Ao Som Sa Viola (Folklore) - Gustavo Barroso PDF

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ENCADERNADOR)

^LisbO.^
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in 2010 with funding from
University of Toronto

http://www.archive.org/details/aosomdaviolafolkOObarr
Gustavo BARROSO
(tToo do ISLoite)

AO SOM DA VIOLA

(Foik-lore)

EDIO DA
Livraria Editora Leite Ribeiro
Ruas Bthencourt da Silva ns. 16, 17 e 19
(jDt. Santo Antnio)

e 13 da Maio ns. 74 e 7l9


- - RIO E JANEIRfO
1921
.'" ./'y

oso
do M^^i
/*> f ( <J-<ts'?

DA VIOLA

(Foik-lore)

Livraria Edilora Leite Ribeiro


Rua Bthencourt da Silva. 3
(ant. Santo Antnio)

- - RIO DE JANEIRO - -
1 9 ? 1
^Wvi
OBRAS DO MESMO AUTOR

PUBLICADAS
!

Terra de Sol, natureza e costumes do Norte, editor Benjamin


d'A:4Ula, Rio, terceira edio.
Praias e Vrzeas, littoral e do serto, editor Francisco
contos do
segunda edio.
Alves, Rio,
A Balata, publicao official do Ministrio da Ai^^ricultura, es-
gotada.
Idas e Palavras, chronicas, editores Leite Ribeiro 6c Maurillo,
Rio, esgotado.
Heres e Bandidos, os cangaceiros de nordeste, editor Francisco
Alves, Rio, segunda edio.
Tradies Militares, publicao official do Ministrio da Guerra,
esgotado.
Tratado de Paz, traduco, editores Leite Ribeiro Maurillo, <!it

Rio, esgotado.
A Ronda dos Sculos, contos de todas as pocas, editores Leite
Ribeiro &. Maurillo, Rio, segunda edio.
Fausto, de Goethe, traduco^para vulgarisao da obra, edito-
res Ganiier Frres, segunda edio.
Instruco Moral dejarach, adaptao ao ensino bra-
e Civica,
sileiro, obra adoptada pela Directoria Geral de Instruco
Publica do Rio de Janeiro, 5. milheiro, editores Grnier
Frres.
Vocabulrio das Creanas, de Fournier, adaptao, 5^ milheiro,
editores Garnier Frres.
lY

Casa de Maribondos, contos huiiiorisicos regionaes, editores


Monteiro Lobato &. C., 3'.' milheiro, S. Paulo.
Mula stni cabea, novella, editor Olegrio Ribeiro, S. Paulo.
Mesquita MuLi ta
em hespanhol, novejla, editor La Novela <

Semanal
Bucnos-Aires.
Ao som da viola, folk-lore, editores Leite Ribeiro A\aurillo,
l'? edio.

XO PRELO
Pergaminhos, contos niedicvaes, grande edio illustrada a co-
res pelo artista Corra Dias, illustraces premiadas com
medalha de ouro pela Escola Nacional de Bellas Artes,
tiragem reduzida de 200 exemplares numerados, em papel
imperial do Japo, editores o auctor e F. Briguiet . Cl,
Paris.

Cometiias e Provrbios, de Musset, traduco, editores Garniei


rrres, Paris.

O Ramo de Oliveira, a Conerncia da Paz e a viagem do Presi-


dente Epitacio a vades paizes, editor Benjamin d'Aguila.

EM PREPARO
A Intcliigencia das celsas, trabalhos de erudio litteraria, socio-
lgica, philofophica e histrica.

Reiieario Bysani^no, conferencias.


Quasi. ., chrcnicas sobre politica, critica
. e historia.
Capcceie de Ainerva, artigos e estudos.
Livro dos milagres, contos religiosos.
Vida e alma de Cludio Frana.
T.mbceiros, contos.
Rei do Serto, estudos vsobre fanatismo sertanejo.
Almas de lema c de ao, historias de bandidos.
f/
f

AO MEU AMIGO

ALBERTO FARIA
A Viola
Nosso Sinii, quando andava
Pelo deserto a ver,
Gostava de ouvi So Pedro
Na viola punli.

So Pedro diz que a viola

num desafio
Foi feita
Da canoa em que elle andava
Com Christo a pescd no rio.

No foi feita da canoa,


Mas porm da sua cruz:
A viola ainda so^fre
Tudo o que soffreu Jesus!

Quando Deus fez a viola


E comeou a canl,
Seu cora.io roxo
ficou

Como a fulo do manaci.

Deus rei dos violeiros,


Quando caiita seu am
Nas cordas brancas da lua,

Que a viola do Sinho.


(Catullo Ce.ueuse
- ^Terra ^ ^.u.- .)

:0 som da minha viola


Parece com o co aberto !>

(Caniiga popular.)

I
os CYCIOS SERTANEJOS
os CYCLOS SERTANEJOS
(INTRODUCOAO)
Escreveu Paui de Saiiit Victor que a alma de
urna raa inteiramente se resume nas suas trovas
alegres ou tristes. Com effeito, em todas as ma-
nifestaes do folk-lore dum paiz, a terra col-
labora com o homem. E o prprio Augustin Thierry,
com aquella proiundez de conceitos que todos lhe
reconhecem, acha que a prpria historia deriva de
trs grandes escolas: a popular, a clssica e a phi-
k)sophica, sendo que a ultima decorre das duas pri-
meiras segunda da popular, base de todo o edi-
e a
fcio espirito dum povo atravs
das tradies e do
os tempos, edifcio que se queira continuar.
Desta sorte, quem tiver de conhecer a alma e
a vida dos nossos sertes de Nordeste, to aoita-
tados pelas misrias das sccas, deve sem falta es-

tucar carinhosamente o seu folk-lore, analysando


as suas fontes e procurando as suas analogias. Nelle
esta contida a essncia mesma do caracter do povo
mestiado, principalmente de portuguez e de indio,
que, ha sculos j, luta, com herosmo, pela salvao
da sua riqueza e da sua prpria vida, contra a
12
natureza quasi abandonado dos poderes
impiedosa,
centraes vendo afundados nos lameiros das poli-
e
ticagens pessoaes os governos dos. Estados. Tem
pouca viao e no tem quasi escolas. Emquanto o
littoral progredio e outras regies do paiz progre-

diram, devido a estas ou quellas circumsiancias,


ficou insulado no tempo e no espao, perdido nas
crenas, nas imagens e nas formas do sculo em
que iniciou a rdua colonizao daquellas terras, re-
tardado de mais de duzentos annos.
Mal sabendo lr ou no o sabendo de todo, no
tendo nenhum outro meio de communicao do pen-
samento, creou canes. A ausncia do habito de lei-
tura, deu a essas produces, s mais das vezes,
formas que permittem ser facilmente guardadas, re-
citadas ou cantadas. O seu acompanhamento musi-
cal composto de melodias muito simples como
toda musica primitiva. Outr'ora as executava nas
cordas da viola as velhas vielles dos trovei-
ros. Depois, adoptou o violo. Agora, prefere, in-

felizmente, a semsaboria das sanfonas.


Todo o <'sertanejo mostra a formao
folk-lore >

perfeita que habitam aquelles paizes de


das almas
sol ardente. Os cantos que durante muito tempo de-
leitaram essas almas e fizeram palpitar coraes, nasci-
dos de sua prpria fantasia, revelam perfeitamente
o estado de espirito da raa.
Todos os folk-lores so semelhantes. As suas
formas variam ao infinito de paiz a paiz. O seu fundo
continua o mesmo desde a Arya longnqua at s
~ 13
terras americanas. Raros os cantos, as lendas ou as
fabulas que se no encontram em todos os povos,
em variantes as mais diversas. Especialmente as
fabulas que se revestem de velhos totemismos an-
cestraes, desapparecidos com o tempo da memoria col-
lectiva. No continente europeu, j essas approxima-
ces de tradies e pensamentos foram feitas pelos
especialistas francezes, italianos e allemes. Todos
elles tm encontrado na Catalunha cantos conheci-
dos no ^iem.onte, como ouvido na Normandia coplas
do Franco Condado, e verificado que um.a bailada
bret perpetua um episodio guardado nas tradiOes
venezianas . (< ) Outros tm mesmo rastreado essas
manifestaes das musas populares entre os povos
aijtigos e ido, de indagao em indagao, at s
remotas fontes orienlaes, de onde quasi todas di-
manam. Houve at ha tempos, nesse sentido, alguns
exaggeros. maioria, das lendas popula-
Muitos, na
res, quizeram vr somente mythos de origem solar.
Mas esse mesmo exaggero teve utilidade real, por-
que fez com que se conhecessem origens at hoje
desconhecidas. E no possvel negar, por exemplo,
que a sandlia a av legitima do
de Rhodope
sapal inho de veiro de Chapozinho Vennelho. Tam-
bm como no reconhecer na historia obscena de
Bocage, to espalhada entre o povo, quando elle se-
duz a filha do rei, e mesmo no conto sertanejo do
meiino que ateia fogo a uma casa e usa de meta-

( c Poik-Lorc .
-^ 14 -^

foras no falar, aquella fina astcia de Uiysses dizer


a r^ol yphemo que se chamava ningum , astcia
de que Ariosto fez um episodio do Rolando Fu-
riso poema que a ultima gesta medieval or-
y>,

namentada pelo Renascimento? O filo da lenda o


mesmo, quer ella esteja numa tragedia de Euripides,
quer ella saia dos lbios dum narrador sertanejo.
O que soffre do meio em que
a influencia
se manifesta e das adulteraes que elle lhe impe.
Esta ou aquella tradio deste ou daquelle povo
apparece no serto de Nordeste com o aspecto e
o sabor da terra e da gente que a repete, aspecto
e sabor esses que dia a dia mais e mais se tornam
caractersticos. No serto, alm disso, ha outra in-
fluencia que actua sobre essas incipientes manifes-
taes artsticas.Um dos caractersticos mais inte-
ressantes da sociedade sertaneja o individualismo,
resultante do prprio estado de insulamento medie-
val do seu viver. Pois bem, no estylo geral do
folk-iore sertanejo at esses caracteristicos indi-
viduaes no se perdem e facilmente se deixam notar.
O mesmo facto, cantado em verso por Qerome do
Junqueiro ou .Romano da Me d' Agua ou Ignacio
da Catingueira, assume feio diversa em cada uma
das formas por que se apresente.
poesia sertaneja pde bem dividir-se em dois
A
grandes ramos: o repentista e o tradicional. O pri-
meiro lembra, com os desafios, as tensons proven-
aes e as disputas dos folies romanos; nelles o
cantador de p de viola se eguala, embora mais
^ 15
humilde e mais rude, aos troveiros e trovadores
da mdia edade europa; pelo menos o mesmo
espirito que o inspira e que o domina; recorda com
as emboladas e as quadras as velhas trovas de amor
e de amigo, as antiquissimas cantigas de bom e de
mal-dizer. O segundo muito mais importante. Na-
scido dos prprios acontecimentos desenrolados nas
tem um grande fundo veridico, que o exag-
ribeiras,
gero das paixes de momento, da imaginao aque-
cida mal consegue perturbar.

Aqui, ali, ha nessas xcaras e poemetos mne-


mnicos ou no, certas obscuridades de linguagem,
emprego rude de determinadas expresses, hyperbo-
les, repeties enfadonhas, monotonias e metapho-
ras, tudo isso, porm, obviado por uma admirvel

simplicidade de processos literrios, s vezes levada


at puerilidade, a qual , por certo, a sua maior
belleza. Nessas historias em forma de poesia, quasi
sempre os exaggeros so propositaes, para coUa-
borarem de modo efficiente no ef feito immediato
que o poeta popular deseja produzir sobre a as-
sistncia, para que lhe fique gravado melhor o facto
destinado perpetuidade.

De outra maneira no procederam os seus se-


melhantes em todos os tempos: rhapsodos, vates,
escaldes ou menestris.

Deste modo, o sertanejo tem guardado tudo


quanto occorreu no serto, desde que elle para ali
veio d'alm mar, domou a selvatiqueza da terra e

l -~

das fras, destruio o indio pelo trabuco e pela mes-


tiagem, e obrigou o negro arrancado Africa aos
servios do eito. Perpetuou em versos os primeiros
perigos e as primeiras lutas, as festas religiosas e

profanas, as misrias terriveis das crises climatri-


cas, a vida dos vaqueiros, as proezas dos novilhos
mocambeiros e das onas devastadoras de rebanhos
e manadas. Conservou a recordao das crenas e
tradies prprias de toda a humanidade. Celebrou
as rebeldias e as aventuras e lutas dos cangaceiros
audazes, almas feitas ao mesmo tempo de lama e
de ao! Reduzio a versos toda a sua alma e toda a
sua vida, o que tm feito todos os povos no mesmo
estado de civilizao. No interior da Frana medie-
val, da poca das cathedraes Revoluo, no com-
memorou o povo em verso as lendas carlovingias, a
derrota de Francisco em Pavia, a morte de Vil-
leroi ou a priso do baro de Moneim? Mesmo
na guerra actual as coplas populares da Madelon
porventura no retrataro a alma herica e viva dos
poilus ?
Em muitas das produces tradicionaes serta-
nejas, sob qual-quer forma potica, nota-se algumias
vezes a influencia de indivduos de uma certa cul-
tuia. So restos de ensinamentos deixados ali pelos
jesuitas, quando ensinaram quellas gentes, ou in-
terferncia directa de certas pessoas mais ou menos
cultas na confeco de cantos ou de historias. Isto
em nada tira produco influenciada o seu caracter
popular e a sua significao popular. Em todos os
17
folk-lores do mundo, o mesmo facto tem sido
observado.
Puymaigre acha que innumeras vezes as cantigas
francezas subirent Tinfluence des poetes les pius
erudits . Pitr fez idntica observao relativamente
aos <rispetti toscanos. Mil y Fontanals achou nas
canzoni italianas em geral o mesmo rasto, mas
nem por isso deixou de julgal-as populares, dignas
de estudo e admirao.
Sylvio Romero faz derivar todo o nosso folk-
lore das trs raas bsicas da nossa ethnographia,
annotando as e mutaes trazidas pelos
variaes
mestios. Mas, considerando as relaes de paren-
tesco que ligam todos os folk-lores, na maioria
originrios de um fundo commum de tradies de
toda a humanidade, e considerando as difficulda-
des que se antolham a qualquer estudioso no es-
calpellar essas origens africanas, indgenas e por-
tuguezas, j hoje to baralhadas, to confundidas,
parece melhor dividir o folk-lore sertanejo cm
cyclos mais ou menos thematicos, que lhe possam
dar maior facilidade de classificao e de organizao.
Todo o folk-lore europeu tem sido catalo-
gado e estudado dessa maneira. Os especialistas fran-
cezes como Gaston Paris organizaram, p<?los the-
mas que perpetuam e de que resultam ou pelos acon-
tecimentos em torno dos quaes giram, os vrios
cyclos de todos os paizes do continente. Entre elles
se podem assignalar: o da Tavola Redonda, o de
Carloss Magno e dos Doze Pares, o do Romance da
18
Raposa, o dos Fabliaux medievos, o dos Cos-
sacos Haiduques na Yugo-SIavia,
na Rssia, o dos
o do Cid Campeador na Hespanha e dezenas de
outros menos importantes.
O mesmo systema prevaleceu para os classifica-
dores do folk-lore indigena da^America Septen-
trional, hoje to profundamente estudado e to cla-
ramente exposto. Foram organizados cyclos admir-
veis como o do Corvo, na Columbia ingleza, o de
Napieva e o da lebre Michabozo, espcie de Romance
da Raposa dos pelles-vermelhas. E' ainda o refe-
rido methodo que agrupou, segundo Van Qennep,
os cyclos do Norte da sia, dos esquims, da Aus-
trlia, o de Ananzi, na Africa Central, e os da
Africa Meridional. At Lowce e Kroeber pretendem
reduzir todo o folk-lore do mundo a alguns cy-
clos geraes que o abranjam definitivamente e tor-
nem fcil uma viso completa do assumpto.
As autoridades na questo exigem para a for-
mao desses cyclos. duas correntes poderosas de
phenomenos contrrios de deslocao e despersoni-
ficao. (*)

No so esses caractersticos o que falta aos


themas em torno dos quaes gira a poesia tradicio-
nal dos sertes de Nordeste. E, estudando-a com
uma documentao melhor
certo cuidado, procurando
do que at hoje tem havido e pedindo o auxilio
do que coUigiram Mello Moraes, Sylvio Romero,

{*) V. Oennep Oriine et forniation des iegendes>.


- 19
Rodrigues de Carvalho, Pereira da Costa e
outros,
podem-se organizar alguns cyclos interessantes.
A
classificao ter, ao menos, o methodo da originali-
dade e de abrir um caminho ainda no desbravado
na matta do nosso folk-lore.
Entre
outros cyclos parece que ha no
serto,
bem determinados, o cyclo dos Bandeirantes,
reunin-
do todas as lendas de penetrao; o do
Natal, agru-
pando todas as commemoraes dessa data
religiosa,
e j tradicional antes de ser
religiosa; o dos Va-
queiros,
guardando os poemas derivados da vida pas-
como as vaqueijadas, a luta contra o
toril,
gado
amontado ou contra as feras que devoram as
re-
zes: o dos Cangaceiros, cyclo herico,
feixe de to-
das as admirveis canes de gesta
que correm
os sertes, em nada inferiores s
gestas medie-
vaes da Europa; e o dos caboclos,
resumindo as
opinies a respeito dos descendentes
do indio fu-
gidio e incapaz de ser escravisado;
emfim, um Ro-
mance da Raposa quasi to vasto como o
europeu,
tendo idntico fundo satyrico e referindo-se
aos ani-
maes do meio, como o outro, nelles
personificando
typos moraes da humanidade.
FoIk=Lore tradicional

R |VIapio de Alenear
l)

CYCLO DOS BANDEIRANTES


o Cyclo dos Bandeirantes

As lendas oriundas dos colonisadores, lendas de


penetrao, quer sob forma de historias, quer sob
a de poesias, que symbolisam os perigos das flo-
restas virgens, as agruras das serranias imijiensas,
o deserto das planuras, o desconhecido das chapadas,
com as feras a vagar famintas, uivando, podem to-
das ser reunidas num cyclo nico, porque todas ten-
dem para o mesmo fim, vm da mesma origem,
nasceram com o caminhar das exploraes do littora)
para o interior. E a denominaco desse cyclo no
pode ser outra seno a de cyclo dos Bandeirantes,
visto como sob esse. titulo glorioso se comprehendem
no s os destemidos paulistas que varejaram os ser-
tes, como todo e qualquer outro conquistador, ex-
plorador ou aventureiro do mesmo estofo um
Duarte Coelho Pereira da Parahyba, um Pro Coe-
lho ou um Martim Soares Moreno do Cear.
Foram elles, esses homens affeitos dura vida
dos campos sertanejos, que romprajn as florestas
seculares, lutando contra o aborgene, o clima e as
bestas ferozes, que atravessaram geraes, pampas e
26
taboleires ao galope ligeiro dos cavallos fnagros
ou a passo moroso, seguro, paciente e incansvel.
Foram elles que exploraram a aspereza das monta-
nhas, subiram as rampas resvaladias, grimparam de
rastos pelos alcantis, dormiram beira dos precip-
cios, passaram os largos rios a nado, e em pontes
pensis de cips, que balouavam ao vento, as tor-
rentes estreitas, espumejantes, roncando raivosamente
entre paredes ngremes de gargantas esconsas. Es-
calaram as ribanceiras com os punhaes nos dentes,
os punhos sangrando, o rosto avermelhado pelas ur-
tigas. Atravessaram as catingas e vrzeas de chilfa-

rotes nus, rasgados pelos espinhos, olhos afusilando,


espera das lutas!
A' quando fechavam as plpebras lassas,,
noite,
enrodilhados nas mantas remendadas, ao p das fo-
gueiras, um ficava atalaiando o denso negrume do
serto hostil. Sbito, um grito esganiado cortava a

treva. Logo, as corujas caladas se afastavam em vo


rasteiro, os uivos de raposa diminuam ao longe.
E tiniam armas, borborinhava a bandeira. Os homens
agachavam-se s pressas por trs das moitas e das
pedras. Estrondava a mosquetaria. E a tribu, que
rastejara quasi at junto da sentinella, no logrando
a chacina da surpreza, escoava-se em fuga sorra-
teira. Depois, os bandeirantes hericos reatavam o
som no.
Alm de creadores de lendas e de canes con-
substanciadoras dos perigos atravessados, da hostili-^
dade do meio em que pelejaram, foram os propaga-
Tf -^

dores de todasas que encontravam, especialmente


das que lhes legou o indio vencido.
As suas creaes no domnio do folk-lore
so
tristes, mesmo 4s .vezes sombrias, lgubres. Repre-
sentam a natureza selvagem, hispida, inimiga,
que
tiveram de dominar. So cheias de medos e de es-
pantos, quasi sempre perfumadas por
uma saudade
immensa. Tm a tristeza da solido em
que se es-
tiram as lguas ermas dos campos
geraes, do eterno
gemido dos burityzaes imponentes, do sussurro
pe-
renne e (melanclico dos vastos carnahubaes,
das som-
bras magestosas das cordilheiras
se espreguiando
sobre o tapete verde dos plainos, das
negras terras
revolvidas das grupiaras, da cr barrenta dos rios
enormes que no reflectem o azul do
co. Tem a
tristezaimpressionadora das florestas gigantes, onde
o homem, amesquinhado ante a natureza
portentosa,
procura com os olhos a cupola das
arvores altssi-
mas Cerca-o uma multido de folhas,
irrompendo
do solo e dos ramos om brutal exploso
de vida
arredondadas, lanceoladas, rendilhadas,
finas, pontu-
das, rebrilhantes como laminas, viscosas como co-
bras, adversarias de quem passa, atacando-o pelos
espinhos, pelas secrtccres, pelas
serrilhas e pela Jus-
sara. Lianas pendem em fios tristes, renem
arvores
como lios grossos, abraam-se aos troncos
musgo-
sos, sobem pelos galhos,
galgam os cumes dos o-i-
gantes vegetaes, das perobas, dos
jequitibs, das Ta-
mamas, dos ips, enrodilham-se, entrecruzam-se,
en-
trelaam-se. Nas tronqueiras vetustas,
carcomidas, as
28 -^

orchidas, as j\ tiranas desatam os cachos arroxea-


dos. Cobrem o cho a relva basta, as moitas cres-
pas, galhos e folhas mortas. Aqui, alli alumiam mar-
neis. onde as flhias aix)drecem entre a espuma dos
sapos e o lento mexer das cobras d'agua.
Naquella magestade de cathedral, os ruidos so
mais tristes que o silencio completo. Geme um ga-

lho roando noutro. *0 martellar isochrono do pica-


pu enerva. Ha mil silvos quasi imperceptveis, de
insectos, de passarinhos, de punars. O vulto leve
dos caxinguels, dos saguis, dos micos, das mucuras
passa de ramo em ramo. Sussurrejam jandahyras,
ablhas-canudo, maribondos. Ao longe, contrastando
com a obscuridade dos intrincados da selva, orladas
de palmeiras novas e de fetos vistosos, rebrilham
as manchas de ouro das clareiras.
As lendas e as cantigas representam esse meio
selvtico, imponente e perigoso. A sua psych ap-
prehensiva a da gente lutadora que as imaginou
entre combates e perigos, que as colligio, que as
transformou ou que as propagou.
Em primeiro logar, nesse cyclo vm as lendas
que recordam os combates com as cabildas tapuyas,
tupininquins, axTnors, botocudas ou paiacs, luz
da lua ou sob o esplendor do sol, entre silvos de
flechas e roucos sibilos das palanquetas e pregos
dor. arcabuzes, o retinir dos aos nos tacapes e o
resfolegar dos homens abraados, rolando pelo ca-
pinzal, hoje quasi esquecidas; que lembram as e as
primeiras mestiagens, os primeiros amores entre os
- 29
homens brancos invasores e as mulheres cr de bron-
ze, das quaes a de Iracema o expoente litterario.
Depois, as das florestas e das aguas, dos despenha-
deiros e dos paes, em cujo meio se podem incluir
as varias herdadas do indio, symoolisadoras dos pe-
rigos do mattagal e do rif) a do caipora, a do
batato, a ^o sacy
da yra ou me d'agua. Nesta
e a
segunda categoria ainda se podem incluir a dos gi-
gantes que devoram os passageiros, a dos pesca-
dores mysteriosos que pescam sem qwe nin-
noite
gum os veja, as das arvores que sugam os aventu-
reiros como polvos, segurando-os ao passar com as
pontas dos galhos e a das serpentes que nem o
fogo chamusca ou que voam pelo ar, como a Ca-
ninana.
As lendas da me d'agua, do sacy-perer c do
caipora ou cunupira, como dizem alguns sertanejos
de Nordeste, so por demais conhecidas, no valendo
a A seu respeito corre mundo uma
pena reedital-as.
srie de versos populares, que tm at influenciado
produces litterarias de maior alcance. A esse res-
peito pode-se consultar o Cancioneiro do Norte ,
<i

de Rodrigues de Carvalho, pags. 54 e 61. Infelizmente


no houve quem recolhesse todas as historias e ver-
sos relativos s primeiras lutas e s primeiras mes-
iagens com o indio. Elias perderam-se j na me-
moria dos sertes e ser quasi impossvel determi-
nar hoje em dia os primeiros limites desse cyclo
admirvel. As lendas adaptadas do indio pelo con-
tacto que com elles teve o bandeirante viveram me-
30
Ihor at nossos dias. Ha livros sobre o sacy en-
demoniado. Todo o mundo conhece o poder do cai-
pora sobre os caadores e as caas, o mesmo poder
do salmo encantado dos Hupas da Califrnia sobre
os pyescadores e as pescarias.

LENDA DO BATATO

O batato, que a gente do interior de Serg-ip-e


chama jan de la Foice, (*) fogo ftuo. As gen-
o
tes do Mediterrneo acreditam que o fogo de
SanfElmo guia os navegantes. Os nossos sertanejos,
herdada do bandeirante antigo, cr que elle.
a crena
corre atraz das pessoas, para lhes fazer medo, c
que serve para enganar os viajantes, ensinando-lhes
os caminhos de maneira errada e fazendo-os cahir
nos atoleiros e nos pntanos. O indgena chamava-o
mboy-tat, cobra de fogo, de onde boitati, coino
se diz no sul do Brasil, batato, como se diz no
norte.
A crena indiana e adoptada pelo invasor,
porque no fundo ella commum
aos povos euro-
era
peus. Os celtas ou da velha Bretanha
da Galhia
chamavam a essa chamma jogo dos druidas e attri-
buiam-lhe diversas virtudes. Ainda hoje os inglezes
o denominam Jack wiih a laiitorn e acreditam que,
com. essa lanterna, o tal Jack leva os caminheiros
por trilhos errados.

() Viria d'aU.im fninc z: Jean Deiaoyse /


31 ->

LENDA DO QORJLA

O Oorjla c um gigante preto e feio, que h-


bil? as serras penhascosas. A sua ferocidade lembra
a do Polyphemo de Homero, do qual um descen-
dente creado na imaginao sertaneja. Anda com as
suas passadas immensas pelas ravinas, escarpas 2.

grotes. Quando encontra um individuo qualquer, met-


te-o debaixo do brao e vai comendo-o s dentadas!
Outrora, muita vez quando um explorador des-
apparecia nos logares nvios, desconhecidos, por ter
tombado num despenhadeiro profundo ou por ter
sido devorado pelos ndios, os seus companheiros
affirmavam que o Polyphemo-Qorjla o devorara s
dentadas ... Os seringueiros da Amaznia conhecem'
o Qorjla- sob a forma do gigante batalhador, en-
couraado de cascos de tartaruga, chamado Mapin-
guari.

LENDA DOS ZARIGUES (*)

Os Zarigus so gigantes como o Qorjla, uns


tendo trs olhos, outros dois e outros um como os
Cyclopes antigos. Esses monstros horrveis devoram
gente e perseguem as mulheres, para violental-as.
So talvez descendentes em linha recta dos celebres

(*) R. Carvalho no Cancioneiro do Noi e J u-.ia can-


o sobre os Zarigus, eni que :-e nota at a supcrp< si.io das
trs liiiguas
: a do branc), a do indi e a ilo nejro.
>
32 --

Olhapins da pennsula ibrica, de que nos fala Joo


Ribeiro no seu bello livro Folk-Lore >.

LENDA DO PESCADOR
Noite de lua ouve-se nos rios ou nas lagoas
o rumor dum homem que pesca de tarrafa. Ouve-se
distinctamente a sua marcha cautelosa dentro d'agua,
espalhando circulos concntricos, marulhosos, sob o
luar triste. E no se v ningum. Nessas noites,

bom no ir pescar. O pescador no gosta de ri-

vaes na pescaria. Pode acontecer uma desgraa ao


audacioso que l fr.
As galhadas, os balseiros que descem os rios
e podem bater num homem, noite, quando pouco
enxerga, levando-o, ou os buracos profundos em que
se desapparece para sempre nas lagoas traioeiras,
deram origem, por certo, a esta lenda. (*)

HISTORIAS DE ONAS
As onas outrora, como actualmente em Matto
Grosso, encheram os sertes de Nordeste. Eram tal
vez mais numerosas que os ndios e duma audcia
ainda maior que a das tabas guerreiras. Dahi o
terem ficado perpetuadas no .folk-lore) em dois cy-
clos differentes: no dos Bandeirantes, em historias
das lutas contra ellas; no dos Vaqueiros em canes
sobre as devastaes por ellas praticadas nos reba-
nhos.

(*) Vide O. Barroso < Praias e Varzeapt, O Pescador.


'33
Pumas ou jaguares, vermelhas, pretas, pintadas,
'sussuaranas,maarocas, ellas ram dos maiores en
traves encontrados pelos primeiros colonisadores do
Brasil. Deante dos mosquetes, dos trabucos e das
ronqueiras os indigenas desappareciam, mas ellas con-
tinuavam a desafiar a pertincia dos caadores, a
devorar os bandeirantes tresmalhados ou a arruinar
os estabelecimentos incipientes. A memoria collectiva
do serto perdeu os cantos em que se falava do
indigena e ainda hoje canta o destemor e a feroci-
dade das onas, bem como narra as suas estrepo-
lias, quer sob a forma de satyra, quer sob a forma
de verdadeiros relatos. Ate os cantadores matutos
nos seus desafios ainda se comparam ns onas, em-
bora hoje raros exemplares restem delias, acuados
pelas devezas das serras mais nvias:

Sou peor que a ona preta,


<:

Sou peor que o tigre macho:


Quando urro em cima da serra,
Estremece o lagedo em baixo!

Henry Koster, que fez a longa travessia do Re-


cife a Fortaleza, a cavallo, em 1812, constantemente
fah' de onas e recorda historias de onas, que guar-
davam bem vivas na memoria os moradores daquella
regio, os quaes, no emtanto, j haviam perdido de
todo a memoria das lutas contra os ndios. Essas
historias so quasi todas semelhantes. Nellas, sem-
pre deix)is de tenaz perseguio, a ona morta

b
34
pela valentia dum homem, faca! Ainda hoje se
perpetua o gosto por esse trao de heroismo. As
gestas sertanejas pintam Antnio Silvino lutando bra-
o a com uma ona. Entre as
brao historias de
ona do serto, ha uma que pela sua veia satyrica
merece meno especial:

A ONA E OS DOIS COMPADRES

Era no tempo das prim.eiras colonisaes. Quc-


reftdo vr-se livre duma ona que devastava o seu
estabelecimento agrcola, um fazendeiro recem-estabe-
lecido no serto convidou um seu visinho e com-
padre para Ambos annaram-se e foram
ir matal-a.
Armaram-lhe uma tocaia em regra. Am^arrarara
um carneiro ao p duma arvore. Numa aroeira alta,
defronte, subio um dos compadres, escanchando-se
num galho, de arma aperrada. O outro metteu-se
num buraco, alli perto, cobrindo-o com palhas de
carnahuba sobre travessas de moror.
De madrugada, naquella incommoda postura,
ouviram o rugido da ona. Aterrorisaram-se! O do
baixo encolheu-se. Deu uma tremedeira no de cima,
que deixou cahir a espingarda. O carneiro berrou
trs vezes. A ona appareceu. Era uma pintada enor
me, ferocssima. Veio, lentamente, abanando a cauda
e sem fazer o menor caso do carneiro,
sentou-se,
sobre o tapume do buraco em que se escondia ura
dos caadores. E com as suas redondas pupillas
amarellas ficou fitando o outro, que se abraara ao
.

35

galho da aroeira, para no cahir cora o paroxysmo


de sua tremura. Seu olhar duro, impassvel, insis-
tente no o deixava um momento. Ento, o desgra-
ado, rilhando dentes, gaguejou:
Ona, debaixo do teu rabo tem um!
Ouvindo isso, o de baixo, tremeu com maif
fora, a poeira da terra entrou-lhe nas narinas. Sea-
tio um formigar no nariz e na garganta. Quiz com
ter-se e no poude: soltou um espirro formid-
vel... (*)

Ao
ouvir aquelle estampido debaixo de si, a
ona no esteve pelos autos, deu s de Villa Diogo!
Dizem que ainda hoje corre . .

Quando a gente da visinhana, alarmada com


a demora dos compadres, foi procural-os, o do ga-
lho estava louco, convencido de que era macaco,
e o do buraco estava morto, cheio de formigas.

(*) O sertanejo um pouco rude este trecho do raconto,


que ahi vae inteiramente polido et pour cause.
- 36
RESUMO DO CYCLO DOS BANDilRANTES
1. Lendas relativas s lutas com o indio.
2. Lendas de amor, relativas mestiagem,
3. Lendas sobre os perigos:

a)
I')

o CYCLO DO NATAL
.

o eyco do Mata!

E' velhssimo o costume de fazer testas burles-


cas ou mesmo srias nas ceremonias religiosas da
Quaresma do Natal, ou durante essas pocas, ma-
e

ximc durante a segunda. O fim dum anno e o co-


meo de outro sempre deram motivo a alegrias po
pulares. Ha toda uma serie de festas que se suc-
cedem de Dezembro a Abril: Natal, Anno-Novo, Reis,
Carnaval, Quaresma. Segundo Morat, ellas corres
pondem inteiramente s Saturnaes, Calendas de Ja
neiro, Lupercaes e Liberalia dos latinos. Vm, alis,
('e muito mais longe: das festas Sacoe de Babylo-
n.a e da Kronia atheniense, que deram as Satur-
a ^ '

n/s romanas, as Mascaradas da Idade Mdia, s


festas dos Loucos e do Burro, os cortejos da Qua
resma e do Carnaval (*). Em quasi todas essas di
verses populares era costume escolher um rei. No
Nordeste brasileiro esta tradio se manteve no3
Reis dos Mouros e dos Christos, nos Reis dos (lon-
gos; em outros logares do Brasil, no celebre !m
perador do Divino.
A data do N^rciuento de Christo deu origerrt
a u^r icni numero de festas populares, de cantigas

(*) Moret rMystres :8:yptiens>


40
e de representaes theatraes primitivas, que for
mam um vasto e interessante cyclo. Umas vieram do
elemento portuguez, das suas tradies e da sua
alma. Outras se originaram do indio. Outras do ne-
gro escravo, que transplantou para o nosso solo usos
e lembranas da terra natal. Algumas vieram do
mestir^ ^ .ando estavam situados os primeiros
estab'. - agricolas. E, por fim, esse mesmo
mestic iCou q.uasi todas, adulterando-lhe par-
tes ou transformando-lhe intenes e palavras.
Quando me entendi, j os bailados e coros cha-
mados janeiras, rcisados e cheganas, grupos de fi-
gurantes que andavam pelas portas das casas ..ciia-
tar e bailar, representando os seus papeis, tinham
desapparecido. Representavam, ento, dentro de cer-
cados, sobre tablados ou em navios fingidos, tendo as
suas singelas cantigas primitivas reunidas em ver-
dadeiros autos, que reproduzo neste livro ajudado c a

memoria e de notas que me forneceram pessoas lO

logar e s vezes os prprios cantadores. Muitas r le-

ganas ou rcisados foram pelo mestio reunidas um


auto nico como esse dos Fandangos, que, talvez
pelo facto de cantarem bailando sempre, tem esse
appellido de dansa hespanhola.
Os folguedos vindos da ancestralidade portu-
gueza recordam os episdios das navegaes e das
lutas contra a mourama ou os costumes singelos das
aldeias. Os Fandangos no so mais do que a com-
binao feita pelo mestio da chegana dos Maru-
jos, que cantavam pelas ruas carregando aos hombros
41
um navio e relembrando as cantorias ao redor dum
barco porm mais rico, na corte d' El
semelhante,
Rei D. Pedro, segundo Oliveira A4artins, com a chc^
gana dos Mouros e C^hristos, resto, por certo, da
velha representao do Rei dos Mouros, tendo de per-
meio, deturpada, a xcara da Nau Catharineta. Elles
respiram toda a alma da grande e herica aventura
martima de Portugal.
() Rei dos Mouros recordava a luta titnica
de oito sculos, na Pcninsula Ibrica, contra o mouro
invasor, cuja primeira pagina foi escripta pela es
pada de Pela\'o nos montes das Astrias, cuja se-
gunda i)agina foi traada por Affonso Henriques nos
campos de Ourique e cuja ultima pagina gravaram
os pelouros de Fernando e Isabel nos muros de Gra-
nada.
A vida campesina portugue/.a est perpetuada
nas Pastorinhas, no Baile da Lavadeira, nos autos da
Caridade e das Flores, e em todas as interessantes
lis de Reis, com que costume se tirarem. Reis
ou pedir guloseimas e dinheiro porta das casas
ricas ,nas noites de 5 para 6 de Janeiro.
O ndio, que costumava cantar em circulo, dan-
sando, os feitosde guerra e de caa, o deu para
Naial a sua to interessante e infelizmente desappa-
recida dansa dos Pags, em que se misturavam os
episdios guerreiros aos cynegeticos.
O africano trouxe das suas aringas selvagens
da Nigricia, onde os embaixadores dos sultes ori.n
taes de Zanzibar ou do Somai vinham, antes das
42
algemas de escravo trazidas pelo europeu, fazer en-
sanguentadas guerras de corso, a tradio que deu
o Rei dos Gongos, os Cucumbys com o seu rei e
os Maracats com a sua rainha. J no Brasil, o
negro deu as Tayras.
O mestio domiciliadonas fazendas creou o
Bumba meu Boi, que resume expresses moraes, in-
tellectuaes e vocaes das trs raas bsicas, o reisado
do Cavallo Marinho, qie, posteriormente, se fundio
no primeiro, os reisados da Borboleta, do Jos do
Valle e do Antnio Geraldo.
Neste livro o leitor somente encontrar autos
ainda no publicados e conformes sua ultima trans-
formao, uns mais deturpados, outros guardando me'
Ihor a primitiva forma mais ou menos culta que
)hes imprimiram os poetas populares de certa cultura,
que os compuzeram. Os que foram colleccionados
por outros autores no fjgiiram aqui. (*)

(*)Nos <Cantos Populares^ de Sylvio Romero esto os


bailes,cheganas e reinados 'ia Lavadeira, dos Marujos, do
Bumba meu boi (vagante, da Boriutleta, do Jos do Valle e
do Antnio Geraldo, as Tayas e vaias las de Reis.
No *Cancione ro do No:te> de Rodrigues de Carvalho, o
Bumba meu boi (var anr).
Nas s.Fesase tradies de Mello Moraes Filho, os Cucum-
bys.
Nas Idas e Palavras de Gustavo Barroso o Maracat.
Este passou do Natal para o Carnaval, como o Bujuba meu boi,
Ha Parnahyba, Piauhy, passou do Natal para a festa de S. Jo?\g.
AUTO DO REI DOS MOUROS
Este auto representa um episodio, transportado
para o Brasil, da grande luta peninsular entre as
duas raas, as duas civilisaes rivaes, que, durante
oito sculos, disputaram o predomnio politico, so-
cial e ethnographLO da Ibria. Havia nelle, segundo
parece, muito dos mysterios ingnuos da Idade Me-
dia representados nas egrejas, deante dos fieis, e
que eram o maior divertimento da poca em que se
glorificavam os famintos Qringoires.
A festa do Rei dos Mouros realisava-se no lit

toral. Era uma diverso de praieiros, de pescadores.


Infelizmente nada resta delia, seno a descripo que
faz Koster no seu livro Vo vages au Brsil >. Elle
assistio a essa representao no comeo do sculo
passado.
Formavam-se dois partidos: o dos mouros e o
dos christos. Os primeiros enccrravam-se num cas
tello ou forte, construido de taboas velhas, a caval-
heiro da praia. Os ltimos enchiam uma flotilha de
canoas de jangadas. Sobre a areia alva, som-
e
bra dos coqueiraes, erguiam-se dois thronos. Num
sentava-se o Rei dos Mouros; no outro, o Rei dos
Cnnstos. Ambos t&cjistiarr., arsim, ^o combate entre
44
os dois partidos, que se ia travar logo e cuja victoria
era sempre da cruz contra o crescente.
Antes de comear a guerra, parlamentava-se co-
mo ,de uso entre as gentes civilisadas. O Rei dos
Christos, brandindo o sceptro ameaador, intimava o
-seu collega mouro a baptisar-se. Este recusava, afer-
rado aos dogmas de Mafamede. Os arautos christos
trombeteavam, declarando a guerra. E a pugna co-
meava. "

Canoas e jangadas abicavam praia, disparando


tiros de ronqueiras carregadas de plvora scca, com
bucha de coco, contra a cidadella dos infiis, a qual
respondia valentemente. Depois, as tropas da cruz
desembarcavam com suas armas e oriflammas tocadas
pelo sol de laivos de oiro, como outrora, no inicio
da monarchia portugueza, os cruzudos desembarca-
ram deante de Lisboa assediada por Affonso Henri-
ques, para ajudal-o a tomal-a.
Os mouros sahiam do forte. Trava va-se a bata-
lha campal, em que s vezes os imprudentes se fe-
riam na ponta acerada das espadas e chuos que
traziam, vestidos carnavalescamente: os christos de
velhob uniformes dos regimentos de Milicias, dos
batalhes Auxiliares ou das companhias de Ordenan-
as: os mouros de saiotes lantejoulados e de co-
cares de plumas, onde reluziam espelhinhos como
brilhantes enormes. Gritaria, choques de armas, ta-
pezape de laminas de ao, esvoaar de estandartes,
tudo acompanhado pelo som dos tambores, das flau-
tas, das violas e dos maracs! Finalmente, os aga-
45

renos erarn vencidos, recuavam em desordem, entraxam


de roldo com seus vencedores pela alcova de ta-
boas velhas a dentro. E no alto das ameias tremu-
lava ao vento do oceano a bandeira branca com a
cruz vermelha de Christo,
O Rei Mouro prisioneiro era trazido presena
do Rei C.hristo, humilhado, amarrado com cordas.
Baptisavam-n'o com agua do mar, ao som de cantos
de guerra e de victoria. A festa findava com dansas,
batuques, cocos de embigada , bebedeira e, s ve-
zes, pancadaria de verdade.
O
.auto do Rei dos Mouros foi morto pelo tem-
po somente algumas reliquias se salvaram. Cer-
e

tamente a Clugana dos Mouros, ou dos C^hristos


e Mouros, que o mestio cearense reunio chcij^aiica

dos iWarujos, formando o Auto dos Fandangos, em


que as duas partes so bem visiveis, tudo quanto
resta do celebre Auto do Rei dos Mouros que Henry
Koster presenciou.

I
:

AUTO DOS FANDANGOS

PERSONAGENS

a) christos

Tenente-generai
Ca pi to- patro
Immediato
Piloto

Capito da artilharia
Medico
Capei Io
Contramestre
Sargento de mar e guerra
Cabo da maruja
Calafate
Gageiro
Laurindo, Vassoura e Rao, marinheiros.

Coro de marinheiros, soldados e guardas-mari-


nhas.

I
48
b) mouros:

Rei mouro
Embaixador, Ferrabraz de Mauritnia.
Coro de meninos e de guerreiros mouros.

(Um tablado alto com a forma de navio, tendo


mastros, cordames, vergas e outros apetrechos nu-
ticos, cheio de bandeiras esvoaando).

1.0 acto: CHRISTOS E MOUROS


O piloto apparece frente da maruja:

Adeus,meus amores,
Que vou embarcar.
At segunda feira,
Tera ou quarta, ao mais tardar.

Quem embarca? Quem fica? Quem vem?


J so horas de embarcar.
A catraia est na praia
E a mar pra-mar.
Coro.
Adeus, meus amores, etc.

Quem embarca? etc.

Piloio.
Despeam-se. marujos,
Qut? ns vamos embarcar.
49
Vamos todos p'ra Mourama,
Bem alegres pelejar!
Coro:
Quem embarca? etc.

Despeam-se, etc.

Quem embarca? etc.

PHoto.
J me vou, j me despeo,
J larguei velas ao vento.
No achei quem me dissesse: -

Deus te leve em salvamento!

Quem embarca? etc.

Coro.
J me vou, etc.

Quem embarca? etc.

Piloto.
Permitta Deus que achemos
Bom terral p^ra o mar, de terra!
L se vae de barra afora
Esta nossa nu de guerra.

Quem embarca? etc.

Coro.
Permitta Deus, etc.

Quem embarca? etc.


!

50
Piloto:
L se vae de barra atora
Esta nossa nu de guerra,
Velejando pelo mar
At chegar na Inglaterra.

Quem embarca? etc.

Coro,
L ise vae de barra afora, etc.

Quem embarca? etc.

Piloto:
Atraca a nu!
Sobe gageiro

Qajeiro, trepado na amurada:

Em linha vejo trs velas, (bis)


Velejando a barlavento, (bis)
Parecem ser dos inglezes, (bis)
Que vm trazer mantimento, (bis)
Coro:
Em linha vejo trs velas, etc.

O capito-general, (1) coberto de dourados, de


chapu armado e espada, surge no convz. Canta:

Dentro desta nu eu sou


Um tenente-general!
E tambm sou um fidalgo
Da nobre casa real! (2)
-51
Coro:
Alerta! Alerta!
O' da sentinella,
Que l vem mouros
Da Inglaterra! (3)

General:
Vejo o inimigo proa,
Para nos dar a batalha!
Eu no sei o que farei
Para a nau virar de bordo! ( !)

Coro:
Vejo o inimigo, etc.

O General ao Immediato:

Supra bem a embarcao


De caf, de po, de vinho,
-

Que eu no quero que nos falte


Mantimento no caminho!

Immediato.
Alerta estou,
Meu general,
De armas na mao,
Defendendo a ptria!

0\ d-me c o estandarte,
Por tudo venho jurar
Que quem meu chefe agrave

I
52
A sete lguas irei buscar!
Derramarei todo o meu sangue
Pelo chefe general. (5)

Coro:
Alerta 1 Alerta I

O* da sentinella!
Que l Vm mouros
Da Inglaterra!

hmmediato:
Alerta estou,
Meu general,
De armas na mo,
Defendendo a ptria T

No temo nenhuma bala


De bacamarte e espingarda.
Se me apontares o tiro,

Augmento minhas passada.


Toro o corpo, a bala passa
E puxo por minha espadai

Piloto.

Vejo argelino (7) proa


Para nos dar a batalha!
Eu no sei o que farei
Para a nu virar de bordo L

Coro:
Vejo argelino, etc.
53
Como se viesse doutro navio,
que encostasse na
nu christ,apparece no convz o embaixador mouro,
armado, de capa e turbante.

Dae-me licena, senhores! (bis)


Que nessa nu quero entrar, bis^
Com a minha fidalguia (bis)
Para comvosco falar! (bis)

Sem temor e sem pavor, (8) (bis)


S por mim direi quem sou! (bis)
Venho trazer uma embaixada, (bis)
Que manda o rei ineu senhor! (bis)
General:

Quem teu senhor?


Coro:
Quem teu senhor?

Embaixador:
E' o sultoda Mauritnia, rei-senhor de meio
mundo, de meio-sol e meia lua, que s por mim
manda embaixada! Ouve-me, general, e attende este
illustre embaixador, que em tua presena espera! (Q)

General:

Senta-te, embaixador, para dar a tua embai-


xada e diz-me o que o teu rei de mim pretende e
jque partidos (10) so os teus.
54 ^

Embaixador:
Bem deves te lembrar que hontem, ha poucas
horas, meu monarcha recebeu tuas atrevidas e so-
berbas embaixadas (11). Portanto, general, emquanto
elle no vir a tua cabea cortada, a sua coroa e o
seu sceptro resgatados (12), no deixar que vejas
teus deuses e que tenhas valor pelas tuas armas.
Emfim, general, d^me a resposta para que ao meu
monarcha torne (13).

General:

Segue, embaixador, que a resposta j est


dada e diz ao teu rei que eu o espero a p firme
dentro da minha nu!

Embaixador:
Para que, general?

General:

Para matal-o, embaixador!

Embaixador, raivoso:

O meu rei e o meu mestre tu matas, ge-


neral?!

General:
Sim, embaixador! Olha como dizes e repara
<x)mo falas, que as embaixadas so dadas mais mo-
55
deradas!... Sc no fosse eu attender que s um
illustre embaixador, pela fora do meu brao e pela
ponta da minha espada j te tinha feito retirar tuas
atrevidas e soberbas embaixadas!

Piloto:
Deixa e parte, embaixador!
Sem temor e sem pavor,
Que fazes grande ameaa
Ao nosso governador!

Coro:
Vejo o inimigo proa,
Para nos dar a batalha!
Eu no sei o que farei
Para a nau virar de bordo!

Coro:
Vejo o inimigo, etc.

General:
Jesus, neto de SanfAnna,
Filho da Virgem Maria!
No permitta Deus que eu seja
Prisioneiro na Turquia!

O sargento avana para o embaixador e grita-


Ihe:
Parte daqui, embaixador, que has de ver pelo
punho do meu brao e pela ponta de minha es-
!

56
pada em quantas horas defendo a honra de meu
general

Piloto:

. Vejo argelino proa.


Para nos dar a batalha!
Eu no sei o que farei
Para a nau virar de bordo!

Coro:
Vejo argelino, etc.

Os mouros approximam-se. Ouve-se o seu coro:

Eu sou o mouro argelino,


O senhor do pelejar!
Se pelejares commigo
lua nu ha de afundar!

Eu sou o mouro argelino,


O senhor de meio mundo!
Sc pelejares commigo,
Tua nu vae para o fundo!

General.
Tu s o mouro argelino,
Sou a fragata do rei!

Se queres me atira ao fundo,


Que eu tambm te atirarei!
57
O Capito da artilharia:

Todos os guerreiros mouros,


Que vm de la da Turquia,

Sabero p'ra quanto presta


Um capito de artilharia!

Com o foge; da artilharia


J ganhei muita victoria
E espero na Me de Deus
Ganhar o prazer da gloria! /

Os mouros entram em chusma pela nu christ.


O embaixador toma o seu commando. O general e
os christos defendem-se. As espadas retinem. Os
tambores rufam. Ha um alarido e uma confuso.

Embaixador: ,

Fogo e mais fogo!


Fogo de arrazar!
Morra a christandade
Que eu quero afundar!

Coro de mouros e christos, ao mesmo tempo:

Fogo e mais fogo!


Fogo de arrazar!
Morram os saloios (14)
Que nos querem afundar!
58
Cada um dos personagens principaes dum e

doutro partido canta a primeira destas duas estrophes


e o coro responde sempre coma segunda. Os mou-

ros levam vantagem no combate. Os christos esmo-


recem. Ento, o embaixador avana para o general
e diz-lhe:
Emfim, general, vs a tua gente morta, tua
nu lavada em sangue! Vem comniigo ao meu reino
que serei teu amigo constante, dar-te-ei prata, oiro
e minas de diamante; dar-te-ei a minha irm Flo-
risbella, que a senhora mais rica do Imprio!
O general responde-lhe, disposto a continuar a
luta:

Agradeo teus thesouros! Como no s bapti-
sado, mim no tens valor!
para
Olha para o cu e faz uma invocao:

Alinha Nossa Senhora do Rosrio, ajudae-me
a vencer a nu dos mouros e a resgatar a minha
gente! Prometto que vos darei duas velas de libra,
o traquete da minha nu e todo o dinheiro que
ganhar na roda dum anno!
A maruja christ toma novo alento. Enthusias-
mada pelos seus chefes, avana contra os infiis,

desbarata-os, expulsa-os ponta de espada. O gene-


ral convida, ento, o embaixador a entregar-se:

Entrega-te, bravo mouro! (bis)


No persigas minha lei! fbis)
Pela f de Deus te juro fbis)
Que tu no has de vencer! fbis) (15)

I
d9 -^

Embaixador:

Se tu a guerra venceres,
No me has de me matar!
Que a aninha f pura
E no ha de me faltar!
Cro:
Entrega-te. bravo mouro! etc.

Embaixador:

Se tu a guerra venceres,
No ser por valento,
E' porque no te traspasso
Este duro corao!
Cro:
Entrega-te, bravo mouro! etc.

Embaixador:

Se tu a guerra venceres,
No me has de me matar!
Que eu tenho o matto livre
E no me ha de faltar!
Cro
Entr-ega-te, bravo mouro! etc.

Embaixador, deixando cahir a espada, exhausto:

Ai! j no posso
Mais combater!
Que a christandade
Me quer vencer!
60

Ai! j no fK)sso
Mais pelejar!
Que a christandade
Me quer matar!
Coro.
Preso ests!
Entrega-te j!
E por ordem
Do general (16)
General:
j est prisioneiro
Quem com ns veio pelejar!
Era um mouro pirata
Que nos queria matar.

Dize-me tu, bravo mouro,


Qual era a tua teno?
Se era levar-nos prisioneiros
Ao teu senhor e sulto T^"

Embaixador:
Senhor, digo que queria
Pelo meu grande valor
Levar-vos prisioneiros
Ao guerreiro meu senhor!
General:
Cala-te, bravo mouro,
No te faas valento!
Olha que eu te arrumo
Um horrendo pescoo!
:

- >' - ' .[

Coro:
Cala-te, bravo mouro, etc.

Embaixador
Senhores, no me mateis
Sem eu primeiro falar,
L vem chegando meu pae.
Que me vem j resgatar!

Ha um dialogo curto, incisivo, brutal entre o


tenehte-genera e o embaixador:
Ento, brbaro, queres te baptisar?
No, senhor!
No queres viver na lei de Christo?
Nem quero saber disso!
Falo-teem Deus e me viras as costas?
L com isso no me importa.
O general canta para os guardas marinhas:

Levae, meus guardas,


Este traidor!
E tirae-lhe a vida
Com o maior rigor!

Embaixador:

Levae, meus guardas, etc.

Coro.
Adeus, meu pae, adeus!
Adeus, minha gerao!
S canto vicloria
Se viro eh ris to!

\
62
Senhores, no me mateis
Pela vossa piedade,
Que eu sou filho de reis (17)
Tambm tenho magestade!

De novo se trava entre o embaixador e o ge-


neral omesmo dialogo brusco de antes, e de novo
o general e o coro cantam as coplas da parte:

Levae, meus guardas,


Este traidor!

O embaixador decide-se pelo baptismo, para sal-

var a vida:

Senhor general,
Pela magestade,
Dae-me o baptismo
Da christandade!

General:

Ento, brbaro, queres te baptisar?

Embaixador:

Quero sim, senhor!


O dialogo prosegue:
Quem so teus padrinhos?
Nossa Senhora do Rosrio e sua excellencia
o senhor dom tenente-general.
-^ 63
Como te has de chamar?
Dom Malaca dos Santos Calunga Dend Pi-
menta no Olho-que-faz arder! (18)

General:

Senhor padre capello,


Faa do mouro um christo!

O general, e o capitao-patro ladeiam o bapt-


sando. O capello pergunta-lhe:
Mouro, queres te baptisar?
Sim, senhor!
Ento, larga teus falsos dolos e cr nas trs
pessoas da Santssima Trindade: Padre, Filho e Es-
pirito Santo! Dom Malaca ests baptisado em nome
do capito-patro desta nu!
Embaixador, gritando:
Viva a minha madrinha Nossa Senhora do
Rosrio e viva o meu padrinho sua excellencia o se-
nhor dom tenente-general!! (19)

Canta, aps:

Graas aos cos


De todo o meu corao!
Ainda hontem era mouro
E j hoje sou christo!

Sobe na nu, acompanhado de quatro meninos,


o velho rei mouro, pae do embaixador, trazendo o
resgate do filho prisioneiro.
64 -^

Rei:
Ningum de mim tenha medoi
'Eu no venho fazer mal.
Venho dentro desta nu
O meu filho resgatar.

O' general desta nu,


Ouvi-me sem ter temor,
Bem sabeis vs que eu sou
Da Turquia Imperador!
Meninos:
y general desta nu, etc.

Rei:
Agora venho saber
Do triumpho da vicfra,
Como foi preso em combate
O filho que o pae adora!

O' general desta nu,


Que ouve missa com amor,
Bem sabeis v-s que eu sou
Da Turquia Imperador!
Meninos:
O' general desta nu, etc.

General.
No conheo nem reconheo
Da lurquia o Imperador.
Como no sois baptisado,
Para mim no tens valor!
!

- 65
Coro.
No conheo, etc.

Rei:

Quinhentos marcos de ouro


Te darei, meu genei,
Se tu deixares meu filho
"O meu throno governa.

Minas de ouro, de diamante


Te darei, meu gener,
Se tu deixares meu filho
O meu throno governa.

Coro, dirigindo-se ao ex-embaixador:

Tu s o mouro
J baptisado,
Que procura o reino
Da christandade ;

Mas, se tu queres
No ser louvado,
Volta ao imprio,
Rei coroado

O rei, surprezo e indignado, volta-se para o


filho e canta:

Filho indigno, fantstico!


Se a apparencia no me engana
66
Tu s mesmo meu filho
Ferrabraz de Mauritana! (20)

Ferrabraz:
Sim, soberano pae,
Por esse titulo me assigno
Vim dar este combate
P<.lo meu grande destino!

Rei:
J ests na lei divina,
Que eu tinha tanto odiado!
Como deixaste meus deuses,
P'ra mim est tudo acabado!
Coro:
Tu s o mouro, etc.

Rei:
Era melhor que tu fosses
Imperador da Turqi;ia,
Como eu queria que fosses
E com toda a senhoria!

Ferrabraz:
De me vr na christandade
Tenho j consolao.
Soberano pae, baptisa-te
E larga a tua nao!
Rei.
Esta penna que tu trazes
Amarrada na cintura
E' para escrever no inferno
Esta tua f impura?
^ 67
Ferrabraz.

Soberano pae, baptisa-te!


Arrecebe a lei de Roma.

Teus deuses so do inferno.


Larga essa lei de Maoma!

O rei, loujco de dr, puxa o punhal da cintura e


rava-o no peito, cantando:

Eu vim por esses rochedos


Rugindo como um leo.
Com este punhal que trago
Traspasso meu corao!

Cae morto! O filho murmura:


Acabou-se o rei de Mafoma!

O coro canta:

O mouro morreu
Com sua mo se matou
Porque noquiz viver
Na lei de Nosso Senhor!

General.

Lanae ao mar, meus marujos,


Este infiel sem ventura!
A quem morre por seu gosto
No se deve sepultura.
.

68

Quatro marinheiros pegam o corpo pelas per-


nas e pelos braos, balanam-n'o para l e para c
muito tempo, cantando plangentemente, acompanha-
dos por todos os presentes, antes de atiral-o pela
borda fora:

O mouro morreu!
Lancemos ao mar!
O dinheiro delle
E' p^ra ns gastar!

2.0 acto: A TORMENTA DO GAGEIRO


(Reina paz no navio. Os marujos fingem em-
barcar para a continuao da viagem).

Coro
loca, toca a embarcar,
Rema p'ra nossa fragata,
Que o mar se vira em rosas
E a embarcao em prata.

J me de o corao
E os olhos de chorar.
Quando o contramestre manda.
Toca, toca p'ra embarcar.
Putro
Embarca, embarca
A toda pressa,

I
!

^ 69
Que a nossa nu
Deu um tiro de pea.
Cro:
J no posso aturar
Do contra-mestre o rigor.
Vou vr se o immediato
Me amostra mais amor.

Toca, toca d embarcar


Rema p'ra nossa fragata,
Que o navio de ouro
E os mastros de \yra\2i.

Patro.
Embarca, embarca
Sem mais demora,
Larguemos vela
De barra afora
Cro:
J no posso aturar
Do immediato o rigor.
Vou vr se o general
Me amostra mais amor.

Toca, toca a embarcar


E rema contra a vasante.
Que o navio de ouro
E os mastros de brilhante.
Patro:
Embarquemos, meus marujos,
Que nada nos ha de faltar,
70

Comer de barriga forra


E vinho de emborrachar! (21)

Senhor tenente piloto,


Trate da navegao.
Adeus, adeus, meus amores.
Prenda do meu corao!

Espalhada pelo convz da nu, a maruja con-


tinua a cantar em coro, como se contasse uma aven-
tura da sua vida:

Da nu Catharineta, (22)
Noticias te quero dar.
Sete annos e um dia
Andou por cima do mar.
No tinha mais que comer
Nem to pouco o que manjar!
Botamos sola de molho,
P^ra no domingo jantar.
A sola era to dura
Que a no pudemos tragar.
Botamos as sete sortes
Para vr a quem matar.
As sete sortes cahiram
No tenente general.
No me matem, marinheiros,
Gente do meu natural,
Antes quero que me comam
Peixe, toninha do mar!
. .

-^ 71
Assobe, arriba, gageiro,
Nesse teu tope real,

V se avistas terras de Hespanha


E areias de Portugal!
No vejo terras de Hespanha
Nem areias de Portugal,
Avisto sete espadas nuas,
Para os guerreiros matar . .

No me matem, marinheiros,
Gente do meu natural.
Antes quero que me corncim
Peixe, toninha do mar!
Avisto mais trs donzellas
Debaixo do parreiral,
Uma procura uma agulha,
Outra procura um dedal,
Uma tece caa fin:^

Que mais fina que sdal. (23)


Desce p'ra baixo, gageiro.
Que alviaras te quero dar.
Todas trs so minhas filhas,
Todas trs eu vou te dar:
Uma para te vestir.
Outra para te calar
E a mais xiquitinha delias (24)
Para comtigo casar.
Eu no quero as tuas filhas
Que te custaram a criar,

Quero a nau Catharineta,


Para nella navegar.
72 -^

Esta nu Catharineta
E^ do rei de Portugal.
Dar-te-ei lguas de terra
Aonde queiras morar.
Eu no quero as tuas terras
Que te custaram a comprar.
S quero a Catharineta
Para nella navegar.
,

Esta nu Catharineta
E^ do rei de Portugal.
Dar-te-ei tanto ouro e prata
Que tu no saibas contar.
No quero ouro nem prata
Que tu no podes me dar.
Quero a nu Catharineta
Para nella navegar.
Esta nu Catharineta
E' do rei de Portugal.
Dou-te o meu rico capote
Que de ouro pesa um quintal.
No quero o teu capote
Que te custou a ganhar.
S quero a tua alma
Para ao inferno levar.
Sae-te daqui, co sujo!
Mofino e arrenegado,
Que minha alma de Deus,
Meu corpo do mar sagrado 1

Os marinheiros, aps a cantiga, agrupam-se pe-


: .

73

los cantos e cantam baixinho, como se coxixas-


sem: (25)

A mulher do capito
E^ uma santa mulher!...
Vae missa de manh,
Volta s horas que ella quer ...

O capito volta-se e responde:

O' senhores que falais


No preciso de teimar;
Se ella minha mulher,
Deixae-a passeiar!

O coro canta a mesma copla allusiva s mu-


lheres do do cabo, do sargento, do guarda-
piloto,
marinha, do prprio tenente general e, por fim,
do contra-mestre. 1 odos respondem da mesma manei-
ra que o capito, porem o contra-mestre apparece
com um ferro na mo e replica meio zangado. O
capito-patro intervm, dando ordens, distribuindo
servios

Eu no quero ver motim


Dentro desta embarcao. '

Vejo o bello contramestre


Com um p de cabra na mo? . .

Senhor cabo da maruja,


Tome conta do st;i leme,
Que vento e mar so tantos
:

74
Que at o mastro treme!

Seu camarada de quarto,


Accenda essa bitrala (26)
Que vento e mar so tantos
Que at o mastro estala!

Senhor tenente piloto,


Trate de mandar dar fundo,
Que o vento e o mar so tantos
Que o temporal maior do mundo!
Piloto:
Eu no vejo aqui tormentos
Que se no possam aguentar,
Nem tambm a embarcao
Em riscos de se afundar!

Capito
Senhor tenente piloto,
Mande ferrar algum panno,
P'ra depois no ir dizendo
Que se perdeu por engano!...
Piloto.
Sobe, sobe, meu gageiro,
Vae o Joanete!
ferrar
Ferra a gvea e a sobregavea,
Ferra' l em cima o traquete!

O gageiro hesita em subir por causa do tempo-


ral. O capito-patro refora a ordem do piloto.
75
Capito:

Contramestre manda a proa


E a camar o capito,
O gageiro commanda a gvea
E a cosinheira o fogo!

O gageiro marinha pelo mastro grande at


o
cesto da gvea, escancha-se na verga e canta,
do-
ioridamente:

Valha-me Deus,
Com tanto vento!
Nos defenda da tormenta
O divino Nascimento! (27)

Quem me mandou
Eu embarcar?
P'ra passar tormentos
Como vim passar!

Se eu soubesse da tormenta
Que haveria de passar,
Dentro desta nau de guerra
Nunca houvera de embarcar!

Desde que apanhei tormenta


Nunca mais tive alegria.
Era o mar, a chuva, o vento
Que nn proa rei ira a!
!

76
Desde que apanhei tormenta
Dum terrvel temporal,
A minha Virgem do Rosrio
Pedi p'ra nos ajudar.

Gageiro:
O' l da proa!
Senhor contra-mestrel
Contramestre:
Que queres tu?

Gageiro:
Grande tormenta
Contramestre:
Que queres tu?

Gageiro.
Grande tormenta
E o vento tanto
Que nos atormenta

O^ l da proa!
lenente piloto!

Piloto:
Que queres tu?

Gageiro:
Mande algum para arriar.

Piloto:
Que queres tu?
77
Gageiro:
Mande algum para arriar.
Que o vento tanto

Que caio ao mar!

Meu capito, suba, subal


Neste meu tope real,
Venha vr grande tormenta
Por sobre as ondas do mar!
Capito:

Meu gageiro, eu subirei


Neste teu tope real,

Pois que hei de morrer


eu sei
Dentro das ondas do mar!

Contramestre e piloto ao mesmo tempo:

Senhor capito, suba, suba!


No queira esmorecer,
Qu o divino Nascimento
Sempre nos ha de valer!

Capito.

Senhores piloto e contramestre,


Estamos com a nau perdida,
Com muito pouca esperana
De escaparmos com vida!

; O capito comea a subir no mastro com a in-


:

7S
teno de atirar-se da gvea no mar, para morrer,
porque perdeu a nu com a tempestade. Canta:

Ai! vou morrer, meu gageiro,


Desse teu tope real.
Sei que tenho de morrer
E vou lanar-me no mar!
Piloto e contramestre juntos

Vinde c, meu capito,


*
No queira lanar-se ao mar
Que a Virgem da Conceio
Ha de vir nos ajudar!

Gageiro, alegremente:

Alviaras, meu capito!


Alviaras lhe quero dar!
A tormenta j amaina.
J podemos navegar!
Pode ir, senhor piloto,
Ao seu quarto socegar,
Que j passamos os baixos, (28)
J podemos navegar!

Venha c, senhor patro,


Com seu rosto de alegria,
Que eu deste tope avistei
O rosrio de Maria!

O gageiro desce do mastro. A lufa-lufa em que


a marinhagem fingia estar mettida, dobrando velas,

1
.

79
puxando cabos, dando s bombas, cessa de repente.
O capito d a sua ultima ordem de manobra por
causa da tempestade:

Senhores piloto e contramestre,


Tratemos de marear!
Que a tormenta j passou
E j podemos navegar!
Coro:
Corre, corre, embarcao,
Por essas ondas do mar,
Velejando a barlavento
At chegar a Portugal!

3.0 acto: A MORTE DO PILOTO

Capito:
Remae, remae, meus marujos,
Remae que temos bonana!
Deixemos, deixemos no mar
Leva remos!
As nossas tristes lembrp^^^-^s.
Coro:
Remae, remae, etc.
Capito:
Senhor tenente piloto.
Trate da navega io,
Que depois no ir dizendo
p'ra . .

Leva remos!
L se foi o remo da mo.
: ! .

80 -^

Coro:
Senhor tenente piloto, etc.

Capito:
Eu e os meus camaradas
No cansamos de remar,
Que p- ra no dia da festa ...
Leva
remos
Ns no podermos faltar.
Coro:
Eu e os meus camaradas, etc.

Capito
Senhor tenente piloto.
Aproveitemos o vento.
Para festejarmos em terra . .

Leva remos!
O divino Nascimento.
Coro:
Senhor tenente piloto, etc.

O Capito continua a cantar, em vrios tons,,


conforme a mtrica dos versos, acompanhado pelo
coro:

O' Lisboa! O' Lisboa!


Lisboa de peccado!
Se eu no fosse a Lisboa, (29)
Nunca seria soldado.

Quando meu mestre me manda


Correr a nu pela proa.

I
81
Vm-me sempre lembrana
As meninas de Lisboa...*

Fragatinha hollandeza
Que andas no mar de Lisboa,
Com vento su-sudoestc
J te passei pela proa!

Senhores, mandae soccorro


A'quella pobre galera,
Que est cercada de mouros
Nos- mares da Inglaterra!

O' Lisboa! O' Lisboa!


As costas p'ra ti vou dando.
No sei o que fica atraz
Que meus olhos vo devorando

O^ Lisboa! O' Lisboa!


As costas p'ra ti vou dando,
Que o traquete est na amura
E a amura se amurando.

Adeus, terreiro do Pao!


Adeus, memoria real! (30)
No volto neste logar!
Viva o nosso general!

Quero bem sinh Mariquinha.


Eu a venero p(;r ser bonitinha,
! ! . .

82
Quero bem sinh dona Rosa.
Eu a venero por ser formosa.

Quero bem sinh Francisca.


Eu a venero por ser arisca.

Quero bem sinh dona Rita.


Eu a venero por ser bonita.

Triste vida a dos marujos,


De todas a mais canada,
Que pela triste soldada
Passam tormentos
Passam tormentos!
Don i Don

Lembro-me de certas senhoras,


Com quem eu tratei em terra. (31)
Hoje esto me fazendo goierra . .

Com meu dinheiro!


Com meu dinheiro!
Don
Don i

Tenho medo do peixe-arraia


E tambm do tubaro,
Que no morda meu corao . .

E minha alma:
E minha alm.a!
Don! Don!
- 83
As nossas necessidades
Nos obrigam a embarcar,
Passando o tempo no mar!
Erp aguas e aguaceiros.
Em aguas e aguaceiros.
Don! DonI

Andamos na furja do vento,


Quer no vero, quer no inverno!
S SC parece com o inferno
A tempestade!
A tempestade!
Don! Don:

No meu quarto de dormir,


Quando estou a descanar,
E' quando ouo gritar:
O' leva arriba!
O' leva arriba! (32)
DonI Don!

*0 chefe, ento, me grita,


Falando de tal maneira:
Mande vr a cevadeira
E concertar o panno!
E concertar o panno!
Don! Don!

Antes queria ser padre,


Sendo vigrio collado.
84
De casamento e baptisado
Ganhando offerta,
Ganhando offerta,
Lk)n! Don!

Triste vida, companheiros!


N/) podemos descanar!
Cada qual em seu logari
O' leva arribai
O' leva arribai
DonI DonI

Arrenego de tal vida


Que nos da tanta canseira
Que sem uma bebedeira
No passamos!
No passamos!
DonI DonI

Cessam os cantos em coro. Ha outra scena.

Calafate:
Apparea, meu commandante,
Para esta nu commandar. (bis)
Capito :
Que tendes, calafatinho,
Que te ouo resingar? (bis)
Calafate :
E' o tenente piloto
Que de mim se quer vingar! (bis}
85
Capito.
Senhor tenente piloto,
Tenha cuidado commigo, (bis)
Mande dar as raes
A quem estiver carecido! (bis)
Piloto:
Olhe, senhor capito.
No me venha agoniar, (bis)
Olhe que eu estou vendo
A agulha de marear! (bis)
Capito.
Olhe, senhor piloto,
No seja to malcreado, (bis)
Onde ha campo e espadas
As razoes so escusadas! (bis)
Piloto:
Arreda, arreda, gente!
Que eu quero me vingar! (bis)
A cara deste bregeiro
Eu j vou arrebentar! (bis)

Capito:
Arreda, arreda, povo!
Que eu quero me vingar! (bis)
Com esta minha espada
O piloto hei de matar! (bis)

Todo o mundo se afasta, dando espao para qu<


os doib possam lutar. O capito logo aos primeiros
golpes prostra ferido o piloto.
.

- 86
Piloto, cabido sobre o convz:

Grande foi a estocada


Que me deu o capito,
Com a ponta da sua espada
Traspassou meu corao!

Desde muitas madrugadas


No me podia tragar!
E assim o capito
A vida me quiz tirar!

Chamem nosso capello,


Que eu me quero confessar.
A ferida muito grande.
Delia no julgo escapar!

O tenente general apparece, no meio da turba


lulta que rodeia o official ferido, imponente e zan-
gado.
Que faz o seu mar c guerra (33)
Dentro desta embarcao
Que no vem vr o piloto
Que est cabido no cho?

O sargento de mar e guerra, apparecendo afo-


gueado e furioso contra o capito-patro:

Que que tem, senbor piloto


Que o vejo desmaiar?-'


- 87 -^

Se foi aqueiie brejeiro


Eu o vou arrebentar,!

O capito ouve e adianta-se, de espada em pu


nho, desafiando o sargento:

Senhor sargento de mar e guerra,


Queira j se arretirar,
Seno com esta espada
A vida lhe hei de tirar.

O sargento pe-se em guarda:

Venha, se homem, para c,


Que eu j ando sua espera!
Voc no conta victoria
Com o sargento mar e guerra!

O padre capello de bordo surge numa das ex-


tremidades do navio. Os circumstantes no permitten-
que o capito se bata com o sargento. Este, avistando
o padre, chama-o:

Venha c, chegue-sc proa,


Senhor padre capello.
Venha ver nosso piloto
E ouvil-o de confisso.

Capello, chegando e curvando-se para o ferido:

Que que tem, senhor piloto.


Que o vejo desmaiar?
!

- 88
Piloto:
Foi o capito-patro
Que a vida me quiz tirar.

Capello :
Eu ja com isso
contava
Que quem te deu,
fosse elle
E' impossivel quem foi mouro
No ter sangue de judeu

Se me livrares a cra.
Minha mo sagrada est,
D-me um jogo de pistolas
Que le ajudarei a matar!

Capito, ouvindo os insultos do sacerdote e re-

pellindo-os:

Senhor padre capello,


Queira j se arretirar.
Seno com a mesma espada
A vida lhe hei de tirar!

O capello diz, com lealdade, ao ferido:

Faa modos de viver!


No se fie em orao.
Eu tambm hei de morrer.
Chame o doutor cirurgio! (34)
Piloto:
Chamem o cirurgio,
Que me quero receitar,
89
A ferida muito grande,
Delia no julgo escapar!

Sargento de mar e guerra:

Venha c, chegue-se proa,


Senhor doutor cirurgio,
Venha ver nosso piloto
Que est cahido no cho!

O medico de bordo, apparecendo:

Qie tem, senhor piloto,


Que o vejo desmaiar?
Se foi aquelle brejeiro,
j o vou arrebentar!
Piloto: '.

Em gottas de meu sangue


J me vejo consumido.
Aqui dentro desta nu
No vejo um s amigo!...

O piloto desmaia. Todo


mundo pensa que
o elle
morreu. Todos os olhares cravam-se ferozmente bo
capito. O general manda prendel-o:

Senhores guarda-marinha
E sargento mar e guerra.
Prendam o senhor capito,
Para conselho de guerra I
- 90
Os dois avanam para elle, que entrega a espada

Puiro:
Obedeo-vos pela ordem
Do chefe de mar e terra.
Agora, j que estou preso,
Faam conselho de guerra!

O piloto, voltando a si, canta, suspirando:

Valha-me Nossa Senhora,


Que ella me queira valer.

Aqui dentro desta nu


Vejo meu sangue correr!

O medico, chamando um marinheiro:

Vem c, Laurindo!
Vae na botica.
Com todo o cuidado
Traz de la arnica.

Laurindo, voltando a correr momentos depois:


Meu rico homem.
Meu bello senhor,
Aqui est a arnica
Em seu favor!

O medico fazendo o curativo da ferida do pi-

loto:
Dnguento enorme! (35)
Cura esta ferida!
!

- 91 -^

Com blsamo cheiroso


Te darei a vida!

Piloto, levantsndo-se:

Graas aos cos!


Estou menos dodo.
Quem me deu a vida
Foi o Senhor Nascido!

General.

Senhor (juarda-Ma rinha,


Solte o capito-patro,
Que- ao nosso bom piloto

J lhe bate o corao.


Piloto:
Eu bem conheo
Que ainda no estou forte
Mas este bregeiro
Morrer de ma morte.

Graas a Deus,
De todo o corao,
Que escapei de morrer
Nesta embarcao

Capito :
Graas a Deus,
De todo o corao;
Que no estou mais prezo
Nesta emb'!rca<^o!
- 92
A nau chegada a porto de salvamento. A tri-

pulao finge que vac- desembarcar nas catraias c

canta em coro

Enrola o panno e arreia o ferro,


Com prazer e contentam.ento.
Vamos louvar de Jesus
O Divino Nascimento.

Rema quem rema,


Que no sei remar I

Rema p'ra terra


Que remo p'ra o mari

Acerta o remo
De r pela proa!
Ns j estamos
No mar de Lisboa.

Rema quem rema.


Senhor marinheiro!
Que quem no remar
No ganha dinheiro.

Rema quem rema,


Daquella fragata!
Que o remo de ouro
E a malagueta de prata!

Saltemos do mar contentes,


Com prazer alegria
^ ^3
Vamos louvar a Jesus
E a grande Virgem Maria I

Saltemos do mar contentes


Com saudades extremosas,
Desembarcando felizes
Desta nossa nu de rosas.

loquem l os seus apitos,


Encastoados de prata.
V>jo bcilo commandante
Dentro daquella fragata.

Toquem l os seus apitos,


Encastoados de ouro.
Vejo bello commandante
Dentro desta nu-thesouro.

Toquem l os seus apitos,


Encastoados em lato.
Vejo bello commandante
Dentro desta embarcao.

Remar, remar, marinheiros!


Remar que temos abundncia,
Deixemos, deixemos no mar
As nossas tristes lembranas.

Remar, remar, meus marujos,


Remar com todo o sentido.

I
94
Se no tiveres cuidado,
L vae o remo perdido.

Remar, remar, meus n;arujos,


Remar com todo o cuidado,
Se no tiveres sentido,
L vae o remo quebrado.

Coro de guardas-marinha, desembarcando aps


a marinhagem:

Trago fazendas bem finas


Para as moas do BrasiL
Tambm trago ramalhetes
De flores da cor de anil.

Dou-to vinte mil cruzados


Pela fazenda real.
Trago fazendas bem finas
P^r'as moas de Portugal.

O capito-patro communica ao tenente generaf


que os guardas-marinha trazem fazendas de contra-
bando, que vo vender em terra. O general intervm

Saber vossa exceliencia.


Senhor tenente general,
Que esses guardas-marinha
Vendem fazenda real.

Venham c, guardas-marinha,
Dizei-me porque razo,
- 95
. Vendeis os contrabandos
Sem licena do patro?

Coro de guardas-marinha:

So falsos que nos levantam


Dentro dessa embarcao.
Se vendemos contrabandos,
com licena do patro.

O general ordena que elles sejam presos. Os


rapazes supplicam a todos que intercedam por elles
para que possam desembarcar, dirigindo-se a cada
um de per si. E cada um delles replica assim:

Guarda marinha,
Soffre tua dr!
A semelhante homem
No peo favor.

E todos os figurantes cantam em coro, para ter-


minar o auto:

L vae a barca nova


Que do co cahio ao mar:
Nossa Senhora vae dentro
Com os anjinhos a remar.

S. Francisco o piloto,
S. Jos o capito,
Ambos levam a porto certo
A feliz embarcao!
-. %
Notas ao Auto dos Fandangos

1. Os fandangos s originam da velha xacara


da nii Catharineta e de outras poesias semelhantes,
que perpetuavam as aventuras maritimas dos portii
giiezes. Nessas poesias, o chefe da nu sempre um
capito-general, posto que existia na poca dos des
cobrimentos e das conquistas. Como durante a es-

cravido, que quando todos esses divertimentos


foi
populares tiveram maior desenvolvimento, porque da
vam do dia de Natal ao de Reis certa liberdade ao9
humildes; como durante a escravido, isto , durante
a monarchia, o maior posto do exercito brasileiro,
depois do de marechal do Imprio, era o de tenente
general, nas cantorias o velho titulo portuguez fo^

substitudo pelo outro, muito naturalmente.


2. Ainda alluso aos fidalgos da casa real, que,

memo sem entenderem de navegao, os reis de Por


tugal punham a frente de suas esquadras e expedi
es. Vasco da Gama, Pedro Alvares Cabral e tanto*
outros foram fidalgos da casa real.
3. No posso explicar esta Inglaterra aqui. Deve
ter sido a ignorncia popular que a enxertou no auto
primitivo, que, por certo, foi feito por gente mai5
instruda, segundo se nota em certas partes.
4. Esta quadra do piloto no rima nunca. Tal
vez com as deturpaes do tem|X) as suas rimas se
tenham perdido.
5. No Nordeste no raro transformar o I

final das palavras em r, especialmente em Pernam


- 97
bnco. Quando a rima se no fizesse assim, far-se-ia
pela prosdia tanto dos verbos em ar como dos
vocbulos em ai.

6. V. a nota 4.

Os que representam nos Fandangos pronun


7.

ciam azelino. Quero crer que no ser outra coisa


seno argelino.
8. A parte do embaixador lembra um pouco
a dos Gongos.
9. Os dilogos em prosa esto ahi como so
no auto popular. Parecero, no emtanto, u.m pouco
acima do nivel do povo rude, porque, para evitar
confuses e tornar o seu conhecimento n^ais acces
sivel, ponho-lhe pontuao e graphia commum em vez
da sua prosdia popular. Escrevo aqui o mesmo tre
cho tal qual como pronunciado pelos jaudangiieiros
Vr-se- como tudo muda:
<' E' o surto da Maritania rei sinh de meio
mundo de meio solo e meia lunha que s pru mim
manda imbaxada ouve-me gener e attende este in
lustre imbaxad que in tua presena espera.
10. Partidos: opinies ou intenes.
11. Embaixadas: no sentido de recados, de pa-
lavras.
12. Resgatados: desaffrontados.
13. Este torne >> e outros termos semelhantes
so reminiscncia das primeiras formas mais cultas
do auto.
14. Salvio aqui parece estar em sentido pejora-
tivo, empregado ix)r ambos os partidos, uns contra
- 98
os outnos. Em algumas variantes se diz Ado Sal-
vio e Dom Salvio, o que talvez viesse de dom Sa-
lema, nome vindo do rabeempregado para Saiim,
denominar, outrora, personagens mouros e talvez re-
ferente ao embaixador.
1 j. A prosdia popular de lei l e de ven-
cer vence, mais ou menos.
1 6. V. a nota 5.

17. O povo de Nordeste nunca diz rei e sem-


pre reis.

1 8. nome com que se bapisa


Trax) de ironia o
o mouro. Ha nelle ridiciilo e tradijes, de envolta.
O primeiro nome Malaca lembra toda a poesia po-
pular que se originou tomada por Al-
da cidade
buquerque, cantada por Sd de Miranda e cuja ultima
reminiscncia no Brasil esse nome perdido num
auto de Natal. Dos Santos, porque o nome mais
commum entre o povo. Quer: no tinha appellido de
famlia tomava dos Santos, se era homem, da Con-
ceio, se era mulher. Calunga, boneco, titere. Den-
d nome dum coco, cujo azeite comTiumente em-
pregado nas comidas do Norte, ahi mettido para
rimar com a caoada Pimenta no Olho que faz
ardi . . .

19. O baptisando repete esse viva, referindo o


nome de todos personagens presentes.
os
20. dos romances de cavallaria
Reminiscncia
espalhados entre o povo: Aventuras dos Doze Pa-
res . Bernardo dei Carpio , nos quaes muito se
<c

fala no celebre Ferrabraz de Alexandria, que vem


- 99
das Gestas do grande cyclo de Carlos Magno. Era
todo o Nordeste, hoje em dia, Ferrabraz synonimo
de sujeito levado do diabo.
21. O povo diz esborrachar.
22. E^sobremodo interessante o que resta da
xcara da Nu Catharineta, guardada na memoria
do povo nordestino e entremeiada nesse auto dos
Fandangos, como uma narrao de aventura, ella
que, certamente, foi a foucC maior de onde o pr-
prio auto se originou. Transcrevo, na integra, do
Romanceiro de Garrett, tomo Hl, paginas 103
e seguintes, a Nu Catharineta, para que pelo con-
fronto se possa julgar do que ficou dessa tradio
no Brasil e em Portugal:
L vem a nau Catharineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma historia de pasmar.

(No Nordeste este inicio transformou-se).

Passava mais de anno e dia


Que iam na volta do mar,
J no tinham que comer.
J no tinham que manjar.

(Garrett um verso duma variante do


recolhe
Minho: Sete annos e um dia, em vez de passava
mais de anno e dia. Esse verso o da dos Fan-
dangos).
100
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar.
Mas a sola tam
era rija

Que a no poderam tragar.

(Na xcara, conta-se o que os navegantes fize-


ram. Na cantoria dos Fandangos, como so os pr-
prios marinheiros que se attribuem as aventuras, di-
zem, o que elles praticaram. Dahi a differena nos
tempos dos verbos.)

Deitam sortes ventura


QLial se havia de matar;
Logo foi cahir a sorte
No Capito General.
Sobe, sobe, marujinho,
Aqueile mastro real,

V se vs terras de Hespanha,
As praias de Portugal.

(Na xcara no existe, o que curioso, com


variante alguma, a fala do general aos marujos,
para que o no matem, que parece accrescimo do
prprio Nordeste.)

- No vejo terras d' Hespanha,


Nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas
Que esto para te matar.
Acima, acima, gageiro.
!

-- 101
Acima, ao top< reai!
Olha se enxergas Hespanha,
Areias de Portugal.
Alviaras, meu capito,
AAeu capito general
J vejo terras d' Hespanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo trs meninas
Debaixo dum laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Est no meio a chorar.
Todas trs so minhas filhas,
O' quem m^as dera abraar!
A mais formosa de todas
Comtigo a hei de casar.
A vossa filha no quero
Que vos custou a criar.
Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o no possas contar.
No quero o vosso dinheiro
Que vos custou a ganhar.
Dou-te o meu cavallo branco
Que nunca houve outro igual.
Guardae o vosso cavallo
Que vos custou a ensinar.
Dar-te-ei a nu Catharineta,
Para nella navegar.

I
102
No quero a nu Catharineta
Que a no sei governar.

(Uma variante lisboeta approxima-se neste ponto


mais da fonaa que o rimance assumio entre as
gentes do Nordeste. Nella, o gageiro deseja a nu
Catharineta e o capito general responde que a no
pode dar de alviaras, porque pertence ao rei de
Portugal.)

Que queres tu, meu gageiro,


Que alviaras te hei de dar?
Capito, quero tua alma
Para commigo levar.
Renego de ti, demnio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma s de Deus,
O corpo dou eu ao mar.

Tomou-o um anjo nos braos


No n^o deixou afogar.
Deu um estouro o demnio,
Acalmaram vento e mar,
F. a noite a nu Catharineta
Estava em terra a varar.

(Nos Fandangos falta' absolutamente este final.)

23. Sedai: Com toda a certeza cendal.


24. Xlquitinha: engraadinha.
25. E^ notvel este trao de satyra contra as
mulheres dos que tm por profisso andar embar-
cados . .
103 -^

26. Bitrala: bitacula.


27. O Natal que o auto celebra, homenagean-
doo.
28. Baixos: baixios.
2Q. Os cantos em que se fala de Lisboa e
de Portugal mostram quanto lusitano este auto
brasileiro e que profundas tradies so estas, de
navegadores de lutadores, que, transplantadas para
e
outro morreram e antes absorveram as
meio, no
naturaes do paiz e mesmo as de outras raas que
posteriormente vieram: negros, hoUandezes, etc.

30. V. a nota 29. Memoria real. Talvez a es-


tatua de D. Jos I ao meio do Terreiro dj Pao.
31. Tratei. Conversei, frequentei.
32. Leva arriba: voz antiga de commando nos
preparativos de partida dum navio. A estrophe
expressiva. Com effeito. o marinheiro, quando me-
lhor se acha em terra, tem de embarcar.
33. Seu mar e guerra: abreviao de senhor
sargento de mar e guerra. Os sargentos comman-
dantes dos destacamentos de soldados a bordo, fu-
sileiros ou infantaria de marinha, so ainda hoje,
como nesses tempos de mouros, encarregados do
policiamento.
34. Os fandangueiros pronunciam surgio ou
mee mo sufio.
35. Enorme. Tem no Nordeste a significao
lata do KoUossal allemo: grande e tambm pti-
mo, excellente, magnifico. Unguento enorme, unguen-
to magnifico.
AUTO DAS PASTORINHAS
PERSONAGENS

As Pastoras, mais ou menos uma dzia de mo-


cinhas vestidas de branco, com chapus floridos, con-
duzindo cestinhos com fructas, ovos, mel e
flores,
outras offrendas. Entre ellas, as chamadas Golosa,
Aucena e Espia.
O Archanjo Gabriel.
A Mestra.
A visinha, contra-mestra ou Dona Olga.
O Zabumba.
O Pastor.
A Cigana do Eg\pto.
Os Caboclos.
As duas Gallegas de Orar.
(Numa grande sala ou num terreiro, ao ar li-
vre. As dansas e cantorias se realisam deante duma
lapinha estrellejada de luzes, onde, rodeando o ber-
o de Jesus, ha todos os bonecos que se puderam
reunir; soldados francezes de chumbo, animaes bra-
vios e niansos, estradas de ferro e negras de panno
fazendo renda, a mesma lapinha que Jlio Diniz des-
creve numa de suas paginas mais interessantes.)
105
Coro de pastoras:

Entrai, pastorinhas,
Entrai em Belm, (bis)
Que j nascido
Jesus nosso bem! (bis)

Vamos ver Maria,


Ora, vamos vr!
Vamos vr Deus Menino,
Ora, vamos vr!
Vamos vr em Belm,
Ora, vamos vrl

Entraremos, entraremos
Nesta casa de alegria.
Onde mora o Bom Jesus,
Filho da Virgem Maria.
Viva, viva o Menino Deus!
Meu corao todo teu!

Vamos vr os montes
E os valles tambm.
Publicando as glorias
Feitas em Belm.

Nasceu Jesus na lapinha,


Nasceu nosso Creador,
Nasceu o Verbo Encarnado,
Nasceu nosso Redemptor.
- 106
Nasceu quem por nosso amo;
No mundo vem padecer.
Vinde j, vinde com pressa
O Divino Infante vr.

J deu meia noite,


O gallo cantou,
Em Belm nasceu
Nosso Salvador!

Noite ditosa e feliz,

Noite pura e cr de rosa.

Noite ba, noite fina,

Noite bemventurosa 1

J deu meia-noite,
Vae romper o dia.
Que bello menino
Nasceu de Maria!

J deu meia noite.

J resplandeceu,
Que bello menino
Na lapa nasceu!

Alviaras, pastoras.
Que nascido est,

Quem este mundo


Veio liberta!
107
Alviaras, vamos a Eeiem!
Visitar Maria,
Visitar Maria,
E Jesus tambm!

Bateu azas, cantou o gallo,


Quando o Salvador nasceu.
Cantam anjos nas alturas:
Gloria nos cos se deu! (1)

Sou captiva de Jesus,


Baptisei-m.e em Belm.
Quem tiver inveja disso
Faa como eu fiz tambm!

Em Dezembro:, a vinte e quatro,


Meia-noite deu signal,
Rompa aurora e primavera
Que hoje c noite de Natal!

Uma pastora pergunta:

Toda a gerarchia do sr. S. Jos?

Resposta do coro:

No dia de hoje desceu em Isra!

Coro:
Todos os anjos, todos os anjos
Desam do seu throno
108
E neste prespio
Nos sirvam de abono I

O sol c a lua
Com seu resplendor
Esclaream o throno
Do meu Creador!

As pedras mais finas


Haveis de cravar
No throno de Deus,
Para o enfeitar!

Vamos, lindas pastorinhas


A' lapinha de Belm!
Vamos vr o Deus Menino
Que nasceu p'ra nosso bem!

L no cu brilhou a estrella,
Que esplendor a noite tem!
Vamos, lindas pastorinhas
A' lapinha de Belm!

Ao se approximarem as pastoras do prespio


illuminado, onde o Menino Deus dorme sobre as
palhas, um anjo lhes apparece, impedindo-lhes a

passagem.

Anjo,
Sou o archanjo Gabriel,
Espirito anglico sou,
109
Que desci dos cos
Pelo vosso a m!

Dos cos terra


Pude baixar,
Para vos remir,
Para vos salvar!

Gloria! Gloria! no alto co (2)


Ao nosso Deus seja dada,
E na terra a paz dos homens
P^ra sempre seja guardada!

O', pastoras, que portento,


Que grande co de prazer!
O Creador do Universo
Teve agora de nascer!

As pastoras, ajoelhando:

Cheias de prazer
E contentamento,
Viemos louvar
O seu nascimento.

Gloria! Gloria! no alto co!


Paz na terra que a ella baixou!
Pelo seio da V^irgem Maria
Veio a estrella que o mundo salvou!:

I
- 110
Prostradas todas por terra,

Adoremos com fervor


O Deus Menino nascido,
Jesus, nosso Salvador!

O archanjo se afasta. As pastorinhas dansam


ao redor da Lapinha, cantando louvores a Maria e
a Jesus, interpellando s vezes S. Jos.

Coro.
Cantem.os pastoras
Com muita alegria,
Adorando o filho (bis)
Da Virgem. Maria, (bis)

Estes louvores
Que damos a Maria

E' porque hoje nasceu


O Deus da Alegria.

S. Jos, que moda essa?


Largue o prato e a colher,
Homem no vae cosinha
Em logar que tem mulher! (3)

Entra o Zabumba, tocando o seu pequeno tam-


bor e cantando:

Vem este Zabumba,


Meu Deus e Senhor,
. ;

111
Tocar uma marcha
Em vosso louvor.

Eu no sou, pastoras,
Quem no saiba amar,
Sou menino dengoso
Que s quer brincar!

Eu me chamo. Zabumba,
Zabumba do Fonseca
Sou piloto duma barca,
Para toda a scca . .

Meu sangue illustre


De caudal segundo.
Vejo que patente
Tudo isto no mundo.

Sou capito de maldade,


Meus avs foram vaqueiros,
Conhecidos pelas vrzeas
E tambm nos taboleiros.

Levo commigo, nas costas,


Um sacco de tati assado
E outro sacco de farinha.
Com mu amoqueado.

Venho da roa do preto Joo


E seria tolo ou selvagem
112
Se no tivesse provado
A minha matalotagem.

^
Levo um dez reis p'ra bebida.
Que so mais de vinte legiias
Desde aqui ate Belm,
E preciso fazer trguas . . .

(y meninas, o que quereis


E' casar e brincar.
No assim como dizeis
Para todos enganar? . .

Tenho pena de quem


No souber comprehender.
Ora, venham, meninas,
Commigo aprender.

Eu no sou, pastoras.
Quem no sabe amar.
Sou menino dengoso
Que s quer brincar.

Apparece a mestra da escola. As meninas e o


zabumba calam-se, timidamente.

Mestra:
Vejam que horas so estas
E as meninas sem chegar!
Deixem ellas virem
Que ho de logo apanhar!

I
113
Uma das pastoras bate palmas.

Mestra:

Quem ?

Pastora:

Sou quem quero I Falo com a mestra?

Mestra:

Entre e dobre a lingua! (4) Chame Senhora


Mestra.

Pastora:

Est aqui esta camisa,


Senhora Mestra,
Que mame mandou
P'ra coser com brevidade
Que para a festa.
Aestra:

Diga me sua
Que aprompte os cobres
E deixe as meninas chegar^
Em breve ser cosida.

A fazenda no m,
E' ha de durar.
fina,
Eu sem culos no enxergo
Elias que vm cortar...
(5)
114

A Mestra passeia para l e para c. As pastoras


entram para a escola, cantando:

A benam, Senhora Mestra.


Deus lhe d muito bom dia (bis)
E tambm a sua graa

Seja vossa companhia! (bis)


Mestra:
As benams de Deus as cubram
E as faam vir mais cedo,
Se no ho de apanhar,
J que de mim no
tm medo.

Antes que vocs se sentem,


Tomem o que ho de fazer:
Ha de ser esta camisa
Que breve se ha de coser. (6)

Uma pregue as duas m.angas,


Outra a v bem pespontando,
Outra pregue a abertura
E outra v alinhavando.

Uma faa as casas todas,


Outra cosa o collarinho.
Outra faa os embainhados
E outra pregue os botosinho.

Vou casa da visinha


E breve hei de tornar
.

<115
Deixo aqui uma espia, (7)
Emquanto vou conversar.

Golosa, diga ao Zabumba


Que faa a lettra deitada,
Apare bem sua penna, (8)
No faa lettra rasgada! (9)

A mestra se. Golosa dirige-se ao Zabumba.

Golosa:
Zabumba, a mestra disse
Fizesse a lettra deitada,
Aparasse bem a penna,
No a fizesse rasgada.

Que ella ia at visinha


E breve havia de tornar
Deixava aqui uma espia
P^ra ns todas espiar . .

Coro das pastoras, fingindo coser, todas sen-


tadas:
Que da minha agulha?
E tambm meu dedal?
No foi outra seno Golosa,
Que a mais buliosa!
Golosa:
Viram que fui eu? Digam-me j

O' linguas de taramella!


\
^ 116
Procurem agulha e dedal.
No fui eu que peguei nella!

Uma pasioriiJia:

Pastorinhas que teceis,


Galantes o fio mais fino,
Venham, pastoras,
Trazer panninhos,
Para enfaixar (ins)
O Deus Menino!

Trazei, pastoras, incenso,


Misturad; com canella, .

Para botar na Lapinha,


Reaccender o cheiro delia

Zabumba.

Meninas, larguem isso,


Deixem -se dessa funco,
Levantem-se para brincar.
Que chegada a occasio.

}olosa:

Eu no, Zabumba, eu nx)!


Se a (mestra souber, ha de ralhar.

Zabumba.

Diga mestra, menina,.


Que v bugiar I

I
- 117
As pastoras levantam-se, fazem uma roda de
mos dadas como a da Ciranda, Cirandinha, can-
iani em coro:

A mestra pedio (bis)


F^ara no se brincar,
enganamos ella, (bis)
Ora, v bugiar!

De no ser menina (bis)


Tudo inveja tem.
Para vir brincar (bis)
Hoje tambm.

Grande inveja tem (bsi)


Quem no creana.

E' a pura raiva (bis)


Do fl da vingana!

Apresenta-se o pastor, interrompendo o folgue-


do, a cantar:

Vim dos montes onde habito.



E onde tenho meu cuidado,
Somente para te vr,
Cordeirinho Immaculado!
Coro.
O' ll, victoria! O' ll, victoria!

J nasceu o Rei da Gloria!


Pastor:
Vim dos campos onde habito,
Onde pastoreio o gado.
- 118 ->

Somente p'ra te adorar,


O' Jesus immaculado!
Coro:
O' ll. victorial etc.

A mestra entra. As meninas ^fingem esconder-


se com medo delia, que anda para l e para c,
feipaciente.

Mestra:
O' que calor est fazendo!
Vejam como estou suada!
A costura que deixei
j ter sido acabada?
Creio que brincaram muito
E coseram pouco ou nada!

Onde esto, que no me falam?


Que as chamo e que no vm?
Deixaram-me a casa s?!
Aqui no vejo ningum!

As meninas puxam-lhe dum lado e doutro o


vestido, dando-lhe tambm belisces.

Mestra:
Quem me puxa? E' bicho ou gente?
Quem est me beliscando?
Acuda-me todo o mundo!
Que j esto me matando!
:

- 119
Visnha:
Que alarido grande esse?
Quem soccorro est chamando?
Que isso, minha visinha?
Porque voc est gritando?

Pastoras
Tendo acanado a tarefa,
Estvamos aqui brincando.
A Senhora Mestra pensou
Qut ns lhe estvamos dando.
Mestra.

Se no me deram, sinto
Que queriam me espanca .. .

Visinha.
Visinha, perdoe as meninas,
Que hoje noite de^ Nata.
Mestra.
S isso, minha visinha,
Fazia eu me alegrar.
As meninas esto perdoadas
Vamos a Jesus louvar!
Coro:
O' peccado, olha l,

O Menino Deus nascido est!


O^ peccador, vamos vr.
Quem por nos nasceu ha de morrer!

Emquanto as pastoras cantam, ouve-se ao longe


120
a voz da Cigana que se encaminha para o prespio,
voz que se approxima a pouco e pouco:

Sou umi cigana do Egypto,


Dos montes venho a Belm
Para appiaudir o A^lessias,

Jesus, para nosso bem.


Coro
Ai! ai! que dr na minha alma!
Vr o Menino deitado nas palhas!
Cigana.
Sou uma cigana do Egypto,
Dos montes venho adorar,
Venho appiaudir o iVlessias,
Jesus, para nos salva
Coro:
Ai! ai! que dr, etc.

Cigana:
Passando por certas portas,
Rico cheiro rescendeu.
Dizei-rrie, lindas pastoras.
Se o Deus Menino nasceu?
Coro.
Ai! ai! que dr, etc.

Cigana.
Dizei-me o que significa
Numa bandeira uma cruz,

Com trs lettras no centro


I. Y\. S. Jesus?
121
Cro:
Ai! ail que dr, etc.

Cigana:
Eu j vinha de to longe
E j ouvia me chamar:
Vinde, vinde, ciganinha
O Deus Menino adorar.
Coro:
Ai! ai! que dr, etc.

Cigana:
Ciganinha do Egypto
A caminho de Belm,
Vinde vr o Deus Menino,
Que nasceu p'ra nosso bem.
Cro:
Ai! ai! que dr, etc.

Cigana:
Acordae, pastoras,
Do somno em que estaes.
Vinde vr nascido
O Deus dos mortaes!
Cro:
Ai! ai! que dr, etc.

Cigana, junto ao prespio:

Ai! ai! que dr na minha alma!


E no meu corao!
Vr o Menino
Deitado no cho! >
- 122
Coro das pastoras, protestando:

O' ll! isso nol


Deitado nas palhas!

Cigana:
Nasceu hoje, na Verdade
Quem do co da luz veio
E que para nosso bem
Vae morrer sobre uma cruz!

Canta o gallo de prazer,


Salta o gado de alegria,

Os passarinhos gorgeiam,
Annunciando este dia.

Os anjos trazem a nova


E encontrar eu bem queria
Pastora que me dissesse
Se j chegado o Messias.

Coro das pastoras:

E^ chegado o Messias!
E' chegado o Messias!

Cigana:
O Menino Deus meu! c meu!

Aucena, avanando:

O Menino Deus meu senhor!


:

123
Cigana:
O Menino Deus meu! meu!
Aucena:
O Menino Deus o meu amor!
A Cigana, enfurecida com a disputa, corre so-
bre a Aucena, ameaarido-a com um punhal!
Aucena:
Valha-me o Menino Deus,
Que ha muito tempo meu!
Cigana:
A quem a vida por eile d!...
'
Elle deve saber paga
Aucena:
Eu, peia defesa do Bom Jesus,
Delle mesmo terei a luz!

Cigana, mais ameaadora

Aucena, vaes morrer!


Aucena:
Voc tambm morrer!
Cigana, levantando a arma:
Aucena, perdes a vida!

Cigana:
Deus uma outra me dar!
Aucena:
Aucena, a morte temida.
No queiras perder a vida!
- 124
Aucenu:
'

Estou prompta a pelejar


E o meu Deus me ha de ajudar!

Cigana, apunhalando-a:

Morra! morra inimiga! I

Morra! morra! traidora!


Aucena, eu venci!
Ficarei por vencedora!

Aucena ce morta. A mestra accorre, cantan-


do, tristemente, a frente das pastoras:

Pastoras deste retiro,

Venham vr e admirar
Um throno cheio de luz
Para Jesus festejar!

J morreu esta pastora,


Companheira to querida!
Qual foi a ingrata mo
Que tirou sua triste vida?

Foi esta m inimiga


Quem a matou sem razo,
Ficar p'ra seu castigo
Segura por nossa mo.

A mestra maiida que a Cigana se entregue


priso e vae procurar, para tentar salvar a pastora
- 125 -~
f

apunhalada, o medico, doutor Esculpio Cip Essen-


cial (10)

Coro:
V^cnha logo! venha logo!
Nosso querido doutor!

Doutor, entrando e dirigindo-se cigana:

Esteja presa, senhora,


A^ ordem do ouvidor! (11)

Cigana:
O' como engraado!
Rio-me desta priso . . .

lesira:

Est fazendo zombaria.


Segure-lhe bem a mo!
Ella est disfarando,
Porque pretende fugir.

Cigana:
Fugir eu? Porque razo?
Que delicto commetti?
Mestra:
Com teu punhal amolado
A outra foste matar.
Pensando que do castigo
Livre .havias de ficar. ,

^izes que a no matastes,


Oliia bem como est morta!
- 126
Cigana:
Foi uma dr que lhe deu,
Torceu-se e cahio na porta!
Mestra:
Vejam s essa desculpa
E o punhal quem ensanguentou?
Cigana.
Quem lhe disse que isto sangue?
Isto tinta de pinto . . .

Mestra:
No sabes arranjar desculpas
Nem mesmo o que ests dizendo;
Condemnada por ti mesmo,
Tu ests toda tremendo!
Cigana:
No tenho raiva de voc
Seu doutor Cip!
Seu meirinho ruim
Que no tens d!

Coro de pastoras ajoelhadas:

No momento em que (bis)


Aucena expirou,
Morreu a pastora (bis)
To cheia de dr! (12)

Mestra, pondo a mo sobre o peito da Au-


cena:
O vosso corpo est frio,

Sem cores as faces esto,

I
- 127 -^

Da brilhante luz do dia


No sentes mais o claro!

Teu corao ardente


Para sempre se gelou
E teu pallido semblante
Para sempre se finou!

Correi, meu pranto, correi!


Vinde meu rosto enxugar!
Vinde, vjnde, companheiras,
A minha dr consolar!

No recebi dos teus lbios


O do corao,
beijo
Aucena j no existe,
Acabou nossa unio!
Coro:
De que nos serve, Senhor!
Viver sem consolao?
A .morte da Aucena
Nos tirou toda a affeio!

O doutor, apezar de medico, nada faz para re-


animar a pastora cabida, limitando-se ao ridiculo
papel de meirinho, segurando a Cigana. Esta afinal
mostra-se arrependida e canta:

Meu Jesus, eu vos confesso


Que estou bem arrependida,
128
Sentindo o corpo to fraco
Que se acaba a minha vida!

Quando te maiei, Aucena,


No estava no meu destino^
No estava em mim por certo,
Quando fiz tal desatino.

Mas, Aucena, prometto


Render-vos a f mais pura
Acompanhar vosso corpo
P'ra dentro da sepultura!

Ai! cos, quem ao meu gemido


No se inclina em meu sentido!

Valha-me Deus, que luz do dia


Meu corpo darei terra fria!
i

Mestra, continuando a sua lamentao, curvada


para o corpo da Aucena:

Morreu a nossa pastora


De nossa doce companhia!
Grande tristeza nos faz
E falta far um dia!

Continua com a mo sobre o corao da


pastora cabida e sente-o bater. Canta, alegrando-se:

J lhe bate o corao,

J lhe d signal de vida,


! !

129
J vem mudando de cr
Nossa pastora querida!

O pulso da Aucena
J est com seu valor.
Levantai-vos, companheiras,
P'ra dar graa ao Creador.

Foi milagre neste dia


De Jesus Nosso Senhor!
Pois quem m.orre p{;r Jesus
Resuscita em seu amor!
Coro:
Isso tudo foi sonho
Ou foi caso contado?
Aucena voltou!
Das praias saudosas
Do co dos felizes
Trs vezes tornou

Aucena^ levantando-se:

Senhoras, viva sou


No morri, pois viva estou

Estende a mo Cigana, perdoando-a

Eu vos perdoo o passado.


Levantai-vos, companheiras,
P'ra dar graa ao Creador,
Pois quem morrer por Jesus

I Resuscita em seu amor.


130
Cigana, apertando a mo da Aucena:
D-me tua mo de amiga,
Pois haviamos de dar,
nisto
Que o Senhor Menino Deus
Elle nos ha de ajudar.

A Aucena e a Cigana passeiam de brao dado


deante das pastoras, cantando com o coro:

Vinde archanjo, embaixador!


Vinde adorar (bis)
O rei do Senhor!
Capellas to lindas viemos colher
Aos ps de Jesus (bis)
As offerecer!
Coro.
Diz o povo alegre
Que nos traz a guia
O Santo Menino
Da Virgem Maria!

Viva! Viva! Viva!


Cigana
Venham, pastoras dos montes,
Tragam os cobres que tm, (bis)
Que p'ra enfaixar o Menino,
Eu tambm dou meu vintm, (bis)
Coro:
Cigana do Egypto, que quereis vs?
Se o Infante nascido,

I
131
Isto c para ns! (bis)
No para vs.
Vamos guardar Belm.
Isto c para ns!
Cigana:
Se o Deus Menino nasceu,
Pastoras, que negar, (bis)
p^ra
Que eu sou Cigana
do Egypto,
Venho de longe adorar! (bis)
Coro:
Cigana do Egypto, etc.

Cigana:
Deus vos salve, D. Olga,
No logar em que estaes!
D. Olga: ,|
Deus te salve, Egypcia,
No caminho em que vaes!
Cigana:
Dizei-me, .rica senhora,
Com gosto e alegria.
Se este caminho errado,
Vinde servir-me de guii.
D. Olga:
Suba naquelle outeiro,
Desa naquelle logar,
Dentro duma mangedoura
L o haveis de encontrar.

Esta Cigana do Egypto


Veio de longe a Belm,

I
132
Em busca do Deus iMenino,
Adorar o Summo Bem.
Cigana:
Eu sou cigana direita, (13)
De Portuguez no tenho nada,
Venho lr a buenadicha
Do Menino Deus humanado.
Seus beicinhos rubicundos,
Seus olhinhos engraados
So signaes de conhecer.
Parae, pastoras, parae,
Pedi licena primeiro!
j que somos creaturas
Daquelle Deus verdadeiro.
Dai-me, linda Senhora,
Este menino p'ra inim.
Nascido de nove mezes,
Ha de ser to paciente,
Ha de ser to padecente! (14)

Adeus, pastorinhas.
Que j vou embora.
P'ra o Apenino Deus
V^ou tirar esmola.

Cro:
Adeus, ciganinha,
Que j vaes embora!
P'ra o Menino Deus
Vaes tirar esmola.
133
Ciagna:
Adeus, pastorinhas,
Volto p'ra as florestas,
P^ra o Menino Deus
Vou tirar as festas.
Coro :
Adeus, ciganinha, etc.

A Cigana, estendendo o seu pandeiro s dadivas


dos circumstantes, canta, pedindo as esmolas que
serviro para as despezas do auto e para a illu-
minao da lapinha.

Ciagna:
Quem d uma esmola
A' pobre da cigana,
Que vs bem sabeis
Que ella no engana.

Meu Menino Deus,


Por vossos louvores,
Vaes ser Rei dos Reis,
Senhor dos Senhores,

Vossos cabellinhos
So de ouro fino,
So galantesinhos,
Desde pequenino!

Dai-me vossa mo,


P'ra cigana ler.
134 -

Verdades puras
Efla vae dizer.

Dai-me vossa mao,


Pois direi assim,
Vejo em tua mo

O Senhor do Bom Fim.

Vem rompendo a aurora


Em bella maravia (15)
Vejo na tua mo
Jesus, filho de Maria. (16)~

Meu Menino Deus,


Protegei a cigana,
Pois vs^ bem sabeis
Que ella no engana.

Dai-me uma esmola,


Mesmo dum vintm.
Quem d uma na terra
No co ganha cem!

Pastoras, eu j cheguei
Bastantemente canada,
Das esmolas que tirei
J estou muito enfadada. (1 7)

^Entrega as esmolas s pastoras).


i:..^

Coro de pastoras:

O menino est chorando,


S. Jos que se ha de fazer?
Vamos fazer a papinha,
Para vr se quer comer.

As pastoras fingem que fazem aquillo que can-


tam, Ag-ora, fingem mexer o mingo do Menino
Deus; depois, fingem lavar a sua roupinha.

Coro,
Emquanto o menino dorme,
O boi arranja as palhinhas.
Vamos beira do rio
Lavar suas camisinhas.

Os panninhos esto lavados,


Camisinhas de Jesus.
Que elle nos queira lavar
L na fonte, ao p da cruz.

L na fonte, ao p da cruz.
Lavar os nossos peccados.
Assim como de Magdalena
Lavou os seus perdoados.

Alevantai-vos, pastoras.
Que o cantar demasia.
Vamos pagar a offerta
Do verdadeiro Messias.
136

As pastoras, que se tinham abaixado para fin-

gir que lavavam roupa, erguem-se e bailam em di-

reco lapinha.

Coro:
Naquellas longes campinas
Ha um pobre lavrador,
Com seu saquinho de trigo,
Offereccido ao Senhor.

Vamos a Belm,
Vamos caminhando;
Porm, como longe,
'

Vamos cantando.

D licena, ba gente.
Somos pastoras de Belm,
Que uns festejam em Nazareth,
Outros em Jerusalm.

Vamos a Belm, etc.

Gloria Deus nos altos cos


a

E paz aos homens tambm,


Que o Senhor da Redempao
E' chegado e o Summo Bem.

Vamos a Eeltm, etc.

Mestra:
Desde hontem venho
Por valle e monte,

I
Desgostosa e consumida

Caando (18) com desvelo


Uma ovelhinha perdida.
Por ser pequenina
Me faz grande pena,
Os ps tinha negros
E a cabea pequena.
Pastor
L dos montes onde habito,
Onde tenho meu cuidado, (bis)
Venho somente te vr,
Cordeirinho Immaculado. (bis)

Festas em todas as egrejas


E trs missas em cada a!t^ (bis)
Rompe a aurora e primavera,
Que hoje noite de Nata! (bis)

L dos montes da Rocha Alegre,


Onde cantam passarinhos, (bis)
Ouo uma voz excellente
Louvando ao Deus Menino, (bis)

Vamos aos montes,


Pastoras bellas!
Vamos aos montes,
Pastoras bellas!
Colher as flores
E tecer capellas! (19)
Colher as flores

I
l.^S -

E tecer capellas!
Flores mimosas
Que no jardim temos!
Flores mimosas
Que no jardim, temos!
Lindo ramalhete
Ns colheremos!
Lindo ramalhete
Ns colheremos!

As pastoras avanam com seus cabazes de fru-


ctas e de outras coisas, afim de offerecel-as ao
Senhor Nascido. Cantam:

Dai-nos a manguinha
E o maracuj,
A laranja doce,
Que um doce mann!

Vinde, vinde, pastoras.


Vinde offertar
A um Redemptor
To singular!

A Mestra depe um cestinho de roms deante


do prespio.

Mestra:
A rom de bom preo
Que das tructas rainha.

I
139 -

Como Rei, vida minha,


Essa vos offereo!
De vl-a comvosco appeteo.
Neste mundo enganoso.
Espero em vs, meu esposo,
Uma graa haveis' de dar:
Dentro do meu corao
Haveis de me coroar!

A Visinha ou Contra Mestra tambm traz a sua


dadiva, cantando:

Trago ovos e farinha,


Para manjar vos fazer.
Para ver se quer comer
Algum dedo de papinhas. (20)
Embora vossa boquinha
Creio jamais comer
Seno o leite virginal
De vossa me. Virgem Pura,
Que um favo de doura
E um celeste manja. (21)

Entra um grupo de indios, de caboclos, que tam-


ben\ se dirigem a Belm, rendec culto a Jesus. (22)

Caboclos:

Vamos, vam.os a Belm


Vr o que ha por l,
.Se existe algum pasto
- 14(1 _
Que o Messias adorou.
Se isto assim j.
Vou levar o que
ojert.

Que eu no sou caboclo


De l do Par. (23)
Coro:
Sou menina bella,

Joven sinh
O meu bem me chama
E eu no vou l.

Fasse p'r'aqui,
Passe p-r'aqui,
Passe p'ra c!

Caboclos,

Estando eu no meu
Mocambo de palha, (24)
Ouvi l de dentro
Uma voz nascer. (25)
Todo o corpo estremecia
E todo o povo gemia.
Subi de rede acim.a,
Desci de rede abaixo,
Avistei a luz do facho.
De alegre fiquei contente, (26)
Vendo o verdadeiro home
Que nestes tempos de fome
Por escripto se dizia
Que elle vinhal
: ,

Cro
Sou menina bella, etc.
Caboclos:
0\ quanta gente tenho
No mocambo de palha!
Se isso tudo fosse meu
Mas s parenta lha ...
Eu venho do Ass,
E s como tati,
De machado nas costas
E cabaa ki m
As apr gata {21) no p.
Graas a Deus
E a todas creados,
J vimos o Messias
Por ns desejado,
To lindo elle c
E to engraado!
Coro :
Cantemos alegres
O to festejado,
A ojoria do rei
Por ns coroado!
To lindo elle
E to engraado!

-En/ram as gallegas, vestidas de


camponias por-
tuguezas, cantando:

So chegadas as gallegas
La dessas terras de alem.
142 -

Que vo todas bem contentes


Adorar Christo em Belm.

Amigas sejamos todas


Na mais perfeita unio,
Adorar o Deus Menino,
Nossa vida e salvao.

Uma pastora:

Vejam, caras m.eninas


As duas gallegas mimosas,
Acudindo ao meu chamado,
Eil-as aqui pressurosas,

Dizei-me se esto dispostas


Para a jornada seguir?
Gallegas :
Vossa pergunta, pastora,
Faz-nos vontade de rir!

Pois que nesta occasio,


Em que tudo alegria
Vamos render nossas graas
A Jesus, Jos, Maria!

Nossa chegada, pastoras,


Vos causou melhor agrado.
Antes de nossa partida
Vamos dansar um trocado?

As gallegas e pastoras dansam uma contradan-

i
143

sa em que umas passam pelas outras e, s vezes,


as duas theorias de bailadeiras se embaralham, pro-
duzindo agradvel effeito.

Gallegas:
Vejam as duas gallegas de Orar,
De longe vieram a p, assim ,

Fazendo sua jornada sem ter nada.


Quem se mata porque qu!

Vejam nosso cordeirinho bonitinho,


To mansinho que elle , assim .
De longe nos acompanha, no tem manha,
De mimoso que elle .

Vamos dansar um bocado de trocado,


Como se dansa na aldeia e sapateia,
Tem no corpinho elegncia com pujancia,
Forme-se linda cadeia! (28)

Bailam todos os pastores com mil flores,


Bailam com alegria neste dia,
Em que o mundo festeja na egreja
A Jesus^ a Jesus, filho de Maria.

Pastoras:
Vejam as duas gallegas de Orar,
De longe vieram a p, assim .

Fazendo sua jornada sem ter nada,


Quem se mata porque qu!
144

Num pequeno fogareiro, em frente ao prespio,


as pastoras queimam algumas palhinhas, que sym-
bolisam as da mangedoura onde Jesus est deitado^
e cantam, finalisando a sua modesta representao^
em coro:

Queimemos, queimemos,
Lindas pastorinhas.
Queimemos, queimemos,
As nossas palhinhas.

As nossas palhinhas.
J vo se queimar
E ns pastorinhas
J vamos chorar.

Recebe este incenso, ,

Celeste menino.
Que incenso de pobre
No pode ser fino.

Louvemos, louvemos
A Nosso Senhor
E at para o anno
Se eu viva fr.
145
Notas ao Auto das Pastorinhas

1. o verso primitivo devia ser com certeza:


Gloria in excelsis Do!
2. V. a nota 1.

3. A ironia popular no perde occasio de ma-


nitestar-se, mesmo nas coisasprofundamente reli-
giosas como essa.
4. Dobre a lngua: frase corriqueira do Nor-
deste, que corresponde ao sabe com quem. est fa-
lando', do Sul.
5. Ainda a profunda ironia do povo. As mes-
tras das escolas do interior (No Rio tem havido ca-
sos idnticos ) tm o costume de fazer as suas
. .
.

alumnas executarem vrios trabalhos domsticos seus,


sem cuidarem de ensinar-lhes o que devem. E' isso
que o motejo do auto alcana.
6. V. a nota 5.

7. Espia: toda a vez, no interior de Nordeste,


que a professora ou o professor deixam a aula or-
denam a um alumno que delia tome conta, como
censor. Esse habito parece que ^eral. Mas no Nor-
deste o alumno que desempenha esse papel recebe
a pouco lisongeira de espia ou espio
alcunha . . .

8. Por este verso se pode aquilatar mais ou


menos da velhice do auto. No seu tempo ainda no
havia pennas de ao. As pennas eram de pato ou
de ganso e havia necessidade de aparal-as antes de
escrever.
Q. Ltira rasgada. Critica mania das pro-
146
fessoras que no consentem que os alumnos saiam
da copia dos traslados em matria de calligraphia,
obrigando-os a terem umas lttras muito bem feti-
nhas, poremi sem caracter, sem personalidade. Dahi
a prohibio da lttra rasgada ou natural.
10. Esculpio Cip Essencial: o nome desse
medico, cujo papel o mais ridiculo possvel, mos-
tra bem quanto a satyra popular^ no perdoa aos
profissionaes da medicina os seus defeitos e a ne-
cessidade que o povo tem dos seus servios. J no
auto do Bumba meu Boi a critica to maldosa,
seno mais.
11. Ouvidor: este titulo d bem a medida do
tempo em que as Pastorinhas devem ter nascido. So
contemporneas do umba meu Boi, no qual tam-

bm se fala do Ouvidor e do juiz de Fora.


12. Devido prosdia popular tudo quanto
termina em r rima com o que finda em ou e
.

em , do mesmo modo que as ternrinaes a^ ar


e tambm rimam., assim como //, /> e i, etc.

13. Direita: pura.


14. Estes versos esto to corrompidos pelo
tempo que impossvel conhecer da sua forma pri-
mitiva e s se pode conserval-os como esto.
15. Aaravia: maravilha.
16. Caando: procurando.
17. Capellas: no sentido de ramalhetes ou co-
roas de flores.
18. Dedo de papinha. No Nordeste, a gente
do povo no d a papinha ou mingo s creanas
147
com uma colher e sim com o dedo. Passa o dedo
no mingo e mette-o na bcca do menino. E^ br-
baro, mas assim. Dahi o verso, que precisa, para
ser comprehendido, desta ligeira explicao.
19. Ha uma notvel ingenuidade nesse elogio
ao leite da Virgem Maria, a mesma ingenuidade que
fez com que santos e doutores da Egreja escrevessem
sobre assumptos semelhantes.
20. Como no perdoa aos mdicos e gente
da justia, a satyra popular no p^erda aos cabo-
clos. Em tudo lhes reserva papel secundrio, debican-
do-os. Faz isso no Bumba meu Boi. Faz nas pasto-
rinhas. Faz sempre.
21. Deve haver ahi uma alluso, que, com o
tempo, se perdeu.
22. Mocambo: choa, esconderijo.
23 e 24. V. a nota 14.
25. Apragaia: alpercata.
26. E^ a nica quadra em que a forma curiosa
dos verstDS e suas rimas foi respeitada. Nas outras,
o tempo a estragou.
AUTO DA CARIDADE ri>

PERSONAGENS:
A Caridade, de vestido branco, com um corao
vermelho, bordado ou applicado sobre o peito, man-
to azul celeste semeado de lantejoulas e estrellas,
coroa, ramo de oliveira na mo.
O Mendigo, esfarrapado, de chapu desabado,
bordo, sacola e barbas venerveis.
O Galan, de rico traje de pastor, meias de seda,
cajado doirado.
Dois anjos, que acompanham a Caridade, um
de cada lado, trazendo coroas de flores em peque-
nas bandejas.
Quatro pastoras, de branco, com pequenos ca-
jados floridos.
(A scena se passa deante da lapinha, como nas
Pastorinhas. Em frente ao prespio, deve haver um
tamborete ou um tronco, onde o mendigo se senta.
A musica muda continuamente de rythmo e doce
e saudosa.)

Mendigo:
Triste de mim nesta vida,
Tive por sorte soffrer!

jl
:

- 149
Meu corao desfallece,
Canado de padecer.

Coro de pastoras, bailando:


Ai! soffro debalde.
Ningum me consola,
Em vo bato s portas,
Pedindo uma esmola.
Mendigo:
Ai! triste, canto que o canto
No raro adormece a dor,
Canta a vr se Deus piedoso
Te manda um consolador!
Coro:
Ai! soffro debalde, etc.

Mendigo
Creio, porm, que debalde
Tambm invoco o bom Deusl
Talvez me esteja fechada
A immensa porta dos cos!
Cro:
Ai! soffro debalde, etc.

Mendigo:
Pobre, cercado de magoas.
Sem amigos e sem po,
Sou desprezado no mundo,
Valho menos que um co!
Coro:
Ai! soffro debalde, etc.
*150
Mendigo.
A fome, o frio me affligem,
A doena me faz soffrer!
Que vida triste esta vida
Que longo o meu padecer!
Coro:
Ai! sofro debalde, etc.

Mendigo:
Trs filhinhos tenho em casa.
Coitadinhos! l esto,
Chorando a falta de roupa,
Morrendo de inanio!
Coro:
Ai! soffro debalde, etc.

Mendigo:

Grande Deus, porque me deixas


No mundo penando assim?
Levae-me vossa morada
Tende compaixo de mim!

Esconde o rosto nas mos, sentando-se no tron-


co. Entra o galan, cantando:

Tantos campos, tanta terra,


Tanta campina sem gente!
E eu andando contente (bis)
Para vr o Omnipotente.

I
:

151

Coro de pastoras:
Cantemos, todas cantemos
Graas ao Menino Deus.
Rendamos graas, rendamos,
Rendamos graas aos cos.
Galan *
\

Elle nasceu p'ra remir


Toda humana creatura.
No pagode (2) onde estiver
Ningum faa diabrura.

Cuidei achar alegres companheiros


Por esta bella estrada
E eis-me sosinho a caminhar a toa,
Sem folia e sem nada!

Isso de andar calado, macambusio,


Como um diabo que p'ra forca vae,
Sem risos, sem galhofa e sem bebida
No c com o filho de meu pae!

Vou esperar um pouco, talvez breve,


Que por ahi venha algum.
Grupos e grupos de pastoras i)assam,
Num delles hei de me encaixar tambm.

O mendigo, evantando-se e approximando-se do


galan de chapu na mo:

Meu senhor, muito boa noite!


_ 152
GalatL, desdenhoso:
Eu direi antes bom dia,
Porque a aurora- no horisonte
A nascer j principia.
Mendigo
Tem razo. Ha muito tempo
.
Que o gaiio cantou alem
E a tstrella d'alva desponta
Nas coUinas de Eelem.
Galan, impaciente:
Mas, emfim, com essa conversa
Que deseja vosminc?
Mendigo:
Que, em honra do Deus Menino,
Uma esmolinha me d.
Galan
Vi logo a historia qual era.
Uma esmolinha? Ora esta!
Minha bolsa est vasia,
Gastei tudo l na festa.

Mendigo:
Pelo amor do Deus Menino
Uma esmolinha pequena!
Meus filhos choram com fome . . .

Ail meu senhor, tenha pena!

GaLan
Pena? Eu tenho de mim prprio!
Porque no vae trabalhar?

1
.

15.^^

E^ muito melhor officio


Do que o de mendigar.
Mendigo :
Eu bem quizera o trabalho,
Poisemquanto trabalhei
Tive o que dar a meus filhos
E nunca esmola implorei.

Mas a doena me
opprime,
O brao no mais supporta.
.

Galan:

Pois, meu caro, sinto muito,


Mas v bater a outra porta!
Mendigo:

O' grande Deus das


alturas!
O' divina Providencia!
Manda depressa um soccorro
A' minha triste indigncia!

"''"'^'^'' ^'''"'
'
sentar-se. O galan, abor-
recido^-

Que massada! V plantar batatas

Depois, olhando ao longe:

Emim ao longe algum diviso,


Para alegria, no preciso,
^nais
Pois so duas meninas bem
gaiatas!
154 -
cantando:
Entram duas pastoras, bailando e

Salve, noite venturosa!


Salve, dia sem igual!

Em que do divino infante


Celebramos o Natal!

Bemdito seja o Messias,


Nosso Deus e Salvador,
Que nasceu hoje no mundo
Somente p*ra nosso am.or!

Galan, cumprimentando-as:

Bom dia, gentis pastoras!

Pastoras:

Bom dia, senhor galan.

Galan.

Cada qual mais engraada,

Mais mimosa e mais louan! _

Primeira pastora:
MuRo obrigada! Mas taa
O favor de se arredar
Um bocadinho p'ra o lado,
Porque queremos passar.

Galan
Onde vo assim to cedo
Quando a aurora mal desponta?
155 -

Segunda pastora:
Ns vamos assim to cedo
Onde no da sua conta.

Galan:
Acceitam por companheira
A minha humilde pessoa?
Primeira pastora:
Que esperana? Coitadinho!
Ns sabemos o caminho
E' alem disso a estrada ba.

Galan, mysterioso t cmico:

Ha bichos ahi no matto!


Eu vi de cobras um rolo!...
Tigres, lees, elefantes!...

Primeira pastora para a segunda:

J viste lapaz mais tolo?


Segunda pastora:
Deixe-nos seguir viagem
E v andando, senhor,
Pois de todos os perigos
Esse dos falsos amigos
E^ com certeza o m.aior . . .

Entram outras duas pastoras, cantando e dan-


ando:

Nosso repouso tranquillo


Deixamos com ale2-ria,
156
A' voz do anjo celeste
Que a grande nova anniincia,

E s pressas corremos
A' gruta feliz,

Onde o Rei Supremo


Vir ao mundo quiz.

Primeira pastora:

Foi uma felicidade


Que vs chegsseis agora!

Terceira pastora:

Desejavas companheiras?
Ento, vamos embora.

Segunda pastora:
No vs que este sujeitinho
Est no caminho plantado?

Terceira pastot a
Este fedelho? O' menina
P'ra que serve teu cajado? .

Se nos impede a passagem


Esse carinha de mu,
No faamos ceremonia
E lhe arrumemos o pau!
Galan, rindo:

Ol, senhora ^^v^ougada, (3)


Aquiete-se, . diabrete l
157 -^

Deixe em paz minhas costellas


E tambm o seu cacete.

O que eu queria era apenas


Ir no seu grupo tambm,
Porque julgo que as senhoras
Se dirigem a Belm.

Porem como as contraria


O meu desejo iunocente . . .

Qaaria pastora:
Pois se a Belm que vae,
No vejo inconxeniente.
Primeira pastora:
Porque, ento, nao disse logo
E se pz a tagarellar?
Em nossa jornada santa
No se deve vadiar . . .

Concedemos-lhe a licena,
Com tanto que v calado
E serio, seno lhe dansa
Nas costas o* meu cajado.

Todos em coro, reunidos num grupo so


caminhando:
Em marcha, pois, pastorinhas,
I-ara ver o Salvador.
Quem tem Jesus por norte
Vae seguro e sem temor!
158
e approximando-se das
O mendigo, levantando-se
pastoras de chapu na mo:

Permitem que as interrompa


Por um instante, pois no?

Primeira pastora:
pudermos ser teis.
Se lhe
Teremos satisfao.

Mendigo
Uma esmolinha, senhoras,

Pelo amor de Deus Menino


I

Tende d deste mendigo,


Deste afflicto peregrino.

No' corao das creanas


Deus pz amor, piedade,
Ningum como ellas comprehende
O encanto da caridade.

Dai, pois, meigas pastoras,


Para meus filhos uma esmola.

Feliz do que enxerga


o pranto-
dr lhe consola!
Do pobre e a
Primeira pastora, dando-ihe
uma esmola:

Com muito gosto reparto


Comvosco o que trago aquil
Mendigo:
O' minha ba menina
Deus tome conta de ti.
159
Segunda pastora, esvasiando sua cestinha no cha-
pu do mendigo:
Para matar vossa fome,
O' meu infeliz irmo,
Dou-vos o almoo que tenho,
Um pouco de queijo e po.
Mendigo:
Minha bella pastorinha.
Haja sempre no teu lar
Tranquillidade, alegria,
Abundncia e bem estar.

Terceira pastora, dando-Ihe o seu bracelete:


Nem comida nem dinheiro
Pude hoje trazer commigo.
Dou-vos a minha pulseira,
Vendei-a, meu pobre amigo.
Mendigo:
Deus, em troca desta jia,
Te offerea, minha flor.
De sua graa os thesouros
E as jias do seu amor.
Quarta pastora:
Ai! como as boas meninas,
Que acabam de alliviar
Vossa penria, eu no tenho
Nada, nada que vos dar!...

Alas vossos filhos tm fome,


Eu quizera soccorrel-os . . .
160 -^

Ah! cortarei para elles


A trana dos meus cabellos.
Mendigo:
O' generosa menina!
O' formoso corao!
Deixa ahi os teus cabellos
Que no o? acceito no!

Quarta pastora, singelamente:

Mas porque? Crescem de novo,


So os meus bens de raiz . . .

Mendigo:
Como s compadecida!
Como s ba e feliz!

Recuso a dadiva tua!

j(4) Olha, eu tenho uma creana,


Que possue, como tu, linda,

Negra e setinosa trana.

No momento em que mais forte


Da minha vida a procella.
Sinto allivio em beijar
- Os lindos cabellos deila.

. Teu pae talvez tambm goste


Dos teus cabellos gentis.
Deixa-os ahi, minha filha!
Vae, Deus te faa feliz!

\
161
Dirigindo-se s outras trs:

E vs, anjos de
bondade
Que attendestes mendigo ao
Deus largamente vos pague
O bem que fazeis commigo.
E a recompensa segura
Na eternidade dos cos.
Porque, bem sabeis: quem d
Aos pobres empresta a Deus!

A musica toca em surdin/i. Todos fazem si-


lencio. A Caridade vem, vagarosamente, entre os
seus dois anjos. As pastoras
deitam-se no cho, como
quem vae dormir.
Pastoras, adormecendo:

Durmamos, jamais posso ouvir.


Minha lyra se encerra no dormir.

Emquanto todas dormem, a Caridade chega-se


a llas, cantando:

Vinde, correi, ouvi, pastoras!


A maravilha que aconteceu!
Longe de vs os vos temores.
Logo vereis o nosso Deus.

Escutai, escutai!
Gloria no eco se deu! (5)
Vamos louvar o Salvador,

I
lo2
Que j nasceu,
Que j nasceu,
Demos louvor!

A segunda pastora acorda, esfregando os olhos.


Segunda pastora:
O' que viso to formosa!

Primeira e terceira pastora, tambm acordando


a esfregar os olhos:

So anjos! Anjos que vm


Dar-nos ainda a noticia
Do myserio de Beiem.
Galan, despertando:
O' que noite de prodigios

Mendigo, tambeni:
Bemdito seja o Senhor!
Quarta pastora, tambm:
Silencio! escutemos todas
Com respeito e santo amor.

Caridade:

Natal! o grito de alegria.


Cantemos todos porfia
O nascimento do Senhor.
Natal! Natal! do Salvador!

Eu sou a mais bella


filha
Do nosso Deus de Bondade,
!

163
Sou a rainha das virtudes,
Sou a excelsa caridade!

Baixei do co hoje
Com o doce Jesus,
P'ra trazer aos homens
Paz, amor e luz.

O galan e o niendigo, sem chapu, ajoelham


e sadam a Caridade, erguendo os braos.

Primeira pastora:

Gloria Caridade!
Todos:
Gloria

Segunda pastora:
Gloria suprema bondade!

(Todas as pastoras atiram flores sobre a Ca-


ridade).

Caridade:

Sim! Gloria a Deus nas alturas


E paz sobre a terra a todos
Os homens de ba vontade!
Mendigo:
Senhora, sois vs aquella
Que chamo em meu soffrimento?
Sois vs o amparo do pobre,
Do triste o contentamento?
164
Viestes, emfim, terra
De hoje em deante reinar
E nos coraes humanos
P'ra nossa dita habitar?

Caridade:
Entre vs, povo escolhido
Desde o Sinai sou a lei,
inteiro
Mas para o Universo
Com Jesus Deus Verdadeiro

Agora que eu o encarnei. (6)

No seio de Deus habito


E em toda verdade
ardo
chamma itiextinguivel,
Como
Porque Deus Caridade!

Eui eu quem trouxe o Messias


Para os homens resgatar
o mundo
E eu hei de em todo
Sua doutrina espalhar.

exultai, 6 povos!
Portanto,
E approximai-vos de mim.
Pobres, tende confiana,
vim!
P'ra consolar-vos eu

Ricos, de vossa cegueira


o vo
Deixae que se rompa
Eu sou a nica chave
Que abre a i>orta do co.
- 165
Inimigos, congraai-vos
Junto ao bero do Senhor.
A' guerra succede a paz!
Ao dio succede o amor!
Coro.
Gloria a Deus nas alturas!
Que em sua immensa bondade
Vem unir os coraes

Com o lao da Caridade.

Caridade, s pastoras:

Recebei, minhas filhas bem amadas,


Estas bellas coroas que aqui esto,
Symbolisando as flores perfumadas
Que cultivaes em vosso corao.

Deus me manda trazel-as, no como (7)


Recompensa por ora outras coroas
;

L se lavram no co com jias finas,


Para premio immortal s almas boas.

Mas como as doces flores da alegria.


Que ao corao naturalmente vm,
Quando se cumpre a lei da caridade,
Quando se acaba de fazer o bem.

A Caridade coroa as quatro pastoras, dizend*


a. cada uma:

Sejam estas simples flores


O vosso melhor tropho.
166
Emquanto esperaes a Santa
Cora eterna do co!

Abraa, depois, o mendigo, envolve-o no seu


tanto, recitando:
No chores, fiiho meu!
As tuas dores pacientes
So cantadas no col

Escuta, acaba de nascer na terra


Pobre, como tu s, o Salvador!
No tem um bero, os homens o desprezam
Entretanto, o grande Creador!

E' o grande Creador, mas vae gruta


E l o vers chorando sobre a palha,
Da humana gloria
Entre dois animaes.
No tem nem querer um.a migalha.

Vae adoral-o e implora-lhe, humilhado,


Pacincia, esperana, amor e f.

Junto dele has de achar sua me terna


E o modesto esposo So Jos,

Que so pobres tambm e desprezados


Por esta sociedade mal guiada,
Onde o vicio se mostra com orgulho
E a virtude se esconde envergonhada. (8)

Vae adoral-o e estuda no prespio


Da pacincia a altissima lio.
.

- 167
Aprende a achar conforto na esperana
E na f a melhor consolao.

A Caridade, canta, ento, dirigindo-se ao Qalan

Vem c, tu que insensvel


Viste o mendigo chorar,

Vem, eu quero no teu seio


A minha luz derramar!

Diz-me, fiho, para onde


Os teus passos dirigias

Logo que aqui chegaste?


Galan:
ia adorar o Messias! . .

Caridade, admirada:
Para adorar o Messias?
Como? pobre filho meu,
Se to duro aos infelizes
Se mostra o corao teu.

No sabes que aquelle Infante,


Nascido em tanta humildade,
S recebe as homenagens
Que lhe leva a Caridade?

Galan, baixando a cabea:

No sabia, senhora!

Caridade:
Pobre moo! Tem razo.

O mundo at hoje entregue


168
Ao orgulho e corrupo,
Esquece o altivo nobre,
Qv.^ 6 do escravo e do
pobre
Deante de Deus irmo!

Mas o que os homens no sabem


Ou no desejam saber
E' q:ie pae dos desgraados

O Deus em que dizem crer. (9)

E que esse Deus, cujas ordens


Merecem acatamento,
Quiz que fosse o amor ao prximo
Seu segundo mandamento!

Ah! meu fiiho, unicamente


Vis, idolatras, (10) pagos
Podem esquecer, coitados!
Que uns cos outros so irmos.

Vs, porm, povo escolhido,


Vs, os filhos da Verdade,
No podeis calcar aos ps
O dever da Caridade!
Galan

Nunca achei na minha infncia


Quem, Virtude divina!
Beber fizesse minha alma
O nctar (11) dessa doutrina.
- 169 -,

Caridade:
Qraas a Deus que
desponta
Hoje em Belem nova
luz!
De agora em deante os
homens
Sao ensinados por
Jesus.
Vo por um novo trilho
Enveredar meu filho!
Iro amar uns aos
outros
Com esse amor que produz
Do sacrificio a belleza,
Vendo que o Deus das
dturas
Quiz,para honrar a pobreza,
Pobre, mui pobre nascer.

.Quebraro do orgulho os
laos
E se estendero os braos,
Cheios de immenso prazer,'
Como amig-os, como irmos,
Para terem a enorme dita
De formar agrei bemdita,
A santa grei dos christos!

Portanto, filho, se ainda


No teu joven corao
No entra p'r'os infelizes
Nem amor, nem compaixo,
E^ que tambm, desgraa!
Nelle no poude caber
O amor de Jesus, que, humilde,
E pobre veio nascer.
_- 170
Se tu souberes, meu filho,

Que coisa divina dar,


alma
No negars tua
Esse prazer ineffavel.
Essa ventura invejvel
dr alliviar.
Duma
ssinho geme,
Quando o i^obre

Por elle vela seu pae.


E quando mo bemfazeja
piedosa,
Seu pranto enxuga,
generosa
Sobre essa mo
uma benam ce!
Do co

Mas o corao de pedra


Que piedad'j no tem
Esquece que nesta vida
contentamento
E' curto o
E que pode o soffrimento
Bater-lhe a porta \ambem! (12)

creatura ingrata!
Rico!
benefcios Deus faz..
V que
Pois imita a Deus e, quando
comtigo
Fores ao templo,
me//digo.
Leva a beno do
no vsl...
Se no a levares,
assis-
voltando-se para a
A Caridade, termina,
tencia:
Filhos da terra, remidos
Pelo Christo Salvador,
171

Coraes rectos e nobres,


O^ dae a Deus, dae aos pobres
Amor, amor, muito amor!

Galan, ajoelhado:

Perdoa, o virtude excelsa!


Perdoa a minha dureza!
E^ que eu nunca vira, nunca, -

Ek) teu ensino a belleza!

De hoje em deanle dos pobres


Serei amigo e irm.o.
Jamais repeiirei d'alma
Tua doce inspirao.
O^ Caridade admirvel,
O' filha do co amvel!
Eu vou seguir os teus passos,
Cinge minha alma em teus braos,
Melhora meu corao!

O Galan continua, abraando o mendigo:

Perdoa tambm tu, pobre mendigo!


A minha de ainda ha pouco.
feia aco
Cheguei aqui ignorante e louco.
Cheio de orgulho e de maldade cheio.
Mas agora ferio-me a luz celeste
E eu vejo as trevas da misria minha.
Quero seguir em ps esta rainha.
Que me cliamoii e me acolheu ao seio.
172
Toma a bolsa que te disse
Estar vasia. Era mentira.
Tem ouro. Desse ouro tira
O bem estar que no tens
E roga a Jesus que em troca
Desta illusoria riqueza
Ck) co na immensa grandeza
xVie d verdadeiros bens!
Mendigo:
Senhor Deus, que nos escuta
E vosso corao v,
Augmentae vossa fortuna
E premio eterno vos d!
Caridade:
Agora, todos irmmiente unidos,
Como filhos dilectos do senhor,
Vamos gruta de Jesus nascido
Render-lhe doce preito de louvor.

Todos formam um grande bailado: os anjos


frente, a Caridade aps depois, o galan e o men-
;

digo; por fim, as quatro pastoras. Todos cantam.

Primeira pasora:

Gloria Caridade!
Coro.
Gloria!
Segunda pastora:
Glorin suprema bondade!
:

^- 173 i
:

1"

Coro.
Gloria!
Caridade:
Sim! Gloria a Deus nas alturas \

E paz na ttrra a todos


Os homens de na vontade!
Coro j

Vamos, pastoras queridas


A' cidade de Belm,
Que hoje nasceu o Messias
Que nos vem trazer o bem.

Vamos, pastoras queridas,


Vamos e no demoremos,
^^w^ a aurora j desponta
E ja so horas, marchemos!

infante divino,
Querido Senhor,
Que pobre nascestes
Pelo nosso amor,
Sc nossa ventura,
lodo nosso bem,
O' luz da altura,
O' flor de Belm!

A Caridade, ajoelhando-se em frente da la-

^ pinha, canta esta la:

Aos ps do teu bero humilde


1 raz a sua adorao
- i74
Esta virtude sabida,
Jesus, de teu corao!
D que no peito dos homens
Eu habite, grande Rei,
E que, por mim dirigidos, ' -

Na senda da tua lei,


EUes se unam, se queiram
Em santa fraternidade,
E assim se reforme o mundo
Com o poder da caridade!

Coro de pastoras, bailando:


O' doce Menino,
Jesus Salvador,
Acceita a homenagem
Do nosso louvor.

O galan ajoelha-se junto Caridade e canta


tambm sua loa:

Cego, divino Infante,


A vossa luz eu no via,

Mas em minha alma contricta


Ella a raiar principia.
Fazei que nunca se apague
No meu pobre corao
Do vosso nobre exemplo
De amor a impresso!

Coro de pastoras, bailando:


O' meigo Menino,
Jesus Salvador,
175
Acceita a homenagem
Do nosso louvor.

O mendigo tambm se ajoelha e canta a sua loa:

Piedoso Jesus nascido


Em to medonha indigncia,
Dai a este pobre mendigo
O conforto e a pacincia!
Quando o mundo me repelir
Com despreso e com dureza,
Fazei que eu volte meus olhos,
Senhor, vossa pobreza!

Coro de pastoras, bailando:

O' doce Menino,


Jesus Salvador,
Acceita a homenagem
Do nosso louvor.

As quatro pastoras ajoelham-se por sua vez,


tiram as suas coroas de flores, e offerecem-n'as a

Jesus, cantando a su^ la:

Aqui esto estas coroas


Que a caridade nos deu.
So vossas, Verbo Encarnado,
Porque vieram do co.
Sobre ns, Jesus querido,
Tende sempre fito o olhar
E dae foras nossa alma
176
P'ra 110 bem perseverar.
Fazei que, esquecendo a terra
E os prazeres que ella encerra,
Amemos a vs somente.
E na Gloria, eternamente,
Possamos tambm vos amar!

Levantam-se todos e bailam, cantando:

O' meigo Menino,


Jesus Salvador,
Acceita a homenagem
Do nosso louvor.

Todos marcham, fazendo evolues antes de se


Cantam
retirarem.

Vamos s nossas moradas


Cheios de Santa alegria,
Porque p'ra ns sorrio
Jesus, filho de Maria.

Em vossa almi fique


Gravada a lembranaa
De tanta alegria
E tanta esperana!

Jesus seja stmpre


Nosso terno amor,
Nosso doce amparo,
Nosso Salvador!
- 177
Gloria ao Deus eterno
De summa bondade!
Gloria ao Deus Menino!
Gloria Caridade!

Notas ao Auto da Caridade


1. Este auto ^ s vezes, mutilado e reunido
como uma simples scena, embora longa, ao das Pas-
torinhas.
2. Pagode: divertimento.
3. zougada: espevitada.
A. Olha, isto , escuta, ouve.
5. O verso primitivo devia ser: Gloria in ex-
celsis Do ! >

6. Pelo que ha nesta estrophe (Sinai, etc.) e o


que ha noutras est visto que este auto foi feito
por algum de certa cultura, .mais modernamente
que os outros, porquanto esses esto eivados de
corruptelas, augmentos e diminuies, emquanto este
mantm melhor a sua estructura inicial.
7. Este enjambcment apoia a nota precedente.
8. Ha nisto tudo muito das tiradas doutrina-
rias das moraUsatioiies medievaes.
9. Idem.
10. A prosdia vulgar no Nordeste idola-
tra De outra forma at quebraria o verso.
11. Este nctar c irmo daquelle Sinai e mais
uma prova em favor da nota 6. .

12. V. as notas S e 9.
AUTO DA P3R?IA DAS FLORES

PERSONAGENS:

A Rosa, de saiote verde e corpinho cr de rosa,


A Flor de Laranja, de saiote verde e corpinho
branco.
A Sempre-Viva, de saiote verde e corpinho ama-
rello.

O Cravo, de cales verdes, curtos, e blusa


encarnada.
O Lyrio, de calesinhos verdes e casaquinho
branco.
Cada personagem deve trazer na mo um ramo
da flor que representa.
(A scena, como a das Pastorinhas e da Cari-
dade, passa-se toda deante da lapinha.)

Rosa, cantando:

Deso agora, alegremente,


Do meu throno de verdura.
Para adorar o Messias
Cheia de amor e ternura.
179
A rosa bella,
Cr da alvorada,
Do que as flores todas
Mais perfumada,
Ao Deus Nascido
Veni adorar
E o cho da gruta
Alcatifar.

Flor de laranja:

Justo que a natureza


Se encha hoje de prazer
Ei que as flores todas venham
De amor o culto render.

Ao Encarnado
Verbo de Deus,
Que fez as aguas,
A terra e os cos!
Ao poderoso
Seu Creador
Tragam as flores
Culto de amor.

Dirigindo-se Rosa:

Deus vos salve, flor mimosa!


Ides acaso a Belm?
Se assim , muito me alegro.
Pois para l vou tambm.
- 180-

Rota, com desdm


Quem s tu, branca flrsinha?
Do jardim no te conheo.
Flor de laranja:

No pomar que floreso

Rose:
Logo vi pelos teus modos
Que no s tlr de salo.

Flor de laranja:

Deveras, formosa dama?


Pois, na minha opinio,
Mais vale sei flor do campo
Do que habitar o jardim,
Se l peia vossa corte
A polidez assim.

Rosa^ rispidamente:

Sabes, flrsinha insipida^


A quem ousas replicar?

Flor de laranja:

Sei que falo a uma collega


De apparencia no vulgar;
Porem que o mrito perde
De sua grande belleza,
Porque lhe sobeja orgulho
E falta delicadeza.
.

~ .181
Setnpre-Viva, entrando em scena a cantar:
Meu canteiro abandonando,
Cheia de immenso prazer,

Vou gruta abenoada


Minha vida ofefrecer.

A Sempre-Viva,
Constante flor.
Ama e adora
Seu Creador,
E toda humildade
Vae neste instante
Beijar as plantas
Do Deus Infante.
Rosa.
S bem vinda, - Sempre-Viva!
Sempre-Viva:
Como passaes, linda Rosa!
Rosa:
Passo bem, muito obrigada.
Sempre-Viva:
Sempre querida e formosa,
No assim?
Rosa:
Mais ou menos . .

Sempre-Viva:
Dizei-me: ides a Belm?
182
Rosa:
Vou.

Sempre-Viva:
Quem nos dera que chegasse mais algum!
Convidei o Cravo e o Lyrio,
Que me disseram que sim
Mas julgo que ainda esto
Quietos l no jardim.

Rosa:
Aposto que elles no tardam
A ter comnosco tambm,
E pelo aroma que sinto
Cuido que o Lyrio ahi vem.

Lyrio, cantando:

Do valle em que vivo occulto


Deixo a sombra to querida,
Para exhalar meu perfume
Aos ps de quem m.e deu a vida.

O L\rio timido,
Com alegria,
Vem vr a pura
Virgem Maria.
E com delicias
Servir de alfombra
A quem como Elle
Nasceu na sombra.
:

183
Sempre-Viva:
Porventura branco Lyrio
Vem o Cravo por ahi?

Lyrio
No sei, cara Sempre-Viva,
Porque sosinho sahi.

Rosa, com enjado:

O Cravo pedante e gosta


De se fazer esperar,
Por isso no me surprehende
Que tarde tanto a chegar.

Sempre-Viva:

Collega, a vossa linguagem


Nos causa grande extranhezr
Nem de boa amizade
Nem de amvel gentileza.
Lyrio:
Certamente a linda Rosa
Falou por sim.ples gracejo!

Rosa.
Ora, que sentia
disse o
E bem entendo o que vejo.

Faz-se o Cravo soberano


No jardim, dominio meu;
Porem debalde se agita,
Porque a rainha sou eu.
184
Lyrio:
Questo de rivalidade,
Que mal no pode trazer
A' paz, amor e harmonia
Que entro todos deve haver.

Sempre-Viva:
Que dizes, Flor de laranja,
To bei la e to reservada?

Flor de laranja:
Que a conversar com a Rosa
Prefiro ficar calada.

Rosa, avanando para ella:

O' camponeza insolente,



Fora da minha presena!
Flor de Uua-.ija, rindo:

Para virar-vos as costas


No careo de licena.

Porem agora no quero


Fazer-vos esta vontade!
Lyrio.
Minhas caras companheiras
No se zanguem, por piedade!

Hoje noite de alegria,

Noite de riso e de amor,


Cessem disputas e enfados
Em honra do Salvador.
:

- 185
Sempre-V iva
Diz bem o cndido lyrio,
Trgua a inimizade agora.
L vem o Cravo esperado.
Chegue elle, vamos embora.
Cravo, cantando:

O rei das flores, humilde,


Vem curvar-se doce lei
De Jesus recem-nascido,
Verdadeiro e nico Rei!

Deus das Alturas,


Feito menino,
Se- acha entre os homens
Qual peregrino.
Vamos gruta,
Cheirosas flores,
Levar-lhe aroma,
Levar-lhe flores!

Sempre-Viva:
Illustre cravo encarnado.
Foi grande a vossa demora,
Aconteceu-vos transtorno
Ou estaes preguioso agora?

Cravo,
Minha bella Sempre-Viva
Cor de ^<aro como o sol,
C no estou ha mais tempo,
- 186
Porque achei um rouxinol
A cantar.no meu caminho...

Sempre-Viva:

E parastes para ouvil-o?


Cravo:
E' bom do passarinho'
que o
Chamou-me p'ra conversar
E, contra a minha vontade,
Fui obrigado a escutar.

Rosa.
Diga logo, senhor Cravo,
Com franqueza e bizarria,
Que cavalheiros galantes

J no os ha hoje em dia..
Cravo:
Pois eu me preso de sl-o
E geral a opinio
Que mais delicado principe
No pisa em nenhum salo.
Rosa, zombanao:

Ora, rapaz, tome siso

E deixe-sc de presumpo!

Cravo, enrgico:

Siso devia tomar


Quem por toda a parte busca
Desfazer um nome feito,

Cujo brilho nada offusca.


- 1S7
Quem com intrigas n.esqiiinhas
E palavres de vaidade
Cede aos desejos da inveja,
P'ra fazer guerra verdade!
Rosa:
Porventura taes palavras
A mim dirigidas vm?
Cravo:
Se tomou a carapua,
E' que ella lhe assenta bem!.
Lyrio:
Ainda mais outra contenda!
Lembrem-se, irmos, por favor,
Que hoje a noite ditosa
Do Natal do Salvador!
Cravo
Tens razo, amigo Lyrio;
Mas que aqueila senhora
Tem sempre a linguinha prompta
P'r'offender-me a toda a hora!.

Nem v que, como vassalla


De minha real coroa,
Ela deve acatamento
A* minha augusta pessoa.

Rosa, cticole risada:

Vassalla?! Que estaes dizendo?


Conter-me mais i no sei.

I
188
Respeito tua pessoa!?
Quem que te chama rei?!

Soberana proclamada
Em todo o jardim sou eu,
Pelas graas, pelo encanto
Que a natureza me deu!

Cravo, resoiutameni, :

Pois se s rainha e senhora,


Eu serei rei e senhor!

Rosa.
Um escravo revoltado
E' o que s, traidor!

Cravo.
Rosa, 'no queiras zangar-me.
J sabes quo forte sou.
Teme minhas justas iras,
as
V que ningum me curvou!

Os meus direitos no cedo


De belleza nem perfume.
E, se a negal-os te atreves,
E' que te cega o cime!
Rosa.
Cime!? A flor, que a alvorada
Beija com mais terno amor,
No tem de outra cimes
Que a toda superior.
Nenhuma flor como a Rosa
Tem no m.undo acceitao;
Nenhuma como ella pode
Supix)rtar comparao!

Eu sou a filha mais bella


Da fecunda natureza,
A graa da Primavera,
Que sem mim no tem belleza!

No ha ornato de flores,
Ou fingidas ou reaes.
Que despensem meus encantos,
Elegantes, sem eguaes!

No tangem lyra os poetas


Que no se lembrem de mim.
Sobre jarros de ouro e prata
Eu brilho em todo festim.

Contemplo a face mimosa


Da joven pura e singela,
E v se o pejo no leva
Minha cr s faces delia?

E, quando houver corrido


O immenso domnio meu,
Vem confessar que das flores
A soberana sou eu.
1')')
Cravo:
Tudo que dizes, menina.
No passa de gabolice.
Todos de si dizer podem
A mesma ou niaior tolice.

O cravo a mais importante


Florque a natureza cria.
Seu perfume to suave

Que a alma alegra e inebria.

As suas ptalas foram


Recortadas em setim,

No co, entre auras de incenso,


Pelas mos dos cherubins!

Para obtel-o nas festas

No se poupa sacrificio:
E o que se d para iiavl-o.
Ningum chama desperdcio.

Mas soDretudo nos bailes


E nos festins de noivado.
flores,
Mais do que todas as
-
E' o cravo apreciado!

Entre as flores, pois, me cabe

De direito a primasia.

Hei de vencer qualquer uma


Na mais renhida porfia!
ia

Flor de laranja:
Mais que a flor de laranjeira
Nos de noivado?
enfeites
Protesto, Cravo! tu nunca
Foste nem s estimado!

No vindes assim depressa


Da discusso triumphar,
Porque tambm ha quem queira
Comtigo as armas |terar.

Como a fir da laranjeira


Nenhuma fr se desata
Por entre as folhagens verdes
A' luz dum luar de prata.

Eu sou cndida, eu sou meiga,


Sou mimosa qual nenhuma!
Que odor mais puro e saudvel
Que o meu a noite perfuma?

Rara nas salas, embora,


No ha festas de amor
Em que jamais se dispense
Minha brancura e valor.

E a bella festa de npcias


Em que a noiva jocunda
Com flores de laranjeira
A pura fronte circumda!
1*^2
Na medecina empregada,
Eu dou ptimo producto.
E, quando o vento me esfolha,
Ce a flor, mas fica o fructo.

Tenho muitos predicados,


Viva embora no pomar,
Pois no merecimento
Ser deste ou aquelle logar.

Senipre-Viva.

J que as collegas procuram


Seus dotes engrandecer,
Entro tambm na porfia
E os meus procuro dizer.

Disputam todas, vaidosas,


Mimo, perfume, beHeza,
Pois quero desafial-as
Para disputar firmeza.

Sois to franzinas, to pobres


De resistncia e de alento,
Que vos desfolhaes depressa
Ao leve sopro do vento.

Mas eu me conservo bella


Qual fui nos dias da infncia,

Svmbolis<L) a eternidade
E sou a flor da constncia!
193
O firme amoi entre os homens
E' tido em estimao,
E raro achar-se na terra
Uma perenne affeiao.

Se a mocidade e a belleza
Pudessem durveis ser,
Para os homens, que ventura!
Para as moas, que prazer!

Portanto, quando offereo,


Aberta, a corolla de ouro,
Guardam-me todos, sorrindo.
Como se guarda um thesouro.

Viva, pois, a Sempre-Viva,


A flrsinha sem egual,
Que symbolo de lembrana
E de affeiao immortal!

Coro do Cravo, da Sempre-Viva e da Flor de


laranja:
Os nossos direitos
Defender queemos
E pela victoria
Lutemos, lutemos!
Rosa.
Deante de taes grandezas
Que acabam de expender
Ha da rainha das flores
Covardemente ceder?
r 4--

Flr de Laranja e Sempre-Viva:


No queremos, soberana,
Nem coroa, nem brazo!
Se teimaes em vosso intento,
Rebenta a revoluo!
Rosa:
Pois sim! Jamais a estultice
Me ha de fazer recuar!
Hei de a meus ps humilhados
Vossas cabeas curvar!

Cravo, rindo
Vae chamar tuas cohortes,
Vae buscar teus esquadres,
Que os porei daqui p'ra fora
Com dois ou trs caxaesl...
Rosa.
A zombar de mim te atreves
Vassallo atrevido e louco?!

Cravo.
A to grande soberana
Castigar-me custa pouco.

Rosa, desembainhando \xm longo espinho verde;

J de joeelhos, covardes!
Para pedir-me perdo.

Cravo, fugindo a rir:

Ui! que ella com o espinho


Espeta-me o corao . .

I
195
Lyrio, contendo a Rosa que avanava contra
o Cravo :

Linda Rosa, por piedade,


Aos meus pedidos cedei!
Rosa.
Deixe que castigue a insnia
Deste ridiculo rei!
Lyrio:
Rosa, reflecte, que a ira
No d razo a ninguem.-
Rosa, batendo o p:

Deixa-me!
Cravo, rindo: ,

Se no guardas o espinho,
Vaes espetar-te tamoem.
Rosa:
Sou a Rainha, a Senhora,
Posso punir um delicto!
Cravo:
Pois quando achar quem te ature
Tenha l seu faniquito!

Sempre-Viva e Flor. de laranja:


No ha rainha sem throno.
Nem throno sem vassalagem.
Ficae s, todas sahimos,
No vos damos homenagem.
196

O Cravo, a Sem.preViva e a Flor de laranja

vo retirar-se. O Lyrio os detm.

Lyrio:
Esperae, caras amigas,
No fiqueis to enfadadas,
Terminae o vosso pleito,

Dando a mo de camaradas.

Mimosa Flor de laranja,


Minhas palavras escuta!
Sempre-Viva delicada.
V como feia esta luta.

Pois que o Lyrio


possvel
Assim vos supplique em vo?
E que ao seu conselho amigo
No queiraes dar atteno?

Vieram todas contentes,


Para adorar o Messias
E ho de trocar em desgosto
Nossas santas alegrias?

Ah! como esquecer podeis


Com tanta facilidade
Que o Rei do Co e da Terra
D exemplo de humildade?

Ns qut sahimos do nada


E ao p devemos voltar
19:

Queremos, cheios de orgulho,


Nossa grandeza exaltar,

Emquanto Elle, o Excelso,


Deus Eterno, Maravilha!
Desce do slio da Gloria
E s creaturas se humilha!

Oh! deixae dessa loucura,


Respeitae a Divindade
E no disputeis grandezas
Perante a sua humildade.
flor de laranja:

Fala o Lyrio com prudncia,


Como se fosse um juiz!

Sempre-Viva:

E acho que todas devemos


Approvar o que elle diz!
Lvrio:
Pelo amor de Deus iMenino,
Rende-te, 6 Cravo! primeiro,
Pois tu no s delicado?
Pois tu no s cavalheiro?

Por suas mos ningum |>dc


A primasia tomar.
E compete sociedade
Louvor ao mrito dar.
1^)8
Se cada um s consulta
Do amor prprio a opinio,
No afan de elevar-se altivo
Chega a perder a razo.

Deixemos, portanto, aos outros


Julgar o nosso valor
E do bem em que nos achamos
Demos graas ao Senhor!
Cravo:
Por minha parte j cedo
A to sensatas razes
E deixo para outro dia
To enfadonhas questes.
Lyrio:
No trgua de momento
O que peo, amado Cravo,
Pois tu desejas ser sempre
De tuas paixes escravo?

No! A real liberdade


E a que nos faa senhores
Desses nativos instinctos,
Causas de mil dissabores.

Se de reinar entre as flores


Tens a ambio e o anceio,
De tua causa a justia
Confia no bom senso alheio.
Se o sceptro mereceres
Por excellencias reaes
De tuas mos ningum hade
Arrebatal-o jamais.

O mesmo direi Rosa,


Cuja imponente belleza
E^ o encanto das salas
E a gloria da natureza.

Cessem, pois, questes inteis,

Cessem dios, sempre vis,

E sejam to razoveis
Os dois quanto so gentis.
Cravo:

Collegas, o amigo Lyrio


Poude emfim me convencer
Com as reflexes acertadas
Que ora acaba de fazer.

E, quando a escutal-o attento,


Sua modstia contemplo,
Mais do que suas palavras
Faz-me impresso seu exeniplo.

Todos prpria belleza


Demos um grande valor,
S elle, humilde e calado,
No fez gabos de valor.
2')<^

Sempre-Viva e Flor de laranja:


E' verdade! Nada disse
O Lyrio em abono seu
Cravo:
Quando alis tantas graas
A natureza lhe deu.

Sempre-Viva:
Pois j que no quiz, humilde,
Suas graas exaltar,
Proponho em que ns todos
Falemos em seu logar.
Flor de laranja:
Perfeitamente!
Cravo:
Apoiado!
Lyrio:
Caras flores, obrigado!
Mas tratemos de seguir
Para Belm.

Sempre-Viva:
Pacincia!
Meu senhorsinho, ha de ouvir!

Flor de laranja:
Ha de ouvir! No tem remdio.
Cravo:
Duas palavras somente.
Comea tu, Sempre-Viva,
Porque foste ^ proponente.
201
Sempre-Viva:
Entre as flores mais notveis
Que brilham no verde liastil
O lyrio elegante eleva
Seu magestoso perfil.

Branco como leite e neve,


Macio como setim,
Sua corolla garbosa
Honra o mais rico jardim.
Flor de laranja:
Urna de aroma suave,
Deus quiz do lyrio fazer!
Perfume doce e agradvel
Como o seu raro haver.
Cravo:
Lyrio conquistas a palma
Do maior merecimento,
Porque da humilde modstia
Nos destes o ensinamento.
Sempre-Viva a Rosa:
Bella Rosa, esquece as iras
E vem o Lyrio saudar.
Ao coro de nossas vozes
Vem tua voz ajuntar.
Rosa:
Sim, no quero da harmonia
Ser a nota discordante,
E antigos resentimentos
Esquecerei de ora em deante.
202
Sado o Lyrio e convenho
De todo o meu corao
Que elle merece os louvores,
Que em toda a parte lhe do.

Quando o poeta procura


Comparar um puro alvor,
E^ do Lyrio que recorda
A candidissima cr.

E assim pelo seu encanto,


Peia sua singeleza,
O Lyrio foi escolhido
Para emblema da pureza.

A me de Jesus Infante,
De Jesus, nossa alegria,
Tem nelle o ornato mais bello
O Lyrio a- flor de Maria!

Pois quando esse Nascimento


Veio o Archanjo annunciar,
Trouxe lyrios l do co,
Para a sua fronte ornar!

E o puro esposo da Virgem,


Que to venerando ,
Empunha um ramo de lyrios:
O Lyrio c a flor de Jos!
2i)3 -

O Lyrio mimo celeste,


E' da innocencia o penhor!
As aJmas em que elle brota
Tm a benam do Senhor!

E o Cordeiro Immaculado,
Que pureza nos conduz.
Entre lyrios se apresenta:
O Lyrio c a fr de Jesu!
Cravo
Bravos, Rosa!
Sempre-Viva:
Muito bem!
Flor de laranja :
Viva o Lyrio! Viva a Rosa!
Cravo Rosa, estendendo-lhe a mo:
Agora, sim, foste grande,
Porque toste generosa!
Rosa, apertando a mo do Cravo:
Raiou em meu corao
A luz do co e vos peo.
Irmos, a todos perdo!
Cravo, Sempre-Viva e Flor de laranja:
E ns, querida Rosa,
Perdo pedimos tambm.
Pelo amor do Deus-Humilde,
Do Deus nascido em Belm! ^
204

Cravo:
Esqueamos o passado
E, em signal de unio,
Abracemos-nos contentes,
Com sincero corao!

Emquanto os quatro se abraam, diz o Lyrio:

Que prazer, formosas flores!


Que prazer me emfim!
daes,
O^ que alegria suprema
Eu sinto ao vr-vos assim!

Cessa o orgulho, finaTmente,


De vibrar os golpes seus
E em vossas almas leaes
Vence a unio, vence Deus!

Graas ao Senhor Supremo,


Que transforma a treva em luz
E sobre as almas geladas
Do bem o calor produz!
Cravo:
Agora que estamos todos
Na mais completa harmonia
Vamos adorar Aquelle
Que nos sustenta e nos cria.

Sempre-\'iva:
Viva a Unio!
Todos:
Viva! Viva!
205
(

ii

Rosa:
Viva o Amor que no Bem conduz!
Flor de laranja:
Viva a Paz!
Cravo:
Viva a Humildade!
Lyrlo:
Viva o nome de Jesus!
Cravo:
Vamos a Helem depressa
E seja o Lyrio querido
Quem nos guie Santa Gruta
De Jesus reeem-nascido!

Vo dois a dois: o Cravo com a Rosa, a Flor


de laranja com a Sempre-Viva. O Lyrio guia-os
frente. Cantam, marchando:
O' noite cheia de encantos!
O' noite cheia de amor!
Em que veio luz do mundo
Nosso excelso Creador!
Bailam, cantando;
O' noite gloriosa!
O' noite immortal!
Em que a terra alegre
Celebra o Natal.

O' Deus Sempiterno


Qui: humanar-se quiz!
2^)h

Noite, bemdizemosl
O' noite feliz!

Param a dansa e marcham:


Creador de cos e terra,

Estas flores que fizestes


Offerecem-vos sentidas
Os perfumes que lhes destes.
Dansam
O^ noite gloriosa!
O' noite immortal! ec.

Lyrio, falando:
Em honra do Deus Menino,
Flor do co immaculada,
Em torno de sua gruta
Formemos uma grinalda!

Todos dansam de mos dadas, rodeando o


prespio:

Estas flores reunidas


Cercam os ps do Senhor
Nesta grinalda singela,
Nesta grinalda de amor!

Soltam-se as mos, desfazendo a roda e bai-

lam separados, cantando:


Flores mimosas,
To bellas e puras,
Ornemios o bero
Do Rei das Alturas!
207
Lyrio, falando:
Em honra do Deus Menino,
Que a vossa bondade acceite
Estas flores reunidas
Num pequeno ramalhete.

Dansam todos em grupo, fingindo um rama-


lhete, cantando:
O' flores singelas,
Louvae o Senhor,
Deus Omnipotente,
Vosso Creador!
Lyrio, falando:
Dispersas todas as flores.
Ornem esta Gruta Santa,
Onde nasceu pelos homens
Jesus em pobreza tanta.

As flores separam-se umas das outras e can-


tam em coro:
Meu Jesus, em vossa Gruta
Estas flores espalhadas
Se dariam por ditosas
Se por vs fossem pisadas!

Dansam a cantar:

O' flores mimosas.


To bellas e puras,
Ornemos o bero
Do Rei das Alturas!
2r>s '<

O Lyrio canta de j-oelhos esta la:

O Lyrio prostrado adora,


Senhor, a excelsa bondade
Que vos fez nascer no mundo
Em to profunda humildade!

Coro, cantando e bailando:

A Rosa engraada,
O Cravo cheiroso.
Gentil Sempre-Viva,
O Lyrio mimoso,
A Flor de laranja
A 'Jesus consagram
Seus puros amores.

O Cravo canta de joelhos a sua la:

O Cravo vem, reverente,


Com respeito e santo amor,
Sua homenagem trazer-vos,
Meu Deus, meu Rei, meu Senhor
Coro:
A Rosa engraada, etc.

De joelhos, a Rosa tambm canta uma la:


Maria, que sois chamada
A Rosa de Jeric,
Eu vos sado humilhada,
Rojando a fronte no p!
Coro:
A Rosa engraada, etc.
2<''j
La da Flor cIc laranja, ajoelhada

A Flor de laranja offerece


Seu perfume salutar
A Jesus, Autor das Flores,
Que veio a terra habitar!
Cro:
A Rosa engraada, etc.

La da Sempre-Viva, ajoelhada tambm:

A constante Sempre-Viva,
Cheia do mais firme amor,
Offerece ao Deus Menino
O seu eterno louvor!
Cro:
A Rosa engraada, etc.

Todos cantam, marchando:


Meu Jesus, estas flrsinhas
Com o maior contentamento
Do mil parabns aos homens
Pelo vosso Nascimento!

Todos cantam, dansando:


O nuuido no sabe
Que graa infinita
Lhe trouxe esta noite
Risonha e bemdita!

Louvemos, flores!
O Deus das Alturas
- 21U
Que vem confundir-se
Com as creaturas!

Todos cantam, marchando:


Quando a rajada do vento

Nossas ptalas arrancar,


Mandae, Jesus, que ellas venham
Em vossa gruta pousar! (*)

Todos cantam, bailando:


Voltemos, voltemos
Ao nosso jardim!
Nunca flores houve
Felizes assim

Vimos e adoramos
Nosso Creador,
O Deus das Alturas,
O Eterno Senhor!

Voltemos, voltemos
Ao nosso jardim!
Cantando louvores,
Hossannahs sem fim!

(*) No fim deste auto, q le , nor certo, devido a alo:iim


poeta de ba insnirao e certa ci:ltura, e que o tempo quasi no
deturpou, esta quadra do tal beileza potica que no podemos
deixar de chamar a attenrlo '"sara ella.

J
AUTO DOS PAG3

Era um auto de pura origem indiana, com bai-


lados e cantorias. A sua tradio infelizmente se
perdeu. Desse folguedo, que tambm se realisava pelo
Natal ,no resta um nico verso na memoria do
povo.

Conta Joo Brigido no seu livro Homens c


Factos , pagina 242, que o principal personagem
do auto era uma serpente, que os ndios comba-
tiam e matavam, bailando e cantando. As scenas
eram. ruidosas e cheias de incidentes, que lembra-
vam a vida do selvagem nas selvas: lutas, caadas,
rastreamentos.
Essas representaes datavam de longa antigui-
dade. Em Ruo, deante de Catharina de Medicis,
cincoenta tabajaras Pernambuco, sob a
levados de
chefia do page Morbicha, acompanhados de alguns
marinheiros normandos, a effectuaram, semi-ns com
seus adereos e suas pennas, brandindo tacapes, ati-
rando frechas, ao lgubre som dos maracs.
A Grande Serpente, que apparecia na ultima
scena, era um immenso canudo de panno pintado
de varias cores, mosqueado de negro, dentro do
qual, como no Boi Suruby, um homem fazia todos
os movimentos necessrios. Esse animal, antes de
combater os ndios e de ser morto por elles,
discutia em verso com o page. Em torno do seu
cadver os figurantes todos dansavam, alegremente,
cadver^ os figurantes todos dansavam, alegremente,,
triumphalmente.
Segundo o citado escriptor cearense, a ultima
dansa dos Pags foi levada a effeito no Ic, na
corao do Cear, no anno de 1 837..
AUTO DOS GONGOS

PERSONAGENS:
D. Henrique Cariongo, rei dos Gongos.
Prncipe Sueno, (1). herdeiro da coroa. '

Secretario do Rei, sen filho tambm.


Embaixador de Loanda.
dos Gongos e de Loanda, soldados
Officiaes
de ambas as partes, msicos e dansarinos.
(A scena passa-se num vasto terreiro bem es-
panado, onde sobre um estrado se acha o throno
do rei dos Gongos, ladeado pelos msicos, e, dean-
te delle, duas fileiras de dansarinos, entre os quaeg
passeia, de espada na mo, o Secretario.)
Secretario, de saiote e cocar de plumas:
Pretinhos dos Gongos
Para onde vo?
ro dos dansarinos, de saiote e cocar:
Vamos ao Rosrio, (2)
Festejar Maria. ;

Fesieja, festeja com muita alegria (bis)


Vamos ao Rosrio,
Festejar Maria.
- 214
Secretario:
A gallinha quando come
Pinica 'no cho.
Coro:
O collegio, legio, legio,
O collegio da nao! (3)
Secretario.
Olha o cho, olha o cho,
Pinica no cho.
Coro.
O collegio, legio, legio,
O collegio da nao!
<\

Secretario:
Nossa licena j temos,
l l!

Da me de Deus do Rosrio,
o l l!

Nossa licena do delegado,


l l! (4)
Coro:
,Toca, toca p'r'o servio,
So horas de trabalhar,
O que os Santos Reis no querem
No se deve adorar.
Secretario, olhando maliciosamente o publico e

dando voz intonao irnica:

Engana, meu bem, engana,


Engana que ests olhando.
:

- 215
Se no querias os Gongos,
i\x

Para que eslavas chamando? -


(5)
Coro.
O'^gingana, gingana, gingano!
(bis)
Gingano, gilaguelio, gibagal!
(6)
Secretario:

Minha Gingana, Gingonia,


Quem te mandou perguntar?
A mochila da macaca
S serve para apanhar!
Cro:
O' Gingana, etc.
Secretario^ mais irnico ainda:
Os branquinhos esto dizendo
Que todo negro ladro.
Os branquinhos tambm roubam
Com sua penna na mo!
Cro:
O- Gingana, etc.

Secretario e cro ao mesmo tempo:


Rabeca, viola, pandeiro, marac!
Viva nosso rei
Que j vem dans! (7) (bis)
Com rabeca, viola, pandeiro, marac!
Secretario

J chegado, j chegado
Nosso rei do seu passeio.
21h
*

Pelos boatos que correm,


Vadios ter o bombardeio!
Secretario e coro:

Rabeca, viola, etc.

Secretai io :

Nosso rei foi visitar


Seus vassallos em campanha.
Pelos boatos que correm..
Devemos saber quem ganha!
Secretario e coro:

Rabeca, viola, etc,

(Cada mudana de versos feita de accrdo com


uma mudana de rythmo das musicas primitivas, ba-
hianos geralmente, da orchestra,, composta de gazas
ou maracs de folha de Flandres, de violas, de san-
fonas e de zabumbas. As dansas e contradansas, os
passes do Secretario, que no cessam emquanto todos
cantam, tambm mudam de accrdo com as cantigas
e a musica, numa variedade
interessante que espanta
pela sua immensidade de combinaes.
rapidez e

Durante todo o auto"d-se o mesmo. Os dansarinos


param unicamente, quando os principaes figurantes
falam em prosa.)

O rei D. Henrique Carilongo apparece, seguido


do principe Sueno e de alguns officiaes. E' geral-
mente um negro alto, de calas brancas, sobrecasaca
preta, usada, manto de setineta vermelha semeado

I
:

217 ~~

de estrellas de papel, cora de papelo


doirado
cabea, o sceptro na mo. O prncipe
vesQ rou-
pagens de forma antiga e cores berrantes,
manto
vermelho tarnbem, chapu emplumado,
espada cin-
ta. Os officiaes trajam
velhas fardas do exercito e
da policia, bons ou gorros com
pennachos, arras-
tando espades antigos, de cavallaria.
Os dansarinos abrem alas. O Secretario corre
por entre ellas, gritando:

Simung, congu, ailel! (8)


Mumbica, Mombaa, Rei meu Sin/i/
Depois, canta triumphalmente:

Arreda, deixa passar,


Nosso rei D. Cariongo!
Com a sua divindade, fis)
Nosso rei para seu throno!
Coro:
Arreda, deixa passar, etc.
Secretario :

Nosso rei est com vontade

De ir ao throno de Maria,
Neste instante, nesta hora.
Hoje mesmo, neste dia!
Coro:
Arreda, deixa passar, etc. *

Secretario

Nosso rei subio corte,


De seu throno se apossou,
218 -

Com a sua fidalguia


No seu throno se assentou!
Coro:
Arreda, deixa passar, etc.

Secretario:
Alma perdida anda no mundo,
No mundo sem alegria,
Somente porque no reza
O rosrio de Maria.
Coro:
Arreda, deixa passar, etc.

Secretario:
Minha V^irgem do Rosrio,
Cantemos vossos louvores
Os anjos cantam no co
E na terra os peccadores.

O rei a corte atravessam o terreiro entre


e

as duas alas do coro, acompanhados pelo secretario,


que se desfaz em mesuras. D. Henrique sobe o es-
trado e assenta-se no throno, os officiaes circulam-
no, o principe senta-se num degrau aos seus ps.
As dansas e as musicas param.
Rei, gritando:
Secretario! Secretario! Vaqueiro da minha
perua (9), chaveiro do meu thesouro doirado!
Secretario:
Senhor! Senhor! Obedeo a sua (10) cha-
mado.
l*i

Coro, cantando:
Maracond, maracond!
E* de bombai! (tris)

Para a cantoria. O Secretario ajoelha-se aos


ps do rei, dizendo:
Cusangana (12), aqui esta sua secretario,
chaveiro de seu thesouro doirado.

Rei, dando urna piequena intonao de canto


voz:
Aben^am de zamuripunga
Que no co te ponha j,

Amul, amulequ, (13)


Amulequ, amul!

Alevanta, minha filiio,


.

Amul, amulequ,
Amulequ, amul,
Temos muito que faz!

Vae fazer umas gnitrias, (14)


Mas bem feitas, bem jazida
Que min/w corao, pique, p! (15)
Fique muito agradecida.

Secretario, levantando-se e dando um brado de


aarma:
Eh! mung!
Coro, respondendo em brados:
Eh! mungii!
22o
Secretario
Ai! ler, lerl
Coro:
Ai! ler, ler!

Quando o secretario se afasta do throno, sa-


racoteando, o rei berra de novo, esganiado:
Secretario! Secretario! vaqueiro das minhas
gallinhas, chaveiro do meu thesouro doirado!

Secretario :
Senhor! SenliorI Acudo a sua chamado.
Rei:
Secretario, tudo est prompto?
Secretario:
Prompto est!
Rei:
Rabeca, viola, pandeiro, marac?
Secretario
Rabeca, viola, pandeiro, marac!
Rei-f
Ento, pode comea.
Secretario, cantando e dansando:

Que tira, bambe!


Que tira, bambai
Que tira, que cimba!
Que eu quero ol!
Coro:
Quatro ps, quatro ps
De imbambai.
22\
Este p, este p
Me mandaram cori!
Secretario .

O' baio do guaiamiin, (16)


O' quixamb!
O' lel, lel!
O' quixamb!
Coro.
Quatro ps, quatro \s^?,

De imbam[)aic.
Este p, este p
Me mandaram vende.
Secretario
O' baio do aratu,
O' quixamb!
O' lel, lel!
Cy quixamb!
Coro.
Quatro ps, etc.

As danas e contradanas continuam.


As mu-
sicas prose^uem nas sua. variaes, de accrdo
com
ellas. E o secretario sempre
a tirar as cantigas, que
o coro responde. O rei e a corte
olham em silencio
aquelles divertimentos. De quando
a quando, o rei
boceja, enfastiado.

Secrct ano.

Senhor cadete
Da gola encarnada.

V
?9')

Coro.
No rxamore a moa
Que ella casada.
Secretario:
Senhor cadete
Da gola azul.
Coro:
No namore a moa
Que ella do sul.
Secretario:
Senhor cadete
Da gola branca.
Coro:
No namore a moa
Que ella de Frana.
Secretario.
Senhor cadete
Da gola preta.
Coro.
No namore a moa
Que ella sujeita. (17)

Secretario
Maria, teu pae no quer
Que eu converse com voc:
Sacuda-lhe areia nos olhos,
Que cego no pode vr . .

Coro.
Maria, parte o baralho, (bis)
Quem ama no tem trabalho (bis)
-- 223
Tr-tr-tr, tr-ri-ra! (bis)
O' Maria Camungr (bis) (18)
Secretario:

Maria, estende o leno,


Assentemos e conversemos,
Se houver uma m palavra,
(19)
Somos solteiros, casemos'
Coro:
Maria, parte o baralho, etc.
Secretario:

L na praia do pharol
Eu vi Maria assentada,
Esperando pelo fresco
Da serena madrugada.
Cro:
Maria, parte o baralho, etc.

Secretario:

Minha mulata bonita,


Diz-me de onde tu ,
Arari!
i Cro:
H| Sou filha de pae Man. bis)
^^ Secretario:
Minha mulata bonita,
Diz-me o que ha na funco,
(20)
Ararai!
Cro:
Sou filha de pae Joo. (bis)
224
Secretario :
Minha mulata bonila,
Quanto um camaro?
Ararai!
Coro:
Um camaro um tosto! (bis)

Secretario e coro:

Carta onde vem, tolina! (21)


de
Quem te fe/ que te notou, 6 tolina I

Foi uma prenda querida, tolina!


Que nasceu de nosso am, tolina!

Eu bem queria saber, tolina!


P'ra seguir o bom caminho, tolina!
Andando sobre as passadas, tolina!
Midas dum passarinho, tolina!

Queria ter uni amor, tolina!


Mesmo que seja um perigo, tolina!
Vou carregar uma mulata, tolina!
Para casar-se commigo, tolina!

Secretario

Tomba da(]ui, tomba dalli,

Tomba dacol!
Coro.
Nunca vi quem est tonto
Saber lyail!
225 -
Secretario:

Mariquinha,
Sinht-

Eu no sei bailai
Cro:
Mas porm (22) tique-tiqiie,
Tome l, d c!

Secretario:

Sinh Mariquinha,
No coma meu arroz!
Coro:
Este arroz, sinhsinha,
P de ns dois!

Secretario:

Tenho minha saia de cassa


Arrodeada de bico.
Coro:
Ava, pavo!
Deixa avoar! (23)
Secretario:

Ponha a laranja no cho,


Tico-tico, tico-tico!
Coro:
Ava, pavo! etc.

Secretario:

Quando meu bem for embora,


Eu no fico, eu no fico!
226
Coro:
Ava, pavo! etc.

Secretario:
O cannavial fraquinho.
Coro:
O' Macambira!
Secretario:
O cannavial pegou fogo!
Coro:
O' Macambira!
Secretario:
Grita, negro Salvador!
Coro:
O' Macambira!
Secretario:
Abro a boca, apago logo!
Coro:
O' Macambira: (24)

Secretario:
Catharina, minha negra,
Teu senhor quer te vender,
Para o Rio de Janeiro,
Para nunca mais te vr!
Coro:
O' lel, lel!

O^ lel, j me vou!
Secretario:
Santo Antnio bom santo,
227
Que livrou seu pae da morte,
Mas no livrou me Maria
Da ponta do caiabrote! (25)
Coro:
O' lel, lel! etc.
Secretario.
Chabariri est doente,
Est doente duma dor.
Chabariri s merece
Lapada de chiquerador! (26)
Coro:
O' lel, lel! etc.
Secretario:
Chabariri est doente,
Est de cabea amarrada,
Chabariri s merece
Uma poro de lapada.
Coro:
O' lel, lel! etc.

Secretario:
Que santo aquelle
Que anda acol?
E' So Benedicto
Que vac p'r'o alta!
Cro:
Meu So Benedicto,
Cabello de ouro!
Livrai-me, meu santo,
De terra de mouro!
228
Olhas para o co
E vs uma luz?
Avistas a cama
Do Senhor Jesus!
Coro.
Meu So Benedicto, etc.

Secretario:
Olhas para o co
E vs um andor?
Avistas a cama
De Nosso Senhor!
Coro:
'

Meu So Benedicto,
Cabello de vo,
Levai-me, meu santo,
Da terra p'r'o co!

Secretario
Se partes o coco,
Me d um pedao.
Espreme o leite,

Qut eu quero o bagao I (bis) (.27)

Coro.
Piriquiti!
Piriquiti!
O' quixob!
Secretario:
Certa mulatinha
Mandou-me chamar,


: :

229
Puxou a cadeira,
Mandou-me sentar!
Coro:
Piriquiti! etc.

Secretario:

Certa mulatinha
Mandou-me dizer
Que uma noite destas
Ella vinha me ver!
Coro:
Piriquiti! etc.

Secretario:

Minha jaca est ba.


Estba de comer.
Quem comer minha jaca
GamitQ (28) at morrer!
Cro:
Piriquiti! etc.

Secretario
Meu padrinho Santo Antnio
Me bote sua abeno. (29)
S peco que Deus me ajude
E bote a jaca no cho.
Cro
Piriquiti! etc.

Secretario:
Se a perpvl-a cheirasse,
Era a rainha das ioic^,

\
230
Mas como elia no cheira
E' rainha dos amores.
Coro:
Piriquiti! etc.

Secretario
Santa Catharina
Do cabello louro,
Eu no quero morar
Em terra de mouro!
Coro:
Ai! santinha! ai! lol (bis)
Minha gente venha vr
A massa do po de l (30)
Secretario:
Eu subi de pu acima,
Fui pegar um papagaio.
Minha Santa Catharina,
Me segure, seno caio!
Coro:
Ai! santinha! etc.
Secretario,
Eu desci do pu abaixo
Com risco de despencar.
Minha Santa Catharina,
Faz papagaio falar!
Coro:
Ai! santinha! etc.
Secretario.
Papagaio morreu,

I
231
Afogado no mar.
Papagaio morreu,
Sem saber falar!
Coro:
Ai! santinha! etc.
Secretario:
Papagaio morreu,
Afogado no m. (31)
Papagaio morreu,
Porque no dava o p!
:
Secretario.
Ningum pisa milho
Gomo pisa ella!
Pisa todo o dia,
No pisa uma panellal...
Secretario.
Peneirou! peneirou! (bis)
Peneirao milho (bis)
Negro trovado! (bis)
Secretario.
Ningum pisa milho
Como me Antonlia!
Pisa todo o dia,
No pisa uma pamonha!.
Coro:
Peneirou! peneirou! etc.
Secretario.
Ninguefn pisa milho
Como o pae Joo!
2;;: _
Pisa todo o dia,
No pisa um po!... (32)
Coro:
Peneirou! peneirou! etc.

Secretario e coro, alternando as vozes, numa


dansa tremelicada e horrivelmente lenta, trisando as
coplas:
AAinha me. tem couve?
Couve tem
Mas no p'ra panella
De ningum!

A creoula na feira...

Tambm, tem.
Mas s p^ra quem leva
Seu vintm
:

Secretario .

O beijinho de amor
Faz chorar,
Soluar!
Coro:
Faz chorar!
Faz chorar!
Faz soluar!
Secretario
A despedida do amor
Faz chorar,
2.^3

Coro:
Faz chorar! etc.

Coro:
O' lel, lel!

O' pretinho de Guin!


Secretario:
Esta vae para louvar
O enene-coronf
Coro:
O' lel, lel!
O' pretinho de Loanda!
Secretario.
Esta vae para louvar
Seu capito Miranda! (33)

Ha um rumor de passos, de vozes e de ar-


mas numa das extremidades do terreiro. Danas,
cantos e musicas param. O coro abre alas. O rei

grita:

Secretario! Secretario! v que barulho esse


em minha porto, que barulho esse no fundo de
minha quintal!?
O Secretario corre e, defrontando o Embaixador
entre seus officiaes, de espadago, capacete e man-
to rubro ondeante, pergunta:
Senhor, eu venho ver quem o atrevido
que tem o mau costume de levantar o reposteiro
234

para vr o que se passa na corte? Venho safcer


o que quereis? (34)
O Embaixador repiica:
Senhor, sou o embaixador que traz a
eu
embaixada da rainha Ginga para D. Henrique, rei
Cariongo.
O rei indaga:
Secretario! E' homem baixo ou alto?
Secretario, em meio canto:
E^ homem de muito ba,
De muito ba estatura,
Traz uma lana na mo
E a espada na cintura!
Rei, ao principe Sueno:
Vae, meu filho e diz a elle

Que entre do reino adentro.


Entre com grande cautela.
Se quizer de paz paz!
Se quizer de guerra guerra!
Aqui dentro do meu reino
Tenho gente como terra! (35)

Principe e secretario, cruzando as espadas com


as do Embaixador e seu squito, recuando e avan-
ando, alternadamente, dois, trs passos:

Entra, rebelde, entra!


Com o rei tu vaes falar.

No entres com arrogncia,


Se tu pretendes voltar!
235
Embaixador:
Licena, nobres vssailos,
A marquez,
este nobre
Que j chegou no imprio
De vosso adorado reis. (36)

Dm-me licena, senhores!


Que eu quero subir ao throno,
Para dar minha embaixada
A Henrique rei Cariongo!

O prncipe e o secretario embainham as armas


e afastam-se. Os dansarinos estendem-se em alas.
O Embaixador e os seus companheiros passam por
entre ellas, marchando magestosamente, a cantar,
voltando-se ora para a direita, ora para a esquerda.

Embaixador:
Eu por este reino adentro
Entro com grande valor,
Sem temer de D. Henrique
Nem dos ministros o pavor!

Estas medalhas que possuo


Eu ganhei-as em Bingullos. (37)
Eu venci toda a mourama
E tomei trinta castellos!

Prncipe^ secretario e coro:


Entra e sobe, embaixador,
Vae falar Magestade.
236
Entra e sobe, vae ao throno,
Vae dar -a tua embaixada.
Se fizeres qualquer insulto,
Has de ser assassinado! (38)

Secretario ao rei, referindo-se ao embaixador:

Pelas divisas que traz


Nos seuL-; trajes de Inglaterra,
Bem parece embaixador
Que vem ameaar guerra!

Embaixador:
Senhor, eu no sou guerreiro,
Nem da guerra trago instrucao.
Sou um iliustre cavalheiro.
Representante da nao!

Senhor, eu no sou guerreiro,


Nem da Vascu^iha ou da Prsia,
Sou embaixador ao Haiti,
Onde a guerra nunca crssa! (39)

D. Henrique, rei Cariongo,


Filho de gentis guins,
Mandou-me o meu monarcha
Ajoelhar-me a teus ps!

O embaixador, que se ajoelhara, pe-se de pc


e, avanando com imponncia, d a sua empolada
e desaforada embaixada ao rei, que, todo tremulo,
237
ridiculamente se encolhe sobre seu throno, fazendo
tregeitos cmicos.

Embaixador:
Henrique, rei Cariongo, magno Henrique,
forte rei, manda dizer-te minha monarchia que, se
no retirares as tuas tropas e no baixares as tuas
armas deante da sua bandeira de trs estrellas, no
ficars ix)r muito tempo sentado no throno!
D. Henrique esboa um gesto vago de respos-
ta. O embaixador avana, ferozmente, para elle. O
apontam as pon-
prncipe, o secretario e os officiaes
tas das espadas ao peito do embaixador e de seus
companheiros, cantando:

Preso e morto, embaixador,


Este cruel assassino I

Veio matar rei meu senhor,


Que mandou rainha Oino! (40)

Prncipe:

Presos esto,
Bravos gu erreK
Entreguem as armas.
Esto prisioneiros I

Coro.
Presos esto, etc.

Prncipe:
Quem te mandou
Vir combater?
233
Agora, infeliz,

Tens de morrer!
Coro:
Quem te mandou, etc.

Embaixador , suppiicante:

Senhor rei, no me mateiSj


No me mateis por piedade.
Tambm sou filho de rei,

Tambm tenho magestad!

Sou filho do rei Catroqueis,


Afilhado da Virgem Maria,
Almirante da Loanda, (41)
Embaixador da Turquia!

O Embaixador e seus companheiros ficam ajoe-


lhados, de cabea baixa. O secretario canta:

Iliustre rei, meus senhores


Louvaes as minhas alvicas, (42)
Pois esto prisioneiros
Os grandes chefes Loandias! (43)
Prncipe:

Ouam, queridos vassailos


O que diz a iWagnifca: (44)
Os brabos se derribam
<K

Os mansos em socego ficais*

Pode-se tomar por exemplo


Este homem de grande posto,
239
Com o fim de grande traidor,
Acabando por seu gosto!

Chorem e solucem as saudades,


As saudades que se vo!
As lagrimas de tua rainha
Faro cortar corao!
Rei:
Tens visto, embaixador
Em que estado deu a guerra.
Teus soldados todos mortos
E tu cahido na terra!

Tu todo banhado em sangue,


Que te vale teu dinheiro?
A morte para ti vem,
Priso p^r^a os teus companheiro!

Levanta-te, embaixador
E dize-me tu quem s.

Quem o teu monarcha


Que te mandou aos meus ps?
Embaixador com arrogncia, embora ameaado:
,

Meu monarcha grande rei.

Meus filhos so gigantes de figura.


Cada golpe que elles do
Leva um sepultura!

Meu monarcha grande rei


Com elle no se vae jal.
240
E' rei de iManabim
imperador de Camind. (45)

O prncipe pede ao rei que perdoe o embai-


xador e o mande embora, buscar seu exercito para
um combate leal. O coro implora tambm o per- 1
do real, cantando:

Henrique, rei Cariongo,


Senhor de toda a Bragana,
Patro da Chrislandade,
'
Esteio da segurana,
Vs sois senhor dos senhores
Amigo fiel da Frana!

O embaixador parte. Sae, orgulhosamente, can-


tando:
Esta espada em minha mo
E' fogo, raio e corisco!
Quem avana minha frente
Corre perigos e risco!

Delle fao um desgraado


Como tenho feito a muito.
Quem minha espada beija
Vira logo num defunto!

O prncipe responde-lhe s bravatas com ou-


tras :

Embaixador, no temas
Que tua arrogncia e orgulho
!

241
Faam cahir nossas armas
Quando houver o barulho!

Meu pae tem trs nobres filh{)s


Para honrar o som do clarim.
Vamos ao campo da morte!
No partirs sem. mim

O embaixador continua a caminhar para ir em-


bora, cantando:

Sou no esmoreo,
forte,
Guerreiro forte, afamado!
O forte so teme a Deus
E no pode temer mais nada!

No me julguem sem conhecer,


Como guerreiros vos chamais,
O que eu fiz na moirama,
O que eu fiz a D. Thomaz! (-16)

Juro pela f de Deus,


No mostrarei covardia.
Bem sabes que p'r^o combate
Tenho boa pontaria!

Eu j entrei em Londres, (4l)


Valeroso campeo,
E pretendo levar em ferros
O chefe desta nao!
242
Antes de deixar o terreiro, o embaixador vol-
ta-se para o principe; e ameaa-o:

Mais tarde virei,

Principe tyranno,
S para dar-te
O desengano!

O embaixador desapparece. O principe ergue a

mo para o rei e canta:

Imperador, dai-me ordens


Que me vou anetirar!
Morra esse embaixador
Que a embaixada veio dar!
Coro:
Morra esse embaixador, etc.

Secretario :

0\ quem fr guerreiro,
Venha com.bater,
Que esse embaixador

J nos quer vencer!


Coro:
Que esse embaixador, etc.

As duas filas de dansarinos armam-se de ter-

ados e reunem-se num grande peloto. Um official

traz a bandeira real. O principe e o secretario


la-

deiam-n*o e passeiam dum lado para o outro, os


que m.arca passo, a cantar.
trs, deante da tropa,
:

243
Prncipe:

Papae, eu vou guerra,


Juraram de me matar!
Prncipe e coro:

Ou morrer ou vencer! (bis)


Ou a bandeira tomar!
'
Prncipe:
Papae, eu vou guerra,
Vou arriscar a vida!

Prncipe e coro:

Ou morrer ou vencer! (bis)


Ou a vida por perdida!
Prncipe:

Papae, eu vou guerra,


O inimigo combater!
Prncipe e coro

Ou vencer ou morrer! (bis)


Ou morrer ou vencer!
Secretario . fazendo os dansarinos e soldados evo-
luirem militarmente:

Tenho dois milhes de ouro


Para comer na batalha.
J vi o signal de guerra
Que se iou na muralha!
Coro:
Quando a columna embarcou,
Mulher, menino chorou!
244
Secretario:

Senhora dona da casa,


Mande pagar meu dinheiro.
Para eu comer na guerra,
Se ficar prisioneiro!
Coro.
Quando a columna, etc.

Secretario:

Choram as mes por seus filhos


E as mulheres pelos maridos.
Chora a irm pelo irmo
E as damas por seus queridos!
Coro
Quando a columna, etc.

O embaixador volta frente do seu exercito,


com estrpito, tirando uma cantoria marcial.

Embaixador: _
Retirem-se, rebeldes I

Deixem columna passar!


a

Para Henrique Cariongo


Do seu throno derrubar!

Coro de soldados do embaixador:


Avante! Avante!
Guerra! Guerra!
Alerta! Alerta!
Gu.erra! Guerra!
245
Embaixador:
Henrique, rei Cariongo,
Falso e sem magestade,
Foste \\\ que duvidaste
Da minha sinceridade!
Coro de soldados:
Avante! etc.

Embaixador:
Quando de casa sahi,
Foi-me bem recommendado
Pegasse o rei Cariongo,
Levando-o preso e amarrado!
Coro de soldados:
Avante! etc.

Errtbaixador:

Hoje ser o dia


Da batalha e da victoria!
Uns ho de morrer com benara
E outros viver para a gloria!
Coro de soldaaos:
Avante! etc.

As tropas do principe avanam para as do em-


baixador e ambas cantam as mesmas quadras, uni-
sonamente, ao brbaro som duma marcha cadenciada,
que os instrumentos da orchestra primitiva attacam
com vigor:

Toca! tocai avana! avana!

[
240
So horas de combater,
So horas, ningum descana,
Vamos vencer ou morrer!

Seu tenente general,


No me venha insultar.
Com tropas do meu monarcha
No tenho medo de brigar!

Eu bem no queria ser


Soldado de infantaria,
Para no me vr mettido
Agora nesta agonia!

Fui paisano, sentei praa


E depois eu fui sargento,
'De sargento fui alferes
E j hoje sou tenente!

Pelejar at ganhar
Com minha arma segura.
Pegar os inimigos
E levar sepultura!

Coragem, meus soldados,


Que ns vamos combater!
Quando entrar na luta,
E^ vencer ou morrer!

Coragem, meus soldados,


Que ns vamos guerrear!
247 .

Quando entrar na luta,


E' morrer ou matar!

Pega n'arma, meu soldado!


Pega n'arma e leva ao peito.
Quando entrar na luta,
Faz pontaria com geito!

As duas foras chocam-se, os terados se^ en-


cruzam,os grandes mantos vermelhos ondam^ as
espadas retinem e toda aquelia multido canta,' so-
turnamente:
Fogo e mais fogo!
Morra quem morrer!

Esta batalha
Ns ha de vencer!

Fogo e mais fogo!


Vamos combater!

Esta batalha
Ns ha de vencer!

Fogo e mais fogo!


Vamos pelejar!

Esta batalha
Ns ha de ganhar!

A luta renhida e prolongada. O exercito de


248
D. Henrique perde a batalha. Dispersa-se, derrota-
do. O embaixador aprisiona o principe e vem com
elle entre guardas at o throno do rei, que est
acabrunhado, soluante.

Prncipe:

Entregou diadema
A's mn i u vencedor.
Perdeu > , e a batalha!
O povo rni^ 'v- de dr!
4

O embaixador quer obrigar o principe a ajoe-


Ihar-se e beijar a sua bandeira. Elle recusa. O em-
baixador condemna-o morte. O principe canta, des-
pedindo-se:
Adeus, meu lindo pae!
Adeus ! Adeus

O coro repete, toda a vez que elle nomeia de


quem se despede, o estribilho:

Adeus! Adeus!
Principe:
Adeus, meu secretario!
Adeus! Adeus!

Do mesmo modo diz adeus aos officiaes, aos


soldados e, por fim, ao povo todo . Depois, vol-
tando-se para o pae, canta, tristemente:

Adeus, meu pae querido,


Que r.unca mais hei de vri
: !

249
Carrasco, suspende o golpe!
Para sempre, vou morrer!

D. Henrique Cariongo ergue-se do throiio, desce


os degraus do estrado, pe a mo sobre o hombro
do embaixador e procura subornal-o, para salvar-
se e salvar o filho:

Vinde c, embaixador!
Vem commigo ao meu thesouro.
Dou-te )rata e diamantes,
Dou-te dois milhes de ouro!

Indignado, o embaixador afasta-se e retruca com


voz estentorea

O general de meu monarcha


No se vende por dinheiro!
Segue, segue para Loanda,
Vaes morrer prisioneiro!

O principe continua a cantar o seu lgubre


adeus! adeus! acompanhado por um novo coro la-

mentoso:

Ai, gurum! ai, gurum!


Ai, gurum! ai, guer!
Geng Geng !

Oi, moambiqu! (48)

O carrasco d o golpe com a sua espada so-


bre o principe. O rei ce desmaiado. O principe
250
estende-se morto, rigido, no cho. Ento, o secre-
tario canta:

Papae, cubra o pao de luto,


Que dor. eu sinto no corao!
EUe foi morto na batalha!
Mataram m.eu bello irmo!

Choremos, lindos vassalos,


A morte de meu irmo!
Elle foi morto na guerra,
No tiveram compaixo!

O principe foi attrahido


E morto sem piedade,
Pelo infame embaixador
A quem demos liberdade!

Vae terminar o auto. O embaixador form.a seus


soldados em columnas cerradas, entre as quaes pren-
de o rei, e parte sua frente, cantando victoria,
acompanhado em coro por todos os presentes:

Parabns, nobres guerreiros,


Pela victoria alcanada!
Foi preso o rei Cariongo,
E toda a ilha foi tomada!
251
Noas ao Auto dos Congos

1. ('riiicipe Sue no. 's vezes, os negros can-


tadores tambm o chamam Prncipe Sereno.
2. Antes de dansarem num logar determinado,
em terreno murado ou cercado, os Congos anda-
vam dando as suas representaes pelas ruas, pa-
rando porta das casas das pessoas que os cha-
mavam e lhes davam esprtulas. Primeiramente, iam
egreja do Rosrio rezar, pois Nossa Senhora do
Rosrio era a padroeira dos negros. E' a esse cos-
tume que os versos se referem.
3. coi/eoio de noio. Parece que ahi o poeta
()

brbaro que compoz os congos pretendeu referir-


se reunio cias personagens principaes da nao
negra naquelle iocal, que representa a corte. No
se dizia na edade media o collegio dos nobres, para
significar a reunio dos principaes da nobreza? No
se chama ainda lioje. ria Ejrt'ja, a reunio dos car-
deaes o Sacro Collegio?
4. A policia nas cidades e villas do Nordeste
concede licenas pagas, sem as quaes os divertimen-
tos ponulares da ordem dos Congos no se podem
realisar. E' a isso que o Secretario allude.
5. Ainda reminiscncia de quando os Congos
vagavam pelas ruas disposio de quem os cha-
mava e lhes pagava para dansarem. V. a nota 2.
6. Parece que o divertimento primitivo era todo
ou quasi todo em lingua africana. Com o tempo se
foi transformando, ficando-lhe somente certos estre-
252
bilhos e uma ou outra quadra, cuja significao nin-
gum mais conhece.
7. Dans. Esta a prosdia comm.um do povo
em todas as palavras que terminam por ar. Para
evitar confuses e esclarecer bem todos os pontos
escreveremos, sempre que a rima fr 'de ar com ,

as palavras em ar com o simples a accentuado,


como neste caso.
8. V. a nota 6.

Q. Vaqueiro da minha perua. O papel do rei

dos Gongos ao mesmo tempo gaiato e serio, um


tanto trgico e um tanto cmico. Dahi sempre se
escolher para elle um negro espirituoso.

10. Os figurantes geralmente affectam certos


erros de linguagem, como esse, por exemplo, afim
de lembrar os seus antepassados, os da Outra Ban-
da, filhos da Africa, que falavam mal a nossa lingua
e que foram os primeiros a representarem os Gongos.
11. V. a nota 6.

12. Idem.
13. Idem.
14. Ginlirias. De ginitriar, fazer passos curio-

sos. Gertamente de ginetear.


15. Minha corao: v. nota 10. Pique, p! O
rei, dizendo isto, faz um gesto coin a mo, mos-
trando que o corao lhe est pulando no peito
1 6. Nestes versos o secretario fala dos dois
crustceos guaiamam e aratu, e os dansarinos imi-
tam nn dansa o seu modo de andar na areia das
praias.
253
17. At 1858, no exercito brasileiro, os regi-
mentos de fusileiros, especialmente, no se distin-
guiam por niimeos na gola e sim pela cor desta:
havia-as azies, amarellas, pretas, encarnadas. Os ca-
detes,nesse tempo, eram os filhos de officiaes que
serviam na trona e usavam a gola da cor do
regi-
mento em que haviam sentado praa. Esta cantiga
, portanto, at lun documento sobre os costumes
militares da poca.
18. Murif! Cfinurgr. Certamente o noine du-
ma escrava afaniada por esta ou por aquella razo.
UJ. Sc iOiiVLf- uma m palavra, isto , se fa-
larem mal.
20: Fuiico: festa.
2i.Este estribilho iolina, que nada quer di-
zer talvez fosse originariamente 6 to linda!
22. No falar das gentes do Nordeste muito
commun: a repetio mas porem,
23.odo o povo gosta de accrescentar sons
i

onde pode. No ha ningum no Nordeste que no


prefira dizer avoar, ava a voar, voa. E' at figura
de gramm atia.
2-1. Nome comrnum dos negros das fazendas.
\}m negro qualquer muito conhecido como a Alaria
Cam.iing.i,
25. Da ponta .do acoite. Lembrana da escra-
vido.
26. A mesma lembrana.
21. Ha no decorrer da representao dos Gon-
gos varias alluses aos trabalhos domsticos e cam-
254

pestres dos negros na fazenda antiga. Ahi est o


preparar do chamado leite de coco para os petiscos
da cosinha. Adeante se ver a colheita dos fructos
com a historia da jaca. Depois, a confeco de qui-
tutes ainda, na cantiga da massa do po de l; o
procurar dos papagaios novos para educar e sua
educao; o plantio das hortalias, na da couve cm.-
E, por fim, o prprio pisar do milho, em que os
negros roceiros com geito e manh.a sabiam descan-
sar o corpo ...

28. Qumiiu: vomita.


29. A pronuncia . longa, no por necessidade
potica, porem por habito local.

30. V. nota 27.


31. Idem.
32. Idem.
33. 7odo o cantador popular louva, elogia em
verso os psesentes, afim de receber gratificaes.
Os Gongos no escapam regra geral. Desde que o
secretario aviste enre os assistentes uma pessoa de
certa ordem, faz o seu louvor e, depois, lhe atira

o em cuja ponta o louvado amarra unia


leno,
moeda ou uma cdula, restituindo-o.
34. Reproduzo com a maior exactido, de ac-
cordo com notas locaes minhas e de pessoas serias
que tm assistido aos Gongos, todas as palavras
dos seus personagens. O que no fao guarda r-
Ihes a prosdia.
35. As rimas populares no so rigorosas: elle,

para o povo, rima com cautela como caitela rima


255
com guerra. A palavra terra empregada no sentido
de areia.
. 36. Reis. F/ como o povo diz. S mantive
a graphia accorde com a prosdia popular ahi, por
causa da rima.
37. Com toda a certeza Benguela.
38. V. a nota 35.
39. Idem.
40. Essa rainha de que falam os Gongos ora
chamada Ginga, ora Gingo, ora Ginia e ora Gino,
41. A^s vezes, o negro que faz de embaixador
transforma Loanda em Allemanha ou em Londres,
o que comprehensivel, pois que ouve falar nes-
tes dois nomes geographicos diariamente, os quaes
na pronuncia popular se prestam confuso com
o primeiro, e esqueceram este, que era to somente
conhecido de seus pes e de seus avs, que de l

tinham vindo.
42. Alviaras.
43. Loandistas.
44. E^ assim que a gente rude do Nordeste
pronuncia o nome da celebre orao Magnificat.
45. Logares d'Africa, cuja memoria se perdeu
com morte dos negros da Outra Banda.
a
Alluso a qualquer lenda de cavallaria, das
46.
muitas que, como a dos doze pares de Frana,^ cor-
rem por entre o povo do Nordeste.
47. V. a nota 41.
48. Nestes versos a reminiscncia da linguagem
africana c completa.
AUTO DO ''BUMBA MEU BOI!"

PERSONAGENS HUMANOS:
Capito ou Cavallo- Marinho.
Vaqueiro.
Matheus, negro escravo.
Sebastio, caboclo escravo. (1)
Valento ou Capito de mato.
Man-Gostoso ou feiticeiro.

Galante, menino, filho do Capito.


Arrelequinho, idem. (2)
Pastorinha, menina, irm do Capito.
Fazendeiro rico.

Zabelinha, personagem muda, garupa do Ca-


pito, representada por uma boneca.
Catharina ou Catita, negra escrava.
Doutor-cirurgio.
Padre-capello.
Sacristo.
Advogado.
Sinh'Anninha, uma negra bbeda.
Duas (lamas. (3)
Fiscal municipal.
(^inco ndios emplumados^
I
25 7
Trs caiporas.
Z do Abysmo, o Privilegio.

PERSONAGENS ANIMAES:
O Boi-suruby.
As emas.
O urubu.

(Coro de cantadeiras, sentadas a um banco, Or-


chestra geralmente composta duma clarineta, duma
viola, dum violo, duma sanfojia, dum zabumba e
dum pandeiro.)

A no terreiro duma fazenda ou


scena decorre
duma povoao do interior, no qual param
casa de
as pessoas que passam. Todos os personagens ficam
escondidos por trazduma empannada^ grande biom-
bo de algodosinho estendido em varas, e s appa-
recem quando chega a sua vez, recolhendo-se logo
que terminam o seu papei. As cantadeiras iniciam
a funco, cantando ssinlias, em coro. Deante delias
os dois escravos, Malheus edansam um
Sebastio,
bahiano repinicado. Os outros figurantes vm che-
gando a pouco e pouco. (4).

Coro
Toca bem esta viola
No bahiano cremcd,
Que o AAathcus e o Pasiio
So dois cabras dansad.
^ 258 -^

No passo da jurity,
No passo do roxin,
Se Bastio dansa bem,
O Matheus dansa mia.

O tocador de viola
Tem os oihos muito esperto.
O som da sua viola
Parece com o cu aberto.

A musica muda de toada. O coro canta outra


cano com estribilho:

Coro:
Tome seu chapu barraca,
Que quasi um barraco.
Estasmocinhas de agora
S querem usar balo.
Estribilho:

Ai! ai! meus canrios verdes!


Ai! ai! meus curi! (5)
Ai: ai! quem de mirn tem pena!
Ai! ai! quem de rnini tem d!
Tenho pena da roliiiha, (6)
Que anda ralando s! (7)
Tenho pena, ai! ai! ai!

Pena que me faz d!

Minha me, vi os balCes


Das mocinhas do Ic,

I
259
Quem no tem balo de ferro
Bota balo de cip.

Ai! ai! meus canrios, etc.

Minha me, vi os bales


Das moas do Carjry.
Arreda, mame, arreda!
Deixa meu balo subi!

Ai! ai! meus canrios, etc.

Minha nie, vi os bair>es


Das moLas do Cear
Arreda, mame, arreda!
Deixa meu balo pass~K' (8)

Chega o Valento. Vem dansando, aos pinotes.


A cadencia da musica pouco e pouco augmen-
vae
tando. E elle sapateia to velQzmente que quasi se
no vm as suas pernas. Traz um amplo chapu de
palha de carnahuba, um cordo de bentinhos e amu-
letos ao pescoo, a longa faca parnahyba no cintu-
ro, o cabo da garrucha apparecendo no cs, o ba-
camarte ao hombro.

Valento:
'

Amigos, vamos a ella.


Antes que ella venha a ns,
Vamos vr o cabra que corre (9)
E o cabrito que arremes! (10)
260
Coro.
Ai! ai! meus canrios, etc,

Xalento:
Sou valento afamado,
Todo o mundo pode vr,

Qualquer barulho que topo


Logo me ponho a correr!
Coro:
Ai! ai! meus canrios, etc.

\alento:
Atireino limo verde,
L na torre de Belm,
Deu no ouro e deu na prata,
Deu no peito de meii bem! (11)
Coro:
Ai! ai! meus canrios, etc.

\alei\iao:

Vou-me embora, vou-me embora,


Como digo sempre vou;
Se eu fosse forro no ia,

Como sou captivo vou!

Coro:
Ai! ai! meus canrios, etc.

As duas damas vm pelo terreiro, espionando


seus namorados e falando que vo missa. De quan-
do em quando, fazem uns passos ligeiros de dansa.
. .

261
Primeira dama:
De onde vindes, mana?-*

Segunda dama:
Eu venho da missa.
As duas:
Vamos-nos einhora,
Que l vem a justia ! . . .

Primeira dama:
Se a justia vem,
EUa ira embora,
Porque eu sou a dama
Do Juiz de Fora . .

Segunda dama:
"

Se a justia vem,
Perde seu valor,
Porque eu sou a dama
Do seu ouvidor . .

As duas:
Mana, vamos por aqui
Pelo quartel encostada,
Que eu estou vendo o amante
Que me traz inquizi liada!

O ouvidor e o juiz
Andam bem doentes . . .

E ns somos damas
E)os seus escreventes ... (12)
262
Surge Sinh^Anninha (13;, a negra bbeda, com
cuja vidaningum pode e que vive a dar escndalos.

SinhWnniniia canta, acompanhada pelo coro:

Sinh'Anninha v embora,
No venha me abodegar,
Quando for para outra sala
Voc tem de apanhar!

Senhora dona do gado,


Sua candeia na mo,
, Seu cabello aguaribado,
Chiquinha veste o balo!

Sinh^Anninha bebe fumo


No seu cachimbo de prata,
As fumaas que ella bota
So suspiros que me mata!

Senhora dona do gado, etc.

Sinh^Anninha, negra velha,


Do cabello de fumaa.
Te peneira (14), minha negra,
Que pV'o povo achar graa.

Senhora dona do gado, etc.

O Matheus e o Sebastio esto de calas de


brim grosso, camisa de algodo, chapu de couro,.

I
:

263
vara de ferro em punho e uiiia bexiga de boi,
cheia de vento, na mo, com a qual aoitam todos
aquelles que surgem no terreiro, depois que acabam
a sua cantiga. A Sinh''Anninha se, corrida a pan-
cadas, Vae entrar o Cavallo-Marinho ou Capito.
E' um mestio alto, de chapu armado com plu-
mas, casaco de enfeites dourados, montado num ca-
vallo de pu, com saiote comprido, que envolve as
pernas do individuo. Sobre a garupa traz uma bo-
neca de panno, a Zabelinha, sua filha. Seguem-n'o,
ladeando-o, dois meninotes de roupas berrantes: Ga-
lante e Arrelequinho.

Cavallo-Marinho :

O sol entra pela porta


E a lua pela janella,
Vim atraz duma resposta,
No saio daqui sem ella.

Coro:
Cavallo-Marinho
Vem se apresentar,
A pedir licena
Para dansar.
Cavallo-Marinho:
Appareo, meu amor,
Agora com novo alento.
Deixo de estar escondido
Ao ronco deste instrumento.
Coro
Cavallo-Marinho
264
Dansa bem bahiano,
Bem parece ser
l'm pernambucano!

Ctvallo-Mannlw:

O' meu pae, minha me!


<3

Trago a chave do thesouro


*
E venho negociar
Em i-rata, fazenda e ouro.

Coro.
Cavallo-Marinho
Vae para a escola
Aprender a lr
E a tocar viola.
Ca\fallu-MariiiIio.

Chuva que tem. de chuver


Nos ares vem peneirando: (15)
O amor que tem de ser meu
De longe \em se chegando.
Coro.
Cavallo-Marinho
Dans^. no terreiro,
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.

Cavallo-Morinho:
O' lua que alumias
Este mundo de meu Deus,
Alumia a mim tambm,
Que ando perdido dos meus!
: :

~ 265
Coro:
Cavallo-Marinho
Dansa na calada,
Que o dono da casa
Tem gallinha assada.
Ca vallo-Marinh o
Senhor dono da casa,
Varra bem o seu terreiro,
Para o meu boi dansar
Mais o seu vaqueiro.
Coro:
Cavallo-Marinho
Por tua merc,
Manda vir o boi
Para o povo vr.

O Cavallo-Marinho avana para o banco das


cantadeiras numa dansa ainda mais repinicada, bra-
dando:
Matheus, Sebastio, Cjalante e Arrelequinho,
acompanhem meus passos.

Cantam:
Cavallo-Marinho:
Vou-me embora, vou -me embora!
Coro
Balaio meul
Cavallo-Marinho:
Para minha terra vou.
266
Coro :
Balaio meu!
Co vallo-Aiarin h o
Que eu aqui no sou querido . .

Coro:
Balaio meu!
Cav alio- Marinho:
E na minha terra eu sou!
Coro
Balaio meu!
Cav ali O' Marinho:
Na estrada passo eu.
Cro:
Balaio meu!
Cav alio- Marinho
Louvado seja Deus!
Cro
Balaio meu!

O Cavallo-Marinho vae mandar chamar o Va-


queiro e o Boi, quando apparece o feiticeiro Man
Gostoso, com o seu uru cheio de hervas, cascavis
de cobra, e sabugos de milho ao pescoo, pulando
e cantando:

Man Gostoso,
Perna de pu,
Elle dansa, elle toca
No seu birimbu!

i
267
Coro.
lodo rio caudaloso (16)
Vae fazer barra no mar,
J te dei meu corao,
Para que me vens falara

Ai! ai! ai! sinhsinha


Sapato de vidro
Quem dansa mazurka
Diverte com migo!
An Gostoso:

Eu sou o Man
Que mora na lata.
Que casado
E tem a mulata!..
Coro.
Todc/ o rir), etc.

Man Gostoso, como Sinh'Anninha, foge de-


baixo das bexigadas dos dois escravos. Dirigindo-
se, ento, Zabelinhs, o coro canta duas vezes
esta cpia:

Zabelinha come po,


Que daremos, Zabelo.
Cachaporra (17) p'ra seu amo
Que um grande \illo!... (18)

A pastorinha, toda de branco, de chapu flori-


268
do, de cajado, apparece no extremo do
e terreiro,

cantando dolentemente:
Deste monte vou sahindo,
A' procura domeu gado,
Qut: deixei, la nas campinas,
Enterrado e afogado!

Sapateiro novo,
Fazei-me um sapato
Da sola bem fina,

Para eu dansar com o salto!

Todos que me ouvem


Me devem um vintm.
Eu sou pastorinha
Danso muito bem!
Cava/lo-Marin/io:
Deus te salve, Rosa,
Em vosso estado!

Pastorinha:
Deus te salve, c maninho.
Em vosso ca vai lo!
Cavallo-Marinho:
Deus te salve. Rosa,

Lindro serafin ho! (19)

Pastorinha:
Deus te salve, maninho,
Em vosso caminho!
:

269
Ca vallo-Marin ho
O' gentil menina,
Pastoreando o gado!

Pastorinha:

Eu nasci, maninho,
Para esse fado!

Ca vallo-Marin ho:
Por essa montanha
Corres grande perigo.
Uize, pastora, maninha,
Se queres vir commigo?
Pastorinha:

O senhor v embora,
Saia-sc daqui,
Que vim vr meu gado, (> maninho!
Que aqui perdi!

O Cavallo-Marinho da nova ordem para


que se
chame o Vaqucin,>, afim deste trazer o
Boi; porem
novos visitantes apparecem, impedindo
o inicio da
vaqueijada. So um grupo de cinco
ndios emphi-
mados e armados de arcos e flechas,
seguidos de
trs meninos com uma
urupcma cabea, cober-
tos de lenes brancos,
que nada dizem e dansam
assobiando. So os caiporas, que acompanham os
caboclos, Nindos, talvez, duma maloca visinha, dos
quaes o Matheus o Sebastio tm
e um horror pro-
270
fundo, fazendo tregeitos cmicos e dizendo grao-
las a propsito. Os ndios cantam:

Somos caboclos guerreiros


Que viemos guerrear,
Com nossas iechas na mo,
Nossos arcos de alongar!

Coro de todos os presentes, entremeado de as-

sobios dos caiporas:

Xl x! x! girimanha!
Somos caboclos da ilha Romanha.
ndios:
Somos caboclos guerreiros
De l da Vrzea do Cisco,
Que fazemos toda guerra
Para frechar pae Francisco.
Coro :

X! x! etc.

ndios:
Cantando e chorando
Por essa montanha,
Procuramos pae Francisco,
Nariz de pamonha.
Coro:
X! x! etc. ^
ndios:
Cantando e chorando
Por essa biboca,
Procuramos pae Fraiicisco,
Nariz de taboca.

d
271
Coro:
X! x! etc.

ndios.
Cantando e chorando
Por essa campina,
Procuramos pae Francisco
t" me Catharina.
Cro:
Xl x! etc.

ndios.
Caboclo, rei dos bichos,
Natural de Culumin,
Caboclo no vae missa.
Porque no tem borzeguim,
Cro:
X! xi etc.

ndios.
Caboclo, rei dos bichos,
Jsatural do Quixel,
Caboclo no vae missa,
Porque no tem palet.
Cro:
X! x! etc.

ndios.
Caboclo, rei dos bichos,
Natural de Carrapato,
Caboclo no vae missa,
Porque no usa sapato.
Cro.
X! x! etc.
~ 272
I
ndios:
O',mus caboclos guerreiros,
Eu quero bem te dizer,
Se tu fores para a guerra,
E^ morrer ou vencer!
Coro:
X! x! etc.

Caceteado com os indios, o Cavallo-Marinho faz


uni signal e, logo, os dois escravos avanam para
elles, mettem-lhes as bexigas e pem-n'os fora, s
carreiras. Ento, as emas do serto, feitas de cip
e palhas, com grandes pescoos elsticos e bico de
pau, fazem, a sua entrada, correndo os espectadores
que se approxiniam dos figurantes a bicaradas. Os
homens, que esto debaixo delias, movem os seus pes-
coos com rapidez assombrosa e as bicaradas so
to fortes que, s vezes, as victimas delias se zan-
gam e provocam conflictos. O coro canta, meio so-
turnamente:
Olha o passo da ema,
Peneiro !

L do meu serto,
Peneiro !

Todo o pssaro voa,


F-^eneiro !

S a ema no!
Peneiro !

Vou-me emb<j>ra, vou-me embora


Peneiro l
273
L para o meu serto,
Peneiro !

'iodo o pssaro va,


Peneiro !

S a ema no!
Peneiro !

Corridas as emas, como o trani os outros vi-

sitantes, o Cavallo-Marinho manda chamar o va-


queiro. Este chega, vestido de couro, montado num
cavallo semelhante ao do Cavallo-Marinho. Entra,
dansando e cantando com o coro:
Vaqueiro, chapu de couro,
Barbicaixo de corra,
Quantas carreiras deu hoje?
Quantos bois botou na peia?

No me corte os pendes da couve.


No me tore (20) os pendes do alho,
Voc diz que couve couve,
Couve , cebola e alho!

Vaqueiro chapu de palha,


Barbicaixo de cordo.
Quantas carreiras deu hoje?
Quantos bois botou no cho?

No me corte os pendr-cs, ctc.

O vaqueiro aboia (21) lon^arneiite. Entra, la-

deado pelo Matheus e o Sebastio, o Boi-Surubv,


274
que vem dansar para o povo vr. E' feito duma
grande canastra leve, de cip, coberta de panno pin-
talgado, com uma cabea de boi e chifres. Debaixo,
ha um homem agii e forte, que finge todos os mo-
vimentos do animal. O coro canta:

Vem, meu boi lavrado,


Vem fazer bravura,
Vem dansar bonito.
Vem fazer mesura!

Vem dansar, meu boi.


Aqui neste terreiro,
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.

O Vaqueiro dirige a dansa do boi, dando-lhe


ordens:
Alio, meu boi!
Cro:
Eh! bumba 1

Vaqueiro:
Dansa de frente!
Cro.
Eh! bumba!
Vaqueiro:
Eaz uma mesura!
Cro
Eh! bumba!
Vaqueiro
Espalha essa gente!

I
:

275
Coro
Eh! bumba!

P O boi faz ameaa de carregar sobre os cir-


umstantes. Todo o mundo corre. O vaqueiro e o
oro continuam:

^



Meu

Meu
boi
Eh! bumba!
laranjo!

boi bargado!
Eh! bumba!
D volta e meia!
Eh! bumba!
Fica socegado!
Eh! bumba!
Do mesmo modo, o boi dansa, levanta-se, deita-
, torna-se a levantar e, por fim, comea, sempre
)ediente, a dar marradas em quem o vaqueiro
ianda:
D de fingimento! (22)
Eh! iumba!
No teu vaqueiro!
Eh! bumba!
D no Matheus!
Eh! bumba!
E
no seu companheiro!
.
Eh! bumba!
Toda a vez que o Suruby avna para dar
chi-
das em algum, o vaqueiro
previne, cantando:
Matheus, olha o boi!
Eh! bumba!
276
Emquantoo boi vae fazendo as suas brincadti
ras, a negra Catharina, uma
preta rebelde, terrvel

surge, dansando, com iim cacete de juc na mo

O coro rccebe-a:

Catharina, meu amo


Mandou-te chama,
L na bananeira,
L no banana.

Catharina, minha negra,


Teu senhor quer te vender,
Para o Rio de Janeiro,
Para nunca mais te vr.

vaqueiro tem a ida infeliz de fazer o


b(
O
correr sobre a megera. Ella levanta o cacete, me
te-lhe na cabea, derruba-o e
foge. Ha uma des(

ko. Todo o profundamente a ma


mundo sente

vadez feita quelle boi -to bem ensinado.


E toman
se as medidas
todas necessrias ao caso. O Cap
to manda chamar o medico, para vr se pode cun
o boi: o padre, para confessal-o, e o capito c
mato, para prender a negra fugida.

O Cavallo-Marinho, chicoteando os escravos:

O meu boi est p'ra morrer,

O' Matheus v j chamar


C) doutor para o curar,
O padre para o benzer'.
.

277
Chame o capito do matto,
Que d todas providcuu
Para trazer essa negra
A' minha nobre presena!

Emquanto os escravos procuram as pessoas in-


licadas, o Z do Abysmo ou Privilegio, um boneco
c magro, com a cabecinha pequenina perdida
Im do longo pescoo, passeia para l e para
, mudamente, agitando os braos, puxados por um
ordel pelo sujeito que est escondido dentro delle.
) coro canta, referindo-se a elle:

Senhor PrcveLegio
Ek)s caraces,
Tu s s ferreiro
-ara fazer anzes!... (23)

I Entra o padre, com um ramalhete de flores,


\ mo, dansando, de batina arregaada, acompa-
lado pelo sacristo, que no esconde o seu es-
anto.

adre:
Quem me ver assim dansando
No julgue que fiquei louco.
No sou padre, no sou nada,
Secular sou como os outros .

Coro.
O' gentes, que quer dizer
Um padre nesta funco?
278
E^ signal de casamento
Ou d^alguma confisso?

Padre, entregando com desprezo o seu ram<


4e flores ao sacristo:

Romaite de fuL
Isto l para o sacristo.
Quem tiver moa bonita
E' pV^o padre capello . .. (24)
Coro
O' gentes, que quer dizer, etc.

O valento, o mesmo do principio do auto, ver


se apresentar, cantando:

Sou filho do Carne-Morta,


Homem que nunca brigou,
Meu pae morreu de postemas
Das pancadas que levou.
Coro
Eu te amarro, ladro!
Eu te atiro, negro!
Eu te acabo, co!

Vnlento:
Um valento afamado
Como eu no pode haver:
Qualquer susto que me fazem
Logo me ponho a correr . .

Coro:
Eu te amarro, etc.
- 279
O capito do niato corre para o seu servio
e o coro anniincia o medico:

Sentinelaj brada as armas!


Que la vem nosso doui.
Com seu chapu na cabea,
Quebrando de palet! (25)

O medico vem discutindo com o Matheus:

Medico:
O' negro, teu desaforo
J chegou aonde foi.
Quando fores me chamar
' p^ra gente e no pVa boi!
Matheus:
Ai! u! seu doui!
Seu doui ^ ai! u!
Um troquinho mido
Tu vaes receber ...

O medico s depois de muito instado se resolve


a receitar o boi cabido. Receita uma ajuda (26).
E' quando todos os meninos que assistem fara
fogem e se escondem. O Matheus e o Sebastio cor-
rem, procurando agarrar um delles para servir de
<v ajudai). Quando porventura conseguem segurar um,
mettem-n'o debaixo da armao do boi e o sujeito
que est l dentro puxa-Ihe as orelhas, d-lhe
umas
palmadas, de modo que, alem de passar pelo ridi-
culo de servir de .ajuda, a crcana ainda ma-

I
280
chuada. Dahi o horror dos meninos. Os dois es-
cravos, ao s approximarem do boi para lhe dar a
; ajuda , param surprezos. A negra Catharina ou
Catita vem, trazendo amarrado o valento.

Catharina.

No nada, no nada
Que mal ao cor-^rof
,i"a ;a

Trago preso e amarrado


Este br abo capito.
Coro.
Senhor capito do mato,
Veja que o mundo virou.
Foi ao matto pegar negra
E a negra o amarrou! (27)

Devido ao effeito da ajuda , o boi levanta-se.


Mal d os primeiros passos, a preta furiosa corre
novamente sobre elle e abate-o com mais furiosas
cacetadas. Morto o boi desta vez, a Pastorinha e o
Capito cantam um dueto sentido:

Cavallo-.\]ariuho:

O meu boi morreu.


Que ser de mi?

Pasi or infla:

Manda- buscar outro, maninho.


L no Piauhv!

I
281
Cavallo-Marinho:
O meu boi morreu.
Que ser de ns?
Pasiornha:
Manda buscar outro, maninho,
L no Piancs!

Um rapaz coberto coin uma capa preta acerca-se


do cadver do boi. E' o urubu. Os escravos vo
afugental-o, quando surge o fiscal, gritando:
Eu sou o fiscal geral da Gamara Munici-
pal! Que carnia essa na praa publica?

Mathcus:
E' o boi Suruby do senhor capito Beio-
Mole, que a negra Catita matou.

fiscal:
Retirem j essa carnia dahi!

Os obedecem, mas o fiscal obriga-os a


dois
varrer que est suja e fedendo. A musica
rua,
attaca uma melopa plangente. Os dois cantam:
Seu
fiscal,

No me prenda,
Que eu bano! (28)
Fiscal:
bkirtc a rua, negro!
Bane a rua!

Esta cantilena prosegue at que o Capito cha-


282

ma o fiscal, passa-lhe uma gorgea s escondidas


e manda-o embora. Apparece um fazendeiro. Sob o
pretexto de que o boi morreu nas terras do mes-
mo, o Capito quer que elle o pague. O fazendeiro,
apezar de ricao, recusa-se ao pagamento. A uma
ordem do amo, os dois escravos seguram-n'o e met-
tem-lhe as bexigas, cantando:

Vocc paga ou no paga.


Senhor fazendeiro?

Fazendeiro:

Eu pago o boi,
Pago o vaqueiro
E

Coro.
: :

283
Coro
Bate nellc
Ai! que gosto!
Na cacunda
Do camello!

Vem
o advogado, mandado buscar para
derimir
a contenda entre o fazendeiro e o capito.
Canta,
dansando deante do banco das iradeiras.

Avogado:
Ouvi os seus instrumentos,
Gostei de ouvil-os tocar,
E lembrei-me de meu pae
Que fora fez-wr estudar!
Capito:
Tenho commigo uma questo
Que me traz atropellado,
Esta questo se procede
Duma roa e dum gado.
Advogado:
Responda ao que lhe pergunto
E no me fique calado:
O gado comeu a roa
Ou a roa comeu o gado?
Capito
Nenj o gado
comeu a roa.
Nem acomeu o gado.
roa
Mandei chamar o doutor,
f^orquc es(/j airaj^alhado!
284
Advogado:
Responda ao que lhe pergunto
E no me fique calado:
Se a roa comeu o gado.
Voc est condemnado! . . .

Capito :
O gado comeu a roa,
Que a roa no come gado.

Mandei chamar o doutor,


Porque estou atrapalhado!
Advogado:
Responda ao que lhe pergunto
E no me fique calado:
Se o gado comeu a roa.
Tambm, est condemnado!...
Capito:
D-me ento um conselho
Que estou atrapalhado.
Um conselho que me livre

De ser assim condemnado.


Advogadv:
Vou lhe dar um bom conselho,
Conselho bem acertado.
Mas se napalma da mo
Depositar-me um cruzado! (29)

A um signa! do Cavallo-Mariiho, os dois es-


cravos surram com as bexigas o advogado, que foge
285

debaixo de vaia. Man Gostoso, acompanhado da


Catharina volta pondo o Arrelequinho
scena e,

com os braos nc; pi-scoo e a cabea no hombro


do Matheus, e as pernas nos hombros do Sebastio,
constre o tear da fazenda. O Galante, entre os
dois escravos, faz de lanadeira. Ao som dos ins-
trumentos, os escravob. dansam e o Galanle roda en-
tre elles, emquanto a Caiharina e o Man Gostoso
acompanham o r/iovimento do tear, cantando:

Da Bahia me mandaram,
O' tear de aroeira:
Olha a negra Catharina,
Que est na lanadeira!

Coro.
Cy tear! O' tear!
O' tear de aroeira!

Man (josioso Caih anua:

Da Bahia me mandaram,
(.)' tear de junqueira!
Venham vr a (^.atharina
No voltar da lanadeira.
Caro:
CV tear! O' tear!
CV tear de junqueira!

](UU Gostoso e ilciarina:

D;> B^i.hia nij mandaram,


O' tear de gamelleira!
o
28
Olha a negra Catharina
Como puxa a lanadeira!
Cro:
O' tear! O' tear!
O' tear de gamelleira!

O Privilegio alinha todos os figurantes. Depois,


fal-os formar uma roda deane do banco das can-
toras, que os vo chamando e apresentando aos ap-
plausos do publico, um a um.

Cantoras:
Bravo do Cavailo-Marinho,
Lol!

Cro de todos os presentes:"


Bravo do passo delle,
Meus curi
Cantoras.
D um passo e saia tora,
Lol!
Cro.
Bravo de quem dansou,
Meus curi!
Cantoras:
Bravo da roda-grande,
Lol!
Cro.
Bravo de quem dansou,
Meus curi! (30)

(Estes versos todos so repetidos para cada um


287
dos personagens, desde o Cavallo-Marinho
ao Uru
b. E, assim, termina o auto do
Boi Suruby).

Notas ao Auto do ^^ Bumba meu boi!"


1. Matheus e Scbasiio. So os dois escravos
do Capito: um negro, o Matheus,
esperto, velhaco
engraado, repentista, pilhrico, cheio de iniciativa!
outro, o caboclo, Sebastio em alguns
Jogares, Gre-
grio noutros e Fidelis noutros, tolo
a mais no ser,
guiando-se pelo que diz o companheiro
e no tendo'
outra vontade seno a delle.
Ahi transparece mais
uma vez a eterna satyra matuta contra os
ndios e
seus descendentes, que se furtavam
ao trabalho.
2. No Boi primitivo no havia nem o Arrele-
quinho (Arlequim), nem o Galante,
personagens sem
niiportancia, enxertados sem razo
de ser. Remini-
scncia o primeiro do Arlecchino
dos velhos autos
italianos.
3. Dama na linguagem do Nordeste syno-
nimo de mundanaria ou meretriz: mui-dama,
diz o
povo.
4.Os personagens nuiica chegam ou saem
sem
dansar. Os dois escravos dansam continuamente
A
musica muda de ton; a cada bahiano
novo que elles
iniciam e a cada
personagem novo que surge.
5. Curi, pequeno pssaro do bico
grosso, dor-
so negro e papo cr de ferrugem,
muito cantador
que em certas regies se est tornando raro
288
6. J ouvi muitas tiradeiras de Boi cantarem
roUnhxi e muitas outras rxinha. Pelo verbo do verso
seguinte parece-me que primeira forma a ver-
dadeira.

7. Ralando. Com toda a certeza corruptela


de anulando. _
8. E' interessante essa critica feita moda
celebre dos bales ou paners e serve para mostrar
mais ou menos em que poca foram compostos es-
ses versos.

Q. Ha ahi um como trocadilho. Cabra se diz


no Nordeste do mestio de indio E cabra
e negro.
ahi tambm se refere* ao anin.al desse nome, que cor-
re ao menor motivo.
10. Anemoes: reme.
11.E' de pura origem portugueza, lisboeta mes-
mo, esta quadra. Veio de \<\ para o Nordeste.
1 2. E' maravilhosa a critica desse pequeno due-
to. As damas, como pertencem aos potentados da
logar, o Juiz de Fora e o Ouvidor, que eram, nos
tempos coloniaes, verdadeiros aiftocratas, no temem
policia ou. justia. Ao mesmo tempo, como esses
magistrados devem ser idosos, ellas divertem-se com
os escreventes . . . Velha historia . . .

13. SinC Anninha: o nome da negra bbeda


bem empregado; Sinh'Anninha chama-se no Nor-
deste, a caxaea.
14. Peneirar tem varias significaes. Ahi est
como rebolar-se todo na dansa.
- 289
15. Outra accepo do verbo peneirar: chuvendo
muito comparao com o que passa pela peneira.
fino,
16. Geralmente as cantadeiras dizem: Todo
rio escandeloso Isto mostra como difficil obter
. . .

a verdadeira forma das cantigas primitivas, no meio


das deturpaes de quasi trs sculos.
17. Cicliapoira: era um cacete antigo, muito
usado, grande, de cabea exaggerada, com o qual
os officiaes de justia applicavam S(3vas.

1 . Lindro serafinho: lindo seraphim!


20. Tre: de torar , cortar, aparar.
21. Aboiar: se diz no serto de chamar o gado
com. uns gritos demorados, sonoros e tristes.

22. O vaqueiro esperto: nelle manda dar de


fingimento. A sat3Ta da arraia-miuda no perde en-
sejo.
23. Perdeu-se a memoria da pessoa ou do fa-
cto de que essa figura ridcula era a critica ferina.
Ella continua a fazer parte do auto do Boi, mas
os que o organisam, annualmente, no a sabem ex-
plicar. No Cear, denominam-n'a Privilegio, Z do
Abysmo ou, com licena da m palavra, Caga-p'ra-
<.

ti. Na Parahyba, o seu nome Margarida.


2 Todos os versos a
1. respeito do Padre tra-
duzem uma critica mordaz sua vida e aos seus
hbitos. O do Nordeste est todo cheio
folk-lore

de criticas e peores. Henry Koster, que


semelhantes
viajou de Pernambuco ao Cear, no comeo do s-
culo XIX, observou, j nesse recuado tempo, que
os sertanejos nordestinos discutiam o mrito dos
290
padres, conheciam os seus defeitos e os ridicuiari-
savam. (V. Henry Koster, Voyages au Brsil , to-
.<

mo I, pagina 2b7).
25. Quebrando de palet. No interior do Nor-
outrora mais do que hoje, s se
andava de
deste,
calas e camisa, de camisa e ceroulas, quasi
mesmo
das cerou-
sempre a camisa por fora das calas e
las/ At havia o habito de se pr um
soldado de

policia entrada das cidades, o


qual obrigava os

matutos, antes de penetrarem nas mesmas, a enfia-


dentro das calas
rem as camisas ou times por
documentado em
ou das ceroulas. Esse costume est
emboladas dos co-
versos populares do littoral nas
cos de embigada:

Matuto besta.
Bota a camisa p'ra dentro,
Bota o olho no sargento
Da guarda-municipal . .

fraldas da
Chamava-se ao acto de guardar as
camisa -
passar o pantio e, ao entrarem
roceiros
a ordem do ron-
nos povoados, era commum ouvir-se
dante:
Passe o panno, cabra!
que vem que-
Dahi a importncia do doutor,
brando de palet . .

26. Ajuda: clyster.


aos valentes e capites do
mat-
97 A critica
ferina quanto
to pegadores de negros fujidos, to.
fiscaes e os mdicos.
o motejo sobre os padres, os
28. Barro: varro.
291
29. Esta satyra ainda mais bem feita e mais
mordaz que todas as outras.
30. As cantadeiras geralmente dizem .Meus ca-
rinho/ ou, ento, Iscarl Nem uma nem outra coisa
tm razo de ser. Parece que o estribilho deve ser
mesmo meus curis, pois que esse nome de ps-
saro do logai j um como leit-motif de vrios
coros.
Gano de Janeira

Janeiro vae,
janeiro vem,
Feliz daquelle
A quem Deus quer bem

Janeiro vem,
Janeiro vae,
Feliz daquelle
Que tem seu pae!

Janeiro vem,
Janeiro foi
Feliz daquelle
Que tem seu boi!

Janeiro foi,

Janeiro era.
Feliz daquelle
Que tem sua terra!

Janeiro ia,

Janeiro vinha,
293 -.

Feliz daquelle
Que tem gallinha!

Janeiro vinha,
Janeiro ia,

Deus nos proteja


E a Virgem Maria!

294
RESUMO DO CYCLO DO NATAL:

1 Auto do Rei dos Mouros


2 Auto dos Fandangos
3 Auto das Pastorinhas
4 Auto da Caridade
5 Auto da Porfia das Flores
6 Auto dos Pags
7 Auto dos Gongos
8 Auto do Bumba meu Boi
9 . Baile da Lavadeira
10 Chegana dos Marujos
11 Chegana dos Mouros
12 Chegana dos Cucumbys
13 Chegana do Maracat
14 Reisado da Borboleta e do Picapo
15 Reisado do Cavallo-Marinho
16 Reisado do Antnio Geraldo
17 Reisado do Jos do Valle
18 Versos das Tayras
10 Loas de Natal e de Reis
20 Cantigas, entre as quaes as canes de Ja-
neira.

NOTA Eir. Uo estr livropublicamos peas (i<


s
colleccionadas POJ outro:
ifolk-loro inditas. A- aue e^to j
folk-ioristas constam unicar.-.enie dos
resumos das cltssificae
fazer no Brasil.
em cyclos, que, parece, somos os primeiros a
^)

o CYaO DOS VAQUEIROS

o Cyclo dos Vaqueiros

Todo o serto de Nordeste, alis todo o inte-


rior do Brasil, est cheio de canes que perpetuam
desta ou daquella forma os factos principaes da
spera vida dos criadores de gado e especialmente
daquelles que tm por habito e profisso cuidar e

pastorear as manadas e os rebanhos. Ora, os factos


principaes alludidos so, em primeiro logar, a de-
vastao que fazem nas crias das guas, das vaccas,
das ovelhas ou das cabras as feras da regio, as
onas pintadas ou jaguares, maarocas ou sussua-
ranas.
No c de que os povos pastoris guar-
hojt
dam essas tradies.Poderiamos atraz de suas fon-
tes irmos buscal-as no javali feroz do Erymantho,
que Hercules destruio, ou naquelle outro javali ter-
rvel da Lydia, matador de pequenas rezes e de ho-

mens, do qual nos fala Herdoto. Entre todas as


gentes que se occupam da pecuria, os animaes fe-
rozes locaes so cantados em versosrememorativos
de suas proezas devastadoras. Por toda a Europa
correm as fabulas, as lendas, as bailadas e outras
poesias acerca dos lobos que attacam os rebanhos
298
e os mesmos pastores. Puymaigre recolheu algumas
do Paiz Messino c da Frana. Simon Lassourse deu-
nos uma, tambm franceza, em que se encontra esta
quadra:

Un jour le loup sortant du bois,


Avec sa guele ouverte.
De la plus belle du troupeau
La belle fii la perte. />

Marcoaldi encontrou verses idnticas em di-

versas partes da
Itlia. algumas va-
Ferraro achou
riantesno mesmo paiz. Wolf apanhou outra variante
em Veneza. F Bujeaud foi apanhal-a no oeste francez.
O serto, no tendo lobos nem javalis a per-
petuar, perpetua a memoria ensanguentada das on-

as vorazes.

Em segundo ogar, na relao dos factos a que


nos referimos, vem a pega no matto dos harbatcs,
touros que nasceram na catinga e alli se crearam,
sem jamais terem vindo ao curral, outros que fugi-
ram para logares bravios, mesmo outros tangidos
para a selva, afim de se tornarem ferozes, pelos
prprios fazendeiros, para que se tenha um bicho
celebre atraz do qual andem os vaqueiros ou de
que falem os troveiros da ribeira. Os mais velha-
cos, mais fortes, rnais valentes, mais difficeis de
pegar desses animaes logo so cantados em longas
xcaras, nas quaes se exaggeram suas proezas e se
299
aproveita a occasiu para motejar da maioria dos
que os perseguiram.
O terceiro facto digno de registro na tradio
oral rimada, que a memoria collectiva do serto
guarda carinhosamente, a vaqueijada, a reunio de
toda a vaqueirama duma regio para a aparto
dos gados reunidos da redondeza, durante a qual
ha festas e se praticam as proezas de equitao e
de pega do gado cominuns no serto.
Dessa origem commum, gyrando em torno da
vida dos vaqueiros se tem desenvolvido um verda-
deiro cyclo de caiies, cujo resumo damos no fim
deste capitulo e do qual publicamos as melhores
cousas do que at hoje est inteiramente indito.

A ONA DO SITIA
Eu sou a celebre ona,
Maaroca destemida,
Que mais poldrinhos comeu.
Apesar de perseguida!
Achando-me perto da morte,
Vou contar a minha vida.

No foi em manh de flores,


Que vim ao Mundo, isso no!
Nasci em noite de horrores.
Ao pipocar do trovo . . .

Minha me urrou com dores,


E ouviu-se em todo o Serto.
300
No tempo em que eu era moa,
S pegava algum bodinho
Pr^a variar, um poldrete;
De vez em quando, um burrinho.
E. quando me achava farta.
Ia dormir de mansinho.

O Tito por mim passou


Muita noite mal dormida,
Muitas vezes me esperou,
Onde fiz m.inha comida;
Algumas me vaqueijou,
Sem eu ser vacca parida . .

Z Machado blasonava
Que vida eu s gosaria,
Em quanto lhe no comesse
Um poldro de sua cria.

Por birra, comi-lhe dois


Se mais tivesse, eu comia!

Um tal de Chico Duarte


Deu-me um tiro traio.
Apontou-me no vasio,
Mas ferio-me no colcho.
Dessa com
vez fiquei vida,
S porque tremeu-lhe a mo.

Perto da casa do Vspo,


Carneei qu'era um brinquedo!
301
Elle nunca abrio a poria
E digo aqui, em segredo:
Ou era por muito somno,
Ou era por muito medo.

Passeiando no Pez,
la bem distrahida,
eu
Quando cahi na gaiola,
Que para mim tora erguida.
L deixei a minha unha,

^orem escapei com vida.

Estava eu comendo um poldro


Da < Lagoa X
( ) no cercado;
'

O velho Mane Caetano,


Deu commigo e, de assustado,
Soltou um grito medonho:
Foi um grito estrangulado!...

O major Francisco Antnio


Tem imi burro que judeu.
Para delendej- o lote,
amanho couce me deu,
Que me arrancou uma preza.
Vejam la se no doeu!...

Acho-me velha, doente,


Com o pc todo aleijado;

(*) Faz da des: . nonic n municp,'.. de


Cear.
: .

Quixeramobim
302
Falta-me um olho e um dente;
O quarto desconjuntado . . .

Sem orelha, me arrastando


Num andar escambimbado. (*)

Aos doze de Fevereiro,


Dia de Segunda-feira,
Conheci que era chegada
Minha hora derradeira.
Quando ouvi a tropeada
De quem vinha na carreira.

Doente e de pana cheia,


Fui bem depressa alcanada
Pelo feroz Seriema
E por elie vaqueijada! (*")

Botou-m.e pr'o taboleiro,


Jogou-me muita pedrada.

Hei de morrer de facada,


Minha si.-a cumprirei.

J tenho idade avanada,


Ba vida desfructei;
Sobe a mais de nove contos
O prejuiso que eu dei!

Do lado que eu no via.

Seriema me furava;

(*) Escambimba'io
es^andalhacir.
(**) Vaqueijada - perseguida, anj^ida.
. .

303
O Destemido mordia (*)

Do lado que eu coxeava.


Mata-me Joo Seriema ! . .

Se pudesse, eu te matava!

Adeus, rneu Flix Roberto,


Meu Mariano e Raymundo.
Ai! quantas saudades levo
Do belio Riacho Fundo!
Meu mulato Raphael
Triste c a sorte do mundo!.

A vista me vae fugindo;


Meu peito est arquejando;
A anci que estou sentindo
Vae o alento me tirando.
Janjo, o inferno lindo . .

L estarei te esperando!

A ONA DO CRUXATU (**)

Sou ona sussuarana,


Filha da ona pintada.
Sou neta da maaroca,
Trouxe sina de engeitada.
Nasci no Curral do Meio,
Onde fiz minha morada.

(*) Destemido nome de ciio de caa.


(**) CrUKQtL, azencia no immicipio de Qiiixerainobini, Cear.
304
Cresci, comendo cabritos,

E, por no achal-os mais,


Desatei minha redinha,
Mudei-me p'r'o Cosmo Paes,
Onde fiz a minha furna
Entre suspiros e ais.

No Cosmo Paes como bodes,


Na Lama e no Muricy,
Cruxat, Curral do Meio,
Angicos e Cangaty.
Quando tomo algum espanto.
Vou matar no Pirangy.

Quando vou ao Bom Jesus,


Mato as cabras do Pompeu.
E o marinlieiro Lulu, (*)
Que para ona judeu,

Ja tem morto algumas outras,


Porem quem come sou eu.

Victorino, por malvado,


E tambm por ser bregeiro.
Amarra um bode no matto
E me espera um mez inteiro.
Mas, quando o leva pVa casa.

Vou tiral-odo xiqueiro!

(*) Marinh>.':r(\ porta ji-ez.


- 305
Esse tal de Victorino,
Fazendo de mim desdm,
Rebolou-me uma foice, ()
Signal de no querer bem
Fiquei olhando p'ra elle,
Balanando meu sedem! (**)

Z Pimenta, irmo delle,


E' homem de laboro; (**')
Mas eu como suas cabras,
Coma elle seu feijo.
Essa pirraa lhe fao,
S por ter aquelle irmo.

Dizem que a velha Thomazia


Anda agarrada ao rosrio,
P'ra que eu no coma seus bodes,
Nem do seu neto Macrio;
Porem, quando tenho fome,
Nem reza de bom vigrio!

Xico Caetano e Tonho,


Vendo que eu estava acuada, ^'"^'-'*)

J pensavam em me uiatar
Com arma desmantelada.
Quando eu os fui avistando,
Grande foi minha risada!

(*) Rebolou-me atirou-iiie.


(**) Sedem canta.
(** Liiboro grande trabalho.
(****) Aeuada, cercada pelos ces
306
Senhor Miranda esperou-me (*)
Com espingarda de soldado,
Estava com elle o Guilherme,
Menino Tonho dum lado.
Capito, deixe-se disso!

Deus lhe d outro cuidado.

Meu coronel, v embora.


Com pVa cidade.
seus queijos
Eu s comi seus bodinhos
Por soffrer necessidade.
No me persiga por isso.
Deixe-me por caridade!

Seu vaqueiro anda dizendo,


Por teruma alm.a damnada,
Que, mesmo depois de morta.
Me dar muita facada.
A raiva que elle me tem
Me serve de caoada.

O Matheus e o Rodrigo,
Por terem morto um gatinho,
Espalharam que era eu.
Porem era um meu sobrinho,
Que, por falta de experincia,
Morreu como um passarinho.

Velho Miguel e seus filhos

(*) Coronel Antnio Leal de Miranda, proprietrio da fa-


zenda' Cruxati
- 307 ^
No gostam nada de miiij.
Barros, Florncio e Narciso
Desejam dar-me fim,
S porque eu como carne,
No me susleno ern capim

Diz que muito valente


O velho Man Pereira,
Que segaba de ter morto
Muita ona verdadeira.
V matar as suas emas,
Que velho no tem carreira!

Vou vivendo bem nutrida.


Sem ter medo de careta.
Ando sempre bem disposta.
Commigo ningum se metta.
No tenho medo de chumbo
Nem das pragas do Marreta.

Felistribina Faco,
Ando solta no serto,
De bode cheia a barriga,
Aos donos fazendo figa,
Como porco com fartura,
Chumbo ou faca no me fura!

No tenho roupa, ando nua.


Me sustento em carne crua.
A benam, meu amo, emfim!
Engorde bodes p'ra mim...
- 308
A ONA MAAROCA (*)

(rRAG^EXTO)

Eu sou a celebre ona,


Maaroca destemida.
Mais de quinhentos poldrinhos
Eu sangrei por esta vidai
Se no isto a verdade,
Tenho a memoria perdida.

m
O BOI MOLEQUE
( FRAGMENTO)
Na fazenda da Ea-Agua,
No termo do Quixad,
Na catinga do Espinheiro
Nas aguas do Seti,
Havia um boi afamado
Que no podiam pegar.

Uma vacca Piauhy


Por nome ellax Corao )\

Deu cria deste bezerro


O qual ficou barbato, (**)
Nunca 'viu relho ao pescoo,
Nem porteira nem mouro.

(*) Na meincria collectiva do ferto parece qne desta x-


cara s resta este inicio. ; 3 o ^

(*) Barbato bravio, creado no matto, que nunca esteve


no curral e nunca foi marcado com o signal da'fazenda.
309
Nasceu em noventa e quatro
Este cujo mocam beiro,
Que no sahia bebida
Nem fora no taboleiro,
S com medo do Justino,
Que foi seu senhor primeiro.

O Justino cncomme!idava
A quem alli campeasse,
Se visse o garrote preto
Que o no esperdiasse, (*)
Lhe fizesse o beneficio (**)

E, depois, ento soltasse.

At ficar boi de anno


S amocambado, (**^=)
vivia
No sahia do taboleiro
Nem mesmo com outro gado,
S procurava bebida,
Sendo da sede obrigado.

Apresentou-se o Cazuzinha

P'ra pegar o mocambeiro,

(*) Esperdiasse
deixasse perder-se.
(**) Beneficio
Castrar e ferrar com a marca do fazendeiro.
(***) Amocambado
escondido.
(****) No foi possvel obter algumas estrophes que faltam
entre esta e a seguinte.
310
E na casa do Justino
Disse ainda no terreiro:
O nome de seus vaqueiros.
Por favor diga primeiro. 4

Esto Jos Thom,


Um velhote espertalho.
Aquelle, Antnio Cambraia;
Aquelle Hermoge Giro. (*)

Qualquer um delles trs

E^ corda de barbato!

No outro dia, bem cedo.


Toca vaqueiro a chegar:
Chegou Jos Seraphim
Com dois filhos p'ra ajudar,
Chegou mais Luiz Ferreira
Que era o fama do lugar.

E Hermoge disse, ento:


Na vrzea da Gitirana,
Se a verdade no me mente
E o espirito no me engana,
O boi levantou-se agora
Da sombra duma umburana.

E logo sem dizer nada


Pegou pernas ao Picao < ^>,

(*) Hermoge HeriTiogene<.


(*=^) desforo costume,
311
Sahiu quebrando mofumbo
Na forma de seu desfaro, (**)

Abrindo forquilha em banda,


Deixando tudo em bagao.

O resto da vaqueirada
Sai acamando o cip,
Derriando o marmeleiro
E faxiando morr,
Quebrando po pelo meio
E da rama tirando o n.
(*)

O restante desta historia


No foi possvel tirar,
Porque muito vaqueiro velho
Depois de se enrascar,
Se empenharam com o poeta
P'ra elle no continuar.

o BOI MYSTERIOSO
( FRAGMENTO )

**)

O coronel disse a elle:

Eu fico penalisado.
No digo que se demore,

(*) Faltam aqui outras estrophct-.


(**) No foi possvel obter o comeo desse poema de origem
sertaneja, embora um tanto mais culto, que nasceu das historias
de bois bravos.
312
Porque seu pai tem cuidado.
Veja se volta em janeiro,
Que me acha preparado.

Ento, o Srgio sahiu,


No poude se demorar.
O coronel Sizenando
No deixou mais de pensar,
-Porque forma aquelle boi
Ningum podia pegar.

Chamou o escravo e disse:


Monte n'um cavallo e v
A' fazenda do Desterro,
Diga ao vaqueiro de l,

Que eu mando dizer a elle

Que sem falta venha ca.

O escravo cumpriu logo


O dever de portador,
Achou a casa fechada,
Perguntou a um morador
Se sabia do vaqueiro,
Elle disse: No Senhor.

Ento, o morador disse:


Na noite de sexta-feira,
O ndio foi ao curral,

Deixou aberta a porteira,

Sahio montado a cavallo


E levou a companheira.
313
Voltou o escravo e disse
Tudo que tinha sabido,
Que na sexta-feira, noite,
C) ndio tinha sahido
E carregou a mulher
Como quem se escondido.

Inda Vci mais esta agora!


O coronel exclamou.
Aquelle bruto sahio
E nem me communicou,
Que diabo teve elle
Que ate o gado soltou?

No outro dia foi l,

Achou a casa fechada.


Ento a porta de frente
Tinha ficado cerrada,
At a mala da roupa
Inda estava destrancada.

O fazendeiro com isso


Ficou rnuio constrangido.
Pensava logo em um crime.
Que podesse ter havido
O ndio no tinha causa
Porque sahisse escondido.

Ento, mandou gente atraz


Pelo mundo o procurar.
No achou uma pessoa
314
Que dissesse: eu \i passar.

Em todo serto que havia,

Elle mandou indagar.

Ento, o povo dizia


Que o ndio era feiticeiro
E uma fada pediu-lhe
Que no fosse mais vaqueiro.
A fada transformou elle

Em um veado gaiheiro. (*)

Os faladores diziam
Que elle foi assassinado
E talvez o coronel
Tivesse mesmo mandado
Matar elle e a mulher,
Para ficar com o gado.

Outros diziam o contrario,


At juravam que no.
Os dois cavalos do indio
Aonde botaram, ento?
Mesmo assim o coronel
No fazia aquella aco.

Bem encostada ao indio, C^*)


Uma velha fiandeira

(*)O sertanejo distingue duas espcies de veados : o ga-


iheiro e o garap ou capoeiro, sem chiffres.
(**) Isto , encostada casa ou morada do ndio.
315
Morava numa casinha
E fiava a noite inteira.
Disse que quasi se assombra
Alli, numa sexta-feira.

Disse: - meia noite justo,


Eu inda estava fiando,
Em casa do Eemvenuto
Ouvi gente falando.
Espiei por um buraco,
Vi chegar um boi urrando!

A velha disse: Deus mande


A cascavel me morder,
Se de l de minha casa
No ouvi o boi dizer:
Boa noite, Benvenuto!
Eu s venho aqui te ver.

O boi disse outras palavras,


Que eu de l no pude ouvir.
O caboclo e a mulher
Disso ficaram a sorrir.
O boi, o ndio, e a mulher,
Todos trs eu vi saliir.

Ahi fui guardar o fuso


E a cesta do algodo,
Credo em cruz! dizia eu,
Aquillo arte do co,
316
So cousas de fim de mundo,
Bem diz frei Sebastio!

O coronel a principio
Inda no acreditou,
Porem, depois, reflectindo
Uma aco que o indio obrou;
Quando rastejavam o boi
O indio no foi, voltou,

E, ento, desse dia em deante


O boi ningum mais o viu,

No houve mais quem soubesse


Aonde elle se sumiu.
Foi igualmente a fumaa (*)

Que pelos ares subiu.

Como o indio e a mulher,


Tudo desappareceu.
Tanto que diziam muitos
Que o diabo os escondeu.
Durante deseseis annos
Novas delles ningum deu.

Srgio, o vaqueiro de fora,


Todos os mezes escrevia.
Perguntando ao coronel
Se o boi ainda existia,

(*) Igualmente assim como.


317
Dizendo, quando quizer,
Me escreva, marcando o dia.

Faziam dezeyeis annos


Que o boi estava sumido.
Ate por muitas pessoas
Elle j estava esquecido.
Quasi todos j pensavam
Que elle tivesse morrido.

O coronel Si/:enando
Tinha como devoo
Festejar todos os annos
A imagem de So Joo.
Todo o anno era uma festa,
No havia excepo.

Uma noite de So Joo,


Nn fazenda Santa Rosa,
S a noite de Natal
Seria to venturosa,
Por(|ue cm todo o serto
Aquella era a mais garbosa.

Duas classes alli danavam


Em redobrada alegria.
No salo da casa grande,
Os lordes da freguezia.
Em latada de capim
A classe pobre que havia.
31S
O povo deve saber
Do estylo do serto:
O que no fizer fogueira,
Nas noites de So Joo,
Fica o odiado do povo,
Tem fama de mu eh ris to.

O coronel Sizcnando
Derrubou uma aroeira
E vinte e oito pessoas
Carregou essa madeira
Para o pateo da fazenda,
E fizeram uma fogueira.

Estava a noite vinte trcs


Do mez do Santo Baptista
Como outra no serto
Nunca tinha sido vista
S faltava alli a musica,
Discurso e fogo de vista.

Estava o povo todo alli,

Uns danando, outros bebendo.


Um prazer demasiado
Em tudo estava se vendo.
Mais de cincoenta pessoas
Assando milho e comendo.

Meia noite mais ou menos,


Poude o povo calcular,

I
319
O gallo, pai do terreiro,
Estava perto de cantar,
Quando viram um touro preto
No pateo se apresentar.

Metteu os cascos na terra,


Cobriu tudo com poeira,
Soltou um urro to grande,
Que ouvu-se em toda ribeira!
Deixou em cima da casa
Todas ar. brazas da fogueira!!

Dos cachorros da fazenda


Nem um sequer acudiu.
O gado urrava com medo,
Parte do povo fugiu.
O coronel Sizenando
Foi o nico que sahiu.

Inda viu o vulto d'e!le,


Que, pelo pateo ia andando,
Chamou os cachorros todos,
Esses fugiam, uivando!
O povo todo em silencio.
J muiios se retirando!...

Ento, acabou-sc a festa,


O povo se debandou.
Dos moradores de perto
L um ou outro ficou.
320
Aquelle claro garboso
Em escuro se tornou.

A VAQUEljADA (

(FRAO.WENTO)

Quando o novilho arrancou


Espantado da porteira,
Os vaqueiros o seguiram
Em desmedida carreira:

Antnio tarrafiando
E Joo fazendo esteira . .

Antnio, ao fazer mo
Na < bassoura do animal,
Atirou-o sobre o cho
Num choque descommunal! . .

Bravo!... viva o bom vaqueiro!


Gritou o povo em geral.

Luiz e iWanoel Damasceno,


Segundo preo correram
Atraz dum novilho preto,

(*) Avaqueijada o maior divertimento do serto: reunio


de todo gado de uma ribeira que. deante de grande e fes-
assistncia, os vaqueiros rodeiam e repartem,
fazendo
tiva
parte final
proesas de montaria. Infelizmente, s obtivemos a
deste longo poemeto sertanejo a respeito.
321
Que no cho logo estenderam.
Ao Cear Mirim essa
Carreira offereceram.

Bonifcio e Joo Gregrio,


Que eram o preo terceiro,
Perseguiram e derrubaram
Um que cahio ligeiro.
boi,
Ouviram-se muitas palmas
E gritos: Viva o vaqueiro!

Ao correr o quarto preo,


Joo Francisco e Man Moura,
Manoel, que tanajiava, i^)
Dum boi pegou na hassoura, ('^*)

Porem perdeu a mucica (***)


t o bicho toi embora.

Ento, o preo caipora,


-astante desconfiado,
Voltou de cabea baixa.
Pelos outros foi vaiado,
Resolveu no correr mais,
Ficou de bode amairado! (***=^-)

^rXJ^^^^^^^''
~ iPProxniar-.se do boi, correndo a cavalln
^^J-)
^.s...r. - borla de cahelios a ponta Sa caudatas
^"^/C^- empuxo con, que se derruba o boi pelo
rabJ.**^
(**"
)
Bode amarrado - de cara amarrada.
322
O quinto formado
preo,
Por Francisco Damasceno
E pelo Joaquim Antnio,
Perseguio um boi pequeno.
Que cahio logo adeante,
Antes de tomar terreno. (* )

Formou Francisco de Mello,


Com o Torquato Teixeira,
O sexto preo, que deu
Uma bonita carreira,
Offerecidaem homenagem
Da Imprensa Brazileira. (**)

Perseguiram um novilho
Que pelo pateo estirou . .

Torquato fazendo esteira,


Francisco tarrafiou
E deu tal queda no bicho
Que o mocot passou!...

O stimo preo, que fora


Formado por Z Thomaz
E Anacleto Tiburcio,
Perseguiu um boi sagaz

(*) Tomar terreno adeantar-se, obter uma certa distancia


dos cavalleiro?.
(**) E' costum?, nas vaqueijada- de luxo, offerecer cada preo
ou prova a uma pessoa notvel iresente ou ausente. Com cer-
teza algum jornalista presenceava a vaqueijada descripta na
cano.
323
Que conseguiu ir-se embora,
Deixando-os muito atraz.

Correu o oitavo preo,


Feito por Feiix Chico,
E o vaqueiro Joo Flix. -

Que num touro caromb


Deu uma queda to grande
Que o mocot deu n!...

O nono preo, formado


Por Herminio Graciano
E por Demtrio Gomes,
Deu um quedao deshumano,
Logo ao sahir da porteira,
Em um boiato de anno. (*)

Mendes e Jos Barbalho,


Preo decimo na corrida:
Mendes deixou uma vacca
Com uma perna partida,
Que, no podendo se erguer,
Ficou no pateo cabida.

No correu o preo onze.


Feito por Man Praieiro
E por Satyro Gouveia.
Acanhados, o dia inteiro

{*)'^Boiato ou boiote boi pequeno, novo.


324
Passaram, olhando as carreiras
E ouvindo os < vdva o vaqueiro! . . .

Jos Pedro e Man Marques,


Preo doze na carreira,
Man tarrafiando,
E Jos fazendo esteira, (*)
Marques puxoii um novilho, (**)

Logo ao sahir da porteira.

Miguel Barbosa foi preo


Treze com Isidro Machado.
Barbosa deu tal mucca
Em um boiato lavrado,
Que o bicho morreu da queda,
Tendo o pescoo quebrado. '

O quatorze e ultimo preo


-
Feito por Manoel Soares
E o vaqueiro Joo Bueno
Correu : Manoel, pelos ares
Aoitou um boi que a perna
Quebrou em quatro lugares!...

Ao depois que cada preo

(') Fazendo csicir, seguindo o boi, a cavallo, correndo la


teralmente, quasi emparelhado com elle.

{**) Puxou Puxando pela cauda que se derruba a rez.


Puxou est por abreviao, como derrubar.
; . ,

325
Cruel a rez derribava,
A musica harmoniosa,
Um dobrado executava,
Dando mais solemnidade
Ao drama que se passava . .

A festa continuou
Sem o menor incidente;
Todo o povo que ai li estava
Mostrava-se alegremente:
Ento, um. doutor inspirado
Fez um discurso imponente.

Sobre a concurrencia da festa


Expressou-se o orador,
Paliando da creaao
E do liomei:] creador;
E concluiu exaltando
Dos vaqueiros o valor . .

Quando o dia succumbiu,


As carreiras tenninaram
Ento,os vaqueiros o gado
Dos curraes todos soltaram,
E acompanhados do povo
Do pateo se retiraram . . .

Gente, expressei-me mal


Por faltar-me habilidade:
Quiz pintar-vos deste drama
326
Toda a nat inlilade :

embora, a pintura.
Borrei,
Mas no fugi da verdade. (*)

O NOVILHO DO 43U1XELO
(FRAGMENTO)

Foi um caso que aconteceu


bandas do Quixel,
P'r'as
Um que nasceu
bezerro
Que o povo se admirou.
EUe nasceu de manh,
Ao meio dia se assignou (**)

H s cinco horas da tarde


Com cinco touros brigou! (***)

(*) Estt descripo a que f( feitn ror um poeta matuto,duma


i

grande vaqueijada, em que houve dansas, discursos e musica.


Ha outras versalhadas semelhantes, sobre epi dios de vaquei-
jadas menos pomposas, infelizmente difficeisde se obter. Desta
mesmo falta o principio.
(**) Assignou assignalou, isto c, foi marcado na anca com
o ferro em braza e nas orelhas com talhos.
(***) Nao pude conseguir o resto dr^la poesia, que, no fundo
e forma, se parece um pouco com a do Boi Surubim, cit?.da
por Sylvio Romero, embora tenha seu cunho especial e no seja
variante delia. 1
327
RESUMO DO CYCLO DOS VAQUEIROS
1. O Boi Barroso
2. O Rabicho da Geralda
3. O Boi Espado
4. A Vacca do Burei
5. O A. B. C. do Vaqueiro
6. O Boi Surubim
7. O A. B. C. do Boi Prata
8. O Boi Victor
O, O Boi Pintadinho
10. O Boi Ado
11.- O A. B. C. do Bode dos Grossos
12. A Ona do Sitia
13. A Ona do Cruxat
14. A Ona Maaroca
15. O Boi Moleque
16. O Boi Mysterioso
1 7. A Vaqueijada
18. O Novilho do Quixel

NOTA No me encontrar a xcara do


foi possvel
Boi Barroso, embora espalhada do sul do Brasil, de
rsteja
onde originaria, ao norte. A canio do Rabicho da Geralda
est nos ^Contos Popalare:^ de Sylvio Romero e no <:Cancio-
neiro do Norte de Rodri^ues de Carvalho. E', alis o mais
bello poema do cyclo. No prTieiro desses livros, se encontram
ainda: duas variantes do Boi Espacio, a Vacca do Burel, o A.
B. C. do Vaqu-iro, o Boi Surubim e o A. B. C. do Boi Prata.
No segundo, se achan^ o Boi Victor, o Pintadinho e o Ado.
:

Aqui neste capitulo esto includos: as Onas do Sitia, do Cru-


xat e Maaroca, o Bo? MoleqjJe, o Boi Mysterioso, a Vaquei-
jada e o Novilho do Quixel. O A. B. C. do Bode est no ca-
pitulo dos A. B. C.
o

o CYCLO HERICO
o Cyclo Herico

Na falta de outros heres para celebrisar nos


seus cantos, os sertanejos se voltaram para os can-
gaceiros,muitos delles simples criminosos em luta
com as foras de policia, vagabundeando ferozmente
com o seu bando de sicrios a roubar e matar,
muitos delles t)^pos de revoltados contra as prepo-
tncias locaes ou as injustias do meio, espcie de
cavalleiros andantes ou de heres aventureiros. Diz
Van Qennep que a paz mata as epopas. Com ef-

feito, s a guerra ou, na sua falta, as lutas conti-


nuas mo armada, impostas como regra geral s
sociedades anarchicas ou primitivas como a do ser-
to, podem fazer gerar um de
cyclo de poemas,
canes de lendas hericas. Por isso, a inspirao
e

dos cantadores do interior do Nordeste toda se vol-


tou para os grandes criminosos, cuja fama sinistra
enche todos de espanto. E muitos dos grandes cy-
clos de lendas e poesias picas se originaram no
crime: assim, o cyclo dinamarquz do regicidio de
Mark Stig, o grande cyclo dos haiduques ou canga-
ceiros dos Slavos meridionaes e todas aquellas can-
es medievas que celebraram as proezas do celebre
bandido Fulki Fitz Warin.
332

Celebrando a bravura, a fora e, s vezes, o


amor ou a esperteza dos bandidos mais celebres,
o cyclo herico do serto nordestino, cujo resumo
procuramos fazer, pelos seus exaggeros to inte-
ressante quanto o dos julub islmicos e mesmo quan-
to quelle dos hebreus em que entram as historias
de Josu e de Caleb, to bem explanado pelo gran-
de Renan.
Nelle ha pontos de contacto com as vellias ges-
tas de Roldo e das guerras carlovingias, alguns
dos quaes esto apontados nas notas s suas prin-
cipaes poesias aqui publicadas. E elle para a
gente sertaneja o que para os cossacos o cvclo
das bailadas de Steuka Razine, para os yugo-sla-
vos o cyclo de Marko Kraliewitch, para os hespa-
nhes o cyclo de Bernardo dei Carpio e do Cid
Campeador, para os kirghizes o grande cyclo de
cantos picos reunidos no livro de Radloff. Porque
no fundo as almas dos povos so* irms.

HISTORIA DO VALENTE VILLELA


Deu-se um caso notrio.
Notvel de se adular, "(*)
Dum valento que havia.
Como eu vou relatar.

(*) Notvel de se adular. E' assim que a tradio reza; mas


no lhe vejo sentido nem lhe encontro explicao. Talvez ori-
ginariamente fo33e de SC admirar.
Morava em um terreno
De Provinda e capitai.

!r^
Onde esse homem morava
No se faziam, pagodes, {''')
t: a feio desse homem
Era igual de
Herodes:

Tinha um palmo de barba
ii um e meio de bigodes!

Dirigio-sv- um alferes,
Cercado de muita gente.
Hoje o valento do mundo
Trago inquirido na frente, ( ^^*)

QuQ eu nunca cerquei homem


P'ra elle ficar contente.

E, apressado, ajuntou
Sua afamada escolta.
Ao sahir foi avisado:
Muito vae, porem no volta!
O homem l no se entrega,
Pode contar com a derrota! .

A tropa viu a casa,


Para deante arrancou,
Pela frente e por trazeira
lodos os berros tomou, '"''*)

{') Pjnodcs- f ^t;i:..


(**) inqivrjrin _ amarrado.
(=.:*=.=)
Siccos sahidas.
334
E como era necessrio
O delegado falou:

Vilella, componha a casa,

Quero fazer diligencia,


No queira se exagerar
Com actos de resistncia.

Que o preso tambm se solta,

Tenha santa pacincia.

A minha casa cercada?


Sim senhor! J me debaro, (*)

Eu sei que aqui vinheram


Foi apuz de meu sucaro
Quero, por^m, que me diga:
Com quantos m.e arrodiaro? (**)

O delegado falou
Como alferes de couraa:
Voc est arrodeado
Por cento e oitenta praas;
Me renda as armas, Vilella,
Se no quer vr a desgraa!

Sen delegado, eu tenho


Destreza e vigilana,
Toda tropa, quando chega,

r*r 0'cantador imita nesta sextilha o


modo de fallar espe-
cialdo valento. Debaro -
de^barro -
de desbarraar desem- -
baraar mf /^^'>^ro me desembarao.
: , ,

{**) Confesso minha ignorncia quanto


ao que signifiquem
apuz e sucaro. Arrodiaro - arroaearam
sitiaram.

i
335
Falia com muita arrogana;
Amigo, falar folgo, (*)
Obrar precisa sustana.

O delegado falou
Com boa comportaao: (**)
Se quer ser preso com honra,
Se renda, no faa aco. (***)

O preso tambm se solta,


Sc entregue voz de priso!

Nunca vi preso com honra,


Tenho esta opinio;
Nem que o Maldito se encante,
Eu no me entrego priso;
Antes quero que se diga:
Morto sim, mas preso no!

Vilella, abra esta porta,


Que o melhor que acho.
Se no quizeres abrir,
Mando botal-a abaixo.
E, se cruzares o batente, (****)
O sangue corre em riacho!

k (*) Falar flg,o, obrar precisa sustana dictado serta-


m. nejo: falar flego, para obrar que preciso ter fora!
Sustana, de substancia, fora.
B
m (**) Comportaao bons modos.
K {***) Fazer aco hdLX.
^****^ Cruzares
atravessares. Batente chama se no Norte
B batente no madeira da porta, como devia ser, porm so-
l^leira .
336
Sc botar a porta abaixo,
Delegado, no engano,
Antes da porta cahir
De dentro se um tucano, (*)
Se eu queimar as alpragatas, (**)
Chove baia mais dum anno!

Vilella, abra esta porta!


Que eu j tomei o posto.
lhe
Se no quizeres abrir,
Tens de vr o diabo solto,
Pois a ordem que eu trago
E' levar-te preso ou morto!

Tenho sido rodeado.


Mas isso no improvoca, (***)
E visto bala zoar,
S milho abrindo pipoca;
Pagarei a quem mostrar
No meu corpo uma barroca!... (^****)

Vilella, voc abrande,


Deixe de tanta doidia.
Que mesmo eu tenho pena
De vr a sua carnia.
Eu s vim. porque vinlieram
Officiaes de Justia.
('*) Tucano jeu de mots em cano
de arma de fogo,
(**) Alpragatas alpercatas.
(***) Improvoca riToxocsi.
(****) Barroca
cicatriz ou buraco de bala.
337
Pois v lendo seu mandado.
Quanto ao artigo primeiro,
Eu aqui em minha casa
Sou o Imprio Verdadeiro,
Mesmo aqui s canta um gallo
Que sou eu, no meu terreiro!...

Vilella, abra esta porta,


Olhe que eu fallo serio,

Voc hoje vai na frente


Isso quero porque quero!
Ou no c/u p'ra cadeia, (*)
Ou na rede p'ro cemitrio!

Vilella gritou de dentro:


Vamos vr quem perde ou ganha,
Cuide em si que eu saio tora.
Vou lhe rasgar as int ranha.
No morro dentro da furna,
Vou me acabar na campanha.

Mal esta voz se ouvio.


Comeou o desmantelo.
Tudo que foi soldado
Damriou-sc no marmellciro! (**)

(*) No cru no.^ ferros.


(**) Damnnii SC no marmelleiro
Duiunoi-se cspalhou-se,
corrcfido com medo. Marmulleiro
geralmente o terreno no ser-
to coberto de arbustos com este nome.
338
S ficou o delegado,
Numero um! no terreiro.

Quando Vilella sahio,


No encruzar do batente,
Foi gritando em alta voz:
Renda as armas, seu tenente,
Que est com o Diabo na vista,

O co mido na frente! (*)

O delegado de revolver,
Sentia o queixo tinindo,
O dedo am.olegando
E o fumaceiro subindo:
Bala batia em Vilella,
Voltava p^ra traz zunindo!!

Vilella se dirigio
De feio enfarruscada:
Conhea l, seu alferes,
Que no sou de caoada
No estremea que morre.
Renda as armas, camarada!

Renda as armas, no senhor!


Me trate melhor, sujeito! (**)
Hoje aqui se contar
(*) Co mido am dos muitos appellidos sertanejos do
diabo.
(**) Sujeito e -ndividuo so duas palavras que o sertanejo
emprega de modo pejorativo. So verdadeiros insultos.
339
Direito pelo direito.
Voc hoje ha de pagar
As mortes que ja tem feito.

Arre 1 , seu delegado,


J no aguento o jurtum, (*)
Porque quem j matou vinte
Pode interar vinte e um;
Inda hoje no almocei,
Com voc quebro o jejum!

De brigar o delegado
Estava muito canado,
Se embaraou no punhal
E ficou )arali:sado.
Vilella tomou as armas:
Morra agora, delegado!

Conhea, seu delegado,


Que a desgraa sou eu.
De cento e oitenta praas,
S o senhor no correu,
Faa suas oraes,
Bote os olhos, cuide em Deus!

O delegado ahi disse:


Ai meu Deus to poderoso,
Vs governaes o mundo

{*)' Furtam cheiro


340
E sois to maravilhoso.
Livrai a mim de engulir
Este bocado amargoso!

Faa suas peties,


De uma talvez no arrede,
Est me chegando a ira

Do interioi p'ra o intede, (*)


Para lhe matar logo
O corao j me pede.

Nisto sahio a mulher:


Velho, quem pede eu,
Veja, Deus foi judiado,
Mas salvou muito judeu.
No se d por aggravado,
Este no lhe offendeu.

Mulher, tem certos pedidos (**"*)

Que no se devem attender.


Este homem veio aqui
Ou me matar ou prender;
Mas o gosto que tenho
Dar-lhe fim no meu poder.

Homem, voc repare


Como elle est compassivo.

(*) Initde
?
**) Tem. O sertanejo, na maioria dos casos, emprega o
verbo ter pelo verbo haver.
341
Voc deve se lembrar
Que Deus no foi vingativo -

Se ha de matar a elle,
Mate a mim, deixe elle vivo!

Eu no sei porque as mulheres


Gostam de ser to chorosas;
Com o que no lhes pertence, (*)
Querem ser to piedosas;
Mas, quando ficam zangadas,
So malcrcadas, teimosas!.,.

Vilella soltou o alferes:


Siga l sua jornada,
V embora, v dizendo
Que teve uma advogada.
A quem perguntar voc diga
Quem foi seu anjo da guarda!

Quando o alferes sahiu


Foi triste, muito massado,
Marinando como contava
O caso que foi passado.
Deu um no cip,
lao
Morreu no matto enforcado.

Vilella em casa disse:


Mulhei, no matei o homem,

(*) Lhes pertenci tnitnt st com ellas.

342
Eu me vou para as montanhas,
Vou morrer de sede e fome,
Vou comer as hervas brabas
Que os bichos do matto come.

Quando ella cuidou que no,


J elle tinha sahido
E sem que ella presentisse
P^ra onde elle tinha ido.
No sabia onde habitava
O seu esposo e marido.

Este homem ganhou o mundo


Com quarenta annos de idade,
Internou-se nas montanhas,
Soffrendo necessidades.
Purificando assim
As suas perversidades.

Morreu com noventa annos,


Cincoenta de penitencia,
Soffrendo muitos trabalhos,
Humilde, com pacincia,
Morreu, salvando-se, foi santo
Por causa da Providencia. (*)

(*) No ha nessa fuga e penitencia nas mattas do valente


Vilella qualqner coi&a da retrrada do? Quatro Filhos Aymon na
floresta da Argonne, segundo contam as gfstas antigas da Fran-
a? V. *La legende dts Quatre Fils Aymon>, capitulo V, ^^i-
-o illustrada de Lannette
Paris 18S3.
343
CANO DOS GUABIRABAS
(POESIA DE UOOLINO, CANTOR PARAHYBANO DO
TEIXEIRA)

Ajute-se o povo todo,


Uma companhia inteira,
Vou contar uma desgraa
Que succedeu no Teixeia.

O Cyrino s morreu
Por ser muito confiado.
Quando sahio do Teixeira,
Elle sahio avisado.

Logo botaram o piquete


Num logar muito terrivel,

Onde havia de passar


Man Cyrino, infallivel. (*)

Quando elle foi chegando


O piquete se apressou,
Moreira estava de parte
Pelos outros assobiou.

Bacamarte de Cyrino
A escorva ahi derramou.

(*) Infallivel infallivelmente.


344
Cyrino mais que depressa
Com nova porva escorvou.

EUe iipou-sc na selia (*) '

Com a cara de leo:


Cabra me saia de peito, (^''*)

No me atire de treio!

Moreira metteu os ps,


Pisou com cola na rama: (^***)
-^ Cabra, tenho o couro seco,
Cabra, cadc tua famal

O' que tiro desastrado


Que cortou-//6' o cinturo,
Largue o costume, cambada,
De atirar em homem ueio!

Elle ahi nessa voz


Sobre a seila se deitou,
Com os bofes dependui ados;
Metteu as mos arrancou 1!

O cavallo de Cyrino
Ahi correu enfreiado,

(*) Upar-se erguer-sc.


(**) Depeito de irentc.
(***) Co/fl col-ra.
345
Foi bater no Jatob,
Todo de sangue manchado.

Chegando no Jatob,
Sellado,. enfreiado e solto, (*)
Guabiraba foi dizendo:
Meu mano foi preso ou morto!

Saltou Manoel Rodrigues,


Atacando a cartucheira:
Hoje entra o cota de novo (**)
L na villa do Teixeira!

Entra peste de sarampo!


Entra raio abrazador!
Entra- peste de bexiga!
Entra cabra matador!

Montaram a cavallo,
Pegaram a consultar:
Vamos logo ao Salo
Antonho Tavares matar?

Desceram de rua abaixo.


Para o aude da Nao, (^***)

(*) Solto sem cavalleiro.

(**) Cola o cholera, que em tempos idos j dizimara a


gente da villa.
(***) O grande aude do Salo, construdo pela Inspectoria
de Obras contra as Seccas.
346
Toparam o padre Vicente
Com uma imagem na mo.

Padre, voc v embora,


Va guardar Nosso Senhor!
No deixareis de matar,
Emquanto vivo for!

Disse o padre V^icente,


Com o Senhor no meio da rua:
Senhor Manoel Rodrigues,
Que teno esta sua?!

A minha teno esta.


Pode assentar na lista,
No escapa hoje gallinha
Da familia dos Baptista.

Palavras no eram ditas,


Delfino tinha chegado,
No a findar da conversa
De balas foi traspassado.

Manoel Rodrigues no me mate,


Deixe eu me confessar,
Seja mais assocegado
No seu modo de matar!!

Voc no se confessa,
Quem lhe diz isto sou eu.
347
Voc hoje ha de morrer
Como meu mano m.orreu!

Mataram Antnio Tavares


E o mouco do Salo.
Morreu Delfino Baptista,
Innocente c sem v2t.2o.

Liberato se escondeu
Em cima da Pedra d' Agua,

Trancou-se a rua toda,


Quasi o Teixeira se acaba*

Delfino perdeu a vida


E nunca mais foi vingado,
O Guabiraba pensava,
Que elle era o delegado.

Para cantar, s o Romano!


P'ra totar, Chico Ferreira!
P'ra matar, s Guabiraba!
Para glozar, s o Nogueira!

CANTIGA DOS GUABIRABAS


Cyrino,quando morreu,
Morreu por ser malcreado;
Logo no entrar da rua,
Cyrino foi avisado.
348
O cavallo do Cyrino,
Com trs tiros que levou,
No saltar de uma barreira
Cyrino ai revirou! (*)

Meu cavallo a estas horas


J chegou em Jatob,
Para esta minha morte
Meu irmo vir despicar! (**)

O cavallo de Cyrino
Enfreiado chegou solto.
Ou caso de priso,
Ou Cyrino j foi morto!

Guabiraba levantou-se.
Apertou a cartucheira:
Vamos ver um caso novo
Qu'aconteceu no Teixeira!

Palavras no eram ditas,


O Guabiraba chegou,
Metteu mos s espingardas
E o Baptista arrevirou.

Cabra, tu no te enganas
Piso na ponta da rama!

(*) Arrevirou virou, cahiu de lado.


(**) Despicar ving^ar.
34Q
Se tu tens o couro scco,
Eu quero v tua fama!

Joo Quabiraba!
Ai! ail seu
Eu no lhe peo perdo,
S quero que no me mate
Sem a Alinha confisso!

Cabra, tu no te confessa,
Quem te diz isto sou eu!
Tu has de morrer hoje
Que nem Cyrino morreu!

Fui em cima, fui em baixo


Fui lei dentro na Misso.
L vem seu padre Vicente
Com sua imagem na mo.

Senhor Joo Quabiraba,


Que teno esta sua
De sahir de sua casa
P'ra malar homem na rua?

Senhor Padre Vicente,


No mato por devoo.
S ando no despique
Da morte de meu irmo!

Eu lhe juro que acabo


Com todos que esto iia lista,
350
E adeus que vou me embora
Tenho matta que passar
Fao dos olhos candeia,
Para no entropicar. (*)

Nem gallinha mesmo fica

No terreiro do Baptista!

A VIDA DOS GUABIRABAS


(VERSOS DE LEANDRO GO.UES DE BARROS, POETA
POPULAR DA PARAHYBA)

Deixo agora os cangaceiros


Da nossa actualidade,
Para contar a historia
De outros da antiguidade.
Quatro cabras destemidos,
Assombro da humanidade!

Os guabirabas eram um grupo


De trs irmos e um cunhado,
Todos assassinos por ndole,
Cada qual o mais malvado.

(*) Entropicar tropear. Como os tactos que as poesias


sobre s Guabirabas contam sejam os mesmos, ha nellas pontos
de contacto que fazem com que pareajn variantes.

351
Aquelle serto inculto
Tinha essas feras creado. (*)

O mais velho dos irmos


Tinha o nome de Cyrino,
Esse no havia cobra
Que lhe igualasse o destino,
Desde pequeno que tinha
Propenses para assassino!

Se chamavam os outros dois,


Joo Guabiraba e Jovino.
Esse tal Joo Guabiraba,
Dos trs era o mais ferino,
O tal Manoel Rodrigues
De todos o mais assassino.

O tal Manoel Rodrigues,


Dos outros era cunhado,
Esse era alto e tinha
O cabello afogueado,
C) couro da testa d'elle.
Se conservava enrusgado.

(*) Comparae esta estroihe c )ni a da cano da gesta me-


dieval dos piratas norniandcs, que comea assim :

CU Loth hehroc et ses trciz fiz


Furcnt de tufe gcnt haiz

que est no captulo V da Chr.)nique Anglo-Normande


edition Delagrave.
352
n
Na fazenda Jatob,
Do capito Serafim,
Foram morar estes cabras
Com esse destino assim,
Sem temerem autoridade,
Sem temerem nada emfim.

-Ento, nos dias de sabbado,


Iam todos quatro feira,
Com bacamarte e pistolas,
Punhal, faco, cartucheira.
No meio das autoridades,
Passeavam no Teixeira!

Era Delfino Baptista,


O delegado actual. (**)

Achou que aquelles bandidos


Iam de encontro moral
E mandou pedir em officio
Auxlios na capital.

Delfino no obtendo
Auxilio do Presidente,
Ento, chamou Liberato,
Que era primeiro supplente,

(*) Faltam algumas estrophes.


(**) Actmal, isto , naquella occaso.
353
Passando-lhe o exerccio,
Dando parte de doente.

Cyrino, sabendo disso,


t temendo uma traio,
Foi ao Delfino e disse:
Vou prevenil-o, patro,
Se soffrermos qualquer cousa,
E^ feia a nossa questo!

Ento, Delfino lhe disse:


Eu no o quero offender.
Passei o exerccio a outro,
Porque tenho o que fazer,
No fiz isto no intuito,
De outra pessoa o prender.

Liberato quando se vio


Com o exerccio passado,
Mandou dizer a Cyrino,
Que j era delegado,
O Teixeira de hora em diante.
Tinha de ser respeitado.

Cyrino mandou dizer-lhe.


Que um delegado era asneira,
S se estivesse doente.
Deixaria de ir feira,

Sabbado esperasse elle,

Que ia s ao Teixeira.
354
Disse Liberato: Eu juro,
Por minha honra e critrio,
Deus me mate n'esta hora,
Se eu no estou falando srio,
Se elle vier, fica preso,
Ou morto no cemitrio.

No sabbado, pelas dez horas.


Veio um homem na carreira
E disse: Seu delegado,
Cyrino est no Teixeira,
Est carregado de armas,
Passeiando pela feira!

O coronel Ildefonso
Veio e disse a Liberato:
Voc inda muito moo,
Convm que seja pacato,
Uma fera como aquella
S se cerca bem no matto.

Eu sei Cyrino quem ,


Ningum o pega mo nua!
E' certo que a vida delle
Se mede bem com a sua;
Mas vocfc o cerca, trocam tiros,
Baleiam gente na rua.

Liberato, conhecendo
Que o parecer ia bem, (*)

(*). Parecer conselho.

i
-- 355
Ento disse ao coronei:
Cercai-o aqui no convm.
E prevenio sua gente
Que no sahisse ningum.

Cyrino foi avisado


Que sahisse do Teixeira,
Que o delegado j quiz,
Cercal-o mesmo na feira,
Que um piquete de dez homens,
Esperava-o na ladeira.

Cyrino, disse, sorrindo:


Com isso eu no tomo abalo,
Dez homens contra mim s,
So dez pintos contra um gallo,
Para eu matar eiles todos,
Basta os cascos do cavallo!

Pode dizer-lhe, que eu disse,


Que hoje no saio do Teixeira,
E se elle duvidar.
Daqui a pouco acabo a feira,
Se ho quer cercar-me aqui.
V me esperar na ladeira.

Ento, Liberato estava.


I Com dez cabras escolhidos,
Ou para melhor dizer,
Dez monstros bem conhecidos,
356
Desses que com a desgraa.
Acham que esto bem servidos.

Com elles, Jos do Carmo,


Que era tambm outra fera,
Um desses que por desgraa,
Uma me no ventre gera,
Cobra tinha medo delle
Faam ida o que era!

linha mais Joaquim Caboclo,


Outra cobra verdadeira
Joaquim do Couto e mais outros.
Que eram da mesma maneira.
Constava de gente assim .

A policia do Teixeira!...

Cyrino soube que a tropa


Se emboscava na ladeira.
Ento, disse: O delegado
S sabe fazer asneira.
Eu hei de dar um exemplo
Aos cachimbos do Teixeira. {*)

Cyrino tinha um cavallo


Que se chamava Retroz.
Dentre todos os cavallos
Era aquelle o mais veloz.

(*) Appellido insultuoso dos- policiaes : cachimbos.


357
Conhecia o senhor delle
Pela pisada e a voz.
c

Era quasi um cava Ho ruo,


Tinha quasi a cor de pombo,
Se media sete palmos
Do casco da mo ao hombro.
Nunca dtu uma topada
Nem o mais pequeno tombo.

Cyrino disse: Eu agora.


S volto segunda-feira.
Voltou na segunda e soube,
Que a policia do Teixeira,
Sahio desde a m.adrugada,
E emboscou-se na ladeira.

ii
Ento, Liberato disse.
Quando Cyrino passasse,
Chegando ao meio do piquete,
Um da tropa assobiasse,
Dsse-lhe voz de priso,
Antes que nelle atirasse.

Cyrino ia prevenido.
Quando no piquete entrou,
Vio quando Jos do Carmo,
Atraz delle assobiou.
O cavallo de Cyrino,
Dando dous passos, parou.
358
Foi quando Joaquim do Couto,
Gritou-lhe: Cabra, se renda!
Cyrino, disse: Cabrito,
A mim no vejo quem prenda,
Esse milato, aqui morre,
Mas no afrxa contenda 1

Jos do Carmo enfrentou-o,


E lhe disse; Seu Cyrino,
Esteja preso, entregue as armas.
Veja que no sou menino!
Quem preso um dia se solta,
Deus quetn d o destino.

Ento, Cyrino lhe disse:


Negro, tu ests enganado!
Vocs so dez, eu sou um,
Mas ainda estou animado;
Levem-me morto num pu,
Mas no morto e algemado!

Joo Luz falseia um p


E de ladeira abaixo rola.
Cyrino do cinturo
Tira e dispara a pistola.
O cabra cahio, morrendo
Em forma de tatu bola.

Joo Luz, olhando Cyrino,


Exclamou:
Cabra dam nado,
,

359
Voc deu-me agora um tiro
Que estou quasi liquidado!
No tem nada, se eu morrer,
Desse tiro s perdoado!

E disse a Jos do Carmo:


No afrouxe o cangaceiro!
Elias palavras elie disse
No suspiro derradeiro.
Olhou Cyrino e lhe disse:
Te espero l, companheiro

Aonde o piquete estava


Era um logar apertado
Entre duas grandes serras,
Escuro e embaraado.
Duas grutas muito fundas
Sc viam de cada lado.

O cavallo de Cyrino
De toda forma pulava,
Dava saltos para traz
E at no cho se deitava,
Com a sombra dos ininiigos
fres, quatro metros saltava.

Jos do Carmo o enfrentou,


Disparou-lhc o bacamarte;
Um tiro muito pesado
Varou-o de parte a parte! (*)

(*) O cantor referc-se aqui ao Cyrino e no ao cavallo.


360
Cyrino gritou: moleque,
Sinto no poder matar-te!

Trinta caroos de chumbo,


Duas balas de lato,
Tudo isso pegou nelle
Abaixo do corao
Quando o cavallo pulou,
Eile cahio sobre o cho.

Quando o cavallo Retroz (*)

Vio Cyxino assim deitado,


Partio para os inimigos.
Que s estando endiabrado,
Deu um couce num do grupo.
Que morreu aleijado!

No parou nem um segundo.


Depois que de l sahio.
.

Correu trs lguas numa hora.


Cousa que nunca se vio.
Bem na porta do senhor
Chegou canado e cahio!

Os irmos, assim que viram


A em sangue banhada.
sella
Chamaram Man Rodrigues

(*) Este Retroz, com o Exhalao de Jesuino Brilhante, so


no serto o que foram na Frana das Gestas carlovingias o ca-
vallo Bayard dos filhos de Aymon ou o Brida de Ouro de
Roldo.
361
E deram parte cunhada,
Dizendo a elia: No chore,
Porque a morte vingada!

Disse ahi Joo Guabiraba:


Vou afiar meu faco!
'
;h entro na casa
^
m matou meu irmo,
.jretendo deixar l

Nem um menino pago!

E sahiram as quatro feras


Em procura do Tei^ceira.
Antes de entrarem na rua
Pegaram o velho Taveira,
Lascaram e o cangue delle (*)
Beberam por brincadeira!

Quizeram se dirigir
A' casa do delegado;
Esse estava prevenido,
Tinha o povo entrincheirado.
Combinaram uns com os outros
Vamos logo ao mais culpado.

Encontraram o padre Vicente


Essas feras sem destino,
Disseram a elle: senhor padre

(*) Lascaram cortaram o ventre ao meio, estriparam,


362
Mande o sachristo aos sinos
E pode escutar os tiros
Que vamos dar em Delfino.

Nessa conversa que estavam


Disse-lhe o padre Vicente
Que o Delfino Baptista
Nessa morte era innocente.
O culpado disso tudo
Foi Liberato somente.

Mas elles nem escutaram


O que o padre dizia,
Cortaram em pequenas postas
Com a maior tyrannia,
Uma das melhores almas
Que naquella terra havia.

Ento, mudaram-se elles


Para Paje de Flores,
Onde outr'ora elles j tinham
Praticado mil horrores
Ento, na muda pagaram (*)

Estes ltimos terrores.

Esse tal Joo Quabiraba,


No dia em que foi cercado,
Poude cravar duas presas

(*) Muda mudana


;

363
Np garganta de um soldado.
Fe/ tanta fora nos queixos
Morreu e ficou pegado!! (*)

O tal Manoel Rodrigues


Junto com o tal Jovino,
Esses dois tiveram fim
Igualmente ao de Cyrino,
Foram mortos e queimados
Eis ahi o seu destino. (**)

CANO DO SANTA CRUZ (***)

Ha uns dez mezes, Santa Cruz


Foi villa do Monteiro,
Soltou um seu protegido
Matou, prendeu, brigou muito!
Depois, foi p'r'o Joazeiro.

- Prendeu as autoridades,
P'ra sua casa as levou
Mas quando vio que a policia
Pernambucana ajudou
A's foras da Parahyba,
P^r^o Joazeiro arribou.

(*) Pegado seguro.


(**) A
luta entre Liberato e os Guabirabas est contada mi-
Mnciosamente no meu livro Heres e Bandidos.
(***) Dr. Santa Cruz, bacharel muito conhecido, que, de-
vido a questes politicas, tem chefiado cangaceiros.
364 -

Sete mezes Santa Cruz


No Cariry demorou-se,
Juntou muitos cangaceiros
E junto comsigo os trouxe
Para So Jos do Egypto,
Onde aos Dantas alistou-se.

Alli o dr. Santa Cruz


Esteve uns trs mezes parado,
Somente se preparando.
Quando se achou bem armado,
Entrou com trezentos homens
No parahybano Estado.

Ao passar pelas fazendas


De alguns dos seus intrigados (*)

Ia derrubando as casas,
Incendiando os cercados.
E aquelles que se oppuzessem
Seriam assassinados!

No logar Carrapateira,
Deram os combates primeiros
A^ fora parahybana.
Ficando prisioneiros
Da policia onze soldados
Em poder dos cangaceiros.

Dois desses soldados presos

(*) Intrigados inimi^^^cs por intrigas.


365
Ficaram logo alliados (*)
Aos revoltosos e os nove,
Ao depois de desarmados,
Foram para Pernambuco
Por Santa Cruz enviados.

Quando o major Genuno (**)

Se vio s e sem defesa,


Procurou o Pedro Bezerra
Na fazenda Fortaleza.
No tinha ainda descanado
Quando se vio novamente
Por cangaceiros cercado!

Comeou a vinte e trs


De Maro esse tiroteio,
Que activo se prolongou
Mais de dois dias e meio.
Toda a fazenda se achava
Sob um tremendo arrodeio! {***)

O velho ^edro Bezerra


Gritava dentro de casa:
Ningum se entrega nem corre!
Nem que tudo vire braza!

(*) Osoldado das polcias do Nordeste, mestio sertanejo


do mesmo estofo que o cantiaceiros, quasi sempre egresso do
crime, passa-se para o inimigo coin espantosa facilidade.
(**) O com mandante da fora policial.
(***) Arroicio cerco, assdio.

L
366
Dizia, Genuino:
ento,
Aqui s fome rne atraza!

No tiroteio, Santa Cruz


Gritava: Atira, negrada!
E dizia cabroeira:
No afrouxe a rectaguarda!
Quem ouvisse o tiroteio
Julgava ser trovoada!

Santa Cruz disse a Vicente:


Chame cem homens e v
Depor as autoridades
Da villa Tapero.
Os que votarem com o Pinto
Expulse todos de l!

Em Serra Branca tambm


Previna a populao,
Que s deixarei em paz
Quem for da opposio. (*)

Se votar no Rego Barros


Ter minha proteco.

Disse o Vicente: Doutor,


Issomesmo hei de fazer.
Quem votar no Rego Barros
Eu garanto proteger.
(*) Geralmente, o cang^aceiro representa o espirito de oppo-
sio do serto ao governo, espirito que se manifesta pela bala
e pela faca, porque no tem inipren: a, nem tribuna, nem voto.

I
367
Porem quem for governista
Commigo se tem de haver.

Quando Vicente sahio


Da fazenda Fortaleza,
Chegou o Tenente Rangel
Com uma fora em defesa
De Genuno, isso foi
P'r'os cangaceiros surpreza.

Ento, o Tenente Rangel,


Tendo sessenta soldados
Sitiou os cangaceiros.
Que estavam entrincheirados.
Estes resistiram muito,
Porem foram dispersados.

Mi'Strou Ra}!' . ndo Rangel


Que sua farda honrava,
Salvando p Genuino,
Que quasi perdido estava,
Pois, se elle no chega logo,
A munio se acabava.

Vendo o doutor Santa Cruz


Abandonado o Monteiro,
Assaltou aquella villa
Com seu pessoal guerreiro,
Dizendo: Aqui me pertence
Este municipio inteiro!
368
S encontrou no Monteiro
As mulheres dos soldados,
Que com o Tenente Rangel
Tinham sahido vexados. (*)
Essas mulheres p'r'os cabras
Foram felizes achados . .

Santa Cruz dispe agora


Dum pessoal muito forte,
Onde elle sentou as bases
Duma officina de morte! (**)

Que a cada instante fornece


P^r^o outro mundo transporte.

Em So Jos do Egypto
E^ seu quartel general,
Onde d as suas ordens
Ao seu feroz pessoal.
Devido a isso o governo
Recorreu ao Federal.

Veio a quarta companhia (***)

Para esta cidade, ento,


Trazendo duzentos homens,
Armamento e munio.
Essa fora- do governo
Acha-se disposio. (*^'*)

(*) Vexados
apressados.
(**) A expresso significativa.
(***) A extincta 4" companhia isolada de caadores.
(****) A' disposio prompta para tudo.
36Q
Vendo o coronei Eufrasio
Que o doutn- Joo Machado (*)

Lutava com revoltosos


No interior do Estado,
Preparou seu pessoal
E pz-se logo ao seu lado.

No dispensou o governo
To grato offerecimento
E nomeou-o delegado,
Lhe facultando elemento,
P'ra elle em todo o Estado
Fazer policiamento.

Tem o major Genuino


Mais de quinhentos soldados;
Tem o coronel Eufrasio
Trezentos homens armados;
P'ra lutar com Santa Cruz
Acham-se bem preparados.

Dizem os dois com mandantes


Desse grande pessoal
Que Santa Cruz pe agora
Na luta ponto final,
Porque ou se entrega ou corre,
Ou o resultado fatal!

Diz o doutor Santa Cru/

(*) Pre&idente da \'\ral;\ba nessa epcca.


370
Que isso no lhe faz medo,
Inda mesmo que elles levem
Metralhadora ou torpedo,
S serviro p'r^os seus cabras
De distraco e brinquedo!

Porque seus cabras conhecem


Da guerra toda a manobra;
E elles p'ra matar gente
Tm coragem de sobra,
Pois s bebem sangue humano,
S comem carne de cobra!

Tm, cabras, o couro duro


Onde baa bate e amassa,
Punhal enverga e no rompe,
Chuo quebra e no traspassa!
Com individuos assim
Nem o diabo quer graa!


NOTA O poeta matuto no deixou passar despercebido
e"guardou-o para a$ geraes futuras, em versos rudes, o facto
da primeira invaso da Parahyba peies cangaceiros de Santa
Cruz. E' mais uma tradio da pobre raa sertaneja que fica,
assim, perpetuada. Esse testemm^o valioso. E' de notar que
nelle no ha nenhuma paixo, nenhum parti-pris. O autor no
se deixa levar seno pela verdade, que se destaca brilhante de
naturalidade e de esncntaneidade de suas rimas.
371
CANO DE ANTNIO SILVINO

Em mil novecentos e urn,


A dezenove de Fevereiro,
Chegaram em Santa Luzia
Uns bandos de desordeiros,
Que andam no mundo roubando
Com o nome de cangaceiros.

Chegaram perto das ruas


E o chefe Antnio Silvino
Mandou logo em conferencia
Chamar o Padre Jovino,
Porque, temendo a entrada,
Respeitava a espingarda
Dum soldado, o Ubaldino.

Disse Silvino ao Padre:


.Perdoe a minha ousadia,
Que eu lhe mandei chamar
Para pedir garantia.
Se isto me prometter.
Passarei sem offender
Esta sua freguezia.

O Padre mandou na rua


Contar o que era passado,
Pedir comida e dinheiro
Para dar a esse malvado.
Foi assim que o Bom Pastor
372
O seu rebanho livrou
Desse lobo esfomeado!

Foram embora os cangaceiros,


Ficou o povo a pensar,
Dizendo: Elles inda voltam
Aqui, a este logar!
At que no outro dia
Chegou quem os perseguia
Com o fim de os acabar.

Era um 1 enente que vinha.


Trazia ordem bastante
Para lazer o trabalho
Dum delegado volante, (*)

Entrando em qualquer Estado


A perseguir os culpados
Com ordem do Commandante.

Aqui reforou a turma


Com quatro praas \'alentes,
Que inteirou vinte e cinco, (**)

Contadas pelo Tenente.


Sahio daqui, cauteloso,
Em uma noite perigosa,
Com dois paisanos na frente. (***)

(*) Delegado volante, que pode atravessar as fronteiras dos


jnunicipios e dos Estados.
(**> Inteirou completou.
(***) Paisanos guias.
373
Andaram em diligencia
O correr da noite inteira.
No outro dia bem cedo
Foram subir na pedreira,
Onde estavam os velhacos,
Que, quando viram os
macacos >>, (*)
FYom fazendo carreira.

'
' je travou a luta,
Bala vae e bala vem.
Um dos paisanos que ia
Fazia fogo tambm.
Mataram Pilo Deitado,
Que o nome mais frexado (-*)
Que nos cangaceiros tem!
i
Morreram na rectaguarda
Os dois sargentos guerreiros
Istolano e Nestor,
Que atiraram primeiro.
Foram quem recebeu a offensa
Da morte, a dura sentena
Das balas do cangaceiro.

No outro dia se ouvio


Do sino a tristonha voz,
Quando fizeram o enterro

P) FXV-'Te?,t ^<"''^<* '^ P"--^ "O sero.

t
374
Daquelles bravos heres,
Que, na luta mais temida,
Perderam ambos a vida
Pela defesa de ns.

No mesmo dia prenderam


Dois que vinham desarmados,
Que eram dos cangaceiros
Os dois mais desanimados.
No fizeram resistncia,
Rendendo obedincia
Aos perigosos soldados.

Aqui estiveram calados,


Sem faiar mal de ningum,
At que foram levados
A' ordem no sei de quem.
Foram entregues ao Tolentino
E no outro dia o sino
Rezou por elles tambm ... (*)

Perdeste, terra bemdita,


A tua paz singular,
Pois o sangue que bebeste
Tornars a vomitar.
Eu sei que tu no acceitas

(*) Essas execues summarias so reciprocas entre a poli-


cia e os bandidos.
375
To horrorosas desfeitas
Sem um remorso guardar.

NOTA Esta a primeira cano sertaneja em que appa-


rece Antnio Silvino. O seu nom;- mal se destaca do facto acon-
tecido a luta entre os r^^-.iis cangaceiros e a policia, aps a sua
:

passagem pela localidad?, onde mora o cantor. Nas canes


posteriores, a sua per^f-naiidade c omea a dominar o scenario
e a comparsaria.

A VIDA DE ANTONO SILVINO


(POEMA DE FRANCISCO D/ S CHAGAS BAPTISTA,
POETA POPULAR >ARAHYBANO)
( FRAi.Mf-.XlOS)

Pedro Baptista de Almeida


E Balbina de Moraes,
Casados catholicamente
Foram meus legtimos pes;
Eram filhos deste Estado
E do Page naturaes.

No bacamarte eu achei
que decidem questo,
Leis
Que fazem melhor processo
Do que qualquer escrivo.
As balas eram os soldados
Com que eu fazia priso.
376
Minha justia era recta
Para qualquer creatura,
Sempre prendi os meus ros
Em casa riiuito segura,
Pois nunca se viu ningum
Fugir duma sepultura . .

Meu pae ez diversas mortes


Porem no era bandido;
Matava em defesa prpria,
Quando se via agredido,
Pois nunca guardou desfeita
E morreu por atrevido. (*)

Estvamos todos juntos


Na casa te Jos Gato,
Apenas o Rio Preto
Estava doente no matlo;
Jos matou uma rez
Para nos dar melhor trato.

Eram oito horas do dia,

Estvamos acalmados,
Quando inesperadamente,

(*) O pae de Antnio Silvino foi o celebre cangaceiro


Baptisto.
: .

377
Por cento e vinte soldados
Eu e os meus companheiros
Nos vimos todos cercados ! . .

Era uma luta medonha,


Todo esse povo atirando!,..
As balas perto de mim
Passavam no ar silvando;
O tiroteio imitava
Um tabocal se queimando!... (*)

No tiroteio, os soldados
Seis cangaceiros mataram,
E pegaram nove s mos
Que tambm assassinaram
Como se sangram animaes,
Elles aos homens sangraram!!

Em novecentos e cinco
Eu metti-me em questo feia,

A pedido de um amigo.
Dei uma surra de peia

(*) Veja-se am Eichot Tableau de la litterature du Nord


au Moyen Age a Gesta de Ragnar o pirata norueguez. Ha
um trecho que corresponde exacta nente a esta descripo.
378
Em um sobrinho legitimo
Do Sr. Josc Gouveia!

Quatro praas que l estavam (*)

Em ceroulas as deixei;
Ento, da Mesa de Rendas
Eu logo me apoderei:
O dinheiro que l havia
Para o meu bolso passei.

Incendiei os papeis
Todos da arrecadao,
Deixei nus os empregados!
Conduzi a munio
Dos soldados e os deixei
Sem farda, Comblain e faco!

Ergui-me subsaliado
E um tiro disparei
Contra o fantasma, e, ento,
Muito ligeiro acordei,
E ouvindo um grande rugido
Quasi assombrado fiquei.

Esse rugido abalou

(*) Em Barra de S. Miguel, Parahyba.


.

379
At o mais fundo reconco (*)
Da furna, a serra tremeu
Desde do cimo ao tronco!...
Percebi rapidamente
Que duma ona era o ronco! (**)

Ento, atirei na fera


Que, sobre mim se lanou
E deu uma tapa no rifle
Que distante o atirou,
E ouvindo o estampido,
Mais assanhada ficou.

Dei um pulo para traz,


E da pistola puxei,
Porem no mesmo momento
Que um tiro lhe disparei,
Deu ella n'arma outra tapa,
E desarmado me achei!...

Felizmente, nessa gruta


Entrava a luz do luar,
E o solo era espaoso . .

Continuei a pular.
Me desviando da fera,
Que tentava me agarrar!...

(*) Reconco recncavo.


(**) As lendas hericas todas se parecem. As da Argentina
contam que Facundo Quiroga, o cangaceiro de La Rioja,
ba-
teu-se peito a peito com um puma. V. Sarmiento
Facundo
380
Num desses saltos, eu pude
Puxar da cinta o punhal,
E apertei-o na mo
Com uma ira infernal 1

Dizendo: se eu no morrer,
Mato este audaz animal!

A ona era to ligeira

Como a luz da exalao! (*)

Eu no voava, porem.
Mal sentava os ps no cho!.
Compreendi que em matal-a
Estava a minha salvao.

E, quando a fera avanou,


D'arm.a em punho a esperei,

E ento no p da gula
Tal punhalada lhe dei.
Que o punhal enterrado
No corpo delia deixei!...

EUa em minha mo esquerda


Deu uma grande dentada
E onde passou as unhas
Deixou-me a pele esfolada.
S feriu-me no momento
Em que ci-lhe a punhalada

A ona, ao vr-se ferida,

(*) x/ifl/a,o Estrella cadente. Tambm dizem zelao.


381
Um enorme salto deu,
Rugindo com tanta fora
Que a serra estremeceu!
Ento, por sobre um lajedo
O corpo em cheio estendeu.

Na Lagoa do Remigio,
Fui Agencia do Correio,
Botei p'ra tora o agente.
S porque este era feio,
Tomei-lhe o cobre dos sllos
E contra mim ningum veio.

A dezoito de novembro
Eu em Pocinho cheguei;
Que o Padre Antnio Oaldino
Me desse um jantar, mandei,-
E que, servisse mesa
Ao mesmo Padre obriguei.

Quando me retirei, o Padre

Lanou-me a excommunho,
Missa de corpo presente
Celebrou em minha teno.
Na noite do mesmo dia.
Me appareceu uma viso.
382

Por deiraz de uma cerca,


A poiicia se occultou,
Donde nos fazia togo;
O meu rifle disparou
Trinta vezes contra ella,

Mas, nem um tiro acertou.

No pae de um meu companheiro


Uma surra eu tinha dado;
(J faziam quatro annos)
E o cabra havia jurado
De matar-me traio
Em um momento aprazado.

Esie cabra traioeiro


Perto de mim atirava,

Por detraz de uma pedra;


Vendo qu'eu no o olhava
Atirou-me por detraz.
Quando eu menos esperava I

E uma bala de Muser


Pelas costas me varou,

Saiu em cima do peito,

Um rombo enorme deixou.


Cahi no cho quasi morto.
O cabra alli me roubou.

I
383
Tinha o dia amanhecido
Quando a policia chegou;
Ento o alferes Teofanes
De mim se aproximou,
Mas, devido ao meu estado,
Elle no me interrogou.

Fui para Taquaritinga


Pela fora conduzido;
Levaram-me numa rede.
Porque eu estava to ferido,
Que no andava e cheguei
Quasi que desfallecido.

Dois dias e uma noite


Eu passei encarcerado,
Na cadeia da cidade.
Sendo muito visitado;
A vinte e nove j eu
Me sentia melhorado.

Os mdicos j conseguiram
Meus ferimentos curar...
O resto de minha vida
Vou na priso descanar,
Porque dos crimes qne tenho (*)
No espero me livrar.

"''^ '""^'^'""^"'^
noltiv;"'!Ht4"eB'^d'd;'" ''-"P*"
384
ANTNIO SILVINO E DESIDERIO
(FRAGMENTO)

Se no me mandarem logo
De presente ao cemitrio,
Ou Desiderio me mata,
Ou eu mato Desiderio!

OS COMPANHEIROS DE ANTNIO
SILVINO
o primeiro desses cabras
E' o compadre Tempestade.
A hyena no iguala
A sua ferocidade!
l

A bala do rifle delle i

E' to ferina e certeira,


Que tem matado veados
Na mais activa carreira.
Seu punhal j tem varado
Miolo de aroeira! (*)

Este cabra carrancudo;

(*) Miolo de aroeira cerne de durissima madeira em que


os pregos no podem penetrar.
385
Nunca deuuma risada!
No dia em que est damiiado,
Uma panllrera assanhada
E' mais mansa do queelle
E muito menos malvada!

Bebe togo e no se queima,


Pega corisco com a mo!!
Vidro ralado p'r'a elle
Um excellente piro!
Mata qualquer innocente
Sem raiva, sem preciso!

O segundo um negro,
Que acode por Serrote.
Este uma ona na furna,
Uma officina de morte!
Seu riffle no perde tiro,

Seu faco no falha corte!

Este negro, estando calmo,


No d r.m s tiro errado;
Muitas vezes uma linha
Com um tiro elle tem cortado.
J o vi fazer proezas
De que fico admirado.

No dia em que se zanga


Come pedra e no se entala!
Fuma plvora com pimenta!
~ 386
Por bolacha come baia!...
Atira at na me deile,

Se em sua frente encontral-a!

O terceiro um n:ulao,

Que acode por Moita Brava,


Este cabra mais valente
Do que um touro na cava;
Muitas vezes o pae deiie
Ao v-o se assombrava!

Este s se alimenta
Do que vc sua rrente.
Quando tem sede, por agua.
S bebe sangue de gente!
O seu tiro mais certeiro
Do que o bote da serpente!

Para este no existe


Nem afago nem carinho.
Diz que chumbo derretido
P'ra elle melhor que vinho.
Mata cobra com os dentes!
E d murro em porco espinho!

O quarto um caboclo
Que acode por Violento.
A carne do curur
E' seu nico alimento!
387
Este quando est brigando
E' ligeiro como o vento!

Este caboclo to mu
E. tem a cara to feia,

Que o duro que oiha p^ra elle


Ou corre ou fraca teia!
J matou mais de cincoenta
Somente de i. de peia!...

O quinto um mestio
Que attende por Gato Brabo.
Este cabra tem pegado
Muita ona pelo rabol
E j tem dado de peia
Ate no prprio diabo!

Este cabra, quando briga,


Faz coisas de admirar:
D saltos de oitenta braas
No deixa bala o pegar!
Cem tiros em um minuto
Est canado de dar!

O sexto !:m cabra fulo


Que acode por Azulo.
Este, pegando um soldado,
Arranca-lhe o corao,
Assa-o na ponta do dedo,
P'ra coml-o com piro!
388
Este cabra Azulo
E' to perverso e valente,
Que s da uma risada
Quando mata um innocentel
Come cabea de cobra
E bebe sangue de gente!

ANTNIO SILVINO E O PADRE


Meus camaradas, agora,
Por uns dias estou parado.
Se no bolirem commigo,
Me conservo acautelado.
Mas se houver quem me assanhe,
Fizer por onde eu extranhe, (*)
Jesus, que enredo damnado!

Ce uma banda do co,

Scca uma parte do mar,


O purgatrio resfria,

V-se o inferno abalar,


As almas deixam o degredo,
Corre o diabo com medo,
O co Deus manda trancar!

Admira todo o mundo


Quando passo num logar,

'() Extranhe zang.ie.


389
Os mattos afastam os ramos,
Deixa o vento de soprar,
Se perfilam os passarinhos,
Os montes dizem acs caminhos
Deixae, Silvino passar! (*)

Esses cangaceiros grandes


Que existem no serto,
Em qualquer parte me vendo,
Falam de chapu na mo,
Se precisam me falar;
Perguntam antes de chegar:
D licena, Capito?

Desde que entrou este anno,


No offendi mais a uni grillo.

Um padre ralhou commigo.


Eu me massei com aquillo!
Se me ^izerem traio,
Dos chaleiroh do serto
Cada urubi tem um kilol

Os grandes morrem na baia,


Os pequenos na correia,
Os fracos aleijo a murro,
Os brabos mato de peia,
(*) Em ninhiima geita medieval iia trecho de panache e
bravata mais bello do que este. S ha um que se lhe asseme-
lha. E' o da admirvel ^Chronica do Monje de S.t Gall, que
descreve os rios da Itlia recuando deante de Carlos Magno,
quando elle desceu de Frana frente dos seus Doze Pares
1
390
Ou levo tudo amarrado
E offico ao delegado:
Deixe morrer na cadeia 1

A uns seis mezes passados,


Encontrei um capello.
Perguntei-lhe:
Padre Mestre
Corre algum arame ou no?
O padre pz-se a coar-se.
Disse para disfarar-se:
Filho, no t-rago um tosto 1..

Mas trago cousa melhor.


Se o filho quizer me ouvir,
O ouo de confisso,
Que pode bem lhe servir.
A mim so serve dinheiro.
Confisso p'ra cangaceiro
Em que que pode influir?

Infle muito, filho meu!


E eu o posso absolver.
Eu sou ministro de Christo,
Faa o que eu mando fazer . . .

Seu padre deixe de dengo! (*)

Eu tenho medo de quengo.


Voc tem de morrer!

O padre tanto illudio-me,

(*) Dengo pare^-T ; '.Mengo nlaro


391
Tanto fez, taiiio mexeu,
Pegou a fazer um assombro,
Que mais tarde me venceu.
E eu deixei-me illudir,

Como um tolo fui cahir


No lao que clle estendeu.

Eu disse: - Padre Mestre,


Eu receio a confisso
E no ajrouxo (meu rifle (*)

Nem solto o punhal da mo!


So as minhas garantias,
Quem sabe se Zacharias {**)

Est aqui perto ou no?

Ajoelhei-me, benzi-me.
Contei os peccados meus.
O padre acabou, dizendo:
Que peccados so os seus?
Ento, matou
voc j
Algum ministro de Deus?

Disse: - Ainda no matei.


Apenas fiz um attaque,
Porque o padre Custodio
Entende que chambre fraque
E cavaignac bigode,

(*) Afrouxo lar^o .

(**) Zachnriis, o-;icial tie pol-cia que perseguia Silvino.


' 392
Pz-sc com salto de bode
Quasi que morre do baque!

S vinte contos de ris


Duma vez eHe perdeu.
O padre, quando ouvio isto,
Coou-se e estremeceu;
Mas disse: Que hei de fazer?
Apenas posso dizer:
Antes elle do que eu !.../(*)

Filho, me d o dinheiro,
Que o entrego ao sacerdote.
Padre, no caio de cavallo
Nem embarco nesse bote.
Serei um menino tolo
Que basta mostrar-lhe um bolo
E elle vem para o xicte?

Meu filho, poucos peccados


So grandes como esse seu!
Seu padre, no peccado
Eu dar em quem ji me deu.
E quem rouba de ladro
Tem cem annos de perdo . .

Foi o que calculei eu . .

Meu filho, roube o commercio.

(') Toda a iro. lia d jste poe neto fcrinidavel


393
Desgrace um agricultor,
Deixe morrer na misria
Os filhos dum criador,
Deus o pode perdoar;
Mas no perdoa se roubar
Ura vintm dum confessor! (*)

DC^-iiie o dinheiro, que o levo,


Dou ao padre; elle perdoa.
Padre Mestre, eu dar dinheiro?!
No ha cousa que mais doa!
Emquanto eu mover um brao.
Juro que em 'meu espinhao
No ha barbado que roa ...

O padre disse comsigo:


O^ que sicrio estradeiro!
Pelejei, porm no pude
Conseguir delle dinheiro.
Fui feliz em escapar.
O diabo quem mais d
Um conselho a cangaceiro!

Eu c dizia commigo:
Quem sabe se este patife
No anda enchendo os ouvidos
Da policia do Recife?

(*) E' extraordinrio que no serto sj tenhi rimado esta


satvra terrvel contra os oadres !
394
Desgrace um agricultor,
Deixe morrer na misria
Os filhos dum criador,
Deus o pode perdoar;
Mas no perdoa se roubar
Um vintm dum confessor! ("')

D-me o dinheiro, que o levo,

Dou ao padre; elle perdoa.


Padre Mestre, eu dar dinheiro?!
No ha cousa que mais da!
Emquanto eu mover um brao.
Juro que em rr.eu espinhao
No ha barbado que roa . .

O padre disse com.sigo:


O' que sicrio estradeiro!
Pelejei, porem no pude
Conseguir delle dinheiro.
Fui feliz em escapar.
O diabo quem mais d
Um conselho a cangaceiro!

Eu c dizia commigo:
Quem sabe se e?te patife
No anda enchendo os ouvidos
Da policia do Recife?

(*) E' extraordinrio que no serto se tenha rimado esta sa-


tyra terrivel contra os padres !
395
Mas se andar, est ta,
Hei de alvejar-lhe a coroa,
Tiro a ferrucrem do rifle!

A CANO DO REr MANDOU ME


CHAMAR
A bcca dum aventureiro do mar, que correra
aventuras pelo Mediterrneo em fora, o gnio de
Victor Hugo pz uma altiva resposta aos offereci-
mentos que um rei lhe faz de sua filha. Aps uma
verdadeira odyssa, o chefe dos aventureiros aborda
a Hespanha, com o seu grupo reduzido de trinta ho-
mens a dez. E canta:
On fit ducs ei grands de Casiille
Mos neuf compagnons de bonheur,
Qui s^en allrent Seville
E' pouser des dames d'honneur.
Le roi me dit: Veux tu ma filie?

Et je iui dis: Merci, seigneur!

J'ai l bas, oii des flots sans nombre


Mugissent dans les nuits d'hiver,
Ma bellc farouche Toeil sombre
Au sourire charmant et fier,

Qui tous les soirs chantant dans Tombre


Vient m^attendre au bord de la mer.

J'ai ma Fanzette Fiesone,


^ 396
Cest l qiit mon coeur est reste.
Le vent traichit, la mer fnssonne,
Je m'en retourne en veritc!
O roi! la fiik a la couronne,
Mais Fanzettt: a la beautc. (*)

O grande potta exprimio nestes versos, certa-


mente com plena sciencia do que fazia, porque co-
nhecia bem o rico folk-lore /> de seu paiz, um trao
da velha jlert e do velho panache popular, que
pertence ao undo commum das tradies mais bel-
las da humanidade.
Muito antes delle, no sculo XVI, o autor do
. Misanthropo repetia na sua pea a cano popu-
lar que dizia assim:

< Si k roi lienri me donnait


Paris, sa grande ville,

Je dirais au roi Henri:


Reprenez votre Paris,
J'aime mieux ma mie,
O gul
J'aime mieux ma mie!

As formas e expresses differem um pouco. Aqui,


em vez de ser uma princeza, uma cidade que o
rei offerece e que o cantor no troca por sua apai-

(*)V. Hueo La chariNon des aveenturieis de la mer


Legende devS sicies-.

397
xonada, mas o fundo c idntico, o sentido o mes-
mo, o elemento moral no mudou.
Antes desses versinhos francezes, j se cantava
na Siclia, entre a gente do povo, a caminho dos

campos de trigo, sobre o tavoado dos curricolos:

Voghiu a Turridu
Nun voghiu curuna!

A alma dessa cantiga vem de mais longe ainda.


Surge, no tim da Jade-Mdia, na regio de AAont-
ferrat, da seguinte maneira:
Um tambor volti da guerra, com uma rosa na
mo. A filha do rei acha-a linda e pede-a. Elle res-
pondi qut s a entregar pelo seu amor. O desejo
da princeza to forte, que o rei resolve dal-a ao
tambor. W este a recusa, dizendo que no seu paiz
natal ha mocas mais bellas, que melhor o amaro.
Eis a sua resposta em dialeto local:

<^ Mi nun voi pi ra vostra bella figa,


Al" m'' pais un'c dir pi zulie.

Na mesma poca, por toda a Frana se con-


ta\'a a historia do mesmo tambor, e a sua resposta
nos cantos francezes era:

' Sire le rei, je vous la remercie,


Ran, ran, ran, rataplan!
Drins mon pays il ya de plus jolies!
^ 398
Em quasi toda a Europa meridional, a. mesma
cano se repele com variaesmais do que ligei-
ras, guardando sempre esse trao principal, caracte-
rstico, do individuo que altivamente recusa a ci-
dade ou a filha do soberano, porque ama uma mu-
lher do seu paiz natal.
O visconde de Puymaigre, baseado em Ferraro,
Bertoni, Chambrsis, Eujeaud, Tarb, Weckerlin e
Champfleury, que recolheram essas canes nas suas
obras sobre foik-lore , ennumera as regies em
<

que ella se repete: Messina e arredores, Veneza, todo


o oeste da. Frana, Champagne, Borbonez e Lan-
quedoc.
No conheo sua passagem e forosamente
a teve atravs da peninsula ibrica, mas tenho
a sua variante nos ardentes sertes de Nordeste,
onde ainda hoje a cantam rude e deselegante, no
emtanto ainda cheia de altivez e de orgulho sel-

vtico: j

Eu entrei de mar adentro


E fiz tanta estrepolia
Que o rei mandou me chamar
P'ra casar com sua fia!
O dote que o rei me dava:
Europa, Frana e Bahia,
Paizes de grande valor.
Terras de mil niaravia;
Sobrados de dez andares,
Casas de seis moradia.
399
Muitos carros e liteiras,
Cavallos de estrebaria,
Muita moeda de ouro
Enchendo muita bacia;
E a musica do rei na frente,
Musica de pancadaria!
Eu fui e lhe respondi
Que era pouco e no servia,
Que eu voltava p'r'o serto,
Mede casar com a Maria,
Que era a nica pessoa
Que meu corao queria!

RESUMO DO CYCLO HERICO OU DOS


CANGACEIROS
Poesias recolhidas por S) h io Romero nos Can-
tos Populares do Brasil:

1 Cano do Cabelleira
2 Cano do Filgueiras
3 Cano do Lucas da Feira.
Poesias publicadas por R. de Carvalho
no Can-
cioneiro do Norte:

4 Versos do Luiz do Rego


5 A. B. C. do Jesuino Brilhante
6 Cano do Quebra-Kilo
7 Versos do Liberato.
400
Poesias constantes da obra de Pereira da Costa
Folk-Lore Pernambucano

8 Dialogo do Cabelleira
9 Pelo signal do Luiz do Rego.

Poesias que esto em outros capitulos deste


ivro :

10 Pelo Signal dos Cangaceiros


11 A. B. C. da Revolta de 1912.
Poesias reunidas neste capitulo:
12 Historia do Valente Vilella
13 Cano dos Guabirabas
14 Cantiga dos Guabirabas
15 A vida dos Guabirabas
16 Cano do Santa Cruz
17 Cano de Antnio Silvino
IQ Antnio Silvino e Desiderio
20 Os companheiros de Antnio Silvino
21 Antnio Silvino e o Padre
22 Cano do Rei Mandou me Chamar
o CYaO DOS CABOCLOS

I
o CycJo dos Caboclos
No acervo riquissimo do -woik-lore.>
brasileiro
os caboclos deixaram, coho
tradio de sua vida
de sua aco na formao da
nacionalidade, um vasto
cyclo de canes, trovas,
lendas e relatos, no qual
apparecem sempre como preguiosos ou
toleirces
Releva dizer que essas historias
e cantigas no so
de autoria dos prprios ndios
domesticados que se
encostavam s fazendas incipientes,
ne-n daquelles
que
se
agrupavam, sob a cruz jesutica ou
sob a es-
pada dos capites mores, nos
aldeiamentos officiaes
que deram origem a muitas das
villas e cidades do
Nordesl.e brasileiro. Quasi todas
essas produces
folk-loristicas, que gyram em
torno dos pobres ca-
boclos, vm do elemento branco,
que o desprezava e
combatia por duas maneiras -- a
guerra de corso c
a diffamao, vistocomo elle se no submettia ao
eito como o africano, nem era physicamente
capaz
de tanto esforo. Muito poucos
se originam do ne-
gro, influenciado nesse sentido
pelos "remoques do
branco ou mesmo procurando levar
a palma ao in-
dio amansado, numa natural
emulao.
^
As qualidades de preguia e de
moamba do
indio so constatadas pelos
espritos mais srios.
404
Varnhagem no se canou Boehmer,
de descrevel-as.
na sua <^ Historia dos baseado em decla-
Jesutas,
raes dos padres da Companhia, que tinham obser-
vado os indigenas do nosso continente demorada e
profundamente, affirma que elles so preguiosos,
de intelligencia limitada, sensuaes, gulosos e srdi-
dos, somente trabalhando sob o aguilho da neces-
sidade e do medo, indifferentes a tudo desde que se
no sintam vigiados. So essas as qualidades que o
folk-lorc) se encarregou de ridicularisar e transmit-

tir memoria collectiva das geraes vindouras, num


interessante cyclo de produces correlatas em prosa
e verso.
Nesse cyclo tambm se podem incluir as versa-
Ihadas de autoria dos prprios caboclos, feitas para
defesa de sua raa maltratada. Esta, por exemplo:

A DEFESA DO CABOCLO

Tenho queixa de um homem,


Procede de bons parentes.
Por dizer numa conversa
Que caboclo no era gente.

Caboclo tambm gente,


Pois nasceu pela razo.
Todos so filhos dum pae,
O qual se chamava Ado.

Ado nunca foi captivo


.

405
Nem tambm tomado em guerra.
Toda a vida o conheci
Poi dono mesmo da terra.

Se ha outra gerao,
Quero que me digam onde,
Pois de Ado foi que nasceram
Duques, marquezes e condes . .

Quem tiver sua presumpo,


Presumir de ser verdadeiro,
Peo que, de hoje em diante,
No me pise no terreiro!

Deus me ajude a sustentar


O que lano pela bcca,
Para poder assignar-me
Chaves Rodrigues Caboclo!

A defesa diminuta e mal feita deante dos at-

taques, mais espirituosos e numerosissimos. Um del-


les o das canes que figuram os papeis pblicos,

certides, proclamas de casamento, dos pobres ca-
boclos, os quaes os envolvem num ridiculo terrvel.
Eis a certido do nascimento dum descendente de
ndio, cantada ao som da viola por um troveiro ser-
tanejo: i

A CERTIDO DO CABOCLO

Nestes sertes atrazados,


Um caboclo solteiro

I
406
Qi3iz casar-se, e o Vigrio
Exigio-ihe a certido.

Era a dita certido


De logar desconhecido,
E um vigrio toupeira
Attestou-lhe ter nascido:

Eu vigrio descollado,
<-

Na pagina numero vinte


Do livro dos baptisados
Achei a cousa seguinte:

Em mii oitocentos e quarenta


Achei que foi baptisado
Eelix de cr exquisita,
Filho dum tal Joo Torrado

Sua me Anna Tapagem


De Souza Barba Commum,
Salmoura Puz de Oliveira,
Cuspe de Fumo em Jejum.

Foram padrinhos do dito


Z Bate-beios Coto
E Don:^ Maria Crueira
Alves de Sa Mocot.

O mez e data no vo
Devido a pagina estragada,

407
O mais que achei escrevi
Sem que constasse mais nada.

Villa dos Desconsolados,


Doze ou dezoito de A4aio,
O vigrio Z Coxixo
Montenegro Para-Raio.

A satyra formidvel. No emtanto, ha peor.


As trovas que trocam os cantadores de desafio,
quando um negro e o outro cabdo.... Essas so
duma ferocidade terrvel. Nellas o cantador caboclo
defende a sua raa com unhas e dentes, e o
can-
tador negro attaca-a, ao mesmo tempo que
tambm
defende a sua. Eis uma silva de quadras
alternadas
desses curiosos desafios:

SILVA DE QUADRAS DE DESAFIO ENTRE


NEGROS E CABOCLOS
Caboclo no vae ao co
Nem que seja rezador,
Que tem o cabello duro
Espeta Nosso Senhor!

O negro no vae ao co
Nem que seja resador.
Que o negro catinga muito,
Offende Nosso Senhor!

Tenho visto muito negro


408 --

No altar dizendo missa


E caboclo ao mais que chega
E' a official de Justia!...

P'ra fumar, fumo da terra;


P'ra mascar, s mapinguim.
Mais vale um caboclo bom
Do que dez negros ruins!

Dizem, quando o negro morre,


Que Jesus Christo o levou;
Mas, quando caboclo morre,
Foi caxaa que o matou!

Xique-xiquje po de espinho,
Umburana po de abcia;
Gravata de boi canga.
Palet de negro peia!

Pulseira de besta peia.


Lenol de burro cangaia;
Mulher de padre visage,
Caboclo ruim canaia!

Negro preto cor da noite.


Do cabeilo pixaim,
Pelo amor de Deus te peo,
Negro, no olhes pVa mim!

O caboclo o rei dos bichos,

i
409
Coberto de carrapato, ^

E caboclo no vae missa


Porque no usa sapato.

Negro-preto de chapu branco


Me d um pezar de vr,

Parece '
tempestade,
Quando para chover!...

Lenol de cavallo sella


E manta cobertor:
a
Caboclo vem do diabo,
No vem de Nosso Senhor!

Branco ou preto ou caboclo,


Isto de cr no procede,
Do escuro que vem a luz,
O dia noite a ss acede.

Alm das quadras deprimentes, existe ainda na


memoria do serto, contra o caboclo, as celebres his-
torias de cal)cios, que as velhas contam s crean-
as e que estas guardam at velhice, para trans-
mittil-as a outras creanas. Nellas, a zombaria con-
I tra a raa vencida manifesta e a sua influencia no
espirito nacional, apresentando o descendente do n-

dio sob um aspecto de preguia fatalista, de immo-


bilidade deprimente, tal, que eu considero a pa-
gina do Qca Tatii uma historia de caboclo da alta
litttratnra nacional.
410
Em todas essas historias, o caboclo apparece
como velhaco ordinrio ou como toleiro. Dao-lhe
os dois extremos: ou sabido ou imbecil. Em qual-
quer dos casos, sempre o cabea de turco da
verve do ambiente. Vejamos algumas dessas anecdo-
tas sertanejas:

O CABOCLO E O OVO

Um fazendeiro devia pagar a um caboclo o


salrio de um anno de trabalho. Chamou-o e disse-
Ihe:
Vamos fazer uma adivinhao. Se voc adivi-
nhar, ganha, alm do seu dinheiro, mais cincoenta
mil ris; se no adivinhar, perde o dinheiro que lhe
devo. Est feito?
Est.
Bem. Ento, advinhe: que , que ? alvo ,
gallinha o pz.
O caboclo matutou largo tempo; depois, res-
pondeu triumphalmente:
Ou mastro de navio ou cabo de sovela!
Pierdeu o que levara um anno a ganhar.

O CABOCLO E A GUA

Um caboclo trabalhara um anno, para ganhar


uma gua. Quando devia recebel-a, o amo lhe disse:
Vou dar-te uma adivinhao. Se adivinhares^
levas a gua; se no, eu fico com ella. Queres?
.

411
Quero.
Que , que que cacareja aqui e no canto
pe um ovo? E' muito difficil e parece fcil. Tome
cuidado.
Aps longa meditao, o tlo replica:
Meu amo, isto s sendo cabo de foice ou
caiapua de alambique.
E perdeu a gua.

O CAEOCLO E O AVARENTO
Um avarento tinha cono crcado um caboclo.
Duas, trs vezes por semana, para poupar
dinheiro,
obriga va-o a jejuar^ dando como pretexto
que era
dia deste ou daquelle santo muito
milagroso. No
dia de todos os santos tambm o
obrigou ao je-
jum. Dahi a dias quiz fazel-o jejuar de
novo. O ca-
boclo respondeu que no, que j jejuara
um dia
por todos os santos . .

O CABOCLO E A QUEIMADA
Um caboclo traz ao amo a noticia de que en-
controu uma cerca de plantao, sendo destruda pelo
fogo nascido duma ponta de cigarro de qualquer
pas-
sante descuidado. O fazendeiro pergunta-lhe:
- Porque voc no derrubou as pontas do lance
da cerca, com essa foice que trazia ao hombro,
para isolar o fogo?
O outro rio idiotamente e retrucou:
412
Eu no tinha ordem de vosminc . . .

O patro, furioso:
Ento, porque no esfregou a bunda em cima
das labaredas para apagal-as?
E elle; espantado:
Credo! patro, eu no tenho bunda d'agua,
no senhor!

O (^ABOCLO E O RECEAl-NASCIDO

Numa fazenda, um
desmazelado servia
caboclo
de creadO' e sobre elle se lanavam as culpas de tudo
quanto apparecia de mal feito. Nasce uma creana,
filha do dono da casa. O caboclo dirige-se ao pae
e indaga, curiosamente, se o menino nasceu direiti-
nho, sem defeito algum.
Para que voc quer saber? pergunta o dono
da casa.
E' porque, responde o caboclo, o senhor

capaz de dizer que foi obra minha . . .

O CABOCLO, A MULHER E A ESPINGARDA

Um caboclo gabava a um amigo a sua espin-


garda de caa. Ella era ajuntadeira de chumbo, al-
canava to longe e to certeira, que elle, da porta
de sua casa, matara um veado que passava sobre um
morro, grande distancia. O amigo, incrdulo, per-
guntou quantos caroos de chumbo tinham akan-
ado o alvo.

1
.

- 413 -
Dois.
Dois. s! E onde pegaram?
O caboclo, atrapalhado com a mentira, explicou
sem pensar:
Um na cabea e outro no p.
Imj)Ossivel! compadre. Voc disse que a ar-
ma era ajuntadeira, como que nessa distancia ella
espalhou assim esses dois caroos?
O caboclo no soube o que responder. Mas a
mulher veio em seu auxilio:
No te lembras, Mati, que, quando atiras-
tes no bicho, elle coava a orelha com o p? . .

O CABOCLO, O PADRE E O ESTUDANTE

Um estudante e um padre viajavam pelo serto,


tendo como bagageiro um caboclo. Deram-lhes numa
casa um pequeno queijo de cabra. No sabendo como
dividil-o, mesmo porque chegaria um pequenino pe-
dao para cada um, o padre resolveu que todos dor-
missem e o queijo seria daquelle que tivesse, du-
rante a noite, o sonho mais bonito, pensando en-
gabelar todos com os seus recursos oratrios. To-
dos acceitaram e foram dormir. A' noite, o caboclo
acordou, foi ao queijo e comeu-o.
Pela manh, os trs sentaram-se mesa para
tomar caf e cada qual teve de contar o seu sonho.
O frade disse ter sonhado com a escada de Jacob
e descreveu-a brilhantemente. Por ella, elle subia
triumphalinente para o co. O estudante, ento, nar-
414

rou que sonhara j:i dentro do co espera do padre


que subia. O caboclo sorrio e falou:
Eu sonhei que via seu padre subindo a es-
cada e seu doutor l dentro do co, rodeado de
amigos. Eu ficava na terra e gritava:

.S>/, doutor, seu padre, o queijo! Vosmincs


esqueceram o queijo. Ento, vosmincs respondiam
de longe, do co:
Come o queijo, caboclo! Come o queijo,
caboclo 1 Ns estamos no co, no queremos queijo.
O sonho foi to forte que eu pensei que era
verdade, levantei-me, emquanto vosmincs dormiam,
e comi o queijo . . .

O CABOCLO E A VERRUMA

Um caboclo trabalhava como carpinteiro na casa


dun: fazendeiro. Ganhava por dia um salrio e co-
mia custa da casa. Levava sempre com.sigo um
filho de quinze annos, que nada fazia e comia tam-
bm o piro do fazendeiro. Este reclamou, dizendo
que o menino nada caboclo affirmou que
fazia. O
o pequeno servia para lamber a verruma, quando ella _

esquentava, furando os moures de aroeira. O dono


da casa, sovina, retrucou que elle deixasse o filho

em casa e, quando precisasse de algum para lam-


ber a verruma, o chamasse. Dito e feito, no dia em
que veio sem o filho, o caboclo chamou-o para lam-
ber a verruma e passou-lh'a na lingaa, escaldante...
-

415
O CABOCLO E O SOL
Um fazendeiro apostou com um caboclo tantos

nT^n
nascen r/mT"'.'^
t Ambos foram
""'"'''
"^""- ^^ ^^
de madrugada para
re.ro da razenda.
o ter-
Estava escuro, O branco
f.cou de
' "''''' "^ -=^-' -ntou!
se'nl"V'
se numa pedra, T'"'''
de costas para e!le,
olhando o poen-
te^ Int.mamen e,
o fazendeiro r,a da
asneira do ou-
tro. De repente,
o caboclo grita:
Meu amo, o sol! o sol!
Espantado que o outro
visse o sol nascer
poente, o fazendeiro no
volta-se e, com effeito,
um bri-
I ho de luz clareava ao
longe, vindo do nascente
sobre as nuvens amontoadas, por
os talhados de granHo
das serras, nra o
primeiro raio do sol. O
ganhou cabdo
t-aDocio
a aposta.

Esta historia velha como


o mundo. A titulo
de curiosidade e de
rapp,od,erne,u litterario.
o que conta Justino no leiamos
livro XVHI do seu
da Hisona Universal resumo
de Trogo-Pompeu-
Emquanto todos os outros,
reunidos desde o
meio da none numa
plancie, tinham os
olhos vol'
tados para o nascente,
somente elle di.ng.a o
olhar para o poente. seu
Procurar o primeiro raio
sol no occaso do
parecia a todos um acto
de sandice
Mas, quando approximao
do dia os ponto mal'
elevados da cidade
, douraram-se com os
pnZ
416
raios do astro, elle mostrou aos seus companheiros
o que elles em vo procuravam vr no nascente.

Foi assim que um escravo, segundo esse historiador,


obteve o governo, quando duma revolta dos escraws^

em Tyro.

O CABOCLO E A MOA

caboclo dizia gostar profundamente da fi-


Um
lha do fazendeiro em cuja casa trabalhava.
Assoa-

lhava que ella era sua namorada. Um dia, um tra-

balhador na roa lhe disse:


Caboclo, se o capito souber dessa historia
de voc namorar a filha delle, manda dar-te uma sur-

ra. Toma cuidado!


E o tolo respondeu:
Manda nada. A moa no sabe, como que
o pae ha de saber.
O outro, espantado, inquiriu:
Ento, se ella no sabe, como que voc
a namora?
E elle, todo ancho:
S namoro, quando ella me d as -costas.


O CABOCLO E A REDE

Um caboclo hospedou-se numa casa e, quando


armadores
quiz armar a sua rede nos ganchos ou
porque a rede era muito
da sala, no o poude fazer,

I
.

-117
pequena e a sala muito larga. O dono da casa
zom-
bou muito delle, que donnio no cho.
Chegando em sua casa, o caboclo,
para vingar-
se, mandou fazer uma rede enorme e
voltou a hos-
pedar^se no mesmo logar.
Dessa vez no poude ar-
mar a rede, porque era grande
demais, ficava arras-
tandr. no cho .. .

A LGICA DO CABOCLO

Indo de viagem, um caboclo


foi de companhia
com um branco e contou-lhe muita
historia men-
tirosa, no ficando calado um minuto. Ao despedir-
se, numa^ encruzilhada, disse-lhe o branco:
-- Adeus, caboclo pau!
O caboclo chegou em casa, pensando. Foi mu-
lher e disse-lhe:

Voc anda me enganando ahi com


qualquer
sujeito!

Porque, marido, voc diz este horror?!


Quem
lhe metteu esta mentira na cabea?
Foi um homem branco que me disse na es-
trada!

Disse como?
Elle falou: Adeus, caboclo pu. Ora, pau
duro, duro chifre, chifre corno, logo aquelle
homem (juiz di/er que voc estava me enganando...
418
MOTTES E GLOZAS
Alm das historias sobre caboclos, ha ainda a
incluir no mesrao cyclo as celebres glozas que os ca-
boclos fazem, desde que lhes dm um motte, com a
que lhes peculiar no serto.
facilidade -repentista
Uma feita, indo de viagem, um fazendeiro notou que
toda a vez que partia um pedao dum bolo, que
levava, um caboclo de mais ou menos
para comer,
quatorze que lhe servia de arrieiro, appro-
annos,
ximava-se da sua cavalgadura no emtant, quando :

delle precisava para qualquer servio, elle desappa-


recia. E doutra feita que uma de suas filhas, de
dentro da liteira de viagem, gritava pelo caboclo
que se sumira, disse em voz alta:

D-lhe um pedao de bolo


Que o cabc:o logo vem.
O meninote ouvio-o e glozou as suas palavras:

Na fazenda de meu pae,


'O perequito tem comido,
O pre tem destruido
Milho e que alli hai.
feijo
De alviaras um vintm j,
Que Deus lhe pagar bem,
E, para vosso consolo,
D-ihe um pedao de bolo
Que o caboclo togo vem.

A lembrana da raa aborgene no ioi somente


419
perpetuada nesses versos e racontos,
de ba ou de
ma inteno. Ella ainda vibra, na
representao do
Bumba meu boi, naquella cano dos
ndios da Ilha
Romana, em cujos versos pe
de fora a xabea
mais uma vez o motejo cruel
com que geralmente
se perseguio sempre no nosso paiz o caboclo in-
feliz.

RESUMO DO CYCLO DOS CABOCLOS


1. A certido do caboclo
2. Os proclamas de casamento do
caboclo, que
me no foi possivel colher
3. As trovas soltas,
4. O caboclo e o ovo
5. O caboclo e a gua
6. O caboclo e a queimada
7. O caboclo e o recem-nascido
8. O caboclo, a mulher e a espingarda
9. O caboclo, o frade e o estudante
10. O caboclo e a verruma
11. O caboclo e o sol
12. O caboclo e a moa
13. O caboclo e a rede
14. A lgica do caboclo
15. Mottes e glozas.
(No trabalho de Pereira da
Costa Foi k-Lore Per-
nambucano, ha varias quadras
interessantes que per-
tencem a este cyclo.)
n
POESIAS MNEMNICAS

1> A B C
2) Pelos Signaes
Poesias mnemnicas

O ensino das creanas, rezam os velhos escri-


ptores, comeava na Grcia antiga peia poesia, por-
que esi-a era o meio rnais fcil de guardar, nessa poca
em que o livro era difficil, a narrao dos aconteci--
mentos e o perfil dos homens nelles envolvidos. E
foi a memoria collectiva do povo grego quem pri-

meiro conservou os cantos admirveis dos rhapsodos.


Com a viso pratica que sempre os caracterisou,
os jesuitas que primeiro ensinaram no serto a gram-
matics e a rhetorica fizeram isso com livros didcti-
cos em verso. J tive nas mos, numa fazenda, um
curioso exemplar de grammatica portugueza antiga,
toda em versos. Praticaram desta sorte, porque logo
viram que a rudeza do povo sertanejo, o seu afas-
tamento da faixa civilisada do littoral, as difficul-
dades de sua vida, to cedo lhe no dariam outros
meios de guardar o que aprendesse ou o que visse,
seno por meio da prpria memoria.
Effectivamente, devido falta de communica-
es e de imprensa, de tribuna e de qualquer meio
de guardar os factos que mais o emocionam, o ser-
tanejo, obrigado em tudo e para tudo a s3 contar
424
oomsigo prprio, conserva-os de cr, em versos. E,
para ajudar a sua retentiva nesse grande trabalho,
usa nas suas pqesias de meios mnemnicos interes-
santes. Um, herdou-o de Portugal, profundamente
expressivo da religiosidade fantica e do clerica-
lismo don-inadores das aldeias lusitanas, o pelo
sigfial, consistindo em intercalar, formando sentido,
entre uma est-o^he c outra u-^i dos trechos da co-
nhecida orao. O segundo parece mais sertanejo e
sahio das prpria? escolas primarias das vilias e

povoados. E^ o a b c. Cada uma das vinte e seis


estrophes, quasi sempre sextilhas, da poesia, comea
por uma lettra do alphabeo. Como nos antigos
traslados de calligraphia usados nas escolas sertane-
jas figurava, depois do z, o til, os cantadores no
o esquecem e, uo pode-ido co.n elle comear pala-
vra alguma, fa/.e.n a seu respeito uma pilhria, um
arranjo ou um circumloquio:

A. B. C. do Bdc:
'

O til lettra do fim, '

jiudei o m_eu recorte,


O senhor Man Maturino
Conerio a minha sorte,
.
Com espingarda de espoleta
Me deu a tvranna morte!

.4. R. C. da Pobrpza:
O til lettra pequena,
Ponto de interrogao,
B. C,
. :

425
Escripto por minha mo.
Se com clle aggravo aos ricos,
A todos peo perdo!
A. B. C. da Revolta de 191 2:

O til Icttra final,

Serve de composio,
Se ?.' 1 fez e eu falei,

Com o de razo,
E' porque poeta no deixa, ''

E, se algLiem de mim tem fria,


A todos peo perdo!
A B. C. dos Rijes:
O til lei ira do im
Que na carreira do a b c tem:
A fortuna com qjje nasce
E' a sina com' que vem ! . .

A. B. C. do Joo Andr (J. Brigido, O Cear)


O til no fique de ra
Sem ter mais dilatao:
Enforquem o Joo Andr
E degradem a gerao!
A. B. C. do Mvrador (S. Romero)
O til por ser do fim
Sempre d uma esperana,
Na consolao dos affectos
At chegar a bonana.
A. B. C. de Amores (idem):
O til por ser pequenino
426
*

Tambm goza estimao:


Estou esperando a resposta
Que venha da tua mo.

A. B. C. da Moa Queimada (idem) :

O til lettra do fim;


Findo em pedir tambm
A Deus que me d gloria
Para todo o sempre, Amen!

A. B. C. do Arajo (idem)
O til no fique de fora,
Entre j sem dilao;
Venham ver o Arajo
Que j teve e hoje no!

A. B. C. do Jesuifio Brilhante (R. Carvalho)

O til lettra do fim,


Vae-se embora o navegante,
Me procure quem quizer
Cada hora e cada instante,
Me acharo sempre s ordens
Jesuino Alves Brilhante.

A. B. C. do Frade (idem)

Falta o til que no pode s,er escripto,


Porque o mundo j delle no faz conta,
Por ser um risco que mesmo infinito,
J hoje entre os homens pouco monta.
No ha predestinado nem perfeito
Que no tenha seu til sempre na ponta.


427
A. B. C. do Bode dos Grossos

A
Avia um bode aos Grosoos
Do senhor Francisco Gome.
Para pegal-o no matto
Nunca nasceu esse home. (1)
Se no como Jhe digo
As apparencias me consome.
(2)

B
Boi corredor de fama,
Sendo brabo em demasia,
No era capaz de fazer
O que esse bode fazia:
Quando avistav^a vaqueiro
Avoava^ no corria!

C
Corria pelos serrotes
E o povo se admirava.
Parecia que a esse bode
O capirio ajudava, (3)
Pois cavallo bom de gado
A elle no se chegava.

D
Dizia elle comsigo,

(1) Esse home um homem qualquer.


A^^ ^^ .^^"^^'"^^ nie consomem, isto me , enoanam,
(3) Capiroto ~ diabo.
42S
Quando andava no serrote,
S me temo e muito pouco
E'do creoulo Thimote,
Ou enio de arma de fogo
Que pode me dar a morte.
E
Eu me temo do Thimote,
Porque, numa occasio.
Dizem que pegou um bode
Com fora de orao,
E pode rezar p'ra mim,
Abrandar-me o corao.
F
Fiz um protesto com migo.
Pois minha obrigao,
No consentir que vaqueiro
No meu corpo ponha a mo,
Seno depois de eu morto,
Que morto no tem aco.
(j

Grande fraqueza de homens,


Grande falta de mora! (4)
O Joo do velho Pedro,
Tambm veio me pega.
De certo elle pensava
Que eu era como imbua!... (5)

(4) Mora
moral.
(5) Imbua, espcie de c:;nto':)eia, qsie, quando toc-ia, para
e enrosca-se.
.

-;2<^
H
Homem que me perseguia
Era Man Victorino,
Com uma uria muito ^^rande,
No cavallo do Cyrino;
Mas eu ti sebo nas unhas (6)
E o tirei desse destino. (7)

O Joo do vellio Pedro


Do cabello de caipora, .

Tem o cx)rpo de macaco


E os ps de negro d'AngoIa!
No voc que me pega
c

Regeito de tat-bola! (8)

L
Lino Pereira Cacundo,
Com os seus ps de pavo,
Em cima do Caraba (9)
Veio a mim unia occasio;
Mas eu dei geito no corpo,
Tirci-o dessa i Iluso.

M
Meus amigos no se cancem
Nem faam taiio zuni-zum,

l (6)
(7)
Dar crho nus unhas - correr, fugir.
Desiino
man a i

(8) Tathna. No fundo, a mesma ida do imbua. RegeJto'


quer dizer ah? artelho, jarrtte.
(9) CAirauba womi u\\\ cavallo.
430
Que dez dos Lines Pereiras
Eli deixo de um em um.

Eu no sou feijo com casca,


Nem maxixe ou gerirrain! . . . (10)

N
No direi me peguem,
que no
Nem que chumbo no me mate,
Mas se Lino me pegar
O demnio me arrebate,
Pois no sou sapo peiado
Que se pegue em qualquer parte.

P
Perseguio-me fortemente
O senhor Man Victorino,
Todo cheio de crgullio .

Num cavallo do Salvino;


Mas uma vez eu j fiz

EUe perder o destfno.

Q
Quiz e pude me livrar

Das unhas de tanto lobo.


S no me pude livrar
Do demo da arma de fogo.
Se eu no tinha nascido.
sei,

Eu s nasci foi de bobo!


R
Rolando esse barulho,

(10) Gerinium aboL-ora,


431
Era s em que se alava.
At o Joo da Velha Anna
Tambm disse que me pegava.
Coitadinho desse tolo!
Que nem delle me lembrava.
T
Triste sou um bode branco,
Ningum melhor do que eu.
Zeferino e Manoel
Fizeram vez de judeu,
Me deram mais de dez tiros.

Nenhum delles me offendeu!


V
Voltavam elles p^ra traz,

Dizendo um para o outro:


No matamos aquelle bode
Por arte do capirto.
Como cousa que eu fosse
Ou grillo ou gafanhoto.

Xumbado, diziam elles.


Eu estava como renda.
So dois primos muito unidos,
Podem andar de encommenda,
Pois meu corpo estava limpo
Como pea de fazenda.
Z
Zangado, seu Maturino
Disse todo cheio de ira:
432
Se eu fr contra o bode branco
Eu o trago na imbira. (11)
Quero mostrar a este povo
Como que homem atira!

TIL
O til lettra do fim,
Afindei meu recorte,
o
O senhor Man Maturino
Conferio a minha sorte,

Com espingarda de espoleta


Me deu a tyranna mortel (12)

A. B. C. da Pobreza

A
A pobreza neste mundo
Lamenta trabalhos seus.
Eu falo com causa justa,
Que tambm lamento os meus.
Resta-me s a esperana
Que o pobre c filho de Deus.

B
Bem sei que onde ha riqueza,.

A prata, o ouro e o cobre,

A pompa e a fantasia,

(11) /m^/ra -corda de palhas


de carnaba.
12) A memoria sertaneja
perdeu ja algumas estrophes
letras 1., K., U., b. e U,
deste a. b. c No p'At encontrar as das
433
A honra o brazc do nobre.
Se hei de viver arriscado,
Prefiro anes ser pobre.

C
Coitado de todo aquelle
Que quer ter moeda forte
E se enche de orgulho e sobe.
No penso assim, desta sorte.
Pois ser sem resultado
Quando Deus mandar a morte.
D
Devemos amar a Deus
E abandonar a avareza,
Adorar com a fc mais pura
O autor da natureza,
Pensando ao mesmo tempo
Que no co no vae riqueza.

E
Eu quero bem pobreza,
Porque delia sou irmo,
Embora ella me atraze;
Mas eu conheo a razo,
Pois que herana minha,
Devido culpa dt Ado.

F
Feliz do pobre que soffre
Seus males com pacincia,
Com ba resignao.
- 434
Com juizo e com prudncia.
O que soffre neste mundo
No outro Deus recompensa.
Q
Grandeza neste mundo
Facilita a momento,
cada
E' como sombra da nuvem
a
Demuda-se com o vento.
Por ahi se reconhece
Que no rico omnipotento.
H
Homem pobre c na terra
E' tido como ningum.
Segundo o riao antigo,
Na terra vale quem tem.
Mas o que Der:S tem p'r^o pobre
No seu tempo certo vem.
1

Ira-se um pobre na terra,

Perde da Gloria a esperana;


Seria a ultima cousa
Que tinha p'r sua herana;
Perde tudo, nada lucra;
De quo serve essa vngana?
j

j falei no que sabia


Contra quem soffre pobreza.
Um pobre, filho de Deus,
No precisa de riqueza;
435 -

Tendo thesouios no co,


Para que maior grandeza?

K
Kalendario dos christos,
Aberto, perfeito e puro,'
Conselheiro da pobreza,
Caminho certo e
seguro
Luz para cfuem anda errado,
Clareza para o futuro!

L
Louvemos Deus de sennos
pobres,
De gosto e de boa vontade.
Trabalhemos pela f,
Esperana e caridade,
Para ver se ns herdamos
A feliz eternidade.

M
Maria sempre foi pobre,
Jesus nada possuio.
Seus tormentos dolorosos
Com pacincia cumprio.
Triumphante e
glorioso
Nos altos cos assubio.

N
Ningum fale por ser pobre,
Que fala contra a razo.
Ainda que Deus nos desse
A cada um um milho
436
Tornava-se um eirbarao
No caminho da salvao.

O
O trabalho mais horrivel
Que eu acho a soffrer
E' o trabalho do pobre,
E' querer e no poder;
Porem queai soffre por Deus
Tudo nada vem a ser.
P
Pilatos foi grande homem I

Herodes, rei coroado!


Espelho de luz bem clara
Para quem vive enganado.
Porem todos ns sabemos
Qual foi o seu resultado.

Q
Quero ouvir algum dizer
Porque me vejo atrazado,
Imagino ao mesmo tempo
Que ha muitos no niesnto estado.
No sou s eu que padeo,
Com isto estou consolado.

R
Rico julga ser aquelle
Que tem bom regulamento,
Ama os preceitos divinos
E adora os dez mandamentos.
437
Se nesse mundo o desprezou^
No outro tem apozenos.

S
S quero crer, sendo pobre.
Que ha um Deus universal,
Que me livra de tentaes,
Me purifica do mal
E me separa um cantinho (1)
Na Gloria Celestial!
T
Todo o homeT! fosse rico,

Grande, nobre e poderoso.


Ficava o mundo composto
De avarento
e de orgulhoso,

Tornando-se para o futuro


O tempo mais perigoso.
U
Um monarcha aqui na terra,
Um imperador,um sulto,
Um visconde ou um major,
Um duque ou um capito,
Com a morte reduzidos
A cinza e poeira so!

V
V-se uma arvore revestida
De flores arrodeada.

(1) Separa reserva.


438
Dahi a pouco est despida
E pela luz dos sol ornada.
Por ahi se reconhece
Que riqueza no vai nada.
X
Xaveiro que sois do co,
Pedro ditoso e querido,
Vs que tambm fostes pobre
Attendei nosso pedido,
Fazendo com que sejamos
Do bom Deus favorecido.
Z
Zombar deste A. B. C.
Feito e escripto por mim,

Se houver christo no mundo


Que o censure e ache ruim,
Esse ou vem de satanaz
Ou procede de canhim. (2)
TIL
O til lettra pequena,
Ponto de interrogao,
Incluido neste A. B. C.
Escripto por minha mo.
Se com elle aggravo aos ricos,

A todos peo perdo!

2) Canhim. Outra expresso que se no explica.


Parece
ta-atar-se do diabo co, capeta, capeie, capirto, canhta e
:
ca-
nhoto, como chamado pelos matutes. Canhim talvez uma
outra forma, que desconheo.
439
A. B. C. da Scca dos dois Setes (*)

(1877)
(POESIA DE ANTNIO BAPTISTA DE VELLO, POETA
PARAHYBANO, NA VVR L DA vTLLA DO TEIXEIRA
'
)

]nthoi)l'(;(;ao

Feito e escripto por mim,


mim contra todos,
Falo por
Segundo meu mo estado,
Quem j fui e hoje sou,
Como me vejo tornado!
Tenho sido castigado.
A
Ando hoje feito triste
Como um pobre peregrino,
Soffrendo, envergonhado,
Da sorte o golpe ferino.
Se tudo delia depende,
Devo cum*prir meu destino.

B
Bens de fortuna jio tenho
Parame remediar,
Quem me deve no me paga

(*) Este abe no fala de tal scca, mas, como nella que
o cantador foi reduzido pobreza, o povo assim o cliama.
440
E a ningum posso pagar.
Tenho pejo de pedir,
Muito medo de roubar.
C
Considerando na vida,

No se pensa um s miomento,
Sinto meu peito abrazado,
Meu corao sem alento,
Remorso na natureza,
Variar meu pensamento!
D
Dizem que o mesmo Deus
E' amante da pobreza.
Que uns vivem como pobres
E outros gozam de riqueza.
Deus abomina somente
A desgraada avareza.
E
Eu padeo mais que todos,
No tenho consolao,
Emquanto pude, fiz bem.
Falo com toda a razo,
Aquelles a quem m.ais fiz
Hoje desprezo me do.
F
Figurei perante todos
Como sendo illustrado.
De camarada e amigo
441
Sempre fui bem visitado,
Dos melhores do logar
Onde vivia socado. (2)
O
Ganhei muitas amizades
S<^ pelos meus possudos.
''
's que me occupavam
; foram bem servidos,
= ^ ^
elles passam por mim,
Fazendo-se desconhecidos.
H
Honrado s.) o homeni
Que bens de fortuna tem.
Amisade, - fiquei certo.
S de adulao provm.
Um velhaco faccinoroso
Dizem que homem de bem.
I

Infeliz eu tenho sido,


Mas no sou adulador.
Aqui mesmo eu conheo
Um hornem rico e traidor,
Com faltas bem conhecidas,
Passando por bom senhor.
j

Jurar no necessrio.
Para falar a verdade.

(2) Recolhido.
__ 442
Vejo com adulao
Muitos terem amisade,
Vejo muita tyrannia
Em logar de santidade.

K
Klice de cruel rigor
Com que hoje sou contemplado!
Tendo todos contra mim,
De todos sou desprezado.
At pobres orgulhosos
De mim se tm afastado.
L
Lamentando a minha sorte,
Pelos transes que padeo,
A Deus eu peo soccorro,
Porem sei que no mereo.
Tenho que achar recurso
Na misria de que careo.

M
Morto ando sem morrer.
No se fala mais em inim.
No tempo em que eu podia,
No me tratavam assi n.
Eu j ando quasi morto,
Venha, morte, dar-me fim!
N
No posso resistir mais,
Os meus passos so baldados.
443
Procuro, porem encontro
Todos os portos tomados.
Meu Deus, que ser de mim?
Grandes so os meus peccadosi
O
Onde esto os camaradas
Que me faziam festejo?
Como vivo na pobreza,
Fogem de niim, no os vejo.
At os prprios parentes
Commigo falam com pejo.

P
Pacincia- tive at *^oje.

Ter mais? No posso ter no!


Que a sorte me combate,
Conduz desilluso.
No ha desgraa maior
Do que viver na affiicro!

Q
Queria ter um logar
Para nelle residir,

Onde ningum transitasse;


Eu sem vr e sem ouvir;
Lamentando minha sorte,
Finalmente succumbir.

R
Rasgado hoje me vejo,
Descalo, de p no cho,
444
Sem ter geito de comprar
E, se pedir, no me do.

Como se pde viver


Em tamanha concluso? C^)

Sociedade no vejo (**)


Perante a humanidade.
No mundo s vai quem tem,
Esta a pura verdade.
E j muito sanlarro
Falta at com a caridade.

T
Todo aquelle que zombar
Deste meu penoso estado
Pea a Deus felicidade,

Para ser afortunado.


Se cair na indigncia,
Sabe o que c ser desgraado.
U
Um s amigo irie resta

De tantos por que fui cercauu.

Conheo que somente


Por ser elle delicado.
Muitos favores lhe devo,
Dos quaes lhe sou obrigado.

(*) Acabrunhamento.
<**) Sociedade por solidariedade.
445
V
Vejo a minha famlia,
Soffrendo necessidade.
Eu, afflicto, sem poder,
Na mesma conformidade! '')
Assim como Deus servido,
Cumpra-se a sua vontade!
X
Xaropadas amargosas
I'or vezes tenho bebido!
Boccados bt.-m aniargosos,
Calado, tenho comido!
S Deus sabe o que padeo,
Soffrendo sem un; gemido!
Z
Zeloso eu sempre fui
De compaixo e de amor.
Daquelles, que se encostaram
Em mim, consolei a dor.
De muito bom corao
Sempre fui animador.

EPlLCXiC)
Contricto, quero findar
Me lembrando do passado.
Eu s no sou peccador (**)

(*) Nas mtsmas condies.


(**) No son o iinico peccador.
44
Nem o ultiiTiO culpado.
O que mais alto estiver
Pode findar desgraado.

A, B, C. do Nicandro
(POESIA DO POETA PARAHYbANO NiCANDRO NUNES
DA C jS TA )

A
A. B. C. cantae agora
A minha biographia,
Apontando aqui no Norte
Minha fulgente magia.
E me assista em todo tempo
Nossa Senhora da Guia!
B
Bom Deus e pae to meu ser,

Em uma era ditosa,


Em mil oitocentos e tanto
Era um cravo e un^ta rosa;
Crescendo, encontrei mudana,
Extranha e vagarosa.

C
Com dois mezes j falava,
Mostrando a intelligencia. (*)

(*) Esses prodicri )s dos menino'^ falare n. lerem, propheti-


sarem muito cedo s iO r iodos os foik-lor s. j um filho de
Creso, rei da Lydia, 0:0 pheisou, secando Mnio, acs seis me-

I
Os meus pes me creavam
Com perfeita pacincia,
Eu a ambos respeitando
Com a mais pura reverencia.

D
De seis annos, com bom gosto,
No trabalho me applicava.
Achei ba a profisso;
Sem preguia trabalhava,
No sabendo meu porvir,
Nem para onde marchava.

E
Extranhando ern minha vida
Essa sina maviosa,
Quiava-me a m.inha estrella,
urea fonte cuidadosa.
Guiava-me, parece, o fado
A' puberdade amargosa.

F
Foram oitenta e oiio annos (*)
De uma grande fartura,
Muito leite, muito queijo.
Muita carne com gordura.

zes de idade. Um outro tambm falou no bero, secundo a


Vida de Santo Antnio; nos cantos ca^alies e provenaes ha
traos idnticos, diz o Visconde de Puymaicrre. Entre os ra-
bes ha outro que falou quatro horas deiois de nascido!
(*) Refere-se ao tempo decorrido do comeo do anno
scca de 18S8 a 1889, como se vcr da estroohe I.
448
No meio dos a vexam es
Acode um. Deus da Natura.
G
Gozando quatorze annos
Em to tenra mocidade,
No tempo da illuso,
S viviade vaidade,
Em passatempos profanos,
Um peralta eni cega idade.
H
Hera um louco nesse tempo,
Tomei paixo de amor
E j que gosto tem
sei

J sei o que pena e dorl


Triste daquelle que ce
Nesse togo abrazador!
I

Inverno no outro anno


Esperamos ,mas no veio.
Sim veio a necessidade
Nos botar um duro freio,

Fazendo ir buscar recurso


L onde fosse menos feio! (*)

j
vinte annos contava,
J
Tive um desgosto mortal

(*) A emigrao a que os sertanejos so obrigados 'nas


sccas em procura do littoral. Fazem a retirada. De onde reti-

T antes.
_ 44Q -

E determiiiei-L;e a deixar
A minha terra natal,
Por via dum inimigo,
Para evitar tantos mal!

K
Kdifn dos poetas antigos
Do tempo da idolatria,
Com Radhamanto e Eaco ('')

Por juizes de valia,


S creio no Evangelho
Do Filho da Virgem-Pia!
L
Lembrai-vos de wm, Virgem!
E a padroeira Magdalena
Neste vai de amarguras
Do seu servo no tem pena.
Nos dias de minha vida
Nunca vi peores scenas!
M
Me de Deus, mc de doura,
De mim tende compaixo!
Meu remdio, meu amparo,
Virgem, est em vossa mo.
Dos meus enormes peccados
Dae-me o ditoso perdo.

Nicandro tinha certa


(*) Irucco hebida com os anti-
i i.

g;osprofessores de latiin e rlietorica uo serio. Dahi estas rel-


quias de sceiscentistno sertanejo.
4dU
N
No consintas que eu viva
Em estado semelhante.
J conto vinte e dois annos,
Ja passei de ser infante.
To moo em tanta affiico,
Que dir daqui por deante^! (*)

O
O presente eu estou vendo!
Que ser o meu futuro? (**)
Neste vale de amargura
No ha quem viva seguro.
Se Deus no guiar meus passos,
No sei como andar no escuro.

Pego a pensar nesta vida! (^


**)

Neste mundo de enganos,


Vivem muitos libertinos.
No se importam. So ufanos.
Deus tudo observa e v
Nos mais ntimos arcanos!
Q
Quem vive com os ps na terra

A tudo vive sujeito,


Ha de cumprir sua sorte.
(*)(**)' Dreciso conh cer ce viw. o horrcr da scca para
comprehennder o profundo- senimentc liesie^ versos.
(***) Pego> cometo.
451
Olhem que isto sem geitoi
Feliz de quem traz a dita
De em paz rr:orrer eiii seu leito!

R
Repouso na minha vida,
No tive em pequena idade,
Soffrendo mil dissabores
Em grande calaiiidade,
Sem encontrar uma ra
Que me d prosperidade.
S

Se temos um anno scco,


Pede vir a ser peor.
Scca com epidemia,
No ha castigo maior!
Ns s queremos no rr^undo
Escolher canto melhor.

Tenho bom comportamento.


Com o que Deus faz sobre a terra

Ellc sabe o que est fazendo.


Deus sbio, Deus no erra,

Sabe o que deve de haver:


A peste, a fome ou a guerra!

U
Usura, rc, c o tempo
De tu bem te aproveitar,
452
Dos objectos dos pobres
Por baixo preo comprar.
Quem morrer nesse peccado
Ter muito que penar!
V
Vejo as cousas como vo
E tico muito admirado:
A Nova-Seita vae andando (*)
De Estado para Estado.
O fim do mundo enganoso
Eu j vejo approximadol
X
Xiro^^raphia parece (*""')

Obrigar minha sorte.


a

Qual scra a minha estrella


E qual ser o meu norte?
E essa triste carreira
Ser assim t morte?!
Z
Zephyro, Borea e Notos (***)

No me levem para o abysmo!

(*) Nova Seita Protestantiemo. Alluso propaganda


protestante no interior dos Estados do Nordeste.
{**) Xirographia. Certamente xylographia. No emtanto, no
forma sentido. Parece que a difficuldade de achar uma pala-
vra iniciada por x obriga o poeta a lanar mo dessa ta, si
que a tradio orai no corrompeu o sentido primitivo.
(***) Vide a nota sobre Radhamanto. Ainda o seiscentismo
sertanejo. Mas as pessoas que sabem de cr este a b cno serto
nio dizem Zephyro, Boreas e Notus, sim Zephyro borras as no-
tas. E' assim que se perde o sentido original de muita coisa.
453

Peo a nosso eterno Pae


Que esse paroxysmo,
cesse
Lavae todos os meus peccados
Benta agua do baptismo!

A. B. C. da Revolta de 1912, na Parahyba


(POESIA DE LAURINDO PEREIRA, O PI \', POETA DO
TlilXEIR'., NA PARAHYBA)

A
Agora se revoltou
Hermc em Rio de Janeiro, (1)
Com muita fora e talento,
Como chefe verdadeiro.
Valente ou morre ou arriba, (2)
No Estado ,da Parahyba
Quer acabar cangaceiro!

B
Batalho vive subindo, (3)
Cada hora, cada instante.

J hoje contra o governo


No ha mais quem se levante,

(1) Hermc n uiarechal Hermes, enio presidente da Re-


pnblica.
(2) De arribar -?ubir.
(3) Subindo. Allnso remessa constante de foras para
o interior pertnrl .. da Parahyba. O sertanejo diz subir de
quem demandn w :o e descer de qu3m procura o lttoral.
.

Como os rio:-.
454
Nem os valentes guerreiros .

Quem foi ou cangaceiro


J hoje est sem garante. { I)

C
Combinaram dois Estados,
Parahyba e Pernambuco,
Vir de encontro a essa gente, ()
E o rebate o sueco!
Vae-se ver um bom servio.
Quem entender menos disso
Ou est doido ou maluco!
D
Dei ordem a todo valente,
Alferes, sargentos, soldados,
P^ra fazer esse servio.
Apois elles so mandados
No iogar onde se encontram
Homens de riffle e punhal.
Que sero afusilados.
E
E^ este o tempo chegado.
O acto agora est sio! (6)
Vo uns presos, outros mortos,
Isto quero porque quero!
Os que andam no cangao

(4) Garante garantia


(5) Allusan ao c ..nvenio enre vari^s Estados do Nordes-
te contra o cangaciiri; mo, que, alis, no deu resultados.
(6) Acto sem caso S*rio.
455
Tm de cahii neste lao:
Na cadeia ou cemitrio!
F
Faziam os cangaceiros
No mundo muita derrota; (7)
Juntava-seum grupo immenso
Sem temer nenhuma escolta.
Se vinha foia do Estado,
Punham tudo em debandada,
Porque chegou a revolta.

G
Guerra foi annunciada.
Ento, o grupo correu.
Por causa de muito aperto,
Quem no devia soffreu.
J no primeiro ensaio
Houve um grande esbandaio (8)
F a maior parte morreu.
H
Horroroso estava o tempo!
No havia mais respeito,
Apertavam rico e pobre,
Levavam tudo de eito! (Q)
Parecia que este mundo
Era uma cousa sem geito.

(7) D^rro/j maldade.


(8) Esbandaio
de esbandalhar.
(9) Eito do eito da cscravidG. Tratados todos como es-
cravos.
456
I

Irado falou o chefe


Que a Parahyba governa!
Revoltou-se contra elles!
Muitos erichcram na perna (10)
E no duvido que ainda tenha
Uns escondidos na brenha
Ou socados na caverna. (11)

Justamente no que faio


E no perco este assumpto.


Hoje andam debandados,
Dizendo: no me ajunto.
Tropeados, mortos a fome; (12)
.Muitosmudaram de nome
Hoje se chamam defuntos . .

K
Kcitucado pelas foras, (13)
Quando um pegam e tm nas unhas,
Para saber se c cangaceiro,
Apertam-lhe bem as cunhas.
P'ra os soldados os no matarem
Precisam que no so provarem
Com nove e dez testemunhas!

(10) Encheram na perna deraiii s de V^illa Diogo, puze-


rtm-se na perna, fugiram. J
(11) Socados mettfdos.
(12) Tropeados
esrropeads.
(13' KaUicadrs Difticulda.ie^ d. K. r)e catucar.
L
Livrana tiveram todos
Do que fizeram em Patos. (14)
Mas veio nova sentena,
lodos ganharam os mattos.
No tm para onde fugi
Os soldados so suti, (1 5)

Muito peores que gatos.


M
Mesmo assiui, veio uma ordem
Levando tudo escala, (16)
Seja pobre ou seja rico,

Se tiver .crime no fala.

Foi preso, est sem futuro,


Antes de responder, juro,
Ter sentena de baa!
N
Nada tem o que fazer
Esto cercados a redor.
Cangaceiro e criminoso
Tem que ir tirar cip. (1 7)

No andam mais pelas ruas

(14) Alluso ao ataqiio e incendi) de Patos, porque no foi


ningum punido.
(15) Fugi e suti fugir e sabii : a ;^.rosodia serfaneja faz a
rima.
(16) Uns depoi? dos outros escalados. :

(17) Nord'stv%o3 nresos iTabalham tirando cip no mat-


No
to para fazer cestas ou limpando as praas e ruas do mata-
pasto.
45y
Que as sentenas esto cruas
E vae de mal a peor!

O
Opprimidos, esto vendo
Na- mais terrvel afflico.
Por causa da m conducta
Esto nessa obrigao, (18)
Sem ter para onde correr.
A felicidade morrer.
E de Deus haver perdo!
P
Perdoados podem ser,
Pela justia divina,
No por esta c da terra.
Tm de cumprir sua sina.
Que por elies ningum fala, (19)
S cadeia, refle e baia (20)
De Manulicha e carabina. (21)

Q
Quem se acha crirr.inoso
V^ive triste e descontente,
Por causa da obrigao (22)
Que ha hoje no presente.

(18) Obri^ao ci.rr-trancinieilo.


(19) F-ala
intercede.
(20) /^c/?e
sabr -bayon -ta .Coiiiblain das antigas policias.
(21) Manulicha
Aiannlicher, primeiro fuzil do Exercito e
hoje de alcrunias policias estadoaes. .

(22 ) Or/o^7;!9 constrang-imento.


45y
A fora no es garante
E esperam a cada instante
Morrer apressadamente.
K
Raro o criminoso
Que a fora hoje rodeia (23)
Que no v se derramar
O sangue de sua veia.
Quando um prezo, tudo diz
Que foi muito feliz,

Porque entrou na cadeia.


S
Succede s vezes, por acaso,
Um receber voz de priso,
Dando prova de seus crimes
No fazer por preveno. (24)
Esse no desfeiteado,
Vae preso, porem honrado.
Porque lhe assiste razo.
T
Tendo commettido o crime
S pela primeira vez,
^orque se vira aggredido
E assim obrigado fez,
Esse a fora garante,
Porque tem attenuante
Pelos artigos da lei.

(23) Rodeiar cercar, perseguindo.


(24) Preveno
prenieditao.
460
U
Um crime s sem geito
Para quem vinga paixo.
Mata outro a sangue trio,

Sem motivo e sem razo.


E' castigado, porque erra.
E, pela justia da terra,
Para elle ha priso.

V
Veio a do governo,
fora
Tudo prompto e bem armado,
Espancando cangaceiro
E guarnecendo o Estado.
Faiando de modo sro
De tudo quanto quizero
Era o tempo chegado.
X
Xilota, dando servio, (25)
Matou gente at de pisa. (26)
Os terrenos duns p'r'os outros
J -hoje esto sem divisa. (27)
A fora de Castro Pinto
Aonde vae no ctllsa. (28)
Z
Zangados contra o governo.

(25) X//07 vadio.


(26) Pisa
pisadella e, por extenso, surra,
(27) Divisa
marco ou li-mite.
(28) Alisa
pou ^a.
401
Muitos em arma pcgou^
Fazendo muito barulho
E causando grande horror.
Para j)rovar os meus versos
As praas esto no commero (29)
E os cangaceiros arribou. (30)

TIL
O til lettra final,

Serve de composio,
Se algum i'e/ e eu falei
Com m Oliva de razo
E' porque poeta no deixa, (31)
E, se algum de n.i.ri tem quei.xa,
A todos peo perdo 1 (32)

(2Q) Commero
comni-.rcio. A rua das casas de negocio
nas villas e povoados do interior ou o mercado. E' ahi que o
cangaceiros, quando occupatn uni logarejo, passam o tempo a
beber, jogar e fazer distrbios. Do mesmo modo procedem os
toldados. Assim, quando um dos dois partidos aili se acha
que o outro foi derrotado.
(30) Arribou arribaram, foram embora.

(31) No deixa no esquece.
(32) Esta poesia e refere grande invaso da Parahyba,
em 1012, pelos bandidos de Santa Cruz, Neco Janucio, Dantas
da Immaculada, .Antnio Silvino, etc, a qual motivou a remes-
sa de muita tropa estadoal e mesmo federal para o serto, No
fundo, o caso era poli.ico.
464
Pelo Signal do Sertanejo

A fome est devastando


O Rio Grande do Norte;
E eu que estou perto da morte;
Pelo signal.

Se no chuver em geral
Logo no mez de Janeiro,
No fica um s fazendeiro
Da Santa Cruz.

Eu por miro j' me dispuz


A morrer de tome: feiol
Mas de pegar no alheio
Livre-me Deus!

Aqui mesmo entre os meus


Pretendo a fome passar,
Porque me ha de ajudar
Nosso Senhor.

Elle que anda a favor


Dos mal arremediados,
Traz agora aperreados
Os nossos.

Mas hei de acabar os ossos


E no alheio no bolir,
Para no adquirir
Inimigos.
465
Desprezam-me os meus amigos
E, pVa no perder a bola,
Vou dar p'ra pedir esmola
Em nome do Padre.
Se, implorando a caridade,
No me matarem a fome,
Eu ainda peo em nome
Do Filho.

E se eu seguindo este trilho


No me derem um s vintm,
Eu peo em nome tambm
Do Espirito Santo.

Se no me cnchugarem o pranto,
Eu, que morrer no desejo,
Me mudarei para o Brejo,
Amen

A fome faz coin que,


Com a sua cruel sorte,
Eu esteja perto da morte
^elo Signal.

Pelo Signal da Fome (')


Se no chover em geral (2)
De janeiro p'ra diante
Morre gente a cada instante
Da Santa Cruz.

(1) Lste Pelo Signal uma varani- de primeiro.


(2) Chover em f^cnil - c!iove;- no m.-. .
todo.
468
Que matam mais que bexiga!
A essa gente persiga
Nosso Senhor!

Todo homem malfeitor


Merece grande castigo,
Pois eJle inimigo
Dos nos:os.

Os cangaceiros mais grossos, (3)


Como God e Silvino,
No se fazem do mofino
Inimigos.

Mas do alheio os amigos


Querem deixar-nos com fome.
J se esqi?eceram do nome,
Do nome do Padre.

Se o governo por bondade


Livrar-nos delle no vier,
Damos-lhe os bens da mulher
E do Filho.

Quando apparece um caudilho,


Ameaando o serto.
S temos a proteco
Do Espirito Santo.

(3) Grossos grado?.


469
Vamos procurar uni canto,
Onde no v cangaceiro
PVa guardar nosso dinheiro,
Amen!

Ao futuro presidente
Offerecemos, ento,
O nosso pelo signfl,
Que serve de petio.

Pelo Sgna da B ata

Comadre, conhece o Juno? (1^


Eu nunca o cheguei a ver
F^ois o podia conhecer.
Pelo signal.

E' francez o general,


Impostor e usurrio,
E ainda mais adversrio.
Da Santa Cruz.

Santo nome de Jesus!


E no haver quem d cabo
De semelhante diabo!
Livre-nos Deus.

(1) Juno, Junote e Jinote so es modos de pronunciar d


^ulgo.
468
Que matam inais que bexiga!
A essa gente persiga
Nosso Senhor!

Todo homem malfeitor


Merece grande castigo,
Pois elle c inimigo
Dos nossos.

Os cangaceiros mais grossos, (3)


Como God e Silvino,
No se fazem do mofino

Mas do alheio os am^igos


Querem deixar-nos com fome.
J se esqueceram do nome.
Do nomt do Padre.

Se o governo por bondade


Livrar-nos delle no vier,
Damos-lhe os bens da mulher
E do Filho.

Quando apparece um caudilho,


Ameaando o serto.
S temos a proteco
Do Espirito Santo.

(3) Grossos grado?.


,

469
Vamos procurar um canto,
Onde no v cangaceiro
P^ra guardar nosso dinheiro,
Amen!

Ao futuro presidente
Offerecemos, ento,
O nosso pelo sigr,r>l

Que serve de petio.

Pelo Sgnel da B ata

Comadre, conhece o Junot? (1^


Eu nunca o cheguei a vr
Pois o podia conhecer.
Peio signal.

E^ francez o general,
Impostor e usurrio,
E ainda mais adversrio.
Da Santa Cruz.

Santo nome de Jesus!


E no haver quem d cabo
De semelhante diabo!
Livre-nos Deus.

(1) Juno, Junote e Jnote so rs modos de ^renunciar d


TUlgO.
470
Os malignos dos judeus,
Segundo o que se tem visto
No fizeram tanto a Christo.
Nosso Senhor.

Tomara eu por favor


Que os seus prfidos soldados
Andassem bem separados.
Dos nossos.

No ha quem lhe quebre os ossos


} que trouxe c o vil

Mais de cincoenta mil.

Inimigos.

Temendo acaso os perigos


Dos que lhe no fazem mal,
At obteve a Pastoral.
Em nome do Padre.

Olhe, senhora comadre,


O pae viveu de roubar:
O que havia, ento, a esperar
Do filho.

Faz sem pejo o peralvilho


De todo convento praa:
Paulistas, Jesus e Graa.
E do Espirito Santo.
'471

No haver quem a um canto


Lhe d estalo to forte
Que o ponha s portas da morte?
- Amen! (2)

LISTA DOS MAIS ESPALHA DvOS -PKLOS


SIGNAES

1. Pelo Signal do Sertanejo


2. Pelo Signal da Fome
3. Pelo Signal dos Cangaceiros
4. Pelo Signal da Beata; contidos neste vo-
lume.
5. Pelo Signal do Bico Real, publicado incom-
pletamente por Sylvio Romero nos < Cantos
Populares >/.

6. Pelo Signal de Luiz do Rego, publicado por


Pereira da Costa no FoLk-Lore Pernambu-
v;

cano .

(2) Este Pelo Sinal de pura origem portiigueza. Deve


ter vindo para o Brasil com D. Joo VI. Ficou desde ento
perdido isolado no seio das popila';?'^"^ no^drstinai^.Fi{uraiTi-se
nelle duas comadres converrando soblj neral francez, em-
;
;

quanto ao lado uma beata faz o Pelo Signal. E' re-^ularmente


feito e no foi quasi corrompido pelo te T)o. O illistre escri-
por portuguez Raul Brando, no seu interessante e documen-
tado livro sobre a invaso de Portugal pelos francezes, *E1-Rei
Junot, d em appendice vrios espcimens de produces do
folk-lore lusitano sobre este periodo. No cita, porm, esta.
Talvez a sua memoria, c:uardada no Brasil, se t^nha perdido
em Portu^al.
a)

ANTHOLOGA
.

eiassicismo sertanejo

As poesias amorosas dos sertes de Nordeste


tm um pronunciado sabor clssico na sua frrna
e nat suas comparaes, sabor esse herdado da
ascendncia lusitana e que se mantm puro, apesar
da mestiagem das tradies em verso. A memoria
oollectiva repete-as hoje, sem se lembrar mais de
quem as creou. Mas a simples observao das re-

feridas poesias sufficiente para se coiligir que


foram escriptas em outros tempos por gente de certa
instrucao, talvez alumnos ou mesmo professores dos
velhos seminrios do serto ou das aulas de latim e
rhetorica, fundadas pelos jesuitas e mantidas at mes-
mo officialmente, durante um certo' tempo. Dahi, a
f ente ouvir com verdadeiro pasmo sahir dos lbios
de um simples violeiro quadras como esta:

Na Relao de Cupido
Eu fui desembargador,
Mas no me lembra ler dado
Sentenas contra o Amor . .

Depois que esses seminrios e essas aulas das


asas dos padres morreram, nunca mais o sertanejo
476

tevd ou ira fonte de instruco, dlrn da escola r>u-

blica primaria, com a sua professora sem estijnulo,


mal paga e sujeita s remoes inipostas peia poli-
licalha, com a saa eterna carncia de material e com
o sen limitado administrado ensino. Nunca mais
e rrial

as gentes sertanejas tiveram quem lhes ensinasse latin


^
rn as familiarizasse com os clssicos. Portanto,
appareceram poetas eguaes aos dos tempos
Os raros que surgem recorrem/ imitao dos
. ^ maiores.
Foi, certamente, desses que proveiu aquelle cu-
rioso A. 13. C. do Frade, a interessante poesia O
Inverno e as admirveis decimas das paginas 41,
42 e 44, publicadas pelo sr. Rodrigues de' Carva-
lho, no seu livro a >\Cancioneiro do Norte
So des-
sa origem as poesias que damos aqui, talvez os
exemplares mais curiosos desse curioso periodo lit-
terario sertanejo, para sempre morto.

O BEO DO MEU AMOR


O beio meu amor,
do
Nem alfenini, nem cidro,
Nem doce de maimielada.
Nem batata, nem queijada,
Nem a maior perfeio.
Nem cheiro da melhor flor.
Nem o mais fino sabor
Do que da Europa vem,
No tem o gosto que tem
O beio do meii amor!.
- 477 --

Essa doura do lbio amado deu sempre ori-


i;em, em todos os folk-iores do mundo, a cantos
c trovas. Nenhum poea que a tenha provado a
esquece, no Nordeste ou na Africa, na sia Central
ou no norte da Europa. E no se contm, perpetua
o assucar da l>cra desejada nas suas produces,
ao som das cordas do seu, instrumento preferido,
por noites de quando os amigos se renem
kvar,
porta da cabana ou da tenda. Os vCi-sos sertanejos
do Beio do meu Amor v ii de velhas copias anda-
luzas, essas mesmas originarias de cantigas sicilia-
nas, coplas andaluzas que passaram por terras de
Portugal e de i em.igraram para o interior do Bra-
sil. O sr. Lafuente recolheu a ida original enire
os troveircs marroquinos.
Eis, em prosa, o que em versos rabes cantava
um poeta popular do Maghreb:
A No ha bcca cgual tua! A doura da tua
bcca a doura do mel e nos tet^ Kihio risonhos
ha mbar, anbrojia e assacar!:)
Na maioria, as producCes de sabor clssico an-
tigo do serto revestem a forma de motes e glosas,
os primeiros em dois versos e as segundas em uma
decima, ou os primeiros em quatro versos e as se-
gundas em quatro decimas. A ultima forma mes-
mo mais commum que a primeira.

MOTE
Justos cos, por que me destes
Uma alma capaz de amar?
478
GLOSA
Si homem vs me fizestes,
Podendo fazer-me um gato,
Beios grossos, nariz chato,
justos cos, por que me deste?
Uma peile me puzestes
Cor da noite sem luar
, me piiya
qual casar
Com uma branca que me atia;
Dar-me, pois, foi injustia
Uma alma capaz de amar!

Reza a tradio matula que estes versos frara


feitos por um
negro que amava uma branca, que o
atiava sem lhe dar esperanas de casamento, antes
mofando delle quando mais lhe sentia a paixo ac-
cesa. Accrescenta mais a tradio que esse preto era
um excellente poeta, autor de outras produces per-
didas, em nada inferiores a esta. Ora, se assimi foi,
creio que ningum admittir que, por mais talento
que tivesse, esse preto no houvesse passado pelas
aulas das casas dos padres.
Vejamos alguns motes e glosas de quatro de-
cimas, at hoje ainda no publicados pelos collec-
cionadores de produces folkloristicas no Brasil:

MOTE
Quebrar ferros, romper brenhas
No acho ser valentia,
Valente meu- corao
Por te amar, cruel impal
479
GLOSAS

Duras correntes quebrei,


Arrastei grossos grilhes,
Destrui fortes prises,
Mil cadeias rebentei!
Tudo fiz e mais farei
Para que a meus braos venhas I
Pensando que tu no tenhas
Um corao firme e perfeito,
Pretendo por teu respeito
Quebrar ferros, romper brenhas.

Dahi subirei aos ares,


Entrarei dentro do co,
Rasgar-lhe-ci o prprio vo;
Depois, lanar-me-ei aos mares,
Vou aonde me mandares;
Irei ter mo Turquia,

Valido do meu escudo!


Inda fazendo isto tudo,
No acho ser valentia.

Nem o n;ais fero gigante,


Nem Ferrabraz e Oliveiro
Com seu exercito inteiro
Tm talento semelhante!
Eu digo de instante a instante
E teimo pela razo,
Nem Carlos Magno e Samso,
480
Nem Roldo com sua gente,
Nada disso ser valente,
Valente meu corao!

Farei a terra tremer,


O rochedo se arrasar,
Sol e lua escurecer,
Todo o mundo se acabar!
O mais que possa fazer,
A noite tornar-se em dia!
Pela tua tyrannia
Meu talento se occulta.
Meu corao tem a culpa
Por te amar, cruel mpia!

No gosto clssico desta poesia, *ha duas cousas


que traem perfeitamente o serianejo: talento, empre-
gado na terceira decima corno valor, fora, e as
rimas to ao sabor da prosdia matuta de ulta e
culpa.

MOTE
. Deixa-mc, triste cuidado.
Da minha lembrana voa
Deixa esquecer esta ingrata,
Esta fera, esta leoa!

GLOSAS
Memoria, triste memoria,
Lembrana, triste lembrana.
No me envie esta esperana,
4S] --

Pi:itai-me esta triste gloria!


Foi sonho, illuso, historia,
Foi triumpho j passado,
Que o amor imaginado
E' uma pura mentira;
No me provoques mais ira,
Deixa-me, triste cuidado.

Deixa-me viver contente,


Com discretas phanasias,
Lembrana de alegres dias,
Vai-te embora, deixa a gente!
Pensamento decadente
Que anda no m^indo a, 6.

J no me lembra a pessoa
A quem amei com engano^
Attende meu prprio dam no.
Da minha lembrana voa!

Vai para onde nunca mais


Me ds um leve tormeiito,
Vai para onde o vento
Leve os ecos de meus ais,
L naquelles arraiaes
Onde de amor se no trata,
Aonde qualquer se jacta
De abandonar a Cupido,
Vai, pensamento querido,
Deixa esquecer esta irrgrata!

Deixa esquecer esta impa,


482
Esta cruel, esta infame,
*
Esta no sei como chame,
O sumo da ironia;
Esla que da tyrannia
Tem sceptro, tem hrono e coroa,
Esta que a mini me consome,
Esta a quem no sei o nome,
Esta fera, esta leoa!

Esta outra poesia mais ro-


ainda de feio
manticamente clssica do que as outras. EUa tem^
mesmo o Cupido, qae os poe.as do momento no po-
diam esquecer. E, para terminar, uns versos ori-
ginaes do cantador Marsoel Vieira do Paraiso, em
que a lembrana dos estudos dos seminrios e das
aulas de rhetorica e latim jl se perde, misturada
prpria veia sertaneja especial do trovista:

CANTIGA DE MANOEL VIEIRA

Da terra o movimento
Diurno de rotao;
Tambm o de translao
No pra um s momento,
Segue sempre em andamento,
Tendo seu eixo por guia;
E' egual theoria
Do tal movimento ao meu;

Manuel Vieira nasceu


Com veia de poesia!
483
Assim coir.o o poio rctico
Do calor tem pouco zelo,
Vive coberto de gelo,
Egualmente o Poio Antrctico,
Assim faz o homem pratico
Com a fora que Deus lhe envia,
Como luz que alumia
E que nunca escdreceu;
Manuel Vieira nasceu
Com veia de poesia!

E' sobremaneira interessante esta mistura ser-


taneja de <'. fclk-lore , classicismo c geographia. So-
bremaneira interessante e digna de nota.

Sayras e motejos

No conheo nada mais terrivel i^em mais pro-


fundo que a sat3Ta popular dos ser-anejos de Nor-
deste. Talvez porque sua vida uma epopa de re-
sistncia e de dor. Com uma ironia percuciente, com
uma finura que transparece atravs o.s versos rudes
dos cantadores, elle zomba dos governos e dos ho-
mens. Ridicularisa a vaccina obrigatria, o servio
militar, todas as medidas administrativas que lhe
chegam em casa sonente para restringir sua immensa
liberdade, nico thesouro que possue na sua regio
assolada, sem estradas de ferro ou de rodagem, sem
instruco e sem justia. Mas onde os motejos as-
484
:sumem maiores propores nas cantigas a propsito
dos impostos que paga e de cuja applicao quem
menos goza. Nunca houve povo que amasse o im-
posto. O sertanejo no faz excepo regra geral.
Quasi sempre, as longas poesias do serto que
procuram zombar de qualquer facto ou de qualquer
individuo tomam a forma de dilogos. Essa forma
era muito comnium na iitteratura popular medieval.
O sertanejo chama-a debate, tm Hespanha e Si-
cilia ha varies poemetos populares, figurando um
dialogo entre a alma e o corpo. Essa forma litteraria

est at apontada por Vau Qennep e outros folk-


loristas scientificos no capitulo dos phenomenos de
megalosia;.' ou exaggero iT:a;^inarid de todos os
povos incultos em torno deste ou daquelle caso.
Vejamos uma poesia s.ertaneja de satyra aos
impostos e quelles que os recebem. E' de Manoel
Vieira do Paraiso, cantor popular parahybano:

O PROCURADOR DO IMPOSTO

Vamos todos, meus senhores,


Nossos defeitos evitar,
Emquanto a misericrdia
Nos convida a abraar,
Pois adeante ella se ausenta
De quem hoje a desprezar.

Apresenta o narrante facto,


Que a ningum se afigura,
48
A morte btir. desgraada
Que teve uma creaura,
Segundo a ella assistio
O frade josc Pintura.

A freira joanna Ale Esquece,


Ncssa mesma occasio,
igualmente com o frade
Tcvc a mesma viso.
Ambos ficaram espantados,
Mudaram at de feio.

No anno de zero e oito,


A vinte do mez de agosto,
Ou dentro de Mamanguape,
Ou perto do seu encosto,
Morreu bem desesperado
Um procurador do imposto!
Um parenthesis. Curioso o anno de zero c oito.
O sertanejo costuma appeilidar os mezes e os n-
uos de maneira ifiteressante. Ha o <^ mez da ferra,
o mez de mutuca, o mez da chuva. Do mesmo
modo, o armo de 1877 c o dos dois se(:es, o de
1888 o dos trs oitos e os de 1901 a 1909 os
de zero e um a zero e nove .

Esse infeliz exercia,


Com procedimento vil,

Sendo mesmo alem de tudo


486

Bem traioeiro e subtil


O logar em que de pragas
Recebem-se vinte mil!

ptima a observao de que os funccionarios


do fisco so cobertos de pragas. O seu cargo cha-
mado mesmo no serto o logar das pragas.

Esse homem era odiado


De negociante e matuto.
Collectava gente fora
Com muito grande insulto.
Tinha o corao de fera
E pratica de bicho bruto!

's dez horas da manha,


Esse infame agonisou.
S chamando pelo diabo,
Com quem depois se achou.
A's onze horas e meia
Veio a morte e o ievou.

Na noite do mesmo dia,


A tal o tal frade
freira e
Tiveram em sonho o mysterio
Que estavam na Eternidade,
Vendo os castigos tocantes
Contra a usura e a maldade.

Viram a alma do procurador


487
Que a Deus se apresentava!
Viram o anjo da sua guarda
Que as cosias lhe mostrava!
Ouviram a voz do Eterno
Que a alma condemnava!

Ento, falava So Pedro,


Que do co o chaveiro:
Ide j para o Inferno,
Usurrio, interesseiro!
Procurador de imposto
No quero no meu terreiro!

Os homens fjzeni de accordo com os seus gos-


tos e costumes o seu co. O dos mahometanos

um grande harer.i. O dos germanos era um castello


cheio de guerreiros. O dos ndios era paiz de um
caadas fceis. O do sertanejo tem, como as casas
das fazendas, o sea clssico < terreiro^), pateo limpo,
ensombrado de arvores.

A triste a]m: descia,


Afficta. se lastimando.
Fala-lhe assim, o diabo:
Quem est ahi prosando?
Que faz que no entra logo?
Quem que a est empatando?

Eu fui um homem no mundo


Na Mesa de Rendas empregado.
~ 488
Diz o diabo: Eu j sabia!
O negocio est damnado!
Voc su entra no inferno
Oepois uc ser collectado!

Nunca houve castigo que mais agradasse aima


do povo, em todas as edades, do que a pena de ta-
lio. Olho po- olho, dente por dente o ideal da

justia popular. Dahi o prazer que se nota nessa


satyra, uma das r/.il manifestaes da vox populi
do serto, de castigar logo da primeira vez o coUe-
dor de impostos, fazendo-o pagar, dep^-is de morto,
esses mesmos imps los, que to vida. nente cobrara
em vida.

O diabo chamou o C^xo,


Que do inferno o collector.

A alma, toda tremendo,


Exclamou: - E' um horror!
Diz o diabo: E' teu exemplo
E s<:' o principio da dor!...

A alma trisle, aflictissiLia,

Desesperada, exclamava
Que se sujeitava a tormentos,
Mas que se no coUectava.
Diziam assim os pobres,
Porem voc os obrigava!

A alma, ento, respondeu:


.

489
Sem dinheiro aqui estou.
E respondeu o diabo:
V buscar o que roubou.
Voc dos pobres no mundo
Nunca um tosto perdoou.

Disse a aima: - Desespero


Somente ern imaginar!
Disse o diabo: -- Qne importa!
Pde voc se damnar!
Quero dinheiro por fora,
Venha para se collectar!

No lia mais santo que valha


A uma infeliz creatura?!
Respondeu-!he o diabo:
Santo aqui r-o faz figura.
Os santos at tm nojo
De quem in posto procura!

Disse a alma:
Que ataque!
Antes no fosse nascida!
O' maldita Eternidade,
To horrorosa e temida!
Disse o co: A tua gloria
Gosaste na outra vida . .

Collectou-se e estampilhou-se,
Com grande toTnento e horror;
Os diabos a agarraram,
490
Com grande ira e furor;
Lanaram ella no poo
Do fogo devorador!

Disse a alma: Maldita seja


A hora em que eu nasci 1

Respondeu-lhe o diabo coxo:


V cantando agora ahil
Disse o Maioral:
E^ pouco!
Tanto que nem senil!...

Eu bem podia ter tomado


Conselho do meu vigrio.
Disse o co: Nao te empatei
De seguir o brevirio . .

^
O Maioral caoou:
~~ Canta, canta, meu canrio!...

Maiditc quem concorreu


Para eu cahir numa destas.
Disse o diabo:
Cuidado!
Com a estampilha da testa!
Embora voc derreta,
Cuidado! No queime esta!...

No conheo no cancioneiro popular de povo


algum satyra mais bem feita do que esta. O trao
cruel e subtil do cuidado com a estampilha da testa
verdadeiramente delicioso! O troveiro vae levar a
alma a m.aldizer o imposto que lhe sustentou o
corpo era vida.
. . ..

4gi
Maldito seja o imposto!
Exclama alma tambm.
a
Respondcu-lhe o cao coxo:
Voc canta muito bem ! . .

O Maioral disse assim:


Bom peito o que voc tem . .

Quem me dera um momento


Que eu ao muodo voltassu!
Disse o diabo: Era ];om
Que teus parceiros avisasses.
Para que deste maiijar
A raa no participasse? . .

Malditos o pae e a me
Que a mim me deram o ser!
Disse o diabo: Que graa!
Como aprendeu a dizer!...
Accrescentou o Maioral:
Inda mais tem de aprender .

Eu bem podia ter feito


Desculpas e penitencia.
Disse o diabo: -- Tardia
A tua reminiscncia!
Tu, engolfado nos roubos,
Perdeste toda innocencia!

Dram-Ihe os caos a beber


Fel e enxofre derretidos.
492
Ficando todos stus membros
Eni chammas submergidos.
Moidia-se, despedaava-se
Com os mais horrveis rugidos!

O^ quo caro me custou!


No ha mais paz que me acceite!
Diz o diabo: Foi barato
O preo do leu azeite.
No mundo prendeste bezerros,
Aqui bebes deste leite.

Para bem se com.prehender remoque desta


o
frase final mister se faz uma Afim de
explicao.
poder o leite
tirar das vaccas pela manh cedo, os
vaqueiros deixam os bezerros mamar um pouco
tarde, prendendo-os em seguida a noite inteira. Os
pobres animaesinhos tm fome de seis da tarde s
seis da manh, e o leite accumulado nos uberes das
vaccas serve para os fazendeiros. Dahi a inteno do
verso, mostrando que o agente do fisco deixara na
terra muita gente com fome, tendo-se locupletado
com o que lhe tirara.

Disse a alma: Que padecer


Soffro eu eternamente!
Disse o diabo: No deposito
Das fructas de ruim semente ...

O Maioral affirmou:
Quem fala assim no mente ...
493

Ser possivei appeiiao mais caracteristica, re-


gional, original e do que essa dada pelo
irnica
matuto ao inferno: deposito das fructas de ruim
semente?

- O^ desengano terrivel!
O^ que tamanha desgraa!
Respondeu-lhe o diabo:
- Nunca vi to grande graa!
Todo o que for como foste
Pelo mesmo gosto passa!

Nisto concordou o frade,


Dando ao negocio apreo,
juntamente com a freira:
- Com isto no esmoreo.
Vou manifestar em publico
O sonho mt! que conheo.

Uma verdade to clara,


Comudo faz bei-i desgosto
Que nea no acreditem

Os procuradores de imposto.
Antes peio contrario:
Se a ouvem, viram o rosto.

Outro, assim, illudido


Pelos laos de Satanaz,
Di7 que no responsvel
"494 ~
Das injustias que az.

At acciescenta assim:
Destas culpas manda mais . .

Como trn liberdade,


Continuam assim dizendo,
Augmentaiido sua riqueza,
Os ordenados crescendo.
Mas a morte os vae levando
E o inferno vae se enchendo!...

Quem cu.npre com o que Deus manda


E expira na sua f,

Seu cofre, sua riqueza


Na mo de Deus est de p;
Mas quem seguir o contrario
Sabe o caminho qual . .

Essa Emergncia do Diabo com o Procurador


do Imposto , como a intitulou o seu autor, um
comparvel peia sua irnica feio, pela
^<riniance,

espontaneidade da sua satyra a qualquer poesia po-


pular no mesmo se.itido dos an igos trovistas euro-
peus, desde as renasceaas parciaes de Carlos Magno
e Olho o Grande, at poca da Pucella e mesmo
posteriorm.ene. No lhe eiicontro nenhum caracte-
rstico de inferioridade.
Outra poesia no mesmo gnero e digna tam-
bcni de nota a que troa do sorteio militar, da
sua applicao e das fraudes postas em pratica pelos
conscriptos para escaparem ao servio da nao.
; . .

495 -
Alerta! rapasiada!
O tempo no est de graa!
Moo, velho, cego, e coxo,
Tudo agora assenta praa,
Bispo, e vigrio collado
Vai tudo ao pao de fumaa .

Para que fazer soldado


De velho, cego e menino?
Est sem sai o mercado,
Re a porca e quebra o pino?
Vamos ver se alistaro
Um como Antnio Silvino!

Eu viajei para o norte


E vi um
pobre aleijado;
Disse-me o visinho delle:
Aquelie est alistado,
Mas para que serve aquillo?
Perguntei ao delegado.

Ento, respondeu- me:


elie
Esse no pode escapar,
S anda de quatro ps
E comtudo pode andar!
A ptria tem preciso
De gente para rastejar . .

Outro tem um filho doido,


Com uma perna cortada
490

Disse-lhe o delegado:
Voc vae, meu camarada,
Tem-se preciso de doido,
Que para atirar pedrada . .

Disse o pae do pobre doido:


Que faz na guerra este tolo?
Cahio-me na rede peixe
E o que sahii vae no bolo.
Loucura no defeito.
Ningum briga com o miolo . .

Como vou eu sem ter pernas?


Perguntou um ancio.
Respondeu-lhe o delegado:
Vai na corcunda de um so,
Um leva voc nas costas
E a espingarda na mo.

Um velho caximboseiro.
Que tem ali no agreste,
At eu disse ac juiz:
Aquelle queira Deus preste.
Disse o juiz: vai tambm,
E leva o ca>dmbo mestre . .

Tinha um filho uma viuva,


Sendo uma pobre mulher,
Disse ao filho: ora, meu filho!

O governo no te quer
;. . . .

497
O juiz disse: este eu levo,
Arrume outro se quizer.

E, se no estou enganado,
Os padres tambm iro,
E ha de ficar bonito
Um padre com cinturo
Naquella batina preta
Fica de luxo o latol . .

Disse um sertanejg velho:


No vou, venha quem quizer;
Compro a praa, embora gaste
lodos os bens que tiver,
Vendo as bestas das meninas . .

E o melado da mulher . . .

E^ assombrosa toda a veia sayrica destas sex-


tilhas rimadas por um pobre sertanejo perdido a
mais de cem lguas da civilisao do iittoral! E as
que se seguem no lhe so em nada inferiores.

Disse-me certa mocinha.


Que em nossa casa vae,
Ella disse l em casa:
Tudo est dentro e no sae . .

No quizeram dispensar
Nem o porco do papae . .

At a meu irmo mais velho.


498 -

Que quebrou o espinhao,


Furou o oiho direito
E o doutor cortou-lhe um brao,
Disse o juiz: voc vae
Embora falte um pedao!

Disse o juiz: uma arvore


Se corta e deixa-se o. toco.
Ella novos galiios,
cria
Fructifica e no pouco.
Um homem, cortando um brao,
Briga bem com o cotco . .

A lei exige que, ainda


Estando morto e enterrado,
Arranque-se o esqueleto,
Para ser inspeccionado.
Quando nada, o povo diz:
Isto osso de soldado 1...

Uma velha tem um filho,

Que feio que s perigo.


Perguntou ao se alistar:
Que faz a praa commigo?
Disse o juiz: gente feia
Faz assombrar o inimigo!

E no escapa ningum,
Vai tudo a sola de vacca.
Est o Brasil imprensado
. . .

499
Entre a porca e a macaca!.
E o governo, bem quieto,
Dizendo: Phiiippe ataca!...

O governo est dizendo:


Quem no gostar, coma menos!
V fazer queixas ao Bispo,
Faa os bocados pequenos!...
Felizmente, eu j sou grande,
No tenho medo de acenos . .

Z Churumella j disse:
O
governo me sorteia,
Eu pego minha niuHier
Vou liquidal-a na peia,
Fico livredo sorteio,
Morra embora na cadeia.

E pegou Chica Tutano


Metteu-lhe o po sem receio,
Um visinho inda lhe disse:
No faa isso, que feio!
Disse Churumella: isto
E' dose para o sorteio . .

Dizia Chica Tutano:


Viram que historia damnada?
O diabo dessa iei

No veio mesmo envergada?


Alislaram meu marido,
Eu que fui sorteada . .
500
O brasileiro se torce
Mais do que um parafuso,
A scca aperta do norte,
Do sul aperta o abuso,
O imposto bota na prensa,
O sorteio acocha o fusol...

Joo! dizia um sertanejo,


O mundo agora faz d.
Se tu caisses no sorteio.
Eu., para no ficar s,
Dava por voc ao juiz
A burra de sua av . .

Quiz dar meu cavallo russo,


Elle no quiz receber,
A besta de tua me
Elle podia querer;
Mas assim quem carregava .

Milho para ns comer? . .

Meu pai respondeu: Joo,


Dindinha fica damnada,
Inda hontem ella rne disse
Que a burra muito estimada
Ella mamou em dindinha,
E' quasi sua enteada . .

Eu sei, com toda certeza,


Que queira Deus ella acceite;
O negocio j est feito,
501 .

Mas queira Deus se aproveite,


Aquella burra e mame
So duas irms de leite

Meu filho, dizia o velho,


Isso no qjj-r dizer nada.
Eu direi \v6,
Se acaso '
osada:
- Comaurv, ^.. de conta
Que eu vendi minha cunhaca.

Vejam l que sacrificios

Neste mundo se tm dado!


Que quantidades de lagrimas
J no se tem derramado!
S fica quem for doutor,
O mais tudo confiscado.

Este admirvel poemeto, rescendendo a


serto,
no carece de commentarios. Vejamos ainda
outro
exemplo da poesia satyrica sertaneja. Este
lembra
at, sobre as miilberes, as opinies
de Anatole France
exaradas na Ilha dos Pinguins. Eil-a:

AS MOAS SOLTEIRAS

Queira prestar-me atteno,


Linda gente brasileira,
Quero contar- lhes, senhores,
A vida da moa solteira.
502
Das meninas de um anno
Nada tenho que contar,
Que s querem dormir,
Beber, comer e mamar . .

As de dois e de trs annos


Uso de razo no tm.
Comendo, enchendo a barriga.
Todo o mundo lhe vae bem.

As de dez e onze annos,


J querem andar vestidinhas,
De camisinhas de rendas,
Caladas de chinellinhas.

As de seis e sete annos


J pegam a tomar zelo.
Gostam de andar promptinhas
E amarrar seus cabellos.

As de oito e nove annos


Gostam de bellos brinquedos.
Com bonecos e bonecas
Fazem seus bellos folguedos.

As de dez e onze annos


Q-^mI- v 11 ali^ -nia g^nte,
Numa festa, numa missa,
Ficam alegres e contentes...

As de doze e treze annos,


.. ,

503
Quando pegam a se enfeitar,
Olham logo para os moos,
Com vontade de casar . .

As de quatorze e quinze annos


Aprendem bellas modinhas,
I Quando vm os moos cantam
Nas saas; e camarinhas.

Moas de dezeseeis annos


J tm vrios pensamentos,
Pensam noite, acordadas,
Imaginando casamentos . .

As de desesete annos
Trazem a cabea confusa.
S querem andar moderna
Do bom uso que se usa.

As de dezoito annos,
Ainda na flor da idade,
S querem andar moderna
Com tudo que vaidade!

As de dezenove annos
Trazem o juizo tonto,
S querem achar quem as queira,
Esto j com tudo proiaplo . .

As moas de vinte annos


504
J comsigo consideram:
Eu estou ficando velha,
No sei' meus pes quem esperam

As moas de vinte e um
Fazem consigo a ida
De que as outras mais moas
J as esto chamando veias... (1)

As de vinte e dois annos


J vivem desconfiadas,
Vendo as outras mais moas
Ha tempo estarem casadas . .

As d vinte e trs annos,


Quando vo a um casamento,
Que vm as outras casar,
S Deus sabe o sentimento!...

As de vinte e cinco annos


Vo logo para o convento.
Se so pobres, se so feias,
No acham mais casamento.

As de vinte e seis annos.


Se no tm ba orao
Com uma santa milagrosa,
Affirmo no casam no!

(1) Velhas. O sertanejo pronuncia o v inicial como. se fos-


se aspirado.
. . , .

505
A de vinte e sete aniios
Toque logo para o convento.
Sendo pobre, sendo feia,
No acha mais casamento.

A de vinte e oito annos


As suas queixas relata,
Porem dou-lhe um bom conselho
Que v logo ser beata . .

A de vinte e nove annos,


Se pobre ou se feia.
Essa posso affirmar
Que ficar sem pareia^.. (2)

A de trinta annos completos


Se bonita, se rica,

Essa posso affirmar


Que solteira c que no fica . .

Porem se casar com um moo.


Por via de oiro e prata,
Se vadio gasta tudo
E por fim despreza a gata . .

As que tm quarenta annos


J se chamam de flr murcha,
Chama-se velha, titia,

Demente, caduca e bruxa . ,

(f7 Parelha.
506

De certo tempo a esta parte, missionrios de


egrejas e confrarias protestantes norte-americanas tm
fundado capellas e estabelecido ncleos religiosos
nas capites dos Estados de Nordeste. Esses pasto-
res, satisfeitos com o bom resultado obtido ahi com
a predica do seu credo religioso, vo enviando outros
ao interior, afim de procurarem novas ovelhas para
seu rebanho. Como de suppr, topam no cami-
nho a resistncia dos sacerdotes catholicos e do pr-
prio povo; mas, apezar disso, vo adquirindo prose-
lytos, embora em pequeno numero, e continuam te-
nazmente sua catechese.
O protestantismo c chamado no serto nova seita
e os sertanejos que o abraam so ridicularisados.
Esses pequenos choques de idas religiosas j esto
documentados na poesia satyrica popular, embora com
manifesta parcialidade contra os protestantes:

DEBATE DO MINISTRO NOVA SEITA COM O


URUBU
Vou contar uma historia,
Que ha pouco tempo se deu:
Uma velha nova-seita
Foi e morreu.
buscar lenha
Um urubu achou ella.
Disse:
Aqui tiro o meu.

O ministro, quando soube,


Exclamou: Isto o Droga! (1)

(1) Droga um dos muitos appellidos do diabo no serto.


507
Se a irm pellada morreu,
Ganha o diabo uma sogra;
Ns perdemos eila do culto,
O diabo quem a logra.

Mestre urubu vio a velha


Onde esticou a canella,
Disse aos outros urubus:
Manos, vamos a ella!
Emquanto Deus no manda outra,
Vamos roeido naquella.

O ministro ahi chegou,


Dizendo: Esta velha c minha,
Era uma nova-seita.
Que ao
nosso culto vi.iha.
O urubu disse:
Votes! (2)
Carregue ento sua tinha.

Tinha, no! disse o ministro,


Ella era uma devota.
Perguntou o urubu:
De onde veio esta derrota?
Empestar o nosso campo.
Com essa enorme marmota?!

Disse o ministro: Urubu!


No tens alma, est provado.

(2) Vtcs interjeio co'tto fafa !


508

Porm, devias ter crena,


Nao ser to obstinado.
Queres entrar na nova-seita?
L, tu sers baptisado.

Disse, ento, o urubu:


Voc vai mal com a receita,
Corao tenho para amar-te;
Mas, ests na riova-seita . .

E^sum dos que, quando morrem,


Nem o couro se aproveita.

O ministro respondeu:
Minh^alma aproveitada;
Pelos anjos do Senhor
Ha de ser ao ceu levada.
O urubu respondeu:
Isto loucura, vae nada!

No achas mais poesia


Na velha religio?
Jejuar pela quaresma,
Soltar fogos em So Joo,
Ir missa do Natal,
Ouvir a santa misso?

Isso no! disse o ministro.


Eu hei de seguir Jesus,
Porque foi quem me salvou,
E' meu guia e minha 1-uz.
509
Perguntou-lhe o urubu:
Porque tem raiva da cruz?

No foi nella que morreu


Nosso Senhor Jesus Christo
O sangue que derramou
Voc na cruz no tem visto?
Voc. s tem abuso,
Convm acabar com isto.

ii porque a nova-seita
Detesta Nossa Senhora?
Sendo mais ciara que o dia,
Sendo mais pura que a aurora?
O nova-seita morrendo,
No v o co nem por tora.

Que vantagem crer em Christo,


No crendo na Virgem Maria?
Jesus no teve i;ma me
Como diz a prophecia?
Como negam isso,
vocs
Usando de hypocrisia?

Eu sou urubu, mas creio,


Juro por f e verdade,
Que Maria nasceu pura,
E faz parte da divindade.
Deu a hiz a Jesus Christo,
Conservando a virgindade.
610
Ento, disse o nova-seita:
Urubu, ests enganado,
Eu estudei Ioda a Biblia,

Estou nella baseado.


Pergnntou-lhe o urubu:
Quem?! Voc? Est atrazado.

Disse o nova-seita: No!^


Eu estou salvo por Jesus.
O urubu respondeu-lhe:
E' mais facil a agua d luz,

O sol ficar como gelo,


E o diabo andar com a cruz.

Eu que vou at em cima


Tenho outra inspirao,
Vou do cu.
at perto
Nunca tive essa inteno.
Quanto mais voc que morre
E vae para dentro do cho.

Agora, eu e a guia,
Santos Dumont, Ferramenta, (3)
Vamos muito em cima,
at
No logar onde no venta
E numa viagem dessas
L um dia um de ns entra!

(3) Asfnoticias dos aeronautas penetraram nos sertes. E o


povo inculto mistura as3i:r. Santos Dumont e um subidor qual-

quer em^bales. ..
511
Respondeu o nova-seita:
Eu conto com a victoria;
Quando morrer, vou ao cu,
Fico morando na Gloria.
O urubi respondeu:
Vae mal com a sua historia..

Ento, disse o nova-seita:


-Eu creio em meu Salvador,
Pois foi quem morreu por mim,
Foi elle o meu redemptor.
Perguntou-lhe o urubu:
No teve me o senhor?

Maria no ficou virgem


Depois do Senhor nascer?
No foi o Espirito-Santo
Que fez ella conceber?
E porque a nova-seita.
Cr num e noutro no cr?

Esses hymnos de vocs,


Que influem na religio?
Mais vale um samba de palma,
Do que a sua devoo;
Um urubu como eu.
Faz melhor sua orao.

Ento, disse o nova-seita:


A Biblia tenho estudado,
610
Ento, disse o nova-seita:
Urubu, ests enganado,
Eu estudei toda a Biblia,
Estou nella baseado.
PerguntoU'lhe o urubu:
Quem?! Voc? Est atrazado.

Disse o nova-seita: No.^


Eu estou salvo por Jesus.
O urubu respondeu-lhe
E' mais facil a agua d luz,

O sol ficar como gelo,


E o diabo andar com a cruz.

Eu que vou at em cima


Tenho outra inspirao,
Vou at perto to cu.
Nunca tive essa inceno,
Quanto mais voc que morre
E vae para dentro do cho.

Agora, eu e a guia,
Santos Dumont, Ferramenta, (3)
Vamos muito em cima,
at
No logar onde no venta
E numa viagem dessas
L um dia um de ns entrai

(3) Asfnoticias dos aeronautas penetraram nos sertes. E o


povo inculto mistura assim Santos Dumont e um subidor qual-
quer em^balea. .
511 ~
Respondeu o nova-seita:
Eu conto com a victoria;
Quando morrer, vou ao cu,
Fico morando na Gloria.
O urubii respondeu:
Vae mal com a sua iiisforia..

Ento, disse o nova-seia:


Eu creio em meu Salvador,
Pois foi quem morreu por mim,
Foi elle o meu redemptor.
Perguntou-lhe o urubu:
No teve me o senhor?

Maria no ficou virgem


Depois do Senhor nascer?
No foi o Espirito-Santo
Que fez ella conceber?
E porque a nova-seita.
Cr num e noutro no cr?

Esses hymnos de vocs,


Que influem na religio?
Mais vale um samba de palma,
Do que a sua devoo;
Um urubu como eu,
Faz melhor sua orao.

Ento, disse o nova-seita:


A Biblia tenho estudado,
512
Vi o que Deus escreveu,
Sou fiel a seu mandado.
Respondeu o urubu:
Voc est excommungado

Eu nem quero vl-o mais,


Voc vem me inquisilar,
Caipora de nova-seita,
E' damnada pVa pegar,
Leve o diabo da velha,
Coma ou v enterrar.

O urubu bateu azas,


E disse: Vamos, negrada.
No comamos desta velha,
Ella amaldioada,
Um urubu perde o bico,
Comendo esta excommungadal . .

Ento, disse o noVa-seita:


Minha irm no quisilla. (4)
O urubu disse: Esta!...
Eaz desgraar-se uma villa,

Por causa delia o diabo.


Perdeu at a moxilla.

Ento, disse o nova-seita:


O diabo te persiga.

(4) Quisila coisa ruim


513
Disse o urubu: A ti!

Nova-seita, dou-te figa,


Tu, onde \aes, deixgs rasto,
De fome, peste e intriga.

Eu, sendo um bruto pago,


Observo os mandamentos,
E tu, sendo baptisado,
Negas "Ds ensinamentos,
Corres como um co damnado.
Se se fala em sacramentos.

Um santo estava alli perto


E o diabo tambm.
Bravos! o santo dizia,
Este urubu fala bem,
Morra aos berros o nova-seita!
Dizia o diabo: Amen!

Repito o que disse de outra das canes ante-


riores: difficilmente se encontraroem qualquer folk-
lore do mundo motejos em verso mais bem feitos
do que estes, devidos inspirao do grande' cantador
popular dos. sertes de Nordeste, Leandro Gomes de
Barros, um verdadeiro Catullo da Paixo Cearense
daquelles speros rinces. V-se que o seu autor,
embora sabido do povo, no totalmente sem lettras.
EUe posse mais ou menos o mesmo grau de ins-
truco daquelles autores das velhas e conhecidas
stori do <^folk-lore italiano, que o sr. Salomo Ma-
514

rino recolheu no seu livro admirvel Storie Po-


polari in Poesia Siciliana >>. O prprio titulo de De-
bate, no sentido de discusso, dado a essa poesia,
o mesmo de idnticas peas medievaes que em
Frana e Provena se chamavam debats. Lembra,
positivamente, os celebres poemetos dos troveiros da
lingua d'oc sobre a salvao das almas dos pecca-
dores
Debats de Tme et du corps ou as lon-
gas poesias da Itlia Meridional sobre o mesmo
assumpto
Historia di lu contrastu di Tanima con
lu corpu e idnticas producoes hespanholas. E\
entretanto, ao meu ver superior em feitura e em iro-

nia. Ha nella trechos de assombrosa maestria.


Um outro exemplo caraceristico da ironia po-
pular dos sertes a poesia que canta as faanhas
duma sogra que enganou o' prprio diabo. Ella no
to perfeita quanto o debate a que j assistimos,
porm no deixa de ser muito e muito interessante:

A SOGRA ENGANANDO O DIABO


Dizem, no sei se dictado.
Que ao diabo ningum logra;
Porm vou contar um caso.
Que se deu com minha sogra.
As testemunhas so eu,

Meu sogro, que j morreu, -

E a velha, que fallecida.


Foi este caso passado ,

Na rua do P Quebrado .

Da villa Corpo Sem Vida.


5i5
Chamava-se Quebra-Quengo,
\ me de minha mulher,
Que se chamava Aluada (1)
Da Silva Quebra Colher,
Filha do Z Cabelludo,
Irm de Victor Cascudo
E de Marcellino Brabo,
Pae' de Corisco Estupor.
Mas, oua agora o senhor
Que fez a velha ao diabo.

Minha sogra era uma velha


Carola e resadeira,
Tinha um quengo lixado,
Era audaz e feiticeira,
Para eila tudo era tolo,
Porque ella dava de bolo,
No tnt mais estradeiro. (2)
Era o seu servio:
este
Ella virava o feitio
Por cima do feiticeiro 1

Disse o diabo: Quebra-Quengo,


Qual a tua virtude?
Dizem que s azucrinada,
Que a ti ningum illude?
Disse a velha: Inda mais esta,
Voc parece que besta!

{1)'^' Aluada mel uca.


{2y Estradeiro velhaco.
51 -

Que tem voc com o que eu fao?


Disse elle:
Tudo desmanchei,
Nem Santo Antnio com um gancho
Te livra hoje do lao.

Perguntou ela: Quem s tu?


Disse elle: Sou o demnio,
Nem me espanto com milagre,
Nem com reza a Santo Antnio 1

Pretendo entrar no teu couro . .

Nisto ouviu-se um estouro!


Gritou a velha: Jesus!
E ligeira se ajoelhou,
Depois se persignou
E resou o credo em cruz . .

Nisto, o diabo fugio . .

Quando a velha se ergueu,


Elle chegou de mansinho
E disse: ^ c estou eu!
Agora sou teu amigo,
Quero andar junto comtigo,
Mostrar-te que sou fiel.

Minha carta, queres vr?


A velha pedio para lr
E apossou-se do papel.

D-me a carta! grita o diabo


Em tom de quem soffr aggravo.
Diz a velha:
No dou mais!
517 -
Tu agora s meu escravo.
Disse o diabo: Damnada!
Metteu-me numa quengada! (3)
Sou agora escravo delia.
E dissecom humildade:
D-me a minha liberdade
Que esticarei a canella...

Disse a velha: P de pato,


Fars o que te mandar?
Disse elle: Sim, senhora,
Pode me determinar,
Porque estou em seu cabresto:
Carregarei agua em cesto,
Transformarei terra em massa,
Para isto tenho estudo;
Afinai eu farei tudo
Que a senhora disser faa.

Disse a velha: V egreja


E traga a imagem de Jesus.
Disse elle: Posso trazel-a
Mas ela vem sem a cruz,
Porque desta tenho medo.
Disse a velha:
Volte cedo!
Elle seguiu a viagem.
Ao sachristo illudiu.
Uma estampa lhe pediu
Que tivesse sa imagem.

(3) Quengada alhad.


513
A veiha, ento, conheceu
Do diabo o quengo (4) moderno;
E temendo que um dia
Elle a levasse p^r^o inferno,
K^algum canto o mandou,
E em sua ausncia traou
Com um giz uma cruz na porta.
Voltou o diabo sem demora,
Viu a cruz, ficou de fora,
Gritando com a cara torta . .

Gritou o diabo no terreiro:


Aqui no posso passar!
V^enha dar-me minha carta.
Quero p^r^o inferno voltar.
Disse a velha que no dava.
Mas elle continuava
A rinchar como uma besta . .

Fecha os olhos! ella diz;


Elle fechou e com giz
Fez-he ella outra cruz na testa.

Ahi ella deu-lhe a carta


E o diabo poz-se na estrada
Dizendo com os seus botes:
No ouero mais caoada
Com \elha que seja sogra.
Porque ella sempre nos logra,
Foi, assim, a murtnurar.

H) Quengo plano.
.

519
Quando no inferno chegou,
O maioral lhe gritou:
Aqui no podes entrar!

Ento j no me cCihece?
Perguntou elle ao maioral
Conheo, porm aqui
No entras com este signal:
Ests com uma cruz na testa!
Disse elle - que historia esta?
O que que ests dizendo?
Mirou-se num espelho luz.
Quando distinguio a cruz,
Sahio damnado, correndo!

E na carreira em que ia
Precipitou-se num abysmo,
Perdeu o espirito diablico
E virou-se no caiporismo,
Pela terra se espalhou,
Em todo logar se achou
Ao caipora encaiporando,
Embaraando seus passos
E com traioeiros laos
As sogras auxiliando . .

Deste facto as testemunhas


J disse todas quaes so.
Agora quer o senhor
Saber se exacto ou no?
520
Invoque o espiritismo
Ou pergunte ao caiporismo,
Este que sempre nos logra,
Se sua origem no veio
Do immundo e feio
espirito
E do quengo duma sogra? .
ORAES

As Oraes
Quatreiages fala-nos no seu livro monunienta
L'espce humaine , dos Arepos da Nova Zeln-
dia. So elles os homens-archivos, os individuos es-
colhidos pela tribu para guardar a memoria dos en-
salmos, dos cantos religiosos com que se invocam os
espiritos e das palavras secretas dos mysterios sa-
grados. O serto de Nordeste possue tambm o seu
Arepo, que o curandeiro.
E' elle quem sabe todas as oraes fortes
e quem faz que botar feitio em
cousas-feitas,
algum. Fabrica com hervas do matto beberagens
teis e perniciosas. As primeiras, para curar de mo-
lstias, para evitar que se continue a beber fumo

ou a (beber caxaa ou ainda a jogar, a andar' com


mulheres. As segundas, afim de produzir loucura,
surdez, doenas. Se enterra os fios de cabello duma
mulher numa casa de cupim, ella murcha, fenece e
morre. Cosendo a areia do rasto dum sujeito na
bcca dum sapo, e atirando-o n'agua, o dono do
rasto morre. (1)

(1) V. Terra de Sol do niefmo autor, pgs. 161 e seguin-


tes.
524
As suas oraes prendem-se pela sua forma,
pelas suas onomatopas, pelas suas expresses s
mais antigas tradies da humanidade; ellas se vo
perder nesse fundo mysterioso de lendas communs a
todos os povos, de onde ns sahimos em tempos
to recuados que a sua memoria ha millenios e mil-
lenios se perdeu.

ORAES PARA CURAR JUAS , , (2)


" NFLAMMADAS

Toca-se com o p em cada uma das pedras da


trempe dum fogo, repetindo:
Trs, duas, uma: ingua iienhuma!
Ou ento
Fita-se noite uma estrella qualquer, pe-se a
mo sobre a ingua e diz-se trs vezes:
Minha estrella donzella, esta ingua diz que
morraes vs e cresa ella, e^.i digo que cresaes vs
e morra ella!

ORAO QUANDO SE ARRANCA UM DENTE

Atira-se o dente sobre o telhado da casa, di-

zendo:
Mouro! Mouro!
Toma meu dente podre,
Manda meu dente so
(2) Ingua glndula.
T9
DZO

ORAO PARA DOR DE DENTES

Escreve-se na areia, apagando seguidamente


cada
frase:

So Nicodcmos, sarai este dente!


Nicodemos, sarai este dente!
Sarai este dente!
Este dente!
Dente!

ORAO ARa CURAR BICHEIRAS DOS '

ANMAES

Mal que comeis


A Deus no louvaes!
E nesta bicheira
No comers mais!
Has de ir cahindo:
De dez em dez,
De nove em nove,
De oito em oito.
De sete em sele,
De seis em seis.
De cinco em cinco,
De quatro em quatro.
De trs em trs.
De dois em dois,
De um em um!
E nessa bicheira
52
No ficar nenhum!
Ha de ficar limpa e s
Como limpas e ss ficaram
As cinco chagas
De Nosso Senhor!

(Risca-se no ar uma cruz e os bichos caem).

ORAO COTRA O USAGRE

Benzendo a parte do corpo attacada pela moles-


lia com um galho de arruda molhado em agua benta:

Eu tebenzo com a cruz, com a luz


E com o sangue de Jesus!
Usagre, fogo selvagem, foge d'aqui.
Que estou com nojo de ti!

ORAO FORTE CONTRA OS ESPRITOS


E AVANTESMAS

Jesus com migo


vae
E eu voucom Jesus!
Jesus vae commigo
No meu corao
E ha de livrar-me
De toda afflicao!
De toda afflicao,
De toda agonia,
Livrae-me, Jesus,
527 i

Jos e Maria!
Jos e Maria!
E Sanf Anna tambm,
E So Joaquim
Para sempre, Amen!

ORAO PARA LUXAES, QUEBRADURAS,


VEIAS CORTADAS
Carne trilhada,
Nervo torcido,
Ossos e veias,
E cordoveias,
Tudo isso eu coso
Com o louvor
De So Fructuoso!

Esta uma das formulas mais antigas de curar


os mesmos accidentes de que ha noticia. As suas
palavras variam de povo a povo. A sua estructura
rimada continua a mesma! Os antigos latinos, to-
mando um vime verde, cortavam-n'o em dois pe-
daos, apontavam-n'o parte doente do corpo do
paciente, murmurando:
Daries,
Dardaries,
Astataries,
Dissunapiter!

Depois, faziam uma ligadura para o membro


torcido ou quebrado e repetiam, diariamente:
Huat!
2S

Hanat!
Huat!
Esta pista,
Sista!
Domiabo!
Damnanstra!

Dos velhos caracteres runicos dos antigos povos


escandinavos o interessante escriptor Lafcadio Hearn
traduzio esta orao para idnticos fins:
E^ muito bella a Deusa das Veias, Suonetar,
a bemfeitoria Deusa das Veias! Ella maravilhosa-
mente tece as veias dos homens com o seu fuso en-
cantado, com a sua roca de bronze e a sua roda
de ferro! Vem a mim! Invoco
nome! Imploro teu
teu soccorro! Traz no teu seio pouco de carne um
rsea, um novelo de veias azues, afim de que a
ferida se possa fechar e que se possam emendar
a extremidade das veias!
Na sua lingua original, esta orao obedece
mesma consonncia das que nos legou a antigui-
dade e da que no serto se continua a repetir.

AS CURAS DAS MORDEDURAS DE COBRA


O curandeiro chega, dirige-se ao mordido e sug-
gestiona-o com a voz e com o olhar. Ordena-lhe que
se levante que no nada aquillo, que o
e ande,
veneno do ophidio no tem poder algum. Se o in-
dividuo resiste a essa suggesto, benze largamente

a parte mordida, amarrando a" perna ou o brao a


52g
certa altura, jDara que o veneno no passe dalli.
Se
elle continua cahido, p5e sem hesitar os lbios so-
bre a ferida, chupa-a fortemente e cospe para
o lado
o veneno. Dizem que raro quem no escape a
esse
curativo.
O systema to
velho quanto o mundo. Lucano
j o descrevia nos versos da
Pharsalia tal cjual
.>,

praticado no Nordeste. Ei^ o que o poeta latino' diz


no livro IX, sobre os Psyllos ou curadores de
mor-
deduras de cobras, naquelle trecho que comea as-
sim Sic nox tuta viris:
(Assim, os soldados passavam noites tranquillas;
mas se durante o dia um delles recebia uma
mor-
dedura mortal, ento o Psyllo usava dos seus mais
fortes encantos. 1 ravava-se a luta entre o
Psvllo
e o veneno. Primeiramente, elle fazia
sobre a parte
mordida um risco com a sua saliva. Esse nsco parava
a marcha do virus e locaiisava-o na prpria
chaga.
Depois, murmurava continuamente formulas magi-
cas, sem tomar flego devido a querer
acompanhar
a actividade do veneno, que pode dar a
morte dum
momento para outro.
Muitas vezes, o mal que j
penetrou medulla foge deante das palavras
at
encantadas. Mas se isso no acontece ou tarda, re-
cusando-se o veneno a sahir por ordem do Psyllo,
este se curva e chupa aferida, sugando todo o ve-
neno cuspindo-o depois, chegando mesmo a reco-
e
nhecer pelo gosto qual a espcie de reptil que acabou
de vencer.
O sertanejo de hoje acredita ainda no que acre-
530

ditava o legionrio de Csar, que combatia na Africa.


E este herdara a crena da Arya longinqua e mys-
teriosa, onde vo parar todas as coisas que a me-
moria dos homens ainda guarda.
E' o numero de oraes e ensahnos
infinito
fetichistasdo serto. Dariam na sua totalidade um
grande livro. Limitamo-nos a publicar alguns mais
curiosos. Outros muitos se acham espalhados pelas
obras de Mello Moraes, Sylvio Romero, Rodrigues
de Carvalho, Joo Ribeiro, Alberto Faria e mesmo
em outros livros do autor.

iloia oraio egypoia nos sertes

Domingos Sarmiento no seu livro sobre a bar-


baria dos pampas argentinos, em que nos conta da
vida do caudilho Facundo Quiroga, livro que tal-

vez a maior obra da litteratura sul-americana, narra


um episodio que assistiu, emocionado, no serto do
seu paiz e^que qualquer um de ns brasileiros pde
assistir no interior de qualquer um dos nossos Es-
tados, especialmente no dos de Nordeste, mais afer-
rados s suas tradies.
O grande escriptor argentino narra-o da se-
guinte forma:

Presenciei uma scena campestre digna dos tem-


pos primitivos do mundo, anteriores instituio do
sacerdcio. Achava-me no serro de So Luiz; em casa

531

de um estancieiro, cujas occupaes favoritaseram


rezar e jogar. Edificara uma capella, onde nos do-
mingos de tarde rezava um tero, fazendo de sa-
cerdote e substituindo com essa reza a missa de que
todos os m.oradores tanto alli careciam. O quadro
era homrico: o sol descia para o occaso, as ma-
nadas que voltavam aos curraes enchiam o ar com
a confuso dos seus mugidos; o dono da casa, ho-
mem de sessenta annos, de physionomia nobre, em
que a raa europa se mostrava pura na brancura
da pelle, nos olhos azulados e na fronte lisa e es-
paosa, rezava, acompanhado em coro por uma d-
zia de mulheres e por alguns rapages, cujos ca-
vallos, ainda^ no bem domados, estavam amarrados
perto da porta da capella.
Conluido o tero, fez um fervoroso offertorio.
Jamais ouvi voz mais cheia de unco, fervor mais
puro, f mais firme, orao mais bella, mais ade-
quada s circumstancias do que a que recitou. Neiia
pedia a Deus chuvas para os campos, fecundidade
para os gados, paz para Republica e segurana
para os viajantes.
Accrescenta o grande Sarmieno que, sendo pro-
penso a chorar, no se conteve deante da simplici-
dade grandiosa daquella scena e chorou, pois lhe
parecia estar assistindo a um quadro do tempo dos
patriarchas e aqu^lla voz de homem, forte e cndida,
mscula e innocente, penetrara-lhe profundamente na
alma, fazendo-o estremecer todo.
Dezenas de vezes presenciei o mesmo acto nos

i
532
sertes do Cear; o fazendeiro desempenhando o
papei de officiante; a famlia, os vaqueiros, os ag-
gregados, os visinhos mais prximos, formando o
coro que acompanhava a sua ladainha; e uma grande
e sinceracompunco enchendo todos os presentes
novena ou ao tero da fazenda. E sempre ouvi, aps
as rezas costumeiras das trezenas de Santo Antnio
oi! do mez de Maria, o fazendeiro pedir oraes .

semelhantes s do estancieiro argentino, de que nos


fala Sarmiento.
Entre a observao que elle fez no Pampa e as
que fiz no Nordeste, no ha differenas apreciveis.

O fimdo do caso o mesmo. A essas observaes at


j alludi iongamtnte no primeiro capitulo d meu
livro Heres e Bandidos , em que procurei es-
tudar a vida ensanguentada dos cangaceiros ser-

tanejos.
Em iodo o serto cearense, o dono duma fa-

zenda, o senhor feudal delia e, ao mesmo tempo,


o seu sacerdote official. . Essa situao decorre da
vida patriarchal que ali se vive. Depois de haver
tirado a ladainha e recitado a offerenda, o fazendeiro
nordestino pede aos presentes, pausadamente, vrios
padre-nossos e av-marias,que elles rezam em coro
e que elle ofterece em varias tenes. Por exemplo,
um padre-nosso e uma av-maria em teno de So
Jos, advogado das chuvas, afim de
padroeiro ou
que elle as de Deus para o serto escal-
consiga
dante. Outros para So -Sebastio, para que elle a
todos livre da peste, guerra, fome e nio vizinho.
>33

Outros So Braz, para que todos defenda de ponta


a
de touro, le espinho venenoso de favella e de dente

traioeiro de cobra. Emfini, outros em teno da-


quelles que andam sob las ondas do mar!
A forma obsoleta sob las, mostra que de
Portugal nos veio o costume desse peditrio a Deus
e aos santos, seus prepostos nas varias especialida-
des de favores de que carecem os pobres mortaes. E
contribue ainda mais para se acreditar nessa origem
o facto de se pedirem oraes para os que andam
embarcados, pois isso seria mais do que prprio
num povo que vivia de desvendar os segredos dos
mares tenebrosos e desconhecidos'.
No pde haver duvidas que dos nossos avs
portuguezes herdamos o habito de rezar no fim de
certos pfficios ou celebraes religiosas em favor
dos que viajam e dos que navegam. Tambm no ha
a menor duvida que o mesmo modo veio para os ar-
gentinos dos seus antepassados hespanhes.
Mas nem portuguezes muito menos hespanhes
e
foram os inventores dessa frmula religiosa, hoje
em dia tradicional nos nossos sertes e que no
deixa nunca de ser emocionante. Basta pensar que
a duzentas, trezentas e mais lguas do oceano, ha
indivduos que fervorosamente rezam, quasi todas as
noites, em teno daquelles que andam merc das
vagas traioeiras.
Apesar de navegadores audazes e valorosos, os
habitanes, quer dumas quer doi.'ras costas da pe-
ninsula ibrica, j encontraram na sua herana de^
534
tradies mais antigas, que lhes veio com o sangue
latino, o vetusto e nobre costume que os sertanejos
das catingas e os gachos dos pampas no esquecem.
Todas as tradies humanas so de uma espan-
tos- velhice. Quando a gente as rastreia em busca
de sua origem atravz os livros e os documentos,
ficaassombrado de sua formidvel vitalidade. Dum
fundo commum devem partir todas e pelos caminhos
que tomam vo se transformando de accrdo com
os meios, como os povos que as trazem comsigo.
Esses pedidos nos fins de certos officios di-
vinos datam do Egypto. Quem delles fala em primeiro
k)gar, segundo me parece, Apuleu. No livro XI
das V Metamorphoses , o clssico latino nos conta
uma iniciao em um templo do rito egypcio de Isis.

Eis o seu trecho original:

At quum ad ipsum jam templum pervenimus,


sacerdos maximus, quique divinas effigies progere-


bant, et qui venerandis penetralibus pridem fuerant
initiati, intra cubiculum deae recepti, disponunt rite

simulacra spirantia. Tunc ex his unus, quem cuncti


Grammatea dicebant, pro foribus assistens, coetu
Pastophorum, quod sacrosanti collegii nomen est, ve-
)ut in contionem vocato, indidem de sublimi sugges-
tu, de libro, de litteris fausta vota praefatus: Prin-
cipi Magno, Senatuique Equiti, Totoque Romano
et
Popiiio, naulicis, navibus, quaeque sub iniperio mun-
di nostratis reguntur, renuntiat, sermone ritu que
graeciensi, ita: laios aphesis. Qua voc feliciter cun-
ctis evenire signavit populi clamor insecutus .
535
Isto :

Logo que chegamos ao vestbulo, o gran-sa-


cerdote, os que deante delle levavam as effigies sa-
gradas e os que h muito ji estavam iniciados nos
mysterios venerveis, enlraran no sancuario da deu-
sa. Depois, um delles que todos denominavam o
Es-
criba,pondo-se de p deante da porta, chamou, como
para uma
reunio, a corporao dos Pastophoros, que
assim c chamado o Sacro-Collegio. Em seguida, su-
bio a um plpito elevado e leu nuin livro oraes
em teno do Sublime Imperador, do Senado, dos Ca-
valieiros, de Todo o Povo Romano, da navegao,
doi^ navegantes e em favor geral de tudo quanto

compe o nosso imprio. Terminou por esta forma


habitual, que se pronuncia em grego, gritando:
Que todo o mundo se retire! Esta phrase queria
dizer que o sacrifcio era acceito, o que ficou pro-
vado com a pressa com que os fieis lhe responde-
ram com uma acclam^ao .

O que narra Apuleu


precisamente o que se d

nos sertes da America meridional, mutats mutan-
dis, e o que est na prpria missa, na qual o
ite, missa est no passa duma traduco adaptada
do final do offcio Accresce mais que, na pra-
isiaco.
tica das missas catholcas, de uso se fazerem ora-

es semelhantes, en. favor do chefe do Estado e


sempre daqueles que vo por sobre a face perigosa
do oceano.
E' verdade que, ao tempo de Apuleu, o culto de
Isis piofessado em Roma, estava j muito greci-
536

sado^ e rjinanisado, mas no perdera o seu fundo


fortemente orientai o se poder affirmar, sem
e dalii
a menor vacillao, que as oraes que os pobres
sertanejos de Nordeste recitam hoje, para que Deus
proteja aquells que vo sob las ondas do mar,
foram balbuciadas pelos lbios egypcios ha milha-
res e milhares de annos, fra.m talvez ditas pelos
homens das ::i:;eiras tribus acampadas borda do
Mediterrneo, dos quaes alguns indivduos tiveram
o animo de coitar madeiros, construir jangadas e
canoas, lanando-se sob las ondas^ encapelladas.
Tudo muito velho no mundo e s vezes a no-
vidade consiste em procurar a velhice das coisas,
como talvez neste caso.

MostrenyGS, prodidios e abortos

A poesia tradicionalista dos sertes de Nordeste


guarda tudo o que se passa nas ribeiras batidas de
sol. De quando a quando, nellas apparece um desses

abortos, verdadeiros escarneos da natureza, a que


todas as sociedades cultas ou incultas no escapam.
Ora um albino, um fouveiro, um -sarar, de olhos
gazeos, sem luz e sem vida, de cabellos encaneci-
dos e finos como retroz. Ora, um negro horrvel,
de ventas esborrachadas, lbios ue hippopotamo, fa-

cies^de degenerado em ultimo grau de integralizaao


de taras ancestraes, de pernas tortas e nodosas, giba*
e desvios de certos ossos, typo maneira de Quasi-
-- 37
modo ou daquelle Baraballo que tanto fazia rir Cle-
patra e Marco Antnio. Ora, um menino tora do com-
mum por seu tamanlio descommunal, pela fortaleza
de sua musculatura, pela amplido de sua caixa tho-
raxica,que parece desafiar todos os bacillos de Koch.
Immediatamente ao apparecimento dum desses
monstros, os cantadores sertanejos fazem longas poe-
sias, perpetuando-os, para que as geraes vindouras
saibam de sua existncia, repetindo seus toscos ver-
sos. Exaggeram, no emtanto, tudo quanto diz respeito
ao caso narrado, no desmentindo o velho rifo:
Quem conta um conto accrescenta um ponto. Elles
accrescentam muiss vezes mais do que um ponto. E
preciso notar tambm que, quando faltam prodgios
numa ribeira e noutras elles abundam, os cantadores
daquella que no foi favorecida pela riatureza in-

ventam, em verso, o apparecimento de mostrengos


horrveis.
Em
Pernambuco, no anno de IQOO, nasceu, na
vills um menino disforme. O povo logo
de Vicencia,
o alcunhou
O menino gigante.
A phantasia dos rhapsodos populares aproveitou
o thema para a fabricao das suas sextilhas mon-
tonas, dando como causa do nascimento do prodgio
a passagem diim cometa. Assim, mostrou como in-
tensamente perduram na alma do nosso povo, inta-
ctas quasi, as velhas crendices europas, nascidas
no oriente mysterioso, augmentadas nos sculos es-
curos da Edade Mdia, quando aos cometas se attri-
buia toda a sorte de malefcios, e transportadas
538
America, primeiro, pela maruja dos barcos aventu-
reiros, depois, peios buscadores de ouro.
Diz o cantador matuto, a propsito do '/.
Menino
Gigante

Todo o mundo j conhece


O cometa de Biela.
Que abalou a terra toda
E exterminava ella,

Si no seu. giro passasse


Mais approximado delia.

O astro passou por 'onge,


Na terra ningum morreu;
Porm na sua passagem
Uma mulher concebeu
A um menino-phenome
Que na terra appareceu!

No Estado de Pernambuco,
Na villa de Vicencia,
O tal Menino Gigante
Viu a luz aa existncia;
Nasceu em mil novecentos
Cheio de vio e potencia.

A me desse tal gigante


Soffreu enorme tomiento,
Passou trs dias com dores
Para dar-se o nascimento;
539
-

,

Quasi que morre do parta,


Foi grai.de o seu soffrimento

Nasceu a quinze de dezembro


Do anno ja referido,
E espalhou-se a noticia
Pelo povo conhecido.
Cada quai por sua vez
Foi vr o recem-nascido.

Descrevendo o monstro, cuja potencia, isto ,


vitalidade, no dizer dos sertanejos, js versos consa-
gram, o cantador da largas sua imaginao fecunda
e insacivel. Os exaggeros so terrveis.

Tinha palmo e meio de largura,


Dois e meio de comprimento,
Contando quatro annos e meio,
F' immenso seu crescimento.
Tem quasi a altura dum homem
E tem enorme talento! (fora).

Chama-se Jos Ferreira


O tal Menino Gigante.
Seu pae chama-se Gonalo,
E' pobre e ignorante,
De ror parda, estatura mdia,
Bem franzino e no galante.

Sua me chama-se Jlia


Maria da Conceio,
E' tambm parda de cor,

Tem franzina construco.


Vamos fazer do gigante
Agora uma descripo:

Tem quatro annos e meio


Como j sabe o senhor;
E' inteiramente innocente;
E' tambm pardo de cr.
Gosa perfeita sade,
Cresce com immenso vigor 1

Sou testemunha ocular,


Tive occasio de acI-o.
Tem o corpo quasi todo
Envolto em negro plo,
A cabea afunilada.
Contendo pouco cabello.

Anda muito vagaroso,


Tem regular estatura,
Tendo dos ps cabea
Seis grandes palmos de altura!
Mede por cima dos peitos
Quatro palmos de grossura!

Tem as feies mui grosseiras,


Rosto largo e angular,
Olhos pretos scintillantes,
-^ 541
As orelhas reguiar,
A testa um pouco espaosa;
Mostra viveza no olhar.

Tem os
beios muito grossos,
Sobrancelhas arqueadas,
Dentes alvos e pequenos,
Ventas grandes, achatadas.
A fala como de homem,
c

Palavras bem explicadas.

Tem o queixo arredondado,


Curto e rolio o pescoo,
As espduas espaosas,
O tronco rolio e grosso,
Braos e mos muito grandes,
Largo e espaoso o dorso!

Tem pernas grandes e grossas,


Mostrando immenso vigor;
Tem o p arredondado
Na parte posterior.
Largo, grosso e comprido
Na [)arte anterior

Tem fora admirvel:


Oitenta kilos suspende,
Seu peso cincoenta kilos.
Fcil tudo comprehende,
Demonstrando intelligencia,
L o que ouve aprende.
o4z
Tem immenso crescimento,
Dorme e come muito bem
E' genioso e demonstra
Que alguma energia tem,
Se ningum me acredita,
Procural-o vr convm.

Eis ahi em poucas linhas


O seu retraio traado.
Quem nunca viu o gigante,
V^endo-o, fica admirado.

Vou agora vaticinar


Seu futuro destinado.

Quando contar trinta annos


Ter enorme estatura:
Vinte palmos de comprido,
Oito e meio de grossura.
Assombrar todo o mundo
Sua disforme figura!

Duzentos kilos de ferro


Com uma mo suspender,
Duas arrobas de carne
Duma s vez comer,
Trezentos e oitenta kilos

O seu corpo pesar!

Um outro poeta dos sertes de Nordeste, Ma*


noel Vieira do Paraiso, traou .Cambem- em vrsos
; ;

543
a historia duma pobre mulher que teve um filho
deformado, e que a sua imaginao potica affirma
ter sido um cavallo. Eis o poemeto da Mulher que
teve um cavallo:

Este mundo est perdido,


No se ageita nem a gancho!
A guerra vem de viagein,
A derrota est no rancho,
A misria vem chegando,
A crise vem se arrastando.
Dizendo: breve me escancho.

Escanchar moiitar a cavallo. O poeta quer


dizer que logo a crise montar sobre as costas do
sertanejo.

Dizem os da Nova Seita


Que o mundo est no fim
Mas, segundo o que vejo,
Creio no ser assim.
O que ha muita derrota
Que anda fazendo marmota,
Apresentando motim.

Na maneira curiosa de falar dos matutos nor-


destinos, Nova Seita significa protestantismo
derrota quer dizer desgraa e fazer marmota
equivale a fazer caretas ou ameaas.

Coisa que nunca foi vista


Se tem hoje apresentado,
54-i
Como agora no Recife,
Por muitos presenciado,
Um homem se sepultou
E dentro da terra passou
Oito dias enterrado!

Oito dias enterrado!?


Credo em cruz! Ave Maria!
S sendo de Nova Seita
Ou ento de Maonaria!
Pois dizendo no mundo inteiro,
At mesmo no Joazeiro,
Diz-se logo: E' bruxaria!

Disse um velho: Ser srio


Ou ser sc) apparencia?
Responde outro: E' verdade!
Eu dou verdadeira crena;
Ou faz parte de mu,

Ou filho de tatu,
Ou delles tem descendncia!

Outro caso, depois desse,


No Fundo Valle foi dado.
Este horrorosamente
Traz o povo admirado.
Uma mulher existiu
De quem um poldro sahiu
Com cauda, crina e encascado!!

Que contuso no daria


545^^
Sobre o que devia dizer?
Baptismo ningum lhe dava,
Si vivo o vissem nascer.

A me no tinha conforto.
Felizmente nasceu morto,
Deixaram o urubu comer!

O' que cousa admirvel,


Digna de perturbao!
Quem pode ento penetrar
Numa tal situao?
Um quadrpede concebido,
Ser gerado e ser nascido
Do pobre dum christo!!

^ isto fica mantido,


Origina grande mal.
Besta parindo menino
In da veremos por tal.
Fica o mundo em circumstancia
De besta parir creana.
E mulher parir animal!

Este nosso mundo velho


J est bem combalido,
Ainda apparecer mais
Do que tem apparecido?
Baralha assim o seu jogo
At que emfim pega fogo.
Fica em cinzas reduzido.
646
Se os bichos castearem,
Ficando isso por uso,
Sc desconhecem as castas,
Quem os v fica confuso.
Encontrar-se- um pre
Com as feies de imbo.
F. j se vio que abuso?!

A preguia fica esperta


Pela esperteza dos pais,
Nascendo ella por exemplo
Do macaco que sagaz;
Mastim perde a valentia,
Mas se nascer da cotia
Differe, e assim outros mais.

O guabiri pare o gato


E aliiam-se! Com certeza,
A rapoza pare a ona
E esta perde a fereza,
Do pre nasce o furo;
Ficando com toda razo
Com a 'mesma natureza.

E, tambm os insectos
assim,
Vo mudando a gerao:
Imbo pare 'morcego,
A lagarta ao scorpio,
Cobra pare caranguejo,
Pulga pare persevjo,
Cupim pare formigo!
547
Grillc pare curur,
Aranha pare mosquito,
Aru pare barata (*)
E ningum acha esquesio,
Tudo fica demudado.
E, assim, desconchavado,
O mundo fica bonito.

A carne dos anima es


Que temos por alimento,
Se castearem com outros,
Immundos e pestilentos,
Olhe l Ilido com fome,
Carne perde at o nome!
Qual ser nosso sustento?

Cavallo nascer de gente


No admira este facto.
Para cavallaricino,
Se o negocio fr exacto,
Eu bem assim asseguro
Que elles dizem: No futuro,
Cavallo fica barato

Ns marchamos para um tempo,


Que no est
muito afastado,
Em que as carnes de aou?>iic
Que hoje so tudo de gado,"

(*) Aru ou //rz/i caramujo.


548
Segundo a marcha presente,
Ficam de sabor differente,
Porque tudo casteado!...

Castear carneiro e cabra


E' negocio muito antigo,
Mas mulher parir um poldro
Eu entendo c commigo.
No que ningum me dissesse
E' aleijo que apparece,
Ou mentira ou castigo!

Um cavallo no commercio,
Sendo j filho de gente,
Se diz: E' bom para carga
E p'ra sella, principalmente,
E tem mais a favor seu
Que puchou de quem nasceu
Ser um pouco intelligente . .

Diz um homem: deste cavallo


Eu tenho conhecimento,
Foi nascido de familia
De inteiro fundamento,
E tem mais um predicado:
Elletem irmo formado
E tem irms no convento . .

Apparece outro cavallo.


Que ainda no conhecido.
. .

Diz o dono ou vendedor:


Este todo garantido,
Nasceu de Dona Fulana,
Ella sria e no engana,
E', portanto, bem havido . .

Se besta parir menino,


E^ a mesma confuso,
Primeiro que se acostumem
Causar admirao,
Dizendo o povo em geral:
E^ filho de um animal
Este honrado cidado.

E se pretende casar-se,
E onde foi baptisado,
Vai tirar seu baptistrio,
Fica o pobre envergonhado,
Pois o sachristo reclama:
Sua me como se chama?
Eu quero tudo explicado!

E o pobre fica sem ar


De contar pelo mido.
Com muito custo responde,
Fazendo gestos de mudo:
De mame no estou lembrado,
Diz quem nella andou montado,
Que de baixo a meio tudo . .

O filho soccorrer a me
30 O
E' de grande obrigao.
Se o rapaz com a gua,
Peial-a de p e mo,
Com devida cortezia
Laval-a ao meio dia,

Dar-ihe mais uma rao.

A besta para esse filho

Sc' lhe serve de embarao,


Uma verdadeira empata,
Um esquisito cangao,
esfrega, /
Tomando elle a

Todo o peso ento carrega,

Poupando-lhe o espinhao . .

Sahiram me e filho
Por esta forma emfim.
Chegando a uma casa,

Sero tratados assim


Com toda considerao:
o do piro,
filho lhe
A' me lhe do capim!...

Disse um certo usurrio:


Se isto ficar seguro,
Ames poldro que menino
Com relao ao apuro;
O menino d despeza,
E o poldro com toda a certeza

E' cem mil ris no futuro.


, . .

DOl

Disse uma velha caduca:


Da mesma forma eu assigno,
Mas, como j indetnenfo
No declaro meu destino . .

Por tanto fico calada,


De mim no resulta nada,
Nem poldro . . . nem menino . .

Oh! quem me dera meu te!T]po


Da passada mocidade.
De mim nascendo um poldrinho,
(Embora, que novidade!)
Com muiv. zelo o criava
Vendia-o e remedeava
A minha necessidade.

Diz o autor destes versos


Que os fez segundo leu,
Para o enfeite da obra
Desta maneira escreveu,
V l seja como fr,
Se mentiu para compor,
Quem escreveu no foi eu.

Desta maneira imaginao dos troveiros ser-


a

tanejos se atira s concepes mais abstrusas deste


mundo. No de admirar para os que sabem que
esse povo as bebe com o leite materno, pois, no
Nordeste, ha duzentos annos que se no l e se
no commenta sinao cste livro: Historia de Carlos
552

Magno e dos doze pares de Frana, ".eguida das


aventuras de Bernardo dei Carpio .

A opini o plica do serto

Todo aquelle que acredita estar o serto do


Brasil, devido ;^o seu atrazo, sobretudo material,
alheiado do que se passa no resto do paiz engana-se
redondamente. Elle acompanha, comentando-os, to-
dos os assumptos que se passam nas cidades e na
capital. Guarda-os em versos toscos, porem irnicos,
e canta-os ao som da sua viola rstica. Delles se
pode dizer o que disse um folklorista francez. dos
camponezes sicilianos, quando estudou as canes po-
pulares da antiga Trinacria Aucun venment in-
:

tressant pour leur pays ne leur chappe. lis ont ra-


cont Finondation de 1851, comme leurs devanciers
avaient racont celle de 1666. Une tempte, un trem-
blement de terre, le cholera, deviennent pour eux la
matire de chants avidement ecoirts. Murat, Fra-
Diavolo, se mlent. dans leur repertoire, Penfant
prodigue , aux Ris Mages , Sainte Lucie >>,

Sainte Rosalie .

O mesmo phenomeno foi constatado pelos estu-


diosos entre a populao campesina allem. Nas al-

deias da Prssia ou da Saxonia, da Thuringia ou


do Hannover, cantou-se, segundo o depoimento de
Puymaigre, a conquista da Arglia e a guerra da
Crima, o cholera e a morte do Duque de Reichstadt.
553
Basta folhear a anthologia de canes populares fran-
cezas de Nisard, afim de verificar quanto nellas o
povo francez comin^nta, satyrisa, applaude ou vaia
os factos polticos e sociaes do seu paiz e dos pai-
zes visinhos.
Da mesmafornia procede o sertanejo de Nor-
deste, mordacidade no escapa nenhum facto
a cuja
importante occorrido no Brasil, embora tal facto no
o interesse directamente.
Recolher todas as produces da opinio pu-
blica sertaneja sobre os acontecimentos nacionaes,
equivaleria a fazer um livro enorme, to numerosas
ellas so. Neste volume j damos, em outros cap-
tulos, algumas bem interessantes como por exem-
plo a do Sorteio Militar. E, para mostrar que te-
mos razo no que affirmams acerca 'da fora da
opinio publica sertaneja manifestando-se em verso,
basta as duas poesias que se seguem, da lavra do
poeta popular parahybano Francisco das Chagas
Baptista.

A VACCINA OBRIGATRIA
Meus curiosos senhores,
Vou contar-vos a historia
Que os jornaes annunciaram
Da vaccina obrigatria.
Esse caso que no Rio
Ficou para eterna memoria!

Mandou o presidente
33 4
Da nossa Republica
Que na praa publica
Se pegasse a gente,
Obrigadamente,
Para vaccinar.
Quiz assim livrar
O povo da inimiga
Peste de bexiga
Que o vem devastar!

O povo, ento, levantou-se,


Dizendo: No me sujeito
A^ ordem do presidente,
Porque contra o direito!
Se elle metter-me a bexiga,
Eu perco-lhe o respeito!

Correu a noticia
Que quatro doutores
Vinham com a policia,
Cheios de malicia,
Cortando igualmente
E o talho inda quente
De vaccina enchendo . .

Um. puz vil mettendo


No corpo da gente!

O doutor Lauro Sodr


E muitos outros doutores
Gritaram ao povo: Ningum "
.

555
Se curve aos vaccinadores!
A Escola Militar
Se armou contra os impostores!

O povo damnou-se
E se revoltou!
Ningum vaccinou
E a vaccina acabou . .

O tempo fechou
E a bala zunio!
O g-overno vio
A coisa atrapalhada
Porm a Armada
Logo o acudio.

S tinha a favor do povo


A escola em geral,
Que brigava heroicamente
Contra o poder federal!
O doutor Rodrigues Alves
No esperava este mal.

O governo armado
Com o /exercito e a policia,
Disse com malicia:
Quem fr revoltado
Seja agarrado
E posto na cadeia!
A lucta foi feia,
Do povo revolto
556
O que no foi morto
Deu o pulso peia!...

Ficou em estado de sitio


A Capita! Federal,
Com espao de trinta dias
O medo era geral!
Com a priso dos rev^oltosos
V^oltou a paz afinal.

Os presos revoltados,
Sem pagar embarque.
Foram para o Acre
Todos exilados.
Esto perdoados
Os que l ficarem,
E se acostumarem,
O governo dizia.
Porque j sabia
Qu'iam se acabarem

A QUESTO DO ACRE
(trechos)

Quiz a visinha Polivia


Apossar-sc de um terreno
At no muito pequeno . .

Pertencente aos Brazileiros;


Mas o illustre Presidente
Da Republica do Brazil,
.

557
Achou que era um acto vil^
Sujeitar-sc a estrangeiros.

Acre! eis o territrio


Que os taes Bolivianos
Audazes e levianos,
Num mpeto de lascivia, (?)
Quizeram chamal-o a si,
Porque essas ricas zonas
Dividem o Amazonas
Com as terras da Bolvia.

Alegra-vos, Brazileiros,
Que a victoria ser nossa;
Contra o Brazil, gente grossa,
Se levanta, porm cai!
O que no quzer correr
Logo dos primeiros golpes
Terminar como o Lopes
Na guerra do Paraguay

No vedes, Bolivianos,
Que jiiegro o vosso futuro?
Que to triste e escuro,
Como as noites de Janeiro?
No vedes que para ns,
Todos os vossos escudos
So como foram em Canudos
Os de Antnio Conselheiro? .

Cesse Deus a epidemia.


P^ra que das duas naes
Se encontrem os batalhes
E possam ento batalhar;
Para que omundo inteiro
Veja que nossa a victoria
E que o Brazil tem a gloria
De ser herico sem par!

As revoltas da Armada em 1892 e em 1910,


as invases poiiciaes e cangaceiraes, as salvaes
dos Estados, as attitudes do governo federal em
certas questes, as ascenses de Santos Dumont
e de outros aeronautas em bales e aeroplanos, os
erros administrativos, as roubalheiras e patifarias,
tudo guardado em verso no serto. Accresc que,
muitas e muitas vezes, depois de cantadas pelos tro-
vadores errantes, essas poesias so publicadas era
pequenos folhetos nas cidades do interior e farta-
mente vendidas ao povo todo. Assim, o folk-lore
transforma-se em verdadeira litteratura de colportage,
o que mais uma razo para que se no despreze
a irnica opinio publica do serto. Ella existe, sabe
manifestar-se e impopularisa l homens e governos.
II

FoIk=Lore repentista

A Joo ^ibeipo
os DESAFIOS
Os desafios
Da feio repentista do oik-lore de Nordeste
a parte mais interessante a do desafio entre dois
cantadores, num terreiro de samba, ao som da viola,
luzido luar ou das fogueiras de So Joo, ro-
deados pelo silencio ou pelos applausos enthusias-
ticos da assistncia. Nesses desafios em que as sa-
tyras so muito mais frequentes que os louvores, ha
a reminiscncia duma velha tradio de disputas em
verso. Faziam-n'as e ainda as fazem os cantores
po-
pulares das aldeias portuguezas. Fi?eram-n'as sempre
na lingua sonora e doce de Mireille, os trovadores
provenes, sustentando as suas opinies contrarias
sobre a belleza duma dama ou a valentia dum cam-
peo, deantedos fidalgos reunidos nas salas go-
thicas dos castellos.
At hoje so celebres as suas f.er?sons, nas quaes
muita vez chegaram s mais speras censuras. Idn-
tico costume seguiam os menestris das regies
do
Mosa do Mosella com os seus curiosos dayemans.
e
O desafio
, porm, ainda mais antigo. \\ o
praticavam em Roma, para gudio dos convivas dos
banquetes, os bufes da moda. Horcio conta no
livro I das suas Satyras o desafio entre os bufes
564

Sarmentus e Messius, que se no pouparam speros


remoques.
A essa longa tradio latina do repentismo po-
tico, casou-se a faculdade que tinha o indio de im-
provisar tambm, joakim Catunda, na sua
versos
do Cear , fala, baseado em J. F. Lis-
Historia
boa, na maneira especial que possuia o indigena de
improvisar ao som da sua barbara musica.
O sertanejo canta o seu desafio de duas for-
mas: na toada ligeira, isto , apressada, com rimas
sempre em ou or ou a, que tm a mesma pro-
sdia no serto, obrigatria a dois versos para cada
cantador; na toada natural, com qualquer rima e em
quadras, sextilhas ou decimas, sendo mais commum
o desafio em quadras de sete syllabas; s vezes usa-
se comear uma quadra com os dois ltimos versos
ou o ultimo verso, a deixa da que foi cantada pri-
meiro.

DESAFIO ENTRE MANOEL DO OLHO D'AGUA


E FRANCISCO PAMONHA, TROVEIROS
CEARENSES, NA TOADA DA LIGEIRA:
Sou Man do Oio d^Agua
Cantador do Cear

Sou o Francisco afamado


Do Salitre ao Camar.

Com voc Xico Pamonha


Na ligeira vou canta.
565
Ii eu comtigo Man
Vou mesmo desafia.

Quanto mais oc se avexa^


Mais descanso oc me d!

Sou milho de tamboeira,


Sou duro de debulha!

Sou estrepe de jurema


Sou espinho de ju!

Sou ona mussuarana,


Sou gato maracaj!

Dou um grito na subida


Daqui p^r^as barras quebra!

Daqui para amanhecer


Dou outro no descamba!

Grande numero dos principaes desafios na toada


natural,guardados religiosamente na memoria do
povo sertanejo, tm sido publicados. No systema
da ligeira hoje no se coUigio nenhum. Estes
at
so raramente cantados e no agradam tanto quanto
os outros, onde a liberdade de metro e rima d' en-
sanchas largas ao espirito e verve dos trovei ros
matutos. Sylvio Romero guardou nos Cantos Po-
pulares o desafio celebre entre Manoel de O' Ber-
566
nardo e o negro Rio-Preto. Rodrigues de Carvalha
inserio no Cancioneirodesafios de
no
outros
menos valor: o de Nco Martins com Francisco Salles,
o de Manoel das Cabeceiras com o Diabo, o de Ma-
noel Riacho com Maria Thebana, o de Romano
da Me d' Agua com gnacio da Catingueira, as can-
tigas de Cabeceira, de Theodosio Pereira, de Sil-

vino, da Xica Barroza, de Manoel Cabeceira e Ma-


noel Caetano e o desafio de Joo Zacharias e Joo
Vieira. Muitas trovas avulsas de desafios conhecidos
esto incluidas nas silvas de Sylvio Romero, nas
trovas avulsas do referido Cancioneiro, no Folk
Lore Pernambucano , de Pereira da Costa, e nos li-

vros de trovas populares de Carlos Ges e Afranio


Peixoto. Fiel ao nosso programma de no darmos
neste volume o que j tenha sido publicado, estam-
paremos alguns desafios inteiramente inditos, para-
completa elucidao do caracter dessa feio admir-
vel da poesia popular sertaneja. Alguns esto com-
pletos e outros, infelizmente, truncados pelo tempo.

DESAFIO ENTRE DOIS CEGOS, A^

PORTA DUMA EGREJA


1 .o cego

Eu sou cego de nascena,


Nunca vi a luz do dia!
Meus irmos me dm uma esmola,
Filhos da Virgem Maria!
567
2.^ cego

Quem nasceu cego da vista


E delia se no lucrou,
No sente tanto ser cego
Como quem vio e cegou 1

CANTIGAS d:) cantador FIRINO,


DESAFIANDO OS SEUS RIVAES,

Mandei dizer a Romano


Minha vida qual tem sido,
Os logares onde andei,
As famas que tenho vencido,
A troco de Deus lhe pague,
L foi meu tempo perdido.

Cheguei em Campina Grande,


Encontrei o tal Roseno,
Lavrei-o todo de enx,
No lhe deixei um empeno
E disse: Meu camarada,
No tiro regra por menos!

E fui nessa mesma noite


Ao Bezerra do Caldeiro,
Este logo que me vio
Arrancou sem direco.
Chapu, roupa e alpragata
Ficaram no matulo!
568
No Brejo me encontrei
Com o tal de Batateira,
Soltei-lhe os ps de banda,
Deixei o lero em poeira,
Botei a rama p^r'o gado
E tomei conta da feira.

Fui i Lagoa de Roa,


Peguei-me com Joo Carneiro,
Este eu serrei-lhe as pontas,
No voltou mais ao chiqueiro,
E ficou dizendo: Esse negro
E' um lobo carniceiro!

Cheguei tm Laga-Nova,
Peguei Pedro Passarinho,
Cortei-lhe o bico e as azas
Deixei-o sem canho no ninho,
Tomei os beccos da rua
Fiquei cantando ssinho.

Ento, mais tarde encontrei


O tal Pedro Belarmino,
Metti-o num cipoal
Que quasi elle perde o tino.
Quando foi p^ra amanhecer,
Chorava que s menino.

Cheguei na Ba-Esperana,
Encontrei o Campo Alegre,
569
Esse me disse: Seu mal
Estou com medo no me pegue,
Se voc vem aqui mordido,
Por caridade no negue!...

FRAGMENTO DUM DESAFIO


1 .f^
cantador

Tanto faz dar na cabea


Como na cabea dar:
Voc ona na terra,
Eu sou tubaro no mar!
2.<^ cantador

Se eu sou ona na terra,


Voc no mar tubaro,
Quando eu disser no venha,
Teimoso no venha no!

1 S' cantador

Voc andava dizendo


Que aguardente no bebia;
Agora j vae bebendo
Canada e meia por dia!...

2.^^ cantador

Nunca puz copo na bcca.


Isso inveno 'tua!
Se queres brigar commigo,
Salta p^r^o meio da rua!
570
1 .(" cantador

Cantador, se s to damnado,
Me destrinche esta tambm:
Dzia e meia de cangalhas
Quantos cabeotes tem?

2.^ cantador

Canta o gallo no poleiro,


Grita o moc no serrote.
Urra o touro na malhada,
Rincha o pae d- gua no lote:
Dzia e meia de cangalhas
Tem trinta e seis cabeotes!

MARTELLO (*) DE JOAQUIM FRANCISCO COM


ANTNIO DA CRUZ
Antnio:

Senhor dono da casa, d licena


Para eu dar neste negro em seu salo
Fazer ell a minha mo,
beijar
Ajoelhar-se ameus ps, tomar-me a benam.
Este negro ou doido ou ento pensa
Que me aguenta uma hora no martello.
Negro, eu tiro-te o couro no cutello,
Vae embora, commigo tu no cantas,
Eu abro tua carne, fao mantas
E deixo-te os ossos em farello!

(*) Este martello ou desai.io um velho exemplo de elfttsi-


cismo sertanejo.

i
.

571

Joaquim

Senhor Cruz, essa sua valentia


Faz at eu ficar desconfiado
Que -ou lhe deu o estupor amalinado
Ou voc ento est com hydrophobia!
Bem que o velho Moreno me dizia
Que voc doente de espasmo.
Chamar voc de bom um sarcasmo,
Que se atira ? moral e ao ^decoro.
Pois eu hoje a poder de muito couro
Acabo com o seu enthusiasmo.

A. Negro, hoje em martello agalopado


Te convence que muito te apertas,
Soffres grande desfeita e desertas
E talvez at fique alienado!
Eu te fao um servio to pesado.
Que o prprio diabo ha de ter d
Eu te obrigo debaixo do cip
A chamar-me Jj e senhor moo.
Bota logo um lao no pescoo
E me chama, que eu aperto o n.

J.
O diabo deste pitorra
S estando atacado de loucura
Infeliz, desgraado, sem ventura,
Teu martello no faz com que te soccorra,
Embora que no tenhas sentimento.
Mas eu dar-te at a morte meu intento,.
572
Que vergonha p'ra ti nunca se fez:
Ou o diabo te leva desta vez,
Ou se acaba este teu atrevimento.
A.
Todo negro diz que duro,
Quando esi entre os parceiros delle;
Mas, mostrar.do-se uni chicote a elle,

Se acaba seu roo sem fuiuro.


O corpo de negro um monturo.
O suor tem o cheiro de ticaca.
Trajado um Judas de casaca.
Onde entra, ningum o leva em conta
Quando se diz que um negro est na ponta,
J se sabe, na ponta da macaca.

J.
^No falle de minha cr
Que voc tem a sua aiuareilaa.
E^ branco, porm tem a desgraa
De ser sem respeito e adulador.
E' chaleira, seja de quem for,

Atraz de ganhar algum bocado,


Um tosto p'ra viver encaxaado,
Envergonhando a todo o povo seu
Que antes ser negro como eu,
Que um branco, assi-n, to relaxado!

A. Negro atrevido, animal


No me faies em minha parentela,
Seno eu te encabresto e boto a sella,

Monto em cima e tu marchas


liberal,
573
Se cansares o primeiro signal
De pesado e ruim;
ser lerdo, choutao,
Desta forma no serves para mim.
Vendo-te aos ciganos p'ra cangalha,
Vaes ento servir p'ra levar palha
P'ra teus parceiros que gostam de capim,

J.
Antes disso eu lhe obrigo
A dizer por sua prpria bcca
Que a sua sorte foi to pouca,
.Que o diabo seu tio e seu amigo,
Que nasceu por desgraa e castigo,
E de Poncio Pilatos irmo.
Foi Herodes quem lhe deu educao
E o co para elle no agrada,
Que o inferno ser sua morada
E Judas foi seu mestre e seu patro! -

A. Este negro, meus senhores,


Hoje fica sabendo eu quem sou,
Esmorece com os murros que lhe dou;
Dez annos ainda viva, ter dores!
Elle desses negros faladores
E por isso j tem muito soffrido.
Conhece teu logar, negro atrevido,
Maldito de Deus, bruto nojento!
Ou tu perdes o teu enxerimento
Ou te escangalho de vez o p do ouvido!

J.
O diabo lhe attenta
P'ra commigo cantar em desafio
374
Mas, apanha, pinota, fica esguio,
Cria sarna e lepra rabugenta!
Dou-lhe um unto de soco com pimenta,
Voc corre, os moleques dao-ihe vaia,
Endoidece e no sabe onde caia,
Chega em casa, a inulher no o moraliza,
Lhe toma a cala e a camiza

que \oc no as honra, ande de saia!

A Eu descubro teus podres desta vez


Este negro senhores, exacto,
Porm passa lio em todo rato!
P'ra roubar um tosto, elle anda um mez.
Baixar cinco e logo subir seis
E' a doutrina que sabe o companheiro,
Alm disto tambm c caxaceiro,
Alcovita, chalra, faz eirdo.
O resto eu no digo com m.do
Que este bicho tambm desordeiro.

J.
Vou tambm ser positivo
Descobrir a sua santa vidinha;
Uma vez que voc boliu na minha,
Foi mesnio quem deu este motivo.
Chaleirar quem inda o traz vivo,
Leva e traz, mexericas pela rua.

E se achar quem com cobre lhe influa


Para dar um recado escondido,
A mulher casada ou sern marido
Voc d um recado at sua!...-
,

575
SILVA DE CANTGAS SOLTAS DE DESAFIO

Nunca vi sombra de alma,


Nem rasto de lobshonie.
Sou cascavel de vereda:
Quando pico, urubu come!

Collega, pinique a poldra,


Se quizer me acompanha^
Que esta minha gua velha,
Quanto mais puxo, mais d!

Eu infinquei o meu marco


Da Gangorra p^ra Poo,
Para os cabras saberem
Qual a minha diviso . .

Sae-te dahi, pinto choco,


Vae-tebanhar na mar!
Que outros melhores que tu
Apanham de ponta-p!

Sou Gerome do Junqueiro


Da fala branda e macia,
Piso no cho devagar
Que a folha scca no chia,
Assubo de pu a riba
E deso pela forquia!

Ave Maria, meu Deus!


576
Quando eu me arreliar,

Fao aleijado correr,


Quem no tem olho enxergar!

No logar aonde eu canto,


Todos tiram o chapo;
Cada repente que eu tiro,

Corre uma estrella no co!

Quem quizer cantar commigo


Sente na ponta do banco,
Que eu conheo gado brabo,
De noite, s pelo arranco I

Quando mame me pario


Foi dentro duma gamella;
Da queda que ella me deu
Papoquei uma costella!
Chegou meu pae, perguntando:
Mulher, cnd nosso fw?
Est sentado no banco
E cantando desafio!

Cantador como voc,


Assim cheio desse luxo,
Eu boto o p na barriga
E arranco o piro do buxo!
Ignacio da Catingueira,
Escravo de Man Luiz,
Tanto cava, como puxa,
Como sustenta o que diz!
577
Ignacio da Catingueira
E^ um cabra agoniado,
Cava cacimba no scco,
D em baixo no molhado!

Vive agora seu Germano


Todo intrigado commigo,
Parece meu inimigo,
Por qualquer cousa falando.
Eu tocaia lhe botando
Nelle ou qualquer vivente,
Mordo at o presidente,
Assim me pise no rabo,
Q)ue sou neto do diabo,
Meu sobrenome serpente!

Terminando as suas disputas ou


antes de come-
al-as, os troveiros do
fazem as louvaes
serto
s pessoas presentes festa ou aos donos da casa
em que se acham, como por exemplo nestas quadras
'
singelas: \

Senhora dona da casa.


Saia fora ao copiar,
Que os cantador da ribeira
Querem todos lhe alouvar!

O capito delegado
E^ um moo de valor,
E' bonito e lettrado.
Sabe mais do que um doutor!
~ 578
Senhor doutor Nascimento,
Carinha que Deus pintou,
Metta a mo nas algibeiras

E pague quem lhe aloiivou!

O desafio, peleja, martello ou galope entre dois


sertanejos de Nordeste assim vivo, bulhento, es-

pirituoso e original. Elle tem um profundo caracter


regionalista. Os seus prprios cantadores perdem o
nome de familia e adoptam o dos logares onde vi-
vem ou cantam: Gerome do Junqueiro, Ignacio da
Catingueira, Manoel Joaquim do Muqum. Elle, vindo
de longa ancestralidade, ainda se mantm no meio
do serto como a expresso do panache e a bravata
loquaz das duas raas que produziram o typo ethnico
da sub-raca nordestina, vinda do luso e do indio,
bravata condoreira essa consubstanciada nos versos
celebres:

Eu subo serras de fogo


Com alpercatas de algodo
E deso l das alturas
Com trs coriscos na mo!

Ou ento no alardear inspirao potica desta


estro phe:

Poeta dez vezes mil!


Uma vez um to somente,
Duas vezes dois me dissera,
Trs vezes trs quem t eras,
, 579
-
Quatro vezes quatro sei ente,
Cinco vezes cinco liquente,
Seis vezes seis do Brasil,
Sete vezes sete subtil,
Oito vezes oito na fama.
Nove vezes nove me chama,
Poeta dez vezes jmil!
TROVAS DE AMOR E DE AMIGO
Twas dl tni? k mfo

Menestris e trovadores, troveiros e trovistas,


que andavam de longada, cantaram sempre na
ln-
gua d^oil, ou na lngua d'oc, em florentm ou
em
castelhano, as suas loas de amor e de amigo,
as pri-
meiras impregnadas de paixo ou de zelos,
as se-
gundas recheiadas de ironia e de philosophia sin-
gela. Outra coisa no fazem ha mais
de trs s-
culos os rudes rhapsodos do nosso immenso
serto.
E, assim, tm creado um acervo
admirvel de qua-
dras galantes ou mordazes, fonnosas ou chistosas,
que deu para que vrios homens de lettras com
ellas fizessem livros. os milhares e milhares del-
ias guardadas na memoria collectiva das nossas po-
pulaes damos aqui algumas que ainda, ao que
nos
conste, no foram coligidas por ningum..
Ellas no
esto na grande obra de Sylvio Romero, no
Can-
cioneiro interessante de Rodrigues de Carvalho,
nos trabalhos de Koseritz, nas Mil
Trovas , de
C. Ges nem nas Trovas Populares de Afranio
Peixoto.
As cem quadras que o leitor encontrar neste
capitulo so uma pequena amostra do thesoiiro que
nesse sentido o folk-lore nacional', no qual
se
5S4

podem colher milhares e milhares delias, alm das


suas variantes, que so numerosssimas. Ainda, infe-
lizmente, no appareceu entre ns quem as compi-
lasse e catalogassede maneira definitiva como o
fez Caballero com as interessantes coplas andaluzas.
Elias nos vm de trs fontes: do luso, do indgena
e do escravo africano, alm das que os mestios mo-
dificaram, fizeram variar ou crearam tambm. Em
muitas ha a juxtaposiao das trs linguas prim.itivas
ou de duas, simplesmente. As mais bellas vieram
de Portugal ou nasceram com a mestiagem. So to
notveis na sua singeleza, na sua ironia e no seu
sentimento co:rio os strauiboitl florentinos ou .is stor-

nelli toscanos. No fundo, a alma dessas quadras em


todos os povos a mesma. E, entre ns, foi-lhe

ajuntada a molleza sensual dos trpicos, alm de


outros tons; porem isso no fez com que perdessem
todo o encanto da sua expresso e da sua emoo.

TROVAS DE AMOR
(AMOR. CIUMF., CASAMrNTO, DESPEDIDA, SAUDADE
GOSTO, IRONIA)

Voc diz que me quer bem,


Mas no de corao ...

Quem quer bem chega pVa perto,


Diz adeus, pega na mao . .
585
2

No mundo nao ha quem pinte,


Havendo tantos pintores,
A jia do teu retrato,
Teus olhos to matadores.
3
Meu amor como a sombra
Que a lua faz no jardim:
Mente ao longe, mas de perto
Nunca vi amor assim!
4
Sobrancelhas como as tuas
No ha quem possa escondel-as
So laos de fita preta,
Prendendo duas estrellas.
5

Com o lao do puro amor,


Prendeste meu corao.
S quero que tragas preso
Este leno em tua mo.
6
Ai! amor, por ti eu parto!
Por ti, amor! voltarei.
Quanto amor levo p'r'o mar,
Na terra quanto deixei!
7
Quizera ser encantado,
Menina, p'ra te roubar
586
E te deixar escondida
No fundo escuro do marl
8

Passarinho est cantando


Para allivio de quem chora.
Se cantas pVa consolar-me,
Passarinho, vae-te embora!

Menina, minha m.enina,


Da minha venerao,
Na barra do teu vestido
Arrastas meu corao.

10

Fui ao matto cortar lenha,


Encontrei a jurity:

Ella tinha seus amores


Como eu tenho por ti.

11

Eu bem sei de quem tu gostas,


P'ra ella podes cantar,
E' clara, tem olhos pretos,
Olhos que te ho de matar.
12

Os olhos do meu benizinho


So duas pedras de brilhantes;
E>e dia so duas jias,
De noite dois diamantes.
SS7 .

13
Em cima daqiiella serra
Tem um p de fulo preta.
Quando dois chrisos se amam,
Apparece quem se metta.
14
Quando uma flor desabrocha,
Parece sentir amor;
Quizera vr o teu seio
Desabrochar como a flor.
15
Se eu pudesse ser o sol,
Com que prazer te daria
Todo o encanto da manha,
Toda a luz do meio-dia.

Meu corao to grande


Que nelle coubera o mar,
Se o mar fosse o amor
Que eu tenho para te dar.

17 /
Meu corao anda triste,

Mas alegre ficaria,


Se eu te pudesse fitar
Cem vez^s cii cada dia.
18
Se por acaso te encontro,
Se vejo a imagem tua,
588
Sinto como um relampejo
Dos doces raios da lua.

19
No sei que tenho no peito,
Mas sinto as frias do mar,
Se por acaso te vejo
Com outro homem falar!

20

Meu Deus! Meu Deus! do meu peito


Arranca a minha paixo,
Que s fico satisfeito
Se ficar sem corao!
21

Amor com amor se paga,


Que outra paga amor no tem.
Quem com. o mesmo amor no paga
No diga que paga bem.
22

Pega l esta chave de ouro


E tranca a nossa esperana.
Pega l, torna a trancar
Nosso amor por segurana.
23

Gasta o tempo a pedra dura,


A ferrugem o ferro tem.
S em mim gastar no pde
A fora de querer bem.
. .

~.S9
24
Arrenego de quem diz
Que nosso amor se acabou.
EUe agora est mais firme
Do que quando comeou.
25 -

Se eu promettesse e no desse,
Cousa de pouca valia,
Se eu promettesse e faltasse,
Nunca mais te apparecia!

26
Quem roubou o meu amor
Deve ser um meu amigo . .

Levou penas, deixou glorias,


Levou trabalhos comsigo . .

27
Os olhos dessa menina
So bonitos benza-os Deus!
Ningum lhes bote quebranto
Que ainda podem ser meus.
28
Gallo, deixa de cantar.
Que a tristeza me procura.
Tu tambm s creatura
Tem pena do meu penar.
2^
Eu comprei uma camisa
Por quatro mil e quinhentos.
5'K.)
A primeira vez que a vesti
Contra ctei meu casaiento.

30
Esta casa no minha,
Se nella quizer mora;
Mas se nella tiver amor
Quem delia me tirar?

31

Quem se achar bem deixe estar


Que no quero estar melhor,
Estou com o amor ao lado,
P'ra que regalo maior!

32
Adeus, 6 sombra das flores
Deste jardim to florido.
To triste de ti se aparta
Quem to alegre tem sido!

33
Dentro de meu peito tenho
Duas pombas-jurity:
Uma m.orreu de saudades
De tanto chorar por ti.

34
-A outra, mais infeliz,

Bateu azas, foi embora.


E l no campo, perdida,
Ainda hoje canta e chora!
591
35
Atirei um leno brai.co,
Nos ares se espedaou.
Espedaado se veja
Quem por outro me deixou.

36
O annel cahio na pedra,
Retinio mais duma hora.
O amor que no firme
No faz mal que v embora.
37
Meu bemzinho, de to longe
Que vieste aqui buscar?
Vieste me encher de pena,
Acabar de ine matar?
38
Eu plantei e semeei
Verduras de todo o anno.
Ou me ame com firmeza
Ou me d o desengano.
39
Minha mulata bonita,
Sapateia no tij^o.
A barra do teu vestido
E' prata e parece ouro.
40
Candieiro de dois bicos
Que alumias duas salas,
592
Alumia meu bemzinho
Que passa por mim e no fala.

41

Manjerico miudinho,
Salpicado de a, b, c,

Meu corao s me pede


Que me case com voc.

42
Um beija-flr me disse,
Outro mandou-me dizer,
Que no fim desta semana
Meu amor vinha me vr.

43
Suspiros que vo e voltam
Dm-me novas de meu bem:
Se elle vivo, se elle morto.
Se anda nos braos de algum? (*)

43-A
No vivo, nem c morto,
Nem anda em braos de algum.
Deitado na sua rede,
Est s, sem mais ningum.

44 .

Esta noite tive um sonho.

() Esta quadra est nos -Cantos Populares> de Sylvio Ro-


mero. Repetimol-a para melhor comprebensao da que lhe serve
593
Sonho de muita alegria:
.Que me casavam fora
Com quem eu m.uito queria.

45
Papagaio louro,.
Do bico dourado,
Leva esta carta
Ao meu bem amado!
46
Eu fui l no Itarar,
Fui vr agua e no achei,
Eu fui vr morena bella

J fui, j vi, j cheguei.


47
Ningum deixe amores velhos
Pelos novos que ho de vir,

Que os novos logo se acabam


E os velhos vm a servir.

48
Ningum se confie em homem,
Nem quando promette amor.
Que Judas tambm foi homem
E vendeu Nosso Senhor.
49
Ao pobre tambm se ama,
Ao pobre tambm se adora,
O pobre tambm convive,
Por pobre tambm se chora!...
594
50

S. Gonalo de Amarante,
Santo bem casamenteiro,
Antes de casar as outras,
Casae-me a mim primeiro.
51

Segunda-feira que vem,


Dia da minha partida,
No sei se diga At logo!
Ou Adeus! por toda a vida.

52

Coruja, vem c, meu bem,


Que fim levou teu marido?
EUe anda pela rua,
Porque muito enxerido . . . (*)

53

Voc diz que me quer bem


E eu digo que Deus lhe pague.
Se seu bem com interesse,
Commigo canar debalde.
54

Diabo leve, mo fim tenha


Quem o meu amor tomou!
Na hora de sua morte
Lhe falte Nosso Senho!

(*) Intromettidc. A irrnia t-rriv-l


.

595
55
Alecrim de beira d' agua,
Bemtevi de gamelleira.
Se no casarem commigo,
Pretendo morrer solteira . .

56
Meu bemzinho, v embora,
Que no tenho o que lhe dar.
Toii plantando macaxeira, (*)
P^r^o anno venha buscar.
57
Vou-me embora, vou-me embora,
P^ro serto do Cariry,
Vou buscar quem bem me ama,
A Maria Patury.
58
Quando eu aqui cheguei,
Achei violas tocando
E umas meninas bonitas
Na dansa se desmanchando.
59

Voc diz que no me quer,


Porque no tenho fazenda.
O seu pae no to rico
Nem voc to boa prenda!...

(*) Aipim

I
596
60
Tenho raiva, tenho ira
Tenho paixo de matar
De quem dansa e no me atira,
De quem bebe e no me d!...
6

Eu agora vou cantar


A cantiga da mutuca:
Toda moa baixa e gorda
Ce na minha arapuca ... (*)
62
Menina, tu vaes Frana
Me traz dez botes de rosa,
Quatro abertos, trs fechados,
Trs de encarnada cheirosa.

63

Limoeiro pequenino,
Tira o galho do caminho,
Que eu costumo andar de noite,
Tenho medo dos espinhos , .

64
As meninas l de casa
So meninas cavilosas . .

Vo ao jardim plantar flores,


Plantam cravo e nascem rosas . .

(*) Armadilha para pecar passasros.


. ..

5Q7
65
As meninas l de casa
So meninas de aco . .

Botam a panella no fogo,


Cosinham com dois tio .

66
Pintor que pintou Maria
Tambm pintou Isabel;
Quando quiz pintar Josepha,
Ail meu Deus, cad pincel?

67
Menina, casa commigo,
Que sou bom trabalhado,
Boto a enxada no hombro
E l na roa no vou . . .

68
Torrada,meu bem, torrada,
Torrada no me d mais,
Por causa dessa torrada
Morreu a filha dos pes . .

69
Peguei na perna da velha,
Cuidando fosse da fia:
Perna de velha cascuda,
Pwna de moa macia!...
70
Coitadinho de quem ama,
Andando atraz de favor,
59S
S logrando ser ladro
Do que pode ser senhor!

TROVAS DE AMIGO
(CONCEITOS, MOTEJOS, TRADIES, SUPPLICAS, CREN-
DICES, CONSELHOS, SATYRAS, ALLUSliS)

71

Sou um pobre peregrino,


Morador neste serto,
Vou pedindo pelas casas,
Todos dizendo que no.
72
Eu compro as banhas da cobra,
De fumo dou quarta e meia,
P'ra fomentar uma perna
Qe me doe na lua cheia.

73

De Salomo a sciencia
Eu trago toda de cr:
Pae e me muito bom..
Barriga cheia melhor.
74
O tempo pedio ao tempo
Que lhe desse largo tempo.
O tempo lhe respondeu:
Tudo no mundo tem tempo!
. ;

75
Quem tiver sua filha virgem
No mande apanhar caf. (*)
Se for menina, vem moa
Se for moa, vem. mui.

76
Quem tiver filha l^onita
Traga -a nresn ra corrente,
Que tambeyn j' 1ive a minha,
Jacar levou no dente . .

77
Quem tiver a sua casa
Bote reparo de vista,

No consinta suas filhas


Darem fogo a rabequista.
78
O homem, tendo dinheiro,
Sabendo se dirigir.

Vende a terra, compra o co,


Faz escada pVa subir.
7Q
Entre Judas c FLtIos,
Foi o Christo concluido:
Quando Pilatos vendeu,
Judas j tinha vendido.

(*) Quadra da serra de Batuii, no Cear, onde ha plan


taces de caf.
600
80
Saber viver nestemando,
E' dote que Deus nos d^
E' uma grande fortuna,
E' um grande cabed.
81

Coco verde, coco dc ^ ^

Coco do Neco Pereira,


Coco doce te arrenego
Que no sou desta ribeira.

82
O coco para ser cgo,
Deve ser de catol.
O homem para ser homem
Deve ier cinco min.
83
Sendo eu de prata fina,

Fui misturar-me com cobre.


Grande castigo merece
Quem se abate, sendo nobre 1

8-1

Massa cosida farinha,


Garapa cosida m,
Franga que pe gallinha,
Moa que casa miii.

85

Olho mo, eu te arrenego,


Vae-te para Belzebuth!
. . .

6U 1

Por ti Pedro Labatut


Cahio duro como um prego. (*)

86
Onem tiver raiva de mim
Cante e grite pela rua,
Que eu como na minha casa,
Cada qual coma na sua . .

87 ,

Quem tivQr raiva de" mim


E no puder se vingar
Bote a corda no pescoo,
D-me a ponta pVa puxar . .

88
Ningum se julgue feliz
Por qv tudo em bom estado,
Pois vem tyranna sorte,
a
Faz dum Jeliz desgraado.
89
Quem corta e prepara o po.
Quem cava e faz a gamei la,
Toma a si todo o trabalho
E, depois, fica sem ella . .

90
S. Gonalo de Amarante,
Feito do po de alfavaca,

(*) Refere-se ao assassinato de Pedro Labatut,


em Fortale-
za, na primeira metade do sculo ^a^sado.
b02
No serto, quem no ten rede
Dorme num couro de vacca . .

91

Muito vence quem se vence,


Muito diz quem no diz tudo,
Porque ao discreto pertence
A tempo fazer-se mudo.
92

Com geito se leva o mundo,


De tudo o geito capaz,
Assim se ageite ao geito
Como muita gente faz.

93
Coitadinho de quem perle

Com sua necessidade!


Quem pede, pede chorando,-
Quem d carece vontade.
94

Tenho visto muito homem


Que passa por bem honrado:
Caradura no presente, -

Semvergonha no passado.
95

Quem no toca, quem no dansa


Fica triste e jururu,
Sua me mulher feia
E seu pae um cUrur.
.

603
96
O dinheiro s quem faz
homem ficar senhor,
Ser baro, ser deputado
E, depois, ser senador.
97
No quero Sanf Antnio grande
Dentro do meu oratrio.
S quero o meu pequenino
Que attende o meu peditrio.
98
Bacuro anda de noite.
De dia porque no anda?
Porque foi notificado
Pelo Panella de Miranda. (*)

99
Eu sou o Deus Sabe Tudo,
Moro na ponta da rua,
Falando da vida alheia,
Cada qual cuida da sua . .

100
Ningum se confie ao vento.
Que vento no tem que dar.
Quem se vira numa penna
O vento ha de carregar. ^

(*) Nome duma autoridade qualquer do interior parahyba


no, de onde vem a quadra, que prohibio a qualquer sujeito an
dar de noite.
EMBOLADAS
Emboladas
As cantigas de ryhmo ligeiro e rimas repetidas,
embolando umas com as outras, intercaladas de es-
tribilhos, que vulgarmente se chamam emboladas,
so, no Nordeste brasileiro, mais communs no litto-
ral do que no serto. Canto repentista da gente da
costa, que se ouve nas daiisas sapateadas dos cocos
de embigada, hoje em dia se acha banalisado em
celebres estrophes do carnaval carioca, as da Ca-
bocla de Caxang, por exemplo. Aquelles que tiram
as mboladas, nas povoaes de pescadores, usam
delias para intimar com os presentes, para historiar
ou criticar os factos occorridos na redondeza e, mui-
tas vezes, essa poesia de repentista se torna tradi-
cional, guardando costumes ou rememorando factos.
Os seus estri- !lhos se tm conservado os mesmor
atravz os tempos:

Tengo! t"engo!
O ferreiro bate o ferro.
Amolado!
O ferreiro j malhou!

Ou "ento:

Roda livre a manivella,


Bota azeite no mancai!
OS

Essas ^emboladas so conhecidas em todo o Nor-


deste e muitas delias se perpetuaram na memoria
do povo. Vejamos, em primeiro logar, uns exemplos
d'algumas que se tornaram inteiramente tradicionaes
por 'guardarem o trao de factos notveis occorridos
no Brasil. Esta fala-nos da guerra do Paraguay:

Foi o duque de Caxias


Que mandou-/;?^' chamar,
Mde ir ao Paraguay,
Mde aprender a brigar.
Vou-me enbora, vou-me embora,
Vou-me embora para o mar!

Esta conta-nos de Canudos:

Eu recebi um convite
Do general Arthur Oscar,
Mde ir para Canudos
O Conselheiro acabar.
Vou-me embora, vou-me embora,
Quando acabar de dansar . .

Esta outra recorda o governo de Floriano Pei-^

xoto e a influencia de Pedro Paulino e do general


Gabino Besouro nas Alagoas, fazendo de tudo isso.
e mais da creao dos guardas locaes no referida
Estado uma synthese interessante:

Pedro Paulino,
Bezouro, Floriano,
Decreto republicano
609
Que creou guarda local
Roda livre a manivella,
Bota azeite no mancai.

As alluses costumes so sobremodo interes-


a

santes. No Nordeste, os matutos que vm s cidades


littoraneanas, tangendo os seus comboios de burros
com cargas,deixam as camisas por fora das calas.
Isto, como entrar armado nas cidades, prohibido. Um

soldado de policia, postado em cada estrada que vem


ter cidade, obriga todo o sertanejo a guardar a
faca fora de portas e a pr a camisa por dentro
das calas, a passar o panno , dizem eiles.

Estes factos esto comm enfados nas emboladas:

Matuto besta,
Quando chega l de fora.
Sua faca, sua pistola,
D na venda p^ra guardar.

Tengo! tengo!
O ferreiro bate o ferro.
Tengo! tengo!
O ferreiro quer malhar.

Matuto besta,
Bota a camisa pVa dentro,
Bota o olho no sargento
Da Guarda Municipal.

Tengo! teno! etc.


610
Matuto besta,
Quando chega na cidade,
Fica todo estatelado,
No sabe o que vae comprar

Tengo! tengo! etc.

Outras estrophes referem-se a simples cousas


da vida dos que as cantam nas suas pobres, festas:

Peixe, piaba,
Tubaro, baleia, serra,
Meu maninho vem por terra,
Vamos tarrafiar no mar!

Maneiro paul
Maneiro pau!

Dois vintns, meia pataca,


Dois mil ris, mil e quinhentos,
Minha canoa est pintada.
No me pisa mulher dentro.

Maneiro pau! (bis)

Muitas e muitas vezes, as cantigas das embo-


ladas so bastantes immoraes. Outras so duplas,
embolam um sobre a outra, como esta, por exemplo:
2L

Negra damnada,
De que chora este menino?
611
Chora de barriga cheia,
S p^r\) mde me tentar.

Negra damnada,
A palmatria est no torno,
Metta a peia nesse corno,
Mande elle se aquietar!

Os exemplos de versos de emboladas seriam


de dar um volume, se os quizesssemos aqui recolher
todos. Tornar-se-iam enfadonhos pela sua repetio,
to enfadonhos e repelidos como os passes da dansa
praieira dos cocos, ao som dum marac e dum pan-
deiro, durante as quaes s.^ cantadas as mais cele-
bres emboladas. Foi- este um t^enero de poesia que
nasceu na praia e dahi subio ao -erto Ahi, no em-
tanto, ainda raro. Em muitas i.Qfi^es completa-
mente o desconhecem. E mesmo onde ipparece est
um pouco alterado. Estampamos aqui, como exemplo
illustrativo, as emboladas sertanejas do poeta para-
hybano Calute Maravilha:
EMBOLADAS DE ALEXANDRINO CALUETE MA-
RAVILHA, DO TEIXEIRA, PARAHYBA
No mez de Janeiro,
Quando o anno bom,
Que se ouve o som
Do trovo primeiro,

V-se o nevoeiro
Subir com alento,
612
Com pouco o vento,
O tempo amoroso,
O ar caloroso
E o ceo alvacento!
O sertanejo conhece
No dia que quer chove,
Nevoeiro ningum v.

Do meio dia p^ra tarde


E^ que vem apparec.

O feijo grosseiro.
Mas no porqueira,
Se vende na feira,

Recebe o dinheiro,
Se compra tempero,
Carne com gordura,
Caf, rapadura,
Legume de planta, (?)
A fome se espanta
E chama a fartura!
Estou na carretia,
Estou na embolada,
A^ulher preguiosa
No cose nem fia,

Se deita de noite
Acorda a meio dia!
Se no fosse o homem,
Mulher no comia!...
III

Historias, Fabulas, Lendas


e Supersties

R ^agahes de Azeredo
HISTORIAS
a)

^iSTMIAS 0 OE^TE
o avarento Joo de Velos

Um avarento, chamado Joo de Velos, comia so-


mente, para no gastar dinheiro, luna de
bolacha
wianh e outra noite. Assim, reunio uma grande
fortuna, conseguindo encher duas pequenas caixas de
moedas de ouro. Tendo-lhe sido proposto um nego-
cio em que devia ganhar muito, foi a uma das cai-
xas, abrio-a e disse-he:
Caixa, empresta-me trs contos de ris.

A caixa, deixando-o espantado, respondeu:


Este dinheiro no teu, de Joo de Velos.
O avarento desconfiou da historia. Aquella ma-
gia pz-lhe sal na moleira. Resolveu mudar de terra.
Passou o dinheiro das duas caixas para duas bar-
ricas do mesmo tamanho e embarcou para o es-
trangeiro. A^ primeira noite de viagem, quando dor-
mia, o mar grosso quasi afunda a embarcao. Para
alivial-a, o capito mandou lanar ao mar aquells
duas pesadas barricas, que o dono declarara estarem
carregadas de chumbo.
As correntes submarinas encarregaram-se de le-

val-as a um curral de peixe de propriedade dum ou-


tro individuo, que, por coincidncia, tambm se cha-
620
mava Joo de Velos. Este abrio aqueiias barricas e
deu o seu contedo de esmola.
O outro, a bordo, quando vio de manh o que
o capito fizera, ficou desapontado e furioso. Tomou
um escaler e foi desembarcar na costa fronteira,
ao longo da qual comeou a procurar as barricas,
at que deu com a casa do seu homonymo, onde
chegou faminto e rasgado. O segundo Joo de Velos
escutou a historia que elle lhe contou das barricas,
no lhe disse que as achara e distribuir seu. cortedo
pelos pobres e lhe deu um bello po recheiado de
grandes moedas de ouro. O avarento foi em.bora.
Adiante encontrou uma comadre do outro que o ia

visitar. Ella achou o po que elle levava muito bo-


nito e propz-se ^ compral-o pOr cinco patacas, afim
de dal-o de presente ao compadre que ia visitar.

O Joo de Velos vendeu-o. E o segundo


primeiro
teve assim recambiadas as suas moedas.
Foi desta sorte que Deus castigou um avarento,
reduzindo-o misria, apezar de tudo. (*)

A ifinptts k nenlno

Era uma vez um homem que ia de viagem.


A' porta duma casa, na beira da estrada, encontrou
um menino. Perguntou-lhe:
Menino, cod teu pae?

(*) Este conto sertanejo mais ou menos variante barbara


daquella canJo portugueza em" que se conta dum sapateiro que
. .

621
Est no arrependimento.
Que arrependimento, menino?
E' o roado,porque quando vem a scca a
gentia se arrepende de tl-o plantado
E tua me, menino?
Est pagando os gastos do anno
passado.
Que isso, menir.o?
Est dando a luz . .

Adeante da casa havia um rio. O homem inda-


gou:
- Aquelle rio fundo?
O gado de meu pae passa todo o dia para
l e para c . .

O homem
no se lembrou que o astucioso me-
nino em linguagem symbolica e cuidou
s falava
que o rio fosse vadeavel. Metteu o cavallo
n'agua
pars passar e quasi morre afogado. O
gado a que
o pequeno se referia era um bando de
patos que
os pars criavam.
O viajante regressou casa do menino, todo
molhado, furioso. Encontrou o pae que tornava
do
roado e pedio-lhe o ncti?. Achava-o esperto,
era
rico e sem filhos, desejaria educal-o. Tantas disse
que convenceu o outro e carregou com o garoto.
Na sua casa, resolveu vingar-se delle. Agarrou -uma
palmatria e comeou a fazer-lhe perguntas, cujas
respostas tinham, de ser figuradas como aquellas que
o menino lhe dera.

recebeu do rei ii;n hlo com reclitio de inreda .


e delle no se
aproveito;.'.
622 --

Que padre?
E' um homem.
Errou. No no. Padre F em Deusi.
E applicou-lhe meia dzia de bolos,
Que mulher?
E' mulher.
- Errou. E^ Folgazona .

Segunda meia dzia de bios!


Que gato?
E' um bicho.
No senhor! E' Apanha-rato .

Outra meia dzia!


E fogo?
P fogo!
Qual o que! E^ Claro do Mundo >.

Outra meia dzia.


E voc quem ?
Um menino.
No. Voc ningum.
Desta vez, para terminar, foi uma dzia de bo-
los de estalo, inteirinha.

Passados dias, tendo vindo casa um padre,


que a frequentava a miude na ausncia do: tal ho-
mem, e estando no quarto a confessar a mulher
deste, o menino espalhou plvora pelo cho, amar-
rou um facho accezo no rabo dum gato e soltou-o.
O bicho entrou como um diabo pela casa adentro, a
plvora pegou fogo e dentro em pouco um incndio
formidvel devorava tudo. O homern chega de onde
623
estava, s carreiras, e, topando o menino no terreiro,
pergunta-Ihe horrorisado:
Que desgraa foi essa?
O petiz responde-lhe com toda a calma, sorri-
dente:
Desgraa? No senhor! Foi o Apanha-ra-
to com o Claro do Mundo no rabo que entrou l
onde estava o F em Deus com a Folgazona!
E quem poz fogo no rabo do gato, menino?
Foi Ningum ...(*)

D CKrWie, o jiiii e 5. Fedro


No ha gente que soffra maiores motejos do
povo do que o pessoal da Justia e do Fisco. .No
fundo, o povo tem razo, porque elle o esfola com
todas as regras devidas dessa Biblia de Satanaz que
o Direito Romano.
A propsito dos tabellies, o povo de Nordeste
conta esta lenda. Morrera um escrivo e fora bater
porta do co. S. Pedro negou-se a deixal-o entrar.
Mas elle tantas lamurias fez e tanta misria contou
que o santo porteiro, penalisado, lhe disse:
Tu s entrars se vieres a cavallo.

C) Esta historia d a!;n-mar. Contarii-n'a, de maneira


-

immoral, entre os oortuiuezes. como acontf^cda com Bocage,


quando quiz penetrar no quarto de uma prnceza e sahir so e
salvo ? barbas do rei. Aconteceu primeiro a Uiysses, segundo
Hom MO, que com o estrata-^ema do Ningum encapou aos ^den-
tes de Polyphemo.
624
O tabellio desceu atrapalhado a ladeira que
do co vae para o inferno. Onde achar unr cavallo
naquelles logares ermos de bichos e somente po-
voados pelas almas dos homens? Quando j deses-
perava de achar uma cavalgadura, avistou o juiz
com quem no mundo, sob cuja vara roubara
servira
a clientella e que tambm batera a bota. Perguntou
ao magistrado para onde ia.
Par o co
respondeu-lhe o outro.
Qual! tornou-lhe o serventurio publico
eu no entrei que fui escrivo, quanto mais o
senhor que foi juiz! Escute, no perca seu tempo
em subir ssinho. Eu j volto l do porto do co.
S. Pedro declarou-me que ns somente entraramos
se eu fosse montado no senhor.
O juiz acreditou na historia e deixou se caval-
gar. Quando chegaram porta do co, S. Pedro de-
clarou:
Aqui s entra o senhor escrivo. O cavallo
fica do lado de fora!
Esta fabula mostra a profunda ironia matuta,
que acha o escrivo canaz de eng^anar o prprio
juiz no outro mundo, quanto mais neste!'...

Ha uma historieta sertaneja, j velha duns dois


sculos, que leva- a ridiculo aquelles que exaggeram
suas. faanhas de vaqueiro. Os sertanejos narram-n^a
por conta dum pegador de gado fanfarro qualquer.
625
Esse individuo contava que passara o dia in-
teiro no fatigante labor de reunir os bois de sua
entrega, para le\a!-os ao mercado. Vestido de cou^
ro vermelho de veado capoeiro, atravessara em todos
os sentidos os carrascaes embastidos de faixeiros,
rompe-gibes, favellas, mandacarus, xiques-xiques,
up.has de gato, pega-roupas e outros variados espi-
nhos. Varara as catingas espessas no piso dos rebo-
leiros e perdra-se nos intrincados das coroas,
margem dos cotovellos dos rios, onde os cips des-
ciam dos ramos para o cho como grossas cordas
de palha de carnahba.
Chegira, portanto, em casa tarde, canado e
faminto. Ao apear-se, a mulher recebera-o com o
maior espanto, exclamando:

Marido, voc vasou o olho esquerdo!
Levara logo a mo face c retirra-a ensanguen-
tada Lembrra-se, ento, que sentira uma dr na
vista esquerda, ao sahir duma capoeira, onde havia
juremas espinhentas em grande quantidade. Fora ,
certamente, que perdera o olho. To atarefado andara
o dia todo que nem dera por isso! No dera uma
palavra mulher, pulara sobre a sella, mettera es-
poras no cavallo e regressara ao tal logar.
L chegando, procurara o olho algum tempo.
Fora encontral-o no cho, perto do galho pontudo
de jurema que lh'o tirara da orbita. Estava cheio
de arei: e coberto de form-igas. Soprra-o, limpra-o
na manga da camisa e de novo o entalara na cavi-
dade vasia.
626

Ao entrar novamente em casa, j a mulher pu-


nha o jantar mesa. Sentra-se, dando a boa nova:
Alinha mulher, graas a Deus achei o m.eu
olho.
Mas ficara assombrado deante da comida que
ella lhe apresentava nos pratos de loua grosseira.
Levantou-se, enojado:
Como l essa porcaria!
A admirada indagou por que.
esposa

Porque metade da comida est cosida e boa,
porem, a outra metade est criia!
Como; meu marido?!

Sim., rrinha mulher! Vejo ahi metade de cada

prato de feijo, de carne scca, de piro, e a outra


metade de miolos crus, de bofes crils, de garganta
crua' Como l isso!
No auge do espanto, a nobre creatura attentou
bem para elle. julgando-o maluco. Logo vira a cai^sa.

Gritra-lhr:
Marido de Deus!, voc Dvz o olho com a

menina > para o .lado de dentro. E' por isso que


voc est \'endo metade da coTiida desse geito! Voc
est olhando para dentro de voc mesmo!
E o tal vaqueiro fanfarro af firmava que tor-
nara a tirar o olho o collocra direito...
e, ento,
A historia no nasceu da 'imaginao do habi-
tante do adusto serto de Nordeste. Ella alli nada
mais fez do que, secundo uma lei j ennunciada
pelos grandes folk-loristas, adaptar-se s condies
do meio physico e moral.
.

627

Ns a eicontramos entre o povo francez, no se-


guinte episodio:
Um dum cam-
charlato de aldeia tirou os olhos
ponez, afim de porque o pobre homem
limpal-os,
estava com a vista milito suja, muito turva. Depois
de os lavar, pl-os ao sol, para seccarem. Veio um
gato, na sua ausncia, e devorou-os. O charlato, ve-
xadissimo, pegou o gato, matou-o, arrancou-lhe os
globos oculares e introduzio-os nas orbitas da victi-

ma, que dormia hypnotisada. Depois, acordou-a. O


homem levantou-se, sentindo-se muito bem, vendo
tudo admiravelmente, pagou bem ao charlato e foi
para casa muito satisfeito da vida. Porm, desde esse
maldito dia da operao, nunca mais teve descano.
Bastava ver um davam-lhe ganas de correr-
rato e
Ihe atraz. No se continha. Pulava sobre o roedor,
segurava-o com os dentes, matava-o. S assim ficava
novamente calmo.
A fabula ainda mais remota. Na historia litte-
raria da humanidade, quem primeiro faii delia o
irnico e subtil Luciano de Samosata. Descrevendo
sua viagem lua, diz elle que os selenitas expremem
dos lacrymaes um leo perfumado e fino; que, alm
disso, suas podendo
pupillas so totalmente moveis,
elles tiral-as e quando assim o "querem,
guardal-as,
som.ente as collocando de novo quando tiverem von-
tade de ver. Quando um habitante da lua perde o
seu olho, pede emprestado o do visinho. E os ricos
so aquelles que possuem, bem guardado, grande
numero de olhos . .
b)

HiSTORiAS DE ANiMAES
A isita do Julgado

A' hidra cio rio, so':-/ a folha dos ingazeiros,


o S1-. Tago-Rer, um kgado muito corihecido na ri-

beira, todas as manhas e todas as tardes tocava


a sua gaita de taboca. E o tejass, lagarto cpido,
escutava-o com inveja.
Um dia, o teju escondeu-se nas folhas sccas,
para ver onde o Tago-Rer guardava aquella ma-
viosa flauta selvagem, Vio-o occultal-a nurna moita
espessa e, depois, mergulhar na agua quieta. Mestre
Gonalo, o lagarto, furtou-a. Desse dia em deante
foi elle quem tocou o instrumento, porta de casa,
isto , beira de sua toca. Mas no' tinha estudos
nem geito. Seguia vocao errada. Era um desafinado
de truz. Os mattos se enchiam com aquella cacopho-
nia horrvel, que at espantava o passardo. Estavam
satisfeitos, porm, os seus desejos.
Como
Calypso no se podia consolar da partida
de Ulysses, o sr. Tago-Rer no se consolava da
falta que lhe fazia a sua gaita. Era necessrio- re-
havel-a. Sabia que o tejass apreciava muito o mel
de abelha. Teve uma ida. Foi a um cortio de
jandahyra, tirou um favo e espremeu-o num dos ori-
632

ficios de seu corpo. Deitou-se dentro das folhas


sccas e esperou.
O Gonalo veio por ali, rastejando e farejando.
Dei!com o buraco de mel. Molhou o dedo e pro-
vou Achou bom. Tomou a molhar o dedo. Ento,
o Kgado apertou os msculos e segurou-o. Tomou
um susto e tanto! Estava fisgado e pelo seu maior
inimigo, que sabia a meio do folhio e rugia:
' Ou me ds a minha gaita ou corto-te o dedo!
Compadre Kgado, no trago a gaita com-
migo.
' Ento, pede-a tua mulher! E cada vez
mais apertava o dedo do lagarto.
No tenho mulher. Sou viuvo, meu compa-
drinho!
Pede a teu filho.
Pois sim, pois sim! Vou pedir. Affrouxe um
pouco. E, alteando a voz dolorida, o teju bradou no
silencio dourado do sol na mattaria:
Gonalinho! Gonalinho!
Uma voz de creana-tej respondeu ao longe:
Que c meu pae?
Gonalinho, traz a gaita do Tago-Rer!
A distancia matava um pouco a fora da voz..

O pequeno no ouvio bem. Perguntou:


E^ para eu ir l?
No! Traz a gaita do Tago-Rer!
O Kpgado apertava os muscules de ao. O la-

garto gemia de dor. A voz de .teju novo se fez


ouvir:
.

633

Voc achou um cortio de abelha canudo,


meu pae?
No, diabo! Traz a gaita do Tago-Rer.
A sua casaca, papae?
No! A gaita do Tago-Rer!
A caixa de rap?
No, demnio! A gaita do compadre Kgado.
Emfim, o filho entendeu e trouxe a gaita, que
logo foi restituida. O Kgado soltou, ento, o dedo
do teju, que durante muito tempo conservou um
annel roxo de sangue pisado . .

O antioto do l^mn
Os sertanejos do Cear contam que o tejaisii
o inimigo mais figadal das cobras que existe no
matto. Segundo o que affirmam, esse lagarto, que
gosta immensamente de se aquentar ao sol de meio-
dia nas veredas dos taboleiros ou sobre os folhi-
os, mal presente uma cascavel ou jararaca prepara-
se para lhe dar combate^ sahindo muitas e muitas
vezes vencedor.
Contra a sua feroz inimiga dispe de varias ar-
mas: as unhas, o ltego espinhento da cauda, que
manobra com rara habilidade, e os dentes. A serpente
s pde mordl-o e envenenal-o. Mas os matutos
asseguram que o veneno da cobra, por mais violento
que seja, nada pode contra o valente tejass. Por-
634

que este, logo que se sente mordido, tem, por ins-


tincto, a sciencia de ter sido empeonhado e procura
logo, na vasta e riquissima pharmacia vegetal que o
rodeia, o antidoto com que salvar sua vida.

Abandona a luta e corre em busca da raiz ca-


bea de negro segundo uns, batata de porco ,
,

segundo outros. Cava o solo. Desenterra-a. Come-a.


E volve novamente luta. Se a cobra mal ferida
no poude fugir, acaba de matal-a. Se no, vae
atraz delia at encontral-a e recomear a briga.

Dizem mais que muitas vezes o esperto lagarto


procura a tal raiz ou batata de momento a momento,

tanto mordido pelo ophidio. E os habitantes da-


quella regio esto convencidos de que o tal antidoto
s produz effeito em lagarto, no em gente . .

Essa historia veio, como mil outras, para os


nossos sertes, da velha Europa, onde outrora muito
se acreditou e muito se escreveu sobre a medecina
natural dos animaes. Applicaram-n'a ao tejiiass e
cobra os homens do serto, por serem esses os dois
animaes do meio que a ella mais se prestavam.
Leonardo da Vinci conta no seu Volucrario
vrios casos dessa medecina curiosa. Certamente, co-
mo excellente observador que era de costumes, co-
heu-os das crenas populares italianas e annotou-
os, se no os extrahio das Varias Historias de
Eliano ou da Historia Natural de Plinio, que del-
ias falam com segurana. No os commentou, o que
signal de que estava de p atraz contra elles. Li-
635

miou-se, assim, a registral-os, nada af firmando a


seu respeito.
Escreveu elle qiu: o miihafre, quando v os fi-

fhotes no ninho, engordando demasiadamente, lhes


d surras com o bico, afim de emmagrecerem; que
a ibis, ao sentir-se enferma, enche o seu comprido
pescoo de agua e, com o longo 'Idco, d em si
prpria um clyster, ficando quasi sempre boa. Ac-
crescenta que o corvo, depois de matar o cameleo,
para se purificar, toma um purgativa, comendo as
folhas do loureiro, as quaes produzem adm.iravel ef-
feito. Diz mais que a cegonha, quando enferma, be-

be agua do mar e fica de novo com sade. Quando


os filhos da andorinha nascem cegos, ella traz no
bico um raminho de celidonia e esfrega-lhes lenta-
mente as plpebras. As avesinhas logo as abrem' e
vm! O cordelino da Itlia, como o melro de Guerra
Junqueiro, d peonha prole engaiolada, matan-
do-a! O veado, quando se sente mordido pela aranha
phallengia, que muito venenosa, come lagostas e
aira-se! O javali trata-se com folhas de hera. E
Leonardo termina suas notas sobre a medecina dos
animaes com dois exemplos que lembram a historia
sertaneja do tejass. Conta elle que a luserta se
bate com as serpes e, quando se sente mordida, come
a cicerbita, que o mais poderoso antdoto do ve-

neno ophidico, na Europa; e que o lagarto, tambm


nessas lutas com o mesmo fim,come as folhas da
couve selvagem.
Todas essas crenas vm da mais remota anti-
636
guidadc c o sertanejo limitou-se a applicar uma
delias aa tojass. Acredita tanto nella quanto na
de que os gatos, com dor de barriga, comem capim
para se curarem.

D Bsn-t?-\'! dainclU

Entre as aves do serto, as mais interessantes


so os bem-te-vis, dos quaes ha duas espcies o
Gamella, de cabea branca com uma lista escura
sobre os olhos, o Cavalleiro, de cabea escura, que
vive sobre o dorso dos cavallos, burros e bois, ca-

tando parasitas.
O Gamella vive mais nas arvores do que o ou-
tro e talvez de pousar muito nos galhos altos das
gamelleiras lhe tenha vindo o seu appellido, como
disso se originou aquelle estribilho de coco praieiro,
registrado por Antnio
Rodrigues de Carvalho e

commentado por Alberto Faria, no Arides:

Bem-te-vi derrubou
Gamelleira no cho.

Oj Gamella faz monoplio das arvores onde pou-


sa e no admitte que outras aves nella venham des-
canar. E' valente e gil. Expulsa-as s bicaradas.
D pancada, corajosamente, mesmo nos gavies.
Diz Alberto Faria que delle no interior do Brasil
se contam muitas faccias. No serto do Cear, nar-
ram esta:
637
Um sujeito satisfazia uma necessidade debaixo
duma arvore em logar deserto e, quando ia limpar-
se, ouvio o grito irnico e estridulo do pssaro:
Btm-te-vi! meio perturbado e, murmurando:
Picou
Que me importa que tu visses! sujou os dedos.
Sacudio-os bruscamente e bateu com elles na
dura aresta duma pedra. C^orn a dr,sem pensar, le-

vou-os bcca . . . E o pssaro tornou a gritar:


nem-te-vi!
Ento, soltou-lhe um desaforo formidvel.

A trahyra e a isca (*)

O rio deslisava mansamente e no fundo da agua,


a um canto, a trahyra coxilava na sua rede, adoentada.
Chega o pescador, atira o anzol com um pedacinho
de carne fresca. A trahyra chama uma das filhas:
Isabel, minha filha, v o que .

Marne, u'm pedacinho de carne fresca.


No quero, no. Isso no comida de gente
doente.
Vendo que o peixe no beliscava no anzol, o
pescador muda a isca. Agora uma perninha de
passarinho. Novo e idntico dialogo no fundo do
rio. O pescador substitie-a por uma perninha de
cate. ("*) E :j 1rah\Ta velha, ao saber disto, brada
com pressa filha:

(*) Terra de Sol- do iivsiiio autor, ngs. 61, 262.


C*) Ca('-te
paqui^uo sapo
638
Anda, Isabel, traz minhas chinellas! Perni-
nha de cate comida mesmo de quem est
doente 1

Esta historia tem o nico fim de mostrar que


esse peixe gosta mais dessa do que de outra isca

qualquer. E esse resultado da experincia de muitos


pescadores fica assim guardado para sempre na me-
moria coUectiva.

Os bil95 ^9 ^M
A symbolica christa perpetuou em todos os po-
vos que o catholicismo influenciou as historias len-

drias dos animaes do prespio: os carneiros, o boi


e o burro, especialmente.
O serto se apoderou desses bichos, juntou-lhes
outros e fez com todos uma pequena historia, ou
melhor, uma parlenda, imitando as suas vozes mais
ou menos:
O gallo: Christo nasceu!
O boi: Onde? Onde?
O carneiro: Em Belm! Em Belm?
O burro: Vamos l! Vamos l!

A cabra: Mentes! Mentes!


O co: Ladra! Ladra!
O peru: Degola elle! Degola!
O capote: {*) Est fraco! Est fraco!
O cavallo: Bichos ruins! Bichos ruins!

{ ') Capote - jailin;^a d'Ai^r>ia.


639
Ora, pelo que disseram os bichos, ficaram bons
ou maus, foram ou no castigados., O gallo, que
annunciou o senhor, o boi que perguntou onde
es-
tava, o burro que convidou todos a irem l,
o car-
neiro que indicou Belm, o co que o defendeu
da
cabra, e o cnvcMo e c capote que delle tiveram
pena,
so animaes bons e dignos. A cabra que
desmentio
a noticia e o peru que o quiz degolar
so animaes
malditos. Dahi a estupidez do peru e a cabra
matar
toda a planta em que morde.

O borro o ?adrc Ccrno; Kossa

eai

Em todo o Nordeste, o povo gosta de explicar


os riotivos ,por que tal ov. tai bicho tem esta
ou
aquella forma, esta ou aquella qualidade. Isto

comiiium a todos os povos. Entre essas historias
ou
lendas explicativas sobre animaes, escolhemos
as duas
mais interessantes.
Quando o Padre Eterno creou os animaes, deu
a cada um um no^ne.
Dias depois, chamou-os sua
presena e foi perguntando a um por um
que no-
mes tinham recebido. Todos repetiram os seus ap-
pelidos,menos o burro, que totalmente esquecera
o seu. Deus ficou muito aborrecido. Pegou-o
pelas
orelhas, puxou-as com fora varias vezes,
gritando-
640

lhe: burro! burro I burro! Dahi o seu nome e o ta-


manho das suas orelhas.
Nossa Senhora passeiava um dia pela beira da
praia e vio um peixe nadando. Perguntou-lhe, deli-

cadamente:
Solha, a mar enche ou vasa?
E a solha, ao invs de responder-lhe. arreme-
dou-a, fanhosa, torcendo a cara numa careta:
Solha, a mar enche ou vasa?
Desde esse dia, por castigo, a solha ficou toda
torta, com os olhos dum lado s.
E, dessas historias, de origem europa, ha cen-
tenas.
FABULAS
As fabulas

As fabulas recordam o tempo de mais ntima


ida entre os homens e os animaes. Essas relaes,
vindas dos totemismos primitivos, so con^inuadas
pelos povos nos cantos e historias de animaes, que
constituem uma das partes mais importantes da poe-
sia popular e das tradies folk-loristas duma
raa.
Se no a mais, uma das mais espontneas. Nel-
las se sentem as formas primitivas da moral inci-
piente. Nesses apologos, todas as qualidades e phy-
sionomias moraes dos animaes escolhidos pela arte
popular so transportveis aos homens e a elles ap-
plicaveis' facilmente. Dahi a sua grande importncia.
Elles retratam toda uma sociedade, retratando os t)i-
chos que vivem em redor delia.
Os gregos chamavam esopicas as fabulas em
que havia personagens humanos e, sybariticas aquellas
em que havia somente animaes. De ambas ha exem-
plos no serto de Nordeste. Damos algumas ainda
no publicadas por outros.
Quanto mais primitiva uma sociedade, mais ama
as fabulas. Quando se menino, gosta-se de ouvir
contos e esse prazer se perde com a idade. Assim, a
644

prpria humanidade na infncia adora as fabulas.


A observao velha. E' EUe diz que
de Strabo.
o homem ignorante gosta das fabulas, como uma
creana.
Nesse ponto, o sertanejo de Nordeste uma
grande creana.
a)

Fabulario
A preteno do sapo

o sapo estava se aquentando ao sol, no meio


da estrada e, sem querer, ferrou no somno. Passava
um boi de carro, immenso e lento. Parou para ru-
minar e, sem vr o pobre sapo, nz-lhe uma das
patas em cima das costas. O infeliz acordou quasi
esmagado com o peso e al!i ficou, morrendo, de
bcca aberta e olhos esbogalhados.
Passou um gavio vermelho, que era muito tro-
cista e muito Perguntou ao sapo:
cruel.
Compadre Sapo, que que voc est fa-
zendo ahi ?
E o curur, num esforo terrvel, roucamente:
Estou peiando este boi, para elle no ir em-
bora!
No faltam, em redor de ns, sapos fingindo se-
gurar o p dos bois que os esmagam...

O Gato e a Ona
No comeo do mundo, dizem os vaqueiros, a
ona no sabia saltar e tinha inveja do gato, que
era mestre em acrobacias. Fez amizade com elle,
648

arranjou um compadresco e pedio-lhe umas lies.

O gato deu-lh'as da melhor vontade e a ona as


sim se 'tornou uma eximia puladora.
Mas a ingratido a maior virtude das onas.
E ella, fiel sua raa, resolveu comer o seu com-
padre e amigo gato, que to bem a educara. No dia
da derradeira lio, saltou sobre elle de frente, gue-
las abertas para devoral-o, unhas de fora. O gato
livrou-se, pulando de costas.
Ah! compadre gato, exclamou a fera, voc
foi mu, no me ensinou a pular para traz, riem ao
menos me que havia esse puPo.
disse
O longe, respondeu calmamente:
gato, de

Se eu lhe tivesse tambm ensinado esse pulo,
a estas horas estaria comido . .

A moralidade desta fabula, de forma sertaneja e


de fundo oriental, est naquelle grande provrbio
rabe que o poeta Saadi repete no fim da narrao
dum pugilato emdum sulto, um mestre
que, deante
lutador vence o melhor discpulo graas a um'
seu
golpe secreto que lhe no ensinara: No ensines
tudo o que souberes ao teu discpulo. Quem sabe,
um dia, no se tornar elle teu inimigo...

A Ona e o Bode
A onabode resolveram um dia morar
e o
juntos, embora o bode tivesse um medo terrvel da
sua amiga, que a dmiravelrri ente disfarava.
- 649
Constriiiram umi\ casa de pallias de carnahnba,
ao meio diiina com dois grandes quartos, se-
v-arzea,

parados por um corredor, e combinaram que cada


dia, alternadamente, um iria caa, afim de supprir
a casa do necessrio.
No primeiro dia, foi a ona e voltou tarde,
trazendo morto s costas um formidvel bode /me
de xi queira, chavelhudo e de feroz catadura. O nosso
bdc assombrado e pensou l comsigo que, se
ficou
a sua comadre tinha foras para trucidar um bicho
daquelles, o que no faria com elle, que era fraco
e medroso. Porem no disse nada e resolveu pr as

barbas de molho.
Ao outro dia foi caar. Como no era forte,

recorreu astcia e foi Comeou a


feliz. cortar ci-

p? compridos c flexveis, numa coroa do rio. Appa-


receu-he de repente uma ona preta das mais pe-
rigosas, muito maior e mais poderosa do que a
sua companheira de casa, uma simples ona sus-
suarana. Felizmente era sua conhecida antiga. Per-
guntou-lhe o que estava fazendo. Respondeu que sa-
bia estar para desabar um furaco, to grande, que
carregaria todos os bichos pelos ares. Ento, es-

tava preparando aquelles cips para se amarrar numa


arvore e no ser arrebatado pela ventania. Disse isso
to seria e convincentemente que a ona-preta ficou
aterrorisada e logo alli lhe supplicou que fizesse o
favor de amarra-a tambm.
Pz-se de p, abraada a um tronco de ip
e o astuto bode a enrolou toda com as lianas resis-
650

tentes. Quando a apanhou segura, matou-a s chi-


fradas Desprendeu o corpo, difficilmente o arrastou
at choupana e disse, arrotando superioridade,
sussuarana:
Est ahi a minha caa! Pde preparar o
jantar.
Primeiramente, era s o bode quem ixiha rnedo
da ona. Desta feita, a ona ficou com medo do
bode. Pois se elle matava uma preta, que era mais
feroz do que uma pintada, quanto mais ella que
no passava de sussuarana, quando muito superior
s simples m.aarocas. O bode era, com effeito, um
temivel companheiro de casa.
Como o bcde continuava a ter o seu medo,
por estar certo de sua fraqueza, ambos ficaram .numa
situao embaraosa, e, noite, aps o repasto, con-

versando, a ona, querendo ainda se impor, disse:


Compadre E^de, eu tenho muito mu gnio,
de maneira que, quando eu amanhecer com o couro
da testa franzido, estou c com os meus azeites e
tome cuidado!
O bode dominou o seu pavor e respondeu em
tom seguro:
Comadre Ona, eu pareo bom, mas no sou.
Quando de manh voc me ouvir abalar com a ca-
bea e espirrar, que eu estou com vontade de
matar ona como m.atei a preta!
Foram dormir. Pela manh o bode surge no
corredor e v a ona, na porta da frente, de couro
da testa enrugado. Dirigio-se porta de traz, tre-
- 651
Kiendo, em busca duma retirada es.rraiegica. Mas o
sol deu-lhe na cara depois de abalar
e,
com a ca-
bea, soltou um espirro medonho.
assom- A ona
brada arrancou para o
matto aos pulos e o bode
medroso fugio pelo campo em fora, mais
ligeiro do
que um veado.
O sertanejo concie assim a historia:
ainda hoje
correm com medo um do outro. toda a moralidadeF
da fabula. Com effeito, quantas
onas e quantos
bodes, temendo um ao outro, conhecemos ns neste
mundo, entre os homens e mesmo entre as naes?

Os Urubus e suas fabulas

O^ den dos urubus o serto de Nordeste, du-


rante as sccas, tanto assim que no sul do Brasil
s SC conhece o urub-iina,
commum, todo negro, de
cabea pescoo enrugados,
e
cinzento-escuros. E' o
nroraaypfs dos naturalistas. No serto nordestino
ha trs espcies: o camiranga, de
pescoo e cabea
encarnados, o caihartc-onra muito . bem observado
por Tschudi. o una j falado e o tinga, variedade
do gnero catharte, de cabea branca.
Alem delles
e dominando-os, ha o urub-rei, que pertence
a outra
espcie -de aves, rex viiltumm, primo legitimo
do
condor, de pescoo frocado, cr.rj>o
claro c enfeites
vermelhos, o Sarcoramplw-Papa da
Historia Natural.
Dizem os. vaqueiros que, quando elle se
abate
sobre uma carnia, os outros urubus todos se afs-
- 652
tam, deixando-o escolher os melhores pedaos e so-
mente voltando ao repasto, aps sua partida. A his-
toria: verdadeira, affirmam sbios e viajantes. Schom-
burgk diz ter assistido varias vezes a essa scena.
Brehm, na V^ida dos Animaes>>, refere varias obser-
vaes idnticas, apoiando-as e affirmando ter visto
facto semelhante na Africa, entre o grande abutre
calvo e os phenicopteros que o respeitam. Herdon
relata que os pequenos abutres da ndia, segundo
vio^ se retiram da carnia chegada do abutre real.
O urubu guloso e vido, porem ignobilmente
covarde. A sua psychologia est toda contida na
fabula sertaneja delle e do gavio.
Era no inverno, no morriam
havia fartura e
rezes Os urubus andavam famintos. Um gavio en-
controu um delles. seu conhecido, cabisbaixo, sorum-
btico,pousado num galho baixo de mulungi. Parou
e perguntou a causa daquella melancolia.

Ora, compadre Gavio, voc sabe que no
inveVno o gado no morre e que eu no acho nada
que comer. Estou triste de fome!

Compadre Urubu, faa como eu. Arme-se de
coragem e pegue um bicho qualquer vivo, mate-o e

coma.
Qual! compadre, eu gosto muito de vr os
outros morrerem para mim; mas no sei derramar
sangue. Comtudo, como a fome terrivel, se o com-
padre me dr uma lio, talvez eu aprenda.
O gavio promptificou-se a dar a lio. Passava
um pica-pu em vo veloz e rasteiro, a poupa es-
.

653

carlalerefulgindo ao sol. O gavio frechou sobre


cUe O perseguido entrou na catinga. Na violncia
do seu vo, a ave, depressa, quiz entrar tambm, po-
rm no vio sua frente uma afiada ponta de galho
scco e nella se enfiou como num espeto! Ficou ar-
quejando, gottejante de sangue.
O urubii voou com lentido, pousou junto delle,
silenciosamente.
O gavio supplicou:
Compadre, desentale-me deste espeto, pelo
amor de Deus, que ainda posso escapar!
E elle, cynicamente, horrivelmente, baixinho:
Compadre, morra logo, que eu estou com
muita fome! Eu no sei derramar sangue, mas gosto
muito de ver morrer . .

A fabula pode ser applicada a todos os urubus


que no mundo esperam, para fartar seus desejos,
covardemente, morte dos 'gavies que se espetaram,
a
querendo ajudal-os. E a mentalidade sertaneja no
produzio nada mais interessante do. que ella.
Essa torva psychologia do urubu foi bem com-
pfehendida pelos colonisadores hespanhes. Elles no
adoptaram o nome caraba de Corum nem o me-
xicano de zopilotl. mas os appellidaram galli-
nazos )>.

Ha, nos sertes um seu companheiro de festins,


mais micdroso do que elle, porem astucioso. E' o
caracar, o polyborus brasilicnsls ,
que teve a honra
deser profundamente estudado pelo prncipe de \''\Q,

ascendente do primeiro c ultimo rei da Albnia.


654
Parente dos espertos rosthramos ou caracoleros
de Cuba, acompanha os caadores para roubar a
presa aba rida pelas balas, antes que esses a aican-
cem. Orbigny assegura que elle espera o parto das
ovelhas, afim de matar o anho recem-nascido. O
sertanejo diz que eile fura os olhos dos bodees c
cabritos,e que fiscalisa as gallinhas, quando cho-
cam os ovos no matto, para carregar os pintos.
Home3er vio-os levantando o voo, perto das praias,
com grandes molluscos nas garras, que deixavam ca-
hir do alto sobre as pedras, afim de abril-os. E,
como os corvos de Olafsen seguiam as guias, apro-
veitando os restos de suas refeies, elles seguem
os gavies, devorando os pedaos que os mesmos
deixam cahir.
Seu dia de gloria e de prazer quando o in-

cndio rompe numa matta, ou quando se accendern


os roados brocados, ou as coiviras, porque comeni
soffregamente os pequenos aniniaes selvagens torra-
dos no brazeiro. Dahi as suas bulhentas reunies
ante? do incndio das capoeiras para pastagens oa
das catingas para plantaes, presenciadas e narnl-
das por Audubon. Os sertanejos at affirmam que
elles carregam ties accezos nas garras, que dei-
xam cahir sobre os capinzaes resequidos, com o fira

de provocar nova queimada e, consequentemente, no-


va fartura de comida.
O urubu no serto ainda o here de outras
fabulas, como por exemplo da da festa no ccu >,

tao admiravelmente estudada por Joo Ribeiro no


^

655 -^

seu bello livro Foik-Lore Eis q resumo


. da fa-
bula:
Vae haver no cu grande festa de Nossa Se-
a
nhora e a ella s podem
ir os animaes que voam.

O sapo pede ao urubu que o leve e fo urubu recusa-


se. Ento, eile se esconde dentro da viola
do urubu
e vae festa. O urubu encontra-o l
em cima e
fica desconfiado com a sua vinda. Na volta, vira
perversamente o instrumento de buraco para baixo e
sacde-o. O sapo, que usara do mesmo estratagema
para vir embora, ce e vem pelo espao, afora, gri-
tando:
Arreda-te, pau! arreda-te, pedra! seno te
arrebento.
E, quando se achata no solo, murmura:
Nunca mais bodas ao cu!
Joo Ribeiro d outra variante. Sylvio Romero,
Viriato Corra. SanfAnna Nerv, Crmen Dolores,
Adolfo Coelho c outros, segundo ainda faz notar o
mesmo mestre do folk-lore , do outras variantes.
Eu limito-rre a transcrever a
que omv. E nellas, '^s
vezes, em logar do sapo. o kgado oii o jabotv
quem vae ao cu, quer na viola, escondidamente, quer
levado mes;rio pelo urubu, que se 3eso1\-.^ p fazer o
favor.
A moralidade da fabula c, no fundo. - cine qne;n -

mais alto sobe, de mais alto cie, e que os ambi-


ciosos a si mesmos se prejudicam.
Joo Ribeiro seguio o curso dessa fabula, de
origem europa e antes oriental, eruditamente, at
656

ndia. Eile a mostrou no Pantschatantra, no Bi!d-


pai, em Esopo, em Babrio,em Phedro, em Aviano,
em Joco de Capua, em Lafontaine e em verses lu-
sas e brasileiras.
Ella ainda se encontra mais nos cyclos etio-
lgicos e fabulares da prpria America, da prpria
raa indigena do nosso continente. Os ndios Hai-
da da Columbia Ingleza, cujo totair o corvo, con-
tam que esse pssaro, tendo voado at muito alto,

encontrou o cu, nelle fez com o bico um buraco e


penetrou. L dentro, numa cidade celeste, metteu-se
no bero dum principe que acabara de nascer. Quan-
do os habitantes do cu descobriram a coisa, atira-

ram o corvo com bero e tudo sobre a terra e elle


s() no morreu, porque foi cahir sobre um lago, a
cuja face ficou boiando sobre o pequeno leito' flu-
ctuante.
Ora. parece que ha qualquer coisa de morali-
dade da fabula sertaneja da Festa no Cu , neste
raconto dos pelles-vermelhas septentrionaes. E so
esses encontros de parecenas taes que s vezes nos
levam a no ha tradies, lendas e fabulas
crer que
de origem europa, africana, americana ou vdica
e malaia, porem sim variantes de crenas e opinies,

de idas e de expresses geraes, communs a toda


a humanidade e por isso profundamente humanas nos
seus conceitos immortaes.
FabttU do CaUngro c a Eagartixa

O calangro matou um boi,

Botou um quarto na teia. (*) ,

A lagartixa foi bulir,

O calangro metteu-lhe a peia.

Isto mesmo o que acontece

A quem bole em cousa alheia.

)*) Telha
O Romance da Raposa
o Rotnattce da iapo$a $<rtao(ja

As Jendas e fabulas em que os animaes tomam


parte, so to velhasquanto a humanidade. Os con-
tos em que os animaes so heres, tanto os ani-
maes tot micos ou protectores e symbolisadores de
grupos humanos, como quaesquer outros, se encon-
tram tanio na Finlndia como na Rhodesia, tanto na
America como no planalto do Pamir. Na Africa, ha
todo um cyclo de fabulas e romances em torno da
Aranha; no Canad, ha outro maior em redor da le-
bre: na regio do Mississipi, ainda outro cercando
o cogote ou co selv^agem. E, asssim, se o here do
cyclo lendrio deixa de ser a raposa, no desappa-
rece: c simplesmente substituido por outro; mas en-
carna sempre as mais altas qualidades de astcia
e de esperteza.
Todas essas fabulas remontam s pocas escu-
ras e distantes da vida do caador e do pastor,
quando o homem vivia muito mais prximo por tudo
dos bichos do que hoje. As suas primeiras e des-
pretenciosas aventuras de caa ou de pastoreio fo-
ram com o correr dos tempos transformadas em his-
torias de fundo moral, nas quaes foram collaborando
662
os mais iitellgentes e mais instrudos. Assim, com
o passar dos seciilos, assumiram as fei-
as fabulas
es com que apparecem em Esopo e em Phedro.
A idade-media despio-as um pouco dos seus at-
tributos de moralidade e tornou-as satyricas ou di-
vertidas, assimilando a sociedade humana dos bi-

chos domsticos ou selvagens, com ironia terrvel.


Dessa nova maneira de encarar as fabulas resultou
uma verdadeira epopa animal , na qual se n-
dvidualisaram todos os anmaes. O lobo passou a
ser Isengrin ; a raposa, Rchent ou Mestre Renart;
o leo, Noble; a doninha, Qrimbert; a lebre, Couart;
o carneiro, Belim; o gato, Tibera; o burro, Bernard;
e o gallo, Chanteclar, de onde Rostand tirou a
forma modernisada Chantecler. Foi desta sorte que
nasceu o celebre Roman de Renart , cujo texto
doutamente restabeleceu o professor Ernest Martin, de
Strasburgo, e que encheu a era medieval com o seu
chiste e a sua critica mordaz. Nesse cyclo admirvel
de rimances, collaboraram tanto o povo como mui-
tos eruditos. Maria de Frana organisou o seu Yso-
pet , um clrigo flamengo fez o Ysengrinus e o
poeta alsacano Glichezare escreveu o Reinhart
Fuchs . A^as as verdadeiras aventuras e malefcios
praticados pelo esperto Mestre Raposo no mundo
foram melhor narrados pelos cantores populares da
Frana Richard Lison e Pierre Saint Cloud, dos quaes
decorre a maior parte das rimas que ficaram na me-
moria dos camponios e com as quaes se conseguio
reconstituir o texto primitivo do Romance, que
663
muito longo e confni varias partes differentes, dando
origem a variantes curiosas.
Nesse admirvel Roman de Renart, cada 'bi-
cho toma a feio morai dum typo da sociedade da
poca, feio moral essa que se trahe no seu pr-
prio nome.
Por exemplo, o leo, symbolo de no-
breza, chamado Noble; a lebre, svmbolo do medo,
chamada Couart, covarde.
Nos sertes de Nordeste, onde, pode dizer-se,
perdura a vida medieval, as fabulas tiveram a mes-
ma evoluo e chegaram a produzir um verdadeiro
Romance da Raposa, em que completa a assimi-
lao da sociedade sertaneja animal. No de
admirar essa applicao de subjectivismo critico, por-
quanto mesmo fora da idade-mdia em todo e qual-
quer tempo sempre se procurou essa forma de satyra.
] Homero, aps a Illiada e a Odyssa , can- <(

tara Batrachomyomachia. Mesmo nos tempos mo-


a
dernos muitos outros artistas usaram do mesmo dis-
farce, entre os quaes apparece aquelle Joo Jorge de
Carvalho, de quem fala Alexandre Herculano, que
escrevera a Gaticama ou guerra dos ces e dos
gatos.
O Romance da Raposa sertanejo soffre a in-
fluencia do europeu
posse variantes e episdios
e
diversos, apparentemente sem ligao alguma; porem
que no fundo se prendem pela semelhana do assum-
pto e pela identidade dos fins desejados. No Romance
nordestino, como no medieval, os episdios differem,
ora c a raposa com um outro animal, ora so mes-
664

mo animaes de qualquer espcie. Mas a base estni-


ctural do phenomeno litterario popular, que mas-
carar os typos humanos com figuras de bichos, essa
conserva-se idntica. Em todas as historias quasi, o
papel mais saliente desempenhado pela raposa,
embora o coii^ vel/iitus ou o canis brasiliensis das
nossas catingas estejam mais perto dos chacaes afri-

canos ou dos 'O^otes da America septentrional do


que da valpes europa, cujos caractersticos de as-
tcia inteiramente no possuem. Mas a impresso
legada pela ascendncia europa e fructificou no
folk-lore >> mestiado das trs raas bsicas.
Vejamos vrios capitulos do grande Romance
da Raposa sertanejo:

A RAPOSA E O SAPO

Uma ladina raposa,


Como as raposas o so,
Ao sapo Man de Soiza
Associou-se um vero.

Foi que, vendo o sapo amigo ^

Certa vez atrapalhado,


Concordou plantar o milho,
Com elle pondo um roado.

O -terreno prepararam
Sem o menor contratempo, \
.

665 -

As sementes semearam,
.Fazendo a colheita em tempo.

Da original sociedade
Foi feliz o resultado,
Havendo fertilidade
Nos productos do roado.

Depois de tudo colhido,


Vio-se afinal tanta coisa,
Que para ser dividida
Teve inveja a tal raposa.

E l comsig-Q, pensando.
Pz em pratica, sem mais,
Um plano bem miservel
Do seu talento sagaz.

Visava esse expediente


Nao fosse a partilha feifa,

Fila ficando somente


Como dona da colheita.

Depois das lutas do dia.

Quando descanava o sapo,


Ella, fingindo alegria,
Deu-lhe um cascudo no papo.

E lhe disse: O' sapo amigo,


A colheita foi bem ba;
Tivemos bastante milho
Mas s^> para uma pessoa . .
666
Para ns dois, quasi nada
Serve a parte que nos toca:
Isto at julgo estopada,
Isto at julgo taboca.

Portanto, melhor seria.


Oua bem minha proposta,
Se fizssemos^ um dia
Uma bem feitinha aposta.

Olhe l, muito distante


No avistas uma ladeira?
Pois de no mesmo instante
l

Ambos vindo na carreira,

Ganharia todo o milho


Quem chegasse aqui primeiro;
Que diz disto, sapo amigo?
Acho bom . . . Disse o brejeiro.

Sendo assim; logo amanh


E' o dia de nossa apostsa,
Disse a raposa alegre,
Rio-se o sapo pelas costas.

Aps tudo combinado,


Foi para casa a raposa,
Pensando ter enganado
O sapo Man de Soiza.
'667
EUe, porm, era esperto,
Comprchendeii toda a manha
E foi prcparar-se, certo
De ter a aposta ganha.

Com trs irmos combinou


Esta forma sem perigo:
Dois na estrada coUocou
E o terceiro junto ao milho.

Os trs ficaram postados


Nos logares respectivos,
Todos trs bem avisados
De olhos abertos e vivos.

E elle foi para o logar


Marcado para a sabida,
T que a raposa ao chegar
Desse comeo partida.

Bom dia, sapinho, cito


Madrugou alguma cousa?
Esperava por voc.
Para corrermos, raposa.

Vamos l, pouca demora,


Marque os passos duma vez,
E corramos logo. Vamos,
Vamos l, proinpto: um, dois, c trs.
66S
E a raposa a bom correr
Sahio, que at parecia
Em vez de raposa, ser
Forte p de ventania.

Depois de correr bastante


EUa pra e indaga, rindo:
Sapo onde ests? Nesse instante
Diz um sapo:
C vou indo...

Ouvindo a voz, na carreira


EUa sahio novamente,
Sc) parou quando a canceira.

Lhe alquebrou completamente.

E o matto, sem ter demora.


Com astuto olhar espiando,
Pergunta: Onde vens agora?
Vou andando, vou andando . .

No posso mais, disse a bruta,


E correu /Como um veado.
Para ganhar a disputa
E tambm o milho amado.

Mas, quando chegava perto


Do milho, quasi num trapo,
L se achava muito esperto
A sorrir o mestre sapo .
.
669 ~ ,
I

Essa bicha to esperta,


Comadre dona Raposa,
Perdeu assim a aposta
Com o sapo Man de Soizal

Esta variante da fabula da lebre e da tartaruga,


que Esopo nos deu em grego La Fontaine etern-
sou em francez, bem sertaneja nos
seus caracte-
risticos, bem rude mesmo; porem no deixa de ter
o seu sabor especial e digno de apreciao.
Parece que no scrlo ha um pouco a preoccu-
pao de desmoralisar fama esplendida da astcia
a

vulpina. Talvez, porque chamada raposa da nossa


selva falleam os attributos que sobram da Europa.
Todos ns conhecemos a fabula da raposa e
do corvo que furtara um queijo. EUa vem dos mais
recuados tempos da humanidade e foi o assumpto
que permittio a La Fontaine cinzelar uma das mais
bellas joias^ da lingua franceza. A raposa engana
o corvo, iisongeando-o, meio facillimo de enganar
toda a gente.
Repito do meu livro Terra de Sol uma fabula,
que Joo Ribeiro commentou com elevao e carinho
no seu livro Folk-Lorc. Eil-a: A Raposa e o Cano.
Era no invenio. O cano, que apanh:'ra grande
chuva, estava inteiramente molhado, impossibilitado
de voar, aquentando-se ao sol em cima duma pe-
dra. Veio a raposa e levou-o na bcca para os seus
filhinhos. Mas o caminho era longo e o sol ardente.
A plumagem do pssaro foi seccando. E o cano,
-^ 670
sentindo-se apto a voar, resolveu enganar a raposa.
Passavam peios arredores dum povoado. Vrios me-
ninos que brincavam, ao avistarem a roubadora de
gallinhas, correram-lhe no encalo com pedradas, gri-
tando-lhes nomes feios. Vae o cano e diz:
Comadre, eu, se fosse a senhora, no aguen-
tava. Dizia-lhes tambm cada desaforo!
A raposa abrio a bcca, afim de soltar impro-
prios terrveis. Zz! o pssaro voou, pousou num
galho e ajudou a vaial-a.
A' primeira vista, esta fabula inteiramente ser-
taneja na sua forma e nos seus personagens parece
uma simples variante da fia raposa e do corvo. En-
tretanto, creio ser uma fabula parallela outra e
to antiga quasi quanto ella, prendendo-se ao vasto
cyclo do Roman de Renart medieval.
Nos fabularios francezes e recueils de partes
do dito romance, no fim da media idade, o conto
apparece completo, installado no meio da gente de
penna como um. desmentido triumphante e prover-
bial velhacaria de Mestre Renart, o invencvel, dando
razo ao brocardo popular: para velhaco, velhaco
e meiol A differena entre os dois modos por que
se apresenta o relato resulta somenie da diversidade
dos dois meios zoolgicos. No Brasil, a raposa, canis
vellatus, jubatus ou brasiliensis, segura um quem-
quem ou cano. Do outro lado do Atlntico, a ra-

posa, pega o prprio senhor do poleiro, o


vulpes,
grande Chanteclair. Mas o fundo e o espirito do
episodio so idnticos.
. :

671 :

Um dos escriptores estrangeiros Frana que


mais aproveitaram nos seus trabalhos os fabliaux
medievaes francezes foi, certamente, o poeta inglez
Chaucer. A forma, porem, que deu fabula foi
miuito mais complicada
do original medievo que a
que o inspirou. Resumamol-o de accrdo com o que
est nas paginas da coileco The counts of Can- .<

terbury

Chanteclair reinava entre sete gallinhas com seu


canto regular como um carrilho de abbadia e sua
crista ameiada como uma torre de castello. Sua fa-
vorita no meio das sete era a ba, cortez e prudente
Pertelote.
Uma manh, Pertelote v o seu amado envolto
em profunda irielancotia. Pergunta-lhe a causa. O
gaito explica-lhe que teve um sonho ameaador. Vira
um animai alongado, amarelio-avernelhado, com a
ponta da cauda e as orelhas negras, olhos luzentes
focinho comprido. Tinha medo dessa horrvel viso!
Pertelote fica iVi\g\\2i.2^ porqiie o rei, o grande
Canta-Claro se atemorisa com ura sonho e explica-o
como resultado de m digesto. Cita Cato que des-
prezava os sonhos, aconsenlhando o gallo a tomar
um purgante e a beliscar elieboro ou centurea.
Chanteclair replica-ihe doutamente. Cita, em fa-
vor dos sonhos, Cicero no seu tratado famoso <(De
Divinatione . Lembra Macrobio e o celebre sonho de
Scipio, Daniel, Creso, Andrmaca e outros mais.
V-se que o gallinheiro est farei de cultura cls-
sica . .
672
Emquanto ambos conversam, a raposa ronda pe-
los arredores, farejandoba caa onde reina o me-
lanclico amante de Pertelote. Tanto fa2 que nelle
penetra por um buraco, justamente quando o gallo
est s ao meio do terreiro e vae cantar. Dum salto
segura-o e leva-o na bcca, vivo, esperneando, para
a floresta onde mora.
Pertelote, assombrada, v realisar-se o sonho de
Chanteclair. Mal
a raposa sae do gallinheiro, cor-
rendo, ella,pobre viuva, pe a bcca no mundo,
a

grita pelas outras seis companheiras, seus filhos e


filhas. Aos seus cacarejos de dr e de pedido de
soccorro, acodem os visinhos: os ces de guarda,
a vacca e o seu bezerro, porcos, gansos, patos, ca-
vallos de sella e de tiro, o prprio gato somnrento.
E esse bando corre no encalo da salteadora auda-
ciosa, fazendo um barulho infernal e lembrando o
final dessas fitas cinematographicas para creanas,
em que uma chusma de gente persegue pelas ruas,
aos trambolhes, um malfeitor, um desastrado ou um
automvel a toda velocidade.

Por onde vae passando o turbilho, os animaes


fogem espantados ou a elle se renem. Avistam
sua frente a raposa fugindo para a matta com o
pobre rei do poleirr) ai ocanhado. i3o berros e guaia-
dos de triumpho!

J Mestre Renarl chega oriliia da floresta


escura e acolhedora. Chanteclair tem uma inspirao,
diz-lhe:
673
f

Zombe desses
> villes. Diga-lhes: aqui
mesmo vou comer o vosso gallo!
A raposa abre a bcca para gritar. E o gallo
voa, vae pousar num ramo de arvore, s gargalha-
das, emquanto toda a malta perseguidora vaia a en-
fiada rappsa.
No <: Roman de Ren.ar ha episodio semelhante",
entre a Raposa e d. Mesange, pssaro que a en-
gana e a faz fugir vaiada.
Commentando Geofroy Chaucer, que com to
eruditas roupagens veslio uma singela fabula medie-
val, Emilio Qebhart diz que ella a victoria do es-
pirito sobre a perversidade, do camponez sobre o
baro feudal, de Cicero sobre Cato e da Renascena
talvez sobre a Idade Media. symbolismo exagge- O
rado. E de todos esses symbolos s o primeiro se
poder talvez applicar variante sertaneja, que, pela
sua singeleza, apezar no tempo e no
da distancia
espao, approxima mais da que
espiritualmente sq^
est nos fabliaux medievos do que as formas cultas
dos poetas e esctiptores europeus.
Alem dos episdios em que a raposa directa-
mente toma parte, o Roman al- de Renart guarda
guns outros acontecidos com outros animaes, estando
embora ausente Mestre Raposo, como os da Pesca de
Ysengrin ou de Tybert (o gato) e dos dois padres.
Assim, no serto de Nordeste. Temos presente
o exemplo:
674
CASAMENTO DUM CALANGRO

Foi o calangro em casa


De seu tio Papavento (1)
Tomar a benam e disse
Antes de tomar assento:
Venho lhe pedir amo .

De sua filha em casamento.

Papavento respondeu-lhe:
Tua linhagem descobre,
Ainda s meu parente
E descendes de sangue nobre,
Mas no te dou minha filha,
Porque tu s muito pobre.

Bem conheo que sou pobre,


No preciso que diga,
Mas no se fala em pobreza,
Quando um forte amor liga;
E' melhor o senhor me dar,
Do que haver uma intriga. (2)

Papavento respondeu:
Em vista de teu assumpto,
Eu, como pae de farnilia,

(1) Papavnio o camal. o.

(2) Intriga bri^>a ce faniiria.


67.

Uma coisa te pergunto:


Se fora do dia de hoje
Com ella j andon junto?

Calangro lhe respondeu:


Meu t;o, deixe de asneira,
Que fora do dia de hoje
Temos feito muita cera (3)
E temos andado juntos
At uma semana iiiveira.

Papa vento disse isto:


O que me diz uma affronta!
Voc um atrevido!
E minha filha uma tonta!
Pode ir tratar dos
banhos,
Que a dispensa eu dou pr..mpa.

Calangro sahiu aos saltos


De tanto contentamento,
No parava mais em casa.
No trabalhava um momento,
Passava dias e noites
Em casa do Papavento.

Papavento, quengo velho,


(4)
Mestre na velhacaria,

(3) Fazer cera, conversar juntos,


d^,noradamente,^>/^
(4) Quengo ~\e\haco.
676
Disse mulher: Que vem ver
Calangro aqui todo o dia,
Tome cautela com elle,

Viva com a noiva de espia.

No outro dia, Calangro


Foi de novo ver a prima,
Achou-a longe de casa,
T;epada em um p de lima.
Calangro falou em baixo,
EUa respondeu-lhe em cima.

Disse ella, ento, ao Calangro:


No sabes, meu namorado,
Que esta noite ouvi papae
Falando bem agastado?
Calangro disse:
Me conte
O que aqui foi passado.

Papae disse minlia me


Que queria lhe pedir
Para que voc deixasse
De tantas vezes l ir,

E se elle fizer isso


S tem de ver eu fugir.

Calangro olhou a prima,


Achou-a muito amarella,
Foi ao Papavento e disse:
Fique com sua donzella,
67'

Que eu no sirvo de remendo,


Cace (5) outro e case ella!...

Papavento disse: Isto


No coisa que se faa!
E, se seu pae no dr geito,
Voc no gosta da graa:
Ou casa com minha filha
Ou se acaba nossa raa!

Foi a noiva se queixar


Ao pae do seu namorado.
Disse ao velho: -- Meu "Tio,

Tenha d do meu estado.


Pois eu no sou co sem dono.
Calangro est enganado!

E, se o senhor no dr um geito,
Eu me queixo ao delegado,
Meu pai tem dinheiro e gasta
E feio o resultado!
Seu filho est bem moo
Tem de ser recrutado!

O pai. de Calangro disse:


No tenho geito a lhe dar.
E a noiva d'ali mesmo
Sahiu para se queixar

(5) De caar pr(;ciirar.


678
Ao capito Curur, (6)
Delegado no logar.

Curur ouviu a queixa


E saltou tora do poo,
Dizendo enthusiasmado:
Vamos ter barulho grosso
A. Excellentissima volte,
Que eu mando prender o moo.

Tocou logo uma bozina,


Que ficou tudo assombrado!
Numa hora, o alagadio
Estava cheio de soldado,
Todos gritando a um tempo:
A's ordens do delegado!

Vo em casa do juiz.

Para passar o mandado


Ao officiai de justia.
Quero o Calangro intimado.
E, se elle resistir,

Tragam morto ou amarrado!

O cabo disse ao sargento:


Eote os soldados na frente!
Eu no vou que sou casado . .

Calangro hom.em valente.

(6) Curur sapo grande.


:

679
Se elle pegar em armas,
Mata hoje muita gente!

Ahi disse o oficial


Vo indo devagarinho.
Primeiro cerca-se a casa,
Empiqueta-se (7) o caminho.
Vocs segarem ,o cerco,
Que eu pego o bicho ssinho!

O official era o Gato,


Que conduzia mandado. o
alangro, quando ouvio
Dizer que estava cercado,
Disse de dentro p'ra fora:
No deixo vivo um soldado!

O Gato ahi respondeu:


Quem vae dar leva seu sacco!
vamos vr
Saia fora,
Qual de ns dois o fraco!
A essas palavras alangro
Veio beira do buraco.

O Gato pulou de c
E pegou-o pelo rabo,
E foi dizendo: Se renda,
Seno eu j o acabo!

{7)\Emyiquefar esnalliar piquetes de tropa


680
Calangro grita: Estou preso!
V acabar com o diabo!

Nesta luta que tiveram


Deixaram o Calangro n
E assim mesmo o levaram
A' vista do Curur,
Que o interrogou, dizendo:
Que que fizeste t!
Disse o Calangro: O que fiz,

E' cousa que no offende,


Eu quiz casar com a prima,
E .o senhor bem me entende.
. .

Julgo at que no tem crime


Quem com tempo se arrepende.

Curur disse: O senhor ^


Cahiu em um grande artigo
E, para punir a honra,
Sou rigoroso comsigo,
Ou se casa, ou senta praa,
Ou a forca seu castigo!

Eu no queria casar,
Porque me vejo em atrazo,
E no quero assentar praa
Para ser soldado razo.
Em vista do que me diz,

Sc hei de morrer, antes caso.


681
Disse o Curur: Vo vr (8)
P'ra casa do Papavento
O padre Tamandu,
E dem resta andamento,
Que de hoje a trs dias
Se far o casamento.

Convidem dona Raposa


P'ra da noiva ser madrinha.
Que eila veja se arranja
P'ra festa alguma gallinha,
Pai-a ajudar nos gastos,
Que a outra despeza c minha.

Foram vr o tejass,
P'ra do noivo ser padrinho,
Esse disse ao portador,
Quando vinha no caminho:
Se houver ovos, eu vou, (9)
Sabem que no bebo vinho!

F outra coisa tambevn,-


P^ra eu no
enganado:
ir

Sabe se o Major Caxorro


P'ra festa foi convidado?
Se foi, eu volto daqui
Que elle meu intrigado! (10)

(8) Vr buscar.
(9) Olagarto chamado tejass .L^osta de beber os ovos ds
gallinhas onde os encontra.
(10) Intricado \n\m'\^o.
682
Finalmente se juntaram
Raposa e tejass,
O Papavento e a mulher,
A Seriema e o Urubu,
Padre, noivos, convidados,
S faltando o Curur.

Urubu foi convidado,


Fez comida muito ruim,
Adquirio para o padre
Uns pedaos de cupim. (11)
E elle comia, dizendo:
E' pouco s d p'ra miml

Quando estava posta a mesa,


Um guarda porta espiava,
E foi ento avisar
Que o Caxorro chegava.
Tejass levantou-se
E disse que no ficava.

Disse a Kaposa:
Eu no saio,
Deixando o meu prato cheio.
Tejass disse: Eu corro.
Que o barulho aqui feiol
Nisto o Caxorro pegou-o
E cortou-lhe o rabo ao meio!

(11) Tamandu come formitras f ciipin:-


683
Sahiu o Tejass,
DaiTinado pela floresta,
Levando pedras e pos
Tudo de eito na testa!
Encontra um Cameleo,
Que inda vinha p^ra festa.

Cameleo, quando ouvio


De seu parente a zoada, (12)
Assombrado perguntou-lhe:
O que ha, meu camarada,
Temos barulho na festa
Ou me venr com caoada?

Caoada o que, seu mano!


Foi um barulho do diabo
Major Caxorro chegou,
Peor do que um leo brabo
Botou-se primeiro a mim
Olhe o que fez no meu rabo!

Urubu voou p'ra cima,


Com medo do rebolio;
Mas, vendo ficar no cho
Aquelle rabo massio,
Desceu de novo e pegou -o,
Dizendo:
Eu no deixo isso!

(12) Zmida barulho.


684
Calangro, vendo o perigo,
Sahiu bem desconfiado,
Lastimando que o padrinho
Sahisse desfeiteado,
A Seriema pegou-o,
E fez delie um s boccado!

Gavio soube da festa


E pz-so em uni pu de espia,
Aonde a pobre da noiva
Assombrada se subia.
Pegou-a nas unhas e disse:
Voc mesmo que eu queria!

Tamandu levantou-se
E falou no p da guella,
Do Caxorro, lhe dizendo:
Um de ns se desmantela.
Voc no pde acabar
Festa em que eu estiver nella!

E ditas essas palavras


Ao inimigo pegou.
Vio-se o Caxorro apertado,
Pelo seu dono chamou,
Que vindo em seu auxilio
Ao Tamandu matou.

Sahio o Major Caxorro,


Todo chagado e doente,
685
Ouvindo uma tropelada
Que corria em sua frente.

Conheceu que era a Raposa,


Chamou-a muito contente.

Venha c, moa bonita,


Venha me contar da festa.
A Raposa respondeu:
O que? Que conversa esta?
No quero prosa comsigo,
Que a sua graa no prestai

Chegou o Caxorro em casa

Muito canado e ferido,

A mulher lhe perguntou:


Que foi isto, meu marido?

Se tomassess meus conselhos,


Tal no tinha acontecido I

Aprende tua custa.

Que para teres cuidado! >

Agora, em quanto viveres


Desta vivers lembrado!
Isto acontece a quem vae
Em festa sem ser chamado.

variante ainda mais irnica e


Ha uma outra
ferina do queem que num casamento de ani-
esta,

maes tambm, os animaes, ao sabor de suas inimi-


zades, abrem medonha luta:
~ 686
O CASAMENTO DO RATO COM
A CATITA (*(

No tempo em que os animaes


Seguiam a civilidade,
O mundo era differente
Deste da achialidade,
No havia a corrupo
Que hoje ha na humanidade.

Nesse tempo, o leo


Era o rei dos animaes
E o gafanhoto tambm
Trazia insignias reaes;
O eiephante era um sbio,
Autor dos cdigos iegaes.

O urso era juiz de direito,


O tigre era presidente,
O iobo era capito,
A girafa ei-a intendente.
Tamandu era padre
E porco-espinho tenente.

O boi era juiz de paz,


O burro era doutor,
Macaco era escrivo,
Lagarta era cobrador,
Preguia era fiscal, '

Ta c -peba coliecior.

Carneiro era mendigo,


O bode era almirante.
Raposa era correio,

(*) Cammond n
687
Cavallo era estudante,
O gallo era insolente,
E o pmnar negociente.

A cobra era criminosa,


Cachorro era delegado,
Queixada era vagabundo,
O sapo era soldado,
E o peru era um preso,
Que vivia encarcerado.

Gato era cabo de esquadra,


Saguim era professor,
O veado era vaqueiro,
Perequito era promotor,
Camelio .era viajante,
E o porco era creador.

Jacar era dentista,


Alorcego era barbeiro,
A ema era alfaiate,
O pica-po, carpinteiro,
Guaxinim senhor de engenho,
E o urubu, cosinheiro.

O abutre era faminto,


A coruja era propheta,
O cysne era amante,
Rouxinol era poeta,
A zebra era tratante.
Canguru era pa.^eta.

O castor era pedreiro,


O rato era namorado,
Barata era gatuno,
O pato era empregado,
688
O pavo era ourives
E o canrio advogado.

O moc era marchante,


Andorinha
com boi eir,
Formiga era agricultor,
A hyena era coveiro,
Cigarra era cantora
E bezouro era bombeiro.

Afinal, tudo
que os homens
So na actualidade
Os brutos tambm j foram
No tempo da antiguidade,
Quando o Destino era Deus
De poder e magcstade.

Nesse tempo, o joven rato


Habitava n'um chalet;
E amava a dona Catita,
A filha do Punar. (*)
Ella ainda era donzella,
E elle, um moo de f

O rato determinou-se
A pedir a mo da amada,
E foi a casa do punar
Pedir-lhe a filha estimada,
Visto ella tambm j estar
Por elle apaixonada.

Meu tio. cu no venho aqui


Fazer-lhe uma visita,
Venho pedir-lhe a mo

(*i Punarc rato selvaoei


! !

689
De sua filha Catita,
Para casar-me com ella,
Pois acho-a muio bonita

O Punar respondeu-lhe:
S no te dou minha filha,
Porque tu no tens recursos
Para sustentares familia;
E um pobre casar com um rico
E' at uma mara\iha!

Meutio, sei que sou pobre,


No preciso que me diga.
A fazer-lhe este pedido
E' o amor que me obriga.
Se me negar o que peo,
Ver entre ns intriga

Eu darei o que me pedes,


Pois no te posso negar,
Que a moa tua priiia;
Porm s podes casar.
Quando tiveres dinheirD
Com que possas te apromptar. (*)

Se o senhor me proteger,
Proponho-lhe um negocio:
Faa de mim seu caxeiro,
Pois no sou muito becio,
E, depois, quando casar
Poderei ser o seu scio.

Acceito tua proposta.


Podes vir ser meu caixeiro;

(*) Apr.mptar preparar.


690
Mas ha uma circumstancia,
Quero avisar-te primeiro
Que no namores ^ a moa,
Emquano fores solteiro

Fecharam, ento, o negocio,


Passaram um documento.
E o rato tomou conta
Dum estabelecimento.
Trataram para o fim do anno
O tempo do casamento.
O Punar prohibiu
A' filha de namorar;
Porem ella s escondidas,
Vinha com o rato prosar,
Toda noite no jardim
Tinham um particular...

Ao cabo de poucos tempos


Sentiu-se a moa doente . .

Estava muito descorada,


Com o olhar differente,
Tinha os peitos crescidos,
E muito inxado o ventre!;..

Foi receitar-se a um medico;


Este, vendo-a, lhe disse :

Senhora, o seu incommoao


No mais do que prenhice;
Remdio para este m,ai,
Nunc pde descobrir-se . .

O rato desconfiou
E tratou logo de fugir.
Roabou o cofre do tio
r : ! !

69i
E, quando cs^e o qiiiz perseguir,
No o encontrou na loja
Nem no quarto de dormir.

Vendo-se a moa oftendida,


Tratou de ir se queixar,
^edmdo ao deieg^dc,
Para este obriga
O Rato a casar com ella,
P'ra assim sua honra pagar.

O delegado prometteu
Que faria o que pudesse,
Mandava prender o moo
Embora ele no quizesse
Casar-se com a otfendida.
Casava houvesse que houvesse

A moa voltou p'ra casa,


O delegado apitou
E, em menos de meia hora,
Uma tropa se ajuntou.
O Gato chegou primeiro,
Dizendo: Eu c estou!

Os soldados perguntaram
O que quer, seu delegado?
Este respondeu: Eu quero
Que o rato seja intimado,
Se elle fizer resistncia.
Tragam -no morto ou amarrado !

Os soldados se armaram
E foram em busca do rato.
Este, com medo da tropa,
Estava occulto no matto;
692
Porem isto no o livrou
De cahir nas mos do Gato.

A tropa cercou uma serra^


E de cima de um penedo
Avistou o criminoso
Debaixo de um arvoredo.
Muitos soldados correram,
E outros morreram de medo !

O rato esta\a dormindo


E atordoado
acordou,
Com uma voz lhe dizendo:
Cabra, esteja intimado.
O rato disse comsigo:
Ai Ai
! estou desgraado
! ! . .

O Rato quiz evadir-se,


Porem foi 'ogo agarrado.
Elle se oppoz e na luta
Deixaram-n'o todo peilado
Assim mesmo o levaram
A' presena do delegado.

Perguntou este ao preso:


Que foi que fizeste t?
Que foi que te aconteceu
Que ahi ests quasi n?
A ti serve o dictado:
Quem se vexa (*) come cru!

Disse o rato: Quiz casar


Com uma joven mui bella;
Mas, ella me sendo falsa,

(*) Vexar apresta;


! :

693
Eu disse para o pae uella
Que procurasse outro noivo
Para casar-se com ella.

O delegado lhe disse:



'^
Pois, camarada, me oua;
Corre por ahi o boato
Que tu offendestes a moa.
Agora o que te acontece
E^ morrer ou casar, fora

O respondeu:
rato lhe
No
preciso matar-mC;

Eu j estou arrependido;
E visto querer castiga r-me,
Mande chamar um padre
Quero hoje mesmo casar^Tle.

O delegado respondeu-ihe:
No precisa se vexar,
Ainda falta correr banhos
E a moa se apromptar.
Eu dou-lhe um mez de prazo
Para tudo se arranjar.

Com espao de um mez.


Tudo estava preparado,
Todo povo do logar
Tinha sido convidado,
Para assistir ao baile
Que havia de ser ai lado !

O Punar logo cedo


Mandou ao padre chamar,
P^ra fazer o casamento.
694
Que havia de ter iogar
Na manha daquelle dia,
Sem poder mais se adiar.

Convidou ao Moc da ndia,


P'ra ser do noivo o padrinho,
Visto elle ser/ seu visinho.
Este no bebeu na festa,
Por gostar ]X)Uco do vinho . .

Mandou chamar a Cotia,


P'ra ser noiva a madrinha.
da
Esta no comeu da festa.
Por no gostar da gallinha.
, como tinha inim.igos,
Mui desconfiada vinha . .

Convidou o Urubu,
Para a festa cozinhar.
Este preparou os guisados
E, quando estavam a jantar,
O delegado chegou,
Que na festa vinha danar.

Quando chegou o delegado,


A festa foi acabada
Porque a madrinha da noiva
Com este era intrigada.
O delegado, agarrando-a,
Matou-a d'uma dentada!

Numa guerra sanguinria


Foi transformada a festa.
O Tamandu levantou-se
Perguntando:
Que zoada esta?
Mas, quando que era o co,
vi
Embrenhou-se na floresta:
: ! !

695
Na cabeceira da mesa
Estavam a catita e o rato.
Quando ouviram o i>aruho,
Quizeram correr p'r m.atto;
Mas, antes disso fazerem,
Foram mortos pelo gato

Foram victirnas do barulho


Mais de dois mi convidados
Os que escaparam com vida
Foram todos debandados.
Desde esse dia ficaram
Os animaes intrigados.

O espirito das duas variantes o mesmo. O ca-


langro pede em casamento a filha do camaleo, sau-
rio como depois no quef m.ais casar, ha a quei-
elle,
xa ao delegado, a reunio da tropa, o cerco do fugitivo,
o casamento fora e a luta na hora da festa. Tudo
isto acontece na historia do casameno do rato com
a filha do punar, ambos roedores.
Vrios desses factos se encontram no grande ro-
mance medieval da Raposa. O
que torna o do serto
ainda mais approximado delle a maneira como a
cada animai atiribe uma proisso humana e lhe faz
encarnar os caractersticos delia.
Nesse assumpto, ha tambm uma versalhada bas-
tante irnica sobre os misteres que os bichos podem
exercer

VERSOS DE BICHOS

Vi um tejuass escrevendo,
Vi um tamandu fiando.
'

Uma raposa borda^ido,


Uma tacaca tecendo;
696
Vi macaco lendo,
Lagarta fazendo telha,
Um bando de r vennelha
Trabalhando num tapume;
Vi tatu no cortume,
Cortindo um couro de abelha .

Vi quaty marcineiro.
Vi um porco agricultor,
Vi timb entalhador.
Vi veado sapateiro;
Um velho fei:ciro,
furo
Uma tocando,
cotia
Trs preguias dansando,
Um guar vendendo covos,
Um coelho batendo ovos
E um jaboty cosinhando;
Vi cassaco com tenda,
Vi cameleo cantando,
Um peru demarcando;
Vi glio vender fazenda,
Um rato fazendo renda,
Vi bode serrando ripa.
Vi burro fazerxdo pipa,
Um co fazendo papel,
Dois saguins comprando mel
E um gato vendendo tripa;

Vi formiga de chocalho,
Formigco de granadeira.
Vi dois camares na feira
Comprando queijo de coalho;
Um calangro no trabalho,
Melado de mel de furo;
Duas bribas no buraco (*)
(*) Bribas, corruptela de vboras: so assim chamadas pe-
quenas lagartixas.
697
Plantando maravilha ;{*)

Imbo na freguesia
Tomando dinheiro a juro;
Vi mosca batendo sola,
Mucuim tocando flauta,
Carangueijo de gravata;
Vi pulga tocar viola,
Vi cobra batendo bola,
Catita tocando buso,
Punar fazendo fuso,
Lacrau no desempate,
Besouro como alfaiate
Talhando roupa de uso;
Vi mosquito fumar cigarro
Dois mocs puxando um carro,
Cururi Ccintando moda,
Duas gias cTima roda,
Calafetando um barco;
Ckias moricas c um -sacco,
Comprando peixe na praia;
Lagartixa de navalha, {**)

Fazendo as barbas de um sapo;


Vi peixe
fogueteiro.
Comprando material;
Vi papavento mandar
Na rua trocar dinheiro,
Carrapao redoleiro
Almoando farofa pura;
Um bando de tanajura
Comendo num hotel;
Um percevejo em p
Com um cesto de rapadura ! . . .

*) Mafiivia, para rimar


(*'") Navcia, ielem.
698
A ONA E A RAPOSA

Como no romance medieval a raposa e o gato


lutam de astcia, no romance sertanejo essa. luta se
passou entre a raposa e a ona.
Canada de ser enganada pela raposa e de no
poder segura!-a, a ona resolveu attrahiiia sua fur-
na. Fez para esse effeito correr a noticia de que ti-
nha morrido e deitou-se ao meio da sua caverna, fin-
gindo-se cadver. Todos os bichos vieram olhar o seu
corpo, contentissimos. A raposa lambem veio, mas pru-
dentemente, de longe. E por traz dos outros animaes
gritou
Minha av, quando morreu, espirrou trs ve-
zes. Espirrar o signal verdadeiro da mo^te.
A ona, para mostrar que estava morta de ver-
dade, espirrou trs vezes. A raposa fugio, s garga-
lhadas.
Furiosa, a ona resolveu apanhal-a ao beber agua.
Havia scca no serto e somente uma cacimba ao
p d'uma serra tinha ainda um pouco de agua. Todos
os animaes selvagens eram obrigados a beber alii
A ona ficou espera da adversaria, junto dia cacimba,
dia e noite.
Nunca a raposa curtio tanta sede. Ao fim de trs
dias jno aguentava mais. Resolveu ir beber,
se
usando duma astcia qualquer. Achou um cortio de
abelhas, lurou-o e com o mel que delle escorreu un-
tou todo o seu corpo. 'Depois, espojou-se num monte
de folhas sccas, que se pregaram aos seus pellos e
cobriram-n'a toda.
Ao lusco fusco, foi cacimba. A ona olhou-a
bem e perguntou-lhe:
Que bicho s t que eu no conheo, que eu
nunca vi?
Respondeu, cynicamente :
!

699
Sou o bicho Flharal.
Podes beber.
Desceu a rampa do bebedouro, metteu-se n^agua,
sorvendo-a com delicia e a ona l de cima, desconl
fiada, vendo-a beber demais, como quem trazia sede
I de vrios dias, murmurava,:
Quanto bebes, Flharal
Mas a agua amoleceu o mel e as folhas foram!
cahindo s pores. Quando fartara as entranhas
re-
seguidas, a ultima folha cahira, a ona reconhecera
a
mimiga esperta e pulara ferozmente sobre ella, mas
a raposa conseguira fugir.
Infelizmente estas e outras pequenas historias
no
foram feitas em verso e, se o foram,
j a memoria
collectiva os perdeu, guardando somente o
enredo da
narrao, segundo ahi fica succintamente
exposto.
O Romance da Raposa sertanejo quasi to rico
e to interessante quanto o Romance
admirvel do
Renart medieval, que fez a delicia dos troveiros e
tio
povo em geral.
3

LENDAS
Os lobis-homens

Uma das crenas mais corriqueiras dos nossos ser-


tes ,certamente, a dos lobis-homens. Raro o ho>
meni do nosso campo, maxlm nas regies de Nor-
deste, que piamente no acredita qas faanhas dos io'^
bis-homens.
Na sua opinio, todos os homens muito pai lidos,
opilados, que elles chamam amarellos , empam-
bados ou come-longes , transibnnam-se em lobis-%
houens nas noites de quinca para sexa-feira. Para
esse efeito, viram a roupa s avessas, espojam-se so-
bre o estrume de qualquer cavailo ou no logar em
que este se espojou. Crescem-lhos logo as orelhas, que
caem. sobre os hom/bros e se agitam como azas de
morcegos. cara torna-se ho.rive:, meia de lobo e
meia de gente. os infelizes saern correndo pelas \ts-
radas, loucamenie, a rosnar, cUiiip-j.ido o seu fado.
Contam no serto cearense que uma mulher era
casada com um homem amaren/^.^ > e ia uma feita de
viagem com elle, a p, por um logar deserto. Era noite
de quinta para sexa-feira e fazia luar. Estavam hos-
pedados de baixo de uma arvo; _, onde tinham pen-
durado as redes. AUa noite, ella, acordando, viu o es-
poso levantar-se e entrar no mato. Pensou que fosse
a qualquer necessidade e no ligou importncia ao
facto. Tornou a adormecer. Acordou com o barulho
que em torno fazia uma fera e viu, horrorizada, ^im
monstro meio lobo, meio gente, que avanou para
704
cila e lhe furiosamente o chal de l ver-
dilacerou
melha com que cobria. Gritou, apavorada, pelo
se
marido, que custou muito a apparecer. O tal monstro,
felizmente, fugiu ao seu primeiro grito. O esposo disse
no acreditar na historia e que tudo no passava de
sonho. Entretanto, ao outro dia, chegando em casa,
o homem dormiu sesta. Ella olhou-o uma vez, ao
passar por junto da sua rede. Estava de bocca aberta
e entre os dentes havia fiapos de la vermelha do seu
chal. Fora elle o lobis-homem.
Para desencantar essa visagem , precisa-se pri-
meiramente saber o logar por onde costuma passar.
Ahi se colloca uma taboa com o velho signo de Sa-
lomo, a estrella formada pelos tringulos, cjue o ser-
tanejo chama Sino-Samo, feita com palhas de ra-
mos bentos. E' tiro e queda O lobis-homem olha
I

para aquillo, esmorece, volta a ser gene e nunca mais


corre ao seu fadrio.
Henry Koster, que no comeo do sculo passado
to curiosamente obserxou o Nordeste do Brasil, con-
ta no seu livro de viagens um episodio de lobis-
homem. Eil-o: Um negro liberto que eu havia co-
<'

nhecido e, ao tempo em que me mudava para Itama-


rac, fora visitar-me, conou-me, horrorizado, a his^
toria de um tal Alionts q '- j estivera ao meu ser-
vio. Disse-me que de tempos eui tempos elle vi-
rava lobis-homeiii. Pedi-lhe me explicasse o que era
isso. AffiiTnou que o homem se transfonnava num
bicho do tamanho de um novillio, tendo a forma de
co. Meamorphoseado assim, sahia ' furioso de casa,
meia noite, como um cachorro damnado, atacando
todo o mundo. O negro estava convencido da vera-
cidade do facto e garantiu-me que, estando em com-
panhia de um cunhado e da irm, encontrara o ex-
traordinrio animal junto de sua prpria palhoa. Pen-
sei que fosse um grande co faminto que rondava a
705
cabana, na esperana de matar a fome; mas o negro
no duvidava que fosse o Migue!.
A crendice curpa. Trouxeram-na para o Brasil
os^ colonizadores, hlla existiu sempre na
pennsula ib-
rica e na prpria Europa 'occidental e centrai. Os
camponezes de Frana, durante sculos e sculos, acre-
ditaram nos loups garous^ os da Bretanha no celebre
Bislavet,que so os nossos lohis-homens em carne
e osso. E', alm disso, uma das~"mais antigas
su-
persties da humanidade.
Herdoto, nas suas Historias, conta acreditarem
os gregos que os Neuros, povos da Scythia,
habitantes
da regio onde hoje mais ou menos se
estendie a
Komenia, durante alguns dias se metamorphoseavam
em lobos e corriam doidamente pelos bosques e es-
teppas, voltando depois forma primitiva.
Pomponius Mela, n livro , pag. 87, de sua
Geographia, edio Panckoucke de -1843, deste modo
amda se refere aos neuros,: Neuris statum singulis
tempus est, quo, si velint, in lupo.s, iterumuue uv
eas
qui fuere, mutantur. Assim, para o geographo
ro;-
mano cada neuro podia, a seu bel prazer, ornar-se
lobo quando quizesse.
Devido aos seus totemismos ancestraes, os povos
antigos tinham o costume de se assemelharem
a um
animal protector e de vestirem a sua pelle ou
de arran-
jarem um costume que imitasse a sua apparencia.
Por
isso, os germanos punham cabea
os cornos dos au-
rochs mortos, os numidas se envolviam em
pelles de
panthera, certas tribus guerreiras da Lvbia
cobriam-se
com o couro e a juba dos lets, nos capacetes
'
-gau-
lezes havia azas de cotovia ou de guia
e os japonezes
orgulhavam-se chamando aos seus samurais
lagostas
de ferro. Quem sabe esses Neuros,
originrios dos-
paizes^onde so incontveis as alcatas de lobos,
no
se enfeitavam com os despojos dea.sas
feras ou no
706
as imitavam em danas rituaes e dahi a origem da
crena dos helenos a seu respeito?
Mas, antes de coniecerem os Neuros de Herdoto,
j os gregos acreditavam que um homem podia trans-
tormar-se em lobo. xNo livro oitavo da Republica , de
Plato, Scrates diz a Adimano que quem, num sa-
crifcio aos deuses, oome vsceras humanas misturadas
s de outros animaes inevitavelmente mudado em
lobo. Plato reeria-se ao mesmo facto narrado no
livro VIII, capitulo segundo, de Pausanias, fabula
de Lycaon, que se tornou lobo aps ter sacrificado ^ma
creana no altar de Jpiter Lyceo, na Arcdia. A elle
se refere O/idio no ivTo I das Metamosplioses :^

((...gaudete sanguini. Vestis abeunt in villos ; lacerti


in crura; fit lupis, et servat vesdgia veteris formae.
Como Lycaon guardou esses vestig^ioe da forma an'-
tiga, o lobis-hcmem do serto tambm os guarda e
metade bicho e metade gente. Nesse ponto, a fabula
clssica se mantm iilesa.
A supeistio dos lobis-homens continuou em Ro-
ma. No ;eu admirvel Sacyricon >, capitulo LX, Pe-
tronio relara a transformao de um individuo em
lobo. Para esse fim, elle despio-se, estendeM as pout
pas no cnl: espalhou urina em redor delias e 4>ix>mpto!
.

virou lo o No ha nessa maneira de se metamor-


phosear ..l quer coi^sa do lobis-hom.em sertanejo, que
veste a bUi ;a e a cala ao avesso' e /se espoja ha suji-
dade do cavallos? O naturalista Plnio allude ao lo-
bs-homcL. e chama-o x'ersipeUis.
Santo Agostinho acreditou nos lobis-homens. No
livro XVIil da Cidade de Deus cita Varro, o qual
>,

affirmava que a g-Qni: da Arcdia tomava a forma de


lobo durante nove annos e no decimo anno voltava ;
forma humana. Esse mesmo Varro, segundo escre-
veu o grande doi: *i Egreja, accrescentava que
naquelle paiz um :, lenactu^, por ter sacrificado
707 ~
um menino a Jpiter Lyceo, fora /cito lobo. E' ,0
Lycaon de Pausanias e de Plato. Tanto o seu nome
como o do deus local vem da palavra gTQ^a lycos
lobo. E o mesmo Varrao ainda pretendia que os sa-
cerdotes Lupercaes tinham a sua origem nesses mys-
terios religiosos, que a ietida icadiana deixava en-
trever.
Ora, n^o pode restar duvidas a ningum que a
crendice popular do lobis-homem venha dessas remo-
tas fontes, dessas crenas da Grcia antiga em ix)vos
da Scythia ou da Arcdia, que, j>or essa ou aqueiia
razo, tomavam o aspecto luplno '>cii\ deieiuinadas
pocas.
At hoje s me foi possvel rastrear a origem dos
lobis-homens alm da Grcia clssica, no Egypto, onde
a ida lycanthropica est contida na maneira como os
deuses animavam, certos animaes e nas varias formas
animaes que esses deuses tornavam (*). Mas talvez a
lenda venha ainda de mais longe, da Chalda, onde
se acT-editava que o homem privado z sepultura vol-
tava terra sob a forma de lobo, vin<^ando-3e assim
dos que lhe no tinham dado o tumulo. Mas tal nys-
terio envoh-eu as primeiras origens ethnographcas, lin-
guisticas e tradicionalistas que deante deile o velho
Quatrefages calmamente -declarava Eu no sei,
:
Mas, indubiiavelmente, o lobs-honiem cearense o
iidimo dependente dos seus avs peninsulares, bretes,
francezes, romanos, hellenos e scythas. As suas dlfe-
renas resultam unicamente da lei de adaptao esta-
bePecida pelos grandes folkloristas.

(*) Peladan Les ide s et Jes formei


708
A lenda da morte

A crena na fatalidade da morte produzio no ser-


to do Cear a mesma lenda que existe no Oriente,
com. pequena differena de forma. Onde quer que a
alma popular pense da mesma fomia nianifestar-se
da mesma maneira. Bem diz Van Geunep: et tout
moment un thme lgendaire, bien localis, peut tre
rencontr !'autre bout du monde dans un cycle de
contes populaires. E' dum desses casos que vamos
tratar.
Paul de Saint Victor conta a seguinte lenda da
Turquia: Todo o dia que Allah dava" ao mundo um
dos paclis mais queridos d sulto vinha' sala <lo
Divan e pedia-lhe para. ser nomeado governador duma
cidade distante. E dava, para justificar o seu pedido,
um.a desculpa qualquer.
O soberano no o attendia e j estava at se abor-
recendo com a sua insistncia, quando o velho servi-
dor do throno lhe confessou a xerdadeira causa do
sen desejo de ir embora de Stambil. Todas as manhs,
ao sahir de seus aposentos, encontrava a Morte, asse-
gurou, de p, cravando^lhe olhos de espanto. Que-
ria fugir a essa obsesso. O sulto tomou aquillo
como caduquice, mas teve pena do pach e mandou-o
para onde desejava ir.
Sem.anas aps,- passeiando noite pelo seu jardim,
encontrou por acaso a Morte. Chamou-a e interpellou-a:
Por que andavas fitando com olhos espantados
o meu pach?
E ella resix)ndeu:
Porque recebi ordem de matal-o na cidade de
que foi nomeado governador e me admirava de vl-o
ainda por aqui ...
Esta certeza de que ningum escapa morte que
lhe est reservada e no dia marcado pelo destno tam-

700
bem est consubstanciada nesta historia sertaneja :

Um sujeito armou um mondu por traz do murq


dum cemitrio de villa do interior, afim de pegar um
tatu que passava por ai li. E, numa noite de luar,
com profundo espanto topou a Morte presa no mondu.
O j>esado tronco da armadilha cahira-lhe sobre a tibia
e o seu corpo esqueltico se esticava sobw o cho, mal
envolto no lenol branco. A foice rolara por uma
ribanceira e ficara dependurada numa raiz cie angico. O
matuto, gelado de pavor, ia correr, quiw inorie o :

chamou:
^
,Vem c ! Li\ra-me deste mondu e te recom'-
pensarei.
Approximou-se, ento, mais calmo e pedio, como
recompensa, para libertai-a, o direito de \iver at avan-
ada cdade, sem doenas nem transtornos, querendo
tambm saber quanto deveria viver se no lhe ti-
vesse de prestar aquelle favor. Ela disse, com accento
sincero, batendo as maxiillas estralejantes como as do
caetets e dos queixadas famintos :


Devias viver at cincoenta e dois e trs mczcs.
Mas at quando queres vida e sautiie, afim de me sol-
tares ?
Meio confiante, a sorrir, pensando nos seus rijos
trinta annos, o matuto replicou:
To forte quanto estou, at cento e vinte

E viveu, assombrando o serto pelo seu vi^or, a


mudar-se de ribeira em
de aventuras,
ribeira, atiraz
de festas e de novidades, sempre feliz, dinheiroso e
sadio. A Morte, que desprendera da armadilha aps
ter acceitado a sua proposta, essa andava na sua faina.
E elle, gozando a vida, nem ao menos se lembrava
que ella existia.
Chegou aos cento
e vinte annos, porm achava
ainda a vida to ba que teve medo de morrer. Ao
approxiinar-se o dia do anniversario do seu conchava
710
com a morte, quando se completaria o prazo por ella
concedido, foi convidado para um samba, justamente a
realizar-sc no dia perigoso. Entretanto, resolveu iir e
enganar a Morte que certamente o iria buscar.
Usava desde os oitenta annos barba cerrada c ca-
bellos crescidos" nazarena. Pegiou a thesoura e a
navalha: botou tudo abaixo. Ficou peilado como uru-
bu camiranga. A cabea lustrosa no tinha um f;o
de cabelio. A face era lisa como a dum menino. Nin-
^em o reconheceu na casa do samba.
Dansou, comeu e bebeu at meia noite,' quando
a Morte entrou pela festa adentro, procurando por
ellc. Ningum o tinha visto. At o dono da casa ex-
plicou que o tinha convidado para o baile, mas que
clle at ento ainda no appai-ecera, o que todo o
inundo j tinha extranhado.
A iVloie, que j se canra procurando a sua victi-
la por toda a parte, no se conteve: deu um pulo,
segurou o nosso homem pelo pescoo e disse:
No tenho mais tempo de procurar esse ve-
lhaco. E' meia noite em ponto. Tenho de ir embora
e, para no ir de mos vazias, levo em logar delle
este peilado dansadr !. . . .

Com differcnas maiores ou menores de fonua,


que em n:da alteram o seu substracto, essa lenda se
encontra em quasi todos os povos.

o DIABO
O diabo o heroe de mil e^trepolias ou tropelias
cm todo o serto.
Oseu asp^c^o o aspecto christo: chifres, olhos
de fogo, f>s de pato ou de bode. Tem dezenas de no-
mes e appellidos, verdadeiramente originaes do ser-
to, porque alli no se deve nunca chamal-o* pelo
!

711

seu verdadeiro nome, para que no. oua e no venha.


Chamam-no, portanto: Co, D*-bo, AAoleque, Fu^e, P-
de-peia, P-de-pao, Futrico, Figura, Bode-preto, Ca-
pa-Verde, Oato-preto, Maiino, Sapucaio, Pro Botelhq,
Bicho-preto, Rapaz, Tinhoso, Capeta, Capirto, Cxp,
Coisa, Sujo, Maioral, EUc, E todo o serto est cheio
de lendas a seu respeito.
Geralmente, o demnio sertanejo , como os de-
mnios e deuses de todos os povos, creadO' sua ima-
gem e semelhana: anda encourodo como os vaqueiros,
monta a cavallo; especialista em velhacadas de alqui-
lador, gosta de caxaa, come carne de bode picada com
piro e gerimun, campeia gado e dansa nos sambas.
Desapparece, dando um estouro e deixando um fedor
de enxofre. A's vezes, elle se apresenta at como can-
tador de desafio a quem ningum vence. De outras
se encarna no corpo dos cantadores celebres, tornan-
do-os invencveis. Por is^o quj Manoel da Bernarda,
rso podendo vencer no desafio o cantador Rio Preto,
gritou no meio da sala:

Senhora dona da casa,


Abra a porta, accenda a luz:
Estamos com o co em casa,
Rezemos q credo em cruz

Outro cantador, Manoel das Cabeceiras, tambm


affirmava ter cantado com o demnio em figura de
moleque.

O DIABO E NOSSA SENHORA

Ha \ersalhada que corre pelo serto sobre a


lUTia
disputa do com S. Miguel a propsito da
demnio
alma dum sujeito rico, que era inimigo dos pobres e
devia ir para o co. A discusso tem logar na occa-
712

sio o archanjo est pesando as boas e ms


em que
obras Este era devoto de Nossa Senhora.
do morto.
Pede a sua intercesso. Ella vem, pe-se entre S. Mi-
guel e satanaz, acabando por salvar o condemnado.
Furioso, o Fute exclamara ao avistal-a:

L vem a compadecida
Mulher com -tudo se importa.
Todos fazem seu negocio
E a mim fecham a porta
No fim de todas as coisas
Eu sempre le\o taboca

No me foi po^sivel conseguir alm destes versos


nenhum outro da longa poesia desse milagre.

A CAMA DO COMPADRE COM A COMADPvE

E' esse o titulo dum supplicio 'terrivel que o ser-


tanejo diz existir no inferno para aquelles que com-
mettem impurezas durante a vida. A sua descripo
no pode ser feita, porque a decncia o no permitte.
Mas para mostrar quo terrvel basta nairrar a ite-
guinte lenda, muito conhecida dos matutos:
O diabo coxo revoltou-se um dia <x)ntra o Maio-
ral do inferno e fez alli dentro uma terrvel revoluo*
Quebrou coisas, deu pancadas a torto e a direito. To-
dos os diabos o cercaram armados de espetos. Con-
tinuou a lutar. O Maioral ameaou-o, se no se ren-
desse, com as moendas por onde passam as almas '

que devem ser das mais suppliciadas. Deu uma gar-


galhada. Ameaou-o com a caldeira de azeite fervente.
Rio-se. Ameaou-o com a celebre cama do Compadre
com a Comadre. O coxo empai lideceu, pz-se a tre-
mer e rendeu-se ... .
!

713
O DIABO E OS MENINOS

Na opinilo sertaneja, o demnio tem horror ao^


menmos, porque por duas vezes e.^tes o fizeram
perder
uma vasa.
A primeirafoi na egreja. O
demo, vestido d<e preto.
estava ao p duma parede, tomando
nota de quem
se portava mal durante a missa, quando
um menino
puxou a saia da me.
Que c isso, menino?
Mame, olha aquelle homem. Elle tem os ps
de pato
A muiher voltou-se e fez o signal da cruz O
Bjcho estourou . . .

A segunda foi numa festa. O diabo, que se apai-


xonara por uma moa, comparecera a uma
festa em
casa delia, todo bem vestido e bonito,
mas sem .po-
der esconder os seus ps de pato. Quando
seu namoro
com ella ia accezo, um menino gritou:
Aquelle homem tem os ps de pato I

Houve um A moa fez o


rebolio. da cri-z.signal
E ouvm-se o estouro e sentiu-se o cheiro de enxofre!

UM PACTO COA4 O DIABO


O diabo sertanejo faz pactos ou pautas com
o<
sertanejos, que quasi sempre o logram. Para haver
mutua segurana nesses contractos, o homem deve dar
ao Maligno como cauo algumas gottas de
sangie.
Contam que um fazendeiro fez com o capeta o^se-
guinte contracto:
Este faria tudo quanto aquelle mandasse
e le-
val-o-ia para o inferno, quando elle
tivesse esgotado
as^ suas ordens. Isto quasi a condio imposta
Segundo Fausto aos desejos do Doutor.
m
O homem
esgoou todos os seus dese^jos, fez tudo quanto queria e
714

l um no soube mais p que> ordenar. O demo


dia
ia carregarcom elle para as profundas, quando elie
se lembrou dum ardil e ordenoi ao tinhoso que lhe
enchesse um cesto de agua ... O outro estourou e
desistiu do contracto .

O VAQUEIRO MYSTERIOSO
Tendo morrido numa cidade do serto um ho-
mem., cuja riqueza era de origem Imysteriosa, veri-
ficou~se que o mesmo a tinha obtido com uma pauta
infernal. Esta\'am lodos os convidados de roupa preta
na sala, rodeando o caixo, j fechado, quando alli
entrou um vaqueiro aito. moreno, de 'olhos brilhantes,
cuja roupa de couro de veado cajxyeiro produziu ver-
dadeiro contraste no meio daqueiles trajes de luto.
Todo o mundo pensou que fosse o vaqueiro duma
das fazendas do morto, chegado de surpreza. Mas o
extranho personagem no faiou com ningum, no ti-
rou da cabea o seu pesado chapu de couro de bode,
olhou algum tempo o caixo e desappareceu. Quando
abriram o caixo, para a viuva despedir-se a ultima
vez do marido, estava vasio . . .

OS C.4VALL05 DO DIABO

O diabo casado e tem uma filha muito bonita.


Um rapaz sertanejo, valente e bello, viu-a uma vez
numa vrzea, ao cair da noite, e apaixonou-se por
ella. O seu anjo da guarda procurou livral-o daquella
paixo, mas nada conseguio. A moa tambem no foi
indifferente s suas qualidades e mandou-lhe recadois
amorosos, e falou ao pae em abandonar o inferno e
vir morar na fazenda do namorado. O
co ficou furioso
com esses desejos de msalUance e trancafiou-a numa
torre de ferro ao meio do sevi reino.
:

715
Sabendo disso, o rapaz montou no seu cavallo de
campo castanho escuro, fechado, sem signal desco-
berto nem encoberto de espcie alguma, o animal de
maior fama na ribeira e dirgiu-se ao inferno, deci-
dido a tudo. L chegou na hora em que os fiiabos
dormiam, abriu Com uma chave falsa a torre, poz a
moa garupa e fugiu a galope.
Quando acordou e pela mulher soube do auda-
cioso rapto, o diabo chefe teve um violento accesso
de fria. Mandou sellar um dos seus melhores cavallos
e atirou-se em perseguio dos fugitivos. A moa, que
ia garupa, meio voltada para traz, avistou ao longe
o vuUo uO pae. Preveniu o amante, que esporeou ^
sua cavalgadura e perguntou
Em que ca\'allo vem teu pae?
No gazeo.
Cavallo gazeo-sarar (1) no presta nem pres-
tar, respondeu elle, rindo.
A.S rimas dos rifes sobre cores de cavallo so
meios mnemnicos para retl-as. O demnio, sentindo
escapar-lhe a preza, muda de cavallo. A moa previne
o rapaz.
Em que cavallo vem teu pae?
No alazo.
Trazes o freio na mo, onde deixaste o teu
alazo?
Nova mudana, nova p>ergunta:
Emque cavallo vem teu pae?
No bebe-em-branco (2)
Quem monta em bebe-em-branco mlonta em ca-
vallo manco.
O Maioral verifica pela prpria experincia que

(1) Gazeo-sarara
albino.
(2> Bebe em branco, cavallo que tem o queixo e as narinas
brancae
71

no alcanar os dois em cavallos de^se pello e monta


noutros de melhor cor. E as perguntas e respostas se
succedem pela longa estrada afora:
Em que cavallo vem teu pae?
No cardo-rodado. (3)
Cavallo cardco-rodado nunca pode estar parado.
E agora?
No cardo-pvedrez.
Cavallo cardo-pedrez para carga Deus o fez.
V^em no melado-caxito. (4)
Cavailo melado-caxito tanto bom como bo-
"
nito.
Mas j a excellencia do animal nada adiantava.
Os dois amantes penetravam no mundo e se acolhiam
a uma egreja, onde casaram. O
diabo voltou ao seu
reino furioso e fatigado. Ao entrar em casa, a mulher
indagou:
Alcanou-os?
No! No pude Montavam um cavallo
I cas-
tanho esairo . .

e:-
E cavallo castanho escuro pisa no mole c no
duro.
Essa lenda dum Orpheu sertanejo o habitante do
Nordeste a aproveita para enumerar as qualidades que
julga terem os cavallos pela sua cr, desmentindo o
velho aphorismo dos maquignons francezes tout :

poil bonne bete . De todas as lendas do diabo que


correm pelo serto essa a mais profundamente ser-
taneja.

(3) CardSo-rodado, tordino.


(4) .Melado-caxito, baio, de pernas e crinas pretas.
SUPERSTIES
As "experincias" de chuva

No decurso de minhas variadas e constantes lei-


tUi"as, tenho notado que nenhum povo possue crenas
ou supeisties prprias e todos tm variantes de cren-
as e supersties geraes, que se originaram talvte^
duma fonte commum, mysteriosa e antiqussima, d
onde certamente irradiaram as suas primeiras frmasi
salvo se idnticas condires e circumstancias pror^
duzem aqui oii ai li idnticas manifestaes d'a arte
popular.
Dahi no existir no serto do norrdeste, que com
tanto carinho, posso dizer, sempre tenho estudado, uma
nica crendice popular que no tenha sua correspon-
dent-e ou irm na vida de outros povos inteiramente
afastados de seu convvio actual e aos quaes s se
iiga por uma recuada e intrincada ascendncia.
Varias vezes tenho mostrado essas similitudes foik-
loristicas, de maneira que as minhas idas sobre o
assum.pto so conhecidos.
m todo o serto do Cear, fazem duas expe-
rincias , para sjaber se o anno que vai passar de
bom ou mu inverno, de repiquete ou de scca
declarada. No de adijiirar essa preoccupao num
povo cuja vida depende nica e exclusivamente da
quantidade de chuva que cahir sobre a sua martyri-
zada terra. A mais notvel dessas experincias
a do dia de Santa Luzia. Sobre uma taboa, a 13 de
dezembro, data consagrada gloriosa martyr, tiraam-se
720
seis quadrados que representam os seis mezes de in-
verno: janeiro, fevereiro, maro, abrji, maio e junho.
Em cada um desses quadrados pe-se um pedao
de sal e colloca-se a taboa, assim preparada, aq
sereno, durante toda a noite. De manh vai-
se vl-a. Conforme o sal tenha derretido mais ou
menos em cada um dos quadrados, chover mais ou
menos no mez respectivo. Se as pedras de sal estiverem
simplesmente hmidas, o anno ser de mu inverno. Se
estiverem completamente enxutas, a scca fatal. No
deixa de haver uma certa razo bsica de ordem pra-
tica nessa superstio religiosa: o chlorureto de s-
dio muito sensivei ao estado hygrometrico da atmos-
phera e, coino no serto o clima sempre invarivel,
esse estado ao meio de dezembro pode prolongar-se
pelos outros mezes alm.
No m^esmo dia se
inicia outra v:experincia
-
com
o mesmo Considera-se o dia de Santa Luzia como
fim.
represer^tando o mez de janeiro e os dias seguintes
como representando cada um dos mezes de inverno,
at junho ou julho. Conforme chova ou faa sol nes-
ses, chover ou far sol nos mezes relativos.
Cousa interessante: em toda a parte, quando faz
sol, diz-seque o dia bello, que o tempo est Hndo.
No serto, nunca. Dia lindo, tempo belio quando
chove. Quanto mais chuva, liiais. bonito o tempo. Quanto
mais sol, mais feio.
A terceira e ultima experincias a do dia de
S. Jos. Esse dia tem grande influencia na vida ser-
taneja. E' o dia 19 de maro, precede de quarenta ^
oito horas o equinoxio, e por isso no^ raro que nelle
se modifique de todo o tempo, passando de chuvoso
a ensolado ou vice-\ersa. Dahi dizerem os sertanejos
que, se at essa data no ha inverno, esto perdi d'as
todas as esperanas. Accrescentam que, se a 1 9 dQ
maro o co est limpo, ainda haver inverno, mas.
721
se amanhecer nublado ou chuvendoj, a slecca ser feroz.
Tal crena dos pov^os do Occidente europeu e,
atravs da Pennsula Ibrica, xndificada pelos ambien-
tes e pelas devoes esptciaes, veiu localizar-se no
ccntro-norte do Brasil. Na meteorologia europa, quem
representa o papel meteorolgico de Santa Luzia e de
S. Jos, especialmente, o quasi desconhecido S. Me-
dardo. A sua data o dia 8 de junho. Acreditam os
camponezes francezes, belgas, suissos, bvaros, saboia-
nos, gasQes que, se nesse dia fizer sol, far sol todo
o vero e que, se chover, ohov^er todo o vero. Como
se v, a differena das datas entre as duas crendices
corresponde differena ds estaes. O sertanejo pre-
cisa dum santo meteorolgico em maro, no equinoxio,
de cuja fora dependem as aguas fertilizantes do seu
inverno. O camponio europeu carece desse santa em
junho, no inicio do sea ver.o, quando o bom tempo
lhe necessrio vida. E o mais curioso que na
Europa a ex;periencia feita de modo directo, pelo
aspecto do dia em quesuo, eniquanto no Brasil de
modo indirecto, pelo contrario do mesmo aspecto.
No sei qual o motivo por que se attribue no nor-
deste a S. jos e a Santa Luzia a sirude de disporem
das chuvas, pois a S. Jos se reza no fim de vodas as
missas ou novenas urna orao pedindo-lhe chuvas,
E mesmo, nas procisses, para obter do co que a
scca no caia sobre o serto infeliz o povo grita:
S. Jos, dai chuva !S. Jos, dai chuva !

A razo por que S. Medardo gosa dos mesmos


direitos foi explicada pelo sr. Arnault, da Academia
Franceza, de accrdo cm os velhos biographos do san-
to. S. iVledardo foi bispo.de No voo e de Tournay, jiio
sexto sculo da nossa ra. Uma feita, em viagem,
comeou a chover fortemente. Mas uma guia baixou
do alto e abriu as azas sobre a cabea do santo, pro-
tegendo-o da chuva. O sr. Arnault at se admira que
'^22
elle, por ter tido o pri\iiegio de se no molhar, te-
nha o de molhar os outros . .

Ha um outro santo a quem se pedem chuvas no


serto e que at amarram para isso com um cordel
ou uma ou pem de cabea para baixo, somente
fita,K

o Hbertando quando attende aos rogos que lhe so


feitos. E' o glorioso santo Antnia de Pdua ou de
Lisboa.
Eu conheci em Baturit, ao p da serra do mesmo
nome, no Cear, um plantador de canna, que em vez
de amarrar a imagem de Santo Antnio, afim de obter
chuvas, fazia peor. Quando o anno era declaradamente
de bom inverno, elle soltava dzias e mais dzias de
foguetes, de rojes, demonstrando publicamente a sua
alegria. A's vezes no chovera na redondeza. Entre-
tanto, os vizinhos ouviam o roncar e o pipocar da fo-
guetaria. E todo o mundo dizia logo:
isso foi o compadre Fulano que j recebeu no-
ticias de chuvas no serto

Tambm, quando Santo Antnio no dava a chuva


em tempo opportuno, elle ficava furioso e vingava-se
do thaumaturgo. Agarrava a sua imagem, amarrav-a
vara dum dos maiores foguetes que tinha preparados
para commemorar o inverno, e soltava-o nos ares. L
se ia o pobre santo de pau a uma ultura de mais de
cem metros, vergastado pela chuva de fogo do rojo
at que este i>erdia a fora e cahia com a imagem
sobre os mattos ou as pedras, onde ella se despedaava.
Assim, quando a vizinhana ouvia o barulho de
muitos foguetes no ar, j sabia que eram boas novas
de chuva, e, quando ouvia o de um s e formidvel
rojio, estava certa de que o anno era scco^ pois Santo
Antnio fora castigado. Emquanto viveu esse indivi-
duo, essa experincia do foguete foi, para a gente
do .p da serra, o que so, para o povo sertanejo em
geral, as & experincias de Santa Luzia e de S. Jos.
>
!

723 -^

Mas nem esse castigo dos santos


on>inaI do
interior cearense. Elle existe sob variadas
formas era
diversos povos, que tambm amarram os santos ou
'^ ^
'^''^'^ ^'''''''" P^o^essas de qualquer na-
toeza""
Umadas mais interessantes Trmas
do mesmo fa-
cto e que narra Martinho d^Arles, no
a
seu Tratado
das Superrioes , edio de
1560. Diz o derivo es^
criptor que, quando havia
scca em Navarra, agente
do campo no se humilhava peranre
o seu padr^iro
Pelo contrario, levava em procisso
a beira do rio a
imagem Qe S. Pedro, coilocava-a
deante da .crua e
gritava-ilie, ameaadoramente,
uma, duas, trs vezes
seguidas:

S. Pedro, soccorrei-nos ?

A imagem continuava, como


de esperar, immovel
e silenc.osa. Ento, encolerizados, bradavam
do mesmo
modo:
Atiremos S. Pedro nagna
Como Pedro nem se movia neai respondia,
S.
purravam-n para o rio, cuja conrenteza
em^
levava a fi-

ablixo
'"''^'''' '^''"'''^'
^' -^''' ^ ^^' ^'^'^
A's vezes, os padres pediam
ao povo que esoerasse
mais vinte e quatro horas pelo
milagre do santo e da-
vam caues para isso. Os navarros
esperavam; po-
rem, se.dlentro das vinte e /quatro
horas no dhovia o
primeiro bispo de Roma i parar ao rio.^
O meu conhecido de Baturit era menos humano
para com santo Antnio do que
a populao de Navarra
para com S. Pedro. Es^a lhe
dava tcmco de penslr
no castigo, gritando-lhe trs vezes
o que queria e -s
vezes mesmo o caucionava por
um dia. O cearense, no
Nao prevenia nem esperava. Desde que
at data
que marcara, o inverno nao vinha, no
hesitava amar-
724

rava o santo ao rabo cto rojo e lanava-o aos ares,


para ele fazer o parafuso da morte...
Todos os povos primitivos casigam os seus deuses
quando elles no os ajudam convenientemente. Ja-
cques de Voragine, na sua velhissima Legende Do-
rc/), conta na vida de S. Nicolau que um judeu pro-
mettia imagem deste santo dar-Ihe uma surra, se
ella no defendesse os seus bens. O catholicismo
herdou esse systema do pagamento, e para o ser-
tanejo eile veio com a colonisao.

OS PROCURADORES D'AGUA
Em todo o paiz que sente frequentemente effeitos
de scca, os feiticeiros, mgicos e exprcismadores se
attribuem o papel de descobridores de agua. Desses
procuradores d'agua no serto de Nordeste disse eu
o seguinte numa pagina do meu primeiro livro Terra
de Sol.
Na quadra angustiosa da scca, quando o ser-
tanejo procura agua, cavando a terra, o curandeiro
vae acurvado, de olhar fixo, batendo com um cacete
sobre o cbio. Pra, olha em torno para os sertanejos
magros que o seguem e assegura que, se cavarem
naqueile logar, encontraro agua.
Roberto de )a Sizeranne, prefaciando as Pedras
de Veneza >, de Ruskin, na sua traauco franceza, es-
creve isto:
j encontrastes talvez no interior dos nossos cam-
pos camponezes que caminham de braos estendidos
com uma varinha na mo pelas solides ooide falta
a agua. procurando uma fonte. A's vezes param e a
\arinha treme nas suas mos. E' um lenol de agiia
subterrneo que age sobre seus nervas e os faz vibrair.
Cava-se ahi .Encontra-se- uma fonte profunda, jsta-
menie onde ningum respeitava que ella exisri"sse ,
725
Quando escrevi a Terra do Sol ainda no lera >/

as Pedras de Veneza/). Esta approxjmao vem sim-


plesmente demonstrar, portanto, que nao ha supersti-
es particulares a este ou aqulle povo, mas que to-
das pertencem humanidade inteira e s differem na
forma em relao ao meio onde evoKiem' e se^ adaptam.
Certo, assim, eg-ypcios, chaldeus, inds e outros povos
mais antigos j procuravam as nascentes subterrneas
de agxia.

ABUSES
Uma chinella emborcada chama a desgraa.

Quando o gallo canta antes da hora em que dev^e,


houve barulho ou alofuem furtou moca.

Quando uma coruja rasga. mor tal ha canta sobre uma


casa desfraca certa.

Quando uma gal linha canta como gallo, desgraa


ainda peor.

Todo iiomem feio, de nariz torto, de olhar de


porco ou por baixo das sobrancelhas, da fala de mu-
lher, de barbica, de soias ou das mos frias, no
presta no minimo falso.
;
. 726
Quem encontra em viagem negro ou raposa en-
contra mu agouro.

A propsito de suas desconfianas sobre o mo-


ral dum i^di^iduo pelo seu aspecto physico, diz o
sertanejo:
Deus que te marcou alguma coisa te achou !

Todo sapo bota feitio.

Cabcavel que morde sapo morre logo.

Para intehcitar um individuo, deve-se conseguir que


no coma o primeiro bocado que ia levar bcca em
qualquer refeio, cose-se esse bocado na bcca dum
sapo curur e emquanto este penar a pessoa soffrer
tambm.

Quem ouve uma missa inteira em sonho morre


dentro dum anno.

Sonhar cem :.gua aisamento ou morte certa.


Com excremento Com dinheiro excre-
dinheiro.
mento. Com cobre, intriga. Com gado. prosperidade.
Com passariniio, tristeza. Com vinho, alegria.
^ 727 )

As creanas sonham nmito que esto voando. E^


que ellas esto crescendo.

Quando um homem casado sonha que est ca-


sando a sua muiher que vae morrer.

Sonhar que se est arrancando dentes aviso da


morte de parentes prximos.

Nenhum sonho se realisa com a pessoa com quem


se sonha. Mas sem.pre com outra.

Canto de rlinha em cima da casa signal d-e


mudana.

Cupim teimoso numa casa quer dizer que o dono


devt: mudar-sc, seno morrer alH.

Ui\'o de cachorro noite desgraa prxima.

Menino choro ou de orelhas compridas viver


muito.
728
O homem casado, cujo cabello dex;a penetrar fu-
maa de cachimbo ou de cigarro soprada por outro no
fiel sua mulher. O solteiro volvel.

Chocalho de cascavel peudurado ao pescoo livra


de dores de dentes.

O bicho s d em pau tirado antes da lua.

Basta bater num curandeiro ou feiticeiro com um


galho de pinhco para tirar-lhe toda a fora.

A URINA DA MULHER
Vm da mais remota antiguidade as supei-sties
sobre os bons ou maus ef feitos da urina das mulheres.
Herdoto, em Euterpe , CXI, e Deodoro de Sicilia,
no seu livro 1, contam dum filho de Sesostris ou Ram-
ss que, tendo ficado cego, lavou os olhos, por man-
dado do orculo de Buto, com a urina duma mulher ho-
nesta, recobrando a vista. Vaie a pena informar, de
accrdo com esses historiadores, que comeou a ex-
perincia por sua prpria esposa e que s conseguio
tomar a vr, depois de ter experimentadio alguns mi-
lhares de creaturas do sexo fraco. Herdoto conta
mais (Clio CVI) que Astyage, rei dos medas, so-
nhou que a urina de sua filha Mandana inundava toda
a sia. Os magos interpretaram o sonho, affirmandQ
!

729 ^
que delia sahiria um grande dominador de paizes e
de povos. Com ef feito, o seu filho foi Cyro.
J se v que remontam s mais antigas pocas
as supersties a respeito dessa urina, com uma dif-
ferena, porm, para as sertanejas. E' que ella no
serto jaiiiais considerada benfica e sim capaz e
malficios terrveis. Affirmam os matutos do interior
do Cear, Piauhy, Parahyba, Pernambuco, Rio Grande
do Norte e Alagoas que a urina duma mulher em cer-
tas pocas do mez, no seu feinpo ou na Lua, como elles
dizem, a cousa mais perigosa do mun db. Essa fora
passa at para a prpria p^essa. Garantem que um
mulher, nesses momentos, pisando em cima duma cas-
cavel, a cascavel morre As mesmas cobras que por
!

infelicidade passarem sobre a areia em que uma mu-


lher nessas condies urinou no escapam
Consubstanciando essas abuses e crendices, o dou-
tor Pedro Pereira, que cultivava no Cear, no comeo
do sculo passado, a musa popular, fez uma poesia em
esylo sertanejo sobre essa urina de to violentas at-
tribuies. Essa poesia pelo seu feitio, pela crena
popular que encerra e pela maneira como se tornou
corrente entre a gente
daquelia regio pertence in-
teiramente ao E' de esperar que os que
folk-lore.
a lerem no cuidem estar ella aqui como demons-
trao de gosto obsceno e sim como raduco fiel
duma superstio popular que vem do Oriente cls-
sico e da qual no se pejaram de tratar claramente
espiritos como o de Herdoto^ e o do grande historiador
siciliano.

A URINA DA MULHER
(versos de Pedro Pereira)

E' um mal to pestilento


A urina da mulher '

[
^ 730
Que quem \iver no quizer
Beba morre de repente
e
E' veneno, fogo ardente
Que Deus no mundo deixou.
Quem em tal urina pisou
Curar-se mais no precisa,
Pois no escapa quem pisa
Onde a mulher mijou

Seja o mais verde capim


Ou planta de folha rija,
Se lhe em cima a mulher mija,
Scca, morre, leva fim.
E' um veneno to ruim,
Que at uma vez chegou
O prprio ferro a estalar
Naquelle mesmo logar
Onde a mulher mijou ! (*)

Eu vi um velho, coitado!
Por pisar em tal urina,
Ficar com a perna fina
E o p todo chagado
Ficou caspento, pellado,
Emfim disforme ficou
Tudo que teve gastou
Em mil remdios que fez,
Por pisar uma s vez
Onde a mulher mijou

Se acaso fr de creana
O mijo que algum tocar,
Pode ter, para escapar,

{=*) Nesta decima falta um verso que no me foi mais pos-


svel encontrar.
!

731
Ainda alguma esperana;
Mas de moa ou de carranca,
Diga logo: Morto estou!
Porque ningum encontrou
Remdio ainda em botica
Que curasse o mal que fica
Onde a mulher mijou

A MOA E O SAPO
No serto dos Carirys VeHios, numa antiga fazenda,
havia uma moa bastante bonita que tinha o habito
de ficar todas as tardes horas seguidas debnada ,
janella do seu quarto, que dava para um terreiro todo
coberto de malva. Sem que se soubesse por que, de
repente ella comeou a d-efinhar. Chamaram-se curan-
deiros, fizeram-se oraes fortes e prepairaram-se m^
zinlias. Nada deu resultado. Ella continuava sempre a
emmagrecer e a empallidecer.
Um dia, por acaso, o fazendeiro mandou capinar o
terceiro. Limpo elle todo da relva que o cobria, ve^
rificou-se que no meio. dentro dum buraco, havia um
enorme sapo-curur, inxiado de gordura. E chegou-ise
concluso de que todo o mal da pobre moa delle
pro\'inha. Emquanto ella ficava na janella, o sapo a
namorava e toda susta nela delia passava para elle.
Mataram-n'o com um foiao. Do dia seguinte em
deante, ella comeou a melhorar e escapou morte.
Namoro de sapo, no modo de pensar do niatuto, s
no peor que urina de mulher.

O SAPO E A CHALEIRA

Trej comboieiros que iam de viagem arrancharam-


se debaixo de uma arvore, fiz!eram uma trempe &xi
pedras, accenderam fogo e sobre ella puzeram uma
732

chaleira com agua para fazer caf. Beberam, depois, o


caf e todos trs morreram minutos mais tarde. Quem
os enc-ontr3U mortos, no dia seguinte, verificou que
debaixo das taes pedras havia um sapo, que o fogo
Fora elle quem envenenara, com a simples
torrara.
fumaa do seu corpo queimando, o caf dbs com-
boieiros.

As supersties sobre sapos so de todos os po-


vos. Boccacio conta no Dccameron de dois noivos que
morreram por terem mastigado as folhas dum atr-

busto. Arrancado este, verificou-se que entre suas rai-


zes estava alojado um grande e horrendo sapo.

OS CORISCOS

A crena nos coriscos ou pedras de raio anti-


cjuissima e universal. Os antigos acreditavam que o
raio era uma pedra atirada por deus. Eli es no podiant
admittir os eff eitos de projctil sem que esse pro-
jctil existisse. Dahi a crena nessa pedra. Dahi o
Jpiter Lpis dos romanos. todas as pedras poli-
das, roladas pelas aguas ou heranas dbs antigos ho-
mens das idades de pedra, foram at outro dia toma-
das como coriscos. Saint Yves documentou gramma-
ticalmente a universidade dessa crena, mostrando que
em quasi todas as linguas essas pedras so chamadas
pedras de raio pierres de foudre, f rancez thunders-
: ;

tone, inglez ; donnerkeil, allemo ; donderbeitels, ho!-


landez ; tordentem, dinamarquez tonderkiide, norue-
;

guez; thorsirggar, sueco; perdus de lamp, dialecto do


Rossilho; piedras de rayo, hespanhol; pietre dei ful-
mini, italiano; idernu-tochi, turco. (*).

(~) St. Yves


"Talisman? ei reliques tombes de ciei" dans
'Les reliques et les imacres lecrendaires".
733
Do mesmo modo as chamam os naturaes da Fin-
lndia, do Japo, da China, da Indo-China, da Ocea-
nia, do Congo, de Madagscar.

Em toda a parte se acredita no somente que


essas pedras cahiram do cu como preservam do raio,
A crena vem do orienre lendrio e profundo, atra-
vz dos gregos, que j as chamavam Keraanas.
Obedecendo ao influxo dos seus maiores, o serta-
nejo nordestino acredita que iodos os seixos polidos
ou machados e pontas de flechas dos indios desap-
parecidos so verdadeiros coriscos. E ningum lhes
tirar ess:i superstio da cabea com argumento al-
gum, nein mesmo provando-lhes que, j em fins do
sculo desesseis, Mercati dizia que as ceraunias eram
achas polidas dos antigos povos.
O
sertanejo parahybano, cearense ou alagoano acre-
dita que essas pedras lisas, por elle encontradas nos
campos e buracos ou covas que abre, cahiram do cu
com os raios, enterrando-se no solo umas tantas bra-
as. Depois, cada anno foram por si mesmas sahindo
uma braa, de maneira que aquella que se aprofundou
de sete braas leva sete annos para voltar flor d
terra.

Que este livro tenha a) ineiio^^ a sorie dos co-


riscos do sertccj : se o esqiie<:ifnento o sepultar y ccidcl

auna pelo seu prprio valor cie um passo para ser


conhecido. Porque nelle ha muito da minha alma sau-
dosa de nortista exilado.

G. B
ik
NDiCE
:

ndice
Paginas

FOLK-LORE TRADICIONAL. 21

a) O cyclo dos Bandeirantes^ 25

l^enda do Batato . ... 30


Lnda do Gorjia . . . ., 31
Lenda dos Zarigus . . 31
Lenda do Pescadior . . . 32
Historias de Ona . . . 32
A ona e os dois compadres 34
Resumo do cyclo dos Bandeirantes 36

b) O cyclo do N\ata ^>

Auto do Rei dos Mouros 43


Auto dos Fandangos . 47
Nota ao A Uo .io F .ndau^os. 9o
Auto das Pastorinhas , . . 104
Notas ao auto das Pastorinhas 145
Auto da Caridade . 149
Notas ao auto da Caridade 177
Auto da Porfia das Fires 178
Auto dos Pags . . . 211
Auto dos Congos . 213
Notas ao auto dos Congos . 251
Auto do Bumba meu Boi ! . 256
Notas ao auto do Bumba meu Boi ! 287
Cano de Janeira ...... 292
Resumo do cyclo do Natal . . 294
Pagina

c) o cyclo dos VuqaeLros 295

A ona do Sitia . 299


A ona do Cruxat 303
A ona Maaroca . 308
O boi Moleque . 308
O boi Mysterioso . 311
A vaquei jada . 320
O novilha do Quixei 326
Resumo do cyclo dos Vaqueiros 337

d) O cyclo herica-: 329

Historia do Valente Vilella . . . . . 332^


Cano dos Guabirabas 343
Cantiga dos Guabirabas ...... 347
A vida dos Guabirabas 350
Cano do Santa Cruz ...... 363
Cano de Antnio Silvino ..... 371
Vida de Antnio Silvino 375
Antnio Silvino e Desiderio ..... 384
Os companheiros de Antnio Silvino . . 384
Antnio Silvino e o Padre 388
A cano do Rei Mandou me Chamar . 395
Resumo do cyclo herico . . . . - 399

e) O cyclo dos Caboclos 401

A defesa do caboclo . ..^ .- ^. 404


A certido do caboclo ....... 405
Silva de quadras de desafio entre negros
e caboclos 407
O caboclo e o ovo ... . ^ . . . 410
O caboclo e a agua .....-., 410
:

III

Paginas

o caboclo e o avarento . . .
411
O caboclo e a queimada . .
411
O caboclo e o recm nascido . 412
O caboclo a mull^er e a espingarda 412
O o paidiie e o estudante
caboclo, .
413
O caboclo e a verruma 414
O caboclo e o sol 415
O caboclo e a moa 416
O caboclo e a rede 416
A lgica o caboclo 4r^
Mottes e glozas . .
418
Resumo do cyclo dos caboclos 419

f) Poesias Mnemnicas 421

1) A-. B. C.
A. B. C. do Bode dos Grossos
427
A. B. C. dia Pobreza ..." 432
A. B. C. da S^cca dos Dois Setes
439
A. B. C. do Nicandro
446
A. B. C. da Revota da Parahyba
453
A. B. C. dos Rifes . . .
462
Lista geral dos A. B. C. . .
463

2) P^los Signaes

Pelo Signal do Sertanejo . .


464
Pelo Signal dos Cangaceiros .
467
Pelo Signal da Beata 469
Lista dos Pelos-Signaes .
471

g) Airtlwlogi,
473

Classicismo sertanejo 475


Satyras e Motejos : .
483
IV

Paginas

o procurador do Imposto ...... 484


As moas solteiras ...... . 501
Debate do ministro Nova Seita com o
arub 506
A sogra enganando o diabo ..... 514

Oraes :

As 'oraes . . ....
Orao para inguas .... 524
Orao para dente arrancado 524
Orao para dr de dentes . 525
Orao para bicheiras . . . 525
Orao contra usagre . . . 526
Orao forte contra os espiritos . . 526
Orao para luxaes ...... 527
A cura das mordeduras de cobra . . 528
Uma orao egypcia nos sertes . . 530
Monstrengos, Prodigios e Abortos 536
A opinio publica no serto ... 552

FOLK-LORE REPENTISTA 559

Os desafios : . . . . . . 563
Desafio entre dois cegos . . . 566
Cantigas de Ferino ...... 567
Fragmento dum desafio .... 569
Martellos . ........ 570
Silva de cantigas soltas de idesafio . 575
Trovas de amor e de amigo . 583
.......
.

Trovas de amor 584


Trovas de amigo ...... 598
Emboladas . . ..... 607
Emboladas de Alexandrino Calufe 611
V
Paginas

111 HISTORIAS, FABULAS, LENDAS E SU-


PERSTIES. 613

1 Historias: 615

a) Historias de gente. 617

O avarento Joo de Velos ..... 619


A Vingana do menino . . j, . . . 620
O escrivo, o juiz e S. Pedro .... 623
O olho do vaqueiro ...... 624

b) Historias de milmaes, 629

A
O
gaita do kgado
antdoto do tejuass
.......
.....*.
631
633
O bem-te-vi Qamella 636
......
A trahyra e a isca . 937
Os bichos do Natal ...... . 638
O burro o Padre Eterno .....
e 639
Nossa Senhora Slh^ ......
e a 639

2 Fabulas: 641

As fabulas . ... 643

a) Fabulario . . ...... 645

A pretenao do sapo ...... 647


O gato e a ona .......' 647
A ona e o bode . ..... . 648
Os urubus e suas fabulas ...... 651
Fabulo do calangro e da lagartixa . . . 657
VI

Paginas

b) O Romance da Raposa 659

O Romance da Raposa sertamejo 661


A Raposa Sapo e o .... 664
A Raposa e o Cano .... 669
Casamento dum Calangro . . 674
Casamento do Rato com a Catita 686
Versos de bichos ..... 695
A ona e a raposa . . ^ . 698

3 Letidas 701

Os lobis-homens . . . 703
A lenda da Morte . . 708
O diabo : . . . . 710
O diabo e Hossa Senhora 711
O diabo e os meninos 713
Um pacto com o diabo 713
O vaqueiro mysterioso 714
Os cavallos do diabo . 714

4 Supersties 1\1

As experincias da chuva 719


Os procuradores d 'agua 724
Abuses
A Urina da Mulher
..... .
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725
728
A moa e o sapo . . 731
Os coriscos . .... 732
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