A Cama - ADAPTADO - Lygia Bojunga

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Lygia Bojunga

A CAMA

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I A CAMA NA LEMBRANA
Zeco:

Eu no deixo a Maria Rita vender a cama. De jeito nenhum! Amanh cedo eu


vou l e trago a cama comigo. Nem que seja nas costas. Levo o Tobias junto,
ele um menino forte, vai poder me ajudar.

Geraldina:

Mas como que voc vai trazer a cama aqui pra Rocha Miranda, Zeco?

Zeco: Arrumo um burro-sem-rabo.


Geraldina:

Burro nenhum vai querer. Olha a no bilhete da Maria Rita a indicao pra
chegar l: so dois nibus pra tomar, depois ainda tem toda uma subida de
morro a p. Que burro vai querer fazer tudo isso?

Zeco: Deixa comigo.


Geraldina:

Voc esqueceu o tamanho da cama? Esqueceu o peso que ela tem? No coisa
pra brao nem pra burro, coisa pra caminho. E a custa uma fortuna. Onde
que a gente arranja dinheiro pra pagar, Zeco?

Zeco:

Geraldina, eu j te disse, amanh cedo eu vou buscar a cama, e no me comea


com choradeira que eu no tenho pacincia pra agentar.

Geraldina:

Mas olha o tamanhinho dessa casa! A gente j somos seis aqui dentro, onde
que a gente bota aquela cama?

Zeco: Desmontada l fora. Encosta ela na parede e pronto.


Geraldina:

Ela vai se estragar no tempo.

Zeco: A gente bota uma coberta nela.


Geraldina:

Mas Zeco, e o transporte? Tem uma cidade pra atravessar.

Zeco: Mesmo que fosse o mar! Eu ia e atravessava.


Geraldina:

Mas voc j pensou que...

Zeco:

O que voc ta querendo afinal, hem? Hem?! Que eu rasgue esse bilhete, ? Que
eu faa de conta que eu nem to me importando se ela vende a cama ou no
vende?

Geraldina:

Mas l esse bilhete com calma, homem.

Zeco: J li mais de cem vezes!


Geraldina:

No precisa gritar desse jeito, n?

Zeco: J li! J li! J li!


Geraldina:

Ento voc j sabe mais de cem vezes que a Maria Rita ta vivendo de esmola, e
que ela s tem a cama pra vender e mais nada.

Zeco: Se ta nessa merda foi porque quis.


Geraldina:

Como que voc pode ser to duro assim com ela se voc mesmo disse que
vocs dois eram assim? Unha e carne.

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Zeco:

Isso no interessa mais. O que interessa cumprir a promessa que eu fiz pro pai.
Amanh eu vou buscar a cama e ningum vai morrer por causa disso.

Geraldina:

Vendo o que ela diz no bilhete, bem capaz dela morrer sim.

Zeco: Vaso ruim no quebra


Geraldina:

Maria Rita no vaso ruim.

Zeco:

No dia que ela escolheu se amigar com aquele vagabundo que vive de viciar
criana em droga, ela passou a ser.

Geraldina:

Ela no sabia que ele...

Zeco:

Avisa pro Tobias que a gente vai sair s cinco e meia. E pra com essa
fungao: faz barulho, no vai me deixar dormir.

Geraldina:

(para Tobias) Amanh eu vou te acordar mais cedo pro caf, viu, Tobias? Teu
pai quer que voc v com ele buscar uma tal de cama.

Cena da lembrana do dia em que Maria Rita foi embora de casa: Vestida de branco,
sandlia vermelha no p. Beija Geraldina e diz: Sou feliz! Quando vai beijar Zeco, ele no
aceita o beijo e sai. Tobias diz: bonita!

II A CAMA NA FOTO ANTIGA


Petnia:

Puxa me, onze horas! Eu numa boa aqui dormindo e voc vem me acordar?

Elvira:

Filhinha, eu vim te acordar s pra te avisar que amanh de manh eu vou te


acordar mais cedo; assim voc dorme preparada.

Petnia:

Amanh domingo, me!

Elvira:

Mas eu no vou subir o morro sozinha.

Petnia:

Que morro?

Elvira:

Vou na favela do Rato Molhado.

Petnia:

Rato o qu?

Elvira:

Molhado. l por perto do Catumbi. A Maria Rita desenhou esse mapinha aqui,
olha, mostrando como que eu chego l. No difcil no: a gente no tem que
subir morro de mais. (estendeu o desenho para Petnia) O barraco dela fica
nesse caminho aqui. A Neusa ia comigo. Estava tudo combinado. Mas agora
mesmo ela telefonou dizendo que pegou uma gripe e est com febre. Duvido!
desculpa. Ela est com medo. Disse que favela tem tiroteio. Bobagem! Onde
ela mora tem muito mais. Na certa ela pensou que eu ia insistir, implorar pra ela
vir comigo. Mas eu fiquei na minha: s desejei as melhoras. E quando ela disse:
a gente deixa isso pra outra ocasio Elvira, eu s falei: eu disse que ia amanh e

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eu vou amanh. Soziiiiinha? A voz dela saiu assim mesmo. Aquela voz
esganiada que voc conhece. E quando eu disse: eu levo a Petnia comigo, o
esganiamento aumentou: a Petnia?! Mas como que voc tem coragem de
levar uma criana...
Petnia:

Eu no sou uma criana, me!

Elvira:

...de levar uma criana para um lugar desses? Se ainda fosse a Rocinha, ou o
Morro dos Prazeres, um nome assim respeitvel at que eu no dizia nada, mas
morro do rato, e ainda por cima molhado! Imagina se vocs topam com ele no
caminho. Pra ter dado nome favela, ele no dever ser um rato, tem que ser um
rato! Pior: uma ratazana. Deste tamanho! E molhada, Elvira , pensa nisso: molha-da.
Sabe, Petnia, tem horas que eu fico achando que eu escolho mal as minhas
amigas. A cama essa, olha o retrato dela.

Petnia:

E o que essa enormidade de cama tem que ver com a Neusa e com a ratazana?

Elvira:

A cama da Maria Rita.

Petnia:

E quem que a Maria Rita, minha me?

Elvira:

A Maria Rita ia sempre l na casa da Neusa passar roupa. Mas depois teve filho,
ficou doente, sei l, a vida dela se complicou toda e ela resolveu vender essa
cama; foi l na Neusa mostrar a foto, contou da cama, e a Neusa, que sabe que
eu sou doida por antiguidades, me telefonou logo, pra eu ir l falar com a Maria
Rita. Foi s olhar para essa foto que eu me apaixonei pela cama.

Elvira:

J providenciei o dinheiro e tudo, sabe, Petnia, mas claro que, primeiro, eu


tenho que ver se a cama est em bom estado, no ? Imagina se eu compro ela
assim, de foto, e me chega uma cama toda estragada. Ento, amanh de manh a
gente vai l ver.

Petnia:

Mas pra que voc quer uma cama assim to grande, me? Voc viva.

Elvira:

Essa cama no pra mim, pra Rosa. Presente de casamento. Vai ser surpresa
pra ela, por isso que eu no pedi pra ela ir comigo, vim pedir pra voc.

Petnia:

Voc acha que a Rosa vai gostar do presente?

Elvira:

A foto pssima, e, alm do mais, rasgou bem na cabeceira, olha aqui. Mas eu
sou capaz de jurar que essa cama uma raridade e que foi Deus que botou ela
no meu caminho.

Petnia:

Pera l me, o caminho da Rosa.

Elvira:

Isso s pode ser uma pea valiosssima! Imagina se a Rosa no vai adorar.
Ento estamos combinadas, no , filhinha? Eu te acordo s seis e meia.

Petnia:

Seis e meia!?

Elvira:

Mas voc no acorda todo dia a essa hora pra ir pra escola?

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Petnia:

Mais uma razo pra domingo eu no querer acordar.

Elvira:

Faa esse sacrificiozinho pela sua me. Eu vou ficar to frustrada de perder uma
oportunidade assim.

Petnia:

Voc no precisa perder, u, basta arrumar outra companhia.

Elvira:

A essa hora Petnia? Olha a pro relgio.

Petnia:

Mas pra que ir to cedo?

Elvira:

J pensou se chega outro interessado antes de mim?

Petnia:

Ta bom, me, ta bom, ento deixa eu dormir antes que seja hora de levantar.

Elvira:

Eu prometo que eu vou na frente, viu filhinha; se algum tiver que tropear na
ratazana, tropeo eu.

Petnia:

Acho bom: me foi feita pra isso.

Narrador 1:

Elvira ficou perplexa: nunca tinha imaginado ouvir de uma filha que casamento
era coisa que no precisava.

Narrador 2:

Se casamento no precisava, o que que precisava?

Narrador 1:

O desconsolo virou prostrao: no entendia de jeito nenhum a deciso de Rosa.


Concluiu que s podia ter sido idia dele. Rosa admitiu que a idia tinha sido
dele, mas...

Elvira:

Ah, s podia ser, eu sabia!

Narrador 2:

...mas que ela achava uma idia sbia: primeiro juntar pra depois casar. Ou no.

Narrador 1:

A prostrao se agravou. No s por causa da idia, mas sobretudo, por causa


dele.

Elvira 1 e 2:

Por qu? Por qu?? Por que, meu Deus?

Elvira 1:

Doze anos mais velho! J passa dos trinta e ainda era flautista da Orquestra
Sinfnica do Teatro Municipal

Elvira 2:

Feio de doer! E aquela horrenda barba que ele usa e a Rosa adorava, meu Deus!

Elvira 1:

E pensar que nem o nome inacreditvel que ele tem incomoda a Rosa:

Elvira 1 e 2:

Jernimos.

Elvira 1:

Se fosse Jernimo ou se fosse Jeronimus

Elvira 2:

Que nem aquele pintor da Idade mdia que pintava obscenidades, ainda, quem
sabe? Dava pra entender o amor da Rosa por ele. Mas Jernimos, assim com o?
S porque o pai gostou tanto de um mosteiro que visitou em Lisboa, que l
mesmo, fez promessa de dar o nome do mosteiro pro filho que ia nascer?

Elvira 1:

Sem nem se importar de tirar toda a singularidade do filho? E jogar ele assim
estupidamente no plural?!

Narrador 1:

Elvira pensou e repensou isso tudo mil vezes. Depois concluiu num suspiro que
me me: feita pra compreender e pra perdoar.

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Narrador 2:

Compreender ela no conseguia. Mas perdoar ela podia: dava um bom presente
de casamento pra Rosa. Quer dizer, de juntamento. Pacincia! Foi quando viu a
foto da cama.

III A CAMA NO MORRO

Cena 1: Casa de Zeco e nibus.

Narrador 1:

Ainda estava escuro quando Geraldina acordou Tobias pra tomar caf.

Narrador 2:

Tobias ainda no tinha feito 12 anos, mas j mostrava que ia ser feito o pai: um
homenzarro de ombro largo e brao musculoso. E no era s no tamanho que
ele puxava o Zeco: os dois se pareciam tambm no jeito de olhar, de andar, e
mais que tudo, jeito de ficar quieto. Nem um nem outro tinha l muita
inclinao pra falar. E, alm do mais, nunca sobrava tempo pra muita conversa.

Narrador 1:

Zeco trabalhava numa cervejaria. Supervisionando caixa, lacrando caixa,


carregando caixa pra caminho. Um peso danado aquelas caixas de cerveja. E
Zeco nunca bebia uma gota. Nem de cerveja, nem de pinga, nem de nada: dizia
que negcio de bebida no do agrado do Senhor. Era religioso. Mas nem de
religio ele gostava de falar.

Enquanto os narradores falam, Geraldina acorda Tobias; os dois vo at a cozinha onde est
Zeco. Zeco e Tobias despedem-se de Geraldina e vo at o ponto de nibus

Tobias:

Pai.

Zeco: Hmm?
Tobias:

Lembra quando o v Felcio morreu?

Zeco: Hmm?
Tobias:

Eu tava l no quarto. Ontem eu lembrei. Eu tava l, e vi voc prometer pro v


que essa cama que a gente t indo buscar ficava sempre com a gente. No foi?

Zeco: Foi.
Tobias:

Porque, hein pai?

Zeco: O que?
Tobias:

Que a cama tem que ficar sempre com a gente?

Zeco: Eu prometi que ficava. E o que prometido tem que ser cumprido.
Tobias:

Sempre?

Zeco: Voc t duvidando que a gente tem que cumprir o que promete?

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Tobias:

T s perguntando.

Zeco: Sempre! Tem sempre que cumprir.


Tobias:

Mas ento porque voc deixou a tia Maria Rita levar a cama embora?

Zeco:

A cama era dela, o pai deixou pra ela. Voc no lembra dele dizendo: eu sei que
t morrendo. E ele se encostando ainda mais forte na parede. De medo. Medo
de ver morrer.

Tobias:

Pai.

Zeco: Hmm.
Tobias:

Voc nunca me contou isso antes, porque?

Zeco: Voc nunca perguntou...


Tobias:

Voc no gosta de perguntao...

Zeco: Eu tava esperando voc crescer. aqui que a gente tem que descer.

Zeco salta do nibus na frente de Tobias. Pisa em falso, e cai, torcendo o p e ficando
paralisado de dor.

Zeco: Quebrei um troo, Tobias, sei l se foi perna ou se foi p.


Tobias:

No pode ser, pai, azar demais.

Cena e falas: O pessoal em volta no perdeu um segundo pra comear a reclamar que a
prefeitura uma vergonha! no tapam buraco de rua! uma esculhambao! A gente se
quebra todo! Olha esse coitado a!

Transeunte:

Voc deu sorte de se estropiar aqui, cara: tem um hospital de pronto socorro
bem perto.

Zeco: Onde?
Transeunte:

Dobrando a na esquina, , dobrando pra esse lado de c.

Cena 2: Hospital

Zeco:

Como que acontece uma coisa dessas comigo, assim, num domingo de manh.
No posso dar um passo, quanto mais subir uma favela; e agora? Quem que
salva a cama de ser vendida? quem? Ser que castigo do Senhor por qualquer
coisa errada que eu fiz? Mas o que que pode ser? O Senhor sabe mais do que
ningum que eu no posso deixar a Maria Rita vender a cama, no pode ser
castigo por causa disso. Ento, por qu (sobressalto) e se a cama j foi vendida?
E se essa desgraa que aconteceu agora j faz parte da maldio?

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Tobias:

Pai, eu posso ir l falar com ela... eu no posso trazer a cama sozinho, mas se
voc me explica direito como que eu chego l, e se voc me diz tudo que eu
tenho que dizer pra tia Maria Rita, eu vou e digo. Conto pra ela tudo que t
acontecendo por aqui, e volto pra te contar tudo que aconteceu por l.

Zeco:

(desviando o olhar) Diz que desgraa nunca vem sozinha: capaz de te


acontecer por l coisa pior do que me aconteceu por aqui.

Tobias:

No acontece no, pai. Me diz o que eu digo pra ela.

Zeco: No d conversa pra ningum no caminho, viu?


Tobias fez que sim. Zeco tirou um papel do bolso:
Zeco:

T'aqui o caminho que eu desenhei. Aqui t o nome da rua que leva voc l.
Voc vai subindo por aqui. Olha, aqui tem um barraco desabado: quando voc
chega nesse barraco que voc dobra pra esse lado.

Tobias:

Pra direita.

Zeco:

Hmm. Dobra pra c, e o caminho vai em ziguezague. Tem uma gaiola na porta
do barraco onde ela mora. O cara que ela se amigou se chama Toninho B. E
ela disse que l chamam ela de Maria Rita da Cama. Voc tendo dvida, pede
informao.

Tobias:

E o que que eu digo pra ela?

Zeco:

Conta o que aconteceu aqui. Lembra pra ela a histria da cama que eu te contei
no nibus: vai ver a memria dela se estropiou. Fala da maldio da bisav. Diz
que eu no deixo ela vender a cama. A cama da famlia. Diz que depois eu
vou l acertar tudo com ela. Diz que vendendo a cama ela vai trazer maldio
para ns todos. E que a maldio vai se estender pros filhos dela tambm. E que
nenhum de ns vai perdoar ela nunca. (fuou o bolso, pegou um dinheiro) leva
isso aqui, voc pode precisar.

Zeco: No demora. T aqui esperando voc voltar. Vai com Deus.

Cena 3: Elvira e Petnia subindo o morro

Elvira:

Olha o barraco desabado (consulta o mapa) t tudo certinho. A Maria Rita disse
que aqui tinha um caminho pra esquerda e outro pra direita. (olha pros lados)
tem. Mandou a gente ir pra direita. Bonita essa vista daqui, no , Petnia?
(olha pra trs) Petnia!

Narrador:

(atriz que estiver fazendo a Petnia) Petnia tinha parado, fascinada, estudava
o jeito que um abraava o outro, o caminho que a mo da moa fazia pelo corpo
do rapaz, o beijo que o rapaz ia reproduzindo no pescoo e na cara da moa. O

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olho da Petnia agora tinha dado pra isso: O que ele mais queria na vida era ver
gente se namorar.
Elvira:

Petnia!! (puxando Petnia pelo brao) Quer fazer o favor de ser mais discreta
na maneira de olhar pros outros?

Petnia:

Ser que o tempo no passa nunca? Ser que nunca chega a hora de eu namorar
feito esses dois?

Elvira:

Petnia, acorda. Petnia!

Petnia:

T, t. Olha a, me.

Elvira:

O que?

Petnia:

O barraco desabado.

Elvira:

J faz tempo que eu vi. pra l que a gente tem que ir. Vem. Sabe, Petnia, eu
acho que voc ainda no deu conta desse jeito hor-ro-ro-so que voc pegou
agora de ficar olhando pras pessoas. Voc pensa que algum gosta de ser olhado
assim? Se voc tivesse um olho pequeno, o mal no era to grande, mas, com
esse olho que voc tem, a pessoa at se assusta. Outro dia o Jernimos tomou
um susto quanto viu voc olhando pra ele desse jeito.

Petnia:

Quando?

Elvira:

Um dia desses, que ele foi l em casa buscar a Rosa, e ali mesmo na nossa
frente se pegaram aos beijos. E voc sem tirar o olho. Que horror! E. Alm do
mais, um horror esquisito: parece at que voc nunca v televiso.

Petnia:

E o que que a tev tem a ver?

Elvira:

Beijo e tiro o que mais d, no , Petnia?

Petnia:

Mas ao vivo mais legal.

Elvira:

Voc vai parar com isso, viu? Essa mania muito pior que roer unha. Quando o
Jernimos...

Petnia:

, me, voc que tem que parar de chamar ele de Jernimos.

Elvira:

No o nome dele? A Rosa no chama ele assim? que culpa que eu tenho dele
ter um nome absurdo?

Petnia:

Faz feito eu, chama ele de J.

Elvira:

A Rosa no gosta: diz que ele no gosta. Ele um excntrico.. um... um


esdrxulo.

Petnia:

Ta! Chama ele de Esdrxulo em vez de Jernimos. Eu acho Esdrxulo um


nome timo. E ainda mais esquisito que Jernimos. Voc gosta de nome
esquisito, no ?

Elvira:

Eu?

Petnia:

U: voc no me chamou de Petnia?

Elvira:

E desde quando Petnia esquisito?

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Petnia:

Esquisitssimo! Quando eu digo que me chamo Petnia, todo mundo pergunta:


chama o qu?

Elvira:

Quem pergunta isso esta passando atestado de ignorncia.

Petnia:

Ah, pera l, me, ignorante eu no sou, mas eu ia gostar muito de me chamar


Rosa.

Elvira:

Mas como que eu podia chamar voc de Rosa se eu j tinha chamado a Rosa
de Rosa.

Petnia:

Chamava ento de Violeta, de Magnlia, ou de Rosa Segunda, sei l! J que


voc tem mania de flor, escolhia uma flor que tem mais gente com o nome dela.
Mas, Petnia? Ningum conhece ningum que se chama Petnia. Eu sou a nica
Petnia que existe! P, me, isso me deixa to sozinha no mundo. No sei no,
mas acho que vai ser difcil eu te perdoar um dia de ter me chamado Petnia.

Elvira:

uma flor to bonita!

Petnia:

Eu nunca vi.

Elvira:

Nunca vou me esquecer do dia em que eu fui na casa de um amigo do meu pai,
o Amrico. Ele morava num casaro l no Graja. No meio de um jardim lindo.
Todo um lado do jardim era tomado por um canteiro de petnias. Vrias cores.
A beleza daquele canteiro foi um impacto. Fiquei to deslumbrada, que, ali, na
hora, resolvi: se eu tiver outra filha ela vai se chamar Petnia.

Petnia:

Triste hora.

Cena 4: Barraco da Maria Rita

Narrador:

(ator que estiver fazendo o Tobias) Quando Tobias chegou no barraco da Maria
Rita, encontrou a porta encostada. Olhou pra gaiola: vazia. Uma mulher que ia
passando confirmou a indagao que ele fez; era ali mesmo que morava a Maria
Rita da Cama. A cama era atrao local. Ningum l no morro jamais tinha
visto uma cama assim. Volta e meia um vizinho pedia licena pra Maria Rita e
trazia um amigo, um parente pra conhecer a cama. Ficavam de p, em muda
contemplao da pea. Depois agradeciam, iam embora. E Maria Rita acabou
virando a Maria Rita da Cama.(Tobias bate palmas e chama Maria Rita.
Ningum responde e ele entra no barraco)

Narrador:

(ator que estiver fazendo o Tobias) Se o barraco j tinha parecido ruim por fora,
por dentro era ainda pior: cho esburacado, parede rachada e mida, uma cortina
despencada, rasgada, separando um outro cmodo pequeno,onde se via um fogo
velho e um bujo de gs. esquerda da porta de entrada, uma tbua presa na

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parede fazia de mesa. Dois caixotes pra banco. O resto do espao era tomado
pela cama.

Tobias sente algum atrs dele. Se vira e d de cara com a Maria Rita. Toma um susto:
Tobias:

Tia Maria Rita?

Maria Rita:

Voc no o Tobias? Nossa! que diferena, voc t quase da minha altura.

Tobias:

(a parte) Susto, sim, susto: onde que tinha ficado a boniteza dela? Ficou feia,
que acabada! virou triste.

Maria Rita:

Fui buscar um pouco d'gua na vizinha. O cano l fora rebentou e ningum


conserta. Zeco no veio?

Tobias:

Ele se machucou quando foi descer do nibus. Quebrou o p e est me esperando


no hospital

Maria Rita:

Tadinho! T com fome. Mas eu no tenho quase leite. Nem grana pra comprar l
fora. Senta. Ai!! Ele puxa tanto esse bico que eu j t ficando toda machucada. A
dona que vai comprar a cama deve estar chegando.

Tobias:

Tia Maria Rita,o pai pediu pr'eu vir aqui urgente, j que no deu pra ele vir. Pra
dizer que voc no pode vender a cama, no pode de jeito nenhum. Se voc
vende a cama, a maldio da bisav... Ele disse pra eu lembrar voc da
maldio...

Maria Rita:

Ningum precisa me lembrar de nada: t'aqui! t sempre aqui! (bate na testa e


fica encarando Tobias com dureza)

Tobias:

Se voc vende a cama,a maldio da bisav no pega s voc, no, pega a tua
criana, eu, ns todos: a cama no pode sair da famlia. O pai t desesperado de
no poder vir; a gente acordou ainda era de noite, pra chegar aqui cedo,
desmontar a cama e levar ela com a gente; o pai disse que levava ela nem que
fosse nas costas, disse que vender voc no podia seno ele no te perdoava
nunca mais.

Maria Rita:

Ele j no me perdoou quando eu sa de casa, que me importa que ele no me


perdoe outra vez?

Tobias:

Ele perdoou sim, tia, ele disse at que deixou voc levar a cama, mesmo sem ter
casado nem...

Maria Rita:

O pai deixou a cama pra mim, ela minha, minha! o Zeco no tinha nada que
deixar ou no deixar, e agora a mesma coisa: ele no tem nada que deixar ou
no deixar.

Tobias:

Mas tem a maldio da bisav, que vai...

Maria Rita:

Que bisav porra nenhuma! o que que me importa a maldio dela, do Zeco, da
puta que o pariu, se j faz tempo que eu t vivendo a pior maldio que existe!

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(puxa o seio da boca da criana) Essa, olha, essa (a criana grita chorado)
FOME! Olha pra ele! T com fome! Eu tambm t com fome! J olhou pro que
t na tua volta? J olhou bem pra tudo? J viu bem o que ser pobre, viu? Isso
sim que maldio. S mesmo quem no conhece a cara dela que pensa que
assusta a gente com castigo pior que a fome. Volta e conta pro teu pai que eu
duvido, mas que eu duvido muito mesmo que uma outra mulher tivesse passado
o arroxo que eu venho passando sem at hoje ter vendido uma coisa valiosa feito
essa cama. (bate outra vez na testa) Tava aqui, sempre aqui, a promessa que eu
fiz. Volta e conta pra ele (se que ele 'inda quer saber) que eu cheguei no fim da
linha, t doente e sem poder trabalhar. Conta que o cara que eu amei sugou meu
corpo e minha alma e me largou na pior. Conta que nem leite sai do meu peito;
quem podia dar, j deu; quem podia emprestar, emprestou; quem podia ajudar,
ajudou; agora tudo que porta fechou. Vai e diz pra ele que esse troo de
inferno, de maldio e famlia j no me mete mais medo: pra mim s tem um
medo: ficar com MAIS fome.
Elvira:

(entrando no barraco) Com licena?

Maria Rita arruma a blusa, alisa o cabelo e vai ao encontro de Elvira.


Elvira:

Que aventura, Maria Rita! Ainda bem que chegamos ss e salvas. Vem, Petnia,
vem. Quando eu contar pras minhas amigas que...

Elvira v a cama e fica fascinada. Petnia v Tobias, e quando ele olha pra ela, ela tambm
fica fascinada Elvira tenta disfarar o fascnio pela cama, enquanto Petnia no consegue
tirar os olhos de Tobias.

Elvira:

A sua antiga patroa vinha comigo, sabe, Maria Rita... mas afinal no veio...
pegou uma gripe... Posso levantar essa beirada de colcho? Que maravilha! O
estrado de palhinha. Eu tive esse pressentimento. No sei se foi pressentimento
ou esperana. E est perfeito. Perfeitinho! que beleza. Mas aqui tem uma lasca
feia de madeira. Jacarand do melhor.

Narrador:

(narrao acontece enquanto Petnia e Tobias se olham) Nada escapou da


inspeo da Petnia. Do cabelo encaracolado ao p na sandlia, Petnia estudou
Tobias to bem estudado, que aprendeu ele de cor. Deu nota dez pra ele. E de ter
aprendido ele assim to de pressa, deu dez pra ela tambm. E de tanto vir
pensando h tanto tempo que coisa mais linda era a tal de paixo primeira
vista, foi s Elvira acabar a inspeo e dizer que ficava com a cama, que Petnia
tambm: deu a inspeo por concluda e se apaixonou pela primeira vez.
primeira vista.

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Petnia:

Oi! Que bom que voc est aqui. Voc saiu com cara de quem ia sumir. Voc
parente da Maria Rita?

Tobias:

Sobrinho.

Petnia:

E o teu nome qual ?

Tobias:

Tobias. E voc, como que se chama?

Petnia:

No digo.

Tobias:

Petnia:

Voc no vai gostar do meu nome.

Tobias:

Por qu?

Petnia:

Porque no vai, u. Voc mora aqui no morro?

Tobias:

No, eu vim s pra... pra trazer um recado pra ela.

Petnia:

Onde que voc mora?

Tobias:

Rocha Miranda.

Petnia:

onde?

Tobias:

longe.

Petnia:

Tem telefone? (Tobias faz que no) Mas eu tenho. Quer tomar nota?

Tobias:

Eu no tenho papel.

Petnia:

Mas eu tenho.

Tobias:

Eu no tenho caneta.

Petnia:

No faz mal, eu tenho lpis. Esse lpis bom pra desenhar, sabe, macio. Foi
feito mesmo pra desenhar, lpis de artista. Eu gosto de desenhar, sabe, eu at ...
s vezes penso que... o que mesmo que eu penso?...(meio vaga) Ah! eu penso
que,s vezes,quer dizer,s vezes eu penso que... eu vou ser arquiteta...ou... vou
pras artes plsticas... sei l... uma profisso assim... que...desenhe...

Elvira:

Petnia!!

Tobias:

(admirado) Petnia?

Elvira:

O que que voc t fazendo a, menina?

Petnia:

Desenhando essa vista linda. (escreve num papel o seu nome, endereo e

telefone)
Tobias:

(repete baixinho) Petnia.

Elvira:

(grita de novo) Petnia!!

Tobias:

Que nome bonito voc tem!

Petnia:

(a parte) Ser que ele estava brincando? Elvira chega.

Petnia:

sobrinho da Maria Rita. Tambm gosta de desenhar. (arranca e dobra a


pgina; entrega para Tobias) Fica com o meu desenho, toma.

Elvira:

T tudo resolvido, podemos ir embora. Agora s ir falar com um conhecido da


Maria Rita, que mora l embaixo, pra ver quando que ele pode levar a cama.

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Vamos indo, vamos indo.
Tobias, assustado, corre para falar com Maria Rita.
Maria Rita:

A cama j t vendida, Tobias. Conta isso pro teu pai. Dona Elvira vai dar ela de
presente de casamento pra filha mais velha.

Petnia:

(corre para falar com Tobias) Me escreve, me telefona, me fala, qualquer


coisa! Mas a gente tem que se encontrar de novo.

Elvira:

Petnia!

Petnia:

Promete?

Tobias:

Prometo.

Cena 5: Hospital

Zeco: E a? voc 'teve com ela?


Tobias:

A cama j t vendida,pai.

Zeco: Mas voc falou com ela o que eu falei pr'oc falar?
Tobias:

Falei.

Zeco: Da maldio? E ela?


Tobias:

Na pior: t com fome. Ela e o filho dela. Com fome.

Zeco:

E eu de p quebrado. Sem poder trabalhar. E o txi l pra casa vai custar um


dinheiro.

Tobias:

Mas esse no precisou gastar.

Zeco:

T vendo? No foi toa que eu enfiei o p naquele buraco: maldio da bisav.


No toa que ela t assim, que nem voc falou.

Tobias:

Com fome, pai, com fome! Ela e o filho dela.

Zeco: Maldio da bisav.

IV A CAMA NO ESTDIO
Cena 1: Jernimos e Rosa no bar e na praia
Narrador 1:

(atriz que estiver fazendo a Rosa) Foi logo no incio do namoro que o
Jernimos contou pra Rosa que morava num estdio. A Rosa adorou: tudo que
evocava vida de artista ela achava lindo.

Narrador 2:

(ator que estiver fazendo o Jernimos) Quando o Jernimos contou que o


estdio era pequeno, modesto, de fundos, a Rosa no se importou: No tinha
mania de grandeza. Pensando bem, ela no tinha mania de nada. At o dia que

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encontrou Jernimos. A, pra usar uma expresso da Petnia, ela virou
jeromanaca.
Jernimos:

Imagina que eu andava procurando um pedacinho qualquer pra morar perto do


mar (j tinha visto mil horrores) (e quando no era um horror eu no tinha
dinheiro pra pagar), quando, um belo dia, conversando com o zelador do prdio
onde mora um amigo meu (um sujeito meio lacnico, meio mal-encarado) (o
zelador, no o meu amigo), ele vira pra mim e diz; a em cima tem um depsito
e um banheiro que eu t alugando. Logo me interessei. Em cima de qu?, eu
perguntei. Desse prdio, ele falou. Contei logo: o prdio tinha doze andares. Me
emocionei: uma cobertura?, eu arrisquei. Ele disse: cobertura troo de bacana,
foi num depsito e num banheiro, querendo, a gente pode ir l ver. No pensei
duas vezes, meu amor, fui logo dizendo: vamos l.
A gente atravessou a casa das mquinas e saiu numa areazinha que tinha trs
portas. Tive que esclarecer pra mim mesmo qual das trs portas era a minha
Mas a ele abriu a porta e (voc no vai acreditar) o depsito tinha uma bruta
janela! E o que tinha l atrs da janela, meu amor? diz: o que tinha?

Rosa:

O mar!

Jernimos:

Depois de ver bem o mar, eu olhei pro resto. Era s o olho ir rodeando o
depsito, que eu j via o um estdio arrumado: a mesa enviesada, onde eu ia
compor olhando o mar, recebendo em cheio a luz certinha da esquerda; o cho
j estava raspado e encerado, um div encostado na parede, justo debaixo de um
declive que o teto tem; demorei um pouco empurrando a cadeira de brao de um
lado pra outro at encontrar o lugar certo pra ela ficar: era l que eu ia sentar pra
ouvir minha msica; j vi pronto e colorido o canto que ia ser a cozinha, e de
estdio tudo pronto na cabea fui conhecer o banheiro. Um horror, meu amor!
Mas tinha gua, imagina! E quando dei a descarga...

Rosa:

Funcionou!!

Jernimos:

Acertou. E a eu j vi ele pronto, tambm, pintado de amarelo, gracinha!,


cabide, espelho, at um jarro de flor na janelinha que abre pra rea.

Rosa:

Ah, Jernimos! Isso eu no sabia.

Jernimos:

O qu?

Rosa:

Que voc decorava, arrumava, pintava. Achei que tocar flauta e compor j
chegava.

Jernimos:

No sabia que eu cozinhava?

Rosa:

Eu no.

Jernimos:

E que lavava e pregava boto?

Rosa:

Jura?

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Jernimos:

Precisa jurar ?

Rosa:

Que coisa!! E a?

Jernimos:

A o qu?

Rosa:

Voc fechou com o zelador?

Jernimos:

Ah, sim. Isso vai fazer um ano. E cada dia que passa eu gosto mais de morar l.

Rosa:

E ficou assim lindinho?, que nem voc pensou que ia ficar?

Jernimos:

Mais at. E arrumei tambm um caminho pra atravessar a casa das mquinas.
Acho que ficou bem pitoresco. Quer ir l ver?

Rosa:

Eu quero, u!

Cena 2: Rosa e Jernimos no estdio

Rosa:

No um pouquinho duro, Jernimos?

Jernimos:

Bom pra coluna, meu amor.

Rosa:

Meio estreito, no ?

Jernimos:

No ocupa muito lugar, bom.

Rosa:

Que bem que ele calhou aqui no cantinho.

Jernimos:

No ?

Rosa:

E que colcha to linda essa de croch.

Jernimos:

Eu pedi: com licena? e roubei da minha me.

Rosa:

Essa almofada um barato.

Jernimos:

Fui eu que fabriquei.

Rosa:

No acredito.

Jernimos:

Quando vi esse pano no resisti: comprei um pedao e forrei o travesseiro


anmico que morava a.

Rosa:

Mas que graa que tudo!

Jernimos:

S faltava voc.

Rosa:

Ah.

Jernimos:

Voc combina demais com tudo aqui, Rosa.

Rosa:

Ser?

Jernimos:

Essa a cadeira que eu sento pra ouvir msica. Mas agora eu vou sentar pra ver
msica. Rosa, voc agora fica aqui.

Rosa:

Mas esse espao seu pra estudar, pra compor.

Jernimos:

Esse espao agora nosso.

Rosa:

Mas pequeno.

Jernimos:

Pra que maior?

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Rosa:

Pra gente no cair tanto do div.

Jernimos:

A gente arruma um div de casal. Ou uma cama, se voc prefere. A gente bota
aqui mesmo debaixo desse teto cado. Encostadinha na parede. S que, em
vez de acabar aqui, acaba ali.

Rosa:

Acha que vai ficar bom?

Jernimos:

Claro, u. Escolhe uma cama que voc gosta e pronto, bota ela aqui.

Rosa:

E a colcha de croch da sua me?

Jernimos:

No dela, nossa.

Rosa:

Mas, hein? e a colcha?

Jernimos:

larga, olha s, vai dar. A cama no precisa ser muito grande, no ? Quanto
menos, mais juntinho a gente fica.

Rosa:

Prometo que eu procuro uma cama pra casal apaixonado.

Jernimos:

Apaixonado e magro.

Rosa:

, meu amor, que saudade que eu vou ter de voc.

Jernimos:

No fala nisso, no fala. O tempo vai passar rapidinho, voc vai ver.

Cena 3: A cama chega ao estdio

Elvira:

Voc pretende ficar morando nisso aqui?

Rosa:

Pretendo sim, me. Voc gosta?

Petnia:

Uau!! esse estdio um barato. A entrada podia ser mais normal, mas aqui
dentro legal. Olha o mar! que lindo! Agora o quarto da Rosa meu! Ningum
me arranca de l! Pra tomar ele de mim, s passando pelo meu cadver!

Entram o burro-sem-rabo e o menino-ajudante


Menino:

No entrou no elevador: teve que vir de escada, puta que o pariu!

Burro:

Encosta ela onde?

Elvira:

Encosta ela aqui, seu... seu... como mesmo o seu nome?

Burro:

Pode me chamar como todo mundo me chama.

Elvira:

Ento encosta ela aqui, seu, e como que todo mundo lhe cama?

Burro:

Me chama pelo que eu sou, u. (para o menino) Pega l o estrado!

Menino:

Sozinho eu no agento, um puto peso.

Burro:

J te disse pra no falar palavro na frente de fregus! Mas que essa cama um
puto peso, .

Elvira:

Claro: madeira de lei, macia, jacarand do mais puro; hoje em dia ningum
mais imagina a preciosidade que isso .

Burro:

Ah, l isso , que preciosa ela .

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Menino:

Mas um puto peso. (leva um empurro do burro)

Burro:

Anda! Vamos acabar logo com isso!

Elvira:

Ajuda aqui, Petnia, ajuda aqui.

Burro:

No tava no trato carregar esse colcho, hem, madame?

Menino:

outro puto peso. (Burro ameaa o menino com a mo)

Burro:

O colcho no tava no trato, madame. O zelador falou que o pessoal da entrega


deixou ele na garagem porque no entrou no elevador.

Menino:

V ser grande assim no inferno!

Elvira:

O elevador que pequeno demais. (para Rosa) Voc no imagina a


dificuldade que eu tive pra conseguir um colcho pra essa cama. Que mo-deobra! A Petnia testemunha do que eu falei, do que eu andei, do que eu
telefonei, do que eu procurei, no , Petnia?

Petnia:

Me pra isso.

Elvira:

Pode ir montando, pode ir montando, seu... seu o que mesmo?

Burro:

A senhora me desculpa, madame, mas o trato foi pra carregar, no foi pra
montar.

Elvira:

Num instantinho a gente monta, eu ajudo; essa cama muito bem feita, tudo
encaixa com facilidade, vamos, vamos.

Burro:

A madame me desculpe, mas isso t fora do trato.

Menino:

Isso, no: issos.

Petnia:

Xi! esse issos s pode ser parente do Jernimos.

Elvira:

Eu j fui to longe com esse teu presente que agora no o momento de recuar.
(para o Burro) Eu vou lhe pagar extra pela montagem da cama. (bate palmas)
Ento vamos l! Mos obra, seu... seu...Mas, afinal: qual o seu nome?

Burro:

Pois ento eu j no lhe disse...

Elvira:

No!

Burro:

...que me chamam do que eu sou?

Elvira:

Se tem uma coisa que eu de-tes-to incerteza, ambigidade, e o senhor est


sendo ambguo demais em relao ao seu nome, seu...

Burro:

Burro, raio!

Elvira:

Burro?

Burro:

Sem rabo.

Elvira:

Mas o senhor no se importa de ser chamado de burro? Ainda mais, sem rabo?

Burro:

Vou me importar muito mais se o extra que a senhora pagar no for gordo: pra
magro j chega eu.

Menino:

No um extra, no: tem o colcho. Doze andares. Um puto peso!

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Narrador:

O estdio s tinha quatro cantos, e j que a cama ocupava agora todo o centro
do estdio, o resto teve que se espremer nas esquinas.

Rosa:

Ser que o Jernimos vai achar ela muito grande?

Narrador:

Naquela noite a Rosa estreou a cama, cansada de rearrumar o estdio: tudo teve
que ser deslocado pra ceder espao a Sua Majestade. Mas o que mais cansou a
Rosa foi se debater tanto na dvida em torno da cama ser apropriada ou no.
Dvida que s deixou ela em paz quando se deitou pra dormir. Que largueza!
que conforto! que maravilha! deitar naquela cama depois de ter dormido tantas
noites no div! Brincou de rolar de um lado pra outro. Riu. Se imaginou rolando
com o Jernimos. Adorou. Teve certeza que ele ia adorar tambm. Dormiu em
paz.

Cena 4: Jernimos volta de viagem

Rosa:

Que saudade, meu amor querido!

Jernimos:

Ah, que saudade!

Os dois se beijam e se abraam at que Jernimos v a cama e fica paralisado


Jernimos:

O que que isso?

Rosa:

Isso o qu?

Jernimos:

Isso a.

Rosa:

A cama?

Jernimos:

Veio de onde?!

Rosa:

Pois essa a cama que a me deu de presente pra gente.

Jernimos:

No acredito.

Rosa:

Mas eu no te disse no telefone que ela tinha nos dado uma cama...

Jernimos:

No contou que ela era assim!

Rosa:

e que era uma pea antiga e rara...

Jernimos:

Rara sim! pea do Museu de Horrores. Na certa o Drcula dormiu nela. Ou


ento o Frankenstein.

Rosa:

O qu?!

Jernimos:

Rosa, que cama sinistra!

Rosa:

Sinistra o que, meu querido! uma pea linda, toda trabalhada, jacarand do
mais puro. E olha s pra isso. O estrado todo de palhinha e, repara, est
perfeito.

Jernimos:

Olha pro p dela. P, no: pata! E de um monstro antediluviano.

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Rosa:

J comea voc com seus exageros. eu concordo com voc: a cama um pouco
pesada, mas...

Jernimos:

Um pouco?!

Rosa:

mas uma pea antiqssima, tem uns duzentos anos, e, olha, fora uma
lasquinha aqui, um arranho ali, ela t perfeita.

Jernimos:

E o tamanho!

Rosa:

Cama de casal, no , Jernimos?

Jernimos:

S se for de hipoptamos!

Rosa:

Ah, pra com isso, t?

Jernimos:

E as garras?!

Rosa:

Onde que tem garra?

Jernimos:

Nessa cabeceira, olha. Ento isso no garra? Pronta pra avanar no primeiro
inocente que deitar a cabea a?

Rosa:

um entalhe. E aqui um floro. E aqui... (olha pro Jernimos, e quando v a


expresso na cara dele, comea a rir)

Jernimos:

E voc... ri? Rosa, isso no brincadeira. Rosa, isso coisa sria.

Rosa d gargalhadas.
Jernimos:

Rosa, cama um troo importante, onde a gente passa grande parte da vida.

Rosa:

Eu sei, meu querido, eu sei.

Jernimos:

Essa cama me choca, me ofende... eu no posso passar grande parte da minha


vida chocado; eu me recuso a acordar todo dia ofendido. Rosa, eu quero te
amar; eu quero fazer msica; eu quero ser feliz. Como que eu vou poder? Olha
pra esse estdio! t tudo se encolhendo assustado: cadeira, mesa, cavalete; at o
fogo t morto de medo dessa raridade que se instalou aqui.(mudando o tom da
voz) Eu no durmo com voc nessa cama.

Rosa:

Como que ?

Jernimos:

(repetindo devagar) Eu no durmo com voc nessa cama. E tem mais, Rosa,
mesmo que a gente deite no cho, eu no vou ser capaz de te amar: a presena
desse monstro apocalptico me paralisa.

Rosa no diz nada.


Jernimos:

Quer fazer o favor de sair dessa cama, Rosa? Quer sair da pra eu no ter mais
que olhar pra essa coisa? Por favor? Rosa, eu estou pedindo por favor pra voc
se mudar da! (vai pra janela. Depois de um tempo, Rosa comea a arrumar
suas coisas. Jernimos percebe) O que que voc t fazendo?

Rosa:

No t vendo?

Jernimos:

Onde que voc vai?

Rosa:

Vou membora.

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Jernimos:

Embora pra onde, Rosa?

Rosa:

Pra minha casa.

Jernimos:

Sua casa aqui!

Rosa:

Era!

Jernimos:

Voc t maluca se pensa que eu vou deixar voc ir embora por causa de uma
cama.

Rosa:

Voc que t maluco se pensa que algum dia eu vou entender, e muito menos
desculpar!, voc no querer nada comigo porque no gostou de uma cama.

Jernimos:

Mas Rosa, voc tem que entender...

Rosa:

Nem Deus no cu, nem Cristo na Terra, vai me fazer entender que, depois desse
tempo todo da gente longe um do outro, voc no dorme comigo porque no
gostou da cama.

Jernimos:

Mas Rosa, a culpa no minha!

Rosa:

de quem ento?

Jernimos:

Da sua me.

Rosa:

O qu??

Jernimos:

Claro que a culpa dela! Escolheu a dedo a cama mais aterrorizante do Rio de
Janeiro, s pra tirar voc dos meus braos. Eu sabia, eu sempre disse que ela
no vai com a minha cara.

Rosa:

Voc t maluco mesmo! J se viu coisa igual? agora querer passar a culpa pra
coitada da mame.

Jernimos:

Coitada coisa nenhuma!

Rosa:

Coitada, sim! Essa cama deu a maior mo-de-obra pra ela. O que ela fez, o que
ela gastou (e voc sabe que a grana t curta pra ela tambm) pra dar pra gente
um presente rgio, essa cama uma preciosidade, uma raridade, ela quis dar pra
gente o melhor, e a paga essa: voc a falando mal dela tambm.

Jernimos:

Rosa...

Rosa:

Me larga!

Jernimos:

me entende: a gente tem que se livrar dessa cama...

Rosa:

O qu?!

Jernimos:

pra eu poder te amar de novo.

Rosa:

T vendo s? me amar de novo. Voc deixou de me amar por causa de uma


simples cama.

Jernimos:

Simples?!

Rosa:

Simples ou complicada, sei l! E tambm no me interessa mais. Sai da minha


frente!

Jernimos:

A gente tem que se livrar dela pra tudo voltar ao que era antes, me ajuda, Rosa.

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Rosa:

Eu?? Pra depois voc cismar com o brao da cadeira e comear tudo outra vez?

Jernimos:

Eu no sou de cismar com as coisas!

Rosa:

E ainda por cima virou cnico.

Jernimos:

Mas olha pra essas garras, pelo amor de Deus, voc no deve ter visto elas bem,
eu vou acender a luz.

Cena 5: Rosa volta para a casa de Elvira parte 1

Rosa:

Vim morar outra vez aqui. (v o seu antigo quarto) Que que isso?! o que que
aconteceu com o meu quarto?

Petnia:

Virou meu.

Rosa:

E voc deixou, me?!

Elvira:

Mas Rosa, minha filha, voc no tinha se mudado?

Rosa:

E voc no tinha dito que ia guardar o meu quarto?

Elvira:

E guardei.

Rosa:

Guardou aonde?

Petnia:

No Caixote.

Rosa:

O qu?! E voc acha que eu vou dormir no Caixote?

Petnia:

Eu no dormia l antes de voc se mudar?

Rosa:

Ah, no! no mesmo! eu vou desmudar tudo que voc mudou, viu, me?

Petnia:

No foi a me que mudou, fui eu.

Rosa:

Pois eu vou trocar tudo de novo.

Petnia:

No vai no: quem foi ao vento perdeu o assento. No era assim que o pai
falava?

Cena 6: Jernimos e a cama

Jernimos:

Mas ser possvel que pra ter a Rosa de volta eu vou ter que viver com voc?!
T pensando que eu vou aceitar essa troca, ? ela vai e voc fica? T pensando
que eu vou engolir essa histria? Voc tira do meu olho tudo que ele quer olhar,
voc tira da minha mo tudo que ela quer pegar, voc me deixa aqui sozinho
olhando pra tua cara, e pensa que vai ficar tudo por isso mesmo, ? Ah, no!
Isso no vai ficar assim. Mas no vai mesmo.

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Cena 7: Rosa volta para a casa de Elvira parte 2

Petnia:

Rosa, eu no vou deixar voc mexer nessa arrumao que eu fiz.

Rosa:

E eu no vou deixar voc tomar conta do quarto que meu.

Elvira:

E eu no vou deixar vocs duas brigarem sem primeiro saber o que aconteceu.

Rosa:

Aconteceu que eu no perdo o Jernimos de jeito nenhum!

Elvira:

No perdoa o qu?

Rosa:

Ele odiou a cama.

Elvira:

A cama que eu dei de presente?

Rosa:

Odiou.

Elvira:

No possvel. Mas o cmulo da ignorncia odiar uma pea fina e rara


daquelas.

Rosa:

Ignorncia no , voc sabe muito bem que de ignorante o Jernimos no tem


nada.

Elvira:

Mas voc no acabou de dizer que no perdoava a ignorncia dele?

Rosa:

No! eu acabei de dizer que no perdoava ele. Ele no gosta mais de mim.

Petnia:

J??

Rosa:

Depois de dois meses longe de mim, ele se recusou a dormir comigo. E botou a
culpa na cama.

Elvira:

Ele no quis saber de voc e disse que a culpa era da cama? foi isso? eu entendi
direito?

Rosa:

Foi isso sim! e eu nunca vou perdoar ele no querer nem me abraar porque no
gostou da cama...

Elvira:

Mas Rosa, ele j chegou de viagem no querendo mais nada com voc?

Rosa:

No, no! eu corri quando ouvi ele chegando, e ele me abraou e me beijou
tanto l na casa das mquinas...

Elvira:

A casa das mquinas!...

Rosa:

...que quase nem deu pra gente entrar no estdio.

Petnia:

Ah, bom, ento foi mesmo quando ele viu a cama que ele broxou.

Elvira:

Petnia! onde que voc aprendeu isso, menina?!

Petnia:

Ah, me, isso coisa que a gente aprende na escola.

Elvira:

Na escola?!

Petnia:

Na hora do recreio, me, na hora do recreio. Rosa, eu j sei o qu que


aconteceu! Outra noite aconteceu igualzinho num filme que eu vi na televiso:
na hora H o cara broxa porque um cachorro bass entra no quarto e fica olhando
pra ele. Um bass pequenininho assim: e j deu pra broxar. Imagina uma
enormidade feito a cama.

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Inibio! Era essa a palavra que eles usavam no filme. O cara sofreu uma
inibio. Mas isso passa, viu, Rosa, s voc tirar a cama da frente do
Jernimos, que nem acabaram tirando o bass, que isso passa.
Rosa:

No enche, Petnia!

Petnia:

S t querendo ajudar, u.

Rosa:

No quero ajuda nenhuma, eu quero que voc v embora aqui do meu quarto.

Petnia:

Seu? Pois sim! quem foi ao ar perdeu o lugar.

Rosa:

Meu! Foi sempre meu e vai ser meu de novo!

Elvira:

De novo? Mas ento o seu romance com o flautista acabou mesmo?

Rosa:

Pra sempre, me, pra sempre.

Elvira:

Mas, minha filha...

Rosa:

Vocs querem fazer o favor de me deixar em paz?!

Petnia:

Deixa a poeira baixar, me; depois a gente conversa mais com ela. Vai l tratar
das panelas, me, deixa essa mesa que eu boto.

Narrador 1:

Foi s Elvira dar as costas, que a Petnia sentou e se concentrou: o qu que ela
podia fazer para assegurar a posse imediata da cama? (a briga do quarto ficava
pra depois).

Narrador 2:

Essa tinha sido a razo da sbita serenidade da Petnia: de repente, ela tinha se
dado conta da magnfica oportunidade de cumprir uma promessa que ela tinha
feito a Tobias.

Narrador 3:

E agora ela estava ali fazendo o mximo pra se concentrar.

Narrador 1:

Mas no conseguia rascunhar nenhuma estratgia: a imaginao s queria saber


de imaginar a cara do Tobias...

Narrador 2:

...ouvindo ela dizer: a cama ta te esperando, no te prometi que ela voltava pra
vocs?

Narrador 3:

E a os dois comeavam a se abraar, a... mas como que ela ia levar a cama l
pra Rocha Miranda?

Narrador 1:

Quem sabe o tal burro-sem-rabo e...

Narrador 2:

Bom, mas isso ficava pra depois...

Narrador 3:

O que ela tinha que bolar agora era um jeito de garantir a posse da cama.

Narrador 1:

Tentava outra vez se concentrar no jeito.

Narrador 2:

Mas a imaginao escapava de novo pra cara feliz do Tobias, ouvindo ela
anunciar:

Narrador 3:

T vendo s? cumpri minha promessa, olha a cama aqui de volta pra vocs;

Narrador 1:

E a o Tobias abraava ela e ela abraava ele...

Narrador 2:

...e ele beijava ela...

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Cena 8 Jernimos vai ao antiqurio

Jernimos:

Eu tenho que me livrar de voc j! O antiqurio da Barata Ribeiro! Ser que a


Dona Gabriela ainda mora l? (vai indo para o antiqurio). Que preo ser que
eu peo? Ser que ela compra? E se comprar, paga? Mas a cama no da Rosa?
Ser que eu tenho o direito de vender a cama? Mas a Rosa no deu a cama pro
estdio? E o estdio no meu? Ento a cama minha tambm! E se a Rosa
zangar comigo ainda mais do que j zangou e no me perdoar? Como que eu
vou viver sem a Rosa? E agora? (chega ao antiqurio)

Gabriela:

Onde que est essa tal cama?

Jernimos:

Ta l em casa.

Gabriela:

Mas eu j fechei a loja, vamos deixar isso pra amanh.

Jernimos:

Num instantinho a gente vai l: so dois quarteires, logo ali dobrando. Eu


tenho que me desfazer dessa cama, um caso urgente, urgentssimo! Garanto
que a senhora no vai se arrepender: a cama uma pea rara, tem dois sculos.

Gabriela:

Dois sculos, voc disse?

Jernimos:

. Vamos l ver!

Gabriela:

Vamos.

Cena 9: Jernimos vai buscar Rosa na casa de Elvira

Petnia:

A Rosa quer o quarto de volta, o Jernimos no quer a cama, o negcio ento


vai ser esse: eu dou o quarto e ela me d a cama.

Narrador:

De olho perdido no xadrez da toalha, Petnia ia procurando a maneira mais


convincente de levar pra Rosa a proposta quarto-versus-cama. Ela ia sentar
junto da Rosa, pegar a mo da Rosa, contar pra Rosa o encontro com Tobias no
Jardim Botnico, desabafar pra Rosa a enormidade do sentimento que ela estava
sentindo pelo Tobias. E a se abraava com a Rosa. No s pra consolar a Rosa
de um amor infeliz, mas tambm pra agradecer a cama que a Rosa estava
trocando com ela. Suspirou contente com a cena. Ensaiou na cabea tudo que
ela tinha que dizer (e no dizer). A perspectiva de ficar sem quarto de novo
doeu fundo. Mas nem por um momento pensou em desistir da troca.

Petnia:

Digo pro Tobias: tenho um presente pra voc, advinha o que que !

Elvira:

O jantar est pronto: ser que a Rosa ainda est chorando l no quarto?

Petnia:

Deixa que eu vou l ver.

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Toca a campainha
Petnia:

E se for ele?

Elvira:

Eles que se entendam. Ns no vamos nos meter nisso.

Toques insistentes da campainha. Petnia abre a porta


Jernimos:

Oi, a Rosa ta? (ningum responde) Deve estar l no quarto, no ? (vai at o


quarto de Rosa) Rosa, paixo da minha vida!, vim te buscar de volta e te trazer
uma notcia sublime: troquei a cama por um div sen-sa-ci-o-nal: calha
divinamente no estdio, calha s mil maravilhas pra ns dois. Te amo! te adoro!

Rosa:

O que que voc t pensando? que mgoa se esquece assim? (estala o dedo).

Jernimos:

Foi tudo um mal-entendido, meu amor.

Rosa:

Eu entendi tudo muito bem.

Jernimos:

No, no! Voc no chegou a perceber o efeito claustrofbico que aquela cama
teve em mim. Mas eu me livrei dela, meu amor! Sem ela na minha frente, voltei
a ser o homem que eu era antes, te adorando, te botando no mesmo pedestal que
eu boto o Mahler, que eu boto o Schumann, que...

Rosa:

Me solta! Voc no tinha o direito de se livrar de cama nenhuma, a cama era


minha e muito minha.

Jernimos:

Voc deu ela de presente pro estdio.

Rosa:

Pra gente dormir nela! ns dois.

Jernimos:

Mas que diferena que faz pra voc dormir nela ou no div que eu troquei por
ela?

Rosa:

Mas ento voc trocou mesmo?

Jernimos:

Troquei, j te disse.

Rosa:

Voc tinha que me consultar: a cama era minha.

Jernimos:

Voc no me deu tempo pra consulta nenhuma, foi logo me abandonando.

Rosa:

Quem me abandonou foi voc!

Jernimos:

Nunca eu vou te abandonar, Rosa, nunca! Voc saiu e me deixou desesperado.


Uma inspirao me salvou do desespero: fui num antiqurio l perto de casa e a
gente deu tanta sorte, Rosa, que o cara adorou a cama. Quis levar ela na hora. E
quando eu disse pra ele que eu precisava, urgente!, de outra cama, ele nem
pestanejou: me levou na casa dele (ele mora todo embolado com as velharias
que vende) e mandou eu escolher uma cama. E a nossa sorte continuou, Rosa:
meu olho bateu num div lindo!, delicado, agradvel, tipo do div pra morar l
no estdio.

Elvira:

Mas no possvel que algum, em s conscincia tenha trocado aquela


magnfica pea de jacarand, aquela cama rarssima, por um di-v. Na certa

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fabricado outro dia, num fundo de quintal qualquer, junto com centenas de
outros. No possvel!
Jernimos:

No, dona Elvira, no foi fabricado outro dia, no! O antiqurio autntico, s
tem coisa velha. (para Rosa) Mas o div muito simples, viu, Rosa, e foi isso
que eu gostei; ele mais ou menos do tamanho desta cama; forrado assim de
um tecido antigo, j t meio... gasto, mas isso no faz mal, a gente cobre... a
colcha da mame... (para Elvira) E os ps, dona Elvira, so simples ps. Os
quatro.

Elvira:

Quer dizer que voc trocou a cama por quatro ps velhos e um tecido j... meio
gasto. E foi uma simples troca? Levaram a cama e deram o div pra voc?

Jernimos:

Mas a Dona Gabriela se encarregou de tudo.

Elvira:

De tudo o qu?

Jernimos:

U, dona Elvira, desarmar cama, levar cama, trazer div, isso tudo d uma mode-obra danada, no d? E ela no quis perder tempo, comeou logo a tratar de
tudo e...

Elvira:

Mas claaaaaaro!! ela precisava ser uma total imbecil pra deixar atrasar essa
inteligentssima troca.

Rosa:

Pera a, pera a! Voc disse que o div do tamanho desta cama?

Jernimos:

, mais ou menos, sim.

Rosa:

Quer dizer que voc trocou a minha cama pelo div pra voltar a dormir sozinho?

Jernimos:

No! Voc ta maluca? O div pra voc e pra mim.

Rosa:

Mas isso cama de solteiro: pra um.

Jernimos:

Mas ns somos um!

Rosa:

Ah, no me vem agora com sutilezas.

Elvira:

Minha filha, voc no pode concordar com essa troca de jeito nenhum!

Rosa:

Pera a, mame.

Jernimos:

A troca j foi consumada, Dona Elvira.

Elvira:

Mas isso no tem cabimento! o mximo do absurdo.

Jernimos:

No sutileza, no, Rosa, vem c, deixa eu te mostrar como a gente cabe


direitinho a nessa cama, voc e eu.

Rosa:

No cabe. No precisa mostrar nada: no cabe.

Jernimos:

Cabe!

Rosa:

No cabe!

Jernimos:

Dona Elvira, com licena um instantinho. (conduz Elvira at a porta)

Elvira:

No pense voc, Jernimos, que eu vou me conformar de ver o presente que eu


dei pra minha filha...

Jernimos:

Depois, dona Elvira, depois. Por favor. Por favor voc tambm, Petnia.

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Petnia:

Calma a, Jernimos, o quarto meu.

Jernimos:

um minutinho s, Petnia, por favor. (para Rosa) Rosa, amor da minha vida,
eu s quero te pedir uma coisa. Eu s quero te pedir um momento de noirritao. Um nico momento, t bem?

Rosa:

Eu no t irritada, eu s t dizendo que no vai caber.

Jernimos:

Olha aqui, meu amor, deixa eu te mostrar, vem c, assim , voc deita aqui,
pera a, pera a, deixa eu tirar o sapato pra no sujar o lenol, vai mais um
pouquinho pro canto, assim, isso! Olha s o lugarzo que sobrou pra mim, e se
voc tira essa roupa toda e eu tiro essa roupa toada, a ento vai sobrar ainda
mais...

Rosa:

O que voc ta querendo, hem?

Jernimos:

Mostrar pra voc que cabe, s isso. Viu? Agora me abraa. Sim, porque a gente
vai dormir sempre abraado, no ? Agora, meu amor, faz o seguinte...

Elvira:

Voc no vai ficar a de ouvido grudado na porta, vai, Petnia?!

Petnia:

(gargalhadas da Rosa) Ser que eu ouvi bem?

Elvira:

Bota som nessa televiso, menina!

Petnia:

Voc vai ver: os dois vo ficar l trancados a noite inteirinha.

Elvira:

Que mal eu fiz a Deus pra merecer tudo isso?

Petnia:

No tenho mais cama pro Tobias. Nem cama pra mim eu tenho mais. De novo
em trnsito. Destino ignorado.

Narrador:

A Petnia estava certa: a porta do quarto dela s se abriu na manh seguinte.


Elvira achou mais aconselhvel no botar o olho no Jernimos antes de digerir a
troca da cama. Foi pras imediaes do estdio verificar se a histria que o
Jernimos tinha contado era verdadeira. Quando afinal entrou na loja pra se
informar do preo da cama, a indignao da Elvira redobrou. No pelo lucro
excessivo que o antiqurio ia ter, mas pela m sorte excessiva de ver a Rosa
casada com um Jernimos daqueles.

V A CAMA NO JARDIM BOTNICO

Cena 1: Portaria

Petnia:

No chegou nenhuma carta pra mim, seu Nlson?

Porteiro:

Se chegasse eu te entregava, no ?

Petnia:

Podia esquecer, u.

Petnia:

Seu Nlson, o senhor no esqueceu de ver se chegou carta pra mim?

29
Petnia:

J sei que no chegou carta pra mim.

Porteiro:

Pois chegou. Taqui.

Petnia:

(l o remetente) Tobias Pinheiro! E eu que no sabia que voc tem rvore no


nome, feito eu tenho flor: s pode dar um namoro ecolgico, ou no ?
(abrindo o envelope) Ser que o Tobias de pouca escrita, feito ela de pouca
fala? QUERIDA PETNIA. No dia seguinte que a gente se encontrou l no
morro, eu escrevi uma carta pra voc.
Quis contar a histria da cama, que aquele dia eu no contei direito. A cama que
a sua me comprou.
Mas a carta foi ficando to cumprida (sic) e to difcil de escrever que eu acabei
desanimando.
Contar uma histria falando sai muito mais fcil que contar escrevendo.
Ento, eu achei que a gente podia se encontrar um dia...
Que horror! Um dia a coisa mais longe que existe, eu quero encontrar ontem!
Ento, como hoje eu no vou contar pra voc a histria da cama que eu ia
contar, eu vou contar outra coisa...
PETNIA. Quero contar que acho o teu nome lindo.
Depois que eu te conheci fui no dicionrio ver se tinha Petnia l.
E a eu fiquei sabendo que flor que petnia .
Depois que eu te conheci eu comecei a perguntar onde que tinha petnia
plantada para eu ir l ver.
Perguntei tanto que a professora resolveu fazer uma pesquisa de petnias l na
classe.
Todo mundo pesquisou.
Mas s ontem eu vi-as (sic) pessoalmente. A professora trouxe um vaso com
petnia plantada dentro. Tinha roxa, cor-de-rosa e branca.
Ela botou o vaso na janela e eu fiquei olhando para elas pensando em voc.
Vendo a lindeza que petnia, o teu nome ficou ainda mais bonito.
O teu nome to lindo Petnia que eu vou sempre amar.
Espero resposta.
Tobias.

Narrador 1:

A Petnia estava deslumbrada: nunca tinha imaginado o nome dela inspirando o


Tobias tanto assim. Foi correndo pro apartamento responder. Pegou um papel
de carta lindo que a Rosa tinha esquecido de levar pro estdio, e sem caprichar
na letra nem nada escreveu um urgente! no alto da folha e pediu pro Tobias
correr no orelho mais perto, e telefonar urgente pra ela. Saiu voando pro
correio.

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Narrador 2:

Foi carta, depois veio o primeiro telefonema, depois veio o segundo, e quando
Tobias contou que a professora tinha programado uma visita da classe ao Jardim
Botnico, a Petnia nem pestanejou:

Petnia:

Te encontro l! Mas voc sozinho. Jardim Botnico! Olha s. Vai ser o tipo do
encontro ecologicamente correto.

Narrador 3:

Mas o Tobias nem se ligou no tipo do encontro: s estava pensando como que
ele ia se desligar da classe e ficar sozinho com a Petnia.

Cena 2: Jardim Botnico

Tobias e Petnia encontram-se no Jardim Botnico. Est chovendo. Os dois esto muito
molhados.

Tobias:

A escola cancelou o passeio ao Jardim Botnico por causa do tempo ruim e eu


resolvi vir sozinho. Mas eu no sei andar na zona sul! Me perdi e fui parar em
Jacarepagu!

Petnia:

Jacarepagu?! (Tobias comea a chorar) Por qu?

Tobias:

Eu queria ser forte feito o meu pai...

Petnia:

(a parte) ais forte do que ele j era?

Tobias:

Eu no sei se voc t entendendo o que eu t querendo dizer. difcil explicar


isso. Mas uma coisa assim: eu... eu no queria deixar de fazer... o que o meu
pai t a fim... de ver eu fazendo. D pra entender? Se tem coisa que me deixa
ruim, dar tristeza pro meu pai. O barraco da minha tia no sai da minha
cabea, t sempre aqui! Se eu soubesse contar as coisas direito, meu pai ia
perdoar a tia Maria Rita e ia ajudar ela a sair do buraco. Mas eu no consegui
explicar a coisa horrvel que ser pobre daquele jeito, e agora o pai no quer
nem ouvir falar o nome dela. E tudo por causa da cama.

Petnia:

Que histria era essa da cama?

Texto em off contando a histria da cama


Tobias:

Nunca na vida eu tinha falado tanto!

Petnia:

Nem eu... ouvi tanto! Aquele que vem l o meu. Mas eu vou ficar aqui com
voc esperando o teu.

Tobias:

No precisa no, Petnia. Dessa vez eu no vou me perder, garanto.

Petnia:

Quando que a gente se v de novo?

Tobias:

Eu te telefono na semana que vem.

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Petnia:

(faz sinal pro nibus parar e abraa Tobias com fora) Te prometo que eu vou
te dar aquela cama de volta.

Tobias:

No, Petnia, no promete nada! Por favor, no promete!

Petnia:

(entra no nibus e aponta para o cu) Tem arco-ris!

VI A CAMA NA INDENIZAO

Elvira:

Rosa no deu mais notcias. Deve ter se acertado com o flautista. Ser que
mesmo assim? Dormindo os dois num div? Problema deles, eu que no vou
mais me preocupar onde eles dormem. (o telefone toca)

Amrico:

Elvira?

Elvira:

Sim...?

Amrico:

Amrico.

Elvira:

Quem?

Amrico:

Amrico j se esqueceu de mim?

Elvira:

Mas mesmo voc, Amrico?

Amrico:

Por que? Achou que eu tinha morrido?

Elvira:

que... faz tanto tempo...

Amrico:

Faz, faz: desde que o teu pai morreu. Bota a o qu? Sete? Oito anos?

Elvira:

Nada! J vai pra quinze.

Amrico:

Quinze?! Ah, ento por isso que andam dizendo que eu fiquei velho: o tempo
passou e eu no vi.

Elvira:

A voz continua moa.

Amrico:

No s a voz...

Elvira:

Ento, porque que andam dizendo que voc ficou velho?

Amrico:

Trs enfartes, duas pontes de safena, um enfisema pulmonar e uma impacincia


to

grande que no da pra imaginar. Mas no foi pra te contar isso que

telefonei. Telefonei porque eu quero uma cama.


Elvira:

(a parte) Ser que ele bebeu demais? Xi! Quem sabe, entre um enfarte e um
enfisema, entrou tambm uma esclerose?

Amrico:

Voc ta , Elvira?

Elvira:

Estou...

Amrico:

Voc ouviu? Eu quero uma cama.

Elvira:

Ouvi, mas...

Amrico:

Lembra da minha filha?

Elvira:

Roberta?

32
Amrico:

Brigamos. H anos que a gente no se fala.

Elvira:

Ora Amrico, que pena, sua nica filha.

Amrico:

No preciso de pena, preciso de uma cama. Lembra da Faustina?

Elvira:

A sua governanta?

Amrico:

Me acordou hoje de manha dizendo que a Roberta vem passar o fim de semana
comigo.

Elvira:

Mas...

Amrico:

Na certa ouviu dizer que eu to com o p na cova; achou mais garantido eu


morrer de pazes feitas com ela. Mas no foi pra te contar isso que eu telefonei.
que, de repente, eu me lembrei do teu pai e da mania que ele tinha por coisa
antiga. Eu no! Eu sempre tive horror de velharias. Foi s me dizerem que eu
estava velho que eu mandei tirar tudo que espelho da casa. O barbeiro vem
aqui todo dia e cuida da minha cara; a Faustina cuida da minha roupa: no
preciso mais me ver. E a me lembrei que voc era igualzinha ao teu pai: um
gosto por antiguidades. Ento eu disse : pronto a Elvira que vai me salvar.

Elvira:

(a parte) Humm, eu sabia...esse barulhinho ta com toda cara de gelo no copo.


(para Amrico) Salvar...?

Amrico:

Na ultima briga que eu tive com a Roberta eu mandei a Faustina sumir com
tudo que a Roberta ainda tinha aqui em casa, inclusive uma cama, velharia
tambm, que ela adorava. E agora, ainda h pouco, a Faustina veio me dizer
que, na certa, a Roberta vai odiar a cama do quarto de hospedes, porque, aqui
em casa, no sei se voc lembra, tudo moderno, todo ano eu renovo esses
troos, ltimo modelo de cama, de computador, de carro, de fax, de privada, de
vdeo, do raio que o parta. Ento eu preciso de uma cama velha, antiga. A
Roberta s torce o nariz pra antigo se o antigo sou eu.

Elvira:

Eu no imaginava a Roberta...

Amrico:

Pois ela no gostava daquela cama velhrrima que ela tinha aqui? E no se
enfiou c na Europa anos a fio, escolhendo a dedo tudo quanto lugar
supervelhssimo pra ir morar? Ento, Elvira, minha querida, trate de me arranjar
uma cama.

Elvira:

Pra quando?

Amrico:

Pra hoje!

Elvira:

Hoje?!

Amrico:

Ou melhor: pra ontem! Me arranja uma cama pra ontem! Tchau.

Elvira:

Mas espera a, Amrico. E o preo?

Amrico:

Mas que besteira, Elvira! O preo que ela custar, u. T esperando tuas notcias.
Um beijo.

33
Mesmo depois de escutar o Amrico desligar o telefone, Elvira continua de fone no ouvido.
Elvira:

Me lembro do papai contando: quando o Amrico quer uma coisa, ele paga o
preo que for.

Elvira:

E porque no?

Elvira:

Por que no o qu?

Elvira:

Isso que eu acabei de pensar.

Elvira:

No, no. Esquece.

Elvira:

Mas esquece por qu?

Elvira:

No direito. Se eu compro a cama pro Amrico, o Amrico vai pagar e-xa-tamen-te o que o antiqurio est pedindo.

Elvira:

E o prejuzo todo que eu tive com a cama?

Elvira:

Bom...

Elvira:

Um dinheiro! Paguei pra Maria Rita, paguei pro burro, paguei pro menino,
paguei o colcho...

Elvira:

Pra no fala na mo-de-obra que eu tive: subir morro, ir numa favela...

Elvira:

E isso tudo tendo que digerir o Jernimos ...

Elvira:

Vou morrer sem digerir aquele homem!

Elvira:

Pois : se algum merece ser ressarcida sou eu.

Elvira:

At hoje a Rosa (e muito menos aquele compositor-de-grunhidos) no se


lembrou de me dar nem mesmo um pedido de desculpas pelo destino que o
flautista deu pra cama, quanto mais uma indenizaozinha....

Elvira:

Isso! Indenizao! Eu tenho que ser indenizada... Vai ser a nica maneira de me
desfrutar...

Elvira:

Ser que essa palavra est certa?

Elvira:

Me desfrutar desse maldito episdio da cama.

Elvira:

Isso! Eu pago o preo que o tal do seu Gabriel est pedindo, e vendo pelo dobro
pro Amrico.

Elvira:

Quem sabe, o triplo?

Elvira:

No. No fica bem.

Elvira:

Fica bem, sim: hoje em dia todo mundo resolve tudo com indenizao. Por que
eu no posso resolver tambm?

Elvira:

Mas... triplo?

Elvira:

Que diferena vai fazer pro Amrico se o duplo, se triplo, se ...

Elvira:

No, no fica bem.

Elvira:

Isso a gente v depois. Primeiro tenho que ver se a cama ainda esta venda.

Elvira liga o som e comea a danar. Petnia entra e Elvira joga um beijo pra ela
Petnia:

Voc est se sentindo bem, me?

34
Elvira:

E no pra estar?

Petnia:

Por que?

Elvira:

Vendi a cama.

Petnia:

Que cama?

Elvira:

A cama, u.

Petnia:

A minha cama?

Elvira:

Tua?

Petnia:

: minha.

Elvira:

Desde quando?

Petnia:

Desde a hora do recreio.

Elvira:

Que historia essa agora, Petnia?

Petnia:

que, na hora do recreio, eu tava morrendo de sono e...

Elvira:

J sei, posso at apostar: voc ficou outra vez acordada at tarde vendo filme
imoral.

Petnia:

Ah, me, esquece.

Elvira:

No esqueo no!

Petnia:

E a, voc sabe o que aconteceu? Dormi.

Elvira:

Claro, imagina se...

Petnia:

Dormi e sonhei com a cama. Um sonho incrvel: o ptio do recreio estava vazio.
Todinho. Eu estava sozinha l. De repente, apareceu um anjo. Grande bonito
que s vendo. Um cabelo comprido. E ele me disse: ela vai ser tua. Ele quem?
Eu perguntei. E ele falou: a cama. A cama que eu quero dar pro Tobias? : ela
vai ser tua. Quando? Quando voc casar com ele; ele o filho mais velho e no
tem nenhuma irm: ele que vai herdar a cama. Mas eu preciso dela agora! Eu
falei. No da pra ele ser minha agora? E o anjo era um amor, me! Era um
amor: sabe o que que ele disse? D, vamos l buscar. E ai ele me pegou pela
mo e foi me levando pra classe. Em vez de carteira, professora, colega, a classe
s tinha a cama. E o anjo fez assim com o brao, mostrando: a cama tua. E
pronto, acordei.

Elvira:

Mas que sonho estapafrdio, Petnia. E quem esse Tobias?

Petnia:

Voc j se esqueceu? o sobrinho da Maria Rita.

Elvira:

Estapafrdio mesmo! Misturar o sobrinho da Maria Rita com a cama: por que?

Petnia:

que to apaixonada, me. Eu me apaixonei pelo Tobias, o que posso fazer?

Elvira:

Ah, no! Isso eu no vou permitir! De jeito nenhum!

Petnia:

Pera ai, me vai com calma, paixo no tem nada que var com permisso.

Elvira:

Petnia, voc acabou de fazer onze anos! No ta na idade pra comear essas
coisas. Pra com isso! J chega a Rosa, j chega!

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Petnia:

O que que a Rosa tem a ver com isso?

Elvira:

Quando ela ainda era desse tamanhinho, ela teve sarampo, catapora e paixo
(por um gato). Do sarampo e da catapora ela se livrou, mas a paixo virou um
estado crnico.

Petnia:

Que que crnico?

Elvira:

Que dura toda a vida.

Petnia:

Pelo gato?

Elvira:

No! Depois do gato foi o cachorro, depois foi a bicicleta, depois foi o vizinho
do lado, depois foi o vizinho do outro lado, uma loucura! Eu nunca vi a Rosa
desapaixonada. Nem sei como que ela aprendeu alguma coisa na escola!
Sempre consumida de paixo. Eu me pergunto se isso vai durar at o fim da
vida dela. Voc v o desespero em que ela ficou quando o flautista no gostou
da cama. E o alivio que eu senti, Petnia? O alivio que eu senti quando vi voc,
ainda bem pequenininha, comeando a se interessar por mil coisas, comeando
a viver em estado de curiosidade...

Petnia:

Crnica.

Elvira:

...agradeci a deus: que meu Deus! Pelo menos uma das filhas no vai se
consumir em paixes! E agora voc comea tambm com isso?

Petnia:

Mas me, esse negocio da gente se apaixonar da vida.

Elvira:

pra mais tarde! E pra de vez em quando! E nunca por um Tobias!

Petnia:

O que voc j tem contra ele?

Elvira:

Pra comear, ele no tem cara de Tobias.

Petnia:

Pois eu acho que ele tem uma supercara de Tobias, e eu fico boba, me, de ver
como que voc vive criticando o nome dos outros, depois de ter me chamado
de Petnia.

Elvira:

Agora eu to entendendo essa febre que te deu de querer ver tudo que filme
indecente que eles mostram na televiso.

Petnia:

Mas voc no disse que a Rosa comeou a se apaixonar quando era desse
tamanhinho?

Elvira:

A Rosa um caso patolgico!... no sabe viver desapaixonada!

Petnia:

Ta, esse nome legal, eu acho que vou comear a chamar a Rosa de
Patolgica.

Elvira:

Que pena, Petnia, que grande pena!

Petnia:

Ih, me, no faz essa cara de tragdia, voc tava to contente quando eu
cheguei, voc tava danando, me.

Elvira:

Mas voc cortou o meu barato, no ?

Petnia:

S porque eu disse que to apaixonada?

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Elvira:

Pelo jeito, voc vai duplamente no caminho da Rosa. Que castigo!

Petnia:

Duplamente por que?

Elvira:

Uma atrao mrbida por p rapado, gente que no tem tosto.

Petnia:

Ah, mas o Tobias vai ter, podes crer.

Elvira:

E voc tambm: pode crer.

Petnia:

Elvira:

Que o teu sonho mesmo sonho-de-uma-noite-de-vero.

Petnia:

E por qu?

Elvira:

Pois eu no disse que vendi a cama?

Petnia:

S que no da pra entender como que voc vende uma cama que t num
antiqurio pra vender. A cama no sua, como que voc vai vender?

Elvira:

Voc vai ver. Vem comigo.

Petnia:

Onde?

Elvira:

No antiqurio.

Petnia:

Quando?

Elvira:

J.

As duas vo indo a p para o antiqurio.


Petnia:

Ei, me! O antiqurio pra l.

Elvira:

Ah, ! Bico calado a

dentro, viu, Petnia? No me abre essa boca pra

perguntar ou dizer nada.

VII - A CAMA NO ANTIQURIO - cortado

VIII - A CAMA NA IDIA FIXA

Narrador 1:

Naquele dia mesmo, depois de voltarem do antiqurio, a Petnia afundou numa


poltrona e, baseada em tudo que a Elvira tinha contado do casaro do Graja,
comeou a construir na imaginao a figura do Amrico. Depois construiu a
casa do Amrico, o jardim do Amrico, o canteiro de petnias do Amrico, a
governanta do Amrico, a filha do Amrico

Petnia:

Quem sabe ela nem aparece l? a mame no disse que os dois to sempre
brigando? quem sabe, a cama fica l toa esperando outra dona?...).

Narrador 2:

Petnia foi se sentindo to vontade no papel de construtora, que l pelas tantas


no resistiu: se botou dentro da construo e construiu a certeza de que ela
podia levar um bom papo com um cara assim feito o Amrico. Comeou a
imaginar a conversa que os dois iam ter. Um papo timo. To timo, que
marcou o papo pro dia seguinte. Da pra desenhar um mapa que levava ao

37
casaro do Graja no demorou nada.

IX - A CAMA NO CASARO

Faustina:

Seu Amrico, a cama chegou.

Amrico:

Manda botar no quarto da Roberta.

Faustina:

J est l. Mas, sabe, ela enorme.

Amrico:

Ah ? Deixa eu ver! Mas que puta cama, Faustina!

Faustina:

Coisa fina, sim senhor.

Amrico:

Voc espiou debaixo da cama pra ver se est perfeita?

Faustina:

T perfeita, sim senhor (perde o equilbrio e se apia no Amrico. Amrico


solta uma gargalhada. Mas logo fica srio, impressionado)

Amrico:

Olha s, Faustina, olha s para essa cama: cabe ns dois deitados e ainda sobra
espao. D pra deitar e rolar. Que pena que voc que taqui.

Faustina:

O senhor vai morrer sem tomar jeito, no ? T esquecendo que o mdico


mandou o senhor ficar quieto?

Amrico:

E quem aquele bosta pra me mandar qualquer coisa? quem manda em mim
sou eu e mas ningum.

Faustina:

O especialista ele: ele que conhece a sua doena.

Amrico:

Conhece a minha doena mas no me conhece, porra! me viu pela primeira vez
outro dia, eu t me vendo h oitenta anos, quem me conhece sou eu.

Faustina:

Mas ele...

Amrico:

Cala a boca, cala a boca, no me fala mais daquela zebra.

Faustina:

Ele mandou o senhor no beber mais...

Amrico:

Tenho a Eternidade me esperando na esquina: l no tem copo nem garrafa.

Faustina:

...e hoje o senhor j esvaziou uma garrafa todinha.

Amrico:

Pra de me espionar!

Faustina:

Se no fosse aquela zebra, o senhor tinha morrido nesse enfarte que teve
agora.

Amrico:

Quem que disse?

Faustina:

Eu!

Amrico:

E desde quando voc... Olha s pra isso, Faustina! Sim senhora, dona Faustina,
isso que cama. Vamos vestir ela! Cad, Cad?

Faustina:

O qu?

Amrico:

A roupa dela.

Faustina:

Bom, tem roupa de cama na cmoda.

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Amrico:

Aqui no tem colcha nenhuma.

Amrico:

E eu quero que a Roberta goste de tudo, Faustina. Hoje ela vem pra ficar
comigo: eu quero que ela goste de tudo.

Toca a campainha e o cachorro late:


Faustina:

Deve ser a filha da dona Elvira. (vai atender) Voc a Petnia?

Petnia:

Isso.

Faustina:

Eu sou a Faustina. (pro cachorro) Comporte-se! Vi logo que voc era filha da
dona Elvira: parece com ela. O pai dela, teu av, era parceiro de sinuca do seu
Amrico. Nossa! Como aqueles dois gostavam de jogar juntos. O seu Amrico
sentiu muito a morte do teu av.

Petnia:

Voc lembrou de avisar pro seu Amrico que eu vinha bater um papinho com
ele?

Faustina:

Lembrei sim, Petnia. Vai l no escritrio.

Petnia:

T fechada, Faustina!

Amrico:

Roberta?!

Petnia:

Eu sou a Petnia.

Amrico:

Petnia?

Petnia:

A Faustina... no avisou pro senhor que eu vinha aqui?

Amrico:

Petnia??

Petnia:

...

Amrico:

Mas que diabo de nome esse que tua me foi te arranjar?

Petnia:

Pois : culpa do senhor.

Amrico:

Minha?

Petnia:

Quando a minha me veio aqui, ela ficou to encantada com as petnias que viu
a no seu jardim, que resolveu me chamar de Petnia.

Amrico:

(d risada) Senta! Toma o qu? Usque tambm? (Amrico toca uma


campainha) E a tua me como que vai?

Petnia:

Bem. S que ela no sabe que eu vim aqui.

Amrico:

Ah, no?

Petnia:

No. Seno ela ia querer vir junto. E a conversa que eu quero ter com o senhor
muito particular.

Amrico toca a campainha outra vez


Copeiro:

Chamou, seu Amrico?

Amrico:

No fiz outra coisa! Quem voc?

Copeiro:

Sou o copeiro, seu Amrico.

Amrico:

Meu copeiro o Genival. Chama o Genival.

Copeiro:

Ele foi embora.

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Amrico:

Embora? quando? por qu?

Copeiro:

Porque o senhor despediu ele.

Amrico:

Duvido. Chama a Faustina. (o copeiro sai) Ser que eu t ficando mesmo


velho? Esquecendo das coisas? (Amrico serve dois copos e empurra um pra
Petnia)

Petnia:

Ih, seu Amrico, eu acho melhor.......

Amrico:

Esse negcio de seu s pra empregados usar: mantm o respeito. Pros outros
sou Amrico s: Quem esse cara, Faustina?

Faustina:

O novo copeiro, seu Amrico.

Amrico:

Novo por qu? Cad o Genival?

Faustina:

Mas ento o senhor no mandou ele embora?

Amrico:

Por qu?

Faustina:

O qu?

Amrico:

Que eu mandei ele embora?

Faustina:

Porque ele reclamou que o senhor tocava a campainha noite inteira. (escuta o
cachorro latindo e sai apressada).

Amrico:

E se eu no toco a campainha quem que me traz gelo? Ei! Voc a: gelo!


Como o teu nome?

Copeiro:

Raimundo.

Amrico:

Raimundo, gelo! E gua a pra menina. Anda logo! (para Petnia) Conta.

Petnia:

O qu?

Amrico:

O que o que, menina?! Voc no disse que veio ter uma conversa particular
comigo? Que que ?

Entra Roberta. Amrico se levanta. Faustina estava mostrando pra Roberta a nova
decorao.
Amrico:

E a cama! (Roberta e Amrico ficam de olho um no outro. Ela, em guarda.


Ele, no se preocupando em disfarar o fascnio por ela). Que linda que voc
est... minha filha. (vai ao encontro de Roberta. Ela recua. Amrico dispensa
Faustina com a mo).

Faustina:

A campainha continua no mesmo lugar, dona Roberta. Precisando qualquer


coisa, s tocar. (para Amrico) e a menina? Mando esperar? (Amrico faz um
gesto distrado de aprovao. Faustina sai)

Roberta:

Que profuso de rosas.

Amrico:

Amarelas. No me esqueci que voc s gosta de rosas amarelas. Mandei


comprar todo o estoque do bairro.

Roberta:

Tpico.

40
Amrico:

E a cama? Gostou? Achei essa cama fabulosa, olha s pro tamanho dela: um
playground! D pra mim e mais trs mulheres, uma aqui, outra aqui, outra aqui.
J pensou?

Roberta:

Pelo jeito, o seu senso de humor continua refinadssimo.

Amrico:

Paguei uma nota firme por ela. Voc no vai me perguntar quanto?

Roberta:

E por que que voc acha que eu estou interessada em saber quanto que voc
paga por cama, por rosa, por tudo?

Amrico:

Porque essa questo de dinheiro sempre interessou demais a voc. Quer dizer
que voc no gostou do meu presente?

Roberta:

Que presente?

Amrico:

A cama !

Roberta:

Um presente meio sem cabimento, no ?

Amrico:

No sei por qu.

Roberta:

J tenho cama em todas as minhas casas, o que eu vou fazer com mais uma?

Amrico:

Mas aqui em casa voc no tem.

Roberta:

E por que eu preciso de uma cama na sua casa ?

Amrico:

Pra fazer o que todo dia a gente faz: deitar, dormir, levantar...

Roberta:

No tenho a mais leve inteno de deitar ou dormir aqui.

Amrico:

No entendi.

Roberta:

O qu?

Amrico:

Voc disse pra Faustina que vinha pra ficar...

Roberta:

Ficar?

Amrico:

...comigo.

Roberta:

Quando?

Amrico:

Quando ela te telefonou pra contar que eu tinha tido outro enfarte.

Roberta:

Era de madrugada.

Amrico:

Dez horas da manh.

Roberta:

Pois ento? eu tava dormindo, sei l o que que eu falei.

Amrico:

Voc falou que vinha pra ficar comigo.

Roberta:

Posso ter falado isso, como posso ter falado que estava de mudana pra Sibria:
talvez voc se lembre que, depois que eu acordo, eu levo mais uma hora pra
despertar. Se que voc lembra alguma coisa a meu respeito.

Amrico:

Eu lembro de tudo o que diz a respeito a voc ...

Roberta:

Desde quando?

Amrico:

Desde sempre. E por que que voc acha assim to absurdo vir me fazer
companhia, sabendo que a minha vida est por um fio?

41
Roberta:

Que fio que nada! Basta te olhar pra ver que voc t mais firme que o Po de
Acar.

Amrico:

Quem coleciona enfartes feito eu no vai longe...

Roberta:

Voc vai.

Amrico:

...e eu pensei que voc ia me fazer um pouco de companhia.

Roberta:

E por qu?

Amrico:

Porque eu t sozinho, porra!

Roberta:

Sozinho? Com essa catedral de dedicao que a Faustina? Com copeiro,


enfermeira, cozinheira, motorista, jardineiro, no sei mais quem...

Amrico:

Voc sabe o que que eu t querendo dizer, Roberta. Voc sabe.

Roberta:

Juro que no.

Amrico:

Sozinho de algum... assim... perto; sozinho de uma filha, da minha nica filha.
Sozinho de voc.

Roberta:

Um pouco tarde, no ?

Amrico:

Pra me sentir sozinho?

Roberta:

Pra precisar de mim.

Amrico:

Eu sempre precisei.

Roberta:

H!

Amrico:

Voc no acredita?

Roberta:

A nica coisa que voc sempre precisou foi dinheiro.

Amrico:

Pra pagar tudo o que voc queria, no ? E que nunca foi pouco

Roberta:

O que eu queria?? Pra pagar o que as suas mulheres queriam, isso sim. E no
foram poucas

Amrico:

e continua a no ser pouco

Roberta:

e continuam a no ser poucas. (Amrico toca a campainha) Bom, tenho que


ir a uma reunio de acionistas, j estou um pouco atrasada.

Amrico:

Ah! Ento foi por isso que voc caprichou tanto no visual? E eu que pensei que
tinha sido pra me ver. (para Faustina) Diz pro copeiro trazer a bandeja.
Rpido!

Faustina:

Sim, senhor.

Amrico:

Mas se no era pra me fazer um pouco de companhia, o que que voc veio fazer
aqui?

Roberta:

Ver se voc est bem. J vi: posso ir embora: o Reynaldo est me esperando no
carro.

Amrico:

O qu?! Voc ainda anda com aquele chifrudo a tiracolo? Pensei que voc j
tivesse comprado um outro. (Amrico entra na frente de Roberta) Pelo menos,
voc no vai embora sem tomar um drinque minha sade, vai?

42
Roberta:

melhor

Amrico:

Melhor um usque.

Roberta:

eu ir embora de uma vez, seno agente vai brigar. Como sempre. Como toda
a vida.

Amrico:

Bobagem, a briga j comeou, vamos aproveitar.

Roberta:

Quer sair da minha frente?

Amrico:

Vou sair. Mas s pra deixar a bandeja entrar. (Segura o pulso de Roberta. O
copeiro entra com a badeja. Amrico faz um gesto de cabea) Bota a na
cmoda. Some. (O copeiro sai).

Roberta:

Voc vai me obrigar a pular a janela?

Amrico:

Com essa saia assim to justa? com esse salto assim to alto? com essa meia
assim to linda? No recomendo: a janela alta. (serve dois copos).

Roberta:

Papai, eu vim aqui pra te dar um al. Numa boa. Eu vim pra quebrar o gelo.
Que se formou entre ns dois. Eu no vim pra discutir, Muito menos pra brigar.
Menos ainda pra ser trancada dentro de um quarto. Abre essa porta que eu quero
ir embora.

Amrico:

timtim. (Roberta da um tapa na mo de Amrico e o copo voa longe) Isso!!


Cama que cama precisa de batismo de usque. Ou de champanhe. Ou, melhor
ainda, de

Roberta:

Abre essa porta!!

Amrico:

Calma, filhinha, calma. Ordens quem d sou eu. E voc sabe por que, no ?
Porque sou eu que pago.

Roberta:

Voc no me paga mais nada!

Amrico:

Ah, no? E quem que paga as tuas contas? Os namorados que voc consome,
?

Roberta:

Nem eles, e nem ningum!

Amrico:

A grana cai do cu. Man!

Roberta:

Sou eu que pago as minhas contas, eu!

Amrico:

Com o dinheiro que sai do meu bolso.

Roberta:

Com o que eu tenho.

Amrico:

Que eu te dei.

Roberta:

Alguma coisa voc tinha que ter me dado, no ?

Amrico:

Eu sempre te dei tudo!

Roberta:

Tudo? A nica coisa que voc deu foi dinheiro,mas

Amrico:

Foi a nica coisa que voc sempre quis.

Roberta:

mas eu estou me referindo a outras coisas .

Amrico:

Por exemplo?

43
Roberta:

Amor

Amrico:

Amor?! Voc falando de amor?

Roberta:

amor, afeio, companhia

Amrico:

Que eu quis de dar desde pequena

Roberta:

De longe! Sempre de longe! E sempre com uma nova mulher.

Amrico:

mentira!

Roberta:

verdade! e cada uma mais vulgar que a outra.

Amrico:

Ah!! Vai ver, foi por isso que voc nunca me quis por perto.

Roberta:

E essa eterna cantilena: sou eu que pago, sou eu que pago, sou eu que pago.
Estou ouvindo isso desde a primeira briga que agente teve, eu no devia ter nem
cinco anos.

Amrico:

No tinha mesmo, mas j era isso a nica coisa que te interessava quando eu
chegava perto: cad o meu presente? O que que voc trouxe pra mim?Voc
tem que admitir que aprendeu bem cedo o ofcio de me extorquir grana.

Roberta:

Se eu aprendi, foi porque eu tive um mestre que me ensinou bem cedo que tudo
pago: beijo, abrao, afeio, companhia, sou eu que pago, sou eu que pago,
sou

Amrico:

Sou eu que sempre paguei, sim! sim! sim!, e a cada ano eu tive que pagar mais e
mais pra ter um pouquinho, um pouquinho s, de voc: a cada ano voc compra
de tudo e de todos, voc compra o que for

Roberta:

J te disse: voc me ensinou.

Amrico:

e haja grana pra pagar tudo que voc consome, marido, amante, amigo
Pelo jeito, eu fui o nico a escapar desse furor consumista: voc nunca esboou
o menor gesto pra me comprar.

Roberta:

Por que voc nunca me interessou.

Amrico:

No. NoPorque eu sempre cheguei primeiro: eu sempre te comprei antes.


Como eu poderia te comprar agora. Outra vez.

Roberta:

Com essa cama?

Amrico:

Noclaro que noeu sei que, pra te comprar, precisa mais Sempre
mais (Roberta vai saindo) T selado! T jurado! No te compro mais nada!
Essa cama foi a ltima coisa que eu te comprei! E que um raio me parta se eu
quebro o meu juramento! Voc t ouvindo, Roberta? No te compro nunca
mais! Vou ficar aqui nesta casa! Vou morrer aqui nesta casa! Mas aqui nunca
mais voc bota o p, viu Roberta? Nunca mais! (Amrico comea a chutar a
cama) Te vesti com tanto amor, pra isso, ? pra isso?

Faustina:

Que barulhada foi essa? Seu Amrico!

Amrico:

Some da minha frente! Some, some, some!

44
Petnia ouve o barulho e vai ver o que est acontecendo
Petnia:

E a, meu Deus?, a cama quebrada, acabada; e a promessa? E a promessa pro


Tobias, ah! Tobias. (para Amrico que estava batendo na cama com o tubo de
argolas da cortina) No me bate com esse troo! E no bate mais na cama , no
bate mais nela, por favor! Com essa fora que o senhor bate, ela vai se quebrar
toda, e a o que que eu fao? Eu tenho uma promessa pra cumprir, baixa esse
troo e me escuta! Eu t apaixonada. Primeira vez na vida que sinto esse
negcio de paixo. Ele se chama Tobias. Ele tem a minha idade, mas parece
mais. Ele no de falar feito eu falo, mas eu sei, eu tenho certeza que ele sente
tambm por mim esse troo que eu sinto por ele. Eu prometi que a cama, essa
cama aqui, voltava pra ele, pra famlia dele, ah, valeu!, valeu tirar essa barra de
cima da minha cabea e de cima da cama, obrigada. O Tobias vai ficar muito
feliz se acama voltar pra casa dele, e eu quero tanto fazer ele feliz! Por favor,
no mata a cama. A minha me comprou essa cama da tia dele; ningum da
famlia dele tem grana, muito menos a tia; eu tambm no tenho, mas eu juro,
olha, olha! (posio de juramento), eu juro, eu prometo que um dia eu pago a
cama. O senhor vende a cama pra mim e, assim que eu crescer e me formar e
trabalhar, eu pago ela pro senhor. Todinha. Prometo. Mas, por favor, no bate
mais nela.
Olha a, olha s, o senhor bateu to forte, que j tirou um pedao da coitada.
Pois , o tal assunto particular que eu hoje vim tratar com o senhor era esse de
ns trs: o Tobias, eu e a cama.

Amrico:

No!! O que eu comeo, eu acabo: se eu comecei a acabar com a cama, agora eu


vou acabar!

Petnia:

Eu no deixo!

Amrico:

Larga!

Petnia:

No deixo mais bater na cama!

Amrico:

Larga!

Petnia:

No deixo!

Amrico:

Solta!

Petnia:

No solto!

Entra Faustina
Faustina:

Voc vai matar ele, Petnia! Solta isso, menina, solta isso!

Petnia:

Se eu solto, ele mata a cama! (Amrico comea a rir) Isso riso? Isso riso? O
senhor t rindo, seu Amrico?

Amrico:

Me traz o usque, menina!

Petnia:

Quer gelo tambm?

45
Amrico:

Quero tudo que eu tenho direito! (para Faustina) Gostei. Gostei. Que garra!

Faustina:

A Petnia?

Amrico:

Quem mais havia de ser? Essa menina vai ser um mulherao quando crescer.
Que pena!

Faustina:

Pena por qu?

Amrico:

Quando ela for grande eu j t fora do preo.

Faustina:

Pensei que j tivesse h muito tempo.

Amrico:

Voc mesmo uma zebra. Mas como o nome dela meio esquisito, voc no
acha, Faustina?

Faustina:

Esquisito por qu?

Amrico:

Ora, por que que uma coisa esquisita? Porque esquisita, u!

Faustina:

No vejo nada de esquisito a gente se chamar feito flor.

Amrico:

Mas com tanta flor!

Faustina:

Psiu! (pega no pulso de Amrico e olha no relgio) Preciso de um usque,


no de pulsao porra nenhuma! Cad o teu copo, menina? (Petnia faz que
no, de nariz torcido) Mas voc, quando chegou, aceitou tomar um drinque
comigo.

Petnia:

que eu tava fazendo cerimnia; acho esse troo a muito ruim; mas agora que
a gente j brigou, eu perdi a cerimnia.

Amrico se serve de uma dose generosa


Amrico:

Faustina, diz pro Rogildo vir desmontar esta cama e levar pra (para Petnia)
Onde que ele mora? O teu namorado? (Petnia fica parada) Mas, hem? Onde
que ele mora?

Petnia:

O Tobias?

Amrico:

Sei l se Tobias, Antnio ou Manuel. O teu namorado.

Petnia:

Ah, ele mora longe, l no Rocha Miranda.

Faustina:

Essa cama no cabe em carro nenhum, seu Amrico.

Amrico:

Desmontada ela cabe na pick-up, sim senhora. Chama o Rogildo.

Faustina:

No cabe.

Amrico:

Pois se no cabe, manda ele arranjar um troo pra caber, p!

Petnia:

Eu preciso ir junto com a cama, posso? Ah, por favor, diz que eu posso, diz que
eu posso, eu tenho que ir junto com a cama!

Amrico:

Pode, claro que pode, mas voc conhece o caminho?

Petnia:

Eu nunca fui l, mas carta minha j foi: conheo o endereo de cor. Parece que a
casa dele meio ruinzinha, sabe, a grana l pouca. Ah! Por falar em grana:
como que a gente vai fazer?

Amrico:

O qu?

46
Petnia:

que ainda vai levar uns anos pra eu comear a trabalhar e pagar a cama. D
para esperar?

Amrico:

Espero que sim, menina, espero.

Petnia:

E quando que eu vou ter que pagar?

Amrico:

Ah, isso a gente v daqui a dez anos.

Petnia:

Dez?

Amrico:

Acha pouco? Vinte, ento.

Petnia:

Mas a capaz do senhor ter morrido.

Amrico:

Que nada! Eu sou velho s por fora, aqui dentro eu sou um touro.

Petnia:

Isso eu vi. Quase arrebento de fazer fora pra poder lutar com o senhor.

Amrico:

J te disse pra cortar esse senhor.

Petnia:

Ah, t! (Faustina volta com o motorista e com o jardineiro para desmontar a


cama. Petnia fica agitada) Amrico, me faz um favorzinho: telefona pra
minha me e diz que eu t viva. Diz que eu vou chegar mais tarde. Diz que eu t
tratando de um assunto muito srio. Diz que eu no t sozinha: t com voc.

Amrico:

Que mais?

Petnia:

Diz que se voc precisar de ajuda, se voc se sentir sozinho, se vocqualquer-coisa, s ligar pra mim que eu venho, que eu fao qualquer coisa,
que eu fico do seu lado, viu, Amrico, que nem voc agora ficou do meu.

X - A CAMA NA ESPERA

Petnia:

Xi! Tudo escuro. Ser que no tem ningum? (Petnia bate na porta e aparece
Tobias) Tenho uma surpresa pra voc! (entram o jardineiro e o motorista
carregando a cama)

Motorista:

Bota aonde?

Petnia:

Acende a luz, Tobias, pra gente enxergar melhor.

Tobias:

Pifou. Quando cai um tor desses, a primeira coisa que pifa a luz.

Jardineiro:

Bota a dentro?

Tobias:

No tem lugar. A gente tem que botar a na rea, debaixo do telhadinho.

Motorista:

Mas o colcho melhor botar pra dentro.

Petnia:

Voc t sozinho em casa?

Tobias:

Hoje tem festa na igreja. Mas amanh eu tenho prova: fiquei pra estudar.

Jardineiro:

O estrado e as traves tambm ficam fora?

Tobias:

, por favor, vamos botar a, ao lado do tanque.

Motorista:

Mas a cama t pegando chuva: ela no vai estragar?

Petnia:

Ih, no, ela pegou tanta coisa e no estragou...

47
Motorista:

Pronto, t tudo a, vamos embora! Com uma chuva assim, essa rua vai logo
encher.

(Ronca uma trovoada. Petnia, num susto abraa Tobias.)


Petnia:

Te amo. Mas j t ficando chateada com essa histria da gente s se abraar


molhado.

Toque de buzina
Tobias:

Mas, Petnia, como que...

Petnia:

Depois te conto tudo. Eles to com pressa. Trata bem dela: vai ser da nossa
primeira filha.

O temporal piorava.
A escurido se espalhou.
Tobias acendeu uma vela dentro de casa.
Molhada, lanhada, encostada na parede, a cama olhava chover.
E agora? Quem que vinha dormir nela?
Tantos! Tantos j tinham vindo.
Vinham. Iam. Vinham. Iam, morriam.
Mas ela tinha nascido de uma rvore magnfica e forte: ela continuava. Continuava. Quem que
vinha agora dormir nela? Amar nela? Nascer nela? Morre nela?
A cama espera.

FIM

Adaptao do texto de Lygia Bojunga feita em outubro de 2003 pela turma do


Estgio/sbadomanh, sob direo de Eduardo de Paula, do Teatro Escola Macunama.

Ana Paula Tomazella


Anderson Franco
Eduardo de Paula
Flavia Mariano
Flvio Faioli
Ingrid Hasstenteufel
Juliana Carol Bastoge
Juliana Negretti
Karen Androvics
Magali Gallello
Marcela Marc
Michelle Moraes
Natalia Bettini

48
Rosana Camilo
Rodrigo Matos
Sandra Lanza

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