Julia Monnerat - Tese de Doutorado
Julia Monnerat - Tese de Doutorado
Julia Monnerat - Tese de Doutorado
Niteri
2010
Agradecimentos:
A lista das pessoas a quem devo agradecer porque, efetivamente, sem suas participaes
esse trabalho no se realizaria, extensa.
Em primeiro lugar agradeo a Marcelo Badar que, durante todos esses anos de
convvio, iniciados ainda poca da graduao, extrapolou as funes bsicas de
orientao tornando-se amigo de todas as horas e para toda a vida. Badar me serviu e
serve como modelo daquilo que quero ser quando crescer. Dentro e fora dos limites da
historiografia.
Alm do amor incondicional de todas as horas e para todo o sempre, agradeo a minha
famlia mame, papai, Mano e Sil que, em sistema de mutiro, contribuiu
imensamente durante vrias etapas deste trabalho, do conforto em momento de
desespero reviso dos originais.
A Rmi que me deu o amor e o companheirismo que tornaram essa jornada menos
penosa.
Aos amigos e companheiros do grupo de estudos Mundos do Trabalho, em especial
Luciana, que tornaram o exerccio da pesquisa mais estimulante, e o campo acadmico
mais fraterno.
A Adriana Facina e a Ricardo da Gama Rosa Costa, cujas generosas contribuies
oferecidas poca da qualificao ajudaram a definir melhor os rumos deste trabalho.
Aos trabalhadores dos arquivos que importunei durante a pesquisa, sobretudo a Luis
Alberto Zimbarg, do Centro de Documentao e Memria da UNESP.
Aos meus amigos de todas as horas, sobretudo Brbara, que agentaram todos esses
anos de oscilaes intensas de humor.
A CAPES que forneceu a bolsa sem a qual essa pesquisa no poderia se realizar.
Sumrio
Introduo ......................................................................................................................p.7
Resumo
O objetivo central deste trabalho de pesquisa
investigar as relaes estabelecidas entre os escritores
Graciliano Ramos e Jorge Amado, e o Partido Comunista
Brasileiro no perodo inscrito entre as dcadas de 1930 e
1950. Para tanto, identifica as fronteiras entre o
comprometimento militante e a criao artstica destes
dois autores, tentando entender at que ponto as diretrizes
programticas ou referncias polticas mais gerais do
partido estariam presentes em suas obras, assim como
traa um painel da importncia do PCB em um momento
especfico da vida intelectual e literria brasileira e
investiga o papel desempenhado por esses literatos na
dinmica partidria.
Palavras-chave: Partido Comunista do Brasil; Realismo
Socialista; Literatura brasileira; Graciliano Ramos; Jorge
Amado;
Abstract
The main objective of this research is to investigate the
relations between the writers Graciliano Ramos and Jorge
Amado, and the Brazilian Communist Party (BCP) in the
period between the 1930s and the 1950s. To do so, it
identifies the boundaries between artistic creation and
militant commitment of these authors, trying to understand
to which extent the program guidelines or more general
political references of the party would be present in their
works. It also paints a picture of the importance of the
BCP at a specific time in the Brazilian literary and
intellectual life, and investigates the role played by these
writers in the partys dynamic.
Introduo
De Graciliano, sabe-se que no participou da ANL e da rebelio armada de 1935, mas que, em
incio de 1936, foi avisado, por mais de uma pessoa, de sua prxima priso, inclusive atravs de bilhete
enviado pelo prprio secretrio-geral regional do partido Alberto Passos Guimares -, que estava desde
novembro na clandestinidade (cf. Dnis de Moraes. O velho Graa: uma biografia de Graciliano Ramos.
Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1992, 101-107). Jorge Amado, embora muitos registros considerem sua
filiao ao PCB datando de 1945, em entrevista concedida a Antnio Roberto Espinosa, em junho de
1981 (Amado, Literatura comentada, 1981, p.3-34), diz que seu contato com o Partido anterior a 45
(Meu contato com o Partido anterior a essa poca. Em 45 minha militncia fica pblica. Eu era ligado
juventude. Naquele tempo, havia Juventude Comunista.), aps comentar sua priso em 36 (No comeo
de 36. Em novembro de 35, no dia 27, houve o levante do III Regimento de Infantaria. Fomos presos
vrios intelectuais... Eu acho que algum que foi preso antes, foi espancado e falou. Graciliano Ramos foi
preso em Macei e levado pro Rio. Eu fiquei preso dois meses na Polcia Central. Vrios intelectuais
foram presos na poca, Santa Rosa, Caio Prado Jnior, Di Cavalcanti, Hermes Lima, Eneida, Castro
Rebelo, Aporelly, lvaro Moreyra etc.), revelando ainda: Eu tive uma militncia grande na Aliana
Nacional Libertadora... O Congresso Juvenil Proletrio-Estudantil... no me lembro mais o nome, de 34,
foi convocado com trs assinaturas: a minha, a do Carlos Lacerda e a de um rapaz cujo nome no recordo,
que era secretrio da Juventude Comunista.
2
No sendo desprezvel sua repercusso internacional, em parte associada ao vnculo partidrio.
3
Embora fazendo referncias a algumas datas relacionadas ao perodo em que foram escritas
obras dos autores considerados, preferencialmente balizaremos nosso recorte pelas datas de primeira
ambos os autores (a saber, 1931, para a publicao, por Jorge Amado, de O pas do
Carnaval e 1933, para a publicao de Caets, de Graciliano) at a morte de Graciliano,
em 1953, e a publicao, por Amado, de Os subterrneos da liberdade, em 1954, obra
que na produo deste autor encerra uma fase, antecedendo as mudanas em seu projeto
literrio, associadas ao XX Congresso e divulgao, em 1956, do relatrio de
Kruschev sobre a poltica stalinista, expondo os crimes do governante, fato que causou
imenso impacto nos partidos e militncia comunistas mundiais e, como no poderia
deixar de ser, teve reflexos no debate ocorrido no interior do partido e na militncia
brasileiros.
Balizando o final do perodo a ser estudado, no apresentamos o recorte de uma
dcada, mas um significativo momento que, no cenrio internacional, assinala uma
reviso crtica dos rumos da revoluo sovitica, com conseqncias nas discusses
internas dos partidos comunistas e na esquerda mundial. A esse respeito, parece ser
significativa a mudana de orientao na escrita de Jorge Amado, culminando em seu
afastamento da literatura inspirada pelo realismo socialista, mudana identificada na
publicao de Gabriela, cravo e canela, em 19584 (obra que seu primeiro texto
ficcional aps 1950, data que o autor indica como a do trmino da escrita da trilogia Os
subterrneos da liberdade, que teve sua primeira edio brasileira em 1954). A morte
de Graciliano Ramos, em 1953, anterior a este marco crtico na histria dos PCs, no
sendo possvel verificar, em sua escrita, transformaes relacionadas publicao do
documento de 1956. Com relao aos anos finais da dcada de 50, a respeito de Amado,
pode-se dizer que nesse perodo as questes, j assinaladas, referentes ao PCB, ensejam
a possvel correlao entre reorientao da escrita ficcional e posturas militantes
poltico-partidrias em jogo no momento de um debate crtico, interno e internacional.
Como o que pretendamos no se traduz, de forma alguma, na confeco de
biografias nem de crticas literrias das obras de nossos autores5, mas sim na
possibilidade de entendimento de algumas das possveis relaes instauradas entre o
edio brasileira dos livros de que vamos tratar, buscando demarcar o momento do conhecimento pblico
dos textos, uma vez que, at a reviso de provas, a escrita pode estar em processo, sofrendo alteraes.
4
De alguma forma, embora o desenho que queremos imprimir no seja o da diviso por dcadas,
esvaziadas de contedos polticos especficos sobre a temtica considerada, uma coincidncia faz com
que a produo literria de Jorge Amado tomada como objeto do estudo seja a que compreende as
publicaes feitas no perodo que vai do incio de sua produo at o fim dos anos 50, uma vez que s em
1961 ser editada no Brasil a obra que se segue a Gabriela.
5
Esforos estes j empreendidos por outros estudiosos da rea de letras, movidos por outras
questes e inquietaes que no as que orientam o presente projeto.
Moraes, Dnis. O velho Graa: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.253.
7
Amado, com primeira edio argentina, de 1942, texto que foi, no Brasil, proibido pela censura
por algum tempo.
8
Ramos, Viagem, com primeira edio pstuma, de 1954, finalizado em 1952, em Buenos Aires,
quando l esteve para ser operado do tumor, vtima do qual faleceria, cinco meses aps a cirurgia em que
j no foi possvel retir-lo; Amado, O mundo da paz, com .primeira edio de 1951, reeditado at 1953,
a partir de ento no sendo mais autorizada sua publicao pelo autor.
estabeleceram com o partido e em que medida essa relao pode ser averiguada em suas
produes literrias.
Essa escolha faz com que a anlise das obras no apresente uma uniformidade
em tamanho e em destaque no produto final deste estudo. Em algumas obras nos
deteremos de modo mais extenso, procurando fornecer ao leitor o maior nmero
possvel de exemplos que corroborem nossa hiptese de que, ao mesmo tempo em que o
PCB desempenhou importante papel na escrita de Graciliano e Jorge, esses, por sua vez,
tambm contriburam, em maior ou menos escala, para a divulgao do comunismo no
Brasil. A diferena na intensidade desta colaborao e as formas com que se d essa
interpenetrao entre literatura e comunismo nas obras de um e outro de nossos autores
que faro com que alguns livros meream maior destaque analtico do que outros.
Ao tomar as obras de Graciliano Ramos e Jorge Amado como fontes de nossa
pesquisa10, e ao tomar a anlise de suas trajetrias como ponto de partida para
indagaes das relaes estabelecidas entre militantes do PCB e literatos no Brasil entre
as dcadas de 30 e 50, passamos ao largo da busca de avaliao de suas escritas do
ponto de vista valorativo esttico.
Investigando relaes estabelecidas dentro de uma perspectiva poltica, no
pretendemos incorrer no erro de efetuar valoraes, ou no, de seus escritos a partir do
comprometimento poltico manifesto pelos autores. Como adverte Antonio Candido, h
que se fugir da tendncia de analisar o contedo social das obras, geralmente com
base em motivos de ordem moral ou poltica, redundando praticamente em afirmar ou
deixar implcito que a arte deve ter um contedo desse tipo, que a medida de seu
valor.11
Assim, o que buscamos na pesquisa foi, sobretudo, investigar em que medida o
imbricamento entre militncia poltica e fazer artstico pode ser percebido nas obras de
Graciliano Ramos e Jorge Amado, sem avali-los ou mesmo analis-los do ponto de
vista mais estrito de uma crtica literria. Todavia, no poderamos deixar de
encaminhar algumas discusses sobre cultura, esttica e produes, artstica (em geral)
e literria (em especfico), procurando rever os limites de nossa discusso e
10
no se parte do que os homens dizem, imaginam ou se representam, nem topouco daquilo que so nas palavras, no pensamento, na imaginao e na
representao de outrem, para se chegar depois aos homens em carne e osso; no,
parte-se dos homens em sua atividade real e segundo o seu processo de vida real
que se representa tambm o desenvolvimento dos reflexos e dos ecos ideolgicos
deste processo vital.12
12
Marx-Engels, A ideologia Alem. In____ . Sobre literatura e arte (coletnea) . Lisboa: Editorial
Estampa, 1971, p.19.
lhes correspondem, incluindo as formas mais vastas que essas foras e relaes
podem tomar.13
subestimar a esttica e o estudo dos problemas da teoria marxista de arte. Por mal
compreendida em alguns dos seus aspectos essenciais, a concepo marxista de
mundo pareceu, aos olhos de seus defensores, prescindir de uma teoria esttica
13
Marx-Engels, A ideologia Alem. In____ . Sobre literatura e arte (coletnea) . Lisboa: Editorial
Estampa, 1971, p.19.
14
E, mais, como poltica cultural.
15
Konder, Leandro. Os marxistas e a arte breve estudo histrico-crtico de algumas tendncias
da esttica marxista. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.
16
Idem, ibidem, p.1.
17
Idem, ibdem, p.2.
mais elaborada. Certos tericos marxistas parecem ter chegado a crer, realmente,
na irrelevncia da esttica, na sua bsica estreiteza de significao.18
Pode-se fixar dois grandes planos superestruturais: o que pode ser chamado de
sociedade civil (isto , o conjunto de organismos chamados comumente de
privados) e o da sociedade poltica ou Estado, que correspondem funo de
hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e quela de
domnio direto ou de comando, que se expressa no Estado e no governo
jurdico.24
23
Alis, pode-se dizer que, no seu mbito, o partido poltico desempenha sua funo
muito mais completa e organicamente do que, num mbito vasto, o Estado
desempenha a sua: um intelectual que passa a fazer parte de um partido poltico de
um determinado grupo social confunde-se com os intelectuais orgnicos do prprio
grupo, liga-se estreitamente ao grupo, o que no ocorre atravs da participao na
vida estatal seno mediocremente ou mesmo nunca. 27
Porm, Gramsci tambm nos alerta para o fato de que as categorias de anlise
com que trabalha no devem ser concebidas como esquemas rgidos, mas apenas como
critrios prticos de interpretao histrica e poltica. Nas anlises concretas dos
eventos reais, as formas histricas so determinadas e quase nicas.28
Por isso mesmo, ao trabalharmos com os pares conceituais por ele empregados
Ocidente e Oriente, sociedade civil e sociedade poltica; consenso e coero, direo e
domnio , em nosso caso especialmente intelectuais tradicionais/orgnicos, devemos
25
perceber que tais pares no se apresentam jamais como mutuamente excludentes, pois
cada termo das dades de Gramsci (...) pressupe o outro, de tal modo que o emprego
de um depende do emprego do outro. Desse modo, o problema reside na determinao
emprica da proporo, peso e valor de cada elemento da dade no contexto de uma
situao histrica concreta.29
Assim, a filiao partidria e a defesa das propostas comunistas, mais ou menos
explcita em suas obras, aproximam Graciliano Ramos e Jorge Amado do modelo do
intelectual orgnico, do militante partidrio a servio de uma causa, vinculado por
adeso ao operariado. certo, porm, que as condies de formao do literato no
Brasil, as presses e os limites impostos pelas editoras, crtica literria e julgamento
pelos pares, acabam por mant-los em dilogo permanente com os parmetros da autorepresentao dos intelectuais tradicionais, aos quais, muitas vezes, tambm buscam se
adequar.
Passando do debate sobre os intelectuais discusso sobre cultura e literatura,
recorremos a Raymond Williams. Ao organizar um arsenal terico que permite o
entendimento da literatura e de sua teoria dentro de uma perspectiva marxista, Williams,
em Marxismo e literatura, historiciza conceitos imprescindveis para o desenvolvimento
de trabalhos neste campo30, apresentando-se como referncia de relevo para o
desenvolvimento de nossa pesquisa em histria.
Ao explicar que a feitura de seu livro, marcadamente terico, s foi possvel em
uma conjuntura de transformaes dentro do marxismo e dentro da rea de estudos
literrios, Williams oferece uma sistematizao de conceitos importantes para o
desenvolvimento de pesquisas dentro desta perspectiva, elaborando o conceito que
guiar sua pesquisa, o materialismo cultural:
Benedetto Fontana, Hegemonia e nova ordem mundial, In Carlos Nelson Coutinho & Andra
Teixeira, Ler Gramsci, entender a realidade, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003, pp. 119-120.
Apud, Mattos, Marcelo Badar. Qualificando o debate: conceitos de Gramsci, anlise histrica da
sociedade brasileira e projeto socialista. In Reorganizando em meio ao refluxo: ensaios de interveno
sobre a classe trabalhadora no Brasil atual. Rio de Janeiro: Vcio de Leitura, 2009, p. 80.
30
Williams, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Dois artistas podem representar (expressar) o mesmo momento histricosocial, mas um pode ser artista e o outro simples borra-botas. Esgotar a questo
limitando-se a descrever o que ambos representam ou expressam socialmente, isto
, resumindo, mais ou menos bem, as caractersticas de um determinado momento
histrico-social, significa nem sequer aflorar o problema artstico. Esta descrio
pode ser til e necessria (alis, ela o certamente), mas num outro campo: o
campo da crtica poltica, da crtica dos costumes, na luta para destruir e superar
determinadas correntes de sentimentos e crenas, determinadas atitudes diante da
vida e do mundo.32
31
32
Williams, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, pp. 11-12.
Gramsci, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968, p.5.
Lutar por uma nova arte significaria lutar para criar novos artistas individuais, o
que absurdo, j que no se podem criar artificialmente os artistas. Deve-se falar
de luta por uma nova cultura, isto , por uma nova vida moral, que no pode deixar
de ser intimamente ligada a uma nova intuio da vida, que chegue a se tornar um
novo modo de sentir e de ver a realidade e, conseqentemente, um mundo
intimamente relacionado com os artistas possveis e com as obras de arte
possveis.33
Deixa clara, assim, sua viso de que a produo artstica est intimamente
vinculada vida cultural inserida no contexto histrico-social, no sendo, no entanto, de
maneira alguma mecnica ou automtica a correlao entre arte e contexto histricosocial.
Outro aspecto importante a ser destacado deste conjunto de ensaios de Gramsci
diz respeito quilo a que o autor chama de arte educativa. Ao rebater as crticas
daqueles que no creditam valor artstico a obras que apresentam um contedo
poltico, afirma que a soluo para este problema analtico, ou da crtica literria, pode
ser encontrada dentro da perspectiva do materialismo histrico:
Esse argumento nos foi vlido por dois vieses, o primeiro por nos lembrar que a
produo artstica, embora ocupando seu lugar prprio, deve ser pensada como parte
integrante de um contexto histrico-social amplo, muito embora isso no signifique uma
relao de reflexo direto e mecnico; o segundo por indicar que as obras
declaradamente orientadas por uma perspectiva poltica no devem ser desconsideradas
como aquilo que so: obras de arte. Essa segunda assertiva vem ao encontro da
primeira, uma vez que toda e qualquer obra de arte no pode ser considerada fora dos
termos de sua produo histrico-social.
33
Gramsci, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968, p.8.
Idem, ibdem,, p.10. Cabe ressaltar que esse tipo de definio, ou de elaborao do pensamento
est marcada intimamente por uma perspectiva masculina que esbarra em uma viso um tanto quanto
machista.
34
"reflexes de tipo cultural e moral, aos modos em que o ser humano est imbricado
em relaes especiais, determinadas, de produo, o modo em que estas
experincias materiais se moldam em formas culturais, a maneira em que certos
sistemas de valores so consoantes com certos modos de produo e certos modos
de produo e relaes de produo so inconcebveis sem sistemas de valores
consoantes. Um no depende do outro. No existe uma ideologia moral pertencente
a uma superestrutura, o que existe so duas coisas que constituem as faces da
mesma moeda"35.
35
36
verificao
teve,
ainda,
interesse
em
colher, nas
distintas
fontes,
40
_____ . Alexandre e outros heris. 12 ed. Rio de Janeiro, So Paulo: Record, Martins, 1975
____. O Amor do Soldado. 2 ed. So Paulo: Martins, 1958.
58
____. Os Subterrneos da Liberdade- vol.1 Os speros Tempos. 28 ed. Rio de Janeiro: Record,
1976., vol.2 Agonia da Noite. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 1976. vol.3 A luz no tnel. 28
ed. Rio de Janeiro: Record, 1976.
59
_____ . Memrias do Crcere. 8 ed. Rio de Janeiro, So Paulo: Record, Martins, 1975.
60
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953.
61
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio
Editora, 1954.
57
Captulo 1
62
Neste captulo, o nome do peridico A classe operria, por questes meramente estilsticas,
tambm poder aparecer na forma reduzida A classe.
Stalin, assim como o fato de Jorge Amado, em data antecedente (1942), ter dedicado
obra de considervel extenso biografia do Cavaleiro da esperana.
Optamos por esse percurso de pesquisa por objetivarmos a demonstrao de
alguns pontos que sero imprescindveis para o desenvolvimento das anlises das obras
de Jorge e Graciliano, pontos como a compreenso da importncia que teve para o
Partido Comunista do Brasil a construo de um mito que servisse como imagem de
heri catalisador de foras e entusiasmos coletivos (quer da militncia, quer da
sociedade em geral) e a compreenso da importncia da observncia, pelos militantes de
base, das diretrizes apontadas pela direo do partido.63
Perceber a fora das orientaes estratgicas do Comit Central no sentido de
exaltao de Prestes nas pginas do principal jornal do partido nos ajuda a entender, por
exemplo, o contexto em que o realismo socialista chega ao Brasil e de que forma ele
repercutiu no apenas na produo literria, mas tambm na escrita dos jornais e
revistas vinculados ao partido.
A edio de 1 de janeiro de 1949 de A classe operria toda ela dedicada
comemorao do aniversrio de 51anos de Luis Carlos Prestes. Logo na primeira
pgina, Digenes Arruda interroga o leitor: Como se explica essa fora crescente da
influncia de Prestes? Por que as massas querem e respeitam tanto a Prestes?64 Para
logo em seguida responder: Porque sabem que Prestes no tem outros interesses a
defender seno os interesses dos explorados e oprimidos e no tem outra vida seno a
que ele entregou de corpo e alma luta pela causa sagrada dos trabalhadores.65
Discordaremos de Arruda, e buscaremos uma outra resposta pergunta retrica
proposta pelo dirigente. Neste captulo tentaremos demonstrar como a imagem de
Prestes foi continuamente trabalhada pelo partido at atingir esse aspecto herico
aludido por Arruda.
Neste captulo, tentaremos desvendar como Prestes atinge status de mito
nacional a partir de um longo trabalho bem sucedido de culto personalidade,
63
Prestes permanece no partido durante todo o perodo estudado e est presente nas pginas de A
classe operria com freqncia cada vez maior. Essa freqncia crescente foi um dos motivos que nos
impulsionaram a perceber a importncia, para o partido, de construo de um heri exemplar.
64
A classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.1.
65
A classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.1.
encetado pela direo do Partido Comunista atravs de seus jornais, de suas revistas, de
suas comemoraes e de suas manifestaes. nossa preocupao, sobretudo, tentar
perceber como este trabalho foi levado a cabo pelos diversos intelectuais e artistas do
partido, tentando desvendar, inclusive, as orientaes do partido para a rea cultural.
Dos vrios temas aglutinadores que poderiam ser utilizados para a promoo da
discusso sobre as orientaes do partido, acreditamos que a transformao da
representao de Prestes, pela imprensa comunista, de representante da pequena
burguesia a guia do proletariado permite mais claramente perceber o esforo contnuo
do partido para adaptar-se s transformaes conjunturais e s orientaes do
Cominform.66
A escolha de A classe operria no foi gratuita. Apresenta como vantagens para
a pesquisa o fato de ser o jornal oficial do partido, voltado principalmente para seus
militantes e no para o grande pblico, bem como por ter sido publicada quase
ininterruptamente em todo o perodo analisado, o que nos permite, salvo em momentos
bem especficos de perseguio, acompanhar semanalmente essas transformaes e
reelaboraes da viso de mundo do partido.
Outra escolha que deve ser justificada neste primeiro momento o porqu do
levantamento de um panorama das atividades e principais orientaes programticas do
PCB ter sido elaborado a partir das folhas de seu principal peridico. Muitas snteses
sobre a histria do partido optam pela mescla de diferentes tipos de fontes, dentre os
quais documentos internos e entrevistas de antigos militantes. Justificamos nossa
escolha por no ser nosso interesse primordial a elaborao de um painel da histria do
PCB67, mas sim buscar pistas que, situadas no plano geral da histria do partido,
nacional e internacionalmente, nos permitam perceber a importncia das atividades
intelectuais e as disputas processadas neste campo.
Pelas pginas de A classe operria, podemos perceber, a um s tempo, a
importncia da imprensa comunista, vista por aqueles que a produziam como
66
Outro tema aglutinador dos esforos comunistas que tambm se apresenta, a partir do incio da
guerra fria, regularmente nas pginas de A classe operria a campanha de Defesa da paz que, durante
muito tempo, mobilizar os esforos comunistas. Realizaremos uma anlise deste tema no quinto captulo
desta tese.
67
Uma vez que j contamos com diversos estudos, sendo que de muitos deles nos servimos
fartamente. Tais estudos, aos quais nos referiremos no decorrer deste trabalho, podem, de forma muito
mais completa, explicar as transformaes processadas no PCB ao longo de sua histria.
68
Quer por membros da direo, quer por pessoas envolvidas em sua elaborao.
Com constantes transformaes, por exemplo, no tipo de luta enfatizado a de frente nica ou a
de embate radical de classes; nas personalidades exaltadas; nas personagens execradas; nas notcias
recorrentes etc.
70
Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil
(1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p. 62.
71
Idem ibdem, p.63.
69
volta a ter sua existncia garantida de forma legal. Mais uma vez, o perodo de
legalidade curto e, em 1947, fechada e volta a circular de forma clandestina.72
Segundo Canelas Rubim, a imprensa comunista brasileira seguiu o modelo da
concepo de imprensa traada por Lnin, que pode ser sintetizada da seguinte forma:
72
75
por ocasio de uma qualquer greve, como de uma qualquer sublevao local de
operrios agrcolas, de camponeses ou de desempregados.76
76
77
Este fato no fruto do acaso, mas devido a que a Coluna Prestes jamais
teve um verdadeiro e claro programa revolucionrio, jamais soube ligar a sua luta
luta dos operrios e camponeses pelas reivindicaes vitais destes ltimos, e ainda
a que ela representa a pequena burguesia das cidades que oscila entre a burguesia e
as massas, entre a revoluo e a reao.79
Podemos perceber, portanto, que a coluna acusada de servir aos planos de uma
frao da casse dominante e aos interesses do imperialismo norte americano, de no
compartilhar dos mesmos interesses do povo brasileiro, nem de assumir um papel de
liderana na ruptura com os mecanismos de explorao do povo, oscilando entre
posturas antagonicamente revolucionrias e reacionrias. A acusao torna-se um pouco
mais virulenta ao classificar tal indefinio como vergonhosa.
A interpretao do partido sobre o que seria o erro de uma poltica aliancista
feito pela Coluna no impede, contudo, que seja formulado, logo em seguida o seguinte
apelo: nesta situao, cada revolucionrio honesto que se encontra na Coluna Prestes
deve definir-se e decidir entre dois caminhos a seguir: ou um pronunciamento militar;
ou a revoluo de massas80.
Mesmo destinando a, dentro de um referencial comunista, nada elogiosa alcunha
de pequeno burguesa Coluna e identificando-a a elementos atrasados da sociedade,
este texto reserva espaos para negociaes entre comunistas e prestistas. A ttica de
clamar para que os verdadeiros revolucionrios deixem o projeto aliancista e que se
juntem foras ao Partido Comunista num projeto verdadeiramente revolucionrio,
parece deixar claro que poderiam existir no interior dos egressos da Coluna, setores que
no eram compreendidos pelos comunistas como inimigos irreconciliveis.
O texto seguinte, divulgado depois do manifesto de Prestes, parece tentar
reforar a idia de que o Partido Comunista do Brasil estaria pronto a aceitar a
incorporao dos elementos realmente revolucionrios da Coluna Prestes em seus
quadros. Para tanto, declara que o manifesto vem a corroborar as crticas que os
prprios comunistas j haviam tecido Coluna e deixar clara a necessidade de uma ao
revolucionria que aproveite o contexto de crise mundial.
79
80
Para que a utilizao de elementos antes identificados como contrarevolucionrios se faa aceitvel, duas estratgias argumentativas so utilizadas. A
primeira estratgia tenta marcar e deixar bem clara a presena de dois grupos distintos e
antagnicos dentro da Coluna, um revolucionrio e outro reacionrio. A segunda
procura mostrar que a mudana de posicionamento do lder da Coluna Prestes deve ser
entendida como a sua tomada de conscincia de que o caminho apontado pelo PCB era
o nico possvel na conjuntura. Nas palavras do documento divulgado pelo Comit
Central:
O texto aponta que a agudizao do conflito dentro da Coluna Prestes deve ser
atribuda antes radicalizao da conjuntura nacional e iminncia da revoluo do que
a fatores internos prpria Coluna. Segundo essa perspectiva, para o PCB o Manifesto
representa, apenas, a comprovao mais segura do aprofundamento da marcha para a
esquerda, para a Revoluo das vastas massas dos campos e das cidades.82
No entanto, embora tenha se operado uma transformao na forma do Partido
analisar a importncia da Coluna Prestes e de seu lder neste segundo momento,
posterior ao manifesto, os tenentes ainda no teriam sido amplamente aceitos como
elementos verdadeiramente revolucionrios. Essa percepo passa, necessariamente,
pela concepo de estrutura de classe. Como pequeno-burgueses, os Tenentes no
estariam aptos a conduzir o movimento revolucionrio porque trairiam, fatalmente, os
interesses dos trabalhadores:
O que Prestes no podia saber era das complexas peripcias polticas que,
naqueles meses cruciais para a redefinio de sua viso de mundo, afetavam a
URSS, a IC e tambm o PCB. Prestes acabou enredado num turbilho que
implicava a queda de quadros revolucionrios nos partidos, nos sindicatos e nas
diversas instncias da IC e a imposio de uma outra linha que estivesse de acordo
com a interpretao do terceiro perodo vitoriosa no X Pleno da CEIC. Da o
amparo que Prestes recebia do SSA/IC enquanto tinha sua aproximao recusada
pelo PCB, por sua vez sob cerrada crtica daquele86.
86
Del Roio, Marcos. O impacto da revoluo russa e da internacional comunista no Brasil. In:
Moraes, Joo Quartim de & Reis Filho, Daniel Aaro (orgs.) Histria do marxismo no Brasil o impacto
das revolues - vol.1. Campinas; SP: Editora da Unicamp, 2003, p.103.
87
A classe operria, 01-08-1934, p. 3.
88
89
Segundo Del Roio, alguns fatores foram decisivos para explicar a supremacia,
dentro do Brasil, do PCB na luta antifascista a partir de 1934, dentre elas, destaca:
A crise poltica que afetou o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a Liga Comunista
Internacionalista (LCI), sua limitada difuso territorial, o crescimento do prestgio da
URSS como principal fora internacional antifascista, uma maior difuso do marxismo de
extrao staliniana, para alm do movimento operrio, atingindo a intelectualidade civil e
militar, foram elementos importantes para explicar a supremacia do PCB no conjunto do
antifascismo brasileiro, a partir do segundo semestre de 193492.
90
Embora as edies do peridico de nmeros 169 e 170, publicados, respectivamente, nos dias
12-09 e 03-10 do ano de 1934, no tenham tido espao para uma maior divulgao da filiao de Prestes,
a edio de nmero 175, publicada em 16 de maro de 1935, apresenta uma das quatro colunas de uma de
suas seis pginas dedicada publicao da seguinte matria: Avano do Partido Comunista / Assistimos
a uma verdadeira diferenciao e desagregao nas fileiras do Partido Socialista Brasileiro de So Paulo. /
Um de seus dirigentes Ladislau Camargo ferrovirio de grande prestigio, acaba de aderir ao Partido
Comunista Brasileiro, publicando um brilhante manifesto que j foi largamente divulgado In: A classe
operria, 11-03-1935, p. 4.
91
Del Roio, Marcos. O impacto da revoluo russa e da internacional comunista no Brasil
in:Moraes, Joo Quartim de & Reis Filho, Daniel Aaro (orgs). Histria do marxismo no Brasil o
impacto das revolues - vol.1. Campinas; SP: Editora da Unicamp, 2003, p.108.
92
Idem, ibdem, p.109.
Dois comentrios devem ser feitos sobre o artigo publicado. O primeiro diz
respeito afirmao categrica de que o Partido Comunista do Brasil no faria parte da
Aliana Nacional Libertadora, muito embora hipotecasse sua simpatia e apoio ao
movimento. Essa declarao seria contradita pelos rumos dos acontecimentos, mas, no
entanto, tal fato no merecer uma autocrtica nas pginas do peridico.
93
(...) indispensvel que o nosso Partido se torne cada vez mais um partido
de classe do proletariado, no admitindo que elementos estranhos se infiltrem em
suas fileiras, nem que tentem dissolv-lo no Bloco Popular Revolucionrio. ainda
indispensvel que a disciplina revolucionria seja cada vez mais forte nas fileiras
do Partido e que este se apresente como um bloco de ao indivisvel capaz de
representar os interesses de classe do proletariado e assegurar o seu papel dirigente
na revoluo. Barcelona, 21 de maio de 193595
interessante reparar que Prestes, que antes da filiao ao PCB promovida por
Moscou era considerado um desses elementos infiltrados no movimento revolucionrio,
passa a adotar o mesmo tipo de discurso que os outros redatores e articulistas do jornal
A classe operria. Seus artigos parecem deixar clara a total sintonia entre o novo
membro do partido com a linha adotada pelos dirigentes. Os tempos do manifesto de
maio j foram ultrapassados e, embora ainda no tenha sido construda a idia de um
heri imbatvel do proletariado, Prestes j no mais considerado como uma voz
dissonante.
Comparando as tentativas de rebelio/revoluo ocorridas em El Salvador e no
Brasil, na primeira metade da dcada de 1930, Michel Lwy, em sua coletnea O
marxismo na Amrica Latina, chega a concluses que podem nos auxiliar na
compreenso da tentativa insurrecional impetrada pela Aliana Nacional Libertadora,
em 1935, no Brasil:
95
96
Lwy, Michel (org.). O marxismo na Amrica Latina (uma antologia de 1909 at os dias
atuais). So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, , 1999, p.24.
97
A classe operria, fevereiro de -1936, p. 3.
Mas este tom exaltado que relaciona Prestes ao levante de Natal e Recife,
associando seu nome a levantes promovidos pelas foras armadas, ou, mais ainda,
transformando-o em sinnimo de bravura e coragem, no nada se comparado ao tom
da reportagem que aparece na pgina 8 da mesma edio de A classe operria:
Ao final do texto aparece uma nota que explica no ter sido ele produzido pela redao
do jornal, mas tratar-se da reproduo de artigo publicado originalmente no jornal A
Unio de Ferro, descrito pelos redatores como rgo das foras armadas.
Essa transcrio serve como elemento de validao da figura de Prestes por duas
vias: a primeira por deixar que outras bocas proclamem as qualidades de seu quadro e
que voltem a lhe atribuir o epteto pelo qual ficou nacionalmente conhecido na poca da
Coluna; a segunda por reafirmar que a massa do exrcito, comunista ou no, ainda
identifica em Prestes seu comandante e guia.
Depois do fracasso do levante de novembro, a linha poltica do partido sofre
sensvel transformao: se antes todos aqueles que no fossem ligados ao partido ou
todos aqueles que discordassem da linha adotada pelo Comit Central eram acusados de
serem contra-revolucionrios, trotskistas ou mesmo prestistas, aps a forte represso
instaurada pelo governo Vargas no ps-1935, percebemos nas matrias de A classe
operria a divulgao de uma nova linha poltica, que conclama os militantes
formao de uma frente nica de resistncia. bem verdade que desde a fundao da
ANL j existia um discurso articulado no sentido de formao de uma grande frente, no
entanto, no deixaram de figurar, nas pginas do peridico, comentrios sobre a
independncia do partido, assim como algumas crticas veladas a outros componentes
da Aliana.
A partir de 1936, no entanto, visvel o esforo empreendido pela linha editorial
de A classe operria para defender a legitimidade do levante de novembro do ano
98
anterior e para conclamar a todos aqueles que se identificassem com uma postura de
resistncia ao governo Vargas.
5 de julho
A 5 de julho de 1922, o ribombar dos canhes do Forte de Copacabana
despertava o Povo Brasileiro para uma longa e penosa jornada libertadora! (...)
A 5 de julho de 1924, novamente, em So Paulo, levanta-se a bandeira j tinta
de sangue dos bravos de Copacabana. Segue-se o raid incomparvel da Coluna
Prestes. O Brasil inteiro, vibrando de entusiasmo, acompanha a marcha da Coluna,
99
100
(...) No podem dormir tranqilos esses verdugos nem seus amos imperialistas, enquanto vivos
estiverem, mesmo que sob os vares de ferro dos calabouos, Prestes, Miranda, Agildo Barata, Miguel
Costa, Caio Prado e centenas de outros chefes libertadores e proletrios. In: A classe operria, julho de 1936 (n196), p.2.
102
A classe operria (SP), agosto de -1936 (n197), p.6.
peridico, bem como diminui sua circulao e sua qualidade tcnica. Nas edies de
outubro (n201), novembro (n 198, sic), 05 e 27 de dezembro (n 205 e 206) do ano de
1936 aparecem reportagens, notas e artigos que discutem as prises polticas e que
pedem a mobilizao dos leitores para que haja um processo de anistia. Sendo que no
ltimo destes, de 27 de dezembro publicada a nota que informa a liberao de 24
presos polticos do levante de 35.
Na primeira pgina da edio carioca de A classe operria do dia 02 de fevereiro
de 1937 aparece noticiada a morte de Maria Prestes, irm de Luis Carlos. A novela
sobre o nascimento do filho de Prestes, sobre sua mulher, sobre a incomunicabilidade
do Cavaleiro da Esperana desenrola-se nos nmeros de A classe operria do Rio e
de So Paulo do incio do ano de 1937.
O julgamento de Prestes ir mobilizar no s a militncia comunista como
tambm a opinio pblica, em um perodo de intensa represso. Em torno do evento
sero escritos artigos em outros rgos da imprensa e o assunto parece ter atingido
grande repercusso. Esse julgamento, posteriormente, seria recuperado por Jorge
Amado para o final de sua trilogia Os subterrneos da liberdade, como verificaremos
posteriormente.
At que, na edio carioca de 16 de maro de 1937, noticiado o julgamento de
Prestes. interessante atentar para o tom com que construda a cena:
103
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A dcada de 1940 inaugura uma forte guinada no culto a Prestes promovido pelo
PCB. No que este culto j no viesse sendo construdo desde meados da dcada de
1930, mas atravs da campanha por sua libertao (que j vinha acontecendo desde
1936) que na dcada de 1940 a figura de Prestes assume a aura de heri no sentido mais
prximo da mitologia grega, a do semideus dotado de qualidades ausentes nos simples
mortais. Como pode ser percebido no pargrafo final da matria anteriormente citada:
(...) preciso arrancar Prestes das garras da reao imperialista! preciso lutar
pela liberdade do grande filho do Brasil, do homem que pelo Brasil e seu povo h
quatro anos vem suportando heroicamente sem fraquejar um s instante o mais
indescritvel e espantoso martrio.112
Nossa inteno ao analisarmos, a seguir, os textos de Graciliano Ramos e Jorge
Amado dedicados a Prestes, depois de acompanharmos os textos de A classe, mostrar
que os esforos no sentido de fixao desta grandiosidade no foram esforos restritos
aos escritores, mas que j vinham se desenvolvendo pelo menos desde o ano de 1936 na
imprensa oficial do partido.
111
112
113
114
115
Sobre os comits ver Pinheiro, Marcos Csar de Oliveira. O PCB e os Comits Populares
Democrticos na Cidade do Rio de Janeiro (1945-1947). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. (dissertao de
mestrado em Histria Comparada).
116
No breve trecho a seguir, podemos colher indcios para verificar como o partido recontou essa
histria:ELEMENTOS PARA A HISTORIA DA CLASSE OPERARIA: vinte anos de luta de um jornal
do proletariado num pais dependente fechado pela polcia trs meses depois de fundado de 2.000
exemplares a 40.000 mais de 20 ttulos diferentes altos e baixos uma voz jamais silenciada
reflexos da vida do operariado e do seu partido pela vida do operariado pode-se traar um grfico da
democracia e da redao no pas. In: A classe operria, 09/03/1946, p.1.
Neste mesmo nmero inaugural, A classe operria conta tambm com um texto
encomendado a Jorge Amado. Nele, o autor descreve a histria do peridico como uma
histria de resistncia e luta, e coloca o jornal no papel central de articulador do Partido,
como rgo responsvel pela coeso dos diversos ncleos regionais durante a
ilegalidade. Mesmo sabendo ser desgastante a utilizao de citaes to longas,
acreditamos que o artigo A classe era po e luz, de Jorge Amado, seja emblemtico
para a discusso das relaes estabelecidas entre literatos (e outros artista) e A classe
117
A classe operria, 09/03/1946, p.1. interessante notar que os textos assinados por Prestes vem
acompanhados por um desenho de seu rosto.
118
A adoo pstuma do nome do companheiro vem acompanhada pelo tom de reverncia ao tratar
da alem que passa categoria de mrtir do comunismo no Brasil. Essa forma de abordar a vida e a morte
de Olga aparece conjugada ao prprio engrandecimento da legenda Prestes, que parece ser o objetivo
central do partido com essas matrias.
119
A classe operria, 09/03/1946, p.3.
Parece-nos que Jorge Amado opta por recontar a histria do peridico como se
recontasse a histria de um de seus heris. Sublinhando as mltiplas dificuldades
encontradas para a realizao de seu propsito ltimo a contnua formao e
informao da militncia comunista salienta e valoriza o papel desempenhado por A
classe operria durante o governo Vargas, sobretudo durante o cerco repressivo
agudizado com o Estado Novo. Saudando os novos leitores, aqueles que no
conheceram a vida do partido durante seu (bravo) perodo de ilegalidade e de
(incansveis) trabalhos subterrneos, Amado mais uma vez repisa as dificuldades
passadas e a bravura dos responsveis pela publicao de A classe:
Sei que muitos lero a classe operria pela primeira vez. Sabem dela
vagamente, de ouvir falar, no tem perfeita idia do papel que ela representou. (...)
Nas cavernas, operrios curvados sobre folhetos, curvados sobre problemas,
doentes, fugidos e perseguidos no temiam nem desanimavam. Era o Partido
Comunista, pequeno, injuriado e sozinho na sua luta. O medo ficava do outro lado,
haviam riscado essa palavra do seu dicionrio. Esses que ainda lutavam, os ltimos
a acender um facho de luz na noite cada vez mais envolvente, cada vez mais negra
de terror, acreditavam no proletariado e no futuro.122
120
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122
123
(...) Chegava por mais que crescessem as dificuldades e cada nmero parecia ser o
ltimo, pensava-se que seria impossvel no ms seguinte voltar a encontr-la
novamente. As oficinas caiam nas garras da polcia, os redatores estranhos
redatores de jornal que tinham as mos calosas de operrios eram torturados e
processados, mas A classe operria renascia a cada ms, no conhecia soluo de
continuidade como se aquele grupo de homens houvesse conquistado o poder
sobre-humano dos milagres. Era um milagre do partido, um milagre feito com
sangue e sacrifcio, e A classe operria atravessou os anos ensinando e
educando.(...)
Os intelectuais compreendiam ento que sobre o terror, sobre a noite e
sobre o crime estava, construindo o futuro, o proletariado que no se entregava
nem se vendia. Era como um po para famintos, como um porto para um navio
desarvorado, como o primeiro dia de convalescena para o desenganado.124
124
recm filiados. Parece-nos que, neste texto, Jorge Amado, como homem do partido e
como literato, tem como tarefa deixar claro para os novos filiadosartistas, escritores,
crticos etc. o que partido espera de seus intelectuais.
O artigo inicia-se com o elogio aos novos militantes, caracterizados como a fina
flor da vida intelectual brasileira. Essa estratgia parece ser utilizada no sentido de
demarcar dois campos: o campo dos intelectuais pertencentes ao partido, caracterizados
como os mais lcidos, sensveis e responsveis, e o campo daqueles que no fazem
parte do partido, caracterizados como pequenos, mesquinhos,
falsrios ou
equivocados..
A distino dos campos aparece apoiada na base cientfica do marxismo, uma vez
que, para Jorge Amado, filiar-se ao partido nada mais representaria do que reconhecer a
marcha da humanidade, que fatalmente levaria revoluo. Logo, esse reconhecimento
seria o sinal de inteligncia mais apurada dos cientistas e artistas do PCB.
Amado continua, traando os procedimentos necessrios para uma boa adequao
entre comprometimento militante e fazer artstico:
127
Parece que a inteno do autor foi ressaltar que, enquanto produtor cultural, o
artista teria total liberdade de criao. Se temas ligados explorao capitalista ou
construo do socialismo aparecessem em suas obras poderiam ser creditados apenas ao
aprofundamento de sua viso sobre o sistema capitalista resultante de um maior contato
com o proletariado e do contato coma teoria do materialismo histrico.
Por outro lado, deveria ele submeter-se s exigncias feitas a todos os militantes
comunistas, a saber, participar intensamente da vida partidria, desempenhando as
tarefas designadas pela direo e estando intima e organicamente envolvido na vida do
partido, a partir do trabalho de base.
interessante assinalar, ademais, que neste momento ainda no temos uma
defesa clara e desmascarada do realismo socialista.130 No plano discursivo, ao menos, a
liberdade de criao ainda era defendida. E por ltimo, mas no menos importante, est
o aviso para que os artistas se adqem vida partidria. Esse aviso, que vem logo aps
a defesa de uma flexibilidade para com os horrios e formas de trabalho deste tipo
especfico de militante, mostrando que antes de artistas, esses homens devem
apresentar-se como militantes do Partido Comunista e, como tal, submeter-se
disciplina partidria. Mas mais do que isso, neste aviso tambm est contido o
prenncio daquilo que estava por vir: as obras destes militantes deveriam se coadunar
com a viso do partido, deveriam refletir a classe operria e servir a ela.
curioso notar como se processa a mudana na leitura que o partido faz de sua
prpria histria e como a reconta de acordo com as novas conjunturas131. Como viemos
observando, a figura de Prestes est sofrendo uma reelaborao, responsvel por retirlo do grupo de pequenos burgueses voluntaristas para transform-lo no grande lder
comunista. At ento, esta reelaborao vinha se processando com uma explicao
129
132
133
(de textos de Marx, Engels e Lnin) na edio de 30 de maro, porm, a coluna assume
ares de uma coluna de perguntas e respostas. Transcrevemos algumas de suas partes:
Desta forma, nesse texto, Prestes apresentado como um orculo que tem as
respostas para as mais diversas perguntas da massa. Ao publicar esta coluna, o jornal
garante, a um s tempo, dois benefcios para o Partido: reafirma a supremacia de Prestes
como lder comunista e fornece sua base as respostas de uma das perguntas mais
utilizadas para atacar o partido.
Ainda na edio de nmero 4 da nova fase de do jornal, publicado um discurso
de Prestes na Constituinte. A transcrio deste discurso contra a permanncia das tropas
americanas em solo nacional ocupa 7 pginas e meia do jornal. Normalmente publicada
em 12 pginas, no dia 30/03, A classe operria saiu em edio de 16 pginas.
134
De volta clandestinidade
Na edio datada do Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1948, na quinta pgina,
aparece uma extensa reportagem sobre a perseguio aos jornais comunistas em todo o
territrio nacional, elencando os peridicos que sofreram com a perseguio policial:
135
Defendamos a nossa imprensa: In: A classe operria, 27-01-1948 (ano III n109), p.5.
136
137
138
Esse perodo descrito com tendo sido bastante significativo para o partido, que
teria conseguido superar toda e qualquer adversidade, resistindo e organizando-se,
mesmo na ilegalidade. Esse trajeto de 23 anos seria responsvel pela formao de
dirigentes e quadros realmente a altura de conduzir a luta de nosso povo contra o
latifndio e o imperialismo, dirigentes como Prestes - o mais querido e o mais firme
condutor de massas de toda a nossa historia139. Neste retrospecto, portanto, o passado
relido como um perodo de provaes que teriam contribudo no s para a
solidificao da fora do partido como tambm pelo aparecimento do grande condutor
das massas, Luis Carlos Prestes.
Assim, quando finalmente pode viver novo perodo de legalidade, em maio de
1945,
141
142
interessante que Grabois se interesse por marcar uma diferena entre dois
momentos distintos na trajetria revolucionria de Prestes. Num primeiro, este aparece
como pequeno burgus e num segundo como lder proletrio.143 Essa distino
interessante, uma vez que harmoniza a postura inicial do partido sobre Prestes
posterior exaltao de seu nome, conferindo credibilidade s criticas anteriores e
apontando que a mudana de Prestes representou uma evoluo de seu carter
revolucionrio (e patritico).
Desta forma, harmonizados esses dois momentos da biografia de Prestes,
Mauricio Grabois, como representante do partido, e sem necessidade de realizar uma
autocrtica, pode fazer declaraes como a seguinte: Em qualquer desses dois perodos
de sua vida de revolucionrio, Prestes tem sido um homem que faz histria, colocandose sempre ao lado do povo, das aspiraes e necessidades das foras mais
progressistas em nossa Ptria144.
Essas qualidades inatas e as experincias extremas a que foi submetido, teriam
transformado Prestes no maior
143
Seu carter, sua inteligncia, seu patriotismo, determinaram essa trajetria admirvel do
revolucionrio pequeno-burgus de 1924, que se transformou em uma das mais conhecidas e notveis
figuras do movimento proletrio internacional. In: A classe operria, 07-01-1948 (ano II n107), p.1.
144
A classe operria, 07-01-1948, p.1.
145
A classe operria, 07-01-1948 (ano II n107), p.1.
Assim, por esse pargrafo de fechamento, fica claro que estava definitivamente
acabada a lua-de-mel dos comunistas com a legalidade, passada para trs a poltica de
apertar os cintos, jogada fora a ttica da frente democrtica. O momento agora de
denncia das arbitrariedades do governo e da liderana, o momento das reivindicaes
por aumentos salariais, reajustes, reposio de perdas e garantia das conquistas
anteriores. Estava declarada a guerra. Bastava seguir o comandante.
Aniversrios
Em seu aniversrio de 50 anos, Prestes ganha como presente de A classe
operria uma matria de comemorativa, onde so descritos os festejos no Rio de
Janeiro e so recontados os principais momentos de sua vida. Ocupando metade da
terceira pgina da edio de 7 de janeiro de 1948 do peridico, percebe-se na matria
As massas populares brasileiras firmes e unidas ao lado de Prestes - o povo da Capital
146
Prestes o mestre e o exemplo para todos ns. Ele nos ensina a ser fieis a causa do povo, a ter
coragem para enfrentar os nossos inimigos, a nos ligar com as massas e dirigi-las na luta pelas suas
reivindicaes. In: In: A classe operria, 07-01-1948 (ano II n107), p.2.
147
A classe operria, 07-01-1948 (ano II n107), p.2.
148
153
notas sobre Cear, Bahia, Paraba, Paran, So Paulo, Estado do Rio e Rio Grande do
Sul.
Na quinta pgina Saludo a Prestes, poema de Pablo Neruda154; Heri e lder
do povo, de Moacir Werneck de Castro; Porque dei a meu filho o nome de Luis
Carlos155, de La S Carvalho; e Nosso lder nos ensina a amar a URSS, de Oswaldo
Peralva.
Na sexta pgina Salve, camarada Prestes!, de Marcos Zeida156; O cavaleiro
da Esperana, bandeira de luta dos camponeses, de Nestor Vera157, e o conto O
sobretudo, de Afonso Schmidt.
Na stima pgina Mensagem de natal para Prestes, de Jorge Amado158, So
raros os homens como Prestes, de Oscar Niemayer; Prestes e a revoluo agrria a
soluo revolucionria para o problema da terra, de Jacob Gorender.
Na oitava pgina - a continuao do texto Nosso lder nos ensina a amar a
URSS, de Oswaldo Peralva; Fraternal, compreensivo, humano, de Dalcdio Jurandir;
e metade da ilustrao de Percy Deane e do texto Prestes, de Graciliano Ramos.
Na nona pgina a outra metade do retrato de Prestes feito por Percy Deane e
do texto de Graciliano Ramos; Meu primeiro encontro com Prestes, de Astrojildo
154
Neruda, o grande poeta chileno, Senador do povo, que se encontra hoje no exlio, perseguido
pela ditadura ianque implantada pelo ttere Videla no Chile, recitou este poema no comcio do Pacaembu,
So Paulo, a 15 de julho de 1945, trs meses depois da libertao do Cavaleiro da Esperana. In: A
classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.5.
155
Em consonncia a este artigo em que uma me militante do partido explica porque deu o nome
de Luis Carlos a seu filho, aparece a histria do casal Doroteu e Incia, no segundo volume de Os
subterrneos da liberdade, de Jorge Amado. Na trama ambientada em Santos (durante a greve dos
estivadores que se recusaram a carregar um navio alemo de caf para ser enviado s tropas franquistas na
Espanha), o casal, ao descobrir a gravidez, tambm fazem da escolha do nome do filho em homenagem a
Prestes at um nome j haviam escolhido para o menino, se um menino fosse e no uma negrinha: se
chamaria Luis Carlos, como Prestes; naqueles anos e nos que se sucederam os estivadores de Santos no
botavam outro nome em seus filhos que o do revolucionrio preso e condenado. In: Amado, Jorge. Os
subterrneos da liberdade. v.2 Agonia da noite. Rio de Janeiro: Record, 1976. 28 ed. p. 21.
156
o jornalista Marcos Zeida, que esteve no Brasil como asilado poltico perseguido pela tirania de
Morinigo em sua ptria, o Paraguai, escreveu este artigo em 1946. Zeida se encontra hoje preso e sob
torturas da gestapo e sucessor de Morinigo, Natalcio Gonzles. In: A classe operria, 01-01-1949 (ano
IV n157), p.6.
157
Lder campons de So Paulo in: A classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.6.
158
Numa solenidade no dia 24-12-47 na ABI, Jorge Amado, o grande romancista brasileiro, leu a
magistral pgina que agora publicamos e que se vem juntar s mais belas criaes literrias e artsticas
sobre Luis Carlos Prestes, existente na literatura de vrios pases. In: A classe operria, 01-01-1949 (ano
IV n157), p.7.
159
162
163
Irm de Prestes.
A classe operria, 01-01-1949, p.14.
Uma vida de lutas pelo povo e pela Ptria eis a principal caracterstica
da vida de Luis Carlos Prestes, o cavaleiro da esperana. As lutas de Prestes
enchem todo o ltimo quarto de sculo da nossa histria e so hoje inseparveis
dos mais importantes acontecimentos desenrolados em nosso pas a partir de
1922164
164
Era o heri que surgia renovado e humanizado para novas e maiores lutas.
Seria ainda e sempre o cavaleiro da Esperana do nosso povo. Mas com uma
conscincia ntida do seu destino, uma filosofia para a ao e os ps na terra,
ombro a ombro com os trabalhadores da cidade e do campo.167
167
Esse encanto que parece enternecer o romancista nesta primeira parte de seu
texto logo quebrado com a recordao de que o natal no traz alegria para todos, e que
a desigualdade faz-se presente tambm neste dia que parecia ser uma exceo regra da
169
tristeza. Amado recorda que tambm a alegria propriedade de uns poucos e eles a
servem aos demais, que so a imensa maioria, quando bem o desejam, uma vez por
ano, como o senhor que alimenta o escravo uma vez por dia170.
Mas o antdoto logo apresentado. A substituio desse dia de alegria racionada,
e injustamente distribuda uma vez que, como afirma Jorge, Mesmo nesta noite de
natal eu sinto o medo vivendo entre os homens. (...) Mesmo nesta noite de natal eu vejo
a fome entre os homens. H ceias fartas, bem sei, mas sei tambm que so poucas e que
rareiam a cada natal.171 por uma nova era de alegria verdadeira e ilimitada
associada figura de Prestes.
interessante atentar para a construo de imagens e associaes que, embora
discretamente, procuram identificar Prestes com Jesus. Ou, ao menos, a uma espcie de
messias brasileiro. Amado, depois de demonstrar a importncia do natal no imaginrio
coletivo, de demonstrar como o natalcio de Jesus se configuraria como uma pequena e
limitada brecha nas tristezas cotidianas, apresenta Prestes como o portador de uma boa
nova, a inaugurao de um novo tempo em que essa alegria seria permanente e
igualmente distribuda entre todos os homens e mulheres:
e a certeza de um futuro
feliz conquistado
Ou, na passagem em que Amado descreve como ser a vida depois da vitria de
Prestes, j na parte final do texto:
173
174
Um dia, todos os dias sero como o natal. Ters construdo com a tua luta
essa nova realidade. Nesse dia os poetas e as crianas recordaro teus feitos.
E diro que tempo houve em que apenas uma vez por ano era permitida a
alegria. E que ainda assim, mesmo nesse dia, a alegria era limitada pelo medo e
pela fome.
E que tinhas ento cinqenta anos. E que esses cinqenta anos haviam sido,
todos eles, de incansvel lutar. E relembraro teus diversos momentos da mesma
batalha.175
E em defesa desta fase da biografia de Prestes que Jorge Amado construiu seu
texto, tentando demonstrar que retirar o cargo de Prestes corresponderia retirar o nico
Senador da Repblica que realmente representava o povo brasileiro. Desta forma, o
que estava em jogo neste momento no era apenas a construo do heri, mas a
mobilizao que garantisse sua permanncia no Senado.
175
176
177
bsicos a partir desta constatao: o primeiro, de que Prestes foi feito heri por uma
vontade da massa, no tendo feito esforos para ser colocado nesta posio. O segundo,
de que seu lado humano era muito mais interessante do que a representao mitificada
que foi feita de sua figura.180
Para tentar apresentar Prestes como um homem comum, Graciliano sustenta que
qualquer pessoa que assuma uma vida pblica passar a ser percebido de maneira
diferenciada pelos annimos e passar a ser vista a partir de lentes deformadoras181.
Depois de iniciado o processo de transio de annimo a figura pblica, a pessoa perde
a capacidade de retomar sua normalidade, estando fadado a agentar o peso da
notoriedade. Segundo Graciliano:
180
Atribuem a Carlos Prestes um papel diversamente considerado neste vivo tempo de exaltaes
speras: dolo de massas. Isto lhe ocasiona louvores excessivos e objurgatrias s vezes no isentas de
algum despeito. Doces panegiristas e detratores amargos concordam num ponto: responsabilizam, ou pelo
menos fingem responsabilizar essa estranha figura por se haver tornado uma espcie de mito nacional.
In: A classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.8.
181
A classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.8.
182
A classe operria, 01-01-1949 (ano IV n157), p.8.
183
No captulo 4, quando discutirmos o culto a personalidade a partir das representaes que
Graciliano e Jorge Amado fazem de Stalin.
O que seria o primeiro sinal de que Prestes seria um homem normal, dotado de
contradies como todos os outros, est na sua aparente frieza, que faz com que seja
difcil ler em seu semblante as emoes que o agitam187.
O segundo indcio seria a sua timidez, e nesta o autor se detm. Apontar a
timidez como uma das marcas da personalidade de Prestes poderia, num primeiro
momento, corroborar a vontade expressa por Graciliano no incio de seu texto, a
vontade de mostrar o verdadeiro Prestes, o Prestes humano, e no o dolo de massas,
o mito nacional. Mas a expectativa de que Graciliano v realmente apontar lados
menos idealizados e por isso mais interessantes de Prestes logo frustrada. No se trata
de uma timidez paralisante ou vexatria, timidez que poderia ser atribuda a um de seus
personagens ficcionais, descritos de maneira muito mais dura188. A timidez de Prestes
uma outra espcie de timidez, a timidez dos heris:
Guerra fria
Nesse mesmo contexto, uma prtica que comea a se tornar usual nas folhas de
A classe operria na virada de 1948 para 1949 a encomenda de textos em que
militantes famosos relatam o dia em que conheceram os grandes lderes comunistas.
Esta parece ser uma prtica no exclusiva da imprensa comunista brasileira, pois na
edio de 06 de novembro de 1948 temos a traduo de um texto em que Gorki relata a
primeira vez em que assistiu a um discurso de Lnin194. Os relatos brasileiros tambm
comeam a ser produzidos. Primeiro, na edio comemorativa do 69 aniversario de
Stalin, encontramos o texto Como vi Stalin pela primeira vez, escrito por Astrojildo
Pereira195 e, depois, na edio de 1 de janeiro de 1949, temos o primeiro desta srie de
textos em que Prestes a figura central, com o texto Primeiro encontro com Prestes,
de Aydano do Couto Ferraz196. Na edio seguinte, de 8 de janeiro, aparece o texto
Como vi Prestes pela Primeira vez de Rachel Gertel197.
A edio de 8 de janeiro continua a srie de textos focando a vida e os feitos de
Prestes. Encontramos, entre as homenagens, textos de estrangeiros como Prestes, lder
194
195
196
197
200
tempo, congregar esses dois temas e, ainda, apresentar a perspectiva de dois importantes
intelectuais comunistas Jorge Amado e Pablo Neruda:
Quando pela primeira vez nos abraamos em Paris foi do Brasil e de Prestes
que ele imediatamente me perguntou:
- E Prestes?
Disse depois, uma nota de carinho da voz cheia:
- Jamais poderei me esquecer daquela tarde no Pacaembu quando a multido
imensa aclamava Prestes. Vi ento um lder e seu povo estreitamente unidos, como
se fossem uma nica coisa, um nico ser. Quando penso nos destinos de nossa
Amrica recordo aquela tarde de vitria e vejo claro e minhas perspectivas so
amplas. Penso em nossos povos, em sua combatividade, em seu despertar poltico,
e penso em Prestes, o Bolvar dos nossos dias. Prestes o resumo e o smbolo dos
nossos povos, o grande comandante da batalha antiimperialista e desta vez ele a
dirige no do fundo de um crcere, mas do meio do povo. (...)
- Escrevi um livro de poemas: O Canto Geral. Narro nele a histria dos
nossos povos e dos nossos heris dos primeiros at Prestes que o herdeiro e
confirmador de todos eles. Quero que envies ao Brasil uma saudao minha ao
grande povo brasileiro que me acolheu to carinhosamente em 1945, aos escritores
e artistas que no ano passado me enviaram sua solidariedade quando eu estava
perseguido e a Prestes, nossos guia e general. Diga-lhes que muitas vezes, quando
mais difceis eram as minhas condies de foragido pensei no povo brasileiro e em
Prestes. Sentia-me ento fortalecido, sabia que o povo chileno no lutava sozinho.
Todos os povos o apoiavam.207
207
209
prxis dos partidos marxistas no mundo, mas que no foi largamente utilizada por
representar um momento crtico na relao do partido com a militncia:
210
MORAES, Joo Quartim de. A evoluo da conscincia poltica dos intelectuais brasileiros
in: MORAES, J.Q.. Histria do marxismo no Brasil. Vol. II (Influxos tericos). So Paulo: Editra da
Unicamp, 1995, pp. 48-49.
histria do partido, das pginas de seus peridicos e dos textos escritos por militantes
sobre Prestes.
Em substituio autocrtica, observa-se uma reescrita da histria que permita
coadunar o passado tenentista de Prestes, antes duramente criticado pelo partido, com a
construo do primeiro, e nico, heri comunista que teria atingido verdadeiramente
forte expresso popular. Mas essa readaptao se fez necessria justamente por ter sido
esse passado tenentista que granjeou a ateno e simpatia de parcelas variadas da
populao brasileira para o Cavaleiro da Esperana.
Prestes j havia sido consagrado heri pela grande imprensa antes de entrar, via
Moscou, para o Partido Comunista do Brasil. J trouxe consigo um enorme capital
simblico que foi devidamente reaproveitado, e aumentado, pelo partido no sentido de
construo de um nome que permitisse a confluncia da simpatia popular para o PCB.
Ainda sobre as necessidades de reorientao da linha poltica partidria,
interessante reparar que, nas edies pesquisadas de A classe operria, apenas um
exerccio de autocrtica pode ser claramente verificado. Este se deu por ocasio do
Manifesto de agosto de 1950, quando o partido, em decorrncia dos reflexos da guerra
fria em territrio nacional, abre mo da estratgia anteriormente adotada de tornar-se
um grande partido de massas atravs da construo de amplas alianas de classe, para
apoiar a interveno armada.
O manifesto de agosto ser amplamente divulgado e discutido nas pginas de A
classe operria, havendo grande destaque para a autocrtica de que a opo anterior, de
priorizar tornar-se um grande partido de massas, teria sido um erro de anlise.
Nas outras ocasies em que reviu sua linha de ao, como quando transitou
rapidamente entre a Frente Popular e a Insurreio armada em 1935, ou quando optou
pela defesa da ordem no perodo da legalidade, a partir de 1945, percebe-se claramente
que a readaptao da linha poltica se deu de maneira fluida e sutil e no a partir da
elaborao de uma autocrtica sobre posicionamentos e prticas anteriores.
humanos. Todos aqueles que no fossem construdos desta fibra to rara e inquebrvel.
De to imaculado e firme, este Prestes de Amado parece mais um heri ficcional.
O livro comea com uma explicao poltica. No prefcio edio brasileira, de
maio de 1945, Jorge Amado defende a poltica de aliana adotada pelo PCB, na
formao de uma fora democrtica antifascista e a poltica do no enfrentamento. O
livro, que havia sido publicado primeiramente na Argentina e em seguida em outros
pases da Amrica Latina estava proibido no Brasil apresentado da seguinte maneira
ao pblico brasileiro no prefcio da 1 edio brasileira: na luta contra o Estado Novo,
mas principalmente contra o fascismo, este livro foi uma arma. (...) este um livro
poltico, escrito para a campanha da anistia, para a liberdade de Prestes.213
No entanto, as circunstncias mudaram entre as publicaes argentina e
brasileira Jorge Amado parece querer deixar claras as reorientaes comunistas: neste
mesmo prefcio, justifica a mudana drstica de sua orientao, de adversrio veemente
do Estado Novo para aliado de Getlio Vargas. Segundo Amado, se antes havia um
alinhamento do Governo Vargas a uma matriz ditatorial e fascista, a partir do momento
da entrada do Brasil na Guerra, ao lado dos aliados, teria havido a necessidade de
readaptao da esquerda frente a um novo cenrio: luta internacional antifascista e
garantia da consolidao democrtica.
So necessrios, ao autor, oito pargrafos para justificar a transposio da figura
de Vargas de inimigo das foras democrticas para base de sustentao destas mesmas
foras. Nesses mesmos pargrafos o autor faz outro malabarismo para justificar que o
antigo algoz de seu biografado tenha assumido papel de baluarte na luta antifascista.
Amado tenta demonstrar que seu papel como defensor de um sistema mais justo
o leva a, dadas as circunstncias histricas, reavaliar suas posies anteriores:
213
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p.4.
214
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p.10.
215
Idem, ibdem, p.15.
AMADO, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p. 25
217
Idem ibdem, pp.25-26
Prestes ainda menino, quando era aluno do colgio interno, e afirma que desde ento
nutriu profundo respeito por esse nome que passou identificar esperana. Respeito que
s teria aumentado quando foi seu soldado na Aliana Nacional Libertadora. A idia
do livro teria surgido em 1938, mas sua concretizao no foi imediata:
Realizo hoje, feliz de ter cabido a mim falar sobre o maior dos homens do
meu pas. (...) Disse uma vez que uma coisa me ligava poderosamente a Castro
Alves e que por isso escrevia sem medo a sua biografia: A fidelidade ao meu povo,
s suas lutas e aos meus ideais. Repito isso em referncia a Prestes.
Como ele, tenho sido fiel ao meu povo. E essa fidelidade que me leva
hoje a escrever. (...) Um escritor do povo falando sobre um lder do povo tem
sempre a certeza de que far uma obra til. Sei que desse livro que inicio a figura
de Prestes saltar ligeira. o que me importa.218
(...) Esse no um e nem pretende ser um livro frio. No analiso uma figura
distante no tempo e distante na minha afeio. Nunca trataria de uma figura que
no amasse. No, desse livro que inicio, a figura de Prestes saltar inteira. que
escrito com paixo, sobre uma figura amada. E, quanto ao equilbrio e a
218
AMADO, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p.26.
219
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p.29.
220
Idem, ibdem, p.196.
223
O que verificamos, que, dentro de uma poltica partidria que priorizava para a
rea cultural o realismo socialista, tornou-se prtica corriqueira a participao dos
intelectuais do partido como construtores de uma viso idealizada de Prestes. Como
militantes e vedetes do PCB, Amado e Ramos no se furtaram tarefa.
Mas os esforos empreendidos por um e por outro no foram proporcionais. E
isso parece indicar a organicidade ou o lugar que cada um deles ocupou na mquina
partidria. Enquanto Graciliano fez o que quase todos os outros intelectuais comunistas
fizerem, ou seja, a redao de pequenos textos em homenagem ao cavaleiro da
esperana, para serem publicados em datas comemorativas; Jorge Amado parece ter
lidado com um outro grau de comprometimento, tendo sido o responsvel pela escrita
da biografia de Prestes.
Poderemos, nos prximos captulos, verificar esse grau de organicidade de
nossos dois escritores no partido a partir da observao das orientaes do PCB para a
rea cultural em suas obras e, no caso especfico das dcadas de 1940 e 1950 na
aplicao dos pressupostos do realismo socialista.
Captulo 2
224
BOSI, Alfredo. Historia concisa da literatura brasileira. So Paulo: Cultrix. 1977( 2 Ed, 7)
p.433.
225
Ainda segundo Alfredo Bosi, Outros escritores que tambm podem ser agrupados dentro desta
gerao so Jose Lins do Rego e Raquel de Queiroz.
226
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957.
227
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957.
228
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957.
229
AMADO, Jorge. Jubiab. 28 ed. So Paulo: Martins, s.d.
230
AMADO, Jorge Mar Morto. 54 ed. Rio de Janeiro: Record, 1982.
231
AMADO, Jorge. Capites da Areia. Rio de Janeiro: 1991
Mesmo que tenha sido percebido por Jorge Amado como um territrio restrito e
reduzido, Alessandra El Far destaca a importncia das transformaes ocorridas neste
cenrio do incio sculo XX, relacionando o aparecimento de um verdadeiro mercado
editorial e de novos escritores:
Pensar a questo dos direitos autorais se torna, portanto, imperativo para que se
processe a compreenso do mercado editorial brasileiro e a profissionalizao do
escritor. Desde finais do sculo XIX vrios intelectuais comeam a se manifestar no
sentido de criao de uma lei de direitos autorais que garantisse como obrigatrio o seu
pagamento. A importncia desta questo aparecer, depois, como um dos focos da
Associao Brasileira de Escritores, que discutiremos no prximo captulo.
A importncia da compreenso da dificuldade financeira de sobrevivncia a
partir da atividade literria, strictu sensu, ajuda a entender a esmagadora quantidade de
literatos que continuavam a desempenhar outras atividades profissionais, alm de
dedicarem-se s letras. Essa dificuldade de pensar a literatura como profisso,
persistente mesmo depois da sensvel melhora do mercado editorial na dcada de 1930,
foi sentida de formas bastante distintas por nossos autores, como tentaremos investigar
adiante.
Outra transformao interessante naquela primeira metade de sculo a
influncia de transformaes de mbito internacional que colocam a questo das classes
trabalhadoras, em geral, e do comunismo, em especfico, na ordem do dia. No Brasil,
no incio da dcada de 1930, o PCB passa a ter mais participao e maior visibilidade
nas lutas sociais desde que fora criado em 1922.
Alm disso, surgem novas editoras, muitas delas com feio nitidamente
partidria, a exemplo da Calvino, da Pax, da Unitas e da Cultura. O mercado abastecido
243
Velasques, Muza Clara Chaves. Homens de letras no Rio de Janeiro dos anos 30 e 40. Niteri,
2000. Tese de doutorado, UFF, pp.162-163.
244
Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN,
1996. p. 27.
245
Idem, ibdem, p.29.
246
Idem, ibdem, pp. 27-28.
O pas do carnaval
No ano de 1930, nem Graciliano nem Jorge haviam comeado a publicar.
Graciliano Ramos havia acabado de se transferir para Macei, onde assumiria o cargo
de diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, no dia 31 de maio, logo aps renunciar ao
cargo de prefeito de Palmeira dos ndios248. Jorge Amado deixava Salvador e se dirigia
ao Rio de Janeiro, onde cursaria a Faculdade de Direito a partir do ano de 1931. Neste
mesmo tempo, ambos publicam textos esparsos na imprensa, Graciliano, principalmente
no Jornal de Alagoas, com o pseudnimo Lucio Guedes; e Jorge em publicaes de
Salvador e do Rio.
At o final do ano de 1931, Graciliano Ramos continua com seu emprego
pblico como Diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, cargo que ocupa at o dia 29 de
dezembro, quando se demite. Para Jorge Amado, entretanto, o ano de 1931 seria mais
profcuo. o ano de sua estria como romancista. Seu primeiro livro, O pas do
247
Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN,
1996, p.28.
248
Dois Relatrios escritos pelo ento Prefeito ao governador j haviam colocado o nome de
Graciliano em certo destaque no mundo das letras, aps sua leitura pelo poeta e editor Augusto F.
Schmidt.
249
lavoura agro-exportadora, enviam seus filhos para a Europa, de onde voltam doutores
- mdicos, advogados ou engenheiros.
Depois de passar anos na Europa, com farta mesada enviada pelos pais, esses
jovens esto completamente desconectados no s da realidade brasileira, como tambm
das engrenagens que permitiram a manuteno de sua vida de bon vivant no velho
continente. Essa desconexo faz com que a viso que produzem sobre o Brasil, quando
so obrigados a retornar e a exibir o investimento feito pelos pais (ou seja, retornar
como doutores europeus, se casar, tocar os negcios da famlia e, se possvel, conseguir
um cargo legislativo para brilhar na alta sociedade como um homem completo, culto e
refinado), seja uma viso pejorativa do povo, dos hbitos e da cultura brasileiros.
Jorge Amado introduz neste seu primeiro livro uma discusso sobre a poltica
brasileira no incio do sculo XX. Paulo Rigger, como representante de uma exclusiva e
selecionada juventude, no consegue entender o funcionamento da poltica no Brasil,
que lida de maneira pejorativa, sempre avaliada em oposio ao parmetro europeu.
Protagonista do romance e representante desta juventude que o autor critica, Rigger
desembarca no Brasil no momento de profunda agitao poltica que marcou a chegada
de Vargas ao poder:
Chegara Bahia num dia de grande animao. No mesmo navio que ele,
viajaram alguns oposicionistas que iam em caravana de propaganda eleitoral fazer
discursos no norte. () acompanhava-o grande massa popular. que entre os
caravaneiros, vinha um deputado considerado o maior orador do pas. E o brasileiro
d a vida por uns tropos de retrica. () No alto da ladeira da Montanha, a
multido parou pela sexta vez. Um bbado fazia um discurso, esforando-se por
equilibrar-se. (Mas que sacrifcio no faria pela Ptria?)
- Eu sou o orador da canalha das ruas! O orador dos mendigos, dos cegos
que pedem esmolas, dos aleijados (ampararam-no para no cair), da lama dos
esgotos, das prostitutas Pela minha boca, ilustres caravaneiros, sadam-vos os
prostbulos, os hospitais, a podrido das vielas
O maior orador do pas agradeceu, emocionado, a saudao dos cegos, dos
aleijados, das rameiras e da lama das ruas255
Esta passagem interessante de ser discutida por conta das posies posteriores
do autor sobre a participao popular na vida poltica. Nesta passagem de seu primeiro
255
Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, pp.39-40.
romance transparece uma viso sobre o clima de disputa poltica no final da Repblica
Velha que descreve um cenrio em que a populao parece envolvida apenas como
espectadora, mais interessada na parte do espetculo possibilitado pela presena de
clebre orador. E, o maior espetculo parece ser a fala de um bbado que, em nome das
putas e dos mendigos, sada um deputado da oposio. Mais adiante no romance, este
mesmo bbado, no incio do governo Vargas, reaparece, designado como Major,
fazendo outro discurso, agora condenando os revolucionrios de 1930256.
As crticas elaboradas por Jorge Amado em seu livro de estria se coadunam a
viso que nas letras se traduzem em uma decepo com a repblica. Jorge Amado seria
tributrio de uma tradio inaugurada junto mesmo com a repblica de analisar a
situao poltica e econmica brasileira com ceticismo. A leitura corrente feita por
muitos autores no incio do sculo XX seria a de que o incio da repblica no Brasil
teria sido marcado pela permanncia de estruturas do perodo imperial. Essa
permanncia pode ser vastamente observada na estrutura de poder que se apia ainda
nas mesmas elites:
256
[em um cartaz]Hoje GRANDE COMCIO Hoje / No terreiro O Major Carlos Frias falar
sobre o atual governo, fazendo a sua crtica. Discursos de alguns acadmicos pedindo a volta do Pas ao
regime constitucional. / Paulo Rigger espantou-se: / - Que povo! Fez outro dia uma revoluo e meses
depois quer combater essa revoluo! Que Carnaval! E aquele Major! Quando eu cheguei aqui, ele estava
saudando os caravaneiros em nome das prostitutas da Bahia. Hoje, ataca os revolucionrios. Isso mania
de fazer discurso Pas do Carnaval Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo:
Martins, 1957, p.107.
257
Bosi, Alfredo. As letras na Primeira Republica in: Fausto, Boris (dir.). Histria Geral Da
Civilizao Brasileira. Brasil republicano - v. 9: sociedade e instituies (1889-1930). Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2006. 8 ed, p. p.319
258
Algumas das obras mais vivas compostas no inicio do sculo elegeram por tema a distncia, ou
o difcil contato entre as diversas faixas do Brasil real, includa a oficial, que parece, s vezes, infra-real.
Cana de Graa Aranha, Triste fim de Policarpo Quaresma e Numa e a Ninfa de Lima Barreto, Madame
Pommery de Hilario Tacito formam constelao quando agrupadas pelo tema geral dos contrastes, que
exploram, entre fenmenos mveis at a dramaticidade e instituies que os ignoram soberbamente,
quando no os agridem de modo cego, irracional.(...). Bosi, Alfredo. As letras na Primeira Repblica
(cap. 2) In: Histria Geral Da Civilizao Brasileira. Brasil republicano - v. 9: sociedade e instituies
(1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. 8 Ed, p. 320.
259
Nas palavras do prprio Amado, que neste trecho refere-se a si prprio na terceira pessoa do
singular, Joo Ribeiro augurou-lhe xitos, prognosticou-lhe carreira brilhante na fico nacional.
Medeiros e Albuquerque (...) saudou O pas do carnaval com entusiasmo. Agripino Grieco (...) excedeuse nos elogios. In: Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 182.
de editor era bom de poesia, ruim de pagamento, a estria em livro custou-me parte
considervel das mesadas remetidas de Ilhus pelo coronel Joo Amado.260
Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, pp. 182-183.
No final deste captulo, mencionaremos mais uma vez este ponto.
262
Lwy, Michel (org.). O marxismo na Amrica Latina (uma antologia de 1909 at os dias
atuais). So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 1999, p.14.
263
Lwy, Michel (org.). O marxismo na Amrica Latina (uma antologia de 1909 at os dias
atuais). So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, , 1999, p.14-15.
Desde os ecos da revoluo de 1848, e da comuna de Paris de 1871. In: Moraes, Joo Quartim
de & Reis Filho, Daniel Arao. (orgs.) Histria do marxismo no Brasil Vol1: O impacto das
revolues. (2 ed. rev.). Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 59.
265
Idem, ibdem, p.96.
266
Idem ibdem, p. 97.
267
Idem ibdem, p. 97.
268
Desde os ecos da revoluo de 1848, e da comuna de Paris de 1871. In: Moraes, Joo Quartim
de & Reis Filho, Daniel Arao. (orgs.) Histria do marxismo no Brasil Vol1: O impacto das
revolues. (2 ed. rev.). Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 59, p. 100.
269
Idem, ibdem, p.101.
Astrogildo Pereira e Otvio Brando. Segundo Ricardo Costa270, essa nova linha
apresentava forte marca antiintelectualista.
Em coerncia com essa linha, pode-se resumir como caracterstica maior da
atuao do PCB na virada da dcada de 20 para a dcada de 30 do sculo XX, uma
poltica isolacionista que enxergava, como necessidade maior, o enfrentamento ao
imperialismo capitalista, cuja poltica ficou centrada na luta contra a guerra
imperialista e pela denncia da crise social271. A leitura hegemnica da Internacional
Comunista de que o terceiro perodo seria caracterizado por uma crise capitalista, o que
deveria acarretar o confronto direto de classes, tornando-se inviveis alianas com
camadas da burguesia, levaria o PCB a uma postura de isolamento poltico.
No ano de 1930, o Partido Comunista radicalizou seu discurso no sentido de
defender um embate direto entre burguesia e trabalhadores. Antes das eleies
presidenciais, lana candidatura prpria e defende a formao de um Bloco Operrio
Campons, legenda eleitoral que j lanara em 1928. Esta radicalizao pode ser
encontrada nas matrias do jornal A classe Operria, que passa a defender e a promover
as candidaturas do partido. Na matria a significao das eleies para o proletariado
serve para exemplificar o tom desta orientao:
Marques Rebelo, Jos Geraldo Vieira, Rachel de Queiroz, Cornlio Pena, Armando
Fontes e Lcio Cardoso entre outros. Segundo o autor baiano,
274
Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio Editora, 1992, pp.65-66.
Antes que os originais seguissem para Macei, seriam lidos por Jorge
Amado. No incio de 1933, Jorge partiria no pequeno navio Conde de Baependi
com destino a Macei, para conhecer Graciliano, to empolgado estava com o
romance. (...)
Eu queria comunicar de viva voz ao ex-prefeito de Palmeira dos ndios,
cujo nome no tinha qualquer ressonncia junto aos leitores e aos crticos, minha
admirao por Caets lembraria Jorge na poca com vinte anos. (...)
(...) Augusto Frederico Schmidt havia lhe pedido que convencesse
Graciliano a devolver Caets que prontamente iria para o prelo.
Em segredo, Jorge convenceria Heloisa a entregar-lhe os originais. E assim
o livro voltaria s mos de Schmidt, sem que Graciliano desconfiasse. Quando o
compl lhe foi revelado, j era tarde.
A Schimidt editora lanaria o romance em dezembro de 1933. Na
dedicatria, uma homenagem aos trs artfices da publicao: Jorge Amado,
Alberto Passos Guimares e Santa Rosa (autor da capa)275
275
Moraes, Dnis. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992.
276
Nesta mesma poca, publica, j sem a utilizao de pseudnimos, alguns textos no Jornal de
Alagoas.
277
Nesta crtica sobre o livro de crnicas e contos Feira desigual, de Dante Costa,
Jorge Amado faz algumas consideraes que podem servir como ponto de partida para a
discusso do prprio projeto, ou modelo, artstico adotado pelo autor no incio dos anos
1930. O primeiro ponto a ser destacado a importncia do olhar que o artista deve (ou
deveria) ter para com as diferenas sociais. Amado indica como ponto necessrio para a
281
Feira desigual In: Boletim de Ariel, Ano II - Setembro de 1933 n12, p.315
boa escrita que o autor equilibre a argcia de seu olhar para que no recaia nem em
deslumbramento de classe (no se deixando seduzir pela futilidade da elite); nem,
tampouco, numa viso caricatural ou muito distanciada sobre a realidade dos pobres.
O segundo ponto diz respeito recomendao para que o autor escreva sobre
uma realidade que realmente conhea. Ao recomendar que Dante Costa passe a fazer
romances sobre a pequena burguesia e que desista de tentar envolver, com uma s
braada, toda a tecitura social carioca, Jorge Amado parece indicar, como segredo para
que um autor produza uma escrita de qualidade, o exerccio do vnculo ntimo entre o
objeto da trama e a realidade conhecida e vivida pelo autor.
interessante atentarmos para o fato de que, neste comentrio, Jorge Amado
critique alguns aspectos que aparecem em seu prprio livro de estria, O pas do
Carnaval. As alteraes subseqentes na orientao das caractersticas do conjunto de
sua obra, provavelmente, sofreram alguma influncia do contato com os novos
escritores que comeam a transformar as feies do romance e, acreditamos, tambm
so resultantes do incio de sua militncia poltica no partido.
Em O pas do Carnaval, Jorge parece empregar o mesmo recurso que critica na
obra de estria de Dante da Costa: em seu primeiro livro, mesmo que de forma crtica,
tambm produziu um rpido e amplo painel das classes sociais que se cruzavam, na
virada dos anos vinte para os anos trinta, nas diversas esferas de sociabilidade da capital
baiana.
Para corroborar nossa leitura de que, j no ano de 1933, Jorge Amado havia
conquistado certa visibilidade nos meios literrios, sobretudo naqueles vinculados a
uma viso progressista, ou de esquerda, vale a pena atentar para o fato de que no mesmo
nmero do Boletim de Ariel, na pgina 317, encontramos uma extensa crtica que
Murilo Mendes escreveu sobre Cacau, seu segundo romance:
Parque industrial. Houve engano. uma reportagem impresionista, pequenoburguesa, feita por uma pessoa que est com a vontade de dar o salto mas no deu.
Assiste-se a entrada de fbrica, a sada de fbrica, a encontros do filho do grande
capitalista com a filha do operrio, etc. parece que para a autora o fim da revoluo
resolver a questo sexual.
Sobre o Parque industrial, propriamente, pouca coisa se fica sabendo.
J esse livro Cacau tem outra consistncia. O autor examina a vida dos
trabalhadores da fazenda de cacau com uma viso ampla do problema, e no
sacrifica o interesse humano do drama ao pitoresco. Do ponto de vista literrio
bem escrito, sem abusos de detalhes descritivos; os quadros da vida nas fazendas
so apresentados esquematicamente, tem movimento, naturalidade nos dilogos.
Os personagens tem bastante realidade, se bem que a filha do Coronel, l para o
final do livro d uns palpites que a gente fica pensando que o autor quis fazer
literatura.(...)
Com este livro entra Jorge Amado para o 1 time dos novos escritores
brasileiros.
Murilo Mendes282
Nota sobre Cacau in: Boletim de Ariel, Ano II - Setembro de 1933 n12, p.317.
Caets
Nesta mesma edio de dezembro de 1933, so feitas as primeiras menes, no
Boletim de Ariel, a Caets. Nesta edio, h uma resenha feita por Valdemar Cavalcanti
que avalia a obra de forma positiva. Este, em sua crtica, afirma j ter lido Caets h
trs anos (quando eu li Caets, h trs anos, senti uma sensao de caricatura:
caricatura de massa, com a grandeza natural da boa caricatura, mas tambm com as
desvantagens de seu sentido de deformao da realidade, apenas284). A segunda
meno ao livro aparece na pgina 81, em que aparece um fragmento de Caets, que
283
284
O Gororoba in: Boletim de Ariel, Ano III - dezembro de 1933 n3, p.71.
Boletim de Ariel, Ano III - dezembro de 1933 n3, p.73
Primeiro romance de Graciliano Ramos, Caets foi publicado inicialmente em 1933. Joo
Valrio, o personagem principal, introvertido e fantasioso, apaixona-se por Luisa, mulher de Adrio, dono
da firma comercial, onde trabalha. O caso amoroso denunciado por uma carta annima, levando o
marido trado ao suicdio. Arrependido, Joo Valrio, afasta-se de Luisa, continuando, porm, como scio
da firma. / 1 Edio: 1933 / ltima edio brasileira: 31 (2006) / Editado tambm Portugal, desde
1962. In: http://www.graciliano.com.br/obras_caetes.html
286
Relembrando o percurso que o levou da fazenda em que fora criado ao emprego como guarda
livros, Valrio identifica, desde j, o romance como forma de superar aquelas agruras: Deitei-me
vestido, s escuras diligenciei afastar aquela obsesso. Inutilmente. Ergui-me, procurei pelo tato o
comutador, sentei-me banca, tirei da gaveta o romance comeado. Li a ltima tira. Prosa chata,
imensamente chata, com erros. Fazia semanas que no metia ali uma palavra. Quanta dificuldade! E eu
que supus concluir aquilo em seis meses. Que estupidez capacitar-me de que a construo de um livro era
empreitada para mim! Iniciei a coisa depois que fiquei rfo, quando a Felcia me levou o dinheiro da
herana, precisei vender a casa, vender o gado, e Adrio me empregou no escritrio como guarda-livros.
Folha hoje, folha amanh, largos intervalos de embrutecimento e preguia um captulo desde aquele
tempo. In: Ramos, Graciliano, Caets. 7 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1965, p.84.
numa brochura de cem a duzentas pginas, cheias de lorotas em bom estilo, editada
no Ramalho.287
Ramos, Graciliano, Caets. 7 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1965, p.84.
Idem, ibdem, pp.109-110.
ficara amigo na poca em que o autor trabalhara como diretor da Imprensa Oficial de
Alagoas, e Jos Lins do Rego, amigo de longa data de Graciliano289.
estreantes uma anlise cida e cruel no apenas da realidade brasileira, mas, sobretudo,
uma viso de que a juventude que poderia representar a construo de um novo Brasil
continuaria a reproduzir os mesmos padres de comportamento e atitudes egostas das
geraes anteriores.
De qualquer forma, o romance de Ramos parece corresponder quele projeto
literrio de escrever sobre o que realmente se conhece, por vivncia, experincia, que
Jorge Amado cobra dos autores que analisa. Afinal, o cenrio da trama de Caets a
Palmeira dos ndios de Graciliano Ramos e o prprio Valrio reconhece, como vimos, a
impossibilidade de escrever sobre um grupo de ndios sobre o qual ele mal tinha ouvido
falar.
As obras de estria de Jorge e Graciliano ainda no apresentariam, no entanto,
uma viso que depois foi definida pelos crticos como romance social. So consideradas
obras que ainda tateiam na direo destas caractersticas, mas que j indicavam o
rompimento dos autores com a esttica anterior. Vale atentar para o fato de em nenhuma
das duas obras aparecer uma maior evidencia de aspectos que poderamos compreender
como uma interpenetrao de uma leitura marxista na criao artstica. Esses romances
so interessantes para serem analisados na busca de alguns aspectos como, por exemplo,
a questo da juventude. O que mais interessa, a partir deles, perceber como se deu a
entrada de nossos autores no fechado circuito artstico cultural do Brasil repblica, em
incios da dcada de 1930.
Cacau:
Uma significativa transformao j pode ser percebida no segundo livro de Jorge
Amado, Cacau290, que representa uma maior aproximao de sua obra de uma
290
Primeiro romance do ciclo do cacau, foi concludo em junho de 1933 e teve sua 1 edio
pela Ariel Editora, Rio de Janeiro, em agosto de 1934, com capa e ilustraes de Santa Rosa, 197 pginas
e tiragem de dois mil exemplares. A 2 edio de setembro do mesmo ano, com trs mil exemplares. A
partir de 1941, foi editado pela Livraria Martins Editora, So Paulo, com ilustraes de Santa Rosa,
integrando o primeiro tomo da coleo Obras Ilustradas de Jorge Amado, at a 30 edio, em 1975. /
Em volume separado, como era inicialmente, o romance passou depois a ser publicado sem as ilustraes
originais, mas reproduzindo a capa de Santa Rosa, pela Editora Record, Rio de Janeiro. 51 edio,
1998, a mais recente, pela Editora Record, com fixao de texto por Paloma Jorge Amado e Pedro
orientao comunista. Neste livro percebemos uma clara guinada esquerda em todos
os aspectos principais do romance, que pode ser constatada tanto na escolha do tema e
na construo de seu protagonista, quanto no desfecho da trama que envolve os
personagens.
No livro em que relata suas memrias, escrito na dcada de 1990, o autor afirma
que Cacau realmente representou uma virada em sua escrita. Essa virada relacionada
por ele ao conjunto de leituras que realizou depois da publicao de seu primeiro livro.
Depois de O pas do carnaval Jorge Amado escreveu o romance Ruy Barbosa n 2, que,
segundo o autor, seguia a mesma linha romanesca de influncia europia, debate
intelectual de idias (sic), bobageira291. Logo depois de ter terminado de escrever este
que seria seu segundo romance, dedicou-se leitura das obras mais em voga da poca:
Assim, segundo Amado, o contato com essa literatura, sobretudo o contato com
a produo do incio de uma literatura proletria sovitica, teria feito com que o
jovem autor abandonasse o romance j escrito e se debruasse sobre a vida dos
trabalhadores das fazendas de cacau. Essa identificao com os romances soviticos
faria com que Amado se interrogasse no incio do livro: Seria esse um romance
proletrio?.
O protagonista e narrador desta segunda trama de Jorge Amado , ao longo da
narrativa, chamado de Sergipano. Trabalhador alugado da fazenda de cacau
Costa, capa de Pedro Costa com ilustraes de Santa Rosa, sobrecapa e ilustrao de Santa Rosa em
vinhetas recuperadas por Pedro Costa, retrato do autor por Jordo de Oliveira, fotografia da sobrecapa de
Zlia Gattai. / Cacau foi o primeiro livro de Jorge Amado traduzido para o espanhol, em julho de 1935,
por Hctor F. Miri, escritor argentino. Teve tambm tradues em alemo, basco, coreano, dinamarqus,
francs, grego, holands, italiano, polons e russo, alm de ter sido publicado em edio portuguesa. / Em
1993, foi publicado pelo Jornallivros da UNESCO e distribudo como suplemento nos principais jornais
do mundo, em edio bilnge (portugus e espanhol), traduo de Estela dos Santos, com ilustrao de
Caryb. In: http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/cacau2.htm#historico
291
Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p. 182.
292
Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, pp. 182-183.
Fraternidade293, que gozou de infncia abastada como filho do dono de uma fbrica. Ao
ser espoliado de sua herana, impelido pela pobreza a tentar a vida nas fazendas de
cacau de Ilhus. A infncia de Sergipano, cujo nome de batismo Jos Cordeiro, foi
radicalmente distinta da dos outros trabalhadores da Fazenda Fraternidade. Sergipano
o primeiro dos muitos heris proletrios da obra do autor: no final da narrativa,
Sergipano j no mais um trabalhador alugado das fazendas de cacau, tipgrafo no
Rio de Janeiro, e, o mais importante, comunista.294
Um aspecto importante deste romance diz respeito ao nome do narrador.
Durante toda a narrativa seu nome no mencionado, sendo sempre referido como
Sergipano. Essa ausncia ao nome prprio parece conduzir o leitor percepo do
processo de despersonalizao vivida pelo protagonista: como se este, ao adquirir o
status de alugado, deixasse de ter direito a uma identidade prpria, passando a ser
mais um dos vrios sergipanos que iam tentar a sorte nas fazendas de cacau. Sua
histria era a histria de muitos. A apresentao formal do narrador s acontece no final
da narrativa, no antepenltimo captulo, quando explica aos leitores de onde surgiu a
idia do livro:
293
Parece ser um recurso de estilo utilizar, para nomear a fazenda em que o protagonista ir
experienciar as maiores exploraes, a palavra Fraternidade...
294
Seu pai possua um fbrica, herana de famlia, propiciando ao narrador conforto em seus
primeiros anos de vida e acesso educao. Seu pai, no entanto, no representava o modelo clssico do
burgus: Papai vivia inteiramente para ns e para o seu velho piano. Na fbrica conversava com os
operrios, ouvia as suas queixas, e sanava os seus males quanto possvel. A verdade que iam vivendo
em boa harmonia ele e os operrios, a fbrica em relativa prosperidade.
Depois da morte do pai, o narrador, sua a me e sua irm perdem o direito herana, roubada
pelo tio. Na pobreza, encara Ilhus como possibilidade de enriquecimento, dando incio trama principal
do romance:Saltei em Ilhus com dezesseis mil e quatrocentos, uma pequena trouxa de roupa e uma
grande esperana no sei mesmo de que Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo:
Martins, 1957, p.157.
295
Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, pp.227-228.
Com este romance, Jorge Amado inicia uma fase de sua obra que se estenderia
at Subterrneos da liberdade. Nesta nova fase, passa a retratar, prioritariamente, a
classe trabalhadora brasileira, seja ela do campo ou da cidade296. Em Cacau, h uma
clara denncia da explorao dos trabalhadores da fazenda Fraternidade servindo como
uma denncia maior da explorao do sistema capitalista como um todo. H, ainda,
Sergipano como exemplo de protagonista trabalhador que liberta-se ao descobrir e
ingressar no Partido Comunista, e que passa a fazer de sua histria instrumento de luta
para libertao de outros trabalhadores.
296
Ainda que em obras como o ABC de Castro Alves , Mar morto ou O amor do soldado a este
tipo de abordagem da classe no esteja em evidncia.
297
O mesmo tipo de enredo pode ser encontrado, por exemplo, em Jubiab e Capites da areia.
298
Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN,
1996, p. 30.
So Bernardo
No ano de 1934, mais uma vez, temos a publicao de um romance de cada um
de nossos autores. Jorge Amado lana Suor299 e Graciliano Ramos lana So
Bernardo300.
A publicao de So Bernardo301 no representou para Graciliano a mesma
epopia que havia sido necessria para a publicao de Caets. Segundo Dnis de
Moraes,
De qualquer forma, a pequena tiragem inicial e as poucas edies novas que teve
enquanto Graciliano estava vivo indicam que na poca ele ainda no seria avaliado
como ser anos depois, como um marco, na produo do autor e na literatura brasileira,
por estabelecer uma superao completa das descries naturalistas em direo a um
romance profundamente realista, para usar os termos de Carlos Nelson Coutinho, para
quem Graciliano evoluiu do naturalismo pessimista ao realismo crtico e humanista,
com So Bernardo.303
O narrador de So Bernardo Paulo Honrio que, na poca em que se passa a
trama, tem 50 anos. O personagem, que teve infncia miservel, fazendeiro que
incorpora todas as caractersticas de um proprietrio rural da Repblica Velha: mete-se
em poltica para conseguir benefcios do Governo, explora seus empregados e
obcecado pelo acmulo de dinheiro.
A narrativa que Graciliano Ramos oferece ao leitor em seu segundo romance
construda como se fosse uma auto-biografia do narrador304. Logo nos primeiros
pargrafos, o narrador anuncia que havia pensado em escrever o livro a partir da diviso
do trabalho, encarregando seus conhecidos de diferentes partes do processo de escrita e
produo. No entanto, mais adiante, malograda essa tentativa, a tarefa acaba sendo
desempenhada apenas pelo prprio Paulo Honrio:
302
A histria de Paulo Honrio, um homem simples que, movido por uma ambio sem limites,
acaba se transformando em um grande fazendeiro do serto de Alagoas e casa-se com Madalena para
conseguir um herdeiro. Incapaz de entender a forma humanitria pela qual a mulher v o mundo, ele tenta
anul-la com seu autoritarismo. Com este personagem, Graciliano Ramos traa o perfil da vida e do
carter de um homem rude e egosta, do jogo de poder e do vazio da solido, em que no h espao nem
para a amizade, nem para o amor. / 1 Edio: 1934 / ltima edio brasileira: 88 (2009) / Editado
tambm na Frana, desde 1936 / em Portugal, desde 1959 / na Alemanha, desde 1960 / na Finlndia,
desde 1961 / na Hungria, desde 1962 / na Inglaterra, desde 1975 / na Venezuela, desde 1980 / na Itlia,
desde 1993 / na Holanda, desde 1996 In: http://www.graciliano.com.br/obras_sbernardo.html
303
Coutinho, Carlos Nelson. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 151.
304
Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio Editora, 1992, p.92.
305
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p.30.
Idem, ibdem, pp.33-34.
307
Em linhas gerais, Paulo Honrio filho de pais desconhecidos que sem saber nem mesmo a
data exata de seu aniversrio, teve infncia miservel e de poucas recordaes: foi ajudante de cego e
depois foi criado por preta velha que vendia doces. A mesma velha Margarida que depois acolhe em So
Bernardo. Como trabalhador alugado de fazenda, aos 18 anos, por causa de uma mulher, esfaqueia um
homem e vai preso. Na cadeia aprende a ler. Sai de l com a vontade de ganhar dinheiro e constituir
306
fosse realmente respeitada. Esta ambio, que fez com que passasse por cima de tudo e
de todos, fez de Paulo Honrio uma mquina programada para o acmulo, fim e meio
por si s, de sua vida.
A trajetria apresentada, que resulta no estabelecimento de Paulo Honrio como
um dos homens mais poderosos da regio, parece indicar que Graciliano identificava na
situao de proprietrio, em si, a fonte de um comportamento cruel e explorador que
resulta diretamente da posio de classe. Mesmo que vindo da mais profunda pobreza,
Paulo Honrio no foge ao script daquele que seria o comportamento padro de todos
os proprietrios. O comportamento de Paulo Honrio com seus empregados parece
legitimar a leitura de que a posio social que ocupa no modo de produo que seria
responsvel por tornar o homem cruel.
309
310
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp.63-64
Idem, ibdem, pp.84-85.
311
189.
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp.188-
Mas ser que essa vida idealizada seria possvel ou o narrador seria mais um
bicho (na sua prpria metfora), como os outros que lhe servem (sem possibilidades de
transformao, apenas a reproduo dos mesmos gestos de sobrevivncia)?
A revoluo no representaria nada para ele. Ser que tambm no representaria
nada para a maior parte dos trabalhadores rurais descritos pelo narrador?
Ele, no fundo, idealiza a vida miservel de trabalhadores ignorantes como sendo
mais feliz e menos problematizada do que a sua, esquecendo-se de todas as dificuldades
que ele mesmo j viveu quando era explorado e de todas as crueldades que praticou
quando se tornou um explorador.
So Bernardo, recepes:
As crticas a So Bernardo a que tivemos acesso so elogiosas, ressaltando o
domnio do estilo e a capacidade do autor em construir personagens densos. Dentre os
artigos que foram publicados na poca, Dnis de Moraes destaca os textos de Agripino
Grieco (para quem ele um notvel romancista), Otavio Tarqunio de Sousa (para
quem Graciliano, como Machado de Assis, apresentava a rara qualidade de construir
personagens humanos e autnticos, sendo So Bernardo o livro de um escritor
perfeitamente senhor de seu ofcio), e Carlos Lacerda (para quem, em So Bernardo,
tudo est quente, pulando nas mos do romancista, pronto para saltar e ganhar
mundo, impulsionado pela fora da verdade que encerra)313
312
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p.192
Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio Editora, 1992, pp.92-93.
313
Suor:
Segundo Eduardo de Assis Duarte, Jorge Amado teria feito o primeiro rascunho
de Suor em 1928, quando morava em um casaro do Pelourinho315. Suor316 representa a
agudizao de sua escolha por retratar temas e personagens da classe trabalhadora e por
enfocar o tema da explorao capitalista e da organizao comunista. Em Suor, Jorge
Amado atribui igual destaque aos vrios habitantes do cortio onde se desenvolve a
trama:
Visto da rua o prdio no parecia to grande. Ningum daria nada por ele.
verdade que se viam as filas de janelas at o quarto andar. Talvez fosse a tinta
desbotada que tirasse a impresso de enormidade. Parecia um velho sobrado como
314
Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio Editora, 1992, p.93.
315
Segundo Duarte, A criao do romance teve origem na vivncia do prprio autor, que, em 1928,
com dezesseis anos de idade, residiu num cmodo de um dos sobrados coloniais do Largo do Pelourinho,
Salvador, Bahia. In: Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record;
Natal: UFRN, 1996. p.23.
316
Terminado de escrever em maro de 1934, no Rio de Janeiro, o romance teve sua 1 edio pela
Ariel Editora, Rio de Janeiro, em agosto de 1934, com 211 pginas e capa de Santa Rosa. / A partir de
1941 e at a 29 edio, 1974, ilustrada por Mrio Cravo Jnior, foi publicado pela Livraria Martins
Editora, So Paulo, completando o trio do primeiro tomo das Obras Ilustradas de Jorge Amado, volume
III. Como as antigas edies, em separado, parte da coleo, a 30 edio, com as mesmas ilustraes e
reproduzindo a capa de Santa Rosa, retrato do autor por Carlos Bastos e foto do autor por Zlia Gattai, foi
lanada em convnio com a Livraria Martins Editora, So Paulo, pela Editora Record, Rio de Janeiro,
com 164 pginas, em agosto de 1975. / A 49 edio, 1998, 17 pela Editora Record, a mais recente. /
Em 1989, foi alvo de comemoraes pelos 55 anos de publicao com o seminrio A presena do espao
geogrfico na criao ficcional brasileira contempornea, organizado pela Fundao Casa de Jorge
Amado. / Foi publicado em Portugal e traduzido para o alemo, espanhol, francs, ingls, italiano,
polons, russo e tcheco. In: http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/suor2.htm#historico
317
318
Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, p.244.
Idem, ibdem, p.244.
Em Suor o autor opta por descrever painel de diversos personagens que podem
ser observados nos cortios das grandes cidades, um mosaico formado por empregados,
prostitutas, ladres, trabalhadores, vagabundos, todos eles representando tipos
diferentes. Todos diferentes, mas todos iguais na explorao que sofrem e na
expropriao de formas dignas de sobrevivncia a que so submetidos.
Essa opo parece revelar a tentativa de provar uma tese, a de que no importa
se prostituta ou camareira, trabalhador de fbrica ou ladro, todas essas pessoas
319
Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN,
1996, p.72.
320
Idem, ibdem, pp.69-70.
representam o lado mais duro do sistema capitalista e todas sentem na pele, estando ou
no inseridas no sistema formal de trabalho, as privaes dos direitos mais bsicos.
Sobre os nossos autores, tece os seguintes comentrios: / Sobre Graciliano: / e a bem dizer, o
heri desses romances passou a ser o norte, quando s o homem podia ser esse heri, como na verdade s
ele o nos romances verdadeiramente certos que nos vieram do norte: Os Corumba, A Bagaceira, Joo
Miguel e alguns poucos outros, entre os quais no possvel deixar de contar alguns mais recentes como
Bangu e So Bernardo (que no me agradam por muitos lados, mas que inegavelmente devem ser
considerados romances certos). / Sobre Jorge Amado: / Falou-se muito na obra do Sr. Jos Amrico de
Lima e da do Sr. Jorge Amado, falou-se at nas estrias estonteantes dos Srs. Clovis Amorim e Joo
Cordeiro. Todo mundo achou que estava na obrigao de saudar o aparecimento de Bangu. Mas
ningum leu O intil de cada um e Em surdina foi englobado no mesmo esquecimento de Maria Luiza,
exatamente como se se tratassem de romances da mesma qualidade...In:Boletim de Ariel, Rio de Janeiro:
Ano IV julho de 1935 n10, p.263-264.
que passa a incorporar a idia de uma frente nica contra um inimigo comum, o
fascismo.
No Brasil, a fraqueza das correntes socialistas e o crescente prestgio da URSS e
de Stalin fizeram com que o PCB se configurasse como o plo aglutinador da luta
antifascista em territrio nacional. importante notar, neste contexto, como a criao da
Aliana Nacional Libertadora, fundada em 1935, e contando com hegemonia comunista,
pode traduzir essa nova orientao. Programaticamente, a ANL se apresentava como
organizao de luta antifascismo e antiimperialismo, aglutinando simpatias e
participao de vrios setores da sociedade322.
Sobre a conjuntura nacional, e sobre a atuao e o papel da ANL, o grupo de
intelectuais de Macei ao qual Graciliano estava prximo, tinha opinies similares. O
grupo costumava se reunir no bar do Cupertino, chamado bar Central e discutir os
rumos da poltica e das letras brasileiras323:
322
A ANL foi capaz de ampliar a influncia do PCB no movimento operrio e tambm de romper
a barreira do mundo do trabalho, extravasando-se para o mundo da cultura e para as camadas mdias.
In:Moraes, Joo Quartim de & REIS FILHO, Daniel Arao. (orgs.) Histria do marxismo no Brasil
Vol1: O impacto das revolues. (2 ed. rev.). Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p.111.
323
Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio Editora, 1992, p.67.
324
Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de Janeiro: Jos
Olympio Editora, 1992, p.101.
Com a ANL posta na ilegalidade por Vargas, sob a acusao de ser instrumento
do comunismo internacional, d-se o afastamento de grande parte de liberais, de
simpatizantes da esquerda e de socialistas de sua organizao. Esta quebra da frente
popular e da flexibilizao da postura isolacionista do PCB leva os comunistas a
apostarem suas fichas na via insurrecional.
Enquanto isso, Amado que em 1935 fora contratado como assistente do
Secretrio de Educao do Distrito Federal, Ansio Teixeira, com ordenado de um conto
de ris, perde seu primeiro emprego pblico em conseqncia do endurecimento do
regime. Depois de iniciado o trabalho, com menos de um ms, sua carreira no
funcionalismo interrompida pela quartelada de novembro, que resulta na fuga do
secretrio para So Paulo e faz com que Amado, j comunista, tambm fuja s pressas
da Secretaria.
Jubiab
Se o ano de 1935 no contaria com nenhum novo romance de Graciliano Ramos,
que continua atuando como diretor da Instruo Pblica de Macei, Jorge Amado, a
325
Moraes descreve o grupo do qual fazia parte Graciliano em Macei da seguinte maneira:
Jornalistas, poetas, romancistas e professores, quase todos seguiriam carreira literria: Aurlio Buarque
de Holanda, Alberto Passos Guimares, Valdemar Cavalcanti, Jorge de Lima, Aloysio Branco, Carlos
Paurlio, Manuel Digues Jnior, Mrio Brando, Rui Palmeira, Raul Lima, Theo Brando, Jos Auto.
Sem falar em Jos Lins do Rego, que viera trabalhar em Alagoas, e Santa Rosa. O grupo se aglutinaria
a partir de uma srie de eventos ltero-culturais, como a Academia dos Dez Unidos, bem-humorada
pardia da Academia Alagoana de Letras; a Festa da Arte Nova, uma espcie de Semana de Arte
Moderna em um s dia; e o Grmio Literrio Guimares Passos, reduto de poetas e prosadores com
menos de 25 anos in: Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano Ramos). Rio de
Janeiro: Jos Olympio Editora, 1992, pp.65-66.
despeito das transformaes polticas, no diminui sua mdia de um novo romance por
ano e, em 1935, publica Jubiab326, cujo protagonista o negro Antnio Balduno.
Balduno, rfo criado pela tia no morro do Capa Nego, em Salvador, em sua
primeira infncia, teve existncia pobre mas conhecia uma estrutura familiar estvel
com a tia. Sua vida muda quando sua tia internada em um hospcio e ele acolhido
como criado na casa de um rico comendador, na Travessa Zumbi dos Palmares, onde
permanece at os 15 anos. Depois vira mendigo no Pelourinho, malandro errante pelas
ruas da cidade na idade adulta, plantador de tabaco, lutador de boxe e compositor de
modinhas, at conhecer a redeno final como lder proletrio. Seu sonho, desde
criana, era ter sua vida cantada em um ABC, como os que louvavam os grandes
cangaceiros do serto. Depois de sua morte, como heri operrio, tem seu sonho
realizado no seguinte poema popular:
(O ABC de Antnio Beduno, trazendo na capa vermelha um retrato do tempo em que o negro
era jogador de boxe, vendido no cais, nos saveiros, nas feiras, no Mercado Modelo, nos botequins, pelo
preo de duzentos ris, a camponeses moos, marinheiros alvos, a jovens carregadores do cais do porto, a
mulheres que amam os camponeses e os marinheiros e a negros tatuados, de largo sorriso, que trazem ou
ncora, ou um corao e um nome gravado no peito) In: Amado, Jorge. Jubiab. 28 ed. So Paulo:
Martins, s.d, p. 306.
328
De uma maneira geral, a trajetria de Balduno da seguinte forma apresentada:
rfo, mendigo, malandro capoeira, boxeador, sambista, artista de circo, poeta de ABC. Baldo
quase sempre est em pblico: junto aos moleques do morro, chefiando pivetes nas ruas, expondo-se nos
ringues e picadeiros, envolvendo-se em pancadarias nas feiras, encantando as mulheres com sua voz. E mais
tarde, no decorrer da greve, participando dos piquetes, discursando nas assemblias , tentando esvaziar a
macumba do pai-de-santo Jubiab. In: Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de
Janeiro: Record; Natal: UFRN, 1996. pp.77-78.
329
Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN,
1996. p.85.
330
Duarte, Eduardo de Assis. Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal: UFRN,
1996. P. 77.
Jorge Amado e Jos Lins do Rgo marcham juntos, tanto que no Jubiab
se poderia mudar o nome do romance para Antonio Balduino. O negro possui uma
fora de expresso tal que chega a comover. (...) Aquelas pginas sobre os
vagabundos nas ruas da Bahia so inditas nas letras brasileiras. Emocionam. Donos a segurana que Jorge Amado tem um acentuado pendor pela fixao desses
sofrimentos annimos e silenciosos que constituem a prpria existncia dos
abandonados da sorte. (...)331
problemtica social garantiram para esse grupo uma maior circulao de seus escritos e
uma maior projeo social, extrapolando os limites de escritores nortistas para
consolidarem-se como os novos escritores.
Nossa hiptese que esta perspectiva mais engajada, que em muitos deles se
traduzia em uma percepo de esquerda, respondeu, tambm, por uma maior projeo
de suas obras em um contexto poltico-cultural que favorecia a reviso de
representaes de identidade nacional firmadas anteriormente, e tal situao teria
contribudo para que esses escritores, sobretudo Jorge Amado, conquistassem maior
visibilidade nacional.
dava segurana e permitiu a Jos Olympio investir com coragem e viso nos autores
nacionais, a Casa foi ptria e famlia de mais de uma gerao de literatos poetas,
ficcionistas, cronistas, ensastas do modernismo aos jovens dos anos quarenta: o
romance de trinta, os estudos brasileiros. Louve-se ademais a iseno poltica, plumitivos
das ideologias mais opostas, esquerda e direita, comunas e integralistas, Jos Olympio
no fazia distino: livro bom, ele editava333
Jos Lins logo depois seria transferido para o Rio de Janeiro e acabaria como
intermedirio nos entendimentos entre Graciliano e o editor Jos Olympio para a
publicao de Angstia. Vindo de So Paulo, Jos Olympio acabara de instalar no Rio a
sua prestigiosa editora.
Corno planejava lanar o romance ainda em 1935, aproveitando a projeo de
Caets e So Bernardo, Jos Olympio recorreria a Jorge Amado, que trabalhava no setor de
publicidade da editora, pedindo-lhe que intercedesse para apressar a entrega dos originais.
Jorge despacharia a carta para Macei: Botaremos no prelo imediatamente. Sair logo.
verdade que voc j acabou o livro? Se , mande por avio. para esse seu velho amigo
escrever dizendo o que o Angstia, contando sua vida e seus planos.
Para um arteso como Graciliano, a exigidade de prazo se constitua em barreira
intransponvel. Jos Olympio teria que esperar seis meses at que o romance lhe pousasse
nas mos.334
Angstia
Finalmente publicado, o penltimo dos trs romances de Graciliano Ramos
analisados neste captulo, Angstia335, tem como narrador e protagonista Lus da Silva.
Com 35 anos no momento da narrativa, Lus teve uma infncia remediada, em um
333
pequeno municpio sertanejo: neto de prspero fazendeiro que dissipou a fortuna e filho
de pai indolente que agravou ainda mais a decadncia econmica da famlia, passa seus
primeiros anos de vida nas runas da fazenda da famlia e, depois da morte do av, vai
viver com o pai, agora proprietrio de pequena loja de tecidos, em uma casa de vila.
Quando fica rfo aos 14 anos, passa a viver sozinho, ocupando-se como mestre de
meninos no interior, servindo ao exrcito, at chegar a Macei. Na poca em que se
desenvolve a narrativa, o narrador funcionrio pblico da Diretoria de Fazenda e
trabalha ocasionalmente vendendo artigos encomendados para a imprensa, fazendo
reviso de livros de baixa qualidade e vendendo sonetos a jovens romnticos. Ganha
ordenado modesto, de 500 mil-ris, e vive em uma casa alugada336.
Sua situao econmica discutida em todo o romance e parece determinar suas
aes e sua personalidade, aprisionando-o em um mundo de poucas escolhas
possveis337. No perodo inicial do romance, Lus da Silva ainda possui uma certa
tranqilidade neste quesito: se no abonado, ao menos no passa por privaes. J no
final do livro, encontra-se em total decadncia e sua derrocada descrita
pormenorizadamente desde o comeo de seu namoro com Marina at o assassinato de
seu antagonista, Julio Tavares. Graciliano faz com que Lus narre, passo a passo e com
riqueza de detalhes, o desmoronar de seu mundo, o esfacelamento de suas condies
materiais de sobrevivncia, e a perda de seu equilbrio emocional.
Nas passagens a seguir podemos ver a descrio da situao econmica do
narrador no comeo do romance, em que sua atividade profissional de fundo
intelectual percebe-se que, mesmo que no se orgulhe disso, o narrador tira parte de seu
sustento de atividades literrias, se no como autor autnomo, ao menos como ghost
writer e revisor:
336
Dnis de Moraes resume da seguinte maneira o romance: Sob o pano de fundo da Macei da
dcada de 1930, Angstia o terceiro romance narrado na primeira pessoa. Frustrado e solitrio, o protagonista
Lus da Silva apaixona-se por Marina sua vizinha, moa ftil que sonha em ascender socialmente atravs do
casamento. Lus, funcionrio pblico enredado na falta de perspectivas, pede-a em casamento, mas no
realiza o seu desejo, porque Marina se deixa seduzir por Julio Tavares, homem de posses, dinheiro e
posio social. O desesperado sentimento da derrota impele Lus da Silva a tramar o assassinato do rival, o
que leva a cabo, estrangulando-o. In: Moraes, Dnis de. O velho Graa (uma biografia de Graciliano
Ramos). Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1992, p.65-66.
337
O narrador de Angstia lembra-se de que sua famlia j foi prspera, o que contrasta com sua
situao econmica de quando narra o romance. Na poca urea, seus avs paternos possuam terras e
escravos e mereciam respeito e considerao da populao do pequeno municpio rural em que
habitavam. interessante notar como a decadncia financeira e social da famlia acompanhada pela
diminuio no nmero de sobrenomes de gerao para gerao: do av Trajano Pereira de Aquino
Cavalcante e Silva, passando pelo pai Camilo Pereira da Silva, at chegar ao narrador, Lus da Silva.
In: Ramos, Graciliano. Angstia. 13 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, p.23 e p.32.
338
Ramos, Graciliano. Angstia. 13 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, p.57.
Idem, ibdem, 1971, p.58.
340
Que remdio! Havia de brigar com ela, dizer-lhe que tivesse juzo, explicar-lhe que sou pobre,
no posso comprar camisas de seda, p-de-arroz caro, seis pares de meias de uma vez? Seis pares de
meias, que desperdcio! Se ela suasse no meio da mquina ou agentasse as enxaquecas do chefe na
repartio, no faria semelhante loucura. Mas no despropositei como o corao me pedia.
-Est bem. Vamos comprar o resto. Faa economias, ouviu? Os cobres esto escassos.()
339
Depois de que rompido o noivado, e que o romance de Marina e Julio tornase pblico, Lus mergulha fundo na depresso e na desesperana, o que s contribui
para agravar seus problemas financeiros. Nesta situao desesperadora, constantemente
lembra-se da poca em que chegou a Macei e que viveu na misria: () Alm disso,
precisava beber muito, sentia preguia, passava horas no caf, esbagaando dinheiro.
O ordenado voava. Naquele momento, porm, no pensava em nada disso. Pensava na
misria antiga e tinha a impresso que estava amarrado em cordas, sem poder mexerme. ()341
Mais uma vez o tema do passado marcado pela pobreza aparece na obra de
Graciliano Ramos: Luis narra seu sentimento de desajuste em uma sociedade que parece
no ter um lugar que lhe seja reservado. Constatando que, mesmo que tenha passado
fome e sido um vagabundo em seu passado, existe um fosso intransponvel entre ele e
os freqentadores do botequim, vagabundos ou trabalhadores. Nesse balano, aponta
que, para alm do fato de ter tido uma infncia tranqila economicamente, foram,
sobretudo, a educao que recebeu e a literatura que consumiu as responsveis por cavar
esse fosso. Para Lus, alm da pobreza que o separa dos trabalhadores braais, a
linguagem se torna fator importante de distanciamento entre ele, que tambm j curtiu
fome, e as pessoas pobres que o cercam:
No entanto, para o narrador de Angstia, at mesmo o sonho perigoso, transformandose em um jogo que lhe impede de desempenhar a contento suas maantes obrigaes
cotidianas:
Mar morto:
J o romance publicado por Jorge Amado em 1936, Mar morto344, parece
representar uma quebra em relao aos romances anteriores. Neste no encontramos um
343
Ramos, Graciliano. Angstia. 13 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, p.143.
Escrito no bairro da Gamboa de Cima, em Salvador, Bahia, em frente ao mar, e concludo no
Rio de Janeiro, em junho de 1936, o romance recebeu o Prmio Graa Aranha, 1936, quando foi
publicada sua 1 edio, pela Livraria Jos Olympio Editora, Rio de Janeiro, agosto de 1936, com capa de
Santa Rosa, 346 pginas. / A partir de 1941, passou a ser editado pela Livraria Martins Editora, So
Paulo, ilustrado, em 1961, com xilogravuras de Osvaldo Goeldi e, em 1970, 23 edio, com capa de
Caryb. Integrou a coleo Obras Ilustradas de Jorge Amado, da editora, como terceiro tomo, volume
V, at a 38 edio, 1975. A partir da, a editorao foi assumida pela Editora Record, Rio de Janeiro, at
a mais recente, agosto de 1997, 73 edio, 32 pela editora, com fixao de texto por Paloma Jorge
Amado e Pedro Costa, capa de Pedro Costa com ilustrao de Osvaldo Goeldi, sobrecapa com quadro de
Di Cavalcanti, ilustraes de Osvaldo Goeldi, vinhetas do mesmo artista por Pedro Costa, retrato do autor
por Jordo de Oliveira e fotografia do autor por Zlia Gattai. / Foi publicado em Portugal e traduzido para
344
protagonista que encontra a redeno final atravs da militncia poltica. Mar morto
considerado por alguns crticos o mais lrico dos romances desta primeira fase da obra
de Jorge Amado.
A trama gira em torno da vida no bairro de pescadores da Gamboa de cima, onde
a mxima aceita por todos que, mais cedo ou mais tarde, os pescadores valorosos iro
deixar suas mulheres e famlias para acompanhar Iemanj nas terras de Aioc. Esse
destino no negado nem se fazem tentativas de subvert-lo, homens do mar e suas
mulheres aceitam e abraam esse fim como inevitvel, de tal forma que morrer no mar
passa a ser considerado um prmio pela bravura e pelo companheirismo demonstrados
pelos pescadores, apenas os mais valentes so escolhidos e levados no eterno passeio
pela rainha do mar. Depois de Jubiab, a segunda vez que o candombl aparecer de
forma central a obra de Jorge Amado.
Vale questionarmos se a diferena temtica e a ausncia de um heri proletrio,
ou da referncia ao Partido Comunista em Mar morto no pode ser explicada pelo fato
de ter sido uma obra encomendada pelo editor Jos Olympio para ajudar Jorge Amado
quando saiu da cadeia.
o alemo, blgaro, chins, espanhol, francs, grego, hebraico, hngaro, ingls, islands, italiano, polons,
russo, sueco, tcheco e turco. / Rdio: novela Mar morto, Rdio Nacional, Rio de Janeiro, 1940 e Rdio
So Paulo, So Paulo, 1945; Mar muerto, Rdio El Mundo, Buenos Aires, 1941. / Cinema: direitos para
adaptao cinematogrfica adquiridos por Carlo Ponti, Roma, 1957. / Quadrinhos: Mar morto, Editora
Brasil-Amrica, coleo Edio Maravilhosa n 186, Rio de Janeiro, s/data. / Msica: Dorival Caymmi
comps motivos diversos sobre o tema Mar morto. In:
http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/mar_morto2.htm#historico
345
Escrito na cidade de Estncia, Sergipe, em maro de 1937, e concludo em junho, a bordo do
navio Rakuyo Maru, no Pacfico, s costas da Amrica do Sul, rumo ao Mxico, o romance foi lanado
em 1 edio pela Livraria Jos Olympio Editora, Rio de Janeiro, em setembro de 1937, com 344 pginas.
/ A 2 edio, 1944, saiu pela Livraria Martins Editora, So Paulo, com ilustraes de Poty e, a partir de
dos totalmente espoliados que viviam nas franjas do mundo produtivo. Nesta
circularidade, segundo Duarte,
Para os meninos de rua, liderados por Pedro Bala, que povoam Capites da
areia, a violncia aparece como marca cotidiana de sobrevivncia, logo transbordando
para outras aes cotidianas e outras formas de relacionar-se com o meio, assumindo,
por vezes, o aspecto de aes gratuitas. No entanto, essa gratuidade aparece no livro
como resultado maior da violncia do regime, que permite que crianas tenham que,
sozinhas, descobrir formas de sobrevivncia. Pedro Bala, representando a todos neste
momento, racionaliza o sentimento de abandono que permeia a vida do grupo: tinha
vontade de se jogar no mar para lavar toda aquela inquietao, a vontade de se vingar
dos homens que tinham matado seu pai, o dio que sentia contra a cidade rica que se
estendia do outro lado do mar, (...) o desespero de criana abandonada e
perseguida348.
Ainda em 1937, a 19 de novembro, acontece a queima, em praa pblica, na
cidade de Salvador, de aproximadamente mil exemplares de Capites de Areia, cuja
primeira edio havia sido apreendida. Jorge Amado, que retornara ao Brasil depois de
viagem pela Amrica Latina e pelos Estados Unidos, novamente preso, s sendo
libertado em 1938.
347
348
Vidas secas
No ano de 1938, nossos dois escritores esto habitando no sudeste. Graciliano,
no retorna a Macei depois da priso, permanecendo no Rio de Janeiro, e Jorge
Amado, depois de libertado, muda-se do Rio para So Paulo.
Graciliano publica, nesse ano, Vidas secas, que viria a ser sua obra com maior
nmero de reedies. Partes deste livro j haviam sido publicadas antes, como contos
em publicaes peridicas.
Se nas obras anteriores, voltadas para pblico adulto, tm destaque
representaes de estranhamento e de opresso que sufocam os personagens, levandonos a identificar, na anlise de Angstia um ponto mximo desse percurso ficcional que
d centralidade a protagonistas marcados por vivncias psicolgicas de teor depressivo,
j em Vidas secas, a opresso da seca e do meio no seriam suficientes para lanar o
enredo em uma perspectiva de desesperana no futuro, projetado para os filhos, e
fincado no espao de uma geografia poltica afastada das secas e das relaes de
explorao a elas correspondente.
No primeiro captulo da narrativa, Mudana, encontra-se em marcha a famlia
formada por Fabiano, Sinha Vitria, o menino mais velho, o menino mais novo, em
companhia da cachorra Baleia, apresentados, inicialmente, antes que o leitor saiba seus
nomes, como os infelizes, cansados e famintos. J em captulos seguintes vo sendo
apresentados de forma individualizada os diversos componentes do grupo.
A seqncia formada pelos captulos dois e trs pe em destaque Fabiano,
inicialmente em suas relaes no mundo do trabalho rural, lidando com bichos, como
vaqueiro, e submetido ao mando do patro, que berrava sem preciso, para mostrar
autoridade, gritar que era dono. Em seguida, o personagem aparece em seus encontros
com habitantes da cidade, que encontra quando vai feira: o bodegueiro Seu Incio, que
misturava gua na cachaa e no querosene que vendia, e um soldado amarelo que o
convida ao jogo de trinta-e-um e que quer ser obedecido como homem do governo,
pela fora persuasria de ser autoridade fardada e pelo poder policial discricionrio que
exerce. Nesses encontros, no a rdua caminhada do captulo inicial, marcada pelos
rigores do clima e do solo, que se oferece como obstculo a Fabiano.
Fabiano, embora incapaz de operar clculos sobre o que lhe cobrado, emite sua
avaliao das contas apresentadas pelo patro, comparando-as com as de Sinha Vitria,
349
Como pode ser observado no fragmento a seguir: (...) Chegara naquele estado, com a famlia
morrendo de fome, comendo razes. Cara no fim do ptio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta
da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se acostumado camarinha escura, pareciam ratos e a
lembrana dos sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no cho gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do
aio um pedao de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, ps-se a fumar
regalado.
- Fabiano, voc um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar
s. E, pensando bem, ele no era um homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros.
(...)
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, algum tivesse percebido a frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
Voc um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. In:
Ramos, Graciliano. Vidas secas. 69 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 18.
350
Ramos, Graciliano. Vidas secas. 69 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p.76.
que seriam mais confiveis e que lhe do indcios de que est sendo constantemente
lesado. Nos dois captulos finais o motivo recorrente aparece:
O final do texto de Vidas secas, no captulo Fuga - cujo ttulo marca uma
intensificao face ao captulo inicial (Mudana), mas reitera a ao de deslocamento
que marca o incio da ao narrativa da obra -, aponta, por meio do discurso indireto
livre, projees de desejos que movem os retirantes Fabiano, Sinha Vitria,
acompanhados pelos dois meninos o mais velho e o mais novo. Os anseios e
esperanas acalentados durante a migrao em direo ao sul e s grandes cidades se
fazem em contraponto com as dvidas e desconfianas sobre os clculos do patro e as
incertezas sobre a justia exercida em nome do governo pelo soldado amarelo.
Os pensamentos de Fabiano, suas representaes sociais, suas expectativas de
superao das dificuldades vividas no desenham um perfil de personagens em total
estado de conformidade e aceitao da ordem do trabalho no campo. Se no indicam
que um pensamento tradicional transformou-se em conscincia de classe capaz de levar
luta pela transformao da sociedade atravs de uma ao poltica organizada, esto a
para serem lidos como gritos de revolta que contam como elementos embrionrios de
uma construo possvel de novas relaes a serem vividas no contexto da cidade352.
351
Estado Novo
A circulao dos nomes e textos de Jorge Amado e Graciliano Ramos por
publicaes peridicas, sobretudo s vinculadas ao pensamento de esquerda, se mantm
no ano de 1938.
Na edio de nmero 10 do Boletim de Ariel, referente aos meses de janeiro a
julho do ano de 1938, em Elogio do que sabe ser amigo, Jorge Amado pretextando
dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupaes, e Fabiano estremeceu, voltou-se, estirou os olhos
em direo fazenda abandonada. Recordou-se dos animais feridos e logo afastou a lembrana. Que fazia
ali virado para trs? In: Ramos, Graciliano, Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 1995, p.119-120.
e
Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboando. Acomodar-se-iam num stio
pequeno, o que parecia difcil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedao de terra. Mudarse-iam depois para uma cidade, e os meninos freqentariam escolas, seriam diferentes deles. (...)
(...) Iriam para diante, alcanariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava
nessa terra, porque no sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de sinh
Vitria, as palavras que sinh Vitria murmurava porque tinha confiana nele. E andavam para o sul,
metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo
coisas difceis e necessrias. Eles dois velhinhos, acabando-se como cachorros, inteis, acabando-se como
Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o serto continuaria a mandar gente para l. O serto mandaria para a cidade
homens fortes, brutos, como Fabiano, sinh Vitria e os dois meninos. In: Ramos, Graciliano, Vidas
secas. Rio de Janeiro: Record, 1995, p.125-126.
dar a conhecer ao pblico algo sobre o poeta e panfletrio Pinheiro Viegas, que morreu
na Bahia no ano de 1937, na realidade escreve um elogio ao redator-chefe da revista.
Jorge Amado atribui a Grieco o fato de nomes como os de Lima Barreto, Raul
Leoni e Castro Alves, no terem cado no ostracismo. Segundo Amado, o redator-chefe
de Boletim de Ariel seria, atravs de uma profunda lealdade a aqueles que ficaram para
trs, responsvel por trazer s novas geraes a produo de grandes escritores
brasileiros: Fala-se muito no Grieco cronista brilhante, no fabuloso estilista, no
terrvel crtico, no conferencista, no ensasta. Mas pouca gente faz justia de dizer que
se deve a Agripino Grieco no estar totalmente esquecido o nome de Lima
Barreto.353Amado destaca que Pinheiro Viegas dizia sempre que o homem deve
saber ser amigo e saber ser inimigo. Parece-nos que Jorge Amado tomou essa
mxima como via mestra, ao menos para suas relaes com o conselho editorial de
Boletim de Ariel...
importante notar a popularidade dos homens de letras durante o perodo
estudado e a importncia das revistas literrias. Em um perodo de censura e de
perseguio declarada a opositores do regime, garantir os canais de publicao tornamse estratgia necessria. Os anos finais de nosso perodo so de escassez de publicaes,
resultado provvel de uma poltica endurecida que tratava os opositores da forma que
nossos artistas conheceram de perto, com a priso.
No primeiro nmero da Revista literria, publicado em janeiro de 1939, seu
corpo editorial, formado por Afranio Peixoto, Celso Vieira, Eloy Pontes, Leo de
Vasconcelos e Roquete Pinto, j anunciava em seu texto de apresentao: uma
temeridade: mais uma revista... tem sido tantas, que no ser originalidade; tambm a
experincia dos outros no vale, essa a nossa.354
interessante notar que nesta publicao, que conta com o prestigio de Afranio
Peixoto e Roquette-Pinto, escritores e crticos j consagrados, membros da Academia
Brasileira de Letras, aparecem escritos de pessoas que publicaram tambm em revistas
mais a esquerda, como, por exemplo, Agripino Grieco, redator-chefe de Boletim de
Ariel.
353
354
Boletim de Ariel, Rio de Janeiro: Ano VII julho de 1938 n10, p.293.
Vida Literria Rio de Janeiro, janeiro de 1939 (ano I n 1), p. 1.
Graciliano deixou para votar na ltima apurao, mostrou-me sua escolha, dois fatos
chamaram-me a ateno. O velho no completara ainda cinqenta anos, porque o
tratvamos de velho! votava apenas em nove ttulos, deixava um lugar vago, no lhe
perguntei a razo, desconfiei que, por modstia, falsa modstia, no colocava na relao romance
seu. Perguntei-lhe porm porque no votara em Os Corumbas: romance de Amando Fontes,
considerado na poca o mximo, recolhia quase unanimidade dos sufrgios. Graa bebeu um
gole de caf, puxou a fumaa do cigarro Selma, estvamos no caf Mourisco, esquina da rua
do Rosrio com a avenida Rio Branco:
355
Esse filho da puta no votou em mim.Passou a outro assunto, a seu ver de maior
valia:Tu pensas que daqui a vinte anos ainda haver quem nos leia?
O concurso foi acompanhado com interesse pelos escritores, agitou os meios literrios,
provocou debates na Livraria Jos Olympio, no consultrio de Jorge de Lima, na redao de Dom
Casmurro, mas ningum contestou o resultado.356
De heris e fracassados
Antes de destacarmos alguns pontos interessantes para a discusso de temticas
aglutinadoras que nos permitem pensar comparativamente as obras analisadas neste
captulo, gostaramos de tecer alguns comentrios sobre a ordenao formal dos livros e
algumas outras consideraes de carter geral. O primeiro comentrio diz respeito
utilizao de dedicatrias. Enquanto todas as obras de Jorge Amado so dedicadas a
vrias pessoas, da obra de Graciliano Ramos apenas a primeira, Caets, tem dedicatria.
Como vimos, o autor dedicou a obra aos trs principais responsveis por sua
publicao: A Alberto Passos Guimares, Jorge Amado e Santa Rosa. J as
dedicatrias Jorge Amado, colocam em relevo personalidades que fazem parte do ciclo
direto de amizades do autor, da cena intelectual baiana e brasileira, escritores, artistas
plsticos, e, pouco a pouco, comeam a homenagear comunistas notrios.357
356
Por esta explicao inicial, vemos que Jorge Amado afirma, categoricamente,
que o livro no comunista. Compreensvel, sendo este o primeiro romance do autor,
anterior a sua filiao oficial ao Partido Comunista. No entanto, j na apresentao, fica
claro como o assunto no lhe indiferente, e que no deixa e ser uma de suas
referncias no sentido de explicao da realidade. O protagonista, todavia, no encontra
no comunismo a soluo para o vazio de sua vida, continuando como firme
representante de uma juventude perdida na busca intil por uma verdade que jamais
conseguir alcanar.
J na nota de abertura de Cacau percebe-se uma clara diferena orientadora na
escrita do romancista. O romance que marca sua migrao para a escrita de um romance
proletrio aparece claramente apresentado ao leitor como uma tentativa de Amado de se
aproximar desta forma de escrita:
Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, pp.17-18.
Idem, ibdem, p.145.
363
exceo de Paulo Rigger, de O pas do carnaval, obra de estria em que jorge Amado ainda
no comeara a utilizar as marcas de um romance proletrio, e Guma, de Mar morto, considerado como
um romance atpico desta primeira fase da obra do autor.
364
Coutinho, Carlos Nelson. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 152 e ss.
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp114-115.
366
367
Coutinho, Carlos Nelson. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 160.
Amado, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, p.148.
A apario
de termos
como
comunista,
socialista,
materialista,
Ramos, Graciliano. Angstia. 13 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, p.37.
Ramos, Graciliano. Angstia. 13 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, p.37
370
371
372
Ramos, Graciliano. Angstia. 13 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1971, p.107
Idem, ibdem, p.109.
Idem, ibdem, p.37.
No dilogo travado com Maria, a filha do coronel, fica clara essa perspectiva
almejada pelo autor:
373
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, p.211.
-O culpado voc.
374
375
era ateu e transformista. Depois que eu o havia desembaraado da fazenda, manifestava idias
sanguinrias e pregava, cochichando, o extermnio dos burgueses. In: Ramos, Graciliano. So Bernardo.
23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p 43.
-Eu?
-Sim, voc, que anda enchendo de folhas as ventas daquele sem-vergonha.
Padilha defendeu-se plido:
-No ando enchendo no, seu Paulo. injustia. le veio de enxerido,
acredite. No chamei, at disse: Marciano, melhor que voc v dar comida aos
bichos. No escutou e ficou a, lesando. Eu estava enjoado, por deus do cu, que
no gosto da cara desse moleque. 376
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p 121.
Esta passagem mostra como a cena poltica das dcadas iniciais do sculo
passado era discutida por personagens letrados de uma cidade do interior nordestino,
que avaliavam as possibilidades de implementao de doutrinas estrangeiras como o
fascismo e o comunismo no Brasil. Para os opositores do governo, como o Padre
Silvestre, seria bom que houvesse uma revoluo. Mas no qualquer tipo de revoluo.
O comunismo visto por ele como um perigo enorme. As duas nicas personagens da
cena a simpatizar ou mesmo defender o comunismo so Madalena e Luis Padilha.
E essa identificao de Madalena e Padilha atravs do comunismo servir como
processo de ruptura definitiva entre os personagens:
377
141.
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp. 140-
Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de sobrancelhas
espssas. Cruzei descontente as mos enormes, cabeludas, endurecidas em
muitos anos de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de
Madalena e comecei a sentir cimes.379
A diferena ideolgica que se torna patente entre Madalena e Paulo Honrio ser
a causa da ruptura emocional entre ambos. O narrador, que se sente inferiorizado pelo
saber da mulher, atribui idias subversivas Madalena e o comunismo que identifica
nela torna-se a causa de seus cimes possessivos.
Padilha, que construdo por Graciliano como o tpico intelectual que adota as
idias comunistas na prosdia mas no compromete-se com o movimento e morre de
medo de ser preso protagonista de uma cena marcante para a ilustrao de como o
378
379
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 142.
Idem, ibdem, p. 144.
regalou-se,
entronchando-se
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp. 77-78.
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, p. 144.
157.
Ramos, Graciliano. So Bernardo. 23 ed. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1974, pp. 156-
imperavam. Eu, naquele tempo, como os outros trabalhadores, nada sabia de luta
de classes. Mas adivinhvamos qualquer coisa. 383
A concluso da narrativa deixa evidente a idia que guiou o autor durante toda a
obra: a construo de um romance proletrio, como j havia sido sugerido na nota de
apresentao. O narrador encarna com perfeio o heri proletrio que deveria servir de
exemplo e inspirao de luta, abrindo mo de ascenso individual, que poderia
facilmente ter sido feita a partir do casamento com a filha do patro, por quem estava
apaixonado, para investimento na possibilidade de transformao coletiva:
Olhei sem saudades para a casa-grande. O amor pela minha classe, pelos
trabalhadores e operrios, amor humano e grande, mataria o amor mesquinho pela
filha do patro. Eu pensava assim, e com razo.
Na curva da estrada voltei-me. Honrio acenava adeus com a mo enorme.
Na varanda da casa-grande o vento agitava os cabelos louros de Maria.
E parti para a luta de corao limpo e feliz384
383
384
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, p.175.
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, p.235.
385
AMADO, Jorge. O Pas do Carnaval; Cacau; Suor. So Paulo: Martins, 1957, pp.136-137.
Captulo 3
386
Realismo socialista
O projeto amplo de uma contnua e consciente preocupao com a produo e
difuso de cultura e com os meios necessrios para sua efetivao e eficcia388, marca
do marxismo desde a poca de Marx e Engels, no Partido Comunista do Brasil
encontrou a dificuldade extra para sua execuo decorrente de a maior parte de sua
histria ter se passado na ilegalidade.
Sem dvida, uma das mais fortes tradies construdas pelos comunistas
brasileiros ao longo de sua histria foi a capacidade de desenvolver uma poltica de
atrao de intelectuais para seu programa de fundo igualitrio e humanista e em
torno da posio crtica ao sistema capitalista, fazendo com que gravitassem ao
redor do PCB estudantes, jornalistas, artistas, pintores, poetas, msicos, em suma,
homens e mulheres ligados cultura, sequiosos por um mnimo espao de
referncia intelectual, numa sociedade marcadamente elitista e caracterizada por
possuir um inexpressivo nmero de instituies e fruns culturais autnomos391.
388
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2007, p.379.
389
Idem, ibdem, p.380.
390
Costa, Ricardo da Gama Rosa. Descaminhos da revoluo brasileira: o PCB e a construo da
estratgia nacional libertadora (1958-1964). Niteri: [policopiada], 2005. Tese (doutorado)
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Histria.
391
Idem ibdem, p.109.
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2007, p.433.
centralizao poltica promovido por Stalin nos anos 1930. Nesse sentido, vinha para
formar uma viso positivada da revoluo e possibilitar sua consolidao atravs do
modelo stalinista.
No I Congresso de Escritores Soviticos, realizado entre 17 de agosto e 1 de
setembro de 1934, o realismo socialista apresentado como doutrina oficial do partido
para a literatura e as artes, pelo Comissrio para cultura indicado diretamente por Stalin,
Andrei Zdanov393. De acordo com as teses apresentadas por Zdanov, a arte deveria ter
uma funo educativa, ajudando a formar uma conscincia proletria.
Para este
393
Seria a partir desta constatao de que a nova literatura sovitica faria parte de
um projeto maior em andamento, projeto de construo de uma sociedade socialista, e
que, como todos os outros aspectos da vida social, teria que ser direcionada no sentido
da melhor execuo deste projeto coletivo, que Zdanov conclama os escritores presentes
ao congresso a construir uma nova literatura. Uma literatura que rompa com os defeitos
da literatura burguesa, cujas principais caractersticas seriam
A oposio entre escritores feita como resultado de uma disputa mais ampla
em andamento e os escritores seriam engrenagens de um sistema maior: de um lado os
representantes do capitalismo, de outro os representantes do socialismo. Os escritores
comprometidos com o socialismo, estivessem estes na URSS ou em pases em que a
396
Aqu, los hroes principales de las obras literarias son los construtores
activos de la vida nueva: obreros y obreras, koljosianos y koljosianas, miembros
del partido, administradores, ingenieros, jvenes comunistas, pioneros. He ah los
tipos fundamentales y los hroes esenciales de nuestra literatura sovitica. El
entusiasmo y la pasin del herosmo impregnan nuestra literatura. Ella es
optimista, pero en modo alguno por una especie de primordial instinto zoolgico.
Es optimista en su esencia, porque es la literatura de la clase ascendente, del
proletariado, de la nica clase progresista, de vanguardia. La fuerza de nuestra
literatura sovitica reside en que sirve la causa nueva, la causa de la construccin
del socialismo.401
400
Creemos firmemente que la decena de camaradas extranjeros que estn aqui presentes
constituyen el ncleo y el germen del poderoso ejrcito de escritores proletarios que la revolucin
proletaria mundial habr de crear mas all de nuestras fronteras. In: Cristaldo, Janer. Engenheiros de
Almas(...). Anexo 3.
401
Cristaldo, Janer. Engenheiros de Almas o stalinismo na literatura de Jorge Amado e
Graciliano Ramos. Anexo 3.
402
conocer la vida a fin de poder representarla veridicamente en las obras de arte in: Cristaldo,
Janer. Engenheiros de Almas o stalinismo na literatura de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Edio
e-books Brasil, 2006. Anexo 3..
403
a tarea de transformacin ideolgica y de educacin de los trabajadores en el espritu del
socialismo. In: Cristaldo, Janer. Engenheiros de Almas(...). Anexo 3.
Para Zdanov, que interpreta para a audincia o que Stalin quis indicar ao utilizar
o termo engenheiros de almas ao se referir aos escritores comunistas, o realismo
socialista representaria uma coligao de uma descrio realista da sociedade sovitica
aliada a um enaltecimento romntico dos heris que a tornaram possvel. Realismo e
romantismo de um novo tipo, uma vez que no seriam produtos da perspectiva
burguesa, mas sim da proletria:
As obras
Neste captulo e no prximo, pretendemos discutir a presena, ou a ausncia, de
orientaes do Partido Comunista dentro da produo ficcional de Jorge Amado e
Graciliano Ramos dos anos 1940412. Essa discusso tem por objetivo perceber como e
quais so os tipos de relao que podem ser verificadas entre diretrizes partidrias e as
escolhas estticas e estilsticas dos autores.
levantamento de suas obras para perceber caractersticas que apontem para uma maior
aproximao ou um maior afastamento de caractersticas do realismo socialista.
O tema em que procuramos aglutinar a percepo de como as interpenetraes
entre as esferas da produo literria e da militncia poltica fizeram-se presentes nas
obras de nossos autores, foi o da presena de personagens comunistas, ou de referncias
ao comunismo.
que tem muitos de seus livros produzidos nesse perodo publicados postumamente.
Optamos por essa via, para assim podermos perceber as relaes que buscamos entre a
produo literria e a participao poltica, portanto, por ordenar, nestes captulos, os
livros de acordo com a ordem em que foram escritos.
Assim, nestes dois captulos, pretendemos analisar o segundo momento da
produo destes autores. Centraremos nossa anlise nas obras literrias ficcionais e
memorialsticas de Graciliano Ramos e Jorge Amado publicadas durante as dcadas de
1940 e 1950, a saber, nos livros Viventes das Alagoas, Histrias de Alexandre, Infncia,
Dois dedos, Memrias do crcere de Graciliano Ramos e ABC de Castro Alves,
Cavaleiro da esperana, Terras do sem fim, So Jorge dos Ilhus, Bahia de todos os
santos, Seara vermelha, O amor do soldado, Os subterrneos da liberdade de Jorge
Amado.
414
416
Moraes, Dnis. O velho Graa: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.184.
417
Idem ibdem, p.185.
418
Idem ibdem, p.185.
419
Ramos, Graciliano, Viventes das Alagoas. Rio, SP, Record, Martins, 1975 (5 ed.), p. 18.
Neste trecho ficam claras duas questes presentes em vrias das crnicas de
Graciliano: por um lado, est a descrio de cidades do interior nordestino, que
aparecem permeadas por uma noo de rigidez que aponta para a imobilidade social.
Essas cidades seriam refns de uma hierarquia implcita, responsvel por encaixar cada
habitante em um lugar que no poderia nunca ser transigido. Nesses pequenos centros
urbanos, a pequena elite local, em geral descrita de uma forma irnica que destaca sua
ignorncia, governa impondo costumes e ditando padres. Por outro lado, aparece a
questo da relao estabelecida de subservincia entre estas pequenas cidades e os
grandes centros. Graciliano faz descries que procuram apontar para o ridculo da
reverncia tmida dos interioranos, que buscam em Recife, Salvador, Rio ou So Paulo,
um padro para ser copiado.
Um segundo bloco de crnicas a ser destacado aquele que pe em destaque
personagens especficos, como so os casos das crnicas Dr. Jacarand, D. Maria
Amlia, O moo da farmcia, Ciraco, Librio, Funcionrio independente,
Um homem de letras, Um gramtico, Dr. Pelado, A decadncia de um senhor de
engenho, Um homem notvel, Um profeta, Incio da catingueira e Romano.
Nesse bloco de crnicas, as personagens representam figuras tpicas que sero
exaltadas (como o caso de Dr. Jacarand) ou escarnecidas pelo autor (como o caso
de Um gramtico). Essas figuras aparecem como representantes de profisses ou de
tipos sociais que podem ser encontradas em toda parte, representando ora exemplos
positivados, ora exemplos ridicularizados pelo autor, que, atravs destas crnicas,
procura evidenciar aspectos da realidade que o cerca.
Em Dr. Jacarand encontramos como personagem central um negro que
conseguiu escapar ao trabalho da roa e, depois de percursos e de atividades variados,
se transformou em causdico (ou cosdico, como prefere) de pobres. Sua histria
exemplar por dois motivos: o primeiro ressaltar a singularidade do personagem, cujo
percurso de vida representa uma exceo regra que dita a improbabilidade de um
negro desempenhar tal papel. O segundo aquilo que faz de Dr. Jacarand um exemplo
para o autor, que o descreve de forma carinhosa, ressaltando as caractersticas que
considera imprescindveis na formao de um bom exemplar de homem simplicidade
aliada argcia, bondade e desprendimento, e, sobretudo, a ausncia da ganncia e da
jactncia.
Escuro:
Para, em seguida, concluir :(...) guarda uma inocncia resistente, uma bondade que o
leva para as misrias alheias. So as armas de que dispe. Vai-se agentando, e isso
prova que no estamos definitivamente corrompidos.421.
Vale pena ressaltar, neste conjunto de crnicas que se prope a apresentao
de personagens centrais a serem destrinchadas pelo autor (personagens que geralmente
emprestam ao ttulo seu nome ou sua profisso), aquelas que tratam de homens
envolvidos com a produo literria; como so os casos de O moo da farmcia, Um
homem de letras, Um gramtico e Dr. Pelado. Esses so os tpicos intelectuais do
interior, pessoas que fazem das letras a forma de obteno da distino social e de se
destacar da massa annima das pacatas e pequenas cidades. Esses homens so descritos
de forma pouco enaltecedora, Graciliano mostra-os como seres bastante imperfeitos: ou
cheios de vaidades e desejos de reconhecimento ou como portadores de uma ignorncia
flagrante. Na viso cida de Graciliano, esses homens representam os escritores de
pequenas cidades nordestinas, distantes dos grandes centros culturais e econmicos aos
quais se curvam, e so descritos de forma irnica, como o caso da seguinte passagem
de Um homem de letras:
420
421
Ramos, Graciliano, Viventes das Alagoas. Rio, SP, Record, Martins, 1975 (5 ed.), pp. 24-25.
Idem ibdem, p.25.
Ramos, Graciliano, Viventes das Alagoas. Rio, SP, Record, Martins, 1975 (5 ed.), p.84.
Idem, ibdem, p.86.
Essa realidade, criada por proprietrios que tem como prtica manter uma tropa
de jagunos para a defesa de seus bens mais preciosos e para tirar do caminho seus
inimigos, a responsvel pelo aparecimento de uma nova categoria social, a do
cangaceiro:
424
425
Ramos, Graciliano, Viventes das Alagoas. Rio, SP, Record, Martins, 1975 (5 ed.), pp.124-125.
Idem, ibdem, p.125.
Nesta anatomia que faz do cangao brasileiro, este teria passado por 3 momentos
distintos. Vejamos nas palavras do prprio Graciliano, as fases desta genealogia:
Nestes trs momentos, fica clara uma transio que faz do cangao migrar de
uma realidade diretamente resultante da classe dominante, passar por um momento em
que os explorados subvertem-na, tomando as rdeas do poder, para, finalmente,
reintegrar extratos da classe dominante que passam a incorporar as novas regras do
jogo. Transio esta que torna o cangao um fenmeno tpico do tipo de explorao
imposta pelos grandes proprietrios de gado no serto nordestino.
As outras crnicas deste bloco reforam esta tese de que o cangao um reflexo
de uma realidade hostil e miservel, criada ou incentivada pelos prprios proprietrios.
Na leitura que Graciliano faz sobre o fenmeno, a figura dos cangaceiros, como
Lampio, por exemplo, no demonizada. Embora no faa apologia violncia dos
cangaceiros, o autor ressalta, a todo momento, a realidade que os tornou o que so e a
carga de violncia e barbrie com que foram perseguidos e executados pelo brao
armado da elite427.
Pensar que este tipo de crnicas foi realizado dentro da revista do estado novo,
ao contrrio de desabonar, a nosso ver, evidenciam que ao aceitar o emprego,
Graciliano no vendeu junto seus ideais. Promoveu, nas pginas de sua coluna, crticas
contundentes estrutura de poder e ao sistema que geravam e garantiam a existncia
das situaes e dos personagens descritos em suas crnicas.
426
Ramos, Graciliano, Viventes das Alagoas. Rio, SP, Record, Martins, 1975 (5 ed.), p.127.
O quarto bloco facilmente destacvel deste conjunto de textos agrupados em Viventes das
Alagoas constitudo pelos relatrios e pelo balano enviados ao Governador do Estado de Alagoas
quando Graciliano ocupava o cargo de Prefeito de Palmeira dos ndios. Produzidos nos anos de 1928,
1929 e 1930, no sero por ns analisados.
427
publicadas pela Editora Livraria Martins Fontes na coleo Obras Ilustradas de Jorge
Amado como Louvao. No entanto, na contra capa da mesma edio, abaixo do
ttulo, vem escrita a palavra romance. Esta louvao, ou este romance, , na realidade,
uma biografia romanceada de Castro Alves, poeta romntico defensor do abolicionismo.
A obra composta por uma Introduo com um acalanto e duas notas e por 26
captulos, cada um recebendo por ttulo o nome de uma das letras do alfabeto430. Logo
na apresentao, o narrador explica que o personagem central da biografia, Este de
quem te falarei (...) [] odiado dos tiranos, amado do povo.431. Dirigindo-se a sua
interlocutora, o narrador complementa:Assim, negra, foi Castro Alves. Tinha a fora
do vento noroeste, o seu mpeto, a sua violncia. Tinha a sua beleza tambm e deixou o
ar mais puro, a sua lembrana imortal, (...) foi o mais belo espetculo de juventude e de
gnio que os cus da Amrica presenciaram.432
importante salientar a personalidade do poeta que eleita pelo autor como
representante mximo do herosmo e da bravura, da justeza e da fora, que serviram de
exemplo e modelo para a construo de um heri. Amado destaca Castro Alves do
conjunto de seus contemporneos, elevando-o a um novo patamar: h momentos no
mundo em que todas as foras de uma nao se conjugam e, como uma nota mais alta
428
Terminado de escrever na Urca, no Rio de Janeiro, a 21 de maro de 1941, o livro foi lanado
em 1 edio pela Livraria Martins Editora, de So Paulo, no ms de agosto de 1941, quando o autor, por
motivos polticos, se encontrava no Prata, tendo sido proibida sua vendagem e exibio nas livrarias pela
censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Constava a edio prncipe de 386 pginas e
era ilustrada por Santa Rosa Jnior. Passou a integrar a coleo Obras Ilustradas de Jorge Amado, da
Livraria Martins Editora, de So Paulo, como quinto tomo, volume VII, com capa de Caryb, ilustraes
de Iber Camargo e retrato do autor por Carlos Scliar at a 24 edio, 1975, quando foi liquidada a dita
empresa, passando Editora Record, do Rio de Janeiro, a exclusividade das editoraes, sendo lanada a
25 edio, 1977, com 327 pginas, capa de Floriano Teixeira, ilustraes de Iber Camargo, retrato do
autor por Flvio de Carvalho e foto do autor por Zlia Gattai. A mais recente a 36 edio, 11 pela
Record, publicada em janeiro de 1992, com as mesmas caractersticas. / No estrangeiro, o ABC de Castro
Alves foi editado em Portugal e traduzido para os seguintes idiomas: espanhol, finlands, francs,
polons, russo e tcheco. / Dana: foi adaptado com o ttulo de Sonhos de Castro Alves, bal idealizado por
Antonio Carlos Cardoso, com coreografia de Vctor Navarro, msica de Egberto Gismonti, encenado pelo
Bal do Teatro Castro Alves in:
http://www.jorgeAmado.org.br/obras_jorge/abc_castroalves2.htm#historico
429
Amado, Jorge: ABC de Castro Alves, So Paulo: Livraria Martins Editora, s.d., 22Ed.
430
Incluindo-se a, k, w e y.
431
Amado, Jorge: ABC de Castro Alves, So Paulo: Livraria Martins Editora, s.d., 22Ed., pp.1314.
432
Idem ibdem, p.14.
claro que me permiti liberdades nesta biografia. Alm do que no segui nenhum
processo propriamente biogrfico. Saiu mais uma louvao. Ela , fao questo de
repetir, antes uma biografia do poeta que mesmo do homem. Fico feliz se ela for
uma louvao digna do gnio de Castro Alves. (...) Talvez tambm o rigor
histrico sofra um bocado nas minhas toscas mos de romancista. Que se danem
os historiadores435
Castro Alves foi um artista que encarou a vida de frente, que no teve medo
de se envolver nos problemas dos homens. Os que tem escrito sobre ele, na sua
maioria, so escritores que fugiram da vida para a mentira de uma falsa arte. Eu
tento uma biografia de Castro Alves na sua inteireza de poeta e de homem, tento
sem nenhum receio. Posso falhar por falta de capacidade literria, mas sei bem que
no deturparei a verdadeira fisionomia de Castro Alves. Como escritor uma coisa
me liga poderosamente a ele: tenho sempre encarado a vida de frente e, como ele,
escrevo para o povo e em funo do povo.436
433
434
435
436
Amado, Jorge: ABC de Castro Alves, So Paulo: Livraria Martins Editora, s.d., 22 ed., p.15.
Idem ibdem, p.16.
Idem ibdem, p.17.
Idem, ibdem, p.17.
outra coisa que fao questo de notar que no tenho a mais mnima inteno de
realizar ensaio crtico. No irei pesquisar se ele foi um gnio verdadeiro. Se na
sua obra se encontram mesmo aqueles clebres valores eternos to estribilhados
por todos os castradores da literatura, se para os tempos modernos o seu interesse
do ponto de vista da poesia (Oh! Donos da poesia) , como algum j escreveu,
bastante histrico. Deixo esse explodir de rancorezinhos para a voz dos crticos
e poetas modernistas (vozes to dbeis diante da de castro /Alves que s podem
mesmo se preocupar com coisas desse porte). Quero escrever sobre Castro Alves
com amor, como um homem do povo sobre um poeta do povo, escrever com esse
amor que d a verdadeira compreenso, que nos faz sentir muito mais o que h de
humano e de grande e de gnio num poeta que todos os tratados de teoria potica e
que todos os arquivos, por mais volumosos, por mais bem fichados, que, ao lado
dos meticulosos historiadores, se danem os meticulosos crticos e analistas. Castro
Alves era feito doutro barro.437
Desta obra, que ir apresentar Castro Alves como um lutador implacvel pela
abolio da escravatura, como um homem movido por um intenso sentimento de revolta
contra a explorao e a injustia, como um verdadeiro e legtimo heri do povo
brasileiro (muito alm das configuraes de elogio simples a sua obra lierria),
acreditamos que a parte mais interessante para a contribuio deste panorama que
pretendemos fazer da produo literria de Jorge Amado no incio dos anos 1940,
esteja, justamente, neste trecho inicial da biografia ou louvao que faz do poeta.
437
Amado, Jorge: ABC de Castro Alves, So Paulo: Livraria Martins Editora, s.d., 22 ed., p.20.
O Cavaleiro da esperana:
O cenrio poltico brasileiro no ano de 1942 abrigava manifestaes contra o
fascismo e tentativas de distenso das garras ditatoriais do governo Vargas a partir de
manifestaes diversas. Uma delas foi divulgao na grande imprensa, a 11 de junho, de
um manifesto anti-fascista assinado por cem intelectuais, do qual participou Graciliano
Ramos. Jorge Amado participaria de outro modo deste perodo de contestao do
Estado Novo.
Em 1942, Jorge Amado no exlio na Argentina e no Uruguai, escreve A vida de
Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana438. O livro ser proibido no Brasil e
ser publicado inicialmente por uma editora Argentina.439 Como j foi motivo de
investigao no primeiro capitulo desta tese, no retornaremos a sua anlise, apenas
gostaramos de ressaltar um aspecto diretamente relacionado biografia anteriormente
analisada, o ABC de Castro Alves.
A biografia de Prestes comea por uma introduo com um romance, uma nota
e um agradecimento. Nesta introduo, a mesma interlocutora com quem o narrador
438
Divulgado inicialmente na imprensa de Buenos Aires, por captulos, em fins de 1941, traduzido por
Pompeu Acili Borges, o livro teve sua 1 edio em espanhol intitulada Vida de Luiz Carlos Prestes, el
caballero de la esperanza, em 1942, pela Editorial Claridad, Buenos Aires, 395 pginas. / A 1 edio
brasileira, junho de 1945, 366 pginas, da Livraria Martins Editora, So Paulo, at a 12 edio de 1952.
Em 1948, a Livraria Martins Editora concedeu autorizao Editorial Vitria, Rio de Janeiro, para
promover uma edio especial ilustrada por Renina Katz e outras edies simples, a ltima da srie, a 17
edio, de 1963. A Editora Record, Rio de Janeiro, detm atualmente os direitos de publicao, sendo a
36 a edio mais recente, a 15 edio desta editora, agosto de 1996. / Publicado em Portugal e traduzido
para: albans, alemo, rabe, blgaro, chins, espanhol, eslovaco, francs, grego, hebraico, holands,
hngaro, italiano, japons, mongol, persa, polons, romeno, russo e tcheco. / Rdio: adaptao com o
ttulo em tcheco de Ryter Nadeje, por Jiri Verton, divulgada pela Radiodifuso Tchecoeslovaca, de Praga,
1951 in: http://www.jorgeAmado.org.br/obras_jorge/cavaleiro2.htm#historico.
439
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.)
Prestes, como Castro Alves, representa para Amado o prprio povo, sendo dele
produto e porta-voz, tradutor de anseios e defensor de direitos, a histria de Prestes a
(...) a histria do heri, aquele que nunca se vendeu, que nunca se dobrou,
sobre quem a lama, a sujeira, a podrido, a lama nojenta da calnia nunca
deixaram rastro (...) ele o prprio povo sintetizado num homem, certo
que o povo no se vendeu nem se dobrou. Como ele o, povo est preso e
perseguido, ultrajado e ferido. Mas, como ele, o povo se levantar uma,
440
Essa mesma interlocutora aparece em outras obras do autor, como o caso, por exemplo, de
Bahia de Todos os Santos.
441
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p.20.
442
Idem, ibdem, pp. 20-21.
duas, mil vezes, e um dia as cadeias sero quebradas, a liberdade sair mais
forte de entre as grades.443
marca que ele j trazia, aquela marca de gnio popular, assim tambm os
estudante da Escola Militar do Realengo adivinharam nos 18 anos de Lus
Carlos Prestes a estatura do lder, souberam enxergar 'a marca de heri popular, de
chefe do povo, que ele trazia nos olhos penetrantes, no sorriso que explicava tanta
coisa.
Olhavam-no como algo poderoso e diferente mas ainda assim prximo
deles444.
443
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p. 22.
444
Idem, ibdem, p. 65.
Para
reafirmao
desta
idia
de
que
Prestes
possua
algo
de
Anos depois tambm, nos chamados noturnos para depor na policia, por
vezes Lus Carlos Prestes, com sua imensa dignidade, abandonou o Interrogatrio
aps uma frase definitiva e esmagadora. E os "tiras" dominados pela sua grandeza,
abriram-lhe passo, esmagados, e s voltaram a si e corriam atrs dele quando
alguns segundos j haviam passado445.
Como vimos anteriormente, a construo deste mito no deve ser encarada como
uma iniciativa exclusiva de Amado. Coaduna-se a um movimento maior, desenhado
desde a metade da dcada de 1930, e est presente nos escritos de outros autores e nas
pginas da imprensa partidria. Apenas para citar um exemplo de como Amado no foi
o nico dos escritores comunistas a elaborar um romance, ou uma biografia
romanceada, sobre Prestes, vale citar o caso lembrado por Janer Cristaldo do livro de
Figueiredo Pimentel, A Inspiradora de Lus Carlos Prestes.
Como foi feito por Graciliano Ramos em seu pequeno texto analisado no
primeiro captulo desta tese, Jorge Amado tambm tenta chamar ateno para a
humanidade de Prestes:
nada disso [seus traos excepcionais] o afastava dos demais, nada disso o
punha acima de todos, de peito inchado de vaidade e de sorriso superior. Ao
contrrio, amiga, era o mais humano dos jovens, amando a existncia
comovidamente, os dias de sada sendo dias de felicidade familiar. Durante
toda a sua gloriosa carreira esse genial condutor do povo, esse chefe lder
indiscutido, obedecido e amado, em nenhum momento deixou de ser o mais
humano e simples dos homens. Gnio militar e gnio matemtico, o primeiro
do seu povo, corao de ao, condutor e guia, o primeiro dos operrios, o
primeiro dos camponeses, o primeiro dos soldados e marinheiros, o primeiro
tambm das outras camadas pobres da populao, dos progressistas e dos
445
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p. 65.
446
Amado, Jorge. A vida de Luis Carlos Prestes O cavaleiro da esperana. So Paulo: Martins,
s.d. (3 ed.), p. 68.
447
Idem, ibdem, p.105.
448
Idem ibdem, p.105.
Jorge Amado, esse tipo de literatura seria fcil e a razo do sucesso atingido pelo livro
no deveria ser buscada em suas qualidades, mas sim na propaganda do partido.
No terceiro captulo,
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.197.
mercante como carvoeiro, nenhum tipo de comentrio valorativo feito sobre essa
opo. Tampouco, no captulo escrito por Graciliano Ramos podemos verificar indcios
de algo prximo ao heri revolucionrio, uma vez que a maior parte das pginas escritas
pelo autor tenha sido focada na figura de Pedro, advogado medocre, que morre
lentamente.
ABDE:
Criada em 1942, a Associao Brasileira De Escritores congregou, em um
primeiro momento, associados de diversas orientaes ideolgicas em torno da bandeira
comum de defesa dos direitos autorais. Desde seu incio, entretanto, este no foi o
nico assunto debatido e defendido pela entidade.
sua existncia, que vai at o ano de 1958, os comunistas exerceram bastante influncia
na ABDE.
Como pode ser depreendido deste balano, durante todo o perodo compreendido
por nossa pesquisa a questo dos direitos autorais continuava sendo um ponto
nevrlgico da luta e organizao dos escritores no Brasil. A ao do governo a partir da
dcada de 1930 instituiu, no entanto, a ampliao do mercado livreiro e mecanismos de
incentivos a editoras e escritores. Dentre os expedientes utilizados como forma de
incentivo aos escritores, destacam-se os prmios literrios, tais como o Prmio Nacional
de Literatura e o Prmio Machado de Assis que atribuam quantias em dinheiro aos
vencedores.
No momento da fundao da ABDE, em 1942, Jorge Amado encontrava-se no
452
exlio
participao de Graciliano Ramos, que vivia no Rio de Janeiro, neste primeiro momento
da vida da entidade, que 9 anos depois viria a presidir, no encontramos referncia.
Segundo o biografo de Graciliano, Dnis de Moraes, neste ano de 1942 Jorge Amado,
militante fiel do PCB, defenderia que escritores anti-fascistas atuassem nos organismos
ligados cultura, para aprofundar a resistncia democrtica.453 Objetivo que foi
alcanado pela ABDE.
Nesta mesma poca, em 27 de outubro de 1942, seria realizado um jantar
comemorativo dos cinqenta anos de Graciliano. Articulado por um ecltico grupo de
escritores, o jantar foi pensado para funcionar como uma espcie de reparao pelo que
Graciliano havia sofrido durante o perodo que ficou preso durante o Estado Novo. No
discurso de saudao a Graciliano, proferido por seu primeiro editor, o poeta Augusto
Frederico Schmidt, fica clara essa inteno:
(...) uma noite de reparao, uma noite que devemos trazer a voc, que
um ser to desconfiado, a convico de que sua existncia, que voc considera
to melancolicamente, a existncia que se realizou plenamente (...) graas
mesmo s injustias que madrugaram para voc e o foram sempre seguindo, at
452
militante comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942,
perodo em que fez longa viagem pela Amrica Latina. Ao voltar, em 1944 (...) In:
http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/jorge_biografia.htm
453
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.193.
que essa injustia suprema de lhe tirarem a liberdade sem motivo, por um perodo
certamente fecundo para sua existncia de romancista.454
454
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.195.
455
Seis comigo, os outros cinco so Fernando de Lacerda, comunista histrico, exilado na Unio
Sovitica desde 1930, o escritor Ivan Pedro de Martins, dois operrios gachos, no me recordo quem
fosse o quinto. In: Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p.44.
456
Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, pp.25-26.
Conferncia da Mantiqueira:
Em agosto de 1943, foi realizada a Conferencia da Mantiqueira, que promoveu a
unificao dos dois grupos que disputavam a direo da reorganizao do Partido
Comunista do Brasil, o de baianos em So Paulo e a CNOP, no Rio de Janeiro457. A
articulao dos militantes comunistas passa a se dar em torno da tese de Unio
Nacional em torno do Governo, vista como sada possvel para a reinsero comunista.
A luta contra o fascismo ser valorizada, fazendo-se, assim, a adequao da sesso
brasileira do Partido Comunista s orientaes do VII Congresso Internacional
Comunista, que passa a defender uma poltica de Unio de classes contra um inimigo
maior, o nazifascismo.
Essa poltica ser traduzida como a defesa de uma revoluo nacional-burguesa
que permitisse a consolidao do capitalismo industrial no Brasil, e que garantisse a
independncia em relao ao capital estrangeiro. Essa perspectiva pode ser descrita
como reformista e est calcada em uma leitura etapista da revoluo.
Segundo essa interpretao, a estratgia a ser seguida pelo partido deveria ser a
do estabelecimento de alianas com a burguesia para o combate aos resqucios
feudais e s velhas oligarquias agrrio-exportadoras subservientes ao imperialismo,
que impediriam o desenvolvimento industrial brasileiro.
O discurso conciliador dos interesses do proletariado aos interesses da burguesia
passaria a ser articulado em torno de dois eixos principais: o combate ao fascismo e a
defesa da democracia. Assim, no plano discursivo, os comunistas promoviam a
congregao dos diversos interesses de classe anteriormente encarados como
conflitantes em torno de um projeto nacional democrtico e progressista.
Na pertinente avaliao de Carlos Zacarias, a linha poltica da Unio Nacional
foi desenvolvida com a finalidade de, por um lado, barrar o crescimento da influncia
desses regimes [fascistas] pelo mundo e, de outro, aps a deflagrao do conflito
mundial, com o objetivo precpuo de ganhar a guerra, circunstncia em que o
457
458
Sena Jr., Carlos Zacarias. Os impasses da estratgia: os comunistas e os dilemas da Unio Nacional
na revoluo (im)possvel. (1936-1948). Recife, UFPE, 2008. (Tese de Doutorado em Histria), p. 425.
459
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.197.
460
Publicados inicialmente na imprensa esboos de captulos sob o ttulo de Sinh Badar, em dezembro
de 1939, o tema foi retomado, em meados de 1942, em Montevidu, onde o autor estava exilado, e
concludo em Salvador, Bahia, em maio de 1943. / o segundo romance do ciclo do cacau e teve sua 1
edio lanada em setembro de 1943, com 331 pginas, pela Livraria Martins Editora, So Paulo,
Coleo Contempornea, capa de Clvis Graciano, editora que o publicou at 1975. Desde ento, vem
sendo editado pela Editora Record, Rio de Janeiro, sendo a 63 edio, 1997, a mais recente, 28 desta
editora, com fixao de texto por Paloma Jorge Amado e Pedro Costa, capa de Pedro Costa com
ilustraes de Clvis Graciano, sobrecapa com reproduo de quadro de Carlos Scliar, ilustraes de
Clvis Graciano em vinhetas por Pedro Costa e foto da sobrecapa de Pedro Oswaldo Cruz. / Teatro:
Terras do sem fim, adaptao de Graa Melo, encenada pelos Comediantes, Rio de Janeiro, 1947. /
Cinema: Terra violenta, filme produzido pela Atlntida, Rio de Janeiro, 1948. / Rdio: adaptao pela
Rdio So Paulo, So Paulo, 1945 e por Claude Arman-Masson, com o ttulo Terre violente,
Radiodiffusion Franaise, Paris, 1950. / Televiso: telenovela Terras do sem fim, TV Tupi, Rio de
Janeiro, 1966 e Rede Globo de Televiso, 1981, em adaptao de Walter George Durst; na trilha sonora,
parceria de Jorge Amado e Dorival Caymmi na msica Cantiga de cego, interpretada por Caymmi. /
Quadrinhos: Editora Brasil-Amrica, Rio de Janeiro, s/data, coleo Edio Maravilhosa, nmero 152. /
Foi publicado em Portugal e traduzido para o alemo, rabe, blgaro, chins, coreano, dinamarqus,
eslovaco, esloveno, espanhol, finlands, francs, hebraico, holands, hngaro, diche, ingls, italiano,
polons, russo, srvio, sueco, tcheco e turco. In:
http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/terras2.htm
461
Amado, Jorge: Terras do sem fim. So Paulo: Martins, 1973 (30 Ed.).
Montevidu, Jorge Amado faz balano de sua produo, afirmando que, em dez anos de
carreira, desde a publicao de O pas do carnaval, procurou manter-se coerente, no
apenas como escritor, mas, sobretudo, como homem, e fiel a uma linha de conduta
baseada na defesa do povo. Vale pena a transcrio integral desta nota de abertura
para que o prprio autor nos mostre como resume os dez anos iniciais de sua carreira:
desvinculada das posies que assume em sua vida pessoal, uma vez que afirma que
toda a coerncia que busca aquela que defenda o povo. Ao assumir-se como um
homem do povo e, ao mesmo tempo, apontar a sada comunista como a ideal, procura
indicar a seus leitores um caminho a ser seguido, um caminho apontado e reiterado em
suas obras.
A narrativa tem incio em um navio que parte de Salvador para Ilhus carregado
dos mais variados tipos de personagens que tem suas existncias relacionadas ao Cacau
dos coronis que retornam para suas roas depois de uma farra na Capital; passando
462
AMADO, Jorge: Terras do sem fim. So Paulo: Martins, 1973 (30 Ed.), p.13.
(...) Antnio Vitor dormia com um sorriso nos lbios, sonhava talvez com
uma fortuna conquistada sem esforo nas terras de Ilhus, com sua volta a
Estncia, em busca de Ivone. Sorria feliz.
O comandante parou, olhou para o mulato que sonhava.
imediato:
Virou para o
Amado, Jorge: Terras do sem fim. So Paulo: Martins, 1973 (30 Ed.), p.48.
Essa massa enorme de trabalhadores tratada por Jorge Amado com doura. A
armadilha que os aprisionou esse sonho dourado que os atraiu para matas fechadas por
doenas e perigos , e a crueldade de seus patres so, a todo momento, motivo da
denncia do autor, como fica claro desde a passagem do incio da narrativa em que o
personagem do capito do navio os compara a escravos.
Os grandes coronis do cacau so representados nessa narrativa por dois plos
rivais: o da famlia Badar, comandada por Sinh, e o do Coronel Horcio da Silveira.
Esses lados antagnicos representam o extrato dos maiores produtores de cacau da
regio e, sua volta, gravitam outros grandes proprietrios que, em um jogo de alianas
polticas, que se estendem e que controlam toda a zona cacaueira.
O cerne da narrativa a disputa entre os dois grupos pelas matas ainda virgens
de Sequeiro Grande, promessa para plantaes futuras, disputadas violentamente entre
os dois grupos antagnicos. Esses produtores de cacau haviam sido pioneiros daquela
terra. Derrubando as matas onde plantaram os primeiros ps da fruta e fazendo a sua
fortuna, foram a primeira gerao a iniciar o plantio de cacau e a realmente enriquecer
com ele. Os dois grupos representam a elite cacaueira, pessoas enriquecidas pelo cacau
e que servem como exemplo, para os nordestinos que sonham com um futuro melhor,
do homem que sozinho, com a fora de seu trabalho, conseguiu enriquecer.
No entanto, Amado deixa claro que esta promessa morreu com aquela gerao.
Todos os que chegaram depois a Ilhus estariam fadados a uma vida miservel como
trabalhadores desses mesmos grandes proprietrios ambiciosos, cegos por uma febre de
riquezas que no acaba nunca, sedentos por terras, explorando os homens, matando ou
morrendo pelo cacau. Assim, mesmo j tendo conseguido uma riqueza maior do que a
esperada, continuam querendo mais e mais terras.
Os representantes desta elite so apresentados por Jorge Amado como homens
de perfil destemido e violento, dispostos a tudo para impedir que qualquer coisa ou
pessoa se interpusesse entre ele e a possibilidade de aumento de suas roas de cacau.
Um exemplo deste tipo de personagem o Coronel Horcio, que descrito como antigo
tropeiro de burros que havia feito fortuna na explorao do cacau e que no perdoava
quem o impossibilitasse de continuar aumentando sua fortuna464.
Os coronis da trama aparecem como criaturas cruis e violentas, praticando
todo tipo de atrocidades contra os roceiros, adquirindo ilimitadamente terras, com
objetivo claro de acumular cada vez mais, at que entram em disputa direta pelas terras
de Sequeiro Grande, fronteiria dos dois latifndios. Ser a ganncia desmedida que
selar o destino desses dois cls na trama: os Badar so arruinados e o Coronel
Horcio perde a mulher e a vontade de viver (mas nunca a vontade de acumular mais
roas de cacau).
Se o romance escrito por Jorge Amado na dcada de 1930, Cacau, enfoca
principalmente os trabalhadores, este romance tem como centro da narrativa os grandes
proprietrios e as crueldades de que so capazes em sua febre do ouro. A luta
sangrenta entre os latifundirios pelas terras de Sequeiro Grande, que vitimou
trabalhadores, jagunos e at coronis encontra seu clmax nos 2 ltimos pargrafos do
romance:
Histrias de Alexandre
Publicado em 1944, o livro seguinte de Graciliano Ramos um livro voltado
para o pblico infanto-juvenil, escrito especialmente para participar de um concurso466.
464
Acusavam o Coronel Horcio de trs mortes e de trs mortes brbaras. Dizia o processo que
no contente de ter matado um dos homens, cortara-lhe as orelhas, a lngua, o nariz e os ovos.(...)
Todos sabiam que ele o havia praticado. Fora uma questo de contrato de cacau. In: Amado, Jorge:
Terras do sem fim. So Paulo: Martins, 1973 (30 Ed.), p.50.
465
Amado, Jorge: Terras do sem fim. So Paulo: Martins, 1973 (30 Ed.), p286.
Este comentrio, reforado pela histria de uma negra velha que, num primeiro
momento, decide permanecer servindo na cozinha dos antigos donos, mas que, diante da
postura ainda escravocrata destes, um dia, em um rompante, declara, antes de arrumar
as trouxas e partir da fazenda: Cativeiro j se acabou, Sinh. Agora to bom como
to bom470 O problema que alm da trouxa e da suposta liberdade a negra velha no
tem mais nada. Ante a fome e a misria, retorna fazenda para l morrer. Graciliano
466
1 Edio: 1962 / Gnero: Contos e outros / ltima edio brasileira: 53 (2008) In:
http://www.graciliano.com.br/obras_alexandre.html
467
Ramos, Graciliano, Histrias de Alexandre. Rio, So Paulo: Record, Martins, 1975 (12 ed.).
468
Assim como a parte principal deste livro Histrias de Alexandre o texto de A pequena
histria da repblica j estava escrito h algum tempo. Elaborado em 1942, Graciliano pensou em utilizlo em um concurso do MEC, tendo sido dissuadido por seus amigos, que temiam que o texto fosse
tomado como uma provocao por parte do governo, o que poderia acarretar nova priso do escritor. In:
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos Olympio,
1992, p.197.
469
Ramos, Graciliano, Histrias de Alexandre. Rio, So Paulo: Record, Martins, 1975 (12 ed.),
p.127-128.
470
Idem, ibdem, p. 127.
coroa o final da histria desta negra, que serve de forma metonmica para falar do
destino da maioria dos negros depois da abolio, com o comentrio irnico To bom
como to bom471
Outro momento em que a acidez do autor fica patente quando comenta o jogo
poltico durante o perodo Imperial, baseado no revezamento de poder entre dois
partidos que, de fato, pouco difeririam entre si:
Em geral, essas personagens se filiavam num dos dois grandes partidos que
aqui brigavam: o liberal e o conservador. Um deles dirigia os negcios pblicos.
O outro, na oposio, dizia cobras e lagartos dos governantes, at que estes se
comprometiam e S.M. os derrubava e substitua pelos descontentes, que eram
depois substitudos. Os programas dessas faces divergiam, claro, mas na
prtica eles se assemelhavam bastante.
E como apenas duas se revezavam no poder, facilmente se tornavam
conhecidas e no inspiravam confiana.
Na verdade s os cidados importantes, pais e avs dos cidados importantes
de hoje e de outros que no so importantes, se alistavam convictos nesses
partidos. As criaturas vulgares permaneciam indiferentes ou iam para onde as
empurravam472
471
Ramos, Graciliano, Histrias de Alexandre. Rio, So Paulo: Record, Martins, 1975 (12 ed.),
p.128.
472
473
tomando aqui uma forma, ali outra, manifestava-se contra o oficial, que exige a
continncia, e contra o mestre-escola, que impe a regra. A autoridade perigava.
Afastou-se o pronome do lugar que ele sempre tinha ocupado por lei.
Ausncia de respeito a qualquer lei.
Com certeza seria melhor deslocar o deputado, o senador e o presidente.
Como esses smbolos, porm, ainda resistissem, muito revolucionrio se contentou
mexendo com outros menos modestos. No podendo suprimir a constituio,
arremessou-se gramtica.474
Esse pequeno captulo nos d uma mostra de como Graciliano Ramos descreve
(para seu pblico de midos?) uma srie de transformaes que marcou a sociedade
brasileira a partir da dcada de 1920. O interessante deste trecho perceber que, em seu
o discurso seco e irnico, o escritor associa o modernismo a um sentimento de
descontentamento generalizado que fazia com que o poder estabelecido fosse
incisivamente questionado, nos mais diversos locus e nas mais distintas camadas da
sociedade brasileira. Perceber essa leitura que o escritor faz, entre o deboche e a
galhofa, do modernismo, e constatar que, na sua histria repleta de grandes nomes, h
tambm espao de destaque para as manifestaes organizadas dos trabalhadores, nos
ajudam a compreender a leitura que Graciliano sobre esses processos.
474
Ramos, Graciliano, Histrias de Alexandre. Rio, So Paulo: Record, Martins, 1975 (12 ed.),
p.163.
475
Continuao de Terras do sem fim, o romance foi concludo em Periperi, subrbio da Capital
baiana, em janeiro de 1944 e sua 1 edio de junho de 1944, pela Livraria Martins Editora, So Paulo,
capa de Clvis Graciano, 363 pginas. Posteriormente, passou a integrar, como stimo tomo, volume IX,
as Obras Ilustradas de Jorge Amado, com ilustraes de Frank Schaeffer, at a 28 edio, 1975. A
partir de ento, vem sendo publicado pela Editora Record, Rio de Janeiro, sendo a 52 edio, 1999, a
mais recente, com fixao de texto por Paloma Jorge Amado e Pedro Costa, capa de Pedro Costa com
Carlos Zude, exportador de cacau pea central desta narrativa, que mostra
como a regio cacaueira conheceu rpido desenvolvimento nos 30 anos que a separam
da narrativa anterior, descreve da seguinte forma os coronis, antigos donos da regio:
So como crianas tmidas480.
Neste segundo livro da srie encontramos personagens de destaque na trama
vinculados ao pensamento marxista e/ou ao partido comunista.
Com formao
480
481
482
484
Mais adiante, no romance Os subterrneos da liberdade, Jorge Amado diz que o porto de Santos
era conhecido o porto vermelho. interessante notar como a partir de um momento de sua produo, o
partido comunista parece ganhar destaque nas narrativas. Se antes parecia estar relegado ao final
apotetico da trama quando o protagonista encontrava a superao da situao de opresso que conhecera
e passa a lutar de forma organizada pela transformao social, a partir deste romance j aparece ao longo
das narrativas, sempre como referncia a uma organizao que se faz presente e atuante, a despeito das
adversidades. Como nos casos de ilhus de So Jorge dos ilhus e de Santos de Os subterrneos da
liberdade.
Alguns daqueles dezessete que foram levados pela polcia ainda cumpriam
pena na penitenciria da Bahia. Joaquim fora mandado para o Rio. A maioria
voltou para a Ilha das Cobras. Traziam nas costas marcas de caos de borracha. Os
habitantes da Ilha das Cobras, como bons ilhenses, se orgulhavam de que os presos
dali no haviam soltado uma s palavra, a polcia nunca conseguira descobrir os
verdadeiros responsveis por aquelas duas bombas que explodiram uma noite na
sede integralista. Diziam que os presos ilhenses apanhavam sorrindo.486.
Um destes homens
Joaquim, apontado como a principal liderana operria, e como aquele que mais sofre
com as perseguies da polcia.
O partido o seu lar, sua escola, sua razo de vida. Muito pouca gente sabe
que Joaquim um dia pensou em se suicidar (...) Um dia embarcou de marinheiro e
viajou outras terras. Quando voltou sabia de coisa que jamais pensara possveis,
aprendera mistrios que resolviam o destino do mundo. No se envaideceu. (...)
Mas a sua educao s se ampliou realmente nos meses de priso, no Rio.
Fora preso na Ilha das Cobras, na sua ficha ia um adendo: Perigoso. Mandaramno ento para o Rio onde as prises estavam cheias. Ali estudou, estudou no
apenas poltica e economia, numa nsia terrvel de saber, mas estudou as coisas
mais primrias tambm, gramtica, geografia, rudimentos de francs. Tinha uma
inteligncia clara e viva, uma facilidade assombrosa de aprender. Os outros
souberam ver o quanto aquele jovem poderia ser til e no perderam tempo com
ele. Quando voltou para a Ilha das Cobras era o mesmo Joaquim, calado e terno,
amigueiro e modesto, mas era tambm um homem, um homem que sabia o que
queria e o que deveria fazer.487
485
486
487
488
Amado faz questo de frisar a oposio clara entre estes dois campos
antagnicos: de um lado os interesses da burguesia, de outro os interesses dos
trabalhadores.
comunistas aparecem como arautos e defensores dos interesses dos segundos e atravs
das lentes do medo que so vistos pelas duas fraes da classe burguesa em disputa
produtores e exportadores de cacau, embora em poucos pontos estes dois grupos
apresentem convergncia.
Durante toda a disputa pelas terras do cacau entre os antigos Coronis e os
exportadores, travada na cidade de Ilhus, os protagonistas da trama no so os
comunistas to valorizados em descries enaltecedoras por Jorge Amado, mas sim
representantes dessas duas fraes de classe. Na disputa travada com novas regras, nada
semelhantes s utilizadas no romance anterior, os vencedores so os exportadores,
representantes do capital internacional. No entanto, para Amado, como anunciado
anteriormente na abertura do livro, o tempo do protagonismo comunista no estava
distante.
Redemocratizao
Tanto a conjuntura internacional de vitria dos aliados na Segunda Guerra
Mundial, com participao efetiva e crucial dos Soviticos e Estadunidenses na mesma
frente de luta quanto uma maior mobilizao interna que passa a exigir que a defesa
da democracia e que a luta contra ditaduras fascistas no seja apenas um projeto de
poltica internacional do Brasil, mas que haja, tambm, internamente, a defesa e
garantia destes mesmos ideais favorecem uma grande manifestao popular em torno
das bandeiras da redemocratizao e do fim do Estado Novo. nesse contexto, que o
PCB retorna legalidade e passa a fazer parte do jogo poltico oficial.
489
comunicar-se com a massa indica outra marca importante deste perodo, que a
utilizao de um discurso patritico que defendia a ptria e o desenvolvimento
nacional.
tal a conjugao de fatores internos e externos que resultou em um afluxo de
novos filiados, fazendo com que, pela primeira vez em sua histria o PCB se tornasse
um grande partido. Dentro deste quadro, conforme j abordamos no primeiro captulo,
foi de fundamental importncia a presena de Luis Carlos Prestes como plo de atrao
de grandes multides. Atravs do cavaleiro da esperana o partido consolidou e
ampliou sua penetrao em setores da sociedade antes resistentes ao comunismo. Uma
das formas mais utilizadas pelo partido para garantir esse novo cenrio de proximidade
490
SEGATTO, Jos Antonio. Breve histria do PCB. Belo Horizonte: Oficina de livros, 1989.p.56;
citado por ARAUJO, Monica da Silva. A arte do partido para o povo: o realismo socialista no Brasil e as
relaes entre artistas e o PCB. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. Dissertao de mestrado, p.32.
s massas era a organizao de grandes comcios em que sua estrela maior discursava.
Luis Carlos Prestes, recm sado da priso, era a garantia de multides lotando estdios
de futebol.
Em seus discursos, Prestes reafirmava a poltica de unio nacional, clamava pela
coligao das foras progressistas nacionais e instava pelo combate a todas as foras
fascistas que ainda remanescessem incrustadas no poder.
interessante notar como essas transformaes conjunturais repercutem na
Associao Brasileira de Escritores. Segundo a Declarao de Princpios tirada em seu
I Congresso, realizado em So Paulo,
Essa verso sobre a filiao do escritor foi fornecida ao bigrafo pela famlia de
Graciliano. Por mais que, com o passar do tempo, fora da repetio, possa ter sido
romanceada pelos membros da famlia filiados antes do escritor importante por
ilustrar um momento importante no s da vida do autor, mas, principalmente, por
ilustrar a forma como o partido procedia na poca da redemocratizao com relao
intelectualidade...
A estratgia de utilizao da imprensa como forma de divulgao dos nomes de
intelectuais que se somam s fileiras comunistas, sendo no Rio de Janeiro o jornal
Tribuna popular o principal veculo deste tipo de divulgao, passa a fazer parte da
493
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p. 211.
494
Idem, ibdem, p.211.
prtica da imprensa comunista. Dessa maneira, a filiao de Graciliano faz parte de uma
engrenagem de publicidade do partido que abandonou de vez uma postura mais isolada
e passa a assumir a face de plo de atrao de setores diversos da sociedade civil
interessados na manuteno da democracia.
A Tribuna noticiar da seguinte forma a filiao de Graciliano:
Nos jornais comunistas, j naquele ano de 1945, o tema da paz comea a figurar,
ao lado de democracia, progresso e ptria como um dos mais abordados nas
publicaes do partido. A paz torna-se, portanto, outro plo capaz de congregar e de
agitar multides. Batendo na tecla da necessidade de uma vigilncia contnua para a
garantia da manuteno da paz recm conquistada, os comunistas estruturavam seu
discurso em torno da idia de que a ecloso de qualquer conflito de classes um pouco
mais severo, poderia colocar em cheque a vitria das foras democrticas contra o
fascismo. Em um discurso que no oferecia perigo quela que considerava ser sua nova
aliada, a burguesia, o PCB pedia calma aos trabalhadores, em uma poltica de apertar
os cintos que tentava evitar conflitos diretos entre patres e empregados.
O resultado desta poltica pode ser mensurado a partir do resultado das eleies
de 1945. Segundo Monica da Silva Arajo:
nas eleies de 1945 Yeddo Fiza, candidato do partido presidncia obtm 10%
dos votos vlidos em poucos dias de campanha, do mesmo modo que o partido
elege uma bancada considervel: 1 senador (Luis Carlos Prestes, o mais votado do
pais) e 14 deputados federais (com concentrao nos estados do Rio de Janeiro,
So Paulo e Pernambuco).496
495
497
:Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.214.
498
:Idem ibdem, p.214.
499
Segundo relata em Navegao de cabotagem ,quando comenta a falta de tempo para ficar com
Zlia Gatai no incio de seu relacionamento, vivamos juntos desde julho de 1945, mas no nos sobrara
tempo para namorar tanto quanto desejaramos: eu dirigia o cotidiano paulista do Partido Comunista, o
Hoje, tarefa que tomava a maior parte do meu tempo, Zlia se revelara imbatvel ativista da comisso de
finanas. In: Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p.214.
500
Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p.70.
afora, aquela argumentao. props-me assumir o mandato por trs meses e ento
efetivara renncia. Trs meses, nem um dia a mais, assegurou-me Prestes501.
501
502
503
Leitura critica e informao bibliogrfica, Rio de Janeiro, abril de 1945 (n28) pp.69-70.
Editora Vitria
Assim como a existncia de uma imprensa partidria, existe uma preocupao
do PCB, desde seus primrdios, em estabelecer uma atividade editorial organizada e
orientada no sentido de formao de quadros e atrao de novos militantes para a esfera
do partido. Embora presente nos estatutos desde sua fundao, , sobretudo, a partir da
dcada de 1930 que esse ambiente de interveno poltico-cultural se consolida.
Os motivos apontados por Antonio Albino Canelas Rubim para o
desenvolvimento da atividade editorial do partido so de natureza interna e externa ao
seu funcionamento. Em primeiro lugar, importante atentar para o fato de na dcada de
1930 ter havido uma significante ampliao do mercado editorial brasileiro, bem como
uma significativa renovao nas reas de literatura e anlise social. Em segundo lugar,
na dcada de 1930 houve um sensvel aumento na curiosidade sobre a revoluo russa
dentro do territrio nacional.
504
Alm de os jornalistas Aparcio Torelly, Aydano do Couto Ferraz, Pedro e Paulo Motta Lima; os
dramaturgos Joracy Camargo e Oduvaldo Viana; os pintores QuirinoCampofiorito, Lasar Segall, Di
Cavalcanti, Jos Pancetti, Carlos Scliar e Cndido Portinari; o fsico Mario Schemberg; os arquitetos
Oscar Niemayer e Vilanova Artigas; o maestro Francisco Mignone. In:Moraes, Dnis. O velho Graa
uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1992, p.213.
Os romances do povo
Parte do esforo da direo partidria para a difuso de uma literatura orientada
pelo realismo socialista, que permitisse a atrao de novos militantes e a formao das
bases do partido a Vitria lana, em 1951, a coleo Romances do povo.
A direo da coleo ficou a cargo de Jorge Amado, mas, acredita-se, no era
dele a ltima palavra sobre os ttulos da coleo, uma vez que havia de se levar em
conta as orientaes do partido. H uma divergncia sobre a autonomia que o autor
teria na escolha dos ttulos que figurariam na lista dos publicados na coleo, segundo
Rubim,
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, pp.402-403.
506
Idem, ibdem, p.403.
seleo de ttulos da coleo. Alberto Passos Guimares diz que Jorge Amado
apenas emprestou o nome, as decises viriam da direo partidria. Jorge fala
que a coleo no era muito apreciada pelos dirigentes e de suas muitas [...]
brigas na direo para poder manter a linha da coleo sem cair no sectarismo,
sobretudo sem publicar uma srie de romances medocres [...] que a direo do
Partido s vezes queria impor. s vezes porque um fulano qualquer tinha lido
[...] a direo no lia coisa nenhuma, ainda bem. Em verdade, os processos
decisrios devem conjugar todo esse campo de foras poltico-culturais
envolvidas507
Ttulo
Um homem de verdade
Assim foi temperado o ao
A l e a neve
O grande norte
Donos do orvaiho
Tchapiev
A colheita
A tempestade v. 1
A tempestade v. 2
Espartaco
A hora prxima
A felicidade
A estrada de Folokolansk
A tragdia de Sacco e
Vanzetti
Primeiras alegrias
A torrente de ferro
Sol sobre o rio Sangkan
Coolie
Os mortos permanecem
jovense sangue
Terra
Anunciados/
Um vero extraordinrio
Publicados/
Fronteiras ao vento
Autor
Boris Polevi
Nicolai Ostrowski
Ferreira de Castro
Tikhon Siomchkin
Jacques Roumain
Dimitri Furmanov
Galina Nikolaieva
Ilya Ehrenburg
Ilya Ehrenburg
Howard Fast
Alina Paim
Piotr Pavlenko
Alexandr Bck
Howard Fast
Konstantin Fdin
Alexandre
Scrafimovitch
Ting
Ling
Mulk Raj Anand
Arma Seghers
Mikhail Cholokv
Konstantin Fdin
Alfredo Gravina
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.403.
508
Idem, ibdem, p.403.
Linha do
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.403.
Tribuna Popular
Um interessante complemento s discusses suscitadas a partir da leitura das
edies de A classe operria est nas pginas do jornal tambm comunistas, mas
voltados para um pblico mais amplo, Tribuna Popular, substitudo posteriormente por
Imprensa popular. Perceber ressonncias daquilo que o partido diz a seus militantes
naquilo que diz populao em geral bem como perceber aquilo que o partido cala
significa poder investigar a especificidade das fontes de que nos servimos e perceber as
estratgias de convencimento utilizadas pelo partido ao se dirigir a pblicos distintos.
Pelo editorial do primeiro nmero de Tribuna popular, podemos perceber a
quem o jornal se dirige: Nosso jornal, servindo ao povo, emanado do povo e ao povo
vinculado510. Essa escolha por um pblico amplo encontra-se em perfeita sintonia com
um projeto internacional do comunismo de construo de frentes nicas nos diversos
pases na luta contra o nazi-fascismo.
Como verificamos nas pginas de A classe operria, esse momento de guerra
ser um momento de afrouxamento do discurso mais classista e de opo por uma
estratgia de defesa da democracia burguesa contra o fascismo. Essa poltica deveria
ser adotada nos mais variados contextos nacionais para que a estabilidade democrtica
mundial fosse conquistada. Desta forma, no Brasil de maio de 1945, o cenrio poltico
definido da seguinte forma no editorial do jornal comunista: tudo isso depende
imediatamente de uma sada democrtica, pacfica e unitria para a atual crise
poltica. S esse caminho, numa atmosfera de ordem e tranqilidade, permitir ao
Brasil, ainda, cooperar na obra de consolidao da paz continental e mundial511
510
511
Esse tipo de estratgia ser utilizado pelo partido e conseqentemente por seus
rgos de divulgao at 1947, quando o clima de harmonia do ps-guerra esfacela-se
ante ao claro antagonismo entre URSS e EUA.
Escrito no ano de 1944, sua 1 edio da Livraria Martins Editora, So Paulo, setembro de
1945, com capa de Clvis Graciano e ilustraes de Manuel Martins. O texto foi revisto para a 8 edio,
1960, e novamente atualizado para a 12 edio, 1966, integrando a coleo Obras Ilustradas de Jorge
Amado, como oitavo tomo, volume X. A 19 edio, maio de 1970, da mesma coleo e pela mesma
editora, revista e atualizada pelo autor, tem capa de Caryb, ilustraes de Manuel Martins e retrato do
autor por Carlos Scliar, 263 pginas. / A 40 edio, 13 pela Record, de setembro de 1996, a mais
recente, foi atualizada pelo autor e ilustrada por Carlos Bastos. / Foi publicado em Portugal e traduzido
para o espanhol, francs e italiano. / O captulo Canto de amor Bahia recebeu msica de Dorival
Caymmi, gravada em disco, em 1958, com interpretao do autor. In:
http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/bahia2.htm#historico
513
AMADO, Jorge, Bahia de todos os santos: guia das ruas e dos mistrios da cidade de Salvador.
So Paulo: Martins, 1973 (24 ed.).
O convite do autor deixa claro que o passeio que prope no tenta mostrar
apenas o lado bonito da cidade de Salvador, o lado habitado pela elite que se cerca de
confortos e modernidades e que, geralmente, fecha os olhos para o outro lado que o
autor pretende mostrar: o lado do sofrimento e das misrias experimentados
cotidianamente pelos pobres que povoam a cidade. Pelo menos metade do convite de
abertura dedicado a alertar a interlocutora, e, por conseguinte, o leitor, de que s se
conhece verdadeiramente uma cidade quando se entra em contato com o lado esquecido
pelos guias de turismo, o lado habitado por uma gente pobre que, a despeito das belezas
naturais que a circundam, vive uma existncia de fome e de tristezas. O romancista
ainda vislumbra o dia em que poder mostrar uma outra cidade, uma cidade justa e, a
sim, inteiramente bela. Para ele, esse dia s chegar, mesmo que o diga explicitamente,
com a revoluo.
Logo no incio desta visita guiada, Jorge Amado apresenta A atmosfera da
cidade, avisando que nela o turista ver as coisas mais absurdas515. Depois de uma
apresentao da diviso existente entre a cidade alta e a cidade baixa, e de indicar os
nomes de ruas, faz um mapeamento geogrfico da cidade. Nos captulos Bairros grfinos, Bairros da pequena burguesia, Bairros proletrios e As invases, o
escritor apresenta a distribuio social dos bairros soteropolitanos. Sobre os ltimos,
comenta:
Para os pobres no foram abertas novas ruas, nem foi gasto asfalto, colinas
no foram rasgadas, nem houve especulao imobiliria: houve barulho, houve
cadeia, houve tiro, gente presa e muita luta. Assim nasceram os novos bairros
operrios. Em terras devolutas cujos proprietrios s se recordaram que as
possuam quando nelas comearam a se elevar as improvisadas habitaes. Ou
514
Amado, Jorge. Bahia de todos os santos: guia das ruas e dos mistrios da cidade de Salvador.
So Paulo: Martins, 1973 (24 ed.), pp.16-17.
515
Idem, ibdem, p.20.
entrando pelo mar tranqilo do golfo, palafitas sobre o mangue. Das invases
nasceram os novos bairros operrios e populares.516
Infncia
Como vimos anteriormente, Graciliano comeara a militar ativamente no PCB
no ano de 1945, participando de diversas manifestaes promovidas pelo partido e
tendo seu nome alavancado pela imprensa comunista. A tribuna popular, depois de
noticiada sua filiao, tambm publicou outras matrias sobre o escritor. Segundo Dnis
de Moraes, na biografia O velho Graa, A Tribuna
516
Amado, Jorge. Bahia de todos os santos: guia das ruas e dos mistrios da cidade de Salvador.
So Paulo: Martins, 1973 (24 ed.), p.63.
517
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.213.
esmiuando suas relaes familiares, seus primeiros contatos com as letras, a fazenda e
as vilas que serviram de palco para suas primeiras experincias, e, sobretudo, suas
primeiras reaes ao mundo que o cercava. Essas reaes so descritas pelo autor de
forma custica, no poupando os familiares das crticas mais duras, e evidenciando
eventos e momentos que acabaram por ser fundamentais para a formao de sua
personalidade adulta. Escolhemos alguns momentos destas memrias que, acreditamos,
dialogam diretamente com outros escritos do autor, principalmente com seu segundo
livro de cunho memorialstico: Memrias do crcere.
O primeiro trecho que gostaramos de evidenciar diz respeito coragem de
reagir ao opressor, quilo que o autor identifica com o herosmo. Descrevendo uma
518
:Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p. 213.
519
1 Edio: 1945 / Gnero: Memrias / ltima edio brasileira: 40 (2008) / Editado tambm /
na Argentina, desde 1948 / na Frana, desde 1956 / em Portugal, desde 1965 / na Inglaterra, desde 1979.
In: http://www.graciliano.com.br/obras_infancia.html
520
Ramos, Graciliano, Infncia. So Paulo: Martins, s.d. (7 ed.).
histria popular, normalmente transmitida oralmente, de um menino que era criado por
um padre e por sua amante, e que era constantemente submetido a pancadas, das quais
consegue vingar-se colocando fogo em um gato, comenta:
Esta obra de arte popular at hoje se conserva indita, creio eu. (...)
ouvindo a modesta epopia, com certeza desejei exibir energia e ferocidade.
Infelizmente no tenho jeito para violncia. Encolhido e silencioso, agentando
cascudos, limitei-me a aprovar a coragem do menino vingativo. Mais tarde,
entrando na vida, continuei a venerar a deciso e o herosmo, quando isto se grava
no papel e os gatos transformam-se em papa-ratos. De perto, os indivduos capazes
de amarrar fachos nos rabos dos gatos nunca me causaram admirao. Realmente
so espantosos, mas necessrios v-los distncia, modificados.521
Eu era ainda muito novo para perceber que a fazenda lhe pertencia. Notava
diferenas entre os indivduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam
no alpendre. O gibo de meu pai tinha diversos enfeites; no de Amaro havia
numerosos buracos e remendos. As nossas roupas grosseiras pareciam-me
luxuosas comparadas chita de Sinha Leopoldina, camisa de Jos Baa, sura, de
algodo cru. Os caboclos se estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas
estacas. Meu pai vigiava-os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e
nunca estava satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. Permanente,
essa birra tornava-se razovel e vantajosa: curvara espinhaos, retesara msculos,
cavara na piarra e na argila o aude que se cobrira de patos, mergulhes e flores
521
522
523
524
525
526
periodicidade no foi alcanada, tendo sido publicados, apenas, dois livros em 1945, um
527
Velasques, Muza Clara Chaves. Homens de letras no Rio de Janeiro dos anos 30 e 40. Niteri,
2000. Tese de doutorado, UFF, pp.112-113.
Literatura:
Ao analisarmos textos publicados na revista Literatura, de uma seqncia
extensa de matrias consultadas, revisitaremos textos quer de autoria de nossos
escritores, quer de outros, quer, ainda, de orientaes programticas do partido ou
resultados de eventos que estiveram de acordo com suas diretrizes. Nesse sentido
faremos dialogar, entre si, textos desta variada produo, com o intuito de apontar em
que medida Graciliano e Amado integram redes de relaes da intelectualidade de
esquerda e, em especial, mostram prticas de uma escrita militante.
Segundo Rubim, a revista Literatura, lanada em 1946 por Astrogildo Pereira,
tinha como objetivos declarados aproximar cultura e povo, bem como aglutinar
setores amplos da intelectualidade. A revista no estava subordinada diretamente ao
partido e congregava, realmente, intelectuais de diversos matizes de esquerda. Faziam
parte do conselho de redao, ao lado de Graciliano Ramos, Alvaro Moreyra, Anbal
Machado, Artur Ramos, Manuel Bandeira e Orgenes Lessa. Alm destes, a revista,
dirigida por Astrogildo e secretariada por Jorge Madauar, contaria com colaborao de
diversos intelectuais528.
Literatura teve dez nmeros publicados, mas no final assistiu ao afastamento de
vrios de seus colaboradores, circunscrevendo-se, sobretudo, aos filiados ao partido. O
motivo da debandada explicado por Rubim como resultado da poltica de gueto529
adotada pelo partido a partir da guerra fria.
A apresentao da revista interessante de ser comentada por representar uma
declarao de princpios que, a despeito de ter em seu corpo editorial uma grande
quantidade de comunistas, acena para uma postura plural, apresentando-se como espao
528
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, pp.389-390.
529
Idem, ibdem, p.389.
E esta
Rachel e Jos Lins foram amigos muito prximos de Graciliano, empenhando-se em ajud-lo
nos momentos mais difceis. Com Jorge Amado, Graciliano teve uma relao de proximidade embora no
tenham se tornado amigos ntimos. Sobre a relao de Amando Fontes como romancista, no
encontramos indicaes mais precisas de proximidade.
Mais adiante, o autor analisar, uma a uma, a produo de cada um dos autores,
comeando por Raquel de Queirs. De maneira geral, para Graciliano, o livro de estria
da autora, O quinze, de 1930, demonstrava a fora de uma escritora muito jovem, com
dezoito anos apenas, j capaz de apresentar passagens marcantes. Sobre seu segundo
531
532
livro, Joo Miguel, de 1932, Graciliano derrama-se em elogios, dizendo que pela
primeira vez na literatura brasileira, depois de Artur de Azevedo, aparecem bons
dilogos533. Sobre o terceiro, Caminho de pedras, de 1936, tece comentrios menos
elogiosos534. O quarto livro de Raquel de Queirs, As trs Marias, de 1940, apontado
por Graciliano um livro muito bem escrito535 mas que, no entanto, tem muito mais de
sustentao de uma tese ou argumento do que de romance536.
Sobre os romances de Jorge Amado o autor ainda mais econmico nos elogios.
Seu primeiro romance, O pas do carnaval, no merece anlise detalhada537; seu
segundo romance, Cacau, de 1932, ainda visto como obra frgil, embora Graciliano
aponte a notoriedade nacional e internacional que Jorge Amado adquiriu538; o terceiro
romance, Suor, de 1933, recebe elogios539, e o quarto livro de Jorge Amado, Jubiab, de
1935, apontado como o ponto alto da produo do escritor baiano540.
Os dois
as figuras de Raquel conversam direito sem consultar o dicionrio. Joo Miguel no teve a
divulgao que merece, ainda est na primeira edio, uma vergonha. In: Literatura. Setembro de 1946
(Ano I n1), p. 21.
534
livro demaggico. Tem partes excelentes a morte de uma criana, o monologo de uma
criatura que deixa o marido- mas quase sempre intencional e frio in: Literatura. Setembro de 1946
(Ano I n1), p. 21.
535
o mais bem construdo dos seus romances In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), pp.
21-22.
536
existe, porm, a uma tese muito clara. E as personagens tem menos liberdade que Joo
Miguel, um infeliz prisioneiro In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p. 22.
537
Jorge Amado comeou com O pas do carnaval, na adolescncia In: Literatura. Setembro de
1946 (Ano I n1), p. 22.
538
ainda hesitante, j revela o escritor que adquiriu celebridade em pouco tempo, nestas paragens
e em lugares cultos In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p. 22.
539
coleo de tipos magnficaIn: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p. 22.
540
chega o romancista ao ponto mais elevado. Existe a uma sentinela de defuntos, das melhores
coisas que nos deu. In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p. 22.
541
um recuo. Tem paginas timas, a morte de Esmeralda, por exemplo, mas est longe de
Jubiab In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p. 22.
542
no vale Mar morto In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p. 22.
Jos Lins do Rgo fez o Ciclo da cana de acar, conjunto de cinco romances muito srios:
Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Bang (1934), Moleque Ricardo (1935), Usina (1936).
No podemos isolar nenhum desses: movem-se a as mesmas personagens, apresentam-se os mesmos
interesses, as mesmas lutas. (...) E assim veio a lume a narrao do Bang vencido pela usina, do capital
estrangeiro absorvendo as economias do Senhor de engenho. In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I
n1), p. 22.
544
As admirveis qualidades do escritor somem-se quase a, ou seus defeitos avultam, agravados
pelo fato de se mostrarem lugares e acontecimentos que ele no conhece bem. Jos Lins nasceu na zona
da indstria aucareira, l se criou, l se educou. Ofereceu-nos cinco livros cheios de vida, numa
linguagem forte, expressiva, a lngua velha dos descobridores, conservada no Nordeste, com poucas
corrupes. Largou isso e arriscou-se em digresses perigosas. In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I
n1), p.22.
545
obra onde h passagens horrveis, uma conversa de professores da escola normal de Aracaju,
por exemplo, ingnua e pedante. Contrastando, porm, com essas falhas, acham-se no livro pginas
intensas e humanas In: Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p.23.
546
O meio o bairro das prostitutas numa pequena capital do nordeste, mas esse lugar de safadeza
foi rigorosamente policiado na sintaxe a na moral. A devota intransigente e a colegial afoita que buscarem
ali motivo de censura soltaro o volume decepcionadas. (...) se os lupanares fossem aquilo, venceriam, em
austeridade, em recato, os mais inflexveis estabelecimentos de educao feminina. In: Literatura.
Setembro de 1946 (Ano I n1), p.23.
Como crtico, Graciliano parece revelar seu projeto literrio: uma narrativa
realista colada realidade material e origem no s social, mas especialmente
espacial do prprio escritor. Quanto mais distantes de seu territrio de origem, quanto
mais prximos dos crculos de sociabilidade do poder poltico ou da consagrao
literria, mais os escritores da gerao de 1930 se afastavam desse projeto. No admira
que por essa poca, portanto, Graciliano, vivendo no Rio de Janeiro, estivesse buscando
suas prprias razes, nas memrias da sua origem pessoal, algo que ele conhecia bemo
suficiente para produzir literatura.
Mas no s de crtica e produo literria puras vivia a revista animada pelos
comunistas. interessante atentar para as redes de articulao que as diversas instncias
da sociedade civil ligadas ao campo da esquerda, de uma forma geral, ou ao
comunismo, de uma forma especfica, utilizavam para se defender e se proteger. No
primeiro nmero da revista Literatura, foi publicada uma nota de protesto,
confeccionada pela ABDE, contra o fechamento da Tribuna Popular, jornal do Partido
Comunista no Rio de Janeiro:
547
Excelncia viva inquietao pelo sucedido e protestam contra esse atentado contra
a nossa cultura 548
Esse telegrama foi assinado pelos seguintes escritores e jornalistas: A. Barbosa do Nascimento,
Alberto Passos Guimares, Alfredo Tom, Alina Paim, Alvaro Moreira, Armando Albuquerque,
Astrojildo Pereira, Augusto Rodrigues, Borelli Filho, Bruno Ferreira Gomes, Carlos Scliar, Celso
Figueiredo, Clodoalto Miltin, Dalcdio Jurandir, Dontel de Andrade,Edison Carneiro, Egdio Squeff,
Eugnia lvaro Moreyra, Floriano Gonalves, Froes da Mota, Gil Gaffr, Graciliano Ramos, Ivo Pereira
dos Santos, Jayme Santos, Joo Barbosa de Oliveira, Jorge Medauar, Laura Austregsilo, Lia Corra
Dutra, Luiz A. dos Reis, Luiz Augusto de Medeiros, Miguel Costa Filho, Moacyr Werneck de Castro,
Murilo Miranda, Octavio Malta, Osrio Borba, Oswaldo Alves, Paulo Rodrigues, Raymundo Sousa
Dantas, Rossini Camargo Guarnieri, Rubem Braga, Salomo, Scliar, Vicente de Paula A. Rodrigues,
Viegas Neto, Xavier Placer.
549
Literatura. Setembro de 1946 (Ano I n1), p.80
Um exemplo disto est no ensaio de Nelson Werneck Sodr para Literatura que
analisa a produo literria brasileira posterior a 1930, daquela que ficou conhecida
como a gerao nordestina, a partir de uma leitura das transformaes poltica e
econmicas do cenrio nacional. Para o autor, o modernismo teria aberto caminho para
as transformaes estticas, mas a crise de 1929 e a revoluo de outubro de 1930551
teriam sido marcos de transformao conjunturais mais profundas que acabaram
permitindo o surgimento e de uma nova forma de se fazer literatura.
551
Podemos
respeito a sua ligao com o povo e ao fato de ter escrito um artigo em que se
solidarizara Rssia. De sua obra, no editorial, poucos so os aspectos destacados,
sendo ressaltadas, sobretudo, caractersticas que permitam aos autores da homenagem
realar pontos que oferecessem a possibilidade de uma avaliao da situao poltica e
social do momento da escrita. Essas caractersticas sero to instrumentalizadas que o
editorial assume ares divinatrios, prevendo que, se vivo, Lima Barreto seria um lutador
anti-fascista.
Seara vermelha
Em 1946, Jorge Amado publica um novo romance554, Seara vermelha555.
Durante o perodo de escrita, Amado vivia na Baixada Fluminense, no stio Peji de
553
Oxossi, com sua companheira Zlia Gatai. Ambos militavam no Partido Comunista,
sendo que ele iniciara, em janeiro, sua legislatura. Em seu livro de memrias, escrito
bastante tempo depois de abandonar o partido, rememora da seguinte maneira esse
perodo: Aps o almoo, s treze horas, eu pegava um carro de aluguel, contratado
por ms, para me levar e trazer do Peji a Caxias os dez por cento dos proventos de
deputado que o partido me deixava davam exatos para pagar essa conduo: eu devia
viver de meus direitos autorais, segundo a direo.556
interessante atentarmos para a meno forma como era empregado seu
salrio de deputado, que permanecia com o partido, vivendo o escritor de seus direitos
autorais. Esse comentrio nos ajuda a dimensionar tanto o peso da rentabilidade da obra
de Amado, quanto a evidenciar que, ao menos neste momento, sua subsistncia no
provinha diretamente de sua atividade militante.
Em Seara vermelha, retoma de forma mais contundente a explicitao de sua
militncia poltica. Se, em Bahia de todos os santos, havia se limitado a comentrios
sobre a injustia social, em seu novo romance reafirma sua opo pela via comunista.
Em momento de legalidade do partido e em que a militncia organizava-se em torno de
grandes manifestaes comunistas, Amado, deputado Federal pela bancada comunista,
torna pblica em seu livro sua militncia poltica.
presente logo na dedicatria do livro - Para Luis Carlos Prestes, amigo dos
camponeses(p.1) - e na escolha das trs epgrafes: cai, orvalho de sangue do
escravo,/cai, orvalho na face do algoz,/ cresce, cresce, seara vermelha, cresce, cresce,
vingana feroz... de Castro Alves, de onde toma emprestado o ttulo do romance;
...est no latifndio, na m distribuio da propriedade territorial, no monoplio da
terra, a causa fundamental do atraso, da misria e da ignorncia do nosso povo., de
includo na coleo Obras Ilustradas de Jorge Amado como o dcimo tomo, volume XII, com as
mesmas ilustraes e capa de Caryb, at a 28 edio, 1975. A Editora Record, Rio de Janeiro, assumiu,
ento, a editorao, sendo a 49 edio a mais recente, com fixao de texto por Paloma Jorge Amado e
Pedro Costa, ilustraes de Caryb, as antigas ilustraes de Carlos Scliar e foto do autor por Zlia Gattai,
338 pginas. / o segundo romance amadiano mais divulgado no estrangeiro, tendo sido publicado em
Portugal e traduzido para o albans, alemo, rabe, armnio, blgaro, chins, eslovaco, espanhol,
finlands, francs, grego, hebraico, hngaro, italiano, japons, lituano, moldvio, polons, romeno, russo,
srvio, sueco, tcheco, turco, ucraniano e vietnamita. / Cinema: Seara vermelha, Proa Filmes, So Paulo,
1963, filme estrelado por Marilda Alves, com trilha musical composta por Joo Gilberto, direo de
Alberto dAversa e adaptao, roteiro e dilogos de dAversa e Jorge Amado In:
http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/seara2.htm#historico
555
Amado, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed).
556
Amado, Jorge. Navegao de Cabotagem. Rio de Janeiro: Record, 1992, p.216.
Esperana v.
557
Amado, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), p.52.
Agora quase que s eles lhe restavam na vida, sua famlia estava acabando
depressa e ela j no lastimava que os trs houvessem partido mesmo que para
serem soldado e cangaceiro, que pior era morrer naquela viagem para So Paulo.
Ia tomando dio a essa terra de So Paulo, no sabia mesmo porque ainda
marchavam para l. Podiam ter ficado pelo caminho, numa fazenda qualquer,
como agregados. Que importava que o salrio no desse, que a terra no fosse
deles, que lavrassem para um coronel e para ele colhessem? De qualquer maneira
iriam vivendo e estariam todos vivos e juntos559
558
559
AMADO, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), pp.60-61
Idem, ibdem, p.145.
pretende mostrar uma faceta diferente do problema e quais as sadas encontradas pelos
nordestinos do serto para lidar com a forma com a qual o sistema capitalista os trata.
A misria vivenciada por meeiros, colonos e agregados que trabalham em um
sistema de semi-escravido nas grandes fazendas sistema que gera lucros incrveis
para fazendeiros levando uma existncia penosa, apresenta poucas alternativas de
fuga. Dentre as mais usuais, encontram-se o engajamento no exrcito, a formao de
bandos de cangaceiros e o surgimento de beatos que predizem o fim do mundo. vale
salientar que duas destas mesmas estratgias foram tratadas por Graciliano Ramos em
560
Amado, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), p.146.
- Por que o senhor no junta o dinheiro que tem, no ruma para oeste,
atravessa a fronteira, vai ser fazendeiro na Bolvia?
- Pra qu, seu moo?...Tou nessa vida de bandido porque roubaram as terras
de meu pai. E no se contentaro, ainda mataro o pobre vio que nunca tinha feito
mal a ningum. E era uma porquera de terra, nem chegava a dois arqueire... L
quero terra pra me tomarem de novo... sou bandido j vai pra mais de onze anos,
vou morrer nessa vida. De morte matada porque nenhum macaco vai me pegar
com vida, se Deus me ajudar...561
561
Amado, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), p.207.
Joo, ou Jo, que entrara para a polcia para buscar um futuro diferente da vida
de seu pai, sempre explorado e sem perspectivas, apresentado como um policial feito
pelas circunstncias: se no fosse a polcia seria qualquer outra coisa. Tudo menos a
misria mida de sua existncia na fazenda:
Sem deixar de ser, nem por um momento sequer, um soldado fiel s ordens
recebidas, executando as patrulhas, montando guarda e pronto para avanar contra
os sertanejos do beato, sentia-se preso ao outro lado, se no vestisse a farda da
polcia seria um dos homens do beato, rezaria em suas procisses, lhe pedira a
beno, baixaria a cabea ao ouvir suas palavras.564
562
563
564
Amado, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), pp.220-221.
Idem, ibdem, p.220.
Idem, ibdem, p.239.
Mas tampouco essa fuga possvel. Jo tambm morre, pelas mos de seu
irmo, Z Trovoada. Os dois irmos encontram-se de lados opostos de um conflito
gerado pela misria. Perdem ambos a vida em um cerco da polcia ao acampamento do
beato Estevo, que era protegido pelo bando de cangaceiros de Lucas Arvoredo.
A terceira alternativa de fuga aparece em outra personagem da famlia, Zefa. A
tia amalucada se junta ao bando do beato Estevo buscando a salvao da alma, uma
vez que a salvao da carne parece impossvel. O beato seguido por um bando
andrajoso de sertanejos que largam tudo para buscar uma esperana de conforto, mesmo
que essa s venha depois da morte. Exploraria outro fruto da misria nordestina: o
fanatismo religioso.
Como duvidar, se ele falava da fome dos homens, de todas as desgraas que
sucediam, se ele dizia que nenhum coronel, nenhum dos grandes fazendeiros, se
salvaria da ira de Deus, do castigo iminente? (...)
O beato falava outra lngua. Nenhuma palavra contra as raparigas, contra os
homens que tinham mulher sem receber beno do vigrio, contra os que usavam
guas e jumentas. Clamava, em compensao, contra os pecados dos ricos, falava
de como eles estavam matando os pobres de fome, e a eles, sua usura e a sua
cobia, atribua a clera de Deus que resolvera terminar com o mundo. Nunca
parou para descansar numa casa grande e as poucas vezes que se encontrou com
algum coronel foi para lanar-lhe no rosto as mais violentas imprecaes, para
convid-lo a entregar aos colonos espoliados as terras tomadas, para pagar o
roubado nas contas do armazm aos seus trabalhadores.565
AMADO, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), p.242
AMADO, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), pp.333-335. Vale atentar
para o fato de mais uma vez Jorge Amado apresentar o momento de priso como perodo de formao e
aperfeioamento da conscincia de classe de um de seus personagens. Anteriormente j havia se utilizado
do mesmo recurso em So Jorge dos Ilhus.
Como nunca a tinham visto naqueles dez meses em que faziam semelhante
viagem, imaginaram que fosse a me de algum preso comum. Perguntaram-lhe:
- Ele est preso por qu?
- Era cabo em Natal, brigou numa revoluo... condenaro ele, dizque foi um
crime muito feio...Mas eu cunheo meu filho, num sei dele se meter em coisa
ruim...Num credito...(...)
- Como o nome dele?
- Juvncio... A gente chama ele de Nenn...
E ento foi um entusiasmo. Havia pessoas que at o nome dela conheciam
sem que ela houvesse dito. Eram amigos de seu filho. O corao dela encheu-se
de orgulho. (...) O resto da viagem a velha passou narrando as peripcias da
travessia pelo serto, quando lhes tomaram as terras que trabalhavam. Em redor
ouviam espantados e at um gacho, guarda do presdio, na Ilha, sentiu-se comover
com aquela narrao sem adjetivos e sem lgrimas567
No barco, junto aos familiares dos outros presos polticos de Ilha Grande que
Jacundina recebe o reconhecimento de que seu filho no era um bandido, mas sim um
heri. Neste momento da trama como se se iniciasse uma nova fase da narrativa em
que os sofrimentos finalmente pudessem ser superados. E a que Jorge Amado
descortina sua verdadeira esperana no futuro: a prxima gerao. Tonho, sado
ainda criana do serto, um dos poucos integrantes da famlia que conseguiram chegar
com vida a So Paulo, que levar frente o basto da luta empunhado por seu tio:
Foram dias cheios, para Tonho era a revelao de um mundo. (...) Tonho
gostaria de ficar ali, entre eles, e aprender com o tio e com os demais aquelas
coisas que eles sabiam. Uma, principalmente, gravava-se em sua cabea: a terra
pertence queles que a trabalham porque o diziam, eles estavam presos. Mas valia
apena. Tonho tambm no se importaria se fosse preso por aquele crime. (...) A
moa, ao apertar a mo de Tonho, disse-lhe:
-At outra vez, comunista...
Ele riu:
- Um dia vou ser...568
567
568
AMADO, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), pp.333-335
Idem, ibdem, p. 336.
E com este eplogo que est aberta a brecha para o incio da verdadeira
redeno, aquela que no transige com um sistema de explorao e que v na
organizao dos trabalhadores do campo e da cidade a sada para a histria de dor e
sofrimento de tantas famlias que se embrenham pelas seara vermelha do serto
nordestino.
Esse otimismo tpico do ano de 1946 no se sustentaria na realidade dos anos
seguintes. O clima da guerra fria e a ilegalidade do PCB so suficientes para
entendermos por que.
569
Amado, Jorge. Seara vermelha. So Paulo: Martins, 1972 (27 ed), p.337
Captulo 4
570
Moraes, Dnis de. O imaginrio vigiado: A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil
(1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.120.
571
Idem, ibdem, p.120.
representados
pelos
Estados
Unidos
pela
Unio
Sovitica,
572
Essa orientao para a rea cultural seria traduzida no controle, pelo Estado da
produo artstica sovitica, que passa a ser encarada como ponto estratgico na difuso
de uma educao comunista capaz de fazer frente mentalidade burguesa. Nesse
sentido, A arte deveria transcrever a atitude do proletariado em face da realidade,
refletindo suas aspiraes, e clarificar a luta que se transcrevia na sociedade entre o
belo e sublime projeto socialista e o feio e vil sistema capitalista.578
Esse acirramento das caractersticas do realismo socialista, em que de doutrina
oficial assume o status de lei, a arte passa a ser encarada como uma das armas para
garantir o controle interno e para difundir o comunismo internacionalmente579, em uma
poca em que o campo oposto, representado pelos norte-americanos, tambm no
poupava esforos na construo de uma imagem negativada do comunismo, atravs de
sua forte indstria cultural.
Ancorado na idia de apresentao de heris positivos, passou a fazer parte do
esforo de propaganda empreendido por Zdanov a diretriz para que os artistas
transformassem os melhores representantes da classe operria em personagens
positivas da fico580. Dessa maneira, os artistas so instados a representar
tematicamente a vida do proletariado e do campesinato, de onde so retirados os
exemplares do heri almejado.
576
Para esta anlise das duas fases do realismo socialista, o autor utiliza como referncia a obra de
Vittorio Strada, Da revoluo cultural ao realismo socialista, presente no livro Histria do marxismo,
organizado por Eric Hobsbawm, j mencionada nesta tese.
577
Moraes, Dnis de. O imaginrio vigiado: A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil
(1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.123.
578
Idem, ibdem, p.123.
579
Os expurgos promovidos por Stalin neste primeiro momento da guerra fria estendem-se para o
campo cultural. Artistas que no adotassem as novas normas para a arte, podiam sofrer retaliaes que
variavam desde o ostracismo at a priso.
580
Moraes, Dnis de. O imaginrio vigiado: A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil
(1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.124.
Um gnero que passa a ser bastante valorizado neste perodo o gnero pico ou
histrico revolucionrio. Dentre os tpicos presentes nas obras que utilizavam-se
deste estilo, enfocam, principalmente, os seguintes tpicos:
581
Citao feita por Moraes do texto de V. G. Zltnikov & L. G. Iuldachev, A cultura esttica da
sociedade socialista (em Fundamntos da esttica marxista-leninista. Moscou: Progresso, 1982). In:
Moraes, Dnis de. O imaginrio vigiado: A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (19471953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.124.
582
Moraes, Dnis. O velho Graa: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.259.
anticomunista que ira ser responsvel pelo fim do breve perodo de legalidade do
partido. Alegando ser o PCB um rgo a servio de uma nao estrangeira, a URSS, e
defensor de interesses soviticos infiltrado no pas, o TSE cassa a licena do partido em
maio de 1947.
Nesse momento, comea a mobilizao das diversas instncias de representao
do partido e de grupos de democratas e esquerdistas para a garantia das liberdades
constitucionais, como se verifica, por exemplo, na nota em defesa da constituio de
1946 confeccionada pela ABDE e divulgada a diversos rgos de imprensa em maio
de 1947. A nota enfatiza que a defesa da democracia foi a principal bandeira da guerra
contra o fascismo e que proibir o funcionamento de partidos polticos significaria um
intolervel retrocesso:
Castro Alves foi, assim, a lira das cem vozes da democracia e a sua voz
ecoa ainda hoje, com a mesma fora e a mesma atualidade, neste momento em que
os patriotas se empenham na consolidao da democracia em nossa ptria, afim de
achar a melhor soluo para os nossos problemas polticos e econmicos.
Os intelectuais brasileiros que, com a sua Declarao de Princpios no I
Congresso de Escritores (1945), representaram importante papel no esforo popular
pela redemocratizao do pas, ento sumido na ditadura e na intolerncia faltariam
a um dever elementar se esquecessem a tradio de luta em prol das liberdades
democrticas que vem de Castro Alves. Os ideais por que se bateu so anda os
nossos ideais a Republica democrtica, que afinal vai se consolidando na terra
brasileira. Da que o seu centenrio de nascimento seja, para os intelectuais
brasileiros, um momento histrico, solene, um momento de ponderao dos
ensinamentos da sua vida e da sua obra, dedicada liberdade e ao bem estar de seu
povo.583
583
Literatura. janeiro - junho de 1947 (Ano II n4), pp. 1 3. assinaram este documento 293
intelectuais entre jornalistas, escritores, ensastas, crticos, pintores, arquitetos, etc.-, dentre os quais,
Graciliano Ramos (n113) e Jorge Amado (n148)
584
Para ilustrar sua linha de argumentao, pode-se destacar o seguinte trecho: E no se diga que
o povo pobre no capaz de ler e compreender tais escritores. O que os separa do povo apenas uma
questo de preo, a emoo que um Gorki e um Victor Hugo transmitem o povo a sabe sentir
perfeitamente. In:Literatura. janeiro - junho de 1947 (Ano II n4), p. 46.
585
Nas feiras da Bahia, no Mercado Modelo, na beira do cais, junto aos saveiros e s canoas, so
vendidos ao preo de quatrocentos reis uns folhetos em verso ou em prosa que so praticamente a
nica leitura daquela humanidade do cais e daquelas vizinhanas. In: Literatura. janeiro - junho de 1947
(Ano II n4), p. 45.
586
Literatura. janeiro - junho de 1947 (Ano II n4), pp. 45 47.
chamando ateno para a existncia de muitos folhetos que elegeriam, como temtica
central, sua vida ou seus feitos, e afirmando:
contemplados com as edies a preos populares: entre eles esto Victor Hugo, Gorki,
Diderot, Andreiev, Voltaire, Dostoievski.589 Esta lista ecltica parece denotar, a um s
tempo, a inteno de oferecer ao grande pblico acesso a autores russos, o que
indiretamente poderia contribuir com uma aproximao do pblico brasileiro da URSS,
e, ao mesmo tempo, colocar esses mesmos autores no patamar de grandes mestres da
literatura universal, incluindo-os assim no grande cnone.
Como vimos, mesmo em uma matria que no tem como objetivo imediato a
defesa da URSS, traz como pano de fundo esse momento tenso em que a difuso de
uma perspectiva comunista se faz estratgica, como pode-se depreender pelos esforos
para a divulgao da literatura sovitica.
587
588
589
relaciona aos rumos polticos das conjunturas nacional e internacional, est no conjunto
de pontos na pauta de discusso, que abrange questes diretamente vinculadas
profisso, como os direitos autorais, at assuntos vinculados ao cenrio do ps-guerra,
como a defesa da paz.
590
conjuntura de 1947 exigiria uma participao ainda mais aguerrida dos intelectuais, bem
como seria o II Congresso ainda mais importante e estratgico do que o anterior.593
Tratando da realizao propriamente dita do segundo congresso, enftico o
discurso da revista:
592
593
do PCB com relao aos intelectuais nesta poca foi responsvel por um grande refluxo
destes entre os anos de 1948 e 1956. A debandada de intelectuais neste perodo
explicada por Rubim da seguinte maneira:
596
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.439.
597
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.279.
Sobre esta listagem de medidas tomada por Graciliano a frente da ABDE, alguns
comentrios se fazem necessrios. Em primeiro lugar, percebemos a freqncia de
manifestos relacionados a assuntos internacionais. Embora a entidade, desde sua
criao, tenha se pautado por relacionar a lutas maiores que a as relacionadas
diretamente categoria, como, por exemplo, a redemocratizao, neste perodo de
guerra fria, torna-se freqente o recurso da publicao de manifestos que direta ou
indiretamente, condenem os posicionamentos e atuaes dos Estados Unidos no cenrio
internacional. Outro destaque que gostaramos de fazer diz respeito meno obra de
Jorge Amado, O mundo da paz, onde essas questes discutidas nos manifestos da
ABDE ganham terreno no campo da fico598. Alm disso, durante seu mandato,
realizou-se o IV Congresso Brasileiro de Escritores, em Porto Alegre, entre os dias 25 e
30 de setembro de 1951.
O amor do soldado
Enquanto isso, Jorge Amado continuava a sua busca pela valorizao dos heris
nacionais. Na pea teatral O amor do soldado, de 1947, encomendada pela atriz Bibi
Ferreira, Amado retoma o personagem de sua primeira biografia, o poeta romntico
Castro Alves599. Nessa obra, o cerne da ao no apenas a luta do poeta pela abolio
598
e a repblica, mas a relao amorosa que desenvolveu com a atriz portuguesa Eugnia
Cmara. A escolha deste personagem principal para a elaborao de sua primeira
incurso teatral, feita em conjunto pela atriz e pelo autor, parece se coadunar com uma
tendncia percebida por Rubim no meio literrio na partir do incio do sculo XX:
Editora Record, Rio de Janeiro, e a 31 edio, a mais recente, 1992, tem 229 pginas, capa reproduzindo
quadro de Di Cavalcanti, ilustraes de Ana Letcia, retrato do autor por Jordo de Oliveira e foto do
autor por Zlia Gattai. / Foi publicada em Portugal. In:
http://www.fundacaojorgeAmado.com.br/obras_jorge/amor2.htm#historico
600
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.444.
603
604
documento da nossa poca pela verdade elementar que ele encerra e porque ele
encarna as aspiraes de populaes inteiras que querem sair da escravido a que
esto condenadas. A polcia de So Paulo no respeitou o nome de um dos maiores
escritores brasileiros, apreendeu o livro como apreendeu o livro de Jorge Amado
sobre a vida de Luis Carlos Prestes. (...)
Lembro-me que Graciliano Ramos quase perde os originais de Angustia.
No fosse ele ter enviado uma copia do romance para um local desconhecido da
polcia, e hoje a literatura brasileira no contaria com um de seus maiores livros.
(...)609
PROTESTO DA ABDE
Texto de moo lido na Cmara dos deputados, em sesso de 14 de maio de
1948, pelo Deputado Afonso Asinos610.
A Associao Brasileira de Escritores, pela sua diretoria e conselho
fiscal reunidos em sesso conjunta, vem se manifestar e protestar contra prises e
violncias polcia is sofridas por alguns de seus conscios nas ultimas semanas.611
609
MANUEL BANDEIRA
O eminente poeta, que desde o incio da publicao desta revista consentiu em
prestar-nos a sua colaborao e o seu concurso pediu que retirssemos o seu nome
do conselho da redao de Literatura.
Lamentamos, mas obedecemos613
614
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p. 248.
615
Como vemos, por exemplo na seguinte nota publicada em Literatura: Congresso Mundial de
Intelectuais pela Paz / O congresso de Wroclaw, convocado por um comit franco-polons, reuniu-se
durante os dias 25 a 28 de agosto ltimo, com a participao de 390 intelectuais de 45 pases, inclusive o
Brasil. / Aps trs dias de debates, o congresso aprovou, por 371 votos contra 11 e 8 abstenes, uma
resoluo final sob a forma de Apelo aos intelectuais do mundo, que reproduzimos adiante.In:
Literatura, outubro de 1948 (Ano III n10), p.1.
616
Para integr-lo, foram convidadas as seguintes pessoas: Anand, Andersen Nexo, Aragon,
Borejsra, Cesaire, Davidson, Dembowski, Fadieiev, Fast, Fiedosiejow, Giral, Golding, Gottuso, Haldane,
Joliot-Curie, Jorge Amado, Kahn, Mukaezewski, Pablo Neruda, Seremi, Shapley. A sede do Comte foi
fixada em Paris. In: Literatura, outubro de 1948 (Ano III n10), p.2. interessante de se notar, que os
dois nicos intelectuais que tem divulgados nomes e sobrenomes so Jorge Amado e Pablo Neruda.
Severa deve ser a voz e diretas devem ser as palavras daqueles que falem
aqui em nome dos intelectuais dos pases da Amrica Latina, especialmente severa
a de quem fale em nome da cultura brasileira, porque minha voz nesse momento
a ressonncia de vozes que clamam das prises, dos subterrneos da ilegalidade ou
por entre as limitaes de um ambiente de terror, de ameaa, de restries de toda a
espcie livre expresso e desenvolvimento da cultura.617
617
618
619
Doze casas editoras brasileiras, metade do total de nossas editoras, foram falncia ou
fecharam suas portas no ano de 1947. In: Literatura, outubro de 1948 (Ano III n10), p.8.
620
somos o maior mercado externo do cinema norte-americano () as grandes empresas
cinematogrficas exigiram dos proprietrios de cinemas a no exibio de pelculas brasileiras, sob a pena
de lhes cortar a programao. (...) e no apenas os filmes brasileiros tem a sua exibio sabotada, tambm
os franceses, os soviticos, ingleses, italianos encontraram o mercado brasileiro praticamente fechado a
sua produo In: Literatura, outubro de 1948 (Ano III n10), p.8.
621
A revista transcreve todo o discurso de Jorge Amado que, estando fora do pas, atravs deste
tipo de nota e artigo em peridicos ligados ao partido se fazer presente na cena poltica e cultural
brasileira. Literatura, outubro de 1948 (Ano III n10), p.10.
Um dos motivos que podemos cogitar como hiptese explicativa para essa
necessidade de Jorge Amado em enfatizar que o evento congregou representantes de
vrias correntes do pensamento, e no somente comunistas, seria a de que esse texto no
estava destinado reproduo apenas pelo jornal do partido. Mas, observando a tnica
dos outros textos que tratam do tema da paz presentes na mesma edio de A classe
624
625
operria, parece mais provvel imaginar que este tipo estratgia argumentativa v ao
encontro de um discurso geral, e internacional, muito bem estruturado e coeso, que
visava municiar os militantes com argumentos que sustentassem a representatividade
ampla do Congresso.
Imprensa comunista
Como vimos anteriormente, no curto perodo de legalidade que viveu entre os
anos de 1945 e de 1947, o Partido Comunista do Brasil ampliou de forma considervel a
sua penetrao cultural atravs da montagem de uma imensa rede de comunicao
social que contava com publicaes dirias e semanais em grande parte do territrio
nacional e vivenciou seu perodo de maior destaque no cenrio da imprensa nacional.
Os anos que vo de 1945 a 1948 so apresentados por Rubim como o perodo
ureo da imprensa comunista no Brasil, perodo em que esta assumiu tal relevncia no
cenrio nacional que chegou mesmo a se aproximar dos nmeros alcanados pelos
veculos da, assim chamada, grande imprensa. A razo para tal sucesso seria, segundo o
autor, o forte investimento feito pelo partido, que acreditava ser de valor estratgico
para a sua ampliao a estruturao de uma imprensa de grande penetrao social a ele
subordinada.
Para tanto, o PCB contou com a colaborao dos diversos intelectuais filiados ou
simpatizantes, que participaram ativamente da vida destes peridicos. Dentre esses
jornalistas, acadmicos, pintores e escritores que colaboraram com os jornais e revistas
do partido, encontravam-se Jorge Amado e Graciliano Ramos.
A partir de 1947, no entanto, inicia-se uma nova fase de dificuldades para a
imprensa comunista. As dificuldades enfrentadas (a destruio de grficas e redaes, a
perseguio a redatores e colaboradores, por exemplo) passam a exigir dos comunistas
novas estratgias para a manuteno de seus canais de divulgao.
Dentre estas,
destacam-se a troca dos nomes das publicaes, como aconteceu, por exemplo, com a
Tribuna Popular, do Distrito Federal, que passa a se chamar Imprensa popular, e o
funcionamento de grficas e redaes clandestinas.
626
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.392.
627
saibamos levar o nosso programa s mais amplas massas da populao do pas. Atravs da
imprensa do povo, em comcios e assemblias populares, saibamos abrir a mais ampla discusso em torno
de seu contedo, que precisa ser conhecido de todos os brasileiros... nesse processo, organizando para
lutar e aproveitando a luta para organizar, unificar-se-o as foras populares e rapidamente crescer e
estruturar-se-, a partir das organizaes de base, a grande e poderosa Frente Democrtica de Libertao
Nacional. In:Prestes citado por Edgard Carone, ob. cit., p. 111 in: Moraes, Dnis. O imaginrio
Desta forma, Ghioldi tenta demonstrar que uma crtica burguesa estaria
maculada por uma perspectiva capitalista e individualista que a impediriam de ver a
possibilidade da congregao da liberdade com a coletividade. Os artistas do realismo
vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1994, p.67.
628
Imprensa popular, 21-01-1951, p.3.
629
Imprensa popular, 21-01-1951, p.3
O zdanovismo
Como j foi observado, o contexto de perseguio e dificuldades para o
comunismo, inaugurado com a guerra fria, levou a uma radicalizao da orientao do
partido sovitico para a rea cultural. Se, desde a dcada de 1930, o realismo socialista
j dispunha do status de uma orientao internacional uniforme que pretendia fornecer
um exemplo positivado do proletariado e do comunismo, oferecendo-se como
contraponto a uma esttica burguesa, a partir de 1948, em decorrncias das profundas
mudanas conjunturais, que esse posicionamento agudizado e aprofundado,
assumindo o carter de uma doutrina rgida e incontornvel. Essa segunda fase da
aplicao dos pressupostos enunciados no I Congresso dos Escritores Soviticos, em
1934, ficaria tambm conhecida como zdanovismo.
Em consonncia com as novas orientaes do comunismo para a rea cultural, o
Comit Central do PCB empenha-se na aplicao do zdanovismo no Brasil. O escritor
Dlacdio Jurandir designado por Arruda para elaborar um informe sobre o tema que
deveria ser divulgado e discutido pelos artistas vinculados ao partido. Alm disso, o
prprio Dalcdio e outros escritores como Alina Paim e Plnio Cabral, so convocados
para dar forma a um projeto amplo de construo de uma nova literatura, orientada por
objetivos sociais revolucionrios630.
Os romances produzidos sob essa nova orientao, de utilizao de heris
proletrios em luta contra a explorao burguesa, foram produzidos a partir de um
esquema arquitetado pela direo do partido, em que os romancistas conheceriam de
perto as condies de vida para poder retrat-los com fidelidade. O paraense Dalcdio
seria mandado para a cidade gacha de Rio Grande a fim de preparar um livro sobre
os porturios locais; a baiana Alina acabaria documentando ao vivo as reivindicaes
dos ferrovirios da Rede Mineira de Viao.631
Como veremos a seguir, essas orientaes aparecem de forma contundente nos
trs volumes do romance de Jorge Amado, Os subterrneos da liberdade. J para
Graciliano, as imposies sobre uma escrita que se orientasse pelos padres
propugnados por Zdanov e adotados pela direo nacional do partido seriam causa de
conflitos que
630
Moraes, Dnis de . O velho Graa: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.260.
631
Idem, ibdem, p.261.
632
Idem, ibdem, p.263.
633
Na poca, a maioria dos presentes no poderia supor que a reunio era mais
um round de uma guerra surda cujo alvo, se saberia depois, era Memrias do
crcere. 635
Memrias do crcere
Graciliano, entre os meses de abril e junho de 1952, viaja para a Unio Sovitica
passando pela Tchecoslovquia, pela Frana e por Portugal.
temtica de escritos que redigiu no perodo final de sua vida, publicados posteriormente
sob o ttulo Viagem. Sobre a mesma temtica Amado lanara em 1951 o texto O mundo
da paz, ambas as obras objeto de anlise no captulo final desta tese.
Depois de ser diagnosticado com cncer no pulmo, , em setembro de 1952,
operado sem sucesso, em Buenos Aires. Retorna ao Rio em 5 de outubro, desenganado
pelos mdicos. Sua viagem e as despesas de seu tratamento so assumidas pelo PCB,
que providencia hospital e mdico em Buenos Aires, atravs do intermdio do militante
argentino, ex companheiro de priso de Graciliano, Rodolfo Ghioldi.
No dia 27 do mesmo ms, sem sua presena, um grupo de amigos e admiradores
comemora seu 60 aniversrio no Salo Nobre da Cmara Municipal do Rio de Janeiro,
em sesso presidida por Peregrino Jnior, da Academia Brasileira de Letras e
transmitida pelo rdio, segundo Dnis de Moraes,
Sem mexer uma palha, sem ser consultado e sem sair de seu apartamento,
Graciliano conseguiria aglutinar a intelectualidade. As mgoas acumuladas nos
anos de guerra fria seriam esquecidas por mais de cem escritores, artistas e
intelectuais de vrios credos qu se irmanariam para homenage-lo por seus sessenta
anos, no plenrio da Cmara Municipal do Rio de Janeiro. A Comisso de Amigos
de Graciliano Ramos refletiria esse ecumenismo: de Menotti Del Picchia a Alvaro
Moreyra, de Afonso Arinos a Cndido Portinari, de Jos Lins do Rego a Vincius
de Moraes, de Gustavo Capanema a Astrojildo Pereira, de Manuel Bandeira a
Dalcdio Jurandir.
635
Moraes, Dnis de . O velho Graa: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, pp.274-275.
636
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.300.
637
Memrias do crcere foi a obra que consagrou definitivamente, j aps a morte, Graciliano Ramos
como um dos mais importantes escritores brasileiros. Sobre ela, j h muitos trabalhos escritos e seria
imprudente retoma-los. Por isso nos restringiremos a um breve comentrio que remete ao tema discutido
nesta tese.
638
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.223.
em abril de 1945 ele acertaria com o editor um contrato pelo qual receberia,
mensalmente, dois mil cruzeiros, durante um ano, pelos direitos das primeiras
edies de Infncia e Insnia (volume de contos), das terceiras de Angstia e So
Bernardo e das segundas de Vidas Secas e Caets
No caso de Memrias do crcere, Jos Olimpyio adiantaria, a partir de
julho de 1947, mil cruzeiros mensais, pelo prazo de trs anos, assumindo
Graciliano o compromisso de entregar trs captulos por ms. (...) s vezes, os trs
captulos prometidos reduziam-se a dois ou at a um. Mas Jos Olympio jamais
descontaria um centavo da remunerao combinada.639.
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.223.
640
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, p.225.
Para o que interessa nossa discusso, as posies que sero firmadas nesta obra
que devedora de um tempo de escrita em que o vnculo de Graciliano ao partido no
seria apenas o de simpatia, certamente tornam-na marcada pelos estreitos elos do
escritor filiado que reinterpreta os acontecimentos dos tempos do crcere luz das
informaes que lhe viriam da vivncia em um novo perodo da histria poltica da
esquerda no Brasil, assim como das relaes do pas num cenrio mundial.
Graciliano II narra o episdio da retirada de Olga Benrio Prestes da priso,
acompanhada de uma revolta dos presos, e acrescenta: "Sentado na cama, pensei
com horror em campos de concentrao, fornos crematrios, cmaras de gases"
(G.Ramos, IV, 1953:111). Ora, este pensamento seria impossvel em 1936, quando
se deu o episdio.
Est claro que se Graciliano tivesse preparado o livro para publicao, o
acabamento final suprimiria tais incongruncias. Mas, do jeito como est, o texto
muito significativo sobre a relao ali entre o sujeito da enunciao e o sujeito do
enunciado.642
641
643
Moraes, Dnis. O velho Graa uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1992, pp.275-276.
644
Idem, ibdem, p.277.
MELLO, Marisa Schincariol. Graciliano Ramos: criao literria e projeto poltico (19301953). Niteri: UFF, 2005. (dissertao de mestrado), pp.77-78.
646
Ramos, Graciliano. Memrias do crcere. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1992 (v.1), p.35.
notado. Outros devem possuir lembranas diversas. No as contesto, mas espero que
no recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e no do hoje impresso de
realidade 647.
Os homens, que Graciliano apresenta da mesma maneira como apresenta a si
mesmo, como indivduos lanados arbitrariamente em uma situao de provao e
tolhimento, no so os grandes lderes intocveis e distantes. Rodolfo Ghioldi discursa
de cuecas. Agildo Barata baixinho e fleumtico, os militares envolvidos no levante
constituem um grupo fechado que procura reproduzir no crcere os hbitos da caserna,
os estrangeiros encontram dificuldades para compreender aspectos da realidade
brasileira, presos comuns, ladres e colaboradores de agentes penitencirios, so
capazes de rasgos de generosidade que se aproximam mais de Graciliano do que nomes
ilustres do partido comunista. E essa viso, sobretudo em um momento de profunda
disputa entre capitalismo e comunismo, no poderiam agradar direo do partido.
Segundo Dnis de Moraes, a viso corrente da direo partidria sobre a obra em
progresso era de preocupao com a forma com que esse evento intentona e que os
personagens comunistas apareciam na escrita de Graciliano.
A preocupao da direo partidria, em um momento em que o partido lutava
para garantir sua existncia, frente aos ataques decorrentes da guerra fria, era a de que a
leitura de Graciliano sobre suas experincias no crcere enodassem a imagem daqueles
que, a tanto custo, vinha transformando nos grandes heri e mrtires da liberdade, os
militantes e dirigentes partidrios.
Os subterrneos da liberdade
No ano seguinte morte de Graciliano, Jorge Amado lana Os subterrneos da
liberdade, ltima das obras analisadas neste captulo. A trama da trilogia Os
subterrneos da liberdade ambientada nos momentos anteriores ao golpe que instituiu
o Estado Novo.
647
Ramos, Graciliano. Memrias do crcere. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1992 (v.1), p.36.
648
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.1 Os speros tempos, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., p.201.
expulso do Partido (...) Foi decidido igualmente que a expulso de Camaleo seria
noticiada na Classe Operria.650
Essa passagem pode ser confrontada com as numerosas notcias de expulses
publicadas nas edies consultadas de A classe operria, como, por exemplo, a seguinte
notcia publicada na pgina 4 da edio de abril de 1938:
Expulsos do partido!
Na data de 15 de novembro de 1937, o Bureau Poltico do Partido
Comunista do Brasil (Seo da IC) resolveu expulsar das nossas fileiras, como
elementos nocivos e contra-revolucionrios, os ex-militantes Paulo (Leonidas),
Luiz (Amaral), e Barreto (Julio)651
650
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.1 Os speros tempos, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., p.348.
651
A nota ainda continua informando que o motivo da expulso seria terem os mesmos aberto
uma luta interna de carter fracionista-trotskista, visando quebrar a unidade do Partido. Alm disso,
seriam responsveis por introduzir no partido um policial infiltrado, de nome Geraldo, que , alm do
mais, um degenerado sexual da pior espcie que nada tem a ver como proletariado e os sentimentos
bondosos e altrusticos de nosso povo herico. In: A classe operria, abril de 1938, p.4-5.
652
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade. v.2 Agonia da noite. Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed. p.219.
procurado pela polcia, O militante designado pelo partido para comear a preparar os
habitantes do Vale do Rio Salgado, grande depsito de mangans, para resistir tomada
de suas terras. Gonalo esconde-se na selva e, durante anos, firma amizade com os
caboclos do Vale, sendo por todos respeitado. Quando o banqueiro Costa Vale e seus
associados resolvem tomar posse das terras para construir uma empresa associada ao
capital norte-americano, e comea a expulsar os moradores, Gonalo sente-se perdido e
no sabe como encaminhar a luta.
neste momento da trama que Jorge Amado recorre mais uma vez ao nome de
Prestes como antdoto contra a desesperana654:
653
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.1 Os speros tempos, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., p.210.
Apesar de que, na minha opinio, todo esse enredo que vocs fazem
para enterrar o Prestes tempo perdido. Para que gastar tanta argcia com esse
654
Gonalo se lembra de uma vez em que o dirigente do partido na Bahia, Vitor, lhe mostrara uma
carta em que Prestes, da cadeia, analisava as situaes nacional e internacional. Essa lembrana serve
como alento a Gonalo.
655
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.2 Agonia da noite, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., p.116.
656
No entraremos, aqui, no mrito de se todos esses escritos atribudos a Prestes eram, realmente,
de sua autoria.
bandido? Para o Prestes s h um jeito, seu Artur, encostar num muro e mandar
bala. Se eu fosse o governo, era o que eu faria... estendeu o charuto em direo
ao chofer que mais uma vez voltava a cabea, curioso. Alguma coisa, caboclo?
No isso mesmo?
O chofer fz uma cara de bobo:
No prestei ateno. O motor est falhando... e logo adiante freou o
txi.
Desceu, ouvindo ainda a resposta de Artur:
Nem sempre se pode fazer o que se deseja, Venncio. E nem sempre o
melhor. Em vez de fazer um mrtir, no melhor desmoraliz-lo?
O chofer levantava a cabea de sobre o motor:
Desculpe, patro, a bateria est descarregada.
Saltaram, Venncio Florival pagou resmungando:
Nem um txi a vista, temos de ir a p...
Saram andando, o chofer esperou que se afastassem para murmurar:
Vo a p, se quiserem, corja de canalhas. Matar Prestes! isso que
vocs querem, mas cad coragem?657
A reao do chofer, personagem que aparece esta nica vez na trama, serve para
que o autor demonstre de maneira ficcional a tese que j havia tentado defender na
biografia e nos outros textos que confeccionou sobre Prestes. Ao hipotecar sua
solidariedade silenciosa, o motorista serviria como exemplo do amor irrestrito que a
classe trabalhadora sentiria pelo Cavaleiro da esperana.
Depois dessa demonstrao annima de amor ao heri, o autor encerra sua
narrativa com a deciso de sua herona, a despeito do perigo enfrentado, de assistir ao
julgamento:
657
Amado, Jorge. Os Subterrneos da Liberdade vol.3 A luz no tnel. 28 ed. Rio de Janeiro:
Record, 1976. 3v
Ficarei num canto, s quero ver Prestes. Nunca o vi, uma oportunidade
nica.
Saltara do bonde no comeo da praia de Botafogo, tinha ainda muito tempo
em sua frente, no queria chegar demasiado cedo. Pensava, andando ao lado da
balaustrada da praia, em Prestes, no Partido, na luta.658
Mariana, elevando-se sobre a ponta dos ps, pde enxergar Prestes, entre
dois enormes soldados da Polcia Especial, a camisa sem gravata aberta no peito,
fitando diante de si com seu olhar tranqilo. Mariana no pde mais desfitar a face
serena de Prestes, seus olhos que uma flama apaixonada ilumina. bem ele, o
dirigente legendrio, o capito intrpido, o primeiro operrio do Brasil, aquele em
quem milhes de homens depositavam sua confiana e sua esperana. A vontade
inflexvel, alimentada pelo conhecimento, por um saber sem dvidas, a certeza do
futuro.
No s os olhos de Mariana esto fixos nele. Todos os assistentes esto presos
da firmeza e da serenidade daquele homem, s mesmo os policiais escutam as
palavras vis do Procurador. Os homens e mulheres ali presentes, gente do povo,
vieram para ver Prestes, para solidarizar-se com ele atravs daquela silenciosa
presena, vieram porque confiam nele. Mariana compreende quanto era justa sua
confiana: o povo no se deixava enganar. Um sentimento de orgulho e de alegria
se mistura emoo de ver Prestes659.
E irmanada multido que ali se cotovela que Marina reassume a certeza de que
nada poderia deter um partido que contava com a fora e com a solidez de um heri
como Prestes. Quando este inicia fala rememorando o aniversario da revoluo russa, o
julgamento encerrado e o prisioneiro comea a ser conduzido pelos guardas. a que
realmente o livro encontra seu final apotetico, quando Marina, militante disciplinada e
ciente dos riscos que corria, no se contm e grita:
Viva Lus Carlos Prestes!
658
Amado, Jorge. Os Subterrneos da Liberdade vol.3 A luz no tnel. 28 ed. Rio de Janeiro:
Record, 1976. 3v
659
Idem, ibdem.
Foi to inesperado que, por um momento, nada fizeram. Da porta por onde o
arrastavam, Prestes voltou a cabea, sorriu. Algum gritava ao lado de Mariana:
Foi esta! Foi esta! era Venndo Florival, agitado.
Logo Mariana sentiu que lhe torciam o brao. Os investigadores abriam
caminho entre o povo, a socos e empurres. Tomaram dela com tanta fora que a
levavam quase levantada no ar. A pequena multido de assistentes ia atrs dela e
dos policiais, como se nada mais interessasse no julgamento, agora quando Prestes
j no estava.
L fora era a manh de beleza deslumbrante. Um investigador empurrou
Mariana em direo ao carro de transporte de presos, ela tropeou, ia caindo,
algum a sustentou. Ao levantar-se, ela pde sentir, nos olhos de todos aqueles que
se haviam agrupado na porta e na rua, a mesma clida solidariedade do homem do
povo que a amparava e lhe apertava a mo.
Obrigada... sorriu Mariana.
Com passo firme, a cabea erguida, dirigiu-se para o carro celular.
In: Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.1 Os speros tempos, Rio de Janeiro:
Record, 1976. 28 ed., p.198.
Sobre esse aspecto do livro de Amado, a caracterizao extremamente negativa do militante
Hermnio Sachetta, que aderiu ao trotskismo, em seu Combate nas trevas, Jacob Gorender dedica um
captulo para lembrar que Hermnio Sacchetta, nos anos de chumbo da ditadura empresarial-militar,
reaproximou-se de Carlos Marighella, por iniciativa deste ltimo, e colaborou em vrias aes da ALN.
Retomando os Subterrneos de Amado, Gorender situa: "Saquila - sobrenome quase homfono de
Sachetta - aparece no romance como lder da faco trotskista do Comit Regional. (...) Vrios
personagens e o prprio narrador no lhe poupam qualificaes aviltantes: lacaio da burguesia, bandido,
traidor, delator, cretino, canalha. Um dos mais agressivos acusadores do renegado precisamente Carlos
[personagem que representa Mariguella] (...)
Os subterrneos da liberdade representam a culminncia da escola do realismo socialista na
literatura brasileira. O autor pagou o preo que todos ns, militantes do PCB, pagamos ao stalinismo.
Faltava-lhe a estatura psicolgica e artstica de Graciliano Ramos. Tambm militante do PCB e admirador
de Stlin, Graciliano no se dobrou aos prejulgamentos e deu ao trotskista Gikovate tratamento amistoso
em Memrias do Crcere. Mas Jorge Amado tomou depois conhecimento dos crimes de Stalin, rompeu
com o stalinismo e se afastou do PCB. Teria vrias maneiras de se habilitar, no a Sachetta, que no
precisava ser reabilitado, mas a si prprio, com a admisso pblica da injustia cometida contra um
homem de carne e osso. Nunca deu esse passo. (...)
Hermnio Sacheta arriscou a vida na luta contra a ditadura militar.
E Jorge Amado: esteve a altura do personagem?"
In: Gorender, Jacob. O combate nas trevas. A esquerda brasileira: das iluses perdidas luta armada.
3a. ed., So Paulo, tica, 1987, p. 164.
661
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.1 Os speros tempos, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., pp.196-197.
Neste trecho, fica claro que para Jorge Amado importante que se promova uma
discusso sobre a arte a partir do ponto de vista da direo partidria. Apresentada
como conjunto de pessoas despojadas de projetos e ambies pessoais, a direo do
PCB encarnada em personagens como Ruivo, que lentamente morre de doena
pulmonar, mas nunca abandona as tarefas da luta clandestina, e como Joo, que abre
mo da via familiar ao lado de Mariana para ir aonde o partido necessita de sua
662
Embora, pela descrio elaborada pelo personagem, nos parea que o quadro distancie-se da
representao figurativa utilizada por surrealistas...
663
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.1 Os speros tempos, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., pp.202-203.
presena. Muitos outros personagens como eles aparecem na trilogia como ideais de
luta, persistncia e determinao.
Amado promove essa primeira discusso sobre a arte em sua trilogia a partir do
confronto de dois tipos de personagens - protagonistas e antagonista. De um lado
encontram-se Ruivo e Joo, exemplos mximos de comprometimento com o Partido e
com a causa revolucionria, do outro, o intelectual traidor Sequila. O confronto entre
idias legitimamente revolucionrias e marxistas versus idias pequeno-burguesas e
trotskistas apresentado pelo autor como a disputa entre os verdadeiros representantes
da classe operria e da burguesia.
Para Amado, a discusso, na realidade, apresenta-se como forma de mostrar ao
leitor que a viso de uma arte engajada no partido a nica coerente dentro de uma
perspectiva marxista, assim como para afirmar que qualquer outra alternativa deveria
ser encarada como desvio. Voluntrio ou no, esse desvio representaria a opo por
valores burgueses e no operrios.
Para promover esta discusso, Amado recorre s artes plsticas e no literatura.
As prprias opes estilsticas do autor, que nesta obra mais se aproxima do realismo
socialista, demonstram que optar por um determinado tipo de arte significava, na
realidade, optar por determinada viso da sociedade.
como a literatura668), aquilo que acredita ser a reao normal da pequena burguesia
com relao aos operrios. E, a partir das discusses entre comunistas e pequeno
burgueses, sobretudo de intelectuais simpatizantes do partido, parece querer mostrar
que, entre essas duas foras, a primeira a mais consistente, capaz de guiar a segunda
na construo de uma nova ordem social.
O terceiro autor russo que aparece nas mos de Mariana Serafimovitch.
Internada por causa de uma apendicite aproveita o tempo de internao para ler. Jorge
Amado apresenta a militante como algum to devotada ao partido que mesmo o prazer
da leitura s pode ser desfrutado quando realmente se encontra impossibilitada de
desempenhar qualquer atividade partidria. Internada, encontra tempo para terminar a
leitura de Torrente de ferro669: Mariana o lia antes de vir para o hospital, apaixonada
pelo relato pico, era como se ela visse nascer a alvorada do socialismo na Rssia.
Pedira me para trazer o volume logo que o mdico lhe permitiu ler"670
interessante perceber essa dedicao de Mariana aos livros.
Mesmo j
dedicando todo o seu dia s tarefas do partido, servindo como estafeta, ou elemento de
ligao entre direo, base e simpatizantes, fazendo a engrenagem do partido funcionar
num perodo de perseguio e represso violentas, Mariana aproveita-se dos pequenos
momentos de tranqilidade para ler clssicos soviticos. Essa busca continuada pela
cultura e pela formao intelectual aparece no apenas em Mariana, como tambm em
outros comunistas da trama.
Recorrendo a Canelas Rubim, podemos relacionar esse comportamento da
personagem a uma identificada
668
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade. v.2 Agonia da noite. Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed. p.145.
669
Vale lembrar que Torrente de ferro um dos Romances do povo publicado na coleo da
Editorial Vitria, dirigida por Jorge Amado.
670
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.2 Agonia da noite, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., p.298.
671
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil in: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.380.
672
Provavelmente uma referncia Vale do Rio Doce, fundada durante o governo Vargas.
673
Esse personagem construdo por Jorge Amado como um dos antagonistas da histria. Paulo
diplomata, arruaceiro e ftil, pertencente antiga famlia paulista e filho de deputado. Paulo desvirginou
Manuela e divertiu-se com Shopel transformando-a na nova sensao da dana brasileira.
674
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade. v.2 Agonia da noite. Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed. p.188.
Essa viso de arte prostituda apresentada pelo poeta Shopel bailarina Manuela
ser contraposta verso apresentada por pela militante comunista, Mariana, mesma
interlocutora, criando um claro divisor de guas entre s percepes dos dois campos
antagnicos do romance sobre o que vem a ser a arte .
Manuela tinha a vida em sua frente: antes de tudo, tinha a dana. No,
no era assim como esse tal poeta Shopel dizia. A arte era algo de grande, de
superior, s mesmo gente da alta sociedade, perdida para tudo, podia querer
prostituir a arte. Falou-lhe dos poetas que amava ler, aqueles que escreviam para o
povo. Falou-lhe do romance que tinha no quarto. E lhe falou da vida e do amor
(...) contou-lhe um pouco da sua histria, escondendo a parte poltica, e um dia lhe
falou da Rssia. Foi a propsito de bailados, Mariana lhe perguntou se ela sabia
como o ballet era apreciado e cultivado na Unio Sovitica. No, Manuela no o
sabia, e Mariana deu-lhe alguns detalhes, o pouco que ela mesma conhecia sobre o
assunto.
- No me diga ... Eu sempre ouvi dizer que a Rssia era um inferno, nunca
pude pensar que l houvesse sequer espetculos de ballet.
Mariana sorriu:
-H muita gente que tem interesse em caluniar a Rssia. Todos os que
querem prostituir a arte e explorar os homens...675
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.2 Agonia da noite, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., p.303.
- Quando correu a notcia de tua morte, o negro Balduno fez um ABC, at hoje
cantam no cais da Bahia. Deixe eu me lembrar como: Escute:
Os gringos americanos, que vivem aqui como donos,
explorando o brasileiro, roubando o nosso dinheiro pra levar
pr estrangeiro, esses gringos desgraados, com a polcia
amigados, de noite, na escurido, mataram o Z Gonalo.
O nico jeito que tenho nunca mais ir a Bahia...
Espere, ainda tem:
Mas pra matar foi preciso mais de cem homens armar!
Gonalo, quando os viu chegar, nos lbios tinha um sorriso:
" Viva o povo brasileiro livre do jugo estrangeiro!", morreu
assim a gritar.
Gonalo tinha os olhos midos, Vtor o abraava:
- Tu vs? Responsabilidade muita, meu velho. Uma coisa dessas, sada do povo,
a gente paga trabalhando de verdade. Pra expulsar os gringos...
676
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade, v.3 A luz no tnel, Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed., pp.116.
677
Que tambm j havia aparecido brevemente em Suor.
socialista, aparecem, por exemplo, nas pginas das publicaes peridicas do partido,
revistas ou jornais. o caso, por exemplo, da construo de Prestes como figura quase
sobre humana, dentre outros recursos que mostram que o plano de convencimento da
massa pela validade da opo comunista estava bem engendrado em vrios setores da
poltica cultural do partido,
Outra observao que pode ser interessante a partir da leitura de Os subterrneos
da liberdade a utilizao do perodo do golpe de Getlio para ambientar a trama. No
momento de maior perseguio aos comunistas, torna-se mais fcil para o escritor
construir seu heri proletrio.
Por mais que Jorge Amado tenha conseguido viver exclusivamente de sua
atividade de escritor, o que no aconteceu com Graciliano, por exemplo, devemos
lembrar que durante o longo perodo de seu exlio foi sustentado pelo partido que lhe
forneceu acomodao, alimentao, dentre outros. Um desses perodos justamente o
que passou no castelo dos escritores tchecos em que escreveu a trilogia Os subterrneos
da liberdade. Justamente seu livro mais claramente adequado ao realismo socialista.
No podemos adotar o simplismo de entender o livro como simples encomenda
partidria, mas a relao entre a maior fidelidade aos cnones estticos e polticos do
partido expressa na obra e o momento de vida partidria praticamente profissionalizada
que vivia Amado em seu exlio no pode ser desprezada.
Da segunda quarta obra, para ficarmos com exemplos da produo inicial, vemos que a
representao da ao coletiva, na greve, ganha espao na lgica dos acontecimentos narrativos. Em
Cacau, de 1933, Jos Cordeiro, o Sergipano, ouve pela primeira vez a palavra greve, nas fazendas de
cacau em Ilhus; em Suor, de 1934, a solidariedade dos moradores do cortio da Ladeira do Pelourinho
manifesta-se de forma especial por ocasio da greve dos trabalhadores da companhia do bonde e, aps seu
final, nas movimentaes com vistas libertao dos grevistas que foram presos, sendo um
acontecimento chave na progresso narrativa a morte, com um tiro, de um manifestante pr-libertao dos
grevistas, no momento em que conclamava os Proletrios de todas as naes..., sem que as palavras de
ordem da clebre frase pela unio internacionalista pudessem ser concludas; levando os manifestantes a
darem conseqncias concretas exortao inconclusa; em Jubiab, de 1935, Antonio Balduno, j no
trabalho da estiva, participando da greve, identifica-a como luta solidria dirigida conquista da liberdade
da classe trabalhadora.
narrativa da histria operria (e que no poderia ser articulada somente nos marcos de
uma historiografia cujos recortes fossem apenas quadros de referncias nacionais). Dos
contatos iniciais com o iderio anarquista, com a chegada de Iglezias, s suas
articulaes na Unio Operria, s geraes seguintes, desfila em Rio Grande e seus
entornos uma longa trajetria de lutas de operrios. O final do romance d destaque ao
conflito que envolve confraternizao operria, reivindicaes, represso e confronto, e
culmina na morte de seis participantes das comemoraes do dia do trabalho, em 1950,
entre os quais figura a personagem Maria, representao ficcional da trabalhadora
Angelina Gonalves, da tecelagem Rheingantz, morta por um tiro no episdio-base para
a fico.
Sob a escrita da fico, os romances passam a limpo criticamente pginas da
histria operria, levando a cabo projetos que demandaram pesquisas in loco junto a
atores de cada um dos movimentos tematizados: Alina Paim encontrar-se-ia com
mulheres participantes dos piquetes do movimento grevista ferrovirio de 1950 e
Dalcdio Jurandir viajaria, por trs vezes, ao Rio Grande, como jornalista de A imprensa
popular (em 1950 para cobrir repercusses do conflito (e depois, ainda, em 1951 e
1953, pra dar curso a pesquisas relacionadas escrita do romance).
Os dois romances destacados nessa digresso em contraponto, o de Alina Paim e
o de Dalcdio Jurandir, escritos sob orientao da poltica do Partido para a produo de
uma arte militante, teriam tido, segundo Jacob Gorender680 (ele prprio genro de
Hermognio Silva), seus autores presentes no encontro que teria sido promovido pelo
Partido, no Rio de Janeiro, coordenado por Digenes Arruda, com o fim de implantar a
teoria do realismo socialista entre os intelectuais comunistas. Fato , que ambos os
escritores parecem ter em conta a dimenso poltico-educativa do romance associada
esttica do realismo socialista, enfocando, de forma sistemtica, o protagonismo
coletivo dos movimentos sociais.
680
justamente em meados desta dcada que ocorre um evento significativo [...]: uma reunio de
intelectuais do partido no Rio de Janeiro em carter nacional. Em entrevista autora, Jacob Gorender
declarou ter sido este evento, dirigido por Digones Arruda, ento brao direito de Prestes, realizado
provavelmente no ano de 1950 em carter clandestino num apartamento em Copacabana, com a presena
de 25 a 30 intelectuais militantes, dentre eles, James Amado, Jos Eduardo Fernandes, Osvaldino
Marques, Carrera Guerra, Arnaldo Estrela, Moacir Werneck de Castro, Astrojildo Pereira, Alina Paim e
Dalcdio Jurandir. O historiador lembra que o objetivo era implantar a teoria do realismo socialista entre
os os intelectuais comunistas e, embora no tivesse havido interveno terica alguma sobre o assunto,
dali saram alguns resultados imediatos [...] In:Oliveira, Ilka M.. A literatura na revoluo. Instituto de
estudos lingsticos, Universidade Estadual de Campinas, 1998 (dissertao de mestrado), p.16.
O cenrio em que Jorge Amado deixa o Partido comunista marcado por uma
geral debandada. Depois da leitura dos crimes de Stalin e das frustradas tentativa do
PCB em ocult-los ou neg-los, grande parte dos intelectuais filiados abandona o
partido.
681
Lwy, Michel (org.). O marxismo na Amrica Latina (uma antologia de 1909 at os dias
atuais). So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 1999, p.40.
682
Idem, ibdem, p.40.
Para Joo Quartim de Moraes, nas pginas de Jorge Amado que fica mais
evidente como o marxismo de orientao bolchevique e dogmtica foi absorvido pela
militncia comunista a partir da dcada de 1930. Essa eleio de um de nossos autores
como fiel representante da penetrao de uma leitura dogmtica e pouco aprofundada do
marxismo na militncia pecebista parece ir ao encontro da percepo que temos de que
a escrita de Amado serviu como um exemplo tpico da utilizao dos preceitos
partidrios de forma disciplinada e comprometida.
A anlise das obras de nossos artistas depois da adoo, pelo partido, do
realismo socialista como orientao geral para sua rea cultural permite-nos corroborar
essa viso de Quartim de Moraes. O esforo que fizemos, ao longo deste estudo, foi no
sentido de demonstrar como as indicaes doutrinrias do comunismo, de maneira
geral, ou do realismo socialista, de maneira especfica, foram manejadas de maneiras
distintas por nossos dois autores.
Se para Graciliano estas no foram seguidas em suas obras ficcionais, no
deixou de cumprir as tarefas designadas pelo partido no mbito de sua imprensa,
produzindo textos que, se no podem ser tomados como fiis representantes do realismo
683
Moraes, Joo Quartim de. A evoluo da conscincia poltica dos intelectuais brasileiros in:
MORAES, J.Q.. Histria do marxismo no Brasil. Vol. II (Influxos tericos). So Paulo: Editora da
Unicamp, 1995, p. 70.
socialista, tambm no podem ser analisados como exemplos mais tpicos de sua
obra.684
Alm disso, tanto Graciliano quanto Jorge Amado desempenharam tarefas
partidrias que foram para alm do seu ofcio de escritores no sentido mais estrito,
desempenhando funes de representao, quer no plano internacional caso de Amado
quer no plano nacional como foi o caso de Graciliano na ABDE.
Jorge Amado, no entanto, e como bem indica Joo Quartim de Moraes, pode ser
tomado como um dos legtimos representantes da concepo bolchevique do
comunismo que era hegemnica no Brasil.685 O baiano desempenhou bem as tarefas que
lhe foram impostas pela direo partidria, adaptando-se aos ditames de uma esttica
que tinha propsitos propagandsticos bem definidos e, mais de uma vez, declarou ser
funo do escritor posicionar-se politicamente e colocar sua pena a servio deste projeto
poltico.
O realismo socialista tinha como caracterstica marcante a evidenciao do
protagonismo proletrio, ou seja, o desenvolvimento de temas que colocassem em
relevo, como desencadeadores da narrativa, personagens pertencentes classe
trabalhadora.
684
A comprovao desta afirmao ser aprofundada quando tratarmos de sua crnica sobre Luis
Carlos Prestes e na anlise de seu relato de viagem.
685
Apenas a ttulo de exemplo, poderamos citar, ainda, como representantes desta adequao s
orientaes partidrias, na rea das letras, os escritores Alina Paim e Dalcdio Jurandir.
Apenas em Viagem e
Captulo 5
Parte das concluses a que chegamos neste captulo foram publicadas no artigo Viagens ao
mundo socialista In: Mattos, Marcelo Badar (org.). Livros vermelhos literatura, trabalhadores e
militncia no Brasil. Rio de Janeiro: Bom texto; FAPERJ, 2010.
687
RAMOS, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954.
AMADO, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953.
691
Posteriormente, por ocasio da viagem de Graciliano Ramos, Jorge Amado encontrara-se
novamente em terras soviticas. Quando Graciliano chega em Praga, retornando do Moscou, encontra
brevemente o baiano: (...) No Hotel Alcron, onde estavam alojados vrios brasileiros: Jorge Amado,
(...) In: Viagem, p.15.
692
Imprensa popular, 01-07-1951, coluna literatura e arte, p. 3. In Araujo, Monica. A arte do
partido para o povo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. Dissertao de mestrado, p. 216.
690
A classe operaria
Observamos, no captulo anterior, a importncia que a luta pela paz vai
adquirindo nas pginas da imprensa comunista. Vimos tambm, no primeiro capitulo
deste trabalho, que, na medida em que avana a guerra fria, a mobilizao da base
comunista pelos peridicos do partido passa a ser articulada a partir da luta pela paz,
que toma de assalto as pginas de seu principal peridico, A classe operria.
Nas pginas 4 e 5 do nmero 146 desse jornal, publicado a 16 de outubro de
1948, publicado um texto de Jorge Amado sobre o Congresso de Wroclaw, do qual era
vice-presidente. O texto tem como objetivo expor, para os leitores brasileiros, o que foi
o congresso, quais eram seus objetivos e quais os resultados alcanados. O fato de Jorge
Amado, no exlio desde a cassao dos mandatos comunistas, ter sido designado vicepresidente do Congresso utilizado no ttulo da matria no sentido de auferir prestgio
participao brasileira. O autor baiano apresenta da seguinte maneira o Congresso aos
leitores de A classe operria:
A descrio do Congresso dos Intelectuais para a Paz vai num crescendo que
leva Jorge Amado a afirmar que o que existe de mais ilustre no mundo da cincia, das
694
letras e das artes estava em Wroclaw695; e ainda que este teria sido sem dvida, um
dos mais importantes eventos de 1948 e, com certeza, o mais importante acontecimento
intelectual do aps-guerra.696
O texto de Jorge Amado procura ressaltar que o Congresso no foi um evento
comunista, tendo congregado homens das mais diversas tendncias ideolgicas e
polticas697 rebatendo assim as crticas que circularam depois de sua realizao na
grande imprensa. Para deixar claro o carter no partidrio do evento, e mostrar que em
Wroclaw reuniram-se os mais diversos intelectuais, irmanados no objetivo nico de
promover um debate profundo e cordial, [e] encontrar a justa posio dos homens
responsveis pela cultura perante o problema da paz, apresenta a seguinte lista de
artistas, intelectuais e religiosos que no poderiam ser vinculados diretamente ao
comunismo:
no era possvel como parece ter desejado Mister Huxley ficar em discursos
de elogio paz, de frases cuidadas sobre as alegrias da paz, nem pacifismo de
gabinete, fora da realidade do mundo. Sendo, ao contrrio e isso o Congresso
soube faz-lo muito bem era necessrio ligar o problema da cultura a todos os
grandes problemas da vida internacional. E caracterizar, antes de tudo, quais as
foras que ameaam a humanidade com uma guerra.700
Desde 1947 que matrias, artigos e reportagens sobre A paz figuram entre os
temas mais incidentes nas paginas do jornal oficial do Partido, mas para ilustrar como
esses passam a ocupar cada vez mais espao, tomemos a edio de 12 de maro de
699
700
1949. Nela, toda a primeira pgina versa sobre uma possvel tentativa de guerra
encabeada pelos Estados Unidos. Em letras garrafais, aparece a manchete principal
UNAMO-NOS CONTRA OS PROVOCADORES DA GUERRA, seguida pelo subttulo Lutemos pela liberdade e independncia de nossa ptria!, logo embaixo,
aparecem as outras matrias, utilizando a mesma temtica. Como, por exemplo, o relato
de uma manifestao promovida na ABI em defesa da paz, Ampliemos a luta pela
paz701 ou, o quadro que didaticamente indica as diferenas entre a Unio Sovitica e os
Estados Unidos, emblematicamente intitulado Dois Mundos o qual reproduzimos
alguns trechos a seguir:
URSS:
1) Em dezembro de 1948, os pases membros da ONU fizeram uma
comunicao sobre a utilizao da mo de obra em seus respectivos
territrios, a URSS anunciou a inexistncia de desempregados entre os povos
soviticos e a sua estabilidade econmica.
2) Na URSS, todos os cidados, qualquer que seja a sua origem
nacional ou racial, tem os mesmos direitos nos domnios da vida econmica,
social, cultural, poltica e administrativa. A lei pune como um crime a
discriminao direta ou indireta os cidados.(...)
5) A pena de morte est abolida na URSS em tempo de paz. Na III
assemblia da ONU a URSS props a abolio da pena de morte em tempo
de paz em todos os pases.
EUA:
1) O governo dos EUA anunciou ONU a existncia de 2 milhes
de desempregados . em janeiro e fevereiro essa cifra subiu para 3.250.000.
existem tambm mais de 8 milhes de trabalhadores que s conseguem
trabalhar durante 2 ou 3 dias por semana.
2) O Bureau Censitrio do governo norte-americano acabou de
revelar que os salrios mdios das famlias de cor esto 50 por cento
abaixo dos salrios das famlias brancas. O jornalista John Gunther informa
que num gueto negro em Chicago h um aparelho sanitrio para 30 famlias.
(...)
701
Em vibrante ato publico quarta-feira, na ABI, foi iniciado um grande movimento em defesa da
paz convocado um Congresso Nacional para o dia 9 de abril Adeso ao Congresso Internacional em
Paris.in: A classe operria, 12-03-1949 (ano IV n165). p.1.
702
Algumas observaes sobre esse artigo devem ser feitas. A primeira diz respeito
guinada que representa no prprio discurso da paz. Se antes a defesa da paz j
aparecia de maneira reiterada na imprensa comunista, a partir de maro de 1949 h um
endurecimento do discurso comunista sobre uma real possibilidade de guerra.
Desde 1948 podemos encontrar alertas feitos por diversos dirigentes, intelectuais
e jornalistas do partido sobre as bases americanas espalhadas pelo globo, sobre o perigo
do imperialismo ianque, mas nunca essas acusaes foram to fortes como a partir do
ano de 1949.
O discurso que aparece a partir de maro de 1949 em A classe operria pode
muito bem ser sintetizado na frase j citada acima: no existe meio termo. Foi declarada
a necessidade de escolha de um dos campos adversrios, sendo qualquer neutralidade
encarada como a escolha pelo inimigo.
Outra caracterstica interessante que os artigos sobre a paz, de uma forma
geral, e este, em especial, no parecem mais temer a acusao de serem anti-patriticos.
Mencionam claramente que dentro dos diversos pases que se voltam contra a URSS
existem pessoas dispostas a defend-las, pessoas vinculadas classe trabalhadora e
organizadas nos partidos comunistas. Assim proferem o aviso de que, uma vez
declarada a guerra, os pases inimigos da Unio Sovitica devem estar preparados para
lidar com a ameaa do inimigo interno, pronto e preparado para defender a ptria do
socialismo a qualquer custo.
Apenas a ttulo de ilustrao, vale pena elencar os ttulos das outras matrias
relacionadas defesa da paz que aparecem na edio de 12 de maro de 1949 de A
classe operria: O Brasil e o congresso mundial pela paz e a democracia(p. 2), como
lutar pela paz (p.3), Empenhar todas as foras em defesa da paz (p.3), No
queremos a guerra, queremos liberdade e paz (p.5), O pacto do Atlntico Norte
ameaa a paz, A grande ofensiva dos povos pela paz e contra a guerra (pp.6-7), O
povo do EE. UU. Contra a guerra de Wall Street (p.6), Palavras em defesa da paz (p.
6), Nossa vida na luta pela paz (p.7), e, a coluna de Prestes A luta contra a guerra e o
imperialismo exige uma vanguarda combativa e esclarecida (p.11), que normalmente
figura na dcima segunda, e ltima, pagina do semanrio, mas que nesta edio cedeu
democracia, derrotar e esmagar os inimigos da democracia e do progresso in: A classe operria, 12-031949 (ano IV n165). p.2.
seu lugar cativo reproduo de um texto antigo de Prestes, reeditado naquele nmero
do jornal.
O texto em questo Em caso de uma guerra imperialista, faramos como o
povo da resistncia francesa, que vem acompanhado da seguinte explicao em
negrito: Palavras de Prestes, h 3 anos, denunciando a preparao guerreira do
imperialismo ianque. Prestes continua, portanto, a ocupar o papel de destaque, como
guia e orientador das posies comunistas, dotado de certa capacidade antecipatria.
Na primeira pgina da edio de 14 de maio de 1949, aparece em destaque a
reproduo do texto do Manifesto do Congresso pela Paz, realizado em Paris:
A partir do inicio da guerra fria fica cada vez mais difcil encontrar um exemplar
do jornal oficial do PCB, A classe Operria, em que no predominem as matrias e
reportagens sobre a defesa da paz. Em 1949, esse movimento contnuo de reforo da
704
705
idia de que se houvesse a ecloso de uma nova guerra isto deveria ser atribudo
postura intransigente e belicosa dos Estados Unidos, uma vez que a URSS j havia
dados mostras incontestveis706 de apenas desejar a manuteno da paz, j estava
consolidado. Alem disso realizava-se o esforo para demonstrar que a luta pela paz era
uma iniciativa dos povos e no exclusividade dos comunistas.
Sobre a entrevista que fez ao poeta chileno Pablo Neruda por ocasio do
Congresso Mundial dos Partidrios da Paz, Jorge Amado escreveu:
706
Como exemplo dessa vontade inegvel pela preservao da paz, o jornal utiliza-se da
transcrio de textos e entrevistas em que Stalin afirma a opo do povo sovitico pela manuteno da
paz. Conferir, por exemplo, matria Contribuies da URSS causa da paz, publicada em A classe
operria , na edio de 14-05-1949 (ano IV N174), na pagina p.2.
707
A classe operria 14-05-1949 (ano IV N174), p.7.
de textos a serem publicados pela coleo, mas a deciso final sobre a publicao ficaria
a cargo da direo partidria.
interessante pensar em como essa poltica de publicaes fez parte de um
esforo sovitico de se contrapor as formas de propaganda americana e que por isso
assumiu propores mundiais. Neste caso, como escritor, Jorge foi escolhido por
editores de outras editoras congneres como representante de uma literatura comunista a
ser difundida. Talvez desse esforo tenha derivado a situao que levou o escritor
baiano a ser, durante muito tempo, o mais traduzido de nossos escritores708.
Essa viso pode ser corroborada pela prpria imprensa do partido que alardeia a
fama internacional do autor. Como sinaliza Mnica Araujo, publicada a seguinte
informao na edio de 29 de julho de 1951, do jornal Imprensa Popular, na coluna
Homens e fatos que os livros de Jorge Amado estariam traduzidos em vinte e cinco
lnguas, com suas tiragens atingindo alguns milhes de exemplares. Essa insistncia
na construo de Amado como um escritor mundialmente conhecido parece ser
utilizada como forma de valorizao da luta pela paz, de uma maneira especfica, e do
comunismo, de uma maneira geral.
Vale, por isso mesmo, tentar perceber como, por vezes, para um pblico geral,
Amado apontado como um escritor progressista e como, outras vezes, aparece
claramente identificado com o comunismo. Essas parecem ser estratgias distintas mas
complementares que so sacadas e utilizadas pelo partido de acordo com o veculo de
comunicao e com a conjuntura especfica.
Em 1954, Amado concede uma entrevista para a Imprensa popular, em que fala
sobre seu papel como editor da coleo Romances do povo. Na entrevista, afirma que
o projeto contribuiria para a formao de leitores na classe trabalhadora, que se
encontrava distante da literatura principalmente em funo dos preos exorbitantes das
publicaes tradicionais709. Afirma que, com a coleo, cada vez mais pessoas estariam
se aproximando da literatura de boa qualidade e, a partir da, elenca as publicaes da
coleo.
708
Pelo menos at o aparecimento de Paulo Coelho como novo sucesso editorial brasileiro.
Como foi observado no captulo anterior, o autor se serviu do mesmo argumento em um artigo
escrito para defender a importncia de uma coleo de livros a preos populares.
709
Jorge Amado est ligado ao povo, tem f em seu futuro (...) Jorge Amado
ajuda o homem a sentir-se homem. Milhares de brasileiros devem a esse escritor o
haverem encontrado o caminho para o campo dos partidrios da paz. Assim como o
trabalho honrado enobrece o homem, as obras do escritor progressista enobrecem o
leitor.710
710
As viagens
Passando, agora, analise dos livros que sero nossas principais fontes de
trabalho neste captulo, pretendemos investigar os ecos deste tipo de discurso sobre a
paz nos dois escritos. Dessa forma, pretendemos integrar as obras dentro de um
contexto maior de disputa entre dois campos antagnicos: o capitalista e o comunista.
Os livros, formalmente, apresentam tanto caractersticas comuns quanto
distintas. Jorge Amado, em O mundo da paz, utiliza uma estrutura temtica na
construo de seu livro, embora essa diviso obedea ordem cronolgica sua viagem.
A obra est dividida em duas partes, sendo a primeira, Viso da URSS,
dividida em 4 captulos: A estrela vermelha sobre Berlim (com trs sub-captulos),
Onde cresce um homem novo e melhor (com nove sub-captulos), Onde a cultura
est colocada a servio do povo (com nove) e Os ces ladram e a caravana passa
(tambm com nove).
A segunda parte, As democracias populares em marcha para o socialismo,
dividida em 5 captulos: No h cortina de ferro , mas h uma cortina de dlares (este
servindo como introduo e no contando com divises internas), Flagrantes da vida e
711
do trabalho (com vinte e trs sub-captulos), A Albnia uma festa (com dez subcaptulos), Onde o imperialismo foi derrotado (com quatro) e Ganhemos a batalha da
paz (este servindo como concluso e tambm no dividido em sub-captulos).
Vale a pena citar alguns ttulos de sub-captulos do livro, como Vamos sonhar
sem dormir, A fraternal famlia dos trabalhadores Impor a Paz, palavra de ordem do
povo, O escritor to responsvel quanto um estadista, Stalin, mestre, guia e pai,
dentre outros que demonstram a forte inteno do autor de no s oferecer uma viso
positivada da URSS, bem como de defender teses como as de que a paz desejo
comunista, de que o escritor tem o claro papel de se posicionar politicamente e de que
Stalin era o grande lder mundial.
J Graciliano Ramos adota o estilo de dirio de viagem para a construo de sua
Viagem. Os eventos so narrados de forma cronolgica e os captulos identificados
apenas por nmeros.
Os 34 captulos apresentam, aps seu nmero, como epgrafe, um parntese com
um dia, um ms e um ano e, em alguns casos, uma localizao, correspondentes data e
ao local em que foram escritos. Assim, vemos, por exemplo, que no dia 31 de maio de
1952, em Cannes, foi escrito o captulo de nmero 1. As dataes vo at o captulo de
nmero 34, quando a escrita foi interrompida pela morte do autor, sendo anexadas ao
livro as notas de viagem que no puderam ser transformadas em texto final.
Podemos identificar como semelhante o gnero escolhido pelos autores, relato
de viagens, escrito na primeira pessoa do singular e apresentando-se como obra noficcional. Mas a prpria disposio dos captulos e seus ttulos deixam claro que os
escritores adotaram estratgias discursivas distintas. A diferena pode ser entendida a
partir das posturas de cada um dos autores, e explicitadas em seus textos, sobre o
objetivo que os teria impulsionado a escrever esses relatos de viagem, como veremos
adiante.
Os viajantes
A existncia desses relatos feitos no contexto da guerra fria aponta claramente
para a importncia atribuda pelo partido divulgao de uma imagem positivada da
URSS. Bem como indica a utilizao sistemtica pelo PCB de intelectuais conceituados
nessa divulgao.
Jorge Amado e Graciliano Ramos poca da publicao de O mundo da Paz e
Viagem, respectivamente, j eram escritores com bastante visibilidade, tanto no cenrio
literrio nacional quanto por seus comprometimentos militantes. Essa visibilidade, no
entanto, se processou de forma diferenciada: ambos experimentaram graus diferentes de
reconhecimento de suas obras em vida, graus diferentes de envolvimento partidrio e
tiveram seus textos, tambm de forma diferenciada, marcados pelas linhas diretrizes
comunistas.
Os paralelos possveis em suas trajetrias de vida, no entanto, sugerem percursos
interessantes de pesquisa, permitindo que experincias comuns aos dois autores sejam
investigadas do ponto de vista da presena/ausncia em suas obras. E ser assim que
empreenderemos nossas viagens URSS conduzidos por Jorge e Graciliano.
Antes de mergulharmos nos dois eixos condutores de nossa anlise neste
captulo, quais sejam a defesa da paz e as representaes de Stalin presentes nos dois
relatos, vale a pena tentar penetrar nos argumentos utilizados pelos escritores para
justificar a elaborao de seus relatos bem como da postura que adotaram no momento
da escrita.
O discurso de abertura de cada um dos relatos a parte em que os autores se
apresentam como detentores de uma viso diferenciada do mundo sovitico, olhar esse
que, por conta da imprensa, no chegava, usualmente a terras brasileiras. No entanto,
esse outro olhar ser por Graciliano Ramos apresentado como neutro e por Jorge
Amado como uma defesa da URSS e de seu lder.
Ao pensarem seus papis como escritores e ao explicitarem (ou no) sua
militncia poltica em suas obras, os autores acabam por colocar na pauta de seus
escritos a defesa de uma sociedade at ento no presente nas representaes da mdia
ocidental.
713
Isso, para Lukcs, possui um cho histrico especfico, pois se relaciona ao fato de
que enquanto os grandes escritores realistas da primeira metade do sculo XIX viveram
as contradies da implantao do capitalismo, os naturalistas do fim do sculo fizeramse escritores numa fase em que o capitalismo j estava consolidado. Assim, a
alternativa participar ou observar corresponde, ento, a duas posies socialmente
necessrias, assumidas pelos escritores em dois sucessivos perodos do capitalismo. A
alternativa narrar ou descrever corresponde aos dois mtodos fundamentais de
representao prprios destes dois perodos.714
Essa diferena, para Lukcs, no se circunscrevia aos contextos do incio e final
do sculo XIX, em que se desenvolveram realismo e naturalismo, mas se manifestava
tambm no sculo XX e no mundo sovitico, em que resistiria no realismo socialista a
descrio do ponto de vista do expectador, no se tendo ainda alcanado a marca de
uma narrativa realista, construda segundo o ponto de vista da experincia do
participante. Assim, o que os livros de matriz zdanovista conseguiram foi, no limite,
desenhar a monografia de um kolks, de uma fbrica, etc., mas no chegam a
representar experincias vividas pelos homens, relaes inter-humanas ilustradas na
mediao das coisas.715
Foi com base nessa diferenciao feita por Lukcs que Carlos Nelson Coutinho
afirmou a importncia de Graciliano Ramos como (o maior) escritor realista crtico,
no socialista brasileiro. Para Carlos Nelson, tratando de Graciliano:
Por certo que esses relatos de viagem no so o exemplo mais rico dessa proposta
esttica de Graciliano exaltada por Coutinho, mas podemos, retomando a Jorge Amado
e Graciliano Ramos, afirmar que seus relatos refletem estilos pessoais diversos, mais ou
714
A extrema dedicao abriu-me portas que, entre ns, tipos bem intencionados,
obedientes ao jornal e ao sermo, consideram de ferro. Sinto-me no dever de narrar
a possveis leitores o que vi alm dessas portas, sem pretender, de nenhum modo,
cantar loas ao governo sovitico. Pretendo ser objetivo, no derramar-me em
elogios, no insinuar que, em 35 anos, a revoluo de outubro tenha criado um
paraso, com melhores navalhas de barba, as melhores fechaduras e o melhor mataborro. Essas miudezas orientais so talvez inferiores s ocidentais e crists. No
me causaram transtorno, e se as menciono no intuito de no revelar- me parcial
em demasia. Vi efetivamente o grande pas com bons olhos. Se assim no fosse,
como poderia senti-lo?717
717
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.10-1.
718
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.50.
Fica clara a diferena flagrante das propostas de escrita apresentadas nos dois
relatos. Se, por um lado, Graciliano Ramos apresenta-se como mero narrador objetivo
de fatos, paisagens e homens, por outro, Jorge Amado reivindica-se como um escritor
dotado uma misso especfica, quase uma profisso de f, que a de esclarecer e ajudar
seus contemporneos a entenderem o mundo em que vivem.
Os efeitos destas declaraes de abertura levam a dois caminhos distintos.
Enquanto o primeiro coloca-se no papel do homem comum, pronto a declarar apenas
aquilo que v e sente em uma viagem a uma realidade bastante distante da brasileira, o
segundo assume o papel do homem ilustrado que, atravs de sua pena, pode guiar o
homem comum ao conhecimento profundo da realidade que o cerca.
So papis distintos os assumidos pelos escritores, e ambos interessantes como
estratgia de convencimento. Para Graciliano, que se apresenta como escritor neutro, a
estratgia de convencimento passa por destacar os pontos positivos das Repblicas
Socialistas e mostrar como os pontos que poderiam ser considerados negativos por seus
leitores so, de fato, pouco relevantes. Como colocar num mesmo patamar de
importncia a igualdade e as lminas de barbear? a essa concluso que deseja que
aquele que o l chegue.
J para Jorge, que se apresenta como arauto do socialismo, a estratgia de
convencimento passa por deixar clara, desde o incio de seu relato, a superioridade das
sociedades visitadas face injustia do mundo capitalista. atravs da exaltao
assumida das qualidades de um modelo que acredita ser a chave de libertao de outros
povos que pretende evidenciar o caminho a ser seguido por seus leitores.
Desempenhando, assim, a misso que acredita que caberia a cada escritor.
Embora tenhamos efetuado uma comparao da declarao do motivo de escrita
desses relatos apresentados por cada um dos autores, o mesmo no podemos fazer com
as concluses a que chegaram.
Devido morte de Graciliano antes da concluso de Viagem no sabemos qual
seria o formato do ltimo captulo do livro, as nicas informaes que restam sobre os
ltimos dias do escritor em terras soviticas aparecem em forma de notas esquemticas
anexadas ao final, sendo a ltima anotao a seguinte:
719
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.198.
720
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.348.
Ramos minimiza seu papel como escritor, sobretudo quando comparado glria
alcanada pelo mundo sovitico, e indica que atrelado a uma sociedade capitalista, suas
possibilidades de escrita encontram-se limitadas pelo mundo morto que habita. Nesta
ressalva parece indicar a superioridade da opo socialista frente s mesquinharias de
um Brasil capitalista.
Esses comentrios do autor levam a interpretao de que como escritor encontrase fadado a trabalhar com uma realidade j ultrapassada pelo estgio de
desenvolvimento russo, no vendo, portanto, o interesse que suas obras poderiam
despertar em um povo que no mais sente na carne as agruras do sistema capitalista em
seu cotidiano. Essa linha de raciocnio desenvolvida pelo autor pode ser lida como o
indicativo da necessidade de superao deste modelo, apontando implicitamente o
caminho a ser seguido: o modelo socialista.
721
p.47.
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
Nada do que se faz aqui interessa exclusivamente aos filhos desta ptria.
Cada experincia, cada livro, cada planta nova, cada usina, as invenes e as
vitrias desses povos socialistas servem tambm a toda a humanidade, so
um patrimnio do ser humano, pertencem tambm ao cabloco do Amazonas,
ao tropeiro do serto nordestino, ao operrio de So Paulo, ao gacho dos
pampas do sul. Todos ns nos beneficiamos das conquistas da Unio
Sovitica no seu trabalho de construo de um mundo novo.723
722
723
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.50.
Idem, ibdem, p.55.
Sobre seus livros, relata conversa com operrios soviticos que leram tradues
de obras suas que confirmam a imagem de Graciliano sobre o carter funreo dos temas
e personagens de suas obras, ambientadas na capitalista sociedade brasileira, quando
contrapostos ao futuro feito presente do socialismo sovitico:
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.62.
Nestes dois fragmentos de texto fica claro como tanto Graciliano Ramos quanto
Jorge Amado apontam como diferena fundamental entre as sociedades brasileira e
sovitica o acesso cultura. Seja pela via da ironia, seja pela via da exaltao, objetivo
de ambos apontar um fosso existente entre os dois modelos de organizao social que se
confrontavam na poca da escrita de seus relatos, e indicar como um dos fatores para
auferir essas distines o papel da cultura.
Ainda na esteira das comparaes entre capitalismo e socialismo, em geral, ou
entre o Brasil e a Unio Sovitica, em especfico, outro fator comparativo que parece
ser decisivo para que os autores apontem a superioridade da URSS o da educao de
jovens e crianas.
725
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.93.
726
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.61.
727
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.100.
728
729
Talvez seja o captulo das crianas aquele que mais tenha dado lugar
s calnias anti-soviticas, s infmias sobre a vida dos povos soviticos.
Certa vez uma camponesa da regio tabageira do recncavo baiano, a qual
eu falava sobre a URSS, interrogou-me se era verdade que l se comiam
crianas, tal a fome e a liquidao dos laos familiares!. Perguntei-lhe onde
tinha ouvido tal coisa e ela me disse que o juiz de direito da cidade prxima,
dono das terras onde ela plantava e colhia o fumo, lhe havia dito ()
Gostaria que cada me operria, cada me camponesa, cada me de
famlia brasileira, pudesse visitar o Palcio dos Pioneiros em Leningrado, ou
qualquer jardim de infncia de qualquer fbrica sovitica, ou as creches, ou
as escolas dos kolkozes. Ela veria crianas sadias e alegres, amando o
estudo, crianas cujo futuro no representa preocupao para os pais. Ento
nenhum juiz de direito, nenhum proprietrio de terras, nenhum patro de
fbrica, nenhum jornalista a soldo de Washington, nenhum parlamentar ou
730
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, pp.88 e 89.
Pela Paz
Vale perceber a sintonia que pode ser encontrada nos artigos de jornais que
citamos anteriormente, focados na defesa da paz e os relatos de viagem feitos por
Jorge Amado e Graciliano Ramos. Percebe-se claramente a consonncia de argumentos
e de estratgias de convencimento entre as reportagens e os livros analisados.
A defesa da paz bastante presente nos dois relatos, e parece ser relevante para
o entendimento do motivo para essas viagens terem sido empreendidas pelos autores,
bem como da publicao dos escritos delas decorrentes. No livro de Jorge Amado,
aparece logo como ttulo da obra, O mundo da paz, e est presente ao longo de toda a
escrita, reiterando-se, sempre, que a guerra serviria apenas aos interesses norteamericanos e no aos soviticos. No livro de Graciliano, embora no explicitado no
ttulo, o tema tambm aparece como um fio condutor do processo de escrita, sendo
inmeras as ocasies em que o autor demonstra as marcas deixadas pela guerra na
Unio Sovitica e como sua populao deseja, de forma veemente, a paz.
Todavia, na apresentao dos livros, quando explicam os motivos que os teriam
levado confeco de seus relatos fica j marcada a diferena de filiao explicitada a
estes objetivos. Jorge Amado, ainda na nota introdutria de sua obra, declara como
motivo impulsionador da confeco de suas notas de viagem e sua posterior publicao:
731
732
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.89.
Idem, ibdem, p.9.
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.9.
734
735
articulador da defesa da paz, mesmo que para isso seja necessria a demonstrao de
fora e poderio militar:
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, pp.43-4.
dos dois autores de combater, mesmo que por vias distintas, idias enraizadas no
ocidente sobre a Unio Sovitica, dentre elas a de que na URSS todos estariam
submetidos a um poder ditatorial sem poder desfrutar da liberdade individual.
Graciliano no aborda a questo diretamente mas por toda a descrio dos
lugares visitados parece indicar a flagrante diferena entre a realidade brasileira da
sovitica. apontando os avanos e conquistas coletivos que procura silenciar as
crticas possveis ao modelo socialistas. Seu relato repleto de nmeros e exemplos que
procuram fornecer ao leitor a compreenso desta superioridade:
737
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.127.
738
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.32.
Jorge Amado vai alm das descries das diferenas de status alcanado pelos
trabalhadores em ambas as sociedades, fornece ao leitor uma ampla explicao sobre o
assunto:
739
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
pp.128-129.
De forma didtica, o autor tenta deixar claro que todas as diferenas encontradas
entre as duas sociedades so fruto de uma diferena estrutural que eliminou as
diferenas de classe e, ao mesmo tempo, desmistificar acusaes correntes feitas por
inimigos do socialismo.
A resposta a estes detratores vem na forma de exaltao das conquistas
soviticas, presentes ao longo do relato. O autor utiliza-se sempre do elogio ao
socialismo, apresentando ao leitor brasileiro a superioridade daquela que acredita ser a
verdadeira ptria do trabalhador. Entremeados descrio de lugares visitados
aparecem pequenos sub-captulos, como o intitulado otimismo, em que faz
consideraes como a seguinte:
740
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, pp.32-33..
nova literatura, na arte nova, otimismo que uma nota constante em todos
esses pases.741
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.275.
Tatiana Zaslvskaia, A estratgia social da Perestroika (Rio de :Janeiro, Espao e tempo,
1989), p.22 Apud: Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista
no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.98.
743
Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil
(1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, pp.98-99.
742
Voz operria, 17 de dezembro de 1949. In: Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa
comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p101.
745
Fundamentos, n 33, setembro de 1953. In: Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa
comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.102.
746
Fundamentos, n 23, dezembro de 1949. In: Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa
comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.102.
747
Moraes, Dnis. O imaginrio vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil
(1947-1953). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p.102.
748
Amado, Jorge. Os subterrneos da liberdade. v.2 Agonia da noite. Rio de Janeiro: Record,
1976. 28 ed. p.169.
Trs vezes por semana uma comprida fila se torce na rua, desemboca
na praa Vermelha, avizinha-se do Kremlin, paciente e vagarosa, entra no
tmulo de Lnin. Essa a que nos incorporamos devia ter uns dois
quilmetros. Pouco mais ou menos. Por a. uma procisso a que os
moscovitas se habituaram, como se cumprissem um dever. Estranhamos no
se haverem cansado, repetir-se h mais de vinte anos a marcha regular,
montona. Longas horas avanam, fazem lembrar os pingos lentos de uma
torneira meio aberta, e a extensa linha no se reduz, novos contingentes
chegam sempre, o filete escorre at que o fim da visita se aproxima.750
p.65.
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.98.
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
como fundador da Ptria e grande libertador dos russos, perptuo mesmo depois da
morte:
() Hoje vieram visitar aquele que iniciou a construo dessa Ptria e que
vela agora de seu Mausolu, aquele cuja memria incentivo e exemplo.
() Sua vida foi consumida no amor humanidade, aos trabalhadores,
queles esquecidos por todos, aos deserdados da sorte. () Em cada detalhe
da existncia sovitica a memria de Lnin est presente, coisa viva, no
pertence nem ao passado nem morte.751
O corpo de Lnin, parte central da visita, tratado de forma mais breve por
Amado do que por Ramos. Enquanto o primeiro dedica-lhe um pargrafo sucinto, o
segundo dedica-lhe duas pginas de seu relato.
A descrio de Graciliano Ramos detalhada, pormenorizando as feies, a
posio, as vestimentas e o ambiente em que se encontra o corpo, mesclada de
comentrios que fogem ao tom irnico presente na maior parte de seu relato de viagem.
Presente e passado se mesclam ante a esta viso e a idia de que Lnin ainda vive
apresentada de forma sutil ao leitor. Mesmo sendo extensa, acreditamos ser vlida a
transcrio de algumas partes deste pargrafo de 74 linhas para deixar clara a reverncia
com que o autor trata o tema:
751
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, pp.98-99.
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
pp.66-67.
O relato de Amado procura traar uma linha sucessria, em que a vida e a obra
de Lnin seriam continuadas por Stalin e pelo Partido. Tendo iniciado a grande obra que
foi a Revoluo, Lnin continuaria vivo no povo Sovitico, capitaneado por seu
companheiro Stalin, como podemos observar no seguinte fragmento:
753
754
755
756
757
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.99.
Idem, ibdem, p.98.
Idem, ibdem, p.99.
Idem, ibdem, p.99.
Idem, ibdem, p.100.
Assim o autor primeiramente levanta um tema que poderia ser utilizado como
motivo de crtica por um espectador ocidental, o culto personalidade promovido pelo
Estado sovitico, para, logo em seguida, desenvolvendo lentamente seu discurso,
demonstrar: 1) a inadequao de um raciocnio pautado por valores ocidentais (leia-se
capitalistas) para a realidade sovitica e, 2) que esse culto no partiria do Estado ou do
prprio Stalin, mas sim do povo, de forma espontnea!
So freqentes os elogios a Stalin no livro de Jorge Amado, a comear pelo fato
de declarar, na nota introdutria, ser o livro a homenagem de um escritor brasileiro ao
camarada Stalin, no seu 70 aniversrio, sbio dirigente dos povos do mundo na luta
pela felicidade do homem sobre a terra759. Um dos muitos exemplos de como
retratado o dirigente sovitico em O mundo da paz aparece logo no incio do relato, em
sub-captulo em que descreve sua chegada a Moscou:
758
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
p.53.
759
760
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, [s/p].
AMADO, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, pp.57-8.
fcil entender a opo do autor. Nada mais eficaz para desfazer a imagem de
um sanguinolento opositor da paz do que apresent-lo como um homem ordinrio, nada
grandioso, e at um pouco acima do peso. Sem mencionar que descrio crua, e s
vezes pouco lisonjeira, para a composio de personagens reais um estilo mais
761
Amado, Jorge. O Mundo da Paz. 4 ed. Rio de Janeiro: Vitria, 1953, p.199.
Ramos, Graciliano. Viagem (Checoslovquia U.R.S.S.). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1954,
pp. 150-1.
763
Idem, ibdem, p.55.
762
prximo ao utilizado pelo autor em outras de suas obras biogrficas como Infncia e
Memrias do Crcere.
Consideraes Finais
764
Rubim, Antonio Albino Canelas. Marxismo, cultura e intelectuais no Brasil In: MORAES,
Joo Quartim de (org.). Histria do Marxismo no Brasil. Vol. 3 Teorias. Interpretaes. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p.379.
Enquanto Graciliano foge ao estilo grandiloqente que domina a quase absoluta maioria
dos textos desta edio, Jorge no foge a regra e refere-se a Prestes com eptetos que o
qualificam como lder, guia, heri. Na anlise da literatura de Jorge Amado,
encontramos com muita freqncia vrios dos elementos do modelo esttico do
realismo socialista, tal como difundido por Zdanov e seus divulgadores no Brasil.
Embora outras matrizes possam ser percebidas como informando a perspectiva esttica
de Amado como o caso da sua particular combinao das caractersticas do romance
social regionalista da gerao modernista do ps-1930 com as
referncias do
escritores
desempenharam
esses
papeis
em
graus
variados
de
familiar. Essa necessidade fez com que, desde o comeo, a atividade literria no fosse
encarada como exclusiva detentora de sua ateno e esforo, gastando maior parte de
seus dias desempenhando atividades que no se relacionavam, direta ou remotamente,
produo literria. Dessa forma, dependendo do momento de sua vida, passava os dias
como diretor da imprensa oficial de Alagoas, e depois do expediente dedicava-se
escrita de um romance; ou passava as noites como revisor de jornais de grande
circulao e de dia escrevia crnicas e contos para serem vendidos aos mais diversos
veculos; ou, ainda, acumulava o papel de revisor ao de inspetor do ensino pblico,
dispondo, portanto, de pouco tempo a ser disponibilizado literatura.
J Jorge Amado, no experimentou, no incio de sua carreira, a necessidade de
encontrar formas de garantir sua subsistncia, pois quando se estabeleceu no Rio para
estudar Direito recebia mesada paterna. Esse primeiro momento de disponibilidade para
fazer-se conhecer e penetrar no circuito literrio parece ter sido importante para a
afirmao do baiano em nossas letras nacionais. Mesmo que em alguns perodos tenha
tido que desempenhar outras funes, sobretudo na imprensa, passa a poder sustentar-se
da renda gerada por seus livros, publicados quase que ininterruptamente. Naqueles anos
que examinamos aqui, sua carreira foi alavancada tambm pelo partido, uma vez que
pelas mos das editoras do PCB foi publicado em diversas lnguas e em variados pases.
Em perodos de forte represso contou ainda com o apoio do partido que o auxiliou
durante seu exlio, na Europa ocidental ou oriental.
Comentando as diferentes significaes que as idias de compromisso e
alinhamento receberam no debate sobre a literatura, Raymond Williams observa que,
desde a rejeio de Marx e Engels literatura de tendncia em concomitncia com
sua valorizao daquela literatura compromissada com a realidade social, passando
pelos debates do sculo XX, em especial aqueles desenvolvidos nos momentos
revolucionrios e nas situaes que lhes sucederam, necessrio ter em conta, para
avaliar as diferentes manifestaes do compromisso, tanto o alinhamento consciente
quanto as condies pressionantes e limitadoras dentro das quais, em qualquer
momento, tipos especficos de literatura podem ser feitos.765
Em certo sentido, esta tese buscou analisar o compromisso de dois escritores,
entendendo tal compromisso no apenas como resultado de escolhas individuais, mas
765
como inscrito num dado momento histrico particularmente dinmico no que tange
dramaticidade com que a humanidade foi confrontada com suas capacidades destrutivas
e construtivas , ao qual corresponderam formas especficas de presses e limites que
atuaram sobre a produo literria, como sobre todas as formas de produo.
Graciliano Ramos e Jorge Amado, por certo se aproximavam, porque tomaram
posio em face das lutas histricas do presente no qual vive o artista766. Mas, nem
esse compromisso, nem as presses e limites a que a histria os submeteu, significaram
uma direo esttica unvoca para a escrita de nossos dois autores, ainda que seu
compromisso poltico com o PCB tenha sido equivalentemente consistente, guardadas
as especificidades j mencionadas.
766
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