O Bobo Da Corte e Os Bufões Na Idade Média
O Bobo Da Corte e Os Bufões Na Idade Média
O Bobo Da Corte e Os Bufões Na Idade Média
Sou professora do curso de Teatro da UEA (Universidade do Estado do Amazonas) onde ministro a
disciplina: Elementos do jogo do bufo para o ator.
about the role of jesters in the Middle Ages, trying to analyze to laughter of these
figures and has a character reversal or adjustment of the current system.
BAKHTIN, 1996: 4
Percebemos que o riso da pardia potencialmente crtico, pois possui uma estrutura de
desmoralizao ao zombar do poder, e est intrnseco ao jogo do bufo desde sua
origem.
Bakhtin mostra-nos que a Idade Mdia, por ser consentido aos bufes fazer
pardia dos cerimoniais srios, possua um carter libertador, provocando, assim, uma
nova viso que trouxe a marca da dualidade na percepo do mundo: de um lado, a
viso oficial e religiosa, configurada pelos valores da sociedade feudal e eclesistica; de
outro, a viso no oficial, representada pela cultura cmica popular, com seu carter
festivo e carnavalesco, invertendo a ordem social, tendo na figura do bufo a sua maior
representao.
A dualidade na concepo do mundo medieval e renascentista pressupe a
ambivalncia que possibilita ao bufo a experimentao com o cmico e o trgico, o
sublime e o grotesco, o sagrado e o profano como elementos indissolveis, pois essas
contradies compem o mundo. E uma no poderia existir sem a outra. Assim, as
contradies que caracterizam o homem, so elas que o diferenciam dos animais e dos
seres sobrenaturais, elas trazem ao mesmo tempo o que o homem tem de mais instintivo
e tambm racional, contrapondo-se e dialogando. O corpo do bufo constitudo de
contradies, relacionando-se consigo mesmo e com o outro, representando o outro,
mas tambm negando-o ao critic-lo, negando, com isso, a si prprio, uma vez que a
contradio representa tambm a negao de algo.
Na Idade Mdia os bufes e bobos no eram atores que representavam um
personagem somente durante os eventos cmicos, eles viviam essa situao em tempo
integral.
Os bufes e bobos, como por exemplo, o bobo Triboulet, que atuava na corte
de Francisco I (e que figura tambm no romance de Rabelais), no eram
atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrrio, eles
continuavam sendo bufes e bobos em todas as circunstancias da vida. Como
tais encarnavam uma forma especial de vida e a arte (numa esfera
intermediria), nem personagens excntricos ou estpidos nem atores
cmicos. 4
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Bakhtin demonstra em sua obra que foi o carter de seriedade medieval que
criou essa vlvula de escape para o homem atravs da bufonaria e do riso. O homem
necessitava, em algum momento da vida, libertar-se de todas as amarras impostas pelo
sistema feudal e eclesistico da poca e encontra esse momento durante as festas
populares onde podia divertir-se livremente.
O riso da Idade Mdia, que venceu o medo do mistrio, do mundo e do
poder, temerariamente desvendou a verdade sobre o mundo e o poder. Ele
ops-se a mentira, adulao e hipocrisia. A verdade do riso degradou o
poder, fez-se acompanhar de injrias e blasfmias, e o bufo foi o seu portavoz.9
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LOPES, Elisabeth Silva. Ainda tempo de bufes. Doutorado em Artes Cnicas), Escola de
Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, 2001: 30.
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escarnecerem seus opressores faz com que se sintam libertos ao conhecerem sua
verdadeira histria.
Comeara-se por dar ao bufo as roupagens do rei, mas agora que seu reino
terminou, disfaram-no, mascaram-no, fazendo-o vestir a roupa do bufo.
Os golpes e injrias so o equivalente perfeito desse disfarce, dessa troca de
roupas, dessa metamorfose. As injrias pe a nu a outra face do injuriado,
sua verdadeira face; elas despojam-no de suas vestimentas e da sua
mscara: as injrias e os golpes destronam o soberano. 12
IDEM 16
LOPES, 2001: 72
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FO, Dario. Manual Mnimo do Ator. So Paulo: SENAC, 2004: 31
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FO, 2004: 142
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Com a mscara da tolice, o bufo pode revelar suas verdades rindo, pois est
fora das regras do mundo oficial. A forte imagem da tolice, simbolizando o saber, pode
criar desdobramentos de imagens que contribuem para o trabalho do ator, pois ela
contm a ideia de sabedoria que liberta das regras e preocupaes da vida cotidiana,
possibilitando ao ator fazer a denncia social com humor.
A tolice representada pelo corpo grotesco que no est pronto nem acabado,
ele um corpo em movimento, sempre pronto a se recriar, a se transformar e a construir
outro corpo, em um ciclo constante que representa vida, morte e renascimento.
O carter de eterna transformao e renovao cclica faz com que este corpo
grotesco esteja aberto para que o mundo possa entrar e sair dele, esse corpo absorve o
mundo e absorvido por ele17. Por isso, o corpo grotesco representado
principalmente pelos orifcios, partes do corpo que esto abertas para entrada e sada do
que quer que seja.
Por isso o papel essencial entregue no corpo grotesco quelas partes, e
lugares, onde se ultrapassa, atravessa os seus prprios limites, pe em
campo um outro (ou um segundo) corpo: o ventre e o falo; essas so as
partes do corpo que constituem o objeto predileto de um exagero positivo, de
uma hiperbolizao; elas podem mesmo separar-se do corpo, levar uma vida
independente, pois sobrepujam o restante do corpo, relegado ao segundo
plano (o nariz pode tambm separar-se do corpo). Depois do ventre e do
membro viril, a boca que tem o papel mais importante no corpo grotesco,
pois ela devora o mundo: e em seguida o traseiro. 18
A figura do bufo tem seu corpo grotesco que representa o exagero e que o
mantm em contato com o mundo, pois est livre, deixando-se penetrar e penetrando.
um corpo que se desdobra em outro corpo ao exagerar os rgos que, ou esto
escondidos na maior parte do tempo, como o falo e o ventre, ou escancarados, como o
nariz e a boca. A ideia do corpo grotesco ultrapassar seus prprios limites, j que est
em contato com o todo do mundo, permitindo-se ora fazer parte dele, ora devor-lo.
O corpo grotesco no bufo representa a subverso, pois rebaixa e inverte os
atributos reais ao ser a representao derrisria do rei. No bufo, todos os atributos
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reias esto subvertidos, invertidos, o alto no lugar do baixo: o bufo o rei do mundo
s avessas. 19
O mundo s avessas representado pelas festas populares se caracterizava por
inverter a ordem hierrquica dessa passagem da Idade Mdia para o Renascimento, que
foi um perodo de renovao do pensamento filosfico da poca, onde o teocentrismo
deu lugar ao humanismo, colocando o homem como centro (antropocentrismo),
valorizando a razo. Ocorre, ento, uma ruptura com as estruturas medievais e um
florescimento cultural e cientfico, assim, essas festas populares passaram a simbolizar a
perspectiva desse novo ideal de mundo, perodo de transformaes nas reas da vida
humana, representando a passagem do feudalismo para o capitalismo.
A viso de Mikhail Bakhtin a respeito da funo do riso nas festas populares da
Idade Mdia e Renascimento criticada por George Minois 20, que questiona o poder
subversivo desse riso. Deste modo, Minois acredita que ao contrrio do que pensava
Bakhtin, as festas cmicas populares serviam para inverter a hierarquia, no por ser uma
forma de libertao do carter srio e oficial da Idade Mdia, mas sim porque tinham o
intuito de reforar a hierarquia vigente.
Na idade Mdia, o riso carnavalesco antes um fator de coeso social que
de revolta. Derriso ritualizada, o Carnaval a necessria expresso
cmica de uma alternativa improvvel, literalmente louca, inverso burlesco
que s faz confirmar a importncia de valores e hierarquias estabelecidos.
(...) O riso carnavalesco medieval contempla, ao mesmo tempo, a ordem
social e as exigncias morais pela pardia e pela derriso, que demonstram,
a um s tempo, o grotesco do mundo insensato e a impotncia do mal. 21
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aquilo que era anormal e aps o perodo festivo voltasse vida com mais disciplina s
normas.
Na Idade Mdia, o riso coletivo desempenha papel conservador e regulador.
Por meio da pardia bufa e da zombaria agressiva, ele refora a ordem
estabelecida representando seu oposto grotesco; exclui o estranho, o
estrangeiro, o anormal e o nefasto, escarnecendo do bode expiatrio e
humilhando o desencaminhado. O riso , nessa poca, uma arma opressiva a
servio do grupo, uma arma de autodisciplina. 22
Mas apesar de sua oposio postura de Bakhtin, Minois considera sua obra
importante para entender a poca de transio da Idade Mdia para o Renascimento,
pois, deflagra este perodo de renovao do pensamento humano, principalmente no que
concerne ao estudo sobre o sistema de imagens do grotesco cmico popular presente na
obra de Rabelais. Contudo, deixa claro que suas concluses sobre o riso medieval e
renascentista diferem das dele.
Ao contrrio do que Mikhail Bakhtine pretendia, no um riso popular de
contestao, mas um riso de massa e de excluso. A Idade Mdia exclui e
marginaliza, pelo riso, aqueles que violam seus valores, ou que querem
mud-los, como o testemunham o charivari ou o humor dos sermes. O riso
do fim da idade mdia agressivo, de excluso. 24
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Eles no apenas zombavam, mas viviam de maneira diferente, o que provava que podia
se viver em outro sistema de valores. 26
Todavia, como vimos anteriormente, Bakhtin diz que os bufes e bobos no
eram atores que representavam seu papel, eles viviam estes papis em tempo integral. O
fato que os goliardos existiram e tambm eram classificados como bufes, como nos
fala o prprio Minois:
Qualificados, s vezes, de jograis, bufes, ribaldos ou vagabundos, eles tm
uma reputao custica, e os historiadores sentem dificuldade para situ-los.
At a origem de seu nome permanece misteriosa. Se a etimologia mais sria
o faz derivar de gula, goela, significando com isso que eles so gritadores,
eles tambm costumam ser vinculados a Golias , o heri negativo,
adversrio de Davi. que sua reputao muito ruim. 27
Parece difcil situ-los, mas sabe-se que faziam pardia com humor durante a
Idade Mdia, e pelo visto esta tinha um carter subversivo e revolucionrio, o que
refora a ideia de que podemos nos apropriar dos elementos contidos no riso do bufo
como ferramenta de denncia social. Claro que devemos ter em mente que o caminho
que estamos percorrendo formado por estradas tortuosas que se bifurcam, j que a
pardia com humor pode ser incorporada tanto no sentido de subverter como o de
regular o sistema vigente, tudo vai depender da maneira como ela utilizada, levandose em considerao sempre o contexto social em que est inserida.
Os goliardos tambm usavam blasfmias e obscenidades nas cerimnias cultas,
para rir do sagrado, porm, no eram aceitos dentro dessas cerimnias, o que os difere
dos demais bobos e participantes das festas carnavalescas. Eles eram proibidos de
participar das cerimnias srias e acabaram desaparecendo no decorrer dos tempos,
porque na verdade, o que se condenava neles no eram suas blasfmias e pardias, mas
sim sua forma de vida. Seus propsitos blasfematrios e obscenos contra as
cerimnias do culto, contra o clrigo e seus vcios, contra as crenas fundamentais
deixam pairar uma forte suspeita de atesmo.
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que acreditavam equivocadas, sua forma de vida estava ligada a sua arte e o mais
revolucionrio nisso tudo que viviam a partir de suas prprias regras.
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Contudo, Minois parece no considerar o fato de que Bakhtin fala dos bufes e
bobos de maneira geral, assim, supe-se que Minois generalize ao dizer que o riso
medieval era opressor, embora ele mesmo destaque os goliardos, que representavam um
tipo de riso revolucionrio. Minois observa o carter dbio inerente s manifestaes
populares cmicas, que podem se caracterizar como arma de resistncia de um povo,
mas que muitas vezes acabam sendo incorporadas e aceitas pelo sistema vigente
servindo como arma opressora. Est claro, que Bakhtin aborda somente a caracterstica
subversiva do riso, falando do bobo do rei e de todos os bufes presentes nas festas
populares, inclusive o prprio povo, que se disfarava e parodiava. Nota-se que o que
mais incomoda Minois a ideia do riso como possibilidade de libertao para todo o
povo, criticando o fato de que todos que brincassem o carnaval estavam fazendo parte
de um sistema que invertia as hierarquias.
No entanto, Minois no contrrio ideia de que o bobo do rei tivesse um poder
subversivo, porque este era sempre bufo, no somente no perodo festivo. Fala que na
Idade Mdia, o bobo do rei tem uma posio relevante, capaz de revelar todas as
verdades ao rei. Para Bakhtin todos podiam subverter as regras, para Minois no.
Apenas o bobo podia, pois vivia este estado em tempo integral.
O bobo do rei existe para fazer rir. sua funo primeira. Mas no se trata,
evidentemente, de um simples palhao. Se o riso que ele provoca
importante, porque traz consigo o que falta, em geral nos crculos do rei: a
verdade. Excludo da realidade por lisonjas, temores, mentiras, intrigas dos
que o cercam, o soberano s conhece a verdade por meio de seu bobo
sobretudo a verdade penosa, aquela que fere, aquela que um homem sensato
e atento situao no ousaria revelar. 30
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barco que desliza ao longo dos calmos rios da Rennia e dos canais flamengos.
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Embarcao que realmente existiu durante a Idade Mdia e inspirou muitos escritores e
artistas como o pintor Bosch.
Na primeira parte de seu trabalho, Foucault faz uma anlise da loucura na Idade
Mdia e Renascimento a partir da literatura de Erasmo, das pinturas de Bosch e
Brueghel, mostrando a fora da simbologia dessas figuras e como elas retratavam a
imagem da loucura e suas significaes, tendo como ponto de partida a Nau dos Loucos
da pintura de Bosch, mais tarde transformada em poema, servindo como o fio condutor
da escrita.
A ideia de Foucault sobre o carter da loucura na Idade Mdia ajuda a
refletirmos sobre o poder do riso do bufo (o louco) como arma de subverso das
regras, crtica e denncia social.
A denncia da loucura torna-se a forma geral da crtica. Nas farsas e na
sotias, a personagem do louco, do simplrio, ou do Bobo assume cada vez
mais importncia. (...) Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira
onde todos se perdem, o louco, pelo contrrio, lembra a cada um sua
verdade; na comdia em que todos enganam aos outros e iludem a si
prprios, ele a comdia em segundo grau, o engano do engano. Ele
pronuncia em sua linguagem de parvo, que no se parece com a da razo, as
palavras racionais que fazem a comdia desatar no cmico: ele diz o amor
para os enamorados, a verdade da vida aos jovens, a medocre realidade das
coisas para os orgulhosos, os insolentes e os mentirosos. As antigas festas
dos loucos, to consideradas em Flandres e no Norte da Europa, no deixam
de acontecer nos teatros e de organizar em crtica social e moral aquilo que
podiam conter de pardia religiosa e espontnea. 34
no poderiam, de modo algum, ser considerados loucos, mas incomodavam com suas
crticas contnuas e suas ironias contra os sagrados lugares-comuns da moral, da
religio e da administrao pblica. 35
Deste modo, o bobo do rei veste a mscara da loucura falando o que pensa e, por
estar vestido como louco, aceito dentro da cultura feudal e eclesistica. Seu carter
subversivo parece estar no fato dele no ser um personagem que vem parodiar apenas
em um determinado perodo do ano. Ele o faz de modo constante, pois o bobo sempre
o bobo e est sempre com o rei, o que o diferencia do restante do povo que somente no
momento festivo se traveste e parodia.
O riso do bobo tem ainda, na Idade Mdia, outra funo: ritualizar a
oposio, representando-a. Verdadeiro anti-rei, soberano invertido, o bobo
assume simbolicamente a subverso, a revolta, a desagregao, a
transgresso. um parapeito que indica ao rei os limites de seu poder. O
riso razovel do louco um obstculo ao desvio desptico. No apenas
coincidncia que a funo de bobo do rei tenha desaparecido da Frana na
aurora do absolutismo, no incio do reino de Lus XIV: o monarca que pode,
sem rir, comparar-se ao sol muito srio para ser sensato. 36
A sensatez representada pelo riso do bobo lembra ao rei que ele tambm um
mortal e isto o ajuda a no se perder no seu poder. Todos os reis e rainhas possuam um
bufo, muitas vezes escolhidos por suas habilidades e tambm por suas deformidades
que alm de proporcionarem o riso, significavam sorte.
Ele soube utilizar a loucura, que os escultores e os vidreiros das catedrais
representam sob os traos de um homem seminu, carregando uma clava
que se transformar mais tarde num basto- e recebendo um pedregulho na
cabea: imagem do bobo caado pelas crianas a pedradas. Trata-se de um
bobo comum, do verdadeiro bobo, mais ou menos inquietante, de quem as
comunidades procuram se livrar. Porm, um bobo honorvel, respeitvel e
respeitado, ao qual a Idade Mdia deu um lugar importante: o bobo do rei. 37
O bobo representa o ridculo com seu capuz com orelhas de asno, seu saco de
ervilhas e seu basto. Muitas vezes aparece bem vestido como o rei ou usando a
tradicional roupa de bobo da corte com losangos nas cores amarela e verde, escolha de
cores esta no feita ao acaso, j que elas possuem um carter simblico:
O verde a cor da runa e da desonra; o amarelo, cor do aafro que tem
influencias malficas e atua sobre o sistema nervoso, provocando riso
incontrolado -, a cor dos lacaios, das classes inferiores, dos judeus. s
vezes aparece o vermelho, como no traje de Hainselain Coq, bobo de Carlos
VI. Isso tambm smbolo de fantasia, ideia reforada pela bexiga de porco
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inflada, contendo ervilhas secas, que evoca a cabea vazia de bobo. Sobre
sua roupa, costuram-se pequenos sinos cujo tilintar incessante faz pensar no
caos primitivo, na matria inorgnica. O bobo carrega um basto encimado
por uma cabea de bufo com guizos; seu cetro derrisrio, que para alguns
evoca tambm um falo. 38
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS