O Que É Um Plano - Pascal Bonitzer
O Que É Um Plano - Pascal Bonitzer
O Que É Um Plano - Pascal Bonitzer
Pascal Bonitzer
A profundidade de campo deveria conduzir, pela
prpria fora do realismo, o autor de Cidado Kane a
identificar o plano seqncia.
Andr Bazin
Como toda histria, aquela do cinema a histria das divises, das deiscncias,
das rupturas que afetaram a arte do filme, a transformaram e a fizeram o que ela . Uma
histria plena de som e fria (no somente nas telas, mas por trs delas), de polmicas
sangrentas, dejetos e cadveres. Inextricavelmente ligada a essa histria, fazendo parte
dela, a histria das teorias de cinema.
O cinema se nutriu, desde as origens e mesmo talvez antes de teorias. Seus
maiores inventores foram tambm tericos (eles inventaram sua linguagem; eles foram,
segundo o termo de Roland Barthes, logotetas), e o cinema jamais foi to grande, to
fecundo, to vivo quanto na poca em que as teorias o atravessavam e se afrontavam
poca, verdade, quando o cinema ainda no se confundia inteiramente com o showbusiness e a teoria ainda no se havia refugiado na universidade, no tdio das anlises
plano a plano, mas se encontrava posta em prtica nos filmes.
O ltimo avatar, o ponto de suspenso, ao mesmo tempo, que se quiser, a
reduo caricatural desta co-proximidade da teoria e da prtica cinematogrficas teriam
sido talvez, no perodo recente, as frmulas lapidares de Godard em sua srie
militante ps-68, e notadamente a expresso famosa, talvez a expresso que resume
tudo (em um interttulo de Vent dest1): isso no uma imagem justa, justo uma
imagem.
Justo uma imagem: por que, com efeito, no recomear da? Por que no
questionar novamente o corpo, a linguagem do cinema a partir dessa frmula estranha e
bela, simplesmente do que ela parece oscilar beira do puro non-sens pois afinal, com
a exceo de interpret-la segundo a teoria moderna do significante2, o qu fazer de
justo uma imagem?
Houve, certamente, alguma coisa de herica na tentativa de Godard em reduzir o
cinema somente s suas imagens. Um filme no se apresenta nunca apenas como uma
cadeia de imagens, que se entenda por isso o que singelamente se oferece vista. Sem
falar do som o qual Godard tinha precisamente devolvido, nos filmes desta poca, a
justeza da qual queria as imagens privadas -, todo mundo sabe que num filme no se
est s voltas s com imagens, justas ou no, mas com uma realidade mais ou menos
truncada, decupada e ordenada na maioria dos filmes em cenas, em seqncias e,
1
terico, em primeiros planos, planos mdios, planos gerais, planos de conjunto, etc
(existem categorias intermedirias). Por outro lado, distinguem-se os planos entre si
pelo eixo diacrnico da montagem, em funo dos cortes e das colagens (assim,
correntemente, se fala de um plano de 15 ou de 230, etc.). No se trata,
necessariamente, no primeiro e no segundo caso da mesma acepo da palavra plano,
pelo menos desde que a cmera mvel e que os planos mudam na filmagem.
Assim, os tericos se emocionaram com esta confuso terminolgica que freme
de ambigidade, de incerteza ontolgica, o elemento celular de base do edifcio flmico.
Alguns (por exemplo, Nol Burch, em Prxis do cinema) sublinharam que esta
confuso seria prpria da lngua francesa. O ingls utiliza dois termos diferentes: shot
para as distncias-cmera (long shot, medium shot, close shot, etc; ponto de vista do
enquadramento) e take para a durao do registro (ponto de vista da montagem). Todo o
mal, segundo Jean Mitry, viria de um monstro terminolgico forjado aps a guerra pelos
crticos (i.e. Andr Bazin): o plano-seqncia.
Para Mitry, com efeito, existe apenas uma nica definio vlida do termo
plano; a definio de escala das distncias-cmera. Um plano uma curta cena
ao curso do qual os personagens principais so registrados segundo um mesmo
enquadramento e sob um mesmo ngulo, a uma distncia da cmera. Divide-se de modo
inteiramente arbitrrio em primeirssimo plano, primeiro plano [...], plano geral,
medida que o quadro envolve um campo espacial cada vez mais extenso (Dicionrio
do cinema, Laroussse, 1963). No saberia, neste sentido, ter planos-seqncias, pois o
plano e a seqncia pertenceriam duas ordens incompatveis, uma exclusivamente
espacial e a outra exclusivamente temporal. Uma seqncia uma reunio sintagmtica,
diacrnica, de cenas, elas prprias compostas de um conjunto de planos. Geralmente,
esta reunio se faz pela montagem, segundo uma decupagem preestabelecida. Nisto que
se chama (erroneamente, ento, segundo Mitry) o plano-seqncia, esta reunio se faz
simplesmente na continuidade do registro, durante a filmagem. A montagem
simplesmente reabsorvida na mise-en-scne, substituda e, se quiser, implicitada pelos
movimentos de cmera: [...] no h (ou muito pouco) planos-seqncias, ou seja,
planos nos quais a montagem ou as condies de montagem no intervm... Nesses
pretensos casos de plano-seqncia, a cmera, ao contrrio, est em perptuo
movimento (conforme Soberba, Festim diablico6, etc.). uma contnua mudana de
ngulos e de pontos de vista. De fato, no lugar de montar, colando uma ponta com
outra de planos diversos registrados separadamente, se faz montagem em estdio,
realizando-a nesta mesma sucesso de planos em um nico e mesmo movimento
contnuo, o curso de uma nica tomada.7
Segundo a concepo rigorosa de Mitry, no se saberia ento, no limite, falar de
plano em si, mas, pelo menos implicitamente, sempre se referir ao tamanho deste,
ao valor diferencial que ele exprime no espao flmico. A noo de plano, com efeito,
no nasceu com o cinema, mas com a montagem, ou seja, com a multiplicidade de
pontos de vista introduzida por Griffith: Quando, aps as primeiras tentativas de D. W.
6
The magnificent Amberson (EUA; 1942) de Orson Welles e Rope (EUA; 1948) de Alfred Hitchcock. (N.
do T.).
7
Jean Mitry, Esthtique et psychologie, t. I., ditions universitaires, p. 156. Um pouco mais acima Mitry
escreve: [...] como, por definio mesma, um plano uma determinao espacial fixa, falar de um plano
nico enquanto se trata de um travelling um non-sens [...] De um modo geral, poder-se-ia dizer que um
travelling um conjunto de planos sucessivos (cada imagem ou quase correspondente a um ponto de vista
diferente), assim como um crculo uma sucesso de linhas retas. (p. 153).
nasceu o cinema da multiplicidade dos pontos de vista, do leque dos planos. Os planos
so o efeito da montagem griffithiana, ou seja, da introduo da diferena no ponto de
vista, no campo flmico, nos corpos, e so, ento, menos as unidades de base de uma
linguagem cinematogrfica cuja lngua, como notou Metz, inencontrvel (e afinal, o
que quer dizer uma linguagem sem lngua?) do que as marcas diferenciais de um
sistema de escritura, de um agenciamento de signos e de sensaes.
Signo ou sensao? A partir do momento em que comeou a destacar e articular
entre si os planos, os valores ou tamanhos de planos diferentes, o cinema se encontrou
como que dividido entre duas possibilidades. De um lado, pela passagem regulada,
sbia, de vistas afastadas a vistas aproximadas, da viso tica viso hptica12, a
mise-en-scne podia dirigir o interesse dos espectadores, lhes fazer tocar com o dedo, de
algum modo, com os primeiros planos, objetos sedutores, emocionantes, inquietantes ou
repugnantes, a montagem podia jogar com a sua viso parcial, relativa ao ponto de vista
da cmera, no suspense, enfim inventar e variar toda uma ordem de sensaes. Assim,
por outro lado, e correlativamente, se criava todo um arsenal de signos
cinematogrficos, cujos metteurs-en-scne, doravante autores e demiurgos, e no mais,
como nos primeiros tempos, engenheiros e tcnicos, experimentavam com embriaguez o
poder. Ao mesmo tempo, o mundo se encontrava abalado, segundo o termo de um
jornalista.
No momento em que Griffith chegava ao apogeu de sua potncia artstica, onde
todos os procedimentos da montagem emocional eram no somente inventados mas
utilizados ao mximo nos vastos afrescos e sublimes melodramas, a Revoluo de
Outubro explodia na Rssia e toda espcie de bricoleurs formalistas e futuristas, que
vagavam no teatro, na poesia, no cinema e montavam espetculos com barbantes,
pedaos de papelo e caixas de conserva, se enfileiraram debaixo de sua bandeira. Em
pouco tempo, o cinema se tornava uma arte de Estado, e mesmo a mais importante
dixit Lnin e os mais geniais bricoleurs em questo comearam a poder experimentar
em grande escala (comearam eles jamais puderam terminar).
Eles foram, como tudo, subjugados pela montagem griffithiana. Eles foram,
como todo mundo, impressionados por seu uso magistral, cada vez mais analtico e
violento, sensacional, do primeiro plano. Como todo mundo, e mesmo um pouco mais
que todo mundo. Eles no somente investiram todas as suas elucubraes sobre a
12
Cf. Gilles Deleuze, Logique de la sensation, ditions de la Diffrence, propsito da pintura de Bacon.
Mais a mo [...] subordinada, mais a viso desenvolve um espao tico ideal, e tende a apreender
suas formas seguindo um cdigo tico. Porm, esse espao tico [...] apresenta ainda referentes manuais
com os quais se conecta: chamar-se- tcteis tais referentes virtuais, tais como a profundidade, o
contorno, o modelado..., etc. Essa subordinao relaxada da mo ao olho pode dar lugar, por sua vez, a
uma verdadeira insubordinao da mo: o quadro permanece uma realidade visual, mas o que se impe a
viso um espao sem forma e um movimento sem repouso que ela tem dificuldade de seguir, e que
desfaz o tico. [...] Enfim, chamar-se- de hptico cada vez que no houver mais a subordinao estreita
em um sentido ou outro [...], mas quando a prpria viso descobrir em si a funo de tato, que lhe
prpria, e pertence apenas a ela, distinta de sua funo tica. Dir-se- ento que o pintor pinta com seus
olhos, mas somente enquanto ele toca com os olhos. E sem dvida, essa funo hptica pode ter sua
plenitude diretamente e de um s golpe, sob formas antigas, as quais perdemos o segredo (arte egpcia).
Mas ela pode tambm se recriar no olho moderno a partir da violncia e da insubordinao manuais
(p. 99). Poder-se-ia assim ver na paixo pelo primeiro plano, pela viso em primeiro plano, que suprime a
profundidade tctil-tica, uma tentativa de instaurar uma ordem diferente da viso: a hptica. Os
primeiros planos de Vertov e Eisenstein, mas tambm aqueles de Godard, com os traados manuais de
vdeo e as incrustaes desfigurativas.
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Em todo caso, bem esse terror que buscou e desejou Eisenstein, desde a poca
em que, contra a disperso esquizofrnica do cine-olho vertoviano, ele proclamava
querer rachar os crnios com um cine-punho, at poca em que, criticado e
marginalizado pelo cinema oficial stanilista, teve que se defender:
Eu sempre agi com uma grande modstia: eu
tomei tal ou qual trao ou aspecto do fenmeno
cinematogrfico e me esforcei em analis-lo da maneira
a mais detalhada possvel.
Eu tomei o primeiro plano.
Porm, as leis da perspectiva cinematogrfica
so tais que uma barata filmada em primeiro plano
parece na tela cem vezes mais temvel que uma centena
de elefantes filmada em um plano de conjunto. 15
Essa mesma lei, acrescentava misteriosamente, pode nos conduzir para alm do
cinema.
Fazia aluso a uma funo poltica do terror do primeiro plano? No proibido
pensar isso.
Porm, ele pensava talvez sobretudo nas leis mais gerais da figurao e da
desfigurao. Tambm se encontra primeiros planos no romance Griffith retira seus
procedimentos de Dickens16 -, na pintura... O primeiro plano para Eisenstein uma
entidade, um signo exttico, que faz sair o corpo de si mesmo, o esprito de si mesmo,
e tambm do espao realista dos cem elefantes em plano de conjunto. O primeiro plano
introduz uma diferena absoluta: mudanas absolutas das dimenses dos corpos e dos
objetos na tela17, escreve. Na tela, e somente na tela, uma barata vale cem elefantes.
Tal o efeito do primeiro plano, tal o efeito do jogo cinematogrfico, tal o efeito,
tambm, da onipotncia do artista. Essas mudanas absolutas das dimenses dos
corpos... supem, com efeito, um mestre todo poderoso, um mestre absoluto, para
executar essas metamorfoses onde a realidade no tem parte. Mas tambm e
correlativamente um olho inteiramente livre em relao realidade um olho
puramente intelectual, um olho que no funciona segundo a perspectiva clssica, um
olho tctil, ou melhor dizendo, hptico. Todo o esforo de Eisenstein, com o primeiro
plano e a montagem, consiste em tentar suspender a hiptese realista do cinema, a sua
demasiadamente famosa fatalidade narrativa.
Tudo indica que, se apoiando sobre o primeiro plano e a montagem, Eisenstein
acreditou poder ir alm dessa honesta narrao que a montagem griffithiana e a
Amrica souberam conduzir a uma tal potncia: A Amrica no compreendeu a
montagem enquanto elemento novo, possibilidade nova. A Amrica honestamente
narrativa, ela no constri seu potencial evocador sobre a montagem, mas mostra
honestamente o que se passa.18 Dito de outro modo, a Amrica no compreendeu a
possibilidade metafrica vertical da montagem, ela permaneceu na metonimia narrativa,
na viso tica na qual cem elefantes valem cem elefantes, na qual uma barata equivale a
15
uma barata, na qual o olho no viaja atravs das mudanas absolutas das dimenses
dos corpos e dos objetos na tela. Griffith no compreendeu, segundo Eisenstein, nesse
artigo, as possibilidades infinitas intelectuais, fsicas que lhe ofereciam a sua
inveno, o primeiro plano e a montagem. Em definitivo, a montagem em Griffith,
ainda que deslumbrante, se reduz montagem das perseguies, e a fragmentao
do dilogo em primeiro plano imposta pela necessidade de mostrar alternadamente a
expresso do rosto das coqueluches do pblico.19
Toda a histria do cinema seria, nesse sentido, desde a inveno do sonoro,
aquela de uma reduo sistemtica, segundo a metonmia narrativa, dos poderes do
primeiro plano e da montagem. No h espao para mudanas absolutas das dimenses
dos corpos... no sonoro: ento que as regras de continuidade experimentadas por
Kulechov se tornam uma lei imperiosa, que o campo-contracampo fecha novamente o
espao cinematogrfico ao nvel do dilogo teatral e que todo o cinema tende a se
estabilizar em plano mdio. O terror do primeiro plano e da viso hptica so
apreendidas e continuadas nos limites de um gnero: o filme de terror, o thriller. Tanto
na U.R.S.S. quanto em Hollywood (Qu viva Mxico!, O prado de Beijin20), as
dificuldades de Eisenstein do uma virada trgica.
No h mais espao para a barata em primeiro plano. O olhar se
antropomorfiza. Eisenstein se lamentava: Demasiadamente freqente, nos escritos
cinematogrficos, o reino do olhar e nada mais, eis porque as minhas baratas em
primeiro plano fazem tanto medo. 21
ento que se estabelece o reino da decupagem. O que esse olhar e nada
mais? o close-up na vedete, em um espao trivialmente realista. o reino da
identificao com os personagens principais, do jogo de pingue-pongue do campocontracampo. Andr Bazin muito bem analisou o sistema, a partir de um exemplo
forjado para a ocasio, mas que melhor valoriza a domesticao da multiplicidade de
ngulos e de planos por uma retrica tica e narrativa. Aps a Segunda Guerra Mundial,
no momento em que Hollywood triunfa, em que emerge o neo-realismo italiano e em
que Welles e Gregg Toland reinventam a profundidade de campo (ou seja, um novo
estilo de agenciamento de planos), eis como se encontram as coisas: Um personagem,
encerrado em seu quarto, espera que seu carrasco venha encontr-lo. Ele fixa com
angstia a porta. No momento em que o carrasco vai entrar, o metteur en scne no
faltar fazer um primeiro plano da maaneta da porta girando lentamente; esse primeiro
plano psicologicamente justificado pela extrema ateno da vtima a esse signo de sua
penria. a seqncia dos planos, anlise convencional de uma realidade contnua, que
constitui propriamente a linguagem cinematogrfica atual.22
Trinta anos depois, com algumas poucas excees, ns ainda estamos a.
Anlise convencional de uma realidade contnua, diz Bazin. necessrio acrescentar
algumas notas. Em relao ao espao intelectual mltiplo, implicando igualmente um
19
Id., necessrio aqui sem dvida indicar a parte de m f em S. M. Eisenstein. Ele melhor reconheceu,
em outra parte (cf. supra), a sua dvida com Griffith.
20
Qu viva Mxico! (EUA/Mxico; 1932) e Bezhin lug (URSS; 1937); ambos filmes de Eisenstein, no
terminados por problemas polticos (N. do T.).
21
Id., ibid, p. 112.
22
Andr Bazin, Quest-ce que le cinma? Une esthtique de la ralit: le noralisme, ditions du Cerf,
p. 12.
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