As Relações Cotidianas e A Construção Da Identidade Negra
As Relações Cotidianas e A Construção Da Identidade Negra
As Relações Cotidianas e A Construção Da Identidade Negra
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As Relaes Cotidianas
e a Construo da
Identidade Negra
The Daily Relationships and the
Black Identity Construction
Las Relaciones Cotidianas y la
Construccin de la Identidad Negra
Artigo
Universidade
Federal do Maranho
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PSICOLOGIA:
CINCIA E PROFISSO,
2011, 31 (2), 374-389
Resumo: O negro brasileiro tem sido exposto diariamente a situaes de humilhao. Aprende, desde cedo,
atravs de mecanismos eficazes de reproduo ideolgica, que as caractersticas identitrias valorizadas
positivamente so as do branco e que lhe cabe no mais que a reproduo do ideal branco-europeu para
poder ser socialmente aceito. O objetivo deste trabalho foi o de ressaltar alguns processos aos quais a pessoa
negra est submetida na construo de sua identidade, enfatizando aqueles que ocorrem em situaes
cotidianas principalmente na famlia, na escola e no trabalho, situaes que reproduzem normas sociais
dominantes e que tendem a manter a ordem socialmente instituda. Para compreend-los, baseamo-nos
em alguns depoimentos, principalmente no de Lgia, mulher negra, 34 anos, professora de uma escola
pblica. Seu depoimento foi tomado atravs de entrevista dirigida. Os resultados sugerem que a famlia, a
escola e o trabalho so espaos em que o preconceito racial se retroalimenta. So sugeridos alguns processos
que podem gerar novas perspectivas de atuao na busca de uma sociedade mais justa e mais humana.
Palavras-chave: Preconceito. Negros. Racismo. Atitudes etnicas e raciais. Identidade.
Abstract: The black Brazilians have been exposed to situations of daily humiliation. They learn early, through
effective mechanisms of ideological reproduction, that the identification characteristics that are positively
valued are the white peoples and that they cannot reproduce the ideal of white European in order to be
socially accepted. The objective of this study was to emphasize some processes to which black people are led
in the construction of their identity, focusing those that occur in everyday situations, especially in the family,
school and work situations that reproduce the dominant social norms and tend to maintain the established
social order. To understand them, we rely on some evidence, mainly those of a black woman Lgia, 34, a
teacher at a public school. Her testimony was given through guided conversation. The results suggest that
family, school and work are spaces in which racial prejudice undergoes a process of feedback and suggest
some processes that can generate new perspectives of action in search of a more just and more human society.
Keywords: Prejudice. Blacks. Racism. Racial and ethnic attitudes. Identity.
Resumen: El negro brasileo ha sido expuesto diariamente a situaciones de humillacin. Aprende, desde
temprano, a travs de mecanismos eficaces de reproduccin ideolgica, que las caractersticas de identidad
valoradas positivamente son las del blanco y que le cabe no ms que la reproduccin del ideal blanco
europeo para poder ser socialmente aceptado. El objetivo de este trabajo fue el de resaltar algunos procesos
a los cuales la persona negra est sometida en la construccin de su identidad, enfatizando aqullos que
ocurren en situaciones cotidianas principalmente en la familia, en la escuela y en el trabajo, situaciones
que reproducen normas sociales dominantes y que tienden a mantener el orden socialmente instituido.
Para comprenderlos, nos centramos en algunas declaraciones, principalmente en la de Lgia, mujer negra,
34 aos, maestra de una escuela pblica. Su declaracin fue conseguida a travs de encuesta dirigida. Los
resultados sugieren que la familia, la escuela y el trabajo son espacios en que el prejuicio racial se retro
alimenta. Son sugeridos algunos procesos que pueden generar nuevas perspectivas de actuacin en la
bsqueda de una sociedad ms justa y ms humana.
Palabras clave: Prejuicio. Negros. Rascismo. Actitudes etnicas o raciales. Identidad.
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A mo de
obra negra foi
rapidamente
substituda pela
dos imigrantes
europeus, e
os brasileiros
de origem
africana foram
abandonados
prpria sorte
(Fernandes,
2007).
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Pode-se observar, nesse episdio, como a
criana branca associa a pessoa negra a uma
qualidade negativa, sujeira, e a professora
associa a negritude a uma questo de cor
de pele em funo do clima na frica,
naturalizando o fenmeno.
As associaes da pessoa negra com qualidades
desvalorizadas em nossa sociedade se
do de diversas formas. Pinto (1987), por
exemplo, atravs da anlise dos livros
didticos, verificou que os personagens negros
frequentemente so vistos como escravos,
pessoas humildes, empregados domsticos e
pobres, dentre outros. Assim, o livro didtico
acaba associando o negro a segmentos sociais
considerados de menor valia, o que favorece
uma baixa autoestima do indivduo negro
atravs de uma viso estereotipada acerca de
suas caractersticas pessoais.
Cavalleiro (1998) realizou uma pesquisa
em uma escola municipal de educao
infantil e denunciou aspectos prejudiciais
que ocorriam no cotidiano escolar. Nos
espaos de convivncia das crianas, no
havia cartazes, fotos ou livros infantis que
pudessem expressar a existncia de crianas
negras na sociedade brasileira. Tais situaes
podem alimentar a ideia de uma suposta
superioridade branca, o que contribui para
o desejo, por parte das crianas negras, de
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o afrodescendente sistematicamente
associado com atividades que so socialmente
consideradas de menor valor. Moura (1988)
acentua que a diviso social do trabalho tem
coincidido com a diviso racial do trabalho.
O trabalho qualificado como nobre tem sido
realizado pela populao branca, e o trabalho
classificado como braal, sujo, no qualificado
e mal remunerado, que anteriormente era
exercido pelos africanos escravizados e
depois pelos negros libertos, continua sendo
exercido pelos afrodescendentes, situao
que at hoje no apresenta mudana
significativa. Assim, a experincia vivida por
Lgia sugere que, no imaginrio coletivo, a
mulher negra est associada ao desempenho
de atividades de empregada domstica, como
se essa fosse uma associao natural. Seu
relato, alm disso, demonstra conscincia
da ideologia dominante Ento assim...
aquela questo mesmo... o negro foi feito pra
trabalhar de empregado.
Situaes como essas, vividas desde a infncia,
muito provavelmente vo servindo de
alimento para a introjeo de possibilidades/
impossibilidades pessoais e profissionais na
vida do indivduo negro que, por fim, tem
seu espao de criao e explorao pessoal
delimitado e empobrecido. So artimanhas
obscuras muitas vezes praticadas de forma
inconsciente pela pessoa branca, que sugerem
ao indivduo negro o seu lugar na sociedade.
Souza (1983) ressalta as dificuldades de
ascenso social do indivduo negro. Quando
ele consegue transpor tais barreiras, acaba
se identificando com os interesses, valores
e modelos de organizao da personalidade
do branco, como forma de manuteno do
status adquirido. Em consequncia, o que
poderia levar a uma reavaliao do negro
como grupo social se torna to somente
um mecanismo atravs do qual o indivduo
visto como exceo deixa de ser negro para
transformar-se em uma figura importante.
Concede-se ao mesmo o merecido prestgio,
desde que demonstre ser uma exceo,
comprometido com o modo de ser, de agir
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nobres:
Eu mesma sou discriminada. Ento... (riso
irnico)... muito engraado quando h
reunio de pais... Quando eu estou na porta
recebendo os pais... eles perguntam: ee...
a professora Lgia, por favor! Eu falo: Sou eu
mesma! Quer dizer, uma sutileza. Eu no
vou falar: Olha... isso discriminao racial.
Eu no vou falar isso para os pais... mas a
discriminao sentida, e, se sentida por
mim, imagine como deve ser sentida pelas
crianas, no ?
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Consideraes finais
As pessoas negras, submetidas a um processo
de desvalorizao constante, tendem a se
identificar com uma minoria estigmatizada,
sob os rtulos de inferiores, desprovidos de
beleza, pobres e incapazes, e fazem parte do
segmento da populao brasileira que talvez
mais sofra o efeito da discriminao e do
preconceito, sempre encobertos por frases e
gestos ambguos.
Desde a socializao primria, o brasileiro
afrodescendente est submetido a ideologias
que o compelem a repudiar, diariamente,
sua negritude, elegendo um modo branco de
ser e viver. Desenvolve, dessa maneira, uma
posio submissa de aceitao e incorporao
de valores ditados como ideais por uma
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Referncias
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Amaral, L. A. (1988). Do Olimpo ao mundo dos mortais ou dando
nome aos bois. So Paulo: EDMETEC.