Amazônias - Colóquios
Amazônias - Colóquios
Amazônias - Colóquios
Proibida a reproduo parcial ou total desta obra sem autorizao da Nepan Editora
Todos os direitos desta edio so reservados a Nepan Editora
[email protected]
Conselho Editorial
Agenor Sarraf Pacheco
Ana Pizarro
Carlos Andr Alexandre de Melo
Elder Andrade de Paula
Francemilda Lopes do Nascimento
Francielle Maria Modesto Mendes
Francisco Bento da Silva
Francisco de Moura Pinheiro
Gerson Rodrigues de Albuquerque
Hlio Rodrigues da Rocha
Hideraldo Lima da Costa
Joo Carlos de Souza Ribeiro
Jones Dari Goettert
Leopoldo Bernucci
Livia Reis
Lus Balkar S Peixoto Pinheiro
Marcela Orellana
Marcia Paraquett
Maria Antonieta Antonacci
Maria Chavarria
Maria Cristina Lobregat
Maria Nazar Cavalcante de Souza
Miguel Nenev
Raquel Alves Ishii
Srgio Roberto Gomes Souza
Tnia Mara Rezende Machado
Desde as Amaznias
colquios
volume 2
1a edio
Nepan Editora
Rio Branco, Acre
2014
Agradecimentos
A publicao dos volumes I e II deste livro somente foi possvel
pelo significativo empenho e esforos de professores e estudantes
vinculados ao Ncleo de Estudos das Culturas Amaznicas NEPAN,
ao Grupo de Pesquisa Histria e Cultura, Linguagem, Identidade e
Memria GPHCLIM e ao Curso de Mestrado em Letras: Linguagem
e Identidade da Universidade Federal do Acre, bem como aos integrantes do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Dispora CECAFRO da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. A todos
eles somos imensamente gratos, especialmente, por terem dedicado
preciosos tempos de suas atividades acadmicas e profissionais para
nos auxiliar em todas as etapas do processo
A edio e impresso dos dois volumes contaram com o imprescindvel financiamento da CAPES, por intermdio do Convnio Capes/
Universidade do Texas, do PAEP e do Proap/2013; da Fundao Municipal de Cultura Garibaldi Brasil (FGB) de Rio Branco, por intermdio
da Lei de Incentivo Cultura e do Colgio Meta patrocinador na troca
dos bnus; e do Programa de Ps-Graduao em Letras: Linguagem
e Identidade da UFAC aos quais tambm tornamos pblicos os nossos
agradecimentos.
Aos autores dos textos, nossos colegas de profisso e companheiros de muitas jornadas, queremos externar especiais agradecimentos por terem aceitado nossos convites e pela pacincia de
aguardarem tanto tempo por essa publicao que vimos anunciando,
projetando, planejando e que somente agora, passados sete anos
desde o primeiro encontro no campus da UFAC, apresentamos ao pblico. Temos clareza de que alguns dos artigos aqui reunidos j foram
publicados em outras bases, mas como forma de honrar os compromissos assumidos, decidimos mant-los no contexto da mesma lgica de distribuio temtica que havamos pensado desde a primeira
diagramao, concluda no ano de 2010.
Agradecemos, por fim, Universidade Federal do Acre e, por
extenso, s demais instituies de ensino e organizaes da sociedade que possibilitam abrigar e disseminar estudos e pesquisas
sobre as Amaznias e as fricas, produzidas por todos aqueles que
se colocam na contracorrente da racionalidade mercadolgica e
acreditam no papel da universidade para a preservao das utopias dos tempos presentes. Utopias dos tempos presentes, no dos
tempos futuros, para que as novas geraes no sejam tolhidas
de sonhar e lutar por seus prprios sonhos. Utopias que nos permitam construir um mundo diferente, como nos ensinou o grande intelectual africano, Joseph Ki-Zerbo, um mundo de justia,
solidariedade e respeito mtuo entre os homens e as mulheres.
Os organizadores.
Sumrio
Apresentao.............................................................................................9
A canoa do tempo: tradio oral e memria indgena.................................13
Jos Ribamar Bessa Freire
Reflexes sobre o Reino do Waalo Senegal: discursos histricos, tradio
oral e problemtica das fontes..................................................................63
Boubacar Barry
Por uma histria acre: saberes e sabores da escrita historiogrfica...........113
Durval Muniz de Albuquerque Jnior
Trabalho e migrao haitiana na Amaznia ocidental................................139
Letcia Helena Mamed, Eurenice Oliveira de Lima
Dispora de afrocaribenhos para a Amaznia acreana................................175
Gerson Rodrigues de Albuquerque
Perspectivas histricas e ficcionais nos sculos XIX ao XXI, a partir de A
educao sentimental, de Gustave Flaubert............................................215
Humberto de Freitas Espeleta
A Potica do Verde em Perspectivas - A Ecopotica e os Ecossistemas
Literrios.................................................................................................237
Joo Carlos de Souza Ribeiro
Contested modernities: decolonial knowledges, transamerican
perspectives...........................................................................................249
Jossianna Arroyo-Martnez
La potica. Una proposicin desde la literatura americana......................259
Luis Alberto Lpez Herrera
Histria e literatura: a ficcionalizao da Cabanagem..............................279
Lus Balkar S Peixoto Pinheiro
Apresentao
Partindo do reconhecimento de que nossa cotidiana atuao no campo da formao de professores, quase sempre, nos obriga a cumprir currculos avessos s experincias e saberes de nossos alunos, com suas multiplicidades culturais, tnicas e lingusticas, no contexto do ano de 2008, quando
realizamos a primeira edio do evento, percebamos que isso poderia significar um ganho e uma possibilidade de acerto de contas com o que temos
feito no interior das universidades e demais instituies ou locais de nossa
atuao.
Tal acerto de contas colocou no horizonte a necessidade de rever
abordagens e perspectivas metodolgicas, na proporo em que tnhamos
clareza de nossas limitaes para pensar algumas das questes e temticas
propostas ou cristalizadas por todo um ordenamento acadmico/social. Porm, o reconhecimento desses limites serviu de estmulo e desafio s inevitveis rupturas, aqui pensadas no rastro daquilo que Stuart Hall pontuou
10
2
Nelson Maldonado Torres, A topologia do Ser e a geopoltica do conhecimento. Modernidade, imprio
e colonialidade, In: Revista crtica de cincias sociais, 8 de maro de 2008.
12
Esses episdios evidenciam a quebra de elos na cadeia de transmisso oral. Eles revelam como, em conseqncia, a sociedade brasileira deixou de se apropriar de um saber milenar, til para a sua sobrevivncia, sem que a escrita substitusse essas funes para amplos
setores da sociedade nacional. E nos colocam algumas interrogaes
sobre o momento e as razes da ruptura, assim como sobre a vigncia
da tradio oral para os povos indgenas que sobreviveram.
O objetivo deste artigo abordar essas questes, sintetizando
num primeiro momento algumas reflexes sobre a memria coletiva,
sua relao com a histria e sua funo social. Em seguida, examinaremos as preocupaes metodolgicas da etnohistria, localizando
as fontes escritas europias e indgenas do perodo colonial, que
podem contribuir para a recuperao da memria tnica. Finalmente,
ressaltaremos as possibilidades e os limites da memria oral no processo de reconstituio do elo rompido.
Os senhores da memria
As sociedades criaram, ao longo da histria, instituies e mecanismos para preservar a memria coletiva. Jacques Le Goff, que estudou este processo, distingue cinco grandes momentos diferenciados pelas formas de conservao e transmisso:
Os fundamentos de tal proposta residem na crtica aos documentos europeus, e, ao mesmo tempo, na incorporao das fontes indgenas, tanto as escritas, quando existem, como as orais, num trabalho interdisciplinar, que nos permitem conhecer mais profundamente
as sociedades grafas.
As fontes escritas produzidas, desde o final do sc. XV na Amrica pela prtica administrativa, comerciante e exploradora da geografia do continente, esto preservadas nos arquivos e bibliotecas da
Europa e Amrica, mas no foram ainda suficientemente interrogadas e nem sequer ordenadas e catalogadas, na avaliao de Morales
Padrn.12
Quanto aos relatrios de viagens, crnicas, apresentaes etnogrficas, histricas e geogrficas publicadas no seu tempo e relativamente divulgadas nos dias de hoje, Henri Moniot considera que elas
so passveis de uma nova leitura, mais profunda e eficaz, realizada
por pesquisador com uma intimidade particular com o cdigo cultural
das sociedades estudadas, o que pode ser obtido com a apropriao
dos avanos recentes das cincias sociais, em particular, a etnologia, a
lingstica, a sociologia, a arqueologia e a demografia histrica.13
As fontes escritas de procedncia indgena, existentes para extensas reas do continente americano, continuam a ser localizadas,
algumas delas editadas, e quando cruzadas com a documentao europia permitem uma melhor compreenso da imagem que os ndios
tinham de si prprios e do colonizador e uma representao mais acabada do processo colonial.
Quanto tradio oral, sua coleta organizada e sistemtica realizada em algumas regies tem permitido trabalh-la como um documento digno de credibilidade e passvel de ser submetido crtica,
atravs do conhecimento ntimo do gnero discursivo em questo,
12
13
dessa forma que o sentimento de impossibilidade de reconstruir a memria dos povos sem escrita est sendo reformulado. No
como uma atitude vingativa em relao ao colonizador, como situa
apropriadamente J. Ki-Zerbo, especialista em metodologia da Histria da frica, nem como uma simples manifestao afetiva em relao ao ndio, como esclarece Natan Wachtel. E nem muito menos
como uma operao de troca de discursos, contrapondo uma ideologia outra ideologia.15 Mas incorporando fontes antes desprezadas
como um exerccio vital da memria para varrer o campo do passado
e reconhecer suas prprias razes.
A historiografia ocidental tem estudado a Conquista a partir exclusivamente da memria dos arquivos da administrao europia e
das fontes clssicas escritas, constitudas pelas denominadas CrniMoniot, A histria dos povos sem histria, 1979, p.102-104.
15
Wachtel, La vision des vaincus, 1971, p.18.
20
14
O trecho acima foi extrado do Manuscrito annimo de Tlatelolco, conservado na Biblioteca Nacional de Paris, escrito originalmente em lngua nhuatl, em 1528, por um ndio que sobreviveu ao
massacre dos espanhis, testemunhou o herosmo da resistncia e
narrou, numa viso dramtica, os acontecimentos que levaram destruio de Imprio Asteca.
conquistador como uma gesta herica e civilizadora, destinada a ensinar os bons costumes aos indgenas, afast-los dos vcios e instru-los
na santa f catlica. Outro cronista do rei, Fernndez de Oviedo, ao
narrar episdios da violncia cometida contra os ndios, justifica-a e
pergunta: Quin duda - escreve ele - que la plvora contra los infieles
es incienso para el Seor?19
O padre Bartolom de Las Casas, que viveu mais de 60 anos
no Caribe e no Mxico, ao longo do sculo XVI, afirma que o cronista Oviedo no confivel, uma vez que desconhece qualquer lngua
indgena e no puede decir cosa chica, ni grande, porque no fu digno
de lo ver ni de lo entender. Segundo Las Casas, se na capa do livro
de crnicas de Oviedo estivesse escrito como su autor habia sido conquistador, robador y matador de los ndios, pouco crdito teria sua
crnica.20 Quanto ao outro cronista, Las Casas informa ainda que Gmora, criado, capelln historiador de Corts, nunca esteve na Amrica, nada testemunhou e s escreveu coisas que Corts lhe ditou em
favor dele prprio, que por cierto no son verdad. As afirmaes de
Gmora sobre os ndios so consideradas como disparates y cosas
inventadas para engaar al mundo.21 Las Casas, que proporciona informaes teis para contextualizar as crnicas, chega, no entanto, a
instituir como critrio de objetividade o fato do cronista posicionar-se
em favor dos ndios: Cuando concurre en favor de los espaoles com
prejuicio de los ndios - escreve ele - ningn crdito se le debe dar, porque
todo lo ms es falsedad y mentira.22
Existem aqui alguns elementos para discutir o papel das crniFernndez de Oviedo, Cronica de las Indias, 1547, p. 330.
Las Casas, Historia de las ndias ahora por la primera vez dada a luz por el Marqus de la Fuensanta Del
Valle, 1875, Tomo III, p. 55-57.
21
Las Casas, Historia de las ndias ahora por la primera vez dada a luz por el Marqus de la Fuensanta Del
Valle, 1875, Tomo IV, p. 11 e Tomo V, p. 461.
22
Las Casas, Historia de las ndias ahora por la primera vez dada a luz por el Marqus de la Fuensanta Del
Valle, 1875, Tomo IV, p. 213.
22
19
20
cas e as possibilidades de se fazer uma leitura delas que permita superar a dicotomia hispanismo-indigenismo e rejeitar a funo da histria
como agente moralizante o como instrumento de um nacionalismo enfermizo mediante el cual se h deificado a personajes o se h cultivado
um indigenismo lrico y poltico.23
Um exemplo clssico de modelo para a releitura das crnicas
pode ser dado pelo trabalho de Todorov A conquista da Amrica, a
questo do outro (1982), onde ele procede a uma desconstruo do
discurso de vrios cronistas, comeando pelo Dirio de Colombo, que
descobriu a Amrica, mas no os americanos. Todorov comprova que
mesmo cronistas como Gmora e Oviedo, criticados por Las Casas,
no so fontes descartveis, porque quando um autor se engana ou
mente seu texto no menos significativo do que quando ele afirma a
verdade..., se ns os lemos no como enunciados transparentes, mas
levando em conta o ato e as circunstncias de sua enunciao. Deste
ponto de vista, a noo de falso no pertinente.24
Outra linha de trabalho tem utilizado modelos de anlise lxicosemntico e semiolgico conseguindo extrair, das crnicas, elementos novos na compreenso das sociedades indgenas, ao nos aproximar do produtor do discurso para conhecer as condies de produo
que marcaram o seu relato, partindo do prprio discurso, daquilo que
est expresso nas crnicas.
Constituem exemplos desta linha dois trabalhos realizados por
Lydia Fossa Falco, o primeiro publicado em 1989 e o segundo em 1991,
em Lima, Peru, ambos propondo uma chave lingstica para a releitura do cronista Cieza de Len, autor de Descubrimiento y Conquista del
Peru. Neles, a autora distingue o que descrio do que opinio do
cronista, mostrando como a realidade do Peru colonial foi interpreta23
24
26
Fontes Astecas
Aonde deveremos ainda ir? / Somos gente simples,
Somos perecveis, somos mortais,/ Deixai-nos, ento, morrer,
Deixai-nos perecer ,/Pois os nossos deuses j esto mortos.
(Sbio asteca, In: LEN-PORTILLA, 1984, p. 20).
b.
c.
crnicas indgenas;
d.
documentos diversos produzidos pelos ndios ao longo do perodo colonial.
Esses cdices histricos antigos, estudados nos ltimos quarenta anos, foram ordenados em vrios gneros literrios, destacandose fundamentalmente dois gneros: o Cuicalt (canto, hino ou poema)
que equivale poesia do mundo ocidental e o tlahtolli (palavra, discurso, relato, histria, exortao) que equivale prosa em nosso sistema literrio.30
tao contendo relatos annimos dos ndios. Alguns desses informantes, testemunhas oculares da Conquista, continuaram por conta prpria a recopilao e conservao dos textos.
As crnicas indgenas
Podemos acrescentar a toda essa variedade de fontes primrias
as crnicas escritas por diversos cronistas ndios interessados em
recuperar a memria de seus antepassados e revitalizar a histria
local. Tal o caso de cronistas, hoje bem conhecidos, como Alvarado
Tezozmoc, Chipalpahin Cristbal de Castillo, Juan Bautista, Juan
Ventura Zapata e outros.33
Essas crnicas apresentam variadas informaes sobre os assuntos
mais diversos, quase todos relacionados com a imagem que o homem
nhuatl forjou sobre si mesmo, sobre os missionrios, as autoridades
reais, as encomendas, o pagamento de tributos, as epidemias e o
desastre demogrfico, o surgimento da mestiagem e o significado
que se lhe atribua, bem como a resistncia ao processo colonial.
contm testamentos relativos ao perodo 1579-1600, com informaes sobre o cotidiano do ndio no perodo colonial, suas relaes, as
doenas contradas, as formas de trat-las e as mudanas no sistema
de posse e propriedade da terra.34
A importncia e riqueza das fontes em nhuatl tm sido enfatizadas e exploradas nos ltimos anos por vrios pesquisadores, entre
eles, de modo especial, por James Lockhart, que em colaborao com
dois outros autores publicou a obra intitulada Beyond the Codices,
onde analisa as potencialidades histricas e antropolgicas dessa documentao. Aps avaliar a documentao indgena, Portilla concluiu
que a nica forma de obter uma aproximao mais objetiva do mundo
asteca e de seu enfrentamento com os espanhis mergulhar, com
mais profundidade, em todas essas fontes escritas pelos ndios e tradicionalmente ignoradas pela historiografia oficial.35
Fontes Maias
Ai! Entristeamo-nos porque chegaram!
(...) Os estrangeiros da terra, os homens ruivos.
Eles nos ensinaram o medo,
vieram fazer as flores murchar.
Para que sua flor vivesse,
danificaram e engoliram nossa flor...
(CHILAM BALAM, 1963, p. 68).
Documentos diversos
Outro tipo de documentao, tambm de procedncia nativa,
abarca um conjunto de escritos, inditos em sua maior parte, onde
afloram mltiplos aspectos da imagem que os ndios foram construindo sobre eles prprios ao longo do perodo colonial.
Len-Portilla, que trabalhou essa documentao conservada
em arquivos e bibliotecas do Mxico e da Europa, classificou-a como
uma grande mina de informaes, referindo-se a um volumoso nmero de cartas, denncias, peties, testamentos e testemunhos, todos eles escritos em nhuatl e de enorme interesse para o historiador.
Portilla estudou um conjunto de 83 documentos j publicados, que
33
Len-Portilla, La imagen de si mismos: testimonios indgenas del perodo colonial, 1985, p. 279.
30
Os chamados livros de Chilam Balam, mais conhecidos por referncias e citaes de autores como Jorge Luis Borges, tm servido
de inspirao a algumas obras literrias e constituem uma das sees
mais importantes da literatura indgena americana.
Redigidos depois da conquista espanhola, em lngua maia, mas
com o alfabeto latino, eles recolhem grande parte da tradio maia
proveniente de antigos livros escritos com o sistema pictogrfico, dos
quais existem ainda trs em bibliotecas da Europa. Seus autores, no
entanto, no momento em que escreveram j haviam sido parcialmente cristianizados, como comprovam as numerosas interpolaes com
textos e idias religiosas do cristianismo.
A maior parte dos textos dos livros de Chilam Balam permanece indita at hoje. As verses existentes, estudadas por Len-Portilla, apresentam um contedo diversificado que abarca todas as fases
pelas quais passou o povo maia de Yucatn at que cessaram de ser
compilados. Englobam textos de carter histrico, textos cronolgicos e astrolgicos, textos mdicos, rituais, explicaes sobre o calendrio indgena e sees inteiras a respeito da Conquista, com uma
srie de profecias de antigos sacerdotes que predizem com angstia a
chegada dos dzules ou forasteiros e a condenao dos espanhis pela
contradio entre suas pregaes e a maneira de agir com os ndios.37
Complementando essas fontes, existem algumas crnicas em
idioma maia sobre a conquista de Yucatn. A mais antiga delas parece
ser a crnica de Chac Xulub Chen, da autoria de Ah Nakuk Pech, que
testemunhou a conquista, desde a chegada dos primeiros espanhis
(1511) at o ano de 1554. Seu autor,
um homem bastante informado, registra nela
no s fatos em que tomou parte e foi teste-
munha, mas ainda outros que lhe foram narrados por quem deles participou. Em seu relato
claramente transparece a antiga maneira de se
expressar e o estilo caracterstico dos textos histricos dos tempos pr-hispnicos.38
39
37
Fontes andinas
41
43
viveu por um ano com os seus raptores. Foi aprendendo a lngua espanhola, a jogar xadrez no perdia uma partida e assim foi compreendendo a importncia que aquele objeto estranho o livro tinha
na vida dos conquistadores. Um dia, ele solicitou a um de seus carcereiros, que escrevesse na unha de seu dedo a palavra Deus. E ento
pediu a Pizarro que lesse. Pizarro no pde. Compreendi ele Inca que
el gran conquistador del Peru era analfabeto y desde entonces lo tuvo a
menos.44
Este episdio ilustra o conjunto de contradies que caracterizam o processo colonial, inclusive aquelas relacionadas questo da
memria oral e da memria escrita e da transio de uma a outra, da
coexistncia delas em uma mesma sociedade e de seus conflitos.
O prprio Poma de Ayala no vai escapar a essas contradies.
ndio ladino que aprendeu a lngua espanhola, com ela que vai escrever sua crnica. Mas se a lngua escrita a espanhola, o texto est
marcado pela oralidade, pela sintaxe quchua e pela ortografia crole, conforme assinalam os estudiosos que analisaram o seu discurso.45
Apesar de elaborar um texto considerado por alguns como influenciado pelo ponto de vista europeu, Poma de Ayala denuncia com
indignao o quadro das relaes desiguais entre, de um lado, os
ndios, e do outro, senhores, padres, religiosos, corregedores, encomenderos e detalha as condies de trabalho sob a dominao colonial.
No entanto, o principal elemento do discurso de Poma de Ayala seguramente constitudo por mais de 300 desenhos e ilustraes
feitos por ele prprio, numa seqncia que antecipa, na maioria dos
casos, o texto escrito que o acompanha, com imagens desesperadas
44
45
sobre a brutalidade e a humilhao, mas tambm com cenas de homens no campo, cantando e trabalhando. Trata-se do primeiro filme
realizado sobre a Conquista, com imagens fortes, de carter narrativo, carregadas de informaes. O poder do desenho funciona como
um elemento destinado a eliminar a incredulidade sobre os acontecimentos inslitos.46
O manuscrito de Poma da Ayala, com 1.179 pginas, foi encontrado em 1908 na Biblioteca Real de Copenhague e desde ento
tem sido uma fonte fundamental para a reconstruo da memria do
mundo andino, juntamente com os outros trs autores indgenas conhecidos.
O segundo relato indgena sobre a Conquista, cujo original se
encontra na Biblioteca do Escorial, na Espanha, a Intruccin Del Inca
don Diego de Castro. O Inca Titu Cusi, que governou entre os anos de
1557 e 1570, foi batizado com o nome de Diego Castro. O padre Marcos Garca, encarregado de catequiz-lo, foi quem transcreveu as palavras ditadas diretamente por Titu sobre as humilhaes sofridas por
seu pai Manco II, o cerco de Cuzco e outros fatos relativos vida e
organizao do novo Estado Inca em Vilcabamba.
Juan de Santa Cruz Pachacuti o terceiro cronista indgena, cuja
obra - Relacin de Antiguidade deste Reyno del Piru - redigida em princpios do sc. XVII, se conserva na Biblioteca Nacional de Madri. Apesar de breve, uma fonte rica de informaes sobre os diversos Incas
e sobre a Conquista.
Finalmente, existe o clssico Comentarios Reales do Inca Garcilaso de la Vega, mestio, nascido em 1539, filho de uma sobrinha de
Inca Huayana Cpac com um dos conquistadores espanhis. Sua crnica, editada em 1609, retoma na primeira parte a tradio oral com
relatos sobre o perodo pr-hispnico e na segunda parte narra o des46
cobrimento e a conquista do Peru. ndio entre os espanhis, e espanhol entre os ndios, Garcilaso produziu uma obra classificada como
um reflexo da alma dos povos vencidos.47
Outro tipo de fonte indgena formado pela abundante documentao administrativa e judicial, redigida pelos ndios que reivindicavam os seus direitos, dentro de padres europeus. Ela era endereada burocracia, um pblico bem menor do que os potenciais leitores
das crnicas. Estudada pelo historiador peruano Franklin Pease,48 esses documentos constituem um conjunto de testemunhos histricos
que tm permitido revelar o cotidiano do homem andino e a imagem
que ele construiu de si mesmo no perodo colonial.
Len-Portilla, que publicou uma antologia dos relatos indgenas, v nos textos astecas uma viso pica e traumatizada, nos maias
consideraes de cunho filosfico e nos incas relatos dramticos e s
vezes resignados.
Nos trs casos, a memria escrita indgena, que expressa o ponto de vista dos ndios com toda a contradio do mundo colonial que
se construa, vem sendo integrada e trabalhada pela produo historiogrfica dos ltimos trinta anos, rompendo com um silncio de quatro sculos e enriquecendo enormemente a historiografia.
Talvez no seja demasiado enfatizar, aqui tambm, que todas
essas fontes devem ser submetidas ao exerccio rigoroso da crtica
histrica, sob o risco de se cair num perspectivismo fundamentalista, onde o posto de observao torna-se garantia de verdade, ou no
ecletismo, onde as vises diferenciadas so apenas justapostas.
uma pessoa sem medo. Voc dever fazer a guerra para tirar a
riqueza dos outros. Com isso encontrar dinheiro (PRKOMU
& KHRI, 1980, p. 74).
O texto acima, retirado da mitologia herica dos ndios Desana, foi escrito pelo ndio Torami-kehri, nascido em 1947, cujo nome
cristo Luiz Gomes Lana. Ele transcreveu em lngua desana os mitos
que seu pai, j falecido, Umusi Prkumu (Firmiano Arantes Lana), ia
lhe ditando, traduzindo-os em seguida ao portugus. Luiz Lana e seu
pai, pertencentes estirpe de chefes de maloca, decidiram registrar
o mito por escrito, preocupados com as conseqncias da introduo
da escrita sobre a memria oral. Segundo Berta Ribeiro, na histria
da antropologia brasileira, esta a primeira vez que protagonistas indgenas escrevem e assinam sua mitologia.49
O pai, Umusi Prkumu, nascido em 1927, filho de tuxaua
baya. Era um kumu, mestre de cerimnias, com funes destacadas
na estrutura social desana. Ele se recusou a aprender o portugus, e
morreu sem conhecer a escrita. O filho, Trm Khri, cursou at a
quinta srie primria na Misso Salesiana de Pari-Cachoeira, no rio Tiqui, afluente da margem direita de rio Uaups, regio do rio Negro,
no Amazonas. No entanto, como assinala Berta Ribeiro, trata-se de
dois intelectuais no sentido lato do termo, com vasto domnio da milenria cultura tribal.50 Nosso saber no est nos livros, diz Luiz Lana,
em depoimento no qual tece consideraes sobre o papel da escrita
no processo colonial: Ns sabemos muito bem que o livro [Bblia] a
arma do missionrio. O outro branco possua como arma uma espingarda. Com essa espingarda ele pratica todo tipo de violncia.51
49
O livro foi publicado pela primeira vez, em julho de 1980, sob o ttulo Antes o Mundo no existia, com
introduo de Berta G. Ribeiro, acompanhado de 32 desenhos feitos a lpis por Lus Lana. Uma segunda
edio, revista e ampliada, foi organizada, em 1995, pela antroploga Dominique Buchillet. Depois, foi
feita uma edio, em espanhol, com apresentao do tradutor Jos Igncio Uzquiza (Barcelona, Prensa
Universitria, 2.000).
50
Ribeiro, Os ndios das guas pretas, 1980, p. 9.
51
Buchillet, Chroniques dune conqute, 1992, p. 20.
39
40
Las Casas y de que los brasileiros hayan hechos suyos, sin discutirlos, los
hechos de aquellos hombres que a todo costo les dieron la opulenta y
anchissima patria.59
Essa aceitao decorre, em grande medida, do fato de que a historiografia ocidental, da qual a brasileira faz parte, desdenhou desde
o seu incio qualquer documentao verbal que no fosse escrita, padronizou este trao e universalizou seu modelo de confiabilidade nos
documentos escritos, fazendo extensiva esta qualidade ao resto do
mundo que foi encontrado no processo colonial.
Durante muito tempo, a historiografia considerou os povos
grafos como povos sem histria ou povos pr-histricos, devido
exclusiva falta de literacidade, isto , de uma prtica sistemtica de
leitura e escrita. As sociedades de memria oral foram tambm consideradas sociedades pr-lgicas que, no dominando a escrita, no
detinham o saber. Argumentava-se que, na ausncia de documentos
escritos, os documentos de cultura material constituam pistas frgeis
para o levantamento da histria desses povos. Quanto tradio oral,
ela no era digna de credibilidade. Portanto, sem fontes escritas, no
h histria, no h saber.
Um dos principais argumentos para afirmar a superioridade da
escrita frente aos recursos orais reside justamente na discutvel considerao de que a oralidade frgil, fantasiosa e no armazena o saber
com a mesma fidelidade e o mesmo poder acumulativo da documentao escrita, o que fundamental para a construo da memria histrica.
Reflexes tericas sobre a natureza da oralidade e seus mecanismos de transmisso, bem como sobre o prprio conceito de tradiJimenez de la Espada, Prlogo a Viaje del Capitn Pedro Teixeira, guas arriba del rio Amazonas,
1942, p. 66
44
59
dos de maneiras variadas por essas sociedades e mecanismos de controle sobre a transmisso oral se revelaram eficientes para a organizao social desses povos.65
No entanto, a tradio oral, num sentido mais amplo, no se resume transmisso de narrativas ou de determinados conhecimentos, mas geradora e formadora de um tipo particular de homem e de
sociedade. Ali, onde ela no convive com a escrita, acaba modelando
a noo de tempo, de espao, de causa e at mesmo de verdade histrica, que est estreitamente ligada fidelidade do registro oral e
sua credibilidade. Por essa razo, no sentido mais amplo, o conceito
acaba englobando os ritos, as prticas religiosas, o sistema de crenas, os hbitos e costumes, enfim, toda a produo simblica de uma
comunidade grafa.64
Molino, Quest-ce que la tradition orale? De la dfinition aux mthodes, 1985, p. 31-45.
46
66
genas estudadas por Lvi-Strauss chegaram a estabelecer classificaes metdicas e fundamentadas sobre um saber terico solidamente
construdo, comparveis, do ponto de vista formal, s classificaes
que a zoologia e a botnica continuam utilizando.69
Assim, a tradio oral no apenas uma fonte que se aceita por
falta de outra melhor e qual nos resignamos por desespero de causa.
Ela uma fonte integral, cuja metodologia j se encontra bem estabelecida.70
As fontes orais
Estabelecida nella uma guarnio militar, fortificadas as
fronteiras, tudo isto pede obras, diligncias e expedies do Real
Servio; e tudo concorre para a diminuio das aldeas dos ndios
(Ouvidor Sampaio, 1774-5)
H muito tempo eles construram aqui este quartel. Ento
eles mataram os mais velhos, e muita gente foi levada daqui...
(Depoimento de um ndio Baniwa, recolhido em 1977, por Wright
(1980, p.139).
Nos ltimos 250 anos, os Baniwa enfrentaram guerras de extermnio, escravizao, perda de territrio, relocao forada, epidemias, seqestro de seus filhos, abuso fsico, fome e a destruio de
muitas de suas tradies sociais e culturais, incluindo a comercializao e venda de seus objetos sagrados.
Os Baniwa constituem um dos poucos grupos nativos que sobrevivem h dois sculos e meio de contato e para o qual existe uma
volumosa documentao do perodo colonial. que as autoridades
portuguesas, interessadas na explorao da fora de trabalho indgena e preocupadas em aniquilar os movimentos messinicos, produziram relatrios extensos e detalhados sobre o povo Baniwa, conservados hoje, em sua maioria, no Arquivo Histrico Ultramarino de Lisboa
e na Biblioteca e Arquivo Pblico do Par.
Wright trabalhou esses relatrios oficiais de militares, do governo, de missionrios, de viajantes e de etngrafos e concluiu que essa
expressiva documentao era insuficiente e inadequada para obter
um conhecimento mais sistemtico da religio indgena tradicional,
sem a qual no se pode explicar a resistncia indgena e a sua participao nos movimentos milenaristas. Decidiu, ento, recolher as
numerosas histrias orais contadas pelos ndios, que do conta no
apenas da sociedade Baniwa pr-colonial, mas tambm dos contatos
com o invasor europeu desde os seus primeiros momentos. Para discutir a relao dos movimentos messinicos com a mitologia Baniwa,
o ritual e o xamanismo, o pesquisador centrou sua ateno sobre um
mito que fundamental para a religio Baniwa: o mito do heri-cultural Kuai, que explica um conjunto de fundamentos das crenas milenaristas dos ndios do Alto Rio Negro. Combinou, ento, o trabalho
nos arquivos, onde buscou documentos escritos do sc. XVIII at a
metade do sc. XIX, com o trabalho de campo que lhe proporcionou
49
Wright, History and Religion of the Baniwa People of the Upper Rio Negro Valley, 1980.
Hampat B, A tradio viva, 1980, p. 126.
50
74
do transmitidos oralmente de uma gerao a outra, existe um caminho aberto h mais de meio sculo por Alfred Mtraux, retomado recentemente por um grupo de etnolingustas franceses.
Alfred Mtraux publicou, em 1927, um artigo sobre as migraes
histricas dos Tupi-Guarani, usando para isso o discurso dos prprios
ndios recolhidos por alguns cronistas e cruzando-os com outras fontes escritas. O relato oral dos ndios Tupinambarana ao padre Acua
em 1639, desprezado um sculo depois por Berredo como novela e
fantasia, foi explorado por Mtraux para descrever o que ele denominou de la plus vaste migration historiquement connue em Amrique
du Sud.75
Quando o padre Acua desceu o rio Amazonas encontrou na
ilha Tupinambarana, bem prximo foz do rio Madeira, um povo denominado tambm Tupinambarana. Com a ajuda de intrpretes, os
ndios lhe contaram e ele registrou uma longa migrao coletiva
realizada por aquele povo: Dizen tambin como salieron tantos, que
no pudiendo por aquellos desiertos sustentarse todos juntos, se fueron
dividiendo em tan dilatado camino, que por lo menos ser de ms de
novecentas leguas.76
A partir dessa e de outras indicaes recolhidas por Acua e
apoiado em alguns documentos escritos, Mtraux mapeou a rota da
migrao e construiu uma hiptese sobre o itinerrio percorrido pelos
ndios, que habitavam originalmente a regio da costa de Pernambuco. Na fuga para no serem escravizados pelos portugueses, os ndios
saram do litoral, penetraram no serto, cruzaram o Brasil central e
atravessaram o atual Mato Grosso, chegando s cabeceiras do rio Madeira, em territrio que hoje boliviano. Depois, eles desceram este
rio at a sua confluncia com o rio Amazonas, onde se fixaram.
Segundo Mtraux difcil retirar do relato oral recolhido por
75
76
Acua uma indicao que permita fixar a data desta migrao, mas o
seu incio seguramente no se produziu antes de 1530, quando Duarte
Coelho tomou posse da capitania de Pernambuco. E a sua chegada
ilha ocorreu, provavelmente, trinta anos antes da passagem do padre
jesuta, em 1639. Eles levaram aproximadamente 80 anos para percorrer todo o trajeto.77
Sem fazer qualquer referncia ao trabalho de Mtraux, Aurore Monod-Becquelin publicou, em 1984, um artigo sobre a tradio
oral amerndia nos relatos dos cronistas dos sculos XVI e XVII. O seu
objetivo era descobrir alguns critrios gerais descritivos da atitude
especfica dos franceses em relao ao que hoje se denomina de tradio oral, para diferenci-la da reao dos espanhis, portugueses,
ingleses e holandeses. A autora procurou num conjunto de crnicas
por ela selecionadas o dbil eco de uma palavra viva da tradio oral
indgena.78
Apesar do fato de que nas primeiras viagens o problema dos
europeus era muito mais como sobreviver do que recolher sistematicamente a tradio oral indgena, o levantamento realizado permitiu
encontrar muitos traos da expresso oral dos ndios, ainda que ela
no existisse como tal na cabea dos viajantes. Segundo Monod-Becquelin, o relato est em todas as partes, ele aflora, ele triunfa ou ele
se esconde detrs de um porque, com uma argumentao que tem por
trs dela um mito.79
O interessante neste trabalho a sua metodologia, que contm
um modelo proposto pela autora para identificar qual o material
que, nos escritos desta poca, corresponde expresso moderna da
tradio oral.
Mtraux, Migration Historiques des Tupi-Guarani, 1927, p. 23.
Monod-Becquelin, La parole et la tradition orale amrindiennes dans les rcits des chroniqueurs aux
XVI et XVII sicles, 1984, p. 229.
79
Monod-Becquelin, La parole et la tradition orale amrindiennes dans les rcits des chroniqueurs aux
XVI et XVII sicles, 1984, p. 230.
53
77
78
Consideraes finais
A apropriao pela atual sociedade brasileira do saber indgena,
transmitido de uma gerao a outra atravs da tradio oral, tem sido
obstaculizado pela ignorncia, o despreparo e at mesmo o desprezo mantido em relao s lnguas e culturas indgenas. O preconceito etnocntrico no nos tem permitido usufruir desse legado cultural
acumulado durante milnios. um especialista em biologia, citado
por Lvi-Strauss (1972:16) em O Pensamento Selvagem, que chama
a ateno para o fato de que muitos erros e confuses poderiam ter
sido evitados alguns dos quais s muito recentemente retificados
se o colonizador tivesse confiado nas taxonomias indgenas em lugar
de improvisar outras no to adequadas.
Monod-Becquelin, La parole et la tradition orale amrindiennes dans les rcits des chroniqueurs aux
XVI et XVII sicles, 1984, p. 286.
81
As crnicas do sculo XVI como fontes da tradio oral indgena do Rio de Janeiro. O trabalho,
iniciado em maro de 1992, contou com a participao das alunas Ligia Cavalheiros Castro, Maria Helena
Cardoso de Oliveira e Carla Maria da Silva Baltar, mas no foi concludo. Foi retomado, em 2007, com um
objetivo mais amplo, por Ana Paula da Silva, graduada em Histria pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro.
55
80
Referncias
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Nueva Espaa. Madrid: Histria 16, 1984 (Crnica da Amrica 2).
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58
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mento e nas declaraes de inmeros informantes, uma atitude histrica inconsciente, que mostra at que ponto o Waalo vive ainda no
corao dos homens, com suas brigas internas, suas susceptibilidades
herdadas do passado. Assim, pode-se compreender perfeitamente o
esprito de independncia que pode ter o beetyo, poderoso chefe da
provncia nas proximidades de So Lus, somente pelo desprezo com
o qual seus herdeiros falam de suas relaes de soberania com o brak.
Ou melhor, o fervor com o qual os descendentes atuais da aristocracia
tradicional se pem a vilipendiar o falso profeta Diile (Dil), joalheiro de origem, apenas pelo seu ressentimento em relao a esse homem de casta que, em um momento de crise no poder, ps novamente em dvida a ordem social tradicional. Enfim, ainda hoje, a oposio
em um mesmo partido poltico, em Roos Beetyo, do descendente dos
chefes tradicionais e daquele de um cativo da coroa, no a persistncia dessa luta poltica da legitimidade, do direito de sangue, contra o
poder do tyeddo, adquirida graas crise poltica? Esta persistncia
de uma mentalidade ainda fiel ao Waalo tradicional pe assim o problema de certa continuidade das estruturas polticas, sociais e econmicas, para o qual o historiador dever dar uma explicao.
No momento de sua maior extenso, o Waalo ocupava um territrio mais amplo, em ambas as margens do rio Senegal. O deslocamento de suas fronteiras est intimamente ligado sua histria, dominada pela presso constante dos reinos vizinhos. Assim, segundo
Yoro Dyaw, o limite entre o Waalo e o Fuuta comeava em B-NDenddi, pastagem frequentada pelos pastores peuls, prxima de Fanaye,
que foi, at 1793, a aldeia mais importante. Naquela poca, o almany
muulmano Abdel Kader empreendeu, em nome do Profeta, uma
guerra santa, para arrancar do jugo dos tyeddo as aldeias de NDierba,
72
73
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Bokhal, Gaya e Rfo. Suas conquistas levaram esse limite at Fakande, prximo de Dagana.
B NDenddi se localiza no Senegal, ao leste da floresta de Kohrine, que segue em direo ao sul, um longo e largo vale separando o
Waalo do Dyolof. Depois vai se confundir com o vale do MBunuune,
servindo, mais ao sudoeste, como limite entre esses dois pases. Um
dos inmeros baobs do deserto de MNunuune, notvel por sua circunferncia, e chamado Guye Dyula, servia outrora como referncia
para esse limite. A trs quilmetros ao sul, em Siringe, antiga aldeia
do Waalo, na margem direita do pntano de Guiers, um tamarineiro
servia como outra referncia. A comea um territrio de 45 a 50 quilmetros de extenso por uns trinta de largura, onde havia outrora apenas uma aldeia, a de Budi, h muito abandonada. Esse territrio acaba a uma dezena de quilmetros de Gandyole, servindo inicialmente
como limite entre o Waalo e o Dyolof, deixando ao Waalo a aldeia
de Budi e a atual provncia de Keur Bassine, enquanto o desfiladeiro
de Gallayde e seus poos pertenciam ao Dyolof. Serve em seguida
como limite entre o Waalo e o Kadyoor, deixando ao Waalo a aldeia de
Mopp, hoje deserta, as de Ngaye e de MPall, as provncias do Tuube e
de NGangunaye, o distrito de Gandyole e o Gehlakle (terras salinas) e
ao Kadyoor o distrito de Thiole cuja capital era Barale.
Na margem direita do rio, quer dizer ao norte, o limite do Waalo
e do pas dos Trarzas se distanciava por volta de sessenta e cinco quilmetros. Ele alcanava o mar seguindo uma linha reta, balizada pelos
seguintes poos e locais de acampamentos: Tissilingue, poo a cinco
quilmetros de NGormadd, ou fonte do lago Khomack (Cayar), Tandalha, poo e acampamento muito frequentado: MBalaytine, Gagarite, Tomogatine (Togomonte dos wolofs), aldeia wolof povoada e
poo; NDeungara, acampamento; Baridiane, aldeia despovoada e
74
Contexto fsico
O Waalo um vasto pas arenoso, com subsolo argiloso ou calcrio onde os acidentes geogrficos so quase nulos. O pas se divide em duas regies bem distintas: a regio plana, argilosa, ribeirinha
do rio Senegal, de uma extenso mdia de 250 quilmetros e de uma
largura de 300 a 400 metros. a parte que se designa sob o termo
geogrfico de Waalo e que corresponde aos terrenos inundados pela
cheia do rio.
O resto do pas essencialmente formado de areias e se estende, no interior, at o Dyolof; o dyeeri, regado unicamente pelas raras
chuvas anuais. Como se v, o Waalo dominado pela existncia do
rio Senegal cujo vale constitui a parte essencial do pas. De fato, ele
regado por todos os lados pelo rio Senegal que a se divide em vrias ramificaes. a presena desses mltiplos pntanos de Gorom,
de Djeun, de Khassak e de Mengueye, da Tawe, conservando regularmente a gua durante todo ano, sem contar o imenso lago de Guiers,
que fez com que Robin dissesse que o Waalo era um reino anfbio.
precisamente beira desse lago e ao longo do vale do Senegal que
est concentrada toda a vida ativa do pas. Todas as aldeias de gran6
R. Rousseau, Le Sngal dautrefois, tude sur le Oualo, Cahiers de Yoro Dyao, B.C.E.H.S., 1929, t. XII,
n. 1-2, p. 144, 145, 146.
75
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cuja data de estabelecimento na regio no determinada. Contudo, ela constitui o ncleo mais antigo e apresenta os mesmos traos
fsicos que a populao do Kadyoor, do Dyolof e do Bawol com a qual
compartilha a mesma lngua. No temos nada para apreciar no sculo XVII o nmero de Waalo-Waalo (habitantes do Waalo), antes da
sangria demogrfica provocada pelo trfico negreiro. Pode-se notar,
no Waalo, a existncia de minorias de povoamento: mouros, peuls e
sereers. Mas o fato fundamental a unidade lingustica, tnica e cultural com os reinos vizinhos que se criou no corao do Imprio do
Dyolof. A histria do Waalo no pode se compreender fora desta nacionalidade wolof. assim que nos atardaremos um pouco sobre o
Waalo, parte integrante do Dyolof, antes de abordar o que ser o reino independente cuja ascenso coincide com a instalao definitiva
dos europeus na costa.
Povoamento
A populao do Waalo essencialmente composta de wolofs
Segundo Alioune Sow, inspetor-adjunto em Dagana.
8
Carson, I.A. Ritchie, Deux textes sur le Sngal, 1673-1677, Bulletin I.F.A.N., t. XXX, srie B, n. 1, 1968,
p. 323.
76
7
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15
1 A famlia do lamane Dyaw seria considerada no Waalo como a segunda classe de nobreza vindo
imediatamente aps a famlia real.
2 Sua famlia, participaria, no futuro, da nomeao dos reis mediante o pagamento de imposto de dez
cativos.
3 Dyaw recebia o comando da provncia de NTougne (margem direita) e seu filho NTanye, a de Naleou
(margem direita). Os habitantes eram isentos de qualquer imposto para os reis.
4 O mmalo Nou dat Duk, primo materno de Dyaw, era reconhecido como chefe da provncia de
Gammlo nas mesmas condies que os chefes precedentes.
5 Os kangame pagariam a Dyaw, no dia de suas nomeaes, um imposto de duas peas de tecido, e lhe
fariam, assim como os notveis da corte do rei, um presente por ocasio das duas festas Korit e Tabaski.
6 Ele governava o pas durante os interregnos.
7 Um tero das rendas reais seria dado a NTany Dyaw. Esses direitos foram reconhecidos para as famlias
Gunyo de Dyaw e de Noudat Dyk at o deslocamento do Imprio Dyolof em 1549. Eles passaram em
seguida a sua prpria famlia e se mantiveram at 1855, quando comearam as guerras que levariam
conquista do Waalo.
79
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ca, desempenhou o papel principal de rota de comrcio e de penetrao no interior da frica. Assim Duarte Pacheco Pereira, que escreve
por volta de 1506-1508, diz que cada ano, podia-se tirar deste rio 400
escravos e outras vezes menos da metade em troca de cavalos e outras mercadorias.18 Para Fernandes, no incio do sculo XVI, troca-se
igualmente pouco ouro, mas muitos escravos negros. De fato, como
observa Godinho, no Senegal:
o resgate de ouro nunca foi importante, ao contrrio do trfico. A culpa recaa nas condies
de navegao fluvial. As quedas do Flou (Marmites de gants) impediam atingir os grandes
mercados do ouro... Razes polticas devem
ter igualmente influenciado, pois os Mandingas
controlavam o curso do Gmbia, enquanto o do
Senegal estava sob controle dos Tuculers e dos
Ouolofs. Os mercados ouolofs, inesgotveis em
escravos, eram mal providos do metal amarelo e
os portugueses conseguiam obt-lo apenas em
pequenas quantidades.19
Jean Boulgue, La Sngambie du milieu du XV sicle au dbut du XVII sicle, thse de doctorat, Paris,
p. 35.
17
Victorino Magalhes Godinho, Lconomie de lEmpire portuguais aus XV et XVI sicles, Paris, 1969, p.
104 e 105.
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16
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parece ser o primeiro brak independente do Waalo, pois Gaden diz que
foi Yerim Kode NDyureane que se libertou do senhorio do Dyolof.27
Isto , o Waalo conquistou poucos anos depois sua independncia da
qual no se pode ter com preciso a data medida que ele foi to logo
alvo da cobia do Kadyoor e sobretudo do Imprio denyanke em plena expanso. As relaes de Lavanha e Alvares de Almeida mostram
a posse de alguns territrios, diante da ilha de So Lus, pelo Kadyoor
que, embora no ocupasse todo o Waalo retinha pelo menos uma
parte que lhe interessava para que controlasse a foz do rio.28 Assim, a
partilha do Tuub significativa desta investida do Kadyoor. Pois, depois do deslocamento do Dyolof, o brak e o damel, tornando-se cada
vez mais poderosos, o Tuub, provncia independente, foi dividido em
dois: uma parte se tornou terra do brak (Tuub das ilhas), a outra, a
terra mais importante do damel (Tuub em terra firme).29
Mas, muito cedo, a crise do Kadyoor-Bawol favoreceu, no final
do sculo XVI incio do sculo XVII, o fortalecimento do poder do reino peul na Senegmbia. neste perodo que a grande parte do Waalo
passou sob o domnio do Fuuta, em razo da importncia econmica
adquirida pela costa. O manuscrito espanhol annimo, revelado por
Jean Boulgue, d uma extenso considervel ao reino do Grande
Fulo, por volta de 1600, no seu perodo de apogeu, durante o qual
todos os reinos da Senegmbia lhe pagam tributo.30 Jannequin de Rochefort, em 1638, confirmar a dominao do Fuuta sobre o Waalo,
mas desde j os vnculos so frgeis, pois a investidura de Samba
Lame, durante a ascenso ao poder dos reis vassalos, era pura formalidade.31 A viagem de Jannequin coincide de fato com uma nova era
H. Gaden, 1912, p. 16.
J. Boulgue, La Sngambie..., op. cit., p. 223.
29
R. Rousseau, tudes sur le Toub, op. cit., p. 14.
30
J. Boulgue, La Sngambie, op. cit., cita La Relation y suma breve de las cosas del reyno del Gran
Fulo escrito por volta de 1600.
31
J. Boulgue, Ibid., p. 244.
83
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28
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As estruturas sociais
Dividida em linhagens, esta sociedade era fortemente hierarquizada, legitimando relaes de subordinao entre uma classe livre
e uma classe no livre. Distinguem-se assim trs principais grupos sociais: os gr, os nyeenyo e os dyaam.
Os gr ou homens livres
Eles formavam a classe superior. Este termo designava, segundo Yoro Dyaw, toda pessoa dos dois sexos sem nenhum sangue cativo ou do nyeeyo, dos prncipes reais aos ltimos do baadoolo.39 No
seio deste grupo, distinguiam-se vrias hierarquias segundo o grau
que se ocupava na sociedade:
36
Path Diagne, Pouvoirs politique traditionnel en Afrique occidentale, essai sur les institutions politiques
prcoloniales, Prsence africaine, 1967, p. 19.
37
H. Gaden, op. cit., p. 4.
38
Le Maire, Les voyages de sieur Le Maire aux les Canaries, Cap-Vert, Sngal et Gambie, Paris, 1695, p.
160.
39
H. Gaden, Lgendes et Coutumes, op. cit., p. 3.
86
os tany eram garmi por suas mes e no podiam ento pretender ao trono;40
Os neenyo
os neenyo, igualmente livres, formavam o grupo das castas de
artesos. Essa casta se subdivide em tantas castas quanto h ofcios
e so todas mais ou menos atingidas pelo desprezo ou endogamia da
classe dos gr. Yoro Dyaw, que os chama de os impuros, distingue
trs grandes categorias de castas: os Dyf-lekk, os Sab-lekk, e os Baw-lekk.
1 Os Dyf-lekk eram aqueles que viviam da prtica de um ofcio.
40
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Distinguem-se entre eles os tgg (ferreiros, joalheiros), os vude (sapateiros), os rabbi (teceles) e os lawbe (talhadores de madeira).41
feck-bathtile (de Feck = tropa, ba = deixar e htile = ainda). A palavra feck-bathtile quer dizer
que os cativos da coroa, considerados inexpugnveis diante de toda interveno (reivindicao)
de herdeiros mais jovens..., no eram cativos e
serviam apenas os amos supremos nas capitais,
suas residncias, e formavam por direito as guardas regulares e perptuas desses amos, os reis e
senhores eleitos.45
Os dyaam
Os no livres ou dyaam constituam a ltima categoria social.
Entre eles, distinguem-se nitidamente os dyaam sayor, os escravos
recentemente comprados, dos dyaam dyuddu, escravos nascidos na
casa do amo, chamados escravos da casa. Embora estivessem no grau
inferior da escala social, os escravos tinham, no interior de sua classe,
certa hierarquia que elevava os escravos da coroa acima dos escravos
da casa. Na sociedade global, o escravo adquiria o status de seu amo,
em relao aos escravos de sua classe. No topo da hierarquia, estavam ento os cativos da coroa.
Estes cativos das altas famlias eram constantemente colocados sob a (dominao) dos reis e de
alguns senhores comandantes, juntos aos quais
eles deram, durante um longo intervalo de tempo..., produto de geraes, nascimento a classes
superiores aos outros tipos de cativos, que esto
dispostos, assim como seus amos, em sees
segundo seu grau de superioridade, formando
assembleias conhecidas pelos franceses sob o
nome de cativos da coroa e chamado em ouolof
R. Rousseau, tude sur le Oualo, op. cit., p. 180.
Ibid., p. 183-184.
43*
Griot: Na frica, contador de histrias, detentor das tradies orais.
44
Ibid., p. 185.
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A religio tradicional
Temos muito poucos testemunhos acerca da religio tradicional
dos wolofs, permitindo identificar uma igreja organizada ou dogmas
precisos. Temos apenas algumas descries que iluminam as prticas
que procedem de um ritual pago. Em 1675, Chambonneau observa
que cada famlia tinha um totem representado por um animal.
a respeito de seus sobrenomes, entre os quais
esto muitos animais e pssaros que levam o
mesmo nome que eles, eles estimam haver entre si grande afinidade e conhecimento, que por
nada no mundo eles os comeriam ou matariam,
nem ousariam toc-los [...] por exemplo, tanto
homem quanto mulher, que tenha como sobrenome guiop no ousar comer ou tocar um pavo, porque ele tambm se chama guiop, ou o
Estes poucos elementos de suas crenas revelam uma real simbiose com a natureza pouco dominada pelo homem. O culto aos ancestrais constituir assim o fundamento desta religio tradicional que
permanece pouco conhecida, mas que resistir muito tempo ao Isl.
47
J. Suret-Canale: Afrique noire. Gographie, civilisation, histoire. Editions sociales, Paris, 1961, p. 103.
90
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A peregrinao se tornara uma prtica corrente, pois Chambonneau diz tambm que ele falou com velhos marabutos que delas
retornaram, e os povos os consideram santos.53 Assim, o marabuto
ocupa cada vez mais um lugar eleito na sociedade, ao ponto de se assistir formao de uma nova casta, desta vez de letrados como sugere a seguinte passagem de Dapper: Ningum entre os sacerdotes
tem permisso de se casar fora da classe sacerdotal, nenhum sacerdote pode ensinar a ler e escrever a algum que no seja da classe
sacerdotal, de forma que no pas s sabe ler ou escrever aquele que
pertence classe sacerdotal.54 No entanto, surpreendente que o
marabuto tenha renunciado por esprito de casta a aumentar o nmero dos adeptos do Isl. Dapper quis certamente evocar o fato de os
marabutos constiturem frequentemente uma minoria mais ou menos fechada, vivendo sombra do soberano. Neste ponto, em 1682,
Le Maire mais explcito quando diz:
Eles adotaram a religio maometana dos azoages ou rabes da qual lhes falei. Ela muito mal
observada pelo pequeno povo que tem dela
apenas uma vaga ideia. Os notveis so mais
apegados, pois eles tm habitualmente perto
deles um marabuto mouro, e estes malandros
C.I.A. Richtie, Deux textes..., op. cit., p. 316.
Ibid., p. 318-319.
54
G. Thilmans, op. cit., p. 30.
52
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A eleio
No Waalo, o brak eleito, sob condio de pertencer obrigatoriamente, por seu pai, ao cl MBodje, e de maneira ainda mais imperativa, por sua me, a uma das trs famlias meen: Loggar, Dyoos
e Teedyekk. Os cronistas concordam em dar uma origem berbere aos
Loggar, srre aos Dyoos e peul aos Teedyekk. Como sugere Robin,
pode-se ver nesta interpretao apenas uma concesso aos vizinhos
agitados do Waalo; o brak era sempre um parente ou aliado, uns dos
outros, seno de todos.57 Chambonneau no havia deixado de observar o carter hereditrio e eleitoral da monarquia no Waalo:
So apenas reinos [eles no conhecem a repblica] hereditrios da famlia real, e embora haja filhos de rei, eles no esto seguros de serem reis,
tanto quanto o mais afastado da famlia, pois
depois da morte do rei, os grandes se renem e
procura-se o mais capaz da parentela ou, como
brak, toma-se ordinariamente aquele que, quando o rei era vivo, era Brieux, que o nome de um
principado do pas.58
As estruturas polticas
Em nenhum outro lugar que o Waalo
a configurao do sistema poltico ter tido uma
relao to estreita com as realidades estruturais vindas e mesmo explicitadas pela experincia social... O exerccio de uma funo poltica,
a deteno dos direitos pela unidade poltica e
social que uma famlia de linhagem, implicam
necessariamente para essa a posse de um status
que justifica tais privilgios.56
A realeza
Desde o advento de Ndyaadyaan Ndyaay, os poderes polticos
do lamane Dyaw, antigo senhor do Waalo, passaram ao brak que inaugurou assim o sistema da monarquia eleitoral.
55
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A eleio acontecia em trs etapas sob a direo dos trs grandes eleitores do pas, o dyogomaay, o dyawdin e o maalo, que formavam o seb ak baor. Os trs seb ou eleitores eram descendentes do antigo lamane, senhor da terra, Dyaw.
O dyogomaay era o senhor das guas, presidente da assembleia e governador do reino durante os interregnos.
O dyawdin era, ao mesmo tempo, senhor da terra, uma espcie de chefe militar, tendo o poder executivo, tanto durante a vida do
57
58
J. Robin, Dun royaume amphibie et fort disparate, Africa Studies, vol. 5, n. 4, dezembro 1946, p. 254.
C.I.A. Richtie, Deux textes..., op. cit., p. 322.
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brak quanto os interregnos ao longo dos quais ele tinha a guarda dos
tam-tam reais.
o maalo era o tesoureiro geral do reino.
Yoro Dyaw descreve esta eleio como o resultado de uma primeira conferncia secreta entre os principais notveis ou assembleia
plenria das trs primeiras famlias nobres do pas. Em seguida, havia uma segunda assembleia, igualmente secreta, qual assistiam
os mesmos notveis, mais os Dyinye em Mpeytyo e os Dyinyela: em
Mpeytyo, essas duas famlias constituam, com as trs precedentes,
as cinco famlias meen da segunda ordem de nobreza. Uma terceira
reunio decidia a nominao do brak. Alm dos notveis que acabamos de citar, que tinham voz deliberativa, participavam os cativos da
coroa, com voz consultiva, e os notveis dos dois lof, com voz consultiva igualmente, mas de grau inferior ao dos cativos.59
Este processo revela certa participao de todas as camadas sociais, com base na hierarquia de ordem e de casta. Isso no nos mostra
que a soberania foi inicialmente um direito coletivo, resultado de um
compromisso entre coletividades mais ou menos autnomas? A escolha do brak cabia a um dos vice-reis, ou bumi.
A cerimnia de entronizao
A descrio realizada por Charles Derneville, enviado em misso ao Waalo, em 30 de outubro de 1840, por ocasio do coroamento do brak, confirma amplamente a descrio feita pela tradio oral
no momento de formao do Waalo.60 A cerimnia acontecia sempre
na margem direita, em Dyurbel, primeira capital do Waalo. Na quinta-feira noite, vspera da entronizao, em Dyandye, uma casa era
H. Gaden, Lgendes et coutumes..., op. cit., p. 21.
2. B. 18, C. G. au M., Saint-Louis, 30 de outubro de 1840, cpia do relatrio sobre as cerimnias de
instalao dos brak. Seu testemunho mostra que a cerimnia de entronizao dos brak conservou os
mesmos traos.
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construda para que o brak passasse a noite com a esposa de uma noite, a ndonde, em recordao do casamento de Ndyaadyaan Ndyaay
com Offo, a Peule. No dia seguinte, o brak ia a Dyurbel em uma piroga
dirigida pessoalmente pelo montel, chefe dos pescadores, acompanhado pelo dyawdin e por um cativo. Vinham em seguida, em outra
piroga, o dyogomaay, o maalo e os outros seguiam na ordem hierrquica das dignidades.
Derneville relata que o prncipe eleito antes de embarcar na
piroga na qual far a travessia, obrigado a saltar, sem toc-los, sobre um boi, um carneiro e um bode de uma s cor, deitado no cho e
cujo sacrifcio indispensvel. Tendo chegado em Dyurbel, o brak era
diretamente dirigido para o monte de terra, o dyal ou tumuli de sua
famlia meen onde ele era entronizado. Era a ocasio, para todas as
coletividades, de reafirmar seus direitos que o novo brak devia reconhecer, antes da consagrao definitiva. O brak devia antes mergulhar
no pntano de Kham, em recordao do longo perodo na gua de
Ndyaadyaan Ndyaay, e tirar um peixe que um servo tinha o cuidado
de lhe dar. Segundo Yoro Dyaw, devia tambm pagar s famlias meen
da segunda ordem de nobreza um imposto [coutume]61 de dez cativos, o dyg, pela locao da terra, depois de j haver pago, na estrada
conduzindo ao monte, dois cortes de tecido, ao dyawdin, sete cortes de tecido ao meen Dyar e sete cortes de tecido ao meen Dyeder.
Assim, depois de ter pago indenizaes para reparar todas as violncias cometidas por seu predecessor ou seus agentes, o novo brak recebia mipp sob ordem do maalo: um escudo de madeira leve, um arco,
algumas lanas e algumas flechas, assim como uma espiga de milho e
algumas sementes das diversas plantas cultivadas no reino.62 Ento, o
Coutume, droit de coutume: Costume, direito de costume. Imposto que os comerciantes europeus que
traficavam nas costas da frica pagavam aos soberanos do pas para ter o direito de fazer o trfico.
(Dictionnaire historique des institutions, moeurs et coutumes de La France, A. Chruel, 1865, disponvel em:
61
http://books.google.com.br/books?id=aAk7AAAAcAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_v2_
summary_r&cad=0#). Na traduo, ser usado o termo imposto (N.T.).
62
H. Gaden, Lgendes et coutumes..., op. cit., p. 24.
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Boubacar Barry
A administrao do reino
O brak
O brak surge como uma pessoa sagrada cujo papel principal
trazer abundncia ao pas. Na cerimnia de entronizao, este carter
se traduz pelas sementes que ele recebe com a mo esquerda. Alm
disso, o ritual pago do banho sagrado e os diferentes sacrifcios so
muito significativos da santificao original do brak. Os viajantes no
deixaram de assinalar a prtica da prosternao observada na corte
dos Mansa do Mali. Assim, em 1682, Le Maire, notava que s se chegava perto do rei com dificuldade e limitaes, assim poucas pessoas
tm o privilgio de serem aceitas no interior de seu palcio.64 Por outro lado, essa dificuldade havia levado os viajantes a comparar abusivamente as monarquias africanas com as do Oriente, para mostrar o
carter absolutista e inclusive tirnico dos reis. Em 1827, o baro Roger observa justamente que
F.Y.B. Gaby, Relation de La ngrit avec la dcouverte de la rivire du Senegal, Paris, 1689, p. 49.
64
Le Maire, Les voyages du sieur Le Maire..., op. cit., p. 161.
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aos parentes aliados que formavam sua clientela (guerreiros, dignitrios, marabutos) e foi inclusive obrigado a tom-las dos domnios do
lamane. Esta prtica deu origem ao sistema de apangio [feudos].67
Os lamane foram obrigados a entregar aos soberanos, sob forma de imposto, parte das rendas que obtinham em seus domnios; uma
das razes pelas quais as rendas se elevaram.
Os senhores com apangio: nobres, chefes de
guerra, feudais viveram dos direitos elevados,
senhoriais e no patrimoniais, que eles tiravam
de suas terras alugadas, uma parte sendo revertida aos soberanos; eles dispunham assim de
colheitas provenientes de seus prprios campos
cultivados por uma mo de obra em parte escrava... A introduo do Isl e a atribuio de terras
aos marabutos favoreceram a elevao da taxa
de rendas e a feudalizao da propriedade [tenure68].69
Este processo difcil de apreender, em razo do carter autrquico da economia e, sobretudo, em razo da abundncia das terras,
que, durante vrios sculos, atenuaram qualquer crise da terra. Contudo, o sistema de apanages, sobreposto ao sistema lamanal favoreceu o nascimento de um novo tipo de relaes, que chamaremos por
comodismo semi-feudais, medida que, como ressalta Abdoulaye
Diop, o modo de propriedade [tenure] no mudou [ento] durante
a monarquia em um dos aspectos fundamentais, que nos parece ser
esta distino entre dono da terra e dono do direito de cultivo, a propriedade eminente existindo apenas quando esses dois detentores
67
Apanage: Apangio. Terras atribudas por um rei aos filhos segundo, mas que retornavam ao poder real
na morte dos mesmos (N.T.).
68
Tenure: Bem, domnio que um vassalo tem como feudo de senhor (N.T.).
69
Abdoulaye Bara Diop, La tenure foncire... , op. Cit., p. 50.
100
Aos cativos da coroa, que constituam de alguma forma o exrcito regular do brak, o dyawdin no deixava de lembrar: Apiem seu
Ibid.
P. Cultru, Premier Voyage..., op. cit. p. 45.
72
H. Gaden, Lgendes et coutumes..., op. cit., p. 24.
73
H. Gaden, Lgendes et coutumes..., op. cit., p. 24.
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70
71
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Os detentores de cargos eram formados pelos chefes de provncia advindos da famlia do brak que os designava com o acordo dos
kangam, ou nobres de segunda ordem, tendo direito ao comando por
herana. Havia: o kaddj ou kaddyekk, sucessor eventual do brak; ele
tinha seus Estados que se estendiam do Bpar Ndker a So Lus, na
barra; era um filho ou um sobrinho do brak e devia ter ttulos de nobreza semelhantes.
Neste aparelho de Estado, distinguem-se trs grandes categorias de pessoas, correspondente aos trs grupos sociais: pessoas de
origem nobre, pessoas de origem servil e os homens de casta.77
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O aparato judicirio
O brak o chefe supremo da justia. Mas o sistema judicirio
se divide entre os diferentes status sociais; o chefe de linhagem, o
senhor da terra ou das guas, o chefe de uma minoria tnica, de uma
ordem ou de uma casta, so juzes especializados em reas das quais
no se contesta a competncia.82 No entanto, j no final do sculo
XVII, v-se o marabuto ocupar uma parte importante no exerccio da
justia. A propsito, Chambonneau dizia:
Claude Jannequin, senhor de Rochefort, Voyage de Lybie au royaume du Sngal le long du Niger, Paris,
1643, p. 57.
81
H. Gaden, Lgendes et coutumes..., op. cit.
82
P. Diagne, Poder poltico..., op. cit.
106
O aparato militar
Formado inicialmente por levantes em massa, o aparato militar
se transformou desde cedo em um exrcito de ofcio, cujo corpo principal era constitudo pelos cativos da coroa, os guerreiros chamados
tyeddo. Em 1685, La Courbe diz que o brak podia em caso de necessidade mobilizar dez mil homens, inclusive as tropas auxiliares dos
mouros que moram em seu prprio pas.84
A cavalaria desempenhava neste exrcito um papel muito importante. Em 1681, Barbot observava que o brak dispunha de cinco a
seis mil cavalos que lhe permitiam fazer incurses nos reinos vizinho,
para saquear as tropas, obter escravos e provises.85
Le Maire descreve os cavaleiros:
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O sistema fiscal
Os primeiros viajantes so unnimes em reconhecer a fraqueza das rendas do brak. Para Chambonneau: Toda renda destes reis
consiste em animais, cativos e algumas terras onde eles semeiam milhete.88 Da mesma forma, para F.Y.B. Gaby, os reis no tm direito
Le Maire, Les voyages du sieur Le Maire..., op. cit., p. 175, 176.
Ibid., p. 176.
88
C.I.A. Richtie, Deux textes..., op. cit., p. 322.
108
Referncias
BARBOT, J. A description of the Coast of North and South Guinea, Collection of Voyages and Travels. v. V, por Churchill John, Londres, 1732, 716
p.
BOULEGUE, J. Relation du port du Fleuve Sngal de Joo Barbosa
faite para M. Joo Baptista Lavanha (vers 1600), In : Bulletin I.F.A.N., t.
XXIV, srie B, no. 3-4, 1967, pp. 496-511.
BOULEGUE, J. La Sngambie du miueu XV/e au dbout du XVIII siecle. Tesis de doctorado, Paris, 1968, 319 p.
CULTRU, P. Histoire du XVIme sicle 1870. Paris, Larose, 1910, 376
p.
CULTRU, P. Premier Voyage du Sieur de La Courbe fait la coste dAfriF.Y.B. Gaby, op. cit., p. 49.
H. Gaden, Lgendes et coutumes..., op. cit., p. 24.
91
V. Monteil, Chronique du Waalo..., op. cit., p. 34.
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111
1686.
VILLENEUVE, R. G. L Afrique ou lhistoire, moeurs, usages et coutumes
des Africains. Paris, 1814,4 vol.
WADE, A. Chronique du Wlo, recolhida e traduzida por Amadou
Bassirou Ciss, Sngal, no. 45,46, 53, 55, 59, 60, janeiro de 1943; janeiro de 1944, pp. 27-32, 42-44, 216-219, 280-380, 408-411, 23-27.
112
noo de saber possa ser interpretada ou entendida destas duas formas. Para os antigos o conhecimento, o saber era para ser degustado
e, como se tornar uma obsesso na modernidade, embora com um
outro sentido, o conhecimento, o saber era para ser provado, experimentado. O conhecimento, o saber era tambm uma questo de
gosto, ele no era encarado, como ser no mundo moderno, sobre
o exclusivo imperativo da utilidade, da serventia, da praticidade, da
verdade. Numa sociedade aristocrtica, o saber tambm era submetido a uma apreciao de gosto, o que implicava em avaliaes no
s epistemolgicas ou metodolgicas, mas tambm ticas e estticas. Um saber de bom gosto era aquele que no apenas estava conforme a uma dada verdade, servia a dadas necessidades sociais, mas
que estava conforme exigncias ticas e estticas, se afeioava a um
certo estilo de vida e de pensamento. Quando ainda hoje afirmamos a
existncia de estilos de pensar e de escrever estamos nos remetendo
a essas camadas sedimentadas de sentido que compem o universo
semntico da noo de saber. Deveria haver uma certa coerncia entre o modo de vida de quem produz o saber e o saber mesmo que ele
produzia. Ele devia saber aquilo que sabia, ou seja, ele devia lembrar,
recordar, ter como que o gosto daquilo que pensava, dizia e sabia. Seu
comportamento, seu estilo de vida, suas maneiras deveriam lembrar,
ter como que o gosto de suas ideias, de sua forma de pensar, de seu
saber.3 Uma reminiscncia dessa articulao entre um dado estado de
esprito, entre um dado comportamento humano e um dado sabor,
um dado gosto, aparece no verbo ressabiar, pois ele tanto remete ao
comportamento humano de estar ressabiado, portanto, assustado,
desconfiado, espantado, melindrado, ofendido, magoado, como a
um dado gosto, a um dado sabor, aquele que se refere a algo que resReale, O saber dos antigos, 1999; Deleuze, Lgica do sentido, 2009; Foucault, A hermenutica do
sujeito, 2010; Detienne, Mestres da verdade na Grcia arcaica, 2013; Detienne, Os gregos e ns, 2008;
Yourcenar, Memrias de Adriano, 2009.
114
to, inspido.4Curiosamente essa forma de entender o neutro aparentemente oposta, mas, na verdade, complementar maneira como
Maurice Blanchot e Roland Barthes vo signific-lo.5 O neutro marcaria a indecidibilidade semntica que todo texto literrio apresentaria. Se para o positivismo o neutro permitia a fixao definitiva de um
sentido, de um significado, impedindo a deriva ideolgica das significaes, garantido o carter absoluto da verdade, para os dois crticos literrios franceses, o neutro seria a impossibilidade de assinalar
qualquer domnio de sentido ao escrito literrio, ele seria a flutuao
generalizada do sentido, nasceria do carter nomdico ou rizomtico
das significaes, impossibilitando qualquer pretenso a uma verdade definitiva para um dado texto. No entanto, tambm parece que
nessa formulao estamos no reino do indefinido, do indeterminado,
do indiferente, e, talvez, do insensvel, no pela escassez, mas pela
pletora dos significados. Na mistura de todos os gostos ou quando
todos os gostos so possveis no estaramos diante tambm de um
caso de falta de gosto, de insipidez?
Esta formulao de Roland Barthes em torno da categoria neutro no deve, no entanto, nos levar a esquecer que foi ele um dos poucos intelectuais ocidentais, que nos trs ltimos sculos, se incluirmos
o nosso recm iniciado, atentou para a relao entre saber e sabor,
entre conhecimento e gosto. Antes dele poderamos destacar a obra
de Nietzsche, onde a confluncia entre o estilo de vida, o estilo de
pensamento, e o estilo de escrita filosfica foi insistentemente buscada.6 Na sua recusa da sociedade burguesa, a sociedade de mau gosto, na sua idealizao da sociedade helnica, notadamente da poca
pr-socrtica, a idealizao e afirmao de uma forma de vida e, ao
Ver Huenemann, Racionalismo, 2013; Mulgan, Utilitarismo, 2012; Ritchie, Naturalismo, 2013; PerroneMoiss, Do positivismo desconstruo: ideias francesas na Amrica, 2004.
5
Ver Blanchot, El dilogo inconcluso, 1996; Barthes, O neutro, 2003.
6
Ver Itaparica, Nietzsche: estilo e moral, 2002.
116
Para uma leitura da relao entre pensamento e gosto, ver Onfray, A razo gulosa, 1999.
Barthes, O prazer do texto, 1988.
117
119
da qual fazia parte o socilogo Gilberto Freyre, seu primo, autor de alguns clssicos da historiografia brasileira, construtor de uma dada interpretao da histria do Brasil que fez escola e tornou-se, em grande medida, hegemnica na cultura brasileira; ao historiador Evaldo
Cabral de Melo, seu irmo, ou a seu primo, o poeta Manuel Bandeira.
Significativamente para o que estamos discutindo aqui, Joo Cabral
em seu poema O Co sem Plumas, vai dizer que as grandes famlias
espirituais da cidade, de costas para o rio Capibaribe, chocavam os
ovos gordos de sua prosa. Na paz redonda das cozinhas, ei-las a revolver viciosamente seus caldeires de preguia viscosa.10 Em seus
escritos havia algo da estagnao dos palcios cariados, comidos pelo
mofo e pela erva-de-passarinhos. Havia algo da estagnao das rvores obesas pingando os mil acares das salas de jantar pernambucanas, por onde rios e aquelas pessoas se vinham arrastando. Neste
trecho do poema duas imagens: uma que remete a formas e uma que
remete a gosto, a sabor, que vamos encontrar presentes em muitas
das narrativas clssicas sobre a histria do Brasil: a imagem do redondo e o gosto aucarado, o sabor a doce.
Embora no pertencesse a toda uma tradio de contar a histria do pas que poderamos chamar de inspida ou de frgida, onde a
nao era reduzida ao seu territrio, onde o processo pico de formao territorial e daquilo que chamavam de processo de colonizao
e povoamento ocupavam o ncleo da narrativa da histria nacional,
histria sem gosto de nada, nada que parecesse com o humano, posto que os dramas da populao, os genocdios que conformaram o
chamado povo brasileiro, a tragdia das transmigraes, da escravido, da explorao do trabalho, ou no compareciam como fazendo
parte da histria do pas ou eram tratados em termos abstratos, conceituais, sem a presena concreta das vidas e corpos humanos, com
Melo Neto, O co sem plumas, 2007, p. 10.
10
120
das figuras de homens e bichos se alongando como figuras de El Greco, diz muito sobre seu olhar, sobre sua esttica, mas tambm sobre
seu gosto, sobre sua tica e sua ideologia. O seu Nordeste ser aquele
sem ngulos agudos, sem arestas, sem nada que possa lembrar ou
levar a perfurao, a dor, ao sacrifcio, ao padecimento. Seu Nordeste,
assim como seu Brasil ter densidade, peso, ser gordo, fundassentado como ironicamente tambm nomear em outro poema seu primo
e poeta.17 Ser o Nordeste das rvores e da terra gorda, lustrosas, de
sombras profundas (talvez um pas sombrio), de bois pachorrentos (a
pachorra de nossas elites parece no ter limites), de gente vagarosa e
s vezes arredondada quase em sancho-panas pelo mel do engenho,
pelo peixe cozido com piro, pelo trabalho parado e sempre o mesmo (a lgica da mesmice, da continuidade e da semelhana presidem
essa narrativa historiogrfica, que materializa um desejo de permanncia, de no mudana), pela opilao, pela aguardente, pela garapa
de cana, pelo feijo de coco, pelos vermes, pela erisipela, pelo cio,
pelas doenas que fazem a pessoa inchar, pelo mal de comer terra.18
O autor que escrever um livro chamado Acar,19 no s recorre, insistentemente, em seus escritos historiogrficos temtica da
alimentao no texto que apresentou ao Congresso Regionalista do
Recife, de 1926,20 considera a culinria como um elemento revelador
do que chama do esprito ou da alma regional e nacional, dizendo que
uma cozinha que desaparece uma civilizao que com ela morre ,
como utiliza regularmente a ideia de docilidade para caracterizar o
povo, a sociedade brasileira e, principalmente, o que seria a majoritria forma de comportamento dos negros africanos no Brasil. O doce
Referncia ao poema Comendadores jantando de Joo Cabral de Melo Neto. Ver Melo Neto, A
educao pela pedra, 1996.
18
Freyre, Nordeste, p. 40-42.
19
Freyre, Acar, 2007.
20
Freyre, Manifesto regionalista de 1926, 1996.
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123
nacional, tenha recebido tal nome, ou seja, algo que tem um sabor
oposto ao adocicado, algo de sabor cido, amargo, spero, acerbo,
rspido, acrimonioso, algo de aroma forte, ativo, seco, algo agudo e
penetrante, os relatos que contam a histria de sua incorporao ao
corpo da nao no deixam de seguir os mesmos parmetros, no
deixam de adotar os mesmos modelos, no deixam de estar atravessados pelo mesmo sabor que os relatos acerca da formao e constituio da nacionalidade brasileira, notadamente quando se trata da
presena desse episdio histrico no interior do discurso regionalista
nordestino.24 A conquista do Acre, sua incorporao territorial e militar ao espao nacional tomado como um dos grandes feitos dos
nordestinos, como a maior e decisiva contribuio nordestina formao da nacionalidade. Seguindo a tradio de pensar a formao
da nao como formao territorial, se apoiando no modelo de narrativa pica de conquista do territrio como sendo o processo mesmo
de formao da nao, esses relatos acerca da conquista do Acre servem para colocar os nordestinos, tratados assim de forma indistinta,
algo comum no discurso regionalista, como um dos construtores da
nacionalidade. o que faz, por exemplo, o futuro interventor do estado de Pernambuco, no texto da tese com que concluiu seu curso na
Faculdade de Direito do Recife:
Chamam-lhe indolente, e ele o desmente nessa
luta porfiada e comovedora, que h sculos vem
mantendo contra a fome e a sede. O xodo do
cearense que, em levas, procura abrigo nos seringais do Acre, (...) uma prova eloquentssima
das energias formidveis do homem dos sertes
do Nordeste (...) so os sertanejos audazes, os
descendentes de mamelucos que afirmam na
24
Meira, A epopeia do Acre, 1964; Gomes, A conquista do Acre, s/d.; Tocantins, A formao histrica do
Acre,1979.
127
A narrativa freyreana de formao da nao, que colocava a civilizao da casa-grande nordestina como os alicerces da nacionalidade, teve que conviver e rivalizar com os relatos emanados do Instituto
Histrico e Geogrfico de So Paulo que construram, em torno da
saga dos bandeirantes e a consequente expanso territorial da nao,
desconhecendo e superando os limites do tratado de Tordesilhas, incorporando civilizao brasileira grande parte do territrio do que
viria a ser a nao, o relato mestre de interpretao da histria do
pas.26 O episdio da conquista territorial do Acre vai aparecer para as
elites nordestinas como uma oportunidade de responder a esse relato
paulista de fundao da nao, ressaltando a participao nordestina
no que seria tambm a conformao territorial do pas. Nesse relato,
mais uma vez, no somente os sabores e dissabores das gentes ficavam de fora, os sofrimentos das levas de migrantes que, desde a seca
de 1877-1879, passaram a demandar as terras amaznicas, os seringais, como forma de sobrevivncia, tendo que enfrentar alm das penosas condies de transporte, as precrias condies de subsistncia, os perigos da floresta, desconhecidos pela maioria, os inmeros
casos de doenas, as condies de extrema explorao do trabalho
nos seringais, a violncia de patres, capatazes, dos bolivianos e dos
prprios parceiros de empreitada. Somem-se a isso a solido de uma
maioria de homens que deixavam suas famlias para trs, que sofriam
um violento processo de desenraizamento, de perda de suas referncias culturais e sociais, tendo que conviver no apenas com uma nova
ordem social, mas tambm com uma realidade natural, climtica, ambiental completamente distinta.27
Magalhes, O Nordeste brasileiro, 1970, p. 82.
Ver, por exemplo, Taunay, Histria geral das bandeiras paulistas, 1924; A glria das mones, O Livro,
1920; Franco, Bandeiras e bandeirantes de So Paulo, 1940; Ricardo, A marcha para o oeste, 1970. Essa
narrativa continuou sendo reproduzida mesmo no mbito da universidade. Ver, por exemplo, Holanda,
Mones, 1976; Volpato, Entradas e bandeiras, 1985.
27
Hoje uma nova historiografia acreana e mesmo nordestina comea a contar essa histria com seu
gosto acre. Ver, por exemplo, Silva, Acre, a Sibria tropical, 2013; Costa, Seringueiros, patres e a justia
no Acre federal (1904-1918), 2005; Guillen, Errantes da selva: histria da migrao nordestina para a
128
25
26
Notadamente entre os intelectuais cearenses, que no partilhavam to facilmente da narrativa freyreana da constituio da nacionalidade, e de cujo Estado advinham grande parte dos migrantes que
participaram da ocupao daquele territrio, o evento conquista do
Acre tambm ganha ares picos e se torna um importante topos na
narrativa regionalista da histria nacional. Embora o lder da revolta que levou a incorporao do Acre ao territrio nacional fosse um
gacho, Plcido de Castro, o nordestino, tomado como uma entidade
coletiva que encarnaria e resumiria a atuao daqueles cerca de cinquenta mil homens que ocupavam a regio, torna-se o personagem
por excelncia dessa saga de heris, onde no h lugar para sofrimento, nem para dores e dissabores.28Cometendo anacronismos, pois no
existia a identidade nordestina, nem o sujeito nordestino at o final
dos anos dez e os anos vinte do sculo passado, um relato de origem,
inclusive para o nome do territrio atribudo a um nordestino, no
recuado ano de 1878. Joo Gabriel de Carvalho, um mascate nordestino, ao se estabelecer s margens do rio Purus, teria escrito uma carta
dirigida ao comerciante paraense visconde de Santo Elias, a quem solicitava o envio de mercadorias, para seu acampamento localizado
boca do rio Aquiri. Devido dificuldade de entendimento da letra de
Joo Gabriel, ou mesmo devido ao fato de ter grafado erradamente o
nome, tendo escrito s pressas Acri, as mercadorias teriam sido remetidas para a embocadura do rio Acre, estando assim um nordestino
(e diramos ns talvez por seu analfabetismo) na origem do prprio
nome do territrio.29
Mas, afinal qual a tese deste texto? O que venho nele defender?
Ora, se certo que as narrativas historiogrficas, alm de serem uma
forma de saber, alm de conterem um dado conhecimento, possuem
Amaznia, 2006.
28
Ver, por exemplo, Pompeu Sobrinho, Histria do Cear, 1955; Studart, Datas e fatos para a histria do
Cear, 2001; Giro, Pequena histria do Cear, 1962.
29
Relato encontrado em Girardi, ndios, santos e geografia, 2013; Andrade & Guimares, Acre, 1993, v. 2,
p. 87.
129
em sua forma, em seu estilo, mas tambm, nas prprias ideias ticas e
polticas que defendem ou que veiculam, mesmo inconscientemente,
o que podemos chamar de um dado sabor; se as narrativas historiogrficas sabem de alguma coisa, creio que est na hora de assumirmos
a tarefa de, conscientemente, produzirmos verses para a histria do
Brasil que venham romper com a viso e o sabor adocicado que as
narrativas prevalecentes sobre a nacionalidade ainda parecem ter. Se,
j nos anos setenta, o historiador Jos Honrio Rodrigues30 defendia
a escrita de uma verso cruenta da histria do pas, creio ser porque
identificava essa tendncia construo de uma verso edulcorada
ou, quando muito, crtica conceitualmente da histria do pas. A centralidade da formao territorial e do mito da mestiagem, do encontro das trs raas, nos relatos sobre a histria nacional, que continuam
circulando socialmente, a despeito do muito que tem feito a academia, nos leva a meditar se isso no est na pouca ateno que o saber
acadmico confere forma, ao estilo, ao sabor do saber que produzem. Sua incapacidade de deslocar na sociedade essas metanarrativas fundacionais que, temos que convir, algumas delas, notadamente
a empreendida por Gilberto Freyre, so dotadas de um atraente estilo, de poderosas imagens, que exploram, remetem e convocam mais
do que a razo e a inteligncia, falando sensibilidade e a todos os
sentidos, talvez advenha de sua sensaboria esttica. A historiografia
freyreana fala aos cinco sentidos, notadamente ao paladar e ao olfato, sentidos indispensveis para a formao do gosto, para a percepo do sabor das coisas. Quando hoje nos vemos defrontados com
uma literatura histrica escrita por jornalistas que faz enorme sucesso de pblico, ns, que nos ltimos tempos estivemos preocupados
com a historiografia ser subsumida pela literatura, talvez tenhamos
que refletir sobre o que h de problemtico no que se refere forma
em que vazamos nossos textos, sobre a forma inspida, incolor e inodora com que julgamos dever ser escrito um texto cientfico. Como
Ver Rodrigues, Histria combatente, 1982.
30
130
Referncia ao poema Uma faca s lmina, ver Melo Neto, Poesia completa, 2000, p. 179-191.
131
o bartheano, fazer vacilar nossas certezas, nossas verdades, impossibilitar a adeso a consensos limitadores. preciso, para isso, que os
historiadores estabeleam uma outra relao com a linguagem, rompam com a viso de que a linguagem um espelho ou um mero instrumento de expresso, preciso que deixem de acreditar ainda que
as palavras dizem as coisas, realisticamente. Uma historiografia que
nos faa manter uma relao problemtica com as memrias, com
as lembranas, tornando nossa relao com o passado distanciada e
crtica, longe de saudosismos e nostalgias, mesmo as populistas. Uma
historiografia capaz de nos afastar da adeso aos cdigos que regem
nossa cultura, capaz de problematizar os conceitos que nos definem
e que nos servem para dizer e inventar o mundo nossa imagem e
semelhana. preciso a construo de um discurso historiogrfico spero, seco, que no seja fcil de ser tragado, que incomode a quem l
e tambm a quem produz. Um texto que nos retire do nosso conforto,
uma histria que no seja escrita em redes de dormir, em poltronas
e cadeiras de balano, nas varandas ou debaixo das rvores do quintal. Um texto que seja agudo, penetrante, que no deseje amaciar,
acarinhar ou envolver sem sobressaltos ao leitor. preciso escrever
um texto historiogrfico que fira, que provoque dor ao trazer para a
cena os eventos e personagens que foram feridos, magoados, que
doloridos viveram vidas de resto e de rastro. Uma histria que trate
dos homens e mulheres que viveram vidas speras e rsticas. Uma
narrativa historiogrfica rspida, acrimoniosa que dilacere os objetos
e sujeitos tidos como realidades inquestionveis. Escrever uma historiografia no somente de sabor acre, mas de aroma acre, um relato
que seja acerbo, que seja forte, que seja ativo, que seja penetrante.
Uma escrita historiogrfica que perturbe nosso pensamento e nossos
sentimentos, que nos faa pensar e sentir diferentes, uma histria que
nos desencaminhe mais do que nos oriente.
132
Se Joo Cabral em sua prpria poesia, em seu estilo e vocabulrio potico, nos forneceu a pista de como podemos escrever um
texto historiogrfico que eduque pela pedra, Manuel Bandeira em seu
poema Desencanto32parece nos fornecer a figura de sujeito que deve
ser encarnada pelo historiador que, como ele, quer escrever um texto
acre. Se um nos exemplifica um estilo de escrita, o outro nos fala de
um estilo de vida, mas ambos falam do sabor do saber ou do viver. O
historiador acre aquele que escreveria seu texto como se estivesse
aos prantos pelos semelhantes, pelos outros a quem d vida textual,
que embora tomado pelo desalento e pelo desencanto no deixa de
escrever, pois sabe que a criao a nica coisa que justifica a vida.
Sua escrita seria como seu sangue, fruto de uma volpia ardente, de
uma tristeza esparsa e de um remorso vo, seu texto mais do que da
frieza de sua mente, deveria tambm sair do amargo e quente do corao. Sua escrita resultaria num texto capaz de deixar um acre sabor
na boca de quem o l, pois seria escrito como quem morre, afinal a
historiografia uma forma de encarar a morte e de tentar venc-la,
mesmo que essa luta sempre termine por ser inglria. A histria acre
seria justamente aquela que fala e expe tudo aquilo que na vida se
assemelha morte: a doena, a dor, a solido, a infelicidade, o dio,
o medo, a explorao, a misria, a subservincia, a impotncia, o desamparo, a injustia, o desarraigo, a tristeza, a arrogncia, a prepotncia, o ressentimento, a cobia, a inveja, a maldade, a vilania e tantas
outras formas com que a cara da morte se nos apresenta. A histria
acre embora amarga no aquela que busca fazer chorar, mas aquela
que busca contorcer, distorcer e torcer os sentidos e os significados
hegemnicos para a vida e para morte. Uma escrita histrica que nos
ajude a superar o desencanto, pelo encanto da beleza, que sempre h
em qualquer vida, mesmo quando ela Severina.33 Uma historiografia
que nos leve novamente a acreditar na vida.
Bandeira, Op. Cit.
Referncia ao poema: Melo Neto, Morte e vida Severina, 2007.
133
32
33
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134
136
137
Introduo
om uma formao social vinculada, em suas diferentes fases, ao processo geral de desenvolvimento das foras produtivas, diviso internacional do trabalho e migrao de trabalhadores,1 a Amaznia Ocidental (Estado do Acre) atualmente palco da
migrao internacional de haitianos, iniciada em dezembro de 2010 e
intensificada nos anos de 2012 e 2013.2
No contexto da regio, conectada ao processo de reestruturao produtiva, acirramento das vulnerabilidades sociais e ampliao
da precarizao estrutural do trabalho, essa problemtica ganha contornos especficos e precisa ser analisada a partir das condies estruturais do movimento de trabalhadores pelo mundo, que expe a
dinmica capitalista da migrao e revela, de modo particular, alguns
dos principais aspectos da trajetria dos imigrantes haitianos at a
Amaznia Ocidental e alguns dos desdobramentos deste fenmeno
no Brasil.
No bojo das possibilidades inauguradas pela Rodovia Transocenica, que conecta Brasil e Peru, por meio do Acre, e compelidos pela
tragdia social e ambiental no pas de origem, estima-se que mais de
10 mil estrangeiros,3 representados principalmente por haitianos, j
Lima, Capitalismo e extrativismo, 1994; Mamed, Amaznia Ocidental (1870-1970), 2005; Martinello,
A Batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial, 2004; Paula, (Des)Envolvimento insustentvel na
Amaznia Ocidental, 2005.
2
Mamed & Lima, Precarizao estrutural e migrao internacional de trabalhadores, 2013a; Mamed &
Lima, Trabalho e Migrao Internacional, 2013b.
3
No h um registro nico e preciso da passagem de estrangeiros pela regio da trplice fronteira Brasil139
1
A construo da problemtica
Com um processo de formao social pautado por sucessivas
crises econmicas e polticas, acompanhadas de inmeras intervenes e ajudas externas, o caso do Haiti emblemtico na periferia do
capitalismo global. Isso porque, alm dos problemas socioeconmicos que se arrastam h anos no pas e aprofundam sua pobreza, o terremoto de alta magnitude que o acometeu em 12 de janeiro de 2010
acirrou os desdobramentos de uma crise latente, ao atingir cerca de 3
milhes de pessoas, com aproximadamente 220 mil mortes e cerca de
1,6 milho dos seus habitantes desabrigados.4
A base estrutural da pobreza haitiana herana de violentos
regimes escravocratas e ditaduras militares, conduzidos por colonizadores e imperialistas.5 Mais recentemente, no bojo das reformas
econmicas neoliberais implementadas em grande parte do chamado Terceiro Mundo, que restauram padres coloniais de explorao, a
presena da Misso das Naes Unidas para a Estabilizao no Haiti
(Minustah), iniciada em 2004 sob liderana do Brasil, viabiliza as condies necessrias para que a poltica imperialista continue a ser aplicada no pas.6
Desse modo, ao contrrio da ajuda humanitria e da misso de
paz que divulgam promover, as tropas militares, dirigidas pelo Exrcito Brasileiro, garantem a implantao do projeto neoliberal debaixo de armas. Ao tempo que impedem a organizao social e sindical,
protegem os interesses das empresas capitalistas internacionais no
pas, entre as quais tambm esto empresas brasileiras.7
Mozine; Freitas; Rodrigues, Migraes ambientais e direitos humanos, 2012; Thomaz, Migrao haitiana
para o Brasil ps-terremoto, 2013.
5
Galeano, As veias abertas da Amrica Latina, 2008; Galeano, Os pecados do Haiti, 2010; Hallward,
Opo zero no Haiti, 2006.
6
Harvey, O novo imperialismo, 2004.
7
Chossudovsky, Razes histricas da crise social no Brasil, 2013.
141
4
Nesse processo, com a promessa de gerao de empregos, empresas transnacionais conduzem uma poltica para transformar o Haiti
em um territrio composto por maquiladoras (centros industriais com
isenes fiscais e de direitos trabalhistas) e zonas francas, oferecendo,
proporcionalmente, o menor salrio do mundo.8 Um imenso exrcito
industrial de reserva garante a mo de obra barata e a presso sobre
os que trabalham, para que no reivindiquem reajustes. Submetidos
a longas jornadas de trabalho nessas fbricas, em condies deplorveis, os haitianos recebem menos de U$ 50,0 por ms, assegurando
a produo de mercadorias a custos mnimos para o capital, em uma
regio localizada na costa dos Estados Unidos.9
O Haiti revela, assim, o pior dos processos de colonizao e imperialismo, o lado mais perverso do modo de existncia capitalista,
atualmente exacerbado pela agenda neoliberal: 75% da populao
vive com menos de US$ 2,00 por dia; 67% dela, algo em torno de 6,7
milhes de pessoas, passam alguns dias sem comer; 90% analfabeta; e o desemprego atinge entre 60% e 70% da populao economicamente ativa; o salrio mnimo da indstria txtil, o setor de ponta,
quase quatro vezes menor que o brasileiro; no existe gua e esgoto
nas casas; as pessoas retiram gua dos poos artesianos, carregam
para casa em baldes e usam carvo para cozinhar; andam longos perodos porque no dispem de recursos para custear um transporte;
algumas poucas residncias possuem energia eltrica, que acaba todos os dias sem nenhum aviso; a maior parte dos habitantes no existe oficialmente, pois no possui documentos.10
terremoto, epidemia, desemprego, pobreza, misria, fome. Combinados estruturalmente, esses elementos concorreram para o estabelecimento de um movimento internacional de trabalhadores haitianos em direo ao Brasil.11
Mediante as dificuldades para acessarem os pases da Amrica
do Norte e da Europa, eles se deslocaram em busca de oportunidade
na vizinha Repblica Dominicana, mas vm se estabelecendo principalmente nos pases da Amrica do Sul, como Guiana Francesa, Equador, Colmbia, Venezuela, Peru, Bolvia, Chile, Argentina e, sobretudo, Brasil.
No ano de 2010, o relatrio do Alto Comissariado da Organizao das Naes Unidas para Refugiados (Acnur) contabilizou 25.892
haitianos nesta condio, 312 contando com a assistncia da agncia e 7.202 solicitantes de asilo com casos pendentes.12 No entanto,
vale ressaltar que a edio do aludido relatrio em 2013 j no indica
mais a situao dos haitianos. Conforme o documento, Brasil possui
atualmente 4.336 refugiados de 76 nacionalidades, sem contabilizar a
onda de haitianos, pois a condio de refgio, segundo a agncia, no
definida por desastres naturais, e sim por perseguio ligada a raa,
religio, nacionalidade, grupo social e posicionamentos polticos.13
Mundializao da economia, reestruturao produtiva, polticas neoliberais, precarizao, desigualdade, tragdia socioambiental,
Glass, Com ajuda do Brasil, Haiti pode virar maquiladora, diz ativista, So Paulo, 2004.
Almeida, Cartas do Haiti, 2010.
10
Almeida, Cartas do Haiti, 2010; Agncia Estado, Fome atinge dois teros dos haitianos, 2010; Brito,
Ocupao do Haiti agresso imperialista, 2009.
142
11
Mamed & Lima, Precarizao estrutural e migrao internacional de trabalhadores, 2013a; Mamed &
Lima, Trabalho e Migrao Internacional, 2013b.
12
ACNUR, Global Trends, 2010.
13
ACNUR, Global Trends, 2013.
143
espcie de mecanismo de filtragem da entrada de trabalhadores estrangeiros no Brasil.17 Por um lado, os imigrantes dos centros capitalistas, especializados e com alto nvel de escolarizao, so avaliados
como necessrios e desejveis, recebem destaque e so apresentados como parte de uma diretriz poltica associada s metas de crescimento da economia nacional; por outro, os oriundos da periferia do
capitalismo, so considerados suprfluos, indesejveis e principalmente excedentes em relao capacidade de absoro do mercado
de trabalho.18 Em conjunto, possvel considerar que essa prtica se
articula como mecanismo de barateamento da fora de trabalho.19
No caso da imigrao haitiana, que j corresponde ao maior fluxo de estrangeiros para o pas, a poltica brasileira atua de modo ainda
mais especfico. O Brasil no impede a entrada dos haitianos em seu
territrio, mas nega a condio de refugiado que eles solicitam. Todos
os abrigados no acampamento de Brasilia so oficialmente solicitantes de refgio, por orientao do prprio governo brasileiro, que, aps
meses de anlise dos pedidos, nega a concesso a todos eles. Em territrio brasileiro, os haitianos recebem um documento especial, chamado de visto permanente de residncia por motivos humanitrios,
que os retm em uma condio de imobilidade e precariedade.
15
16
para o Comit Nacional para os Refugiados (Conare) e para o Conselho Nacional de Imigrao (CNIg), que abrem um processo para avaliar a concesso de residncia permanente em carter humanitrio.
Durante a anlise do material, a autorizao concedida pela PF tem
validade inicial de 180 dias e deve ser renovada, junto com a carteira de trabalho. O procedimento consiste em informar aos rgos do
Governo Federal, como Polcia Federal e Ministrio do Trabalho, que
os imigrantes ainda esto trabalhando e as condies de trabalho. O
pedido leva cerca de oito a dez meses para ser aceito ou no, e caso o
pedido seja indeferido, os haitianos tm um prazo para defesa. Caso
seja negado novamente, eles precisam deixar o pas.
De acordo com o Ministrio da Justia, de janeiro de 2010 a junho de 2012, data de edio da Resoluo n 97, no houve reconhecimento do status de refugiado a nacionais haitianos. No entanto, at
junho de 2013, todas as solicitaes de residncia permanente foram
autorizadas, sendo concedidas 6.502 (6.408 para titulares e 104 para
dependentes).20
O improviso do local se acentua pela maneira como so dispostos os desgastados colches pelo espao. Esses pedaos de espuma
so colocados diretamente no cho, amontoados uns sobre os outros,
No acampamento est presente uma estrutura de servio pblico brasileiro, que atende o imigrante, organiza e monitora o local,
prestando informaes e orientaes. Logo na entrada local existe
um trailer, uma espcie de escritrio mvel, dotado de computador
150
151
Alimentao
O acampamento disponibiliza aos imigrantes abrigados trs refeies dirias e gua (para beber e para atividades de higienizao
corporal, roupas e acessrios). As refeies so caf da manh (um
po e um copo de caf com leite por imigrante), almoo (uma marmita, em embalagem de alumnio fechada, por imigrante, contendo
arroz, feijo, macarro, salada e carne bovina ou frango) e jantar (uma
marmita igual a do almoo). As trs refeies so disponibilizadas por
um comerciante local, contratado por meio de parceria dos governos
federal e estadual. Ainda que sob constantes crticas e ameaas de
suspenso da ajuda, a Sejudh informa gastar diariamente cerca de R$
9 mil com alimentao destinada aos imigrantes.
A gua para beber servida em um bebedouro industrial. Os
coordenadores da Vigilncia Epidemiolgica e da Vigilncia Sanitria
e Ambiental de Brasilia foram contatados pela equipe de pesquisa e
informaram o registro de surtos de diarreia no alojamento em razo
do uso de cloro na gua, pois, segundo eles, os imigrantes no esto
154
Perfil do imigrante
Durante a primeira visita da equipe de pesquisa ao local, em
agosto de 2013, a estimativa de permanncia diria no acampamento era de 400 pessoas. Mas tambm havia o registro da passagem,
naquele ms, de 844 imigrantes, sendo a maioria composta por haitianos (807), mas com a presena de imigrantes do Senegal (22), Repblica Dominicana (8), Colmbia (4), Equador (1), Camares (1) e
Zmbia (1). O registro indicava a presena de 60 mulheres e crianas.
No perodo da pesquisa no se observou, por exemplo, a presena de
nenhum profissional especializado da rea de assistncia social para
mapear o perfil do pblico, prestar servio de acolhimento e informao aos imigrantes.
Uma situao nova e complicada registrada a partir de 2013 a
chegada de outras nacionalidades ao acampamento, por meio da rota
j consolidada pela Rodovia Transocenica, tambm vtimas do aliciamento de coiotes. Segundo dados da coordenao do acampamento, trabalhadores de 16 nacionalidades j passaram pela cidade. Esse
perfil de imigrante, representado especialmente por aqueles advindos do continente Africano, tem dificuldade para se comunicar com
os demais estrangeiros abrigados no local e com os dois funcionrios
pblicos encarregados da administrao do acampamento.
De modo geral, conforme a coordenao do acampamento, o
perfil do imigrante abrigado em Brasilia composto da seguinte maneira: 80% de homens, 15% de mulheres e 5% de crianas. A faixa etria predominante vai de 18 a 45 anos, mas h a presena de percentual
significativo de imigrantes acima de 50 anos e de menores de 18 anos.
Outro dado que merece ser registrado a mudana quanto ao
155
perfil da formao escolar e do nvel de experincia profissional. Segundo o levantamento realizado pela pesquisa, os primeiros grupos
de haitianos que chegaram ao Brasil por meio do Acre eram constitudos por pessoas provenientes das regies mais urbanizadas do Haiti,
com formao superior e larga experincia profissional. Muitos possuam formao equivalente ao nvel superior e a ps-graduao no
Brasil, com profissionais das reas de Direito, Economia, Engenharia
e Agronomia, alm de mestres em lnguas estrangeiras, principalmente o Francs.
As relaes estabelecidas dentro do acampamento pelos imigrantes so importantes por revelar a dinmica social estabelecida
em meio a circunstncias improvisadas, de precariedade social e at
ilegalidades. Eles se definem no acampamento por grupos, que surgem a partir da nacionalidade e de afinidades em geral: grupos familiares, grupos de amigos e grupos de companheiros de viagem. Essa
organizao chega a extrapolar os limites do prprio acampamento,
pois na regio eles so reconhecidos por andarem em grupos, o que
pode inclusive significar um mecanismo de proteo deles, que se encontram em situao de grande vulnerabilidade.
156
157
que os homens que tm mais dinheiro, principalmente os senegaleses, quando se enamoram de alguma mulher, do a ela algum dinheiro, para que possam comer algo diferente ou comprar um carto
telefnico para se comunicar com seus parentes, em seus pases.
Atualmente o comrcio existente dentro do alojamento marcado pela presena de ambulantes, como vendedores de picol e salgados, alm de uma senhora sacoleira boliviana, que vende cartes/
crditos da empresa telefnica Tico (cobertura no Peru e Bolvia) para
os celulares utilizados pelos imigrantes, alm de sabonetes, pentes,
sabo em p, sandlias, meias, espelhos, roupas etc. Esta senhora
permanece praticamente todo o dia no local e conta com ajuda dos
imigrantes para vendas dos cartes de celulares. Existe tambm a
presena de cambistas no local, que atuam com bastante discrio.
158
Os empresrios brasileiros que chegam at a Amaznia acreana para contratar estrangeiros fazem isso conforme a legislao trabalhista, pois a zona de conforto estabelecida favorvel ao empregador. Conceder emprego a um haitiano, nesse momento, contribui
para a imagem humanitria do empresariado, alm da garantia de
que no haver lutas ou reivindicaes trabalhistas. O capital encontra nisso uma grande oportunidade para arrefecer a contradio de
classe numa conjuntura de crise, porque, nesse contexto, o haitiano
agradecido pelo emprego tende a no se opor ao seu patro.27
De acordo com o mapeamento inicial realizado pela pesquisa,
tambm importante ressaltar que na maioria dos casos, na cidade
onde vo trabalhar e morar, os imigrantes so alojados em uma residncia administrada pela prpria empresa, de maneira que a rotina
de trabalho e vida do novo operrio passa a ser ordenada e controlada
por ela.
Durante alguns dias de permanncia da equipe de pesquisa no
acampamento, acompanhou-se a realizao de uma palestra da Secretaria Estadual de Justia e Direitos Humanos voltada para os imigrantes. A atividade teve o propsito de esclarecer a eles as regras de
empregabilidade para estrangeiros no Brasil, explicando que o contrato provisrio se d pelo perodo de 45 dias, com remunerao de
um salrio mnimo mensal, com possibilidade de renovao por mais
45 dias. Aps esse perodo de 90 dias de experincia que a empresa
define a permanncia ou no do funcionrio. Essas e outras informaes esto reunidas em uma publicao em formato de cartilha, cujos
exemplares foram distribudos aos participantes da atividade.28
Em um pas marcado estruturalmente por uma pobreza debi172 trabalhadores escravos em MG, 2013.
27
Mamed & Lima, Trabalho e Migrao Internacional, 2013b.
28
Ministrio do Trabalho e Emprego; Conselho Nacional de Imigrao; Instituto Migraes e Direitos
Humanos; Companhia de Jesus, Guia de informaes sobre trabalho aos haitianos, 2012.
162
Em muitas entrevistas realizadas na cidade, com os representantes dos mais diversos segmentos sociais, a maior parte manifestou
contrariedade com relao ao atendimento, acolhida e ajuda prestada aos imigrantes. No primeiro momento da passagem deles pela regio, era notvel o aspecto humanitrio do acolhimento. No entanto,
nesses quase trs anos de funcionamento do acampamento, sempre
crescente e em circunstncias inapropriadas, a populao foi alterando sua percepo sobre o contexto.
Associado a esse contexto est presente a atuao de organizaes criminosas que lucram com o transporte desses imigrantes.
Para assegurar o negcio, elas reforam a ideia do Brasil como pas da
esperana e da oportunidade, motivando-os a emigrar. o que explica um dos funcionrios pblicos que recebem e acompanham diariamente os imigrantes:
Na regio, os moradores chegam a relatar que os haitianos recebem uma espcie de auxlio do governo brasileiro, equivalente ao
do Programa Bolsa Famlia, para se manter no Brasil. Segundo o coordenador do acampamento, ele sempre precisa ir s rdios da cidade
prestar explicaes sobre a inexistncia disso, pois a comunidade faz
presso e cobra esclarecimentos.
Os coiotes de l iludem os haitianos com a histria de que, no Brasil, podem ganhar salrios de
2 mil dlares. Pelos relatos que ouvi das pessoas
que chegaram a Brasilia do ano passado para
c, 95% dos imigrantes passam obrigatoriamente pelo Equador. Na fronteira do Equador com o
Peru, os haitianos chegam a pagar 250 dlares
por um carimbo de entrada falso no pas (Servidor pblico, coordenador do acampamento, 43
anos).
Os depoimentos destacados sintetizam algumas das impresses locais sobre a problemtica na regio. Em geral, so os servidores pblicos, que atuam no atendimento dirio da populao local e
166
Resultados preliminares
A migrao estrangeira, notadamente de haitianos, que hoje se
processa na regio acreana um fenmeno que no se vincula a uma
determinao subjetiva ou a fatores isolados. O desenvolvimento desigual, aspecto intrnseco do capitalismo, explica o movimento migratrio. Os desdobramentos nos contextos de destino so notveis,31
pois o fluxo desses contingentes humanos rumo aos pases centrais e
mais recentemente ao Brasil aparece como necessidade do capital.32
Ele resulta em presso para rebaixamento do salrio da classe operria nesses lugares, em decorrncia do aumento do exrcito
industrial de reserva. Em suma, essa presso tende a calibrar e impulsionar a acumulao capitalista. Desse modo, a problemtica dos
haitianos sintetiza o modo pelo qual o modo de produo capitalista
gestou massas de desempregados submetidos a condies de extrema precariedade e, no mesmo movimento, provocou reaes.
A partir de uma primeira visita regio que a principal porta
de entrada dos deserdados haitianos no Brasil, a equipe de pesquisa constatou que a situao destes imigrantes do sculo XXI similar, por exemplo, situao dos imigrantes irlandeses e escoceses na
composio da classe proletria na Inglaterra do sculo XIX.33 Assim,
a presena de haitianos na Amaznia Ocidental refora o perfil do trabalhador que, embora quase no aparea nas estatsticas oficiais e
no seja o foco de atuao da poltica brasileira de imigrao, integra
o processo contraditrio de 34desenvolvimento capitalista.
Castles, Globalizao, transnacionalismo e novos fluxos migratrios, 2005.
Harvey, O novo imperialismo, 2004.
33
Engels, A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, 2008.
34
Primi, A dura vida dos deserdados globais, 2013.
167
31
32
Esse perfil o do trabalhador com baixa escolaridade e qualificao e, na maior parte, proveniente de pases perifricos.35 Nesse
caso, os haitianos se somam hoje aos imigrantes da Bolvia, Paraguai,
Peru, Angola e Moambique, pases de origem dos maiores fluxos de
estrangeiros para o Brasil atualmente e cuja tendncia a ocupao
informal e precarizada.36
Pelas circunstncias em que acontece o trnsito de haitianos
na Amaznia Ocidental e a maneira como isso tem sido gerenciado
politicamente pelo Brasil pode contribuir para que essa imigrao
represente um padro precrio de insero no mercado de trabalho
brasileiro, no qual a condio de imigrante, sem conhecimento da
lngua, sem documentos ou dinheiro, passa a incidir na prpria diviso
do trabalho.37
No Brasil, o tema das imigraes clandestinas ainda pouco
discutido, mesmo porque o pas possui uma tradio de enviar mais
do que receber. A relao com o mercado de trabalho informal s foi
pensada do ponto de vista das migraes internas e da formao de
um excedente de mo de obra nacional nos processos de urbanizao. Entretanto, a imigrao regular e a insero desses grupos em
mercados informais comeam a ganhar importncia, mesmo em um
contexto em que existe excedente de mo de obra nacional.
O mapa dos empregos no Brasil38 revela que o aumento no volume de colocaes vem ocorrendo, sobretudo, em categorias com baixos salrios, no setor administrativo, de comrcios e servios, que se
caracterizam pela intensa rotatividade da fora de trabalho.39 O Brasil
atualmente segundo maior mercado mundial para trabalho tempoVillen, Polarizao do mercado de trabalho e a nova imigrao internacional no Brasil, 2012.
Primi, A dura vida dos deserdados globais, 2013.
37
Villen, Polarizao do mercado de trabalho e a nova imigrao internacional no Brasil, 2012, p. 6.
38
IBGE, 2013.
39
Alves, Giovanni O novo (e precrio) mundo do trabalho, 2000.
168
35
36
rrio. Assim, na medida em que a fora de trabalho menos escolarizada e preparada continua a ser amplamente utilizada, isso permanece
servindo de estmulo ao deslocamento de contingentes populacionais
que vivem em regies onde as possibilidades de emprego e sobrevivncia so praticamente nulas.
Segundo a administrao do acampamento em Brasilia, a procura de empresrios interessados na contratao de estrangeiros inconstante e a preocupao governamental o crescimento dirio da
populao imigrante na proporo da incapacidade institucional para
cuidar deles. Entretanto, possvel considerar que o intenso fluxo de
estrangeiros na regio pode estar associado s mudanas ocorridas
nos setores da indstria e de servios do Brasil, acompanhando o desenvolvimento destes, que faz gerar grandes demandas por mo de
obra, especialmente por aquela de perfil menos qualificado. Assim, as
vias desse circuito e as redes que se estruturam a partir dele podem
gerar, em parte, a mediao pela qual ocorre essa grande afluncia
de imigrantes. Nesse sentido, desde a estruturao do acampamento
em Brasilia, diversas empresas estabeleceram contato e vm contratando a disponvel fora de trabalho imigrante.
Se o fenmeno migratrio no Brasil tem estado frequentemente ligado ao fator sobrevivncia, torna-se importante ressaltar, por
outro lado, que estas possibilidades tm sido cada vez mais dificultadas em presena de um mercado de trabalho seletivo e instvel. No
entanto, deve ser notado que a chamada mo de obra desqualificada
continua a contar com forte presena nos diversos setores da economia brasileira, sobretudo no de servios, o que contribui para explicar
a continuidade do fluxo migratrio,40 assim como o crescimento do
trnsito internacional de trabalhadores.41
40
41
Referncias
AGNCIA ESTADO. Fome atinge dois teros dos haitianos. So Paulo, 27 nov. 2010. Disponvel em: http://goo.gl/ZeoRd5. Acesso em: 12
ago. 2013.
ALBUQUERQUE, L. Emprego informal a maior alternativa aos haitianos. Manaus, 20 out. 2013. Disponvel em: http://goo.gl/mIAQZQ.
Acesso em 30 out. 2013.
ALMEIDA, E. Cartas do Haiti: relatos da situao num pas em luta
pela sua soberania. Portugal, 2 fev. 2010. Disponvel em: http://goo.
gl/7hrxnW. Acesso em: 15 ago. 2013.
ALTO COMISSARIADO DAS NAES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS - ACNUR. Global Trends 2010. Genebra, 2010. Disponvel em:
http://goo.gl/svZaO. Acesso em: 10 dez. 2013.
ALTO COMISSARIADO DAS NAES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS - ACNUR. Global Trends 2013. Genebra, 2013. Disponvel em:
http://goo.gl/5VKmm5. Acesso em: 10 dez. 2013.
ALVES, G. O novo (e precrio) mundo do trabalho. Reestruturao
42
Antunes, Riqueza e misria do trabalho no Brasil, 2006 e 2013; Druck e BORGES, Tercerizao, 2002.
170
172
173
174
Nesse sentido, como parte da abordagem e da prpria escolha do tema deste artigo, acompanhamos as proposies crticas de
Paul Gilroy, a partir das quais se torna necessrio assumir o Atlntico
como uma unidade de anlise nica e complexa para, imbudo de outra perspectiva acerca da modernidade e das discusses do mundo
moderno, repensar os modos como as histrias culturais e polticas
dos negros americanos tm sido at agora concebidas. Ao cunhar o
Atlntico negro enquanto categoria de anlise, Gilroy nos convida
a utiliz-la para evidenciar outras possibilidades de leituras sobre os
trnsitos, quase sempre marcados pela violncia fsica e psicolgica,
entre as fricas e as Amricas, bem como o chamado velho continente.6
Tendo por base essas consideraes, nosso estudo est pautado na anlise do atual contexto de interdies entrada de afrocaribenhos em territrio brasileiro, sem desconhecer que esse no um
fenmeno novo, especialmente, quando se trata de haitianos. As imagens de jangadas improvisadas e superlotadas trafegando e sendo
alvejadas por furaces e guardas costeiras no Mar do Caribe, rumo
aos Estados Unidos da Amrica, no nos permite esquec-lo. Porm,
no incio dessa segunda dcada do sculo XXI, temos a possibilidade
de antever que o fechamento das fronteiras norte americanas e europeias aos haitianos e outros grupos de afrocaribenhos em dispora tenha razes na prpria proibio aos no brancos emancipao humana enunciada pelo duo s vezes conflitantes da ambio iluminista
e da razo kantiana que se consagraria no engodo da libert, egalit,
fraternit e nos ecos coloniais da revoluo de 1789. Nesse ponto, reverenciamos o estudo pioneiro de C.L.R. (Cyril Lionel Robert) James
que cartografou as vozes e corpos da Revoluo de So Domingos e
desnudou a face trgica de tal proibio.7
6
7
Em diversas viagens que fizemos para as cidades brasileiras de Brasileia e Assis Brasil, na fronteira
tri-nacional com a Bolvia e o Peru, nos primeiros meses do ano de 2011, pudemos acompanhar in loco
diversas facetas dessa operao de guerra que os noticirios locais faziam questo de registrar e
naturalizar.
179
Devemos lembrar que a interveno esteve presente, como elemento central, norteando a formao das sociedades nacionais amaznicas em fins do sculo XIX e incio do XX. Torna-se emblemtico
no esquecermos que o marco fundador da construo da narrativa
de uma acreanidade brasileira foi a guerra pela borracha extrada
dos seringais da regio envolvendo o Brasil, a Bolvia e o Peru, entre
1889 e 1909. Essa guerra se tornaria uma espcie de pano de fundo
para a constituio de toda sorte de esteretipos sobre o outro que,
em conformidade com o contexto e os interesses ou temores colocados na ordem do dia, passou a ser tratado como preguioso,
ladro, colha, boliviano, peruano, acreano, brasiviano,
caboclo, ndio, preto, feiticeiro, sujo, doente, entre outros. Urge destacar, no entanto, que a carga pejorativa desses termos
ganhou sentido nas tenses implantadas pelas prticas culturais das
comunidades de destino dessa parte do continente americano, mas,
principalmente, na perspectiva de reforar a lgica do estado nao
com suas fronteiras e smbolos ptrios.
No contexto da presena de afrocaribenhos na regio, no entanto, a primeira reao entre os nacionais dessa fronteira amaznica pode ser traduzida no discurso de um agente dos direitos humanos
ou da sade pblica acreana, colocando os integrados regionais em
alerta frente a uma ameaa maior e atribuindo novo significado ao
termo estrangeiro, agora representado na imagem do negro haitiano ilegal e/ou doente. O que estava e est em curso era e
uma inveno ou reinveno da noo de estrangeiro a partir de um
lugar que constri e reproduz significados, operando com o estatuto
de verdades escritas, a partir do discurso jurdico e do discurso mdico. Nessa direo, partilhando da abordagem de Michel de Certeau,
pontuamos que a evocao ao estrangeiro, ao outro o haitiano funciona apenas como forma de sublinhar aquilo que est em
182
dente que sua poltica de direitos humanos no prev aquele que, tratado como estrangeiro como o caso de haitianos, senegaleses,
nigerianos, bengaleses e dominicanos , recolhido e/ou enclausurado em campos de refugiados e submetido a situaes degradantes e
a toda sorte de violncias, antes de receber um visto de passagem
condio de cidado de terceira classe, encaminhado ao subemprego e explorao sem medida.
Porm, o que chama a ateno frente aos objetivos deste
artigo a veloz incorporao e difuso de uma espcie de lgica
discursiva, por intermdio de diferentes jornais escritos, televisivos e
noticirios eletrnicos acerca da presena haitiana e de outros estrangeiros na cidade de Brasilia, na fronteira amaznica trinacional.
Uma a uma, as manchetes de diferentes aparatos e suportes miditicos foram ecoando a retrica da invaso ilegal, da mo-de-obra
barata ou da nova rota do trfico de seres humanos vinculados
ideia do trfico de armas e drogas:
Haitianos descobrem que sonho de vida melhor pode virar pesadelo (oglobo.globo.com);
Deciso do governo de fechar fronteiras divide
especialistas (oglobo.globo.com); Em Brasileia
(AC), 1,3 mil estrangeiros ilegais esto acampados em um clube da cidade (oglobo.globo.com);
Acre decreta emergncia em Brasileia e Epitaciolndia por invaso de imigrantes ilegais
(oglobo.globo.com); Brasil vai buscar acordo
com Peru e Bolvia para controlar imigrao pelo
Acre (oglobo.globo.com); Acre sofre com invaso de imigrantes do Haiti (oglobo.globo.com);
Traficantes de pessoas fomentam imigrao
ilegal no norte do Brasil (oglobo.globo.com);
Imigrao no Brasil: Ilegais provocam crise hu184
O vocabulrio no novo, mas a forma de seu emprego movimenta e articula diferentes subjetividades: estrangeiros, ilegais,
emergncia, invaso, imigrantes, traficantes, rota ilegal,
trfico, armas, drogas, doenas, entre outras palavras prenhes
de sentidos, surgem vinculadas aos afrocaribenhos, africanos e asiticos. Chama a ateno que diferentes redatores e editores recorram
aos mesmos clichs para lanar seus enunciados nada inocentes ou
ingnuos opinio pblica. A rigor, so sentenas impregnadas dos
velhos matizes colonizadores, estigmatizando o estrangeiro que, a
partir da fronteira pan-amaznica passou a se espalhar pelo territrio
brasileiro e dai para as Guianas Francesas e outros pases vizinhos.
Interessa-nos destacar que os esteretipos instilados por tais
enunciados ecoam os depoimentos e manifestaes de autoridades
governamentais e outros agentes pblicos responsveis pela proteManchetes de noticirios locais e nacionais sobre a presena haitiana e outros grupos humanos na
Amaznia acreana.
185
13
14
16
17
desde 2010 at a presente data, entrou em contradio com a legislao nacional e os acordos e pactos internacionais dos quais o Brasil
signatrio, principalmente, levando em considerao o rechao que
passou a prevalecer na fronteira amaznica.
No incio do ano de 2011, frente a uma srie de denncias do Comit Acreano de Defesa dos Haitianos18 acerca das violncias fsicas e
psicolgicas provocadas pelo fechamento das fronteiras e toda a situao constrangedora em que se encontravam mulheres, homens e
crianas afrocaribenhas proibidas de entrar no Brasil, o Ministrio Pblico Federal convocou e realizou uma Audincia Pblica com a finalidade de discutir a situao jurdica dos haitianos em solo brasileiro.
Durante essa audincia as incongruncias da poltica do estado se fizeram presentes nas falas dos representantes dos ministrios
das relaes exteriores e da justia que, desalinhadas dos ditames estabelecidos pela legislao brasileira e diante da interdio de afrocaribenhos na ponte da integrao regional,19 possibilitaram aos presentes uma viso parcial do que estava e est em curso no Brasil com
relao presena de haitianos em seu territrio.
Nessa direo, torna-se fundamental transcrevermos um trecho do discurso de Isaura Miranda Soares, representante do Ministrio da Justia, em companhia de Rodrigo do Amaral Souza, Diretor do
Departamento de Imigrao e Assuntos Jurdicos do Ministrio das
Relaes Exteriores. Ao ser questionada sobre o fechamento da fronteira e o rechao aos haitianos ela destacou o sentido mgico da
palavra refgio, nos limites que separam o territrio brasileiro de
seus vizinhos do continente americano:
O Brasil aderente da Conveno de 1951 da
Frum de diversas entidades e instituies pblicas, institudo na cidade de Rio Branco, no ano de
2010 para dar apoio aos haitianos que entravam no Brasil, denunciar o descaso das autoridades com sua
situao e exigir a liberao das fronteiras nacionais a todos aqueles que solicitassem refgio.
19
Ponte sobre o rio Acre, ligando as cidades de Assis Brasil Iapari, na fronteira do Brasil com o Peru.
190
18
Acompanhando essas palavras e os gestos esboados pela Diretora do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de
Justia, temos a possibilidade de atentar para a superficialidade de
sua fala, posto que, sob o escaldante sol da fronteira entre o Brasil e o
Peru, o que estava em questo era, parafraseando Hannah Arendt,21
impor a violncia muda das armas no rechao aos haitianos que pediam refgio.
O Brasil referncia mundial em matria de refgio, sinceramente, eu no tenho conhecimento de rechao; mas vocs tero
a palavra (...) da Polcia Federal; nada tem faltado aos haitianos.
A ambiguidade dessas palavras, ditas para ocultar, desnudam o carter pr-poltico de seus significados, posto que sua porta voz, no
20
Isaura Miranda Soares. Diretora do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justia,
do Ministrio da Justia. Relatrio audiovisual da Audincia Pblica promovida pelo Ministrio Pblico
Federal no Acre, Procuradoria Regional dos Direitos do Cidado PRDC. Rio Branco, Acre, 4 e 5 de maio
de 2011.
21
Arendt, A condio humana, 1991.
191
Leonel Joseph e os demais haitianos presentes audincia pblica, pouco entendiam da lngua e dos jarges protocolares que ali
eram pronunciados pelas autoridades, mas conheciam seus efeitos
25
Depoimento de Leonel Joseph, professor haitiano, em 04 de maio de 2011, durante Audincia Pblica
promovida pelo Ministrio Pblico Federal, Procuradoria da Repblica no Acre, com o tema Discusso
acerca da situao jurdica dos haitianos em solo brasileiro.
195
27
A fantstica oficialidade desses dados nada expressa da realidade experenciada pelos haitianos naquela fronteira amaznica, mas
permite um acompanhar das tramas do imaginrio de gestores pblicos responsveis pelos direitos humanos no mbito do estado brasileiro quer seja na esfera estadual, quer seja na esfera federal. Reduzidos a nmeros de uma conta sem chegada homens e mulheres so
passados na ponta do lpis pela banalidade de uma retrica de direitos humanos ancorada, fundamentalmente, na noo de garantirlhes refeies dirias, pousada em condies precrias, assistncia
a Sade, assistncia a Documentao e passagens terrestres, como
condio de amansamento ou amolecimento de suas carnes e
vontades para, ento, sujeit-los condio de recrutados para trabalhar em diversas empresas privadas.
Essa frmula antiga e nada original utilizada pelo Secretrio de
Estado de Justia e Direitos Humanos do Acre para resolver a questo e colocar sob controle a presena dos haitianos na Amaznia
32
Informaes mais recentes sobre os imigrantes haitianos no Acre, Secretrio de Estado de Justia e
Direitos Humanos do Acre, 2012.
199
As instituies governamentais, religiosas, civis, de direitos humanos e os jornais locais e nacionais to pobres em notcias e repletos em esteretipos pautam-se na ideia de que a expectativa de haitianos e, em seguida, dominicanos, senegaleses, nigerianos e outros,
se reduz lgica do conseguir trabalho para ajudar suas famlias.
Porm, em nenhum momento, nas centenas de reportagens e pronunciamentos sobre a questo, aparece a autorizao da parte des33
201
Atentando para o contedo dessa reportagem, por exemplo, podemos destacar que o deslocamento dos sentidos, presente na retrica oficial, se refaz nas representaes de haitianos entrevistados,
cujas falas devem conferir acepo no apenas a um Brasil projetado
como acolhedor, mas a um pas melhor que a vizinha repblica do
Peru, responsabilizada pela situao dos estrangeiros interditados
na fronteira amaznica. As idealizadas palavras das mulheres e homens abrigados num lugar de trnsito so preparadas pela lgica de
uma notcia que, longe de informar, desnuda-os da condio poltica de pertencer a uma dada comunidade de origem ou do direito a um
passado que no seja reduzido a doenas, destruio e mortes. Condio essa que, conflituosamente, vo internalizando como possibilidade mesmo do ser e estar em um pas como o Brasil marcado por um
racismo estruturante em que so duplamente excludos do exerccio
pleno da cidadania: por serem negros e por serem estrangeiros.
A notcia, portanto, no obstante a fora desnorteadora das
imagens fotogrficas, ilustrativas da informao, reflete o discurso de instituies oficiais e no-governamentais: um discurso que,
por apresentar os haitianos, senegaleses, nigerianos, bengaleses,
dominicanos e outros, como seres desprovidos do status poltico,
34
novamente parafraseando Hannah Arendt, insere tambm a impossibilidade de trat-los como semelhantes. Desse modo, visualizados
como providos apenas da abstrata nudez de ser unicamente humanos, terminariam sendo tratados como animais.35
disse. Apesar da dura realidade, o nigeriano Sunday Gbesinmi Ebietomere, de 41 anos, ex-funcionrio de um aeroporto de seu pas, considera
o Brasil a esperana para uma vida nova. o que
deseja tambm o haitiano Servil Compere, de
26 anos, que chegou no ltimo dia 5 em busca
de um irmo que j trabalha em Santa Catarina.
Para ele, um emprego significa um recomeo
sonhado h meses. Servil contou que foi salvavidas em Porto Prncipe, antes do terremoto.36
Mais uma vez, acompanhando esse tipo de reportagem, podemos pontuar que, insistentemente, as anti-narrativas se repetem.
Os ecos das vozes de afrocaribenhos, africanos e indianos, repicados
pela escrita das mdias eletrnicas e reproduzidos em outros suportes
de difuso daquilo que se quer projetar como a fala, os anseios e os
sonhos do outro, o estrangeiro, evidenciam uma apropriao violenta e recolonizadora da palavra trabalho, adotada sem qualquer
tipo de vnculo com a realidade material e os significados presentes/
produzidos pelas expectativas e anseios dos haitianos e outros estrangeiros. As evidncias disso podem ser apreendidas nas denncias de trabalho escravo e questionamentos sobre os subempregos ou
trabalhos sujos a que esses sujeitos sociais tm sido submetidos em
diversos locais do Brasil, desmontando a tese e os afs daqueles que
os reduziram a essa mo-de-obra.
No publicar suas narrativas, isto , no publicar ou no levar
em considerao suas reflexes sobre os significados da dispora que
vivenciam, substituindo-as por anti-narrativas, implica acima de
qualquer ao ou inteno em deixar claro seu no direito poltico,
o desarraigamento que os torna seres suprfluos e descartveis,
36
como nos ensina Hannah Arendt. Seres que vivem um impasse porque a esfera poltica de suas vidas, a comunidade qual pertenciam
e podiam se exercitar com palavras e aes na realizao dos interesses comuns foi destruda, seguimos com Arendt, para quem, nessas
condies, o homem passa a ser conduzindo a um tipo de isolamento
que se transforma em solido:
a nica coisa que sobrevive o mero esforo do
trabalho, que o esforo de se manter vivo, e
desaparece a relao com o mundo como criao do homem. O homem isolado que perdeu o
seu lugar no terreno poltico da ao tambm
abandonado pelo mundo das coisas, quando j
no reconhecido como homo faber, mas tratado como animal laborans cujo necessrio metabolismo com a natureza no do interesse de
ningum.37
de para apenas 200 pessoas, em condies insalubres de higiene, repartindo o uso de apenas 10
latrinas e 8 chuveiros, onde no h distribuio
de sabo nem pasta de dente, o esgoto corre a
cu aberto e as pessoas so empilhadas durante
meses num local de 200 m2, com teto de zinco,
no qual lonas plsticas negras servem de cortina,
sob temperaturas que chegam aos 40 graus.38
37
39
206
tomada margem das prticas sociais e das formas de auto-representao41 de afrocaribenhos, africanos e outros grupos humanos em
deslocamento no sentido Caribe/frica Amaznia. As tenses e violentos processos que prefiguram esses deslocamentos, as estratgias
de burla no arriscado embate contra o muro dos acordos internacionais,42 bem como os translados negociados evidenciam que, desde
os locais de origem ou partida, esses estrangeiros esto significando e atualizando em seus corpos e conscincias suas histricas experincias de vida e os intercmbios das prprias identidades.
O problema que eles no querem trabalhar, querem que se
deem as coisas. Se trabalhassem fazendo alguma coisa, at haveria
ajuda maior do povo daqui. Essa representao de Lni Lopes Cardoso, publicada no Notcias Terra, parece indicar que, mesmo passando as noites amaznicas empilhados uns sobre os outros, sob um
calor escaldante, acomodados em pedaos de espuma que algum dia
foram pequenos colchonetes...,43 como denuncia outra representao de carter humanitrio, os afrocaribenhos e demais grupos humanos que, em deslocamento espacial pela Amrica do Sul, aportaram nas fronteiras amaznicas, no deixam de resignificar suas
existncias objetivas e subjetivas, indicando-nos, como sugere Gilroy,
que a questo da origem tornou-se inacessvel e em ampla medida
irrelevante, posto que no so mais o que j foram um dia.44
O que entra em questo, apavorando o imaginrio daqueles
para quem o estranho um smbolo assustador,45 que, desordenando as espacialidades, temporalidades e fronteiras de estados
nacionais marcados pelo signo da colonialidade, homens e mulheHall, Da dispora, 2003.
Vilela, Corpos inabitveis. Errncia, filosofia e memria, 2011, p. 238-239.
43
Brasil esconde emergncia humanitria no Acre, Conectas Direitos Humanos, 2013.
44
Gilroy, O Atlntico negro, 2001, p. 20.
45
Arendt, Origens do totalitarismo, 2007, p. 335.
209
41
42
Vivemos como animais, diz haitiano que aguarda trabalhar no Brasil, noticias.terra.com.br, 2012.
208
Referncias
Acre rota para entrada de haitianos no Brasil. Agncia de Notcias do Acre. Disponvel em: http://goo.gl/uMW4Sb. Acesso em 23/
maio/2013.
Gilroy, O Atlntico negro, 2001.
Hall, Da dispora, 2003.
52
Sennet, Carne e pedra, 2008.
50
51
212
tividade pela lentido aparente com que as transformaes se processam. Os malogrados golpes polticos e sociais como a Monarquia
de Julho, a Revoluo de l848, a Segunda Repblica e o Segundo Imprio, causam um sentimento de estagnao, pois quando uma nova
ordem se estabelece preciso que a sociedade, com suas correntes de
pensamento em efervescncia, possa inserir-se nessa nova realidade.
ento que toda a atividade humana poltica e social, aparentemente, diminui a velocidade do processo de transformao. Isso acontece
por causa do choque entre o ideal e o real, que esses malogros produzem nos homens idealistas e na sociedade em geral.
Este estudo tambm sobre a relao entre Histria e realidade
e sobre Fico e Ideal. Gustave Flaubert, em ma perspectiva irnica
e emocional, deixa transparecer por intermdio de seu discurso que
tudo no seno o reflexo de outra coisa.3 Em outras palavras, isto
quer dizer que, embora o romance esteja contextualizado no perodo
histrico que vai de 1840 at 1867, o idealismo histrico no apenas
o reflexo da fico na realidade que o poder quer se estabelecer como
ordem; na contramo, a fico a prpria realidade em seu aspecto
virtual. a que se d o choque entre o ideal e o real, que faz desse
romance uma obra literria.
A atitude de Flaubert em representar suas personagens como
se estivessem doentes de um mal que provoca a apatia e o desnimo, demonstra como ele cria as personagens e os fatos de linguagem
para construir um efeito de realidade que faa o leitor crer que ele est
diante de um relato verdico. possvel que Frdric, um homem que
viveu sem fazer nada em toda a sua vida, e que tenha sempre esperado do acaso os benefcios para realizar suas ambies. Esteticamente
Frdric um representante das personagens romnticas que passavam os dias sonhando em realizar amores impossveis.
3
H, em Lducation sentimentale, uma disposio das referncias cronolgicas que permitem reconstituir toda a trajetria de Frdric no desenrolar de sua vida: so datas precisas, datas indicando
apenas o dia e ms ou ento apenas indicaes dos dias da semana.
O jornal Le National foi fundado durante a Monarquia de Julho
por Louis Adolphe Thiers, que juntamente com Victor Hugo e Lamartine ajudou a colocar Louis Philippe no trono da Frana. Thiers tornou-se mais tarde, em 1871, o primeiro Presidente durante a Terceira
Repblica, at renunciar em 1873. Le National, foi um dos rgos mais
importantes da oposio republicana oficial; sob a direo de Marrast
desde 1841, contribuiu para os acontecimentos de 1848, sendo suprimido em 2 de dezembro.4 Alm desse jornal, Paris contava na poca com Le Sicle, jornal de oposio, fundado em 1836, de tendncia
constitucional e liberal, rgo da gauche dynastique; em 1848 tornouse um jornal republicano. Le Sicle citado ao menos duas vezes no
corpo do romance, na pgina 159 e depois na pgina 217.5
La Gazette de France, de ndole legitimista, tinha como diretor
M. de Genoude. Citar aqui o La Gazette de France refora a referncia
reforma eleitoral. Ainda entre os jornais legitimistas tambm citado
no romance o La Mode6 como sendo o jornal lido por Monsieur de Cisy,
uma das personagens do romance em estudo. Finalmente, Le Charivari um jornal de esprito satrico que, durante a Monarquia de Julho,
teve uma colaborao mordaz contra o regime institudo, publicando
caricaturas das figuras mais proeminentes da poca e que defendiam
as ideologias monrquicas. Esse jornal foi fundado em 1832 e contou
como colaboradores com os melhores desenhistas da poca: Honor
Daumier (pintor e gravador francs, que viveu entre 1808 e 1879 e ficou clebre por suas caricaturas polticas), Paul Gavarni (desenhista
francs, que viveu de 1804 a 1866), entre outros.
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985, p. 87; Gothot-Mersch, Notes, 1985, p. 515.
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985.
6
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985, p. 196.
218
4
5
220
captar sua essncia, ele sai da cincia e entra na literatura.14 Do constante relacionamento entre estas duas formas de narrativas, a histrica e a ficcional, emerge a questo do personagem-narrador. No
sculo XIX postulou-se o distanciamento entre narrador e narrativa
estabelecendo uma objetividade que d ao leitor a impresso de que
a histria narra-se a si mesma. A personagem-narrador a responsvel pelo efeito ilusionista da auto-narrativa, onde a histria narrada
por si mesma. Pensando a narrativa dentro dessa tradio do sculo
XIX, onde o narrador precisa ser repensado, que Leite mostra que h
uma proximidade marcante entre Histria e Fico desde os gregos
at hoje. Em seu livro O Foco Narrativo ela diz:
mas como se coloca, ento, a relao da Fico
com a Histria, neste momento? Na verdade no
se abandona a comparao que se imps desde
Aristteles. Ela reaparece, implcita ou explicitamente, nos prprios romancistas ou nos tericos
da literatura, quando no vem recolocada pela
prpria filosofia. A diferena que agora no se
desconfia somente do poder da representao
do discurso da Histria. A desconfiana se alastra tambm para o poder da Fico de, pela particularidade, chegar universalidade, operao
que nos levaria, segundo Aristteles, Diderot ou
Lukcs, a compreender e conhecer mais profundamente a realidade.15
222
trata de uma literatura burguesa, mais precisamente, em se tratando de Lducation sentimentale, um romance burgus. Na verdade
no to simples assim, pois se tratando de quais sejam as relaes
entre a ideologia e a literatura, esta questo bastante difcil de definir
A anlise da ordenao temporal do texto permite sua segmentao, atravs dos seus demarcadores (formas verbais, advrbios de
tempo, adjuntos adverbiais), facilitando o reconhecimento dos modos de relao estabelecida entre o tempo da fico e o tempo da
Histria. Sabe-se que todo texto est relacionado com uma dada realidade; isso acontece porque o produtor de um texto trabalha com as
ideias do tempo e da sociedade em que ele vive, ligando-se inevitavelmente s condies de existncia. Sobre a questo autor e obra, diz
Prvost a respeito das afirmaes de Lnin sobre a obra de Tolstoi: o
conjunto dos seus escritos como que um lugar de confluncia de vrias
ideologias ou de fragmentos de ideologias oriundas de classes diversas
[significa, tambm,] que o escritor um sujeito que utiliza e organiza
esta fermentao que se produz logo que o indivduo se acha na lngua e
se engasta activa e conscientemente na lngua tampouco a literatura , tambm ela, um processo sem sujeito. Para o caso, necessrio um
sujeito responsvel para trabalhar este trabalho.17
O que Lnin queria dizer, com suas afirmaes sobre Tolstoi e
sua obra, que a ideologia presente numa obra no determinada
mecanicamente pela origem de classe do escritor.18 Do mesmo modo
em Lducation sentimentale esto presentes vrias ideologias que
do a essa obra uma existncia material, prxima demais da realidade, conferindo-lhe por essa caracterstica a importncia de ser uma
referncia de verdadeiros fragmentos da realidade contempornea,
17
18
224
tanto daquela explicitada no texto quanto daquela sobre a qual o narrador faz apenas uma aluso, deixando-a implcita. So muitas as referncias que ilustram e comprovam o que at aqui se disse, no entanto sero citadas apenas algumas que parecem ser mais significativas
e de acordo com a proposta feita para este estudo. Cabe lembrar mais
uma vez que as datas, dentro do romance, no aparecem todas dentro de um rigor em ordem cronologicamente linear.
A primeira referncia que ser dada sobre a origem de Charles
Deslauriers, filho de um ancien capitaine de ligne, dmissionnaire en
1818 (...). Aigri par de longues injustices, souffrant de ses vieilles blessures, et toujours regrettant lEmpereur, (...).19 Esta referncia deixa
implcita a informao de que Monsieur Deslauriers, o pai de Charles,
era bonapartista e que teria tomado parte das batalhas que deram
origem ao Governo dos Cem Dias, para restaurar o Imprio de Napoleo; depois de seu exlio na ilha de Elba, o Imperador, tomando
conhecimento da impopularidade de Louis XVIII, herdeiro dos Bourbon, decide em 1815, com um exrcito de 800 homens, voltar Frana sendo derrotado pelos aliados austracos, prussianos e franceses.
Este um episdio bastante importante da Histria da Frana e que,
implicitamente citado pelo narrador de Lducation sentimentale, vai
ajudar a preparar o clima para chegar ao pice histrico do romance que a Revoluo de 1848. Esta informao, dada de passagem
pelo narrador, vai ajudar a orientar o leitor para a compreenso de
quem Deslauriers e de onde, provavelmente, vem a formao de
sua personalidade ambiciosa e de sua ideologia republicana, alm de
revelar sua revolta contra a injustia social, sobretudo no aspecto econmico. As notcias publicadas nos jornais, criticando o rei, so oficiais
e realmente indispunham o povo contra o governo. O primeiro fato
tratando da construo de uma muralha ao redor de Paris assombrou
19
ainda debatendo-se numa tentativa de reerguer-se, novamente esmagado por Sncal com um simples levantar de ombros para
mostrar o seu desgosto pela situao que, segundo ele impunha um
acrscimo na taxa de impostos. Falavam sobre os casamentos espanhis (sobretudo o casamento do filho de Louis-Philippe com a princesa Luisa-Fernanda, acontecimento que agradou muito a Guizot), a
reorganizao do conselho religioso de Saint-Denis e a dilapidao de
Rochefort (grande escndalo administrativo sobre o qual o governo
no reagiu com firmeza). Cabe assinalar ainda sobre Monsieur de Cisy
que o jornal la Mode era de cunho legitimista, e com certeza Sncal
ao ouvir seu interlocutor citar uma notcia publicada em tal jornal excitou-se e no pode conter-se alfinetando-o com a invectiva de que
Voltaire poderia ficar com Cisy, insinuando que ambos no gostavam
do povo. Naturalmente, um leitor contemporneo do sculo XX, menos avisado sobre os acontecimentos que nortearam a organizao
social e poltica na Frana do sculo XIX, passaria pelas pginas e captulos de Lducation sentimentale sem se dar conta do que est lendo,
mas o leitor do sculo em que o romance foi publicado pela primeira
vez sabia muito bem o que estava lendo e poderia, provavelmente,
participar melhor da construo dos sentidos que a narrativa permite
perceber. Sentidos ideolgicos, revelados apenas aos mais atentos:
cada leitor poderia explicitar livremente, promovendo discusses e
debates acerca das idias sobre poltica e esttica veiculadas na obra
como as publicadas em 10 de dezembro de 1869, na revista Questions
dart et de littrature, onde George Sand publicou um artigo sobre
Lducation sentimentale. Em seu artigo, em defesa de Lducation
sentimentale, George Sand diz que o significado dessa obra est em
provar que o estado social, poca em que o romance surgiu, estava
to deteriorado que era preciso mud-lo radicalmente.
A deteriorao a que George Sand se refere sobre a aliana
230
entre operrios, burgueses, socialistas, monarquistas que ora se rivalizam ora se expem em defesa de interesses particulares apregoando o interesse social. Trabalhando com a questo das relaes entre
a ideologia e a literatura, no se pretendeu aqui enfocar convices
partidrias ou ideolgicas s quais Flaubert pudesse estar vinculado,
pois este texto no tem vistas trabalhando com vistas para uma literatura engajada; mesmo porque este tema de estudo aparentemente ficou obsoleto. Flaubert escolheu a oniscincia porque ele queria
expressar seu sentimento apolitique sobre os acontecimentos polticos e sociais de seu sculo, e tambm porque ele poderia falar de
suas relaes amorosas sem comprometer-se. Porm, Flaubert foi
extremamente poltico ao relatar fatos histricos que marcaram sua
poca. Ele apenas revelou-se desiludido e desenganado com aquela
realidade. Flaubert no aceitava a poltica que era praticada na poca,
na sua poca. Sua poltica se ope sua poca num procedimento que
muitas vezes dificulta o discernimento do que sejam interesses individuais em benefcio prprio daqueles em benefcio do social, e ainda
de quais sejam os interesses verdadeiramente desprendidos e que almejam exclusivamente o bem da coletividade. O narrador de Lducation sentimentale mostra Frdric indiferente Revoluo de 1848
porque ele est interessado no amor de Marie Arnoux e tambm em
ser um arrivista, maneira do Rastignac de Les Ilusions perdues, que
j perdeu o grande amor, e do Rastignac do Pre Goriot. Assinalemos
que no incio do romance Deslauriers aconselha Frdric a agir como
Rastignac. Do ponto de vista burgus, os artistas, de um modo geral,
so improdutivos, e, portanto, inteis. So incapazes de ao porque
no se enquadram nessa sociedade. Flaubert desconfia dos socialistas
que para ele, so apenas pedantes doutrinrios com tendncias despticas. Na poltica, Flaubert nos apresenta um Frdric que tem um
olhar sobre os acontecimentos de sua poca de quem no se d conta
231
de que a Histria est sendo construda naquele exato momento diante de si. Ele passeia pelas ruas e, de repente, testemunha de uma
manifestao que no mais do que um pouco de animao alm
do comum. Frdric um estudante de direito, mas seus verdadeiros
interesses no so absolutamente os acontecimentos polticos uma
vez que ele nem sabia a causa da desordem; perguntou a um outro,
que tambm no sabia nada sobre aquilo.21 As aes de Frdric mostram que ele no tinha nenhuma paixo pela poltica. Interessava-se
pelos acontecimentos como se ele estivesse num espetculo do qual
poderia falar liricamente.
Frdric acompanhou o jornalista Hussonnet at seu escritrio
e este ltimo se mit composer pour le journal de Troyes un compte
rendu des vnements en style lyrique, un vritable morceau, - quil
signa.22 curioso observar que Frdric est sempre com Hussonnet
nessas ocasies e que os dois parecem estar ali apenas para informarse: Aprs le caf, quand ils se rendirent lhtel de ville, pour savoir du
nouveau, son naturel gamin avait repris le dessus.23 Mas, se Hussonnet
quer informar-se sobre os acontecimentos polticos, o mesmo no se
pode dizer de Frdric, pois os seus interesses eram muito mais de carter particular que de carter social ou jornalstico. Quando ele est
presente nessas revoltas, sempre por acaso, como na passagem
da pgina 75, quando Frdric dirige-se para a Faculdade e nota plus
danimation qu lordinaire; ou, nas ltimas pginas da segunda parte,
enquanto ele espera Madame Arnoux a Revoluo de Fevereiro est
comeando e ele reage com grande descaso ao receber um bilhete de
Deslauriers convidando-o para uma manifestao contra Louis-Philippe no Panthon: Oh! je les connais leurs manifestations. Milles Grces! jai un rendez-vous plus agrable.24
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985, p. 75.
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985, p. 363.
23
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985, p. 363.
24
Flaubert, Lducation sentimentale, 1985, p. 345.
A concepo de Flaubert segundo a qual o autor no deve intervir nas aes de suas personagens, mantendo-se afastado de suas
aes, justifica que sejam as personagens as portadoras das informaes sobre a realidade. Aquele que conta uma histria, reflete e
critica. Sua histria a de seres inativos, mas no para ele, pois em
Lducation sentimentale ele mostra que o tempo cumpre o seu papel
e que preciso que cada um cumpra o seu, ou que, como Frdric e
Deslauriers, volte-se ao comeo:
Flaubert e Zola iniciaram suas atividades depois
da batalha de junho, numa sociedade burguesa
j cristalizada e constituda. No participaram
mais ativamente da vida desta sociedade, no
queriam participar mesmo. (...) a recusa devida sobretudo, a uma atitude de oposio, isto ,
exprime o dio, o horror e o desprezo que eles
tm pelo regime poltico e social do seu tempo.25
O problema da Literatura e da Ideologia cria uma responsabilidade quando se pretende dizer e escrever algo sobre uma determinada
obra. Segundo Prvost,26 o mais conveniente, por ser mais cientfico,
apoiar-nos em conhecimentos adquiridos, numa tradio de que os
textos fundadores (nem mais nem menos) se devero procurar em Marx,
Engels e Lnine (sic).27 Deve-se lembrar que as condies de existncia
segundo a concepo de ideologia marxista esto ligadas s condies
de produo e de consumo de mercadorias, e que atendem aos interesses da classe dominante, revelando, portanto, posies de classe
profundamente marcadas e concernentes a cada escalo social. Em
Lducation sentimentale temos como representantes da classe dominante os aristocratas nobres e burgueses seguidores da ideologia
21
22
26
232
Referncias
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FREITAS, M. T. de. Literatura e Histria. So Paulo: Atual, 1986
28
235
a priori; e o mvel da essncia, cujo valor de fundao descerra o quantum da letra literria em matizes diversos e divisveis, a posteriori.
O hibridismo a que me refiro, portanto, a salvaguarda impondervel de uma potica, que no est ancorada apenas na literatura,
que, a exemplo dos textos de tradio cannica, intenta reproduzir
uma verdade historiogrfica contnua; o que seria, na tarefa do criticismo e do poeticismo convergentes, um desvio do empreendimento de base cientfica. Destarte, cumpre ressaltar que, distante e destoante das vozes e leis cristalizadas da/na literatura dita brasileira, a
literatura da/na Amaznia reflete, em modo singular, uma letra que
emerge no espao natural em dois nveis distintos. A saber: aquela
que desvela o universo interior de cada componente constituinte de
um ambiente, que ultrapassa as fronteiras geogrficas, e a que deflagra e denuncia, no exterior, outras realidades, que, bvias, parecem
escapar ao olhar arguto do cientista da linguagem.
O mergulho ou o adensamento das questes da Potica do Verde, no fio contiunuum de seu exerccio de problematizao, a partir
deste ensaio, tem, como objetivo axial, perceber e trazer lume as
sentenas que orbitam a Ecopotica e os ecossistemas literrios. Nesta trilha significativa, em patamar primrio, cumpre destacar que a
Ecopotica, segundo os ditames da Potica do Verde, no trata dos
assuntos ou temas congneres ligados Ecologia como ramo do saber distinto. A Ecopotica, como vrtebra ou ramificao dos estudos
sobre a Potica do Verde, , fundamentalmente, um saber que revela as ecologias infralineares, intralineares e extralineares, presentes
em uma linguagem, que se move entre os espaos distintos de uma
literariedade, na conciso do conceito cientfico e consagrada nos estudos literrios, e de uma outra literariedade, ainda guisa de compreenso, circunscrita linguagem verde; e os ecos, que reverberam
238
239
titui-se um fardo para aqueles que no so vistos por uma lente mais
arguta a privilegiar as outras Amaznias. Neste sentido, a escrita da
Ecopotica, a meu ver, incendeia questes de ordem histrica e historiogrfica, pondo em xeque as sentenas faturadas de uma literatura
que se encrava no mago da maior floresta do planeta a desvelar o
fantstico com acentos quixotescos, e, desse modo, distante das verdades a serem perseguidas e alcanadas pelo criticismo e poeticismo
concorrentes.
O hiato temporal, necessrio e prprio das letras decadentistas, criou um vcuo saudvel para as escritas amaznidas. Este pensamento, desse modo, ratifica o apago terico, que abalou e ainda
causa torpores aos pilares de um canonismo, que tem sido debilitado
pelo trnsito epocal, conjugado renovao do tratamento, que deve
ser dado s literaturas emergentes no risco de uma possvel cientificidade, que intente apreender e, portanto, compreender, de forma
justa e adequada, os textos que portam outras mensagens, outras representaes da Linguagem, no verde que se ilimita por sua condio
fenomenolgica. A viso da/sobre a Amaznia, atravs de seus escritos, sejam de que ordem for, bem como o vislumbre da Ecopotica,
em seu protagonismo irrevogvel, tm sentido apenas se o leitor, em
sua forma mais genrica, perceber que os traos exticos, de ascendncia caricata, so marcas de um passado, que jamais revelaram ou
traduziram, de fato e de direito, o percurso histrico, historiogrfico,
filosfico e literrio do amaznida em seu ambiente primordial a
Amaznia.
Cumpre ressaltar, ainda, de forma vigorosa e na condio de
poeticista, que a Ecopotica e sua rubrica no so integrantes de um
modismo ou uma maneira enviesada para facear o objeto em questo
em modo diverso na contemporaneidade. Tal empreendimento cons241
O extraordinrio e o sobrenatural, ambos sinnimos de uma letra ou provavelmente de uma escrita no visvel, a priori, so partcipes de um corpo, tambm invisvel, mas que se move, seja atravs da
physis, em sua fora concntrica, seja atravs da ecloso da prpria
natureza, que traz tona o registro ontolgico dos componentes do
universo amaznico. A Ecopotica no decide o que ou quem no
cenrio plasmtico do verde em sua amplitude significativa; mas o
seu oposto. Qual seja: os elementos fragmentados e fragmentveis,
espalhados e desfeitos, so as variveis para a elucidao, a posteriori,
de uma potica, cuja ecologia revelar seus sistemas e subsistemas;
realidades imperceptveis a olho nu, se a expresso couber no conceito em construo.
A construo e a desconstruo das realidades, que se retroalimentam, ininterruptamente, formam o mvel do no mvel; ou do
corpo atmico, que se tomiza, transformando-se em partes de significao mltiplas e portadoras das verdades sobre os sistemas constituintes; caminhos infinitos de uma ecologia potica, que o centro
nervoso da Terceira Amaznia a Amaznia potica. , ainda, neste
equacionamento lgico e translgico que o nome Amaznida pode
ser, com efeito, compreendido em seu arqutipo e traduzido por suas
sentenas constitutivas, pois a compreenso sobre o Amaznida, para
muitos possveis leitores, passa, ainda, pelo crivo do desconhecimento e da ininteligibilidade, quase resvalando para o obscurantismo,
para o arrepio dos estudos crticos, que buscam os traos valorativos
e identitrios daquele.
A distoro ou a falta total de metodologia investigativa adequada sobre o Amaznida comprova, uma vez mais, a reincidncia
dos modelos impostos pela tradio cannica, que inverte a lgica dos
243
estudos literrios. Destarte, sensato afirmar que so as poticas locais que fornecem a bssola de navegao para aqueles que intentam
proceder descoberta da linguagem essencial, que define, em turno
posterior, as naturezas e as significaes do Amaznida. Se fosse doutro modo, isto , o seu contrrio, a tarefa poeticista estaria fadada
ao malogro e os fundamentos da Ecopotica seriam empilhamentos
reducionistas, que se somariam a tantos outros, que versam sobre a
Amaznia e seu universo, mas que, ao final das contas, pervertem e
no contribuem para o esclarecimento dos ambientes, da Amaznia,
das falas, das linguagens e, principalmente, das identidades, que, em
conjuno singular, formam os ecossistemas interiores e seus registros, esplendidamente eternizados pelas letras artsticas poticas
de tonalidade verde.
A Ecopotica em vias de construo conceitual e revaloradora dos componentes presentes no universo dito verde modula as
realidades, j arroladas no incio desta reflexo, que so as ecologias
infralineares, intralineares e extralineares: um trip que pode revelar
lados mltiplos ou circunferncias de um espao que, para alm das
fronteiras, um corpo de representaes universais, o que torna a
Amaznia um tpos de todos e de ningum, fabulando, dentre tantas
vertentes, o autopertencimento. A Amaznia pertence a si mesma,
engendra a linguagem ntica e ontolgica, nos componentes constitutivos de sua corporeidade sem limites, e revela, no tecido infinito de
sua literatura, a letra verde. Assim, lcito afirmar que os trs nveis
distintos, coexistentes e confluentes no apenas demarcam os limites
dos estudos ecopoticos, propriamente ditos, como tambm revelam as naturezas diversas na Amaznia e nas dimenses da Potica
do Verde, ao ampliar, esta ltima, seu mbito de atuao para trazer
244
baila os tecidos literrios, que abordam a brasilidade, em seu estado mais genuno, e que foi relegada a planos secundrios por todos
os projetos oficiais que tentaram construir uma identidade brasileira a partir da letra artstica nacional. Insta esclarecer que os referidos
projetos, amargando o fracasso por suas contradies histricas, em
tempo algum incluram a Amaznia e sua letra artstica como elemento indexador das questes identitrias ou modelares de uma cultura
amerndia, afro-brasileira e, indelevelmente, multirracial
A ecologia infralinear, ao operar o cdigo natureza naturante,
revela, no risco de uma potica nascente, a physis fundadora de verdades, que precedem as gentes e as personagens do universo verde e
formam a base substantiva das questes que sero a matria prima
presente nas obras da e sobre a Amaznia. No que concerne ecologia intralinear, o espao de tensionamento, onde o intermezzo modula
as ambigidades e oscilaes, prprios da condio ontolgica, deflagra a escrita eminentemente artstica e mantm suspensa no tempo
a linguagem liberta de qualquer corroso fsica e/ou metafsica. E,
finalmente, a ecologia extralinear constitui-se na projeo singular
do sujeito que, eclodido no espao originrio, produz os dilogos e
confere tonalidade s vozes que ecoam, sussurram, clamam, gritam e
dialogam na floresta, esteja nos limites geogrficos ou transcendentais, onde a Amaznia, um corpo representacional, atinge a terceira
dimenso.
A Literatura da/na Amaznia, neste sentido, , afirmativamente, atravs da Ecopotica, a sentinela dos ecossistemas literrios, que,
a meu ver, constituem-se na pedra angular de todas as poticas que
emergem no cenrio verde e representam a reinveno da Amaznia
e seu universo plurissignificativo.
245
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246
247
Jossianna Arroyo-Martnez
Jossianna Arroyo-Martnez
of North Carolina), Michael Hanchard (Political Science, Johns Hopkins), Aida Hernndez (CIESAS, Mexico), Bettina Ngweno (African
American Studies, UC Davis), Irma Alicia Velzquez Nimatuj (Anthropology, Guatemala), and Catherine Walsh (Social and Global Studies,
Universidad Andina Simn Bolvar) as well as those who responded
to the call for papers, touched upon these dialogues from different
disciplinary (and post/interdisciplinary?) perspectives. Their interventions mainly focused on the following themes: (1) Postcapitalist, postliberal, and poststatist societies; (2) alternative modernizations or the
end of coloniality; (3) artistic manifestations of disparate cultural experiences; (4) points of convergence and points of divergence in indigenous and Afro-descendant experiences; (5) legal and political struggles for rights and new citizenship regimes; (6) communal systems,
stability, noncapitalist practices, and nonstate forms of power; (7)
human rights, indigenous communities, and Afro-descendant communities; and (8) religious practices and alternative modernizations.
When we think about Afro-descendant or indigenous populations in Latin America, the Maya Kiche in Guatemala, the Garifuna
of Honduras and Belize, the Afro-Colombians in the Choc or Atlantic Coast, and the Miskitu and Creoles in Nicaragua come to mind as
the most representative or discussed groups. Our group of scholars
and activists brought their insights to bear on the struggles of these
groups as well as other less well-known cases. They touched upon the
need to historicize the local as a way to define political solidarities and
local-international political activism. In their welcoming remarks, Professors Arias and Hale noted the recent United Nations approval of
the Declaracin de los Pueblos Indgenas (Declaration of Indigenous
Peoples) in 2007 and its impact on the constitutional changes in countries such as Ecuador and Bolivia.
Also noted was a statement from the recent World Social Forum
250
(Blem do Par, Brazil 2009), which makes an urgent call for political
alternatives, in light of the economic crisis. The first day of the conference was dedicated to questions of governance and the role that
decolonial knowledges such as state and governance, philosophy,
religion, pedagogies, languages have had culturally and politically
in these struggles. Bettina Ngwenos paper discussed the specificities
of these issues in the Cauca Valley region in Colombia where AfroColombians have been struggling along with indigenous groups to
address their own claims to land, communal rights, and citizenship.
Arturo Escobar, Catherine Walsh, and Irma Alicia Velsquez continued
this discussion, adding the importance of alternative and decolonial
knowledges as spaces for the reformulation of new critical languages
of thought, research, and political activism. Arturo Escobar focused
on the new poststate social movements as a response to the crisis of
the neoliberal state, while Catherine Walsh analyzed Manuel Zapata
Olivellas Bantu definition of the American muntu to respond to
colonial forms of oppression over subjects, nature, and space. Irma
Alicia Velsquez, an anthropologist of Maya Kiche ancestry, spoke of
the difficulties posed by the co-optation of indigenous and Garifuna
leaders and ways these state practices affect the struggle for social
and human rights in Guatemala.
The keynote speaker for the conference, Boaventura de Sousa
Santos, one of the founders of the World Social Forum, commented on
the challenges he faces as facilitator of dialogues with activist groups
in the Social Forum and in local contexts, such as Ecuador, Bolivia,
or Brazil.1 In his keynote, de Sousa Santos, who defined himself as a
Boaventura De Souza is Professor of Sociology at the School of Economics, University of Coimbra
(Portugal), Distinguished Legal Scholar at the University of WisconsinMadison Law School, Director of
the Center for Social Studies of the University of Coimbra, and Director of the Center of Documentation
on the Revolution of 1974 at the same university. He was one of the founders of the World Social Forum.
Recently, he has published Democratizing Democracy: Beyond the Liberal Democratic Canon (2007) and
The Rise of the Global Left: The World Social Forum and Beyond (2006).
251
Jossianna Arroyo-Martnez
in the Americas, was the site where the New Laws (Las Leyes Nuevas) were approved in 1542, changing the conditions of native labor
and peoples and granting humanity under the Spanish empire encomienda system.2 While some of the remaining native populations allied with the Spanish colonizers to appease or capture black maroons,
other natives escaped along with black maroons into the mountains.
When the French part of the island, Saint Domingue, became the richest colony in the Americas, black enslaved Africans who already were
nonhuman were declared property once the laws of the Black
Code (Code Noir) were instituted in 1685. After the Haitian Revolution in 1804, Haiti established new geographies of freedom for black
peoples in the Americas, while producing forms of political blockage
and constitutional disavowal from the United States and Europe.3 Before we can address the commonalities in the political struggles of
Afro-descendant and indigenous groups, therefore, it is important to
understand that these differences created by colonial laws have influenced the ways these populations have negotiated their claims to
humanity and political representation. While indigenous populations
historically had used colonial laws to negotiate their claims to land, resources, and political representation, black populations in postemancipated societies had to negotiate their right to live as human beings
and to belong to the nation-state even in countries where modern
states were defined by inclusive ideologies of racial democracy (e.g.,
the Spanish Caribbean, Brazil). Some of these forms of participation,
such as military enlistment (enlistarse) to die for the fatherland, are
still key elements for the definition of who is and who is not a citizen
today.
2
Torres-Saillant, Silvio. The Tribulations of Blackness. Stages in Dominican Racial Identity. Callaloo 23.3
(2000) 10861111.
3
Arroyo, Jossianna. Technologies: Transculturations of Race, Gender and Ethnicity in Arturo A.
Schomburgs Masonic Writings. Technofuturos. Critical Interventions in Latina/o Studies. Ed by Nancy
Raquel Mirabal and Agustn-La-Montes. Boulder: Lexington Publishers, 2008, 141172.
253
Meanwhile, invited speakers Ada Hernndez and Michael Hanchard discussed other forms of subjection besides race, such as gender
and sexism in the indigenous movement in Mexico and Guatemala,
and what it meant for blacks as well as for white Creoles to negotiate
blackness under mulatto definitions of political power, as occurred
in the Caribbean and Brazil in Hanchards case. What was clear after
these presentations was that blackness still appeared as a condition
associated with enslaved labor subjected to global systems of capital.
Blackness thus appears in a contradictory model defined by modernity itself, not outside of modernity but as modern-colonial subjects.
If indigenous peoples were still subjected to oppression, they at least
were represented ontologically as subjects, while the status of blacks
remained in the uncertain nexus of the relation between life, death,
and survival. So blackness as a condition is associated with what poet
Audre Lorde defines as being here when we were never meant to survive.4
On the final day of the conference, Afrodescendant and indigenous activists and scholars discussed their work in panels dedicated
to a variety of topics, such as human rights, reconfiguring the state,
literature, and memory and ritual or religion. Their conclusion was
that, although there have been successes, there is still much work
to be done in the analysis of the paradoxes imposed by colonial modernity and capital. Jerome Branche, for example, made a call in his
presentation to rethink Our America as a decolonial paradigm to
understand the native-indigenous as a spiritual and important legacy for Afro-Caribbean people and Afro-Latinos, while we need to be
critical of ethnic constitutions in countries such as Bolivia that still do
not recognize their black minorities. For Branche, the work of AfroCaribbean and AfroLatin American intellectuals such as Frantz Fanon or Abdias do Nascimento proves that for Afrodescendants ho4
Lorde, Audre. A Litany for Survival. In The Black Unicorn. New York: W. W. Norton & Co.,1995.
254
Jossianna Arroyo-Martnez
Jossianna Arroyo-Martnez
Latin Americanist perspectives, as they discuss and compare the status of native populations in the U.S. and African Americans, and the
impact that contemporary migration from Latin America and the Caribbean has had on their local struggles. Some comments by panelists and audience members began shifting discussions toward these
commonalities and differences among activist agendas and struggles
across the Americas. What would happen if these links between race
and ethnicity were identified as an American language of decolonial
perspectives and forms? If migration for economic reasons and the power of transnational capital creates a subaltern status in immigrants
who are mostly brown and Afro-Latino, it is clear that a new discursive
American critique of race and racialization emerges from all these
interactions, and that forms of coloniality of power remain significant
referents for understanding exclusion and subjugation owing to race,
gender, class, and sexuality. UTs Teresa Lozano Long Institute of Latin American Studies, as was proved by Contested Modernities and
as has been proven by our once-a-year collaborative-activist symposium Abriendo Brecha, has opened a discussion on these decolonial
struggles in the twenty-first century. Inter-American and trans-American decolonial perspectives should come from critical dialogues as
forms of political possibility and pragmatic solutions for an egalitarian
democratic future.
257
es una ideologa, el heleno-eurocentrismo, que ha disvirtuado la historia mundial y no ha podido sealar, por ejemplo, cmo la historia de
Amrica se inserta en ella. Estos impases sealados son dos grandes
lacras heredadas del pensamiento colonial y tergiversan todos los dominios del saber. Mientras no solucionemos estos impases no sabremos cabalmente de qu estamos ocupndonos cuando hablamos de
La literatura, de la teora del lenguaje, de ciencia, de tica, poltica y
sobre lo que ms nos interesa: de la potica.
La poitica no es la potica
Se tiene por dado que la reflexin sobre La literatura empieza
con la obra de Aristteles: Peri poihtikhz authz (Peri poitiks auts;
en castellano: Sobre la poitica misma), conocida con el contradictorio trmino de Potica. Entonces, sin olvidar las reflexiones de Platn,
la reflexin sobre la literatura datara de hace 25 siglos. Sin embargo
las interpretaciones hechas de este texto son contradictorias. Mostremos algunas.
El encabezamiento del texto mencionado dice que se va a tratar:
Sobre la poitica misma y de sus especies [eidos]. Sin embargo ms
adelante hay un pasaje, aparentemente incoherente, que poqusimos
comentadores han dado cuenta de qu trata. Dice: El arte [epopoia]
que imita slo con el lenguaje, en prosa o en verso [], carece de nombre hasta ahora.3
Sin olvidar que la Peri poitiks auts nos ha llegado sin ttulo,
mutilada, alterada y hasta se cree que solo son notas de clase , el texto
debuta haciendo la diferencia entre la poitica general y otras poiticas
secundarias contenidas en la general. Entonces se habla de poitica y
no de potica. Si se hablara de una supuesta potica, no tendra porque decirse que esta carece de nombre. Aristteles est sealando
la actividad humana denominada poitica, que la define en su tica a
Nicomaco, y de poiticas secundarias, subordinadas a la anterior. Para
3
Una crtica del por qu la filosofa griega comienza mal la potica y otras lacras a las que ha inducido en el desarrollo de la filosofa
occidental es urgente. Giambatista Vico, Karl Marx y Enrique Dussel
sostienen una lnea terica continua y tocan la poitica pero no alcanzan a fundar la potica.
cosa de hombres y por ello todo debe, debera ser explicado.10 Entonces,
si la Biblia fue escrita por hombres por qu se la trata como un libro
religioso, divino, y se la presenta, monopolizada y mal traducida por
instituciones diversas, interpretada como una metafsica tan absurda
y difcil de sustentar hoy?11
No hay duda, la cultura occidental ha fetichizado y tergiversado la interpretacin de la Biblia, y no ha especificado su potica, su
funcionamiento discursivo, que la sustenta. La interpretacin monopolizada por la Cristiandad ha dado lugar a perversiones cuyas consecuencias la sufrimos ayer, hoy, aqu en Amrica de manera tan particular y dolorosa. As, finalmente, no se sabe cmo es el funcionamiento
de la Biblia, es decir cmo es su potica. Veamos de manera general
cmo est construida su lgica discursiva.
La Biblia est construida, escrita, en funcin de lo continuo del
pensamiento del lenguaje y esto mediante lo que se escucha en el discurso hablado y escrito y apuesta a la utopa y la profeca realizndose aqu y ahora mediante la invencin de pensamiento. Esto es en
suma el pensamiento mesinico y no es el sentido irracional al cual se
nos tiene acostumbrado: como una prediccin-adivinacin de lo que
acontecer en el futuro.
La Biblia no conoce la divisin prosa o verso, esto es una ilusin
vehiculizada por la filosofa griega y la consecuencia de las malas traducciones hechas de la Biblia en las lenguas occidentales basadas en
la teora del signo.12 La Biblia no toma la palabra como la unidad de
significacin, toma al ritmo-discurso como un continuo interminable
entre un cuerpo y su manifestacin sonora y/o escrita. De esat manera
Karl Marx, Walter Benjamin, Franz Hinkelammert y Enrique Dussel, entre otros, son de esta opinin.
Vase Henri Meschonnic, Un golpe bblico en la filosofa, traduccin de Alberto Sucasas, Buenos Aires,
Ediciones Lilmod / Libros de la Araucaria, 2007.
12
Vase Henri Meschonnic, tica y pltica del traducir, traduccin de Hugo Savino, Buenos Aires,
Leviatn, 2009.
266
10
11
se piensa y se habla de manera individual en comunidad. El ritmo-discurso es el pensamiento continuo antropolgico en la historia.
La Biblia est escrita desde la perspectiva de las vctimas de la
historia.13 Ella vehcula un pensamiento continuo que se funda como
una tica-poltica registrada desde hace 4400 aos, que va a resumirse en el no matars abrahmico.14
El referente discursivo, el texto ms antiguo que se conoce de la
historia acerca de la justicia hecha a las vctimas, est datado de 23522342 a. C. Es la ley 27 de las Reformas de Uruinimgina o del Cdice de
Urukagina. Dice ah:
l [el prncipe Uruinimgina] liber y condon las
obligaciones para aquellas familias endeudadas,
ciudadanos de Lagash, que vivan como deudores a causa de los impuestos de grano, los pagos
de cebada, el robo o el asesinato. Uruinimgina
prometi solemnemente a Ningursu [Seor de
Girsu, dios principal del Estado de Lagash] que
nunca subyugara el hurfano y la viuda al poderoso.15
14
Se repite de manera sinttica en Deutoronomio 10, 17-19: Porque Yav [] el que da un trato igual a todos [] hace justicia al hurfa16
17
Federico Lara Peinado (ed.), Libro ade los muertos, Madrid, Tecnos, 1989, cap. 125, pp. 202-210.
Federico Lara Peinado (ed.), Libro ade los muertos, Madrid, Tecnos, 1989, cap. 125, pp. 202-210.
268
Mateo, el evangelista, en griego hace decir a Joshua de Nazareth lo mismo dos veces en 25, 35-46: Porque tuve hambre y ustedes me dieron de comer; tuve sed y ustedes me dieron de beber. Fui
forastero y ustedes me recibieron en su casa. Anduve sin ropas y me
vistieron. Estuve enfermo y fueron a visitarme. Estuve en la crcel y me
fueron a ver.
Hecho notable, Carlos Marx y Federico Engels van a utilizar estos discursos en sus clebres argumentos. Dice Marx en los Manuscritos del 44:
Fsicamente el ser humano vive slo de productos naturales, aparezcan en forma de alimentacin, calefaccin, vestido, vivienda, etc. La universalidad del ser humano aparece en la praxis
justamente en la universalidad que hace de la
269
18
19
que construy nuestra familia materna amerindia. Como l ha decidido de apoderarse de ella, extermina a casi todos los principales miembros masculinos de nuestra rama familiar materna. Despus de haber
eliminado a todos los probables opositores y esclavizado los pocos sobrevivientes viola y amanceba nuestra Madre y decide destruir nuestra casa antigua y construirse una nueva, segn su gusto europeo y
sus intereses tan particulares. Destruye la casa de la familia de nuestra
Madre, utilizando como mano de obra los propios amerindios sobrevivientes. Se tira abajo los slidos muros con cierta facilidad y cuando
llega el momento de destruir las fundaciones repara que como estn
slidamente constituidas desde hace milenios le ser imposible continuar su devastacin. Decide que ser mejor de aprovechar tan buenas bases milenarias para construir sobre ellas su nueva casa. S.
Las fundaciones de nuestra casa-continente son amerindias!
Posteriormente desde 1492, esta historia de lo que le sucedi
a nuestra familia en nuestra casa misma, y que dio como resultado
nosotros mismos, fue contada slo desde la perspectiva del Padre europeo. La historia de la familia de nuestra Madre, y as nuestra propia
historia misma, fue tergiversada, silenciada y por fin ignorada. No se
sabe que no se sabe. Se sustent que como nuestra famila materna no
tena escritura no poda tener (derecho a) una historia. Y ya van ms
de quinientos aos de ignorancia.
Esto que sigue ya no es metfora. Lo que ignor siempre nuestro Padre europeo tan lleno de si mismo, como no sabe qu es la potica, que nuestra familia materna si tiene una historia pero ella la escribi en el cielo y la cuenta hasta ahora a viva voz. Los miles de mitos
amerindios refieren a tiempos y espacios precisos que tienen como
referentes la medicin del tiempo. El cielo americano parece ser otro
gran texto ignorado a rescatar.20
20
Vase como ejemplo de esto el libro de William Sullivan, El secreto de los incas. Los misterios de la
civilizacin perdida, Barcelona, Grijalbo, 1999. Se trata de la traduccin del libro publicado en ingls cuyo
subttulo original seala mejor la problemtica sealada: The Secret of the Incas. Myth, Astyronomy and
272
A modo de concusin
La potica futura que se proponga tendr que ser fundamentada desde cmo el cuerpo-victimado individualizado con las lenguas
y lenguajes reformula los discursos., es decir los poemas. Puesto que
no se puede decir cualquier cosa en cualquier lugar, los discursos
de las vctimas de la historia van obstinadamente contra los discursos
dominantes, los interpelan. Nos interpelan. Estos discursos son crtica
de la teora dualista del signo y de cualquier pretendida teora del
lenguaje que no diga nada de la potica. Porque el discurso, no el signo
semitico, de las vctimas al ser una determinacin-determinada-determinando determinndose seala lo ms valioso de la humanidad: el
mundo de la exterioridad donde se supera el binarismo identidad-diferencia de la totalidad y antepone a estos lo-distinto, la trascendentalidad interior que puede deligitimizar todo sistema. El discurso de
las vctimas es la mayor invencin de pensamiento posible. La potica
futura tendr que demostrarlo.
Seuil, 2011.
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276
277
Cabanagem foi o mais importante e impactante movimento social ocorrido na Amaznia, sendo resultado de mltiplas contradies econmicas, polticas e sociais que foram se
agudizando desde os primrdios da crise do imprio colonial portugus, ainda no final do sculo XVIII, at a dcada de 1830, momento
posterior, portanto, ao rompimento dos vnculos de subordinao do
Brasil com Portugal. Sobre esse movimento vm se debruando um
conjunto de historiadores, de dentro e de fora daquela regio, que
buscam repens-lo a luz de diversas perspectivas tericas e abordagens metodolgicas.1
Todavia, o impacto das tenses presentes na Cabanagem e as
dimenses grandiosas da prpria rebelio, perduraram no Par at o
fim do sculo XIX, e seus ecos reverberaram no apenas na historiografia, mas tambm por diversos outros registros que nos chegaram
do passado.
Um registro importante de tais dilemas e contradies emergiu
na variada gama de relatos de viajantes que estiveram na Amaznia
ao longo do sculo XIX, tornando comum entre os historiadores o recurso obra de naturalistas estrangeiros, em geral, valorizados como
homens de cincia, e, portanto, observadores atentos e perspicazes
da conflitiva realidade amaznica que procuraram descrever.
Por sua vez, as obras literrias e, em especial, o romance histrico gnero que se consagrou no sculo XIX mantiveram-se por
1
Pinheiro, Vises da Cabanagem, Valer, 2001; Ricci, Do sentido aos significados da Cabanagem, 2001.
279
o que pensa Chartier, ao nos lembrar da fora das representaes do passado propostas pela literatura, tendo em vista que, para
ele,
o teatro, no sculo XVI e XVII, e o romance, no
sculo XIX se apoderam do passado, deslocando
para o registro da fico literria fatos e personagens histricos, e colocando no cenrio ou na
pgina situaes que foram ou que so apresentadas como tal.6
Saindo do campo dos tericos, convm dizer que este igualmente o pensamento de pelo menos um dos dois escritores que aqui
sero abordados: o portugus Francisco Gomes de Amorim. O autor
no reconhece barreiras ou fronteiras a impedir o dilogo contnuo entre histria e literatura. Talvez por isso e sem jamais se afastar de sua
identidade de literato, tenha perseguido por dcadas o ingresso no
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB).Com efeito, Amorim
v e produz sua obra literria, no apenas como documentos para a
posteridade (os termos so dele!),7 como tambm a v intimamente
ancorada no mundo real que lhe serve de referente ao universo ficcional. Assim, quando acusado de exagero na trama de dio de raa,
um de seus mais emblemticos trabalhos, diz ele: no houve encarecimento na pintura; copiei do natural. Gomes de Amorim chega, na
Ferreira, Literatura, 2009, p. 75-76.
Chartier, A histria ou a leitura do tempo, 2009, p. 25.
7
Ribeiro e Oliveira (Editores), Teatro dio de raa e O cedro vermelho, 2000, p. XX.
281
5
amaznica que o marcou, tanto quanto sua obra literria, pelo resto
da vida. Passando por grandes dificuldades financeiras, aportou em
Belm em 1837 para somente retornar a Portugal em 1846. Os anos
passados na Amaznia foram, em boa medida, de penria e sofrimento, trabalhando como empregado e caixeiro de comerciantes portugueses. O autor jamais esquecer seus patres portugueses que, para
ele, foram dois patifes, que o tomaram para caixeiro fora da proteo das leis e das autoridades, tornando-se assim, por violncia,
rbitro dos meus destinos [diz ele], obrigando-o ainda a trabalhar
como carpinteiro e como remador.12 Com o mais tirnico desses patres, Amorim passou quatro anos subindo o Amazonas, envolvido no
comrcio das drogas do serto, chegando, inclusive, a cortar seringa durante seis meses. Tudo isso lhe produzia a sensao de ser um
escravo branco de seus patrcios.
Esses dados so relevantes porque, como afirma Costa Carvalho
um importante estudioso do escritor portugus a obra de Gomes
de Amorim caracteristicamente autobiogrfica.13 Assim, possvel
ver no caixeiro Manoel uma das personagens de dio de raa o
prprio Gomes de Amorim, s voltas com seu passado opressivo. Em
passagem esclarecedora, o dilogo entre o caixeiro Manoel e seu patro Roberto, um rico comerciante e senhor de engenho, reporta-se
s agruras vividas pelo escritor em sua juventude:
Oh! Minha ptria, meu querido Portugal, cuidei
[pensei] que te deixava para vir a um pas de irmos, e recebem-me como inimigo!
Sei que tenho as vezes mau gnio, mas no
cometo as barbaridades que certos portugueses
praticam com os caixeiros.14
Gomes de Amorim, dio de raa, 1869, p. 314-315.
Carvalho, Aprendiz de selvagem, 2000, p. 12.
14
Gomes de Amorim, dio de raa, 1869, p. 26-27.
284
12
A vivncia de Gomes de Amorim no Par marcada pelo contexto de feroz represso ao movimento cabano, ainda no de todo sufocado na Provncia. O prprio autor, em mais de uma ocasio, lembrar
ter sido alvo das escaramuas de um dos derradeiros grupos rebeldes,
ainda atuante nas proximidades do rio Xingu.15 Relatar tambm o
encontro casual com dois importantes personagens do movimento:
Soares dAndra, o repressor da Cabanagem, e Diamante, um lder
negro que, em Icuipiranga, frente de 500 homens, desafiaria tanto a dominao senhorial, quanto a autoridade do tambm rebelde
Eduardo Angelim, o terceiro governador cabano.
A trama de dio de raa tecida com o intuito de denunciar
as mazelas da escravido e alertar para as consequncias morais e sociais derivadas da hierarquizao violenta e desumana ante o escravo,
agravando o quadro de degenerao social. Digo agravando porque
em Gomes de Amorim, como em diversos outros autores do XIX, o
verniz civilizatrio passa centralmente pelo critrio racial. Amorim
valoriza a ideia de pureza da raa como associada boa ndole e correo de carter, enquanto, inversamente, a ausncia dessa pureza
seria um indicador da degradao e degenerao.
Os exemplos se sucedem nas pginas de dio de raa. De um
lado esto personagens como Manuel, o caixeiro portugus; Roberto,
o fazendeiro brasileiro, mas igualmente branco como Manuel, e Jos
(Pai Cazuza), um preto cabinda, transformado pelo autor na personagem central da trama, sobre quem recai o reconhecimento e a valorizao de mltiplas virtudes, como lealdade, coragem, honestidade
e honradez. No espectro oposto, est Domingos, um mulato insubmisso, atormentado por uma pliade de defeitos, como a preguia,
a inveja, a cobia, a covardia e um desejo permanente e insacivel de
vingana.
13
15
O resultado desse caldeiro em que fervilha o dio racial a degradao moral, a violncia como nico recurso de mediao possvel
e a revolta. Ambientada num engenho nos arredores de Belm, a tra16
17
ma de dio de raa, demonstrar que a degradao moral associada e derivada de uma infame estrutura escravocrata far de todas as
personagens suas vtimas.
No vrtice da pirmide social est Roberto, o fazendeiro brasileiro, rico e arrogante com seus empregados e com a escravaria, dentre os quais se acham alguns filhos que teve com diversas escravas.
A paternidade (sequer discutida e muito menos assumida) no impedir Roberto de castigar ou vender esses filhos de suas escravas,
como ele prprio argumenta. Sua brandura somente aparece no trato
com Emlia, a Senhora Moa, sua filha, a quem faz afagos e mimos e
lhe atende aos desejos mais caprichosos, como para ele o alforriar
algum de seus escravos. Ainda com os ps fincados na casa grande,
aparece a figura do jovem caixeiro portugus, Manoel, que tem vnculos familiares, pois sobrinho de Roberto e primo de Emlia, por
quem acalenta uma secreta paixo. Outra personagem Martha, uma
tapuia, que serve de mucama Emlia, e que, por sua vulgaridade e
alcoolismo, personifica a degenerao do indgena em meio ao processo colonizador. O caixeiro e, em especial, a mucama fazem a ponte
com a senzala e o universo da escravaria, composto por planteis de
pretos e mulatos, representados na trama, respectivamente, por Pai
Cazuza e Domingos, ambos tambm a alimentar admirao por Senhora Moa. Pai Cazuza, conformado em uma subservincia que lhe
d alguma regalia, sublimar seu amor platnico, do qual dar provas
com a prpria morte para salvar Emlia das garras de Domingos, cujos
recalques com sua condio social e com o desprezo, cotidianamente
recebidos de seus amos, aumentam ao saber que filho do fazendeiro
e, portanto, irmo de Emlia, objeto de seu ardente desejo.
Menos que interao e sociabilidades entre casa grande e senzala esse sonho impossvel e improvvel de Gilberto Freyre o Par
287
de Gomes de Amorim caldeiro de animosidades e violentas clivagens. Para analistas contemporneos, a obra literria de Gomes de
Amorim chega a ser mesmo a completa negao dessa mitologia integracionista de Freyre, que mais se assemelharia a uma falocracia
do que a uma democracia.18
Sem descuidar das oposies tradicionais entre ricos e pobres,
patres e empregados, senhores e escravos, Gomes de Amorim pinta um quadro bem mais complexo em que as animosidades e contradies sucedem e ocorrem em dimenses poucas vezes alcanadas
pela linguagem classista mais comum aos historiadores. Em sua obra,
ndios, tapuias, negros e mulatos no se veem como iguais ou semelhantes, antes se rejeitam mutuamente, mesmo partilhando a crueza de um sistema comum que os humilha, amesquinha e explora. Em
uma passagem da obra, Domingos, de forma ameaadora, lembrar
a seu patro e tambm seu pai que um escravo pode tornar-se senhor e assim fazer arrependerem-se os que o humilharam.
18
Ribeiro e Oliveira (Editores), Teatro dio de raa e O cedro vermelho, 2000, p. XXIII.
288
20
Ribeiro e Oliveira (Editores), Teatro dio de raa e O cedro vermelho, 2000, p. XXI.
Gomes de Amorim, dio de raa, 1869, p. 290-291 e 292.
289
gem deve ter vindo por informao das pessoas com quem conviveu
fazendeiros, caixeiros, escravos e que temiam os cabanos. 21
Ao contrrio de Gomes de Amorim, o escritor francs Emile Carrey pouco conhecido e estudado no Brasil, mas, sua volumosa obra,
joga luzes significativas ao contexto amaznico do sculo XIX, em especial ao perodo marcado pela Cabanagem, movimento que ele explorou em vvidas cores naquela que parece ser a primeira tentativa
de ficcionalizao do movimento cabano, especialmente, tendo em
vista que a edio de suas obras antecede em alguns anos o teatro de
Gomes de Amorim.
Ainda h pouca informao sobre Emile Carrey e as condies
efetivas em que produziu suas obras. F. F. da Silva Vieira, o tradutor
e anotador da obra de Carrey em Portugal, contribuiu, inclusive, para
jogar dvidas sobre a presena do autor francs no Par, ao mencionar que Carrey, tentando desviar de si a responsabilidade pelos juzos
depreciativos a portugueses e brasileiros que pululam em sua abra,
teria argumentado que ela no era fruto de sua observao direta,
mas sim escripta sob as indicaes dum manusctipto, que lhe fra
dado por um seu compatriota a quem encontrara vivendo vida solitria nas visinhanas de Maraj.22
Contudo, pesquisas mais recentes tm ajudado a elucidar um
pouco mais a questo. Sabemos, por exemplo, que Emile Carrey foi
advogado e atuou ativamente na burocracia estatal francesa durante
a Segunda Repblica, antes de se envolver em misses diplomticas
que o lanaram a diversas viagens pela Amrica do Sul, incluindo-se
ai, sua passagem por Belm, em companhia de um irmo. Em seu retorno terra natal, Carrey dedicou-se ao mundo das letras e poltica, tornando-se deputado no parlamento francs durante a Terceira
Repblica.23
Ribeiro e Oliveira (Editores), Teatro dio de raa e O cedro vermelho, 2000, p. XVIII.
Carrey, Os mulatos de Maraj, 1862, p. 40.
23
Apresentao de Muniz Sodr no Portal Digital A Frana no Brasil, 2013.
290
21
22
24
25
Lucas, Lemigration franaise dans la ttralogie romanesque dEmile Carrey, 2011, p. 46.
Lucas, Lemigration franaise dans la ttralogie romanesque dEmile Carrey, 2011, p. 45.
291
Testemunhos involuntrios de uma poca, os romances, submetidos ao crivo do mtodo histrico, podem permitir ao historiador
construir a verdade a partir das fices (fables), a histria verdadeira
a partir da falsa. 31 com essa perspectiva que retornamos aos romances de Emile Carrey. Tendo feito da ao portuguesa no Par um
dos alvos prediletos de sua narrativa, era de esperar que o autor francs fosse recepcionado em Portugal e no Brasil com alguma oposio e esta, de fato, se fez de imediato, entranhando-se incisivamente
no prprio texto da edio portuguesa, a partir de uma sequencia de
notas em que o tradutor Silva Vieira rebatia, por vezes com profunda ironia e sem polidez, as frequentes passagens em que Portugal e
os portugueses eram estigmatizados pelo autor. Dessa forma, a obra
de Carrey apresentada aos leitores da lngua portuguesa metamorfoseia-se, num dilogo improvvel e inusitado em que autor e tradutor
findam plasmados, como que construindo uma nova narrativa. Penso
que em poucos casos na histria, a mxima tradutor/traidor fez tanto sentido.
30
31
herclea, e dedicado a seu amo, como um co de fila. Nem a fortuna seria capaz de redimir o brasileiro, mortalmente condenado pela
impureza do sangue. Assim ocorre a um dos personagens da trama, a
quem o autor chama de um branco-mulato de terceiro sangue, que
era doutor, ou ainda, mais simplesmente, de mal-branqueado. O
doutor, diz Carrey,
como muitos dos seus compatriotas, detestava os estrangeiros... escudando-se, sem cessar,
num patriotismo mesquinho e estupido. Tinha as
piores qualidades; era vido, sensual, cruel por
instinto e por inveja; ardente no mal como outros o so no bem.33
Silva Vieira, que desde logo via nos livros de Emile Carrey o castigo do Brasil, mais uma vez sai em defesa dos habitantes da ex-colnia, argumentando ser o doutor mal-branqueado um tipo
em que o autor inoculou todos os vcios, todos os
ridculos, e todos os crimes, que envergonham
e desonram a humanidade. V-se claramente...
que o autor se deixou cegar por um dio particular contra os brasileiros..., apresentando-os
como solidrios em muitas das ms qualidades
deste doutor, e descrevendo cenas em que a inverosimilhana palpvel a cada momento.34
Outro dado relevante est no fato de que nas narrativas de Carrey, os personagens luso-brasileiros esto, quase sempre, postos em
relao figura emblemtica do francs Monford, cuja retido de costumes, cordialidade, sabedoria e polidez, amplificam as distines e a
depreciao dos valores societrios e culturais vigentes na colnia: se
33
34
o doutor mal-branqueado espezinha seus escravos, fazendo-os mergulhar no mar, exausto, para reaver um arcabuz perdido; Monfort,
irrompendo em meio multido escandalizada, intervm na cena, cobre com seus recursos o valor do arcabuz, fazendo cessar, dessa forma, o martrio dos negros; se, todavia, o vigrio do pequeno lugarejo
que pretende vender uma de suas duas filhas, novamente Monfort
quem intervm, comprando a jovem para a libertar em seguida.35
Achegas parte preciso reconhecer que a obra literria de
Emile Carrey e as representaes sobre a sociedade do Gro-Par,
que ela encerra, nos permitem repensar, enquanto historiadores,
nossas prprias representaes. O olhar de Carrey traz um diferencial
nada desprezvel, na medida em que aborda os eventos a partir de
um plano argumentativo menos compromissado com as estruturas
de poder vigentes no Brasil e no Par, o que nem de longe significa o
reconhecimento de uma postura de neutralidade por parte do autor.
Carrey expressa ressentimentos com o fracasso francs na disputa de espaos coloniais na Amrica do Sul e seu desprezo aos portugueses igualmente compreensvel no mbito das contradies
da poltica internacional metropolitana. Remy Lucas sustenta que o
autor, como agente colonial que era, expressava o desejo da adoo
de uma poltica colonial agressiva na bacia do Oiapoque, que Carrey
chamava de nosso territrio injustamente contestado, enquanto lamentava que a Frana tivesse se esquecido de seu antigo domnio.36
De resto, ressente-se das aes do colonialismo portugus durante
a conquista de Caiena, fato que tambm aparece espelhado em sua
obra literria.
No quebra-cabea colonialista traado por Emile Carrey, os n35
36
Carrey, Os mulatos de Maraj, 1862, p. 166-167; Carrey, Os revoltosos do Par, 1862, p. 205.
Lucas, Lemigration franaise dans la ttralogie romanesque dEmile Carrey, 2011, p. 54.
296
cujas margens tm as suas habitaes, vem secretamente cidade e vendem seus gneros aos
lojistas, que lhes do em paga, plvora, chumbo,
fazendas, cachaa, etc. Os portugueses exploram-nos tanto no que lhes compram como nos
gneros que lhes do em troca. Os negros que
tem a maior pressa de se retirarem, aceitam
tudo e voltam para o seu asilo. 40
exatamente pela sua qualidade de arguto observador da realidade Amaznica e pela fora das crticas que seus escritos encerram
que consideramos descabido e despropositado o silncio que ainda
paira sobre sua obra. Retomar Emile Carrey e Gomes de Amorim,
explorando as ricas representaes produzidas pela literatura sobre
eventos histricos reais, abrir a possibilidade para ver a Histria da
Amaznia por um prisma inusitado e inovador.
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Apresentao de Muniz Sodr no Portal Digital A Frana no Brasil.
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FERREIRA, A. C. Literatura: a fonte fecunda, In: PINSKY, C. B.; LUCA,
40
298
Entrada
oy voy a bailar en tres figuras. Voy a comenzar con la figura del ensayo, as me enfrento a la tensin de la tragedia.
Voy a continuar con la figura del discurso acadmico, as respeto la
condicin de la epopeya. Voy a terminar con la figura del relato, as
juego con el rigor del drama. Sobre todo, claro, porque as bailo por
interpsita escritura.
Interculturalidades
En cualquier caso en que el despojo de la autodeterminacin es
condicin de la vida cotidiana en una comunidad, quin podra quedarse sentado y documentar el desastre? Es que acaso la condicin
300
301
Interculturalidad epistemolgica
Es inevitable vernos cada da. Pero no es sencillo. Por una parte, el horizonte de visibilidad social determina los lmites de la mirada colectiva; por otra, nos exige trascenderlo. Por eso, an siendo
concientes de la inalcanzabilidad de las estrellas, podemos construir
constelaciones para apoderarnos de su distancia. As, al modo de la
paradoja, diseamos nuestros mapas de los sistemas de representacin. Y entonces viajamos munidos de una brjula que nos remite a la
tierra estable de nuestra memoria pero que tambin nos da alas para
lanzarnos al abismo.
La interculturalidad epistemolgica es el mapa del conocimiento de nosotros mismos, de nuestros modos de representacin. En ese
mapa nos imaginamos; con ese mapa traducimos nuestra localidad a
la globalidad, incorporamos la globalidad a nuestra localidad. Pero es
el mapa el que traduce, nuestro mapa, nuestro instrumento de conocimiento. Porque este mapa no ordena, este mapa emociona al territorio.
302
Interculturalidad poltica
Cada maana, al despertar, luchamos con(tra) las noches de
la pasin. Cada noche, al dormir, peleamos con(tra) los amaneceres
de la razn. No podemos sino luchar: para explicar nuestra cadena
de argumentos, nuestro camino de consistencias, y para interpretar
nuestra encrucijada de intuiciones, nuestro sendero de locuras. As, al
modo de la paradoja, luchamos por el poder hermenutico. Una lucha
de fuerzas distintas de la cual fluye la regeneracin de los sentidos sociales. Y entonces nos miramos diferentes: a ratos contrarios, a ratos
complementarios, a ratos antagnicos, a ratos solidarios. Pero siempre renovando los sentidos.
La interculturalidad poltica es la lucha por el poder de la palabra,
por el poder de dotarnos de sentido para combatir la sordera poltica o
la pereza social. Esas pestes de arrogancia monolgica. Con ese poder
recreamos nuestro imaginario; con el poder de nuestra palabra, paso
a paso, nos movemos entre la noche y el da, conservamos la explicacin y potenciamos la interpretacin de la comunidad de sentidos
que nos prea. Nuestra palabra, nuestra accin cotidiana, accin que
trabaja con valores comprometidos, no con operaciones neutrales.
Interculturalidad existencial
La condicin colonial. Cmo a ratos nos arranca aullidos de venganza. Cmo a momentos nos postra en gestos de perdn. Cmo nos
convierte en todo lo que odiamos. Cmo nos seduce hasta desearnos
otros, los otros que despreciamos. Cada da, ante el espejo, del rictus
a la sonrisa. S. La condicin colonial. Cmo nos hace invulnerables
al lamento; no andamos lloriqueando en cada esquina o acusando al
empedrado; nos lamemos, silenciosos y juntos, las heridas. Cmo nos
hace invulnerables ante el hambre; no mendigamos cooperaciones ni
payaseamos exportaciones; nos alimentamos, altivos y solidarios, de
303
la basura de los colonizadores, de la memoria utpica de nuestra historia. As, al modo de la paradoja, construimos nuestra libertad desde
la entraa misma de la condicin colonial.
La interculturalidad existencial nos dota de la sensibilidad para
conmovernos ante la experiencia de los hechos comunitarios y nos
provee de las armas para combatir la ceguera social ante la alteridad.
Podemos, entonces, comprender la densidad y la relevancia de lo local, particular y variable. Nunca ms un rostro fijo, una huella dactilar que nos ancle a la costumbre colonial. Podemos disearnos una
identidad que es un carnaval de mscaras: un rostro distinto para cada
necesidad, una cara nueva para cada oportunidad.
Interculturalidad esttica
Tejemos los monstruos que nos acechan a cada paso y las alegras ms remotas. Pintamos los colores ms amargos y las lneas ms
inverosmiles. Bailamos a pasos de cadena y a vuelos de pjaro. Escribimos cien aos de soledad y la oveja negra y dems fbulas. Tocamos
guitarras desgarradas y percusiones apasionadas. Nos hundimos en
el barro y nos celebramos en las gredas. Cada da, a plan de ficciones,
nos liberamos del caos colonial. As, al modo de la paradoja, trabajamos la po(tica) de los imaginarios. Las armas de las artes.
tanto, el enamoramiento entre Estado y sociedad hace de la educacin nuestro patrimonio compartido. Esa pasin que nos dota de
autodeterminacin para que todos forjemos nuestro propio destino
colectivo.
La interculturalidad educativa nos constituye como saberes que
dialogan, como mundos que se traducen, como visiones que debaten.
Para que tengamos la certeza de que el poder que les heredamos a
nuestros hijos tiene lmites ticos. Para que tengamos la confianza de
que la palabra que les dejamos sea una fiel compaera en su camino
de dudas y en su viaje con preguntas nuevas. Para que sepamos que
la escuela es un lugar donde caminamos con ellos como una sombra
amable en la que pueden acurrucarse tibiamente. Porque as podremos recorrer la distancia que nos separa de lo mejor de nosotros mismos.
La interculturalidad esttica produce la diferencia como desarrollo sostenible de la diversidad porque la alteridad, como todo lo dems, ha cado bajo la ley de la oferta y la demanda, se ha convertido
en un producto escaso. Cada da adocenan nuestras ficciones. Pero
cada da ficcionalizamos la costumbre. Porque la ficcin es nuestro
pan de cada da.
Interculturalidad educativa
Es inevitable que la semilla de cualquier proyecto de democracia radical y refundacin nacional nazca de los sueos del pueblo. Por
304
305
po, en cada gesto de soslayo, para renovar los sentidos de sus mil y
un pasos que l quiere nicos, reiterados, homogneos. Al final, ella,
seduce al conquistador, lo hace celebrar la permanente dilacin de su
fracaso.
Parecer conquistada tiene, claro, sus ventajas. Tambin, sin embargo, su impotencia. Parecer requiere dejar de ser. Ella, entonces,
no tiene identidad; su paso depende de la iniciativa del otro, de su
potencia. Ella, al final, aunque seduce al otro, baila noms al ritmo de
la conquista.
Los caporales no son la saya. Esa extraordinaria renovacin formal ha omitido los cuerpos desgarrados de los que ha nacido y que
todava nos son contemporneos. Los caporales no son sino un recorrido extico por los museos del genocidio. Un recorrido que baila
sobre los cadveres de sus enemigos muertos para exorcizar nuestra
propia culpa de ayer, nuestra propia ceguera de hoy.
Los caporales. Qu extraordinaria prueba de que tambin la cultura chola puede degradarse a ser slo el adorno de la diferencia.
307
tacin secular del conflicto, de eso que ahora los eclogos, como si
hubiesen descubierto la plvora, llaman biodiversidad. Ellos, los indios, lo supieron siempre. No podan conocerse de otra manera que
no sea luchando. Y entonces luchaban hasta bailando (pero, es que
acaso todo baile no es lucha?)
La danza, an despojada del ritual, conserva esa extraordinaria
densidad local que slo es posible sentir en las comunidades que mantienen preada su historia de memoria cotidiana. La presencia de una
identidad bailada que se resiste al desarraigo de esa memoria. Una
identidad local que, aun comprendiendo todas las sangres, slo baila
la suya.
Aqu no hay exotismo, aqu el tinku nos ha robado el nima y nosotros, los indios urbanos, los cholos, tenemos que bailar desesperados para devolvernos nuestras races, para seguir mirando el horizonte. Peleamos contra el olvido, bailamos contra el olvido, con gritos,
con gemidos, con voluntades que sudan diez kilmetros de persistencia. Porque el tinku es esa guerra interminable de la memoria por recordarse.
Cmo celebramos el conflicto, ese ritual inimaginable para nosotros los modernos que slo deseamos la suave armona neutral de
la msica de hotel. Cmo bailamos la lucha, ese gesto imposible para
nosotros que slo negociamos los consensos gentiles de la buena
educacin. Cmo rememoramos la batalla de la vida con la muerte,
para recibirlas con los brazos abiertos de alegra.
El tinku. El momento de la pasin de la diferencia consigo misma.
309
pero sobre todo estn seguros que las rompen. Que su ostentacin
econmica rompe la pobreza; que su exhibicin social rompe la discriminacin; que su cuerpo cholo rompe un disfraz de lacayo y un rostro
moreno. Que fueron indios y que ahora son seores. Por eso las matracas no se detienen, porque si dejan de bailar, los seores palidecen
de memoria y tiemblan ante el retorno colonial.
Cree Canetti que slo inmerso en la masa puede el humano redimirse de su temor a tocarse, que se trata de la nica situacin en
la que este temor se convierte en su contrario. Pero esta no es una
masa cualquiera que se toca slo por coincidencia afectiva; esta es
una masa de colonizados que bailan la conquista y bailando la subvierten. Esta es una masa transformada en una organizacin jerarquizada
en la que cada cual, siendo masa, ocupa exactamente su lugar. Como
quien no hace nada, bailan como si fueran lacayos africanos del siglo
XVIII vestidos como tales, se enmascaran como si estuvieran pisando
coca desde el siglo XVII, pero sonren vanidosos porque saben cunto
valen. Saben su prestigio comunitario, exhiben su paso seorial.
Nosotros los cholos de la morenada no contamos nada. No somos ni diablos ni tinkus ni caporales. No somos cholos ilustrados con
argumentos ticos o polticos o sociales. Nosotros somos cholos de
puras formas pesadas. Esttica de migrantes que conquistan la ciudad, que se quedan en los bordes informales para que nadie indague
sus hbitos contrabandistas, que invaden los centros para que nadie
ignore el lugar de su poder. Somos los morenos encubiertos, jams
descubiertos.
La morenada baila la colonia. Para que ningn cholo olvide la
conquista. Para que todos los cholos celebren el poder. Para que todos ocupemos nuestro lugar. No el del otro. Para que la diferencia fluya, fluya lenta pero segura.
313
Salida
La interculturalidad es un proyecto de reconstitucin de los sentidos sociales como reforma intelectual de la nacin: condicin de la
soberana nacional como tica de la igualdad.
La interculturalidad es un ejercicio de democracia participativa
a travs de los consejos ciudadanos: condicin de la profundizacin
de la democracia como tica de la equidad.
La interculturalidad es un proyecto de poder postcolonial por
medio de la construccin permanente de una identidad social por inclusin tensionada de las diferencias, ya no por exclusin de la diversidad, ya no por armonizacin del conflicto.
La interculturalidad es una estetizacin de la tica colectiva porque intensifica la preservacin cultural de la tensin entre las diferencias.
ca) awka, la po(tica) del conflicto, del agonismo, de las formas que
no se resuelven, que no armonizan la diferencia, de la esttica en
metamorfosis siempre de aquellos lenguajes que traducen para preservar la diferencia.
Porque nuestra interculturalidad tiene siempre muchas voces
narrativas, su narrador se ha construido, cuando menos, polifnico;
porque nuestra interculturalidad inventa mundos postulando imaginarios, la narracin asume siempre la misin de contar las memorias
de ayer y los sueos de maana desde la perspectiva del presente;
aquellas narrativas que preservan la po(tica) taypi, la po(tica) de la
conjuncin, de la mediacin, aquellas narrativas que construyen los
imaginarios nicos siempre- que se sitan en el medio y hacen posible el desarrollo sostenible de la reciprocidad.
Nuestra interculturalidad es, por fin, la po(tica) de la diferencia.
De aquella diferencia incansable que baila sus metamorfosis sin fin.
315
318
La lengua en la guerra
10
13
Jonathan Shay, Achilles in Vietnam: Combat trauma and the undoing of character, New York:
Atheneum,1994. Ver tambin su Odysseus in America: Combat trauma and the trials of homecoming, NY:
Scribener, 2004.
14
Scarry, The body in pain, 1985, p. 137.
321
15
16
19
22
La guerra translingustica
El Phraselator introduce otra dimensin al tema que hasta el
momento, he pasado por alto: la dimensin multilinge. El escenario
filmado en Afganistn es un escenario translingstico. Los insultos
compuestos por el Sargento Baker fueron enunciados en la lengua
local por un intrprete. Tambin es un escenario transcultural: la
bueno puede descansar.
30
Es difcil no pensar en el Phraselator cuando alguien le pregunta al Presidente cmo piensa relacionarse
con los otros pases y l responde Me dirijo a los otros y les explico por qu tomo las decisiones que
tomo, The Economist, 1/15/05.
327
31
Conclusin
Referncias
BOK, S. Lying: moral choice in public and private life. New York: Vintage,
1978.
LECERCLE, J. J.; RILEY, D. The force of language. London/ New York:
Palgrave Macmillan 2004.
LYNCH, M. J. True to life: why truth matters. Cambridge: MIT 2004.
MARVIN, C.; INGLE, D. W. Blood sacrifice and the nation: totem rituals
an the American flag, Cambridge: UP, 1999.
MATSUDA et al. Words that Wound: critical race theory, assaultive
speech and the First Amendment: Boulder CO, Westview 1995.
ROSENCOF, M.; HUIDBRO, E. F. Memorias del calabozo. Montevideo:
tomar fotografas sin autorizacin, de pasar informacin confidencial al enemigo y de distribuir baclava
ilegalmente a los detenidos. Durante los dos aos siguientes, casi todos los cargos contra estos hombres
fueron retirados, pero lo que me interesa reflexionar aqu es esto: fueran o no culpables, las habilidades
por las cuales los contrataron y por las que los valoraba el ejrcito, eran precisamente las que los hacan
sospechosos y peligrosos. Y esto era inevitable dentro del contexto de la guerra. A pesar del hecho de
que todos haban recibido las autorizaciones de seguridad del ms alto nivel, para el Capitn Yee y para
los dos traductores la posicin de intermediarios nunca estuvo a ms de un paso de distancia del encierro
en solitario y encadenado. Ver el libro de Yee, For God and country: Faith and patriotism under fire, con
Aime Molloy, NY: Public Affairs 2005.
332
333
Consideraes iniciais
334
10
13
Jonas Polino Gavio, in Siqueira Jr. 2007, p. 284 apud Amado 2012, p. 391
Pimentel da Silva, Fronteiras etnoculturais, 2008, p. 110.
342
O estudo/ensino de L1 para promover o cristianismo, fazendo com que os ndios perdessem as suas
crenas tradicionais;
II.
Pela proposta de ensino do SIL ser integracionista homogeneizadora lingustica, resultando em homogeneizao cultural e, portanto, no muito diferente das polticas de educao dos europeus no
incio da colonizao brasileira, atualmente se discutem modelos de
educao bilngue que entendam as duas lnguas L1 e L2 dentro de
um escopo cultural de inter-relao entre as partes envolvidas e no
de sobreposio de uma lngua sobre a outra. Essa postura em torno
ao ensino de lnguas em comunidades indgenas foi influenciada pela
Constituio de 1988 que garantiu, legalmente, aos ndios o direito a
uma educao escolar que atendesse s suas necessidades lingusticas e no lingusticas especficas e que fosse diferenciada de modelos
educacionais no-indgenas. Esse tipo de proposta educacional conhecida como educao bilngue intercultural.
343
Pimentel da Silva discorre sobre a trajetria da educao bilngue no Brasil, influenciada pelo ensino de lngua em contexto colonial,e aps a insero de membros do SIL nas aldeias indgenas, alm
das propostas de educao bilngue influenciadas pela Constituio
de 1988:
1) alfabetizao em L1 e LP (Lngua Portuguesa)
ao mesmo tempo: proposta que se baseia, praticamente, na traduo de uma lngua para a outra. A metodologia usada a de traduzir palavras
e frases de L1 para LP;2) uso de L1 como apoio
para o ensino de LP: ensino bilngue de subalternidade de L1; 3) uso de LP como um recurso
didtico para o ensino de L1, quando as crianas
so bilngues receptivas, ou seja, entendem L1,
mas no a falam: nesse caso, a alternncia de
lngua um recurso interessante como poltica
de revitalizao de L1 e estratgia facilitadora
na aquisio de L1; 4) LP como primeira lngua
e L1 como segunda lngua: empregada em situaes em que somente os ancios falam L1 e os
jovens, no. Essa proposta representa uma tentativa contra o desaparecimento total da lngua
indgena; 5) bilngue pluralista e de manuteno
de L1: caso em que L1 e LP so usadas e ensinadas em toda a escolarizao; 6) programas de
revitalizao de L1 fora e dentro da escola: nesse
caso, a poltica trabalhar construindo e fortalecendo atitudes de valorizao da lngua e da
cultura nativas, na escola e nos espaos ligados
ao fazer cultural dos povos indgenas; 7) LP como
primeira lngua e muitas outras lnguas ensinadas como segunda lnguas: tentativa de comunidades multilngues que esto com suas lnguas
344
346
Nesse nterim, na perspectiva intercultural, h o reconhecimento das marcas identitrias dos grupos, sobretudo, dos conflitos
culturais existentes entre eles para que os participantes do processo
educacional compreendam a existncia de assimetrias polticas, econmicas e sociais e, dessa forma, possam criar aes para um possvel
processo de libertao.
Os profissionais adeptos da Educao Bilngue Intercultural propem, dentre outras alternativas de ensino bilngue, o ensino de lnguas em aldeias indgenas numa perspectiva pluralstica que significa
o ensino e o uso de L1 e L2 (Lngua Portuguesa) em toda a fase de
escolarizao em uma perspectiva intercultural.
Obviamente que cada programa de educao bilngue deve le19
var em considerao as caractersticas sociolingusticas de cada comunidade lingustica, pois elas, embora tenham muitas similaridades,
apresentam caractersticas de uso da L1 e da L2 de forma distinta.
Levando em considerao os apontamentos apresentados sobre questes culturais, podemos no perguntar: at que ponto a Lingustica, particularmente a Descritiva, pode auxiliar programas de
Educao Bilngue Intercultural e de (re)vitalizao lingustica em aldeias indgenas para se desenvolver uma proposta educacional dialgica, portanto comprometida em desenvolver a emancipao e a
libertao?
Importncia da Lingustica para programas de (re)vitalizao de
lnguas e educao bilngue intercultural
Vimos que a Lingustica era usada pelos missionrios do SIL para
facilitar o trabalho teolgico e, consequentemente, no tinham objetivo para contribuir com o conhecimento das lnguas, apesar de o terem feito. De qualquer forma, notria a contribuio da Lingustica
para o ensino de lnguas, mesmo que seja com a finalidade de acabar
com crenas consideradas, pelos missionrios, como erradas.20
Para Rodrigues uma das principais funes da lingustica nos
sculos XX e XXI descrever as poucas lnguas indgenas efetivamente faladas no Brasil.21 Crystal prope uma funo social lingustica
que o estudo de lnguas, em uma perspectiva sociolingustica, por
esta ser a rea da Lingustica que une a relao entre as estruturas que
compem as lnguas e os componentes sociais, histricos, polticos,
identitrios, etc, que cercam os falantes.22 Alm disso, o autor discute
que se faz necessrio construir modelos tericos que se ocupem das
20
O trabalho dos missionrios do SIL no se diferenciava, em diversas prticas, dos padres jesutas que
vinham junto s embarcaes europeias para catequisar os silvcolas.
21
Rodrigues, Tarefas da lingustica no Brasil, 1966, p. 4.
22
Crystal, Language death, 2000.
349
Consideraes Finais
Ao longo desse artigo, algumas questes foram apontadas para
fazer, ou pelo menos, promover uma reflexo em torno de propostas
de educao bilngue e, mais especificamente, de propostas de educao bilngue intercultural paraminimizar os desastres ocasionados
por morte de lnguas minoritrias. Vimos que, historicamente, esses
programas foram se desenvolvendo medida que se tinham maior
conhecimento sobre as lnguas eprogramas/propostas de educao
se tornavam mais progressistas, emancipadoras e, portanto, crticas.
No que concerne aos programas de ensino de lnguas discutidas, considerou-se que a Lingustica, enquanto cincia responsvel por, dentre outras aes, descrever/analisar os componentes mais estruturais
da lngua, contribui significativamente a esses programas. Podemos
considerar, portanto, que as diversas cincias preocupadas em descrever/analisar elementos naturais ou sociais do ecossistema, dentre
elas a Lingustica, podem dar subsdios para o processo de ensino
-aprendizagem de lnguas em comunidades indgenas, promovendo
a (re)vitalizao da lngua e o acesso dos indgenas nas diversas situaes sociais exigidas pela sociedade brasileira.
Referncias
AMADO, R. S. Portugus, segunda lngua: perspectivas para a pesquisa
lingustica e o ensino pluri-e intercultural. Papia, 2012, v. 22, pp. 385398.
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GRENOBLE, L. A.; WHALEY, L. J. (Eds.). Endangered languages: language loss and community response. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HINTON, L. Language revitalization: an overview. In: HINTON, L.;
HALE, K. (eds.). The green book of language revitalization. New York:
Academic Press, 2001.
PIMENTEL DA SILVA, M. S. As lnguas indgenas na escola: da desvalorizao revitalizao. Signtica, jul./dez. 2006, v. 18, n. 2, pp. 381395.
PIMENTEL DA SILVA, M. S. Fronteiras etnoculturais: educao bilngue e intercultural e suas implicaes. In.: ROCHA, L. M. e GRANT, S.
Fronteiras e espaos interculturais: transnacionalidade, etnicidade e
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RODRIGUES, A. D. Lnguas Brasileiras: para o conhecimento das lnguas indgenas. So Paulo: Edies Loyola, 1994.
STOLL Apud BARROS, M. C. D. M. A misso Summer Institute of
Linguistics e o indigenismo latino-americano: histria de uma aliana (dcadas de 1930 a 1970), In: Revista de Antropologia. So Paulo:
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WALSH, C. Interculturalidad em La educacin. Programa FORTE-PE.
Ministrio de Educacin. Lima. 2001, p.3-11.
352
353
Sobre os autores
Boubacar Barry - Professor da Universidade Cheikh Anta Diop Senegal, pertencente segunda gerao da Escola de Dakar, destacado estudioso da frica contempornea e um dos criadores da primeira
Associao Panafricana de historiadores.
Durval Muniz de Albuquerque Jnior - Professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e colaborador da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experincia na rea de histria,
com nfase em teoria e filosofia da histria, atuando principalmente
nos seguintes temas: gnero, nordeste, masculinidade, identidade,
cultura, biografia histrica e produo de subjetividade.
Eurenice Oliveira de Lima - Professora Associada da Universidade Federal do Acre. Tem experincia na rea de sociologia, com nfase em sociologia do trabalho, atuando principalmente nos seguintes
temas: trabalho, precarizao e questo social na Amaznia; toyotismo, indstria automobilstica e polticas pblicas para o trabalho.
membro do Grupo de Pesquisa Estudos sobre o Mundo do Trabalho
e suas Metamorfoses, certificado pelo CNPq/UNICAMP, e membro e
lder do Grupo de Pesquisa Mundos do Trabalho na Amaznia, certificado pelo CNPq/UFAC.
Gerson Rodrigues de Albuquerque - Professor Associado, Centro de Educao, Letras e Artes, da Universidade Federal do Acre, com
atuao nas reas de Histria, Letras e Artes. lder do Grupo de Pesquisa Histria e Cultura, Linguagem, Identidade e Memria e um dos
coordenadores do Ncleo de Estudos da Culturas Amaznias e Pan
-Amaznicas (NEPAN).
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Shelton Lima de Souza - Professor Assistente, Centro de Educao, Letras e Artes, da Universidade Federal do Acre, com atuao
nas reas de teoria e anlise lingustica (fontica/fonologia e morfossintaxe), lnguas indgenas (Xerente-J e Jaminawa-Pano), ensino de
lngua portuguesa como L1/L2, gneros textuais e anlise do discurso
de/sobre homossexuais nas mdias eletrnicas.
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