CIDADE E ALMA 2018 - Gustavo Bacellos

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cidade & alma | perspectivas

atas do colóquiode 20 de outubro de 2017

Organizadores
Acací de Alcântara / Arthur S.C.Cabral / Catharina P.C.S.Lima / Gustavo Barcellos / Vladimir Bartalini

FAUUSP| 2018
Colóquio Cidade & Alma: perspectivas ( São Paulo, 2017)

Atas do Colóquio Cidades &[e] Alma : perspectivas / organização de Acací de


Alcântara et al… - São Paulo : FAUUSP, 2018.
343 p.

ISBN: 978-85-8089-151-5
DOI: 10.11606/978-85-8089-151-5

1. Cidades 2. Psicologia 3. Paisagem Urbana 4. Hillman, James, 1926-2011.


I. Alcântara, Acací, org. II. Título

CDD 370.76

Serviço de Técnico de Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP


cidade & alma | perspectivas
atas do colóquio

20 | outubro | 2017

FAUUSP

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 3


Se a psicologia pertence às cidades, as cidades
pertencem à psicologia. Por muitos anos, James
Hillman, originador da psicologia arquetípica pós-
junguiana, ocupou-se em levar a reflexão psicológica
para além dos limites dos consultórios e mesmo da
pessoa humana. Essa reflexão está reunida nos ensaios
de seu livro Cidade e Alma. Toda a psicanálise, como a
conhecemos e a praticamos desde o século passado a
partir de Freud e Jung, nasceu em cidades, como Viena
e Zurique, e em alguma medida se confunde com elas:
uma atividade urbana para cidadãos urbanos.

O enlace de psyché e polis já está dado desde o


início. Hoje o inconsciente não está mais onde estava
nas épocas de Freud e Jung. E sabemos que devemos
buscá-lo, via de regra, onde nos sentimos mais
oprimidos: é hoje nas cidades, na esfera pública onde
parece estarmos mais à mostra em nossa necessidade
de consciência: lazer maníaco, instituições opressoras,
burocracia esquizóide, linguagem convencional,
ambientes urbanos hostis, enormidades delirantes,
cifras deprimidas e uma constante repressão da beleza,
para não dizer, da alma. Hoje não só a alma do homem,
mas principalmente a alma das cidades está doente, e
são seus os sintomas que mais nos atingem, afligem e
agridem. Prédios, parques e avenidas no divã?

A Comissão Organizadora

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A alma na cidade
Gustavo Barcellos ............................................................................................................................. . 9

Imaginar

A alma úmida de São Paulo


Vladimir Bartalini ............................................................................................................................. 19

Entrelaçar as paisagens na cidade:


reflexões sobre corpo e alma a partir da obra de James Hillman
Sandra Maria Patricio Ribeiro; Dirk Michael Hennrich; Giancarlo de Aguiar .................. 36

Imaginação da matéria e experiência de paisagem:


entrelaçamentos entre cidade e alma
Arthur Simões Caetano Cabral .................................................................................................... 47

Ver a paisagem na metrópole:


interioridade, movimento e linguagem do visível
Francisco Horta de Albuquerque Maranhão ............................................................................ 58

Luigi Ghirri - Fotografia e experiência da paisagem cotidiana


Fernando Lacerda Silva Oliveira ................................................................................................. 73

Sobre a fisionomia da metrópole:


Expressões e impressões do fenômeno metropolitano
Roberto Rusche .............................................................................................................. ................. 89

Anima mundi em tintas:


o valor psíquico da pixação em São Paulo
Guilherme Scandiucci .................................................................................................................. 100

As entranhas da minha cidade:


da geologia à psicologia arquetípica, um diálogo com Hillman a partir da leitura
de "Cidade & Alma"
Cyntia Helena Ravena Pinheiro ................................................................................................. 115

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Projetar

Mediações na construção do sentido social do lugar:


Por uma perspectiva humanista da urbanidade
Cilene Gomes ......................................................................................................... ......................... 126

Reflexões sobre cidade e alma


Priscila Valente Alonso ................................................................................................................. 138

Cidade, alma & urbanismo


Gilberto Alves da Cunha ............................................................................................................... 147

ComunicaCidade, ou como a cidade se comunica


Ivan Fortunato ................................................................................................................................ 158

Relação cidade e natureza:


interface entre Saneamento Básico e Paisagem Urbana
Taís D´Aquino Benicio .................................................................................................................. 179

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Lembrar

A restauração da alma das cidades em tempos líquidos globais


Edgard de Assis Carvalho ............................................................................................................ 191

Embrechados nos coruchéus das igrejas:


arte decorativa integrada à paisagem arquitetônica no recôncavo da Bahia
Cidália de Jesus Ferreira dos Santos Neta ............................................................................ 203

Cidades:
Os modos de produção e a imaginação do trabalho em James Hillman
Wilane Souza dos Santos ............................................................................................................ 216

Do interior para o exterior:


o exílio de Hestia e o lugar do coração na cidade
Angelita Corrêa Scardua ............................................................................................................. 228

Herança de Caim – Reflexão e construção da alma na cidade


Karam Valdo; Thâmara Oliveira Ulle Valdo ........................................................................... 238

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Praticar

Profundidades na cultura dos territórios


Denise Jorge ............................................................................................................................. ...... 247

A alma institucional e seus contornos:


uma leitura arquetípica
Raul Alves Barreto Lima .............................................................................................................. 257

As periferias da cidade e da alma:


relato de uma experiência
Nathalia Carballeira Pereira ....................................................................................................... 269

A alma na favela:
uma leitura hillmaniana sobre a vida na comunidade
Giovana Cataldi ............................................................................................................................ 278

Sob a neblina, os sentidos da paisagem


Catharina Lima, Elaine Albuquerque, Gustavo Seraphim, Hulda Wehmann, Mônica
Bertoldi, Paula Vicente, Tatiana Reis, Vânia Bartalini ........................................................ 290

O caminhar e a errância na cidade


Berta de Oliveira Melo ................................................................................................................ 306

A errância e as cidades em Dom Quixote


Gabriel Pedrosa ............................................................................................................................. 315

Experiência e mal-estar psíquico na cidade de São Paulo:


literatura urbana contemporânea, imaginário e psicologia arquetípica
Rinaldo Miorim .............................................................................................................................. 326

Suicídio:
reflexões arquetípicas sobre a epidemia contemporânea
Rebeca Moreira Nalia .................................................................................................................. 336

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A alma na cidade

Gustavo Barcellos

Psicólogo, autor e tradutor, mestre em Psicologia Clínica pela New School for Social Research de
Nova York, analista didata da Associação Junguiana do Brasil-AJB e membro da Associação
Internacional de Psicologia Analítica-IAAP. Autor, entre outros, de O Irmão: psicologia do arquétipo
fraterno e Psique & Imagem, Editora Vozes. Traduziu e editou vários títulos de James Hillman.
Coordena seminários de psicologia arquetípica desde 1985. Trabalha há mais de 30 anos como
psicoterapeuta e analista em São Paulo..

Trago dentro do meu coração,


Como num cofre que não se pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive…

—Álvaro de Campos
“Passagem das Horas”

I.

Em Agosto de 1993 lançamos no Brasil o livro Cidade & Alma, pela Editora
Studio Nobel. Ali há um trabalho de reunião, seleção e tradução de artigos, até
então inéditos em Português, de autoria de James Hillman — o provocante
pensador e analista junguiano, cuja extensa obra vimos há alguns anos buscando
apresentar em certa parcela ao leitor brasileiro. O livro, que naquele momento
não existia enquanto tal em inglês (sendo assim uma originalidade da edição
brasileira), teve sua versão definitiva, com o acréscimo de outros tantos ensaios
posteriores, como o Volume 2 da Uniform Edition of the Writings of James
Hillman, em 2006. O ensaio de abertura do volume brasileiro, talvez o mais
importante nesse contexto, intitula-se “Anima Mundi: o Retorno da Alma ao
Mundo.” Ele é a transcrição de uma palestra primeiramente proferida por Hillman
em Florença, no Palazzo Vecchio, em Outubro de 1981. O local não é pouco
significativo: são conhecidas as raízes florentinas, ou neo-platônicas, de seu
pensamento, e do aprofundamento que este propõe à psicologia junguiana.
Neste ensaio, especificamente, que marca o início de uma estruturação mais
consistente de seu interesse na revitalização da ideia de uma alma do mundo,

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Hillman trata principalmente de apresentar uma re-elaboração, e portanto uma
ampliação, do conceito de realidade psíquica — tão central para a psicoterapia —
que nos parece muito interessante.

A coragem de rever a noção de subjetividade, ou de refletir sobre o mito


da interioridade, na psicologia profunda, parece-nos de extrema importância
exatamente no momento de uma assim chamada transição: na civilização, em
nossas teorias sobre a psique, em nossas práticas clínicas, nas idéias de uma
ecologia profunda, e no surgimento do que se chama hoje de Ecopsicologia —
um novíssimo e crescente campo de atuação, reflexão e pesquisa que reune às
perspectivas das ciências ecológicas as contribuições teóricas de algumas escolas
de psicoterapia e psiquiatria, principalmente a junguiana, abarcando noções
como a da biofilia, a preocupação com as raízes psicológicas de nossos hábitos
ambientais, e até mesmo a idéia, na formulação de Theodore Roszak, seu
principal teórico, de um “inconsciente ecológico.”

Como junguiano e como pensador da cultura Hillman é, de um modo


portanto renascentista e florentino, um verdadeiro “filho da alma.” Há uma
tendência, que já se encontra em Jung, de voltar a chamar de alma aquilo que,
em nossas teorias e conceitos, virou mais ascepticamente a psique, mas que tem
sido sempre, ao longo da história e para mentalidades menos racionalistas,
reconhecido essencialmente como imagem, metáfora e experiência.

O aprisionamento moderno da noção de subjetividade nas metáforas e


imagens do "interior" — a vida de dentro, a pessoa de dentro, a introversão, o
individual, o inconsciente como um locus apartado do mundo — dá-se na
simetria da “idéia de mundo exterior que nos foi transmitida por Aquino,
Descartes, Locke e Kant”,1 a saber: um mundo que está morto, um mundo
inanimado, que é composto de matéria morta, simplesmente res extensa,
existindo somente a partir de um “eu” então altamente subjetivizado, res cogitans.
Assim,

quando algo dá errado na vida, a psicologia profunda ainda olha


para a intra e a intersubjetividade em busca da causa e da terapia.
O mundo das coisas públicas, objetivas e físicas — prédios,
formulários, colchões, placas de trânsito, embalagens de leite e

1
James Hillman, Cidade & Alma, São Paulo: Studio Nobel, 1993, p. 11.

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linhas de ônibus — é, por definição, excluído da etiologia e da
terapia psicológicas. As coisas permanecem fora da alma. 2

Já há alguns anos Hil lma n ve m se ocupando então em lev ar a


reflexão psicológic a ta mbém par a al é m dos li mites dos consult ór ios
e mesmo da pessoa hum an a. Tod a a psic an á lise, com o a
conhecemos e a pr aticamos desd e o s éculo passado a p artir de Fr eud
e Jung, n asceu em cida des, co mo Vien a e Zur ique, e e m alg uma
medid a se confun de com e las: u ma ativ id ade ur ban a p ar a cid ad ãos
urbanos. Portanto, o enl ace de psyché e polis já está dado desde o
início em nosso campo. Certam ente hoje o inconsciente nã o est á
mais onde esta va n as épocas de Freud e Jung. E sabe mos que
devemos busc á-lo, vi a de regr a, onde nos sentimos mais oprim id os:
é hoje nas ci da des, n a esfera p ública , na burocraci a, na m íd ia , nas
ruas onde parece estarmos aind a m ais à mostra em nossa patol ogia
coletiva e em nossa necessidad e de consci ência. O espaç o públ ico,
no ma is d as vezes, volt a - se cont ra n ós, com fei úr a, desintegr a çã o e
morte; e a m íd ia , nas s ábi as p ala vras de Alfredo Bosi , verteu -se
apenas num mercado de ima ge ns, “dem agógico , violento, porn óide
ou kitsch -sentimental ”. 3 Negócios paran óicos, ed if ícios catat ôn icos
e anor éxicos, consumo e l azer man í acos, institu ições opressoras,
burocracia esquiz ói de, lingu age m convencional , am bientes urba nos
hostis, enormidades delir antes, cifras deprimi das e uma constante
repressão d a belez a, par a n ão di zer, d a a lma . Hoje, quase ce m a nos
depois, a “ci dade ” , o espaç o pú blico comum, p arece estar volt a ndo
para a psi can álise — o que c hama r ía mos, pro pria mente, de um
“retorno do reprimi do. ”

“As coisas perm anecem fora d a al ma, ” disse Hill man . M as,
para nós, o que h á de m ais inte ressante nessa abor dage m é qu e os
ensaios daque le li vro, assi m como as reflexões e traba lhos que
surgiram subsequentemente , transpir am na mesm a medid a a i d éia
contra-culturalmente in versa , apontan do que a al ma perm anece

2
Hillman, op. cit., p. 11.
3
Alfredo Bosi, O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 16.

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fora das coisas , e que foi ela aos poucos expulsa do mundo
princip almente por a queles sen hores e seus sucessores.Um mundo
declara do morto pela trad ição ocidental , que simplesme nte faz
emergir um “sistem a de sujeito s particulares anim ados e obje tos
públicos in ani mados ”, 4 está na r aiz do proble ma hoje da
subjetivi dade . A su b jetivi da de como “problema” s ó pode ser
ultrap assada , nessa p erspecti v a re -apresenta da por H illm an, no
total resgate da i d éia platô nic a de anim a mun di , a alm a do mu ndo
— uma idé ia que j á foi predo mi nante em muit as culturas ao lo ngo
da h ist ória (ch ama das pelos antrop ólogos de pr imiti v as ou
animist as), que est á em Jung, aind a que um tanto p áli da, e “ que
teve sua gl ória em Florenç a com Marsil io Ficino ”, 5 a saber, uma id éia
de alm a do mun do que confere a todos os fen ômenos significa do e
intençõ es intelig í veis.

A parti r dessa perspectiv a, a id éia de uma alm a do mundo —


onde, no lim ite, j á nenhum a int errupção poder á existir entre al ma
do mundo e ‘ minh a’ a lma dentr o de mim — p rofessa essencialm ente
a interiorid ade como uma possi bilid ade de todas as coisas. Note -se
que esta é uma perspectiva que se recusa a enxergar a inter ioridade
nas coisas e no mundo como a simples projeção de nossas pr óprias
fantasi as e humores, pois isso seria recair, retrocedendo, no
para dig ma j á tão inchado , incl usive pela pr ó pria psicoterapi a, de
uma subjeti vid ade pertencente apenas ao hum ano. Entend e-se que
a alm a sofreu um longo processo de ‘subjetivizaç ã o’ distanci an do -
se de seu sentido essencial p la t ônico, que a psicologi a jung ui ana
tenta restaurar com sua noção de uma psique objetiva . Assim, J ung
pode afirm ar que nã o é a alm a que est á em nós, mas nós que
estamos na al ma , com a a mpl i tude de sua ontologi a do esse in
anim a .

Tam bém n ad a h á de m ístico ou transcendental proposto aqui .


Este o ponto nevr álgico da que st ão: a qual id ade de al ma em t udo
refere -se simplesmente a po der mos enxergar — e ler — interiori dade
em todos os eventos; em outras pala vras, enxerg ar a

4
Hillman, op. cit., p. 14.
5
Hillman, op. cit., p. 14.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 12


“inteligib ilid ade form al do mundo fenomenal ”. 6 Não se trata
tampouco de um progra ma ps eudo -político, sustenta do por uma
ingênua f antasi a melhorist a, on de, de posse da id é ia de um a al ma
do mundo , im agin ar í amos estar exergando melhor que os outros as
difíceis questões que o mu ndo nos endereça. Isto seri a liter aliz ar a
anim a mun di , quan do, n a ver dade , queremos psicolog iz á-la , ou
melhor, met aforiz á-l a: isto é, n ecessitamos dela p ara perce ber qu e
todas as cois as expõem um seg undo sentido, um su b -sentido mais
profundo, por assim d izer, onde a imagem d a ess ência da quilo que
são, ou seu car áter, est á à most ra. Anim a mun di :

. . . i magi n emo s a an i ma mu n di co mo aqu el e l ampej o de


al ma especi al , aqu el a i magem semi n al qu e se
apr esen ta em c ada co i sa po r mei o d e su a fo r ma v i s í v el .
En tão , a an i ma mu n di apo n ta as po ssi bi l i dades
an i madas o fer eci das em cada ev en to co mo el e é , su a
apr esen tação sen so r i al co mo u m ro sto r ev el an do su a
i magem i n ter i or ( …) Não apen as an i mai s e pl an tas
al mado s, co mo n a v i sã o r o mân ti ca , mas a al ma qu e é
dada em cad a co i sa, as co i sas da n atu r eza dadas po r
Deu s e as co i sas da r u a fei tas pel o h o mem. 7

II.

Hoje n ão só a a lma do homem , mas pr incip almente a al ma do


mundo est á doente, e são seus os sintomas que m ais nos ating em,
aflige m e agri dem. Pr édios, pa rques e a veni das no di v ã? Be m, a
idéia de um a Ecologi a Profu nda, na tr ilha de um a Psicol ogia
Profund a, parece ir ma is longe. Fala do reto rno da al ma ao mu ndo
como urg ência e como cura. Mostrar a alma como uma possibil id ade
de aprofun damento de e em tod as as coisas; procurar por alm a onde
ela est á fa lan do — na patolo gia de nossas ci dades , de no ssa
tecnologia, de nossas instituiç ões, de nossa política , de nos sos
padrões de consumo, de nos sa ar quitetura , d a m aneir a c omo

6
James Hillman, Psicologia arquetípica: um breve relato, São Paulo: Editora Cultrix, 1992, p. 67.
7
James Hillman, Cidade & Alma, São Paulo: Studio Nobel, 1993, p. 14.

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lida mos com o lixo, na patolog ia da m í di a e do espaç o pú blic o —
pode aos poucos ir recuper ando a percepção da ani ma mund i , e daí
o desejo de recuperar o pr ópr io mundo.

O retorno da alma ao mu ndo, c omo nos propõem essas id éias


novas e tão antigas , pode parec er -nos particularmente interess ante
exatamente no ponto on de d essubjetiviza o enfoque pur a ou
exclusivame nte ecol ógico — tão preso, geralmente sem enxerg á -lo,
unilater almente no arqu éti po materno (a G ran de M ãe nutri dora
universa l), tanto em sua ret órica quanto em suas estrat égias.
Incluindo a urb anid ade e as coisas feitas pelo homem tamb é m como
um campo vá lido de expe ri ên cias e cuida dos eco -lógicos, essa
perspectiv a nos sensibi liz a a to dos aind a m ais, e de outr a for ma,
para a p atologia e a belez a que est á a nossa volt a.

A recuperação d a id éi a de an ima mun di provocou muit as


reflexões e desdobramentos na mente de muitos autores e anali stas.
O próprio Hil lma n fez a id é ia cami nhar em vár ias direç ões,
pesquisando seu imp acto em especial na terap ia da alm a,
enfatizan do sua i mport ância at é mesmo pa ra o setting terapêu tico
(nos pormenores inclusive de seu mobili ár io), sempre no esforço de
relocalizar a reali dade ps í qu ica tamb é m fora do homem —
princip almente , como sabemos, na cida de. T am b ém Jung perseg uiu
essa idéi a, que ele for mulou co mo o misterioso entrel aça ment o de
psique e m at éria , e que est á e m suas consideraçõ es ma is a van ç a das
em torno do aspecto psic óide do arqu étipo (o u mesmo da psique ), e
também em sua recuperaç ão da id éia alqu ímica do unus mund us e
na pesquis a sobre sincronicid ad e.

Mas o que eu re almente go staria de acrescentar nessa


discussão, ain da que de mo do i ncompleto e tentativo, é , por outro
lado, a perspectiv a de um a a l ma n a cid ade , como p ropõe o meu
título. Gostari a de ch am ar a at enção par a a id é ia de lug ar. Ta lvez
uma noção de a lma do mun do, um mundo com alm a, p ossa
realmente começar a se fazer se ntir somente a p artir d a formul a ção
mais i medi ata de u ma alm a no m undo, que se expressa , em pri me iro
plano, como u ma sensib ilid ade para o ‘lug ar.’

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 14


Edwa rd Case y, o fil ósofo da State University de No va York,
tem se dedicado ao tema ao longo de anos, traba lhan do na
intersecção de uma psicolog ia fi los ófica, que mu ito cont ribui p a ra a
ampl iação d as noções da psicologia ar quet ípic a e junguian a. Ele
sugere a necessidade de recob rarmos, a l ém d a ani ma mu ndi , a
sensibilid ade p ara u ma anim a l oci que, em suas p ala vr as, signi fica
“a alm a do lug ar ” — e que n ão deve ser confundi da com o gen ius
loci , “o gênio ou esp írito do l ugar. ” Gen ius loci , um a noção que
percorre v árias tr adições, e nvol ve -nos natur almente com a ret ó rica
do espírito, como guia , protet or, guard ião, devol vendo -nos, em
última an álise, par a as r eal id ades met af ísicas. An im a loci , ao
contrário, como a alm a im anente de um lugar , presente em um lug ar,
“pertence resolutamente ao l ugar , ch ama ndo - nos … par a um
reconhecimento. ” Os lugares “têm alm as que j á est ão neles, lá o nde
estivemos e [onde] estamos pres entemente, incluin do aqu i. ” 8

Assim, pode mos aprove itar as importantes cha ves que uma
reflexão sobre a re alid ade e a i mport ânci a d a noç ão de lu gar nos
dá, em contraste com nossa noção mais comum, no pensam ento
filos ó fico e na vi da di ária , de espaço . Hab itual mente, e quacion a mos
‘tempo ’ com ‘esp aç o’, esses dois “incomensur áveis ” nos quais no ssa
consciência emerge — abstraç ões que ape nas nos e nla ç am na
oposição entre a ordem ( logos ) da sucessão e a ordem ( lo gos ) da
extensão. Nesse pl ano per manec emos no ego, como diz a psicolo gia
profunda . (Então, em nossas qu eixas, fa la mos de “falt a de tem p o ”,
e que não temos “espaço”, nas relações, nos acontecimentos, no
trabal ho, no l aser, no temper am ento.)

Luga r, ao contr ário, nos d á a p a rticularid ade do ‘onde ’ dentro


da imensid ão do espaço; e tudo que particulariz a, como sabe mos,
recobra a alm a. “Os Deuses sã o lugares ,” n a memor á vel frase de
Hillm an, que tenta assim ent ender todas as coisas como suas
epifan ias. O contraste da id éi a de ‘lug ar’ com a de ‘espaço’ afi rma
que ‘lugar ’ tem um nome, um a face, uma p articul arid ade, u ma
lembra nça, u m pro jeto, um a p rofundid ade absorvente , torna ndo

8
Edward Casey, “Anima Loci”, em SPHINX 5, Londres: London Convivium for Archetypal Studies, 1993, p.
130.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 15


poss ível, port anto, nosso reconhecimento . Estamos na alm a, fo ra …
do lugar -comum . A noçã o de espaço, assim como a quela de tem po,
ao serem enormidades — ou infinida des — localizam- nos apen as na
angústia do desconhecimento .

O que C asey afir mou como an i ma loci , al ma do lug ar, estou


aqui reformul ando como a ‘a l ma no mundo ’ . Como se a anima
mundi p recisass e da ex peri ênci a do lugar par a se fazer senti r, p ara
botar- se à mostra. A alm a no mundo, a al ma na cid ade,
precisamente pela pre -posição de lug ar, no (que motivou e sta
reflexão), engendr a em n ós, primeir amente, a consci ência da
priorid ade do lugar em nossas vidas , pois qualquer mo mento no
tempo est á loca liza do num lug a r, onde esti vemos e on de estam os.
E, posteriormente, desperta a s ensibilid ade que desloca , ou reloca,
a rea lid ade ps íquica , ou a lma, fora , assim a mpl ian do -a,
desliteraliz ando um a noção pe rsonalista de subjeti vid ade — uma
subjetivi dade i nflacio nad a qu e entendemos estar na raiz dos
sintomas com que o mundo hoj e nos confronta. Casey : “O ps íq uico
existe — surge e desap arece — no lugar . Est á pri mar iame nte no
lugar.” 9 Anim a loci : a a lma em c ada lug ar e em c ada coisa, em mim
e no mundo, presente na beleza e na fei úr a de todos os lug ares e de
todas as coisas.

Portanto, a construção d a sub jetivid ade , no ponto em que est a


passa pelo esp aç o pú b lico — te ma deste nosso pa inel — sig nifi caria
estender nos sa sensibili dade p ara recuper ar, ma is que a alm a do
mundo, a al ma no mundo : um sutil mas , creio, i mporta nte
deslocamento. A rigor, nesse sentido proceder í amos mais ao m odo
de uma des-construção da subj etivid ade, o que n atural mente est á
implícito ao longo destas bre ves notas.

Essa sensibili dade , vale lembr a r final mente, como sugere o


próprio Hillm an , s ó pode ser acordad a se o chakr a do cora ção
estiver ati vo, an ahat a : aquele a rfar no pe ito que vem dos senti dos
apura dos, que vem dos olhos b em abertos — n ão da mente cr ít ica,

9
Casey, op. cit., p. 131.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 16


que só faz repri mí- los. On de houver essa sensibi lid ade, ha v er á
esperança, aquele “fio de esper a nça, de recomeç o” de que fal a B osi.

Gostaria ent ão de term inar le mbran do a ind a um a vez mais


nosso fil ósofo, deixando no ar uma sua af irm açã o, b as ta nte
significati v a:

O lugar da alma é fora. De lá , talvez, ela venha para dentro.


Ou não.

Referências bibliogr áficas

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia . São Paulo: Companhia


das Letras , 2000.

CASEY, Edward. Spirit and Soul: Essays in PhilosophicalPsychology,


Dallas:Spring Publications , 1991.

_______ _____ _ . “ Anima Loci ”, In SPHINX 5, Londres: London


Convivium for Archetypal Studies, 1993. pp.122- 131.

HILLM AN, James. Cidade & Alma , São Paulo: Studio Nobel , 1993.

_______ _____ __ . Psicologia Arquet ípica: Um Breve Relato . São


Paulo: Editora Cultrix , 1992 .

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Imaginar

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A alma úmida de São Paulo

Vladimir Bartalini
Arquiteto, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Usp, pesquisador do Labparc – Laboratório Paisagem, Arte e Cultura da Fau-Usp.

Resumo
Numa incursão livre pelo tempo geológico e social, tendo por guias cronistas,
artistas e poetas de São Paulo e investigações empíricas sobre sua rede
hidrográfica, busca-se reaver uma das tantas almas da cidade.

Palavras-chave: São Paulo; paisagem; cidade e alma.

“Se cavarmos a terra, encontraremos a água.


O fundo da bacia sagrada, em torno da qual,
em fila, se comprimiriam as almas sedentas,
seria então ocupado por um lago...”
Paul Claudel

Sedimentos e nuvens

Se a alma tivesse um canto onde repousar, talvez a imaginação o


localizasse nas funduras insondáveis, na profundidade indeterminada dos
porões, nos subterrâneos úmidos, mais do que nas águas das fontes e dos rios.
Os terrenos encharcados seriam intumescências da alma a eruptir na epiderme
da terra; a névoa, o seu hálito.

De passagem por São Paulo, em janeiro de 1818, Spix e Martius


registraram que “Neste mês (...) víamos de manhã, muitas vezes, os morros
próximos envoltos em neblina espessa e muito fria, que só se dissipava perto do
meio-dia, ao aparecer do sol”10. Àquela altura, milhões de anos tinham já
transcorrido desde que camadas e mais camadas de sedimentos começaram a
preencher gradualmente a enorme cavidade de um lago remoto, e que o rio Tietê
passara a se firmar como o principal condutor das águas outrora dispersas,
levando-as ao seu destino final no Atlântico.

10
Johann Baptist Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820, Vol. 1,
trad. Lúcia Furquim Lahmeyer, São Paulo, Edusp, 1981, p. 145.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 19


A alma ancestral de São Paulo é aquosa; a cidade é obsedada por fluidos
imemoriais: Pauliceia do “perfume de heliotrópios e de poças”11, a “Londres das
neblinas finas”12 onde “sorri uma garoa cor de cinza muito triste”13.

O sorriso dos campos de Piratininga, quando eles ainda eram inumanos,


anteriores portanto ao branco, ao índio, ao mameluco, não teria muito a ver com
o sorriso dos prados estivais que saturam a atmosfera de aromas frescos e de
cores. Seria antes o sorriso de um terreno drenado, de uma água que entra pelos
poros e rachaduras superficiais da terra em busca de um leito soterrado e de
lençóis puídos. Seria o alternar de distensão e contração dos músculos dos rios:
à inundação sucede o refluxo, que abandona nas várzeas lagoas logo enxutas,
viagem sem retorno de peixes mantidos prisioneiros, ressecados na vazante –
pirá-tininga. Teria sede o sorriso daqueles campos saudosos do lago primordial.

O neologismo “nostalgia”, informa Starobinski14, vem do grego nóstos


(retorno) e algia (dor). A palavra foi aplicada em 1688 numa tese de medicina
para dizer a dor do exílio, doença que acometia principalmente estudantes e
soldados obrigados a deixarem a terra natal15. Ela remete ao desterro – privação
da terra; ao dépaysement (sem equivalente em português) – privação da
paisagem. “O lago é um grande olho tranquilo” que olha e reflete, diz Bachelard16.
No entanto, uma vez sorvida a água e tornada opaca a placa refletora, furta-se à
terra o “aparelho de olhar o tempo”17, o comprazimento narcísico, o espelho onde
o céu “vem tomar consciência de sua grandiosa imagem”18. Restam os vapores, o
meio turvo.

Poderia um jovem estudante e poeta, na metade do oitocentos, resistir à


imersão vertiginosa na alma nubilosa de São Paulo? Se é próprio de um
romântico dissolver-se na natureza, não foi na do Rio de Janeiro, onde viveu a
infância e a adolescência, e de onde veio transferido para cursar a Faculdade de

11
Mario de Andrade, “Noturno”, Poesias completas, edição crítica de Diléa Zanotto Manfio, Belo
Horizonte: Editora Itatiaia Ltda. / São Paulo, Edusp, 1987, p. 95-96.
12
Mario de Andrade, op. cit., “Paisagem No1”, p. 87-88.
13
Mario de Andrade, op. cit., “Paisagem No3”, p. 99.
14
Jean Starobinski, A tinta da melancolia. Uma história cultural da tristeza, tradução de Rosa Freire
d’Aguiar, São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
15
Idem, p. 232.
16
Gaston Bachelard, A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria, tradução de António de
Pádua Danesi, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 30.
17
Paul Claudel, apud Gaston Bachelard, op. cit., p. 33.
18
Gaston Bachelard, op. cit, p. 27.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 20


Direito, que Álvares de Azevedo mergulhou. A melancolia do planalto promovia
melhor a simbiose das almas:

No cinério vapor o céu desbota


Num azulado incerto;
No ar se afaga desmaiando a nota
Do sino do deserto.
Vim alentar meu coração saudoso
No vento das campinas...19

Talvez ele não ouvisse o Anhangabaú, o adoentado “rio do mau


espírito”20, arrastar-se no sopé da Academia, nem o chafariz do Piques, a poucas
dezenas de metros, soletrar seus pingos, mas reconheceria nas mudanças súbitas
do clima a agitação de águas voláteis; no vapor em suspensão, nuvens evadidas
da Serra do Mar; no escoar do líquido, o passar das horas: a fuga da água evoca
a do tempo21.

A instituição da aldeia, da vila, da cidade, da metrópole de Piratininga não


retirou por completo aqueles campos do “fundo escuro” de onde emergiram: só
um mito fundador que incluísse a “água primitiva” poderia legitimar, autorizar os
seus rios, as suas fontes22, aceitar “o elemento úmido, as plantas inchadas de
água, as nascentes, as chuvas relacionadas com a feminilidade”23. Em vez disso,
rezou-se uma missa, fundou-se um colégio, ergueu-se uma paliçada e depois um
muro de pau-a-pique para defender a colina dos ataques que poderiam vir do
leste, do nascente, como se a extensa várzea lamacenta, constantemente
inundada do Tamanduateí já não fosse suficiente para desencorajar investidas
por aquele quadrante. Era do rio que a vila se escondia, era por sua causa que
ela se cobria da cabeça aos pés como as mulheres que, já passada a metade do
século XIX, “punham entre si e o mundo (...) ‘a terrível muralha de um par de

19
Manuel Antônio Álvares de Azevedo, “Crepúsculo nas Montanhas”, em Lira dos vinte anos, Cotia,
Ateliê Editorial, 2000, p. 116.
20
Denise Bernuzzi de Sant’Anna, Cidade das águas. Usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São
Paulo (1822-1901), São Paulo, Senac, 2007, p. 34.
21
“A fuga da água me retraça a do tempo”. Trecho de carta de Antoine de Bertin, citado por Starobinski,
op. cit., p. 234.
22
Eric Dardel, L’homme et la terre. Nature de la réalité géographique, Paris, Editions du CTHS, 1990, p.
81.
23
Idem, p. 88.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 21


rótulas espessíssimas’ e de lá tudo devassavam, ‘salvando sua casta
individualidade dos olhares cobiçosos (...)’”24.

Mas também éramos índios ou mamelucos, e de suas almas selvagens


herdamos o gosto pelos banhos de rio, “com todo o mundo nu”, segundo relato
do padre Manuel da Fonseca25. Esse hábito atávico, considerado atentatório ao
decoro urbano, continuou a ser praticado até desaparecer por completo em
consequência da repressão policial sistemática, no final do século XIX:

No período de 1880 a 1889 caiu sobre a natação feita no


Tamanduateí e no Tietê o peso dessa proibição. Talvez por
causa dos espetáculos de nudismo ou pelo perigo que
ofereciam essas atividades semi-esportivas sobretudo
quando praticadas por menores. Foi no tempo dos Urbanos
– contou Afonso A. Freitas – então comandados por um
veterano da guerra do Paraguai, o major Manuel Vieira. Os
policias chegavam a cercar as duas margens do
Tamanduateí, no trecho da rua Glicério. Os nadadores,
quando percebiam a presença dos Urbanos, apoderavam-
se das roupas – já deixadas amarradas na margem – e
nadavam para o meio do rio. Muitas vezes os Urbanos
acampavam à beira da corrente, à espera dos infratores.
Mas eles nadavam rio abaixo até as matas da chácara de
Dona Ana Machado, pela altura da atual rua Conde de
Sarzedas, e assim conseguiam burlar às vezes a vigilância
dos perseguidores. Nessas batidas distinguia-se – ainda
segundo as notas de Freitas – um “urbano” espantadiço e
nervoso, que se tornou popular entre os frequentadores do
rio pelos nomes de “Assombração” e “Espanta-Gato”26.

O sobrenatural e o interdito povoam os nossos rios. São portadores do


sagrado e do maldito. Há não muito tempo, foi colhido o depoimento de uma
moradora das imediações do rio Pinheiros que atesta, pela memória da sua

24
Ernani Silva Bruno, Memórias e tradições da cidade de São Paulo, Rio de Janeiro, José Olympio
Editora, 1954, vol. I, p. 51.
25
Idem, vol. I, p. 364.
26
Idem, vol III, p. 1246.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 22


infância, esta ambivalência: “Na Ponte do rio Pinheiros, aquela de madeira, tinha
uma assombração (...) Era um fulano que se cobria com um lençol (...) A água do
rio era limpinha, limpinha. A gente não nadava (...) A gente tinha medo, mas eu
ia batizar as bonecas no rio”27.

As margens dos rios eram também o refúgio dos à margem da lei, e suas
barrancas erodidas, o adiamento temporário dos castigos ao escravo insubmisso:

As capoeiras e os capinzais que havia em torno do Tanque


Reúno, no Bexiga, como em outros pontos da baixada em
que corriam o Anhangabaú e o riacho Saracura, serviam
sempre de esconderijo onde se aquilombavam negros
cativos e desordeiros. Era o que dizia em 1831 o
requerimento apresentado por várias pessoas ao governo
da cidade, pedindo permissão até para fecharem os lugares
por onde passava o ribeiro Anhangabaú, para a parte do
Bexiga, em cujas margens se acoitavam ladrões e escravos
fugidos. O tropel dos capitães do mato – escreveu um
cronista – deve ter soado muitas vezes pelas suas barrocas
e pelos seus precipícios28.

O urbanismo sanitarista não foi eficaz na erradicação dos miasmas que


ascendem do fundo do lago ancestral. Eles rondam a Ponte da Tabatinguera de
Almeida Júnior (1895) e azulam palidamente o céu; ensombrecem e dissolvem
no Tamanduateí paredes, muros e peitoris que logo se tornarão morros.
Esvaziam as casas. Na fuga, um pano esquecido na janela assiste ao desfazer-se
em pedra, madeira e minério a obra humana deixada ao abandono29. Passados
três anos, o “Mendigo da Tabatinguera” (1898) é o único habitante daquelas
paragens. O destaque da figura humana não atenua a força dos planos
posteriores e dos fundos: sua perna direita são pinceladas do rio; seu rosto, sua

27
Depoimento de Isaura Teixeira Perrotti em Secretaria Estadual do Meio Ambiente, O rio Pinheiros, São
Paulo: Governo do Estado de São Paulo / Sema, 2002, p. 60, apud Denise Bernuzzi de Sant’Anna, op. cit.,
p. 65.
28
Ernani Silva Bruno, op. cit., vol. II, p. 738-739.
29
“O homem está num combate incessante, o do dia que dá às coisas um sentido, uma grandeza, um
distanciamento, fazendo emergir um mundo, e o da noite, da ‘Terra’, fundo escuro ao qual retorna a
obra humana quando, deixada ao abandono, volta a ser pedra, madeira, metal”, Eric Dardel, op. cit., p.
58.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 23


mão, são da mesma matéria das casas e das pilastras onde se assenta a ponte. A
água é o solvente universal, ela “dissolve mais completamente” 30.

Almeida Júnior – “Ponte da Tabatinguera” e “Mendigo da Tabatinguera”

As paisagens paulistanas de Gregório Gruber rescendem a vapores que,


saídos não se sabe de onde, invadem o espaço e o ocupam por completo,
turvando a visibilidade cabal dos edifícios, da pavimentação, dos objetos que dão
materialidade à cidade. Ao tocarem o chão, condensam-se em limo: o lago
assoma à superfície, aspergido pelas lâmpadas.

Na manhãzinha trivial dos pingados nos balcões dos bares recém abertos,
ou das garrafas térmicas nos pontos de ônibus, quando a luz do céu é mais
mortiça que a das ruas, são notas garoentas que impregnam a atmosfera,
“sonorizando a madrugada”31.

30
Gaston Bachelard, A água e os sonhos, op. cit., p. 94.
31
“Sonoro sereno / Serena garoa / Pela madrugada / Não faço nada que me condene / A sirene toca /
Bem de manhãzinha / Quebrando o silêncio / Sonorizando a madrugada / Passa o automóvel / Na porta
da fábrica / O radinho grita com voz metálica / Uma canção / Sonora garoa / Sereno de prata / Sereno
de lata / Reflete o sol bem no caminhão”. Sonora garoa, canção de autoria de Passoca (Marco Antônio
Vilalba), lançada em 1983.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 24


Gregório Gruber - Paisagens paulistanas

Vestígios

Quando chegamos, já não havia mais lago. Sequer os índios o viram


naufragar, mas nomearam um a um os fios da cabeleira que boiava ainda à tona,
as linhas d’água que tecem a chamada rede hidrográfica da bacia sedimentar de
São Paulo. Batizaram-nos os pagãos, reconheceram e cuidaram de suas almas
singulares: o Tabatinguera do barreiro abandonado; o Pirituba dos juncais; o
Mandaqui dos bagres de hábitos noturnos; o Tremembé dos atoleiros; o Itaquera
da pedra dura; o Saracura das aves de pernas e bicos longos; o Itororó da bica
d’água; o Canindé da arara azul. Estenderam os paris de margem a margem no
Anhembi – o Tietê – e no Tamanduateí. Fartaram-se de peixes.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 25


Thomaz Farkas – Lavadeiras na marginal do Tietê, na década de 1940

A cidade branca serviu-se dos rios, mas não os amou como as lavadeiras
que conheceram seu ondular. Pinturas e fotografias oitocentistas ou do início do
novecentos atestam as margens do Tamanduateí flocadas de roupas e espumas,
e ainda em meados do século XX elas eram vistas perto da ponte das Bandeiras,
no Tietê.

A cidade oficial, no entanto, evitou os rios e suas várzeas, voltou-lhes as


costas, depositando ali tudo o que os lugares prestigiados rejeitariam: o lixo e o
esgoto, e também a casa de detenção, o recolhimento dos alienados, o lazareto,
moradas dos que sofrem e pagam penas. Almas penadas.

Em 1854, o jornal Correio Paulistano comentava que, próximo às margens


do Tietê, no bairro da Luz, “encontram-se um casebres que se dizem hospital dos
lázaros. Quem por aí passar pensará antes que serão apenas ruínas ou taipas
caídas”32. O hospício de dementes estabeleceu-se em plena várzea do
Tamanduateí, entre as pontes do Carmo e da Tabatinguera, até ser transferido
para o Juqueri, em 1906. Na terceira década do século XVIII, na tentativa de
controlar as epidemias de sarampo e varíola, supostamente transmitidas por

32
Ernani Silva Bruno, op. cit., vol. II, p. 734.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 26


escravos vindos de fora, as autoridades determinaram que “os negros deviam
esperar no ribeiro chamado Lavapés – os procedentes de Santos – e no ribeiro
chamado Santo Antônio – os que vinham de Parati ou das Minas Gerais – a tal
visita da saúde”33.

O papel vital das fontes e chafarizes nas práticas diárias dos primeiros
tempos de São Paulo, não gerou afetos e cuidados, ao contrário, motivou
interdições: no final do século XVI estabeleciam-se multas para “qualquer pessoa
que fosse à fonte não tendo lá o que fazer”34 e, no início da segunda década do
século XVII, determinava-se, para conter os sátiros e tranquilizar as ninfas, que
“nenhum homem nem mancebo, de quinze anos para cima, fosse às aguadas e
fontes da vila”35.

A primeira e, talvez, única iniciativa oficial para incentivar o contato


prazeroso com as nossas águas ocorreu em meados da década de 1870, com a
criação da Ilha dos Amores, na margem esquerda do Tamanduateí, quase
beirando a rua Vinte e Cinco de Março, nos fundos do Palácio da Presidência da
Província. Em menos de duas décadas estava arruinada. Os que testemunharam
a fase áurea da ilha disseram ser ela “linda, muito florida e garrida, com seus
canteiros perfumados, com sua pontezinha alta e recurva, à moda chinesa,
deixando lá embaixo a água clara do Tamanduateí”36.

Antes de completar sete anos de existência, as críticas de alguns vizinhos


levaram o zelador da Ilha dos Amores a defender-se e a defende-la numa
resposta que saiu publicada em fevereiro de 1881:

Não é verdade que se reúna na casa de banhos desta ilha grande


quantidade de gente em companhia de mulheres de má vida,
fazendo algazarra, gestos ou proferindo palavras obscenas. (...)
Junto à casa de banho mora a minha família, cujo pudor e

33
Idem, p. 337.
34
Afonso de E. Taunay, São Paulo nos Primeiros Anos, p. 116, apud Ernani Silva Bruno, op. cit., vol. I, p.
280.
35
Afonso de E. Taunay, História Seiscentista da Vila de São Paulo, apud Ernani Silva Bruno, op. cit., vol. I,
p. 280.
36
Judith Mader Elazari, Lazer e vida urbana. São Paulo, 1850-1910. Dissertação de mestrado em História
Social, apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
1979, p. 71. Provavelmente, “a água clara do Tamanduateí” se devesse às obras de saneamento
efetuadas na metade do século, permitindo a abertura de um ramal despoluído rente à rua Vinte e
Cinco de Março, formando-se assim a ilha propriamente dita, conforme relata Paulo Cursino de Moura,
São Paulo de Outrora. Evocações da Metrópole. São Paulo, Companhia Melhoramentos, 3a edição, s/d,
p. 212.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 27


dignidade, pelo meu trabalho, não deixo que sucumba diante da
miséria, nem sujeito àquilo que as famílias do rico não podem
tolerar. É verdade que aos domingos, muitos moços do comércio
aqui vêm e poderão ser um pouco ruidosos em suas
conversações, porém nunca inconvenientes (...). Felizmente não
pediu o queixoso a extinção desta casa, doce refrigério da
pobreza, de quem se lembrou a Província a bem da higiene
pública37.

Passados mais alguns anos, novas críticas, e a imprensa divulgava a ilha como
“depósito de imundícies, foco das mais torpes imoralidades, ninho de
vagabundos e gatunos (...)” 38.

Dizer rios, várzeas, sujeira, doença e rebaixamento moral era dizer a


mesma coisa. Um documento oficial de 1887 falava do péssimo estado dos rios
da cidade e de muitos casos de febre tifoide rondando o córrego Anhangabaú 39.
No relatório enviado em fins de 1914 à Câmara Municipal para justificar a
urgência de se criar o que mais tarde se chamaria Parque Dom Pedro II, leem-se
enormidades como estas do então prefeito Washington Luiz ao referir-se à
Várzea do Carmo, área banhada pelo Tamanduateí no sopé da colina histórica:

(...) é uma vasta superfície chagosa, mal cicatrizada em alguns


pontos e ainda escalavrada, feia e suja, repugnante e perigosa,
em quase toda a sua extensão. (...) É aí que, protegida pelas
depressões do terreno, pelas voltas e banquetas do Tamanduateí,
pelas arcadas das pontes, pela vegetação em moitas, pela
ausência de iluminação, se reúne e dorme e se encacha à noite, a
vasa da cidade, numa promiscuidade nojosa, composta de negros
vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual,
de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de
todas as nacionalidades, e em todas as idades, todos perigosos
(...)40.

37
Judith Mader Elazari, op. cit., p. 72
38
Idem.
39
Ernani Silva Bruno, op. cit., vol III, p. 1190.
40
Relatório do Prefeito Washington Luís Pereira de Souza, de 16 de dezembro de 1914, apud Rosa
Grena Kliass, Parques Urbanos de São Paulo, São Paulo, Pini Editora, 1994, p. 115.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 28


Essas palavras, elas sim repugnantes, embora ditas há mais de um século,
poderiam sair da boca de um prefeito de hoje ou serem, ao menos, condizentes
com o que vai no seu pensamento. Cem anos é pouco para redimir uma água
condenada.

Naquela “vasta superfície chagosa” inaugurou-se um parque. Não durou


muito. Com medo de que, pela ferida aberta, o lago retornasse inundando a obra,
recalcou-se-o, mas os espasmos freáticos tornaram inócuo o curativo.

Quando o século XX despontou, córregos centrais, como o Bexiga, já não


apareciam nos mapas. Tinham sido enterrados. Em breve, outros tantos teriam
o mesmo fim, ganhando, alguns, o status de avenidas. Num deles, o Saracura,
requintes urbanísticos celebraram as suas nascentes com éxedras nas bocas do
túnel da Nove de Julho. Ali, ainda nos anos de 1950, meninos se banhavam na
água das bacias lavradas em pedra. No entanto, diante dessa quebra intolerável
do protocolo, achou-se melhor deixar a água escoar pelo ralo. A hidrofobia se
disseminou. Até o símbolo se deixou secar.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 29


Alice Brill – Túnel da avenida Nove de Julho, década de 1950

Daí em diante, o fluxo das avenidas sobrepôs-se ao fluxo dos rios sem
qualquer veleidade. A água devia vazar o mais rápido possível, escondida e em
silêncio, sem cantar, sem interpor sua voz ao rumor e ao rodar do tráfego. Os
afluentes anônimos, capilares da densa rede hidrográfica, foram deixados à
própria sorte, encaixados entre os fundos das construções, enfiados sob elas ou
acondicionados em tubos tronchos, mal-ajambrados, engendrando becos, vielas,
desníveis insólitos, excrescências que indiciam o seu fluir subterrâneo partilhado
com os esgotos. Esses vestígios são valiosos, apesar da sua feiura e da sujeira.
São manifestações ainda possíveis da alma recalcada.

“Beleza natural sem natureza”41?

Verde, Água Preta, Sapateiro, Aclimação, Tiburtino, Mandaqui,


Tremembé, Carajás, Congo, Anhanguera, Pirituba, Uberabinha, Cambuci,
Pirajussara, Rio das Pedras, Guaimi. Em todos eles, e em muitos outros, a água
insiste no seu canto a bocca chiusa. Sabe-se de feitos espetaculares exibindo rios
dados por mortos, como o Cheonggyecheon, na Coreia do Sul. No entanto, lá
não é a alma que canta. Para ouvir a alma aquosa, para conhece-la em sua
natureza é preciso o silêncio, um abrigo a ser conquistado no próprio pulsar
frenético da metrópole. É justamente no meio do redemoinho urbano que ela
atua de modo mais insidioso. “A Natureza ama esconder-se”, disse Heráclito, e
Mário de Andrade sabia que é num bairro bem central que o mistério engana
mais42.

Para aquele que é atraído pelas profundezas da alma da cidade, encontrar


e reconhecer, em lugares onde se supõe a urbanização plenamente consolidada,
os vestígios da água imemorial sobre a qual se assenta São Paulo, é topar com
preciosidades. Eles são “atos falhos”, portas de acesso ao insondável, e existem
concretamente, materialmente. Em geral, não são ostensivos, ao contrário,
passam despercebidos com facilidade, mas causam certo estranhamento a quem
tem o andar lento e os sentidos atentos. Pode se tratar do avanço esdrúxulo de

41
“Beleza natural sem natureza” é o título de um dos capítulos de Cidade e Alma, de James Hillman,
tradução de Gustavo Barcellos e Lúcia Rosenberg, São Paulo, Studio Nobel, 1993.
42
“Quando as casas baixarem de preço / Lá na cidade, Laura Moura / Uma delas será sua sem favor. /
Será num bairro bem central, / Pra que o nosso mistério engane mais (…).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 30


um piso suspenso sobre um passeio de pedestres, negaceando e, ao mesmo
tempo, dificultando a entrada pela fresta estreita que conduz ao abrigo secreto
da água corrente; ou do guarda-corpo insólito da ponte de um rio que não há
mais; ou de um outro guarda-corpo que, desprovido de sua função, virou floreira;
ou do trecho protuberante da galeria que encerra um córrego, alguns decímetros
acima do nível da calçada, formando um pedestal que proporciona o estar a salvo
do lixo acumulado na grade da boca-de-lobo; ou das caixas abertas a esmo nos
pisos por onde se ouve, ou se vê, o andamento do rio; ou, no mais das vezes, de
corredores estreitos e cegos, linhas tortas e interrompidas que cosem,
canhestramente, o tecido urbano.

A natureza, a água, especificamente, está ali como está no mar ou num rio
que desce solto pela montanha. Para argumentar com a proposta de Hillman de
desliteralizar o natural43, deve-se dizer que, nesses casos, trata-se de natureza
“natural” e “anterior”, sim, e em plena cidade. Apoiado nos exemplos do
animismo, Hillman advoga que “qualquer objeto pode ser animado, ter alma”44 e
que

Qualquer pedra – quer seja no solo, na palma da mão, esculpida


numa estátua, usada como ferramenta, ou respeitada como um
amuleto – pode ser um objeto que fala, ou seja, um totem ou um
fetiche, dependendo de onde é colocada, como é cuidada, e de
que seja ritualisticamente encarada. Todo tipo de coisa pode nos
dar o sentido da beleza (...) dependendo menos de sua origem na
natureza do que do tratamento que recebem por nossas mãos e
mentes. (...) O mundo comum pode liberar a experiência do “dado
por Deus”, uma vez que nos libertemos de identificar essa
experiência somente com a natureza, com aquilo que as mãos
humanas não fizeram. Então, aquilo que disseram os gregos se
torna óbvio: “Todas as coisas estão cheias de Deuses” 45.

Concordar integralmente com esse discurso não implica nem autoriza


desconsiderar a alteridade da natureza, ou seja, da Terra. “Mundo e Terra são
essencialmente diferentes um do outro e, contudo, nunca separados”, diz

43
James Hillman, op. cit., p. 124-125.
44
Idem, p. 124.
45
Ibid.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 31


Heidegger46. Tão problemático quanto separar natureza e cultura, visto que as
próprias ideias de natureza vinculam-se a concepções de mundo, é indiferencia-
las.

“Desentranhar a necessidade de beleza da necessidade de natureza”, como


propõe Hillman47, é perfeitamente cabível, mas não é disso que se trata aqui, e
sim de assumir que a natureza, a Terra, nas suas expressões mais diversas, é algo
irrecusável, inclusive no urbano. Subsumir a cidade como “natureza humana” 48
não revoga o outro termo indispensável para que haja mundo humano, qual seja,
o inumano, ou natural. Foi fora dos muros da polis que Sócrates, com os pés
mergulhados nas águas frescas de um regato e o corpo se comprazendo à
sombra das árvores, envolvido pela fragrância das florações e o coro das cigarras,
travou, com Fedro, o diálogo sobre as quatro loucuras divinas: a profecia, o
delírio místico, a poesia e o amor. Gianni Carchia vê, nesse diálogo, “o lugar
teórico onde, pela primeira vez na história do pensamento ocidental, aparecem
as ideias capazes de circunscrever a paisagem como espaço mítico-epifânico e,
por isso mesmo, estético”49. É o lugar “onde o controle do homem sobre o mundo
é menor, onde o mundo se torna epifania, espaço do evento e do mistério” 50, o
lugar onde “o logos humano, apoiado na vontade da razão, (...) dá lugar à
linguagem da revelação, que não está em poder dos homens mas, antes, dele se
apodera”51.

Quando a polis se estende para além dos seus muros, ela avança sobre a
paisagem, isto é, sobre o espaço insubmisso ao controle absoluto da razão.
Porém, ao ser fagocitado, esse espaço se instala no próprio interior da polis,
como um cavalo de Tróia. O fato dele ser mantido recluso, fora do alcance dos
olhos, não significa que ele não esteja ali, em plena cidade, subterrâneo,
movendo-se imperceptivelmente como as placas tectônicas.

46
Martin Heidegger, A origem da obra de arte, tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel António
de Castro, São Paulo, Edições 70, 2010, p. 121.
47
James Hillman, op. cit., p. 124.
48
Idem.
49
40 Gianni Carchia, “Per una filosofia del paesaggio”, in Paolo D’Angelo (ed.), Estetica e paesaggio,
Bologna, Il Mulino, 2009, p. 216.
50
Ibid., p. 217.
51
Ibid., p. 218.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 32


Beleza sem natureza é possível. Aliás, para alguns pensadores, só cabe
falar em beleza a respeito do que é produzido pela atividade humana 52. Seria
desnecessário, portanto, criticar as iniciativas, talvez questionáveis, de “copiar o
mundo verde”53 ao se pleitear, na cidade, a beleza sem natureza, bem como dizer
que “A beleza urbana não precisaria tirar seus modelos da aproximação com a
natureza selvagem, colocando árvores em vasos e trepadeiras internas,
cachoeiras artificiais barulhentas (...) e plásticos que imitam a aparência do couro
ou pedra”54.

Pode-se entender o título provocativo utilizado por Hillman – “Beleza


natural sem natureza” – como um pretexto para introduzir a ideia de que mesmo
os objetos produzidos pelo homem têm alma, e também para criticar os
simulacros de natureza na cidade, quase sempre de valor duvidoso ou sem
qualquer valor. Mas não seria necessário ir tão longe quando se tem a natureza
natural tão perto, logo abaixo do solo, e tão pervasiva, em plena cidade.

O esforço para desvelar a água e assumir a umidade de São Paulo não se


dá só no sentido de oferecer à cidade coisas belas que satisfaçam a necessidade
que a alma tem de beleza. Trata-se de trazer a própria alma da cidade ao convívio
urbano, com sua umidade vital, cuja recusa pode ser lida como uma preferência
pela morte55.

Não se interprete isso, enfim, como uma elegia ou desagravo à água


negada, reprimida, mas como uma reivindicação da alma para participar da festa,
não apenas como convidada para “abrilhantar” o evento, mas como anfitriã, uma
vez que, tanto quanto nós, ela é dona da casa, frequenta todos os seus cantos e
a inunda com sua emergência fluida, líquida e gasosa. “A água, em seu
simbolismo, sabe tudo reunir”, diz Bachelard56. Sem ela, sem a sua umidade
multifacetada e polissêmica, não haverá glória alguma, a festa será dispersa,
exangue, desanimada, ou terá uma animação postiça, caso ostentações fúteis lhe
soneguem o recolhimento substancial. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: a

52
Para Schelling e Hegel, informa Paolo D’Angelo, a beleza natural é apenas um reflexo da beleza
artística, e para Lukács seria mesmo um equívoco falar em beleza natural. Paolo D’Angelo, Filosofia del
paesaggio, Roma, Quodlibet, 2010, pp. 83-84.
53
James Hillman, op. cit., p. 125.
54
Ibid.
55
Maurice Merleau-Ponty, Conversas, tradução de Fábio Landa e Eva Landa, São Paulo, Martins Fontes,
2004, p. 24.
56
Gaston Bachelard, A água e os sonhos, op. cit., p. 155.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 33


alma se manifesta nos limiares, nas entrelinhas. Para o caso de São Paulo, vem
a calhar o comentário de Bachelard sobre um ensaio de Claudel:

Essa água interior, esse lago subterrâneo de onde surge um altar,


será uma “bacia de decantação de águas poluídas”. Por sua
simples presença ela purificará a enorme cidade. Será uma
espécie de mosteiro material que orará sem cessar na intimidade
e na permanência de sua única substância 57.

Referências bibliográficas

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Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda. / São Paulo: Edusp, 1987.

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HILLMAN, James. Cidade e Alma, tradução de Gustavo Barcellos e Lúcia


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57
Idem, pp. 155-156.

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tradução de Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 35


Entrelaçar as paisagens na cidade:
reflexões sobre corpo e alma a partir da obra de James Hillman

Sandra Maria Patricio Ribeiro; Dirk Michael Hennrich; Giancarlo de Aguiar

Sandra Patrício é docente do Depto. de Psicologia Social e do Trabalho do IPUSP e vice


coordenadora do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Intervenção (LAPSI); é colaboradora
do CFUL e seus temas centrais de pesquisa são a mitopoética da cidade e o ethos contemporâneo.

Dirk Michael Hennrich (CFUL/FCT) é bolsista de Pós-Doutoramento da FCT/Portugal, concluiu o


seu doutoramento na Universidade de Lisboa em 2014 e é colaborador estrangeiro do Lapsi-USP
e atua principalmente na área da Filosofia da Paisagem.

Giancarlo de Aguiar é pós-doutorando vinculado ao Lapsi no Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo – IPUSP. É membro do CFUL. Mestre em Filosofia da Natureza e do
Ambiente, Doutor em Filosofia da Cultura pela Universidade de Lisboa.

Resumo
Partindo das ideias de James Hillman a respeito da alma, do caminhar e do
cosmos, este ensaio busca discutir como se poderia ampliar o entrelaçamento de
alma e cidade. Destaca-se o quanto Hillman, mormente pelas imagens que
emprega, reporta a alma ao corpo: o corpo do homem; o corpo do mundo. A partir
destas imagens, os autores propõem reflexões sobre o caráter estético mas
também necessariamente cinético da experiência da paisagem, e da cidade como
paisagem. Questiona-se, todavia, o fato de que, hoje, cidade e paisagem
encontram-se excessivamente apartadas: haveria uma ação anti-natura na
condição humana? Qual seria o modo ou meio de reintegrar o estatuto da pessoa
humana no habitat original? Nas paisagens naturais, na cidade ou na aldeia? A
reaproximação, defende-se, depende da restauração de possibilidades de
experienciar a cidade (antes de mais, de caminhar por ela), e de repensá-la em
termos dos atributos arquetípicos transpessoais expressos na natureza.

Palavras-chave: Alma; Experiência; Arquétipos.

Desejamos contribuir para o propósito de discutir e ampliar o


entrelaçamento de alma e cidade a partir do pensamento de James Hillman e,
nesta direção, procuramos comunicar nas páginas seguintes algumas
ressonâncias que suas ideias sobre a alma, o caminhar e o cosmos provocam em
nós, autores. Talvez não seja supérfluo sublinhar que “comunicar algumas
ressonâncias” não é o mesmo que parafrasear Hillman, ou aderir inteiramente
ao seu modo de pensar – bem diferente disto, aproximamo-nos de Hillman de
modo ambivalente, embora sincero. Não nos parece pertinente nenhum outro

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 36


modo de discussão de um pensamento como o de Hillman: trata-se de um tal
modo de pensar e falar que, ou bem produz ressonâncias e então adquire vigor
em quem o escuta, ou bem não as produz, e então é inócuo – ou mesmo objeto
de duras renegações (como ele próprio ressentia). Aplica-se ao pensamento e à
obra de Hillman, talvez ainda melhor que ao seu contexto original, a famosa frase
com que Wittgenstein inicia seu Tractatus Logico- Philosophicus: “Este livro
talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si
próprio o que nele vem expresso – ou, pelo menos, algo semelhante”.
(WITTGENSTEIN, 2008, p. 131) Assim, parece-nos que escutar Hillman e deixá-
lo ressoar em nós (em tudo o que somos e sabemos, ou julgamos ser e saber)
vem a ser o único modo de seguir cultivando a ampliação do entrelaçamento de
alma e cidade – tema deste nosso colóquio – que ele, tão enfaticamente,
ressaltou e defendeu.

Nosso ponto de partida será a consideração de três imagens propostas em


O mito da análise: três ensaios de psicologia arquetípica: a alma como
“substância vaporosa”, como “esponja” e como “enredamentos”. Diz o autor:

... a alma pode ser muito melhor imaginada, como na Grécia


antiga, como um fator relativamente autônomo formado de
substância vaporosa. Podemos então concebê-la como sendo
dependente e vulneravelmente porosa. (...) O campo emocional,
imaginário e interior da psique, a metáfora radicante do analista,
é fluido por natureza e não pode ser limitado a um “eu” ou “meu”.
(...) Não um diamante, mas uma esponja, não uma chama
particular, mas uma participação fluente, uma entrelaçada
complexidade de fios cujos enredamentos também são “teus” e
“deles”. (HILLMAN, 1984, pp. 31-32)

A imaginação da alma como uma substância vaporosa talvez seja, deveras,


a mais arcaica. O vocábulo grego psiqué, donde deriva psicologia1, significou
originariamente sôpro ou alento. Do ponto de vista da etimologia, verifica-se que
o vocábulo psiqué, tal como alma e espírito, provêem todos de raízes do indo-
europeu que exprimem a idéia de “soprar”, “respirar”. Assim, por exemplo, os
substantivos latinos anima (= “hálito, alma”) e animus (= “ânimo, brio, coragem”)

1
Ao que tudo indica, a palavra “psicologia” foi cunhada no século XVI, ou às suas vésperas,
pelo poeta Marko Marulic (1450-1524). Vide: KRSTIC, 1964.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 37


derivam do substantivo grego ánemos (= “vento”); o substantivo latino spiritus
(= “vento, hálito”) relaciona-se com o verbo spirare (= “soprar”); o sânscrito
atmán (= “respiração”, e daí “alma”) (BESSELAAR, 1994, pp. 277- 290); do
ponto de vista filológico, psiqué relacionou-se, ao longo das eras, tanto à
substância etérea que se exalaria no último suspiro, deixando o corpo, antes vivo
e ativo, reduzido à condição de cadáver inerte quanto, por extensão, aos
princípios ou causas finais de todas as manifestações da vida 2. O Dicionário de
Termos e Nomes Filosóficos de Garth Kemerling apresenta um conciso relato
deste percurso, que vale a pena transcrever:

ψυχη [psiquê] – termo grego para a alma como princípio essencial


da vida e locus da consciência. Embora utilizado pré-
filosoficamente apenas em referência ao “sôpro vital”, o termo foi
associado pelos filósofos pré-socráticos, inclusive especialmente
por Anaxágoras, como um princípio explicativo. O pensamento
pitagórico propôs que a psique fosse compreendida como o
elemento persistente na vida de um indivíduo. Platão ampliou
essa visão fazendo um relato detalhado da alma tripartite, e das
virtudes associadas a cada parte, e argumentando sobre a
imortalidade de seu componente racional. Aristóteles restaurou o
sentido amplo do termo, usando-o para as diversas funções
características dos seres vivos em geral. Pensadores
neoplatônicos fizeram da psique o princípio cósmico de todo o
movimento. (KEMERLING, 2012)

É, de fato, interessante contemplar pausadamente os significados


atribuídos à palavra psiqué ao longo dos séculos – infelizmente, não o
poderíamos retratar aqui; apenas gostaríamos de destacar que, desde a
antiguidade, concepções físicas e metafísicas da alma coexistiram, e mesmo
mesclaram-se, em diversos pensadores3. O que caberá agora é sublinhar o
caráter fisicalista das imagens aplicadas por Hillman à alma na passagem
supracitada: “substância vaporosa”, “esponja”, “enredamentos” – cada uma

2
No verbete que dedica à palavra psiqué em seu Dicionário Mítico-Etimológico, Junito Brandão
acompanha alguns de seus sentidos míticos e filosóficos mais remotos, indiciados por
figurações da alma ainda na Idade do Bronze, passando pelos grandes poemas homéricos, até
a época helenística (BRANDÃO, 2010).
3
Encontra-se uma exposição particularmente sintética e clara desta coexistência (e mescla)
em ROSENFELD (1984).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 38


delas reporta a alma ao corpo – o corpo do homem; o corpo do mundo – e dá,
por si mesma, muito em que pensar.

O vapor, para começar, desde os alquimistas e ainda para os químicos e


físicos nossos contemporâneos, é percebido como um corpo sui generis, cujo
peculiar estado sustenta-se num equilíbrio delicado entre a densidade dos
líquidos e sólidos e a sutileza impalpável dos gases – um estado ambíguo (mas,
é importante frisar, sempre material), às vezes espontâneo e natural, às vezes
alcançado apenas sob condições estritas. De qualquer modo, um estado sempre
no horizonte de possibilidades de todas as coisas, vivas e não vivas. Também a
esponja pode simbolizar esta composição ambígua: corpo denso e poroso (como
a terra) que, por isto mesmo, pode absorver e conter em si (e, em algum momento
e sob certas condições, expelir de si) todos os elementos mais sutis – novamente:
líquidos e gasosos. Ambas as imagens, aliás, ligam-se ao movimento e à
interação com outros corpos: o vapor expande-se e ascende e, assim, pode
empurrar ou ser empurrado, contido, por outrem; a esponja expande-se e se
comprime (movida por si mesma, ou por outrem) e, assim, pode absorver e
expelir. Esta justaposição de imagens relativamente densas, delimitáveis,
sensíveis, compressíveis, corpóreas – o vapor e a esponja – reforçam as menções
à corporeidade da alma, dispersas por toda a obra de Hillman. Para finalizar este
tópico, um breve comentário sobre a imagem do enredamento de fios: note-se
que não se trata de trançamento, enovelamento ou tecido, que indicariam uma
ordem visível; o enredamento, embora não descarte a possibilidade de uma
ordem oculta, sugere uma aparente desordem que dificulta discernir um fio do
outro e determina que todos eles se movam conjuntamente – ao mesmo tempo,
faz ressaltar o fato de que, embora emaranhados, os fios se mantém
individualizados, não se desfazem uns nos outros (o que poderia ser indicado,
por exemplo, pela imagem do amálgama). A imagem do enredamento de fios é,
sem dúvida, utilizada como alegoria das coletividades humanas e, igualmente,
das interações dos homens, entre si e também com todas as coisas vivas e não-
vivas, naturais e construídas, presentes em seu ambiente. Mais uma vez, pode-se
depreender desta imagem o fundamento corpóreo da alma do homem e da alma
do mundo, ambas entremeadas. É, a nosso ver, uma reiteração imagética da
afirmação de Jung: a alma é, ao mesmo tempo, “reflexo do mundo e do homem”
e em seguida, na mesma página, que a alma é “o único fenômeno imediato [do]
mundo percebido por nós, e por isto mesmo a condição indispensável de toda

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 39


experiência em relação ao mundo”. (JUNG, 1984, p. 83). É sob a inspiração de
tais imagens que tomamos em consideração as proximidades que Hillman
estabelece entre a alma, o mundo e o caminhar – em especial, em: Anima mundi.
O retorno da alma ao mundo (1980/1981), e Caminhar (1980)4.

Pensar a alma como reflexo do mundo e do homem, como plena


possibilidade, e neste caso essencialmente como abertura, remete também à uma
definição neo-platónica da alma como horizonte, como linha (infinita) entre céu
e terra. Uma questão central da Filosofia da Paisagem acerca da essência do
pensar, discorda com a ideia do pensar como um ato meramente psíquico,
porque ressalta a importância da relação entre pensar e viajar, entre a experiência
física e a experiência psíquica. Ambos os conceitos, pensar e viajar, se fundem no
gesto de caminhar compreendido como uma experiência progressiva do
movimento do corpo que perpassa o espaço e que sintetiza perpetuamente todos
os possíveis dados percebidos. O conceito de experiência no sentido do termo
latim ex-periri com o significado de tentar e provar mas também no sentido da
viagem, que é ainda mais nitidamente expresso no termo alemão Erfahrung, é
um termo fundamental para a experiência moderna. Mas, como ressalta Hillman
em Caminhar, o humano que apenas sobrevive nas cidades modernas perdeu a
sua relação com o corpo, em prol das novas formas de mobilidade. As cidades
poderiam ser experimentadas e perpassadas como uma paisagem, mas o que
ocorre é que as cidades, sobretudo as grandes metrópoles como São Paulo, se
transformaram em meras aglomerações dominadas pelo trânsito incansável e
exaustivo dos carros. Fazer da cidade uma paisagem significaria, antes de mais,
a restituição da cidade para o pedestre, para o caminhante, abrindo caminhos
livres do trânsito massivo, criando lugares de repouso ao corpo e abertura ao
olhar (praças, parques, mirantes). Significaria desprender a cidade do negócio e
da ideia de perda do tempo, e, ainda mais, do espírito de caça e de sobrevivência,
para retribuir à cidade o ócio; significaria projetar e viver, como escreve Hillman,
“[...] a cidade como um lugar da alma, porque permite às nossas almas suas
pernas, às nossas cabeças suas faces, e aos nossos corpos seus estilos animais.”
(HILLMAN, 1993, p. 57)

A experiência de uma paisagem, e da cidade como paisagem, é esté tica


mas antes de tudo necessariamente cinética. O pensamento está́ sempre em

4
Ambos os textos encontram-se incorporados ao livro Cidade & Alma (HILLMAN, 1993).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 40


movimento, sempre progredindo, embora necessariamente interrompendo o
mero fluxo, para refletir os passos conseguidos. Experiência abrange sempre
inevitavelmente kinesis e aisthesis, constitui-se não somente no movimento mas
também na interrupção, pois nenhuma experiência se realiza e consciencializa
num progresso ininterrupto, num mero avançar sem pausar. Experiência significa
movimento e a-firmação porque necessita de reflexão, isto é, intervalo,
distanciamento e revisão. Assim será́ possível reconhecer, atravéś s da relação
entre experiência [Erfahrung] e aventura [Abenteuer], entre experiência e
progresso, o modo como o corpo perpassa a paisagem e a paisagem da cidade.
A experiência necessita de espaço e distância, necessita de um movimento
progressivo, porém sempre interrompido, para possibilitar a reflexão sobre o
espaço [caminho] já percorrido, para poder sintetizar, e não apenas calcular, as
impressões recolhidas. No entanto surge aqui uma diferenciação entre o conceito
de experiência e o conceito de vivência [Erlebnis] que pode ser exemplificado
através da diferença entre o caminhante e o caçador. O caçador transforma a
paisagem em mato e o seu objetivo é apenas a caça, enquanto o caminhante
torna o mato em paisagem sendo o seu objetivo o caminho. A experiência
ocidental é antes de tudo Abenteuer, que tem a sua origem no francês aventure,
tendo esta palavra a mesma raiz como o português aventura provindo do latim
advenire e significando aquilo que está a chegar que acontecerá, o acontecimento
[Ereignis]. Contudo, a experiência da paisagem no perpasso progressivo não é
mera vivência no seu sentido moderno, criticado por autores como por exemplo
Walter Benjamin. (BENJAMIN, 1991, pp. 962-970) A vivência é nesta crítica
apenas o material bruto da experiência, ou mais precisamente, apenas a
impressão superficial daquilo que a experiência põe à disposição. A experiência é
diluída pela sensação, pela vontade de sensações fortes e passageiras,
encontrados na vivência que corrompe o teor duradouro da experiência. A
aventura tornou-se refém da vivência, embora se deva se tornar outra vez um
acontecimento para recuperar o sentido original da aventura. A aventura
industrializada, como a guerra, o shopping-center, o parque de diversões ou
simplesmente a passagem, num carro de alta velocidade, de um ponto a outro da
cidade, vulgarizou os seus verdadeiros protagonistas, dispensou-se do herói
trágico que lutava contra as quimeras. O progresso físico e a passagem psíquica
sempre inclui colher, ler e sintetizar o experimentado. A experiência é assim por
um lado a síntese daquilo que é aparentemente disperso e manifesta-se no facto

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 41


de ver algo diferente e não sempre igual. A experiência progressiva e ambulante
da paisagem é na sua descrição meramente física comparável com as leituras de
um texto, com a leitura de uma história descobrindo página a página as diferentes
camadas e vínculos da paisagem contemplada. Nós lemos o mundo com os
nossos sentidos e não nos restringimos neste caso aos nossos olhos e ao nosso
ouvido. Vivemos, como Hillman aponta em Caminhar (p.55), numa cultura do
olhar e perdemos as múltiplas possibilidades de experienciar as paisagens e as
cidades com todos os nosso sentidos, com o nosso corpo em movimento, com o
nosso corpo compreendido como um corpo de ressonância, ou justamente como
uma “esponja”, porque o nosso corpo em movimento é alma, e a nossa alma
necessita do nosso corpo para se expandir entre os confins do céu e da terra. A
palavra ler refere-se assim, e ao contrário do senso comum, em primeiro lugar a
uma experiência táctil. Lemos com os nossos dedos, na época das colheitas, as
frutas das árvores e assim também lemos tudo o que cresce no mundo – os frutos
do mundo. Somente assim o olhar e o ver se tornam um conceber, e o conceber
um autêntico pensar, sempre referido a uma experiência corporal e não apenas
espiritual. Tudo se inicia com a leitura das paisagens e da cidade enquanto
paisagem; criar conceitos é como colher frutos na beira dos caminhos onde se
abre a floresta dos signos que constitui o cosmos.

Entretanto, o ser humano, nos últimos tempos, de pouco em pouco, foi


perdendo substancialmente a capacidade desta leitura natural do mundo,
ficando portanto sem condições de tecer uma verdadeira e profunda leitura da
paisagem natural; vincula-se então às novas realidades artificiais desenfreadas,
de poluição senso-perceptiva pelos slogans, marcas e demais ícones da realidade
frenética da cidade, que é também corrompida pelo asfalto asfixiante entre
construções de cimento, plástico e vidro. Refletimos sobre a perda da natureza
anímica do cosmos pelo afazer humano em determinadas realidades fabricadas
ao constituir o mundo que se distancia da Natureza. Está implícito na obra Cidade
e Alma de James Hillman que é preciso um retorno da alma ao mundo que perdeu
o seu próprio sentido de vida e existência. Haverá uma ação anti-natura na
condição humana? Qual seria o modo ou meio de reintegrar o estatuto da pessoa
humana no habitat original? Nas paisagens naturais, na cidade ou na aldeia?

Encontramos na obra de Hillman a psicologia profunda juntamente com


a práxis pela ecologia; vemos a importância da presença dos reinos e elementos
da natureza na polis e demais paisagens que compõe os horizontes da cidade,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 42


que é a base para a vida saudável dos cidadãos que co-criam as diversas
realidades em seus múltiplos cosmos, e vemos as consequências patológicas de
sua ausência; somos defrontados com o fato de que na atualidade o humano vive
na ausência do bíos natural, e se condiciona na vida artificialmente construída,
geradora não somente de uma crise da existência, mas sim a destruição da
própria vida:

“A crise se estende a todos os componentes da vida urbana,


porque a vida urbana é agora uma vida construída: não vivemos
num mundo biológico onde a decomposição, fermentação, a
metamorfose e o catabolismo são equivalentes para o colapso
das coisas construídas.” (HILLMAN, 1993, p. 12)

A ausência de elementos naturais na cidade provoca hiatos


desestruturantes na consciência humana. O retorno da alma ao mundo exige o
entrelaçamento da paisagem e da cidade, o essencial intervalo de elementos da
natureza, presentes em cada um dos cenários que constituem a cidade. Eis a
precisa e renovada presença numinosa da anima mundi no ambiente
cosmológico do humano, como nos esclarece Hillman:

... imaginemos a anima mundi nem acima do mundo que a


circunda, como uma emanação divina e remota do espírito, um
mundo de poderes, arquétipos e princípios transcendentes às
coisas, nem dentro do mundo material como seu princípio de vida
unificador panpsíquico. Em vez disso, imaginemos a anima
mundi como aquele lampejo de alma especial, aquela imagem
seminal que se apresenta por meio de cada coisa em sua forma
visível. (HILLMAN, 1993, p. 14)

A percepção do mundo pela condição humana requer uma nutrição dos


sentidos pelo próprio meio envolvente, da corporalidade da alma que se estende
para além do próprio ser, mantendo a correspondência com o ambiente, a
natureza em seus elementos exteriores. Encontramos em Hillman, fazendo
ressoar pensadores como Jung e Bachelard, a mesma relação entre as funções
psíquicas: o pensar, o sentir, o intuir, a sensação, e os elementos: ar, a água, o
fogo e a terra. Compreendemos o profundo comprometimento desta visão com
uma psicologia ecológica, onde o ser humano encontra o seu sentido ontológico

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 43


pela experiência ambiental, planetária, cósmica. Toda a realidade que se mostra
no seu universo simbólico representa o cosmos experienciado pela condição
humana:

Então, a anima mundi aponta as possibilidades animadas


oferecidas em cada evento como ele é, sua apresentação sensorial
revelando sua imagem interior – em resumo, sua disponibilidade
para a imaginação, sua presença como uma realidade psíquica.
Não apenas animais e plantas almados como na visão romântica,
mas a alma que é dada em cada coisa, as coisas da natureza
dadas por Deus e as coisas da rua feitas pelo homem. (HILLMAN,
1993, p. 14)

Entretanto, recusando o animismo de um Deus Natureza que oferece o


mundo natural de seus reinos e elementos para o humano viver, os homens vêm
construindo um mundo cada vez mais longe da Natureza. A realidade artificial
produzida pelo humano ocasionou na substancial perda de sua própria alma, e
da alma do mundo natural que já não é mais o seu. O humano atual, sobrevivente
num mundo sem alma, procura na ausência de si-mesmo reestabelecer o vínculo
originário com a anima mundi. Ao discorrer sobre Alma e Mito, Hillman afirma a
importância de experimentar a alma na sua expressão mítica: “abrir as questões
da vida à reflexão transpessoal e culturalmente imaginativa.” (HILLMAN, 1983, p.
45). A experiência da imaginação, dos atributos arquetípicos transpessoais
expressos na natureza, de uma cultura voltada para a paisagem natural, do
repensar as ideias de paraíso e cidade, seriam meios ao alcance do homem –
meios em escala humana – para tratar de regenerar a anima mundi. Assim,
Hillman revela a importância da função criativa: “É uma psicologia
deliberadamente ligada às artes, à cultura, e à história das idéias, na forma como
elas florescem da imaginação.” (HILLMAN, 1983, p. 21) Qual será o papel do
cidadão – seus valores, sua conduta – na busca do regenerar da anima mundi?
Parece que, em certa medida, Hillman responde-nos esta questão com a seguinte
afirmação: “A formação será baseada no coração sensitivo e imaginativo:
provocá-lo e educá-lo.” (HILLMAN, 1993, p. 20) Com isto chegar-se-á ao
arquétipo fundamental da alma do mundo expressa no cotidiano da vida
humana, na cidade transformada em paisagens, em cada aldeia, vilas com

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 44


árvores e elementos naturais, nas ruas com intervalos de espaços onde a arte e o
verde possam tecer horizontes de contemplação, experiência e respiração.

Acreditamos que as reflexões acima levantadas apontam para algumas


das problemáticas essenciais das grandes metrópoles como São Paulo:
megalópoles rendidas ao espírito do negócio, da sobrevivência, da caça e do
asfalto, desprovidas das possibilidades do corpo anímico e animal, animado por
uma alma, afastadas e alienadas dos elementos naturais, das paisagens, do
orgânico em geral. Entrelaçar as paisagens na cidade e devolver a cidade ao
caminhante, a uma experiência sensitiva e corporal com os elementos naturais, é
um aspecto fundamental para um reencontro entre corpo e alma e para
incentivar a superação do ódio e do medo perante o natural, que tem dominado
a cultura técnico-industrial.

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Imaginação da matéria e experiência de paisagem:


entrelaçamentos entre cidade e alma

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 46


Arthur Simões Caetano Cabral

Arquiteto e mestrando pela FAU-USP, pesquisa as manifestações da natureza e a paisagem em


espaços urbanos residuais, sob orientação do Prof. Dr. Vladimir Bartalini. É pesquisador junto ao
LABPARC | FAU-USP.

Resumo
Este artigo propõe a investigação das relações entre a imaginação da matéria e as
possibilidades de experiência de paisagem no meio urbano. Admitindo-se que a
fruição paisagística pressupõe uma especial relação com a natureza e que nas
cidades contemporâneas, contudo, a natureza não parece ter acolhimento senão
em áreas excepcionalmente reservadas a ela, pode-se deduzir que as
oportunidades de experiência de paisagem se mostram igualmente excepcionais
em tais contextos urbanos. Acredita-se que é pela imaginação da matéria, nos
termos de Gaston Bachelard, que o potencial paisagístico dos espaços urbanos
nos quais a natureza se imiscui virá à luz. Supõe-se que os indícios da natureza
presentes nos interstícios do urbano, ao manifestarem sua potência original,
suscitem imagens que participam de uma poética da paisagem.

Palavras-chave: experiência de paisagem; imaginação da matéria; cidade e alma.

Introdução

Entre acepções diversas, a paisagem pode ser compreendida como a


experiência pela qual nos relacionamos sensivelmente com a Terra. Situada a
meio caminho entre o sujeito e o objeto (BERQUE, 2011), a paisagem nasce da
interação entre dimensões humanas, totalmente subjetivas, e não humanas,
totalmente objetivas, não se restringindo a qualquer uma delas. Sob essa
perspectiva, a experiência da paisagem resiste a ser classificada como um fato
objetivo dócil a mensurações ou a análises que a decomponham. Ela implica,
antes, uma “exposição da subjetividade a algo como um ‘fora’ que a conduz,
lançando-a, às vezes violentamente, para fora dos seus limites” (BESSE, 2009:
52).

Por corresponder à relação entre o homem e a Terra, a paisagem se


associa diretamente ao reconhecimento sensível da natureza1, em sua condição

1
Há também estudos que afirmam, no referente à percepção estética da natureza, que percebemos não
propriamente coisas, mas atmosferas, sendo tais atmosferas não meras reações subjetivas, mas “semi-
coisas”. Prova de que não se trata unicamente de disposições do sujeito são “aquelas situações em que
advertimos a discrepância entre o nosso sentir e a atmosfera que nos vem ao encontro”, conforme diz

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 47


inumana e completamente estranha ao homem, que "age acima de nós, acima
das nossas esperanças e da nossa vida, com a majestade sublime, com a
indiferença que distingue cada gesto seu"2. Considerando tal associação, pode-
se inferir que a fruição paisagística seja evento raro e até mesmo excepcional nas
grandes cidades contemporâneas, cada vez mais artificializadas e nas quais a
natureza é chamada a comparecer apenas em situações excepcionais – parques,
praças, jardins públicos – e sob a forma de elementos naturais amansados,
destituídos, em grande medida, da potência pela qual ela se mostra sempre
misteriosa e estranha ao homem.

Sendo assim, deveríamos aceitar, de antemão, que os grandes centros


urbanos são o espaço da negação da paisagem? Deveríamos nos conformar com
a hipótese de que a alma das cidades contemporâneas advém por completo do
artifício, sendo absolutamente refratária aos elementos naturais que escapam
indômitos ao fazer humano? Caso contrário, de que modo a natureza, que anima
em nós imagens as mais diversas, pode se oferecer ao reconhecimento estético
no meio urbano, permeando a alma que habita a cidade, por assim dizer, e
abrindo oportunidades à fruição paisagística? Analogamente, de que maneira o
reconhecimento sensível das manifestações da natureza pode ser contemplado
na proposta de "uma ecologia que restaura a alma" na cidade à medida que
"restauramos a cidade em nossos corações individuais, a coragem, a imaginação
e o amor que trazemos para a civilização" (HILLMAN, 1993: 38)?

Para que ponderemos estas questões, a princípio, cabe assumirmos que,


nas cidades contemporâneas, a experiência de paisagem impõe considerar
enfoques outros que não os estritamente objetivos ou apoiados na simples
visualidade, até porque é improvável que a natureza seja “objetivamente”
encontrada em meio ao urbano, onde ela parece estar alijada por completo. Em
termos gerais, podemos inferir que a paisagem pode ser experienciada em setores
singulares da cidade que conservam ainda traços fisionômicos do sítio original,
pelos quais seja possível o seu reconhecimento, ou em interstícios encravados

Paolo d’Angelo ao referir-se ao “modelo atmosférico” desenvolvido por Gernot Böhme. E diga-se
também, de passagem, que pode-se mesmo considerar a paisagem refratária à representação. É a posição
de Erwin Straus para quem a pintura da paisagem “não representa o que vemos, em particular o que
registramos ao considerarmos um dado lugar (...), ela torna o invisível visível, mas como coisa roubada,
afastada” (STRAUS, 2000: 382).
2
RILKE, Rainer Maria. “Del paesaggio / Introduzione”. In. Estetica e paesaggio. Coordenação: Paolo
d’Angelo. Bolonha: Il Mulino, 2009. Trad. Vladimir Bartalini. PaisagemTextos - Vol. 3. São Paulo: FAU-USP,
2016. p. 78.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 48


entre o intencional e o inintencional (ou inconsciente), onde a natureza e as
imagens a ela relacionadas afloram em sua espontaneidade, assumindo
manifestações sensíveis e podendo ganhar expressão poética. Neste artigo,
propomos, assim, a reflexão sobre possíveis nexos existentes entre a imaginação
da matéria e a experiência da paisagem.

A proposta dessa reflexão se ampara, fundamentalmente, no pensamento


de Gaston Bachelard, segundo o qual os estudos das emoções estéticas muito
têm a ganhar com as investigações acerca da zona dos devaneios materiais que
antecedem a contemplação. De acordo com o autor, “sonha-se antes de
contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma
experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos
antes em sonho” (BACHELARD, 2013: 5). Se os ensaios de Bachelard sobre a
imaginação das forças, do movimento, da matéria e sobre a poética do espaço
tiveram como objeto central o poema, a palavra, eles não deixam de incentivar a
investigação da imaginação que atua na paisagem: “Que o imaginário decorra
da coextensidade de corpo e natureza; que ele mergulhe raízes no subsolo do
Inconsciente, é a hipótese central de um Gaston Bachelard, para quem é preciso
descer aos modos da Substância – a terra, o ar, a água, o fogo – para aferrar o
eixo natural de um quadro ou de um símbolo poético” (BOSI, 2004: 24-25).

É nesse sentido que propomos a meditação sobre a possibilidade de


paisagem no meio urbano relacionada às imagens materiais que emergem à
superfície de nosso ser no que percorremos e tateamos o corpo da cidade.
Associadas à materialidade primordial e sempre vigente pela qual a natureza se
manifesta, mesmo nas situações mais adversas, estas imagens assomam à
superfície do nosso ser à medida que vivenciamos o mundo e que nos deixamos
sonhar com as matérias que o constituem. Participando da experiência sensível,
a imaginação da matéria anima em nós toda sorte de devaneios que se investem
do ar, do fogo, da terra e da água.

Natureza e imaginação na cidade

Enquanto presença atual e sempre vigente, os elementos naturais que se


apresentam na cidade evocam, por vezes, as conformações primitivas do sítio,
ainda que deformadas e desconexas – setores de planícies, de terraços, de
encostas ou de topos aplainados, segmentos de esporões, de calhas fluviais, de

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 49


interflúvios; por outras, reduzem-se a fragmentos incoerentes, resíduos com as
mais diversas formas e dimensões, mas que, ainda assim, dão oportunidade para
manifestações profundas e remotas da natureza, enquanto princípio vital, que
poderiam ser tomadas, numa associação livre, como expressões do
“inconsciente” da Terra3, constituindo a fonte arquetípica da qual emergem
valores imagéticos os mais diversos.

No espaço, em geral, ocorrem situações ambivalentes por onde transitam


as imagens: umas são mais ligadas às atividades do cogito, à organização
racional pela qual se estrutura o espaço urbano – razões pelas quais podem ser
associadas ao “regime diurno da imagem”4; outras são relacionadas diretamente
à nossa dimensão sensível e à imaginação profunda – razões pelas quais podem
ser associadas ao “regime noturno da imagem” 5.

Aquilo que se apresenta antes à experiência sensível e à imaginação do


que ao pensamento lógico mostra-se impregnado dos aspectos que se
encontram aquém e além das questões formais, e escapa das tentativas de
racionalização, de esquematização, de conceituação, de simplificação, de síntese.
Ao contrário, se relacionado diretamente aos aspectos fisionômicos, aos traços

3
Por paralelismo com as camadas do inconsciente humano, as quais, segundo a psicologia arquetípica,
correspondem as porções mais profundas da psique, situadas abaixo da consciência, o inconsciente da
Terra corresponderia às dimensões mais profundas da natureza, insondáveis ao raciocínio e ao
conhecimento lógico, pelas quais a Terra se apresenta em sua alteridade, em sua condição que nos é
sempre misteriosa e que nos causa profundo estranhamento. Seria o fundo incógnito dos elementos
materiais fundamentais de onde emergem as mais diversas imagens poéticas. De maneira geral, a
imaginação corresponde à passagem ou ao movimento que as imagens poéticas realizam desde o
inconsciente humano às camadas conscientes. Analogamente, o inconsciente da Terra compreende a
potência e o devir das imagens materiais, oferecendo-se aos devaneios e aos sonhos sem nunca se revelar
por completo, conservando-se em seu mistério.
4
O regime diurno das imagens proposto por Gilbert Durand se define, em termos gerais, como o regime
da antítese, isto é, do embate entre palavras ou ideias em torno da chave ambivalente luz-trevas
referenciada à dualidade das dimensões conscientes e inconscientes. Ligado às dimensões masculinas do
ser, o regime diurno se caracteriza pela percepção racional do tempo e pela vontade de emergência da
consciência desde o “fundo das trevas sobre o qual se desenha o brilho vitorioso da luz” (DURAND, 1989:
49), ou seja, desde o fundo insondável das dimensões inconscientes ou oníricas.
5
O regime noturno das imagens, segundo Gilbert Durand, se caracteriza como o regime da inversão e do
eufemismo, isto é, da aceitação da condição temporal e da harmonização dos contrários. Se o regime
diurno exerce, por meio da antítese, movimentos predominantemente combativos e ascensionais, no
regime noturno, por sua vez, a direção predominante é descensional: por meio de um mergulho lento e
adormecido, desliza-se até as cavidades do repouso e do acolhimento íntimo. A figura masculina,
soberana no regime diurno das imagens, é substituída no regime noturno por símbolos femininos,
referentes à intimidade, ao continente, à deglutição lenta pela qual a descida às entranhas das camadas
mais profundas das imagens se mostra quase visceral. Alguns termos relacionados ao regime noturno das
imagens são o refúgio eterno, o retorno à intimidade da casa ou o regresso à mãe, à mãe terra que acolhe
a morte e que prepara a vida (DURAND, 1989: 163).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 50


sensíveis da Terra, ele já implica uma síntese a priori6, muito familiar às questões
da paisagem e da imaginação da matéria no ambiente citadino. E quando se trata
de resíduos informes, nos quais os aspectos fisionômicos sequer se enunciam, a
imaginação da matéria ganha papel ainda mais proeminente. Seja pelas feições
que restaram das bases naturais sobre as quais as cidades se assentam, seja pelas
manifestações da vitalidade da natureza nos resíduos e interstícios que escapam
à lógica da produção do espaço urbano, a experiência sensível da paisagem nas
grandes cidades contemporâneas se mostra indissociável da imaginação
profunda.

As relações entre a fruição paisagística e a imaginação da matéria podem


ser reforçadas se considerarmos, ainda, a paisagem como a totalidade expressiva,
à superfície da Terra, de uma existência interna e profunda inapreensível. “Tudo
se passa como se houvesse um ‘espírito do lugar’, do qual a aparência exterior
do território visado seria a expressão.” (BESSE, 2006: 72). É na superfície, pois,
que o invisível que há na paisagem se traduz em formas sensíveis, dando-se ao
reconhecimento. É à superfície da fruição paisagística que a imaginação
profunda, entre desvelamentos e fechamentos, se imiscui na experiência estética.

O que há de invisível e que permanece latente na paisagem pode ser


entendido como a possibilidade de existência de toda a visibilidade ou, de acordo
com as reflexões de Merleau-Ponty (2014: 19), como aquilo de que se alimenta
o visível. Em condições imaginativas, podem ser trazidos à superfície os dados
invisíveis da paisagem. Trata-se de aceder à interioridade da paisagem sem
prescindir de sua exterioridade; trata-se de evocar a partir do que é visível a
invisibilidade que nela subsiste. Como veremos no item seguinte, a imaginação
material pode permitir que se evoque em termos paisagísticos a natureza que
permanece velada em meio à cidade.

O imaginário imanente no real

6
Segundo Rosário Assunto, a paisagem não é a unificação de dados fornecidos separadamente, mas a
forma na qual se exprime a unidade sintética a priori constituída pela matéria correspondente ao
território e pelo conteúdo ou função correspondente à noção de ambiente (ASSUNTO, 1976 In SERRÃO,
2011: 128). Por propor, na paisagem, a relação direta entre aspectos materiais, formais e funcionais, esta
acepção nos parece adequada para nortear os estudos acerca das relações entre a experiência da
paisagem na cidade e a imaginação da matéria.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 51


Nos livros que Bachelard dedicou à imaginação da matéria, investigando
na literatura – e, sobretudo, na poesia – as imagens poéticas que emergem do
inconsciente, das dimensões mais profundas do nosso ser, pode-se atestar a
potência com que as matérias arquetípicas da natureza se infundem em nós, ora
suscitando devaneios de repouso e intimidade, ora emergindo em sonhos de
embate, de extroversão, de manuseio do mundo. Estas matérias se apresentam,
também, imiscuídas no urbano.

Segundo Bachelard, a imaginação é compreendida antes como a


capacidade de deformar as imagens fornecidas pela percepção do que como a
capacidade de formar imagens. Ela tem a faculdade de libertar-nos das imagens
primeiras, de mudar as imagens (BACHELARD, 2001: 1). É no trajeto dessa
deformação que reside o interesse e a justificativa dos estudos acerca das
relações entre a imaginação e a experiência sensível da paisagem. Intui-se, dessa
relação, que a imanência do imaginário no real e, ao mesmo tempo, o trajeto
contínuo pelo qual o real atinge o imaginário (BACHELARD, 2001: 5) vem a
animar as possibilidades de fruição paisagística no meio urbano. As imagens da
matéria passíveis de desvelamento na experiência cotidiana das grandes cidades
podem permitir que vivamos "a lenta deformação imaginária que a imaginação
proporciona às percepções" (BACHELARD, 2001: 5). Entre o que percebemos e
o que sonhamos, são diversos os pontos de contato e os vínculos que unem
imaginação e experiência sensível.

Um destes vínculos pode ser depreendido das reflexões de Jean Marc


Besse acerca da paisagem entendida enquanto fenômeno, enquanto experiência
fenomenológica. Segundo ele, a paisagem sustenta uma dimensão específica da
relação humana com o mundo e com a natureza, a qual corresponde ao contato
direto, imediato, físico com os elementos sensíveis da Terra. A água, o ar, a luz, a
terra, segundo Besse, comparecem nas feições do mundo que se dão não apenas
ao reconhecimento objetivo e ao conhecimento racional, mas que permanecem
“abertos aos cinco sentidos, à emoção, a uma espécie de geografia afetiva que
repercute os poderes de reverberação que os lugares têm sobre o imaginário”
(BESSE, 2016: 34). Desse modo, a imaginação da matéria engajada aos
elementos naturais que se manifestam nos interstícios urbanos pode trazer à
tona o reconhecimento paisagístico, ainda que por fragmentos, do princípio pelo
qual a natureza se imiscui nos espaços urbanizados, reafirmando os nexos e as
afetividades pelos quais nos relacionamos com a Terra.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 52


Os devaneios da matéria e a cidade

Neste artigo, vale reforçar, assumimos o pressuposto de que a experiência


paisagística é possível nas cidades contemporâneas na medida em que ela se
origina não dos conceitos ou das representações objetivas acerca da morfologia
urbana, mas sim dos devaneios materiais que em nós são animados ao
experienciarmos o corpo da cidade. Associada à emergência das imagens
poéticas, a experiência da paisagem na cidade apresenta familiaridade com o
percurso que, segundo Bachelard, identifica o despontar das “imagens sinceras”,
fiéis à imaginação profunda: ela nasce como admiração, como espanto,
desdobra-se como contemplação e pode, enfim, tornar-se representação
(BACHELARD, 2001: 169). O reconhecimento imediato das feições da Terra
dado na experiência paisagística se aparenta ao conhecimento do ser que se
permite sonhar com as matérias de que ela se constitui na medida em que “o
conhecimento poético do mundo precede, como convém, o conhecimento
racional dos objetos. O mundo é belo antes de ser verdadeiro. O mundo é
admirado antes de ser verificado” (BACHELARD, 2001: 169).

Os elementos naturais que, embora negados ao longo dos processos de


urbanização, são passíveis de reconhecimento, conferem às mais diversas
situações urbanas a possibilidade de desencadear em nós devaneios materiais de
matrizes distintas: em meio ao cotidiano das grandes cidades, podemos nos
surpreender com situações espaciais que animam em nós imagens de leveza, de
flutuação aérea ou de quedas vertiginosas; há situações na cidade em que somos
convidados à imersão soturna em águas profundas ou à contemplação plácida
em águas claras, ao passeio em riachos corredios ou à náusea em brejos
sombrios; nossos sonhos podem arder em imagens ígneas, incinerando-se em
labaredas que não cessam de consumir-se ou trazendo o acalanto noturno da
chama tênue de uma vela; em outras situações, sonhamos com o repouso telúrico
no abrigo de uma gruta, deslizamos pelas entranhas labirínticas da Terra ou
somos instigados a mover pedras, a revolver com as mãos o barro, a dominar a
inconstância das matérias resistentes. De maneira velada e quase sempre
insinuada, indireta, a natureza que persiste nos interstícios do espaço urbano
anima em nós devaneios balizados por cada um dos quatros elementos materiais.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 53


Considerando o pensamento de Bachelard acerca da tetralogia material,
vale ressaltar que uma mesma situação pode desencadear imagens ígneas,
aquosas, aéreas ou telúricas, a depender da tonalidade predominante da alma
que se dispõe a sonhar, pela matéria, a primitividade do sítio que permanece em
vigência no corpo da cidade. Além disso, os elementos materiais fundamentais
frequentemente aparecem imiscuídos uns nos outros e, dessa mistura, ora
sobressai à imaginação certo elemento, ora é outro que tonaliza as imagens
poéticas. É o caso da terra e da água, da mistura entre sólidos e líquidos que, para
a imaginação da matéria, pode suscitar imagens híbridas, correspondentes à
viscosidade do barro e das massas ou aos ambientes lúgubres e circunspectos
dos brejos ou das áreas pantanosas – imagens que podem vir à tona quando
experienciamos as várzeas e as planícies fluviais, por exemplo.

O ar que se adensa, isto é, as imagens aéreas que recusam a leveza,


orientando-se em movimentos de queda, por sua vez, pode se relacionar antes
às águas profundas ou às imagens das profundidades telúricas do que à
sublimação do ar. Desse hibridismo material, podemos depreender que as
imagens dinâmicas que as dimensões aéreas infundem em nós ora se rarefazem,
se tornam etéreas e ganham as alturas das serras, dos cimos das árvores ou dos
rochedos altivos que apontam o céu nos arredores das grandes cidades – como
no caso de São Paulo –, ora se cristalizam na dureza telúrica dos baixios, onde
essas imagens originadas do elemento aéreo se tornam íntimas dos sonhos de
horizontalidade, da infinitude das várzeas vastas, das planícies.

As imagens poéticas suscitadas pela materialidade do sítio podem emergir


tanto de sonhos de intimidade, nos quais as cavidades da Terra ou os remansos
junto a lagos de águas calmas vêm acolher o repouso do ser; como de devaneios
de extroversão ou de vontade, nos quais o poder de expansão do fogo ou a
resistência da terra mobilizam a totalidade de nossa existência no embate direto,
desejoso do domínio das matérias.

Segundo Bachelard, a imaginação coloca em jogo a subjetividade humana


e a materialidade objetiva da Terra. As matérias inertes nos provocam devaneios
ricos quando rompemos com os limites do nosso ser, quando igualmente
rompidas são as fronteiras entre o sujeito e o objeto, permitindo que os
elementos materiais participem de nosso ser e que nós sejamos cúmplices da
materialidade terrestre (BACHELARD, 2008: 2). Da experiência fenomenológica
da natureza, cujas manifestações animam imagens poéticas em nossas

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 54


dimensões imaginativas, emergem sentimentos de paisagem pelos quais podem
ser restabelecidas as ligações entre o homem e a Terra.

Considerações finais

A imaginação da matéria permite que se evoque à superfície a dimensão


profunda e inapreensível que anima a paisagem. Interessada antes nas forças
germinativas que nas florescências, nos seres cuja forma vem incutida em sua
substância, ou seja, nas imagens diretas da matéria, a imaginação material escava
o fundo do ser, a porção que dele se oculta sob o plano de suas aparências.

As relações entre a imaginação arquetípica e a experiência sensível da


paisagem se tornam evidentes na medida em que ambas pressupõem o contato
com a ancestralidade e com a primitividade da Terra, com as manifestações da
natureza em seus próprios termos, com a naturalidade que lhe é própria e que,
sendo-nos sempre estranha, suscita sonhos e devaneios. Segundo Bachelard, o
devaneio não cessa de retomar os temas primitivos, não cessa de trabalhar como
uma alma primitiva (BACHELARD, 2008: 6 e 7), posto que toda primitividade é
onirismo puro (BACHELARD, 2001: 169). O espaço em que nos deixamos sonhar
com os elementos naturais, por sua vez, não corresponde senão ao espaço da
paisagem: trata-se do aqui, do espaço que se refere a um além imaginário, um
além puro, sem aquém (BACHELARD, 2001: 170), onde nos colocamos em
contato direto com as feições da Terra, isto é, “um espaço inconcluso, um meio
aberto e que não pode ser totalmente tematizado” (BESSE, 2016: 37).

Por fim, cabe dizer que a imaginação se relaciona com a alma, segundo
James Hillman, na medida em que "a alma tende a animar, a imaginar por meio
de imagens [...], a alma precisa de suas imagens" (HILLMAN, 1993: 40). Se
considerarmos as manifestações dos elementos naturais que permeiam o urbano
e as imagens materiais que sua presença infunde em nós, podemos inferir que as
dimensões incógnitas e sempre misteriosas da natureza se relacionam com a
alma mesmo nos espaços mais artificializados das grandes cidades. Associada
aos devaneios da matéria, do movimento e do espaço, a experiência sensível da
paisagem no meio urbano permite o afloramento dos vínculos afetivos que unem
o Homem à Terra, condição que se considera indispensável para dar um sentido
mais pleno ao viver nas cidades e pelos quais podem ser reforçados os laços que
unem cidade e alma.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 55


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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 56


Ver a paisagem na metrópole:
interioridade, movimento e linguagem do visível

Francisco Horta de Albuquerque Maranhão

Artista plástico e ilustrador, possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP. Cursa
atualmente Mestrado na área de Paisagem e Ambiente pelo programa de pós-graduação da mesma
instituição.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 57


Resumo
No artigo, evidenciaremos articulações entre as proposições proferidas por James
Hillman em seus ensaios e conferências sobre Cidade e Alma e o pensamento
fenomenológico de M. Merleau-Ponty, pela via de suas reflexões sobre a
visibilidade e a linguagem pictórica como forma de contato com o mundo
percebido. Propomo-nos examinar a experiência estética da paisagem no
contexto das ambientações urbanas, de maneira a evidenciar, pela via da
percepção e da linguagem artística, uma forma de contato pré-objetiva com a
experiência urbana, sua natureza e sua realidade psíquica. Considerando a
linguagem pictórico–gráfica, discutiremos a importância do olhar expressivo
como motor do imaginário, capaz de restituir uma abertura à vida, à “alma” e à
interioridade dos espaços urbanos e da natureza. O “desenho” desempenha nesta
discussão um papel crítico essencial, uma vez que não é um mero comentário
descritivo do olhar, mas também desígnio e desejo, elaborando e tornando visível
a paisagem.

Palavras-chave: Paisagem, Percepção, Pintura.

Introdução

Como se lê em Joachim Ritter, a ideia artística de “paisagem” surge


historicamente no Ocidente para cumprir a função estética de uma reconciliação
com a natureza na urbanidade moderna, uma vez que tal urbanidade é tida hoje
como apartada, livre da natureza (RITTER, 2013, p. 63). Assim, a natureza é vista
pelo homem urbano a partir de um distanciamento, retornando a ela pela via do
prazer estético, que se metaforiza, muito a grosso modo, pela vista recortada,
enquadrada que temos ao olhar o mundo exterior por uma janela.

Diante do espraiamento conceitual e a consequente dissolução semântica


da acepção de “paisagem” a partir do século XX, uma paisagem do mundo
urbano contemporâneo nos parece algo complexo de se ver, de se definir e de se
representar. Some-se a isso uma tendência homogeneizante, uniformizadora, da
urbanidade globalizada, que solicita ao olhar estético um antídoto à
indiferenciação nas paisagens contemporâneas, que não mais podem ser
apreendidas somente por um olhar pitoresco: seu interesse atualmente escapa à
formalização de modelos pictóricos tradicionalmente estabelecidos e a valores
associados ao idílio, ao sublime e ao belo natural (ALVES, 2001, p.67).

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Uma vez que a realidade da natureza é vivida majoritariamente em meio à
metrópole, nos resta buscar indícios de uma paisagem que não se refira a algo
que esteja fora da urbanidade, mas que desvele nela própria uma natureza que
passamos a confundir com artificialidade, como se o espaço produzido pelo ser
humano estivesse morto, não pertencendo ao mundo natural. A esse propósito,
Hillman nos diz que “[...] a imaginação está continuamente criando e recriando a
natureza numa nova forma; a natureza é arquetipicamente psicológica”
(HILLMAN, 1993, p.123). Assim, haverá ainda alguma forma de apreensão
sensível da experiência urbana que configure o mundo percebido como
paisagem?

Ora, mas para termos este contato estético e perceptivo com os espaços
urbanos a fim de “encontrar a paisagem” não basta caminhar livremente a pé por
eles, nos orientando no espaço a partir dos sentidos, do devaneio? É evidente que
sim. Caminhando, podemos alargar o tempo acelerado do carro; flanando,
errantes, nos permitimos imaginar, observar atentamente e contemplar as coisas
em sua relação com o mundo. O deslocamento do corpo no espaço descreve
coreografias e ensaia uma dança de relações e temporalidades, em que
conferimos significação poética à geografia da cidade; podemos, ao invés de
desenhar ou pintar paisagens, intervir, manusear, transformar, criar a paisagem
em comunhão com ela própria, tornando-a parte de nós. “Caminhando, estamos
no mundo, encontramo-nos num lugar específico e, ao caminhar nesse espaço,
tornamo-lo um lugar, uma moradia ou um território uma habitação com um
nome.” (HILLMAN, 1993, p.53).

Entretanto, este estudo parte da compreensão de que, como forma de


contato, o livre caminhar sobre a paisagem, apesar de não ser um lugar-comum,
é, de certa forma, autoevidente, um tipo de pré-requisito à experiência
paisagística. Entendemos que tal experiência não pode prescindir de um esforço
de formalização para que se faça comunicável e se constitua em linguagem, seja
qual for seu meio expressivo.

Olhar pictórico

Se à paisagem como criação pictórica teria sido imposto um impasse,


perguntamo-nos se haveria assim, também, uma nova função estética, cujo
campo de ação e efetividade na produção de conhecimento sobre a paisagem nos
compete analisar. Ou seja, cabe-nos questionar: caso ele ainda exista, qual seria

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o sentido profundo de desenhar e pintar paisagens na metrópole dos dias de
hoje? Quais seriam as especificidades desta forma de abordagem enquanto
apreensão da realidade?

Com o respaldo do pensamento de James Hillman e à luz da


fenomenologia de Merleau-Ponty, a hipótese que motiva este estudo é a de que
haveria na experiência perceptiva da paisagem conteúdos de uma realidade
psíquica, pré-conceitual e de caráter pré-objetivo, que somente podem vir à tona
como realidade pela ação não-mediada da expressão corporal de um agente
humano.

Dessa forma, a experiência do que convencionamos chamar desenho,


entendido na sua acepção de técnica e poética ampla1, englobando o pictórico, o
gráfico etc., tem sua validação na construção de um olhar capaz de conhecer os
fenômenos a partir de um deslocamento temporal, inerente às linguagens
artísticas, em relação ao tempo acelerado e achatado do olhar contemporâneo
(PEIXOTO, 1988, p.361), da cidade e da imagem técnica. Com relação à
temporalidade, sabemos que a câmera não prescinde do olhar artístico do
fotógrafo e que pode muito bem representar o tempo; por sua vez, a linguagem
cinematográfica domina e reconstrói a temporalidade e o movimento. Mas, nela,
o tempo da percepção se perde, e seria, de certa forma, idealizado. Pretendemos,
neste trabalho, sustentar a hipótese de que, pela via da percepção, a consciência
pictórico-gráfica é uma forma de acessar, na vida urbana, essências e índices
profundos das motivações, desejos e traços culturais que se associam à paisagem
como mundo percebido e como realidade psíquica. Ou seja, queremos
compreender como é que, no olhar artístico, a paisagem se constitui e se faz
visível em profundidade.

Objetividade e exterioridade

Em seu ensaio Anima Mundi, J. Hillman, ao refletir sobre a psicopatologia


na vida dos grandes centros urbanos, nos convoca a compreender a existência
de uma “realidade psíquica”, partindo de uma concepção não dualista da
experiência, que implica no deslocamento da tradicional noção de psique, intra-

1
MOTTA, Flávio. Desenho e Emancipação. In “Sobre o desenho”. São Paulo: Centro de Estudos
Brasileiros do GFAU USP, 1975. Em seu ensaio, o autor traça uma arqueologia da palavra desenho,
identificando em seu percurso etimológico na língua brasileira um empobrecimento no seu conteúdo.

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subjetiva, em direção à exterioridade. Quando nos diz que “[...] não posso mais
distinguir claramente entre neurose do “eu” e neurose do mundo, psicopatologia
do “eu” e psicopatologia do mundo.” (HILLMAN, 1993, op.cit. p.10), Hillman
aponta para uma dissolução do Ego pela via relacional, em que a subjetividade
não está presa ao indivíduo, mas é indissociável do mundo exterior. As
psicopatologias, segundo ele, solicitam à própria Psicologia que reveja a
separação entre a realidade psíquica e o mundo exterior, uma vez que as queixas
dos pacientes não são produto de uma pura intelectualidade, mas “[...] são reais,
quero dizer realísticas, equivalentes ao mundo exterior.” (Id., 1993, p.10).

No entanto, a questão apontada por Hillman transcende em muito as


disciplinas da psicoterapia e abarca toda a tradição científica e filosófica. A ideia
de separação entre mundo objetivo e mundo subjetivo, tal como se estabelece no
pensamento moderno, nos remete a um problema clássico da filosofia: a relação
entre corpo e alma. Assim, a anima mundi, a “alma do mundo” de que fala o
psicólogo, é expressão de uma concepção filosófica que entende que a
experiência do real não se dá nem só internamente à consciência do sujeito, nem
só em sua exterioridade, no interior da qual seu corpo seria como um “invólucro”.
A experiência se dá na relação entre o corpo e o mundo, e não constitui qualquer
transcendência ou imanência. Em suas próprias palavras:

“Imaginemos a anima mundi nem acima do mundo que a


circunda, como uma emanação divina e remota do espírito, um
mundo de poderes, arquétipos e princípios transcendentes às
coisas, nem dentro do mundo material como seu princípio de vida
unificador panpsíquico” (Ibid., 1993, p.14)

Como o próprio psicólogo nos informa, a corrente de pensamento à qual


Hillman se filia, respaldada pelo neoplatonismo humanista de Marsílio Ficino,
guarda, na filosofia contemporânea, aproximações à fenomenologia de Maurice
Merleau-Ponty, como veremos a seguir.

Em seu famoso ensaio O Olho e o Espírito, publicado em 1961, Merleau-


Ponty dirige críticas ao regime de exterioridade do pensamento operatório,
cartesiano, que caracteriza a ciência moderna desde o século XVII. Para construir
sua argumentação, o filósofo se remete à pintura como atividade criadora da
visualidade, uma vez que nela a percepção - que para ele não é propriamente

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distinta da sensação - assume papel privilegiado e que, por meio dela, pode-se
refletir sobre o problema filosófico clássico da relação, essencial ao projeto
ontológico do filósofo, entre corpo e alma, e, mais especificamente, como essa
relação se desdobra em termos de ‘olho e espírito’.

O ensaio se inicia com a caracterização de “modelos internos” a que a


ciência submete a experiência: eles seriam representações, formalizações que
abandonariam as coisas aos seus índices e variáveis. Ou seja, abstrações
matemáticas que, pela sua aproximação, generalizam, reduzem e simplificam o
mundo, afastando-se das coisas em seu ser. A ciência é, então, criticada
enquanto forma particular de contato com a experiência, por se caracterizar pela
“manipulação”, expressa na dominação objetiva das coisas. Tal dominação do
objeto acontece na medida em que ele é esvaziado, subsumido à sua
exterioridade para que responda àquilo que dele se quer extrair, segundo
modelos experimentais construídos exteriormente a ele.

Merleau-Ponty aponta, neste sentido, para certa “desenvoltura” praticada


pela ciência moderna e pela filosofia de matriz cartesiana, em relação a seus
objetos. Segundo o filósofo, à medida que se torna autônomo enquanto técnica,
o pensamento científico passa a legitimar seus próprios pressupostos teóricos a
partir do interior de seus modelos experimentais, afastando-se da relação atual
com o mundo. Trata-se do pensamento “operatório” que, no limite da autonomia
de seus pressupostos, falseia o real em sua abstração dominadora, segundo a
qual, nas palavras do autor: “Pensar é ensaiar, operar, transformar, sob a única
reserva de um controle experimental onde só intervêm fenômenos altamente
“trabalhados”, e que os nossos aparelhos produzem, em vez de registrá-los.” (Id.,
1984, p. 86)

No entanto, longe de querer o fim da ciência e de negar a beleza e a


importância de suas conquistas, o que interessa a Merleau-Ponty é que a ciência
reveja e confirme seus pressupostos ontológicos, os fundamentos de sua ideia do
ser, que devem ser expressos, e não omissos sob a sua aparente neutralidade
técnica. A ciência deveria, portanto, restabelecer seu contato com o mundo atual
e com a experiência:

“Mister se faz que o pensamento de ciência - pensamento de


sobrevôo, pensamento do objeto em geral – torne a colocar-se
num “há” prévio, no lugar, no solo do mundo sensível e do
mundo lavrado tais como são em nossa vida, para nosso corpo,

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não esse corpo possível do qual é lícito sustentar que é uma
máquina de informação[...]. (Ibid., 1984, p.86)

Esse “há” prévio de que fala Merleau-Ponty é, no caso, o “há” do ser em


sua experiência de relação originária; nela, há algo que já se oferece como
conteúdo, e, para o filósofo, a síntese perceptiva participa desse “modo bruto” do
ser, anterior a qualquer reflexão ou formalização conceitual, do qual o fazer
artístico tem maior proximidade. Reside aí, portanto, um dos interesses de
Merleau-Ponty em proceder sua investigação filosófica a exemplo da pintura: o
pintor seria habituado a uma atitude “pré-objetiva”, pré-conceitual em direção
ao mundo percebido. Nesse sentido, pode-se delinear em Hillman e sua anima
mundi uma aproximação significativa ao ser pré-objetivo de Merleau-Ponty,
visto que o primeiro também a descreve como

“[...] aquele lampejo de alma especial, aquela imagem seminal,


que se apresenta por meio de cada coisa em sua forma visível.[...]
a anima mundi aponta as possibilidades animadas oferecidas em
cada evento como ele é, sua apresentação sensorial como um
rosto revelando sua imagem interior – em resumo, sua
disponibilidade para a imaginação, sua presença como realidade
psíquica.”(HILLMAN, 1993, p.14)

Trata-se do modo do ser bruto, sensível e disponível ao imaginário no qual


ocorre a percepção para o filósofo. Assim, Hillman compartilha com a
fenomenologia de Merleau-Ponty a noção de que as coisas e o mundo se doam,
se oferecem à percepção, são expressivas e animadas pelo imaginário. O
psicólogo se refere a uma “exigência imaginativa de atenção”, indicando que um
“[...] reconhecimento imaginativo, o ato infantil de imaginar o mundo, anima o
mundo e o devolve à alma.” (Id., 1993, p.15)

O sofrimento, angústia e a solidão do Ego no sujeito moderno, ressalta


Hillman, resultam, em parte, de uma visão de mundo que “[...] não apenas mata
as coisas por vê-las como mortas; ela nos aprisiona naquele pequeno e apertado
cubículo do ego.” (Ibid., 1993, p.15). Mas, à medida em que realidade psíquica e a
experiência se revelam muito próximas e se interpenetram, a psicologia
tradicional, na postura defensiva de seu intelectualismo, engendra o ego, um

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“testemunho interior”, um “sujeito fictício”, para enquadrar-se nas
determinações da cisão entre objetividade e subjetividade que impera na tradição
que originou a psicoterapia moderna.

O subjetivismo intelectualista a que a psicologia se viu subsumida, com seu


amontoado de projeções e a literalidade das reflexões do Ego, é, segundo
Hillman, incapaz de reconhecer a interioridade das coisas, a alma do mundo, pois
desloca toda a referência da experiência para o sujeito. Este sujeito fica, assim,
sobrecarregado de significação, blasé, insensível à sua realidade por
“esgotamento dos nervos”2:

“Interpretar as coisas do mundo como se fossem nossos sonhos


priva o mundo de seu sonho, sua queixa. Embora esse
movimento possa ter sido um passo em direção ao
reconhecimento da interioridade das coisas, ao final fracassa por
causa da identificação de interioridade apenas com a experiência
subjetiva humana.” (Ibid., 1993, p.16-17)

Visibilidade : motricidade

A forma de contato sensível e perceptual com o mundo, proposta por


Hillman e Merleau-Ponty, seria capaz de restituir a alma às coisas “mortas”,
inanimadas, do mundo percebido no cotidiano da metrópole, tornando-as
novamente visíveis e significativas, uma vez que nos abrimos ao “novo sentido de
realidade psíquica” do psicólogo. Há, para ele, a necessidade de um “faro
estético”, no sentido de aisthesis, que nos tornaria capazes de reconhecer a
interioridade das coisas, trazendo-as para o seio da nossa própria interioridade,
uma vez que elas são inseparáveis.

A investigação de Hillman, no entanto, não se debruça em especificidades


dessa forma de contato estético com o mundo. Em Merleau-Ponty, ela é
abordada a partir da visibilidade, da corporeidade e seu movimento no mundo
percebido. Movida e obcecada pela visibilidade, a figura do pintor é, para o
filósofo, a alma encarnada em corpo, o olho-espírito que mais exacerba e dá
sentido a essa relação “pré-objetiva” com o mundo. A pintura, portanto, é
escolhida para que se explicite a situação da visão no corpo fenomenológico
“[...]operante e atual, aquele que não é um pedaço de espaço, um feixe de

2
Sobre a atitude blasé, Cf. SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental, 1967, op.cit.

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funções, mas um entrelaçado de visão e de movimento.” (MERLEAU-PONTY,
1984, p.88).

Tal definição de corpo explicita uma crítica à concepção clássica, dualista,


que transita entre o binômio empirista/intelectualista, referido pelo filósofo. Para
além das “transubstanciações”, nas quais o pintor “emprega seu corpo”
partilhado com o mundo para “transformar o mundo em pintura” (Id. 1984,
p.88), Merleau-Ponty busca demonstrar que há na visão uma unidade de
princípio que impede o dualismo entre subjetivação pura e corpo empírico,
manifesta como superposição entre a visão e o movimento. A visão se faz,
portanto, como espírito encarnado no corpo. Uma vez que o que se vê, se vê
corporalmente, não é possível explicar a visão recorrendo a uma causalidade
mecânica, que vê o corpo com um feixe de funções físico-químicas sucessivas,
nem a uma representação do mundo formada somente no interior da
consciência. A relação identitária entre vidente e visível se expressa no movimento
de aproximação daquele que vê em direção àquilo que se lhe oferece como visível
(Ibid. 1984, p.88).

O filósofo propõe uma reversibilidade, uma reflexividade entre o corpo e


o mundo, expressa no binômio vidente-visível, diante da qual o corpo não se
constitui como agente e tampouco como passivo da visibilidade. Trata-se da
relação dita “carnal” com o mundo daquele que se vê vendo, que se toca tocando,
que padece em ato.

“Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma


delas; é captado na contextura do mundo, e sua coesão é a de
uma coisa. Mas já que vê e se move, ele mantém as coisas em
círculo à volta de si; elas são um anexo ou um prolongamento
dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua
definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo.”
(Ibid., 1984, p.88)

Cabe-nos questionar se seria somente o pintor ou o desenhista,


emprestando ao mundo sua habilidade manual e seu olho treinado, o único
capaz de acessar a alma e a verdade do mundo percebido. Evidentemente, não;
o ato estético não é privilégio do artista plástico, seja qual for o meio expressivo
por ele utilizado. Um fotógrafo também desenha e pinta o mundo percebido
como visibilidade com grande expressividade e arte, mas não nos mesmos termos

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perceptivos que o pintor. Para Merleau-Ponty, haveria sempre um certo prejuízo
à percepção na objetividade da fotografia, que traduz um aspecto de sua crítica
ao modelo cartesiano da perspectiva, como poderemos ver a seguir.

Dezesseis anos antes de O Olho e o Espírito, na sua Fenomenologia da


Percepção (1945) Merleau-Ponty já colocava em questão a objetividade da
câmera em relação à visão, uma vez que ela implica em pré-determinação sobre
a percepção das coisas. Uma vez na tela, os objetos, achatados, não têm mais
atividade de relação. Em exemplo sobre o cinema, o autor aponta que o zoom da
câmera faz com que a relação figura-fundo, que caracteriza a percepção, seja
suprimida, pois nela o fundo e os horizontes que configuram a rede de coisas em
que o objeto se apóia são destruídos. Uma vez que se simula o movimento de
aproximação tal como ocorre na visão, destrói-se a dinâmica relacional entre
percebido e percipiente.

“A estrutura objeto-horizonte, quer dizer, a perspectiva, não me


perturba quando quero ver o objeto: se ela é o meio que os
objetos têm de se dissimular, é também o meio que eles têm de se
desvelar. Ver é entrar em um universo de seres que se mostram e
eles não se mostrariam se não pudessem estar escondidos uns
atrás dos outros ou atrás de mim. Em outros termos: olhar um
objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a
face que elas voltam para ele. Mas, na medida em que eu também
as vejo, elas permanecem moradas abertas ao meu olhar e,
situado virtualmente nelas, percebo sob diferente ângulos o
objeto central de minha visão atual. Assim, cada objeto é o
espelho de todos os outros.” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.105)

Se há uma “perspectiva” de que fala Merleau-Ponty, ela está apoiada na


relação; é o meio pelo qual o objeto se doa à percepção, e não mais um meio pelo
qual o sujeito constitui seus objetos. Em O Olho e o Espírito, novamente o
filósofo criticará a construção ideal, geometrizada e onisciente dos objetos que
decorre da perspectiva clássica. No entanto, ele não se ocupa em destituir a
verdade da perspectiva geométrica enquanto forma e técnica de representação,
mas em evidenciar, como se lê na primeira sentença de seu ensaio de 1961: “A
ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las.” (MERLEAU-PONTY, 1984,
p. 85).

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As passagens aqui citadas introduzem o capítulo sobre “O Corpo” na
Fenomenologia da Percepção. Entre outros aspectos, tal “corpo” é conceituado
no capítulo como sistema cuja motricidade é correlata à percepção, o que
contribui para reafirmar a presença do movimento perceptivo que
posteriormente se coloca na crítica à fotografia. Em tal capítulo, já se somam os
índices daquilo que será referido em O Olho e o Espírito como desdobramentos
de um “movimento” fundamental à percepção, seja ele o movimento do corpo
percipiente no espaço, seja o da dinâmica de recuos e avanços de figura e fundo
no mundo percebido. Veremos que é também o movimento que tomará o
protagonismo na crítica à objetividade da câmera: na passagem citada abaixo,
Merleau-Ponty nos coloca que, ao “fixarmos” a percepção em uma figura, o
movimento da visão não cessa de acontecer, ele não pára na figura, mas continua
em movimento sobre ela:

“Ver um objeto é ou possuí-lo à margem do campo visual e poder


fixá-lo, ou então corresponder efetivamente a essa solicitação,
fixando-o. Quando eu o fixo, ancoro-me nele, mas esta parada
do olhar é apenas uma modalidade de seu movimento: continuo
no interior de um objeto a exploração que, há pouco,
sobrevoava-os a todos, com um único movimento fecho a
paisagem e abro o objeto. [...] olhar o objeto é entranhar-se nele,
e porque os objetos formam um sistema em que um não pode se
mostrar sem esconder os outros. Mais precisamente, o horizonte
interior de um objeto não pode se tornar objeto sem que os
objetos circundantes se tornem horizonte, e a visão é um ato com
duas faces.” (Id., 1994, p.104)

Tal passagem caracteriza o movimento intrínseco ao visível, expondo a


noção de que o visível não está dado, mas é também um processo dinâmico de
relação figura-fundo entre visível e invisível, para além do movimento de recuos
e avanços contingente ao que me é momentaneamente visível. Ou seja, numa
situação de visibilidade, o fundo é a tessitura que garante a coesão da coisa vista
e de seus perfis para mim invisíveis, mas que são “vistos” pelo fundo. Para o
filósofo, “Qualquer visão de um objeto por mim reitera-se instantaneamente
entre todos os objetos por mim apreendidos como coexistentes, porque cada um
deles é tudo o que os outros “vêem” dele.” (Ibid. 1994, p.105)

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Quando vejo uma paisagem, meu olhar “entra e sai” dos objetos, portanto,
saindo e voltando à paisagem. A paisagem é, de certa forma, a rede de relações
entre todos esses objetos e o mundo percebido em que se situam. Sobre a
percepção de uma relação entre totalidade e particularidade na paisagem, Georg
Simmel conjectura se haveria um “denominador comum”, aquilo que chama de
“atmosfera” (Stimmung), algo que confere unidade a um conjunto de coisas, mas
que não é simplesmente apreensível como signo visual. (SIMMEL, 2013,p. 25)

O desenho de observação nos demonstra quase didaticamente este


movimento, este vaivém da visão que não percebe objetos em si, mas relações
entre perfis de objetos. Uma vez que no papel ou na tela as coisas se traduzem
em suas relações espaciais, de cor, textura, matiz etc., pode-se dizer que se
animam, que ganham vida. O que não quer dizer que no mundo atual elas já não
tenham vida e alma; mas o olhar pictórico-gráfico nos sensibiliza a tomar essas
relações de uma maneira não-objetiva, de certa forma desinteressada pela
utilidade ou pela manipulação das coisas; olhar mais atento ao que nelas é dado
do que àquilo que constituem de significado para nós, ou ao que podem vir a ser
para nós.

Desta “perspectiva”, o percebido como visível é somente um dos perfis que


remetem ao todo da coisa vista: o percebido não se restringe, portanto, ao visível,
uma vez que o perfil visível, enquanto percepção, remete à totalidade de perfis
invisíveis. Uma das consequências desta compreensão é a de que qualquer
objetivação mecânica que planifica o visível, como a fotografia, engendra um
“achatamento” da visibilidade elevado à segunda potência, pois planifica tanto o
que se mostra visível quanto destrói o que na experiência se mostra invisível, mas
que nem por isso não é percebido.

Imaginário e semelhança

Por outro lado, também em segunda potência está, para Merleau-Ponty,


o visível da pintura: um sistema de trocas se estabelece no fenômeno da
visibilidade em que “Qualidade, luz, cor, profundidade, que estão aí diante de nós,
aí só estão porque despertam um eco em nosso corpo, porque este lhes faz
acolhida.” (MERLEAU-PONTY. 1984, p.89).

Haveria na visibilidade um “equivalente interno”, uma “fórmula carnal da


sua presença” que elevaria à segunda potência o visível da pintura por sua

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iconicidade em relação à primeira potência do visível, mas com quem, no entanto,
compartilharia da mesma “essência carnal”. Segundo o autor, não vemos um
quadro como um objeto visível em “primeira potência”, mas vemos o horizonte
que se dá segundo ele como visibilidade: “[...]não o olho como se olha uma coisa,
não o fixo em seu lugar; meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser e eu
vejo, segundo ele ou com ele, mais que o vejo.” (Ibid. 1984, p.90)

A propósito da noção de imagem, Merleau-Ponty coloca a distinção entre


a concepção tradicional de imagem como representação, associada à
semelhança, que remete à cópia ou ao simulacro; sua noção de “imagem de
segunda potência”, nega à semelhança qualquer prevalência, investindo-a de
uma relação entre interioridade e exterioridade que caracteriza o “imaginário”:

“A palavra imagem é mal reputada porque inconsideradamente


se acreditou que um desenho era um decalque, uma cópia, uma
segunda coisa, e a imagem mental era um desenho desse gênero
no nosso bricabraque privado. Mas, se, com efeito, ela não é nada
de semelhante, o desenho e o quadro, da mesma maneira que ela,
não pertencem ao em-si. São o interior do exterior e o exterior do
interior, que a duplicidade do sentir torna possíveis, e sem os
quais nunca se compreenderão a quase-presença e visibilidade
iminente que constituem o problema do imaginário.”(Ibid. 1984,
p.90)

Este “imaginário” de que fala Merleau-Ponty, antes de ser, como no senso


comum, o arcabouço de representações culturais ou de conteúdos psicológicos
de caráter arquetípico e antropológico, é uma totalidade perpassada pela
mediação do corpo que alude, na visão, a um processo de aprendizado de
dimensão temporal e existencial, assim expresso pelo artista Alberto Giacometti:
“O que me interessa em todas as pinturas é a semelhança, isto é, aquilo que para
mim é a semelhança: aquilo que me faz descobrir um pouco o mundo exterior”
(Ibid. 1984, p.90)

De forma análoga, pode-se inferir em Hillman uma noção de imaginário


que não se reduz à imagem, no sentido restrito de representação do real ou
constituída na psique, mas o eleva à realidade da experiência na medida em que
“[...] o coração percebe tanto sentindo quanto imaginando: para sentir

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penetrantemente devemos imaginar e, para imaginar com precisão, devemos
sentir.”(HILLMAN, 1993, p.17)

Em outras palavras, a percepção também percebe o imaginário com a


mesma facticidade do real. Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty observa que
semelhança do percebido no sonho com a percepção desperta nos demonstra
que imagens mentais são tão percebidas quanto a visão diante de nossos olhos
(MERLEAU-PONTY, 2003, p.17). Para o filósofo, na experiência da pintura, a
visão é comovida pelo impacto do mundo, suscitando um movimento recíproco
ao corpo do pintor, que restitui ao mundo essa visibilidade que o comove.

Quando nos diz que “[...] desde Lascaux até hoje, pura ou impura,
figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma a não ser o da
visibilidade.” (MERLEAU-PONTY. 1984, p. 91), o autor aponta para o paradoxo
constitutivo da visão que tanto o interessa, ele o primeiro e o último assunto da
pintura. A visibilidade não é apreensível, ela se oferece como “outra”, não nos
sendo possível constituí-la ou apreendê-la como objeto; consciente disso, o que
a pintura faz, independentemente de categorias como figuração ou abstração, é
produzir novamente a visibilidade, uma “outra”, mas que ainda partilha a mesma
realidade da primeira.

Considerações finais

Uma reconciliação, após um suposto divórcio com a natureza, caracteriza


a função estética da ideia de paisagem, como nos propõe Joachim Ritter. Para
nós, estudiosos da cidade, para podermos ver e conhecer a paisagem-natureza
em nossas metrópoles, como afirma Hillman em relação aos psicoterapeutas, é
necessária uma “sofisticação da percepção” em seu caráter estético. Tal
reconciliação passa por uma forma de contato com o real que vê mais qualidades
do que quantidades; mais interessada na descrição de sentidos particulares e
singularidades das coisas do que nas suas causalidades e determinações; num
“[...] retorno das qualidades secundárias das coisas – cores texturas e
sabores.”(HILLMAN, 1993, p.22)

Se a paisagem e a natureza são presentes na urbanidade, precisamos


tornar-nos, para vê-la, viajantes dentro de nossas próprias cidades. É necessário
nos reconciliarmos com as coisas e com o mundo, investindo-os de interioridade,
de uma alma, que é a nossa própria e que talvez seja o lugar daquilo que é

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invisível, inefável, irrepresentável, a atmosfera (Stimmung), que nada mais é que
um “estado de alma”. Há algo que não está nem só em nossa mente, nem só na
paisagem e que caracteriza, como nos propõe Simmel, a unidade que a
singulariza.

A percepção como experiência originária, por si só, não restitui a alma às


coisas e não distingue a paisagem-natureza em meio ao mundo percebido: isso
ocorre na medida em que ela se realiza como linguagem, cuja força geradora é
motor de reverberação no imaginário e de transformação no mundo. Não é
somente a linguagem pictórico-gráfica que vê “alma” no espaço, criando nele a
paisagem; nem espera-se que todos os cidadãos possuam inclinação para tal
forma de abordar o fenômeno estético.

Mas é indubitável que, para nós arquitetos, urbanistas, paisagistas, artistas


do espaço, essa é uma forma de contato privilegiada com o real, que, além de
criar uma visibilidade que abarca também o tátil, o acústico e os demais sentidos
pelo sincretismo da percepção, traz à tona conteúdos e significados da realidade
psíquica, intangíveis às formalizações intelectualistas, à literalidade conceitual e
ao empirismo racional de modelos operatórios. Estas, ao objetivarem o mundo
percebido, retiram às coisas seu conteúdo e sentido, tornando-as ideais ou
idealizadas.

Referências bibliográficas

ALVES, Teresa. Paisagem – Em busca do lugar perdido. In.: FINISTERRA, XXXVI,


72, 2001. p 67-74

HILLMAN, J. Cidade e Alma - Studio Nobel, São Paulo; 1ª edição, 1993 trad.:
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Luigi Ghirri - Fotografia e experiência da paisagem cotidiana

Fernando Lacerda Silva Oliveira

Aluno regular do programa de Pós graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São


Paulo, na área de concentração Paisagem e Ambiente, na linha Paisagem e Sociedade, em nível de
mestrado, sob orientação do Professor Doutor Vladimir Bartalini.

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Resumo
O presente artigo propõe uma breve reflexão sobre a paisagem, bem como sua
experiência estética e suas relações com a alma através da fotografia do artista
italiano Luigi Ghirri. Entendendo a obra do artista enquanto forma sensível de
produção de afetos, capazes de trabalhar as questões do homem em sua relação
com mundo. Tomaremos a fotografia como uma imagem que transpõe os limites
da representação, para assim analisar criticamente as ações poéticas através das
quais o artista constrói seu pensamento.

Palavras-chave: Fotografia, paisagem, experiência.

Si nemo a me quaerat scio, si quadretti explicare velim, nescio.1

A Epopeia de Gilgamesh é um antigo poema épico da Mesopotâmia, cujo


registro mais completo de que se tem conhecimento provém de um conjunto de
tábuas de argila, que pertenceram ao rei Assurbanípal, e que foram escritas em
língua acádia durante o século VII AEC. Acredita-se que esse texto seja uma
coletânea de poemas e lendas ainda mais antigos, uma vez que foram
encontradas outras tábuas com fragmentos da narrativa, datando do século XX
AEC.

A história gira em torno do Rei Gilgamesh, um semideus que governava a


cidade de Uruk e que é retratado como seu protetor e construtor de suas
muralhas. No entanto, o personagem era dotado de uma personalidade tirânica
e arrogante. Para conter os excessos do rei contra os moradores da cidade, os
deuses criaram Enkidu, um homem, que embora selvagem, teria forças e
habilidades equivalentes as de Gilgamesh, e que, após um conflito inicial,
tornaria-se seu amigo inseparável. A epopeia narra as aventuras da dupla, que
culminam no assassinato do guardião da Floresta dos Cedros. O fato
posteriormente causaria remorso a Enkidu, pois a morte de seu guardião viria
transformar a floresta em um deserto. O retorno da dupla a Uruk acaba por
desencadear uma série de eventos que levam à morte de Enkidu e,
consequentemente, à constatação, por parte de Gilgamesh, de sua própria
mortalidade.

1
Santo Agostinho citado por Erwin Straus em Le sens des sens. Tradução possível: "Se não me
perguntam o que é, eu sei, se me pedem para explicar, eu não sei" conforme tradução proposta por
Vladimir Bartalini em PaisagemTextos caderno 3.

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A epopéia reflete os conflitos entre cultura e natureza, simbolizadas
respectivamente pelas figuras de Gilgamesh e Enkidu; conforme apontado por
Lima (2004). Em primeiro lugar pode-se notar o aspecto metafórico da trajetória
de Enkidu, que pode ser entendido como uma representação do processo
civilizatório, no qual o homem deixa o ambiente selvagem, passando pelos
campos agrários, até chegar à vida urbana. Um segundo ponto de interesse é a
conquista da floresta, que revela a ambígua relação entre homem e natureza: por
um lado vemos a necessidade da madeira para construção dos muros, que
protegeriam Uruk; por outro lado, temos os habitantes das florestas, contrários
ao corte da madeira e com quem era necessário lutar para obtenção de tais
recursos. Podemos perceber na narrativa a marca dialética da relação entre
cultura e natureza, presente desde os primórdios da formação das cidades
enquanto habitat humano.

A tensão dessa dialética entre homem e natureza vincula-se com a questão


proposta por Jean Marc Besse (2006) no prefácio de Ver a Terra: "Como é
possível habitar o espaço? O que é uma vida que toma a forma do espaço, e o
que ela deve fazer para não se perder nele?”. Através dos diversos ensaios que
formam o corpo do livro, Besse irá propor, conforme apontado por Bartalini
(2005), "um estudo da ideia de paisagem a partir da experiência vivenciada no
contato direto com a paisagem no mundo", e dessa forma o autor irá abordar as
questões suscitadas pela experiência da paisagem.

No campo aberto por esse pensamento reforça-se o entendimento da


condição dupla da paisagem. Por um lado podemos entendê-la como algo pré-
existente, externo ao humano (o espaço a ser habitado), por outro como uma
intersecção entre o que é externo e o que é interno ao homem (a vida que toma
forma no espaço). A paisagem é então algo dado e algo construído, uma entidade
relacional, uma simbiose entre o humano e o não humano.

Porém, se a paisagem é algo relacional, ela rompe em parte com a


dualidade entre cultura e natureza, na medida em que ela é tanto cultura quanto
natureza. Pode-se dizer, nesse sentido, que ela configura um mar aberto a
navegação, tanto o mar geográfico do espaço cartesiano, no qual se navega de
uma coordenada A em direção a uma coordenada B, quanto o mar da deriva, um
mar poético, aberto ao devaneio, ligado a perda da orientação referencial.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 74


Neste quadro se abrem dois caminhos para se reportar à paisagem: a via
da ciência e a via da experiência, aqui entendendo a experiência como uma
relação física direta do homem com os elementos do mundo. Ao tratar a
paisagem enquanto experiência, pode-se entendê-la como uma vivência do
mundo, como uma intensificação particular da vida psíquica em um dado
momento e lugar.

No terceiro capítulo do livro Cidade e Alma, James Hillman irá explorar as


possíveis relações entre o espaço urbano e a alma (psique). O autor efetua, ao
longo do texto, um traçado de "como e onde a alma existe na cidade”, para tanto,
recorre a ideias e imagens tradicionais de alma, e encontra, na vivência da cidade,
uma relação estreita com a psique humana. Dentre os pontos explorados pelo
autor pode-se destacar aquele no qual, ao comentar sobre o aspecto de
profundidade da alma, ele aponta a necessidade de se encontrar níveis mais
complexos, mais profundos, das coisas observadas, adentrando-as para
encontrar nelas um outro significado. Ressalta-se então a importância de
encontrar no banal, na vida cotidiana, maneiras de agregar-lhe uma dimensão
estética significativa. É sob esta perspectiva, que se propõe neste ensaio, a análise
do trabalho do fotógrafo italiano Luigi Ghirri.

Luigi Ghirri foi um importante artista visual italiano da segunda metade


do século XX, seu trabalho foi larga e declaradamente influenciado por diversas
fontes que vão do Surrealismo à Arte Pop, passando pelo cinema, pela literatura
e pela música. É importante notar que além de fotógrafo, Ghirri atuou ativamente
também como curador, escritor, professor e editor, catalisando, por meio dessas
diferentes atividades, uma mudança no modo de fazer e de se pensar a fotografia.
A partir de então, inauguram-se temas da fotografia, tais como o papel do
fotógrafo amador, as paisagens cotidianas e o uso da cor.

Conforme apontado por Pelizzari (2013), Ghirri testemunhou o chamado


milagre econômico italiano pós-guerra (anos 50 e 60 do século XX), bem como
a decadência social e terrorismo que se prolongará até os anos 80. Ambos
momentos estão relacionados a um veloz crescimento urbano ligado a alta
migração das regiões agrárias. Esta mudança social redesenhou a região norte
do país, onde a passagem de uma cultura agrária para uma economia pós
industrial foi bastante evidente, especialmente no vale do Rio Po onde residia
Ghirri.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 75


Após a segunda guerra mundial a Itália recebeu grande aporte de
investimentos Norte Americanos através do Plano Marshall que em parte
financiou o desenvolvimento na região norte do país da indústria petrolífera e
metalúrgica ao longo da década de 50. Posteriormente, com o fim do
investimento do plano Marshall, o crescimento continuará com a exportação de
aço (principalmente para atender a demanda norte americana durante a Guerra
da Coreia) e com a fundação do Mercado Comum Europeu em 1957 que trará
investimentos e facilitará as exportações.

A rápida industrialização desse período induziu um grande fluxo de


migração interno que, de acordo com Paul Ginsborg (1990), levou cerca de 9
milhões de pessoas a migrar das regiões do sul para o Norte do país entre 1955
e 1971. Além disto este processo criou enorme demanda por novos meios de
transporte e infra-estruturas. Foram construídas num breve período de tempo
ferrovias e rodovias para interligar as cidades, bem como usinas e barragens
hidrelétricas para alimentar não só a indústria, mas também o emergente
crescimento das cidades.

A pressão demográfica gerou a explosão do crescimento das periferias


urbanas através do mercado imobiliário. Foram construídos neste período
diversos blocos habitacionais nos entornos das cidades constantemente
superlotados que ao longo de curto período (1958-1963) se tornaram altamente
degradados. Conforme Cederna (1980), o ambiente natural era constantemente
ameaçado pela expansão industrial, causando poluição generalizada ao ar e água
e desastres ecológicos, como o colapso Barragem Vajont e acidente químico de
Seveso, até que uma consciência verde se desenvolveu a partir da década de
1980.

Tais mudanças sociais estariam intimamente ligadas à transformação


cultural da época, quando correntes artísticas como o Neo Realismo Italiano e a
Arte Povera direcionaram o olhar dos artistas para a crítica da sociedade e do
cotidiano em transformação, num processo de investigação e reconstrução dos
códigos narrativos e descritivos da própria arte. Surgiram nesse período o cinema
de Antonioni, Fellini e Pasolini, a literatura de Italo Calvino, a arquitetura
tipológica de Aldo Rossi, bem como a previamente citada Arte Povera. É comum
a todas essas manifestações artísticas a busca de uma linguagem mais reflexiva
para lidar com uma sociedade complexa, onde conviviam traços culturais
bastante contrastantes, numa tensão entre modernidade e tradição.

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Dentro deste contexto social e cultural, Ghirri irá desenvolver seu trabalho,
que tem sido academicamente dividido em duas fases distintas (Spunta et al.
2017), a primeira, que se estende até meados da década de 80 do século XX,
possui ordem conceitual e promove uma investigação das relações entre
representação e realidade em um mundo saturado de imagens. A segunda fase,
que foi da década de 80 até sua morte, foi quase exclusivamente dedicada à
fotografia da paisagem e buscou pensar questões sobre a habitabilidade da
paisagem, num viés da experiência estética, levando em consideração todos os
sentidos da percepção, inclusive a memória, as emoções e a imaginação, ao
mesmo tempo reconhecendo a natureza culturalmente codificada da paisagem e
sua ação ativa na relação entre homem e paisagem.

Durante a primeira fase, Ghirri efetuou uma vasta pesquisa sobre a


fotografia como mecanismo de acesso ao mundo e suas representações.
Segundo suas próprias palavras: " O sentido que tento dar ao meu trabalho é o
de verificar como ainda é possível desejar encarar o caminho do conhecimento,
para fazer possível ao menos diferenciar a real identidade do homem, das coisas
e da vida da imagem do homem, das coisas e da vida"2 (Ghirri 1978).

Nesta fase suas fotos buscam uma aproximação deliberada com a


fotografia amadora. Assim, através do uso de filmes não profissionais coloridos
em 35mm, do uso de cópias de tamanho reduzido e da renúncia ao virtuosismo
técnico, o artista procura remontar com o espectador a familiaridade de um
álbum de férias. Essa aproximação formal com o amadorismo fotográfico está
intimamente relacionada com a estratégia de Ghirri de apontar sua câmera para
a paisagem cotidiana, afastando-se de uma estetização da natureza em prol de
de uma experiência do mundo. Ghirri irá olhar para o cotidiano investigando
paisagens consideradas até então vulgares.

Desta fase pode-se destacar KodakChrome, livro publicado em 1978, pela


editora criada por Ghirri, que efetuará uma remontagem de seus trabalhos
anteriores, buscando uma reflexão acerca da relação entre imagem e vida.
Através do que Ghirri chamou de "fotodesconstrução" ele procurou investigar as
sobreposições entre realidade e suas representações na paisagem urbana. Ghirri
em Niente di antico sotto il sole escreveu:" ...em larga escala a realidade está

2
As traduções dos textos de Ghirri são feitas pelo autor deste ensaio do original em italiano ou de sua
compilação em Inglês dependendo da edição da obra da qual a citação foi extraída.

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sendo transformada em uma colossal fotografia, e a fotomontagem já está
construída: ela está no mundo." Um exemplo deste pensamento pode ser
encontrado na análise das fotos encontradas em KodakChrome que analisamos
a seguir.

Fig.1 - Reprodução digital das páginas 86 e 87 do livro KodakChrome. Autor:


Luigi Ghirri, 1978.

Na primeira foto (Bologna,1973) vemos um casal sentado em um


restaurante, o homem que se localiza à direita da imagem apoia a cabeça com a
mão, seu cotovelo apoiado na cadeira ao lado da sua, a mulher apoia o queixo
com uma mão, seu cotovelo apoiado sobre a mesa, na cadeira a seu lado
podemos ver uma sacola plástica com embrulhos, ao centro da mesa
encontramos uma cerveja, dois copos semi cheios e uma porção de pães, no
fundo da fotografia vemos uma grande pintura mural representando um mar
com ondas que se quebram pouco acima da cabeça do casal. De imediato nos
identificamos com a cena, poderíamos estar na mesa ao lado observando o casal
enquanto, como eles, aguardamos o tempo passar. Essa cena, que poderia passar
incólume, despercebida, em nosso cotidiano, ganha através do recorte
fotográfico destaque, saltando a nossos olhos e nos propondo uma reflexão: o
casal completamente absorto, e até mesmo entediado, parece que a qualquer
momento será engolido pelo mar (imagético) atrás de si, como se, distanciados
da percepção do momento que vivem e de tudo que os cerca, fossem tragados
pelo poder das imagens que os rodeiam.

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Fig.2 - Fotografia. Bologna,1973. Autor: Luigi Ghirri, 1978.

A fotografia ao lado desta (Hergiswill,1972) mostra em primeiro plano a


imagem de um soldado da cavalaria Suíça do século XVII montado em um cavalo
pomposamente empinado, em segundo plano vemos um muro metálico verde
que parece sustentar a imagem de um resort no entorno de um grande lago. A
junção resultante do enquadramento destas duas imagens no quadro fotográfico
causa, de início, grande estranhamento, tanto pelo tempo histórico distante na
existência factual das coisas representadas quanto pela técnica de representação
utilizada nas mesmas (desenhofotografia), como se estivéssemos frente a uma
foto-colagem surrealista. A total descontextualização na justaposição destas
imagens, fomenta uma fragmentação da fotografia que em última instância é
capaz de produzir no observador a quebra da ilusão da representação,
ressaltando a existência da fotografia enquanto imagem.

Passado o estranhamento inicial, com um segundo olhar mais demorado,


a fotografia nos sugere que o cavaleiro salta sobre o muro invadindo o espaço
domesticado da natureza do resort, como se a força de um exército de imagens
tomasse de assalto a tranquilidade feérica deste lugar onde a natureza foi de tal
forma reconstruída constituindo uma espécie de cenário, como aquele da própria
fotografia.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 79


Fig.3 - Fotografia. Hergswill,1972. Autor: Luigi Ghirri, 1978.

A terceira imagem da série (Engelberg,1972), talvez a de mais simples


leitura, efetua um recorte capaz de desvelar as colagens pré-existentes no mundo
gerando um curto-circuito entre imagem e realidade. Nela um grande cartaz
publicitário, que reproduz uma cena natural (grandes cachoeiras), parcialmente
encobre a vista de um canteiro de obras e das montanhas ao fundo, em sua frente
três pedestres caminham alienados de seu entorno. Ghirri, aqui, parece subverter
a ação do próprio cartaz publicitário, ao re-contextualizá-lo no quadro
fotográfico. O cartaz que inicialmente tinha uma função ilusória, a de atribuir um
valor abstrato a uma mercadoria (refrescância ao refrigerante), passa a desvelar
sua própria natureza, convidando o observador da fotografia a rever a relação
de distância e proximidade através do questionamento do encobrimento dos

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 80


planos de visão dos transeuntes, promovendo uma detecção do real apagado, e
desta forma propondo uma relação de re-conhecimento da paisagem
circundante.

Fig.4 - Fotografia. Engleberg, 1972. Autor: Luigi Ghirri, 1978.

O conjunto das três imagens propõe uma reflexão sobre a relação do


indivíduo com o mundo circundante, apontando para o poder mediador das
imagens e para uma constante virtualização do real, ou, ao menos, uma
constante virtualização das relações do indivíduo com o real. É interessante notar
que Ghirri propõe em suas fotografias uma subversão dessa mesma mediação,
utilizando-a como impulso capaz de fomentar uma ação crítica que visa, em

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 81


última instância, não só o questionamento dos mecanismos imagéticos na
sociedade da época mas também uma reflexão que permita ao indivíduo uma
percepção e por fim uma experiência estética da paisagem.

Esse impulso ganhará força a partir da segunda metade dos anos oitenta
do século XX, em parte através de trabalhos comissionados ou colaborativos,
quando Ghirri voltou sua atenção quase exclusivamente para as questões da
paisagem. Sua obra adquiriu, então, um caráter mais contemplativo, no sentido
de buscar criar, através da fotografia, um momento de pausa e reflexão, uma
reativação da atenção para a experiência da paisagem .

Em um ensaio de 1989, Ghirri relembra quando, em sua infância,


observava cartões postais do séc. XIV, nos quais uma pequena pessoa de costas
para o quadro da fotografia figurava como uma unidade de medida, frente a
imensidão sublime das grandes vistas. O pequeno homem, ele escreve, aparecia
como uma presença reasseguradora nestas fotografias, uma garantia da
compreensão visual da monumentalidade que o cercava, uma companhia
silenciosa da exploração do artista. Durante o texto, Ghirri descreve sua vontade,
como fotógrafo, de encontrar um elemento capaz de compor a ancoragem
subjetiva daquela figura, perante a mudança da paisagem italiana, ou seja,
perante uma paisagem que deixava para trás um caráter rural e velozmente
tornava-se urbana.

Para enfrentar essa questão, Ghirri irá se valer de uma série de novas
técnicas. Em primeiro lugar trocará o uso do filme 35mm pelo uso de uma câmera
de médio formato 6x7, o que permitirá uma maior autonomia e precisão na
captura da luz. Paralelamente, e em parceria com o impressor Arrigo Ghi, irá
desenvolver uma técnica capaz de reproduzir uma paleta de alta luminosidade,
cuja cor transparente se aproxima da de uma aquarela, e que, se exposta para as
sombras, elimina quase completamente as altas luzes. Por fim, a terceira grande
marca visual das fotografias do período é o uso de um verniz opaco na fixação
das imagens, que prevenindo o brilho e reflexão do papel, acentua na imagem a
aproximação com um desenho ou aquarela.

O uso destas técnicas permitiu que Ghirri conseguisse criar em suas


fotografias uma atmosfera de fantasmagoria ou suspensão temporal, obtida por
um duplo movimento. O primeiro estabelece, pela precisão visual garantida pelo
negativo de médio formato, a possibilidade de uma maior escala na ampliação

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da fotografia, permitindo ao mesmo tempo uma melhor captação dos efeitos da
luz mesmo em situações mais difusas ou de pouca iluminação. Efeito luminoso
este que seria o centro do segundo movimento, no qual os lugares comuns do
cotidiano recebem uma transformação visual que cria em suas fotografias um
senso de beleza, mistério e estranhamento, revelando a paisagem como uma
aparição a ser relembrada (Spunta 2014), e conferindo a mesma um caráter
extraordinário.

Deste período pode-se citar o livro publicado em 1989 chamado Il Profilo


delle Nuvole. Este livro, no qual se dá atenção aos modos de perceber a paisagem,
foi dedicado, particularmente ao Vale do Rio Po, e perfaz um percurso entre o
Veneto e Lombardia passando pela Emilia-Romana.

A quarta fotografia do livro (Formigine, Ingresso casa colonica, 1989) nos


dá o tom que alinhará o discurso poético do livro. Nela vemos, em primeiro plano,
dois pilares de tijolos que constituem o portal de entrada de uma fazenda; entre
os pilares uma estrada conduz ao centro da imagem, porém neste centro uma
densa neblina vai aos poucos apagando tudo que seria possível ver. Nesta foto
Ghirri retoma a perspectiva frontal e o uso de elementos do mundo para criar
enquadramentos naturais, características marcantes de seu trabalho anterior, no
entanto traz aqui algo completamente novo. O convite à visão feito pelos
enquadramentos preexistentes no mundo, e conduzido pela perspectiva frontal,
vai de encontro a uma névoa que nos impede de ver o que há no ponto fulcral
desta imagem, que desaparece da visão deixando em seu lugar um mistério.
Ressalta-se na imagem a ambiguidade de uma paisagem que não se dá a ver,
que não é outra senão aquela na qual estamos submergidos em nosso cotidiano,
uma paisagem que nos passa despercebida e que será ao longo do livro
desvelada em sua contradição imanente.

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Fig.5 - Fotografia. Formigine, Ingresso casa colonica, 1989. Autor: Luigi Ghirri,
1989.

Na fotografia Bologna,1985 vemos um carro estacionado com o capô


aberto frente à bomba de abastecimento de um posto de gasolina e ao fundo
uma construção que se assemelha a uma ruína de um galpão sob um céu
estranhamente rosa. A única figura humana presente na imagem é um homem
completamente borrado pelo movimento e quase fora do campo na lateral direita
do quadro. A paisagem apresentada na fotografia, ganha grande complexidade
através de sua composição e iluminação. Por um lado, temos uma certa
desolação do espaço do posto de gasolina, acentuada por uma quase esterilidade
da luz fluorescente que o ilumina e da ausência quase completa da presença
humana que só aparece como vulto na imagem; por outro lado há a
complexidade de um contraste histórico, demarcado pelo galpão arruinado ao
fundo, encoberto por um céu quase noturno. A dialética de um tempo duplo onde
o passado convive com o presente. Por outro lado, podemos refletir sobre a
própria escolha do recorte fotográfico. Ao dirigir sua lente para um espaço tão
banal quanto o de um posto de gasolina, o artista efetua um convite para se olhar
com calma para aquilo que nos passa cotidianamente despercebido.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 84


Fig.6 - Fotografia. Bologna,1985. Autor: Luigi Ghirri, 1989.

Se nesta foto Ghirri comentava sobre o desaparecimento da experiência


da paisagem no lugar comum cotidiano, em Grandi valli veronesi, 1989 ele
efetuará um outro comentário sobre o desaparecimento, desta vez apontando
para uma paisagem bucólica que emerge na luz e cor da fotografia como algo
fantasmagórico, um rastro sobrevivente de um passado quase apagado. Os tons
pálidos, mas ao mesmo tempo vívidos, da imagem parecem testemunhar sua
irrealidade perante as transformações da região. No entanto não trata-se aqui
de uma melancólica objetivação ou glorificação de um passado perdido, mas sim
da persistência de sua presença no presente, apontando a dualidade e o
anacronismo deste próprio presente.

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Fig.7 - Fotografia. Grandi valli veronesi, 1989. Autor: Luigi Ghirri, 1989.

A título de um breve resumo conclusivo, pode-se perceber a relevância do


trabalho de Ghirri na produção do pensamento contemporâneo da paisagem,
através de seu constante convite a uma reflexão crítica das relações humanas
com o espaço. Neste sentido, a poética de Ghirri se move entre uma insistente
descontextualização e estranhamento, em direção a uma noção de afetividade do
espaço. Esta poética propõe uma reflexão sobre a habitabilidade da paisagem
contemporânea, que será efetivada a partir da apresentação nas fotografias dos
espaços mais simples e comuns do cotidiano, como por exemplo um posto de
gasolina, num movimento que favoreça a percepção de que são exatamente estes
os espaços que compõem a paisagem na sociedade urbana e que permita
estabelecer com eles as afetividades capazes de trabalhar as questões do homem
em sua relação com mundo.

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Expressões e impressões do fenômeno metropolitano

Roberto Rüsche

Arquiteto e urbanista, mestre e doutorando pela FAUUSP, investiga as questões estéticas que
envolvem a paisagem e o território, e integra grupo Estudos sobre a imaginação poética em
paisagismo (LABPARC/ FAUUSP).

Resumo
No campo das expressões estéticas sobre a metrópole moderna1, este artigo
detém-se na fisionomia do fenômeno metropolitano e destaca a simultaneidade
das dimensões objetivas e subjetivas, constitutivas da leitura das grandes cidades
e da identificação de seus principais traços. Pautando-se pela relação entre
metrópole e sensibilidade, fundamentada em elementos da obra de Walter
Benjamin, foram selecionados, a partir das considerações de Nicolau Sevcenko,
fragmentos que delineiam o momento de transformação de São Paulo em
metrópole nas primeiras décadas do século XX. Comum aos distintos interesses
desses dois autores, reside a possibilidade de destacar os contornos das grandes
cidades e verificar a seu reflexo na intimidade daquele que a poetiza.

Palavras-chave: Metrópole; fisionomia; estética.

1.

Na introdução da edição alemã da obra Passagens, projeto que ocupou


Benjamin entre os anos de 1927-1940, Rolf Tiedemann expõe as linhas gerais
do pensamento que se estrutura a partir dos retratos bejaminianos das grandes
cidades europeias entre os séculos XIX e XX. Mesmo em face da extensão,
inconclusão e fragmentação dos escritos do filósofo, componentes de um amplo
e extraordinário projeto, o editor alemão reúne elementos que articulam o
método aos objetivos de Benjamin, empenhado em reconstituir, a partir da
concretude do fenômeno e da vida urbana, a própria modernidade, isto é, a
história do século XIX como um comentário da realidade. Não se tratando de uma
simples descrição do ambiente urbano parisiense, ao ressaltar a matéria que o

1
Entende-se o termo “modernidade” como a expressão da consciência do novo e das mudanças
estéticas fundadas a partir da ordem capitalista e burguesa: expressão artística e intelectual de um
projeto histórico de modernização (BOLLE, 1994).

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compõem, Benjamin destaca dos espaços, objetos e personagens urbanos o que
os mantém atados à modernidade. As inovações, novidades e mudanças
dispostas entre as obsolescências – ruínas de um passado recente – apresentam-
se matizadas pelo inconsciente coletivo, pela dimensão interior do sujeito, e são
coletadas por Benjamin mediante um saber sensível hesitante entre a vigília e o
sonho. “Em lugar dos conceitos [do conhecimento que se baseia em abstrações],
surgiram imagens: as imagens ambíguas e enigmáticas dos sonhos nas quais se
mantém oculto aquilo que escapa entre as malhas demasiadamente largas da
semiótica e recompensa por si só os esforços do conhecimento; a linguagem
imagética do século XIX que representa sua ‘camada mais profundamente
adormecida’; uma camada que deveria despertar com as Passagens
(TIEDEMANN, 2007, p.18).”

Definida enquanto uma escrita da história realizada com imagens,


Benjamin elabora uma fisiognomia2 da metrópole moderna, realçando as
imagens repletas de história e submetendo-as a um exame detalhado e
minucioso. Preservando semelhanças em relação à fisionomia de Lavater ou
Goethe – a correspondência entre as dimensões objetivas exteriores e subjetivas
interiores, e a interação entre modelos de conhecimento científicos e poéticos –
Benjamin confere particularidade ao seu método fisionômico, dedicado a revelar,
na imagem metropolitana, a mentalidade burguesa.

Conforme destaca Bolle, trata-se de uma “historiografia polifônica”


(BOLLE, 2007, p. 1148), uma rede tecida com fragmentos e imagens
multifacetadas de distintas colorações que estruturam a experiência visual e
espacial da metrópole, atribuindo importância aos lugares e às referências
topográficas e situacionais no interior das grandes cidades. Na leitura
benjaminiana das cidades, da qual Paris, capital do século XIX é paradigmático,
trata-se de uma superposição de imagens, congregando, à materialidade do
ambiente urbano, a dimensão corpórea e psicológica do sujeito que elabora o
retrato da realidade vivenciada. Nessa perspectiva, às imagens somam-se, em
simultaneidade, não somente a concretude dos lugares, mas também um
conjunto de elementos associados à memória, aos sonhos e ao inconsciente –
traços mnemônicos, oníricos, irracionais, primitivos. Através da fisionomia da
metrópole, Benjamin elabora um método historiográfico capaz de ler o rosto de

2
Reproduzimos aqui o neologismo sugerido por Willi Bolle para indicar as relações recíprocas entre a
fisionomia do objeto e o olhar do fisiognomonista, perito em fisiognomonia.

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uma época e identificar a expressão de uma sociedade, as linhas mais
características de seu tempo. Atuando “no limiar entre a consciência e o
inconsciente” (BOLLE, 1994, p. 43), das imagens sonhadas ao despertar do
sonho, o filósofo promove um encontro entre a cidade e seu habitante, um
instante em que ambos refletem seus principais traços e conferem legibilidade
aos acontecimentos.

No contexto das metrópoles modernas na segunda metade do século XIX,


ao ocupar-se de um método de compreensão da modernidade a partir de suas
realizações, dos lugares e dos modos de experiência da metrópole moderna,
Benjamin igualmente se ocupa dos mecanismos psíquicos e seus efeitos sobre a
leitura imagética do ambiente urbano. Visando superar a desnaturação da
experiência sensível nas grandes cidades e sondar a profundidade das dimensões
subjetivas, o filósofo prospecta as relações que se estabelecem entre experiência
e memória. Em referência a Marcel Proust, Benjamin recorre às distinções entre
memória voluntária e memória involuntária. Opondo-se à memória voluntária,
sujeita à tutela do intelecto e desprovida dos traços do passado e entregue aos
“apelos da atenção” (BENJAMIN, 1983, p. 106), a memória involuntária remonta
às lembranças dos tempos longínquos e, afastada do âmbito da inteligência e do
campo de ação lógico, fixa-se na eventualidade de um objeto material qualquer
e na integração dos elementos exteriores e interiores ao sujeito. Embora
associadas a modalidades diferentes de experiências, memória voluntária e
memória involuntária convivem na interioridade subjetiva e preservam suas
características, amalgamando o passado individual ao passado coletivo.
Baseando-se nas hipóteses freudianas sobre a correlação entre a memória e a
dimensão consciente do indivíduo, Benjamin infere que “só pode se tornar
componente da memória involuntária aquilo que não foi expresso e
conscientemente ‘vivenciado’, aquilo que não sucedeu ao sujeito como ‘vivência’”
(BENJAMIN, 1983, p. 108), uma vez que no consciente não se encontram
resíduos de uma modificação duradoura, vestígios mnemônicos. A vida desperta
na metrópole e a grande quantidade de estímulos que a caracteriza exige que o
consciente atue no sentido de preservar o sujeito do choque, da “influência
uniformizante” (BENJAMIN, 1983, p. 109), à qual sucessivamente o indivíduo
está exposto.

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2.

Nos diferentes registros das metrópoles europeias, nas imagens que


retratam a cidade multifacetada e imprimem a fisionomia do fenômeno
metropolitano, Benjamin atribui à poesia destacada relevância e tece os fios que
relacionam teoria, experiência estética e prática artística nas grandes cidades.
Interpenetrando imagens, explorando a multiplicidade de significados, e
imiscuindo o onirismo e as incertezas nos versos e narrativas, o poeta faz emergir,
através de um olhar aparentemente subtraído da realidade metropolitana,
retratos que assinalam tanto a dimensão material da cidade quanto as marcas e
o estado de espírito de sua época: a ambiguidade dos produtos sociais, as
fantasmagorias, o novo e a falsa consciência que ameaçam o tipo de experiência
de outrora. Sobre as relações entre o método fisionômico empreendido por
Benjamin e a literatura, Bolle (1994) sublinha que ambos, o filósofo e o poeta, se
esforçam na tentativa de capturar o momento em que o sujeito – em um só golpe
– capta os traços que definem a cidade e, em simultaneidade, a si mesmo. Diante
dos efeitos psicossociais da vida nas grandes cidades, Benjamin confere
singularidade à poesia de Baudelaire, precisamente, na emancipação que ela
possibilita em relação às vivências, à experiência vivida em sentido restrito.
Perscrutar as falhas reflexivas e conscientes da resistência ao choque, incorporar
o sobressalto, lutar para o registro das imagens efêmeras do acaso, eis o
compromisso da poética baudelairiana. Sobre sua forma, segundo o filósofo,
Baudelaire a imagina como algo suficientemente flexível, desprovido de qualquer
estrutura rígida, resistente às interferências da consciência e permissiva à ação
dos devaneios. Sobre seu conteúdo, Benjamin o associa a uma “secreta
constelação” de imagens: “é a multidão fantasma das palavras, dos fragmentos,
dos inícios de versos com que o poeta, nas ruas abandonadas, trava o combate
pela presa poética” (BENJAMIN, 1983, p. 113).

A multidão, os personagens tipificados, os hábitos e gestos, fixados pela


retina do observador e transformados pela sensibilidade do poeta, são colocados
em destaque como fragmentos de um texto imagético sobre a metrópole, no qual
a materialidade dos lugares está encoberta por um véu, uma transparência que
sutil e decisivamente confere brilho e mistério à atmosfera urbana e às suas
impressões sempre fugidias. Nos quadros baudelairianos remontados por
Benjamin, emerge uma ambivalência das imagens, expressa pela ambiguidade
entre transparência e opacidade, atração e repulsa pelas massas urbanas ou pela

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própria figura do flâneur parisiense, vacilante entre o homem de negócios e o
ocioso em que os gestos a ele associados representam ações automatizadas,
desprovidas do tempo duradouro, da preexistência dos acontecimentos ou do
acúmulo de experiências. “Ao abrigo de qualquer crise” (BENJAMIN, 1983, p.
132), como um antídoto contra os novos tempos, Baudelaire resguarda as
experiências cultuais, dados mnemônicos primitivos, cuja incontornável perda se
anuncia na modernidade. Em contraposição a uma maior visibilidade, alcançada
pela daguerreotipia e, posteriormente, pela fotografia, Benjamin salienta o
enfraquecimento da imaginação e a redução da própria percepção. “Ele
[Baudelaire] determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do
moderno: a desintegração da aura na vivência do choque. A convivência com esta
destruição lhe saiu cara. Mas é a lei de sua poesia que paira no céu do Segundo
Império como ‘um astro sem atmosfera’” (BENJAMIN, 1983, p. 145).

3.

“Em uma longínqua cidade ao sul da América do Sul” (SEVCENKO, 2014,


p. 289), os anos de 1920 representam, no caso de São Paulo, a decisiva
transformação da cidade em uma “megalópole moderna” (SEVCENKO, 2014, p.
18). Não se tratando apenas do incremento populacional ou de alterações na
configuração do espaço urbano, Nicolau Sevcenko emerge, do conjunto de
fenômenos que caracterizam a conversão da capital paulista em metrópole, a
redefinição dos padrões culturais e de identidade relacionados à vida na cidade
de São Paulo no “umbral da sua entrada para a modernidade” (SEVCENKO,
2014, p. 115). Expectativas, conflitos, tensões, justaposições e sobreposições de
imagens comprometidas ora com o passado ora com o futuro, o autor perpassa,
através da pena do escritor, dos cronistas e poetas, cenas e acontecimentos que
atestam o impacto e os desdobramentos da modernidade na reorganização das
dimensões perceptivas e simbólicas, reconstruindo, para o leitor do século XXI, a
atmosfera cambiante da metrópole in statu nascendi.

Da cidade em plena transformação, entre o fim do século XIX e o início do


século XX, é possível reconhecer variados fenômenos associados à imagem da
metrópole que, vertiginosamente, se afirmava e se tornava mais nítida. Da
reestruturação do espaço urbano nas suas dimensões física, geográfica e
histórica, com ênfase nas transformações urbanísticas associadas à escala

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metropolitana, à reverberação da renovada melodia e dos novos ritmos que a
cidade imprime na intimidade de seus habitantes, Sevcenko recolhe variadas
descrições e representações acerca da metrópole paulista: das imagens claras e
radiosas associadas ao progresso à incompreensão e obscuridade de um futuro
irresoluto. Percorrendo diversos exemplos e passagens que conformam
alternados quadros da cidade de São Paulo, observa-se a concorrência de
distintos cenários que, além dos aspectos acima citados, atam laços com a cidade
pré-existente e aquela dos novos tempos.

Ainda nas primeiras décadas do século XX, áreas naturais reminiscentes


emolduravam o sítio urbano e atribuíam singularidade à paisagem que se
descortina a partir de pontos específicos no interior da cidade. No espetáculo que
se mostrava aos habitantes, encenava-se o contorno da arquitetura fundida aos
perfis das serras e colinas, perpassadas por águas murmurantes e iluminadas
pelo brilho enevoado do sol. Ao deslocar-se pelos parques, bosques, matas, rios
e várzeas que prazerosamente eram acolhidos pelos habitantes da cidade,
Sevcenko subitamente suspende o sofrimento e a desesperança das massas
empobrecidas, registrando os encantos que a natureza alhures proporcionava
aos seus habitantes em meio à afirmação de novos valores estéticos, simbólicos
e culturais.

Desinteressada pela beleza natural do território e alheia à precariedade e


pobreza, o autor destaca o ímpeto com que se afirmavam os novos paradigmas
relativos à metrópole e ao curso da modernidade, reunindo uma multiplicidade
de novos símbolos e imagens que atestam a expressão e a recepção da inédita
experiência metropolitana. “Feita no seu íntimo de impressões fragmentárias, de
sensações fortes, mas vagas, de símbolos irresolutos [...]” no espírito dos seus
habitantes gravavam-se diferentes impressões comprometidas em adaptar,
mesmo que de modo dispersivo, as feições da cidade à metrópole. Conforme
sublinha Sevcenko, delineava-se um quadro incompleto, ambíguo e polifônico,
no qual, em meio às desigualdades sociais e aos descompassos da urbanização,
fervilhavam iniciativas que imprimiam à fisionomia da cidade um aspecto
concomitantemente extraordinário e indeciso entre os diferentes aspectos que a
caracterizavam. Além de inovações arquitetônicas e urbanísticas, o circuito
cultural e dos espetáculos artísticos compunha, com os novos monumentos e
edifícios públicos, um conjunto de alterações que empalideciam os vestígios do
passado em favor da modernidade e de uma cenografia que a atendesse. A partir

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do relato de um jornalista e crítico de arte sobre um concerto ocorrido no Teatro
Municipal de São Paulo – no crepúsculo de uma tarde de domingo – Sevcenko
não somente aponta para o estabelecimento de novos padrões culturais, mas,
sobretudo, se fixa na ambiência que envolvia tais eventos no centro cidade.
Perfazendo relações entre a peça, o público e a metrópole, o autor recorre a uma
descrição que precisamente afirma os diferentes elementos que compõem a
totalidade da cena para além do palco do teatro: a saída imponente do distinto
público, a fugacidade das luzes dos automóveis, súbitos reflexos e sombras
misteriosas, os gestos e as vestimentas: “a ação agitada e nervosa de uma
coreografia multicentrada, complexa e enérgica; tudo composto segundo um
amplo roteiro que abarca todo o conjunto” (SEVCENKO, 2014, p. 113).

Através da forma poética, o panorama descrito acima, caracterizado pela


multiplicidade de elementos concorrentes e, por vezes, contraditórios, igualmente
repercute a indefinição e demais aspectos associados à atmosfera transitória e
incerta que pairava sobre a cidade de São Paulo nos anos 20. Assim como
identificamos alguns registros que atestam a passagem da cidade à metrópole e
seus reflexos sobre o ambiente urbano, é possível reconhecer, a partir de
fragmentos poéticos, as diferentes colorações que o fenômeno da
metropolização imprime na sensibilidade de seu habitante. Na perspectiva
observar a repercussão da metrópole na alma do poeta, dentre outros exemplos,
Sevcenko confere singularidade à poesia de Blaise Cendrars e Manuel Bandeira.
Reconhecendo a forte identificação de Cendrars com a modernidade, o autor
destaca atração do poeta francês com a cidade de São Paulo, relacionada às
variadas dimensões que compunham a realidade paulista e brasileira. A
novidade, a presença em outro território, distante de sua pátria, faz com que
Cendrars paute sua experiência na presentificação de sensações e pensamentos,
não recorrendo a símbolos ou alegorias previamente estabelecidos: “Blaise não
precisa provar nada, não quer provar nada, apenas apreciar o frescor multifário
de uma experiência social singular e intensa da modernidade em andamento”
(SEVCENKO, 2014, p. 292), tal como se manifesta na imediatez de impressões
colhidas da janela de um hotel no Largo do Paissandu.

Paisagem
O muro trespintado da PENSIONE MILANESE se enquadra na
minha janela
Eu vejo uma fatia da Avenida São João

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Bondes, carros bondes
Bondes-bondes bondes bondes
Mulas amarelas atreladas a três puxam carrocinhas vazias
Por cima das pimenteiras da avenida se destaca o anúncio
gigante
CASA TOKIO
O sol verte verniz

O exercício de captar as impressões da metrópole paulista confere a


Cendrars a possibilidade de compor um panorama em que a cidade de São
Paulo, uma metrópole nos trópicos, é revelada com uma riqueza de detalhes que
reúnem os diferentes elementos que a caracterizam. Não abandonando os
sentimentos individuais, Cendrars lança-se ao exercício surrealista em “escala
assustadoramente grande” (SEVCENKO, 2014, p. 294), ao qual corresponde a
experiência paulistana, e retrata sob uma perspectiva pessoal, os contornos que,
aos olhos do poeta, definem a feição da metrópole: em meio às forças do
capitalismo, da especulação, das ameaças não controláveis e tampouco
previsíveis de uma galopante renovação, permanece intocada, na alma do poeta,
“as duas três velhas casas portuguesas que [ainda] restam”.

Saint-Paul
Eu adoro esta cidade
São Paulo é como o meu coração
Aqui nenhuma tradição
Nenhum preconceito
Nem antigo nem moderno
Só contam esse apetite furioso essa confiança absoluta
esse otimismo essa audácia esse trabalho esse esforço
essa especulação que faz construir dez casas por hora
de todos os estilos ridículos grotescos belos grandes pequenos
norte sul egípcio yankee cubista
Sem outra preocupação que a de seguir as estatísticas
prever o futuro o conforto a utilidade a mais-valia e
atrair uma enorme imigração
Todos os países
Todos os povos
Eu amo isso
As duas três velhas casas portuguesas que restam

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são faianças azuis

Do ponto de vista da interioridade, da intimidade, daquilo que


profundamente sensibiliza o sujeito e nele está gravado, a poesia de Manuel
Bandeira, embora não ocupada com descrições do espaço urbano ou dos
elementos que o compõem, perfaz o alcance da modernidade e da metrópole no
íntimo do seu habitante. Assinalando as particularidades de sua trajetória
biográfica e de sua formação enquanto poeta, Sevcenko reconhece em Bandeira
a capacidade de prospectar, em meio ao cotidiano da vida urbana, o sentimento
que envolvia as populações mesmo em face do enfraquecimento da sensibilidade
e do esvaziamento da consciência na modernidade. “É, aliás, o fato de ele tomar
as condições concretas de existência como seu ponto de referimento e não o
carrossel das alucinações frementes que faz dele o poeta e não o político, o folião
ou o penitente” (SEVCENKO, 2014, p. 262). Reafirmando o compromisso com a
realidade imediata, Bandeira acolhe com sutileza os acontecimentos e
personagens prosaicos, afastando-se das ilusões frequentemente sugeridas pela
modernidade e pela vida nas grandes cidades. Recusando uma postura engajada
em promessas e reluzentes perspectivas futuras, o poeta realiza um movimento
em sentido contrário e interioriza, incontornavelmente, as angústias de um
mundo cambiante.

Chambre vide
Petit chat blanc et gris
Reste encore dans la chambre
La nuit est si noire dehors
Et le silence pèse
Ce soir je crains la nuit
Petit chat frère du silence
Reste encore
Reste auprès de moi
Petit chat blanc et gris
Petit chat
La nuit pèse
Il n'y a pas de papillons de nuit
Où sont donc ces bêtes?
Les mouches dorment sur le fil de l'électricité
Je suis trop seul vivant dans cette chambre

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Petit chat frère du silence
Reste à mes côtés
Car il faut que je sente la vie auprès de moi
Et c'est toi qui fais que la chambre n'est pas vide
Petit chat blanc et gris
Reste dans la chambre
Eveillé minutieux et lucide
Petit chat blanc et gris
Petit chat.

* * *

Da metrópole parisiense à metrópole paulista, entre os retratos sugeridos


por Benjamin e Sevcenko, vislumbra-se um conjunto de relações que se insinuam
e se projetam para além dos limites deste texto, ocupado em esboçar o retrato do
fenômeno metropolitano baseado na complementariedade do objeto e do sujeito.
Na tentativa de delinear um rosto à metrópole e à modernidade, ao empreender
um breve exercício fisionômico de São Paulo nas primeiras décadas do século
XX, evidenciam-se as inter-relações entre o objeto (a metrópole, a cidade, e os
variados elementos que a compõe) e o sujeito (o habitante, o poeta e o aguçado
leitor que sensivelmente a acolhe e a traduz). Às imagens, aos retratos, aos
instantes que captam a expressão das grandes cidades, não adere apenas a
materialidade do mundo construído, mas também a sensibilidade do indivíduo
enquanto consciência, memória, inconsciência e demais aspectos relativos às
profundas e insondáveis camadas psicológicas individuais. Assumindo diferentes
colorações e expressa nos exemplos aqui coletados, a experiência metropolitana
sugere um caráter desorientador em que determinadas formas do mundo real
parecem falar em uma língua estranha, de difícil assimilação aos habitantes das
grandes cidades. Na aurora dos novos tempos, o brilho insidioso da metrópole
contrasta com as imagens do ocaso e do lamento em que o sujeito busca reaver
o encanto pelo mundo.

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Referências bibliográficas

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________Infância em Berlim por volta de 1900. Tradução: Rubens Rodrigues


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SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e


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Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial, 2007.

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Anima mundi em tintas:
o valor psíquico da pixação em São Paulo

Guilherme Scandiucci

Psicólogo, psicoterapeuta junguiano e professor. Mestre e Doutor pelo Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo (IPUSP). MA em Jungian and Post-Jungian Studies pela University of
Essex (Reino Unido).

Resumo
Este artigo se debruça sobre a vida na cidade contemporânea, esta entendida
como locus privilegiado da expressão da psique coletiva em seu potencial de
multiplicidade. São analisadas intervenções urbanas conhecidas como pichação
(ou pixação), com base na psicologia analítica inaugurada por Carl Jung e na
psicologia arquetípica, vertente pós-junguiana cujo principal autor é James
Hillman. A ideia de anima mundi, de inspiração neoplatônica, as formulações
hillmanianas acerca do patologizar, bem como o conceito de complexos culturais
sustentam as interpretações sobre o fenômeno aqui apresentadas. Conclui-se que
as pixações são ao mesmo tempo feias e extraordinárias, pois sujam e dão vida à
cidade, enraivecem uns e dão sentido para a vida de outros, à medida que formam
uma rede de pertencimento psicossocial para muitos jovens das periferias.

Palavras-chave: Anima mundi, Pixação, Psicologia arquetípica.

A cidade sempre representou muitas coisas para muita gente. Pode ser
um centro para o comércio, oportunidade econômica, produção de tecnologia;
ou uma aglomeração que resulta em arte, atividades esportivas, cultos religiosos,
pesquisa, entretenimento. Pode ainda ser, por outro lado, um apanhado de
problemas coletivos a serem resolvidos: circulação, lixo, drenagem, esgoto,
pobreza. Todas as cidades são coleções de estruturas e sistemas, fábricas urbanas
frequentemente lúgubres e monótonas, às vezes interessantes e diversificas, ou
até mesmo inspiradoras. Como aponta Jones (2004), a cidade como um
fenômeno também pode ser entendida como um arquétipo primário da
experiência humana: homens e mulheres em comunidade, com toda a
diversidade, contradição, tensão e exuberância que isso implica.

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Sardello (1982) perspicazmente aponta que a perambulação sem fim das
cidades para além de suas fronteiras, produzindo um desenraizamento e o não-
descanso, pode ser entendida somente como uma inabilidade profunda de
confrontar a realidade da morte, que é necessária para a vida da cidade. As
fronteiras são protegidas quando a experiência da morte é conectada com o
alimentar a imaginação. A cidade prospera, não quando fica tentando estender-
se, mas quando a imaginação entra em sua região. O doentio da cidade são
doenças de nossa alma, falta de alma e a necessidade da particularidade de uma
habitação local.

Apoiados em nosso paradigma cultural pós-Iluminista, nós tendemos a


compreender as cidades em termos de suas formas e estruturas físicas, como
coisas literais e concretas, como tijolos e argamassa (e, claro, o concreto em si
mesmo). Isso está de acordo com o literalismo e o materialismo, implícitos na
narrativa que parte da visão de mundo ocidental dominante. O mundo se tornou
um conglomerado de coisas que são apenas... coisas. O objetivo da
administração da cidade está fortemente baseado em eficiência, praticidade,
produtividade econômica. O processo de desencantamento da terra e da
natureza desencadeado na modernidade também se estendeu para nossas
cidades, que são agora vistas e entendidas como construções seculares,
inteiramente materiais e mecanicistas.

Pretendo aqui oferecer um outro ponto de vista sobre a cidade,


especificamente sobre os fenômenos do grafite e da pixação em São Paulo (logo
será explicitada a diferença entre pichação e pixação). Veremos como relacionar
o modo de se experimentar a cidade com as respostas psicopatológicas de seus
cidadãos, dentro do eixo da fluidez que marca a vida contemporânea.

Qualquer pessoa pode notar a presença, nas grandes cidades, de


desenhos e escritos, feitos com spray ou outras tintas. Eles estão em prédios,
muros, viadutos, ou mesmo em monumentos e trens. Este fenômeno, chamado
de grafitagem e pixação, ganhou espaço nos Estados Unidos da América na
década de 1970, e desde então toma grandes proporções em todo o mundo.
Período em que, por exemplo, os grafiteiros “fizeram um lugar” para eles na rede
pública de transportes de Nova York, reclamando um “direito à cidade” como
parte valorosa e necessária de sua vida social e cultural.

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No Brasil, onde este fenômeno também aparece com grande frequência
(sendo a cidade de São Paulo um dos principais palcos do mesmo), há uma clara
distinção entre a “pixação” e o grafite. A primeira é geralmente composta por
escritos num estilo típico de letra, o qual somente aqueles que estão envolvidos
com a pixação podem ler, e normalmente é considerada vandalismo. O segundo
apresenta desenhos coloridos, e é comumente visto como um tipo de arte. Não
raro prefeituras reservam alguns espaços públicos aos grafiteiros, organizando
tal atividade e legitimando o grafite.

Especificamente em São Paulo (região metropolitana e algumas cidades


do interior), a partir de meados dos anos 1980 e com forte pulverização no início
da década de 1990, ocorre um tipo específico de pichação, que
convencionalmente foi denominada de pixação, com “x”. Alguns nomeiam este
movimento como Escola Paulista de Pichação. São letras desenhadas, não
compreensíveis pelo público em geral, feitas justamente para serem uma
comunicação entre grupos de pixadores. O estilo de letras paulistano é conhecido
como Tag Reto, tendo se tornado uma “assinatura da cidade”, na expressão de
Lassala (2010, p.37). “[...] se olhar para a cidade nos faz entender um pouco mais
os pixadores, olhar para os pixadores também nos ajuda a compreender um
pouco mais a cidade” (Pereira, 2010, p.146). Não há dúvida da importância da
pixação em São Paulo, como já disse. Neste momento, farei um panorama sobre
o fenômeno, para depois tecer algumas interpretações a partir de material
fotografado.

O objetivo principal foi se solidificando em torno do gerar fama (“ibope”,


na gíria desta comunidade) para o indivíduo ou o grupo (Gitahy, 1999; Lassala,
2010). Nas palavras de Gitahy (1999, p.24): “É uma guerra feita com tinta, todos
se conhecem e se identificam pelo tipo de código pichado. Um grande abaixo-
assinado para a posteridade, no qual cada um que participa deixa sua marca”.

Paixão (2011) faz um apontamento a respeito deste aparecer na cidade e


suas construções, que se tornam sustentáculo para a mensagem, transformando
no meio que de certa forma o emancipa da condição fechada, deliberada pela
estrutura social. Tal “reconquista do sujeito” no mundo contemporâneo possui
grande relação com aqueles que “[...] desenharam animais, plantas e símbolos
nas grutas, nas rochas e nas cavernas, que parece ser o desejo ancestral de expor
ao mundo a sua presença, a sua existência, a sua passagem, a sua subjetividade”
(p.43).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 102


A transitoriedade e efemeridade são pontos importantes na prática da
pixação. O autor do pixo deixa sua marca sem se identificar pelo nome de registro
civil, numa espécie de “escrita-fantasma”. O pixador pertence a uma quebrada,
comumente registra seu local de origem em sua manifestação, mas ele não deve
se enraizar; ao contrário, deve ser um andarilho que deixa rastros, uma espécie
de enigma urbano a ser decifrado por aqueles que estão dentro da pixação e
portanto entendem as letras, e a ser hostilizado por aqueles que veem essas letras
como sujeira.

É comum haver um desejo por uma cidade mais ascética, livre de sua
sombra – uma espécie de cidade do tipo ego heroico, disposto a manter a
sobriedade e as aparências mais comumente esperadas em sua persona, pouco
levando em consideração a massa libidinal periférica, oprimida e disposta a
invadir o centro da consciência. Exemplo recente é a tentativa da gestão de João
Dória em São Paulo de coibir e criminalizar as pichações e mesmo grafites não
autorizados. Nesta toada, cabe ainda observar que a pixação aponta para a
insegurança, isto é, não nos deixa esquecer de que certos ataques podem vir à
tona, provocando crises. O pixador tem algo de Pã, figura invasora que estupra
a consciência virginal de um centro intocado.

Não é à toa que no vocabulário dos pixadores e grafiteiros frequentemente


aparecem termos “bélicos” ou agressivos, como ataque, destruir, atropelo, tiro.
Todos eles se referem ao ato de pixar ou grafitar, que está, conforme comentarei
em mais detalhes, próximo de uma criação que destrói, de uma ação combativa
que flerta com a morte, e simultaneamente impulsiona a vida e as relações
estabelecidas (com a própria atividade e entre seus participantes). Eros e Tanatos
se encontram nessas tintas da cidade.

Com base nos autores da psicologia analítica, pretendo explorar o tema, a


partir de uma visão da cidade como um ser que pode despertar um olhar
imaginativo, para o que Jung e Hillman nomeiam de alma. Além de ser
obviamente uma construção física, a cidade é também uma imagem, e como tal
cada cidade particular é uma imagem específica do arquétipo da cidade, que é
um padrão universal para a vida e experiência da vida humana coletiva.

O grafite e a pixação expressam importantes aspectos da alma de uma


cidade, especialmente das grandes cidades. Ao lidar com diferentes características
de uma cidade e sua situação – fatores históricos, políticos, econômicos e sociais

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 103


– os grafiteiros e pixadores podem revelar partes desta alma que estão
normalmente encobertas na rotina diária da vida de negócios. Tais “revelações”
podem ser um prazer para alguns, e o horror para outros: este é o conflito interno
de qualquer sistema psíquico, como mostra a psicologia analítica. Quando a alma
surge, a última coisa que podemos esperar é tranquilidade.

A psicologia arquetípica (e particularmente Hillman) retoma a ideia de


anima mundi nas décadas finais do século XX. A “clínica” arquetípica, para
Hillman (1993), não poderia mais estar dentro (dos consultórios, das mentes
individuais), mas sim também fora, nas qualidades e mazelas do mundo.

Hillman lança então uma luz ao entendimento das forças vitais


subjacentes ao mundo que nos rodeia, declarando que “cada coisa de nossa vida
urbana construída tem uma importância psicológica” (Hillman, 1993, p.9).
Retomando ideias platônicas e confrontando com as filosofias de Aquino,
Descartes, Locke e Kant, as coisas “de fora” recuperam suas almas. A anima
mundi é o mundo “almado”, e não somente material ou morto, ou simplesmente
uma espécie de pano de fundo no qual a subjetividade se manifesta.

Em suma, anima mundi é uma maneira de perceber, sentir e imaginar.


Com essa proposição, Hillman (1993) sugere que a psicologia deveria mudar seu
ponto de vista como um todo, da reflexão mental em direção ao reflexo cordial,
movendo o lugar da alma, do cérebro para o coração, e o método da psicologia,
da compreensão cognitiva para a sensibilidade estética. A ameaça de destruição
do mundo e a imagem patologizada de nosso planeta nas últimas décadas parece
ter revivido o reconhecimento da alma no mundo.

Outro desenvolvimento teórico fundamental aqui é o conceito hillmaniano


de patologizar. Estados patológicos, por assim dizer, são chamados por Hillman
(2010) de alma in extremis. São estados de sofrimento, anormalidade, e
fantásticas condições da psique. “Cada alma, mais cedo ou mais tarde, revelará
ilusões e depressões, ideias supervalorizadas, voos maníacos e raivas,
ansiedades, compulsões e perversões” (Hillman, 2010, p.132). Nessa perspectiva,
a psicopatologia não diz respeito a patologias em sentido médico.

Patologizar, na definição de Hillman (2010, p.134-135), é “[...] a habilidade


autônoma da psique para criar doença, morbidade, anormalidade e sofrimento
em qualquer aspecto de seu comportamento, e de experimentar e imaginar a vida
através desta perspectiva deformada e aflita”. Na visão arquetípica, portanto, a

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 104


patologia não é errada ou correta, mas meramente necessária, já que se trata de
expressão fundamental da psique. O patologizar é um estilo de retórica da alma.
Não é algo estrangeiro a nós ou secundário, pois isso negligencia a realidade de
que o patologizar é um fundamento, “[...] um fio condutor em nosso ser, trançado
em cada complexo” (p.136).

Pode-se ainda trazer à baila a recente ideia de complexos culturais. Como


complexos pessoais emergem do nível do inconsciente pessoal em sua interação
com níveis mais profundos da psique, complexos culturais podem ser pensados
como se fossem erguidos a partir do inconsciente cultural em sua interação tanto
com o reino arquetípico como com o reino pessoal da psique. Como tais,
complexos culturais podem ser pensados como o que forma os componentes
essenciais de uma “sociologia interna” (Singer; Kimbles, 2004).

A pixação poderia ser vista sob este ponto de vista também. A forma como
frequentemente “brotam” os pixos pela cidade de São Paulo são notícias coletivas
de uma tensão social, um modo desenfreado e incontrolável de se expressar
afetos significativos deixados à margem (periferia) – como de fato opera o
complexo, neste caso, “cultural”. A questão da coletividade grupal é fundamental
aos pixadores, pois esta atividade confere um valor de identidade aos membros
desses grupos.

Revolta, transgressão, expressão agressiva, aspectos sombrios colocados


para fora são características da pixação paulistana. Gravitam em torno de um
elemento arquetípico que confere energia suficiente para que esses jovens sejam
movidos pelo fenômeno do pixo, que pode ser bastante arriscado. Tal elemento
arquetípico, presente neste patologizar urbano, está relacionado à própria
experiência psicológica de existência, de criar teias de significação na vida social,
de ter acesso a símbolos que possam expressar a eterna inquietude da
psique/cidade.

Se uma classe social mais privilegiada geralmente tem ódio dos pixadores,
não é difícil suspeitar que há um complexo cultural em ação, com sua carga
projetiva afiada. Pois o pixo também fala de nossa sombra coletiva, explicita algo
que subjaz para além da persona. O pixador Rafael Pixobomb, por exemplo, dá
o seguinte depoimento no documentário “Pixo”, de João Wainer e Roberto
Oliveira (2009): “[a pixação] carrega toda a energia da metrópole. Tem o
egoísmo, a perversidade, querer atingir o inatingível, ser o melhor”. Essas

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 105


características são realmente parte intrínseca de São Paulo, mas raramente as
reconhecemos em nossas ações. Todos sabemos que estão nos negócios e nas
transações de grande porte que ocorrem cotidianamente, de maneira mais
velada. O pixador explicita e assume essa “perversidade”, egoísmo, ambição
desenfreada. Acaba sendo alvo de acusações pela prática ilícita.

O ponto determinante aqui é que os atos inconscientes atuam como uma


função compensatória à consciência, trazendo material necessário para
balancear ou compensar uma posição unilateral do ego na consciência. Pois, no
sistema teórico de Jung, sendo o inconsciente intencional, os conteúdos
inconscientes procuram eventualmente manifestações na vida consciente. Dessa
forma, trazendo tal colocação para a vida e alma da cidade, tem-se que os grafites
e pixações manifestam esteticamente conteúdos muitas vezes provocativos ou
desagradáveis, mas por isso mesmo essenciais para a expressão da vida
“marginal”, fora da organização calculada e amistosa do ego citadino. Central e
periférico, consciente e inconsciente, persona e sombra não podem ser instâncias
apartadas; haverá uma força psíquica/coletiva que procurará a aproximação de
tais polos, sendo este movimento mais ou menos dolorido dependendo do
contexto e das circunstâncias.

Enfim, a pixação tem papel essencial na alma da cidade, revelando um


importante complexo cultural, expressando algo cujo destino normalmente é
afastado para o periférico. Noto que esta frase tem duplos sentidos: normalmente
lembra a ânsia do ego para ser “normal” e, uma vez mais, quando me refiro ao
periférico, estou obviamente fazendo menção à periferia da cidade e da psique (o
excêntrico ou fora do centro). O “fazer-cidade” (alusão ao fazer-alma) deve
então reconectar a cidade-alma à sua extremidade (patologizar como alma in
extremis), através desse coletivo que dá voz a um complexo cultural ligado à
exclusão. O que não implica em integração, isto é, numa síntese que abrange tais
marginalidades.

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Figura 1: Edifício repleto de pixos (uma “agenda”) na rua Teodoro Sampaio, em
São Paulo. Acervo pessoal.

Na figura 1 temos a dimensão do que seja um prédio que sofreu muitos


ataques de pixadores. Quase não sobram partes de parede sem pintar – a
identidade do edifício está inteiramente marcada pelos pixos. Sua roupagem fala
antes sobre a pixação em São Paulo do que qualquer característica
arquitetônica/estrutural que ele possa ter apresentado no passado. Sua estrutura
passa a ser a própria pixação: é como se o prédio simplesmente não existisse mais
sem as letras pintadas; elas impregnaram a fachada de tal forma que a mesma
torna-se uma espécie de exposição do pixo, um museu da pixação paulistana. Eu
destaco esse prédio pela beleza do efeito da conjuntura, formada por muitos e
diversos pixos. Aparentemente (até onde é possível enxergar pela foto), não há
atropelos, e sim convivência entre as letras de diferentes formas, tamanhos e até
cores. É uma espécie de harmonia no caos, unidade no plural.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 107


Figura 2: Fachada comercial com diferentes pixos, Barra Funda, São Paulo.
Acervo pessoal.

A figura 2 tem um efeito curioso. A fachada do comércio se assemelha a


uma espécie de alfabeto do pixo, por dar a impressão de que há letras diferentes
separadas umas das outras (sobretudo sobre o fundo mais claro). É uma pixação
“didática”, com pequenos atropelos. Se as escolas estão com dificuldade de
ensinar a ler, fachadas como essa podem ensinar uma linguagem diferente,
setorizada (grupos e grifes com suas letras específicas), que fala do (sub)urbano,
do dialeto das ruas, da fala dos que incham as bordas periféricas da metrópole.
Estamos no campo de uma espécie de alfabetização paralela, na qual o Estado
não regulamenta, e nem mesmo o setor privado organiza. Os pixadores trocam
“folhinhas” de assinaturas entre eles: trata-se de um tipo de escrita que só é
compreensível para os “alfabetizados” nessa linguagem. O papel, no entanto, é
apenas uma miniatura, uma recordação ou representação da verdadeira
expressão, que encontra no grande concreto sua realização.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 108


Figura 3: Paisagem paulistana: Rua da Consolação. Acervo pessoal.

Esta é uma típica paisagem da capital paulista atual. Dia chuvoso,


pedestres atravessando a avenida (fora da faixa), fachada do estacionamento de
veículos pixada. À direita da foto, marca do grupo “SUSTO’S”, bastante presente
na região central da cidade.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 109


Figura 4: Fachada de prédio com a marca do grupo “Psicopatas”. O patologizar
explícito no centro da cidade (rua da Consolação com Avenida Paulista). Acervo
pessoal.

Figuras 5, 6 e 7: Outra paisagem paulistana, o enquadre da janela. Acervo


pessoal.

As fotos das figuras 5 e 7 foram tiradas de dentro de um ônibus, e têm


efeito interessante para se pensar “o fora e o dentro” na vida urbana. Em São
Paulo, grande parte da população passa um tempo considerável se locomovendo,
seja no transporte público ou privado, o que faz com que captemos momentos
da paisagem urbana enquadrados pelas janelas dos veículos. O recurso da foto
ajuda a perceber com mais detalhes aquele instante, o olhar de relance que
interage com o cidadão. A figura 7 produz efeito interessante: o pixo, presente na
parede e persianas do prédio, parece estar no vidro da janela do ônibus. O pixo
penetra no observador atento em movimento pela cidade, está intrincado nas
superfícies de dentro e de fora. Nas figuras 5 e 6 observa-se o “sangue” na
imagem da catequização indígena (em destaque e por inteiro na foto superior
direita). Isto é, a imagem do jesuíta com as crianças indígenas lendo livros é um
mural da escola pública na rua da Consolação, e foi marcada por tinta vermelha,
em provável protesto a favor das minorias indígenas e da opressão da cultura
dos brancos presente na colonização do Brasil. Entre os pixos e grapixos no
muro, lê-se a pichação: “SONHE +”. Uma vez mais, a intervenção de rua
reivindica uma cidade menos orientada pelo pragmatismo e pela objetividade
econômica, sugerindo que o sonho possa habitar a cidade também.

Argumentando em favor da poesia existente na pixação, Paixão (2011,


p.210) escreve:

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 110


[...] porque é uma arte motivada pela necessidade íntima do
artista e pela necessidade íntima da sociedade à qual pertence.
Alguém dirá que a pixação não é uma demanda íntima da
sociedade, porque ninguém quer sua propriedade pixada.
Sutilmente, no entanto, a pixação atende à necessidade da
sociedade ser informada a respeito de que algumas coisas não
vão bem na condução da sua estrutura.

Seguindo nossa aproximação com o psiquismo, poderíamos afirmar que


o ego, grande defensor da “propriedade privada”, naturalmente se abala com a
chegada inoportuna da atitude descabida com complexo, este invasor. Mas como
negar, dentro da teoria junguiana, que o ato do complexo é também uma
demanda íntima da “sociedade” (coletividade psíquica), com sua razão própria?
Certamente, o complexo avisa o ego que algumas coisas não vão bem em sua
condução. Afinal, Jung (1934/2000) nos ensina que o complexo é a via régia
para o inconsciente.

Certas intervenções da arte de rua (também chamada de terrorismo


poético) causam confusões à ordem citadina, sustos, estranhamentos e
deslumbre. Formas de fazer alma, fazer cidade, nas quais o ego organizador e
racionalizante fica temporariamente de lado, atravessado pelo espanto poético,
pela própria poiesis (fazer) de artistas e vândalos da mente-tecido urbano.
Imagens que pedem realização, reflexão; são desígnios-desenhos-desejos do
homem na metrópole.

Por fim, gostaria de refletir sobre as pixações em prédios altos, as


chamadas “escaladas”. Hillman (2005) faz interessantes observações acerca da
verticalidade – dentro na ideia de algo radical que quebra com o regular, o que o
autor entende como o âmago do efeito criativo do puer. Pois para a consciência
do puer a transcendência de tudo que é dado se torna ascendência sobre tudo o
que é dado, o “para cima” direciona todos os esforços. O espírito deve elevar-se,
Eros deve fulgurar, o insight deve produzir a visão global.

Para afirmar o seu ponto de serviço a princípios mais altos e além dele
mesmo, o homem-puer pode ir ao extremo de sacrificar-se à causa. O ego não
envia seu espírito para tão alto, mas o espírito envia seu ego para lá. Pode-se
situar firmemente com orgulho (superbia) e voar bem alto com inflação (hubris),
mas a ambição pouco aprende do conselho e não dá atenção à cautela. O puer

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 111


ascende com fogo porque ele está “pegando fogo”. Essa é a verticalidade da
adolescência, a ereção do corpo, o corpo em ereção, esticando para cima. Ao
invés de julgar o puer do ponto de vista convencional da mãe, Hillman (2005)
reverte tal inclinação e olha para tais convenções com a visão inflamada e
ultrajante do puer. Sua aproximação é menos a do senex em busca da falha, e
mais uma liberação do puer, em busca de uma sexualidade livre das restrições
dogmáticas da mãe.

Para Hillman (2005), ascender em termos da lança vertical não reflete as


intenções de Eros, e sim de Ares, Senhor da Batalha. A consciência ainda aponta
para o céu, mas agora para conquistá-lo, combatendo seu caminho para os
deuses contra os deuses. Essa fase de verticalidade era comumente chamada de
hubris, agora é psicologizada em “inflação”.

Sabemos da importância de alcançar pontos de difícil acesso na


competição entre as gangues do pixo. Observa-se com frequência pixações
realizadas em topos de prédios nas regiões centrais da cidade. O pixador-puer
está atrás mesmo disso: o topo, a saída da dura e pobre realidade terrestre.
Marca-se o alto para se sair da rebaixada vida comum.

A maioria dos pixadores é muito jovem, alguns são adolescentes. Mas o


que mais nos interessa na aproximação com o puer não é a idade em si, e sim a
ousadia e a transgressão, obrigatórias para um verdadeiro pixador. É preciso
escalar, correr, arriscar-se, infringir regras, varar noites, desafiar a autoridade –
tanto policial quanto do status artístico. A verticalidade é uma das possibilidades
mais interessantes nesse devaneio em preto a marcar o branco. O pixador tende
a ser arrogante, marca as regiões nobres da metrópole sem se colocar em seu
devido lugar (de cidadão pobre da periferia). São muitas as características do ato
de pixar que nos levam diretamente à lógica do puer.

Se identificarmos as instituições tradicionais de arte citadas no reino do


“pai”, podemos ver a ação agressiva e afrontosa do puer. O debate não se dá no
âmbito do conhecimento sobre arte, ou sobre técnicas artísticas aprendidas à
custa de tempo e sacrifício (trabalho). O “debate” está na guerra declarada pelo
puer, nos atos inflados de jovens que saem de seus bairros pobres – onde não
há arte e boa educação – para pixar construções rigorosamente planejadas pelo
senex, devido às suas sofisticadas arquiteturas e/ou cargas simbólicas (faculdade
de belas artes, edifícios que abrigam exposições de arte, galeria de arte).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 112


Para concluir: os pixos são ao mesmo tempo feios e extraordinários, eles
sujam e dão vida à cidade, enraivecem uns e dão um sentido para a existência de
outros. São lixo e são arte, assombram e encantam, tiram do sério. O pixador
destrói a cidade – ironicamente, essa frase poderia ser dita tanto pelo morador
que lamenta ter de ver tantos pixos quanto pelo próprio pixador. Afinal, é
transgressão – com tudo o que uma verdadeira transgressão acarreta, incluindo
medo e fascínio. É o patologizar de nossa cidade, em tintas carregadas, a alma in
extremis: temos de temê-la, mas sem nos afastarmos dela.

A cidade deve reimaginar suas pixações. São Paulo pode ter uma outra
relação com elas, vê-las mais poeticamente, a fim de construir novas ficções a
respeito de sua vida e de sua história. A alma na polis precisa de atenção, de
cuidado; e o cidadão psicólogo – por que não ele? – pode e deve ajudar neste
fazer-cidade.

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 114


As entranhas da minha cidade:
da geologia à psicologia arquetípica, um diálogo com Hillman a
partir da leitura de "Cidade & Alma"

Cyntia Helena Ravena Pinheiro

Psicóloga clínica, atua na perspectiva junguiana, voltada aos aspectos relacionados à qualidade de
vida de pacientes com dor crônica e à relação do indivíduo com os estressores ambientais. Doutora
em Ciências pelo Instituto de Geociências da USP.

Resumo
A leitura de “Cidade & Alma” de James Hillman, foi conduzindo uma viagem por
experiências da alma de uma pesquisadora em relação com a alma da cidade de
São Paulo. Percorrendo caminhos sombrios dessa cidade, ouviu o grito calado do
rio Tietê, da cidade carente de infraestrutura de saneamento básico e também das
pessoas. Do diálogo entre o cérebro e o coração, entre o consciente e o
inconsciente, entre luz e sombra, entre cidade e natureza, surge a possibilidade do
encontro de almas, da cidade e cidadão. Entremeando relatos da experiência de
campo da pesquisa científica na área da geoquímica ambiental e da prática da
Psicologia com o texto de Hillman, o texto vai tecendo, qual Penélope, o destino
da alma que busca o tempo de si. Empresta sua voz às coisas do mundo, e revela
imagens que não podem ser vistas a olho nu.

Palavras-chave: Psicologia, Meio ambiente, Cidade.

Há muito o desejo de estabelecer um diálogo entre a psicologia e a


geoquímica. Inevitavelmente, a todo momento conecto esses dois saberes pois
que um dia a alma andou questionando a cidade, os cidadãos, sobre as razões
que levam ao descaso ambiental, das pessoas e das coisas da metrópole. A
Psicologia poderia trazer algum entendimento, promover o encontro luz e
sombra, um caminho, uma via de aproximação com o mundo, não somente pelo
crivo do cérebro, mas também movido pelo coração, pela aisthesis, palavra grega
que significa percepção ou sensação.

Tecendo a malha que une os fios da experiência na esfera da pesquisa


acadêmica da geoquímica aos da psicologia profunda, compartilho uma
narrativa que dialoga com a obra “Cidade & Alma”, de James Hillman. Empresto

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 115


do autor algumas ideias e palavras a partir das quais vou construindo um
raciocínio, uma lógica. Para falar de percepções e sensações eu me liberto da
narrativa impessoal que caracteriza os textos científicos, para narrar na primeira
pessoa, não para gerar um relatório subjetivo, mas para emprestar minha voz às
coisas do mundo, inventando em mim uma maneira diferente de fazer ciência.
Hillman nos adverte que fazer ciência, tanto quanto terapia, depende da
capacidade de, a partir da observação atenta, apreender os fenômenos. Mas essa
aproximação só é possível se houver um despertar do “transe psicoterapêutico”,
sair da esfera exclusiva da subjetividade e perceber o quão importante e digno
também são as coisas do mundo. Começo do meu começo, compartilhando com
o leitor a poeira das minhas botas, da minha caminhada profissional, da busca
por respostas da ciência e do coração.

O barqueiro ancorou na margem do lago, aquele dos pedalinhos do


Parque Ecológico do Tietê. Embarcamos com tudo, equipamentos, reagentes,
aparatos de segurança e muitas, muitas perguntas de pesquisa. Mergulhar no
lago, nem pensar. Localizado à margem do Rio Tietê, o lago carrega o estigma
do rio que atravessa a cidade. Guiados pelo GPS, determinávamos cada ponto
onde seria lançado o amostrador que, direto ao fundo do lago, extraia uma
amostra de sedimento e uma pequena coluna d´água, água da interface, e
particulados em suspensão. Eletrodos para medida do pH e condutividade
elétrica, dispositivos filtrantes para reter particulado em suspensão e preservar a
amostra, e outros procedimentos, seguindo protocolo rigoroso que garantisse ao
máximo a qualidade da pesquisa desse ambiente de fundo do lago.

Fatiando a amostra, segundo critérios previamente estabelecidos, os


sentidos todos eram estimulados. A sua textura e plasticidade, a cor escura e o
odor levemente desagradável de coisa podre, característicos de matéria orgânica
em ambiente anóxico, propício à lenta decomposição, ofereciam pistas para o
desvendar da natureza do material, da sua composição, antecipavam resultados
das análises. Nesses locais, a ação do ambiente externo, o vento, a chuva, as
variações da temperatura, de quando em quando geram a ressuspensão,
interfere nesse sedimento, coloca-o em movimento, acelera processos, expõe
material antes velado nas profundezas escuras, pouco iluminadas do lago, gera
modificações importantes no ecossistema aquático menos profundo como esse.

O químico e o geólogo, coletam amostras, observam as variáveis do


ambiente, colhem informações e pouco a pouco vão desvendando os mistérios

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 116


do lago, inimagináveis àqueles que passeiam distraídos à sua margem ou nos
pedalinhos ou barcos nos finais de semana. Sujávamos as botas caminhando no
entorno do lago, por seus arredores. Tal qual descrito por Hillman (p. 55), os
incontáveis “a-has” eram desafios à mente e convites à reflexão, nutriam a alma
de pesquisador.

O notar as coisas aproxima-se mais de um sentido animal da qualidade


dessas, da capacidade de observação atenta, uma presença plena. Sentia algo
assim nos trabalhos de campo, um farejar, um aguçar dos sentidos, que as
crianças pequenas também têm, uma curiosidade do mundo. Foi assim que
descobrimos que, diferente do que nos foi informado, havia um canal submerso
interligando o lago ao leito do rio Tietê, que comprometia continuamente a
qualidade das suas águas e seu uso recreativo. O olhar atento também às pessoas
e seus gestos, anunciando uma fala calada há tempo. O ouvido apreende as
histórias de alguns funcionários do Parque, moradores da região, que guardam
a lembrança das brincadeiras de infância às margens do rio ainda limpo e a de
uma nascente, que jaz sob um amontoado de lixo da cidade, prática comum no
passado recente.

Longe do parque, nos laboratórios, depois de analisadas pelos


pesquisadores, as amostras revelam um rico universo no fundo do lago, sinais da
sua história, muitas vezes associadas aos abusos, à negligência, ao descuido. A
presença de materiais contaminantes, metais pesados, escancaram a ação
predatória do homem sobre a alma do lago. Ainda assim, as imagens do
particulado em suspensão do sedimento do fundo do lago, obtidas ao
microscópio eletrônico, exibem uma variedade de estruturas, certas formas de
esqueletos silicosos, frústulas diatomáceas em forma de mandala (Figura 1) ou
de flauta (Figura 2), preenchidas por materiais diversos, carbonatos, alumínio,
cobre, ferro, distintas umas das outras (Pinheiro, 2001; Pinheiro; Sígolo, 2006;),
mas também revelam suas similaridades e a alma dessa profundeza. A partir da
reflexão de Hillman (p.15), podemos entender que esse sedimento oferece um
testemunho de si mesmo, de sua alma, por meio das imagens dessas estruturas.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 117


Figura 1

Figura 2

A alma do pesquisador também se revela e se une à do lago, se envolve,


busca perceber, entender seus meandros perdidos, tais quais os meandros do rio.
Retificado o Tietê ainda reclama o direito de espraiar suas águas em sua várzea,
para revolta da população. Na calada da noite, materiais tóxicos são lançados a
montante. Dia e noite o esgoto chega ao leito do rio, vindo de cargas difusas,
descaso. O lago, à sua margem, é cava abandonada da extração de argila, para a
construção da cidade, uma ferida aberta, continuamente exposta aos desmazelos
do homem.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 118


Jung, na obra “Os arquétipos e o inconsciente coletivo”, parágrafo 43, se
refere à água como símbolo mais comum do inconsciente. Sem saber, ao
investigarmos o lago, a coluna d’água e os sedimentos, estávamos
simbolicamente adentrando ao inconsciente do lago e de nós mesmos. Segundo
ele, aquele que olha o espelho da água vê em primeiro lugar sua própria imagem,
caminha em direção a si mesmo. Seria possível transformar a realidade do rio
Tietê se adentrássemos as suas águas e nos confrontarmos com o espelhamento
de nós mesmos?

O enorme e feio gigante, Rio Tietê, e o nosso entorpecimento psíquico que


gera essa vergonhosa destruição ambiental, essa confusão em que nos
encontramos há algum tempo, deveriam ser encaradas como um ponto de
partida para uma solução, como sugere Hillman (p. 142), referindo-se à uma
regra da psicologia arquetípica. Adoecidas, a alma do rio e a alma da cidade,
refletem a nossa própria alma. O que esperar de uma sociedade que relega ao
segundo plano o tema do saneamento básico. Muito se tem discutido em
Conferências e Cúpulas pelo Desenvolvimento Sustentável, mas pouco reflexo
houve na geração e efetivação de políticas públicas no Brasil, mesmo em cidades
como São Paulo.

O volume de esgoto gerado numa cidade como São Paulo, se coletado e


tratado, gera uma quantidade gigantesca de lodo e um desafio da mesma
magnitude no que tange à sua disposição ou destino. A Região Metropolitana de
São Paulo possui estações de tratamento de esgoto, dentre as quais a ETE
Barueri, a maio delas. A grande quantidade de lodo gerado como produto final
do tratamento tem sido objeto de estudos de viabilidade de utilização e
disposição, principalmente em solos agrícolas. Entretanto, a presença de altas
concentrações de metais pesados ainda compromete essa solução. Abordei essa
problemática na pesquisa que realizei no doutorado (Pinheiro, 2008) e participei
de alguns fóruns e reuniões técnicas que buscavam definir padrões, normas para
disposição desse resíduo. As experiências de pesquisadores brasileiros e os
padrões internacionais serviram como referência para a elaboração uma
resolução de âmbito nacional que estabeleceu, em 2006, critérios e
procedimentos para o uso, em áreas agrícolas, de lodo de esgoto gerado em
estação de tratamento de esgotos (CONAMA, 2006).

Máscaras com dispositivos filtrantes, óculos protetores, botas, luvas.


Coletava semanalmente as amostras, transportadas refrigeradas, na tentativa de

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capturar e registrar suas características naquele exato momento, um instante
dessa matéria, dessa coisa amorfa, fétida, que fazia o Instituto de Geociências
inteiro detestar a minha presença. Congelar, descongelar, secar, moer, analisar
cada uma delas, desvendar suas estruturas invisíveis a olho nu e descobrir
cristais, de enxofre, surpreendentes (Figura 3) (Pinheiro, 2008; Pinheiro; Sígolo,
2007; Sígolo; Pinheiro, 2010). Poderíamos pensar esses cristais como imagens
do self, arquétipo da totalidade, ali lembrando que o belo emerge da massa
amorfa, escura indescritível de nós.

Figura 3

No pátio da Estação de Tratamento de Esgoto de Barueri, com pilhas e


pilhas de lodo de esgoto ao ar livre, sentia como se estivesse em uma cena
daquelas escuras, sombrias do filme “Blade Runner”. A proximidade estreita com
o excremento de toda uma cidade mergulhava minha alma nesse universo que
todos queremos ver distante, longe dos olhos, que vem de dentro de nós, que
revela muito do que somos e como vivemos individual e coletivamente, nossa
sombra, que é inerente à nossa condição humana. Negamos sua existência, a
projetamos para longe de nós, simbólica e fisicamente; não cabe em nosso
território urbano, exportamos para a vizinha Barueri. Entretanto, por mais que
tentemos ignorar nossa sombra, ela comparece de alguma forma, é uma parte da
nossa personalidade. Jung nos lembra que o encontro consigo mesmo é um
encontro com a própria sombra; mais cedo ou mais tarde teremos que acertar

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 120


nossas contas com ela. A supremacia da consciência, que nos faz sentir senhores
de nós mesmos, tão valorizada da sociedade moderna, é uma proteção contra os
perigos do inconsciente, do contato com a sombra, de nos darmos conta da nossa
insuficiência.

A escolha pela trajetória acadêmica implica também em um compromisso


com a educação, com a transmissão do conhecimento. A experiência com
projetos que envolviam ações e políticas relacionadas à educação ambiental
suscitou em mim muitos questionamentos quanto às estratégias. Sentia falta da
melhor compreensão do comportamento humano, mas pressentia, sem ter tido
ainda contato com Paulo Freire, porque os químicos não aprendem dessas
coisas, que essas práticas deveriam levar em consideração os saberes dos
homens, seus contextos. Haveria que ter uma maneira de propiciar uma educação
com base no diálogo. Encontrei em Hillman (p.20) uma inspiração poética para
essa ação educativa, que seria movida com o coração em direção ao mundo, sem
concebê-la como uma ciência, mas que passasse a se imaginar muito mais como
uma atividade estética. O autor se referiu à psicoterapia, mas o conceito se
encaixa perfeitamente nesse outro contexto. Ele ressalta que essa reação estética
não diria respeito ao embelezamento, mas à manifestação, à exposição de
fenômenos, a apresentação da anima mundi. Então, as salas de aula deveriam
ser nas ruas, nas praças, nos parques, onde houvesse a possibilidade da alma se
deparar com a alma das coisas com as faces dos outros.

Ao afirmar que a alma tem necessidade de beleza, de natureza, que é


fundamental à psique, Hillman (p.122) nos convida a refletir sobre a saúde mental
na cidade de São Paulo, que convive com rios mortos. Os investimentos
realizados para a solução desse problema não têm sido suficientes e efetivos.
Hillman (p.10-11) nos alerta para o fato de que a privação da intimidade com o
meio ambiente do qual fazemos parte, essa falta de cuidado é tanto exterior
quanto interior: “a psicologia profunda tem insistido que a patologia do mundo
lá fora resulta simplesmente da patologia do mundo aqui dentro” (p.13).

Se a anima mundi está unida à nossa, então, se a alma do mundo está


doente, o órgão que se depara constantemente com essa alma também sofrerá.
A dor crônica e o sofrimento da cidade se revela nos corpos das pessoas nos
consultórios médicos, odontológicos, psicológicos. A ansiedade e a depressão,
principais comorbidades nesses casos, são percebidas no contexto da vida
urbana e estilo de vida que adoecem. A raiva, a agressividade e as tensões

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 121


enrijecem articulações. Respira, respira, respira, tem uma coluna aí? O corpo luta
para ser soma, percebido, vivido. Catastrófico catastrofismo! Desesperança,
descrença, apatia, consumismo, entorpecimento.

Tendemos a rejeitar chamar São Paulo de minha cidade, porque ela exala
mal, fumaça, bueiros, córregos e rios, porque ela se encontra salpicada de lixo
espalhado por todos os lados, porque exibe copas de árvores mutiladas ou a
ausência dessas. Nossas crianças crescem convivendo com a violência, que nós
provocamos todos os dias, na intolerância e na falta de gentileza. Nossa libido há
muito voltou as costas para a cidade e direcionou-se para nós, sujeitos narcísicos,
que não mais nos relacionamos face a face, tampouco sabemos o significado de
cidadania.

Nossa alma ocidental reluta em reconhecer a natureza em pé de igualdade


com a humanidade. Entretanto, sonhamos com os momentos de lazer que
desfrutamos fora da cidade, junto à natureza. Hillman (p.127) enfatiza que o
cenário natural não é o único lugar onde a nossa necessidade de beleza pode ser
satisfeita. Podemos fazer com que a cidade, esse mundo construído por nós,
reflita a necessidade de beleza da alma. Penso que essa necessidade de beleza
habita cada um, quer sejam artistas, arquitetos, químicos ou engenheiros. Quem
passa pelo Teatro Municipal de São Paulo não imagina que juntos eles se
dedicaram à preservação dos seus belos adornos e estátuas metálicas (NEIVA;
MELO; HERNANDEZ, PINHEIRO e DRON, 2006).

É a partir desse lugar, do olhar e do discurso do psicólogo que agora eu


vejo a cidade e, concordando com Hillman (p.23), amplio o foco da terapia.
Adentra ao consultório não só a realidade psíquica do analisando, mas a do
mundo construído do qual faz parte. É na relação com a alma dos outros e com
a do mundo que se adoece. Assim, não só o universo interno do eu, mas também
externo a ele, todas as atividades políticas e profissionais, se torna objeto da
psicoterapia. A alma, as coisas do mundo também clamam por cuidados, é
necessário restituir a ele o que indevidamente tomamos para nosso uso, de
maneira predatória. Esse retorno da alma do mundo para dentro de nós.

No corpo, nos sonhos, nos desenhos, na arte, no movimento, a alma em


sofrimento busca uma forma expressão. Qual atelier, o setting analítico ganha as
tonalidades da alma das pessoas e da cidade. Uma paciente jovem no consultório
me surpreende com seu olhar para o mundo, interno e externo a si mesma,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 122


capturado pelas lentes da máquina fotográfica ou do seu celular. Sua alma se
conecta à alma do mundo e estranhamente ela se sente às vezes um peixe fora
d’água. E eu me encanto por saber que há potencial nas pessoas para serem
tocadas pela anima mundi. Há uma sede de algo que não se sabe de que, uma
busca, um impulso, latente, de dentro, da alma.

Referências bibliográficas

BLADE RUNNER: o caçador de andróides. Filme baseado na obra: Do Androids


Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick. Direção Ridley Scott, USA, 1982.

CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente. Ministério do Meio Ambiente.


Define critérios e procedimentos para o uso agrícola de lodos de esgoto gerados
em estações de tratamento de esgoto sanitário e seus produtos derivados, e dá
outras providências. Resolução nº 375, de 29 de agosto de 2006. Diário Oficial
da União: 144, Brasil, Seção nº 1, nº 167, 30 de agosto de 2006.

HILLMAN, J. Cidade & Alma. Coordenação e tradução Gustavo Barcellos e Lúcia


Rosenberg. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução Maria Luiza Appy,


Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 11 ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

NEIVA, A. C.; MELO, H. G. ; HERNÁNDEZ, R. D. P. B.; PINHEIRO, C. H. R.; DRON,


J. N. Avaliação de componentes metálicos do Teatro Municipal. Departamento de
Engenharia Química da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, 2006.

PINHEIRO, C. H. R. Zn, Ni, Cr, Cu, Fe e S em lodo de esgoto: comportamento


químico, adsorção e proposta de tratamento . Tese de doutorado. Instituto de
Geoquímica – Universidade de São Paulo, 2008.

PINHEIRO, C. H. R. Análise de diferentes fatores na disposição de metais pesados


em sedimentos lacustres no Parque Ecológico do Tietê. Dissertação de Mestrado.
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PINHEIRO, C. H. R.; SIGOLO, J. B. Metais pesados e elementos associados a lodo


de esgoto da ETE de Barueri-RMSP diante do fator sazonalidade. Geochimica
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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 123


PINHEIRO, C. H. R.; SIGOLO, J. B. Metais pesados e a dinâmica lacustre no
Parque Ecológico do Tietê-Centro de Lazer Eng. Goulart-RMSP. Geologia USP.
Série Científica, v. 6, p. 29-39, 2006.

SIGOLO, J. B.; PINHEIRO, C. H. R. Lodo de esgoto da ETE Barueri-SP:


Proveniência do enxofre elementar e correlações com Metais Pesados
associados. Geologia USP. Série Científica, v. 10, p. 39-51, 2010.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 124


Projetar

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Mediações na construção do sentido social do lugar:
Por uma perspectiva humanista da urbanidade

Cilene Gomes

Arquiteta Urbanista. Mestrado e Doutorado em Geografia Humana. Pós-Doutorado em


Planejamento Urbano e Regional e em Psicologia Social. Docente e Pesquisadora do Programa de
Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade do Vale do Paraíba, SP.

Resumo
Os aportes da psicologia social para as ciências do espaço instigam
filosoficamente, pois possibilitam reflexões sobre a condição e o destino do ser
humano no lugar em que habita a Terra. Partindo da noção de enraizamento e
desenraizamento, o artigo reúne alguns aportes significativos para reconhecer as
mediações fundamentais para a construção de um sentido social do lugar,
ressaltando convergências com a perspectiva humanista da urbanidade inspirada
em James Hillman.

Palavras-chave: urbanidade, lugar, humanização.

Introdução: enraizamento e desenraizamento

A noção prévia do fenômeno do enraizamento liga-se à questão do


homem, em sua relação com o lugar de vida, evidenciando alguma forma de
apego: à propriedade da terra como forma de riqueza, às coisas materiais a
disposição para viver, aos hábitos, às culturas tradicionais, à vida circunscrita, às
pessoas. Nessa acepção de laço de dependência, enraizamento denota um não
desprendimento para ampliar experiências e horizontes de vida, do ser humano
e das formas de socialização.

Os conceitos clássicos do fenômeno no âmbito da psicologia social


possibilitaram a modificação dessa ideia, por um questionamento sobre sua
validade atual, dadas as características do mundo contemporâneo, de
afeiçoamentos às comunicações e às informações, hoje experimentadas na esfera
da constituição de sociabilidades em âmbitos mais alargados.

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Em Bosi (2003), o conceito clássico de enraizamento, de Simone Weill,
aparece enunciado pelo entender do que é o desenraizamento: fenômeno
reportado ao encontro de culturas no contexto da sociedade industrial,
constituindo experiências que não se dão fora da relação submissão-domínio.

O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais


desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir.
O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e
natural na existência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro
(Bosi, 2003, p. 175).

Aqui, o enraizamento não subentende uma relação com o meio social e o


território que negue influências externas ou preconize o isolamento do grupo. Em
uma sociedade dividida em antagonismos, onde grupos são subjugados à força
ou têm tradições culturais suprimidas, o enraizamento pode constituir uma forma
de defesa e sobrevida (Idem, p. 176).

O desenraizamento supõe as raízes partidas dos que deixam o lugar natal


e seu modo de criar cultura e interagir, e migram em busca de novas condições
de vida, muito comumente, no contexto brasileiro, para as periferias das cidades,
fazendo com que tais raízes rebrotem sua humanidade peculiar no novo lugar de
vida (Ibid. p. 176-177).

Entendido como doença da cultura da sociedade industrial, o


desenraizamento revela outro dado de desconexão com a vida – o da privação
de poder pensar sobre o futuro humano, de encontrar ou produzir um sentido
para a vida e seu lugar. No dizer de Weill (1996, apud Bosi, 2003, p. 178), o
desenraizamento agrava a condição humana, com a perda de ligação com o
transcendente – o que transcende a ligação com o mundo concreto. Encerra uma
inversão de valores, a inversão desenraizadora (Idem, p. 183) que se insere no
quadro da cultura material e imediatista, individualista e alienante.

Nessa concepção, o enraizamento não subentende a idealização do tempo


passado, mas, pode, talvez, significar a força de agregação responsável, fundada
na memória coletiva e na produção de um sentido social do lugar de vida, que,
no fazer-se cotidiano, possibilita a construção do futuro.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 127


Na linha de abordagem desenvolvida a partir de Simone Weill e Ecléa Bosi,
Frochtengarten (2005) relaciona a questão do enraizamento com a perspectiva
da reconstrução do vivido pela memória oral e da participação também na
constituição de um campo de iniciativas para o futuro.

Em Simone Weill (1996, apud Frochtengarten, 2005, p. 368) temos


claramente prenunciada essa perspectiva coesa do tempo vivo:

A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não


nos traz nada, não nos dá nada; nós é que, para construí-lo,
devemos dar-lhe tudo, dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar
é preciso ter, e não temos outra vida, outra seiva a não ser os
tesouros herdados do passado, digeridos, assimilados, recriados
por nós.

Assim, para Frochtengarten (2005, p. 369), por meio de atos e palavras,


os homens se revelam uns aos outros. Meios que promovem o enraizamento, diz
o autor, garantem essa condição política aos seres humanos, pois o enraizamento
pressupõe a não interdição das relações intersubjetivas, o não distanciamento de
si mesmo, da comunicabilidade e, por isso, do campo de iniciativas que instaura
a real condição de participação política.

Restabelecer o recurso à memória oral e à narração constitui, para o autor


(Idem, p. 370), uma forma de resistência diante das rupturas causadas pela
sociedade industrial e a urbanização capitalista nos indivíduos e na interação
entre eles, na constituição da identidade pessoal e social, nas modalidades de
reunir e compartilhar, na urbanidade.

Daí a ideia de uma psicologia da resistência dedicada à memória e a ideia


da narrativa carregar um sentido político. “A arte de narrar envolve a
coordenação da alma, da voz, do olhar e das mãos. É como que uma performance
em que a palavra, associada à ação, permite ao homem mostrar quem ele é” (Ibid.
p. 372). A narração de histórias de vida possibilita um trabalho de elaboração
psíquica organizador de vivências e representações.

Quando entrega suas vivências a um ouvinte, de algum modo


libertando-se do fardo solitário do testemunho, um homem pode
ouvir a si próprio e suturar suas reminiscências ao momento
atual. A resistência da memória oral assenta sobre a necessidade

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 128


de atribuir algum sentido de permanência à existência dos
homens no mundo. (Frochtengarten, 2005, p. 374).

Não seria essa forma de resistência pela memória oral e o consequente


trabalho de elaboração psíquica a primordial mediação para a participação
política real das populações subjugadas de nossas cidades e demais localidades
da vida social? Sim, tal parece ser um caminho ao resgate do processo de
metamorfose da consciência individual e coletiva e de constituição de identidades
diante de um mundo em rápida transformação.

O que induz a pensar na atuação entreaberta ao pesquisador, na escolha


de métodos, diante da possível colaboração para a necessária desalienação
social, supondo um trabalho de desconstrução e transmutação de heranças
culturais e ideológicas da sociedade industrial, que criaram e alimentaram o
desenraizamento, desagregando as relações intersubjetivas constitutivas das
experiências de vida em comum.

Sim, trata-se de adentrar na compreensão dos aprisionamentos da


mentalidade na psicosfera da máquina lógica hoje dominante, do equívoco
modelo referencial de formação-transformação de identidades – e de
urbanidade – para elaborar o entendimento do mundo e operar as
metamorfoses da consciência e colaborar na elaboração psíquica e
metamorfoses do outro que nos chega a todo o momento, um a um, ou nos
diferentes grupos de convivência.

Voltando ao fenômeno do enraizamento, instiga à questão: haveria


sentido significá-lo à luz da realidade contemporânea? Se de um lado, admite-
se que sim, pelo recurso de método à história oral, de outro, é preciso considerar
as considerações em Ascher (2010).

À primeira vista, interpreta o autor, a espécie de enraizamento


contemporâneo não parece condizer às formas de pertencimento baseadas nas
relações de vizinhança, em uma solidariedade orgânica, mas, sim, aos múltiplos
laços de pertencimentos sociais estabelecidos pelos indivíduos no seio de uma
sociedade aberta.

Essa seria a hipótese de Ascher sobre o individualismo contemporâneo,


que não nasce da ausência de laços sociais, mas sim, de laços diversificados e
mutantes “tramando” novo tecido social, mais elástico e com motivos variados.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 129


Para ele, esses laços sociais ou múltiplos pertencimentos sociais dos
indivíduos estabeleceriam uma solidariedade reflexiva no plano individual e
capacidade coletiva de pensar e dar sentido a essa diversidade de identidades.
Essa solidariedade reflexiva se daria em razão da possibilidade de exame e
revisão constantes das práticas sociais à luz de informações que as concernem e
que as alteram constitutivamente o caráter.

A solidariedade reflexiva que faz a sociedade e exprime a


“modernidade radical” (...), fabrica assim um tecido social bem
diferente (...): os fios que o tecem são mais fracos e mais frágeis,
mas o tecido não é menos resistente que o que se constitui de fios
grossos e pouco numerosos; ele é também mais elástico. Além
disso, seus fios, escolhidos cada vez mais frequentemente pelos
indivíduos nas paletas cada vez mais largas, formam motivos
variados (Ascher, 2010, p. 277).

Nesse contexto, pode-se reiniciar a pensar na urbanidade no sentido de


reconhecer que as novas formas de sociabilidade urbana também se constituem
hoje, de fato, e em boa medida, a partir dessa espécie de pertencimento e
solidariedade estabelecidos à distância e em múltiplas direções, ainda que formas
locais de associação mais ou menos espontânea ou organizada possam indicar a
vontade de reconstituir comunidades mediante coesão mais orgânica advinda de
relações de proximidade e objetivos comuns.

Talvez, essa vontade reativa seja apenas um indicio do estado de incerteza


ou insegurança dos indivíduos e da sociedade diante da crise atual de modelos
referenciais e das mudanças aceleradas que a flexibilidade das formas de
sociabilidade acarreta. A restauração da confiança se daria, aparentemente, pela
tentativa de buscar restituir tais processos de formação de identidades fundados
na proximidade ou no enraizamento cultural e territorial.

De fato, há uma real e grande dificuldade de se distinguir as formas plurais


de manifestação da sociabilidade e de sua espacialização em meio urbano, já que
os espaços-tempos individuais e coletivos tendem, em parte, a se desprender de
territórios delimitados, constituindo-se em múltiplas dimensões ou constelações
de lugares.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 130


A rigor, não é possível ignorar essa espécie de psicosfera da urbanidade
que se exprime pela dialética proximidade - distância e enraizamento -
desenraizamento. Esse é um dado das dinâmicas da vida cotidiana que afeta ou
tende a afetar parcelas numerosas de indivíduos em todo lugar.

Importante é progredir na compreensão dos distintos processos de


individuação e socialização que se engendram com suas destinações, na esfera
da co-presença ou das relações à distância, de um desenraizamento ou re-
enraizamento social. Envolvendo a integridade do ser humano e as interações do
ser social, essa busca incide diretamente na remodelação da psicosfera da
urbanidade e do sentido social do lugar.

Aportes às mediações fundamentais

Enfeixando novos aportes sobre as mediações para a produção do sentido


social do lugar, vale mencionar as incursões na visão fenomenológica de Buber
(2009), na psicologia humanista de Frankl (2005) e, mais uma vez, sobre o
conceito de apropriação de Moles e Rohmer (1998) e de médiance em Berque
(1990).

Nessa recorrência, é válido considerar que, se a vida dos homens comporta


uma dimensão dialógica e o valor desta dimensão reside no espectro diferenciado
de indivíduos e interações, é à espécie de interação estabelecida que é preciso
atentar se desejamos a transformação da consciência social, da sociedade ela
própria e do lugar onde habita.

Aí entra nossa inspiração em Buber (2009, p. 40-41), ao dizer que “dois


homens dialogicamente ligados devem estar obviamente voltados um-para-o-
outro” e ainda que se prescinda da comunicação verbal, pois na constituição do
ser dialógico pressupõe-se a reciprocidade da ação interior. Para o autor, esta
forma de perceber o outro é a tomada de conhecimento íntimo, distinto da
percepção do outro na condição de alguém que observa ou contempla.

Nessa consciência íntima do outro, não se trata de gravar em nossa mente


o homem observado, de “anotá-lo”, como se dá na posição de um observador.
Não se trata de estar na condição de ver o outro livremente, aceitando o que se
apresentar, confiando no trabalho orgânico da memória.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 131


O observador e o contemplador têm em comum o fato de os dois
terem a mesma posição, justamente o desejo de perceber o
homem que vive diante de nossos olhos; (...) o que eles
experienciam (...) não exige deles nenhuma ação e nem lhes
impõe destino algum; pelo contrário, tudo se passa nos campos
distantes da estesia” (Buber, 2009, p. 41).

No conhecimento íntimo que se pode adquirir do outro, o outro não é meu


objeto, mas de alguma forma me diz algo e demanda de mim um simples
aprendizado ou aceitação, uma resposta ou realização. Pode chegar a mim como
simples mensageiro não trazendo o encargo de resposta imediata, e podendo
esta resposta destinar-se a outra pessoa, em outro lugar.

As coisas acontecem de outra maneira quando, numa hora


receptiva da minha vida pessoal, encontra-me um homem em
quem há alguma coisa, que eu nem consigo captar de uma forma
objetiva, que “diz algo” a mim (...) transmite algo a mim, fala algo
que se introduz dentro da minha própria vida. Pode ser algo
sobre este homem, por exemplo, que ele precise de mim. Mas
pode ser também algo sobre mim. O próprio homem, na sua
conduta em relação a mim, nada tem a ver com este dizer; ele não
tem conduta alguma para comigo, certamente nem me percebeu.
Não é ele que me diz (...) é aquela alguma coisa que o diz (Idem,
p. 41-42).

Além disso, nessa relação dialógica, o conhecimento íntimo não precisa


ser só de um homem. Para Buber (2009, p. 43).

Nenhuma espécie de fenômeno, nenhuma espécie de


acontecimento é fundamentalmente excluído do rol das coisas
através das quais algo me é dito (...). Os limites de possibilidade
do dialógico são os limites de possibilidade da tomada de
conhecimento íntimo.

No momento de conhecimento íntimo parece ocorrer uma tensão psíquica


levando à busca de significados. Para Frankl (2005), este movimento que
impulsiona a encontrar um sentido para a existência, ou suas distintas situações,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 132


tem um valor de sobrevivência ou sobrevida. A falta ou o esvaziamento deste
sentido seria, para o autor, um dos males ou desencontros de nossa época, junto
à despersonalização e a desumanização, e a única forma de enfrentá-los seria
incluir a dimensão humana na concepção do próprio homem, pois em sua
dimensão humana, “o homem se revela como um ser em busca de um sentido”
(Idem, p. 8 e 11).

Em seu humanismo, Frankl convida a aderir à minoria dos homens


humanos, para quem a centralidade está na busca de um sentido pelo qual viver
e ser feliz, sem relação necessária com as condições socioeconômicas. Nessa
adesão, supõe-se poder estimar a dinâmica do equilíbrio psicossocial pelas
aspirações ao alto – a mudança pela superação de si mesmo.

O homem chega a um ponto mais abaixo daquele que poderia


atingir, se não for considerado a um nível acima que inclua suas
mais altas aspirações. Se quisermos valorizar e empenhar o
potencial humano em sua forma mais elevada possível, devemos
antes de tudo acreditar que ele existe e que está presente no
homem. Se não, o homem deverá “desviar-se”, deverá
deteriorar-se, porque o potencial humano existe, sim, mas na pior
forma (Idem, p. 24).

As neuroses de massa, as dependências psíquicas, as tendências


enganosas do efêmero podem ser, assim, desestimuladas e transformadas pelo
endereçamento da vida a algo que transporte o ser humano para além de si
mesmo, “para um sentido a realizar ou para outro ser humano a encontrar, para
uma causa a qual consagrar-se ou para uma pessoa a quem amar”. Somente a
auto-transcendência pode tornar alguém autenticamente homem e
autenticamente si próprio (Ibid. p. 29).

Frankl (2005, p. 31-32) entende, ainda, que se há hoje um declínio da


transmissão de valores – na acepção de significados universais – e se se admite
que “existe um sentido potencial a ser descoberto”, em todas as situações pode-
se descobrir o seu sentido intrínseco (Idem, p. 33) e assim, estaremos conectados
ao movimento da vida pela elaboração ou construção permanente de um sentido.

Na perspectiva de descoberta de sentidos para as situações, relações


interpessoais e o lugar de vida, pode-se reaver a noção de apropriação de Moles

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 133


e Rohmer (1998, p. 11-13), ligada à atribuição de valores e significados pelos
indivíduos como forma de criação de identidade pessoal e enraizamento no locus
social. Com essa acepção, de fato, “o processo de apropriação cria lugares
simbolicamente significantes” (TASSARA, 2006).

Todavia, a grande questão continua sendo a que Berque (1990, p. 7) nos


traz em seu livro Médiance, a respeito de quão pouco a civilização domina o
sentido dessa ação sobre o meio social e ecológico, a despeito de toda tecnologia,
de todo o domínio da natureza conquistado. Para o autor, toda a evolução da
sociedade contemporânea está nesse problema implicada. É o sentido da relação
da sociedade com a natureza e o espaço que está em causa; porque não o
dominamos, criamos paisagens desprovidas de sentido e comportamentos
insensatos.

Para Berque (1990, p. 8), estudar o sentido dessa relação é o primeiro


passo para o domínio desse sentido. Em vista disso, a revisão do conceito de
médiance, proposto pelo autor, torna-se propício para a presente reflexão sobre
a medida de objetividade e subjetividade contida na urbanidade contemporânea,
inspirada em abordagens transdisciplinares.

A saber, o meio é composto tanto de sujeitos (individuais ou


coletivos) como de objetos, portanto a realidade não é menos
subjetiva do que objetiva. Entendo aqui em particular a
subjetividade humana, que é reflexiva, quer dizer, capaz de se
objetivar em certa medida. É isso: esse complexo orientado a uma
só vez subjetivo e objetivo, físico e fenomenal, ecológico e
simbólico, é que chamo “mediance”. Compreender uma
“mediance” comporta constitutivamente uma parte de
subjetividade, não somente na realidade observada (um meio),
mas no observador ele mesmo (Berque, 1990, p. 31-33).

Sob esta ótica, diz Berque, cabe-nos tentar reconhecer à subjetividade sua
parte efetiva (que é grande) e procurar evitar confundi-la com a objetividade. O
que equivale a se guardar de tomar os valores pelos fatos, levando em conta
justamente que em todo fato mesológico há uma parte de valor (Idem, p. 33).

Em síntese, se considerarmos que a produção coletiva de um sentido social


do lugar pode e deve integrar o trabalho de elaboração-formulação de novos
referenciais para a superação das formas de involução da vida social e da

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 134


urbanidade contemporânea, as incursões nessa busca de conhecimento
propiciaram a identificação de algumas mediações fundamentais:

1. Em sua capacidade de reflexão, o ser humano constitui, ele próprio, uma


mediação do movimento da vida, sendo portador e porta-voz da memória social
e da história presente;

2. Em sua constituição dialógica, o ser humano na interação com o outro


constitui a segunda mediação fundamental, a unidade básica dos processos de
socialização que iniciam na reciprocidade da ação interior (Martin Buber) e em
todas as formas de comunicação e de compartilhar as culturas, as experiências,
os saberes;

3. Em sua função transcendente, o homem e a sociedade – em toda a


diversidade dos modos de ser e habitar – buscam encontrar seu equilíbrio e
sustentação em suas aspirações de futuro, pela mediação das constelações
evolutivas (globais e locais) do pensamento e da ação.

Na perspectiva humanista de James Hillman

As ideias de Hillman convergem para a necessária formulação de uma


perspectiva humanista da urbanidade contemporânea, fundada no
reconhecimento das mediações para a construção do sentido social do lugar de
vida. Para Hillman, a urbanidade constitui um campo válido de experiências para
observar a alma dos sujeitos sem mundo e o mundo sem a alma dos sujeitos. Daí
chamar à ação humanizante para o “retorno da alma ao mundo” (1993, p. 8),
quando uma crise crônica alastra-se à vida social urbana, ao mundo da política,
da linguagem, ao espaço construído pelo homem.

De fato, como alerta o autor, o mundo dos homens fala do ser humano,
da sua humanidade. Atesta em sua presença que estamos adentrando em um
novo estado de consciência. Os movimentos da anima mundi pedem a nossa
atenção, a desaceleração para aprender a apreciar as qualidades das coisas, o
trabalho invisível de criação da alma nas coisas bem feitas.

A educação humanística volta a ser uma necessidade, diz Hillman, e muito


mais hoje, quando o apetite pelos acontecimentos impede a atenção plena para
a reparação da anima mundi, pelo movimento para a poiésis, o despertar de uma
resposta estética ao mundo com a atividade primária da alma, a notitia – a

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 135


capacidade de formar noções verdadeiras a partir da observação atenta para
devolver a alma ao mundo doente.

Mundo que se adoenta porque alimenta a separação entre a vida e a


reflexão, entre os homens e o mundo exterior. A morte da alma do mundo, explica
Hillman, foi articulada pelo cartesianismo, que vê o mundo das coisas separadas,
sem conexões. O mundo dedicado ao individualismo que, ainda hoje,
paradoxalmente, se faz presente no universo de conectividades tecnológicas e
informacionais, da solidariedade cognitiva de Ascher (2010).

Hillman (1993, p. 113) critica o anacronismo da visão que separa o


indivíduo do mundo, da comunidade e seu governo, e reclama justamente pela
subversão desse individualismo humanístico e liberal do século XIX. Para
compreender a vida humana, não basta conhecer o indivíduo em si. É preciso
desconstruir a ideia de que o homem é a medida para todas as coisas, diz o autor,
forçando o cidadão latente a sair de seu esconderijo, a um novo refúgio em meio
à comunidade da alma do mundo (Idem, p. 114).

Para Hillman (1993), seremos mais realizados e completos como seres


humanos políticos, pela interiorização da comunidade, olhando menos para a
dinâmica da psique e mais para as conexões com “a comunidade real de sua vida
real” (Idem, p. 116). É nesse ponto que nos chama mais ao resgate de nosso
instinto gregário, àquela aglomeração e inundação na pluralidade da pólis, e
menos à sua dimensão de instituições, governos e negócios cívicos.

Daí situar a sua perspectiva humanista e humanizante, pois não se trata


mais de olharmos simplesmente para o homem, mas para a humanidade, o ser
humano, “e o ser humano completamente realizado, uma vez que forma e telos
implicam um no outro” (Ibid. p. 115).

O chamado à agora, ao convívio, ao compartilhar posicionado de James


Hillman (1993, p. 121) representa a mudança do mundo condicionada pela
mudança de nosso modo de ver o mundo. Para a mudança do mundo, e assim,
do lugar de vida nas cidades e espaços dos arredores, a verdadeira chave para a
aisthesis, está na apreciação dos padrões qualitativos do mundo, dos homens e
das coisas, no respectare, no olhar de novo, no segundo olhar com o olho do
coração estético.

Talvez por aí possa se realizar a revolução humanista que se contraponha


ao status quo, na expressão de Tassara e Darmegian (1987). Talvez por aí se

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 136


construa o novo modelo de convivência cívica a que chama Milton Santos (1987),
fundado no humanismo concreto da utopia do aqui e agora: do que é possível
fazer onde estamos e com quem convivemos para renovar a psicosfera da
urbanidade contemporânea e incorporar ao sentido do lugar da vida cotidiana a
meta política na ideia de democracia como modo de vida (POGREBINSCHI,
2004).

Referências bibliográficas

ASCHER, F. Le future au quotidien: de la fin des routines à l´individualisation des


espaces-temps. In: AUBERT, Nicole. L´individu hypermoderne. Toulouse, Érès,
2010, p. 273-290.

BERQUE, A. Médiance: de milieux em paysages. Montpellier, GIP Reculs, 1990.

BOSI, E. O tempo vivo da memória. São Paulo, Ateliê Editorial, 2003.

BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. São Paulo, Perspectiva, 2009.

FRANKL, V. Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. São Paulo, Ideias


& letras, 2005.

FROCHTENGARTEN, F. A memória oral no mundo contemporâneo. Estudos


Avançados 19 (55), 2005.

HILLMAN, J. Cidade & Alma. São Paulo, Studio Nobel, 1993.

MOLES, A. e ROHMER, E. Psychosociologie de l´Espace. Textes rassemblés, mis


em forme et présentés par Victor Schwach. Paris, L´Harmattan, 1998.

POGREBINSCHI, T. A democracia do homem comum: Resgatando a teoria


política de John Dewey. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 23, p. 43-53, nov. 2004.

SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo, Hucitec, 1987.

TASSARA, E. T. O. Urbanidade e Periurbanidade(s). Reflexões sobre dimensões


psicossociais das dinâmicas históricas. Comunidades, Meio Ambiente,
Desenvolvimento, n. 17. 2006.

TASSARA, E. T. O. DARMEGIAN, Sueli. Para um novo humanismo: contribuições


da Psicologia Social. Estudos Avançados, vol. 1, n. 1. São Paulo, IEA, 1987.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 137


Reflexões sobre cidade e alma

Priscila Valente Alonso

Psicóloga Clínica. Membro Analista trainee da Associação Junguiana do Brasil-AJB, filiada à


International Association for Analytical Psychology – IAAP Coordena grupos de estudo e
supervisão. Trabalha como psicoterapeuta e analista junguiana há mais de 25 anos nas cidades de
Santos e São Paulo. [email protected].

Resumo
O artigo baseia-se nas ideias de James Hillman, e também Jung para desenvolver
uma reflexão sobre cidade e alma, tema do colóquio. O autor parte do conceito
de arquétipo, da psicologia arquetípica e da noção de anima mundi para nortear
seu texto, refletindo sobre a subjetivização do indivíduo como tendo apartado-o
do mundo e questiona como reconhecer a alma no mundo nas coisas e nas
cidades.

Palavras-chave: alma, cidade, mundo.

De quem são as cidades?


Nós somos da cidade
Mas as cidades de quem são?
(P. Miklos)1

Há poucos dias atrás estive participando de um congresso junguiano, onde


uma das conversas sobre o tema deste colóquio foi provocada por trechos de
textos do analista americano James Hillman que tanto nos enriquece com sua
ideias, ampliando nosso olhar para a alma, a psicologia clínica, as artes e o
mundo. A contribuição de Hillman é de extrema importância e relevância, ao que
me parece, não só para analistas junguianos, mas também para todos nós.

Hillman segue Jung ao fazer seu trabalho, e desenvolver suas ideias,


principalmente com a herança que Jung nos deixou sobre a noção de arquétipos.
Hillman aprofunda a compreensão sobre o arquetípico, ampliando nosso modo
de pensar e praticar psicologia. É para mim, o mais junguiano dos junguianos…

1
MIKLOS, P., De quem são as cidades?

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 138


Norteada pelas ideias de HIillman e pela psicologia arquetípica, escrevo este
artigo.

Pensando no tema “Cidade e Alma”, no congresso citado acima, ficou uma


pergunta “no ar”, que me fez voltar à estas reflexões. A pergunta de um dos
participantes foi “se não é na cidade, nem nas montanhas, então onde ir para
cultivar alma?”

Explico. Numa das citações de Hillman do livro “Cidade e Alma”, editado


em 1993 no Brasil pela editora Studio Nobel, ele afirma que o subjetivismo não
foi a melhor saída da psicanálise, pois contribuiu para deixar nossas cidades
violentas, sujas e feias, e avança dizendo que evadir das cidades para montanhas
ou lugares isolados, não é a melhor solução para cultivarmos alma. Esses lugares
“místicos” não nos tiram do subjetivismo, diz Hillman. Ele afirma que nossas
questões particulares, também são reações aos espaços públicos e escreve, “…
nossos problemas se originam não apenas em nossos eus particulares e seus
passados, mas são reações aos nossos espaços públicos, ... e habitações, nossa
interioridade psíquica e desenhos interiores estão profundamente
correlacionados, tanto quanto se acreditava há séculos que a alma da pessoa e a
anima mundi ou alma do mundo são inseparáveis.”2

Sendo a alma da pessoa e a alma do mundo inseparáveis, talvez possamos


olhar o mundo de outro lugar, e estar no mundo de um lugar que nos aproxime
e envolva com o mundo, com as cidades, e não nos apartando deles.

Dentre as muitas definições da palavra “alma”, no antigo dicionário


Aurélio, a primeira delas é “princípio de vida”, mais adiante “sede dos afetos, dos
sentimento, das paixões” e ainda, ”sentimento, generosidade, coração,
entusiasmo, pessoa que é objeto vivo de amor ou amizade, essência”; deriva do
latim anima.

“Cidade” no dicionário Houaiss, significa aglomeração humana de certa


importância, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas
casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais,

2
2 HILLMAN, J.,City and Soul, (Uniform ed.,vol. 2) Spring Publications, 2006. Tradução livre citada no
texto de Jonathan Harrel Longing for Ugliness na 3a revista anual do The Dallas Institute of Humanities
and Culture, 2014. p. 149.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 139


mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração
direta do solo.

Se juntarmos as duas definições, numa equação simplista e literal,


entende-se por cidade o lugar de muitas pessoas iniciarem a vida e
experimentarem afetos e sentimentos do coração, como amor e amizade.

A alma quer consistência, profundidade, ela produz imagens. Psique é


imagem, segundo Jung. A cidade que nos abriga, nos obriga a experimentá-la.
Viver a cidade é uma experiência arquetípica porque é comum à todos nós e se
repete.

Para continuar a tecer ideias sobre este assunto acho importante relatar
brevemente à que a psicologia arquetípica de Hillman se propõe.

A psicologia arquetípica intenciona ir além da clínica dentro dos


consultórios de psicoterapia e sair para o mundo, para a cultura e para
imaginação da cultura e do que se cultua. “É uma psicologia deliberadamente
ligada às artes, à cultura, e à história das ideias, na forma como elas florescem
da imaginação”.3

Entende-se por arquetípico, tudo o que é comum à todos nós e portanto


pertence a toda a cultura e a todas as formas de atividade humana.

Vale lembrar que segundo Jung, arquétipos são formas primárias e


padrões básicos que governam a psique, se repetem e são comuns a todos nós.
Os arquétipos são padrões, ou melhor, estilos de comportamento e imagens
universais existentes desde os tempos mais remotos, comuns a todos nós seres
humanos e se repetem em toda experiência humana4. Hillman reforça e amplia
esta ideia, afirmando que “(...) arquetípico pertence a toda a cultura, a todas as
formas de atividade humana(...)”. 5

Se os arquétipos estão presentes em todo tempo e lugar, podemos pensar


na cidade não só como um dos lugares de manifestações arquetípicas, mas
também uma realidade arquetípica.

3
HILLMAN, J., Psicologia Arquetípica - um breve relato, (Ed. Cultrix, 1983) p. 21.
4
“O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da idéia do inconsciente coletivo,
indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo
lugar.” JUNG, C.G. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo, CW IX/I, par. 89.
5
HILLMAN, J. Psicologia Arquetípica - um breve relato, (Ed. Cultrix, 1983) p. 21.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 140


A noção de anima mundi, alma do mundo, nos auxilia e nos aproxima
dessas reflexões. Significa dizer que a alma está no mundo, nas coisas, dando
aos fenômenos significado e intenções inteligíveis, e também interioridade. A
alma torna possível o significado transformando eventos em experiências.
Hillman diz que “a psique como anima mundi, a alma neoplatônica do mundo, já
está dada junto com o mundo, de tal forma que a segunda tarefa da psicologia é
escutar a psique falando através de todas as coisas do mundo, recuperando
assim o mundo como lugar da alma.”6

A alma estando no mundo, nas cidades e nos lugares ‘fora de nós’, nos
tira da subjetividade tão valorizada em nossos tempos modernos, abrindo a
possibilidade da ideia de interioridade nas coisas que estão também fora de nós.

Esta ênfase, talvez exagerada, na subjetividade nos isolou do mundo, das


cidades, dos lugares e da própria alma. Perdemos a alma nesse longo processo
de “subjetivização” distanciando-a do sentido platônico, erramos! Perdemos as
imagens e a capacidade de imaginar, esse foi o resultado da intensificação do
subjetivo, “a psicologia arquetípica especifica este erro como uma perda da alma,
perda que ela depois identificará com a perda das imagens e do sentido
imaginário. A consequência foi a intensificação da subjetividade, que aparece
tanto dentro de um egocentrismo fechado como na hiperatividade, ou fanatismo
pela vida…”7 Ficamos “umbigados” demais e subjetivos demais - voltados para
nós mesmos.

Esse inchaço de subjetividade, equívoco da própria psicoterapia moderna,


entende a interioridade das coisas e do mundo numa equação simples da
projeção de nossas próprias fantasias e humores, de uma subjetividade que
pertence só ao humano.

A noção de subjetividade aprisionou mais do que libertou em suas


metáforas, ideias e imagens do “interior” e “interno” - a pessoa de dentro, o
indivíduo, a vida dentro, a introversão. A vida externa, o mundo exterior ficou
inanimado, só existindo à medida que o “eu” subjetivizado o anima.

6
Idem, p. 40.
7
Idem, p. 48.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 141


Penso que essa noção precisa ser reelaborada, revista. A doença foi para
‘fora’ depois de tanto olhar para dentro.

A crise passou a ocupar o ‘fora’ - poluição, crimes, fraudes, exibições


exageradas, aumento de lixo, queda de nível de instrução… Esta crise urbana foi
construída, pois não temos mais o habitat para as matérias se decomporem,
fermentarem, e fazerem natural e organicamente suas funções. A carência dessas
operações é equivalente ao colapso das coisas construídas. Gustavo Barcellos
enriquece esta consideração, afirmando em seu texto A alma na cidade : “(…) é
hoje nas cidades, na esfera pública, burocracia, na mídia, nas ruas onde parece
estarmos ainda mais à mostra em nossa patologia coletiva e em nossa
necessidade de consciência.”8 Penso que o momento de crise do mundo, é um
chamado para tornar-se consciente dele próprio como realidade psíquica, um
pedido para aliviar seu sofrimento.

A alma foi aos poucos expulsa do mundo na tradição ocidental, deixando-


o inanimado. O mundo precisa se “almar", se perceber na penumbra, perceber a
interioridade dos espaços públicos, das praças, parques, ruas e avenidas. Para
isso não são necessárias decisões de melhorias em programas políticos falsos, e
nem se trata de algo místico ou transcendente. Qualidade de alma nas coisas e
no mundo, é enxergar interioridade em todos os eventos das coisas do mundo.

Voltemos então à ideia de anima mundi já citada acima. É ela que permite
perceber que todas a coisas têm um sentido mais profundo, essência e caráter. A
alma na cidade e no mundo, indica e aponta a possibilidade animada de cada
evento ou fato. HILLMAN nos auxilia dizendo: “Não apenas animais e plantas
almados, como na visão romântica, mas a alma que é dada em cada coisa, as
coisas da natureza dadas por Deus e as coisas da rua feitas pelo homem.”9

Considerando que a interioridade está também nos espaços públicos e não


só em nosso passado individual, a interioridade da cidade também está em nós.
Nos provoca, nos encanta, nos entristece, nos alegra, nos atinge.

Reconhecer a anima no inanimado, ou o que parece ser, faz o trabalho do


culto à alma da cidade. Penso que à psicologia da cidade, pertencem a qualidade
de seu conhecimento histórico, seus hábitos, sua cultura geral, linguagem,

8
BARCELLOS, G., Vôos & Raízes - ensaios sobre psicologia arquetípica, imaginação e arte, (Ed. Ágora,
2006) p. 97.
9
HILLMAN, J., O pensamento do coração e a alma no mundo, (Ed. Verus, 2010) p. 89.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 142


experiências trágicas ou não vividas (guerras, fracassos, vitórias), seus sistemas
e acontecimentos políticos, características de suas instituições, funcionamento do
seu sistema viário, suas construções, meios de transporte e seu lixo. Tudo isso
tem um formato, um jeito, uma cara. O mundo e as cidades aparecem para nós
em cores, climas e atmosferas. Novamente Hillman vem nos auxiliar dizendo que
“um objeto presta testemunho de si mesmo na imagem que oferece, e sua
profundidade está nas complexidades dessas imagem. (…) Cada evento
particular, incluindo os seres humanos com seus pensamentos, sentimentos e
intenções invisíveis, revela uma alma em seu aspecto imaginativo.”10

Se as cidades são os lugares onde vivemos e nos abrigamos, e isso nos


atinge, nossos abrigos estão voltando-se para nós como um ataque inimigo, pois,
em sua maioria andam excessivamente violentos, criminosos, feios e
corrompidos, a alma da cidade está nos respondendo patologizada. Aí, nesses
eventos está a alma e o interior do mundo atual, pedindo atenção.

Ó nostalgia dos lugares que não foram


Bastante amados na hora passageira
Quem me dera devolver-lhes de longe
O gesto esquecido, a ação suplementar.
(Rilke)11

Me pergunto qual seria a “saída” para essas reflexões e volto para a


pergunta inicial, “para onde ir”? Deveríamos levar nossos espaços públicos, sejam
eles praças, ruas, parques e avenidas para a terapia? Como oferecer o retorno da
alma ao mundo e às coisas do mundo? Que metáforas nos ajudariam no cultivo
da alma na cidade?

A cidade como realidade arquetípica, vai além da compreensão literal da


aglomeração de pessoas, ela é o lugar físico onde vivemos. Esse lugar tem um
nome, tem uma característica, tem sua particularidade e em seu reconhecimento
podemos encontrar sentido e profundidade. Do ponto de vista psíquico, essa

10
Idem, p. 91.
11
RILKE, Verges, XLI. Poema citado no livro BACHELARD, G. A Poética do Espaço, (Ed. Martins Fontes,
2012) p.70.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 143


perspectiva é o que nos abriga, nos acolhe, nos sustenta e em seu viés nos repele
do mundo.

Nos seus bancos de praça, instituições, programas politicos, arranha-céus


há que se reconhecer significado. Re-imaginar a cultura, as cidades e os lugares
podem nos ajudar. Recuperar a perspectiva re-apresentada por Hillman no total
resgate da ideia platônica de anima mundi, a alma do mundo, conferindo a todos
os fenômenos significados e intenções inteligíveis, qualificando-os

HILLMAN diz textualmente que “o processo de re-imaginar e de re-animar


a psique cultural, objetivo da psicologia arquetípica, necessita de patologizar, pois
somente esse enfraquecimento, ou “desestruturacão”, quebra uma subjetividade
autocentrada e a restitui às suas profundezas na alma, permitindo a reaparição
da alma no mundo das coisas”12. A alma reaparece no aprofundamento dos
eventos animando as coisas e o mundo. Isto nos obriga a aceitar o sofrimento do
mundo, sua feiura, seus erros e vazios.

As cidades também são para nós elementos que se entranham em nossa


afetividade, nos envolvendo com alma, pois fazem parte de nosso acervo de
experiências através de memórias e referências estéticas e afetivas como já foi
mencionado acima. Sob este olhar, elas têm alma, ou a alma as têm, o que
permite uma perspectiva diferente no modo de sentir, estar e pensar o mundo. A
cidade existe em nossa imaginação e pode ser imaginada nós.

Talvez a resposta estética, no sentido da filosofia, voltada para a reflexão


a respeito da beleza sensível e do fenômeno artístico, seja um modo de
devolvermos à alma ao mundo. Estar na cidade, viver em nossas cidades,
relacionando-se com elas, sob a perspectiva poética, pode nos permitir
reconhecer a alma no mundo, ativando o coração no sentido de responder
sensorialmente. Não menciono um comportamento ligado à emotividade, mas
sim a um modo de “pensar” e responder pelo coração como órgão da percepção
produtor de imagens que inspira e conduz as sensações permitindo avanços ao
mundo e a nós.

Aqui estamos no terreno de uma compreensão menos crítica e cartesiana


e mais circular, num reconhecimento das coisas e do mundo com menos

12
12 HILLMAN, J., Psicologia Arquetípica - um breve relato, (Ed. Cultrix, 1983) p. 48.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 144


subjetividade, mais fraternidade, ajudando a retornar a alma ao mundo e às
cidades de uma maneira urgente e também como cura.

A linguagem poética, através das imagens, nos auxilia a fazer ligações


diretas com a realidade psíquica.

Refiro-me aos poetas, arquitetos, músicos, filósofos e artistas que com seu
trabalho, reconhecem beleza na interioridade, na alma das coisas, das cidades e
do mundo. Traços delicados de lindos projetos arquitetônicos, imagens existentes
na poesias e canções, pinturas, danças, esculturas, fontes, devolvem e
harmonizam a beleza e estética às cidades possibilitando acesso mais fácil à
afetividade da cidade e na cidade e portanto da alma do mundo, recuperando a
anima mundi.

Termino estas reflexões transcrevendo as letras de duas canções de dois


de nossos grandes compositores da Música Popular Brasileira, onde de maneiras
diferentes, mas não menos poética reconhecem a alma e beleza da cidade do Rio
de Janeiro, considerada o coração do Brasil. São eles Noel Rosa com a letra de
“Cidade Mulher”, e Chico Buarque de Holanda em sua “Carioca”.

“Gostosa, quentinha, tapioca


O pregão abre o dia: hoje tem baile funk, tem samba no Flamengo
O reverendo, no palanque lendo o Apocalipse, o homem da
Gávea criou asas
Vadia, gaivota, sobrevoa a tardinha, e a neblina da ganja
O povaréu sonâmbulo, ambulando que nem muamba nas ondas
do mar
Cidade maravilhosa, és minha! O poente na espinha das tuas
montanhas
Quase arromba a retina de quem vê
De noite, meninas, peitinhos de pitomba, vendendo por
Copacabana
As suas bugigangas, suas bugigangas”13

“Cidade de amor e aventura, que tem mais doçura que uma


ilusão
Cidade mais bela que um sorriso, maior que o paraíso, melhor
que a tentação

13
HOLLANDA, C.B, Carioca, no cd “As Cidades”, 1998.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 145


Cidade que ninguém resiste na beleza triste de um samba-canção
Cidade de flores sem abrolhos que encantando nossos olhos,
prende o nosso coração
Cidade notável, inimitável, maior e mais bela que outra qualquer.
Cidade sensível, irresistível, cidade do amor, cidade mulher.
Cidade de sonho e grandeza que guarda riqueza na terra e no
mar
Cidade do céu sempre azulado, teu Sol é namorado da noite de
luar
Cidade padrão de beleza, foi a natureza quem te protegeu
Cidade de amores sem pecado, foi juntinho ao Corcovado que
Jesus Cristo nasceu”14

Se as letras dos poetas nos levam para a interioridade da cidade,


reconhecendo-a, podemos como eles, imaginar com o coração desperto, os
lugares e o mundo que vivemos, reconhecendo que a alma também está lá fora.

Santos - São Paulo

setembro/2017

Referências bibliográficas

BARCELLOS, G. Vôos & Raízes - ensaios sobre imaginação, arte e psicologia


arquetípica. São Paulo: Ágora Ed., 2006.

HILLMAN, J. Psicologia Arquetípica - um breve relato. São Paulo: Cultrix Ed.,


1988.

__________ O pensamento do coração e a alma do mundo. Campinas-SP:


Verus Ed., 2010.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis-RJ: Vozes Ed.,


2003.

14
ROSA, N. Cidade Mulher, 1936.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 146


Cidade, alma & urbanismo

Gilberto Alves da Cunha (Orientador: Dr. Pedro Ribeiro Moreira Neto)

Gilberto Alves da Cunha é mestrando em Planejamento Urbano e Regional na UNIVAP,


[email protected].

Pedro Ribeiro Moreira Neto é doutor em Géographie Humaine et Organisation de l'Espace / Paris,
Doutor em História Social / Universidade de São Paulo (USP)

Resumo
Este artigo busca demonstrar a essencialidade do significado da “Alma da Cidade”
para o urbanismo contemporâneo. Por tratar a cidade de um campo
multidisciplinar, o olhar contemplativo sobre ela deve buscar interpretar as
diversas camadas nem sempre tão evidentes, que a compõe, a fim de que através
da aplicação de preceitos da psicologia, possam ser fornecidos insumos para
tratar a cidade doente dos dias atuais, no campo do urbanismo. Assim tendo como
ponto de partida a obra de James Hillman, este artigo propõe a releitura do
urbano.

Palavras-chave: Alma; Arquétipo (psicologia); Cidade (urbanismo).

“As cidades acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem


um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma
cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas,
mas a resposta que dá a nossas perguntas.”
Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis

James Hillman em sua obra sobre a alma da cidade, trouxe a cidade para
o divã, permitindo dessa forma que pudéssemos analisar seus arquétipos, seus
símbolos, suas patologias. Como a cidade é multifacetada, complexa, um
organismo em mutação constante, que para seu entendimento exige um trabalho
multidisciplinar, a análise sobre o âmbito da psicologia se mostrou extremamente
conveniente e essencial, ao apresentar novo ponto de vista para compreensão da
cidade e de suas camadas, trazendo à tona o cerne da alma da cidade
(HILLMAN,1993).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 147


O autor ao comparar a cidade com as pessoas que da mesma forma tem
sua essência vital, sua alma, de modo análogo e figurativamente, permite-nos o
entendimento de que as cidades como as pessoas tem suas individualidades, suas
caraterísticas marcantes que diferenciam uma localidade de outra, seja pelos seus
pontos positivos, imagens, signos, quanto pelos seus problemas
(HILLMAN,1993).

Buscando o entendimento das propostas de e da sua abordagem das


cidades pelo ângulo da psicologia, a fim de obtermos uma aproximação com as
análises feitas no campo do urbanismo, teceremos comparações a respeito da
cidade e seus arquétipos (HILLMAN, 1993).

Desta forma, seguindo a linha sistêmica de abordar a cidade como objeto


de estudo do urbanismo, Jane Jacobs ao deparar com os problemas das cidades
contemporâneas, na década de 1960, propõe uma análise dos problemas sociais
das cidades, indicando para o tratamento de patologias urbanas, como modo de
se obter a ocupação saudável dos espaços inseguros das cidades, a apropriação
desses pelas pessoas (JACOBS, 2000).

A mesma autora afirmava ser tolice planejar a aparência de uma cidade


sem saber que tipo de ordem inata e funcional ela possui, e ainda asseverou que
encarar a aparência como objetivo primordial ou como preocupação central não
leva a nada a não ser a problemas.

Jane Jacobs ficou reconhecida pelo seu conceito de “olhos sobre a rua”, e
pelas suas críticas ásperas aos movimentos superficiais de renovação e
desenvolvimento urbanos, conforme descrito em (KARSSENBERG, 1995).

Ora, é exatamente por não bastar o arranjo técnico do espaço da cidade,


para que sejam sanados os problemas sócio espaciais, por não ser suficiente tão
somente as intervenções estéticas e superficiais da cidade que se apresenta como
essencial a proposição de James Hillman. Nela o autor construiu seu conceito, de
modo direto e compreensível, de que assim como as pessoas a alma da cidade
adoece a partir de tensões urbanas e de forma indelével indicou nova
possibilidade de abordagem dos problemas urbanos ao afirmar em seu trabalho
que o objetivo da psicologia é trabalhar com as pessoas da cidade, em
consequência trabalhar a própria cidade (HILLMAN,1993).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 148


A fim de demonstrar a cidade com a alma equilibrada e seu oposto, o autor
exemplifica que a anti-cidade coloca a alma e cidade em campos opostos
resultando em cidades sem alma e almas sem cidades.

Na obra de Jane Jacobs, a anti-cidade de James Hillman, seria a cidade


onde os olhos das pessoas não estão voltados para as ruas, daí o resultado
catastrófico das cidades sem alma e almas sem cidades (HILLMAN, 1993).

Outras linhas de pensamento sobre a cidade, apresentaram pontos de


vistas distintos, como no caso de Kevin Lynch(1980), que a partir do final da
década de 1950, apresentou as cidades como um conjunto de imagens, as quais
deveriam ser analisadas criticamente quanto o sentido do design e seus
significados, devendo a cidade e seus espaços serem devidamente estruturados
para que através da legibilidade, a mesma pudesse firmar sua identidade própria.
Lynch estudou como as qualidades físicas das cidades se relacionam com os
atributos de identidade e estrutura na imagem mental, chegando a definição de
imageabilidade dos lugares, conceito desenvolvido em KARSSENBERG (1995).

Nessa mesma situação o eixo de importância não se baseia unicamente


nos elementos simbólicos e representativos, mas na própria presença das
pessoas, para as quais as cidades tem sua razão de existir e para as quais as
cidades tem seus nexos e importância como elementos de memória, já que a
imageabilidade dos lugares, depende justamente da percepção das pessoas.

Adicionando esses novos sentidos, vemos na obra de Hillman (1993), mais


um elo que evidencia a razão e a necessidade do conhecimento do
comportamental das pessoas, a fim de entendermos o processo de apropriação
dessas com relação as cidades, dando sentido e alma para as urbes. Por se tratar
de um processo de reciprocidade, de acordo com Hillman (1993), ao afirmar que
nós restauramos as almas quando restauramos a cidade em nossos corações,
percebe-se a importância desse vínculo para a manutenção de espaços e cidades
sadias. Percebe-se uma competência que vai além do domínio técnico, mas que
é dependente e extensivo a todas as pessoas que habitam nas cidades, a
responsabilidade de cada um cuidar um pouco, fazer sua parte, já que a alma da
cidade é um todo envolvente.

Outra maneira de ver a cidade, a partir de sua forma, considerando-a


como um grande artefato, como uma obra de arquitetura e de engenharia, que
cresce com o tempo, a qual segundo Rossi (2001), é estruturada a partir de fatos

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 149


urbanos. Nesse caso segundo o mesmo autor, a construção da cidade se
assemelha metaforicamente a obra de arte. Contudo é interessante notar a
aproximação que Rossi (2001) faz com a psicologia urbana, afirmando ser esta
essencial para o estudo da cidade, mencionando inclusive a relevância que teve a
psicologia da Gestalt, a partir de experiências iniciadas e levadas ao cabo na
Bauhaus, no campo da forma, tal como propostas pela escola americana de
LYNCH (1980), sobretudo como confirmação experimental.

Como em Hillman (1993), a existência da alma é extensiva a todas as


coisas e cada coisa construída em nossa vida urbana tem uma importância
psicológica, comparativamente, a construção da cidade pela ótica dos fatos
urbanos de ROSSI (2001), seria alijada de seus significados, não fosse pela alma
da cidade. Com efeito Hillman (1993), ao discorrer em “Anima mundi” – o
retorno da alma ao mundo, delineia melhor a realidade psíquica da alma no
contexto do mundo, afirmando que existe alma em todas as coisas e que cada
coisa de nossa vida urbana construída tem uma importância psicológica,
portanto consequentemente se não podemos dissociar nossa alma da alma do
mundo. Dentro dessa compreensão, se a psicologia de fato pertence a cidade, e
se a vida urbana é responsável por doenças psíquicas, se para tratarmos as
patologias da cidade é necessário estabelecer os nexos entre a alma e a cidade,
com esse intuito, Hillman (1993) apresentou cinco arquétipos para a
interpretação da alma das cidades, enumerando-os, para possibilitar melhor
análise desses. Antes de passarmos para a interpretação dos mesmos, temos em
Vogler (2006) uma importante menção de que Carl G. Jung empregou o termo
arquétipos para designar antigos padrões de personalidade, tendo esses como
herança compartilhada de toda a raça humana. O mesmo autor asseverava que
para Jung essa herança compartilhada, tida como inconsciente coletivo se
assemelhava ao inconsciente pessoal.

Dessa forma o propósito de desvendar o que simbolizam os arquétipos de


Hillman (1993), o viés de sua obra assume uma maior importância para revelar
a alma da cidade, por conseguinte, cuidar da saúde e da satisfação das pessoas,
com relação ao ambiente que vivenciam nas cidades.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 150


Imagens e ideias tradicionais de alma nas cidades:

Para reforçar a ligação entre alma e a cidade, Hillman (1993), propõe cinco
ideias de como e onde existe alma nas cidades, as quais pela relação e
importância com o vínculo do urbano, também fazemos aproximação com a ótica
de diversos pensamentos urbanísticos, passando a enumerá-las:

1ª. Ideia da Reflexão:

O vidro é uma das representações mais comuns para a alma: se quiser


toca-la, conhecê-la melhor, assim como a cidade, terá que aprofundar em sua
análise a fim de tornar mais abrangente ou complexo o sentido de nossa cidade,
ao mesmo tempo que se quisermos refletir alguma dimensão da cidade de modo
mais profundo, e não somente deslumbrar-nos com sua magnitude, sua
imponência.

Nessa situação materiais com características diversas como o vidro, o


espelho e a água tem a capacidade de refletir imagens, contudo também
apresentam um simbolismo conhecido como o narcisismo, a vaidade que
remetem a superficialidade vazia das coisas.

Vogler (2006), ao explicitar sobre os significados dos arquétipos nas


construções literárias ou cinematográficas, salienta que os mesmos podem
configurar em máscaras usadas temporariamente por personagens, ao
confrontarmos essa representação com a função espelho dada por Hillman
(1993) que as cidades podem aparentar aquilo que não são, ou seja podem ser
completamente artificiais ou neutras, refletindo não um espaço urbano moderno,
mas influindo apaticamente nos sentimentos e nas almas das pessoas, o que
confirma a situação de vazio e superficialidade.

2ª. Ideia Profundidade:

Os significados mais profundos, as complexidades mais profundas de


alguma coisa – de forma que, toda vez que você a olhar, ou adentrá-la ela
assume outro nível de significado. Há sempre um perigo para a alma se estamos
indo apenas para cima, ou seja, enfatizamos vistas panorâmicas, arranha-céus,
e não mantemos as alturas em relação às profundidades.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 151


Para entender esse ponto de vista de Hillman (1993), a respeito de um
problema comum que assola as cidades na atualidade, Gehl (2013) traz uma luz
sobre essa questão ao indicar que o planejamento das cidades e dos
empreendimentos tem sido exercidos somente nas escalas maiores, ignorando a
escala das pessoas. Esse planejamento tem sido feito do alto e de fora, em suma,
não tem a necessária profundidade, de forma que a alma dos lugares seja
respeitada.

No urbanismo, segundo Gehl (2013), tal situação ficou conhecida como


Síndrome de Brasília: vista do alto é uma bela composição, mas, ao nível dos
olhos se mostra como uma catástrofe, com seus espaços urbanos amorfos nada
convidativos, ruas muito largas, calçadas e passagens muito longas e retas.

Assim como Brasília, muitas outras cidades, tem concebido seus espaços
públicos e empreendimentos não para as pessoas, mas para serem vistos, sem
significado, empreendimentos desenvolvidos em altura, para serem vistos, porém
sem profundidade.

3ª. Ideia Memória emotiva:

A cidade, então, é uma história que se conta para nós à medida que
caminhamos por ela. Significa alguma coisa, ela ecoa com a profundidade do
passado. Há uma presença de história na cidade, e conforme Hillman (1993), não
devemos nos esquecer o quanto somos atores passageiros na própria história da
cidade: Memento Mori. Para uma melhor compreensão de Hillman (1993),
encontramos em Halbwachs (1990), o qual em sua obra faz uma tentativa de se
traçar uma ponte entre a psicologia e a sociologia, demonstrando que o
pensamento coletivo comanda a sociedade através de uma lógica da percepção.

Ora, se a memória emotiva está associada a memória coletiva da cidade,


para Halbwachs (1990), os acontecimentos históricos não desempenham outro
papel senão não o de dividir o tempo, sendo tais acontecimentos são auxiliares
de nossa memória. Para ele também a história não é o passado, mas tudo o que
resta do passado, o que nos leva a imaginar que a história da cidade, faz parte
da memória social, portanto da memória coletiva e emotiva, da qual somos todos
participantes. Em Polak (1989), avançando nesse sentido, temos que a memória
é uma operação coletiva de acontecimentos e interpretações do passado que se
quer salvaguardar, se integra em tentativa mais ou menos conscientes de definir

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 152


e de reforçar sentimentos de pertencimento e de fronteiras sociais entre
coletividades de várias escalas.

No contexto da cidade, a memória é fator preponderante, pois não há


história, senão houver preservação de elementos importantes que acondicionam
a história, como a preservação das lembranças, das memórias dos patrimônios
materiais e imateriais, os quais também estão associadas a manutenção da
memória emotiva, ao liame vivo das gerações descritas em HALBWACHS (1990),
a própria memória emotiva das cidades e dos lugares, aquilo que também dá
alma e consistência para as cidades.

4ª. ideia A alma se anima através de imagens e símbolos:

Uma cidade que tivesse cultura não precisaria ser animada por imagens.
Sem imagens corremos o risco de perder o caminho, como nas estradas. O valor
simbólico e essencial das imagens na cidade. A alma precisa de imagens e quando
não encontra elabora substitutos – cartazes e grafites por exemplo.

Se para Vogler (2006), os arquétipos são vistos como símbolos


personificados das várias qualidades humanas, a presença de vários símbolos na
cidade compõe a imagem desta, ao mesmo tempo que as pessoas são
imprescindíveis para compor a cultura do lugar, logo quanto maior for a
diversidade simbólica, mais rica a cultura da cidade.

Já para Hillman (1993), a ideia de alma do mundo está presente em todo


o pensamento ocidental, sendo a alma dos lugares manifesta através da
apropriação dos espaços pelas pessoas, ou seja, como esses espaços nas cidades
são particularmente caracterizados, não somente através de elementos
superficiais como publicidades, grafites, placas, sinalizações, os quais passam a
ter representação simbólica nas cidades, mas como as localidades adquirem
traços e símbolos que as diferenciam.

5ª. Ideia Noção de relações humanas:

A relação entre os humanos ao nível do olhar. O nível do olhar é a parte


fundamental da alma nas cidades. A cidade necessita de lugares para os contatos
humanos do olhar. Lugares de encontro. A cidade necessita de lugares para
pausa, para passear, comer, falar, fofocar, aqui temos um pouco da vida

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 153


psicológica da cidade. Também precisamos de lugares para o corpo, lugares de
intimidade – a intimidade é crucial para a alma.

Conforme Karssemberg (1995), nos dias atuais o planejamento de uma


cidade, muitas vezes tem abordado fatores como a interação e a
multifuncionalidade entre vias, espaços públicos e as fachadas dos prédios.
Entretanto, tais fatores essenciais para a humanização dos espaços, tem sido na
maior parte das vezes, ignorados ou negligenciados. Geralmente, as ruas são
vistas apenas como as ligações numa rede de ruas, possibilitando deslocamentos.
Onde o espaço público é inadequado, mal desenhado, ou privatizado, a cidade
se torna cada vez mais segregada. Onde o andar térreo de um prédio e a sua
relação com a rua e o espaço público são ignorados, o seu uso e desenho fazem
com que o espaço seja pouco atraente e, às vezes, inseguro.

Para Hillman (1993), o planejamento das cidades também deve cuidar de


espaços para várias necessidades, inclusive espaços que permitam a privacidade
dos usuários, em suma os espaços devem ter várias gradações de intensidade de
uso, devem ser espaços de domínio do olhar.

A aproximação com o Urbanismo

Ao interpretarmos a ótica de Hillman (1993) sobre a anti-cidade,


reconhecemos a impossibilidade de ignorar a cidade em suas condições e
contextos atuais, onde a maior parte da população vive nas cidades.

“Fugere urbem” é uma situação cada vez mais idílica, se apropriar das
cidades e promover adequações em seus espaços, são necessidades cada vez
mais prementes, exigindo não somente a atuação de especialistas urbanistas,
mais o envolvimento e a participação democrática de toda a sociedade. Contudo,
percebemos toda a carga de problemas existentes e as limitações do urbanismo
moderno em superá-las. As cidades do século XIX com mais de 400 ou 500 mil
habitantes já eram consideradas desvios da natureza, causavam profunda aflição
psíquica, consequentemente adoeciam a alma, devido as tensões urbanas
proveniente dessas aglomerações. Diante disso, o que dizer então dessa situação
tão comum nos dias atuais, onde pela ordem de grandeza dos grandes centros
alterou significativamente, onde a cada instante surgem novas demandas,
desencadeadas numa velocidade frenética cada vez maior?

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O que fazer quando os instrumentos utilizados para controle das
ocupações sobre a cidade se mostram insuficientes para pautar e promover a
qualidade de vida nos grandes centros? Como promover o equilíbrio sócio
espacial, como lidar com os grandes deslocamentos de pessoas, como refugiados
e outros grandes imbróglios existentes nos grandes centros? Como resolver as
questões relacionadas a proliferação das drogas e a ocupação dos espaços
públicos nas cidades, como promover melhorias urbanas sem causar
gentrificação?

É preciso aceitar então que não bastam as soluções técnicas de projetos


urbanísticos para as cidades, a alma das cidades não está adoecida somente pelos
aspectos físicos que compõe as urbes, não há como tratar do urbanismo sem
cuidar das pessoas. Assim, torna-se necessário intensificar a busca de soluções
para humanizar as cidades sempre buscando o caráter igualitário das ações
públicas, respeitando as pessoas.

Conclusão: A alma da cidade e o urbanismo

De todas as interferências que correspondem a vida em grupos, a


lembrança é como a fronteira, o limite, colocando-se na intersecção de várias
correntes do pensamento coletivo. Além do papel da memória na construção das
ideias sobre a alma na cidade, outro fator preponderante é o espaço em que as
relações acontecem, ou seja, a própria cidade, materialização do urbanismo. Na
cidade as ideias contribuem para a construção dos espaços.

Por sua vez outra percepção a respeito da cidade, vista em Gehl (2013),
verificável nos dias atuais, independentemente de sua localização, de sua
economia, de seu grau de desenvolvimento, a cidade não trata bem das pessoas
que a utilizam, das pessoas que vivem nos seus domínios. Condições
vergonhosas e precárias fazem parte do dia a dia de seus habitantes, tais como
espaços públicos limitados e deteriorados, obstáculos, ruídos, vários tipos de
poluição, riscos de acidentes, insegurança, afetam a maior parte das cidades do
mundo.

Uma certa nostalgia deveria nos levar a perceber a cidade pelos olhos de
um flaneur, como sugere Sergio Paulo Rouanet, podendo vê-la como se visse de
longe, que circula pela rua nunca monótona e em que ninguém se perde, para
quem o labirinto é o caminho certo para quem sempre chega suficientemente no

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 155


seu objetivo. Esse deveria ser nosso modo de ver a cidade, ter objetivo de explorar
todos os seus meandros, de esquadrinhar todos os seus becos, de olhar para ela
num sentido exploratório, de olhar como um estrangeiro que não se cansa de
aprender (ROUANET, 1992).

Ao correlacionarmos a alma com a cidade e ao questionarmos onde e de


que forma o urbanismo se interpõe nessa relação como um elemento de análise
com intenção de se obter equilíbrio e harmonia na cidade, delineia-se um sentido
que nos faz aproximar dos preceitos de (HILLMAN,1993), e que podemos constar
na afirmação de Roanet: “A alma dos lugares parece ter-se perdido para sempre.
Reduzidos a locais moldados pelo hábito, com seus habitantes conformados com
traçados pré-estabelecidos. É o aparente paradoxo da obra de Benjamin: o
encontro da cidade com os homens se dá quando estes percorrem terras
desconhecidas ou quando se fazem estranhos em sua própria cidade”
(ROUANET,1992).

O que se deduz que a alma traz sentido para a cidade, a partir da percepção
das pessoas, nesse sentido o urbanismo pode ser um elo importante para a
manutenção da alma dos lugares, se de modo eficaz promover mudanças que
contribuam para o bem-estar das pessoas nas cidades.

Referências bibliográficas

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo:


Companhia das Letras, 2012.

GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Laurente Leon Schaffter.


São Paulo: Edições Vértice, 1990.

HILMAN, James. Cidade e Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes,
2000.

KARSSENBERG, Hans e Jeroen Laven. A cidade ao nível dos olhos, Porto Alegre:
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2015.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 156


POLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Trad. Dora Rocha Fraksman
– Estudos Históricos, Vol. 2, n.3, Rio de Janeiro: 1989.

ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade, São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ROUANET, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que
moram nela? História Material em Walter Benjamin “Trabalho das Passagens”.
São Paulo: Revista USP no. 15, 1992.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor – estruturas míticas para escritores.


Trad. Ana Maria Machado. 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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ComunicaCidade, ou como a cidade se comunica

Ivan Fortunato

Resumo
Este artigo foi pensado da seguinte maneira: as evidências encontradas foram
sistematizadas uma a uma, cotejando a literatura base com as vivências de
pesquisa desenvolvidas sobre um lugar específico da cidade de São Paulo. Ao
final, as evidências elencadas são relacionadas entre si, mas tudo o que se espera
é contribuir com futuras pesquisas – quem sabe sobre a égide de uma
ComunicaCidade.

Palavras-chave: Centro Histórico de São Paulo; Pateo do Collegio; comunicação.

Ensaiando um conceito...

Marcovaldo tinha um olho pouco adequado para a vida da cidade: avisos,


semáforos, vitrines, letreiros luminosos, cartazes, por mais estudados que fossem
para atrair a atenção, jamais detinham seu olhar, que parecia perder-se nas
areias do deserto. Já uma folha amarelada num ramo, uma pena que se deixasse
prender numa tela, não lhe escapavam nunca: não havia mosca no dorso de um
cavalo, buraco de cupim numa mesa, casca de figo se desfazendo na calçada que
Marcovaldo não observasse e comentasse, descobrindo as mudanças da estação,
seus desejos mais íntimos e as misérias de sua existência (Calvino, 1994, p. 7).

Com ajuda do trecho da literatura de Ítalo Calvino, reproduzido na


epígrafe, exponho o objetivo deste escrito: apresentar a cidade – qualquer cidade
– como um meio de comunicação. Veja, essa comunicação pode ser expressa,
como os avisos, letreiros e demais produtos “estudados para atrair atenção”, seja
para evitar algo, se comportar de determinada maneira ou, especialmente, para
comprar algum produto indispensável e/ou consumir algum alimento delicioso e
nutritivo. Mas, essa comunicação também pode se dar de forma anuviada,
ocultada pela obviedade do que é fabricado para direcionar atenção das pessoas,
ou pela própria subjetividade que não consegue (ou não quer) encontrar

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 158


representações de si na casca de figo se desfazendo ou na quase insignificante
mosca no dorso do cavalo, ou pela própria organização do espaço urbano,
construído, mesmo que ao acaso, como forma de comunicar à sua própria
população sobre os locais de encontro, de compras, de passeio etc. bem como a
quem se deve obedecer – este, geralmente, é a construção maior ou mais alta,
mas sempre a que se torna ponto de referência.

Com isso, pode-se introduzir a noção de ComunicaCidade: um jogo de


palavras que combina, com obviedade, a Comunicação (pensada como
transmissão de mensagens), e a Cidade (como o espaço urbano habitado), para
imprimir a ideia de que a Cidade pode ser entendida como um Meio de
Comunicação. Não se trata de delinear uma teoria pronta e acabada, que deve
integrar os anais das Ciências Sociais Aplicadas, mas, antes, de apresentar
algumas evidências que permitam incorporar essa perspectiva nos estudos
interdisciplinares, cada vez mais emergentes, que envolvam comunicação,
urbanismo, geografia, antropologia, sociologia, história etc.

Assim, o que se espera lograr com este ensaio é a ampliação dos sentidos
do patrimônio cultural construído, possibilitando que prédios, casas,
logradouros, praças, parques, monumentos etc. sejam compreendidos e
investigados, à luz da ciência, como elementos que recuperam a memória,
repercutem o momento cultural e até encerram o porvir. No cotidiano de uma
cidade, isso implica assegurar que as ruas se configuram como o suporte
midiático dessa comunicação que perpassa as três dimensões espaciais e o
continuum temporal. E, se triunfar ao apresentar o desenlace deste ensaio, posso
até ambicionar que o vocábulo utilizado no título se torne um conceito que figure
entre os tantos que impulsionam a ciência. Assim, até consigo imaginar futuros
pesquisadores refletindo como a ComunicaCidade interfere ou é modificada pelo
desenvolvimento tecnológico, pela expansão urbana e pelas transformações
culturais.

Para balizar essa pretensiosa ideação, tomo como exemplo do cotidiano


vivido elementos que vieram à tona quando estava em campo, tomando notas
para tese de doutoramento1 sobre o sítio urbano mais antigo da cidade de São

1
Tese que só pode ser concluída graças ao acolhimento, à dedicação e aos ensinamentos de Lívia de
Oliveira, professora emérita.

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Paulo, o Pateo do Collegio2 (Fortunato, 2014). Esse lugar está no Centro
Histórico de São Paulo, em uma área conhecida como Triângulo Histórico. Foi aí
que os padres da Companhia de Jesus, depois de uma fraterna relação
estabelecida com os gentis da taba do cacique Tibiriçá, encontraram lugar ótimo
para instalar sua igreja e seu colégio – curioso notar que o lugar ainda é
educacional, pois, como museu, pode ser configurado como local de educação
não formal, sendo assim reconhecido como lugar pioneiro da educação
paulistana, guardião de todas as suas memórias (Fortunato, 2016a).

Ao recuperar a história de ocupação desse lugar pelos jesuítas, na década


de 1550, foi possível identificar três motivadores basilares para a seleção desse
local: (1.) estava no sertão de uma capitania sediada no litoral, sendo que o plano
de tomada do território demandava que mais áreas fossem colonizadas; (2.) sua
geografia era perfeita, pois era um descampado no meio da mata nativa e estava
entre dois rios, onde a terra era fértil, havia peixes e água; e (3.) ficava no alto de
uma colina, permitindo ver e ser visto de longe (Fortunato, 2015).

Este terceiro motivador, quando iluminado por autores como Calvino


(2003; 1994), Wilheim (1976), Canevacci (1997), Hillmann (1993) e Ferrara
(2008; 2000), se torna importante elemento que dá força à ideia de que a
cidade se comunica, afinal, os jesuítas estavam replicando o que se fazia na
Europa: as igrejas deveriam ser edificadas no alto, ou suas torres deveriam ser
muito altas para que, de longe, os habitantes e/ou os forasteiros não tivessem
qualquer dúvida sobre a presença da fé no local. Ainda, é possível considerar a
altura como símbolo de poder3.

Para alcançar os objetivos apresentados, este ensaio foi pensado da


seguinte maneira: as evidências encontradas foram sistematizadas uma a uma,
cotejando a literatura base com a área do Pateo do Collegio – algumas
fotografias, tiradas em primeira pessoa, fortalecem as ideias propostas. Ao final,
as evidências elencadas são relacionadas entre si, mas tudo o que se espera é
contribuir com futuras pesquisas – quem sabe sobre a égide de uma
ComunicaCidade.

2
A grafia do nome do lugar são várias, mas tem sido tratado em todos os meus escritos como Pateo do
Collegio, ou apenas Pateo.
3
Segundo a interpretação psicanalítica de Hillman (1993, p. 141-151), o gigantismo da humanidade, que
se repete nas suas construções, seria a representação dos deuses na Terra.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 160


Como a cidade se comunica, evidência um: ver e ouvir

A perplexidade é compreensível, pois a leitura da cidade não é


fácil nem estamos armados de instrumentos teóricos adequados
para tal análise. Compreende-se, por isso, que ante a realidade
complexa muito urbanista prefira fechar a janela e passar a ler
textos, quadros e informações indiretas a respeito dessa cidade
que está lá fora. Face à ausência de um instrumental seguro, em
lugar de tentar inventar, de experimentar métodos para enxergar
a cidade, prefere limitar-se a um exame quantitativo, útil porém
insuficiente para quem pretende planejar, isto é, induzir
transformações (Wilheim, 1976, p. 58).

O arquiteto Jorge Wilheim (1976), escolhido para epígrafe desta seção, foi
um dos mais importantes reorganizadores do espaço urbano da capital
paulistana desde os anos 1960, incluindo o projeto de revitalização da área do
Pateo do Collegio, em meados da década de 1970. Essa relação entre o
proeminente urbanista e o lugar que dá força às ideias de ComunicaCidade deste
ensaio, ultrapassa a mera coincidência. Isso porque quando essa metrópole se
comunica com seus pesquisadores, as peculiaridades de seu local de nascimento
não são ocultadas... e podem atrair interesse.

Mas, para além desse lugar em comum, um dos legados de Wilheim (1976)
é uma metodologia para leitura das cidades. No trecho da epígrafe, o arquiteto
registrou a ausência de “instrumentos teóricos adequados” para uma leitura das
cidades que dessem conta de toda sua complexidade. Quatro décadas se
passaram, e os instrumentos continuam a ser calibrados, melhorados,
desenvolvidos, criados, mas é coerente afirmar que ainda não se delineou uma
perspectiva teórica capaz de dar conta dessa interpretação.

Disso deriva sua crítica às ações de gabinete: para Wilheim (1976) era
necessário abandonar a segurança dos dados quantitativos, das paredes dos
escritórios e das pranchetas inanimadas, pois a transformação somente poderia
acontecer por meio da criatividade de métodos experimentais, na “cidade lá fora”,
que teriam calibre suficiente para “enxergar” a cidade.

Com isso, esse arquiteto-autor indicou a presença in vivo nos lugares da


cidade, nas suas ruas e entorno, como metodologia para que a comunicação seja
decodificada e compreendida. Do lado de fora dos escritórios, portanto, pode-se

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 161


iniciar um processo consciente e voluntário de comunicação com a cidade.
Segundo o autor:

Para enxergar uma realidade urbana, iniciemos por observá-la.


Costuma-se dizer que a paisagem urbana comunica informações
a seu respeito, sendo, portanto, possível a sua leitura. Esta implica
percepção. Qual o cientista, o urbanista deve poder observar para
perceber o que há atrás e dentro da paisagem urbana (Wilheim,
1976, p. 59).

Essa relação entre estar, observar e enxergar para ler, encontra respaldo
nas palavras do psicanalista James Hillman. Embora a preocupação de Hillman
(1993, p. 52) fosse a saúde mental das pessoas citadinas4, suas reflexões mais do
que resvalam nas propostas do arquiteto anteriormente delineadas,
especialmente quando apresenta o seguinte: “vistas das pranchetas dos
arquitetos e das plantas dos urbanistas raramente mostram uma multidão. Em
vez disso, casais passeiam sob as árvores, pessoas surgem uma de cada vez saídas
dos carros estacionados...”. Este trecho ratifica a ideia de que a complexa
comunicação urbana parece incomodar quem pensa sobre uma cidade, sendo
mais seguro e confortável imaginar que uma rua não é o que ela é.

Não obstante, uma rua não pode ser somente qualificada como complexa.
Por isso, Hillman (1993) vai além e apresenta ponto de vista que é, ao mesmo
tempo, controverso e esclarecedor a respeito da importância que estar na cidade
“lá fora” adquire à compreensão de sua comunicação. Tal importância foi
registrada em dois momentos distintos e complementares:

A face dos quarteirões da cidade, do bazar, do mercado e das


alamedas é esperta, vívida, sagaz e tão expressiva quanto o
gestual e a linguagem daqueles engajados da manhã até a noite
com outras pessoas. A palavra grega para cidade, polis,
originalmente significava "multidão", ajuntamento de pessoas;
relativo a poly (poli, muitos); o latim pleo (abundante, cheio) e
plebs (multidão, plebe, o plebeu comum). Uma cidade é o vaivém
de pessoas comuns nas ruas (Hillman, 1993, p. 52).

[...]

4
Isso é socialmente muito relevante, pois os dados revelam que aproximadamente 55% da população
mundial vive nas cidades (UN, 2015).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 162


Os planejadores urbanos afetaram radicalmente nossa noção de
cidade, levando-nos a esquecer que as cidades nascem de baixo;
nascem de suas ruas. As cidades são ruas, avenidas de troca e
comércio, o aglomerado físico de pessoas, uma multidão
caminhando nas calçadas movidas por curiosidade, surpresa,
pela possibilidade do encontro, a vida humana não acima da
confusão mas no meio dela (Hillman, 1993, p. 56).

Decorre dessas constatações que o psicanalista tende a concordar com o


que foi apresentado, em algumas linhas atrás, pelo arquiteto: para (se) entender
(com) uma cidade é preciso nela estar, do lado de fora, e sobre suas ruas
caminhar. Somente assim é possível encontrar e se surpreender com sua
dinâmica vida cotidiana, e com as informações disponibilizadas pelas suas
construções, sejam essas tangíveis ou intangíveis, atuais ou registros de memória.

Foi pensando de forma muito similar que o antropólogo Massimo


Canevacci (1997) descobriu a importância de “perder-se” na cidade de São
Paulo, logo nas suas primeiras visitas à capital paulistana, de modo a tentar
decifrá-la. Acostumado com sua cidade italiana, o gigantismo, o
multiculturalismo e enigmático traçado paulistano pareciam falar-lhe em
múltiplas linguagens simultaneamente, ocasionando ruídos desmensurados que
prejudicavam sua comunicação.

Foi assim que ele se permitiu caminhar por suas ruas, devagar,
possibilitando guiar seu foco, o quanto fosse possível, a cada uma das linguagens
em seu tempo. Daí, a seguinte afirmação de Canevacci (1997, p. 35) é
praticamente axiomática: “compreender uma cidade significa colher fragmentos”.
Um a um, esses fragmentos vividos ganham sentido, se fortalecendo quando se
constrói entre eles “estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível
encontrar uma pluralidade de significados. Ou de encruzilhadas herméticas”.

Com isso, Canevacci (1997, p. 37) se convenceu que compreender a cidade


onde se está requer “escutá-la”, mas também com ela “falar”; precisa que se
“observe” suas ruas, sua arquitetura, sua gente etc., permitindo-se ser
“observado”. Isso demanda, portanto, “participar” da cidade e deixar-se nela
“participar”. Essa relação reflexiva, por sua vez, significa envolver-se de corpo,
mente e espírito com a cidade que se comunica, afinal, constatou Canevacci

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 163


(1997, p. 37): “não somente vivemos ‘nela’, mas também somos vividos ‘pela’
cidade. A cidade está em nós”.

Ao recuperar lembranças sobre minha própria chegada a São Paulo,


percebo que fiz o mesmo que o antropólogo e me “lancei” na cidade, como que
desejando nela me perder para me encontrar. Foi justamente ao flanar pelo seu
Centro Histórico que encontrei com e me encantei pelo Pateo do Collegio. Em
outro ensaio (Fortunato, 2017), descrevi em detalhes essa particular experiência,
nomeando o momento primeiro de topar com o lugar como “súbito encanto”. Já
afirmei outras vezes que o Pateo nunca foi meu “objeto” de estudo, mas foi o
lugar que mais me acolheu na metrópole. Essa área demarcada no Triangulo
Histórico da capital não foi (e tem sido) local sobre o qual tenho desenvolvido
estudos por causa de seu legado histórico como sítio urbano mais antigo da
cidade, mas por ter se tornado o núcleo onde, ao me lançar nas ruas de São
Paulo com o objetivo de me perder, me encontrei.

Nesse entrelaçar da polifonia com a imagem com a identidade, emergem


linguagens que são capturadas por sentidos distintos, mas decodificadas pela
percepção de alguém que compreende que compreender a cidade, não pode se
limitar a observar a que está lá fora. Lucrécia Ferrara (2000, p. 85), uma das
mais célebres estudiosas da semiótica urbana, que tanto discutiu a percepção
como o canal mais apropriado para interpretar os signos da urbe, anotou que
“um leitor da cidade é, obrigatoriamente, alguém sensível à sua imagem
enquanto manifestação de cultura e suas variações”. Essa sensibilidade, a da
própria autora, inclusive, a levou a considerar a cidade como mídia. Assim, para
elevar a visibilidade desta primeira evidência a respeito da ComunicaCidade,
importante trecho de Ferrara (2008) se faz necessário reproduzir:

Apreender essa mídia, considerando seus suportes construtivos,


nos leva a constatar que, às características urbanísticas e
funcionais de uma cidade, alia-se a dimensão comunicativa que
faz com que a cidade surja sempre e, sobretudo nos dias atuais,
de um lado, como eficiente mídia a sustentar as ambições e
planos globais e, de outro, nos surpreenda pelas imponderáveis
e inesperadas manifestações de vida que vão muito além da
simples intenção midiática (Ferrara, 2008, p. 41).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 164


Essa ideia de que a cidade é uma mídia capaz de, ao mesmo tempo,
simbolizar o plano da globalização e representar suas manifestações vivas,
dinâmicas, inesperadas, arremata toda argumentação sobre a primeira evidência.
Nesse sentido, a essência para que a comunicação com a cidade aconteça se
assenta sobre os seguintes elementos: (1.) deve-se estar presente no lugar, (2.)
há que se considerar que a vida da cidade é a vida que se manifesta na cidade,
(3.) a comunicação se dá por múltiplas linguagens e se perder, intencionalmente,
na cidade é uma forma de decodificá-las, (4.) comunicar-se não é uma atividade
puramente racional, pois demanda percepção e sensibilidade, e (5.) a cidade é
uma mídia.

Como a cidade se comunica, evidência dois: o patrimônio e a ordem


subjacente

Em cada cidade do império, os edifícios são diferentes e dispostos


de maneiras diversas: mas, assim que o estrangeiro chega à
cidade desconhecida e lança o olhar em meio às cúpulas de
pagode e claraboias e celeiros, seguindo o traçado de canais
hortos depósitos de lixo, logo distingue quais são os palácios dos
príncipes, quais são os templos dos grandes sacerdotes, a
taberna, a prisão, a zona (Calvino, 2003, p. 17).

A segunda evidência foi localizada com ajuda do romancista italiano Ítalo


Calvino (2003) que, ao ficcionar como teriam sido os diálogos entre Marco Polo
e o imperador Kublai Khan, narrou sobre as várias cidades que o navegador teria
visitado nas suas viagens exploratórias até o oriente. Pela literatura, Calvino
(2003, p. 51) cunhou um termo capaz de explicar uma forma bastante sutil de
comunicação das cidades, que é a sua “ordem invisível” que disciplina sua
economia, sua educação, seu sistema legal, enfim, uma ordem que conduz a
cultura, prescreve sua identidade e mantém o poder. Por isso, o romance foi
batizado de Cidades Invisíveis, em referência aos locais visitados por Marco Polo.
Com olhar perspicaz para as paisagens citadinas, foi-lhe possível compreender
que cada cidade tende a funcionar como um jogo de xadrez em andamento: ao
olhar para o tabuleiro há um caos aparente, governado por um “sistema coerente
e harmônico”, conhecido por quem movimenta as peças. Em essência, a “ordem

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 165


invisível” diz respeito ao conjunto de regras que não são expressamente impostas,
mas grande parte da população o conhece, e o respeita ao longo do “jogo”.

A perspectiva mais evidente dessa ordem invisível, e que já foi até


mencionada na introdução deste artigo, é a altura dos elementos construídos:
quanto mais alto for, maior é a sua presença local. Em certo sentido, isso não
pode ser tratado como uma invisibilidade, pois se manifesta na paisagem urbana
de forma muito clara. Não obstante, esse tipo de comunicação não pode ser
tratada de forma trivial, uma vez que ela informa, a todos, como uma cidade se
organiza – ou em que esferas se pode esperar algum tipo de enfretamento, se for
contradita5.

De certa forma, a “ordem invisível” está expressa no trecho citado na


epígrafe, no qual Calvino (2003, p. 17) deixa explícito esse tipo de comunicação
das cidades. Ao utilizar-se da figura de um estrangeiro, o autor explica que,
apesar de cada cidade ser única, seu patrimônio construído é capaz de informar
sua própria organização – “a cidade é redundante”, afirmou Calvino (2003, p.
11), “repete-se para fixar alguma imagem na mente”. Não são apenas as placas,
os símbolos e os habitantes locais que tem a capacidade de transmitir
informações a respeito da ordem de determinada cidade, pois o estilo
arquitetônico, a localização, o tamanho e a altura do patrimônio construído
denotam onde está quem e o quê. Calvino (2003, p. 9) evidencia isso ao afirmar:
“Se um edifício não contém nenhuma insígnia ou figura, a sua forma e o lugar
que ocupa na organização da cidade bastam para indicar a sua função: o palácio
real, a prisão, a casa da moeda, a escola pitagórica, o bordel”.

Desse modo, se essas ideias soarem muito abstratas porque as cidades


invisíveis são intangíveis, São Paulo, por outro lado, é bastante concreta
(perdoem o trocadilho). Assim, quando essa cidade foi fundada, oficialmente a
25 de janeiro de 1554, dia da conversão do apóstolo que a batizou, seus
colonizadores eram da Companhia de Jesus, uma ordem religiosa criada em
Portugal alguns anos antes. Qual foi o local escolhido para a edificação da
primeira construção da cidade, utilizada pelos padres para a catequese dos gentis,
para as missas e para as lições de línguas, matemática e ciências aos curumins e
pequenos portugueses que habitavam o sertão paulista? Um descampado no alto
de uma colina.

5
Ferrara (2008) se aprofunda nessa ideia da verticalização como mídia.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 166


Como já revelado (Fortunato, 2015), a geografia do local foi um dos
elementos fundamentais para a seleção do lugar onde os jesuítas se
estabeleceriam no interior selvagem, sendo que os indígenas o havia nomeado
como Piratininga – o peixe no seco – indicando um ritmo de cheia e seca do rio
(Tamanduateí) que tornava o solo muito fértil, além de o próprio rio fornecer
água potável, peixes para alimentação e ser um curso navegável. Não só isso, pois
o local que os jesuítas tomaram como ótimo para colonização do sertão era um
descampado plano, em meio à nativa mata atlântica, o que facilitaria a
construção de uma vila.

Por certo, havia outros descampados planos, como em Santo André da


Borda do Campo, onde vivia o primeiro habitante português do interior paulista,
João Ramalho, casado com uma indígena. No entanto, o planalto de Piratininga
fica no alto de uma colina, possibilitando observar a aproximação de inimigos,
mas, principalmente, permitindo que a cruz, símbolo máximo da igreja, fosse
avistada de longe, ratificando a presença dos religiosos no local. Como não há
registros iconográficos dessa época, faz-se necessário recorrer à habilidade com
o bico-de-pena e à imaginação de Terciano Torres (2004) para oferecer
imagem dessa primeira ação comunicativa ocorrida em São Paulo. O batismo da
terra, no descampado situado no alto da colina está reproduzido na figura 01.

Figura 01: o batismo de São Paulo a bico-de-pena.

Fonte: Torres (2004, s.p.)

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 167


Como a preocupação aqui é a perspectiva comunicativa do patrimônio
urbano, se elipsam os desdobramentos culturais do planalto de Piratininga, a
partir do qual a urbanização foi se desenvolvendo de forma concêntrica, sendo
lenta até o último quartil do século XIX 6. Sobre essas décadas finais dos anos
1800, assunto que já foi discutido alhures (Fortunato, 2016b; 2015), a literatura
é quase consoante a respeito de uma transformação radical na cidade: o que era
um burgo de 20 mil habitantes, cujas ruas eram de barro e taipa, que sobrevivia
da agricultura, repentinamente passa a ser referida como Metrópole do Café,
época em que construções rebuscadas, de tijolo, em neoclássico, logo tomaram
as ruas de uma grande cidade, enriquecida por causa do capital do café investido
principalmente no centro, onde o produto era negociado internacionalmente.
Outras inovações foram chegando junto com o dinheiro, como a eletricidade, o
bonde e o estilo luxuoso de vida (boutiques, chá da tarde e música erudita, por
exemplo).

Assim como o estrangeiro do romance de Calvino (2003) reconheceria a


ordem invisível de uma cidade a partir de sua paisagem, os forasteiros que
chegavam a São Paulo (e os habitantes também), logo identificavam que aquela
não era uma pobre cidade agrícola. A cidade lhes contava isso. Como? Dentre
outros, pela fachada ornamental e pelo tamanho do edifício erigido pela
arquitetura de Ramos de Azevedo, para assumir o lugar da igreja dos jesuítas
(figura 02); pelo novo nome dado ao lugar, Largo do Palácio; e pela nova função
do edifício, que há algum tempo já não era mais colégio-igreja, mas sede da
administração pública.

6
Para saber mais sobre a historicidade do Pateo do Collegio, ver Fortunato (2015).

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Figura 02: Palácio do Governo, no Largo do Palácio, em cartão postal – data
aproximada 1925.

Fonte: Arquivo pessoal do autor – foto sem créditos.

Passada a primeira guerra mundial e a grande crise financeira de 1929, a


cidade de São Paulo se reconfigurou novamente. Dessa vez, as contingências
foram desfavoráveis ao café, mas ideais para a industrialização: havia local para
as fábricas ao longo das linhas de trem, sobravam trabalhadores excedentes da
quase extinta mão de obra do café e do surto migratório (nacional, mas
principalmente estrangeiro) e criou-se substancial mercado interno. A cidade, em
especial o centro, já não poderia mais continuar emitindo informações de que ali
prosperava o luxo. Foi dessa forma que as rebuscadas obras em neoclássico
foram, metaforicamente, sendo diminuídas pela altura dos novos prédios, cuja
arquitetura e material de fabricação já não eram mais europeus, mas vindos dos
Estados Unidos, junto com o poder financeiro. No caso do local de nascimento
da cidade de São Paulo, o Palácio do Governo não sobreviveu, tendo sido posto
abaixo depois de longa e complexa mobilização da população em defesa de sua
memória. No seu lugar, foi construída uma réplica do conjunto colégio-igreja dos
jesuítas da época de taipa (ver Fortunato, 2016b).

Nesse interim, a verticalização edilícia passou a tomar conta da região


central da cidade, seja para atender às crescentes demandas de moradia,
escritórios e comércio (cf. Somekh, 1997), seja para replicar, na paisagem, a
superioridade das construções bancárias, conforme se delineava no país norte-
americano. Surgia, assim, o Edifício Altino Arantes, o Banespão, primeiro e mais

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notório edifício-símbolo, capaz de comunicar a todos que São Paulo havia
deixado de vez a economia agrícola (seja a de subsistência, na época do burgo de
taipa, seja a de luxo, na época do café), tornando-se a cidade que representaria
o capitalismo industrial no Brasil. Esse movimento de construir buscando alturas
cada vez mais elevadas começou, e não ao acaso, no planalto de Piratininga,
coincidindo com o local de nascimento de São Paulo.

Assim, na década de 1930, no local onde o Planalto ladeia o vale do


Anhangabaú, a cidade via crescer o edifício Martinelli, com 30 andares, dando
vigor às belíssimas construções luxuosas. Por isso, bem em frente a esse gigante,
a cidade industrial fazia nascer, com capital dos bancos para os bancos, o
Banespão – sede da instituição financeira que havia socorrido São Paulo,
quando a cidade fazia dívidas por causa da falência do café. Inaugurado em 1947,
o Pateo do Collegio é testemunha de tão imponente ícone concreto do que a
cidade tinha se tornado economicamente. A figura 03 revela, parcialmente, esse
diálogo simbólico entre o sagrado e bucólico lugar de nascimento de São Paulo,
e sua mais antiga rubrica que expressa a presença do capital industrial no
logradouro primitivo.

Figura 03: O edifício “Banespão”, o mais alto e no centro, visto do Pateo do


Collegio.

Créditos: Ivan Fortunato, mar./2013.

Desde a última metade do século passado, essas distintas construções –


de arquitetura colonial (imitando a taipa), de estilo neoclássico europeu (de

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 170


tijolos), e de estrutura armada norte-americana – convivem na área chamada de
Triângulo Histórico, no alto da colina, no planalto de Piratininga. Essa
convivência heterogênea do patrimônio não é apenas resto dos tempos
pretéritos, pois comunica a cultura da cidade de hoje: um centro metropolitano
altamente multiforme, que foi se formando com a imigração estrangeira desde o
inicio da industrialização, ampliando-se cada vez mais, conforme a própria
cidade crescia economicamente.

Assim, o que parece um caos é, possivelmente, uma “ordem invisível”


extremamente ampla em tamanho e volume, e altamente complexa em suas
relações. Por isso, tentar se comunicar com a capital paulistana, por meio de seu
patrimônio, é uma tarefa praticamente impossível, por causa de sua magnitude.
Por outro lado, é plausível dialogar com seus lugares, como o Pateo do Collegio,
por exemplo, que tem muito a contar – “a memória é redundante”, escreveu
Calvino (2003, p. 11), “repete os símbolos para que a cidade comece a existir”.

Como a cidade se comunica, evidência três: o patrimônio e a


individualidade

Um edifício “se comunica” por meio de muitas linguagens, não


somente com o observador mas principalmente com a própria
cidade na sua complexidade: a tarefa do observador é tentar
compreender os discursos “bloqueados” nas estruturas
arquitetônicas, mas vividos pela mobilidade das percepções que
envolvem numa interação inquieta os vários espectadores com
diferentes papéis que desempenham. Espectadores que, por sua
vez, ao observarem por meio de sua própria bagagem
experimental e teórica, agem sobre as estruturas arquitetônicas
aparentemente imóveis, animando-as e mudando-lhes os signos
e o valor no tempo e também no espaço. Existe uma comunicação
dialógica entre um determinado edifício e a sensibilidade de um
cidadão que elabora percursos absolutamente subjetivos e
imprevisíveis (Canevacci, 1997, p. 22).

Até aqui foram apresentadas duas potenciais evidências a respeito da


ComunicaCidade: a percepção do espaço construído e a decodificação da ordem
subjacente. A terceira e última evidência elencada neste artigo pode ser

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 171


compreendida como a percepção de uma ordem subjacente. Em outras palavras,
para que essa evidência seja localizada na cidade, as idiossincrasias ampliadas
pela percepção precisam ser cotejadas com as informações fornecidas pelo
patrimônio observado. Assim, a imagem aparente pode deixar a superficialidade
visual, para interatuar com a experiência, o conhecimento e os meios de análise
de quem a observa, tornando-se uma imagem complexa porvir.

Além da imagem urbana e da subjetividade de quem a observa há, ainda,


um terceiro elemento envolto nessa trama, que torna a decodificação da imagem,
ao mesmo tempo, mais labiríntica, difícil e significativa. Trata-se da existência
ontológica dos lugares, minutada com mais propriedade em outro ensaio
(Fortunato, 2016c). Ao permitir o envolvimento dessa dimensão na comunicação
entre patrimônio construído e sujeito que-observa-e-quer-compreender, a
trama interpretativa pode seguir diversas e distintas trilhas, pois as linguagens
mencionadas na epígrafe por Canevacci (1997) apresentam-se igualmente
variadas. Isso, no entanto, não deve ser tomado como a relativização de tudo,
nem a permissão para que qualquer linha de investigação seja tida como possível
quando se está em evidência o estudo da comunicação na, da e para uma cidade.

Importante esclarecer que considerar a dimensão ontológica dos lugares,


não é o mesmo que “humanizar” determinada área. Isso seria vulgarizar o sentido
da existência de um lugar, além de infantilizar a ciência. Quando se apresenta o
sentido ontológico, o objetivo é potencializar a comunicação que há nas cidades,
pois um lugar não pode ser tido somente como um local modificado pelo bel
prazer das pessoas. Dardel (2011), na década de 1950, já indicara que os lugares
são muito mais do que “recipientes” da ação humana sobre a superfície terrestre,
mas o repositório histórico da cultura, reciprocamente transformando-a. A
historicidade do Pateo do Collegio como lugar na cidade de São Paulo, recontada
anteriormente neste texto, é notório exemplo disso: o descampado no alto da
colina não foi colonizado ao acaso, tampouco todo desenvolvimento econômico,
demográfico e urbano da metrópole aconteceu sem a sua participação direta (ver
Fortunato 2016b; 2015).

Isso posto, o trecho de Canevacci (1997) reproduzido na epígrafe trata


exatamente desse envolvimento tripartido na comunicação da cidade. No
entanto, a concepção expressada pelo antropólogo precisa ser ampliada. Isso
porque o autor se refere a um edifício, como se qualquer edifício tivesse qualquer
importância – simbólica ou concreta – sem considerar o lugar que o abriga.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 172


Assim, não se trata apenas da reduzida relação edifício-cidade-espectadores,
mas da complexa relação lugar-cidade-sujeitos (da mesma forma, estes não
podem ser reduzidos a espectadores).

Uma vez tendo calibrado o proposto por Canevacci (1997), fica mais fácil
concordar com suas ideias: há inúmeras linguagens para decodificar a
comunicação da cidade, tais como a artística, a estética, a econômica, a histórica,
a geográfica, a arquitetônica etc. etc. Cada uma dessas linguagens não
corresponde ao ideal da comunicação emissor-meio-mensagem-receptor, pois
todos os elementos do tripartido lugar-cidade-sujeito são agentes
comunicacionais, portanto, o que é posto em comum entre eles emerge do
diálogo, não da transmissão. Daí, a cidade vai se comunicando de múltiplas
formas, em seus diversos lugares, com sua heterogênea população (habitantes,
visitantes, gerações passadas etc.).

Tudo isso, de alguma forma, ressoa com as palavras do antropólogo


italiano que se deixou perder na metrópole paulistana, com o objetivo de tentar
com essa cidade dialogar. Perder-se intencionalmente, talvez até mesmo
antecipando e/ou se preparando para um provável ocaso – pois, com esse sim,
vivenciaria uma conversa entre estranhos, em linguagens divergentes. Eis a sua
mais contundente missiva sobre a São Paulo que ele nomeou de cidade
polifônica:

Na decodificação da mensagem existe sempre um lado criativo,


um critério subjetivo. Ela é interpretada segundo a formação
particular do pesquisador, sua biografia intelectual e política, seus
gostos e emoções, ou segundo o acaso. A tradução da mensagem
urbana é sempre uma traição (Canevacci, 1997, p. 37).

De certa maneira, Canevacci (1997) descreve e qualifica a comunicação


entre o tripartido, deixando claro que, apesar da ontologia dos lugares da cidade
e das múltiplas linguagens, somente o “pesquisador” (a pessoa) decodifica e
interpreta as informações por meio de “filtros” como a razão, a emoção e os
gostos individuais, construídos e reelaborados ao longo de sua própria história
de vida. Daí parece decorrer o predicado “traição”, não como uma deslealdade a
qualquer vértice do tripartido comunicacional, mas como uma ação tendenciosa
que privilegia a si. Ainda sim, o advérbio “sempre” talvez seja uma traição em si,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 173


pois é possível serenar o olhar, e permitir que percepções distintas, diversas,
contrárias, incorporem a decodificação das mensagens, tornando-se uma
interpretação coletiva – este é, ao mesmo tempo, o grande desafio e a importante
contribuição do pesquisador para a ComunicaCidade.

Foi justamente essa potencialidade de decodificar significados coletivos na


comunicação com o Pateo do Collegio que foi possível reconhecê-lo como um
lugar na cidade de São Paulo, não apenas por ser um local histórico ou
representativo da fé religiosa. Em retrospecto, posso até considerar que o
princípio de nossa relação foi, precisamente, conforme descrita anteriormente
pelo antropólogo: uma traição ao lugar, em decorrência da minha particular
percepção e das emoções que foram desencadeadas. Neste mesmo ensaio, ao
tratar da evidência um, destaquei que o contato inicial com o Pateo do Collegio
foi um “súbito encanto”. Isso foi exclusivamente meu, que havia me perdido
intencionalmente pelo Centro Histórico, com o propósito de me encontrar com a
cidade. A imagem de nosso primeiro encontro, praticamente ocorrido há um
decênio, está registrado na memória. Essa imagem está reproduzida na
fotografia da figura 04, tirada quando já havia me tornado pesquisador do lugar.
O que a foto não consegue reproduzir é a emoção do “encanto”.

Figura 04: Fotografia que reproduz o “súbito encanto” ao ver, parcialmente, o


Pateo.

Créditos: Ivan Fortunato, abr./2013.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 174


Mas, por que tal imagem – seja observada como a cidade lá fora ou vivida
dentro da paisagem7 – seria uma “traição” à mensagem urbana? Isso se deve,
justamente, porque o encanto é algo pessoal, mesmo que outros também possam
manifestar emoção igual ou semelhante. Por isso, enquanto pesquisador, foi
necessário dar voz ao lugar, permitindo sua manifestação coletiva... daí a
necessidade de compreendê-lo sob múltiplas perspectivas: histórica, geográfica,
econômica, cultural, educacional, arquitetônica, polifônica, da ordem invisível etc.

Ainda assim, por mais perspectivas que se envolva, parece sensato afirmar
que um lugar jamais será compreendido de forma pronta e acabada. Isso decorre
da complexa relação tripartida lugar-cidade-sujeitos e da óbvia constatação que,
frequentemente, cada elo dessa relação se transforma e pelo outro é
transformado, impedindo que o que se comunica no entremeio seja cristalizado
de forma perene, mas somente transitória. Note que não se pode estabelecer em
quanto tempo tais mudanças ocorrem. Tomando o Pateo como exemplo,
verifica-se que tudo pode permanecer estacionário por séculos, ou pode
transmutar da noite para o dia...

Ao tomar as cidades como um complexo sistema comunicativo, Lucrécia


Ferrara (2008) apresentou ideias parecidas, mas capazes de ampliar o sentido
desta evidência três para ComunicaCidade, que se revela na interação
comunicacional entre lugar-cidade-sujeito. Nas palavras da autora:

[...] para apreender a cidade é necessário acompanhar sua


circularidade comunicativa que nos leva a saber distinguir entre
um sistema construído, o valor por ele emitido e a interação que
permite que a cidade seja diferente de ambos. Como não é fruto
de uma transformação que se processe de modo gradual ou
harmônico, a cidade é teatro de impactos que ocorrem em
velocidades distintas e de ambíguas dimensões, mas com
imediata consequência [...] a cidade é, ao mesmo tempo, objeto
comunicativo e sujeito da própria interação que nela se
desenvolve (Ferrara, 2008, p. 43).

As considerações sobre a comunicação na e da cidade registradas


cooperam com a seguinte síntese sobre a tríplice relação comunicativa aqui

7
Essa dupla possibilidade foi discutida na evidência um deste ensaio.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 175


delineada: (1.) há uma dimensão ontológica no lugar, o que implica reconhecer
seu envolvimento com a cultura, participando de suas modificações; (2.) a cidade
se comunica por meio de seu patrimônio, seja como sujeito, como objeto, como
ambos; (3.) o pesquisador se envolve com o lugar e com a cidade pela sua própria
percepção e suas emoções, o que pode facilitar certa “traição” à comunicação da
e com o lugar, pois sua interpretação pode ser estritamente particular.

Ao final...

O trecho da Rua Hudson onde moro é todo dia cenário de um


complexo balé de calçada. Eu mesma entro em cena pouco depois
das oito, quando coloco do lado de fora a lata de lixo, sem dúvida
uma tarefa prosaica, mas gosto do meu papel, do barulinho
metálico que produzo, na hora em que passam as levas de
colegiais pelo meio do palco, deixando cair papel de bala [...]
Enquanto varro os papéis de bala, observo os outros rituais
matinais... (Jacobs, 2003, p. 53).

Na última epígrafe deste ensaio, é possível localizar as três evidencias


elencadas para delinear a ComunicaCidade. Primeiro, as palavras “cenário” e
“barulhinho” representam, respectivamente, o ver e o ouvir a cidade. Segundo, a
Rua Hudson esconde uma ordem subjacente, tida como um “complexo balé”, que
começa quase sempre no mesmo horário e envolve várias tarefas prosaicas, as
quais a autora investe as quatro páginas seguintes descrevendo, em detalhes, o
que compõe o mencionado ritual. Os elos do tripartido que se comunica são:
Nova Iorque, a cidade; Rua Hudson, o lugar; a autora, o sujeito que, ciente da
possível traição, coloca-se como autora do balé que acontece na cidade lá fora.

Ao final, o que se espera de todo esforço ComunicaCitadino realizado


neste ensaio é que: (1.) os pressupostos esboçados não sejam compreendidos
como uma parcela de uma teoria da comunicação pronta e acabada e, (2.) que
mais pesquisadores se envolvam com a tríplice comunicativa cidade-lugar-
sujeito, permitindo que essa conjectura sobre uma possível ComunicaCidade não
ressoe no vazio das ciências, mas que reverbere aqui e ali, elevando o valor das
cidades.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 176


Referências bibliográficas

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 178


Relação cidade e natureza:
interface entre Saneamento Básico e Paisagem Urbana

Taís D´Aquino Benicio

Doutora em Urbanismo pela FAU/USP; Mestre em Geografia Humana pela FFLCH/USP; Serviço
Social pela PUC/SP; Especialista em Educação Ambiental pela Faculdade de Saúde Pública/USP.

Resumo
O artigo aborda a capacidade de transformação encontrada nas obras de
saneamento, capazes de recuperar um meio ambiente urbano degradado, em
especial em bairros de moradia de baixa renda, proporcionando uma excepcional
e oportuna prática de mudança de entendimento e de reflexão subjetiva, na busca
de uma nova relação - homem – cidade - natureza. Partindo de uma interface
conceitual entre Paisagem, Espaço Livre Público e Saneamento Básico,
apresentamos uma pesquisa de base qualitativa, na qual se evidenciou resultados
de um potencial urbano socioeducativo, baseado na percepção e conexão
subjetiva, um novo agir humano, diante da possível recuperação ambiental de um
bairro da periferia da Região Metropolitana de São Paulo.

Palavras-chave: Paisagem urbana; Saneamento; Espaço público.

Introdução

Caracterizando o saneamento urbano como uma infraestrutura


diretamente relacionada à qualidade de vida nas cidades, este estudo visa uma
interface entre os projetos de saneamento básico que implementam obras de
abastecimento de água, esgoto e drenagem de águas urbanas em bairros da
periferia de São Paulo, com o campo conceitual e propositivo do estudo da
Paisagem urbana, considerando seus aspectos - objetivos, externos, como a
qualidade físico ambiental relacionada ao bairro de moradia e a cidade e, -
subjetivos, internos, referentes a percepção dos moradores, analisando não só as
configurações espaciais, como também, os sentimentos manifestos pelos sujeitos
moradores, através da memória, da afetividade e do pertencimento ao seu bairro
de moradia.

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Partimos da capacidade intrínseca dos projetos de saneamento de
qualificarem ambientalmente áreas degradadas, executando obras e
implementando soluções técnicas, capazes de recuperarem corpos d’água,
malhas hídricas e, consequente, qualificação do solo e da vegetação, que
sustentam a base biofísica de um determinado local. Assim, ampliando o seu
papel funcional de prover infraestrutura urbana, queremos ressaltar a
capacidade transformadora dos projetos de saneamento, capaz de chegar nos
bairros mais longínquos das periferias das grandes cidades, na forma de uma
demanda de serviço público básico, na maior parte reivindicada pelos próprios
moradores.

As experiências na implementação de projetos de saneamento em bairros


de moradia popular trazem, na sua maioria, a necessidade de um reordenamento
espacial e territorial, podendo originar uma nova configuração do Sistema de
Espaços Livres (SEL) nestas áreas. Assim, evidencia-se a oportunidade de
ampliação das ações dos projetos de saneamento, que criam novos Espaços
Livres (EL), exatamente em áreas urbanas densas, problemáticas,
espontaneamente criadas pela necessidade de moradia para famílias de
trabalhadores de baixa renda, áreas que hoje se configuram como
desestruturadas do conjunto da cidade, formando o usual padrão periférico de
urbanização.

As propriedades dos Espaços Livres são urbanisticamente conhecidas para


a qualidade de vida comum nas cidades. Elas têm por essência um valor simbólico
que configura sua especificidade e que, em projetos de saneamento, podem
assumir novos papéis de religação entre a cidade e seu suporte biofísico natural.
Se ambientalmente recuperadas, colaboram para a compreensão da Paisagem
como elemento ativo, capaz de ampliar a percepção e o sentimento de conexão
dos moradores com o ambiente em que vivem.

Analisando a evolução histórica do saneamento no Brasil que inicia com


uma visão puramente higienista adotada no início do século XIX, entramos no
século XX com um foco enfático na saúde pública da cidade, que sustentou a
implantação do urbanismo sanitarista, cujo objetivo inicial era o de atender a
expansão urbana industrial. Chegando nos anos 70 se desenvolve a concepção
de “saneamento básico”, norteadora da estruturação das atuais companhias
estaduais de saneamento. Hoje o Saneamento se pauta, na ampliação e
integração de um conjunto de serviços de infraestrutura, que abarca o

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 180


abastecimento de água, esgotamento, manejo de resíduos sólidos e drenagem
urbana, incorporando novas preocupações de conservação ambiental e melhora
da qualidade de vida1.

Sobrepondo algumas referências teóricas do estudo da Paisagem,


relacionando-as a atual concepção do saneamento básico ambiental, temos uma
oportunidade de aprofundamento dos estudos, buscando evidências das
relações dos sujeitos moradores, com os processos de transformação do seu local
de vida, analisando interferências e a sua capacidade de influir em aspectos
exteriores, como a – manutenção do bairro, assim como aspectos interiores – de
quem observa a Paisagem, considerando sentimentos e percepções espaciais dos
sujeitos moradores, não apenas no sentido visual e estético, mas também a partir
de um mundo real, de vivência e de relacionamento com a sua cidade.

Objetivo

A hipótese central deste estudo parte da ideia da aplicabilidade do campo


conceitual da Paisagem colaborando na ampliação, abrangência e capacidade
dos Projetos de Saneamento Básico, de modo a potencializar seu papel de suporte
acumulativo e ordenamento territorial, atribuindo a estas intervenções a
importância de colaborador da gestão socioespacial, capaz de orientar um
planejamento voltado para a melhor inserção dos bairros periféricos no conjunto
sistêmico e funcional das cidades.

A revalorização atual do conceito de Paisagem não é um retorno simples


ao passado naturalista, mas uma busca para o restabelecimento de possíveis
ligações da cidade com os elementos da natureza ainda presentes ou
requalificados. A Paisagem enquanto campo conceitual pode resguardar valores
da sensibilidade, do acolhimento e da não violência, sintetizando elementos
objetivos e subjetivos de tais relações.

Neste contexto, esta pesquisa trabalha com uma reflexão teórica e prática,
partindo dos conceitos de Paisagem e Sistema de Espaço Livre Público,
apresentando uma aplicabilidade e algumas evidências de um projeto de
saneamento e qualificação urbana desenvolvido em um bairro de moradia,
analisado e interpretado sob o crivo dos moradores, que respondem questões

1
TUCCI Carlos E. M. “Águas urbanas”. In: Estudos Avançados, 22 (63), São Paulo, USP, 2008.

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como: quais as dificuldades de entendimento e inserção destes novos Espaços
Livres no cotidiano? Como os moradores veem estas transformações? Qual a
percepção dos moradores quanto à presença e à importância de elementos da
natureza para a qualidade de vida do bairro?

Referenciais

Baseado em experimentos práticos de estudo da interface entre Paisagem


e Saneamento, aprofundamos as análises a partir de um projeto de intervenção
pública implementado através de um convênio de repasse de recursos e
tecnologia entre governo municipal e federal, denominado PATPROSANEAR.
Este projeto sintetiza propostas de engenharia e levantamentos socioambientais
sistematizados em um plano de intervenção e de obras para um determinado
bairro de moradia denominado - Jardim Margarida, localizado no município de
Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo.

Não são incomuns a informalidade e o improviso na construção destes


bairros, que hoje convivem com graves problemas de degradação ambiental,
afastando seus moradores, em especial as crianças nascidas e criadas nestes
ambientes, do convívio e da capacidade de identificação de elementos da
natureza presentes na cidade, retratada pela água de uma nascente que forma
um córrego, ou o nascimento de uma flor que atrai borboletas e pássaros.

Partindo de conceitos trabalhados no urbanismo, um leque de referências


conceituais se abre: passando pela geografia, antropologia, chegando na
filosofia, que nos traz novas reflexões das relações entre homem, cidade e
natureza. Estas relações sugerem a busca de uma nova ética, em que o homem
refaça os princípios formados pelo antropocentrismo, praticando uma nova
relação de uso e exploração dos recursos naturais presentes nas cidades. A
reaproximação da cidade com a sua Paisagem é um possível caminho de
reaproximação do homem com a natureza, representando uma possível e
eficiente forma pedagógica de orientação e ensino, uma objetiva indicação do
limite ligado ao agir humano na cidade.

Com um aprimoramento teórico metodológico a partir do campo


conceitual e propositivo do estudo da Paisagem urbana, podemos abranger a
importância das configurações espaciais, incluindo igual percepção dos
sentimentos manifestos pelos sujeitos – moradores –, ampliando o quadro de

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referência, a partir da relação entre cidade e natureza. A Paisagem enquanto
campo conceitual e propositivo ocupa o lugar de mediador de uma totalidade
concreta que contém em si tanto a dimensão natural, enquanto base física, como
a marca humana, deixada nas cidades através dos valores e dos costumes.2

A Paisagem enquanto categoria interna ao espaço3 inclui e transcende a


fisionomia do sistema de objetos, pois envolve o sistema de ações que anima sua
materialidade, que compõe o espaço total. A Paisagem, para além de sua
aparência, é existência que se transforma a cada movimento da sociedade e dos
fenômenos biofísicos.

O intercâmbio dos processos educativos com uma interação participativa


dos sujeitos (moradores) em relação ao objeto (bairro de moradia sob a
intervenção de projetos de saneamento) se constitui em um dos nossos principais
propósitos em se tratando de práticas de intervenção fundamentada em uma
possível pedagogia da Paisagem.

Para a filósofa Adriana Serrão4,– “não se trata de substituir o paradigma


natural pela ordem da cultura, mas tomar a mediação estética enquanto visão
exemplar, um meio de ensinar a ver, uma via mediadora de nos aproximar a um
natural que existe, mas não é imediatamente nem espontaneamente apreensível
na sua profundidade e idealidade”. (SERRÃO, 2012, p. 64).

A partir dos fatos relacionados às transformações da Paisagem


viabilizadas pelas obras de saneamento, chegamos a uma verificação prática
através de observações diretas no campo e na estruturação de estudos
investigativos para uma melhor compreensão dos sentimentos e das percepções
dos sujeitos – moradores

Metodologicamente, as questões da subjetividade e sensibilidade foram


trabalhadas e analisadas seguindo as orientações de uma pesquisa com base
qualitativa, planejada com o objetivo de um aprofundamento e de uma
descoberta das percepções dos moradores do Jardim Margarida, focando nas

2
QUEIROGA, Eugênio Fernandes. Razão Pública e Paisagem. Palestra no 11º Encontro Nacional de
Ensino de Paisagismo em Escolas de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. ENEPEA. Campo Grande: 2002
3
SANTOS, Milton. "O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não consideradas isoladamente, mas como o
quadro único no qual a história se dá". In: A Natureza do Espaço: Técnica, Razão e Emoção. p. 63. São
Paulo: EDUSP, 2004. 4ª ed.
4
SERRÃO, Adriana. "Pensar a natureza e trazer a paisagem à cidade" - capítulo do livro Psicologia social
e imaginário: leituras introdutórias, organizado por Sandra Patrício Vichietti. São Paulo, 2012.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 183


relações dos moradores com a Paisagem de seu bairro, atualmente degradado e
possivelmente recuperado pelas intervenções técnicas dos projetos de
saneamento. De outro lado, a objetividade das informações técnicas e os limites
das intervenções físicas para uma requalificação ambiental do bairro, serão
norteados pelos projetos de intervenção e obras propostos pela equipe técnica
de Saneamento Básico.

Não há uma ambição de se buscar o retorno puro e simples ao passado


natural do meio ambiente do bairro, mas restabelecer as ainda possíveis ligações
entre cidade e natureza, a serem evidenciadas pela possível recuperação
ambiental do Córrego local, a ser obtido através das obras de saneamento básico
no bairro Jardim Margarida. Do ponto de vista subjetivo, dos moradores, há uma
expectativa de observação ética e de sentimento a serem desenvolvidas por meios
pedagógicos complementares, se indagando: que natureza percebem ou
desejam? Como a Paisagem enquanto campo conceitual ou o paisagismo
enquanto prática profissional podem agir sobre o sentido, a possibilidade e os
limites do agir humano.

Processo de pesquisa

No momento de decisão metodológica, já havia uma expectativa de


estreitar relações com dois grupos de moradores que constituíam um importante
conjunto de representações da dinâmica social e da experiência de vida no bairro.
Seriam eles: i) o grupo das crianças moradoras que acompanhavam, com
curiosidade e interesse, seus pais em reuniões e entrevistas promovidas pela
equipe socioeducativa da Prefeitura; ii) o grupo dos chefes de famílias, adultos
responsáveis por domicílios, envolvidos diretamente ou situados no entorno das
áreas de intervenção do Córrego Palmital.

Como primeira abordagem em relação às crianças moradoras,


estabelecemos uma parceira com uma pesquisadora de arte e educação, criando
uma metodologia de trabalho onde através da observação direta, do diálogo e
das análises instrumentalizadas por desenhos. Assim, foi possível a percepção de
diferentes processos que evidenciaram a relação das crianças com os espaços do
bairro, considerando a sensibilidade deste sujeito – crianças moradoras, assim
como as suas propostas de uso dos espaços livres públicos de seu bairro de
moradia. Dessa forma, oferecendo atividades lúdicas e criativas, que

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implementavam uma abertura de diálogo constante, conseguiu-se formar um
grupo representativo das crianças moradoras, com a qual se trabalhou a
percepção espacial do bairro, introduzindo, paulatinamente, novos temas
reflexivos relacionados diretamente aos resultados das obras de saneamento e a
sua capacidade de requalificação urbana da cidade.

Para o estudo do grupo de moradores adultos, optou-se pela modalidade


das entrevistas com profundidade qualitativa, seguindo as orientações
metodológicas referenciadas pela linha dos professores Joel Martins e Maria
Aparecida Bicudo5.Tal pesquisa procura introduzir um rigor – que não o da
precisão numérica – aos fenômenos que não são passíveis de serem estudados
quantitativamente, tais como: percepção, aprendizagem, desejo, memória,
experiência. Esses fenômenos apresentam dimensões pessoais e podem ser
melhor apropriados na abordagem qualitativa.

As duas abordagens de sujeitos – crianças e adultos, partiram das mesmas


questões e indagações investigativas, tendo um tratamento e operacionalização
de trabalhos distintos, conforme as características de cada grupo. Assim,
obtivemos resultados e análises iniciais de cada grupo de pesquisa de maneira
independente, buscando uma conclusão conjunta revelando um resultado obtido
nas duas situações – com os adultos e as crianças moradoras.

Moradores adultos

Partindo das perguntas – como os moradores veem estas


transformações? Quais as dificuldades de entendimento e inserção destes novos
espaços no seu cotidiano? Qual a percepção dos moradores quanto à presença e
importância de elementos da natureza para a qualidade de vida do bairro? –,
estruturamos a pesquisa no sentido de melhor entender os processos de
aceitação ou rejeição e as possíveis interferências dos projetos de saneamento na
vida individual dos moradores.

Utilizando a categoria Paisagem como base de raciocínio teórico,


chegamos ao pressuposto de que a percepção da Paisagem tem a ver com o
sujeito - morador e o seu modo de estar no mundo - bairro de moradia;

5
MARTINS, Joel, e BICUDO, Maria Aparecida. “A pesquisa qualitativa em psicologia. Fundamentos e
recursos básicos”. Sociedade de estudos e pesquisa qualitativas. São Paulo: Editora EDUC – PUC-SP,
1989.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 185


ponderando o sentido e a vivência do sujeito no bairro e na cidade. Partimos da
conjetura de que não se pode produzir uma Paisagem do bairro em que o
morador não esteja inserido: se não há esta relação, não há o sentido da
Paisagem.

Moradores crianças

Incorporando alguns processos de percepção e sensibilidade do mundo


infantil, foram introduzidos novos temas reflexivos relacionados aos resultados
das obras de saneamento, com o intuito de evidenciar aspectos urbanísticos
relacionados à criação de novos Espaços Livres Públicos. O tratamento do
córrego e a incorporação das águas urbanas foram os principais focos,
considerando a qualificação urbana do bairro e o cotidiano de vida das famílias
moradoras.

A pesquisa buscou uma forma de investigar: ouvindo, explorando e


compreendendo as crianças moradoras, inteirando-se de suas vivências no
bairro e de como sentiam os resultados das transformações e qualificações
ambientais e urbanas, trabalhadas no projeto de saneamento. As questões
norteadoras indagavam: existe, por parte das crianças, uma percepção crítica do
seu local de moradia? São capazes de evidenciar elementos da natureza
presentes no bairro?

Síntese e desafios

A participação e o envolvimento dos moradores (crianças e adultos) como


sujeitos desta pesquisa tornaram-se essenciais para o exercício da percepção e
alcance do entendimento dos conceitos de bairro, cidade, Espaço Livre Público,
Paisagem e Natureza, contribuindo como base de análise e validação da hipótese
estabelecida, pela aproximação dos Projetos de Saneamento Básico com o
campo conceitual e propositivo da Paisagem urbana, oferecendo sustentação
para uma nova relação - cidade e natureza.

A busca pela formação de uma ética, menos antropocêntrica, tem relação


direta com os processos de informação e a oportunidade de aprendizado dos
sujeitos, como foi demonstrado pelas atividades de arte-educação junto às
crianças moradoras. Evitando o excesso de informações de conteúdo

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enciclopédico, propôs-se às crianças uma conveniente experimentação, diante
das nascentes de água e da formação da calha do Córrego Palmital vivenciando
e acompanhando o seu percurso. As crianças, com os seus próprios referenciais,
chegaram a um aprofundamento do conceito de Córrego, relacionando o atual
estado de degradação apresentado por este ao inadequado uso do solo
caracterizado pelos descartes de lixo e esgotos domésticos dos próprios
moradores do bairro: "então, nós que é sujamos a água do córrego? ".

Figura 1,2, e 3: Atividades de campo com as crianças e apresentação de desenhos


representativos resultantes de suas observações. Painel representativo da proposta de
uso dos Espaços Livres Públicos.

Nas análises de conjunto dos resultados dos estudos orientados pelos


referenciais teóricos e dados da pesquisa qualitativa com os adultos, destacamos
a importância e valorização dos potenciais apresentados pelos sujeitos, a partir
de suas percepções, sentimentos e formas de definirem o seu cotidiano de vida
no bairro. Esse reconhecimento pode ser estratégico e fundamental na busca de

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 187


novos caminhos e soluções de qualificação e recuperação ambiental de áreas
degradadas e ocupadas por moradias. Constatamos que as pessoas não estão
reféns de uma situação de precariedade. Mesmo diante dos esforços de
subsistência e das carências de vida, evidenciam as paisagens e querem mais
qualidade ambiental em suas moradias, apresentando uma forte identidade e
aproximação afetiva com os elementos da natureza ainda presentes na cidade,
quer seja na mina d'água do terreno baldio ou na presença de pássaros e
formação de áreas verdes nos espaços livres públicos.

Figura 4 e 5: Contraste entre o sonho de recuperação do Córrego Palmital,


materializado na pintura a óleo de um quadro e, a realidade do estado de degradação
que justifica a observação formulada pela moradora e pintora: [...se o córrego fosse
limpo seria natureza: como está, é sujeira...]

A capacidade de transformação e recuperação de um meio ambiente


urbano degradado, obtido pelas obras de saneamento, em especial, em bairros
de moradia, proporciona uma excepcional e oportuna prática de mudança de
entendimento e de reflexão prática na busca de uma nova relação - homem –
cidade - natureza.

Trabalhando os projetos de saneamento básico, sob a referência


conceitual da Paisagem, podemos evidenciar uma nova oportunidade de
experiência e de sensibilização de vida nas cidades. Partindo da convivência da
família com o seu próprio local de moradia, podemos ativar uma valorização
cidadã com o seu bairro e cidade, chegando a uma nova percepção e integração

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 188


com os elementos da natureza, presentes e ou recuperados, na forma de: solo,
ar, córregos, nascentes; formação de áreas verdes, espaços de parques e jardins.

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transformação nas periferias. Tese de Doutorado FAUUSP. São Paulo, 2015.

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TUCCI, Carlos E. M. Águas urbanas. In: Estudos Avançados, 22 (63), São Paulo,
USP, 2008.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 189


Lembrar

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 190


A restauração da alma das cidades em tempos líquidos globais

Edgard de Assis Carvalho

Titular de antropologia, coordenador do COMPLEXUS, núcleo de estudos da complexidade,


PUCSP, assessor permanente do GRECOM, grupo de estudos da complexidade, UFRN, vice-
presidente do IEC, Instituto de estudos da complexidade, Rio de Janeiro.
[email protected]

A forma de uma cidade muda mais depressa,

lamentavalmente, que o coração de um mortal.

Charles Baudelaire.

A cidade natal – bem diferente do mito de origem – é quase sempre uma terra
estrangeira. As fábulas das crianças sobre o nascimento dizem a coisa certa:
fantasiam que nasceram em outro lugar e não estão erradas.

Sigmund Freud

São Paulo tem para mim um sentido altamente dramático. Foi em São Paulo que
a vida torceu violentamente o meu destino.

Manuel Bandeira.

Em Combray, como todos nos conheciam, não me preocupava com ninguém.

Marcel Proust.

Só perduram no tempo, as coisas que não existem no tempo.

Jorge Luis Borges.

1. Desvanecimento

Empenhada na uniformização das culturas, a modernidade liquida desses


tempos globalizados não consegue vislumbrar, e nem projetar, uma via em
comum para o futuro da humanidade. Conectados 24 horas por sete dias da
semana, perderam-se os sentidos da afetividade, da empatia, do altruísmo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 191


Exemplo disso são as cidades contemporâneas cada vez mais violentas e
anônimas. Nelas, a intolerância se propaga com uma velocidade sem precedentes
e o sentido democrático do comum não consegue se afirmar, dada a ampliação
das corrupções, exclusões, perversidades.

Essa tendência poderia ser revertida se a reforma do pensamento se


efetivasse para valer. Antigas sedes do cosmopolitismo e da criatividade, as
cidades têm uma longa história no transcorrer dos séculos. Nessas décadas
iniciais do século 21, porém, ilustram o descalabro do planejamento urbano, da
ausência da preservação cultural, do narcisismo desenfreado, da indiferença
explícita. A alma das cidades requer uma mudança no paradigma do olhar e da
escuta. É preciso decifrar as invisibilidades que se espalham por toda parte. Basta
ser um flâneur pós-moderno, sempre às voltas com o dilema da solitude e do
estar-junto, para perceber isso nas ruas, parques, instituições.

Em Cidades & Alma1 - conjunto de treze palestras – James Hillman reitera


que a cidade requer lugares de encontro e lugares para o corpo, nos quais a vida
psicológica se exerce e, na medida do possível, se afasta das constrições de um
cotidiano desprovido de afetividades. As posturas básicas, ele reitera,
permaneceram as mesmas, só o caminhar mudou de modo radical.

Nessa era prosaica hipermoderna, o andar tornou-se coisa do passado.


As ruas deixaram de ser passagens nas quais os sentidos são postos à prova e
novas paisagens e cenários são descobertos. Andar acalma, ele reitera. Pelo
menos, essa é a recomendação da filosofia de Aristóteles, Rousseau, Heidegger,
Benjamin, Morin.

Paisagens construídas sem alma, guiadas pelos furores do planejamento


técnico, shoppings, avenidas, condomínios são espaços construídos apenas para
o olhar, e isso é igualmente válido para Dallas, São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos
Aires. “O pé é escravo do olho, o que faz com que o caminhar torne-se chato,
uma mera questão de cobrir distâncias”.2 É preciso, porém, salvar a cidade, pois
a húbris, esse erro humano de esquecer os deuses, se espalha por toda parte.
Decretada por René Descartes a morte da alma do mundo cindiu o sujeito da

1
James Hillman. Cidades & Alma; tradução Gustavo Barcellos e Lúcia Rosemberg. São Paulo: Estudio
Nobel, 1991.
2
James Hillman, op. cit., p. 55.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 192


cogitação e a coisa extensa. A secularização da cultura e a mundialização da Terra
se incumbiram do resto.

Ao retornar a Aristóteles, Hillman desdobra o sentido etimológico da


célebre frase “O homem é por natureza um animal político ” em quatro palavras
dialógica, recursiva, como se estivéssemos diante de um holograma que funde
parte e todo: anthropos, o homem em sua diversidade e unidade; phasei, a
matéria, a realidade política da espécie humana, politikon , o cidadão comum da
pólis, zoon, a força animal da vida. O homem, portanto, é ao mesmo tempo,
indivíduo, sociedade, espécie, uma modalidade tríadica muito característica das
ideias complexas de Edgar Morin. Trata-se de uma compreensão
simultaneamente ética e estética.

Afinal, “queremos o mundo porque ele é bonito, seus sons, suas texturas,
sua presença sensorial”.3 Envergonhar-se desse estado de coisas como a canção
do povo Navajo citada por Hillman4 pode ser um bom caminho para recuperar o
tempo perdido antes que seja tarde demais. Vergonha da terra, do crepúsculo, do
amanhecer, assim como das desigualdades, exclusões, populismos, narcisismos.
As saudades, identificações e restaurações que se seguem são expressão dessa
vergonha arquetípica que rege o mal-estar na cultura atual diagnosticado por
Freud em 1930.

2. Saudades

Claude Lévi-Strauss (1908-2009) fotografou São Paulo entre 1935


e19375. Experiência com o tempo e a memória, o reencontro com a cidade
provocou-lhe um sentimento de nostalgia, um aperto no coração que todos
experimentamos ao nos defrontarmos com os imaginários do tempo.
Morfologias urbanas sempre interessararam o então aprendiz de antropólogo,
mesmo que a modernidade líquida produzida no século XX nunca o tenha
agradado. Por isso, sua preferência pelo século XIX, tempo que guardava uma
autenticidade das relações humanas, um tempo perdido que, talvez, nunca venha
a ser recuperado.

3
James Hillman, op. cit., p 131.
4
James Hillman, op. cit., p 150.
5
Claude Lévi-Strauss. Saudades de São Paulo; tradução Paulo Neves. São Paulo:Companhia das Letras,
1996.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 193


Experiência de estrangeiro, era natural que Lévi-Strauss se deleitasse com
viagens a Santos, por meio de uma estrada tortuosa entre os flancos da serra do
Mar. Porta de entrada para novos tempos, era lá que a missão francesa
costumava observar chegadas e partidas, esses idas e vindas de pessoas comuns
que, nutridas pela pulsão da viagem, cercam-se de ilusões e encantamentos nem
sempre realizados, exteriorizam perdas e sofrimentos, fabricam utopias.

A preocupação com identidades e diferenças é algo universal. Independe


dos formatos dos tempos e dos espaços. As saudades lévistraussianas de São
Paulo começam com o edificio Martinelli e seus anúncios de manteiga Aviação,
sabonete e pasta de dentes Gessy. No cine Metro, o filme Banana da Terra
deleitava senhores engravatados e senhoras enchapeladas com o exotismo da
artista de exportação com seus abacaxis e turbantes. Tristes trópicos esses que
exportam carnavais, malandros, sambas, jeitinhos, tão a gosto de uma certa
antropologia relativista em voga ainda hoje. É de atiçar a curiosidade, imaginar
Lévi-Strauss no carnaval paulista de 1935, em jantares formais da burguesia
paulistana que o aborreciam demasiado.

Morava na rua Cincinato Braga, paralela à Avenida Paulista inaugurada


em 1891. O panorama era de grandes contrastes: urbano e suburbano, ordem e
desordem, modernidade e rusticidade. Flâneur assumido, caminhava pelas
passagens da Brigadeiro Luís Antonio e Asdrúbal do Nascimento, descia até ao
Vale, transitava pelo centro velho e novo.

Com sua câmera fotográfica registrava a sede dos Correios, o edifício


Alexander Mackenzie, hoje um horrendo shopping-center, teatros e hoteis que
desapareceram como num passe de mágica, cinemas transformados em igrejas
do reino de Deus ou em lupanares nos quais o filme é o que menos interessa. O
retorno de Lévi-Strauss ao Brasil, em 1985, foi alvo de decepções e desalentos.
Procurou sua casa na Cincinato Braga. A cidade que ele conhecera nos anos
1930 tinha praticamente desaparecido.

Desse patrimônio histórico-cultural resta pouca coisa que, a duras penas,


é mantida pelos ditos órgãos de preservação que tentam aqui e ali não cederem
à pulsão da destruição e da especulação imobiliárias. Entre 1920 e 1930, a
Companhia City promovera o loteamento dos Jardins e do Pacaembu, hoje
tombados pelo CONDEPHAAT, órgão estadual criado em 1969, do qual fui
presidente. O pouco que resta dessa área, malgrado a ação exterminatória de

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 194


supermercados, lojas e corredores de tráfego deve ser creditado à ação
preservacionista.

Diversidade era a palavra-chave que, em 1935, identificava a cidade, um


palimpsesto composto por estratos e camadas de tempos, espaços, memórias,
que contava com um pouco mais de um milhão de pessoas. Fluxos migratórios
posteriores iriam alterar drasticamente a composição da urbe, hoje com mais de
doze milhões de habitantes.

3. Identificações

São Paulo comporta imensas diferenças sociais, culturais, econômicas,


repete em sua configuração o padrão de muitas cidades mundiais, convive com
uma superpopulação de baixíssima renda, que tem acesso precário a
equipamentos culturais e serviços de saúde, exibe a arrogância de uma classe
dominante que luta com unhas e dentes para manter um padrão do dito primeiro
mundo, identificada com paisagens novaiorquinas ou parisienses, trancafiada
em fortalezas urbanas – as gate comunities - escondida em carros com películas
invisíveis, a cidade exibe uma arquitetura do medo e da intimidação que se
espalha por toda parte.

São Paulo é um caso local isolado das dissonâncias urbanas e das


desordens crônicas que a mundialização impôs ao planeta. Cidades atuais
assemelham-se a cenários inacabados, palcos de operações imediatistas e
oportunistas que ampliam as formas de controle da cidadania, reprimem
espaços, endeusam a segurança privada, ignoram a preservação do patrimônio.
Por isso, conforme afirmou Zygmunt Bauman, as “cidades contemporâneas são
os campos de batalha nos quais os poderes globais e o sentidos e identidades
tenazmente locais de encontram, se confrontam e lutam”.6

A cidade se assemelha a um teatro com cenário inacabado, palco de


operações imediatistas, oportunistas, repressoras. Não consegue converter-se
em cidade planetária, complexa, pôr em diálogo o mito – sempre cósmico – que
amplia o tempo e o espaço ordinário, o rito – sempre conjuntivo - das sinergias,
responsável por religações, conjunções, coparticipações e copresencas, que

6
Zygmunt Bauman. Confiança e medo na cidade; tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2009

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 195


aproxima o mítico do mundo profano da vida e da ação, e o jogo – sempre
disjuntivo - das identidades, que produzem diferenças de diferenças.

Desde sua fundação, São Paulo vivencia dois ciclos: um curto, imediato,
transitivo, que aposta na coisificação do mundo e das subjetividades, na
privatização dos corpos e das coisas, na exclusão cultural, na educação
fragmentada e elitista; outro mais longo, intransitivo, transhistórico, que investe
nos arcanos, nos mitos, no imaginário, na autoética, que retroalimenta reservas
de memória coletiva a serem disponibilizadas para tempos futuros. Ambos
traduzem os paradoxos e tensões entre o mesmo e o outro, o antigo e o novo, a
ordem e a desordem, a organização e a reorganização que a modernidade trouxe
consigo.

Por isso mesmo, a cidade acabou sendo alcunhada como fechada,


emparedada, triste, solitária, desenraízada, egoísta, violenta, excludente,
incivilizada, intolerante, insolente, atrevida, perversa, intransparente. Esse
excesso de adjetivações reforça a tendência atual do conhecimento de enxergar
a parte, o fragmento, em detrimento de uma visão auto-organizada de totalidade,
na qual o todo nunca coincide com a soma das partes. Pensar nessa direção
cognitiva supõe agregar-lhe outros qualificativos necessariamente articulados
aos primeiros. Ela é, ou pode vir-a-ser, aberta, livre, alegre, planetária, enraízada,
altruísta, plácida, includente, civilizatória, tolerante, transparente.

Esta dialogia tem como pressuposto que o mundo da vida, ou seja, a


totalidade realmente existente, é saturado de complexidade, retroalimentado pela
pulsão da religação. Se não o enxergamos, ouvimos e sentimos assim é porque
nos deixamos atrair pelos arautos do paradigma da simplificação e, com isso,
como reitera Hillman tornamo-nos “antiestéticos, anestesiados, entorpecidos”.7
Esses “terríveis simplicadores” se incumbem de fragmentar o todo, incensar os
avatares da razão instrumental, elitizar o poder e a política, neutralizar os
revoltados, desprezar os fluxos autênticos e solidários, ignorar as experiências da
criatividade próprias ao espírito do tempo. Acreditam certamente em sua força
hegemônica.

Contrafacções e contrapoderes podem, porém, ser encontrados por toda


parte, basta olhar para o entorno de cada um de nós. Acêntricos, instituintes,
utópicos, disseminam-se no tempo e no espaço de uma historialidade cada vez

7
James Hillman, op. cit., p 151..

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 196


mais volátil e desregulada. A história é assim mesmo, feita de pedaços
descontínuos de história, de nichos de autenticidade, como bem admitiu Lévi-
Strauss.

Como linhas de fuga, participam de um amplo espectro de instituições


que tentam viabilizar uma São Paulo pluralista, não linear, autônoma mas não
autossuficiente, policompetente e poliárquica, sintonizada com a sociedade-
mundo da qual é, simultaneamente, parte e todo.

4. Restaurações

O policentrismo acima referido pode ser explicitado na controvertida


questão da preservação do patrimônio histórico-cultural. Patrimônio,
preservação, tombamento são palavras-esfinge, restauradoras, que provocam
ódios e ressentimentos em todos aqueles que pensam o progresso como algo
necessariamente unilinear, quantitativo, acelerado, cumulativo. Já se tornou
lugar comum afirmar que somos um país sem memória. Foi a memorabilidade
que conduziu as primeiras políticas preservacionistas: a primeira, heroica, com
Rodrigo Mello de Andrade Franco e Mário de Andrade a partir de 1936, a
segunda, moderna, com Aloísio Magalhães em meados dos anos 1960,
encerrada com sua morte em 1982. A partir daí - e até os dias correntes - pouco
se avançou conceitualmente no campo cultural da preservação. O paradigma
disjuntivo - preservação cultural X preservação natural - permanece intocado,
expressão da visão cartesiana reiterada anteriormente.

Em São Paulo, a criação do órgão estadual, o CONDEPHAAT, ocorreu


apenas em 1969, em plena ditadura militar. Desde então, vê-se às voltas com
escassas verbas para pesquisa e fiscalização, baixos salários, pouco incentivo,
muita garra, desconhecimento oceânico por parte ampla da população, que
ainda costuma confundir tombamento com demolição pura e simples.8

Parques públicos, jardins e matas remanescentes, sede de sítios e


chácaras, casas emblemáticas como as de Mário de Andrade, dona Yayá, Lina
Bardi, Elias Pacheco Chaves e Vila Penteado, os teatros Municipal, TBC, São
Pedro e Oficina, escolas públicas, palácios, Museus como o Masp, a Pinacoteca,

8
Ilustrativos dessa desinformação são os dois programas da série Oficinas Culturais na TV, parceria TV
Cultura e Companhia Brasileira de Notícias, realizadas em 1998. [Disponiveis em video –
www.cultura.com.br.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 197


edifícios como o Esther e o Louveira, igrejas e monastérios, faculdades como a
São Francisco, a PUC, escolas de ensino médio, além de mercado municipal,
matadouro, terreiro de camdomblé.

Respiramos e sentimos a alma da cidade por todos esses logradouros.


Nesse conjunto heteróclito encontram-se grafadas as marcas voluntárias e
involuntárias da memória. É neles, e por meio deles que, no futuro, saberemos
de onde viemos e, talvez, para onde estamos indo. Hillman faz uma observação
que considero de extrema importância para a reflexão aqui esboçada. “O
caminho para esses salões da memória é pessoal. Cada um tem suas próprias
portas de entrada, o que nos faz acreditar que a própria memória seja pessoal,
propriedade nossa. O divã psicanalítico é tal porta, o caderno da poeta, a mesa
do escritor são outras”.9 Estas reflexões podem ser uma outra porta.

A preservação é apenas um dos aspectos ilustrativos de que São Paulo


não precisa assemelhar-se a uma cidade-big brother, uma cidade-dos-sonhos,
uma cidade-cenário ou, até mesmo, pretender ser uma cidade inteligente10,
conectada 24h por sete dias da semana. Preservar é reencantar, resistir à
barbárie circundante. É, igualmente, uma reserva de memória para gerações
futuras.

No plano cognitivo, prega a regeneração do humanismo e dos direitos


bioculturais, volta-se para uma crítica contundente do antropocêntrico
paradigma do progresso, herdado do século XVII, fundado nos valores da
expansão, competição, quantidade, dominação e sua substituição pelos valores
universais da conservação, cooperação, qualidade e parceria.11

As cidades do futuro já foram idealizadas como ecumenópolis constituídas


por células integradas de assentamento de 50.000 habitantes que, articuladas,
poderiam chegar a suportar populações de até 25 bilhões de habitantes. Foram
igualmente repensadas pela arcologia, fusão de arquitetura com ecologia, que
prevê uma adequação simultaneamene difusa e equilibrada entre as

9
James Hillman. Ficçoes que curam. Psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler: tradução
Gustavo Barcellos, Leticia Capriotti, Amdrea de Alvarenga Lima, Elizabeth de Miranda Sandoval. São
Paulo: Verus, 2010, p.68.
10
As tres expressões referem-se, respectivamente, ao romance de George Orwell publicado em 1949 e
aos filmes Mullohand Drive dirigido por David Lynch (2002) e Dogville de Lars von Trier (2003).
11
Edgard de Assis Carvalho. Patrimônio cultural e ética da resistência. João Spinelli, org. São Paulo, UNESP,
1989/99, pp 14/19; A cidade preservada. São Paulo em perspectiva. São Paulo, Fundação SEADE, v.5, nº
2, abri-jun 1991, pp. 72/75.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 198


possibilidades naturais e culturais dos ecossistemas, além de ampla
ecoalfabetização que vise a redução exponencial do desperdício, da poluição e
dos níveis de consumo conspícuo. 12

Para isso, será forçoso admitir que cidades não são apenas espaços-
tempos distópicos ilustrado por narrativas cinematográficas. Os dois Blade
Runner, Elysium, dentre outros, são exemplos disso. Cidades são centros
nervosos, mosaicos arlequinados que movimentam pessoas, aceleram
velocidades, condensam utopias, idensificam aspirações, desanuviam tristezas,
como se o nomadismo subjetivo fosse a regra básica da convivência urbana. São
Paulo não constitui exceção a isso.

Esse vai e vem nunca é contínuo – as migrações e a preservação são


exemplos disso – e é exatamente essa descontinuidade que inviabiliza qualquer
distinção entre nativos e estrangeiros. Ambos são cidadãos do mundo que
optaram por um espaço comum, embora carreguem consigo, e para sempre, seus
imprintings originais, suas identidades fraturadas, seus lados estranhos,
obscuros, recalcados.

Participam da cultura - práxis cognitiva geral - como podem, contribuem


para sua decifração, viabilizam ou não seus fazimentos, mantêm intacta e
preservada uma zona obscura antropocósmica que permanecerá para sempre
indecifrável. São portadores de uma identidade subjetiva simultanemente endo e
exo-referente, assim como de uma identificação coletiva bifurcada. Globais e
locais, glocais, hominescentes, incluídos e excluídos, monogâmicos e promíscuos,
conformistas e revolucionários, utópicos e resignados, unos e múltiplos, sapiens
e demens vivenciam o inacabamento do humano.

Nas cidades imaginárias propostas por Alberto Manguel e Gianni


Guadalupe13, assim como nas invisíveis consagradas por Italo Calvino14 não sobra
espaço para identidades segregadoras, fragmentações culturais, estrangeiridades
ambíguas, diversidades intolerantes.

12
As ecumenópolis foram propostas pelo arquiteto grego Constantin Dioxiadis. A idéia de arcologia foi
desenvolvida pelo arquiteto italiano Paolo Soleri. Ambas encontram-se amplamente discutidas na tese de
doutorado em ciências sociais (PUCSP, 2001) de Maria Margarida Cavalcanti Limena, Cidades complexas
do século XXI: ciência, técnica e arte, na parte IV, Cidades do futuro: entre o global e o local, capítulo 3:
propostas para as cidades do futuro, pp. 230/250.
13
Alberto Manguel & Gianni Guadalupi. Dicionário de lugares imaginários. Trad. Pedro Maia Soares. São
Paulo, Companhia das Letras, 2003.
14
Italo Calvino. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. 2a, ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 199


Acredito que nas cidades reais ocorra o mesmo. Elas são o reservatório de
ambivalências e multiplicidades, secretam uma indômita força civilizatória,
imantam corações, mentes, subjetividades e corporeidades. Não é porque as
pensamos que existimos nelas, mas existimos nelas porque as pensamos.

Para os habitantes de Zenóbia, por exemplo, é impossível classificar uma


cidade como feliz ou infeliz. “Não faz sentido dividir as cidades em duas
categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das
mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem
cancelar a cidade ou são por ela cancelados”15.

Na cidade francesa de Morphopolis, exemplo extremo de preservação, um


humanista decidiu fazer dela uma cópia em modelo reduzido do centro de Paris,
cuja beleza permanecerá intocável por décadas sem fim. Investidos 400 milhões
de francos a obra foi finalizada. O Sena, o Louvre, o Café de la Paix, o Deux
Magots, os Champs Elysées, livrarias, lojas, butiques, tudo estava lá. Por iniciativa
própria, seus habitantes dormem desde 1950 porque ingeriram uma droga
descoberta por um certo doutor Morpho. “Eles jazem agora num sono profundo,
como os habitantes do castelo da Bela Adormecida, e só despertarão no dia 28
de junho de 2250”16.

Em Victoria, cidade-modelo da Inglaterra, optou-se pela temperança,


caridade e solidariedade. O custo total do empreendimento foi de 4 milhões de
libras. “Os princípios em que se baseia Victoria são a saúde do corpo, a
serenidade de espírito, o trabalho agradável em grau moderado e o amor pelos
semelhantes”17.

Em Bersabéia, cuja localização é desconhecida, seus habitantes acreditam


na existência de uma outra Bersabéia, celeste, na qual só existem virtudes e
sentimentos elevados. Abaixo dela existe uma Bersabéia ctônica plena de
horrores e desigualdades. No dia que os bersabeianos que habitam em
subterrâneos se aposssarem do céu, uma única cidade passará a existir. “Nas
crenças de Bersabéia existe uma parte de verdadeiro e uma de falso … Bersabéia

15
Italo Calvino, op. cit., pp.36/37.
16
Alberto Manguel & Gianni Guadalupi, op. cit.,p. 287.
17
Alberto Manguel & Gianni Guadalupi, op. cit., p. 456.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 200


acredita ser virtude aquilo que é uma melancólica obsessão de preencher os
vazios de si mesma”18.

Letônia atualiza os pressupostos da autoorganização, ao combinar


experiências de repetição e criatividade. “A cidade … refaz-se a si própria todos
os dias: a população acorda todas as manhãs em lençois frescos, lava-se, veste
roupões novíssimos. … escuta as últimas lengalengas do último modelo de
rádio… Tanto que se pergunta se sua verdadeira paixão é de fato, como dizem, o
prazer das coisas novas e diferentes e não o ato de expelir, de afastar de si,
expurgar uma impureza recorrente”19.

Exemplos como esses oriundos da imaginação literária não nos eximem


de, a todo tempo, repensar cenários futuros mais coerentes com a ambivalência
da cultura, tarefa inadiável que a razão aberta impõe a todos, colocar a
imaginação ativa a serviço de um nível de realidade simbiótico, coparticipante,
comandado pela eco-alfabetização, que tem como âncora a idéia de
sustentabilidade, ou seja, a garantia para as gerações futuras de níveis de vida
dignos, o eco-planejamento que redefine o papel das tecnologias optando por
20
alternativas que respeitem a organização evolutiva da vida.

A todo tempo, a alma da cidade exibe prospectivas humanistas


regeneradoras, potências de sublevação, que põem à prova a solidariedade
social, as dimensões da felicidade, assim como as verdadeiras virtudes da
emancipação, da solidariedade, da antropoética a serem postas em prática por
todos. É preciso pensar o futuro que, como sabemos, jamais será dado de
antemão, a quem quer que seja.

Em As cidades de Freud21, Giancarlo Ricci traça um perfil de 41 cidades


pelas quais Freud passou de 1856 a 1938, este último ano em Londres para
escrever uma versão final de Moisés e o monoteísmo. Resta-lhe pouco tempo de
vida, mais precisamente um ano e meio. No magnífico prefácio de Carlo Sini,
Freud é apresentado como “um homem movido, também e sobretudo nas

18
Alberto Manguel & Gianni Guadalupi, op. cit., p. 64.
19
Italo Calvino, op. cit., p. 105.
20
As idéias de eco-alfabetização e eco-desenvolvimento foram desenvolvidas por Fritjof Capra. Acredito
que sejam cruciais para políticas públicas voltadas para o replanejamento e preservação dos sistemas
urbanos do futuro. [Fritjof Capra,As conexões ocultas. Trad. Marcello Brandão Cipolla). Editora
Pensamento-Cultrix, 2002]
21
Giancarlo Ricci. As cidades de Freud: itinerários, emblemas e horizontes de um viajante; tradução
Helena Aguiar; revisão técnica Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed/. 2005.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 201


viagens, por seus fantasmas intenos 22”. Cidade sem fronteiras, “fábrica do
pensamento”, “a psicanálise é governada por uma única política, a da ética23”.

Viena, Paris, Berlim, Veneza, Praga Milão, Roma, Atenas, Nova York,
Budapeste e tantas outras que desfilam pelo texto, é Londres, há um ano de sua
morte, que aparece como um espelho-síntese de seu pensamento e do ‘ofício
impossível’ que é a psicanálise. Nela vida e obra se entrelaçam para sempre. Não
fazer nunca concessões ao próprio desejo, fazer com que a criatividade jorre por
todos os lados, essa é mensagem de um futuro incerto e, ao mesmo tempo, ético,
que contém itinerários abertos que se consolidam aos poucos, após vários
períodos de latência. “A cidade da psicanálise não garante de uma vez por todas
uma cidadania. É como uma fronteira aberta, uma ponte,...uma audácia que se
confronta com o incomensurável24”. Algo indeterminável, para sempre.

Como Hillman enfatiza, o futuro é portador de uma força arquetípica que


governa a imaginação. Uma sociedade justa expulsa a injustiça para além dos
muros da pólis e castra a cultura do ódio permanente de todos contra todos. Bate
de frente nas fontes da injustiça, da opressão, da hipertrofia da comunicação, do
individualismo.

“Se as injustiças são reveladas e superadas, a sociedade justa aparecerá


à luz do dia”.25 É preciso muita esperança para bater de frente no quadrimotor
ciência-técnica-indústria-Estado e suas mitologias de desenvolvimento,
progresso, aceleração, técnica. Como afirmou recentemente o ativista
internacional Satish Kumar, solo, alma, sociedade são a nova trindade para o
nosso tempo. “Quando percebemos que “somos um microcosmo dentro do
macrocosmo, estamos tocando a mente de Deus, livres de identidades limitantes,
despojados de mágoas e separação, medo e fragmentação26”.

22
Carlo Sini, Prefácio a As cidades de Freud, op. cit., p. 9.
23
Giancarlo Ricci, As cidades de Freud, op. cit., p 15.
24
Giancarlo Ricci, As cidades de Freud. Op. cit., p 211.
25
James Hillman. Figuring the future. In Philosophical Intimations. Edited and with an introduction of
Edward S. Casey. Thompson, Conn: Spring Publications, 2016, p. 390.
26
Satish Kumar. Solo, alma, sociedade: uma nova trindade para nosso tempo; tradução Cristiana Ferraz
Coimbra, Tônnia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2017.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 202


Embrechados nos coruchéus das igrejas:
arte decorativa integrada à paisagem arquitetônica no
recôncavo da Bahia

Cidália de Jesus Ferreira dos Santos Neta

Mestre em Museologia pela Universidade Federal da Bahia, vinculada à linha de Patrimônio e


Comunicação. Integrante do Grupo de Pesquisa Recôncavo Arqueológico da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia, no enquadramento de pesquisadora. [email protected].

Resumo
O presente trabalho traz um recorte das reflexões levantadas nas considerações
finais da dissertação de mestrado, em que se pontua abordagens sobre os
embrechados em torres sineiras de igrejas que integram a paisagem cultural do
Recôncavo Baiano. O ato de embrechar consiste em incrustar diferentes materiais
fragmentados e/ou inteiros em superfícies parietais que conformam efeitos
decorativos díspares retratados enquanto patrimônio artístico e condutor
histórico. Estas expressões de arte implementam os núcleos urbanos e são
legitimadas pelos sujeitos a partir dos dispositivos arquitetônicos no conjunto de
edificações da herança cultural, como um processo de relação entre o passado e
a dinâmica social do presente. A arquitetura consolidada com ornamentos em
embrechados se representa como legado histórico carregado de incrustações
multicomponenciais elaboradas com certa intencionalidade.

Palavras-chave: Embrechados; Igrejas; Recôncavo Baiano.

1. A popularização dos embrechados

O embrechamento é uma técnica decorativa originária da Itália durante o


século XVI, difunde-se na Europa ganhando alto valor simbólico, revestindo
estruturas arquitetônicas com incrustações de fragmentos de louças, azulejos,
conchas, vidros e dentre outros materiais de refugo, conformando em suas
operações um plano componencial semelhante ao mosaico com traços, brilhos,
contornos e significados representados nos espaços públicos ou privados, como:
jardins, bancos, muros, fachadas de residências e demais áreas (Figura 01)
(ALBERGARIA,1997).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 203


Figura 01 - Recorte do revestimento no Horto do Paço das Alcáçovas, Portugal

Fonte: VIII Jornada de Arte e Ciência. André Lourenço e Silva (2012, p. 168).

As primeiras reproduções aplicadas no Brasil são datadas dos oitocentos


e apresentam semelhança com as composições francesas e portuguesas. Esta
configuração artística se compõe com um método de cunho arquitetônico muito
popular que obteve destaque em razão de sua complexidade, detalhes, criação,
frequente multiplicidade componencial elaborando aspectos lustrosos e
imponentes que firmam altivez aos locais. Foi iniciada em território brasileiro em
razão da chegada da família real, que de certa forma, impulsiona o avanço da
comercialização e motiva à acessibilidade da troca de informações, garantia de
entrada de materiais, e também a integração e influência entre diferentes grupos
sociais.

No Recôncavo Baiano este revestimento se apresenta enquanto condutor


histórico, com elevado teor simbólico por compor significação artística
diversificada, relatando seu passado e reportando vivências do contexto,
definindo a atividade mental a partir dos padrões operacionais exigidos,
considerando a multiplicidade componencial como demarcadores cronológico,
social e ideológico.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 204


1.1 Imbricados como documentos histórico-sociais

Quando integrados na esfera urbana e social, os referentes culturais


especificados aportam elementos que demarcam a imagem do objeto enquanto
documento comunicador. A sua miríade material expressa certa simbologia
concernente ao meio real e à completude de seu ideal abstrato. Neste ínterim, os
espaços arquitetônicos e as igrejas são configuradas por uma complexidade de
carga de significação em seus componentes de produção material e
arquitetônica, capazes de transmitir mensagens articuladas nas estruturas,
projeções, desenhos e signos em sua tecitura imagética.

Vale aqui considerar o posicionamento de Jean-Marie Pesez em relação


às pesquisas históricas para analisar esta arte e o seu teor histórico-informativo,
quando ressalta que as técnicas de produção e gerenciamento dos elementos
culturais, a exemplo das construções artísticas - como os embrechados e demais
signos – faz-se em razão de que “[...] é nas relações sociais que se deve buscar a
significação dos fatos materiais [...] o fato socioeconômico explica os traços da
cultura material.” (PESEZ, 1990, p. 189).

Sob tal complexidade, o estudo da materialidade considera o objeto


enquanto documento histórico repleto de informações consistentes, pois analisar
as suas composições, tipologia dos materiais e suas representações sígnicas,
recaem na compreensão dos ideais sociológicos, já que “[...] a vida majoritária é
constituída pelos objetos, as ferramentas, os gestos do homem comum; só essa
vida lhe diz respeito na cotidianidade; ela absorve seus pensamentos e seus atos.”
(PESEZ, 1990, p. 184-185).

Tendo em vista essas especificidades, as perspectivas da pesquisa


versaram sobre as representações dos embrechados, o homem enquanto
indivíduo social, o espaço contextual em que estão inseridos e a preservação de
seu potencial simbólico vinculado aos embrechados, podendo assim, “[...]
descobrir, através da cultura material, as relações sociais e os modos de produção
das sociedades do passado.” (PESEZ, 1990, p. 210); evidenciando o simbolismo
com base num levantamento econômico, social, semiótico, técnicoestético e
informativo subsidiados pela sua arquitetura, história, cultura e memória social.

De modo geral, as estruturas arquitetônicas e suas composições são


referenciadas na qualidade de documentos iconográficos do núcleo urbano que,
quando preservadas, abrangem e transmitem a imagem original de como foram

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 205


elaboradas no passado, mantendo os seus valores perante os princípios da
sociedade. Com esta representação, o sentido documental não é referendado
apenas no fato destes templos serem objetos estéticos de um período, mas
também por ser elemento de um registro visual capaz de retratar vivências de
uma conjuntura social.

1.2 Os embrechados e as cidades

A busca pelos traçados e geometrização sempre foi aplicada na


constituição urbana como princípios básicos de disposição espacial. A estrutura
das ruas, a localização das edificações e os recursos topográficos demonstram
intencionalidade e se associam aos anseios, tanto da sociedade quanto das
instituições que as integram, a exemplo das igrejas que se orientam com devido
privilégio por ser dispositivo simbólico de controle apreendido dentro do tecido
urbano. Os aspectos visuais por elas apresentados comunicam hierarquias,
preferências, modos e costumes, reportando a relação entre o alcance tangível e
o conteúdo ideológico, manifestando a dinâmica em que foram arquitetados,
considerando a prevalência do domínio da Instituição Católica.

A paisagem urbana integrada como um plano expositivo constitui


elementos gráficos conformados enquanto meios de comunicação - ornamentos,
traçados dos prédios, composições cromáticas, escala, iluminação, perspectiva e
aspectos topográficos personificam valores de notoriedade à tessitura espacial.
Em concordância com esta perspectiva é possível focalizar aos recursos visuais
ensejando contemplar as igrejas por seu caráter em enaltecer materiais e
tecnologias distintas que aguçam sentidos e influenciam na percepção e no
comportamento da sociedade, por meio também, da transmissão de mensagens
abstratas e literais impregnadas nos compostos como os embrechados.

Os planos componenciais e cromáticos elaborados pela técnica da arte de


embrechar demarcam influências, motivações e causam impactos aos espaços
podendo ser pontuados como locais de preservação, centros de memória,
formadores de dependências sociais que suportam fatores e registros do
passado. As cidades e os lugares que integram embrechados em sua paisagem
cultural são capazes de reportar diferentes signos que elaboram fenômenos
estéticos e históricos preservados em seus ambientes arquitetônicos. Dentro
deste fluxo cultural, os imbricados reportam distinção nas igrejas e direcionam o

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 206


século XIX como o período áureo, sob implicações do avanço industrial e da
sociedade que fincava hierarquias provenientes de um processo de vivências
intersociais.

Os recursos aplicados na estruturação dos núcleos urbanos são


desenvolvidos considerando as implicações dos fatores intrínsecos e extrínsecos
dos elementos arquitetônicos. Para o cumprimento desta tendência são
alcançadas análises sobre às complexidades das experiências e técnicas
referentes à composição dos embrechados nas cidades. Os processos
relacionados à iconografia, iconologia e referenciais bibliográficos propuseram a
pesquisa um amplo levantamento que permeia sobre as inferências sociais e
políticas pleiteadas pelos embrechados, as quais vão além da mera criação
artística.

2. O reluzir dos embrechados nos espaços sagrados

Na região do Recôncavo Baiano há conformações de embrechados em


diferentes igrejas, dispostas em cidades adjacentes (Santo Amaro, Cachoeira,
São Félix, Maragogipe, Nazaré e Jaguaripe) que entre os séculos XVIII e XIX
compartilhavam dos mesmos anseios e avanços, tanto na esfera econômica
quanto social. Neste momento, esta decoração demarcava o modismo da época
em que as elites e famílias disputavam e fincavam seu poder financeiro através
dos materiais imbricados nas fachadas das residências.

A integração da arquitetura das igrejas com a paisagem urbana tem a


capacidade de reportar narrativa a partir de uma linguagem não verbal, da
iconografia subjetiva contextualizando espaços e tempos, legitimando culturas e
comportamentos dos grupos no cenário do Recôncavo no século XIX. A
preservação do patrimônio parte no princípio destas instituições integrarem
relações sociais, com valores culturais e experiências atribuídas na relação dos
seus aspectos semióticos que autenticam significados e reafirmam caráter
simbólico e identitário.

Visando compreender estas nuances, neste âmbito são elucidadas a Igreja


de Nossa Senhora da Conceição do Monte (Figura 02), na cidade de Cachoeira
- apresentando traços e estilos com fragmentos cerâmicos diversificados, suas
diferentes seções de tonalidades propõem um preenchimento cromático
formando feições geométricas com enrolamentos em forma de caracóis ou

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 207


volutas, configurando movimentos, em sua maioria, nos tons azuis e brancos que
revelam espessuras e operações semilunares ao seu plano visual. Já sobre o
aparelho de alvenaria da Igreja Matriz Deus Menino (Figura 03), em São Félix,
os volumosos e espessos fragmentos de louças avançam e delimitam o caráter
único deste revestimento. Estes elementos em consonância com a harmonia da
composição, do brilho e do jogo de motivos causam a sensação de deleite,
conforto e meditação ao observador, concretizando um espaço peculiar.

Figura 02 - Igreja de Nossa Senhora da Conceição

Fonte: Acervo particular da autora

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Figura 03 – Igreja Matriz Deus Menino

Fonte: Acervo particular da autora

Neste quadro, estas estruturas são pertencentes à cultura material e


portam configurações que remetem à representação social dos embrechados em
um período, proporcionando assim, o entendimento dos dinamismos
socioculturais vivenciados na região como parte da Memória Social.
Corroborando com esta ideia, Maurice Halbwachs enfatiza as fortes influências
que as coisas materiais podem causar nos dias atuais, tornando os indivíduos
mais distantes enquanto evoluem com a globalização; porém, ressalta que se a
relação entre os bens e as pessoas fossem acidentais e fragilizadas muitos destes
não teriam resistido. A malha urbana integra espaços dinâmicos, que muda
constantemente e se ele não tivesse sido preservado no ambiente material que os
circunda não seria possível compreender a história, o passado e as constantes
identidades implicadas numa cultura (HALBWACHS, 2006).

Os elementos sacralizados em decorrência de sua relevância, tanto no


âmbito religioso ou ideológico, constituem um conjunto de signos da herança
cultural que se mantiveram preservados garantindo a autenticidade das vivências
de uma dinâmica social (CHOAY, 2001, p. 250). Com isso, pontua-se neste
momento que os embrechados e toda a configuração das igrejas são
conceituados enquanto “patrimônio integrado”, fonte de informação

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 209


impregnada na configuração arquitetônica e nas composições ornamentais
articuladas no discurso expositivo urbano.

Estas expressões artísticas buscam se autoafirmar diante do conjunto


arquitetônico e da organização da paisagem, destacando-se na dinâmica social
pelo simbolismo e materialidade envolvidos nas construções. Neste diálogo, o
edifício por si só é comprometido como o ícone que, além de configurar uma
função específica - ser instituição comercial, residencial ou religiosa – suporta
simbologia e significância que afirmam aspectos referentes às questões
identitárias, imprimindo relevância na relação sujeito-ambiente.

A potência do caráter comunicacional na configuração dos efeitos


imagéticos tem a capacidade de revelar autonomia na criação, autenticidade e
enaltecimento dos valores artísticos intrinsecamente imbuídos. As composições
possibilitam realizar interpretações iconológicas e considerar a significância da
tendência iconográfica dos imbricados em distintas manifestações que conferem
ao espaço o implemento de cores e formas, propondo ao observador a
apreciação e recolhimento, fornecendo o bem estar na interrelação de sensações
e humanização no ambiente social.

A complexidade e amálgama de compostos que configuram a arte de


embrechar propõem análises e apontamentos, não apenas em razão da
conformação dos ornamentos artísticos modificadores da arquitetura, como
também, pela busca da sustentabilidade - quando visa otimizar a funcionalidade
dos materiais, até então descartados - de refugo - através da reciclagem e,
consequentemente, à concepção de uma arte de fragmentos que, a partir da
satisfação de sua aplicabilidade, conforto, economia e estética são condizentes
no jogo de influências na percepção e cognição dos ambientes públicos e
privados do século XIX.

A locação estratégica das estruturas arquitetônicas em espaços sociais e


urbanos pode ser contemplada quando são identificados os templos religiosos
(que apresentam embrechados nos coruchéus) edificados de maneira
privilegiada, integrando a dinâmica espacial num circuito delimitado e
estabelecido com o objetivo de manter e reafirmar o poder ideológico nas
relações entre os sujeitos. Dentro deste discurso expositivo, o posicionamento
definido e o arranjo ordenado com aplicações de imbricados alcançam

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 210


percepção, por meio à visão favorecida e confirmam alteridade dentro do sistema
urbano, sendo fototipo atinente à construção dos aspectos socioideológicos.

A particularidade brilhante no cume das torres sineiras das igrejas afeiçoa


perfil visual análogo ao rito de coroamento - acomodando em si uma auréola –
capaz de remeter ao comprometimento, aliança entre a coletividade e o espaço
religioso no plano cósmico e/ou social. O emprego de materiais reluzentes
assemelhando uma coroa causa ao transeunte o significado de sublimação,
obediência e subordinação - condizente ao dom de uma divindade superior.

3. Relação sujeito x cidade x patrimônio

A relação habitual entre os indivíduos é a primeira causa que visa


relacioná-los e apropriá-los ao meio social que pertencem. Esta inter-relação
permite que os sujeitos dialoguem e reconheçam os valores culturais e simbólicos
dos bens patrimoniais. Seguindo este conceito, compreende-se que o objeto de
estudo, por ser elemento constituinte do espaço urbano, considerado então como
um monumento/documento é, primariamente, uma unidade pertencente à
identidade cultural articulada à memória coletiva fundamentais para a
construção dos diálogos e dinâmicas com a comunidade, a partir de ações
interativas e patrimoniais.

O estudo sobre o patrimônio e suas referências culturais proporciona a


concepção de bens como integradores de um grupo social, de um estado-nação
público e plural, formado por uma multiplicidade de indivíduos. Faz-se
necessário que a cultura nacional esteja configurada no contexto geográfico,
sociohistórico e em distintas nuances evolutivas, “[...] nas suas orientações e
tendências, para mostrar em seguida, quais as instituições que se organizaram,
prepostas ao fim de transmiti-las, já sistematizada, de geração em geração para
assegurar a sua continuidade no tempo, a sua unidade, a sua difusão e os seus
progressos.” (AZEVEDO, 1971, p. 39). Não se pode esquecer que fazem parte
dessa amálgama cultural os objetos patrimoniais, as tradições, manifestações,
lugares sagrados, representações artísticas e também, os espaços urbanos e suas
fundações arquitetônicas.

Vale pontuar que os embrechados em espaços oníricos como resultante


de práticas da cultura popular, colocando em pauta as contribuições de Michel
de Certeau e Michael Foucault ao analisar a criatividade e capacidade inventiva

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 211


das pessoas comuns como construção do imaginário, dos gestos sociais e das
respostas ao consumo das ideias e objetos, impactando para que toda a história
seja cultural e tudo que compõem um contexto seja uma invenção social (BURKE,
2008, p.106). Com isso, a formação do sujeito em sua esfera sociocultural é “[...]
o produto do meio físico, dos elementos raciais, e do progresso de sua evolução
social, e se manifestam tanto na sua história e nas suas instituições, quanto na
sua língua e na sua literatura, nas suas obras de arte e de pensamento.”
(AZEVEDO, 1971, p. 45).

Nesse sentido e dentro dos discursos trabalhados pela História Nova,


Jacques Le Goff também considera que é possível expandir as fontes de pesquisa,
não estando apenas relacionadas aos documentos escritos, podendo então ser
“[...] figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, [...]
uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil,
uma ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de primeira
ordem.” (LE GOFF, 1990, p. 28-29). Neste pluralismo, o documento não tem
perfil de imparcialidade, sua veracidade determina e é determinada “[...] por sua
época e seu meio; documento é produzido consciente ou inconscientemente pelas
sociedades do passado, quanto para dizer ‘ a verdade’.” (LE GOFF, 1990, p. 54).

Neste prisma, as igrejas integradas a paisagem cultural de uma região são


atribuídas enquanto monumentos associados à composição da cidade, produto
final estabelecido por um grupo da sociedade capaz de reportar qualidades em
seus componentes que legitimam as relações entre os sujeitos, modificados e
influenciados por multíplices forças produtivas, territoriais, de formação e
acometidos por pressões histórico-econômicas (MENESES, 1985, p. 201).

Os sentimentos, anseios e ascendências culturais são conduzidos por


narrativas sociais estabelecidas pela construção de detalhes e formas capazes de
delimitar a identidade visual da paisagem, enquanto bem comum e patrimônio
sob custódia da população. A conjuntura das cidades é corporificada no
momento em que sujeitos são imbuídos com sua história, memórias e
identidades, dinamizando e construindo lugares que tecem relações sociais que
propõem sentido ao cotidiano na tessitura urbana, sendo então implicações
significativas à criação de ambientes acolhedores.

Visando compreender o objeto proposto neste trabalho, foram traçadas


perspectivas que relatem sobre o particularismo artístico dos embrechados,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 212


rompendo com o isolamento de seu caráter de veículo informativo dentro da
paisagem cultural, contribuindo assim, para a preservação e reconhecimento
deste testemunho às gerações futuras.

Nas vivências da atualidade, a armação estrutural da urbe está vinculada


ao modo de vida, a dinâmica social e, consequentemente, ao comportamento dos
indivíduos, quando os sujeitos se representam e se relacionam com o ambiente
– território de experiências - e a arquitetura. A idiossincrasia aqui representada
é proveniente de um caráter pragmático que foi aplicado de forma recorrente na
configuração da paisagem cultural, estabelecida num planejamento específico
que garanta melhor qualidade aos cidadãos e ao progresso da malha urbana.

Os bens culturais que caracterizam um grupo social, são conceituados


enquanto patrimônios públicos, que mesmo estando sob cautela das instituições
governamentais, não impossibilita que as comunidades e sujeitos preservem e
mantenham-se atentos com o propósito de desenvolver ações sociais que visem
a garantia da conservação e manutenção dos acervos patrimoniais. Para
estabelecer esta concepção ideológica, a arte de embrechar integrada aos
espaços sociais se apresenta aqui como uma constituição artística
multicomponencial que tem o escopo de enaltecer e firmar experiências e
comportamentos em diversas conjunturas, que abrangem contextos sociais,
políticos e econômico. A complexidade material dos imbricados demarca-os
como objeto da cultura carregados de relevância capaz de torná-lo signos da
memória dos sujeitos e estruturas simbólicas preservados e referendados na
arquitetura social de um determinado momento histórico.

4. Considerações

Na realidade contemporânea, as operações artísticas que se demonstram


com devido caráter simbólico no imaginário dos indivíduos são fundadas em
reverberações formais que demarcam uma época histórica e são mantidas
durante gerações. Neste processo de mutação social, o predomínio da valorização
propicia à transcendência de significados que conforme a subjetividade tem a
capacidade de exprimir uma configuração visual abstrata presente também nos
elementos, adornos e fragmentos das composições dos embrechados, os quais
se revelam com devida distinção entre os coruchéus nas cidades.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 213


A conformação dos embrechados no Recôncavo Baiano se apresenta com
função mediadora no subconsciente dos cidadãos, pois quando as
representações históricas e simbólicas estão em consonância, elas manifestam a
autenticidade cultural de uma determinada região, legitimando no psiquismo dos
indivíduos a construção da natureza e da diversidade da paisagem iconográfica.

Perpassando um olhar efêmero é possível observar o caráter único que a


luz natural pode causar, apenas quando absorvida pelas torres sineiras que
configuram embrechados; nesta conformação o brilho dos fragmentos é refletido
e potencializa partículas que reluzem e aguçam os sentidos, incitando o
encantamento, realce e altivez.

Articulando os autores até aqui citados e demais contribuintes e fontes


arquivísticas, é possível trabalhar com a ideia dos imbricados como objeto da
história da arte, pertinente às criações elaborados com o intuito de serem
unidades comunicacionais de fenômenos relacionados à estética, aos processos
artísticos de interferências na modelagem das cidades.

Os embrechados se mantiveram preservados entre séculos e


possibilitaram contextualizar movimentos dinâmicos e períodos históricos
específicos de localidades geográficas variadas. Os seus componentes
estabelecem técnicas, formas e linguagens de um testemunho coletivo, propondo
uma narrativa simbólica referente à identidade visual da paisagem urbana, sendo
então detentores de significado da subjetividade humana.

Neste discurso, a proposta não é estabelecer o embrechamento como o


principal propulsor à transformação da personalidade dos sujeitos e grupos
culturais, mas sim pontuar a sua compreensão como recurso decorativo
idealizado dentro da paisagem urbana e perpetuado a ser demarcador de
movimentos simbólicos, técnicas construtivas, comportamentos pessoais e
profissionais. A partir do momento que a comunidade lhe adere certa
familiaridade, há a possibilidade de venerar sua qualidade de definir o
simbolismo mágico-religioso do catolicismo e de estreitar a relação entre os
indivíduos, o ambiente e a memória social.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 214


Referências bibliográficas

ALBERGARIA, Isabel Soares de. Os embrechados na arte portuguesa dos jardins.


In: Arquipélago – História. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2ª série, v.
2, p. 459-488, 1997.

AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo, Melhoramentos, Editora


da USP, 5ª Ed, revista e ampliada, 1971, 809p.

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Trad. Sergio Goes de Paula 2ª ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2008.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução Luciano Viera Machado.


São Paulo: Estação Liberdade; UNESP, 2001.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

LE GOFF, Jacques. A História Nova. Trad: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.

PESEZ, Jean-Marie. História da Cultura Material. In: LE GOFF, Jacques. A


História Nova. Trad: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

SILVA, André Lourenço. Conservação e valorização do patrimônio: os


embrechados do Paço das Alcáçovas. Lisboa: Esfera do Caos, 2012.

THIESEN. Iclea. Museus, arquivos e bibliotecas entre lugares de memória e


espaços de produção do conhecimento. In: GRANATO, Marcus; SANTOS,
Cláudia Penha dos. Museu e museologia: interfaces e perspectivas . Rio de
Janeiro: MAST, 2009. (MAST Colloquia; v. 11)

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 215


Cidades:
Os modos de produção e a imaginação do trabalho em James
Hillman1

Wilane Souza dos Santos

Estudante do curso de Ciências Sociais, Licenciatura, da Universidade Federal do Rio Grande do


Norte.

Resumo
Quando pensamos em cidades, influenciados pela visão ocidental de mundo,
podemos de maneira quase automática, dizer que visualizamos imagens de
prédios, indústrias, comércio, desigualdade, lotação de avenidas e feiras.
Refletindo sobre essas figuras, iremos perceber que elas possuem uma relação
com uma das principais atividades presentes na sociedade, que possibilitou em
conjunto com outros fatores, o desenvolvimento da vida coletiva: o trabalho. Por
isso, este artigo objetiva, de forma breve, buscar no resgate da memória de alguns
dos principais meios de produção econômicos clássicos, à luz das análises de Karl
Marx, estabelecer uma relação com a imaginação do trabalho proposta pelo
psicólogo criador da psicologia arquetípica James Hillman, a partir da
apresentação feita por Gustavo Barcellos em Psique e Imagem: estudos da
psicologia arquetípica. Uma vez que, compreender a imaginação refletida nos
modos de produção que aqui serão citados, nos possibilita um norte para o
entendimento arquetípico das cidades no modelo ocidental, bem como, contribui
levantar reflexões a respeito dos rumos e consequências dessa imaginação nos
dias atuais do ponto de vista da psicologia das profundezas de Hillman.

Palavras-chave: Imaginação do trabalho; alma da cidade; psicologia arquetípica.

Considerações iniciais “sobre o trabalho e as cidades”

A imaginação do trabalho se encontra no caminho simbólico onde o seu


sentido está entrelaçado com a sua finalidade e prática (BARCELLOS: 2017, p.

1
Meus estudos sobre James Hillman iniciaram na disciplina “Imaginário, Imagem e Comunicação na
Sociedade Contemporânea” ministrada pela Professora Ana Laudelina F. Gomes, do Departamento de
Ciências Sociais, da UFRN, quem também indicou a bibliografia e leu a versão final desse artigo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 216


11). Reflito sobre essa ideia apresentada por Gustavo Barcellos baseada nas
construções arquetípicas propostas por James Hillman, levando em consideração
o processo de socialização por meio do trabalho apontado por Marx. Processo
esse que possibilitou o desenvolvimento da vida coletiva. A partir desses
elementos, pode-se afirmar que a imaginação do trabalho estabelecido
socialmente também é parte da imaginação da cidade, tendo em vista, que os
modos de produção irão interferir na organização e dinâmica dos espaços
urbanos, e o trabalho, nessa perspectiva, contribui para construir o que James
Hillman chama de cultivo da alma ou soul making desses espaços coletivos.

Quais as atividades que possibilitaram o surgimento das cidades? Como


os espaços urbanos se sustentam? Quais as atividades que mantém, por assim
dizer, a vida das cidades, a alma das cidades? Uma vez que, encontramos na
manutenção e formação dos espaços urbanos um produto do trabalho humano,
bem como, o trabalho presente nas atividades cotidianas das cidades, entre
outras variáveis, ele (trabalho) estará presente nas respostas a todos os
questionamentos citados anteriormente.

Ao pensarmos sobre o trabalho de forma socialmente estabelecida, temos


que considerar como ele se organiza e qual a sua finalidade, ou seja, os modos
econômicos de produção. Levando-se em conta os períodos históricos, o
desenvolvimento sócio econômico das civilizações ocidentais e as teorias de Marx,
percebemos que os modos de produção se modificam e se estabelecem
combinados aos interesses de uma classe dominante. Por isso, explorar a
imaginação do trabalho a partir dos meios de produção clássicos é também
explorar parte da imaginação hegemônica2 produzida nas cidades ao longo da
história.

O trabalho, a alma e os arquétipos em James Hillman

Em seu sentido natural apresentado por James Hillman, o trabalho é


apontado como um instinto semelhante à fome. Para ele, existe uma relação
entre o trabalho e o prazer, quando pensamos nas disposições naturais humanas

2
Hegemonia: supremacia de um Estado-nação ou de uma comunidade político-territorial dentro de um
sistema. A potência hegemônica exerce sobre as demais uma preeminência não só militar, como
também econômica e cultural. BOBBIO, Norberto, Matteucci, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário
de política. Brasília DF: UnB, 1998. P. 579.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 217


à criação. E aqui trago uma citação também utilizada por Barcellos retirada da
obra de Hillman:

Nós falamos do instinto sexual, do instinto da fome, ou do


instinto agressivo: o que é o instinto do trabalho? Acredito que há
um instinto do trabalho; foi ele que desenvolveu a civilização
humana [...]. Precisamos falar do instinto do trabalho, não da
ética do trabalho. [...] Falar do trabalho como um prazer, como
uma gratificação instintiva [...] as próprias mãos querem fazer
coisas, e a mente adora ser aproveitada. O trabalho é irredutível.
[...] O trabalho é um fim em si mesmo e traz sua própria alegria.
(HILLMAN apud BARCELOS: 2017, p. 14).

Entendo a fala de Hillman, no sentindo de buscar um discurso do trabalho


longe da ótica social e econômica, como um objetivo de chegar a um caminho
para conhecer a gênese do trabalho a partir de uma disposição natural humana.
Neste artigo, pretendo estabelecer a relação desse instinto com o social e
econômico, enfatizando o trabalho enquanto impulso moldado e direcionado a
partir do desenvolvimento da sociedade e dos processos produtivos, uma vez que
embora o trabalho seja apresentado por Hillman como instintivo, esse instinto
foi aproveitado e direcionado pelos construtos sociais que possibilitaram uma
imaginação do trabalho diferente de seu estado de natureza e que está presente
na formação das cidades. Ainda de acordo com a minha leitura sobre o autor,
Hillman vai trazer sobre o trabalho uma visão densa da gênese do mesmo, não
impossibilitando uma leitura econômica e social, mas aprofundando essa leitura,
agregando os valores imagéticos e psíquicos ao mundo do trabalho do ponto de
vista da psicologia arquetípica.

Retomando, o trabalho, para ele, é um impulso do ser humano, um


instinto, uma disposição natural à criação, que tem por finalidade fazer sentido
por si mesmo. Está relacionado ao lazer, ao divertimento ao prazer de existir por
si só (BARCELLOS: 2017, p. 14), onde a presença das mãos é de primordial
importância. O autor traz, portanto, a meu ver uma perspectiva primeira, de
gênese do trabalho a partir da natureza humana.

Entre os elementos da psicologia arquetípica, Hillman nos trará


a noção de imagem arquetípica e alma. Sobre os arquétipos,
eles estão relacionados ao campo imaginativo, à imaginação

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 218


humana. Eles estão presentes em todas as criações culturais e
construtos sociais presentes nas sociedades. Os arquétipos se
apresentam na forma de imagem (BARCELLOS: 2017, p. 83).

Hillman nos faz enxergar os arquétipos como as estruturas básicas da


imaginação, e nos diz que a natureza fundamental dos arquétipos só é acessível
à imaginação e apresenta-se como imagem. (BARCELLOS, 2017, p, 83).

Podemos citar como exemplo dessas imagens que expressam os


arquétipos, a poesia, a pintura, os mitos, a música e todas as criações e
significações provenientes da cultura.

Hillman nos diz, portanto, que as imagens arquetípicas possuem um


caráter psicologicamente universal, uma vez que, essas imagens estão presentes
nas construções imagéticas de forma coletiva, embora elas (imagens
arquetípicas) produzam também uma significação individualizante.

Uma imagem arquetípica é psicologicamente "universal" porque


seu efeito amplia e despersonaliza. Mesmo se a noção de imagem
considera cada imagem como um evento único e individualizado,
como "aquela imagem e não outra", esta imagem será universal
porque ecoa uma importância transempírica e coletiva. Assim, a
psicologia arquetípica usa "universal" como adjetivo, denotando
um valor essencial e duradouro o qual a ontologia define como
hipóstase (HILLMAN: 1988, p. 33).

Percebo que os arquétipos influenciam nas experimentações das coisas. A


imagem arquetípica provoca impressões e profundidades originadas da
significação que se faz da imagem. A significação da imagem (que pode
representar amor, guerra, paz, trabalho, entre as diversas criações humanas)
interfere na experiência vivida partindo do que a imagem arquetípica passa a
representar para o indivíduo. Percebo, portanto, que essa relação entre imagem
e significação contribui com a experimentação da interioridade das coisas
materiais e imateriais, coletivas e individuais.

A alma, a anima, é um olhar sobre as coisas, uma perspectiva


(BARCELLOS: 2017, p. 81), tem relação com a profundidade e não é possível
conceituar aos moldes racionais, embora esteja presente no amor, na guerra, nos

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deuses, nas construções e significações culturais humanas. Para Hillman, a fonte
de imagens, que pode ser imagens oníricas, imagens poéticas ou imagens de
fantasia, é a atividade autogeradora que irá dar origem a alma (HILLMAN: 1988,
p. 27).

Podemos ver que anima, a alma, está por tudo e em tudo, não só
na interioridade feminina do homem. Anima pertence a todas as
coisas, exatamente como a possibilidade de interioridade de todas
as coisas. Anima refere-se, numa só palavra, a interioridade –
campo psicológico por excelência. (BARCELLOS: 2017 , p. 82).

A alma aqui é então percebida como a densidade encontrada em todas as


coisas, distante da ideia de substância, mas próxima do campo psicológico
humano, presente no ser e nas representações simbólicas que partem desse ser
individualmente e coletivamente. Percebo a presença da ideia de alma no sentido
individual na canção interpretada por Milton Nascimento e Chico Buarque e que
trago um trecho a seguir:

O que será que me dá, que me bole por dentro


Será que me dá, que brota à flor da pele [...]
E que me sobre as faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar [...]
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar [...]
O que não tem medida, nem nunca terá [...]
O que não tem receita (BUARQUE, 1976).

O modo de acumulação primitiva e a imaginação do trabalho

Ao se referir à acumulação primitiva, Karl Marx irá abordar o modo de


produção que antecede ao do sistema capitalista e que possibilitou o seu
surgimento. Para o autor, esse momento da produção anterior ao da sociedade
do capital pode ser comparado à ideia teológica do pecado original, sendo,
portanto, para ele, o período pré-capitalista, a origem do pecado econômico
(MARX: 1996, p. 339). Trarei aqui, considerações breves sobre o sistema
econômico chamado feudalismo presente na Europa durante a Idade Média, sua
influência nas cidades e as possíveis construções imagéticas sobre o trabalho
nesse período, levando em consideração os escritos de Karl Marx sobre a

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 220


acumulação primitiva e de James Hillman com relação à imaginação do trabalho
e a psicologia arquetípica.

Em uma de suas principais obras intitulada de O Capital, Marx nos traz as


seguintes características observadas no modo de produção feudal: o trabalhador
era vinculado à gleba, servo ou dependente de outra pessoa, estava sob o
domínio das corporações feudais, de seus regulamentos para oficiais e
aprendizes e das prescrições restritivas do trabalho dentro da lógica desse
sistema (MARX: 1996, p. 341). Havia algumas categorias como servos, mestres
artesãos corporativos e senhores feudais (os possuidores das fontes de riqueza),
o solo era partilhado pelo maior número de súditos possível, já que o poder dos
soberanos era baseado não no acúmulo de capital, mas na quantidade de súditos
que ele possuía (MARX: 1996, p. 343). Nesse período, a percepção construída
com relação às cidades tinha ligação com o poderio, as cidades eram vistas como
soberanas. Podemos então notar, que nas acomodações habitacionais coletivas
onde havia a presença do modo de produção feudal, o trabalho proporcionava
um contato direto com os meios de produção, bem como, promovia uma
construção imagética de sobrevivência ligada à gleba, já que, para atender às
necessidades básicas como alimentação, moradia e até mesmo segurança, tendo
em vista que para obter favores militares era preciso firmar pactos a partir da
gleba, era necessário ter acesso a um pedaço de terra para nela trabalhar, e assim,
alcançar os meios básicos de sobrevivência da época.

Fica claro que, entre outras atividades, fazia parte da dinâmica das cidades
feudais o cultivo da terra, as atividades produtivas. Por fazer parte da dinâmica
dos espaços urbanos, a imaginação do trabalho (as formas arquetípicas da
imaginação do mesmo) irá refletir-se nas atividades culturais e artísticas como as
pinturas, poesias e peças teatrais, no folclore popular. A servidão, a terra, imensos
castelos, cavaleiros, homens e mulheres trabalhando na terra, Deus e a igreja
posicionados em lugar mais alto perante todos são algumas das imagens
encontradas nas pinturas da época.

O arquétipo de servidão presente nas demonstrações culturais com


relação ao trabalho nas sociedades medievais foi reforçado pela forte influência
religiosa na construção das formas imagéticas do trabalho, formas essas, que
colaboravam com o privilégio clérigo em detrimento dos demais indivíduos, uma
vez que o trabalho no período feudal era visto e pintado de maneira pejorativa,
associado à ideia de castigo, enquanto o trabalho intelectual era visto como um

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 221


privilégio principalmente do clérigo. É possível perceber a ilustração da imagem
de servidão e penitência, a partir da teologia, na fábula do pecado original. Por
ter pecado, o homem foi condenado a se alimentar por meio do suor do seu rosto,
portanto, o trabalho se apresenta como uma consequência do pecado, como um
castigo de Deus ao homem.

Maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os


dias da tua vida. [...] Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até
que tornes à terra (BÍBLIA, Gênesis 3, 17-18: 1996, p. 3).

A presença dessa imagem mal vista do trabalho também é visualizada na


obra Livro de horas, do Duque de Berry, datada do século XV, no Museu de
Condé, Chantilly, França.3 Nessa obra observamos os trabalhadores com feições
de tristeza, curvados, trabalhando arduamente no extenso feudo e ao fundo a
presença de um enorme castelo, propriedade dos nobres da época. Lê-se,
portanto, a angústia do trabalho como penitência de uns em favor da
manutenção do privilégio de outros.

Para reforçar o pensamento expresso no parágrafo anterior e deixar


esclarecida a produção da ideia e das imagens em torno do trabalho a partir de
interesses hegemônicos, podemos citar a contribuição de Max Weber em A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo , quando Weber, de forma inconsciente,
aponta a construção de imagens arquetípicas por trás do desenvolvimento de um
segmento da burguesia europeia, que influenciada pelos ensinamentos
calvinistas (WEBER: 2004, p. 99), constrói uma representação imagética do
trabalho ligada ao divino, que impulsionou as práticas com relação ao trabalho
de modo a alterar a imaginação do trabalho como servidão e castigo
transformando-a em dom divino, dádiva, vocação, caminho para a salvação, bem
como, em caso de prosperar por meio do trabalho, um sinal de salvação, de ser
um escolhido do divino com direito e parte no paraíso eterno, contrariando o
pensamento religioso medieval, tendo em vista que os interesses se modificaram
com a modificação do modo de produção.

3
Universia Brasil. Disponível em
<http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2012/03/14/917389/conheca-as-mui-ricas-horas-
do-duque-berry-dos-irmos-limbourg.html> Acesso em 29/08/2017.

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Retomando para concluir esse ponto, percebemos anteriormente que o
trabalho aparece, em boa parte das representações imagéticas feudais, como
castigo e servidão, representações que foram reforçadas pelo discurso religioso,
o qual classifica o trabalho como um castigo divino aos homens, devido o pecado
original ocorrido no paraíso com Adão e Eva. Essas imagens contribuíram com a
garantia do bem estar e da riqueza de poucos, fazendo uma leitura das ideias de
James Hillman com relação às formas arquetípicas e de Karl Marx com relação
ao período feudal e o modo de produção feudalista.

A sociedade, portanto, ao estabelecer o sistema de produção feudal, rouba


a percepção primeira de trabalho ligada ao prazer e origina a imagem de trabalho
ligada à escravidão e à servidão, condicionando um impulso natural humano a
interesses hegemônicos. O que nos leva a concluir uma construção da alma
coletiva da cidade, em certo sentido, baseada no sentimento de aprisionamento
e castigo, levando-se em consideração a imaginação do trabalho a partir do
modo de produção pré-capitalista presente nesses espaços urbanos.

O modo de produção industrial e a imaginação do trabalho

Estabelecido o processo de separação dos trabalhadores dos meios de


produção, surgem as condições necessárias para vigorar um novo modo de
produção econômica (MARX: 1996, p. 341), o que significa também dizer, que se
firmam novas relações de trabalho e alterações nas dinâmicas dos espaços
urbanos, que com o surgimento da indústria, passam a se tornar o centro da vida
coletiva.

Sobre o novo modo de produção, encontramos na obra de Marx um


detalhamento e aprofundamento, porém trarei aqui alguns pontos relevantes
que caracterizam o modelo industrial, a fim de termos as informações necessárias
para fazer a relação com a imaginação do trabalho presente no pensamento e
obra de James Hillman.

O modelo de produção capitalista tem como principais características


presentes em sua dinâmica o dinheiro transformando-se em capital, o capital
tornando-se produtor da mais-valia e a mais-valia, por sua vez, gerando lucro
(MARX: 1996, p. 339). Apresenta-se como característica também, a
transformação da força de trabalho humano em mercadoria, bem como, custo
de mão de obra barateada, longas jornadas de trabalho, caráter repetitivo da

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 223


produção, no qual houve um distanciamento das etapas do processo produtivo,
outrora produzidas integralmente por um único trabalhador. As fábricas e
indústrias passaram a assumir a posição de principais atividades econômicas e
fornecedoras de ofertas de emprego.

Houve, portanto, uma relevante alteração na forma de conceber e


significar a realidade. Criaram-se, com o modelo industrial, novas imagens
referentes ao mundo do trabalho, que agora deixa de ser somente o arquétipo
da servidão, do castigo, para tornar-se o arquétipo do trabalhador como uma
mercadoria, sujeito às máquinas industriais, diante da alienação da produção e
de péssimas condições de trabalho. Percebemos a ilustração desse arquétipo na
pintura de um dos grandes artistas alemães da época industrial, Laminadores de
ferro, de Adolph Von Mozel, 1875, Galeria Nacional, Berlim, Alemanha 4. Na
imagem encontramos a dinâmica de trabalho na laminação de ferro para fins
industriais. Os operários estão em um ambiente quente, fechado, divididos em
etapas de produção, dependentes do maquinário para realização das tarefas.

Um dos pontos relevantes a observar aqui desse período é a produção de


um discurso favorável ao trabalho industrial e desenvolvimento da sociedade
burguesa. Entre as diversas alterações que inflamaram a sociedade, cabe aqui
ressaltar a imagem com relação ao trabalho. O que antes era visto como servidão
e castigo passou a ser desenhado no discurso burguês e religioso (em alguns
pontos da Europa até influenciar outras áreas) como virtude, vocação e dom
divino. O tempo passou a ter outra imaginação, passou a ser pintado como
dinheiro e o trabalho estimulado como dignidade humana (WEBER: 2004, p.
42, 43, 44, 45).

Ao refletir sobre a sociedade industrial e o modo de produção capitalista,


que aqui eu trouxe de forma bastante resumida, percebemos a complexidade
desse processo e seu impacto na formação das cidades. Após a indústria, as
cidades se ampliam e surgem diversas complicações sociais com a urbanização e
evasão do campo. Como Marx muito bem menciona, houve um discurso de
construção da imagem de libertação do trabalhador do sofrimento da servidão
do feudalismo, mas o trabalhador que agora passa a ser livre no discurso tem
apenas a força de trabalho como moeda de troca para alcançar os meios de
sobrevivência (MARX: 1996, p. 341). Portanto, a promessa de melhoria de

4
Upclosed. Disponível em <https://upclosed.com/people/adolph-von-menzel/> Acesso em 29/08/2017.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 224


condições e liberdade do trabalhador, antes servo e agora operário, proposta
pelo discurso burguês gerou na prática a acentuação de um dos maiores desafios
até hoje presente em nossa sociedade: a desigualdade social.

Percebendo a realidade modificada após o surgimento do modo de


produção do capital a partir da psicologia arquetípica, podemos notar
novamente, a presença da imaginação do trabalho contribuindo para as práticas
da construção da alma coletiva das cidades que remetem ao sofrimento e a
desigualdade. O trabalhador passa a ser visto e se ver como mercadoria, como
uma engrenagem do sistema econômico, mas desfavorecido socialmente. Não se
altera o sofrimento de outrora, mas eleva-o a outro patamar a partir dos modos
de produção do capital e suas consequências nos espaços urbanos. Esses são os
nortes que nos trouxeram aos tempos líquidos apontados por Zigmunt Bauman
vividos na contemporaneidade, a era da fragilidade, da liquidez das relações
humanas. Na qual a percepção da distância física e do tempo é alterada pelos
meios tecnológicos (BAUMAN: 2001, p. 130, 131), o consumo atinge uma
dimensão no imaginário coletivo abismal (BAUMAN: 2008, P. 74) e todo esse
processo foi possível com a alteração dos modos de produção auxiliados pelas
reconstruções das formas imagéticas que significam as atividades humanas.

Considerações finais

Por que a depressão e o estresse se caracterizam cada vez mais como as


doenças da pós-modernidade? Porque a dinâmica das cidades modernas está
tão veloz? Por que estamos tão agitados? Muito se tem falado a respeito do
sofrimento e do sentimento de inconstância, porque não dizer, liquidez, incerteza
e fragilidade das relações entre os indivíduos sociais no período contemporâneo
e aqui faço referência novamente à obra do sociólogo Zigmunt Bauman
intitulada Modernidade Líquida (BAUMAN: 2001, p. 144, 145). Nesse diálogo
interessante entre a psicologia arquetípica e a sociologia, podemos iniciar um
direcionamento para tentar responder as questões propostas acima, e assim,
podemos buscar construir práticas que objetivam um autoconhecimento coletivo.

Com base na psicologia arquetípica de James Hillman, concluímos que


compreender as significações presentes nas atividades produtivas das cidades e
na imaginação do trabalho pode ser uma proposta de estudo válida, já que nos
ajuda a pensar como essas experiências são vividas pelos indivíduos dos centros

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urbanos, uma vez que, essas imagens afetam a forma como trabalhamos
(BARCELLOS: 2017, p. 15) e também como lidamos psiquicamente com as
atividades em que estamos envolvidos, seja nos trazendo sofrimento, seja
proporcionando alegria, satisfação.

Pensando sobre as imagens do trabalho (presentes nos períodos que


antecedem a contemporaneidade) brevemente apontadas neste artigo a partir
dos modos de produção, encontramos pistas do percurso anterior que nos trouxe
até aqui. Portanto, percebemos como a alma das cidades tem sido maltratada ao
longo dos séculos e com ajuda da psicologia arquetípica temos a oportunidade
de pensar em como lidar com o indivíduo dessa cidade que se encontra
psiquicamente dolorido, devido, entre outras variáveis, as nossas construções
sociais interferirem de forma negativa no estado de natureza do trabalho
coagindo a separação do homo faber e do homo ludens, aquele que faz com
aquele que brinca (BARCELLOS: 2017, p. 15, 16). Encontramo-nos agora diante
de um desafio apontado pelo James Hillaman, que é tentar reconciliar essas
categorias primitivas do trabalho, com intuito de buscar um caminho novo para
conhecer a alma de cada um de nós. Um caminho novo no sentido de
redescoberta, tendo em vista que ele já existe dentro da nossa profundidade
psíquica.

Referências bibliográficas

BARCELLOS, Gustavo. Psique e imagem: estudos de psicologia arquetípica.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. – (Coleção Reflexões Junguianas).

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Zigmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em


mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BÍBLIA. Gênesis. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: antigo e o novo


testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Vida, 1996.

BOBBIO, Norberto, Matteucci, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de


política. Brasília DF: UnB, 1998.

BUARQUE, Chico. O que será (À flor da terra). Int: NASCIMENTO, Milton,


BUARQUE, Chico. Meus Caros Amigos. Novo Disc Midia Digital. 1976.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 226


HILLMAN, J. Psicologia Arquetípica: um breve relato. São Paulo: Cultrix, 1988.

HILMAN, J. Entre Vistas – Conversas com Laura Pozzo sobre psicoterapia,


biografia, amor, alma, sonhos, trabalho, imaginação e o estado de cultura. São
Paulo: Summus, 1989.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O Capital: crítica da economia política. Tomo II,
São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os Economistas).

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo . São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 227


Do interior para o exterior:
o exílio de Hestia e o lugar do coração na cidade

Angelita Corrêa Scardua

Mestre e Doutorando pelo Departamento de Psicologia Social da USP (SP). Atua em consultório
há 14 anos e como docente de pós-graduação há 17.

Resumo
Na Antiguidade Clássica Hestia era a deusa do fogo sagrado que guardava e
preservava o estilo de vida das famílias e da civilização. Associada à casa e à
cidade, Hestia era tida como o centro e a essência das coisas e do mundo
percebido. Essa conexão com a origem relacionava Hestia ao coração. A
associação entre centralidade da existência e coração abre inúmeras
possibilidades para se pensar a alma da cidade. Uma dessas possibilidades se dá
pela via dos elementos arquetípicos que configuram a função de Hestia na
ordenação da vida pública e privada como veículo de acesso à sacralidade dos
espaços vividos. Nesse sentido, o coração, como fonte imaginal, pode fornecer os
recursos para que as exigências expansivas da vida urbana contemporânea não
inibam o poder da imaginação e a busca de significado para a vida.

Palavras-chave: Hestia, Coração, Cidade.

Hestia, a casa e a cidade

Na Antiga Grécia, Hestia era a deusa do coração, e o fogo sagrado que


alimentava sua chama era o centro da casa e da vida na cidade. A visão grega –
de centralidade baseada no envolvimento com a rotina da vida cotidiana –
refletia uma condição psicológica básica, na qual a percepção do mundo girava
em torno do espaço vivido: doméstico, conhecido, familiar. Seja em um nível
individual ou coletivo, essa percepção posicionava o sujeito no centro do drama
da vida e definia, de muitas maneiras, a forma como as pessoas se relacionavam
com o lugar que habitavam e com seus habitantes.

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No imaginário grego, Hestia ocupava o lugar de protetora das famílias, das
moradias e também das cidades. Seu culto era muito simples, sendo consagrado
pelo pai ou pela mãe nas famílias e pelas autoridades políticas nas cidades. Sua
chama sagrada e perpétua era mantida nos lares, nos templos e no centro político
de cada cidade. Hestia simbolizava a permanência e a continuidade da família e
da civilização. Nesse sentido, as relações das pessoas com e na cidade
assentavam-se na História comum. No passado, eram nos espaços públicos que
as histórias das cidades eram feitas, narradas e compartilhadas por quem nelas
vivia (MUMFORD, 2004).

Locais como o Fórum Romano, na Antiga Roma, representavam a


centralidade da vida nutrida pelo fogo sagrado de Vesta, o equivalente latino da
deusa Hestia. O Fórum, uma grande praça retangular em torno da qual encontra-
se a maioria das estruturas arquitetônicas mais importantes da cidade antiga, tais
como o Coliseu e o Palácio Imperial, foi por séculos o centro da vida pública
romana. Nele aconteciam cerimônias cívicas e religiosas, as eleições, os discursos
públicos, os processos criminais e tudo o mais que fazia de Roma uma metrópole
efervescente em sua época. É também no Fórum que se encontra o Templo de
Vesta (século VII a.C.), onde nutria-se o fogo sagrado considerado a alma da
cidade de Roma. O fogo de Vesta era alimentado e cuidado por suas
Sacerdotisas, as Vestais. A importância simbólica da perpetuação do fogo de
Vesta se dá pelo fato de que se acreditava que ele assegurava aos Romanos que
o seu estilo de vida, os seus lares e a sua cidade estavam protegidos e guardados
pela Deusa (WORSFOLD, 2010).

A associação entre Vesta e a estabilidade dos modos de vida conhecidos


no imaginário greco-romano está intrinsecamente ligada à origem e função de
Hestia. O nome de Hestia tanto significa “essência” como “coração”: a verdadeira
natureza de tudo. Ou seja, à Hestia tanto corresponde aquilo que é fundamental
na existência, portanto, imutável e natural, quanto o vínculo afetivo produzido
pelas emoções e imagens que a constituem. Para os gregos, a extinção da chama
de Hestia equivalia à morte, a uma existência fria e estéril.

Apesar de representar a substância da própria vida, Hestia tornou-se


praticamente desconhecida. Há entre estudiosos da Mitologia Grega quem se
refira à deusa Hestia como “a deusa esquecida” (PARIS, 1991). Talvez isso se deva
ao fato de que, ao contrário de outras divindades gregas, Hestia não tem uma
“história”. Há pouquíssimos relatos de aventuras que a envolvam. Hestia

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 229


simplesmente “é”! Não são suas ações que a definem, mas suas virtudes: leveza,
suavidade, tolerância, serenidade, dignidade, calma, segurança, estabilidade,
acolhimento, perdão, equilíbrio. Ou seja, o que define Hestia são os efeitos de
sua presença. As emoções e sentimentos que ela gera e acalenta. Talvez por sua
associação com o que é imaterial, por sua intangibilidade, o coração de Hestia foi
sendo progressivamente substituído pelo espírito apolíneo.

A transformação da casa e da cidade

Apolo, ao contrário de Hestia – que representa o centro de si-mesma, da


casa, da cidade, do mundo – simboliza a expansão, o deslocar-se para fora. O
exílio simbólico de Hestia do Olimpo promove um redirecionamento da visão de
mundo e de espaço nele vivido. Move-se de uma percepção da vida centrada no
lugar de origem para o entendimento de uma existência heliocêntrica, forjada na
razão do conhecimento do cosmos, do que está para além dos territórios
familiares, fora das fronteiras baseadas nas histórias narradas pelo senso
comum, pelas escolhas imaginativas do coração.

Essa mudança promoveu uma intensa ampliação na cultura e no


pensamento humano. Um crescimento no entendimento dos fenômenos
naturais, nas leis físicas que regem a vida e o universo, um alargamento do
espaço e dos lugares habitados e percebidos. Tais transformações, que parecem
se propagar horizontalmente, tendem, contudo, a desconsiderar a conexão com
a dimensão vertical da existência. A dimensão representada pela profundidade
das virtudes de Hestia. Virtudes baseadas na experiência do coração e que a
circundam como a deusa que está inteira, “um completo dentro de si mesma”,
cuja existência se dá na sacralização do espaço interno. Assim, enquanto Hestia
encarna o espaço sagrado, onde as pessoas se reúnem e a alma tem um lugar. O
espírito apolíneo profana os limites da interioridade, projetando a alma num
espaço destituído de centro.

Nas casas e nas cidades modernas, apolíneas, o interior é sacrificado em


nome do exterior. As famílias já não se reúnem mais em torno de alguma coisa,
seja um fogão ou uma televisão. Cada vez mais as casas vão sendo ordenadas e
compartimentadas de forma a isolar seus moradores em cômodos individuais.
Pouco se interage nas casas modernas. Não há jardins luxuriantes, nos quais o
excesso estético de Afrodite convida a apreciação da beleza. Não há hortas e

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pomares nos quais a fertilidade de Deméter sinaliza os ciclos da vida. Não há
refeições diárias à mesa, preparadas no calor da cozinha, no coração da casa,
onde Hestia nutre os corpos e as almas. As casas modernas, assim como as
cidades, são espaços que não promovem o convívio, o encontro, a troca, a criação
de histórias sobre a existência e a vida. Elas são espaços áridos, regidos pela
pureza das linhas retas, pela claridade ofuscante das luzes intensas, quase
solares, que querem revelar as sombras, as dúvidas, os segredos, os mistérios da
vida.

As cidades modernas oferecem à visão grandes panorâmicas, com


edifícios que apontam para o céu, desviando o olhar da terra e do horizonte.
Quando olhamos para cima perdemos a intimidade do contato, nos distanciamos
do princípio do centro e perdemos a habilidade de no concentramos em nós
mesmos e nos outros. Abandonamos a perspectiva do lugar sagrado onde se
cultiva a alma. Retiramos das construções seu arcabouço histórico, sua função
de repositório de lembranças pessoais e coletivas. No mundo apolíneo, as
edificações ideais são erigidas de forma que não se permita a consolidação das
marcas do tempo, como ocorria com as estruturas típicas dos prédios antigos em
seus beirais e sacadas (HILLMAN, 1993). Ao dessacralizar os espaços construídos,
sacrificamos o interno em detrimento de um projeto de externo idealizado na
atemporalidade, na perfeição mecânica da razão. Banimos a Hestia do centro da
casa e da cidade. A perda da centralização de Hestia tem levado a uma
fragmentação de nós mesmos, e nossas cidades espelham isso.

Hestia e Hermes: Do interior para o exterior

Um aspecto forte da fragmentação de nós mesmos na cidade moderna


talvez seja a conectividade virtual. Hoje, nos centros urbanos, as pessoas, nos
espaços privados e públicos, conectam-se no ciberespaço. James Hillman (2007)
viu Hermes como a figura arquetípica dominante nas redes de comunicação
interconectadas, globais e instantâneas de hoje, das quais a internet é a mais
emblemática. Na visão do autor, Hermes é do lado de fora e Hestia é do lado de
dentro. Nesse sentido, pode-se pensar que a conectividade permite que Hermes
invada o espaço que, anteriormente, era próprio de Hestia. Enquanto Hestia
ocupava o epicentro da habitação humana, simbolizando permanência,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 231


imutabilidade e centralidade, Hermes está sempre correndo entre os mundos,
habitando muitos e diferentes lugares sem pertencer a nenhum deles.

É comum encontrarmos o estabelecimento de uma certa


complementariedade entre Hermes e Hestia. Eles funcionariam como
extremidades opostas de um espectro, mas parte do mesmo conjunto. Por um
lado, Hermes sem Hestia torna-se livre. Uma liberdade irresponsável e sem
propósitos ou direção. Ele se torna, como a humanidade, vagabundo (GOUX,
1983). Por outro lado, Hestia, mantém as coisas ordenadas em casa, com sua
atenção focada e disciplinada (Hillman, 2007). Hestia garante o lugar seguro e
quieto para o qual o viajante poderá voltar quando se cansar de suas aventuras.
O descompasso, a fragmentação, então, pode ocorrer quando a invasão do
espaço de Hestia por Hermes – de “dentro” pelo de “fora” – não deixa lugar para
o privado, o íntimo, o pessoal e, assim, não se pode retornar à casa porque não
há lugar interior para regressar que se diferencie do mundo exterior.

No pensamento grego, uma espécie de casamento simbólico existiu entre


Hermes e Hestia, embora Hermes nunca cruzasse seu limiar. Psicologicamente, a
união desses deuses tão distintos permitiu a conexão com o coração como o
centro. De certa forma, a união de Hermes e Hestia oferece uma representação
arquetípica de viver e explorar o mundo exterior criativamente, mas sempre
podendo retornar ao interior, ao centro.

No imaginário grego a imagem cultural do centro era a deusa Hestia.


Como uma imagem compartilhada socialmente, qualquer indivíduo tinha acesso
fácil a referência simbólica do centro: o coração. Naquele contexto, o coração foi
descrito como o símbolo da comunidade, do lar. Esse símbolo, enquanto vivo e
culturalmente importante, era uma conquista cultural disponível para todos
cidadãos, cujo significado anímico povoava tanto a vida individual e privada
quanto a coletiva e pública. Um exemplo disso foi a cidade grega de Delphos.
Delphos era conhecida como Omphalos (o umbigo da terra). Os gregos
acreditavam que todas as partes da terra giravam em torno deste umbigo, razão
pela qual o maior templo da cidade era dedicado à Hestia. Como centro, não
apenas simbólico, mas também topográfico, Hestia era um centro de paisagens:
um local geográfico, uma cidade, a casa e nossos próprios centros pessoais
(PARIS, 1991).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 232


Se quisermos recuperar o lugar do centro no imaginário atual, retornando
a alma a seu lugar sagrado na vida cotidiana nas casas das cidades, devemos
primeiro recuperar o seu órgão: o coração. A imersão na vida significativa, em
seu sentido anímico, exige um refinamento da percepção, que deve ser baseada
no coração que imagina e sente. O pensamento do coração é o pensamento das
imagens. O coração é a sede da imaginação, e esta é a voz autêntica do coração,
de forma que se falamos do coração, devemos falar imaginativamente
(HILLMAN, 1979).

Para Hillman, o poder retórico e imaginativo do coração reside em


conceber, imaginar, projetar, desejar ardentemente. Sem esse poder do coração
somos sequestrados pelas ilusões psicológicas modernas. Perdemos a referência
do que é essencial e interno. Quando negligenciamos a imaginação como fonte
de acesso ao que é subjetivo e fundamental adoecemos. Não é à toa que as
doenças cardíacas, assim como o adoecimento afetivo, ocupam tanto espaço na
vida urbana contemporânea.

A vida na cidade favorece o adoecimento, não porquê a existência ideal se


dá na natureza, mas porque o estilo de vida urbano tem nos afastado do centro.
Perdemos o contato com Hestia, desaprendemos a perceber o mundo com o
coração, a imaginar. Optamos pelos caminhos expansivos e discriminatórios do
espírito apolíneo. Prefrimos classificar, categorizar, crescer, planejar e
desqualificamos o aguardar, nutrir, cultivar, acolher, preservar. Com essas
escolhas, permitimos a invasão descontrolada de Hermes nos domínios de Hestia
e já não conseguimos mais retornar à casa.

A casa na cidade, hoje, é dormitório, passagem. Espaço interno no qual


nos mantemos conectados com o externo, e nele projetamos todos os nossos
desejos, temores e esperanças. Vivemos fora, mas não é o fora da Ágora grega
ou do Fórum Romano. Não é o fora no qual interagimos com os outros olhando
nos olhos, trocando informações, ideias, imagens, sentimentos, pensamentos.
Não é um fora que nos ajude a dar significado ao dentro. Vivemos fora do centro
da vida, e a chama de Hestia já não é mais alimentada no coração dos templos,
das casas ou das pessoas.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 233


Hestia e o lugar do coração na cidade e no Imaginário

Nas cidades contemporâneas, assim como nas casas, e talvez também nas
pessoas, o coração perde sua relevância imaginal. O coração já não é mais a fonte
do poder de imaginar e de desejar, uma vez que ele há muito deixou de ser o
centro. No Imaginário atual o centro da existência passou a ser o cérebro, com
seu poder de “revelar” os mistérios por trás dos sentimentos, pensamentos e
ações. Nesse universo desvelado não há lugar para o intangível, para o que não
possa ser classificado, para o que escapa ao escrutíneo apolíneo ou para a
urgência comunicativa de Hermes.O centro da existência foi tomado de assalto
pelo ordenamento masculino!

Arquetipicamente falando, o espaço feminino, tanto nas casas quanto nas


cidades foi sendo progressivamente subjugado pelo masculino. O fogo sagrado
de Hestia pouco tem crepitado nos lares. O nutrir, o agregar e o acolher não
encontram mais abrigo na vida cotidiana. Cada vez mais, nos projetos
arquitetônicos das moradias urbanas, as cozinhas – “O coração da casa” – têm
encolhido, tornando-se um lugar para refeições rápidas preparadas no micro-
ondas. Até mesmo os fogões vão perdendo a chama ao serem substituídos pelos
cooktops ou pelos serviços de delivery de comida. O ato de cozinhar, tão próximo
das tarefas atribuídos ao reino privado e familiar de Hestia, tornou-se um
espetáculo público, no qual experts exibem-se para os convidados nos finais de
semana ou nas telas das televisões.

As televisões, que num passado recente agregavam as famílias em torno


de sua luz para o mundo, perderam essa função nas casas. Os habitantes das
moradias contemporâneas trocaram as televisões pelos smartphones e pelo
egoísmo da “tv” no quarto ao invés de na sala. Não há mais o que congregue a
alma das famílias em torno de um centro. Não há mais o deleite dos sentidos,
invocado pelas deidades femininas como Afrodite ou Deméter que fazem pulsar
o coração seduzido pela beleza ou pela necessidade. Nas casas ou nas cidades, a
função utilitária de tudo confere status ao que é mais novo, mais funcional, mais
ostensivo. Nas casas e na vida urbana contemporânea, até mesmo a estética tem
sido tomada como um recurso de afirmação de poder e de distanciamento do
centro.

Quanto mais poderosa e rica for a casa ou a cidade, mais os recursos


estéticos considerados agradáveis e desejáveis serão utilizados para afastar o

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 234


centro. Muitos compartimentos e múltiplas zonas de convívio fazem das belas
casas e cidades atuais espaços fragmentados, onde o coração (o centro) é
subtraído de seu papel de levar o fluído vital aos extremos do corpo, as vísceras
e o cérebro. É dessa forma que as cozinhas e as salas das casas se esvaziam,
tornando-se não-lugares no espaço doméstico, nos quais os moradores apenas
transitam ou recebem convidados. Enquanto os quartos e banheiros aparecem
como o espaço preferido para a vivência de uma interioridade, ainda que
frequentemente conectada com o exterior por meio dos aparelhos eletrônicos.

Similarmente, as cidades se organizam em extremos. Contrapondo os


bairros que crescem desordenadamente pelo fluxo contínuo das idas e vindas de
“estrangeiros” e não “cidadãos” que trafegam hermeticamente entre os espaços
urbanos em busca de suas propagadas oportunidades. Ora nos condomínios, de
luxo ou não, cujo planejamento guia-se pela regularidade e pela norma apolínea
da simetria que promete segurança e proteção. Assim, os Centros das cidades vão
sendo abandonados, com construções malcuidadas e comércio clandestino. A
maioria dos Centros das cidades contemporâneas tornaram-se o espaço dos
elementos sombrios da sociedade, das figuras que não circulam sob a luz
ofuscante do espírito apolíneo ou que não conseguem se deslocar e se comunicar
com a desenvoltura de Hermes.

Os drogados, os marginais, os que vivem nas bordas, que não têm lar ou
centro, os destituídos de Hestia, passaram a povoar os Centros das cidades. É
ainda nos Centros de muitas cidades, porém, que as vidas se cruzam, pelo menos
por breves instantes, nas grandes estações de metrô e de trem, nos terminais de
ônibus. Um cruzamento instantâneo que ao invés de minimizar o distanciamento
e a fragmentação, expõe. As grandes vias de circulação de pessoas e veículos
explicitam como o contato físico diário entre os moradores das cidades já não
mais corresponde a um encontro de afetos e sentidos. Ao contrário, demonstra o
crescimento das cidades para as margens e a segmentação das vidas. E isso expõe
o coração da cidade, suas veias entupidas nas quais o fluído vital encontra
dificuldade para irrigar o centro da existência cotidiana.

O coração adoece com a alimentação empobrecida, com a falta de contato


humano significativo, com a correria diária que acelera seu ritmo e embota a
percepção de suas necessidades. O coração adoece na cidade conectada, na qual
os olhares, agora, se fixam nos aparelhos celulares e se quer divisam o horizonte
ou as linhas verticais das edificações pelas quais poderia se vislumbrar o céu. Ao

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 235


adoecer, o coração perde seu poder imaginativo limitando a possibilidade de
atribuir-se sentido a própria vida. Hillman (1993) oferece uma perspectiva
alternativa para o lugar do coração na cidade. Ao apresentar sua concepção de
Alma da cidade, o autor desenvolve o termo grego aisthesis, que está associado
ao processo de internalização das reações estéticas frente as imagens que nos
são apresentadas. Ou seja, ele nos fala sobre a relevância de se apreender as
imagens do cotidiano através do coração.

Compreender o mundo por meio das emoções que o próprio mundo


desperta em nós. Uma compreensão que não é racional, mas um arrebatamento
afetivo, um deixar-se afetar. Uma compreensão do mundo na qual imaginar e
sentir as coisas ocorrem concomitantemente. Esse coração capaz de internalizar
as imagens do cotidiano não pode ser reduzido às sensações corpóreas. Ele é um
coração desejante e, por isso, imaginativo e criativo. Um coração desperto,
animado pela Anima Mundi. Nos diz Hillman - “Para sentir penetrantemente
devemos imaginar e, para imaginar com precisão, devemos sentir” (HILLMAN,
1993, p. 17). A perspectiva que ele nos oferece para realocar o coração na cidade,
e nas vidas de seus habitantes, exige o resgate da alma que há em cada coisa
cotidiana.

O resgate da alma das coisas cotidianas nos leva de volta ao universo


feminino de Hestia, no qual a interioridade física do centro oferecia um lugar
sagrado para o coração. Nesse espaço sagrado o coração atribuía sentido à
existência pelo acolhimento do desejo e da necessidade de nutrir-se os vínculos,
fossem estes entre as pessoas ou com o lugar vivido. Na construção desses
vínculos a imaginação dava forma à experiência, individual e coletiva, colocando
o sujeito no centro do drama da vida. Talvez, após as incursões de Apolo e de
Hermes no território de Hestia, já não faça mais sentido a perspectiva do cultivo
da alma, da cidade ou das pessoas, em espaços físicos sagrados. Talvez, e apenas
talvez, o chamado para o mundo exterior nos exija a capacidade de sacralização
dos espaços intangíveis da percepção e da imaginação. E talvez, apenas talvez,
devamos pensar na alma como uma possibilidade imaginativa sobre o mundo e
as coisas, cujo recurso seminal é um coração que deseja e, por essa razão, capaz
de criar espaço e sentido de vida onde aparentemente não há.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 236


Referências bibliográficas

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Kessinger Publishing.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 237


Herança de Caim – Reflexão e construção da alma na cidade

Karam Valdo; Thâmara Oliveira Ulle Valdo

Karam Valdo é psicólogo, formado pela Unifaj e especialista em Psicologia Analítica Junguiana,
pela Unicamp. Jornalista formado pela PUC-Campinas e especialista em Jornalismo Literário pela
Metrocamp e ABJL.

Thâmara Oliveira Ulle Valdo é psicóloga, formada pela PUC-Campinas e especialista em Psicologia
Analítica Junguiana, pela Unicamp.

Resumo
O presente artigo se propões a fazer uma reflexão sobre a cidade, sua capacidade
de nos moldar internamente e como ela também nos revela externamente.
Adotando a visão da Psicologia Arquetípica o artigo discute como a cidade é um
microcosmo da civilização que se afasta da natureza selvagem e revela os aspectos
sombrios que é preciso lidar para integrar a sua alma, construindo um paralelo
com a história de Caim, contada em Genesis, que matou o seu irmão por ciúmes
e foi o fundador da primeira cidade. Para o reconhecimento e integração da alma,
os autores sugerem um trabalho em conjunto entre psicologia profunda e
arquitetura.

Palavras-chave: cidade, Psicologia Arquetípica e Arquitetura.

Conta o livro de Genesis (Gn. 4:1) que o lavrador Caim, após matar seu
irmão e pastor Abel por ciúmes, já que ele era o preferido do Senhor por oferecer
as melhores oferendas de seus rebanhos, rumou para o lado leste do Éden, onde
teria se empenhado em construir o que seria a primeira cidade. Colocara nela o
nome de seu filho, Enoque. Este nome significa o iniciado. Tomando esta história
como uma metáfora do desenvolvimento do ser humano, iniciava-se aqui um
período diferente para o Homo sapiens, até então caçadores-coletores e pastores
nômades passaram a trabalhar com a terra, esquadrinha-la, moldá-la e civiliza-
la por meio da agricultura e posteriormente das cidades.

Chevalier (2015), ao discutir a visão simbólica das cidades na humanidade,


afirma que, diferente das aldeias nômades, que eram de estrutura redonda,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 238


refletindo movimento, as cidades começaram a ser estabelecidas em formas
quadradas ou retangulares, que reflete a estabilidade sob muros e proteção do
mundo externo, a cidade então passou a abrigar os homens e a diferenciá-lo do
selvagem. As cidades chinesas, segundo o autor, tinham quatro portões, um em
cada lateral, que se estendiam por vias que se cruzavam no centro, formando
uma grande mandala.

Ainda no simbolismo da cidade, Lexicon (1990) reitera que a cidade


protege e abriga seus filhos, como uma mãe oferecendo o duplo aspecto de
proteção e limite. Por isso, geralmente, as cidades são representadas pelo seu
aspecto feminino, deusas com uma coroa de muros. Esta noção se estende até o
final da idade média, quando as cidades retomaram seu poder dos feudos. Eram
comumente representadas pela imagem da Virgem Maria.

Se a natureza selvagem nos propiciou o contato com o sagrado, os mitos


e religiões, a cidade tornou-se a base para o desenvolvimento de nossa filosofia
e, consequentemente, das ciências que moldam nossa vida e cotidiano até hoje.
Com a estabilidade física, o ser humano pôde “roubar o fogo dos deuses”, e
desenvolver pela via da imaginação a vida abstrata.

É fato que este desenvolvimento da abstração e do afastamento do


homem de sua natureza trouxe um custo. É possível enxergar com clareza este
custo nas formas de arte, que de alguma maneira é o ponto de contato com a
nossa natureza selvagem e sagrada. Na literatura, Eça de Queiroz (1901) retratou
a ilusão da cidade no crepúsculo do século XIX.

— Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão! Tão


facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu
Príncipe, uma ilusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa
ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte
de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força
e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e
escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como
trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com
chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem
viço, torto, corcunda — esse ser em que Deus, espantado, mal
pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade
findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma
necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma
dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 239


solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um
Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos,
etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares
que os de um cárcere ou de um quartel... A sua tranquilidade (bem
tão alto que Deus com ela recompensa os santos) onde está, meu
Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo
pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia
rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses
milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de
desejar — e que, nunca fartando o desejo, incessantemente
padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos
mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! ”
(Queiróz, 1901 p.97-98)

Em Eça de Queiroz, somos capazes de enxergar como a cidade nos coloca


em contato com a Sombra. Na concepção da Psicologia Analítica a sombra
pessoal,

“(...) se refere a parte da personalidade que foi reprimida em


benefício do ego ideal. Como tudo o que é insciente é projetado,
encontramos a sombra na projeção (...) A sombra, portanto,
consiste nos complexos, nas características pessoais que
repousam em impulsos e padrões de comportamento os quais
são uma parte ‘escura’ definida da estrutura da personalidade.
Em muitos casos são facilmente observáveis pelos outros. Apenas
nós não conseguimos vê-los. As características da sombra, em
geral, estão em evidente contraste com os ideais do ego e com os
esforços da vontade. O altruísta sensível pode conter em si
mesmo, um egoísta brutal; a sombra do lutador corajoso pode ser
um covarde manhoso; a namorada amorosa pode abrigar uma
bruxa cruel. A existência ou a necessidade de uma sombra é um
fato arquetípico humano geral, já que o processo de formação do
ego – o choque entre a coletividade e a individualidade – é um
padrão humano geral. A sombra é projetada de duas maneiras:
individualmente, na forma das pessoas a quem atribuímos todo
o mal; e coletivamente, em sua forma mais geral, como o Inimigo,
a personificação do mal, suas representações mitológicas são o
demônio, o arqui-inimigo, o tentador, o maligno ou o duplo; ou

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 240


de dois irmãos ou irmãs, aquele que é moreno ou mau. ”
(WHITMONT, 1994 p.144, 146).

De acordo com Whitmont (IDEM, 1994), a sombra é a porta para a nossa


individualidade, nos apresenta nossa primeira visão da parte inconsciente da
nossa personalidade e não há acesso ao inconsciente e a nossa própria realidade
a não ser por meio da sombra. Apenas quando reconhecemos aquela parte de
nós mesmos que ainda não vimos, ou preferimos não ver é que podemos seguir
em frente questionar e encontrar as fontes em que ela se alimente a base em que
repousa.

Além de dar acesso à nossa individualidade, os aspectos sombrios


coletivos, da mesma maneira, dão acesso à nossa verdadeira alma coletiva.
Quanto mais nos afastamos de nossa natureza selvagem e buscamos a chamada
civilização, mais a nossa natureza selvagem e instintiva se esconde no
inconsciente. “(...) nossas projeções transformam o mundo que nos cerca em um
ambiente que nos mostra nossas próprias faces, embora não as reconheçamos
como nossas” (IDEM, 1994).

A partir daí, pelo mecanismo da projeção, é possível ver essa alma


selvagem projetada em todos os cantos da civilização. Se para Jung os deuses
tornaram-se as doenças em nossa contemporaneidade, Hillman nos parece
direcionar para um entendimento de que as doenças estão se tornando formas
de governo, economia, políticas e organizações coletivas. A alma do mundo nos
invade com seu sofrimento.

“Não apenas a minha patologia se projeta sobre o mundo; o


mundo também está nos inundando com seu sofrimento que não
se alivia. Depois de cem anos de solidão da psicanálise, tenho
mais consciência do que eu projeto no mundo exterior do que
aquilo que é projetado sobre mim pela inconsciência do mundo”.
(HILLMAN, 1993 - p. 13)

A cidade encarada, dessa maneira, além de poder nos ajudar a observar o


que temos internamente, pode nos levar à consciência do mundo. A cidade nos
dá essa oportunidade de vermos nossa não civilidade e assim nos dá também a
oportunidade de nos transformarmos internamente. Construir junto dentro e

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 241


fora. Neste aspecto, psicologia e arquitetura têm então um caminho a trilhar
juntas.

“Qualificar um prédio de ‘catatônico’, ‘anoréxico’ significa


examinar o modo como ele se apresenta, seu comportamento e
sua estrutura desencarnada, alta, rígida, magra, sua fachada
envidraçada, frieza dessexualizada, sua explosiva agressividade
reprimida, seu átrio interior vazio seccionado por colunas
verticais”. (HILLMAN, 1993 - p. 16)

Desta maneira, de acordo com Hillman (1993) “naturalmente, a psiquiatria


social, seja behaviorista, marxista ou concepções ainda mais abertas enfatiza
fortemente as realidades exteriores e localiza as origens da psicopatologia em
determinantes objetivas. O “lá fora” determina largamente o “aqui dentro”, de
acordo com esse ponto de vista.

“Os dicionários de psicologia e as escolas de todas as orientações


concordam que a realidade é de dois tipos: primeiro, o mundo
significa a totalidade dos objetos materiais existentes ou a soma
das condições do mundo exterior. A realidade é pública, objetiva,
social e, normalmente física, segundo, existe uma realidade
psíquica não avaliada em espaço – o reino da experiência
particular, que é interior, desejosa, imaginativa. Tendo separado
a realidade psíquica da realidade exterior ou bruta, a psicologia
elabora várias teorias para juntar duas ordens, já que a divisão é
realmente preocupante. Isso significa que a realidade psíquica
não foi concebida para ser pública, objetiva ou física, enquanto a
realidade exterior, a soma dos objetos e das condições materiais
existentes, foi concebida para ser completamente destituída de
alma. Assim como alma existe sem mundo, o mundo também
existe sem alma (...) A psicoterapia tem trabalhado com sucesso
na sua esfera de realidade psíquica concedida enquanto
subjetividade. E agora, mesmo com seu sucesso nesse ponto
entra em discussão no tocante às queixas dos pacientes se
ajustarem aos problemas que não são mais meramente subjetivos
no sentido antigo, pois durante todo o tempo que a psicoterapia
teve êxito em aumentar a consciência da subjetividade humana,
o mundo no qual todas as subjetividades são estabelecidas se
desintegrou. A crise está em num diferente – Vietinã, e Watergate,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 242


poluição e crime nas ruas, a queda no nível de instrução e o
aumento de lixo, fraudes e exibições. Agora encontramos a
patologia na psique da política e da medicina, na linguagem e no
design, no alimento que comemos. A doença está agora ‘lá fora’.”
(HILLMAN, 1993, p. 11 e 12)

O nosso interior é refletido externamente nas cidades, no entanto as


cidades também refletem internamente em nós. Dependendo de nossa memória
de nossas experiências vividas em um lugar para elaborarmos nossas próprias
questões. A cidade externa é a matéria-prima para a imagem interna, que pode
nos transformar pela via da emoção.

Mapas e memórias estão intimamente ligados com nossas emoções.


Assim, o que determina a escala de nossos mapas mentais é o que sentimos. Por
exemplo, o mapa mental do bairro onde nascemos e crescemos deve ser bem
mais detalhado do que horas e horas numa estrada. No bairro você deve ver os
cachorros, as árvores que tem que desviar no meio da calçada rachada, vê as
crianças do vizinho. Na estrada vê asfalto e linhas, branca e amarela – quantas
vezes você já se perguntou se estava no caminho certo? – a escala aumenta.

Voltar para lugares onde a imaginação nos diz que fomos felizes traz, de
presente, um pacote de memórias, cheiros, pessoas e lembranças que fazem
daquele lugar um lugar íntimo e pessoal. Não existe para mais ninguém pelo
simples fato de que as suas emoções e as suas memórias serem únicas e restritas
aos seus limites. O lugar é uma ilusão do que você sentiu.

Assim, a cidade reflete não apenas memórias pessoais, mais também


coletivas. A arquitetura pode incluir ou excluir a alma do mundo. Mostrá-la ou
nos privar da transformação reforçando as atitudes de nossa natureza selvagem
reprimida e sombria. Quantas vezes não vimos projetos arquitetônicos sendo
executados para limpar a cidade de moradores de rua, travestis e prostitutas?
Quantos bairros não foram criados na periferia, a partir desta exclusão, para a
“pessoa de bem” não ter contato com essa realidade crua da vida, da qual são
diretamente responsáveis? Brasília, diz o senso comum, é uma cidade onde
dificilmente se encontra transporte público eficiente. Foi estrategicamente
planejada para ser a sede do governo de um povo sem acesso aos seus
governantes.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 243


Se a cidade um dia foi a metáfora para o corpo (CHAVALIER, 2015),
podemos facilmente enxergar que há uma cisão, refletida pelos aspectos
econômicos. E a cisão para psicologia pode apontar para uma grave psicose, até
o momento sem cura. Para ilustrar com uma imagem este exemplo: escritor
escocês Robert Louis Stevenson, autor do célebre “O Estranho Caso de Dr. Jekyll
e Mr. Hyde” morou na capital da Escócia do século XVII, Edimburgo, uma cidade
dual onde, a partir de 1766, o arquiteto James Craig, de orientação liberal,
construiu uma nova cidade totalmente separada da cidade medieval. Conhecida
como New Town (Cidade Nova) tornou-se o lar de comerciantes, banqueiros,
profissionais liberais, professores da Universidade. A cidade medieval, conhecida
como Old Town, foi entregue à escória da sociedade, à vida boêmia e ao crime,
onde muitos desses “cidadãos de bem” frequentavam durante a madrugada. O
romance de Robert Louis Stevenson, conta a história de um respeitável médico
da cidade que, nas sombras da noite, tornava-se um monstro terrível. Talvez
fosse a metáfora de Edimburgo na época.

Em um exemplo mais recente da interação entre a visão psicológica e a


arquitetura, podemos citar o arquiteto Paulo Mendes da Rocha que afirmou
categoricamente, em uma entrevista, que o medo que as pessoas comumente
sentem do centro da cidade reflete, na verdade, o medo da liberdade.

No centro de uma metrópole, como São Paulo, onde ele vive e trabalha,
toda diversidade humana está andando ali ao seu lado.

Durante a reforma do Sesc 24 de Maio, Paulo, responsável pelo projeto


arquitetônico, decidiu colocar os olhos nessa diversidade. As paredes de tijolo do
prédio foram retiradas e, em seu lugar ficou um revestimento de vidro que
permite interagir com a cidade ao redor, inclusive com uma área de passagem
integrada à rua no térreo.

“Eu vou dizer uma coisa: a vida urbana, de um modo geral, é a


coisa mais livre que pode existir para um homem hoje, no mundo.
É viver nas áreas centrais das cidades. Tanto que você pode
dormir na rua. Este dito medo das áreas centrais é justamente de
quem tem medo da liberdade. Tem gente que tem pavor desta
liberdade. Eu acho que as pessoas têm medo da própria
liberdade. Tem medo de ter que escolher o que fazer. Preferem
ser comandadas. E a diversidade assusta muito as pessoas,
segundo o mesmo. ” (BACOCCINA, 2017)

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A cidade nos reflete, não apenas em nossos conteúdos pessoais, mas
também as sombras de nossa coletividade. O afastamento da natureza selvagem,
o desenvolvimento unilateral da consciência, foi e é necessário para que a
consciência humana desponte seu caminho de evolução. A arquitetura e a
psicologia podem lançar um olhar para a cidade, suas questões subjetivas
impostas pelo modo de vida, pelos edifícios, ruas, becos, avenidas.

A integração da alma da cidade depende do reconhecimento da


diversidade, presente no mesmo espaço físico, na estabilidade de um centro
urbano. A arquitetura pode nos ser um meio de lidamos ainda com a herança de
Caim, a fuga da natureza selvagem. A civilização, que mora nas cidades, deve ter
seus aspectos sombrios iluminados, tanto pela subjetividade pessoal quanto
pelas ruas, moradias e edifícios que compartilhamos. A cidade é um microcosmo
da civilização.

Referências bibliográficas

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entrevista com Paulo Mendes da Rocha. Disponível em
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Praticar

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 246


Profundidades na cultura dos territórios

Denise Jorge

Doutora em Psicologia Social pelo instituto de Psicologia da USP (2018). Mestre em Psicologia
Social pelo Instituto de Psicologia da USP (2013). Especialista em Psicologia Analítica pela Clinica
Paeeon - Unisal (2011). Possui bacharelado, licenciatura e formação de Psicólogo pela
Universidade Paulista (2009).

Neste relato, eu vou compartilhar minha experiência de imersão em um


território, o Jardim Pedramar, bairro localizado na periferia da cidade de Jacareí
(SP). Minhas reflexões se embasaram nos referenciais da psicologia analítica,
iniciada por Carl Gustav Jung e da psicologia arquetípica – vertente da psicologia
analítica – apresentada por James Hillman. O termo psicologia arquetípica foi
usado pela primeira vez por Hillman (1991) em 1970, com a intenção de abrir
uma possibilidade diferente para se pensar a psicologia analítica, numa proposta
de levá-la além da clínica, para fazer uma apreciação do mundo e das coisas do
mundo, das cidades e dos lugares.

Entre 2010 e 2013, durante meu mestrado, eu realizei um estudo


empíricoem Jacareí, visando compreender os significados atribuídos ao termo
vulnerabilidade e a forma pela qual os agentes envolvidos em programas de
intervenção dirigidos à adolescência, alvo frequente das ações sociais, utilizam
esta palavra e a relacionam com suas práticas (JORGE, 2013).

A análise do tema vulnerabilidade mostrou que esta palavra é usada com


frequência tanto nos textos da legislação das políticas públicas de assistência
social quanto no discurso espontâneo dos agentes sociais, e que grande parte
das ações desenvolvidas é pensada e explicada em termos da presença de uma
categoria particular: pessoas em situação de vulnerabilidade.

Porém, usar o termo vulnerável para falar sobre determinados grupos ou


pessoas, mesmo com a intenção de ajudá-las, traz o risco de mantê-las
aprisionadas na categoria de populações vulneráveis e de expô-las à violência, se
os efeitos produzidos por essa enunciação não forem considerados no
planejamento e na execução das ações sociais(GUARESCHI et al., 2007).

Com aquela pesquisa, eu concluí que a vulnerabilidade é prerrogativa do


território e que a percepção que os agentes sociais têm de um lugar,

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provavelmente impacta a percepção que eles têm das pessoas que ali vivem e
embasa a enunciação de que elas são vulneráveis.Ao final do estudo, eu fiquei
com a seguinte questão: Será que os adolescentes que observei receberiam a
atribuição de vulneráveis se eles vivessem em um território que não fosse
caracterizado como uma região de vulnerabilidade?

Em 2014, iniciei o doutorado, visando observar adolescentes em


diferentes territórios e contextos, para tentar responder a essa pergunta e
também para compreender o impacto que uma enunciação de vulnerabilidade
teria sobre os adolescentes. Embora eu fosse desenvolver a pesquisa na área de
Psicologia Socioambiental, que tem um arcabouço teórico próprio para olhar as
questões territoriais e urbanas, eu estava decidida a usar os referenciais da
psicologia analítica e da psicologia arquetípica para olhar para a cidade. Afinal,
tanto Jung quanto Hillman adotaram um olhar fenomenológico que lhes
permitiu “adentrar e descrever a experiência vivida e o mundo que habitavam”
(SLATER, 2013, p.34).

Com essas ideias em mente, eu soube que um amigo, oartista


plásticoMagela Borbagatto estava realizando oficinas com um grupo de
adolescentes em um lugar que eu não conhecia, o Jardim Pedramar. Fui com ele
conhecer o lugar e o grupo, de ônibus urbano e, durante o percurso, ele me
contou que os adolescentes do bairro são muito animados e têm o costume de se
agrupar por rua, para participarem de competições e de brincadeiras. Em certo
momento de nossa conversa, ele disse uma coisa que me deixou muito admirada:
“Eles são adolescentes felizes!”

Nós estávamos a caminho de um bairro localizado na periferia de Jacareí


e, o que diziam sobre o lugar me levava a pensar que ele apresentava muitas das
características definidas pela política pública de assistência social do Brasil como
indicadores de vulnerabilidade: baixa renda; precariedade ou ausência de
serviços públicos nas áreas da saúde, educação, habitação, transporte e lazer; alto
índice de crianças e adolescentes fora da escola. Eu imaginava que as pessoas
fossem me dizer que aquele era um território de vulnerabilidade e que os
adolescentes que viviam lá eram vulneráveis. “Como assim, eles são adolescentes
felizes?”

Com muitos questionamentos, eu me esforcei para deixar de lado as ideias


preconcebidas, para ir ao encontro dos adolescentes. Fomos recebidos pelos

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jovens e pela Fernanda, que junto com Thiago coordena um espaço cultural
denominado Cultura no Morro. Em meio à argila e às tintas coloridas usadas
pelos adolescentes durante a oficina conduzida por Magela, Fernandacontou-me
o que aconteciano espaço e como era a vida no bairro.

Thiago e Fernanda, tinham o desejo de “mudar o mundo” através da arte


e, por isso, em 2013, eles decidiram fechar a lanchonete que administravam e
fundaram o Cultura no Morro. Thiago disse-me que “a ideia era alimentar não
só o corpo, mas também a alma, além de buscar preencher o vazio deixado pelo
poder público no bairro” – no bairro não há escolas, nem creches, nem posto de
saúde, e o único local de lazer disponível para os moradores do lugar é uma
quadra, cujas marcações no chão, traves e iluminação foram colocadas pelos
próprios moradores.

Aos poucos, eu conheci outros moradores do bairro. Seu Nego, que foi um
dos primeiros a construir sua moradia no Jardim Pedramar, criou um grupo de
Moçambique, em esforço para manter a tradição dessa dança ligada ao culto
popular de São Benedito, atuando inclusive para que a Capela deste santo seja
cuidada pela comunidade. Seu Aloísio é aposentado, e há cinco anos, decidiu
transformar um terreno baldio – onde havia mato e entulho – em um jardim,
onde cultiva flores e frutos, constrói bancos e lixeiras e faz obras de arte usando
materiais que seriam descartados como lixo. Cida, uma senhora que mora no
bairro desde sua formação, é descendente de ciganos e escreve poesias em
homenagem ao bairro, ao qual chama de terra prometida. Seu Gonzaga, sua
esposa Marilene e seus filhos, antigos moradores do lugar, há cerca de dez anos,
decidiram trocar o carro da família por um circo que fazia apresentações no
bairro, passando a administrá-lo e a trabalhar como artistas - Seu Gonzaga era
palhaço e Marilene, dubladora. Marcos e Bozinho são jovens que se mudaram
para o loteamento na infância e, hoje, estão envolvidos na organização de um
campeonato futebol que é realizado no bairro há cinco anos – o Uniquebradas -
com duração de três meses, no qual competem times formados por jovens
moradores e, mais recentemente, por moradores de bairros vizinhos. Zezão,
pedreiro e proprietário de uma lanchonete localizada na avenida principal do
bairro, disponibiliza o local para a realização de bingos beneficentes em prol das
ações culturais promovidas no bairro, emprestando também energia elétrica para
os moradores fazerem suas festas particulares nas ruas do bairro. Dona Cida,
professora aposentada, criou, juntamente com um grupo de adolescentes, uma

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biblioteca comunitária em sua própria garagem, onde é possível que os
moradores tomem emprestados de livros, participem de saraus e de oficinas de
contação de histórias, e também, de atividades de reforço escolar e alfabetização
de adultos.

O Jardim Pedramar me atraiu, me convidou para entrar e ficar lá.Jung


“reconhece a importância central das imagens e seu poder de atrair, de
convencer, de fascinar e de dominar” (SCANDIUCCI e FREITAS, 2015, p.45).
Intuitivamente, eu prestava atenção e registrava as imagens do Jardim Pedramar,
e também as imagens que surgiam espontaneamente em minha alma quando eu
entrava em conexão com aquele lugar– por meio de fotografias, pequenos vídeos
e diário de campo.

Hillman (1993), em seu livro Cidade e Alma, resgatou a ideia platônica de


anima mundiou alma do mundo e afirmou que, não apenas os seres humanos,
mas também as coisas do mundo, as coisas construídas pelo homem possuem
uma alma. Quando dizemos que todas as coisas têm alma, nós entendemos que
elas “expõem um segundo sentido, um subsentido mais profundo, por assim
dizer, em que a imagem da essência daquilo que são, ou seu caráter, está à
mostra” (BARCELLOS, 2006, p. 100). Casey (1993, p. 130 apud BARCELLOS,
2006) defende que, além de nós resgatarmos a ideia de anima mundi, nós
precisamos nos sensibilizar para a ideia de alma do lugar ou anima loci, “a alma
imanente de um lugar, presente em um lugar”(p. 102).

Sardello (1997, p. 15) usa a expressão “alma do mundo” para referir-se à


profunda e inseparável conjunção entre indivíduo e mundo e defende a
importância de desenvolvermos uma sabedoria que nos permitirá “ver por meio”
dos acontecimentos essa força circulante, essa energia que circula entre as
qualidades interiores e as qualidades exteriores.

Encantada e envolvida com o Jardim Pedramar,eu percebi que aquele


lugar tem alma e que minha alma havia entrado em conjunção com ela. Foi assim
que eudecidi realizar minha pesquisa lá, não mais focando apenas a
vulnerabilidade e os adolescentes, mas considerando todo o bairro, os seus
moradores e a alma do lugar.

Para realizar meu estudo, foi necessária minha imersão no Jardim


Pedramar, pois somente engajada com o lugar eu poderia perceber sua alma e
buscar uma compreensão psicológica para a vulnerabilidade. Como disse

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Hillman (1984, p. 99), “não podemos ver nada psicologicamente sem estarmos
envolvidos e não podemos nos envolver com coisa alguma sem que isto penetre
nossa alma”.

Como a pesquisa seria realizada num lugar urbano, pensei inicialmente


em adotar como metodologia a etnografia urbana,que busca compreender a
dinâmica de uma cidade a partir de um olhar de perto e de dentro. Nesta
perspectiva, o pesquisador estabelece com os participantes da pesquisa
encontros e trocas nas mais diversas esferas da vida cotidiana: no trabalho, nos
momentos de lazer, na vivência da religiosidade, nas atividades culturais e em
contextos de participação política ou associativa das pessoas. Isso é possível, na
medida em que o etnógrafo transita pela cidade e usufrui do que ela oferece,
junto com os participantes da pesquisa (MAGNANI, 2002).

O olhar “de perto e de dentro” permite conhecer a cidade buscando


asparticularidade e os detalhes da vida cotidiana das pessoas. Essa possibilidade
me atraiu, porque detalhes e particularidades nos remetem à perspectiva da alma.
No entanto, ela ainda não me parecia suficiente para a realização da pesquisa,
pois eu estava em busca de uma metodologia que me permitisse pesquisar a alma
de um lugar.

Em psicologia analítica nós intercambiamos os termos alma e psique e,


segundo Jung (1986), psique é imagem e “tudo aquilo que se torna consciente é
antes de tudo, ou primeiramente, imagem” (JUNG,2002, §75). Então, no campo
psicológico, psique, alma e imagem são a mesma coisa. Diante disso, eu me dei
conta de que as imagens trazem visibilidade e são uma janela para a alma de um
lugar, por isso, eu precisava de um métodoque privilegiasse as imagens.

“Ficar com a imagem” é a regra básica do método da psicologia arquetípica


(HILLMAN, 1991, p.10). Eu queria estender esta ideia para a atividade de pesquisa:
ficar com as imagens do Jardim Pedramar, pois, “a única forma de chegar à alma
de um objeto é pensando nele como uma forma, um formato ou uma
face”(HILLMAN, 1989, p. 136).

A ideia de alma do mundo, ao afirmar que há alma em todas as coisas,


abre espaço para uma apreciação estética do mundo e das coisas. “As coisas têm
pele, face e cheiro. As coisas falam a nós e é isto o que quero dizer, basicamente,
por estética, falar aos sentidos, e ter a sensibilidade àquela pele ou brilho das
coisas” (HILLMAN, 1989, p. 148).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 251


Com todas essas ideias em mente, eu me deparei com a etnografia
sensorial (PINK, 2015),metodologia que tem como ponto de partida a
multisensorialidade da experiência, valoriza os sentidos na produção de
conhecimento e adota a imagem como método. Esta proposta reconhece a
centralidade do corpo na atividade de pesquisa e valoriza a percepção, a memória
e a imaginação.

A etnografia sensorialconsidera o papel dos sentidos na forma de


experienciar e conhecer o mundo, indo além da possibilidade de aprender
prestando atenção aos sentidos. O pesquisador pode captar conhecimento sobre
um lugar e a vida das pessoas nesse lugar, a partir de seu engajamento e
envolvimento material e sensorial com eles, através de seu corpo
inteiro,experienciando o que elas experienciam, (PINK, 2015).

Hillman (2009) aponta a importância de prestarmos uma atenção


cuidadosa ao nosso corpo, observando o que o contato com a realidade evoca
em nossa própria carne. Na mesma direção, Sardello (1997, p. 43) propõe uma
educação da atenção para os detalhes, referindo-se a uma forma de aprender,
por meio da percepção, que requer “a capacidade de perceber o mundo exterior
como imagem”.

Aliando caminhar e vídeo, Pink (2007, p. 240) propôs “um método de


pesquisa fenomenológico que presta atenção aos elementos sensoriais da
experiência humana”, denominado por ela de caminhar com vídeo. O vídeo
favorece o acesso aos aspectos sensoriais das atividades e das experiências
vividas, às memórias e imaginações das pessoas, bem como fornece uma rota
que permite ao pesquisador usar sua própria experiência para imaginar como é
a experiência dos outros. As imagens poderãoser vistas pelo pesquisador e pelos
participantes da pesquisa,posteriormente, e isso irá fomentar reflexões, ativar a
imaginação, trazer memórias e disparar novas experiências sensoriais (PINK,
2015).

A etnografia sensorial, ao dar espaço para a multisensorialidade que


emerge do encontro entre pessoas e ambiente – texturas, sabores, cores, sons e
aromas, bem como as diferentes e surpreendentes maneiras de compreendê-los
–, oferece os recursos necessários para se perceber e pesquisar a alma de um
lugar, a alma que é dada em cada coisa, em sua apresentação sensorial, como
um rosto que revela sua imagem interior e sua disponibilidade para a imaginação.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 252


Adotando como método a etnografia sensorial, eu convivi com os
moradores do Jardim Pedramar durante três anos e meio, registrando em
imagens tudo o que eu via e experimentava. Eu percebi que no Jardim Pedramar
as pequenas coisas são valorizadas e que aquele lugar favorece os encontros e o
contato entre as pessoas. As imagens daquele lugar nos convidam ao
engajamento e à vivência de experiências estéticas, ou psicologicamente
transformadoras.

Convivendo com os moradores do bairro, eu percebique, depois que o


Jardim Pedramar foi construído, pouca atenção tem sido dada ao lugar, que
parece ter sido abandonado pelo poder público. Apesar disso, aquelas pessoasse
esforçam para reconhecer e valorizar as características do lugar. Parece que elas
sabem que, como disse Hillman (1993), as coisas têm uma interioridade, uma
inteligibilidade e que os lugares falam. O Jardim Pedramar fala e seus moradores
procuram ouvir o que ele está falando.

Oshabitantes do Jardim Pedramar se apropriam daquele lugar através da


arte e da cultura. Parece que eles disseram “Esse lugar é nosso!”, e a partir disso,
eles começaram a marcar o território, enterrando uma placa na rotatória,
colorindo os muros com o grafite, cuidando da capela como patrimônio histórico
e cultural, resgatando a tradição com o moçambique, plantando árvores e
fazendo arte no terreno baldio que foi transformado em um jardim, fazendo
festas e festivais nas ruas do bairro, e, principalmente cultivando a vida no lugar.

No Jardim Pedramar, a maneira como as pessoas vivem e cuidam uns dos


outros e do lugar, favorece o cultivo da alma, oferece dignidade e significado a
todos e a todas as coisas. Há um cuidado que integra as pessoas e o lugar e que
é feito continuamente num trabalho de devoção à alma, sem a preocupação com
mudanças externas, embora elas acabem acontecendo, naturalmente. “Servir à
alma implica deixá-la reinar; ela conduz, nós a seguimos” (HILLMAN, 2010b, p.
166). Naquele lugar, a alma encontrou espaço para reinar e, como disse Thiago,
a transformação foi acontecendo de uma maneira bem orgânica, resultando em
mudança interior, que aparece fora e pode ser percebida através de imagens que
nos capturam.

A partir dessa experiência de encontro com a profundidade (a alma) no


Jardim Pedramar, eu compreendi algo importante em relação ao tema da
vulnerabilidade: é possível conjugar felicidade e vulnerabilidade, pois, ambas são

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 253


qualidades da alma. Os moradores daquele lugar são, ao mesmo tempo
vulneráveis e felizes, e isso pode ser afirmado pois, sendo a alma ambígua, é
possível haver vulnerabilidade na felicidade e felicidade na vulnerabilidade. A
vulnerabilidade, numa perspectiva psicológica, é um estado da alma, que pode
ser feliz quando encontra a possibilidade de ser ela mesma.

Com essa pesquisa, foi possível ver e mostrar a riqueza na pobreza, a


beleza na feiura, a felicidade na vulnerabilidade. A beleza no simples, no delicado,
no vulnerável, na gentileza dos gestos, na solidariedade, na união e comunhão
de um espaço e de ideais, na simplicidade da vida...Um território profundo de
imagens aberto à beleza e à vida.

Diante de tantas imagens, a pesquisa culminou na edição do


documentário “Jardim Pedra MareAlma”, em parceria com alguns moradores do
bairro, no qual contamos a história do lugar, desde a sua criação, no início da
década de 1990, e mostramos que os moradores do Jardim Pedramar cultivam
a alma do lugar, na medida em que se envolvem com ele, prestam atenção àquele
território de imagens e procuram dar sentido a elas.

Refletindo sobre esta experiência, à luz da psicologia analítica e da


psicologia arquetípica, eu pude verificar empiricamente que as imagens são um
meio privilegiado de acesso e apresentação da alma de um lugar, uma vez que
permitem um olhar poético e metafórico para suas coisas, criando cultura
psicológica e formas de viver.Além disso, eu constatei que a etnografia sensorial
é uma boa opção metodológica para se perceber e compreender a alma de um
lugar, uma vez que ela oferece recursos para a realização de um trabalho
profundo com as imagens.

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 256


A alma institucional e seus contornos:
uma leitura arquetípica

Raul Alves Barreto Lima

Psicólogo clínico e mestrando em Psicologia Clínica – Núcleo de Estudos Junguianos – pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Resumo
A proposta desse artigo é tecer algumas reflexões a partir de uma prática
profissional como psicólogo vivenciada num contexto institucional. A partir da
Psicologia Analítica desenvolvida por C. G. Jung e da Psicologia Arquetípica
desenvolvida por James Hillman, objetivaremos permear as reflexões com as
noções desenvolvidas pelos referidos autores, dentre elas, a de anima mundi. A
instituição trata-se de um Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e
Adolescentes e, o olhar psicológico sobre essa prática procurará dialogar com a
instituição e suas relações, estruturas e objetos. Inscreveremos ainda as
percepções que orbitavam em seu entorno e qual o contexto se fazia presente,
como os diálogos existentes entre a instituição, a cidade, outros espaços e
instituições. A perspectiva imaginativa adotada procurará ver através dos eventos
mais significativos, nos quais a alma se faz notar e a psique almeja aprofundar e
intensificar experiências.

Palavras-chave: Psicologia Analítica; Psicologia Arquetípica; Instituição.

Jung (2013) afirmou que “a psique cria realidade todos os dias” (§ 73 p.


66) e que essa realidade psíquica seria um “ esse in anima” – ser na alma. Ainda,
afirmou que “psique é imagem” (JUNG, 2011a, § 75, p. 57). James Hillman
declarou que “a alma deve ser a metáfora primária da psicologia” (1995b, p. 40),
sendo a psicologia uma narrativa da alma. Ainda, postulou que a psicologia
arquetípica, com sua perspectiva de alma, objetiva fazê-la e cultivá-la (2010b,
p.27).

Essas perspectivas, que fundamentam uma psicologia profunda, também


foram estendidas para além do setting analítico e dos processos analíticos

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 257


encerrados nos consultórios apenas. Hillman ficou notoriamente conhecido por
oferecer um olhar imaginativo para a realidade das coisas do mundo e da cidade,
como elas se apresentam, como nos afetam, como nos relacionamos com elas.
Entretanto, Jung (2011b) também afirmara anteriormente que a anima mundi –
a alma do mundo – “[...] é uma força natural, responsável por todos os
fenômenos da vida e da psique” (§ 393 p. 144).

[...] imaginemos a anima mundi como aquele lampejo especial de


alma especial, aquela imagem seminal que apresenta, em sua
forma visível, por meio de cada coisa. Então, a anima mundi
aponta as possibilidades animadas oferecidas em cada evento
como ele é, sua apresentação sensorial como um rosto revelando
sua imagem interior – em resumo, sua disponibilidade para a
imaginação, sua presença como uma realidade psíquica
(HILLMAN, 2010a, p.89).

Hillman, também fazendo uso da mesma noção de anima mundi, atesta


sobre a necessidade da psicologia rever seu olhar que ficou confinado no mundo
intra-subjetivo exclusivamente, para penetrar então na realidade inter-subjetiva
(1993, p. 10), considerando que “neurose do eu e do mundo” e “psicopatologia
do eu e do mundo” (2010a, p. 83) não podem ser distinguidas claramente, já que
elas se interpenetram.

[...] a psicologia reflete um mundo no qual atua; isso implica que


o retorno da alma à psicologia, o renascimento de sua
profundidade, exige uma devolução das profundidades psíquicas
ao mundo (HILLMAN, 2010a, p. 82).

Feitas essas breves considerações, passaremos a descrever a instituição de


onde falamos e seguiremos qualificando as experiências com o olhar metafórico
proporcionado pela psicologia arquetípica e seu jeito particular de imaginar a
realidade psíquica, pois, como disse Hillman, os sintomas e a alma estão onde
nos sentimos oprimidos (1989, p. 170) e, dentro da perspectiva do esse in anima
e da anima mundi, sentimos e vivemos o mundo de maneira personificada e
emocional, como se as coisas estivessem nos dizendo algo (p. 97). Para isso,
devemos reconhecer que o mundo está desalmado e devemos reconhecer
novamente a alma do mundo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 258


A instituição em questão trata-se de um Serviço de Acolhimento
Institucional para Crianças e Adolescentes, geralmente conhecido como abrigo.
O trabalho como psicólogo desenvolvido não se tratava de um trabalho clínico,
o que significava que não se fazia psicoterapia, mas usava-se do olhar clínico
para enxergar e ler os eventos e relações. Nessa perspectiva, o olhar psicológico
se fazia sempre presente e caminhava conforme se transitava na instituição e nos
espaços da cidade com suas demais relações, instituições e arquiteturas.

Tendo ingressado em virtude de uma intervenção judicial, a proposta do


trabalho era realizar um reordenamento institucional, ou seja, modificar a forma
de atendimento para poder dar conta dos encaminhamentos necessários, como
a reinserção familiar e as possíveis adoções das crianças e adolescentes.

A instituição, distanciando-se das normatizações legais1, contava com


cerca de 80 crianças e adolescentes acolhidos, sendo seu espaço, a imagem que
procuraremos esculpir neste momento.

A instituição estava inserida numa cidade próxima de São Paulo. A cidade


em questão era cercada de comunidades, inúmeras ladeiras e pouquíssimos
prédios residenciais ou comerciais de grande altura. Estava localizava num ponto
alto do município onde se podia enxergar humildes casas de concreto e/ou
madeira que se apertavam de maneira disforme, assentadas num terreno
descendente e que terminava próximo de uma estação de trem. Ainda olhando
desse lugar na instituição, muito mais para frente, era possível ver o enorme
contraste arquitetônico e social o qual evidenciava incontáveis e suntuosos
prédios localizados num bairro nobre não tão longe dali.

O espaço institucional em questão se assemelhava a uma grande chácara


envolta por um enorme muro com extensos e densos espaços de vegetação.
Dispunha de uma série de estruturas: quatro2 grandes “residências” de dois
andares cada, onde duas delas residiam as crianças e adolescentes; uma capela;
uma residência para os dirigentes; um espaço farmacêutico; um setor técnico
onde ficava a equipe técnica; uma lavanderia industrial; um grande refeitório;
uma cozinha também industrial; quatro prédios onde funcionavam unidades de
escolas do município; um parquinho com brinquedos e areia; uma sala para

1
Deveria ser uma casa inserida na comunidade/cidade com 20 a 22 crianças/adolescentes acolhidos no
máximo.
2
Numa dessas residências acontecia um bazar aberto para a comunidade.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 259


eventos e reuniões; uma quadra de concreto; um espaço para desenvolver
atividades artísticas; outra quadra de concreto coberta; um ginásio de esportes;
um grande depósito onde ficavam roupas e materiais doados3; um espaço com
diversas salas para desenvolver atividades pedagógicas (brinquedoteca,
biblioteca); um espaço para realizar atividades de informática; um outro espaço
para reuniões; um local onde ficava o setor administrativo; uma garagem4,5 e um
campo de grama.

Podemos perceber sem dificuldades que, para além de uma descrição


metafórica, a instituição era literalmente grande. Possuía tudo sempre em grande
quantidade, assim como o excessivo número de crianças e adolescentes
acolhidos.

Podemos pensar que dispondo de uma estrutura tão rica em vários


sentidos, por que então a instituição sofrera uma “intervenção” devendo ser
“reordenada” e modificar sua forma de atendimento? Justamente porque os
encaminhamentos custavam para acontecer e, muito mais do que uma
disfuncionalidade da instituição de acolhimento, foi possível perceber uma
ideologia que ultrapassava aqueles grandes muros, ou seja, de que o sentimento
da comunidade e das instituições era de que este enorme lugar, tudo deveria
conter. Se os números ultrapassavam de maneira desmedida em vários sentidos,
era porque desmedidas também eram as obrigações inculcadas na instituição
que, fatalmente, vestiu esse manto pesado e não quis mais se despir. O tempo
enrijeceu essa roupagem.

O trabalho não foi realizado sem muito sofrimento, até porque, sofrimento
era basicamente o meio pelo qual as crianças e adolescentes se expressavam, e
isso era tão enraizado e poderoso que a própria instituição também nos falava
do quão estava doente6.

A ideia era que nada poderia sair dali, que a massificação, coerção e
ameaças eram os únicos meios de aplacar possíveis revoltas e maus
comportamentos. Como um vaso murado que, tentando tudo conter, de tão

3
Algumas dessas roupas e calçados chegavam a esfarelar devido à ação do tempo. Alguns dos materiais
escolares, como os cadernos, tinham imagens que remontavam à década de 90 e início dos anos 2000.
4
A instituição possuía um carro para uso das dirigentes, dois carros à disposição da equipe técnica, uma
Kombi e um caminhão.
5
Num espaço ao fundo da garagem também acontecia um bazar duas vezes por semana aberto para a
comunidade.
6
Patologizar ou desintegrar-se. (HILLMAN, 2010b, p. 131-232); (SCANDIUCCI, 2017, p. 81-83).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 260


cheio, deixava as patologias vazarem e falarem através dos comportamentos
obsessivos, dos surtos, dos inúmeros adoecimentos, das somatizações, das fugas,
das agressões, das paredes pintadas e marcadas com os nomes deles e das
famílias que estavam distantes, das divisórias dos quartos que eram
completamente destruídas nos acessos coletivos de fúria7, das diversas camadas
de tintas sobrepostas grotescamente sobre as paredes das residências a cada
reforma, das roupas e calçados jogados aos montes, dos vínculos que
definhavam, do entorpecimento psíquico generalizado, da desesperança em
relação à vida, da evidente inércia expressa nos corpos que se espalhavam
imóveis e paralisados no chão sob o sol.

A instituição, ardendo em sua patologia, também denunciava o quanto


sofria e clamava por atenção, para que fosse “reordenada”. Muros caíam,
buracos se abriam e escancaravam as feridas, fendas e passagens por onde
crianças e adolescentes por vezes saíam. A vegetação que preenchia grande parte
do espaço crescia desordenadamente e invadia as passagens por onde pessoas
entravam e saíam. A instituição se desintegrava, pois parecia prestes a explodir.
Suas feridas apareciam concreta e metaforicamente, pois o abandono era nítido
em diversos sentidos.

A instituição, por um lado, também nos falava de como ela era grande,
nutridora, e exuberante, mas mais parecia um apêndice da cidade o qual destoava
completamente das outras arquiteturas, bem mais simples e sem toda a
imponência daquela que abrigava tantas realidades adoecidas.

Nos dizia ainda de como ofertava maternalmente aquilo que as crianças e


adolescentes abandonados e esquecidos pelo judiciário, pelo Conselho Tutelar,
pelas escolas, não podiam ter de suas famílias, estas, também esquecidas. Era
como uma grande mãe que declarava com o peito estufado o quão benevolente
era por oferecer teto, roupa e cama, e como eles eram ingratos por não
valorizarem isso.

O conflito se acirrava e a instituição demonstrava não aguentar revisões


ou possibilidades de transformação, mas, também, já não conseguia mais
esconder o quanto sofria e que sua neurose escapava de seus muros já não tão

7
A alma tende a animar e, se a alma não encontra suas imagens, elabora substitutos. (HILLMAN, 1993,
p. 40). Neste caso, por meio dessas marcações pessoais feitas em objetos impessoais como as paredes.

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rígidos. Sua história mostrava o quanto a circularidade dos acontecimentos8 lhe
era peculiar, mas sem que houvesse integração de outros meios de se perceber e
agir. Como aquilo que resiste, persiste, o conflito foi aumentando sua energia
para que se fizesse notar; como se a instituição dissesse: “parem e olhem para
mim!”.

Nem só de conflitos viveu a instituição neste tempo, pois muitos


encaminhamentos foram realizados totalizando números expressivos de
reinserções familiares e adoções, bem como a construção de um diálogo mais
estreito, transparente e humanizado com as demais instituições.

Tudo parecia muito impessoal e sem forma, ao passo que aos poucos foi
se construindo um protagonismo individual para cada um ali dentro, na tentativa
de fazer com que as vidas que ali aguardavam por desfechos positivos, não
ficassem encerradas em papéis anêmicos dentro dos processos que transitavam
mecanicamente de mão em mão no judiciário. As vozes das crianças e
adolescentes precisavam ser ouvidas. Eles nos falavam, mas passaram muito
tempo gritando de maneira inaudível e incompreensível e, para que se fizessem
ser ouvidos, suas narrativas apareciam nas relações com os objetos, abarcando
tanto os apegos como a destruição dos mesmos.

O olhar clínico e imaginal enxergou através 9 desses movimentos e eventos


e procurou traduzir isso de alguma maneira, maneira esta que não contemplava
mais um discurso normatizador ou que encerrava na criança e/ou adolescente
um possível diagnóstico psiquiátrico que os levariam à medicalização. Para isso,
essa prática esteve ancorada numa perspectiva da alma, e ela se mostrava em
seus excessos, devaneios, depressões, fantasias e obsessões, requerendo por
atenção e cuidado.

Como mostramos, existiram avanços, resistências e retrocessos. Uma


difícil polarização marcou a relação entre a equipe gestora e a equipe técnica. Em
resumo, aquela não aceitava mudança alguma, esta, relia a realidade criticamente
na tentativa de propor meios mais saudáveis de gestão e relação. Permaneceram
então boicotes, desconfianças, ataques e uma série de situações que foram
ficando cada vez mais insustentáveis.

8
Circularidade e repetições da alma. (BARCELLOS, 1995, p. 15-16; BARCELLOS, 2006, p. 120).
9
Psicologizar ou enxergar através. (HILLMAN, 2010b, p. 233-318).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 262


Enquanto muitas crianças e adolescentes encontravam redenção nos
desfechos positivos que os tiravam daquele lugar, muitos outros – há tantos anos
institucionalizados –, demonstravam um discurso desesperançoso ou se
comportavam de maneira errante e por vezes fugiam na tentativa de encontrar
algo, algum sentido.

Voltando ao ponto institucional onde se podia ver uma contrastante


paisagem do alto, muitos deles se atiravam para fora nos acontecimentos das
comunidades ali próximas, mas, em outros momentos, fitavam os distantes
prédios que demarcavam um muro – metafórico e literal/concreto –, que
denunciava a desigualdade social, o lugar que eles criam nunca poder chegar;
algo tão próximo do olhar, tão caro ao imaginar, e tão distante no seu possível
acontecer.

Os carros luxuosos dos voluntários que entravam cotidianamente também


demarcavam essa distância, sempre atraindo as crianças e adolescentes que se
ajuntavam para encontrar novidades ou ficar pedindo coisas que variavam desde
objetos materiais a solicitações para que os levassem dali. Contudo, ainda
estavam distantes disso e sofriam sem saber o que seria do futuro, onde estariam,
com quem ou de que jeito.

Esse distanciamento – psíquico inclusive –, pôde ser percebido quando


certa vez ouvi uma das voluntárias que ficavam com os bebês se queixar
indignada para uma monitora de que “as crianças estavam indo tudo embora”, e
quase não se tinha mais bebês ali. Refleti e questionei muito a respeito sobre que
função ou finalidade tinha aquele “voluntariado” sem empatia que necessitava
de crianças institucionalizadas para seguir necessário.

A neurose não era só da alma institucional, era das pessoas que ali
adentravam com suas próprias patologias que acabavam cumprindo uma função
para a instituição sedenta por doações, ao mesmo tempo abundante e insaciável.
Foi devorando, se entupindo e ficando enfastiada/ensimesmada até não
conseguir mais se sustentar em sua hybris, recordando a ideia de
enclausuramento institucional evidente neste exemplo.

Seguimos com outro exemplo e outros eventos. Um dos adolescentes


acolhidos, que nesta época contava com 16 anos, estava na instituição desde
bebê. Seu destino e sua trajetória se perdera de alguma forma. Praticamente
todos os dias, era possível vê-lo andando por toda a instituição. Onde quer que

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 263


estivéssemos, geralmente ele estava andando em algum lugar, quase sempre
sozinho. Ele possuía há muitos anos um casal de padrinhos que o pegava com
frequência para sair e ir à casa deles. É pertinente dizer que eles moravam no
“lugar paradisíaco e inalcançável” descrito anteriormente – do outro lado do
muro. O adolescente comumente ficava fitando essa paisagem tangível apenas
em sua fantasia e em seu olhar.

Ele costumava desenhar muito e seus desenhos eram sempre muito


significativos, pois repetiam alguns padrões. Desenhava mansões, muito em
alusão ao espaço da instituição que era enorme. Ficava fantasiando com o que
poderia fazer ou construir se fosse dono daquele espaço.

Ele também tinha uma relação íntima com a religião e, nesse sentido,
costumava desenhar a figura de Jesus frequentemente. Em seu processo
psíquico, não era difícil perceber o quanto ele clamava por ser salvo, pois de certa
maneira sentia que algo tinha se perdido. Ele tinha uma relação com a alma do
lugar, com a arquitetura institucional e seus espaços. Ele ocupava de maneira
errante aquela que foi, desde bebê, sua única casa sem seus familiares.

Faço uma breve digressão para relatar que certa vez, quando neste
processo as coisas se tornavam cada vez mais intensas e conflitivas, eu saía para
caminhar nos espaços da instituição. Numa dessas vezes, enquanto eu
caminhava por uma parte repleta de vegetação, sem que eu me desse conta, caí
num buraco que me cobriu até a altura do abdômen, o qual foi arranhado
fortemente por um pedaço de raiz.

Como sentia a energia institucional com sensibilidade, logo comecei a


refletir que as coisas estavam perdendo o controle e eu não sabia qual poderia
ser o desfecho daquele processo. Numa outra oportunidade, ao atravessar um
buraco do muro que demarcava a instituição, também escorreguei num monte
de areia e pedras. As coisas descaminhavam ali e alguns sentiam esses efeitos,
sem saber o que viria a acontecer. Se, para a psicologia arquetípica a alma possui
um movimento de aprofundar-se e nos lançar nas profundezas, este evento mais
do que um aprofundamento ricamente simbólico, foi também literal, mas não
menos significativo. A instituição patologizada e em seu movimento autofágico,
estava engolindo tudo que via pela frente. Estava ao mesmo tempo me engolindo
e me expulsando de seus contornos.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 264


Retomo novamente o adolescente, pois ele foi o autor de uma das imagens
que ficaram gravadas na alma da instituição em seu momento mais crítico. O
adolescente em questão tinha uma relação muito íntima com aquele lugar,
superestimado e ao mesmo tempo esquecido pela cidade, pois era tido como um
espaço de despejo espontâneo e por vezes irrefletido do que a cidade não podia
dar conta, e não é a toa que as coisas se perdiam com facilidade, pois as
problemáticas de funcionamento da cidade também eram varridas para dentro
desse abrigo silencioso e impenetrável.

A equipe que acompanhava o caso desse adolescente tinha estabelecido


um vínculo muito significativo com ele. Trabalhavam muito a sua grande
qualidade em desenhar. Num desses momentos, ele fez um belíssimo desenho de
uma fênix, o qual foi anexado na parede da sala da equipe técnica que ficava no
mesmo prédio de sua residência.

Como tentei demonstrar no presente texto, a alma institucional ardia cada


vez mais. As coisas tinham perdido completamente o controle e qualquer
tentativa de continuar realizando o trabalho proposto era minado de alguma
maneira, respirando por aparelhos e sempre buscando movimentar para atingir
os objetivos.

Entretanto, a alma institucional adoecida seguiu sem ser satisfatoriamente


ouvida e atendida, logo, não tardou em se fazer notar da maneira mais clara
possível. Uma instituição praticamente centenária, repleta de milhares de
histórias soterradas, de mitos, silenciamentos, não-ditos, abandonos, túmulos
onde tantas possibilidades morriam e acontecimentos não podiam sair dali de
dentro ou que sequer vieram à tona. A alma dessa grande mãe adoentada em
sua contradição entre se transformar e agarrar-se cegamente naquilo que
entendeu durantes tantos anos por cuidado, fatalmente ardeu numa febre que
fez a ferida ultrapassar o ponto da cicatrização, passando por um estágio de
queimação destrutiva que a forçaria dolorosamente a aceitar sua transformação
e ouvir os gritos das almas presas naquele lugar, inclusive, as que já tinham
concretamente saído, mas deixado suas dolorosas experiências em todo aquele
grande espaço.

Numa determinada noite, os telefones de alguns funcionários tocaram


para avisar que uma das residências tinha pegado fogo. No dia seguinte, ao
chegar na instituição, vi que o prédio estava isolado e o andar de cima da

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 265


residência dos adolescentes tinha sido praticamente pulverizado pelo fogo. O
andar de cima era das meninas e já não existia mais um segundo andar. O térreo
onde os meninos moravam estava completamente encharcado pela água
utilizada pelos bombeiros, podendo o andar de cima vir a baixo a qualquer
momento.

A estrutura arquitetônica da residência remontava as construções antigas


e, com a intensidade do fogo, as paredes laterais desapareceram e podia se ver
os tijolos expostos e parcialmente empretecidos por causa do fogo.

Após um momento de completa inércia, logo comecei a refletir e a analisar


simbolicamente o que representava esse evento, infelizmente tão sofrível. O fogo
é extremamente simbólico, pois veio trazer a destruição, fazendo com que todos
parassem e ouvissem o quanto aquela instituição neurótica e também
abandonada clamava para que fosse ouvida, e que algo fosse feito em relação a
isso. Não se soube a origem do incêndio, mas metaforicamente podemos
entender como uma autoagressão perpetrada pela própria instituição contra si
mesma. O mesmo fogo que trouxe a destruição, também objetivava a purificação,
a cura, o renascimento, um verdadeiro cultivo da alma, que vinha sendo expressa
patologicamente de modo crescente e incontrolável.

Também não é coincidência o fogo ter destruído justamente a casa dos


adolescentes, pois era exatamente esse público que expressava mais claramente
as patologias deles, do serviço de acolhimento e da cidade. Eles denunciavam que
algo ali não ia bem através das fugas, das saídas não autorizadas, nas idas aos
bailes funk de madrugada, no consumo de drogas e álcool, nas relações sexuais
sem proteção que por vezes traziam doenças sexualmente transmissíveis e
gestações, nas agressões que ocorriam entre eles, nos atos impulsivos e
desmedidos, entre tantas outras formas de dizer que existiam e precisavam de
ajuda. Em virtude das falhas enquanto instituição e muitos desses
comportamentos apontados, é que o judiciário solicitou uma intervenção judicial
e adentramos nesse lugar com o objetivo de transformar essa realidade.

Por fim, cabe encerrar esse percurso imaginativo com uma bela imagem
que sintetiza essa narrativa e mostra que a perspectiva da alma, adotada durante
todo esse trabalho, aparecia nos objetos, aqui, entendidos como dotados de
valor, cheios de alma e sempre nos dizendo algo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 266


A imagem da residência praticamente destruída fazia muitos chorarem
com olhares atônitos. Algumas partes da estrutura de cima continuavam caindo
e se desfazendo devagar. O impacto em todos era devastador, mesmo que alguns
adolescentes e crianças quisessem brincar com os entulhos, já que, tendo perdido
tantas coisas na vida, aquela perda repentina parecia não ter tanta importância
assim.

Como mencionei, o piso térreo ficou bastante prejudicado, cheio de água


e correndo o risco de cair. A sala da equipe técnica ficou praticamente intacta.
Por uma das janelas, pude olhar através das grades e a única coisa que meus
olhos conseguiram enxergar, foi o desenho feito pelo do adolescente que
comentei.

Lá estava a imagem da fênix dentro da residência que sucumbira ao fogo.


Lá estava a sensibilidade do adolescente, sua ligação com a alma da instituição e
toda a estética e significados possíveis em uma única imagem. Esta imagem,
compreendida na narrativa feita que procurou contextualizar com estruturas,
objetos, relações, ideologias e experiências, de alguma maneira sintetiza o
sofrimento in extremis que cresceu de maneira incontrolável, mas que culminou
no encerramento do serviço de acolhimento.

A perspectiva e o olhar imaginativo – com alma – que percorreu a


narrativa deste trabalho, abarcando breves considerações teóricas e o relato dos
eventos, atesta sobre a necessidade de um pensamento do coração, sendo este
um pensamento das imagens e sendo a imaginação a “voz autêntica do coração”
(HILLMAN, 2010a, p. 14; HILLMAN, 1993, p. 17-18; SCANDIUCCI, 2017, p. 114).
Esse jeito psicológico de ler a realidade permite não apenas lê-la, mas vivê-la de
uma maneira na qual a intimidade e o envolvimento com os eventos ganha uma
tonalidade mais profunda, uma interioridade inerente à todas as coisas
(BARCELLOS, 2006, p. 99) e, este jeito fundamentou todo esse percurso e essa
prática, compreendendo sucessos, regressos, limites e possibilidades.

Ao adotarmos uma postura não-normatizadora e individualista, vimos os


sintomas para além do paciente individual e como sintomas de um corpo político
(HILLMAN, 1995a, p. 153). A alma não se encerra no sujeito. Ela também está nos
lugares, nos objetos, nas estruturas, arquiteturas, nas instituições, nas cidades,
no mundo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 267


Referências bibliográficas

BARCELLOS, G. Voos e raízes: ensaios sobre psicologia arquetípica, imaginação


e arte. São Paulo: Ágora, 2006.

HILLMAN, J. Entre vistas: conversas com Laura Pozzo sobre psicoterapia,


biografia, amor, alma, sonhos, trabalho, imaginação e o estado da cultura. São
Paulo: Summus, 1989.

_________. Cidade e alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

_________.; VENTURA, M. Cem anos de psicoterapia e mundo está cada vez pior.
São Paulo: Summus, 1995a.

_________. Psicologia arquetípica: um breve relato . São Paulo: Cultrix, 1995b.

_________. O pensamento do corção e a alma do mundo. Campinas, São Paulo:


Venus, 2010a.

_________. Re-vendo a psicologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010b.

JUNG. C. G. Estudos alquímicos. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a (Obras


Completas, vol. 13).

____________. A natureza da psique. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011b (Obras


Completas, vol. 8/2).

____________. Tipos Psicológicos. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013 (Obras


Completas, vol. 6).

SCANDIUCCI, G. A cidade e seus muros: as pixações de São Paulo à luz da


psicologia arquetípica, 2017.

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As periferias da cidade e da alma:
relato de uma experiência

Nathalia Carballeira Pereira

psicóloga, mestre em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos da PUC-SP.


Aperfeiçoamento em psicologia analítica pelo Instituto Junguiano de Zurique. Autora do livro
“Empatia: terreno movediço”- Ed. Appris (2015).

Resumo
O presente artigo tem como objetivo relatar a vivência de construção de uma casa
de emergência em uma ocupação na zona leste da cidade de São Paulo através
da ONG Teto, articulando estas primeiras impressões com as disposições físicas
da comunidade e como à mesma retrata a alma deste território. A cidade fala
sobre ela mesma a partir de sua própria disposição e esta reflexão busca um olhar
para a fala desta periferia. Inspirada pelos conceitos filosóficos de Gaston
Bachelard e as proposições da psicologia arquetípica de James Hillman, olha-se
para as margens e os contornos da Alma da cidade e daqueles que a habitam e a
(des)constroem cotidianamente.

Palavras-chave: Alma, cidade, Periferia, teto.

I- O terreno:

Era verão, janeiro de 2016 e passada a virada do ano, sou convidada a


uma experiência que mudaria a minha vida para sempre. Eu, meu companheiro
e um grupo de amigos somos convidados a construir uma casa em um fim de
semana em uma ocupação na periferia de Guaianases como voluntários da ONG
TETO. A proposta para os voluntários neste fim de semana é basicamente esta:
somos uma equipe de 10 pessoas, temos um supervisor já experiente na
construção de casas que nos orientará, teremos todo o equipamento
providenciado pela ONG e contaremos com a ajuda da própria família que será
dona da casa na construção. As mulheres são responsáveis por preparar nossas
refeições, e os homens ajudam diretamente na construção. Cabe destacar que a
casa não é doada e a família paga um valor simbólico pela propriedade

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 269


construída. A partir daí, fica a oportunidade de conhecer uma família que sob
uma condição de miséria inimaginável cultiva sonhos, esperanças e tem muito a
oferecer, mesmo sem um teto.

Naquela época vivíamos um problema sério com a falta de distribuição de


água na cidade de São Paulo e a estadia dos voluntários é feita na escola pública
mais próxima a ocupação. Resultado? Ficamos de sexta a domingo sem ter água
para escovar os dentes, dar descarga, e era difícil manter as mínimas condições
de higiene. Sim, na falta de recursos esta foi uma das periferias que sofreram
com a seca.

Periferias estas que carregam a alma da cidade e são e não são todas
iguais. Diz-se periferia como uma região generalizada, como se fosse um só
lugar, o lugar excluído e de exclusão, o que está às margens, o lugar dos
“marginais” mas estas periferias tem uma identidade singular. A alma também é
assim: as regiões marginalizadas em nós possuem traços únicos. O norte, o sul,
o leste e o oeste são regiões que geograficamente carregam as suas próprias
psicologias, e neste caso tratamos de uma região que fica a extremo leste da
cidade de São Paulo.

No meio desta massa homogênea que chamamos de periferia, conheci


uma família de seis pessoas. Sabia seus nomes, entrei em suas casas, abri sua
geladeira, e escutei suas músicas favoritas cercada por diversos cachorros.
Nenhum lugar da comunidade tinha asfalto, tudo era de terra batida e esta
família morava nas margens de um córrego. Quando a chuva caía (como naquele
fim de semana) as ruas viravam lama, o córrego invadia as casas por conta do
lixo depositado inadvertidamente e tudo voltava a ser uma massa única e
indiscriminada: as pessoas, a lama, o lixo. Faltavam caminhos profundos e
planejados: a água fazia seu caminho e a tudo levava. A tudo inundava. O córrego
não tinha profundidade e já estava cheio de lixo. Ninguém, nenhuma casa, tinha
qualquer tipo de prevenção ou proteção das águas. Quando ela vem, lava tudo e
devolve o lixo que não foi propriamente descartado. Lá as pessoas são reféns das
tempestades da vida e do céu.

Encontramos aqui a primeira contradição: a água que falta e é abundante


ao mesmo tempo1. A água que falta é a organizada, a planejada, a limpa, a

1
Segundo o filósofo contemporâneo Gaston Bachelard (1884-1962) a imaginação tem uma necessidade
incessante de dialética (ibid.p.54) e, tratando da imaginação da cidade, isto não seria diferente.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 270


tratada, a água humanizada pelo homem. A água que transborda, a água
violenta, a água suja é a da natureza do rio. A água do córrego na periferia sofre.
Sofre por ter extensão e não profundidade. Sofre por não seguir sua essência
que é a transitoriedade já que lá o lixo a impede de fluir. Aquelas águas não
circulam. E, como diria Bachelard, se “o ser humano tem o destino da água que
corre”2, justamente por sua metamorfose ontológica, temos neste território a
paralisação, a obstrução, a cronificação das águas que antes passivas (recebendo
o lixo), mostram toda a sua violência ao reagir projetando de volta o lixo que lhe
foi projetado.

O tratamento do lixo traria dinamismo às águas e, “uma água dinamizada


é um embrião; dá a vida um impulso inesgotável”3. Logo, dinamizar esta imagem
poética do córrego e tratar do lixo depositado seria trabalhar materialmente as
sombras. Lá é que está o produto potencial para a transformação. Purificar o rio
é também (re)absorver o negro do sofrimento daquela comunidade que foi
escurecendo as águas. É trabalhar as águas tristes e sombrias e dá-la, pela
dissolução, escoamento. Essa tristeza que caiu nas águas, que a deixa pesada de
remorsos e desgostos, não é a água que se bebe, é a água que engoliu a sombra
como um xarope negro.4 A comunidade ainda estava com sede.

De volta ao tema do lixo, não havia uma lixeira em lugar algum da


comunidade. Dentro da própria casa da família, nem mesmo no banheiro. As
pessoas jogavam seus lixos no chão, dentro de suas próprias casas e não
demonstravam incomodo algum. A mim uma inquietação subia e me dei conta
que o lixo não incomodava pois todas aqueles pessoas ali se viam e se sentiam
lixo. Não havia distinção entre o eu- aquilo, e, novamente, o movimento de
indiscriminação, de tirar a identidade das pessoas e daquele local.

A organização daquela comunidade retratava o olhar da cidade sobre


aquele espaço: aqui fica o indesejado, o lixo, a lama, o sujo, e já não importa mais
se são coisas ou pessoas. Como disse no início, estamos falando de uma região
na ponta extrema da cidade, e quanto mais caminhamos na direção dos extremos

2
BACHELARD,G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. 2ª edição. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 07.
3
Ibid, p. 10.
4
BACHELARD,G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. 2ª edição. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2013, p. 57

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mais as nossas referências “centralizadas” vão se perdendo, e mais
indiscriminados se tornam as pessoas, os lugares e as coisas.

Lá, não estão às pessoas estranhas a mim por serem de outra região, lá
estão às pessoas que eu nem sabia que existiam. Eu não sabia delas, mas elas
sabiam de mim e de onde eu vinha. O pai da família trabalhava em uma
cooperativa de lixo próxima do meu consultório e conhecia muito bem a região.
A alma da cidade não é diferente da alma de seus cidadãos e as contradições
continuam a aparecer: o pai que se desloca das margens ao centro para trabalhar
em uma cooperativa de lixo é o mesmo que joga o próprio lixo no chão de sua
casa e no rio a sua porta.

A margem trabalha para manter o centro, o centro trabalha para si mesmo.


O centro é auto-referente e se protege com arranha céus, metrôs, vias expressas,
e vai compondo sua pluralidade, alturas e profundidades distanciando-se das
margens. A periferia, via de regra, é a maioria em números de pessoas, mas o
olhar do centro a discrimina e a despersonaliza, a coloca como uma só. O que
escapa ao olhar do centro é que ele sofre o efeito daquilo que ele mesmo produz:
o centro discrimina e despersonaliza igualmente seus filhos, só que por outras
facetas. O centro volta boa parte de seus investimentos para acobertar o que a
periferia expõe. Somos filhos da mesma mãe terra e o território da alma na cidade
é um só e não deixa nada de fora. O rio de lixo que atravessa a periferia e o centro
é o mesmo, mas os efeitos sob cada território são particularmente distintos, uma
vez que o centro se insulta com estas tidas como “provocações periféricas” e se
defende, atacando o território que ele julga ser adversário.

Eventualmente o centro alaga e vira notícia, mas ninguém do centro tem


medo da chuva. Eu conheci um extremo da margem que tem. Eu tive muito medo
da chuva na última noite em que se continuasse chovendo daquela forma tudo
iria alagar e não conseguiríamos concluir a entrega da casa. No dia seguinte, eu
perguntei a líder da comunidade sobre a chuva, e ela me disse que lá o medo é
do vento. É o ar furioso que pode arrancar o teto das casas e subitamente
desabrigar a todos. A água inunda, mas é reabsorvida pela terra e encontra seu
caminho. O lixo será jogado em outro lugar ou não, mas o vento trás a cólera dos

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céus e contra isto não há remédio. O centro da cidade não conhece este medo5.
A alma do centro tem medos diferentes dos da periferia.

Na periferia, o medo é da natureza. Da natureza do homem e dos


elementos naturais. Lá a violência, os estupros, os vícios, a bebida é o que corre
a céu aberto como o lixo da alma do rio. O vento é o principal vilão e, com ele, o
fogo: a alma da periferia é também altamente inflamável. O gato da rede elétrica,
uma faísca, um cigarro... Podem dar início ao incêndio que destruirá a todos.
Como a própria palavra nos mostra, a periferia da cidade carrega o que se pode
inflamar e que se inflama facilmente, as feridas desprezadas da cidade estão lá.
E o medo do centro? Qual é?

O medo do centro é perder o próprio lugar, é ser destituído pela margem.


É, ainda na fantasia auto-referente do centro, a ameaça de que a margem e seus
componentes virão para fragmentá-los com a mesma violência que ele os trata.
O medo da violência é partilhado pelos dois territórios: o centro teme a própria
violência e a violência da periferia contra ele, já a periferia teme a violência dela
mesma. Psicologicamente, as coisas que violentamente nos acometem também
carregam em si um convite para o cultivo da alma. A violência é um sintoma de
uma cidade doente e também uma janela de oportunidade para trabalharmos
com estas imagens.

Uma forma que esta periferia (e outras, como se percebe historicamente)


encontra para trabalhar e denunciar criativamente a sua realidade é através da
música. Ao longo dos três dias escutei Funks que, em sua maioria, eram letras
obscenas, violentas, e com jargões. A música dá uma identidade e apresenta-se
como uma forma de resistência da comunidade. A música Funk trazia para a
comunidade o que a própria cidade não oferecia: pertencimento. Pela música,
chegamos à outra tensão da relação entre a periferia e o centro: a vontade de um
estilo único e diferenciado e a necessidade de pertencimento a um coletivo.

Os atravessamentos desta tensão apareciam quando trabalhávamos


escutando Funk da comunidade o dia todo e o aparelho de som era

5
5 Pelo vento temos novamente uma ambivalência: o vento é doçura e violência, pureza e delírio, é
destrutivo e vivificante. O ar da tempestade é o puro movimento que ameaça e anima, fazendo com que
esta população tema primeiro o mundo e depois os objetos. “ O vento furioso é o símbolo da cólera
pura, da cólera sem objeto, sem pretexto” (BACHELARD, G., O ar e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação
do movimento, 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.231) e viver sob esta energia tão
elementar é desafiar esta força cotidianamente.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 273


orgulhosamente apresentado como um produto de “ostentação” pois, na minha
leitura, é uma parte de um produto que tradicionalmente seria do acesso aqueles
mais privilegiados do centro, e chega a periferia como um tesouro quase
inacessível. A mãe da família falou mais de uma vez como aquele aparelho de
som tinha custado mais de um salário inteiro do marido mas lhes dava um lugar
de status na comunidade (mesmo isto significando que eles não teriam o que
comer ou roupas para vestir). A influência do mercado da indústria cultural
nessas duas esferas (centro e periferia) não pode ser ignorada uma vez que,
através da identificação de um grande público com determinado estilo de música,
busca-se o consumo – justamente por esta necessidade de pertencimento de
ambas as partes. Assim, a própria doença da cidade trás dor, sofrimento e
violência, mas ao mesmo tempo movimenta recursos que a enriquecem. O
sintoma trás em si também um ganho para a alma da cidade, e a música, é um
deles.

Retomando a construção da casa, temos um fim de semana para entregá-


la e, naquele terreno, o tempo também é outro. O tempo é vivido de maneira
diferente na periferia e no centro da cidade. Na periferia o tempo é sazonal. A
interferência direta da natureza é uma barreira para qualquer tipo de
planejamento em longo prazo. Não há tempo para fazer uma pausa, logo não há
tempo para encontrar-se. Nas regiões extremas da cidade, (sobre)vive-se no aqui
e agora. Temos hoje, não sei se teremos amanhã. A vulnerabilidade é extrema.
Os vínculos são frágeis, não sabemos se teremos casa amanhã nem tampouco
se este voluntário virá novamente. As crianças nos perguntavam incessantemente
se voltaríamos na semana seguinte para pintar a casa (o que fizemos como parte
do planejamento da própria ONG) e, todos os voluntários eram instruídos a não
fazerem promessas que não poderiam cumprir, pois isto a comunidade já
conhecia muito bem.

Naquele contexto, até as promessas já estavam escassas e a comunidade


parecia viver desacreditada e a mercê do próprio vento. O centro da cidade
conhece o tempo contínuo, o que influencia diretamente na sua organização,
planejamento e gestão dos próprios recursos. É nesta intersecção que a
construção de uma casa própria se transforma no potencial de erguer não só as
paredes concretas, mas as paredes internas daqueles indivíduos e daquela
comunidade. Não se trabalha para mudar a vida de uma família, trabalha-se para
promover o encontro do centro e a periferia; trabalha-se o sintoma de um

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território doente de forma criativa: eu construí uma casa para alguém, mas
também saí de lá com uma nova casa, e é na imagem da casa que as sementes
da transformação encontram um vaso para serem cultivadas.

II- A construção

Construímos uma casa, mas a imagem que se utiliza é a do teto. Este não
por coincidência é também o nome da ONG que sustenta o nosso trabalho como
voluntários e para dar início a discussão psicológica desta imagem, utilizo-me
das palavras de Hillman:

o teto é um lugar de imagens para onde a imaginação volta o seu


olhar para renovar a vitalidade. O verdadeiro teto, então, como
derivação da palavra, não é um espaço branco, plano e retangular
cravado de variados equipamentos, mas um magnífico artifício
do imaginário. O teto lá em cima corresponde à riqueza da
imaginação humana. É para isto que nossas cabeças se abrem e
é nisso que elas encontram proteção. (1996, p. 46)

Mais do que construir e entregar uma casa, a proposta de trabalho é a de


convidar os voluntários e a própria comunidade para a construção de um espaço
para a imaginação. Nas sombras dos arranha-céus existe os que buscam na
concretude de um teto algum bem estar, e construímos juntos mais do que isto:
a proteção de um teto dá lugar a imaginação, aos sonhos, aos devaneios e é este
o território da alma. É a partir daí que semeamos a transformação.

Escrever sobre a poética da casa é escrever sobre as imagens de


intimidade, “porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz a miúde,
o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”6. Uma comunidade que se
encontra sem teto é uma comunidade desenraizada que não habita
essencialmente o seu espaço, apenas o ocupa (não à toa chamamos de
ocupação). É uma comunidade que ocupa e se ocupa em sobreviver e,
principalmente, cria sujeitos dispersos: sem continuidade e sem contingência
aparente, não é envolvido pelo espaço e não se des-envolve. A casa protege e dá
estabilidade. Aqui as casas lutam. As paredes são valentes e o teto tem coragem

6
BACHELARD, G. A poética do espaço. 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 24.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 275


permitindo que o sujeito possa sentir o aumento dos valores de intimidade ao
diminuir a interferência do mundo externo.

Esta casa é uma possibilidade de se defender sem atacar. É uma forma de


resistência desta comunidade contra a tempestade dos céus e dos homens, é uma
maneira de não estarem sozinhos, de se protegerem e se ampararem e fazer da
casa a mãe acolhedora, que concentra forças, abriga e sustenta. Sobre isto
Bachelard escreve:

As metafísicas do ‘homem atirado no mundo’ poderiam meditar


concretamente sobre a casa atirada na borrasca, desafiando a
cólera do céu. Contra tudo e contra todos, a casa nos ajuda a
dizer: serei um habitante do mundo, apesar do mundo (2008,
p.62)

O trabalho de construção da casa é para todos os envolvidos uma


atividade criadora. Ao longo da construção somos dinamizados pela imaginação
do repouso e da intimidade e não se trata simplesmente de uma realidade física
e, sim, uma ascensão de uma nova forma de se ser. Lá a família poderá aninhar-
se seguramente para repousar, dando asas ao mundo da noite que se abrirá para
o dia. Naquele fim de semana, construímos um lar para abrigar a felicidade.

III- A entrega da casa

Já era noite de domingo quando finalmente, a casa estava concluída. Por


conta da chuva e nossas botas enlameadas, o interior da casa estava sujo e eu
não poderia ir embora com a imagem de uma casa suja sendo entregue. Usei a
água de captação da chuva e, com ela, limpei o interior da casa. Quando nos
reunimos com a família para conversar e fechar o processo de entrega,
novamente a água escorria e dessa vez temperada de sal pelos meus olhos. Eu
chorava. Aquela água pura simplesmente brotava e limpava por dentro e por fora.
A água jovem e fresca era o sonho de renovação. Mais emoção irradiou quando
fui chamada para dentro da casa e lá ganhei uma das poucas fotografias que a
família possuía da filha, posando para a foto em um calendário do ano. Além de

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toda aquela experiência com as imagens e o imaginar, sai de lá materialmente
com uma imagem. O amor produz imagens e eu saí de lá apaixonada7.

Sai chorando. Chorei no ônibus, no metrô e minha alma continuou


chorando por mais alguns dias depois de toda esta experiência. Nós habitávamos
o mesmo lugar. O movimento de todo o processo de construção foi ascensional
e quando concluímos todos os envolvidos puderam voar, subindo aos céus. Esta
foi uma experiência de elevação e, a maior das responsabilidades humanas é a
da verticalidade8. Onde não havia caminhos possíveis entre o centro e a periferia,
voamos, e lá, nos encontramos. Graças a este vôo, segundo Bachelard, que a
imaginação dinâmica nos ensina a lição de passagem dos movimentos da alma
para à alma em movimento9. Movimentamos a alma da cidade.

Do centro daquela casa, em Pedra Branca II, zona leste de São Paulo, uma
casa cósmica existia. O centro da cidade passou a habitar aquela casa, e aquela
casa passou a fazer parte do centro da cidade. Aquilo não foi só uma construção,
está fundida e repartida em cada um de nós. A imagem da casa “se reconstitui a
partir de sua intimidade, na doçura e na imprecisão da vida anterior. Parece que
algo fluido reúne as nossas lembranças.”10 A fluidez das águas ao longo do
processo costura as minhas lembranças sobre esta vivência tão íntima, e com a
doçura deste encontro eu entrego esta construção de palavras com a imagem de
que a periferia abraça o centro (e eu tentei abraçá-lo de volta).

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação do


movimento, 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2001

____________________. A poética do espaço. 2ª edição, São Paulo: Martins


Fontes, 2008

____________________. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da


matéria. 2ª edição. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013

HILLMAN, James. Cidade e Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

7
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação do movimento, 2ª edição, São
Paulo: Martins Fontes, 2001,p. 21
8
Ibid. p.35
9
Ibid. p. 49
10
Ibid. p.71

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A alma na favela:
uma leitura hillmaniana sobre a vida na comunidade

Giovana Cataldi

Psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, formação em acompanhamento


terapêutico pelo Núcleo Paradigma, experiência em acompanhamento terapêutico e terapeuta
membro do Grupo de Estudos de Álcool e outras drogas do IPQ-HC.

Resumo
Este artigo tem como objetivo relacionar a teoria de anima mundi de Hillman
(1993) ao espaço de uma comunidade. De acordo com o autor, não é só o sujeito
que é dotado de alma, mas também o espaço que ele habita. Esta alma é percebida
pelas imagens captadas através do olhar e não apenas como se mostram
dispostas espacialmente. Com base na visita de campo realizada na comunidade
de Heliópolis, zona Sul de São Paulo, observou-se a alma presente nas ruas
longas e curvas que lhe conferem profundidade; memória emotiva carregada nos
nomes das ruas que não deixam as histórias de seus moradores e da própria
construção do lugar serem esquecidas; imagens e símbolos surgem nas placas
anunciando venda de produtos artesanais e nos grafites que transmitem
identidade; e o uso do espaço demonstra a existência de relações humanas
genuínas e acolhedoras. A anima mundi desta comunidade personifica atividade,
movimento, nuances difíceis de desvendar, mas acima de tudo revelam abertura
e afetuosidade.

Palavras-chave: anima mundi, alma, comunidade.

Introdução
James Hillman entende que o espaço físico em que o indivíduo habita diz
muito sobre ele. Em livros como Cidade e Alma (1993) Hillman destaca a
importância de entender o sujeito não apenas como este se mostra no
consultório, mas também levar em consideração o lugar em que seu corpo habita
e tece suas relações, pois o espaço também é psique. Busca não privilegiar a
psique individual, mas também aos seus demais componentes.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 278


Em obras como Cidade e Alma discorreu sobre diversas cidades onde
observava presente a anima, e assim o objetivo do trabalho é fazer uma leitura
com base em seu entendimento sobre anima dentro de uma comunidade

O uso do termo “favela” carece de maiores cuidados; detém estigmas que


este trabalho não pretende abordar. Deste modo, foi empregado o termo
“comunidade” para se referir à localidade em questão.
O presente trabalho consiste na revisão bibliográfica sobre a teoria de
anima mundi de James Hillman, sobre a construção de comunidades e sobre a
de Heliópolis, e na elaboração de um diário de campo contendo impressões e
observações captadas em duas visitas à comunidade de em questão.

James Hillman e a anima mundi

Um dos elementos centrais da obra de James Hillman reside no uso de


alma, mais precisamente na alma do mundo: a anima mundi. Enquanto
convencionalmente se pensa em alma apenas nos seres humanos Hillman
defende que não são só os indivíduos que possuem alma, mas também o mundo,
que os objetos materiais e o espaço são dotados de alma.

Enquanto se faz presente no pensamento de senso comum a ideia de que


as doenças psíquicas são causadas apenas na cidade, longe de natureza, Hillman
defende uma cidade dotada de alma e diz em seu livro Cidade e Alma (1993),
mais precisamente no capítulo que leva o mesmo nome, como e onde a alma
existe na cidade, citando 5 pontos a ser observados:

- Reflexão. A reflexão está em lagos, piscinas, galerias, sombras,


venezianas, janelas e espelho – objetos e locais onde ocorrem reflexos. Vidros
espelhados, ao mesmo tempo que refletem, não possibilitam a entrada de fora e
por isso é um reflexo associado sobretudo com a vaidade, já que reflete somente
a si. O papel do vidro, no entanto, estaria mais ligado à alma: para tocar a alma
aquele que se vê pelo vidro terá de aprofundar e tornar mais complexo o sentido
da cidade ao refletir alguma dimensão mais profunda.

- Profundidade. Hillman afirma que são necessários níveis para se ver a


alma na cidade, podendo ser vistos por meio de diferenças na iluminação, através
de matizes de luz que conferem a impressão de nivelamento, e também por meio
de diferenças nas texturas e materiais de casas. As ruelas são pensadas como a

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 279


parte mais obscura, conferindo mistério e adquirindo, desse modo, uma função
análoga às veias e artérias do coração.

Ainda sobre profundidade, a noção de interioridade se faz presente:


Hillman atribui profundidade ao horizontal, diferentemente da verticalização.
Alega que é preciso ser cauteloso ao olhar para o alto apenas e enfatizar arranha-
céus ou vistas panorâmicas e não confundir a altura com a profundidade.

- Memória emotiva. Este item diz respeito às experiências passadas que


constituem uma memória emocional, tanto individual quanto para a
comunidade. Trata-se do significado que é atribuído à história.

- Símbolos e imagens. As imagens servem como objeto para levar maior


organização à uma população e facilitar suas atividades. Como exemplo pode-se
pensar em placas de trânsito: não fossem elas as pessoas gastariam tempo
buscando a direção de seu destino por meio do método da tentativa e erro,
gastando tempo e também combustível. Trata-se de uma forma de levar
comunicação a quem precisa, bem como atribuição de identidade.

- Relações humanas. A relação das pessoas ao nível do olhar é parte


fundamental da alma na cidade. A forma como olhamos as coisas e a forma como
lemos e entendemos o que este olhar nos traz é o que faz entrarmos em contato
com a alma. É necessário então um lugar em que possa acontecer este “contato
humano de olhar”, um “lugar de encontro”; é preciso que haja um momento em
que tudo pare para este “toque de olhar”.

Além do lugar de olhar Hillman também considera necessário um lugar


para o corpo, um espaço onde estes corpos possam se ver, se encontrar, se tocar.
É preciso ter uma relação do corpo com o espaço, criando assim uma intimidade
que é essencial para a alma. Entende-se por intimidade algo independente do
tamanho da cidade e da altura e estrutura de seus prédios, mas sim lugares que
ofereçam uma pausa, como um canto, um interior em que seja possível um estar
junto e assim promova a criação de uma intimidade, de uma troca de olhares e
de uma possibilidade de ver e ser visto.

Também no livro Cidade e Alma Hillman dedica um capítulo ao


“caminhar”. Para o autor, o caminhar acalma a alma, a mente, faz com que suas
agitações tomem uma direção. Caminhar leva a um pertencer ao mundo, a se
encontrar neste e assim significar o que este espaço é para si. Argumenta que
uma cidade que não se permite o caminhar nega uma moradia da mente, e que

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 280


sua falta pode levar à loucura, pois vê no caminhar uma cura para temores como
ansiedade.

A comunidade de Heliópolis
Em sua dissertação sobre práticas educativas de Heliópolis,Soares (2010)
apresenta dados sobre como esta foi construída e também sobre o que se vê nos
dias atuais no local.

A comunidade de Heliópolis se encontra na zona Sul de São Paulo e teve


origem no início da década de 60 com a instalação dos trabalhadores que
construíam o hospital Heliópolis, e posteriormente com despejos de centenas de
famílias que habitavam áreas desapropriadas pela prefeitura.

Depois da instalação dos moradores despejados das outras favelas, um


novo movimento passou a ocorrer: a mudança de familiares e amigos destas
primeiras famílias, que vinham do nordeste, de alguns locais do sudeste como
MG e até mesmo da região do ABC.

Hoje, o movimento de Heliópolis é intenso, sempre contínuo. Durante o


dia se vê pessoas que saem para trabalhar ou estudar e crianças indo para
escolas. Além dos moradores há também uma movimentação por conta de
entidades religiosas e sociais que realizam trabalhos na localidade

A despeito da composição da paisagem observa-se uma alta densidade de


casas, construídas em grandes quantidades dentro de pequenos terrenos. Estas
casas contam com pouco ou nenhum recuo em relação às calçadas. Não são mais
como os barracos de madeira que eram erguidos na década de 70, mas sim de
alvenaria. São em sua maioria casas geminadas, estreitas, com pouca ventilação
e luminosidade – não raro pode-se ver casas sem janelas.

O fenômeno da verticalização ocorre devido à falta de espaço para novas


construções e pela especulação imobiliária do local. Trata-se de autoconstruções
que já tem por característica a laje, pronta para ter outra casa ou outro cômodo
em cima, que será habitado por algum parente, conterrâneo ou algum amigo.

Além de moradias a paisagem de Heliópolis é também composta por


comércios. Comumente estes comércios são extensões do lar, de modo que seus
donos residam ou no segundo andar ou nos fundos do negócio.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 281


O transporte público não atende a toda localidade; os micro-ônibus
trafegam apenas nas avenidas principais. É necessário então que os moradores
que utilizem do transporte público tenham de caminhar até as avenidas principais
por onde passam os ônibus.

O lazer em Heliópolis pode ser visto nas poucas áreas de campos de


futebol. Na época de sua fundação a comunidade contava com aproximadamente
20 campos, mas áreas foram perdendo espaço para a construção de novas casas
e hoje os moradores contam com poucas opções, tendo que recorrer a quadras e
praças dentro de espaços privados, dos conjuntos habitacionais e de
equipamentos públicos.

A vida noturna aparece em muitos dos bares que recebem cantores de


sertanejo ou forró, estilos musicais herdados da terra natal de muitos de seus
moradores. Ocorrem também festas de funk; nestas os bares colocam o sol em
volume alto, e quando não são os bares quem comandam a música a festa
começa com os carros que contam com equipamentos de som.

A geografia de Heliópolis é composta por uma topografia plana, apenas


com alguns declives e um baixo índice de vegetação. A falta de árvore é explicada
pela falta de espaço, já que concorre com o uso do morador que privilegia o
espaço privado.

Diário de campo: caminhando em Heliópolis

A primeira visita à Heliópolis aconteceu no dia 16 de março de 2016,


aproximadamente entre 9:30 e 12:00.

O primeiro contato que tive foi em uma longa avenida por onde passava
o microônibus em que estava. Era uma via larga, de duas mãos num constante
movimento de carros e microônibus em ambos os lados. Comércios de todos os
tipos se faziam presentes: havia desde cabeleireiros, borracharia, bares, como
também grandes magazines populares.

Entrei por entre as ruas que cortam a avenida. Eram estreitas, obrigando
os carros a se revezarem com os que vinham do outro lado. Também dividiam
espaço com os pedestres que por ali passavam, já que as calçadas eram
demasiadas estreitas e muitas vezes ocupadas por postes, escadas externas, entre
outros obstáculos que impossibilitavam o caminho do transeunte.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 282


Assim como na avenida principal também havia comércio nas vias
menores: de um lado um salão de cabeleireiro, na esquina uma padaria; mais a
frente uma loja com grande variedade de produtos, contendo desde acessórios
de cabelo até instrumento musical. Havia também comércios não tão aparentes,
mas que também estavam lá, presentes por meio de placas penduradas em
alguns portões, como a da promoção do gelinho.

À medida que adentrava mais aquelas ruas parecia que elas envolviam
mais e mais. Elas ficavam mais estreitas, porém mais profundas; seus quarteirões
eram mais longos e repletos de curvas.

A estrutura das casas também chamava atenção: a maioria delas era


colada à outra, parede com parede, sem qualquer espaço para um respiro. A
imponência das casas também era marcante: só vi casas de 3 até 4 andares,
fazendo com que o local adquirisse um ar de altura.

Outro aspecto envolvente a respeito das casas eram suas cores: a grande
maioria das construções da comunidade era colorida, mas não com cores
qualquer: eram vibrantes, - amarelo, vermelho, azul - impossíveis de não serem
captadas pelo olhar. Havia, no entanto, ao lado destas casas tão coloridas outras
com vigas aparentes, manchas de cimento para tapar um buraco ou outro, - ,
casas que transmitiam a aparência de não acabadas, não finalizadas.

A segunda visita foi realizada no dia 09 de maio, uma segunda-feira, no


período da tarde. Desta vez passei por outros lugares, diferentes de onde fui pela
primeira vez. Desci novamente em uma das avenidas principais, por onde passam
as vans, e busquei o endereço. Havia olhado no mapa qual direção tomaria para
chegar no meu destino, mas a falta de placas que indicassem o nome daquelas
ruas já sinalizou que teria dificuldades para encontrá-lo.

Sem saber se era o caminho certo optei por entrar em determinada rua.
Era cheia de curvas, profunda. Contava com uma certa assimetria: do lado direito
havia casas, comércios e alguns prédios. Do outro lado da rua passava o córrego.
A outra parte da assimetria estava nos barracos instalados à margem do outro
lado do córrego, logo atrás de uma barreira que cerca o rio. Eram barracos
isolados, aparentando terem sido feitos às pressas e no improviso.

Entrei em uma rua à direita, onde subi e cheguei à rua planejada. A


caminhada continuou. Apenas me juntei às várias pessoas que andavam por ela,
num indo e vindo, que davam um ar de constante movimento àquele lugar. Além

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 283


das pessoas que passavam, havia também aquelas paradas na frente de algum
lugar, atentas à movimentação da rua, sempre prontas para a aproximação de
alguém.

A quantidade de comércio se destacava, bem como sua variedade: havia


lojas de roupas, bares, mercearias, todos sempre bem próximos.

Em outra avenida grande, mais comércios. Ali, no entanto, havia ainda


mais criatividade: bancas de ambulantes se intercalavam com outras com maior
estrutura, como as de assistência técnica de eletro-eletrônicos. Também ali as
pessoas passam, só que na calçada: o movimento de carros ganha na intensidade
e a linguagem destes sobressai a dos pedestres.

Andando por entre as tantas curvas do local e subindo ou descendo


eventuais declives reparo também na quantidade de carros estacionados nas
ruas: não há garagens. Todo espaço em que cabe um carro parece que é ocupado
por mais pessoas. Privilegiam mais um território do habitar, e o restante fica para
fora. Não apenas espaços de garagem são dominados: o mínimo espaço público
passa por essa transformação. Dessa forma foi possível ver poucos espaços
abertos para o uso comum da comunidade, como uma quadra de esportes e uma
praça com equipamentos de academia. Contudo, não são só as moradias que
ocupam o concorrido espaço da comunidade: os comércios também invadem o
que podem e como podem. Havia por exemplo muitas lojas que contavam com
um espaço mínimo, sem profundidade, mas todas valorizadas da mesma forma
de uma loja com tamanho habitual.

Na composição do visual da localidade cores se revezavam entre paredes


inacabadas. Também havia placas de políticos nos muros, algumas outras
indicando o comércio ou tipo de instituição daquele espaço. As placas de vendas
também eram presentes, em diferentes locais e contemplava de tudo um pouco:
em um único portão placas com inscrições de “vende-se tempero”, “vende-se
geladinho” e mais outra de “vende-se sabão”. Grafites, pichações e outras formas
de expressão artística também se faziam presentes; em uma determinada região,
conhecida como “Paquistão”, o desenho em uma das paredes sinalizava naquele
lugar sem placas aonde eu, andando sem direção por tanto tempo, finalmente
pude identificar onde estava.

Uma característica intrigante é a comunicação entre os carros e motos e


as pessoas: eles andam juntos nas ruas, se alternam. Parece que há uma

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 284


linguagem pré estabelecida a qual não tenho acesso, pois todos passam no
mesmo espaço, obedecendo à passagem como algo natural. É como se os
veículos e pedestres dançassem uma música que quem vem de fora não sabe
seguir os passos nem consegue ouvir seu som.

Análise dos resultados

A proposta desta análise é realizar uma leitura imagética do espaço


compreendido pelo meu olhar e vivência nas visitas realizadas à Heliópolis. A
intenção não é patologizar, mas sim destacar forças simbólicas que residem e
fazem parte da vida nesta comunidade.

Primeiramente, se faz necessária a análise por meio dos pontos relatados


por Hillman para se pensar a alma na cidade.

O primeiro ponto trazido pelo autor é reflexão. Em Heliópolis esta se dá


por meio das tantas janelas das casas ou dos carros estacionados e os que estão
em movimento que dividem o espaço da rua com os pedestres. Janelas que
refletem a atmosfera de Heliópolis.

O segundo ponto discutido é a existência da profundidade. Este é um item


indiscutível em Heliópolis: suas ruas contêm um quê de sem fim, onde é possível
perder a dimensão do seu término em meio às suas tantas curvas e tamanho.
Suas ruas, compridas e dotadas de curvas, revelam diferentes cenários
impensados por quem passa apenas pelas avenidas principais. Ao se deixar
caminhar guiado pelo olhar este revela ruas com constante movimento de
pessoas e que de repente dá lugar a uma paisagem com árvores que compõem o
terreno do hospital. Estão todos juntos, todos em um mesmo lugar, revelando
diferenças de uma complexidade surpreendente.

Ainda sobre as ruas, suas casas, tão próximas umas das outras, captam o
olhar do transeunte. São em sua maioria pequenas, mas a união destas envolve
o olhar e o convida a se perder em meio a suas misturas de cores e estilos.

A cada quarteirão percorrido me deixava levar pelas diferenças. Heliópolis


contém uma complexidade que impede a previsibilidade; em um momento
andava por entre prédios calmos e quietos, e poucos minutos depois passava por
locais com barulho e movimento.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 285


O terceiro ponto destacado por Hillman é a memória emotiva, que habita
Heliópolis por meio de ruas que revelam suas histórias. É o caso, por exemplo, da
rua da Mina – uma das primeiras ruas a ser construída na comunidade por contar
com uma mina d’água, quando numa época ainda sem abastecimento de água
os moradores utilizavam esta mina para eles próprios se abastecerem. Até hoje a
rua concentra importantes estabelecimentos e é considerada uma das ruas
principais da comunidade.

Hillman destaca também o ponto que intitula de símbolos e imagens. O


olhar é chamado pelos vários símbolos e imagens, como por exemplo pelas tantas
placas colocadas em portões. Estas placas, elaboradas artesanalmente com os
materiais ali disponíveis tais como papelão ou papel, indicam comércio de
diversos tipos além do que se encontra nas lojas, e mais do que isso:
proporcionam identidade ao local.

Além das imagens trazidas pelas placas, seus grafites também


proporcionam identidade ao local – como exemplo, pode-se pensar no grafite
em um dos muros da localidade conhecida como “Paquistão”, área famosa onde
acontecem os bailes funk e. Ao olhar para este grafite pude então reconhecer que
estava neste local.

As relações humanas são sem dúvida o aspecto que mais me chamou a


atenção nestas visitas. Estas relações são privilegiadas neste local; trata-se de
relações que certamente não são vistas em todo lugar: são genuínas, verdadeiras,
talvez únicas. A poucos metros do ponto de ônibus que acabara de descer já me
surpreendi com um “boa tarde” sorridente, sem pretensões, vindo de um homem
passando na direção oposta. Alguns minutos depois, diante da dificuldade em
encontrar a rua que desejava ir, perguntei a um homem que passava por mim se
ele saberia dizer a direção do destino que buscava; este não só respondeu que
sim como também me acompanhou, já que morava nesta mesma rua e estava
indo para lá.

Durante a caminhada outra atração para o olhar foi a quantidade de


pessoas que se cumprimentavam. Havia aquelas paradas, na esquina ou na porta
de casa ou do comércio, sempre prontas para um cumprimento de quem quer
que fosse, sempre disponíveis para o encontro. Hillman acredita que esta
disponibilidade seja muito importante, pois não se trata apenas de estar em

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público, mas também de encontrar a si próprio, pois “um encontro não é somente
um encontro em público, é encontrar-se em público”. (p. 41)

Também foi possível notar muitas pessoas reunidas, amigos, que


compartilhavam juntos mais um dia normal. Foi assim que percebi o grupo de
mais ou menos seis homens sentados em um bar jogando dominó. Seria um
evento cotidiano, comum em qualquer lugar, não fosse numa segunda-feira à
tarde.

Gonçalves Filho (1998) descreve os bairros pobres como locais repletos de


linhas incompletas. Se diferenciam de localidades que tenham, por exemplo, sido
vitimadas em uma guerra ou mesmo pelo passar do tempo; para o autor, o bairro
pobre é dotado de “linhas corroídas e formas parcialmente quebradas” (p.16).
Mais do que o modo como a localidade se mostra fisicamente ela também revela
seus moradores, por meio destas linhas inacabadas que habitam a memória de
sua gente.

As linhas interrompidas descritas por Gonçalves Filho também habitam


Heliópolis; casas erguidas com vigas aparentes e os tijolos das paredes carentes
de uma massa corrida acrescentavam este cenário de interrupção à comunidade.
Para o autor esta intermissão vista nos bairros pobres sugere a dificuldade de
seu povo, em sua maioria migrante, de construir um lar completo e assim
abandonar de alguma maneira os laços da terra de origem. A falta também é vista
em Heliópolis. As placas de papelão estampadas nas casas, a flor que crescia
numa lata de tinta como se fosse um vaso traduzem essa carência, ao mesmo
tempo que são exemplos da criatividade e improviso.

Segundo Pessoa de Andrade (2010) observa-se uma dialética de um


indivíduo que habita uma cidade e a transforma mas que também responde ao
movimento psíquico desta“ . A dialética trazida por Andrade cabe ser pensada em
Heliópolis: seus habitantes são dessa maneira por causa da disposição da
comunidade, ou a comunidade foi construída da maneira que foi por causa do
jeito de seus habitantes?

Ainda que esbarre na dialética de pensar o indivíduo que transforma a


cidade / a cidade que transforma o indivíduo destacada por Pessoa de Andrade
(2013), a questão das relações humanas também pode ser explicada pela
articulação comunitária relatada por Soares (2010); quando a comunidade era

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 287


construída, os primeiros moradores perceberam que ao se unirem teriam mais
força para enfrentar seus desafios e reinvindicar seus direitos.

A questão das relações humanas pode ser explicada também pela


disposição das casas, pois sua proximidade não permite o evitamento do outro .
São relações diferentes do que se vê em outros bairros onde o privado é
privilegiado. São bairros que constroem barreiras, muitas físicas de fato, com
muros e cercas – pois estão centrados em si, privando o contato com o outro.
Pode até ser que alguns conflitos se resolvam nesta configuração espacial, mas
também muito se perde, como a proximidade com o outro, já que não há lugar
para o contato com o próximo.

Além da relação estabelecida devido a demanda entre vizinhos o contato


dos moradores de Heliópolis continua nos espaços públicos, onde se pode ver as
pessoas andando nas ruas, dispostas a se olharem, a interagirem, disponíveis
para o encontro pensado por Hillman. Questiono se isso ocorre em bairros de
elite, onde o privado é privilegiado, onde comumente evitam interagir para fora
de seus limites.

O fato é que Heliópolis se fosse uma pessoa, seria ativa, sempre se


movimentando. Seria complexa; não se revelaria à primeira pessoa que a visse
logo em um primeiro momento, pois é composta por várias nuances que só se
revelam em um bravo desvendar. Além de complexa seria também misteriosa,
pois possui também características que não se revelam nem a si mesmo. Mais
acima de todas estas características, seria aberta e afetuosa.

Heliópolis é composta por muitas nuances, muitas das quais não são vistas
por quem é de fora. Este trabalho procurou mostrar um olhar que se expande
através do espaço da comunidade e descobre riquezas tão valiosas que a maioria
dos habitantes de São Paulo nem imaginam que existam ali dentro. Há tantas
forças que habitam esta comunidade, com relações humanas construídas de
forma tão calorosas e genuínas que ela pode e deve ensinar para o resto da
cidade de São Paulo modos de convivência que proporcionam encontros,
articulação de forças intrapsíquicas, trocas e cooperação que faltam em outros
bairros da cidade.

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Referências bibliográficas
ANDRADE, G.M.P. A casa na cidade: uma leitura junguiana da experiência de
jovens que moram sozinhos em São Paulo . São Paulo, 2013.

GONÇALVES FILHO, J.M. Humilhação social – um problema político em


psicologia. Psicol. USP, São Paulo, v.9, n.2, p.11-67, 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-
65641990000200002&script=sci_arttext. Acesso em: 02 dez. 2015.

HILLMAN, J. Cidade & alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

SOARES, C.C. Heliópolis: práticas educativas na paisagem. São Paulo, 2010.

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Sob a neblina, os sentidos da paisagem

Catharina Lima, Elaine Albuquerque, Gustavo Seraphim, Hulda


Wehmann, Mônica Bertoldi, Paula Vicente, Tatiana Reis, Vânia Bartalini

Catharina Lima é professora doutora do Dep. Projeto da FAUUSP e coordenadora do


Laboratório Paisagem, Arte e Cultura (LABPARC).

Elaine Albuquerque é arquiteta e urbanista, mestre pela FAUUSP e doutoranda pela mesma
instituição.

Gustavo Seraphim é advogado, pós-graduado em Gestão de Projetos e em Geografia, Cidade e


Arquitetura.

Hulda Wehmann é arquiteta e urbanista, mestre em Planejamento Espacial e doutoranda pela


FAU USP.

Mónica Bertoldi é graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP.

Paula Vicente é arquiteta e urbanista formada pela FAUUSP e mestranda pela mesma instituição;

Tatiana Reis é arquiteta e urbanista formada pela UFRN e doutoranda pela FAU USP.

Vânia Bartalini é psicóloga clínica, especialista em Pesquisa Qualitativa Fenomenológica e


mestranda pela FAU USP.

Resumo
Este trabalho apresenta o ensaio metodológico desenvolvido por ocasião do XVII
ENANPUR - Encontro Nacional da Associação Nacional de Planejamento
Urbano, em maio de 2017, na Vila de Paranapiacaba, São Paulo. A experiência,
denominada Cartografia dos Afetos e Insurgentes em Paranapiacaba, ocorreu
sob a coordenação do LABPARC – Laboratório Paisagem Arte e Cultura, da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - FAUUSP. A estrutura proposta
partiu da concepção de paisagem como percepção sensível e expressão de um
mundo que se percebe fenomênico. Por isso, foram organizados momentos de
fruição e registros paisagísticos construídos coletivamente, a fim de potencializar
a vivência dos afetos no lugar. Objetivou-se assim promover encontros entre as
paisagens percebidas pelos que visitavam a Vila e aquela que se descortina nas
memórias e no viver cotidiano dos moradores do lugar.

Palavras-chave: Paranapiacaba, Paisagem, Afeto.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 290


I. Paisagem como afeto: o caminho metodológico

A gama de acepções atribuída à ideia de Paisagem varia em função dos


campos de conhecimento que a têm como objeto de investigação, mas também
dos inúmeros sentidos que lhe são atribuídos por pessoas comuns com
interesses, idiossincrasias, culturas e visões de mundo distintas. Assim, é
necessário clarear o sentido conferido à ideia de paisagem que norteará a
reflexão e a descrição de um ensaio metodológico, objeto deste artigo.

Ao tomarmos paisagem como síntese de processos socioculturais em sua


apreensão dos sistemas naturais, tem-se a expressão complexa e inteira do
mundo, como este se apresenta e é percebido – fenomênico.

Em sua palestra “Cidade & Alma” (1978), no Center for Civic Leadership
da Universidade de Dallas, James Hillman argumenta que a cidade está na alma
das pessoas que a habitam e que, portanto, é fundamental reafirmar esta ligação
entre alma e cidade.

Para nós, essa relação se expressa na paisagem que como percepção


sensível do mundo, pode ser apreendida como fruição desinteressada, sem
finalidade específica.

Abre-se aqui a ideia de paisagem em consonância com afeto e experiência


estética, onde o corpo se deixa levar pelas possibilidades sensoriais oferecidas.

Este artigo descreve uma experiência de fruição e registros paisagísticos


realizada em maio de 2017 durante o XVII ENANPUR – Encontro Nacional da
Associação Nacional de Planejamento Urbano. O ENANPUR abordou temas
relacionados aos diversos contextos da Região Metropolitana de São Paulo, por
entender a necessidade de ampliar o espaço de desenvolvimento de práticas de
leitura ambiental e urbana, envolvendo processos participativos associados à
paisagem e à produção da cidade. Tal fato justificou a inserção das “Oficinas de
Práticas Urbanas” em seu último encontro.

O presente trabalho discorrerá sobre a experiência metodológica


desenvolvida na 10ª Oficina de Prática Urbana, denominada Cartografia dos
Afetos e Insurgentes em Paranapiacaba sob a coordenação do LABPARC –
Laboratório Paisagem Arte e Cultura da FAUUSP. Dela participaram
pesquisadores e profissionais de várias áreas do conhecimento inscritos no
Encontro.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 291


Entendendo que abordagens metodológicas devem guardar consonância
com conceitos e propósitos investigativos, desenvolveu-se uma proposta de
ensaio metodológico, em caráter experimental, por meio de quatro atividades, ao
longo de um final de semana. Objetivava propor situações que permitissem aos
participantes a potencialização de afetos experienciados no lugar, em paralelo a
registros e reflexões coletivamente desenvolvidos.

Ia. A Vila de Paranapiacaba como objeto de estudo

Localizada no Município de Santo André, Região Metropolitana de São


Paulo, a Vila Ferroviária, com sua privilegiada posição geográfica, entre o
Planalto Paulista e a Serra do Mar, propicia uma paisagem singular da Mata
Atlântica, cuja exuberância desperta fortes sensações nos visitantes.

A história da Vila é marcada pela presença da primeira Linha Ferroviária


do Estado de São Paulo – a São Paulo Railway (SPR) – e pela estrutura
arquitetônica ao estilo de vila operária inglesa, empreendimento desenvolvido
com tecnologia avançada para a época. Até hoje, essas características compõem
um acervo tecnológico ferroviário de grande importância para o patrimônio
brasileiro; valor oficialmente reconhecido por seu tombamento nos três níveis
governamentais.

Figura 01 - Desvelando a paisagem da Vila histórica a partir do morro.

Fonte: Monica Bertoldi.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 292


Figura 02 - O morro e o trem vistos a partir da cidade histórica.

Fonte: Monica Bertoldi.

Apesar de ser amplamente conhecida pela tríade natureza-patrimônio-


cultura, Paranapiacaba é também um território complexo e repleto de
contradições.

Atualmente vive um momento de inflexão capaz de gerar oportunidades


únicas: sua inserção na lista-tentativa brasileira a Patrimônio Mundial da
Humanidade da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e
Cultura (UNESCO), título que a colocaria em salvaguarda cultural e alavancaria
um processo socialmente responsável de inserção de sua população nas novas
economias e paisagem do lugar.

No entanto, para fazer frente à candidatura, as políticas públicas que se


ocupam da gestão ambiental-paisagística e patrimonial da Vila têm encontrado
dificuldades na adesão dos moradores ao processo que balizaria a configuração
e gestão do território nesses novos tempos.

O quadro se agrava ao considerarmos que segmentos sociais de baixa


renda sobrevivem excluídos da lógica turística, que se atém ao patrimônio
caracterizado pela exuberante paisagem e ao acervo ferroviário e arquitetônico
da ‘Vila Histórica’1.

1
Esta porção da Vila recebe tratamento distinto, por ser propriedade pública municipal, estar no
perímetro de tombamento do IPHAN e, por isso, receber obras de restauração com recursos públicos

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 293


As contradições existentes entre ‘exuberância e precariedade’ reveladas na
paisagem da Vila indicam a necessidade de um olhar mais atento ao lugar.

Ib. As atividades

Em função disso, paisagem como apreensão do sensível no cotidiano, é


tema de singular importância, na medida em que marca a relação dos moradores
com o lugar. Assim, a reflexão sobre metodologias que permitam sua apreensão
é indispensável. Com esse intuito, a Oficina se orientou por buscar possibilidades
de aproximação a esse campo metodológico, numa sequência de atividades
composta por Olhares (ainda que o sentido da visão seja apenas uma das formas
de apreensão paisagística).

As três primeiras atividades destinaram-se a fomentar o debate sobre a


pluralidade de percepções e sentidos presentes numa paisagem que é viva, e não
mero cenário. Os debates resultantes se materializaram na derradeira atividade
por meio da “cartografia dos afetos”, produzida coletivamente e que teve como
tema as percepções dos participantes sobre Paranapiacaba.

O detalhamento das quatro atividades será apresentado a seguir.

II. O olhar desinteressado: derivas do afeto

Logo ao chegar, o visitante é afetado de forma impactante: impossível não


se ter um sentimento de perplexidade ao vislumbrar uma paisagem onde a
verdura pervasiva se espraia pela planície e sobe a montanha para do outro lado
ver o mar. Paranapiacaba, em Tupi, quer dizer justamente “ de onde se vê o mar”;
um promontório muito elevado que compensa pela beleza da vista, o esforço da
subida. Perplexidade e esforço que nos remetem aos de Petrarca, em sua
escalada ao Monte Ventoux, empreitada à qual se atribui a “inauguração” da
ideia de paisagem no mundo ocidental (BESSE, 2006).

Da longa e estreita ponte de acesso à Vila, já se anuncia uma paisagem


que se oferece generosa e explícita. É possível dali, vislumbrar num golpe de vista
o cardápio que se ensaia: em primeiro plano a estação ferroviária, tombada pelo

federais. A população não contemplada tem dado mostras de insatisfação, embora não pareça
mobilizada para reivindicar seu protagonismo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 294


Patrimônio Histórico, rasga o território, definindo horizontes insondáveis para
todos os lados; ao fundo, a Vila Histórica se assenta com sua graciosa humildade
(vista a escala monumental da paisagem) sobre o onipresente e espraiado prado
verde, conferindo o tom de contraste, onde marrons, ferrugens e avermelhados
da madeira das casas o complementam. A sensação é de abertura, frescor e
umidade por toda parte. Com sorte, o visitante é surpreendido por uma névoa
que, ao baixar, “apaga a paisagem”, envolvendo a Vila em um clima de mistério
que a deixa ainda mais enigmática e espetacular, o que deu margem,
historicamente, a uma diversidade de mitos e lendas. O trem anuncia a sua
chegada e a sensação é de que todo esse conjunto faz parte de uma orquestrada
peça de teatro. Cada coisa tem o seu papel e adentra o cenário “na hora certa”.

A primeira atividade propôs, a um grupo ligados à paisagem e


planejamento urbano, um caminhar errático, onde se deixasse levar pelos
percursos que se insinuavam e se ofereciam à fruição desinteressada. Os
participantes foram divididos em dois grupos e orientados a fazerem registros da
forma que lhes aprouvesse – desenhos, relatos, poemas, fotos, etc. Também
foram orientados a desligar os celulares e se manterem (na medida do possível)
silenciosos para propiciar melhores condições de conexão do corpo com a
paisagem, numa imersão afetiva mais profunda, na qual pudessem ser mais bem
percebidos visuais, cores, texturas, sons, cheiros e sensações táteis, além de
memórias que os caminhantes pudessem ter ao longo dos percursos escolhidos.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 295


Figura 03 - Participantes da oficina no caminho da trilha.

Fonte: Paula Vicente.

Figura 04 - Uma experiência errática na Vila histórica.

Fonte: Paula Vicente.

Dessa atividade, foram obtidas as primeiras impressões do campo e


guardadas para alimentar as etapas subsequentes.

III. O olhar compartilhado: um lugar que começa pelo meio

É difícil caminhar em grupo sem proferir palavra. A conversa é inevitável...


conversa sobre tudo, sobre qualquer coisa, até sobre Paranapiacaba.

De saída vem uma pergunta: tanto falatório não atrapalha a introspecção?


Mas virando a pequena rua esse incômodo se desfaz. Afinal, é assim que se
apreende um lugar: absorvido, absorto, esquecido em meio à conversa. É assim
que se está no mundo. Portanto, que seja assim também nessa deriva um
tantinho barulhenta.

Na deriva uns param para ver o protótipo de casas de época, outros


estancam diante do relógio estilo inglês, outros sapeiam as possibilidades de

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 296


comida caseira nos pequenos restaurantes. Dia de sol é dia de janelas abertas,
gente nas ruas. Coisa bem diferente se dá quando a neblina aparece:
espontaneamente há uma alteração de atmosfera – as janelas se fecham, as
pessoas se abrigam, o som fica abafado pela densidade do fog. É entre neblina e
sol, chuva e calor, mata e urbanidade que Paranapiacaba se apresenta.

Captar o sentido desse lugar significa se abrir à possibilidade de


desvelamento do que acontece no contato com uma paisagem que se oferece e
se retrai.

Idas à Vila comprovam que a verdade do lugar, embora se mostre a cada


vez particular e distinta, se apresenta também como compartilhamento. Talvez
seja por isso que, de tarde, na “roda de conversa” pós deriva, sensações relatadas
pelo grupo se avizinhassem das sensações de quem habita o lugar há décadas.

Sentados em círculo, pesquisadores e duas coordenadoras de grupo


iniciam a conversa, que pretende explorar de modo informal (nem por isso
metodologicamente frouxo) as impressões que a Vila despertou. O grupo é
acompanhado por professores, um guia turístico e três moradores que aparecem
por lá – dispostos num círculo mais afastado, assistem a conversa em silêncio (a
proposta é que prestem atenção, identificando em si vivências semelhantes, ou
não, às relatadas pelo grupo).

Figura 05 - Roda de conversa conduzida pela psicóloga Vânia Bartalini.

Fonte: Paula Vicente.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 297


O papel da coordenação é escutar e perceber o que o dito e o não dito
trazem. Essa escuta indica a necessidade de se dispor ao outro e nesse sentido
instala uma práxis peculiar: retira o “outro” da condição de informante para
tomá-lo como sujeito de seu próprio discurso; discurso que, por ser do outro,
revela quem é ele, aproximando-o e ao mesmo tempo distinguindo-o de “mim”.

Este é o sentido da pesquisa qualitativa fenomenológica: olhar pelos olhos


do pesquisado, apreendendo no singular o que é partilhado por muitos, sem com
isso diluir a experiência no simples discurso “de todos”. Essa forma de capturar a
verdade coloca em foco o que por séculos foi escanteado – a dimensão sensível
vivida como material precioso para a compreensão do humano.

A partir de uma pauta de temas bastante sucinta, o grupo é convidado a


discorrer sobre os lugares por onde andou e o que mais lhes chamou a atenção;
como se sentiram, quais as impressões deixadas por cada canto visitado pela
manhã.

Os depoimentos vão se avolumando com a contribuição dos participantes


que são estimulados a identificar o que há de comum e de particular nas
experiências relatadas.

A intenção não é fazer os depoimentos acontecerem de forma muito


ordenada, ao contrário; mantendo a condição de todos poderem ter a palavra, a
coordenação tem o papel de propiciar um clima acolhedor, fazendo-os se
sentirem à vontade para somar, contrapor, refletir sobre os temas em pauta. É
assim que um grupo se dá: quando o todo sobrepõe as partes, quando a dinâmica
gerada e o discurso produzido são resultado do trabalho de todos.

Entre muitos relatos, destaquem-se dois.

Uma arquiteta conta que, empenhada em sorver o lugar, se coloca atenta


desde a estrada que leva à Vila. Apesar disso, é surpreendida pela informação de
que já havia chegado, quando seu olhar nada identificava como “entrada” – nem
coreto, nem ruas confluindo para a igreja matriz, apenas um cemitério e poucos
metros depois, uma igrejinha. “Achei estranho... é como se a cidade começasse
pelo meio! Achei a cidade legal, mas também achei um pouco esquisita.”

Seu estranhamento, fruto de apenas uma visita, revela-se condizente com


a sensação que a Vila produz nos moradores. Como se sabe, Paranapiacaba não

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 298


se formou espontaneamente. Desde sua origem, se consolida “de fora para
dentro”, “de cima para baixo”, sob o olhar estrangeiro e, até hoje, seus habitantes
relatam um sentimento estranho, como se ainda não conseguissem apreender a
dinâmica do lugar. Segundo eles, nada lá é muito previsível, embora o dia a dia
pareça sempre igual. Como disse uma moradora “é esquisito, mas é assim”.

Em outro depoimento, novamente a percepção dos visitantes se aproxima


da experiência de quem habita o lugar. A participante relata que sua impressão
desde a chegada foi de estar num lugar aconchegante, protegido dos males da
cidade. A isso reage um membro do grupo dizendo que, apesar de entender esse
ponto de vista, sentiu-se isolado, um tanto aflito durante a visita.

Os moradores presentes escutam calados e, quando ao final da “roda de


conversa” são chamados a participar, relatam sentirem algo semelhante: uma
sensação de refúgio, proteção que paradoxalmente convive com um sentimento
de isolamento, quase abandono.

Ao fim da conversa, uma participante se pergunta como seria o anoitecer


em Paranapiacaba, mas não consegue articular resposta imediata.

O encontro termina já de noitinha, em meio à neblina e ao frio.


Caminhando com os demais, alguém comenta baixinho: “agora a gente sabe
como é anoitecer aqui...”; ao que o outro responde “ muito silêncio... dá vontade
de ir embora!”.

IV. O olhar artializador: tessituras da paisagem

Num contexto complexo, tal como o da Vila de Paranapiacaba, como fazer


emergir as percepções escondidas por entre as relações conflituosas entre os
diversos atores? Uma resposta possível seria a ressignificação dos espaços pela
arte. Questionar os significados aparentes nos lugares, redescobrir o que se
supunha conhecido, fazer ressurgir memórias e afetos encobertos pela rotina,
não seria esse um dos objetivos da arte enquanto manifestação da criatividade
humana?

Foi assim, com base na proposta de redescoberta sensível da paisagem


cotidiana, que o Coletivo Meiofio2 foi convidado a colaborar na Oficina. O

2
Especialmente essa atividade foi coordenada por: Carol Stoppa, Fernanda Damigo e Raquel Santiago.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 299


coletivo, composto por mulheres, trabalha com arte urbana a partir de técnicas
de tecelagem, em especial o crochê, considerado por muitos ultrapassado.

Proposta duplamente insurgente: revisitar técnicas de produção


associadas ao feminino, à produção caseira e a formas supostamente menores
de expressão artística, o coletivo intervém de forma autoral e inovadora,
questionando o que se convencionou chamar arte urbana e o papel do feminino
na cidade.

A participação das artistas na atividade se dá, portanto, como


representantes dos moradores de Paranapiacaba, como aqueles que estão ali,
mas invisíveis, suporte do que se propõem, mas não destinatórias pelas
propostas. Tal como as mãos que, invisíveis, produzem o que se consome como
produtos sem autoria: a arte do fazer cotidiano.

A inspiração parte das tecedeiras invisíveis, por vezes indesejadas, mas


sempre presentes: as aranhas domésticas. Essa inspiração é retratada no conto
de Mia Couto, A infinita fiandeira. O texto relata a história de uma aranha, cuja
paixão criativa a torna, involuntária e distraída insurgente, questionadora de um
mundo pragmático:

“E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com


belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo
sem nem finalidade. Todo bom aracnídeo sabe que a teia
cumpre as fatias funções: lençol de núpcias, armadilha de
caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas
distraiçoeiras funções.” (COUTO, 2003)

Tal como a aranha, compreendemos a paisagem como expressão do


prazer da experiência estética como forma de relacionamento entre homem e
habitat, como define Arnold Berleant (1997, p.11). Sob as pressões atuais de
produtividade e negação dos prazeres não funcionais, a paisagem tem se tornado
produto, imagem vendável e vendida, a ser comercializada tão mais
lucrativamente quanto mais inacessível. Redespertar a aesthesis em meio à rotina
é questionar duplamente essa lógica: é democratizar a paisagem e permitir a
humanização do citadino, revelando as possibilidades autônomas de leitura de
mundo.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 300


Desenha-se a intervenção: teias vermelhas, num contraste harmonioso
com os tons predominantes de verdes e marrons da Paranapiacaba tombada,
seriam dispostas pelos participantes da atividade, no domingo, quando a vila
atinge o ápice de seu papel de cenário turístico, ocupada por fotógrafos e
visitantes. A localização dos espaços de intervenção seria definida pelos próprios
participantes, a partir das impressões recolhidas no dia anterior.

Figura 06 - Intervenção artística Meio Fio realizada pelos participantes da


oficina, as aranhas e suas teias.

Fonte: Tatiana Reis.

A cidade amanhece envolta em névoa. Em meio à manhã, porém, redes


vermelhas de malha passam a marcar pontos da cidade. Graças a acidentada
topografia, as marcas da intervenção tornam-se visíveis nos pontos de destaque.
Em outros, são surpreendentes descobertas que se descortinam ao dobrar-se
uma esquina. A intervenção levanta dúvidas, questionamentos, suspeitas: por
que estão fazendo isso? O que são essas redes? Essa casa, essa árvore, essa
igreja, estiveram sempre aí?

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 301


V. Mapa dos olhares: Cartografia dos afetos

Sensação de flutuar, desorientação. Aconchego, presença, marca humana.


Cor e cheiro da ferrugem, simultaneidade do tempo. Mistério, fantasia. A Vila
abriga diferentes lugares em um mesmo lugar.

Na manhã fria e chuvosa, a atividade previa a construção de mapas


mentais; cartografias elaboradas em conjunto por pesquisadores e agentes
públicos convidados. Os moradores, também convidados, não compareceram.

A atividade se iniciou, as ideias foram ficando claras e se conectando em


rede. A partir de temas disparadores (memória, símbolos, personagens, arte,
cultura, sentimentos, conflitos, possibilidades e lugares), os participantes
compartilhavam referências entre si, registrando-as no mapa mental que se
formava. Cada grupo devia registrar, a partir das atividades dos dias anteriores,
sua leitura coletiva do lugar – cartografias dos afetos.

Assim, os mapas foram sendo desenhados pelos três grupos de visitantes.


Buscamos com a cartografia afetiva empregar uma metodologia complementar,
que trouxesse subsídios perceptuais para o trabalho de planejamento urbano.

Figura 07 - Grupos compartilhando experiências na construção dos mapas dos


afetos.

Fonte: Tatiana Reis.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 302


Como aponta Canclini, “não atuamos na cidade só pela orientação que
nos dão os mapas ou o GPS, mas também pelas cartografias mentais e
emocionais que variam segundo os modos pessoais de experimentar as
interações sociais.” (CANCLINI, 2008). Nesse sentido, o desenho e o redesenho
das cidades não podem ser feitos apenas com base em dados frios ou
“totalizações do saber”. (Idem).

É importante ressaltar que a cartografia, entendida como método por


Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), busca acompanhar um processo, e não
representar um objeto, criando movimentos próprios. “A cartografia surge como
um princípio do rizoma que atesta, no pensamento, sua força performática, sua
pragmática um princípio inteiramente voltado para uma experiência ancorada no
real”. (DELEUZE, 1995, p.21)

Ao final do processo, a cartografia desvelou questões e potencialidades da


Vila, pela percepção do visitante. Como proposta metodológica, subsidia recursos
e possibilidades para um novo olhar sobre o planejamento urbano.

Figura 08 - Produção do mapa dos afetos Paranapiacaba.

Fonte: Tatiana Reis.

VI. Considerações finais

As atividades realizadas na oficina Cartografia dos Afetos e Insurgentes


em Paranapiacaba tiveram como objetivo a construção de um caminho
metodológico que amplie as possibilidades de leitura do lugar. Por caminho
metodológico leia-se o desenho de processos de participação, que permitam a
manifestação da subjetividade (individual e coletiva), propiciando ao
planejamento urbano um olhar mais atento ao cotidiano das pessoas.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 303


Sob a perspectiva da subjetividade, a paisagem se coloca como eixo
importante para a apreensão de camadas perceptuais que escapam à análise
macrossociológica, predominante na postura tradicional em planejamento
urbano.

Se o estudo em macro escala tem grande valor para esquadrinhar


variáveis e atores sociais que operam nas cidades (especulação imobiliária,
corporações etc.), se configuram em visão distanciada, por uniformizar espaços
e atomizar pessoas, através do uso de instrumental metodológico pouco afeito a
captar certas sutilezas dos arranjos sociais, emergentes da relação
morador/lugar.

Ao contrário, a compreensão da cidade a partir do todo – ‘corpo e alma’


– impulsiona a busca da multiplicidade presente nas relações humanas:

“Não é uma questão de divisão entre coisas, ‘trabalho e


prazer’, ‘cidade e alma’, o ‘público diurno e o privado
noturno’, porque isso tira a alma da cidade. (...) Desde o
início, o propósito da construção de uma cidade foi algo
instintivo nos seres humanos: querer estar junto, imaginar,
falar, fazer e trocar.” (HILLMAN, 1993, p.42).

É neste ponto que a contribuição da paisagem no sentido trabalhado nesta


proposta, como síntese sensível da apreensão de mundo, surge como uma
contribuição metodológica ainda por ser melhor explorada – objetivo primeiro
da experiência relatada.

Referências bibliográficas

BERLEANT, A. Living in the Landscape. Toward an aesthetics of


environment.University Press of Kansas, 1997

BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra – Seis ensaios sobre paisagem e geografia.


Tradução Vladimir Bartalini. Ed Perspectiva, São Paulo, 2006.

CANCLINI, Néstor García. "Imaginários culturais da cidade: conhecimento,


espetáculo/desconhecimento". IN: COELHO NETTO, José Teixeira (org). A
cultura pela cidade.SP: Itaú Cultural/Iluminuras, 2008, p. 15-30

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COUTO, Camões Mia. A infinita fiandeira. In: O Fio das Missangas.1ª ed.,
Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2003.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. São


Paulo, SP, Editora 34. 2000. ENANPUR, 2017. Oficinas de Práticas Urbanas.
Disponível em: http://anpur.org.br/xviienanpur/principal/?page_id=75.
Acessado em: 20 –ago-2017.

HILLMAN, James. Cidade & Alma. In: Cidade & Alma. Coord. e Trad. Gustavo
Barcellos e Lúcia Rosenberg – São Paulo: Studio Nobel, 1993; pp. 37-42.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 305


O caminhar e a errância na cidade

Berta de Oliveira Melo

Arquiteta, urbanista e paisagista formada pela FAU-USP, mestre em 2017 pela mesma instituição,
na área de Paisagem e Ambiente, com a dissertação "Águas errantes - o rio Tamanduateí, a
cidade e a arte".

Resumo
O caminhar como proposto por James Hillman, capaz de resgatar a alma das
cidades e reaver condições de convivências mais saudáveis e aprazíveis para a vida
urbana é colocado lado a lado com as experiências artísticas contemporâneas
sobre o rio Tamanduateí. A partir desse paralelo, são investigados diversos
aspectos apresentados por Hillman em seu livro "Cidade & Alma", que encontram
ressonância nas intervenções dos artistas que tomam como ponto de partida o
espaço público, a errância e a vivência dos lugares e histórias da cidade.

Palavras-chave: Caminhar, Errância, Arte.

Introdução

O caminhar nas cidades contemporâneas tem sido cada vez mais relegado,
principalmente a partir da implantação de políticas rodoviaristas no começo do
século XX. A supremacia do automóvel em relação ao deslocamento a pé ou
mesmo ao transporte público traz diversas consequências para o viver nas
cidades, indo mais além, para a alma da cidade como apresentada por James
Hillman. Essas transformações podem ser observadas por muitos pontos de vista,
desde a saúde pública, a violência urbana, a degradação dos espaços públicos,
como a própria relação entre os cidadãos. O retorno ao caminhar na cidade
apresenta-se como uma possibilidade para Hillman de desenvolver uma psique
urbana saudável, reconhecendo que a cidade "onde o corpo vive e se move, e
onde a teia das relações é tecida, também é psique", assim como também mostra-
se, para diversos artistas contemporâneos, como um instrumento fundamental
para representar e intervir na cidade de hoje. A partir do texto de James Hillman
"Cidade & Alma" e do caso do rio Tamanduateí em São Paulo pretende-se criar

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 306


um campo de debate sobre algumas questões sensíveis sobre a importância do
caminhar e da errância na metrópole.

O caminhar como base da expressão artística

As primeiras imagens que nos chegaram da cidade de São Paulo são do


pintor Thomas Ender de 1817, que fazia parte da Missão Artística Austríaca. No
decorrer do século XIX, quando finalmente os portos se abriram para que
estrangeiros pudessem percorrer o interior do país, vários artistas viajantes se
embrenharam pelo país, resultando num conjunto iconográfico importante para
a cidade que começava a se desenvolver às margens do rio Tamanduateí. Se
desde aqueles tempos o caminhar fazia parte da experiência do pintor, essa
prática continua presente e fundamental para os artistas que se debruçam sobre
essa paisagem, hoje completamente modificada.

São diversos os artistas e coletivos contemporâneos que escolheram o rio


Tamanduateí para desenvolver suas obras, sejam pictóricas, performativas ou
escultóricas. Tomamos como marco para distinguir o que aqui designamos como
artistas contemporâneos o acirramento da metrópole rodoviarista e a
transformação do rio Tamanduateí em um canal completamente confinado e
apartado do convívio urbano. O retalhamento do Parque Dom Pedro II, às
margens do rio Tamanduateí, no centro da cidade de São Paulo ocorrido entre a
década de 1960 e 1970 talvez seja o ponto mais representativo dessa mudança,
na qual o projeto de parque e espaço público concebido ainda no século XIX cai
por terra, abrindo espaço para um série de intervenções que desqualificariam por
completo a relação do rio com a cidade. Cabe ressaltar aqui que a degradação
dos rios, córregos e veios d'água da cidade de São Paulo é um processo que
abrange toda a rede hídrica da metrópole, no qual podemos enxergar o caso do
rio Tamanduateí como metonímia de um todo.

Hillman expõe a transformação da paisagem do século XIX para o XX


como consequência de se construir uma cidade só por razões econômicas e que
agrade apenas aos olhos; enquanto antes seria pensada por razões estéticas,
para agradar ao mesmo tempo olhos epés. "Na arte da jardinagem, era essencial
que olhos e pés ficassem satisfeitos: os olhos para ver; os pés para atravessar; os
olhos para abarcar e conhecer o todo; os pés para permanecer nele e vivenciá-
lo."(Hillman, 1993: 54). A questão da vivência do lugar é vital para todas as

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 307


performances desenvolvidas às margens do rio Tamanduateí: "Rio Vermelho",
"Gozo Eterno", "Transbordamento: cortejo-invenção rio abaixo", "Enterro do
Volume Morto" e "Bloco Fluvial do Peixe Seco no Tamanduateí". Essas
intervenções elaboradas por diferentes coletivos, apresentam pontos em comum
como a importância do percurso e do apropriar-se do espaço público, tomado
assim como uma postura política. Essas performances flertam com a ideia de
cortejo, seja fúnebre, religioso ou carnavalesco, mas acima de tudo partem da
proposta de vivenciar o lugar, percebendo suas especificidades, a partir do
caminhar, dessa experiência proporcionada pelos pés. Se o rio Tamanduateí,
suas margens e várzeas se tornaram lugares inóspitos, dominados pelos
automóveis e pelo confinamento do concreto, as intervenções artísticas têm o
poder de subverter essa relação, apropriando-se – pelo pé, pelo estar ali – desses
lugares marginalizados. Ao falar dessa potência presente na performance,
Eleonora Fabião coloca:

“(...) há outro elemento determinante: o interesse em ocupar


espaços não convencionais. “A apresentação em lugares
impróprios para o aconchego do público ou para o conforto dos
atores abre outras possibilidades, que reinventam o teatro não
apenas como entretenimento, mas como experiência”1 (Fabião,
2008: 242)

Ferir a lógica convencional da metrópole de hoje é também valer-se da


curva em detrimento da linha reta, pois quando o pé percorre o mesmo caminho
que os olhos já alcançaram, o caminhar se torna apenas:

"(...) uma maneira lenta e ineficiente de nos aproximarmos


daquilo que os olhos já viram. O pé é escravo do olho, o que faz
com que o caminhar torne-se chato, uma mera questão de cobrir
distâncias. Quando podemos manter a tensão entre pé e olho,
embarcamos numa abordagem mais circular e indireta. O pé leva
o olho, o olho instrui o pé, alternadamente. O caminhar assume
o movimento da alma, porque, como disse o grande filósofo
Plotino, o movimento da alma não é direto." (Hillman, 1993: 55)

1
Eleonora Fabião cita o Teatro da Vertigem em “O Que Fazemos na Sala de Ensaio”. In: Trilogia Bíblica
(São Paulo: Publifolha, 2002, p. 48; grifo de Eleonora)

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 308


A errância é justamente esse andar indireto e circular, sinuoso como as
curvas originais dos rios, como as trilhas que os acompanhavam ou venciam os
desníveis, não seguem a lógica reta e dura cartesiana, mas deixam-se levar pela
experiência do sentir, do caminhar e tornam-se uma "maneira de descobrir novas
paisagens" (Hillman, 1993: 55). Uma das definições possíveis para o andarilho é
justamente aquele que percorre muitas terras, aquele que vagueia, que anda de
forma erradia2. Dentre os artistas contemporâneos que se relacionam com o rio
Tamanduateí, Evandro Carlos Jardim é não apenas o primeiro a despontar, como
também é o primeiro que assume para si o papel de andarilho, pois constrói suas
imagens a partir da experiência de vivenciar em seu cotidiano, desde a década de
1960, as cercanias do Parque Dom Pedro II, na várzea do rio.

Paulo Penna, gravurista e ex-aluno de Evandro, também elege o entorno


do Parque Dom Pedro II em sua obra "Pélago/Tamanduateí" do início dos anos
2010. Ela consiste em uma série de lambe-lambes feitos a partir de matrizes de
xilogravura, de 90 x 60cm, que formam na composição módulos de 180 x 60cm,
medida que o artista associa à escala humana. As colagens ocupam passagens,
paredes, pilares de viadutos, se relacionam sempre com o caminho dos pedestres,
ainda que o mural atinja dimensões que também possam ser percebidas para
quem passa de carro na avenida do Estado.

Nessa mesma época, também os artistas Zezão, Danilo Zamboni e Héctor


Zamora percorrem as margens do rio Tamanduateí na região central da cidade,
para criar suas intervenções e registros. O grafiteiro Zezão se interessa pelos
espaços não convencionais, arriscados e completamente relegados das águas na
cidade. No rio Tamanduateí usa um aparato de rapel para descer a amurada da
avenida do Estado e deixar suas curvas azuis pintadas no paredão de concreto,
que delimita e sufoca o leito do rio. Seu traço é captado mais tarde nos desenhos
sequenciais de observação de Zamboni, que faz uma série de registros
acompanhando, sempre a pé, o rio Tamanduateí desde sua foz no Tietê até o
Parque Dom Pedro II. A obra de Zamboni sobre o rio Tamanduateí se completa
com outras duas séries posteriores, que extrapolam a realidade do rio e criam ora
uma nova proposta de orla e relação com as águas, ora uma cena apocalíptica
da cidade inundada.

2
https://www.google.com.br/?gws_rd=cr&ei=JteIWP6XLoeZwgSX8L9o#q=andarilho consultado em
25/01/2017

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 309


Héctor Zamora fez a intervenção de maior vulto sobre o Tamanduateí,
suspendeu árvores sobre vasos metálicos ancorados por cabos de aço de modo
a ficarem suspensas sobre o rio, também nas cercanias do Parque Dom Pedro II,
chegando até a frente do Mercado Municipal e do edifício São Vito – na época
em vias de ser demolido. A escolha do local para a obra foi justificada pelo artista
pela relação de proximidade que o rio ainda guarda com o pedestre, pois ao se
levar em conta a situação dos principais rios da cidade como o Pinheiros e o Tietê,
de fato o Tamanduateí possui calçadas próximas à margem, mesmo que muito
mal conservadas e estreitas, e algumas travessias na altura da rua, que preservam
certo contato entre as pessoas e as águas enegrecidas.

Duas outras propostas de Zamora para a mesma região que não


chegaram a ser realizadas lidavam com a relação entre a cidade formal e
informal. Uma delas transformava o edifício São Vito em um souvenir turístico,
uma miniatura como vemos da Torre Eiffel e de tantos outros símbolos urbanos,
a ser distribuída pelos camelôs da região. No contexto no qual o São Vito, o maior
prédio de habitação popular da cidade, foi designado para demolição pela
prefeitura como parte de um projeto de gentrificação do centro, a informalidade
dos ambulantes de rua, também ameaçados por tais projetos chama a atenção.
A outra proposta era construir uma arquibancada de modo precário para
ressaltar o traçado irregular de um campo de futebol de várzea, existente no
Parque Dom Pedro II, porém não regulamentado. A insistência do artista em
trabalhar com as questões de informalidade, seja da geometria do espaço ou das
relações entre os cidadãos, vai ao encontro da descrição de James Hillman sobre
as cidades mais antigas, onde quem definia os traçados não era a quadrícula ou
a fita métrica, mas os pés e corpos que vivenciavam o lugar. Hillman também
lembra que a ocupação do espaço público está na própria gênese da palavra
cidade tanto grega quanto latina que remetem à ideia de multidão, de
ajuntamento de pessoas, de pluralidade (Hillman, 1993: 52). A atmosfera hoje
quase perdida de mercados e praças cheios de vida, de rostos, de trocas é trazida
pelos ambulantes de rua, que como o próprio nome revela, são aqueles que
trabalham oferencendo seus produtos aos pedestres, ao percorrem a cidade.
Talvez não seja coincidência a segregação desses trabalhadores na cidade formal
de hoje, uma vez que a convivência e apropriações espontâneas no espaço
público têm sido por muitos anos banida do ideal rodoviarista urbano.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 310


O cataclisma da cidade retilínea e a errância como esperança

Quando o caminhar na cidade passa a ser recomendado por prescrições


médicas, significa que algo extremamente essencial para o ser humano foi
perdido na atual vida urbana (Hillman, 1993: 51). O transporte rodoviarista é
apontado por Hillman como uma das maiores causas para a insalubridade das
cidades de hoje, pela retificação do espaço, pelo distanciamento das relações
humanas e pela aceleração e pressa que embute no viver cotidiano.

"(...) podemos também perceber que a fantasia da velocidade


espacial está intimamente ligada a uma noção de prosperidade
que requer uma cidade esperançosa, em desenvolvimento.
Enquanto determinamos desenvolvimento por aumento, por uma
medida quantitativa, em vez de por uma distinção qualitativa,
caímos na armadilha da velocidade: mais rápido é igual a
melhor." (Hillman, 1993: 61)

A relação com o transporte público na cidade é trabalhada por dois


coletivos que lidam diretamente com o rio Tamanduateí. A Companhia Sinhá
Zózima de teatro é conhecida por montar espetáculos dentro dos ônibus. Na
maior parte da existência da companhia as peças foram desenvolvidas no
Terminal Urbano Parque Dom Pedro II, lugar que antes pertenceu ao parque mas
que foi ao longo da história loteado por avenidas, viadutos e diversos outros
usos. As apresentações teatrais do grupo se servem muitas vezes do trajeto
existente dos ônibus e aproximam assim percurso e narrativa. Há uma postura
política de subverter a relação degradada com o transporte público. Como
apontado por Hillman, hoje as atividades que o ônibus e o trem proporcionam
de descanso, leitura, de comer, conversar, cochilar é relacionado a uma atitude
passiva que é desvalorizada em relação ao controle egóico daquele que pode
conduzir e dirigir (Hillman, 1993: 60). A companhia retoma assim o prazer do
percurso, as possibilidades de convivência que o ônibus "para todos" pode
proporcionar e a subversão das políticas atuais, tanto de elitização das artes,
quanto da precariedade do transporte público.

Já o projeto "Danças Virtuais" apropria-se do trem Santos-Jundiaí, hoje


linha 10 Turquesa da CPTM que ainda atua no trecho metropolitano de São
Paulo. Diferentemente do ônibus, o trem é unidirecional e por conta da baixa
declividade exigida para sua implementação, foi construído nas várzeas dos rios.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 311


É forte a relação topográfica desse trem com o rio Tamanduateí, apesar de ser
pouco percebida pelos passageiros. O projeto "Danças Invisíveis" investiga a
movimentação e relações entre os corpos dentro dos vagões, propõe através de
trocas de mensagens, vídeos e fotos por celular invadir essa atividade
preponderante dentro dos trens na tentativa de abrir brechas para novas relações
com o percurso.

"Parte da cura de nosso paciente possivelmente reside na


transformação de nossas noções de região, de uma geometria do
espaço e de uma mecânica da aceleração para uma topografia de
lugares, a cidade como um agrupamento de lugares. Enquanto o
espaço tende a nos induzir a fantasias futuristas (utopias da era
espacial; utopias, uma palavra que quer dizer "lugar-nenhum"),
os lugares tendem a nos relembrar histórias, diferenças étnicas e
terrestres, que não podem ser homogeneizadas nessa mesmice
universal das nossas utopias contemporâneas, o lugar-nenhum
de qualquer lugar dos shoppings centers e das vias que a eles nos
levam e deles nos trazem."(Hillman, 1993: 62)

Quando James Hillman fala de lugar-nenhum passa a ser estabelecida


uma relação bastante direta com a ideia de não lugar proposta por Marc-Augé,
assim como o texto de Rem Koolhaas sobre os espaços lixo. De fato a cidade
contemporânea vive os reveses dos resíduos e sobras que são produtos da
sociedade de consumo tecnológico-industrial (Augé, 2007: 73-74). Esse lugar-
nenhum descrito por Hillman não acontece apenas do lado de fora das cidades,
mas nos imensos corredores e arquiteturas homogêneas dos shoppings,
aeroportos, segundo Koolhaas o espaço-lixo prolifera, é fruto do consumismo, é
o encontro das escadas rolantes com o ar-condicionado e as divisórias de gesso
(Koolhaas in Sykes, 2013: 105).

James Hillman reitera muitas vezes a culpa por essa perda de alma das
cidades por conta dos arquitetos e urbanistas. No entanto, caberia aqui algumas
ressalvas, que apontam tanto para mudanças mais recentes no paradigma de
construção das cidades, quanto para as reais causas da implantação de políticas
urbanas rodoviaristas e segregadoras. Ao longo da história nunca deixou de
existir arquitetos e urbanistas preocupados com a relação dos pedestres, da rua,
do caminhar e das águas. O que houve infelizmente foram projetos políticos e

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 312


econômicos que elegeram determinados planos urbanos para serem executados,
claro, por arquitetos, urbanistas, engenheiros, etc. Enquanto é possível, a ideia
de cidade voltada às avenidas, shoppings, consumidores, carros, lucros e
executivos, é explorada ao máximo, mesmo que isso represente uma aceleração
no sentido do esgotamento, quando não da catástrofe.

Somente a partir dessas perspectivas, assombrosas porém não muito


distantes, é que passaram a ganhar maior destaque e serem implementados com
mais afinco mundo afora, projetos urbanos que afirmam a importância de uma
cidade pensada para pés além de olhos, para olfatos, paladares e audição
inclusive, restringindo os diversos modos de poluição seja visual, do ar, da água.
A limpeza dos rios, das calçadas, a preservação das árvores e praças, o incentivo
aos transportes alternativos aos carros; toda a cidade passa a ser enxergada
como um sistema integrado, no qual a psique dos habitantes e da cidade possam
encontrar ambiente mais propício para se desenvolverem de modo mais
saudável. Para citar alguns casos, podemos lembrar da despoluição de rios das
principais cidades européias que aconteceram nas últimas décadas, remodelando
os usos de suas margens inclusive. O incentivo à bicicleta enquanto transporte
talvez seja o aspecto mais visível hoje em São Paulo nessa direção, uma vez que
as transformações mais estruturais como o tratamento das águas ainda parece
distante.

Não é à toa, que diversos artistas e coletivos já citados aqui trabalham com
a ideia de cataclisma, de apocalipse. Talvez os casos mais marcantes sejam o dos
cortejos fúnebres das performances "Enterro do Volume Morto" e "Rio
Vermelho", assim como das xilogravuras de Paulo Penna e desenhos de Danilo
Zamboni. Enquanto as duas performances partem da ideia de que o rio está já
morto, Penna e Zamboni imaginam um dilúvio, como uma vingança do
Tamanduateí com a cidade que o aprisionou e maltratou. Porém, evidenciar a
morte é também relembrar a vida e é possível reconhecer em todas essas obras
uma afronta ao conformismo, às políticas públicas segregantes e poluidoras. O
transbordamento das águas é também uma limpeza, uma abertura para que
novas relações se estabeleçam na cidade.

Paola Berenstein em "Elogio aos Errantes" afirma que “o estudo de


algumas narrativas errantes nos leva a pequenas resistências e insurgências da
experiência urbana, muitas vezes invisíveis, escondidas, e, em particular, à
experiência da alteridade na cidade” (2012, p.12). Podemos dizer que Marc-Augé

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 313


segue na mesma direção ao propor que “a errância individual, na realidade de
hoje como nos mitos de ontem, continua a ser portadora de expectativa, quando
não de esperança. (2007, p. 108). A possibilidade de criar novas tecituras na
cidade amplia-se a partir da ideia do caminhar, esse que não é uma exigência
nem tampouco um objetivo, mas sim o deâmbulo, a errância. Percebe-se que a
imaginação e as expressões artísticas são meios ricos na proposta de vivenciar
outras experiências, capazes de nos aproximar dos lugares, das pessoas, das
histórias ali contidas. Talvez como observa Danilo Zamboni “num mundo como
o nosso, onde somos extremamente castrados, a fantasia seja o último reduto da
liberdade”. E o que seria da alma sem liberdade?

Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Não-Lugares – introdução a uma antropologia da


supermodernidade. Campinas: Papirus, 2007.

FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena


contemporânea. Revista Sala Preta PPGAC-USP, São Paulo, v.8, 2008, pp.
235-246.

HILLMAN, James. Cidade & Alma. Coordenação e tradução Gustavo Barcellos e


Lúcia Rosenberg. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

KOOLHAAS, Rem. Junkspace. In: SYKES, A. Krista (org.) O campo ampliado da


arquitetura – antologia teórica 1993-2009. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Tradução de Denise Bottman e colaboração de Roberto Grey.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 314


A errância e as cidades em Dom Quixote

Gabriel Pedrosa

pós-doutorando em comunicação e semiótica na puc-sp, possui graduação, mestrado e doutorado


em arquitetura e urbanismo pela fau-usp. professor do senac e da escola da cidade, desenvolve,
paralelamente, trabalhos de arte-educação, design gráfico e literatura.

Resumo
partindo de um diálogo entre dom quixote e sancho, no primeiro volume da obra
de cervantes, em que o cavaleiro refuta a proposta de seu escudeiro de sair em
busca de cortes onde possam mostrar seu valor e obter fama e benefícios
materiais (proposição que o quixote reconhece como pertinente), o presente
artigo busca caracterizar o modo errante de vida dos personagens, seu tempo e
seus lugares, vendo, nesta errância irredutível a funções, a potência de sua
escritura de invenção. a seguir, pretende-se caracterizar o ambiente da cidade, em
sua face dominante em nossa cultura, como o lugar da produção, organização e
fixação dos significados sociais, que sobredeterminam a escritura e impedem a
errática produção de sentidos que constitui a vida do quixote, justificando sua
recusa inicial.

Palavras-chave: dom quixote; errância; cidade.

em meio a suas malandanças, “por caminos sin camino y por sendas y


carreras que no las tienen,”1 diz sancho pança a seu amo: “he considerado cuán
poco se gana y granjea de andar buscando estas aventuras que vuestra merced
busca por estos desiertos y encrucijadas de caminos, donde, ya que se venzan y
acaben las más peligrosas, no hay quien las vea ni sepa, y, así, se han dequedar
en perpetuo silencio y en perjuicio de la intención de vuestra merced y de lo que
ellas merecen.” parecendo-lhe melhor buscar a corte de imperadores ou
príncipes que estivessem em guerras, onde o quixote poderia mostrar seu valor,

1
CERVANTES, miguel de. don quijote de la mancha, 2ª parte, capítulo 28, p768. as citações de don
quijote, adiante, serão identificadas apenas pela sigla dq, seguida da parte, do capítulo e da página da
citação na edição consultada.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 315


sendo reconhecido e recompensado por seus senhores, e ter suas façanhas
registradas, para a perpetuação de sua memória.

“– no dices mal, sancho – respondió don quijote.”2 o cavaleiro reconhece


que seu escudeiro está com a razão, demonstra ter perfeita consciência de que,
naquelas circunstâncias, sua proposta é a mais adequada ao fim declarado de
suas aventuras, e, no entanto, a despeito do felicíssimo fim que prevê para ela,
prefere não segui-la.3

na descrição do que se passaria caso a seguissem, dom quixote faz um


resumo de uma novela de cavalarias tradicional, em que o herói, imediatamente
reconhecido e festejado ao cruzar as portas de uma cidade, é recebido
calorosamente pelo rei, em cujo palácio se hospeda, dando ocasião a que a
princesa, sua filha, enamore-se do cavaleiro, sentimento reforçado por suas
façanhas, que culminarão na guerra que vencerá para seu novo senhor, depois
do que se casará com a princesa, herdando o trono após a morte do rei, o que
lhe permite fazer muitas benesses a tantos quantos lhe tenham ajudado,
destacadamente a seu escudeiro, que ele fará que se case com uma alta donzela
da corte, e todos serão felizes para sempre.

tudo narrado com o enfado desta fatalidade mecânica. aqueles livros, que
lhe consumiam dias e mais dias, com suas noites insones inclusas, em prazerosa
e mesmo obcecante leitura, enredando-o em seus caudalosos volumes cheios de
minúcias descritivas, volteios verbais e inextrincáveis razoamentos, vistos por seu
fim, não davam senão as anódinas duas páginas e meia em que são resumidos.4
os exércitos, que, ante as manadas de ovelhas, mergulhados em fantasia,
merecem belíssimas caracterizações, preparando o campo para uma não menos
apaixonante batalha, neste diálogo, reduzidos a mero instrumento de chegar-se
a coroas e ilhas que governar, não passam de uma vaga alusão, num trecho de
pouco mais de uma linha, em que a linguagem do quixote, em outros momentos

2
dq1, c21, p193.
3
“it seemed to me that while i had been addressing him, he carefully revolved every statement that i
made; fully comprehended the meaning; could not gainsay the irresistible conclusion; but, at the same
time, some paramount consideration prevailed with him to reply as he did.” o que perturba
profundamente o patrão de bartleby, “a man who, from his youth upwards, has been filled with a
profound conviction that the easiest way of life is the best.” MELVILLE, herman. bartleby, pp11,3.
4
e não se impute a possibilidade de tal resumo a quaisquer características dos livros resumidos. com o
fim de facilitar incursões pontuais, francisco rico acrescenta, ao fim da edição de dom quixote aqui
referida, uma sinopsis del argumento, que sintetiza as 1106 páginas da obra em cinco, com descrições
como: “arremete contra unos molinos de viento que toma por gigantes,” em que está todo o famoso
episódio (pp1317-1321).

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 316


tão levantada e brilhante, subitamente se restringe a uma nota burocrática, por
meio da qual se faz saber que: “ya se es ido el caballero; pelea en la guerra, vence
al enemigo del rey, gana muchas ciudades, triunfa de muchas batallas, vuelve a
la corte.”

eis a que se reduz uma escritura – texto ou vida – que se identifica por
completo a uma função qualquer que possa assumir, eis porque é preciso,
segundo o quixote, razão que indica a sancho para que não precipitem o fim de
suas errâncias, deixar-se no descampado. “es menester andar por el mundo,”
seguir em busca de aventuras e façanhas. é preciso, primeiro, granjear fama, o
que não é senão acumular sempre novas ocasiões para que sua escritura se crie,
com toda sua potência e brilho, pois é só aí que ela pode se dar, e é isso que o
move, o que não se pode reduzir a uma ninharia como “muérese el padre, hereda
la infanta, queda rey el caballero, en dos palabras.”5 a escritura é o que não cabe
em duas palavras.

no mais, depois do happy end, haveria, ainda, que seguir, e depois, e


sempre, e de pouco serviria, então, ser imperador ou governador, sendo, antes,
tais supostas conquistas, impedimentos para o desdobrar de suas invenções,
condenação a repetir, esvaziando-o, o cotidiano de seus novos estados. “os
poetas conduzem seus heróis por milhares de dificuldades e perigos até o fim
almejado; porém, assim que este é alcançado, de imediato deixam a cortina cair,
pois a única coisa ainda a ser mostrada seria que o fim glorioso no qual o herói
esperava encontrar a felicidade foi em realidade um ludíbrio, de modo que após
atingi-lo não se encontra num estado melhor que o anterior.”6

“é por ser inaugural, no sentido jovem deste termo, que a escritura é


perigosa e angustiante. não sabe aonde vai, nenhuma sabedoria a protege dessa
precipitação essencial para o sentido que ela constitui e que é em primeiro lugar
o seu futuro.”7 mais que o futuro, seu devir, pois que seu futuro poderia ser
apenas, entre outros textos igualmente acabados, mofar nas páginas de uma
antologia. o futuro projetado, da fama – ou do juízo final, da poupança, da

5
dq1, c21, pp195,193,196.
6
SCHOPENHAUER, arthur. o mundo como vontade e como representação, p412.
7
DERRIDA, jacques. a escritura e a diferença, p25.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 317


revolução – como o passado resolvido em interpretações cristalizadas ou a
verdade da presença, do momento presente, são todas imagens de fixação e
fechamento, de um tempo que só se faz como efeito de uma sucessão de quadros.

o tempo do devir, tempo desfuncional,8 pois irredutível à funcionalidade


cronológica, flui. é o tempo, todo, presente como um rasgo no quadro presente,
pelo qual se atravessa o movimento, indivisível, na constante promessa, e na
constante incerteza, de novas mudanças, desordens. tempo que diz tanto respeito
a relógios e calendários quanto o vôo dos dançarinos ao metro do carpinteiro
que constrói o palco. o atravessar da travessia, sem fim, sua experiência, que, em
seu fazer-se, abre os caminhos por que pode seguir se fazendo. tempo da
errância.

sem fim nem começo, apenas meio, como queriam deleuze e guattari,9 o
devir é a terceira margem, desde heráclito, o rio. o rio, “pondo perpétuo.” Na
infinitude do gerúndio, que nunca termina, nunca está posto, e que se opõe às
margens, seus postos de observação, em que a vida é “só o demoramento.”
confundir-se com a carne do tempo, deixar que o ir-se do rio corra no corpo,
riscando o sem fim da viagem, alheio às pontes e balsas que se fazem para chegar
do outro lado e lá encontrar mais do mesmo. “nosso pai não voltou. Ele não tinha
ido a nenhuma parte. só executava a invenção de se permanecer naqueles
espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar,
nunca mais.”10

permanecer no rio do tempo, que “permanece mudando.”11 “nada vejo


senão o vir-a-ser. não vos deixeis iludir! se acreditais ver, em algum lugar, terra
firme no mar do vir-a-ser e do perecer, isso se deve à vossa visão limitada, e não
à essência das coisas. utilizais nomes das coisas como se estas tivessem uma
duração rígida: mas a própria correnteza, na qual entrais pela segunda vez, já
não é mais a mesma que a da primeira vez.”12 nestas águas se faz o permanente
fazer-se do quixote, processo que nunca se acaba, em sua impossibilidade de
estancamento, abertura do aberto da escritura, restituição de vida à vida e de

8
desenvolvo a noção do desfuncional, como algo que não se pode reduzir à cisão entre funcional e
disfuncional, em minha dissertação, desfuncional, e em minha tese, quixote, andante poesia, de que
este artigo, que é parte de minha pesquisa de pós-doutoramento no PEPGCOS/PUC-SP, decorre.
9
DELEUZE, gilles; e GUATTARI, félix. mil platôs, vol4, p91.
10
ROSA, joão guimarães. “a terceira margem do rio”, pp35,33.
11
HERÁCLITO. a arte e o pensamento de heráclito, p79.
12
heráclito lido por nietzsche, em: a filosofia na era trágica dos gregos, p56.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 318


fluxo às potências barradas pela razão funcionalista. “expect poison from
standing water”13

processo sem fim do pensamento, e da escritura, em seu desdobramento


infinito, que não se detém em nenhuma verdade que encontre no caminho.
“heráclito terá eternamente razão ao afirmar que o ser é uma ficção vazia. O
mundo ‘aparente’ é o único: o ‘mundo verdadeiro’ é apenas um acréscimo
mentiroso...”14 todo o pensamento é um devir, afirmam deleuze e guattari,15 uma
produção, o traçado de seu curso, não a expressão de um pensado que lhe é
anterior. “para se filosofar propriamente, a mente deve estar verdadeiramente
ociosa: ela não deve perseguir nenhuma finalidade e não deve ser guiada pela
vontade, mas entregar-se desinteressadamente ao aprendizado que o mundo
intuitivo e a própria consciência lhe oferece.”16 Há que se abrir ao devir
desfuncional do pensamento, e da escritura, permitir que ele se faça, que não seja
feito de fora, evitar que regras lhe venham fixar a certeza, permitir que erre.
“pensar é essencialmente errar.”17

“si don quijote se hubiera trazado un itinerario, su figura se habría


deshecho.”18 a andança de sua cavalaria é, necessariamente, errante. abre-se ao
acaso, não escolhe rumos, deixando-os, muitas vezes a critério de rocinante: “y
prosiguió su camino, sin llevar otro que aquel que su caballo quería, creyendo
que en aquello consistía la fuerza de las aventuras,” ou, ainda, “y sin tomar
determinado camino, por ser muy de caballeros andantes el no tomar ninguno
cierto, se pusieron a caminar por donde la voluntad de rocinante quiso.”

adiante, o quixote e sancho voltam “a sus bestias, y a ser bestias.”19 há um


devir-animal em sua errância, neste deixar-se conduzir do homem pelo que, em
si, não é homem. errare humanum est, mas, para que a errância abandone seu
caráter negativo e se converta em potência, há que atravessar o humano, em
busca de um devir-outro, diabólico, louco, animal. deixar-se levar pelos caprichos
de rocinante é entregar-se à ventura; esta é a força das aventuras: andar sem
caminho determinado, vadiar, à toa. “salía al mundo a enderezar los entuertos

13
BLAKE, william. o matrimônio do céu e do inferno, p26.
14
NIETZSCHE, friedrich. crepúsculo dos ídolos, p35.
15
DELEUZE, gilles; e GUATTARI, félix. op.cit, vol5, p50.
16
SCHOPENHAUER, arthur. fragmentos sobre a história da filosofia, pp30/31.
17
PESSOA, fernando. “no dia brancamente nublado...”, p129.
18
CASTRO, américo. “cervantes y los casticismos españoles”, vol.2, p77.
19
dq1, c2, p35, c21, p192, e dq2, c29, p778.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 319


que al encuentro le salieran, mas sin plan previo, sin programa alguno
reformatorio.”20 andar, sem planos e independendo dos sucessos que se tire de
tal andança; vagar pelo descampado, pelos descaminhos, adiando qualquer fim,
como a fama, um governo ou o encontro com dulcinea.

o quixote sabe que pode palmilhar o descampado toda a tarde, até saber,
em suas vísceras, sem o auxílio de palavras, a dispersão dos grãos de sua areia.
pode mesmo levar toda a vida nisso, sem que dulcinea nunca apareça. ainda que
olhe dentro de cada carruagem, que siga cada vulto em que a tenha vislumbrado,
seu pulso acelerado, jamais encontrará sua fingida amada. Ítaca naufragou, o
manto azul de penélope se fechou sobre a carcaça de moby dick. mas o mar é
grande, e há que singrá-lo. estranho e decisivo momento em que nada esperar
se mostra a única esperança. esperar o sabido é apenas contar com que algo já
dado se dê (ou não se dê, pouco muda), é repartir o acaso, buscar dominá-lo,
domesticar o futuro, anular o que está por vir, até esvaziar toda a esperança;
inferno funcional da vida bem encaminhada.

é preciso desencaminhar-se, perder-se, completamente. Abandonar


qualquer certeza, especialmente a certeza de si, do eu, do penso, do existo, para
que o pensamento e a existência possam fazer-se. deixar que o caminho se faça,
“no hay camino, se hace camino al andar.” 21 todos os caminhos levam a algum
lugar, desde que se ande o bastante, diz o gato de chesire a alice. 22 todos os
caminhos levam, desde que se ande. a questão da escritura é poder seguir, a
picada dos nhambiquaras na mata,23 a perambulação de bréton,24 o processo,
como texto ou vida, como poema ou viagem. “les vrais voyageurs sont ceux-là
seuls qui partent pour partir.”25

o quixote é um destes verdadeiros viajantes, não apenas por não ter


destinos definidos, mas também, e talvez principalmente, pelo abandono que sua
partida implica. “salí de mi patria, empeñé mi hacienda, dejé mi regalo y
entregueme en los brazos de la fortuna, que me llevasen donde más fuese

20
UNAMUNO, miguel de. vida de don quijote y sancho, p52.
21
MACHADO, antonio. “proverbios y cantares”, p114.
22
CARROLL, lewis. “alice’s adventures in wonderland,” p56.
23
DERRIDA, jacques. gramatologia, p133.
24
“ao regressar da viagem, escreveu a introdução de poisson soluble (...) a viagem, empreendida sem
escopo e sem meta, tinha-se transformado na experimentação de uma forma de escrita automática no
espaço real, uma errância literário-campestre impressa diretamente no mapa de um território mental.”
CARERI, francesco. walkscapes, p78.
25
BAUDELAIRE, charles. “le voyage”, p442.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 320


servida.”26 num trecho em que compara seu caminhante com os cavaleiros
andantes de outrora, por seu espírito de heróico desprendimento, thoreau
escreve: “se você estiver pronto para deixar pai e mãe, irmão e irmã, mulher, filhos
e amigos, e nunca mais os ver – se tiver pagado suas dívidas, feito seu
testamento, deixado em ordem todos os seus negócios e for um homem livre,
então você estará pronto para uma caminhada.” 27

já não há casa a que voltar nem uma nova por encontrar, apenas o anseio
por uma errância absoluta, um reconhecimento, como o de rimbaud, de estar
condenado a errar,28 a estranhar-se, em casa, a desaclimatar-se. “je suis trop
habitué à la vie errante et gratuite; enfin, je n’ai pas de position. je dois donc
passer le reste de mes jours errant dans les fatigues et les privations, avec l’unique
perspective de mourir à la peine.”29 não caber em casa, não se reconhecer na vida
que se tem, não pertencer à vila em que se mora. o vilarejo do quixote nunca é
nomeado na obra, pois que o cavaleiro não é de lá, é da mancha, de toda a região
por onde perambula, seu meio, sua vastidão.

“deixem-me viver onde quiser, deste lado está a cidade, do outro, a


vastidão, e estou deixando a cidade cada vez mais e me retirando para o ermo.”30
na cidade, imperam os códigos. os desvios, vitais, aí não têm lugar. “os loucos
tinham então uma existência facilmente errante. as cidades escorraçavam-nos de
seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes.”31 no descampado
estão os loucos, o devir, o desconhecido. “pour moi, je compte quitter
prochainement cette ville-ci pour aller trafiquer dans l’inconnu.”32

na cidade, a vida se organiza, cria sistemas, fixa valores, estabiliza-se. nela,


os caminhos já estão traçados, em seus calçamentos, em suas ruas com suas
casas numeradas, em suas placas indicando onde o comércio, onde cada serviço,

26
dq2, c16, p662.
27
THOREAU, henry david. caminhando, p49.
28
“mais, à present, je suis condamné à errer, attaché à une entreprise lointaine, et tous les jours je
perds le goût pour le climat et les manières de vivre et même la langue de l’europe.” RIMBAUD, arthur.
lettres du harar, p33.
29
idem, p61.
30
THOREAU, henry david. op.cit, p64.
31
FOUCAULT, michel. história da loucura, p9.
32
32 RIMBAUD, arthur. op.cit, p18.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 321


onde os encontros. para lá sancho quer ir, e lá se passa o final feliz que o quixote
prevê e prefere evitar. na cidade, tal previsibilidade é possível, pois seus muros e
guias constrangem e moldam o futuro, homogeinizam o espaço, o tempo, e todas
as possibilidades do que neles se possa dar. do espaço controlado da cidade,
espaço de produção e verificação do mesmo, de reprodução, sabe-se sempre o
que se deve esperar.

dar as costas a este espaço é rumar ao desconhecido, à ausência de


referências do descampado, aos estranhos e insuspeitos sucessos que podem
fazer-se um lugar na imensidão. aí, a abertura do espaço é, mais que a falta de
barreiras físicas, a variedade e imprevisibilidade do que possa acontecer. “talvez
seja preciso dizer que todo progresso se faz por e no espaço estriado, mas é no
espaço liso que se produz todo devir.” os campos por onde erra o quixote são o
espaço liso, espaço que se ocupa sem medir (em oposição ao inventário da
ocupação contábil do espaço estriado). espaço desmesurado, sem centro, sem
hierarquia interna, espaço da experiência, que se faz no acontecer da experiência,
e onde “a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos
andamentos.”

enquanto “a cidade é o espaço estriado por excelência”33, onde sempre se


está em relação a um centro dado, a um marco zero, a sistemas de marcação e
valor. no espaço estriado, não há errância, pois ele a reduz a uma soma de passos,
de estágios, aprisionados numa grelha, anterior e alheia a seu curso. o espaço
liso desliza sob os pés, sob os cascos, e se reorganiza, num movimento infinito,
em função dos movimentos a que dá lugar; espaço que erra sob o errante que o
refunda a cada passo, a cada hesitação ou tropeço.34

as cidades se mostram, assim, inadequadas à vida vadia e incerta da


andante cavalaria. o quixote as evita, como mau cenário que são para suas
aventuras, o que se torna evidente ao chegar a barcelona, quando é apresentado
a um mundo inteiramente novo, em que elas já não têm cabimento (e às portas
da cidade ele perde o combate que precipitará o fim de sua andança e, com isso,

33
DELEUZE, gilles; e GUATTARI, félix. op.cit, vol5, pp195,214,188.
34
“vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre
boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. vai o boi, árvore
que muge, retalho da paisagem em caminho. deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor
de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. levanta-se o boi, é o campo que se ergue em
suas patas para andar sobre o seu dorso. e cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó
dos ossos que a chuva lavará, quando for tempo.” GULLAR, ferreira. “um programa de homicídio”, p25.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 322


sua morte). por essa razão, como observa américo castro, cervantes “concentró
sus preferencias sobre los alejados de la vida ciudadana, voluntaria o
obligadamente (...) y los hizo vagar por el libre aire de los campos, o demorarse
en las ventas, como en un punto de momentâneo reposo para sus existencias
inquietas o incitadas. el ambiente doméstico y sedentario, las realidades quietas
e inconmovibles, o se eluden, o aparecen como leve telón de fondo (...) sobre el
cual proyectar el continuo movimento del vivir.”35

às vésperas da morte, ponto final de uma vida desinteressante que permite


ao prolixo narrador contá-la em dois parágrafos, alonso quijano decidiu
abandonar os códigos que o sobredeterminavam, decidiu arrancar alegria – e
alguma surpresa – ao pouco futuro que lhe restava (e que, a seguir sendo
quijano, estava já previamente resolvido), decidiu, enfim, fazer-se o inventor de
sua escritura estranha em lugar de apenas reencenar o papel que lhe coubera,
dando matéria, em um mês de perambulação, a mais de quinhentas páginas.

quadro de lugares sociais definidos, cenário para uma peça já escrita, a


cidade cobrará de quijano ser quijano, fidalgo de aldeia, velhote e remediado,
não tolerando seu extravagante e despropositado personagem. saturada de
significados, ela impede a invenção de sentidos, e a continuidade de sua criação,
que é o que mais lhe importa manter.

na cidade, os livros são impressos (além de casas de nobres, onde


encenações menores preenchem um tempo sem sentido para tentar fazê-lo
passar, o quixote visita, em barcelona, uma tipografia), e os livros contam
histórias acabadas. se ginés de pasamonte não pode fechar sua autobiografia
porque ainda vive,36 o quixote talvez intua que deve evitar a cidade para não
antecipar a conclusão de sua narrativa.

não temos, porém, o descampado como alternativa. a cidade não apenas


se esparramou sobre os campos de montiel (e sobre todos os demais), como nos
pode buscar no mais recôndito dos esconderijos não urbanizados através de suas
representações eletrônicas que nos controlam remotamente. Mais insidiosa,

35
CASTRO, américo. “hacia cervantes”, vol.1, p364.
36
dq1, c22.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 323


agora, em lugar de assumir o grande código coercitivo, produz uma infinidade de
pedaços de códigos, revistos e reconfigurados em tempo real (o que é o mesmo
que dizer: fora do tempo), a que aderimos por vezes involuntária por vezes alegre
e conscientemente. sua demarcação está sempre um passo adiante de qualquer
tentativa de fuga. “não há saídas/ só ruas, viadutos, avenidas”.37

mas a cidade aqui mostrada, ainda que dominante, é apenas um de seus


modos de fazer, vincado pelo funcionalismo de nossa cultura. para nós, da
cidade, resta tentar resistir a esta face, errar pelas ruas, alisar as estrias, trabalhar
contra a lógica que faz dela o espaço das funções, contra o utilitarismo e o
finalismo que dominam nossas escrituras e contra os sistemas fechados de
valores e identidades que lhes dão sustentação. a quixotesca empreitada: a
despeito dos muitos constrangimentos e interdições que se lhe apresentavam,
fazer-se um exercício permanente de invenção, escritura errante, poética
existencial.

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 325


Experiência e mal-estar psíquico na cidade de São Paulo:
literatura urbana contemporânea, imaginário e psicologia
arquetípica

Rinaldo Miorim

Psicólogo e psicoterapeuta, mestre e doutorando em psicologia Departamento de Psicologia


Social e Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Resumo
Este artigo busca circunscrever alguns aspectos da experiência e do mal-estar
psíquico na cidade vistos através da literatura contemporânea ambientada na
cidade de São Paulo. Nos fundamentamos na psicologia arquetípica de James
Hillman, particularmente sobre a relação entre psique e cidade, além de
apresentarmos uma breve introdução ao arquétipo do puer-et-senex.
Observamos a partir da narrativa urbana uma relação entre um sentimento de
nostalgia e desamparo que se relaciona ao modo como diferentes temporalidades
são vividas na experiência psíquica, conduzindo a outras perspectivas sobre o
habitar a cidade. Se a cidade é o vale da alma, acompanhar o cruzamento entre
as imagens do tempo e do eterno é explorar antigos cenários e diferentes
caminhos que se abrem para novas paisagens.

Palavras-chave: Sofrimento psíquico; Imaginário; Ambientes urbanos.

Introdução

Conforme demonstram algumas pesquisas, a prevalência do sofrimento


psíquico no mundo contemporâneo é alta, principalmente na sua ocorrência
dentro das áreas urbanas. Tentar fazer um desenho claro da distribuição dos
transtornos emocionais e do comportamento para um país como o Brasil não é
tarefa fácil, em primeiro lugar, devido a quantidade de variáveis envolvidas e a
enorme discrepância e diferença entre regiões e populações, em segundo, devido
a polêmica envolvida na caracterização conceitual sobre o sofrimento psíquico,
principalmente se tematizarmos a questão em termos psicossociais. De qualquer
modo, conforme observamos em Mari & Jorge (2005), estudos epidemiológicos

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 326


apontam que a prevalência dos transtornos mentais no Brasil poderia chegar a
30% da população adulta com uma estimativa aproximada de que 20% dos casos
demandariam um atendimento mais prolongado em serviços de saúde mental.
Os pesquisadores ainda citam como os sintomas mais comuns na população
brasileira, os transtornos de ansiedade, os psicossomáticos, os quadros
depressivos e a dependência do álcool. Para a cidade de São Paulo, em uma
amostra probabilística, observou-se que mais de 10% da população adulta havia
utilizado algum tipo de medicação psiquiátrica num período de um ano, quer
dizer, um número considerado alto, ainda mais tendo em vista o tamanho da
população.

Dado a importância do tema, uma pesquisa mundial em saúde mental foi


solicitada pela Organização Mundial de Saúde e coordenada pela Universidade
de Harvard, reunindo dados epidemiológicos de 24 países, sendo no Brasil
realizada pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade
de São Paulo. Conforme Andrade et al. (2012), para a Região Metropolitana de
São Paulo, quase um terço dos indivíduos entrevistados apresentaram algum
tipo de transtorno mental nos doze meses anteriores à entrevista, sendo os
transtornos de ansiedade os mais comuns, seguido dos comportamentais,
descontrole de impulso e de dependência química. Os resultados
corresponderam a mais alta proporção entre os países investigados e se
repetiram para os transtornos mentais considerados graves, onde a metrópole
paulista obteve a primeira colocação entre as cidades pesquisadas. Uma
explicação para tanto poderia advir do cruzamento de duas importantes variáveis
avaliadas, o fenômeno da alta urbanização associado à privação social.

Buscando outras perspectivas, mais além da epidemiologia em saúde


mental, nos interessa como o sofrimento psíquico da cidade de São Paulo
aparece na literatura contemporânea. Com relação a esta última, os gêneros da
literatura urbana e suburbana que a partir dos anos 1980 e 1990 apresentam
contos e romances ficcionais cujas características gerais apontam para um
realismo literário e crítica social, trazendo à luz as contradições da cidade grande,
a crítica ao crescimento urbano acelerado e as condições de exclusão,
enfatizando o universo dos espaços periféricos e do centro velho da cidade,
apresentando como temas principais o esgarçamento das relações humanas,
situações de violência, segregação social e de injustiça, em suma,
correspondendo a narrativas que abordam as contradições que envolvem a

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 327


relação entre o subjetivo e o objetivo, que se difundem na complexidade dos
espaços e lugares de uma cidade como São Paulo.

A partir do campo de estudos da psicologia social e buscando


compreender os diferentes modos de habitar o mundo e as “interveniências entre
lugar, subjetividade e comportamento” (VICHIETTI, 2012, p. 56), procuramos
estudar as relações entre ethos e psique, de como a narrativa apresenta um
trajeto entre a experiência subjetiva e o habitar urbano, numa abordagem teórica
que inclui a antropologia do imaginário de Durand (2002), a poética do espaço
de Bachelard (2008) e a psicologia arquetípica de Hillman (2010), nos focando
em como o imaginário presente na ficção urbana contemporânea retrata o
malestar dentro do cenário da cidade de São Paulo. Nesse sentido, a ficção
urbana Tango, com violino de Eduardo Alves da Costa (2014) apresenta um
protagonista que, em suas andanças e deambulações pelas ruas e avenidas da
cidade, faz uma reflexão acerca de sua situação subjetiva ao mesmo tempo que
tenta se reinventar, buscando alternativas para lidar com o mal-estar que o
atormenta. Observamos na ficção alguns elementos e imagens importantes,
entre eles: primeiro, um comportamentos de andança e viagens que nos faz
recordar o flâneur, personagem andarilho da metrópole, como em Baudelaire
(1996) e Benjamin (1994), ou também a deambulação surrealista de André
Breton ou ainda, mais recentemente, as propostas de Careri (2016), de um
caminhar estético pelas zonas esquecidas da cidade, explorando e criando novas
possibilidades urbanas e relações com paisagens; segundo, algumas tentativas
de relacionar a questão da velhice e da juventude, da cidade e da paisagem, que
notamos conduzir para algumas observações de Hillman (1993; 2008) sobre a
relação entre cidade e psique e o arquétipo do puer-et-senex. Neste artigo vamos
nos concentrar nesse último aspecto.

A psique na cidade e o imaginário do puer-et-senex

O psicólogo James Hillman, analista com formação dentro da Psicologia


Analítica de C. G. Jung, foi um pensador bastante crítico com relação à psicologia
e questões diversas relacionadas ao campo cultural. Sua psicologia arquetípica,
sempre em busca novas amplificações, tem como base a imaginação como campo
de cultivo da psique, uma “psicologia da alma”, que apesar da redundância da
expressão, trata-se de uma repetição necessária se atentarmos à crítica que o

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 328


estudioso desenvolveu sobre o campo da psicologia, pois, se a psicologia é o
“estudo da alma”, como está estampado em seu nome, paradoxalmente por
muitas vezes, na medida em que se desenvolveu como disciplina científica e muito
influenciada pelos métodos das ciências da natureza, acabou por se distanciar
das origens mais precisas da expressão, daí a necessidade de retornar sua
imagem original, pois psyché é alma antes de qualquer outra coisa e adentrar no
psicológico é acompanhar os caminhos pelos quais a alma vaga. Seu livro Re-
vendo a psicologia, já se inicia com uma colocação que antes de tudo é um desafio
e uma provocação: “Este livro é sobre cultivo da alma. É uma tentativa de uma
psicologia da alma, um ensaio de revisão da psicologia do ponto de vista da alma”
(HILLMAN, 2010, p. 25). Por cultivo da alma (soul-making), Hillman propõe ver
através, em vez de se ater aos aspectos literais dos fenômenos, sugerindo o
metaforizar junto ao imaginar e, portanto, como técnica psicológica por
excelência. O cultivo da alma, a transformação de eventos em experiências e seu
aprofundamento é o soulmaking, uma visão que tem raízes nos poetas
românticos e está muito próximo a imagem poética de um “vale da alma”: “Nossa
vida é psicológica, e o propósito da vida é fazer psique dela, encontrar conexões
entre vida e alma” (p. 26).

Esse movimento deambulatório e de descida psíquico, acompanha um


percurso de retorno as imagens míticas, quer dizer, em direção as imagens
arquetípicas. Falar sobre o arquétipo, conceito chave da psicologia de Jung, uma
forma primordial que se expressa enquanto imagens psíquicas e que organiza
comportamentos individuais e coletivos diversos, na visão de Hillman é buscar
compreender como os arquétipos tendem a se expressar como metáforas e não
como coisas, o que torna difícil conceituá-los, muito embora o mito possa ser
tratado como conceito numa tentativa de incluí-lo dentro de uma linguagem
filosófica ou científica. Quer dizer, o arquétipo pode ser melhor expresso e
apreendido enquanto imagem, narrativa e na poética. Além disso, é da natureza
dos arquétipos nos lançarem dentro do campo do imaginativo, por ser impossível
tocá-los, o máximo que podemos fazer é tentar imaginar aquilo que eles parecem
ser e também nos deixar levar por suas fantasias. Enquanto fenômenos de
profundidade psíquica, funcionam seguindo padrões e propiciando formas que
podem ser percebidos simbolicamente enquanto imagens arquetípicas. Segundo
Hillman (2010, p. 32-33) o arquétipo forma uma espécie de raiz, de onde podem
emergir ou nutrir determinados comportamentos instintivos, traços culturais,

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 329


padrões de comportamento, temas literários e artísticos, patologias, entre outros
aspectos. Disso tudo decorre algo como uma perspectiva arquetípica diante dos
fenômenos, enquanto um mesmo arquétipo pode se expressar como, padrão de
comportamento, conjunto de imagens ou até mesmo como estilo de consciência.

Talvez um ponto importante para se destacar sobre o modo como Hillman


argumenta e provoca questões, diga respeito aos modos de habitar a psique e a
imagem. Crítico da psicologia e daquelas formas de psicoterapia que propõem o
ajustamento social e melhoramentos da personalidade, vai mais além e aponta a
necessidade de um encontro com a alma que se desdobre para além do
consultório analítico. Para ele a psique está no mundo e se encontra sobretudo
dentro daquele espaço hoje habitado pela maior parte da população ocidental,
ou seja, a cidade. Em seu conjunto de textos e palestras publicados em português
como Cidade e Alma, podemos entrar em contato com diversas elaborações onde
a realidade psíquica é apresentada como “o retorno da alma ao mundo”
(HILLMAN, 1993, p. 9), a cidade é o território onde se faz alma, não somente a
cidade dos condomínios e prédios fabulosos, mas na possibilidade de caminhar
devagar, por ruas e vielas, observar a desordem crônica das coisas que nos
remete justamente as imagens dos elementos arcaicos, daqueles resíduos
potenciais de fermentação, que tal como os processos alquímicos, preservam os
germes da cultura, da proposta de uma desaceleração e do retorno para um
maior contato com as coisas. Habitar a imagem é habitar a cidade, o vale onde
cultivamos a psique.

Mas a cidade também é o local onde o velho e o jovem, o antigo e o novo,


o tempo e a eternidade se cruzam. Se a cidade é histórica, é nela que o tempo se
faz presente, seja na aceleração dos processos sociais, urbanos ou tecnológicos,
mas também é o local da tradição, do que permanece e nos faz lembrar do
passado. Uma importante contribuição de Hillman (2008) sobre a questão que
envolve a temporalidade, tempo e história, o antigo e o novo é sua concepção
sobre o arquétipo do puer-et-senex. A concepção de uma imagem arquetípica
que expresse o jovem e o velho já aparece ao longo do trabalho de Jung, por
exemplo, no arquétipo de Criança Divina e na imagem do Velho Sábio, mas
também na imagem de do puer aeternus, ou seja, o arquétipo da juventude
eterna. Imagens presentes nos antigos mitos e narrativas que aparecem usando
diferentes roupagens, mas que trazem em comum um conjunto de temas que
converge, seja para o tema da criança divina ou do jovem eterno, seja para figura

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 330


do sábio, do mestre, do xamã, etc. Mas será em von Franz (1992) que teremos
um desenvolvimento importante sobre o tema, particularmente do que poderia
ser considerada como uma patologia do puer aeternus, um conjunto de sinais
que incluem: traços da adolescência continuam na vida adulta, grande
dependência da figura da mãe, dificuldades de adaptação social, individualismo,
arrogância, complexo de inferioridade compensado por atitudes de
superioridade, uma dificuldade nos relacionamentos afetivos e uma tendência a
adiar as tomadas de decisões ou conclusões dos projetos de vida, além do
impulso por atitudes arriscadas que podem conduzir a graves acidentes.
Conforme von Franz, sintomas relacionados a uma fixação afetiva junto a um
poderoso complexo materno, o que ataria a pessoa num estado de imaturidade
emocional e desadaptação.

Em uma revisão sobre o tema, Bernardi (2008), traça uma distinção entre
o puer aeternus, proposto por von Franz, e o puer-et-senex, conforme defendido
por Hillman, que aponta que a psicologia do puer não estaria necessariamente
ligada a figura da mãe mítica ou seu correspondente complexo afetivo, mas sim,
apontaria para uma fenomenologia do espírito e da figura do pai, ao mundo das
ideias e da renovação dos valores. Na coletânea de textos sobre o tema que se
encontram em O livro do puer, veremos que Hillman (2008) descreve o puer em
sua relação com o senex, quer dizer, dos aspectos do jovem eterno em sua relação
com o pai tempo, na realidade, uma questão que vai mais além de uma descrição
da psicologia pessoal da juventude e da velhice, ou da relação entre diferentes
gerações, e que trata principalmente de uma relação que diz respeito a
importantes elementos de nossa história e que apresentam problemas ainda não
resolvidos em nossa cultura ocidental. Sem reduzir o problema a uma tentativa
definitiva de descrição, a relação entre transitoriedade e eternidade, por um lado,
e a questão do tempo e da finitude das coisas se apresentam não como opostos
em conflito, mas sim como diferentes perspectivas de temporalidade que se se
inter-relacionam de forma complexa e sujeita a focos de tensão ou mesmo
correndo o risco de operar uma dissociação, onde, aí sim, o novo e o antigo, o
moderno e o tradicional entrariam em choque. Em seu trabalho de circunscrever
o tema, Bernardi (2008) propõe situar a relação entre o puer e o senex a partir
de algumas de suas características psicológicas, observando no puer as
características do entusiasmo e da irresponsabilidade e no senex os traços da
sabedoria e da rigidez. Se analisarmos com atenção, veremos que tais aspectos

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 331


têm sempre um lado positivo e outro negativo, o que mostra que a tentação de
anular uma perspectiva em detrimento da outra só produziria um resultado
unilateral e limitado. Se por um lado a perspectiva senex pode favorecer
estruturas sólidas e estáveis, seu excesso poderia trazer uma atitude
conservadora e autoritária, se por outro lado uma atitude puer leva a iniciativas
e possibilidades de transformação, seu excesso conduz a riscos desnecessários
ou a um relativismo demasiado da realidade e dos fatos sociais.

De qualquer forma, trabalhar diferentes atitudes ou meditar sobre as


possibilidades sobre as dimensões puer e senex, conduz a uma ampliação de
pontos de vista ou possibilidades de se vivenciar a psique, os processos
psicossociais, ou ainda, o habitar a cidade. Hillman (2008) ainda sugere que
habitar a imagem do puer-et-senex conduz a um cultivar o psíquico através de
uma relação com a bipolaridade ambivalente dos fenômenos, uma atitude de se
deixar alcançar pela história, uma postura mais dialética diante dos fenômenos e
por fim, ao compreender que todo início também tem sua dimensão arcaica e que
toda conclusão também apresenta seu lado jovem, poderíamos alcançar um
entendimento de que toda estruturação estará sempre sujeita a uma dissolução
ou renovação, já as certezas consolidadas poderão ser vistas como verdades
provisórias, portanto, estando sujeitas a um constante processo de revisão.

Desamparo, viagens urbanas e o diálogo entre o velho e o jovem

Na ficção urbana de Eduardo Alves da Costa podemos observar situações


da cidade de São Paulo que sob a forma de um cenário poluído, não somente
por lixo, falta de qualidade da água ou do ar, mas visualmente e sonoramente
carregado, com mensagens publicitárias e slogans em excesso, vozes
dissonantes, contradições, desigualdades e injustiças, a presença de conteúdos
superficiais e banais, tudo em um ambiente em constante aceleração. Um
ambiente onde as palavras e informações escoam em uma enxurrada anêmica
de sentidos, onde o verbo parece ter se esgotado de sua condição poética da
instauração de significados. A paisagem em torno da cidade é pouco
representada e quando aparece, surge como uma imagem distante, à margem e
geralmente deteriorada, salpicada de construções precárias ou ainda na forma
das águas de uma represa poluída e suja. Já a paisagem de suas lembranças da
época da juventude é verdejante e viva, o protagonista apresenta o encontro do

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velho e do novo em suas lembranças e conflitos íntimos, assim como nas suas
andanças e deambulações por cenários da cidade que ao mesmo tempo o atraem
e atormentam. É uma história em que o mal-estar compõe um misto de
sentimentos de solidão e tristeza, desamparo, estado depressivo, vazio, falta de
sentido e uma nostalgia em que imagens da juventude o conduzem a uma
experiência de alteridade poética. O ponto central dessa odisseia pelos espaços
urbanos é uma tentativa de exorcizar o tempo e o fantasma da morte através de
viagens pela cidade. Um atravessamento intersubjetivo, estético e urbano que nos
faz recordar o flâneur, a deambulação surrealista, as viagens beat, ou ainda, o
caminhar estético de alguns trabalhos de land art, ou ainda, pensando a proposta
de Careri (2016, p. 159), um perder-se exploratório da cidade, do vagar por
arquipélagos de espaços vazios e potenciais para constituição de novos olhares
sobre os cenários urbanos e para transformação dos lugares e paisagens a partir
da estética de um percurso errático e que aponta para algo que não é nem a
reprodução ambientalista de uma falsa natureza e nem a exploração consumista
do tempo livre, mas sim um espaço público de vocação nômade cuja
transformação supera a velocidade das projeções administrativas.

Mas o ponto central da análise está em como a narrativa coloca a relação


entre o mal-estar psíquico, uma espécie de sensação de desamparo, com os
espaços e lugares da cidade, alguns deles nos fazem recordar a definição dos
não-lugares proposta por Marc Augé (1994), mas será principalmente na relação
que a narrativa faz entre cidade e paisagem que encontraremos um ponto
importante de interpretação. Se partirmos de uma compreensão fenomenológica
da paisagem tal como explorada por J. -M. Besse, temos a paisagem como
relação entre homem e mundo, nem subjetiva e nem objetiva, quiasma entre o
visível e o invisível: “A paisagem é o espaço do sentir, ou seja, o foco original de
todo encontro com o mundo. Na paisagem, estamos no quadro de uma
experiência muda, “selvagem”, numa primitividade que precede toda instituição e
toda significação” (BESSE, 2006, p. 80). Nesse contraste entre uma paisagem
fugidia e a cidade, a narrativa urbana faz uma busca de reencontro entre o antigo
e o novo, o jovem e o velho, o eterno e o temporal, ou mais especificamente, de
uma experiência de imagens que remete ao puer-et-senex, conforme a descrição
feita por James Hillman.

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Mal-estar, imaginação e cidade

Vemos em Hillman um vagar que desce para o vale da alma, da cidade


como lugar onde o psíquico é imaginado dentro de uma perspectiva politeísta de
imagens que incorpora o pathos, como uma dimensão deformadora das imagens
e condição para elaboração de um novo ethos, por nós compreendidas como
“lugar de vida, o modo de viver, o modo de ser de um vivente, condicionando
todas relações que entretém com seu entorno” (VICHIETTI, 2004, p. 54). Em
Hillman esse ethos se encontra através daquelas partes problemáticas, tanto da
cidade como de nosso universo psíquico, a cultura se encontra justamente através
daqueles pontos de desordem crônica, partes esquecidas e rejeitadas da cidade e
que também expressam as “condições incuráveis e permanentes do “fundo”
humano, que não podem ser curadas, não podem ser suportadas” (HILLMAN,
1993, pp. 29-30), mas que também trazem em sua cronicidade, o arcaico, de uma
acompanhar para aquelas imagens míticas que outrora eram tratadas como
divindades, marciais, venusianas, lunáticas, eróticas, fóbicas, etc., e que agora
aparecem como sintomas psicológicos individuais, são as depressões,
compulsões, medos, ansiedades, pânicos, etc. ou ainda como um mal-estar
difuso coletivo. Trazer o velho e novo em um novo dimensionamento dialógico é
poder melhor habitar a relação entre as imagens eternas e aquelas produzidas
pelo tempo histórico, mas em relação com uma cidade que se transforma e
atualiza sem perder a dimensão com um necessário desacelerar que conduz ao
universo das imagens arquetípicas. Imaginar a cidade em sua dimensão puer-et-
senex, por um lado seria entrar em contato com a hiperatividade e mania da
aceleração da grande urbe, mas também com uma depressão e pessimismo
entorpecedores, a relação bipolar ambivalente do arquétipo, que conduz para
uma dialética entre diferentes temporalidades, de um desacelerar que nos
permitiria alcançar um maior contato com o sentido de um habitar através da
imagem de uma vida e uma cidade bela.

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VICHIETTI, S. M. Psicologia social e imaginário: leituras introdutórias. São Paulo:
Zagodoni, 2012. p. 43-60.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 335


Suicídio:
reflexões arquetípicas sobre a epidemia contemporânea

Rebeca Moreira Nalia

Graduanda do 10º semestre em Psicologia, na Universidade do Sagrado Coração (Bauru-SP),


com interesse nas áreas de Psicologia Junguiana e Arquetípica, Antropologia e saúde mental
coletiva.

Resumo
Este estudo trata-se de uma humilde tentativa de compreender o suicídio, visto
hoje como grave problema de saúde pública mundial, através do olhar da
Psicologia Arquetípica, de James Hillman. No decorrer do artigo, são trazidos
dados epidemiológicos que ilustram a situação alarmante, além de relacioná-los
com estudos e reflexões arquetípicas acerca dos sofrimentos coletivos. Por fim,
discute-se a necessidade de (re)conexão com nossa capacidade imaginativa como
possível solução para esse adoecimento coletivo.

Palavras-chave: suicídio, psicologia arquetípica, sofrimento coletivo.

Em 2016, no Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio (10 de setembro), a


OMS realizou atividades de conscientização sobre o suicídio. No site, listaram
diversos dados epidemiológicos acerca do problema mundial de saúde. Entre os
fatos listados: mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio anualmente; o
suicídio é a segunda maior causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29
anos; 75% dos suicídios no mundo ocorrem em países de baixa e média renda; a
ingestão de pesticida, enforcamento e armas de fogo estão entre os métodos mais
comuns de suicídio em nível global e por último e mais alarmante: para cada
suicídio, há muito mais pessoas que realizaram a tentativa. (OPAS/OMS BRASIL,
2016).

O site da OPAS/OMS do Brasil (2016) ainda alerta que nem sempre o


suicídio está relacionado a distúrbios mentais. São listados problemas
financeiros, términos de relacionamento ou dores e doenças crônicas como
motivos comuns. Em um âmbito ainda mais problemático, o enfrentamento de

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conflitos, desastres, violência, abusos e perdas e o isolamento estão fortemente
ligados ao comportamento suicida. Os grupos considerados vulneráveis também
concentram grande parte das taxas, sendo eles os grupos que sofrem de
discriminação (refugiados e migrantes, indígenas, gays, lésbicas, bissexuais,
transgêneros e intersexuais, além de pessoas privadas de liberdade).

Segundo a agência, os suicídios são evitáveis através de inúmeras


medidas, tais como: redução ao acesso dos meios mais utilizados, cobertura
responsável nos meios de comunicação, introdução de políticas para reduzir o
uso abusivo de álcool, identificação precoce, formação de trabalhadores não
especializados em avaliação e gerenciamento de comportamentos suicidas,
acompanhamento das pessoas que realizaram tentativas de suicídio, além do
fornecimento de apoio comunitário.

Como previsão, a OMS (2002 citado por LOVISI et al., 2009) estima que
até 2020 mais de 1,5 milhões de pessoas vão cometer suicídio no mundo.

No Brasil, Lovisi et al. (2009), apontaram que entre 1980 e 2006, foi
registrado um total de 158.952 casos de suicídio, excluindo-se os casos nos quais
os indivíduos tinham menos de 10 anos.

Neste momento, fica o questionamento sobre a efetividade das ações


realizadas pelos diversos órgãos responsáveis, entre eles a OMS. Apesar das
inúmeras campanhas e programas desenvolvidos, o número de tentativas e
suicídios permanece crescente.

No Brasil, cabe destaque para as ações da Associação Brasileira de


Psiquiatria, que apesar de considerar as diferentes variáveis relacionadas à
tentativa e ao suicídio (sociais, financeiras, políticas, relacionais), ainda focam sua
ação na identificação dos fatores de risco e prevenção (impedimento) do suicídio.
(CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2014).

Tomando por base a informação do crescente número de tentativas e de


suicídio, é importante refletir sobre o mundo e as questões atuais que possam
contribuir para o aumento da taxa. Se hoje o suicídio é considerado epidemia, as
ações em nível individual (mesmo que difundidas coletivamente) podem mostrar-
se insuficientes. Junto a essas importantes e necessárias ações, é crucial que haja
uma reflexão e direcionamento de ações para os sofrimentos coletivos. O fato de
uma parcela da população realizar tentativas ou suicídio não exclui a
possibilidade das demais parcelas também estarem em enorme sofrimento.

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James Hillman, criador da Psicologia Arquetípica, possui vieses de
contribuições sobre o suicídio. Primeiramente, existe a contribuição de Hillman
sobre suicídio direcionada a analistas, em seu livro intitulado Suicídio e Alma
(1993). Nessa linha, o suicídio é abordado como algo único em cada paciente,
devendo ter uma atenção especial para os apelos e singularidades daquela alma.
Ainda, o autor construiu um discurso atípico sobre o suicídio. Para ele, a posição
analítica frente ao suicídio não está relacionada a condenar ou perdoar o suicídio,
nem mesmo julgá-lo – deve, pois, ser compreendido como um fato da realidade
psíquica. Ainda, segundo o autor, o suicídio em si não é nem síndrome, nem
sintoma, sendo assim, devemos nos esforçar para compreender o que a morte
quer dizer para aquele paciente, e, na medida do possível, vivenciá-la junto à ele,
sem bani-la das sessões. (HILLMAN, 1993, p. 24).

Neste artigo, o olhar estará voltado para o sentido das coletividades, sem,
é claro, desconsiderar as singularidades de cada alma. Sendo assim, apesar de
cada alma ser única, apesar de cada sofrimento ser único, vivemos em uma
sociedade que possui sofrimentos compartilhados e que devem ser
cuidadosamente analisados quando pensamos sobre o tema do suicídio.

Na concepção de Hillman, os pacientes são demasiado sensíveis em


comparação ao mundo em que habitam. Sua análise aponta que após os mais
de 100 anos de psicanálise, o homem se tornou mais reflexivo e contemplativo,
passando por uma sofisticação da alma, porém o mundo à sua volta é incapaz de
se adaptar à tamanha sensibilidade, tendo este passado por uma degradação da
qualidade. (HILLMAN, 2010, p. 82).

Ainda, segundo o autor, as distorções de comunicação, o sentido de


preocupação e alienação, a privação de intimidade com o meio ambiente
próximo, o sentimento de falsos valores e de falta de valor interior são avaliações
realísticas, e não meras apercepções individuais. Sendo assim, baseado em sua
prática clínica, Hillman relata a dificuldade para distinguir claramente o que é
neurose do “eu” e o que é neurose do mundo, a psicopatologia do “eu” e a
psicopatologia do mundo. (HILLMAN, 2010, p. 82-83).

Em crítica à Psicologia Profunda, Hillman aponta que o olhar desta é


voltado para a intersubjetividade, desconsiderando o mundo das coisas públicas,
objetivas e físicas, tais como prédios, formulários, colchões, placas de trânsito,
embalagens de leite e ônibus. Desta maneira, enquanto a psicoterapia obteve

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êxito em aumentar a consciência da subjetividade humana, o mundo no qual
todas as subjetividades são estabelecidas se desintegrou. A crise foi deslocada
para outro lugar: guerras, poluição e crime nas ruas, a queda no nível de
instrução e o aumento de lixo, fraudes e exibições. A patologia, então, agora
encontra-se na psique da política e da medicina, na linguagem e no design, no
alimento que comemos. Resumindo, a doença está “lá fora”. (HILLMAN, 2010, p.
85).

Hillman ainda acrescenta, citando seu colega Robert Sardello (2010, p.


88):

Um indivíduo apresentava-se para a terapia no século XIX; já no


século XX, o paciente em crise é o próprio mundo [...] Os novos
sintomas são fragmentação, especialização, hiperespecialização,
depressão, inflação, perda de energia jargões e violência. Nossos
prédios são anoréxicos; nossos negócios, paranoicos; nossa
tecnologia, maníaca.

Permeando toda essa discussão, o autor apresenta o conceito de anima


mundi (HILLMAN, 2010, p. 89):

[...] imaginemos a anima mundo como aquele lampejo de alma


especial, aquela imagem seminal que se apresenta, em sua forma
visível, por meio de cada coisa. Então, a anima mundi aponta para
as possibilidades animadas oferecidas em cada evento como ele
é, sua apresentação sensorial como um rosto revelando sua
imagem interior – em resumo, sua disponibilidade para a
imaginação, sua presença como realidade psíquica.

Sendo assim, como não relacionar esse “adoecimento” da anima mundi


com a crescente taxa de suicídios e tentativas? Quais são os possíveis
comportamentos dos indivíduos que habitam um mundo considerado cruel
demais, ao ponto de ser quase inóspito?

Em uma contextualização brasileira, Figueira (1985, citado por


DIMENSTEIN, 1998) disserta sobre o “boom” da busca por atendimentos
psicológicos e por psicanalistas a partir dos anos 1970. Para ele, esse processo
de difusão da psicanálise e da psicologia ocorreu por conta de uma necessidade

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coletiva de orientação devido ao processo de modernização vivido desde a década
de 1950. Assim, a sociedade sofreu vários impactos por conta das mudanças
políticas, desenvolvimento econômico e dos ideais de modernização e progresso,
altamente difundidos nas classes médias e altas urbanas. Porém, a difusão da
psicanálise no Brasil ficou marcada nessas classes sociais em função da
individualidade, nuclearização da família e na incompatibilidade entre os
domínios público e privado da existência – ou seja, um certo modo de pensar,
um estilo de vida e pela monopolização de certos bens simbólicos.

Assim, segundo Durant (1995) caímos em uma crise do pensamento


simbólico, que se retira do mundo – não sem resistência, é claro – para dar lugar
a um pensamento cartesiano, que vem se instalando há séculos como forma
hegemônica de pensamento.

Contrera (2015) cita a grande contribuição de C.G. Jung para a


compreensão do imaginário, sendo este essencial para pensarmos no destino de
todos os excluídos da História, principalmente nas manifestações sombrias e na
sintomatologia cultural que elas compõem. A autora reflete sobre a frase de Jung
(2001, citado por CONTRERA, 2015) “os deuses tornaram-se doença”, no
sentido de interrogar sobre o que acontece com a imagem quando ela perde seu
potencial simbólico.

Flusser (2002 citado por CONTRERA, 2015) contribui com sua ideia em
relação à imagem simbólica. Para o autor, ela cedeu lugar para o mundo tecno-
burocrático do capitalismo, para a imagem técnica, num movimento em que a
complexidade cognitiva é transferida do pensamento e da consciência humanos
para os programas dos aparelhos cujo funcionamento nos escapa.

E nesse mundo tecno-burocrático, perdemos pouco a pouco algo muito


caro: a imaginação. Assim, perdemos também um elemento fundamental para a
integridade do humano.

Ainda, vivemos hoje de maneira ineditamente expressiva a dissociação do


corpo. Algo que surgiu a partir da dissociação sujeito e objeto com Descartes,
hoje nos atinge fatalmente (BERMAN, 2004 citado por CONTRERA, 2015). O
corpo é o lugar em que reside o incontrolável pela razão, o ilógico, o
surpreendente – o corpo é o lugar do assombro que foi expulso de todos os
outros lugares do mundo. E só restou a esse assombro apresentar-se na forma
de sintoma. As possessões viraram patologia, o entusiasmo foi substituído por

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depressão generalizada e sistêmica, e cada vez mais buscamos a anestesia e a
medicalização das dores do mundo (CONTRERA, 2015).

Vivemos, então, desconectados de nossos próprios corpos, de nosso


próprio mundo, acelerados e escravos do capitalismo, que cobra avanços
tecnológicos a cada minuto. Assim, vivemos com pressa, pois o mundo não
permite que tenhamos crises existenciais, não permite que soframos pela perda
de um ente querido, e muito menos pela perda de nós mesmos.

O mundo (ou nós) não perdoa(mos) nenhuma marca peculiar em nossa


perfeição, somos fanáticos pelo simétrico. Queremos rosas perfeitas, frutas que
pareçam plástico de tão bonitas – queremos a natureza sem naturalidade, a
artificialidade é levada ao grau máximo. E queremos para já, porque tudo tem
que ser devotado instantaneamente (CONTRERA, 2015).

Filho (2009 citado por CONTRERA, 2015) aponta que, a partir de uma
leitura junguiana, o dinheiro relaciona-se à sombra, e historicamente houve uma
dissociação entre dinheiro e sagrado, sendo esta a raiz do mal estar capitalista
contemporâneo. Houve, então, uma perda de valor, cujo maior alvo foi o planeta
Terra e a dimensão biológica do mundo.

Contrera (2015) ainda vai mais longe:

O tempo lento e a assimetria do corpo, das coisas que ocupam


lugar no tempo e no espaço, tornaram-se insuportáveis para nós.
É preciso produzir imagens incessantemente para cobrir toda a
superfície da pele do mundo com os simulacros da perfeição. As
simulações são sempre mais confortáveis do que a vida, mais
aprazíveis, sob encomenda para a nossa impotência. É preciso
controlar todas as esferas por onde a vida resiste em irromper,
ainda que seja preciso transformar todo o orgânico em sintético.
Começamos com objetos de uso cotidiano, passamos pelos
alimentos, estamos agora sintetizando deus (vide
fundamentalismos). Já temos tecnologia de impressão 3D
disponível, é só questão de a aperfeiçoarmos para o que mais
precisarmos.

Frente a tudo isso, como não relacionar os aspectos contemporâneos à


epidemia de suicídio que preocupa especialistas do mundo todo? Quão
insuportável pode ser a vida ao perdemos o sentido – e ao nos perdermos de nós

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mesmos? Apesar do caráter único de cada alma, como poderemos falar sobre
suicídio sem refletir sobre a crise do simbólico e do coletivo?

Essa é uma discussão recente e um tanto quanto cru, mas o único caminho
a ser apontado como princípio de uma solução para essa crise é a imaginação.
Através da imaginação resgatamos o potencial de nos reconduzir ao simbólico –
que é essencial para a reconstrução de um sentido possível à vida – e também
para a tarefa de resiliência a qual o atual cenário mundial de convulsões sociais
e ambientais nos convoca. (CONTRERA, 2015).

Hillman (1992, p. 126), com muita sabedoria nos esclarece que a


imaginação é “o trabalho de transformar devaneios e fantasias em espaços
cênicos interiores, onde se pode entrar, e que estão povoados por figuras vívidas,
com as quais se pode falar e conversar, sentindo e tocando-lhes a presença”.

Para Contrera (2015), entrar em contato com a própria alma e conviver


com as imagens que ela abriga parece ser a sugestão de uma prática terapêutica
necessária frente a esse atual estado de crise do simbólico. Sonhar, meditar,
devanear são gestos do corpo, tais como a dança, o gesto artístico, o afago que
convidam a um mergulho interior, ao resgate das imagens internas que se agitam
na alma.

E para finalizar, no prefácio à edição de 1964 do livro Suicídio e Alma, com


enorme clareza, Hillman (1993, p. 18) expõe, quase em desabafo:

O que quer que sejamos, somos psique. E pelo fato de o


inconsciente tornar relativa qualquer formulação de consciência,
complementando-a com uma posição oposta e igualmente
válida, nenhuma afirmativa psicológica pode ser categórica. A
verdade permanece incerta, uma vez que a morte, a única certeza,
não revela sua verdade”. (HILLMAN, 1993, p. 18).

E sejamos sinceros, essa incerteza beira o insuportável.

Referências bibliográficas

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Suicídio: informando para prevenir.


Brasília, DF: 2014. 1 cartilha.

atas do colóquio cidade & alma | perspectivas 342


CONTRERA, M. S. A imagem simbólica na contemporaneidade. Intexto, n. 34, p.
456-466, 2015.

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Verus, 2010.

__________. Psicologia arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1992.

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Análise epidemiológica do suicídio no Brasil entre 1980 e 2006. Rev. Bras.
Psiquiatr, Rio de Janeiro, v. 31, p. 86-94, 2009. OPAS/OMS BRASIL. Grave
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morte-a-cada-40-segundos-no-mundo&Itemid=839>. Acesso em: 25 jul. 2017.

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