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Perodo Especial em Tempos de Paz:

Revoluo Cubana em debate


Emilly Couto Feitosa*

Resumo Introduo
O presente trabalho tem por objetivo O presente trabalho pretende, num
analisar o contexto poltico, econmico primeiro momento, reconstruir os passos
e social de Cuba entre o final da d- do nacionalismo popular em Nuestra Am-
cada de 1980 e meados da dcada de rica, com o intuito de compreendermos um
1990, quando o pas enfrentou uma de quadro histrico geral que serviu de lega-
suas mais graves crises desde o incio do para a Revoluo Cubana. O interesse
da revoluo: o Perodo Especial em aqui abordar o que houve de continuida-
Tempos de Paz. Com o estudo dessa
de em relao s experincias nacional-
crise e das reformas que se seguiram
estatistas que marcaram as dcadas de
a ela, procuro compreender o processo
1930, 40 e 50 e, sobretudo, apresentar os
de redefinio dos rumos do socialismo
cubano. No entanto, no acredito que elementos inovadores e de rupturas.
essas reformas representem uma cri- Aps esse panorama histrico e bre-
se de hegemonia do socialismo. Elas ve anlise comparativa, partiremos para
so, na verdade, uma pea fundamen- a segunda parte do trabalho: a anlise do
tal para se pensar na redefinio das processo nacionalista popular em Cuba.
relaes entre a sociedade poltica e a So considerados aqui elementos impor-
sociedade civil cubanas e na reconsti- tantes para compreendermos o processo
tuio de um bloco histrico revolucio- revolucionrio cubano: 1) a forte presena
nrio, em prol de uma rearticulao da dos Estados Unidos desde a independncia
hegemonia do socialismo cubano, sobre
novas bases.
*
Mestranda em Histria na Universidade Federal
Palavras-chave: Revoluo Cubana. Fluminense (UFF), com nfase na linha de pesquisa
Crise. Rearticulao da hegemonia. Poder & Sociedade, sob a orientao do professor
Doutor Daniel Aaro Reis Filho. E-mail: emilly_
[email protected]

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Histria: Debates e Tendncias v. 10, n. 1, jan./jun. 2010, p. 35-52
da ilha;1 2) a questo da soberania nacio- mais amplo, que remonta s tradies na-
nal cubana; 3) o perodo republicano; 4) a cional-estatistas que marcaram Nuestra
revoluo propriamente dita; 5) a Guerra Amrica nas dcadas de 1930, 40 e 50.
Fria; 6) o bloqueio econmico imposto pe- Desde os anos 30 e 40, as classes popula-
los Estados Unidos em 1962; 7) a entrada res da Amrica Latina e do Brasil cons-
do pas no Conselho Econmico de Ajuda troem tradies nacional-estatistas (no
Brasil, trabalhistas). Num amplo painel,
Mtua (Came) em 1972; 9) o fim do Came
desdobram-se por estas terras de Nuestra
em 1991; 10) o fim da Unio Sovitica. Amrica, de desigualdades e de misrias
A Revoluo Cubana, dessa forma, sem fim, e tambm de modernizao e de
deve ser entendida historicamente tanto progresso, de culturas originais. Getlio
como resultado de uma srie de fatores Vargas, Juan Pern, Lzaro Crdenas,
Fidel Castro, Joo Goulart, Leonel Bri-
anteriores a 1959 quanto como um proces-
zola, entre muitos e muitos outros, ape-
so que se renova e se estende at os dias sar de suas diferenas substantivas, que
atuais, exigindo uma nova compreenso correspondem tambm s diferenas dos
em razo das mudanas e dos novos desa- momentos histricos vivenciados, consti-
tuem uma galeria de lderes carismti-
fios enfrentados no contexto atual, sobre-
cos, exprimindo uma longa trajetria de
tudo a partir da dcada de 1990, com o fim lutas sociais e polticas, em grande medi-
da URSS. da marcadas pelos programas, mtodos e
A partir de ento, analisaremos, es- estilos de fazer poltica do nacional-esta-
pecificamente, o contexto poltico, econ- tismo. (AARO REIS, 2001, p. 375-376).

mico e social de Cuba entre o final da d- O que une essas experincias, to di-
cada de 1980 e meados da de 1990, quando ferentes ao longo de dcadas e presentes
o pas enfrentou uma de suas mais graves em vrios pases da Amrica Latina, , an-
crises desde a vitria da revoluo: o Pe- tes de qualquer coisa, a existncia de um
rodo Especial em Tempos de Paz. Com o passado histrico comum. Todos os pases
estudo dessa crise e das reformas que se latino-americanos, em maior ou menor
seguiram a ela procuro compreender o pro- grau, tiveram suas histrias marcadas por
cesso de redefinio dos rumos do processo uma colonizao exploratria monoculto-
revolucionrio cubano. ra e/ou extrativista fundamentalmente ,
baseada numa mo de obra escrava ou
Nacionalismo popular em compulsria e pela formao de uma clas-
se dominante dissociada dos interesses
Nuestra America populares e nacionais. Embora longe no
tempo, tal passado serviu para perpetuar
A Revoluo Cubana no uma ex-
um sistema poltico-econmico excludente
perincia isolada, mas expresso de um
que atravessou os regimes caudilhescos
movimento mais geral, conceituado por
do sculo XIX e chegou s repblicas do s-
Daniel Aaro Reis como nacionalista po-
culo XX, com a consagrao de uma classe
pular. Nesse sentido, pretendo inserir esse
oligrquica, articulada com os interesses
processo no mbito de um quadro histrico

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imperialistas, em detrimento das demais Nas palavras de Daniel Aaro Reis:
demandas internas, e com o aprofunda- Para alm de suas diversidades, [as ex-
mento das desigualdades sociais. perincias nacional-estatistas] esboa-
Segundo Anbal Quijano, a constru- ram um projeto ambicioso de construir
um desenvolvimento nacional autnomo
o dos Estados nacionais latino-ameri-
no contexto do capitalismo internacio-
canos segundo o molde eurocntrico no nal, baseado nos seguintes elementos
significou uma efetiva democratizao principais: um Estado fortalecido e in-
das relaes de poder, mas um processo tervencionista; um planejamento mais
de colonizao interna que comprometeu, ou menos centralizado; um movimento,
ou um partido nacional, congregando as
e compromete at os dias de hoje, a legi-
diferentes classes em torno de uma ide-
timidade da democracia e da institucio- ologia nacional e de lideranas carism-
nalidade liberal, de maneira geral, para ticas, baseadas em uma ntima associa-
grande parte dos ditos cidados, sobretudo o, no apenas imposta, mas tambm
concertada, entre Estado, patres e tra-
dos indgenas, negros e mestios. Assim, a
balhadores. Era a disseminada a crtica
implementao dos regimes democrticos aos princpios do capitalismo liberal e
representativos foi convertida em mais um liberdade irrestrita dos capitais. Em opo-
instrumento de dominao de classe, nos sio, defendia-se a lgica dos interesses
quais, na verdade, as classes populares nacionais e da justia social, que um Es-
tado intervencionista e regulador trata-
no tiveram, e no tm, participao efeti- ria de garantir. (2002, p. 13-14).
va na determinao dos rumos do Estado,
tampouco tiveram suas demandas satisfei- Tanto as experincias nacional-esta-
tas. tistas das dcadas 1930, 40 e 50, com Vargas
Portanto, apesar das especificidades no Brasil, Pern na Argentina, Crdenas
de cada movimento, podemos perceber ca- no Mxico ou Arbenz na Guatemala, quan-
ractersticas comuns a vrios pases ao sul to as nacionalista-populares, mais radicais,
do Rio Grande, tais como economias fr- que tiveram incio em 1952 com Estenssoro
geis e dependentes, sociedades fragmenta- na Bolvia, Alvarado no Peru, Torrijos no
das e o descrdito com relao institu- Panam, Ortega na Nicargua, Fidel Cas-
cionalidade liberal. Essas caractersticas tro em Cuba, Hugo Chvez na Venezuela
deram os subsdios para o surgimento de e Evo Morales na Bolvia, incorporaram,
diferentes movimentos que tiveram no cada um a sua maneira, um programa de
apelo soberania nacional, na preocupa- reformas que visava atender s demandas
o com reformas sociais, na centralidade histricas das classes subalternas, ora com
do Estado o que, muitas vezes, conduziu o intuito de manter a ordem estabelecida,
ao aparecimento de regimes autoritrios ora de lev-las s ltimas consequncias
e na presena de lideranas carismticas o num processo revolucionrio.2
seu ponto de encontro. Nesse sentido, as experincias nacio-
nalistas populares, na maioria das vezes,
so mais herdeiras da tradio nacional-

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estatista do que da tradio comunista la- (Alba)3 e, mais uma vez, de uma maior
tino-americana. Somente para citar alguns participao popular, que se reflete na am-
exemplos, tanto em Cuba quanto na Vene- plitude e radicalidade dos seus projetos
zuela Bolivariana os tradicionais partidos sociais.
de vanguarda o Partido Socialista Popu- Apesar de seu contedo mais radical,
lar/PSP cubano e o Partido Comunista ve- existe ainda, pelo menos, uma questo que
nezuelano/PCV nunca assumiram a dian- no foi superada pelo nacionalismo popu-
teira dos processos, ou seja, no apoiaram lar: a personificao de todo o processo em
os golpes frustrados de Moncada em 53 e o uma liderana carismtica. Tal personifi-
de 92 na Venezuela, e s se posicionaram cao produto de uma construo social,
a favor dos processos transformadores no ou seja, no se trata de uma imposio,
ltimo momento. Vale dizer tambm que mas de uma escolha dos prprios agentes
nunca foram grandes partidos de massa. O sociais envolvidos. Portanto, o principal
resgate do carter martiano ou bolivariano desafio para esses movimentos que confi-
ou at mesmo do socialismo do sculo XXI guram o nacionalismo popular recuperar
emblemtico no que diz respeito busca a legitimidade da institucionalidade demo-
de um caminho novo, com razes prprias e crtica de maneira a garantir a primazia do
antiesquemtico para se alcanar uma so- movimento para alm dos marcos de uma
ciedade mais justa e igualitria. liderana que o represente. fundamental
No entanto, diferentemente de al- garantir que haja realmente instncias de
gumas experincias clssicas do naciona- poder popular que permitam a alternncia
lismo estatista, mesmo quando se apro- no poder, uma maior pluralidade e a auto-
ximaram dos movimentos populares, tais nomia das organizaes de base com o ob-
como as de Vargas, Pern, Estenssoro ou jetivo de se evitar no apenas o burocratis-
Arbenz, Fidel Castro, no procura fazer mo, mas tambm a inrcia e a presena de
um governo que se coloque acima da luta velhas figuras nos mesmos cargos.
das classes; ao contrrio, posiciona-se cla-
ramente de um ponto de vista de classe,
Revoluo Cubana: do
rompendo com o capitalismo internacional
e com as burguesias nacionais e adotando nacionalismo popular
reformas que efetivamente rompem com o Revoluo Socialista
status quo.
O nacionalismo popular da Revolu- Breve panorama histrico
o Cubana tambm difere dos seus pares
clssicos em razo do seu carter inter- A Revoluo Cubana deve ser enten-
nacionalista que prev a construo de dida, historicamente, como o resultado de
uma alternativa ao capitalismo neoliberal uma srie de fatores anteriores a 1959.
para toda a Amrica Latina nos termos da Nesse sentido, importante considerar-
Alternativa Bolivariana para as Amricas mos a forte presena dos Estados Unidos

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desde a independncia da ilha;4 a questo educao foi tradicional e ele pretendia se-
da soberania nacional cubana e as fraudes guir uma carreira poltica tradicional, tan-
eleitorais, as quais foram corrompendo e to que em 1952 era candidato a deputado
desmoralizando as instituies legais; a pelo Partido Ortodoxo. Com o golpe, ele e
tradio de governos ditatoriais; o apro- outras lideranas planejaram o assalto aos
fundamento das desigualdades socioeco- quartis de Moncada e Bayamo, em 1953,
nmicas e as insurreies populares que o qual, apesar de ter fracassado em sua
marcaram todo o perodo republicano. ao tomar armas e dar incio a um pro-
Havia na sociedade um sentimento cesso de derrubada da ditadura de Batis-
de insatisfao e um anseio por mudanas ta , vertebraria, mais tarde, na formao
que se expressaram na Revoluo de 1933, do Movimento Revolucionrio 26 de Julho
contra a ditadura de Gerardo Machado, (MR26/7) e tornaria conhecida a figura de
quando um movimento radical de esquer- Fidel Castro.
da conseguiu assumir o poder durante Depois do assalto fracassado, Fidel,
quatro meses, tendo como principais lide- seu irmo e outros insurgentes foram
ranas Antonio Guiteras e Grau San Mar- condenados e presos; outros foram mor-
tn.5 Esse governo, denominado o governo tos pelas foras do regime. No crcere, ele
dos Cem Dias (setembro de 1933-janeiro complementou sua formao poltica radi-
de 1934), tomou medidas de carter social cal e escreveu A histria me absolver, na
e anti-imperialista, como, por exemplo, o qual lanou o Programa de Moncada.6 Foi
estabelecimento da jornada de trabalho anistiado e solto em menos de dois anos.
de 8 horas de trabalho e a interveno na Percebendo que os direitos e as liberda-
companhia cubana de eletricidade, contro- des democrticas no voltariam a Cuba
lada pelos Estados Unidos. enquanto Batista estivesse no poder e que
Desde o governo de Mendieta (1934- no havia mais futuro pela via poltico-
1939) at o fim do governo de Pro Socar- eleitoral, optou pela luta armada como
rs, as eleies transcorreram com nor- nica sada para a ditadura vivida no pas.
malidade. No entanto, em 1952 Fulgncio No Mxico, em 1955, Fidel conhe-
Batista deu um golpe de estado e tomou o ceu Ernesto Che Guevara, com quem iria
poder. aprender muito sobre a realidade latino-
Desta forma, fechou-se o caminho da po- americana e ampliar suas leituras. Ali
ltica institucional para inmeras lide- preparou a sua volta e a de outros guerri-
ranas que apostavam na legitimidade lheiros, incluindo Che, para Cuba, a bordo
do sistema como premissa para o enca-
do iate Granma, em 1956. Essa volta tinha
minhamento das mudanas socioecon-
micas de que o pas necessitava. Entre o mesmo objetivo de 1953, isto , derrubar
essas lideranas, destacava-se Fidel Cas- Batista pela via armada, tentando difun-
tro. (AYERBE, 2004, p. 26). dir na ilha uma insurreio popular.
Fidel era filho de um rico propriet- Os guerrilheiros desembarcaram no
rio de terras e se formou em direito. Sua lado oriental da ilha, na Sierra Maestra,

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onde agruparam e treinaram mais guer- diante da forte oposio dos EUA. Por isso,
rilheiros, principalmente camponeses da mesmo tendo, inicialmente, um amplo
regio. Na parte ocidental do pas tambm programa de reformas, que, teoricamente,
explodiram manifestaes contra o regi- ainda podem ser consideradas no mbito
me, a partir de movimentos como o Movi- da ordem burguesa como a reforma agr-
mento Nacional Revolucionrio (MNR), a ria, a reforma educacional e na sade ,
Federao dos Estudantes Universitrios esse programa foi se radicalizando at que
(FEU), o Diretrio Revolucionrio Estu- em 1961 foi declarado o carter socialista
dantil (DRE), a Organizao Autntica da revoluo. Foi colocado na ordem do dia
(AO), o Partido Ortodoxo e o Partido Socia- o rompimento com o imperialismo estadu-
lista Popular (PSP). nidense e com o prprio modo de produo
No entanto, todas essas foras insur- capitalista.
gentes ocidentais no processo de luta con- Em pases como Cuba, verificou-se uma
tra a ditadura foram destrudas ou muito evoluo de uma posio liberal democr-
enfraquecidas, o que fez com que o grupo tica radical, onde o nacionalismo tinha o
papel central para uma posio antiim-
da Sierra Maestra se tornasse o nico ca-
perialista, que adquiriu mais fora me-
paz de polarizar e liderar a luta contra o dida que foram se radicalizando as con-
regime de Batista. Assim, a Revoluo tradies internas e externas do perodo
Cubana triunfou em janeiro 1959, sob a he- revolucionrio. (MIZUKAMI; BUZETTO,
gemonia do grupo da Sierra Maestra e do 1998, p. 68).
MR26/7. Todavia, a diversidade das foras
que conformaram o processo revolucion- O modelo sovitico
rio e que apoiaram esse grupo representou
uma questo importante para o imediato A partir da dcada de 1960, os diri-
momento ps-revolucionrio, quando Fidel gentes cubanos entenderam a dificuldade
Castro falou sobre a necessidade de uma de se construir uma experincia autnoma,
unidade revolucionria.7 principalmente depois da invaso da Gua-
Podemos afirmar, ento, que a Revo- temala, da invaso da baa dos Porcos e do
luo Cubana comeou como um processo seu prprio isolamento poltico-econmico
de luta pela normalidade democrtica e no continente, em razo do bloqueio im-
pela soberania nacional, tanto no plano po- posto pelos Estados Unidos em 1962. Esse
ltico quanto no plano econmico. Foi uma entendimento, somado s suas limitaes
luta cujo eixo norteador foi o nacionalismo. econmicas, acabou por estreitar os laos
No entanto, com o acirramento das contra- com o mundo socialista e, especialmente,
dies internas e externas, o movimento com a URSS e desembocou no episdio da
foi se radicalizando e adotando posies Crise dos Msseis, em outubro deste ano.
claramente anti-imperialistas. Era impos- Era til para Cuba sua aproximao
svel para o pas a construo de um capi- com a URSS, como um apoio internacional
talismo nacional, soberano e independente tanto poltico e diplomtico quanto econ-

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mico. Por outro lado, para a URSS essa que se propunham a buscar uma via socia-
aproximao tambm era til, fosse no lista prpria, como a revista Pensamiento
mbito poltico-ideolgico (zona de influn- Crtico.9 Assim, do triunfo da revoluo at
cia), fosse no mbito estratgico (proximi- a dcada de 1970 a autonomia do campo
dade com EUA), uma vez que os soviticos intelectual e a pluralidade ideolgica dos
se sentiam ameaados pelos msseis esta- discursos nacionais foram reduzidas, as
dunidenses na Turquia. decises foram centralizadas nas mos do
Nesse primeiro momento, o Estado Estado, que, por sua vez, foi, em grande
cubano ainda no tinha abandonado o pro- medida, burocratizado, e a censura foi es-
jeto de diversificao econmica desen- tabelecida.
volvimento das indstrias, substituio de A entrada no Came, de fato, marcou
importaes e ampliao das exportaes uma forte dependncia do pas com relao
para alm dos produtos primrios. No en- aos pases do bloco socialista, mas preci-
tanto, o fracasso desse projeto e a entrada so considerar o contexto na qual se insere.
de Cuba em 1972 no Conselho Econmico Cuba sofria com o bloqueio econmico (que
de Ajuda Mtua o qual reunia o bloco dura at os dias de hoje) e o consequente
dos pases liderados pela ex-Unio Sovi- isolamento poltico-econmico no continen-
tica tiveram consequncias nos rumos te, com as vrias operaes de sabotagem
poltico-econmicos do pas. Por um lado, financiadas pelos EUA, a falta de recur-
trouxe ram crescimento econmico, com a sos internos e a estagnao da economia.
elevao do Produto Social Global,8 do n- Diante dessa conjuno de fatores, o Came
mero das indstrias e dos indicadores so- era a oportunidade para o pas superar al-
ciais; por outro, a autonomia da revoluo guns dos seus problemas e dar uma guina-
e a busca de um caminho prprio foram da no fortalecimento interno da revoluo.
parcialmente perdidas. Cuba iria sub- Como nos mostra a tabela a seguir,
meter-se a uma renovao imagem so- as relaes comerciais estabelecidas com
vitica. (GOTT, 2006, p. 266). Essa reno- os pases que integravam o Came, mesmo
vao tambm se manifestou nos campos considerando o campo da economia mun-
ideolgico e intelectual, pela publicao de dial, representavam 79,85% do total das
manuais soviticos para o ensino do mar- exportaes e 85,34% do total das impor-
xismo denominados por Che Guevara de taes cubanas.
Calhamaos Soviticos (LOWY) e pelo
fechamento de revistas e jornais crticos

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Fonte: Pieda B. apud Carcanholo e Nakatani.

De acordo com Jos Bell Lara, No entanto, essa projeo estvel da


As relaes de Cuba com o Conselho de economia significou, na prtica, uma forte
Ajuda Mtua Econmica eram um me- dependncia do pas, principalmente com
canismo de integrao que contemplava relao Unio Sovitica: em 1989, do to-
um sistema de preos, crditos, algumas
tal das exportaes cubanas 59,84% eram
produes complementares e determina-
dos compromissos com um alto grau de destinadas URSS, assim como, no mes-
segurana, que permitiam, a partir disso, mo ano, do total das importaes de bens
uma projeo estvel da economia. (1999, 67,84% vinham de l, isso sem contar com
p. 34). os demais pases do bloco sovitico, confor-
me a tabela em sequncia.

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Histria: Debates e Tendncias v. 10, n. 1, jan./jun. 2010, p. 35-52
Anos 1989 1990 1991 1992 1993 1994
importaes

Total 8.139.800,00 7.416.525,00 4.233.752,00 2.314.916,00 2.008.215,00 2.016.821,00


de bens

URRS 5.522.391,00 5.114.386,00 2.717.574,00 534.470,00 86.303,00 41.841,00


PERC 67,84% 68,96% 64,19% 23,09% 4,30% 2,07%

Anos 1989 1990 1991 1992 1993 1994


exportaes
de bens

Total 5.399.900,00 5.414.949,00 2.979.512,00 1.779.424,00 1.156.663,00 1.330.756,00


URRS 3.231.222,00 3.594.629,00 1.803.912,00 607.264,00 400.657,00 278.948,00
PERC 59,84% 66,38% 60,54% 34,13% 34,64% 20,96%
Fonte: Cepal, 2000: anexo estatstico.

Dessa forma, a partir do governo Gor- ao plano de sobrevivncia preparado por


bachev10 e, sobretudo, com o fim da URSS, Cuba durante a Guerra Fria para o caso
a relao de dependncia que Cuba man- de estourar um conflito entre a Unio So-
tinha com este pas repercutiu de manei- vitica e os Estados Unidos. Num cenrio
ra profunda na sustentao do socialismo desses, o pas, possivelmente, estaria sob
fortemente atrelado ao modelo sovitico. O bloqueio completo, de modo que foi criada
fim do Came emblemtico nesse sentido. uma ttica de contingncia para assegu-
No havia mais com quem contar. Era pre- rar uma resposta coordenada escassez
ciso encontrar um caminho novo, indepen- de alimentos e combustveis. A guerra no
dente. Contudo, no podemos esquecer que veio, mas quando o bloco sovitico entrou
se trata de uma ilha, com poucos recursos em colapso, em 1991, Cuba ficou sem seu
e sob forte presso de uma das maiores po- principal parceiro comercial e protetor eco-
tncias mundiais, os EUA. nmico. Na prtica, era uma situao mui-
Aps o fim da Guerra Fria, o bloqueio to similar quela que os cubanos haviam
dos Estados Unidos se amplia, e Cuba vislumbrado, mas em tempo de paz.
j no dispe das vantagens oferecidas Com o fim do Came e da Unio So-
anteriormente pelo CAME e do respaldo
vitica, o pas mergulhou numa crise sem
poltico da ex-Unio Sovitica; inicia-se
o Perodo Especial em Tempos de Paz, precedentes e viu-se diante de uma nova e
denominao do governo cubano para complexa realidade. O colapso do socialis-
o novo contexto enfrentado pelo pas, mo real ocasionou a desestruturao da ca-
considerado o mais difcil desde 1959. deia produtiva cubana, extremamente de-
(AYERBE, 2004, p. 83).
pendente, como j mostrado, das relaes
com o ex-bloco socialista. Soma-se a isso o
O Perodo Especial em acirramento do bloqueio estadunidense
ilha com a aprovao da Lei Torricelli e da
Tempos de Paz
Lei Helms-Burton.11
A crise A economia cubana parou. O pas j
no podia mais contar com os subsdios
O termo Perodo Especial em Tem- nem com as condies favorveis de com-
pos de Paz deriva da expresso Perodo pra e venda estabelecidas com o antigo
Especial em Tempo de Guerra, nome dado bloco socialista, sobretudo com a URSS.

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Histria: Debates e Tendncias v. 10, n. 1, jan./jun. 2010, p. 35-52
A falta do petrleo foi um dos primeiros para apenas US$ 757 milhes em 1993; o
detonadores da crise, j que sem este no PIB diminuiu 2,9% em 1990, 10% em 1991,
havia combustvel para mover o campo, 11,6% em 1992 e 14,9% em 1993. Alm dis-
as indstrias, os veculos, ou mesmo para so, os financiamentos externos vindos da
a gerao de energia eltrica. Os apages ex-URSS caram de US$ 3 bilhes em 1989
tornaram-se comuns e duravam at oito para zero em 1992.
horas. Faltavam peas de reposio para Com o objetivo de superar essa crise,
a maquinaria importada da URSS e dla- o governo implementou um conjunto de
res para conseguir comprar equipamentos, reformas econmicas: a abolio do mono-
alimentos, combustveis e matrias-pri- plio do Estado sobre o comrcio exterior;
mas no mercado internacional. A econo- a permisso da participao de capitais
mia subterrnea ou ilegal e o subemprego estrangeiros na economia do pas, a legali-
se expandiram. O produto interno bruto do zao da circulao do dlar no mercado in-
pas, que em 1989 era de 20.795 milhes terno, o incentivo ao turismo, a introduo
de pesos, chegou a 16.382 milhes de pesos do emprego autnomo tributado, o esta-
em 1992. (CEPAL, 2000, anexo estatsti- belecimento de cooperativas agrcolas em
co). Alm disso, como 63% da importao substituio s fazendas estatais, a despe-
de alimentos vinham dos pases socialis- nalizao da posse de divisas, entre outras.
tas, o consumo calrico da populao dimi- Essas reformas resultaram na emergncia
nuiu, causando um quadro generalizado de uma economia dual, a qual se traduz
de anemia. (LARA, 2001, p. 35). num aprofundamento da estratificao
No livro Biografia a duas vozes, de social e na abertura da economia cuba-
Igncio Ramonet, Fidel Castro expressa o na para as relaes monetrio-mercantis,
significado dessa crise para o pas: maior participao do mercado na econo-
mia interna e maior abertura externa.
[...] perdemos todos os mercados do a-
car e deixamos de receber mantimentos, Embora a crise tenha exigido pro-
combustvel e at a madeira para fazer fundas mudanas econmicas e tenha
para os caixes para os nossos mortos. Fi- tido impacto sobre as condies de vida da
camos sem combustvel de um dia para o populao, o governo procurou manter o
outro, sem matrias-primas, sem alimen-
tos, sem higiene, sem nada [...]. Nossos
princpio distributivo socialista. (CAR-
mercados e fontes de abastecimento fun- CANHOLO; NAKATANI). Nesse sentido,
damentais desapareceram abruptamen- destaco aqui a poltica social de manu-
te. O consumo de calorias e de protenas teno dos empregos e salrios e tambm
se reduziu quase a metade. (RAMONET,
o direcionamento social dos gastos. Como
2006, p. 332).
nos mostra a tabela a seguir, apesar das
Vale citar ainda alguns nmeros so- condies adversas enfrentadas pelo pas,
bre a crise apresentados por Richard Gott: os gastos sociais ainda representavam a
a capacidade de importao do pas caiu maior parcela do oramento pblico, fato,
70% de 1989 a 1992; o capital gerado pela alis, que diferencia Cuba dos demais pa-
venda do acar caiu de US$ 4,3 bilhes ses capitalistas, cujos gastos sociais so
em 1990 para US$ 1,2 bilhes em 1992 e enxugados em momentos de crise.

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Fonte: Panorama Econmico y Social, Cuba, 2001.

No entanto, essa poltica de manu- sociedade esto em processo de reajuste.


teno de empregos e salrios, associada (ACANDA, 2006, p. 220).
a uma situao de queda violenta da pro- Ao mesmo tempo em que o governo
dutividade, gerou um aumento da liquidez cubano precisava garantir o apoio da po-
monetria (excesso de moeda em circula- pulao s reformas para superar a crise,
o) que s no desembocou numa hiperin- esta tambm pressionava pela ampliao
flao em razo do controle dos preos e da da participao acerca dos novos rumos
prpria distribuio de bens e alimentos, do pas. Em razo dessa relao dialti-
como no sistema de racionamento das li- ca garantia de apoio/ demanda popular, a
bretas, criado em maro de 1962.12 prpria posio do governo cubano mudou,
Para terminar, importante ressal- passando a difundir as novas ideias da re-
tar que, voluo sobre a democracia. Houve uma
apesar da profundidade da crise, das srie sem precedentes de consultas po-
presses norte-americanas, do avano da pulao, como os chamados parlamentos
globalizao e das polticas neoliberais, de trabalhadores, institudos por todo o
que levaram quase toda a Amrica Lati-
na a submeter-se ao imperialismo ame-
pas para discutir os problemas e sugerir
ricano, Cuba procurou sua reinsero no solues para o pas. A eles se seguiu, em
sistema mundial resguardando sua sobe- 1991, um Congresso do Partido Comunis-
rania e levando adiante a luta pelo socia- ta, no qual decises-chaves foram tomadas
lismo. (CARCANHOLO; NAKATANI).
para delinear a estratgia do governo ao
longo da dcada de 1990. Nele, pela pri-
Os novos rumos do processo meira vez, permitiu-se que pessoas de di-
revolucionrio cubano ferentes convices religiosas figurassem
abertamente nos quadros do partido. Alm
Pensar em Cuba nesse contexto de
disso, a Constituio de 1976 foi modifica-
fim da Unio Sovitica e do Came signi-
da em 1992 e o sistema eleitoral cubano
fica tambm pensar numa redefinio dos
sofreu alteraes.13
rumos do processo revolucionrio cubano
Cuba, ento, nesse incio da dca-
e numa sociedade em que os mecanismos
da de 1990, passou pela mais grave crise
de interao entre o Estado e o resto da

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Histria: Debates e Tendncias v. 10, n. 1, jan./jun. 2010, p. 35-52
desde que a revoluo triunfara em 1959. presentao ainda so pouco conhecidos no
Essa crise exigiu medidas, como demons- Brasil, mesmo no campo da esquerda.
trei, de reestruturao externa e interna, As Assembleias do Poder Popular
as quais, ao mesmo tempo em que aju- so, nesse sentido, so um dos temas sus-
daram o pas a se reerguer, refletiram-se citados mais importantes para o desenvol-
num impacto social, com o aumento da de- vimento deste trabalho monogrfico, haja
sigualdade social no pas e o surgimento vista a possibilidade de representarem
de novos desafios a serem superados, como brechas democrticas de poder popular
a questo da dolarizao da economia 14 e que rompam com a estatizao e a buro-
das contradies geradas pelo turismo. cratizao. So instncias que vm cons-
O Perodo Especial em Tempos de truindo novas formas de participao po-
Paz inaugurou uma nova fase para a so- pular em Cuba, para alm das praticadas
ciedade cubana, em que as certezas foram (ou no) na democracia liberal e na ditadu-
abaladas e os consensos foram profun- ra revolucionria. Afinal, como nos lembra
damente questionados. O debate acerca Ellen Wood, democracia significa o que
dos novos rumos do pas veio tona sob diz o seu nome: o governo pelo povo ou pelo
presso da sociedade civil, a qual pareceu poder do povo (2003, p. 7), onde no haja
chamar novamente para si as decises que separao entre a condio cvica e a po-
haviam ficado ao longo de anos centraliza- sio de classe, ou seja, onde a igualdade
das nas mos do Estado. Resta-nos, agora, civil coexista com a igualdade social. Nas
investigar para que direo esses novos palavras da prpria autora:
rumos apontam: para o fim do socialismo Na democracia capitalista, a separao
ou para o seu fortalecimento, ainda que entre a condio cvica e a posio de
sobre novas bases? Alm disso, retomando classe opera nas duas direes: a posio
socioeconmica no determina o direito
o Acanda, se os mecanismos de interao
cidadania e isso o democrtico na de-
entre o Estado e o resto da sociedade esto mocracia capitalista , mas, como o poder
em processo de reajuste, qual a margem do capitalista de apropriar-se do trabalho
de autonomia dessa sociedade civil? Qual excedente dos trabalhadores no depen-
a importncia das Assembleias de Poder de de condio jurdica ou civil privile-
giada, a igualdade civil no afeta direta-
Popular nesse contexto?
mente nem modifica significativamente
O novo sistema poltico aprovado em a igualdade de classe e isso que limita
1992 e as Assembleias do Poder Popular a democracia no capitalismo. As relaes
significaram uma descentralizao admi- de classe entre capital e trabalho podem
sobreviver igualdade jurdica e ao su-
nistrativa das funes estatais e, assim,
frgio universal. Neste sentido, a igual-
tambm uma maior participao da popu- dade poltica na democracia capitalista
lao na vida poltica do pas. No entanto, no somente coexiste com a desigualdade
o funcionamento desse sistema, as eleies socioeconmica, mas a deixa fundamen-
e, principalmente, seus mecanismos de re- talmente intacta. (WOOD, 2003, p. 184).

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Concluses preliminares: ou seja, na qual sua existncia e evoluo
fim do socialismo? no estejam concentradas unicamente nos
dispositivos do Estado. Trata-se de com-
No se acredita aqui que os novos preend-la como uma experincia vivida e
rumos do processo revolucionrio cubano refletida por seres humanos, que no so
representem uma crise de hegemonia do apenas massa de manobra de um Estado
socialismo propriamente dito. So, na ver- personificado em uma liderana carism-
dade, uma pea fundamental para se pen- tica, mas, sim, agentes do seu prprio des-
sar na redefinio das relaes entre a so- tino.
ciedade poltica e a sociedade civil cubanas
e na reconstituio de um bloco histrico
Concluso
revolucionrio, em prol de uma rearticu-
lao da hegemonia do socialismo cubano A Revoluo Cubana marcou a hist-
sobre novas bases. Essas bases surgiram ria da Amrica Latina no sculo XX e ainda
a partir das novas demandas originrias hoje permanece como um referencial, em
do contexto de crise das dcadas de 1980 e seus erros e acertos, para os movimentos
1990, que abordamos anteriormente. sociais do sculo XXI, como para o prprio
Em Cuba, o que se procura uma Hugo Chvez, o qual sempre reivindica
alternativa que, por um lado, no recaia em seus discursos o processo revolucion-
numa sada neoliberal, de esvaziamento rio cubano, ou Evo Morales. Nesse senti-
do poder do Estado e de autonomia do mer- do, Cuba precisa ser mais profundamente
cado, nem, por outro, na de um socialismo estudada, pois realmente pode contribuir
estadoltrico no qual o Estado se apresen- para a construo de um novo projeto so-
ta como nico espao no qual qualquer cialista no sculo XXI.
relao social [pode] ser aceita. (ACAN- Considerando um quadro latino-ame-
DA, 2006, p. 235). Foi aberta em Cuba a ricano mais amplo, as reformas que vm
possibilidade de a sociedade civil ser am- sendo engendradas em Nuestra Amrica,
pliada de forma a ocupar os espaos antes sobretudo no que concerne Venezuela,
exclusivos do governo. de fundamental com Huho Chvez, ou mesmo Bolvia,
importncia que essa assuma o papel pro- com Evo Morales, ainda que no possam
tagnico no debate ideolgico, para que, ser consideradas como instrumentos ade-
assim, possa desempenhar um papel ao quados para a construo do socialismo, ou
mesmo tempo crtico e afirmativo no que de qualquer outro sistema no capitalista,
diz respeito sociedade poltica. (ACAN- podem, dentro de certos limites, avanar
DA, 2006, p. 236). nessa direo, levando-se em considerao
Enfim, por trs dessa redefinio dos que quem dita seus rumos so os movi-
rumos do socialismo cubano pode estar mentos sociais nos quais esses processos
uma concepo que compreende o socialis- se sustentam. Estou, assim, de acordo com
mo numa perspectiva mais ampla e plural, Atlio Boron quando sustenta que no ne-

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cessariamente existe uma descontinuida- no Equador, os piqueteiros na Argentina
de entre reforma e revoluo; ao contrrio: ou os zapatistas de Chiapas.
Estas (as revolues) no nascem como Nesse sentido, Fidel Castro, Hugo
tais, mas vo se definindo na medida em Chvez e Evo Morales so hoje apenas fi-
que a luta de classes desatada pela di- guras representativas de movimentos am-
nmica dos processos de transformao
plos e que se constituem como a ponta de
radicaliza posies, supera velhos equi-
lbrios e redefine novos horizontes para um iceberg.
as iniciativas das foras contestadoras.
(BORON). Special Period in Times of Peace:
A proposta neoliberal e o aparato de- Cuban Revolution in debate
mocrtico burgus esgotam-se em muitos
sentidos nessa regio. Por meio de uma Abstract
anlise das ltimas eleies na Amri-
The purpose of this study is to analyse
ca Latina, podemos perceber um avano
the social, political and economical con-
expressivo de foras polticas autointitu- text lived by the cubans in the period
ladas de centro-esquerda ou progres- between the end of the eighties and the
sistas. Ainda que, em muitos casos, uma middle of the nineties, when the coun-
vez eleitos, como Lula, Vasquez e Kirch- try faced one of the most serious crisis
ner, tenham se mantido moderados em since the beginning of the revolution:
seus programas, suas candidaturas foram the Special Period in Times of Peace.
construdas em torno de uma alternativa Through the study of that crisis and
ao modelo que imperou na dcada de 1990 the reforms which came after it, I try
no continente, ou ento, nos casos em que, to understand the process which led
mesmo no sendo eleitos, conseguiram um the cuban socialism to a new tendency.
However, I do not believe that those
amplo apoio popular, como no caso do Peru
reforms represent a hegemony crisis
e do Mxico. (MARINGONI). S o fato de
of socialism. Actually, they are essen-
16 governos eleitos terem sido derrubados
tial to help us think about the new
ou obrigados a renunciar na Amrica Lati- tendency of the relations between the
na nos ltimos 18 anos, no por golpes mi- political and the civilian cuban society,
litares, mas sim, por presses populares, as well as about the reconstitution of
d conta das dificuldades da agenda neoli- a revolutionary historical bloc for the
beral entre ns.16 medida que a misria, rearticulation of the cuban socialism
a corrupo e a explorao vo assumindo hegemony, under new bases.
gradativamente maiores propores, so
abertas margens para o surgimento ou Key words: Cuban Revolution. Crisis.
expanso de protestos e movimentos popu- Hegemony rearticulation.
lares que contestam essa hegemonia, dos
quais so exemplos o movimento indgena

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e nacionalizao de empresas que prestam ser-
Notas vios pblicos. O programa tambm denunciava
as condies de pobreza e subdesenvolvimento
1
Essa se expressa na interveno armada sobre de um pas desigual.
o pas, na ocupao e, consequentemente, na 7
importante chamar ateno para essa diver-
Emenda Platt, chegando at o seu apoio ao gol- sidade, uma vez que o grupo da Sierra Maestra
pe de estado de 1952. foi capaz de conseguir o apoio no apenas de se-
2
importante ressaltar que o governo de Salva- tores populares rurais e urbanos, mas tambm
dor Allende no Chile (1970-1973) no foi citado de setores da elite, principalmente de Havana,
porque, desde o incio, o programa de governo da para derrubar Batista do poder. No entanto,
Unidade Popular frente poltica e social que o com o estabelecimento do governo revolucion-
elegeu previa reformas de carter socialista. rio, essa coalizo se tornou impossvel em razo
3
A Alba um projeto de integrao do continen- das divergncias entre os setores que queriam
te latino-americano alternativo Alca (Acordo aprofundar e radicalizar o processo e os setores
de Livre Comrcio para as Amricas). Sua cria- mais moderados.
o teve incio em 1994, com a convocao do 8
Indicador que mede o produto bruto de acordo
Congresso Anctnico por Hugo Chvez. Deste com os parmetros de uma economia central-
congresso e nos seguintes participaram movi- mente planejada.
mentos e organizaes de cerca de 15 pases e 9
Dirigida pelo lsofo cubano Fernando Marti-
discutiram-se as estratgias de construo de nez, a revista Pensamiento Crtico foi criada em
um projeto que tem por objetivo uma integra- fevereiro de 1967 em Havana e era alentada
o que [sirva] como uma forma de resistncia pela busca de um socialismo autnomo, distan-
e, ao mesmo tempo, de construo de uma alter- te de Moscou e de Pequim [...] tentou oferecer
nativa que [garanta] o m da misria e da explo- Revoluo um discurso heterodoxo, em que
rao dos povos do nosso continente. Dispon- conua a tradio nacionalista e latino-ame-
vel em: In: http://www.agenciacartamaior.com. ricanista do pensamento cubano (Varela, Mar-
br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_ t, Varona, Guerra, Ortiz...) com o marxismo e
id=1663. o liberalismo ocidentais (ROJAS, acesso em
4
Essa se expressa na interveno armada sobre 27/7/2008). Em junho de 1971 foi fechada pelo
o pas, na ocupao e, consequentemente, na governo cubano.
Emenda Platt, chegando at o seu apoio ao gol- 10
A plataforma poltica do governo de Gorbachev
pe de estado de 1952. focava a defesa de uma abertura poltica glas-
5
A Revoluo de 1933 teve trs fases distintas: a nost e de uma reestruturao econmica Pe-
primeira de direita, sob a presidncia de Carlos restroika. Na prtica, essas reformas signica-
Manuel de Cspedes e que durou cerca de um vam um questionamento ao monoplio poltico
ms; a segunda, j citada, radical de esquerda, do partido, censura e tambm ao planejamento
com o estabelecimento do governo dos Cem Dias centralizado da economia, ou seja, um questio-
sob a presidncia de Grau San Martn; a tercei- namento ao modelo socialista adotado at en-
ra, marcada pela contrarrevoluo, a qual foi de to pela Unio Sovitica e, posteriormente, por
1934 at 1939, com o coronel Mendieta no po- Cuba.
der. 11
Na dcada de 90 os Estados Unidos recrudesce-
6
O Programa de Moncada propunha um conjun- ram o bloqueio contra Cuba com a aprovao da
to de cinco leis revolucionrias: a primeira reco- Lei Torricelli em 1992 e da Lei Helms-Burton
nhecia a Constituio de 1940 como legtima; a em 1996. A primeira ampliou as proibies im-
segunda atribua terras a camponeses; a tercei- postas s empresas dos Estados Unidos desde a
ra dava o direito aos trabalhadores assalariados dcada de 60 para as suas subsidirias no exte-
de participarem em 30% dos lucros das grandes rior, ou seja, estas tambm foram proibidas de
empresas industriais, extrativas e comerciais; a comercializar com Cuba. Alm disso, proibiu
quarta concedia a todos os colonos 55% de par- que navios estrangeiros que tivessem entra-
ticipao nos lucros da cana-de-acar; a quinta do em portos cubanos entrassem nos Estados
conscava todos os bens obtidos a partir da mal- Unidos por seis meses, fosse para carregar ou
versao dos recursos pblicos, atingindo todos descarregar produtos. J a Lei Helms-Burton
os governos. A partir dessas leis passar-se-ia a autorizou que cidados dos Estados Unidos ex-
uma segunda etapa de medidas, vinculadas re- propriados pela revoluo processassem em tri-
forma agrria, reforma do sistema educacional bunais nacionais qualquer empresa estrangeira

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que zesse negcios com suas antigas proprie- ressaltar que a histria tem um teor de crtica ao
dades. processo revolucionrio, em defesa da revoluo.
12
De acordo com Pieda Bauelos, a origem da 16
O primeiro foi Ral Alfonsin, em 1989, na Ar-
libreta deve ser buscada mais nas condies dif- gentina. A ele se seguiram vrios outros, como
ceis pelas quais passava a revoluo cubana que Collor de Mello no Brasil; Jamil Mahuad, Ab-
obrigou a uma distribuio de valores de uso dala Bucaram e Lcio Gutirrez, no Equador;
de acordo com a escassez do que na premissa Fujimori, no Peru; Alfredo Stroessner, no Para-
comunista da distribuio de valores de uso se- guai; Fernando de La Rua, novamente na Ar-
gundo as necessidades (apud CARCANHOLO; gentina; Gonzalo de Lozada e Carlos Mesa, na
NAKATANI, acesso em 23/7/2008). Bolvia.
13
A partir da Constituio de 1992, o povo pde
votar diretamente nos deputados das trs ins-
tncias municipal, provincial e nacional. Em Referncias bibliogrficas
nvel municipal, por exemplo, so realizadas
reunies e assembleias nas quais a populao
apresenta suas crticas, insatisfaes e suges- AARO REIS, Daniel. Ditadura militar, es-
tes aos deputados municipais ou delegados. querdas e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro:
Ningum melhor do que os prprios moradores
Jorge Zahar, 2002.
de um determinado local para saber das suas ne-
cessidades. Alm disso, como essas Assembleias _______. Compreender o passado para pensar
(municipais e provinciais) tm certa autonomia o futuro: experincias e perspectivas do so-
na resoluo das questes locais, ajudam a des-
cialismo (scs. XX/XXI). S/L: S/E, 2007.
burocratizar o Estado, agilizando a soluo de
problemas que no precisam ser levados ins- _______. Socialismo ou democracia: desafios
tncia nacional. Depois de eleitos, os deputa- para o sculo XXI. texto mimeografado.
dos da Assembleia Nacional do Poder Popular
elegem o Conselho de Estado, que, por sua vez, ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hege-
elege o chefe de estado, o qual no pode dissol- monia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
ver a Assembleia Nacional nem vetar uma lei j apndice, p. 215-236.
aprovada por esta.
14
Essa, alis, j foi superada, sendo substituda ALI, Tariq. Piratas Del Caribe El Eje de la
pelo sistema de dupla moeda o Peso Nacional Esperanza. Buenos Aires: Luxemburg, 2007.
Cubano e o Peso Conversvel (CUC) , em vigor
at hoje. AYERBE, Luis Fernando. A Revoluo Cuba-
15
Nesse caso, a literatura e o cinema so impor- na. So Paulo: Editora Unesp, 2004.
tantes exemplos, na medida em que produes
artsticas crticas revoluo no apenas tm BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. De Mart a
sido permitidas como tambm estimuladas pelo Fidel: a Revoluo Cubana e a Amrica La-
governo. So emblemticos nesse sentido o con- tina. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
to O lobo, o bosque e o homem novo, de Senel 1998.
Paz, que deu origem ao famoso lme Morango
e chocolate, dirigido por Toms Gutierrez Alea BARO, Carlos Alberto. O processo de reti-
(recentemente falecido e considerado um dos ficao de erros e tendncias negativas em
maiores cineastas cubanos), e Juan Carlos Ta- Cuba: 1986-1991. Dissertao (Mestrado em
bio. Trata-se da histria da amizade entre Da-
Histria Social) - Universidade Federal Flu-
vid, um jovem militante do Partido Comunista
Cubano, e Diego, um homossexual. Enquanto minense, Rio de Janeiro, 2000.
David acredita na essncia da Revoluo Cuba- BARATA, Giorgio. Povos, naes, massas no
na e nas suas grandes realizaes, Diego luta
horizonte internacional. In: As rosas e os ca-
contra o preconceito a que so submetidos os
homossexuais em Cuba e exige o direito da li- dernos: o pensamento dialgico de Antnio
berdade de expresso num governo autoritrio, Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
contestando, assim, a viso unilateral da re-
voluo que o amigo possui. Mas importante

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