Carta Aos Judeus - Rabino Nilton Bonder+linkguia PDF
Carta Aos Judeus - Rabino Nilton Bonder+linkguia PDF
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Escrevo esta carta com um senso de responsabilidade. Tenho perto de trs dcadas de
servio comunidade judaica brasileira e acredito ser o rabino mais snior em tempo de
servio ainda na ativa. Sou sem dvida o mais snior dos rabinos natos brasileiros ininterruptamente nesta funo.
Escrevo porque tempos muito desafiadores se apresentam identidade judaica. No so
questes novas, mas como a um contabilista de patrimnio cabe alertar para o dilapidar
de recursos, venho inquietar sobre um importante acervo ameaado. O senso de urgncia
no tem a ver com tomada de decises especficas, mas com o desenvolvimento de uma
nova conscincia que ajude nas escolhas e na adoo de novos padres que demandam
nosso tempo.
Gnese
O Judasmo no uma religio.
O patrimnio coletivo dos judeus no uma religio.
Nas origens o Judasmo no apresenta ideias de salvao ou iluminao pessoal. Abrao
um visionrio de um novo senso coletivo para suas sementes numerosas e que parte em
busca de uma nova terra. Essa terra no tem caractersticas de um territrio ou de um estado, visto que no h descrio ou demarcao do mesmo apenas uma terra que ser
mostrada. O significado maior deste cho uma nova plataforma, uma nova forma
de vnculo. Neste novo solo a solidariedade e a integridade produziria uma relao indita
entre indivduos distanciando-os do fratricdio (Caim/ Abel), do egotismo (Babel e a lngua
particular) e da crueldade (gerao de No). Deus no protagonista em Gnese, no no
sentido de uma religio fundada. A temtica no teolgica, mas em torno da capacidade
humana de se organizar diante das tenses da famlia e da tribo. O norte no a conquista
dessa terra, mas de como crescer em direo a ela. A identidade se faz por vnculo e no
por crena. Surge o pilar principal do Judasmo, Klal Israel, o coletivo de Israel.
O senso grupal que at hoje melhor define os judeus a contribuio de Abrao. Hospitaleiro ao outro, sua casa se faz mais do que a morada de um nico ncleo familiar,
uma tenda aberta capaz de sustentar vnculos to fortes no ambiente social como se
experimenta no ambiente da parentela. Inventa-se o meta-pai, o patriarca e a meta-me,
a matriarca. Mais ainda, se inventa uma herana que estranha a Esa o desejo da bno. H patrimnio a ser herdado, mas no da ordem dos haveres, do peclio, e sim dos
viveres, de poder existir olhando o mundo de cima dos ombros dos que existiram antes.
Essa a bno que no se quer deixar; essa a tradio. Tradio vnculo horizontal
com contemporneos e vertical com o futuro, com os transtemporneos. Na verdade a
tradio o vnculo de parentela em ambos os planos do tempo horizontal e vertical
da a famlia de Abrao ser to profusa como as estrelas do cu. A utopia de Abrao
expande exponencialmente o vnculo parental, possibilitando vnculos que inclussem a
todos todos os de tradio.
Ser de tradio no gentico. Comea gentico no mbito da famlia, mas tem a inteno
de se fazer uma gentica inclusiva de todos que aderem tradio. Por isso os judeus
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falam hoje de algo muito estranho que o senso gentico aplicado a um grupo. Mas no
representam um grupo tnico no sentido gentico, so diversos e percebem uma interseo gentica pela qualidade do vnculo que a tradio estabeleceu. Klal Israel, o senso
coletivo, ultrapassou a barreira fsica do sangue e o fez sangue de alma.
Ser judeu ser parte deste coletivo. S judeu (no quem tem me judia!), mas quem
tem esse vnculo coletivo. Filho de me judia sem esse senso coletivo, no ser judeu em
duas geraes; quem no filho de me judia e que por qualquer razo tenha esse senso
coletivo, ser de tradio e seus filhos tm grande chance de permanecerem de tradio.
A tradio de Abrao vnculo e no dogma. Nem sequer o Deus nico postulado por
Abrao. Sua tradio no teolgica, mas humana. Trata-se da f no Homem nico, unido por vnculos inditos que compem a nova terra apontada.
Que se guarde bem esse conceito: o judasmo medido por este compromisso com Klal
Israel (o coletivo de Israel). O pacto de Abrao no teolgico ou ontolgico e no estabelece doutrina. O pacto o compromisso com algo futuro que no espao uma terra que
ser mostrada e no tempo uma multido de descendncia. O compromisso com cultura
(cho) e filhos (futuro).
No por coincidncia que os judeus se dividem religiosamente em Ortodoxos (chacham-envolvidos); Conservadores (tam superficialmente envolvidos); Reformistas (Shel-iodea lishol -- distantes) e Seculares (rashs* assimilados). Cada uma dessas faces,
igualmente comprometidas com o coletivo, compartilha da mesma identidade, outorgando
seja a ortodoxo ou a ateu a mesma autenticidade como judeu. Onde melhor se encaixe a
identidade, desde l que cada grupo professa seu compromisso e sua incluso.
A devoo ou a observncia a aspectos religiosos no determinante do pertencimento,
mas to somente o respeito ao coletivo e o acolhimento ao vnculo de responsabilidade um
com o outro (arevim z-la-z).
Outra tentativa bastante recente de redefinir o Judasmo como uma religio, vem das
adaptaes da Cabala ao esoterismo moderno e que advogam uma tradio de iluminao e convencimento e, por vezes, de salvao. Assemelham-se em forma aos Judeus
por Jesus e outras seitas, que visam substituir o vnculo comunal pela convico e pelo
proselitismo. A Cabala e o seu estudo so parte da tradio judaica, mas a Cabala pregada
popularmente uma nova forma de religio externa ao Judasmo.
Um aspirante ao judasmo no um proslito, um adepto a ideias, mas algum que ratifica
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uma aliana com o coletivo. Da no poder-se ser judeu sozinho da forma que se pode
pertencer a uma religio moderna individualmente. Coletivo, no entanto, no significa viver imerso em comunidade, mas sentir-se responsvel pelo coletivo. Para alguns o coletivo
passa pela vida comunitria, mas o coletivo diverso, ou seja, comporta distintas formas
de coeso ao grupo. H pessoas que experimentam o coletivo como uma responsabilidade
pela cultura coletiva; ou pela organizao social e poltica do coletivo; ou pela arte ou por
detalhes e costumes coletivos.
Exdo
A sada do Judasmo se d pela perda dessa noo de Klal Israel e no porque a me no
judia. E muitas pessoas num mundo individualista, que sublinha o ser e empalidece o
grupo, no se do conta que seu legado e sua legitimidade em fazer parte esta em afetarse com as questes coletivas.
O Egito bblico no um pas e tambm no um inimigo natural, mas um lugar estreito
por onde a tradio dos pais substituda por uma escravido a normas de um coletivo
que no verdadeiramente um coletivo, mas a prpria dissoluo da identidade. O Egito
no ameaa a tradio por uma nova tradio, at porque muitos dos saberes do Egito
foram introduzidos na cultura e costumes de Israel; nem ameaa porque assalta o indivduo com as ms condies do jugo; o tema do xodo o risco de dissoluo do vnculo
de Klal Israel.
No por acaso que na sada do Egito vrios no judeus (erev rav) acompanham os judeus como parte do coletivo, porque j estava estabelecida a norma de que o vnculo o
objeto determinante da identidade.
O Egito esse lugar genrico, universal, sem tradio. A escravido o oposto do que sonhara Abrao porque divide os seres humanos em castas. A casta uma estirpe absoluta:
ou se faz parte de uma famlia, de uma linhagem ou no existe possibilidade de vnculo e
identidade. O problema do Egito no so seus muitos deuses, mas seus muitos homens.
Diferente do Humano nico que reverencia Abro, no Egito genrico-universal h muitas
espcies de homens.
Interessante que hoje h uma inverso nesta questo. Pensa-se que a identidade a
matriz dos conflitos por estabelecer diferenas entre os seres humanos, mas talvez a falsa universalidade, representada pelo Egito como uma mera sofisticao da gerao da
Torre de Babel, que camufle as dissonncias e as discrdias. Por trs do universalismo
no raro que se esconda o individualismo, e por trs dele a averso a vnculos que nos
responsabilizem com o outro. O individualismo pode ser a reduo mxima da famlia a
si mesmo; e Abrao propunha a expanso da famlia para abranger a todos. A terra de
Abrao diametralmente oposta a Terra do Egito.
Tirado do Nilo, amamentado com cultura egpcia e com educao palaciana, Moiss cria
cultural de Jos, o assimilado. Moiss se casar como o fizera Jos, totalmente fora dos
padres da identidade, mas caber a ele o resgate de sua judeidade, qual seja a responsabilidade com o coletivo tanto do povo como de seu legado (Klal Israel).
A Moiss caber produzir um novo pilar do judasmo: a Tor. Diferente de Abro o idealizador, Moiss aquele que tem que colocar em prtica e realizar. No basta conceber a
possibilidade deste vnculo, ele tem que ser objetivado e concretizado. A tica e os Mandamentos compem este pilar. Os vnculos de Klal Israel tm a ver com: 1) a fora que tira da
individualidade; 2) o acolhimento de uma nica autoridade; 3) que no pode ser representada ou tutelada; 4) que distingui entre sagrado coletivo e mundano individual; 5) que
tem razes; 6) que no mata; 7) no falsifica; 8) no rouba; 9) no mente; 10) e no viola.
A Tor estabelece que a identidade no seja composta de direitos, mas de deveres. Vnculos so feitos de deveres; s quando so mercantis que so deveres e direitos. Vnculos
so incondicionais e unilaterais. Para uma me ou um pai, s h deveres. Para um bom
irmo ou um bom amigo, s deveres. Pode parecer antagnico, mas o grande barato de
ter-se um vnculo a capacidade de se sentir responsvel. Essa responsabilidade no
uma renncia e nem uma desistncia, mas um pacto com o coletivo. O nico direito perante um coletivo ser parte dele. Os bnus existenciais e espirituais so muitos, porque
quem parte do coletivo transcende a finitude e a penosa descoberta da inexistncia de
objetivos maiores vida de um nico indivduo.
O xodo de judeus no acontece por que casam com no judeus ou abandonam as tradies. Acontece quando se desdenha o lugar coletivo. Ser do grupo de Jos (assimilado)
no um rompimento com o Judasmo. Porm o Egito, ao contrrio, simboliza agir individualmente, customizando e consumindo para fins prprios o espao coletivo.
Quando um judeu se casa com uma pessoa de outra religio isso no coloca em risco o
Judasmo. A ameaa acontece somente quando o judeu em questo perde a noo de
Klal Israel. Vejo hoje pessoas que dizem ter apreo pelo Judasmo realizando cerimnias
de casamento falsas, onde a fachada judaica, mas o que acontece um rito particular,
de uma religio particular, customizada para atender necessidades do indivduo. Tal a
ignorncia do coletivo que no percebem que o pecado no o casamento misto, mas
a incapacidade de acolher normas e convenes do coletivo. Com reivindicaes de di6
reitos, perdem seu grande patrimnio coletivo que o respeito s regras e costumes. As
normas, claro, podem mudar e muitas vezes devem mudar, mas de dentro do espao
coletivo e no de foro individual que isso pode ser alcanado.
Quando se faz um casamento falso-judaico, com indivduos que se fantasiam de coletivo e
representatividade, se est agindo de forma individual, customizada, e se est abandonando o campo coletivo. O pecado no ser parte do grupamento de Jos, de ser assimilado,
ou ter prticas que no condizem com a expectativa do coletivo, mas querer impor ao
coletivo seus interesses pessoais, evocando direitos, sem perceber o sagrado que so seus
compromissos. Deveres no cumpridos so meramente faltas ou rebeldias que podero
no futuro at se transformar em norma coletiva pelo fato de conterem em si valores importantes. Ser parte de um grupo poder ser transgressor (rash), desde que no acarrete
na perda da responsabilidade com o coletivo. Suportar estar-se na condio de desvio de
conduta , curiosamente, ainda fazer parte do grupo. Entretanto, alienar-se e fingir que
no h tenses, tentando colocar para baixo do tapete as frices entre pessoal e coletivo
excluir-se do espao comunitrio. Constitui dissolver-se no Egito da personificao e no
surpresa que algumas pessoas se queixem do coletivo como tendo algo pessoal contra
elas. No o tem. O que os faz pensar que pessoal, justamente o fato de terem debandado da esfera dos deveres para o territrio dos direitos e privilgios e se personificarem.
Levtico Liderana
Mas como manter-se ligado ao coletivo sem que isso esteja no mbito comunitrio?
a que entram os rabinos. Os rabinos no eram sacerdotes, no eram curandeiros e no
eram procos. No construam um clero, mas uma liderana responsvel pela transmisso. Os rabinos surgem num perodo de disperso e dispora em que a tradio perde re-
realizar, e mais difcil que realizar manter. Os rabinos tm que manter e transmitir.
O rabino no um religioso. O rabino tem que ter a severidade e o zelo pelo coletivo que
parecer ao olhar dos indivduos um fervor tpico de um credo e sero confundidos como
porta-vozes dos desgnios celestiais. No entanto, o Talmude, o livro-territrio dos rabinos,
bem claro ao afirmar que os cus no tm nada a ver com as atribuies da terra. Numa
estria-paradigma os rabinos probem a interveno de Deus e rejeitam que interfira sobre
as coisas dos homens e da terra*. Nesta doutrina anti-teolgica, os rabinos recusam o lugar
de intermedirios entre os cus e a terra e se sentem mais enobrecidos na esfera mundana,
cumprindo sua tarefa de conectar e transmitir. A terra pela qual optam no ordinria ou
profana, mas a terra de Abrao que eles tm que manter. Porque devemos lembrar que o
coletivo no apenas representado por quem est ali numa dada gerao, mas tambm os
que ainda no esto. O que a Lei representa ao coletivo de contemporneos, as interpretaes rabnicas -- a Halach, a transmutao atravs das geraes representa o coletivo
dos transtemporneos, os que vieram antes e os que viro depois. A Halach, a flexibilizao com estrita seriedade e integridade, em sua essncia um instrumento de mudana.
Ao exercer mudana com a mxima responsabilidade e gravidade, o resultado aparente a
sensao de rigidez e de imutvel. Mas ao contrrio, sua prpria misso mediar entre as
inquietaes dos pais e seus filhos e dos filhos e seus pais. Pais tm o voto do passado e os
Filhos o pleito do futuro. S o presente, elo buscado pelos rabinos entre passado e futuro,
detm o expediente do veto. Por ser um corpo de vetos de um dado presente, a Halach,
parece esttica quando, na verdade, de natureza dinmica. Os vetos de muitos presentes
atravs da histria do grupo so os pontos que se conectados evidenciam uma trajetria e
no uma doutrina inerte. E nos vetos dos muitos presentes est a transmisso.
Entretanto vetos evocam poder e legitimidade. E esta se torna uma questo recorrente: se
o Judasmo no uma religio, porque sua liderana deveria ser legitimamente executada
pelos rabinos?
Por um lado no existe outra liderana to comprometida com o coletivo horizontal e vertical como os rabinos. Lderes polticos, comunitrios ou intelectuais parecem ter interesses
muito efmeros pelas questes coletivas, normalmente contemplando apenas as questes
horizontais dos vnculos. Os rabinos incorporam o compromisso tradicional de transmitir
e manter e, mesmo com ocasionais abusos ou ms prticas, do norte e advogam pelo
o coletivo e pelos compromissos com o coletivo. Os rabinos criaram Israel, no o estado,
mas um estado de ser no qual, mesmo dispersos e disseminados pelos quatro cantos
do mundo, ainda assim era possvel estar-se juntos.
Sua grande contribuio, como vimos, so as mitsvot: prticas, costumes e padres que
vinculassem os judeus no tempo, nas estaes sazonais, no estudo, na culinria, na liturgia,
nos cantos, nas dana e nos mitos, fazendo com que estivessem juntos como irmos, ainda
que sem a mesma nacionalidade, a mesma lngua, o mesmo ambiente e o mesmo destino.
O rigor e a inflexibilidade de se fazerem guardies da transmisso do coletivo os aproximou da paixo religiosa e tambm do fanatismo devoto. Eles no trabalhavam para Deus,
mas sim labutavam pelo coletivo. Falavam pouco de Deus e outros religiosos modernos,
no campo da iluminao e da salvao, deles desconfiam at hoje porque no encontram
neles esoterismo. Os rabinos sabem aludir e intuir e no lhes falta capacidade de se embrenhar em alegorias e metforas. Porque para transmitir tiveram que fazerem-se mestres nas lendas, nas estrias e na interpretao. E exatamente porque sua funo a de
constituir fronteiras para uma terra virtual, que lhes interessa exatamente o contrrio
do esotrico o exotrico e o notrio. Para que o coletivo possa distinguir as delimitaes
do que e o que no tradio, do que dentro e do que fora, o sublime tem que ser
palpvel. E os limites no vm para excluir, mas para possibilitar vnculo.
Por um lado demarcam e vetam, por outro esgaram a lei pelo uso da interpretao para
manter o coletivo unido. As tenses para a desunio so enormes e hoje as foras que
fustigam as balizas da identidade so muito mais internas do que externas. Como diz um
amigo anarquista: o nus da prova est sobre a autoridade!. Cabe autoridade demonstrar que h mrito para legitimar sua condio de excelncia. Aos rabinos o nus da prova
a capacidade de suportar a tenso para romper barreiras e ao mesmo tempo se fazer
permevel diversidade e complexidade do coletivo.
Por isso encontramos rabinos nos quatro acampamentos da identidade (1-comprometidos, 2-envolvidos, 3-distantes e 4-assimilados da tradio) e todos eles so igualmente autnticos porque, do mais ortodoxo ao mais leniente, incorporam a tenso de uma parcela
especfica do coletivo. Cada qual com suas demandas e pleitos, mas sempre pactuadas
num vnculo parental comum que transcende o no parentesco e a diferena. A tal terra
de Abrao.
Terra essa que no exclusiva aos judeus, mas representa um balo de ensaio de um grupo sobre o sonho de Abrao; uma identidade que pode ser modelo a todas as identidades,
ou como no discurso proftico, de uma nica identidade para todos os seres humanos.
Enfim a liderana genuna tem sido exercida por rabinos. Eles podem ser ortodoxos, conservadores, liberais ou seculares, mas tem que ser rabinos: devem ser guardies do pacto
coletivo. Ressaltando que secular no implica que os outros grupos sejam religiosos no
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sentido atual. O Judasmo no uma religio nos moldes das religies modernas. Portanto, em algum lugar, do ponto de vista da compreenso moderna, todos eles religiosos
ou seculares so mundanos e temporais. Quando Deus no interfere (lo Ba-shamaim
h a Lei no est nos cus) h algo de laico em essncia, e isso se deve ao fato de que,
no que tange aos vnculos, as grandezas de cidadania, de civilidade e de solidariedade se
sobrepem ao sobrenatural e ao mistrio.
importante reconhecer que h grande presso para que o Judasmo se torne mais uma
religio. A tentao por transladar o eixo de Klal Israel para Deus grande porque est
relacionada esfera do poder. Porm constitui-se em grave delito porque fere o princpio
ptreo do pacto tico que de impedir a falsidade ideolgica pelo uso do Nome em vo.
Porque falar pelo Nome substitui o coletivo e destri por completo a utopia de Abrao.
A interveno dos cus que os rabinos rejeitam inviabiliza o vnculo supra familial, tribal
e ptrio sonhado por Abrao e o reduz a uma obedincia destituda de conscincia. Deus
substitui o coletivo (klal Israel) e extingue o vnculo, a teologia substitui a lei (Tor na letra e no esprito) e compromete a tica; e o dogma substitui a interpretao (Halach) e
interrompe a transmisso. Em muitos aspectos a religio na concepo convencional
antagnica ao Judasmo. Rabino aquele que sabe retirar a tradio deste lugar beato
e insufl-la com sonho e utopia. Mais que tudo ser guardio impedindo que o mpeto
imediatista e messinico exclua o futuro do coletivo, instaurando um Reino dos Cus por
fora de decreto, ao invs de comprometer-se com um mundo humano que possa algum
dia no futuro refletir essa essncia utpica celestial.
Nmeros
Os nmeros so sempre importantes para o coletivo porque representam no apenas
quantidade, mas qualidade. Os nmeros revelam o incontestvel do resultado, medida
de xito na absoro de signos e linguagens grupais. Ao mesmo tempo sabemos que os
nmeros so inslitos e muitas disciplinas foram criadas para entender o que os nmeros
dizem. Ento nmeros so importantes desde que se entenda o que eles realmente dizem.
Os judeus so fascinados por nmeros. Que no se faa trocadilho com o esteretipo do
numerrio. que o mesmo deslumbramento que possuem pela palavra e o que anuncia, o
tem pelos nmeros e a linguagem que enuncia. Os nmeros esto na Criao que quantifica
obra e pausa; no sonho-pacto de Abrao, onde o incontvel aparece como medida exata;
nas 600k de almas que do referendo constitucional ao Monte Sinai; nos 10 mandamentos
que simplificam esperanosamente a tica; nos 613 comandos que sofisticam a tica numa
prtica impraticvel, utpica; nas 12 tribos que convenientemente se reduzem a uma nica;
no 10 do qurum mnimo (minian -- municpio-virtual) que estabelece um espao pblico;
nas letras que se convertem em nmeros; e no Deus que tem sua qualidade numa quantidade a nica onde o 1 coletivo. Enfim os nmeros so capitais para o territrio plural.
Nos nmeros se define tambm o que includo e o que excludo. Porque os nmeros
so conjuntos de pertencimento e o que os quantifica exatamente o determinar do que
est dentro e do que est fora. Interessante notar que no quarto livro da Tor, denominado
em hebraico Em Deserto e traduzido ao grego e latim como Nmeros, confunde-se
nmeros e lugar. Em Deserto o lugar onde a nao dos hebreus se forma e certamente
h ironia e grandeza num povo que se constitui num lugar que no terra, numa comarca que no tem dono, numa regio sem fronteiras ou jurisdio. Por essa razo, estar-se
dentro ou fora no diz respeito a fronteiras de um lugar, mas de nmeros. So eles que
outorgam cidadania a aqueles que so contados ou no. Para os sem-terra nmades a
caminho de uma terra a ser mostrada, os nmeros so um cho. Ou seja, uma nao feita
por aqueles que so contados dentro.
Varias matemticas foram aplicadas a esses nmeros: a dos filhos de pai judeu, posteriormente modificada para filho de me judia; a dos de um nico avo judeu (lgebra de
Hitler para contabilizar e que foi replicada em afronta pela Lei do Retorno no Estado de
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crescimento dos indivduos com outra identificao. Os que no contavam, esto apontando para a possibilidade de que sim podem ser contados, que podem adquirir vnculos com
o coletivo, com Klal Israel. Na verdade so provavelmente estes os que podem romper a
barreira estacionria de uma nao que no cresce e que vive assombrada com cifras e
desaparecimento.
H rabinos descendentes destas unidades familiares, h pessoas se tornando observantes, identificados, superficialmente identificados, distantes e seculares surgindo a partir
desse grupo de casamentos mistos que no abandonam a tradio, mas que ao contrrio,
reavivam o vnculo. H um crescente nmero de judeus identificados saindo destes casamentos mistos e este fato produz um novo contingente aqueles que tm sangue judeu
na famlia no por ancestralidade, mas por descendncia. Ser me de um judeu ou uma
judia favorece a construo do vnculo de Abrao, de forma similar a quem vem de ventre-ancestral judeu. Essa no a Lei, mas pode representar uma nova maneira de realizar
o sonho de Abrao de vnculo coletivo, referendar a proposta de Moiss de que o coletivo
se produza num ambiente tico e contemplar tambm a prerrogativa rabnica de que seja
transmissvel a novas geraes.
Esse grupo um nmero fundamental em nosso tempo. E ele se distribui pelas quatro
esferas de Klal Israel, no to somente pelos assimilados ou distantes. As escolas j fazem
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da separao, sombra macabra e letal identidade (Se eu sou s por mim, quem sou
eu?). Viver sem vnculos colocar a deriva o sonho Abramico; calar a Tora tica;
estancar a possibilidade de transmitir.
Sim os vnculos aos olhos do indivduo classificam e segregam. Sim identidades e grupos
discriminam e apartam. No entanto so recursos evolutivos indispensveis por precrios
que sejam e tudo humano precrio, vide democracia, cidadania -- at que nos tornemos
uma famlia planetria e universal constituda de indivduos plenos. A terra a ser mostrada
a Abrao plural diversamente vinculada. Nela a identidade no apenas o que eu sou,
o carter, mas a pertinncia, como eu sou.
Enfim: al tifrosh min ha-tsibur! no te afastes do espao pblico!
No abandone lnguas do passado coletivo; no deixe de ter instituies de ensino que
manifestem essa identidade; no deixe de ir a casas de estudo porque o estudo salva da
banalidade material; no deixe de torcer e criticar e de se fazer fiador e agente do coletivo.
Porm, ateno! O coletivo no constri suas palavras-futuro a partir da vida comunitria
pueril, paroquiana ou moralista. As palavras-futuros so um patrimnio de um coletivo corajoso, criativo e ousado em relao vida e suas questes. No o coletivo pelo coletivo,
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tadas e diversas. Mas nessa diferena que elas estabelecem conversas para alm de si
mesmo e de suas verdades. Elas ventilam e libertam das masmorras do Eu, da racionalizao
e da auto justificao.
Preservem as palavras-futuro, que implora Moiss. So elas as tendas que podem ser
erguidas em qualquer ambiente e realidade. Tendas que so moradas provisrias at a
chegada de um tempo-estado que ainda vir. As palavras-futuro dependem de afeto, criatividade, ousadia e empolgao para produzir o solo sagrado do porvir. Trata-se do Mundo
Vindouro do qual todos queremos ser cidados e que est para alm de nossa longevidade. Esse mundo povoado com a multiplicidade das estrelas de nossa descendncia nos
manter includos porque, tal como Moiss, podemos subir ao monte do qual se avista o
que no nos pertencer. Desde l Moiss enxerga a terra que no possuir, mas na qual
est costurado para a eternidade. Assim o ser humano se eterniza no no sarcfago de sua
individualidade, mas nas palavras-futuro que produz em tradio. As palavras-futuro que
recebi so palavras de Deus e de meus avs. No reconhecimento desta autoria compartilhada com a voz que nunca cessa e com a voz que j cessou intuo a minha eternidade e
relevncia nas palavras-futuro que deixarei.
Em tradio o repouso nunca num sepulcro aleatrio, mas no cho de Abrao, na terra
umbilical dos ancestrais. Solo que no a desistncia amarga ao involuntrio e ao inexorvel,
mas o descanso triunfante de quem, no avistamento do futuro onde no estar, enxerga as
suas prprias palavras-futuro vivas e fecundas.
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