que conscincia-de-si, aqui, no exatamente conhecimento-de-si, mas posio das condies gerais da experincia) . Sabemos, no entanto, que no basta ter princpios, faz-se necessrio que tenhamos a ocasio de exerc-los. Meros princpios subjetivos ligados estrutura de nossa psicologia de nada serviriam para dar objetividade ao conhecimento. Como nos lembra Deleuze: o que nos apresenta de maneira a formar uma Natureza deve necessariamente obedecer a princpios do mesmo gnero (mais ainda, aos mesmos princpios) que aqueles que regulam o curso das nossas representaes395. Desta forma, trata-se de substituir a idia de uma harmonia entre sujeito e objeto por uma submisso necessria do objeto ao sujeito. Operao que serve de base para o que Kant chama de revoluo copernicana. No entanto, tal submisso no pode nos levar a um idealismo subjetivista. As coisas no so simples produtos de nossas atividades. As exigncias do realismo devem ser respeitadas. Kant tentar preencher tais exigncias atravs de uma anlise das faculdades do conhecimento (sensibilidade, imaginao, entendimento e razo) e de suas relaes internas. Como se o problema da relao entre sujeito e objeto tendesse a ser internalizado e convertido em um problema de relaes entre faculdades.
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Kant insiste que h uma faculdade passiva (sensibilidade) e trs faculdades ativas. A faculdade passiva recebe a matria que dar origem aos objetos, assim como as faculdades ativas sintetizam a forma dos objetos atravs da intuio no espao e no tempo e atravs da categorizao como predicao de todo objeto possvel experincia. Assim, do ponto de vista da forma, o que aparece conscincia, ou seja, os fenmenos, s podem estar submetidos s categorias do entendimento. No entanto, do ponto de vista da matria, a harmonia s pode ser postulada de maneira ideal pelas idias da razo, que so apenas idias reguladoras.A razo a faculdade que diz: tudo se passa como se.... As idias da razo no so simples fices, elas tm valor regulador, mas seu objeto indeterminado e problemtico (a coisa em-si). Ao tentar legislar diretamente sobre a sensibilidade, a razo produz apenas falsos problemas e iluses (paralogismos e antinomias). O resultado pois a possibilidade de falarmos de leis que: a priori fundamentam a natureza, tomada como conjunto de objetos da experincia396. Mas o preo a ser pago ser o reconhecimento de que a experincia refere-se apenas a fenmenos, e no a coisas em-si, que se mantm para ns incognoscveis. isto que Hegel tem em mente ao afirmar, sobre o idealismo kantiano: A razo a certeza de ser toda a realidade. Mas esse em-si ou essa realidade , ainda, um absolutamente universal, a pura abstrao da realidade397. No entanto, exatamente o problema da centralidade da submisso do diverso s categorias na constituio do objeto da experincia que interessa Hegel neste momento. Ele quer criticar um processo de racionalizao que basicamente compreendido como categorizao. Processo que, para Hegel, s pode levar a esta pura abstrao da realidade. Para fazer a critica a uma racionalizao compreendida como categorizao, Hegel parte do vnculo indissocivel entre conscincia-de-si e estruturao dos modos de relao entre categorias e diversidade advinda da intuio. Da porque, Hegel parte de afirmaes como: o Eu [no idealismo kantiano] apenas a pura essencialidade do ente ou a categoria simples. Sabemos que Kant organiza os modos de categorizao a partir das funes lgicas do juzo. As categorias sero definidas como: conceitos de um objeto em geral, por intermdio dos quaisa intuio desse objeto se considera determinada em relao a
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uma das funes lgicas do juzo398. Da porque a tbua das categorias (com suas quatro subdivises em quantidade/qualidade/modalidade e relao) deduzida das quatro rbricas do julgamento. Kant quer evitar o erro de Aristteles que: no estava de posse de um princpio399 de deduo transcendental de categorias. No entanto, Hegel dir:
Com isto se admite que a imediatez, o asseverar e o encontrar so abandonados, e que o conceituar (Begreifen) principia. Contudo, admitir a multiplicidade de categorias de uma maneira qualquer por exemplo, a partir dos juzos como um achado, e fazer passar por boas as categorias assim encontradas, isto deve ser considerado um ultraje cincia400.
Ou seja, no parece Hegel que as formas lgicas do juzo possam aspirar fornecer, por si s, modos fundamentados de organizao do diverso da experincia. A razo aqui clara: as formas lgicas do juzo so, para Hegel, representaes naturais do pensar, sedimentaes de pressupostos que no so postos. Por exemplo, aos dividir juzos, segundo a quantidade, em universais, particulares e singulares, o pensar pressupe a naturalidade de processos fundamentais de identidade, diferena e relao. Pois so eles que me permitem, por exemplo, particularizar uma representao e generalizar outra. A verdadeira questo, para Hegel, : de onde o entendimento retira a certeza de seus pressupostos de identidade e diferena que estruturam a prpria possibilidade de configurao de categorias? A resposta est na auto-identidade imediata da conscincia-de-si. nesta direo que devemos compreender a afirmao de Hegel:
O idealismo enuncia a unidade simples da conscincia (Eu=Eu) como sendo toda a realidade, e faz dela imediatamente a essncia, sem t-la conceituado como essncia absolutamente negativa. apenas esta ltima que tem em si a negao, a determinidade e a diferena. Mas se isto inconcebvel [para o idealismo],
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KANT, Crtica da razo pura, B 128 KANT, Crtica da razo pura, B 107 400 HEGEL, Fenomenologia, par. 235
mais inconcebvel ainda que haja na categoria diferenas ou espcies (...) as mltiplas categorias so espcies da categoria pura401. De fato, Kant sempre insistiu que: todo o diverso da intuio possui uma relao necessria ao Eu penso no mesmo sujeito em que esse diverso se encontra402. Pois a ligao (Verbindung) do diverso em geral deve ser um ato da espontaneidade do sujeito. No entanto, esta ligao pressupe a representao da unidade sinttica do diverso construda a partir de pressuposies de identidade e diferena. Isto implica no apenas que todas as representaes de objeto devem ser minhas (o Eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representaes) para que elas possam ser apropriadas reflexivamente. Mas implica fundamentalmente que, para que elas possam apropriadas reflexivamente, elas devem ser estruturadas a partir de um princpio interno de ligao e de unidade que seja reflexivamente reconhecido pela conscincia-de-si. Da porque a regra de unidade sinttica do diverso da experincia fornecida pela estruturao da prpria unidade sinttica de apercepes, ou seja, pela auto-intuio imediata da conscincia-de-si que: ao produzir a representao eu penso, que tem de poder acompanhar todas as outras, e que uma e idntica em toda a conscincia, no pode ser acompanhada por nenhuma outra403. Kant ainda mais claro ao afirmar que: O objeto aquilo em cujo conceito est reunido o diverso de uma intuio dada. Mas toda a reunio das representaes exige a unidade da conscincia na respectiva sntese404. Aqui fica mais claro a estratgia hegeliana de reconstituir as aspiraes da razo atravs da reconstituio desta categoria fundamental, a saber, o sujeito como fundamento das operaes de reflexividade. Pois questionada a possibilidade da autointuio imediata de si, so os postulados fundamentais de constituio de processos de identidade, diferena, unidade, ligao que estaro abalados. por esta razo que Hegel, mais uma vez, faz apelo a colocaes como:
A razo apela para a conscincia-de-si de cada conscincia: Eu sou Eu, o Eu meu objeto e minha essncia e ningum lhe negar essa verdade. Porm, ao fundar a verdade neste apelo, sanciona a verdade da outra certeza, a saber, h
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HEGEL, Fenomenologia, par. 235 KANT, Crtica da razo pura, B 132 403 KANT, Crtica da razo pura, B 132 404 KANT, Crtica da razo pura, B 137
para mim um outro, um outro que me objeto e essncia (...) Somente quando a razo surge como reflexo a partir dessa certeza oposta que surge sua afirmao de si, no mais apenas como certeza e assero, mas como verdade405.
Hegel ainda analisa, nos pargrafos 236 e 237 algumas elaboraes da filosofia de Fichte em relao aos impasses do idealismo kantiano. A leitura hegeliana de Fichte (desenvolvida principalmente no artigo Diferenas entre os sistemas de Fichte e Schelling e Lies sobre a histria da filosofia), parte da noo de que: Com efeito, para Fichte, a fonte das categorias e das idias o Eu, mas todas as representaes e todos os pensamentos so um mltiplo sintetizado pelo pensar406. Fichte parte do carter absoluto do Eu, deste primeiro princpio de que eu sou igual a mim mesmo (Eu=Eu). Mas esta conscincia de si no uma identidade morta; ela a auto-posio reflexiva de si em um objeto, ou ainda, auto-posio de si na condio de objeto. Isto fora que tal primeiro princpio seja acrescido de um segundo: Eu ponho diante do Eu um No-Eu (Ich setze dem Ich ein Nicht-Ich entgegen) enquanto oposio determinante. isto que Hegel tem em mente ao afirmar:
Como unidade negativa, [a conscincia-de-si] exclui de si tanto as diferenas como tais, quanto essa primeira unidade pura e imediata como tal; a singularidade, uma nova categoria que a conscincia excludente, conscincia para a qual h um Outro407.
Fichte procura realizar a sntese desta diviso atravs de um terceiro princpio que afirma: O eu e o No-eu so estabelecidos conjuntamente pelo Eu e no seu interior como limitados entre si. Maneira de tentar dar conta deste movimento atravs do qual a conscincia sai de si: como categoria simples, passando simplicidade e ao objeto (...) suprimindo o objeto como distinto para apropriar-se dele e proclamando-se como certeza de ser toda a realidade408. Hegel se interessa por este esquema por ver, nele, como o princpio de identidade alojado na auto-intuio da conscincia-de-si aparece, no interior mesmo do
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HEGEL, Fenomenologia, par. 234 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia - Fichte 407 HEGEL, Fenomenologia, par. 236 408 HEGEL, Fenomenologia, par. 237
idealismo, como o que deve produzir necessariamente a diferena enquanto aquilo que no se submete ao quadro categorial, j que as categorias tem o Eu penso enquanto fundamento. Da porque Hegel pode falar que o idealismo encontra-se em uma:
contradio imediata, ao afirmar como essncia algo que duplo e pura e simplesmente oposto: a unidade sinttica de apercepo e, igualmente, a coisa. Pois a coisa, ao ser chamada tambm choque estranho ou essncia emprica, ou sensibilidade, ou coisa em si, em seu conceito fica sempre a mesma e estranha unidade sinttica de apercepo409. Dito isto, Hegel ir mostrar, em toda a seo razo, mostrar como tal contradio, resultante de um vnculo abstrato entre conscincia-de-si e identidade imediata, vai se configurando no interior dos processos de racionalizao de campos mltiplos da vida social (cincia, poltica, arte, direito). este movimento que seguiremos a partir da aula que vem.
O longo perodo de greve nos obriga a iniciar esta aula atravs de uma recapitulao da introduo seo Razo, isto a fim de nos orientarmos de maneira mais segura no comentrio do sub-captulo dedicado razo observadora. Lembremos, inicialmente, do projeto que marca a escrita da seo intitulada Conscincia e verdade da razo. Se, na seo Conscincia, foi questo da anlise da relao cognitivo-instrumental da conscincia com o objeto, e, na seo Conscincia-de-si, questo da relao de reconhecimento entre conscincias como condio prvia para o conhecimento de objetos, a seo Razo pode ser compreendida como a anlise das operaes da razo moderna em seus processos de racionalizao; razo agora reflexivamente fundamentada no princpio de uma subjetividade consciente-de-si..
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Ns vimos, j nos primeiros pargrafos, a definio operacional de razo com a qual Hegel trabalhar na Fenomenologia do Esprito: a razo a certeza da conscincia ser toda a realidade, ou seja, certeza de que o que aparece como outro tem a mesma estrutura da conscincia-de-si:
Porque a conscincia-de-si razo, sua relao [Verhltnis], at agora negativa frente ao ser-outro [seja a perspectiva de uma outra conscincia singular, seja as determinaes empricas do mundo], se converte em uma atitude positiva. At agora, s se preocupava com sua independncia e sua liberdade, a fim de salvar-se e conservar-se para si mesma, s custas do mundo ou de sua prpria efetividade, j que ambos lhe pareciam o negativo de sua essncia. Mas como razo segura de si mesma, a conscincia-de-si encontrou a paz em relao a ambos, e pode suport-los, pois est certa de si mesma como sendo a realidade (Realitt), ou seja, est certa de que toda a efetividade no outra coisa que ela410.
Ns voltamos aqui quilo que apresentei como postulado fundamental do idealismo: A estrutura do objeto duplica a estrutura do Eu, e no por outra razo que Hegel compreende o idealismo como figura da razo, como momento histrico de posio do conceito da razo. Neste pargrafo vemos pois Hegel descrevendo uma mudana brutal de perspectiva: a conscincia negava toda sua dependncia essencial em relao ao ser-outro. Negao que a levou a afirmar-se contra o ser-outro, seja atravs de uma liberdade interior que era apenas figura do afastamento e da aniquilao do mundo (estoicismo e ceticismo), seja atravs de uma procura pela independncia abstrata. No entanto, agora, a conscincia est segura de ter se reconciliado com a realidade, ou seja: est certa de que toda a efetividade no outra coisa que ela, a conscincia tem a certeza de que s a si experimenta no mundo. Uma certeza vinculada posio do princpio de subjetividade como fundamento do saber.
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Assim, a partir da seo Razo, chegamos a um estdio de unidade entre conscincia de objeto e conscincia-de-si cuja realizao perfeita nos levar ao saber absoluto. H, desta forma, uma unidade de propsito nas quatro sees finais que compem a Fenomenologia do Esprito, j que cada uma mostrar modos distintos de posio deste princpio de unidade. Entre as sees Razo, Esprito, Religio e Saber Absoluto no h exatamente um desenvolvimento progressivo, mas uma apresentao de quatro perspectivas distintas de reflexo a respeito da unidade entre conscincia de objeto e conscincia-de-si. Neste sentido, a perspectiva apresentada na seo Razo , desde o incio, alvo de crticas claras da parte de Hegel. Nela, Hegel procura configurar uma certa experincia da modernidade em direo racionalizao de suas esferas de valores; racionalizao esta que alcana a forma de sua reflexo filosfica atravs do idealismo. Lembremos, neste sentido, de um ponto j tematizado anteriormente. A modernidade, enquanto momento que procura realizar expectativas de autofundamentao nas mltiplas esferas da vida social, vista por Hegel como processo histrico animado pelas promessas de uma razo una do ponto de vista de suas dinmicas de racionalizao. Isto significa, por exemplo, que os processos de racionalizao que fornecem os fundamentos descritivos para a cincia moderna e seus mtodos de observao so compreendidos como simtricos aos processos de racionalizao em operao nos campos de interao social e na concepo de formas modernas de vida social. Isto significa tambm que os equvocos do primeiro sero simtricos aos equvocos do segundo. Podemos dizer que esta a perspectiva geral assumida por Hegel neste captulo. Neste sentido, encontramos aqui o que poderamos chamar de crtica hegeliana ao processo de modernizao em suas dimenses: cognitivo-instrumental (razo observadora), prtico-finalista (razo ativa) e jurdica (razo legisladora que , sua maneira, um desdobramento da segunda). Tais dimenses correspondem, grosso modo, s trs subdivises da nossa seo: Razo observadora, Razo ativa ou A efetivao da conscincia-de-si racional atravs de si mesma e, por fim, A individualidade que real em si e para si mesma (embora, nesta subseo, o captulo O reino animal do esprito permanea mais prximo de consideraes sobre a estrutura prtico-finalista da razo em sua dimenso esttico-expressiva)
Dito isto, vimos como Hegel iniciava o captulo a partir de uma crtica a perspectiva kantiana de compreender racionalizao como categorizao. Vimos como Hegel esboa uma crtica centralidade das noes de categoria (predicados gerais de um objeto qualquer) e de unidade sinttica de apercepes para as operaes racionais do entendimento na sua configurao dos objetos do conhecimento. No se trata, para Hegel, de colocar em questo a posio do princpio de subjetividade como fundamento para as operaes da razo, mas se trata de afirmar que o idealismo aparecera at ento como o resultado de um longo esquecimento do que estava em jogo no processo de formao da conscincia-de-si. Da porque ele pode dizer que a conscincia: deixou para trs esse caminho [de sua formao] e o esqueceu, ao surgir imediatamente como razo411. Ou ainda, que o idealismo: que comea por tal assero (Eu=Eu) sem mostrar aquele caminho [do processo de formao do Eu] por isto tambm pura assero que no se concebe a si mesma412. Na verdade, Hegel quer contrapor uma compreenso transcendental das estruturas da razo descrio fenomenologia do processo de formao de seus conceitos (perspectiva que ele colocar em marcha na seo Esprito), em especial do processo de formao deste princpio fundamental que a auto-identidade imediata do Eu penso e da centralidade da estrutura categorial do entendimento. Neste sentido, Habermas tinha razo ao afirmar que: Hegel quer substituir a empresa da teoria do conhecimento pela auto-reflexo fenomenolgica do esprito413. Tal contraposio traz uma srie de conseqncias. A principal delas diz respeito tentativa hegeliana de dissociar princpio de subjetividade e princpio de identidade. O sujeito hegeliana no locus da identidade imediata e, se o sujeito continua sendo fundamento do saber, isto traz conseqncias profundas para os modos de orientao do pensamento em suas mltiplas aspiraes. Da porque este captulo se inicia com uma reflexo sobre o primado da subjetividade transcendental no idealismo, caminha em direo a uma apresentao de discursos cientficos sobre a individualidade hegemnicos poca (fisiognomia e frenologia) e passa em revista, de forma crtica, a vrias figuras do individualismo moderno em sua dimenso prtica: o hedonismo faustiano, o sentimentalismo da Lei do corao, a recuperao do discurso da virtude natural e o individualismo romntico (O reino animal do esprito).
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HEGEL, Fenomenologia, par. 233 HEGEL, Fenomenologia, par. 234 413 HABERMAS, Crtica de Kant por Hegel in Conhecimento e interesse
Sobre o vnculo entre subjetividade e identidade no programa filosfico do idealismo, lembremos como Kant sempre insistiu que: todo o diverso da intuio possui uma relao necessria ao Eu penso no mesmo sujeito em que esse diverso se encontra414. Pois a ligao (Verbindung) do diverso em geral deve ser um ato da espontaneidade do sujeito. No entanto, esta ligao pressupe a representao da unidade sinttica do diverso construda a partir de pressuposies de identidade e diferena. Isto implica no apenas que todas as representaes de objeto devem ser minhas (o Eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representaes) para que elas possam ser apropriadas reflexivamente. Mas implica fundamentalmente que, para que elas possam apropriadas reflexivamente, elas devem ser estruturadas a partir de um princpio interno de ligao e de unidade que seja reflexivamente reconhecido pela conscincia-de-si. Da porque a regra de unidade sinttica do diverso da experincia fornecida pela estruturao da prpria unidade sinttica de apercepes, ou seja, pela auto-intuio imediata da conscincia-de-si que: ao produzir a representao eu penso, que tem de poder acompanhar todas as outras, e que uma e idntica em toda a conscincia, no pode ser acompanhada por nenhuma outra415. As representaes devem se estruturar a partir de um princpio de identidade que , na verdade, a imagem do eu penso. Kant ainda mais claro ao afirmar que: O objeto aquilo em cujo conceito est reunido o diverso de uma intuio dada. Mas toda a reunio das representaes exige a unidade da conscincia na respectiva sntese416. Assim, quando Hegel constri um witz a dizer que, para a conscincia, o ser tem a significao do seu (das Sein die Bedeutung das Seinen hat)417, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a conscincia significa estruturar-se a partir de um princpio interno de ligao que modo da cosncincia apropriar-se do mundo. Da porque, Hegel pode afirmar que a conscincia:
Agora avana para a apropriao universal (allgemeinen Besitznehumung) da propriedade que lhe assegurada e planta em todos os cimos e em todos os abismos o signo (Zeichen) da sua soberania418 [o termo importante j que h uma crtica do signo neste sub-captulo].
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KANT, Crtica da razo pura, B 132 KANT, Crtica da razo pura, B 132 416 KANT, Crtica da razo pura, B 137 417 HEGEL, Fenomenologia, par. 240 418 HEGEL, Fenomenologia, par. 241
Aqui fica mais claro a estratgia hegeliana de reconstituir as aspiraes da razo atravs da reconstituio desta categoria fundamental, a saber, o sujeito como fundamento das operaes de reflexividade. Pois questionada a possibilidade da autointuio imediata de si, so os postulados fundamentais de constituio de processos de identidade, diferena, unidade, ligao que estaro abalados. Por isto, Hegel dir:
Porm a razo, mesmo revolvendo todas as entranhas das coisas e abrindo-lhes todas as veias a fim de ver-se jorrar dali para fora no alcanar essa felicidade [de ser toda a realidade], mas deve ter-se realizado (vollendent) antes em si mesma para depois experimentar sua plena realizao (Vollendung)419.
Realizar-se em si mesma antes de se experimentar no mundo significa que a razo deve racionalizar inicialmente o que lhe serve de fundamento, ou seja, a individualidade, isto antes de saber como se orientar na experincia do mundo. Da porque o trajeto do nosso sub-captulo vai da fsica s cincias da individualidade enquanto paradigmas de constituio do objeto de observao cientfica. Desta forma, o caminho que Hegel escolhe para desdobrar tal questionamento passa pela exposio fenomenolgica do trajeto da cincia moderna, ou antes, da razo efetiva (wirkliche Vernunft) na realizao de sua certeza de ser toda a realidade. Pois no campo da cincia aparecer, de maneira ainda imperfeita (e no interior de uma falsa cincia da individualidade, ou seja, da frenologia), o modo de duplicao entre o objeto efetivo, sensivelmente presente (wirkliche, sinnlich-gegenwrtige)420 e um Eu que no se submete mais ao princpio de identidade. Ao final, veremos como a razo s poder apreender o que da ordem do fundamento de seus processos se abandonar a tentativa de compreender a confrontao com o objeto a partir das dinmicas de observao da imediatez do ser ou da unidade imediata do Eu. Devemos compreender a razo como atividade (pensada a partir dos processos de desejo, trabalho e linguagem), e no como observao. Da porque nosso sub-captulo dar lugar a um outro, intitulado exatamente: a razo ativa.
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Observar a natureza No interior da primeira seo (A observao da natureza) do nosso sub captulo, encontramos dois momentos distintos. O primeiro vai at o pargrafo 253, o segundo mais extenso e vai do pargrafo 254 at o 297. Na primeira parte, Hegel retoma vrios motivos anteriormente expostos nos captulo dedicados certeza sensvel, percepo e ao entendimento, isto a fim de mostrar os limites de uma noo de experincia vinculada observao. Nota-se, em vrios momentos, algumas referncias claras ao empirismo e teoria do conhecimento que suportava a fsica da poca. Na segunda parte, Hegel centra o problema da razo na observao do orgnico. Como veremos, trata-se de um objeto que tem estatuto especial por levar a razo reflexo sobre a vida enquanto conceito do saber. As referncias no so apenas biologia da poca, mas tambm filosofia da natureza de Schelling. Colocaes sobre a vida enquanto objeto da experincia que apareceram no captulo dedicado conscincia-de-si sero novamente retomadas. Quando a conscincia carente-de-pensamento expressa (ausspricht) o observar e o experimentar como a fonte da verdade, suas palavras bem que poderiam soar como se apenas se tratasse do saborear, cheirar, tocar, ouvir e ver. Porm essa conscincia no af com que recomenda o gostar, o cheirar, etc., esquece de dizer que tambm o objeto desse sentir j est de fato determinado para ela essencialmente e que, para ela, essa determinao vale pelo menos tanto como esse sentir (...) O percebido deve ter pelo menos a significao de um universal, e no de um isto sensvel421.
atravs de uma retomada de problemas j apresentados no captulo dedicado certeza sensvel que Hegel inicia a exposio fenomenolgica do trajeto da cincia moderna. Trata-se, como vemos, de mostrar os impasses de um conceito de experincia vinculado imediaticidade da observao (o alvo privilegiado aqui o empirismo, este mesmo empirismo que: ao analisar os objetos encontra-se em erro se acredita que os deixa como so: pois de fato ele transforma o concreto em um abstrato 422). Impasses que j vimos atravs da descrio da impossibilidade de apreenso imediata do isto sensvel para alm das determinaes estruturais do pensamento. Ouvir, ver, ou cheirar
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algo operar relaes, identidades e diferenas que so previamente estruturadas pelo pensamento e que aspiram validade universal. No entanto, estas determinaes universais so, de incio, puras abstraes, so: o que permanece sempre igual a si (sich gleist Bleibende). Assim, a descrio das coisas feita sobre um extirpar do sensvel. S h cincia do geral dizia Aristteles. nesse sentido que a conscincia busca descobrir, na experincia gneros sempre novos para descrever423. Descrio esta que exige que o pensar opere distines entre o que essencial e o que inessencial, o que preso ainda disperso sensvel. tal distino que permite razo afirmar: aquilo pelo qual as coisas so conhecidas mais relevante para a descrio que o conjunto restante das propriedades sensveis424. Veremos, a partir da, Hegel articular o desenvolvimento fenomenolgico do objeto da razo a partir de dicotomias internas que lembram o esquema, apresentado no captulo sobre a percepo, da clivagem do objeto entre uno e mltiplo, ou ainda, entre substncia (ser em repouso ser para-si apreendido atravs de sinais caractersticos/ Merkmale) e atributos (ser em relao ser em-si). A conscincia aprofunda suas descries a fim de dar conta da particularizao dos seus objetos atravs da enumerao, cada vez mais ampla, de multiplicidades de atributos que vo se afirmando contra o universal simples prprio ao gnero, j que a multiplicidade de atributos diferenciadora no nvel da oposio entre atributos de indivduos. No entanto, aqui a observao, enquanto restrio ao simples que delimita a disperso sensvel mediante o universal, vai aos poucos perdendo seu princpio de configurao simples de objetos do mundo:
Por isso a razo deve, antes, abandonar a determinidade inerte que tinha o semblante do permanecer, pela observao da determinidade tal como em verdade, a saber, como um referir-se ao seu contrrio [isto no sentido de um referir-se ao que no se determina atravs do gnero] 425.
Neste ponto, Hegel repete uma passagem que j vimos no captulo sobre o entendimento e que diz respeito compreenso de que o conhecimento deve passar da observao de universais determinao de leis que organizam os objetos em
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HYPPOLITE, Gnese, pg. 251 HEGEL, Fenomenologia, par. 246 425 HEGEL, Fenomenologia, par. 248
taxionomias. A natureza aparece como conjunto de fenmenos regidos por leis. Universais so assim leis gerais e abstratas de organizao das determinidades, leis que, Hegel no cansa de lembrar, se afirmam enquanto libertao em relao ao ser sensvel [o caso da eletricidade negativa como eletricidade da resina e da eletricidade positiva como eletricidade do vidro]. No entanto, conhecemos, desde o captulo sobre o entendimento, a crtica hegeliana a uma figura do conhecer como determinao de leis. Lembremos, por exemplo, de como ele afirmava: a lei no preenche completamente o fenmeno. A lei est nele presente, mas no toda a sua presena, sob situaes sempre outras, [o fenmeno] tem sempre outra realidade (Wirklichkeit)426. Hegel procurava dizer que a lei no esgota toda a realidade do fenmeno, h algo no fenmeno que sempre ultrapassa a determinao da lei. Trata-se fundamentalmente de um problema de aplicao da lei ao caso. Esta perspectiva retomada neste momento do nosso texto. Tanto que Hegel no esquecer de dizer, a respeito da lei: O que universalmente vlido tambm vigora universalmente. O que deve-ser (soll) tambm no agir (ist in der Tat), O que apenas deve ser, sem ser, no tem verdade alguma427. No entanto, a aplicao da lei multiplicidade dos casos realizada atravs da analogia e probabilidade. Como lembra Hegel, a conscincia no exige que se faa a prova com todas as provas para afirmar que as pedras, ao serem levantadas da terra e soltas, caem:
S que a analogia no d nenhum pleno direito; mas ainda por sua prpria natureza se contradiz com tanta freqncia que pela analogia mesma se h de concluir que a analogia no permite fazer concluso nenhuma428.
A crtica de Hegel a um certo probabilismo indutivista ir aparecer posteriormente na histria da filosofia em vrios momentos. No foram poucos aqueles que lembraram que a analogia um dispositivo fraco do ponto de vista epistmico, j que. em um certo sentido, qualquer coisa pode ser anloga a qualquer outra coisa . Para Hegel, um saber verdadeiro deve ser fundamentado de maneira a sustentar proposies que aspirem universalidade e necessidade. Muito diferente afirmar que a pedra cai por ser pesada e ter, assim, uma relao essencial com a terra. Neste ponto, Hegel afirma
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HEGEL, Fenomenologia, par. 150 HEGEL, Fenomenologia, par. 249 428 HEGEL, Fenomenologia, par. 250
que a lei est mais prxima do conceito. A oposio entre lei e conceito no interior da economia do nosso texto essencial por nos mostrar que Hegel que as explicaes cientficas devem tender a ser explicaes finalistas e por isto que, a partir do pargrafo 254, o filsofo dedica um longo trecho de sua reflexo observao do orgnico. Se Hegel pode afirmar aqui que se trata de um outro tipo de observar, porque o orgnico submete-se mais claramente a explicaes do tipo finalista do que o inorgnico. A essncia do orgnico, dir Hegel, est no conceito finalista (Zweckbegriffe), isto no sentido de que a finalidade no algo exterior trazida pelo entendimento subjetivo, mas algo imanente prpria natureza orgnica (embora a natureza orgnica no seja marcada pela apropriao reflexiva e auto-posio de seu prprio fim). Por esta razo, Hegel demonstra aqui mais interesse pela biologia do que pela fsica. Lembremos ainda que: o tipo de descries teleolgicas apropriadas para descries de organismos so o que hoje chamamos de descries funcionais429.
Observao do orgnico
No se trata aqui de entrar nos detalhes deste momento de nosso texto. O que ser fornecido uma viso panormica e operacional que nos auxiliar na compreenso do desenvolvimento do texto e da necessidade deste momento. A observao da natureza orgnica ocupa um momento fundamental para Hegel na economia do nosso texto porque ela fornece um modo de articulao entre necessidade e determinao fenomenal distinto da exterioridade e da alteridade prpria as articulaes entre Lei e fenmeno. Como dir Hegel:
Um objeto tal, que tem em si o processo na simplicidade do conceito, o orgnico. ele essa absoluta fluidez em que se dissolve a determinidade atravs da qual seria somente para outro430.
Ou seja, a natureza orgnica um processo de dissoluo da determinidade (fenmeno) como algo de puramente exterior e de contraposto ao conceito. Da porque ela a primeira manifestao da simplicidade do conceito. Simplicidade que deve ser
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compreendida aqui como realizao do auto-movimento do conceito que se encontra como realidade. Neste sentido, se a razo a certeza da conscincia ser toda a realidade, o que poderia ser dito tambm de outra forma: certeza do conceito ser a prpria realidade (lembremos desta frase cannica: o real deve ser racional), ento a natureza orgnica no contingente do ponto de vista da razo, mas j racionalmente orientada (de onde se segue a importncia, no interior do sistema hegeliano, de uma filosofia da natureza). Como j vimos no captulo dedicado conscincia-de-si, ocasio do aparecimento da vida como objeto da conscincia, a existncia da razo na natureza orgnica ainda imperfeita. A vida ainda uma figura imperfeita da razo porque seu movimento no para-si, ou seja, no reflexivamente posto e apreendido. Mas no se trata, por outro lado, de simplesmente negar, atravs de uma negao simples, o que a reflexo sobre a vida traz. De fato, h uma certa continuidade entre a vida e a conscincia-de-si claramente posta por Hegel nos seguintes termos: A conscincia-desi a unidade para a qual a infinita unidade das diferenas, mas a vida apenas essa unidade mesma, de tal forma que no ao mesmo tempo para si mesma431. Vimos, no captulo dedicado conscincia-de-si, como a vida era apresentada enquanto tenso entre a universalidade da unidade da vida (a absoluta fluidez) e a particularidade do indivduo ou da multiplicidade diferenciadora das formas viventes. Hegel ir retornar a esta tenso (que j est presente na prpria definio do orgnico apresentada no pargrafo 254) atravs da idia de que a finalidade da vida est exposta atravs da noo de que o exterior deve expressar o interior. Ou seja, Hegel no aborda o problema da finalidade na natureza orgnica atravs do problema da determinao entre meio ambiente e espcie, como seria o aparentemente mais natural. Como diz o prprio Hegel:
embora seja possvel justapor o plo espesso com a regio nrdica , a estrutura dos peixes com a gua, a das aves com o ar, contudo no conceito de regio nrdica no est o conceito de pelagem espessa, no conceito de mas no est o da estrutura dos peixes432.
Na natureza orgnica, dir Hegel, a relao de determinao entre o interior (fluidez universal na qual se aloja a finalidade enquanto conceito) e o exterior (que
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Hegel chama s vezes de ser inerte por se contrapor ao movimento do fluxo contnuo da vida; s vezes de figurao). Partindo do estado do conhecimento biolgico de sua poca (Kielmeyer), Hegel pensa inicialmente o interior a partir de funes e propriedades como: irritabilidade (cuja expresso exterior seria o sistema nervoso), sensibilidade (sistema muscular) e reproduo. Hegel faz uma extensa crtica a tal perspectiva por ver nela uma forma de apreender o organismo segundo o aspecto abstrato da existncia morta, pois eles deixam de ser momentos de um processo inseparvel. Vale aqui o que Hegel dir mais a frente: seus momentos assim captados pertencem anatomia e ao cadver, no ao conhecimento e ao organismo vivo433. Tal crtica servir tambm para Hegel descartar a noo de que propriedades mensurveis em grandezas quantitativas (peso, resistncia, cor, dureza) possam dar conta do que da ordem da manifestao da essncia do orgnico. neste sentido que devemos compreender as passagens em que Hegel contrape o nmero em sua indiferena particularidade do ser e o conceito. De fato, este trecho do texto caminha para mostra como a expresso do interior no exterior que caracterizaria a natureza orgnica s pode ser compreendida se abandonarmos a noo de expresso imediata. Quando Hegel fala que o orgnico uma singularidade que, por sua vez, negatividade pura434, ele tem mente o fato da natureza orgnica, enquanto tenso entre a universalidade da unidade da vida e a particularidade do indivduo, entre soma e plasma, ser o espao de uma auto-negao da determinidade. No entanto, esta natureza negativa da unidade do orgnico no objeto para a prpria natureza. Ela objeto apenas para a conscincia-de-si. Da porque, a partir deste momento e tal qual o movimento que vimos no captulo dedicado conscincia-de-si, a observao deixa de ser focada no orgnico para focar-se na observao da conscincia-de-si, primeiro em sua pureza e, em seguida, em sua referncia efetividade. O padro para a observao cientfica deixa de ser a biologia para ser aquilo que chamaramos atualmente de psicologia.
Observao da conscincia-de-si
Neste retorno da observao prpria conscincia-de-si, Hegel afirma que a razo parte daquilo que parece ser, imediatamente, a determinao pura do conceito, ou
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seja, as leis lgicas do pensar. No se trata aqui de fazer uma crtica s figuras tradicionais da lgica, j que Hegel insiste que o lugar adequado para se tratar de tal problema seja a lgica especulativa. Da se segue o carter sumrio da passagem. Neste momento do nosso texto, o que interessa Hegel a maneira com que a conscincia-de-si ir realizar a proposio o exterior exprime o interior que aparecera como modo de realizao da razo enquanto certeza de ser toda a realidade, certeza de encontrar na realidade aquilo que da ordem do movimento do conceito. J vimos como esta expresso no posio imediata do expresso, mas negao dialtica. O primeiro passo da auto-observao da conscincia-de-si ser tomar tal negao por uma negao simples. Assim, tal como na figura da conscincia chamada por Hegel de estoicismo, a conscincia far apelo autonomia do pensar enquanto autonomia da interioridade que nega todo vnculo exterioridade, isto ao mesmo tempo em que se apresenta em sua imediaticidade conscincia. Da porque: a observao encontra primeiro as leis do pensar. Leis que sero caracterizadas como: o movimento abstrato do negativo435. No entanto, esta aparente ausncia de contedo devido abstrao prpria lei no ser exatamente o foco da crtica hegeliana. De uma maneira inesperada, Hegel afirma que o problema aqui exatamente o inverso: as leis formais do pensamento tm um contedo e este contedo a prpria forma. Devemos entender isto no sentido da forma lgica j ser marcada por decises a respeito da configurao da empiria. Ou seja, a crtica hegeliana no direcionada ao formalismo da lei, mas ao seu excessivo carter derivado da empiria. Veremos melhor este ponto quando for questo da crtica hegeliana ao imperativo moral kantiano. O que Hegel procura salientar neste momento que o movimento engativo prprio ao pensar ir se mostrar: em sua realidade como conscincia agente 436. Tal como na passagem do estoicismo ao ceticismo, onde a autonomia do pensar demonstrava sua verdade enquanto negao consciente do mundo, na passagem da observao das leis lgicas observao das leis psicolgicas temos uma revelao de que a verdade do pensar o agir (isto no sentido de que o pensar uma forma do agir). As leis psicolgicas so apresentadas aqui como leis de determinao da ao e da conduta. Neste sentido, as leis psicolgicas tratariam da determinao da interioridade do indivduo, com suas inclinaes, faculdades e paixes, a partir da
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exterioridade dos hbitos, costumes e circunstncias sociais diversas. No entanto, esta relao de determinao apresentada por Hegel na forma de um paradoxo:
A lei dessas relaes entre os dois lados deveria agora conter o tipo de efeito e de influncia que essas circunstncias determinadas exercem sobre a individualidade. Essa individualidade consiste justamente nisto: [1] em ser o universal e portanto em confluir de uma maneira tranqila imediata com esse universal que est presente nos costumes, hbitos etc.; [2] em comportar-se como oposta a eles e, portanto, em invert-los; [3] como tambm em comportarse, em sua singularidade, com total indiferena a seu respeito, no os deixando agir sobre ela nem sendo ativa contra eles437.
Ou seja, chegamos concluso paradoxal de que a individualidade consiste em adaptar-se ao universal dos costumes e hbitos, em opor-se a eles e em comportar-se de maneira indiferente a eles. Mas isto visa lembrar que s da prpria individualidade depende a que deve ter influncia sobre ela e qual influncia isso deve ter. O sujeito aquele que se assujeita determinaes exteriores, e este assujeitar-se s tem fora por engajar o desejo individual do sujeito. Assim, como a efetividade suscetvel de uma dupla significao contrria, isto em virtude da liberdade do indivduo, ento o mundo do indivduo deve ser concebido a partir dele mesmo. Deste modo a necessidade psicolgica torna-se uma palavra vazia, j que aceita a possibilidade absoluta do individuo ter e no ter determinada influncia. Neste sentido, alcanamos um ponto extremo da desarticulao das exigncias expressivas entre exterior e interior neste ponto que Hegel traz uma longa digresso sobre duas pseudo-cincias muito em voga sua poca: a fisiognomia (at o pargrafo 322) e a frenologia (at o pargrafo 359). Tal digresso peculiar sob vrios aspectos. Primeiro, trata-se do nico lugar na Fenomenologia em que Hegel faz, claramente, uma crtica direta a cincias determinadas de sua poca, crtica acompanhada por reflexes sobre a teoria dos signos e que no ser retomada em outras verses da fenomenologia (como aquela apresentada na Enciclopdia). Por outro lado, do ponto de vista estilstico, trata-se de um dos raros momentos em que Hegel apia o desenvolvimento de seu raciocnio em citaes (Lichtenberg) e usa deliberadamente a ironia. Para alm de tais peculiaridades, vale a
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pena insistir em um fato essencial: h aqui uma primeira manifestao possvel do esquema hegeliano de reconciliao. Analisemos este ponto mais de perto. A anlise das leis psicolgicas redundou em um impasse devido a multiplicidade de modos de entrelaamento entre individualidade e efetividade. A observao passa a anlise do que a individualidade em-si e para-si. Desta forma, surge, no indivduo mesmo a oposio entre exterior e interior: oposio que consiste em ser, de dupla maneira, tanto o movimento da conscincia quanto o ser fixo da efetividade fenomenal efetividade essa que no indivduo , efetivamente, a sua438. H algo aqui de uma reflexo sobre o problema da relao mente/corpo na qual o corpo aparece inicialmente como signo do interior. De maneira sumria, lembremos que a fisiognomia era uma pseudo-cincia influente poca de Hegel, isto devido, principalmente, A arte de conhecer os homens atravs da fisionomia, entre em 1775 pelo suo Johann Kaspar Lavater. Nele, Lavater defendia, com vrios esquemas interpretativos que muito impressionaram Goethe, a possibilidade de conhecer as predisposies de conduta dos sujeitos atravs dos traos do rosto. O rosto aparece assim como o exterior que pode, inclusive, ser distinto da prpria conduta efetiva dos sujeitos (da a importncia da relao entre o rosto e a predisposio conduta). Assim, o rosto ao mesmo tempo a expresso do interior e apenas um signo do interior: expresso, de certo, mas ao mesmo tempo apenas um signo, de forma que, para o contedo expresso, a constituio do que o exprimiu de todo diferente439. Por isto, Hegel pode dizer que o rosto tanto a expresso do interior quanto sua mscara, em uma repetio da indeterminao da relao entre individualidade e exterioridade social tal como vimos quando foi questo das leis psicolgicas. Lembremos ainda, neste ponto, da definio, fornecida por Hegel, de signo: Um signo um exterior, expresso contingente cujo lado efetivo para si desprovido de significao (bedeutunglos) uma linguagem cujos sons e combinaes de sons no so a coisa mesma, mas vinculam-se a ele atravs do livre arbtrio440.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 310 HEGEL, Fenomenologia, par. 318 440 HEGEL, Fenomenologia, par. 313
Como vimos anteriormente, a arbitrariedade do signo indica uma clivagem insupervel entre significante e significado, entre palavra e referncia, entre inteno e sentido. Nesta posio da clivagem, a fisiognomia que a inteno (ou a predisposio de comportamento que pode ser identificada na exterioridade) o que tem valor de significao, mesmo se essa inteno nunca passe ao ato. Mas, citando Lichtenberg, Hegel dir: Se algum dissesse ages na verdade como um homem honesto, mas vejo por teu aspecto que te foras e que s um canalha no teu corao, no h dvida que at a consumao dos sculos um qualquer sujeito de brios responderia com um soco na cara. Uma tal rplica acerta no alvo, pois a refutao do primeiro pressuposto de tal cincia do visar, segundo a qual, justamente, a efetividade de um homem seu rosto441.
Contra este enraizamento da significao na interioridade da intencionalidade, Hegel dir que o verdadeiro ser do homem seu ato (...) o ato isto: e seu ser no somente um signo, mas a coisa mesma442. No ato consumado, a falasa indeterminao da intencionaldiade aniquilada e encontra sua verdadeira significao. No entanto, Hegel nada diz neste momento sobre qual a perspectiva correta de interpretao do ato. Este um ponto importante que ir nos levar ao segundo subcaptulo de nossa seo, a saber, a razo ativa. Sem uma perspectiva fundamentada e universalmente vlida de interpretao do ato no haver como darmos conta do que est em jogo nos procedimentos de fundamentao da razo. Por fim, no trecho que vai do pargrafo 323 a 346, Hegel tece uma ampla considerao sobre a frenologia. Frenologia era o estudo, desenvolvido inicialmente pelo mdico austraco Franz-Joseph Gall, da estrutura do crnio de modo a determinar o carter e a capacidade mental. Baseando-se na assuno de que as faculdades mentais estariam localizadas em "rgos cerebrais que poderiam ser detectados por inspeo visual do crnio, a frenologia aparece para Hegel como compreenso do exterior como uma efetividade completamente esttica, uma simples coisa que no signo. De fato, a frenologia procura um ponto do corpo no qual a intencionalidade do esprito possa estar imediatamente encarnada e ela o encontra no sistema nervoso: o
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crebro e a espinha dorsal podem ser considerados como a presena imediata da conscincia-de-si443. Mas o crnio o outro do crebro: o Dasein em repouso como caput mortuum. Poderamos ento imaginar que o crebro interfere na configurao do crnio. O que significaria elevar o crnio condio de efetividade do Dasein do homem. No entanto, Hegel insiste que o crnio no um signo: Os traos do rosto, o gesto, o tom e tambm uma coluna, um marco numa ilha deserta anunciam logo que se visa alguma outra coisa do que imediatamente apenas so. Do-se logo a entender como signos porque tm neles uma determinidade que indica assim algo diverso, j que no lhes pertence peculiarmente. Tambm vista de um crnio muitas coisas diversas podem ocorrer, como a Hamlet ao ver o crnio de Yorick. Mas a caixa craniana, tomada por si, uma coisa to indiferente e cndida que nada h para ver ou visar imediatamente, a no ser ela prpria444.
Ou seja, o crnio no um signo por no poder significar outra coisa do que apresenta. Ele , antes, a anulao de toda transcendncia de significao, pura presena morta. Por outro lado, Hegel no deixa de lembrar que as determinaes das regies do crnio que correspondem a sentimentos, traos de carter etc. no so atributos do crnio: mas dependem do estado da psicologia por serem socialmente determinados. Este o sentido da afirmao: A frenologia natural no s acha que um homem finrio tenha atrs da orelha uma bossa do tamanho de um punho, mas ainda representa que a esposa infiel possua protuberncias na testa; no na sua, mas na do marido. No entanto, Hegel afirma que esta ltima etapa da razo observadora a pior de todas, mas sua reverso (Umkehrung) necessria. Pois, at agora, a razo enquanto certeza de ser toda a realidade, de ser duplicao do Eu no objeto repetiu o mesmo impasse. Na observao da natureza inorgnica, a razo s alcanava a forma da lei, universalidade abstrata que perde o ser sensvel. Na observao da natureza orgnica, o conceito universal era apenas interior que no conseguia auto-intuir o regime de sua expresso no exterior. Na observao da individualidade consciente-de-si, este problema persistiu. As leis psicolgicas no fornecem uma reflexo fundamentada sobre
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os procedimentos de determinao da individualidade, a fisiognomia pensa a relao entre interior e exterior sobre a forma do signo (o que a fez recuperar uma noo de intencionalidade como fonte de significao). Na frenologia, o esprito no se expressa como signo, mas se coloca como coisa. Resultado que pode ser formalizado na proposio: o ser do esprito um osso. No entanto, Hegel diz, de maneira surpreendente que tal proposio tem uma dupla significao: uma especulativa e outra prpria a um sujeito que no possui conscincia clara do que diz. Tudo depende da compreenso da proposio O esprito um osso como um juzo infinito e no como uma simples atribuio predicativa. Na Cincia da lgica, Hegel definiu o julgamento infinito como uma relao entre termos sem relao: Ele deve ser um julgamento, conter uma relao entre sujeito e predicado, mas tal relao, ao mesmo tempo, no pode ser445. No entanto: o julgamento infinito, como infinito, seria a realizao da vida incluindo-se (erfassenden) a si mesmo
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constituio de uma unidade negativa que pe o predicado como negao determinada do sujeito (trata-se de uma oposio entre termos incomensurveis): O objeto presente determinado como um negativo, porm a conscincia determinao como conscincia-de-si perante ele. O objeto presente nada mais do que a encarnao da negatividade da cosncincia-de-si. Novamente, o esprito um osso pode ser apenas a pura alienao de si na efetividade desprovida de conceito, ou uma posio de si em um objeto que a encarnao da negatividade. Como dir Hegel, o caminho que nos leva ao sublime o mesmo caminho que nos leva coisificao desprovida de esprito. .
Na aula passada, iniciamos o trajeto de descrio dos momentos que compe a seo Certeza e verdade da razo. Vimos como a seo Razo devia ser compreendida como um espao de anlise das operaes da razo moderna em seus processos de
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racionalizao; razo agora reflexivamente fundamentada no princpio de uma subjetividade consciente-de-si.. Vimos como esta posio do princpio de subjetividade como fundamento das operaes da razo permitira o advento da certeza da razo ser toda a realidade. A conscincia est segura de ter se reconciliado com a realidade, ou seja, como diz o prprio Hegel: est certa de que toda a efetividade no outra coisa que ela, ou ainda, a conscincia tem a certeza de que s a si experimenta no mundo, isto devido convergncia entre conscincia e conscincia-de-si. Modos de operar com o postulado idealista de que: a estrutura do objeto duplica a estrutura do Eu. Dito isto, vimos como Hegel iniciava o captulo a partir de uma crtica a perspectiva kantiana de compreender racionalizao como categorizao. Vimos como Hegel esboa uma crtica centralidade das noes de categoria (predicados gerais de um objeto qualquer) e de unidade sinttica de apercepes para as operaes racionais do entendimento na sua configurao dos objetos do conhecimento. No se trata, para Hegel, de colocar em questo a posio do princpio de subjetividade como fundamento para as operaes da razo, mas se trata de afirmar que o idealismo aparecera at ento como o resultado de um longo esquecimento do que estava em jogo no processo de formao da conscincia-de-si. Da porque ele pode dizer que a conscincia: deixou para trs esse caminho [de sua formao] e o esqueceu, ao surgir imediatamente como razo447. Ou ainda, que o idealismo: que comea por tal assero (Eu=Eu) sem mostrar aquele caminho [do processo de formao do Eu] por isto tambm pura assero que no se concebe a si mesma448. Na verdade, Hegel quer contrapor uma compreenso transcendental das estruturas da razo descrio fenomenologia do processo de formao de seus conceitos (perspectiva que ele colocar em marcha na seo Esprito), em especial do processo de formao deste princpio fundamental que a auto-identidade imediata do Eu penso e da centralidade da estrutura categorial do entendimento. Neste sentido, Habermas tinha razo ao afirmar que: Hegel quer substituir a empresa da teoria do conhecimento pela auto-reflexo fenomenolgica do esprito449. Tal contraposio traz uma srie de conseqncias. A principal delas diz respeito tentativa hegeliana de dissociar princpio de subjetividade e princpio de identidade.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 233 HEGEL, Fenomenologia, par. 234 449 HABERMAS, Crtica de Kant por Hegel in Conhecimento e interesse
O sujeito hegeliana no locus da identidade imediata e, se o sujeito continua sendo fundamento do saber, isto traz conseqncias profundas para os modos de orientao do pensamento em suas mltiplas aspiraes. Da porque este captulo se inicia com uma reflexo sobre o primado da subjetividade transcendental no idealismo, caminha em direo a uma apresentao de discursos cientficos sobre a individualidade hegemnicos poca (fisiognomia e frenologia) e passa em revista, de forma crtica, a vrias figuras do individualismo moderno em sua dimenso prtica: o hedonismo faustiano, o sentimentalismo da Lei do corao, a recuperao do discurso da virtude natural e o individualismo romntico (O reino animal do esprito). Sobre o sub-captulo dedicado razo observadora, vimos como ele era animado pela tentativa da conscincia fundamentar sua certeza de ser toda a realidade, isto inicialmente no campo das relaes cognitivo-instrumentais. De fato, Hegel procurava fornecer uma descrio fenomenolgica do desenvolvimento da cincia moderna at o incio do sculo XIX. Partindo de uma noo empirista de experincia, Hegel afirma:
Quando a conscincia carente-de-pensamento expressa (ausspricht) o observar e o experimentar como a fonte da verdade, suas palavras bem que poderiam soar como se apenas se tratasse do saborear, cheirar, tocar, ouvir e ver. Porm essa conscincia no af com que recomenda o gostar, o cheirar, etc., esquece de dizer que tambm o objeto desse sentir j est de fato determinado para ela essencialmente e que, para ela, essa determinao vale pelo menos tanto como esse sentir (...) O percebido deve ter pelo menos a significao de um universal, e no de um isto sensvel450.
Era atravs de uma retomada de problemas j apresentados no captulo dedicado certeza sensvel que Hegel iniciava a exposio fenomenolgica do trajeto da cincia moderna. Tratava-se, como vimos, de mostrar os impasses de um conceito de experincia vinculado imediaticidade da observao (o alvo privilegiado aqui o empirismo, este mesmo empirismo que: ao analisar os objetos encontra-se em erro se acredita que os deixa como so: pois de fato ele transforma o concreto em um
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abstrato451). Impasses que j vimos atravs da descrio da impossibilidade de apreenso imediata do isto sensvel para alm das determinaes estruturais do pensamento. Ouvir, ver, ou cheirar algo operar relaes, identidades e diferenas que so previamente estruturadas pelo pensamento e que aspiram validade universal. Ou seja, l onde a conscincia acreditava observar particulares, ela estava a observar universais como gneros ou predicaes de propriedades universais. Neste ponto, Hegel repetia uma passagem que j vimos no captulo sobre o entendimento e que diz respeito compreenso de que o conhecimento deve passar da observao de universais determinao de leis que organizam os objetos em taxionomias. A natureza aparece como conjunto de fenmenos regidos por leis. Universais so assim leis gerais e abstratas de organizao das determinidades, leis que, Hegel no cansa de lembrar, se afirmam enquanto libertao em relao ao ser sensvel. No entanto, conhecemos, desde o captulo sobre o entendimento, a crtica hegeliana a uma figura do conhecer como determinao de leis. Lembremos, por exemplo, de como ele afirmava: a lei no preenche completamente o fenmeno. A lei est nele presente, mas no toda a sua presena, sob situaes sempre outras, [o fenmeno] tem sempre outra realidade (Wirklichkeit)452. Hegel procurava dizer que a lei no esgota toda a realidade do fenmeno, h algo no fenmeno que sempre ultrapassa a determinao da lei. Trata-se fundamentalmente de um problema de aplicao da lei ao caso. Hegel apresentava os modos de indexao entre leis e casos a partir de operaes como a analogia e a induo probabilstica. A partir da crtica aos usos das noes de analogia e de induo probabilstica na estruturao da racionalidade da experincia, Hegel insiste na necessidade da conscincia passar a um outro tipo de observar. Este outro tipo de observar implica tambm na mudana do objeto privilegiado de investigao racional. Mudana esta marcada pela passagem do inorgnico ao orgnico. Como vimos, se Hegel pode afirmar aqui que se trata de um outro tipo de observar, porque o orgnico submete-se mais claramente a explicaes do tipo finalista do que o inorgnico. A essncia do orgnico, dir Hegel, est no conceito finalista (Zweckbegriffe), isto no sentido de que a finalidade no algo exterior trazida pelo entendimento subjetivo, mas algo imanente prpria natureza orgnica (embora a natureza orgnica no seja marcada pela apropriao reflexiva e auto-posio de seu prprio fim). Por esta
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razo, Hegel demonstra aqui mais interesse pela biologia do que pela fsica. Lembremos ainda que: o tipo de descries teleolgicas apropriadas para descries de organismos so o que hoje chamamos de descries funcionais453. No interior da anlise da observao do orgnico, Hegel procurou defender que a realizao do conceito de finalidade no devia ser compreendido atravs de alguma noo confusa de adaptao ao meio. Vimos, no captulo dedicado conscincia-desi, como a vida era apresentada enquanto tenso entre a universalidade da unidade da vida (a absoluta fluidez) e a particularidade do indivduo ou da multiplicidade diferenciadora das formas viventes. Hegel ir retornar a esta tenso atravs da idia de que a finalidade da vida est exposta atravs da noo de que o exterior (que Hegel chama s vezes de ser inerte por se contrapor ao movimento do fluxo contnuo da vida; s vezes de figurao) deve expressar o interior (fluidez universal na qual se aloja a finalidade enquanto conceito). Ou seja, Hegel no aborda o problema da finalidade na natureza orgnica atravs do problema da determinao entre meio ambiente e espcie, como seria o aparentemente mais natural. De fato, este trecho do texto caminhou para mostra como a expresso do interior no exterior que caracterizaria a natureza orgnica s pode ser compreendida se abandonarmos a noo de expresso imediata. Quando Hegel fala, por exemplo, que o orgnico uma singularidade que, por sua vez, negatividade pura454, ele tinha mente o fato da natureza orgnica, enquanto tenso entre a universalidade da unidade da vida e a particularidade do indivduo, entre soma e plasma, ser o espao de uma auto-negao da determinidade. No entanto, esta natureza negativa da unidade do orgnico no objeto para a prpria natureza. Ela objeto apenas para a conscincia-de-si. Da porque, a partir deste momento e tal qual o movimento que vimos no captulo dedicado conscincia-de-si, a observao deixa de ser focada no orgnico para focar-se na observao da conscincia-de-si, primeiro em sua pureza e, em seguida, em sua referncia efetividade. O padro para a observao cientfica deixa de ser a biologia para ser aquilo que chamaramos atualmente de psicologia. Lembremos aqui simplesmente deste dois momentos finais do nosso subcaptulo dedicados ao comentrio de duas pseudo-cincias: a fisiognomia e a frenologia O que interessava Hegel aqui era a maneira com que a conscincia-de-si tentava efetivar a proposio o exterior exprime o interior que aparecera como modo de realizao da
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razo enquanto certeza de ser toda a realidade, certeza de encontrar na realidade aquilo que da ordem do movimento do conceito. Sabemos que a fisiognomia estava baseada na crena em conhecer as predisposies de conduta dos sujeitos atravs dos traos do rosto. O rosto aparece assim como o exterior que pode, inclusive, ser distinto da prpria conduta efetiva dos sujeitos (da a importncia da relao entre o rosto e a predisposio conduta). Isto levava a fisiognomia a defender o enraizamento do senrtido da conduta na predisposio. Contra este enraizamento da significao na interioridade da intencionalidade, Hegel dir que o verdadeiro ser do homem seu ato (...) o ato isto: e seu ser no somente um signo, mas a coisa mesma455. No ato consumado, a falsa indeterminao da intencionalidade aniquilada e encontra sua verdadeira significao. No entanto, Hegel nada diz neste momento sobre qual a perspectiva correta de interpretao do ato. Este um ponto importante que ir nos levar ao segundo subcaptulo de nossa seo, a saber, a razo ativa. Sem uma perspectiva fundamentada e universalmente vlida de interpretao do ato no haver como darmos conta do que est em jogo nos procedimentos de fundamentao da razo. Por fim, Hegel tecera uma ampla considerao sobre a frenologia, ou seja, o estudo da estrutura do crnio de modo a determinar o carter e a capacidade mental. Baseando-se na assuno de que as faculdades mentais estariam localizadas em "rgos cerebrais que poderiam ser detectados por inspeo visual do crnio, a frenologia aparece para Hegel como compreenso do exterior como uma efetividade completamente esttica, uma simples coisa que no signo. Hegel afirmava que esta ltima etapa da razo observadora era a pior de todas, mas sua reverso (Umkehrung) era necessria. At agora, a razo enquanto certeza de ser toda a realidade, de ser duplicao do Eu no objeto repetira o mesmo impasse. Na observao da natureza inorgnica, a razo s alcanava a forma da lei, universalidade abstrata que perde o ser sensvel. Na observao da natureza orgnica, o conceito universal era apenas interior que no conseguia auto-intuir o regime de sua expresso no exterior. Na observao da individualidade consciente-de-si, este problema persistira. A fisiognomia pensa a relao entre interior e exterior sobre a forma do signo (o que a fez recuperar uma noo de intencionalidade como fonte de significao). Na
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frenologia, o esprito no se expressa como signo, mas se coloca como coisa. Resultado que pode ser formalizado na proposio: o ser do esprito um osso. No entanto, Hegel diz, de maneira surpreendente que tal proposio tem uma dupla significao: uma especulativa e outra prpria a um sujeito que no possui conscincia clara do que diz. Tudo depende da compreenso da proposio O esprito um osso como um juzo infinito e no como uma simples atribuio predicativa. Na Cincia da lgica, Hegel definiu o julgamento infinito como uma relao entre termos sem relao: Ele deve ser um julgamento, conter uma relao entre sujeito e predicado, mas tal relao, ao mesmo tempo, no pode ser456. No entanto: o julgamento infinito, como infinito, seria a realizao da vida incluindo-se (erfassenden) a si mesmo
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constituio de uma unidade negativa que pe o predicado como negao determinada do sujeito (trata-se de uma oposio entre termos incomensurveis): O objeto presente determinado como um negativo, porm a conscincia determinao como conscincia-de-si perante ele. O objeto presente nada mais do que a encarnao da negatividade da conscincia-de-si. Novamente, o esprito um osso pode ser apenas a pura alienao de si na efetividade desprovida de conceito, ou uma posio de si em um objeto que a encarnao da negatividade. Como dir Hegel, o caminho que nos leva ao sublime o mesmo caminho que nos leva coisificao desprovida de esprito.
A razo ativa e a procura da felicidade Terminamos o sub-captulo dedicado razo observadora com algumas certezas. Primeiro, o movimento de experimentao que visava fornecer uma descrio racional do mundo dos objetos, a partir de uma srie de aprofundamento de seus pressupostos, levou a conscincia a problematizar sua prpria estrutura de autoidentidade. O objeto da conscincia deixou de ser a natureza inorgnica, para ser a natureza orgnica e, por fim, ela mesma. Ao se tomar como objeto do saber a conscincia compreendeu, de uma parte, que o sentido de sua ao ultrapassa sua prpria intencionalidade e suas representaes. No entanto, ela ainda no alcanou uma
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perspectiva fundamentada de apreenso do sentido do ato. Por outro lado, ao tentar tomar a si mesma por objeto, a conscincia se objetificou de forma tal que, em uma inverso dialtica, abriu-se para ela a possibilidade de se apreender seu objeto como a forma da negatividade da conscincia, como a presena da transcendncia negativa da conscincia. Estas duas conseqncias sero desdobradas no sub-captulo dedicado efetivao da conscincia-de-si racional atravs de si mesma.:
A conscincia-de-si encontra a coisa como a si e a si como coisa, quer dizer, para ela que essa conscincia , em si, efetividade objetiva. No mais a certeza imediata de ser toda a realidade, mas uma certeza tal que o imediato tem para ela a forma de um superado, de modo que sua objetividade s vale como superfcie, cujo interior e essncia a prpria conscincia-de-si. Assim sendo, o objeto a que ela se refere uma conscincia-de-si, um objeto que est na forma da coisidade, isto , um objeto independente458.
O movimento proposto por esta afirmao no deixa de ser surpreendente. A conscincia-de-si encontra a si como coisa (encontro formalizado pela afirmao o ser do esprito um osso). Mas este encontrar no implica que a conscincia esteja imediatamente presente na coisa. A presena imediata da coisa a forma de uma superao, de uma aufhebung. Ela uma superfcie que manifesta um interior cuja essncia a prpria conscincia-de-si (realizando assim a proposio finalista segundo a qual o exterior deve expressar o interior). Desta forma, o objeto (lembremos, o mesmo objeto que foi posto como um osso, objetificao morta que alienava a conscincia-de-si) pode duplicar a estrutura da conscincia-de-si. Isto permite a Hegel afirmar que ela ento esprito: que tem a certeza de ter sua unidade consigo mesmo na duplicao de sua conscincia-de-si e na independncia das duas conscincias-de-si. O reconhecimento entre conscincias, que funda o advento do esprito, s possvel no interior da confrontao entre sujeito e objeto. H algo da conscincia que s pode ser reconhecido atravs da confrontao direta com o objeto [como se, para ser reconhecida como conscincia-de-si, a conscincia devesse reconhecer algo da ordem da opacidade dos objetos no seu interior. Da porque o conceito de todo este momento do texto de que: dass die Dingheit das Frsichsein des Geistes selbst ist /a coisidade o para -si do
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Esprito veremos melhor este ponto no decorrer do nosso curso), e no atravs do reconhecimento intersubjetivo. Guardemos este ponto pois ele ser til mais frente, quando for questo do comentrio do sub-captulo o reino animal do esprito. De fato, o que Hegel se prope a fazer neste sub-captulo dedicado razo ativa descrever fenomenologicamente o trajeto da conscincia em direo fundamentao universal e incondicional do campo de significao de seus atos e condutas, j que, inicialmente: essa razo ativa s est consciente de si mesma como de um indivduo. Na introduo ao sub-captulo dedicado razo ativa, Hegel fornece o nome deste Esprito realizado enquanto unidade da identidade da conscincia-de-si com sua diferena. Trata-se do reino da eticidade (Sittlichkeit):
Com efeito, este reino no outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivduos em sua efetividade independente. uma conscincia-de-si universal em si, que to efetiva em uma outra conscincia que essa tem perfeita independncia, ou seja, uma coisa para ela459. Ns veremos de maneira mais apropriada o conceito hegeliano de eticidade quando for questo do incio da seo Esprito. Por enquanto, podemos lembrar inicialmente que, para Hegel, a razo demonstra sua efetividade e unidade
principalmente atravs da vida tica que se realiza no solo de comunidades no interior das quais os sujeitos podem ser reconhecidos como sujeitos. Lembremos, por exemplo, desta noo de esprito como o solo que posio de prticas sociais fundamentadas de forma a preencherem exigncias de universalidade e reflexivamente apropriadas. Da porque:
na vida de um povo (Lebens eines Volks - Volkgeist) que o conceito tem, de fato, a efetivao da razo consciente-de-si e sua realidade perfeita (vollendente), ao intuir, na independncia do Outro, a completa unidade com ele; ou seja, ao ter por objeto, como meu ser-para-mim, essa livre coisidade de um outro por mim descoberta que o negativo de mim mesmo460.
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Notemos como esta vida de um povo exige um conceito dialtico de negao, j que sua unidade construda a partir da possibilidade intuir a si mesmo na independncia do Outro, independncia que aparece, inclusive, sob a forma de uma coisidade livre, coisidade que , a princpio, o negativo da prpria figura do sujeito. Neste sentido, poderamos seguir Souches-Dagues, para quem: vida tica segundo seu conceito creditada uma negatividade dialtica que consiste na no-fixao do negativo, na no-opositividade dos opostos, na elevao para alm de toda determinidade. Todos estes termos significam o absoluto, a liberdade e a negao autnticos461. s nesta condio que Hegel pode afirmar que, na eticidade, o agir particular uma habilidade (Geschcklichkeit) universal, o costume (Sitte) de todos462, que o trabalho trabalho universal conscientemente posto e que as leis de seu povo exprimem o cada indivduo e faz.. Veremos, mais a frente, como Hegel procurava, na polis grega e nas primeiras comunidades crists as figuras paradigmticas para pensar a realizao do esprito segundo a figura da eticidade. No entanto, o que nos interessa agora um paradoxo enunciado por Hegel nos seguintes termos:
Mas a conscincia-de-si que de incio s era esprito imediatamente e segundo o conceito saiu (herausgetreten) dessa felicidade que consiste em ter alcanado seu destino e em viver nele, ou ento: ainda no alcanou sua felicidade. Pode-se dizer igualmente uma coisa ou outra. A razo precisa (muss) sair dessa felicidade, pois somente em si, ou imediatamente a vida de um povo livre a eticidade real463.
Ou seja, o que Hegel diz : a conscincia perdeu sua felicidade e nunca a alcanou, at porque, perder e nunca ter tido a mesma coisa. Alm do mais, ela precisa perder aquilo que nunca teve. Isto tudo apenas indica o estatuto ilusrio da imediaticidade prpria eticidade em sua primeira manifestao. Pois a conscincia ainda no sabe que : pura singularidade para si464, ou seja, ela ainda no reconhecida enquanto conscincia-de-si. Por outro lado, a totalidade dos costumes e das leis uma substncia tica determinada, isto no sentido de uma eticidade
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SOUCHE-DAGUES, Ngation et individualit dans la pense politique de Hegel, p. 20 HEGEL, Fenomenologia, par. 351 463 HEGEL, Fenomenologia, par. 353 464 HEGEL, Fenomenologia, par. 355
comunitarista que no capaz de preencher exigncias de universalidade. Os dois problemas se resumem a um s j que a conscincia-de-si com suas exigncias de ser reconhecida em todo e qualquer contexto, para alm de toda e qualquer determinidade que fornece o solo para a posio das aspiraes de universalidade. Assim, tal como no prefcio Fenomenologia, no qual Hegel afirmava que os tempos modernos, era o momento histrico em que: no somente est perdida, para o esprito, sua vida essencial; est consciente desta perda e da finitude que seu contedo465, agora o filsofo no deixa de lembrar que a conscincia aparece isolada, j que sua confiana imediata no esprito, suas leis, costumes e contedos vinculados quebrada. Aqui vale a pena uma digresso a fim de explicitar melhor algumas coordenadas histricas do conceito hegeliano de reconciliao. Ao falar sobre o encontro de si no interior da eticidade, Hegel fala de felicidade. Este termo no andino. Ainda ressoava na conscincia da poca a afirmao de Saint-Just, dita na Tribuna da Conveno em 3 de maro de 1794, diante das possibilidades abertas pela Revoluo francesa: A felicidade uma idia nova na Europa. Para Saint-Just, a felicidade era uma idia nova na Europa porque, pela primeira vez, ela poderia guiar a racionalidade das esferas que compem o poltico. Neste sentido, o primeiro pargrafo da Declarao que precede a Constituio de 1793 no poderia ser mais claro: O objetivo da sociedade a felicidade geral (bonheur commune) e o governo seu defensor. Que a promessa de realizao de uma poltica da felicidade aparea em um momento histrico fundador da modernidade poltica, isto algo que no nos surpreende. A escatologia prpria a toda poltica revolucionria moderna depende da promessa utpica da efetivao possvel de uma realidade jurdica na qual Lei social e satisfao subjetiva possam enfim aparecer reconciliadas. por levar em conta as aspiraes do princpio de subjetividade no interior da esfera do poltico que podemos dizer que estamos diante de uma noo de felicidade enquanto fenmeno eminentemente moderno. Notemos a tenso interna felicidade na sua verso moderna. Ela deve englobar, ao mesmo tempo, imperativos de reconhecimento da singularidade dos sujeitos e imperativos de integrao da multiplicidade dos sujeitos na unidade do corpo social e de suas representaes. Devemos assim falar em tenso interna felicidade porque ela deve dar conta de dois tradio est
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imperativos aparentemente antagnicos. H assim, na aurora do projeto moderno, uma articulao fundamental entre felicidade e universalidade que nos explica, entre outras coisas, porque todos os grandes projetos de teoria poltica na modernidade (iluministas, Kant, Hegel) esto de acordo em pelo menos um ponto: a ao poltica que visa a felicidade subjetiva deve produzir a reconciliao objetiva com o ordenamento jurdico de uma figura institucionalizada do Universal (de preferncia, com a realidade jurdica do Estado justo embora, no caso da Fenomenologia a figura do Estado Justo nunca aparea). Hegel aborda esta tenso a partir do seu ponto mais problemtico, ou seja, da relao entre Lei e desejo (no por outra razo que a primeira figura da razo ativa ser descrita sob o nome de o prazer e a necessidade (Notwendigkeit)). J no pargrafo 357, Hegel no deixa de lembrar que, quando a substncia tica parece ter sido rebaixada a predicado carente-de-si, a conscincia tende a pautar seu agir a partir da forma de um: querer imediato ou de um impulso natural (Naturrtriebs). Ela ter, no entanto, a experincia da falsidade das representaes que colocam nestes impulsos naturais seu destino. Ns j vimos como, para Hegel, o impulso , ao mesmo tempo, o fundamento e a superao do desejo natural. Em 1805, Hegel afirmava que o desejo tinha ainda algo de animal por cair na iluso de que sua satisfao estava em um objeto externo e particular (da a contradio na qual ele necessariamente se enredava). J o impulso procede da oposio suprimida entre subjetivo e objetivo, o que significa, entre outras coisas, que sua satisfao no mais marcada exclusivamente pela particularidade do objeto, mas se revela como portando algo de universal. Esta a experincia que a conscincia far.
Hedonismo e servido
A primeira figura deste trajeto o hedonismo faustiano, as outras sero o sentimentalismo da lei do corao, a recuperao da virtude natural e o individualismo romntico. De uma certa forma, como um grande comentrio ao Fausto, de Goethe, que Hegel estrutura este momento intitulado O prazer e a necessidade. A escolha aqui clara: Fausto aquele que encarna a perda moderna do enraizamento a eticidade e suas promessas. Seu conhecimento da tradio e da extenso integral do saber, filosofia,
medicina, jurisprudncia e teologia466, de nada serve. Nem as prticas da cincia moderna, nem as tradies e costumes do passado podem contar para ele como fundamentados. A felicidade lhe est cada vez mais distante. Neste sentido, sua traduo do incio do Envagelho segundo So Joo: No incio, era o verbo para No incio, era a ao (Tat)467 demonstra o desenraizamento da palavra partilhada que funda vnculos comunitrios em prol da crena de que o agir saber impor suas prprias regras. Da, a compreenso de que racional pautar a ao e a conduta a partir de exigncias irrestritas de satisfao dos impulsos naturais:
Ele ento toma a vida como se colhe um fruto maduro e que, do modo como se oferece mo, essa o agarra. Seu agir um agir do desejo somente segundo um dos momentos. No procede eliminao da essncia objetiva toda, mas s a forma de seu ser-outro ou de sua independncia [devido tentativa de unio com o objeto atravs do prazer, ou ainda, devido tentativa de submisso do desejo do outro ao desejo da conscincia Fausto e Gretchen].468
A figura de Fausto importante aqui porque a conduta hedonista no deve ser vista como simplesmente irracional, mas como a deciso deliberada de algum que v o esgotamento da racionalidade de costumes e saberes que perderam toda sua essencialidade. Neste sentido, este hedonismo uma posio subjetiva moderna por excelncia por resultar da fragilizao completa das imagens de mundo. Lembremos, por exemplo, que Fausto aquele que sucumbe ao esprito que nega (der Geist, der stets verneint), quele que lembra, hegelianamente, que: tudo o que emerge (entsteht) digno s de perecer (zugrunde geht)469. Hegel procura lembrar que o gozo do desejo advindo da anulao da independncia do objeto , do reencontrar-se a si no objeto, do reduzir a essncia da outra conscincia a si mesmo atravs da submisso do seu desejo, no pr a si mesmo como conscincia-de-si singular: a conscincia-de-si no se torna objeto como este singular, mas sim como unidade de si mesma e de outra conscincia-de-si por isto, como singular suprimido, ou como universal470.
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GOETHE, Fausto, p. 63 GOETHE, idem, p. 131 468 HEGEL, Fenomenologia, par. 361 469 GOETHE, Fausto, p. 139 470 HEGEL, Fenomenologia, par. 362
A princpio, isto poderia parecer uma reconciliao bem sucedida. Atravs do desejo, duas conscincia se unem demonstrando que o impulso meramente particular j era desde sempre algo que pode aspirar uma certa universalidade (j que ele o que convm a duas conscincias-de-si). Mas no por esta via que Hegel ir trilhar. No pargrafo 363, Hegel insiste que, no prazer, a conscincia se confronta com uma essncia negativa (negative Wesen) que devora a satisfao do impulso em um objeto, que devora a quietude do gozo. Essncia negativa esta que no outra coisa que uma categoria abstrata (isto no sentido de uma representao que no se aplica a nenhum objeto).. Esta noo de essncia negativa prpria ao gozo do prazer fundamental. Hegel parece estar insistindo que o agir em nome do prazer no um agir que se aquieta no gozo. Ele um movimento circular que nunca se realiza por ser, na verdade, um crculo de abstraes, j que no h nada mais abstrato do que impulsos naturais:
O que se torna, pois, no prazer desfrutado, objeto da conscincia-de-si como sua essncia a expanso de essencialidades vazias a pura unidade, a pura diferena e sua relao. Alm disso, o objeto que a individualidade experimenta como sua essncia no tem contedo nenhum. E o que se chama necessidade, destino etc. justamente uma coisa que ningum sabe dizer o que faz, quais suas leis determinadas e seu contedo positivo471.
Ou seja, no prazer, o que advm objeto so essencialidades vazias, desprovidas de qualquer contedo, o que os libertinos sabem muito bem (e que Mefistfeles procura ensinar a Fausto), pois eles no se vinculam a nenhum objeto privilegiado, mas sabem que o prazer est no movimento de passagem de um objeto a outro. Da porque, Hegel a firma que a necessidade apenas a relao simples e vazia (...) cuja obra apenas o nada da singularidade. Assim, ao invs de poder realizar o dito: Cinza toda teoria e verde a rvore de ouro da vida, o hedonismo apenas se v aprisionado na zona cinzenta da abstrao da necessidade. A conscincia apenas trocou uma abstrao por outra. Ao acreditar levar a vida, encontrava apenas a morte [Sade e a mortificao do objeto Fausto e a morte de Gretchen].
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Assim, por meio da experincia em que sua verdade deveria vir-a-ser para ela a conscincia tornou-se antes um enigma para si mesma: as conseqncias de seus atos no so, para ela, atos seus (...) o ltimo momento de sua existncia o pensamento de sua perda na necessidade472
O hedonismo no uma forma de autonomia, o que Fausto descobrir de maneira trgica o no mais se reconhecer nas conseqncias de seus atos. E quem foi que a lanou na perdio, dir Mefistfeles a propsito do destino de Gretchen, Fui eu ou foste-o tu?.
Na aula passada, comeamos a anlise das figuras que compem o sub-captulo a razo ativa. Vimos, anteriormente, como a conscincia tentava realizar o conceito da razo enquanto certeza de ser toda a realidade. Quando foi questo da anlise dos protocolos racionais de observao , vimos como a natureza o movimento de experimentao que visava fornecer uma descrio racional do mundo dos objetos, a partir de uma srie de aprofundamento de seus pressupostos, levou a conscincia a problematizar sua prpria estrutura de auto-identidade. O objeto da conscincia deixou de ser a natureza inorgnica, para ser a natureza orgnica e, por fim, ela mesma. Ao se tomar como objeto do saber, a conscincia compreendeu, de uma parte, que o sentido de sua ao ultrapassa sua prpria intencionalidade e suas representaes. No entanto, ela ainda no alcanou uma perspectiva fundamentada de apreenso do sentido do ato. Por outro lado, ao tentar tomar a si mesma por objeto, a conscincia se objetificou de forma tal que, em uma inverso dialtica, abriu-se para ela a possibilidade de se apreender seu objeto como a forma da negatividade da conscincia, como a presena da transcendncia negativa da conscincia.
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De fato, o que Hegel se prope a fazer neste sub-captulo dedicado razo ativa descrever fenomenologicamente o trajeto da conscincia em direo fundamentao universal e incondicional do campo de significao de seus atos e condutas, j que, inicialmente: essa razo ativa s est consciente de si mesma como de um indivduo. Na introduo ao sub-captulo dedicado razo ativa, Hegel fornece o nome deste Esprito realizado enquanto unidade da identidade da conscincia-de-si com sua diferena. Trata-se do reino da eticidade (Sittlichkeit):
Com efeito, este reino no outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivduos em sua efetividade independente. uma conscincia-de-si universal em si, que to efetiva em uma outra conscincia que essa tem perfeita independncia, ou seja, uma coisa para ela473.
Isto nos lembrava como a razo demonstra sua efetividade e unidade principalmente atravs da vida tica que se realiza no solo de comunidades no interior das quais os sujeitos podem ser reconhecidos como sujeitos. Neste sentido, ganha importncia a noo de Esprito, apresentada em momentos anteriores do nosso curso, enquanto o solo que posio de prticas sociais fundamentadas de forma a preencherem exigncias de universalidade e reflexivamente apropriadas. Da porque:
na vida de um povo (Lebens eines Volks - Volkgeist) que o conceito tem, de fato, a efetivao da razo consciente-de-si e sua realidade perfeita (vollendente), ao intuir, na independncia do Outro, a completa unidade com ele; ou seja, ao ter por objeto, como meu ser-para-mim, essa livre coisidade de um outro por mim descoberta que o negativo de mim mesmo474.
No entanto, Hegel salienta claramente o estatuto ilusrio da imediaticidade prpria eticidade em sua primeira manifestao. Pois a conscincia ainda no sabe que : pura singularidade para si475, ou seja, ela ainda no reconhecida enquanto conscincia-de-si. Por outro lado, a totalidade dos costumes e das leis uma substncia tica determinada, isto no sentido de uma eticidade comunitarista que no capaz
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HEGEL, Fenomenologia, par. 349 HEGEL, Fenomenologia, par. 350 475 HEGEL, Fenomenologia, par. 355
de preencher exigncias de universalidade. Os dois problemas se resumem a um s j que a conscincia-de-si com suas exigncias de ser reconhecida em todo e qualquer contexto, para alm de toda e qualquer determinidade que fornece o solo para a posio das aspiraes de universalidade. Assim, tal como no prefcio Fenomenologia, no qual Hegel afirmava que os tempos modernos, era o momento histrico em que: no somente est perdida, para o esprito, sua vida essencial; est consciente desta perda e da finitude que seu contedo476, agora o filsofo no deixa de lembrar que a conscincia aparece isolada, j que sua confiana imediata no esprito, suas leis, costumes e contedos vinculados tradio est quebrada. Hegel aborda esta tenso entre expectativas de reconhecimento da singularidade da subjetividade e o universalismo da eticidade a partir do seu ponto mais problemtico, ou seja, da relao entre Lei e desejo (no por outra razo que a primeira figura da razo ativa ser descrita sob o nome de o prazer e a necessidade (Notwendigkeit)). J no pargrafo 357, Hegel no deixa de lembrar que, quando a substncia tica parece ter sido rebaixada a predicado carente-de-si, a conscincia tende a pautar seu agir a partir da forma de um: querer imediato ou de um impulso natural (Naturrtriebs). Ela ter, no entanto, a experincia da falsidade das representaes que colocam nestes impulsos naturais seu destino. Em 1805, Hegel afirmava que o desejo tinha ainda algo de animal por cair na iluso de que sua satisfao estava em um objeto externo e particular (da a contradio na qual ele necessariamente se enredava). J o impulso procede da oposio suprimida entre subjetivo e objetivo, o que significa, entre outras coisas, que sua satisfao no mais marcada exclusivamente pela particularidade do objeto, mas se revela como portando algo de universal. Esta a experincia que a conscincia far. Na aula passada, analisamos a primeira figura deste trajeto, ou seja, o hedonismo faustiano apresentado ba sub-seo: o prazer e a necessidade. De uma certa forma, como um grande comentrio ao Fausto, de Goethe, que Hegel estrutura este momento intitulado O prazer e a necessidade. A escolha aqui clara: Fausto aquele que encarna a perda moderna do enraizamento a eticidade e suas promessas. Seu conhecimento da tradio e da extenso integral do saber, filosofia, medicina, jurisprudncia e teologia477, de nada serve. Nem as prticas da cincia moderna, nem as tradies e costumes do passado podem contar para ele como fundamentados. A felicidade lhe est cada vez mais distante. Neste sentido, sua
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traduo do incio do Envagelho segundo So Joo: No incio, era o verbo para No incio, era a ao (Tat)478 demonstra o desenraizamento da palavra partilhada que funda vnculos comunitrios em prol da crena de que o agir saber impor suas prprias regras. Da, a compreenso de que racional pautar a ao e a conduta a partir de exigncias irrestritas de satisfao dos impulsos naturais: Neste sentido, este hedonismo uma posio subjetiva moderna por excelncia por resultar da fragilizao completa das imagens de mundo. Lembremos, por exemplo, que Fausto aquele que sucumbe ao esprito que nega (der Geist, der stets verneint), quele que lembra, hegelianamente, que: tudo o que emerge (entsteht) digno s de perecer (zugrunde geht)479. Na aula passada, a crtica hegeliana ao hedonismo foi apresentada da seguinte forma. Hegel insiste que, no prazer, a conscincia se confronta com uma essncia negativa (negative Wesen) que devora a satisfao do impulso em um objeto, que devora a quietude do gozo. Essncia negativa esta que no outra coisa que uma categoria abstrata (isto no sentido de uma representao que no se aplica a nenhum objeto). Esta noo de essncia negativa prpria ao gozo do prazer fundamental. Hegel parece estar insistindo que o agir em nome do prazer no um agir que se aquieta no gozo. Ele um movimento circular que nunca se realiza por ser, na verdade, um crculo de abstraes, j que no h nada mais abstrato do que impulsos naturais. Ou seja, no prazer, o que advm objeto so essencialidades vazias, desprovidas de qualquer contedo, o que os libertinos sabem muito bem (e que Mefistfeles procura ensinar a Fausto), pois eles no se vinculam a nenhum objeto privilegiado, mas sabem que o prazer est no movimento de passagem de um objeto a outro. Da porque, Hegel afirma que a necessidade apenas a relao simples e vazia (...) cuja obra apenas o nada da singularidade. este impasse que ir gerar a passagem (ou, por que no dizer, a converso) do hedonismo ao sentimentalismo da Lei do corao.
O corao tem suas razes que a razo no conhece; percebe-se isso em mil coisas. Digo que o corao ama o ser universal naturalmente e a si mesmo naturalmente, conforme aquilo a que se aplique; e ele se endurece contra um ou
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outro, sua escolha. Rejeitastes um e conservastes o outro: ser devido razo que vos amais a vs prprios?480
Todos vocs certamente conhecem esta afirmao de Pascal feita a fim de insistir na autonomia entre o que da ordem do sentimento (domnio privilegiado para a verdadeira universalidade, assim como para o amor de si) e o que da ordem da razo cognitiva. Notemos, no entanto, uma peculiaridade da afirmao pascaliana. Ao vincular as razes do corao ao sentimento do universal, Pascal chega mesmo a afirmar: conhecemos a verdade no s pela razo, mas tambm pelo corao; desta ltima maneira que conhecemos os princpios, e em vo que o raciocnio, que deles no participa, tenta combat-los481. Ou seja, os sentimentos fornecem princpios gerais que no precisariam da demonstrao da razo para aspirarem fundamentao universal. De uma certa forma, partir desta perspectiva que Hegel constri a figura da Lei do corao. Ns havamos visto como a verdade do hedonismo estava na revelao de que o submeter a ao necessidade dos impulsos naturais era submeter-se a um crculo de abstraes cuja obra apenas o nada da singularidade. A destruio a qual o desejo submetido ao hedonismo nos leva resultado da relao simples e vazia prpria ao conceito mesmo de necessidade. Agora, repetindo um movimento que j vimos no captulo fora e entendimento e que vai da abstrao determinao da Lei, Hegel lembra que h uma inverso quase natural do hedonismo em sentimentalismo reformador [lembremos do carter professoral e mesmo reformador do hedonismo libertino do sculo XVIII]. A rejeio moderna da idia de uma razo enraizada na tradio e em modos de vida arraigados foi historicamente seguida pelo culto do sentimento e do retorno certeza dos afetos. a isto que ele alude ao apresentar a nova figura da seguinte forma:
A necessidade a prpria conscincia-de-si, que nessa figura para si o necessrio [o que j era o caso no hedonismo]: sabe que tem em si imediatamente o universal ou a lei. A lei, devido a essa determinao de estar imediatamente no ser-para-si da conscincia, chama-se lei do corao482.
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PASCAL, Pensamentos, n. 277 PASCAL, idem, n. 282 482 HEGEL, Fenomenologia, par. 367
A necessidade deixa de ser posta como a afirmao da particularidade da posio singular da conscincia que procura o prazer, para ser o universal ou aquilo que funda uma lei cujas razes se encontram no sentimentalismo do corao. Mas lembremos que ficamos com um problema relativo indeterminao do que aparecia como necessidade, como impulsos naturais. Esta indeterminao continua. De uma certa forma, a Lei do corao no poder ser realizada porque ela, no fundo, nada enuncia. Ele se enraza em uma imediaticidade que apenas outra forma de dizer a submisso ao imprio da abstrao. Da porque o nico contedo possvel desta Lei ser negativo:a Lei do corao o que no se deixa realizar na efetividade. :
Frente a este corao est uma efetividade; pois dentro do corao a lei primeiro somente para si [pura figura negativa], ainda no se efetivou, e por isto tambm algo outro que o conceito (...) De um lado, a efetividade lei que oprime a individualidade singular, uma violenta ordem do mundo que contradiz a lei do corao. De outro lado, uma humanidade padecente sob essa ordem, que no segue a lei do corao mas que est submetida a uma necessidade estranha483.
Ou seja, a efetividade aparece submetida a uma lei que, ao mesmo tempo, vai contra os interesses da particularidade e da universalidade composta pela soma dos outros particulares, que tambm tenderiam a seguir a lei do corao. Assim, ao da conscincia parecer ser, ao mesmo tempo, particular e universal: O que a individualidade torna efetiva a lei mesma, portanto seu prazer ao mesmo tempo prazer universal de todos os coraes484. Seu prazer imediatamente conforme lei (Gesetzmssige), ele imeditamente o que feito em nome da produo do bem da humanidade. No entanto, a conscincia no se pergunta: se ningum suporta a lei da efetividade (j que ela vai contra esta lei que est enraizada no corao de todos), ento como ela pde se perpetuar at agora? Na verdade, veremos que, como a lei do corao , em ltima instncia vazia de qualquer determinao (como sempre vazia as aspiraes de significado de contedos intencionais e contedos disposicionais privados), faz-se necessrio que a conscincia perpetue um combate incessante com
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uma efetividade que no teria valor, isto para que a Lei do corao possa se determinar de maneira negativa. Para mostrar esta natureza negativa (no sentido de uma negao abstrata) da Lei do corao, Hegel escreve como quem se pergunta: o que aconteceria se tal Lei se efetivasse?
Mas nessa efetivao [como ordem universal], a lei de fato escapou do corao e se tornou, imediatamente, apenas a relao que ela deveria superar. Por essa efetivao, justamente, a lei do corao deixa de ser a lei do corao (...) Com a efetivao de sua lei, ele no produz sua lei; pois embora, em si, seja a sua, para o indivduo uma efetivao estranha. O que ele faz enredar-se na ordem efetiva como numa superpotncia estranha, que alis no s lhe estranha, mas inimiga485.
Ou seja, ao se efetivar a lei se intervm, o indivduo no mais a reconhece como lei do seu corao, mas como curso de uma efetividade estranha. Ela no se reconhece nessa universalidade livre que fruto do seu agir. Pois, Hegel no cansar de lembrar, embora a forma do ato seja universal, seu contedo ainda particular, aferrado particularidade dos sentimentos individuais. Devemos pois perguntar: por que o indivduo no pode se reconhecer na efetivao da lei do corao? Podemos dar duas razes. Primeiro, toda efetivao ser inadequada para uma lei cuja verdade ser indeterminada por se enraizar em um sentimentalismo que, por sua vez, assenta-se em um conceito de necessidade natural que a pura forma da relao simples e vazia. De fato, a conscincia parte necessariamente da posio prvia de saber o que quer dizer e de como agir socialmente para fazer o que quer dizer. Mas esta posio ser sistematicamente intervertida pela dinmica dos processos de experincia. Lembremos como Hegel diz, logo no incio do nosso captulo: Linguagem e trabalho so exteriorizaes nas quais o sujeito no se conserva mais e no se possui mais a si mesmo; e no algo como: Linguagem e trabalho so exteriorizaes nas quais o sujeito expressa contedos intencionais privados e realiza expectativas referenciais. Isto vale para a efetivao do que aparece, para a interioridade do corao, enquanto Lei universal. Pois atravs da efetivao, a
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conscincia ter a experincia de que seu saber da Lei era a figura mesma da indeterminao. Por isto, atravs da exteriorizao da Lei do corao, o sujeito no se possui mais a si mesmo. Por outro lado, Hegel no deixa de lembrar que, mesmo agindo em nome de uma Lei que aspira universalidade:
O corao deste indivduo apenas ps sua efetividade no seu ato, que expressa seu ser-para-si ou seu prazer. O ato deve valer imediatamente como universal [sua significao no deve ser mediada pela perspectiva do Outro], isto significa, ele na verdade algo de particular [j que sua significao nasce da imediaticidade da certeza da conscincia]: da universalidade tem apenas a forma, seu contedo particular [o prazer individual] deve, como tal, valer por universal. Por isso os outros no encontram realizada nesse contedo a lei de seu corao, e sim a de um outro (...) Por conseguinte, o indivduo, como antes abominava apenas a lei rgida, agora acha os coraes dos prprios homens, contrrios a suas excelentes intenes e dignos de abominao486.
Ou seja, a conscincia desconhece a natureza da eficcia (Wirksamkeit) da ao, isto no sentido dela no ter sua disposio uma perspectiva correta de avaliao dos processos de produo do sentido da ao social. Ela est certa de ter imediatamente sua disposio o sentido de seu ato (seja ele poltico, moral). Poderamos dizer, parafraseando Merleau-Ponty, que essa conscincia age em nome de: uma filosofia do homem interior que no encontra a menor dificuldade de princpios nas relaes com os outros, a menor opacidade no funcionamento social e substitui a cultura poltica pela exortao moral487. No entanto, o verdadeiro sentido de sua ao s seria produzido atravs da mediao a partir do sistema de expectativas das outras conscincias. Mediao impossvel j que a conscincia incapaz de enxergar a imagem de si mesmo que oferece aos outros. Por isto, ela no pode compreender a inverso de seu mpeto reformador em pura e simples opresso. O resultado da Lei do corao s pode ser a implementao de um conflito entre conscincias, uma luta de todos contra todos. Da porque o pulsar do corao pela bem da humanidade desanda assim na fria de uma presuno desvairada.O amor pela humanidade transforma-se facilmente em desprezo.
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Neste ponto, Hegel comea a inserir uma inverso importante que consiste em dizer que, atravs do conflito derivado da tentativa de efetivao da perspectiva singular de interpretao desta Lei universal de todos os coraes, a conscincia vai, paulatinamente, tendo a experincia da necessidade da ordem efetiva (que aparecera inicialmente como simplesmente opressora):
Mas aquilo onde a conscincia no se reconhece j no a necessidade morta, e sim a necessidade enquanto vivificada por meio da individualidade universal (...) ela encontra essa ordem vivificada pela conscincia de todos,e como lei de todos os coraes (...) Ao mesmo tempo, a ordem viva e subsistente tambm sua prpria essncia e obra [da conscincia]; no produz outra coisa a no ser essa ordem que est em unidade igualmente imediata com a conscincia-de-si488.
Isto deve ser compreendido de duas maneiras. Primeiro, ao ir contra a ordem efetiva em nome da Lei do corao, a conscincia experimenta uma resistncia, vinda de outras conscincias, que demonstra a validade do que parecia apenas signo de opresso: As leis vigentes so defendidas contra a lei de um indivduo porque no so uma necessidade morta e vazia, desprovida de conscincia, e sim a universalidade e a substncia espirituais489. Mas, por outro lado, Hegel faz questo de frisar que esta vivificao da ordem no apenas o resultado de uma reao a todo e qualquer impulso moral reformador. Ela obra da conscincia agente, ela mesmo sua essncia. O que isto pode significar a no ser que a conscincia est, de uma certa forma, implicada na ordem contra a qual ela luta? Se lembrarmos que ela no luta apenas contra uma ordem positiva que se apresenta na efetividade, mas contra a prpria efetivao da sua ao (j que efetiva-la significa necessariamente inserir sua ao em contextos que j esto previamente determinados e que configuram a significao da ao), ento este ponto pode ficar mais claro. Hegel insiste neste ponto ao afirmar que a conscincia sai desta experincia de aplicao da Lei do corao dilacerada no que tem de mais ntimo pois duplicada entre a intencionalidade de sua ao e a opacidade de seus resultados. Este dilaceramento ser figurado atravs de noes clnicas como: loucura ( Wahnsinn
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delrio Wahn) ou desvario (Verrcktheit). Hegel chega mesmo a fornecer algo como uma frmula geral da loucura:
Se algo de fato efetivo ou essencial para a conscincia em geral (Bewusstsein berhaupt) mas no o para mim, ento, na conscincia de sua nadidade (Nichtigkeit), eu que sou tambm conscincia em geral tenho ao mesmo tempo a conscincia de sua efetividade. Ora, quando os dois momentos so fixados, isto forma uma unidade (Einheit) que a loucura no seu carter universal490.
Loucura aqui compreendida como uma clivagem da conscincia, uma certa squize que faz com que duas proposies contraditrias formem uma unidade. Uma unidade no posta, mas mascarada pela clivagem entre minhas crenas, aes e perspectivas particulares de avaliao e as crenas, aes e perspectivas de avaliao de uma posio socialmente partilhada (conscincia em geral) a respeito da qual eu reconheo sem reconhecer ou reconheo apenas de maneira invertida sob a forma de delrio. Desta forma, o que marca a loucura o fato de que um destes plos projetado (herauswirft) para fora da conscincia, que o exprime como um Outro. Ou seja, a conscincia projeta para fora de si sua prpria diviso e luta contra sua prpria imagem invertida. Neste sentido, no por outra razo que psicanalistas como Jacques Lacan vo encontrar nesta descrio hegeliana da Lei do corao a essncia de certas nosografias clnicas marcadas exatamente pela denegao da implicao do sujeito com uma realidade viciosa e amoral na qual ele no se reconhece.
Mas, ao invs de cair na loucura, a conscincia pode continuar o trajeto fenomenolgico e ainda procurar fundamentar uma perspectiva de avaliao racional do sentido de sua conduta e ao. Como saldo das experincias anteriores, ela sabe que o individualismo do hedonismo e do sentimentalismo no conseguiram fornecer uma perspectiva capaz de preencher exigncias universalizantes da razo em sua dimenso prtica. Ainda resta assim uma maneira que seria a tentativa deliberada de anulao da
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individualidade. Isto ela far atravs da recuperao do discurso da virtude natural, sentido fundamental da figura A virtude e o curso do mundo:
Na primeira figura da razo ativa, a conscincia-de-si era, para si, pura individualidade, e frente a ela se postava a universalidade vazia. Na segundo figura, cada uma das duas partes continha os dois momentos lei e individualidade: uma das partes, o corao, era sua unidade imediata, e a outra, sua oposio. Aqui, na relao entre a virtude e o curso-do-mundo, os dois membros so, cada um, unidade e oposio desses momentos, ou seja, so um movimento da lei e da individualidade, mas em sentido oposto. Para a conscincia da virtude, a lei o essencial, enquanto a individualidade o que deve ser superado, tanto na sua conscincia mesma quanto no curso do mundo. Nela, a individualidade prpria deve disciplinar-se sob o universal, o verdadeiro e o bem em si491.
Ou seja, a conscincia, atravs da recuperao do discurso da virtude natural tenta inverter o sentimentalismo da Lei do corao ao afirmar que seria apenas atravs do sacrifcio da individualidade (que visto como o princpio de inverso do sentido virtuoso do curso do mundo) e da aniquilao dos egosmos que o curso do mundo pode aparecer tal como em sua verdade. As aes no devem ser vistas como o que feito pela individualidade, mas como o que feito como abnegao a partir do bem em si. Abnegao feita a partir da f em uma Providncia que garante a virtuosidade do curso do mundo, isto quando a individualidade no interfere a partir de seus prprios desgnios egostas. Como vemos., o curso do mundo aqui guarda algo da ordem do estoicismo. Este mesmo estoicismo que compreendia a razo (logos) como princpio que rege uma Natureza identificada com a divindade. O curso do mundo obedeceria assim um determinismo racional. A virtude consistiria em viver de acordo com a natureza racional aceitando o curso do mundo, ou seja, aceitando o destino despojando-se de suas paixes a fim de alcanar a apatia e a ataraxia. No entanto, Hegel lembrar que esta virtude antiga prpria ainda ao estoicismo grego era resultado de um certo enraizamento do indivduo na vida tica de um povo,
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Por isto, ela no se: revoltava contra a efetividade como se fosse uma inverso universal e contra o curso do mundo492. J o discurso da virtude que recuperado pelos modernos no pode mais fazer apelo substncia tica, por isto ela : virtude desprovida de essncia, uma virtude somente da representao e das palavras. Nesta submisso virtuosa da conscincia Providncia, Hegel retoma algumas elaboraes j apresentadas quando foi questo da figura da conscincia infeliz. Lembremos por exemplo do problema do agir como ao de graas, pois reconhecimento de que o fruto do agir dom divino. Esta temtica retorna em nosso captulo quando Hegel centra o conflito prprio ao virtuosa no uso de dons:
O bem ou o universal, tal como surge aqui o que se chama dons, capacidades, foras (Gaben, Fhigkeit, Krfte). um modo de ser do espiritual, no qual este espiritual apresentado como um universal, o qual precisa do princpio da individualidade para sua vivificao e movimento e tem sua efetividade nesse princpio [sem a ao da individualidade, tais dons no teriam efetividade]493.
Enquanto submetido virtude, tais dons e foras so bem aplicados, mas enquanto est no curso do mundo submetido ao individualismo mal aplicado e produz maus frutos. Assim, a luta da virtude no pode ser levada a srio porque, em ltima instncia, a conscincia atualiza suas capacidades e foras para lutar contra suas
capacidades e foras atravs do ascetismo e do sacrifcio de si. Da porque Hegel pode dizer que: assemelha-se a virtude no s a um combatente que na luta est todo ocupado em conservar sua espada sem mancha; e mais ainda: que entrou na luta para preservar suas armas494. o prprio indivduo que efetiva capacidades e foras contra si mesmo, j que s atravs do indivduo que algo pode ter efetividade:
Portanto, a virtude vencida pelo curso do mundo, pois sua finalidade [da virtude] a essncia inefetiva abstrata (...) A virtude pretendia consistir em levar o bem efetividade por meio do sacrifcio da individualidade; ora, o lado da efetividade no outro que o lado da individualidade495.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 390 HEGEL, Fenomenologia, par. 385 494 HEGEL, Fenomenologia, par. 386 495 HEGEL, Fenomenologia, par. 389
A individualidade o princpio da efetividade, j que a individualidade que atua o que inverte o nada da abstrao em ser da realidade. Da porque Hegel pode dizer que a recuperao moderna da virtude pura retrica que no pode determinar de maneira precisa sua significao. Como resultado, Hegel afirma que a conscincia Faz a experincia de que o curso do mundo no to mal como aparentava. Com isto, est descartada a tentativa de produzir o bem atravs do sacrifcio da individualidade, j que o movimento da individualidade a realidade do universal. Para tanto, Hegel deve mostrar que mesmo l onde a prpria individualidade pensa agir de maneira egosta, ela est realizando algo da ordem do universal:
A individualidade do curso do mundo pode bem supor que s age para si ou por egosmo, ela melhor do que imagina: seu agir ao mesmo tempo um ente emsi, um agir universal. Quando age por egosmo, no sabe simplesmente o que faz496.
De fato, Hegel pensas aqui em duas coisas. Primeiro, as sociedades modernas no podem procurar fundamentao moral a partir de uma tentativa de realizar reformas morais atravs da virtude privada. Hegel muito sensvel a esta idia dos economistas ingleses, como Adam Smith, de que o agir aparentemente egosta est articulado no interior de um sistema de necessidades que faz com que a riqueza social seja produzida. Mas, por outro lado, devemos lembrar tambm que, para Hegel, o desejo obedece a uma gnese social, e no alguma forma de determinao natural ou patolgica.. Desta forma, a realizao do desejo sempre atualiza algo de universal, at porque os sujeitos desejam, em ltima instncia, serem reconhecidos como sujeitos no interior de estruturas sociais que possa realizar aspiraes de universalidade. Esta a verdade do desejo humano, segundo Hegel, e no um afundar-se no particularismo de necessidade e impulsos pretensamente naturais. Mas para que a conscincia possa chegar a tal compreenso foi necessrio que ela observasse o fracasso de suas tentativas em fundar sua ao atravs da procurar imediata pelo prazer, ou fundar a Lei atravs da certeza imediata do corao. Tanto em caso como em outro, a conscincia ainda vinculava seu desejo a um princpio de
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identidade que lhe permitia saber exatamente o que fazer para alcanar a realizao do desejo, a reconciliao com o objeto. Na ltima figura, esta dedicada recuperao moderna do discurso da virtude natural, a conscincia acredita ter, atravs da negao de si, o acesso a uma perspectiva universalmente fundamentada, tal como vimos na conscincia infeliz. Novamente, ela descobre que l onde ela julgava agir de maneira mais alienada (agir vinculado a uma individualidade que no podia mais aspirar enraizamento substancial algum e marcada pela opacidade em relao ao sentido de seu agir que aparecia inicialmente como, baixo, egosta, inefetivo), ela descobre portar em si algo da ordem do que pode aspirar universalidade. Veremos na aula que vem at onde esta perspectiva pode nos levar.
Com a aula de hoje, terminamos o mdulo dedicado leitura do captulo V da Fenomenologia do Esprito, Certeza e verdade da razo. Neste sentido, antes de apresentarmos os ltimos desdobramentos do captulo, faz-se necessrio voltarmos para uma apreenso geral do trajeto descrito por Hegel at aqui. Antes disto, gostaria de apresentar a reestruturao do calendrio de nossas aulas. A partir da aula que vem, teremos o seguinte calendrio: Dia 01 de novembro: o conceito hegeliano de eticidade (comentrio da subseo: o mundo tico). Leitura de apoio: Hegel e os gregos, Heidegger Dia 08 de novembro: a leitura hegeliana de Antgona (comentrio da subseo: a ao tica). Leitura de apoio: Sees XIX a XXI do Seminrio VII, Jacques Lacan e o captulo dedicado poesia dramtica no Curso de esttica, de Hegel Dia 15 de novembro: Hegel e O sobrinho de Rameau (comentrio da subseo: O mundo do esprito alienado de si). Leitura de apoio: Paradoxo do intelectual, Paulo Arantes e Cinismo ilustrado, Rubens Rodrigues Torres Filho Dia 22: Hegel e a revoluo francesa (comentrio da subseo: O iluminismo). Leitura de apoio: O iluminismo e a revoluo, captulo de Lies sobre a filosofia da histria, de Hegel
Dia 29: Os impasses da moralidade (comentrio da subseo Gewissen: a bela alma, o mal e seu perdo) Dia 06 de dezembro: O conceito hegeliano de religio (apresentao do captulo Religio). Leitura de apoio: Ces vieux mots dathisme ..., de Lebrun Dia 13 de dezembro: O saber abosluto (apresentao do captulo O saber absoluto)
Recapitulao Desde o incio deste mdulo, procurei insistir na especificidade do captulo Certeza e Verdade da razo. Pois, se na seo Conscincia, foi questo da anlise da relao cognitivo-instrumental da conscincia com o objeto, e, na seo Conscincia-de-si, questo da relao de reconhecimento entre conscincias como condio prvia para o conhecimento de objetos, a partir da seo razo, chegamos a um estdio de unidade entre conscincia e conscincia-de-si, unidade que pode ser sintetizada atravs da noo de que a estrutura do Eu duplica a estrutura do objeto e cuja realizao perfeita nos levar ao saber absoluto. H, de fato, uma unidade de propsito nestas quatro sees finais, j que cada uma mostrar modos distintos de posio deste princpio de unidade. Neste sentido, o carter progressivo que animava o desenvolvimento da Fenomenologia d lugar a uma procura pela perspectiva possvel de fundamentao de um programa positivo para as aspiraes de fundamentao da razo. Da porque: apenas aps o captulo sobre a razo que a Fenomenologia chega ao ponto que Hegel tinha inicialmente situado no captulo sobre a conscincia-de-si: essncia e fenmeno se respondem, o esprito se mostra essncia absoluta sustentando-se a si mesmo497. Mas a primeira manifestao desta unidade entre conscincia de objeto e conscincia-de-si, unidade que Hegel chama exatamente de razo (lembremos da definio cannica: a razo a certeza da conscincia ser toda a realidade), imperfeita. Para Hegel, tal imperfeio a marca da razo moderna que havia encontrado sua conscincia filosfica mais bem acabada no idealismo. Da porque, a seo Razo devia ser compreendida como a anlise das operaes da razo moderna em seus processos de racionalizao; razo agora reflexivamente fundamentada no princpio de uma subjetividade consciente-de-si.. Neste sentido, deveramos encontrar
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aqui o que pode ser chamado de crtica hegeliana ao processo de modernizao em suas dimenses: cognitivo-instrumental (razo observadora), prtico-finalista (razo ativa) e jurdica (razo legisladora que , sua maneira, um desdobramento da segunda). Como j deve estar claro para vocs, a mirade de crticas que Hegel enderea aos processos modernos de racionalizao convergem normalmente em um ponto comum: so desdobramentos da incompreenso a respeito da estrutura da conscincia-de-si, incompreenso derivada da tendncia em compreender o sujeito como locus privilegiado do princpio de identidade. Hegel insiste que o idealismo (movimento do qual ele se v parte) nos traz um conceito renovado de conscincia-de-si enquanto fundamento do saber, enquanto condio para a conscincia de objeto e enquanto princpio de racionalizao de todas as esferas sociais de valores. Da porque vimos Hegel partir, na seo razo, de uma re-compreenso da proposio fundamental de auto-identidade do sujeito (Eu=Eu). Tratava-se de insistir que a correta elaborao do processo de formao da conscincia nos impedia de compreender esta auto-identidade do sujeito como posio imediata da auto-percepo de si. Vimos ainda como nosso captulo comeava tambm com uma problematizao a respeito do Eu penso como fundamento para a estrutura categorial do entendimento, sendo que (sempre bom lembrar) as categorias eram os operadores que permitiam a realizao do conceito de razo como conscincia de ser toda a realidade (enquanto campo possvel de experincias racionais). Hegel insistia que a regra de unidade sinttica do diverso da experincia era fornecida pela estruturao da prpria unidade sinttica de apercepes, ou seja, pela auto-intuio imediata da conscincia-de-si que: ao produzir a representao eu penso, que tem de poder acompanhar todas as outras, e que uma e idntica em toda a conscincia, no pode ser acompanhada por nenhuma outra498. Kant ainda mais claro ao afirmar que: O objeto aquilo em cujo conceito est reunido o diverso de uma intuio dada. Mas toda a reunio das representaes exige a unidade da conscincia na respectiva sntese499. Assim, quando Hegel constri um witz ao dizer que, para a conscincia, o ser tem a significao do seu (das Sein die Bedeutung das Seinen hat)500, ele tem em vista o fato de que ser objeto para a conscincia significa estruturar-se a partir de um princpio interno de ligao que modo da cosncincia apropriar-se do mundo.
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KANT, Crtica da razo pura, B 132 KANT, Crtica da razo pura, B 137 500 HEGEL, Fenomenologia, par. 240
O que Hegel procurava pois era reconstituir as aspiraes da razo atravs da reconstituio desta categoria fundamental, a saber, o sujeito como fundamento das operaes de reflexividade. Pois questionada a possibilidade da auto-intuio imediata de si, so os postulados fundamentais de constituio de processos de identidade, diferena, unidade, ligao que estaro abalados. Por isto, Hegel no esquecer de dizer que:
Porm a razo, mesmo revolvendo todas as entranhas das coisas e abrindo-lhes todas as veias a fim de ver-se jorrar dali para fora no alcanar essa felicidade [de ser toda a realidade], mas deve ter-se realizado (vollendent) antes em si mesma para depois experimentar sua plena realizao (Vollendung)501.
Realizar-se em si mesma antes de se experimentar no mundo significa que a razo deve racionalizar inicialmente o que lhe serve de fundamento, ou seja, a individualidade, isto antes de saber como se orientar na experincia do mundo. Da porque vimos como a crtica dimenso cognitivo-instrumental da razo ia da observao da natureza inorgnica (fsica), a observao da natureza orgnica (biologia) para encontrar nas cincias da individualidade os paradigmas de constituio do objeto de observao cientfica. Ao final, vimos como a razo s podia apreender o que da ordem do fundamento de seus processos ao abandonar a tentativa de compreender a confrontao com o objeto a partir das dinmicas de observao da imediatez do ser ou da unidade imediata do Eu. Devemos compreender a razo como atividade (pensada a partir dos processos de desejo, trabalho e linguagem), e no como observao. Da porque Hegel dir que o verdadeiro ser do homem seu ato (...) o ato isto: e seu ser no somente um signo, mas a coisa mesma502. Isto levava Hegel a procurar o fundamento da unidade da razo em sua dimenso prtica, sentido maior da passagem da razo observadora razo ativa. Como dir Pinkard: A concepo kantiana da racionalidade como o que comum a todos os sujeitos e como o que os faz sujeito autodeterminados, e no substncias determinadas de fora s pode ser realizada atravs da concepo da razo como prtica social, e no atravs da concepo da razo como princpio de combinao de representaes no interior de experincia coerente. O modelo representacional de conhecimento modelo de um sujeito inspecionando suas
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representaes do mundo deve dar lugar ao modelo de conhecimento como participao em prticas sociais503. De fato, Hegel apresentava esta noo de que o verdadeiro ser o homem seu ato no interior de uma reflexo sobre a fisiognomia. Vimos como a fisiognomia era uma pseudo-cincia, muito em voga poca, baseada na crena em conhecer as predisposies de conduta dos sujeitos atravs dos traos do rosto. O rosto aparece assim como o exterior que pode, inclusive, ser distinto da prpria conduta efetiva dos sujeitos (da a importncia da relao entre o rosto e a predisposio conduta). Isto levava a fisiognomia a defender o enraizamento do sentido da conduta na predisposio. Era contra este enraizamento da significao na interioridade da intencionalidade que Hegel afirmava que o verdadeiro ser do homem seu ato. Pois, no ato consumado, a falsa indeterminao da intencionalidade aniquilada e encontra sua verdadeira significao. No entanto, Hegel nada dizia sobre qual a perspectiva correta de interpretao do ato. Este era o problema que deveria ser resolvido pela subseo dedica razo ativa. Sem uma perspectiva fundamentada e universalmente vlida de interpretao do ato no haver como darmos conta do que est em jogo nos procedimentos de fundamentao da razo. Foi para dar conta deste problema que Hegel apresentou, pela primeira vez, o conceito de eticidade, ou de razo tica para falarmos com Robert Pippin. Esta eticidade era a manifestao (Offenbarung) do
conceito de esprito como conjunto de prticas sociais racionalmente fundamentadas e reflexivamente apropriadas. Lembremos novamente da maneira com que Hegel anunciava o advento do reino da eticidade:
Com efeito, este reino no outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivduos em sua efetividade independente. uma conscincia-de-si universal em si, que to efetiva em uma outra conscincia que essa tem perfeita independncia, ou seja, uma coisa para ela504.
No entanto, sabamos desde o prefcio da Fenomenologia do Esprito que Hegel compreendia os tempos modernos enquanto momento histrico em que: no somente est perdida, para o esprito, sua vida essencial; [mas] est consciente desta perda e da
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finitude que seu contedo505. Neste sentido, todo o resto do nosso captulo pode ser compreendido como o movimento no qual a conscincia descobre a necessidade e a impossibilidade de posio de um conceito de eticidade na modernidade, isto se no formos capazes de concebermos prticas e instituies sociais capazes de responder s demandas de reconhecimento de sujeitos no-substanciais e locus de uma negatividade dialtica que consiste na no-fixao do negativo, na no-opositividade dos opostos, na elevao para alm de toda determinidade506. Como tais prticas e instituies no so sentidas como necessrias por sujeitos que ainda se auto-compreendem como pura identidade a si na dimenso da ao, ento Hegel ter que criticar todas as figuras da subjetividade agente vinculada imediaticidade da auto-identidade. Este foi o eixo que guiou a apresentao hegeliana das figuras da razo na dimenso prtica: o hedonismo faustiano, o sentimentalismo da lei do corao e a recuperao moderna do discurso da virtude natural. Veremos na aula de hoje mais trs outras figuras: a individualidade romntica (o Reino animal do Esprito), o formalismo tico (Razo legisladora) e a tentativa de recuperao imediata da eticidade (Razo examinando as leis). Apenas a ttulo de recapitulao, lembremos como Hegel comeava apresentando esta auto-identidade da individualidade atravs do recurso ao agir em nome da satisfao de impulsos naturais (o hedonismo). Hegel insistia que, o prazer advindo de tal satisfao era confrontao da conscincia com uma essncia negativa (negative Wesen) que devora a quietude do gozo. Essncia negativa esta que no outra coisa que uma categoria abstrata (isto no sentido de uma representao que no se aplica a nenhum objeto).. Esta noo de essncia negativa prpria ao gozo do prazer era fundamental. Hegel parece estar insistindo que o agir em nome do prazer no um agir que se aquieta no gozo. Ele um movimento circular que nunca se realiza por ser, na verdade, um crculo de abstraes, j que no h nada mais abstrato do que impulsos naturais . Da porque, Hegel afirma que a necessidade apenas a relao simples e vazia (...) cuja obra apenas o nada da singularidade. A conscincia ento procurava a auto-identidade de si no mais na afirmao da singularidade atravs de impulsos naturais, mas atravs da sua reconciliao imediata com o universal de todas as vontades atravs da Lei do corao. Atravs da lei do corao, a necessidade deixou de ser posta como a afirmao da particularidade da
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HEGEL, Fenomenologia, par. 7 SOUCHE-DAGUES, Ngation et individualit dans la pense politique de Hegel, p. 20
posio singular da conscincia que procura o prazer, para ser o universal ou aquilo que funda uma lei cujas razes se encontram no sentimentalismo do corao Mas lembremos que ficamos com um problema relativo indeterminao do que aparecia como necessidade, como impulsos naturais. Esta indeterminao continua. De uma certa forma, a Lei do corao no poder ser realizada porque ela, no fundo, nada enuncia. Por isto, sob o imprio da Lei do corao, a conscincia nunca ir se reconhecer nas conseqncias de seus prprios atos. Hegel afirma que a conscincia desconhece a natureza da eficcia (Wirksamkeit) da ao, isto no sentido dela no ter sua disposio uma perspectiva correta de avaliao dos processos de produo do sentido da ao social. Ela est certa de ter imediatamente sua disposio o sentido de seu ato (seja ele poltico, moral). Poderamos dizer, parafraseando Merleau-Ponty, que essa conscincia age em nome de: uma filosofia do homem interior que no encontra a menor dificuldade de princpios nas relaes com os outros, a menor opacidade no funcionamento social e substitui a cultura poltica pela exortao moral 507. Como vimos, o resultado ser um dilaceramento da identidade da conscincia que no pode ser por ela reconhecido. Da porque, a Lei do corao termina na loucura. Vimos ainda como a conscincia podia ainda tentar, deliberadamente, anular a prpria individualidade para salvar o princpio de identidade. Isto ela far atravs da recuperao do discurso da virtude natural, sentido fundamental da figura A virtude e o curso do mundo: A conscincia, atravs da recuperao do discurso da virtude natural tenta inverter o sentimentalismo da Lei do corao ao afirmar que seria apenas atravs do sacrifcio da individualidade (que visto como o princpio de inverso do sentido virtuoso do curso do mundo) e da aniquilao dos egosmos que o curso do mundo pode aparecer tal como em sua verdade. As aes no devem ser vistas como o que feito pela individualidade, mas como o que feito como abnegao a partir do bem em si. Abnegao feita a partir da f em uma Providncia que garante a virtuosidade do curso do mundo, isto quando a individualidade usa corretamente seus dons e foras, no interferindo a partir de seus prprios desgnios egostas. No entanto, a conscincia fez a experincia de que a individualidade o princpio da efetividade, j que a individualidade que atua o que inverte o nada da abstrao em ser da realidade. Da porque Hegel pode dizer que a recuperao moderna da virtude pura retrica que no
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pode determinar de maneira precisa sua significao. Ao final, vimos como a conscincia virtuosa se reconciliava com o curso do mundo atravs da suspenso da oposio entre o agir particular e os interesses do universal: A individualidade do curso-do-mundo pode bem supor que s age para si ou por egosmo, dir Hegel, ela melhor do que imagina, seu agir ao mesmo tempo um agir universal sendo em si. Quando age por egosmo, no sabe simplesmente o que faz508.
como uma tentativa de agir a partir da pressuposio desta reconciliao com um curso do mundo produzido pelo agir das conscincias que a ltima subseo, A individualidade que real em si e para si mesma, deve ser compreendida. Por isto, Hegel inicia:
A conscincia-de-si agora captou o conceito de si, que antes era s o nosso a seu respeito: o conceito de ser, na certeza de si mesmo, toda a realidade. Daqui em diante tem por fim e essncia a interpenetrao espontnea [bewegende Durchdringung - o movimento espontneo de interpenetrao] do universal (dons e capacidades) e da individualidade509.
Como a finalidade do agir da conscincia o movimento espontneo de interpenetrao entre o universal e a individualidade, Hegel pode afirmar que a razo tem por objeto a prpria categoria (enquanto predicao geral de objetos possveis da experincia), isto no sentido de que a universalidade de categorias pensadas de maneira especulativa e a partir da experincia resultante do agir da conscincia pode agora dar conta da integralidade do que se apresenta experincia. O que s pode significar que a matria e a finalidade do agir j esto reconciliados no prprio agir, uma outra forma de dizer que a pura categoria adveio consciente de si mesma, ou ainda, que a conscincia tem, imediatamente, a apreenso da perspectiva de sentido das conseqncias do seu agir:
Por conseguinte, o agir tem o aspecto do movimento de um crculo que livre no vcuo se move em si mesmo, sem obstculos [pois no encontra resistncia
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alguma vinda de uma realidade resistente perspectiva de compreenso da conscincia]; ora se amplia, ora se reduz e, perfeitamente satisfeito, s brinca em si mesmo e consigo mesmo (...) O agir nada altera e no vai contra nada. a pura forma do transladar [bersetzen traduzir] do no-visvel ao visvel [Gesehenwerden]510.
No entanto, a conscincia far a experincia de que sua pressuposio de reconciliao ainda no est realizada e, por enquanto, no poder ser realizada. A conscincia ainda compreende a reconciliao como expulso para fora de si de toda dinmica conflitual e negativa com o em-si prprio objetividade. O reconciliar como o brincar que nada altera e no vai contra nada. Esta suspenso do trabalho do negativo no ainda a figura da superao reconciliadora. A fim de expor a dinmica desta experincia, Hegel sintetiza suas reflexes sobre a anatomia do ato em um momento central deste captulo: O reino animal do esprito e a impostura ou A coisa mesma. Convm nos determos mais demoradamente neste ponto. O ttulo O reino animal do esprito j diz muito a respeito do que vir. bem provvel que Hegel tivesse em mente esta frase do poema Hyperion, de Hlderlin onde ele discute com o erudito: como se a natureza humana fosse dissolvida em uma multido de reinos animais. De fato, Hegel pensa em uma estrutura de interao social baseada na conversao, da porque, por exemplo, uma figura que aparece neste momento do captulo a conscincia honesta, ou o honnte homme: cidado culto e cosmopolita da Frana do XVIII e capaz de entrar, com eloqncia, em qualquer discusso letrada de salo literrio. Mas esta conversao ser tal que nos descobriremos que cada individualidade se fecha em uma natureza originria delimitada, como se engajassem na conversao apenas para expressarem a si mesmos. Eles se engajam assim em um horizonte espiritual, mas agem como quem est ainda ligado ao determinismo particularista do reino animal. Eles esto assim em um reino animal do esprito. Kojve chegou mesmo a ver neste agir que nada altera, a prpria figura do intelectual: Aps os heris do romantismo, Hegel considera aqui os especialistas, professores, artistas que conferem arbitrariamente sua funo um valor absoluto, sem se aperceber que ela para os outros indivduos uma realidade estranha
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qual procuram substituir a sua prpria causa. Reconhecemos aqui o horror da poca diante dos especialistas511. De qualquer maneira, uma coisa certa: Hegel tem em mente, entre outras coisas, uma certa passagem do individualismo (indivduos com conjuntos idnticos de interesses e liberdades) individualidade romntica (cada indivduo tem uma natureza nica incomensurvel que se expressa em uma obra), individualidade que bem pode dar conta da posio excntrica dos intelectuais no que diz respeito relao com o tecido social. Mas vemos que o ttulo desta parte duplicado: O reino animal do esprito e a impostura ou A coisa mesma (Sache selbst). Como veremos, o uso deste termo no contexto da economia interna do texto ambguo.No entanto, para apreender melhor a natureza desta ambigidade, faz-se necessrio entrarmos no comentrio do texto. Vale a pena inicialmente perceber que o texto dividido em trs partes: do pargrafo 397 a 404 temos uma descrio detalhada do movimento espontneo de interpenetrao entre universal e individualidade tal como pressuposto pela conscincia neste momento. Entre os pargrafos 405 e 409, temos a descrio da experincia da conscincia ao tentar realizar tal pressuposio. Por fim, do pargrafo 410 ao 118, temos um longo trecho dedicado tematizao do problema da experincia que a conscincia cr fazer com a Coisa mesma. Hegel parte ento de uma posio similar quela que vimos quando foi questo dos impulsos naturais que guiaram o hedonismo faustiano:
A individualidade entre em cena, pois, como natureza originria determinada, como natureza originria porque em si; como originariamente determinada porque o negativo est no em si o qual, portanto, uma qualidade (...) A determinidade originria da natureza pois somente princpio simples, um elemento universal transparente onde a individualidade no s permanece livre e igual a si mesma, como tambm a desenvolve irreprimida as suas diferenas512.
Esta natureza originria determinada aparece inicialmente como contedo imediato da finalidade do agir. Finalidade que expresso de faculdades como o talento, o carter etc. Como se trata de um elemento transparente, a conscincia
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compreender o agir como: um puro traduzir da forma do ainda no apresentado (dargestellten) forma do ser apresentado513. fato que a esta altura j sabemos que esta noo de agir como pura traduo do interior no exterior no deixa de nos colocar problemas, at porque: o indivduo no pode saber o que ele antes de se ter levado efetividade atravs do agir514. Mas isto equivale a dizer que a conscincia no pode determina a finalidade de seu agir antes de ter efetivamente agido, isto se quiser ainda conservar alguma identidade entre efetividade e ato. Da um paradoxo exposto por Hegel nos seguintes termos:
O indivduo que vai agir parece encontrar-se em um crculo onde cada momento j pressupe o outro e desse modo no pode encontrar nenhum comeo. Com efeito, s atravs da ao aprende a conhecer sua essncia originria que deve ser sua finalidade, mas para agir deve possuir antes a finalidade [quer dizer, o indivduo s sabe o que faz e qual a significao da sua ao para alm da intencionalidade imediata]. Por isso mesmo, deve comear imediatamente e sejam quais forem as circunstncias, sem maiores ponderaes sobre o comeo, o meio (Mittel) e a finalidade da ao [Este decisionismo tem sua justificativa. O sujeito j est desde sempre inserido em um complexo de prxis sociais e j age desde sempre cabe a ele apenas assumir reflexivamente como sua esta ao que ele j faz]. Como comeo, essa natureza est presente nas circunstncias do agir e o interesse que o indivduo encontra em algo j a resposta dada questo: se deve agir e o que fazer.515
Assim, o crculo quebrado porque o agir j est presente antes da assuno, pela conscincia, de um projeto. As circunstncias que levam ao j so a natureza originria do indivduo porque so circunstncias para a ao deste indivduo (uma circunstncia para a ao no vista assim por todos os indivduos um indivduo a soma das circunstncias que ele faz sua). Cabe conscincia apreender reflexivamente uma ao (composta de circunstncias, meio e finalidade) da qual ela j suporte: assim a ao em sua totalidade no sai fora de si mesma.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 401 HEGEL, Fenomenologia, par. 401 515 HEGEL, Fenomenologia, par. 401
No entanto, Hegel lembra que o crculo se complexifica se levamos em conta a relao da conscincia com a obra resultante da ao, pois, ao confrontar-se com a obra: a conscincia se determina como o que inclui a determinidade como negatividade em geral, como agir; a conscincia o universal em contraste com aquela determinidade da obra516. Hegel quer dizer com isto, que mesmo reconhecendo-se reflexivamente no agir, a conscincia sempre aquilo que se comporta diante da obra como negatividade em geral. Isto a permite tomar distncia da prpria obra, compar-la com outras e aplicar julgamentos de valor. Mas Hegel afirma que, neste estgio, tal negatividade em geral seria inefetiva porque a conscincia j est certa de que: nada para a individualidade que no seja por meio dela (...) Seja o que for que ele faa ou que lhe acontea, foi ele quem fez e isto ele; o indivduo s pode ter a conscincia da traduo simples de si, da noite da possibilidade para o dia da presena (...) o que vem a seu encontro na luz do dia o mesmo que jazia adormecido na noite517. A questo que fica , pois: pode a conscincia realizar tais pressuposies na experincia? Pode a conscincia realizar tal movimento espontneo de interpenetrao entre a universalidade da significao de seu agir e a particularidade de contextos na experincia? Este o problema abordado por Hegel na segunda parte do nosso texto, esta que vai do pargrafo 405 ao 409. Hegel parte do problema da confrontao entre conscincia e obra. De fato, a conscincia, devido a sua estrutura transcendente e negativa que procura ser reconhecida se retira de sua obra, ela mesma o espao sem determinidade que no se encontra preenchido por sua obra. Mas lembremos que a conscincia deve adotar uma posio negativa em relao obra porque esta aquilo que se confronta perpetuamente com outras conscincias, ou seja, a significao da obra resultado da interferncia de outras conscincias. Ela o que se constri na confrontao incessante entre conscincias. Da porque Hegel afirma:
A obra assim lanada para fora em um subsistir no qual a determinidade da natureza originria se retorna contra as outras naturezas determinadas, nas quais interfere e que interferem nela; e nesse movimento universal [a obra] se perde como momento evanescente (...) Em geral, a obra assim algo de efmero que se extingue pelo contrajogo de outras foras e de outros interesses e que
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Devido sua passagem ao campo social, a obra desaparece para dar lugar a um enlaamento em um feixe de interpretaes sempre contraditrias, polifnicas e estranhas ao prprio autor. O que a conscincia experimenta atravs de sua obra pois a: a inadequao do conceito e da realidade que em sua essncia reside519. Ou seja, o que a conscincia v na obra no a simples traduo da noite da possibilidade para o dia da presena, mas a formalizao da inadequao entre efetividade e conceito que a prpria essncia da conscincia [inadequao que vem desde o incio da Fenomenologia do Esprito atravs do descompasso entre designao e significao]. Blanchot, em um texto intitulado A literatura e o direito morte, procurou retirar deste trecho da Fenomenologia, uma teoria do heidegero-hegeliana do fenmeno literrio enquanto nadificao. em escrevendo, ele [o escritor] faz a experincia de si mesmo como um nada ao trabalho e, aps ter escrito, ele faz a experincia de sua obra como alguma coisa que desaparece. A obra desaparece, mas o fato de desaparecer sem mantm, aparece como o essencial, como o movimento que permite obra se realizar entrando no curso da histria, se realizar desaparecendo520. Neste sentido, escrever transforma-se no ato perptuo de auto-dissoluo. Atravs da palavra, o sujeito perpetua seu evanescimento e encontra sua realidade na figura de uma quase-presena que uma ainda-ausncia. De fato, Hegel afirma que o contedo da experincia de confrontao com a obra feita pela conscincia a obra evanescente (verschwindende Werk). Uma dissoluo que ganha a forma da prpria obra: O que se mantm no o desaparecimento, pois esta efetiva e vinculada obra, desaparecendo com ela. O negativo vai ao fundamento (zu Grunde) junto com o positivo, do qual a negao521. O que nos permite compreender o desparecimento do desaparecer do qual fala Hegel como a possibilidade de compreender a obra enquanto manifestao, enquanto apresentao do que s encontra forma nesta passagem incessante ao outro. Aqui, vale algumas consideraes precisas de Gerard Lebrun: O esprito tanto inscrio em uma figura finita quanto dissoluo incessante desta figurao, da porque a objetividade
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HEGEL, Fenomenologia, par. 405 HEGEL, Fenomenologia, par. 406 520 BLANCHOT, pag. 312. 521 HEGEL, Fenomenologia, par. 408
s se apresenta devido ao fato de desaparecer, a nica objetividade que convm Idia aquela que se suprime522
A Coisa mesma
neste contexto que Hegel introduz o conceito de Coisa mesma (Sache selbst). Ao apreender a negatividade que vem cena na obra, ao apreender a multiplicidade de perspectivas que se confrontam na obra e anulam a compreenso do agir como transparncia, a conscincia pode compreender tal negatividade e tal multiplicao de perspectivas como manifestao da Coisa mesma. Na Lgica, a Coisa mesma era definida como totalidade de determinaes, como o que se apresenta como incondicionado. Neste sentido, ela a realizao do conceito de objeto de um saber fundamentado de maneira incondicional e universal. Objeto que no se coloca como resultado do agir contingente de um indivduo, mas de uma conscincia-de-si universalmente reconhecida. Algo desta noo j est presente na primeira definio de Coisa mesma fornecida por Hegel:
A Coisa mesma s se ope a esses momentos [da obra] enquanto se supe que devem ser vlidos isoladamente, pois ela essencialmente sua unidade, como interpenetrao da efetividade e da individualidade. Sendo um agir e como agir, puro agir em geral tambm agir desse indivduo. E sendo esse agir como ainda lhe pertencendo, em oposio efetividade, tambm a passagem dessa determinidade oposta; e enfim, uma efetividade que est presente para a conscincia523.
Ou seja, a Coisa mesma o que supera os momentos evanescentes da obra, poi se encontra em todos os momentos e transcende todos eles. Por outro lado, ela o que realiza uma passagem no oposto formalizando a relao entre agir do indivduo e efetividade. No entanto, a primeira apropriao reflexiva da estrutura da Coisa mesma no nos leva em direo a este saber de si que , ao mesmo tempo, saber da efetividade, e que a meta da Fenomenologia. Ela nos leva a um certo jogo de contrrios e culto de paradoxos que ser melhor tematizado na seo Esprito ocasio do comentrio
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hegeliano do texto de Diderot, O sobrinho de Rameau. Aqui, Hegel chega a estabelecer uma diviso que ser melhor tematizada mais a frente: podemos tomar a Coisa mesma como sujeito (e que, na verdade, uma forma de desdobrar a proposio apreender a substncia como sujeito) ou como predicao universal que cabe a toda e qualquer coisa. neste ltimo sentido que ela aparece aqui. Para tanto, Hegel lembrar: a primeira figura da conscincia capaz de se relacionar com a Coisa mesma a conscincia honesta, ou seja, o honnte homme das conversaes e sales, versado na arte dos paradoxos e das inverses [Hegel estabelece uma linha reta entre o honnte homme e o cinismo do sobrinho de Rameau]. Ele sabe jogar com a multiplicidade de perspectivas atravs da arte da conversao brilhante. Com isto, ele dissolve toda determinidade da coisa (Ding). Devido a esta dissoluo:
Haja o que houver, a conscincia honesta vai sempre implementar e atingir a Coisa mesma, j que o predicado de todos esses momentos como este gnero universal (...) Para ela, a Coisa mesma tanto Coisa sua como absolutamente obra nenhuma; ou seja, o puro agir, ou a finalidade vazia, ou ainda, uma efetividade desativada. Faz sujeito desse predicado uma significao depois da outra e as esquece sucessivamente524.
isto que permite a Hegel afirmar que a verdade da honestidade dessa conscincia no ser to honesta quanto parece. Na verdade, se lembrarmos que Hegel pensava aqui na individualidade romntica e se lembrarmos do que ocorrer mais a frente, quando alguns temas aqui apresentados sero retomados, podemos dizer que esta conscincia que capaz de colocar a Coisa em uma determinidade e em seu contrrio , no fundo, uma figura da ironia. Comparemos, por exemplo duas afirmaes de Hegel:
Um dos momentos do contedo [da Coisa] trazido pela conscincia luz e apresentado aos outros; mas a conscincia, ao mesmo tempo, reflete fora dele sobre si mesma e o oposto tambm est presente nela, a conscincia o retm para si como o seu525.
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Sua atividade principal consiste em decompor e dissolver tudo o que quer tornarse objetivo e adquirir uma figura estvel e firme de efetividade526.
De fato, a ltima citao Hegel falando da ironia romntica. E da mesma forma que ele lembrar que, para a conscincia honesta, o que lhe interessa na Coisa sua prpria expresso, interesse expresso pelo fato de que: quando demonstra interesse pela obra, a si mesmo que nela se deleita, devemos compreender isto a partir de colocaes de Hegel sobre a posio da subjetividade na ironia. Lembremos ainda do que Hegel diz neste sentido: Para o artista contemporneo, o fasto de estar vinculado a uma qualidade particular e a um modo de exposio que s convm a esta matria algo de passado (...) Nenhum contedo, nenhuma forma no mais imediatamente idntica ao fervor ntimo, natureza, essncia substancial e sem conscincia do artista527. Por isto, toda forma pode ser invertida e conscincia pode sempre se colocar fora do momento do contedo que apresenta. Mas a conscincia deve compreender de outra maneira esta incondicionalidade da Coisa mesma. Ela deve passar da ironia dialtica. S uma verdadeira perspectiva dialtica pode mostrar como:
A Coisa mesma uma essncia cujo ser o agir do indivduo singular e de todos os indivduos e cujo agir imediatamente para outros, ou uma Coisa {como vimos na definio de eticidade] e que s Coisa como agir de todos e de cada um. a essncia que essncia de todas as essncias, a essncia espiritual528.
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HEGEL, Curso de esttica O humor subjetivo HEGEL, Curso de esttica 528 HEGEL, Fenomenologia, par. 418
Na aula de hoje, ser questo, principalmente, do conceito hegeliano de eticidade (Sittlichkeit). o comentrio de tal conceito que nos permitir finalizarmos a seo certeza e verdade da razo, assim como iniciarmos a seo Esprito. Na aula passada, havamos comeado o comentrio da subseo a individualidade que real em si e para si mesma insistindo como se tratava de um momento do texto que procurava realizar a pressuposio de que a conscincia se orientava a partir da reconciliao com um curso do mundo produzido pelo prprio agir das conscincias. Por isto, Hegel iniciava:
A conscincia-de-si agora captou o conceito de si, que antes era s o nosso a seu respeito: o conceito de ser, na certeza de si mesmo, toda a realidade. Daqui em diante tem por fim e essncia a interpenetrao espontnea [bewegende Durchdringung - o movimento espontneo de interpenetrao] do universal (dons e capacidades) e da individualidade529.
A fim de expor a dinmica desta experincia de reconciliao, Hegel sintetizava suas reflexes sobre a anatomia do ato em um momento central da Fenomenologia intitulado: O reino animal do esprito e a impostura ou A coisa mesma. Momento no qual questo de uma primeira reconciliao atravs de uma posio imperfeita de um horizonte comum de racionalidade pressupostos pelo agir social e, principalmente, pelo falar que procura realizar aspiraes de reconhecimento. Em um momento importante, Hegel centrava a economia do texto a partir da reflexo a respeito do problema da confrontao, ou ainda, do reconhecimento, entre conscincia e sua obra (que pode ser compreendida neste contexto como todo e qualquer resultado socialmente reconhecido do agir individual). De fato, a conscincia, devido a sua estrutura transcendente e negativa que procura ser reconhecida se retira de sua obra, ela mesma o espao sem determinidade que no se encontra preenchido por sua obra. Mas lembremos que a conscincia deve adotar uma posio negativa em relao obra porque esta aquilo que se confronta perpetuamente com outras conscincias, ou seja, a significao da obra resultado da interferncia de outras conscincias. Ela o que se constri na confrontao incessante entre conscincias. Da porque Hegel afirma:
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A obra assim lanada para fora em um subsistir no qual a determinidade da natureza originria se retorna contra as outras naturezas determinadas, nas quais interfere e que interferem nela; e nesse movimento universal [a obra] se perde como momento evanescente (...) Em geral, a obra assim algo de efmero que se extingue pelo contrajogo de outras foras e de outros interesses e que apresenta a realidade da individualidade mais como evanescente do que como implementada530.
Devido sua passagem ao campo social, a obra desaparece para dar lugar ao enlaamento em um feixe de interpretaes sempre contraditrias, polifnicas e estranhas ao prprio autor. O que a conscincia experimenta atravs de sua obra pois a: a inadequao do conceito e da realidade que em sua essncia reside531. Ou seja, o que a conscincia v na obra no a simples traduo da noite da possibilidade para o dia da presena, mas a formalizao da inadequao entre efetividade e conceito que a prpria essncia da conscincia. De fato, Hegel afirma que o contedo da experincia de confrontao com a obra feita pela conscincia a obra evanescente (verschwindende Werk). Uma dissoluo que ganha a forma da prpria obra: O que se mantm no o desaparecimento, pois esta efetiva e vinculada obra, desaparecendo com ela. O negativo vai ao fundamento (zu Grunde) junto com o positivo, do qual a negao532. O que nos permite compreender o desparecimento do desaparecer do qual fala Hegel como a possibilidade de compreender a obra enquanto manifestao, enquanto apresentao do que s encontra forma nesta passagem incessante ao outro. neste contexto que Hegel introduz o conceito de Coisa mesma (Sache selbst). Ao apreender a negatividade que vem cena na obra, ao apreender a multiplicidade de perspectivas que se confrontam na obra e anulam a compreenso do agir como transparncia, a conscincia pode compreender tal negatividade e tal multiplicao de perspectivas como manifestao da Coisa mesma. Pois a Coisa mesma seria o fundamento incondicionado do saber, fundamento que supera os momentos
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HEGEL, Fenomenologia, par. 405 HEGEL, Fenomenologia, par. 406 532 HEGEL, Fenomenologia, par. 408
evanescentes da obra, j que ela se encontra em todos os momentos, transcendendo todos eles. No entanto, vimos como a primeira apropriao reflexiva da estrutura da Coisa mesma no nos levava em direo a este saber de si que , ao mesmo tempo, saber da efetividade, e que a meta da Fenomenologia. Ela nos levava a um certo jogo de contrrios e culto de paradoxos que ser melhor tematizado na seo Esprito ocasio do comentrio hegeliano do texto de Diderot, O sobrinho de Rameau. exatamente por isto que Hegel lembrar: a primeira figura da conscincia capaz de se relacionar com a Coisa mesma a conscincia honesta, ou seja, o honnte homme das conversaes e sales, versado na arte dos paradoxos e das inverses. Um honnte homme que este capaz de jogar com a multiplicidade de perspectivas atravs da arte da conversao brilhante. desta forma que ele dissolve toda determinidade da coisa (Ding), o que no significa colocar um fundamento incondicionado para o saber. Lembrei para vocs como esta conscincia que capaz de colocar a Coisa em uma determinidade e em seu contrrio , no fundo, uma figura da ironia. Esta mesma ironia que, mais tarde Kierkegaard afirmar ser: um jogo infinitamente leve com o nada. Mas a conscincia deve compreender de outra maneira esta incondicionalidade da Coisa mesma. Ela deve passar da ironia dialtica. S uma verdadeira perspectiva dialtica pode mostrar como:
A Coisa mesma uma essncia cujo ser o agir do indivduo singular e de todos os indivduos e cujo agir imediatamente para outros, ou uma Coisa [como vimos na definio de eticidade] e que s Coisa como agir de todos e de cada um. a essncia que essncia de todas as essncias, a essncia espiritual533.
tendo tal questo em vista que Hegel encaminha a seo razo para seu final atravs de duas ltimas figuras da razo: a Razo legisladora e a Razo examinando as leis.
A primeira tentativa de realizao consciente do conceito de eticidade Da subseo O reino animal do esprito subseo A razo legisladora o que temos uma mudana de perspectiva que leva a conscincia a no compreender o fundamento
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incondicional da razo (a Coisa mesma) como perspectiva transcendente, mas como forma de prtica social capaz de englobar a multiplicidade de perspectivas da conscincia. Da porque Hegel pode anunciar: essa Coisa [mesma] na verdade a substncia tica e sua conscincia, conscincia tica534. A passagem possvel se compreendermos a interao social no mais como o campo conflitual de posio de perspectivas incomensurveis, mas como campo cuja dinmica conflitual desde sempre previamente organizada a partir de normas e critrios normativos de julgamento tacitamente partilhados. Tais normas e critrios tomam a forma de Lei, e neste sentido que devemos entender a afirmao de Hegel:
Enquanto a conscincia-de-si se sabe como momento do ser para-si dessa substncia [tica], ento exprime nela o Dasein da lei, isto de tal forma que a s razo sabe imediatamente o que justo e bom. To imediatamente ela o sabe, como imediatamente para ela tambm vlido, e imediatamente diz: isto justo e bom. E diz precisamente isto, pois so leis determinadas, a Coisa mesma implementada, cheia de contedo535.
Ou seja, enfim a conscincia cr fundar a razo, enquanto certeza da conscincia ser toda a realidade, em uma estrutura de prticas sociais de julgamento universalmente fundamentada e imediatamente vlida para a conscincia na orientao de suas aes, estrutura que Hegel chama simplesmente de eticidade. por se compreender imersa na eticidade [uma eticidade que pode ganhar a forma ideal de um reino dos fins] atravs da aceitao de leis determinadas que a conscincia tem um saber imediato e um dizer imediato sobre o justo e o bom. A conscincia aparece aqui como procura de realizao do conceito de eticidade em condies condizente com a auto-compreenso dos sujeitos na modernidade enquanto sujeitos capazes de reconhecer a validade de contedos normativos. No entanto, Hegel quer mostrar que a conscincia no pode realizar o conceito de eticidade se pensa-lo como conjunto partilhado de leis determinadas que poderiam ter fundamentao categrica, universal e incondicional. Da porque Hegel afirma que os exemplos de algumas dessas leis demonstraro que, se as tomarmos na forma de
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mximas da s razo, elas produziro o contrrio do que pareciam enunciar, o contrrio do que a conscincia visava. Hegel fornece aqui dois exemplos. O primeiro est na mxima Cada um deve falar a verdade. Embora ela parea a enunciao de um incondicional, na verdade, ela a posio de uma condio enunciada da seguinte forma Cada um deve falar a verdade segundo seu conhecimento e convico. Pois este dever (sollen) direcionado ao assentimento da subjetividade. No se trata de dizer: Cada um deve falar a verdade reconhecida pela comunidade, mas cada um deve falar a verdade que sabe e acredita. E se Hegel pode afirmar que: necessidade universal, o vlido em si que a mxima queria enunciar, se inverte antes em uma completa contingncia536 porque ele lembra que, na modernidade, no h como ignorar que a subjetividade, com seu sistema individual de crenas, interesses, razes para agir e contextos de interpretao de afirmaes com aspirao de universalidade, o que fornece designaes mltiplas para a significao da lei. Ou seja, a normatividade da lei partilhada intersubjetivamente no garante a racionalidade das prticas. nesta mesma via que Hegel comenta outra mxima com aspiraes universalizantes, Ama o prximo como a ti mesmo: Quer dizer: devo amar o prximo com inteligncia; um amor ininteligente talvez lhe faria mais dano que o dio. Mas como alcanar a perspectiva universalmente vlida que garanta a eficcia do meu amor? Hegel simplesmente lembra:
Mas o bem fazer essencial e inteligente , em sua figura mais rica e mais importante, o agir inteligente universal do Estado. Comparado com esse agir, o agir do indivduo como indivduo , em geral, algo to insignificante que quase no vale a pena falar dele537.
O que Hegel quer dizer aqui : s no interior de instituies capazes de realizar as aspiraes de reconhecimento da subjetividade que posso realizar esta forma de reconhecimento que o amor. Um modo de amor fora das estruturas de reconhecimento que instituies espiritualizadas so capazes de realizar no seria sequer compreendido como amor. Novamente, de nada adianta a normatividade da lei enderear-se capacidade de determinao da efetividade pela subjetividade.
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Qual pois a soluo que se apresenta conscincia? Uma soluo possvel abandonar a noo de eticidade como o que determinado enquanto campo de leis determinadas. Se a conscincia parece ser capaz de inverter toda determinao da normatividade da lei, ento ela pode ainda compreender a mxima apenas como universalidade formal e tautolgica. vlido como lei aquilo que no contradiz a si mesmo. Assim a conscincia tica deixa de ser razo legisladora e passa a comparar as leis a partir deste padro de medida. Ela aparece ento como Razo examinando as leis:
O universal j no a substncia enquanto ente e vlida, ou o justo em si e para si; mas o simples que compara um contedo somente consigo mesmo e o observa a fim de ver se uma tautologia538.
De fato, Hegel tem em mente a estratgia kantiana de determinao da validade transcendental da Lei moral atravs da posio de um imperativo que nada diz sobre o que deve ser feito, mas que diz apenas que o deve ser feito deve ser capazes de se submeter exigncias de universalidade [no sentido, de no contradio] e de incondicionalidade. Ns j vimos como, para Hegel, a filosofia kantiana representaria de maneira mais acabada as expectativas e estratgias de fundamentao da modernidade. Da porque nossso captulo termina desta forma. No entanto, no aqui que devemos desenvolver as crticas de Hegel estratgia kantiana de encaminhamento do problema da fundamentao da razo na dimenso prtica. Isto ser questo mais a frente, ao final da seo Esprito. Por enquanto, devemos apenas insistir que Hegel demonstra no acreditar que tal estratgia possa garantir a possibilidade de realizao de alguma forma de comunidade capaz de fundamentar critrios partilhados de racionalidade do agir. Hegel se serve neste momento de um exemplo: a tentativa de fundar a noo de direito a partir do direito propriedade. A propriedade a relao sob a qual a Coisa minha: eu coloco na Coisa minha vontade pessoal539. Mas qual a natureza desta posio do Eu na Coisa? Seria ela pura arbitrariedade e contingncia ou seria derivada do reconhecimento da Coisa ser objeto necessrio da necessidade? Se for o primeiro caso, no h como fundar o direito sobre a arbitrariedade, a fora e a contingncia. Se
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for o segundo caso, ento: a coisa deve aceder posse de acordo com a necessidade do singular.
Entretanto prover necessidade nica exclusivamente segundo a contingncia contradiz a natureza da essncia consciente a nica de que se fala aqui. Pois a essncia consciente deve representar-se sua necessidade sob a forma da universalidade540.
Ou seja, a necessidade do singular, para poder fundar a propriedade, deve ser reconhecida universalmente. Mas isto significa que a propriedade s minha na medida em que a coisa , tambm, um ser-para-outros. No a direito a propriedade que funda o direito e se valida de maneira tautolica, j que ele pressupe previamente a validade de estruturas sociais elementares de reconhecimento (que devem ser validadas). Da porque Hegel afirma:
O que possuo uma coisa (Ding), isto , um ser para outros em geral, totalmente universal e sem a determinidade de ser s para mim; que Eu a possua, contradiz sua coisidade universal541.
O resultado novamente negativo, j que, se o legislar e o examinar leis demonstraram no serem nada, isto significa que ambos so momentos precrios da conscincia tica. Isto no significa tambm abrir-se para alguma forma de legislar imediato, o que tem aqui o sentido de ser lei de uma conscincia singular com um contedo arbitrrio. O mximo que a conscincia tica do Idealismo chegar algo perto da frmula kantiana Raciocinai quanto quiseres e sobre o que quiseres, mas obedecei, ou seja, no uso pblico da razo, raciocinai; mas no uso privado, este que determina o agir social, devese seguir as leis que se pe nos costumes e obedecer. Pois:
As leis so. Se indago seu nascimento e as limito ao ponto de sua origem, j passei alm delas pois ento sou eu o universal e elas o condicionado e o limitado. Se devem legitimar-se a meus olhos, j pus em movimento seu ser emsi, inabalvel e as considero como algo que para mim talvez seja verdadeiro,
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talvez no seja. Ora, a disposio tica consiste precisamente em ater-se firmemente ao que justo e em abster-se de tudo o que possa mover e desviar o justo542.
Da porque no sem ironia que Hegel traz como exemplo o dito de Antgona diante de Creonte, dito no qual ela justifica sua ao de ir contra as leis da polis contrapondo uma lei ainda mais universal no-escrita e infalvel: No de hoje, nem de ontem, mas de sempre que vive esse direito e ningum sabe quando foi que surgiu e apareceu. Como veremos mais a frente, esta lei para alm da polis no representou o fundamento da eticidade mas, ao contrrio, o momento de conscincia do esgotamento da eticidade da polis grega. Tudo se passa assim como se Hegel lembrasse que no h como, no interior do quadro esboado na seo Razo e que diz respeito aos processos de racionalizao tais como eles so pensados na modernidade e tais como eles se encontram tematizados a partir do idealismo, realizar um conceito de eticidade. Para tanto, ser necessrio procurar uma alternativa para a compreenso do que determina as expectativas e aspiraes que fundam a modernidade enquanto projeto. Para tanto, ser necessrio tematizar o advento do esprito.
Esprito e polis grega Como j foi dito anteriormente, a seo Esprito foi, durante a redao da
Fenomenologia, paulatinamente transformando-se no centro de gravidade do livro. Uma transformao bem ilustrada pela prpria modificao do ttulo: de Cincia da experincia da conscincia para Fenomenologia do Esprito. De fato, podemos dizer que apenas aqui, nesta que a seo mais extensa do livro, que Hegel ir apresentar algo como um conceito positivo de razo capaz de realizar o projeto da conscincia ter a certeza de ser toda a realidade. Podemos dizer ainda que ela o cerne da especificidade do livro hegeliano, at porque ela no ser retomada em nenhuma outra verso da Fenomenologia (como, por exemplo, aquela que encontramos na Enciclopdia). Em seu lugar, Hegel tem a tendncia em colocar uma certa descrio sistmica das estruturas jurdico-normativas que nos levam compreenso especulativa das funes do Estado. Tudo isto nos deixa com a questo de saber o que est em jogo e qual a especificidade
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dos modos de desdobramentos da seo Esprito. H trs pontos que devem ser discutidos aqui: a funo da histria e da rememorao na auto-compreenso do Esprito, os problemas vinculados realizao do conceito de eticidade (enquanto cerne da prpria noo de esprito) e aquilo que poderamos chamar de fundamentos lgicoontolgicos para a realizao do conceito de esprito. Sobre o primeiro ponto, lembremos do que Hegel diz a respeito das figuras que sero apresentadas na seo Esprito:
So figuras porm que diferem das anteriores por serem os espritos reais, efetividades propriamente ditas e serem, em vez apenas de figuras da conscincia, figuras de um mundo543.
Ou seja, contrariamente s figuras anteriores, agora Hegel assume claramente que se tratam de figuras de um mundo, ou seja, figuras claramente articuladas a momentos scio-histricos. De fato, do ponto de vista histrico, podemos organizar o captulo a partir das trs partes que o compe (O Esprito verdadeiro: a eticidade; O Esprito alienado de si mesmo: a cultura; O Esprito certo de si mesmo: a moralidade). A primeira parte diz respeito, principalmente, ao mundo grego e possibilidade de sua recuperao enquanto alternativa para os impasses e cises da modernidade. Lembremos, neste sentido, como foi particularmente forte para a gerao de Hegel (o mesmo para o Hegel de juventude; ver, por exemplo, seu Sistema da eticidade), principalmente aps a crtica rousseauista inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir uma alternativa modernidade atravs recurso a formas de vida e modos de socializao prprios uma Grcia antiga idealizada e paradigmtica. Neste sentido, no estranho que a reflexo hegeliana sobre a eticidade comece a partir de uma discusso a respeito da polis grega, ou melhor, a respeito da maneira com que os modernos compreendiam o poder absoluto de unificao que imperava na polis grega. Pois a questo fundamental aqui: No est vinculada aos detalhes histricos da vida grega per se mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos de seus contemporneos [de Hegel] pode, em seus prprios termos, contar como alternativa genuna para a vida moderna544. Da porque Heidegger
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ir compreender claramente que, para Hegel: A filosofia dos gregos [e suas formas de vida] a instncia de um ainda no. Ela no ainda a consumao mas, contudo, unicamente concebida do ponto de vista desta consumao que se definiu como o sistema do idealismo especulativo545. De fato, a maneira com que Hegel caracteriza os gregos j bastante sintomtica: Os gregos tinham a unidade substancial da natureza e do esprito como fundamento e essncia; e tendo e sabendo isto como objeto, no chegaram a desaparecer nesta unidade, mas permaneceram (gegangen) nela sem carem no extremo da subjetividade formal [dos modernos] formando assim uma unidade consigo mesmos; como sujeitos livres que tm por essncia, contedo e substrato esta primeira unidade; como sujeitos livre cujo objeto a beleza546. Vemos como as formas gregas de vida realizariam, assim, esta noo de vida tica de um povo expressa da seguinte forma:
O esprito substncia e a essncia universal, igual a si mesma e permanente: o inabalvel e irredutvel fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como tambm o em-si pensado de toda conscincia-de-si547.
Mas, como veremos, Hegel insistir que tal liberdade do sujeito dever aparecer de maneira trgica no interior da polis grega. Ela se mostrar como ainda no realizada e esta ser a funo do comentrio de Antgona. Desta forma, a primeira parte do captulo se organizar em dois grandes blocos: o mundo tico (onde questo da exposio do ideal de eticidade da polis grega) e a ao tica (onde questo do advento trgico da impossibilidade de realizao de tal conceito devido s exigncias de reconhecimento do que no se coloca integralmente como determinado pela lei da polis). O terceiro movimento, O estado de direito, um desdobramento das conseqncias da desagregao do ideal grego de eticidade. A segunda parte da seo, O Esprito alienado de si mesma: a cultura, de um longo movimento histrico que vai do feudalismo ao terror revolucionrio marcada por uma certa conscincia do dilaceramento (devido ao esvaziamento substancial da eticidade) e a tentativa revolucionria de sua superao:
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HEIDEGGER, Hegel e os gregos HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia Introduo filosofia grega547 HEGEL, Fenomenologia, par. 439
O mundo tem aqui a determinao de ser algo exterior, o negativo da conscincia-de-si (...) Seu Dasein [do mundo] a obra da conscincia-de-si, mas igualmente uma efetividade imediatamente presente e estranha a ela: tem um ser peculiar e a conscincia de si ali no se reconhece548. Hegel esboa um trajeto, presente em toda subseo O mundo do esprito alienado de si, que vai assim da anlise da tica aristocrtica da honra, das relaes da aristocracia com a monarquia absoluta a fim de demonstrar como a modernidade adquire a conscincia do absoluto dilaceramento da conscincia-de-si e da absoluta runa da eticidade nas relaes sociais de lisonja e cortesia que marcaram a vida aristocrtica pr-revoluo francesa, de onde se segue a importncia, dada por Hegel, ao comentrio do texto de Diderot: O sobrinho de Rameau. As duas ltimas subsees desta parte, O iluminismo e A liberdade absoluta e o terror visam dar conta da tentativa e desdobramento do esforo revolucionrio moderno de recuperao de uma razo tica, razo capaz de fundamentar-se no interior de prticas sociais auto-reflexivas que orientam o julgamento e conduta da universalidade de sujeitos. Hegel se esfora aqui em demonstrar como o projeto revolucionrio era ainda tributrio das dicotomias prprias ao entendimento, dependncia mais clara na oposio que perpassa o iluminismo e a f religiosa. Ns vimos, desde o incio da discusso a respeito do trajeto fenomenolgico da conscincia, como Hegel insistia que a configurao do campo fenomenolgico de experincia era dependente de consideraes lgicas a respeito de princpios como identidade, oposio, relao e diferena. Digamos que, para Hegel, h uma base lgica para a configurao do campo fenomenolgico e para a experincia que o sujeito faz de si mesmo e de sua estrutura de auto-reflexo. Esta base lgica, como veremos, tem, na verdade, um peso ontolgico (da porque a Cincia da lgica hegeliana , de fato, um tratado de ontologia). O campo fenomenolgico assim o campo no qual se manifesta confuses ontolgicas e, como veremos, a oposio entre f e iluminismo um belo exemplo neste sentido. isto que permite a Hegel afirmar: o prprio iluminismo, que recorda f o posto de seus momentos separados, igualmente pouco iluminado sobre si mesmo549. Como veremos, o terror uma conseqncia inevitvel de uma confuso no interior das pressuposies lgicas do iluminismo.
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Por fim, a terceira parte de nossa seo, O esprito certo de si mesmo: a moralidade, Hegel tenta colocar em marcha a idia de que as expectativas e aspiraes de liberdade, de auto-determinao subjetivas e de auto-certificao da modernidade depositadas na revoluo francesa seriam realizadas pelo idealismo alemo. Pois a guinada em direo moralidade no significa simplesmente um recolhimento em direo interioridade da subjetividade enquanto espao possvel de reforma moral. Trata-se, na verdade, de insistir que, atravs da problematizao da moralidade, o idealismo alemo abriu as portas para a compreenso de que o fundamento das prticas e processos de racionalizao que queiram realizar as aspiraes modernas est na conscincia-de-si, isto no sentido de que apenas uma problematizao do conceito de conscincia-de-si pode fornecer a reformulao dos princpios lgicos que guiam a ao dos sujeitos na realizao de instituies e prticas sociais altura da modernidade. A guinada em direo moralidade permitir Hegel demonstrar a ausncia de vnculos entre subejtividade e princpio de identidade, abrindo, com isto, caminho para a realizao de um conceito de eticidade capaz de dar conta das aspiraes de reconhecimento de sujeitos modernos. De fato, como veremos, e este o segundo ponto que propus abordar (o que diz respeito aos problemas do conceito de eticidade), uma rpida viso panormica da seo Esprito nos permite mostrar que Hegel privilegia, na verdade, momentos histricos em que a subjetividade irrompe demonstrando uma no-identidade que insiste para alm das demandas de reconhecimento que prticas sociais podem dar conta. Antgona, o sobrinho do Rameau, os impasses do terror: todos tm em comum o fato de serem inflexes histricas da conscincia de uma demanda que permanece sem lugar, recalcadas no interior das figuras institucionais de certos momentos scio-histricos. Mas esta a verdadeira histria do Esprito. A histria da paulatina conscincia da noidentidade da subjetividade. Da porque Lebrun lembrar, em uma formulao bem sucedida: Se somos assegurados que o progresso no repetitivo, mas explicitador, porque o Esprito no se produz em produzindo suas formaes finitas mas, ao contrrio, em recusando-as uma aps outra. No a potncias dos imprios, mas suas morte que d Histria razo (...) o nico tipo de devir que esposa o movimento do Conceito no tem nada em comum com a transio indiferente de uma forma outra:
ele s pode ser um devir que sanciona a instabilidade da figura que vm de ser transgredida, um devir expressamente nadificador550. Ou seja, se o Esprito esta realizao de um campo de prticas e instituies sociais capazes de responder a demandas de reconhecimento da subjetividade, ele s pode ser tematizado atravs da rememorao histrica deste movimento contnuo de dissoluo de todo campo finito de prticas e instituies. A histria dessa dissoluo talvez o verdadeiro telos da historicidade hegeliana. Pois o Esprito a conscincia de que a conscincia-de-si s poder ser conscincia-de-si universal quando este devir expressamente nadificador for capaz de tomar a forma de prticas sociais reflexivamente fundamentadas. Esta , segundo Hegel, a histria da modernidade enquanto projeto. Veremos a partir de agora, como Hegel imagina que ela poder ser realizada.
A aula de hoje ser dedicada ao comentrio da subseo O mundo tico: a lei humana e a lei divina, o homem e a mulher. Como ele, ns comeamos a apreender, de maneira mais sistemtica, a maneira com que a Fenomenologia do Esprito apresenta o conceito de eticidade ou razo tica: base para a articulao da noo de Esprito. Como sabemos, a primeira parte de nossa seo, este que tem por ttulo: O Esprito verdadeiro: a eticidade diz respeito, principalmente, reflexo filosfica sobre o mundo grego e sobre a possibilidade de sua recuperao enquanto alternativa para os impasses e cises da modernidade. Vimos como, neste sentido, como foi particularmente forte para a gerao de Hegel (o mesmo para o Hegel de juventude; ver, por exemplo, seu Sistema da eticidade), principalmente aps a crtica rousseauista inautenticidade das formas modernas de vida, a tentativa de construir uma alternativa modernidade atravs recurso a formas de vida e modos de socializao prprios uma Grcia antiga idealizada e paradigmtica. Neste sentido, no estranho que a reflexo hegeliana sobre a eticidade comece a partir de uma discusso a respeito da polis grega,
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ou melhor, a respeito da maneira com que os modernos compreendiam o poder absoluto de unificao que imperava na polis grega. Pois a questo fundamental aqui: No est vinculada aos detalhes histricos da vida grega per se mas diz respeito a saber se a vida grega idealizada por muitos de seus contemporneos [de Hegel] pode, em seus prprios termos, contar como alternativa genuna para a vida moderna551. Da porque Heidegger ir compreender claramente que, para Hegel: A filosofia dos gregos [e suas formas de vida] a instncia de um ainda no. Ela no ainda a consumao mas, contudo, unicamente concebida do ponto de vista desta consumao que se definiu como o sistema do idealismo especulativo552. De fato, a maneira com que Hegel caracterizara os gregos j era bastante sintomtica:
Os gregos tinham a unidade substancial da natureza e do esprito como fundamento e essncia; e tendo e sabendo isto como objeto, no chegaram a desaparecer nesta unidade, mas permaneceram (gegangen) nela sem carem no extremo da subjetividade formal [dos modernos] formando assim uma unidade consigo mesmos; como sujeitos livres que tm por essncia, contedo e substrato esta primeira unidade; como sujeitos livres cujo objeto a beleza553.
Vemos como as formas gregas de vida pareciam poder realizar, assim, esta noo de vida tica de um povo expressa da seguinte forma:
O esprito substncia e a essncia universal, igual a si mesma e permanente: o inabalvel e irredutvel fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como tambm o em-si pensado de toda conscincia-de-si554.
Mas Hegel insistir que tal liberdade do sujeito s poder aparecer de maneira trgica no interior da polis grega pois esta liberdade, quando se manifesta, j sinal da runa da eticidade grega. Esta ser a funo do comentrio de Antgona no interior de nosso texto (mas Hegel poderia tambm ter lembrado de sua leitura do julgamento de Scrates). Desta forma, a primeira parte do captulo se organizar em dois grandes blocos: o mundo tico (onde questo da exposio do ideal de eticidade da polis grega) e a ao
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PINKARD, The sociality of reason, p. 137 HEIDEGGER, Hegel e os gregos 553 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia Introduo filosofia grega554 HEGEL, Fenomenologia, par. 439
tica (onde questo do advento trgico da impossibilidade de realizao de tal conceito devido s exigncias de reconhecimento do que no se coloca integralmente como determinado pela lei da polis). O terceiro movimento, O estado de direito, um desdobramento das conseqncias da desagregao do ideal grego de eticidade.
Hegel e os gregos
Antes de iniciarmos o comentrio de nosso trecho, vale a pena expor algumas consideraes gerais sobre a leitura que Hegel faz da polis grega. Conhecemos afirmaes como, por exemplo:
Na verdade, a liberdade do indivduo existe na Grcia, mas ainda no atingiu a concepo abstrata de que o sujeito pura e simplesmente depende do substancial do Estado555.
J vimos como Heidegger critica Hegel por compreender a Grcia como um ainda no, como o que ainda no colocou os ps sobre a terra da filosofia, ou seja, a conscincia-de-si na qual somente o objeto representado pode ser como tal556. Ou seja, Hegel estaria afirmando, entre outras coisas, que a eticidade grega no podia suportar exigncias de reconhecimento de sujeitos compreendidos como conscincias-de-si. Da porque ele afirmaria que a moralidade, enquanto subjetividade da convico e da inteno ainda no estaria presente. A lei vigora por ser a lei ancorada nos costumes e no hbito. Ela no o que se submete ao exame de uma conscincia que s pode aceitar por vlido aquilo cuja causa se submete ao seu pensar. Da porque Hegel insiste que a deciso na polis era normalmente vinculada compreenso do que enunciava os orculos. Quando a deciso passa a ser fruto da discusso onde particulares procuram se impor no interior da polis animados pela conscincia da contradio entre seu saber sobre a eticidade da sua ao e o que tico em si e para si557, ento a runa j estava espreita. Mas a citao acima de Hegel interessante por dizer que a impossibilidade do mundo social grego dar conta das aspiraes de reconhecimento da subjetividade que
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HEGEL, Lies sobre a filosofia da histria, p. 210 HEIDEGGER, Hegel e seu conceito de experincia 557 HEGEL, Fenomenologia, par. 445
nega a naturalidade dos costumes e hbitos est vinculada a ausncia de instituies pensadas sob a forma daquilo que Hegel chama de Estado. Em vrios momentos, Hegel afirma: os gregos no conheciam a abstrao do Estado, apenas essa Atenas, essa Esparta, essa Tebas. Na verdade, este dficit de abstrao que aparece na eticidade grega, tende, estranhamente, a apontar para uma certa defesa do formalismo do sujeito moderno. Isto talvez possa ser explicado se lembrarmos que tal dficit de abstrao vincula-se, entre outros, ao fato do fundamento da liberdade do esprito grego estar condicionado em relao essencial com um estmulo da natureza. O natural no pensamento grego no negado, mas remodelado (umbilden) para a expresso do sujeito. Poderamos mesmo dizer que os gregos desconhecem o trabalho da angstia; na verdade, eles conhecem apenas: a alegre autoconfiana perante a naturalidade sensvel558 (Das frohe Selbstgefhl gegen die sinnliche Natrlichkeit). O fato da naturalidade do sensvel no ser negada com a fora de uma universalidade que pe, inicialmente atravs da abstrao, a no-identidade do sujeito com toda determinao particular da efetividade (o que leva o sensvel a ser posto enquanto pura contingncia que resiste ao conceito do pensar) nos explica esta afirmao-chave de Hegel: Na beleza grega, o sensvel signo (Zeichen), expresso, invlucro (Hlle) atravs do qual o esprito se manifesta559. Afirmar que o sensvel signo que pode aparecer, ao mesmo tempo, como expresso e invlucro, poderia parecer contraditrio se no soubssemos j como Hegel compreende os impasses da representao. Representar algo presentificar uma ausncia, expressar a Coisa atravs de um elemento arbitrrio, um invlucro. A confiana grega diante da naturalidade sensvel confiana diante do que Foucault um dia chamar de assinatura do mundo, marcas visveis que Deus disps sobre a superfcie da Terra para nos fazer conhecer os segredos interiores560. Mas, e neste ponto que Hegel insiste, se o sensvel marca que indica uma presena para alm de si mesmo porque o signo impe uma noo de presena como visibilidade. A representao apenas a visibilidade que sempre difere. Da porque ganha importncia uma afirmao como esta de Lebrun a respeito da leitura hegeliana dos gregos: O deus grego pode at se tornar familiar a nossos olhos, mas jamais viver uma vida humana
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HEGEL, Lies sobre a filosofia da histria, p. 204 HEGEL, idem, p. 201 560 FOUCAULT, Ls mots et les choses, p. 48
[como o deus cristo]561, ou seja, jamais se apresentar como o que se encarna em um sensvel que no expresso, mas que pura contingncia que deve se auto-anular. Isto nos permite compreender melhor a defesa que Hegel faz da concepo abstrata do sujeito do Estado moderno contra o enraizamento substancial dos indivduos na determinao regional da polis grega. A estaticidade dos costumes e hbitos desta polis determinada, costumes e hbitos que expressariam a positividade da substncia tica, figura de um pensar que compreende a relao entre leis e substncia da mesma forma que compreende a relao entre sensvel e sentido, ou seja, como signo e representao. Neste contexto, o sujeito, com suas exigncias universais de reconhecimento para alm de todo conjunto determinado e contextual de leis e costumes, o que guarda a fora para a criao de instituies no mais submetidas a um pensamento da representao. E isto que o conceito moderno de Estado procuraria realizar e que a vida tica da polis grega no tem como dar conta. Da porque o primeiro advento da subjetividade no interior da polis deve aparecer como princpio de interverso das leis atravs dos sofistas. O problema maior que uma teoria desta natureza deve resolver , pois, como pensar instituies que no se dissolvam, j que: os Estados, enquanto instncias particulares e finitas, so necessariamente inadequados ao movimento da Histria [animada pela conscincia paulatina das do que momentos evanescentes562. problema do interior do nosso texto. exigncias de reconhecimento da subjetividade], pois do ponto de vista da Histria-do-mundo, os estados no so mais Veremos como Hegel tentar resolver este
A partir destas consideraes gerais, podemos passar a maneira com que Hegel caracteriza a constituio do mundo grego como alternativa para as dicotomias da modernidade e de suas formas de vida. Servindo-se do esquema de aparecimento da diversidade tal como vimos na passagem da certeza sensvel percepo, Hegel inicia:
Assim com a conscincia ser sensvel abstrato passa percepo, assim tambm a certeza imediata do ser tico real; e como, para a percepo sensvel, o ser
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simples se torna uma coisa de propriedades mltiplas, assim para a percepo tica, o caso do agir uma efetividade de mltiplas relaes ticas (vielen sittlichen Beziehungen)563.
Ou seja, o julgamento a respeito do agir no julgamento simples (que no deve atualizar contextos para determinar seu sentido), ele julgamento que se defronta sempre como uma ao portadora de mltiplas relaes. Esta diversidade de circunstncias tende a se submeter a uma oposio entre aquilo que Hegel chama, inicialmente, de lei da singularidade e lei da universalidade. Tal dualidade pode se impor porque o esprito tico comunidade (Gemeiwesen) que, ao mesmo tempo, emerge no agir de cada indivduo:
O esprito a comunidade que para ns, ao entrarmos na figurao prtica da razo em geral, era a essncia absoluta, e que aqui emergiu em sua verdade para si mesmo, como essncia tica consciente, e como essncia para a conscincia, que ns temos por objeto (...) Como substncia efetiva, o esprito um povo; como conscincia efetiva, cidado do povo564. Assim, na forma da universalidade, a lei lei conhecida e costume corrente, ou seja, o que se encontra l, diante da conscincia como o que se enraza na vida de um povo. No forma da singularidade, a lei certeza efetiva de si mesmo no indivduo em geral, ou seja, a certificao que tem o indivduo de que a lei que a comunidade segue justa. No entanto: h uma outra potncia que se contrape (gegenber) a essa potncia tica e abertura (Offenbarkeit): a lei divina565. Assim, a eticidade dos costumes que legitima a ao do Estado encontra duas contraposies potenciais: a particularidade dos interesses individuais e a universalidade mais ampla do que incondicional (j que divino). a isto que Hegel alude ao afirmar:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 446 HEGEL, Fenomenologia, par. 447 565 HEGEL, Fenomenologia, par. 449
Como universalidade efetiva, o pode do Estado uma fora voltada contra o ser para-si individual, e como efetividade em geral, encontra ainda um outro que ele na essncia interior566.
Esta dupla contraposio tende a convergir, j que o ser para-si individual e a essncia interior incondicional se encontram vinculados no seio da famlia. A questo central ser pois: como a lei da famlia e a lei da polis podem sustentar, conjuntamente e sem cises, esta eticidade que permite indivduos orientarem julgamentos e aes. Hegel parte lembrando que no se trata aqui de alguma forma de contraposio entre natureza e sociedade, j que: a famlia no est no interior de sua essncia tica enquanto ela o comportamento da natureza de seus membros, pois essa relao da natureza tambm um esprito567. Isto no impede Hegel de insistir na conscincia que os gregos tinham da fora disruptiva do que continua vinculado famlia:
A famlia, como o conceito desprovido de conscincia e ainda interior da efetividade consciente-de-si, como o elemento da efetividade do povo, se contrape ao prprio povo; como ser tico imediato se contrape eticidade que se forma e se sustm mediante o trabalho em prol do universal; os Penates se contrapem ao esprito universal568.
Da porque o relacionamento tico dos membros da famlia j deve ser algo voltado vida tica da comunidade. Hegel descarta que tal relacionamento tico seja o relacionamento da sensibilidade ou o exclusivismo da relao de amor. Antes, ele o: pr o Singular para famlia, em subjugar (unterjochen) sua naturalidade e singularidade e em educ-lo para a virtude, para viver no universal e para o universal569. Um viver no universal que no simples fruto da opresso em relao s aspiraes da particularidade, mas formao em direo a uma liberdade que libertao das iluses da imediaticidade. Pois enquanto no cidado e pertence famlia, o Singular uma sombra inefetiva sem contornos. No entanto, no deixa de ser sintomtico que Hegel faa uma juno inesperada ao dizer que esta formao do Singular para viver no universal se realize de maneira
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HEGEL, Fenomenologia, par. 449 HEGEL, idem, par. 451 568 HEGEL, idem, par. 450 569 HEGEL, idem, par. 451
mais bem acabada no rito fnebre, no cuidado em relao ao morto (e atravs da relao ao morte que nasce a conscincia da lei divina). Mas qual pode ser a relao entre a formao para o universal e o cuidado em relao ao morto? Hegel no deixa de lembrar aqui que o morto :
aquele que da longa srie de seu ser-ai disperso, se recolheu em uma figurao acabada [ a figura venerada pela memria] e se elevou da inquietao da vida contingente quietude da universalidade570.
Isto a fim de poder dizer que a morte, com sua negatividade absoluta, o trabalho supremo que o indivduo como tal empreende para a comunidade. No entanto, e este um momento essencial do texto, h ao menos duas mortes. A primeira morte esta negatividade natural que atinge o indivduo como essencialmente singular, pois:
Enquanto o indivduo essencialmente singular, acidental que sua morte estivesse imediatamente conexa com seu trabalho pelo universal e fosse seu resultado (...) nesse movimento, a conscincia no retorna a si mesma, nem se torna conscincia-de-si (...) a morte o lado da ciso em que o ser para-si alcanado um Outro que o ente que iniciou o movimento [j vimos este movimento na Dialtica do senhor e do escravo].571
Assim, o orgnico reconduzido ao inorgnico. Mas h uma segunda morte, uma morte simblica atravs da qual o ser morto retorna a si, elevando-se condio de individualidade universal [no sentido de universalmente reconhecida] e conscincia-desi universal. A morte significa, entre outras coisas, dissociao entre o ser e o agir. No podendo mais agir, o morto est abandonado a toda individualidade irracional e s foras da matria abstrata, ele puro ser para Outro a merc da decomposio. Mas, atravs do rito fnebre, a famlia age para conservar o que estava negado, guardando a identidade do que est morto para fora do ciclo de decomposio. Desta forma, o agir do que est morto permanece no agir da famlia.
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Este permanecer de um agir que vale incondicionalmente e que deve ser conservado incondicionalmente a essncia da lei divina. Esta , por sua vez, a potncia do puro Universal abstrato que, como fundamento (Grund) da individualidade, reconduz a individualidade pura abstrao572. Isto significa que a lei divina a primeira posio da individualidade como incondicionalidade ou [por enquanto] abstrao. No entanto, Hegel no deixa de lembrar que este o fundamento da prpria individualidade e que, importante salientar, no poder ser posto no interior da lei da polis sem que tal posio no nos leve, no limite, a um impasse no interior da prpria vida tica.
O governo e a famlia
Dito isto, Hegel retorna as consideraes sobre a lei da polis lembrando que a comunidade tem sua vitalidade efetiva no governo (Regierung): O esprito tem a sua realidade ou seu Dasein e a famlia elemento dessa realidade573. Enquanto unidade, o governo permite, comunidade, em sistemas independentes de interesse e propriedade (corporaes, associaes autnomas etc.). Mas, de uma maneira absolutamente particular, este governo no concebido a partir de uma sociedade nascida da necessidade e visando a conservao de seus membros. Este governo no repousa sobre uma promessa de paz e de repouso. Ao contrrio, ele realiza a negao absoluta que consiste em viver para o universal:
Para no deixar que os indivduos se enrazem e enduream nesse isolar-se e que, desta forma, o todo se desagregue e o esprito se evapore, o governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu ntimo pelas guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito independncia. Quanto aos indivduos, que afundados nessa rotina e direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolvel e segurana da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impe, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissoluo da forma da subsistncia, o esprito impede o soobrar do Dasein tico no natural, preserva o Si de sua conscincia e o eleva liberdade e fora. A essncia
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negativa se mostra como a potncia peculiar da comunidade e como a fora de sua autoconservao574.
Desta forma, vemos como a temtica do conflito como fundador do vnculo social (tal como vimos na dialtica do senhor e do escravo) aparece como fundamento para a ao do Estado. Se o governo no repousa sobre uma promessa de paz porque o processo de formao, que se iniciou na famlia, deve animar os processos de interao social enquanto meios para a realizao da subjetividade como universalidade desprovida de toda aderncia ao Dasein natural, enquanto o que se realiza atravs de um trabalho que confrontao com a fragilizao das imagens estticas do mundo. Notemos que esta guerra da qual fala Hegel no a exploso de dio resultante da leso da propriedade particular ou do dano a mim enquanto indivduo particular. A guerra campo de sacrifcio do singular ao universal enquanto risco aceito575. Se na Grcia, tal guerra era, de fato, movimento presente na vida tica do povo, j que o fazer a guerra era condio exigida de todo cidado, no deixa de ser verdade que Hegel concebe aqui o estado como o que dissolve a segurana e a fixidez das determinaes finitas. A guerra o nome do processo que demonstra como a aniquilao do finito modo de manifestao de sua essncia. Neste sentido, Hegel bastante claro, h:
um momento tico da guerra, que no deve ser considerada como um mal absoluto e como uma contingncia simplesmente exterior (...) necessrio que o finito, a possesso e a vida sejam postos como contingentes, pois este o conceito do finito (...) A guerra, enquanto situao na qual levamos a srio a vaidade dos bens e das coisas deste mundo assim o momento no qual a idealidade do particular recebe seu direito e advm efetividade576. Isto para enfim dizer: A liberdade morte do medo de morrer. Tais colocaes sobre a guerra dizem muito a respeito da configurao necessria de instituies e prticas sociais que queiram estar altura das exigncias da modernidade. O que importante nesta reflexo sobre a guerra a compreenso de que instituies que queiram ser capazes de reconhecer sujeitos no substanciais devem
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HEGEL, idem, p. 455 SOUCHE-DAGUES, Libert et ngativit dans la pense politique de Hegel, p. 26 576 HEGEL, Princpios da filosofia do direito,.par. 324
fundar-se em prticas sociais pensadas a partir de um trabalho que reconhecimento da soberania de uma figura da negao cuja manifestao fenomenolgica pode ser uma certa morte simblica. Trata-se da figura de instituies sociais que no tenham mais por funo identificar sujeitos em identidades e determinaes fixas. Mas continuemos no texto a fim de ver como Hegel compreende o impasse no qual a vida tica grega ir enredar-se, o que ser til para a compreenso da verdadeira forma de instituies e prticas sociais capazes de realizar as expectativas de reconhecimento que Hegel indica modernidade. A partir do pargrafo 456, Hegel descreve a natureza dos relacionamentos no interior da famlia: maneira de estruturar o modo de articulao entre lei divina e lei humana. Trs regimes de relao so privilegiados: a relao marido e mulher, pais e filhos, alm da relao entre irmo e irm. Hegel logo descarta a centralidade da relao entre marido e mulher, j que ela :
O imediato reconhecer-se de uma conscincia na outra e o conhecer do mtuo ser reconhecido. Esse reconhecer-se, por ser o natural e no o tico, apenas a representao e a imagem do esprito, e no o prprio esprito efetivo577.
Ou seja, utilizando-se da idia do amor como posio imediata do reconhecer-se em uma outra conscincia, Hegel afirma que tal reconhecimento est ainda marcado por algo da ordem da naturalidade (no caso, a reproduo), embora Hegel admita que o casamento uma ao tica da liberdade e no uma ligao da naturalidade imediata e de seus impulsos578 que nada tem a ver com uma perspectiva contratualista do tipo kantiano. Por outro lado, j vimos vrios momentos em que Hegel desqualifica o amor como modelo para a orientao de operaes de reconhecimento. Hegel ver ainda, na relao pais e filhos, a efetividade da representao do esprito posta na relao entre marido e mulher. Pois:
A piedade dos pais para com seus filhos est justamente afetada por essa emoo de ver o seu ser para-si advir nos filhos sem poder recuper-lo; seno que permanece uma efetividade alheia (fremde)579.
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HEGEL, idem, par. 456 HEGEL, Princpios da filosofia do direito, par. 168 579 HEGEL, Fenomenologia, par. 456
Esta relao ainda marcada por algo de uma relao natural. Apenas a relao entre irm e irmo seria distinta, pois eles no se desejam um ao outro de maneira sensual, relao desprovida de desejo. Na verdade, Hegel utiliza tal relao para falar da natureza tica da diferena sexual, da porque o texto encaminha-se para uma reflexo a respeito do que significa as posies feminina e masculina. De fato, a maneira com que Hegel compreende a natureza tica da diferena sexual no deixa de ter sua peculiarridade:
A diferena da eticidade da mulher em relao do homem consiste, justamente, em que a mulher, em sua determinao para a singularidade o no seu prazer, permanece imediatamente universal e alheia singularidade do desejo. No homem, ao contrrio, esses dois lados se separam um do outro e enquanto ele como cidado possui a fora consciente-de-si da universalidade, adquire com isso o direito ao desejo [no interior da famlia]580. O que Hegel diz que o feminino, enquanto puro pressentimento da essncia tica fica vinculado universalidade abstrata da lei divina da famlia. Da, Hegel retira a concluso de que as mulheres estariam menos vinculadas determinao particular do objeto do desejo, como se eles pudessem trocar mais facilmente de objeto, que aparece como algo contingente, que pode ser substitudo por um outro. No lar da eticidade, aquilo em que se baseiam as relaes da mulher no esse marido, nem este filho, mas um marido, filhos em geral581. O feminino como indiferena em relao singularidade. J o homem seria aquele que abandonaria a eticidade imediata e elementar da famlia
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Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentrio da primeira parte da seo Esprito, ou seja, esta dedicada posio do conceito de eticidade no interior da polis grega. Vimos, desde o incio deste mdulo, como Hegel partia da tentativa de seus contemporneos (e dele mesmo na juventude) em construir uma alternativa modernidade atravs do recurso a formas de vida e modos de socializao prprios uma Grcia antiga idealizada e paradigmtica. No entanto, o poder absoluto de unificao em operao na polis grega ser posto como o que estava fadado a dissolverse: maneira de mostrar como modos de socializao prprios Grcia antiga no poderiam fornecer alternativas aos impasses e s dissociaes da modernidade. Neste sentido, partimos do diagnstico que estava presente em afirmaes como:
Na verdade, a liberdade do indivduo existe na Grcia, mas ainda no atingiu a concepo abstrata de que o sujeito pura e simplesmente depende do substancial do Estado582. Heidegger criticara Hegel por compreender a Grcia como um ainda no, como o que ainda no colocou os ps sobre a terra da filosofia, ou seja, a conscincia de-si na qual somente o objeto representado pode ser como tal583. Ou seja, Hegel estaria afirmando, entre outras coisas, que a eticidade grega no podia suportar exigncias de reconhecimento de sujeitos compreendidos como conscincias-de-si. Da porque ele afirmaria que a moralidade, enquanto subjetividade da convico e da inteno ainda no estaria presente. A lei vigora por ser a lei ancorada nos costumes e no hbito. Ela no o que se submete ao exame de uma conscincia que s pode aceitar por vlido aquilo cuja causa se submete ao seu pensar. Da porque Hegel insiste que a deciso na polis era normalmente vinculada compreenso do que enunciava os orculos. Quando a deciso passa a ser fruto da discusso onde particulares procuram se impor no interior da polis animados pela conscincia da contradio entre seu saber sobre a eticidade da sua ao e o que tico em si e para si584, ento a runa j estava espreita.
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HEGEL, Lies sobre a filosofia da histria, p. 210 HEIDEGGER, Hegel e seu conceito de experincia 584 HEGEL, Fenomenologia, par. 445
Na verdade, este dficit de abstrao que aparece na compreenso do enraizamento substancial dos indivduos na determinao regional da polis grega, tende, estranhamente, a apontar para uma certa defesa do formalismo do sujeito moderno. Isto talvez possa ser explicado se lembrarmos que tal dficit de abstrao vincula-se, entre outros, ao fato do fundamento da liberdade do esprito grego estar condicionado em relao essencial com um estmulo da natureza. O natural no pensamento grego no negado, mas remodelado (umbilden) para a expresso do sujeito. Poderamos mesmo dizer que os gregos desconhecem o trabalho da angstia; na verdade, eles conhecem apenas: a alegre autoconfiana perante a naturalidade sensvel585 (Das frohe Selbstgefhl gegen die sinnliche Natrlichkeit). Isto se traduzir no vnculo natural, no-reflexivo estaticidade dos costumes e hbitos desta polis determinada, costumes e hbitos que expressariam a positividade da substncia tica. Neste contexto, o sujeito, com suas exigncias universais de reconhecimento para alm de todo conjunto determinado e contextual de leis e costumes, o que guarda a fora para a criao de instituies no mais submetidas a tal naturalizao. Partindo destas consideraes gerais, vimos como Hegel organizava a linha de tenso que perpassava a eticidade grega atravs da dicotomia entre a lei humana e a lei divina: substncias de dois ncleos distintos de socializao, a saber, a famlia e a comunidade (Gemeinwesen). . A questo central ser pois: como a lei da famlia e a lei da polis podem sustentar, conjuntamente e sem cises, esta eticidade que permite indivduos orientarem julgamentos e aes. Hegel parte lembrando que no se trata aqui de alguma forma de contraposio entre natureza e sociedade, j que: a famlia no est no interior de sua essncia tica enquanto ela o comportamento da natureza de seus membros, pois essa relao da natureza tambm um esprito586. Isto no impede Hegel de insistir na conscincia que os gregos tinham da fora disruptiva do que continua vinculado famlia:
A famlia, como o conceito desprovido de conscincia e ainda interior da efetividade consciente-de-si, como o elemento da efetividade do povo, se contrape ao prprio povo; como ser tico imediato se contrape eticidade que
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HEGEL, Lies sobre a filosofia da histria, p. 204 HEGEL, idem, par. 451
se forma e se sustm mediante o trabalho em prol do universal; os Penates se contrapem ao esprito universal587.
Da porque o relacionamento tico dos membros da famlia j deve ser algo voltado vida tica da comunidade. Hegel descarta que tal relacionamento tico seja o relacionamento da sensibilidade ou o exclusivismo da relao de amor. Antes, ele o: pr o Singular para famlia, em subjugar (unterjochen) sua naturalidade e singularidade e em educ-lo para a virtude, para viver no universal e para o universal588. Um viver no universal que no simples fruto da opresso em relao s aspiraes da particularidade, mas formao em direo a uma liberdade que libertao das iluses da imediaticidade. Pois enquanto no cidado e pertence famlia, o Singular uma sombra inefetiva sem contornos. No entanto, no deixa de ser sintomtico que Hegel faa uma juno inesperada ao dizer que esta formao do Singular para viver no universal se realize de maneira mais bem acabada no rito fnebre, no cuidado em relao ao morto (e atravs da relao ao morte que nasce a conscincia da lei divina). Vimos que Hegel mostrava como tal cuidado significava que a lei divina a primeira posio da individualidade como incondicionalidade ou [por enquanto] abstrao. A lei divina que encontra seu solo na famlia posio do Singular como universalidade abstrata. Esta lei ganhar sua naturalidade atravs do seu vnculo posio feminina. O feminino, enquanto puro pressentimento da essncia tica fica vinculado universalidade abstrata da lei divina da famlia. Por sua vez, o governo da comunidade que efetiva a lei humana tambm baseado em uma certa fora da abstrao. Pois este governo no concebido a partir de uma sociedade nascida da necessidade e visando a conservao de seus membros, ele no repousa sobre uma promessa de paz e de repouso mas realiza a negao absoluta que consiste em viver para o universal:
Para no deixar que os indivduos se enrazem e enduream nesse isolar-se e que, desta forma, o todo se desagregue e o esprito se evapore, o governo deve, de tempos em tempos, sacudi-los em seu ntimo pelas guerras e com isso lhes ferir e perturbar a ordem rotineira e o direito independncia. Quanto aos
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indivduos, que afundados nessa rotina e direito se desprendem do todo aspiram ao ser para-si inviolvel e segurana da pessoa, o governo, no trabalho que lhes impe, deve dar-lhes a sentir seu senhor: a morte. Por essa dissoluo da forma da subsistncia, o esprito impede o soobrar do Dasein tico no natural, preserva o Si de sua conscincia e o eleva liberdade e fora. A essncia negativa se mostra como a potncia peculiar da comunidade e como a fora de sua autoconservao589.
Desta forma, vimos como a temtica do conflito como fundador do vnculo social (tal como vimos na dialtica do senhor e do escravo) aparece como fundamento para a ao do Estado. Se o governo no repousa sobre uma promessa de paz porque o processo de formao, que se iniciou na famlia, deve animar os processos de interao social enquanto meios para a realizao da subjetividade como universalidade desprovida de toda aderncia ao Dasein natural, enquanto o que se realiza atravs de um trabalho que confrontao com a fragilizao das imagens estticas do mundo. Uma certa harmonia parece se instaurar j que:
Pelo esprito da famlia, o homem enviado comunidade e nele encontra sua essncia consciente-de-si. Como desse modo a famlia possui na comunidade sua universal substncia e subsistncia, assim, inversamente a comunidade tem na famlia o elemento formal de sua efetividade; e na lei divina, sua fora e legitimao590.
A unio do homem e da mulher constitui o meio-termo ativo do todo, o elemento que cindido nesses extremos da lei divina e da lei humana igualmente sua unificao imediata. que faz daqueles dois primeiros silogismos um mesmo silogismo e que unifica em um s os movimentos opostos591.
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HEGEL, idem, p. 455 HEGEL, idem, par. 459 591 HEGEL, idem, par. 463
No entanto, esta harmonia ser quebrada, j que a lei divina guardada pelo feminino ir demonstrar como a lei da polis no pode realizar, de forma adequada, exigncias de universalidade. desta forma que aparece a figura do "todo como equilbrio estvel de todas as partes" ou do reino tico como "mundo imaculado que no manchado por nenhuma ciso".
Antgona e Creonte
a partir da ruptura da complementaridade entre lei divina e lei humana, ruptura resultante da lenta conscincia trgica do advento do ato (Tat) de uma individualidade singular, do absoluto ser para-si da conscincia puramente singular que no se reconhece mais em um dos plos da lei, que a eticidade grega ir dissolver-se. a isto que Hegel alude ao afirmar:
Porm a conscincia de si ainda no surgiu em seu direito como individualidade singular devido ao modo como a oposio est constituda nesse reino tico: nele, a individualidade, por um lado, s tem valor como vontade universal, por outro, como sangue da famlia (...) Nenhum ato foi ainda cometido; ora, o ato o si efetivo. O ato perturba o calmo movimento e organizao do mundo tico592.
Hegel ainda afirma que, atravs do ato, instaura-se uma passagem de opostos (bergange Entgegengesetzer) entre os dois plos da eticidade. Passagem atravs da qual a universalidade efetiva da lei humana se transforma na particularidade abstrata da lei da famlia e vice-versa. Ao agir a partir de um dos plos, a conscincia vinculada substancialidade da lei : se mostra mais como anulao (Nichtigkeit) de si mesmo e do outro do que como sua confirmao. Anulao que devora tanto a lei divina quanto a lei humana. De fato, Hegel demonstra que a conscincia de tal dissoluo da harmonia da eticidade aparece claramente na tragdia (squilo e Sfocles) e na comdia (Aristfanes). Todas as duas formas teatrais hegemnicas no mundo grego seriam estetizaes da clivagem entre fundamento e efetividade do dever. Na comdia, por exemplo, a ironizao de toda determinidade e de toda ao feita em nome do dever
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demonstra
transformao do que aspira validade universal em mscara para paixes particulares. a isto que Hegel alude ao falar da comdia como:
uma coliso de dever contra dever, uma coliso que, segundo o contedo equivale coliso entre paixo e dever, pois a paixo tambm capaz de ser representada com dever. Com efeito, o dever, quando a conscincia se retira de sua essencialidade substancial imediata para dentro de si, torna-se o universal formal em que se adapta igualmente bem todo e qualquer contedo593.
Ou seja, vemos novamente esta figura do riso como dissoluo do que aspira determinidade atravs da inverterso do que aspira universalidade no interior do universo das leis em posio da particularidade. Um riso que instaura, por sua vez, o locus de uma subjetividade irnica enquanto perspectiva absoluta de avaliao dos hbitos e costumes. Da porque: Na comdia, o que nos dado, pelo riso, a ver de todos os indivduos que se dissolvem a si mesmos e a partir de si mesmos a vitria de suas subjetividades e o fato de que estas guardam ainda toda segurana594 j que a subjetividade se faz conhecer como naturezas superiores devido a no estarem seriamente vinculados finitude na qual esto, mas continuam acima dela, firmes e seguros de si mesmos face aos fracassos e perdas595. Tais reflexes sobre a comdia no sero aprofundadas neste momento do texto da Fenomenologia. De fato, encontraremos novamente a subjetividade irnica, mas no mais como figura da comdia antiga (que ainda guarda um vnculo entre a subjetividade e o que substancial), e sim como figura da comdia moderna (O sobrinho de Rameau). Figura que leva o potencial de negatividade, de dissoluo da comdia ao paroxismo por plic-lo a prpria perspectiva de enunciao da crtica dos costumes e hbitos. Lembremos que por esta razo que: a comdia leva simplesmente dissoluo (Auflsung) da arte. A finalidade de toda arte a identidade produzida pelo esprito na qual o eterno, o divino, o verdadeiro em si e para si revelem-se em uma fenomenalidade
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HEGEL, Fenomenologia, par. 465 HEGEL, Curso de esttica livro trs 595 HEGEL, idem, p. 553
e uma figura reais a nossa viso exterior, a nossa afetividade a a nossa representao. Mas a comdia s representa tal unidade em sua autodestruio596. De fato, Hegel est, no texto da Fenomenologia, mais interessado em mostrar os impasses estetizados pela tragdia grega, em especial as tragdias de Sfocles (dipo rei e Antgona). Para Hegel, o tema verdadeira da tragdia grega o choque entre potncias substanciais e legitimas em obra no agir humano: O trgico consiste nisto, que os dois lados da oposio (Gegensatzes), cada um tomado por si tem uma justificao (Berechtigung), mesmo que s sejam capazes de fazer valer o verdadeiro contedo positivo de seus fins e de seus caracteres que como negao e leso da outra instncia597. Pois, no interior da ao trgica, a conscincia sabe o que tem de fazer e est decidida a pertencer seja lei divina feminina (com suas exigncia de reconhecimento de quem partilha o sangue da famlia), seja lei humana masculina (com suas exigncias de que tais aspiraes de reconhecimento se submetam aos imperativos de preservao da polis). Este saber o que sustenta a imediaticidade da deciso, j que ela tem a significao de um ser natural, enraizado no que a natureza inscreve como saber acessvel conscincia. Notemos que, por pensar a deciso (Entschiendeheit) como o que se fundamenta na imediatez do saber, e no a mediao entre a conscincia e o que se coloca como seu Outro, isto j que a conscincia tica exige que o ato no seja outra coisa seno o que ela sabe. A atividade orientada pelo dever , para a conscincia, algo de imediato e imune contradio. Por isto, ela essencialmente carter (Charakter) que s pode aferrar-se a um dos lados da lei:
No vlida para a conscincia a igual essencialidade a ambas; a oposio se manifesta, por isso, como uma coliso infeliz do dever somente com a efetividade desprovida de direito (...) Como v o direito somente de seu lado, e do outro, o no direito (Unrecht), a conscincia que pertence lei divina enxerga, do outro lado, a violncia humana contingente. Mas a conscincia que pertence lei humana v no lado oposto a obstinao e a desobedincia do Dasein interior598.
596 597
HEGEL, idem, p. 573 HEGEL, idem, p. 523 598 HEGEL, Fenomenologia, par. 466
Aqui, Hegel j pensa claramente no conflito que anima Antgona, de Sfocles entre a lei da famlia e a lei do Estado. Ainda haver um outro conflito trgico fundamental: este que ope o agir consciente e imediatamente imputvel o agir desprovido de conscincia (e imputvel apenas de maneira trgica) em dipo rei. Em comum, os dois colocam em cena o problema de uma concepo de ato vinculada disposio intencional da conscincia. Entre outras razes, por isto que Hegel prefere pensar os desdobramentos da dissoluo da eticidade atravs da tragdia, e no da comdia. Pois, contrariamente segurana da igualdade da subjetividade a si mesma que sustenta a ironizao das determinaes na comdia, a tragdia coloca em cena um ato cujas conseqncias se afirmam para alm do saber da conscincia. De fato, esta coliso entre conscincias ticas o cerne da leitura que Hegel faz da Antgona. Ao falar do conflito entre famlia e estado, Hegel no pensa em uma simples contraposio entre particularidade dos interesses familiares e universalidade dos interesses de preservao da polis. Se assim fosse, no haveria sentido em falar de coliso de conscincias ticas. De fato, Hegel lembra que, para si, cada um dos plos fundamenta-se no universal e v o outro como enredado no particularismo de interesses regionais. Todos os dois se colocam como formas distintas de viver no universal. Pois:
O movimento da lei humana e da lei divina encontra a expresso de seu necessidade em indivduos em que o universal se manifesta como um pathos, e a atividade do movimento como um agir individual, que d um semblante de contingncia necessidade desse movimento599.
Para Antgona, sua ao de render homenagens funerrias ao irmo criminoso demonstrava o particularismo da lei da polis enunciada pela contingncia de um homem, Creonte: A tua lei no a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. No acredito que tua proclamao tenha tal fora que possa substituir as leis no escritas dos costumes e os estatutos infalveis dos deuses. Porque essas no so leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos; ningum sabe quando apareceram. No, eu no iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei. Eu sei que vou morrer, no vou? Mesmo sem teu decreto (...) Morrer mais cedo no
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uma amargura, amargura seria deixar abandonado o corpo de um irmo 600. O fundamental, nesta afirmao, que a ao no legitimada simplesmente em nome do vnculo natural ao sangue, mas principalmente ela legtima porque a lei divina entrega, aos membros da famlia, a obrigao de realizar o reconhecimento da
incondicionalidade da posio dos sujeitos, para alm das determinaes contextuais de aes. Por sua vez, Creonte v, no ato de Antgona, apenas o particularismo sedicioso de quem coloca seus interesses comunitaristas de sangue acima da universalidade das leis da polis. Como chefe de estado, agi em defesa da ptria, ele dir. Pois eu no poderia decepcionar o povo que fez tantos sacrifcios e nem meus homens em armas, que deram sua vida pela causa, permitindo que ela tratasse nossa vitria com desprezo [rendendo homenagens funerrias ao irmo criminoso]. No adianta ela apelar para as ligaes de sangue e parentesco. Pois se no consigo governar minha prpria casa [Antgona era noiva do filho de Creonte, Hmon], como poderei manter minha autoridade na rea mais ampla do estado? S sabe comandar quem comanda o mais nfimo detalhe. S sabe comandar quem desde cedo aprende a obedecer. A pior peste que pode atacar uma cidade a anarquia. No estou disposto a deixar a disciplina corroer meu governo comandada por uma mulher. Se temos que cair do poder, que isso acontea diante de outro homem601. Desta forma, Hegel compreende que a runa trgica est na essencialidade das duas perspectivas e, ao mesmo tempo, no engano em continuar, at o fim, acreditando que o ato tico aquele fundamentado na certeza interior de seguir uma lei, seja ela divina, seja ela humana. Tanto que a reconciliao ser, na verdade, a runa de ambas as posies, pois runa da prpria eticidade grega. O que faz sentido, se aceitarmos que: o conflito entre Antgona e Creonte , na verdade, o conflito de ambos com a substncia, com a base normativa da vida grega602 fundada sobre duas disposies contrrias que sero postas em sua contrariedade pelo agir da conscincia. Da porque, a substncia tica s poder aparecer como potncia negativa que devora os dois lados. H ainda, aqui, o resultado de uma noo de mal vinculada necessariamente a parcialidade do agir. Da porque Hegel pode afirmar que:
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SFOCLES, Antgona, p. 22 SFOCLES, idem, p. 31 602 PINKARD, ithe sociality of reason, p. 144
Pelo ato, a conscincia-de-si torna-se culpa (Schuld ou, ainda, responsabilidade moral). Com certeza, ela o agir e o agir sua prpria essncia. A culpa recebe tambm a significao de crime (Verbrechens), pois a conscincia-de-si, como simples conscincia tica, consagrou-se a uma lei, mas renegou a outra e a violou mediante seu ato [o que demonstra que o crime no apenas a parcialidade da ao, mas tambm a primeira posio de um dficit de reconhecimento, j que , atravs do crime, a conscincia como quem no se reconhece como sujeito da lei violada]603. Hegel lembra, neste sentido, do papel do coro na tragdia: o coro diz respeito essencialmente a perspectiva a partir da qual, face a complexidade tica das situaes, no se pode mais bradar leis jurdicas determinadas em vigor nem dogmas religiosos estticos604. A prpria degradao da funo do coro na tragdia moderna seria a estetizao da perda de um princpio de reconciliao disposio na modernidade. Mas estaremos incorrendo em erro se compreendermos a responsabilizao moral do ato, caminho para a reconciliao, como simples resultado da deposio de um dos plos da lei em prol do outro (submisso da lei da famlia lei da polis e viceversa)., at porque:
O movimento dessas potncias ticas, uma em relao outra, e das individualidades que as pem em vida e ao, s atinge seu verdadeiro fim ao sofrerem ambos os lados a mesma runa. Com efeito, nenhuma dessas potncias tem sobre a outra a vantagem de ser um momento mais essencial da substncia605.
Neste sentido, podemos dizer que a culpa/responsabilidade moral resultante do ato (lembremos, s culpado quem reconhece a parcialidade de seu ato diante da lei oposta) resultado da compreenso de que, diante do particularismo da lei, a conscincia s pode agir escolhendo um dos lados da essncia, mesmo sabendo que tal escolha ser sua runa. Pois: o agir mesmo uma ciso, isto no sentido de que o cumprimento de uma designao do agir evoca a designao oposta como essncia
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HEGEL, Fenomenologia, par. 468 HEGEL, Curso de esttica- volume III, p. 541 605 HEGEL, Fenomenologia, par. 472
violada e hostil. Mas agir decidir sobre o que falvel, decidir sobre o que pode (e muitas vezes deve) posteriormente ser anulado e superado. Isto implica na compreenso de que todo ato moral falvel (Fehlbarkeit)606, pois ele aquilo que se coloca na ausncia de garantias da Lei, sem contudo sustentar-se no decisionismo da imanncia da pura vontade como fonte de sentido. Da porque: inocente s o no agir (Nichttun), tal como o ser das pedras, nem mesmo o ser da criana inocente. A culpa de todo verdadeiro ato vem do fato dele ser uso de uma posio particular como estratgia de sustentao de exigncias de reconhecimento que no encontram lugar em determinaes da lei. Isto talvez nos explique porque: a estes tipos de heris (Antgona, Creonte), no haveria pior injustia que dizer que agiram inocentemente. a honra dos grandes caracteres de serem culpados. Eles no querem suscitar a piedade, nem serem tocantes. Pois isto no o substancial, mas sim o aprofundamento subjetivo da personalidade, a dor pessoal que eles emitem607. Hegel faz ento uma comparao entre dipo e Antgona a respeito da imputabilidade do ato. De fato, a tragdia de dipo diz respeito, entre outras coisas, imputabilidade ou no do que a conscincia faz sem saber, pois: ao filho, o pai no se mostra no ofensor que ele fere, nem a mo na rainha que toma por esposa. Deste modo, est espreita da conscincia-de-si tica uma potncia avessa luz que, quando o fato (Tat) ocorreu, irrompe e a colhe em flagrante608. Contrariamente leitura clssica da pea de Sfocles (Voltaire, Corneille), que via no no saber do protagonista algo de absolutamente inverossmil, Hegel compreende dipo como a figura do saber submetido ao pathos da disposio tica na individualidade: a identidade de um logos e de um pathos609 que indica a dissociao entre a particularidade da posio dos sujeito e uma perspectiva universal de avaliao do significado da ao. Neste sentido, Antgona a internalizao reflexiva de tal identidade entre logos e pathos. Da porque Hegel poder afirmar:
Porm a conscincia tica mais completa, sua culpa mais pura quando conhece antecipadamente a lei e a potncia que se lhe opem, quando toma por violncia e injustia, por uma contingncia tica; e como Antgona, comete o crime
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ADORNO, ND, p. 241 [traduo modificada] HEGEL, Curso de esttica livro III, p. 546 608 HEGEL, Fenomenologia, par. 469 609 RANCIRE, Linconscient esthtique, p. 31,
sabendo o que faz [ela submete o logos, enquanto eticidade composta por duas leis, ao pathos de uma escolha]610.
A dissoluo da polis
Do pargrafo 473 ao 476, Hegel ir pois aprofundar a noo de que a coliso entre Antgona e Creonte , na verdade, uma luta de ambos contra a eticidade grega e exposio de disposies contraditrias no interior mesmo desta eticidade. Ele retoma a descrio deste processo de socializao atravs do qual o jovem passa de membro da famlia cidado da polis. Lembremos como tal processo era descrito como o: pr o Singular para famlia, em subjugar (unterjochen) sua naturalidade e singularidade e em educ-lo para a virtude, para viver no universal e para o universal611. Um viver no universal que no simples fruto da opresso em relao s aspiraes da particularidade, mas formao em direo a uma liberdade que libertao das iluses da imediaticidade. Aqui, Hegel retorna a este ponto, mas para lembrar que ele ainda pertence natureza da qual procurava se arrancar, o que se demonstra com a figura contingente de dois irmos que, com igual direito, se apoderam da comunidade. Eles trazem a beligerncia do que est aferrado natureza para o interior da comunidade. Conseqncia de uma lei humana que tem na lei da famlia: a raiz de sua fora. Por seguir esta dupla lei, a polis deve sustentar-se na tnue linha do que no agrava nenhuma das duas. Tarefa impossvel, pois a posio de uma implica na reduo da outra ao nvel da particularidade. A no ser que a polis seja capaz de se organizar a partir de exigncias de reconhecimento de uma universalidade abstrata que a base universal da conscincia singular e essncia da lei da famlia, o que no o caso da polis grega que ainda desconhece a concepo abstrata de que o sujeito pura e simplesmente depende do substancial do Estado. Ou seja, no se trata de anular o que se aferra no interior do mundo subterrneo da famlia, mas de mostrar como ele pe, ainda de maneira imperfeita, exigncias de abstrao que a polis ainda no capaz de dar conta. Fato que a feminilidade esta eterna ironia da comunidade faz questo de lembrar:
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Quando a comunidade s se proporciona sua subsistncia mediante a destruio da felicidade familiar e da dissoluo (Auflsung) da conscincia-de-si na conscincia universal, ela est produzindo, para si mesma, seu inimigo interior naquilo que reprimido (unterdrck) e que lhe ao mesmo tempo essencial na feminilidade em geral. Essa feminilidade a eterna ironia da comunidade muda por suas intrigas o fim universal do governo em um fim privado, transforma sua atividade universal em uma obra deste indivduo determinado e perverte a propriedade universal do Estado em patrimnio e adorno da famlia612.
Assim, a comunidade produz o princpio de sua runa atravs da ao repressora contra ele. o que foi posto, pelo governo, como interesse particular que demonstra a particularidade do interesse do governo rompendo a imediaticidade do vnculo lei. A partir de ento, a substncia tica ser apenas uma universalidade formal, ou seja, a comunidade desprovida de esprito do estado de direito romano. Com isto, atravs dos conflitos internos aos modos de socializao e s formas de vida grega que Hegel procura demonstrar a invalidade da tentativa de encontrar sadas alternativas para a modernidade atravs do retorno a uma esticidade a ser recuperada em esferas sociais pr-modernas.
Antes de terminarmos a aula, vale a pena correr o risco de pecarmos por anacronismo, isto a fim de estabelecer um paralelo entre duas leituras de Antgona: uma que aparece no interior de um projeto filosfico de realizao do conceito de modernidade (Hegel) e outro, mais perto de ns, que tende, aparentemente, a insistir no esgotamento das possibilidades de reconciliao com uma perspectiva capaz de realizar exigncias de universalidade (Lacan). Lacan aborda este texto a fim de fornecer uma figura de reflexo para o problema da ao tica. Ele nos lembra que a ao de Antgona sustentada em uma dimenso de exterioridade ao universo simblico que sustenta a polis e suas determinaes identitrias. Da a afirmao de que se trata de uma ao: de uma vida
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que vai se confundir com a morte certa, morte vivida de maneira antecipada, morte estendendo-se sobre o domnio da vida, vida estendendo-se sobre a morte613. Uma ao que visa a At e que retira, de Antgona, todo retrato humano, como impulso em direo a uma singularidade limite dos que no cedem em seu desejo, mesmo que ele os leva a este ponto onde a vida se estende morte. Lacan cr que Hegel no se d conta desta natureza da ao de Antgona, principalmente devido a uma pretensa seduo da reconciliao prometida pela pea. No entanto, vimos que para Hegel a reconciliao significa dissoluo (Aflsung) e destruio dos plos que procuram determinar a ao a partir da imediaticidade da substncia tica. Por outro lado, Hegel reconhece claramente que, enquanto ao vinculada lei divina, Antgona aquela que sustenta o reconhecimento da universalidade abstrata de sujeitos que se pem para alm das determinaes contextuais de suas aes. Universalidade abstrata cuja figura fenomenolgica privilegiada a morte. Neste sentido, Lacan no est distante de Hegel quando afirma: que Antgona representa, por sua posio, este limite radical que, para alm de todos os contedos, de tudo o que Polinice pde fazer de bem e de mal mantm o valor nico de seu ser614. Separao do ser de todas as caracterizaes do drama histrico que ele atravessou. Por outro lado, Lacan no v em Creonte um princpio de lei que confronta-se com outro princpio, mas o desejo em infligir, a seu inimigo Polinice uma segunda morte. Desejo que se expressa sob a linguagem da razo prtica, sob a tentativa de transformar o bem de todos em lei sem limites que visa a aniquilar todo ponto de excesso que no se submeta enunciao da lei. Leitura de um tempo que no acredita mais na possibilidade que a lei que sustenta as interaes sociais possa dar conta do que da ordem da singularidade. Mas lembremos que Hegel reconhece que, a partir de ento, a lei humana representada por Creonte vai runa, junto com a prpria noo de eticidade grega. Resta inda saber o que pode entrar em seu lugar.
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Na aula de hoje, continuaremos o comentrio da seo Esprito indo do pargrafo 477 ao pargrafo 518, ou seja, este trecho que abarca as partes O Estado de direito e A cultura e o seu reino da efetividade. Na aula que vem, terminaremos esta segunda pa rte atravs do comentrio do trecho que vai do pargrafo 519 ao 526, trecho no qual Hegel se dedica a expor sua leitura da pea de Diderot, O sobrinho de Rameau. O trecho a ser comentado na aula de hoje cobre um largo perodo histrico que vai da hegemonia romana, passando pelo advento cristianismo, do mundo feudal com suas relaes de cavalaria, vassalagem e sua tica da honra, isto a fim de terminar na reflexo sobre as relaes entre nobreza e realeza na monarquia absoluta de Luis XIV. Podemos organizar nosso trecho da seguinte maneira. A parte O Estado de direito trata da maneira com que Hegel compreende o advento do Imprio romano enquanto figura da desagregao da eticidade da polis grega e da perda do fundamento substancial da razo enquanto orientao para prticas sociais e julgamento. Logo em seguida, Hegel inicia a segunda subseo do captulo, esta cujo ttulo : O Esprito alienado de si: a cultura (bildung). Do pargrafo 484 ao 486, encontramos um resumo geral do que se seguir neste captulo. Trata-se deste longo movimento de tentativa de recuperao da substancialidade da vida tica que vai desembocar no iluminismo revolucionrio e em seus desdobramentos. Do pargrafo 488 ao 491, temos uma
digresso a respeito do conceito de cultura e de sua proximidade estrutural com o conceito de alienao (Entfremdung). Ou seja, trata-se de insistir como os processos de formao da conscincia so necessariamente processos de alienao. Do pargrafo 492 ao 508, temos o incio do movimento histrico desta segunda parte atravs de uma descrio de relaes feudais entre nobreza e realeza a partir de suas prprias expectativas de legitimidade. Hegel ir demonstrar como tais relaes no realizam suas prprias expectativas e que sua verdade a relao de completa alienao e
dilaceramento entre nobreza e monarquia absoluta, assunto que ir do pargrafo 510 at o final. Entre os pargrafos 508 e 510, Hegel insere uma nota importante sobre a linguagem em sua funo expressiva (a linguagem como Dasein do puro Si). Como veremos na aula de hoje, no comentrio deste longo desdobramento histrico que vai do Imprio romano monarquia absoluta de Luis XIV, Hegel no se preocupa, em momento algum, em estruturar uma narrativa histrica de acontecimentos que impulsionaram o desenvolvimento histrico. No h aqui uma filosofia da histria no seu sentido mais forte do termo e mesmo a comparao entre o nosso trecho e o mesmo trecho equivalente nas Lies sobre a filosofia da histria demonstra
descompassos e grandes saltos evidentes. Isto nos leva a perguntar qual a natureza da narrativa e do desenvolvimento que ser apresentado. Uma questo que, na verdade, toca o problema do estatuto da histria no interior da seo Esprito. Grosso modo, podemos dizer que a maneira peculiar com que Hegel corta o contnuo histrico, selecionando alguns momentos a despeito de outros igualmente centrais, feita em nome de uma histria, no de acontecimentos, mas de padres de socializao com seus impasses. Impasses estes vinculados insistncia de expectativas no realizadas de reconhecimento do que se aloja na posio dos sujeitos. Ou seja, tratase principalmente de articular a perspectiva histrica a partir da maneira com que os sujeitos se inserem em prticas sociais e padres de conduta, quais expectativas eles mobilizam nesses processos de insero, ou ainda, de socializao e como tais expectativas iniciais so invertidas e negadas. Isto talvez nos explique esta peculiaridade maior da narrativa histrica no interior da seo Esprito, a saber, a maneira com que Hegel descreve grandes movimentos histricos sempre tendo como eixo a perspectiva da conscincia inserida em prticas sociais, como se tais movimentos pudessem ser descritos como movimentos de auto-reflexo da conscincia na sua confrontao direta com figuras de soberania (O senhor do mundo [Herr der Welt], o poder do Estado [Staatsmacht] , o nome prprio do monarca etc,). O que levou comentadores como Honneth a insistir que Hegel opera como categorias: que no concernem s relaes entre membros da sociedade, mas apenas relao destes com a instncia superior do Estado615. No entanto, podemos sempre lembrar que uma fenomenologia do Esprito deve privilegiar o modo com que sujeitos se inserem e absorvem modos de racionalidade encarnados em instituies e prticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ao orientada por razes para agir. Neste sentido, vale sempre a pena lembrar que, no interior de prticas sociais, os sujeito realmente agem como se atualizassem constantemente uma ao direta com figuras de soberania. Apropriar-se, de maneira reflexiva, da racionalidade encarnada em estruturas sociais (condio fundamental para a realizao do conceito de Esprito) s possvel levando em conta a maneira com que sujeitos justificam, para si mesmos, como agir e quais representaes eles tm da figura da soberania.
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Dito isto, vale a pena fazermos uma pequena recapitulao a fim de entrarmos diretamente no comentrio do nosso trecho da Fenomenologia do Esprito. Na aula passada, vimos, atravs do comentrio de Antgona, de Sfocles, a desagregao do conceito de eticidade em vigor na polis grega. Vimos como Hegel identificava uma linha de tenso que perpassava a eticidade grega atravs da dicotomia entre a lei humana e a lei divina: substncias de dois ncleos distintos de socializao, a saber, a famlia e a comunidade (Gemeinwesen). A questo central era: como a lei da famlia e a lei da polis podiam sustentar, conjuntamente e sem cises, esta eticidade que permite indivduos orientarem julgamentos e aes. Pois ser a partir da ruptura da complementaridade entre lei divina e lei humana, ruptura resultante da lenta conscincia trgica do advento do ato (Tat) de uma individualidade singular, do absoluto ser para-si da conscincia puramente singular que no se reconhece mais em um dos plos da lei (e, por isto, se aloja em outro plo), que a eticidade grega ir dissolver-se. Hegel percebe a estetizao de tal dissoluo como tema central da tragdia grega. Da porque o trgico ser definido por Hegel como o choque entre potncias substanciais e legitimas em obra no agir humano: O trgico consiste nisto, que os dois lados da oposio (Gegensatzes), cada um tomado por si tem uma justificao (Berechtigung), mesmo que s sejam capazes de fazer valer o verdadeiro contedo positivo de seus fins e de seus caracteres que como negao e leso da outra instncia616. Pois, no interior da ao trgica, a conscincia sabe o que tem de fazer e est decidida a pertencer seja lei divina feminina (Antgona com suas exigncia de reconhecimento de quem partilha o sangue da famlia), seja lei humana masculina (Creonte com suas exigncias de que tais aspiraes de reconhecimento se submetam aos imperativos de preservao da polis). Este saber o que sustenta a imediaticidade da deciso, j que ela tem a significao de um ser natural, enraizado no que a natureza inscreve como saber acessvel conscincia. Vimos que, por pensar a deciso (Entschiendeheit) como o que se fundamenta na imediatez do saber, ela no compreende a ao como mediao entre a conscincia e o que se coloca como seu Outro, isto j que a conscincia tica exige que o ato no seja outra coisa seno o que ela sabe. A atividade orientada pelo dever , para a conscincia, algo de imediato e imune contradio. Desta forma, Hegel compreende que a runa trgica est na essencialidade das duas perspectivas e, ao mesmo tempo, no engano em
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continuar, at o fim, acreditando que o ato tico aquele fundamentado na certeza interior de seguir uma lei, seja ela divina, seja ela humana. Tanto que a reconciliao ser, na verdade, a runa de ambas as posies, pois runa da prpria eticidade grega. Notemos que tal runa no aconteceria se a polis fosse capaz de se organizar a partir de exigncias de reconhecimento de uma universalidade abstrata que a base universal da conscincia singular e essncia da lei da famlia, o que no o caso da polis grega que ainda desconhece a concepo abstrata de que o sujeito pura e simplesmente depende do substancial do Estado. Ou seja, no se trata de anular o que se aferra no interior do mundo subterrneo da famlia, mas de mostrar como ele pe, ainda de maneira imperfeita, exigncias de abstrao que a polis ainda no capaz de dar conta. Fato que a feminilidade esta eterna ironia da comunidade faz questo de lembrar:
Quando a comunidade s se proporciona sua subsistncia mediante a destruio da felicidade familiar e da dissoluo (Auflsung) da conscincia-de-si na conscincia universal, ela est produzindo, para si mesma, seu inimigo interior naquilo que reprimido (unterdrck) e que lhe ao mesmo tempo essencial na feminilidade em geral. Essa feminilidade a eterna ironia da comunidade muda por suas intrigas o fim universal do governo em um fim privado, transforma sua atividade universal em uma obra deste indivduo determinado e perverte a propriedade universal do Estado em patrimnio e adorno da famlia617.
a partir de tais problema que devemos compreender a maneira com que Hegel termina a primeira parte da seo Esprito, esta dedicada noo de eticidade no mundo antigo, atravs de um comentrio sobre o estado de direito romano. Grosso modo, Hegel compreende o estado de direito romano como resultado direto da dissoluo da eticidade da polis grega. Com a dissoluo da eticidade, o que se tem necessariamente uma tendncia a atomizao da substncia social em indivduos absolutamente mltiplos. No entanto, como o movimento histrico de ruptura da polis foi animado pela
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realizao de exigncias de universalidade, faz-se necessrio que tais exigncias sejam de uma forma ou de outra, contempladas por esta nova figura do esprito. Neste sentido, a universalidade ser contemplada, de maneira completamente abstrata, na figura jurdica da pessoa:
O universal, estilhaado nos tomos dos indivduos absolutamente mltiplos, esse esprito morto, uma igualdade na qual todos valem como cada um, como pessoas (Personen)618.
Hegel lembra que, atravs do estatuto jurdico da pessoa, o singular que tinha valor e era efetivo apenas como sangue universal da famlia adquire efetividade como o Eu da conscincia-de-si que deve ser reconhecido como pessoa, como cidado para alm de certos contextos naturalizados (lembremos como a figura jurdica de cidado romano foi sendo paulatinamente estendida a todos os membros livres do Imprio, e no apenas ao cidado de Roma, isto principalmente a partir da Constitutio Antoniniana, de 212 DC). Mas este Eu reconhecido juridicamente com direitos positivos legais baseado em uma igualdade indiferente e meramente exterior ferrenhamente criticada por Hegel. Da porque ele caracteriza Roma da seguinte forma:
Em
Roma,
encontramos
principalmente
livre
universalidade
(freie
Allgemeinheit), essa liberdade abstrata que, por um lado, coloca o Estado abstrato, a poltica e o poder acima da individualidade concreta subordinando esta totalmente e, por outro lado, creia perante esta universalidade a personalidade (Persnlichkeit), a liberdade do Eu em si que precisa ser diferenciado da individualidade. A personalidade a determinao fundamental do direito. Ela se manifesta principalmente na propriedade; , todavia, indiferente perante as determinaes concretas do esprito vivo com as quais a individualidade lida619.
No entanto, a princpio, o teor negativo de tais colocaes pode nos soar estranho. Havamos visto, na anlise da polis grega, a crtica que Hegel fazia a um certo
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dficit de abstrao que impedia a posio da dependncia do sujeito substancialidade de um Estado abstrato como o Estado moderno. Agora, vemos algo praticamente inverso, ou seja, Hegel criticando o Estado romano exatamente por seu carter abstrato que s capaz de fornecer quadros de reconhecimento de sujeitos como pessoas jurdicas, cujo estatuto de pessoas est essencialmente vinculado ao estatuto contratual, abstrato e contingente de proprietrios (Ser uma pessoa, no direito romano, equivale a ter um triplo estatuto: status libertatis no ser escravo; status civitatis pertencer a uma comunidade juridicamente organizada e status familiae ser pater familiae). Isto a ponto de afirmar que: designar uma indivduo como pessoa uma expresso de desprezo. O que pois estaria realmente em jogo nesta crtica hegeliana pessoa? Hegel insiste que o estatuto jurdico de pessoa no a verdadeira realizao da autonomia reflexiva da conscincia (lembremos que, j na dialtica do Senhor e do Escravo, Hegel contrapunha o reconhecimento como pessoa e o reconhecimento como conscincia-de-si independente). Pois a norma jurdica permite que os sujeitos ajam simplesmente em conformidade com a norma enquanto guardam seus verdadeiros interesses e disposio na interioridade (Innerlichkeit). O estatuto jurdico de pessoa abstrato no no sentido de incondicional e para alm de todo contexto (tal como aparecia nas exigncias de reconhecimento suportadas por Antgona a respeito de seu irmo Polinices). Ele abstrato no sentido no sentido de meramente formal e preenchido sem nenhum engajamento completo dos sujeitos, universalidade formal que deixo o contedo da ao livre e desordenado. Da porque Hegel insiste que esta disposio da pessoa nas formas romanas de vida encontra seu correlato necessrio no estoicismo, que nada mais seria do que a tematizao filosfica da ideologia romana da pessoa:
O estoicismo no outra coisa que a conscincia que leva sua forma abstrata o princpio do Estado de direito, independncia desprovida de esprito. Por sua fuga da efetividade, a conscincia estica s alcanava o pensamento da independncia; ela absolutamente para si, porque no vincula sua essncia a um Dasein qualquer, mas abandona qualquer Dasein e coloca sua essncia somente na unidade do puro pensar. Da mesma maneira, o direito da pessoa no est ligado nem a um Dasein mais rico ou mais poderoso do indivduo como este
indivduo, nem ainda a um esprito vivo universal; mas antes ao puro Um (Eins) de sua efetividade abstrata ou como conscincia-de-si em geral620.
Ou seja, a tendncia natural que os sujeitos, por conservarem seus interesses na interioridade do pensar que no se reconhece completamente na norma jurdica, tendam a no mais se reconhecer nas determinaes do Estado. E desta forma que Hegel compreende a passagem da Repblica romana ao Imprio: Os cidados tornaram-se estranhos ao Estado, pois no encontravam nenhuma satisfao subjetiva nele621; fruto da impossibilidade de um reconhecimento que fosse para alm do formalismo da pessoa. Desta forma, a desagregao pura e simples do Estado romano em uma multiplicidade de tomos sociais s no ocorre devido posio de uma subjetividade (esta sim plenamente reconhecida), cuja vontade realiza-se em Lei, vontade solitria e soberana que se contrape a multiplicidade de todas as outras vontades. Como se o Estado de direito, para se sustentar, devesse excluir ao-menos-um como o que encarna uma exceo soberana. Este ser o Imperador, ou, nos dizeres de Hegel, o senhor do mundo:
Esse senhor do mundo , para si, dessa maneira a pessoa absoluta, que ao mesmo tempo abarca em si todo o Dasein e para cuja conscincia no existe esprito mais elevado. pessoa, mas a pessoa solitria que se contrape a todos (...) O senhor do mundo tem a conscincia efetiva do que ele . A saber, a potncia universal da efetividade, na violncia destruidora que exerce contra o Si de seus sditos, que se lhe contrapem622.
Mas a potncia soberana desta pessoa absoluta que age a partir de sua prpria potncia s pode aparecer como o dissolver toda determinidade das outras pessoas, como: o puro devastar (blosses Verwsten) e, por conseguinte, est somente fora de si, o dispensar (Wegwerfen) sua prpria conscincia-de-si623. No entanto, Hegel insiste que s a partir do retorno interioridade devido violncia destruidora do que coloca em movimento a efetividade que poderia sobressair o sublime e livre esprito do
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HEGEL, Fenomenologia, par. 479 HEGEL, Filosofia da Histrica, p. 265 622 HEGEL, Fenomenologia, par. 481-482 623 HEGEL, Fenomenologia, par. 482
cristianismo624. E este retraimento em direo interioridade, operao fundamental para o advento da noo moderna de subjetividade que ir impulsionar a segunda parte de nossa seo, no por outra razo intitulada: O esprito alienado de si: a cultura.
A segunda parte da seo Esprito a mais extensa de todas e tenta cobrir um longo perodo histrico que vai da Alta Idade Mdia at os desdobramentos da Revoluo Francesa. Hegel descreve este perodo nos seguintes termos:
O mundo tem aqui a determinao de ser algo exterior (usserliches), o negativo da conscincia-de-si. Contudo, esse mundo a essncia espiritual, em si a compenetrao do ser e da individualidade. Seu Dasein a obra da conscinciade-si, mas igualmente uma efetividade imediatamente presente e estranha a ele; tem um ser peculiar e a conscincia-de-si ali no se reconhece.625
Ou seja, a conscincia no reconhece mais a efetividade exterior do mundo como seu prprio trabalho, como sua prpria substncia (tal como ocorria nas relaes iniciais de eticidade). Haver um longo caminho de reconciliao com um mundo contra o qual a conscincia no cessar de lutar. No entanto, tal reconciliao s ser possvel quando a conscincia for capaz de internalizar o mundo como o negativo de si mesma, encontrar, em si mesma, aquilo que a nega. Vimos tal movimento em operao em outros momentos da Fenomenologia. Ele foi a nossa maneira de ler o imperativo idealista de duplicao entre a estrutura do objeto e a estrutura do Eu. Veremos pois como isto se dar no interior de um movimento historicamente determinado. Tal como a polis grega assentava-se sobre a harmonia de dois princpios contrrios (a lei humana do governo e a lei divina da famlia), a cultura se assentar em uma duplicidade: esse esprito no constitui para si apenas um mundo mas um mundo duplo, separado e oposto pois o presente significa apenas uma efetividade puramente objetiva que tem sua conscincia alm626. O todo se rompe em um reino no qual a conscincia efetiva (o reino da efetividade Recht der Wirklichkeit) e outro, da pura
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HEGEL, Filosofia da histria, p. 239 HEGEL, Fenomenologia, par. 484 626 HEGEL, Fenomenologia, par. 486
conscincia, que no tem presena efetiva: o reino da f (Recht der Glauben no a religio, mas a f enquanto fuga do mundo efetivo). Lei humana e lei divina voltaro a se colidirem no Iluminismo, mas o resultado ser a posio de um princpio de universalidade concreta: a conscincia moral (moralischen Bewusstsein)da Aufklrung alem. Antes de descrever o trajeto que nos levar conscincia moral, Hegel usa os pargrafos 488 a 491 a fim de expor as relaes necessrias entre cultura/formao da conscincia (bildung) e alienao. Retornando a consideraes postas em vrios momentos doa Fenomenologia e que serviram para a definio de operadores centrais como experincia e conceito, Hegel serve-se da centralidade do movimento de alienao para dar conta da prpria estrutura da conscincia-de-si:
A conscincia-de-si algo (Etwas), s tem realidade, na medida em que se aliena; com isto se pe como universal e esse sua universalidade sua vigncia e efetividade. Essa igualdade com todos no , portanto, aquela igualdade do direito; no aquele imediato ser-reconhecido e estar-em-vigor da conscinciade-si pelo simples fato de que ela ; mas se ela vigora, por se ter tornado igual ao unviersal atravs da mediao alienadora (entfremdende Vermittlung)627.
Hegel claro aqui: o reconhecimento de si atravs da cultura diferente do reconhecimento de si como pessoa jurdica. Pois o reconhecimento de si atravs da formao prpria cultura mediao alienadora distinta da imediaticidade de uma conscincia que se v como o que imediatamente idntico a seus direitos positivos. A formao, como veremos, ser o sacrifcio de representaes da natureza originria do indivduo (cuja verdade ser uma diferena inessencial de grandeza, maior ou menos energia da vontade), ser uma disciplina atravs da qual a conscincia ver que toda relao a si mediao atravs de uma alteridade que lhe constitutiva. Voltamos novamente ao problema da constituio de um conceito de sujeito que no seja mais dependente de um pensamento da identidade. Neste sentido, Hegel acredita que a cultura formao para uma relao a si desconhecida daquilo que poderia ser posto no interior das harmonias imediatas prprias eticidade grega. Isto talvez nos explique porque o trajeto desta parte um longo trajeto de aprofundamento da despossesso de
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si. At porque: Cultivar-se no desenvolver-se harmoniosamente como por meio de um crescimento orgnico, mas opor-se a si mesmo, reencontrar-se mediante um dilaceramento e uma separao. Tal movimento de dilaceramento e de mediao caracterstica do conceito hegeliano de cultura e permite precisar a originalidade de sua pedagogia ( no mais amplo sentido do termo) em relao a pedagogia racionalista e humanista (aquela dos lugares-tenentes das Luzes ou de um certo humanismo clssico)628. Hegel inicia lembrando que se formar implica em acordar-se (gemss gemacht) com a efetividade, com a substncia, ou ainda, com um padro de conduta que tenha valor de espcie (Art) e que permita operaes valorativas que viabilizem a indicao de algo como um bem ou um mal. Tais operaes valorativas aparecem, no interior de prticas sociais, como ao feita em conformidade com dois princpios distintos: um o poder do Estado ou outro a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distino entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta tica aristocrtica, vinculada ao sacrifcio de Si pela honra dos princpios reais, apareceu, em solo europeu, como princpio virtuoso de formao em contraposio ao vnculo burgus acumulao de riqueza e propriedade. Pois Hegel quer mostrar como esta tica aristocrtica ir produzir as condies objetivas para o Iluminismo. Nesta perspectiva, o poder de Estado aparece como a substncia simples, a obra universal, a Coisa mesma, na qual enunciada aos indivduos sua essncia. Ele a absoluta base (Grundlage) do agir de todos. Por outro lado, a riqueza o que se dissolve no gozo de todos, gozo movido pelo egosmo de quem segue apenas seus prprios interesses imediatos (embora j vimos como Hegel contesta tal atomismo atravs da tematizao do sistema de necessidades). A conscincia pode optar pautar suas aes e julgamentos, seja a partir de um princpio, seja a partir do outro. Hegel lembra que estes princpios podem ser invertidos. Ao internalizar princpios de formao e conduta atravs da obedincia ao poder de Estado, a conscincia encontra aqui: sua simples essncia e substncia em geral, mas no sua individualidade como tal, Encontra nele, sem dvida, seu ser em-si, mas no seu ser para-si629. A obedincia aparece como opresso. A riqueza, ao contrrio, doadora de mil mos que tudo entrega conscincia e lhe permite o gozo da realizao de seu prprio projeto, ela a todos se entrega e lhes proporciona a conscincia de seu Si.
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Estas duas maneiras de julgar daro figuras distintas da conscincia: a conscincia nobre e a conscincia vil. Hegel as descreve da seguinte forma:
A conscincia da relao que encontra-igualdade a conscincia nobre. No poder pblico encontra o igual a si mesma, v que nele tem sua essncia simples e a atuao dessa essncia e se coloca no servio da obedincia efetiva como no servio do respeito interior para com essa essncia. D-se o mesmo com a riqueza [que a conscincia nobre ganha por servios prestados ao poder de Estado] (...) por isso, a conscincia nobre a considera igualmente como essncia em relao a si e reconhece por benfeitor quem lhe d acesso ao gozo da riqueza e se tem como obrigada gratido. Ao contrrio, a conscincia da outra relao a conscincia vil que sustenta a desigualdade com as duas essencialidades. Assim, v na soberania uma algema e opresso do ser para-si e por isto odeia o soberano, s obedece com perfdia e esta sempre disposta rebelio. Na riqueza, pela qual obtm o gozo do seu ser para-si, tambm s obtm a desigualdade (...) ama a riqueza , mas a despreza e com o desvanecer do gozo, considera tambm desvanecida sua relao com o rico benfeitor630.
No nosso trecho do texto, Hegel dar ateno aos desdobramentos da conscincia nobre na tentativa de implementar seu prprio conceito de ao. De fato, a conscincia nobre se v como o herosmo do servio, como a pessoa que renuncia posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivao do poder ao qual se sacrifica. Desta forma, ela d atualidade ao poder de Estado atravs de sua prpria ao. A conscincia consegue assim o respeito (Achtung) a si e junto aos outros. Mas notemos que a conscincia nobre que d atualidade e efetividade ao poder de Estado; em ltima instncia, a conscincia nobre que diz o que o poder de Estado , da porque Hegel afirma que este poder : ainda no possui nenhuma vontade particular, pois a conscincia-de-si servidora ainda no exteriorizou ser puro Si e assim vivificou o poder de Estado631. A linguagem da conscincia nobre aparece pois como o conselho (Rat) dado pelo orgulhoso vassalo ao poder de Estado para a efetivao do bem comum. Hegel lembra ainda que o orgulho dessa conscincia nobre o reconhecimento
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de sua honra, no apenas pela individualidade do monarca, mas pela maneira com que ele aparece diante da opinio pblica (allgemeinen Meinung). Hegel insiste pois que este sacrifcio da conscincia nobre no efetivamente um, j que conselho que dirige o poder de Estado (jogando coma ambiguidade) e que pauta suas aes a partir de um conceito de honra que vnculo ao outro. Da porque o poder de Estado est sempre diante do separatismo dos que usam o bem universal como retrica para defender interesses particulares (Hegel deve pensar aqui, por exemplo, na Fronda dos nobres contra Anna da ustria). Hegel lembrar novamente que o verdadeiro processo de formao o sacrifcio que: s completo quando chega at a morte, sacrifcio no qual a conscincia se abandona to completamente quanto na morte, porm mantendo-se igualmente nesta exteriorizao632. E novamente ele lembrar que a experincia da morte esta infinitude que permite a realizao da identidade entre a identidade e a diferena: unidade idntica de si mesmo, e de si como o oposto de si. Mas neste ponto, Hegel acrescenta uma reflexo extremamente importante e que ter lugar nos pargrafos 508 e 509. Ele afirma que atravs da linguagem que a conscincia realiza enfim este sacrifcio de si. Desta forma, a linguagem claramente enunciada como processo de exteriorizao e de auto-dissoluo da identidade que deve ser lido na continuidade das reflexes de Hegel sobre o trabalho. Linguagem e trabalho, j dissera Hegel, so exteriorizaes (uerungen) nas quais o indivduo no se conserva mais e no se possui mais a si mesmo; seno que nessas exteriorizaes faz o interior sair totalmente de si, e o abandona a Outro633. Aqui Hegel complementa seu raciocnio afirmando que a linguagem encontra sua verdadeira essncia no como lei ou conselho (com seus potenciais normativos), mas como fora do falar (Kraft des Sprechens):
Com efeito, a linguagem o Dasein do puro Si como Si, pela linguagem entra na existncia a singularidade sendo para si da conscincia-de-si, de forma que ela para os outros (...) Mas a linguagem contm o Eu em sua pureza, s expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse Dasein do Eu uma objetividade que contm sua verdadeira natureza. O Eu este Eu mas, igualmente, o Eu universal. Seu aparecer ao mesmo tempo sua exteriorizao e desaparecer e, por isto, seu
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A princpio, pode parecer que estamos diante de alguma forma de contradio, j que aps ter dito que a linguagem era uma exteriorizao na qual o indivduo no se conservava mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso, ou seja, que a linguagem o Dasein do Si como Si. No entanto, esta contradio apenas aparente, pois a linguagem perde seu carter de pura alienao quando compreendemos o Eu no como interioridade, mas como aquilo que tem sua essncia no que se autodissolve. Ao falar do Eu que acede linguagem como um universal, Hegel novamente se serve do carter de ditico de termos como Eu, isto, agora etc. Eu uma funo de indicao a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao tentar dizer eu, a conscincia desvela a estrutura de significante puro do Eu, esta mesma estrutura que o filsofo alemo chama de : nome como nome, ou ainda algo em geral 635. Uma natureza que transforma toda tentativa de referncia-a-si em referncia a si para os outros e como um Outro. Este eu enquanto individualidade s pode se manifestar como fading, como o que est desaparecendo em um Eu universal. A iluso do imediato da auto-referncia se desvela assim como mediao formadora, j que ela produzida pelo signo lingstico em seu carter universalizante. Novamente, Hegel se serve da lgica dos diticos para falar daquilo que essencial nos usos da linguagem. A peculiaridade de nossa passagem que ela ainda servir para que Hegel mostre uma situao de prtica social na qual o Eu se apresenta integralmente em uma linguagem que no expressa sua individualidade: trata-se da lisonja. Hegel fez tais consideraes sobre a linguagem para poder introduzir uma mudana maior na relao entre a conscincia nobre e o poder de Estado com o advento da monarquia absoluta. A conscincia nobre no mais tenta, atravs da linguagem do conselho, determinar a vontade de um poder do Estado que passa condio de Eu deliberante e universal em sua singularidade: nico nome prprio diante de nomes sem singularidade. O nome do monarca pura vontade que decide. Desta forma: o herosmo do servio silencioso torna-se o herosmo da lisonja, de um alienar-se,
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atravs da bajulao, vontade de um Outro (Hegel pensa sobretudo na nobreza palaciana de Versailles sob Luis XIV):
V sua personalidade como tal dependendo da personalidade contingente de um Outro; do acaso de um instante, de um capricho, ou alis de uma circunstncia indiferente. No Estado de direito, o que est sob o poder da essncia objetiva aparece como um contedo contingente do qual se pode abstrair e o poder no afeta o Si como tal, mas o Si antes reconhecido. Porm aqui o Si v a certeza de si, enquanto tal, ser o mais inessencial e a personalidade pura ser a absoluta impessoalidade636.
Ou seja, do Senhor do mundo ao monarca absoluto, temos um aprofundamento da apropriao reflexiva da natureza dilacerada da conscincia. Pois, aqui, a
conscincia nobre se encontrar to dilacerada quanto a conscincia vil, embora este dilaceramento seja condio para a determinao da verdade da conscincia, at porque: a conscincia-de-si s encontra sua verdade no seu dilaceramento absoluto. Mas este dilaceramento dever ainda durar um pouco mais.
Na aula passada, acompanhamos este trajeto de formao histrica da conscincia que Hegel procura descrever na seo Esprito. Vimos como tal trajeto s ganha inteligibilidade se o compreendermos como o desdobramento histrico dos modos com que sujeitos se inserem e absorvem regimes de racionalidade encarnados em instituies e prticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ao orientada por razes para agir. A partir da ruptura das expectativas depositadas na eticidade da polis grega e do advento da experincia de interioridade resultante do reconhecimento abstrato da pessoa no estado romano de direito, adentramos nesta parte principal da nossa seo, parte intitulada: O esprito alienado de si: a cultura.
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Esta segunda parte da seo Esprito a mais extensa de todas e tenta cobrir um longo perodo histrico que vai da Alta Idade Mdia at os desdobramentos da Revoluo Francesa. Hegel descreve este perodo nos seguintes termos:
O mundo tem aqui a determinao de ser algo exterior (usserliches), o negativo da conscincia-de-si. Contudo, esse mundo a essncia espiritual, em si a compenetrao do ser e da individualidade. Seu Dasein a obra da conscinciade-si, mas igualmente uma efetividade imediatamente presente e estranha a ele; tem um ser peculiar e a conscincia-de-si ali no se reconhece.637
Ou seja, a conscincia no reconhece mais a efetividade exterior do mundo como seu prprio trabalho, como sua prpria substncia (tal como ocorria nas relaes iniciais de eticidade). Haver um longo caminho de reconciliao com um mundo contra o qual a conscincia no cessar de lutar. No entanto, tal reconciliao s ser possvel quando a conscincia for capaz de internalizar o mundo como o negativo de si mesma, encontrar, em si mesma, aquilo que a nega. Vimos tal movimento em operao em outros momentos da Fenomenologia. Ele foi a nossa maneira de ler o imperativo idealista de duplicao entre a estrutura do objeto e a estrutura do Eu. Nossa tarefa ficou sendo a de compreender como isto se dar no interior de um movimento historicamente determinado de formao. Hegel inicia lembrando que se formar implica em acordar-se (gemss gemacht) com a efetividade, com a substncia, ou ainda, com um padro de conduta que tenha valor de espcie (Art) e que permita operaes valorativas que viabilizem a indicao de algo como um bem ou um mal. Tais operaes valorativas aparecem, no interior de prticas sociais, como ao feita em conformidade com dois princpios distintos: um o poder do Estado ou outro a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distino entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta tica aristocrtica, vinculada ao sacrifcio de Si pela honra dos princpios reais, apareceu, em solo europeu, como princpio virtuoso de formao em contraposio ao vnculo burgus acumulao de riqueza e propriedade. Pois Hegel quer mostrar como esta tica aristocrtica ir produzir as condies objetivas para o Iluminismo.
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Nesta perspectiva, o poder de Estado aparece como a substncia simples, a obra universal, a Coisa mesma, na qual enunciada aos indivduos sua essncia. Ele a absoluta base (Grundlage) do agir de todos. Por outro lado, a riqueza o que se dissolve no gozo de todos, gozo movido pelo egosmo de quem segue apenas seus prprios interesses imediatos (embora j vimos como Hegel contesta tal atomismo atravs da tematizao do sistema de necessidades). A conscincia pode optar pautar suas aes e julgamentos, seja a partir de um princpio, seja a partir do outro. Hegel lembra que estes princpios podem ser invertidos. Ao internalizar princpios de formao e conduta atravs da obedincia ao poder de Estado, a conscincia encontra aqui: sua simples essncia e substncia em geral, mas no sua individualidade como tal, Encontra nele, sem dvida, seu ser em-si, mas no seu ser para-si638. A obedincia aparece como opresso. A riqueza, ao contrrio, doadora de mil mos que tudo entrega conscincia e lhe permite o gozo da realizao de seu prprio projeto, ela a todos se entrega e lhes proporciona a conscincia de seu Si. Estas duas maneiras de julgar daro figuras distintas da conscincia: a conscincia nobre e a conscincia vil. Na aula passada, seguimos os desdobramentos da conscincia nobre. De fato, ela se v como o herosmo do servio, como a pessoa que renuncia posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivao do poder ao qual se sacrifica. Desta forma, ela d atualidade ao poder de Estado atravs de sua prpria ao. Em ltima instncia, a conscincia nobre que diz o que o poder de Estado , da porque Hegel afirma que este poder : ainda no possui nenhuma vontade particular, pois a conscincia-de-si servidora ainda no exteriorizou ser puro Si e assim vivificou o poder de Estado 639. A linguagem da conscincia nobre aparece pois como o conselho (Rat) dado pelo orgulhoso vassalo ao poder de Estado para a efetivao do bem comum. Hegel insiste pois que este sacrifcio da conscincia nobre no efetivamente um, j que conselho que dirige o poder de Estado (jogando com a ambiguidade) e que pauta suas aes a partir de um conceito de honra que vnculo ao outro. Neste contexto, vimos como Hegel fazia novamente aluso experincia da negatividade da morte como verdadeiro processo de formao. O verdadeiro processo de formao o sacrifcio que: s completo quando chega at a morte, sacrifcio no
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qual a conscincia se abandona to completamente quanto na morte, porm mantendose igualmente nesta exteriorizao640. Mas neste ponto, Hegel acrescenta uma reflexo extremamente importante. Ele afirma que atravs da linguagem que a conscincia realiza enfim este sacrifcio de si. Desta forma, a linguagem claramente enunciada como processo de exteriorizao e de auto-dissoluo da identidade que deve ser lido na continuidade das reflexes de Hegel sobre o trabalho:
Com efeito, a linguagem o Dasein do puro Si como Si, pela linguagem entra na existncia a singularidade sendo para si da conscincia-de-si, de forma que ela para os outros (...) Mas a linguagem contm o Eu em sua pureza, s expressa o Eu, o Eu mesmo. Esse Dasein do Eu uma objetividade que contm sua verdadeira natureza. O Eu este Eu mas, igualmente, o Eu universal. Seu aparecer ao mesmo tempo sua exteriorizao e desaparecer e, por isto, seu permanecer na universalidade (...) seu desaparecer , imediatamente, seu permanecer641.
Ou seja, aps ter dito, na seo anterior da Fenomenologia, que a linguagem era uma exteriorizao na qual o indivduo no se conservava mais, abandonando seu interior a Outro, Hegel afirma agora o inverso, ou seja, que a linguagem o Dasein do Si como Si. No entanto, esta contradio apenas aparente, pois a linguagem perde seu carter de pura alienao quando compreendemos o Eu no como interioridade, mas como aquilo que tem sua essncia no que se auto-dissolve. Ao falar do Eu que acede linguagem como um universal, Hegel novamente se serve do carter de ditico de termos como Eu, isto, agora etc. Eu uma funo de indicao a qual os sujeitos se submetem de maneira uniforme. Ao tentar dizer eu, a conscincia desvela a estrutura de significante puro do Eu, esta mesma estrutura que o filsofo alemo chama de : nome como nome. Uma natureza que transforma toda tentativa de referncia-a-si em referncia a si para os outros e como um Outro. Este eu enquanto individualidade s pode se manifestar como o que est desaparecendo em um Eu universal. Novamente, Hegel se serve da lgica dos diticos para falar daquilo que essencial nos usos da linguagem. A peculiaridade de nossa passagem que ela ainda servir para que Hegel
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mostre uma situao de prtica social na qual o Eu se apresenta integralmente em uma linguagem que no expressa sua individualidade: trata-se da lisonja. Hegel fez tais consideraes sobre a linguagem para poder introduzir uma mudana maior na relao entre a conscincia nobre e o poder de Estado com o advento da monarquia absoluta. A conscincia nobre no mais tenta, atravs da linguagem do conselho, determinar a vontade de um poder do Estado que passa condio de Eu deliberante e universal em sua singularidade: nico nome prprio diante de nomes sem singularidade. O nome do monarca pura vontade que decide. Desta forma: o herosmo do servio silencioso torna-se o herosmo da lisonja, de um alienar-se, atravs da bajulao, vontade de um Outro (Hegel pensa sobretudo na nobreza palaciana de Versailles sob Luis XIV):
V sua personalidade como tal dependendo da personalidade contingente de um Outro; do acaso de um instante, de um capricho, ou alis de uma circunstncia indiferente. No Estado de direito, o que est sob o poder da essncia objetiva aparece como um contedo contingente do qual se pode abstrair e o poder no afeta o Si como tal, mas o Si antes reconhecido. Porm aqui o Si v a certeza de si, enquanto tal, ser o mais inessencial e a personalidade pura ser a absoluta impessoalidade642.
Ou seja, do Senhor do mundo ao monarca absoluto, temos um aprofundamento da apropriao reflexiva da natureza dilacerada da conscincia. Pois, aqui, a
conscincia nobre se encontrar to dilacerada quanto a conscincia vil, embora este dilaceramento seja condio para a determinao da verdade da conscincia, at porque: a conscincia-de-si s encontra sua verdade no seu dilaceramento absoluto. Mas este dilaceramento dever ainda durar um pouco mais. O sobrinho de Rameau
neste contexto que Hegel recorre novamente a uma figura literria (como j havia feito com Fausto e Antgona), mas agora para dar conta do modo com que a linguagem aparece, em prticas sociais historicamente determinadas, como o que desvela a verdadeira natureza do Esprito. O exemplo no deixa de ser surpreendente, j ele no
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outro que a estetizao deste momento em que o Iluminismo depara-se, em sua aurora, com um processo geral de inverso de suas expectativas normativas atravs da ironizao cnica das condutas e valores que aspiram validade incondicional, racional e universal. Inverso capaz de abrir uma profundeza sem fundo onde desvanece toda a firmeza e substncia643 que transforma a fora (performativa) do falar, a respeito da qual alude Hegel, em processos de dissoluo de toda determinidade. Tudo se passa como se fosse neste momento que Hegel identifica-se, pela primeira vez, a primeira manifestao histrica de uma dialtica que o prprio Hegel tentar colocar nos eixos. Como se o filsofo, mais uma vez no interior desta longa histria de combate entre a filosofia e seu outro, deixasse que o anti-filsofo apresentasse suas armas para, posteriormente, aproveitar-se delas. Este exemplo, ns sabemos, a pea de Diderot: O sobrinho de Rameau.
Aps o ocaso do cinismo grego e o retorno do cinismo na Roma Imperial, seja na forma de movimento crtico de massas, seja na forma literria (Luciano e a stira menipia), o cinismo teve que esperar o iluminismo francs para reaparecer como inspirao filosfica relevante. Esta recuperao do cinismo, que chegou a transformar Digenes em heri popular na iconografia da Revoluo francesa, deve ser compreendida no interior do quadro de articulao da crtica iluminista. A parresia cnica com seu sarcasmo em relao aos preconceitos sexuais, religiosos, morais e polticos e autoridade aparecer como ponto de orientao da crtica no iluminismo. Por outro lado, a autarkeia, figura privilegiada da crena na autonomia do indivduo, assim como o cosmopolitismo cnico funcionaro como horizontes reguladores para a ao iluminista em suas aspiraes crticas. No entanto, esta aproximao entre iluministas e cnicos no foi um processo simples, j que tambm se inscrevia em uma economia de desqualificao das Luzes pelos anti-iluministas. Neste sentido, a posio ambgua de Rousseau (que chegou a ser chamado por Kant de Digenes sutil devido sua moral de forte inspirao naturalista e por Frederico da Prssia de membro da seita de Digenes devido a seu modo de crtica da cultura) e de Voltaire em relao ao cinismo podem ser explicadas. J DAlembert
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tinha uma preferncia bem conhecida pelo cinismo, onde ele reconhecia o ideal de autonomia. Toda era, dir DAlembert, e, principalmente, a nossa precisa de um Digenes. No entanto, Diderot quem ocupa um lugar especial nesta discusso, no apenas pelas afinidades evidentes da sua escrita com a stira menipia, mas sobretudo por sua reflexo a respeito da herana cnica nas aspiraes crticas do iluminismo e suas possibilidades de inverso. De fato, o sarcasmo cnico diante das imposturas do poder aparece para Diderot como mtodo e a moral naturalista aparece como um certo horizonte de reconciliao. O que pode nos explicar porque o artigo da Enciclopdia dedicado aos cnicos termina com um elogio a estes entusiastas da virtude capazes de transportar para o meio da sociedade os costumes do estado de natureza 644. Mas Diderot compreendeu, na aurora das Luzes, como uma crtica inspirada nos mbiles do cinismo grego poderia nos levar a um impasse. Neste sentido, O sobrinho de Rameau , sem dvida, um documento central. Pois podemos ler O sobrinho de Rameau como o exemplo mais claro da afirmao de Niehues-Prbsting: No cinismo, o Iluminismo descobre o perigo de uma razo pervertida, razo transformando-se em irracionalidade, razo frustrando-se devido s suas expectativas muito exaltadas. O iluminismo conscientiza-se desta ameaa atravs de sua afinidade com o cinismo. A reflexo sobre o cinismo providencia uma pea necessria de auto-reconhecimento e auto-crtica645. Podemos fazer tal afirmao porque, de uma certa forma, tanto a posio do sobrinho quanto a posio do filsofo so articuladas sob a gide do cinismo. O sobrinho chega a dizer, no inicio da pea, que: estaria melhor entre Digenes e Frinia, pois sou atrevido como o primeiro e freqento com gosto a casa dos outros646. No final da pea, o filsofo procura inverter a direo e convocar o cinismo para servir de base de crtica ao amoralismo cnico do sobrinho: H um ser dispensado da pantomima. o filsofo [cnico] que nada tem e nada demanda647. Como se um falso e um verdadeiro cinismo estivessem postos em rota de confrontao. O que corrobora aquilo que Diderot havia escrito no captulo da Enciclopdia dedicado ao cinismo: os falsos cnicos foram uma populaa de bandidos travestidos de filsofos, e os cnicos antigos, pessoas muito honestas que no merecem seno uma censura qual geralmente no se encoraja: a de terem sido entusiastas da virtude.
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ENCICLOPDIE, volume IV, p. 198 NIEHUES-PRBSTING, The modern reception of cynicism, p. 333 646 DIDEROT, Le neveu de Rameau, p. 49 647 idem, p. 129
Tal duplicidade demonstra como o que estar em jogo na pea a possibilidade da crtica esclarecida realizar suas aspiraes de emancipao, recorrendo para isto autarkeia cnica, ou de inverter-se em seu contrrio, caindo assim sob a desarticulao da fora performativa da crtica. Processo ainda mais complexo porque, como nos lembra Torres Filho, aqui: a Ilustrao morde sua prpria cauda e gera seu Outro, mas sem que esse Outro, por ser gerado por ela, lhe seja necessariamente dcil648. Neste sentido, vale a pena acompanharmos de perto este embate entre a conscincia nobre do filsofo e a conscincia vil do sobrinho. Todos conhecemos a estrutura da pea. Dois personagens encontram-se no Caf Regence, perto do Palais Royal: um (eu) honnte homme e filsofo esclarecido com aspiraes moralizantes, outro (ele) Jean-Franois Rameau, sobrinho do grande JeanPhillipe Rameau, msico medocre, inconstante, amoral e figura sempre presente nos sales da nobreza devido ao seu poder infinito de bajulao. A pea inteira um grande dilogo entre os dois, no qual questo da vida dos sales parisienses, das querelas musicais da poca e, principalmente, da maneira com que o sobrinho realiza de maneira invertida todos os argumentos morais do filsofo esclarecido. exatamente esta maneira de voltar as armas da razo contra o prprio esclarecimento, auto-crtica da razo que produz apenas o bloqueio dos processos emancipatrios e das possibilidade de reorientao da conduta, que transformou a pea em momento chave de auto-compreenso do projeto iluminista. A sua maneira, Diderot j nos coloca, na aurora das Luzes, diante de uma falsa conscincia esclarecida, algum que fala como um aufklrer e age como uma falsa conscincia, clivagem que levou Hegel a ver aqui o exemplo supremo de uma conscincia dilacerada, mas sem a tragdia de uma conscincia infeliz. E foi exatamente este carter de ilustrao de um bloqueio do esclarecimento que marcou sua recepo em solo alemo atravs da traduo feita por Goethe em 1804 (que, de fato, a primeira publicao desta pea que s ter uma primeira verso francesa em 1821) e comentada, em primeira mo, por Hegel na Fenomenologia do Esprito649. O primeiro ponto a ser levantado a maneira com que Rameau aparece como uma espcie de duplo do filsofo. Ele tem a mesma formao que o filsofo esclarecido
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TORRES FILHO, Ensaio de filosofia ilustrada, p. 69. A histria do texto comporta um grande priplo. Aps a morte de Diderot, Mme de Vandeul manda um lote de manuscritos para Catarina II da Rssia. Nele, estava o original de O sobrinho de Rameau. O manuscrito ser comprado por um oficial alemo que, por sua vez, passa-o ao editor Knoch de Riga e finalmente a irmo de Schiller. Este, compreendendo logo a importncia da pea, encomenda uma traduo Goethe, que ser publicada em 1804.
(ele l Teofrasto, La Bruyre e Molire). Os dois partilham o mesmo ceticismo em relao aos valores estabelecidos da vida social. Defender a ptria?, pergunta o filsofo, Vaidade. No h mais ptria. De um plo a outro, eu s vejo tiranos e escravos, responde Rameau. Ter um lugar na sociedade e realizar seus deveres?, continua o filsofo. Vaidade. Que importa termos lugar ou no, desde que sejamos ricos, pois s procuramos um lugar para sermos ricos650. Acrescente-se a esta lista o mesmo desprezo em relao moral sexual e aos valores religiosos. Proximidades ainda mais acentuadas se lembrarmos que vrias afirmaes e posies de Rameau so partilhadas pelo prprio Diderot em outros escritos, como o caso dos julgamentos musicais de Rameau contra seu tio. Isto a ponto de podermos falar de um espelhamento pacientemente construdo entre o filsofo ilustrado e o anti-filosofo cnico. tal espelhamento que leva Diderot a afirmar: louco, arquilouco, como possvel que na sua cabea ruim, encontre-se idias to justas misturadas com tanta extravagncia651. Como se o sobrinho fornecesse a imagem invertida do filsofo, uma imagem invertida da razo. neste sentido que devemos compreender a colocao de Hegel:
Esse esprito esta absoluta e universal inverso e alienao da efetividade e do pensamento da pura cultura. O que no mundo da cultura se experimenta que no tem verdade nem as essncias efetivas do poder e da riqueza, nem seus conceitos determinados, bem e mal, ou a conscincia do bem e a conscincia do mal, a conscincia nobre e a conscincia vil; seno que todos esses momentos se invertem, antes, um no outro, e cada um o contrrio de si652.
Hegel reconhece claramente um contedo de verdade nesta experincia, tanto que afirma, mais a frente, que: no entanto, o esprito verdadeiro justamente essa unidade dos absolutamente separados que zomba das determinaes normativas de uma razo fundada na figura do ordenamento jurdico. Como se fosse nesta experincia de inverso cnica que a dialtica encontrasse uma de suas razes. Neste sentido, no por acaso que esta maneira de Hegel descrever o dilaceramento de um esprito que tudo
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DIDEROT, idem, pp. 75-76 DIDEROT, idem, p. 69 652 HEGEL, Fenomenologia, par. 521
nega, que tudo inverte soe to prximo da maneira com que a dialtica fora compreendida: A dialtica aparecia como um fazer exterior e negativo que no pe5tencia Coisa mesma e que teria seu fundamento na si,ples vaidade entendida como uma tentativa subjetiva de fazer vacilar e dissolver o que firme e verdadeiro ou ao menos como um fazer que tenderia ao nada, entendido como a vaidade do objeto tratado dialeticamente653. Como se a tarefa hegeliana fosse salvar a fora do negativo desta figura de uma auto-dissoluo irnica do determinado. Mas, se voltarmos pea, veremos que esta auto-reconhecimento da razo em sua forma invertida nos explica, por exemplo, porque o filsofo, na pea, obrigado a afirmar: Havia em tudo isto muita coisa que se pensa, a partir das quais se conduz mas que no se diz. Ele reconhecia vcios que outros tem, mas no era hipcrita. Ele no era nem mais nem menos abominvel que eles, mas apenas mais franco e mais conseqente, e algumas vezes profundo na sua depravao654. Ou seja, no se tratava de hipocrisia no caso de Rameau. O que no deve nos surpreender. Afinal, a hipocrisia uma das mltiplas mscaras da insinceridade dos que escondem a particularidade do interesse atravs da universalidade do dever; mscara que cai atravs de uma crtica capaz de desvelar os verdadeiros interesses por trs da aparncia de universalidade, confrontando assim o texto ideolgico com o texto recalcado ao pontuar os ns sintomais nos quais se l a contradio performativa entre os procedimentos de justificao e o domnio da ao. No entanto, isto no pode dar conta da posio de Rameau, fundada toda ela na franqueza da enunciao da verdade, nesta franqueza fora do comum655 que faz tremer o filsofo por no ver seguir-se desta enunciao a reorientao da conduta que normalmente poderamos esperar.
Nada pode dizer-lhe [a conscincia simples e honesta do filsofo] que ele mesmo [Rameau] no saiba e no diga (...) essa conscincia [o filsofo], enquanto supe contradizer o contedo do discurso do esprito, apenas o resumiu de uma maneira trivial, carente de pensamento656. Como nos lembra Rubens Torres Filho: O cnico adere a seu discurso a tal ponto que no mente: no fala contra a verdade, pois no fala em nome dela; no
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HEGEL, Cincia da lgica I, DIDEROT, idem, p. 119 655 idem, p. 62 656 HEGEL, Fenomenologia, par. 523
moral nem imoral, pois no opera sobre o pressuposto dessa distino, no hipcrita: no esconde seu ser verdadeiro, pois no nada, no fundo, no tem nenhuma essncia657. O anti-filsofo cnico que Rameau nos coloca, na verdade, diante de uma enunciao da verdade desprovida de fora perlocucionria, uma enunciao que inverte os modos de indexao entre norma e caso. Pois ele capaz e inverter nossos modos de indexao entre critrios normativos e consequncias da ao, sem que isto implique necessariamente em uma contradio performativa, ou seja, em uma contradio entre aquilo que fao e que aquilo que digo. Ironizao significa assim ruptura entre expectativas de validade e determinaes fenomenais, ruptura que uma contradio posta que visa aparecer como contradio resolvida, como contradio resolvida no realismo cnico de quem diz: Estive um dia mesa de um ministro espirituoso do Rei de Frana, bem, ele nos demonstrou, claro como um e um so dois, que nada era mais til ao povo que a mentira, nada mais nocivo que a verdade658.Esta inconstncia e despreendimento irnico fruto da experincia do descompasso entre idia e efetividade. Ela ento enuncia , nesta instabilidade da indexao da idia, o carter formal dos valores que guiam a crtica ilustrada. Como nos lembra Paulo Arantes: O vazio, a vaidade tantas vezes salientada por Hegel, da conscincia dilacerada do sobrinho, que carece da experincia perversa a nos fiarmos na traduo de Verkherung por perverso, proposta por Hyppolite da vacuidade de todas as coisas para forrar sua prpria conscincia, espelha-se no formalismo discursivo, bem falante da raciocinao659.
Natureza e msica
Mas poderamos procurar determinar uma distino entre Rameau e o filsofo atravs do problema do fundamento da crtica. De uma certa forma, os dois partilham a temtica cnica da crtica ao nomos em nome da recuperao da phisis. O que uma boa educao, diz Rameau, a no ser aquela que conduz a todas as formas de gozo, sem perigo e sem inconveniente660. A phisis aparece aqui como espao de retorno a um gozo dos sentidos impossibilitado pela civilizao: beber bom vinho. engalfinhar -se
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TORRES FILHO, Ensaios de filosofia ilustrada, p. 58 DIDEROT, idem, p. 50 659 ARANTES, Ressentimento da dialtica, p. 35 660 idem, p. 121
com belas mulheres, dormir em leitos bem macios: o resto vaidade661. Como se o sobrinho apenas atualizasse esta crtica ao nomos que Clicles faz, diante de Scrates: este que quiser viver corretamente sua vida deve, de um lado, deixar suas paixes serem as maiores possveis e no mutil-las; ser capaz, por outro lado, de colocar a servio destas paixes as foras de sua energia e inteligncia. Em suma, dar a cada desejo a plenitude da satisfao (...) Sensualidade, licena, liberdade sem reservas: eis a virtude e a felicidade! Quanto ao resto, quanto a estas belas convenes humanas que esto em oposio com a natureza, isto apenas falatrio e no tem valor algum662. Contra esta phisis que legitima uma tica do excesso e do gozo, o filsofo procura retomar moral naturalista cnica articulada a partir da apatia e da dominao de si. E, de fato, este cinismo, o sobrinho parece desconhecer. O filsofo dir: H um ser que se dispensa da pantomima [e da lisonja]. o filsofo [cnico] que no tem nada e no pede nada (...) Digenes zombava das necessidades663. Pois, como sabemos, o recurso cnico phisis significa restrio, em especial, restringir o desejo quilo que prescrito pela natureza. Hegel lembra, no entanto, que esta maneira de procurar um solo para alm das inverses de Rameau atravs da recuperao de uma certa natureza tarefa fadada ao fracasso: Digenes no seu tonel est condicionado pelo mundo que procura negar664. Este recurso cnico phisis s pode fundar uma liberdade negativa que depende da perpetuao do nomos para se afirmar. A liberdade cnica no liberdade de fazer determinadas aes, mas principalmente liberdade em relao a certos objetos e paixes e nada mais abstrato do que estabelecer a distino entre o que da ordem da natureza e o que da ordem da cultura em matria de necessidades. A liberdade afirmase assim fundamentalmente enquanto afirmao da ausncia de vnculos ao nomos. Mas este conceito de liberdade negativa como dominao de si que se afirma atravs da negao ao nomos, isto , que depende da negao para por-se, encontra sua essencialidade exatamente l onde a negao opera. Da seu carter eminentemente abstrato que Hegel j havia criticado ocasio de suas colocaes sobre o estoicismo. E este carter abstrato que faz o filsofo ser obrigado a entrar continuamente em contradio quando o assunto so os prazeres, ora recusando-os, ora abraando-os: Eu no desprezo os prazeres dos sentidos. Tenho tambm um palcio e ele embelezado
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idem, p. 75 PLATO, Grgias, 492C 663 DIDEROT, idem, p. 130 664 HEGEL, Fenomenologia, par. 524
por iguarias delicadas e de um vinho delicioso. Tenho um corao e olhos, e amo ver uma bela mulher. Amo sentir em minhas mos a harmonia e delicadeza de sua garganta, pressionar seus lbios contra os meus, alimentar a volpia em seus olhos e expira-la entre seus braos665. Neste sentido, o filsofo ilustrado consciente de que a fundamentao da crtica em uma moral naturalista s pode nos levar a um impasse. O cinismo do sobrinho seria assim apenas o cinismo que passou pela experincia da impossibilidade da fundamentao da crtica em uma moral natural de estilo rousseauista. Neste sentido, seu contedo de verdade seria incontestvel. Tanto que a resposta exortao de retorno phisis feita pelo filsofo apelando ao exemplo de Digenes, ser um outro programa de retorno phisis enquanto espao de reconciliao com as necessidades: mas preciso de boa cama, de boa mesa, roupa quente no inverno, roupa fresca no vero, repouso, dinheiro e muitas outras coisas. Portanto prefiro deve-los benevolncia do que adquirilos pelo trabalho666. No entanto, h um ponto em que o filsofo e o sobrinho claramente conciliamse, e este ponto toca o problema de um certo recurso natureza. Trata-se da msica. Isto a ponto do filsofo afirmar: Como possvel que com um tato to fino, uma sensibilidade to grande para as belezas da arte musical, voc seja to cego para as belas coisas em moral, to insensvel aos charmes da virtude?667. Podemos mesmo dizer que as digresses sobre msica no so extemporneas ao embate central do texto, mas nos revelam um terreno no problemtico da crtica presente no solo esttico. Mas este terreno da crtica esttica fica como promessa no realizada na efetividade da vida social. Lembremos como, ao falar da msica italiana, o sobrinho dir : Que verdade! Que expresso!668. Mais a frente, ele advertir: Creia em tudo o que disse, pois a verdade669, E ainda: O verdadeiro, o bom, o belo tm seus direitos670. Que o vocabulrio da expressividade da verdade, ou seja, da parresia, entre na boca deste antifilsofo cnico, eis algo que deve surpreender. Ainda mais porque durante toda a digresso sobre a msica, os plos invertem-se no interior da pea. Ao perguntar: qual o modelo do msico quando ele faz um canto?, o filsofo reconhece sua inabilidade
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idem, p. 77 idem, p. 130 667 idem, p. 116 668 idem, p. 106 669 idem, p. 107 670 idem, p. 109
para responder questo e ouve atentamente a interveno segura do sobrinho que ir dar uma aula sobre a verdade em msica, pois do canto verdadeiro, do sublime que ser questo na interveno do sobrinho. E o que diz o sobrinho? Diderot serve-se aqui do sobrinho para dar vazo sua posio a respeito da querela que contrapunha Jean-Phillipe Rameau e defensores da opera italiana como Rousseau e Grimm. Grosso modo, trata-se de uma contraposio entre uma noo de modernidade musical vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progresso harmnica derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia contrapontstica controlada pelo centro harmnico, e uma reao que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofnica inspirada no canto. Posio rousseauista que Dahlhaus caracterizou bem: Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela msica, um racionalismo que quer programas, uma pintura musical na msica instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que se ope polifonia moderna, confusa e savant, uma simplicidade tocante da monofonia grega eis os compostos da esttica musical de Rousseau671. Para Rousseau, tratava-se, na verdade, de, atravs da defesa da centralidade da melodia, defender a estrutura mimtica da racionalidade musical. Mimetismo entre msica e a expresso natural da linguagem com suas entonaes e acentos. Isto o permite vincular a msica uma pedagogia da arte capaz de servir de veculo de formao moral por recuperar o vnculo entre natureza e cultura672. De maneira surpreendente, a esta vertente que o sobrinho de Rameau se vincular (neste sentido, contra seu tio). A verdade da procura da autenticidade que se perdeu no interior das prticas sociais. Lembremos por exemplo do que diz Rameau sobrinho a respeito da questo: qual o modelo da msica e do canto?: a declamao (...) quanto mais
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DAHLHAUS, idem, p. 49 Lembremos do que diz Rousseau : Quand on songe que, de tous les peuples de la terre, qui tous ont une musique et un chant, les Europens sont les seuls qui aient une harmonie, des accords, et qui trouvent ce mlange agrable ; quand on songe que le mode a dur tant de sicles, sans que, de toutes les nations qui ont cultiv les beaux-arts, aucune ait connu cette harmonie ; qu'aucun animal, qu'aucun oiseau, qu'aucun tre dans la nature ne produit d'autre accord que l'unisson, ni d'autre musique que la mlodie ; que les langues orientales, si sonores, si musicales, exerces avec tant d'art, n'ont jamais guid ces peuples voluptueux et passionns vers notre harmonie ; que sans elle leur musique avait des effets si prodigieux ; qu'avec elle la ntre en a de si faibles ; qu'enfin il tait rserv des peuples du Nord, dont les organes durs et grossiers sont plus touchs de l'clat et du bruit des voix que de la douceur des accents et de la mlodie des inflexions, de faire cette grande dcouverte et de la donner pour principe toutes les rgles de l'art ; quand, dis-je, on fait attention tout cela, il est bien difficile de souponner que toute notre harmonie n'est qu'une invention gothique et barbare, dont nous ne nous fusions jamais aviss si nous eussions t plus sensibles aux vritables beauts de l'art et la musique vraiment naturelle
esta declamao ser forte e verdadeira, quanto mais o canto que a ela se conforma cort-la em um maior nmero de ponto, mais o canto ser verdadeiro e belo673. Estas no parecem palavras de um cnico desencantado. Mas ela nos revela que o impulso cnico (no sentido moderno) pode conviver com uma nostalgia da verdade como expresso imanente que se guarda na arte. O cinismo demonstra assim sua nostalgia da imanncia como critrio de validao dos julgamentos, uma imanncia que s seria possvel na arte. Talvez isto nos permita ver no cinismo no exatamente um amoralismo, mas uma espcie de hiper-moralismo que reconhece sua impossibilidade em se realizar no campo da convivncia social e que, com isto, volta-se, por exemplo, para uma hipermoralizao da arte. Um pouco como se Rameau sobrinho fosse de fato um cnico grego que passou pela experincia da inconsistncia do recurso phisis como espao positivo de doao de sentido e de fundamentao dos julgamentos. Ele perde assim o solo que permitiria uma orientao segura para a submisso das significaes a designaes de essencialidade, operao que vimos ser a base da teoria cnica da linguagem. A partir deste momento, o descompasso entre idia e efetividade faz-se sentir de uma maneira cada vez mais forte.
Se assim for, ento O sobrinho de Rameau nos colocaria diante do seguinte problema: o que acontece quando a razo parece perder o solo que garantiria seus processos de fundamentao, o solo que garantiria a indexao no-problemtica entre idia e efetividade? Uma das respostas : ela transforma-se em ironizao absoluta das condutas. isto que Hegel tem em mente ao afirmar:
O contedo do discurso que o esprito profere de si mesmo e sobre si mesmo , assim, a inverso de todos os conceitos e realidades, o engano universal de si mesmo e dos outros. Justamente por isso, o descaramento de enunciar essa impostura a maior verdade674.
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Sabemos que a parresia cnica enquanto prtica de formao daquele a quem o falar da verdade se enderea estava absolutamente indissociada do riso. O humor aparecia como a maneira correta de dizer aquilo que da ordem da verdade, humor que inverte designaes e que esvazia significaes. O que nos explica porque as formas da transmisso filosfica dos cnicos estavam todas vinculadas a modos humorsticos. Bakhtin v, na forma humorstica dos filsofos cnicos, as marcas do humor popular contra as instauraes do gnero pico: precisamente o humorista que destri o gnero pico, e geralmente destri toda distncia hierrquica675. Neste processo de destruio, at mesmo a fixidez da imagem de si, imagem construda no gnero pico atravs da identificao com um misso simblica que deve ser assumida pelo sujeito, abalada. Isto permite que o sujeito: adquira a iniciativa ideolgica e lingstica necessria para mudar a natureza de sua prpria imagem676. Mas ao perder o enraizamento da parresia em uma moral naturalista, a crtica se v diante de uma ironizao de toda determinidade. A dissoluo irnica de toda determinidade aparece inicialmente na imagem de si fornecida pelo sobrinho: Nada mais dessemelhante dele mesmo do que ele mesmo, dir o filsofo. Trata-se de um composto de altivez e baixeza, de bom senso e desrazo. necessrio que as noes de honesto e desonesto estejam estranhamente embaralhadas na sua cabea677. Mais a frente, encontraremos o mesmo tipo de julgamento: Eu estava confuso com tanta sagacidade e tanta baixeza, idias to justas e alternativamente to falsas678. Ou seja, Rameau fornece uma imagem dilacerada de si, imagem irnica que no se acomoda a nenhum princpio de identidade. Hegel ver aqui este abismo interior, uma profundidade sem fundo onde desvanece toda firmeza e substncia. Ironizao absoluta que faz com que o sujeito nunca esteja l onde seu dizer aponta e que, por isto, no outra coisa que uma linguagem do dilaceramento na qual:
uma s e mesma personalidade (Persnlichkeit) tanto sujeito quanto predicado. Mas estes juzo idntico , ao mesmo tempo, o juzo infinito [um juzo do tipo o esprito um osso]; pois essa personalidade est absolutamente cindida, e o sujeito e o predicado so pura e simplesmente entes indiferentes que nada tm a
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BAKHTIN, The dialogical imagination, p. 23 BAKHTIN, idem, p. 38 677 DIDEROT, idem, p. 46 678 idem, p. 62
ver um com o outro, a ponto de cada um ser a potncia de uma personalidade prpria679.
Maneira hegeliana de afirmar que as determinaes atributivas do predicado esto cindidas em relao idia que se aloja na posio de sujeito. Isto que Hegel tem em vista a afirmar que o ser para-si se pe como objeto enquanto Outro, no que tenha outro contedo, mas seu contedo o prprio Si em absoluta oposio. Em outro contexto, isto poderia ser a prpria realizao do conceito de esprito, at porque, esta ciso consciente-de-si, ela no se d mais s costas da conscincia,. No entanto, o esprito no se realiza porque a ciso posta ironicamente. Como se o sujeito afirmasse que aquilo que dado a ver jogo de aparncias postas enquanto tais. neste ponto que a crtica a esta figura da conscincia ganha fora. Hegel o dilaceramento da conscincia o riso sarcstico sobre o Dasein e sobre ela mesma. Riso de quem conhece o substancial como pura desunio e conflito. No entanto, dir Hegel esta conscincia no compreende o que conhece, pois no v o conflito, que permite a inverso de tudo em seu contrrio, como o resultado de uma desarticulao dos princpios de orientao do pensar da prpria conscincia. Ela continua orientando seus julgamento por uma noo de unidade que ,esta sim, irreal (o sentido dos julgamentos musicais de Rameau). neste sentido que devemos compreender a afirmao central: Enquanto conhece o espiritual pelo lado da desunio e do conflito que o Si unifica dentro de si, mas no o conhece pelo lado dessa unio, sabe muito bem julgar o substancial, mas perdeu a capacidade de compreend-lo. Essa vaidade necessita pois da vaidade de todas as coisas para se proporcionar, a partir delas, a conscincia do Si: ela mesmo portante produz essa vaidade e a alma que a sustm (...) Esse Si a natureza de todas as relaes que se dilaceram a si mesma e o dilacerar consciente delas680.
Pois a conscincia deve agora passar da Verkehung que tudo dissolve Aufhebunf que conserva o que nega trazendo, com isto, um conceito renovado de identidade. Mas para tanto ainda muito haver a se trilhar.
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Curso Hegel Aula 29 Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentrio da subseo O Esprito alienado de Si: a cultura, terminando a primeira parte da subseo, esta intitulada O mundo do Esprito alienado de si e dando conta da segunda parte: O iluminismo. Para a aula que vem, ficar o comentrio da ltima parte, esta dedicada reflexo fenomenolgica sobre a Revoluo Francesa, A liberdade absoluta e o terror, assim como o comentrio da primeira parte da ltima subseo da seo Esprito, esta intitulada O Esprito certo de Si: a moralidade. Parte esta onde Hegel procura dar conta do que ele denomina de Viso moral do mundo no interior do idealismo alemo. Desta forma, terminaremos este curso comentando as figuras da conscincia-de-si que finalizam a seo Esprito, como a Gewissen, a bela alma e o confronto entre m conscincia e conscincia do dever, isto a fim de mostrar como as questes postas neste momento da Fenomenologia nos levaro diretamente tematizao correta do que Hegel entende por Saber Absoluto. Ns vimos, desde o incio do comentrio da seo Esprito como Hegel procura constituir um trajeto de formao histrica da conscincia que s ganha inteligibilidade se o compreendermos como o desdobramento histrico dos modos com que sujeitos se inserem e absorvem regimes de racionalidade encarnados em instituies e prticas sociais, constituindo sistemas de expectativas e regimes de ao orientada por razes para agir. Partimos da ruptura das expectativas depositadas na eticidade da polis grega devido confrontao entre dois princpios que se transformam em antagnicos no interior da polis: a lei humana da comunidade e a lei divina da famlia. Vimos como expectativas universalizantes de reconhecimento depositadas, de maneira imperfeita, na lei divina nos levaram ao reconhecimento do universal abstrato da pessoa no estado romano de direito. Modo de reconhecimento que, por sua vez, permitiu o advento de uma experincia da interioridade que ser fundamental para a constituio do princpio moderno de subjetividade. Era atravs desta experincia de distanciamento do mundo resultante da posio da interioridade como espao privilegiado para a singularidade da subjetividade que entramos na segunda subseo intitulada, no por outra razo: O esprito alienado de si: a cultura. O mundo tem aqui a determinao de ser algo exterior (usserliches), o
negativo da conscincia-de-si, dizia Hegel a fim de dar conta do teor de toda esta subseo que visa cobrir este perodo histrico que vai da Alta Idade Mdia at os desdobramentos da Revoluo Francesa. Teor marcado pelo esforo da conscincia em se reconciliar com o mundo, nem que seja s custas de uma reconstruo, de uma formao revolucionria do mundo social e das prticas de interao social, impulso este de formao dependente de uma reflexo filosfica de larga escala sobre a essncia e seus modos de relao com a subjetividade. Vimos como Hegel iniciava lembrando que se formar implica em acordar-se (gemss gemacht) com a efetividade, com a substncia, ou ainda, com um padro de conduta que tenha valor de espcie (Art) e que permita operaes valorativas que viabilizem a indicao de algo como um bem ou um mal. Tais operaes valorativas aparecem, no interior de prticas sociais, como ao feita em conformidade com dois princpios distintos: um o poder do Estado ou outro a riqueza (Reichtum). De fato, Hegel opera tal distino entre poder de Estado e riqueza porque tem em vista a maneira com que a conduta tica aristocrtica, vinculada ao sacrifcio de Si pela honra dos princpios reais, apareceu, em solo europeu, como princpio virtuoso de formao em contraposio ao vnculo burgus acumulao de riqueza e propriedade. Hegel ento procurava analisar se a tica aristocrtica da honra podia, atravs de sua ao, realizar seu prprio conceito. tica que se via como herosmo do servio, ou seja, como a pessoa que renuncia posse e ao gozo de si mesma em prol da efetivao do poder ao qual se sacrifica. No entanto, partindo desta noo j apresentada na seo razo, de que a ndividualidade o princpio universal de inverso, Hegel lembra que este servio em nome do universal era servio em nome do universal a partir da perspectiva do particular. Hegel insiste pois que este sacrifcio da conscincia nobre no efetivamente um, j que conselho que dirige o poder de Estado, jogando com a ambigidade que permite a introduo de interesses particularistas. Vimos ento como o verdadeiro sacrifcio (j que o caminho de formao para a cultura de fato um caminho marcado por um certo sacrifcio resultante daquilo que, no campo fenomenolgico, descrito como confrontao com a morte enquanto negao absoluta de toda determinidade) s poder ser feito quando a conscincia se pr, de maneira integral, no interior da linguagem, quando ela compreender a linguagem como: o Dasein do puro Si como Si. Pois, desta forma, atravs da sua posio na linguagem,
a conscincia passa condio de Eu universal, isto no sentido de Eu imediatamente reconhecido por um Outro que figura do campo de interaes sociais. Mas para que a linguagem seja capaz de realizar tais expectativas, faz-se necessrio que ela seja compreendida, em sua fora performativa de produo e determinao de identidades, assim como a fora performativa de engajamento em condutas, a partir de uma perspectiva especulativa. Alm do que, Hegel precisa mostrar que tal perspectiva especulativa de compreenso da linguagem foi realizada historicamente, ou seja, ela foi capaz de fornecer o fundamento para a constituio de processos sociais de formao e de re-compreenso de instituies. Tarefa dupla que Hegel, at agora, adiou. Na aula passada, vimos como Hegel identificava a primeira manifestao deste regime de funcionamento da linguagem, ou seja, uma manifestao ainda imperfeita, atravs daquilo que ele chama de linguagem do dilaceramento (Sprache der Zerrisenheit), ou seja, linguagem da ironizao de toda determinidade e de dissoluo de todo contedo. Linguagem que Hegel compreende como a figura de um certo modo de socializao marcado pela ironizao absoluta das condutas resultante da apreenso reflexiva do colapso da tica artistocrtica da honra e, conseqentemente, da internalizao reflexiva da ausncia de fundamento seguro para a formao do Eu a partir de um padro legtimo de valorao. Esta linguagem do dilaceramento, Hegel a identificava em operao na era da monarquia absoluta francesa com sua nobreza palaciana reduzida condio de agregado. Um importante comentrio de uma pea de Diderot, O sobrinho de Rameau, serviu como ilustrao do que Hegel tinha em mente. Vimos na aula passada, como Hegel identificava um contedo de verdade nesta linguagem dilacerada da ironia:
Mas a linguagem do dilaceramento a linguagem perfeita e o verdadeiro esprito existente de todo esse mundo da cultura. Esse esprito esta absoluta e universal inverso e alienao da efetividade e do pensamento da pura cultura. O que no mundo da cultura se experimenta que no tem verdade nem as essncias efetivas do poder e da riqueza, nem seus conceitos determinados, bem e mal, ou a conscincia do bem e a conscincia do mal, a conscincia nobre e a
conscincia vil; seno que todos esses momentos se invertem, antes, um no outro, e cada um o contrrio de si681.
Hegel reconhece claramente um contedo de verdade nesta experincia, tanto que afirma, mais a frente, que: no entanto, o esprito verdadeiro justamente essa unidade dos absolutamente separados que zomba das determinaes normativas de uma razo fundada na figura do ordenamento jurdico. Ironizao significa assim ruptura entre expectativas de validade e determinaes fenomenais, ruptura que uma contradio posta que visa aparecer como contradio resolvida. Como se fosse nesta experincia de inverso cnica que a dialtica encontrasse uma de suas razes. Hegel havia colocado todo este desenvolvimento da Fenomenologia do Esprito sob o signo de uma reflexo sobre a posio da conscincia-de-si no interior da linguagem enquanto processo de sacrifcio de si que era, ao mesmo tempo, um processo de formao. Este sacrifcio de si resultante do fato de se pr no interior de uma linguagem dilacerada da ironizao , na verdade, sacrifcio da imagem de si, sacrifcio da determinao esttica de si em uma determinidade identitria:
O contedo do discurso que o esprito profere de si mesmo e sobre si mesmo , assim, a inverso de todos os conceitos e realidades, o engano universal de si mesmo e dos outros. Justamente por isso, o descaramento de enunciar essa impostura a maior verdade682.
Ou seja, neste processo de dissoluo, at mesmo a fixidez da imagem de si abalada. Hegel atento ao fato da dissoluo irnica de toda determinidade aparecer na imagem de si fornecida pelo sobrinho de Rameau: Nada mais dessemelhante dele mesmo do que ele mesmo, dir o filsofo. Trata-se de um composto de altivez e baixeza, de bom senso e desrazo. necessrio que as noes de honesto e desonesto estejam estranhamente embaralhadas na sua cabea683. Mais a frente, encontraremos o mesmo tipo de julgamento: Eu estava confuso com tanta sagacidade e tanta baixeza, idias to justas e alternativamente to falsas684. Ou seja, Rameau fornece uma imagem dilacerada de si, imagem irnica que no se acomoda a nenhum princpio de identidade.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 521 HEGEL, Fenomenologia, par. 522 683 DIDEROT, idem, p. 46 684 idem, p. 62
Hegel ver aqui este abismo interior, uma profundidade sem fundo onde desvanece toda firmeza e substncia. Ironizao absoluta que faz com que o sujeito nunca esteja l onde seu dizer aponta e que, por isto, no outra coisa que uma linguagem do dilaceramento na qual:
uma s e mesma personalidade (Persnlichkeit) tanto sujeito quanto predicado. Mas estes juzo idntico , ao mesmo tempo, o juzo infinito [um juzo do tipo o esprito um osso]; pois essa personalidade est absolutamente cindida, e o sujeito e o predicado so pura e simplesmente entes indiferentes que nada tm a ver um com o outro, a ponto de cada um ser a potncia de uma personalidade prpria685.
Maneira hegeliana de afirmar que as determinaes atributivas do predicado esto cindidas em relao idia que se aloja na posio de sujeito. Isto que Hegel tem em vista a afirmar que o ser para-si se pe como objeto enquanto Outro, no que tenha outro contedo, mas seu contedo o prprio Si em absoluta oposio. Em outro contexto, isto poderia ser a prpria realizao do conceito de esprito, at porque, esta ciso consciente-de-si, ela no se d mais s costas da conscincia,. No entanto, o esprito no se realiza porque a ciso posta ironicamente. neste ponto que a crtica a esta figura da conscincia ganha fora. Hegel o dilaceramento da conscincia o riso sarcstico sobre o Dasein e sobre ela mesma. Riso de quem conhece o substancial como pura desunio e conflito. No entanto, dir Hegel esta conscincia no compreende o que conhece, pois no v o conflito, que permite a inverso de tudo em seu contrrio, como o resultado de uma desarticulao dos princpios de orientao do pensar da prpria conscincia. Ela continua orientando seus julgamento por uma noo de unidade e de relao que, esta sim, irreal e nunca problematizada. neste sentido que devemos compreender a afirmao central: Enquanto conhece o espiritual pelo lado da desunio e do conflito que o Si unifica dentro de si, mas no o conhece pelo lado dessa unio, sabe muito bem julgar o substancial, mas perdeu a capacidade de compreend-lo. Essa vaidade necessita pois da vaidade de todas as coisas para se proporcionar, a partir delas,
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idem, p. 56
a conscincia do Si: ela mesmo portanto produz essa vaidade e a alma que a sustm (...) Esse Si a natureza de todas as relaes que se dilaceram a si mesma e o dilacerar consciente delas686.
Ou seja, este processo de formao ainda imperfeito porque o sacrifcio de si foi, na verdade, sacrifcio da imagem de si, e no sacrifcio do que fornece ao Si a segurana ontolgica de sua posio. Posio que vimos, desde a discusso hegeliana sobre a noo kantiana de categorias, isto na seo Razo, est vinculada intuio imediata de estruturas lgicas gerais para o pensar (vinculadas a noes de identidade, relao, diferena, unidade). Tal como no ceticismo, a negao no nvel fenomenolgico no se eleva ao nvel ontolgico e este o problema central. O que permite que o sujeito, que se dilacera no nvel fenomenolgico, ainda guarde uma certa segurana transcendental prpria, ao menos segundo Hegel, ao uso totalizante da linguagem irnica. Da porque Hegel poder dizer:
A conscincia dilacerada em si apenas a igualdade consigo mesmo da pura conscincia, isto para ns, mas no para si mesma. Ela somente a elevao imediata, ainda no realizada (vollendente) dentro de si, e possui seu princpio oposto pelo qual condicionada (bedingt), apenas dentro de si, mas no como mestre do movimento mediador (vermittelte Bewegung) [diferena absoluta que, imediatamente, no diferena alguma].687
F e saber
Podemos dizer que a partir desta exigncia de elevar a negao, do nvel fenomenolgico ao nvel lgico, que nosso texto ser impulsionado. No entanto, tal exigncia s ser realizada ao final da seo Esprito, ocasio das discusses a respeito da noo, central para o idealismo alemo, de moralidade. Antes, Hegel precisa dar conta de um duplo desdobramento da auto-dissoluo do mundo da cultura atravs da ironizao. Este duplo desdobramento o objeto do final desta parte O mundo do Esprito alienado de si e diz respeito ao conflito entre dois princpios de valorao e formao: a f (Glauben) e a pura inteleco (Einsicht a traduo brasileira optou por
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inteligncia, a inglesa por insight; de qualquer forma, a idia fundamental aqui uma operao de apreenso intelectual). Hegel ento inicia dizendo:
O esprito da alienao de si tem seu Dasein no mundo da cultura, porm quanto este todo se alienou de si mesmo, para alm dele est o mundo inefetivo da pura conscincia ou do pensar. Seu contedo o puramente pensado, e o pensar, seu elemento absoluto688.
Este mundo inefetivo do pensar , na verdade, o segundo princpio, que havia sido posto j na introduo nossa subseo e no qual a interioridade se alojara. Ele aparece agora como alternativa desarticulao de um processo de formao vinculado ao mundo da cultura. Contra a ausncia de fundamento de tal processo de formao, a conscincia pode procurar afastar-se do mundo atravs do puro pensar. Mas, neste contexto, no se trata de recuperar alguma forma de estoicismo, figura da conscincia para a qual a essncia era exatamente a pura forma do pensar. Pois aqui, a conscincia sabe que a essncia, mesmo tendo seu fundamento alm da efetividade, vale como essncia efetiva que reconfigura o mundo. No entanto, esta essncia efetiva se pe apenas como objeto de f (Glauben): essa efetividade da essncia apenas uma efetividade da pura conscincia, e no da conscincia efetiva. Hegel pensa, aqui, nestas figuras histricas de recuperao do emotivismo da f contra a ausncia de fundamento do mundo da cultura (janseismo, pietismo etc.) Neste sentido, Hegel distingue f e religio. No contexto do nosso texto, a f aparece como uma certa fuga do mundo em direo interioridade da pura conscincia. J a religio, para a qual Hegel dedicar toda uma seo no Fenomenologia, a primeira manifestao de expectativas de fundamentao absoluta e incondicional de prticas sociais e critrios de justificao. A conscincia compreende a perspectiva universalista com a qual ela se relaciona: como a perspectiva do olho de Deus que, se algum alcan-lo, ser capaz de afirmar o que verdadeiro e vlido, assim como o que no 689. Fundamentao imperfeita pois ainda marcada pelo pensamento da representao. Mas caminho necessrio em direo realizao da cincia. De qualquer forma, percebemos que, para Hegel, filosofia e religio so diferentes formas de prticas sociais atravs das quais sujeitos procuram alcanar reflexivamente a
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posio do que fundamenta, de maneira absoluta, suas condutas e julgamentos. Mais a frente, Hegel reconhecer que a essncia da f o esprito da comunidade, mas o sentido de tal determinao essencial ainda no est presente para a prpria conscincia crente. Hegel lembra ento que, enquanto fuga do mundo, a f determinidade da oposio que tem, em si, o mundo que, continuamente, nega. Ela o tem em sua verdade espiritual:
A pura conscincia justamente a reflexo a partir do mundo da cultura, de modo que a substncia deste mundo, bem como as massas em que se articula, se mostram como so em si: como essencialidades espirituais, como movimentos absolutamente irriquietos ou determinaes que imediatamente se superam em seu contrrio690.
No entanto, a f coloca a essncia para alm destas determinidades que passam incessantemente em seu contrrio, embora ela ainda no veja tais passagens como um dos modo de manifestao da essncia. O que Hegel insiste ao afirmar:
o esprito segundo sua verdade , em uma unidade indivisa, tanto o movimento absoluto e a negatividade de seu aparecer, quanto sua essncia satisfeita em si mesma e sua quietude passiva.691
Neste ponto, Hegel lembra que estes dois movimentos da essncia iro aparecer de maneira separada, embora tenham a mesma fonte. O primeiro movimento ser a f, o segundo a pura inteleco. A pura inteleco esta essncia interior satisfeita em uma quietude passiva. Como ela nasce de um afastamento do mundo da cultura, de incio ela no tem contedo em si mesma, seu objeto o puro Eu enquanto fonte do conceituar, isto no sentido de que o objeto s ter verdade para ela na medida em que tiver a forma do Eu (tal como vimos no caso da anlise hegeliana das categorias). Lembremos aqui novamente deste postulado idealista central: a estrutura do objeto deve duplicar a estrutura do Eu.
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J a f ir aparecer tambm como pura conscincia, mas que tem por objeto a essncia que adquire, inicialmente, a figura degradada da representao de um ser objetivo, de um Outro alm da conscincia-de-si (Deus). Por isto, ela negao do mundo atravs de um servio em nome de Deus. No entanto, Hegel lembra que: a articulao do mundo real tambm constitui a organizao do mundo da f 692, isto no sentido de que o movimento fenomenolgico de auto-dissoluo das determinidades duplica a estrutura do mundo teolgico. Maneira de insistir que esta negao do mundo apenas ir perpetu-lo pois feita a partir dele mesmo. Hegel ento termina este ltimo trecho de O mundo do Esprito alienado de si afirmando a necessidade de avaliar se a pura inteleco poder realizar seu prprio conceito de superar toda dependncia outra convertendo-a forma do Eu, ou seja, esta certeza da razo consciente-de-si de ser toda a verdade. Um certeza enunciada na mxima iluminista: Sede para vs mesmas o que sois todas em vs mesmas: sede racionais693.
Na Fenomenologia, Hegel organiza sua reflexo sobre o iluminismo e suas expectativas de racionalizao a partir de uma confrontao com a f que, em vrios pontos, apresenta-se como uma retomada do conflito, prprio polis grega, entre um princpio humano e um princpio divino de conduta socializao:
O objeto peculiar contra o qual a pura inteligncia dirige a fora do conceito a f enquanto forma da pura conscincia que se lhe contrape no mesmo elemento do pensamento puro694.
Mas antes de abordar tal confrontao, Hegel lembra que a pura inteleco tem tambm um relacionamento negativo com a efetividade do mundo social da cultura. Diante do sentimento da dissoluo de tudo o que se consolida, a inteleco se pe como o apreender formal que rene, em uma imagem universal (allgemeines Bild) do mundo, os traos dispersos da multiplicidade de perspectivas que a ironizao colocava
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HEGEL, Fenomenologia, par. 531 HEGEL, Fenomenologia, par. 537 694 HEGEL, Fenomenologia, par. 538
em conflito a fim de dissolv-los todos. Esta imagem universal o saber cuja realizao, enquanto compilao de verses da Coisa mesma, a Enciclopdia:
A Enciclopdia mostra maioria que h uma perspectiva melhor que a sua ou, pelo menos, mostra a todos que h um Witz mais variado que o deles, um melhor saber e uma capacidade de julgamento em geral, como algo universal e agora universalmente conhecido695.
Tal relao ao saber apenas demonstra como o Iluminismo se v como pura conscincia da essncia absoluta de toda efetividade, o que o diferencia de outras modalidades de comportamento negativo da conscincia. A pura inteleco esclarecida coloca pois a f como seu oposto, como o que oposto razo e verdade. A f aparece pois como um tecido de supersties, preconceitos e erros que se organiza em um reino de erro que s pode subsistir atravs da fora do despotismo e a m inteno de sacerdotes enganadores. Contra este reino de erros, a inteleco faz apelo ao trabalho do esclarecimento que ilumina, atravs da crtica, o povo que ainda no alcanou a reflexo. Ou seja, a inteleco se pe como um trabalho de esclarecimento contra f supersticiosa. Notemos, inicialmente que o contexto desta confrontao tipicamente francs. Hegel faz questo de salientar isto ao falar do formalismo moroso e morto da religio positiva em solo francs. Religio positiva deve ser entendida aqui como o conjunto de prticas incapazes de colocar como fundamento o princpio luterano de subjetividade e de crtica positividade imediata de toda e qualquer determinao sensvel. Da porque Hegel pode afirmar: O que Lutero iniciou na esfera do nimo e do sentimento a liberdade do esprito que inconsciente de sua raiz simples no se auto-apreende, mas que j Si universal, diante do qual desaparece todo contedo do pensar -, tais determinaes e pensamentos universais foram proclamador pelos franceses como princpios gerais e a convico do indivduo em si mesmo696. Ou seja, para Hegel, a reforma o comeo da Aufklrung. Proposio importante por nos explicar como uma conciliao com algo que se ps no interior da f poder ser realizada pelo idealismo alemo (lembrando sempre que a Aufklrung alem no foi, exatamente, anti-religiosa). Lembremos ainda que, desde sua juventude, Hegel insiste na necessidade de reconciliar
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HEGEL, Fenomenologia, par. 540 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia a filosofia francesa
as biparties da razo moderna, em especial aquela que impede ver, na religio, a fora de determinao da relao com o absoluto que impede a enteificao de uma antropologia da finitude. A partir do pargrafo 547 e at o 550, Hegel ir configurar a maneira com que o Iluminismo apresenta a f como seu oposto. Este movimento ser retomado de maneira invertida entre os pargrafos 551 e 556. Um pouco como Foucault far no sculo XX, Hegel sensvel ao fato de que aquilo que a razo proclama como o Outro de si mesmo, como a desrazo, como a loucura: no pode ser outra coisa que ela mesma, s pode condenar o que ela . Pois o programa de implementao da razo eminentemente crtico, a razo se realiza atravs da crtica ao seu Outro, a um Outro que ela deve pr, que ela deve produzir como sua figura invertida, como seu exterior, isto para poder se realizar. Ela se define atravs desta oposio que lhe constitutiva: Portanto, quando a razo fala de um Outro que ela, de fato s fala de si mesma; assim no sai de si 697. Da porque Hegel afirmar, mais a frente, que o iluminismo , na verdade, pouco iluminado sobre si mesmo. Como a razo configura ento o seu Outro na figura da f? Hegel insiste em quatro dimenses da crtica que sero apresentadas em vrios momentos de nosso trecho. Podemos designar estas quatro aspectos como sendo: a projeo (o que essncia absoluta da conscincia produzida por ela mesma), o encantamento fetichista (a conscincia adora um puro objeto sensvel), a inexatido histrica e textos sagrados e o sacrifcio de si em nome de um Outro. Em todos os trs casos, Hegel tentar demonstrar que o Iluminismo, em ltima instncia, no sabe o que diz e sua crtica, em larga medida, no tem objeto. Quando o Iluminismo insiste que a essncia absoluta que objeto da f , na verdade, seu prprio pensamento, a f afirma que o Iluminismo nada lhe diz de novo: porque para a f seu objeto tambm justamente isto, pura essncia de sua prpria conscincia698. Mas fato que o Iluminismo insistia no carter factcio deste Outro, no fato de que ele era projeo de um produto da prpria conscincia. Hegel lembra ento que, para a f, da mesma forma, s atravs de seu agir e produzir que a relao pode essncia pode se realizar, pois:
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a essncia absoluta da f no a essncia abstrata que se encontra alm da conscincia crente; , sim, o esprito da comunidade, a unidade da essncia abstrata e da conscincia-de-si699.
De qualquer forma, o produzir no deve ser fundamento nico da essncia, j que ela , ao mesmo tempo, algo em si (no interior de uma relao) e para si (fora de toda e qualquer relao). Mas o Iluminismo continua insistindo que o objeto da f uma essncia na qual a conscincia no reconhece seu produto, como o alfaiate que no v suas marcas na roupa que produz, por isto seu produto algo que aparece como estranho conscincia:
Mas aqui o Iluminismo completamente insensato; a f experimenta-o como um discurso que no sabe o que diz, no compreende o assunto quando fala e impostura dos sacerdotes e da iluso do povo. Fala disso como se por um passe de mgica dos sacerdotes prestidigitadores deslizasse sorrateiramente para dentro da conscincia algo absolutamente estranho e Outro em lugar da essncia, e diz ao mesmo tempo que se trata de uma essncia da conscincia que nela cr, confia nela e procura faz-la propicia (...) O Iluminismo enuncia imediatamente como sendo o mais prprio da conscincia o que enuncia como algo a ela estranho700.
Hegel completa ento lembrando que esta relao entre a conscincia e a essncia no interior da f no pode ser compreendida como figura do engano. A conscincia no pode projetar algo para fora de si e se nada saber a respeito de tal operao. O que est em jogo no interior de tal operao , antes, algo da ordem da verdade da relao da conscincia ao que fundamenta seu agir de maneira incondicional e mobiliza seu desejo. A f pode pr tal fundamento de maneira inadequada (sob a forma da representao), ela pode p-lo de maneira no especulativa, mas ela no pode se enganar a respeito do que constitui a prpria conscincia-de-si. Da porque Hegel, ao comentar a pergunta enunciada por Frederico da Prssia, se permitido enganar um povo, dir simplesmente que a pergunta foi mal colocada, porque no se engana um povo. Engano diz respeito a sistemas individualizados de crena. Mas a f forma de
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vida e processo de formao que se encarna em comunidades e em expectativas de justificao. Enquanto elemento do processo de formao da conscincia europia da poca, algo da prpria f que permite a constituio de processos internalizao reflexiva de auto-crtica. Da a resposta hegeliana:
Sem dvida, possvel em algum caso vender lato por outro, passar dinheiro falso por verdadeiro, poder ser que muitos aceitem uma batalha perdida como ganha, possvel conseguir que se acredite por algum tempo em outras mentiras sobre coisas sensveis e acontecimentos isolados. Porm, no saber da essncia, em que a conscincia tem a certeza de si mesma, est descartado completamente o pensamento do engano701.
Por outro lado, o Iluminismo critica o encantamento fetichista da f que adora uma coisa ordinria, ente da certeza sensvel, um pedao de pedra, um toco de madeira, um po que brotou do campo. De novo, Hegel procura corrigir a crtica esclarecida:
O que a f adora no para ela, em absoluto, nem pedra nem madeira ou po, nem qualquer outra coisa sensvel temporal. Se ocorre ao iluminismo dizer que o objeto da f isto tambm, ou mesmo, que isto em si e em verdade, precisa notar que a f, de um lado, conhece igualmente aquele tambm, mas para ela est fora de sua adorao coisas como pedra etc., em geral para ela nada so em si; para ela s em si a essncia do puro pensar702.
De fato, enquanto conscincia cindida entre o alm da efetividade e seu aqum, a f deve ter presente em si este ponto de vista da coisa sensvel, segundo o qual a coisa sensvel tem um presena irredutvel e valor em si e para si703. No entanto, a conscincia crente no capaz de apreender de maneira especulativa uma unidade que ela mesma pe. Hegel insistir nesta noo de que a f pe o que ela no consegue tematizar, como se ela esquecesse o que faz.
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HEGEL, Fenomenologia, par. 550 HEGEL, Fenomenologia, par. 553 703 HEGEL, Fenomenologia, par. 567
Hegel segue desta maneira na anlise de outras dimenses da crtica iluminista f, isto at que ele possa colocar a questo central: mas o que o iluminismo apresentar aps a luta com a f?: Quando so banidos todos os preconceitos e supersties, ento surge a pergunta: e agora, que resta? Que verdade o iluminismo difundiu em lugar dos preconceitos e supersties?704. Hegel reconhece que o Iluminismo, ao iluminar o mundo celestial com as representaes do mundo sensvel, coloca a f como conscincia da relao do finito que ente em si com o absoluto, tal como o iluminismo. Mas a f agora um iluminismo insatisfeito, marcado pela infelicidade da distncia em relao a um fundamento incondicional e absoluto. J para o iluminismo satisfeito de si, dois caminhos complementares se abriro: o materialismo (Diderot, La Mettrie, Holbach, Helvetius) e o desmo agnstico de Voltaire e DAlambert. Pois a essncia absoluta se torna um vazio a respeito do qual no se pode atribuir determinaes ou predicados, j que toda determinidade foi posta como uma finitude, como essncia e representao humana. Este vazio pode ento ganhar a figura de um deismo agnstico do tre suprme. Ou, antes, sendo nulo tudo o que se pe como essncia alm da certeza sensvel, o Iluminismo pode dar lugar a um materialismo cujo conceito de matria nada mais que o universal abstrato. Pois a matria aqui o que resta quando abstramos o ver, o tocar, o gostar como qualidades da imaginao. A matria antes a pura abstrao e desse modo est presente a pura essncia do pensar como o absoluto saem predicado, no diferenciado e no determinado em si705. Esta pura abstrao o universal que aparece de maneira invertida no deismo agnstico e que pode dar fundamento a um utilitarismo que s v, nas coisas, o que til ao gozo, como se o homem: tal como saiu das mos de deus, circulasse neste mundo como em um jardim por ele plantado.
Na aula de hoje, terminaremos subseo: O esprito alienado de si: a cultura. Isto nos permitir, na aula que vem, terminar o curso atravs de um comentrio das questes
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centrais que aparecem na ltima subseo da seo Esprito: esta intitulada O esprito certo de si: a moralidade. Tais questes nos permitiro compreender elaboraes centrais apresentadas por Hegel na seo final Fenomenologia do Esprito: esta intitulada O Saber Absoluto. Vimos, na aula passada, como Hegel se via obrigado a compreender as consequncias deste processo de auto-dissoluo do mundo da cultura atravs da ironizao que foi objeto de nosso comentrio h duas aulas atrs. Desta ironizao absoluta das condutas, Hegel procurava nos demonstrar que seguiam dois desdobramentos possveis, duas posies no que diz respeito a recuperao de princpios de valorao e formao capazes de dar conta da perda de fundamento para o Eu no interior de modos de socializao na aurora da modernidade: o emotivismo da recuperao moderna da f (Glauben) e a pura inteleco do esclarecimento. Contra a ausncia de fundamento de um processo de formao vinculado cultura, a conscincia pode procurar afastar-se do mundo atravs do puro pensar. Hegel lembra que estes dois movimentos da essncia iro aparecer de maneira separada, embora tenham a mesma fonte. A pura inteleco esta essncia interior satisfeita em uma quietude passiva. Como ela nasce de um afastamento do mundo da cultura, de incio ela no tem contedo em si mesma, seu objeto o puro Eu enquanto fonte do conceituar, isto no sentido de que o objeto s ter verdade para ela na medida em que tiver a forma do Eu (tal como vimos no caso da anlise hegeliana das categorias). Lembremos aqui novamente deste postulado idealista central: a estrutura do objeto deve duplicar a estrutura do Eu. J a f ir aparecer tambm como pura conscincia, mas que tem por objeto a essncia que adquire, inicialmente, a figura degradada da representao de um ser objetivo, de um Outro alm da conscincia-de-si (Deus). Por isto, ela negao do mundo atravs de um servio em nome de Deus. No entanto, Hegel lembra que: a articulao do mundo real tambm constitui a organizao do mundo da f 706, isto no sentido de que o movimento fenomenolgico de auto-dissoluo das determinidades duplica a estrutura do mundo teolgico. Maneira de insistir que esta negao do mundo apenas ir perpetu-lo pois feita a partir dele mesmo. Vimos como, na Fenomenologia, Hegel organiza sua reflexo sobre o iluminismo e suas expectativas de racionalizao a partir de uma confrontao com a f
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que, em vrios pontos, apresenta-se como uma retomada do conflito, prprio polis grega, entre um princpio humano e um princpio divino de conduta socializao. A pura inteleco esclarecida coloca pois a f como seu oposto, como o que oposto razo e verdade. A f aparece pois como um tecido de supersties, preconceitos e erros que se organiza em um reino de erro que s pode subsistir atravs da fora do despotismo e a m inteno de sacerdotes enganadores. Contra este reino de erros, a inteleco faz apelo ao trabalho do esclarecimento que ilumina, atravs da crtica, o povo que ainda no alcanou a reflexo. Ou seja, a inteleco se pe como um trabalho de esclarecimento contra f supersticiosa. Mas, um pouco como Foucault far no sculo XX, Hegel sensvel ao fato de que aquilo que a razo proclama como o Outro de si mesmo, como a desrazo, como a loucura: no pode ser outra coisa que ela mesma, s pode condenar o que ela . Pois o programa de implementao da razo eminentemente crtico, a razo se realiza atravs da crtica ao seu Outro, a um Outro que ela deve pr, que ela deve produzir como sua figura invertida, como seu exterior, isto para poder se realizar. Ela se define atravs desta oposio que lhe constitutiva: Portanto, quando a razo fala de um Outro que ela, de fato s fala de si mesma; assim no sai de si707. Da porque Hegel afirmar, mais a frente, que o iluminismo , na verdade, pouco iluminado sobre si mesmo. Hegel completa ento lembrando que esta relao entre a conscincia e a essncia no interior da f no pode ser compreendida como figura do engano, tal omo procura fazer o iluminismo. O que est em jogo no interior de tal operao , antes, algo da ordem da verdade da relao da conscincia ao que fundamenta seu agir de maneira incondicional e mobiliza seu desejo. A f pode pr tal fundamento de maneira inadequada (sob a forma da representao), ela pode p-lo de maneira no especulativa, mas ela no pode se enganar a respeito do que constitui a prpria conscincia-de-si. Da porque Hegel, ao comentar a pergunta enunciada por Frederico da Prssia, se permitido enganar um povo, dir simplesmente que a pergunta foi mal colocada, porque no se engana um povo. Engano diz respeito a sistemas individualizados de crena. Mas a f forma de vida e processo de formao que se encarna em comunidades e em expectativas de justificao. Enquanto elemento do processo de formao da conscincia europia da poca, algo da prpria f que permite a
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Sem dvida, possvel em algum caso vender lato por outro, passar dinheiro falso por verdadeiro, poder ser que muitos aceitem uma batalha perdida como ganha, possvel conseguir que se acredite por algum tempo em outras mentiras sobre coisas sensveis e acontecimentos isolados. Porm, no saber da essncia, em que a conscincia tem a certeza de si mesma, est descartado completamente o pensamento do engano708.
Hegel segue desta maneira na anlise de outras dimenses da crtica iluminista f, isto at que ele possa colocar a questo central: mas o que o iluminismo apresentar aps a luta com a f?: Quando so banidos todos os preconceitos e supersties, ento surge a pergunta: e agora, que resta? Que verdade o iluminismo difundiu em lugar dos preconceitos e supersties?709. Hegel reconhece que o Iluminismo, ao iluminar o mundo celestial com as representaes do mundo sensvel, coloca a f como conscincia da relao do finito que ente em si com o absoluto, tal como o iluminismo. Mas a f agora um iluminismo insatisfeito, marcado pela infelicidade da distncia em relao a um fundamento incondicional e absoluto. J para o iluminismo satisfeito de si, dois caminhos complementares se abriro: o materialismo (Diderot, La Mettrie, Holbach, Helvetius) e o desmo agnstico de Voltaire e DAlambert. Pois a essncia absoluta se torna um vazio a respeito do qual no se pode atribuir determinaes ou predicados, j que toda determinidade foi posta como uma finitude, como essncia e representao humana. Este vazio pode ento ganhar a figura de um deismo agnstico do tre suprme. Ou, antes, sendo nulo tudo o que se pe como essncia alm da certeza sensvel, o Iluminismo pode dar lugar a um materialismo cujo conceito de matria nada mais que o universal abstrato. Pois a matria aqui o que resta quando abstramos o ver, o tocar, o gostar como qualidades da imaginao. A matria antes a pura abstrao e desse modo est presente a pura essncia do pensar como o absoluto saem predicado, no diferenciado e no determinado em si710. Esta pura abstrao o universal que aparece de maneira
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HEGEL, Fenomenologia, par. 550 HEGEL, Fenomenologia, par. 557 710 HEGEL, Fenomenologia, par. 576
invertida no deismo agnstico e que pode dar fundamento a um utilitarismo que s v, nas coisas, o que til ao gozo, como se o homem: tal como saiu das mos de Deus, circulasse neste mundo como em um jardim por ele plantado.
a partir deste contexto que Hegel se prope a analisar a Revoluo Francesa e seus desdobramentos. Ainda ressoava para Hegel e seus contemporneos os desdobramentos recentes desta Revoluo abraada de maneira fervorosa por Schelling, Hegel e Holderlin poca de estudantes no seminrio de Tbigen. Hegel procura aqui compreender a Revoluo Francesa como a passagem ao ato do projeto moderno de determinar o princpio de subjetividade como fundamento para os modos de racionalizao das mltiplas esferas sociais de valores. Este o sentido de afirmaes como: O que Lutero iniciou na esfera do nimo e do sentimento a liberdade do esprito que inconsciente de sua raiz simples no se auto-apreende, mas que j Si universal, diante do qual desaparece todo contedo do pensar -, tais determinaes e pensamentos universais foram proclamador pelos franceses como princpios gerais e a convico do indivduo em si mesmo711. Ou seja, os franceses procuraram transformar um princpio que estava apenas na esfera da interioridade em protocolo geral de racionalizao da vida social. Isto pode nos explicar porque: A Revoluo Francesa o acontecimento em torno do qual se concentram, para Hegel, todas as determinaes da filosofia em relao ao tempo, marcando o problema, em uma atitude de defesa e de ataque; nenhuma outra filosofia foi to intimamente filosofia da Revoluo712. Neste sentido, no devemos esquecer que Hegel nunca pde retornar Revoluo Francesa como quem se volta a um acontecimento encerrado. Sua poca era ainda poca dos desdobramentos incertos, das agitaes polticas e instabilidades resultantes da Revoluo e de suas estratgias que encarnavam o prprio projeto de auto-certificao da modernidade. Ao escrever a Fenomenologia, Hegel no mais o entusiasta de um acontecimento que abria, diante de si, todas as possibilidades promessas. Ele o filsofo que reflete sobre a relao irredutvel entre a liberdade absoluta prometida pelos ideais revolucionrios e o terror jacobino. Um terror que demonstrou a impossibilidade da Revoluo encontrar ou introduzir solues polticas
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HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia a filosofia francesa RITTER, Hegel et la rvolution franaise, p. 19
durveis. Da porque o ttulo de nosso trecho no outro que: A liberdade absoluta e o terror. O que no deve nos enganar: Hegel nunca ser um adversrio da Revoluo Francesa. No momento em que termina de escrever a Fenomenologia, ele no deixa de saudar Napoleo como a alma do mundo na qual Hegel deposita ainda a esperana da ampliao de processos de modernizao. Mas ele tem conscincia tambm de que a Revoluo abriu, para a modernidade, um desafio a partir do qual se medem os acontecimentos do presente. Podemos, nesse contexto, nos apoiar nas palavras de Ritter: Assim, a atitude de Hegel em relao Revoluo dupla: ele adota com entusiasmo o que com ela entrou na histria e, ao mesmo tempo, ele compreende que seus problemas no foram resolvidos, que seu resvalamento tirania era necessrio. A Revoluo colocou o problema que a poca deve resolver. O fato de que ele no foi resolvido deixa a questo de saber por que, nem a prpria Revoluo, nem os esforos revolucionrios e a restaurao nos anos seguintes no alcanaram a estabilidade poltica713, nem a realizao do problema da efetivao poltica concreta da liberdade. Neste contexto, no sem polmica que a posteridade compreendeu o fato de que as reflexes sobre a Revoluo Francesa na Fenomenologia so seguidas de um retorno interioridade da moralidade. Lembremos, por exemplo, de Hegel afirmando: Na Alemanha, o princpio de liberdade irrompe como pensamento, como conceito; na Frana, como realidade714. Como se o que no conseguisse se realizar no plano poltico encontrasse seu lugar natural na auto-determinao da subjetividade a partir da perspectiva da fundamentao dos julgamentos morais. No entanto, devemos lembrar que Hegel procura demonstrar como o Esprito s poder realmente realizar seu processo de formao quando a negao for uma operao de estruturao de relaes no apenas no nvel fenomenolgico (como vimos at agora), mas tambm no nvel ontolgico. Isto significa uma problematizao da prpria noo moderna de sujeito que no encontrou ainda lugar e que no encontrar lugar na Revoluo Francesa. Toda ao de modernizao s poder ser realizada condio de que a figura da conscincia-de-si no seja mais vista como determinao auto-idntica que expulsa para fora de si a irredutibilidade de toda alteridade. Em ltima instncia, o terror ser o resultado direto deste equvoco no interior da filosofia moderna do sujeito.
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RITTER, idem, p. 25 HEGEL, Lies sobre a histria da filosofia A novssima filosofia alem
Sigamos pois o encaminhamento hegeliano a respeito da reflexo filosfica sobre a Revoluo Francesa. Hegel comea lembrando que, pergunta: O que vem aps a crtica iluminista?, havia seguido a posio de uma universalidade abstrata que se encontrava tanto no deismo agnstico, quanto no materialismo e no utilitarismo. Universalidade vinculada conscincia-de-si, presente imediatamente conscincia-de-si, e que agora passar dimenso da ao scio-poltica. Assim: dessa revoluo interior surge agora a revoluo efetiva na efetividade, a nova figura da conscincia, a liberdade absoluta715. Ou seja, em ltima instncia, o colapso da formao no interior do mundo da cultura, colapso marcado pela passagem da tica aristocrtica da honra ironizao absoluta das condutas da linguagem do dilaceramento, ser resolvido pelo esclarecimento atravs da auto-determinao de si graas realizao da liberdade absoluta da conscincia-de-si, liberdade no constrangida nem pela natureza, nem por normas da vida social sustentadas no recurso tradio Liberdade que coloca a modernidade diante do problema da auto-certificao. Mas lembremos que no faria sentido algum ver nesta liberdade absoluta a entificao de formas de particularismo do desejo, um pouco como j vimos atravs do hedonismo faustiano. O desejo nunca totalmente particular pois resultado de processos de socializao atravs dos quais se faz sentir a presena do que aspira universalidade. A auto-determinao do desejo atravs de uma liberdade absoluta s pode se realizar em uma forma de socializao que seja, reflexivamente, posta como o resultado de uma auto-legislao. neste sentido que podemos compreender a afirmao de Hegel: A certeza de si o sujeito universal, e seu conceito que-sabe (wissender Begriff) a essncia de toda efetividade716. tendo tais questes em vista que Hegel pode lembrar desta problemtica rousseauista por excelncia de que a auto-determinao do desejo e do agir atravs de uma liberdade absoluta no nos leva entificao do particularismo, mas vontade universal, vontade geral:
Com efeito, a vontade em si a conscincia da personalidade ou de um Cada um (Jedes) e deve ser como esta vontade efetiva autntica, como essncia consciente-de-si, de toda e cada uma personalidade, de modo que cada uma
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sempre indivisamente faa tudo; e o que surge como agir do todo o agir imediato e consciente de Cada um717.
Esta reconciliao entre o impessoal e o pessoal, entre o que tem validade universal e o que conjugado no particular ser o objetivo maior da Revoluo francesa, basta lembrar aqui novamente desta frase lapidar de Saint-Just, declarada na Tribuna da Conveno em 3 de maro de 1794, diante das possibilidades abertas pela Revoluo francesa,: A felicidade uma idia nova na Europa. Frase esta que apenas glosava o primeiro pargrafo da Declarao que precede a Constituio de 1793: O objetivo da sociedade a felicidade geral (bonheur commune) e o governo seu defensor. desta forma, dir Hegel, que: Essa substncia indivisa da liberdade absoluta [capaz de realizar tal felicidade geral] se eleva ao trono do mundo sem que poder algum possa lhe opor resistncia718. No entanto, ao subir ao trono do mundo, a liberdade absoluta da conscincia-desi reconciliada com o universal dissolve toda organizao social com suas divises, todas massas e estados estanques, j que a conscincia-de-si no est vinculada estado e posies sociais, ela o que realiza o universal:
Cada conscincia singular se eleva da esfera qual era alocada, no encontra mais nessa massa particular sua essncia e sua obra; ao contrrio, compreende seu Si como o conceito da vontade e todas as massas como essncia dessa vontade e, por conseguinte, tambm s pode efetivar-se em um trabalho que seja trabalho total719.
De fato, a conscincia singular aparece como finalidade universal, sua linguagem aparece como linguagem capaz de realizar aspiraes universais de reconhecimento, seu trabalho, um trabalho feito em nome do universal. A oposio no mais externa a conscincia; entre, por exemplo, conscincia e objeto que resiste, mas aparece apenas como diferena entre a conscincia singular e a conscincia universal. O movimento assim apenas interno conscincia-de-si universal, seu objeto lei dada por ela mesma e obra por ela mesma realizada: Assim, ao passar atividade e ao criar
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HEGEL, Fenomenologia, par. 584 HEGEL, Fenomenologia, par. 585 719 HEGEL, Fenomenologia, par. 585
objetividade, nada fez de singular mas somente leis e atos-de-Estado720. Desta forma, esta liberdade absoluta da conscincia-de-si j seria, imediatamente, liberdade institucionalizada. Mas notemos aqui um ponto essencial. Hegel dir que, no interior desta noo de liberdade, a conscincia nada abandona na figura de um objeto contraposto, ela no reconhece nenhuma negatividade que venha do objeto, por isto, ela no pode realizar nenhuma obra positiva. Hegel est dizendo que a liberdade s realiza algo de positivo l onde ela se depara com uma negao que a ela se contrape. Afirmao que pode parecer obscura, mas que diz respeito noo de que:
A obra qual poderia chegar a liberdade, que toma conscincia-de-si, consistiria em fazer-se objeto (Gegenstande) e ser permanente como substncia universal. Esse ser-Outro seria a diferena na liberdade721
A verdadeira liberdade consiste em fazer-se objeto, mas um fazer-se objeto que no significa coisificao, objetificao de si. Trata-se de um fazer-se objeto que implica em reconhecer-se naquilo que aparece como mais exterior determinao autnoma do sujeito. Reconhecer a racionalidade do momento de heteronomia no interior da realizao da vontade. Como veremos na aula que vem, este o fundamento da noo hegeliana de moralidade, assim como o fundamento de sua crtica noes como determinao transcendental da vontade, segundo Kant. Neste momento do nosso texto, Hegel tentar explorar um impasse maior no processo de realizao do agir em nome da vontade universal. Pois, para que o universal chegue ao ato , faz-se necessrio que uma conscincia-de-si singular assuma a efetivao da vontade universal. Mas, assim todas as outras conscincias-de-si singulares esto excludas do poder executivo que determina a ao. Hegel sintetiza claramente este impasse no seguinte trecho:
Para que o universal chegue a um ato, precisa que se concentre no uno da individualidade e ponha no todo uma conscincia-de-si singular, pois a vontade universal s vontade efetiva em um Si que uno [a execuo sempre um atributo da individualidade]. Mas, dessa maneira, todos os outros singulares
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esto excludos da totalidade desse ato e nele s tm uma participao limitada; de modo que o ato no seria ato da efetiva conscincia-de-si universal. Assim a liberdade universal no pode produzir nenhuma obra nem ato positivo [j que todo ato positivo realizado levanta a oposio dos outros singulares]; resta-lhe somente o agir negativo, apenas a fria do desaparecer722.
Hegel lembrar que o governo aparece assim necessariamente como uma faco vitoriosa e no fato mesmo de ser faco reside a necessidade de sua queda ou, inversamente, o fato de ser governo o torna faco e culpado. Mas, para o governo, o que est frente a ele contraposto apenas uma vontade inefetiva, sem realidade alguma e impossvel de ser reconhecida. Assim, entre os dois plos, a universalidade do que se coloca na posio do governo e a conscincia-de-si efetiva, h uma pura negao totalmente no mediatizada. por isto que a nica obra da liberdade absoluta ser a morte. No uma morte como figura fenomenolgica da confrontao com um fundamento incondicionado e absoluto e que momento fundamental de todo verdadeiro processos de formao. Aqui, trata-se de uma morte sem alcance interior, morte que no realiza nada. Morte mais fria, mais rasteira; sem mais significao do que cortar uma cabea de couve ou beber um gole de gua723. Como dir Hegel: agora reina a virtude e o terror, pois a virtude subjetiva que governa a partir da f acarreta a mais terrvel tirania. Ela exerce seu poder sem formas judiciais, e sua punio igualmente simples, a morte724. A liberdade absoluta aparece assim como conscincia-de-si abstrata que elimina, dentro de si, toda diferena e toda subsistncia da diferena. Ela liberdade que pe o absoluto, mas sem predicado, apenas como o puro pensar. O terror da morte a intuio dessa essncia negativa. A vontade universal se transforma nessa essncia negativa, j que a pura negatividade encontra na vontade universal o seu subsistir. De fato, a princpio poderia parecer que estaramos diante deste movimento, posto j na reflexo sobre a eticidade grega, da ao do governo como ao que nega as estruturas estanques da sociedade civil atravs da guerra (ou, por que no, do terror), isto a fim de no deixar que se enrazem e enduream nesse isolar-se e que por issso o
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HEGEL, Fenomenologia, par. 589 HEGEL, Fenomenologia, par. 590 724 HEGEL, Filosofia da histria, p. 368
todo se desagregue e o esprito se evapore725. No entanto, tal movimento no se realiza porque o mundo estava pura e simplesmente na forma da conscincia. No havia nenhuma substncia a ela contraposta. A formao tem como saldo aqui o compreender a efetividade como desaparecer, como um passar ao nada vazio, uma alienao na forma da pura abstrao que nada retribui pelo sacrifcio. No entanto, neste ponto que Hegel encaminha esta experincia histrica para sua superao em outra figura da conscincia. Pois, agora, a negatividade absoluta no aparece conscincia como algo estranho, algo que lhe vem de fora, como, por exemplo, o alm da conscincia infeliz. Ela posta como a verdade da sua essncia, ela lhe interna. A conscincia j no v mais sua posio como aquela assegurada pela identidade (como era o caso da conscincia rica de esprito do sobrinho de Rameau). Reconhecendo a necessidade da experincia histrica do terror enquanto internalizao da negatividade que devasta toda determinao fenomenal, Hegel dir:
Mas, por isso mesmo, a vontade universal forma imediatamente uma unidade com a conscincia-de-si, ou seja, o puramente positivo porque o puramente negativo; e a morte sem sentido, a negatividade do Si no-preenchido, transforma-se no conceito interior, em absoluta positividade726.
Com isto, a negao pode passar ao nvel ontolgico. Mas, para que tal desgno se realize, faz-se necessrio entrarmos no momento da moralidade. E isto que veremos na aula que vem.
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