Entrevista Com Michael Apple
Entrevista Com Michael Apple
Entrevista Com Michael Apple
CONTRADIES E AMBIGUIDADES
DO CURRCULO E DAS POLTICAS
EDUCACIONAIS CONTEMPORNEAS ENTREVISTA COM MICHAEL APPLE
Maria Vieira Silva
Universidade Federal de Uberlndia Brasil
Resumo
Michael Apple um dos mais expressivos tericos do pensamento educacional crtico
contemporneo. Suas formulaes se aliceram nas anlises relacionais entre cultura, poder e
educao, problematizando os mltiplos efeitos do poder circulantes na sociedade como tambm
as estratgias para interromper os efeitos desse poder. Nesta entrevista so enfocadas snteses
analticas desenvolvidas pelo professor ao longo de sua vasta experincia no campo da pesquisa
curricular e da militncia poltica. Apple debate as potencialidades e limitaes do marxismo e das
teorias ps-estruturalistas para a compreenso da sociedade, evidenciando sua posio terica.
Destaca tambm o papel das teorizaes crticas no processo de lutas contra-hegemnicas e
enfrentamento s atuais dinmicas de poder das polticas neoliberais e neoconservadoras.
Problematiza o formato do Estado no tempo presente, as contradies e ambiguidades das polticas
educacionais no contexto atual, a centralidade dos movimentos sociais neste processo, o conceito
de voz e o papel dos educadores crticos como mediadores dos segmentos sociais cujas vozes so
silenciadas.
Palavras-chaves: teorizao crtica; poder; polticas curriculares
Abstract
Michael Apple is one of the most important contemporary theorists of the critical educational
thought. His formulations are founded on relational analysis between culture, power and
education, discussing the multiple effects of power circulating in society as well as strategies to
interrupt the effects of that power. This interview is focused on analytical summaries developed by
Apple throughout his vast experience in the field of curriculum research and political activism.
Apple debates the potential and limitations of Marxism and poststructuralist theories for
understanding society, revealing its theoretical position. It also highlights the role of critical
theorizing in the process of counter-hegemonic struggles and confronts current power struggle
dynamics of the neoliberal and neoconservative. He problematize the format of the state at the
present time, the contradictions and ambiguities in educational policies in the current context, the
centrality of social movements in this process, the concept of voice and the critical role of
educators as mediators of social groups whose voices are silenced.
Key words: critical theories, power, politics curriculum
175
sua prpria voz seja ouvida. Por exemplo, nos meus livros, no apenas busco entender o
que acontece em termos pedaggicos nas escolas e salas de aula - embora isso seja
profundamente importante - mas quem controla a mdia. Se a realidade parcialmente
formada pelos discursos que circulam na sociedade e, por exemplo, se termos em mente
que as pessoas ficam a ouvindo centenas de estaes de rdio, mas de 100 delas, 99 falam
o tempo todo de neoliberalismo e neoconservadorismo, e apenas uma fala de questes
contra-hegemnicas - precisamos entender como a direita tem controlado o discurso social.
Um dos argumentos que eu trago, pode parecer estranho, quase um paradoxo, que ns
temos que estudar como a direita conseguiu definir nas nossas sociedades quais so as
vozes que tem poder, ou seja, precisamos trabalhar com a mdia de modo que as vozes dos
movimentos sociais se tornem mais visveis. Da mesma forma como a direita brilhante no
uso da mdia, brilhante na forma de trazer seus conhecimentos para dentro da escola (e aqui
vem o aparente paradoxo), ns precisamos estudar a direita de modo a encontrar formas de
combat-la, interromp-la. A extrema direita historicamente no esteve frente de grande
parte das naes, mas as teorias mais radicais dessa direita esto hoje no centro das
discusses de grande parte dos nossos pases. Como isso aconteceu? precisamos estudar a
direita de modo a entender como ela faz seu discurso se tornar popular. No vamos
manipular a realidade da forma cnica como a direita faz, mas ela extremamente
inteligente no modo como faz. Eles entendem Gramsci muito melhor do que a esquerda.
Entendem que para vencer, ganhar o Estado, voc precisa ganhar primeiro a Sociedade
Civil; eles entendem que a luta em torno da conscincia das pessoas e do conhecimento
absolutamente crucial. Pode parecer estranho, mas eu passo grande parte do meu tempo em
minhas pesquisas tentando entender as brilhantes estratgias da direita nas polticas
culturais atuais. Na verdade me enoja um tanto quanto. Mas a gente nunca deve imaginar
que nossos inimigos so estpidos.
Freire dizia, reproduzir uma educao bancria. Ns como professores lutvamos em torno
do contedo do currculo porque de outra forma no poderamos sobreviver como
professores, e ns tnhamos crebro.
Tambm h outras lutas em torno de outro elemento do currculo que muitas vezes
esquecemos: a organizao deste currculo. muito possvel que tenhamos muitas vitrias
em torno do contedo do currculo mas que tenhamos uma organizao curricular que
impea com que os alunos estabeleam uma relao entre o contedo do currculo e sua
vida cotidiana. Por exemplo, se preciso entender a histria do empobrecimento e da vida
das pessoas nas favelas, ou se quero entender a contribuio das populaes negras na
histria brasileira, ou a importncia do trabalho domstico na economia, a forma como
temos organizado o currculo nos impede de enxergar essas relaes. O currculo
organizado de tal forma que parece haver muros entre as vrias matrias escolares: damos
aula de histria por 50 minutos, depois de matemtica, depois de cincia, ou no damos
aulas muitas vezes (risos). Mas de modo a entender a realidade precisamos derrubar essas
paredes. Ou seja, precisamos entender as relaes entre as vrias reas disciplinares e o
modo como elas nos permitiriam enxergar a realidade.
E o terceiro elemento, e que se fala muito no Brasil, o currculo oculto. Qualquer
ao que realizamos, tem mltiplas mensagens. Algumas so bastante progressistas.
Algumas se importam com as crianas que ali esto - numa sociedade que na verdade
destri as pessoas. O fato de trabalhar como professor preocupando-se com a criana que
est a minha frente envia a mensagem de que as instituies podem ser formadas em torno
de uma tica do cuidado. No quero ser romntico a respeito disto... As crianas precisam
entender que a escola a sua instituio tambm. Da mesma forma que os professores
precisam entender que essa a sua instituio, e tambm pais e ativistas polticos daquelas
comunidades. Mas o currculo oculto pode ter uma srie de danos como todos sabemos.
Deixe-me contar uma histria: a melhor professora que j conheci (trabalhava com
matemtica), me convidou para participar da sala de aula dela para fazer um filme com os
estudantes - talvez vocs saibam, eu menciono em um livro, eu tambm fao filme nas
escolas. Estava no fundo da sala de aula observando a aula da minha professora favorita de
matemtica, o contedo daquela aula era bastante igualitrio, queria aplaud-la, era
extremamente interdisciplinar, as crianas gostavam muito daquela professora. Agora
preciso contar o lado no to bom da histria: na aula que ela ministrava, pedia que as
crianas trouxessem problemas matemticos de suas vidas/vivncias, e pedia que essas
crianas colocassem no quadro os problemas de modo que as outras pudessem resolver.
Uma das crianas que nunca falava nada em sala de aula levantou a mo timidamente, era
uma criana negra um tanto quanto mal vestida. Esta criana levantou-se foi at o quadro e
respondeu corretamente o problema, e a minha professora favorita de matemtica olhou
com surpresa para essa criana. O prximo problema foi apresentando. Uma criana de
classe mdia muito bem vestida levantou a mo, se dirigiu ao quadro e acertou o problema.
A professora simplesmente deu um sorriso e disse: Muito bem! Muito bem!. Quero usar
este exemplo simples, mas muito concreto, para examinar as relaes entre classe, raa,
gnero e corpo. Isto Foucault e Marx juntos em uma prtica pedaggica progressista.
Ns no entendemos isto se no olharmos para as questes de dominao e subordinao,
179
polticas governamentais, a questo que devemos nos fazer : essas polticas so usadas
para promover idias incuas ou boas polticas sociais? So espcies de acordos que na
verdade criam espaos para o bom senso em contraposio h uma idia no positiva/ mau
senso? Eu no me oponho em princpio idia de avaliao nas escolas, mas o que
acontece que na realidade da maior parte das naes, ela tem sido usada para produzir
uma espcie de fbrica dentro das escolas. Tem sido usada para de alguma forma filtrar
alguns estudantes e manter os outros parte dos processos econmicos. Saber o que
realmente estamos conquistando importante. (...) Um exemplo: nas comunidades mais
empobrecidas, onde no h dinheiro para sade, para escolas e os salrios dos professores
so uma desgraa, precisamos achar formas de trazer os recursos que esto centralizados
para esses locais mais descentralizados. A questo quem vai controlar esses recursos?
Essas decises podem ser tomadas de formas participativas, como no Oramento
Participativo. H uma relao dialtica entre o centro e a periferia, mas tambm seria
muito perigoso romantizar a idia do local. Eu cresci numa famlia muito pobre, e muitas
das idias que eu tinha, porque eu cresci nessa famlia pobre, precisaram ser reconstrudas.
Por exemplo, nas famlias mais pobres da regio sul dos EUA, onde h imensa quantidade
de racismo, precisou-se de uma ao prolongada por muitos anos pelo governo federal para
revert-las. O governo federal disse de uma forma muito incisiva a essas comunidades
locais que no iria permitir que continuassem segregando as crianas negras. Ento, em
algumas instncias, o Federal, a Unio, pode ser um pouco mais progressista do que
algumas prticas locais. Mas esta ao obviamente precisa ser temporria porque o que
pode acontecer, se isto no for temporrio, so os movimentos sociais serem
desmobilizados, os professores perderem suas habilidades. Minha opinio que depende
das questes que esto em jogo.
e no esqueamos que a mobilizao quem garante a conduo das polticas estatais que
atendem os interesses dos grupos dominados. crucial lembrar disto, principalmente na
rea de educao.
Correspondncia
Maria Vieira Silva - Professora da Universidade Federal de Uberlndia. Uberlndia, Minas Gerais, Brasil.
Email: [email protected]
Mara Rbia Alves Marques - Professora da Universidade Federal de Uberlndia. Uberlndia, Minas Gerais,
Brasil.
Email: [email protected]
Lus Armando Gandin - Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande
do Sul, Brasil.
Email: [email protected]
184