A Máquina Que Ganhou A Guerra

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A Mquina que ganhou a Guerra (1961)

Isaac Asimov

As comemoraes ainda deviam se prolongar bastante, e mesmo nas silenciosas


profundezas das cmaras subterrneas do Multivac havia algo de diferente no ar. Em
primeiro lugar, havia o simples fato do silncio e do isolamento. Pela primeira vez nos
ltimos dez anos, no havia tcnicos correndo pelos passadios do imenso computador,
as luzes no estavam piscando nos seus costumeiros padres errticos, o fluxo de
entrada e sada de informaes tinha sido interrompido. No por muito tempo, claro,
porque a implantao da paz iria impor suas prprias exigncias. Mas naquele instante,
por um s dia, talvez por uma semana, mesmo o Multivac tinha o direito de comemorar
a grande data e repousar.
Lamar Swift tirou o quepe militar que usava e fitou o longo corredor central do
computador gigante, que se estendia vazio sua frente. Estava sentado numa das
cadeiras giratrias usadas pelos tcnicos, e seu uniforme, dentro do qual ele nunca
chegara a se sentir confortvel, tinha uma aparncia gasta e amarrotada.
- Acho que vou sentir falta disso, por mais horrvel que possa parecer - disse ele.
difcil lembrar de um tempo em que no estivssemos em guerra com Deneb; agora
parece antinatural saber que estamos em paz e podemos olhar sem medo para as
estrelas.
Os dois homens da Diretoria Executiva da Federao Solar eram ambos mais
jovens do que Swift. Nenhum deles tinha tantos cabelos brancos. Nenhum tinha uma
expresso to cansada.
John Henderson, lbios finos, mal conseguindo controlar o alvio que sentia em
meio sensao de vitria, exclamou:
- Foram destrudos! Totalmente destrudos! Fico repetindo isso o tempo todo e
ainda no consigo acreditar. Passamos todos estes anos falando da ameaa que pairava
sobre ns, sobre os demais planetas, sobre cada ser humano, e era verdade, cada palavra
do que dizamos era verdade. Agora estamos vivos... os denebianos que foram
dizimados, destrudos! Nunca mais nos atacaro de novo.
- Graas ao Multivac - disse Swift, lanando um olhar de esguelha ao
imperturbvel Jablonsky, que durante toda a guerra tinha sido o Intrprete-Chefe do
"orculo" dos cientistas. - Certo, Max?

Jablonsky encolheu os ombros. Maquinalmente procurou um cigarro no bolso,


mas acabou mudando de ideia. Ele era o nico entre os milhares de tcnicos que
trabalhavam nos tneis interiores do Multivac que tinha autorizao para fumar; mas
nos estgios finais da guerra ele tinha feito um esforo heroico para abrir mo desse
privilgio.
- Bom - disse ele, pelo menos o que eles dizem. - Seu enorme polegar apontou
para o alto, por sobre o ombro direito.
- Ciumento, Max?
- Porque esto brindando ao Multivac? Porque o Multivac foi o grande heroi da
humanidade nesta guerra? - O rosto spero de Jablonsky assumiu um ar desdenhoso.
- O que tenho eu a ver com isso? Deixe que o Multivac seja a mquina que
ganhou a guerra, se isso agrada a eles.
Henderson olhou de esguelha para os dois homens. Naquele breve interldio em
que os trs tinham instintivamente se abrigado no nico lugar tranquilo de uma
metrpole entregue ao delrio da comemorao; naquele compasso de espera entre os
perigos da guerra e as dificuldades da paz; naquele instante em que todos eles podiam
respirar aliviados, ele estava consciente apenas do fardo da culpa que carregava.
De sbito, foi como se aquele peso se tornasse grande demais para ser levado
por ele sozinho. Tinha que ser retirado de seus ombros. Juntamente com a guerra.
Agora!
- O Multivac no tem nada a ver com esta vitria - disse ele. - apenas uma
mquina.
- Uma grande mquina - disse Swift.
- Tudo bem, uma grande mquina. No melhor do que os dados com que
alimentada. - Parou por um momento, nervoso diante do que iria dizer em seguida.
Jablonsky o fitou em silncio, com os dedos procurando novamente um cigarro e
novamente mudando de ideia. Falou, por fim:
- Bom, voc quem sabe. Voc lhe fornecia os dados. Ou est querendo receber
os elogios por tudo?
- Nada de elogios - disse Henderson, zangado. - O que sabem vocs dos dados
utilizados pelo Multivac, pr-processados por centenas de computadores subsidirios
aqui na Terra, na Lua, em Marte, at mesmo em Tit? Com os dados de Tit sempre
chegando atrasados e nos deixando sempre naquela expectativa de que quando
chegassem iriam introduzir alguma varivel inesperada...

- , era uma loucura - disse Swift, com simpatia. Henderson abanou a cabea
negativamente.
- No se trata s disso. Reconheo que quando eu substitu Lepont como
Programador-Chefe, h oito anos, eu estava nervoso. Mas o clima daquela poca era
diferente. A guerra ainda estava sendo travada num front remoto, era uma espcie de
aventura sem nenhum perigo real. Ainda no tnhamos atingido o ponto em que foi
necessrio utilizar naves tripuladas, ou quando armas interestelares podiam deformar o
espao e engolir um planeta inteiro, se manipuladas corretamente. Mas a, quando as
verdadeiras dificuldades tiveram incio... - sua voz permitiu-se enfim exprimir toda a
raiva que sentia. - Mas vocs no sabem nada sobre isso!
- Muito bem - disse Swift. - Que tal se voc nos contasse? A guerra acabou.
Ganhamos.
- mesmo - disse Henderson, assentindo com um gesto de cabea. Tinha que ter
aquilo em mente. Tinham ganhado a guerra. Tinha dado tudo certo, afinal. - Bem...
acontece que a partir de uma certa poca os dados j no faziam mais sentido.
- No faziam sentido? Est dizendo isso literalmente? - perguntou Jablonsky.
- Literalmente. O que queriam vocs? O problema com vocs dois que nunca
tomaram parte, para valer, nos acontecimentos. Voc, Max, nunca saa do Multivac; e
quanto ao senhor, diretor, nunca deixava a Manso, exceto em misses oficiais onde via
apenas o que os outros queriam lhe mostrar.
- Eu tinha conscincia disso - disse Swift, como voc mesmo, alis, deve ter
percebido.
- Muito bem - prosseguiu Henderson. - Sabem at que ponto nossos dados
referentes capacidade produtiva, potencial de recursos, pessoal qualificado... tudo que
era de importncia vital para a guerra, na verdade... sabem at que ponto esses dados se
tornaram inteis, no-confiveis, durante a segunda metade da guerra? Lderes civis e
militares tentavam melhorar a prpria imagem, omitindo os fatos negativos e
exagerando os positivos. No importa o que os computadores fazem: os homens que os
programam e que interpretam seus resultados estavam pensando em salvar a prpria
pele e em apresentar resultados melhores do que os de seus concorrentes. Era
impossvel modificar isso. Eu tentei e falhei.
- Claro - disse Swift, tentando consol-lo. - No de admirar que no tenha
conseguido.
Desta vez Jablonsky tomou a deciso de acender o cigarro:

- E no entanto falou Isso no impediu que voc continuasse supervisionando


a alimentao de dados para o Multivac. Voc nunca nos disse nada sobre dados no
confiveis.
- E como poderia dizer? Se eu dissesse, algum iria acreditar em mim?
retorquiu Henderson com irritao. - Todo o nosso esforo de guerra tinha que passar
atravs do Multivac. Era a nica arma que poderia desequilibrar a guerra em nosso
favor, j que os denebianos no tinham nada semelhante. Nos momentos de maior
perigo, o que mantinha alto o nosso moral era a certeza de que o Multivac sempre
conseguiria prever e anular qualquer movimento denebiano e ao mesmo tempo evitar
que eles previssem e anulassem os nossos movimentos. Pelo Espao! Depois que o
nosso sistema de Hiperespionagem foi reduzido a poeira csmica, ficamos totalmente
sem dados sobre Deneb para fornecer ao Multivac... e nunca nos atrevemos a anunciar
isso em pblico.
- Isso verdade - concordou Swift.
- Muito bem - prosseguiu Henderson. - Se eu dissesse a vocs que aqueles dados
no mereciam confiana, que outra coisa vocs poderiam fazer a no ser recusar-se a
acreditar em mim e me substituir por outro? Eu no podia correr esse risco.
- E o que fez, ento? - perguntou Jablonsky.
- Bom... j que ganhamos a guerra, acho que agora posso contar tudo. Eu
alterava os dados.
- Como? - perguntou Swift.
- Intuio, talvez. Ficava mexendo neles at que me parecessem corretos. No
comeo eu mal me atrevia. Mudava um detalhe aqui, outro acol, apenas para corrigir o
que eram impossibilidades bvias. Quando o cu no desabou sobre minha cabea, fui
ficando mais corajoso. J agora no final eu nem tomava muitas precaues. Apenas me
sentava e preparava os dados que me eram solicitados. Consegui inclusive que o Anexo
do Multivac preparasse dados para mim, de acordo com um programa que criei
especialmente para isso.
- Cifras aleatrias? - perguntou Jablonsky.
- No propriamente. Eu introduzi um grande nmero de parmetros
indispensveis.
Jablonsky deu um sorriso um tanto inesperado. Os olhos negros brilhavam por
sob as pesadas plpebras.

- Por trs vezes me chegaram relatrios falando de utilizao no-autorizada do


Anexo - disse ele. - Sempre arquivei as denncias. Se fosse algo importante, John, eu
teria seguido at l e desmascararia o que estava fazendo. Mas claro que quela altura
o Multivac no estava mais realizando nada de importante, por isso deixei-o prosseguir.
- O que quer dizer com isso, "nada de importante"? - perguntou Henderson,
desconfiado.
- A verdade. Se eu tivesse lhe contado tudo ento, teria evitado muitas dores de
cabea para voc. Mas se voc tivesse aberto o jogo comigo tambm teria evitado as
minhas. Quem lhe disse que o Multivac estava funcionando direito, independentemente
dos dados que recebia?
- No estava? - perguntou Swift.
- Na verdade, no. No merecia confiana. Veja bem: onde estavam meus
tcnicos durante os ltimos anos da guerra? Vou lhe dizer: estavam operando
computadores em mais de mil instalaes espaciais diferentes. Todos l! Eu tive que
tocar meu trabalho com a ajuda de garotos inexperientes e de veteranos com formao
defasada. Alm do mais, acha que eu podia ter confiana nos componentes de estado
slido que recebia da Criogenia nos ltimos anos? Em matria de pessoal qualificado, a
Criogenia estava to despreparada quanto o meu setor. Para mim, era indiferente se os
dados colocados no Multivac eram confiveis ou no. Os resultados no seriam, em
qualquer hiptese. Disso eu tinha certeza.
- E o que voc fez? - perguntou Henderson.
- O mesmo que voc: introduzi o fator subjetivo. Modifiquei os resultados de
acordo com a minha intuio... e foi assim que a mquina ganhou a guerra.
Swift se recostou para trs na cadeira e esticou as pernas para a frente,
exclamando:
- Mas quantas revelaes! Quer dizer ento que os relatrios que chegavam s
minhas mos, o material em que eu me baseava para tomar decises... eram uma
interpretao feita por um s indivduo, a partir de dados inventados por um outro
indivduo. Era isso?
- Tudo indica que era - disse Jablonsky.
- Ento eu estava certo em no dar muita importncia a esses relatrios.
- No dar? - A despeito da confisso que tinha acabado de fazer, Jablonsky ainda
conseguiu compor um ar de orgulho profissional ferido.

- Infelizmente. O Multivac parecia estar dizendo: ataque aqui, no ali; faa isto,
no aquilo; espere, no aja. Mas eu nunca podia ter certeza de que o Multivac dizia de
fato o que parecia estar dizendo; ou melhor, se ele sabia o que estava dizendo. Eu no
podia estar seguro.
- Mas os relatrios finais eram sempre muito claros, senhor - disse Jablonsky.
- Talvez... para quem no tinha que tomar a deciso final. Eu tinha. Esse tipo de
responsabilidade acarreta um peso horrvel, e nem mesmo o Multivac era suficiente para
remover esse peso. Mas o detalhe importante : eu estava certo em duvidar, o que me d
agora um tremendo alvio.
Envolvido por aquela atmosfera cmplice, cheia de confisses, Jablonsky
abandonou as formalidades:
- Mas ento, o que foi que voc fez, Lamar? Porque o fato que voc tomava as
decises. De que modo?
- Bem, acho que preciso ir andando, mas... , acho que posso dizer-lhes. Por que
no, afinal? O fato, Max, que lancei mo de um computador, mas um muito mais
antigo do que o Multivac. Muito mais antigo, mesmo.
Ele enfiou a mo no bolso e extraiu dali um mao de cigarros juntamente com
um punhado de pequenas moedas - dinheiro antigo, da poca anterior ao racionamento
de metal que transformara o dinheiro num simples servio de crdito, ligado a um
sistema computadorizado. Swift deu um sorriso encabulado:
- Gosto de andar com isto... faz com que o dinheiro continue parecendo algo
substancial. Um homem da minha idade tem dificuldade em abandonar os hbitos da
juventude. Com um cigarro no canto da boca, ele foi recolocando as moedas no bolso,
de uma em uma. No guardou a ltima: segurou-a na ponta dos dedos e ficou fitando-a
com olhar absorto.
- O Multivac no o primeiro computador, camaradas, nem o mais conhecido,
nem o que pode retirar mais eficientemente o peso da responsabilidade de sobre os
ombros de um executivo. A guerra ganha por uma mquina, John, e por um sistema de
computao na realidade muito simples, um que eu usei cada vez que tinha que tomar
uma deciso particularmente difcil.
Com um sorriso vagamente nostlgico, ele atirou a moeda para o alto com a
unha do polegar; ela rebrilhou no ar enquanto girava e voltou a cair sobre a palma da
mo de Swift. Seus dedos se fecharam sobre ela e num gesto hbil ele a pousou sobre as

costas da mo esquerda; ainda mantendo a mo direita na mesma posio, ocultando a


moeda, ele perguntou:
- E ento, cavalheiros... cara ou coroa?

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