A Historia Privada Do Modernismo Mario e Oswald
A Historia Privada Do Modernismo Mario e Oswald
A Historia Privada Do Modernismo Mario e Oswald
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
Programa de Ps-Graduao em Letras
Rio de Janeiro
Maro de 2006
Livros Grtis
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Anderson Pires da Silva
PUC-Rio - Certificao Digital N 0210329/CA
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Maro de 2006
Anderson Pires da Silva
_______________________________
Prof. Dr. Jlio Cesar Vallado Diniz
Orientador
Departamento de Letras PUC-Rio
________________________________
Prof Dra. Marlia Rothier Cardoso
Departamento de Letras PUC-Rio
________________________________
Prof. Dra. Eliana Yunes
Departamento de Letras PUC-Rio
________________________________
Prof Dra. Terezinha Maria Scher Pereira
Departamento de Letras UFJF
________________________________________
Prof Dr. Andr Monteiro Guimares Dias Pires
Departamento de Literatura UFC
________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e
Cincias Humanas PUC-Rio
Ficha Catalogrfica
177 f. ; 30 cm
CDD: 800
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SILVA, Anderson Pires da; DINIZ, Jlio Cesar Vallado (orientador). Mrio &
Oswald Uma histria privada do modernismo. Rio de Janeiro, 2006. 177 p. Tese
de Doutorado. Departamento de Letras. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro.
Concretismo, para viabilizar uma historiografia sincrnica, regida pelo padro internacional
das vanguardas, elege a poesia pau-Brasil como uma revoluo esttica, antecipadora da
poesia concreta, minimiza o papel de Mrio, denominando-o reformador, ou nas
entrelinhas, modernista conservador. A teoria concreta apresenta a antropofagia ao
Tropicalismo, que encontra nela o argumento terico para justificar sua assimilao da
cultura de massa como proposta de renovao e atualizao cultural. Por um ou por outro
vis, os modernistas so objetos construdos para legitimar o discurso nacionalista ou o
discurso internacionalista.
Palavras-chave
Semana de 22, modernismo, antropofagia, concretismo, tropicalismo.
Abstract
SILVA, Anderson Pires da; DINIZ, Jlio Cesar Vallado. Mrio & Oswald - a
private history of modernism. Rio de Janeiro, 2006. 177 p. Thesis. Literature
Departament. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
This work intends to outline the reception of the writings by Mrio de Andrade and
Oswald de Andrade between the years of 1945-70, the creation of a national
consciousness and a vanguardist writing, taking into consideration the election of both of
them to the level of high modernism. The literary historiography, guided by the
nationalist tradition, sees in Mrio the superior synthesis of the post-22 proposals,
leaving Oswald on the level of cultural terrorist. Concretism, to make viable a synchronic
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historiography, guided by the international pattern of the vanguards, elects the pau-Brasil
poetry as an esthetic revolution, anticipating the concrete poetry, minimizing Mrios role,
calling him the reformer, or between the lines, conservative modernist. The concrete
theory presents the anthropophagy to the tropicalism, which finds in it the theoric argument
to justify its assimilation of mass culture as a proposal of renovation and cultural update.
From one view or another, the modernists are objects constructed to legitimize the
nationalist speech or the internationalist one.
Key-words
Week of 22, modernism, anthropophagy, concretism, tropicalism.
Sumrio
1. Introduo 12
3. Nacional/Internacional 34
3.1. O Brasil descoberto 34
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3.2. Pau-Brasil 38
3.3. Mrio Pau-Brasil de Andrade? 45
3.4. A sada antropofgica 51
3.5. Um mecenas dissonante 60
4. Balanos 63
4.1. Itamarati, 30 de abril de 1942 63
4.2. Belo Horizonte, Exposio de Arte Moderna, 1944 67
4.3. Fechando o primeiro balano 71
6. Narrando Oswald 92
6.1. Lenfant gte 92
6.2. Reinveno marxista 97
6.3. Contrastes 104
9. Snteses 148
9.1. Autonomia e produo literria 148
9.2. Tradio e memria 154
1
Introduo
Esta tese foi idealizada a partir dos longos debates aps as aulas do
professor Jlio Diniz, durante o curso sobre a poesia de Mrio, Oswald,
Bandeira e Drummond. Os tpicos principais: a construo da identidade
nacional, os momentos de ruptura e o dilogo com a tradio. Estava no
primeiro semestre e nenhum desses temas tinha sido abordado no projeto
aprovado pelo exame de seleo. O entusiasmo das discusses aps as aulas
me convenceu que precisava mud-lo, s no sabia como.
Uma coisa recorrente, dentro e fora da sala de aula, era as radicais
tomadas de posio a favor ou contra Mrio e Oswald. Isso no acontecia
com Drummond e Bandeira, mas em relao aos dois poetas paulistas
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2
A festa no termina nunca
2.1
Rio-So Paulo
1
Suplemento literrio do jornal Estado de So Paulo, edio comemorativa dos quarenta anos da
semana, 17 de fevereiro de 1962.
18
2
cf: Estudos sobre o modernismo, 150.
19
Ningum parece ter percebido que a Semana de 22, nossa primeira grande
revoluo cultural claramente configurada, marcava como que a conscincia
histrica da luta que a partir de ento iria caracterizar e convulsionar todos os
aspectos da vida nacional: indstria vs produo artesanal, cidade industrial vs
campo. Os poetas de 22 viram isto claramente. Mas os historiadores e idelogos,
no. Por qu? Porque provinham das zonas rurais. (PIGNATARI, 1998, p. 76).
O politicamente incorreto concretista, sem perceber, recorre aos mesmos
argumentos de Mrio de Andrade em sua conferncia no Itamarati para
hierarquizar as duas capitais. Conferncia, segundo Pignatari, obrigatria para
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Mnica Velloso, foi tomado o pr? O pai da criana, Alceu Amoroso Lima,
respondia: o pr-moderno anunciao tmida dos temas do grande
Modernismo, como a conscincia nacional. Embora o termo pretenda
incluso, excludente. Os excludos so os escritores residentes no Rio de
Janeiro: Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graa Aranha, Joo do Rio. O nico
paulista da turma pr-moderna Monteiro Lobato.
A tese de Velloso prossegue o caminho aberto pelos estudos de Nicolau
Sevcenko (1983) e Renato Cordeiro Gomes (1994). Esses autores demonstram
que a literatura moderna est baseada na experincia urbana, que moldou uma
nova sensibilidade. Argumento este antecipado pelo dinamista carioca Renato
Almeida, no seminal livro Velocidade, no qual defende a velocidade como a
categoria espiritual do homem moderno. A eletricidade, o avio, o rdio, o motor
a exploso, enfim, o progresso tcnico, criou uma civilizao regida por um
modelo de eficincia baseado em fazer o mximo com o mnimo de tempo, assim
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fato de Graa Aranha ter sido descartado como lder do movimento uma
evidncia. Por outro lado, o trnsito entre as duas cidades foi fundamental para a
realizao da Semana, no propsito maior de sinalizar a existncia de uma nova
literatura, cuja liderana partia de So Paulo.
No podemos esquecer que foi no Rio de Janeiro, no apartamento de
Ronald de Carvalho, que Mrio de Andrade leu pela primeira vez os poemas da
Paulicia desvairada. Na ocasio, fez questo da presena de Manuel Bandeira.
Esse foi um dos primeiros encontros entre eles, e Mrio j adotava uma postura
devota ou humilde -, a qual no adotaria com nenhum outro poeta de sua
gerao. Bandeira seria chamado, pelo admirador, de S. Joo Batista do
modernismo. Joo Batista foi o padrinho de Jesus Cristo. E talvez tenha ocorrido
um batismo naquele apartamento.
Cabe sublinhar o vocabulrio catlico presente nas iconografias
modernistas: Mrio, o papa; Bandeira, o Joo Batista; Anita, a Joana DArc; D.
Olvia Quedes Penteado, a Nossa Senhora. Raul Bopp, em relao ao grupo
formado pelos escritores cariocas e paulistas que idealizariam a Semana de 22,
cunhava a expresso os doze apstolos do modernismo (1966, p. 37).
O autor referia-se a Mrio como cristo novo. A expresso aludia
passagem do poeta parnasiano de H uma gota de sangue em cada poema para o
modernista da Paulicia. Curiosamente, o sobrenome Andrade foi inventado
23
para sua nova persona potica, j que seu nome completo era Mrio Raul de
Morais. Por qu Andrade? Haveria aqui um indcio do fascnio por Oswald de
Andrade? Mistrio. Seja como for, a troca revelava uma conscincia aguda sobre
a construo de uma nova identidade potica. Em suas primeiras correspondncias
com o jovem escritor Fernando Sabino, Mrio lhe dava o seguinte conselho: Si
voc quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome.
Tavares Sabino. Fernando Tavares. Fernando Sabino. O que impossvel
Fernando Tavares Sabino (2003, p. 13).
2.2
O Diabo do modernismo
pavorosa injustia que inutilizou a pintora Anita Malfatti, de modo algum isso
lhe retira a misso revolucionria que teve na nossa escrita (1996, p. 276).
Enquanto Mrio da Silva Brito atribuiu o carter de marco ao caso
Anita, Wilson Martins lhe deu uma importncia casual. Na sua opinio, a
repercusso posterior do artigo serviu para desvalorizar a figura de Lobato.
Segundo sua verso, ele foi o prenunciador do Modernismo, principalmente
quando se leva em conta o projeto de literatura nacional elaborado pelos
modernistas. Martins tenta corrigir a injustia, argumentando que o artigo
Urups (1915), havia sido a fonte imediata do Manifesto antropfago. A
injustia maior quando se leva em considerao outras reaes contrrias
artista e vanguarda (1965, p. 22).
Oswald, neste momento, era um grande agitador cultural, espcie de
divulgador de novos talentos, como o desconhecido Mrio Sobral. Quando
Oswald publica O meu poeta futurista, em 1921, gera o primeiro conflito com
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Prezado amigo Mrio: Estive relendo a tua Paulicia e... fiquei sem coragem de
edit-la. Est uma coisa to revolucionria que capaz de indignar a minha
clientela burguesa e faz-los lanar terrvel antema sobre todas a produes da
casa, levando-nos falncia. No sou dos menos corajosos, mas confesso que
neste caso a coragem faleceu-me por completo... Acho que o melhor tu mesmo
editares o vermelho grito de guerra. Vamos. Resolve l este caso. Lobato. (apud:
Nossa histria, n 17, 2005).
29
Eu podia ainda continuar meus comentrios parando nos outros gomos do bambu
de Nosso dualismo nos momentos em que afirma as espertezas geniais de
Osvaldo de Andrade e as velhas asneiras dos asseclas do movimento dele.
Por enquanto melhor no mexer nessa mentirada que inda pode ser til. (idem).
Meu caro Mrio de Andrade, muito h de voc de espantar-se com esta, vinda
dalm tmulo, dum morto que voc matou h trs anos [...]. O que me traz um
livro seu Macunama. Tenho c um editor que deseja conhec-lo, com palpite
que coisa editvel em ingls. [...]. Vou sair da cova s para isso. (ibidem).
Mrio respondeu a carta, enviou dois exemplares de Macunama, embora
ressalvando que achava muito difcil v-lo traduzido em outra lngua. Pelo
exposto, no possvel ignorar que o desentendimento entre Lobato e os
modernistas se deu muito mais pela resistncia do primeiro influncia da
vanguarda do que por divergncias ideolgicas. A prova mais contundente a
carta aberta de Oswald de Andrade.
Hoje, passados vinte e cinco anos, sua atitude aparece sob o ngulo legitimista da
defesa da nacionalidade. Se Anita e ns tnhamos razo, sua luta significava a
repulsa ao estrangeirismo afobado de Graa Aranha, s decadncias lustrais da
Europa podre, ao esnobismo social que abria os seus sales Semana. E no
percebia voc que ns tambm trazamos nas nossas canes, por debaixo do
futurismo, a dolncia e a revolta da terra brasileira. (ANDRADE, 1975, p. 4).
Para Oswald, o criador do Jeca Tatu deveria ter sido o lder do
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2.3
Um lder vigiado
novos artistas. No ano de 1921, Di Cavalcanti fizera uma exposio com suas
obras, inaugurando uma srie de debates sobre a arte de vanguarda. Paulo Prado,
um dos mecenas da Semana, convidou Aranha para participar da Semana. Aceito
o convide, o empresrio Ren Thiollier assume a funo de relaes pblicas.
Parte da contribuio da burguesia cafeeira na realizao da Semana, o aspecto
oficial tomado pelo evento, deve-se a confiana que o nome Graa Aranha
assegurava. Grande parte do pblico talvez nem soubesse direito o que seria o
evento, mas o fato dele realizar-se no Teatro Municipal indicava algo solene. Para
o pblico, o que ocorria no Municipal era uma Semana Futurista, era assim que os
leitores se referiam na seo de cartas dos jornais. O prprio marqueteiro da
Semana, Thiollier, ao alugar o teatro municipal, cometeu a gafe de trocar
Semana de Arte Moderna por Semana de Arte Futurista. A Semana se iniciou
com todos os ingressos vendidos, a cobertura dO Estado de So Paulo, que
publicou, na edio seguinte, a ntegra da conferncia inaugural de Graa Aranha,
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3
cf: Afrnio Coutinho. Literatura no Brasil, vol. 5. Wilson Martins. O modernismo. Mrio da
Silva Brito. Panorama da poesia brasileira, vol. vi. Massaud Moiss. Modernismo. www.
asemanade22. hpg.ig.com.br
32
A verdade que eu, acima de quaisquer outros motivos, fui a principal causadora
da Semana de Arte Moderna. Explico: naquela poca, 1922, eu estava em So
Paulo, em casa de minha famlia. Graa Aranha necessitava de qualquer pretexto
para me ver. A Semana de Arte Moderna foi um belo pretexto. (apud:
MARTINS, 1965, p. 65).
Apesar do curioso anedotrio, Graa Aranha no seria o lder porque, se
assim o fosse, o movimento paulista teria sua imagem associada e subordinada ao
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3
Nacional/Internacional
3.1
O Brasil descoberto
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4
cf: Ponta de lana. pp. 31-2.
35
Aqui vai seu dinheiro. Muito obrigado por esperar tanto. [...] Estou perdendo a
esperana de ir na Europa. Alis isso no me entristece muito, no, porque
franqueza: a no ser ver os amigos no tenho nada que fazer a. [...]. J estou
enfarado de Miguel Anjo como de Picasso. [...]. Agora: qualquer tapera da Baa
ou de Mato-Grosso isso diferente, me interessa e tenho desejo de ver. Si
pudesse fazer uma viagem longa no iria pra Europa, iria no Amazonas ou na
Baa. Mas nem isso Nosso Senhor quer. (idem, p. 95).
Numa atitude blas, o Brasil se configurava como uma alternativa a Paris5.
Uma mudana de roteiro. Em 1924, Blaise Cendrars chegava a So Paulo, como
hspede de Paulo Prado. Carlos Augusto Calil descreve da seguinte forma o
convvio de Cendrars com a jovem intelectualidade paulista:
5
A viagem ao Norte e Nordeste se realizaria em 1927, na companhia de Dona Olvia Guedes
Penteado e da filha de Tarsila, Dulce. A viagem se prolonga at Iquitos, no Peru.
38
3.2
Pau-Brasil
Paulo Prado no prefcio: Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, (...), umbigo
do mundo, descobriu, deslumbrado, a sua prpria terra. Em O caminho
percorrido, Oswald ratificava essa afirmao, apontando que se alguma coisa eu
trouxe das minhas viagens Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo
(1975, p. 96).
Portanto, a dedicatria por ocasio da descoberta do Brasil aplica-se
tambm ao prprio autor. Retornando ao prefcio de Paulo Prado, vemos como o
primitivismo, que levar valorizao dos elementos populares da cultura
brasileira, funciona como argumento de ruptura com a Europa:
Paro para perguntar - Por que gostava eu mais da Europa do que do Brasil?
[...]Nunca fui com a nossa literatura vigente. A no ser Machado de Assis e
Euclides da Cunha, nada nela me interessava. [...] Quando Serafim Ponte Grande,
recm-chegado a Paris, dizia que agora podia trepar, exprimia o meu desafogo.
Meu pai me avisara de que as mulheres eram fceis. Mas, no Brasil, tudo era feio,
tudo era complicado. [...]. Na Europa, o amor nunca foi pecado. No era preciso
matar para possuir uma mulher. No havia l sanes terrveis como aqui pelo
crime de adultrio ou seduo. Enfim o que existia era uma vida sexual
satisfatria, consciente e livre. (ANDRADE, 1974, p. 68)
Em 1924 foi preciso negar a cultura europia para pater le bourgeois. A
influncia francesa na formao do intelectual brasileiro era uma realidade
inquestionvel. Da Frana vinha os modelos de conduta social, a moda, o
comportamento moderno. A fundao da Academia Brasileira de Letras nos
moldes da Academia Francesa o exemplo bvio. Negar a Europa equivalia a
atacar o gosto e o ambiente burgus, do qual os modernistas faziam parte. Tarsila
do Amaral, em carta famlia, revelava que a tendncia brasileira na arte era bem
vista em Paris, isto , o que se quer aqui que cada um traga a contribuio do
seu prprio pas. Na sua viso e tambm na de Oswald o primitivismo em
arte, que os levaria fase brasileira, desencadeando na antropofagia, era uma
tendncia internacional. Este ponto de vista contrastaria com a viso de outros
40
Agora livres, pelo exemplo dos europeus, vamos seguir o nosso caminho que
todo diverso do da Europa desinteressante. Essa gente da afinal nada mais fez
que desenvolver o lema do sculo 19, arte pela arte, e nisto est, nisso caiu.
Gnero de elite refinada, gasta, silenciosa, sem coragem, pessimista, civilizao
morta. [...]. (DUARTE, 1971, p. 300).
Embora procure ser apologista do discurso nacionalista, quem lana
publicamente uma proposta nacionalista/subversiva Oswald de Andrade. Teve o
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6
cf: BARBOSA, 2002, p.13.
41
Vcio na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mi
Para pior pi
Para telhado dizem teiado
E vo fazendo telhados
O capoeira
- Qu apanh sordado?
- O qu?
- Qu apanh?
Pernas e cabeas na calada
43
O gramtico
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
Sipantarrou
caa numa espcie de tropicalismo, que artificializa nossa arte pela supresso
de suas razes e pela insero de caracteres estranhos (1927, p. 15). Faltava,
argumenta, uma terceira via, capaz de sintetizar o que as duas tinham de melhor,
incluindo uma condio fundamental: o elemento espiritual. Uma mstica
criadora. impensvel para Atade desprezar o elemento europeu, porque
representa a pedra filosofal da linha espiritualista: o catolicismo.
O primitivismo Pau-Brasil era tambm refratrio ao catolicismo oficial,
que reprimira os cultos indgenas e marginalizava a religio africana. Descobrir o
Brasil, portanto, equivalia desestruturar trs instituies: a gramtica oficial, a
tradio catlica e o discurso histrico.
O Manifesto radicalizava os poemas de Poesia pau-Brasil as pardias
da Carta de Caminha, dos escritos de Gndavo, o Erro de portugus , nos
quais prope a possibilidade de uma outra evoluo histrica, cujo pice seria a
literatura de exportao, a conquista do mercado estrangeiro, ou, como pensa
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3.3
Mrio Pau-Brasil de Andrade!?
[...] fao uma propaganda danada do paubrasilismo. [...], tenho amigos que estou
paubrasileirando. Conquista importantssima o Drummond, lembraste dele, um
daqueles rapazes de Belo Horizonte. Est decidido a paubrasileirar-se e escreve
atualmente um livro de versos com o maravilhoso nome de Minha terra tem
palmeira. [...]. Eu por minha parte estou abrasileirando inteiramente a lngua em
que escrevo. Um artigo sobre Manuel Bandeira [...] tem erros enormes de
portugus. (1999, p. 89).
Em suas correspondncias com Bandeira e Drummond, a tnica do erro
uma constante, uma obsesso. Ao primeiro, pede conselhos; ao segundo,
aconselha. Em carta ao poeta carioca, 8 de novembro de 1924, esclarece a
seguinte mudana: Embala-lhe o dormir pus lhe embala o dormir, com o
pronome errado. Sobre isso, Manuel, estou disposto a me sacrificar. Mais
adiante, argumenta que preciso ter coragem para escrever brasileiro. Depois
comenta a dupla regncia no Brasil e em Portugal do verbo ir, cujo
complemento na corresponde a um erro gramatical. Eu o emprego. Ir na
cidade, regncia perfeita. (...) Os portugueses dizem ir cidade. Os brasileiros:
46
7
cf: Tarsila: sua obra e seu tempo, p. 191.
50
porqus (1985, p. 34). A reao de Oswald de Andrade foi descrita pelo prprio
Mrio em carta a Tarsila 16/06/23-, na qual tenta se justificar com a pintora:
Parece que se maguou... No sei. [...]. No fui gentil. Fui sincero, o que muito
mais nobre para com um amigo do que ser gentil. [...]. Mas duma vez por todas
vou acabar com as gentilezas. Vers meu artigo sobre o Osvaldo. Depois sai o
teu. [...]. Creio que tu me escapas. (ANDRADE, 1958, p. 53).
Ser sincero anularia a adulao fcil, festeira, porque pressupe
imparcialidade. Contudo, nesta mesma carta, o escritor incrivelmente passional e
comprometido ao prometer que Bandeira escapa, pois todos os seus argumentos
repousam no fato de consider-lo um irmo; ou em suas palavras: basta lembrar
que fiz questo de que estivesses na leitura da Paulicia na casa de Ronald. Isso
indica alguma coisa, creio (idem p. 53). Em suas correspondncias, Mrio
procurava, pela via da sinceridade crtica, afirmar-se intelectualmente como um
censor criterioso e justo, uma espcie de lder espiritual.
3.4
A sada antropofgica
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A tese, com um forte tempero de blague, tomou amplitude. Deu lugar a um jogo
divertido de idias. Citou-se logo o velho Hans Staden e outros clssicos da
Antropofogia:
- L vem a nossa comida pulando. (BOPP, 1966, p. 70).
O Dirio da Noite publicava em forma de folhetim, em 1926, aventuras de
Hans Staden entre os selvagens, traduzida por Monteiro Lobato, alimentando o
interesse pela redescoberta do passado colonial. Outra contribuio de Lobato foi
a traduo de Histoire dun voyage fait en la terre du Brsil, de Jean Lry, na qual
narrava o convvio com os Tupinambs, descrevendo em vrias passagens os
hbitos canibalescos. O livro de Lry seria uma das fontes de Paulo Prado para o
primeiro captulo de Retrato do Brasil. Villa Lobos tambm recorreria ao relato
do viajante para compor Canide ioune, uma das partes da composio Trs
poema indgenas. De certo, Oswald e Tarsila devoraram a Canibale, revista do
52
dadasta Picabia. Logo, canibalismo era uma palavra corrente no cenrio dos
anos 20.
No dia de seu aniversrio, Oswald de Andrade ganhou um quadro novo de
Tarsila, entusiasmado ligou para Raul Bopp. Como a tela ainda no tinha nome,
recorreram ao dicionrio tupi-gurani, a escolha intuitivamente apontava a matria-
prima: Abaporu, o homem (aba) que come (poru). Ali mesmo os dois escritores
pensaram em um movimento em torno daquele quadro, o qual Tarsila colocaria
nos seguintes termos:
Vamos descer nossa pr-histria obscura. Trazer alguma coisa desse fundo
imenso, atvico. Catar os anais totmicos. Remexer razes de raa com um
pensamento de psicanlise. Desse encontro com as nossas coisas, num clima
criador, poderemos atingir a uma nova estrutura de idias. Solidrios com as
origens. Fazer um Brasil nossa semelhana, de encadeamentos profundos.
(BOPP, 1966, p. 97).
O Manifesto antropfago foi publicado em fevereiro de 1928, no
primeiro nmero da Revista da antropofagia. Haroldo de Campos cunhou uma
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8
cf: ANDRADE, 1978, p. 49.
53
9
cf: Matemos Peri!
55
Quanto ao manifesto do Osvaldo... acho... nem posso falar que acho horrvel
porque no entendo bem. [...]. Os pedaos que entendo em geral no concordo.
Tivemos uma noite inteirinha de discusso quando ele inda estava aqui. Mas a
respeito de manifestos do Osvaldo eu tenho uma infelicidade toda particular com
eles. Saem sempre num momento em que fico malgr moi incorporado neles. [...].
Agora vai se dar a mesma coisa. Macunama vai sair, escrito em dezembro de
1926, inteirinho em seis dias, correto e aumentado em janeiro de 1927, e vai
parecer inteiramente antropfago... Lamento um bocado essas coincidncias
todas, palavra. (apud: FERNANDES, s/d, p. 29).
Segundo Raul Bopp, tentou-se consecutivamente levar Mrio para o
movimento antropofgico. Recusou por dois motivos: a) falta de interesse em
participar de um movimento onde no era o nico chefe; b) fortes amizades com
uma confraria de seus admiradores. Oswald queria agitao, fermentava
malcias, criava confuses (1966, p.78). O carter iconoclasta antropofgico
bombardeava os antigos companheiros, sem poupar ningum, nem Mrio, que
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dependia de suas boas relaes com parte da elite paulista dessacralizada nas
pginas da Revista da antropofagia. No entanto, quando vem a pblico a rapsdia
andradina, o prprio Oswald viu nela uma realizao da antropofagia.
Macunama seria publicado cinco meses aps o Manifesto antropfago,
intuitivamente Mrio percebia a consonncia entre as duas obras. O livro Vom
Roraima zum Orinoco, do etngrafo alemo Theodor Kock-Grnberg, sobre o
folclore das tribos do Amazonas, uma das bases para a composio da rapsdia
andradina, serviu de alimento. Dado curioso, parte do relato estrangeiro sobre o
local. A escrita engole a narrativa fragmentria, tpica dos romances modernos, a
estrutura fabulosa dos romances de cavalaria, Rabelais e o Surrealismo. Assim
como o ndio antropfago serviu, para Oswald, como representao da cultura
brasileira; o ndio libertino, negro e branco, representa a ausncia de carter do
brasileiro. Carter tanto no sentido moral quanto no de caracterstica, tipo.
Segundo Eneida Maria de Souza, o grande triunfo do livro reside numa fala
nova, amlgama de inmeras formas lingsticas de vrias regies do pas,
correspondendo a uma lngua desgeografizada (1988, p. 25).
Alfredo Bosi, em Situao de Macunama, argumenta que a rapsdia
assentava-se sobre duas proposies: a memria afetiva e o pensamento social
crtico. A memria trazia para o interior da narrativa uma infinidade de citaes,
lendas, ritos, casos, constituindo o seu mais caro tesouro, a fonte inexaurvel do
56
A floresta era uma esfinge indecifrada. Agitavam-se enigmas nas vozes annimas
do mato. Inconscientemente, fui sentido uma nova maneira de apreciar as coisas.
A prpria malria, contrada em minhas viagens, acomodou meu esprito na
humildade, criando um mundo surrealista, com espaos imaginrios. [...] fui
pouco a pouco aprendendo a sentir o Brasil, com o seu sentido mgico
desdobrando na sua totalidade. (BOPP, 1997, p. 13).
A antropofagia em Bopp no se realiza somente como devorao da
cultura estrangeira como comumente a entendemos -, engloba os elementos
recalcados da prpria terra, os quais, devido sua posio marginal no repertrio
culto, so to estrangeiros quanto o Surrealismo. Este roteiro, na leitura de
Silviano Santiago, prope que a cultura brasileira reside na interiorizao do
exterior. A conscincia nacional emerge do complexo processo de mixagem
entre o externo - a esttica primitivista - e o interno - o folclore (1991, s/p).
Inverte-se, portanto, a premissa verde-amarelista, na qual a brasilidade depende da
exteriorizao dos valores autctones, desacreditando a influncia externa como
formadora de uma identidade.
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10
Folha de So Paulo. Supl. Mais! 10 de outubro de 2004.
59
3.5
Um mecenas dissonante
Na luta entre esses apetites sem outro ideal, nem religioso, nem esttico, sem
nenhuma preocupao poltica, intelectual ou artstica criava-se pelo decurso
dos sculos uma raa triste. A melancolia dos abusos venreos e a melancolia dos
que vivem na idia fixa do enriquecimento no absorto sem finalidade dessas
paixes insaciveis [...]. No Brasil a tristeza sucedeu intensa vida sexual do
colono, desviada para as perverses erticas, e de um fundo acentuadamente
atvico. (PRADO, p. 141).
Neste ponto de sua argumentao, na qual recorre ao determinismo
cientfico para comprovar que o excesso sexual causa tristeza aps o coito os
61
animais ficam triste, salvo o galo, que canta -, Prado argumenta que a saudade da
terra, o degredo, levava o portugus a uma vida vazia e montona. A formao de
nossa nacionalidade ocorre sob uma obsesso melanclica s amenizada pelo
sonho do enriquecimento fcil e do erotismo.
Essa construo histrica, antecipadora das mega-narrativas de Gilberto
Freyre e Srgio Buarque de Holanda, um negativo das proposies de Mrio e
Oswald de Andrade. Basta relembrar o slogan oswaldeano: A alegria a prova
dos nove... no matriarcado de Pindorama. Em Macunama, o erotismo trao
libertador da psicologia nacional, alm do humor que perpassa toda a rapsdia.
Por isso, quando publicado, Retrato do Brasil foi recebido com reservas. Oswald,
em resenha para O Jornal, se perguntava como um homem la page como
Prado escrevia um livro pr-freudiano sobre o Brasil. A ressalva recai sobre o
tom pudico e moralista do autor ao tratar da luxria, condenando aquilo que no
Manifesto antropfago exaltado, a libertinagem alis, ttulo do livro que
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4
Balanos
4.1
Itamarati, 30 de abril de 1942
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Uma noite tenho a grata surpresa: o testamento estava em ordem [...]. Pois bem,
concluda a leitura e depois de algumas frases banais de entusiasmo pelo trabalho,
realmente admirvel e de uma coragem muito rara, tenho a triste notcia de que
aquilo fora somente para lamber os beios, pois ainda hesitante sobre sua
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sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos sales. E vivemos uns oito anos,
at perto de 1930, na maior orgia intelectual que a histria artstica do pas
registra. (ANDRADE, 1974, p. 238).
Em seu balano, Mrio antecipava a tese de Intelectuais e classe dirigente
no pas, porque a partir dos anos 30, com o fim da era de ouro do caf, a
burocracia estatal substituiu o mecenato rural. Os vnculos com a aristocracia
garantiriam-lhe a direo do Departamento de Cultura de So Paulo. Muito da
amargura de sua conferncia deve-se a esta experincia traumtica. O
funcionalismo pblico resolvia seus questionamentos sobre a utilidade do artista,
mas a burocracia estatal, com a qual no soube lidar, consumia seu entusiasmo e o
amargurava.
Embora sua gerao tenha permitido gerao seguinte uma verdade
social, uma liberdade (infelizmente s esttica), uma independncia, um direito s
suas inquietaes e pesquisas, ela no contribui para o amilhoramento poltico-
social do homem, apesar da sua nacionalidade e sua universalidade, porque
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Itamarati.
O estupendo na fala de Mrio no tanto como revela uma contradio
no projeto ideolgico modernista, seu nacionalismo desvinculado de uma
conscincia poltica. Isso s uma contradio quando se considera o termo
aristocracismo uma coisa conformista. Alis, o ilustre palestrante no era um
aristocrata, mas um professor de msica, um homem culto. Este o dado
provocante, pois sua reviso do movimento modernista narra, nas entrelinhas, a
ascenso de um homem da classe mdia ao circuito fechado das elites. O
autodidatismo, que o levou domnios culturais diversos (literatura, folclore,
etnografia, histria), na viso de Srgio Miceli, comps um repertrio de
investimentos culturais que lhe permitiram levar a cabo o projeto de ser um
intelectual total nas condies da poca (1979, p. 26).
Neste sentido, o Modernismo foi um projeto de ambio pessoal, inserido
numa proposta coletiva, que se fragmentou ou se dissolveu nas relaes de favor
com a direita e simpatia com a esquerda, restando como prmio a ascenso
intelectual. Mrio de Andrade seria e j o era neste momento a maior
realizao do movimento paulista.
67
4.2
Belo Horizonte, exposio de Arte Moderna, 1944.
seno acertar o passo com o mundo, seno tirar o meridiano exato de nossa hora
histrica? [...]. Em 22, o mesmo contato subversivo com a Europa se estabeleceu
para dar fora e direo aos anseios subjetivos nacionais, autorizados agora pela
primeira indstria, como o outro o fra pela primeira minerao. (ibid. p. 94).
O aspecto revolucionrio dos inconfidentes era um tema caro a Oswald,
tanto que, no ano seguinte, escreveria a monografia Arcdia e a inconfidncia,
como tese para o concurso da Cadeira de Literatura Brasileira da USP. Portanto, a
citao vai alm da diplomacia. Os artistas paulistas, em sua maioria modernistas,
foram convidados pelo prefeito para conhecer as obras de Oscar Niemayer, que
faziam parte da mostra de Arte Moderna. A Exposio reafirmava os laos entre
os escritores paulistas e mineiros, que viam sendo cultivados desde a dcada de
20. Neste ponto, o grande articulador seria Mrio, que se correspondera tanto com
os antigos quanto os novos Fernando Sabino, Murilo Rubio, Henriqueta
Lisboa.
A Exposio foi tema de trs crnicas, publicadas no Correio da manh,
posteriormente reunidas no volume Telefonema. A primeira - 25 de abril de 1944 -
, sada a iniciativa do prefeito Kubstichek, em cujos discursos havia uma
preocupao literria. A segunda - Como foi, 6 de junho de 44 - comenta a
recepo caravana paulista, afirmando que Juscelino o homem que est
construindo o cenrio para a alma nova do Brasil, com os instrumentos que
desbravaro o futuro (1996, p. 111). No intermezzo, h uma crnica a respeito de
69
raros a reavaliar o autor a partir de seu prprio texto, sem deixar que os mitos
criados o envolvam numa aura de agressividade e polmica (idem. p. 20).
4.3
Fechando o primeiro balano
11
cf: SENNA, 1996, p. 70.
72
Oswald sentem que j haviam dado o seu melhor, por isso tentam, movidos por
um desejo antagnico, assumir uma ou outra perspectiva ps-modernista (2003,
p. 222). A (m) conscincia do artista e do intelectual diante dos conflitos sociais
e polticos dos anos 40, a vontade da gerao de 45 em retomar os laos com
tradio potica atravs do soneto, a preocupao filosfica com o destino do
homem, tudo se opunha ao esprito otimista de 22. Neste sentido, o inqurito de
Cavalheiro, j em seu ttulo, parecia uma homenagem pstuma a esta gerao,
afinal, testamento pressupe um inventrio de coisas passadas deixadas como
heranas para as futuras geraes. No caso do modernismo de 22, contudo, sua
herana foi imediatamente renegada pela gerao seguinte.
O contraponto ao inventrio de Cavalheiro foi a srie de entrevistas
realizadas por Mrio Neme, entre os anos de 1943-44, com a nova
intelectualidade, representada entre outros por Antonio Candido, Mrio
Schenberg, Paulo Emlio Sales Gomes, Alphonsus Guimares Filho.
Posteriormente publicada em livro, ganhou o sugestivo ttulo de Plataforma da
nova gerao. Nenhum dos depoentes se colocava como herdeiro da gerao de
22. Ernani Silva Bruno, por exemplo, acusava os modernistas de 22 de seguidores
de moda, criando um movimento de sujeitos requintados, cheios de teorias
importadas. Paulo Emlio apontava no esprito bomio o obstculo ao
73
5
Mrio: correspondente de si mesmo
5.1
Solitrio na rua Lopes Chaves.
12
cf: Mrio de Andrade cartas aos mineiros, 1997, p. 84.
76
privados, veremos como o missivista foi preparando uma obra monumental que,
no balano final, resultaria no que o Modernismo tinha de mais completo. So
escritas aos amigos, mas tambm aos futuros pesquisadores, aos futuros
arquivistas. Mrio escrevia cartas com a percepo de que estava fazendo
literatura, sendo que elev-las categoria de gnero, ou desararquizar os gneros
atravs delas, resultaria em mais um ttulo de renovao na sala de trofus
modernista. Assim, para manter a metfora olmpica, remetente terminaria como
recordista absoluto. O reconhecimento do gnio justificava a exposio de sua
intimidade. Neste sentido, a seguinte declarao de um contemporneo
provocadora:
5.2
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Pois foi nessa sala, em torno da fria mesa de granito, que um de ns quem
poder saber qual de ns? falou na perpetuao daquela roda numa organizao
brasileira de estudos de coisas brasileiras e de sonhos brasileiros. Mas cad
dinheiro? [...]. vista de tantos argumentos, ficou decidido que um dia seramos
governo. S para fazer tudo aquilo com dinheiro do governo. (DUARTE, 1971, p.
50).
A tese que Duarte defender dramtica: a demisso do Departamento de
Cultura matou Mrio de Andrade. Para prov-la, lana mo de sua
correspondncia com o ex-diretor, quando este estava exilado no Rio de Janeiro e
aquele em Nova York. O valor destas cartas inquestionvel, falam por si s. Um
pesquisador mais ctico talvez veja na argumentao do amigo uma
80
Hoje Mrio de Andrade est morto. Morto de corpo. [...]. Resta o exemplo
intelectual puro que nos deixou. [...], capaz de viver sem poluir idias e sonhos
com a traio dos interesses imediatos e cujas tentaes nauseabundas to poucos
sabem resistir, apesar de cheirarem a cadver. (DUARTE, 1971, p. 14).
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Uma seo nova de teatros estava sendo preparada para a direo de Antnio
Alcntara Machado. [...]. Foi um trabalho louco. Uma febre de pesquisas,
palegrafos espiolhando gatufunhos do sculo XVI; [...]; a biblioteca municipal
81
motivado pela leitura esttica do projeto modernista. Mesmo nos seus aspectos
ideolgicos, quando a conscincia nacional se fundia participao poltica, o
favorecimento aos modernistas de cargos pblicos nos escales do governo
Vargas foi posto em segundo plano. Por exemplo, no pioneiro estudo de Joo Luiz
Lafet 1930: a crtica e o Modernismo -, no qual se analisava a passagem do
projeto esttico dos anos 20 para o projeto poltico nos 30, a participao dos
intelectuais modernistas no governo federal foi um tpico muito escondido.
O Ministrio da Educao, sob a gesto de Gustavo Capanema, mobilizou
grande parte dos modernistas, constituindo-se, nos termos de Miceli, em uma
espcie de territrio livre infenso s salvaguardadas ideolgicas do regime (1979,
p. 161). A lista de nomeaes outorgadas pelo Ministrio, inclua Carlos
Drummond de Andrade, Chefe de Gabinete; Srgio Buarque de Hollanda, diretor
da Diviso de Consulta da Biblioteca Nacional; Rodrigo Mello Franco Andrade,
diretor do Servio de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional; Manuel Bandeira,
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13
A atuao intelectual de Mrio lhe conferia o ttulo honoris causa, seu prestgio aumenta mais
ainda quando lembramos que Oswald de Andrade no pde prestar concurso para cadeira da
Filosofia da USP por no possuir diploma de nvel superior.
83
possvel reconstruir estes vnculos. Em certa medida, foi nesta direo que
Santiago conduziu a questo:
Trata-se de buscar textos onde o corpo prprio do autor foi dramatizado enquanto
tal por ele mesmo, [...]. Trata-se, ainda, de configurar as aproximaes e
contradies ideolgicas que se tornam salientes quando o texto da fico e o
texto da memria so analisados contrastivamente. (SANTIAGO, 1989, p. 167).
Neste sentido segue Eneida Maria de Souza ao tomar as
correspondncias de Mrio como dramatizao do sujeito, autor, intelectual,
homem pblico (1999, p. 192). Tanto Santiago quanto Eneida caminham para a
dimenso tica da postura andradina, ou seja, seu drama pessoal entre a
individualidade artstica e o compromisso social do intelectual. Tal postura situa a
cooptao intelectual como uma adeso crtica, e s vezes uma ruptura, do
intelectual e do Estado.
Em A elegia de Abril, Mrio de Andrade defendia que o intelectual
deveria ser um tcnico de sua inteligncia. A tcnica abrangia, naturalmente, a
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14
apud: Dom Casmurro. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1939.
15
apud: Dom Casmurro. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1939.
16
apud: Diretrizes, n 19.
87
5.3
Morre o homem fica o mito.
17
cf: Mrio de Andrade. Revista do Arquivo Municipal. Ano II, Vol.CVI, So Paulo,1946.
88
A figura central do Modernismo [...], realizou uma das maiores obras que o Brasil
conheceu no terreno da divulgao cultural, procurando com xito levar ao povo
os produtos eruditos da msica e da literatura [...]. Alm disso, promoveu
pesquisas de etnografia e folclore, sistematizando o interesse dos modernistas
pelo conhecimento objetivo das culturas primitivas e populares. (CANDIDO,
2004, p. 91).
O raciocnio de Candido resumia o consenso geral entre os historiadores
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18
cf: Aspectos da literatura brasileira.
89
19
cf: O cnone brasileiro In O Globo, caderno Prosa e Verso, 30.01.1999
92
6
Narrando Oswald
literria do Brasil? Quem inventou a Semana de Arte Moderna? Aqui fica claro o
ressentimento, revelado por Rud de Andrade, por sentir-se desvalorizado sob o
estigma do blageur, que fizera sua glria nos anos 20.
Em outro artigo Sobre o romance -, igualmente escrito sob a forma de
dilogo, discute-se qual seria o marco do romance moderno, Ulysses ou a
Montanha mgica; o autor tende para o grande marco antinormativo de Joyce
(para simpatia dos Concretos), uma vez que Mann seria o marco final do sculo
XIX. O dilogo termina da seguinte forma: Ora! Voc s fala piada....
O tema continua em Antes do Marco zero, na carta aberta a Antonio
Candido, no qual o qualifica como chato-boy:
impossvel tomar suas idias sem dissoci-la das verdades e mentiras associadas
ao antropfago modernista. A biografia de Oswald uma novela de rompimentos,
brigas, insultos, muitos atos impensados responsveis por sua posio de
metralhadora solitria. Aps sua morte, sua intempestividade pde se
transmutar em rebeldia necessria contra as formas de autoridade. Sua glria nos
anos 60. Em vida, foi um prmio amargo, afinal a glria pstuma no enche a
barriga do artista.
O primeiro rompimento dramtico foi com Mrio de Andrade. Uma das
causas foi a campanha de Mrio a favor da tica entre os modernistas, a
sinceridade da opinio ao invs do elogio fcil, e um dos meios para demonstrar
sua iseno era a desqualificao de Serafim Ponte Grande. Podemos imaginar
que, um homem orgulhoso como Oswald, no suportaria perder calado a liderana
do modernismo para o poeta que promovera.
Em uma pequena nota edio das correspondncias entre Mrio e
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Tarsila, Aracy Amaral faz o seguinte comentrio a respeito de uma das raras de
cartas de Oswald para o companheiro: E num post scriptum irreverente e ao
mesmo tempo denunciando como uma vitria acrescenta sob sua assinatura:estou
amigado (1999, p. 64). Mrio sabia que Oswald lia suas cartas para Tarsila,
porque viviam juntos. Algumas vezes usou do fato para provocar:
[...] No tem sido impossvel eu deixar de ver o Osvaldo viver. Tudo me contam,
vm me contar. Mas no me vingo porque no tomo alegria com isso, tomo
tristeza, tomo principalmente amargura. No, mais uma vez, que banque o
superior, o Osvaldo me ensinou essa coisa aviltante, rebaixante, infelicssima que
odiar. Eu o odeio, infelizmente. Mas tudo me amarga porque no posso
esquecer o passado. Nem o presente, porque o Osvaldo apenas, na extenso da
palavra, um perdido. (DUARTE, 1971, p. 319).
20
cf: Revista da antropofagia. edio facsimilar. So Paulo: Metal leve, 1975.
96
Uma das maiores provas do nosso nvel intelectual a importncia que assumiu
no teatro destes ltimos tempos o sr. Nelson Rodrigues. Gente de
responsabilidade se deixou levar pelo fescenino vestido de noiva entreaberto com
que apresentou as polpudas coxas de sua imoralidade.[...] o sr. Nelson Rodrigues
o folhitinista medocre que usa o pseudnimo de Suzana Flag [...] No serei eu
quem v moralizar seja o teatro, seja o sr. Nelson Rodrigues, [...], sou apenas
inimigo da completa parvoce literria do autor de lbum de Famlia.
(ANDRADE, 1996, p. 302).
Oswald queria, em defesa de sua obra, que houvesse justamente aquilo
Antonio Candido chamava de distanciamento crtico; enfim, queria que sua obra
fosse lida a partir de julgamentos estticos, ao invs de julgamentos morais. Ou
seja, queria a morte do autor antes de Barthes formular a tese.
6. 2
Reinveno marxista
O prefcio para Serafim Ponte Grande pode ser lido como um manifesto
pessoal. um texto de ruptura com o crculo modernista. um texto de
reinveno. Nele, deixa para trs os loucos anos 20, grande parte da obra
escrita, a imagem de blageur que o aprisionava e o embalava para as massas. Para
deixar isto claro, logo no incio, lamenta ter passado por Londres de barba e no
ter conhecido o Manifesto comunista. Diria depois, em suas memrias: Dos
98
ideologia socialista, no poderia ser outra se no sua escrita, suas idias, sua
verve. Em sua autobiografia, Patrcia Galvo revelava que o Partido Comunista
exigia sua separao definitiva de Oswald, porque era considerado elemento
suspeito por suas ligaes com certos burgueses (2005, p.95). Segundo ela, o
Partido determinava a proletarizao de todos os seus membros, determinao a
qual aceitou, sob a pena de abandonar o filho. Pagu confidenciava que dois
homens mudaram sua vida: Oswald e Luis Carlos Prestes. Dois opostos.
Oswald admirava a coragem da coluna Prestes, talvez visse seu lder
como uma espcie de artista de vanguarda, fortalecido pelo mesmo esprito
revolucionrio e a mesma vontade de mudana. A converso ao comunismo
ocorrera aps o primeiro encontro com Prestes, em Montevidu, 1931. Com o
passar do tempo, se desencanta. Um dos motivos foi o veto de Prestes aliana
com o brigadeiro Eduardo Gomes, que Oswald defendia como candidato
presidncia para as eleies de 194521. O brigadeiro foi o canditado dos
escritores, sua candidatura havia sido lanada oficialmente pelo romancista Jos
Amrico de Almeida. Outro motivo, o apoio de Prestes a Vargas nas eleies
presidenciais. Ferrenho combatente do presidente gacho, apelidado de O coisa,
21
O brigadeiro Gomes se canditaria nas eleies de 1950, desta vez contando com o apio do PRP
de Plnio Salgado.
99
Estou certo de que Prestes um grande inibido. [...]. Voc quer v-lo em pnico
dar-lhe chance.[...]. Em 30, foi convidado para comandar o exrcito da
revoluo que ia transformar o Brasil. No dia seguinte da vitria, que seria o ano
Vargas ao lado do Cavaleiro da Esperana? Mas ele inventou um pretexto
ideolgico, de carter irrealista, para ficar sozinho e amargo em Montevidu. [...].
Um empurro o ligar ao brigadeiro Eduardo Gomes, smbolo de lealdade na luta
contra a ditadura. Ele diz no No e no! (ANDRADE, 1996, p. 144).
Numa crnica de 1946 Sob proteo de Deus -, Oswald imaginava que
a coligao Prestes-Gomes seria o elo de ligao entre os intelectuais burgueses
e o proletrio na vitria contra os governos reacionrios. Prestes, lamenta, nos
atirou para fora. O comunismo, argumentava para desespero dos marxistas
ortodoxos, correspondia a uma nova teologia, que viria suplantar o
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Meu caro Lo Vaz, envio-lhe o volume aparecido do meu romance Marco zero,
quero tambm tornar-me seu missivista. E com razo. O seu amvel
correspondente, citado na crnica de domingo, leva-me a explicaes. [...].
Aproveitou-se voc, Lo, do lombo do missivista para insinuar que eu nunca pus
os meus mimosos pezinhos no serto. Leia este volume de Marco zero e ver
102
que andei alguns anos entre grileiros, derrubadores de mata, xerife, etc, e no foi
por diletantismo e sim para ganhar a minha vida. [...]. Marco zero um livro que
vai surpreender os que esperam os modismos e os cacoetes que to gostosa e
justamente empregamos na fase polmica da renovao literria. (ANDRADE,
1975, p. 9).
Enquanto divulgava o romance, Antonio Candido escrevia trs ensaios
sobre o autor - Romance e expectativa, Antes de Marco zero e Marco zero -
, posteriormente re-elaborados no ensaio Estouro e libertao, referncia bsica
na bibliografia crtica sobre o romancista. O pioneirismo do ensasta residia em
sua proposta de analisar a obra do romancista independente do mito criado em sua
volta. O peso dado vida do autor, compreendia o crtico, havia transformado o
sr. Oswald de Andrade num problema literrio. A opo pelo close reading
possibilitaria um julgamento isento de qualquer outro julgo seno o juzo esttico.
O crtico se mostrava particularmente decepcionado com A revoluo
melanclica, porque o romance, ao seu ver, no era a obra mxima que Oswald
anunciava, o que validava a certeza de que sua produo era mesmo algo
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Estava eu, pois, cheio de severas decepes, quando se deu o episdio em que o
atual ministro da Justia aparece como sentinela do proletariado militante, a fim
de controlar a atuao de um escritor que apenas havia dado quinze anos de sua
vida pelo comunismo e pelo Partido. (ANDRADE, 1996, p. 209).
Atravs do comunismo, o ex-palhao da burguesia tentara renovar sua
escrita e o seu pensamento, o fato de dedicar-se ao teatro, rea semi-explorada
pelos modernistas (salvo lvaro Moreyra e Flvio Carvalho) e tambm pela
crtica demonstra esta ampliao de horizontes. Marx como antes Marinetti
104
6.3
Contrastes
7
Contribuio concreta
7.1
Make it new
formal, e como sua escrita cara no limbo, tambm representava o que Dcio
Pignatari chamaria de compl contra um pensamento experimental.
O ponto de articulao foi a inveno, ou na traduo concretista, a
conscincia radical da linguagem. Oswald, em particular, tornou-se importante
porque permitiu aos concretos re-articularem a recepo do modernismo atravs
da tradio das vanguardas histricas. At ento, a recepo orientava-se pelo
critrio nacionalista. O criador da poesia pau-Brasil foi o nico modernista que
aparecia no plano-piloto como precursor do concretismo; alis, os nicos poetas
brasileiros que figuraram foram Oswald e Joo Cabral de Melo Neto, este por
causa da linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso, aquele
por causa da inveno.
Ao dar legitimidade a um autor historicamente importante como Oswald,
mas cuja obra seus contemporneos no julgaram altura do seu gnio, os
concretistas legitimavam sua prxis, pois a aceitao do autor passou
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sincrnico, seu argumento nos leva a pensar, seria inclusivo. Mas como? Em
sntese, a tradio da inveno to ou mais excludente do que o sistema de
Candido. O importante nela a substituio do logos nacional, pelo logos
internacional. O critrio de valorao minimiza a representao da realidade
nacional por extenso, enfraquece a linha sociolgica reinante nos 50/60 - para
valorizar o domnio dos cdigos estrangeiros. Isso implicou uma subordinao
autoridade de Mallarm, Ezra Pound, Joyce e Jakobson. O papel de tradutores e
o prprio senso comum ao premi-los nesta funo transformava-os numa
espcie de antropfagos da cultura literria.
outros valores em sua poesia, justificveis pela teoria concreta, provando tanto a
mais valia de sua obra quanto a mais valia do crtico.
7.2
Devorando Joyce e Mallarm
O Miramar, como todo, poder ser posto em cotejo com um captulo isolado do
Ulisses (VII-olo), passado numa redao de jornal, e onde so aproveitadas as
tcnicas de manchete, titulagem e tpico da imprensa diria. O Miramar, com seu
estilo telegrfico, bem um misto de dirio sentimental e de jornal dos faits
divers duma sociedade provinciana [...]. No falta tambm ao Miramar j est
no ttulo, a investir onomasticamente, duma perptua vocao martima a idia
de priplo, idia que no Ulysses joyciano transposta para uma jornada terrestre
e pedestre no enclave urbano de Dublin. (CAMPOS, 1978; p. xxix).
At aqui, suas justificativas estavam repletas de ressalvas, a comear pela
base de comparao desigual, um captulo de Memrias em relao a todo
romance de Joyce. O fato do captulo do irlands se passar numa redao de jornal
116
7.3
Regurgitando Mrio
22
cf: A escrava que no Isaura.
119
XIV
Tudo esquecido na cerrao.
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Amrica do sul
Amrica do sol
Amrica do sal
Poderiam... Se o poeta no tivesse evitado Gngora e Mallarm.
Em uma crtica virulenta contra o Concretismo, Affonso Romano de
SantAnna apontava que h, em particular em Haroldo, uma relao
problemtica com Mrio de Andrade, ou seja, a impossibilidade de l-lo a no
ser atravs de Oswald de Andrade. Soma-se o trauma diante da audcia de
evitar Mallarm. A situao limite, para Affonso Romano, foi a absurda
influncia de Serafim Ponte Grande (1933) sobre Macunama (1928), defendida
por Campos em Miramar na mira. Para o oponente: Haroldo no conseguia
23
cf: A escrava que no Isaura.
120
O que constitui a meu ver a fragilidade maior de seu enfoque foi ter projetado
num livro, cujas componentes eram todas ambguas e ambivalentes, uma leitura
unvoca, que rejeitava os desvios da norma, para fazer a obra de arte caber fora
no modelo de que, fatalmente, teria de extravassar. (SOUZA, 2003, p. 46).
O modelo adotado pelo concretista baseava-se nos estudos das narrativas
folclricas russas, Morfologia do conto maravilhoso, do folclorista Vladimir
Propp, no qual demonstrava que as partes componentes de um conto poderiam ser
transportadas para outro. A bruxa ou o demnio sempre o praticante da m-ao.
Ao adaptar esta tese na anlise de Macunama, Haroldo conclu que Mrio
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7.4
Simbioses
[...] nossa literatura no teve infncia (infans, o que no fala). No teve origem
simples. Nunca foi in-forme. J nasceu adulta, formada, no plano dos valores
estticos, falando o cdigo mais elaborado da poca. (CAMPOS, 1989, p. 64).
O Barroco era um estilo internacional, defend-lo como nossa gnese
literria desestruturava o nacionalismo literrio, base para a historiografia
brasileira desde Silvio Romero. Oswald de Andrade emprestava os instrumentos
poticos teoria o concreta para se inserir e/ou criar uma histria alternativa da
literatura brasileira, regida pelo internacionalismo. Nos termos de Haroldo:
8
Antropofagia remixada
O Tropicalismo um neo-antropofagismo.
Caetano Veloso (Balano da bossa)
8.1
A utopia selvagem
confrontao com a religio do trabalho, e atravs dele que homem moderno trs
de volta (e no: volta atrs) a idade de ouro do Matriarcado de Pindorama.
A concepo da histria como um constante ir e vir no tempo,
completamente estranho ao positivismo historicista, que a concebia como
movimento progressivo, teleolgico, aproximava Oswald a uma das premissas de
Nietzsche na Segunda considerao intempestiva:
Brasil, nos quais a pardia era um meio de criao de uma outra histria. A
utopia antropofgica, cujo mrito, na opinio de Costa Lima, foi o desejo de
reinventar o Brasil, corria em sentido contrrio ao do pragmatismo da sociologia
da literatura.
Um dos representantes do pragmatismo sociolgico, Roberto Schwarz,
argumentava - em A carroa, o bonde e o poeta modernista que havia uma
tendenciosa ingenuidade em Oswald ao interpretar o Brasil pelo vis
antropofgico, porque os "temas comumente associados ao atraso e desgraa
nacionais" ganhavam "uma surpreendente feio otimista, at eufrica (...). Um
ufanismo crtico, se possvel dizer assim" (1987, p. 13).
Um dos temas associados ao atraso era o analfabetismo omitido sob a
tese do erro gramatical e da incorporao milionria de todos os erros. Outro,
naturalmente, seria o controle exercido pelo capital privado dos instrumentos de
libertao, isto , a tecnologia. Para Schwarz, em Oswald combinavam de modo
astuto a atualizao cosmopolita e aristocratismo cafeeiro, j que a
persistncia da monocultura de exportao, com as relaes de trabalho
correspondentes, era sua base de eminncia nacional e participao internacional.
Supor que o pas atrasado fosse capaz de deglutir as conquistas dos pases
128
25
apud: Folha de S, Paulo. Supl. Mais! 4 de setembro de 2005. O ttulo deste captulo no uma
parfrase, j o utilizara em 2004, como ttulo de minha comunicao no IX Congresso da Abralic.
129
8.2
Os tropicalistas esto chegando
26
cf: Livro de cabeceira do homem. Vol. I. 1975.
130
27
O Gibi era um suplemento semanal de H.Qs, dirigido por Roberto Marinho.
131
28
cf: ECO, Umberto. Apocalpticos e integrados. O mito do superman.
132
o pai de Beto Rockfeller. Nos anos 60, argumenta Candido em Uma palavra
instvel, o nacionalismo libertrio dos anos 20 converteu-se em nacionalismo
progressista, a partir da esfera poltica, com a luta pela defesa das riquezas
nacionais e a resistncia aos aspectos mais agressivos do imperialismo,
culminando, na esfera cultural, com a msica de protesto, o cinema novo e o
teatro de Arena.
29
cf: Literatura e sociedade. p. 112.
133
proposta por Ferreira Gullar no ensaio Cultura Popular. Para tanto, primeiro o
poeta precisou ressemantizar o conceito de cultura popular. Ao invs de uma
manifestao do povo, pensava-se em uma cultura a servio do povo e dos
interesses efetivos do pas, o que implicava em colocar a responsabilidade
social do intelectual. Deste modo, cultura popular era: a) conscincia da
realidade brasileira; b) compreenso do analfabetismo; c) luta contra o
imperialismo econmico; d) conscincia revolucionria. Neste conceito, o arteso
no o agente da cultura popular, porque ela no um objeto um discurso.
Assim para ser funcional, conclua o presidente do CPC, teria que se apoiar
fundamentalmente na classe estudantil e na classe operria, como tambm nas
organizaes camponesas (apud: FVERO, 1983, p. 52).
O ideal de cultura a servio do povo levou, segundo Sebastio Uchoa
Leite, a uma compreenso limitada de poltica cultural, obscurecendo uma causa
maior, a poltica educacional. A oposio entre cultura popular como
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30
cf: Cultura ps-nacionalista. p. 25.
135
personagens matando para comer, [...], personagens sujas, feias, escuras [...].
(ROCHA, 1981, p. 31).
A exposio da fome, internamente, manchava a imagem do pas
projetada pelo Estado e pelos filmes comerciais da Vera Cruz/Atlntida filmes
alegres, cmicos, rpidos, sem mensagens, e de objetivos puramente industriais -,
enfim, a imagem convencional de alegria, embalada pela bossa digestiva,
constituda em nacionalismo de consumo. Imagem hoje reciclada no sorriso sem
dentes do faxineiro na campanha publicitria O brasileiro no desiste nunca.
Externamente, Glauber apontava, a misria saciava o saudosismo europeu pelo
primitivismo, tambm reciclador da ancestral busca pelo prazer atualmente
mapeado pelo turismo sexual.
A ruptura consistia em assumir a misria como violncia revolucionria ao
invs de crise de conscincia, traduzida no paternalismo e na piedade colonialista,
que terminavam por pedir dinheiro aos pases desenvolvidos para construir
escolas, sem professor, casas sem dar trabalho, ensinar o ofcio sem ensinar o
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E logo estas canes passaram pelo crivo das remuneraes dos prmios musicais,
estreava na tv Tupi o programa Divino maravilhoso. A relao com os meios de
comunicao no era recalcada como na msica engajada, isto , a eficincia
poltica de uma cano de Geraldo Vandr dependia da fora do seu contedo em
ocultar que ele era um artista contratado pela Philips records, surcusal brasileira
da imperialista EMI. O meio no podia ser a mensagem.
A relao com a cultura massa, para Roberto Schwarz, transformava o
Tropicalismo num problema terico, atuando numa divisa entre sensibilidade e
oportunismo, crtica e integrao, que obscurecia seu lugar social. Se para o
crtico marxista, a matriz oswaldiana reproduzia os desejos frustrados de plasmar
os signos do atraso em viso otimista do pas, a filial tropicalista repetia as
mesmas limitaes, adotando como modelo de modernizao a cpia das modas
estrangeiras, as quais no superaram pela proposio alegrica arcaico/moderno,
antes revelavam uma postura comodista diante da realidade brasileira. Em
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[...] entretanto, a despeito desta conjuno, nada menos tropicalista dito que o
mtodo. Por qu? Porque a oposio entre os termos no insolvel: pode haver
alfabetizao. Para a imagem tropicalista, pelo contrrio, essencial que a
justaposio de antigo e novo [...] componha um absurdo, esteja em forma de
aberrao, a que se refere a melancolia e o humor deste estilo. (idem. p. 31).
A posio de Schwarz, historicamente, reproduzia a desconfiana,
tambm histrica, em relao ao instrumental da vanguarda servir como lugar de
139
8.3
E onde est Mrio?
Aquele amor
nem me fale (Oswald de Andrade).
Os poetas marginais, ao retomarem o poema-minuto-piada, consagram
definitivamente a potica oswaldiana como paradigma de inovao e transgresso.
O que constituiu uma priso para Oswald em sua reinveno socialista, tornava-se
sua consagrao, ou melhor, sua mitificao. A potica desprezada pela gerao
de 45 encontrava, no pesado ambiente dos anos 70, um terreno frtil para gerar
novos frutos. Mas no se trata de um eterno retorno. A alegria, nas letras de
Caetano, Gil, Waly Salomo et alii precisa ser relativizada. Andr Monteiro, em
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seu estudo sobre Torquato Neto, localiza na letra de Gelia geral os elementos
que o ligam antropofagia oswaldiana (fuso primitivo/tecnolgico;
popular/erudito) e o elemento que o distancia dela: a melancolia. Em seus
argumentos, a culpadilacerada, ancorada no porto seguro da tristeza, pendia
mais para os tabus messinicos do que para a libertao totmica (2000, p.
83).
Paulo Henriques Brito, analisando vrias letras tropicalistas, apontava a
presena da dor-de-cotovelo como expresso da sensao de derrota coletiva
(apud: DUARTE; NAVES, 2003, p. 196). Neste sentido, a miniantologia de
Lupicnio Rodrigues, o mestre da dor-de-cotovelo, presente no Balano da
bossa, integrava-se temtica da tristeza, embora em Augusto de Campos seja
tambm indicador da infiltrao concretista na cano popular, em um produo
mais cerebral do que emotiva, logo chama ateno seu entusiasmo por Lupicnio.
Se a tristeza nota dissonante no processo de identificao, o hedonismo e
a busca pela liberdade sexual voltam a aproximar, biograficamente, Oswald dos
iderios contraculturais. A fama de libertino, exagerada na opinio de Antonio
Candido, casava com o lema iconoclasta do desbunde e da rebeldia. Para que esta
construo funcionasse, era preciso desconhecer, ignorar, tratar como intriga da
oposio, o fato do modernista ter tentado ingressar nas instituies caretas,
143
MRIO DE ANDRADE.
Em termos comportamentais, a persistir os boatos, se tivesse sado do
armrio talvez representasse um equivalente a Allen Ginsberg. Mas em tempos
de liberao sexual, simbolizava o oposto: a auto-represso. Sua canonizao pela
historiografia foi a cereja no bolo, pois encenava os valores que a gerao de 70
desprezava, como a seriedade, a pesquisa esttica, o nacionalismo folclrico.
Poderia, facilmente, ser considerado o patrono do iderio cepecista, o paradigma
do movimento Violo de rua. Politicamente, seu medo em se assumir comunista,
sua absteno na torre de marfim, sua crtica qualidade do romance de 30,
tambm o afastam do comprometimento dos artistas engajados. Enfim, neste
panorama, Mrio era, ironicamente, um outsider.
Ento, Mrio de Andrade sumiu nos anos 60? No. Ele foi para o cinema.
A adaptao cinematogrfica de Macunama, dirigida por Joaquim Pedro
de Andrade, realizou, no mnimo, duas faanhas: foi um dos poucos, talvez o
nico filme do cinema novo a atingir o grande pblico; retomou Mrio de
Andrade pelo vis antropofgico-tropicalista, inserido sua escrita no circuito
contracultural. Respeita o esprito formal da obra. Desrespeita seu contedo.
Introduz o discurso poltico cinemanovista na rapsdia andradina.
Na Eztetyka da fome, Glauber Rocha afirmava que o cinema novo
fotografava a misria escrita pela literatura de 30. O compromisso poltico dos
144
vazio que ser preenchido pelo realismo ficcional, que remetia tanto ao cinema
dos anos 60 quanto literatura dos anos 30. Enquanto na obra literria a busca
pelo Muiraquit justificava as migraes do heri e a ligava, como nos ensinou
seus exegetas, tradio dos romances de cavalaria; no filme:
9
Snteses
Foi nas margens do Ipiranga,
Em meio a uma pescaria.
Sentindo-se mal, D, Pedro
- Comera demais cuscuz
Desaperta a barriguilha
E grita, roxo de raiva:
Ou me livro desta clica
Ou morro logo dua vez!
O prncipe se aliviou,
Saiu no caminho cantando:
J me sinto independente.
Safa! vi perto a morte!
Vamos cair no fadinho
Pra celebrar o sucesso.
Murilo Mendes (Histria do Brasil)
9.1
Autonomia e produo literria
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estar do colozinado, carente de qualquer mito de origem, pois sua histria era
escrita oficialmente a partir da chegada do colonizador. O nativismo e o
indianismo trabalhavam no cerne do trauma: a auto-estima.
A idealizao do ndio, argumenta Candido, se esteticamente foi fraca e se
desgastou rpido, serviu como uma iluso compensadora de um altivo
antepassado fundador, satisfazendo as necessidades do pas jovem e mestio
tinha de atribuir sua origem um cunho dignificante (2002, p. 51). O
indianismo contribuiu para o conhecimento etnogrfico sobre a cultura indgena,
tambm integrou o ndio dentro do conceito de nao. No entanto, literariamente,
prendeu-se ao exotismo do romantismo francs, o que significou, em mos menos
hbeis, o seu desgaste e a dependncia aos centros metropolitanos.
Machado de Assis, em seu Instinto de nacionalidade, daria um tiro na
iluso indianista: certo que a civilizao brasileira no est ligada ao elemento
indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para no ir buscar entre
tribos vencidas os ttulos da nossa personalidade literria (1999, p. 13).
O primitivo, para Machado, era um tema potico, uma fonte de inspirao,
consider-lo nossa explicao intelectual implicava erro to grave quanto
exclui-lo do patrimnio da literatura brasileira. Analisando a passagem citada,
31
cf: SANTOS, Roberto Corra dos. O poltico e o psicolgico, estgios da cultura In Modos de
Saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: ed. UFMG, 1999, pp.64-65.
152
negar o tempo de hoje como boa e larga matria de estudo (1999, p. 15). Ao
contrrio do que tendenciosamente Santiago sugere, Machado no faz uma defesa
do eurocentrismo, pelo contrrio, denuncia a criao romntica de um passado
nobre como uma camisa de fora, um lugar estereotipado, de olhos fechados para
o presente.
Machado de Assis desestabilizava o conceito de mito fundacional, que
localizava a origem da nao em um passado remoto, em que tempo real e tempo
mtico se fundiam para formar a narrativa nacional. Tacitamente, apontava para a
crtica moderna ao Romantismo e tambm a ele mesmo de, sob o ideal
indianista, ter excludo a cultura negra do projeto nacional. Para Candido, a
excluso ocorreu porque o negro era escravo e tal condio o tempo de hoje
machadiano no permitia sua idealizao.
O Romantismo, mesmo ignorando a cultura africana como componente
positivo da nao, segundo Candido foi o primeiro movimento revitalizador da
inteligncia brasileira, porque criou todo um aparato simblico para a auto-
reflexo da cultura nacional. Com ele, o saber folclrico pode se instituir como
instncia privilegiada do reconhecimento da cultura brasileira, e tambm da
preservao de suas razes. O Modernismo, logo, seria o segundo grande
momento de revitalizao da inteligncia nacional.
153
9.2
Tradio e memria
como o que est em cima, e o que est em cima o como o que est em baixo; por
estas coisas se fazem os milagres de uma s coisa.
Essa crena numa viso una do universo se populariza com os sistemas de
comunicaes de Swedenborg que estabelece o reino do intelecto como mediador
entre o terreno e celestial32. Swendenborg influenciaria Baudelaire no poema
fundador do Simbolismo, Correspondncia, no qual a sinestesia aparece como
uma linguagem universal. Desse modo retornando a Octavio Paz os
precursores da poesia francesa do sculo XIX (Baudelaire, Nerval, Mallarm,
Rimbaud, Lautramont), sob influncia dos romnticos ingleses, como William
Blake, e alemes, como Goethe, abrem e fecham o leque de correspondncias da
analogia (1984, p. 92).
A concepo de poesia como magia, segue Paz, implica numa esttica
ativa, uma interveno sobre a realidade; revolucionria, prope uma mudana
violenta das instituies (1972, p. 262). Do Romantismo ao Surrealismo existe um
arco de mudanas de crenas, na qual o pensamento analgico um meio de
negao e crtica do pensamento analtico, racional e secularizado.
Silviano Santiago compreende a tradio analgica como uma reao
contra os princpios revolucionrios da modernidade (1989, p. 103). O apelo
32
O livro de Louis Pauwels e Jacques Bergier, O despertar dos mgicos, referncia importante a
qual consultei.
156
escravido.
Politicamente, continuamos com Huyssen, a cultura da memria um
contra-discurso f inabalvel da alta modernidade no novo e no utpico, a viso
triunfalista do telos do progresso. Trata-se de reavaliar os passados nacionais, com
nfase nas questes dos direitos humanos e das minorias, tentando curar as
feridas provocadas pelo passado (2000, p. 34).
O discurso da memria modernista era outro. Primeiro, porque se
acreditava na possibilidade de desconstruo da histria; segundo, no se
trabalhava com os traumas do passado, quando apareciam havia sempre uma
tentativa de super-los utpica ou culturalmente. A utopia antropofgica, por
exemplo, visava no necessariamente a uma volta ao passado, talvez o contrrio, a
reconstituio do passado no presente. H ao mesmo tempo uma desconfiana no
presente, que ainda o tempo da guerra, da intolerncia e da violncia, e uma
confiana nele, pois o tempo da tecnologia que garante o cio, condio
essencial para trazer de volta o matriarcado de Pindorama. O passado, ao contrrio
do discurso ps-moderno, no era um lugar traumtico.
Agripino Grieco, em entrevista a Homero Senna, via a presena do
passado, na prtica modernista, como uma traio ao prprio Modernismo.
Segundo ele, o movimento, pretendendo uma revoluo contra o passado,
fracassou, a prova seria o surto prodigioso de estudos histricos:
158
33
cf: Cristo no jri: carta aberta ao Dr, Margarino Torres, O jornal, 18 de maro de 1931.
159
uma recepo culta, com ares de erudita. Louis Armonstrong diria que o jazz
era a msica clssica americana. Algo semelhante ocorreu com a bossa nova. O
msico bossanovista se via como um jazzista, e no um sambista, porque a rigor
j no tocava mais samba, embora Joo Gilberto dissesse que ele era um sambista.
A recepo da bossa nova, espcie de cruzamento do samba com o jazz, tambm
culta. Essas deserarquizaes estavam no programa de renovao da cultura
brasileira pelas vias do modernismo.
O fenmeno novo, ocorrendo agora diante de nossos olhos, classicizao do
prprio discurso moderno, pois os novos leitores lem Mrio de Andrade ou
Drummond como autores cannicos. A revoluo modernista j foi televisionada.
A imensa parte da poesia que lemos hoje, boa ou ruim, talvez desde a poesia
marginal, escrita sob o parmetro modernista, consciente ou inconscientemente,
para afirm-lo ou neg-lo. Pouqussimos poetas praticam o soneto, com a gritante
exceo de Paulo Henriques Brito. At os preconceitos modernistas parecem
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10
Concluso
Nos anos 80, surgiu o conceito world music, que no Brasil gentico. A
diferena brasileira a fuso. como se fosse uma feijoada, em que o feijo
viesse da Colmbia, o coentro de Marrocos, a farinha do Mxico, mas o gosto
sasse brasileiro.
At que ponto a world music no seria uma macumba para turista?
Sua relao com a antropofagia s explica pela traduo nica de fuso cultural,
destituda de sua fora utpica, de sua crtica aos valores ocidentais. H uma
nascente reao a Oswald de Andrade, derivada de sua canonizao pelos
concretistas e tropicalistas. O jornalista Jernimo Teixeira, em resenha para Veja
do livro Feira das sextas, afirma que falta consistncia s teses da poesia pau-
brasil e da antropofagia. Seu argumento situa-se sobre trs flechadas do
modernista fora do alvo: a) no Manifesto da poesia Pau-Brasil defendia a poesia
de exportao - hoje o maior produto de exportao da literatura brasileira no
um poeta, e sim Paulo Coelho; b) contra o purismo dos gramticos defendeu a
lngua sem erudio - deu em Lula com suas metforas futebolsticas e sua
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34
Revista Veja. 10 de novembro de 2004.
35
apud. Folha de So Paulo. Supl. Mais! 16 de novembro de 2003.
164
lado, o mago faz bem aos intelectuais brasileiros, porque mostra que a
obtusidade artstica um bem universal. Viva Paulo Coelho!
Outra reao unanimidade antropofgica: Regurgitofagia, do multimdia
Michel Melamed. Neste texto-espetculo, o autor prope a superao da
antropofagia, porque j deglutimos coisas demais:
Oswald de Andrade [...] aludia deglutio do Bispo Sardinha [...] para propor
que [...]deglutssemos as vanguardas europias a fim de criarmos uma arte
genuinamente brasileira. E hoje? Continuamos a deglutir vanguardas ou tem-
nos sido empurrada goela abaixo toda a sorte de informaes? Regurgitofagia:
vomitar os excessos a fim de avaliarmos o que de fato queremos redeglutir.
(MELAMED, 2005, p. 68).
A leitura de Melamed claramente mediada pela construo tropicalista da
antropofagia; assim como Caetano, ele no foi alm do manifesto de 28. Para
recus-la, curiosamente, o autor recorre ao formato dos textos concretistas e a
verve humorstica da poesia de 70, ironicamente as fontes de influncia
oswaldiana. Diante do excesso de informao, afirma, impossvel agir com a
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de Andrade.
A pea apresenta uma histria privada do Modernismo, restabelecendo
alguns contextos perdidos, como o papel de Mrio na elaborao da
antropofagia. Na sua passagem para a televiso, os autores exploraram o lado
sentimental nada mais anti-modernista da relao entre Mrio e Anita. A
tnica foi apresent-la como uma amante platnica do escritor. Em relao a este
sentimento no-correspondido, Srgio Miceli faz uma leitura surpreendente do
auto-retrato nu de Anita, o qual d presente para o amigo, como uma forma dela
se desnudar, numa tentativa de conquistar o parceiro (2003, p. 119).
No final, a mini-srie realizou-se como ironia da mxima oswaldiana a
massa h de comer os biscoitos finos que fabrico. Mas na realidade, a massa
devorou o personagem Oswald. A prpria linearidade narrativa da mini-srie foi
anti-modernista. Mas h algo de importante aqui, impossvel de ser ignorado: o
interesse pela vida privada das celebridades. Nesse sentido, as crescentes
publicaes das correspondncias de Mrio de Andrade, alm de satisfazer as
necessidades da cultura literria (segundo ela, isso sua razo de ser), tambm
satisfazem a curiosidade dos leitores diletantes. Penetrar na intimidade do escritor
talvez seja o nico interesse dos leitores no especializados, que as lem sem o
pudor do crtico literrio. Portanto, no atual estado de coisas, o movimento
modernista realizou seu ltimo ato: tornar-se um produto de massa.
166
11
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