A Música Entra em Cena - Juarez
A Música Entra em Cena - Juarez
A Música Entra em Cena - Juarez
So Paulo
Faculdade de Educao da USP
2001
Juarez Dayrell
So Paulo
Faculdade de Educao da USP
2001
Juarez Dayrell
ANEXO METODOLGICO
So Paulo
Faculdade de Educao da USP
2001
INTRODUO
Neste trabalho, trato de jovens e seus grupos musicais. Nos ltimos anos,
e de forma cada vez mais intensa, podemos observar que os jovens lanam mo
da dimenso simblica como a principal e mais visvel forma de comunicao,
expressa nos comportamentos e atitudes pelos quais se posicionam diante de si
mesmos e da sociedade. A msica, a dana, o corpo e seu visual tm sido os
mediadores que articulam grupos que se agregam para produzir um som, danar,
trocar idias, postar-se diante do mundo, alguns deles com projetos de
interveno social. O mundo da cultura aparece como um espao privilegiado de
prticas, representaes, smbolos e rituais no qual os jovens buscam demarcar
uma identidade juvenil. Longe dos olhares dos pais, professores ou patres,
assumem um papel de protagonistas, atuando de alguma forma sobre o seu meio,
construindo um determinado olhar sobre si mesmos e sobre o mundo que os
cerca. Nesse mbito, a msica a atividade que mais os envolve e os mobiliza.
Muitos deles deixam de ser simples fruidores da msica e passam tambm a ser
produtores, formando grupos musicais das mais diversas tendncias, compondo
msicas e letras, apresentando-se em festas e eventos, criando novas formas de
mobilizar os recursos culturais da sociedade atual alm da lgica estreita do
mercado.
Esse processo no est presente apenas entre os jovens de classe mdia.
Nas periferias constatamos uma efervescncia cultural protagonizada por
parcelas dos setores juvenis. Ao contrrio da imagem socialmente criada a
respeito dos jovens pobres, quase sempre associados violncia e
marginalidade, eles tambm se colocam como produtores culturais. Entre eles, a
msica o produto cultural mais consumido e em torno dela criam seus grupos
musicais de estilos diversos, dentre eles o rap e o funk. Nesses grupos
estabelecem trocas, experimentam, divertem-se, produzem, sonham, enfim,
vivem um determinado modo de ser jovem.
Dessa forma, a partir dos grupos de rap e funk pesquisados, proponho-me
a discutir os processos de socializao vivenciados pelos jovens pobres na
periferia de Belo Horizonte. Isso significa analisar as suas experincias culturais,
1
apreendendo
escola
como
um
espao
sociocultural
ou
desumanizar-se,
de
desenvolver-se
como
humanos.
Enxergar
2
Do total de dissertaes e teses includas neste balano, 47,6% abordam assuntos relacionados escola
(ensino fundamental, mdio e superior).
Estes estudos, considerados como temas emergentes, representam apenas 10% do conjunto da produo
da rea educacional na temtica educao e juventude. No tema especfico de "grupos juvenis", foram
encontradas apenas oito dissertaes (CORTI e SPOSITO, 2000).
VIANNA (1987), SPOSITO (1993); KEMP (1993); COSTA (1993); ABRAMO (1994); GUERREIRO (1994);
GUIMARES (1995); SANTOS (1996); ANDRADE (1996); CECHETTO (1997); SILVA (1998); ARCE
(1999); HERSCHMANN (2000); TELLA (2000).
Ser
que
as
noes
construdas
sobre
"juventude"
correspondem aos modos de ser jovem expressos pelos rappers e funkeiros? Por
que analisar o jovem por meio da cultura, da msica? So questes que pretendo
problematizar nesta introduo, construindo, assim, um olhar sobre a realidade a
ser analisada.
A noo de crise utilizada no no sentido de uma ruptura, de caos, mas de mutaes e recomposies
profundas nas relaes sociais, onde se esgotam modelos anteriores e ainda no esto delineadas as
novas, como sugere MELUCCI (1991).
profundas por que vem passando o mundo do trabalho. Tanto no Brasil como no
exterior, constata-se uma mudana nos padres da organizao do trabalho, que
altera as formas de insero dos jovens no mercado de trabalho. Segundo
POCHMANN (1998), o modelo econmico implementado principalmente a partir
dos anos 90, baseado numa insero externa competitiva, tem gerado um
movimento de desestruturao do mercado de trabalho, que se manifesta na
expanso das taxas de desemprego aberto, no desassalariamento e na gerao
de postos de trabalho precrios, atingindo principalmente os jovens:5
Segundo o autor, as taxas de desemprego juvenil passaram de 5%, em 1989, para prximo de 14% da
populao economicamente ativa juvenil (PEA) em 1997, alm de alcanarem uma superioridade em
relao taxa de desemprego total. Nesse perodo, a taxa de desemprego juvenil, no Brasil, aumentou
188,9% (POCHMANN, 1998:20).
Segundo SABOIA (1998), os dados de 1995 mostram que uma parcela significativa de jovens nunca teve
acesso escola (7,2% dos jovens entre 15 a 24 anos), ou, se teve, foi por um tempo insuficiente at trs
anos de estudo, podendo ser considerados analfabetos funcionais (14,4%). Neste mesmo ano, de um total
de 28.700 milhes de jovens, 59% no estavam estudando.
trajetria, criando
diversidade, vimos que podem existir diferentes modos de ser jovem, resultado,
em parte, das prprias condies sociais nas quais esses sujeitos constroem a
sua
experincia.
Mas
essa
diversidade
nem
sempre
corresponde
fenmeno da
dureza
da
disciplina
educativa
era
aliviada
pelas
formas
quase
de
valores
para
as
geraes
mais
novas
(MORCELLINI,
1996;
temos
observadas
de
nas
considerar
ltimas
que
as
dcadas
rpidas
parecem
transformaes
anunciar
uma
17
20
21
24
estamos utilizando essa noo como uma manifestao simblica das culturas
juvenis, expressa em um conjunto mais ou menos coerente de elementos
materiais e imateriais, que os jovens consideram representativos da sua
identidade individual e coletiva. Na interpretao de FEIXA (1998), a construo
de um estilo no simplesmente a apropriao ou a utilizao de um conjunto de
artefatos; implica a organizao ativa e seletiva de objetos, que so apropriados,
modificados, reorganizados e submetidos a processos de ressignificao,
articulando atividades e valores que produzem e organizam uma identidade do
grupo. Nesse sentido, pressupe uma escolha intencional cuja ordenao pode
levar a uma diferenciao dos padres dominantes.
Na construo do estilo, somam-se dois processos. Um deles a
"bricolage", uma noo inspirada em Levi-Strauss, que supe a forma pela qual
os objetos e smbolos so retirados de um repertrio j existente, reordenados e
recontextualizados para comunicar novos significados. Outro processo presente
25
originais, ou mesmo sua ressignificao por outros grupos. o caso do hip hop,
por exemplo, que, originrio dos EUA, difundiu-se como cultura juvenil
internacional, assumindo uma trajetria e significados especficos no Brasil. Ao
mesmo tempo, podem sofrer processos de rotulaes por parte de agncias
sociais que o vinculam a atividades marginais ou violncia, como o caso do
funk no Brasil. No podemos nos esquecer tambm da ao da indstria e do
mercado, que buscam se apropriar dos novos estilos como forma de alimentar a
produo de novidades. Ao transformar o estilo em moda, h uma tendncia para
apresent-los de forma simplificada, apta ao consumo de massas. Dessa forma,
no podemos falar em um estilo "autntico", sem contaminaes, pois desde o
processo da sua criao o estilo pode ser sincrtico e multifacetado
(FEIXA,1998).
Assim, no podemos pensar o estilo de forma polarizada, numa oposio
linear a um cdigo cultural hegemnico, colocando-se como uma forma
necessria de resistncia, como indica a noo de "estilo subcultural" que
analisamos anteriormente. Ao apontar os seus limites, HERSCHMANN (2000:63)
evidencia que, na era da velocidade, da comunicao e da globalizao, as
expresses culturais tendem a se desnaturalizar no imaginrio social, perdendo a
fidelidade com os territrios originais. Segundo ele, as expresses culturais
tornaram-se uma montagem multinacional. Uma articulao flexvel de partes,
uma colagem de traos que qualquer um, de qualquer classe, religio, cor ou
ideologia pode utilizar. Mesmo concordando com o autor, importante ressaltar
que, na situao dos grupos pesquisados, a varivel da classe social, comum a
todos os jovens, interfere na adeso ao estilo rap ou funk, bem como na forma
como constroem o estilo, especificamente em Belo Horizonte.
Essa discusso apontada por Herschmann sugere a necessidade de
colocar em questo a forma como entendemos a relao existente entre a
dimenso local e a dimenso global no mbito da produo cultural. Como ele
mesmo sugere, essa discusso tem de ser colocada no contexto do processo das
transformaes socioculturais que vm alterando o perfil da produo social em
mbito mundial.
Refletindo sobre isso, SANSONE (1995:69) afirma que as teorias sobre o
processo de globalizao, como tambm as teorias sobre o impacto da mdia e o
27
aspectos:
28
me faz constatar, mais uma vez, que os caminhos de uma pesquisa so sempre
tortuosos, plenos de atalhos e trilhas que muitas vezes no levam a lugar
nenhum, obrigando-nos a idas e vindas. Como se caminhasse por uma mata,
sabendo onde quisesse chegar (muitas vezes nem isso), apenas com indicaes
esparsas sobre o percurso a fazer. Este vai sendo construdo no caminhar, com
todas as angstias e inseguranas de quem muitas vezes se sente totalmente
perdido. J dizia o poeta: "Caminhante, no h caminho, h caminho ao andar...".
Por mais que os manuais de metodologia cientfica nos forneam mapas, s
vezes com indicaes precisas e at mesmo receitas, estes s funcionam como
referncia mais geral, pelo menos como ocorreu no meu caso.
Junto s incertezas sobre o melhor caminho a tomar a cada momento, bem
como s alegrias quando via que estava certo, acrescenta-se a postura pessoal
na relao com os investigados, no meu caso, os jovens. Cada ida a campo
significava um exerccio de autovigilncia para superar a tendncia de ser um
professor ou um "tio" diante deles, por mais que soubesse que nunca iriam me
tratar como um igual, tanto pela diferena etria quanto pela origem social e
tambm pelo lugar que ocupava como pesquisador, o que deixei explcito desde o
comeo. Quando saamos juntos para ir a alguma festa, ou mesmo a um bar,
29
detalhada dos grupos musicais com uma "certa" objetividade para, depois,
desenvolver uma interpretao deles. Por mais que a descrio em si seja uma
interpretao, queria dar margens para que o leitor fizesse a sua prpria leitura.
No sei se fui feliz no meu intento, mas pelo menos foi uma tentativa.
Esta pesquisa foi desenvolvida em trs fases,8 em dois momentos
distintos.9 O primeiro desafio foi encontrar o meu objeto, ou seja, definir com quais
grupos musicais iria trabalhar. Como me propunha a compreender os significados
que um grupo musical e suas prticas adquiriam na vida de um jovem, considerei
necessrio escolher grupos que pudessem espelhar a realidade mais comum
existente entre eles. Assim, no queria trabalhar com grupos que fossem
profissionais ou que j tivessem alguma projeo, com CDs gravados, ou mesmo
uma insero nos movimentos sociais, com um discurso engajado. Os grupos que
conhecia estavam nesses casos. Alm do mais, no tinha clareza de quais estilos
privilegiar, uma vez que o meu conhecimento da cena musical na periferia na
cidade era ainda restrito. Colocava-se diante de mim a necessidade de uma
escolha que fosse aleatria, de tal forma a me aproximar de grupos a partir de
critrios predefinidos. Mas quais critrios? Para quais grupos? Onde encontrlos? Essa foi a primeira fase.
O primeiro movimento foi levantar dados secundrios sobre o consumo e a
produo cultural juvenil na cidade, mas na universidade, nos rgos pblicos
estaduais e municipais e na imprensa no encontrei dados sistematizados que me
auxiliassem.10 A juventude em Belo Horizonte, at onde pude perceber, no tinha
sido objeto de nenhum estudo.11 Para conhecer mais de perto a realidade do
consumo e da produo cultural entre os jovens, realizei debates em salas de
Neste momento no farei uma descrio detalhada dos passos da pesquisa. Estes se encontram no anexo
metodolgico.
9
O primeiro momento da pesquisa foi realizado entre fevereiro e setembro de 1998, antes de desenvolver o
estgio sanduche em Milo, Itlia. O segundo momento ocorreu entre abril e junho de 2000.
10
importante frisar que os rgos municipais ligados rea social desenvolviam uma srie de programas
ligados criana e ao adolescente, com nfase na assistncia e na formao profissional. Na rea cultural,
desenvolviam alguns projetos, mas voltados para a populao em geral, sem privilegiar algum setor, como
a juventude. Fizemos tambm o levantamento de todas as matrias relacionadas juventude no jornal de
maior circulao na cidade, o Estado de Minas, durante o ano de 1997. Esse material, fora algumas
matrias de jornal, no foram trabalhados na tese.
11
Essa falta de dados no deixa de refletir uma tendncia presente no conjunto da sociedade, na qual se
mitifica a juventude afinal todos querem ser jovens , mas pouco se conhece de fato sobre os jovens
reais. Os dados do IBGE (PNAD 1996) apontam que os jovens, compreendidos na faixa etria de 15 a 24
anos, significavam 20,38% da populao de Belo Horizonte, que estava na ordem de 2.091.448.
31
cultural
era
relativamente
pequeno,
no
sendo
escola,
12
Volto a reafirmar que os detalhes de cada um desses passos e os critrios utilizados se encontram no
Anexo Metodolgico.
13
Apesar de o gospel no ser um estilo, no sentido utilizado nesta pesquisa, fizemos a opo devido sua
grande presena no meio popular.
14
O relatrio estatstico completo e sua descrio encontram-se no Anexo Metodolgico.
32
utilizados
foram
entrevistas
coletivas
individuais
em
Nessa etapa foram realizadas 9 entrevistas coletivas e 11 individuais, resultando em 45 horas gravadas.
Chamo de "presena participante" o estar junto dos jovens no seu cotidiano. No foi o recurso
antropolgico da "observao participante", uma vez que no constitui uma imerso na realidade dos
jovens, mas nela inspirada, principalmente no que diz respeito postura do pesquisador no campo.
Representou um momento rico de apreender posturas, relaes, comentrios que muito me ajudaram na
compreenso das prticas dos jovens.
33
36
37
Captulo 1
O RAP INVADE A CENA
diferenas
significativas,
principalmente
as
propostas
os
significados atribudos pelos jovens que deles participam. Tanto que rappers e
funkeiros fazem questo de se afirmarem como representantes de estilos
distintos, apesar da tendncia existente em confundi-los. Esse esforo para
demarcar uma identidade prpria ainda maior medida que seus adeptos
apresentam uma mesma origem social: jovens, pobres, na sua maioria negros,
moradores na periferia da cidade, muitas vezes vizinhos uns dos outros.
Em Belo Horizonte, a histria do funk e a do rap se confundem, numa
convivncia pacfica nos mesmos espaos e eventos at o incio dos anos 90,
quando ento passaram a delinear dois movimentos distintos. Na breve
recuperao histrica que faremos em seguida, a primeira parte contemplar os
dois estilos, seguida pela continuidade da histria do rap. No captulo seguinte,
quando tratarmos dos grupos de funk, completaremos a trajetria desse outro
estilo na cidade.
38
tradio oral dos "griots",17 que foram incorporados na experincia cultural dos
afro-americanos atravs de uma srie de prticas, entre elas o "toast".18 Essa
mesma tradio pode ser encontrada nas prticas dos repentistas nordestinos.
Nos limites deste estudo, localizamos a origem do funk e do rap no
surgimento do soul, uma feliz juno do rhythm and blues, uma msica profana,
com o gospel, msica protestante negra. O soul teve como divulgadores cantores
como Ray Charles, Sam Cooke e, principalmente, James Brown, que se
celebrizou com um som agressivo, ancorado na percusso pesada, nas quebras
de ritmos e na introduo de sons pouco convencionais, como gritos, sussurros e
distores. O soul desempenhou um papel importante na histria negra
americana da dcada de 60, sendo a trilha sonora dos movimentos civis e um
smbolo da conscincia negra. Com o seu sucesso e conseqente massificao, o
soul perdeu suas caractersticas revolucionrias e surgiu uma reao da
"autenticidade" black: o funky.
O funky radicalizou o soul, empregando ritmos mais marcados e arranjos
mais agressivos. Foi nesse perodo que o termo "funky", cujo sentido era
pejorativo, comeou a ser um smbolo do orgulho negro. Tudo podia ser funky:
uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar, e uma forma de tocar msica
que ficou conhecida como funk (VIANNA, 1987:20). Mas tambm o funky sofreu
um processo de comercializao, sendo removida a sua base cultural, tornandose uma msica mais digervel para o grande pblico. A partir de 1975, com a
banda Earth, Wind and Fire, o funk alcanou as primeiras paradas de sucesso,
abrindo caminho para um estilo alegre, vendvel e sem compromisso com a
questo tnica. Abriu caminhos para a msica "disco", que passou a ser
hegemnica durante alguns anos, embalando a febre das discotecas.
O rap surgiu nesse perodo como mais uma reao da tradio black.
Atribui-se ao jamaicano Clive Campbell, conhecido como DJ Kool Herc, a
introduo dos "sound system" nos guetos nova-iorquinos, utilizados nas festas
nas ruas do Bronx. Um seu discpulo, Grand Master Flash, elaborou a tcnica do
17
Segundo SILVA, os griots referem-se a prticas existentes em algumas regies da frica onde uma casta
de msicos se responsabiliza pela narrativa da histria da sociedade, apoiados em um instrumento
meldico, o kora.
18
O toast caracteriza-se pelo uso da linguagem das ruas e pela construo de narrativas e experincias que
remetem histria de vida das camadas populares (TELLA, 2000).
39
19
O scratch consiste na obteno de sons, girando manualmente o disco sob a agulha em sentido contrrio.
Assim, produzem-se efeitos sonoros de frico e quebras na pulsao bsica da msica, mas de acordo
com a cadncia rtmica.
20
O back spin consiste em extrair do disco uma frase rtmica e repeti-la vrias vezes, acelerando ou
retrocedendo seu andamento normal.
21
Como chamado o Disc Jockey ou discotecrio.
22
A mixagem a mistura de msicas feita pelo DJ, utilizando-se o aparelho mixer.
23
Segundo ANDRADE (1996), o termo Hip Hop est associado aos movimentos da forma popular de se
danar e que envolvia movimentos como saltar (hip) e movimentar os quadris (hop).
40
24
Traduo livre do italiano. Daqui em diante as citaes em lngua estrangeira sero traduzidas como uma
forma de facilitar a sua compreenso pelo leitor.
41
25
Conseguimos localizar poucos registros sobre a histria do rap em Belo Horizonte, mas nenhum estudo
sistemtico. Na sua maioria foram reportagens esparsas, a partir dos anos 90, quase sempre noticiando
algum evento local. Assim, esse resgate histrico foi realizado principalmente a partir de depoimentos
colhidos entre rappers, funkeiros, DJs e produtores culturais ligados aos dois estilos.
42
pela habilidade do DJ que ali tocava e pelo seu estilo predominante. Algumas
dessas equipes so lembradas at hoje pela qualidade do som e animao das
festas que promoviam, como a Dupson, do DJ Joseph. Tambm no centro havia
alguns locais fixos. Um deles era o Mscara Negra, uma animada danceteria
onde havia bailes nos finais de semana, s freqentados por negros. Para muitos
jovens, montar uma equipe de som significou uma alternativa de sobrevivncia, e
muitos comearam com uma pequena estrutura de som e se aperfeioaram,
tornando-se mais tarde DJs conhecidos, como caso do DJ Paulo Coisa, at hoje
atuante no meio hip hop. Mas em Belo Horizonte no aconteceu o crescimento e
a profissionalizao dessas equipes, como ocorreu com a Furaco 2000, no Rio,
ou a Chic Show, em So Paulo, que contriburam para o desenvolvimento e a
difuso do funk e do rap, respectivamente.
Nesses bailes no se tocava apenas um tipo de msica, caracterstica que
perdura at hoje? Mudavam-se apenas os estilos musicais? Geralmente iniciavam
o baile ao som da "disco", a febre que havia tomado conta do mundo no final dos
anos 70. Os jovens a chamavam de "clube" e esquentavam os bailes com seus
"passinhos". Em seguida, entravam com o soul e o funk, com uma dana que
imitava os movimentos alucinantes de James Brown. Tocavam tambm o soul
nacional, principalmente Tim Maia, seguido por
43
novidades musicais do momento. Era o ponto de encontro dos jovens, que ali
trocavam informaes e sabiam os locais em que haveria bailes.
A formao de um contingente de consumidores entre os jovens dos
setores populares pode ser explicada pelo rejuvenescimento da PEA urbana,
principalmente no setor tercirio da economia, alm de um grande nmero de
adolescentes e jovens trabalhando no setor informal. Esse fenmeno foi resultado
do modelo econmico vigente no regime militar, que combinou o arrocho salarial e
o crescimento de empregos na rea urbana (Spindel, 1988; Abramo,1994). A
realidade do trabalho era a condio para que os jovens pobres pudessem
vivenciar a sua condio juvenil, por intermdio do consumo e da diverso. Dessa
forma, uma parcela desses jovens, reunidos em torno da black music, iniciou um
incipiente processo de consumo cultural especfico, sustentando uma rede de
danceterias, lojas e equipes de som que, alm de criar uma opo de lazer por
meio dos bailes, tambm abriram espaos para novas opes de trabalho e
sobrevivncia para muitos deles, mesmo que de forma precria. Foram esses
espaos e essas equipes, muitas delas remanejadas, responsveis pela difuso
do funk e do rap na cidade, pelo menos at o incio dos anos 90.
conscincia de que a dana tinha alguma relao com o rap, e tampouco com o
grafite.
A gente no sabia o que era o hip hop, a gente tava dentro e no
sabia. A gente s tinha o break e o DJ, no tinha o rap nem o
grafite. (Paulo Coisa, produtor musical, 31 anos)
26
Um pedao de piso emborrachado que colocavam no cho para fazer as acrobacias do break.
45
27
28
Um terminal de nibus tursticos que tem uma grande rea de piso coberta situada no centro da cidade.
Bboy o nome como so chamados os danarinos de break.
46
No final dos anos 80, o break vai deixando de ser de moda. Nos bailes, o
"balano" divide espao com os novos ritmos, como o new wave, como era
chamado o rock, inclusive o nacional, e o miami, um rap mais danante originado
na Califrnia. O funk carioca passa a ter maior influncia sobre os gneros
musicais e as coreografias que aconteciam nos bailes da cidade, principalmente
naqueles do Vilarinho. A nova onda pegou rapidamente, e as msicas "boas para
47
Ele aponta uma das diferenas bsicas que definiram o rap e o funk como
estilos prprios: o rap enfatiza a denncia social e a discriminao dos jovens
negros; e o funk, a alegria, a diverso. So facetas diferentes da juventude
popular, enfatizando dimenses que se complementam: a afirmao do jovem
negro e o direito alegria, a vivenciar a condio juvenil. muito significativa a
importncia que ele atribui alegria como contraponto pobreza, um dos motivos
pelos quais o funk atrai tanto os jovens.
Nesse perodo, o grande espao de encontro e exibio da cultura juvenil
negra era o "BH Canta e Dana", um evento anual iniciado em 1985, promovido
por um dos primeiros produtores culturais dessa gerao, MC Pel, que tambm
29
uma das formas de nomear a msica funk. originria do Rio, onde os funkeiros adaptavam as musicas
americanas na base da homofonia. A msica que tinha como refro "you talk too much", por exemplo,
passou a ser conhecida como "Mel do tomate" (VIANA, 1997).
48
49
toda uma gerao de rappers em todo mundo, sendo um dos responsveis pela
centralidade da temtica racial no rap paulistano.30
Mesmo antes, alguns breakers dessa poca contam que tinham acesso a
algumas revistas americanas que traziam reportagens sobre o movimento hip hop
e os grupos americanos envolvidos. Lembram das dificuldades tanto para
consegui-las como para traduzi-las para o portugus. Foi quando comearam a
descobrir que a dana da qual tanto gostavam era parte de um movimento mais
amplo. J outros lembram dos vdeos importados que conseguiam.
30
Para maiores detalhes ver SILVA (1998), TELLA (2000) e ANDRADE (1996).
50
31
Para maiores informaes sobre o movimento hip hop paulista nesse perodo, ver SILVA (1998) e TELLA
(2000).
51
52
DJ Malboro, junto com a Furaco 2000, so equipes de som que esto atuantes desde o incio do funk
carioca, sendo os responsveis pelo surgimento de msicas cantadas em portugus. As equipes, alm do
som, so constitudas por grupos de MCs que animam os bailes que promovem, abrindo caminho para
que vrios jovens "adquirissem voz" e sassem do anonimato, colocando em evidncia a realidade das
periferias. Em 1989 havia lanado o primeiro disco, Funk Brasil I, que alcanou um grande sucesso de
vendagem, redimensionando, assim, o mercado fonogrfico que se abria s expresses culturais juvenis.
Para maiores detalhes, ver VIANNA (1987) e HERSCHMANN (2000).
53
apresentaes
dos
grupos
de
rap
ocorriam
geralmente
nas
33
O primeiro CD do grupo, Trfico, Morte e Corrupo, foi lanado em 1992; e o segundo, Efeito Moral,
lanado em 1994, ambos produzidos pela loja DJ Kings.
34
Segundo SILVA (1998), no perodo de 1991 a 1994 foram lanados 59 discos de rap em So Paulo, entre
coletneas e discos solo.
55
alternativa de
35
Segundo o DJ Paulo Coisa, o estilo miami o rap desenvolvido em Miami e Los Angeles, da o nome.
Caracteriza-se pela maior influncia do baixo e bateria eletrnicos e letras com temas mais "festivos",
sendo muito difundido no Rio de Janeiro. O grupo mais conhecido nesse estilo Two Live Crew.
56
entre as turmas da chamada "das antigas" (old school) e aqueles dos "novos"
(new school).
Um dos conflitos era a respeito do envolvimento de todos nas reunies,
quando os mais novos estavam mais interessados na dana. Outro ponto de atrito
era o comportamento e o visual dos breakers, numa preocupao em melhorar a
imagem pblica do hip hop, muito associada favela e marginalidade. Havia
cobranas quanto higiene e limpeza dos danarinos, o uso de roupas e tnis
adequados, mas tambm de comportamentos que deveriam evitar, como ficar
pegando "traseira de nibus", que dificultavam a criao de um clima de grupo. A
turma "das antigas" lidava com a estigmatizao do estilo buscando enquadrar os
mais novos em padres que considerava ser socialmente aceitos. significativo
que a preocupao com o visual seja o mais relevante, pois a roupa apresenta os
sinais mais visveis, nos espaos de circulao de uma grande cidade, do lugar
que se ocupa na estrutura social.
Os encontros no Terminal JK continuaram a acontecer por alguns meses,
at que foram proibidos pelo condomnio do prdio. Alegando que os jovens
estavam estragando o prdio, a polcia foi mobilizada para proibi-los de freqentar
aquele espao. Com o fim dos encontros no Terminal, o ponto de referncia dos
hip hoppers era praticamente a Galeria Praa 7, no corao da cidade.36
36
A Galeria Praa 7 um prdio com trs andares de lojas, que aos poucos foi se especializando nos estilos
underground, com lojas de discos e roupas ligadas ao estilo hardcore, metal e hip hop, alm de um salo
de beleza black. Ali possvel saber das festas e eventos desses estilos, por meio dos cartazes e flyers
pregados nas vitrines. Em menor proporo, equivale s Galerias da 24 de Maio em So Paulo.
57
coletiva. Os grupos de rap existentes nesse perodo, por exemplo, estavam mais
preocupados com o carter artstico, em potencializar a capacidade de produo
das msicas e ampliar os espaos de apresentaes em locais privados do centro
da cidade, no sonho de fazer sucesso e garantir a sobrevivncia por meio da
msica. Tanto que no investiram na socializao de informaes e na
formao daqueles que comeavam a aderir ao estilo, gerando uma certa mgoa
entre estes, que se expressa nas crticas mtuas entre a old school e a new
school, presentes at hoje.
Para os grupos da primeira gerao, como o Dokttor do Diviso de Apoio,
um dos motivos da desorganizao do movimento em BH a falta de "respeito"
por parte dos mais novos. Para ele,
No perceberam que o pblico potencial que poderia lhes dar uma base de
sustentao era exatamente aquele da periferia. Nessa fase, o discurso de
denncia dos rappers no foi acompanhado por qualquer ao concreta nos
bairros ou nos movimentos comunitrios e polticos, a no ser por iniciativas
isoladas.
Podemos
citar
grupo
Processo
Hip
Hop,
que
desenvolvia
59
61
37
A Rdio Favela a rdio comunitria de maior audincia na cidade, alm de desenvolver um trabalho
educativo reconhecido no Aglomerado da Serra. Depois de ter os transmissores lacrados vrias vezes pela
Dentel, conseguiu em 1999 o registro como Rdio Educativa. Em 2000, o cineasta Helvcio Ratton
comeou a produzir um filme cujo enredo conta a sua histria.
62
63
64
38
Em 1998, por exemplo, o rap foi objeto de quatro matrias no jornal Estado de Minas, o de maior circulao
na cidade. Duas pequenas notas no caderno Espetculo noticiando festas que iriam ocorrer e duas
matrias comentando pesquisas realizadas sobre o movimento hip hop local. Uma delas, sobre uma tese
de mestrado em curso da pesquisadora Jnia Torres sobre o movimento hip hop local, e a outra sobre os
grupos musicais juvenis, no caderno juvenil Gabarito, comentando os resultados preliminares dessa
pesquisa ora apresentada.
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rotatividade
muito
grande,
diminuindo
as
chances
de
maior
profissionalizao no setor.
Um grupo de rap, at chegar a apresentar suas msicas em um show,
passa por diversas etapas e envolve um nmero considervel de pessoas em
diferentes funes, numa verdadeira "linha de montagem musical". Para
visualizarmos o funcionamento do estilo na cidade, faremos uma rpida descrio
das etapas e dos atores envolvidos nessa linha de montagem do rap, construindo
a trajetria "ideal" de um grupo hipottico, reunindo informaes colhidas em
vrios depoimentos.
Quando um grupo iniciante, geralmente, ele no produz a sua prpria
base musical, cantando suas msicas em cima de uma pr-gravada, que encontra
disponvel em discos, fitas ou CDs nas lojas especializadas. Mas todos almejam
que sua msica tenha uma base musical exclusiva, produzida a partir da sua
letra. Juntam dinheiro aos poucos e partem para a gravao, procurando um
produtor musical conhecido no meio hip hop.
H alguns anos, ter uma msica gravada em estdio, ter uma fita demo ou
um minidisc (MD) gravados era um privilgio de poucos. Atualmente mais fcil
conseguir isso. Existem vrios produtores que produzem msicas rap na cidade,
em pequenos estdios espalhados pelos bairros, a maioria deles DJs oriundos do
prprio movimento hip hop.40 O esquema simples: o jovem chega com a sua
letra e fala como gostaria que a msica fosse produzida. O produtor cria a base
39
Esse poderia ser um bom tema de pesquisa, buscando apreender quantitativamente o envolvimento dos
jovens com os grupos musicais dos diversos estilos, ou com a produo cultural em geral. No existe
nenhum estudo em Belo Horizonte que levante tais dados.
40
Um dos produtores mais requisitados no meio hip hop da cidade o DJ Paulo Coisa. Ele tem 32 anos,
negro, casado e est envolvido com a black music desde adolescente. No tem nenhuma formao
musical, e tudo o que sabe de msica e da arte da discotecagem aprendeu na prtica cotidiana e no
contato com outros discotecrios Em 1989, iniciou-se como DJ atuando em danceterias, e mais tarde
passou a trabalhar tambm em rdios. Fez parte de um dos primeiros grupos de rap na cidade, o Protocolo
de Subrbio, que gravou uma msica na coletnea Funk Brasil II. Em 1998 tinha um pequeno estdio em
sua casa, atuando tambm como discotecrio em festas e bailes na cidade e no interior. Alm disso
mantinha em sua casa um curso de DJ.
66
com os recursos de que dispe e o grupo grava o vocal sobre ela em uma fita
demo ou no MD. O preo de uma gravao varia de R$ 120,00 a R$ 250,00,
dependendo dos recursos e da qualidade do produtor.
Na maioria das vezes a produo musical pra a, na gravao de uma fita
demo ou de um MD. No existe em Belo Horizonte selos independentes que
produzam seus artistas ou tenham uma estrutura de divulgao suficientemente
forte que lhes d visibilidade. Apesar de todos sonharem com a gravao do seu
CD, apenas dois grupos de Belo Horizonte o fizeram, com a distribuio sendo
garantida por selos de So Paulo. Fora esses, alguns grupos gravaram CDs
independentes, com tiragem limitada, arcando com os prprios custos, no
conseguindo ainda um acesso ao mercado fonogrfico.
Depois de ter a sua msica gravada, o grupo passa a buscar espaos
para se apresentar. O espao inicial geralmente a prpria regio onde moram
seus componentes, em pequenos eventos de rua, promovidos por equipes de
som locais nas ruas e porta de bares.
Formar uma equipe de som uma outra atividade presente no circuito
cultural rap. So formadas por jovens que, aos poucos, compram uma pequena
aparelhagem formada por uma mesa de som, pick-ups, caixas e microfones para
animar festas nos finais de semana. So os herdeiros das primeiras equipes
formadas nos anos 70. Poucos deles se profissionalizam de fato; a maioria tem
nessa atividade uma "curtio" temporria, a qual dividem com o trabalho com o
qual garantem a sobrevivncia. Com toda a precariedade existente, eles
desempenham um papel importante de animadores culturais nos bairros.
Uma outra providncia tomada pelo grupo, alm dos eventos nos bairros,
tentar ampliar sua visibilidade, o que fazem atravs das inmeras rdios
comunitrias existentes na cidade, j que no havia programa de rap veiculado
em rdio comercial.
amadores. Boa parte deles tem seu grupo de rap e comearam a desempenhar a
funo como forma de abrir espaos para o seu prprio grupo.41
Em 1998, os produtores promoveram a maioria das festas de rap no centro
da cidade, nas mesmas casas noturnas que abriam espaos para o estilo h
alguns anos, como o Butecrio, Estrela ou Elite. Havia tambm aqueles
produtores ligados s prprias casas noturnas que promoviam esporadicamente
uma noite de rap, como era o caso da danceteria Trash, dirigida para um pblico
de classe mdia. Mas todos eles confirmam que nesse ano caiu o nmero de
festas, sendo realizada, em mdia, uma por ms.
Para finalizar essa descrio do funcionamento da "linha de montagem" do
estilo na cidade, importante mostrar as caractersticas de uma festa ou evento
de rap. Em 1998 havia trs tipos bsicos: a festa dirigida para o pblico hip hop,
com apresentaes de grupos; a festa dirigida a um pblico mais amplo de
apreciadores do gnero musical, embalado ao som mecnico; e os eventos de
rua, dirigidos aos jovens de uma determinada regio, com apresentao de
grupos.
Um exemplo de festa dirigida ao pblico hip hop aconteceu no Butecrio,
promovida pela Rima Produes, que contou com apresentao de trs grupos de
rap, alm de dois DJs conhecidos. Essas festas apresentaram um formato mais
ou menos comum: os DJs comandando o som mecnico at por volta da meianoite; em seguida, a apresentao dos grupos; e, posteriormente, a festa
tornando a ser animada pelos discotecrios.
Nessa noite havia em torno de 100 jovens no local, com predominncia de
homens, a maioria negros. A festa, antes de mais nada, parecia ser um espao de
encontro entre os jovens. Desde a entrada formavam-se pequenos grupos, que
iam-se misturando a outros, rindo e brincando, numa confraternizao prpria de
quem j se conhecia. Chamava a ateno o fato de que, quando um jovem
chegava a um grupo, iniciava um ritual: cumprimentava um por um, sempre com o
41
o caso de Clodoaldo. Ele tem 24 anos, negro e solteiro. Tinha uma vida muito agitada: durante a
semana trabalhava como comercirio e, noite, estudava, terminando o ensino mdio. Os finais de
semana eram divididos com o grupo de rap Fator R, com a produo cultural e ainda com um programa de
rap em uma rdio comunitria, a Sant. Mesmo assim, era um dos produtores mais ativos no meio hip hop.
Foi um dos fundadores da Posse Cr-Ser, visando ampliar os espaos de apresentaes dos grupos de
rap. Com o fim da posse, ele fundou uma pequena produtora de eventos, a Rima Produes, por meio da
qual vinha promovendo algumas festas.
69
42
O freestyle um estilo do rap cujas letras so construdas na hora, relatando situaes do momento.
comum criarem um desafio entre eles, competindo pela palavra, num estilo semelhante ao repente
nordestino.
70
encontros amorosos. Esse tipo de festa rap parece se caracterizar pelo encontro
e sociabilidade, permeada pela mensagem passada pelos grupos musicais.
J a festa no Estrela apresenta um outro perfil. um espao tradicional de
dana de salo da cidade, onde ainda hoje possvel danar a gafieira. Apropriar
desse espao significa estabelecer uma coexistncia entre o velho e o novo, a
tradio e a modernidade, com dois estilos que carregam uma certa "aura" de
transgresso. Talvez por isso faa tanto sucesso, atraindo inclusive os jovens de
classe mdia. Outro motivo alegado que seus organizadores so parte do
mesmo grupo que mantinha a Broaday, que, fechada, fez o seu pblico migrar
para o Estrela. Pode-se dizer que um dos poucos espaos que possibilita a
convivncia entre jovens de estratos sociais diferentes. Aos sbados renem-se
cerca de 300 jovens, que lotam o salo, livre das mesas, danando ao som do rap
americano e do nacional. A festa pura excitao, com jovens pobres e ricos,
negros e brancos danando com seus corpos suados lado a lado, numa
suspenso temporria do fosso social que os separa. Outra diferena em relao
festa no Butecrio a presena maior de mulheres e um clima de seduo no
ar, com muita "paquera" e casais se beijando pelos cantos. O que parece
caracterizar essas festas a fruio musical e a dana, ou seja, a diverso como
um fim em si, sem nenhuma relao com a "ideologia" do movimento hip hop.
As festas no Estrela so muito criticadas pelos rappers, pois trazem tona
dois aspectos delicados para eles: a presena de jovens da classe mdia e as
drogas. Segundo eles, ali predominam os "playboys" (Entram no hip hop pra tirar
onda, eles no entram pela ideologia nem nada e acabam fudendo tudo). Ou
ento os "embalistas", que, mesmo sendo da periferia, s curtiam a msica, mas
que no aderiam ao movimento. Outra crtica era quanto ao uso de drogas nessas
festas, "sujando" o nome do hip hop. Segundo um rapper, as festas do Estrela s
deturpa o movimento, porque perde a concepo que o movimento tem de ser
contra as drogas, e a o pessoal fala em rap e associa logo maconha, um lugar
de maluco que pode fumar maconha... Reclamam tambm que festas como essa,
apesar do sucesso de pblico, no contribuem para o crescimento do movimento
hip hop, no abrindo maiores espaos para os grupos locais ali se apresentarem.
Essas festas mostram a realidade do rap em Belo Horizonte. A expanso
do gnero musical observada nos ltimos anos foi significativa, tornando-se um
71
43
Coloco o verbo no passado porque em 2000 no mais aconteciam esses eventos de rua em funo do
aumento da violncia na regio.
72
Para uma discusso sobre a relao entre o rap e o mercado cultural, ver HERSCHMANN (2000).
Ttulo de uma matria da revista VEJA (12/1/1994), uma das primeiras que noticiam a existncia do estilo
no Brasil, vinculando-o violncia. Essa matria parece ter dado o tom dos artigos veiculados nos anos
seguintes.
73
contra
uma
determinao
social,
que
os
condena
uma
75
O grupo Processo Hip Hop formou-se no incio de 1998 e teve uma vida
relativamente curta, extinguindo-se no final de 1999. um exemplo de centenas
de grupos que se formam e se desfazem no prprio bairro, sem se tornarem
conhecidos nem manterem maiores contatos com o movimento hip hop existente
na cidade.
Dos grupos entrevistados, era o de formao mais recente e seus
componentes os mais jovens. O grupo era formado por trs jovens, todos fazendo
os vocais, j que no possuam um DJ:
Os nomes dos grupos e dos seus integrantes so fictcios, garantindo-lhes, assim, a privacidade.
O meu primeiro contato com o grupo foi no "Encontro de Estudantes das Escolas da Regio Leste", em
maio de 1998, onde se apresentaram. Em agosto desse ano realizei a entrevista coletiva com o grupo que,
por escolha deles, ocorreu na prpria escola. Nesse perodo, encontramo-nos algumas vezes: assisti a dois
dos seus ensaios e a uma apresentao que aconteceu na Serra, alm de outros encontros informais. Em
setembro, realizei entrevistas individuais com Rogrio e Cristian, na casa de cada um, o que me propiciou
conhec-los no seu prprio espao.
No consegui encontrar-me mais com o grupo, pois ele se desfez em meados de 1999. Mantive contatos
individuais com Cristian, participando de alguns ensaios com o seu novo grupo e realizando uma entrevista
individual. No final desse ano, tentei contatar Rogrio, mas ele se encontrava foragido, acusado de um
crime. Em abril de 2000, apesar da "guerra" que estava acontecendo entre as gangues de trfico na favela
onde mora, consegui localiz-lo, realizando uma entrevista individual. Apesar das minhas tentativas, no
consegui entrevistar Rubens.
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desde ento, em um quarto construdo no mesmo terreno com dois tios. As suas
lembranas familiares so dolorosas, marcadas por sentimentos de ausncia da
me, ao mesmo tempo de impotncia diante da sua doena. Na poca, ele no
sabia onde ela poderia estar. Tem uma irm que trabalha como domstica, com a
qual se encontrava muito pouco. Aos 16 anos passou a morar com a irm de
Rubens; separou-se depois de quatro anos e mora sozinho desde ento.
Nesse contexto, a realidade do trabalho foi presente para eles desde muito
cedo. Todos tiveram uma histria de trabalho ligado a bicos, realizados desde
quando eram pequenos. a realidade tpica de crianas e adolescentes das
favelas: lavar carros, carregar volumes em feiras, exercer tarefas de office-boy,
etc. Na poca da entrevista, Rogrio trabalhava como servente de pedreiro.
Nunca trabalhou em um servio fixo, no tendo, assim, uma rotina certa de
trabalho, com um cotidiano mais flexvel. Para Cristian, o trabalho sempre foi uma
necessidade mais premente. Como vivia sozinho, ele se mantinha com o que
aparecia para fazer e, na poca, estava trabalhando com o tio em pinturas de
casa. A sua maior preocupao era com o desemprego, sonhando em conseguir
um trabalho fixo, com carteira assinada, o que conseguiu apenas em 1999,
quando foi ser entregador em uma flora de Belo Horizonte. Rubens era o nico
que tinha um trabalho fixo, como office-boy em uma firma de minerao.
Freqentava um curso de computao aos sbados, na tentativa de se qualificar
melhor para o mercado.
Todos eles tiveram uma relao intermitente com a escola, com uma
trajetria escolar marcada pelas constantes entradas e sadas. Em parte, por
causa do trabalho, mas tambm por no verem, na poca, muito sentido na
freqncia s aulas. Rogrio e Rubens contavam que o envolvimento com as
drogas foi outro fator que os afastou da escola, porque desorientava a cabea.
Haviam retornado escola em 1998, Rogrio cursando a 4a srie do ensino
fundamental e os outros dois a 5a srie, todos no turno noturno. Diziam estar
motivados, principalmente pela relao que mantinham com os professores,
animados com os espaos que a escola estava abrindo para se expressarem.
Mas este retorno escola no demorou muito. Em 1999 todos os trs desistiram
de estudar novamente: Cristian e Rubens alegando falta de tempo por causa do
trabalho, e Rogrio porque passou a traficar drogas.
79
48
Segundo MAGNANI (1984), o pedao um espao intermedirio entre o pblico e o privado, onde se
desenvolve uma sociabilidade bsica, mais ampla que a fundada nos laos familiares, porm mais densa,
significativa e estvel que as relaes formais e individualizantes impostas pela sociedade... Para o autor, o
pedao constitui um componente de ordem espacial a que corresponde uma determinada rede de relaes
sociais.
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49
83
50
Nome dado queles que transportam a droga entre os pontos de venda e/ou pequenas vendas aos
consumidores.
84
da gente comunicar com nosso povo. Sobre a linguagem que utilizavam nas
letras, tinham conscincia de que no correspondia ao "portugus correto", mas
no se propunham corrigi-la. Cristian dizia que, se o fizesse, iria descaracterizar a
msica, como tambm dificultaria montar as rimas apropriadas. Mas eles tinham
conscincia de que a linguagem no neutra. O dialeto que utilizavam na favela,
entre os pares, ao mesmo tempo que criava uma identidade prpria, tambm era
objeto de preconceitos, sendo tachados de "malandros". Assim, foram
aprendendo a lidar com duas linguagens, como uma estratgia de sobrevivncia.
Trecho de uma msica do grupo. Optamos por no transcrev-la na ntegra para resguardar a identidade
do grupo.
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86
um dos motivos pelos quais aderir a um grupo musical envolve tanto os jovens:
uma experimentao, alm de ser um momento de fortes emoes.
Para eles, o fato de o pblico ficar quieto, escutando-os, era um sinal de
que estavam entendendo a mensagem que queriam passar. Achavam que no
era certo danar enquanto um grupo cantava, pois impedia que se concentrassem
na "mensagem" que eles estavam mandando. Para Cristian, o central de uma
apresentao era a mensagem":
Numa viso realista, sabiam das dificuldades para fazer sucesso. Antes de
tudo, o que os mobilizava era o presente, era o prazer de cantar,
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52
O Mscara Negra foi o primeiro grupo entrevistado, ainda em julho de 1998. Depois desse contato,
participei de dois ensaios do grupo e de duas de suas apresentaes realizadas neste perodo, uma delas
na cidade vizinha de Itana. Fiz tambm uma entrevista individual com o Pedro, em setembro, quando ele
reconstruiu a sua histria de vida, a partir da sua relao com a msica. A partir de novembro de 1999,
mantive vrios contatos com o grupo, assistindo a duas de suas apresentaes. Realizei uma entrevista
coletiva com Joo e Clio, e em abril de 2000 acompanhei Joo por uma semana, realizando cinco
entrevistas.
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53
90
falecido quando ainda era novo. Sua me empregada domstica, mas est
licenciada por causa de problemas de sade. O seu irmo garante o sustento da
casa, trabalhando em uma firma de contabilidade. O pai de Clio tambm faleceu.
Sua me aposentada desde que ficou "ruim da cabea", e o sustento da casa
dividido entre ele e duas irms mais velhas. Pedro casado desde os 18 anos,
quando sua mulher ficou grvida do primeiro filho, numa poca em que os dois
freqentavam os bailes (Casei com a minha mulher e com o break...). Desde
ento os dois vm lutando para garantir a sobrevivncia da famlia, conseguindo
aos poucos construir um barraco no terreno da me, na cidade onde mora.
Podemos constatar que o contexto social no qual os jovens do Processo
Hip Hop e do Mscara Negra se inserem so muito semelhantes. Para todos eles,
as experincias no trabalho e na escola se mostram frgeis, definindo um
determinado tipo de insero social que, como j falamos, forma os contornos
mais gerais que definem os limites e as possibilidades da vivncia da sua
condio juvenil.
93
contam que tanto as letras quanto as melodias passam pelo crivo do grupo,
sofrendo as devidas alteraes. J estavam com boa parte das letras prontas e
com as idias das bases musicais que queriam criar. Haviam negociado com um
produtor musical a produo das bases para suas msicas, e levavam as idias
do que queriam (A gente faz do nosso jeito, as cortadas, as viradas, tudo do
nosso jeito, a gente usa da criatividade da gente, discute com ele, senta e faz a
produo). Este um trabalho lento, principalmente agora que esto procurando
criar uma "levada" diferente dos outros grupos de Minas Gerais. Nesse processo
h muita discusso interna. Joo e Clio, por exemplo, defendem a necessidade
de criar um estilo mineiro de rap (Eu sou mineiro, falo uai, trem e nossa msica
tem de ter o jeito mineiro...); Pedro acredita que, para o grupo ser reconhecido
fora de Belo Horizonte, tem de ter um estilo mais universal, e cita os grupos de
So Paulo como exemplo.
Essa discusso, que est presente em boa parte dos grupos, reflete uma
das tenses existentes na relao com a mdia e com o mercado cultural, no
geral. Esta aparece como um certo dilema: para chegar ao sucesso pretendido,
uns acham que devem aderir s frmulas do rap que j fazem sucesso nacional;
outros defendem a criao de uma produo cultural que resgate as razes da
cultura musical mineira, criticando os grupos que fazem uma cpia do que est
sendo produzido em So Paulo ou em Braslia, os dois centros de influncia. Para
Pedro, que mais velho e est ansioso para que o grupo decole, o caminho
seguir a trilha conhecida, mas os outros dois gostariam de arriscar novas
frmulas. Apesar da discusso, o que produzem no foge muito do que est
presente no mercado. Essa tenso traz mais elementos para problematizar a
questo: se o rap mineiro possui ou no uma identidade prpria.
As msicas do Mscara Negra esto na linha do chamado "rap consciente".
As letras retratam uma leitura da vida da periferia, abordando temas como a
violncia policial, o crime organizado, o trfico de drogas,54 a questo tnica55 ou
a desigualdade social, com um tom de denncia contra o "sistema". Eles no
54
O moleque cresceu brincando de arma e farda/A violncia marcava para sempre/Entrou pro crime, no foi
diferente/Reduziu sua sorte, assinou sua pena de morte/Com o nariz e a boca se reduziu a p/ Eu tenho
d.
55
Preto voc foge da luta/ A nossa f vem cruzando histrias/Sua passagem aqui ser s de
derrotas/Desconhece o som dos atabaques/Preto se voc perdeu caminho/Jamais, jamais!/Encontrar
Palmares.
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96
apresenta um discurso que, apesar das caractersticas iguais, tende a ser mais
superficial. Mesmo com essas diferenas, vai ficando evidente a existncia de
uma produo cultural prpria desses jovens da periferia, que tm como matriaprima a realidade urbana das ruas e seus valores, numa elaborao em que se
justapem as vivncias e as informaes a que tm acesso.
O Mscara Negra vem reforar tambm que o rap se coloca como um dos
poucos espaos no qual eles podem exercitar a sua dimenso criativa, uma forma
possvel de resistncia a uma lgica social que tende a desumaniz-los. Ao
mesmo tempo, trazem mais elementos para a nossa discusso, ao ressaltarem as
tenses existentes com a mdia e a busca de inovaes musicais, o que aponta
para o carter dinmico do estilo.
encontrado apoio nem dos movimentos sociais, como o movimento negro, nem
dos rgos pblicos ligados cultura, no contando, assim, com nenhuma
interlocuo com o mundo adulto.
Nos shows, quando o Mscara Negra est no palco, eles se transformam.
Quando cantam, andam pelo palco com passos duros e a face carregada, numa
expresso raivosa, com muita gesticulao, alternada com o levantamento dos
braos com os punhos fechados, uma expresso tradicional do black power
americano. Exprimem uma agressividade que um contraste com o
comportamento que tm fora do palco, quando so alegres e dceis. Argumentam
que
o pessoal fala mesmo que a gente fica nervoso no palco, mas
porque a gente pe pra fora ali, naquela hora, a nossa revolta. o
nosso momento de revolta, de colocar pra fora o que a gente
sente... (Joo)
como uma atitude de escuta das mensagens que so veiculadas. Mas eles
lembram que as festas no so apenas o espao da conscientizao, so
tambm da diverso, onde podem se encontrar com outros grupos, trocar idias
e, se der sorte, at mesmo "ganhar" alguma menina interessante.
Quando falam do grupo e das apresentaes, recorrente o discurso sobre
a profissionalizao, como uma meta a ser alcanada. Perguntados sobre o que
entendem por "ser profissional", afirmam que saber se portar no palco, saber
levar o estilo do grupo. Eles no tm ningum que os ajude a pensar a
performance no palco, sendo eles mesmos que "trocam idias" e decidem o que
fazer, por intuio. Os shows so um espao de aprendizagem, no qual recebem
o retorno das pessoas e vo avaliando o que deu certo ou errado. Admitem que
demoraram a fazer um bom trabalho de palco e acham que tm muito a aprender
e a melhorar. Mas lembram que ser profissional no se reduz s apresentaes,
inclui tambm saber conversar, lidar com as pessoas e com as situaes que vo
surgindo. Joo afirma que o desafio maior este: ser profissional fora do palco.
99
100
tenso entre eles, com discusses constantes sobre os rumos a serem tomados.
Pedro voltou a morar na sua cidade, diante da falta de alternativas de
sobrevivncia em Belo Horizonte. Assim diminuram os encontros e as
apresentaes do grupo, gerando um certo distanciamento entre eles, mas
continuavam no propsito de manter o grupo ativo.
1.3.3 O Raiz Negra56
O grupo Raiz Negra formou-se no incio dos anos 90. o mais antigo dos
grupos pesquisados e um dos poucos desse perodo que ainda permanecem
ativos. Ele pode ser considerado representante de uma primeira gerao de
grupos de rap em Belo Horizonte, sendo muito reconhecido na cena hip hop da
cidade. Dentre os trs grupos pesquisados, o que apresenta um perfil mais
profissional, chegando a receber cachs por algumas de suas apresentaes,
principalmente nos eventos promovidos por rgos pblicos. Os shows do Raiz
Negra no tm uma freqncia regular. Em 1998, por exemplo, o grupo fez uma
mdia de sete apresentaes em eventos pblicos e em casas noturnas.
O grupo formado por quatro jovens, cada um deles desempenhando uma
determinada funo.
Paulo: negro, 29 anos. Apesar de nunca ter casado, tem um filho que
mora com ele e criado pela av. No grupo, ele vocalista e
compositor, alm de assumir o papel de "empresrio", "correndo atrs"
para agendar apresentaes e tentar negociar projetos. (Os dois so os
nicos que permanecem desde a formao original do grupo.)
56
Os componentes do grupo foram entrevistados pela primeira vez em agosto de 1998, durante um ensaio
que faziam. Alm desse contato, assisti a uma apresentao deles e realizei entrevistas individuais com
Nilson e com Paulo. Em 1999, mantive vrios contatos com o grupo, assistindo a duas de suas
101
Eles dizem que o grupo funciona como uma empresa, cada um tem um
setor individual, mas para funcionar tudo em conjunto. Mas estas funes no so
rgidas e, no final das contas, todos fazem um pouco de tudo no grupo.
apresentaes, e participei da oficina de hip hop que ministraram em uma escola pblica. Alm dos
contatos informais, realizei uma entrevista com todo o grupo em abril de 2000.
57
Como vimos no item anterior, as Quadras do Vilarinho, na regio de Venda Nova, era e ainda um dos
principais sales de funk de Belo Horizonte.
102
participando dos shows ocasionais que ocorriam nos bairros e nos encontros
freqentes no Edifcio JK.
Dos grupos pesquisados, foi o nico que teve uma experincia de
participao nos movimentos sociais organizados, no ano de 1994, como conta
Nilson:
103
Eu nunca imaginava que fosse andar com o Paulo, minha tribo era
outra, sempre gostei de black music, mais pro lado do soul, vim
conhecer o rap muito depois. Mas sempre gostei de msica,
influncia do meu pai que sempre ouviu muita msica. Na minha
famlia tem um monte de msico...
Carlos toca guitarra desde 1987, mas nunca fez um curso, aprendendo de
ouvido. J passou por vrios estilos musicais, inclusive o hardcore, mas se
identifica mais com o soul e o jazz, sem nunca ter tocado rap anteriormente. Eles
se conheceram por intermdio de amigos comuns da regio de Venda Nova, onde
todos moram.
Mas a adeso ao estilo no implica fidelidade a um gosto musical, como se
s escutassem o rap. No grupo, os gostos musicais so os mais diversos. Nilson,
por exemplo, diz gostar tanto de rap quanto de bossa nova, e escolhe as msicas
para ouvir de acordo com o seu momento:
Eu tenho essa complexidade comigo, s vezes eu sou violento e
o rap tem um lado agressivo; s vezes eu sou supercalmo, a j
gosto de ouvir bossa nova. Sou burro s vezes, s vezes sou
inteligente... ento essa misturada toda mesmo...
um
meio
de
expresso
de
sentimentos,
um
espao
de
auto-
104
que tem relao com o estilo escolhido, mas, principalmente, com o lugar social
que seus membros ocupam.
Jnior: tem cinco irmos, sendo dois casados. O pai, j falecido, era
sargento da PM e a me nunca trabalhou fora.
Carlos: o nico casado, tendo dois filhos. Seu pai, j falecido, era
vendedor, e a me professora da rede estadual, atualmente
aposentada. Dos quatro, o que passou menos dificuldades.
105
Paulo: trabalha com o pai como pintor de paredes, de segunda a quintafeira; nas noites de quinta a domingo faz free lancer como garom em
festas e clubes.
Nilson: tem um cotidiano mais agitado. Ele scio com o irmo em uma
pequena firma de crachs eletrnicos, trabalho que lhe d uma renda
suficiente para a sua sobrevivncia. Alm disso, est estreando como
ator e danarino. Neste ano passou no teste para integrar o elenco de
um musical, passando a ensaiar diariamente, o que o obriga a fazer
malabarismos para articular as diferentes atividades, alm do
compromisso de viajar quando comearem as apresentaes nos
outros Estados.
107
mercado. Se o
111
Ele aponta uma das caractersticas centrais do ser humano que, ao criar,
se humaniza. E o faz a partir das suas vivncias cotidianas:
58
Crianas, adolescentes/negras, pobres com futuro pela frente/so mortas a sangue frio/ por grupos de
extermnio./ E eu pergunto: onde est a lei? No sei...
59
Meu filho vai crescer,/como eu no pude ser/e vai ser negro/ como qualquer outro mestio/ e eu me orgulho
disso.
112
O grupo no faz uma autocrtica dos shows que promove, mas admite que
nem todos tiveram a mesma qualidade. A maior crtica quanto ao servio de
som oferecido nos eventos, tanto pblicos quanto nas casas noturnas,
comprometendo a performance do grupo. A infra-estrutura dos eventos de hip hop
na cidade, tanto de palco como de som, quase sempre precria. Esta uma
reclamao comum a todos os grupos, pois se vem prejudicados nas suas
apresentaes: o som que no funciona direito, com chiados e distores; a
falta de microfones; a falta de acstica adequada em muitas casas noturnas.
Este problema mais comprometedor no caso do hip hop, que enfatiza muito as
"mensagens" contidas nas letras. Eles vm nessa realidade uma postura de
discriminao dos setores pblicos e privados em relao ao rap e aos produtores
culturais populares, em geral.
Alm das apresentaes, uma outra atividade que o grupo desenvolve
esporadicamente so oficinas de hip hop em escolas pblicas, realizadas por
iniciativa prpria, numa forma de voluntariado. Em 1998 realizaram duas oficinas,
uma delas em uma escola municipal do bairro, durante trs noites. Para o Raiz
Negra, a oficina tem como objetivo divulgar a cultura hip hop e, ao mesmo tempo,
"conscientizar" os alunos. Segundo Paulo,
114
ateno a relao entre idade e projeto. Mesmo estando todos na faixa etria
considerada adulta, com experincias de vida acumulada, a forma como elaboram
seus projetos possui uma indeterminao e fluidez tpicas da juventude, o que
refora a constatao da fase de transio em que se encontram.
Uma outra direo pretendida pelo grupo atualmente dar um carter
profissional s oficinas de hip hop que j realizam esporadicamente nas escolas,
de forma a garantir um mnimo de ganho com elas. Com este intuito elaboraram
um pequeno projeto visando atuar em duas escolas pblicas da regio de Venda
Nova, apresentando-o para a Vide Bula, uma grife de Belo Horizonte.
116
A trajetria desses jovens demonstra que eles aderem ao estilo rap ainda
adolescentes, o que confirma os dados da pesquisa telefnica: apenas 2,4% dos
integrantes dos grupos de rap pesquisados tinham menos de 15 anos, enquanto
62,8% deles estavam na faixa etria que vai de 15 a 24 anos. Ou seja, o rap um
estilo predominantemente juvenil e comea a atrair seus adeptos no incio da
juventude. O que leva os jovens ao rap? O que essa escolha significa?
Recuperando a trajetria dos grupos, constatamos que inicialmente todos
aderem ao estilo como consumidores do gnero musical. Para os mais velhos,
essa iniciao se deu pela freqncia aos bailes, envolvidos com a dana break,
e, para os mais novos, pelo consumo musical do rap por meio dos discos e
audincia s rdios, de acordo com a linguagem musical mais difundida em cada
momento. Mas, para todos, aderir ao estilo funcionou como um certo ritual de
passagem, compondo prticas e hbitos que demarcaram um corte geracional,
estabelecendo diferenas com o mundo adulto: a escolha musical, as formas de
fruio, at mesmo a altura do som; o "agito" dos bailes e a agilidade corporal
exigida pelas coreografias so elementos por meio dos quais enfatizam a sua
identidade como jovens, criando um mundo vivido e sentido como prprio. Nessa
escolha, interferem o bairro onde moram, o grupo de pares e as formas
predominantes de lazer entre eles.
A passagem de consumidores do gnero musical rap para a condio de
produtores musicais, com a formao dos grupos, significou para todos um
processo de envolvimento gradativo, no qual alguns fatores explicam por que o
rap tem encontrado um solo frtil entre os jovens das camadas populares. Um
fator est relacionado ao lugar social ocupado por esses jovens e ao capital
cultural a que tm acesso, que se expressa no lugar onde moram, na turma de
amigos que possuem e no lazer que desfrutam. Outro fator que pesa na deciso
so as exigncias econmicas necessrias para a produo e a reproduo do
estilo musical. Nesse sentido, o rap um estilo mais democrtico, no tendo
como pr-requisito a utilizao de instrumentos musicais, o domnio de
habilidades tcnicas musicais, nem mesmo maiores custos com a montagem e a
organizao dos locais para exibio pblica. Para os jovens da periferia que,
geralmente, no tm acesso a uma formao musical, o hip hop, assim como o
118
sensibilidade
rtmica
tem
permanecido
como
Mas no s para ele. Tambm para Paulo, do grupo Raiz Negra: A gente
absorveu muito essa realidade (do rap) na minha vida, ento virou um estilo de
vida... O depoimento desses jovens demonstra que a escolha pelo rap significa
mais do que aderir ao estilo. Implica um ethos e um modo de vida determinado,
uma escolha que, na medida do envolvimento maior com o estilo, passou a
interferir no conjunto das prticas e das relaes sociais, como tambm na
elaborao simblica que fazem delas; enfim, tornou-se um "estilo de vida.
Sabendo dos riscos que corremos pela interposio entre a noo de estilo
e de estilo de vida, resolvemos assumir esta categoria que eles prprios nos
forneceram. A noo de "estilo de vida" que adotamos inspirada na formulao
de GIDDENS (1995:75), para quem
120
nas opes de lazer. Ao mesmo tempo, servem de orientao mais ampla para as
prticas e experincias, para modos de agir nos diversos espaos sociais, bem
como na forma de estabelecer as relaes. Ou seja, um estilo de vida implica um
feixe de hbitos e orientaes e por isso tem uma certa unidade importante para
dar um sentido continuado de segurana ontolgica que conecta opes em um
padro mais ou menos ordenado (GIDDENS, 1995:76). nesse sentido que o
autor afirma que o estilo de vida uma narrativa de auto-identidade, pois implica
no apenas decises sobre como agir, mas tambm sobre quem quer ser,
apontando para a discusso que ser desenvolvida posteriormente sobre a
identidade como construo realizada pelos prprios sujeitos. Giddens ressalta a
necessidade de superar a tendncia em pensar o estilo de vida reduzido apenas
rea do consumo, e mais ainda a um consumismo superficial, sugerido por
revistas ou imagens publicitrias. Para ele, o estilo de vida relaciona-se s demais
reas das atividades da vida, numa inter-relao dinmica presente na construo
e na vivncia do estilo escolhido.
Nessa formulao, fica evidente que a noo de "estilo de vida" mais
ampla e engloba a noo de "estilo". O estilo rap e, como veremos, tambm o
estilo funk, tomados como expresso simblica das culturas juvenis, so parte de
um estilo de vida, sendo, porm, o eixo em torno do qual o articulam. Assim,
podemos falar em um estilo de vida rap e em um estilo de vida funk. Cada um
deles tem uma influncia prpria na vida desses jovens e, de acordo com o nvel
de envolvimento que cada um estabelece com o estilo, a abrangncia deste na
determinao dos modos de agir e na auto-identidade dos jovens ser
diferenciada.
importante frisar que o estilo de vida no algo que se "transmite"; ao
contrrio, adotado a partir de uma escolha entre uma determinada pluralidade
de opes possveis. Giddens, numa compreenso semelhante quela de
Melucci, afirma que o estilo de vida situa-se no terreno existencial da vida na
modernidade tardia, que tem como uma das caractersticas centrais a dimenso
da escolha. Nesse sentido, afirma que todos no s buscam um estilo de vida,
mas so quase forados a buscar, ou seja, no existe outra escolha seno
escolher. Ele lembra que, mesmo sendo a escolha parte da ao humana, na
sociedade contempornea o indivduo se v confrontado com uma complexa
121
social que lhes abriu at ento apenas as possibilidades de uma incluso social
precria e instvel, resultado da nova desigualdade social de que nos falava
Martins (1997). As experincias institucionais, como a famlia, o trabalho ou a
escola, mostram-se desintegradas, frgeis, no lhes ampliando as opes. Joo
deixa muito claras as opes limitadas com as quais se defrontam:
125
rap, tanto em Belo Horizonte quanto So Paulo ou nos EUA. O contedo potico
reflete o lugar social no qual se situam e a forma como elaboram as suas
vivncias, numa postura de denncia das condies em que vivem. Como diz
Paulo, eu sou um mero observador do comportamento do ser humano... num
tenho estudo, num sou nada, mas eu fico observando o comportamento das
pessoas. Nesse sentido, o rap pode ser visto como uma crnica da realidade da
periferia.
Muitos criticam o rap pelo fato de a temtica se repetir. Se isso acontece,
porm, porque a vida os coloca diante das mesmas situaes: a violncia, as
drogas, o crime, a falta de perspectivas, quando sobreviver o fio da navalha.
Mas tambm cantam a amizade, o espao onde moram, o desejo de um mundo
perfeito, a paz. Ou seja, o discurso potico busca resgatar a dimenso subjetiva
a partir da experincia comum vivida desde a periferia. E abordam temas que
evidenciam o carter conflitivo da condio humana diante de uma realidade que
os nega como tal: a vida e a morte, as escolhas, o sistema de condutas, valores
como amizade e honra. E, ao faz-lo, reintroduzem a dimenso humana presente
entre os pobres da periferia, que no discurso dominante aparece como
desumanizado.
Em diferentes nveis de elaborao, os jovens utilizam nas letras uma
linguagem que no se ancora tanto nos conceitos lgico-formais, mas sim
afetivos, em categorias extradas da linguagem das ruas, com suas grias e
expresses prprias. Na maneira que a gente fala l em cima (na favela), o jeito
da gente comunicar com o nosso povo..., diz Rogrio, do grupo Processo Hip
Hop. A produo potica uma forma de refletirem sobre si mesmos e sua
realidade, como afirma Pedro:
O rap surgiu pra falar entre o nosso povo, que o nosso povo nunca
teve a voz ativa para poder se expressar, ento o fundamento dele
esse, poder falar pra nossa comunidade e por ns mesmos.
130
maioria deles possui pouco hbito de leitura e a pouco acesso outros canais de
informao, como o cinema.
Ao mesmo tempo, a msica tambm uma narrativa da auto-identidade,
no s nas letras quanto na postura no palco, sendo um exerccio de autoreflexo. a concretizao da noo de estilo de vida aqui adotada. Enfim,
grande parte deles se identifica como rappers, na medida em que assumem a
"misso" de problematizar a realidade em que vivem, atravs das msicas que
cantam, com a pretenso de conscientizar "os caras" dos problemas e riscos que
o meio social lhes impe. Nilson, do grupo Raiz Negra, afirma:
132
como
um
espao
de
experimentaes,
no
qual testam
suas
potencialidades e desejos.
Discutindo sobre a breve vida dos grupos musicais juvenis, KEMP (1993)
constata essa mesma situao entre os grupos punk e trash em So Paulo. Para
a autora, o ponto fraco do estilo a predominncia da experincia do lazer como
geradora do espao para a forma do estilo desenvolver-se, no criando
alternativas a uma gama mais extensa das reas de suas vidas. No sem razo
que Nilson se perguntava: O rap um dom ou uma maldio?
Mas, pelo menos durante o tempo em que esto ativos, os grupos
continuam a insistir e, de alguma forma, elaboram os seus projetos de futuro.
Estes apresentam alcances diferenciados. H grupos, como o Processo Hip Hop,
que tm no rap um espao de expresso e experimentaes, no vendo nele uma
perspectiva de sobrevivncia. J outros, como o Raiz Negra e o Mscara Negra,
projetam o desejo de uma carreira artstica, na qual possam garantir a
sobrevivncia. Apesar dos alcances diferenciados, a postura diante do futuro
parece ser comum, marcada pela nfase no presente, no acreditando na
possibilidade de controlar as variveis que interferem na sua construo. Essa
postura fica clara no uso constante da categoria "sorte", que utilizam quando
falam das possibilidades de o grupo alcanar alguma visibilidade. Nessa postura
diante do futuro interfere uma srie de fatores, como a prpria condio juvenil,
que tende a valorizar o presente, e as condies de vida em que se inserem, que
lhes impe uma srie de limites o pouco tempo disponvel, as debilidades de
formao e informao, o domnio insuficiente do funcionamento do prprio
mercado cultural de forma a explorar melhor as suas possibilidades.
Para todos eles a gravao do CD aparece como o projeto mais palpvel e
desejado. Como vimos, gravar um CD assume uma multiplicidade de sentidos: o
reconhecimento no seu meio social e na famlia; um trofu que validaria as
dificuldades que enfrentaram at ento; a "imortalizao" da obra que realizam e,
mais concretamente, o primeiro passo para alcanarem o sucesso. Mas o
134
60
Em um encontro de hip hop realizado no dia 3/12/2000, esse tema polarizou as discusses, com defesas
ardorosas de ambos os lados, sem chegar a um consenso. Mas todos admitem que o movimento hip hop
um movimento social, cultural e poltico, mas no concordam sobre o sentido dado a essa dimenso
poltica.
135
de
136
61
A relao do Geledes com o rap paulistano um exemplo que evidencia a importncia do apoio do mundo
adulto para a potencializao da capacidade organizativa juvenil. Para mais detalhes, ver SILVA (1998),
TELLA (2000), ANDRADE (1999).
137
62
Estamos entendendo por identidade coletiva o processo pelo qual os indivduos produzem uma
compreenso comum da realidade na qual atuam por meio das interaes e negociaes numa dinmica
de ativao constante das relaes que os ligam entre si, em um investimento emocional que permite que
os indivduos reconheam-se (MELUCCI,1991).
63
Entre eles podemos citar: SPOSITO(1993, 1999), ABRAMO (1994), CALDEIRA (1984), MINAYO (1999),
ABROMAVAY (1999). Esta mesma tendncia constatada entre os jovens portugueses, analisados por
PAIS (1993), ou italianos constatados na pesquisa do IARD (CAVALLI, 1997).
138
Desde ento, o estilo funcionou como uma referncia para a escolha dos
amigos, bem como das formas de ocupao do tempo livre. Nessa escolha no
podemos nos esquecer de que o espao do bairro um dos que mais influem nas
possibilidades e limitaes que condicionam o encontro dos amigos e a
construo das redes pessoais, bem como as opes de lazer. Se a turma de
amigos uma escolha, esta realizada inicialmente de acordo com as
possibilidades que existem no "pedao". Mas medida que vo-se envolvendo
com o estilo e comeam a participar de eventos, ocorre uma ampliao da rede
de relaes que extrapola o bairro e at mesmo a cidade, como lembra Joo:
Uma coisa que eu achei muito massa foi o movimento hip hop me
disponibilizar esse lance de atravessar fronteiras e ter amigos l
64
em Itana ou Sete Lagoas e at mesmo l em So Paulo.
64
139
tambm
com
muita
competio
entre
os
diversos
grupos,
principalmente entre aqueles mais antigos e os mais novos. Joo explicita bem
esse sentimento quando afirma que no movimento cobra comendo cobra...
ento aquele confiar desconfiando... As disputas e tenses se materializam nas
141
65
Os estudos sobre o rap paulista tambm mostram a existncia de conflitos e disputas entre entre os
diferentes grupos. Ver SPOSITO(1993) e SILVA (1998).
142
t de touca, por exemplo, tem bacana que te v de longe, ele troca de calada e
vai para o outro lado (risos)... Geralmente so endossadas por aqueles, como
Paulo, que assumem uma postura e um discurso mais radicais dentro do hip hop.
Essa realidade relativiza as anlises66 que vinculam as vestimentas s tentativas
de apagar os traos da condio social desses jovens.
Mas existem aqueles que aderem ao incessante movimento da moda,
consumindo as marcas em evidncia a cada momento, alimentando a pequena
rede de lojas especializadas no estilo hip hop em Belo Horizonte. Apesar da
pequena capacidade de consumo, eles fazem um esforo para adquirir algumas
peas do vesturio, com as quais se apresentam nas festas e nos shows.67 Vrios
deles afirmam, como Joo, que no movimento hip hop as pessoas julgavam muito
pela roupa que se vestia, e que uma coisa era o "Joo de roupa comum", outra
coisa era ele vestido de rapper. Nesses momentos, ele dizia, incorporava o
personagem rapper (Eu incorporo o MX),68 indicando que o visual parte do ritual
do espetculo. Mesmo se assumem uma postura crtica em relao sociedade
baseada no consumo, eles no deixam de aceitar as regras socialmente impostas
em que a aparncia parte de um modelo de cidadania (ABRAMO,1994).
Alm do visual, possvel perceber alguns mecanismos simblicos por
meio dos quais se distinguem. Um deles a renomeao. Quase todos eles
possuem um apelido que se refere a algum cantor de rapper famoso ou a algum
66
143
falam pelo seu papel, pela sua posio diante da etnia ou pela sua sede de
sucesso. Podemos perceber nessa renomeao uma espcie de rito de entrada
no movimento hip hop, que, mesmo no sendo institucionalizado, diz respeito a
uma identidade que o jovem passa a ter naquele meio.
Percebe-se que dar-se um nome pode significar inventar uma identidade,
construindo uma individualidade no interior de uma coletividade. Relegam assim o
"nome civil" a um papel diverso, proclamando a prpria independncia diante de
um estado civil utilitrio imposto de fora. Ao mesmo tempo, podemos ver nessa
prtica uma tentativa de, por meio de pseudnimo, sarem do anonimato
caracterstico da sociedade de massas (Torti, 1994). Alm da renomeao, os
nomes escolhidos para os grupos so muito significativos. Nomes como Atitude
Calibre XII, Conceito Negro, Expresso Ativa, Face Oculta, Renegados70
expressam um manifesto, sntese da proposta do hip hop, assumindo por
intermdio deles sua condio de negros, marginalizados, e uma postura ativa de
denncia.
O visual, os hbitos, os gestos, a linguagem so elementos que vo
construindo o estilo de vida rap como uma identidade coletiva, numa dinmica de
apropriao de signos a que tm acesso atravs da TV, de revistas, de notcias
sobre o estilo tanto no Brasil, em especial em So Paulo, quanto nos EUA. Nesse
processo estabelecem uma demarcao com o mundo adulto, mas tambm com
outros jovens da mesma origem social, criando uma identidade juvenil prpria .
essa identidade que possibilita um sentimento de pertencimento a um grupo local,
nacional e tambm internacional. Fazem parte, assim, de um movimento
globalizado, mas sempre resignificado a partir da realidade local. H os cdigos
que so prprios do grupo local, numa criatividade inerente aos grupos at
mesmo
nos
pequenos
gestos,
como,
por exemplo,
na forma
de
se
cumprimentarem.71
Concluindo, podemos dizer que o Mscara Negra, o Raiz Negra e o
Processo Hip Hop se inserem em uma rede de relaes mais ampla, uma
70
A lista de nomes dos grupos entrevistados na pesquisa telefnica se encontra anexa, junto com os nomes
de grupos de outros estilos. muito interessante a relao entre o nome e o estilo, o que daria uma rica
anlise que no cabe nos limites deste trabalho.
144
71
Entre os rappers em Belo Horizonte, h uma regra implcita na qual qualquer um que chegue em uma roda
tem de cumprimentar a todos. E o fazem com uma forma prpria, numa srie de movimentos com as mos
at terminar num aperto com as duas mos espalmadas.
145
A DJ Dani, a nica jovem branca que atuava nas festas de hip hop,
confirma isso, lembrando que teve maior dificuldade de se afirmar no meio por ser
branca do que por ser mulher. Os atritos existem mesmo entre aqueles que
compartilham o mesmo gosto pelo rap, como vimos nas crticas que os rappers
dirigem aos freqentadores das festas do Estrela. Da mesma forma que os
72
Essa categoria, mesmo j sendo utilizada por eles, popularizou-se a partir das msicas do "Os Racionais.
Em uma das suas letras, Fim de Semana no Parque, so descritos o lazer dos "playboys" e o lazer dos
pobres da periferia, demarcando claramente as diferenas de modos de vida.
146
com o rap eu fico querendo dar uma idia boa pra pessoa. o
cara, tipo assim, escutar a msica, quando eu falo: Meu filho vai
crescer e vai ser negro tanto quanto qualquer mestio, eu me
orgulho disso, e o cara saber que a me dele negra e o pai
branco, e ele saber que ele negro e gostar disso...
147
148
para
pago hoje, passa fome amanh...). Mas a periferia tambm aparece como uma
forma de identificar o seu universo, o dos seus amigos, o do seu pblico, uma
reafirmao do lugar onde esto os amigos, onde vivem ( um aviso: Etelvina
Carneiro, Serra Verde, Parque So Pedro, Venda Nova a nossa rea e no
temos galho, aonde a gente chega, a gente tem chegado...). Essa mesma
tendncia foi constatada por HERSCHMANN (2000:235), que comenta: reas
antes perifricas no espao urbano so relocalizadas e, assim, de excludos, os
atores que vivem nesses lugares passam a ser sujeitos, protagonistas da cena
urbana.
Reflete tambm uma caracterstica mais ampla da prpria cultura juvenil,
que tende a transformar os espaos fsicos em espaos sociais, pela produo de
estruturas particulares de significado. Podemos ver isso no sentido que atribuem
rua, s praas, que, muitas vezes, aparecem como palco para a expresso da
cultura que elaboram, numa reinveno do espao. Podemos afirmar, com PAIS
(1993:96), que as culturas juvenis, para alm de serem socialmente construdas,
tm tambm uma configurao espacial.
Dessa forma, o estilo de vida rap possibilita a esses jovens reelaborar a
experincia social imediata em termos culturais, traduzida em forma de
autoconscincia diante do processo de segregao espacial e dos preconceitos
sociais e raciais que se acirram em Belo Horizonte, possibilitando a construo de
uma identidade positiva como pobres e negros.
Mas os depoimentos deixam muito claro que morar na periferia significou,
para grande parte dos jovens, viver em um espao liminar, entre duas ordens
sociais diversas o da ordem instituda, das instituies e o da criminalidade,
cada qual com valores e regras prprios. Muitos deles conviveram com o mundo
do crime, com a seduo das drogas, com as promessas de dinheiro fcil
acenadas pelo trfico. As experincias foram vividas ora em um espao, ora em
outro, ora em ambos ao mesmo tempo, em escolhas que podem ser fatais. Diz
uma letra do grupo Caadores de Almas:
Porradas da vida a verdadeira escola
Nas ruas de terra conquistei o meu diploma
Os professores, os malandros e os camaradas mais velhos
Aprendia de tudo desde o errado ao certo
Dois caminhos andam juntos mas no se misturam
150
Nessa mesma direo, Joo considera: Pra mim o rap contribuiu em uma
porrada de coisa, bicho. Sou sobrevivente at hoje, uai. Nunca matei ningum,
nunca roubei ningum. No Brasil isso foda, difcil demais. No me envolvi com
esse trem de drogas, essas coisas assim. No envolvi com vagabundagem, c
entendeu? muito expressivo um jovem de 22 anos
considerar-se um
152
Captulo 2
O FUNK MINEIRO
73
154
grupos investindo em uniformes, o que pode nos dar uma idia da importncia
que tais promoes assumiam na poca. Havia grupos que percorriam o circuito
dos bailes participando de todos os concursos que apareciam.
Nesse perodo j existia a prtica de os jovens de um mesmo bairro ou
regio se deslocarem juntos para os bailes, mas de forma espontnea, sem
nenhum sentido de organizao ou carter belicoso. Todos reforam que no
havia ainda nenhum clima de violncia entre os jovens. J ocorriam brigas
ocasionais nos bailes, mas eram fatos isolados, que no tinham nenhuma relao
com a identidade territorial (Nada que influenciava o baile da semana que vem).
Podemos ver que desde essa primeira fase do funk j se fazia sentir a
influncia do funk carioca nos bailes mineiros, embora menor que aquela que
iremos observar nas fases subseqentes.74 A influncia maior era na trilha
musical, com os DJs locais pautando-se pelos gneros que faziam sucesso no
Rio, e que, a partir do final da dcada de 80, se faz sentir de forma mais visvel.
quando podemos identificar uma segunda fase do funk.
Nesse perodo comea a ocorrer um processo de nacionalizao do funk.
Alguns autores atribuem ao DJ Malboro a iniciativa nessa direo, ao gravar o
primeiro disco de funk nacional o Funk Brasil I em 1989, que, com a grande
vendagem, se desdobra em vrias edies. No Rio, o funk passou a ocupar um
lugar na indstria do lazer, favorecendo uma ampliao dos espaos nas rdios
comerciais e nos programas de televiso, com o aumento da vendagem de
discos, alm da edio de revistas especializadas. Outra novidade foi o
progressivo envolvimento de jovens de classe mdia com os bailes funk, fazendo
deste um elemento de integrao entre o morro e o asfalto. Como afirma
CECHETTO (1997: 52), no incio da dcada de 90 deu-se um movimento de
rearrumao de papis, com o desenvolvimento rpido da comercializao e a
expanso da base social do funk como indstria cultural.
Nesse processo, diversificaram-se os atores, e a cena funk se concretizou
a partir da ao de empresrios, donos de equipe, DJs, MCs e o pblico que
freqentava os bailes, as chamadas "galeras". Surgiram as duplas de funk, ou os
MCs, tanto nos discos quanto nos shows em bailes, passando a ocupar um lugar
importante nesse cenrio cultural, abrindo, assim, possibilidades para que os
157
jovens das periferias pudessem fazer sucesso nos bailes e na televiso, fazendo
do funk um espao de elaboraes de projetos de futuro, atravs do sonho com a
carreira musical.
Como o funk carioca o modelo no qual os jovens mineiros se miram para
elaborar o estilo na cidade, torna-se necessria uma rpida descrio de como
ele se caracterizava na dcada de 90, com nfase nas galeras e nos tipos de
bailes.75
No Rio, as galeras, fenmeno j presente na dcada de 80, so um
agrupamento de jovens, estruturado fundamentalmente sobre atividades ligadas
ao lazer, tendo como referncia uma territorialidade, apesar de no haver uma
delimitao clara dos seus contornos, podendo pertencer a vrios bairros
vizinhos, por exemplo. Possuem uma certa organizao, com a presena de
lideranas internas, mas ningum ostenta a condio absoluta de chefe. O que as
caracteriza de fato serem um agrupamento de jovens voltados para o prazer, o
divertimento, a fruio de sensaes, tanto as proporcionadas pela dana quanto
as derivadas das brigas entre grupos. Nesse sentido, as anlises existentes
frisam que, apesar de algumas similaridades, no possvel identificar o
fenmeno das galeras com as gangues americanas. Seriam mais uma forma
hbrida, com a mistura de referncias e smbolos difundidos pelo modelo
americano, mas que so incorporados de forma variada e dinmica, montadas por
meio de intercruzamentos culturais (CECHETTO, 1997; HERSCHMANN, 2000).
Geralmente com as galeras que os jovens cariocas freqentam os bailes.
Os bailes podiam ser divididos em trs categorias: o "baile de clube"
(tambm conhecido como "baile com corredor"), o "baile normal" e o "baile de
comunidade". As diferenas entre eles est na articulao do binmio espao e
tempo de confronto entre as galeras.
Baile de clube: segundo Cechetto (1997), a briga organizada, sendo o
espao do baile dividido em territrios para que as galeras se confrontem
abertamente. As galeras se dividem entre o lado A e o lado B; os jovens formam
uma figurao mais ou menos ordenada em torno de uma linha imaginria, que
serve para separar os amigos e os inimigos, e na qual ficam os seguranas que
74
Para maiores detalhes sobre a realidade do funk carioca na dcada de 80, ver VIANNA (1987).
158
75
Para maiores detalhes sobre o funk carioca ver CECHETTO, 1997; HERSCHMANN, 1997; 2000; VIANNA,
1987; 1997, dentre outros.
76
O grito de galera" uma colagem de sons e rudos, acompanhado por um refro que identifica e exalta a
turma de um determinado bairro ou regio. uma das formas de "montagem", apropriao de uma srie de
trechos de msicas, quase sempre miami, acompanhada de um refro qualquer que, geralmente,
cantada em coro pelos jovens nos bailes.
159
160
o passinho de fora.
hoje. Mas no dava
danava certinho o
era uma zoao...
77
No Rio, o bonde tinha um sentido mais amplo, significando a reunio de galeras amigas nos bailes,
mesmo que de regies diferentes, que se unem para as brigas ali existentes. Para maiores detalhes ver
Cechetto (1997) e Herschmann (2000).
164
165
Com o surgimento das "montagens", cada galera passou a ter o seu "grito
de galera", que iam bradando desde a formao do bonde. Estavam criadas as
condies propcias para o surgimento das brigas de galera nos bailes. Os
depoimentos reforam que em Belo Horizonte nunca existiu uma organizao das
brigas, como os bailes de corredor, os conflitos ocorrendo durante os bailes,
principalmente quando o DJ colocava as montagens de cada galera. Apesar de
serem duramente reprimidas pelos seguranas, havia um certo estmulo por parte
dos organizadores dos bailes, medida que permitiam que os DJs veiculassem
as montagens, o primeiro passo para a briga, no deixando de ser uma forma de
"animar" o baile.
Em 1997, os embates j eram uma realidade presente nos bailes funk. As
montagens se tornaram mais violentas, estimulando os confrontos entre as
galeras. Os bailes comearam a se tornar um lugar no s para danar, mas
tambm para brigar.
pessoas. Passou a contar com uma programao dedicada ao funk desde 1995, e
freqncia maior de jovens pobres da regio leste e centro-sul da cidade,
principalmente do Aglomerado da Serra. Por um bom tempo promoveram ali
periodicamente shows com MCs de sucesso do Rio, nas noites de sexta-feira,
nicos momentos que eram abertos espaos para os MCs locais. Como o
Hipodromo, apesar de menores, havia a Phoenix, situada estrategicamente no
corredor de trnsito da regio noroeste e freqentada pelos jovens dali, ou ento
a Studio 94, situada na regio industrial do Barreiro. Entre 1995 e 1998 eram
veiculados alguns programas de funk nas rdios comerciais em Belo Horizonte,
como o Big Mix, o Big Show e o de maior audincia que era o Extra Beat, o nico
que tocava os MCs da cidade. Nesse circuito, os jovens funkeiros eram o pblico
ou atuavam como coadjuvantes, sem maiores espaos na produo cultural.
J o circuito alternativo era semelhante ao rap, apesar de as funes
estarem muito centralizadas nos DJs, os principais atores nesse cenrio. Eram
responsveis pela animao nos bailes, os condutores de programas de funk em
rdios comunitrias, mas tambm exerciam o papel de produtores culturais,
promovendo bailes em pequenas quadras ou escolas pblicas. Alm disso,
muitos deles funcionavam como produtores musicais, com um pequeno estdio,
no qual atuavam as bases musicais para os MCs.
O DJ Vtor78 constitui um bom exemplo. Ele tem 34 anos, casado,
estudou at a 8a srie e desde os 21 atua como DJ. Em 1998, alm de conduzir
um programa em uma rdio comercial, era contratado por uma das grandes
danceterias, onde fazia discotecagem aos domingos. Segundo ele, tanto na
discoteca quanto nos bailes que promovia, tinha um pblico fiel, que sempre o
acompanhava nos locais onde tocava. Para ele, o bom DJ tem de ter uma boa
tcnica e muita sensibilidade, sentindo o lugar onde est para colocar as
msicas de acordo com o tipo de pblico presente (Eu trabalho com o olho e o
corao na pista).
Tinha tambm uma pequena produtora musical, a Funk Music. O fato de ter
um programa de rdio com muita audincia, tocando os MCs locais, fazia dele o
produtor mais procurado pelas duplas que tinham a esperana de ver suas
78
168
msicas tocadas em seu programa. Para se ter uma idia da vitalidade desse
mercado, entre janeiro e agosto de 1998 ele produziu 381 msicas de funk.
Possui quatro equipes completas de som, trabalhando como contratado
e/ou promovendo bailes, tanto na periferia de Belo Horizonte quanto em cidades
do interior. Alm disso, possui uma equipe de MCs, que canta em seus bailes,
escolhidos entre aqueles que o procuram para gravar e que apresentam um maior
potencial. uma relao de exclusividade: quando um MC se apresenta em uma
festa de outro DJ, considera-se o fato uma traio grave, e ele geralmente
desligado do seu grupo. Vtor mantm com eles uma relao de "troca" (desigual):
faz a produo de suas msicas de graa, divulga-os em seu programa, cede o
uniforme da Funk Music para os shows. Por sua vez, os MCs atraem o pblico
para as suas festas e no recebem nada pelas apresentaes que realizam,
motivados apenas pela divulgao, que significa participar da sua equipe. Mas
nem sempre uma relao harmnica, ocorrendo muitos atritos, sendo acusado
por muitos de explorar o trabalho dos cantores. Talvez isso explique a rotatividade
entre os MCs da sua equipe. A trajetria bem-sucedida do DJ Vtor, no entanto,
no pode ser tomada como a regra na cena funk. Poucos DJs conseguiram se
profissionalizar como ele, tendo de dividir suas atividades musicais com outros
empregos para garantirem a sobrevivncia.79
Fica claro que existe uma especificidade da cena funk em relao cena
rap. Apesar de esta ser mais restrita e precria, apresenta um maior grau de
autonomia, possibilitando aos prprios jovens assumirem o controle do que
chamamos de "linha de montagem musical". J o funk controlado em parte por
empresrios culturais e, mesmo no circuito alternativo, tem o poder muito
concentrado nas mos dos DJs. Isso faz com que os jovens funkeiros tenham um
espao mais restrito de atuao, alm de dependerem muito dos DJs at mesmo
na produo musical, como veremos adiante. Mas, do ponto de vista da produo
cultural das duplas, a "linha de montagem" semelhante do rap. Geralmente as
79
O DJ Lico pode ser tomado como exemplo mais comum. Ele tem 29 anos de idade e discotecrio h dez
anos. Durante todo esse tempo dividiu esse trabalho com os mais variados bicos. Em 1998 ele conduzia
um programa de funk em uma rdio comunitria na regio de Venda Nova. Ele no recebe nenhum salrio
da rdio, mas pode ficar com 50% dos patrocnios que conseguir para o seu programa. Alm disso,
contratado por uma discoteca na regio, ganhando R$ 60,00 por noite. Mesmo no possuindo uma equipe
de som, atua tambm como produtor cultural, promovendo periodicamente bailes em quadras e escolas
pblicas da regio. Apesar de ser menos estruturada, ele tambm tem a sua equipe de MCs, com os quais
mantm a mesma relao de "troca" existente com o DJ Vitor.
169
duplas iniciam cantando sobre uma base musical "comprada". Muitos ficam nesse
estgio, mas aqueles que se envolvem mais com o estilo passam a procurar um
dos DJs conhecidos para fazer sua base musical. No funk a produo geralmente
mais simples e, dependendo da qualidade do DJ, possvel gravar uma msica
at por R$ 40,00. O passo seguinte conseguir entrar em uma equipe, o que
quase uma condio para se apresentar em um show maior, a ponto de vrios
MCs afirmarem que, se no estivessem ligados a alguma equipe, no
conseguiriam espaos para mostrar suas msicas, assim como teriam
dificuldades de veicul-las nos programas das rdios comunitrias, onde tambm
ocorre um certo controle. Como esses programas so conduzidos na sua maioria
por DJs donos de equipe ou ligados a uma delas, tendem a divulgar apenas os
MCs a eles ligados. Por isso afirmamos que, na cena funk da cidade, o MC tende
a ser um ator coadjuvante.
Em 1998, o estilo funk vivia um momento de descenso em Belo Horizonte,
com um refluxo do pblico e dos bailes, o que pode ser atribudo ao processo de
estigmatizao do funk em curso, aliado grande incidncia das brigas de
galeras e tambm ao sucesso do pagode no momento, que atraa um grande
nmero de jovens para danar nos bares e espaos abertos, onde podiam se
divertir sem pagar entrada. Algumas danceterias deixaram de ter bailes funk na
sua programao, substituindo-os pelo pagode, como foi o caso da Studio 94.
Outras, como a Hipodromo, reduziram sua programao de bailes, que passam a
ocorrer apenas em matins, nas tardes de domingo, tambm preenchendo a sua
programao com outros estilos. Esse refluxo tambm ocorreu nos bailes
promovidos
nas
periferias,
principalmente
quando
as
escolas
pblicas
171
comanda a festa e d o seu ritmo. Apenas uma quadra estava iluminada, com
jogo de luzes, enquanto a outra ficava semi-iluminada, com vrios casais
espalhados em p ou sentados pelo cho. o lugar do descanso e,
principalmente, do namoro.
Ao lado da quadra da festa h um palco e, ao seu lado, uma escada que d
para um corredor largo, com uma mureta de onde possvel acompanhar toda a
movimentao nas quadras. Ali esto alguns escritrios e os vestirios, que
funcionam tambm como camarins, e o bar. Este corredor um lugar privilegiado
da "paquera", com moas e rapazes, em sua maioria em grupos separados,
transitando de um lado para o outro. Havia uma predominncia de homens,
grande parte negros. O visual era mais ou menos comum: muitos vestiam
bermudas ou calas largas, camisetas coloridas e longas fora das calas,
semelhantes as de times de futebol ou de basquete americanos, alm daqueles
que usavam a marca "Fubu", a coqueluche do momento. Muitos traziam brincos
nas orelhas, nos mais diferentes tamanhos. A unanimidade eram os tnis os
chinelos foram proibidos na casa e os bons. J as moas se vestiam com
roupas que acentuavam a sensualidade: calas ou bermudas muito justas, top ou
blusas com alas.
Era em torno de 22 horas e j haviam entrado, no local, mais de 1.500
jovens, o que, segundo Francisco, era a freqncia mdia. Naquele momento
tocava um miami, mas parecia ser o momento inicial de aquecimento, de
encontro, e na pista grupos danando se misturavam com outros, conversando
apesar do barulho ensurdecedor, jovens andando de um lado para o outro, outros
parados nas laterais observando. Flavinho, meu acompanhante, me mostrou um
grupo no canto da pista, explicando ser parte da galera DAC, do seu bairro, o que
parece mostrar que os vrios agrupamentos so de jovens do mesmo bairro. A
referncia espacial muito forte; quando se referem a algum, o nome do bairro
sempre citado para saber de quem se fala. Ali predominavam turmas dos bairros
da regio Norte e de Venda Nova.
Um pouco mais tarde tocou-se o hino do Atltico Mineiro em ritmo funk,
acompanhado por gritos e assovios, esquentando o ambiente, como a dar o sinal
de que o baile comeava de fato. A partir da, teve incio uma seqncia de funks
nacionais, fazendo com que a pista se enchesse de jovens danando. Quem
172
173
175
e o locutor ficou
80
Mas queremos deixar claro que as brigas no foram uma constante nos bailes que presenciamos (mais de
dez) e os depoimentos confirmam que, mesmo tendo aumentado a incidncia de embates nos bailes, elas
176
177
81
A primeira entrevista com a dupla foi realizada em agosto de 1998. Nessa mesma poca fui com eles a
alguns bailes no bairro e no Vilarinho, alm de assistir a uma apresentao da dupla. Mais tarde, realizei
uma entrevista individual com Flavinho. A partir de novembro de 1999 retomei contato com ele. A dupla se
desfizera, e ele estava com um novo companheiro, o Leo. Mantive vrios contatos com eles, freqentando
alguns bailes funk nas Quadras do Vilarinho, onde se apresentaram por duas vezes. Em abril de 2000,
acompanhei Flavinho por uma semana, realizando cinco entrevistas individuais. Nesse perodo mantive
contatos informais com Maninho, mas no realizei uma nova entrevista com ele.
178
179
181
82
182
Acabo esse rap marcando presena ento/ para esses bairros que
esto no meu corao/ em primeiramente eu falo do Monte Azul,
Floramar, Floresta, Venda Nova, Cu Azul. No Felicidade pra
sempre eu vou morar. Tem o Solimes, o Hava ou Paquet. L
em Matozinhos sempre um dia eu vou estar. Deixem de tristezas e
venham com Flavinho cantar...
que
183
185
187
A gente ia chegar, mostrar pra ele o trabalho e ver com ele: Ser
que a gente tem alguma chance? P, nem que no toque em
rdio, leva pra ouvir, quem sabe?
188
Conheci a dupla na primeira entrevista realizada em agosto de 1998. Naquela poca, eles estavam
passando por um momento de crise com o funk. Tinham se desligado recentemente da equipe do DJ Vtor
e no estavam ensaiando regularmente, nem fazendo apresentaes. Apesar desta situao, resolvi
mant-los na pesquisa, porque eram representativos de um momento pelo qual as duplas passam, o que ,
para muitos, o momento de abandono da carreira musical. Ainda em 1998, realizei uma entrevista
individual com Fred. Nesse mesmo ano a dupla se desfez. Em 2000, mantive pouco contato com os dois
jovens. Alm de alguns contatos informais, realizei uma nova entrevista individual com Fred.
189
Esse cara acabou pra mim, foi a que a gente viu que ele no
amigo de ningum, que ele s quer dinheiro, ele t no funk s por
dinheiro...
191
musical desses jovens. Como no costumavam comprar CDs, era por intermdio
do rdio que formavam um gosto e tinham acesso s novidades musicais.
Apesar do cotidiano rotineiro, dividido entre a escola e os amigos, eles
diziam gostar do seu dia-a-dia, no explicitando nenhum desejo de alguma
atividade diferente, a no ser o sonhado emprego para Fred. Os finais de semana
j eram mais agitados.Os ensaios geralmente ocorriam aos sbados, quando era
comum encontrarem com outros MCs da regio para treinarem juntos. Segundo
eles, at h alguns meses atrs costumavam freqentar muito os bailes funk nos
finais de semana. s sextas e aos sbados, quando no se apresentavam, iam
com o Comando Noroeste, a "galera" do bairro, para os bailes na regio ou
mesmo no Vilarinho. Isso quando no havia festinhas no prprio bairro ou mesmo
festas de rua. Domingo era o dia de pagode, participando das matins
promovidas por uma danceteria da regio.
Na poca esta rotina estava um pouco mudada para Fred. Ele tinha
comeado a namorar "firme", para cimes de Marcos, e voltou a freqentar a
igreja Batista da qual tinha se afastado. O seu programa passou a ser a ida aos
cultos, que se realizavam aos sbados e domingos noite, com a namorada.
Com isso, afastou-se dos bailes, aos quais s ia mesmo quando tinha de fazer
algum show. At ento a namorada no implicou pelo fato de ele cantar; ao
contrrio, o incentiva.
Marcos
Fred
contam
que
eram
muito
conhecidos
no
bairro,
193
O nosso bonde sempre na hora que a gente via que o bicho tava
pegando a gente mesmo falava: Vamo embora, vamo tirar o time
de campo, e eles pegavam e saam atrs da gente...
195
Dar entrevistas era outra coisa de que gostavam. Naqueles dias haviam
participado de um programa na rdio comunitria do bairro, dizendo que
receberam muitos telefonemas de fs, o que os deixava felizes. Eles enfatizavam
muito os momentos em que podiam mostrar o produto do trabalho que
desenvolviam, como nos shows ou na rdio, como situaes que reforavam a
auto-estima, sentindo-se criadores e sendo reconhecidos como tais.
Depois que saram da Funk Music, praticamente no se apresentaram
mais. Estavam tentando articular-se com as duas rdios comunitrias da regio
para promover um baile, mas ainda no havia nada acertado, tendo dado uma
entrevista naqueles dias. Naquele momento, assim como Flavinho, avaliavam que
o funk em Belo Horizonte estava passando por um momento de baixa, diminuindo
o nmero de bailes e a freqncia do pblico.
196
Foi uma fase que passou, acabou, foi uma fase muito boa... foi um
momento de adolescente, de diverso mesmo ali, a passou, no
deu certo, vamos partir pra outra...
84
A deciso de incluir o grupo Os Cazuza na pesquisa foi muito motivada pelo fato de eles estarem tentando
a sorte no Rio de Janeiro, uma realidade sonhada por muitas duplas, alm de corresponderem aos critrios
j definidos. Em 1998, foi realizada uma entrevista coletiva com o grupo, se concentrando mais na
realidade do grupo e suas perspectivas. Neste perodo da pesquisa eles no fizeram nenhum show em
Belo Horizonte. Em 2000 mantive alguns contatos informais e realizei uma nova entrevista com Ronei e
Rogrio, alm de assistir a um show do grupo.
199
emprego esto
201
202
Mas admitem uma predileo pelo pagode que, segundo eles, vem
acompanhado do funk (Todo pagodeiro funkeiro e todo funkeiro pagodeiro...).
203
estilo deveria ser de acordo com o mercado, com as modas do momento, ou seja,
aceitando as regras impostas pelo mercado cultural.
Mas eles insistem em dizer que essas mudanas de estilo so mais uma
estratgia do que a negao da origem funk, comum a todos. Eles j sentem a
diferena ao ouvirem a ltima msica do grupo (Felicidade), que foi tocada na
rdio 98FM, uma rdio comercial que no toca funk. Para eles, ter uma msica
tocando em uma rdio comercial o primeiro passo para se tornarem conhecidos
de fato, no dando muito valor s rdios comunitrias, que tm sua audincia
limitada.
Em 1998 o grupo fez poucas apresentaes, em parte por causa do
constante ir-e-vir do Rio, em parte porque decidiram no mais cantar sem receber
um cach.
204
nos
Ele dizia ser possvel conciliar o trabalho para sobreviver e o sonho com a
msica, posio que no era compartilhada por Ronei, que vivia um outro
momento:
208
209
funk melody, uma verso mais melodiosa, com batidos mais leves. Era a msica
dominante em 1998. Outro tema constante so os prprios bailes e sua animao
(Baile funk noite dia, paz e alegria pra todos danar, danar. Curtam a nossa
fantasia, baile funk noite e dia, mais um jeito de brincar). Mas tambm havia letras
que abordavam temas jocosos de situaes ocorridas na cidade, alm de
exaltao das diferentes galeras. Outra caracterstica presente em muitas letras
era a exaltao da paz e a crtica s brigas, numa resposta possvel s situaes
de violncia que ocorriam nos bailes. Chama ateno tambm a nfase que do
ao territrio. Praticamente todas as letras terminam fazendo referncias ao bairro,
numa espcie de homenagem a seus locais de origem, o que pode ser visto como
um desejo de reconhecimento, de reinscrio do seu mundo na cidade.
Podemos ver que os temas expressam de alguma forma aspectos da
experincia juvenil que consideram importantes: a descoberta do amor, o grupo
de amigos, o lazer, no deixando de ser
213
O funk me trouxe dois CDs com msicas nossas que vo ficar pra
histria... com eles a gente ficou conhecido em Belo Horizonte. Eu
curto alto o cedezinho nosso, bom demais voc ouvir sua voz...
Quando eu tiver meu filho, eu vou poder mostrar pra ele e dizer
que o papai t aqui (apontando para o CD)...
214
Todo esse processo fez com que fossem reconhecidos entre os amigos e
no bairro como MCs, trazendo mais "moral":
O pessoal viu que a gente tem aquele dom, um dom que Deus d
pra gente de expressar na msica e passou a olhar a gente com
outros olhos... o pessoal passou a respeitar mais a gente...
215
nesse sentido que o baile pode ser visto como um ritual:85 agregando
pessoas, permitindo a experincia de sentir e experimentar em comum, fazendo
com que o indivduo se sinta parte de uma massa humana que se reconhece na
msica, que gesticula da mesma forma, no mesmo ritmo. O corpo torna-se o
protagonista de uma comunicao no-verbal que coloca a sensualidade e os
sentidos no centro da festa. uma forma de catarse de emoes, com um
vitalismo que conjuga efervescncia e paixo, numa intensificao dos desejos,
reforada pela exposio dos corpos.
J a violncia presente nos bailes uma questo delicada. importante
relembrar que no existe em Belo Horizonte o fenmeno dos "bailes de corredor",
como no Rio, nem as brigas so to generalizadas, como se fizessem parte
constitutiva deles. Outro aspecto que os depoimentos ressaltam que grande
parte delas so causadas por questes trazidas de fora, independentes do baile,
podendo ser acerto de contas entre jovens ou mesmo disputas territoriais entre as
galeras. Geralmente nessas brigas no se utilizam armas de fogo ou instrumentos
cortantes, no havendo notcias sobre alguma morte nelas gerada.
Inicialmente, no podemos dissociar as manifestaes de violncia nos
bailes das formas mais amplas da prpria violncia juvenil, fenmeno que vem
216
85
Estou utilizando o termo ritual de forma mais difusa, sendo, portanto, aplicvel aos campos da vida no
religiosa, mas dizendo respeito ao comportamento comunicativo e "mgico".
217
220
com muito sacrifcio. Alguns depoimentos nos falam de jovens que, quando
chegam aos bailes, trocam o tnis velho por um novo apenas para danar ali,
retirando-o depois do baile para "no gast-lo". VIANNA (1987:104) j constatava
essa mesma tendncia entre os funkeiros cariocas na dcada de 80: No caso do
baile funk, os vrios elementos que compem o estilo de vida dos danarinos s
se integram totalmente por ocasio da festa. Um aspecto que chama a ateno
so os cabelos. No comum ver, nos bailes, jovens utilizando cortes ou
penteados afro, diferentemente dos rappers, que enfatizam por meio dos cabelos
uma reafirmao da negritude. Isso parece reforar a nossa constatao de que
no existe uma relao direta entre o funk e uma identidade tnica.
Para alguns deles, o funk tambm uma forma de ser e se colocar no
mundo, como bem expressa Marcos:
221
Entre os autores que discutem a relao entre o funk e a identidade tnica, ver VIANNA (1987), CUNHA
(1997), SANSONE (1997) e HERSCHMANN (2000).
222
marco identitrio que contribui para que esses jovens possam vivenciar e se
afirmar como sujeitos numa determinada fase da vida.
A trajetria desses jovens evidencia que o funk foi o meio que encontraram
para demarcar uma distncia com o mundo adulto, construindo espaos
autnomos de sociabilidades. Foi um, dentre outros elementos agregadores, por
meio do qual construram uma rede de relaes sociais a partir das galeras dos
bairros de origem, respondendo, assim, a uma necessidade de pertencimento
coletivo diante da fragmentao das instncias sociais. Possibilitou a experincia
de relaes de confiana mais densas, pela formao das duplas, que constitui
um espao privilegiado de construo de identidades individuais. Mesmo sendo
um espao coletivo mais restrito, a dupla no deixou de significar um espao de
aprendizagem de relaes coletivas, lidando com os conflitos e com a sua
constante rotatividade.
A essas dimenses tpicas da condio juvenil, temos de considerar
tambm que o funk proporcionou a esses jovens um dos poucos espaos no qual
puderam descobrir e treinar suas potencialidades como criadores musicais. Como
MCs, esses jovens puderam se colocar na cena pblica como artistas,
possibilitando a construo de auto-imagens positivas.
Finalmente, uma ltima dimenso que est presente a questo dos
projetos. Assim como o rap, o funk no vem respondendo s necessidades de
sobrevivncia desses jovens. O caso de Fred e Ronan evidencia que, com o
passar da idade, quando comeam a se deparar com as demandas prprias do
mundo adulto, com a perspectiva do casamento ou mesmo com o nascimento dos
filhos, a tendncia deles afastar-se das atividades ligadas ao estilo. No tanto
por gosto, mas como uma necessidade diante da qual no vem muitas
alternativas. Tal como analisamos no rap, evidencia-se no funk uma das lgicas
perversas presentes na sociedade brasileira, que permite e estimula a vivncia do
estilo, numa ampliao de sonhos e desejos, mas no fornece meios nem
facilidades que possibilitem a sua viabilizao profissional no mercado cultural.
E isso parece ser mais presente no funk do que no rap. Pelas prprias
caractersticas fluidas do estilo, o funk mais facilmente elaborado pelos jovens
como uma fase da vida, da qual se distanciam quando se percebem como
223
adultos. Tanto que o nmero de funkeiros mais velhos e/ou casados muito
menor do que no rap. Mas, enquanto continuam ligados ao estilo, este se coloca
como espao de elaborao de projetos. Todos sonhavam em tornar-se artistas e
gravarem CDs por meio dos quais pudessem ser reconhecidos nacionalmente. Na
formulao do sucesso que pretendiam, fica evidente, entre os funkeiros, a
adeso maior aos mecanismos da indstria cultural, quando todos apontam como
meta aparecer nos programas populares de televiso, como o do Gugu e o da
Xuxa. Para muitos, esse sonho foi forte o suficiente para faz-los resistir aos
acenos do mundo da criminalidade, como diz Flavinho:
Para uns, o projeto com o funk teve uma durao mais curta, como Fred e
Marcos, que abandonaram o estilo. Outros continuam insistindo, como Os Cazuza
e Flavinho e Leo. Na formulao dos projetos, podemos notar que, entre os
funkeiros, aqueles se apresentam com um arco temporal ainda mais curto do que
no rap, reforando a nossa hiptese do funk como parte de uma identidade juvenil
que tem como tendncia a vivncia do presente. Por meio do funk, todos
formulam o desejo de uma vida mais digna, na qual possam contribuir para dar
maior conforto s famlias. Mais curto para uns, mais longo para outros, o funk
significou um rumo, uma esperana e um sentido de vida, o que muito para
esses jovens condenados a uma vida sem sentido e sem esperana.
Podemos concluir afirmando que o funk, com todas as suas ambigidades
e limites, constitui um dos poucos espaos em que esses "jovens proibidos de
ser" podem vivenciar minimamente a sua condio juvenil. Nesse sentido, o estilo
torna-se uma forma pela qual cada um reivindica, sua maneira, o direito de ser
jovem, de viver essa fase da vida como um momento rico no seu processo de
construo como sujeitos.
224
Captulo 3
AS EXPERINCIAS SOCIALIZADORAS E AS FORMAS DE
SOCIABILIDADE DOS SUJEITOS
225
227
concluir
que
pleno
desenvolvimento
ou
no
das
87
Elvira LIMA (1997), por exemplo, nos mostra que o desenvolvimento do crebro e seu funcionamento no
se restringem a um amadurecimento biolgico, mas dependem de fatores de ordem cultural e da
organizao social, do trabalho e das atividades de lazer. O crebro se forma na dinmica cotidiana das
relaes do indivduo com o meio.
228
recursos de que dispem. essa realidade que nos leva a perguntar se esses
jovens no estariam nos mostrando um jeito prprio de viver.
Quando cada um desses jovens nasceu, a sociedade j tinha uma
existncia prvia, histrica, cuja estrutura no dependeu desse sujeito, portanto
no foi produzida por ele. Assim, o gnero, a raa, o fato de terem como pais
trabalhadores desqualificados, grande parte deles com pouca escolaridade,
dentre outros aspectos, so dimenses que vo interferir na produo de cada um
deles como sujeito social, independentemente da ao de cada um. Ao mesmo
tempo, na vida cotidiana, entram em um conjunto de relaes e processos que
constituem um sistema de sentido, que diz quem ele , quem o mundo, quem
so os outros. o nvel do grupo social, no qual os indivduos se identificam pelas
formas prprias de vivenciar e interpretar as relaes e contradies, entre si e
com a sociedade, o que produz uma cultura prpria.
O nosso contato com esses jovens, bem como as suas trajetrias que
analisamos at ento, deixam muito claro o aparente bvio: eles so seres
humanos, amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito de suas condies e de
suas experincias de vida, posicionam-se diante dela, possuem desejos e
propostas de melhoria de vida. Acreditamos que nesse processo que cada um
deles vai se construindo e sendo construdo como sujeito, um ser singular que se
apropria do social, transformado em representaes, aspiraes e prticas, que
interpreta e d sentido ao seu mundo e s relaes que mantm.
Essa concepo se contrape a um imaginrio muito presente na nossa
sociedade, que os v como violentos ou marginais, ou, quando muito, carentes.
Essa compreenso reforada por uma postura terica existente em vrios
estudos, que supe que a sociedade tem seus valores, normas, projetos de
sociedade e de ser humano articulados e harmnicos, bem como as agncias
responsveis pela sua difuso. Mas, "infelizmente", as condies de vida
"interrompem" ou "desviam" esses jovens desse processo "pacfico" e normal.
Dessa viso, muito fcil concluir que os jovens pobres so desviantes, sem
valores, sem cultura, (e por que no?) pr-humanos. Mas o que as trajetrias
desses jovens parecem nos mostrar que, nos limites dos recursos a que tm
acesso, eles vivenciam processos riqussimos de socializao, mesmo que no
sejam os tradicionais, elaboram valores, representaes, identidades, constituem229
Durkheim,
as
reflexes
sociolgicas
sobre
socializao
230
identificam-se
com
eles,
transformando-os
em
seus
prprios
231
clssica
para
compreenso
dos
processos
socializadores
encontramos uma relao na qual o fim a prpria relao, o que vale a pura
forma e por meio dela que se constitui uma unidade. No campo da
sociabilidade, os indivduos se satisfazem em estabelecer laos, e esses laos
tm em si mesmos a sua razo de ser. o que vemos acontecer nas relaes
que os jovens pesquisados estabelecem com o grupo de pares, sejam eles os
"chegados" do hip hop ou a galera do funk. Principalmente entre estes ltimos, em
que no existe nenhum compromisso a no ser o estar juntos.
Para SIMMEL,1983:179, a sociabilidade um jogo de formas e por meio
dessas formas que so utilizadas como elementos da vida:
Ao fazer a analogia entre arte e jogo, Simmel mostra que ambas as formas
foram desenvolvidas pelas realidades da vida e criaram esferas que preservam
sua autonomia em face dessas realidades. o fato de serem originadas na vida
que lhes d profundidade e fora, e quando so esvaziadas de vida tornam-se
um artifcio e um jogo vazio. A fora da arte e do jogo est nesta inverso. As
formas engendradas pela vida separam-se e tornam-se, elas mesmas, a
finalidade e a matria de sua prpria existncia: o jogo, a arte e a sociabilidade
existem por si mesmos, sem outra finalidade a no ser o jogo, a arte ou a relao.
Ao mesmo tempo, distanciando-se, a sociabilidade se alimenta de uma relao
profunda com a realidade. na sua "irrealidade" que ela se manifesta da forma
mais autntica sob o aspecto de representao do real. Nesse sentido, as formas
de sociabilidade que os jovens pesquisados vivenciam, na sua irrealidade, devem
ser entendidas como expresso simblica da realidade na qual se inserem.
nesse contexto que Simmel considera a sociabilidade como a forma de
jogo de sociao. Refletindo sobre essa analogia, WAIZBORT (1996) acentua a
dimenso de movimento presente na constante aproximao e afastamento. Para
235
ele, quando se fala em jogo, est implcita a idia de um ir-e-vir constante, o jogar
das ondas, por exemplo, em que h um movimento contnuo que no est ligado
a uma finalidade ltima. Sua finalidade o prprio movimento, sendo assim autoreflexivo. Ao mesmo tempo, o jogar exige sempre outro para jogar junto. Portanto,
ao enfatizar o carter de jogo da sociabilidade, parece que Simmel quer reforar
a sua dimenso como dinmica de relaes.
A conversao um exemplo. Nas formas de interao, diz o autor, os
indivduos conversam em razo de algum contedo que queiram comunicar. Na
sociabilidade, o falar torna-se o prprio fim, o assunto simplesmente o meio
para a viva troca de palavras revelar seu encanto. a arte de conversar, com
suas leis artsticas, fazendo dos sales um espao de exerccio da razo
comunicativa. um jogo, e um "jogo com". Apesar de ser outro contexto, a
conversao assume para os jovens um papel muito importante, tornando-se
uma das motivaes principais dos seus encontros. O "trocar idias" de fato um
exerccio da razo comunicativa, ainda mais significativo quando encontram
poucos espaos de dilogo alm do grupo de pares.
Tal como na arte e no jogo, diz Simmel, a sociabilidade demanda uma
certa simetria e equilbrio, uma relao entre iguais. Mesmo que existam
diferenas, que no so muitas entre os jovens, uma vez que dominam as
relaes em um mesmo estrato social, "faz-se de conta" que estas no existem.
Simmel acentua que esse "fazer de conta" no mais mentira do que a arte e o
jogo so mentiras por causa do desvio da realidade, desde que dentro de suas
regras.
So esses aspectos que apontam para a natureza democrtica da
sociabilidade. Como se trata de um "jogar junto", de uma interao em que o que
vale a relao, cada qual deve oferecer o mximo de si para tambm receber o
mximo do outro. a dimenso do compromisso e da confiana que cimentam
tais relaes. Como no existe outro interesse alm da prpria relao, para ela
continuar a existir cada qual deve sentir que pode contar e confiar no outro,
respondendo s expectativas mtuas. Para garantir essa natureza, existem as
regras, como as do tato e da discrio, que atuam como auto-reguladoras das
relaes. Ao mesmo tempo existem as diferentes gradaes que definem aqueles
que so mais prximos (os "amigos de quarto") e aqueles mais distantes (a
236
"colegagem").
Quando
as
regras
so
rompidas,
facilmente
ocorre
88
J explicitamos, na introduo deste trabalho, os critrios para a escolha desses jovens, bem como as
condies das entrevistas realizadas. importante frisar que privilegiamos a idade, na faixa entre 18 e 22
anos, o grau de participao na cena musical em 2000 e tambm a empatia, o que facilitou a coleta dos
237
depoimentos. Os nomes e codinomes dos jovens e dos lugares so fictcios, para proteger a identidade dos
entrevistados.
238
Esse breve perfil denota que existe uma certa homogeneidade dada pela
mesma origem social as classes populares urbanas e pela fase da vida em
que se situam, podendo ser caracterizados, como j o fizemos nos captulos
anteriores, como jovens pobres. Isso implica a definio de um certo campo de
possibilidades comum a todos, mas que vai ser articulado e interferir na vida de
cada um de forma diferenciada, dependendo das condies concretas com as
quais se deparam, adquirindo significados prprios para cada um.
A seguir, traaremos as experincias socializadoras e as formas de
sociabilidade de cada um, comeando por Joo e terminando com Rogrio. No
foi nosso objetivo inicial recuperar a histria de vida desses jovens; porm, ao
serem solicitados para falar sobre as relaes que estabeleciam com a famlia,
com o trabalho, com a escola e com os amigos, houve uma tendncia, presente
mais em Joo e Rogrio do que em Flavinho, de recuperar o passado, permitindo
apreender as experincias anteriores adeso ao estilo. Assim, organizaremos a
descrio a partir do eixo temporal, considerando, como o tempo presente, o
momento da realizao das entrevistas em 2000. Dessa forma, o descompasso
existente entre os trs depoimentos , antes de mais nada, expresso do
momento de vida em que cada um se situa e do grau de elaborao que fazem
das prprias trajetrias. Outra opo tomada foi a de tentar, na medida do
possvel, deixar que os jovens se expressem por meio de seus depoimentos.
Mesmo correndo o risco de um texto mais pesado, isso possibilita que cada um se
revele no prprio discurso.
Como j assinalamos, tomaremos os trs jovens como fios condutores da
anlise, mas tentaremos estabelecer as relaes deles com os outros jovens
pesquisados, nas situaes em que se evidenciarem semelhanas ou diferenas
significativas, pontuando possveis trajetrias comuns nas relaes com as
instituies socializadoras, o que ser resgatado na sntese deste captulo.
aproximao dos espaos sociais pelos quais ele transita e as experincias que
vivencia.89 Nesses dias ele viveu entre a casa, o trabalho, ou sua procura, e em
atividades e relaes ligadas msica. Boa parte do seu tempo foi despendido
para garantir parte do dinheiro que tinha de contribuir nas despesas da casa. Era
o incio do ms e as coisas na sua casa estavam no arranhar a panela;90 essa
situao o punha de cabea quente, apesar de ele afirmar no ser nenhuma
novidade. Havia ainda uma conta de telefone para ser paga naqueles dias. Na
segunda-feira de manh foi serralheria onde trabalhara toda a semana anterior
e no recebera o salrio, equivalente a R$ 10,00 por dia. Mesmo assim, no
recebeu o dinheiro que lhe era devido, segundo ele, porque o dono estava
passando por uma crise financeira. Assim, resolveu correr atrs de grana, indo
cobrar de dois amigos a quem tinha emprestado certa quantia, mas tambm no
conseguiu o dinheiro, voltando de mos vazias. Ainda nessa manh foi fazer uma
entrevista no Banco do Povo,91 no qual estava pleiteando um emprstimo para
abrir uma pequena loja de discos e roupas ligadas ao hip hop.
Na manh seguinte, dirigiu-se s serralherias do bairro para ver se
encontrava algum bico para fazer naquele dia. Segundo Joo, chega na cara
dura e pergunta se tm servio extra que ele possa executar. Se o proprietrio
no o conhece, ele faz um teste de solda para comprovar a sua condio de
meio-oficial. Embora neste dia no tenha conseguido servio, na quarta-feira
surgiu uma encomenda na primeira serralheria. Trabalhou ali todo o dia,
recebendo tambm o salrio atrasado. noite, quando nos encontramos, estava
com o rosto um pouco queimado pelo calor das soldas que havia feito. Na quintafeira, saiu de novo procura de trabalho, conseguindo um servio no bairro, que
89
Os encontros com Joo se deram entre os dias 3 e 10 de abril de 2000. Foram cinco encontros em dias
alternados, de acordo com a sua disponibilidade, sempre noite. Eles ocorreram em diferentes espaos:
um no centro da cidade, trs na sua casa e um na casa do seu "pai-de-santo". Em todos eles a sistemtica
foi parecida. Inicialmente a conversa girava sobre o seu dia, quando me contava detalhes do que tinha feito
e com quem tinha se encontrado, tecendo comentrios sobre os fatos ocorridos no dia, permitindo abordar
os mais variados assuntos. Durante a conversa eu ia apenas tomando notas, sem grav-las. Em seguida,
passava a gravar a entrevista sobre o tema especfico. J havia definido previamente os temas a serem
abordados em uma certa seqncia, mas foi a conversa do dia, de acordo com a nfase em um ou outro
aspecto, que terminou definindo o tema a ser discutido em cada momento. Os encontros tiveram durao
variada, mas nunca menos de trs horas. Em alguns deles, antes ou depois da entrevista, acompanhei-o
em alguma atividade, como no programa de rdio ou ao centro da cidade.
90
Expresso que significa a falta de comida em casa.
91
Banco do Povo uma associao privada que mantm parcerias com instituies pblicas, tais como
Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais, SEBRAE, Clube dos Diretores Lojistas, etc., que oferece
apoio s microempresas por meio de emprstimos a juros baixos.
240
iniciaria no dia seguinte. Estava satisfeito porque iria receber R$ 12,00 por dia,
sem gastar com transporte, alm de poder almoar em casa. Outra vantagem
que no teria expediente nos sbados e feriados, liberando assim o seu final de
semana. Nesse tipo de trabalho no h contrato formal nem a carteira assinada.
Na sexta-feira acordou cedo e passou todo o dia no novo local de trabalho.
Joo envolveu-se tambm em atividades ligadas msica nesse perodo.
Ele tem um programa semanal de hip hop em uma rdio comunitria do bairro,
veiculado nas noites de sexta-feira. Apesar de ter estrutura simples, o programa
exige um investimento de tempo considervel para a montagem da programao
musical. A rdio possui um acervo muito pequeno de CDs, obrigando-o a uma
correria constante para conseguir msicas variadas, principalmente os ltimos
lanamentos. Em trs dias dessa semana ele foi ao centro da cidade, na Galeria
Praa 7, conseguindo, depois de muita insistncia, gravar um "minidisc" (MD) em
uma das lojas de discos. Como j vimos, nessa Galeria se concentram as lojas de
hip hop da cidade. um dos pontos de encontro dos rappers, representando um
espao significativo de sociabilidade. Em cada um desses dias, Joo gastou um
bom tempo passando, como numa via sacra, nas outras lojas existentes na
Galeria, conversando com os rappers conhecidos que ia encontrando. Nesses
momentos, trocou informaes sobre o movimento hip hop em Belo Horizonte, os
eventos que estavam sendo programados, os grupos que estavam gravando CDs,
teve notcias sobre o movimento em outros Estados, alm de jogar muita
conversa fora.
Foi um perodo em que no se encontrou com os membros do grupo,
porque no houve ensaios, s conversando com eles pelo telefone. Segundo
Joo, isto no era to comum, pois tinham o costume de encontrar-se pelo menos
uma vez durante a semana ou mais, quando havia ensaios. Ainda em relao
msica, estava preocupado com o andamento do contrato do seu grupo (o
Mscara Negra) com a gravadora independente Discovery, de Braslia, para a
qual telefonou duas vezes procura de notcias, sem obter nenhuma resposta.
Outra esfera vivenciada nessa semana foi a religiosa. Joo adepto do
candombl e, s teras-feiras, costuma freqentar a casa do seu pai-de-santo
para os rituais. O final de semana ele passou ajudando-o a construir uma nova
casa de candombl, em mutiro com os outros seguidores, em uma cidade da
241
243
O trabalho dos irmos mais velhos, e mesmo aquele dos mais jovens, se
coloca como parte de um conjunto de estratgias de sobrevivncia que envolvem
todos os membros da famlia. Apesar de a experincia do trabalho ser vivida
individualmente, a sobrevivncia organizada em termos da famlia, realizandose assim a reproduo do grupo domstico. Nessa direo, DURHAM (1980:204)
afirma que as famlias das camadas populares asseguram o consumo de duas
maneiras: primeiro, como unidade de rendimentos, ao colocar no mercado de
trabalho um ou mais membros que formam um fundo coletivo atravs da soma
dos salrios individuais, permitindo um certo padro de consumo; segundo, como
unidade de produo (de valores de uso), que se realiza tanto no tratamento a
mercadorias, adequando-as s necessidades, quanto em atividades (cozinhar,
passar, cuidar das crianas, etc.) necessrias para a sobrevivncia familiar.
Podemos dizer que, para esses jovens, a famlia se realiza como uma
instncia cultural, possibilitando a construo de uma viso de mundo prpria,
pela acumulao de experincias pessoais e da sua transmisso oral direta por
meio dos contatos interpessoais. A vo sendo socializados nos valores do
trabalho, da responsabilidade, da solidariedade, sedimentando laos afetivos.
um tecido denso de valores humanos com os quais vo-se construindo como
sujeitos.
Para Joo, assim como para a grande maioria dos jovens pesquisados nos
dois estilos, o trabalho foi uma realidade presente desde a infncia. Como vimos,
apenas Flavinho e Maninho no viveram a experincia de trabalho na
adolescncia. No geral, a maioria afirma ter ingressado no mercado de trabalho
entre 10 e 15 anos, com ocupaes tpicas de crianas e adolescentes pobres:
vender chup-chup ou picol, carregar sacolas em feiras, lavar carros e, quando
ficam um pouco mais velhos, muitos deles foram ou ainda so office-boys, ou,
como Joo, aprendiz de serralheiro.
Para muitos deles o trabalho era um meio de contribuir nas despesas
domsticas; mas no s isso. Como diz o Joo, eu gostava de gastar, sendo
comum a todos eles a importncia da grana para atender s necessidades de
consumo prprias da idade, como as roupas, o lazer, o namoro e, principalmente,
as festas. A ralao do trabalho era compensada pelo que ele possibilitava, como
vivncia da prpria condio juvenil. Nilson d o seu depoimento a respeito:
245
Para uma discusso sobre o trabalho juvenil, ver ABRAMO (1994); MADEIRA (1986); SPINDELL (1985),
246
principalmente se o jovem negro. Nilson, por exemplo, fala de quando era officeboy e seu patro, um turco racista, ficava pegando no meu p, falando que ia me
pintar de branco... Ou ento falam das relaes interpessoais com os colegas,
enfatizando o espao de trabalho na sua dimenso de sociabilidade. Ao mesmo
tempo, muitos deles reconhecem que por meio do trabalho ampliaram os espaos
em que circulavam para fora do bairro, possibilitando um certo domnio do espao
urbano. O trabalho aparece para eles na sua ambigidade: um espao de
regulao social, no qual vo convivendo com a lgica e o valores que visam
moralizao e ao disciplinamento dos pobres; mas tambm a condio para um
mnimo de autonomia no consumo e no lazer, possibilitando uma forma prpria de
viver a condio juvenil. Nesse processo vo descobrindo o lugar social de
subalternos a que so destinados.
247
identidade
comum,
havendo
mais
interesses
envolvidos
do
que
ou
delinqncia,
ou
simplesmente
pela
249
Mesmo afirmando no ligar para o visual nessa poca, esse um fato que
o marcou, quando hoje ele demonstra uma preocupao em exibir o visual rap
nos espaos pblicos.93
Aos poucos vo descobrindo que o break era uma das linguagens do
movimento hip hop , reforando o envolvimento com o estilo.
Com o hip hop passei a andar pra tudo quanto lado. Onde que
achava que tinha alguma coisa agente ia. Num tinha limite no;
tem uma festa em tal lugar? Rola? Vamo embora: bairro So
Paulo, bairro Nacional, Industrial, no Eldorado, tudo que canto...
todo final de semana era decoflex nas costa e a gente rachava,
decoflex em tudo quanto buraco da vida.
Como vimos na discusso sobre o visual rap, Joo evidencia claramente que este parte do ritual do
espetculo. Ver Cap. II.
250
era pra maluco mesmo. Tinha esse lance, mesmo que os cara
pregava a conscincia e a informao que eles tinham na poca,
a imagem que tinha l era essa, coisa de maluco, de droga. Ento
o qu que acontecia, minha me ela conhece o centro, conhece a
malandragem, trabalhou na noite e tudo. Mas quando voc depara
dentro de casa com um filho que tem idias diferentes outro
pique. P, eu queria vestir diferente, entendeu? Aquele negcio
todo de gria, eu tava naquela primeira fase de novo mesmo, c
quer par de malandro mesmo, isso a normal mesmo, na
periferia normal... Quem nasce e cresce na periferia, tem uma
poca na idade dele que ele quer assimilar com a maior idade
mesmo. Essa fase que a gente passa na vida a gente quer
aparecer mesmo, ento no adianta, a tem o cigarro, o cara que
malandro fuma, rola mulher quem fuma, ento vamo fumar. A
gente no aceita que menino nem fudendo, quer ser gente
grande de qualquer jeito... E ela no queria aceitar eu mexer com
o rap nem fudendo, eu tive de convencer ela aos poucos...
251
252
Apesar da sua afirmao, temos de relativizar o peso que o hip hop pode
ter tido nessa sua deciso. Temos de levar em conta a fragilidade das instituies
com as quais convivia, para lhe dar alguma perspectiva de futuro. A situao
familiar um exemplo. O prprio Joo reconhece a ausncia da me, envolvida
que estava com a luta pela sobrevivncia da famlia, nos estmulos necessrios
para que permanecesse na escola. Outro fator a falta de tradio escolar no
seio da famlia, que geralmente apresenta um grau de escolaridade muito baixo,
no havendo em casa a fora do exemplo de parentes que tivessem uma
trajetria escolar de xito, em quem pudessem se mirar.
Alm do mais, a escola um exemplo tpico de "adiamento de
253
evidenciam que a escola que esses jovens freqentaram, na forma como estava
organizada, contribuiu tambm na deciso de seu abandono. Tanto Joo como
Nilson enfatizam o desinteresse com a escola, o seu "papo chato", evidenciando
que esta no conseguiu envolv-los de alguma forma. Joo lembra de algumas
situaes que mostram a distncia que havia entre suas demandas e
necessidades e aquilo que a escola oferecia:
256
257
mnimo de dignidade. Fora da escola, ele vem construindo sua vida e seus
projetos em torno da msica, e a escola ficou cada vez mais distante, a ponto de
ele no se dispor mais ao "adiamento de recompensas" que o projeto escolar
exige. Ao mesmo tempo, ele sabe que a escola pode contribuir pouco na direo
de um aprimoramento musical. Principalmente em Belo Horizonte, onde no se
encontram escolas pblicas voltadas para a profissionalizao musical ou
artstica. Mas o problema que fica explcito nesse seu depoimento no tanto a
sada da escola, e sim a forma como ele elabora essa sua deciso. Ao mostrar-se
arrependido, culpa-se por essa deciso, sentindo-se o nico responsvel pela
situao em que se encontra, no levando em conta os mecanismos sociais
perversos que interferiram nas suas escolhas. Esse sentimento de culpa vai
minando a sua auto-estima, reforando uma postura de autodesvalorizao.
At ento fica evidente que Joo, como boa parte dos jovens pesquisados,
inicia a fase da juventude j marcado pelo signo de uma incluso social
subalterna. No seu processo de formao, os espaos sociais de referncia se
reduzem famlia, com todas as dificuldades enfrentadas, e ao grupo de pares,
que cumpre um papel importante na construo da sua identidade como artista.
Os espaos clssicos de socializao, como o trabalho e a escola, pouco
contriburam para que ele pudesse construir referncias positivas de si mesmo.
Alm da famlia, ele vivencia poucos espaos adultos de regulao, nos quais
pudesse conviver e lidar com os comportamentos e valores veiculados pela
sociedade. Nas condies com as quais pode contar, ele vai construindo um
modo prprio de ser jovem. Do seu jeito, ele se diverte, ama e odeia, tem seus
momentos de tristezas e alegrias. Torna-se claro que o estilo rap vai-se
constituindo como um estilo de vida, interferindo de alguma forma nas suas
relaes familiares, no trabalho, na escola, alm de ampliar sua rede de relaes
e interferir na elaborao de valores como a solidariedade ou o companheirismo,
o amor vida. uma das formas possveis de viver a condio juvenil nas
camadas populares.
94
Refere-se a uma universidade particular de Belo Horizonte, onde trabalhou por um tempo nos servios
gerais.
258
260
261
A gente tem muito tempo que t junto e este projeto tem de dar
certo. Ento nessa insistncia a gente perde namorada, a gente
tem brigas, a gente perde emprego, esposas brigando: Cs
parecem viado, s andam juntos. uma cobrana em cima, ficam
falando que a gente no ganha porra nenhuma com isso, que a
gente vagabundo. A gente t levantando uma bandeira que tem
um valor incrvel, mas o nosso projeto no est indo certo do jeito
que deveria ir. O pessoal cobra: Por que vocs no to indo no
Fausto?... o pessoal cobra muito e fala assim: Pra com isso a,
isso no vai dar em nada no... Oc ser linha dura e manter
aquilo ali (o projeto do grupo) difcil, igual no meu caso, a mulher
buzina no meu ouvido, vem sua me, foda...
263
musical,
passam
investir
na
msica
numa
perspectiva
de
Alm das condies precrias de trabalho, que afetam a sua sade, Joo
no gosta do que faz, o que torna o trabalho uma provao necessria. Nas suas
experincias no mundo do trabalho no est presente a dimenso da escolha,
evidenciando que, para ele, o trabalho vivido na sua dimenso de heteronomia,
como uma imposio externa, uma obrigao diante da qual no possui muitas
265
opes. A relao desses jovens com o mercado expressa uma lgica presente
na sociedade brasileira contempornea, que, segundo MARTINS (1997:33), cria
uma massa de populao margem, com pouca chance de ser, de fato,
reincluda nos padres atuais de desenvolvimento econmico. Segundo ele, o
perodo da passagem do momento da excluso para o momento da incluso est
se transformando num modo de vida, est se tornando mais do que um momento
transitrio. Podemos afirmar que o mundo do trabalho pouco contribuiu no
processo de humanizao desses jovens, no lhes abrindo perspectivas para que
pudessem ampliar suas potencialidades, muito menos construir uma imagem
positiva de si mesmos. um outro espao do mundo adulto que se mostra
impermevel s necessidades dos jovens em construir-se como sujeitos.
Nesse contexto, a msica e a possibilidade da carreira musical ganham um
significado mais denso, constituindo um dos poucos espaos em que eles podem
dar sentido esperana de realizar-se plenamente, presente em todo ser
humano.
95
Um grupo de rap e uma dupla de funk, respectivamente, que possuem uma certa projeo na mdia em
2000.
266
Encarar um "servio srio" quer dizer ter um horrio rgido, dentro de uma
disciplina que excluiria, ou pelo menos dificultaria, o seu envolvimento com a
msica, que, naquele momento, ele no aceita. A aspirao por um trabalho com
sentido exprime-se na rejeio ou dificuldade de lidar com o trabalho assalariado,
vivido como uma experincia ainda mais dolorosa. O conflito entre o tempo do
268
Esse dilema uma das principais razes que geralmente levam os jovens
a questionar suas escolhas, quando uma grande parte se decide pelo abandono
da carreira musical. Mais do que a idade ou o casamento, o nascimento dos filhos
parece ser o motivo mais forte que os leva ao abandono dos sonhos, aceitando as
condies subalternas de insero social que a sociedade lhes oferece, para
assumir a sua condio de adultos.
Mas este no o caso desses jovens pesquisados. Apesar das
dificuldades enfrentadas, eles escolhem continuar apostando no sonho, o que
dificulta a aceitao do trabalho regular. o que aconteceu com Pedro que,
depois de um tempo parado, voltou a se envolver com o rap, formando o grupo
Mscara Negra:
Chegava dentro de uma firma e minha cabea num era pra aquilo
l, trabalhei em muitos lugares, cara, mas minha cabea num
aceitava... era aquele trauma, ficava nervoso porque eu pensava:
P, eu tenho de fazer msica, o meu negcio aquilo l, s
com isso que eu me entretenho, nisso que eu tenho uma
vontade, cara!
Como vimos no captulo 2, Pedro um daqueles que podem ser caracterizados como adulto jovem, pois,
mesmo vivendo a instabilidade tpica da juventude, j se encontra casado e com filhos.
269
Podemos dizer que esses jovens, por meio da vivncia dos estilos, tornam
visvel uma tendncia que vem se generalizando em relao ao mundo do
trabalho.
Eles sabem que correm riscos, principalmente da decepo com as
escolhas realizadas at ento. Joo vive atualmente em uma certa encruzilhada:
continuar investindo na possibilidade de viabilizar-se atravs da msica ou investir
na busca de um emprego qualquer que lhe d um mnimo de segurana? Diante
dela, admite conviver com o fantasma da decepo, caso no consiga de alguma
forma garantir a carreira artstica:
271
273
Nos pases europeus, como na Itlia, todo jovem at 26 anos, estudante ou no, tem direito a meia
passagem, no s no transporte urbano, mas tambm no interestadual e internacional, facilitando, assim, a
sua locomoo. um exemplo do investimento do Poder Pblico na ampliao das experincias de
formao das novas geraes.
274
275
especificamente como algum com quem se tem uma relao gerada por tudo
menos pelas recompensas que a relao oferece. As nicas recompensas so
aquelas inerentes apenas relao em si. O que alicera uma relao pura o
grau de compromisso existente entre os amigos, que fruto de uma escolha e
no de uma imposio. o compromisso que faz com que um possa contar com
o outro, numa relao de reciprocidade, na qual se confia que o outro t com oc
nos momentos brabos. Outro aspecto da relao pura, para Giddens, a
intimidade, uma condio fundamental para uma estabilidade a longo prazo que
os parceiros possam vir a atingir. A intimidade, assim como a confiana mtua,
uma conquista realizada a partir da abertura de um ao outro, possibilitando que
possam conhecer a personalidade de um e do outro, confiando naquilo que dizem
e fazem. A comunicao est na base da conquista da intimidade e da confiana.
A amizade, nos termos de uma relao pura, parte fundamental da vida de
Joo, a ponto de ele consider-la como os esteios da sua construo como
sujeito, sem a qual ruiria.
Outro esteio com o qual conta a namorada, numa relao valorizada pelo
que ela significa de afirmao e estmulo para enfrentar as dificuldades e
implementar os seus projetos. Para Joo, o seu namoro um dos fatores que o
levam transio para o mundo adulto, interferindo nas suas opes:
Quando oc tem uma namorada fixa, sria, isso pesa. C v, a
Terezinha tem o trampo dela, t evoluindo, fazendo curso, c v a
menina correndo atrs e tal e oc no. A quando entra o lance de
gostar mesmo, igual no meu caso, rola o sentimento mesmo e j
penso em casar. A j fico pensando: P, eu moro de aluguel,
como que eu vou fazer pra conseguir juntar dinheiro pra mim
comprar um lote pra mim construir ou juntar as coisas pra dentro
de casa pra poder casar, c entendeu? Eu penso muito nessas
coisas assim, eu fico direto dormindo e pensando nessas coisas...
A onde que eu falo, o homem se cobra de t naquela ali...
porque quando a gente arruma uma namorada legal, que tem uma
cabea legal, isso, ela te cobra, ela fica ali querendo te empurrar
pra cima, mesmo que s vezes ela no entenda o lado da msica
mas ela quer que voc trabalha, que corra atrs, mesmo que no
seja pra ocs dois, mas que seja pro oc, particular ...
278
Joo outro que alimenta o sonho de montar uma pequena loja de discos
e roupas, especializada no estilo hip hop (Eu estou pensando em montar a loja
acreditando na msica, no grupo, porque a loja s est vindo por causa da
msica...). Inspirou-se no exemplo de Pedro, que montou uma loja na sua cidade
no ano anterior, junto com o seu cunhado, o que at ento vinha lhe possibilitando
a sobrevivncia da famlia, no sem muitas dificuldades. Existem em Belo
Horizonte cerca de dez lojas que exploram esse ramo, concentradas no centro da
cidade, principalmente na Galeria Praa 7, quase sempre de propriedade de
rappers ou ex-rappers. Essa deciso tambm resultado de uma leitura que
fazem da realidade que vivenciaram at ento no mercado de trabalho, com uma
viso pessimista do que esse pode oferecer.
280
Meu trabalho a msica e o que trampo que ela gera... isso que
eu quero, ser respeitado dentro do campo musical, e conseguir
fazer meu trabalho social com uma condio financeira boa. Eu
quero conseguir um poder aquisitivo, financeiro melhor, isso
lgico, quem viveu a vida inteira na pobreza lgico que quer
subir na vida, (pausa) resumindo isso a mesmo. Coisa simples, no
mais quero casar, lgico... sou noivo, minha idade n? e ver
minha me melhor, esses trens assim. Dar minha me o que ela
no teve, coisas assim, que todo mundo pensa.
98
Os encontros com Flavinho ocorreram na semana de 12 a 18 de abril de 2000. Foram cinco encontros,
quase sempre no final da manh, de acordo com a sua disponibilidade. Todos foram em sua casa; s
vezes se desdobravam em alguma atividade, quando eu o acompanhava, como a visita na casa de outros
funkeiros ou na visita a uma das rdios comunitrias da regio. Os encontros seguiram uma mesma rotina:
iniciava com ele relatando os detalhes do que havia feito no dia anterior at aquele momento, e em seguida
iniciava a entrevista com um tema especfico. Os temas abordados foram a sociabilidade, a relao com as
instituies (famlia, trabalho, escola, etc.), o estilo e a dupla, os projetos de futuro. Mas em cada uma
281
delas a conversa extrapolava para as questes postas pelo seu cotidiano, seguindo uma dinmica ditada
pelo clima do momento.
282
semana ele foi praa trs noites, uma delas depois da aula, quando encontrou
com os amigos, jogou bola e baralho. Tambm no sbado tarde ele passou um
bom tempo com os amigos na praa. Ainda durante essa semana sua namorada
foi em sua casa por alguns momentos, em duas tardes, ao voltar do trabalho.
Todas as noites ele assistiu TV quando chegou em casa, preferindo os filmes do
SBT ou o Programa Livre, que aborda temas juvenis.
Os finais de semana tambm so preenchidos com a msica. Em um
sbado, ele participou de uma entrevista ao vivo no programa da Rdio
Alternativa, respondendo a perguntas de ouvintes. No sbado seguinte, voltamos
juntos quela rdio para acompanhar a entrevista da MC Cacau, uma funkeira
carioca que daria um show noite no Vilarinho. Ela muito conhecida no meio
funk de Belo Horizonte, reunindo um bom nmero de jovens em volta da rdio
para conseguir seu autgrafo ou ser fotografado ao seu lado. Para alegria de
Flavinho, ele conseguiu ser fotografado ganhando um beijo da MC, a quem
considera um dolo. Geralmente os ensaios da dupla so realizados aos
domingos, porque Leo trabalha durante a semana. nesse dia que escutam
msicas, discutem letras, trocam idias sobre as apresentaes que pretendem
realizar. Nos sbados noite, o programa mais comum participar dos bailes do
Vilarinho, o principal ponto de encontro dos funkeiros da regio. nos finais de
semana que tambm namora, o que faz nas noites de sbado, antes de ir ao
baile, e aos domingos. s vezes sua namorada, com quem est h mais de um
ano, tambm vai aos bailes, mas no muito comum.
Ele afirma que esta semana expressa bem a rotina da sua vida, com uma
ou outra diferena, como, por exemplo, a falta s aulas, o que no o seu
costume. Quando avalia o seu cotidiano, Flavinho reconhece que este um
pouco vazio, montono, e que gostaria de ter mais coisas para fazer, como cursos
ligados msica, mas no os faz por falta de condies financeiras. Nessa rpida
descrio possvel perceber que, nesse momento, a vida de Flavinho gira em
torno da famlia, dos amigos e do funk, sendo que este parece ocupar um lugar
central, dando sentido ao seu cotidiano. O que essas experincias significam para
ele? Qual a influncia do estilo funk nas outras esferas da vida que vivencia?
Como ele constri uma compreenso de si mesmo? o que discutiremos a
seguir.
283
As experincias
285
286
claro que no este o lugar em que ele explicitar os dilemas prprios da fase que
vivencia, como a descoberta da sexualidade ou as drogas. Nem na famlia nem
em outros espaos, como a escola, esses jovens tm canais de comunicao
com o mundo adulto. Nesse momento da vida, o grupo de pares parece ser o
espao privilegiado, com quem debatem as suas questes.
Para ele um marco nas relaes familiares foi quando, aos 15 anos,
conquistou maior autonomia de movimentos, podendo sair de casa noite. Ele
relaciona esse momento sua adeso ao funk:
289
Alm disso, trabalhar seria a condio para que pudesse investir mais na carreira
musical, produzindo o seu prprio CD, por exemplo:
290
Na forma que descreve o seu cotidiano escolar, fica evidente que uma
provao. Segundo Flavinho, as aulas so "chatas", baseadas em contedos
cristalizados nos livros didticos, numa seqncia constante de exerccios
escritos em sala e na sua correo. Alguns casos chamam a ateno. Na semana
em que o acompanhamos, o professor de Histria gastou duas aulas escrevendo
no quadro um questionrio com 167 questes. Aps ser feito pelos alunos, no foi
corrigido. Ele apenas olhou quem fez, batendo um carimbo nos cadernos, que
depois deveria se converter em pontos. Esse caso evidencia uma postura em
relao ao conhecimento que se reduz a um conjunto de informaes j
construdas, cabendo ao professor transmiti-las e aos alunos, memoriz-las. So
descontextualizadas, sem uma intencionalidade explcita e, muito menos, uma
articulao com a realidade dos alunos. Junto com a prtica de converter
qualquer tarefa em pontos, expressa uma concepo na qual os contedos so
encarados como um meio para o verdadeiro fim: passar de ano.
A escola no se mostra sensvel realidade vivenciada pelos alunos fora
de seus muros. Ele relata que
293
294
identidade
como
funkeiro.
Os
espaos
tempos
de
lazer
so
296
algum show com um MC carioca, o que faz com que o baile adquira um outro
sentido. Assim como existem as sadas espordicas, quando se deslocam para
algum baile mais distante, como o Hipodromo, o que mais raro.
A galera de Flavinho possui uma mesma origem de classe, bem como seus
colegas de escola, fazendo com que ele no mantenha nenhuma relao com
jovens de outro estrato social. Essa caracterstica endoclassista das relaes
juvenis, tambm comum ao rap, evidencia a existncia de uma distncia muito
grande entre os jovens de diferentes classes sociais. Mas no discurso de Flavinho
no aparece nenhuma oposio explcita em relao ao jovem de classe mdia,
como acontece entre os rappers, com os "boyzinhos". Ainda nessa direo,
parece que a questo tnica no se coloca como dimenso significativa nas
relaes que estabelece. Na sua turma, convivem brancos e negros,
aparentemente sem nenhum preconceito. Perguntado sobre isso, ele revela que
gostaria de ser negro:
Mas essa sua afirmao parece no ter nenhuma relao direta com a
identidade, sendo mais uma influncia da imagem do funk, no qual predominam
os negros. Fora essa dimenso esttica, Flavinho no faz nenhuma vinculao
entre o estilo e a cor, e sim com a origem social, ou seja, mais do que ser uma
"msica de preto", o funk se coloca como uma "msica de pobre", coerente com o
que vimos de forma mais geral no estilo funk.
297
Com o funk hoje eu vivo pra fazer os outros mais felizes, e eu fiz
mais amizades tambm e isso legal... voc t no funk e t
rodeado de amigos. uma diverso, mas uma coisa divertida que
a gente tenta levar pro futuro...
298
namoro nas diferentes fases da vida. Com Joo, numa fase de transio para a
vida adulta, o namoro parte integrante do projeto de futuro; para Flavinho, o
namoro um momento de experimentao e descoberta do Outro.
Mas ele percebe tambm que o namoro o limita, principalmente na
liberdade de divertir:
Apesar de dizer que fiel, Flavinho reconhece que o fato de ser MC atrai
muitas mulheres:
Sobre sua vida sexual, Flavinho revela que mantm relaes com a
namorada. Ele diz que todos os amigos o fazem, evidenciando que a prtica de
relaes sexuais entre eles parece ser comum:
Assim como Flavinho, boa parte dos jovens da sua galera passam os dias
sem ter o que fazer, sem acesso a equipamentos sociais, sem espaos e tempos
que os estimulem, que ampliem as suas potencialidades. Andando pelo bairro nos
dias de semana, possvel ver dezenas de jovens pelas ruas e caladas,
conversando em grupos ou simplesmente sentados, sem outra alternativa a no
ser levarem uma vida empobrecida no s de recursos materiais, mas,
principalmente, de recursos simblicos que os capacitem a enfrentar as
301
Com essas palavras ele revela uma descrena no futuro como um tempo
progressivo, controlvel e planificvel. interessante perceber que ele justifica
sua opinio remetendo velocidade das transformaes tecnolgicas que
ampliam as incertezas caractersticas da sociedade contempornea (...tudo pode
mudar). Diante das incertezas, a busca de sentido transferida para o presente,
num eixo temporal curto que tornaria possvel o seu controle. Mas no uma
postura isolada. Segundo LECCARDI (1991:43),
302
passado e o futuro, mas tambm a nica dimenso do tempo que vivida sem
maiores incmodos e sobre a qual possvel concentrar a ateno.
Assim como o futuro, tambm o passado no revisitado (Eu no penso
muito no passado, no, o que passou, passou e pronto...). Mas nas entrevistas
parece que ele fez um exerccio de reflexo sobre o seu futuro, explicitando
desejos e sonhos que, de alguma forma, apontavam um rumo para a sua vida.
Quando perguntado, ele respondeu de forma vaga, abrindo um leque de
possibilidades:
pois ningum tinha conseguido algum sucesso ainda. Prev que, mais cedo ou
mais tarde, vai precisar de trabalhar em outras atividades para garantir a sua
sobrevivncia. nesse contexto que entra a escola. J dissera que a escola
significava um "empurro" na vida, mas, ao ser questionado sobre as
possibilidades de ela vir a garantir uma melhor colocao no mercado de trabalho,
ele se mostra ctico em relao s suas promessas:
304
Quando conheci Rogrio, em 1998, ele tinha 17 anos. Negro, magro e alto,
escondia atrs das brincadeiras e dos risos constantes uma trajetria de vida
conturbada. Nas duas entrevistas que realizamos naquela poca, ele se mostrou
um jovem reflexivo, consciente do dilema que vivia, estando no limiar do mundo
das drogas do qual dizia ter se afastado recentemente, tanto do consumo
quanto das entregas e pequenas vendas que realizava e as tentativas de
encontrar outras alternativas de vida. Naquele ano ele havia retornado escola,
estava trabalhando e tinha o seu grupo de rap, alm de expressar desejos em
relao ao seu futuro. Vivia um momento em que era visvel o seu esforo para
organizar sua vida em outros moldes, com sonhos de uma vida digna. Mas essa
fase durou pouco, pois, no ano seguinte, abandonou tudo e retornou ao trfico,
integrando-se a uma das quadrilhas existentes no Aglomerado da Serra, onde
mora.
Quando o reencontrei, em abril de 2000, ele se encontrava envolvido em
uma "guerra" entre quadrilhas rivais, j tendo matado muitas pessoas, num
caminho que ele mesmo admitiu no ter retorno. No momento das entrevistas ele
refletiu sobre si mesmo, suas escolhas, delineando os determinantes sociais que
o foram constituindo e o levaram a trilhar esse caminho. Rogrio pode ser visto
305
99
Depois de muitas tentativas, conseguimos realizar duas longas entrevistas com Rogrio em abril de 2000,
uma delas em sua casa e outra no alto do Parque das Mangabeiras, vizinho favela.
100
Apesar de ele se referir ao grupo como uma "galera", optamos por denomin-la de quadrilha para no
confundir com as galeras funk que, em Belo Horizonte, no possuem nenhuma ligao com o narcotrfico.
306
admitia que seu cotidiano no era tranqilo e nem pode ser. No freqentava a
casa da sua me, encontrando-a raramente quando a via subir o morro. Tambm
tinha pouco contato com os antigos amigos ligados ao movimento hip hop,
convivendo praticamente s com os parceiros da sua galera.
Nessa rpida descrio, j possvel perceber que sua vida estava
circunscrita ao trfico, do qual no via sada. Nas entrevistas, ao falar da sua vida,
Rogrio sempre se referia ao passado, quase que a buscar na sua trajetria uma
explicao para os rumos que tomou no presente:
Minha casa era aquele lugar que podia chegar e que tava todo
mundo triste. Um dia tinha comida, outro dia no tinha, aquele
lance... Muitas vezes eu via na televiso passando aquelas
comidas gostosa e l em casa agente comendo angu. [risos] Eu
ficava era puto. Oc t, tipo assim, comendo angu l na sua casa,
a l na televiso preta e branca assim, a oc t naquela fome e
fala: me, o qu que tem pra ns comer? Ah, hoje eu fiz uma
sopa de fub. Oc t l comendo o seu fubazinho, l satisfeito e
tal, a oc v na televiso: Compre o macarro no sei l o qu,
oc v l aquele porquinho suculento na televiso a oc pega a
sua sopa e fala: carai. [risos] O cara l rangando, oc v o cara
l na praia tirando a maior onda, t ligado? A quando eu era
moleque eu ficava doido. A televiso me revoltou, meu filho!
Quando ele fala do clima de tristeza que dominava sua casa, ele se refere
sensao de no ter acesso a um mnimo de condies que pudessem viabilizar
a sobrevivncia da famlia: a moradia e a alimentao. Isso se transformava em
revolta quando comparava, ao assistir TV, o que a sociedade oferecia de
possibilidades de consumo e o que ele tinha acesso realmente. uma outra
forma, mais radical, de sentir o que MARTINS (1997:21) chama de uma nova
desigualdade social que cria uma sociedade dupla, que separa materialmente,
mas unifica ideologicamente, onde o favelado, que mora no barraco apertado da
favela imunda, com o simples apertar de um boto da televiso, pode mergulhar
no imaginrio da sociedade de consumo...
A esse contexto de pauperizao, ele acrescenta a memria das relaes
familiares marcadas pela falta de ateno e afeto, muito distantes de uma
308
O sonho representa o seu desejo de ter com o pai uma relao de dilogo,
com o qual possa trocar idias, e o ressentimento em no conseguir realizar esse
desejo. A imagem que fica do pai a da falta, mesmo tendo a sua presena
fsica.
Outros jovens entrevistados, que tambm no conviveram com o pai,
elaboram a sua figura como uma falta significativa no seu processo de vida. Para
310
Pedro, um dos motivos pelos quais entrou por um tempo no mundo das drogas foi
a falta da autoridade paterna (Eu nunca tive pai para me dar conselho, pra chegar
perto de mim e dizer: num faz isso, num faz aquilo...). Para Nilson, a ausncia do
pai lembrada como falta de uma referncia masculina, que ele buscou substituir
pelo seu primeiro grupo de break. Tanto que a dissoluo desse grupo foi muito
marcante:
pedagogia
escolar,
to
polarizada
na
teoria
do
que esse caminho pode funcionar para o mundo l embaixo, crianas de classe
mdia que podem ter alternativas de futuro. Mas no para eles na favela,
condenados a no ser.
Um outro espao que esteve presente no seu processo de formao foi o
mundo do trabalho, que tambm pouco contribuiu para que pudesse construir
referncias estruturantes. Assim como grande parte dos jovens pesquisados,
Rogrio conviveu sempre com a precariedade de ocupaes e a falta de
alternativas de emprego, sem condies de exercer a mnima escolha:
grupos que esto disposio no seu meio social. Diferentemente do bairro onde
Joo ou Flavinho moravam, no Aglomerado da Serra o narcotrfico estava
disseminado, com a existncia de inmeras quadrilhas e um nmero muito grande
de jovens envolvidos com a droga, com os quais ele passa a se ligar:
Desemprego significa ociosidade nas ruas. A rua aqui aparece mais uma
vez na sua ambigidade, tanto como espao de trabalho como tambm lugar da
ociosidade, que traz consigo o risco do envolvimento com as drogas. A iluso do
dinheiro fcil acompanhada pelo desejo de conquistar um certo patamar de
consumo, que, por sua vez, passaria a significar uma posio de mais respeito no
meio social mais prximo, de ser algum, alm de ser admirado pelas meninas.
Ao mesmo tempo responde a um certo imaginrio de masculinidade, no
enfrentamento dos perigos, na agressividade e no poder que uma arma
representa.
O trfico arregimenta os jovens no prprio pedao, sendo os amigos e os
conhecidos, com os quais se encontravam pelos becos, que agiam como avies,
os mesmos que seduzem para o mundo do crime, acenando com a possibilidade
de ser algum, o que no conseguiriam por meio da insero social pelo trabalho.
Foi a alternativa seguida por Cristian por dois anos, at ser preso. Se, no mundo
adulto, as fronteiras entre ser bandido x ser trabalhador so definidas com
critrios morais claros, como nos mostra ZALUAR (1985,1995), o mesmo parece
no acontecer com esses jovens. Para eles, a oposio trabalhador x bandido
aparece com fronteiras fluidas, sendo o bandido um daqueles com quem se
cresceu junto. Eles se situam em um contexto de liminaridade, no qual ocorre um
trnsito entre um mundo e outro, dependendo das circunstncias, no elaborando
critrios rgidos de demarcaes. Mas, ao efetivarem a passagem para
marginalidade, entram em uma outra rede de relaes e passam a viver outro
cotidiano, que define com quem anda, por onde transita e o que faz. Passam a
conviver com a tenso cotidiana da perseguio policial e dos conflitos com as
outras quadrilhas.
315
316
no posturas individuais
de
A escola onde estudavam era da rede municipal de ensino de Belo Horizonte, que desde 1995 se pautava
por um projeto poltico-pedaggico chamado de "Escola Plural". Para maiores detalhes sobre esse projeto,
ver Cadernos da Escola Plural, 1996.
320
o que implicava vises diferentes de uma mesma realidade. Isso fica claro
quando, perguntados se mostravam as letras de rap para os professores de
portugus, eles disseram que nunca o fizeram porque estes no v a mesma
coisa que a gente v na favela...
Outro aspecto que eles valorizavam eram os espaos e tempos em que os
alunos podiam descobrir e desenvolver suas potencialidades, inclusive aquelas
ligadas ao mundo da arte. Eles relatavam que a escola tinha um horrio semanal
reservado para os alunos se apresentarem:
A escola aqui parece que no abriu espao no foi s pro rap no,
entendeu, porque tem muita gente a que sabe danar, o outro
canta mas um estilo diferente do rap, tem uns meninos a que
tem grupo de funk, eles abrem espao pra todo mundo se
mostrar... toda sexta-feira, entendeu, se a gente chegar, por
exemplo, a gente tem que combinar com ela antes, ento a gente
combina com ela, fala: Oh, a gente tem um trabalho pra
apresentar e tal e ela deixa tipo um espao reservado na sextafeira pra gente...
322
sinalizavam que a escola abria as portas para que eles pudessem trazer para o
seu interior a pluralidade dos processos formadores e deformadores que
vivenciavam no seu cotidiano. Nesse sentido, a escola pode contribuir para se
efetivar como espao de formao humana mais amplo, articulando os processos
formativos escolares com as experincias reais dos alunos.
Para Rogrio, a escola significou a possibilidade de acesso e treino dos
cdigos de comunicao, facilitando, assim, o seu dilogo com o mundo, alm de
ficar mais informado:
323
Eu acho que, sei l, tudo que c vai fazer hoje na vida, depende
do c ter, pelo menos, o primeiro grau completo, entendeu... E
tambm a pessoa indo escola ela adquire mais conhecimento,
ela fica mais preparada pro mundo. Que quando c vive l fora, c
j t vivendo na escola da vida mas c no sabe, sei l, c no
sabe decifrar as coisas. s vezes a pessoa t conversando com
c, c no entende bem as palavras e a melhor coisa que tem
voc conversar com a pessoa e ter certeza daquilo que c t
falando. E essa certeza c adquire na escola entendeu. Eu acho
que assim... a escola muito importante pra mim...
324
valor
da
vida
da
esperana,
potencializando
valores,
325
326
Rogrio pode ser visto como um exemplo de jovens que, vivendo no limiar
entre a incluso social e a marginalidade, cedem aos acenos do mundo do crime,
desistindo de integrar-se por meio do trabalho, desacreditando nas poucas
possibilidades que este oferecia de uma insero social mais qualificada.
Mas importante assinalar que esta escolha de Rogrio no a nica
possvel. Uma mesma realidade comum a esses jovens pode produzir posturas e
escolhas diferenciadas. J vimos, com a histria de Joo um tipo de postura
existente entre os jovens na relao com o trabalho. O caso de Rogrio seria uma
outra escolha possvel. Agora vamos tomar o caso de Cristian para ampliar o
quadro das alternativas possveis de relaes e significados que esses jovens
estabelecem com o trabalho, bem como das escolhas que fazem de rumos de
vida. O caso de Cristian significativo, uma vez que mora na mesma favela que
Rogrio e ambos j tinham tido experincias anteriores com o trfico. Mas nessa
poca os dois fizeram escolhas muito diferentes. o que veremos a seguir.
327
Puta merda, o tempo que eu fiquei parado foi ruim demais... agora
no, trabalho fichado, e a melhor coisa que tem oc ter um
dinheiro pro c contar com ele no final do ms, mesmo que ainda
seja pouco... hoje eu t com carteira assinada, graas a Deus, e
isso muda porque oc fica mais seguro...
do trabalho, mesmo que ele no lhe traga uma auto-realizao sob o aspecto de
atividade em si. Toma como dado natural a dicotomia entre a obrigao/escolha,
dever/prazer, expressando a internalizao da lgica do capital. O trabalho uma
obrigao, um sacrifcio necessrio, restringindo o espao das escolhas e do
prazer. Este e a auto-realizao pessoal so projetadas para a esfera do privado,
reduzidos aos finais de semana. A se encaixa o rap. O estilo vivido como uma
"curtio", um "sonho" que lhe traz retornos pessoais, como uma atividade
expressiva. Mas Cristian no nutre maiores expectativas de sobrevivncia com o
trabalho artstico, limitando esse prazer aos finais de semana.
Ao recuperar a sua trajetria de trabalho, Cristian se sente realizado por ter
conseguido sobreviver at ento e de ter-se afastado do trfico de drogas:
Com o rap eu fiquei mais consciente... o rap tem um meio de... tipo
assim, tocar na mente das pessoas, explicar, expressar, falar do
que est acontecendo, n, deixa as pessoas mais acordadas,
mais alerta pra o que t fazendo... ento essas pessoas que mexe
com aquilo (drogas), sabe que o negcio uma porcaria, a pessoa
t iludida mesmo, que nem eu tava, sempre precisa de um toque
pra acordar...
Por intermdio das msicas e dos contatos com os rappers, passou a ter
uma compreenso mais crtica das implicaes sociais do trfico de drogas:
Na sua viso, o trfico parte de uma estratgia do "sistema" para dominlos, numa compreenso maquiavlica da lgica social. Sabia que ele, como os
outros jovens na favela, eram os elos mais fracos da cadeia do trfico,
exatamente os mais baixos postos do crime organizado que eram alvos da
331
depoimentos
de
Rogrio,
ele
sempre
se
refere
ao
binmio
332
projetos de futuro que elabora. Estes se apresentam de forma fluida e vaga, mas
refletem a existncia de sonhos, uma
interessante que, na formulao que faz para o seu futuro, o eixo a famlia.
Quando fala do rap, ele manifesta o desejo de ter uma fita "demo" gravada, que
daria de presente para sua me:
eu pod chegar perto dela: me, eu j dei pra senhora muita
dor de cabea, eu tenho certeza... eu no tenho dinheiro pra te dar
no mas tenho essa fita aqui pra mostrar um pedao de algo que
voc construiu. mostrar pra minha me que ela no construiu
uma pessoa intil, que veio no mundo s pra destruir a vida dela,
n. Que muitas coisas eu j fiz, eu me arrependo e vou tentar dar
pra ela algo diferente...mostrando pra ela uma fita nossa
gravada...
Ah, eu quero ter uma vida mais tranqila, poder ter uma famlia,
poder dar prum filho meu tudo que eu no tive, n! Por exemplo,
inverter os fatos, em vez de eu ter mais um filho tipo pra sofrer, ele
ter tudo que eu no tive, ele ter carinho, muita conversa... Acho
que o principal no coisas materiais, isso a, muita conversa,
unio, muita idia do que a vida n... Muitas vezes eu fico
imaginando que ele pode ficar apelando comigo, n, tipo; Que
conversa chata essa! Muitas vezes a gente assim com os pais
da gente, n, falando: Ah, pra com esse negcio, com essa
conversa chata... Vai indo muitas vezes os pais da gente tambm
333
num sabe como chegar naquele ponto, tem vrios pontos doc
chegar na pessoa, chegar falando pra num fazer aquilo, fica meio
estranho. C fala: Por que que eu num v fazer aquilo? Tem que
vim comeando desde o incio das coisas, mostrando o qu que
acontece, o final do tnel... assim, tipo, tentar conscientizar meu
filho, d pra ele muito estmulo... quero que meu filho saia, tipo
quando ele for sair com a rapaziada a, oh, trazer ele todo bem
arrumado, sei l, mal arrumado no meio de todo mundo, muito
cabuloso, muito estranho c t na rua assim, c v os outros
passando tranqilo, todo mundo curtindo, s oc l pra trs, e a
fala: P, ser que eu no sou nada na vida? Eu vou ter que viver
nessa vida aqui? Ah, eu num quero que meu filho nem sonha o
qu que que eu j passei nessa vida, quero que meu filho nem
sonhe, nunca, nunca, o qu que t na rua correndo de polcia, t
que ficar dando satisfao, tomando porrada, dormindo em
cantinho...
335
quantidades de drogas para levantar um troco pra comprar uns negcio. Mas
nesse momento ainda no tinha se enredado com nenhuma das quadrilhas
existentes na Serra, permanecendo por um tempo numa situao liminar,
envolvendo-se e afastando-se. Segundo ele, um mal-entendido com um membro
da quadrilha da Del Rey, que passou a persegui-lo, foi a gota d'gua que o fez
entrar de fato para a sua quadrilha.
Perguntado sobre as razes que o levaram a tomar esse caminho, ele
aponta a questo da sobrevivncia, dizendo-se indignado com a falta de
perspectivas que a sociedade lhe oferecia:
102
Essa opo nos leva a um tratamento grfico diferente, com os depoimentos de Rogrio impressos em um
corpo de letra maior do que no restante do trabalho.
336
337
O cara entra pro crime talvez no porque gosta do crime. Pra ele
uma carga, assim um trem, uma misso que Deus coloca
nas costas do cara. Tem uns que entra no crime pra ter mulher,
pra ter dinheiro e isso tudo, mas tem outros que t na cara que
uma misso, parece que uma misso que o cara vem pra
cumprir na Terra... Agora ns tamo comprando uns negcio
(armas) pra tirar esses caras da praa, porque se esses caras
continuar na favela, a favela no vai ter mais um som, no vai ter
mais um lazer, dia de domingo c num vai mais poder vestir uma
roupa bonita, ir missa, qual a desses caras, uai?...
338
Quando Rogrio fala da sua amizade com os dois parceiros que moravam
339
com ele e que haviam sido mortos naquele ms, fica mais claro o cotidiano das
relaes existentes:
Rogrio contou vrios casos de troca de tiros com a polcia e com a galera
da Del Rey, enfatizando os valores ligados ao ethos masculino, como a coragem
e a valentia. Ao contar, seus olhos brilhavam, denotando um sentimento de prazer
diante do risco que enfrentava. Perguntado sobre o que sentia nesses momentos
de perigo, Rogrio ressalta a disponibilidade para o risco, tpica da juventude,
comparando-os com as formas de emoo dos jovens pobres e dos jovens ricos:
341
Ao falar sobre o rap, ele relata que nunca mais subiu num palco, porque
no via sentido ele, de arma na cintura, ficar cantando a paz. Mas continua
gostando do gnero musical. Alm disso, v a importncia do rap para afastar as
novas geraes do mundo do crime:
O hip hop sempre vai ser considerado, ele t ali tentando pregar a
paz, n? Tem muitas pessoas que tm a conscincia, o hip hop
bom porque t sempre influindo, bom os meninos sempre t
ouvindo. Por que tem muito menino que acha que o mundo do
crime oc chegar e curtir e matar e pronto. Esquece que tem
342
Rogrio, apesar de afirmar que no gosta da vida que est levando, diz
que melhor do que a que tinha:
Num gosto dessa vida no, mas melhor do que oc ter que
passar por aquele cara ali e ter que abaixar a cabea pra ele
porque ele malandro. A hoje em dia eu no abaixo a cabea pra
ningum. Ando na minha, respeito todo mundo, mas se chegar pra
guerrear tambm vo guerrear que eu no dou mole pra ningum.
A eu fico nessa vida a, mas o sentido, igual eu t te falando,
343
Se o seu sonho era ter uma famlia, um filho, hoje ele descarta essa
possibilidade. Na poca da entrevista, sua namorada estava grvida, esperando
um filho seu, e ele insistia para que ela abortasse. Nesse depoimento, ele projeta
a mesma lgica do que j havia dito em 1998, fazendo um resumo da sua prpria
vida:
103
Em abril de 2001, no momento em que fechava este trabalho, tive notcias que Rogrio continuava vivo,
tendo fugido da Serra, vivendo com parentes no interior do Estado.
344
por isso eu escapei do crime. Nem por isso eu me iludo com o crime.
Nesse contexto, cabe-nos perguntar pela condio juvenil de Rogrio. Aos
19 anos, ser que podemos dizer que ele viveu e vive a fase da vida da
juventude? Ele acha que no:
3.5 SINTETIZANDO
A trajetria dos jovens nos mostra que eles vieram se construindo e sendo
construdos como sujeitos sociais numa complexidade de espaos e tempos,
estabelecendo mltiplas relaes a partir do seu meio social. Por intermdio das
experincias vividas, vieram se apropriando do social, reelaborando prticas,
valores, normas e vises de mundo a partir de uma representao dos seus
interesses e necessidades, interpretando e dando sentido a seu mundo. No foi e
nem um processo linear, com algumas agncias e situaes assumindo uma
centralidade maior do que outras, adquirindo significados diversos.
A famlia parece ocupar um lugar central. As relaes que estabelecem, a
qualidade das trocas e os conflitos, os arranjos existentes para garantir a
sobrevivncia, os valores predominantes so dimenses que marcam a vida de
346
cada um, constituindo um filtro por meio do qual traduzem o mundo social e onde
inicialmente descobrem o lugar que nele ocupam. Mas as experincias familiares
assumem feies diversas. Os dados nos mostram que existem dois tipos
predominantes de relaes. Para uns, como Joo e Flavinho, o ncleo familiar
significou um espao de experincias estruturantes. A famlia representa um
espao de segurana e afeto, contando com uma rede de relaes que lhes
garantiram a sobrevivncia e uma referncia de valores morais que esto
presentes na leitura que fazem de si e da prpria sociedade. No significa que
sempre predominou a harmonia nas relaes; os conflitos existiram mas foram de
alguma forma equacionados num contexto de solidariedade e vnculos afetivos
que deu suporte para enfrentar as tenses existentes. Para outros, como Rogrio,
a experincia familiar assumiu um outro carter. Imersos na luta pela
sobrevivncia, convivendo com o espectro da fome, mas principalmente sem
contar com redes de apoio, a famlia torna-se palco de tenses e conflitos
internos, no conseguindo se estruturar como ncleo de proteo e de referncias
afetivas e morais, dificultando cumprir um papel de construo de referncias
positivas.
Essas experincias familiares vm colocar em questo uma imagem muito
difundida sobre as famlias das camadas populares, vistas no ngulo da
estruturao x desestruturao, no qual o critrio de definio o modelo de
famlia nuclear, constituda por pai, me e irmos. Os dados, no mnimo,
problematizam essa imagem. Grande parte das famlias desses jovens no
contam com a presena do pai, organizando-se em termos matrifocais, e nem por
isso se mostram "desestruturadas", garantindo, com esforo, a reproduo fsica e
moral do ncleo domstico. Tanto que a famlia de Rogrio uma das poucas
que contam com a presena do pai, e justamente nela que existe maior
desestruturao. Mais do que a presena ou no do pai, o que parece definir o
grau de estruturao familiar a qualidade das relaes que se estabelecem no
ncleo domstico e as redes sociais com as quais podem contar. E nisso a me
desempenha um papel fundamental, mesmo para Rogrio. ela a referncia de
carinho, de autoridade e dos valores, para a qual dirigida a obrigao moral da
retribuio. No de estranhar que todos contemplem a me nos seus projetos,
desejando dar-lhe uma vida mais confortvel.
347
da sua condio como jovens. Nesse sentido, o estilo rap e o estilo funk, com
todos os seus limites e por meio de formas diferenciadas, aparecem como meio
pelo qual se contrapem a esta realidade, tornando-se um exerccio do direito
escolha, s experimentaes, ao lazer e diverso, enfim, o direito de serem
jovens.
351
CONSIDERAES FINAIS
352
humanos, com uma vida mais digna. Nesse sentido o estilo o propulsor e o
hospedeiro da esperana. Mas esses sonhos e desejos necessariamente no se
concretizam em projetos de vida, e quando o fazem se mostram fluidos ou de
curto alcance. Eles se centram no presente e nele vo-se construindo como
jovens, no acreditando nas promessas de um futuro redentor. O que esta relao
com o presente pode nos dizer a respeito dos jovens? Ser que apenas um
resultado direto da falta de perspectivas em que esto imersos, ou ser a
expresso de uma nova condio juvenil se afirmando?
Nesta relao com o tempo presente, a trajetria dos jovens parece
mostrar, a princpio, dois cenrios possveis. Alguns deles vivenciam o presente
como uma oportunidade de busca, de experimentao, procurando formas e
alternativas de se inserir na sociedade a partir das condies de que dispem.
Neste caso a postura dos jovens de um confronto ativo com a realidade social,
buscando torn-la transparente e nela traar seus prprios caminhos. Mas
tambm encontramos aqueles que tendem a uma postura mais passiva, espera
353
de uma ocasio, da "sorte", do que possa ocorrer, mas que diante dela no tm
nenhum controle. A prpria vivncia do estilo se mostra frgil, e a angstia da
falta de sentido das prprias aes, aliada falta de perspectivas, tende a levar a
uma busca de meios de fuga dessa realidade, dentre eles a sada pelas prticas
de dependncia em relao s drogas e, o que mais trgico, o trfico. A relao
do jovem com o tempo um bom tema a ser aprofundado.
Outra imagem que esses jovens colocam em questo a juventude vista
como um momento de crise e de distanciamento da famlia. No nvel de
aproximao que conseguimos estabelecer com os rappers e funkeiros, foi
possvel constatar a existncia de conflitos familiares, mas em nenhum momento
esse quadro conflitivo colocou em questo a famlia como o espao central de
relaes. Tambm no evidenciamos a existncia de uma crise na entrada da
juventude,
muito
menos
sinais
de
conflitos
atribudos
tipicamente
aos
adolescentes.
Se existe uma crise, esta foi constatada na passagem para a vida adulta.
A imagem de adulto que eles constroem muito negativa. Ser adulto ser
obrigado a trabalhar para sustentar a famlia, ganhar pouco, na lgica do trabalho
subalterno. Mas tambm assumir uma postura "sria", diminuindo os espaos e
tempos de encontro, com uma moral baseada em valores mais rgidos, abrindo
mo da festa, da alegria e das emoes que vivenciam no estilo. Para muitos, ser
adulto implica ter de abrir mo do estilo, fazendo dessa passagem um momento
de dvidas e angstias, vivida sempre como tenso. No que recusem ou
neguem esta passagem, mas a vivenciam como uma crise. Uma crise vivida no
na entrada da juventude, mas na sua sada.
Esta busca de dilatao do tempo da juventude diz respeito idia da
moratria, outro tema que merece aprofundamento posterior. Ao contrrio do
senso comum, esses jovens mostram que vivenciam uma moratria, uma
tentativa de alongar o perodo da juventude o mximo que podem. O sentido
dessa tentativa no tanto o de uma suspenso da vida social ou de
irresponsabilidade, como geralmente vista, mas de garantir espaos de fruio
da vida, de no serem to exigidos, de se permitirem uma relao mais frouxa
com o trabalho, de investirem o tempo na sociabilidade e nas trocas afetivas que
esta possibilita. E o que cria, possibilita e legitima a moratria como uma
354
aspecto central: pelos estilos rap e funk os jovens esto reivindicando o direito
juventude.
Se podemos constatar essas dimenses nos estilos rap e funk, entretanto
eles possuem especificidades. A melhor forma de caracteriz-las pelo duplo
sentido que a palavra "diverso" nos traz. Em um deles temos a diverso como
ato ou efeito de distrair ou distrair-se: falta de ateno, abstrao, irreflexo,
esquecimento, divertimento (do latim, distractione). o sentido do funk, no qual
predomina um controle descontrolado das emoes, mediado pela msica.
Podemos ver nele a expresso do direito legtimo dos jovens alegria, fruio,
ao prazer. Por outro lado, a diverso surge como um ato ou efeito de divergir:
mudana de direo, desvio (do latim, diversione). o sentido do rap. Mais do
que o funk, o estilo rap estimula o jovem a refletir sobre si mesmo, sobre seu lugar
social, contribuindo na ressignificao das identidades do jovem como pobre e
negro. Ao mesmo tempo, ele cria uma forma prpria de o jovem intervir na
sociedade,
por
meio
das
suas
prticas
culturais.
Mas
no
significa
na organizao dos tempos e espaos escolares. Mas ser que a crise da escola
se resolve nela mesma? Ser que a escola ter mais sentido e funo para esses
jovens apenas mudando suas estruturas internas? Ser que no camos no risco
de assumirmos o discurso oficial que difunde uma imagem da educao, restrita
escola, como apangio de todos os males? Ser que a instituio escolar, por si,
capaz de responder s demandas postas pelos jovens?
Neste estudo, os jovens revelaram a realidade perversa na qual se
inserem. Podemos v-los como a ponta de um iceberg que traz tona questes
fundamentais postas pela juventude brasileira, principalmente aquela dos setores
populares. Eles demandam mais do que a escolarizao, mesmo que de melhor
qualidade. Eles demandam redes sociais de apoio mais amplas, com polticas
pblicas que os contemplem em todas as dimenses, desde a sobrevivncia at o
acesso aos bens culturais. Com isso, quero dizer que a crise da escola reflexo
da crise da sociedade e sua superao demanda que ns, educadores,
ampliemos a nossa reflexo para fora dos muros escolares e busquemos sadas
no jogo das foras sociais. E mais, acredito que devemos estar mais abertos para
ouvir os jovens pobres na escola, ver nas prticas culturais e nas formas de
sociabilidade que desenvolvem traos de uma luta pela sua humanizao, (o que
no significa endeus-las), aprender com eles e respeitar as formas de
sociabilidade que vivenciam. Se queremos contribuir para a formao humana
desses jovens, potencializando o que j trazem de experincias de vida, temos de
encar-los como sujeitos que so, que interpretam o seu mundo, agem sobre ele
e do um sentido s suas vidas. Como Arroyo, acredito que por meio desse
dilogo que podemos fazer da escola um tempo mais humano, humanizador,
esperana de uma vida menos inumana.
357
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
358
360
361
362
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364
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365
ANEXO METODOLGICO
passos
desenvolvidos
na
pesquisa,
bem
como
os
instrumentos
366
mdia entre uma hora e meia a duas horas em cada sala. Os debates envolveram
uma mdia de 270 alunos, na totalidade das escolas.
Os debates iniciavam-se com uma explicao dos seus objetivos. Em
seguida, era feito um rpido levantamento de categorias sociais no grupo: gnero,
idade, estado civil, emprego, habitao. A partir da passava-se a uma discusso,
a partir de um roteiro aberto (ANEXO 1) sobre o tempo livre e o consumo cultural,
os espaos culturais existentes na regio e quem os freqentava. Os estudantes
eram, portanto, incentivados a traar um retrato da vida cultural nas suas regies
e uma avaliao sobre as ofertas de lazer existentes.
Num segundo momento, a discusso se dirigia para a produo cultural, as
facilidades e dificuldades encontradas para o desenvolvimento de suas
atividades. Assim foram indicando indivduos e grupos que desenvolviam
qualquer atividade de produo cultural. Se havia algum aluno que participava de
alguma atividade de produo cultural, entregava um questionrio para ser
respondido (ANEXO 2). Resolvi no gravar os debates, tomando notas ao longo
da prpria discusso, o que me fez perder algumas informaes, principalmente
quando as discusses se tornavam acaloradas.
Os debates foram desiguais, em cada turma a discusso tomava um rumo
prprio. Pareceu-me que a facilidade ou dificuldade de entabular a discusso
refletia muito a prpria dinmica da escola, ou seja, se o debate era uma prtica
comum ou no. Em algumas escolas, tive dificuldades em envolver os alunos, que
se mostravam tmidos e calados. Em outras, o debate se acalorava, e tinha de
controlar aqueles mais exaltados.
A opo de contatar os jovens nas escolas apresentou vantagens e
desvantagens. De um lado, significou o acesso a um ponto de agregao coletiva,
com uma certa homogeneidade social e geogrfica, o que seria difcil encontrar
em outros contextos. Ao mesmo tempo, a heterogeneidade de idades e interesses
possibilitaram um leque maior de possibilidades. Por outro lado, eu tive
informaes apenas sobre uma parte da realidade juvenil, j que as estatsticas
demonstram que menos da metade dessa faixa da populao freqenta a escola.
Um outro aspecto foi o peso do espao institucional, que condiciona em
parte o grau de abertura e de explicitao daquilo que os jovens realmente
pensam. Na sala de aula, tive de levar em conta as interferncias do coletivo
367
368
369
370
Funk e suas
variaes.
Uma realidade diferente a da regio Norte, que oferece poucas
alternativas, sem uma "mancha de lazer" concentrada. uma regio-dormitrio da
cidade, com muitos bairros espalhados, visivelmente mais pobre que o Barreiro. A
escola que visitei situada no bairro Ribeiro de Abreu.
O bairro no possui nenhuma praa e o nico ponto de encontro dos
jovens nos finais de semana um bar que funciona em um trailer, onde, de vez
em quando, se apresentam grupos de Pagode. O nico equipamento pblico
existente a escola, que fecha nos finais de semana.
371
372
Apresentam
em
comum
eixo
da
expresso
simblica,
descobri a existncia do funk em Belo Horizonte, o que foi uma novidade para
mim. A realizao desta fase me deu indcios mais seguros de que a msica era
parte integrante da vida cotidiana dos jovens, mas que o fenmeno da existncia
de grupos musicais no era to generalizado entre eles. No era na escola que
iria encontrar os grupos musicais a serem pesquisados.
INSTRUMENTOS UTILIZADOS:
ANEXO 1
1- Explicao da pesquisa
2- Levantamento de dados de identificao da turma:
Idade / Sexo
Trabalho: quem trabalha de carteira/ quem trabalha sem carteira quem
trabalha de bicos.
Quem no trabalha = ganha mesada?
Moradia: qual bairro ?
376
377
ANEXO 2
1- Sexo: ____Masculino
____Feminino
No_____
Qual ?______________________________________________
____canto
Qual?______________________________________________
____dana
Qual ?______________________________________________
____teatro
Qual ?______________________________________________
____literatura
Qual ?______________________________________________
____pintura
Qual ?______________________________________________
____moda
Qual ?______________________________________________
____Sim
378
7-
Com
quem
voc
____Individualmente
desenvolve
esta
prtica
cultural
atualmente?
____Em grupo
Sim_____
10- Quantas horas voc dedica a esta prtica cultural durante a semana?
_______horas semanais
-E nos finais de semana?__________ horas
11- Voc costuma ganhar algum dinheiro com esta prtica cultural?
____No
____Sim
____Sim
____Sim
13- Tem alguma outra prtica cultural que voc gostaria de desenvolver?
______No
____Sim
379
15- Qual o sentido que esta prtica cultural tem na sua vida?
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
380
383
3 A pesquisa telefnica
Apesar do gospel no ser um estilo, no sentido que estamos atribuindo neste texto, mas um conjunto de
estilos que tem em comum a orientao religiosa.
385
386
emergentes e ligados aos estilos Rap, Funk, Pagode, Rock e Gospel. De uma
lista de 210 grupos, conseguimos entrevistar 146 deles.
Durante a aplicao, percebemos que seria impossvel limitar a rea
geogrfica apenas cidade de Belo Horizonte, porque muitos grupos tinham seus
integrantes em bairros de cidades que compem a regio metropolitana da
cidade. Tambm percebemos que muitos grupos, cujos contatos nos foram
passados como pertencentes a estilos definidos, se diziam ligados a outros, como
no caso de alguns grupos de Rock que se definiam como de MPB, ou mesmo de
Pop. Resolvi, no entanto, mant-los da mesma forma no interior do universo
pesquisado. A aplicao dos questionrio se deu nos meses de maio e junho de
1998.
A tabulao dos questionrios foi realizada por uma empresa de pesquisa
de opinio, a CP2. Optei por agrupar os diferentes subestilos declarados pelos
grupos em categorias mais amplas. Por exemplo, agrupamos sob o estilo
Rock/Heavy metal os subestilos: Rock'n'roll, Heavy metal, Trash, Hardcore,
Hardcore punk, Hard rock, Trash metal, Black metal, Death metal. Na categoria
Gospel agrupamos todos os grupos, dos mais diferentes estilos, que se definiam
como grupos ligados s igrejas evanglicas. O mesmo ocorreu com o Pagode:
agrupamos os grupos de Pagode, Samba e Ax em uma mesma categoria, j que
comum tocarem os trs subestilos. Apesar de aparecerem separados, faremos
esta juno no momento da anlise.
387
ESTILO
Freqncia absoluta
Freqncia relativa
41
28,1
Rap
32
21,9
Funk/Charme
25
17,1
Pagode
24
16.4
Gospel
14
9.6
Outros
10
7,0
Total
146
100%
388
instrumentos.
390
391
fases da vida. Optei por escolher trs grupos em cada estilo, de forma a
compreender os diferentes momentos da fase juvenil.
Ao critrio da idade, somou-se o critrio da produo cultural. Desde o
incio da pesquisa, j pretendia privilegiar os grupos que no se limitassem
pratica do cover, mas que tivessem uma produo musical prpria. O perfil
traado confirmou que esta prtica difusa entre os grupos, menos os de
Pagode, influenciados que so pelas injunes do mercado. Assim, elegi as
variveis idade e produo musical como centrais.
Quando selecionei os questionrios aplicados segundo estes critrios, me
deparei com a impossibilidade de uma definio rgida de idade, pois os grupos
apresentavam uma composio etria muito misturada, havendo grupos com
rapazes de 15 a 27 anos. Portanto, o critrio passou a ser a idade da maioria dos
integrantes do grupo. E a este acrescentei um outro, aliado idade, que foi o
tempo de formao do grupo. Pareceu-me importante a possibilidade de refletir
sobre os possveis significados de um grupo recm-formado e um outro j mais
estabelecido.
Como o perfil indicou a predominncia esmagadora de homens entre os
integrantes dos grupos, optei pelos grupos com a presena masculina. Um ltimo
critrio estabelecido foi a definio de grupos que fossem emergentes, amadores,
que no tivessem ainda um reconhecimento fora do meio do prprio estilo.
Baseado nestes critrios, defini os nove grupos com os quais trabalhei na fase
posterior da pesquisa
392
ANO
INICIO
DE NUMERO DE
IDADE
INTEGRANTES
ESCOLARIDADE
OCUPAO
RAP
a
T. Informal
Officeboy
T. Informal
Serralheiro
Servios G.
Desemp.
T.
Informal
Comrcio
T.Informal
Garom
Processo
Hip Hop-
1998
17 Sim
19 Sim
22 Sim
4 /E.F
a
5 /E.F.
a
5 /E.F.
Mscara
Negra
1996
20 No
21 No
28 No
6 /E.F.
a
5 /E.F.
a
5 /E.F.
Raiz Negra
1993
24
25
28
30
No
No
No
No
1 /E.M.
o
2 /E.M.
o
1 /E.M.
a
8 /E.F..
FUNK
Flavinho e
Maninho
1998
16 Sim
17 Sim
8 /E.F.
a
8 /E.F.
Marcos
Fred
1995
18 Sim
19 Sim
1 /E.M.
a
8 /E.M.
1994
19
21
21
26
No
No
No
No
1 /E.M.
a
6 /E.M.
a
1 /E.M.
a
3 /E.F.
17
18
20
20
22
23
23
Sim
Sim
No
No
No
No
No
8 /E.F.
a
7 /E.F.
a
5 /E.F.
a
5 /E.F.
a
6 /E.F.
a
4 /E.F.
a
5 /E.F.
17
20
20
21
22
23
23
23
27
19
20
21
28
29
29
34
35
No
No
No
No
No
No
No
No
No
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
Sim
2 /E.F.
a
3 /E.F.
a
4 /E.F.
a
2 /E.F.
a
8 /E.F.
a
5 /E.F.
a
5 /E.F.
a
2 /E.M.
a
1 /E.M.
a
5 /E.F.
a
5 /E.F.
a
8 /E.F.
a
8 /E.F.
suplet./E.F.
a
8 /E.F.
o
3 grau
a
8 /E.F.
Os Cazuza
PAGODE
Toque
Inocente
1997
Serra
Jnior
1994
Remelexo
1993
Estudante
Estudante
Estudante
T. Informal
T. Informal
Comercirio
T. Informal
Const. Civil
Estudante
Office boy
Comercirio
Office boy
Desemp.
Motorista
Office boy
Informal
Const. Civil
Desemp.
Gari
Auxiliar Esc.
Const. Civil
Gari
Auxiliar Esc.
Aux. Servios
Desemp.
Aux. Servios
Desemp.
Metalrgico
Bancrio
T. Informal
Vendedor
Const. Civil
393
ANEXO 5
1-O GRUPO
Histria do grupo
Quando e como o grupo comeou, o que os levou a se agruparem
Foi a primeira experincia de grupo para os participantes
No incio, a que o grupo se propunha?
Em relao ao incio do grupo: o que mudou, o que continua o mesmo:
componentes, propostas.
A produo do grupo
Escrevem letras? Criam as msicas? Quantas neste ano?
Quem produz, o processo de criao (individual, coletivo, etc...). O que o
fato de produzirem msicas significa para vocs?
Fontes de inspirao/ informao utilizados.
Dificuldades encontradas na produo.
A relao com a msica: desde quando esto ligados ao estilo: o que
escuta? Onde escutam?
Sabem tocar? Como aprenderam? Gostariam de saber?
Avaliao que fazem do grupo e sua produo.
OS SHOWS
Desde quando se apresentam em pblico, frequncia atual das
apresentaes.
394
sentimento
significativo.
predominante
nas
sentido/significado
apresentaes;
das
apresentaes:
show
mais
financeiro,
marketing, etc.
O que tocam o que mais gostam de tocar?
Participao do grupo em alguma atividade alm dos shows (atividades
de protesto, comunitria, etc.).
Avaliao dos espaos existentes.
O COTIDIANO DO GRUPO
Tempo que ficam juntos: Ensaios (freqncia, local, como ocorre, sempre
foi assim?).
Outros tempos juntos? Fazendo o qu? Sempre foi assim?
Relao entre os elementos do grupo: possveis conflitos e seus motivos.
Como dividem o tempo durante a semana? O tempo que cada um dedica
msica e ao grupo.
RELAES: Com quem se relacionam durante a semana? E nos finais de
semana? Grupo de amigos comum? Quais os espaos onde se sentem
bem, valorizados?
ESPAOS: Por onde se locomovem? espao de trabalho, de lazer, de
encontro (A Relao com a cidade).
CONSUMO CULTURAL: pensando nos produtos culturais que esto a
(cinema, teatro, leitura de livros, revistas ou jornal, dana), o que
consomem? Com que freqncia?
A que espaos culturais/lazer tm acesso? O que gostariam de consumir,
se fosse possvel?
LAZER: O que fazem de lazer? O que gostariam, caso fosse possvel? O
que d prazer fazer atualmente?
395
Quem
produz;
quem
recebe;
as
comunicaes
que
O SENTIDO DO GRUPO
Para qu ou o por qu do grupo.
O sentido do grupo na vida de cada um: o que possibilita? O que trouxe
at ento?
O sentido da banda quando comeou e seu sentido hoje.
Perspectivas: profissionalizao? hobbie? O que necessrio para
conseguirem sobreviver das atividades musicais?
O que o grupo pensa/pretende para o futuro?
396
ANEXO 6
398
ANEXO 7
1- PROJETOS
Quais os sonhos? O que quer da vida?
Enfatizar: o grupo musical /a vida afetiva, familiar / trabalho/sobrevivncia
Que habilidades individuais acha que possui para implementar estes
projetos? Como v as possibilidades concretas de sua realizao?
Quais as dificuldades/ barreiras para implementar estes sonhos?
5- A IDENTIDADE
Me fale sobre como voc se percebe ou quem ? (quando negro, lembrar
de puxar sobre a identidade tnica).
Mudou alguma coisa no seu jeito de ser depois que comeou a participar
do grupo musical?
400
AGRADECIMENTOS
402
A FLVIA,
meu grande achado.
403
Banca examinadora:
__________________________________________
Prof. Doutora Marlia Pontes Sposito Orientadora
_____________________________
Prof. Doutor Miguel Gonzles Arroyo
_______________________________
Prof. Doutora Mrcia Regina da Costa
___________________________
Prof. Doutora Ana Maria Niemeyer
___________________________________
Prof. Doutor Paulo Csar Rodrigues Carrano
404
RESUMO
405
ABSTRACT
This inquiry considers to discuss the socialization processes lived deeply by
young poor persons in the periphery of Belo Horizonte, in the State of Minas
Gerais, Brazil. Having as focus the young integrants of three rap groups and three
funk pairs, the inquiry searches to analyze those young persons cultural
experiences and the meaning that such practices acquire in the set of the social
processes that constitute them as social citizens. It means to understand as they
elaborate its experiences around those musical style and the meaning that they
attribute to it. But also to disclose them in its social condition of young people, for
beyond of its participation in the musical groups, searching to apprehend the
relations that they establish between that experience and the experiences in the
other social instances where they are inserted, as the family, the work or the
school. The inquiry points that rappers and funkers find few spaces in the
institutions of adult world to construct references and values to create positive
identities to themselves. Those conditions are the only ones which they count to
construct themselves as citizens.
meaning in the life of those citizens. By those styles they reformulate the current
images of youth, creating proper modes of being young, and to express the claim
for the right of being young.
406
SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................. 1
407
409