A Chama de Uma Vela - Bachelard, Gaston
A Chama de Uma Vela - Bachelard, Gaston
A Chama de Uma Vela - Bachelard, Gaston
O DIREITO DE
SONHAR
Gaston Bachelard
Copyright
d'une
chandelle
1989
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
pelo Reembolso
Postal.
A H E N R I BOSCO
NDICE
P R L O G O
CAPTULO L
CAPTULO li
C A P T U L O III
CAPTULO iv
CAPTULO V
EPLOGO
Prlogo
Neste pequeno livro, de pura fantasia, sem a sobrecarga de saber algum, sem nos aprisionarmos na unidade de um mtodo de investigao, gostaramos de,
numa seqncia de curtos captulos, dizer que a renovao da fantasia recebe um sonhador na contemplao de uma chama solitria. A chama, dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, um dos maiores operadores de imagens. Ela nos fora a imaginar.
Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe no
nada, comparado com o que se imagina. Ela traz consigo um valor seu, de metforas- e imagens, nos dom-
nios das mais diversas meditaes. Tomem-na como sujeito de um dos verbos que exprimem a vida e vero
que ela d a esses verbos um complemento de animao. O filsofo que corre atrs das generalizaes afirma, com dogmtica tranqilidade: " O que se chama
Vida na criao , em todas as formas e em todos os
seres, um mesmo e nico esprito, uma chama nica" 1 . Mas tal generalizao rpido demais alcana sua
meta. principalmente na multiplicidade e nos detalhes das imagens que devemos fazer sentir a funo de
operador da imaginao das chamas imaginadas. O verbo inflamar deve, ento, entrar para o vocabulrio do
psiclogo. Ele comanda todo um setor do mundo da
expresso. As imagens da linguagem inflamada inflamam o psiquismo, do um tom de excitao que a filosofia da potica necessita. As mais frias metforas
transformam-se realmente em imagens, atravs da chama, tomada como objeto de fantasia. Ainda que muitas vezes as metforas nada mais sejam do que transmutaes do pensamento numa vontade de dizer melhor, de dizer de maneira diferente, a imagem, a verdadeira imagem, quando vivida primeiro na imaginao, deixa o mundo real e passa para o mundo imaginado, imaginrio. Atravs da imagem imaginada conhecemos esta fantasia absoluta que a fantasia potica. Correlatamente, como tentamos provar em nosso
ltimo livro mas ser que um livro acaba alguma
vez de descrever toda convico de seu autor? , conhecemos nosso sonhador produtor de fantasias. Um
1. HFRDKR, citado por BGUIN. L'Ame romantique et le rve, Marseille, Cahiers
du Sud, tomo I, p. 113.
ser sonhador feliz de sonhar, ativo em sua fantasia, contm uma verdade do ser, um destino do ser humano.
Entre todas as imagens, as imagens da chama
das mais ingnuas s mais apuradas, das sensatas s
mais loucas contm um smbolo de poesia. Todo sonhador inflamado um poeta em potencial. Toda fantasia diante da chama uma fantasia admiradora. Todo sonhador inflamado est em estado de primeira fantasia. Esta primeira admirao est enraizada em nosso passado longnquo. Temos pela chama uma admirao natural, ouso mesmo dizer: uma admirao inala. A chama determina a acentuao do prazer de ver,
algo alm do sempre visto. Ela nos fora a olhar.
A chama nos leva a ver em primeira mo: temos
mil lembranas, sonhamos tudo atravs da personalidade de uma memria muito antiga e, no entanto, sonhamos como todo mundo, lembramo-nos como todo
mundo se lembra ento, seguindo uma das leis mais
constantes da fantasia diante da chama, o sonhador vive
em um passado que no mais unicamente seu, no passado dos primeiros fogos do mundo.
II
Assim, a contemplao da chama pereniza essa primeira fantasia. Ela nos distingue do mundo e amplia
o mundo do sonhador. A chama , em si mesma, uma
grande presena, mas, perto dela, sonha-se longe, longe
demais: "Perdemo-nos em fantasias." A chama est ali,
Limitando por ora nossas investigaes, mantendonos dentro da unidade de um s exemplo, esperamos
atingir uma esttica concreta, uma esttica que no seria trabalhada por polmicasvdc filsofos, que no seria racionalizada por idias gerais fceis. A chama, ela
sozinha, pode concretizar o ser de todas as suas imagens, o ser de todos os seus fantasmas.
O objeto uma chama! a ser investido pelas
imagens literrias to simples que esperamos poder
determinar a comunho das imaginaes. Com as imagens literrias da chama, o surrealismo tem alguma garantia de ter uma raiz de realidade! As imagens mais
fantsticas da chama convergem. Transformam-se, por
meio de notvel privilgio, em imagens verdadeiras.
O paradoxo de nossas investigaes sobre a imaginao literria: achar a realidade por meio da palavra, desenhar com palavras, tem, aqui, alguma chance
de ser dominado. As imagens faladas traduzem a extraordinria excitao que nossa imaginao recebe da
mais simples das chamas.
IV
Devemos ainda dar uma explicao sobre um outro paradoxo. De acordo com a vontade que temos de
viver as imagens literrias dando-lhes toda atualidade,
gica: o inconsciente tranqilo, sem pesadelos, em equilbrio com sua fantasia, exatamente o claro-escuro do
psiquismo, ou, melhor ainda, o psiquismo do claroescuro. Imagens da pequena luz nos ensinam a gostar
desse claro-escuro da viso ntima. O sonhador que
quer se conhecer como ser sonhante, longe das claridades do pensamento, tal sonhador, desde que goste
de sua fantasia, tentado a formular a esttica desse
claro-escuro psquico.
Um sonhador de lmpada (a leo) compreender
instintivamente que as imagens da pequena luz so lamparinas ntimas. Suas luzes plidas tornam-se invisveis
quando o pensamento trabalha, quando a conscincia
est bem clara. Mas quando o pensamento repousa, as
imagens vigiam.
A conscincia do claro-escuro da conscincia tem
uma tal presena uma presena duradoura que
o ser espera que desperte um despertar de ser. Jean
Wahl sabe disso. E o diz num s verso:
pequena luz, nascente, branda alvorada2
Jean
WAHI
33.
3. Ns que sublinhamos.
4. Consuelo, Michel LVY, 1861, tomo III, p. 264-5.
George Sand v o problema, coloca-o: como "descrever", no pintar, esse claro-escuro eis a o privilegio dos grandes artistas. Como exp-lo? Queremos
mesmo ir mais longe: esse claro-escuro, como inscrevlo no psiquismo, exatamente na fronteira de um psiquismo castanho escuro com um psiquismo castanho
mais claro?
Realmente, a est um problema que tem me atormentado durante os vinte anos que tenho escrito livros
sobre a Fantasia. No sei nem mesmo exprimi-lo de maneira melhor que George Sand em sua curta nota. Em
resumo, o claro-escuro do psiquismo a fantasia, uma
fantasia calma, calmante, que fiel a seu centro, iluminada nesse centro e no fechada sobre si mesma, mas
transbordando sempre um pouco, impregnando com
sua luz a penumbra. V-se claro em si mesmo e no entanto sonha-se. No se arrisca toda a luz, no somos
o brinquedo, a vtima desta quimera que cai com a noite, que nos entrega de ps e mos atados a esses espoliadores do psiquismo, a esses facnoras que freqentam essas florestas do sono noturno que so os pesadelos dramticos.
O aspecto potico de uma fantasia nos faz
conformarmo-nos com esse psiquismo dourado que
mantm a conscincia desperta. As fantasias diante da
vela se constituiro em quadros. A chama nos manter nessa conscincia da fantasia que nos mantm acordados. Dorme-se diante do fogo. No se dorme diante
da chama de uma vela.
Em livro recente tentamos estabelecer uma diferena radical entre a fantasia e o sonho noturno. No
sonho noturno reina a claridade fantstica. Tudo cm
falsa luz. Muitas vezes v-se claro demais a. Os prprios mistrios so delineados, desenhados em traos
fortes. As cenas so to ntidas que o sonho noturno
faz facilmente literatura literatura, porm jamais poesia. Toda literatura do fantstico acha no sonho noturno
esquemas sobre os quais trabalha o animus do escritor. no animus que o psicanalista estuda as imagens
do sonho. Para ele, a imagem dupla, significa sempre outra coisa alm dela mesma. uma caricatura psquica. preciso esforar-se para achar o ser verdadeiro sob a caricatura. Esforar-se, pensar, sempre pensar. Para aproveitar as imagens, para gostar delas por
elas mesmas, seria necessrio, sem dvida, que alm
de saber tudo o psicanalista tivesse recebido uma educao potica. Logo, menos sonhos em animus e mais
fantasias em anima. Menos inteligncia em psicologia
intersubjetiva e mais sensibilidade em psicologia da intimidade.
Do ponto de vista que vamos adotar neste pequeno livro, as fantasias da intimidade fogem do drama.
O fantstico instrumentado pelos conceitos tirados da
experincia dos pesadelos no reter nossa ateno. Pelo
menos quando encontrarmos uma imagem de chama
singular demais para que possamos faz-la nossa, para que possamos coloc-la no claro-escuro de nossa fantasia pessoal, evitaremos os comentrios longos. Escrc-
VII
O primeiro captulo ainda um captulo de prembulo. Preciso dizer como resisti tentao de fazer, a
propsito das chamas, um livro de saber. Este livro teria sido longo, mas teria sido fcil. Teria bastado fazer
uma histria das teorias da luz. De sculo a sculo o
problema tem sido retomado. Mas, por maiores que tenham sido os espritos que trabalharam na fsica do fogo, no puderam jamais dar a seus trabalhos a objetividade de uma cincia. A histria da combusto permanece, at Lavoisier, uma histria de vises prcientficas. O exame de tais doutrinas depende de uma
psicanlise do conhecimento objetivo. Esta psicanlise deveria apagar as imagens para determinar uma organizao das idias.'
O segundo captulo uma contribuio a um estudo da solido, a uma ontologia do ser solitrio. A
chama isolada testemunha de uma solido, solido
essa que une a chama e o sonhador. Graas chama,
a solido do sonhador no mais a solido do vazio.
A solido, graas pequena luz, tornou-se concreta.
A chama ilustra a solido do sonhador, ilumina a fronte
pensativa. A vela o astro da pgina branca. Reuniremos alguns textos, tomados aos poetas, para comentar essa solido. Esses textos foram acolhidos por ns
pessoalmente de maneira to fcil que temos quase certeza que sero bem recebidos pelo leitor. Confessamos
assim uma convico de imagens. Acreditamos que a
chama de uma vela , para muitos sonhadores, uma
imagem da solido.
CAPTULO I
posie allemande,
de
la
t.Il.
Antigamente, em um passado esquecido pelos prprios sonhos, a chama de uma vela fazia os sbios pensarem; provocava mil devaneios no filsofo solitrio.
Sobre a mesa do filsofo, ao lado dos objetos prisioneiros em suas formas, ao lado dos livros que instruam
lentamente, a chama da vela chamava pensamentos sem
medida, suscitava imagens sem limite. A chama era, ento, para um sonhador de mundos, um fenmeno do
mundo. Estudava-se o sistema do mundo nos grandes
livros, e eis que uma simples chama escrnio do
saber! vem colocar diretamente seu prprio enigma.
O mundo no est vivo, numa chama? A chama no
tem uma vida? No ela o smbolo visvel do interior
de um ser, o smbolo de um poder secreto? Esta chama no tem todas as contradies internas que do dinamismo a uma metafsica elementar? Por que procurar dialticas de idias quando se tem, no corao de
um fenmeno simples, dialticas de fatos, dialticas de
seres? A chama um ser sem massa e, no entanto,
um ser forte.
Qual campo de metforas precisaramos examinar
se quisssemos, num desdobramento de imagens que
unissem a vida e a chama, escrever uma "psicologia"
das chamas ao mesmo tempo que uma "fsica" dos fogos da vida! Metforas? Nesse tempo de longnquo saber, onde a chama fazia os sbios pensarem, as metforas eram o pensamento.
II
Mas se o saber dos velhos livros morreu, o interesse da fantasia continua. Tentaremos, neste pequeno
livro, colocar todos os nossos documentos, quer venham de filsofos ou de poetas, em primeira fantasia.
Tudo nosso, tudo para ns, quando reencontramos
em nossos devaneios ou na comunicao dos devaneios
dos outros as razes da simplicidade. Diante de uma chama nos comunicamos moralmente com o mundo. Em
uma simples viglia, a chama da vela , desde ento,
um modelo de vida tranqila e delicada. Sem dvida,
o menor sopro a atrapalha, assim como um pensamento
estranho na meditao de um filsofo. Mas quando vem
realmente o reinado da grande solido, quando soa realmente a hora da tranqilidade, ento a mesma paz est no corao do sonhador e no da chama, ento a chama mantm sua forma e corre, direta, como um pensamento firme, a seu destino de verticalidade.
Assim, nos tempos em que se sonhava pensando,
em que se pensava sonhando, a chama da vela podia
ser um sensvel manmetro da tranqilidade da alma,
uma medida da calma fina, de uma calma que desce
at os detalhes da vida de uma calma que d uma
graa de continuidade durao que segue o curso de
uma fantasia pacfica.
Quer ficar calmo? Respire suavemente diante da
chama leve que faz sossegadamente seu trabalho de luz.
III
Logo, pode-se fazer de um saber muito antigo fantasias vivas. No entanto no procuraremos nossos do-
cumentos nos antigos pergaminhos. Gostaramos, muito ao contrrio, de devolver a todas as imagens que conservaremos sua densidade onrica, uma bruma de impreciso para que possamos faz-las entrar em nossa
prpria fantasia. Pode-se comunicar imagens singulares pela fantasia pura. A inteligncia inepta quando
preciso analisar fantasias de ignorantes. Apenas em
algumas pginas deste pequeno ensaio evocaremos textos onde as imagens familiares so ampliadas ao ponto de visarem dizer os segredos do mundo. Com que
facilidade o sonhador do mundo passa de sua pequenina luz s grandes luminrias do ccu! Quando somos
apanhados, em nossas leituras, por tais ampliaes, podemos nos entusiasmar. Mas no podemos mais sistematizar nossos entusiasmos. Em todas as nossas investigaes s conservaremos jatos de imagem.
Quando a imagem particular assume um valor csmico, produz o efeito de um pensamento vertiginoso.
Uma tal imagem-pensamento, um tal pensamentoimagem no tem necessidade de contexto. A chama vista por um vidente uma realidade fantasmagrica que
pede uma declarao da palavra. Daremos, a seguir,
vrios exemplos desses pensamentos-imagens que se
enunciam numa frase brilhante. s vezes tais imagenspensamentos-frases colorem subitamente uma prosa
tranqila. Joubert, o razovel Joubert, escreveu: "A
chama um fogo mido." 1 Daremos a seguir algumas
variaes desse tema: unio da chama com o riacho.
1. JOUBERT. Penses, 8." ed.. 1 8 6 2 , p. 1 6 3 . Os primeiros fogareiros eram chamados, s vezes, de "fontes de fogo". Cf. Edouard FOIICAUD. Ijes Ariisans Mustres,
p. 263, Paris, 1841.
Neste captulo de prembulos, indicaremos essas variaes apenas para ilustrar, de imediato, esse dogmatismo de uma fantasia que usa toda sua glria para provocar um saber adormecido. Apenas uma contradio
lhe basta para atormentar a natureza e liberar o sonhador da banalidade dos julgamentos sobre os fenmenos familiares.
Ento, tambm o leitor dos Pensamentos de Joubert se compraz em imaginar. V essa chama mida,
esse lquido ardente, escorrer para o alto, para o cu,
como um riacho vertical.
Deveremos notar de passagem uma nuance que
pertence propriamente filosofia da imaginao literria. Uma imagem-pensamcnto-frase como aquela de
Joubert uma proeza de expresso. As palavras vo
alm do pensamento. E a fantasia que fala , por sua
vez, ultrapassada pela fantasia que escreve. Essa fantasia de um "fogo mido" ningum ousaria diz-la,
mas escreveram-na. A chama foi uma tentao do escritor. Joubert no resistiu a ela. preciso que as pessoas racionais perdoem queles que escutam os demnios do tinteiro.
Se a frmula de Joubert fosse um pensamento, no
seria mais do que um paradoxo simples demais; se fosse uma imagem, seria efmera e fugaz. Mas, tendo lugar no livro de um grande moralista, a frmula nos abre
o campo das fantasias srias. O indefinido tom de fantasia c de verdade nos d o direito, simples leitores que
somos, de sonhar seriamente, como se, em tais fantasias, nosso esprito trabalhasse com lucidez. Na fantasia sria, qual Joubert nos conduz, um dos fenmenos do mundo expresso, logo, dominado. expresso
Mas quando se sonha mais profundamente, o belo equilbrio do pensamento entre a vida e a morte
perdido. No corao de um sonhador de vela, que ressonncia tem essa palavra: apagar-se! As palavras, sem
dvida, desertam de suas origens e retomam uma vida
estranha, uma vida emprestada ao acaso de simples
comparaes. Qual o maior sujeito do verbo apagarse? A vida ou a vela? Os verbos metaforizantes podem
fazer os sujeitos mais exticos agirem. O verbo apagarse pode fazer morrer qualquer coisa, tanto um barulho quanto um corao, tanto um amor quanto uma
clera. Mas quem quer o sentido verdadeiro, o sentido
primeiro, deve lembrar-se da morte de uma vela. Os mitlogos nos ensinaram a ler os dramas da luz nos espetculos do cu. Mas no cubculo de um sonhador os
objetos familiares tornam-se mitos do universo. A vela
que se apaga um sol que morre. A vela morre mesmo
mais suavemente que o astro celeste. O pavio se curva
e escurece. A chama tomou, na escurido que a encerra, seu pio. E a chama morre bem: ela morre adormecendo.
Todo sonhador de vela, todo sonhador de pequenas chamas sabe disso. Tudo dramtico na vida das
coisas e do universo. Sonha-se duas vezes quando se
sonha cm companhia de uma vela. A meditao diante de uma chama torna-se, segundo a expresso de Paracelso, uma exaltao de dois mundos, uma exaltado
utriusque mundi.1
Daremos, a seguir, apenas alguns testemunhos, emprestados aos poetas, desta dupla exaltao simples
2.
Citado por C.
G . JUNC.
Paracelsica, p.
123.
filsofo da expresso literria que somos. Como dizamos no comeo dessas pginas, os tempos de ajudar
tais sonhos, sonhos desmedidos, pelos pensamentos,
pensamentos trabalhados, pensamento dos outros, voltaram.
Alis, ser que j se fez poesia com o pensamento?
IV
Blaise de
VICENRF
VI
CAPTULO LI
MI.
Le nom du feu.
ta-espevitadeiras. Para mim, o tempo das velas o tempo das "velas de cera com ranhuras". Ao longo desses
canais lacrimais corriam lgrimas, lgrimas ocultas. Belo exemplo para ser imitado por um filsofo lamuriento! Stendhal j sabia reconhecer as boas velas de cera.
Em suas Memrias de um turista, conta seu cuidado
em ir melhor mercearia do lugar para munir-se de
boas velas, com as quais substitua os sujos cotocos do
albergue.
, portanto, na lembrana da boa vela de cera que
devemos reencontrar nossos devaneios de solitrios. A
chama s, naturalmente s, ela quer ficar s. No fim
do sculo XVIII, um fsico da chama tentou em vo
colar as duas chamas de duas velas: colocava as velas
pavio contra pavio. Mas as duas chamas solitrias, na
sua embriaguez de crescer e subir, esqueciam de unirse, e cada uma conservava sua energia de verticalidade, preservando em seu vrtice a delicadeza de sua
ponta.
Nessa "experincia" do fsico, que desastre de smbolos para dois coraes apaixonados que se empenham
em vo em se ajudarem um ao outro a queimar!
Pelo menos, que a chama seja para o sonhador o
smbolo de um ser absorvido por sua transformao!
A chama um ser-em-mutao, uma mutaao-em-ser.
Sentir-se chama inteira e s, dentro do prprio drama
de um ser em mutao, que ao clarear se destri esses so os pensamentos que brotam sob as imagens de
um grande poeta. Jean de Boschre escreve:
Meus pensamentos,
no fogo,
perderam
suas tnicas.
II
Jean de
3. Tristan
BOSCHRE.
T Z A R A . O
Se meu livro pudesse ser o que eu gostaria que fosse, se eu pudesse reunir, lendo os poetas, bastante exploraes da fantasia para forar a barreira que nos pra
diante do Reino do Poeta, gostaria de achar, no fim
de todos os pargrafos, na extremidade de uma longa
seqncia de imagens, a imagem realmente terminal,
aquela que se designa como imagem exagerada para o
julgamento dos pensamentos razoveis. Minha fantasia, ajudada pela imaginao dos outros, iria bem alm
de meus prprios devaneios.
Diante da vela, para dizer algo alm das lembranas da solido, algo alm tambm das lembranas da
misria, evocarei, neste curto pargrafo, um documento
literrio em que Thodore de Banville fala de uma viglia de Cames. Quando um poeta fala simpaticamente
de outro poeta, o que diz duas vezes verdadeiro.
Banville conta que a vela de Cames, estando apagada, o poeta continuou a escrever seu poema luz dos
olhos de seu gato.'
luz dos olhos de seu gato! Branda e delicada luz,
que se deve ver como algo alm de toda e qualquer luz
trivial. A vela no mais, mas ela foi. Ela havia comeado a viglia, enquanto o poeta comeava seu poema.
Ela havia levado vida em comum, vida inspirada, vida
inspirante com o poeta inspirado. luz da vela, no fogo da inspirao, verso aps verso, o poema desenvolvia sua prpria vida, sua vida ardente. Cada objeto so4. Thodore dc BANVILLE. Comes bourgeois, p. 194.
continua a viglia de conceder luz com o rosto do poeta iluminado pelo gnio.
IV
SUSINI.
321.
bra de ter sido um companheiro da pequena luz, reaprende, lendo Nodier, as primeiras simplicidades.
Como indicamos em nosso captulo de prembulo, um sonhador de chama torna-se facilmente um pensador de chama. Quer compreender por que o ser silencioso da sua vela de repente se pe a gemer. Para
Franz von Baader esse craque (Schrack) "precede cada inflamao, qualquer que ela seja, silenciosa ou barulhenta". Ele produzido "pelo contato de dois princpios opostos, no qual um comprime o outro ou subordina-o a ele". Sempre queimando, a chama deve reinflamar-se, manter, contra uma matria grosseira, o
comando de sua luz. Tivssemos ns o ouvido mais
apurado, escutaramos todos os ecos dessas agitaes
internas. A vista d unificaes facilmente. Os sussurros da chama, ao contrrio, no se resumem. A chama
narra todas as lutas que preciso sustentar para manter uma unidade.
Mas os coraes mais ansiosos no se tranqilizam com vistas cosmolgicas, inscrevendo as infelicidades de uma coisa num inferno universal. Para um
sonhador de chama, o candeeiro uma companhia associada a seus estados d'alma. Se ele treme, porque
pressente uma inquietude que vai perturbar todo o
quarto. E, no momento em que a chama pisca, eis que
o sangue pula no corao do sonhador. A chama est
angustiada e a respirao no peito do sonhador tem sobressaltos. Um sonhador, unido to fisicamente vida
das coisas, dramatiza o insignificante. Para tal sonhador de coisa, tudo tem uma significao humana, em
sua minuciosa fantasia. Reunir-se-iam facilmente numerosos documentos sobre a sutil ansiedade da luz sua-
no cho. Nada alm disso, mas era uma ameaa de morte, em nossa casa."
Sem dvida, Strindberg tem um psiquismo de escorchado. sensvel aos menores dramas da matria.
O carvo, em seu fogareiro, produz tambm alarmes
quando se esmigalha demais ao queimar, quando os
resduos fundem-se mal. Mas o desastre , por sua vez,
mais sutil e maior quando vem da luz. O lampio, a
vela, no so eles que do o fogo mais humanizado?
Uma vez que o fogo que d a luz, no ele o autor
de maior valor? Uma perturbao no pice dos valores da natureza rasga o corao de um sonhador que
gostaria de estar em paz com o universo.
Vejam bem que na ansiedade de Strindberg, diante de uma infelicidade da vela, no se encontra nenhum
trao de atrativo simblico. O acontecimento tudo.
Por menor que seja, designado como um destaque
da atualidade.
A puerilidade desta alienao ser facilmente denunciada. Ser motivo de espanto o fato dela ter lugar
em uma relao cheia de sofrimentos domsticos reais.
Mas o fato l est; o fato psicolgico vivido pelo escritor duplica-se no fato literrio. Strindberg acredita que
um acontecimento insignificante pode agitar o corao
humano. Com um pequeno medo, pensa que colocar
o medo na solido do leitor.
Naturalmente o psiquiatra no tem dificuldade em
diagnosticar a esquizofrenia quando l os textos de
Strindberg. Porm tais textos, tomando forma literria, colocam um problema: esses escritos no so esquizofrenizantes? Lendo Inferno com interesse, cada
leitor no ter suas horas de esquizofrenia? Strindberg
sabe que escrevendo na mais absoluta solido se comunica com o grande Outro dos leitores solitrios. Sabe
que, dentro de toda alma, existe, alm da razo, um
lugar onde sobrevivem os medos mais pueris. Est certo de poder propagar suas infelicidades de vela. Em Inferno, segue a divisa que exprime em sua autobiografia: "V l e os outros tero medo."10
V
Quando a mosca se atira dentro da chama da vela, o sacrifcio ruidoso, as asas crepitam, a chama tem
um sobressalto. Parece que a vida se quebra no corao do sonhador.
O fim da traa menos sonoro, mais cuidadoso.
Ela voa sem barulho, toca de leve a chama e instantaneamente consumida. Para um sonhador que sonha
grande, quanto mais simples o incidente, mais longe
vo os comentrios. C. G. Jung escreveu assim um capitulo inteiro para expor esses dramas sob o ttulo: " O
canto da traa"." Jung cita um poema de Miss Miller,
uma esquizofrnica cujo exame foi o ponto de partida
da primeira edio das Metamorfoses da alma.
Ainda a, a poesia vai dar a um insignificante fato a significao de um destino. O poema aumenta tudo. E em direo ao sol, a chama das chamas, que o
10. STRINDBERG. L'crivain. Irad., Stock, p. 167.
11. C. G. JUNG. Mtamorphoes de l'me el ses symboles, trad., 1953,
p. 156 e segs.
VI
13.
GOETHE.
Le Divan, trad. de
LICHTENBERGER,
p. 45-46.
O fato de a borboleta vir queimar suas asas na chama sem que se tenha o cuidado de apag-la antes que
isso acontea uma falta csmica que no revolta nossa sensibilidade. Entretanto, que smbolo formidvel
este de um ser que vem queimar as asas! Queimar seus
adornos, queimar seu ser, uma alma sonhadora no parou de meditar sobre isso. Quando a Paulina de PicrreJean Jouve se v to bela antes de seu primeiro baile,
quando quer ser pura como uma religiosa e, ao mesmo tempo, tentar todos os homens, a morte de uma
borboleta na chama que ela evoca: "Mas, querida borboleta, toma cuidado com a chama, olha l outra que
vai morrer como aquela da outra noite, vai morrer imediatamente. Volta para o fogo apesar de tudo, no compreende o fogo, e a metade dc uma asa j est queimada, volta, uma vez mais, mas o fogo, borboleta infeliz, o f o g o ! " "
Paulina uma chama pura, mas uma chama. Ela
quer ser uma tentao, mas cia mesma se v tentada.
to bela! Sua prpria beleza um fogo que a tenta.
Desde esta primeira cena, o drama da morte da pureza
no erro est em ao. O romance de Jouve o romance de um destino. Morrer por amor, no amor, como
a borboleta na chama, no realizar a sntese de Eros
e Tanatos? O texto de Jouve animado, por sua vez,
pelo instinto da vida e pelo instinto da morte. Esses dois
instintos, revelados como o faz Jouve, em profundidade, em sua primitividade, no so contrrios. O psiclogo das profundezas que Jouve mostra que eles agem
VII
devaneios, cada impresso de solido de um grande solitrio deve achar sua imagem. Tais "impresses" so,
primeiro, imagens. jjreciso imaginar a solido para
conhec-la, para am-la ou para defender-se dela, para ser tranao ou Dara ser coraioso. Quando se quiser fazer a psicologia do claro-escuro psquico em que
se clareia ou se escurece esta conscincia do nosso ser,
ser preciso multiplicar as imagens, duplicar toda imagem. Um homem solitrio, na glria de ser s, acredita s %'ezes poder dizer o que a solido. M a s a cada
um cabe uma solido, E o sonhador de solido no ponos dar mais que algumas poucas pginas deste lbum de claro-escuro das solides.
Quanto a mim, totalmente em comunho com as
imagens que me so oferecidas pelos poetas, totalmente
em comunho com a solido dos outros, eu me fao
s com as solides dos outros.
Fao-me s, profundamente s, com a solido de
um outro.
Mas preciso, claro, que esta solicitao solido seja discreta, que seja, precisamente, uma solido
de imagem. Sc o escritor solitrio quiser me contar sua
vida, toda sua vida, me transformar imediatamente
em um estranho. As causas da sua solido no sero
nunca as causas da minha. A solido no tem histria. Toda a minha solido cabe numa primeira imagem.
t i s , portanto, a imagem simples, o quadro central
no claro-escuro dos devaneios e da lembrana. O sonhador est sua mesa; est em sua mansarda; acende
sua lmpada. Acende uma vela. Acende sua vela de cera. Ento eu me lembro, ento eu me reencontro: sou
o sonhador que ele . Estudo como ele estuda. O mundo
, para mim, como para ele, o livro difcil clareado pela chama de uma vela. Pois a vela, companheira de solido, principalmente companheira do trabalho solitrio. A vela no ilumina um cubculo vazio, ilumina
um livro.
S, noite, com um livro iluminado por uma vela
livro e vela, dupla ilha de luz, contra as duplas trevas do esprito e da noite.
Eu estudo! Sou apenas o sujeito do verbo estudar.
No ouso pensar.
Antes de pensar, preciso estudar.
S os filsofos pensam antes de estudar.
Mas a vela se apagar antes que o difcil livro seja
compreendido. preciso no perder nada do tempo de
luz da vela, grandes horas da vida estudiosa.
Se levanto os olhos do livro para olhar a vela, em
vez de estudar, sonho.
Ento as horas se alternam na viglia solitria. As
horas se alternam entre a responsabilidade de saber e
a liberdade das fantasias, esta liberdade fcil demais
do homem solitrio.
A imagem de um leitor vigilante luz de vela me
basta para que comece esse movimento alternado dos
pensamentos e das fantasias. Sim, eu me perturbaria
se o sonhador, no centro da imagem, me dissesse as
causas da sua solido, alguma histria longnqua de
traies da vida. Ah! meu prprio passado basta para
ine atrapalhar. No orcciso do Dassado dos outros. Mas
preciso das iruagen&_xlos outros nara recolorir as minhas. Preciso das fantasias dos outros para me lembrar
"de meu trabalho sob as pequenas luzes, para me lembrar que, eu tambm, fui um sonhador de vela.
CAPTULO III
ou
SoH
Muitos sonhos de voar nascem num estmulo da verticalidade diante dos seres retos e verticais. Perto das torres, das rvores, um sonhador de altura sonha com o
ccu. As fantasias de altura alimentam nosso instinto
de verticalidade, instinto recalcado pelas obrigaes da
vida comum, da vida vulgarmente horizontal. A fantasia verticalizante a mais liberadora das fantasias.
No h melhor meio para se sonhar bem do que sonhar com outro lugar. Porm o mais decisivo dos outros lugares no o outro lugar que fica acima? Os sonhos com o acima fazem esquecer, suprimir os do embaixo. Vivendo no znite do objeto cm p, acumulando as fantasias de verticalidade, conhecemos uma transcendncia do ser. As imagens da verticalidade fazemnos entrar no reino dos valores. Comungar por meio
da imaginao com a verticalidade de um objeto reto
receber o benefcio de foras ascensionais, participar do fogo escondido que habita as formas belas, as
formas seguras de sua verticalidade.
H algum tempo havamos desenvolvido longamente esse tema da verticalidade em um captulo de
nosso livro L'air et les songes.' Se quiserem se transportar a esse captulo vero todo o plano anterior de
nossas presentes fantasias sobre a verticalidade da
chama.
Quanto mais simples for seu objeto, maiores sero as fantasias. A chama da vela sobre a mesa do solitrio prepara todas as fantasias da verticalidade. A
chama uma valente e frgil vertical. Um sopro a atrapalha, mas ela logo se endireita. Uma fora ascensional restabelece seus prestgios.
A vela queima alto e sua prpura se ergue
diz um verso de Trakl.2
A chama uma verticalidade habitada. Todo sonhador de chama sabe que a chama est viva. la garante sua verticalidade por meio de reflexos sensveis.
Mesmo quando um incidente de combusto vem perturbar o impulso zcnital, ela reage prontamente. Um
sonhador de vontade verticalizante aue estuda sua lio diante da chama aprende que deve se endireitar.
Reencontra a vontade de queimar alto, de ir, com todas as suas foras, ao pice do ardor.
E que grande hora, que bela hora quando a vela
queima bem! Que delicadeza de vida h na chama que
se alonga, que se afila! Os valores da vida e do sonho
se encontram ento associados.
Uma haste de fogo! Nunca se sabe tudo sobre o que
[perfuma?
diz o poeta.'
2. Anlhologie de ia posie Aliemande, Stock, tomo II, p. 109.
3. Edmond J A B S . Les Mots tracem, p. 15.
d. Debresse, p. 38.
Se nos dssemos o direito de meditar sobre os temas litrgicos, no teramos dificuldades em achar documentos sobre o simbolismo das chamas. Seria ento
preciso fazer face a um saber. Ultrapassaramos o projeto de nosso pequeno livro que deve se contentar em
apanhar os smbolos em seus esboos. Quem quiser entrar no mundo dos smbolos colocados sob o signo do
fogo, poder pegar a grande obra de Carl-Martin Edsman: Ignis divinus
III
Havamos descartado, em nosso captulo de
prembulos, toda inquietao de saber, toda experincia cientfica ou pseudocientfica sobre os fenmenos
da chama. Fizemos o melhor possvel para ficar na homogeneidade das fantasias que imaginam, que so
aquelas de um sonhador solitrio. No se pode ser dois
auando se sonha em profundidade com uma chama.
As observaes ingnuas feitas juntas por Goethe e Eckermann, por um mestre e um discpulo, no preparam nenhum pensamento, no podem ser refeitas com
a seriedade que convm pesquisa cientfica. Alm disso no nos do aberturas sobre esta filosofia dos cosmos que influncia to grande teve sobre o romantismo alemo.'
6. Carl-Martin EDSMAN. /gnis divinus, Lund, 1949. Do mesmo autor:
Le baptme du feu, Uppsala, 1940:
7. Cf. Conversations de Goethe et d'tZckermann, trad.. tomo I, p. 203.
255, 258, 259.
Para provar de imediato que com Novalis deixase o reino de uma fsica de fatos para entrar no reino
de uma fsica de valores comentaremos uma curta divisa reproduzida na edio Minor8: "Licht macht
Feuer", " a luz que faz o fogo". Em sua forma alem, esta frase em trs slabas anda muito rpido, uma
flecha de pensamento to rpida que o senso comum
no sente imediatamente seu impacto. Toda a vida cotidiana nos ordena ler a frase ao contrrio pois, na vida comum, acende-se o fogo para se ter a luz. Esta provocao s se justificar se se aderir a uma cosmologia de valores. A frase em trs slabas "Licht macht
Feuer" o primeiro ato de uma revoluo idealista da
fenomenologia da chama. uma dessas frases-eixo que
um sonhador se repete para condensar sua convico.
Durante horas, imagino, escuto as trs slabas nos lbios do poeta.
A prova idealista no saberia enganar: para Novalis a idealidade da luz deve explicar a ao material
do fogo.
O fragmento de Novalis continua: "Licht ist der
Genius des Feuerprozesses", "A luz o gnio do processo do fogo". Declarao das mais graves para uma
potica dos elementos materiais, j que a primazia da
luz tira do fogo seu poder de sujeito absoluto. O fogo
s recebe seu verdadeiro ser no trmino de um processo em que se torna luz, quando, nos tormentos da chama, foi desembaraado de toda sua materialidade.'
8. Tomo III, p. 33.
9. Para um autor da Encyclopdic (artigo: "Fogo", p. 184): "Uma chama viva e clara (d mais calor) do que o braseiro mais ardente."
Se lssemos sobre a chama essa inverso da causalidade, seria preciso dizer que a ponta que a reserva da ao. Purificada na ponta, a luz extrai tudo
do sabugo. A luz , ento, o motor verdadeiro que determina o ser ascensional da chama. Compreender os
valores no prprio ato em que ultrapassam os fatos,
em que acham seus seres em ascenso, o prprio princpio de cosmologia idealizante de Novalis. Todos os
idealistas acham, meditando sobre a chama, o mesmo
estmulo ascensional. Claude de Saint-Martin escreveu:
" O movimento do esprito como aquele do fogo, acontece em ascenso."10
IV
Coordenando todos os fragmentos em que Novalis evoca a verticalidade da chama, poder-se-ia dizer que
tudo que ereto, tudo que vertical no Cosmos, uma
chama. Numa expresso dinmica, seria preciso dizer:
tudo o que sobe tem o dinamismo da chama. A recproca, apenas atenuada, clara. Novalis escreveu:
"Na chama de uma vela, todas as foras da natureza so ativas."
"In der Flamme eines Lichtes sind alle Naturkrften ttig.""
10. Claude de S A I N T - M A K T I N , Le Nouvet homme, ano IV, p. 28.
11. NOVALIS. Les disciples Sas, d. Minor, lna, 1927, II, p. 37.
As chamas constituem o prprio ser da vida animal. E Novalis nota inversamente "a natureza animal
da chama" 12 . A chama , de algum modo, a animalidade nua, maneira exagerada de animal. Ela o gluto por excelncia (das Gefrssige). O fato desses aforismos serem fragmentos dispersos em toda a obra revela o carter imediato das convices. So verdades
de fantasia que s se pode provar experimentando o
onirismo profundo, mais sonhando do que refletindo.
Cada reino da vida ento um tipo de chama particular. Nos fragmentos traduzidos por Maeterlinck, lse (pg. 97):
"A rvore s pode transformar-se em uma chama
florida, o homem numa chama falante, o animal numa chama errante."15
Paul Claudel, sem ter lido esse texto de Novalis,
segundo parece, escreveu pginas semelhantes. Para ele,
a vida um fogo.14 A vida prepara seu combustvel no
vegetal e se inflama no animal: " O vegetal ou elaborao da matria combustvel. O animal provendo sua
prpria alimentao", diz Claudel no resumo preparatrio de seu texto.
12. d. Minor, t. Il, p. 206.
13. Cf. uma pgina singular em que tudo que vive d a d o como o excremento de uma chama. Somos apenas os resduos de um ser inflamado
(d. Minor, t. II, p. 216).
Em O Div, GOETHE escreve:
Na chama gil da lareira
Se elaboram, do disforme, o sumo do animal e
da planta
An des Herdes raschen Feuerkrften
Reift das Rohe Tier- und Pflanzensften
14. Paul CLAUDEL, L'art potique, p. 86.
"Se o vegetal pode se definir como 'matria combustvel', para o animal ele matria acesa." 15
" O animal mantm (sua forma) queimando o que
ir alimentar a energia da qual ela o ato, conseguindo o que ir satisfazer a fome do fogo nele recluso.""
O tom dogmtico desta cosmologia sob a forma
de divisa, tanto em Novalis, quanto em Claudel, descartar sem dvida um filsofo do saber. No ser a
mesma coisa se acolhermos tais aforismos no quadro
de uma potica. A chama, aqui, criadora. Ela nos
entrega instituies poticas para nos fazer participar
da vida inflamada do mundo. A chama , ento, uma
substncia ativa, poetizante.
Os seres mais diversos recebem seu substantivo da
chama. Basta um adjetivo para particulariz-los. Um
leitor rpido talvez veja a apenas um jogo de estilo.
Mas se ele participar da intuio inflamante do filsofo poeta compreender que a chama um ponto de partida do ser vivo. A vida um fogo. Para conhecer sua
essncia preciso queimar em comunho com o poeta. Para empregar uma frmula de Henry Corbin, diramos que as frmulas de Novalis tendem a levar a meditao incandescncia.
Mas eis uma imagem dinmica em que a meditao da chama encontra uma espcie de impulso sobrevital que deve aumentar a vida, prolong-la alm de
si prpria, apesar de todas as fraquezas da matria comum. O trecho 271 de Novalis resume toda uma filosofia de chama-vida e da vida-chama' 7 :
"A arte de saltar alm de si mesmo considerada
em toda parte como o ato mais alto. o ponto de origem da vida. A chama no nada mais que um ato
dessa espcie. Assim a filosofia comea a, onde o filosofante filosofa a si mesmo, isto , se consome e se
renova."1
Numa reforma de seu texto, Novalis, tendo mo
os dois sentidos do verbo verzehren (consumir, consumar), indica a passagem, no ato da chama, do determinado ao determinante, do ser satisfeito ao que vive
sua liberdade. Um ser se torna livre se consumindo para se renovar, dando-se assim o destino de uma chama, acolhendo principalmente o destino de uma sobrechama que vem brilhar acima de sua ponta.
Mas, antes de filosofar, talvez seja preciso rever;
talvez, pela falta de reviso, seja preciso reimaginar esse raro fenmeno da lareira, quando a chama tranqi17. NOVALIS, d . M i n o r , II, p. 259.
18. C f . NIETZCHE. Poesias:
pensamento.
tomo V, p. 5.
CAPTULO IV
Anthologie.
Quando se sonha um pouco com foras que mantm em cada objeto uma forma, facilmente imaginase que em todo ser vertical reina uma chama. Em particular, a chama o elemento dinmico da vida ereta.
Citamos anteriormente este pensamento de Novalis: "A
Loc. cil.,
17.
Quando a imagem da chama se impe a um poeta para dizer uma verdade do mundo vegetal, preciso
que a imagem permanea em uma frase. Explic-la,
desenvolv-la, seria diminuir, parar o impulso de uma
imaginao que une o ardor do fogo e o paciente poder do verde. As imagens-frases que pintam, que contam as chamas vegetais, so igualmente aes polmicas contra o senso comum adormecido em seus hbitos de ver e de falar. Mas a imaginao to segura,
com uma imagem nova, de conter uma verdade do
mundo que a polmica com os no-imaginantes seria
tempo perdido. Vale mais a pena para o imaginante falando a outros imaginantes dizer ainda, sem fim, novas frases sobre as chamas da vida vegetal.
Assim comea o reino das imagens decisivas, das
decises poticas. Toda poesia comeo. Propomos designar essas imagens-frases, ricas de uma vontade de
expresses novas, pelo nome de sentenas poticas. O
nome de fragmentos, utilizado pelos fragmentistas,
prejudica-os. Nada partido numa imagem que encontra fora em sua condensao.
Com um dicionrio de belas sentenas da imaginao dogmtica, com uma botnica de todas as
plantas-chamas cultivadas pelos poetas, talvez se decifrassem os dilogos do poeta e do mundo. Sem dvida
sempre ser difcil organizar um grande nmero de imagens voluntariamente singulares. Mas, s vezes, o atrativo da leitura basta para aparentar, a propsito de uma
imagem singular, dois gneros diferentes. Por exemplo,
como no ter a impresso de que Victor Hugo e Balzac pertencem mesma famlia dos botnicos do devaneio quando se colocam essas duas sentenas poticas uma ao lado da outra:
"Toda planta um lampio. O perfume a
luz."*
"Todo perfume uma combinao de ar e de
luz."'
claro que, na esttica de Balzac, a planta que,
em sua extremidade, na flor, realiza essa sntese prodigiosa do ar e da luz.
Uma espcie de correspondncia baudelairiana
ativa pelo alto, pelos picos, como se os valores de pico
viessem excitar os valores de base. Assim os sonhadores que vivem nos dois sentidos a correspondncia dos
perfumes e da luz lem com convico este "pensamento", que valoriza uma luz suave: "Certas rvores
tornam-se mais cheirosas quando so tocadas pelo arcoris." 4
III
Mais condensado ainda que uma sentena potica o prprio germe da imagem que se pode receber
2. Victor H U G O . L'homme qui rit, t. II, p. 44.
3. BALZAC. Louis Lambert, 2? ed. p. 296.
4. Le sieur de L A C H A M B R E , Iris, p. 2 0 .
de um poeta raro. Trata-se da imagem-germe, do germeimagem. Eis um testemunho de uma chama que queima no interior da rvore toda uma promessa da flamejante vida. Louis Guillaume, em um poema que tem
o ttulo: O velho carvalho\ com trs palavras, nos enche de fantasias: "Fogueira de seivas", diz ele para enaltecer a grande rvore.
"Fogueira de seivas", palavras nunca ditas, semente sagrada de uma nova linguagem que deve pensar o
mundo com a poesia. A sentena potica deixada aos
cuidados do leitor. Sonhar-se-o mil sentenas poticas sonhando-se com esta seiva gnea que d foras do
fogo rainha das rvores. Quanto a mim, acordado
de minhas velhas imagens pelo dom do poeta, deixo
a grande imagem do grande ser retorcido em sofrimentos como aquela de Laocoon, e sonhando com toda essa
seiva que sobe e queima, sinto que a rvore um portafogo. E um grande destino predito para o carvalho
pelo poeta. Este carvalho o Hrcules vegetal que, em
todas as fibras de seu ser, prepara sua apoteose na chama de uma fogueira,
Um mundo de contradies csmicas nasce a partir
desse n de poderes hostis. Louis Guillaume ligou em
trs palavras o fogo e a gua. Eis a um grande triunfo
da linguagem. S a linguagem potica pode ter tanta
audcia. Estamos realmente no domnio da imaginao livre e criativa.
5.
Louis
GIU.AUME,
Jean
CAUBRE.
Dserts, d. Debressc, p.
18.
Tkis snteses de objetos, tais fuses de objetos fechados em formas to diferentes, como a fuso do jato d'gua e da chama, da rvore e da chama, no saberiam se exprimir na linguagem da prosa. preciso
o poema, as flexibilidades do poema, as transmutaes
poticas. O hino se apodera do ser das imagens, ele as
faz de seus objetos, objetos hnicos. o hino que o
poder sintetizante. O poeta mexicano Octvio Paz sabe disso muito bem e diz muito precisamente: o hino
por sua vez
lamo de fogo, jato d'gua'
Ainda aqui o poeta deixa ao leitor o cuidado de
fazer as frases intercalares o prazer potico de escrever sentenas poticas que devem unir a chama da
rvore esguia e a chama totalmente vertical do jato
d'gua. Com os poetas de nosso tempo entramos no
reino da poesia brusca, uma poesia que no conversa
mas que sempre quer viver em primeiras palavras. Portanto preciso escutar os poemas como palavras ditas
pela primeira vez. A poesia uma admirao, exatamente ao nvel da palavra, na palavra e pela palavra.
Aprovcitamo-nos de todas as ocasies para falar
de nosso entusiasmo pelos valores poticos autnomos.
Porm necessrio que voltemos ao programa mais preciso de nossas pesquisas sobre as imagens vegetais da
chama abordando exemplos mais simples do parentesco das luzes, das flores e dos frutos.
7. Octvio PAZ. Aigte ou Soleil?, p. 83.
Um sonhador novalisiano aceitar facilmente, como um dos axiomas da potica do mundo vegetal, esta frmula: todas as flores so chamas chamas que
querem tornar-se luz.
Essa transformao em luz, todo sonhador de flores a sente, anima-o como um ultrapassar daquilo que
v, um excesso da realidade. O sonhador poeta vive na
aurola de toda beleza, na realidade da irrealidade. O
poeta que no tem os privilgios do pintor, que um
criador atravs das cores, no tem nenhum interesse em
rivalizar com os prestgios da pintura. Tomado pelo rigor de sua profisso, o poeta, esse pintor atravs das
palavras, conhece prestgios de liberdade. Deve contar
a flor, dizer a flor. S pode compreender a flor animando suas chamas pelas chamas de palavra. A expresso potica essa transformao em luz que todo sonhador novalisiano pressentiu em suas contemplaes
filosficas.
O problema do poeta , portanto, o de exprimir
o real com o irreal. Vive, como j dissemos em nosso
prefcio, no claro-escuro de seu ser, sucessivamente trazendo ao real uma luz plida ou uma penumbra e
cada vez dando sua expresso uma nuance inesperada.
Mas "vejamos" algumas expresses poticas de
flores-chamas matizadas de maneiras bem diferentes
conforme o gnio do poeta.
Tomemos primeiro imagens em que as chamas da
flor possam ser chamas emprestadas, reflexos de um
sol se pondo:
O cu se apaga e as castanheiras
queimam
Ed. R.
A lmpada
que faz nenfares florirem nos espelhos.
Sua fantasia dos reflexos to cosmognica que,
assim, criou o lago vertical. O poeta cobre as paredes
de seu quarto com quadros de ninfias. Nada pra
um imaginante que v, em todas as lmpadas, flores.
Um temperamento potico mais ardente contar
com maior paixo o fogo das rosas. A obra de d'Annunzio rica em rosas de fogo. L-se no grande romance
O Fogo:
"Olhe essas rosas vermelhas!
Elas queimam. Dir-se-ia que tm em suas corolas um carvo aceso. Elas realmente queimam." 20
A nota to simples! Pode at parecer banal para
um leitor apressado. Mas o escritor quis pr esse dilogo dos dois amantes no fogo das paixes. As flores
vermelhas podem marcar uma vida. Algumas linhas
adiante, o dilogo retomado:
"Olhe. Elas se tornam cada vez mais vermelhas.
O veludo de Bonifcio... Voc se lembra? Tem a mesma fora.
A flor interna do fogo."
Em outra pgina, quando d'Annunzio segue o trabalho dos vidreiros, a imagem se inverte. o vidro fundido que atrai o nome de uma flor, nova prova das aes
recprocas dos dois plos de uma imagem dupla:
"As taas nascentes oscilaram na ponta das hastes, rosas e azuladas como os corimbos da hortnsia
que comea a mudar de cor."21
20.
D'ANNUNZIO.
2 1 . IJOC. C / . , p .
Le Feu, Calniann-Lvy, p.
328.
304.
VII
88
VIII
Sonhando com toda a ingenuidade sobre as imagens dos poetas, aceitamos todos os pequenos milagres
da imaginao. Quando o valor potico est em jogo,
torna-se inconveniente evocar outros valores e abordar
o estudo com o mnimo esprito crtico. Mostraremos,
no entanto, para acabar este pequeno captulo, um documento que no podemos deixar de olhar com olhos
de nativo da Champagne.
Tomamos emprestado esta anedota de um livro srio. Lorde Frazer, sem nenhuma preparao, sem nenhum comentrio, escreve:
"Quando os Menri entraram em contato com os
Maleses, encontraram uma flor vermelha (gant'gn: em
mals: gantang). Reuniram-se em crculo em torno dela e estenderam os braos por cima para se aquecerem."25
Em seguid, a anedota se complica. Um cervo e
um picano verde intervm. O picano verde, algum
pssaro de lenda, podia muito bem trazer, em suas penas brilhantes, o fogo para os homens de uma tribo.
Frazer nos deu tantos documentos sobre os animais que,
em suas lendas, so benfeitores da humanidade que
25. Lorde
FRAZER.
127.
aprendemos a acreditar um pouco, apenas um pouco em tudo o que os etnlogos nos relatam. Colocamo-nos docilmente na escola da ingenuidade. Mas,
por conta dessa famlia de maleses reunida em torno
de um buqu de flores ardentes para aquecer os dedos,
o demnio da ironia se apossa de meu esprito e inverte o eixo da ingenuidade: como deviam brilhar de malcia os olhos dos bons selvagens quando contavam ao
ingnuo missionrio essa comdia sobre a origem floral do fogo!
CAPTULO V
A luz da lmpada
"A fim de animar minha tmida lmpada
A vasta noite acende todas as suas
[estrelas."
T A G O R E . Lucioles. Este curto poema
est escrito sobre o leque de uma mulher.
negro o espao subitamente claro. O mesmo gesto mecnico provoca a transformao inversa. Um pequeno
clique diz, com a mesma voz, seu sim e seu no. O fenomenlogo tem, assim, os meios de nos colocar alternadamente em dois mundos, isto , em duas conscincias. Com um interruptor eltrico pode-se jogar sem
parar o jogo do sim e do no. Mas, aceitando a mecnica, o fenomenlogo perdeu a densidade fenomenoIgica de seu ato. Entre os dois universos de trevas e
de luz existe apenas o movimento sem realidade, um
momento berysoniano, um momento de intelectual. O
momento tinha mais drama quando a lmpada era mais
humana. Acendendo o velho lampio, podia-se sempre temer alguma falta de jeito, algum azar. O pavio
dessa noite no em absoluto o mesmo de ontem. Se
houver falta de cuidado, poder carbonizar. Se o vidro
protetor no estiver bem colocado, o lampio ir fumaar. Tem-se sempre algo a ganhar dando aos objetos familiares a ateno amiga que merecem.
II
3.
HENRI BOSCO.
Gallimard, 1961, p.
316.
a substncia com que trabalha, mais seguramente a lmpada ser sonhada em seu status de criatura criadora.
Mas essas fantasias sobre as cosmogonias da luz
no so mais do nosso tempo. Ns s as evocamos aqui
para sinalizar o onirismo desconhecido, o onirismo perdido, o onirismo que, alm de tudo, tornou-se matria
de histria, saber do velho saber.
Queremos portanto levar nossos devaneios seguindo a inspirao de um grande devaneador. Seguindo
Bosco, podemos descobrir a profundidade das fantasias de uma infncia mantida em seus devaneios. Entramos com Bosco no labirinto em que se cruzam as
lembranas e os devaneios. Uma infncia pega em seus
devaneios insondvel. Ns a deformamos sempre um
pouco fazendo uma narrao. s vezes, ns a deformamos sonhando mais, s vezes, sonhando menos.
Henri Bosco, quando tenta nos transmitir os sentimeritos que o ligam ao lampio, est sensibilizado por essas alteraes das lembranas e dos devaneios. , ento, necessria uma dupla ontologia para nos dizer o
que , por sua vez, o ser do lampio e o ser do sonhador da fidelidade das primeiras luzes. Tocamos nas razes do sentimento potico por um objeto carregado de
lembranas. Bosco escreve:
"Sentimento que me vem desta infncia da qual
parafraseio um pouco pesadamente, acho, as
solides." 4
Ningum se espantar depois de tal unio da criana e do lampio, que o. lampio seja, em toda a obra
de Bosco, um personagem verdadeiro que tem um papel efetivo na narrativa de uma vida. Em numerosos
romances dele, lampies familiares, ntimos, vm marcar a humanidade de uma casa, a durao de uma famlia. Muitas vezes uma velha empregada lem sob sua
guarda o lampio dos ancestrais. Uma velha empregada
que cuida de seu jovem patro, venerando os objetos
familiares, prolonga para o patro, que conheceu criana, a paz de sua infncia. Ela sabe encontrar, para cada grande acontecimento da vida domstica, a lmpada certa. Como a velha Sidonie que conhecendo a dignidade hierrquica das luminrias acende, para a expectativa de uma visita importante, todas as velas do
candelabro de prata.
Nas horas graves, uma lmpada rstica acentua,
pela simplicidade, o drama natural da vida e da morte.
O heri do devaneio, que o personagem central de
Bosco: Malicroix, encontra apoio moral na lmpada,
uma velha lamparina sombria, quando sente que seu
bom servidor poderia estar morto: "Pois tinha necessidade de apoio e, no sei porqu, procurei-o no fogo
desta pequena lmpada. Ela me iluminava fracamente, sendo apenas uma lmpada comum que, mal conservada, vacilava em certos momentos e ameaava apagar-se. Porm ela estava l, e vivia. Mesmo nos momentos em que sua delicada chama enfraquecia, conservava uma claridade religiosamente calma. Fra um
ser suave e amigo, que me comunicava, em minha aflio, a onda modesta de sua vida de lmpada. Pois apenas um pouco de leo alimentava-a, em seu globo de
vidro. leo untoso que subia para a lmpada e que a
chama dissolvia em sua luz. Mas a luz, para onde
ia..." 5
Sim, a luz de um olhar, para onde ela vai quando
a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um
morto?
IV
Mesmo nas horas em que a vida no tem drama,
o tempo das lmpadas um tempo grave, em que se
deve meditar em sua lentido. Um poeta, sonhador de
chama, soube colocar esta durao lenta na prpria frase que exprime o ser da lmpada:
... Esta
combinam..."*
lmpada
atenta
e a
noite
se
tilintarem
til.,
p.
108.
19.
tas de Henri Bosco, onde o lampio o primeiro mistrio de um romance psicologicamente misterioso. Esse romance tem por ttulo Haycinthe. Encontra-se, a,
transformada em moa, o ser que todos os leitores de
Bosco conheceram criana nas duas narrativas: Le Jardin d'Hyacinthe e Ane culotte. Sobrevivendo de um romance a outro, as personagens de Bosco so onricos
companheiros de sua vida criadora. Para explicar melhor todo nosso pensamento, acrescentaramos: o lampio tambm um companheiro onrico na obra de
Bosco.
Que grande tarefa seria para um psiclogo de desligamento, apesar da confuso dos sonhos e pesadelos, conhecer a personalidade desse ser ntimo, desse
ser duplo que "se parece conosco como um irmo"!
Conheceramos ento a unidade do ser de nossos devaneios. Seramos realmente os sonhadores de ns mesmos. Compreenderamos oniricamente os outros quando conhecssemos a unidade do ser de seus seres sonhadores.
Mas vejamos um pouco mais de perto o lampio
de Bosco na narrativa: Hyacinthe.
A primeira pgina de Bosco ento de uma sensibilidade extrema. O ser que vinha para o plat deserto procurar a solido perturbado por um lampio que queima a quinhentos metros de sua morada. O lampio de
outro atrapalha o repouso perto de seu prprio lampio. H, assim, uma rivalidade de solides. O ser s
queria ser s, queria ser o nico a ter um lampio significativo de solido. Se o lampio solitrio em frente
iluminasse trabalhos domsticos, se fosse apenas um
utenslio, o sonhador do lampio meditante que Bosco
no receberia nenhum desafio, nenhum sofrimento. No
entanto dois lampies de filsofo numa mesma vila,
demais, um est sobrando.
O cogito de um sonhador cria seu prprio cosmos,
um cosmos singular, um cosmos s dele. Sua fantasia
prejudicada, seu cosmos perturbado se o sonhador
tem certeza de que a fantasia de outro ope um mundo ao seu prprio mundo.
Ento uma psicologia de hostilidades ntimas desenvolve-se logo nas primeiras pginas de Hyacinthe.
Esse lampio ao longe no sem dvida "dobrado"
sobre si mesmo. um lampio que espera. Ele vela to
continuamente que vigia. O plat onde o solitrio de
Bosco procurava a solido passa a ser ento um espao vigiado. O lampio espera e vigia. Vigia, logo malvolo. Todo um fundamento de hostilidades nasce na
alma do sonhador do qual se veio violar a solido. A
partir da o romance de Bosco corre sobre um novo eixo: j que a lmpada ao longe vigia o plat, o sonhador atrapalhado por esta vigilncia vigiar o vigilante.
O sonhador de lampio esconde ento seu lampio para
espionar o lampio do outro.
mais tambm. A cada leitura deparamos com incidentes pessoais de sonho, de incidentes de recordao. Uma
palavra, um gesto, pra minha leitura. O narrador de
Bosco puxava seus quebra-ventos para esconder sua luz;
lembro-me das noites em que fazia o mesmo gesto, no
interior de uma casa de antigamente. O marceneiro da
vila havia cortado, no meio de cada postigo das janelas, dois coraes para que o sol da manh despertasse, assim que surgisse, os moradores. Por isso, tardinha e tarde da noite, pelas duas aberturas dos postigos, o lampio, nosso lampio*, projetava dois coraes de luz dourada sobre o campo adormecido.
EPLOGO
as fantasias. O ser sonhando concentra-se a para lembrar o ser que trabalhava. Que reconforto, que nostalgia lembrar-se dos quartos pequenos onde se trabalhava, onde se tinha energia para trabalhar bem. O verdadeiro espao do trabalho solitrio dentro de um quarto
pequeno, no crculo iluminado pela lmpada. Jean de
Boschre sabia disso e escreveu: "S existe um quarto
estreito que permite o trabalho."' E a lmpada de trabalho pe todo o quarto nos limites internos da dimenso da mesa. Como a lmpada de outrora, em minhas
lembranas, concentra a morada, refaz as solides da
coragem, minha solido de trabalhador!
O trabalhador sob a lmpada assim uma primeira
gravura, vlida para mim em mil lembranas, vlida para todos, pelo menos o que imagino. O desenho, tenho certeza, no precisa de legenda. No se sabe o que
o trabalhador sob a lmpada pensa, mas sabe-se que
pensa, que est s, a pensar. A primeira gravura traz
a marca de uma solido, a marca caracterstica de um
tipo de solido.
Como trabalharia melhor, como trabalharia bem
se pudesse me reencontrar cm uma ou ou f ra de minhas
"primeiras" gravuras!
II
BOSCHRE.
co. A pgina branca! esse grand deserto a ser atravessado, jamais atravessado. Essa pgina branca que continua branca a cada viglia no o grande sinal de uma
solido sem fim recomeada? A solido se obstina contra o solitrio quando aquela de um trabalhador que
no somente quer se instruir, que no somente quer
pensar, mas que quer escrever. Ento a pgina branca
um nada, um doloroso nada, o nada da escrita.
Sim, se apenas se pudesse escrever! Depois, talvez
se pudesse pensar. Prmum scribere, deinde philosophari, diz uma tirada de Nietzche.3 Mas se est s demais
para escrever. A pgina branca branca demais, inicialmente vazia demais para que se comece a existir realmente escrevendo. A pgina branca impe silncio. Ela
contradiz a familiaridade da lmpada. A "gravura"
passa a ter, desde ento, dois plos, o plo da lmpada e o plo da pgina em branco. O trabalhador solitrio est dividido entre esses dois plos. Um silncio
hostil reina ento em minha "gravura". Mallarm no
vivia em uma "gravura" dividida quando evocou:
... a claridade deserta de uma lmpada
sobre o pape! vazio que a brancura defende?!
E como seria bom generoso tambm com relao a si mesmo recomear tudo, comear a viver escrevendo! Nascer na escrita, pela escrita, grande ideal
das grandes viglias solitrias! Mas, para escrever tia solido de seu ser, como se se tivesse a revelao de uma
pgina em branco da vida, seria preciso ter aventuras
de conscincia, aventuras de solido. Mas, sozinha, a
conscincia pode fazer variar sua solido?
Sim, como conhecer, ficando s, aventuras dc
conscincia? Ser que se pode encontrar aventuras de
conscincia descendo em suas prprias profundidades?
Quantas vezes, vivendo dentro de uma de minhas "gravuras", acreditei que aprofundava minha solido. Acreditei que descia, espiral por espiral, a escada do ser.
Mas, em lais descidas, vejo agora que, acreditando pensar, sonhava. O ser no est abaixo. Est acima, sempre acima precisamente no pensamento solitrio que
trabalha. Logo, seria preciso, para renascer, diante da
pgina em branco, em plena juventude de conscincia,
colocar um pouco mais de sombra no claro-escuro das
antigas imagens, imagens esmaecidas. Como desforra,
seria preciso regravar o gravador regravar, a cada viglia, o prprio ser solitrio, na solido dc sua lmpada, em resumo, ver tudo, pensar tudo, dizer tudo, escrever tudo em primeira existncia.
Mas ser que ainda h tempo para mim de reencontrar o trabalhador que eu conhecia to bem e de
faz-lo entrar de novo em minha gravura?