BENEVIDES - Verdade e Ideologia No Pensamento de Foucault

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ECOS

| Volume 3 | Nmero 1

Verdade e Ideologia no
pensamento de Michel
Foucault
Truth and Ideology in the
thought of Michel Foucault

Pablo Severiano Benevides




Resumo
Este trabalho tem por objetivo apresentar os principais movimentos
operados no pensamento de Michel Foucault no sentido de uma recusa em
trabalhar com os conceitos e as problemticas ligadas Ideologia.
Procurarei argumentar que esta recusa est associada, em grande parte, a
um determinado modo de conceber e perspectivar a Verdade a saber, no
como algo sem si, nem como algo que reside na transcendncia de uma
utopia, mas nas polticas, nos regimes e na imanncia do dispositivo da
verdade. Para tal, recorrei s formulaes de Eagleton e Zizek sobre a noo
de Ideologia. Em seguida, analisarei os movimentos no pensamento de
Foucault que apontam para uma rejeio em operar com uma crtica da
ideologia em funo do seu modo de perspectivar a verdade: a aproximao
entre poder e verdade, o reagenciamento do campo jurdico no campo da
veridio e a oposio entre anarqueologia e crtica da ideologia.

Pablo Severiano
Benevides

Universidade Federal do
Cear (UFC) e
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ)

Verdade; ideologia; anarqueologia.

Graduado em Psicologia, Mestre


em Filosofia e Doutorando em
Educao Brasileira pela
Universidade Federal do Cear.
Professor Assistente do Curso
de Psicologia da Universidade
Federal do Cear e coordenador
do Laboratrio de Estudos em
Epistemologia, Educao e
Subjetividade (LEDUS).
Atualmente cursa Doutorado
Sanduche no Programa de Ps-
Graduao em Educao da
Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Proped/UERJ).

[email protected]

Palavras-chave

Abstract
This article aims to present the main movements at work in the thoughts of Michel
Foucault towards a refusal to work with the concepts and issues related to
ideology. This paper argues that this refusal is largely associated to a particular
way of conceiving and to a particular perspective of the truth - namely not as
something-in-itself. Rather, it is to be found in policies, schemes and immanence of
the device of the truth. To do it, this paper draws from formulations made by
Eagleton and Zizek on the notion of ideology. Then it analyzes the movements in
the thinking of Foucault that point to a rejection to operate with a critique of
ideology as a function of his perspective to the truth: the approach between truth
and power, the presence of the field of the truth in the juridical field, and the
opposition between anarchaeology and criticism of ideology.

Keywords
Truth; ideology; anarchaeology.

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Uma das principais caractersticas do pensamento poltico de Michel


Foucault consiste numa recusa em operar com o conceito de ideologia, bem
como no contexto de um conjunto de problemticas, de formas de
pensamento e de expresses que so frequentemente associadas a uma
crtica da ideologia. Sobre esta recusa insistente de Foucault em trabalhar
com o conceito, a noo, ou a ferramenta ideologia, certamente muita coisa
poderia ser dita. Todavia, gostaria de situar de modo muito particular e
especfico os mveis dessa recusa e sugerir que ela tem a ver, em grande
parte, com um modo de perspectivar a verdade. Desta forma, noes como
alienao, mistificao, distoro, falsa conscincia e todos os pseudos que
vm a reboque bem como seus contrapontos em termos de uma
conscientizao que leva emancipao constituem ferramentas
inoperantes no contexto de um pensamento que opera com a verdade no
na transcendncia de uma utopia, mas na imanncia de um dispositivo.
Assim, no que diz respeito recusa do conceito de ideologia em funo
de um determinado modo de perspectivar a verdade, argumentarei a partir
de referncias dadas por Foucault (1988a, 2008, 1997a, 2009) em
entrevista concedida a Alexandre Fontana em 1977, intitulada Verdade e
Poder, nos cursos ministrados no Collge de France em 1979 (O Nascimento
da Biopoltica) e 1980 (Do Governo dos Vivos), bem como nas obras Vigiar e
Punir e A Vontade de Saber. Com isso, gostaria de chamar ateno a trs
movimentaes no pensamento de Foucault que so co-incidentes com
construo de um campo de foras repelente do conceito de ideologia: a) A
aproximao, por vezes tendente identificao, entre verdade e poder; b) O
reagenciamento ou o eclipse do campo jurdico no campo da veridio; c) A
recusa do poder e a pergunta pelas sobras da verdade que caracterizam a
atitude da Anarqueologia.

1. Sobre a o conceito de Ideologia


Eagleton (1997) inicia seu livro Ideologia no trazendo catorze


significaes comumente usadas para o termo o que de antemo j indica,
evidentemente, que no h uma teoria unificada ou qualquer consenso em
relao ao significado ou ao uso do termo ideologia. So eles: a) o processo
de produo de significados, signos e valores na vida social, b) um corpo de
ideias caracterstico de um grupo o classe social, c) ideias que ajudam a
legitimar o poder dominante, d) ideias falsas que ajudam a legitimar o pode
dominante, e) comunicao sistematicamente distorcida, f) o que confere
certa posio a um sujeito, g) formas de pensamento motivadas por
interesses sociais, h) pensamento de identidade, i) iluso socialmente
necessria, j) a conjuntura de discurso e poder, k) o veculo pelo qual os
atores sociais entendem o mundo, l) conjunto de crenas orientadas para a
ao, m) confuso entre realidade lingustica e linguagem fenomenal, n)
ocluso semitica.
Antes de enumerar exaustivamente essas significaes do termo
ideologia, Eagleton (1997, p.11) j apresentara aquilo que entendeu como o
seguinte paradoxo: Por que, em um mundo atormentado pelo conflito
ideolgico, a prpria noo de ideologia evaporou-se, sem deixar vestgios,
dos escritos ps-modernistas e ps-estruturalistas? Sem ser muito explcito
em relao quilo que entende exatamente por ps-modernistas ou ps-
estruturalistas, Eagleton (1997), contudo, aponta neste terreno trs
principais tendncias de rejeio do conceito de ideologia: 1) a ideologia
seria refm de uma noo de representao posta em cheque pelos ps-
modernistas ou ps-estruturalistas; 2) a ideologia pressuporia alguma
noo de verdade absoluta tida como indefensvel pelo ceticismo reinante e,
por fim, 3) a ideologia seria algo um tanto redundante, uma vez que, aps

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aquilo que nos disse Nietzsche, no h como pensar um conceito da


realidade ou qualquer forma de racionalidade no implicada com o poder ou
com os interesses individuais ou de um grupo especfico.
Defendendo, contudo, no somente a pertinncia, mas a importncia e a
urgncia de no abrir mo das temticas ligadas a uma crtica da ideologia,
Eagleton (1997) nos sugere um tipo de definio de ideologia que teria seis
gradaes, seis diferentes nveis de assunes, seis graus de generalidade
apresentaremos aqui estes nveis indo do mais geral para o mais especfico.
Trata-se (I) da ideologia como produo de ideias, valores e crenas na vida
social, mas que (II) sejam socialmente significativos, e no sobre qualquer
coisa. Especificando ainda mais, essas crenas, ideias e valores socialmente
significativos seriam (III) uma forma de legitimao de interesses especficos
no de quaisquer interesse, mas (IV) que sirvam para unificar o poder
dominante. Esta unificao, ainda, (V) seria conseguida graas distoro e
dissimulao por parte desses que detm o poder. Em ltimo caso, uma
noo ainda mais forte e especfica de ideologia pressuporia que esse
conjunto de crenas, valores e ideias da vida social abrangeria todos os
demais itens anteriores (do I ao V) e, ainda, (VI) seria constitutivo da prpria
estrutura material da sociedade como um todo.
Algo semelhante a este processo de totalizao do conceito de ideologia
parece ocorrer na perspectiva assumida por Zizek (2010), em seu texto O
Espectro da Ideologia. De incio, a fim de reconhecer a forma fatalista com a
qual a realidade capitalista se nos apresenta, Zizek (2010) argumenta pela
inexorvel pertinncia da noo de ideologia. Para tal, faz meno clssica
afirmao de Frederic Jamerson de que, hoje em dia, mais fcil para ns
admitirmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo o que seria signo
precisamente de um triunfo da ideologia capitalista.
Aps algumas divagaes dialticas sobre a relao de verda-
de/falsidade entre o contedo enunciado e as posies polticas implicadas
nessa enunciao, e tentando livrar a noo de ideologia de uma falsa
representao da realidade, Zizek (2010, p.13) finda por afirmar que o
importante na noo de ideologia exatamente o modo como esse
contedo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu processo de
enunciao. Assim, essa suposta inexorvel pertinncia da noo de
ideologia o leva a apelar para as distines pouco discernveis e um tanto
obscuras entre o transparente e o oculto:

Estamos dentro do espao ideolgico propriamente dito no momento em
que este contedo (...) funcional a alguma relao de dominao social
(poder, explorao) de maneira intrinsecamente no transparente:
para ser eficaz, a lgica de legitimao da relao de dominao tem que
permanecer oculta (ZIZEK, 2010, p.13- 14).

O que , todavia, uma relao de dominao oculta? Para tal, teramos


precisamente que dizer o que uma legitimao de dominao transparente
tarefa que, certamente, seria de difcil empreendimento uma vez que se
abstraia de uma noo mnima de verdade ou de identidade entre as formas
de legitimao (a representao da dominao) e a dominao em si. Mas
isso coloca um problema tendo em vista, precisamente, que uma anlise
ideolgica historicamente bem pouco distinta de uma crtica ideolgica.
bem difcil simplesmente constatar algo como ideolgico sem que esse
prprio ato de constatao seja considerado como fora do espao
ideolgico; e, ainda, esse ato de constatao vem sempre acompanhado de
um apelo para a recusa condio constatada e contestada.
Sobre isso, o prprio Marx (2001, p. 46) j dissera que o apelo para
que abandonem as iluses a respeito de suas condies o apelo para
abandonarem uma condio que precisa de iluses. Zizek (2010, p.25)

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tambm percebera a impossibilidade de afirmar-se iludido sem que esse ato


de afirmao seja por si s uma sada de seu estado de iluso de modo que,
do ponto de vista performativo, a enunciao eu me iludo equivaleria a eu me
desiludo: o indivduo submetido ideologia nunca pode dizer, por si
mesmo, estou na ideologia; ele sempre requer outro corpo de opinies,
para deste distinguir sua prpria postura verdadeira. Todavia, para dar
conta deste problema relacionado posio subjetiva daquele que enuncia a
crtica da ideologia, Zizek (2010, p. 22-23) rompe com a imanncia1 e,
mediante uma atitude niilista, postula esta posio como um lugar vazio:

A ideologia no tudo; possvel assumir um lugar que nos permita
manter distncia em relao a ela, mas esse lugar de onde se pode
denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, no pode ser ocupado
por nenhuma realidade positivamente determinada, no momento em que
cedemos a essa tentao, voltamos ideologia.

Assim, chegamos a um impasse. Estaramos presos entre as mseras


alternativas de, ou nos situarmos em um lugar vazio para fazermos uma
crtica ideologia e, com ela e somente mediante ela, lutar contra as formas
de dominao , ou admitirmos o fim da crtica ideologia (tal como fariam os
ditos ps-modernos) e, com isso, abandonarmos qualquer tentativa de luta
contra essas formas de dominao? precisamente com o intuito de sairmos
deste impasse que apresentaremos, agora, a recusa de Foucault em trabalhar
com as temticas ligadas crtica da ideologia. Comecemos pela primeira
movimentao das trs referidas no incio deste tpico.

2. A aproximao entre Poder e Verdade


Em Verdade e Poder, Foucault (1988a, p. 7) enumera trs razes pelas


quais considera dificilmente utilizvel noo de ideologia. A primeira dela,
mais enfatizada, que, queira-se ou no, ela [a noo de ideologia] est
sempre em oposio virtual a alguma coisa que seria a verdade
(FOUCAULT, 1988a, p.7). A segunda razo diria respeito sua vinculao
necessria a algo como um sujeito e aqui, certamente, trata-se de um
sujeito com uma srie de predicaes essenciais, constitutivas e
fundamentais. A terceira diz respeito ao carter acessrio, perifrico,
apendicular ou derivado da noo de ideologia em relao a algo como a
realidade, a infraestrutura, as determinaes econmicas, o mundo
material. Em suas palavras: a ideologia est em posio secundria em
relao a alguma coisa que deve funcionar para ela como infraestrutura ou
determinao econmica, material, etc. (FOUCAULT, 1988a, p.7).
Esta entrevista constitui um dos momentos em que Foucault
movimenta-se no sentido de traar uma relao mais prxima entre verdade
e poder. Nela encontramos afirmaes do tipo: a verdade no existe fora do
poder ou sem poder (FOUCAULT, 1988a, p.12), ou mesmo: a prpria
verdade poder (FOUCAULT, 1988a, p.14). O que esta proximidade joga
para fora de si com uma fora diretamente proporcional tendncia em
aproximar verdade e poder precisamente o conceito de ideologia. Assim,
logo aps afirmar que a especificidade do intelectual consiste em seus
posicionamentos em relao s funes gerais do dispositivo da verdade
(FOUCAULT, 1988a, p.13), Foucault (1988a, p. 13) salienta que preciso
pensar os problemas polticos dos intelectuais no em termos de
cincia/ideologia, mas em termos de verdade/poder.
Mas isto implicar em uma atitude que no constitui uma mera
ruptura, subverso ou redefinio semntica, terminolgica ou gramatical

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1
Sobre o conceito de imanncia,
ver as obras O que Filosofia?
(DELEUZE; GUATTARI, 2010) e
A Arqueologia do Saber
(FOUCAULT, 1997b).

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acerca do sentido do termo verdade. Ao contrrio, trata-se de uma atitude


de ordem poltica que no poder operar um radical corte nos significados
da verdade tal como aparecem nas prticas reais e cotidianas, sob o preo
de no mais estar a se referir ao funcionamento deste dispositivo o
dispositivo da verdade.
Isto importante para diferenciar o carter imanente do dispositivo da
verdade tal como aparece no pensamento de Foucault em relao ao
pragmatismo lingustico (em seu aspecto antirrealista), tal como poderia ser
assumido mediante a perspectiva traada por Wittgenstein (1989), em suas
Investigaes Filosficas. Aqui no se trata exatamente de configurar
diferentes estados de coisas, diferentes prticas lingusticas ou diferentes
formas de vida mediante o uso do termo verdade. No se trata de apontar
para um conjunto de possibilidades de significao, mas seguir as linhas de
um dispositivo concreto. Portanto, uma analtica do dispositivo da verdade,
ou uma anlise dessas polticas da verdade, h que supor um certo conjunto
de prticas reais que constituem as linhas desse dispositivo. Assim, no se
trata de mudar a significao da verdade, nem mesmo de flexibiliz-la ou
relativiz-la, em um movimento de esvaziamento do conceito, da noo, ou
da palavra verdade. Trata-se, ao contrrio, de dizer algo do tipo: isto mesmo
que vocs chamam de verdade, isto mesmo que a verdade, isto mesmo que
aparece na produo de enunciados jurdicos, cientficos, religiosos e
polticos como verdade, pois bem, tudo isto dever ser descrito em termos
do funcionamento de um dispositivo especfico, o dispositivo da verdade.
Assim, a verdade no tomada como uma verdade em si, independente
de uma poltica da verdade ou de um regime de verdade, mas
precisamente aquilo que aparece e ganha realidade no interior desta
poltica ou deste regime. Por essa via, o conceito de regimes de verdade
aparece como um conjunto de procedimentos regulados para a produo, a
lei, a repartio, a circulao e o funcionamento dos enunciados
(FOUCAULT, 1988a, p.14). Por fim: esse regime no simplesmente
ideolgico ou superestrutural; foi uma condio de formao e
desenvolvimento do capitalismo (FOUCAULT, 1988a, p.14).
Poderamos, contudo, tomar como aspecto principal desta entrevista,
para aquilo que nos interessa, o seguinte: as funes do intelectual, na
medida em que relativas sua posio no dispositivo da verdade, tm a ver
com os efeitos de verdade. Mas os efeitos de verdade constituem
precisamente o que uma noo como a de ideologia tende a desconsiderar
(em relao, por exemplo, nfase no estudo dos mecanismos que fabricam
uma falsa representao da realidade).
Foucault (1988a, p.7), novamente para afastar-se das temticas ligadas
ideologia, dir nessa mesma entrevista que aquilo que lhe interessa so
os efeitos de verdade no interior de discursos que no so nem verdadeiros
e nem falsos. Por discursos que no so nem verdadeiros e nem falsos,
entendamos: discursos a que eu no atribuirei valor de verdade. Seu interesse
no , portanto, pelo valor de verdade dos enunciados, mas pelo valor da
verdade em termos polticos. Precisamente por operar deste modo com a
noo de verdade, os problemas em torno das noes de represso, de
proibio, de alienao, ou de ideologia ocupam uma posio periferia em
sua obra. Isso Foucault (1988b, p. 230-231) nos esclarece na entrevista
intitulada No ao Sexo Rei.

Ora, meu problema sempre esteve do lado do outro polo: a verdade. (...)
No quero fazer uma histria poltica da proibio, mas a histria poltica
de uma produo de verdade. (...) Que a histria do Ocidente no seja
dissocivel da maneira pela qual a verdade produzida e assinala seus
efeitos, eles [os historiadores] logo compreendero. (...) A histria da
verdade do poder prprio aos discursos aceitos como verdadeiros est
totalmente por ser feita.

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Novamente, em Segurana, Territrio e Populao, Foucault (2004, p. 5)


reafirma a inscrio de seu trabalho no campo da verdade: o que fao no
pertence nem histria, nem sociologia, nem economia. (...) uma
poltica da verdade. Entendamos, portanto, esse movimento de Foucault
em tematizar uma poltica da verdade como a anlise da formao de um
dispositivo: o dispositivo da verdade.

3. O reagenciamento do campo jurdico no campo da veridio


Em A Verdade e as Formas Jurdicas, Foucault (2011) estabelece um


esse paralelo entre uma histria da verdade e uma histria do direito. Nessa
ocasio, Foucault (2011) analisa o aparecimento da figura da testemunha
como aquela que sabe a verdade porque a viu, o surgimento do
procedimento do inqurito enquanto mecanismo que tenta reatualizar o
flagrante de delito (a prova da verdade), bem como a inscrio da
administrao do crime no registro da periculosidade do criminoso (cujos
termos de medidas sero dadas pelas cincias psi e disciplinas clnicas). Mas
o momento que gostaria de chamara ateno no que diz respeito ao
contraste entre uma analtica do dispositivo da verdade e uma crtica da
ideologia aparecer em O Nascimento da Biopoltica. No decorrer de todo
este curso, em especial nas primeiras aulas, podemos perceber que uma
srie de questes de mtodo aparecem frequentemente e indicam com
preciso algumas coordenadas de grande valia para situar o movimento do
pensamento de Foucault. Na aula ministrada em 17 de janeiro de 1979,
Foucault (2008, p.48) menciona que aquilo que tem feito ao problematizar a
delinquncia, a sexualidade, o mercado ou a instituio psiquitrica foi
abordar sob diversos ngulos uma histria da verdade, ou antes, abordar
uma histria da verdade que estaria acoplada, desde a origem, a uma
histria do direito.
Na sequncia, Foucault (2008) faz referncia ao momento em que as
prticas jurdicas passam a ser reagenciadas por todo um campo
extrajurdico ligado s disciplinas e as cincias psi, de modo a serem
reinscritas em termos bem distintos. Em suas palavras: a partir desse
momento, vocs veem que a funo jurisdicional do penal est se
transformando ou secundada pela veridio, ou eventualmente minada
por ela (FOUCAULT, 2008, p.48). Este momento refere-se a um conjunto de
mudanas no que diz respeito ao poder de julgar e punir o que foi
trabalhado por Foucault (2011, 2012, 1997a) em obras/cursos como A
Verdade e as Formas Jurdicas, O Poder Psiquitrico e, principalmente, em
Vigiar e Punir. precisamente isto que Foucault (1997a, p. 20) quer dizer
quando, em Vigiar e Punir, fala que a questo de verdade de um crime tem a
ver com a forma de participao da vontade do criminoso no ato do crime.

Eis, porm, que durante o julgamento penal encontramos inserida agora
uma questo bem diferente de verdade. No mais simplesmente: O fato
est comprovado, delituoso? Mas tambm: O que realmente esse fato,
o que significa essa violncia ou esse crime? Em que nvel ou em que
campo da realidade deve ser colocado? Fantasma, reao psictica, epi-
sdio de delrio, perversidade? No mais simplesmente: Quem o autor?
Mas: Como citar o processo causal que o produziu? Onde estar, no pr-
prio autor, a origem do crime? Instinto, inconsciente, meio ambiente,
hereditariedade?

Novamente, esta problemtica acerca do cruzamento entre jurisdio e


veridio aparece em seguida, no que diz respeito anlise dos dispositivos

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da sexualidade. Isto ocorre, ainda, sob o signo de uma certa primazia da


veridio sobre a jurisdio: o cruzamento entre certa jurisdio das
relaes sexuais (...) e certa veridio do desejo, que aquilo em que se
manifesta a armadura fundamental do objeto sexualidade (FOUCAULT,
2008, p.48). Em A Vontade de Saber, haver toda uma recusa ao que
Foucault (2009) chamou de imagem jurdico-discursiva do poder, tambm
chamada de imagem negativa. Assim, nas relaes entre poder e
sexualidade, trata-se o poder como aquilo que s sabe proibir, mascarar,
distorcer e censurar o sexo; como o que somente funcionaria dividindo tudo
o que diz respeito sexualidade em atos, pensamentos, desejos ou
sensaes permitidas ou proibidas, lcitas ou ilcitas e como algo que tem
uma ao regular, contnua e homognea da submisso e s esperaria
efeitos de obedincia. Essa imagem do poder inoperante para
compreendermos a produo dos dispositivos da sexualidade precisamente
porque a represso da sexualidade constitui um fenmeno derivado da
produo da sexualidade. Assim, o ponto mais importante do que Foucault
(2009, p. 65) entendeu como a produo do dispositivo da sexualidade a
inscrio do sexo como o lugar privilegiado em que reside e se oculta a
nossa verdade.

O importante que o sexo no tenha sido somente objeto de sensao e de
prazer, de lei ou de interdio, mas tambm de verdade e de falsidade, que
a verdade do sexo tenha se tornado coisa essencial, til ou perigosa,
preciosa ou temida; em suma, que o sexo tenha sido construdo em objeto
de verdade.

Portanto, eclipse da jurisdio na veridio mediante um novo poder de


julgar e punir, mas tambm primazia da veridio sobre a jurisdio no
campo da sexualidade, do desejo e das cincias da vida. Em O Nascimento da
Biopoltica encontramos ainda, por outras vias, esta expanso do campo da
veridio sobre o campo da jurisdio. Neste curso, Foucault (2008)
tematiza as formas de limitao de uma razo governamental que, por si
mesma, tenderia a ser ilimitada. H aqui dois momentos cruciais neste
processo. O primeiro, em meados do sculo XVI e incio do sculo XVII,
refere-se circunstncia em que o direito, a razo jurdica, deixa de ser um
mecanismo de multiplicao para ser uma forma de subtrao do poder
real. Nesta ocasio, o direito o principal instrumento que pode ser
acionado para de limitar os abusos, os excessos, as extravagncias, as
injustias e as injrias que por ventura podero aparecer nas prticas de
governo mediante o princpio da Razo de Estado. O segundo momento, por
volta de meados do sculo XVIII, diz respeito circunstncia em que a forma
fundamental de limitao da Razo de Estado deixa de lhe ser externa (a
instncia jurdica) e passa a lhe ser interna o que o caso da economia
poltica. Mas o que essa Razo de Estado e o que significa limit-la
externamente ou internamente?
Segundo Foucault (2008, p. 6), governar a partir do princpio da Razo
de Estado implica em fazer com que o Estado alcance o seu mximo de ser.
Isto implica, portanto, supor sempre que o Estado aquilo que existe (j que
o governo governa um Estado), mas aquilo que nunca existe
suficientemente (j que o governo governa para consolidar o Estado). Desta
forma, entendendo o Estado no como uma substncia, uma materialidade
ou uma positividade intrnseca, mas algo cujo preenchimento dado pelas
prticas de governo, Foucault (2008, p. 8) faz referncia a trs maneias de
governar que do corpo a isso que chamamos de Estado. So elas o
mercantilismo, a polcia interna e o aparelho diplomtico-militar. O primeiro
constitui um princpio de crescimento pelo enriquecimento monetrio, pelo
aumento da populao e pela concorrncia com as potncias estrangeiras. A
polcia interna constitui prtica de governo cujos objetivos se apresentam

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como ilimitados e direcionado ao mais tnue gro das condutas da


populao; e, por fim, a organizao de um aparelho diplomtico-militar
possui a funo de modular um certo equilbrio entre as relaes externas
de um Estado com os demais. Tudo isto constitui o corpo concreto dessa
nova arte de governar que se pautava pelo princpio da razo de Estado
(FOUCAULT, 2008, p.8). Assim, poderamos dizer, grosso modo, que a razo
jurdica aparece como forma de limitar externamente essas prticas de
governo e a economia poltica (que opera no registro da veridio e inscreve
as prticas de governo nesse registro) aparece como um limite no mais
exterior, mas interno prpria Razo de Estado.
Sobre essa limitao interna da racionalidade governamental liberal,
Foucault (2008) salientar a funo estratgica da economia poltica na
medida em que esta opera uma limitao de fato, geral, sobre os objetivos
do governo, demarcadora das possibilidades de ao do governo e, portanto,
supostamente no impositiva aos governados. Essas formas de limitao,
devidamente explicitadas no curso de 1979, constituem as formas de
governo dos homens pela verdade tais como agenciadas no registro de uma
economia poltica. Essa limitao diferia fundamentalmente da oposio
feita razo governamental pelo direito precisamente porque no divide
prticas governamentais em legtimas ou ilegtimas, mas sim em assertivas
ou no assertivas. Isto implica, de antemo, que a economia poltica dever
descobrir, revelar ou desvelar uma naturalidade prpria da prtica mesma
de governo (FOUCAULT, 2008, p. 22). Desta feita, uma prtica
governamental no poder fazer o que tem de fazer a no ser respeitando
essa natureza (FOUCAULT, 2008, p. 22). O bom governante, antes de ser
justo, dever ser prudente e bem informado pelos especialistas que o
cercam. No dever infringir essas leis que dizem respeito ao
funcionamento da sociedade, ao comportamento dos indivduos,
modulao racional de suas condutas, auto-organizao do mercado.
Surge, portanto, a noo de mercado como um lugar no de jurisdio, mas
de veridio; no de justa equalizao do valor da produo, mas de
revelao de uma natureza prpria. O mercado aparece ento como

(...) uma coisa que obedecia e deveria obedecer a mecanismos naturais,
isto , mecanismos espontneos, ainda que no seja possvel apreend-los
na sua complexidade, mas espontneos, to espontneos que quem
tentasse modific-los s conseguiria alter-los e desnatur-los (FOUCAULT,
2008, p.44).

Toda esta forma de limitao da economia poltica no , em momento


algum, descrita em termos de ideologia, ou de falseamento, mistificao,
distoro ou apagamento dos verdadeiros mveis da vida social, dos
verdadeiros mecanismos de coero e dominao utilizados nas prticas de
governo sob o princpio da Razo de Estado. Ao contrrio, esta
precisamente uma das ocasies em que Foucault (2008, p. 49) insiste
novamente em inscrever todo o seu trabalho no campo de uma histria da
veridio. Da mesma forma, os mecanismos que administram a
periculosidade e gerenciam a pena do sujeito criminoso no falseiam, mas
constroem a verdade do crime (FOUCAULT, 1997a). Seguindo o mesmo fio
condutor, o que os dispositivos da sexualidade fazem no uma distoro
da verdade da sexualidade, mas a inscrio da verdade no campo da
sexualidade (FOUCAULT, 2009).
Por fim, logo aps situar os princpios da Razo de Estado e inscrever
suas investigaes no campo da governamentalidade e imediatamente em
seguida apresentao do momento em que o mercado passa emergir como
uma instncia de veridio, eis que Foucault (2008) mais uma vez insiste em
bater na tecla da recusa em fazer de seu trabalho uma crtica da ideologia,
do erro, do falso e das proibies. Em suas palavras:

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Fazer uma histria dos regimes de veridio (...) e no a histria do erro, e
no uma histria da ideologia, etc., fazer a histria da veridio significa,
claro, renunciar a empreender mais uma vez a tal crtica da racionalidade
europeia que, como vocs sabem, foi insistentemente retomada desde o
incio do sculo XIX, sob diversas formas. Do romantismo Escola de
Frankfurt, foi sempre esse questionamento da racionalidade com o peso do
poder que lhe seria prprio, foi sempre isso que foi posto em questo. (...) A
crtica que lhes proponho consiste em determinar em que condies e com
quais efeitos se exerce uma veridio, isto , mais uma vez, um tipo de
formulao do mbito de certas regras de verificao e falsificao
(FOUCAULT, 2008, p.49-50).

4. Anarqueologia e Crtica da Ideologia


Uma terceira ocasio que gostaria de fazer referncia no que diz


respeito recusa de Foucault em trabalhar com a noo de ideologia
aparece no curso Do Governo dos Vivos. Nesta ocasio, Foucault (2010, p. 68)
no somente reafirma esta recusa, mas sublinha sua insistncia, sua
repetio e sua nfase: eu retomo sempre isso [a recusa da anlise em
termos de ideologia] que eu no cessei de repetir e de praticar; e, ainda,
acrescenta que essa recusa da anlise ideolgica eu insisti por diversas
vezes e retomei praticamente, creio, em cada um dos cursos e a cada ano.
Assim, a atualizao constante desta recusa constitui, em certa medida, toda
uma reconfigurao, um novo desenho, um retorcer de contornos e uma
indita ventania que arrasta em um sopro familiar o pensamento para
direes ainda desconhecidas. Trata-se, assim, de uma recusa que no
paralisa o lugar onde repousaria de modo soberano e seguro de si algo como
a posio de Foucault, mas uma recusa que agita o trao do movimento
pelo qual eu no estou mais no lugar onde eu estava agora h pouco
(FOUCAULT, 2010, p.69). Portanto, ao retomar essa recusa no curso de
1980, Foucault (2010, p. 68) dir: retomando-a, eu creio, ou em todo caso,
eu gostaria, eu espero, operar cada vez um leve pequeno deslocamento.
Antes disso, atenhamo-nos a outras trs razes pelas quais, neste momento,
ele afirma ter substitudo a noo de ideologia dominante pela noo de
saber-poder:

Primeiramente ela postura uma teoria incompleta, uma teoria imperfeita
da representao. Segundo, essa noo de ideologia dominante estaria
indexada, pelo menos implicitamente e sem poder desembaraar-se de
modo claro, oposio do verdadeiro e do falso, da realidade e da iluso,
do cientfico e do no cientfico, do racional e do irracional. Terceiro, enfim,
sobre a palavra dominante, depois de tudo, a ideologia fica num impasse
em relao a todos os mecanismos reais de assujeitamento, distanciando-
se, de qualquer modo, do empreendimento e repassando-o a um terceiro,
recorrendo aos historiadores do saber para perceber como e por que em
certa sociedade alguns dominam os outros (FOUCAULT, 2010, p.52).

Portanto, temos aqui trs inconvenientes: a noo de representao (a


ideologia no uma realidade, ela representa uma realidade), a oposio
transcendente entre verdadeiro e falso (a ideologia uma representao
falsa) e a abstrao da singularidade dos contextos de dominao (a
ideologia uma reproduo de estruturas prvias de dominao). A estas
razes, acrescentamos e relembremos aquelas referidas na entrevista
Verdade e Poder: a ideologia uma formao secundria, derivada e
superestrutural da realidade (o que algo semelhante a dizer que ela vem
depois, ou que uma representao); a ideologia remete sempre a um

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sujeito de modo a toc-lo e produzir seus efeitos sobre caractersticas


essenciais desse sujeito; e, por fim, o elemento que constitui eixo
aglutinador dos demais: a ideologia est sempre em oposio verdade.
Na primeira conferncia de A Verdade e as Formas Jurdicas, ao falar
acerca do aspecto polmico, conflitivo, perspectivo e estratgico do
conhecimento (no por sua natureza, mas exatamente por no ter uma
natureza) Foucault (2011, p. 26) fala da noo de ideologia como uma noo
muito embaraosa e ao mesmo tempo muito importante. Nesta mesma
ocasio, fala sobre como a noo de ideologia implica em determinado modo
de entender o sujeito e a verdade que esto na contramo de seu projeto:

Nas anlises marxistas tradicionais a ideologia uma espcie de elemento
negativo atravs do qual se traduz o fato de que a relao do sujeito com a
verdade ou simplesmente a relao de conhecimento perturbada,
obscurecida, velada pelas condies de existncia, por relaes sociais ou
por formas polticas que se impem do exterior ao sujeito do
conhecimento. A ideologia a marca, o estigma dessas condies polticas
ou econmicas de existncia sobre um sujeito de conhecimento que, de
direito, deveria estar aberto verdade (FOUCAULT, 2011, p.26-27).

Mas no curso de 1980 aparecer, ainda, um deslocamento dos mais


inusitados. O que Foucault, nesta ocasio, opor a uma anlise em termos de
ideologia precisamente uma atitude anarqueolgica. possvel, diante
disto, constituir uma oposio termo a termo das movimentaes realizadas
por uma crtica da ideologia daquelas operadas por uma anarqueologia.
Vejamos, primeiramente, o modo como Foucault (2010) traa o desenho das
relaes entre poder, verdade e sujeito em termos de crtica da ideologia, ou
anlise ideolgica:

Existe uma maneira, eu creio, tradicional, antiga e perfeitamente nobre, de
colocar a questo filosfica ou poltica dizendo que no momento em que o
sujeito se submete voluntariamente a uma ligao de verdade numa
relao de conhecimento; quer dizer, no momento em que ele pretende,
aps lhe serem dados os fundamentos, os instrumentos, as justificaes
com as quais ele pretende sustentar um discurso de verdade, a partir da, o
que ele pode dizer sobre, ou para, ou contra o poder que o assujeita? Dito
de outro modo, a ligao voluntria com a verdade, o que ela pode dizer
sobre a ligao involuntria que nos prende e nos dobra ao poder?
(FOUCAULT, 2011, p.69-70).

Considerando que estou do lado da verdade, considerando que estou


querendo a verdade, considerando meu vnculo com a verdade, meu desejo
de verdade, minha nsia por saber a verdade, pergunto: quais so os
poderem que pesam sobre mim, sobre meu grupo, sobre a comunidade ou a
sociedade de que fao parte que me impedem e nos impedem de ver as
relaes de poder tais como elas realmente so? Tenho a verdade na
inexorvel insistncia em estar do meu lado, pois eu vou com a verdade, eu
no poderia no querer a verdade! E tenho-a tambm como horizonte
transcendente e ideal de minha utopia, pois sempre posso deixar-me
ludibriar pelas miragens que o poder erige nesta via-crcis da verdade.
Tendo-a ao mesmo tempo nesta proximidade e nesta distncia, indago,
interrogo, questiono, denuncio, protesto: o que me assujeita, o que nos
assujeita? O que me impede, o que nos impede de ser(mos) sujeito(s)? Como
nos enganam? O que fazem conosco? Atravs de que fenda de luz, de que
brecha discreta de claro, de que fio tnue de verdade pode(re)mos
conseguir ver, conhecer, perceber, tomar conscincia, esclarecer, clarificar e
iluminar o campo obscuro onde as relaes de poder s podem o que podem
porque agem s escuras?

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Se, grosso modo, esta atitude consiste no esquema geral adotado por
aqueles que operam sob o signo de uma crtica ideologia, existe uma outra
atitude que consiste em retomar esse mesmo problema inversamente
(FOUCAULT, 2010, p.70). Esta outra atitude precisamente a
Anarqueologia. A Anarqueologia o inverso da Crtica da Ideologia. O
problema ser agora recolocado, portanto, nos seguintes termos:

O que este gesto sistemtico, voluntrio, terico e prtico de colocar em
questo o poder tem a dizer em relao ao sujeito do conhecimento e sobre
a ligao com a verdade na qual involuntariamente ele se encontra preso?
Dito de outro modo, no se trata mais de dizer: considerando o vnculo que
me liga voluntariamente verdade, o que posso dizer do poder? Mas,
considerando minha vontade, deciso e esforo de desfazer a ligao que
me liga ao poder, o que feito ento do sujeito do conhecimento e da
verdade? (...) o movimento de separar-se do poder que deve servir de
revelador da transformao do sujeito e das relaes que ele mantm com
a verdade (FOUCAULT, 2010, p.70).

Recuso o poder! Recuso o poder porque no aceito, no vejo nenhuma


legitimidade, desconheo qualquer necessidade e sou incapaz de cogitar
qualquer coisa semelhante a uma razo ltima para a existncia de qualquer
relao de poder! No recuso o poder porque quero propor coisa alguma, ou
porque quero solucionar os dilemas, os meandros e as sutilezas da
dominao, ou mesmo porque pretendo lhes dizer como construir, como
arquitetar, como edificar dia aps dia, aps sucesses montonas e
imprevisveis de sol e chuva, no lento e nobre trabalho da formiga que
repousa na absoluta paz de seu ofcio, o reino dos cus na terra, o caminho
rumo utopia da justia e da verdade, ou um mundo melhor para todos
vivermos! Recuso o poder porque posso recus-lo, porque possvel recus-
lo, porque nada h nele que impea, que paralise, que estagne, que pare, que
perpetue, peregrine ou petrifique o movimento do mundo em que vivemos.
Recusando o poder, o que posso dizer sobre a verdade? Recusando o poder
da verdade, o que posso dizer? Nas sombras do poder, o que sobra da
verdade? No assombramento da verdade, o que pode ser dito? No eclipse do
poder, que luz reside em seu cruzamento com a verdade? Na errncia bria,
trpega, afsica, cambaleante e enfraquecida do poder, haveria qualquer
coisa como as migalhas de po de Joo e Maria migalhas que, uma vez
jogadas no caminho rumo s perdies da floresta para traar o retorno
casa, poderiam nos dar as pistas, as marcas, os traos, os contornos, as rotas,
os mapas e as direes rumo morada segura, tranquila, serena e habitvel
do thos onde o sujeito poderia enfim respirar aliviado por sentir-se envolto
em um espectro de verdade?
Se na crtica ideologia o sujeito percebe-se involuntariamente ligado
ao poder por estar voluntariamente ligado verdade, na anarqueologia o
sujeito percebe estar involuntariamente ligado verdade na tentativa
voluntria de desvencilhar-se do poder. A verdade no se lhe apresenta, na
anarqueologia, como aquilo que se busca, mas aquilo de que se to difcil
livrar-se. No registro da crtica da ideologia, pergunta-se: eu quero a
verdade, como posso me livrar do poder? No contexto da anarqueologia,
antecipa-se: recuso o poder, e diante disso, o que a verdade? O que fao
com a verdade?. A pergunta da anarqueologia em relao verdade no
de modo algum acessria ou casual, mas refere-se precisamente
problemtica posio da verdade em relao s atitudes de resistncia e
recusa. Este o que fazer com a verdade? uma questo que, para ser
anarqueolgica, deve ser sustentada pelo questionamento de todo e
qualquer poder, inclusive e principalmente o poder da verdade. Restaria a
qualquer coisa como a verdade? Caso reste, o que fazer com ela? Eis o maior
dilema da anarqueologia!

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Por fim, quando se aproxima do trmino da aula de 30 de janeiro de


1980 ministrada no Collge de France, Foucault (2010) ope esque-
maticamente, termo a termo, um conjunto de atitudes, de teses, de suposies
e de propsitos que situam em polos equidistantes a crtica da ideologia e a
anarqueologia. Estas oposies so colocadas, novamente, mediante a
exposio de algumas questes de mtodo que so erigidas quando se toma
como exemplo as anlises feitas por Foucault acerca da loucura.

Uma anlise em termos de ideologia teria consistido em perguntar:
considerando isto que a loucura (posio universalista); considerando
isso que a natureza do homem, a essncia do homem, o homem alienado,
a liberdade fundamental do homem, etc. (posio humanista); ento
perguntar-se, a partir dessa posio universalista e humanista: a qual
motivo e a qual condio obedeceu o sistema de representaes que
conduziu prtica do internamento, sabendo o quanto ela era alienante?
Em que medida era possvel reformul-la? Etc. isso, se vocs quiserem, o
que teria consistido um estudo de tipo ideolgico. O estudo de tipo
anarqueolgico consistiria, se vocs quiserem, em tomar a prtica do
internamento na sua singularidade histrica, quer dizer, na sua
contingncia (...). a partir daqui que preciso procurar qual tipo de
relao de conhecimento encontrou-se, por meio dessa prtica mesma,
fundado com seus efeitos estruturantes, determinantes do campo de saber,
da teoria, da medicina, da psiquiatria, etc., mas tambm, com seus efeitos
nas experincias do prprio sujeito no momento em que separa razo e
desrazo, em que o sujeito se considera como doente (FOUCAULT, 2010,
p.72-73).

Assim, uma anlise em termos de ideologia, que dificilmente deixa de


ser uma crtica da ideologia j que o anncio de algo como ideolgico
frequentemente coincide com uma atitude de crtica a esse algo , constitui
um empreendimento geralmente composto por quatro etapas:
a) A eleio e definio de uma categoria universalista: isto a loucura,
isto a alienao, isto a sexualidade, isto a razo, isto o poder;
b) A adoo de uma posio humanista: a natureza humana desta e
daquela forma, o homem possui tais e tais necessidades, prprio
da condio humana isso e aquilo, para ser verdadeiramente
homem, necessrio x e y;
c) Anlise ideolgica do funcionamento do poder: as razes para o
poder se exercer da forma que o exercem so estas e aquelas, so
objetivos so esses, suas condies de funcionamentos so essas,
aqueles que o exercem so estes, aqui vos apresento as verdades
que o poder ideolgico quer mascarar e por tais e tais razes este
mascaramento aparentado verdade;
d) Programas de reformas: proponho isto! Portanto, faamos assim e
assado, procedamos desta e daquela forma, tenhamos isto e aquilo
como meta, como ideal, como utopia. Isso nos ajudar a descortinar
o poder ideolgico dominante e nos aproximar da emancipao e
da verdade.

A estes quatro procedimentos filiados a uma crtica da ideologia,
podemos opor quatro atitudes anarqueolgicas:
a) Recusa dos universais: tomar os universais (a loucura, a razo, a
sexualidade, etc.) como coisas que no explicam nada, mas, ao
contrrio, procurar explic-los a partir das prticas histricas que o
produzem, como se nada soubesse de antemo sobre o que eles so;
b) Posio anti-humanista: no existe natureza, condio ou essncia
humana! No existe nada que se possa dizer que fundamental,

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prprio, constitutivo ou invariante nos seres humanos, nos homens,


nas mulheres, nos sujeitos, nos indivduos;
c) Anlise tecnolgica ou a(na)rqueogenealgica dos mecanismos de
poder: investigar a complexidade das estratgias de poder que
esto em jogo e so acionadas no para afastar de ns mesmos
aquilo que realmente somos, mas para fabricar, inventar, produzir
aquilo que julgamos mais evidente, mais essencial e mais inevitvel
e mais prximo de ns mesmos;
d) Formao de agenciamentos de resistncia ou no-aceitao: recusar
a permanncia dessas estratgias de poder que fabricam nossas
identidades e nossas relaes, colocar sempre em cheque, em
movimento, em possibilidade de reverso aquilo que aparece como
cristalizao mediante um bloqueio das relaes de poder pelas
mais diversas formas de dominao.

A anarqueologia aparece, assim, como imagem invertida na rachadura
do espelho da ideologia. Foucault (2010) assim posiciona as quatro
coordenadas que permitem este estranho reconhecimento de uma analogia
entre os cacos da ideologia e as imploses da anarqueologia.

Em outras palavras, srie categoria universal, posio humanista, anlise
ideolgica e programao de reformas, ope-se uma srie que seria: recusa
dos universais, posio anti-humanista, anlise tecnolgica dos mecanismos
de poder; e, no lugar de um programa de reforma, digamos relaes mais
extensas de pontos de no aceitao (FOUCAULT, 2010, p.13).

Assim, o desafio consistir em desprender-se de uma representao


binria acerca das possibilidades de luta e de enfrentamento s mais
distintas formas de dominao: ou denunciar suas formas de assujeitamento
tal como nos termos de uma crtica da ideologia, ou calar diante dessas
formas. Este desprendimento nos permitir perspectivar essas formas de
dominao de outra maneira nem tanto como uma distoro da verdade,
mas como uma dominao pela via de um poder da verdade. Deste modo,
sero as formas concretas, os embates cotidianos e os enfrentamentos de
cada dia que daro corpo difcil tarefa do intelectual na ocupao de um
lugar no dispositivo da verdade: no a de conscientizar os outros em nome
da verdade, mas a de resistir com alguns outros ao poder da verdade.


Sobre o artigo

Recebido: 25/02/2013
Aceito: 07/05/2013

Referncias bibliogrficas

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